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A CAÇA AO OUTUBRO VERMELHO / Tom Clancy
A CAÇA AO OUTUBRO VERMELHO / Tom Clancy

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A CAÇA AO OUTUBRO VERMELHO

Primeira Parte

 

                   Sexta-feira, 3 de Dezembro

O capitãode-mar-e-guerra Marko Ramius, da Marinha soviética, estava vestido para as condições árcticas habituais na base de submarinos da Esquadra do Norte, em Polyarnyy. Envolviam-no cinco camadas de lã e de oleado. Um rebocador sujo guiava a proa do seu submarino para norte, apontando-a ao canal. A doca que albergara o seu Outubro Vermelho durante dois intermináveis meses era agora uma caixa de cimento cheia de água, uma das muitas especialmente construídas para abrigar submarinos providos de mísseis estratégicos das inclemências do tempo. Na borda, marinheiros e operários do cais assistiam à saída do barco, à maneira russa, impassíveis, sem um aceno ou um aplauso.

— Marcha lenta à frente, Kamarov — ordenou.

O rebocador saiu do caminho. Ramius olhou para a popa e viu a água agitada pela força das hélices gémeas de bronze. O comandante do rebocador acenou-lhe. Ramius retribuiu-lhe o gesto. O rebocador fizera um trabalho simples, mas depressa e bem. O Outubro Vermelho, um submarino da classe Typhoon, navegava autonomamente em direcção ao canal principal do Fiorde Kola.

— Lá está o Purga, comandante.

Gregoriy Kamarov apontou para o quebra-gelos que os escoltaria até ao mar. Ramius limitou-se a acenar de cabeça. As duas horas necessárias para percorrer o canal poriam à prova não a sua arte de marinharia, mas a sua resistência. Soprava um vento frio do norte, a única espécie de vento norte naquela parte do mundo. O fim do Outono fora surpreendentemente ameno e quase não tinha caído neve numa área que a conhecia com altura de metros; porém, uma semana antes, uma violenta tempestade devastara a costa de Murmansk, soltando blocos de gelo árctico. O quebra-gelos não era, pois, uma formalidade. O Purga afastaria os blocos que, de noite, pudessem ter sido arrastados para o canal. O mais aperfeiçoado submarino nuclear da Marinha soviética não podia correr o risco de ser danificado por qualquer massa errante de água congelada.

As águas do fiorde estavam agitadas, batidas pelo vento agreste. Começaram a lamber a proa esférica do Outubro, envolvendo-a, escorrendo pela coberta plana dos mísseis à frente da altaneira torre negra. A água apresentava-se coberta do óleo sujo de inúmeras embarcações, sujidade que não se evaporava devido às temperaturas baixas, a qual deixava um anel preto nas paredes rochosas do fiorde como sinal do banho de um gigante pouco asseado. Comparação bastante a propósito, pensou Ramius. O gigante soviético pouco se importava com o lixo que deixava na face da Terra, resmungou consigo. Aprendera a arte de marear na juventude, em barcos de pesca costeiros, e sabia o que era estar de bem com a natureza.

— Aumentar a velocidade para um terço — disse.

Kamarov repetiu a ordem do seu comandante pelo telefone da ponte. A água agitou-se mais à proa do Outubro, na esteira do Purga. O capitão-tenente Kamarov era o navegador. Servira antes como piloto de barra para os grandes vasos de guerra fundeados nas duas margens da vasta enseada. Os dois oficiais não perdiam de vista o quebra-gelos armado, trezentos metros adiante; as condições de navegabilidade exigiam atenção. Na coberta da popa do Purga um punhado de tripulantes deambulava ao frio, um deles usando o avental branco de cozinheiro. Queriam testemunhar a partida do Outubro Vermelho para o seu primeiro cruzeiro operacional e aproveitavam também o pretexto, como outro qualquer, para quebrar a monotonia, inimiga dos marinheiros.

Noutra altura, o facto de lhe escoltarem o submarino — o canal era amplo e profundo, ali — teria irritado Ramius; naquele dia, não. O gelo era realmente motivo de preocupação. E para Ramius não era o único.

— Então, meu comandante, lá vamos outra vez para o mar, servir e proteger a Rodina!

O capitão Ivan Yurievich Putin meteu a cabeça pela escotilha — sem permissão, como de costume — e subiu a escada desajeitadamente — não era um marinheiro. O pequeno centro de controle estava já apinhado com o comandante, o navegador e um vigia silencioso. Putin era o zampolit (comissário político) do barco. Dedicava-se exclusivamente a servir a Rodina (Mãe-Pátria), palavra que possuía conotações místicas para um russo e que, juntamente com V. I. Lenin, era o substituto da divindade inventado pelo Partido Comunista.

— Pois vamos, Ivan — respondeu Ramius mais bem-disposto do que realmente estava. — Duas semanas no mar. É bom deixar o cais. Um marinheiro pertence ao mar, não foi feito para estar atracado, a aturar burocratas e operários de botas sujas. E estaremos mais quentes.

— Acha isto frio? — perguntou Putin, incrédulo.

Pela centésima vez, Ramius disse a si próprio que Putin era o perfeito comissário político. Falava sempre demasiado alto, o seu humor era sempre demasiado afectado. Nunca permitia a ninguém que esquecesse quem ele era. Perfeito comissário político. Putin era um homem facilmente temível.

— Navego em submarinos há muito tempo, meu amigo. Habituei-me a temperaturas moderadas e a uma coberta estável debaixo dos pés.

Putin não se apercebeu do insulto velado. Fora colocado nos submarinos após uma primeira comissão nos contratorpedeiros, interrompida por um enjoo crónico — e talvez porque ele não se ressentia da reclusão nos submarinos, coisa que muitos homens não suportavam.

— Ah, Marko Aleksandrovich, em Gorkiy, num dia como este, as flores abrem-se!

— E que flores serão essas, camarada comissário político? Ramius examinou o fiorde pelo binóculo. Ao meio-dia, o Sol mal cavalgava o horizonte a sudeste, lançando luz laranja e sombra púrpura pelas paredes rochosas.

— Flores da neve, evidentemente — disse Putin, rindo alto. — Num dia como este, os rostos das crianças e das mulheres ficam muito rosados, a gente respira e o bafo parece uma nuvem, e o vodca sabe particularmente bem. Ah! Quem me dera estar em Gorkiy num dia assim!

O patife devia trabalhar para o Intourist, disse Ramius consigo, se Gorkiy não fosse uma cidade fechada a estrangeiros. Já lá estivera duas vezes. Vira-a como uma típica cidade soviética, cheia de edifícios periclitantes, ruas sujas e cidadãos mal vestidos. Como na maior parte das cidades russas, o Inverno era a melhor estação em Gorkiy. A neve escondia o lixo todo. Ramius, meio lituano, possuía recordações de infância de melhores sítios, uma aldeia costeira cuja origem hanseática persistia em conjuntos de casas apresentáveis.

Era raro que alguém não sendo grande-russo andasse a bordo — muito menos comandasse um vaso soviético. O pai de Marko, Aleksandr Ramius, fora herói do Partido, um comunista dedicado e convicto que servira Estaline fielmente e bem. Quando os soviéticos tinham ocupado pela primeira vez a Lituânia, em 1940, Ramius fora eficiente na repressão dos dissidentes políticos, dos proprietários de lojas, dos sacerdotes e de quem quer que pudesse resistir ao novo regime. Da sorte que lhes fora reservada nem Moscovo fazia agora ideia. Quando os alemães invadiram a Lituânia, um ano mais tarde, Aleksandr lutara heroicamente como comissário político e distinguira-se, depois, na batalha de Leninegrado. Em 1944, tinha regressado como ponta-de-lança do Décimo Primeiro Exército para fazer uma vingança sangrenta sobre os que haviam colaborado com os alemães ou disso eram suspeitos. O pai de Marko fora um verdadeiro herói soviético — e Marko sentia uma profunda vergonha de ser seu filho. A saúde da mãe soçobrara durante o interminável cerco de Leninegrado. Morrera ao dá-lo à luz e, por isso, Marko tinha sido criado pela avó paterna, na Lituânia, enquanto o pai se pavoneava no Comité Central do Partido, em Vilnius, aguardando a sua promoção para Moscovo. Conseguira-a, também, e era candidato a membro do Politburo quando um ataque cardíaco lhe pusera termo à vida, prematuramente.

A vergonha de Marko não era total. A proeminência do pai possibilitara os seus objectivos presentes e Marko planeava vingar-se da União Soviética o suficiente, talvez, para satisfazer os, milhares de compatriotas seus que tinham morrido ainda antes de ele ter vindo ao mundo.

— Para onde vamos, Ivan Yurievich, ainda faz mais frio.

Putín bateu no ombro do seu comandante. Seria um afecto fingido ou real? Marko não saberia dizê-lo. Real, provavelmente. Ramius era um homem honesto e reconhecia que aquele pateta baixinho e barulhento possuía alguns sentimentos humanos.

— Não percebo, camarada comandante, por que motivo parece sempre feliz quando deixa a Rodina e vai para o mar...

Ramius sorriu por trás do binóculo.

— Um marinheiro tem uma pátria, Ivan Yurievich, mas duas esposas. Você nunca compreenderá isso. Agora vou para a minha outra esposa, a fria e cruel que é dona da minha alma. — meno e quase não tinha caído neve numa área que a conhecia com altura de metros; porém, uma semana antes, uma violenta tempestade devastara a costa de Murmansk, soltando blocos de gelo árctico. O quebra-gelos não era, pois, uma formalidade. O Purga afastaria os blocos que, de noite, pudessem ter sido arrastados para o canal. O mais aperfeiçoado submarino nuclear da Marinha soviética não podia correr o risco de ser danificado por qualquer massa errante de água congelada.

As águas do fiorde estavam agitadas, batidas pelo vento agreste. Começaram a lamber a proa esférica do Outubro, envolvendo-a, escorrendo pela coberta plana dos mísseis à frente da altaneira torre negra. A água apresentava-se coberta do óleo sujo de inúmeras embarcações, sujidade que não se evaporava devido às temperaturas baixas, a qual deixava um anel preto nas paredes rochosas do fiorde como sinal do banho de um gigante pouco asseado. Comparação bastante a propósito, pensou Ramius. O gigante soviético pouco se importava com o lixo que deixava na face da Terra, resmungou consigo. Aprendera a arte de marear na juventude, em barcos de pesca costeiros, e sabia o que era estar de bem com a natureza.

— Aumentar a velocidade para um terço — disse.

Kamarov repetiu a ordem do seu comandante pelo telefone da ponte. A água agitou-se mais à proa do Outubro, na esteira do Purga. O capitão-tenente Kamarov era o navegador. Servira antes como piloto de barra para os grandes vasos de guerra fundeados nas duas margens da vasta enseada. Os dois oficiais não perdiam de vista o quebra-gelos armado, trezentos metros adiante; as condições de navegabilidade exigiam atenção. Na coberta da popa do Purga um punhado de tripulantes deambulava ao frio, um deles usando o avental branco de cozinheiro. Queriam testemunhar a partida do Outubro Vermelho para o seu primeiro cruzeiro operacional e aproveitavam também o pretexto, como outro qualquer, para quebrar a monotonia, inimiga dos marinheiros.

Noutra altura, o facto de lhe escoltarem o submarino — o canal era amplo e profundo, ali — teria irritado Ramius; naquele dia, não. O gelo era realmente motivo de preocupação. E para Ramius não era o único.

— Então, meu comandante, lá vamos outra vez para o mar, servir e proteger a Rodina!

O capitão Ivan Yurievich Putin meteu a cabeça pela escotilha — sem permissão, como de costume — e subiu a escada desajeitadamente — não era um marinheiro. O pequeno centro de controle estava já apinhado com o comandante, o navegador e um vigia silencioso. Putin era o zampolit (comissário político) do barco. Dedicava-se exclusivamente a servir a Rodina (Mãe-Pátria), palavra que possuía conotações místicas para um russo e que, juntamente com V. I. Lenin, era o substituto da divindade inventado pelo Partido Comunista.

— Pois vamos, Ivan — respondeu Ramius mais bem-disposto do que realmente estava. — Duas semanas no mar. É bom deixar o cais. Um marinheiro pertence ao mar, não foi feito para estar atracado, a aturar burocratas e operários de botas sujas. E estaremos mais quentes.

— Acha isto frio? — perguntou Putin, incrédulo.

Pela centésima vez, Ramius disse a si próprio que Putin era o perfeito comissário político. Falava sempre demasiado alto, o seu humor era sempre demasiado afectado. Nunca permitia a ninguém que esquecesse quem ele era. Perfeito comissário político. Putin era um homem facilmente temível.

— Navego em submarinos há muito tempo, meu amigo. Habituei-me a temperaturas moderadas e a uma coberta estável debaixo dos pés.

Putin não se apercebeu do insulto velado. Fora colocado nos submarinos após uma primeira comissão nos contratorpedeiros, interrompida por um enjoo crónico — e talvez porque ele não se ressentia da reclusão nos submarinos, coisa que muitos homens não suportavam.

— Ah, Marko Aleksandrovich, em Gorkiy, num dia como este, as flores abrem-se!

— E que flores serão essas, camarada comissário político? Ramius examinou o fiorde pelo binóculo. Ao meio-dia, o Sol mal cavalgava o horizonte a sudeste, lançando luz laranja e sombra púrpura pelas paredes rochosas.

— Flores da neve, evidentemente — disse Putin, rindo alto. — Num dia como este, os rostos das crianças e das mulheres ficam muito rosados, a gente respira e o bafo parece uma nuvem, e o vodca sabe particularmente bem. Ah! Quem me dera estar em Gorkiy num dia assim!

O patife devia trabalhar para o Intourist, disse Ramius consigo, se Gorkiy não fosse uma cidade fechada a estrangeiros. Já lá estivera duas vezes. Vira-a como uma típica cidade soviética, cheia de edifícios periclitantes, ruas sujas e cidadãos mal vestidos. Como na maior parte das cidades russas, o Inverno era a melhor estação em Gorkiy. A neve escondia o lixo todo. Ramius, meio lituano, possuía recordações de infância de melhores sítios, uma aldeia costeira cuja origem hanseática persistia em conjuntos de casas apresentáveis.

Era raro que alguém não sendo grande-russo andasse a bordo — muito menos comandasse um vaso soviético. O pai de Marko, Aleksandr Ramius, fora herói do Partido, um comunista dedicado e convicto que servira Estaline fielmente e bem. Quando os soviéticos tinham ocupado pela primeira vez a Lituânia, em 1940, Ramius fora eficiente na repressão dos dissidentes políticos, dos proprietários de lojas, dos sacerdotes e de quem quer que pudesse resistir ao novo regime. Da sorte que lhes fora reservada nem Moscovo fazia agora ideia. Quando os alemães invadiram a Lituânia, um ano mais tarde, Aleksandr lutara heroicamente como comissário político e distinguira-se, depois, na batalha de Leninegrado. Em 1944, tinha regressado como ponta-de-lança do Décimo Primeiro Exército para fazer uma vingança sangrenta sobre os que haviam colaborado com os alemães ou disso eram suspeitos. O pai de Marko fora um verdadeiro herói soviético — e Marko sentia uma profunda vergonha de ser seu filho. A saúde da mãe soçobrara durante o interminável cerco de Leninegrado. Morrera ao dá-lo à luz e, por isso, Marko tinha sido criado pela avó paterna, na Lituânia, enquanto o pai se pavoneava no Comité Central do Partido, em Vilnius, aguardando a sua promoção para Moscovo. Conseguira-a, também, e era candidato a membro do Politburo quando um ataque cardíaco lhe pusera termo à vida, prematuramente.

A vergonha de Marko não era total. A proeminência do pai possibilitara os seus objectivos presentes e Marko planeava vingar-se da União Soviética o suficiente, talvez, para satisfazer os, milhares de compatriotas seus que tinham morrido ainda antes de ele ter vindo ao mundo.

— Para onde vamos, Ivan Yurievich, ainda faz mais frio.

Putín bateu no ombro do seu comandante. Seria um afecto fingido ou real? Marko não saberia dizê-lo. Real, provavelmente. Ramius era um homem honesto e reconhecia que aquele pateta baixinho e barulhento possuía alguns sentimentos humanos.

— Não percebo, camarada comandante, por que motivo parece sempre feliz quando deixa a Rodina e vai para o mar...

Ramius sorriu por trás do binóculo.

— Um marinheiro tem uma pátria, Ivan Yurievich, mas duas esposas. Você nunca compreenderá isso. Agora vou para a minha outra esposa, a fria e cruel que é dona da minha alma. — Ramius interrompeu-se e o sorriso morreu-lhe nos lábios. — A minha única esposa, agora.

Putín calara-se finalmente, observou Marko. O comissário político tinha lá estado, chorara lágrimas verdadeiras quando o caixão de pinho polido desaparecera no forno crematório. Para Putin, a morte de Natalia Bogdanova Ramius fora um motivo de desgosto e, além disso, o acto de um Deus indiferente cuja existência sistematicamente negava. Para Ramius, fora um crime, cometido não por Deus, mas pelo Estado. Um crime desnecessário, monstruoso, que exigia castigo.

—Gelo— disse o vigia, apontando.

—Gelo solto, a estibordo do canal, ou talvez gelo abandonado pelo glaciar do lado oriental. Passaremos sem dificuldade — disse Kamarov.

— Comandante! — A voz, da ponte, soou metálica pelo altifalante. — Mensagem do quartel-general da esquadra.

— Leia.

—Área de exercício livre. Não há vasos inimigos nas proximidades. Execute as ordens. Assinado, Korov, comandante da esquadra.

— Está bem — disse Ramius antes de desligado o altifalante. — Então não temos por aí nenhum Amerikantsi...

— Duvida do comandante da esquadra? — perguntou Putin.

— Oxalá ele não se engane—respondeu Ramius mais sinceramente do que o seu comissário político teria apreciado. — Lembra-se das informações que nos deram, espero.

Putin mudou de posição; talvez estivesse a sentir frio.

— Esses submarinos americanos da classe 688, Ivan, os Los Angeles. Lembra-se daquilo que um dos oficiais deles contou ao nosso espião? Que eram capazes de se meter por baixo de uma baleia e de a encher de microfones antes que ela desse por isso? Pergunto a mim próprio como foi que o KGB obteve essa informação... Um esplêndido agente soviético, treinado no estilo decadente ocidental, magrizela como os imperialistas gostam das mulheres, de cabelo louro... — O comandante resmungou, divertido. — Provavelmente, o oficial americano era um gabarola, queria imitar o nosso agente, não? E se calhar estava bêbado, como acontece com a maior parte dos marinheiros. Bom... A classe americana Los Angeles e os novos Trafalgars britânicos, desses temos de nos proteger. São uma ameaça para nós.

— Os americanos são bons técnicos, camarada comandante — disse Putin—, mas não são gigantes. A tecnologia deles não é assim tão espantosa. Nasha lutcha (A nossa é melhor) — concluiu.

Ramius concordou de cabeça, pensativo, dizendo a si próprio que os zampolits deviam realmente perceber qualquer coisa dos barcos que supervisavam, conforme instruções do partido.

— Ivan, os agricultores de Gorkiy não lhe ensinaram que é o lobo invisível que devemos temer? Mas não se preocupe excessivamente. Com este barco, dar-lhes-emos uma lição, penso.

— Como disse à Administração Política — Putin tornou a bater nas costas de Ramius—, o Outubro Vermelho não podia estar mais bem entregue!

Ramius e Kamarov sorriram ao ouvir isto. “Filho da mãe!”, pensou o comandante. A dizer na frente dos meus homens que a minha competência para comandar precisa do seu aval!

Um homem que não saberia comandar um barco de borracha num dia de Verão! Uma pena não viveres o suficiente para engolires essas palavras, camarada comissário político, e não passares o resto da vida no gulag por esse equívoco. Quase valia a pena deixar-te vivo.

Minutos mais tarde, a agitação das águas aumentou, fazendo balouçar o submarino. O movimento era acentuado por se encontrarem acima da coberta, e Putin desculpou-se e desceu. Sempre um marinheiro de água doce. Ramius partilhou, em silêncio, a observação com Kamarov, que lhe exprimiu acordo num sorriso. Este desdém mudo pelo zampolit era profundamente anti-soviético.

A hora seguinte passou rapidamente. As águas tornavam-se mais bravias à medida que se aproximavam do mar alto, e o quebra-gelos começou a chafurdar nas ondas. Ramius observava-o, interessado. Nunca andara num quebra-gelos; fizera toda a sua carreira em submarinos. Os submarinos eram mais confortáveis, mas também mais perigosos. Estava habituado ao perigo, contudo, e os anos de experiência permitiam-lhe enfrentar agora todas as situações com calma.

— Bóia à vista, comandante — disse Kamarov, apontando. A bóia vermelha, iluminada, cavalgava activamente as ondas.

— Centro de controle, qual é a profundidade? — perguntou Ramius pelo telefone da ponte.

— Cem metros abaixo da quilha, camarada comandante.

— Aumentar a velocidade para dois terços, dez graus à esquerda. — Ramius olhou Kamarov. — Avise o Purga da nossa mudança de rota. Vamos lá ver se eles não se enganam.

Kamarov estendeu a mão para a pequena luz intermitente, instalada debaixo da braçola da ponte. O Outubro Vermelho começou a acelerar a pouco e pouco, o casco de trinta mil toneladas resistindo à força dos motores. A vaga da proa transformou-se num arco permanente de três metros; as ondas assim provocadas rolavam pela coberta dos mísseis, rebentando contra a torre. O Purga virou a estibordo, deixando o submarino passar à vontade.

Ramius olhou para a popa, para as falésias do Fiorde Kola. Haviam sido esculpidas, milénios atrás, pela pressão implacável de glaciares monumentais. Quantas vezes, nos seus vinte anos de serviço na Esquadra do Norte Bandeira Vermelha olhara a ampla reentrância em forma de U? Aquela seria a última. Fosse como fosse, não regressaria. Como iriam acabar as coisas? Ramius admitiu que pouco lhe importava. Talvez as histórias que a avó lhe tinha contado fossem verdadeiras, acerca de Deus e do prémio por uma vida decente. Oxalá... Seria tão bom que Natalia não estivesse verdadeiramente morta. De uma maneira ou de outra, porém, não haveria regresso. Deixara uma carta no último saco de correio, levantado antes da partida. Não podia haver regresso.

— Kamarov, informe o Purga: “Mergulhar às... — Verificou o relógio. —... às 13 e 20! Exercício OUTUBRO GELADO começa conforme o previsto. Estão livres para outras missões que devam executar. Regressaremos no dia marcado.”

Kamarov accionou a luz intermitente a fim de passar a mensagem. O Purga respondeu de imediato, e Ramius leu sem ajuda os sinais de luzes: “SE AS BALEIAS NÃO VOS COMEREM. BOA SORTE, OUTUBRO VERMELHO!-”

Ramius pegou outra vez no telefone e carregou no botão de ligação ao centro de comunicações do submarino. Mandou transmitir a mesma mensagem ao comando da esquadra, em Severomorsk. Falou depois para o centro de controle.

— Profundidade abaixo da quilha?

—’Cento e quarenta metros, camarada comandante.

— Preparar para mergulhar.

Mandou descer o vigia. O rapaz encaminhou-se para a escotilha. Agradava-lhe provavelmente o regresso ao calor de baixo, mas deteve-se a olhar pela última vez o céu enevoado e as falésias a afastarem-se dos seus olhos. Partir num submarino era sempre excitante e também, sempre, um pouco triste.

— Abandonar a ponte. Tome o comando quando descer, Gregoriy. Kamarov aceitou a ordem com um gesto de cabeça e desapareceu

pela escotilha, deixando o comandante sozinho.

Ramius observou pela última vez o horizonte com atenção. O Sol mal se via à popa, o céu estava cor de chumbo, o mar era negro, tirando a espuma branca das vagas. Estaria a despedir-se do mundo? Nesse caso, teria preferido dele imagem mais animadora.

Antes de descer, inspeccionou à escotilha, que fechou com um cadeado, e verificou se o mecanismo automático funcionava em condições. Desceu depois oito metros até ao casco de pressão, a seguir mais dois até ao centro de controle. Um michman (graduado) fechou a segunda escotilha e, com um vigoroso movimento rotativo, fez girar o volante do fecho, apertando-o ao máximo.

— Gregoriy? — perguntou Ramius.

— Escotilhas fechadas — disse o navegador em voz seca, apontando para o quadro de mergulho. Todos os indicadores luminosos das aberturas no casco apresentavam a cor verde; tudo em ordem. — Todos os sistemas preparados e verificados para mergulhar. Compensação accionada. Estamos prontos para mergulhar.

O comandante examinou os indicadores mecânicos, eléctricos e hidráulicos. Fez um sinal de cabeça e o michman de quarto abriu os escapes de ar.

— Mergulhar— ordenou Ramius, dirigindo-se ao periscópio para substituir Vasily Borodin, o seu starpom (imediato). Kamarov accionou o alarme de mergulhar e, no casco, ecoou o clamor metálico de um besouro.

— Inundar os tanques principais de lastro. Armar os hidroplanos de mergulho. Dez graus de inclinação para baixo — ordenou Kamarov, verificando se todos os tripulantes executavam com precisão o seu trabalho.

Ramius escutava-o, atento, mas não olhava. Kamarov era o melhor marinheiro que jamais comandara; conquistara havia muito a confiança do seu comandante.

O casco do Outubro Vermelho encheu-se com o ruído do escape de ar, quando as válvulas no topo dos tanques de lastro foram abertas e a água começou a expulsar o ar de flutuação. Era um processo demorado, porque o submarino tinha muitos tanques destes, cada um deles rigorosamente dividido por numerosos reflectores celulares. Ramius ajustou as lentes do periscópio para olhar para baixo e viu a água escura transformar-se momentaneamente em espuma.

O Outubro Vermelho era o vaso maior e melhor que Ramius já comandara, mas tinha uma grande falha. Possuía grande força de motores e um novo sistema de propulsão que, esperava ele, confundiria os submarinos americanos... e soviéticos, mas era tão grande que se movimentava como uma baleia ferida. Subia devagar e descia mais devagar ainda.

—Profundidade? — Ramius afastou-se do instrumento, após o que pareceu longa demora. — Baixar periscópio.

— Passamos os quarenta metros — disse Kamarov. —Estabilizar a cem metros.

Ramius observou então os seus tripulantes. O primeiro mergulho podia levar homens experientes a estremecer, e metade da sua tripulação era constituída por jovens camponeses que mal tinham concluído a instrução. O casco estalava sob a pressão da água circundante, coisa a que uma pessoa demorava a habituar-se. Alguns dos tripulantes mais jovens empalideceram, mantendo-se, porém, rigidamente firmes.

Kamarov começou a manobra de estabilização à profundidade escolhida. Ramius observava-o com o orgulho que teria sentido pelo próprio filho, vendo o tenente dar as ordens necessárias com precisão. Era o co-piloto, que Ramius recrutara. A tripulação no centro de controle respondia impecavelmente ao seu comando. Cinco minutos depois, o submarino abrandava a descida aos noventa metros e mergulhava os dez seguintes para as deter exactamente a cem.

— Muito bem, camarada tenente. O comando é seu. Reduza a velocidade para um terço. Que os homens do sonar se mantenham atentos a todos os sistemas passivos.

Ramius virou-se para deixar o centro de controle, fazendo sinal a Putin para que o seguisse.

E foi assim que tudo começou.

Ramius e Putin dirigiram-se à popa, à sala de oficiais do submarino. O comandante segurou a porta para o comissário político passar e fechou-a, depois, por dentro. A sala de oficiais do Outubro Vermelho era ampla para um submarino e localizava-se logo adiante da cozinha e atrás dos camarotes dos oficiais. Tinha paredes à prova de fogo, e a porta podia ser fechada por dentro porque quem a concebera sabia que nem tudo o que os oficiais diziam se destinava a ser ouvido pelos tripulantes. Dispunha de espaço bastante para todos os oficiais do Outubro comerem ao mesmo tempo — embora pelo menos três estivessem sempre de serviço. O cofre que continha as ordens do barco guardava-se nesta sala e não no camarote do comandante, onde um homem estimulado pela solidão poderia tentar abri-lo. Possuía dois segredos. Ramius conhecia uma combinação, Putin a outra — precaução desnecessária porque Putin sabia já, sem dúvida, a missão do barco. O mesmo acontecia com Ramius, que ignorava, porém, alguns pormenores.

Putin serviu chá enquanto o comandante acertava o relógio pelo cronometro montado na antepara. Faltavam quinze minutos para que pudesse abrir o cofre. A cortesia de Putin enervava-o.

— Mais duas semanas de reclusão — disse o zampolit, mexendo o chá.

—Os americanos fazem isto durante dois meses, Ivan. Claro que os submarinos deles são muito mais confortáveis.

A despeito do seu tamanho, enorme, as acomodações para a tripulação do Outubro teriam envergonhado um carcereiro de gulag. A tripulação era constituída por quinze oficiais instalados em camarotes razoavelmente decentes, à popa, e cem homens, cujos beliches se encaixavam em cantos e grades por toda a proa, adiante da sala dos mísseis. O tamanho do Outubro era enganador. O interior do casco duplo estava pejado de mísseis, torpedos, um reactor nuclear e equipamento de apoio, uma enorme unidade de alimentação díesel de emergência e um conjunto de baterias de níquel-cádmio fora do casco de pressão, cujo tamanho era dez vezes o do seu equivalente americano. A direcção e a manutenção do submarino constituía tarefa ingente para uma tripulação tão pequena, não obstante o nível de automação fazer dele o mais moderno dos vasos de guerra soviéticos. Talvez os homens cão precisassem de beliches em condições; só tinham quatro ou seis horas por dia para descansar. O facto constituía uma vantagem para Ramius. A tripulação era composta por recrutas que faziam o primeiro cruzeiro operacional, e mesmo os homens mais experientes não possuíam habilitação bastante. A força da sua tripulação, ao contrário das tripulações ocidentais, resultava muito mais dos onze michmanyy (graduados) do que dos glavnyy starshini (oficiais subalternos). Eram todos homens que fariam — tinham sido especificamente treinados para fazerem — exactamente o que os seus oficiais lhes ordenassem. E Ramius escolhera os oficiais.

— Quer navegar durante dois meses? — perguntou Putin.

— Já o fiz em submarinos a diesel. Um submarino pertence ao Mar, Ivan. A nossa missão consiste em levar o medo ao coração dos imperialistas. Ora, não a cumpriremos atracados à nossa toca de Polyarnyy, mas também não podemos andar no mar por mais tempo, visto que a partir das duas semanas a tripulação perde eficiência. Em duas semanas, faremos desta miudagem um destacamento de robots estupidificados.

Ramius contava com isso.

— E resolveríamos esse problema se tivéssemos luxos capitalistas?

— escarneceu Putin.

—’Um verdadeiro marxista é objectivo, camarada comissário político— ensinou Ramius, saboreando esta sua última discussão com Putin. — Objectivamente, aquilo que concorre para levarmos a bom termo a nossa missão é bom, aquilo que funcione em sentido contrário é mau. A adversidade deve servir para aguçar o espírito e o talento, não para os embotar. O simples facto de andar a bordo de um submarino já é provação suficiente, não concorda?

— Para si não, Marko — disse Putin, sorrindo e levando a chávena à boca.

— Eu sou marinheiro. Os nossos tripulantes não o são, a maior parte nunca o será. Não passam de um bando de filhos de camponeses e de rapazes que anseiam trabalhar numa fábrica. Temos de nos adaptar aos tempos, Ivan. Estes jovens são diferentes de nós.

— Isso é verdade. concordou Putin. — Nunca está satisfeito, camarada comandante. Em minha opinião, são homens como o senhor que nos fazem progredir a todos.

Sabiam os dois por que razão os submarinos nucleares soviéticos passavam tão pouco do seu tempo — quinze por cento, no máximo

— no mar, o que nada tinha a ver com o conforto da tripulação. O Outubro Vermelho dispunha de vinte e seis mísseis Seahawk SS-N-20, cada um deles com oito ogivas múltiplas de orientação independente de 500 quilotoneladas — MIRV—, o suficiente para destruir duzentas cidades. Os bombardeiros, após algumas horas de voo, tinham de regressar às bases. Os mísseis terrestres instalados, ao longo da principal rede ferroviária soviética Leste-Oeste encontravam-se sempre onde tropas paramilitares do KGB lhes pudessem chegar, no caso de algum comandante de um regimento de mísseis se lembrar, de repente, de pôr à prova o poder dos seus dedos. Mas os mísseis submarinos estavam, por definição, fora de qualquer controle de terra, A sua missão cumpria-se na invisibilidade.

O facto de o seu Governo os possuir surpreendia, assim, Marko. A tripulação dos submarinos equipados com mísseis tinha de ser digna de toda a confiança. Por isso, navegavam menos que os seus equivalentes ocidentais e, quando o faziam, era com um comissário político a bordo, junto do comandante, um segundo comandante a quem competia aprovar todas as acções.

— Acha que poderemos navegar durante dois meses com estes camponeses, Marko?

— Prefiro rapazes com algum treino, bem sabe. Sempre têm menos para desaprender. Depois já posso ensiná-los a serem marinheiros como deve ser, à minha maneira. Será isto o culto da personalidade?

Putin riu e acendeu um cigarro.

—Já fizeram essa observação no passado, Marko. Mas você é o nosso melhor professor e a confiança que nos merece bem conhecida.

Era verdade. Ramius mandara centenas de oficiais e marinheiros para outros submarinos, cujos comandantes apreciavam tê-los. Eis outro paradoxo: um homem poder suscitar a confiança numa sociedade que mal reconhecia este conceito. Claro que Ramius era um membro leal do Partido, o filho de um herói do Partido que fora transportado até ao túmulo por três membros do Politburo. Putin disse, agitando o indicador:

— Devia ser comandante de uma das nossas escolas superiores navais, camarada comandante. As suas capacidades serviriam melhor o Estado nessa qualidade.

— Eu sou marinheiro, Ivan Yurievich. Apenas um marinheiro, não um professor... apesar do que dizem a meu respeito. Um homem sensato conhece as suas limitações.

E um homem ousado não desperdiça oportunidades. Todos os oficiais a bordo tinham já servido com Ramius, exceptuando três jovens tenentes que obedeceriam às suas ordens tão prontamente como qualquer moiros (marinheiro) imberbe ou o médico, que não servia para nada.

O cronómetro bateu quatro badaladas.

Ramius pôs-se de pé e marcou os três elementos da sua combinação. Putin fez o mesmo. O comandante accionou a alavanca para abrir a porta circular do cofre. No interior, estavam um sobrescrito grosso, quatro livros com chaves de código e coordenadas de alvos para os mísseis. Ramius tirou o sobrescrito e fechou a porta, desfazendo os segredos antes de se sentar.

— Que acha, Ivan, que as nossas ordens nos dirão para fazer? — perguntou Ramius teatral.

— O nosso dever, camarada comandante — respondeu Putin, sorrindo.

— Claro.

Ramius quebrou o selo do sobrescrito e retirou dele a ordem de operações, de quatro páginas. Leu-as rapidamente. Não era nada de complicado.

— Vamos avançar para as coordenadas 54-90, ao encontro do nosso submarino de ataque V. K. Konovalov — o novo comando do capitão Tupolev. Conhece Viktor Tupolev? Não? Viktor proteger-nos-á de intrusos imperialistas. Realizaremos um exercício de quatro dias, de perseguição, com ele atrás de nós... se puder. — Ramius riu por entre dentes. — Os camaradas do comando de submarinos de ataque ainda não descobriram como nos seguir com o nosso novo sistema de propulsão. E os americanos também não. Confinaremos as nossas operações à grelha 54-90 e às grelhas imediatamente circundantes. Viktor verá assim facilitada a sua tarefa.

— Mas não vai deixar que nos encontre?

— Claro que não — resmungou Ramius. — Deixar? Viktor foi meu aluno. Não se dá nada a um inimigo, Ivan, nem mesmo num exercício. Os imperialistas certamente não dão! Procurando encontrar-nos, também praticará na missão de encontrar os submarinos nucleares deles. Mas acho que vai ter uma razoável possibilidade de nos localizar. O exercício confina-se a nove grelhas, quarenta mil quilómetros quadrados. Veremos o que aprendeu desde que serviu connosco... Oh, sim, você não estava comigo então. Foi quando eu comandei o Suslov.

— Será que o vejo desapontado?

— Não propriamente. O exercício de quatro dias com o Konovalov vai ser um divertimento interessante.

Patife, disse consigo, já sabias exactamente quais eram as nossas ordens... e conheces muito bem Viktor Tupolev, mentiroso. Era tempo. Putín acabou o cigarro e o chá antes de se pôr de pé.

— Portanto, vou ter outra vez o privilégio de observar o mestre comandante em funções... a trocar as voltas a um pobre diabo. — Virou-se para a porta. — Penso...

Ramius rasteirou Putin quando este se afastava da mesa. Putin caiu para trás, enquanto Ramius se punha de pé de um salto e agarrava a cabeça do comissário político nas suas vigorosas mãos de marinheiro. Ó comandante bateu-lhe com o pescoço no canto vivo e metálico da mesa da sala de oficiais. No ponto exacto. No mesmo instante, Ramius desferiu um golpe contra o peito do homem. Gesto desnecessário — com arrepiante estalar de ossos, o pescoço de Ivan Putín quebrou-se, a sua medula partiu-se ao nível da segunda vértebra cervical, a perfeita fractura do enforcado.

O comissário político não teve tempo para reagir. Os nervos do seu corpo abaixo do pescoço ficaram imediatamente desligados dos órgãos e músculos que controlavam. Tentou gritar, dizer qualquer coisa, mas a sua boca apenas se abriu e fechou sem um som, excepto para exalar o último suspiro. Tentou inspirar como um peixe fora de água, sem o conseguir. Depois, os seus olhos levantaram-se para Ramius, muito abertos, chocados — não havia dor neles, nem emo ção, apenas surpresa. O comandante estendeu-o cuidadosamente no chão ladrilhado.

Ramius viu a cara iluminar-se de compreensão e logo escurecer. Baixou-se para tomar o pulso de Putin. Passaram quase dois minutos antes que o coração parasse por completo. Quando Ramius se certificou de que o seu comissário político estava morto, pegou no bule, em cima da mesa, e despejou aproximadamente o conteúdo de duas chávenas no chão, tendo o cuidado de verter algum chá sobre os sapatos do homem. Depois puxou o corpo para junto da mesa e escancarou a porta.

— O doutor Petrov à sala de oficiais, imediatamente!

O médico do submarino estava perto, à popa. Compareceu em segundos, juntamente com Vasily Borodin, que acorrera do centro de controle.

— Escorregou no chá que eu entornei — disse Ramius, ofegante, enquanto massajava o coração de Putin. — Ainda tentei impedi-lo de cair, mas bateu com a cabeça na mesa...

Petrov afastou o comandante, rodou o corpo e saltou por cima da mesa para se ajoelhar sobre ele. Rasgou a camisa e observou os olhos de Putin. As pupilas estavam dilatadas e fixas. O médico apalpou a cabeça do homem, da nuca para o pescoço. As suas mãos pararam aí, investigando. O médico abanou lentamente a cabeça.

—O camarada Putin está morto. Tem o pescoço partido.

O médico retirou as mãos da cabeça do zampolit e fechou-lhe os olhos.

—’Não! — gritou Ramius. — Ainda agora estava vivo! — O comandante soluçava. — A culpa é minha. Tentei segurá-lo, mas não consegui. A culpa é minha! — Deixou-se cair numa cadeira e escondeu o rosto entre as mãos. — A culpa é minha — gemeu, sacudindo a cabeça, enfurecido consigo próprio, lutando visivelmente para se recompor, numa excelente representação.

Petrov pousou a mão no ombro do comandante.

—Foi um acidente, camarada comandante. Estas coisas acontecem, mesmo a homens experientes. A culpa não foi sua. Acredite, camarada.

Ramius praguejou, arfando, readquirindo o controle de si próprio.

—Não há nada que possa fazer?

Petrov abanou a cabeça.

— Nem na melhor clínica da União Soviética se poderia fazer fosse o que fosse. Uma vez fracturada a espinal medula, não há esperança. A morte é virtualmente instantânea... mas também sem dor — acrescentou o médico, como consolo.

Ramius ergueu-se com esforço, suspirando, a expressão parada.

— O camarada Putin era um bom companheiro, um membro leal do Partido e um belo oficial. — Pelo canto do olho, viu a boca de Borodin contorcer-se.—Camaradas, continuaremos a nossa missão! Doutor Petrov, transportará o corpo do nosso camarada para o frigorífico. É... macabro, bem sei, mas ele merece, e terá um funeral militar, com todas as honras, com os seus companheiros a assistir, quando regressarmos ao porto. Assim deve ser.

— Devo comunicar o acidente ao comando da esquadra? — perguntou Petrov.

— Não podemos. Temos ordens para manter silêncio rádio absoluto. — Ramius passou ao médico um maço de ordens de operações que tirou do bolso, não as que retirara do cofre. — Página três, camarada doutor.

Os olhos de Petrov arregalaram-se ao ler a directiva operacional.

— Preferiria relatar o acidente, mas as ordens são explícitas: uma vez submersos, não há transmissões de qualquer espécie, seja por que razão for.

Petrov devolveu os papéis.

— Uma pena... O nosso camarada esperaria outra coisa. Mas ordens são ordens.

—’E devemos cumpri-las.

— Putin não admitiria outra coisa — concordou Petrov.

— Borodin, veja bem: tiro a chave do controle dos mísseis do pescoço do camarada comissário político, em obediência aos regulamentos—’disse Ramius, guardando no bolso a chave e o cordão.

— Vi e assim registarei no diário — disse o imediato, solenemente. Petrov mandou entrar um ajudante. Juntos, levaram o corpo para

o gabinete médico, à popa, onde o introduziram num saco com um fecho éclair. O ajudante e dois marinheiros transportaram-no, depois, para a proa, através do centro de controle e em direcção ao compartimento dos mísseis. A entrada para o frigorífico era na coberta inferior dos mísseis e os homens fizeram passar o corpo pela porta. Enquanto dez cozinheiros retiravam alimentos para arranjar espaço, o corpo foi pousado a um canto, respeitosamente. À popa, o médico e o imediato fizeram o necessário inventário dos artigos pessoais, uma cópia para o arquivo médico do barco, outra para o diário de bordo, uma terceira para uma caixa que foi selada e fechada à chave, no gabinete médico.

À proa, Ramius assumiu o comando num centro de controle deprimido. Colocou o submarino numa rota de dois-nove-zero graus, oeste-noroeste. A grelha 54-90 ficava a leste.

 

                   Sábado, 4 de Dezembro

Era costume, na Marinha soviética, o comandante anunciar as ordens operacionais e exortar a tripulação a executá-las à verdadeira maneira soviética. As ordens eram depois afixadas para todos verem — e nelas se inspirarem — no exterior da Sala Lenine. Nos grandes barcos de superfície, esta sala era uma divisão onde funcionavam aulas de política; no Outubro Vermelho, tratava-se de uma biblioteca do tamanho de um armário, contígua à sala de oficiais, onde eram guardados livros do Partido e outro material ideológico para os homens lerem. Ramius anunciou as ordens no dia seguinte ao da partida, para dar aos seus homens oportunidade de se adaptarem às rotinas do submarino. Ao mesmo tempo, fez-lhes um discurso estimulante. Ramius era sempre bom nisso; tinha muita prática. Às oito horas, no início do quarto da manhã, entrou no centro de controle e tirou uns cartões de um bolso ulterior do casaco.

— Camaradas — começou, falando ao microfone — fala o comandante. Já todos sabem que o nosso querido amigo e camarada capitão Ivan Yurievich Putin morreu ontem num trágico acidente. As nossas ordens não nos permitem informar do acontecido o comando da esquadra. Camaradas, dedicaremos os nossos esforços, o nosso trabalho, à memória do nosso camarada Ivan Yurievich Putin, um óptimo companheiro, um distinto membro do Partido e um corajoso oficial.

“Camaradas! Oficiais e homens do Outubro Vermelho! Temos ordens do Alto Comando da Esquadra do Norte Bandeira Vermelha, ordens dignas deste barco e desta tripulação!

“Camaradas! As nossas ordens visam realizar o teste definitivo do nosso novo sistema silencioso de propulsão. Rumaremos a ocidente, passaremos o cabo Norte, no Estado fantoche da América imperialista, a Noruega, depois rodaremos para sudoeste, em direcção ao oceano Atlântico. Passaremos todas as redes imperialistas de sonar e não seremos detectados! Trata-se de um verdadeiro teste do nosso submarino e das suas virtualidades. Os nossos próprios barcos empenhar-se-ão num grande exercício para nos localizar e, ao mesmo tempo, para confundir os arrogantes navios imperialistas. A nossa missão, em primeiro lugar, consiste em iludir a detecção, seja por quem for. Daremos aos americanos uma lição acerca da tecnologia soviética que não esquecerão tão cedo! As nossas ordens levar-nos-ão para sudoeste, ao longo da costa americana, onde desafiaremos e derrotaremos os seus mais recentes e melhores submarinos. Prosseguiremos em direcção a Cuba, pátria dos nossos irmãos socialistas, e seremos o primeiro barco a utilizar uma nova e supersecreta base de submarinos nucleares que construímos há dois anos, mesmo debaixo dos narizes imperialistas, na costa sul de Cuba. Um navio de reabastecimento está já a caminho, para se encontrar lá connosco.

“Camaradas! Se conseguirmos chegar a Cuba sem sermos detectados pelos imperialistas — e conseguiremos! — os oficiais e homens do Outubro Vermelho terão uma semana — uma semana—de licença para visitarem os nossos fraternos camaradas socialistas na bela ilha de Cuba. Já lá estive, camaradas, e confirmarão exactamente tudo o que leram a seu respeito: um paraíso de brisas amenas, palmeiras e bela companhia e camaradagem. — Com isto referia-se Ramius a mulheres. — Depois, regressaremos à Mãe-Pátria pela mesma rota. Entretanto, claro, os imperialistas saberão quem somos e o que somos, através dos seus traiçoeiros espiões e dos seus cobardes aviões de reconhecimento. Desejamos que assim seja, porque mais uma vez iludiremos a detecção no regresso à pátria. Os imperialistas ficarão assim a saber que não podem brincar com os homens da Marinha soviética, que podemos aproximar-nos das suas costas quando quisermos, que têm de respeitar a União Soviética!

“Camaradas! Faremos do primeiro cruzeiro do Outubro Vermelho um cruzeiro memorável!

Ramius levantou os olhos do discurso preparado. Os homens de quarto no centro de controle trocavam sorrisos. Raras vezes um marinheiro soviético era autorizado a visitar outro país, e uma visita de um submarino nuclear a um país estrangeiro, mesmo aliado, quase não tinha precedentes. Além disso, para os russos, a ilha de Cuba era tão exótica como Tahiti, uma terra prometida de praias de areia branca e raparigas morenas. Ramius sabia que não era assim. Lera artigos no Estrela Vermelha e noutros jornais do Estado acerca das maravilhas das licenças em Cuba. E também lá tinha estado.

Ramius trocou de cartões. Dera-lhes as boas notícias.

—’Camaradas! Oficiais e homens do Outubro Vermelho! — Eram agora as más notícias por que todos esperavam. — Esta missão não será fácil. Exigirá os nossos melhores esforços. Teremos de manter absoluto silêncio rádio e as nossas operações terão de ser perfeitas! A recompensa premiará apenas aqueles que verdadeiramente a merecerem. Cada oficial e cada homem a bordo, desde o vosso comandante ao mais jovem moiros, terá de desempenhar o seu dever socialista e bem! Se trabalharmos juntos como camaradas, como os Novos Homens Soviéticos que somos, triunfaremos. Jovens camaradas novos no mar: escutai os vossos oficiais, os vossos michmanyy, os vossos starshini. Aprendei a executar os vossos deveres e executai-os rigorosamente. Não há tarefas pequenas neste barco, não há pequenas responsabilidades. A vida de cada camarada depende de todos os camaradas. Cumpri o vosso dever, cumpri as ordens que vos derem, e quando tivermos completado esta viagem sereis verdadeiros marinheiros soviéticos!

Ramius largou o interruptor do microfone e colocou este no descanso. Não fora mau o discurso, concluiu—uma boa cenoura e um pequeno espinho.

Na cozinha, à popa, um marinheiro, muito quieto, segurava uma fatia quente de pão e olhava, curioso, para o altifalante montado na antepara. Mas não eram aquelas ordens, pois não? Teria havido uma alteração nos planos? O michman lembrou-lhe os seus deveres, sorrindo e comentando a perspectiva de uma semana em Cuba. Ouvira muitas histórias acerca de Cuba e das mulheres cubanas, e ansiava por verificar se eram verdadeiras.

No centro de controle, Ramius reflectia.

—Não andarão por aí submarinos americanos?

— Sabe-se lá, camarada comandante — respondeu o capitão-tenente Borodin, de quarto. — Ligamos o caterpillar?

— Com certeza, camarada.

— Parar os motores — ordenou Borodin.

— Motores parados.

O contramestre, um starshini (subalterno), colocou o indicador na posição STOP. Um instante passado, a ordem era confirmada pelo mostrador interno e, segundos depois, o ronco surdo dos motores cessava.

Borodin pegou no telefone e ligou para as máquinas.

— Camarada engenheiro-chefe, prepare-se para ligar o caterpillar.

Não era este o nome oficial do novo sistema de propulsão. O sistema não tinha ainda nome, apenas um numero de projecto. A alcunha “caterpillar” fora-lhe dada por um jovem engenheiro que trabalhara na concepção do submarino. Nem Ramius nem Borodin sabiam porquê, mas, como muitas vezes acontece com tais nomes, ficara.

— Preparado, camarada Borodin — respondeu logo o engenheiro-chefe.

— Abrir portas à proa e à popa — ordenou Borodin a seguir. O michman de quarto estendeu a mão para o painel de controle e accionou quatro interruptores. As luzes mudaram de vermelho para verde.

—Tortas abertas, camarada.

— Ligar Caterpillar. Aumentar lentamente a velocidade para treze nós.

— Aumentar lentamente a velocidade para treze nós, camarada — repetiu o engenheiro-maquinista.

O casco, que momentaneamente ficara silencioso, foi invadido por um novo som. Os ruídos do motor eram mais baixos e muito diferentes dos anteriores. O barulho do complexo do reactor, proveniente, sobretudo, das bombas que faziam circular a água de arrefecimento, era quase imperceptível. O caterpillar não necessitava de muita energia. No posto do michman, o indicador de velocidade, que baixara para cinco nós, começou novamente a subir. Adiante da sala dos mísseis, num espaço encravado nas instalações da tripulação, um punhado de homens sonolentos mexeu-se nos beliches, ao notar um ruído intermitente à popa e o zumbido de motores eléctricos a poucos metros de distância, separados deles pelo casco de pressão. Estavam cansados de mais do primeiro dia completo no mar para prestarem atenção ao ruído e tornaram a adormecer. Loucas horas podiam dedicar ao sono que era, assim, precioso.

— O caterpillar funciona normalmente, camarada comandante — anunciou Borodin.

— Óptimo. Leme a dois-seis-zero — ordenou Ramius.

— Dois-seis-zero, camarada.

O piloto virou a roda para a esquerda.

O USS “Bremerton”

Trinta milhas a nordeste, o USS Bremerton seguia numa rota de dois-dois-cinco e acabava de emergir do gelo. Um submarino de ataque da classe 688 estivera numa ELINT — missão de espionagem electrónica — no mar de Kara quando recebera ordens para rumar a ocidente, em direcção à península de Kola. O submarino russo só deveria, em princípio, partir dali a uma semana, e o comandante do Bremerton aborreceu-se com aquela imprevista missão de segurança. Estaria preparado para seguir o Outubro Vermelho se este se fizesse ao mar conforme o previsto. Fosse como fosse, os homens do sonar haviam detectado o submarino soviético minutos antes, a despeito de navegarem a catorze nós.

— Comandante, sonar.

O comandante Wilson pegou no telefone.

—-Fala o comandante.

— Contacto perdido, sir. As hélices pararam há uns minutos e não se tornaram a fazer ouvir. Há qualquer outra coisa a leste, mas o submarino calou-se.

— Muito bem. Provavelmente navega devagar. Continuaremos atrás dele. Mantenha-se alerta, chefe.

O comandante Wilson aproximou-se, pensativo, da mesa dos mapas. Os dois oficiais do grupo de detecção e tiro que acabavam de assinalar o contacto procuraram com os olhos a opinião do comandante.

— No lugar dele, aproximava-me do fundo e rodava lentamente para a direita, aqui. — Wilson traçou um círculo no mapa, envolvendo a posição do Outubro Vermelho. — Vamos continuar em cima dele. Reduziremos a velocidade para cinco nós. Veremos se conseguimos aproximar-nos e ouvir o barulho do reactor. — Wilson virou-se para o oficial de quarto. — Reduzir a velocidade para cinco nós.

— Muito bem, comandante.

Severomorsk, URSS

No edifício dos Correios de Severomorsk, um separador de correspondência viu, desanimado, o condutor de um camião largar um grande saco de lona em cima da sua mesa e tornar a sair. Chegara tarde — bem, não propriamente, corrigiu-se o empregado, porque o idiota não chegara uma vez a horas em cinco anos. Era sábado e custava-lhe trabalhar. Havia poucos anos que a semana de quarenta e quatro horas fora introduzida na União Soviética. Infelizmente, este progresso nunca afectara serviços públicos vitais, como a entrega de correspondência. Lá estava ele, portanto, fazendo ainda uma semana de seis dias — e sem horas extraordinárias! Uma miséria, pensou, como tantas vezes pensava e dizia no seu apartamento, a jogar cartas com os companheiros de trabalho, bebendo vodca e comendo pepino.

Desatou a corda e despejou o saco. Dele saíram vários sacos mais pequenos. Para quê apressar-se? Era apenas o princípio do mês e tinham ainda semanas para deslocarem a sua parte de cartas e embrulhos de uma ponta do edifício para a outra. Na União Soviética, todo o trabalhador é trabalhador do Governo e costuma dizer: enquanto os patrões fingirem que nos pagam, nós fulgiremos de trabalhar.

Num pequeno saco de correio havia um sobrescrito oficial, dirigido à Administração Política da Marinha, em Moscovo. O empregado parou, apalpando o sobrescrito. Vinha provavelmente de um dos submarinos fundeados em Polyarnyy, do outro lado do fiorde. “Que diria a carta”, perguntou-se o homem, entregando-se ao jogo mental que entretinha carteiros de todo o mundo. Seria o anúncio de que tudo estava pronto para o ataque final contra o Ocidente imperialista? Uma lista de membros do Partido atrasados no pagamento de quotas ou uma requisição para mais papel higiénico? Podia ser tudo. Marinheiros de submarino! Eram todos primas-donas — mesmo os recrutas camponeses, ainda a retirar trampa de entre os dedos dos pés, pavoneando-se como membros da elite partidária!

O funcionário dos Correios tinha sessenta e dois anos. Na Grande Guerra Patriótica servira como tanquista de protecção, integrado na Primeira Frente Ucraniana, de Konev. Isso sim, era trabalho de homem — avançar atrás dos grandes tanques de batalha, saltando à caça da infantaria alemã, agachada nos seus buracos. Quando era preciso combater esses bandidos, combatia-se! Agora, que era feito dos combatentes soviéticos? Viviam a bordo de paquetes luxuosos, a abarrotar de boa comida e com camas quentinhas. A única cama quente que ele conhecera era por cima do escape do motor do seu tanque — e como tinha de lutar para poder saboreá-la! Que loucura aquilo em que o mundo se tornara! Agora os marinheiros comportavam-se como príncipes czaristas, passavam a vida a escrever cartas e chamavam a isso trabalho. Uns meninos mimados que não sabiam o que era uma provação. E os privilégios de que gozavam? Cada palavra que lançavam ao papel tinha prioridade sobre todo o outro correio. Cartas lamechas para as namoradas, na maior parte, e ele ali a separá-las a um sábado para que chegassem às meninas... mesmo que não recebessem resposta senão daí por duas semanas. Não, não era como nos velhos tempos.

O homem lançou o sobrescrito, com um movimento negligente do pulso, para o saco no extremo da mesa de trabalho, onde entrava a correspondência com destino a Moscovo. Falhou, e o sobrescrito caiu no chão de cimento. A carta chegaria ao comboio com um dia de atraso. O homem não se importou. Havia um jogo de hóquei naquela noite, o maior jogo do início da temporada, o Exército Central contra os Asas. Apostara um litro de vodca nos Asas.

Morrow, Inglaterra

A maior vitória de Halsey foi o seu maior erro. Ao firmar-se como herói popular de lendária agressividade, o almirante cegou as gerações vindouras para as suas notáveis capacidades intelectuais e um fino instinto de jogador que...

Jack Ryan franziu o sobrolho perante o computador. O texto soava-lhe muito a dissertação de doutoramento e já fizera uma. Pensou em apagar todo aquele passo da memória, mas não o fez. Devia seguir aquela linha de raciocínio na introdução. Por má que fosse,

era um guia para o que pretendia dizer. Por que motivo as introduções pareciam ser sempre a parte mais difícil de um livro de História? Havia três anos que trabalhava no Marinheiro Combatente, uma biografia autorizada do almirante William Halsey. Quase toda a obra estava contida em meia dúzia de discos junto do seu computador

Apple.

— Papá?

A fííha de Ryan fitava-o.

—Como está hoje a minha pequenina Sally?

— Bem.

Ryan pegou nela e sentou-a no colo, tendo o cuidado de afastar a cadeira do teclado. Sally estava familiarizada com jogos e programas educativos, e pensava ser capaz de se entender também com o Wordstar. Esta convicção levara, uma vez, à perda de vinte mil palavras de um manuscrito electronicamente registado. E a uma tareia.

Sally encostou a cabeça ao ombro do pai.

— Estás mesmo bem? Não parece... Que tem a minha menina? —’Sabes, papá, é que é quase Natal e... eu não tenho a certeza

se o Pai Natal sabe onde estamos. No ano passado, estávamos noutro sítio.

— Compreendo... E tens medo que ele não venha cá, é?

— É...

—’Porque não disseste logo? Claro que o Pai Natal vem cá. Prometo!

— Prometes?

— Prometo. —Está bem.

Sally beijou o pai e saiu da sala. Foi outra vez ver desenhos animados na televisão. Ryan apreciara a interrupção. Não podia esquecer-se de levar umas coisas quando voasse para Washington. Onde estaria... oh, sim. Tirou um disco da gaveta da secretária e introduziu-o no receptor livre. Depois de ter limpo o écran, reproduziu a lista de Natal, coisas que tinha ainda que comprar. Accionando uma tecla, obteve uma cópia da lista no printer. Ryan rasgou o papel e guardou-o na carteira. Não estava com vontade de trabalhar naquela manhã de sábado. Resolveu ir brincar com os filhos. No fim de contas, iria passar quase toda a semana seguinte metido em Washington.

O “V. K. Konovalov”

O submarino soviético V. K. Konovalov navegava junto do leito arenoso e duro do mar de Barents, a três nós. Encontrava-se no canto sudoeste da grelha 54-90 e passara as últimas dez horas deslocando-se para trás e para diante, no sentido norte-sul, à espera que o Outubro Vermelho chegasse, a fim de iniciar o exercício OUTUBRO GELADO. O capitão-tenente Viktor Alexievich Tupolev passeava lentamente em redor do periscópio, no centro de controle do seu pequeno submarino de ataque rápido. Aguardava o aparecimento do seu velho mestre, desejoso de lhe pregar algumas partidas. Servira com o Professor durante dois anos. Anos bons tinham sido; e embora achasse o seu antigo comandante um tanto cínico, principalmente acerca do Partido, jamais hesitaria em testemunhar as capacidades e a competência de Ramius.

E as suas também. Tupolev, agora no seu terceiro ano de comando, fora um dos mais brilhantes alunos do Professor. O seu barco era um Alfa, novo em folha, um submarino rápido como nunca houvera. Um mês antes, preparava Ramius o Outubro Vermelho após o lançamento à água, Tupolev e três dos seus oficiais haviam mergulhado para verem o modelo do submarino no qual fora testado um sistema de propulsão. Com trinta e dois metros de comprido e alimentado a electricidade fornecida por uma unidade a diesel, tinha a sua base no mar Cáspio, bem longe dos olhos imperialistas, numa doca coberta que o ocultava dos seus satélites espiões. Ramius contribuíra para a concepção do caterpillar e Tupolev reconheceu nele a marca do mestre. Seria dificílimo de detectar, mas não impossível. Depois de, durante uma semana, ter seguido o modelo pelo extremo norte do mar Cáspio, numa lancha eléctrica dispondo do melhor equipamento de sonar que o seu país já construíra, achava ter descoberto uma falha. Não muito grande, mas que valia a pena explorar.

Claro que não havia garantia de êxito. Não competiria apenas com uma máquina, mas também com o homem que a comandava. Tupolev conhecia aquela área como as suas mãos. A água era quase perfeitamente isotérmica; não havia nenhuma camada térmica sob a qual um submarino pudesse esconder-se. Estavam suficientemente longe dos rios da costa norte da Rússia para não terem de se preocupar com lagos e paredes de salinidade variável que interferissem com o sonar. O Konovalov fora equipado com os melhores sistemas de sonar que a União Soviética já produzira, copiados de perto do francês DUUV-23 e um pouco melhorados, diziam os técnicos da fábrica.

Tupolev tencionava imitar a táctica americana de navegação lenta, apenas à velocidade bastante para o submarino obedecer ao leme, sem fazer barulho, e esperar que o Outubro Vermelho cruzasse a sua rota. Seguiria então a sua presa de perto, e anotaria cada mudança de rumo e de velocidade para que quando comparassem os diários de bordo, dentro de semanas, o Professor verificasse que o seu antigo

aluno jogara o seu próprio jogo de vitória. Era tempo de alguém o fazer.

— Algo de novo no sonar?

Tupolev começava a ficar tenso, impaciente.

—. Nada de novo, camarada comandante. — O starpom apontou o X, no mapa, que assinalava a posição do Rokossovskiy, um submarino equipado com mísseis da classe Delta que perseguiam havia algumas horas na mesma área de exercício. — O nosso amigo continua a navegar em círculo, lentamente. Pensa que o Rokossovskiy está a tentar confundir-nos? Teria combinado com o comandante Ramius vir para aqui complicar a nossa missão?

Tupolev já pensara nisso.

—Talvez. Mas não é provável. Este exercício foi planeado pelo próprio Korov. As nossas ordens estavam seladas e as de Marko também deviam estar. Mas o almirante Korov é um velho amigo do nosso Marko... — Tupolev interrompeu-se por um momento e abanou a cabeça. — Não. Korov é um homem honrado. Acho que Ramius vem para cá o mais devagar que pode para nos enervar, para nos obrigar a estas especulações. Sabe que o perseguiremos e, portanto, adoptou uma táctica em conformidade. Tentará provavelmente entrar no quadrado numa direcção imprevista... ou levar-nos a pensar que é por aí que entra. Você nunca serviu com Ramius, camarada tenente. É uma raposa, uma velha raposa. Em minha opinião, vai continuar a navegar como nós mais umas quatro horas. Se não o tivermos localizado então, atravessaremos para o campo sudeste do quadrado e, a partir daí, navegaremos para o centro. É isso...

Tupolev nunca esperara que a sua missão fosse fácil. Nunca o comandante de um submarino de ataque embaraçara Ramius. Tupolev estava decidido a ser o primeiro e as dificuldades da missão confirmariam a sua proeza. Tupolev decidira que, dentro de um ou dois anos, seria ele o mestre.

 

                    Domingo, 5 de Dezembro

Para o Outubro Vermelho, o tempo não existia. Para o Outubro Vermelho, o Sol nunca nascia nem se punha, e os dias da semana pouco significado possuíam. Ao contrário dos barcos de superfície que acertavam os relógios de acordo com o local onde se encontravam os submarinos pautavam-se, em geral, por uma única referência horária. Para os submarinos americanos, era Zulu, ou tempo médio dí Greenwich. Para o Outubro Vermelho, era a hora de Moscovo, a qual por convenção, estava uma hora adiantada relativamente ao tempo padrão, para economizar despesas nos serviços públicos.

Ramius entrou no centro de controle a meio da manhã. A rota era agora de dois-cinco-zero e a velocidade de três nós. O submarino navegava trinta metros acima do fundo, pela orla ocidental do mar de Barents. Mais umas horas e o fundo transformar-se-ia numa planície abissal, permitindo-lhes mergulhar bastante mais. Ramius examinou primeiro o mapa, depois numerosos painéis de instrumentos que cobriam as anteparas da sala. Por fim, tomou algumas notas no livro de ordens.

— Tenente Ivanov!

Chamava, em voz autoritária, o jovem oficial de quarto.

—’Sim, camarada comandante!

Ivanov era o mais novo oficial a bordo, acabado de sair da Escola Komsomol de Lenine, em Leninegrado, pálido, magrizela e ansioso

—’Vou convocar uma reunião de oficiais. Será você o oficial dquarto. É o seu primeiro cruzeiro, Ivanov. Que tal?

— Melhor do que eu esperava, camarada comandante—respondeu Ivanov com maior confiança do que aquela que lhe era possível sentir.

— Ainda bem, camarada tenente. Costumo dar aos subalternos o máximo de responsabilidade que possam assumir. Enquanto nós os oficiais mais velhos, vamos ter a nossa discussão política semanal você fica a comandar este barco! A segurança deste barco e de toda a sua tripulação fica ao seu encargo! Ensinaram-lhe tudo o que precisa saber, e as minhas instruções estão no livro de ordens. Se detectarmos outro submarino ou barco de superfície, informar-me-á imediatamente e accionará logo o plano de evasão. Alguma pergunta?

—.Não, camarada comandante — respondeu Ivanov, de pé, em sentido.

— Muito bem. — Ramius sorriu. —’ Pavel Ilych, vai recordar para sempre este momento como um dos grandes momentos da sua vida. Ainda me lembro do meu primeiro quarto. Não esqueça as suas ordens nem as suas responsabilidades!

O orgulho brilhava nos olhos do rapaz. Era péssimo o que lhe ia acontecer, pensou Ramius, sempre o mestre. À primeira vista, Ivanov parecia indiciar um bom oficial.

Ramius dirigiu-se em passo rápido para a popa, em direcção ao gabinete médico.

— Bom dia, doutor.

—-Bom dia, camarada comandante. São horas da nossa reunião política, não é verdade?

Petrov estava a ler um manual da nova máquina de raios X do submarino.

— São, camarada doutor, mas não venho dizer-lhe para assistir. Queria que me fizesse outra coisa. Enquanto os oficiais estão reunidos, tenho três novatos no comando e no reactor.

— Sim?

Petrov arregalou os olhos. Era a primeira vez que embarcava num submarino em vários anos. Ramius sorriu.

— Tranquilize-se, camarada. Preciso apenas de vinte segundos para ir da sala de oficiais ao centro de controle, como sabe, e o camarada Melekhin não demora mais a chegar junto do seu precioso reactor. Mais tarde ou mais cedo, os nossos jovens oficiais têm de aprender a assumir as suas responsabilidades. Quanto mais depressa melhor, em minha opinião. Quero que os vigie. Sei que todos estão habilitados a cumprir o seu dever, mas quero saber se têm a fibra necessária. Se Borodin ou eu estivermos a tomar conta deles, não agirão normalmente. E, de qualquer modo, trata-se de um julgamento médico, não?

—Ah, quer que observe como é que reagem às suas responsabilidades?

—Sem estarem sujeitos à pressão que decorreria de serem observados por um oficial mais velho — confirmou Ramius. — É preciso dar aos jovens oficiais espaço para se desenvolverem... mas não demasiado. Se vir qualquer coisa que não lhe pareça bem, informe-me imediatamente. Não deve haver problemas. Estamos no mar alto, não há tráfego e o reactor trabalha a uma fracção mínima da sua Potência. O primeiro teste para jovens oficiais deve ser fácil. Arranje uma desculpa para andar de um lado para o outro, e traga-me os garotos debaixo de olho. Interrogue-os sobre o que fazem.

Petrov riu.

—Ah, também quer que eu aprenda qualquer coisa, camarada comandante? Falaram-me de si em Severomorsk... Muito bem, farei como diz. Mas é a primeira reunião política que perco há muitos anos.

— Pelo que sei da sua ficha, você seria capaz de ensinar doutrina partidária ao Politburo, Yevgeni Konstantinovich.

O que pouco dizia acerca da sua competência como médico, pensou Ramius.

O comandante dirigiu-se à proa, à sala de oficiais, para se juntar aos camaradas que o aguardavam. Um criado deixara vários bules de chá em cima da mesa, com pão escuro e manteiga. Ramius olhou para o canto da mesa. A mancha de sangue fora lavada havia muito, mas lembrava-se ainda rigorosamente do seu aspecto. Eis uma diferença entre o homem que assassinara e ele próprio: Ramius tinha consciência. Antes de se sentar, virou-se para fechar a porta à chave. Os oficiais estavam sentados em silêncio, visto que a sala não tinha espaço bastante para que pudessem permanecer de pé, uma vez os bancos deitados abaixo.

O domingo era o dia habitual da sessão política no mar. Em regra, Putin teria perorado e lido alguns editoriais do Pravda seguidos de citações das obras de Lenine. Depois, extraíam-se lições das leituras, tudo muito parecido com um serviço religioso.

Na ausência do zampolit, esta tarefa competia ao comandante, mas Ramius duvidava de que os regulamentos previssem o tipo de discussão na agenda do dia. Cada oficial na sala fazia parte da sua conspiração. Ramius expôs os planos — tinha havido algumas alterações menores, das quais não falara a ninguém. Contou-lhes da carta.

— Portanto, não podemos voltar atrás — observou Borodin.

— Todos concordamos nesta acção. Agora estamos todos presos a ela.

As reacções às palavras do comandante foram exactamente aquelas que ele esperava — sóbrias. Como era natural. Eram todos solteiros; ninguém deixara mulher nem filhos, eram todos membros do Partido, onde ocupavam boas posições, tinham as quotas em dia até ao fim do ano, os cartões de filiados onde deviam estar, “junto ao coração”. E cada um deles partilhava com os camaradas uma profunda insatisfação que, em alguns casos, era ódio, relativamente ao Governo soviético.

Os planos haviam começado logo após a morte da sua Natalia. A raiva que quase inconscientemente suprimira durante toda a vida irrompera com uma violência e uma paixão que tivera dificuldades em conter. Uma existência de recalcamentos permitira-lhe ocultá-la,

uma vida de treino naval habilitara-o a escolher um objectivo digno

Ramius ainda não entrara para a escola quando pela primeira vez ouvira histórias, contadas por outras crianças, acerca do que seu pai, Aleksandr, fizera na Lituânia em 1940, e, depois, da duvidosa libertação do país dos alemães, em 1944. As crianças contavam aquilo que ouviam aos pais, dito em segredo. Uma rapariguinha contou a Marko uma história que ele, por sua vez, repetiu a Aleksandr; para horror atónito do rapaz, o pai da rapariguinha desapareceu. Por este erro involuntário, Marko passou a ser conhecido como informador. Magoado com o nome que lhe davam, visto ter cometido um crime — o qual, para o Estado, não era crime nenhum — cuja enormidade nunca deixara de lhe aguilhoar a consciência, nunca mais tornou a contar fosse o que fosse.

Nos anos formativos da sua personalidade, enquanto o pai dirigia, em Vilnius, o Comité Central do Partido Lituaniano, Ramius, órfão de mãe, fora criado com a avó paterna, prática comum num país devastado por quatro anos de guerra brutal. O único filho dela saíra de casa muito novo para se alistar nos Guardas Vermelhos de Lenine e, na sua ausência, a avó de Ramius mantinha os velhos costumes; ia à missa todos os dias até 1940 e nunca esquecera a educação religiosa que lhe tinham dado. Ramius recordava-a como uma velha senhora de cabelo cor de prata que lhe contava histórias maravilhosas para o adormecer. Histórias religiosas. Teria sido demasiado perigoso se levasse Marko às cerimónias religiosas que nunca haviam sido por completo abolidas; mesmo assim, a avó conseguira baptizá-lo numa igreja católica romana, mal o pai lho tinha entregue. Nunca contara isto a Marko; o risco teria sido grande de mais. O catolicismo romano fora brutalmente suprimido nos Estados bálticos. Era uma religião e, à medida que foi crescendo, Marko aprendeu que o marxismo-leninismo era um deus ciumento que não tolerava concorrentes.

A avó Hilda contava-lhe, à noite, histórias da Bíblia, cada uma delas com uma lição sobre o bem e o mal, o castigo e a recompensa. Criança, Ramius achava-as meramente para entreter, mas nunca falava nisso ao pai, pois já sabia que Aleksandr poria objecções. Depois de Aleksandr ter retomado o controle da vida do filho, esta educação religiosa perdeu-se na memória de Marko, nunca em absoluto recordada, nunca em absoluto esquecida.

Em rapaz, Ramius pressentia mais do que pensava que o comunismo soviético ignorava uma necessidade humana básica. Na adolescência, os seus pressentimentos começaram a tomar forma coerente. O bem do povo era um objectivo bastante louvável, mas, ao negar a alma, parte imperecível do ser, o marxismo destruía os fundamentos da dignidade humana e do valor individual. Ignorava também a medida objectiva da justiça e da ética, a qual, pensava Ramius, constituía o principal legado da religião à vida civilizada. A partir do início da idade adulta, Marko já possuía as suas próprias ideias acerca do bem e do mal, ideias que não partilhava com o Estado e lhe permitiam avaliar as suas acções e as dos outros. Tinha o cuidado de as ocultar. Serviam-lhe de âncora para a alma e, como uma âncora, permaneciam escondidas muito abaixo da superfície visível.

Nem quando, rapaz, enfrentava as suas primeiras dúvidas acerca do seu país alguém poderia suspeitar disso. Como todas as crianças soviéticas, Ramius integrou-se nos Pequenos Outubristas, depois nos Jovens Pioneiros. Desfilou nos fatais e sagrados campos de batalha de botas polidas e lenço vermelho, e perfilou-se perante os restos de um soldado desconhecido, empunhando contra o peito uma pistola-metralhadora PPSH sem munições, as costas erguidas diante da chama eterna. A solenidade deste dever não era casual. Em rapaz, Marko tinha a certeza de que os homens corajosos, cujos túmulos honrava tão intensamente, haviam cumprido o seu destino com o mesmo tipo de heroísmo altruísta que via retratado nos intermináveis filmes de guerra no cinema local. Eram homens que tinham combatido os abomináveis alemães para proteger as mulheres, as crianças e os velhos atrás das linhas. E, como o filho de um nobre de uma Rússia antiga, sentia um particular orgulho por ser filho de um chefe do Partido. O Partido, ouvira-o dizer centenas de vezes ainda não tinha cinco anos, era a Alma do Povo; a unidade que o Partido, o Povo e a Nação formavam era a Santíssima Trindade da União Soviética, se bem que um segmento fosse mais importante do que os outros. Seu pai cabia perfeitamente na imagem cinemática de um apparatchik do Partido. Firme, mas justo, para Marko era um homem rude que se ausentava muitas vezes e que trazia ao filho todos os presentes que podia, que velava por que ele gozasse de todas as vantagens a que o filho de um secretário do Partido tinha direito.

Embora na aparência fosse o modelo da criança soviética, no íntimo perguntava-se por que razão aquilo que o pai e a escola lhe ensinavam contradizia as outras lições da sua juventude. Porque seria que alguns pais não deixavam os seus filhos brincar com ele? Porque seria que os seus companheiros de escola, quando passavam por ele, murmuravam stukach, o cruel e amargo epíteto de informador? O pai e o Partido ensinavam que informar era um acto de patriotismo, mas, por ter informado uma vez, haviam-no marcado. Magoavam-no os insultos dos companheiros; porém, nem uma vez se queixou ao pai, por saber que prevaricaria se o fizesse.

Havia qualquer coisa de muito errado., mas que coisa? Decidiu procurar as respostas sozinho. Marko tornou-se deliberadamente individualista no seu pensamento, cometendo, assim, sem querer, o mais grave pecado do panteão comunista. Na aparência um modelo de filho de um membro do Partido, fingia com todo o cuidado, observando todas as regras. Cumpria os seus deveres para com todas as organizações do Partido e era sempre o primeiro a oferecer-se para as tarefas servis atribuídas aos jovens que aspiravam a ser membros do partido, único caminho, Marko sabia-o, que levava ao êxito ou mesmo ao conforto, na União Soviética. Tornou-se bom desportista. Não em desportos de equipa — dedicava-se a modalidades individuais em que podia pôr à prova as suas capacidades e avaliar as dos outros. Ao longo dos anos, foi aprendendo a fazer o mesmo em tudo aquilo em que se empenhava, a observar e a julgar as acções dos seus concidadãos e chefes com frio distanciamento, por detrás de uma expressão neutra que escondia as suas conclusões.

No Verão do seu oitavo ano, o curso da sua vida mudou para sempre. Como ninguém quisesse brincar com o “pequeno stukach”, Marko vagueava pelo cais da pequena aldeia piscatória onde a avó residia. Uma colecção desordenada de velhos barcos de madeira zarpava todas as manhãs, sempre protegida por barcos-patrulhas tripulados por guardas fronteiriços do MGB—como então se chamava o KGB — para uma safra modesta no golfo da Finlândia. A pesca suplementava a dieta local com as proteínas indispensáveis e permitia um minúsculo rendimento aos pescadores. Um dos capitães era o velho Sasha. Oficial da Armada do czar, tinha-se revoltado com a tripulação do cruzador Aurora e ajudado, assim, a desencadear os acontecimentos que haviam mudado a face do mundo. Só muitos anos depois Marko veio a saber que os tripulantes do Aurora tinham rompido com Lenine—e sido brutalmente reprimidos pelos Guardas Vermelhos. Sasha passara vinte anos em campos de trabalho por ter participado nessa imprudência colectiva e só fora solto no princípio da Grande Guerra Patriótica. A Rodina necessitava de marinheiros experimentados para pilotar barcos nos portos de Murmansk e Árchangel, nos quais os aliados desembarcavam armas, alimentos e as miudezas que permitiam o funcionamento de um exército moderno. Sasha aprendera a lição no gulag: cumprir o seu dever eficientemente, sem nada pedir em troca. Depois da guerra, haviam-lhe dado uma espécie de liberdade em paga dos seus serviços, o direito de desempenhar um trabalho extenuante sob suspeita perpétua.

Quando Marko o conheceu, Sasha tinha mais de sessenta anos. Era um homem quase careca, com velhos músculos quais cordas, olho de marinheiro e um talento para contar histórias que deixava o rapaz maravilhado. Fora aspirante de Marinha em Port Arthur, em 1906, sob o comando do famoso almirante Marakov, talvez o maior marinheiro da História russa. (A reputação de Marakov como patriota e combatente inovador não ficaria manchada pelo facto de um Governo comunista decidir dar o seu nome a um cruzador equipado com mísseis). Desconfiando, a princípio, do rapaz por causa da sua reputação, Sasha viu nele algo que aos outros faltava. O rapaz sem amigos e o marinheiro sem família tornaram-se camaradas. Sasha passava horas contando e recontando a história de como servira no navio-almirante, o Petropavlovsk, e participara na única vitória russa sobre os aliados japoneses — para ver o seu barco afundado e o seu almirante morto por uma mina, no regresso ao porto. Depois, Sasha comandara os seus marinheiros como unidade de infantaria naval e conquistara três condecorações por bravura debaixo de fogo. A experiência — espetava, muito sério, o dedo para o rapaz — abrira-lhe os olhos para a estúpida corrupção do regime czarista e convencera-o a aderir aos primeiros sovietes da Armada, quando tal gesto significava morte certa às mãos da polícia secreta do czar, a okhrana. Contava a sua própria versão da Revolução de Outubro, na perspectiva emocionante de uma testemunha ocular. Sasha, porém, tinha o cuidado de não se referir aos acontecimentos posteriores.

Deixou que Marko navegasse com ele e ensinou-lhe o fundamental da marinharia; isto convenceu o rapaz, que não tinha ainda nove anos, de que o seu destino estava no mar. No mar havia uma liberdade de que jamais poderia usufruir em terra. O romance do mar entusiasmava o homem que crescia dentro do rapaz. Havia perigos também, mas através de uma série de lições simples e eficazes que duraram todo um Verão, Sasha ensinou ao rapaz que o treino, o conhecimento e a disciplina podiam enfrentar todas as formas de perigo; que o perigo devidamente enfrentado é algo que um homem não deve temer. Anos mais tarde, Marko reflectiria muitas vezes nos, ensinamentos desse Verão e perguntaria a si próprio até onde não teria ido a carreira de Sasha se outros acontecimentos não a tivessem cortado cedo.

Marko falou ao pai em Sasha, estava esse longo Verão do Báltico no fim, e levou-o mesmo a conhecer o velho marinheiro. Aleksandr ficou impressionado com Sasha e com aquilo que este fizera pelo filho, a ponto de lhe ter conseguido o comando de um barco maior e melhor, e um salto na lista para um novo apartamento. Marko quase acreditou que o Partido era capaz de fazer uma boa acção, que ele próprio fizera a sua primeira boa acção como um homem. O velho Sasha, porém, morreu no Inverno seguinte e a boa acção ficou em nada. Muito tempo depois, Marko compreendeu que ignorava o apelido do seu amigo. Mesmo após anos de leal serviço prestado à Rodlna, Sasha nunca tinha sido uma pessoa.

Aos treze anos, Marko viajou para Leninegrado, a fim de frequentar a Escola Nakhimov. Aí decidiu tornar-se também oficial de Marinha; Marko responderia ao apelo da aventura que, ao longo dos séculos, chamava os jovens ao mar. A Escola Nakhimov era um estabelecimento de ensino preparatório, cujo curso de três anos se destinava aos rapazes vocacionados para a vida marítima. A Marinha soviética possuía, na época, pouco mais do que uma força de defesa costeira; Marko, porém, queria muito fazer parte dela. O pai instava-o a dedicar a vida ao trabalho do Partido, prometendo-lhe uma promoção rápida, confortos e privilégios. Todavia, Marko queria merecer tudo o que recebesse, não queria ser recordado como um apêndice do “libertador da Lituânia. E a vida no mar oferecia aventura e excitação que chegavam a tornar suportável a decisão de servir o Estado. A Marinha não tinha grandes tradições constrangedoras. Marko sentia que dispunha de espaço para crescer e verificava que muitos aspirantes a cadetes eram como ele próprio, jovens à procura de um destino tanto quanto isso era possível numa sociedade estreitamente controlada como aquela em que viviam. O adolescente delirou com a sua primeira experiência de camaradagem. Perto do fim do curso, a sua classe tomou contacto com os vários componentes da frota russa. Ramius apaixonou-se de imediato pelos submarinos. Nessa época, os barcos eram pequenos, sujos e deitavam mau cheiro dos porões abertos, que as tripulações utilizavam como latrinas. Por outro lado, os submarinos eram a única arma ofensiva que a Marinha possuía e, desde o princípio, Marko procurara as emoções fortes. Recebera lições bastantes de história naval para saber que os submarinos quase tinham por duas vezes estrangulado o império marítimo inglês e castrado com êxito a economia do Japão. Isto agradara-lhe muito; agradava-lhe que os americanos tivessem esmagado a Armada japonesa, que por pouco matara o seu mentor.

Foi o primeiro da sua classe na Escola Nakhimov e conquistou o sextante com banho de ouro pelos seus conhecimentos de teoria da navegação. Como primeiro da turma, Marko pôde escolher a escola que frequentaria a seguir. Escolheu a Escola Naval Superior de Navegação Submarina, a Komsomol de Lenine, WMUPP, que é ainda a principal escola de submarinos da União Soviética.

Os seus cinco anos na WMUPP foram os mais exigentes da sua vida, sobretudo porque estava decidido não apenas a ser bom, mas o melhor. Foi o primeiro da sua classe em todas as disciplinas, em todos os anos. O seu estudo sobre o significado político do poder naval soviético foi enviado a Sergey Georgiyevich Gorshkov, à época comandante-chefe da Esquadra do Báltico e futuro expoente, como todos sabiam, da Marinha soviética. Gorshkov tinha visto o ensaio publicado no Morskoi Sbornik (Artigos Navais), o principal jornal da Marinha soviética. Era um modelo de pensamento partidário progressista, com seis citações diferentes de Lenine.

Por esta altura, o pai de Marko era candidato ao Presidium, como então se chamava o Politburo, e tinha grande orgulho no filho. Aleksandr não era tonto; acabou por reconhecer que a Armada Vermelha era uma flor desabrochando e que o filho acabaria por desfrutar nela de uma posição importante. A sua influência fez progredir rapidamente a carreira de Marko.

Pelos trinta anos, Marko tinha o seu primeiro comando e uma nova esposa. Natalia Bogdanova era filha de outro membro do Presidium, cujas missões diplomáticas o tinham levado, e à família, a percorrer o mundo. Natalia nunca fora saudável. Não tinham filhos; três tentativas feitas nesse sentido haviam terminado em aborto, o último dos quais quase a matara. Natalia era uma mulher delicada e bonita, sofisticada para os padrões russos, que polia o inglês sofrível do marido com livros americanos e britânicos — politicamente aprovados, claro—, sobretudo os pensamentos de esquerdistas ocidentais, mas também amostras de literatura genuína, incluindo Hemingway, Twain e Upton Sinclair. Natalia fora, ao lado da carreira naval, o centro da vida de Marko. O casamento, assinalado por ausências prolongadas e regressos festivos, tornara o amor ainda mais precioso do que noutras circunstâncias.

Quando começou a construção dos submarinos soviéticos de primeira classe movidos a energia nuclear, Marko acorreu aos estaleiros para se inteirar de como os tubarões de aço eram planeados e construídos. Não tardou a ser conhecido como exigente de mais para agradar enquanto jovem inspector de controle de qualidade. A sua vida, tinha consciência disso, confundir-se-ia com o trabalho dos soldadores e montadores, tantas vezes bêbados. Tornou-se perito em engenharia nuclear, passou dois anos como starpom e recebeu, depois, o seu primeiro comando num submarino nuclear. Era um submarino de ataque da classe Novembro, a primeira tentativa tosca dos soviéticos de construir um vaso de guerra de longo alcance que ameaçasse os navios e as linhas de comunicação ocidentais. Menos de um mês mais tarde, um barco gémeo sofria um grave acidente provocado pelo reactor ao largo da costa norueguesa, e Marko foi o primeiro a chegar ao local. Conforme lhe haviam ordenado, salvou a tripulação e afundou o submarino inutilizado para que os navios ocidentais não descobrissem os seus segredos. Executou as duas tarefas com perícia e eficácia, realização notável para um jovem comandante. Sempre pensara que era importante recompensar a eficácia dos seus subordinados e o comandante da esquadra, nesse tempo, pensava da mesma maneira. Marko passou rapidamente para um novo submarino da classe Charlie 1.

Eram homens como Ramius que iriam desafiar os americanos e os britânicos. Marko alimentava poucas ilusões. Os americanos, sabia-o, possuíam uma longa experiência de guerra naval — o maior combatente que tinham tido, Jones, servira a Marinha russa no reinado da czarina Catarina. Os submarinos que possuíam eram lendários pelas suas virtualidades e Ramius sentia-se desafiado pelos últimos americanos treinados na guerra, homens que tinham resistido ao suor do medo do combate submarino e derrotado inapelavelmente uma armada moderna. O jogo mortalmente perigoso da cabra-cega que jogava com eles não era fácil, sobretudo porque eles dispunham de submarinos com anos de avanço relativamente às concepções soviéticas. Isso não significava, porém, que não fossem possíveis algumas vitórias.

Ramius foi aprendendo a jogar o jogo segundo as regras americanas, a treinar os seus oficiais e homens com cuidado. As suas tripulações raramente estavam preparadas quanto ele desejava — o maior problema, ainda, da Marinha soviética —, mas quando outros comandantes amaldiçoavam as tripulações pelos seus malogros, Marko corrigia os malogros das suas tripulações. O seu primeiro submarino da classe Charlie chamava-se Academia de Vilnius. Em parte, isto equivalia a uma afronta contra o seu sangue meio lituano — embora tivesse nascido em Leninegrado, de um grande-russo, o seu passaporte interno atestava-o como lituano —, mas era sobretudo o reconhecimento de que os oficiais lhe chegavam mal preparados e o deixavam prontos para fazer carreira e para, eventualmente assumir o comando. O mesmo se podia dizer do contingente geral. Ramius não permitia a escravatura nem o terrorismo de baixo nível, normais em toda a estrutura militar soviética. Via a sua tarefa como a formação de marinheiros e produzia uma percentagem maior de realistamentos do que qualquer outro comandante de submarinos. A nona parte dos michmanyy da força de submarinos da Esquadra do Norte era constituída por profissionais treinados por Ramius. Os comandantes de submarinos seus colegas adoravam embarcar os seus starshini; muitos destes se matricularam na escola de oficiais.

Após dezoito meses de trabalho duro e treino diligente, Marko e o seu Academia de Vilnius estavam prontos para jogar o jogo da cabra-cega. Foi com o USS Tríton, no mar da Noruega, que perseguiu impiedosamente durante doze horas. Mais tarde, observaria, não sem satisfação, que o Tríton não tardara a retirar-se porque, dizia-se, o vaso, descomunal, se demonstrara incapaz de enfrentar os submarinos soviéticos, mais avançados. Aos submarinos a diesel britânicos e noruegueses que ocasionalmente encontrava enquanto renovava o ar, perseguia sem descanso, submetendo-os, muitas vezes, a cruel flagelação Por sonar. Uma vez, chegou mesmo a encurralar um submarino americano equipado com mísseis; conseguiu manter contacto com ele durante quase duas horas, antes de o ver desaparecer como um fantasma nas águas escuras.

O rápido crescimento da Marinha soviética e a falta de oficiais qualificados durante os princípios da sua carreira impediram Ramius de frequentar a Academia de Frunze. Esta academia era, em princípio, um sine qua non de promoção em todos os ramos das Forças Armadas soviéticas. Frunze, em Moscovo, perto do velho convento de Novodevichiy, tinha o nome de um herói da Revolução. Era a primeira escola para os que aspiravam ao alto comando e, embora Ramius não a tivesse frequentado como estudante, o seu comportamento como comandante operacional permitiu-lhe ser nomeado instrutor da academia. Conquistara o cargo apenas por mérito; o pai, apesar de altamente colocado, não interferira na nomeação. Isto era importante para Ramius.

O comandante do Departamento Naval de Frunze gostava de apresentar Marko como “o nosso piloto de ensaios de submarinos”. As suas classes tornaram-se uma atracção sem paralelo, não apenas para os oficiais da Armada da academia, mas também para os muitos outros que vinham assistir às suas aulas sobre história naval e estratégia marítima. Nos fins-de-semana, que passava na dacha oficial do pai, na aldeia de Zhukova-1, escrevia manuais de operações submarinas e treino de tripulações, e especificações para o submarino de ataque ideal. Algumas das suas ideias eram suficientemente controversas para perturbar o seu antigo protector, Gorshkov, nesse tempo comandante-chefe de toda a Marinha soviética — mas não desagradavam em absoluto ao velho almirante.

Ramius propunha que os oficiais dos submarinos deviam trabalhar numa única classe de barco — melhor ainda, no mesmo barco — durante anos, para assim melhor aprenderem a sua profissão e as possibilidades dos seus vasos. Comandantes habilitados, dizia, não deviam ser obrigados a abandonar o comando em virtude de promoções que os amarrariam a secretárias. Louvava aqui à prática do Exército Vermelho de deixar um comandante operacional no seu posto enquanto ele quisesse, opondo-se deliberadamente, neste aspecto, à prática das Armadas imperialistas. Sublinhava a necessidade de treino prolongado na esquadra, de aumento do tempo de serviço militar obrigatório e de melhores condições de vida nos submarinos. Para algumas destas ideias encontrou no Alto Comando receptividade; para outras, não. Ramius convenceu-se de que nunca chegaria a almirante. Nesse tempo, isto não o entristecia. Gostava de mais dos submarinos para os trocar por um esquadrão ou mesmo pelo comando de uma esquadra.

Depois de sair de Frunze, tornou-se realmente piloto de ensaios de submarinos. Marko Ramius, capitão-de-mar-e-guerra, comandava

primeiro barco de todas as classes de submarinos para “escrever o livro” sobre os seus pontos fortes e fracos, para estabelecer rotinas operacionais e orientações de treino. O primeiro dos Alfas foi seu, bem como o primeiro dos Deltas e dos Typhoons. Tirando um extraordinário revés com um Alfa, a sua carreira consistia numa ininterrupta sucessão de êxitos.

Tornou-se, pelo caminho, mentor de muitos jovens oficiais. Perguntava muitas vezes a si próprio o que teria Sasha pensado, enquanto ensinava a arte exigente das operações submarinas a vintenas de rapazes ansiosos. Muitos tinham-se já tornado oficiais comandantes; a maior parte falhara. Ramius era um comandante que se preocupava com os que lhe agradavam — e com os que não lhe agradavam. Outro motivo pelo qual nunca chegara a almirante estava na sua indisponibilidade para promover oficiais cujos pais eram tão poderosos quanto o seu, mas cujas capacidades eram insatisfatórias. Não conhecia favoritismos em questões de dever, e os filhos de meia dúzia de altos funcionários do Partido receberam notas de insuficiência, a despeito de participarem activamente nas discussões partidárias semanais. A maior parte tornara-se zampolit. Com esta integridade, conquistara a confiança do comando da esquadra. Na presença de uma missão difícil, o nome de Ramius era geralmente o primeiro a ser lembrado. Pelo caminho, também, chamara a si vários jovens oficiais a quem, com Natalia, virtualmente adoptara. Eram sucedâneos da família que Marko e a mulher não tinham. Ramius viu-se a orientar homens muito parecidos consigo, com dúvidas desde cedo reprimidas acerca da chefia do país. Era um homem franco, desde que confiasse no seu interlocutor. Aos que tinham dúvidas políticas, aos que apenas tinham queixas, dava o mesmo conselho: “Entra para o Partido.” Eram já quase todos membros do Komsomol, claro, e Marko insistia * para que dessem o passo seguinte. Era este o preço de uma carreira no mar e, impelidos pela sua própria ânsia de aventura, os oficiais, na maior parte, pagavam esse preço. Ramius fora autorizado a entrar para o Partido aos dezoito anos, a idade mínima, devido à influência do pai. As suas ocasionais intervenções nas reuniões semanais do Partido constituíam recitações perfeitas da linha oficial. Não era difícil, conforme pacientemente explicava aos oficiais. Tudo o que havia a fazer era repetir o que o Partido dizia — mudando apenas ligeiramente as palavras. Muito mais fácil do que navegar — bastava olhar o comissário político para o compreender! Ramius tornou-se conhecido como um bom comandante, cujos oficiais eram ao mesmo tempo obedientes e modelos de conformidade política. Era um dos melhores recrutadores do Partido na Marinha.

Então, a mulher de Ramius morreu. Ramius estava em terra na altura, coisa normal para um comandante de submarinos atómicos.

Possuía a sua dacha nos bosques a ocidente de Polyarnyy, o seu automóvel Zhiguli, o carro oficial e o motorista atribuídos a militares na sua posição, e numerosos outros confortos devidos pela sua patente e origem. Fazia parte da elite do Partido; por isso, quando Natalia se queixou de dores abdominais, a consulta numa clínica do Quarto Departamento, que atendia apenas os privilegiados, fora um erro natural. Costumava dizer-se na União Soviética: “Chão de tacos, médicos óptimos.” Viu a mulher viva pela última vez numa maca, a sorrir-lhe enquanto era conduzida para a sala de operações. O cirurgião de serviço chegara tarde ao hospital, e bêbado, e perdera muito tempo a respirar oxigénio puro para ficar sóbrio antes de iniciar a simples remoção de um apêndice inflamado. O órgão tumefacto rebentou precisamente quando ele afastava os tecidos para o alcançar. Sucedeu-se de imediato uma peritonite, complicada por uma perfuração intestinal que o cirurgião provocara na pressa desajeitada de reparar o erro.

Natalia foi submetida a antíbioterapia, mas havia falta de medicamentos. Os remédios estrangeiros — em geral franceses — usados na clínica do Quarto Departamento tinham-se esgotado. Houve que recorrer aos antibióticos soviéticos, às medicações “plano”. Era prática comum da indústria soviética os trabalhadores ganharem bónus pelo fabrico de artigos para além da quota usual, artigos que iludiam o controle de qualidade, fosse qual fosse, existente na indústria soviética. Aquela particular remessa de medicamentos nunca fora inspeccionada ou testada. E os frascos tinham sido provavelmente cheios com água destilada em vez de antibiótico, descobriu Marko no dia seguinte. Natalia entrara em choque profundo, depois em coma. Morreria antes que a série de erros pudesse ser corrigida.

O funeral foi solene, como convinha, lembrava-se Ramius amargamente. Oficiais do seu comando e mais de uma centena de outros homens da Marinha que protegera ao longo dos anos, juntamente com nomes da família de Natalia e representantes do Comité Central local do Partido. Marko estava no mar quando o pai morrera, mas, como sabia da extensão dos crimes de Aleksandr, a perda pouco o afectara. A morte da mulher, contudo, constituiu uma catástrofe pessoal. Pouco depois de terem casado, Natalia dissera que todo o marinheiro precisa de ter alguém à sua espera, que toda a mulher precisa de ter alguém por quem esperar. Tão simples como isto — e infinitamente mais complexo, o casamento de duas pessoas inteligentes que, ao longo de quinze anos, haviam aprendido as forças e as fraquezas uma da outra e se tinham tornado cada vez mais íntimas.

Marko Ramius viu o caixão desaparecer no forno crematório aos acordes pesados de um requiem clássico e desejou saber rezar pela alma de Natalia, desejou que a avó Hilda tivesse razão, que existisse algo para além da porta de ferro e das chamas. Foi então que todo o peso da realidade se abateu sobre ele: o Estado não lhe roubara apenas a mulher; roubara-lhe também o meio de adoçar o seu desgosto com a prece, roubara-lhe a esperança — nem que fosse uma ilusão — de a tornar a ver. Natalia, meiga e gentil, fora a sua única felicidade desde aquele Verão no Báltico, tão antigo. Agora, a felicidade desaparecera para sempre. À medida que as semanas e os meses passavam, a memória dela atormentava-o; um certo penteado, um certo andar, uma certa gargalhada que via nas ruas ou nas lojas de Murmansk, tudo lhe devolvia Natalia à zona clara da consciência, e quando pensava na sua perda deixava de ser um marinheiro profissional.

A vida de Natalia Bogdanova Ramius perdera-se nas mãos de um cirurgião que se embebedava, não obstante de serviço — crime que dava direito a julgamento em conselho de guerra na Marinha soviética; porém, Marko não podia castigar o médico. O cirurgião era filho de um dirigente do Partido e os seus protectores defendiam-lhe a posição. A vida de Natalia podia ter sido salva através de medicamentos adequados, mas não existiam em quantidade suficiente drogas estrangeiras, e as soviéticas não eram dignas de confiança. O médico não seria responsabilizado, os trabalhadores do laboratório não seriam responsabilizados. Esta ideia atormentava, a espaços, Ramius, e alimentava a sua fúria. Até que um dia tomou uma decisão: o Estado pagaria por eles.

A ideia levara semanas a formar-se, modelada por uma carreira de treino militar e de domínio de planos de contingência. Quando a construção do Outubro Vermelho recomeçou, após um intervalo de dois anos, Ramius soube logo que o ia comandar. Ajudara a conceber o seu revolucionário sistema de propulsão e inspeccionara o modelo, que manobrara no mar Cáspio, durante anos, em absoluto segredo. Pediu escusa do seu comando para se poder concentrar na construção e apuro do Outubro, para seleccionar e treinar os seus oficiais antecipadamente, para ter o submarino operacional o mais depressa possível. O pedido foi satisfeito pelo comandante da Esquadra do Norte Bandeira Vermelha, um homem sentimental que chorara também no funeral de Natalia.

Ramius já sabia quem iriam ser os seus oficiais. Todos da Academia de Vilnius, muitos dos “filhos” de Marko e Natalia, homens que deviam a Ramius o seu posto e a sua posição; homens que praguejavam contra a incapacidade do seu país para construir submarinos dignos das suas capacidades; homens que tinham entrado para o Partido, conforme Ramius lhes havia dito e, depois, se haviam tornado aimda mais descontentes com a Mãe-Pátria, à medida que iam aprendendo que o preço da promoção era a prostituição do espírito e da alma, o tornarem-se papagaios altamente pagos de dólman azul, para quem cada cerimónia do Partido constituía um exercício doloroso de autodomínio. Na maior parte, eram homens para os quais esse passo degradante não produzira frutos. Na Marinha soviética existiam três vias de promoção. Um homem tornar-se zampolit e ser um pária entre os camaradas; podia ser oficial de navegação e aceder ao seu próprio comando; ou podia ser desviado para uma especialidade na qual ganharia galões e dinheiro — mas nunca comando. Assim, um engenheiro-chefe da Marinha soviética podia ter uma patente superior à do seu comandante e continuar a ser seu subordinado.

Ramius olhou em redor da mesa para os seus oficiais. A maior parte não pudera perseguir os seus objectivos de carreira, não obstante a proficiência e a filiação no Partido. Infracções menores na juventude— num dos casos, um acto cometido aos oito anos — impedia dois deles de merecerem novamente confiança. Quanto ao oficial de mísseis, era por ser judeu; apesar de os pais serem, desde sempre, comunistas dedicados e empenhados, não mereciam, como o filho, confiança. O irmão mais velho de outro oficial manifestara-se contra a invasão da Checoslováquia, em 1968, e desgraçara toda a família. Melekhin, engenheiro-chefe da mesma patente de Ramius, nunca pudera aspirar ao comando, simplesmente porque os seus superiores queriam que ele fosse engenheiro. Borodin, que estava pronto para assumir o comando, acusara, uma vez, um zampolit de homossexualidade; o homem sobre quem recaía a acusação era filho do zampolit-chefe da Esquadra do Norte. Existem muitos caminhos para a traição.

— E se eles nos localizam? — perguntou Kamarov.

— Duvido que mesmo os americanos nos passam encontrar quando o Caterpillar estiver em funcionamento. Tenho a certeza de que os nossos submarinos não o conseguirão. Camaradas, ajudei a conceber este barco — disse Ramius.

— Que irá ser de nós? — murmurou o oficial de mísseis.

—Primeiro, temos de cumprir a nossa missão imediata. Um oficial que olha longe de mais tropeça nas próprias botas.

— Eles vão pôr-se à nossa procura — disse Borodin.

— Claro — concordou Ramius, sorrindo—, mas quando souberem onde procurar será já demasiado tarde. A nossa missão, camaradas, é impedir que nos detectem. E impediremos.

 

                     Segunda-feira, 6 de Dezembro

                   Quartel-General da CIA

Ryan desceu o corredor no último piso do quartel-general da Central Intelligence Agency, em Langley, na Virginia. Passara já por três controles de segurança, nenhum dos quais o obrigara a abrir a pasta, fechada à chave, embrulhada agora nas dobras do anorak amarelo, presente de um oficial da Marinha inglesa.

Por baixo, trazia um fato caro, de Savile Row; a culpa era, sobretudo, da mulher. O fato era de corte inglês, nem conservador nem excessivamente integrado na moda contemporânea. Tinha vários fatos assim, dispostos no seu armário, por cores, que usava com camisas brancas e gravatas às riscas. Como jóias, trazia apenas a aliança de casamento e o anel da Universidade, mais um modesto, embora rigoroso relógio digital numa pulseira de ouro, esta de preço. Ryan não era homem que desse grande valor às aparências; o seu trabalho era mesmo o de descobrir, para lá delas, a verdade nua e crua.

Fisicamente, era vulgar, com um metro e oitenta e dois, e o seu aspecto sofria um pouco, na cintura, da falta de exercício, estimulada pelo clima inglês, uma miséria. Os seus olhos azuis possuíam uma enganadora expressão de ausência; perdia-se, muitas vezes, em pensamentos, os olhos entregues a si próprios, enquanto o cérebro se debatia com dados ou material de pesquisa para o livro que estava a escrever. As únicas pessoas que Ryan tinha necessidade de impressionar eram aquelas que o conheciam; as outras pouco lhe importavam. Não ambicionava a celebridade. A sua vida, pensava, era já suficientemente complicada — um pouco mais até do que muitos suspeitariam. Dela faziam parte uma esposa que amava e dois filhos que adorava, uma Profissão que punha à prova o seu intelecto, e independência financeira bastante para escolher o seu próprio caminho. A divisa oficial da agência era “A verdade apertar-te-á”. O desafio, dizia a si próprio pelo menos uma vez por dia estava em descobrir essa verdade; e, embora duvidasse de que alguma vez viesse a atingir tão sublime estado de graça, orgulhava-se da sua capacidade para o mordiscar, um bocadinho de cada vez.

O gabinete do director-adjunto dos Serviços Secretos, o DD] ocupava todo um canto no último piso, e dava para Potomac Vallej coberto de árvores. Ryan passou mais um controle de segurança.

— Bom dia, doutor Ryan.

— Olá, Nancy.

Ryan sorriu-lhe. Nancy Cummings desempenhava as suas funções de secretária havia vinte anos, servira com oito directores-adjuntos e bem vistas as coisas, possuía talvez tanto talento para a espionagem como os funcionários políticos do gabinete contíguo. Passava-se o mesmo que nas grandes empresas — os patrões entravam e saíam, mas as boas secretárias executivas eram eternas.

— Como vai a família, doutor? A pensar no Natal?

— Obrigado... A minha Sally está um tanto preocupada. Recei-a que o Pai Natal não saiba para onde nos mudamos e que não se d ao trabalho de ir a Inglaterra por causa dela. Mas há-de ir — confidenciou Ryan.

— São umas idades tão bonitas, não são? — Carregou num botão escondido. — Pode entrar, doutor Ryan.

— Obrigado, Nancy.

Ryan accionou a maçaneta electronicamente protegida e entrou no gabinete do director-adjunto.

O vice-almirante James Greer recostava-se na sua cadeira de juis de espaldar alto, a ler um dossier. A secretária enorme, de mogno estava coberta com maços impecáveis de dossiers, as capas marcadas com fita vermelha e apresentando várias palavras em código.

—Viva, Jack!—cumprimentou-o através da sala. — Café?

— Está bem, obrigado, sir.

James Greer tinha sessenta e seis anos. Oficial da Marinha que ] passara a idade da reforma, continuava a trabalhar com notável competência, tal como Hyman Rickover trabalhara, embora fosse um homem bastante mais fácil. Era um “cavalo selvagem”, um homem que entrara para a Marinha como recruta e, por direito própriu para a Academia Naval. Ao fim de quarenta anos esforçados, conquistara a sua bandeira de três estrelas, primeiro como comandante de submarinos, depois como especialista dos Serviços Secretos a tempo inteiro. Greer era um patrão exigente, mas preocupava-se com aqueles que lhe agradavam. Ryan era um destes.

De certo modo para desgosto de Nancy, Greer gostava de fazer o seu café numa máquina West Bend que tinha em cima da credência, atrás da secretária, mesmo à mão. Ryan serviu-se de uma chávena — rigorosamente uma caneca sem asa, estilo Marinha. Era o tradicional café dos marinheiros, forte e com uma pitada de sal.

— Tens fome, Jack? — Greer tirou uma caixa de bolos de uma gaveta da secretária. — Tenho aqui uns bolinhos de leite com passas.

.Obrigado, sir. Realmente comi pouco no avião.

Ryan pegou num bolo, juntamente com um guardanapo de papel.

— Continuas a não gostar de voar? — perguntou Greer, bem humorado.

Ryan sentou-se numa cadeira, em frente do chefe.

Acho que já era tempo de me habituar... Gosto mais do Concorde do que dos lentos. Uma pessoa tem menos tempo para se assustar.

Como está a família?

— Bem, obrigado, sir. Sally está na primeira classe, felicíssima. E Jack corre a casa toda, uma barafunda. São muito bons, os bolos.

— Feitos numa padaria que abriu há pouco, perto de minha casa. Passo por lá todas as manhãs. — O almirante endireitou-se na cadeira. — Então que te traz por cá hoje?

— Fotografias do novo submarino soviético equipado com mísseis, o Outubro Vermelho — disse Ryan com naturalidade, enquanto sorvia o café.

— Sim? E que pretendem os nossos primos britânicos em troca? — perguntou Greer, desconfiado.

— Querem dar uma espreitadela aos novos dispositivos de ampliação de Barry Somers. Não às máquinas em si — para já—, mas ao produto acabado. Parece-me razoável, sir.

Ryan sabia que a CIA não tinha fotografias do novo submarino. A directoria de operações não possuía ninguém no estaleiro de Severodvinsk nem um homem de confiança na base de Polyarnyy. Pior, as séries de “barcos palheiros” construídos para ocultar os submarinos equipados com mísseis, inspirados nas protecções dos submarinos alemães da Segunda Guerra Mundial, impossibilitavam a fotografia por satélite.

— Temos dez imagens baixas e oblíquas, cinco da proa e cinco da popa. Uma de cada perspectiva está por revelar, para Somers poder trabalhá-las. Não há compromisso nenhum, sir, mas eu disse a Sir Basil que o senhor ia pensar no assunto.

O almirante resmungou. Sir Basil Charleston, chefe dos Serviços Secretos britânicos, era um mestre no quiproquó que, às vezes, oferecia a partilha de fontes aos seus primos mais ricos e um mês depois pedia algo em troca. O jogo da espionagem assemelhava-se muito a Un* mercado primitivo.

—Para usarmos o novo sistema, Jack, precisamos da máquina com que foram tiradas as fotografias.

, — Bem sei. — Ryan tirou a máquina do bolso do casaco. — É uma máquina Kodak de disco, modificada. Sir Basil diz que é o último grito em máquinas de espionagem, perfeitíssima e muito pequena, diz ele, foi escondida numa bolsa de tabaco.

— Como é que sabes que... que precisamos da máquina?

— Bem, como Somers utiliza lasers para...

— Ryan! — ralhou Greer. — Que é que tu sabes, afinal?

— Calma, sir. Lembra-se de quando vim cá por causa daquelas novas rampas para os SS-20 na fronteira chinesa, em Fevereiro’ Somers estava aqui e o senhor pediu-me que o levasse ao aeroporto Pelo caminho, ele começou a falar acerca do motivo da sua viagen e da grande ideia em que trabalhava. Não falou de outra coisa cou Dulles. Do pouco que compreendi, fiquei com a ideia de que ele dispara raios laser através das lentes da máquina para obter un modelo matemático delas. A partir daí, suponho, pega no negativo exposto, decompõe a imagem através dos raios laser e depois, com um computador, trata-a por meio de lentes teóricas obtidas também por computador e produz uma imagem perfeita. Se calhar não entendi bem.

Pela expressão de Greer, Ryan compreendeu que tinha entendido

— Somers tem a mania de falar de mais.

— Também lhe disse isso, sir. Mas quando ele começa a falar ninguém o cala!

— E que sabem os britânicos?

—Sei tanto como o senhor. Sir Basil fez-me perguntas sobre o processo e eu disse-lhe que não era a pessoa indicada para lhe responder. Sou formado em Economia e História, não em física. Disse-lhe que precisávamos da máquina... mas ele já sabia. Tirou-a da gaveta da secretária e lançou-ma para as mãos. Não falei nisto a ninguém, sir

— A quantas mais pessoas terá ele contado tudo! Estes génios’ Vivem lá naquele mundo maluco deles... Somers, às vezes, parece um garoto. E tu conheces a primeira regra da segurança: a probabilidade de um segredo ser descoberto é proporcional ao quadrado de número de pessoas que o conhecem.

Esta era a máxima favorita de Greer. O telefone tocou.

— Greer... Está bem. — Desligou. — Charlie Davenport vem aí por tua sugestão. Já devia cá estar à meia hora. Deve ter sido a neve

O almirante apontou para a janela. A neve atingia já quatro centímetros e chegaria aos seis ao cair da noite.

— Cai um floco nesta cidade e já ninguém se entende.

Ryan riu. Eis uma coisa que Greer, um homem do Maine, no baixo Leste, jamais entenderia.

— Achas então que isto vale o preço?

— Há uns tempos que procuramos obter estas fotografias do ar, para juntar aos dados contraditórios que temos coligido acerca do submarino. A decisão é sua, mas sim, acho que valem o preço. Estas imagens são muito interessantes.

Temos de ter os nossos próprios homens nesse maldito esta ,ejro — disse Greer, irritado.

Ryan não sabia como tinham as Operações desencantado aquilo, pouco lhe interessava o trabalho de campo. Ryan era um analista. Inão lhe importava saber como chegavam os dados à sua secretária, e tinha o cuidado de não perguntar.

— Basil não te contou nada acerca do homem deles, claro? Ryan sorriu, abanando a cabeça.

— Não, sir, e eu também não perguntei. Greer aprovou de cabeça.

— Bom dia, James!

Ryan virou-se e viu o contra-almirante Charlie Davenport, director dos Serviços Secretos Navais, acompanhado de um capitão.

— Viva, Charlie. Conheces Jack Ryan, não conheces?

— Olá, Ryan.

— Já nos encontrámos — disse Ryan. —Este é o capitão Casimir.

Ryan cumprimentou os dois homens. Conhecera Davenport anos antes, quando fazia uma conferência na Academia Militar Naval de Newport, em Rhode Island. Davenport fizera-o passar um mau bocado no período de perguntas e respostas. Tinha fama de ser patrão insuportável, o antigo aviador que deixara de poder voar depois de cair. Diziam alguns que nunca se conformara, que continuava ressentido. Contra quem? Ninguém sabia ao certo.

— O tempo, na Inglaterra, deve estar tão mau como aqui, Ryan — disse Davenport, pondo o casacão em cima do de Ryan. — Vejo que roubou um sobretudo da Marinha inglesa.

Ryan gostava muito do seu anorak e disse:

— Foi um presente, sir. É quentíssimo.

— Senhor, você fala mesmo como um inglês. James, temos de levar este rapaz a casa.

—’Não sejas antipático, Charlie. Ele tem um presente para ti. Serve-te de café. ’

Casimir correu a encher uma caneca para o seu superior e sentou-se, depois, à sua direita. Ryan deixou passar um momento antes de abrir a pasta. Tirou dela quatro dossiers. Ficou com um e distribuiu os restantes.

— Consta-me que você tem desenvolvido um trabalho razoável, Ryan — disse Davenport.

Jack sabia que Davenport era um homem temperamental, ora afável, ora rude. Provavelmente para surpreender os seus subordinados.

— E... Meu Deus!

Davenport tinha aberto o dossier.

— Meus senhores, entrego-lhes o Outubro Vermelho. Uma gentileza dos Serviços Secretos britânicos — disse Ryan, formal.

Os dossiers continham as fotografias aos pares, quatro, de quatro por quatro. Por trás, ampliações de cada uma delas, de dez por dez. As fotografias haviam sido tiradas de um ângulo oblíquo baixo, talvez da borda da doca seca onde o submarino estivera para revisão após o lançamento à água. As imagens agrupavam-se aos pares, proa e popa, proa e popa.

— Meus senhores, como podem ver, a luz não era famosa. Não há aqui nada de retoques. Foram tiradas com uma máquina de bolso, carregada com filme colorido de velocidade 400. O primeiro par foi revelado normalmente para se obterem níveis de luz. O segundo foi puxado para aumentar a luz através de processos normais. O terceiro foi ampliado por computador para decomposição da cor e o quarto foi ampliado pelo mesmo sistema, para decomposição da imagem. Tenho negativos de cada fotografia para Barry Somers brincar.

— Sim? — exclamou Davenport, erguendo momentaneamente os olhos.—>É muito gentil da parte dos britânicos. Qual é o preço? — Greer disse-lhe. — Paga que vale a pena.

— É o que Jack diz.

— Que admiração! — gracejou Davenport. — Bem sabes que ele trabalha para eles.

Ryan enfureceu-se com isto. Gostava dos ingleses, gostava de trabalhar com os seus especialistas dos Serviços Secretos, mas sabia qual era o seu país. Respirou fundo. Davenport gostava de provocar as pessoas e, se Jack reagisse, Davenport venceria.

—Ao que sei, Sir John Ryan continua bem relacionado do outro lado do oceano—disse Davenport, estendendo a rede.

Ryan era cavaleiro honorário. Recebera o título como recompensa por ter frustrado um acto terrorista que o surpreendera em St. James Park, em Londres. Na altura, era um simples turista, o inocente americano no estrangeiro, e só muito depois viria a ser convidado para a CIA. O facto de, sem saber, ter impedido o assassínio de duas personalidades de grande proeminência, trouxera-lhe mais publicidade do que alguma vez desejara, mas pusera-o também em contacto com muitas pessoas em Inglaterra, na maior parte interessantes. Esses contactos tinham-no valorizado o suficiente para a CIA lhe ter pedido que fizesse parte de um grupo de ligação conjunto americano-britânico. Assim estabelecera uma boa relação de trabalho com Sir Basíl Charieston.

— Temos lá muitos amigos, sir, e alguns deles tiveram a amabilidade de lhe oferecer isto — respondeu Ryan friamente.

Davenport amansou.

Muito bem, Jack. Então, peço-lhe um favor. Quem fez isto merece uma boa recompensa. Meta-lhe coisa que se veja no bolso. Isto vale muito. Ora vamos lá a ver o que temos aqui...

para um observador desprevenido, as fotografias mostravam um submarino nuclear típico. O casco, de aço, era cortado num dos extremos e cónico no outro. Os operários, na doca, permitiam avaliar-lhe o tamanho: era enorme. Tinha duas hélices gémeas, de bronze, à popa, uma de cada lado de uma saliência estreita a que os russos chamavam “rabo de castor” — pelo menos era o que diziam os relatórios secretos. Com as duas hélices, a popa nada tinha de especial, salvo um pormenor.

— Para que servem estas portas? — perguntou Casimir.

— É muito grande... — Davenport não o ouvira. — Mais doze metros do que pensávamos, parece.

— Treze metros e vinte, mais ou menos. — Ryan não gostava muito de Davenport, mas o tipo sabia do seu ofício. — Somers pode calibrar isto. E tem mais largura, mais dois metros do que os outros Typhoons. Sem dúvida que é um desenvolvimento da classe Typhoon, mas...

— Tem razão, capitão — interrompeu Davenport. — Que são estas portas?

— Foi por isso que vim. — Ryan perguntou a si próprio quanto tempo mais estaria ali; dera por elas nos primeiros cinco segundos. — Não sei, e os ingleses também não.

O Outubro Vermelho tinha duas portas à popa e à proa, com cerca de dois metros de diâmetro, embora não fossem rigorosamente circulares. Estavam fechadas no momento em que as fotografias haviam sido obtidas e só se viam bem no par número quatro.

— Tubos de torpedo? Não... Quatro deles estão no interior. Greer procurou na gaveta e tirou uma lupa. Na era da ampliação

por computador, o gesto de Greer surpreendeu Ryan como encantadoramente anacrónico.

— Tu é que és o homem dos submarinos, James — observou Davenport.

— Fui, há vinte anos, Charlie.

Trocara a Marinha pelos Serviços Secretos no princípio dos anos 60. O capitão Casimir, reparou Ryan, exibia as asas de aviador da Marinha e tinha o bom senso de estar calado. Não era um marinheiro.

— Não podem ser tubos de torpedo. Têm os quatro normais à Proa, atrás destas aberturas... Devem ter aí um metro e oitenta ou dois metros de largura. E se forem os tubos de lançamento do novo míssel de cruzeiro que eles conceberam?

— É o que a Marinha inglesa pensa. Conversei casualmente acerca disto com os especialistas deles, mas não acredito. Porquê equipar uma arma antivaso de superfície numa plataforma estratégica? Nós, não temos disso e aperfeiçoamos os nossos submarinos muito mais do que eles. As portas são simétricas relativamente ao eixo do barco. Não se pode lançar um míssil da popa, sir. As aberturas mal deixam espaço às hélices.

— Equipamento de sonar rebocavel — alvitrou Davenport.

— Podia ser, se recolhessem uma hélice. Mas porquê duas? — perguntou Ryan.

Davenport olhou-o, agastado.

— Eles gostam de redundâncias.

—Duas portas à proa, duas portas à popa. Admito que sejam tubos de mísseis de cruzeiro. Admito que sirvam para recolher um equipamento qualquer. Mas os dois conjuntos de portas exactamente do mesmo tamanho? — Ryan abanou a cabeça. — É coincidência a mais. Para mim, trata-se de algo de novo. Foi por isso que a construção do submarino esteve interrompida durante tanto tempo. Inventaram qualquer coisa nova e gastaram os últimos dois anos a adaptar o modelo Typhoon para lá meterem a tal coisa nova. Não sei se viram que instalaram mais seis mísseis para o que desse e viesse.

— É uma opinião — observou Davenport.

— É para isso que me pagam.

— Diz lá, Jack! Que pensas que seja? — perguntou Greer.

— Não sei, sir, não sou engenheiro.

O almirante Greer examinou os seus visitantes durante alguns segundos. Sorriu e recostou-se na cadeira.

—Meus senhores, que é que nós temos? Noventa anos de experiência naval nesta sala, mais um jovem amador. — Apontou para Ryan. — Não há dúvida, Jack, de que queres alguma coisa de nós. Porque foi que trouxeste isto pessoalmente?

— Quero mostrar as fotografias a uma pessoa.

— A quem? — perguntou Greer, inclinando, desconfiado, a cabeça.

— Ao capitão Tyler. Conhecem-no?

— Eu conheço — respondeu Casimir. — Andava um ano atrás de mim, em Annapolis. Teve um acidente ou coisa parecida, não foi?

— Teve — disse Ryan. — Perdeu uma perna num acidente de automóvel, há quatro anos. Estava prestes a assumir o comando do Los Angeles e um condutor bêbado atropelou-o. Agora, ensina engenharia na Academia e trabalha como consultor do Comando dos Sistemas Marítimos. Faz análise técnica, estuda as concepções dos barcos... Doutorou-se em Engenharia no MIT e sabe pensar sem preconceitos.

— E quanto a segurança? — perguntou Greer.

— A máxima, sir, porque ele trabalha na Crystal Qty. —Objecções, Charlie?

Davenport franziu o sobrolho. Tyler não fazia parte da comunidade dos Serviços Secretos.

— Foi o tipo que estudou o novo Kirov?

Esse mesmo, sir, agora me lembro — disse Casimir.—Ele e Saunders, nos Sistemas Marítimos.

— Um belo trabalho. Por mim, está bem.

Quando queres vê-lo? — perguntou Greer a Ryan.

— Hoje ainda, se concordar, sir. Tenho de ir a Annapolis, de qualquer modo, buscar uma coisa a casa e... fazer umas compras de Natal também.

— Sim? Umas bonecas? — perguntou Davenport. Ryan olhou o almirante nos olhos.

— É verdade, sir, umas bonecas. A minha filha quer uma Barbie Esquiadora e mais complementos da Jordache. Ainda brinca ao Pai Natal, almirante?

Davenport compreendeu que Ryan já não recuaria. Não era subordinado que se deixasse intimidar. Ryan saía sempre por cima. Mudou de conversa.

— Disseram-lhe que o Outubro se fez ao mar na sexta-feira passada?

— Sim? — Não tinham dito; Ryan foi colhido de surpresa. — Pensava que só devia largar esta sexta-feira.

— Também nós. O comandante chama-se Marko Ramius. Sabe alguma coisa dele?

— Só informações em segunda mão. Os ingleses dizem que é muito bom.

— Bom é pouco — corrigiu Greer. — Deve ser o melhor comandante de submarinos que eles têm, um verdadeiro combatente. Possuíamos uma boa ficha a seu respeito quando eu estive na DIA. Quem é que anda atrás dele?

— O Bremerton. Estava fora de posição, em missão de espionagem electrónica, quando Ramius partiu, mas já recebeu ordens para o perseguir. O comandante chama-se Bud Wilson. Lembras-te do Pai dele?

Greer riu alto.

— Red Wilson? Um comandante de submarinos bem humorado! O filho é bom?

—Dizem que sim. Ramius é do melhor que os soviéticos têm, mas Wilson anda num 688. Lá para o fim da semana poderemos começar um novo livro sobre o Outubro Vermelho. — Davenport kvantou-se. — Temos de ir embora, James. — Casimir pegou logo nos casacões. — Posso ficar com isto?

— Acho que sim, Charlie. Vê lá não os pendures na parede, nem mesmo para tiro ao alvo. Também queres ir, não queres, Jack?

— Pois quero, sir. Greer pegou no telefone:

— Nancy, o doutor Ryan precisa de um carro e de um motorista dentro de quinze minutos. Está bem. — Desligou e esperou que Davenport saísse. — Não vale a pena matares-te aí na neve. E, se calhar, conduzes pelo lado errado, depois de teres vivido um ano em Inglaterra. Com que então Barbie Esquiadora?

— O senhor só tem rapazes, não é? As raparigas são diferentes. — Ryan sorriu. — Não conhece a minha Sally.

—’A menina do papá?

— É... Deus ajude quem casar com ela. Posso deixar as fotografias com Tyler?

— Oxalá saibas o que estás a fazer, meu filho. Sim, podes deixar-lhas... se ele tiver onde as guardar em condições.

— Compreendo, sir.

— Quando voltares... Vais chegar tarde, provavelmente. As estradas estão impossíveis. Estás no Marriott?

— Estou, sir. Greer reflectiu.

— Devo trabalhar até tarde. Passa por cá antes de te ires deitar. Posso querer discutir umas coisas contigo.

— Muito bem, sir. Obrigado pelo carro — agradeceu Ryan, levantando-se.

— Vai lá comprar as tuas bonecas, rapaz.

Greer seguiu-o com os olhos. Gostava de Ryan. Ryan não tinha medo de dizer o que pensava. Parte desta atitude devia-se ao facto de ter dinheiro e uma mulher rica — vantajosa independência. Ryan não podia ser comprado, nem subornado, nem intimidado. A todo o tempo poderia tornar a dedicar-se por inteiro aos seus livros de História. Ganhara dinheiro durante quatro anos como corretor, aplicando os seus próprios fundos em operações de alto risco e obtendo grandes lucros; depois cortara com tudo — não quisera, dizia, forçar a sorte. Greer não acreditava em tal. Achava que Jack se cansara — se cansara de ganhar dinheiro. Abanou a cabeça. O talento que lhe permitira enriquecer na Bolsa aplicava-o agora Ryan à CIA. Era já um dos mais brilhantes analistas de Greer, e as suas relações britânicas tornavam-no duplamente valioso. Ryan era capaz de folhear um maço de dados e extrair dele os três ou quatro factos que realmente tinham interesse — coisa rara na CIA. A agência continuava a gastar dinheiro de mais a coligir dados, pensava Greer, sem os conferir como devia ser. Os analistas nada tinham do suposto fascínio — ilusão criada em Hollywood — de um agente secreto em terra estrangeira. Jack, porém, sabia analisar os relatórios desses homens e os dados de fontes técnicas. Sabia tomar uma decisão e não receava dizer o que pensava, quer os seus patrões gostassem ou não. Isto, às vezes, irritava o velho almirante que, todavia, apreciava ter subordinados a quem respeitasse. A CIA abarrotava de gente cujo único talento consistia em lamber as botas ao chefe.

A Academia Naval dos EUA

A amputação da perna esquerda acima do joelho não roubara a Oliver Wendell Tyler o seu bom aspecto, o seu feitio malicioso ou o seu gosto pela vida. A mulher podia testemunhá-lo — desde que abandonara o serviço activo, quatro anos antes, haviam acrescentado mais três filhos aos dois que já tinham, e preparavam-se para o sexto. Ryan encontrou-o sentado à secretária, numa sala de aula vazia, em Rickover Hall, no Departamento de Ciência e Engenharia da Academia Naval dos EUA. Classificava papéis.

— Como vai isso, capitão? — cumprimentou Ryan, encostado à ombreira da porta, tendo deixado o motorista da CIA no corredor.

— Viva, Jack! Pensei que estivesses em Inglaterra.

Tyler ergueu-se nos dois pés — como dizia — e avançou, coxeando, para cumprimentar Ryan. A extremidade da perna artificial era quadrada, revestida a borracha, e não um pé fingido. Dobrava pelo joelho, mas não muito. Tyler tinha jogado râguebi dezasseis anos atrás, como avançado nas reservas da selecção americana, e o resto do seu corpo era tão duro como o alumínio e a fibra de vidro da perna esquerda. O seu aperto de mão faria gemer um gorila.

— Então que te traz por cá?

— Tive de vir tratar de umas coisas e fazer umas compras também. Como está Jean e os teus... cinco miúdos?

— Cinco e dois terços.

— Outra vez? Jean devia meter-te na ordem.

— É o que ela diz, mas eu sou um desordenado dos diabos! — Tyler riu. — Acho que estou a desforrar-me dos anos de eremita que passei como marinheiro. Vá, puxa de uma cadeira!

Ryan sentou-se num canto da secretária e abriu a pasta. Passou a Tyler um dossier.

— Tenho aqui uns retratos que gostava que visses.

— Está bem.—Tyler abriu a pasta. — Que... Um russo! Enorme! Tem a configuração básica do Typhoon, porém muito modificada. Vinte e seis mísseis em vez de vinte... Parece mais comprido. O casco parece mais achatado também. É mais largo?

— Dois ou três metros.

— Soube que trabalhavas para a CIA. Isto é segredo, claro?

— É. E nunca viste estes retratos, capitão. Entendes?

— Entendo. — Tyler pestanejou. — Mas para que queres que eu os veja?

Ryan mostrou-lhe as ampliações.

— Estas portas, à proa e à popa.

— Hum... — Tyler pousou as ampliações lado a lado. — Enormes. Têm para aí dois metros... Duas à proa, duas à popa... Parecem simétricas relativamente ao eixo central. Não são tubos de mísseis de cruzeiro, pois não?

— Num submarino? Num submarino estratégico?

— Os russos são muito disparatados, sabes, Jack... Fazem as coisas lá à maneira deles. São os mesmos que construíram a classe Kirov com um reactor nuclear e uma unidade de propulsão a vapor alimentada a gasóleo. Hélices gémeas... As portas da popa não podem ser para um equipamento de sonar. Destruíam as hélices.

— E se eles recolhem uma hélice?

— Fazem isso com navios de superfície, para poupar combustível, e, às vezes, com barcos de ataque. Mas operar um brinquedo destes, de hélices gémeas, só com uma seria provavelmente arriscado. Parece que os Typhoons tinham problemas de manobra, e barcos com problemas de manobra costumam ser sensíveis a alterações de força. Acabam por andar à roda de tal maneira que é difícil manter a rota. Já viste como as portas convergem à popa?

— Não, não vi.

— Raios! — exclamou Tyler, tirando os olhos das fotografias. — Devia ter visto imediatamente. É um sistema de propulsão. Apanhaste-me a classificar papéis, Jack. Não há nada pior para esvaziar a cabeça de uma pessoa.

— Um sistema de propulsão?

— Olhando para isto... Deve ter sido aí há vinte anos, quando vim aqui para a escola... Nunca mais lhe pegámos. Funciona mal.

— Explica-me lá isso.

— Chamavam-lhe túnel de propulsão. Estás a ver as centrais hidroeléctricas do Oeste? São sobretudo barragens. A água acciona rodas que, por sua vez, accionam geradores. Agora há uns sistemas novos para fazer funcionar os geradores. Recolhe-se a água em rios subterrâneos e a água acciona impulsores que, por seu turno, accionam geradores em vez da roda de moinho modificada. Um impulsor é como um propulsor, só que a energia é produzida pela injecção da água. Há outras diferenças técnicas menores, nada de importante. Até aqui percebeste?

“Ora bem! Com este sistema, sugas água à proa e os teus impulsores injectam-na na popa, o que faz mover o barco. — Tyler interrompeu-se, franzindo o sobrolho. — Lembro-me que é preciso mais do que um propulsor Por túnel. eles estudaram isso no princípio dos anos 60 e chegaram ainda a fazer modelos antes de porem a ideia de parte. Uma das coisas que descobriram foi que vários impulsores dão mais resultado do que um só. O problema tem a ver com a contrapressão. Era um princípio novo, uma coisa inesperada que se lhes deparava. Acabaram por utilizar quatro, penso. O aspecto geral era parecido com o dos compressores de um motor a jacto.

— Porque foi que abandonaram a ideia? — perguntou Ryan, tomando rapidamente notas.

.— Por uma questão de eficiência, sobretudo. Independentemente da força dos motores, há um limite para a água que circula nos túneis. E o sistema de transmissão ocupava muito espaço. Resolveram, em parte, este problema com um novo tipo de motor de indução eléctrica, creio; porém, mesmo assim, havia uma série de maquinetas para arrumar no casco. Os submarinos não dispõem de muito espaço, nem mesmo um monstro destes. A velocidade máxima andaria pelos dez nós, o que era pouco, não obstante o sistema eliminar virtualmente os sons de cavitação.

— Cavitação?

— Quando se tem um propulsor, uma hélice, a rodar na água a alta velocidade, cria-se uma área de baixa pressão atrás do bordo de saída da lâmina. Esta pressão provoca a vaporização da água, o que, por sua vez, provoca pequenas bolhas. As bolhas não duram muito, devido à pressão da água e, quando rebentam, a água bate nas lâminas. Isto faz três coisas. Primeiro, faz barulho, e nós, os homens dos submarinos, detestamos barulho. Segundo, pode provocar vibração, coisa de que também não gostamos. Os velhos paquetes, por exemplo, vibravam com uma amplitude de vários centímetros à popa, tudo por causa da cavitação e do deslizamento. E é preciso muita força para fazer vibrar um barco de cinquenta mil toneladas; uma força capaz de partir tudo. Em terceiro lugar, destrói as hélices. As hélices duravam poucos anos. Por isso, antigamente, as lâminas eram cravadas DO cubo, em vez de serem fundidas numa só peça. A vibração é, no fundo, um problema dos barcos de superfície, e a degradação das hélices acabou por ser resolvida com as novas tecnologias metalúrgicas.

”Portanto, este sistema de transmissão evita o problema da cavitação? Continua a haver cavitação, mas o ruído perde-se quase todo nos túneis. Bem concebido, não há dúvida. O problema é que não consegue obter grande velocidade, a não ser com túneis de um Calibre demasiado grande para serem práticos. Enquanto uma equipa balhava nisto, outra trabalhava no aperfeiçoamento das hélices. A hélice típica de um submarino de hoje é muito grande e, por isso, trabalha mais lentamente a uma dada velocidade. Quanto mais lenta é a velocidade de rotação, menos cavitação existe. O problema é também minorado pela profundidade. A umas centenas de metros de profundidade, a pressão da água, mais elevada, retarda a formação de bolhas.

— Então, porque é que os soviéticos não copiam o nosso modelo de hélice?

— Deve haver vários motivos. Uma hélice é concebida para um determinado casco, para um determinado motor; as nossas hélices não se adaptariam automaticamente aos barcos deles. E muito deste trabalho é ainda empírico. Cometem-se muitos erros, é preciso fazer várias experiências... Muito mais difícil, digamos, do que concebei um aerofólio, porque a secção da lâmina muda radicalmente de um ponto para o outro. Suponho que outro motivo está em que a tecnologia metalúrgica deles não é tão boa como a nossa — a mesma razão pela qual os motores a jacto e os foguetões que eles têm são menos eficientes. Os novos modelos dependem muito da resistência das ligas, mas isso é matéria especializadíssima e eu só conheço generalidades

— Está bem. Dizes que se trata de um sistema de propulsão silencioso e que a velocidade máxima é de dez nós, não é assim? — perguntou Ryan para se certificar.

— Dez nós, mais ou menos. Precisaria de um modelo computadorizado para estabelecer rigorosamente a velocidade. Ainda devemos ter por aí os dados no Laboratório Taylor. — Tyler referia-se ao laboratório do Comando dos Sistemas Marítimos, na margem norte do Severn River. — Provavelmente ainda é material classificado e não poderia confiar nele por aí além.

— Como é isso?

— Não te esqueças de que todo este trabalho tem vinte anos Fizeram apenas modelos de quatro metros e meio, muito pequenos para se chegar a uma conclusão. Não te esqueças também de que depararam com um novo princípio, essa história da contrapressão E com outras coisas, se calhar. Oxalá tenham experimentado modelos computadorizados. Todavia, mesmo que o tenham feito, há vinte anos as técnicas dos modelos matemáticos eram muito primitivas. Para fazer isso hoje preciso dos velhos dados e programas do Taylor, de verificar tudo e de fazer um novo programa baseado nesta configuração. — Tocou com o dedo nas fotografias. — E, depois, preciso de um grande computador integrado.

—’Mas farias isso?

— Com certeza. Terei de obter as dimensões exactas deste bichinho, mas já fiz disso em Crystal City. O mais difícil é o acesso a” computador. Tem de ser uma grande máquina.

— Talvez eu consiga arranjar-te acesso ao nosso. Tyler riu.

— Não deve servir, Jack. Isto é trabalho muito especializado. Estou a pensar num Cray-2, um dos maiores. Terei de simular matematicamente o comportamento de milhões de pequenas partículas de água, água que cerca, e que atravessa, neste caso, todo o casco. Mais ou menos a mesma coisa que a NASA faz com o Space Shuttle. O trabalho em si é bastante fácil; obter a escala é que é muito complicado. Os cálculos são simples, mas tens de os fazer aos milhões por segundo. Só pode ser num Gray, e não há muitos. A NASA tem um, em Houston, penso. A Marinha tem alguns em Norfolk, a trabalharem no ASW, mas nesses nem pensar. A Força Aérea tem um no Pentágono, creio, e os restantes estão na Califórnia.

— Mas serias capaz de fazer isso?

— Claro.

— Então começa a tratar do assunto, capitão, que eu vou ver se te arranjo um computador. Quanto tempo demora?

— Depende da qualidade do material do Taylor. Talvez uma semana, talvez menos...

— Quanto queres pelo trabalho?

— Deixa-te disso, Jack! — respondeu Tyler, fazendo um gesto de recusa.

— Hoje é segunda-feira, capitão. Fornece-nos os dados na sexta-feira e ganharás vinte mil dólares. Tu mereces o dinheiro e nós queremos os dados. Combinado?

— Combinado. — Apertaram as mãos. — Posso ficar com as fotografias?

— Só se tiveres um sítio seguro para as guardar. Ninguém as pode ver, capitão. Ninguém.

—’No gabinete do superintendente há um bom cofre.

— Está bem, mas ele não as vê.

O superintendente era um antigo marinheiro de submarinos.

— Ele não vai gostar — disse Tyler, mas está bem.

— Se ele puser problemas, diz-lhe que fale com o almirante Greer.

Toma lá o número. — Ryan passou-lhe um cartão. — Apanhas-me aqui

se precisares de alguma coisa. Se eu não estiver, chamas o almirante.

Isto é assim tão importante?

O suficiente. És o primeiro tipo que apresenta uma explicação para estes buracos. Foi por isso que cá vim. Se conseguires arranjar-nos um modelo, nem imaginas como nos serás útil. Mais uma coisa capitão... isto é pólvora. Se alguém deita os olhos a estas fotografias, é o meu pescoço que vai para o cepo.

-Compreendo, Jack. Está descansado. Bem, agora... como me marcaste um prazo tão curto, acho melhor começar já a trabalhar. Adeus!

Após as despedidas, Tyler pegou num bloco e começou a apontar as coisas que devia fazer. Ryan saiu do edifício com o motorista Lembrou-se de uma Toys-R-Us na Estrada 2 de Annapolis e queria comprar a boneca para Sally.

Quartel-General da CIA

Ryan regressou à CIA pelas oito da noite. Passou rapidamente os controles de segurança e entrou no gabinete de Greer.

— Então sempre compraste a Barbie que faz surjl— perguntou Greer, olhando-o.

— A Barbie Esquiadora — corrigiu Ryan. — Comprei, sir. — Vá lá1 Já não brinca ao Pai Natal?

— Eles crescem depressa de mais, Jack. Até os meus netos já passaram a idade do Pai Natal. — Virou-se para se servir de café e Ryan perguntou a si próprio se Greer teria dormido. — Temos mais novidades acerca do Outubro Vermelho. Parece que os russos estão a efectuar um grande exercício ASW no nordeste do mar de Barents, Meia dúzia de aviões de reconhecimento, fragatas, um submarino da classe Alfa, tudo a operar em círculo.

— Provavelmente manobras. Tyler diz que as portas são de um novo sistema de propulsão.

— Sim? — Greer recostou-se. — Explica lá...

Ryan puxou das suas notas e resumiu o que aprendera sobre tecnologia de submarinos. — O capitão diz que pode obter uma simulação, em computador, do seu funcionamento.

Greer arregalou os olhos.

— Quando?

— Talvez lá para o fim da semana. Disse-lhe que se tivesse acabado o trabalho na sexta-feira lhe pagaríamos vinte mil dólares. Acha bem?

—E valerá a pena?

—’Se ele obtiver os dados de que precisa, vale com certeza, sir. O capitão é um homem inteligentíssimo. Os doutorados pelo MB não andam por aí aos pontapés e ele foi dos cinco primeiros da sua classe na Academia.

— Valerá vinte mil dólares do nosso dinheiro? — insistiu Greei conhecido sovina.

Ryan sabia como responder-lhe:

— Sir, para adoptarmos os processos normais teremos de contratar um dos Bandidos da Beltway — Ryan referia-se às firmas de consultores que cercavam Washington, D.C. —, que nos levarão cinco ou dez vezes mais pelo trabalho. E muita sorte se o tivermos pronto

na páscoa. Assim, poderemos ter o modelo ainda com o submarino no mar. Se a coisa falhar, pagarei eu. Pensei que queria os dados depressa, e ele é a pessoa indicada.

—Tens razão.

Não era a primeira vez que Ryan iludia os procedimentos normais. Das outras vezes, saíra-se razoavelmente bem. Greer era um homem interessado em resultados.

—Sim, senhor! Os soviéticos têm um novo submarino equipado com mísseis e com um novo sistema de propulsão silencioso. Que significa tudo isso?

— Nada de bom. Dependemos da nossa capacidade para localizarmos os submarinos deles. Foi por isso que concordaram, há uns anos, com a nossa proposta de manter os submarinos a quinhentas milhas das costas uns dos outros, e é por isso que têm os submarinos equipados com mísseis nas respectivas bases a maior parte do tempo. Ora isto pode alterar a situação. Agora me lembro... Não sei de que é feito o casco do Outubro.

— De aço. É grande de mais para ter um casco de titânio. Pelo menos custaria uma fortuna. Sabes o que gastaram com os Alfas.

— De mais para os resultados que obtiveram. Uma fortuna gasta num casco superforte com um sistema de propulsão barulhento como os diabos. Que estupidez!

— Será... mas eu não me importava nada de ter uma velocidade assim. De qualquer modo, se esse sistema de propulsão silencioso funcionar mesmo, eles podem muito bem penetrar na plataforma continental.

— Tiro de trajectória baixa — disse Ryan.

Era este um dos mais perturbadores cenários da guerra nuclear, no qual um míssil montado num submarino era disparado contra o alvo a centenas de milhas de distância. Washington ficava a cerca de cem milhas aéreas do oceano Atlântico. Embora um míssil numa trajectória baixa e rápida perca muita da sua precisão, podem ser lançados vários, a fim de explodirem sobre Washington em menos de cinco minutos — tempo demasiado curto para um presidente reagir. Se os soviéticos conseguissem matar o presidente assim tão depressa, a ruptura da cadeia de comando deste modo provocada, dar-lhes-ia tempo de sobra para disparar os mísseis baseados em Terra. pois não haveria ninguém autorizado a ripostar. Este cenário é uma requintada versão estratégica de um simples estrangulamento, Pensou Ryan. Um estrangulador não ataca os braços da vítima, procura-lhe o pescoço.

Pensa que o Outubro foi construído com essa intenção? Não tenho dúvidas de que, pelo menos, se lembraram disso- observou Greer. — Quem não se lembraria? Bom, temos o Bremerton a tomar conta dele e se estes dados vierem a demonstrar-se úteis veremos se é possível conceber uma resposta. Como te sentes

— Ainda não parei desde as cinco e meia, hora de Londres. Um dia muito comprido, sir.

— Imagino. Está bem, discutiremos o problema do Afeganistão amanhã de manhã. Agora vai dormir, filho.

— É para já, sir — Ryan pegou no casacão. — Boa noite.

Dali ao Marriott eram quinze minutos. Ryan cometeu o erro de ligar o televisor no início da Noite de Râguebi de segunda-feira. O Cin cinnati jogava contra o San Francisco, os dois melhores defesas da Liga, acirrados um contra o outro. Sentia muito a falta do futebol americano na Inglaterra e conseguiu ficar acordado quase três horas antes de adormecer com o televisor em funcionamento.

Controle do SOSUS

Tirando o facto de toda a gente andar fardada, um visitante facilmente confundiria a sala com um centro de controle da NASA. Havia seis largas fileiras de consolas, cada uma com o seu écran de TV e teclado, mais botões de plástico iluminados, mostradores, ausculta dores e controles digitais e analógicos. O chefe técnico de oceanografia Deke Franklin estava sentado à consola quinze.

A sala era a do controle SOSUS (sistema de vigilância de sonar do Atlântico. Ficava num edifício bastante inconspícuo, um edifício governamental no vulgar estilo dos blocos modernos, com parede de cimento sem janelas, um poderoso sistema de ar condicionado no terraço e uma tabuleta azul com um nome em código constituído por iniciais numa relva bem tratada, mas já amarelecida. Marines armados guardavam discretamente as três entradas, pelo lado de dentro. Na cave havia dois supercomputadores Cray-2, vigiados por vint acólitos e, atrás do edifício, três estações de rastreio de satélite COB ligações em todos os sentidos. Os homens, as consolas e os computa dores estavam electronicamente ligados por satélite e por via terrestr ao sistema SOSUS.

Através dos oceanos do mundo, especialmente nas passagens que os submarinos soviéticos tinham de atravessar para chegarem ao seu alvo, os Estados Unidos e outros países da NATO haviam instalado conjuntos de receptores de sonar altamente sensíveis. As centenas de sensores do SOSUS recebiam e emitiam uma quantidade inimaginável de informação e, para ajudar os operadores de sistema a classificar e analisar essa informação, fora necessário conceber uma nova família de computadores, os supercomputadores. O SOSUS desempenhava admiravelmente bem as suas funções. Muito pouco poderia atravesssar a barreira sem ser detectado. Mesmo os submarinos americanos e britânicos, ultra-silenciosos, eram, em geral, surpreendidos. Os sensores instalados no leito do mar, eram periodicamente substituídos por outros mais modernos; muitos tinham já processadores de sinal que faziam a pré-selecção dos dados que emitiam, aliviando o trabalho dos computadores centrais e permitindo uma mais rápida e rigorosa classificação dos alvos.

A consola do chefe Franklin recebia dados de um conjunto de sensores instalados ao largo da costa da Islândia. Franklin era o responsável por uma área de quarenta milhas náuticas e o seu sector sobrepunha-se aos de leste e oeste, de tal maneira que, em teoria, três operadores controlavam em permanência todos os segmentos da barreira. Se recebesse um sinal, avisava, em primeiro lugar, os seus companheiros operadores e, depois, escrevia um relatório de contacto no terminal do computador que seria projectado no quadro principal de controle, ao fundo da sala. O oficial de serviço tinha autoridade, que exercia frequentemente, para perseguir um contacto com ampla variedade de meios, desde barcos de superfície até aviões anti-submarinos. Duas guerras mundiais haviam ensinado a britânicos e americanos a necessidade de manter as suas rotas marítimas de comunicação — SLOC — abertas.

Embora aquelas instalações, tranquilas como um túmulo, nunca tivessem sido mostradas ao público nem conhecessem o ambiente típico da vida militar, os homens que ali trabalhavam contavam-se entre os mais importantes ao serviço do seu país. Numa guerra, sem eles, nações inteiras poderiam sucumbir.

Franklin recostava-se na cadeira giratória, fumando contemplativamente um velho cachimbo de roseira. Em seu redor, era o silêncio. Mesmo que não fosse, os seus auscultadores de quinhentos dólares tê-lo-iam eficazmente isolado do mundo exterior. De vinte e seis anos, Franklin fizera toda a sua carreira em contratorpedeiros e fragatas. Os submarinos e os homens dos submarinos eram para ele o inimigo, independentemente da bandeira sob que navegassem ou do uniforme que pudessem usar.

Ergueu uma sobrancelha e inclinou a cabeça, quase calva, para um lado. As fumaças do cachimbo tornaram-se irregulares. Estendeu a mão direita para o painel de controle e desligou os processadores ”e sinal para poder ouvir o som sem interferência computarizada. O som era mau, todavia; o ruído de fundo era grande. Tornou a ligar os filtros. Depois, experimentou os controles de azimute. Os Sensores do SOSUS eram concebidos para indicar coordenadas através do uso selectivo de receptores individuais que Franklin podia regular electronicamente, registando primeiro uma coordenada e, depois, utillizando um conjunto de sensores próximos, mediante triangulação, obtendo a posição. O contacto era muito débil, mas não muito longe da linha, calculou Franklin, que interrogou o terminal do seu computador. O USS Dállasestava no local. “Óptimo!”, disse, esboçando um sorriso. Ouviu outro ruído de baixa frequência que durou poucos segundos. O silêncio não era, portanto, total. Porque não ouvira ruído antes de afinar o azimute de recepção? Pousou o cachimbo e procedeu a ajustamentos no painel de controle.

— Chefe?

Era a voz do oficial de serviço que lhe chegava pelos auscultadores.

— Sim, comandante?

— Pode vir ao controle? Gostava que ouvisse uma coisa.

— Vou imediatamente, sir.

Franklin ergueu-se devagar. Quentin era um antigo comandamte de contratorpedeiros que trabalhava em tempo parcial, depois de ter vencido uma batalha contra o cancro. Depois de quase ter vencido uma batalha contra o cancro, corrigiu-se Franklin. A quimioterapia, matara o cancro à custa de quase todo o seu cabelo e de lhe transformar a pele numa espécie de pergaminho transparente. Uma pena pensou; Quentin era um homem fantástico.

A sala de controle ficava uns metros acima do piso para que o seus ocupantes pudessem ver todos os operadores de serviço e quadro táctico principal, na parede oposta. Estava isolada por vidro a fim de que pudessem falar uns com os outros sem perturbar os operadores. Franklin foi ter com Quentin, no posto de comanddo donde podia contactar com qualquer consola.

— Viva, comandante. — Franklin reparou que o oficial começava a recuperar algum peso, o que já não era sem tempo. Que se passa, Sir?

— É a rede do mar de Barents.

Quentin passou-lhe um par de auscultadores. Franklin escutou durante vários minutos, sempre de pé. Como muitas pessoas, tinha a suspeita instintiva de que o cancro era contagioso.

— Estão muito ocupados, sim, senhor... Ouço dois Alfas, um Charlie, um Tango e alguns barcos de superfície. Que é isto, sir?

— Também está lá um Delta, mas acabou de subir à superfície ’ parou os motores.

— Subiu à superfície, comandante?

— É. Estavam a, persegui-lo activamente com sonar e depois entraram em contacto com ele.

— Compreendo. Andam em manobras e o submarino fintou-o’

— Talvez.

Quentin esfregou os olhos. Parecia cansado. Cansava-se de mais e a sua resistência não era já metade do que fora.

Os Alfas continuam a ouvir-se e rumam agora a ocidente, como VCS

oh... — Franklin reflectiu por momentos. — Então procuram outro barco. O Typhoon que devia ter partido no outro dia, talvez?

Foi o que pensei... só que ruma a ocidente e a área do exercício é a nordeste do fiorde. Perdemo-lo o outro dia no SOSUS. O Brernerton anda agora a ver se o descobre.

Comandante manhoso — observou Franklin. Desligou os motores e navega arrastado pela corrente.

— É — concordou Quentin. — Quero que vás ao quadro de supervisão da barreira do cabo Norte ver se o descobres por lá, chefe. Ainda deve ter o reactor a funcionar e, portanto, fará algum barulho. Os operadores que temos nesse sector são ainda novatos. Ponho um no teu lugar e tu vais para o dele.

— Está bem, comandante.

A equipa da barreira do cabo Norte estava ainda verde, habituada a trabalhar só em barcos. O SOSUS exigia outra sensibilidade. Quentin não precisou de dizer que esperava que Franklin verificasse os quadros de todas as equipas do cabo Norte e aproveitasse para lhes ensinar alguma coisa enquanto escutava os seus canais.

— Apanhaste o Dálias?

— Apanhei, sir. Fraquinho, mas penso que o apanhei a atravessar o meu sector, rumo a noroeste, para Toll Booth. Se tivermos lá Orion, poderemos encurralá-lo. Envergonhamos-los, s/r?

Quentin gargalhou. Também não apreciava muito os homens dos submarinos.

— Não, a GOLFINHO ELEGANTE acabou, chefe. Vamos apenas localizá-lo e dizer isso ao comandante, quando ele voltar. Foi um bom trabalho. Com a reputação que ele tem... Não se previa que o ouvíssemos.

—Pois ouvimo-lo hoje!

— Diz-me o que descobrires, Deke.

— Está bem, comandante. E olhe por si, ouviu?

 

                   7 de Dezembro

                   Moscovo

Não era o mais luxuoso gabinete do Kremlin, mas o suficiente para as suas necessidades. O almirante Yuri Ilych Padorin compareceu para trabalhar, como de costume, às sete da manhã, vindo do seu apartamento de seis divisões na Kutuzovskiy Prospekt. As janelas amplas do gabinete davam para os muros do Kremlin; não fora isso. veria o rio Moscovo, agora gelado. Padorin não sentia falta da paisagem, embora tivesse ganho as suas esporas a comandar canhoneiras fluviais quarenta anos antes, transportando abastecimentos, através do Volga, para Estalinegrado. Padorin era agora o primeiro comissário político da Marinha soviética. Lidava com homens, não com barcos. Pelo caminho, acenou, cortês, ao seu secretário, um homem de quarenta anos. A ordenança pôs-se imediatamente de pé e seguiu o seu almirante até a um gabinete interior, para o ajudar a tirar o casacão. O casacão azul-marinho de Padorin refulgia de cordões e exibia a estrela dourada, a mais cobiçada condecoração militar soviética, a medalha de Herói da União Soviética. Conquistara-a em combate, era ainda um jovem sardento de vinte anos, navegando no Volga. Bons tempos, dizia a si próprio, esses em que se furtava às bombas dos Stukos alemães e ao fogo de artilharia, mais casual, com que os fascistas tentavam submeter o seu esquadrão... Como a maior parte dos homens, era incapaz de recordar o terror absoluto do combate.

Era uma terça-feira de manhã e Padorin tinha um maço de carta* à sua espera, na secretária. A ordenança foi buscar-lhe um bule de chá e uma chávena — a típica chávena de vidro russa, num suporte de metal, prata pura neste caso. Padorin lutara arduamente pelos requintes adstritos ao seu cargo. Sentou-se e leu, primeiro, os relatórios dos Serviços Secretos, cópias dos dados enviados todas as manhãs e todas as noites aos comandantes operacionais da Marinha soviética. Um comissário político tinha de estar ao corrente de tudo, de saber aquilo que os imperialistas congeminavam, para poder prevenir os seus homens contra a ameaça.

A seguir, vinha o correio oficial do Comissariado do Povo da marinha e do Ministério da Defesa. Tinha acesso a toda a correspondência do primeiro, enquanto a do último era cuidadosamente Seleccionada, visto que as Forças Armadas soviéticas só dispunham já informação indispensável. De um e de outro lado, o correio não era muito. Na habitual reunião das tardes de segunda-feira, tratara da maior parte do que havia a fazer durante a semana, e praticamente tudo aquilo que era da alçada de Padorin estava já nas mãos dos seus subordinados. Serviu-se de uma segunda chávena de chá, abriu um maço de cigarros sem filtro — hábito de que não conseguia libertar-se, a despeito de um ataque de coração, brando embora, três anos antes. Verificou a agenda: óptimo, só tinha compromissos a partir das dez. Quase no fim do maço havia um sobrescrito de aspecto oficial, da Esquadra do Norte. O número do código, no canto superior esquerdo, indicava que provinha do Outubro Vermelho. Não tinha já visto qualquer coisa acerca do submarino?

Padorin tornou a passar os olhos pelos relatórios operacionais. Com que então, Ramius não aparecera na área de exercício... Encolheu os ombros. Não deviam os submarinos equipados com mísseis iludir toda a vigilância? O velho almirante não se surpreenderia nada se Ramius andasse a pregar-lhes uma partida. O filho de Aleksandr Ramius era uma prima-dona, com o perturbador hábito de parecer construir o seu próprio culto da personalidade: mantinha alguns dos homens que treinava e dispensava outros. Padorin era de opinião que os dispensados dariam excelentes zampolits e mostravam mais conhecimentos operacionais do que o habitual. Mesmo assim, Ramius era um comandante que precisava de ser vigiado. Às vezes, Padorin suspeitava de que ele era marinheiro de mais e comunista de menos. Por outro lado, o pai fora um modelar membro do Partido e um herói da Grande Guerra Patriótica. Um comunista consideradíssimo, lituano ou não. E o filho? Anos de carreira impecável, muitos anos de Partido, de militância firme. Era conhecido pela sua espirituosa participação nas reuniões e, por vezes, pelas suas brilhantes análises. O ramo naval do GRU, os Serviços Secretos militares soviéticos, dizia que os imperialistas o consideravam um inimigo perigoso e talentoso. Ainda bem, achava Padorin; esses bandidos devem temer os nossos homens. Tornou a olhar o sobrescrito.

Outubro Vermelho. Finalmente, um nome adequado para um vaso de guerra soviético! Não só uma homenagem à Revolução que para sempre alterara a história do mundo, mas também à fábrica de tractores Outubro Vermelho. Quantas madrugadas Padorin olhara para este, para Estalinegrado, a fim de verificar se a fábrica estava ainda de pé, um símbolo dos combatentes soviéticos que resistiam aos bandidos hitlerianos! O sobrescrito trazia a indicação de “Confidencial” a ordenança não o abrira como ao outro correio de rotina. O Almirante tirou da gaveta o abre-cartas. Era um objecto sentimental, a faca do seu equipamento de muitos anos. Quando a sua primeira canhoneira fora afundada numa noite quente de Agosto de 1942, tinha nadado para a praia e sido atacado por um soldado de infantaria alemão que não esperava resistência de um marinheiro meio morto. Padorin surpreendera-o, enterrando-lhe a faca no peito e partindo metade da lâmina ao roubar a vida ao inimigo. Depois, um mecânico arranjara-lhe a lâmina. Já não era uma faca em condições, mas Padorin jamais sonharia em desfazer-se da recordação.

“Camarada almirante”, começava a carta, mas a dactilografia fora riscada e substituída por um “Tio Yuri”, escrito à mão. Ramius tratava-o assim, gracejando, anos atrás, quando Padorin era comissário político da Esquadra do Norte. “Obrigado pela sua confiança e pela oportunidade que me deu de comandar este magnífico barco!” Ramius tinha boas razões para estar grato, pensou Padorin. Apesar da sua fulgurante carreira, não se dava um comando daqueles a...

Quê? Padorin interrompeu a leitura e recomeçou desde o princípio. Esqueceu o cigarro que ardia no cinzeiro ao chegar ao fim da primeira folha. Uma brincadeira. Ramius era conhecido pelas suas brincadeiras... mas por esta pagaria. As brincadeiras tinham limites e ele estava a ir longe de mais! Virou a folha.

Não estou a brincar, tio Yuri, Marko.

Padorin olhou pela janela. O muro do Kremlin era, naquela perspectiva, uma colmeia de nichos para as cinzas dos fiéis do Partido Não lera bem a carta. Leu-a outra vez. As suas mãos começaram a tremer.

Possuía uma linha directa com o almirante Gorshkov, sem que ordenanças ou secretários lhe barrassem o caminho.

—’Camarada almirante, fala Padorin.

— Bom dia, Yuri—Adisse Gorshkov, amável.

— Preciso de lhe falar imediatamente. Tenho aqui um problema.

— Que tipo de problema? — perguntou Gorshkov, cauteloso.

— Falaremos pessoalmente. Vou já para aí.

Não podia discutir o assunto pelo telefone; sabia que o telefone se encontrava sob escuta.

O USS “Dálias”

O técnico de sonar de segunda classe Ronald Jones, reparou o oficial de Divisão, estava perdido no êxtase habitual. O jovem recém-licenciado debruçava-se sobre a mesa de trabalho, o corpo mole, os olhos fechados, no rosto a mesma expressão neutral que exibia quando escutava uma das muitas gravações de Bach no seu gravador de cassetes de alto preço. Jones era do género dos que classificavam as gravações pelas suas falhas — um piano dissonante, uma flauta antes de tempo* uma trompa insegura. Escutava os sons do mar com a mesma intensidade discriminatória. Em todos os navios do mundo os homens dos submarinos eram olhados como uma raça curiosa, e eles próprios olhavam os operadores de sonar como aves raras. As suas excentricidades, porém, contavam-se entre as mais toleradas no serviço militar. O imediato gostava de contar a história de um chefe de sonar com quem servira durante dois anos, um homem que tinha patrulhado as mesmas áreas em submarinos equipados com mísseis praticamente durante toda a sua carreira. Familiarizara-se a tal ponto com as baleias corcundas que passavam o Verão na zona que se habituara a tratá-las pelo nome. Reformado, fora trabalhar para o Instituto Oceanografia) Woods Hole, onde o seu talento provocava mais o espanto do que o riso.

Três anos antes, Jones fora obrigado a deixar o Instituto de Tecnologia da Califórnia a meio do seu primeiro ano. Ensaiara um engenhoso estratagema, daqueles que tornam justamente famosos os estudantes do Cal Tech, o qual, porém, não resultara. Cumpria agora o serviço militar na Marinha, para financiar o regresso à vida civil. Sabia-se que pretendia doutorar-se em cibernética e processamento de dados. Em troca de um tempo mais curto de serviço, iria trabalhar, após ter recebido o seu grau, para o Laboratório de Investigação Naval; pelo menos, o tenente Thompson acreditava nisso. Ao entrar no Dálias, seis meses antes, tinha lido as fichas de todos os seus homens. O QI de Jones era 158, o mais elevado do barco, e de longe. Jones tinha um rosto tranquilo e uns olhos castanhos tristes que as mulheres achavam irresistíveis. Na praia, movimentava-se com tal ímpeto que esfalfaria uma esquadra de marines. Isto não fazia sentido para o tenente; Thompson fora herói do râguebi em Annapolis e Jones era um garoto magrizela que gostava de Bach. Incompreensível.

O USS Dálias, um submarino da classe 688, encontrava-se a quarenta milhas das costas da Islândia e aproximava-se da sua posição, Toll Booth em código. Levava um atraso de dois dias. Uma semana antes, tinha participado num exercício da NATO, GOLFINHO ELEGANTE, que fora adiado por vários dias devido ao facto de o pior tempo no Atlântico Norte dos últimos vinte anos ter atrasado outros barcos participantes. No exercício, o Dállase o HMS Swiftsure haviam aproveitado as péssimas condições climáticas para penetrarem e devastarem a formação inimiga simulada. Fora mais uma proeza do Dállase do seu comandante, Bart Mancuso, um dos mais jovens comandantes de submarino da Marinha dos Estados Unidos. A missão fora seguida de uma visita de cortesia à base da Marinha inglesa do Swijtsure, na Escócia, e os marinheiros americanos ainda lutavam contra a ressaca da celebração... Tinham agora uma missão diferente, um novo desenvolvimento no jogo de submarinos no Atlântico. Durante três semanas, o Dállasiria informar sobre o trânsito, num e noutro sentido, na Rota Vermelha Um.

Nos últimos catorze meses, os mais recentes submarinos soviéticos utilizavam uma estranha e eficaz táctica para iludir os seus perseguidores americanos e britânicos. A sudoeste da Islândia, os barcos russos desciam a alta velocidade a cordilheira de Reykjanes, um dedo de montanhas submarinas apontado à profunda bacia atlântica. A intervalos de cinco a meia milha, estas montanhas, com as suas cumeadas, como facas de rocha quebradiça, rivalizavam com os Alpes, em tamanho. Os seus picos tinham cerca de trezentos metros de altitude, abaixo da tormentosa superfície do Atlântico Norte. No fim dos anos 60, os submarinos mal se podiam aproximar dos picos e muito menos penetrar na miríade dos seus vales. Durante os anos 70, apareciam barcos de reconhecimento soviéticos a patrulhar a cordilheira — em todas as estações, fosse qual fosse o tempo —, cruzando a zona em todos os sentidos, atravessando-a em milhares de linhas. Depois, catorze meses antes da patrulha do Dálias, o USS Los Angeles localizara um submarino de ataque soviético da classe Victor U. O Victor rodeara a costa da Islândia e mergulhara ao aproximar-se da cordilheira. O Los Angeles tinha-o perseguido. O Victor navegava a oito nós, até passar entre o primeiro par de montanhas vulgarmente conhecidas por Gémeos Thor. Passara então imediatamente à velocidade máxima, rumo a sudoeste. O comandante de Los Angeles decidira-se a perseguir o Victor e acabara por desistir, muito abalado. Embora os submarinos da classe 688 fossem mais rápidos do que os Victors, mais antigos, o submarino russo não abrandara a velocidade— durante quinze horas viria a determinar-se posteriormente. A princípio, a perseguição não fora perigosa. Os submarinos possuíam sistemas de navegação por inércia muito perfeitos que lhes permitiam navegar à distância de poucas centenas de metros uns dos outros; mas o Victor ladeava penhascos como se o seu comandante os pudesse ver, como o caça mergulha num desfiladeiro para evitar mísseis terra-ar. O Los Angeles não conseguia detectar os penhascos. Acima dos vinte nós, tanto o sonar activo como o passivo, incluindo o ecofatómetro, tornavam-se praticamente inúteis. O Los Angeles viu-se, assim, a navegar completamente às cegas. Era, diria mais tarde o comandante, como guiar um carro com os vidros pintados, recorrendo a um mapa e a um cronometro. Em teoria era possível, mas o comandante não tardou a compreender que o sistema de navegação por inércia possuía um factor de erro incorporado de várias centenas de metros; agravavam a circunstância perturbações gravitacionais que afectavam a “vertical local”, a qual, por sua vez, afectava a posição de inércia. Para cúmulo, os seus mapas tinham sido feitos para barcos de superfície. A uma profundidade de algumas centenas de metros, sabia-se que havia diferenças de milhas entre a posição dos objectos, coisa que só muito recentemente foi tomada em consideração. O intervalo entre as montanhas tornara-se rapidamente inferior ao erro acumulado de navegação e, mais tarde ou mais cedo, o Los Angeles chocaria com uma montanha, a mais de trinta nós. O comandante desistiu; o Victor desapareceu.

De início, supôs-se que os soviéticos haviam, de algum modo, marcado uma determinada rota que os seus submarinos podiam seguir a alta velocidade. Sabia-se que os comandantes russos eram dados a insensatas acrobacias; talvez dependessem de uma combinação de sistemas de inércia, e de bússulas magnéticas e giroscópicas sintonizadas para uma determinada rota. Esta teoria não teve grandes seguidores, e depressa se apurou que os submarinos soviéticos que penetravam a cordilheira a alta velocidade seguiam uma multiplicidade de rotas. A única coisa que os submarinos americanos e britânicos podiam fazer era parar, de vez em quando, para obterem a posição por sonar e continuar, depois, a corrida. Mas os submarinos soviéticos nunca abrandavam, e os 688 e os Trafalgors ficavam sempre para trás.

O Dállasestava na posição de Toll Booth para registar a passagem de submarinos soviéticos, para vigiar a entrada da passagem que a Marinha dos Estados Unidos chamava agora a Rota Vermelha Um e para detectar qualquer sinal de um novo dispositivo que permitisse aos soviéticos atravessar a cordilheira tão afoitamente. Enquanto os americanos não pudessem copiá-lo, existiam três alternativas, qual delas a mais insatisfatória: continuar a perder o contacto com os russos; estacionar valiosos submarinos de ataque nas saídas conhecidas da rota; ou montar uma nova linha de SOSUS.

O êxtase de Jones durou dez minutos — mais do que o costume. Em geral, fixava um contacto em menos tempo. O marinheiro recostou-se e acendeu um cigarro.

—’Apanhei qualquer coisa, Mr. Thompson.

— Que é? — perguntou Thompson, encostado à antepara.

— Não sei. — Jones pegou num par de auscultadores sobresselentes e passou-os ao seu oficial. — Escute, ar...

Thompson era diplomado em engenharia electrotécnica e perito em concepção de sistemas de sonar. Fechou os olhos ao concentrar-se no som. Era um ruído muito fraco, de baixa frequência, ou um silvo; não saberia dizê-lo. Escutou durante vários minutos, antes de tirar os auscultadores. Abanou a cabeça.

— Apanhei-o à meia hora no dispositivo lateral — disse Jones.

Referia-se a um subsistema do sonar multifuncional BQQ-5. O seu principal componente era uma calota de quatro metros e meio de diâmetro, localizada na proa, utilizada para operações activas e passivas. Uma parte nova do sistema consistia num conjunto de sensores passivos que se alongava por sessenta metros de cada lado do casco, um sistema mecânico análogo aos órgãos sensórios do corpo de um tubarão.

— Perdi-o, apanhei-o, tornei a perdê-lo, tornei a apanhá-lo — continuou Jones. — Não é som de hélice, nem de baleia, nem de peixe. Parece mais água a correr por um tubo, tirando o ruído que vai e vem. Esquisito... Seja como for, a posição é mais ou menos dois-cinco-zero, portanto entre nós e a Islândia. Não pode estar muito longe. — Vamos ver o aspecto que tem. Talvez descubramos alguma coisa... Jones pegou, de um gancho, num fio com duas fichas. Meteu uma ficha na tomada do painel do sonar e a outra num osciloscópio. Os dois homens passaram vários minutos a trabalhar com os controles do sonar para isolarem o sinal. Obtiveram, por fim, uma onda sinusóide irregular que só conseguiam manter por poucos segundos de cada vez.

—É irregular — disse Thompson.

—Tem graça... O som é regular, mas a imagem não é. Sabe o que

quero dizer, Mr. Thompson?

— Não. As suas orelhas são melhores do que as minhas.

— Porque ouço música de melhor qualidade, sir. Essa droga do rock dá-lhe cabo dos ouvidos.

Thompson sabia que ele tinha razão, mas um graduado de Annapolis não tem de ouvir coisas destas de um recruta. As suas fabulosas gravações de Janis Joplin eram assunto que só a ele dizia respeito.

— Adiante.

— Muito bem, sir.

Jones retirou a ficha do osciloscópio e ligou-a a um painel à esquerda do sonar, perto de um terminal de computador.

Durante a última inspecção, o Dállasrecebera um brinquedo especialíssimo para acoplar ao sistema de sonar BQQ-5. Chamava-se BC-10 e era o mais poderoso computador já instalado a bordo de um submarino. Embora tivesse apenas o tamanho de uma secretária de escritório, custava para cima de cinco milhões de dólares, e executava oitenta milhões de operações por segundo. Utilizava chips de sessenta e quatro bits e o mais moderno sistema de processamento. A sua memória guardava facilmente as necessidades computadorizadas de toda uma esquadra de submarinos. Dentro de cinco anos, todos os submarinos de ataque teriam um. O objectivo, semelhante ao do vasto sistema SOSUS, era o de processar e analisar sinais de sonar; o BC-10 isolava o ruído ambiente e outros sons naturais do mar para classificar e identificar ruídos provocados pelo homem. Identificava os barcos pelos nomes, a partir das suas assinaturas acústicas, tal como se identifica a impressão digital ou a voz de um ser humano.

Tão importante como o computador eram os seus programas. Quatro anos antes, um doutorando em geofísica que trabalhava no laboratório geofísico do Cal Tech completara um programa de seiscentas mil fases destinado a prever tremores de terra. O problema que o programa abordava era o do sinal versus ruído; ultrapassou a dificuldade que os sismólogos tinham em separar o ruído casual, constantemente registado nos sismográfos, e os sinais verdadeiramente especiais que anunciam um sismo.

O Departamento da Defesa utilizou pela primeira vez o programa no Comando das Aplicações Técnicas da Força Aérea (AFTAQ, que o achou em absoluto satisfatório para a sua missão de registar eventos nucleares através do mundo segundo os tratados de controle de armamento. O Laboratório de Investigação Naval também o reorganizou para os seus próprios fins. Embora inadequado para previsões sísmicas, resultava muito bem na análise de sinais de sonar. O programa era conhecido na Marinha por sistema de processamento aglorítmico de sinal (SAPS).

— ENTRADA DE SINAL SAPS — escreveu Jones no terminal de vídeo (VDT).

— PRONTO —respondeu logo o BC-10.

— OPERAR.

— EM OPERAÇÃO.

Não obstante a fantástica velocidade do BC-10, as seiscentas mil fases do programa pontuadas por numerosas espirais GOTO, levaram tempo a passar, enquanto a máquina eliminava sons naturais com os seus critérios de perfil aleatório, até se fixar no sinal anómalo. Demorou vinte segundos, uma eternidade em tempo de computador. A resposta surgiu no VDT. Jones carregou numa tecla para obter uma cópia no prínter adjacente.

— Hum... —Jones rasgou a folha. — “SINAL ANÓMALO CONSIDERADO COMO DESLOCAÇÃO DE MAGMA”. É o SAPS a dizer para tomarmos duas aspirinas e o chamarmos no fim do quarto.

Thompson soltou uma risada. Apesar de toda a gama que rodeava o novo sistema, ele não era nada popular na esquadra.

— Lembra-se do que os jornais disseram quando estávamos em Inglaterra? Qualquer coisa acerca de actividade sísmica ao redor da Islândia, como quando a ilha tornou a irromper, nos anos 60.

Jones acendeu outro cigarro. Conhecia o estudante que tinha cono o aborto chamado SAPS. Uma das suas falhas era o péssimo hábito de analisar o sinal errado — e não se dava por isso nos resultados. E como havia sido originalmente pensado para prever abalos de terra, Jones suspeitava que o sistema possuía uma tendência para interpretar anomalias como acontecimentos sísmicos. Não gostava desta parcialidade, que o laboratório de pesquisa não tinha inteiramente removido. Uma coisa era utilizar computadores como um instrumento, outra deixá-los pensar por nós. Além disso, estavam sempre a descobrir novos sons marítimos que ninguém ouvira antes e muito menos classificara.

— Sir, a frequência está errada. É impossível que seja tão baixa. Que me diz a tentar seguir este sinal com o R-15?

Jones referia-se aos sensores passivos que o Dállasrebocava a baixa velocidade.

O comandante Mancuso entrou nesse momento, com a habitual caneca de café na mão. Se algo havia de assustador no comandante, pensava Thompson, era a sua arte de aparecer quando algo acontecia. Teria todo o barco sob escuta?

— Ia a passar — disse casualmente. — Alguma novidade neste belo dia?

O comandante encostou-se à antepara. Era um homem baixo, de cerca de um metro e sessenta, que toda a vida travara uma batalha contra a barriga e perdia agora, devido à boa alimentação e à falta de exercício num submarino. Os seus olhos escuros estavam cercados por rugas que o riso provocava, sempre mais fundas quando pregava uma partida a outro barco.

“Seria dia?”, perguntou-se Thompson. Os quartos de um em cada três por um período de seis horas constituíam um bom horário de trabalho, mas, após algumas rendições, era preciso carregar no botão do relógio para se saber que dia era, caso contrário não se poderia escrever correctamente o diário de bordo.

— Comandante, Jones detectou um sinal esquisito no lateral. O computador diz que é uma deslocação de magma.

—E Jones não concorda com isso. Mancuso nem precisava de perguntar.

— Pois não, sir, não concordo. Não sei o que é, mas isso não é com certeza.

— Está outra vez contra a máquina?

— Comandante, o SAPS funciona quase sempre muito bem, mas, às vezes, é um autêntico pastelão.—O epíteto de Jones era a mais pejorativa imprecação dos técnicos de electrónica. — É que a frequência está errada.

— Então que lhe parece?

— Não sei, comandante. Não é som de hélice, nem som natural que eu já tenha ouvido. Por outro lado...

Jones surpreendeu-se pela informalidade da conversa com o seu comandante, mesmo após três anos em submarinos nucleares. A tripulação do Dállasera como uma grande família, se bem que uma velha família da fronteira, pois todos trabalhavam duramente. O comandante era o pai. O imediato, todos concordariam sem esforço, era a mãe. Os oficiais eram os filhos mais velhos e os recrutas os mais novos. O importante era que quando alguém tinha alguma coisa a dizer, o comandante o ouvia. Para Jones, isto significava muito.

Mancuso acenou de cabeça, pensativo.

— Bem, continue à procura. Não faz sentido desperdiçar o trabalho de máquinas tão caras.

Jones sorriu. Uma vez, tinha explicado ao comandante, com todo o pormenor, de que modo poderia converter aquelas máquinas no melhor equipamento estereofónico do mundo. Mancuso salientara que a proeza não seria por aí além, visto a aparelhagem de sonar naquela sala ter custado para cima de vinte milhões de dólares.

— Meu Deus! — O técnico subalterno saltara na cadeira. — Alguém deve ter perdido a cabeça.

Jones era o supervisor de sonar de quarto. Os outros dois técnicos de serviço detectaram o novo sinal e Jones sintonizou os auscultadores para os sensores a reboque, enquanto os dois oficiais se afastavam. Pegou num quadro de apagar e tomou nota da hora antes de accionar os controles individuais. O BQR-15 era o equipamento de sonar mais sensível do barco, mas a sua sensibilidade não era necessária para aquele contacto.

— Raios—’murmurou Jones.

— Charlie — disse o técnico subalterno. Jones abanou a cabeça.

— Victor. Classe Victor, de certeza. Circula a trinta nós. Forte ruído de cavitação. Abre grandes buracos na água e não se importam que o ouçam. Coordenadas zero-cinco-zero. Comandante, temos boa água à nossa volta e o sinal é fraquíssimo. Longínquo.

Era o cálculo mais aproximado a que Jones podia chegar. LonSíuquo significava para além das dez milhas. Tornou aos seus controles.

— Penso que conhecemos este tipo. É aquele que traz uma pá dobrada na hélice. Soa como se tivesse um cadeado à volta dela.

— Ligue o altifalante—’disse Mancuso a Thompson.

Não queria perturbar os operadores. O tenente estava já a introduzir o sinal no BC-10.

O altifalante montado na antepara teria um preço com muitos em qualquer loja de estereofonia pela sua clareza e perfeição ; como tudo o mais nos submarinos da classe 688, era o que o dinheiro podia comprar. Jones manobrou os controles “J4-6 de som e ouviu-se o chilreio estridente da cavitação, um silvo associado ao ruído de uma pá de hélice dobrada e ao som mais profundo do reactor de um Victor, trabalhando em pleno. Logo a seguir, Mão. cuso ouviu o prínter.

— Classe Victor-I, número seis — anunciou Thompson.

— Exacto — concordou Jones. — Vic-6, coordenadas zero-cinco. -zero, as mesmas. — Ligou o microfone dos auscultadores. — Torre aqui sonar. Temos um contacto. Um classe Victor, coordenadas zero -cinco-zero, velocidade calculada trinta nós.

Mancuso meteu a cabeça no corredor para ordenar ao tenente Pat Mannion, o oficial de quarto:

—Pat, prepare o grupo de detecção e tiro.

— Muito bem, comandante. s seus próprios fins. Embora inadequado para previsões sísmicas, resultava muito bem na análise de sinais de sonar. O programa era conhecido na Marinha por sistema de processamento aglorítmico de sinal (SAPS).

— ENTRADA DE SINAL SAPS — escreveu Jones no terminal de vídeo (VDT).

— PRONTO —respondeu logo o BC-10.

— OPERAR.

— EM OPERAÇÃO.

Não obstante a fantástica velocidade do BC-10, as seiscentas mil fases do programa pontuadas por numerosas espirais GOTO, levaram tempo a passar, enquanto a máquina eliminava sons naturais com os seus critérios de perfil aleatório, até se fixar no sinal anómalo. Demorou vinte segundos, uma eternidade em tempo de computador. A resposta surgiu no VDT. Jones carregou numa tecla para obter uma cópia no prínter adjacente.

— Hum... —Jones rasgou a folha. — “SINAL ANÓMALO CONSIDERADO COMO DESLOCAÇÃO DE MAGMA”. É o SAPS a dizer para tomarmos duas aspirinas e o chamarmos no fim do quarto.

Thompson soltou uma risada. Apesar de toda a gama que rodeava o novo sistema, ele não era nada popular na esquadra.

— Lembra-se do que os jornais disseram quando estávamos em Inglaterra? Qualquer coisa acerca de actividade sísmica ao redor da Islândia, como quando a ilha tornou a irromper, nos anos 60.

Jones acendeu outro cigarro. Conhecia o estudante que tinha cono o aborto chamado SAPS. Uma das suas falhas era o péssimo hábito de analisar o sinal errado — e não se dava por isso nos resultados. E como havia sido originalmente pensado para prever abalos de terra, Jones suspeitava que o sistema possuía uma tendência para interpretar anomalias como acontecimentos sísmicos. Não gostava desta parcialidade, que o laboratório de pesquisa não tinha inteiramente removido. Uma coisa era utilizar computadores como um instrumento, outra deixá-los pensar por nós. Além disso, estavam sempre a descobrir novos sons marítimos que ninguém ouvira antes e muito menos classificara.

— Sir, a frequência está errada. É impossível que seja tão baixa. Que me diz a tentar seguir este sinal com o R-15?

Jones referia-se aos sensores passivos que o Dállasrebocava a baixa velocidade.

O comandante Mancuso entrou nesse momento, com a habitual caneca de café na mão. Se algo havia de assustador no comandante, pensava Thompson, era a sua arte de aparecer quando algo acontecia. Teria todo o barco sob escuta?

— Ia a passar — disse casualmente. — Alguma novidade neste belo dia?

O comandante encostou-se à antepara. Era um homem baixo, de cerca de um metro e sessenta, que toda a vida travara uma batalha contra a barriga e perdia agora, devido à boa alimentação e à falta de exercício num submarino. Os seus olhos escuros estavam cercados por rugas que o riso provocava, sempre mais fundas quando pregava uma partida a outro barco.

“Seria dia?”, perguntou-se Thompson. Os quartos de um em cada três por um período de seis horas constituíam um bom horário de trabalho, mas, após algumas rendições, era preciso carregar no botão do relógio para se saber que dia era, caso contrário não se poderia escrever correctamente o diário de bordo.

— Comandante, Jones detectou um sinal esquisito no lateral. O computador diz que é uma deslocação de magma.

—E Jones não concorda com isso. Mancuso nem precisava de perguntar.

— Pois não, sir, não concordo. Não sei o que é, mas isso não é com certeza.

— Está outra vez contra a máquina?

— Comandante, o SAPS funciona quase sempre muito bem, mas, às vezes, é um autêntico pastelão.—O epíteto de Jones era a mais pejorativa imprecação dos técnicos de electrónica. — É que a frequência está errada.

— Então que lhe parece?

— Não sei, comandante. Não é som de hélice, nem som natural que eu já tenha ouvido. Por outro lado...

Jones surpreendeu-se pela informalidade da conversa com o seu comandante, mesmo após três anos em submarinos nucleares. A tripulação do Dállasera como uma grande família, se bem que uma velha família da fronteira, pois todos trabalhavam duramente. O comandante era o pai. O imediato, todos concordariam sem esforço, era a mãe. Os oficiais eram os filhos mais velhos e os recrutas os mais novos. O importante era que quando alguém tinha alguma coisa a dizer, o comandante o ouvia. Para Jones, isto significava muito.

Mancuso acenou de cabeça, pensativo.

— Bem, continue à procura. Não faz sentido desperdiçar o trabalho de máquinas tão caras.

Jones sorriu. Uma vez, tinha explicado ao comandante, com todo o pormenor, de que modo poderia converter aquelas máquinas no melhor equipamento estereofónico do mundo. Mancuso salientara que a proeza não seria por aí além, visto a aparelhagem de sonar naquela sala ter custado para cima de vinte milhões de dólares.

— Meu Deus! — O técnico subalterno saltara na cadeira. — Alguém deve ter perdido a cabeça.

Jones era o supervisor de sonar de quarto. Os outros dois técnicos de serviço detectaram o novo sinal e Jones sintonizou os auscultadores para os sensores a reboque, enquanto os dois oficiais se afastavam. Pegou num quadro de apagar e tomou nota da hora antes de accionar os controles individuais. O BQR-15 era o equipamento de sonar mais sensível do barco, mas a sua sensibilidade não era necessária para aquele contacto.

— Raios—’murmurou Jones.

— Charlie — disse o técnico subalterno. Jones abanou a cabeça.

— Victor. Classe Victor, de certeza. Circula a trinta nós. Forte ruído de cavitação. Abre grandes buracos na água e não se importam que o ouçam. Coordenadas zero-cinco-zero. Comandante, temos boa água à nossa volta e o sinal é fraquíssimo. Longínquo.

Era o cálculo mais aproximado a que Jones podia chegar. LonSíuquo significava para além das dez milhas. Tornou aos seus controles.

— Penso que conhecemos este tipo. É aquele que traz uma pá dobrada na hélice. Soa como se tivesse um cadeado à volta dela.

— Ligue o altifalante—’disse Mancuso a Thompson.

Não queria perturbar os operadores. O tenente estava já a introduzir o sinal no BC-10.

O altifalante montado na antepara teria um preço com muitos em qualquer loja de estereofonia pela sua clareza e perfeição ; como tudo o mais nos submarinos da classe 688, era o que o dinheiro podia comprar. Jones manobrou os controles “J4-6 de som e ouviu-se o chilreio estridente da cavitação, um silvo associado ao ruído de uma pá de hélice dobrada e ao som mais profundo do reactor de um Victor, trabalhando em pleno. Logo a seguir, Mão. cuso ouviu o prínter.

— Classe Victor-I, número seis — anunciou Thompson.

— Exacto — concordou Jones. — Vic-6, coordenadas zero-cinco. -zero, as mesmas. — Ligou o microfone dos auscultadores. — Torre aqui sonar. Temos um contacto. Um classe Victor, coordenadas zero -cinco-zero, velocidade calculada trinta nós.

Mancuso meteu a cabeça no corredor para ordenar ao tenente Pat Mannion, o oficial de quarto:

—Pat, prepare o grupo de detecção e tiro.

— Muito bem, comandante. izou para

— Um momento! — disse Jones, erguendo a mão. — Apanhei outro! — Manobrou alguns botões. — Este é da classe Charlie. E anda também a abrir buracos. Mais a leste, coordenadas zero-sete-três, velocidade cerca de vinte e oito nós. Também conhecemos o tipo. Sim. é um Charlie II, número onze. — Jones retirou um auscultador do ouvido e olhou para Mancuso. — Comandante, os russos teriam programado para hoje corridas de submarinos?

— Não me disseram nada. Claro, não temos aqui a página desportiva— gracejou Mancuso, agitando o café na chávena e ocultando os seus verdadeiros pensamentos: que diabo se estará a passar? — Bem. vou à proa ver como correm as coisas. Bom trabalho, rapazes.

Dirigiu-se ao centro de ataque. A azáfama era a costumeira. Mannion comandava, com um subalterno de quarto e sete marinheiros do contingente geral. Um controlador de fogo de primeira classe introduzia dados do analisador de movimento do alvo no computador de controle de fogo Mark 117. Outro oficial controlava o exercício de detecção do alvo. Nada havia de invulgar nestas operações. Os homens de serviço executavam a sua missão atentamente, mas tranquilos, com a calma derivada de anos de treino e de experiência. Enquanto os outros ramos militares executavam, por rotina, exercícios contra aliados ou contra si próprios, simulando tácticas do bloco oriental, a Marinha permitia aos submarinos defrontarem-se com o inimigo — e constantemente. Os homens dos submarinos operavam tipicamente no limiar da guerra.

— Então, temos companhia — observou Mannion.

— Ainda está longe — disse o tenente Charles Goodman. — As coordenadas praticamente não se alteraram.

— Torre, aqui sonar.

Era a voz de Jones. Mancuso atendeu-o.

— Aqui, torre. Que se passa, Jones?

Apanhámos outro, sir. Um Alfa 3, coordenadas zero-cinco-cinco.

Navega a pouca profundidade. Parece um tremor de terra, mas fraco, sir.

Um Alfa-31 O nosso velho amigo, o Politovskiy. Há uns tempos que não nos encontrávamos. Mais alguma coisa?

— Um palpite, sir. O som deste flutuou, depois estabilizou, como se o submarino estivesse a descrever uma curva. Eu diria que vem na nossa direcção. Mas não sei ao certo. E há mais ruídos, a nordeste. Por enquanto, é tudo muito confuso. Continuaremos a tentar perceber melhor o que se passa.

— Está bem. Bom trabalho, Jones. Continuem.

— Claro, comandante.

Mancuso sorriu ao pousar o telefone e olhou para Mannion.

— Sabe, Pat, às vezes pergunto a mim próprio se Jones não é bruxo.

Mannion olhou as rotas que Goodman desenhava para alimentar o processo de detecção por computador.

— É muito bom, é. O problema é que pensa que trabalhamos para ele.

— Exactamente o que acontece agora.

Jones era os olhos e os ouvidos do submarino, e Mancuso não o trocaria por ninguém.

— Então? — perguntou Mancuso ao tenente Goodman.

— Mantêm-se as coordenadas dos três contactos, sir.

Isto significava provavelmente que os submarinos se dirigiam para o Dálias. Significava também que, no Dálias, não podiam obter os dados necessários para determinar uma solução de fogo. Não que alguém tencionasse disparar, mas nisso consistia a essência do exercício.

— Pat, vamos criar um pouco de espaço. Vamo-nos afastar umas dez milhas para leste — ordenou Mancuso calmamente.

Existiam duas razões para esta ordem. Primeiro, atingiriam uma Posição a partir da qual poderiam calcular a distância provável do alvo. Segundo, as águas mais profundas ofereciam melhores condições acústicas, abrindo-lhes as zonas distantes de convergência de sonar. O comandante estudou o mapa, enquanto o navegador dava as ordens Decessárias, avaliando a situação táctica.

Bartolomeo Mancuso era filho de um barbeiro que fechava a sua loja, em Cícero, no Ilinóis, todos os Outonos, para ir caçar veados na Península Superior do Michigão. Bart acompanhara o pai nessas caçadas, matara o seu primeiro veado aos doze anos e todos os anos repetira a proeza até à entrada na Academia Naval. Depois, a caça deixara de o entusiasmar. Como oficial de submarinos nucleares, aprendera um jogo muito mais divertido: agora perseguia pessoas.

Duas horas mais tarde, calou-se o alarme no rádio BLF, no centro de comunicações do submarino. Como todos os submarinos nucleares, o Dállasrebocava uma longa antena sintonizada para o transmissor de frequência extremamente baixa no centro dos Estados Unidos, O canal possuía uma banda de dados com uma largura desesperadoramente estreita. Ao contrário dos canais de TV, que transmitiam milhares de bits de dados por quadro, trinta quadros por segundo, o rádio ELF transmitia os dados lentamente, mais ou menos uma letra cada trinta segundos. O radiotelegrafista de serviço esperou pacientemente o registo da informação na fita. Terminada a mensagem, passou a fita a alta velocidade e transcreveu aquela, que entregou ao oficial de comunicações, munido do seu livro de código.

A informação não era propriamente um código, mas uma “cifra em blocos”. Um livro publicado todos os seis meses e distribuído a todos os submarinos nucleares encerrava transposições obtidas ao acaso para cada letra da mensagem. Cada grupo de três letras deste livro correspondia a uma palavra ou frase pré-seleccionada noutro livro. A decifração manual da mensagem demorou menos de três minutos e, quando completada, foi entregue ao comandante, no centro de ataque.

 

NHG JPR YTR

DE COMSUBLANT PARA SUBS ATLANT NO MAR STANDBY

OPY TBD QEQ GER

POSSÍVEL ORDEM RECOLOCAÇÃO LARGA ESCALA

MAL ASF NME

INESPERADA OPERAÇÃO ESQUADRA VERMELHA EM MARCHA

TYQ ORV

NATUREZA DESCONHECIDA PRÓXIMA MENSAGEM ELF

HWZ COMUNICAR SSIX

 

O COMSUBLANT.—Comandante da Força de Submarinos do Atlântico — era o chefe de Mancuso, o vice-almirante Vincent Gallery. O velho estava, sem dúvida, a pensar numa recolocação de toda a sua força, manobra complexa. A mensagem seguinte, AAA — em cifra, evidentemente—, ordenar-lhes-ia que descessem à profundidade da antena do periscópio para obterem instruções mais pormenorizadas do SSIX, um satélite de comunicações geossincrónico utilizado exclusivamente pelos submarinos.

A situação táctica tornava-se mais clara, apesar de Mancuso não poder avaliar ainda as suas implicações estratégicas. A deslocação de dez milhas para leste dera-lhe a margem de informação indispensável sobre os três contactos iniciais e outro Alfa detectado minutos mais tarde. O primeiro dos contactos, o Vic 6, estava agora ao alcance de um torpedo. Tinha apontado um Mark 48, e o seu comandante não tinha processo de saber da presença do Dálias. O Vic 6 era um veado na mira de Mancuso—’mas não era ainda a época da caça.

Embora não muito mais rápido do que os Victors e os Charlies, e dez nós mais lento do que os Alfas, mais pequenos, o Dállase os seus irmãos podiam navegar quase em silêncio a cerca de vinte nós. Era um triunfo da engenharia e da inventiva, o produto de décadas de trabalho. Porém, a deslocação em silêncio só era útil se o caçador pudesse, ao mesmo tempo, detectar a sua presa. O sonar perdia eficácia quando o vaso em que estava instalado aumentava de velocidade. O BQQ-5 do Dállasconservava vinte por cento de eficácia a vinte nós, nada de reconfortante. Os submarinos navegando a alta velocidade eram cegos e incapazes de assustar fosse quem fosse. Em resultado disto, o estilo de ataque de um submarino era muito semelhante ao de um atirador de infantaria. Com o atirador, implicava a corrida e a camuflagem alternadamente; com o submarino, a corrida e a paragem. Após detectar um alvo, o submarino corria para uma posição mais vantajosa, parava para confirmar a da sua presa e tornava a correr até alcançar uma posição de fogo. A presa do submarino deslocava-se também e, se este conseguisse colocar-se na frente dela, tinha apenas que esperar, como um gato selvagem, o momento do ataque.

A manobra de um submarino exigia mais do que competência. Exigia instinto e um toque de artista, confiança monomaníaca e a agressividade de um pugilista profissional. Mancuso possuía todas estas qualidades. Passara quinze anos a preparar-se, observando uma geração de comandantes como subalterno, escutando atentamente as frequentes mesas-redondas que faziam do serviço nos submarinos uma profissão humaníssima, cujas lições eram transmitidas por tradição oral. Em terra, treinara-se em vários simuladores computarizados, participara em seminários, comparara ideias e notas com os seus Pares. A bordo de barcos de superfície e de aviões ASW aprendera como o “inimigo” — os marinheiros de superfície — planeavam a sua Própria caçada.

A divisa dos marinheiros de submarino era simples: existem duas de barcos, os submarinos... e os alvos. Quem andaria o a perseguir?”, perguntou-se Mancuso. “Submarinos russos?” se era esse o jogo e os russos insistissem nas suas correrias, a coisa era fácil. Ele e o Swiftsure acabavam de derrotar uma equipa de alistas ASW da NATO, homens cujos países dependiam da sua Opacidade para manterem abertas as rotas marítimas. O seu barco e a sua tripulação actuavam com o máximo de eficácia. Tinha em Jones um dos dez melhores operadores de sonar da esquadra. Mancuso estava pronto, fosse qual fosse o jogo. Tal como na abertura da época da caça, tudo o mais passava a segundo plano. Mancuso transformava-se numa arma.

Quartel-General da CIA

Eram 4 e 45, e Ryan dormitava a espaços no banco de trás de um Chevy da CIA, que o levava do Marriott para Langley. Há quantas horas estaria em Washington? Vinte? Falara com o seu chefe e com Tyler, comprara os presentes para Sally e vira a casa. A casa parecia em ordem. Alugara-a a um instrutor da Academia Naval Poderia ter obtido de outra pessoa uma renda cinco vezes superior, mas não queria festas malucas em sua casa. O oficial era um puritano do Cansas e podia confiar-lhe a residência.

Cinco horas e meia de sono nas últimas... trinta? Mais ou menos; estava cansado de mais para olhar o relógio. Era perigoso; a falta de sono mata o raciocínio, mas pouco adiantava dizer isto a si próprio e ainda menos ao almirante. Chegou ao gabinete de Greer cinco minutos mais tarde.

— Lamento ter-te acordado, Jack.

— Não faz mal, Sir. — disse Ryan, retribuindo a mentira. — Que se passa?

— Toma um pouco de café. Vamos ter um dia comprido.

Ryan tirou o casacão, que pousou no sofá, e encheu uma caneca de café feito à moda da Marinha. Não quis mistura nem açúcar. Era preferível engoli-lo sem artifícios, deixar que a cafeína exercesse, sem atenuantes, todo o seu poder.

— Poderia barbear-me, sir?

— Há um espelho atrás da porta, ali ao canto. — Greer passou-lhe uma folha amarela, arrancada de um telex. — Vê isto.

 

ULTRA-SECRETO

102200Z ***** 38976 BOLETIM NSA SIOINT OPS MARINHAVERM SEGUE MENSAGEM

ÀS 083145Z AS ESTAÇÕES DE RASTREIO DA NSA DE (APAGADO) (APAGADO) E (APAGADO) REGISTARAM UMA TRANSMISSÃO ELF DO CENTRO ELF DE SEMIPOLIPINSK DA ESQUADRA VERMELHA XX DURAÇÃO DA MENSAGEM 10 MINUTOS XX 6 ELEMENTOS XX

A MENSAGEM ELF FOI TOMADA COMO EMISSÃO “PREP” PARA OS SUBMARINOS DA ESQUADRA VERMELHA NO MAR XX ÀS 090000Z A ESTAÇÃO CENTRAL DE TULA DO QUARTEL-GENERAL DA ESQUADRA VERMELHA E OS SATÉLITES TRÊS

B CINCO EMITIRAM UMA MENSAGEM PARA “TODOS OS BARCOS” XX BANDAS USADAS: HF VHF UHF XX DURAÇÃO DA MENSAGEM 39 SEGUNDOS COM 2 REPETIÇÕES DE CONTEÚDO IDÊNTICO FEITAS ÀS 091000Z E 092000Z XX GRUPOS CIFRA 475

5 ELEMENTOS XX

COBERTURA DA MENSAGEM: ÁREA DA ESQUADRA DO NORTE DA ESQUADRA DO BÁLTICO E ÁREA DO ESQUADRÃO DO MEDITERRÂNEO XX ESQUADRA DO EXTREMO ORIENTE NÃO REPITO NÃO FOI AFECTADA POR ESTA EMISSÃO XX NUMEROSAS MENSAGENS DE RECEPÇÃO EMITIDAS A PARTIR DE UNIDADES NAS ÁREAS ACIMA CITADAS XX SEGUE ANALISE DE ORIGEM E TRAFEGO XX AINDA INCOMPLETA XX A PARTIR DAS 100000Z AS ESTAÇÕES DE RASTREIO DA NSA DE (APAGADO) (APAGADO) E (APAGADO) REGISTARAM AUMENTO DE TRÁFEGO HF E VHF NAS BASES DA ESQUADRA VERMELHA DE POLYARNYY SEVEROMORSK PECHENGA TALLINN KRONSTADT E ÁREA DO MEDITERRÂNEO ORIENTAL XX TRÁFEGO HF E VHF ADICIONAL DE UNIDADES DA ESQUADRA VERMELHA NO MAR XX SEGUE AMPLIFICAÇÃO XX

AVALIAÇÃO: FOI ORDENADA UMA GRANDE OPERAÇÃO NÃO PLANEADA DA ESQUADRA VERMELHA COM UNIDADES DA ESQUADRA INFORMANDO SOBRE DISPONIBILIDADE E POSIÇÃO XX

FIM DE MENSAGEM FONTE NSA

102115Z TERMINADOTERMINADO

 

Ryan olhou o relógio.

— Os rapazes da NSA trabalham depressa e os nossos oficiais de turno também. Puseram a pé toda a gente. — Bebeu o café e tornou a encher a caneca.

— Que temos quanto a análise de tráfego da mensagem?

— Isto.

Greer passou-lhe um segundo telex. Ryan leu-o rapidamente. —São muitos barcos. Praticamente todos os que têm no mar, calculo. Os que estão atracados são menos.

— Comunicam por via terrestre — observou Greer. — Os que estão Braçados podem receber ordens de operações por telefone, de Moscovo. Repara que se trata de todos os barcos que têm no mar no hemisfério ocidental. Todos! Alguma ideia?

Vejamos... Temos o aumento de actividade no mar de Barents. um exercício ASW de envergadura média. Talvez estejam a envolvê-lo. Isso não explica o aumento de actividade no Báltico e no Mediterrâneo. Andarão em manobras?

— Não. Terminaram a TEMPESTADE ESCARLATE há um mês. -Pois... Costumam levar dois meses a estudar todos os dados...

Quem se lembraria de fazer manobras nesta época do ano? Sabe-se

88

que o tempo é péssimo. Eles já fizeram manobras em grande escala em Dezembro?

— Em grande escala, não. Mas a maior parte das confirmações de recepção da mensagem provém de submarinos, filho, e os submarinos querem lá saber do mau tempo!

— Bem, tendo em conta outras condições pré-existentes, eu diria que isto é de mau augúrio. Sabe-se o que dizia a mensagem?

— Não. Eles utilizam cifras computarizadas, como nós. Se os fantasmas da NSA as lêem, a mim não me dizem nada.

Em teoria, a Agência Nacional de Segurança, NSA, estava sob o controle do director da CIA; na realidade, era autónoma.

— A análise de tráfego não diz mais nada, Jack. Terás de adivinhar as intenções de quem fala com quem.

—Compreendo, sir, mas quando toda a gente fala com toda a gente...

— Pois é...

—Têm mais alguma coisa em estado de alerta? O Exército? A Voyska PVO?

Ryan referia-se à rede de defesa aérea soviética.

— Não, só a Marinha. Submarinos, barcos e aviação naval. Ryan espreguiçou-se.

— Parece um exercício, sir. Precisamos, todavia, de mais alguns dados sobre o que estão a fazer. Já falou com o almirante Davenport?

— A seguir. Ainda não pude. Mal tive tempo para me barbear e fazer o café!

Greer sentou-se e ligou o altifalante do telefone instalado na secretária, antes de marcar o número.

— Vice-almirante Davenport — atendeu uma voz seca.

— Bom dia, Charlie. James está aqui. Recebeste a NSA-976?

— Claro que recebi, mas não foi isso que me acordou. A nossa rede SOSUS perdeu a cabeça há meia dúzia de horas.

— Sim?

Greer olhou para o telefone, depois para Ryan.

— É verdade. Praticamente todos os submarinos que os soviéticos têm no mar meteram o prego ao fundo e quase ao mesmo tempo!

— Com que objectivo, Charlie? — perguntou Greer.

— Ainda estamos a ver se percebemos. Parece que há muitos barcos a dirigirem-se para o Atlântico Norte. As unidades soviéticas do mar da Noruega navegavam a toda a velocidade para sudoesteTrês do Mediterrâneo Ocidental rumam no mesmo sentido tambémmas ainda não possuímos um quadro claro da situação. Só daqui por mais umas horas.

Quantos têm eles a operar ao largo da nossa costa, sir? — perguntou Ryan.

Acordaram-no, Ryan? Óptimo! Dois velhos Novembros. Um deles modificado para operações de espionagem electrónica, ao largo do Cabo; a outra coisa ao largo de Kings Bay, a fazer um barulho dos diabos.

Ryan sorriu consigo. Em inglês, barco era um substantivo feminino; em russo, era masculino; para os Serviços Secretos, um barco soviético era sempre uma “coisa”.

— Há um Yankee—continuou Davenport — mil milhas a sul da Islândia e as primeiras informações dizem que ruma a norte. É erro, provavelmente. Coordenadas recíprocas, erro de transmissão, qualquer coisa assim. Estamos a verificar. Deve ser engano porque, antes, dirigia-se para sul.

— E os outros submarinos equipados com mísseis?—perguntou Ryan.

— Os Deltas e os Typhoons estão no mar de Barents e no mar de Okhotsk, como de costume. Não há novidades. Temos lá submarinos, claro, mas Gallery não quer que eles quebrem o silêncio rádio, e faz bem. Portanto, de momento tudo o que temos é a informação sobre o Yankee desgarrado.

— Que vamos nós fazer, Charlie? — perguntou Greer.

— Gallery lançou um alerta geral, e todas as suas unidades estão preparadas para o caso de terem de se recolocar. O NORAD passou ao grau imediatamente superior de alerta, dizem-me. — Davenport referia-se ao Comando da Defesa Aeroespacial dos Estados Unidos. — As unidades do CINCLANT e do CINCPAC estão a circular, como é natural. Alguns P-3 suplementares vigiam ao largo da Islândia. Pouco mais, para já. Primeiro temos de descobrir o que é que eles querem.

—Está bem, mantém-me informado.

— Roger, se soubermos alguma coisa eu informo-te e espero que... —Com certeza.

Greer desligou o telefone e apontou o indicador a Ryan.

— Agora nada de sono, Jack.

— Depois desta droga? — perguntou Ryan, apontando a caneca.

— Vejo que não estás lá muito preocupado.

— Ainda não há motivos para preocupação, sir. Que horas são a> agora? Uma da tarde, mais ou menos. Provavelmente um almirante, talvez o velho Sergey em pessoa, que decidiu espevitar os seus rapazes. Não deve ter ficado nada satisfeito com os resultados da TEMPESTADE ESCARLATE e, se calhar, decidiu pô-los à prova... a nós também, claro. O Exército e a Força Aérea estão quietos, e não há dúvida de que se estivessem a planear uma patifaria qualquer outros ramos estariam envolvidos. Claro que temos de estar alerta, mas para já não vejo nada que... — Ryan ia para dizer “que justifique manter-se uma pessoa acordada” — nada que deva afligir-nos.

— Que idade tinhas tu em Pearl Harbor?

— O meu pai tinha dezanove anos, sir. Só casei depois da guerra e não fui o primeiro pequeno Ryan. — Jack sorriu; Greer sabia a história toda. — O senhor também não era assim muito velho, creio.

—’Era subalterno no velho Texas.

Greer nunca participara na guerra. Logo após esta ter começado, entrara para a Academia Naval; quando se formou e acabou o treino na escola de submarinos, a guerra estava praticamente acabada. Chegou à costa japonesa no seu primeiro cruzeiro um dia após o fim das hostilidades.

— Mas sabe o que quero dizer — continuou Greer.

— Pois sei, e é por isso que temos a CIA, a DIA, a NSA e o NRO, entre outros. Se os russos conseguirem enganar-nos, então talvez seja melhor estudarmos bem o nosso Marx.

— Todos esses submarinos a caminho do Atlântico...

—’Fico mais tranquilo ao saber que o Yankee ruma a norte. Tiveram tempo suficiente para saber o que dizem. Davenport, provavelmente, não quer acreditar sem confirmação. Se Ivan estivesse a pensar num confronto, o Yankee dirigir-se-ia para sul. Os mísseis desses velhos barcos são de alcance curto. Bem... Vamos ficar a pé e alerta. Felizmente, sir, o senhor faz um óptimo café.

— Que me dizes a um pequeno-almoço?

— Digo que acho muito bem. Se conseguíssemos acabar com a história do Afeganistão, talvez eu pudesse regressar a casa ainda... esta noite.

— Pode ser. Talvez assim aprendas a dormir num avião.

O pequeno-almoço foi servido vinte minutos mais tarde. Os dois homens estavam habituados a pequenos-almoços suculentos, e o que lhes ofereceram era surpreendentemente bom. Em geral, o Governo não inscrevia na sua agenda a cafetaria da CIA, e Ryan perguntou a si próprio como havia o pessoal da noite, com tão poucas pessoas de serviço, conseguido apresentar uma refeição assim. Se calhar, tinham mandado buscá-la fora... Os dois homens sentaram-se a comer até que Davenport telefonou, era um quarto para as sete.

— Não há dúvida. Todos os submarinos se dirigem para as bases. Detectámos perfeitamente dois Yankees, três Deltas e um TyphoonO Memphis informou que o que vigiava se retirou a vinte nós, depois de ter estado cinco dias no mesmo sítio, e Gallery falou com o Queenfish. A mesma história. Parece que vão todos a caminho de casa. Também temos umas fotografias de um Grande Pássaro sobre o fiorde que, por uma vez, não estava coberto de nuvens, e um conjunto de barcos de superfície com assinaturas bem nítidas de infravermelhos. Navegam a todo o vapor.

O Outubro Vermelho? — perguntou Ryan.

— Nada. Se calhar, a nossa informação era má e o submarino não saiu. Não seria a primeira vez.

-E se eles o perderam? — reflectiu Ryan em voz alta. Davenport já pensara nisso.

— Estaria explicada a actividade a norte, mas... e a azáfama no Báltico e no Mediterrâneo?

— Há dois anos apanhámos o mesmo susto com o Tullibee — lembrou Ryan—, e o CNO ficou tão atarantado que montou uma operação de salvamento com tudo o que havia nos dois oceanos.

— Talvez — concedeu Davenport.

Em Norfolk, parece que tinham ficado sem pinta de sangue depois desse fiasco. O USS Tullibee, um pequeno submarino de ataque, arrastava consigo havia muito a pouca sorte. Dessa vez, a pouca sorte afectara muita gente.

— De qualquer modo, a coisa parece muito menos preocupante do que há duas horas. Não estariam a mandar regressar às bases os submarinos se planeassem algo contra nós, pois não? — disse Ryan.

— Vejo que Ryan ainda tem a tua bola de cristal, James.

— É para isso que lhe pago, Charlie.

— Mesmo assim, é estranho... —comentou Ryan. — Porque estão eles a chamar todos os submarinos equipados com mísseis? Já fizeram isto alguma vez? E os do Pacífico?

— Desses não sei ainda nada — respondeu Davenport. — Solicitei dados ao CINCPAC, mas ainda não me responderam. Quanto à outra Pergunta, não. Nunca chamaram todas as unidades ao mesmo tempo, mas, de vez em quando, mudam de repente todas as posições. Se calhar é do que se trata. Eu disse que eles rumavam em direcção as bases, não para as bases. Só dentro de dias saberemos o que se passa.

E se eles receiam ter perdido um? — arriscou Ryan. Era sorte de mais para nós — disse Davenport, cínico. — Não Perdem um submarino desde aquele Golf que recuperámos no Havai, ndava você ainda no liceu, Ryan. Ramius não é comandante para deixar acontecer tal coisa.

O comandante Smith, do Titanic, também não era, pensou Ryan.

.Obrigado pela informação, Charlie. — Greer desligou. — Parece que não há nada, Jack. Por enquanto não há motivo para nos preocuparmos.

Vamos ver então o que há sobre o Afeganistão e depois, por descargo de consciência, daremos uma olhadela aos retratos que Charlie tem da Esquadra do Norte.

Dez minutos mais tarde, chegou um mensageiro com um carrinho dos Arquivos Centrais. Greer era dos que gostava de ver com Os próprios olhos o material todo, o que agradava a Ryan. Conhecia alguns analistas que baseavam os seus relatórios em dados pré-seleccionados e que Greer dispensara por isso. A informação do carrinho provinha de várias fontes, mas, para Ryan, a mais significativa consistia em intercepções rádio feitas por postos de escuta na fronteira paquistanesa e, apurou depois, no próprio Afeganistão. A natureza e o momento das operações soviéticas não indicavam uma retirada como pareciam sugerir dois artigos recentes do Estrela Vermelha e algumas fontes dos Serviços Secretos no interior da União Soviética. Passaram três horas a analisar os dados.

— Penso que Sir Basil está a dar importância de mais às informações provenientes da União Soviética e de menos aquilo que os nossos postos de escuta recolhem na zona. Não era a primeira vez que os soviéticos mantinham os seus comandantes operacionais na ignorância do que se passava em Moscovo, claro, mas, no conjunto, é difícil dizer o que é que eles querem — concluiu Ryan. O almirante fitou-o.

— Eu pago-te para obter respostas, Jack.

— Sir, a verdade é que Moscovo cometeu um erro ao invadir o Afeganistão. Sabemos isso através de relatórios secretos civis e militares. Os dados são, a esse respeito, claríssimos. Com os elementos que possuo, não me parece que eles saibam o que querem. Num caso destes, um espírito burocrático prefere não fazer nada. Os comandantes operacionais recebem ordens para continuar a missão, enquanto os chefões do Partido se afadigam à procura de uma saída e de uma justificação para se terem metido em tal sarilho.

— Muito bem. Portanto, sabemos que não sabemos.

— ’É verdade, sir. Também não me agrada, mas se lhe dissesse o contrário mentiria.

O almirante bufou. Havia muito disso em Langley, agentes que davam respostas quando nem sequer sabiam as perguntas. Como Ryan era ainda inexperiente, quando não sabia dizia que não sabia. Greef perguntou a si próprio se, com o tempo, o seu comportamento sofreria alterações. Oxalá não sofresse.

Depois do almoço, chegou um embrulho, por mão própria, do

Gabinete Nacional de Reconhecimento. Continha as fotografias, tiradas ao princípio do dia em duas passagens sucessivas, por um satélite KH-11. Tão cedo não havia outras, devido às restrições impostas pela mecânica orbital e o tempo péssimo que fazia na península de Kola. O primeiro conjunto de imagens visíveis, obtidas uma hora depois de Moscovo ter enviado a mensagem FLASH, mostrava a esquadra amarrada ao largo ou nos cais. Rios infravermelhos revelavam algumas unidades brilhando de calor interno, o que indicava que as suas caldeiras ou turbinas a gás se encontravam em funcionamento. O segundo conjunto de fotografias fora tirado na segunda passagem orbital, de um ângulo muito baixo. Ryan examinou as imagens — Ena! Kírov, Moskva, Kiev, três Karas, cinco Krestas, quatro Krivaks, oito Udaloys e cinco Sovremennys.

— Um exercício de busca e salvamento, não é? — Greer fitou Ryan com olhar trocista. — Vê aqui em baixo... Vão atrás deles todos os petroleiros rápidos que possuem. Está aqui a maior parte da força de ataque da Esquadra do Norte e se precisam de petroleiros é porque pensam demorar-se por fora.

— Davenport podia ter sido mais específico. No entanto, vê-se que os submarinos estão a regressar às bases. Não há aqui barcos anfíbios; só de combate. E só os novos também, aqueles que andam depressa e possuem grande autonomia.

— E as melhores armas.

— Claro — concordou Ryan. — E todos reunidos em poucas horas. Sir, se eles tinham isto já planeado, teríamos sabido. A coisa deve ter sido preparada hoje. Curioso...

— Adquiriste o hábito inglês da redundância, Jack. — Greer ergueu-se para se espreguiçar. — Quero que fiques cá mais um dia. ter sido preparada hoje. Curioso...

— Muito bem, Sir. — Olhou o relógio. — Importa-se que telefone à minha mulher? Não quero que ela vá ao aeroporto esperar um avião em que não viajo.

— Com certeza, e depois quero que desças para falar com uma pessoa da DIA que costumava trabalhar para mim. Vê os dados operacionais que eles já têm sobre este caso. Se não for nada de especial, não tardaremos a sabê-lo, e ainda poderás levar para casa amanhã a tua Barbie que faz surf.

Era uma Barbie Esquiadora, mas Ryan não disse nada.

 

                   Quarta-feira, 8 de Dezembro

                   Quartel-General da CIA

Ryan tinha estado no gabinete do director da CIA por várias vezes, para entregar relatórios e mensagens pessoais de Sir Basil Charleston a sua alteza o DCI. Era maior que o de Greer, com uma melhor vista de Potomac Valley e fora com certeza decorado por un profissional, em estilo compatível com as origens do DCI. Arthui Moore era um juiz do Supremo Tribunal do Texas, e o gabinete reflectia a sua herança do Sul ocidental. Ele e o almirante Greer sentavam-se num sofá junto das amplas janelas. Greer mandou Ryaj entrar e passou-lhe uma pasta. 'e1ltico e no Mediterrâneo?

— Há dois anos apanhámos o emdash lembrou Ryan—, e o CNO ficou tão atarantado que montou uma operação de salvamento com tudo o que havia nos dois oceanos.

— Talvez — concedeu Davenport.

Em Norfolk, parece que tinham ficado sem pinta de sangue depois desse fiasco. O USS Tullibee, um pequeno submarino de ataque, arrastava consigo havia muito a pouca sorte. Dessa vez, a pouca sorte afectara muita gente.

— De qualquer modo, a coisa parece muito menos preocupante do que há duas horas. Não estariam a mandar regressar às bases os submarinos se planeassem algo contra nós, pois não? — disse Ryan.

— Vejo que Ryan ainda tem a tua bola de cristal, James.

— É para isso que lhe pago, Charlie.

— Mesmo assim, é estranho... —comentou Ryan. — Porque estão eles a chamar todos os submarinos equipados com mísseis? Já fizeram isto alguma vez? E os do Pacífico?

— Desses não sei ainda nada — respondeu Davenport. — Solicitei dados ao CINCPAC, mas ainda não me responderam. Quanto à outra Pergunta, não. Nunca chamaram todas as unidades ao mesmo tempo, mas, de vez em quando, mudam de repente todas as posições. Se calhar é do que se trata. Eu disse que eles rumavam em direcção as bases, não para as bases. Só dentro de dias saberemos o que se passa.

E se eles receiam ter perdido um? — arriscou Ryan. Era sorte de mais para nós — disse Davenport, cínico. — Não Perdem um submarino desde aquele Golf que recuperámos no Havai, ndava você ainda no liceu, Ryan. Ramius não é comandante para deixar acontecer tal coisa.

O comandante Smith, do Titanic, também não era, pensou Ryan.

.Obrigado pela informação, Charlie. — Greer desligou. — Parece que não há nada, Jack. Por enquanto não há motivo para nos preocuparmos.

Vamos ver então o que há sobre o Afeganistão e depois,

por descargo de consciência, daremos uma olhadela aos retratos que Charlie tem da Esquadra do Norte.

Dez minutos mais tarde, chegou um mensageiro com um carrinho dos Arquivos Centrais. Greer era dos que gostava de ver com Os próprios olhos o material todo, o que agradava a Ryan. Conhecia alguns analistas que baseavam os seus relatórios em dados pré-seleccionados e que Greer dispensara por isso. A informação do carrinho provinha de várias fontes, mas, para Ryan, a mais significativa consistia em intercepções rádio feitas por postos de escuta na fronteira paquistanesa e, apurou depois, no próprio Afeganistão. A natureza e o momento das operações soviéticas não indicavam uma retirada como pareciam sugerir dois artigos recentes do Estrela Vermelha e algumas fontes dos Serviços Secretos no interior da União Soviética. Passaram três horas a analisar os dados.

— Penso que Sir Basil está a dar importância de mais às informações provenientes da União Soviética e de menos aquilo que os nossos postos de escuta recolhem na zona. Não era a primeira vez que os soviéticos mantinham os seus comandantes operacionais na ignorância do que se passava em Moscovo, claro, mas, no conjunto, é difícil dizer o que é que eles querem — concluiu Ryan. O almirante fitou-o.

— Eu pago-te para obter respostas, Jack.

— Sir, a verdade é que Moscovo cometeu um erro ao invadir o Afeganistão. Sabemos isso através de relatórios secretos civis e militares. Os dados são, a esse respeito, claríssimos. Com os elementos que possuo, não me parece que eles saibam o que querem. Num caso destes, um espírito burocrático prefere não fazer nada. Os comandantes operacionais recebem ordens para continuar a missão, enquanto os chefões do Partido se afadigam à procura de uma saída e de uma justificação para se terem metido em tal sarilho.

— Muito bem. Portanto, sabemos que não sabemos.

— ’É verdade, sir. Também não me agrada, mas se lhe dissesse o contrário mentiria.

O almirante bufou. Havia muito disso em Langley, agentes que davam respostas quando nem sequer sabiam as perguntas. Como Ryan era ainda inexperiente, quando não sabia dizia que não sabia. Greef perguntou a si próprio se, com o tempo, o seu comportamento sofreria alterações. Oxalá não sofresse.

Depois do almoço, chegou um embrulho, por mão própria, do

Gabinete Nacional de Reconhecimento. Continha as fotografias, tiradas ao princípio do dia em duas passagens sucessivas, por um satélite KH-11. Tão cedo não havia outras, devido às restrições impostas pela mecânica orbital e o tempo péssimo que fazia na península de

Kola. O primeiro conjunto de imagens visíveis, obtidas uma hora depois de Moscovo ter enviado a mensagem FLASH, mostrava a esquadra amarrada ao largo ou nos cais. Rios infravermelhos revelavam algumas unidades brilhando de calor interno, o que indicava que as suas caldeiras ou turbinas a gás se encontravam em funcionamento. O segundo conjunto de fotografias fora tirado na segunda

passagem orbital, de um ângulo muito baixo. Ryan examinou as imagens — Ena! Kírov, Moskva, Kiev, três Karas, cinco Krestas, quatro Krivaks, oito Udaloys e cinco Sovremennys.

— Um exercício de busca e salvamento, não é? — Greer fitou Ryan com olhar trocista. — Vê aqui em baixo... Vão atrás deles todos os petroleiros rápidos que possuem. Está aqui a maior parte da força de ataque da Esquadra do Norte e se precisam de petroleiros é porque pensam demorar-se por fora.

— Davenport podia ter sido mais específico. No entanto, vê-se que os submarinos estão a regressar às bases. Não há aqui barcos anfíbios; só de combate. E só os novos também, aqueles que andam depressa e possuem grande autonomia.

— E as melhores armas.

— Claro — concordou Ryan. — E todos reunidos em poucas horas. Sir, se eles tinham isto já planeado, teríamos sabido. A coisa deve ter sido preparada hoje. Curioso...

— Adquiriste o hábito inglês da redundância, Jack. — Greer ergueu-se para se espreguiçar. — Quero que fiques cá mais um dia. ter sido preparada hoje. Curioso...

— Muito bem, Sir. — Olhou o relógio. — Importa-se que telefone à minha mulher? Não quero que ela vá ao aeroporto esperar um avião em que não viajo.

— Com certeza, e depois quero que desças para falar com uma pessoa da DIA que costumava trabalhar para mim. Vê os dados operacionais que eles já têm sobre este caso. Se não for nada de especial, não tardaremos a sabê-lo, e ainda poderás levar para casa amanhã a tua Barbie que faz surf.

Era uma Barbie Esquiadora, mas Ryan não disse nada.

 

                   Quarta-feira, 8 de Dezembro

                   Quartel-General da CIA

Ryan tinha estado no gabinete do director da CIA por várias vezes, para entregar relatórios e mensagens pessoais de Sir Basil Charleston a sua alteza o DCI. Era maior que o de Greer, com uma melhor vista de Potomac Valley e fora com certeza decorado por un profissional, em estilo compatível com as origens do DCI. Arthui Moore era um juiz do Supremo Tribunal do Texas, e o gabinete reflectia a sua herança do Sul ocidental. Ele e o almirante Greer sentavam-se num sofá junto das amplas janelas. Greer mandou Ryaj entrar e passou-lhe uma pasta.

A pasta era de plástico vermelho, com um fecho de mola. Tinha os bordos debruados a fita branca e, na capa, uma simples etiqueta com as inscrições SÓ PARA A e SALGUEIRO. Nenhuma das inscrições era invulgar. O computador na cave do quartel-general de Langley seleccionava nomes ao acaso, através de uma tecla; isto impedia um agente estrangeiro de deduzir fosse o que fosse do nome de uma operação. Ryan abriu a pasta e olhou primeiro para o índice Existiam apenas três cópias do documento SALGUEIRO, cada uma delas com as iniciais do destinatário. Aquela tinha as iniciais do prfl’ prio DCI. Um documento da CIA só com três cópias era raro e Ryan, cujo grau máximo de acesso era NBBULA, nunca vira nenhum. Pelos olhares solenes de Moore e Greer, suspeitou de que eram um dos que tinham acesso ao grau A; o outro devia ser o director-adjunto de operações (DDO), outro texano chamado Robert Ritter.

Ryan virou a folha do índice. O relatório era uma fotocópia de algo que fora dactilografado numa máquina manual e tinha muitas emendas para ter sido feito por uma autêntica secretária. Se Cummings e as outras secretárias executivas de alto nível não tinham podido ver aquilo... Ryan ergueu os olhos.

—-Não há problema, Jack — disse Greer. — Passa a ter acesso a SALGUEIRO.

Ryan sentou-se e, a despeito da sua excitação, começou a ler o documento lenta e cuidadosamente.

O nome de código do agente era, na actualidade, CARDINAL, o mais graduado agente em campo que a CIA já tivera, formava-o aquela massa de que se fazem as lendas. CARDINAL fora recrutado havia mais de vinte anos por Oleg Penkovskiy. Outra lenda — esta morta—, Penkovskiy era, na época, coronel do GRU, os Serviços Secretos militares soviéticos, o similar mais poderoso e mais activo da Agência de Contra-Espionagem da América (DIA). A sua posição dera-lhe acesso à informação diária sobre todos os aspectos da vida militar soviética desde a estrutura do comando do Exército Vermelho ao estatuto operacional dos mísseis intercontinentais. A informação, que passava através do seu contacto britânico, Greville Wynne, era extremamente valiosa, e os países ocidentais acabaram por depender dela—demasiadamente. Penkovskiy fora descoberto durante a crise dos mísseis cubanos de 1962. Os seus dados, pedidos e entregues sobre grande pressão, permitiram ao Presidente Kennedy saber que os sistemas estratégicos soviéticos não estavam preparados para a guerra. Esta informação habilitara o presidente a encurralar Khruschev; não havia saída fácil para o líder soviético. O famoso bloqueio, atribuído à firmeza e aos nervos de aço de Kennedy, foi, como muitos acontecimentos semelhantes através da História, facilitado pelo conhecimento que o presidente tinha das cartas do outro homem. Esta vantagem deveu-a a um corajoso agente que nunca chegaria a conhecer. A resposta de Penkovskiy, já sob suspeita, ao pedido FLASH de Washington fora demasiado imprudente; liquidara-o. Tinha pago pela sua traição com a vida. Fora CARDINAL quem primeiro soubera que ele estava a ser vigiado mais de perto do que era normal numa sociedade em que todos eram vigiados. Avisara Penkovskiy — tarde de mais. Ao verificar-se que não podia ser retirado da União Soviética, o próprio coronel insistira com CARDINAL para que o traísse. Era o último acto irónico de um homem valente—a sua própria morte favorecendo a carreira do agente a quem recrutara.

A missão de CARDINAL era necessariamente tão secreta quanto o seu nome. Qualificado conselheiro e confidente de um membro do Politburo, CARDINAL representava-o muitas vezes junto do poder núlitar soviético. Tinha, assim, acesso a informações políticas e militares da mais alta qualidade. Isto tornava os seus relatórios extraordinariamente valiosos—e, paradoxalmente, suspeitíssimos. Os poucos agentes da CIA experimentados na matéria ao corrente da sua existência achavam impossível acreditar que ele não tivesse sido, em dado momento, “virado” por um dos milhares de agentes de contra-espionagem do KGB, cuja única função consistia em vigiar tudo e toda a gente. por este motivo, o material qualificado de CARDINAL era confrontado com os relatórios de outros espiões e de outras fontes. Mas CARDINAL sobrevivera a muitos agentes insignificantes.

O nome CARDINAL era conhecido em Washington apenas dos três directores máximos da CIA. No primeiro dia de cada mês, escolhia-se um novo nome de código para as suas informações, nome que só estava na posse dos agentes e analistas da CIA do mais elevado escalão. Naquele mês era SALGUEIRO. Antes de serem passadas, de má vontade, a estranhos, as informações de CARDINAL eram reformuladas tão cuidadosamente como os rendimentos da Mafia para disfarçar a sua origem. Havia também diversas medidas de segurança que protegiam o agente e eram exclusivas dele. Por medo de exposição criptográfica da sua identidade, as informações de CARDINAL eram entregues em mão; nunca eram transmitidas por rádio ou telefone. O próprio CARDINAL era um homem muito cuidadoso— a sorte de Penkovskiy ensinara-lhe a necessidade de cautelas As suas informações eram enviadas através de intermediários para o chefe do posto da CIA em Moscovo. Sobrevivera a doze chefes de posto; um deles, um oficial superior reformado, tinha um irmão que era jesuíta. Todas as manhãs, o sacerdote, professor de Filosofia e Teologia na Fordham Universiíy de Nova Iorque, dizia missa pela segurança e pela alma de um homem cujo nome jamais conheceria Eis uma explicação tão boa como outra qualquer para a sobrevivência de CARDINAL

Por quatro vezes lhe haviam oferecido a saída da União Soviética; sempre recusara. Para alguns, isto era prova de que ele estava “virado”, mas, para outros, era prova de que, à semelhança da maior parte dos agentes bem sucedidos, CARDINAL era um homem guiado por algo que só ele conhecia e, portanto, como a maior parte dos agentes bem sucedidos, era provavelmente um tanto louco.

O documento que Ryan lia demorava vinte horas a chegar ao seu destino. Haviam sido precisas cinco para o filme chegar à Embaixada americana em Moscovo, onde fora logo entregue ao chefe de posto. experiente oficial superior e antigo repórter do New York Times que actuava sob o disfarce de adido de imprensa. Ele próprio revelara o filme na sua câmara escura particular. Trinta minutos após a chegada, examinara à lupa as cinco imagens reveladas e enviara uma mensagem FLASH para Washington, a dizer que as informações de CAR’ DINAL iam a caminho. A seguir, transcrevera a mensagem do filme para papel de combustão instantânea na sua máquina de escrever portátil, traduzindo ao mesmo tempo do russo. Esta medida de segurança eliminava a caligrafia do agente e, pela estrutura da tradução, quaisquer peculiaridades da sua linguagem. O filme fora depois quei’ mado e o relatório introduzido numa caixa de metal semelhante a uma cigarreira. O invólucro possuía uma pequena carga pirotécnica quincendiaria o conteúdo, no caso de a caixa ser mal aberta ou subitamente sacudida; duas informações de CARDINAL tinham-se Perdido por as caixas terem sido deixadas acidentalmente cair. O chefe do posto entregara a caixa ao mensageiro da Embaixada, que já marcara passagem no voo de três horas da Aeroflot para Londres. No Aeroporto de Heathrow, o mensageiro correra a tomar o voo 747 de pan Am para o Aeroporto Internacional Kennedy, de Nova Iorque, onde embarcara no avião que fazia a ponte com o Aeroporto de Washington. Pelas oito da manhã, a mala diplomática estava na Secretaria de Estado. Aí, um agente da CIA retirara a caixa e partira imediatamente para Langley, a entregá-la ao DCI. Fora aberta por um instrutor dos serviços técnicos da CIA. O DCI fizera três fotocópias na sua Xerox pessoal e queimara o papel de combustão instantânea, que não deixara vestígios no cinzeiro. Estas medidas de segurança espantavam alguns dos homens que tinham ascendido ao cargo de DCI e que as consideravam risíveis. As gargalhadas acabavam sempre com o primeiro relatório de CARDINAL.

Quando Ryan acabou a leitura tornou à segunda página, que leu novamente, abanando a cabeça devagar. O documento SALGUEIRO era a mais forte confirmação que já tivera do seu desejo de não saber como lhe chegavam informações secretas. Fechou a pasta e devolveu-a ao almirante Greer.

— Meu Deus, sir!

—Jack, bem sei que não preciso de dizer isto... mas aquilo que acabas de ler ninguém, nem o presidente, nem Sir Basil, nem Deus, se pedir, ninguém lê sem autorização do director. Entendido?

Greer não perdera a sua voz de comando.

— Com certeza, sir — respondeu Ryan, baixando a cabeça como um colegial.

O juiz Moore tirou um charuto do bolso do casaco e acendeu-o, fitando, por sobre a chama, os olhos de Ryan. O juiz, todos o diziam, fora, nos seus tempos, um invulgar agente secreto. Servira com Hansloft durante a guerra da Coreia e tinha sido decisivo na execução de uma das missões lendárias da CIA, o desaparecimento de um barco norueguês que transportava pessoal médico e víveres para os chineses, e assim, adiara uma ofensiva chinesa por vários meses, poupando milhares de vidas americanas e aliadas; mas fora uma operação simples. Todo o pessoal chinês e toda a tripulação norueguesa havia desaparecido. Em termos simples de matemática de guerra, não passara de uma operação, avaliados os lucros e as perdas; em termos de moralidade, a questão era outra. Por este motivo, ou talvez por outro, Moore deixara, pouco depois, o serviço do Governo para se tornar advogado no seu Texas natal. Fizera uma carreira espectacularmente bem sucedida e passara de próspero advogado a distinto juiz de apelação. Fora chamado novamente à CIA três anos antes, devido a possuir uma combinação única de integridade absoluta e experiência em operações de alto risco. O juiz Moore escondia um diploma eu leis de Harvard e um espírito altamente ordenado sob a fachada de um cowboy do Texas ocidental, algo que não fora, mas que fingia com naturalidade.

— Então, doutor Ryan, que pensa disto? — perguntou Moore quando o director-adjunto de operações entrou. — Olá, Bob, chega aqui. Acabamos de mostrar a Ryan a pasta SALGUEIRO.

—’Sim?—Ritter puxou uma cadeira, encurralando Ryan no seu canto. — Que pensa disto o rapaz louro do almirante?

—’Meus senhores, presumo que todos consideram esta informação como genuína — disse Ryan, cauteloso, obtendo confirmações de cabeça. — Sir, se esta informação tivesse sido entregue em mão pelo arcanjo S. Miguel, teria dificuldade em acreditar nela... Mas como os senhores dizem que é digna de confiança...

Queriam a sua opinião. O problema estava em que as suas conclusões eram demasiado incríveis. Bem, decidiu, cheguei até onde cheguei, dando honestamente as minhas opiniões... Ryan respirou fundo e disse-lhe o que pensava do assunto.

— Muito bem, doutor Ryan — disse o juiz Moore, acenando de cabeça, sagaz. — Primeiro, quero que me diga que outra coisa pode ser, depois que defenda a sua análise.

—’Sir, a alternativa mais óbvia não merece grande reflexão. Por outro lado, estão em condições de fazer isto desde sexta-feira e não o fizeram — disse Ryan, em voz baixa e tranquila.

Ryan treinara-se para ser objectivo. Analisou em pormenor as quatro alternativas que tinha considerado. Não era altura de permitir que opiniões pessoais se intrometessem no seu raciocínio. Falou durante dez minutos.

— Suponho que há mais uma possibilidade, juiz — concluiu. — Isto pode ser desinformação destinada a inutilizar a fonte. Essa possibilidade não posso avaliá-la.

— Também nos lembrámos disso. Muito bem, agora que já nos disse o que pensa, pode dar-nos também a sua recomendação operacional.

— Sir, o almirante pode dizer-lhe o que a Marinha dirá.

— Isso calculo eu o que seja, rapaz — riu Moore. — Que pensa você?

—Juiz, adoptar a decisão três não será fácil — há demasiadas variáveis, demasiadas contingências possíveis. Mas diria que sim. Se for possível, se pudermos esmiuçar os pormenores, devemos tentar A grande questão é a disponibilidade dos nossos próprios meios. Teremos as unidades necessárias?

Não dispomos de grande coisa — respondeu Greer. — Um porta-aviões, o Kennedy. Já verifiquei. O Saratoga está em Norfolk

com uma avaria. Por outro lado, o HMS Invincible, que esteve aqui para o exercício da NATO, partiu para Norfolk na segunda-feira à noite. O almirante White, creio, comandando um pequeno grupo de combate.

— Lord White, Sir? — perguntou Ryan. — O conde de Weston?

— Conhece-o? — perguntou Moore.

Conheço, sir. As nossas mulheres são amigas. Andei com ela à caça dos galos silvestres, em Setembro passado, na Escócia. Tem fama de bom operacional e uma óptima reputação, ao que sei.

— Pensa que podemos pedir-lhes os barcos emprestados, James? - perguntou Moore. — Para isso, teremos de lhes contar tudo. Mas, primeiro, teremos de pôr o nosso lado ao corrente do que se passa. Há uma reunião do Conselho Nacional de Segurança à uma da tarde. Ryan, prepare a informação. Será você mesmo a dá-la.

Ryan pestanejou.

— Tenho pouco tempo, sir.

— James diz que você trabalha bem sob pressão. Prove-o! — Olhou para Greer. — Arranje uma cópia da informação e prepare-se para voar para Londres. Manda o presidente. Se quisermos os barcos deles, teremos de lhes explicar porquê. Isso significa informar o primeiro-ministro, missão que lhe compete. Bob, quero que confirmes este relatório. Faça o que tem a fazer, mas não envolve o SALGUEIRO.

— Muito bem — respondeu Ritter. Moore olhou para o relógio.

— Tornaremos a encontrar-nos aqui às 15 e 30, se a reunião nos der tempo. Ryan, tem noventa minutos. Despache-se.

“Quem pensarão que sou?”, perguntou-se Ryan. Dizia-se na CIA que o juiz Moore seria em breve colocado numa confortável embaixada, talvez na Corte de St. James, recompensa cabal para um homem que trabalhara longa e duramente com o objectivo de restabelecer uma íntima relação entre americanos e britânicos. Se o juiz se fosse embora, o almirante Greer suceder-lhe-ia provavelmente. Possuía as Virtudes da idade — já não teria assim muitos anos de vida — e contava amigos em Capitol Hill. Ritter não tinha nem uma coisa nem outra. Queixara-se muito e demasiado abertamente de congressistas responsáveis por fugas de informação sobre as suas operações e os Seus agentes, provocando a morte de homens na ânsia de demonstrar a sua importância na ronda dos cocktails. Andava também à disputa com o presidente da Comissão de Selecção de Informaçõe secretas.

Com esta remodelação no topo e o seu repentino acesso a novas fantásticas informações... “Que significará isto para mim?”, perguntou-se Ryan. Era impossível que estivessem a pensar nele para o cargo de DDI. Sabia que não possuía a experiência necessária para a missão — embora talvez dali por uns cinco ou seis anos...

Cordilheira de Reykjanes

Ramius examinou os dados de navegação. O Outubro Vermelho rumava a sudoeste na pista oito, a rota vigiada mais a ocidente, que os homens dos submarinos da Esquadra do Norte chamavam Estrada de Gorshkov. A sua velocidade era de treze nós. Nunca lhe ocorrera que se tratava de um número aziago, uma superstição anglo-saxónica Manteriam a rota e a velocidade por mais vinte horas. Imediatamente atrás dele, Kamarov sentava-se aos comandos do gravitómetro de submarino, um grande mapa nas costas. O jovem tenente fumava seu parar. Com aspecto tenso, marcou a posição no mapa. Ramius não o perturbou. Kamarov sabia do seu ofício e Borodin substituí-lo-ia dentro de duas horas.

Instalado na quilha do Outubro Vermelho, existia um aparelho altamente sensível, chamado gradiómetro, constituído essencialmente por dois grandes pesos de chumbo à distância de cem metros um do outro. Um sistema laser computadorizado media o espaço entre os pesos até a uma fracção de angstrom. Distorções desta distância ou movimentos laterais dos pesos indicavam variações no campo gravitacional local. O navegador comparava estes valores altamente precisos com os valores no seu mapa. Utilizando cuidadosamente gravitómetros no sistema de navegação por inércia do barco, obtinha a localização do submarino com um erro máximo de cem metros, metade do comprimento do vaso.

O sistema sensor de massa fora instalado em todos os submarinos que o podiam conter. Jovens comandantes, Ramius sabia-o, tinham-no utilizado para percorrer a Estrada a alta velocidade. Bom para os comandantes se vangloriarem do feito, pensava Ramius, mas uma provação para o navegador. Não via necessidade de imprudências Talvez a carta tivesse sido um erro... Não, eliminava a possibilidade de reverem os planos. E os sensores destinados a detectar submarinos não eram capazes de localizar o Outubro Vermelho enquanto mantivesse a sua rotina silenciosa. Disto estava Ramius certo; experimentara-os a todos. Chegaria aonde queria, faria o que queria e ninguém, nem os seus próprios compatriotas, nem mesmo os americanos, poderiam impedi-lo. Por isso escutara havia pouco a passagem de um Alfa trinta milhas a leste, e sorrira.

A Casa Branca

O carro do juiz Moore era uma limusina Cadillac com motorista um agente de segurança que guardava uma pistola-metralhadora debaixo do painel de instrumentos. O motorista virou à direita, saindo da Pensilvânia Avenue e entrando em Executive Drive. Mais um parque de estacionamento do que uma rua, Executive Drive destinava-se aos altos funcionários e jornalistas que trabalhavam na Casa Branca e no edifício do Executivo, “Old State”, esse brilhante exemplar do grotesco institucional que sobrepujava a residência do presidente. O motorista parou com suavidade num lugar vago reservado a VIP e apressou-se a abrir as portas, depois de o agente da segurança ter varrido a área com os olhos. O juiz saiu primeiro e afastou-se; Ryan seguiu-o e deu por si caminhando à esquerda do homem, meio passo atrás. Demorou ainda um momento a recordar-se de que esse seu gesto instintivo era exactamente o que os marines lhe haviam ensinado em Quântico, a maneira correcta de um subalterno acompanhar os seus superiores. Ryan pôde, assim, reconhecer quão subalterno era.

— Já aqui esteve, Jack?

— Não, sir, nunca estive.

— Claro — disse Moore, divertido—, você é daqui de perto. Se fosse de longe, já teria cá vindo várias vezes.

Um marine segurou a porta para que entrassem. No interior, um agente dos Serviços Secretos pediu-lhes que passassem adiante. Moore acenou-lhe de cabeça e avançou.

— É no gabinete, sir?

— Na Sala da Situação, no rés-do-chão. É mais confortável e está melhor equipada para este tipo de coisa. Os slides de que precisa já lá estão. Tudo pronto a funcionar. Nervoso?

— Estou, sir, de facto...

— Acalme-se, rapaz — disse Moore, risonho. — O presidente já há tempos que queria vê-lo. Gostou daquele relatório sobre o terrorismo

que fez há uns anos e eu mostrei-lhe mais alguns dos seus trabalhos. Q relatório sobre as operações dos submarinos russos equipados com Asseis, aquele outro sobre práticas administrativas nas indústrias de armamento soviéticas... Vai ver que o acha um sujeito normalíssimo. Esteja é preparado quando ele lhe fizer perguntas. Ouvirá cada palavra que disser. E tem uma habilidade especial para atirar com perguntas daquelas que nos deixam boquiabertos.

Moore começou a descer uma escada. Ryan seguiu-o, descendo

os lanços. Chegaram a uma porta que dava para um corredor. O juiz virou à esquerda e dirigiu-se a outra porta, esta guardada também Por um agente dos Serviços Secretos.

—Boa tarde, juiz. O presidente desce já.

— Obrigada Este é o doutor Ryan. Fico por ele.

— Muito bem.

O agente pediu-lhes que entrassem. Não era tão espectacular quanto Ryan esperava. A Sala da Situação não devia ser maior do que a Sala Oval, no andar de cima. Havia lambris de madeira de aspecto caro sobre o que eram provavelmente paredes de cimento. Aquela parte da Casa Branca datava da reconstrução completa feita por Trumann. A estante para Ryan ficava à esquerda, em frente e ligeiramente à direita de uma mesa mais ou menos em forma de diamante por detrás estava o écran. Um bilhete sobre a estante dizia que o projector de slides, no meio da mesa, estava já carregado e focado, e indicava a ordem das imagens fornecidas pelo Gabinete Nacional de Reconhecimento.

A maior parte das pessoas já se encontrava na sala, todos os chefes

de Estado-Maior e o secretário da Defesa. O secretário de Estado, lembrou-se Ryan, andava ainda entre Atenas e Ancara, tentando resolver a última crise de Chipre. Este permanente espinho no flanco sul da NATO inflamara-se semanas antes, quando um estudante grego atropelara uma criança turca com um automóvel e fora morto por um grupo, minutos depois. Ao fim do dia, havia cinquenta pessoas feridas e os países putativamente aliados discutiam uma vez mais acaloradamente. Agora, dois porta-aviões americanos cruzavam o mar Egeu, enquanto o secretário de Estado tentava acalmar ambas as partes. Era lamentável que dois jovens tivessem morrido, pensou Ryan, isso não justificava, porém, a mobilização do Exército.

À mesa, encontrava-se também o general Thomas Hilton, presidente dos Estados-Maiores Conjuntos, e Jefrey Pelt, o conselheiro nacional de segurança do presidente, um homem pomposo que Ryan conhecera anos antes no Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais da Universidade de Georgetown. Pelt folheava papéis e relatórios. Os chefes de Estado-Maior conversavam amigavelmente uns com os outros, quando o comandante do corpo de marines ergueu os olhos e viu Ryan. Levantou-se e aproximou-se dele.

— Você é Jack Ryan? — perguntou o general David Maxwell.

— Exactamente, sir.

Maxwell era um homem baixo e forte, de aspecto duro, cujo cabelo cortado muito curto parecia faiscar de energia agressiva. Examinou Ryan antes de lhe apertar a mão.

— Prazer em conhecê-lo, rapaz. Gostei do que fez em LondresFoi bom para o corpo. — Referia-se ao incidente terrorista em que Ryan quase fora morto. — Foi bom. Uma acção rápida a sua, tenente — Obrigado, sir. Tive sorte.

— Os bons oficiais costumam ter sorte. Dizem-me que nos traz novidades interessantes.

É verdade, sir. Penso que não dará o seu tempo por mal empregue.

Nervoso? — O general viu a resposta e esboçou um sorriso. — Acalme-se, rapaz. Neste maldito buraco, toda a gente senta o rabo no mesmo sítio que você.

Deu uma palmada amigável, com as costas da mão, no estômago de Ryan e tornou ao seu lugar. O general murmurou qualquer coisa ao almirante Daniel Foster, chefe das operações navais. O CNO olhou Ryan por um momento, antes de tornar ao que fazia.

O presidente chegou passado um minuto. Todos se levantaram quando ele se encaminhou para a sua cadeira, à direita de Ryan. Disse algumas palavras ao Dr. Pelt, depois fitou o DCI.

— Meus senhores, se pudermos começar a reunião, penso que o juiz Moore tem algumas novidades para nós.

— Obrigado, senhor presidente. Meus senhores, tivemos hoje uma interessante alteração com respeito à operação naval soviética que começou ontem. Pedi ao doutor Ryan que os elucidasse.

O presidente virou-se para Ryan. Este sentiu-se passado em revista.

—Pode começar.

Ryan tomou um gole de água gelada de um copo escondido na estante. Tinha à disposição um aparelho de controle remoto para o projector de slides e vários ponteiros. Uma luz de alta intensidade iluminava os seus apontamentos. As páginas estavam cheias de erros e de correcções manuscritas. Não tivera tempo de passar as notas a limpo.

— Obrigado, senhor presidente. Meus senhores, chamo-me Jack Ryan e o tema desta informação é a recente actividade naval soviética no Atlântico Norte. Antes, porém, devo habilitá-los com alguns dados básicos. Peço a vossa paciência durante alguns minutos e, por favor, mterrompam-me sempre que quiserem com quaisquer perguntas.

Ryan ligou o projector de slides. As luzes por cima do écran foram imediatamente reduzidas.

— Estas fotografias chegaram até nós por amabilidade dos britânicos — disse Ryan, já presa a atenção de todos. — O vaso que ali vêem é o submarino soviético equipado com mísseis Outubro Vermelho, fotografado por um agente britânico no cais da base de Polyiarniy, perto de Murmansk, no Norte da Rússia. Como podem Ver, é uma unidade de grande envergadura, com cerca de cento e noventa e cinco metros de comprido e vinte e cinco de largura, deslocando, submersa, trinta e duas mil toneladas. Estes números são, digamos, comparáveis aos de um couraçado da Primeira Guerra Mundial.

Ryan pegou num ponteiro.

— Além de ser consideravelmente maior do que os nossos submarinos Trident da classe Ohio, o Outubro Vermelho possui várias singularidades técnicas. Dispõe de vinte e seis mísseis em vez dos nossos vinte e quatro. Os primeiros vasos da classe Typhoon, a partir do qual foi desenvolvido, tinham apenas vinte. O Outubro está armado com o novo míssil balístico SS-N-20 mar-ar, o Seahawk. Trata-se de um míssil de combustível sólido e um alcance de cerca de seis mil milhas náuticas, com oito ogivas múltiplas que podem ser apontadas independentemente, as MIRV, cada uma delas com uma carga calculada de quinhentas quilotoneladas. É a mesma ogiva dos SS-18, mas em menor número por foguete.

“Como podem ver, os tubos dos mísseis estão localizados à proa e não à popa, caso dos nossos submarinos. Os hidroplanos de mergulho da proa formam, aqui, no casco, as clivagens; nos nossos, as clivagens prolongam-se pelo casco até à torre. Tem hélices gémeas; os nossos só têm uma. E, por fim, o casco é achatado. Em vez de cilíndrico, como os nossos, é acentuadamente achatado em cima e em baixo.

Ryan projectou outro slide que mostrava duas imagens sobrepostas da proa sobre a popa.

— Estas fotografias foram-nos entregues por revelar. Foram reveladas pelo Gabinete Nacional de Reconhecimento. Observem, por favor, as portas aqui, na proa, e aqui, na popa. Os ingleses ficaram um pouco perplexos com isto. Eis a razão por que me autorizaram a trazer as fotografias no princípio da semana. Na CIA também não conseguimos descobrir para que serviam as portas e decidiu-se procurar a opinião de um consultor externo.

— Quem decidiu? — perguntou, irritado, o secretário da Defesa, — Eu ainda nem sequer vi isso!

— Só as recebemos na segunda-feira, Bert — respondeu o juiz Moore, apaziguador. — Estas duas têm apenas quatro horas. Ryan sugeriu que consultássemos um perito e James Greer concordou. Eu também.

— Chama-se Oliver W. Tyler. O doutor Tyler é um antigo oficial da Marinha. Actualmente, é professor convidado de engenharia na Academia Naval e consultor do Comando dos Sistemas Marítimos. É especialista na análise da tecnologia naval soviética. O capitão. O doutor Tyler concluiu que estas portas são as aberturas de admissão e exaustão de um novo propulsor silencioso. Está agora a construir um modelo de computadorizado do sistema e esperamos ter informações no fim da semana. O sistema é em si próprio bastante interessante

Ryan explicou em resumo a análise de Tyler.

Muito bem, doutor Ryan — disse o presidente. — Acaba de nos dizer que os soviéticos construíram um submarino equipado com mísseis que os nossos homens terão dificuldade em localizar. Não me parece que sejam essas as novidades. Continue.

O comandante do Outubro Vermelho é um homem chamado Marko Ramius. É um nome lituano, embora pensemos que o seu passaporte interno lhe atribui a nacionalidade de grande-russo. É filho de um alto funcionário do Partido e o melhor comandante de submarinos que eles têm. Distinguiu-se, nos últimos dez anos, no comando de todas as classes de submarinos soviéticos.

“O Outubro Vermelho fez-se ao mar na última sexta-feira. Não sabemos exactamente qual a sua missão, mas, em geral, os submarinos soviéticos equipados com mísseis — isto é, os equipados com os mais recentes mísseis de longo alcance — limitam as suas actividades ao mar de Barents e zonas adjacentes, nas quais podem ser protegidos dos nossos vasos por aviões ASW baseados em terra, barcos de superfície e submarinos de ataque. Cerca do meio-dia, hora local, de domingo, registámos aumento de actividade de busca no mar de Barents. Na altura, pensámos tratar-se de um exercício ASW local e, na segunda-feira, ao fim do dia, parecia estarmos perante o ensaio do novo sistema de propulsão do Outubro.

“Como sabem, ontem registou-se, desde cedo, um importante aumento da actividade naval soviética. Quase todos os barcos da Esquadra do Norte estão agora no mar, acompanhados por todos os vasos de reabastecimento rápido que eles possuem. Outras unidades auxiliares saíram das bases do Báltico e do Mediterrâneo Ocidental. Mais perturbador ainda é o facto de que quase todos os submarinos nucleares integrados na Esquadra do Norte se dirigirem para o Atlântico Norte, incluindo três do Mediterrâneo, visto que os submarinos desta zona pertencem à Esquadra do Norte e não à Esquadra do mar Negro. Ora, julgamos saber o motivo de toda esta actividade.

Ryan projectou outro slide, que mostrava o Atlântico Norte desde a Florida ao Pólo, com as unidades soviéticas assinaladas a vermelho.

— No dia em que o Outubro Vermelho largou, o comandante Ramius enviou uma carta ao almirante Yuri Ilych Padorin. Padorin é o chefe da Administração Política da Marinha. Não sabemos o que a carta dizia, mas podemos ver aqui os seus resultados. Isto começou a acontecer menos de quatro horas após a carta ter sido aberta. Cinquenta e oito submarinos nucleares e vinte e oito barcos de superfície de grande envergadura navegam na nossa direcção. Trata-se de uma reacção notável em quatro horas. Esta manhã soubemos que missão lhes foi confiada.

“Meus senhores, estes barcos têm ordens para localizar o Outubro Vermelho e, se necessário, afundá-lo. — Ryan interrompeu-se para tirar efeito das suas palavras. — Como vêem, a força soviética de superfície está aqui, mais ou menos a meio caminho entre o continente europeu e a Islândia. Os submarinos soviéticos, sobretudo estes, navegam todos rumo a sudoeste, em direcção à costa dos Estados Unidos. Observem, por favor, que não há nenhuma actividade anormal ao largo das nossas costas do Pacífico — tirando o facto de sabermos que os submarinos soviéticos equipados com mísseis nos dois oceanos receberam ordens para regressar às bases.

“Embora não saibamos exactamente o que o comandante Ramius disse, podemos tirar algumas conclusões desta manobra. Dir-se-ia que eles pensam que o Outubro Vermelho se dirige para nós. Dado que a sua velocidade é calculada entre dez e trinta nós, poderia encontrar-se entre este ponto, abaixo da Islândia, e este, ao largo da nossa costa. Reparem que, em qualquer caso, conseguiu evitar com êxito a detecção pelas quatro barreiras SOSUS...

— Um momento! Diz que eles ordenaram o afundamento de um dos seus próprios submarinos?

—É verdade, senhor presidente. O presidente olhou o DCI.

— Isto é informação digna de confiança, juiz?

— É, senhor presidente. Estamos convencidos de que é informação segura.

— Muito bem, doutor Ryan, continue. Que pretende esse Ramius?

— Senhor presidente, tanto quanto podemos deduzir destes dados, o Outubro Vermelho tenta desertar para os Estados Unidos.

A sala caiu no silêncio. Ouvia-se o zumbido da ventoinha do projector de slides enquanto o Conselho Nacional de Segurança reflectia. Ryan pousou as mãos sobre a estante para impedir que tremessem sob o olhar fixo dos dez homens.

— É uma conclusão muito interessante, doutor. — O presidente sorriu. — Demonstre-a.

— Senhor presidente, não há outra conclusão a tirar dos dados. O ponto verdadeiramente crucial, claro, é a ordem de regresso das outras unidades equipadas com mísseis às respectivas bases. Nunca fizeram isso antes. Isto, as ordens para afundar o mais recente e poderoso submarino nuclear que possuem e o facto de o perseguirem nesta direcção leva-nos a pensar que o Outubro Vermelho abandonou a sua zona e se dirige para aqui.

— Muito bem. E não sendo isso que outra coisa pode ser?

— Ele pode ter-lhes dito, sir, que ia disparar os seus mísseisContra nós, contra eles, contra os chineses, contra seja quem for.

— E não acredita nisso, pois não?

Não, senhor presidente. O SS-N-20 tem um alcance de seis mil milhas. Isso significa que ele podia atingir qualquer alvo no Hemisfério Norte desde o momento em que abandonou o cais. Teve seis dias para fazer isso, mas não fez. Por outro lado, se tivesse ameaçado lançar os seus pássaros teria considerado a possibilidade de os soviéticos pedirem a nossa ajuda para o localizar e afundar. Se os nossos sistemas de vigilância detectassem o lançamento de mísseis nucleares em qualquer direcção, as coisas poderiam agravar-se rapidamente.

— O senhor sabe que ele podia disparar os mísseis nas duas direcções e desencadear, assim, a Terceira Guerra Mundial — observou o secretário da Defesa.

— Sim, senhor secretário. Nesse caso, estaríamos perante um louco — mais do que um, na realidade. Nos nossos submarinos nucleares, a ordem para disparar os mísseis tem de merecer a concordância de cinco oficiais. Os soviéticos adoptam o mesmo sistema. Por motivos de ordem política, os sistemas de segurança das ogivas nucleares soviéticas são ainda mais rigorosos do que os nossos. Cinco ou mais pessoas resolvidas a acabar com o mundo? — Ryan abanou a cabeça. — Parece-me muito improvável, sir, e, mais uma vez, os soviéticos com certeza nos teriam informado e pedido ajuda.

— Está realmente convencido de que eles nos informariam? — perguntou o Dr. Pelt, num tom de voz que não deixava dúvidas quanto à sua opinião.

— Trata-se de uma questão mais psicológica do que técnica, sir, e eu trabalho sobretudo com informações técnicas. Algumas das pessoas que se encontram nesta sala conhecem os seus homólogos soviéticos e estão em melhores condições para responder do que eu. A minha resposta à sua pergunta é, no entanto, sim. Seria a única atitude sensata a tomar e, embora não considere os soviéticos como absolutamente sensatos segundo os nossos padrões, eles são sensatos Pelos deles. Não se entregam a jogos de tão alto risco.

— Quem se entrega? — observou o presidente. — E que outra coisa Poderá ser?

— Várias, sir. Pode tratar-se simplesmente de manobras navais em larga escala, com vista a testar a capacidade soviética para encerrar as nossas linhas marítimas de comunicação e a nossa capacidade Para responder rapidamente. Rejeitámos esta possibilidade por várias razões. O exercício naval que realizaram no Outono, TEMPESTADE ESCARLATE, terminou ainda há pouco tempo e só mobilizaram submarinos nucleares; não há barcos movidos a diesel nesta operação. Vê-se bem que a velocidade, neste momento, é fundamental. E, por outro lado, os soviéticos não costumam realizar grandes manobras nesta época do ano.

— Porquê? — perguntou o presidente.

O almirante Foster respondeu por Ryan:

— Senhor presidente, o tempo, lá em cima, nesta época do ano, é extremamente mau. Nós próprios não programamos exercícios em tais condições.

— Se me não engano, acabámos de fazer um exercício da NATO, almirante — observou Bob.

— É verdade, sír, ao sul da Bermuda, onde o tempo é muito melhor. À excepção de um exercício de luta antí-submarina, ao largo das Ilhas Britânicas, toda a operação GOLFINHO ELEGANTE decorreu do nosso lado do lago.

— Muito bem, voltemos então às hipóteses quanto ao que a esquadra soviética poderá andar a fazer — ordenou o presidente.

— Portanto, sir não pode tratar-se de manobras. Que poderá ser então? A guerra. Podia ser o princípio de uma guerra convencional contra a NATO, o bloqueio das vias de comunicação marítimas. Nesse caso, teriam conseguido uma absoluta surpresa estratégica e vangloriavam-se agora disso, operando tão abertamente que não podemos deixar de saber nem de reagir. Por outro lado, não há actividade correspondente nos outros ramos das Forças Armadas soviéticas. O Exército e a Força Aérea — tirando os aparelhos de vigilância marítima—e a Esquadra do Pacífico entregam-se a operações de treino rotineiras.

“Por fim, podia tratar-se de uma tentativa para nos provocar ou distrair, concentrando-nos nesta operação, enquanto eles preparavam uma surpresa algures. Nesse caso, comportam-se de uma maneira estranha. Quando se quer provocar alguém, não se escolhe a porta da frente. O Atlântico, senhor presidente, continua a ser o nosso oceano. Como podem ver por este mapa, temos bases na Islândia, nos Açores, em toda a nossa costa. Temos aliados nos dois lados do oceano e podemos manter superioridade aérea sobre todo o Atlântico, se for preciso. A Marinha soviética é, em número de vasos, maior do que a nossa nalguns sectores fundamentais, mas não pode exibir-se em força tanto quanto nós — pelo menos por enquanto — e ainda menos ao largo da nossa costa.

Ryan tomou um gole de água.

—’Portanto, meus senhores, temos um submarino soviético equipado com mísseis no mar, enquanto todos os outros, nos dois oceanos, receberam ordens para regressar às bases. Temos a esquadra soviética no mar com ordens para afundar esse submarino, navegando, sem dúvida, na nossa direcção. Como disse, é esta a única conclusão que os dados permitem logicamente extrair.

— Quantos homens estão a bordo do submarino, doutor? — perguntou o presidente.

—Pensamos que à volta de cento e dez, sir.

— Cento e dez homens que decidem desertar para os Estados Unidos ao mesmo tempo. Uma ideia interessante — observou o presidente, cínico—mas altamente improvável.

Ryan estava preparado para a observação.

— Há um precedente, sir. Em 8 de Novembro de 1975, o Storozhevoy, uma fragata soviética equipada com mísseis da classe Krivac, tentou desertar de Riga, na Letónia, para a ilha sueca de Gotland. O comissário político a bordo, Valery Sablin, amotinou-se com os homens do contingente geral. Fecharam os oficiais nos camarotes e largaram a toda a velocidade da base. Por pouco conseguiam. Unidades aéreas e navais atacaram-nos e obrigaram-nos a parar a cinquenta milhas das águas territoriais suecas. Mais duas horas e teriam conseguido. Sablin e mais vinte e seis homens foram julgados em conselho de guerra e fuzilados. Mais recentemente, temos tido informações de motins em várias unidades soviéticas — especialmente submarinos. Em 1980, um submarino soviético da classe Ecko emergiu no Japão. O comandante alegou ter fogo a bordo, mas fotografias tiradas por aviões de reconhecimento naval — nossos e japoneses — não mostravam fumo nem materiais danificados pelo fogo libertados do submarino. Todavia, a tripulação da coberta mostrava, sem margem para dúvidas, pelo seu aspecto, que ocorrera a bordo um motim. Desde há anos que recebemos relatórios semelhantes, aludindo a informações do mesmo género. Embora admita que se trata de um exemplo extremo, a nossa conclusão tem precedentes.

O almirante Foster tirou do bolso do casaco um charuto com boquilha plástica. Os seus olhos faiscaram atrás do fósforo.

— Sabem, eu quase acredito nisto.

— E quer dizer-nos porquê, almirante? — pediu o presidente — Eu ainda não acredito.

— Senhor presidente, os motins são quase sempre chefiados por oficiais, não por homens do contingente geral. A razão está, muito simplesmente, em que os homens não sabem como dirigir o barco. Por outro lado, os oficiais não ignoram que a rebelião com êxito é

uma possibilidade. Estes dois factores mais verdadeiros serão ainda na Marinha soviética. Admito perfeitamente que os oficiais a bordo do submarino soviético se tenham revoltado.

E que o resto da tripulação os acompanhe? — perguntou . — Sabendo o que lhe aconteceria e à família? Foster tirou algumas fumaças do charuto.

— Já alguma vez andou no mar, doutor Pelt? Não? Então imagine que vai num cruzeiro à volta do mundo, no Queen Elizabeth H.

Por exemplo. Um belo dia, está no meio do oceano Pacífico... mas como sabe exactamente onde está? Não sabe. Sabe aquilo que os oficiais lhe dizem. Claro que se souber um pouco de astronomia talvez seja capaz de calcular a latitude com um erro de algumas centenas de milhas. Munido de um bom relógio e de alguns conhecimentos de trigonometria esférica, poderá mesmo calcular a longitude, também com um erro de algumas centenas de milhas. Isto num barco de superfície, donde pode olhar o céu e as águas.

“Estes sujeitos estão num submarino. De um submarino não se pode ver grande coisa. Se os oficiais — não fatalmente todos os oficiais— se revoltarem, como poderá a tripulação saber do que se passa? — Foster abanou a cabeça. — Não pode. Nem os nossos rapazes saberiam e recebem um treino muito melhor do que o deles. Os marinheiros soviéticos são quase todos do contingente geral, não se esqueça. Num submarino nuclear, o isolamento do mundo exterior é absoluto. Não há rádios, tirando o ELF e o VELF, e é tudo em cifra; todas as mensagens passam pelo oficial de comunicações. Portanto, este tem de fazer parte da conspiração. A mesma coisa com o navegador. Eles utilizam sistemas de navegação por inércia, tal como nós. Conhecemos um deles, o do Golf, que recuperámos ao largo do Havai. Os dados da máquina são também codificados. O contramestre lê os números da máquina e o navegador obtém a posição, consultando o livro. No Exército Vermelho, em terra, os mapas são documentos classificados. A mesma coisa na Marinha. Os homens do contingente geral não podem ver os mapas, nem são encorajados a saber onde estão. Num submarino nuclear, estas práticas devem ser ainda mais rigorosas, não acha?

“Finalmente, estes rapazes são marinheiros de convés. Trabalham mesmo. No mar, há sempre que fazer, e faz-se. Isto significa catorze a dezoito horas por dia de trabalho. São recrutas com uma preparação muito elementar. Aprendem a desempenhar-se de uma, duas tarefas... e a cumprir rigorosamente as ordens que recebem. Os soviéticos treinam as pessoas para trabalhar automaticamente, pensando o menos possível. É por isso que nas reparações de envergadura se vêem oficiais manejando ferramentas. Os homens não têm tempo nem predisposição para interrogar os oficiais sobre o que se passa. Faz-se o que se tem a fazer e depende-se de toda a gente para fazer isso. É assim a disciplina do mar. — Foster sacudiu a cinza do charuto num cinzeiro. — É verdade, Sir. Se os oficiais se empenharem seja no que for, não digo todos, mas a maior parte, a coisa resulta. Juntar dez ou doze dissidentes é muito mais fácil do que reunir uma centena.

— Mais fácil, mas pouco fácil, Dan — objectou o general Hilton. — Por amor de Deus! Eles têm pelo menos um comissário político a bordo, mais os espiões dos Serviços Secretos. Está mesmo convencido de que um fanático do Partido alinha num plano desses?

Porque não? Não ouviu Ryan? O motim da fragata foi comandado por um comissário político.

Sim, e desde então não pára de mexer, essa directoria — respondeu Hilton.

— Estão sempre a aparecer desertores do KGB, todos bons membros do Partido — disse Foster, que apreciava visivelmente a perspectiva de deserção de um submarino soviético.

O presidente reflectiu sobre o que ouvira e voltou-se para Ryan:

— Doutor Ryan, conseguiu convencer-me de que o seu cenário é uma possibilidade teórica. Agora, que pensa a CIA que devemos fazer?

— Senhor presidente, eu sou um analista de informação, não... Sei muito bem o que o senhor é, doutor Ryan. Conheço bem o seu trabalho. Sei que tem uma opinião. Quero ouvi-la.

Ryan nem sequer olhou para o juiz Moore antes de responder.

— Apoderamo-nos dele, sir.

— É assim, sem tirar nem pôr?

— Não, senhor presidente, provavelmente não. No entanto, Ramius pode subir à superfície ao largo dos cabos da Virgínia dentro de um ou dois dias e pedir asilo político. Devemos estar preparados para essa contingência, sir, e a minha opinião é que devemos recebê-lo de braços abertos.

Ryan obteve acenos de cabeça de todos os chefes de Estado-Maior; tinha, finalmente, alguém do seu lado.

— Verifico que está disposto a arriscar tudo — observou o presidente, amável.

— O senhor pediu-me opinião. Provavelmente não será fácil. Os Alfas e os Victors navegam em direcção às nossas costas, quase certamente com intenção de armarem um bloqueio, um bloqueio da nossa costa atlântica.

— Bloqueio — repetiu o presidente. — Uma palavra feia... -—Juiz —disse o general ffilton—, com certeza que se lembrou

de que isto pode ser uma manobra de desinformação tendo em vista desacreditar a fonte altamente colocada donde provêm estes dados?

O juiz Moore esboçou um sorriso sonolento e disse:

— Lembrei-me com certeza, general. Se se trata de um embuste, é um embuste muito bem congeminado. O doutor Ryan recebeu instruções para preparar esta informação na presunção de que os dados são autênticos. Se não forem, a responsabilidade é minha.

“Deus te abençoe, juiz”, disse Ryan para consigo, perguntando a si Próprio quão fidedigna seria a fonte SALGUEIRO. O juiz continuou:

—-Seja como for, meus senhores, teremos de responder a esta actividade soviética seja a nossa análise correcta ou não.

— Certamente que procuram obter confirmação dos dados, não é verdade, juiz? — perguntou o presidente.

— É verdade, sir. Estamos a tratar disso.

— Muito bem. — O presidente endireitou-se na cadeira e Ryan reparou que a sua voz se tornara mais áspera. — O juiz tem razão. Temos de reagir, seja o que for que se esteja a passar. Meus senhores, a Marinha soviética ruma à nossa costa. Que vamos fazer?

O almirante Foster foi o primeiro a responder:

— Senhor presidente, a nossa esquadra saiu já para o mar. Todas as nossas unidades estão no mar ou estarão amanhã à noite. Mandámos regressar os nossos porta-aviões do Atlântico Sul e estamos a recolocar os nossos submarinos nucleares, com vista a enfrentar a ameaça. Começámos esta manhã a saturar o ar sobre a força de superfície soviética, com patrulhas de aparelhos P-3C Orion, assistidos por Nimrods britânicos, operando ao largo da Escócia. General? — Foster virou-se para Hilton.

— Neste momento, temos aviões tipo AWACS-3A no ar, juntamente com Orions de Dan, acompanhados por caças Eagle F-15, ao largo da Islândia. Na sexta-feira, por esta hora, teremos um esquadrão de B-52 operando a partir da Base da Força Aérea de Loring, no Maine, armados com mísseis Harpoon, sobrevoando os soviéticos por turnos. Nada de agressivo, compreendem — disse Hilton, sorrindo. — Só para que saibam que estamos atentos. Se continuarem a navegar na nossa direcção, colocaremos meios aéreos tácticos na costa leste e, se achar bem, poderemos activar alguns esquadrões da Guarda Nacional e da Reserva sem dar nas vistas.

— Como conseguirá fazer isso sem dar nas vistas? — perguntou Pelt.

— Doutor Pelt, algumas forças da Guarda Nacional devem comparecer, este domingo, na nossa base Bandeira Vermelha, de Nellis, no Nevada, para exercícios que lá fazemos rotativamente. Podem ir para o Maine, em vez do Nevada. As bases são bastante grandes e eles pertencem ao SAC. — Hilton referia-se ao Comando Estratégico Aéreo. — E, em matéria de segurança, são a toda a prova.

— De quantos porta-aviões dispomos? — perguntou o presidente.

— De momento só um, sir, o Kennedy. O Saratoga ficou com uma turbina avariada na última semana e será preciso um mês para a substituir. O Nimitz e o America estão no Atlântico Sul — o America regressando do oceano indico, o Nimitz a caminho do Pacífico. Pouca sorte... Poderemos chamar um porta-aviões do Mediterrâneo Oriental’.

— Não. — O presidente abanou a cabeça. —• A crise de Chipre está ainda em evolução. Será mesmo preciso? Se... se acontecer qualquer coisa, poderemos enfrentar a força soviética com aquilo que temos neste momento?

— Com certeza, sir! — disse logo o general Hilton. — O doutor Ryan Pôs o problema tal qual é: o Atlântico é o nosso oceano. Só a Força Aérea disporá de mais de quinhentos aparelhos para esta operação, e outros trezentos ou quatrocentos na Marinha. Se chegarmos mesmo a vias de facto, a esquadra soviética terá vida curta.

— Tentaremos evitar isso, naturalmente — disse o presidente, tranquilo. — As primeiras notícias na imprensa apareceram esta manhã. Recebemos uma chamada de Bud Wilkini”, do Times, pouco antes do almoço. Se o povo americano descobre o que se passa... Jeff?

— Senhor presidente, partamos do princípio de que, neste momento, a análise do doutor Ryan é correcta. Não vejo o que possamos fazer — disse Pelt.

— Quê? — explodiu Ryan. — Desculpe, sir...

—Nós não podemos roubar um submarino soviético equipado com mísseis.

— Porque não? — perguntou Foster. — Já possuímos um bom número de tanques e aviões soviéticos.

Os outros chefes de Estado-Maior concordaram.

— Um avião com um ou dois tripulantes é uma coisa, almirante; um submarino nuclear com vinte e seis mísseis e uma tripulação de mais de cem homens, é outra. Claro que podemos dar asilo aos oficiais desertores.

— Portanto, o que você diz é que se a coisa aparecer em Norfolk — interveio Hilton — nós devemos rejeitá-la! Homem! São duzentas ogivas nucleares! Sabe muito bem que, a todo o tempo, eles podem utilizar essas coisas contra nós. Tem mesmo a certeza de que não as quer?

— Um bilião de dólares, general — disse Pelt, acanhado.

Ryan viu o sorriso do presidente. Sabia-se que ele apreciava discussões vivas.

—Juiz, quais são as ramificações legais?

— Quem manda é a lei do Almirantado, senhor presidente. — Moore pareceu pouco à vontade pela primeira vez. — Não tenho prática de almirantado, mas, se bem me lembro do que aprendi na Faculdade de Direito, o Almirantado é jus gentium — os mesmos códigos legais aplicam-se teoricamente a todos os países. Os tribunais do Almirantado americano e britânico citam habitualmente a jurisprudência um do outro. Quanto aos direitos de uma tripulação amotinada... não faço ideia.

— Juiz, não se trata de um motim ou de um acto de pirataria — fez notar Foster. — O termo correcto é barataria, creio. Fala-se num motim quando a tripulação se revolta contra a autoridade legal. A conduta irregular dos oficiais chama-se barataria. Seja como for, não penso que devamos preocupar-nos com a cobertura legal de uma situação que envolve armas nucleares.

— Teremos provavelmente que o fazer — disse o presidente, pensativo. — Como Jeff salientou, o que está em causa é extremamente valioso. Legalmente, é propriedade deles e não poderemos esconder que a temos. Creio que todos concordam que nem toda a tripulação deve estar envolvida nisto. Nesse caso, aqueles que não estão implicados no motim ou na barataria ou seja lá no que for, quererão regressar ao seu país quando tudo estiver acabado. E teremos de os deixar partir, não é verdade?

— Teremos? — perguntou o general Maxwell, que rabiscava num bloco. — Teremos?

— General — disse o presidente, firme —, não contribuiremos, repito, não contribuiremos para a prisão ou assassínio de homens cujo único desejo é regressar à pátria e à família. Estamos entendidos? — Olhou em redor da mesa. — Se eles souberem que temos o submarino, exigi-lo-ão de volta. E saberão que o temos pelos tripulantes que desejam regressar a casa. E como poderíamos esconder uma coisa tão grande?

— Talvez fôssemos capazes — respondeu Foster em voz neutra — mas, como diz, a tripulação complica tudo. Suponho que teremos oportunidade de falar com ela?

—Está a pensar numa inspecção, numa quarentena, num exame às suas condições de aguentar o mar, talvez à certificação de que não pretendem introduzir droga no país? — O presidente sorriu. — Creio que podemos arranjar isso. Mas já estamos a adiantar-nos de mais. Há muita coisa a fazer antes de chegarmos a esse ponto. Os nossos aliados?

—Os ingleses têm cá agora um porta-aviões. Poderíamos utilizá-lo, Dan? — perguntou o general Hilton.

— Se eles no-lo emprestarem, podemos. Acabámos há pouco o exercício ASW ao sul da Bermuda e os ingleses saíram-se muito bem. Poderíamos utilizar o Invincible, os quatro navios-escolta e os três submarinos de ataque. A força recebeu ordens de regresso a toda a velocidade por causa disto.

— Eles sabem do que se está a passar, juiz? — perguntou o presidente.

—’Não, salvo se o descobriram pelos próprios meios. Estas informações têm poucas horas.

Moore não revelou que Sir Basil possuía o seu próprio espião no Kremlin. Ryan também não sabia grande coisa acerca do assunto, ouvira apenas uns rumores desconexos.

— Pedi ao almirante Greer que se preparasse para voar para Inglaterra, a fim de informar o primeiro-ministro, se não vir inconveniente.

— Porque não mandar...

O juiz Moore abanou a cabeça.

—’Senhor presidente, esta informação... esta informação só pode ser entregue pessoalmente, digamos.

À volta da mesa, os presentes arquearam os sobrolhos.

— Quando é que ele parte?

— Esta noite, se achar bem. Esta noite partem de Andrews uns voos com VIP. Congressistas.

Era o termo habitual da sessão, marcado pelas festividades — o Natal na Europa, aproveitado para missões de investigação.

— General, não temos nada mais rápido? — perguntou o presidente a Hilton.

— Podemos arranjar um VC-141. Um Lockheed Jeístar, quase tão rápido como um 135. Preciso apenas de meia hora.

— Então trate disso.

— Muito bem, s/r, vou telefonar imediatamente.

Hilton levantou-se, dirigindo-se ao telefone, a um canto da sala.

— Juiz, diga a Greer que faça as malas. Encontrará no avião uma carta para entregar ao primeiro-ministro. Quer o Invincible, almirante?

— Quero, sir.

— Eu trato-lhe disso. Outra coisa: que vamos dizer aos nossos homens no mar?

— Se o Outubro entrar, não teremos de dizer nada de especial; se for preciso comunicar com ele...

— Desculpe-me, juiz — disse Ryan —, essa hipótese é a mais provável. Os vasos soviéticos barrar-lhe-ão o caminho antes que ele cá chegue. Se assim for, teremos de avisar o submarino, quanto mais não seja para salvar os oficiais desertores. Não nos esqueçamos de que andam à procura do Outubro Vermelho para o afundarem.

— Ainda não o detectamos. Porque pensa que eles serão capazes de o fazer? — perguntou Foster, mal-humorado.

— Eles construíram-no, almirante. Conhecem certamente pormenores da sua concepção e terão, por consequência, mais facilidade em localizá-lo do que nós.

— É lógico — disse o presidente. — Nesse caso, é preciso instruir os comandantes das esquadras. Não podemos difundir esta informação, pois não, juiz?

— Senhor presidente, a nossa fonte é demasiado valiosa para que a possamos comprometer seja a que título for. Não posso dizer mais sir.

— Muito bem. Enviaremos alguém de avião. Outro assunto: teremos de conversar com os soviéticos acerca disto. De momento, podem dizer que operam em águas territoriais. Quando é que eles passam a Islândia?

— Amanhã à noite, salvo se mudarem de rota — respondeu Foster. — Vamos dar-lhes, então, um dia para acabarem com isto... e para nós confirmarmos a informação. Juiz, quero algo de consistente que apoie este conto de fadas dentro de vinte e quatro horas. Se eles não voltarem para trás pela meia-noite de amanhã, convocarei o embaixador Arbatov para o meu gabinete, sexta-feira de manhã.

— Voltou-se para os chefes de Estado-Maior. — Meus senhores, amanhã à tarde quero ter planos de contingência para enfrentar esta situação. Encontrar-nos-emos aqui às duas horas. Mais uma coisa: nada de jogos! Esta informação não sai desta sala sem o meu consentimento. Se a imprensa sabe disto, rolarão cabeças. Sim, general?

— Senhor presidente, com vista a desenvolver os nossos planos

— disse Ritter, que tornou a sentar-se — precisamos de trabalhar com os nossos comandantes operacionais e com alguns dos nossos especialistas em operações. Precisaremos, certamente, do almirante Blackburn.

Blackburn era o CINCLANT, comandante-chefe do Atlântico.

— Pensarei nisso. Falar-lhe-ei dentro de uma hora. Quantas pessoas na CIA estão ao corrente do que se passa?

— Quatro, sir. Ritter, Greer, Ryan e eu próprio, sir. Mais ninguém. —E chega.

O presidente andava, havia meses, furioso com fugas de informação.

— Muito bem, senhor presidente. —’A reunião está suspensa.

O presidente levantou-se. Moore deu a volta à mesa para o impedir de sair logo. O Dr. Pelt também ficou. Os outros abandonaram a sala. Ryan esperou no corredor.

— Foi muito bem — disse o general Maxwell, apertando^lhe a mão. Esperou que todos se afastassem no corredor, antes de prosseguir:

— Estou convencido de que você não regula bem da cabeça, meu filho, mas não há dúvida de que conseguiu espicaçar Dan Foster. Não, melhor do que isso: pôs-lhe mesmo o rabo a arder! — O general, baixinho, gargalhou. —• E se apanharmos o submarino talvez consigamos levar o presidente a mudar de ideias e a arranjar maneira de fazer desaparecer a tripulação. O juiz já fez isso uma vez, bem sabe.

Ryan sentiu-se arrepiado com a ideia, enquanto via Maxwell a afastar-se pelo corredor, bamboleante.

— Jack, quer vir aqui um instante? — perguntou a voz de Moore.

— O senhor é historiador, não é? — indagou o presidente, relendo as suas notas.

Ryan não se lembrava de o ter visto com a caneta na mão.

— Sou, senhor presidente. Sou realmente formado em História. Ryan apertou a mão do presidente, que disse:

— Sabe representar, não há dúvida, Jack. Poderia ter sido um óptimo advogado.

O presidente fizera a sua reputação como procurador temível. Sobrevivera a uma tentativa de assassínio da Mafia no princípio da carreira, o que nem por sombras lhe refreara as ambições políticas.

— Magnífica intervenção a sua.

— Obrigado, senhor presidente — agradeceu Ryan, abrindo-se num sorriso.

— O juiz disse-me que conhece o comandante da força britânica que ainda se encontra cá.

Foi como se um saco de areia lhe tivesse atingido a cabeça.

— Conheço, sir. É o almirante White. Cacei com ele e as nossas mulheres são amigas. O almirante White é íntimo da família real.

— Óptimo. Alguém tem de tomar um avião para ir informar o comandante da nossa esquadra e, depois, os ingleses, se conseguirmos que nos emprestem o porta-aviões, como espero. O juiz acha que o almirante Davenport deve acompanhá-lo. Portanto, irá esta noite ao Kennedy e, depois, ao Invincible.

— Senhor presidente, eu...

— Então, doutor Ryan—’disse Pelt, esboçando um sorriso. —O senhor é a única pessoa indicada para esta missão. Tem acesso a informações secretas, conhece o comandante britânico e é especialista em espionagem naval. Como vê... Diga-me... A Marinha está muito interessada em apoderar-se desse Outubro Vermelho, não está?

— Claro que está, sir. É a oportunidade de o ver, melhor ainda, de navegar nele, de o desmontar, de o montar novamente... Será, sem dúvida, o maior golpe de sempre na história da espionagem.

— Isso é verdade. Mas talvez andem um pouco ansiosos de mais...

— Não compreendo o que quer dizer — respondeu Ryan, embora compreendesse perfeitamente (Pelt era o favorito do presidente, mas não era o favorito do Pentágono).

— Terão uma oportunidade que talvez nós não queiramos que eles tenham.

— Doutor Pelt, se está a querer dizer que um oficial iria...

—’Não, não é isso que ele está a dizer. Não é exactamente isso, Pelo menos. O que ele diz é que eu posso ter interesse em dispor de alguém que me dê um ponto de vista independente, um ponto de vista civil...

— Sir, o senhor não me conhece.

— Já li muitos relatórios seus.

O presidente sorria. Contava-se que acendia e apagava um encanto ofuscante como quem acende e apaga um holofote. Cegava Ryan, e Ryan sabia-o, mas não podia evitá-lo.

— Gosto do seu trabalho. O senhor tem intuição para apreciar as coisas, os factos. E bom senso. Uma das razões por que cheguei aonde cheguei é o bom senso, e estou convencido de que poderá desempenhar-se daquilo que tenho em mente. Quer ou não quer fazer isso?

— Fazer o quê exactamente, sir?

—’Depois de sair daqui, fica por cá uns dias e fala directamente comigo. Sem intermediários; directamente comigo. Obterá a ajuda de que precisar. Eu próprio tratarei disso.

Ryan não respondeu. Tornava-se um espião, um agente secreto por ordem presidencial. Pior, espiaria por conta do presidente.

—Não lhe agrada informar sobre a sua gente, não é verdade? Não terá de o fazer, bem vistas as coisas. Como lhe disse, quero uma opinião de civil, independente. Teríamos preferido encarregar desta missão um agente experimentado, mas queremos reduzir ao máximo o número de pessoas envolvidas no caso. Se escolhêssemos Ritter ou Greer, todos desconfiavam; ora você, que é, de certo modo, um...

— Ninguém? — concluiu Jack.

— Sim, para eles sim — respondeu o juiz Moore. — Os soviéticos têm a sua ficha. Já vi partes dela. Consideram-no um preguiçoso da alta burguesia, Jack.

“Sou um preguiçoso”, pensou Ryan, indiferente ao desafio implícito na acusação. “Nesta companhia, sou-o com certeza.”

— Muito bem, senhor presidente. Desculpe-me, por favor, a hesitação. Nunca fiz trabalho de campo.

— Compreendo. — O presidente era magnânimo na vitória. — Só mais uma coisa: se bem entendo como opera um submarino, Ramius podia ter fugido sem dizer nada a ninguém. Porquê informá-los? Porquê a carta? A meu ver, é contraproducente.

Foi a vez de Ryan sorrir.

— Conhece algum comandante de submarinos, sir? Não? E um astronauta?

— Sim, conheço alguns pilotos do Shuttle.

— São da mesma raça, senhor presidente. Quanto à razão da carta, ela divide-se em duas partes. Primeiro, deve haver qualquer coisa que o fez perder a cabeça — e que viremos a descobrir quando falarmos com ele. Segundo, Ramius pensa que levará a bom termo o seu plano, mesmo que eles tentem detê-lo... e quer que saibam disso. Senhor presidente, os homens que comandam submarinos, os profissionais dos submarinos, são agressivos, confiantes e muito, muito inteligentes.

O que mais apreciam na vida é obrigar os outros, por exemplo o comandante de um vaso de superfície, a fazer figura de parvo.

— Acaba de marcar outro ponto, Jack. Os astronautas que conheci são de uma extrema humildade em tudo, tirando o voo. Nisso, julgam-se deuses! Não me esquecerei do seu esclarecimento. Jeff, vamos voltar ao trabalho. Jack, mantenha-me informado.

Ryan tornou a cumprimentá-lo. Depois de o presidente e o seu principal conselheiro se terem retirado, virou-se para o juiz Moore. —Juiz, que diabo foi que lhes disse a meu respeito?

— Apenas a verdade, Jack.

O juiz queria realmente que a operação fosse dirigida por um agente de elite da CIA. Ryan não fazia parte dos seus planos, mas os presidentes costumam estragar planos cuidadosamente elaborados. O juiz aceitava a situação filosoficamente.

—Bom, para si, significa um grande salto, desde que se saia bem da missão. E até pode gostar...

Ryan tinha a certeza de que não gostaria, e não se enganava.

Quartel-General da CIA

Não falou todo o caminho até Langley. O carro do director parou na garagem da cave. Saíram e entraram num elevador privado que os levou directamente ao gabinete de Moore. A porta do elevador estava disfarçada num painel da parede — muito conveniente, embora melodramático, achou Ryan. O DCI dirigiu-se à secretária e pegou num telefone.

— Bob, vem cá imediatamente. — Olhou Ryan, de pé, no meio da sala. — Ansioso, não, Jack?

— Claro, juiz — respondeu Ryan sem entusiasmo.

— Compreendo o que pensa acerca deste caso de espionagem mas, sabe, isto pode dar origem a uma situação verdadeiramente perigosa. Devia sentir-se muito lisonjeado pela confiança que depositam em si.

Ryan captava a mensagem implícita quando Ritter entrou, apressado.

— Que há, juiz?

— Vamos desencadear uma operação. Ryan vai de avião ao Kennedy, com Charlie Davenport, informar os comandantes da esquadra sobre este caso do Outubro. O presidente concordou.

— Imagino. Greer partiu para Andrews, pouco antes de o senhor chegar. Ryan vai então voar?

— Vai. Jack, a regra é esta: pode informar o comandante da Quadra e Davenport. Mais ninguém. A mesma coisa com os ingleses; só o comandante. Se Bob puder confirmar SALGUEIRO, os dados podem ser fornecidos, mas apenas na medida estritamente necessária. Entendido?

— Com certeza, sír. Suponho que alguém deve ter dito ao presidente que é difícil fazer seja o que for se ninguém sabe o que se passa. Sobretudo as pessoas de quem se espera acção.

—Percebo o que quer dizer, Jack. Temos de levar o presidente a mudar de ideias a esse respeito. E conseguiremos. Entretanto, porém, não se esqueça de que é ele quem manda. Bob, precisamos de lhe vestir qualquer coisa para ele passar.

—’Um uniforme de oficial da Marinha? Vamos fazer dele um comandante! Três listas e as fitas da ordem. — Ritter olhou Ryan de alto a baixo.—’Tamanho 42, mais ou menos... Dentro de uma hora tê-lo-emos pronto. A operação tem nome?

— Vamos já tratar disso. — Moore pegou outra vez no telefone e marcou cinco algarismos. — Preciso de duas palavras... Sim, está bem.—’Tomou uns apontamentos.—Meus senhores, vamos desencadear a operação MANDGLIM. Você, Ryan, é Magj. Não se esquecerá, dada a época do ano1. Trataremos de estabelecer uma série de palavras em código, baseadas nestas últimas, enquanto você se arranja. Bob, leva-o lá abaixo. Eu telefono a Davenport por causa do voo.

Ryan seguiu Ritter até ao elevador. Corria tudo depressa de mais, eram todos espectacularmente dinâmicos e eficazes, pensou. A operação MANDGLIM estava em marcha antes que soubessem o que iam fazer e ainda menos como. E a escolha do seu nome de código achava-a Ryan singularmente despropositada. Ele não era o mago de ninguém. Deviam ter escolhido antes “Halloween”2.

 

1 Magos. Alusão aos Reis Magos. (N. da T.)

* Véspera do Dia de Finados. (N. do T.)

 

                   Quinta-feira, 9 de Dezembro

                   O Atlântico Norte

Quando Samuel Johnson comparava o andar de barco com “estar na cadeia e tendo a perspectiva de morrer afogado”, tinha, pelo menos, a consolação de viajar até ao seu barco numa carruagem segura, pensou Ryan. Dirigia-se agora para o mar e, antes de chegar ao seu barco, corria o risco de ser reduzido a picado, no caso de o avião se despenhar. Jack sentava-se dobrado num banco semelhante a um balde, do lado de bombordo de um Grumman Greyhound, a que os marinheiros chamavam, sem afecto, CGD (transporte de mercadorias para o porta-aviões), um camião voador. Os bancos, virados para a popa, eram muito juntos e Ryan tocava com os joelhos no queixo. A cabina era muito mais própria para carga do que para pessoas. Seguiam três toneladas de motores e componentes electrónicos, protegidos por grades, à popa — à popa, sem dúvida, para que o impacte de uma queda sobre o valioso equipamento fosse amortecido pelos quatro corpos dos passageiros. A cabina não tinha aquecimento nem janelas. Uma fina antepara de alumínio separava Ryan de um vento de duzentos nós, que zunia a compasso com os dois motores de turbina. Pior do que tudo, voavam através de uma tempestade, a mil e quinhentos metros de altitude, e o COD balouçava em poços de trinta metros como uma montanha-russa descontrolada. A única coisa era a falta de luz, achava Ryan — pelo menos, ninguém pode ver estou pálido. Mesmo atrás dele, sentavam-se dois pilotos, falando alto para se poderem fazer ouvir sobre o ruído dos motores. Os patifes iam divertidos!

O barulho diminuiu um pouco ou assim pareceu; era difícil dizer. Tinham-lhe dado protectores de espuma de borracha para os ouvidos, um colete salva-vidas amarelo, pneumático, e uma lição sobre o que fazer em caso de queda. A lição fora superficial, pois não era preciso esperteza para avaliar as possibilidades de sobrevivência se numa noite daquelas. Ryan detestava voar. Fora segundo da Marinha e a sua carreira no activo terminara logo três meses depois, quando o helicóptero do seu pelotão se despenhou em Creta, durante um exercício da NATO. Ficara com as costas feridas, quase aleijado para toda a vida e, desde então, olhava os aviões como algo a evitar. O COD prosseguia aos solavancos, mas, achava Ryan, descendo; deviam estar perto do Kennedy. A alternativa não justificava reflexões. Tinham saído havia apenas noventa minutos da Estação Naval Aérea de Oceana, em Virgínia Beach. Parecia um mês, e Ryan jurou a si próprio que nunca mais teria medo de andar num avião comercial.

O nariz do aparelho inclinou-se cerca de vinte graus. O avião parecia voar direito a qualquer coisa. Aterravam, a parte mais perigosa das operações de voo num porta-aviões. Lembrou-se de um estudo realizado durante a guerra do Vietname, no qual se haviam aplicado a pilotos de porta-aviões electrocardiógrafos portáteis para registarem o stress; muita gente tinha ficado surpreendida ao verificar que o período causador de maior stress para os pilotos dos porta-aviões não era aquele em que estavam submetidos a fogo... mas aquele em que aterravam, sobretudo de noite.

“Meu Deus, estás cheio de ideias felizes!”, murmurou Ryan Fechou os olhos. Acontecesse o que acontecesse, tudo estaria acabado dentro de segundos.

A pista estava escorregadia da chuva. Balouçava, um buraco preto rodeado de luzes. Aterrar num porta-aviões equivalia a um embate controlado. Eram precisos fortes apoios para o trem de aterragem e absorventes do choque, com vista a reduzir o impacte, ameaça certa para os ossos. O aparelho fez-se à pista e foi detido com um sacão pelo arame de paragem. Tinha pousado. Em segurança. Talvez. Passado um momento, o COD começou a rolar. Ryan ouviu ruídos estranhos, enquanto o avião estacionava, e compreendeu que os ruídos provinham das asas a dobrarem-se. O único perigo em que não pensara era o de voar num aparelho de asas articuladas. Ainda bem que não pensara. O avião parou finalmente e a escotilha traseira foi aberta.

Ryan desapertou o cinto e pôs-se rapidamente de pé, batendo com a cabeça no tecto baixo. Não esperou por Davenport Com o saco de lona chegado ao peito, saiu a correr pela parte de trás do aparelho. Olhou em redor e a sua atenção foi dirigida para a superestrutura do Kennedy, por um tripulante de camisa amarela. Chovia fortemente, e Ryan sentiu mais do que viu o porta-aviões a deslocar-se naqueles mares com vagas de cinco metros. Correu para uma escotilha aberta e iluminada a uns cinquenta metros de distância. Teve de esperar que Davenport o alcançasse. O almirante não corria. Caminhava com um passo rigoroso de meio metro, digno, como deve deslocar-se um oficial-general da Armada, e Ryan calculou que ele devia estar aborrecido pelo facto de a sua chegada semi-secreta impedir a cerimónia habitual dos apitos de formatura e do abrir de alas. via um marine no outro lado da escotilha, um cabo resplandecente, calças azuis às riscas, camisa de caqui e gravata, um coldre branco de neve à cinta. O marine fez a continência, dando-lhes as boas-vindas a bordo.

— Cabo, quero ver o almirante Painter.

— O almirante está na sala de oficiais, sir. Precisa de escolta? —Não, rapaz, já comandei este barco. Vamos, Jack.

Ryan baixou-se para pegar nos dois sacos.

— Meu Deus! O senhor viveu mesmo numa coisa destas? — perguntou Ryan.

— As aterragens de noite num porta-aviões, não é? Claro! Fiz centenas delas. Que espanto é esse?

Davenport parecia surpreendido perante o pasmo de Ryan. Jack calculou que ele estivesse a representar.

O interior do Kennedy era muito semelhante ao interior do USS Guam, o porta-helicópteros em que Ryan prestara serviço durante a sua breve carreira militar.

Era o habitual emaranhado de anteparas e tubos de aço, tudo pintado no mesmo tom cinzento-escuro. Os tubos tinham faixas coloridas e abreviaturas que provavelmente significavam algo para os homens que operavam o navio; para Ryan, podia muito bem tratar-se de pinturas rupestres. Davenport seguiu por um corredor, dobrou uma esquina, desceu uma escada de ferro tão íngreme que Ryan quase se desequilibrou, atravessou outro corredor e dobrou outra esquina. Por esta altura, já Ryan estava completamente perdido. Chegaram a uma porta guardada por um marine. O sargento fez uma continência impecável e abriu a porta.

Ryan seguiu Davenport e abriu a boca de espanto. Na sala de oficiais do USS Kennedy podia ver-se, transportada em bloco, uma mansão de Beacon Hill. À direita, um mural suficientemente grande Para dominar um espaçoso living. Seis quadros a óleo, um deles um retrato do presidente John Fitzgerald Kennedy, que dava o nome ao navio, decoravam as outras paredes, luxuosamente apaineladas. No chão, uma espessa carpeta de lã escarlate. O mobiliário nada tinha de militar; era francês rústico, de carvalho e brocado. Quase se podia imaginar que o ambiente não pertencia a um barco, não fora o tecto com a habitual colecção de tubos, todos pintados de cinzento e formando um contraste verdadeiramente insólito com o resto da sala.

— Viva, Charlie! — O contra-almirante Joshua Painter surgiu, vindo a sala contígua, limpando as mãos a uma toalha. — Que tal a viagem?

Um bocado turbulenta — concedeu Davenport, cumprimentando-o. —Este é Jack Ryan.

Ryan nunca falara com Painter, mas conhecia a sua reputação. Piloto de Phantom durante a guerra do Vietname, escrevera um livro, Paddystríkes, sobre a conduta nas campanhas aéreas, um livro verdadeiro, não daqueles com que se conquistam amigos. Era um homem baixo, exuberante, que não pesaria mais de sessenta e cinco quilos. Era também um táctico notável e um homem de integridade absoluta.

—Um dos teus, Charlie?

— Não, almirante, trabalho para James Greer. Não sou oficial da Marinha. Aceite, por favor, as minhas desculpas. Não gosto de fingir o que não sou. O uniforme foi ideia da CIA.

Painter franziu o sobrolho e respondeu:

—Sim? Bem, suponho que isso significa que me vai contar o que Ivan anda a fazer. Espero que alguém saiba, diabo! É a primeira vez que entra a bordo de um porta-aviões? Que tal o voo?

—Deve ser um excelente processo para interrogar prisioneiros de guerra — disse Ryan, o mais à vontade de que foi capaz.

Os dois oficiais soltaram uma boa gargalhada à custa dele e Painter mandou servir uma refeição.

As portas duplas que davam acesso ao corredor abriram-se minutos mais tarde e dois criados—”especialistas da administração da messe”—’entraram, um com uma bandeja de comida, os outros dois com cafeteiras. Os três homens foram servidos no estilo adequado às suas patentes. Ryan achou a comida, servida em pratos com orla de prata, simples, mas apetitosa; não comia há doze horas. Serviu-se de salada de couve e batata e de duas sanduíches de carne.

—Obrigado. Por agora, mais nada — disse Painter. — Vamos, então, ao trabalho.

Os criados perfilaram-se antes de sair. Ryan engoliu metade de uma sanduíche.

—Almirante, esta informação tem apenas vinte horas.

Tirou as pastas do saco e distribuiu-as. Falou vinte minutos, durante os quais conseguiu engolir as duas sanduíches e uma boa parte da salada, e entornar café sobre os apontamentos manuscritos. Os dois oficiais constituíam uma audiência perfeita. Não o interromperam uma só vez, limitando-se a fitá-lo com expressão incrédula.

— Deus nos valha! — disse Painter quando Ryan acabou. Davenport mostrava-se impassível ao contemplar a possibilidade

de examinar um submarino nuclear soviético por dentro. Jack concluiu que Davenport seria um parceiro temível ao póquer; nunca se traía. Painter prosseguiu:

— Acredita mesmo nisso tudo?

— Acredito, sir.

Ryan serviu-se de mais café. Teria preferido uma cerveja com as sanduíches. De qualquer modo, não fora mau, e uma boa carne enla tada era coisa que não podia encontrar em Londres. Painter recostou-se e olhou Davenport.

, Charlie, tens de dizer a Greer para ensinar umas coisas a este

rapaz... por exemplo, que um burocrata não deve meter tanto o nariz numa embrulhada como esta. Não achas que tudo isto é um pouco exagerado?

—Josh, Ryan foi quem informou, em Junho passado, sobre os esquemas de patrulha dos submarinos nucleares soviéticos.

— Sim? Um belo trabalho. Confirmou uma coisa que eu andava a dizer há dois ou três anos. — Painter levantou-se e aproximou-se de um canto da sala, para ver o mar tempestuoso. — Bom! Então que vamos nós fazer?

— Os pormenores exactos da operação não foram ainda decididos. Calculo que vais receber ordens para localizar o Outubro Vermelho e tentar estabelecer contacto com o comandante. Depois? Temos de descobrir uma maneira de o levar até lugar seguro. Sabes, o presidente pensa que não seremos capazes de o reter quando o apanharmos... se o apanharmos.

— Quê?

Painter rodou nos calcanhares e falou um décimo de segundo antes de Davenport. Ryan explicou o objectivo da operação durante vários minutos.

—Valha-me Deus! Dão-me uma tarefa impossível e, depois, dizem-me que se a levarmos a bom termo teremos de lhes devolver o maldito submarino!

— Almirante, a minha opinião — o presidente pediu-ma — foi a de que devíamos conservar o submarino. Os chefes de Estado-Maior estão do nosso lado também, juntamente com a CIA, se isso, de algum modo, o conforta. No entanto, se os tripulantes quiserem voltar Para casa, teremos de os entregar e, nessa altura, os soviéticos saberão que temos o barco. Compreendo a posição do presidente. O submarino vale uma fortuna e é deles. Por outro lado, como poderemos esconder Um submarino de trinta mil toneladas?

— Um submarino esconde-se afundando-se — disse Painter, irritado. — É o que eles tencionam fazer, como disse. É deles! Parece que estamos a falar de um navio de passageiros! Um submarino destina-se a matar pessoas — neste caso, as nossas!

— Almirante, estou do seu lado — disse Ryan, tranquilo. — Disse-lhe que lhe atribuíamos uma tarefa impossível, sir. Porquê?

—Ryan, detectar um submarino que não quer ser detectado não é a coisa mais fácil do mundo. Nós praticamos com os nossos. -Falhamos quase sempre e você acaba de dizer que este passou todas as linhas do SOSUS a nordeste. O Atlântico é um oceano bastante vasto e o ruído de um submarino nuclear é muito discreto.

— Compreendo, sir.

Ryan disse consigo que talvez estivesse a ser excessivamente optimista quanto às possibilidades de êxito.

— Em que forma estás tu, Josh?—> perguntou Davenport.

— Muito boa. O exercício que acabamos de fazer, o GOLFINHO ELEGANTE, resultou plenamente. Pela nossa parte — acrescentou Painter, corrigindo-se. — O Dállascomplicou bem as coisas, por outro lado. As minhas tripulações ASW estão a funcionar perfeitamente. Que tipo de ajuda esperam de nós?

— Quando deixei o Pentágono, o CNO estava a ver de quantos P-3 dispunha no Pacífico, portanto, provavelmente, vais ver mais alguns por aqui. Tudo o que mexe está a sair para o mar. Como o único porta-aviões de que podemos dispor é o teu, terás o comando táctico de toda a operação, certo? Vá lá, Josh, és o nosso melhor homem de ASW.

Painter serviu-se de café.

— É, só temos um porta-aviões. O America e o Nimitz não chegarão antes de uma semana. Ryan, você disse que vai daqui para o Invincible. Temo-lo connosco também, não é verdade

— O presidente está a fazer os possíveis. Interessa-lhe?

— Claro, o almirante White tem um bom nariz para ASW e os seus homens tiveram realmente sorte no GOLFINHO. Afundaram dois dos nossos submarinos, e Vince Gallery está danado com isso. A sorte é fundamental neste jogo. Teríamos assim dois porta-aviões em vez de um. Se pudéssemos arranjar mais alguns S-3...

Painter referia-se aos Lockheed Vikings aparelhos de luta anti-submarina que operavam a partir de porta-aviões.

— Porquê? — perguntou Davenport.

— Posso transferir os meus F-18 para terra, ficando, assim, com espaço para mais vinte Vikings. Não gosto de perder o poder de ataque, mas vamos precisar de mais potência ASW. Por outras palavras, mais 5-3. Jack, sabe que se estiver enganado a força de superfície russa vai-nos dar muito que fazer. Sabe quantos mísseis terra-terra têm eles?

— Não, sir.

Ryan estava convencido de que eram muitos, muitos.

— Somos um porta-aviões, o que nos torna um alvo principalSe começam a disparar, dar-nos-ão todas as honras. Seremos um alvo terrivelmente solitário... numa situação terrivelmente excitante—O telefone tocou. — Painter... Sim. Obrigado. O Invincible acaba de dar a volta. Emprestam-nos o porta-aviões com duas latas de conserva. O resto dos navios-escolta e os três submarinos seguem para casa. — Franziu o sobrolho. — Não os podemos censurar. Quer isto dizer

que temos nós de dar os navios-escolta. Mesmo assim, é bom. O Invincible faz-me falta.

.— Podemos mandar lá Jack, de helicóptero?

Ryan perguntou a si próprio se Davenport sabia o que o presidente lhe ordenara que fizesse. O almirante parecia interessado em vê-lo fora do Kennedy. Painter abanou a cabeça.

— Longe de mais para um helicóptero. Talvez eles possam mandar um Harrier buscá-lo.

—O Harrier é um caça, sir—’Observou Ryan.

—Eles têm uma versão experimental de dois lugares para as patrulhas ASW. Comporta-se razoavelmente, em princípio, fora do perímetro dos helicópteros. Foi assim que apanharam um dos nossos submarinos, à traição.

Painter acabou de beber o café e disse:

— Muito bem, meus senhores, vamos ao controle ASW ver se descobrimos maneira de executar este número. O CINCLANT vai querer saber a minha ideia. Acho melhor decidir sozinho. Falaremos também para o Invincible e pedir-lhe-emos que mandem um pássaro buscá-lo, Ryan.

Ryan saiu da sala com os dois almirantes. Passou duas horas a ver Painter deslocar barcos no oceano como um mestre de xadrez com as suas peças.

O USS “Dálias”

Bart Mancuso estivera no centro de ataque mais de vinte horas. Poucas horas de sono separavam esta tirada da anterior. Comera sanduíches, e bebera café e duas tigelas de sopa, trazidas pelos cozinheiros, para variar. Observou a última tigela de liofilizado, sem pena.

— Comandante?

Virou-se. Era Roger Thompson, o seu oficial de sonar.

— Que foi?

Mancuso afastou-se do quadro táctico que ocupava a sua atenção havia vários dias. Thompson encontrava-se ao fundo da sala, acompanhado de Jones, com um bloco e o que parecia ser uma fita de máquina.

— Sir, Jonesy tem uma coisa que eu gostava que o senhor visse. Mancuso não queria ser incomodado — o prolongamento das horas de serviço fazia-lhe sempre perder a paciência — mas Jones mostrava-se tão ansioso e excitado, que disse:

— Está bem, cheguem-se aqui à mesa dos mapas.

A mesa dos mapas do Dállasera uma novidade ligada ao BC-10 e Projectada num écran de vidro tipo TV, de 1,20 metros quadrados.

A imagem acompanhava a deslocação do Dálias. O dispositivo tornava os mapas de papel obsoletos, os quais, todavia, continuavam a ser actualizados. Os mapas não se avariam.

— Obrigado, comandante — disse Jones, mais humilde do que o costume. — Sei que está muito ocupado, mas penso que tenho aqui uma coisa interessante. Aquele contacto esquisito que fizemos outro dia continua a intrigar-me. Tive de o abandonar por causa da barulheira que os outros submarinos russos faziam, mas consegui retomá-lo três vezes para me certificar de que ainda lá estava. Da quarta vez, perdi-o; desapareceu. Quero mostrar-lhe o que deduzi. Pode chamar a nossa rota ao écran, a partir da altura em que fizemos o primeiro contacto, sir?

A mesa dos mapas estava ligada, através do BC-10, ao sistema de navegação por inércia do barco, Sim. Mancuso carregou numa tecla. Os computadores tomavam conta de tudo, já não se sabia fazer nada sem eles... A rota do Dállasapareceu no écran, uma linha vermelha convoluta, com marcas a intervalos de quinze minutos.

—Fantástico! — observou Jones. — Nunca tinha visto. Muito bem! — Jones tirou uma mão-cheia de lápis do bolso das calças.

—Ora, o primeiro contacto foi às 0915, mais ou menos, e as coordenadas eram aproximadamente dois-seis-nove. — Pousou um lápis, a borracha na posição do Dálias, a ponta na direcção oeste do alvo. — Depois, às 0930, as coordenadas eram dois-seis-zero. Às 0948, eram dois-cinco-zero. Há aqui um erro qualquer, comandante. O sinal era forte, mas os erros não serão mais que os acertos. Nesta altura, registou-se toda a outra actividade e eu tive de tomar conta dela, mas, por volta das 1000, tornei a apanhá-lo nas coordenadas dois-quatro-dois. — Jones pousou outro lápis, virado para leste, na rota que o Dállastomara ao abandonar a costa islandesa. — Às 1015, as coordenadas eram dois-três-quatro, e às 1030 dois-dois-sete. As duas últimas são pouco seguras, sir porque o sinal já era muito fraco e não consegui prendê-lo lá muito bem.

Jones olhou o comandante. Parecia nervoso.

— Até aqui tudo bem. Acalme-se, Jonesy. Fume um cigarro, se quiser.

— Obrigado, comandante.

Jones acendeu um cigarro com um isqueiro a gás. Nunca antes se aproximara do comandante com tanto à-vontade. Sabia que Mancuso era um chefe tolerante, simples — quando se tinha algo para lhe dizer. Não gostava de perder tempo e, naquele momento, era óbvio que não estava mesmo disposto a perdê-lo.

— Na altura, sir, pensámos que o submarino não podia estar muito longe de nós, não foi, sir? Tinha de estar entre nós e a Islândia’

Digamos que estava a meio caminho. Levaria, portanto, uma rota mais ou menos assim.

Jones pousou mais alguns lápis.

— Calma aí, Jones. A rota vem de onde?

— Ah, sim... — Jones abriu a pasta. — Ontem de manhã, ou à noite, sei lá, depois de sair de serviço, a coisa continuava a intrigar-me e servi-me da rota que tomámos a partir da Islândia como ponto de referência para lhe estabelecer uma rota. Sei como se faz, comandante. Vi o manual. É fácil. É como fazíamos no Cal Tech para registar o movimento das estrelas. Tirei um curso de astronomia no meu ano de caloiro.

Mancuso reteve um resmungo. Era a primeira vez que ouvia classificar de fácil aquele cálculo, mas, ao observar os números e as diagramas de Jones, ficou convencido de que estavam certos.

— Continue.

Jones tirou do bolso um calculador científico Hewlitt Packard e o que parecia um mapa geográfico nacional, abundantemente coberto de marcas e notas feitas a lápis.

— Quer verificar os meus números, sir?

—Mais tarde. Para já, confio em si. Que mapa é esse?

—’Comandante, sei que é contra os regulamentos e tudo, mas guardo isto como registo pessoal das notas que os safados usam. Nunca sai do barco, sir, palavra. Pode haver um ligeiro erro, sir, mas isto dá uma rota de dois-dois-zero e uma velocidade de dez nós, aproximadamente. O que o leva direitinho à entrada da Rota Um. Certo?

— Continue.

Mancuso já concluíra o mesmo; Jones devia ter descoberto mais qualquer coisa.

—Não consegui dormir. Voltei ao sonar e passei a gravação do contacto. Tive de a passar no computador várias vezes para a limpar—ruídos marítimos, outros submarinos — e, depois, regravei-a a uma velocidade dez vezes superior à normal. — Pousou o gravador de cassetes sobre a mesa dos mapas. — Ouça isto, comandante.

A gravação era roufenha, mas, de tantos em tantos segundos, puvia-se um trrum. Dois minutos de escuta permitiram apurar um intervalo regular de cerca de cinco segundos. O tenente Mannion olhava por cima do ombro de Thompson, ouvindo e acenando especulativamente.

Comandante, este ruído só pode ser de origem humana. É demaseado regular para poder ser outra coisa. À velocidade normal, não

Percebia bem, mas em gravação acelerada apanhei o ladrão.

—Está bem, Jones, acabe lá!—disse Mancuso.

— Comandante, o que acaba de ouvir é a assinatura acústica de um submarino russo. Dirigia-se para a Rota Um, seguindo a pista ao largo da costa islandesa, perto de terra. Pode apostar, comandante.

— Roger?

— Ele convenceu-me, comandante — respondeu Thompson. Mancuso estudou de novo a rota, tentando descortinar uma alternativa. Não havia.

—A mim também. Roger, Jones é técnico de sonar de primeira classe a partir de hoje. Quero a promoção para o próximo quarto, com um louvor para eu assinar. Bon — bateu no ombro do técnico de sonar — muito bem! Muitíssimo bem!

— Obrigado, comandante. Jones sorria de orelha a orelha.

—Pat, chame, por favor, o tenente Butler, aqui ao centro de ataque.

Mannion pegou no telefone para chamar o engenheiro-chefe.

— Faz ideia do que é, Jonesy? — perguntou Mancuso. O técnico de sonar abanou a cabeça.

— Não é som de hélice. Nunca ouvi nada parecido. Enrolou a fita e passou-a outra vez.

Passados dois minutos, o tenente Earl Butler entrou no centro de ataque.

—’Chamou, comandante?

— Ouça isto, Earl.

Mancuso passou a fita pela terceira vez. Butler era formado pela Universidade do Texas e por todas as escolas da Marinha dedicadas ao ensino de sistemas de propulsão para submarinos.

— Que é isto?

— Jones diz que é um submarino russo. Penso que tem razão —’Como foi que obteve a gravação? — perguntou Butler a Jones.

— Aumentei dez vezes a velocidade, sir, e limpei-a cinco vezes no BC-10. À velocidade normal não se ouve nada.

Com uma modéstia que não o caracterizava, Jones absteve-se de revelar que ele ouvira “qualquer coisa”.

—Um som harmónico, não é? Se fosse uma hélice, ouviríamos uma pá de cada vez e um som contínuo. O intervalo regular sugere um som harmónico. Butler franziu o sobrolho. — Mas que som?

— Fosse o que fosse, ia para aqui — disse Mancuso, batendo com o lápis nos Gémeos Thor.

— É um russo, não há dúvida — concordou Butler. — Descobrirão1 outra engenhoca qualquer. Mais uma vez.

— Mr. Butler tem razão — disse Jones. — É um ruído harmónico Outra coisa engraçada era o ruído de fundo. Parecia água a passar por um cano. Não sei, não está aqui. O computador deve tê-lo apagado. De qualquer modo, era muito traço para se trabalhar e não é a minha especialidade.

—. Muito bem. Já ganhou o dia. Como se sente? — perguntou Mancuso.

—’Um pouco cansado, comandante. Há já umas horas que não largo isto.

— Se ele se aproximar outra vez, acha que é capaz de o apanhar? — perguntou Mancuso, sabendo embora a resposta.

— Pode apostar, comandante! Agora que já sabemos do que andamos à procura, aposto em como apanho o ladrão!

Mancuso olhou a mesa dos mapas.

—’Está bem... Se ele ia para os Gémeos a vinte e oito ou trinta nós e, depois, rumou à base a uma velocidade de mais ou menos dez nós... deve andar por aqui. Longe... Se navegarmos à velocidade máxima, estaremos aqui dentro de quarenta e oito horas, na frente dele. Pat?

—’ Acho que sim — concordou o tenente Mannion. — Parte do princípio de que ele percorreu a rota à velocidade máxima e, depois, abrandou... Faz sentido. Não precisaria de navegar em silêncio neste maldito labirinto. Teve quatrocentas ou quinhentas milhas para correr à vontade. Porque não teria corrido? Era o que eu faria.

— Então é o que vamos fazer. Pediremos autorização via rádio para abandonar Toll Booth e perseguir esse tipo. Jonesy, a navegação à velocidade máxima significa que vocês, os homens do sonar, vão poder descansar. Prepare o simulador para gravação de contacto e meta nos ouvidos dos operadores o som deste tipo. Depois, repouse. Você e os outros. Quero-o em plena forma quando tentarmos apanhar novamente o sujeito. Tome um duche. Um duche à Hollywood — você merece—e deite-se. Quando dermos com este tipo, vai ser uma caçada difícil.

— Não se aflija, comandante. Apanhá-lo-emos, pode apostar. Quer ficar com a minha gravação?

— Quero. — Mancuso retirou a fita do gravador e fitou, surpreendido, Jones. — Você sacrificou um Bach por causa disto?

— Não era grande coisa, sir. Tenho uma interpretação desta peça, Por Christopher Hogwood, muito melhor.

Mancuso guardou a cassete no bolso.

— Pode ir, Jonesy. Belo trabalho. — Foi um prazer, comandante.

Jones saiu do centro de ataque a fazer contas ao que ia ganhar com a promoção.

Roger, veja que os seus homens descansem bem nos próximos dias. Quando dermos com o tipo, vai ser duro. Muito bem, comandante.

— Pat, subimos à altura do periscópio. Vamos chamar já Norfolk. Earl, quero que você ponha a cabeça a funcionar e me descubra que ruído é este.

— Está bem, comandante.

Enquanto Mancuso redigia a mensagem, o tenente Mannion colocou o Dállasà profundidade da antena do periscópio, com um ângulo ascendente nos hidroplanos de mergulho. Em cinco minutos, o submarino subiu de cento e cinquenta metros ao nível imediatamente anterior à superfície agitada do mar e, embora fosse bastante estável, comparado com barcos de superfície, a tripulação notou o balanço. Mannion levantou o periscópio e a antena ESM (medidas electrónicas de apoio) usada com o receptor de banda larga, destinado a detectar eventuais emissões de radar. Nada existia à vista — via a uma distância de cinco milhas — e os instrumentos ESM nada acusavam, excepto sinais de aviões, longe de mais para interessarem. A seguir, Mannion subiu dois mastros. Um era uma antena receptora flexível de UHF (frequência ultra-alta); o outro era um novo transmissor laser rotativo que procurava o sinal do Atlantic SSIX, o satélite de comunicações para uso exclusivo de submarinos. Com o laser, podiam fazer transmissões de alta densidade sem revelarem a posição do submarino.

—Tudo pronto, sir — disse o radiotelegrafista de serviço.

— Transmita.

O radiotelegrafista carregou num botão. A mensagem, enviada numa fracção de segundo, foi recebida por células fotovoltaicas, passada a um transmissor UHF e conduzida por uma antena parabólica de disco ao Centro de Comunicações da Esquadra do Atlântico. Em Norfolk, outro rediotelegrafista registou a mensagem e carregou num botão que transmitiu a mesma mensagem ao satélite e, de novo, ao Dálias. Era um processo simples de identificar falsificações.

O operador do Dállascomparou a mensagem recebida com a que enviara.

— Confere, sir.

Mancuso ordenou a Mannion que baixasse tudo menos as antenas ESM e UHF.

Centro de Comunicações da Esquadra do Atlântico

Em Norfolk, a primeira linha da mensagem revelou a página Q a linha da sequência do bloco cifrado, gravado em memória de computador na secção de segurança máxima do centro de comunicaçõesUm oficial introduziu os números adequados no seu terminal e, um instante passado, a máquina produziu um texto descodificado. O oficial certificou-se, mais uma vez, de que a mensagem era autêntica e dirigiu-se com o texto ao outro extremo da sala, onde uma ordenança se sentava a um telex. O oficial entregou-lhe a mensagem.

A ordenança chamou o posto desejado e transmitiu a mensagem por via terrestre directa ao Centro de Operações do COMSUBLANT, a um quilómetro de distância. A linha era de fibra óptica, protegida por uma conduta de aço enterrada numa rua. Verificavam-na três vezes por semana, por questões de segurança. Nem mesmo os segredos da tecnologia das armas nucleares eram tão bem guardados como as comunicações tácticas diárias.

Centro de Operações do COMSUBLANT

A campainha calou-se na sala de operações, quando a mensagem saiu do printer de urgência. Tinha o prefixo Z, que indicava prioridade FLASH.

 

Z0904114ZDEZ

ULTRA-SECRETO THEO

DE: USS DALLAS

PARA: COMSUBLANT

INFO: ESQCINCLANT

//NOOOOO//

OPSSUB ESQUADRA VERMELHA

  1. CONTACTO SONAR ANÓMALO CERCA DAS 0900Z 7DEZ PERDIDO APÓS AUMENTO DA ACTIVIDADE SUBMARINA DA ESQUADRA VERMELHA. CONTACTO SUBSEQUENTE IDENTIFICADO COMO SSN/SSBN DA ESQUADRA VERMELHA TRANSITANDO NA PISTA DA ISLÂNDIA EM DIRECÇÃO à ROTA UM. ROTA SUDOESTE VELOCIDADE DEZ PROFUNDIDADE DESCONHECIDA.
  2. O CONTACTO EVIDENCIOU INVULGARES REPITO INVULGARES CARACTERÍSTICAS ACÚSTICAS. ASSINATURA DIFERENTE DE QUALQUER OUTRA CONHECIDA DOS SUBMARINOS DA ESQUADRA VERMELHA.
  3. PEÇO AUTORIZAÇÃO PARA DEIXAR TOLL BOOTH E PERSEGUIR E INVESTIGAR. PENSO QUE UM NOVO SISTEMA DE PROPULSÃO COM INVULGARES CARACTERÍSTICAS SONORAS É USADO POR ESTE SUBMARINO. PENSO QUE HÁ BOAS PROBABILIDADES DE O LOCALIZAR E IDENTIFICAR.

 

Um segundo-tenente levou a mensagem ao gabinete do vice-almirante Vincent Gallery. O COMSUBLANT estava de serviço desde que os submarinos soviéticos haviam começado a movimentar-se, e bastante mal-disposto.

—Uma prioridade FLASH do Dállas, sir.

Hum. —’ Gallery pegou no papel amarelo e leu-o duas vezes. — acha que isto quer dizer?

—’Não sei, sir. Parece que ele ouviu qualquer coisa, especulou calmamente sobre o que seria e quer fazer outra tentativa. Aparentemente, está convencido de que apanhou algo de invulgar.

— Muito bem. Que lhe respondo? Vá lá, senhor. Um dia você pode chegar a almirante e ter de tomar decisões.

Perspectiva improvável, pensava Gallery.

— Sir, o Dállas está em posição ideal para cobrir a força de superfície russa quando ela chegar à Islândia. Precisamos dele onde está.

— Bela resposta de manual. — Gallery sorriu para o jovem, preparando-se para o desiludir. — Por outro lado, o Dállas é comandado por um homem bastante competente, que não nos incomodaria se não pensasse que descobrira algo importante. Não entra em pormenores, provavelmente porque isso seria complicado de mais para uma mensagem táctica FLASH e também porque pensa que nós sabemos que ele é suficientemente seguro para acreditarmos na sua palavra. “Novo sistema de propulsão com invulgares características sonoras”. Pode não ter interesse nenhum, mas ele é que está lá e quer uma resposta. Vamos dizer-lhe que sim.

— Muito bem, sir — respondeu o tenente, perguntando a si próprio se o velho magrizela não tomaria decisões atirando a moeda ao ar quando estava de costas.

 

O “Dállas”

Z090432Z DEZ

ULTRA-SECRETO

DE: COMSUBLANT

PARA: USS DALLAS

  1. USS DALLAS Z090414ZDEZ

B: COMSUBLANT INST 2000.5

ÁREAOP //N04220//

  1. AUTORIZAÇÃO REF A CONCEDIDA.
  2. ÁREAS BRAVO ECO GOLFE REF B PARA OPS SEM RESTRIÇÕES 0905000Z A 140001 Z. COMUNIQUE SE NECESSÁRIO. VícEnt GALLERY.

 

— Assim é que é! — observou Mancuso, rindo.

Era uma das coisas boas que Gallery tinha. Quando se lhe fazia uma pergunta, obtinha-se uma resposta, lá isso, sim ou não, antes que se tivesse tempo para recolher a antena. Claro que se Jones estivesse enganado e a perseguição em vista se demonstrasse sem objecto, teria de lhe dar explicações. Não seria o primeiro comandante de submarino que Gallery punha a tomar banhos de sol na praia.

Era esse, aliás, o seu destino, acontecesse o que acontecesse, Mancuso sabia-o. Desde o seu primeiro ano em Annapolis, não sonhara outra coisa, salvo comandar um submarino. Tinha-o agora e não ignorava que o resto da sua carreira se processaria na descendente. Tal como outras especialidades da Marinha, o primeiro comando era exactamente isso, um primeiro comando. Podia subir-se a escada e acabar no comando de uma esquadra, com sorte e categoria. Nos submarinos, não. Comandasse bem ou mal, o Dállas perdê-lo-ia em breve. Não teria outra oportunidade. E depois? O melhor que podia esperar era o comando de um barco equipado com mísseis. Servira num antes e tinha a certeza de que comandar um, mesmo um novo Ohio, era tão excitante como olhar para uma porta trancada. A missão de um submarino era permanecer escondido. Mancuso queria ser o caçador, disso provinha a excitação do comando. E depois de comandar um barco equipado com mísseis? Talvez um “comando importante de superfície”, um belo petroleiro — e morreria de pasmo. Ou dar-lhe-iam o comando de um esquadrão e sentá-lo-iam num gabinete flutuante — oh, que estimulante missão! Na melhor das hipóteses, iria para o mar uma vez por mês, com o principal objectivo de irritar comandantes de submarino que não o quereriam lá. Ou poderia arranjar uma secretária no Pentágono—que engraçado! Mancuso compreendia por que motivo alguns astronautas se haviam ido abaixo depois de regressarem da Lua. Também ele lutara muitos anos pelo seu comando e dentro de um ano perderia o seu submarino; teria de entregar o Dállas a outro. Mas, por enquanto, o Dállasera seu.

— Pat, vamos baixar todos os mastros e descer a trezentos e sessenta metros.

— Muito bem, sir. Baixar os mastros — ordenou Mannion. Um subalterno accionou as alavancas de controle hidráulico.

— Mastros ESM e UHF baixados, sir — respondeu o electricista de serviço.

— Muito bem. Oficial de mergulho, trezentos e sessenta metros de profundidade.

— Trezentos e sessenta metros — repetiu o oficial de mergulho. — Ângulo descendente de quinze graus nos hidroplanos.

— Quinze graus descendentes.

— Vamos embora, Pat.

— Muito bem, comandante. Em frente a toda a velocidade.

O timoneiro ligou o anunciador. Mancuso observou a sua tripulação em actividade. Trabalhavam com precisão mecânica, mas não eram máquinas. Eram homens. Os seus.

Na zona do reactor, à popa, o tenente Butler confirmou a recepção da ordem pelos seus homens e deu as instruções necessárias. As bombas de arrefecimento do reactor começaram a trabalhar mais rapidamente. Uma maior quantidade de água quente sob pressão entrou no transformador onde o calor passava a vapor na serpentina exterior.

Quando o refrigerante tornava ao reactor, estava mais frio e, portanto, mais denso. Mais denso, retinha mais neutrões na pilha do reactor! aumentando a violência da fissão e libertando mais energia. No extremo da popa, o vapor saturado na serpentina “exterior”, ou não radiactiva, do sistema de transformação de calor emergia através de cachos de válvulas de controle para accionar as pás da turbina de alta pressão. A enorme hélice de bronze do Dállascomeçou a rodar mais depressa, conduzindo o submarino em frente e para baixo.

Os maquinistas executavam as suas tarefas sem pressa. O barulho na zona das máquinas cresceu apreciavelmente, à medida que os sistemas forneciam mais energia. Os técnicos vigiavam continuamente os painéis de instrumentos sob as suas mãos. A rotina era discreta e exacta. Não havia conversas alheias ao trabalho, nenhuma distracção Comparado com a zona do reactor de um submarino, a sala de operações de um hospital era um covil de libertinos.

À proa, Mannion viu o indicador de profundidade marcar cento e oitenta metros. O oficial de mergulho esperaria que atingissem os duzentos e setenta antes de começar a estabilização, para que o submarino alcançasse exactamente a profundidade ordenada. O comandante Mancuso queria o Dallas abaixo da termoclina, a fronteira entre diferentes temperaturas. A água concentra-se em camadas isotérmicas de estratificação uniforme. A zona relativamente tranquila onde a água superficial mais quente encontrava a água profunda mais fria era uma barreira semipermeável que tendia a reflectir as ondas sonoras. As ondas que conseguiam penetrar a termoclina eram, na maioria, retidas abaixo dela. Assim, embora o Dállasnavegasse abaixo da termoclina a mais de trinta nós e fazendo o máximo de barulho, seria difícil de detectar com o sonar de superfície. Navegava também, podia dizer-se, às cegas, mas, dada a profundidade, não corria grande risco de embate.

Mancuso pegou no microfone do sistema Para comunicação interna).

—Fala o comandante. Acabamos de iniciar um percurso rápido que durará quarenta e oito horas. Dirigimo-nos a um ponto onde esperamos localizar um submarino russo que passou por nós há dois dias. Esse submarino utiliza, sem dúvida nenhuma, um novo sistema de propulsão muito silencioso que ninguém conhece ainda. Vamos tentar ultrapassá-lo e segui-lo quando tornar a passar por nós. Agora sabemos o que procuramos e certamente ficaremos a saber do que se trata. Quero que toda a gente descance bem. Quando lá chegarmos, a caçada vai ser demorada e difícil. Quero toda a gente em plena forma. Vai ser uma caçada interessante.

Desligou o microfone e perguntou:

— Qual é o filme esta noite?

O oficial de mergulho viu o indicador de profundidade parar antes de responder. Era também o responsável pelo sistema de TV por bo do Dálias, três video-gravadores na messe, ligados a televisores na sala de oficiais e em várias outras acomodações da tripulação. —Pode escolher, comandante. O Regresso de Jedi ou dois jogos de râguebi: Oklahoma-Nebraska e Miami-Dallas. Foram disputados enquanto andávamos em manobras, sir. É como se fossem ao vivo.

— Com anúncios e tudo. Os cozinheiros já estão a fazer pipocas.

— óptimo. Quero toda a gente descontraída e satisfeita. Porque seria que nunca tinham gravações da Marinha? Claro, o Exército açambarcava as melhores naquele ano...

— Bom dia, comandante — cumprimentou o imediato, Wally Chambers, entrando no centro de ataque. — Então?

— Vamos à sala de oficiais, Wally. Quero que ouça uma coisa. Mancuso tirou a cassete do bolso da camisa e dirigiu-se, com Chambers, à popa.

 

O “V. K. K. Konovalov” “V. K. K. Konovalov”

B: COMSUBLANT INST 2000.5

ÁREAOP //N04220//

  1. AUTORIZAÇÃO REF A CONCEDIDA.
  2. ÁREAS BRAVO ECO GOLFE REF B PARA OPS SEM RESTRIÇÕES 0905000Z A 140001 Z. COMUNIQUE SE NECESSÁRIO. VícEnt GALLERY.

 

— Assim é que é! — observou Mancuso, rindo.

Era uma das coisas boas que Gallery tinha. Quando se lhe fazia uma pergunta, obtinha-se uma resposta, lá isso, sim ou não, antes que se tivesse tempo para recolher a antena. Claro que se Jones estivesse enganado e a perseguição em vista se demonstrasse sem objecto, teria de lhe dar explicações. Não seria o primeiro comandante de submarino que Gallery punha a tomar banhos de sol na praia.

Era esse, aliás, o seu destino, acontecesse o que acontecesse, Mancuso sabia-o. Desde o seu primeiro ano em Annapolis, não sonhara outra coisa, salvo comandar um submarino. Tinha-o agora e não ignorava que o resto da sua carreira se processaria na descendente. Tal como outras especialidades da Marinha, o primeiro comando era exactamente isso, um primeiro comando. Podia subir-se a escada e acabar no comando de uma esquadra, com sorte e categoria. Nos submarinos, não. Comandasse bem ou mal, o Dállas perdê-lo-ia em breve. Não teria outra oportunidade. E depois? O melhor que podia esperar era o comando de um barco equipado com mísseis. Servira num antes e tinha a certeza de que comandar um, mesmo um novo Ohio, era tão excitante como olhar para uma porta trancada. A missão de um submarino era permanecer escondido. Mancuso queria ser o caçador, disso provinha a excitação do comando. E depois de comandar um barco equipado com mísseis? Talvez um “comando importante de superfície”, um belo petroleiro — e morreria de pasmo. Ou dar-lhe-iam o comando de um esquadrão e sentá-lo-iam num gabinete flutuante — oh, que estimulante missão! Na melhor das hipóteses, iria para o mar uma vez por mês, com o principal objectivo de irritar comandantes de submarino que não o quereriam lá. Ou poderia arranjar uma secretária no Pentágono—que engraçado! Mancuso compreendia por que motivo alguns astronautas se haviam ido abaixo depois de regressarem da Lua. Também ele lutara muitos anos pelo seu comando e dentro de um ano perderia o seu submarino; teria de entregar o Dállas a outro. Mas, por enquanto, o Dállasera seu.

— Pat, vamos baixar todos os mastros e descer a trezentos e sessenta metros.

— Muito bem, sir. Baixar os mastros — ordenou Mannion. Um subalterno accionou as alavancas de controle hidráulico.

— Mastros ESM e UHF baixados, sir — respondeu o electricista de serviço.

— Muito bem. Oficial de mergulho, trezentos e sessenta metros de profundidade.

— Trezentos e sessenta metros — repetiu o oficial de mergulho. — Ângulo descendente de quinze graus nos hidroplanos.

— Quinze graus descendentes.

— Vamos embora, Pat.

— Muito bem, comandante. Em frente a toda a velocidade.

O timoneiro ligou o anunciador. Mancuso observou a sua tripulação em actividade. Trabalhavam com precisão mecânica, mas não eram máquinas. Eram homens. Os seus.

Na zona do reactor, à popa, o tenente Butler confirmou a recepção da ordem pelos seus homens e deu as instruções necessárias. As bombas de arrefecimento do reactor começaram a trabalhar mais rapidamente. Uma maior quantidade de água quente sob pressão entrou no transformador onde o calor passava a vapor na serpentina exterior.

Quando o refrigerante tornava ao reactor, estava mais frio e, portanto, mais denso. Mais denso, retinha mais neutrões na pilha do reactor! aumentando a violência da fissão e libertando mais energia. No extremo da popa, o vapor saturado na serpentina “exterior”, ou não radiactiva, do sistema de transformação de calor emergia através de cachos de válvulas de controle para accionar as pás da turbina de alta pressão. A enorme hélice de bronze do Dállascomeçou a rodar mais depressa, conduzindo o submarino em frente e para baixo.

Os maquinistas executavam as suas tarefas sem pressa. O barulho na zona das máquinas cresceu apreciavelmente, à medida que os sistemas forneciam mais energia. Os técnicos vigiavam continuamente os painéis de instrumentos sob as suas mãos. A rotina era discreta e exacta. Não havia conversas alheias ao trabalho, nenhuma distracção Comparado com a zona do reactor de um submarino, a sala de operações de um hospital era um covil de libertinos.

À proa, Mannion viu o indicador de profundidade marcar cento e oitenta metros. O oficial de mergulho esperaria que atingissem os duzentos e setenta antes de começar a estabilização, para que o submarino alcançasse exactamente a profundidade ordenada. O comandante Mancuso queria o Dallas abaixo da termoclina, a fronteira entre diferentes temperaturas. A água concentra-se em camadas isotérmicas de estratificação uniforme. A zona relativamente tranquila onde a água superficial mais quente encontrava a água profunda mais fria era uma barreira semipermeável que tendia a reflectir as ondas sonoras. As ondas que conseguiam penetrar a termoclina eram, na maioria, retidas abaixo dela. Assim, embora o Dállasnavegasse abaixo da termoclina a mais de trinta nós e fazendo o máximo de barulho, seria difícil de detectar com o sonar de superfície. Navegava também, podia dizer-se, às cegas, mas, dada a profundidade, não corria grande risco de embate.

Mancuso pegou no microfone do sistema Para comunicação interna).

—Fala o comandante. Acabamos de iniciar um percurso rápido que durará quarenta e oito horas. Dirigimo-nos a um ponto onde esperamos localizar um submarino russo que passou por nós há dois dias. Esse submarino utiliza, sem dúvida nenhuma, um novo sistema de propulsão muito silencioso que ninguém conhece ainda. Vamos tentar ultrapassá-lo e segui-lo quando tornar a passar por nós. Agora sabemos o que procuramos e certamente ficaremos a saber do que se trata. Quero que toda a gente descance bem. Quando lá chegarmos, a caçada vai ser demorada e difícil. Quero toda a gente em plena forma. Vai ser uma caçada interessante.

Desligou o microfone e perguntou:

— Qual é o filme esta noite?

O oficial de mergulho viu o indicador de profundidade parar antes de responder. Era também o responsável pelo sistema de TV por bo do Dálias, três video-gravadores na messe, ligados a televisores na sala de oficiais e em várias outras acomodações da tripulação. —Pode escolher, comandante. O Regresso de Jedi ou dois jogos de râguebi: Oklahoma-Nebraska e Miami-Dallas. Foram disputados enquanto andávamos em manobras, sir. É como se fossem ao vivo.

— Com anúncios e tudo. Os cozinheiros já estão a fazer pipocas.

— óptimo. Quero toda a gente descontraída e satisfeita. Porque seria que nunca tinham gravações da Marinha? Claro, o Exército açambarcava as melhores naquele ano...

— Bom dia, comandante — cumprimentou o imediato, Wally Chambers, entrando no centro de ataque. — Então?

— Vamos à sala de oficiais, Wally. Quero que ouça uma coisa. Mancuso tirou a cassete do bolso da camisa e dirigiu-se, com Chambers, à popa.

O “V. K. K. Konovalov”te do Dállas, no mar da Noruega, o Konovalov corria para sudoeste a quarenta e um nós. O comandante Tupolev sentava-se sozinho na sala de oficiais, a reler a mensagem que recebera dois dias antes. As suas emoções alternavam entre a raiva e a mágoa. O Professor fizera aquilo! A estupefacção emudecia-o. Mas que fazer? As ordens de Tupolev eram explícitas, tanto mais que fora, como salientara o seu zampolit, aluno do traidor Ramius. Também ele se poderia ver numa situação muito difícil se a fuga resultasse.

Marko pregara uma partida a toda a gente, não apenas ao Konovalov. Tupolev a circular no mar de Barents, feito parvo, e Marko a navegar na outra direcção! A rir-se de todos, tinha Tupolev a certeza. Que traição, que ameaça diabólica contra a Rodina! Era inconcebível — e, no entanto, perfeitamente concebível. Marko desfrutava de todos os privilégios. Um apartamento de quatro divisões, uma dacha, o seu Zhiguli. Tupolev ainda não possuía automóvel. Como lutara por um Sando! E, agora, tudo ameaçado por... aquilo! Muita sorte teria se não perdesse o que tinha conquistado.

“Tenho de matar um amigo”, pensou. Amigo? Sim, Marko fora Uln bom amigo e um óptimo professor. Que mal lhe acontecera?

Natalia Bogdanova.

Sim, fora ela. Uma vergonha, o modo como tudo acontecera, quantas vezes jantara com eles, quantas vezes Natalia gracejara acerca dos seus belos filhos, fortes e saudáveis? Abanou a cabeça. Uma bela mulher morta por um raio de um cirurgião incompetente. Nada se pudera fazer — ele era filho de um membro do Comité Central... Uma vergonha acontecerem ainda coisas assim, após três gerações de construtores do socialismo. Nada, contudo, podia justificar aquela loucura. Tupolev debruçou-se sobre o mapa. Estaria no seu posto dali a cinco dias, mais cedo se os motores aguentassem, e Marko não levava grande pressa—nem levaria. Marko era uma raposa, não um touro. Os outros Alfas chegariam primeiro que o seu, mas isso não interessava. Tinha de ser ele a derrotá-lo. Adiantar-se-ia a Marko e esperaria, Marko tentaria escapulir-se e o Konovalov estaria à sua espera. O Outubro Vermelho estava condenado.

O Atlântico Noite

O Harrier FRS. 4 britânico apareceu um minuto mais cedo. Pairou brevemente ao aproximar-se, por estibordo, do Kennedy, quando o piloto avaliou o vento e as condições do mar, e apontou à pista. Mantendo uma velocidade de trinta nós para compensar a do porta-aviões, o piloto inclinou o caça para a direita, com perícia, e fê-lo aterrar suavemente a meio do barco, um pouco à frente da ponte do Kennedy, mesmo ao centro da pista. Logo um grupo de tripulantes correu para o avião, três deles com pesados calços metálicos, outro com uma escada também metálica que prendeu à carlinga, cuja cobertura se abria já. Uma equipa de quatro arrastou uma mangueira de abastecimento de combustível até ao aparelho, ansiosa por demonstrar a rapidez com que a Marinha dos EUA assistia aviões. O piloto vestia um fato cor de laranja e usava um colete salva-vidas amarelo. Pousou o capacete nas costas do banco da frente e desceu a escada. Certificou-se de que o seu caça estava em mãos capazes, antes de correr para a ponte. Encontrou Ryan na escotilha.

— Chama-se Ryan? Eu sou Tony Parker. Onde é a retrete? Jack indicou-lhe o caminho e o piloto afastou-se, sempre a correr.

Ryan ficou sozinho, o fato de voo vestido, o saco na mão, e sentiu-se estúpido. Da sua outra mão pendia um capacete de plástico branco. Apreciou os tripulantes a reabastecer o Harrier. Saberiam o que estavam a fazer?

Parker reapareceu passados três minutos.

— Comandante — disse —, há uma coisa que nunca põem num caça: um raio de uma retrete!... Enchem-nos de café e de chá, mandam-nos para o ar sem retrete!

— Estou a ver... Falta mais alguma coisa?

— Não, sir. O seu almirante falou comigo pela rádio. Parece que os seus amigos acabaram de reabastecer o meu pássaro. Vamos?

— Vamos. Que faço com isto?

Ryan ergueu o saco, que julgava ter de levar no regaço. Os documentos iam no fato de voo, bem junto ao seu peito.

— Vai na mala, claro. Vamos, sir.

Parker dirigiu-se com desenvoltura para o avião. Amanhecia timidamente. Havia nuvens espessas a quinhentos ou seiscentos metros. Não chovia, mas ameaçava chuva. O mar, com vagas de três metros, era uma superfície cinzenta enrugada, aqui e ali tinta de espuma. Ryan sentia o Kennedy a deslocar-se, surpreendido por uma coisa tão descomunal poder mexer-se. Quando chegaram ao Harrier, Parker pegou no saco e procurou um manipulo escondido sob o caça. Rodou-o, puxou-o e revelou um espaço do tamanho de um pequeno frigorífico. Parker guardou nele o saco, fechou a porta e certificou-se de que o manipulo a fixara firmemente. Um tripulante de camisa amarela conferenciou com o piloto. À popa, um helicóptero fazia girar as suas pás, e um caça Torneai aproximava-se de uma catapulta a meio do barco. Soprava um vento de trinta nós. O porta-aviões era um sítio barulhento.

Parker fez sinal a Ryan para que subisse a escada. Jack, que gostava tanto de escadas como de voar, quase caiu no assento. Sentou-se com dificuldade, enquanto um tripulante o ligava ao sistema de segurança em quatro pontos. O homem pôs o capacete na cabeça de Ryan e apontou a tomada do sistema de intercomunicação. Os americanos pareciam, afinal, perceber qualquer coisa acerca de Harríers... Junto à tomada havia um interruptor. Ryan ligou-o.

— Ouve-me, Parker?

—Ouço, comandante. Tudo pronto?

— Acho que sim.

— Óptimo. — Parker virou a cabeça para verificar a admissão do motor. — Ligar o motor.

A capota da carlinga permanecia levantada. Três tripulantes, munidos de grandes extintores de dióxido de carbono, mantinham-se perto, presumivelmente para o caso de o motor explodir. Cerca de uma dezena de outros observava, de junto da ponte, o estranho aparelho. O motor Pegasus despertou. A capota foi baixada.

— Pronto, comandante? —Eu, por mim...

O Harrier não era um caça espaçoso, mas era certamente o mais barulhento. Ryan sentiu o ruído do motor sacudir-lhe o corpo todo, enquanto Parker ajustava os controles de admissão. O aparelho balançou, mergulhou o nariz, depois ergueu-se, trémulo, no ar. Ryan viu Um homem junto da ponte apontar para eles e acenar-lhes. O Harrier guinou para bombordo, afastando-se do porta-aviões à medida que ganhava altura.

— Não foi mau — disse Parker.

Ajustados os controles, o Harríer começou verdadeiramente a voar a direito. Pouco se sentia a aceleração, mas Ryan via o Kennedy ficar rapidamente para trás. Segundos mais tarde, encontravam-se para lá do anel dos navios-escolta.

— Vamos lá para cima desta porcaria — disse Parker.

Puxou a alavanca e rumou às nuvens. Segundos passados, as nuvens envolveram-nos e o campo de visão de Ryan passou de oito quilómetros para dois metros, num instante.

Jack olhou em redor da carlinga, que tinha controles e instrumentos de voo. Voavam a cento e cinquenta nós, e subiam. Altitude, cento e vinte metros. O Harríer fora, via-se bem, um aparelho de instrução, mas o painel fora modificado para incluir os instrumentos de leitura e do Dállas, no mar da Noruega, o Konovalov corria para sudoeste a quarenta e um nós. O comandante Tupolev sentava-se sozinho na sala de oficiais, a reler a mensagem que recebera dois dias antes. As suas emoções alternavam entre a raiva e a mágoa. O Professor fizera aquilo! A estupefacção emudecia-o. Mas que fazer? As ordens de Tupolev eram explícitas, tanto mais que fora, como salientara o seu zampolit, aluno do traidor Ramius. Também ele se poderia ver numa situação muito difícil se a fuga resultasse.

Marko pregara uma partida a toda a gente, não apenas ao Konovalov. Tupolev a circular no mar de Barents, feito parvo, e Marko a navegar na outra direcção! A rir-se de todos, tinha Tupolev a certeza. Que traição, que ameaça diabólica contra a Rodina! Era inconcebível —•e, no entanto, perfeitamente concebível. Marko desfrutava de todos os privilégios. Um apartamento de quatro divisões, uma dacha, o seu Zhiguli. Tupolev ainda não possuía automóvel. Como lutara por um Sando! E, agora, tudo ameaçado por... aquilo! Muita sorte teria se não perdesse o que tinha conquistado.

“Tenho de matar um amigo”, pensou. Amigo? Sim, Marko fora Uln bom amigo e um óptimo professor. Que mal lhe acontecera?

Natalia Bogdanova.

Sim, fora ela. Uma vergonha, o modo como tudo acontecera, quantas vezes jantara com eles, quantas vezes Natalia gracejara acerca dos seus belos filhos, fortes e saudáveis? Abanou a cabeça. Uma bela mulher morta por um raio de um cirurgião incompetente. Nada se pudera fazer — ele era filho de um membro do Comité Central... Uma vergonha acontecerem ainda coisas assim, após três gerações de construtores do socialismo. Nada, contudo, podia justificar aquela loucura. Tupolev debruçou-se sobre o mapa. Estaria no seu posto dali a cinco dias, mais cedo se os motores aguentassem, e Marko não levava grande pressa—nem levaria. Marko era uma raposa, não um touro. Os outros Alfas chegariam primeiro que o seu, mas isso não interessava. Tinha de ser ele a derrotá-lo. Adiantar-se-ia a Marko e esperaria, Marko tentaria escapulir-se e o Konovalov estaria à sua espera. O Outubro Vermelho estava condenado.

O Atlântico Noite

O Harrier FRS. 4 britânico apareceu um minuto mais cedo. Pairou brevemente ao aproximar-se, por estibordo, do Kennedy, quando o piloto avaliou o vento e as condições do mar, e apontou à pista. Mantendo uma velocidade de trinta nós para compensar a do porta-aviões, o piloto inclinou o caça para a direita, com perícia, e fê-lo aterrar suavemente a meio do barco, um pouco à frente da ponte do Kennedy, mesmo ao centro da pista. Logo um grupo de tripulantes correu para o avião, três deles com pesados calços metálicos, outro com uma escada também metálica que prendeu à carlinga, cuja cobertura se abria já. Uma equipa de quatro arrastou uma mangueira de abastecimento de combustível até ao aparelho, ansiosa por demonstrar a rapidez com que a Marinha dos EUA assistia aviões. O piloto vestia um fato cor de laranja e usava um colete salva-vidas amarelo. Pousou o capacete nas costas do banco da frente e desceu a escada. Certificou-se de que o seu caça estava em mãos capazes, antes de correr para a ponte. Encontrou Ryan na escotilha.

— Chama-se Ryan? Eu sou Tony Parker. Onde é a retrete? Jack indicou-lhe o caminho e o piloto afastou-se, sempre a correr.

Ryan ficou sozinho, o fato de voo vestido, o saco na mão, e sentiu-se estúpido. Da sua outra mão pendia um capacete de plástico branco. Apreciou os tripulantes a reabastecer o Harrier. Saberiam o que estavam a fazer?

Parker reapareceu passados três minutos.

— Comandante — disse —, há uma coisa que nunca põem num caça: um raio de uma retrete!... Enchem-nos de café e de chá, mandam-nos para o ar sem retrete!

— Estou a ver... Falta mais alguma coisa?

— Não, sir. O seu almirante falou comigo pela rádio. Parece que os seus amigos acabaram de reabastecer o meu pássaro. Vamos?

— Vamos. Que faço com isto?

Ryan ergueu o saco, que julgava ter de levar no regaço. Os documentos iam no fato de voo, bem junto ao seu peito.

— Vai na mala, claro. Vamos, sir.

Parker dirigiu-se com desenvoltura para o avião. Amanhecia timidamente. Havia nuvens espessas a quinhentos ou seiscentos metros. Não chovia, mas ameaçava chuva. O mar, com vagas de três metros, era uma superfície cinzenta enrugada, aqui e ali tinta de espuma. Ryan sentia o Kennedy a deslocar-se, surpreendido por uma coisa tão descomunal poder mexer-se. Quando chegaram ao Harrier, Parker pegou no saco e procurou um manipulo escondido sob o caça. Rodou-o, puxou-o e revelou um espaço do tamanho de um pequeno frigorífico. Parker guardou nele o saco, fechou a porta e certificou-se de que o manipulo a fixara firmemente. Um tripulante de camisa amarela conferenciou com o piloto. À popa, um helicóptero fazia girar as suas pás, e um caça Torneai aproximava-se de uma catapulta a meio do barco. Soprava um vento de trinta nós. O porta-aviões era um sítio barulhento.

Parker fez sinal a Ryan para que subisse a escada. Jack, que gostava tanto de escadas como de voar, quase caiu no assento. Sentou-se com dificuldade, enquanto um tripulante o ligava ao sistema de segurança em quatro pontos. O homem pôs o capacete na cabeça de Ryan e apontou a tomada do sistema de intercomunicação. Os americanos pareciam, afinal, perceber qualquer coisa acerca de Harríers... Junto à tomada havia um interruptor. Ryan ligou-o.

— Ouve-me, Parker?

—Ouço, comandante. Tudo pronto?

— Acho que sim.

— Óptimo. — Parker virou a cabeça para verificar a admissão do motor. — Ligar o motor.

A capota da carlinga permanecia levantada. Três tripulantes, munidos de grandes extintores de dióxido de carbono, mantinham-se perto, presumivelmente para o caso de o motor explodir. Cerca de uma dezena de outros observava, de junto da ponte, o estranho aparelho. O motor Pegasus despertou. A capota foi baixada.

— Pronto, comandante? —Eu, por mim...

O Harrier não era um caça espaçoso, mas era certamente o mais barulhento. Ryan sentiu o ruído do motor sacudir-lhe o corpo todo, enquanto Parker ajustava os controles de admissão. O aparelho balançou, mergulhou o nariz, depois ergueu-se, trémulo, no ar. Ryan viu Um homem junto da ponte apontar para eles e acenar-lhes. O Harrier guinou para bombordo, afastando-se do porta-aviões à medida que ganhava altura.

— Não foi mau — disse Parker.

Ajustados os controles, o Harríer começou verdadeiramente a voar a direito. Pouco se sentia a aceleração, mas Ryan via o Kennedy ficar rapidamente para trás. Segundos mais tarde, encontravam-se para lá do anel dos navios-escolta.

— Vamos lá para cima desta porcaria — disse Parker.

Puxou a alavanca e rumou às nuvens. Segundos passados, as nuvens envolveram-nos e o campo de visão de Ryan passou de oito quilómetros para dois metros, num instante.

Jack olhou em redor da carlinga, que tinha controles e instrumentos de voo. Voavam a cento e cinquenta nós, e subiam. Altitude, cento e vinte metros. O Harríer fora, via-se bem, um aparelho de instrução, mas o painel fora modificado para incluir os instrumentos de leitura   instrumentos de leitura de uma rede de sensores que podia ser ligada ao bojo do avião. Modo improvisado de fazer as coisas, mas que, dissera o almirante Painter, funcionava bem. Calculou que o écran tipo televisão fosse o mostrador FLIR, um sensor térmico de infravermelhos. O indicador de velocidade marcava agora trezentos nós e o de subida um ângulo de ataque de vinte graus. Parecia mais.

— Devemos estar a chegar ao cimo disto — disse Parker. — Agora! O altímetro marcava sete mil e oitocentos metros, quando Ryan deparou com um sol brilhante. Nunca se habituara a essa particularidade dos voos pela qual, fosse qual fosse o tempo que fazia em terra, no alto havia sempre sol. A luz era intensa, mas o azul do céu era visivelmente mais escuro do que o tom suave visto de baixo Ao abandonarem a turbulência das regiões inferiores, a serenidade do voo era semelhante à de um avião comercial. Ryan tapou desajeitadamente os olhos com o visor.

—’ Assim é melhor, não é, 5zV?

—’É óptimo, tenente. Melhor do que eu esperava.

—Do que esperava?

— Acho que é melhor do que voar na carreira. Vê-se mais ao longe. É bom...

— Lamento não dispor de gasolina suficiente para lhe mostrar umas acrobacias. O Harríer faz tudo o que se lhe pede, ou quase.

— Assim está bem.

— E o seu almirante — continuou Parker com naturalidade — disse-me que o senhor não gosta de voar.

Ryan agarrou-se aos braços do assento quando o Harrier executou três voltas completas. Surpreendeu-se com a própria gargalhada.

— Ah, o humor britânico...

— Ordens do seu almirante — disse Parker, em tom de desculpa. — Não queremos que pense que o Harrier é mais um daqueles autocarros. ..

“Que almirante?”, perguntou-se Ryan. Painter ou Davenport? Provavelmente os dois. O topo das nuvens era como um campo ondulado de algodão. Nunca antes apreciara a paisagem, olhando pela janela estreita de um avião comercial. No banco de trás, era como se fosse sentado no exterior.

— Posso fazer uma pergunta, sir?

— Claro.

— Que barafunda vem a ser esta?

— Barafunda?

— É que, s/r, eles mandaram o meu barco dar meia volta. Depois, recebo ordens para transportar um VIP do Kennedy para o Invensible.

—Ah, sim... Não posso dizer-lhe, Parker. Vou entregar uma mensagem ao seu comandante. Não passo de um moço de recados — mentiu Ryan.

Toma, em paga das três voltas.

— Desculpe, comandante, mas, sabe, a minha mulher está à espera de um filho, o primeiro, para depois do Natal, e eu... eu gostava de lá estar.

—Onde mora?

— Chatham, no...

— Eu sei. Também estou a viver em Inglaterra, agora. Em Marlow, a montante de Londres. O meu segundo filho é de lá.

—’Nasceu lá?

—Foi lá feito. A minha mulher diz que a culpa é das camas de hotel. Se eu fosse homem de apostar, Parker, apostava em como tudo vai correr bem. Os primeiros filhos vêm sempre mais tarde, sabe...

—Diz que vive em Marlow?

— É. Construímos lá uma casa, no princípio do ano.

— Jack Ryan... John Ryan? O mesmo tipo que... —Nem mais. Mas não diga a ninguém, tenente.

— Compreendo, sír. Não sabia que era oficial da Marinha.

— Precisamente por isso não deve dizer a ninguém.

— Claro, sir. Desculpe o atrevimento de há pouco.

—’Não faz mal. Os almirantes também precisam de se divertir. Vocês acabaram de fazer um exercício com os nossos rapazes, não foi?

— Pois foi, comandante. Afundei um dos seus submarinos, o Tullibee. O meu operador de sistemas e eu. Apanhámo-lo quase à superfície, de noite, com o nosso FLIR, e largámos produtores de ruído à volta dele. Nós não podemos falar a ninguém no nosso novo equipamento, compreende... Parece que o comandante ficou danado.

Estava à espera de o encontrar em Norfolk, mas quando partimos de lá ainda não tinha chegado.

—Foi boa a estada em Norfolk?

— Foi, foi, comandante. Fomos à caça, um dia, em Chesapeake Bay. Na Praia Leste, creio que é assim que lhe chamam.

—’Sim? Costumava lá caçar, também. Que tal foi?

— Nada mau. Matei os meus três gansos em meia hora. O saco não levava mais... Uma estupidez...

— Você matou três gansos em meia hora, assim sem mais nem menos, no fim da época?

— É a disparar que ganho a vida, modestamente, comandante — observou Parker.

— Andei lá aos galos com o seu almirante, em Setembro passado. Obrigaram-me a disparar com uma arma de cano duplo. Se uma pessoa aparece com a minha arma — uso uma Remington automática — tomam-na por terrorista. Fiquei encravado com um par de cartuchos que não serviam. Matei quinze bichos. Mas pareceu-me uma maneira de caçar muito preguiçosa, com um tipo a carregar-me a arma e um pelotão de batedores a levantar a caça. íamos dando cabo da passarada toda!

—’Nós temos mais caça por hectare do que os senhores. — Foi o que o almirante disse. Quanto falta para o Invincible? —Quarenta minutos.

Ryan olhou para os indicadores de combustível. Os depósitos estavam já meio vazios. Se fosse de automóvel, pensaria em reabastecer-se. Tanto combustível gasto em meia hora! Bom, Parker não parecia alarmado...

A aterragem no HMS Invincible foi diferente da do COD no Kennedy. A descida através das nuvens foi turbulenta e Ryan lembrou-se que voavam na direcção principal da tempestade que suportara na noite anterior. Sobre a capota abatia-se a chuva e Ryan ouvia o impacte de milhares de gotas de água na fuselagem — ou seria granizo? Olhou os instrumentos e verificou que Parker estabilizara a trezentos metros, ainda entre nuvens, e começava a descer mais devagar, irrompendo em céu aberto a trinta metros. O Invincible não chegaria a ter metade do tamanho do Kennedy e balouçava activamente num mar com vagas de cinco metros. Parker usou a mesma técnica que no Kennedy. Pairou por breves instantes sobre o lado de bombordo do porta-aviões, depois guinou para a direita e, descendo seis metros, pousou num círculo pintado. A aterragem foi dura, mas Ryan ia prevenido. A carlinga ergueu-se imediatamente.

— Pode sair aqui — disse Parker. — Tenho de estacionar junto do elevador.

A escada já estava posta. O piloto desapertou o cinto e saiu. Um tripulante retirava já o saco. Ryan seguiu-o até à torre e foi recebido por um guarda-marinha.

— Bem-vindo a bordo, sir. — O rapaz não teria mais de vinte anos. — Deixe-me ajudá-lo a tirar o fato de voo.

O guarda-marinha esperou que Ryan corresse o fecho écler e tirasse o capacete, o colete salva-vidas e o fato. No entretanto, Ryan oscilou contra a antepara várias vezes. O Invincible parecia rodopiar num mar que se lhe abria. Vento pela popa e mar fácil? No Inverno, no Atlântico Norte, nada havia de excessivamente disparatado. O guarda-marinha pegou no saco e Ryan conservou a documentação.

—’ Vamos lá então — disse Ryan com um gesto.

O jovem subiu a correr três lanços de escada, deixando Ryan para trás, ofegante, a pensar no jogging que devia fazer e não fazia. O balouçar do barco e a tontura que lhe ficara do voo faziam-no perder o equilíbrio; chocava com as coisas. Como se aguentariam os pilotos profissionais?

— Estamos na ponte, sir — disse o guarda-marinha, abrindo a porta.

— Viva, Jack! — cumprimentou na sua voz altissonante o vice-almirante John White, oitavo conde de Weston.

Era um homem alto e robusto, de cinquenta anos, de rosto corado que um lenço branco ao pescoço punha em destaque. Jack conhecera-o no princípio do ano e, desde então, a mulher, Cathy, e a condessa, Antonia, haviam-se tornado amigas íntimas, partilhando o mesmo círculo de amadores de música. Cathy Ryan tocava piano clássico e Toni White, uma atraente mulher de quarenta e quatro anos, possuía um violino “Guarnieri dei Jesu”. O marido era um homem em cuja vida a fidalguia ocupava um lugar discreto; toda a sua carreira na Marinha Real fora construída por mérito próprio. Jack avançou para lhe apertar a mão.

—Bom dia, almirante.

— Que tal o voo?

— Diferente. Nunca antes tinha voado num caça, muito menos num caça disposto a concorrer com um colibri — disse Ryan, sorrindo.

A ponte estava sobreaquecida, confortável.

— Ainda bem. Vamos ao meu camarote, à popa.

White mandou retirar o guarda-marinha, que entregou a Ryan o saco antes de desaparecer. O almirante dirigiu-se à popa, através de uma curta passagem e entrou num pequeno compartimento.

Era surpreendentemente austero, tendo em atenção que os ingleses aPreciavam o conforto de White era par do reino. Tinha duas escotilhas com cortinas, uma secretária e duas cadeiras. Uma fotografia da mulher dava ao ambiente o único toque de calor. A parede de bombordo estava totalmente coberta por um mapa do Atlântico Norte.

— Parece cansado, Jack— disse White, indicando-lhe a cadeira estofada.

— Estou cansado. Ando nisto desde... desde as seis da manhã de ontem. Não sei bem a quantas ando, ainda tenho o relógio pela hora europeia.

— Pediram-me para lhe dar um recado...

White tirou um pedaço de papel do bolso e passou-o a Ryan.

“—Greer a Ryan. SALGUEIRO confirmado”, leu Ryan. “Cumprimentos de Basil. Terminado.”

Alguém confirmara SALGUEIRO. Quem? Talvez Sir Basil, talvez Ritter, Ryan não saberia dizê-lo. Guardou o papel no bolso e disse:

— Boas notícias, sir.

— Porquê o uniforme?

—A ideia não foi minha, almirante. Sabe para quem trabalho, não sabe? Achavam que assim eu passava mais despercebido.

— Pelo menos fica-lhe bem. — O almirante pegou num telefone e pediu refrescos. — Que tal vai a família, Jack?

— Bem, obrigado, sir. Na véspera da minha chegada, Cathy e Toni tocaram em Nigel Ford. Não pude assistir. Por este andar, ainda temos de gravar um disco. Poucos violinistas tocarão melhor que a sua esposa.

Um criado entrou com uma bandeja de sanduíches. Jack nunca percebera porque gostavam os ingleses de pepino com pão.

— Então que temos?

— Almirante, o significado da mensagem que acaba de me entregar é que posso contar isto ao senhor e a três outros oficiais. A matéria é explosiva, sir. Terá de tomar as suas decisões em conformidade.

— Suficientemente explosiva para obrigar a minha pequena esquadra a fazer meia volta. — White reflectiu antes de pegar no telefone e de chamar três oficiais ao seu camarote. — O capitão Carstairs, o capitão Hunter e o comandante Barclay são, respectivamente, o comandante do Invincible, o oficial de operações da minha esquadra e o meu oficial de informações.

—’Não tem chefes de Estado-Maior?

— Voou para casa, teve uma morte na família. Quer álcool com o café?

White tirou o que parecia ser uma garrafa de brande de uma gaveta da secretária.

—Obrigado, almirante.

Ainda bem que havia brande; o café precisava de ajuda. Viu o almirante servi-lo com generosidade, talvez com o objectivo de lhe soltar a língua. White era marinheiro britânico há mais tempo do que amigo de Ryan. Os três oficiais chegaram juntos, dois deles transportando cadeiras articuladas de metal.

— Almirante — começou Ryan—, é melhor deixar a garrafa cá fora. Depois de ouvir a história que tenho para contar, precisaremos todos de uma bebida.

Distribuiu os dois dossiers que lhe restavam e começou a falar de memória. Demorou quinze minutos a expor a situação.

— Meus senhores — concluiu — insisto em que esta informação é rigorosamente confidencial. Para já, ninguém fora desta sala pode conhecê-la.

— É uma pena — disse Carstairs. — Histórias tão fantásticas como a que acaba de nos contar não andam por aí aos pontapés.

— E a nossa missão?

White segurava as fotografias. Serviu outro brande a Ryan, olhou a garrafa e tornou a guardá-la na secretária.

— Obrigado, almirante. De momento, a nossa missão consiste em localizar o Outubro Vermelho. Depois, não se sabe ao certo. Penso que localizá-lo já é tarefa bem difícil.

— Astuta observação, comandante Ryan — disse Hunter.

— Vamos às boas notícias: o almirante Painter pediu ao CINCLANT que lhe dê, almirante White, autoridade sobre vários barcos da Marinha dos EUA, provavelmente três fragatas da classe 1052 e dois Perrys FFG 7. Dispõem todos de um ou dois helicópteros.

— Que lhe parece, Geoffrey? — perguntou White.

— Para começar... — disse Hunter.

— Chegam dentro de um dia ou dois. O almirante Painter pediu-me que lhe exprimisse a sua confiança na sua esquadra e no seu pessoal.

— Um raio de um submarino nuclear russo... — disse Barclay como se falasse sozinho.

Ryan riu e perguntou:

— Agrada-lhe a ideia, comandante? Tinha pelo menos um convertido.

— E se o submarino ruma em direcção a Inglaterra? Não passa toda esta operação a ser britânica?— perguntou Barclay pertinentemente.

— Suponho que sim, mas, olhando para o mapa, se Ramius se dirigisse a Inglaterra já lá estaria. Vi uma cópia da carta do presidente para o primeiro-ministro. Em troca da vossa ajuda, a Marinha Real terá acesso aos dados que os nossos homens forem obtendo. Estamos do mesmo lado, meus senhores. O problema é: seremos ou não capazes?

— Hunter? — perguntou o almirante.

— Se a informação é correcta... diria que temos boas hipóteses, cinquenta por cento de probabilidades. Por um lado, temos um Submarino nuclear tentando fugir à detecção; por outro, dispomos de uma vasta força de ASW preparada para o localizar. Não há muitos pontos para onde o submarino possa dirigir-se. Norfolk, claro, Newport, Groton, King’s Bay, Port Everglades, Charleston. Um porto civil como Nova Iorque já é menos provável, penso. O problema é que os Alfas que Ivan mandou a correr para a nossa costa chegarão primeiro que o Outubro. Podem ter um determinado porto em mente. Mais um dia e já saberemos. Eu diria, portanto, que eles têm as mesmas possibilidades do que nós. Poderão manobrar suficientemente longe da vossa costa para impedir o vosso Governo de tomar quaisquer medidas legalmente justificadas. Admitamos que os soviéticos levam vantagem em relação a nós... Conhecem o submarino e têm uma missão mais simples. Isso compensa de certo modo a menor sensibilidade dos seus sensores.

— Porque será que Ramius navega tão devagar? — perguntou Ryan. — É a única coisa que não percebo. Mal ultrapasse as linhas do SOSUS ao largo da Islândia, está na bacia profunda... Porque não abre o gás e corre para a nossa costa?

— Pelo menos por dois motivos — respondeu Barclay. — A que volume de informação operacional tem acesso?

— Eu lido com sectores específicos. Salto de uma coisa para outra. Conheço bastante acerca dos submarinos soviéticos, por exemplo, mas já não tanto sobre os barcos de superfície.

Ryan não tinha de revelar pertencer à CIA.

— Bem, sabe como os soviéticos têm uma estrutura compartimentada. Provavelmente, Ramius não sabe onde estão todos os submarinos de ataque. Portanto, se acelerasse corria o risco de deparar com um Victor desgarrado e de ir para o fundo sem sequer ter tempo de saber o que lhe acontecia. Em segundo lugar, os soviéticos podiam pedir o auxílio dos americanos, dizendo, por exemplo, que uma tripulação de contra-revolucionários maoístas se amotinara e apoderara de um submarino nuclear... A vossa Marinha detecta um submarino nuclear a correr pelo Atlântico Norte em direcção à costa americana e que faz o vosso presidente?

— Compreendo — disse Ryan. — Estourávamos com ele.

— Ora aí tem. Ramius tem de agir pela calada, não pode correr riscos, tem de confiar apenas naquilo que sabe — concluiu Barclay. — Felizmente ou infelizmente, é muito bom nisso.

— Quando é que teremos dados sobre o funcionamento desse sistema de propulsão silencioso? — quis saber Carstairs.

— Esperamos tê-los dentro de dois dias.

— Onde é que o almirante Painter nos quer? — perguntou Whiter.

O plano que ele apresentou a Norfolk posiciona-vos no flanco direito. Quer o Kennedy junto à costa para enfrentar a ameaça da força de superfície soviética. O Invincible manobraria mais ao largo Painter pensa que há uma possibilidade de Ramius entrar directamente, vindo do sul, pelo estreito de G-I-R.U. na bacia do Atlântico que manter-se aí por algum tempo. Corre menos riscos de ser detectado, e se os soviéticos o perseguirem tem tempo e víveres para se manter nessa posição por um período mais longo do que aquele durante o qual a força de superfície soviética se pode manter ao largo da nossa costa por motivos de ordem técnica e política. Além disso, Painter quer o vosso poder de fogo aqui para conter o flanco soviético. O plano tem de ser aprovado pelo comandante-chefe da Esquadra do Atlântico e falta ainda determinar uma série de pormenores. Por exemplo, Painter pediu uns Seníris E-3 para vos apoiar.

— Um mês no meio do Atlântico Norte, no Inverno? Carstairs pestanejou. Fora imediato do Invincible durante a guerra das Malvinas e navegara no violento Atlântico Sul semanas intermináveis.

— E muita sorte se tivermos os E-3. — O almirante sorriu. — Hunter, quero planos para utilização de todos estes barcos que os ianques põem ao nosso dispor e para cobertura de uma área o mais vasta possível. Barclay, quero que se antecipe ao que o nosso amigo Ramius pensa fazer. Parta do princípio de que continua a ser um patife inteligente que aprendemos a conhecer e a admirar.

— Muito bem, sir.

Barclay levantou-se com os outros.

— Jack, quanto tempo fica connosco?

— Não sei, almirante. Até me chamarem novamente ao Kennedy, suponho. A meu ver, esta operação foi desencadeada muito à pressa. Ninguém sabe realmente o que diabo vamos fazer.

— Porque é que não nos deixa pensar nisso agora? Parece exausto. Durma um pouco.

— Isso é verdade, almirante.

Ryan começava a sentir os efeitos do brande.

— Há uma cama ali no armário. Vou mandar fazê-la. Durma à vontade. Se chegar alguma mensagem para si, acordá-lo-ei.

— É muito amável, sir.

O almirante White era um bom homem, disse consigo Jack, e a mulher algo de muito especial. Dez minutos depois, Ryan deitava-se e adormecia.

O “Outubro Vermelho”

De dois em dois dias, o starpom recolhia os distintivos de radiação no âmbito de uma inspecção semiformal. Depois de ter verificado os sapatos dos tripulantes reluziam, que os beliches estavam feitos devia ser e que todos os armários se encontravam arrumados de acordo com as regras, o imediato recolhia os distintivos e entregava outros aos marinheiros, geralmente com uma recomendação severa para que adoptassem o porte garboso adequado aos Novos Homens Soviéticos. Borodin executava esta formalidade com rigor científico. Naquele dia, como sempre, a passagem de um a outro compartimento demorou duas horas. No fim, o saco que trazia à cinta, do lado esquerdo, estava cheio de distintivos usados e o do lado direito, o dos novos, vazio. Levou os distintivos usados ao gabinete médico.

— Camarada Petrov, trago-lhe um presente.

Borodin pousou o saco de couro sobre a secretária do médico.

— Muito bem. — O médico sorriu ao imediato. — A rapaziada é tão saudável que pouco mais tenho que fazer, salvo ler as minhas revistas.

Borodin deixou Petrov entregue à sua tarefa. Primeiro, o médico colocou os distintivos por ordem; cada um deles tinha um número de três algarismos. O primeiro identificava a série para que se se detectasse alguma radiação, houvesse uma referência temporal; o segundo dizia onde o marinheiro trabalhava; e o terceiro onde dormia. Era mais fácil trabalhar com este sistema do que com o antigo, que utilizava números individuais para cada homem.

O processo de revelação era simplíssimo. Petrov executava-o já sem pensar. Primeiro, desligou a luz branca do tecto e substituiu-a por uma vermelha. Depois, fechou a porta do gabinete. A seguir, retirou o suporte de revelação do gancho na antepara, rasgou os invólucros plásticos dos distintivos e prendeu estes ao suporte.

Petrov levou o suporte para o laboratório contíguo e pendurou-o no fecho do arquivo. Encheu três recipientes quadrados com produtos químicos. Apesar de ser um médico qualificado, tinha esquecido a maior parte dos seus conhecimentos de química inorgânica e já não se lembrava exactamente de quais eram os produtos de revelação. Encheu o recipiente número um do frasco número um, o número dois do frasco dois e o número três, isso lembrava-se, com água. Petrov não tinha pressa. Faltavam duas horas para o almoço e a sua actividade era verdadeiramente maçadora. Passara os últimos dois dias a reler os seus tratados sobre doenças tropicais. O médico sonhava com a visita a Cuba, como toda a gente a bordo. Quase de certeza apareceria um tripulante a sofrer de uma doença estranha e, com sorte, já teria algo de interessante com que se ocupar.

Petrov regulou o cronometro do laboratório para setenta e cinco segundos e submergiu as tiras de filme no primeiro banho, carregando ao mesmo tempo no botão do relógio. Ficou-se a olhar o cronometro à luz vermelha, perguntando a si próprio se os cubanos ainda fariam rum. Estivera lá anos antes e ficara a gostar da exótica bebida. Como todos os bons soviéticos, adorava o seu vodca, mas, de vez em quando, gostava de variar.

O cronometro tocou e Petrov agitou cuidadosamente o suporte do filme sobre o recipiente. Não estava para salpicar o uniforme com o produto químico — nitrato de prata ou coisa parecida. Colocou o filme no segundo banho e tornou a regular o cronometro. Uma pena as ordens terem sido mantidas tão em segredo... Poderia ter trazido o seu uniforme tropical. Ia suar como um porco ao maldito sol cubano. Claro que aqueles selvagens nunca pensavam em lavar-se. Teriam aprendido alguma coisa nos últimos quinze anos? Ver-se-ia.

O cronometro tocou novamente e Petrov tornou a sacudir o filme antes de o colocar no recipiente com água. Mais uma maçadora tarefa terminada. Porque diabo um marinheiro não caía por uma escada abaixo e partia qualquer coisa? Gostava de experimentar a sua máquina de raios X leste-alemã num doente vivo. Não confiava nos alemães, fossem ou não marxistas; mas produziam bom equipamento médico, incluindo aparelhos de raios X, autoclaves e a maior parte dos medicamentos, lá isso... Tempo. Petrov ergueu o filme contra a placa de leitura do raios X, que ligou.

— Nichevo! — murmurou Petrov.

Tinha de pensar. O seu distintivo apresentava-se turvo. O número era 3-4-8: terceira série, zona cinquenta e quatro (gabinete médico, cozinha, acomodações à popa (oficiais).

Embora tivessem apenas dois centímetros de largura, os distintivos possuíam várias sensibilidades. Dez colunas verticais quantificavam o nível de exposição. Petrov verificou que o seu estava velado até ao segmento quatro. Os distintivos dos tripulantes da casa das máquinas apresentavam-se turvos até ao segmento cinco e os dos torpedeiros, que passavam todo o tempo à proa, mostravam-se apenas contaminados no segmento um.

— Filho da mãe...

Petrov conhecia os níveis de sensibilidade de cor. Mesmo assim, pegou no manual para se certificar. Felizmente, os segmentos eram logarítmicos. A sua exposição equivalia a doze rads. A dos maquinistas andava entre os quinze e os vinte e cinco. Doze a vinte e cinco rads em dois dias não era propriamente perigoso. Não punha realmente a vida em perigo, mas Petrov tornou ao gabinete, tendo o cuidado de deixar os filmes no laboratório. Pegou no telefone.

—Comandante Ramius? Fala Petrov. Pode vir ao meu gabinete, Por favor?

—>Vou já, camarada doutor.

Ramius não se apressou. Sabia a razão do telefonema. Na véspera da partida, enquanto Petrov se encontrava em terra, tratando de se abastecer em medicamentos, Borodin contaminara os distintivos com a máquina de raios X.

— Sim, Petrov? — perguntou Ramius, fechando a porta atrás de si.

— Camarada comandante, temos uma fuga de radiação.

— Disparate! Os nossos instrumentos tê-la-iam detectado imediatamente.

Petrov foi buscar os filmes ao laboratório e passou-os ao comandante.

— Veja.

Ramius ergueu-os à luz, examinando as películas de cima a baixo. Franziu o sobrolho.

— Quem sabe disto?

—O senhor e eu, camarada comandante.

— Não diga a ninguém... A ninguém. — Ramius interrompeu-se. — Alguma possibilidade de os filmes estarem... de terem algum defeito, de o senhor ter cometido algum erro ao revelá-los?

Petrov abanou energicamente a cabeça.

— Não, camarada comandante. Apenas o senhor, o camarada Borodin e eu temos acesso às películas. Como sabe, ensaiei amostras escolhidas ao acaso de cada remessa, três dias antes de partirmos.

Petrov não confessaria, como ninguém confessava, que retirara as amostras do cimo da caixa onde os distintivos eram guardados; não tinham sido nada escolhidas ao acaso.

— A exposição máxima que aqui vejo é de... dez a vinte, não é? — Ramius reduzia a variação. — A quem pertencem os números?

— Bulganin e Surzpoi. Os torpedeiros apresentam todos menos de três rads.

— Muito bem. O que aqui temos, camarada doutor, é uma possível e insignificante — insignificante, Petrov — fuga na zona do reactor. No pior dos casos, uma fuga de gás. Já aconteceu antes e ninguém morreu. Descobriremos a fuga e repará-la-emos. Este pequeno segredo fica entre nós. Não há motivo para alarmar os homens. É uma insignificância.

Petrov concordou de cabeça, sabendo que tinha havido mortes em 1970, num acidente ocorrido a bordo do submarino Voroshilov e no quebra-gelos Lenin. Todavia, passara já muito tempo sobre os dois acidentes e não duvidava de que Ramius sabia enfrentar as situações. Não duvidava?

O Pentágono

O anel E era o maior e mais exterior dos anéis do Pentágono e, como as suas janelas permitiam ver outras coisas que não pátios sem sol, era aí que a maioria dos altos funcionários da Defesa tinha os seus gabinetes. Um deles era o do director de operações do Estado-Maior Conjunto, o J-3. Não estava lá; estava numa sala no segundo nível da cave, conhecida por “Tanque”, devido ao facto de as suas paredes metálicas estaram providas de aparelhos electrónicos produtores de ruído, com vista a despistar outros dispositivos electrónicos. Encontrava-se no Tanque havia vinte e quatro horas, embora o seu aspecto não o dissesse. As suas calças verdes continuavam vincadas, a camisa de caqui apresentava ainda os festos das dobras feitas na lavandaria, o colarinho engomado mantinha-se absolutamente impecável e a gravata permanecia bem no seu lugar, segura por um alfinete de ouro com o emblema dos marines. O tenente-general Edwin Barris não era diplomata nem professor da Academia, mas actuava, naquele momento, como moderador — estranha posição para um marine.

— Raios partam isto! — Era a voz do almirante Blackburn, CINCLANT, acompanhado do seu oficial de operações, contra-almirante Pete Stanford. — Mas é isto maneira de dirigir uma operação?

Os chefes de Estado-Maior estavam também presentes e nenhum deles partilhava da opinião de Blackburn.

— Ouça, Blackie, já lhe disse donde vêm as ordens.

O general Milton, chefe do Estado-Maior Conjunto, parecia cansado.

— Bem sei, general, mas isto é fundamentalmente uma operação submarina, não é verdade? Precisamos de meter nisto Vince Gallery, e você já devia ter recorrido a Sam Dodge. Dan e eu somos aviadores e Pete é especialista em ASW. Precisamos de um comandante de submarinos.

— Meus senhores — disse Harris calmamente—, de momento, o plano que temos de levar ao presidente contempla apenas a ameaça soviética. Por enquanto, vamos deixar de parte essa história do submarino desertor, está bem?

— Concordo — disse Stanford.—Já aqui temos muito com que nos preocupar.

A atenção dos oito oficiais-generais concentrou-se na mesa dos mapas. Cinquenta e oito submarinos e vinte e oito vasos de guerra de superfície soviéticos, mais diversos petroleiros e unidades de reabastecimento, rumavam indubitavelmente à costa americana. Para enfrentar esta ameaça, a Marinha dos EUA dispunha apenas de um Porta-aviões. O Invincible não contava. A ameaça era considerável, os vasos soviéticos transportavam mais de trezentos mísseis de cruzeiro. Embora principalmente concebidos como armas antibarco, um terço deles dispunha, ao que se pensava, de ogivas nucleares suficientes para destruir as cidades da costa Leste. De uma posição ao largo de Nova Jérsia, estes mísseis possuíam um raio de acção de Norfolk a Boston.

— Josh Painter propõe que mantenhamos o Kennedy junto à costa — disse o almirante Blackburn. — Quer dirigir a operação de ASw a partir deste porta-aviões, transferindo as esquadrilhas de ataque para terra e substituindo-as pelo Invincible no flanco direito soviético, ao largo.

— Não me agrada — disse o general Harris.

A Pete Stanford também não agradava. Tinham combinado antes que o J-3 lançaria o contraplano.

—’Meus senhores, se vamos apenas dispor de uma coberta, precisamos é de ter um porta-aviões e não uma plataforma descomunal de ASW.

— Somos todos ouvidos, Eddie — disse EBlton.

— Pomos o Kennedy aqui. — Deslocou o marcador para uma posição a ocidente dos Açores. — Josh mantém as suas esquadrilhas de ataque. Deslocamos o Invincible para a costa com a responsabilidade pelo ASW. Foi para isso que os britânicos o conceberam, não foi? Parece que são bons, aliás. O Kennedy é uma arma ofensiva, a sua missão consiste em ameaçá-los. Se nos posicionarmos assim, a ameaça é o Kennedy. Poderá alcançar a força de superfície soviética de fora do perímetro dos mísseis...

— Melhor ainda — interveio Stanford, apontando alguns vasos no mapa —, pode ameaçar a força auxiliar. Se eles perderem estes petroleiros, não poderão regressar a casa. Para enfrentar esta ameaça, terão de ocupar novas posições. Antes do mais, terão de afastar o Kiev para o largo, a fim de disporem minimamente de defesa aérea contra o Kennedy. Podemos utilizar os S-3 sobrantes a partir de bases em terra. Podem perfeitamente continuar a patrulha da mesma área — disse, traçando uma linha cerca de quinhentas milhas ao largo da costa.

— Assim, o Invincible fica um pouco desprotegido — disse o CNO, almirante Foster.

— Josh pediu cobertura de E-3 — disse Blackburn, olhando o chefe de Estado-Maior da Força Aérea, general daire Barnes.

— Pede-se ajuda, dá-se ajuda — disse Barnes. — Amanhã, ao alvorecer, teremos um Sentry a operar sobre o Invincible e se o porta-aviões se aproximar da costa poderemos lá mantê-lo continuamente. Se quiserem, destaco uma esquadrilha de F-16.

— Que pretende em troca, Max? — perguntou Foster. Ninguém o tratava por Qaire.

— Da maneira que eu vejo a situação, temos a esquadrilha do Saratoga sem fazer nada. No sábado, eu desloco quinhentos caças tácticos de Dover para Loning. Os meus rapazes sabem pouco de combate antí-barco e terão de aprender depressa. Quero que mande os seus trabalhar com os meus, e também quero os seus Torneais Gosto da combinação caça-míssil. Pomos uma esquadrilha ao largo da Islândia e outra ao largo de Nova Inglaterra, para tomar conta dos Ursos que Ivan lançar contra nós. Se quiserem, enviaremos alguns petroleiros para as Lajes, a fim de manter no ar os pássaros do Kennedy.

— Blackie? — perguntou Foster.

—’ Concordo — respondeu Blackburn. — A única coisa que me preocupa é o Invincible não ter assim tanta capacidade de ASW.

— Arranjamos mais — disse Stanford. — Almirante, que diz a retirarmos o Tarawa de Little Creck e juntá-lo ao grupo do New Jersey, com mais uma dúzia de helicópteros ASW a bordo e sete ou oito Harriers?

— Acho bem — disse logo Harris. — Teremos dois porta-aviões com uma apreciável força de ataque, mesmo em frente deles. O Kennedy alerta a oriente e umas centenas de caças tácticos a ocidente. Terão de se aproximar atentos a três frentes. Isto dá-nos maior capacidade de patrulha ASW.

— O Kennedy desembaraça-se sozinho? — perguntou Hilton.

— Depende — respondeu Blackburn. — Podemos eliminar qualquer um, talvez dois desses quatro grupos, numa hora. Os mais perto da costa são para si, Max.

—Há quanto tempo andam vocês a ensaiar isto? — perguntou o general Maxwell, comandante do corpo de marines, aos oficiais de operações.

Todos riram.

O “Outubro Vermelho”

O engenheiro-chefe Melekhin evacuou o compartimento do reactor antes de começar a procurar a fuga. Ramius e Petrov estavam também Presentes, mais os oficiais maquinistas de serviço e um dos jovens tenentes, Svyadov. Três dos oficiais seguravam contadores geíger.

A sala do reactor era bastante grande. Tinha de ser, para albergar a compacta unidade em forma de tubo, em aço. O objecto apresentava-se quente ao tacto, a despeito de inactivo. Em todos os cantos da sala havia detectores automáticos de radiação, cada um deles no exterior de um círculo vermelho. Outros encontravam-se suspensos das anteparas, à proa e à popa. De todos os compartimentos do submarino era este o mais limpo. A coberta e as anteparas metálicas estavam pintadas de branco, imaculadas. A razão era óbvia: a menor fuga do refrigerante do reactor devia ser instantaneamente visível, mesmo que todos os detectores falhassem.

Svyadov subiu uma escada de alumínio fixada numa das faces do reactor para aplicar o contador a todas as soldaduras dos tubos. O volume do amplificador do aparelho estava no máximo para que todos pudessem ouvir, e Svyadov tinha um auscultador no ouvido, por precaução. Jovem de vinte e um anos, estava nervoso. Só um inconsciente se sentiria completamente tranquilo à procura de uma fuga de radiação. Na Marinha soviética conta-se esta anedota: como se conhece um marinheiro da Esquadra do Norte? Brilha no escuro Em terra tinha muita graça, mas agora não. O rapaz não ignorava que conduzia a busca por ser o mais novo, o menos experiente e o menos insubstituível. Custava-lhe manter os joelhos quietos, enquanto percorria com esforço o reactor.

O contador não estava inteiramente silencioso e o estômago de Svyadov contraía-se a cada clique provocado pela passagem de uma partícula casual no tubo de gás ionizado. Quase de segundo a segundo, os olhos de Svyadov fitavam o mostrador que media a intensidade. A intensidade estava mais do que dentro da margem de segurança, quase não era indicada pela agulha. O reactor possuía quatro camadas envolventes, cada uma com vários centímetros de aço inoxidável. Os três espaços interiores estavam cheios de uma mistura de água e bário e, depois, havia uma barreira de chumbo e outra de polietileno, tudo concebido para impedir a fuga de neutrões e partículas gama. A combinação de aço, bário, chumbo e plástico continha realmente os elementos perigosos da reacção, permitindo que apenas alguns graus de calor escapassem, e o mostrador indicava, para alívio de Svyadov, que o nível de radiação era inferior ao da praia de Sochi. A leitura mais alta verificou-se junto de uma lâmpada. Isto fez o tenente sorrir.

— Todas as leituras dentro dos limites normais, camaradas — disse Svyadov.

— Recomece — ordenou Melekhin — desde o princípio.

Vinte minutos mais tarde, Svyadov, a suar do ar quente que se acumulava no alto do compartimento, produzia idêntica informação. Desceu, trémulo, os braços e as pernas cansados.

— Fume um cigarro — sugeriu Ramius. — Bom trabalho, Svyadov. — Obrigado, camarada comandante. Está quente lá em cima, das

luzes e dos tubos de arrefecimento.

O tenente passou o contador a Melekhin. A leitura acumulada estava perfeitamente dentro da margem de segurança.

— Os distintivos deviam estar contaminados — disse o engenheiro-chefe de mau humor. — Não seria a primeira vez. Um brincalhão qualquer na fábrica ou nos abastecimentos do cais... Uma gracinha para os nossos amigos do GRU investigarem. Patifes! Uma brincadeira destas merece um tiro!

— Talvez — concordou Ramius, rindo por entre dentes.—Lembram-se do incidente no Lenin! — Referia-se ao quebra-gelos nuclear que ficara dois anos imobilizado por causa de uma deficiência no reactor. — Um cozinheiro tinha umas panelas muito surradas e um doido de um engenheiro sugeriu-lhe que as lavasse a vapor. O idiota foi ao gerador de vapor e abriu uma válvula de inspecção!

Melekhin arregalou os olhos.

— Lembro-me disso! Era oficial de engenharia do Estado-Maior, nessa altura. O comandante tinha pedido um cozinheiro de Kazakh...

— Gostava de carne de cavalo com kaska — disse Ramius.

— ...e o palerma não fazia a menor ideia do que era um barco. Matou-se e a mais três homens, e contaminou o raio do compartimento por vinte meses. O comandante só saiu do gulag no ano passado.

—’Mas o cozinheiro deve ter ficado com as panelas limpas — observou Ramius.

— Ah, sim, Marko Aleksandrovich... Devem estar em perfeito uso pelo menos mais cinquenta anos — disse Melekhin, em voz rouca e gargalhando.

Era um disparate dizer semelhante coisa na presença de um jovem oficial, achava Petrov. Não havia nada, absolutamente nada de engraçado na fuga de um reactor. Melekhin, porém, era conhecido pelo seu humor grosseiro, e o médico pensava que vinte anos de trabalho com reactores lhe permitiam, e ao comandante, encarar fleumaticamente os perigos potenciais. E, depois, havia a lição implícita na história: nunca deixar na zona do reactor quem a ela não pertence.

— Muito bem — disse Melekhin —, agora vamos verificar os tubos na sala do gerador. Svyadov, continuamos a precisar das suas pernas jovens.

O compartimento, à popa, continha o transformador de calor/ /gerador de vapor, turbo-alternadores e equipamento auxiliar. As turbinas principais encontravam-se no compartimento contíguo, agora Wactivo, enquanto o caterpillar, movido electricamente, trabalhava. De Qualquer modo, o vapor que as accionava tinha de ser limpo; só na serpentina interior era permitida radiactividade. O refrigerante do reactor, que transportava radiactividade de curta vida, mas perigosa, nunca se transformava em vapor. Este circulava na serpentina exterior e provinha de água não contaminada. As duas fontes de água encontravam-se, mas nunca se misturavam no transformador de calor, o local mais provável de uma fuga de refrigerante, devido às numerosas soldaduras e válvulas.

A tubagem mais complexa levou cinquenta minutos a verificar. Estes tubos não estavam tão bem isolados como os da proa. Svyadov quase se queimou por duas vezes e, quando acabou a primeira vistoria tinha o rosto banhado em suor.

— Todas as leituras dentro da margem de segurança, camaradas.

— Óptimo — disse Melekhin. — Desça e descanse um pouco antes de repetir a verificação.

Svyadov quase esteve para agradecer ao seu chefe a condescendência; teria, porém, dado uma má imagem de si próprio. Como jovem, dedicado oficial e membro do Komsomol, não conhecia esforços excessivos. Desceu com cuidado e Melekhin passou-lhe outro cigarro. O engenheiro-chefe era um perfeccionista grisalho que se preocupava com os seus homens.

—Obrigado, camarada — agradeceu Svyadov.

Petrov foi buscar uma cadeira articulada.

— Sente-se, camarada tenente, descanse as pernas.

O tenente sentou-se e estendeu as pernas para combater as cãibras Os oficiais da VUMUPP tinham-lhe dito da sorte que o bafejava ao ser colocado no Outubro Vermelho. Ramius e Melekhin eram os dois melhores professores da esquadra, homens cuja afabilidade e competência eram apreciadas pelas tripulações.

— Deviam realmente isolar estes tubos — disse Ramius. Melekhin abanou a cabeça.

— Seriam muito mais difíceis de inspeccionar — disse, passando o contador ao comandante.

— Absolutamente seguro — concluiu o comandante da leitura acumulada. — Está-se mais exposto a cuidar de um jardim.

—’É verdade — concordou Melekhin. —Os mineiros de carvão estão mais expostos do que nós, devido à libertação de rádon nas minas. Distintivos em mau estado, é o que é. Porque é que não examinamos toda uma caixa?

— Eu podia fazer isso, camarada — respondeu Petrov —, mas, devido à duração do cruzeiro, teríamos de ficar vários dias sem nenhum, o que é contra os regulamentos.

— Tem razão. De qualquer modo, os distintivos são apenas uma medida de segurança dos nossos instrumentos — disse Ramius, apontando para os detectores no círculo vermelho por todo o compartimento.

— Quer mesmo tornar a vistoriar os tubos? — perguntou Melekhin

— Acho melhor - respondeu Ramius.

Svyadov praguejou para dentro, de olhos no chão.

— A segurança nunca é excessiva — disse Petrov, citando doutrina. — Tenha paciência, tenente.

O médico não estava minimamente condoído; preocupara-se seria mente e sentia-se agora muito melhor.

Uma hora mais tarde, terminava a segunda verificação. Petrov levou Svyadov à proa para lhe dar comprimidos de sal e chá, a fim de que se reidratasse. Os oficiais retiraram-se e Melekhin mandou pôr o reactor em funcionamento.

Os marinheiros tornaram aos seus postos, entreolhando-se. Os oficiais acabavam de vistoriar os compartimentos “quentes” com detectores de radiação. O ajudante do médico, que empalidecera, recusava-se a falar. Mais de um maquinista apalpou o distintivo e olhou o relógio, a ver quanto tempo lhe faltava para terminar o quarto.

 

                   Sexta-feira, 10 de Dezembro

                   H MS “Invincible”

Ryan despertou no escuro. As duas pequenas escotilhas do camarote tinham as cortinas corridas. Abanou a cabeça para clarear as ideias e começou a tomar consciência do que acontecia em seu redor. O Invincible balouçava nas águas, menos, porém, do que antes. Ryan levantou-se, espreitou por uma escotilha e viu o último clarão vermelho do Sol, à popa, sob nuvens fugazes. Olhou o relógio, fez um rápido e duvidoso cálculo mental e concluiu que eram seis da tarde, hora local. Dormia, portanto, cerca de seis horas. Sentia-se bastante bem, apesar de tudo. Uma leve dor de cabeça do brande — não obstante a teoria segundo a qual uma boa bebida não dá ressaca — e os músculos rígidos. Fez umas flexões para combater as cãibras.

Havia uma pequena casa de banho — um lavatório, melhor — pegado ao camarote. Ryan deitou água na cara e lavou a boca. Não queria olhar para o espelho, mas tinha de olhar. Com vontade ou sem ela, usava o uniforme do seu país e não podia apresentar-se de qualquer maneira. Compôs rapidamente o cabelo e o uniforme. A CIA fizera um belo trabalho de corte, atendendo à pressa. Pronto, saiu a porta em direcção à ponte.

— Sente-se melhor, Jack?

O almirante White apontou-lhe uma bandeja com chávenas. Era apenas chá, mas, enfim...

— Obrigado, almirante. Estas horas de sono fizeram-me realmente bem. Acho que estou pronto para jantar.

— Para tomar o pequeno-almoço— corrigiu-o White com uma gargalhada.

—Que... desculpe, almirante?

Ryan tornou a abanar a cabeça. Sentia-se ainda um pouco tonto

— É o nascer do Sol, comandante. Houve alteração de ordens? Vamos outra vez para ocidente. O Kennedy navega para leste a toda a velocidade e nós vamos para junto da costa.

— Quem mandou, sir?

— O CINCLANT. Suponho que Joshua não gostou nada. Terá de ficar connosco por enquanto e foi por isso que achei melhor deixá-lo dormir. Estava a precisar, via-se.

Devia ter dormido dezoito horas. Não admirava que se sentisse empenado.

— Está com muito melhor aspecto — observou o almirante White da sua cadeira giratória de couro.

Levantou-se, tomou Ryan pelo braço e levou-o à popa.

— Agora vamos tomar o pequeno-almoço. Estava à sua espera. O capitão Hunter explicar-lhe-á as nossas novas ordens. O tempo vai melhorar por uns dias, ao que me informam. As missões de escolta estão também a ser revistas. Vamos operar com o vosso grupo do New Jersey. As nossas operações anti-submarinas vão começar em pleno dentro de doze horas. Foi bom ter dormido umas horas a mais, meu caro. Vai precisar bem delas.

Ryan passou a mão pela cara.

— Posso barbear-me, a?

— As barbas não são proibidas. Primeiro, o pequeno-almoço.

A zona de oficiais do HMS Invincible não possuía o requinte da do Kennedy, mas andava por perto. White dispunha de sala de jantar privativa. Um criado de casaco branco serviu-os impecavelmente e pôs um terceiro talher para Hunter, que chegou minutos mais tarde. Quando começaram a falar, o criado foi dispensado.

— Encontramo-nos com duas das vossas fragatas da classe Knox dentro de duas horas. Já as temos no radar. Mais duas 1052, um petroleiro e dois Perrys juntar-se-nos-ão dentro de trinta e seis horas. Regressavam a casa, do Mediterrâneo. Com os nossos navios-escolta, um total de nove vasos. Conjunto apreciável, penso. Operaremos a quinhentas milhas da costa com a força constituída pelo New Jersey e o Tarawa, duzentas milhas a ocidente.

— O Tarawcf! Para que precisamos de um regimento de marines? — perguntou Ryan.

Hunter explicou em poucas palavras.

— Não é má ideia. O engraçado é que, com o Kennedy a correr Para os Açores, ficamos nós a guardar a costa americana. — Hunter sorriu. — É a primeira vez que a Marinha Real faz isto... desde que a América deixou de ser nossa, pelo menos.

—’Mas estamos à espera de quê?

— O primeiro Alfa chegará à vossa costa esta noite. Vêm quatro a frente dos outros. A força de superfície soviética passou a Islândia ontem à noite. Está dividida em três grupos. Um centrado no porta-aviões Kiev, com dois cruzadores e quatro contratorpedeiros; o provavelmente o comando, com o Kirov, três cruzadores e contratorpedeiros; e o terceiro com o Moskva, três cruzadores e sete contratorpedeiros. Parece que os soviéticos tencionam operar com os grupos do Kiev e do Moskva junto à costa, e com o Kirov ao largo... mas a recolocação do Kemedy obrigá-los-á a repensar o esquema. Além disso, a força soviética dispõe de um número considerável de mísseis, e potencialmente estamos muito expostos. Para enfrentar a situação, a vossa Força Aérea vai mandar para aqui um Sentry E-3, a fim de colaborar com os nossos Harriers, e quando nos afastarmos mais para ocidente teremos mais apoio aéreo a partir de bases terrestres. No conjunto, a nossa posição não é nada invejável, mas a de Ivan pouco mais será. Até que ponto a questão tem a ver com a busca do Outubro Vermelho! — Hunter encolheu os ombros. — O modo como conduziremos a nossa operação dependerá de como Ivan se mover. De momento, executamos manobras de perseguição. O primeiro Alfa está oitenta milhas a noroeste da nossa posição, navegando a mais de quarenta nós, e temos um helicóptero atrás dele... pouco mais — concluiu o oficial de operações. — Desce connosco?

— Almirante?

Ryan queria ver o centro de informação de combate do Invincible.

— Com certeza.

Trinta minutos mais tarde, Ryan encontrava-se numa sala tranquila e penumbrosa, cujas paredes eram constituídas por sólidos painéis de instrumentos electrónicos e mostradores de diagramas em vidro. O oceano Atlântico estava cheio de submarinos russos.

A Casa Branca

O embaixador soviético entrou na Sala Oval um minuto antes, às 10 e 59. Era um homem baixo e pesado, com rosto grande, eslavo, e olhos que poderiam pertencer a um altivo jogador profissional: não revelavam nada. Era um diplomata de carreira que servira em vários países por todo o mundo ocidental, e pertencia havia trinta anos ao Departamento dos Negócios Estrangeiros do Partido Comunista.

— Bom dia, senhor presidente, doutor Pelt.

Alexei Arbatov inclinou delicadamente a cabeça aos dois homens. O presidente, reparou logo, estava sentado à secretária. Das outras vezes, o presidente levantava-se para lhe apertar a mão e sentava-se a seu lado.

— Sirva-se de café, senhor embaixador — ofereceu Pelt

O assistente especial do presidente para questões de segurança nacional era bem conhecido de Arbatov, Jeffrey Pelt era professor do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais da Universidade de Georgetown — um inimigo, mas um inimigo com boas maneiras, kulturny. Arbatov apreciava os requintes da formalidade. Pelt ficou de pé ao lado do patrão, sem vontade de se aproximar do urso russo. Arbatov não se serviu de café.

.— Senhor embaixador — começou Pelt—, temos notado um perturbador aumento de actividade naval soviética no Atlântico Norte.

Sim? — Arbatov franziu o sobrolho numa manifestação de surpresa que não enganava ninguém, e ele sabia-o. — Não tenho conhecimento de nada. Como sabe, nunca fui marinheiro.

— Deixemo-nos de disparates, está bem, senhor embaixador? — disse o presidente.

Arbatov não se deixou surpreender pela vulgaridade. Tornava o presidente americano muito russo, o qual, à semelhança dos funcionários soviéticos, parecia necessitar de um profissional como Pelt para limar arestas.

—’Os senhores têm neste momento cerca de cem vasos de guerra a operar no Atlântico Norte ou a navegar nesta direcção. O presidente Narmonov e o meu antecessor concordaram, há anos, em que operações desta natureza não se realizariam sem notificação prévia. O objectivo deste acordo, como sabe, era o de impedir actos que pudessem apresentar-se como provocatórios para uma ou outra parte. Este acordo foi respeitado... até agora.

“Agora, os meus conselheiros militares dizem-me que aquilo que parece ser um exercício militar pode ser, de facto, um acto percursor de guerra. Como estabelecer a diferença? Os vossos barcos estão a passar a leste da Islândia e em breve estarão numa posição da qual podem ameaçar as nossas rotas comerciais para a Europa. A situação é, no mínimo, perturbadora e, no máximo, uma grave provocação contra a qual não temos a menor garantia. A envergadura desta acção ainda não foi tornada pública. Mas será e, quando for, Alex, o povo americano exigirá que eu tome uma atitude.

O presidente interrompeu-se, à espera de uma resposta; só obteve um aceno de cabeça.

Pelt continuou o discurso:

— Senhor embaixador, o seu país não hesita em ignorar um acordo durante anos, foi um modelo da cooperação Leste-Oeste. Como pode esperar que pensemos noutra coisa salvo numa provocação?

— Senhor presidente, Dr. Pelt, assegurou-lhes que não sei do que se passa. — Arbatov mentia com a maior sinceridade. — Falarei imediatamente com Moscovo para me informar. Há alguma mensagem que Pretendem que eu transmita?

— Há. Como o senhor e os seus superiores em Moscovo compreenderão — disse o presidente —, ordenaremos aos nossos barcos e aviões que vigiem os vossos; a prudência manda fazê-lo. Não temos a menor intenção de interferir em qualquer operação legítima em que as vossas forças estejam empenhadas. Não temos a menor intenção de vos provocar, mas, ao abrigo do nosso acordo, temos o direito de saber o que se passa, senhor embaixador. Enquanto não soubermos, não poderemos instruir os nossos homens em conformidade. O seu Governo faria bem em pensar que, estando tantos barcos vossos e nossos, os vossos aviões e os nossos, tão perto uns dos outros, se cria uma situação perigosa. Os acidentes acontecem. Uma acção de qualquer dos lados que noutra altura pareceria de todo inofensiva, pode parecer uma coisa muito diferente. Houve guerras que começaram assim, senhor embaixador. — O presidente recostou-se, dando tempo a Arbatov para digerir as palavras, antes de continuar em tom mais, cordato: — Claro que considero tal possibilidade remota, mas não será irresponsável correr um risco assim?

— Senhor presidente, a sua argumentação é, como sempre, convincente, mas bem sabe que o mar é livre e...

— Senhor embaixador — interrompeu Pelt —, vejamos uma comparação simples. O seu vizinho começa a patrulhar o seu jardim com uma espingarda, enquanto os seus filhos brincam. Nos EUA, isso seria absolutamente legal. Mesmo assim, porém, não ficaria preocupado’’

— Com certeza, doutor Pelt, mas a situação que descreve é muito diferente...

O presidente interrompeuo:

—Pois é. A situação com que nos defrontamos é muito mais perigosa. É a quebra de um acordo, o que interpreto como particularmente inquietante. Eu tinha a esperança de que havíamos entrado numa nova era das relações soviético-americanas. Resolvemos os nossos diferendos comerciais, firmámos mesmo um novo acordo sobre cereais, no qual o senhor desempenhou papel fundamental. Estávamos a progredir, senhor embaixador. Vai tudo voltar para trás? — O presidente abanou vigorosamente a cabeça. — Espero que não, mas a escolha é vossa. As relações entre os nossos dois países só podem basear-se na confiança.

“Senhor embaixador, não quis de modo algum alarmá-lo. Belt sabe que tenho o hábito de falar com franqueza. Detesto as hipocrisias diplomáticas. Estamos perante uma situação perigosa e devemos agir em conjunto, rapidamente, para a resolver. Os meus comandantes militares estão preocupadíssimos e eu preciso de saber—hoje, que intenção têm as vossas forças navais. Aguardo uma resposta até às sete da tarde. Se a não obtiver do senhor embaixador, pedi-la-ei directamente a Moscovo.

— Senhor presidente — disse Arbatov, levantando-se —, transmitirei a sua mensagem ao meu Governo imediatamente. Agradeço-lhe, no entanto, que tenha em atenção a diferença horária entre Washington e Moscovo...

— Bem sei que entramos em fim de semana e que a União Soviética é o paraíso dos trabalhadores, mas espero, apesar de tudo, que alguns dos seus chefes estejam a trabalhar. Não o demoro mais. Bom dia.

Pelt acompanhou Arbatov até à saída e regressou à sala, sentando-se.

— Se calhar, fui duro de mais — disse o presidente. —Pois foi, sir.

Pelt achara que tinha sido duríssimo. Não gostava dos russos, mas apreciava a delicadeza do comércio diplomático.

— Acho que podemos dizer que se explicou muito bem. —Ele sabe.

—Sabe. Mas não sabe que nós sabemos.

— Julgamos nós. — O presidente fez um trejeito. — Que jogo mais louco! E pensar eu que tinha uma bela e sossegada carreira à minha espera, a meter mafiosos na prisão... Acha que ele morde a isca que lhe lancei?

— “Operações legítimas”? Não o viu torcer as mãos? Vai engoli-la como um peixe engole uma minhoca. — Pelt serviu-se de meia chávena de café, saboreando também a louça de porcelana com orla dourada. — Que será que lhe vão chamar? Operações legítimas... Talvez uma missão de salvamento. Se admitirem tratar-se de um exercício, violarão o protocolo de notificação. Uma operação de salvamento justifica o nível de actividade, a rapidez com que foi desencadeada e a ausência de publicidade. A imprensa deles nunca se refere a este género de coisas. Palpita-me que vão dizer que é uma operação de salvamento, que desapareceu um submarino, por exemplo. Talvez vão ao ponto de dizer que se trata de um submarino nuclear.

— Não, não irão tão longe. Também temos aquele acordo para manter os nossos submarinos nucleares quinhentas milhas ao largo. Arbatov, se calhar, já tem instruções sobre o que nos deve dizer, mas procura ganhar tempo. Também é possível que não saiba de nada. Da maneira que eles compartimentam as informações... Não estaremos a sobreavaliar o talento fingidor de Arbatov?

—- Acho que não, sir. Um dos princípios da diplomacia é o de que é preciso saber alguma coisa para mentir convincentemente. O presidente sorriu.

— Bom, já tiveram tempo de mais para brincar. Oxalá a minha reacção, dando-lhes tempo, os não desaponte.

Não, sir. Alex estava com certeza à espera de ser corrido a Pontapé.

— Tive vontade de o fazer mais de uma vez. Nunca apreciei o diplomático de Arbatov. Há uma coisa nos russos... Lembram-me os patrões da Mafia que eu acusava em tribunal. A mesma cultura e boas maneiras, a mesma ausência de moralidade.

— O presidente abanou a cabeça; falava outra vez como um falcão. — Fique por perto, Jeff. George Farmer está a chegar, mas quero-o aqui quando o nosso amigo reaparecer.

Pelt tornou ao seu gabinete, reflectindo na observação do presidente. Era, disse consigo, cruelmente verdadeira. O mais violento insulto que se podia fazer a um russo instruído era chamar-lhe nekultwny, inculto — o termo não tem tradução rigorosa; todavia, os mesmos homens que se sentavam nos camarotes dourados da Ópera Estatal de Moscovo e choravam no fim da representação de Bons Gudunov eram capazes de rodar nos calcanhares e ordenar a execução ou o encarceramento de uma centena de homens sem pestanejar. Povo estranho, a quem a filosofia política tornava mais estranho ainda. Mas o presidente tinha muitas arestas a limar e Pelt desejava que ele aprendesse a limá-las. Discursar perante a Legião Americana era uma coisa, discutir com o embaixador de uma potência estrangeira era outra, completamente diferente.

Quartel-General da CIA

—CARDINAL está metido em sarilhos, juiz — disse Ritter, sentando-se.

—’Não admira.

Moore tirou os óculos e esfregou os olhos. Uma coisa que Ryan não vira era a mensagem secreta do chefe de posto em Moscovo, dizendo que, para enviar a sua última informação, CARDINAL ladeara parte do circuito de comunicação que ligava o Kremlin à Embaixada dos Estados Unidos. O agente, com a idade, tornava-se mais ousado.

— Que diz exactamente o chefe de posto?

—Parece que CARDINAL está hospitalizado com pneumonia. Talvez seja verdade, mas...

— Já é velho, e com um Inverno daqueles... Quem acredita, porém, em coincidências? — Moore pousou os olhos na secretária. — Que acha você que eles farão se o desmascararam?

— Vai morrer sem dar nas vistas. Depende de quem o desmascarou. Se foi o KGB, podem querer tirar partido da proeza, sobretudo agora que o nosso amigo Andropov levou com ele, ao sair, muito do prestígio da organização. Mas acho que não será assim. Tendo o protector que tem, o escândalo seria grande de mais. E o mesmo se passa se tiver sido desmascarado pelo GRU. Não, vão assá-lo durante uma5 semanas e, depois, desfazem-se discretamente dele. Um julgamento público seria contraproducente.

O juiz Moore franziu o sobrolho. Pareciam médicos a falar sobre um doente às portas da morte. Nem sequer imaginava o aspecto de

CARDINAL. Havia, algures, um retrato dele nos arquivos, mas nunca o tinha visto. Era melhor assim. Como juiz de apelação, nunca tivera de olhar um réu nos olhos; competia-lhe apenas examinar a sentença em posição de imparcialidade. Tentava dirigir a CIA no mesmo estilo. Moore não ignorava que este comportamento podia ser assimilado a cobardia, que era muito diferente daquele que as pessoas esperavam de um DCI, mas até os espiões envelhecem, e os velhos cultivam consciências e dúvidas que raramente perturbam os jovens. Era tempo de abandonar a “Companhia”. Quase três anos chegavam. Tinha feito o que esperavam que fizesse.

— Diga ao chefe de posto que esteja quieto. Nada de investigações sobre CARDINAL. Se estiver mesmo doente, teremos notícias dele mais tarde. Se não estiver, também não tardará que o saibamos.

— Muito bem.

Ritter conseguira confirmar o relatório de CARDINAL. Um agente informara que a esquadra tinha partido com suplemento de comissários políticos, outro que a força de superfície era comandada por um professor da Escola Naval e amigo íntimo de Gorshkov que voara para Severomorsk e embarcara no Kirov minutos antes de a esquadra zarpar. O arquitecto naval que se supunha ter concebido o Outubro Vermelho acompanhava-o, tanto quanto se julgava. Um agente britânico informara que os detonadores para as várias armas que guarneciam os barcos de superfície tinham sido retirados à pressa dos seus depósitos em terra. Por fim, havia uma informação não confirmada segundo a qual o almirante Korov, comandante da Esquadra do Norte, não se encontrava no seu posto de comando; o seu paradeiro era desconhecido. Todas estas informações bastavam para confirmar o relatório SALGUEIRO e mais estava ainda para vir.

A Academia Naval dos EUA

— Capitão?

—’Como está, almirante? Não quer sentar-se?

Tyler indicou-lhe uma cadeira do outro lado da mesa.

— Tenho uma mensagem do Pentágono para si. — O superintendente da Academia Naval, antigo oficial de submarinos, sentou-se. — Tem um encontro, esta noite, às 19 e 30. A mensagem não diz mais nada.

— Óptimo!

Tyler acabava de almoçar. Trabalhava no programa de simulação desde segunda-feira, praticamente sem descanso. A mensagem significava que teria acesso, naquela noite, ao Cray-2 da Força Aérea, o programa estava quase pronto.

— Que quer isto dizer, afinal?

— Desculpe, sir, mas não posso explicar-lhe. Sabe como é...

A Casa Branca

O embaixador soviético regressou às quatro da tarde. Para impedir que a imprensa soubesse do encontro, fora introduzido no edifício do Tesouro, do outro lado da rua, em frente à Casa Branca, e levado até esta por um túnel cuja existência poucas pessoas conheciam. O presidente esperava abalar-lhe os nervos com estas precauções. Pelt entrou a tempo de poder receber Arbatov.

—’Senhor presidente — disse Arbatov, perfilado o presidente não lhe conhecia experiência militar) —, recebi instruções para lhe manifestar quanto o meu Governo lamenta não ter tido tempo de o informar do seguinte: um dos nossos submarinos nucleares desapareceu e presumimos que esteja perdido. Neste momento, procedemos a uma operação de busca de emergência.

O presidente acenou de cabeça, discreto, indicando uma cadeira ao embaixador. Pelt sentou-se a seu lado.

— A situação é, de certo modo, embaraçosa, senhor presidente. Na nossa Marinha, como na vossa, as missões atribuídas à guarnição de um submarino nuclear são da maior importância e, por consequência, os escolhidos para as desempenhar contam-se entre os homens mais bem preparados e mais dignos de confiança. Neste caso particular, vários membros da tripulação — isto é, os oficiais—são filhos de altos funcionários do Partido. Um deles é mesmo filho de um membro do Comité Central... Não posso dizer o nome, evidentemente. O grande esforço da Marinha soviética para encontrar os seus homens é compreensível, embora um pouco indisciplinado, tenho de admitir. — Arbatov representava magnificamente o embaraço, falando como se revelasse um importante segredo de família. — O resultado de tudo isto foi uma operação na qual empenhamos todos os nossos meios. Como compreenderá, a decisão foi praticamente tomada de um momento para o outro.

— Estou a ver — disse o presidente, compreensivo. — Assim já me sinto um pouco mais tranquilo, Alex. Jeff, já é tarde, não é? Se nos arranjasse uma bebida? Bourbon, Alex?

— Está bem, obrigado, sir.

Pelt aproximou-se de um armário de pau-rosa, encostado à paredeA peça, antiga, continha um pequeno bar com um balde de gelo, cheio todas as tardes. O presidente gostava de tomar uma ou duas bebidas antes de jantar, coisa que fazia Arbatov sentir-se em casa

Pelt estava habituado a desempenhar as funções de bormon do presidente. Tornou ao sofá com três copos na mão.

—-Para lhe dizer a verdade, já suspeitávamos de que se tratava de uma operação de salvamento — disse Pelt.

—’Não percebo como é que se confiam missões tão delicadas a novatos.

O presidente provou a sua bebida; Arbatov tomou um bom gole. (Costumava dizer nas recepções que preferia o bourbon americano ao seu vodca. Talvez fosse verdade.

—Já perdemos dois submarinos nucleares, se me não engano — continuou o presidente. — E vocês? Três, quatro?

—’Não sei, senhor presidente. As suas informações a esse respeito devem ser melhores do que as minhas. — O presidente registou para consigo que Arbatov dissera pela primeira vez a verdade naquele dia. — É claro que concordo com o senhor. São missões perigosas e exigentes.

— Quantos homens a bordo, Alex? — perguntou o presidente.

—Não faço ideia. Mais ou menos cem, suponho. Nunca estive a bordo de um vaso de guerra.

— Na maioria garotos, se calhar, como acontece connosco. É, sem dúvida, triste ter de dizer que os nossos países, devido a suspeitas mútuas, condenam tantos dos nossos melhores jovens a tais riscos. E sabemos que alguns nunca mais regressam. Mas... como poderia ser de outra maneira?

O presidente interrompeu-se e virou-se para olhar pela janela. A neve derretia em South Lawn. Era altura de passar à segunda fase.

— Talvez possamos ajudar — sugeriu. — Sim, talvez possamos utilizar esta tragédia como uma oportunidade para reduzir em alguma medida as tais suspeitas. Talvez possamos fazer algo de bom para demonstrar que as nossas relações realmente melhoraram.

Pelt desligou-se da conversa, à procura do cachimbo. A sua amizade com o presidente levava já muitos anos, mas nunca percebera a sua ousadia. Pelt conhecera-o na Universidade de Washington, quando se diplomava em Ciências Políticas e o presidente frequentava os Preparatórios de Direito. Nessa época, o chefe do Executivo presidia ao grupo dramático. Sem dúvida que a sua experiência de amador teatral o ajudara na carreira de jurista. Dizia-se que pelo menos um Patrão da Mafia progredira à custa de pura retórica. O presidente considerava esta qualidade como a única apreciável no mafioso.

— Senhor embaixador, ofereço-lhe o auxílio e os recursos dos Estados Unidos para a operação de busca dos seus compatriotas desaparecidos.

— É muito amável, senhor presidente, mas...

— Não há mas, Alex — disse o presidente, erguendo a mão. — Se não podemos cooperar numa situação destas, como o poderemos fazer em questões mais graves? Devo recordar-lhe que, no ano passado quando um dos nossos aviões de patrulha se despenhou ao largo das Aleutas, um dos vossos barcos de pesca — uma traineira espia, na realidade — recolheu a tripulação, salvando-lhes a vida. Alex, estamos em dívida para com o seu país, uma dívida de honra, e os Estados Unidos não são ingratos. — Interrompeu-se, dramatizando o discurso. — Provavelmente estão todos mortos, bem sabe. Creio que as possibilidades de sobreviver a um acidente submarino não são maiores do que as de sobreviver à queda de um avião. Mas, pelo menos, as famílias dos tripulantes saberão que nos esforçamos. Jeff, temos equipamento especializado para operações de salvamento submarinas, não temos?

— Com tanto dinheiro que damos à Marinha, temos de ter. Tratarei disso com Foster.

— Muito bem — disse o presidente. — Alex, bem sei que não será legítimo esperar que um gesto tão insignificante desfaça as nossas suspeitas mútuas. A vossa história e a nossa conspiram contra nós. Mas por algum lado se há-de começar. Se apertamos as mãos no espaço ou sobre uma mesa de conferências, em Viena, certamente o poderemos também fazer neste caso. Darei as necessárias instruções aos meus comandantes, mal terminemos este encontro.

— Obrigado, senhor presidente — disse Arbatov, ocultando o seu nervosismo.

— E, por favor, apresente os meus respeitos ao presidente Narmonov e a minha solidariedade às famílias dos homens desaparecidos. Agradeço-lhe e a si também o ter-nos informado do que se passa.

—Com certeza, senhor presidente.

Arbatov levantou-se e saiu, depois de ter cumprimentado o presidente e o Dr. Pelt. Que pretendiam realmente os americanos? Prevenira Moscovo: digam que se trata de uma missão de salvamento e verão como eles querem logo ajudar. Era a estúpida época do Natal e os americanos eram doidos por dar a todas as histórias um fim feliz. Um disparate não lhe terem chamado outra coisa — o protocolo que fosse para o diabo.

Ao mesmo tempo, não podia deixar de admirar o presidente americano. Um homem estranho, muito aberto, todavia cheio de astúcia. Quase sempre amigável, mas sempre pronto a tirar partido das situações. Lembrou-se das histórias que a avó lhe contava acerca das ciganas que roubavam bebés. O presidente americano era muito russo.

— Bom — disse o presidente, depois de fechada a porta—, agora podemos trazê-los debaixo de olho sem que eles se possam queixar. Mentem e sabemos disso — mas eles não sabem que nós sabemos

E nós mentimos e eles certamente desconfiam, mas não sabem porquê. Meu Deus! E eu que lhe disse esta manhã que a ignorância do que se passava era perigosa! Jeff, tenho estado a pensar... Não me agrada nada ver tantos barcos nossos a operar ao largo da nossa costa. Ryan tinha razão: o Atlântico é o nosso oceano. Quero que a Força Aérea e a Marinha o cubram palmo a palmo! É o nosso oceano e eles têm de saber isso! — O presidente acabou a sua bebida. — Quanto ao submarino, quero que os nossos especialistas o estudem bem. E cá estaremos para os tripulantes que pretenderem desertar. Tudo muito discreto, claro.

— Claro. Bem vistas as coisas, ficar com os oficiais é o mesmo que ficar com o submarino. Um golpe de mestre.

— Mas a Marinha não vai querer largá-lo.

— Não sei como isso será possível sem eliminar os tripulantes... coisa que não podemos fazer.

— Pois não. — O presidente chamou o secretário pelo intercomunicador. — Quero falar com o general Hilton.

O Pentágono

O centro de computadores da Força Aérea ficava na subcave do Pentágono. A temperatura da sala era inferior a vinte e um graus. O suficiente para que Tyler sentisse a perna doer no contacto com a prótese de metal e plástico. Já estava, porém, habituado.

Tyler sentava-se à consola de controle. Acabava de ensaiar o programa chamado MOREJA, do nome do feroz animal que habita os rochedos oceânicos. O capitão Tyler orgulhava-se do seu talento como programador. Retirara o velho programa dos arquivos do Laboratório Taylor, adaptara-o à linguagem de computador do Departamento da Defesa, ADA—do nome de Lady Ada Lovelace, filha de Lord Byron— e, depois, actualizara-o. Para a maior parte dos técnicos, este trabalho demoraria um mês; ele fizera-o em quatro dias, trabalhando praticamente sem interrupção, não só porque o dinheiro constituía um atraente incentivo, mas também porque o projecto equivalia a um desafio profissional. Concluiu-o, satisfeito consigo próprio, tendo verificado que era capaz de resolver o impossível e ainda lhe sobrar tempo. Eram oito da noite. O MOREIA acabava de ser submetido a um teste de uma variável e resistira. Estava pronto.

Tyler nunca tinha visto o Cray-2, excepto em fotografia, e agradava-lhe a oportunidade de o poder utilizar. O Cray-2 era constituído Por cinco unidades de forma mais ou menos pentagonal, com cerca de um metro e oitenta de altura e um metro e vinte de largura. A unidade maior era o processador principal; as outras quatro eram memórias dispostas em cruz. Tyler escreveu no teclado, para introduzir as diversas variáveis. Para cada uma das principais dimensões do Outubro Vermelho — comprimento, largura e altura — introduziu dez valores numéricos discretos. Introduziu, depois, seis valores subtilmente diferentes, relativos à forma do casco e aos coeficientes prismático e de velocidade. Eram cinco os conjuntos das dimensões do túnel, o que dava origem a mais de trinta mil permutações possíveis. Escreveu depois dezoito variáveis de energia para cobrir a gama de sistemas de propulsão admissíveis. O Cray-2 absorveu esta informação e colocou cada número na posição devida. Estava pronto para funcionar.

— Okay — anunciou Ryan ao operador de sistemas, um sargento-ajudante da Força Aérea.

— Muito bem.

O sargento escreveu “XQT” no terminal e o Cray-2 começou a trabalhar. Tyler aproximou-se da consola do sargento.

— É um programa muito demorado, sír. — O sargento pousou uma nota de dez dólares em cima da consola. — Aposto dez dólares em como o meu pequenino responde em dez minutos.

— Nem pensar. — Tyler pousou a sua nota ao lado da do sargento. — Quinze minutos.

— Ganha o que ficar mais perto?

—’Está bem. Onde é a casa de banho?

— Saindo a porta, vira à direita, sir, desce o corredor e é à esquerda.

Tyler encaminhou-se para a porta. Desgostava-o não poder deslocar-se sem coxear, mas quatro anos depois do acidente o defeito já não o incomodava muito. Estava vivo e isso é que interessava. O acidente ocorrera numa noite fria e clara, em Groton, no Connecticut, a um quarteirão da entrada principal do estaleiro. Numa sexta-feira, às três da manhã, regressava a casa de carro, após um dia de vinte e quatro horas ocupado em preparar o submarino que comandaria para se fazer ao mar. O técnico civil tivera também um longo dia e parara para beber, conforme a polícia apurara mais tarde, coisa que fazia com excessiva frequência. Tinha entrado no carro, passado um sinal vermelho e batido de lado no Pontiac de Tyler, a oitenta quilómetros por hora. Para ele, o acidente havia sido fatal; o capitão tivera mais sorte. Estava num cruzamento e tinha luz verde; quando viu a frente do Ford a menos de meio metro da sua porta esquerda, era demasiado tarde. Não se lembrava de ter mergulhado contra a montra de uma loja de penhores; na semana seguinte, lutando contra a morte no hospital de Yale-New Haven, não se lembrava de nada. A única recordação que possuía era a de ter despertado oito dias depois, como viria posteriormente a saber, e de ver a mulher, Jean, a segurar-lhe a mão. Até essa altura, o seu casamento tinha sido difícil, coisa vulgar para oficiais de submarinos nucleares. A visão que teve não fora agradável — Jean de olhos injectados e cabelo desgrenhados mas nunca lhe parecera tão bela. Nunca antes tivera a noção de como Jean lhe fazia falta. Muito mais do que metade de uma perna.

— Capitão! Capitão Tyler!

O antigo comandante de submarinos virou-se, inseguro, e viu um oficial da Marinha, correndo na sua direcção.

— Johnnie Coleman! Como diabo estás tu?

Coleman era agora capitão, reparou Tyler. Tinham servido juntos por duas vezes, um ano no Tecumseh, outro no Shark. Coleman, perito em armas, comandara dois submarinos nucleares.

— Como vai a família, capitão?

—Jean está óptima. Tenho cinco filhos e outro a caminho.

— Fantástico! — Apertaram as mãos com entusiasmo. — Foste sempre um garanhão. Ouvi dizer que ensinavas em Annapolis.

— É verdade, e também me dedico um pouco à engenharia. —Que fazes aqui?

— Estou a trabalhar no computador da Força Aérea. A verificar uma nova configuração de barco para o Comando dos Sistemas Marítimos. — A versão era razoavelmente verdadeira. — E tu que fazes?

— Estou no gabinete do OP-02. Sou chefe de Estado-Maior do almirante Dodge.

— Sim?

Tyler ficou impressionado. O vice-almirante Sam Dodge era o OP-02. O gabinete do chefe-adjunto das operações navais da guerra submarina possuía controle administrativo sobre todos os aspectos das operações submarinas.

— E tens muito que fazer?

— Se tenho! Isto está a ficar feio.

— Feio? A que te referes? — Tyler não ouvia noticiários nem lia os jornais desde segunda-feira.

— Estás a brincar ou quê?

— Tenho estado a trabalhar neste programa de computador vinte e quatro horas por dia desde segunda-feira e já não recebo informações operacionais.

Tyler franziu o sobrolho. Ouvira qualquer coisa na Academia, mas não prestara grande atenção. Era do género de se concentrar apenas numa coisa de cada vez.

Coleman olhou o corredor num e noutro sentido. Era um fim de tarde de sexta-feira e estavam os dois sozinhos.

— Acho que te posso dizer. Os nossos amigos russos estão a realizar um exercício de grande envergadura. Têm toda a Esquadra do Norte no mar, ou quase. E submarinos por toda a parte.

— Para quê,

—Não sabemos ao certo. Parece que se entregam a uma grande operação de busca e salvamento. Não se sabe é do que andam à procura. Têm quatro Alfas a navegar a toda a velocidade em direcção à nossa costa, mais uma série de Victors e Charlies atrás deles. A princípio, pensámos que pretendiam bloquear as rotas comerciais, mas qual quê! Não quiseram saber delas para nada. Dirigem-se mesmo para a nossa costa e, seja lá o que for que tenham em mente, estamos a receber toneladas de informações.

—’Quantas unidades deslocam? — perguntou Tyler.

—Cinquenta e oito submarinos nucleares e aí uns trinta vasos de superfície.

— Meu Deus! O CINCLANT deve estar doido!

— Claro. Sabes como é, capitão. Temos toda a esquadra no mar. Os nossos marinheiros foram todos tirados da cama e correm a tomar posição. Os nossos Lockheed P-3 sobrevoam o Atlântico ou para lá se dirigem. — Coleman interrompeu-se. — Ainda tens acesso a informações secretas, não tens?

— Tenho. Como trabalho em Crystal City... Fiz um estudo sobre o novo Kirov.

— Sun, para isso é que tens jeito. Foste sempre um engenheiro de primeira. Sabes que o velho ainda fala daquele trabalho que fizeste no Tecumsehl Talvez consiga levar-te a falar com ele para ficares a saber o que se passa. Vou pedir-lhe.

Tyler fizera com Dodge o seu primeiro cruzeiro, após ter concluído o curso na Escola Naval. Procedera a uma delicada reparação no equipamento auxiliar de um reactor duas semanas antes do previsto, com um pouco de esforço criativo e algumas peças sobresselentes obtidas por baixo de mão. O feito valera-lhe, e a Dodge, um bonito louvor.

— Aposto em como o velho gostará de te ver. Quando é que acabas o trabalho aqui?

—Dentro de meia hora, mais ou menos. — Sabes onde estamos?

— Mudaram o OP-02?

—’Não, está no mesmo sítio. Telefona-me quando acabares. A minha extensão é o 78730. Agora tenho de ir.

— Está bem.

Tyler viu o seu velho amigo desaparecer no corredor e continuou em direcção à casa de banho, perguntando a si próprio que estariam os russos a fazer. Fosse o que fosse, era o suficiente para obrigar um almirante de três estrelas e um capitão de quatro listas a trabalhar numa noite de sexta-feira, na época do Natal.

—Onze minutos, cinquenta e três segundos e dezoito décimos, sir — disse o sargento, guardando as duas notas.

O computador produzira mais de duzentas páginas de dados. A folha de cima apresentava uma curva sinusoidal de soluções de velocidade

por baixo, a curva de previsão de ruído. As soluções individuais estavam inscritas nas outras folhas. As curvas eram, conforme previra, confusas. A curva de velocidade mostrava a maioria das soluções entre os dez e os doze nós, variando a gama total entre os sete e os dezoito. A curva de ruído era surpreendentemente baixa.

— Sargento, tem aqui uma máquina formidável.

— A quem o diz, sir. E digna de confiança. Nem uma única falha electrónica durante o mês todo.

— Posso telefonar?

— Com certeza, sir.

— Obrigado, sargento. — Tyler pegou no telefone mais próximo. — Ah... anule o programa.

— Muito bem. — O sargento dactilografou instruções. — O MOREIA... desapareceu. Guardou cópia, sir?

Tyler confirmou de cabeça e marcou um número.

— OP-02A, capitão Coleman. Johnnie, fala Tyler.

— Até que enfim! O velho quer ver-te. Podes vir já.

Tyler guardou a folha do computador na pasta, que fechou à chave. Agradeceu mais uma vez ao sargento antes de sair, coxeando e lançando um último olhar ao Cray-2. Precisaria de tornar ali.

Como não conseguisse encontrar um elevador em funcionamento, teve de subir, com algum esforço, uma pequena rampa. Cinco minutos depois, achou um marine a guardar o corredor.

— É o comandante Tyler, sir? — perguntou o guarda. — Pode identificar-se, por favor?

Tyler mostrou ao cabo o passe do Pentágono, perguntando a si próprio quantos antigos oficiais de submarinos só com uma perna existiriam ali.

— Obrigado, comandante. Ao fundo do corredor, por favor. Conhece a sala, sir?

— Conheço. Obrigado, cabo.

O vicenalmirante Dodge estava sentado ao canto de uma secretária, a ler mensagens em papel fino. Dodge era um homem baixo e combativo, que fizera a sua reputação no comando de três barcos e a orientar o longo programa de desenvolvimento dos submarinos de ataque da classe Los Angeles. Era agora “Grande Golfinho”, o almirante que travava todas as batalhas com o Congresso.

— Capitão Tyler! Que bom aspecto o seu, rapaz.—Dodge olhou furtivamente a perna de Tyler, ao aproximar-se para o cumprimentar. — Dizem-me que está a fazer um belo trabalho na Academia.

— Corre tudo bem, sir. Até me deixam espiar o râguebi.

— Uma pena não o deixarem espiar o Exército.

Tyler ergueu a cabeça, teatral.

— Mas eu espiei o Exército, sir. Este ano foram duríssimos. Ouviu falar no médio, não ouviu?

— Não. Que aconteceu? — perguntou Dodge.

— Meteu-se em brios, como era seu dever, e eles mandaram-uo para Fort Knox... não para estudar tanques, mas para ser um tanque.

— Ah, ah! — riu Dodge. — Johnnie diz que você tem uma data de filhos.

—O sexto deve nascer em Fevereiro — respondeu Tyler, orgulhoso.

— O sexto? Será você católico ou mórmon? Onde vai você parar com tanta incubação?

Tyler olhou de mau humor o seu antigo chefe. Nunca compreendera tal preconceito na Marinha nuclear. O responsável era Rickover, que tinha inventado o aviltante termo incubação para designar a procriação de mais de um filho. Que mal havia em ter filhos?

— Almirante, como já não sou marinheiro, tenho de fazer qualquer coisa à noite e nos fins-de-semana. — Tyler ergueu o sobrolho, lúbrico. — Dizem-me que os russos andam a brincar connosco.

Dodge assumiu de imediato uma expressão séria.

— Pois andam. Cinquenta e oito submarinos — todos os submarinos nucleares da Esquadra do Norte — navegando para aqui, mais um enorme grupo de superfície e a maior parte das unidades de apoio que têm.

— Para quê?

—’Se souber, diga-me. Venha cá ao meu santuário.

Dodge levou Tyler a uma sala onde havia outro novo dispositivo, um écran que mostrava o Atlântico Norte desde o Trópico de Câncer ao gelo polar. Nele estavam assinaladas centenas de barcos. Os mercantes eram brancos, com bandeiras identificando a nacionalidade; os soviéticos eram vermelhos e as suas formas indicavam o tipo de vaso; os americanos e os aliados eram azuis. O oceano começava a ficar atafulhado.

— Senhor!

— Pois é — corroborou Dodge, sombrio. — Que está você autorizado a saber?

— Informações ultra-secretas e algumas coisas especiais, sir. Vejo tudo o que temos sobre o equipamento militar soviético e trabalho para os Sistemas Marítimos.

— Johnnie disse-me que foi você quem fez o estudo do novo Kirov que eles acabam de mandar para o Pacífico. Nada mau, aliás.

— Estes dois Alfas rumam a Norfolk?

— Parece. E queimam neutrões que é uma beleza. — Dodge apon* tou-os. — Este navega para o estreito de Long Island como para bloquear a entrada de New London; este vai para Boston, penso. Estes Victors seguem-nos de perto. Já têm a maior parte dos portos britânicos debaixo de olho. Na segunda-feira, terão dois ou mais submarinos ao largo dos nossos principais portos.

—Não gosto nada disto, sir.

—Nem eu. Como vê, temos praticamente tudo no mar. O curioso é que... aquilo que eles pretendem não faz sentido. Eu...

O capitão Coleman entrou.

—’Vejo que recebeu o filho pródigo, sir — disse Coleman.

— Seja simpático com ele, Johnnie. Acho que ainda me lembro de quando ele era um razoável comandante de submarinos. Bom... A princípio, parecia que iam bloquear as SLOC, mas passaram adiante. Agora, com estes Alfas, podem tentar bloquear a nossa costa.

— E a ocidente qual é o panorama?

—’A ocidente, nada. Absolutamente nada, apenas rotina.

— Isso não faz sentido — objectou Tyler. — Pôr de parte metade da Armada... Claro que quando se parte para a guerra não se avisa o inimigo pondo todos os barcos a correr...

—Os russos são muito especiais, capitão — disse Coleman. —Almirante, se começássemos a disparar...

— Aleijávamo-los — disse Dodge. — Com tanto barulho que fazem, sabemos perfeitamente onde estão todos, ou quase. Ora, eles não ignoram isso. É o que me leva a pensar que não se trata de um acto de guerra. São suficientemente espertos para não se exporem assim... salvo se quiserem que pensemos o contrário.

— Já disseram alguma coisa? — perguntou Tyler.

— O embaixador diz que perderam um submarino e, como estão a bordo filhos de grandes chefões, que lançaram uma operação de salvamento, recorrendo a tudo o que têm. Se é verdade ou mentira...

Tyler pousou a pasta e aproximou-se do écran.

— Hun, admito que se trate de uma operação de busca e salvamento, mas... para quê bloquear os nossos portos? — Interrompeu-se, pensando rapidamente, enquanto corria os olhos pela parte de cima da imagem. — Sir, não vejo nenhum submarino equipado com mísseis.

— Estão atracados, todos, nos dois oceanos. O último Delta amarrou há poucas horas. É curioso, não é? — observou Dodge, tornando

a olhar o écran.

— Todos, sir? — perguntou Tyler o mais naturalmente possível. Algo lhe viera à ideia. A imagem mostrava o Bremerton no mar

de Barents, mas nem sinal da sua presa. Esperou um momento pela resposta. Como não obtivesse nenhuma, virou-se e viu os dois oficiais

a fitá-lo.

— Porque pergunta? — disse Dodge em voz afável.

A afabilidade, em Sam Dodge, podia ser uma luz vermelha de aviso. Tyler reflectiu rapidamente. Dera a sua palavra a Ryan. Poderia responder sem a pôr em causa e descobrir o que pretendia? Sim. Havia uma faceta de investigador no carácter de Tyler e, uma vez no limiar de uma descoberta, já não podia parar.

— Almirante, eles têm algum novo submarino no mar, um submarino equipado com mísseis?

Dodge empertigou-se. Mesmo assim, tinha de erguer os olhos para encarar Tyler. Falou em tom glacial.

— Onde foi, exactamente, que obteve essa informação, comandante? Tyler abanou a cabeça.

— Lamento, almirante, mas não posso dizer. É reservada, sir. Penso, no entanto, que o senhor deveria conhecê-la e farei por que assim aconteça.

Dodge mudou de táctica.

— Você trabalhou para mim...

O almirante sentia-se magoado. Quebrara as regras para mostrar uma coisa a um antigo subordinado, porque o conhecia bem e lamentava que não tivesse recebido o comando pelo qual tanto lutara. Tyler, tecnicamente, era um civil, não obstante vestir de azul-marinho. O que agravava a situação era o facto de Tyler saber qualquer coisa. Dodge facultara-lhe informações e Tyler não retribuía.

— Sir, dei a minha palavra — desculpou-se Tyler. — Tentarei que o senhor seja também informado, prometo. Posso telefonar?

Havia quatro telefones na sala. Dodge respondeu de mau modo:

— Lá fora,

Tyler saiu e sentou-se a uma secretária. Tirou a agenda do bolso do casaco e marcou o número do cartão que Ryan lhe dera. — Acres—respondeu uma voz feminina.

— Posso falar com o doutor Ryan, por favor?

— O doutor Ryan não se encontra aqui de momento.

— Então... com o almirante Greer, por favor. —Um momento, por favor.

— James Greer? — Dodge estava atrás dele. — É para ele que você trabalha?

—Fala Greer. Você chama-se Tyler?

— Chamo, sir.

—’Tem informações para me dar?

— Tenho, sir.

— Onde está?

— No Pentágono, sir.

— Venha para cá imediatamente. Sabe onde é? Os guardas da entrada principal estarão à sua espera. Despache-se, rapaz.

Greer desligou.

— Você trabalha para a CIA? — perguntou Dodge.

— Sir... não posso dizer. Agora, se me desculpa, tenho de dar umas informações...

— As minhas?

— Não, sir. Já as conhecia quando aqui entrei. É verdade, almirante. Tentarei pô-lo ao corrente do que se passa.

— Telefone-me — ordenou Dodge. — Estarei aqui toda a noite.

Quartel-General da CIA

A subida da Avenida George Washington foi mais fácil do que esperara. A velha auto-estrada abarrotava de pessoas que faziam compras, mas se deslocavam sem parar, embora lentamente. Saiu pela direita e viu-se frente ao posto da guarda da entrada principal da CIA. A barreira estava descida.

— Chama-se Tyler, Oliver W.? — perguntou o guarda. — Identifique-se, por favor.

Tyler passou-lhe o cartão de acesso ao Pentágono.

— Muito bem, comandante. Pare o carro em frente da entrada principal. Esperam-no lá.

Gastou dois minutos a atravessar zonas de estacionamento quase todas desertas, reluzindo da neve derretida na véspera, feita gelo. O guarda armado que o aguardava quis ajudá-lo a sair do automóvel. Tyler detestava ser ajudado. Dispensou-o com um gesto. Esperava-o outro homem sob o toldo da entrada. Indicaram-lhes o elevador.

O almirante Greer estava sentado no seu gabinete, diante do fogão de sala, meio adormecido, parecia. Tyler ignorava que o DDI acabava de regressar de Inglaterra havia poucas horas. O almirante abriu os olhos e ordenou ao seu agente de segurança, trajando à civil, que se retirasse.

— Deve ser o capitão Tyler. Sente-se aqui.

— Que belo fogo, sir.

— Devia apagá-lo. Olhar para o lume faz-me sono. Claro que era muito capaz de dormir agora mesmo. Então que tem para me dizer?

— Posso perguntar onde está Jack?

— Pode. Não está cá.

— Oh...

Tyler abriu a pasta e tirou as folhas do computador.

— Sir, fiz o programa para um modelo de comportamento deste Submarino russo. Posso saber como se chama?

Greer riu por entre dentes.

— Está bem, você merece. Chama-se Outubro Vermelho. Vai desculpar-me, mas... Há dois dias que não paro e o cansaço faz-me esquecer as boas maneiras. Jack diz que você é um génio. E a sua ficha pessoal diz a mesma coisa. Diga lá, então. Como é que funciona?

— Bem, almirante, temos aqui uma grande variedade de dados para escolher e...

—’Um resumo, comandante. Eu não brinco com computadores. Tenho quem me faça isso.

— Entre sete e dezoito nós, a melhor opção é de dez a doze. Nesta gama de velocidades, o nível de ruído é semelhante ao de um Yankee a seis nós, mas devemos ter em conta o ruído do reactor. Além disso, o tipo de ruído será diferente daquele a que estamos habituados. Estes modelos de impulsores múltiplos não produzem ruídos normais de propulsão; parecem gerar um ruído irregular harmónico. Jack falou-lhe nisto? Provém de uma onda de contrapressão nos túneis. Ao opor-se ao fluxo de água, provoca o ruído. Claro que não há maneira de o evitar. Os nossos especialistas gastaram dois anos tentando, e o que descobriram foi um novo princípio da hidrodinâmica. A água funciona praticamente como o ar num motor a jacto a baixa velocidade ou em ponto morto, só que a água não se comprime como o ar. Portanto, os nossos técnicos serão capazes de detectar qualquer coisa, mas uma coisa diferente daquelas a que estão habituados. Terão de se habituar a uma nova assinatura acústica. Isto mais a baixa intensidade do sinal faz o barco mais difícil de detectar do que todos os que eles actualmente possuem.

— Portanto, é isso...—disse Greer, folheando os papéis.

—’É, sir. Valia a pena os seus técnicos estudarem o modelo. O modelo — quer dizer, o programa — pode ser melhorado. Tive pouco tempo. Jack disse-me que o senhor estava com pressa. Posso fazer uma pergunta, sir?

— Experimente.

Greer recostou-se e esfregou os olhos.

— O... o Outubro Vermelho está no mar? Está, não está? Tentam localizá-lo, não é? — perguntou Tyler, inocente.

— Mais ou menos isso. Não conseguíamos descobrir para que serviam as tais portas. Ryan disse-nos que você era capaz de descobrir e parece que tinha razão. Merece o dinheiro, comandante. Estes dados talvez nos permitam encontrado.

— Almirante, penso que o Outubro Vermelho se prepara para qualquer coisa, provavelmente para desertar para os Estados Unidos.

Greer rodou a cabeça.

— Que o leva a pensar isso?

— Os russos têm em marcha uma operação naval de grande envergadura. Têm submarinos por todo o Atlântico e parece que tentam bloquear a nossa costa. A versão oficial é que se trata de uma operação de busca de um submarino desaparecido. Muito bem; só que, na segunda-feira, aparece-me Jack com fotografias de um novo submarino equipado com mísseis... e hoje venho a saber que todos os outros submarinos soviéticos do mesmo tipo foram mandados regressar à base. — Tyler sorriu. — São coincidências a mais, sir.

Greer virou-se e olhou o fogo. Acabava de entrar para a DIA quando o Exército e a Força Aérea tinham concluído o ousado ataque ao campo de prisioneiros de Song Tay, trinta e dois quilómetros a oeste de Hanói. O ataque saldara-se num malogro porque os norte-vietnamitas haviam reunido todos os pilotos capturados uma semana antes, algo que a fotografia aérea não podia determinar. Tudo o mais, porém, decorrera perfeitamente. Após ter penetrado centenas de quilómetros em território inimigo, a força atacante apareceu completamente de surpresa e apanhou muitos guardas do campo literalmente com as calças na mão. Os Boinas Verdes executaram uma perfeita manobra de cerco e limpeza. Mataram várias centenas de militares inimigos e sofreram apenas uma baixa ligeira, um tornozelo partido. O mais impressionante da missão, contudo, fora o segredo. A operação PARAFUSO tinha sido ensaiada durante meses e, a despeito da sua natureza e do seu objectivo, nem amigo nem inimigo suspeitava dela — até ao dia do assalto. Nesse dia, um jovem capitão dos serviços secretos da Força Aérea entrara no gabinete do seu general a perguntar se havia sido lançada uma operação no Vietname do Norte contra o campo de prisioneiros de guerra de Song Tay. O comandante, atónito, sondara detidamente o capitão e viera a saber que o jovem e brilhante oficial, tendo apanhado uma coisa aqui, uma coisa ali, acabara por obter um quadro integral do que se preparava. Factos desta natureza criavam úlceras pépticas aos oficiais de segurança.

— O Outubro Vermelho vai desertar, não vai? — insistiu Tyler. Se o almirante tivesse dormido o suficiente teria iludido a questão;

assim, a sua resposta foi um erro. — Foi Ryan quem lhe disse isso? —Não vejo Jack desde segunda-feira, sir. Palavra.

— Então onde obteve essa informação?

— Almirante, eu já vesti de azul-marinho. A maior parte dos meus amigos ainda veste. Tenho ouvidos — disse Tyler, fugindo à pergunta. — Percebi tudo há uma hora. Os russos nunca mandaram regressar à base todos os seus submarinos com mísseis ao mesmo tempo. Eu sei, costumava persegui-los.

— Jack pensa o mesmo que você — disse Greer, suspirando. — Ele está no mar, agora. Comandante, se disser isso a mais alguém, garanto-lhe que a sua outra perna vai ali para cima do fogão. Percebeu?

— Percebi, sir. Que vamos fazer ao submarino?

Tyler sorriu consigo, pensando que, como qualificado consultor do Comando dos Sistemas Marítimos, teria certamente oportunidade de ver um submarino russo por dentro.

—Devolvê-lo. Depois de o espiolharmos, claro. Mas podem acontecer muitas coisas que nos impeçam de o ver.

Tyler demorou algum tempo a entender o que ouvira.

— Devolvê-lo? Valha-me Deus! Mas porquê?

—Comandante, que pensa que está realmente a passar-se? Pensa que toda a tripulação de um submarino decidiu, de repente, cair nos nossos braços? — Greer abanou a cabeça. — O mais certo é serem apenas os oficiais, e talvez nem todos. E estarem a fazer os possíveis para a tripulação não se aperceber de que vem para aqui.

— Oh... — Tiller reflectiu. — Sim, isso faz sentido, mas... porquê devolvê-lo? Isto não é o Japão. Se alguém pousar aqui com os MlG-25 não vamos devolver o aparelho.

— Isto é muito diferente de apanharmos um caça desgarrado. O submarino vale um bilião de dólares, mais, se contar com os mísseis e as ogivas nucleares. E legalmente, diz o presidente, pertence-lhes. Portanto, se descobrem que o temos, pedi-lo-ão de volta e nós teremos de o entregar. Como vão saber que o temos? Pelos tripulantes que, não querendo desertar, pedirem para voltar a casa. Quem quiser regressar, regressa,

— Quem quiser regressar, sir, vai ver-se metido num penico de sarilhos, bem sabe... Desculpe, sir.

— Um grande penico. — Tyler não sabia que Greer era um “cavalo selvagem”, capaz de praguejar como um marinheiro. — Alguns quererão ficar, a maioria não. Têm família. Já sei o que me vai perguntar. Se não o podemos fazer desaparecer.

— Não foi ideia que não tivesse tido — respondeu Tyler.

—Nós também tivemos. Mas é impossível. Matar uma centena de homens? Mesmo que estivéssemos dispostos a fazê-lo, não o poderíamos esconder. No nosso tempo não se ocultam coisas dessas. Duvido até de que os soviéticos pudessem. Por outro lado, não é coisa que se faça em época de paz. Eis uma diferença entre nós e eles. Ponha estas razões pela ordem que lhe apetecer.

— Portanto, se não fosse a tripulação, ficávamos com ele...

—Sim, se pudéssemos escondê-lo. E se um porco tivesse asas, voava.

—Há muitos sítios para o esconder, almirante. Sou capaz de lhe dizer já uma série deles, aqui em Chesapeak. E se o submarino contornasse o Horn, poderíamos utilizar milhões de pequenos atóis, todos nossos.

— Mas a tripulação saberia e, quando regressasse a casa, diria aos chefes — explicou Greer, paciente. — E Moscovo pediria a sua devolução. Claro que teremos uma semana ou duas para realizar, digamos, inspecções de segurança e quarentena, para nos certificarmos de que não tentam introduzir cocaína no país. — O almirante riu. — Um almirante britânico sugeriu que invocássemos o velho tratado sobre tráfico de escravos. Não sei quem o invocou, na Segunda Guerra Mundial, para deitar a mão a um navio alemão que furara o bloqueio, pouco antes de entrarmos no conflito. De qualquer modo, ficaremos a saber muita coisa.

—’O melhor era ficar com ele, operá-lo, desmontá-lo...—disse Tyler em voz baixa, os olhos fitos nas chamas branco-alaranjadas do carvalho.

“Como poderíamos ficar com ele?”, perguntou a si próprio. Um ideia começou a formar-se na sua cabeça.

— Almirante, e se pudéssemos despachar a tripulação sem esta saber que tínhamos o submarino?

—Você chama-se Oliver Wendell Tyler, não é? Se você descendesse de Harry Houdini e não de um juiz do Supremo, eu... — Greer fitou o engenheiro. — Em que está a pensar?

Greer escutou atentamente a explicação de Tyler.

— Para isso, sir, a Marinha terá de actuar depressa. Precisamos da cooperação do almirante Dodge, e se os meus números relativamente à velocidade do submarino estiverem correctos, teremos de nos mexer sem perda de tempo.

Greer levantou-se e deu a volta ao sofá várias vezes para activar a circulação.

— Interessante... Mas praticamente não teremos tempo.

— Eu não disse que seria fácil, sir, disse que era possível.

— Ligue para casa, Tyler. Diga à sua mulher que fica aqui. Se eu não durmo esta noite, você também não. Há café ali atrás da secretária. Primeiro, tenho de telefonar ao juiz. Depois, falaremos com Sam Dodge.

O USS “Pogy”

— Pogy, aqui Black Gull 4. Estamos a ficar sem combustível. Temos de regressar à base—disse o coordenador táctico do Orion, sspreguiçando-se após dez horas de serviço à consola de controle. — Querem que levemos alguma coisa? Escuto.

— Sim, duas grades de cerveja — respondeu o comandante Wood, repetindo uma brincadeira habitual entre os P-3C e as tripulações dos submarinos. — Obrigado pelos dados. Vamos utilizá-los. Terminado.

Por cima, o Lockheed Orion acelerou e rodou para sudoeste. Os tripulantes a bordo beberiam mais uma ou duas cervejas ao jantar, em nome dos camaradas do submarino.

— Mr. Dyson, estabilize nos sessenta metros. Um terço da velocidade.

O oficial de quarto deu as ordens devidas, enquanto o comandante Wood examinava o quadro táctico.

O USS Pogy encontrava-se trezentas milhas a nordeste de Norfolk, aguardando a chegada de dois submarinos soviéticos da classe Alfa que sucessivas patrulhas aéreas anti-submarinas seguiam desde a Islândia. O Pogy tinha o nome de um famoso submarino da Segunda Guerra Mundial, o qual, por sua vez, o recebera de um peixe vulgar, a savelha. Achava-se no mar havia dezoito horas, acabado de sofrer minuciosa remodelação no estaleiro de Newport News. Praticamente tudo a bordo saíra direitinho da embalagem do fabricante ou fora produzido pelos hábeis operários navais de James River. Não queria isto dizer que tudo funcionasse impecavelmente. Muitos dispositivos tinham falhado de uma maneira ou outra no lançamento à água posterior à remodelação, na semana anterior, facto menos usual do que lamentável, pensava o comandante Wood. A tripulação do Pogy era também nova. Wood cumpria a sua primeira missão como comandante, depois de ter passado um ano à secretária, em Washington, e muitos dos marinheiros eram novatos, acabados de sair da escola de submarinos de New London, ainda a habituarem-se ao primeiro cruzeiro. Homens acostumados ao céu azul e ao ar livre levam tempo a adaptar-se ao regime vigente num canudo de aço com dez metros de diâmetro. Mesmo os homens experimentados tinham de se aclimatar ao novo barco e aos novos oficiais.

O Pogy atingira a velocidade máxima de trinta e três nós nos ensaios posteriores ao lançamento à água. Era muito para um submarino, mas pouco relativamente aos Alfas que aguardava. Como todos os submarinos americanos, a sua característica mais notável era o silêncio. Os Alfas não podiam saber da sua presença e constituiriam alvos fáceis para as suas armas, tanto mais que o Orion fornecera ao Pogy dados exactos para o tiro, algo que, em geral, leva tempo a calcular a partir do sonar passivo.

O capitão de corveta Tom Reynolds, imediato e coordenador de tiro, encontrava-se de pé junto do quadro táctico, com ar displicente.

— O mais próximo a trinta e seis milhas, o mais afastado a quarenta.

No quadro, os Alfas eram designados por Isca Pogy l e 2. Todos achavam divertida este denominação.

— Velocidade quarenta e dois? — perguntou Wood.

— Sim, comandante. — Reynolds estivera em contacto com o Black Gull 4 até este anunciar a sua intenção de regressar à base. — Poem

aqueles barcos a dar tudo por tudo. Para nós não há problema. Temos soluções adequadas para os dois... Zás! Que pretenderão eles?

— Segundo o CINCLANT, o embaixador diz que andam à procura

de um barco perdido.

A voz de Wood mostrava o que o comandante pensava desta

versão.

— Busca e salvamento? — Reynolds encolheu os ombros. — Devem pensar que perderam um submarino ao largo de Point Comfort, porque se não abrandam é lá que vão parar. Não tenho ideia de ver Alfas a operar tão perto da nossa costa. E o senhor?

— Também não.

Wood franziu o sobrolho. As duas grandes características dos Alfas eram a rapidez e o barulho. A doutrina táctica soviética utilizava-os sobretudo em missões defensivas: como “submarinos de intercepção”, protegiam os submarinos equipados com mísseis e, devido à alta velocidade que atingiam, eram capazes de atrair os submarinos de ataque americanos e fugir ao contra-ataque. Wood não dava grande coisa por esta doutrina, mas por ele estava bem.

— Se calhar pretendem bloquear Norfolk —• sugeriu Reynolds.

— É muito possível. De qualquer modo, ficamos quietinhos e deixamo-los passar! Terão de abrandar ao atravessarem a plataforma continental e nós iremos atrás deles, sem fazer barulho.

— Muito bem — disse Reynolds.

Se tivessem de disparar, pensaram os dois homens, descobririam finalmente o que valia um Alfa. Falava-se muito da resistência do titânio usado no casco, se realmente aguentaria o impacte de várias centenas de quilos de potente explosivo. Fora concebida uma ogiva de novo formato para o torpedo Mark 48, tendo em vista aquela resistência e também a do casco dos Typhoon, igualmente notável. Os dois oficiais puseram de parte a ideia. À missão que lhes fora cometida era a de perseguir, pela calada, os submarinos soviéticos.

O “E. S. Politovskiy”

O Isca Pogy 2 chamava-se, na Marinha soviética, E. S. Politovskiy. Este submarino de ataque da classe Alfa devia o seu nome ao oficial engenheiro da esquadra russa que circum-navegara o mundo ao encontro com o destino nos estreitos de Tsushima. Evgeni Sigismondavich Politovskiy tinha servido a Armada do czar com devoção e competência equivalente à de qualquer oficial da História; porém, no seu diário, descoberto anos mais tarde em Leninegrado, o brilhante oficial criticara, nos termos mais violentos, a corrupção e os excessos do regime em contraponto ao patriotismo altruísta que demonstrara navegando conscientemente para a morte. Deste modo se tornara um autêntico herói, cujo exemplo os marinheiros soviéticos deviam seguir; e o Estado baptizara em sua memória a obra-prima da engenharia soviética. Infelizmente, o Politovskiy não tivera melhor sorte do que Evgeni perante as armas de Togo.

A assinatura acústica do Politovskiy era, para os americanos, Alfa 3. Tratava-se de uma designação incorrecta, pois o submarino era o primeiro dos Alfas. Pequeno e afilado, atingira quarenta e três nós na terceira hora dos ensaios promovidos pelo construtor. Estes ensaios haviam sido interrompidos um minuto mais tarde, devido a um incrível contratempo: uma baleia de cinquenta toneladas atravessara-se-lhe no caminho e o Politovskiy chocara lateralmente com a monstruosa criatura. O impacte tinha destruído dez metros quadrados da chapa da proa, arruinado o sonar, torcido um tubo de torpedo e quase inundado o compartimento dos torpedos. Isto sem falar no abalo de praticamente todos os sistemas internos, desde o equipamento electrónico ao fogão da cozinha — e dizia-se que, fora outro o comandante que não o famoso professor de Vilnius, o submarino se teria perdido. Um fragmento de dois metros das costelas da baleia era agora objecto de museu no clube de oficiais de Severomorsk, testemunho dramático da resistência dos submarinos soviéticos. Os danos haviam demorado mais de um ano a reparar e quando o Politovskiy tornou ao mar já existiam outros dois Alfas. Dois dias após o segundo lançamento à água, nova e grave avaria no submarino: a turbina de alta pressão deixou por completo de funcionar. Foram precisos seis meses para a substituir. Desde então, mais três pequenos incidentes se tinham registado no submarino que para sempre conquistara a reputação de aziago.

O engenheiro-chefe Vladimir Petchukocov era membro leal do Partido e ateu confesso, mas era também marinheiro e, assim, profundamente supersticioso. Nos velhos tempos, o seu barco teria sido abençoado no lançamento à água e de cada vez que se fizesse ao mar. Uma cerimónia importante, com um sacerdote de barbas, nuvens de incenso e hinos evocativos. Navegava sem nada disso e lamentava-o. Precisava de sorte. Petchukocov tinha problemas com o reactor.

O reactor do Alfa era pequeno. Tinha de caber num casco relativamente pequeno. Era também muito potente para o seu tamanho e, nos últimos quatro dias, trabalhava a cem por cento. Coariam em direcção à costa americana a 42,3 nós, o máximo que o reactor de oito anos permitia. O Politovskiy tinha já marcada uma remodelação completa para os próximos meses: novo sonar, novos computadores e um novo sistema de controle do reactor. Petchukocov considerava uma irresponsabilidade — uma imprudência — puxar tanto pelo seu submarino, mesmo que tudo funcionasse na perfeição. Nunca um fora tão esforçado, nem sequer um novo. E, naquele, o material começava a ceder.

A bomba principal de arrefecimento de alta pressão do reactor começava a vibrar de modo sinistro, o que preocupava muito o engenheiro. Havia uma sobresselente, mas de potência inferior, e pô-la a trabalhar significava perder oito nós de velocidade. O reator do Alfa atingia a força máxima não através de um sistema de arrefecimento por sódio — como os americanos pensavam — mas através do funcionamento a uma pressão mais alta do que a de qualquer outro reactor flutuante e de um sistema revolucionário de transformação de calor que potenciava a eficiência térmica total do reactor em quarenta e um por cento, muito superior à de qualquer outro submarino. O preço disto, porém, era um reactor que, trabalhando à potência máxima, encostava o ponteiro ao risco vermelho de todos os indicadores— e, neste caso, o risco vermelho não era um mero símbolo. Significava perigo autêntico.

Este facto, somado à vibração da bomba, preocupava seriamente Petchukocov; uma hora antes, pedira insistentemente ao comandante que reduzisse a velocidade por umas horas, a fim de que a sua habilitada equipa de engenheiros pudesse efectuar reparações. Provavelmente não era mais do que um apoio deficiente e dispunham de peças sobressalentes. A bomba fora concebida para ser facilmente reparada. O comandante hesitara, disposto a concordar, mas o comissário político tinha lembrado que as ordens eram urgentes e explícitas: deviam chegar ao local determinado o mais depressa possível; fazer outra coisa seria “politicamente inconsistente”. E pronto.

Petchukocov lembrava-se do olhar raivoso do comandante. Para que servia um comandante se todas as ordens tinham de ser aprovadas por um lacaio político? Petchukocov era um comunista fiel desde que entrara para os Outubristas, em rapaz, mas... raios! De que serviam então os especialistas e os engenheiros? Pensaria o Partido que as leis da física podiam ser distorcidas pelos caprichos de um qualquer apparatchik com secretária de luxo e dacha nos arredores de Moscovo? O engenheiro praguejou consigo.

Encontrava-se sozinho junto do quadro principal de controle, na casa das máquinas, à popa do compartimento do reactor e do gerador/transformador de calor, este último instalado mesmo no centro de gravidade do submarino. O reactor tinha uma pressão de vinte quilos por centímetro quadrado. Só uma pequena parte desta pressão derivava da bomba. A pressão elevada provocava um ponto mais alto de ebulição no refrigerante. Neste caso, a água era aquecida acima de 900 graus centígrados, temperatura suficiente para produzir vapor, que acumulava no topo da câmara do reactor. As bolhas de vapor Pressionavam a água, por baixo, impedindo a produção de mais vapor.

O vapor e a água participavam num delicado equilíbrio. A água era perigosamente radiactiva em resultado da reacção de fissão que ocorria nas pilhas de urânio. A função dos controles das pilhas era regular a reacção, coisa delicada. No máximo, as pilhas absorviam menos de um por cento do fluxo de neutrões, o que, porém, era suficiente para permitir ou impedir a reacção.

Petchukocov seria capaz de recitar todos estes dados a dormir. Sabia desenhar de cor um diagrama rigorosíssimo de todo o sistema e compreender imediatamente o significado da mais pequena alteração nos instrumentos de leitura. Mantínha-se alerta no quadro de controle, os olhos atentos à miríade de mostradores e válvulas, uma das mãos no interruptor SCRAM, outra nos comandos do arrefecimento de emergência.

Ouvia a vibração. Era com certeza um apoio deficiente, deficiência que o funcionamento ia agravando; o apoio gastava-se cada vez mais. Se as chumaceiras cedessem, a bomba griparia e teriam de parar. Seria uma emergência, embora não propriamente perigosa. Significaria reparar a bomba, se pudessem — o que levaria dias e não horas, consumindo tempo precioso e peças sobresselentes. A situação não era brilhante — e Petchukocov não sabia que a vibração gerava ondas de pressão no refrigerante. Para utilizar o novo transformador de calor, o reactor do Alfa tinha de fazer circular rapidamente a água através das serpentinas e dos reflectores. Isto exigia uma bomba de alta pressão que respondia por setenta e cinco quilos do sistema total de pressão — quase dez vezes o que era considerado seguro nos reactores ocidentais. Com uma bomba tão potente, a casa das máquinas, já normalmente barulhenta a alta velocidade, era como uma caldeira gigante e a vibração da bomba perturbava o funcionamento dos instrumentos de controle. Os ponteiros oscilavam, reparou Petchukocov. Tinha e não tinha razão. Os indicadores de pressão vacilavam realmente devido às ondas de sobrepressão que percorriam o sistemaO engenheiro-chefe não se apercebeu do que verdadeiramente se passava. Estava de serviço havia demasiado tempo.

Na câmara do reactor, três ondas de pressão aproximavam-se da frequência à qual uma peça de equipamento produzia ressonância. Mais ou menos a meio da superfície interior da câmara, havia um anel de titânio, parte do sistema de arrefecimento de emergênciaHavendo uma fuga de refrigerante e após um SCRAM bem sucedido, abriam-se válvulas no interior e no exterior da câmara, que arrefeciam esta com uma mistura de água e bário ou, em última instância, com água salgada que podia circular no reactor — destruindo-o. Já uma vez se recorrera a tal expediente e, não obstante o seu custo, a decisão, tomada por um jovem engenheiro, permitira salvar um submarino da classe Victor de uma catastrófica fusão.

  1. válvula interior estava agora fechada, juntamente com o anel de titânio. As válvulas eram também de titânio, pois tinham de funcionar em condições, mesmo após prolongada exposição a alta temperatura e ainda porque o titânio era muito resistente à corrosão — a água, a alta temperatura era terrivelmente corrosiva. Um facto, porém, não fora tido na devida conta: o metal estava exposto a intensa radiação nuclear e aquela liga de titânio não era absolutamente estável sob prolongado bombardeamento de neutrões. O metal tornara-se quebradiço com os anos. As minúsculas ondas de pressão hidráulica batiam contra o obturador da válvula. A frequência da vibração da bomba foi-se alterando e começou a aproximar-se da frequência de vibração do obturador. Isto fez com que o obturador batesse cada vez com mais força contra o anel de retenção. O metal começou a estalar nos bordos.

Um michman no extremo da proa do compartimento foi o primeiro a ouvir um zumbido surdo que passava a antepara. A princípio, julgou tratar-se do ruído de fundo do altifalante do sistema PA e tardou a certificar-se. O obturador soltou-se do bocal de válvula. Era pequeno, apenas dez centímetros de diâmetro e cinco milímetros de espessura. Este tipo de válvula chama-se de borboleta e o obturador parecia realmente uma borboleta, flutuando e rodopiando no fluxo aquático. Se fosse de aço inoxidável, teria ido, com o peso, ao fundo; mas era de titânio, mais forte do que o aço e muito mais leve. O fluxo do refrigerante empurrou-o para cima, no sentido do tubo de exaustão.

A água arrastou o obturador para o tubo, que tinha um diâmetro interior de quinze centímetros e era feito de aço inoxidável, em secções de dois metros, para facilitar a substituição naquele espaço acanhado. O obturador foi rapidamente transportado até ao transformador de calor. Aqui, o tubo descrevia um ângulo de quarenta e cinco graus, para baixo, e o obturador foi momentaneamente retido. Metade da tubagem estava assim bloqueada e antes que um aumento de pressão pudesse desalojar o obturador, muitas coisas aconteceram — coisas de mais. Ao ser bloqueado, o fluxo de água gerou uma onda de contrapressão no tubo. A pressão total atingiu momentaneamente cento e setenta quilos, o que fez o tubo entortar uns milímetros. A pressão aumentada, a deslocação lateral de uma soldadura e o efeito Cumulado de anos de erosão do aço provocada por alta temperatura danificaram a junta. Abriu-se um orifício do tamanho de um ponto de lápis. A água que se escapou transformou-se instantaneamente em vapor, pondo em funcionamento alarmes no compartimento do reactor e nos espaços vizinhos. O orifício foi-se alargando na solda, aumentando rapidamente a fuga até que o refrigerante do reactor começou a jorrar como de uma fonte. Um dos jactos de vapor destruiu os fios indutores do controle do reactor.

Principiava uma catastrófica fuga de refrigerante.

O reactor ficou completamente despressurizado em três segundos Os seus muitos galões de refrigerante explodiram em vapor, que se libertou pelo compartimento. Doze alarmes soaram ao mesmo tempo no quadro principal de controle e, num relance, Vladimir Petchukocov enfrentou o seu último pesadelo. A reacção automática do engenheiro foi accionar o SCRAIM, mas o vapor na câmara do reactor tinha danificado o sistema de controle das pilhas e não havia tempo para resolver o problema. Petchukocov compreendeu de imediato que o seu barco estava condenado. Abriu os controles de refrigeração de emergência, deixando entrar água salgada na câmara do reactor. Começaram a soar alarmes por todo o submarino.

No centro de controle, à proa, o comandante apercebeu-se imediatamente do que se passava. O Politovskiy navegava a cento e cinquenta metros de profundidade. Devia trazê-lo para a superfície sem demora. Gritou ordens para o esvaziamento dos tanques de lastro e a colocação dos hidroplanos em posição de subida rápida.

O comportamento de emergência do reactor era regulado por leis físicas. Sem refrigerante para absorver o calor das pilhas de urânio a reacção nuclear parava—não havia água para atenuar o fluxo de neutrões. Isto, porém, nada resolvia porque o calor residual era suficiente para derreter tudo no compartimento. A água fria admitida na câmara combatia o calor, mas também retinha demasiados neutrões no núcleo do reactor. Assim se gerava uma reacção descontrolada que produzia ainda mais calor, mais do que qualquer porção de refrigerante poderia submeter. Aquilo que começara como uma fuga de refrigerante transformava-se em algo mais grave. Um acidente de água fria. Dentro de minutos, o núcleo do reactor derreter-se-ia e o Politovskiy tinha, entretanto, que subir à superfície.

Petchukocov manteve-se no seu posto, na casa das máquinas, fazendo o que podia. A sua vida, não o ignorava, estava perdida. Precisava de dar tempo ao comandante para trazer o barco à superfície.

Havia uma actuação prevista para aquele tipo de emergênciaBerrou ordens com vista a pô-la em prática. Só agravou a situação.

O electricista de serviço percorreu os painéis de controles eléctricos, accionando a alimentação de emergência, desligando a principal, porque a energia residual de vapor nos turbo-alternadores não duraria mais do que poucos segundos. Num movimento, o submarino ficou em absoluto dependente de baterias.

No centro de controle, os compensadores accionados por energia eléctrica no bordo de saída dos hidroplanos passavam automaticamente a controle electro-hidráulico. Este alimentava não só os pequenos compensadores, mas também os hidroplanos, que formaram logo um ângulo para cima, de quinze graus — e o submarino continuava a navegar a trinta e nove nós. Com todos os tanques de lastro livres de água por acção do ar comprimido, o submarino tornou-se muito leve e começou a subir como um avião que descola. Segundos passados, a tripulação, atónita, no centro de controle, sentiu o submarino formar um ângulo de quarenta e cinco graus com tendência para aumentar. Um momento mais tarde, procuravam enfrentar a situação. O Alfa subia quase na vertical, a cinquenta quilómetros por hora. Os homens e as coisas a bordo caíram para a popa.

No centro de controle das máquinas, à popa, um tripulante chocou contra o quadro eléctrico principal, provocando um curto-circuito com o corpo, e o submarino ficou sem energia. Um cozinheiro que estivera a inventariar equipamento de emergência na sala de torpedos, à proa, conseguiu introduzir-se no tubo de salvamento, enquanto se esforçava por enfiar o fato anti-radiação. Embora tivesse apenas um ano de experiência, não tardou a compreender o significado dos estridentes alarmes e do estranho comportamento do submarino. Fechou precipitadamente a escotilha e começou a manobrar os controles de fuga, conforme aprendera na escola naval.

O Politovskiy emergiu na superfície do Atlântico como uma baleia perfurante e mostrou três quartos do seu comprimento antes de se despenhar.

O USS “Pogy”

— Comando, sonar.

— Fala o comandante.

—É melhor ouvir isto, comandante. O Isca 2 endoideceu.

Wood entrou na sala do sonar segundos mais tarde. Levou ao ouvido um auscultador ligado a um gravador. O comandante Wood ouviu o som de água a correr. O ruído dos motores parou. Momentos depois houve uma explosão de ar comprimido e uma sucessão de estalos de casco, anunciando um submarino a mudar rapidamente de nível.

— Que se passa? — perguntou Wood, alarmado.

O “E. S. Politovskiy”

No reactor do Politovskiy a fissão descontrolada aniquilara já virtualmente a água do mar e as pilhas de urânio. Os despojos acumuulavam-se na parede da proa da câmara do reactor. Num minuto, formou um charco de um metro de largo de escória radiactíva, o suficiente para constituir a sua própria massa crítica. A reacção continuou sem abrandar, atacando desta vez directamente o duro aço inoxidável da câmara. Nada que tivesse saído das mãos do homem poderia resistir a cinco mil graus de calor directo. Em dez segundos, a parede da câmara cedeu. A massa de urânio libertou-se contra a antepara da popa.

Petchukocov percebeu que estava morto. Viu a tinta da antepara da proa escurecer e a sua última imagem foi a de uma massa negra cercada de azul brilhante. O corpo do engenheiro vaporizou-se passado um instante, e a massa de escória avançou até à antepara seguinte da popa.

À proa, o ângulo quase vertical do submarino atenuou-se. O ar, a alta pressão, nos tanques de lastro jorrou das comportas do fundo; os tanques encheram-se de água, anulando o ângulo do barco e submergindo este. À proa do submarino, homens gritavam. O comandante ergueu-se, vacilante, ignorando a perna partida, tentando comandar, organizar os seus homens, abandonar o submarino antes que fosse demasiado tarde, mas a sorte de Evgeni Sigismondavich Politovskiy impor-se-ia uma última vez ao barco que o homenageava. Só um homem escapou. O cozinheiro abriu a escotilha do tubo de salvamento e saiu. Executando o que aprendera nos exercícios, começou a fechar a escotilha para outros camaradas seus poderem utilizar o tubo, mas uma vaga arrastou-o para longe do casco, enquanto o submarino se afundava.

Na casa das máquinas, a mudança de ângulo fez o núcleo derretido do reactor cair sobre a coberta. A massa quente atacou primeiro a coberta de aço, consumiu esta e chegou ao casco de titânio. Cinco segundos depois, a casa das máquinas estava exposta ao mar. O maior compartimento do Politovskiy foi rapidamente inundado. A água destruiu a já reduzida capacidade de flutuação do barco e o ângulo agudo de descida foi reposto. O Alfa iniciou o seu último mergulho.

A popa mergulhou exactamente quando o comandante conseguia que a tripulação do centro de controle reagisse outra vez às suas ordens. O comandante bateu com a cabeça numa consola de instrumentos. As ténues esperanças que a tripulação pudesse ter morreram com ele. O Politovskiy despenhava-se de popa, a hélice rodando ao contrário, ao encontro do fundo do mar.

O “Pogy”

— Comandante, eu estive no Chopper, em sessenta e nove — disse o chefe de sonar do Pogy, referindo-se a um horrível acidente num submarino a diesel.

— É o que parece ser — disse o comandante.

Wood escutava agora o sonar directo. Não podia haver engano. O submarino estava a ser inundado. Tinham ouvido o reenchimento dos tanques de lastro, o que só podia significar estarem os compartimentos interiores cheios de água. Se estivessem mais perto, teriam talvez escutado os gritos dos homens no casco condenado. Wood felicitou-se por não ouvir. A entrada em jorro da água era já um som pavoroso de mais. Morriam homens. Russos, o inimigo, porém homens como ele — e não podia fazer nada.

O Isca 1, verificou, avançava, ignorante do que acontecera ao seu irmão.

O “E. S. Politovskiy”

O Politovskiy demorou nove minutos a percorrer os seiscentos metros até ao leito oceânico. Chocou violentamente contra a areia dura no bordo da plataforma continental. As anteparas inferiores resistiram, numa homenagem aos construtores. Todos os compartimentos da zona do reactor, à popa, foram inundados, e metade da tripulação sucumbiu aí, mas os compartimentos da proa mantiveram-se secos — maldição e não bênção. Inutilizadas as reservas de ar à popa e apenas dispondo de baterias de emergência para alimentar os complexos sistemas de controle ambiental, os quarenta homens tinham uma quantidade limitadíssima de ar. Haviam sido poupados à morte rápida por despenhamento no Atlântico Norte para enfrentarem a morte, mais lenta, por asfixia.

 

                     Sábado, 11 de Dezembro

                     O Pentágono

Uma ordenança feminina de primeira classe abriu a porta a Tyler. O general Harris encontrava-se de pé junto da mesa dos mapas, reflectindo sobre o posicionamento de pequenos modelos de barcos.

— Deve ser o capitão Tyler — disse Harris, erguendo os olhos.

— Exactamente, sir.

Tyler mantínha-se tão rigidamente em sentido quanto a perna postiça lhe permitia. Harris aproximou-se logo para o cumprimentar.

—Greer disse-me que você jogava râguebi.

—É verdade, general, fui médio direito em Annapolis. Bons tempos!

Tyler sorriu, flexionando os dedos. Harris parecia um monstro de aço.

— Se jogou râguebi, pode tratar-me por Ed. — Harris socou-o amigavelmente no peito. — O seu número era o setenta e oito e fez parte da selecção, não fez?

—Na segunda série. É bom saber que ainda há quem se lembre.

— Eu estive temporariamente em serviço na Academia, por uns meses, nessa época, e vi alguns jogos. Nunca esqueço um bom avançado. Eu joguei com as equipas federadas, em Montana. Que aconteceu à perna?

— Um condutor bêbado levou-ma. Tive sorte. O bêbado, não. —Bem feito.

Tyler concordou de cabeça, mas lembrou-se de que o operário naval bêbado tinha mulher e filhos, segundo a polícia. —Não está cá mais ninguém?

— Os chefes estão na habitual — bem, habitual num dia de semana, não ao sábado — sessão de informação. Não tardam a descer. Então você ensina engenharia em Annapolis?

— É verdade, sir. Doutorei-me.

— Chamo-me Ed, capitão. E vem hoje explicar-nos de que modo podemos ficar com esse vagabundo submarino russo, não é?

—É, sir... Ed.

—Já me vai explicar tudo. Primeiro, tomemos café.

Os dois homens dirigiram-se a uma mesa de canto, com café e donuts. Harris escutou Tyler durante cinco minutos, sorvendo o seu café e devorando dois donuts com doce. Precisava de comer bem para alimentar aquele corpo.

— Sim, senhor — observou o J-3 quando Tyler acabou, aproximando-se do mapa.—É interessante... A sua ideia depende muito da nossa capacidade de prestidigitação. Teremos de os manter afastados do sítio onde vamos executar a manobra. Por aqui, diz você?

Apontou um local no mapa e Tyler respondeu:

—Sim, general. Pelo modo como eles parecem operar, podemos fazer a coisa para o largo...

—>E trocamos-lhe duplamente as voltas. Gosto! Gosto disso! Dan póster é que não vai gostar de perder um dos nossos barcos.

— Acho que vale a pena.

— Eu também, mas os barcos não são meus. E, depois, onde o escondemos... se o apanharmos?

— Há óptimos sítios mesmo aqui em Chesapeak Bay, general. Há um local fundo no York River e outro no Patuxent, ambos sob a alçada da Marinha, ambos assinalados com “Zona Proibida” nos mapas. Não esqueçamos que os submarinos são feitos para não se verem. Arranja-se um sítio fundo e enchem-se os tanques. Temporariamente, claro. Para uma permanência mais longa, temos Truk ou Kwajalein, no Pacífico, por exemplo. Sítios bons e isolados.

— E os soviéticos não dariam pelo aparecimento de um submarino e de trezentos técnicos de submarinos assim de repente? Por outro lado, essas ilhas já não são propriamente nossas.

Tyler não esperara que Harris fosse ingénuo e preparara-se para as objecções.

— Admitamos que o descobrem daqui por uns meses; que farão? Anunciarão a descoberta ao mundo? Não acredito. Nessa altura, já teremos toda a informação que nos interessa e podemos sempre apresentar os oficiais desertores numa vistosa conferência de imprensa. Teriam interesse nisso? E, depois, vamos desmontá-lo, acho eu, não vamos ficar sempre com ele. O reactor irá para Idaho, para ser testado. Os mísseis e as ogivas serão retirados. A aparelhagem electrónica irá ser submetida a exame na Califórnia, e a dA, a NSA e a Marinha andarão à bulha para ficarem com a aparelhagem cripto. O casco nu afundamo-lo num sítio conveniente. Desaparecem as provas. Não precisamos de guardar segredo para sempre; só por uns meses.

Harris pousou a chávena.

— Terá de me desculpar por eu fazer o papel de advogado do diabo. Vejo que pensou em tudo. Óptimo, acho que merece ser estudado. Vai implicar a coordenação de muitos meios, mas isso não interferirá com o que já estamos a fazer. Pronto, tem o meu voto. Os chefes de Estado-Maior chegaram três minutos depois. Tyler nunca vira tantas estrelas numa sala.

— Queria falar connosco em conjunto, Eddie? — perguntou Hilton.

— Queria, general. Este é o doutor Tyler.

O almirante Foster aproximou-se para o cumprimentar.

— Ah, foi o senhor que arranjou os dados sobre o comportamento do Outubro Vermelho que acabamos de conhecer. Bom trabalho, comandante.

— O doutor Tyler pensa que devemos ficar com ele, se lhe pudermos deitar a mão — explicou Harris sem rodeios. — E pensa também que há maneira de o conseguir.

— Já pensámos em matar a tripulação — disse o comandante Maxwell—, mas o presidente não deixa.

— Meus senhores, e se eu lhes dissesse que há um processo de mandar os tripulantes para casa sem saberem que nós ficamos com o submarino? A questão é esta. Temos de devolver os tripulantes à Mãe-Rússia. Eu digo que isso é possível. Resta saber onde ocultar o submarino.

— Somos todos ouvidos — disse Hilton, desconfiado.

— Teremos de andar depressa para arranjar tudo. Precisamos do Avalon, da Costa Oeste. O Mystic já está a bordo do Pigeon, em Charleston. Precisamos dos dois e de um velho submarino que já não nos faça falta. Estes são os meios. O verdadeiro segredo da operação tem a ver com a programação e... precisamos de o encontrar. Talvez seja isto o mais difícil.

— Talvez não — disse Foster. — O almirante Gallery informou esta manhã que o Dállaspode muito bem estar em cima dele. O relatório encaixa perfeitamente no seu modelo de comportamento. Saberemos mais pormenores dentro de dias. Continue.

Tyler explicou. Durante dez minutos respondeu a perguntas e serviu-se do mapa para traçar limites de espaço e de tempo. Quando acabou, o general Barnes ligou para o chefe do Comando Aéreo Militar. Foster saiu para falar com Norfolk e Hilton partiu para a Casa Branca.

O “Outubro Vermelho”

Exceptuando os que estavam de quarto, todos os oficiais se encontravam na sala. Em cima da mesa havia bules de chá, intactos. A porta foi fechada à chave.

— Camaradas — anunciou Petrov —, a segunda série de distintivos estava contaminada, mais do que a primeira.

Ramius notou a inquietação de Petrov. Não era a primeira série de distintivos, nem a segunda; era a terceira e a quarta, desde a partida. Escolhera bem o seu médico.

— Distintivos falsificados — resmungou Melekhin. — Algum safado de um brincalhão em Severomorsk... ou um espião imperialista que se lembrou de uma gracinha típica do inimigo. Quando apanharem o filho da mãe, hei-de matá-lo eu próprio... seja quem for! Isto é traição!

— Os regulamentos exigem que eu informe do sucedido — lembrou Petrov. — Mesmo que os instrumentos indiquem níveis seguros.

— Registo a sua fidelidade às regras, camarada doutor. Agiu correctamente — disse Ramius. — E agora os regulamentos mandam que façamos outra vistoria. Melekhin, quero que a faça pessoalmente, com Borodin. Verifiquem primeiro os instrumentos de radiação. Se estiverem a trabalhar bem, teremos a certeza de que os distintivos são defeituosos... ou foram falsificados. Se assim for, o meu relatório sobre o caso exigirá a cabeça de alguém. — Os operários navais bêbados sabiam o que era serem encarcerados no gulag. — Camaradas, na minha opinião não há motivo para preocupação. Se houvesse uma fuga, o camarada Melekhin tê-la-ia descoberto há dias. Bom! Agora temos trabalho a fazer.

Regressaram à sala de oficiais meia hora depois. Tripulantes que passavam repararam e, a seguir, vieram os murmúrios.

— Camaradas — anunciou Melekhin —, temos um grave problema. Os oficiais, em particular os mais jovens, chegaram a empalidecer.

Sobre a mesa via-se um contador Geiger desmontado numa vintena de peças. Junto estava um detector de radiação retirado da antepara do compartimento do reactor, a tampa de inspecção removida.

— Sabotagem — sibilou Melekhin.

A palavra era suficientemente terrível para fazer que qualquer cidadão soviético estremecesse. A sala caiu num silêncio mortal e Ramius notou que Svyadov se esforçava por controlar a expressão.

—’Camaradas, mecanicamente falando, estes instrumentos são do toais simples que há. Como sabem, este contador tem dez posições. Podemos escolher entre dez gamas de sensibilidade, usar o mesmo instrumento para detectar uma fuga menor ou para quantificar uma grande fuga. Fazemos isso regulando este selector que põe em funcionamento um de dez resístores eléctricos de valor crescente. Uma criança podia perfeitamente conceber isto, reparar este aparelho e assegurar a sua manutenção. — O engenheiro-chefe tocou no lado de baixo do selector. — Ora, neste caso, os resístores foram substituídos. Os resístores um a oito têm a mesma impedância. Todos os nossos contadores foram inspeccionados pelo mesmo técnico, três dias antes de largarmos. Aqui está a folha de inspecção.

Melekhin lançou-a para cima da mesa com desdém.

— Ele ou outro espião sabotaram este e todos os contadores que examinei: um homem habilidoso não teria precisado de mais de uma hora para o fazer. No caso deste instrumento — o engenheiro virou o detector fixo ao contrário — podem ver que os componentes eléctricos foram desligados, excepto o circuito de ensaio, que foi reconstituído. Borodin e eu tirámos isto da antepara da proa. Isto é trabalho de especialista, não é de amador. Estou convencido de que um agente imperialista sabotou o nosso barco. Primeiro, danificou os nossos instrumentos de controle de radiação, depois, provavelmente, provocou uma pequena fuga na nossa tubagem quente. Parece, portanto, que o camarada Petrov tinha razão. Podemos mesmo ter uma fuga. As minhas desculpas, doutor.

Petrov sacudiu a cabeça, nervoso. Dispensava bem cumprimentos daqueles.

— Exposição total, camarada Petrov? — perguntou Ramius.

— A maior é para os homens das máquinas, claro. O máximo é de cinquenta rads para os camaradas Melekhin e Svyadov. Os outros tripulantes do sector têm entre vinte e quarenta e cinco rads. A exposição acumulada cai rapidamente, à medida que nos deslocamos para a proa. Os homens dos torpedos só apresentam cerca de cinco rads, na maior parte um valor inferior a este. Os oficiais-engenheiros andam entre dez e vinte e cinco. — Petrov interrompeu-se, impondo-se uma atitude mais positiva. — Camaradas, as doses não são letais. Na verdade, pode-se tolerar uma dose até cem rads sem efeitos fisiológicos a curto prazo e pode-se sobreviver a várias centenas. Enfrentamos um problema grave, mas que está ainda longe de pôr em perigo as nossas vidas.

— Melekhin? — perguntou o comandante.

— É o meu sector, a responsabilidade é minha. Ainda não sabemos se temos uma fuga. Os distintivos podem ser realmente defeituosos ou ter sido sabotados. Pode tratar-se de uma perversa manobra psicológica, arquitectada pelo inimigo principal para minar o nosso moral. Borodin ajudar-me-á. Repararemos os instrumentos e procederemos a uma vistoria completa de todos os sistemas do reactor. Já sou velho de mais para ter filhos. Para já, sugiro que desactivemos o reactor e continuemos com bateria. A vistoria levará, no máximo, quatro horas. Concorda, comandante?

— Certamente, camarada. Sei que não há nada que não saiba reparar.

— Desculpe, comandante — interveio Ivanov. — Informamos da situação o comando da esquadra?

— Temos ordens para não quebrar o silêncio rádio — disse Ramius.

— Se os imperialistas foram capazes de sabotar os nossos instrumentos... E se eles já conheciam as nossas ordens e tentam obrigar-nos

a usar a rádio para nos localizarem? — perguntou Borodin.

— É uma possibilidade — admitiu Ramius. — Primeiro, vamos apurar se temos um problema, depois a sua gravidade. Camaradas, temos uma óptima tripulação e os melhores oficiais da esquadra. Enfrentaremos os nossos problemas, vencê-los-emos e continuaremos a nossa missão. Temos um encontro marcado em Cuba e não tenciono faltar. Para o diabo com as maquinações imperialistas!

—’Bem dito — apoiou Melekhin.

—Camaradas, isto ficará entre nós. Não há motivo para alarmar a tripulação por causa do que pode não ser nada ou um problema que estamos em perfeitas condições de resolver.

Ramius encerrou a reunião. Petrov estava menos seguro do que o comandante e Svyadov esforçava-se por não tremer. Deixara uma namorada na pátria e queria ter filhos. O jovem tenente fora cuidadosamente treinado para compreender tudo o que acontecia nos sistemas do reactor e para actuar quando algo corresse mal. E, de certo modo, era uma consolação saber que a maior parte das soluções para os problemas dos reactores que se encontravam nos manuais deviam-se a alguns dos homens presentes naquela sala. Mesmo assim, algo que não podia ser nem visto nem sentido invadia-lhe o corpo e ninguém no seu juízo gostava disso.

Suspensa a reunião, Melekhin e Borodin dirigiram-se à popa, ao armazém de peças. Acompanhava-os um núchman electricista para escolher os componentes. O núchman reparou que consultavam, no manual de manutenção, a parte relativa aos detectores de radiações. Quando saiu de serviço, uma hora mais tarde, toda a tripulação ficou a saber que o reactor fora de novo desactivado. O electricista conversou com o companheiro de beliche, um técnico de manutenção de mísseis. Falaram sobre os motivos que impunham o conserto de seis contadores Geiger e outros instrumentos, e a conclusão a que chegavam foi óbvia,

O contramestre do submarino ouviu a conversa e reflectiu na conclusão. Andava em submarinos havia dez anos. Apesar disso, não era um homem instruído e considerava a actividade na zona do reactor como coisa de bruxas. O reactor fazia funcionar o barco; como, não sabia, embora estivesse certo de que havia naquilo tudo algo de diabólico. Começou a pensar se os demónios que nunca vira dentro do tambor de aço não teriam fugido. Duas horas passadas, a tripulação sabia que algo corria mal e que os oficiais ainda ignoravam como resolver o prolblema.

Os cozinheiros que levavam a comida da cozinha para a zona dos tripulantes detinham-se o mais que podiam à proa. Os homens de quarto no centro de controle mexiam-se mais do que o costume, reparou Ramius, ansiando por saírem de serviço.

O USS “New Jersey”

Uma pessoa custava a habituar-se, reflectiu o comodoro Zachary Eaton. Quando o seu navio-almirante fora construído, brincava ele com barquinhos na banheira. Então, os russos eram aliados, mas aliados de conveniência, que partilhavam um inimigo comum, não um objectivo comum. Como os chineses, agora. Então, os inimigos eram alemães e japoneses. Na sua carreira de vinte e seis anos, estivera nos dois países muitas vezes, e o seu primeiro comando, um contratorpedeiro, atracara em Yokosuka. Um mundo estranho.

O seu navio-almirante tinha belas qualidades. Grande como era, o seu movimento em mares com vagas de três metros quase o fazia esquecer-se de que navegava. A visibilidade era de cerca de dez milhas e algures, a oitocentas milhas, encontrava-se a esquadra russa. O seu couraçado ia enfrentá-la como nos velhos tempos, como se os porta-aviões não existissem. Os contratorpedeiros Caron e Stumps estavam à vista, a cinco milhas de cada lado da proa. Mais à frente, os cruzadores Biddle e Waínwríght faziam pesquisa de radar. A sua força de superfície marcava passo em vez de avançar como desejaria. Ao largo da costa, de Nova Jérsia, o porta-helicópteros Tarawa e duas fragatas corriam ao seu encontro, trazendo dez caças Harrier AV-8B e catorze helicópteros ASW para reforçarem o seu poder aéreo. Era útil, mas Eaton não ficaria excessivamente preocupado se não aparecessem. A esquadrilha do Saratoga operava agora ao largo do Maine, juntamente com uma boa colecção de aviões da Força Aérea, trabalhando no duro para aprenderem a combater no mar. O HMS Invindble encontrava-se duzentas milhas a leste, executando agressivas patrulhas de ASW, e oitocentas milhas a leste desta força havia o Kennedy, oculto por uma frente de nuvens, ao largo dos Açores. Era, de certo modo, aborrecido para o comodoro ver os ingleses a ajudar. Desde quando a Marinha dos EUA precisava de ajuda para defender a costa americana? Claro que nos devem favores...

Os russos tinham-se dividido em três grupos, com o porta-aviões Kiev a leste, para enfrentar o grupo de batalha do Kennedy. A Eaton competia, em princípio, haver-se com o grupo do Moskva; o do Kirov seria para o Invinsible. Os seus oficiais de operações digeriam, perante o quadro táctico, os dados que constantemente chegavam ao navio-almirante sobre os grupos soviéticos. Que pretenderiam os soviéticos?

Estava ao corrente da história de que procuravam um submarino, mas acreditava tanto nela como se eles tivessem explicado que queriam vender-lhe uma ponte. Provavelmente, pensou, querem é demonstrar que são capazes de se aproximar da nossa costa sempre que lhes der na gana, mostrar que são capazes de pôr no mar uma esquadra em tempo record e estabelecer um precedente.

Eaton não gostava disto.

Também não apreciava muito as ordens que lhe haviam dado. Devia executar duas missões não de todo compatíveis. Vigiar a actividade dos submarinos russos já era difícil. Os Vikings do Saratoga não operavam na sua zona, apesar de os ter pedido, e a maior parte dos Oríons voavam longe, junto do Invincible. Os seus meios de ASW mal chegavam para defesa local, quanto mais para luta anti-submarina. O Tarawa modificaria a situação, mas também aumentaria as suas necessidades de protecção. A sua outra missão consistia em estabelecer e manter contacto por sensores com o grupo do Moskva e informar imediatamente sobre alguma actividade anormal o CINCLANTELT, o comandante-chefe da Esquadra do Atlântico. Bem, isto já fazia algum sentido. Se os barcos russos de superfície se tornassem agressivos, tinha meios para os enfrentar. Estava agora a ser decidido a que distância os devem seguir.

O problema residia em saber se devia manter-se perto ou longe deles. Perto significava vinte milhas — alcance de tiro. O Moskva tinha dez navios-escolta, nenhum dos quais poderia sobreviver a mais de dois dos seus projécteis de dezasseis polegadas. A vinte milhas poderia optar entre munições de calibre máximo ou reduzido, estas últimas guiadas até ao alvo por um orientador de raios laser, montado na torre principal. Testes realizados no ano anterior haviam demonstrado que poderia manter uma cadência de tiro de vinte em vinte segundos, com o laser a orientar o fogo de um alvo para outro até à destruição total. Isto, porém, exporia o New Jersey e os seus navios-escolta aos torpedos e aos mísseis dos barcos russos.

Mais longe, poderia sempre disparar tiros de cinquenta milhas, orientados para o alvo por um laser a bordo do helicóptero do couraçado. Isto exporia o helicóptero a mísseis disparados dos barcos e a helicópteros soviéticos que dispunham, ao que se pensava, de mísseis ar-ar. Para enfrentar este risco, o Tarawa trazia dois helicópteros Apache, com lasers e mísseis ar-ar e ar-terra; eram armas antitanque que se previam eficazes contra pequenos vasos de guerra.

Os barcos de Eaton ficariam expostos a mísseis, mas Eaton não temia pelo seu couraçado. Salvo se os russos transportassem ogivas nucleares, os mísseis antibarco não seriam capazes de danificar seriamente o seu navio — o New Jersey tinha mais de trinta centímetros de chapa blindada da classe B. Mas podiam destruir-lhe a aparelhagem de radar e de comunicações—e seriam mortíferos para os seus navios-escolta, de casco mais frágil. Os seus barcos transportavam mísseis antibarco, Harpoons e Tomahawks, embora não tantos quanto desejaria.

E se um submarino russo os perseguisse? Eaton não tinha informações sobre nenhum, porém nunca se sabia onde podia esconder-se um submarino. Bem, mas ia agora preocupar-se com tudo? Um submarino era capaz de afundar o New Jersey, mas teria de suar muito. Se os russos planeavam realmente algo de sujo, seriam os primeiros a disparar; no entanto, Eaton teria tempo bastante para lançar os seus mísseis e fazer fogo com os seus canhões, enquanto não dispusesse de apoio aéreo. Nada disso, porém, aconteceria, tinha a certeza.

Decidiu que os russos navegavam numa qualquer expedição de pesca. Competia-lhe mostrar-lhes que o peixe, naquelas águas, era perigoso.

Base Aérea Naval, North Island, Califórnia

O enorme tractor de reboque entrou, a três quilómetros por hora, no porão do Galaxy C-5A, sob o olhar atento do chefe de carga, de dois oficiais da Força Aérea e de seis oficiais da Marinha. Curiosamente, só estes últimos, nenhum dos quais usava as asas da aviação, eram versados na manobra. O centro de gravidade do veículo estava rigorosamente assinalado. Viram a marca aproximar-se de determinado número gravado na base do porão. A manobra devia ser perfeita; o mais pequeno erro podia afectar o equilíbrio do avião e pôr em perigo a vida dos tripulantes e dos passageiros.

—Aí! Parar mesmo aí — disse o oficial.

O condutor parou, aliviado. Deixou as chaves na ignição, puxou todos os travões e engatou uma velocidade antes de sair. Alguém o retiraria do cargueiro, do outro lado do país. O chefe de carga e seis ajudantes começaram imediatamente a trabalhar, passando cabos de aço por olhais no camião e no reboque, a fim de segurar a pesada carga. Carga instável era algo a que um avião raramente sobrevivia, e o C-5A não tinha assentos ejectáveis.

O chefe de carga certificou-se de que os seus ajudantes executavam o trabalho devidamente antes de se aproximar do piloto, um sargento de vinte e cinco anos que adorava o C-5, a despeito da sua má fama.

— Capitão, que diabo é isto?

— Chama-se um DSRV, sargento. Veículo de salvamento de profundidade.

— Tem escrito Avalon, sir — disse o sargento, apontando.

— É, tem nome. É uma espécie de barco salva-vidas para submarinos. Vai lá abaixo buscar a tripulação, quando há sarilho.

— Ah...

O sargento reflectiu. Já transportara tanques, helicópteros, carga em geral, de uma vez um batalhão inteirinho no seu — considerava o avião como seu — Galaxy. Mas era a primeira vez que transportava um barco. Se tinha nome, era barco. O Galaxy era fantástico, fazia tudo!

— Para onde o levamos, sir?

— Base Aérea Naval de Norfolk. Nunca lá estive.

O piloto observou atentamente a fixação da carga. Doze cabos tinham já sido passados. Quando mais doze fossem presos, esticá-los-iam a todos para impedir o menor movimento.

—A viagem deve demorar cinco horas e quarenta minutos, sem escala. Hoje temos o vento a favor, e previsão de bom tempo até chegarmos à costa. Ficamos lá um dia. Regressamos segunda-feira

de manhã.

— Os seus rapazes trabalham depressa — disse o oficial da Marinha, tenente Ames, aproximando-se.

— Mais vinte minutos e está pronto. — O piloto olhou o relógio. — Devemos descolar à hora prevista.

— Não há pressa, capitão. Se esta coisa se mexe durante o voo, ficamos com o dia estragado. Para onde mando os meus homens?

— Coberta superior, à proa. Há espaço para umas quinze pessoas à popa da coberta de voo.

O tenente Ames sabia disto, mas nada disse. Voara com o seu DSRV sobre o Atlântico várias vezes e através do Pacífico uma vez, sempre num C-5 diferente.

— Posso saber o que se passa? — perguntou o piloto.

— Não sei — respondeu Ames. — Querem-me a mim e ao meu brinquedo em Norfolk.

— O senhor mete mesmo esta coisa debaixo de água? — perguntou

o chefe de carga.

— É para isso que me pagam. Já andei com ela a cento e cinquenta metros de profundidade quase uma milha.

Ames olhou o seu veículo com afecto.

— Uma milha debaixo de água, siri Jesus... Desculpe, sir, mas... não é arriscado... com a pressão da água?

—Não. Já desci a seis mil metros com o Trieste. É uma beleza, lá em baixo. Vê-se toda a espécie de peixes esquisitos.

Apesar de ser um comandante oficial de submarinos, a paixão de Ames era a investigação oceanográfica. Possuía um diploma em oceanografia e comandava ou servira em todos os veículos da Marinha de submersão a grande profundidade, excepto o NR-1, movido a energia nuclear.

— Claro que a pressão da água, se algo correr mal, é mortífera, mas acontece tudo tão depressa que uma pessoa não dá por nada. Se quiserem dar um passeio para ver como é, talvez se arranje. Lá em baixo, o mundo é completamente diferente.

— Obrigado, sir — disse o sargento, tornando para junto dos seus homens, a espevitá-los.

— Não fala a sério — disse o piloto.

— Por que não? Grande coisa! Estamos fartos de transportar civis. E acredite que é muito menos arriscado do que viajar nessa sua maldita baleia branca durante um reabastecimento em pleno voo.

— Hum—fez o piloto, hesitante.

Fizera reabastecimentos centenas de vezes, pura rotina. Surpreendia-o que alguém a achasse perigosa. Era preciso ter cuidado, evidentemente, mas, cos diabos, não era também preciso ter cuidado ao sair de casa todas as manhãs? Tinha a certeza de que um acidente naquele submarino de bolso não deixaria, de um homem, o bastante para satisfazer o apetite de um camarão. Há gente para tudo, concluiu.

—Não vai nisto directamente para o mar, pois não?

— Não. Em geral, largamos de um barco preparado para o salvamento de submarinos, o Pigeon ou o Ortolan. Também podemos operar a partir de um submarino vulgar. Aquilo que ali vê no reboque é o nosso anel de acoplagem. Agarramo-nos ao fundo de um submarino, no tubo de salvamento da proa, e o submarino leva-nos aonde somos precisos.

— Isto tem a ver com a barafunda na Costa Leste?

—’É muito possível, mas, oficialmente, não sabemos de nada. Os jornais dizem que os russos perderam um submarino. Se calhar vamos descer para o localizar e tentar salvar alguns sobreviventes. Podemos transportar vinte ou vinte e cinco homens de cada vez, e o nosso anel de acoplamento ajusta-se também aos submarinos russos.

— É do mesmo tamanho?

— Quase. — Ames arqueou um sobrolho. — Pensamos em todas as emergências.

— Interessante.

O Atlântico Norte

O Forger YAK+36 descolara do Kiev meia hora antes, guiado primeiro pela bússola giroscópica, agora pela antena ESM no curto leme do caça. A missão do tenente Viktor Shavrov não era fácil, devia aproximar-se do avião Sentry E-3A, o radar aerotransportado ericano. Um destes aparelhos perseguia a sua esquadra havia três dias. O AWACS (sistema aerotransportado de aviso e controle) tinha o cuidado de voar bastante aquém do raio de alcance dos SAM, mas aproximava-se o suficiente para vigiar em permanência a esquadra soviética, informando de cada manobra e transmissão rádio a base de comando. Era como ter um ladrão a espiar o apartamento e nada poder fazer.

A Shavrov competia fazer alguma coisa. Não podia disparar, evidentemente. As ordens que recebera do almirante Stralbo, no Kirov, eram bem claras a este respeito. Mas levava consigo dois mísseis Atoll orientáveis pelo calor que não deixaria de mostrar aos imperialistas. Ele e o seu almirante esperavam dar-lhes uma lição: a Marinha soviética não gostava de metediços imperialistas e, às vezes, aconteciam acidentes... A missão valia bem o esforço que implicava.

Um esforço considerável. Para evitar a detecção pelo radar aerotransportado, Shavrov tinha de voar o mais baixo e lentamente que o seu avião permitia, uns vinte metros acima do turbulento Atlântico; assim se ocultava nas próprias vagas. A sua velocidade era de duzentos nós, o que lhe poupava combustível — a missão esgotaria praticamente a capacidade dos seus depósitos. Significava também um voo muito desconfortável, porque o caça balouçava na agitação do ar no topo das vagas. Havia uma névoa baixa que reduzia a visibilidade a poucos quilómetros. Tanto melhor, pensou. Fora a natureza da missão que o escolhera, não o contrário. Era um dos poucos pilotos soviéticos experimentados em voo rasante. Shavrov não começara como piloto da aviação naval; começara a pilotar helicópteros no Afeganistão e fora promovido a piloto de caça após um ano de pura aprendizagem. Era perito em voo baixo, em que se treinara por necessidade, Perseguindo os bandidos e contra-revolucionários que se acoitavam nas altas montanhas, como ratos hidrófobos. Esta prática tinha interessado a esquadra e Shavrov fora transferido para a aviação naval sem lhe pedirem opinião. Levava já uns meses nas suas novas funções e não tinha razão de queixa. O soldo e o complemento eram mais atraentes do que a base na fronteira chinesa. Como se contava entre as poucas centenas de pilotos soviéticos habilitados a operar a partir de um porta-aviões, eram menores as suas possibilidades de pilotar o novo MIG-27, embora, com sorte, se o monumental porta-aviões em instrução ficasse alguma vez pronto, pudesse vir a experimentar a versão naval daquele maravilhoso pássaro. Shavrov tinha razões para aspirar a tal e, após algumas missões bem sucedidas do tipo daquela em que agora se empenhava, mesmo ao comando de uma esquadrilha.

Deixou de sonhar — a missão não se compadecia com sonhos, de tão exigente. Aquilo sim, era voar a sério! Nunca voara contra americanos, somente contra as armas que eles davam aos bandidos afegãs. Perdera amigos para essas armas, alguns dos quais haviam sobrevivido à queda dos seus aparelhos apenas para serem mortos pelos selváticos afegãs, de uma maneira que até um alemão acharia intolerável. Felizmente, ia poder dar uma lição aos imperialistas. Pessoalmente.

O sinal de radar tornava-se mais forte. Por baixo do seu assento ejectável, um gravador registava continuamente as características do sinal do avião americano para que os cientistas pudessem conceber meios de confundir e despistar o petulante olho voador americano. O aparelho não passava de um 707 transformado, um celebrado avião comercial que jamais se poderia opor a um exímio piloto de caça’ Shavrov verificou o mapa. Não tardaria a encontrá-lo. Verificou depois o combustível. Esgotara havia minutos o depósito exterior e voava já com o interior. A turbo-ventoinha bebia-lhe o combustível, precisava de ter cuidado. Quando regressasse ao barco, não devia ter combustível para mais de cinco ou dez minutos. Isso não o preocupava. Já por mais de cem vezes pousara num porta-aviões.

Enfim! Os seus olhos de falcão surpreenderam um reflexo do sol em metal. Era uma da tarde. Shavrov puxou para si a alavanca de comando e aumentou lentamente a velocidade, obrigando o seu Forger a subir. Um minuto depois voava a dois mil metros. Já via o Sentry, a pintura azul combinando-se perfeitamente com o céu a escurecer. Aproximava-se por detrás e, com sorte, a empenagem protegê-lo-ia da antena rotativa do radar. Perfeito! Passaria por ele algumas vezes, como uma seta, deixando que a tripulação visse os seus Atolls e...

Shavrov não se apercebeu logo de que tinha um companheiro. Dois companheiros.

Cinquenta metros à sua direita e à sua esquerda, dois caças americanos Eagle Fi/J. O rosto com viseira de um dos pilotos fitava-o.

— YAK-106, YAK-106, por favor identifique-se.

A voz no circuito rádio SSB (banda única) falava em russo impecável. Shavrov não se identificou. Tinham lido o número do aparelho gravado junto da turbina antes que ele se apercebesse da presença deles.

— YAK-106, YAK-106, aqui Sentry. Está a aproximar-se de nós. Por favor, identifique-se, diga o que pretende. Ficamos nervosos quando vemos um caça desgarrado a voar para nós e, por isso, nos últimos cem quilómetros, tem sido acompanhado por três dos nossos aviões.

Três? Shavrov virou a cabeça. Um terceiro Eagle com quatro is Sparrow pairava a cinquenta metros da sua cauda, do seu “seis”.

— Os nossos homens felicitam-no pela sua capacidade para voar baixo e lentamente, YAK-

O tenente Shavrov tremia de raiva ao passar os quatro mil metros, ainda a oito mil do AWACS americano. Verificara o seu seis de meio em meio minuto. Os americanos deviam tê-lo seguido, ocultos pelo nevoeiro, guiados pelo Sentry. Praguejou e manteve a rota. Daria ao AWACS uma lição!

— Inverta a marcha, YAK-106 — Era uma voz fria, sem emoção, talvez discretamente irónica. — YAK-106, se não inverter a marcha consideraremos a sua missão hostil. Pense bem, YAK-106. Está fora do alcance de radar dos seus barcos e ainda não entrou no raio de alcance dos nossos mísseis.

Shavrov olhou para a direita. O Eagle afastava-se. O da esquerda também. Seria um gesto de boa vontade, para o amansarem e suscitarem, em troca, boa vontade também? Ou estariam a deixar livre o espaço para que o caça que continuava atrás dele disparasse? Era impossível saber o que passava pela cabeça dos criminosos imperialistas; estava, no máximo, a um minuto do alcance dos seus mísseis. Shavrov não era cobarde, mas também não era louco. Moveu a alavanca, deslocando o caça alguns graus para a direita.

— Obrigado, 106 — agradeceu a voz. — Sabe, temos a bordo operadores em instrução. Dois são mulheres e não queremos estragar-lhes o primeiro voo.

Era de mais. Shavrov ligou o interruptor rádio na alavanca de comando.

— Quer que lhe diga o que deve fazer às suas mulheres, ianque?

— Você é nekultwny, 106 — respondeu a voz suavemente. — Talvez o longo voo sobre a água o tenha enervado. Deve estar quase a ficar sem combustível. Que raio de dia para voar, com estes ventos tão incertos! Quer que lhe dê a posição? Escuto!

— Não, ianque!

—’A rota de regresso ao Kíev é umoito-cinco. Não se esqueça da bússola, olha que está muito ao norte. Distância ao Kiev, trezentos e dezoito vírgula seis quilómetros. Cuidado... há uma frente fria a deslocar-se rapidamente, de sudoeste. Dentro de horas não vai ser nada agradável voar. Quer uma escolta?

— Porco!

Shavrov praguejou consigo. Desligou o rádio, amaldiçoando-se por tanta falta de disciplina. Permitira aos americanos que lhe ferissem o orgulho. Como a maioria dos pilotos, era muito orgulhoso.

— Cento e seis, não registamos a sua última transmissão. Dois dos meus Eagles vão ao seu encontro. Acompanhá-lo-ão em segurança até ao Kiev. Um dia feliz, camarada. Sentry-Novembro, terminado

O tenente americano virou-se para o seu coronel. Já não conseguia manter por mais tempo a expressão impávida.

— Senhor, por pouco não me enganava com a conversa! — Bebeu Coca de um copo de plástico. — Ele estava mesmo convencido de que ia surpreender-nos.

— Não sei se reparou que já estava ao alcance dos nossos mísseis. Mas como não temos autorização para disparar primeiro... Podia-nos ter estragado o dia — resmungou o coronel. — Você moeu-o bem, tenente.

— Foi um prazer, coronel. — O operador olhou o écran. — Vai outra vez para junto da mamã, com os Cobras três e quatro agarrados ao seu seis. Sentir-se-á muito infeliz quando chegar a casa... se chegar. Mesmo com os depósitos suplementares deve estar quase sem combustível. — Reflectiu por um momento. — Coronel, se isto tornar a acontecer, que me diz a oferecermo-nos para levar o rapaz connosco para casa?

— Um Forger... para quê? A Marulha era capaz de gostar de ter um para brincar, têm pouco material de Ivan, mas o Forger é uma sucata.

Shavrov sentiu-se tentado a puxar pelo motor, mas conteve-se. Já demonstrara fraqueza de sobra. Além disso, o seu YAK só ultrapassava Mach l em voo picado. Os Eagles ultrapassavam-no a subir e não lhes faltava combustível Viu que ambos dispunham de células compactas FAST de combustível. Podiam assim cruzar oceanos! Malditos americanos, maldita a sua arrogância! Maldito o seu oficial de informações por lhe ter afiançado que poderia surpreender o Sentry Se disparassem os Backjires contra ele... Destruiriam aquele autocarro de passageiros antes que os caças seus guardiões se apercebessem.

Os americanos não mentiam sobre a frente fria. Uma linha de nuvens agressivas, correndo para nordeste, surgiu-lhe no horizonte ao aproximar-se do Kiev. Os Eagles retiraram-se. Um dos pilotos americanos voou a seu lado por momentos para lhe dizer adeus. Acenou de cabeça ao gesto de retribuição de Shavrov. Os Eagles emparelharam e rodaram para norte.

Cinco minutos depois, Shavrov estava a bordo do Kiev, ainda pálido de raiva. Mal as rodas foram calçadas, saltou para a coberta e deparou com o seu comandante de esquadrilha.

Kremlin

A cidade de Moscovo era justamente famosa pelo seu metropolitano. Por uma ninharia, as pessoas podiam ir praticamente a toda a parte num comboio moderno, seguro, vistosamente decorado. Em caso de guerra, os túneis serviam de abrigo antiaéreo para os cidadãos de Moscovo. Esta função secundária era resultado do esforço de Nikita Khruschev, o qual, em meados dos anos trinta, quando a construção do metropolitano começara, tinha sugerido a Estaline uma escavação mais profunda. Estaline concordara. Na época, era prematuro pensar em abrigos antinucleares; a fissão do átomo não passava ainda de uma teoria, na fusão ainda mal se pensava.

Num ramal da linha entre a Praça Sverdlov e o antigo aeroporto, que corria perto do Kremlin, operários abriram um túnel que, mais tarde, seria fechado com uma parede de ferro e cimento de dez metros de espessura. O espaço, de cem metros de comprido, estava ligado ao Kremlin por dois elevadores e acabou por ser convertido num centro de comando de emergência de onde o Politburo podia controlar todo o império soviético. O túnel era também um óptimo meio de abandonar secretamente a cidade em direcção a um pequeno aeroporto, do qual os membros do Politburo podiam voar para o último reduto, no interior do monólito de granito de Zhiguli. Nenhum destes postos de comando era segredo para o Ocidente —existiam ambos havia muito tempo para que tal fosse possível —, mas o KGB afirmava convictamente que nada nos arsenais ocidentais podia penetrar as centenas de metros de rocha que, nos dois sítios, separava o Politburo da superfície.

O facto de pouco conforto servia ao almirante Yuri Ilych Padorin. Achava-se sentado no extremo de uma mesa de dez metros de comprido, olhando os rostos sombrios dos dez membros do Politburo, o núcleo a quem exclusivamente competia tomar decisões estratégicas que afectassem o destino do país. Nenhum deles era militar. Os militares estavam sob o comando destes homens. Na outra extremidade da mesa, à esquerda de Padorin, sentava-se o almirante Sergey Gorshkov, que lavara as mãos daquele assunto com talento consumado, tendo mesmo exibido uma carta na qual se opunha à nomeação de Ramius para comandar o Outubro Vermelho. Padorin, como chefe da Administração Política, conseguira bloquear a transferência de Ramius, alegando que o candidato de Gorshkov se atrasava, às vezes, no pagamento das cotas ao Partido e não falava o suficiente nas reuniões para um oficial da sua patente. Na verdade, o candidato de Gorshkov não era tão competente quanto Ramius, a quem Gorshkov pretendera como oficial de operações, função que Ramius evitara durante anos.

O secretário-geral do Partido e presidente da União das Republicas Socialistas Soviéticas, André Narmonov, pousou os olhos em Padorin. A sua expressão nada dizia. Nunca dizia nada, salvo se ele quisesse — coisa rara. Narmonov sucedera a Andropov depois de este ter sofrido um ataque de coração. Corriam rumores acerca disto, mas, na União Soviética, correm sempre rumores. Nunca, desde os tempos de Lavrentí Beria, o patrão da Segurança chegara tão perto do Poder, e os mais categorizados funcionários do Partido haviam feito por esquecer tal facto. Não o tornariam a esquecer. Domar o KGB levara um ano, medida necessária para defender os privilégios da elite do Partido das supostas reformas da clique de Andropov.

Narmonov era o apporatchik por excelência. Distinguira-se como director de uma fábrica, engenheiro que atingia as metas do Plano antes de tempo, um homem que apresentava resultados. Subira persistentemente à custa das suas qualidades e das dos outros, recompensando a quem devia recompensar, ignorando os restantes. A sua posição como secretário-geral do Partido Comunista não era absolutamente segura. Estava ainda de fresco na direcção do Partido e dependia de uma frágil coligação de colegas—não de amigos, que homens assim não fazem amigos. Ascendera ao posto mais em virtude de relações na estrutura do Partido do que por força de qualidades pessoais, e a sua posição dependeria, durante anos, de um consenso, até que pudesse impor a sua política.

Os olhos pretos de Narmonov, reparou Padorin, estavam vermelhos do fumo. O sistema de ventilação no tunel nunca funcionara bem. O secretário-geral semicerrou os olhos para Padorin, no outro extremo da mesa, enquanto decidia o que dizer, o que agradaria aos membros daquela cabala, àqueles dez homens velhos e impassíveis.

— Camarada almirante — começou em voz fria —, ouvimos do camarada Gorshkov quais são as possibilidades de encontrar e destruir esse submarino rebelde antes que possa consumar o seu inimaginável crime. Não estamos satisfeitos. E também não estamos satisfeitos com o fantástico erro de apreciação que deu o comando do nosso mais valioso barco a esse bandido. O que pretendo saber de si, camarada, é o que aconteceu ao zampolit a bordo e que medidas de segurança foram tomadas pelo seu gabinete para impedir que esta infâmia ocorresse!

Não havia medo na voz de Narmonov, mas Padorin sabia que Narmonov o tinha. O “fantástico erro” podia, em última análise, ser atribuído ao presidente por membros do Partido que desejavam outro na cadeira — salvo se conseguisse de algum modo desresponsabilizar-se dele. Se tal significava a pele de Padorin, isso era problema do almirante. Não era o primeiro que Narmonov esfolava.

Padorin preparara-se para enfrentar a situação durante vários dias. Suportara meses de intensivos combates e afundara vários barcos à sua conta. Se fisicamente estava agora debilitado, mantinha pleno vigor de espírito. Fosse qual fosse a sua sorte, Padorin estaria decidido a enfrentá-la com dignidade. “Se me recordarem como um tonto”, disse consigo, “será como um tonto corajoso.” Pouca vida lhe restava, de qualquer modo.

— Camarada secretário-geral — começou —, o comissário político a bordo do Outubro Vermelho era o capitão Ivan Yurievich Putin, um valente e leal membro do Partido. Não posso imaginar...

— Camarada Padorin — interrompeu Ustinov, ministro da Defesa —, presumimos que também não podia imaginar a inacreditável traição desse Ramius. Espera que confiemos no juízo que faz do comissário político?

— O facto mais perturbador — acrescentou Mikhail Alexandrov, o teórico do Partido que substituirá Mikhail Suslov e era ainda mais intransigente do que o falecido ideólogo em matéria de pureza doutrinária— é a tolerância de que a Administração Política deu provas relativamente a esse renegado. É espantoso, tendo sobretudo em atenção os seus evidentes esforços para construir o culto da sua própria personalidade através do serviço nos submarinos, mesmo na esfera política, dir-se-ia. A sua criminosa indiferença, camarada, perante esta... esta aberração doutrinária tão óbvia não abona muito o juízo que faz do comissário político.

— Camaradas, têm razão em considerar que errei flagrantemente ao aprovar Ramius como comandante e também por lhe termos permitido escolher a maior parte dos oficiais do Outubro Vermelho. Por outro lado, decidimos, há uns anos, fazer as coisas assim, manter os oficiais ligados ao mesmo barco por longo tempo e dar ao comandante grande autoridade sobre as suas carreiras. Esta questão é operacional, não é uma questão política.

— Já analisámos isso — respondeu Narmonov. — É verdade que, Deste caso, a responsabilidade não pertence só a um homem.

Gorshkov não se mexeu, mas o recado era óbvio: os esforços que fizera para se desligar do escândalo tinham falhado. Narmonov não Queria saber de quantas cabeças eram precisas para calcar a sua cadeira.

— Camarada presidente — objectou Gorshkov —, a eficiência da Quadra...

— Eficiência? — repetiu Alexandrov. — Eficiência! Esse malhado Lituano está eficientemente a brincar com a nossa esquadra, ele e os seus escolhidos oficiais, enquanto os nossos barcos navegam à deriva como bois castrados!

Alexandrov aludia ao seu primeiro cargo, numa propriedade agrícola estatal. Princípio adequado, considerava-se geralmente, pois homem que detinha a posição de ideólogo-chefe era tão popular em Moscovo como a peste, mas o Politburo precisava dele ou de outro como ele. O ideólogo-chefe era quem sagrava o rei. De que lado estaria agora—além do seu?

— A explicação mais provável é que Putin foi assassinado — continuou Padorin. — Só ele, dos oficiais, deixa mulher e filhos.

—’Essa é outra questão, camarada almirante — disse Narmonov, aproveitando a oportunidade. — Por que motivo nenhum desses homens é casado? Isso não o fez desconfiar de nada? Será que nós, os membros do Politburo, temos de pensar em tudo? Os senhores não podem pensar pela própria cabeça?

Como se quisesses tal coisa, pensou Padorin.

— Camarada secretário-geral, a maior parte dos nossos comandantes de submarino prefere oficiais jovens e solteiros. Servir no mar é duro, e os homens solteiros têm menos distracções. Além disso, cada um dos oficiais a bordo é membro do Partido com posição de destaque e notável currículo. Ramius traiu, é inegável, e de boa vontade mataria esse filho da mãe com as próprias mãos... mas ele enganou mais homens honestos do que os que se encontram nesta sala.

— Lá isso... — observou Alexandrov. — E agora que estamos metidos neste sarilho como vamos sair dele?

Padorin respirou fundo. Esperava aquele momento.

— Camaradas, temos outro homem a bordo do Outubro Vermelho, sem que Putin ou Ramius saibam, Um agente da Administração Política.

— Quê? — exclamou Gorshkov. — E porque é que eu não sei disso?

— A primeira coisa inteligente que ouvimos hoje — disse Alexandrov, sorrindo. — Continua,

— Esse indivíduo está disfarçado de marinheiro. Responde directamente perante o nosso gabinete, ladeando todos os canais operacionais e políticos. Chama-se Igor Loginov. Tem vinte e quatro anos e...

— Vinte e quatro anos! — exclamou Narmonov. — Confia uma responsabilidade dessas a uma criança?

— Camaradas, a missão de Loginov consiste em misturar-se com os tripulantes do contingente geral, ouvir conversas, identificar traidores potenciais, espiões e sabotadores. De facto, parece ainda mais novo. Serve com rapazes e tem de ser um rapaz. Na realidade, é diplomado pela Escola Naval Superior de Comissários Políticos de Kiev e pela Academia do GRU. É filho de Arkady Ivanovich Logúiov. director da Siderurgia Lenine, de Kazan. Muitos dos que estão presentes conhecem o pai dele. — Narmonov contava-se entre os que acenavam de cabeça, um brilho interessado no olhar. — Os escolhidos para este tipo de missão saem de um grupo de elite reduzidíssimo. Eu próprio entrevistei esse rapaz. A sua ficha é impecável. É um patriota soviético acima de toda a suspeita.

— Conheço o pai — confirmou Narmonov. — Arkady Ivanovich é um homem honrado, que criou bons filhos. Quais são as ordens do rapaz?

— Como disse, camarada secretário-geral, em princípio a sua missão consiste em vigiar os tripulantes e em informar sobre o que vê. Faz isso há dois anos, e bem feito. Não informa o zampolit a bordo; informa Moscovo ou um dos meus representantes. Numa emergência, tem ordens para informar o zampolit. Se Putin estiver vivo — no que não acredito, camaradas — fará parte da conspiração e Loginov não contactará, portanto, com ele. Numa emergência destas, por conseguinte, tem ordens para destruir o barco e fugir.

— Isso é possível? — perguntou Narmonov. — Gorshkov?

— Camaradas, todos os nossos barcos transportam poderosas cargas de afundamento, em particular os submarinos.

— Infelizmente — disse Padorin—, não estão, em geral, armadas, e só o comandante pode activá-las. Desde o incidente no Storozhevoy, nós, na Administração Política, reconhecemos que um incidente como este era, de facto, possível e que, num submarino equipado com mísseis, assumiria a sua forma mais grave.

— Ah! — observou Narmonov. — O rapaz é mecânico de mísseis.

— Não, camarada, é cozinheiro — respondeu Padorin.

— Óptimo! Passa o dia a cozer batatas! — Narmonov abriu os braços, a esperança morta num instante, substituída por indisfarçável cólera. — Quer ser fuzilado imediatamente, Padorin?

— Camarada presidente, trata-se de um disfarce melhor do que imagina. — Padorin não pestanejou, querendo mostrar àqueles homens a fibra de que era feito. — No Outubro Vermelho, as acomodações dos oficiais e a cozinha são à popa. A tripulação aloja-se à proa, onde come, também, pois não dispõe de refeitório separado, tendo de permeio a sala dos mísseis. Como cozinheiro, tem de andar de um lado para o outro muitas vezes ao dia, e a sua presença em qualquer zona não provoca suspeitas. O frigorífico está instalado num local contíguo à coberta inferior dos mísseis, à proa. Não lhe compete activar as cargas. Contamos com a possibilidade de o comandante desarmar. Camaradas, estas medidas foram cuidadosamente estudadas.

— Continue — resmungou Narmonov.

— Conforme o camarada Gorshkov já explicou, o Outubro Vermelho transporta vinte e seis mísseis Seahawk. São mísseis de combustível sólido e um tem uma carga de segurança,

— Carga de segurança? — repetiu Narmonov, confuso.

Até àquela altura, os outros militares presentes, nenhum deles membro do Politburo, tinham mantido o silêncio. Padorin ficou surpreendido quando o general V. M. Vishenkov, comandante das Forças Estratégicas com Mísseis, falou:

— Camaradas, estes pormenores foram estudados pelo meu gabinete há uns anos. Como sabem, quando ensaiamos os nossos mísseis estes dispõem de cargas de segurança que os fazem explodir no caso de se desviarem da rota prevista. De outro modo, poderiam cair sobre uma das nossas cidades. Os mísseis operacionais não têm, em geral, essas cargas, por uma razão óbvia: os imperialistas poderiam descobrir um processo de os fazer explodir em voo.

— Portanto, o nosso jovem camarada do GRU fará explodir o míssil. E as ogivas? — perguntou Narmonov.

Engenheiro por formação, entusiasmava-se sempre com um discurso técnico, deixava-se sempre impressionar por um discurso técnico inteligente.

— Camarada — prosseguiu Vishenkov —, as ogivas dos mísseis são armadas por acelerómetros. Só podem, portanto, ser armadas quando o míssel atinge aj velocidade máxima programada. Os americanos usam o mesmo sistema e pelo mesmo motivo; impedir sabotagens. Estes sistemas de segurança são absolutamente dignos de confiança. Pode-se atirar uma ogiva do alto do emissor de televisão de Moscovo sobre uma chapa de ferro que ela não explodirá.

O general referia-se à monumental antena de TV cuja construção Narmonov supervisara pessoalmente, enquanto responsável máximo da Direetoria das Comunicações Centrais. Vishenkov era um talentoso jogador político.

—’No caso de um míssil de combustível sólido — continuou Padorin, reconhecendo a sua dívida para com Vishenkov, perguntando a si próprio o que lhe seria pedido em troca e desejando viver o suficiente para cumprir — a carga de segurança inflama os três andares do míssil ao mesmo tempo.

— Então, isso é o mesmo que lançar o míssil — observou Alexandrov.

— Não, camarada académico. O andar superior pode largar, se conseguir romper a escotilha do tubo, o que inundaria toda a sala de mísseis, afundando o submarino. Porém, mesmo que isso não aconteça, existe suficiente energia térmica nos dois primeiros andares para reduzir o submarino a um charco de ferro derretido... vinte vezes superior em tamanho ao necessário para o afundar. Loginov está treinado para desligar o sistema de alarme na escotilha do tubo do míssil, activar a carga de segurança, regular o cronometro e fugir.

— Não para destruir o barco? — perguntou Narmonov.

— Camarada secretário-geral — disse Padorin —, seria de mais pedir a um jovem que cumprisse o seu dever, equivalendo isto a morte certa. Seríamos irrealistas se o fizéssemos. Ele deve ter, pelo menos, a possibilidade de escapar, caso contrário a fraqueza humana pode levar ao malogro.

— É razoável — concedeu Alexandrov. — Os jovens são motivados pela esperança, não pelo medo. Neste caso, o jovem Loginov sonhará com uma bonita recompensa.

— E tê-la-á — disse Narmonov. — Faremos tudo para salvar o rapaz, Gorshkov.

— Se ele for realmente digno de confiança — observou Alexandrov.

— Sei que a minha vida depende disto, camarada académico — disse Padorin, sempre de ombros erguidos.

Não obteve uma resposta verbal, apenas acenos de cabeça de metade dos presentes. Já antes enfrentara a morte e estava numa idade em que a morte é a última coisa que um homem tem de enfrentar.

A Casa Branca

Arbatov entrou na Sala Oval as 16 e 50. Encontrou o presidente e o Dr. Pelt sentados em sofás, diante da secretária do primeiro.

— Entre, Alex. Café?—O presidente apontou para uma bandeja sobre o canto da secretária.

Não iria beber álcool, concluiu Arbatov. —Não, obrigado, senhor presidente. Posso saber... —• Pensamos ter encontrado o vosso submarino, Alex — respondeu Pelt. — Acabam de nos trazer estas mensagens. Estamos a confirmá-las. O conselheiro ergueu um maço de papéis presos com uma mola.

— Onde, posso saber?

A expressão do embaixador era impávida.

— Mais ou menos trezentas milhas a nordeste de Norfolk, ainda não o localizámos exactamente. Um dos nossos barcos detectou uma explosão subaquática na área... não, não foi assim. Havia uma gravação e quando, mais tarde, foi passada, eles pensaram ouvir um submarino explodir e afundar-se. Lamento, Alex — disse Pelt. — Devia ter recorrido a um intérprete para ler esta papelada. A vossa Marinha também tem uma linguagem própria, não?

— Os militares não gostam que os civis os percebam — disse Arbatov, sorrindo. — É assim desde o princípio do mundo.

— Bom... Temos barcos e aviões a patrulhar a zona.

O presidente disse:

— Alex, acabo de falar com o chefe das operações navais, Foster. Ele disse que não deve haver sobreviventes. A água tem, local, mais de trezentos metros de profundidade, e o tempo, como sabe, está péssimo. Afundou-se mesmo na orla da plataforma continental.

— Norfolk Canyon, sir — acrescentou Pelt.

— Procedemos a buscas intensivas — continuou o presidente. — A Marinha vai utilizar equipamento especializado, aparelhagem de pesquisa, coisas assim. Se o submarino for localizado, mandaremos descer alguém para ver se há sobreviventes. Pelo que diz o CNO, se as divisórias interiores, anteparas, acho que é como lhe chamam, estiverem intactas, pode ser que alguém se tenha safado. O problema é o ar disponível, diz ele. O tempo joga contra nós, receio bem. O dinheirão que gastámos nesse equipamento fabuloso e não são capazes de localizar um raio de um objecto mesmo ao largo da nossa costa!

Arbatov registou mentalmente estas palavras. Dariam uma valiosa informação secreta. O presidente dissera, sem querer, que...

— É verdade, senhor embaixador... Que fazia exactamente o submarino?

— Não faço ideia, doutor Pelt.

— Espero que não se trate de um submarino equipado com mísseis — disse Pelt. — Temos um acordo para os manter a quinhentas milhas da costa. Os destroços serão evidentemente examinados pelas nossas equipas de salvamento. Se viermos a descobrir que se trata, de facto, de um submarino com mísseis...

— Compreendo. Mas são águas internacionais. O presidente disse em tom afável:

— O golfo da Finlândia também, Alex, e o mar Negro, creio. — Deixou que a observação fizesse efeito. — Espero sinceramente que não voltemos a esse tipo de situação. Trata-se ou não de um submarino equipado com mísseis, Alex?

— Palavra, senhor presidente, que não faço ideia. Desejo sinceramente que não.

O presidente apreciou o cuidado com que a mentira fora expressa. Perguntou a si próprio se os russos admitiriam que um dos seus comandantes desrespeitara as ordens. Não; provavelmente diriam ter-se tratado de um erro de navegação.

— Muito bem. De qualquer modo, conduziremos as nossas operações de busca e salvamento. Não tardaremos a saber que tipo de barco era. — O presidente mostrou-se subitamente inquieto. — Foster disse mais uma coisa... Se encontrarmos corpos... desculpe-me falar-lhe assim tão cruamente numa tarde de sábado... com certeza pretenderá que sejam transportados para o seu país...

— Não recebi nenhumas instruções sobre isso — respondeu o embaixador sinceramente, desprevenido.

— Explicaram-me em pormenor como morre um homem nestas circunstâncias. Abreviando, são esmagados pela pressão da água, coisa nada agradável de ver, parece... Mas são homens e merecem respeito, mesmo na morte.

Arbatov cedeu:

— Se for possível, então, creio que o povo soviético apreciará esse gesto humanitário.

—’Faremos tudo o que estiver ao nosso alcance.

O alcance americano, lembrou-se Arbatov, incluía um barco chamado Glomar Explorer. Este notável navio explorador fora construído pela CIA com o objectivo específico de recuperar um submarino soviético equipado com mísseis da classe Golf do leito do oceano Pacífico. O navio fora arrumado, sem dúvida à espera da próxima oportunidade. A União Soviética nada podia fazer para impedir a operação, a poucas centenas de milhas da costa americana, a trezentas milhas da maior base naval dos Estados Unidos.

— Confio em que os preceitos da lei internacional serão respeitados, meus senhores... Relativamente aos destroços e aos corpos dos tripulantes.

— Claro, Alex.

O presidente sorriu e apontou para um memorando na secretária. Arbatov procurava controlar-se. Fora iludido como um colegial, esquecera-se de que o presidente americano fora um hábil táctico em tribunal — coisa que, na União Soviética, a vida não prepara um homem para ser — e conhecia tudo sobre estratagemas legais. Por que era tão fácil subestimar aquele patife?

O presidente procurava também controlar-se. Era raro ver Alex agitado. Alex era um adversário inteligente, difícil de apanhar desprevenido. Se risse, estragaria tudo.

O memorando do procurador-geral chegara só de manhã. Dizia:

Senhor Presidente

Satisfazendo o seu pedido, solicitei ao chefe do nosso departamento legal do Almirantado que estudasse a lei internacional no respeitante à propriedade de vasos de guerra afundados ou abandonados, e a lei relativa aos destroços de tais vasos. Existe muita jurisprudência sobre o assunto. Um exemplo simples é o de Dalmas v Stathos (84FSup. 828, 1949 A.M.C. 770 S.D.N.y 1949):

Não há aqui nenhum problema de lei estrangeira, pois está perfeitamente estabelecido que “os destroços são uma questão do âmbito do jus gentium que ordinariamente não depende da lei municipal dos países”.

A base internacional desta doutrina é a Convenção sobre Destroços de 1910 (Bruxelas) que codifica a natureza transnacional da lei do Almirantado e sobre destroços. A convenção foi ratificada pelos Estados Unidos na Lei dos Destroços de 1912, 37 Estat. 242 (1912) 46 U.S.C.A. §§ 727-731; e também em 37 Estat. 1858 (1913).

— A lei internacional será respeitada, Alex — prometeu o presidente. — Em tudo. E tudo o que apanharmos será levado para o porto mais próximo, Norfolk, onde será entregue ao recebedor de destroços, um funcionário federal sobrecarregado de trabalhos. Se os soviéticos quisessem alguma coisa de volta teriam de pôr uma acção no tribunal do Almirantado, ou seja, o tribunal do distrito federal sediado em Norfolk onde, se a acção fosse julgada procedente, após determinação do valor dos destroços e após a Marinha dos Estados Unidos ter sido indemnizada das despesas feitas, também por determinação do tribunal, os destroços seriam devolvidos aos seus legítimos proprietários. Claro que os processos no tribunal federal tinham, segundo as últimas contas, onze meses de atraso.

Arbatov podia telegrafar para Moscovo, expondo a situação. De nada serviria, porém; tinha a certeza de que o presidente retiraria um prazer perverso da manipulação do grotesco sistema legal americano em seu proveito, sempre destacando que, como presidente, estava constítucionalmente impedido de interferir na esfera da Justiça.

Pelt olhou o relógio. Era tempo da surpresa seguinte. Não podia deixar de admirar o presidente. Para quem anos atrás possuía um conhecimento limitado dos assuntos internacionais, aprendera depressa. Aquele homem de aspecto simples, de fala tranquila, era extraordinário perante as situações que se lhe deparavam e, depois de uma longa experiência como procurador, continuara a gostar do jogo da negociação e da manobra táctica. Mostrava-se capaz de manipular as pessoas com uma assustadora naturalidade. O telefone tocou e BeM atendeu, conforme estava previsto.

— Fala o doutor Pelt. Sim, almirante... Onde? Quando? Só um? Compreendo... Norfolk? Obrigado, almirante, é uma boa notícia. Vou informar já o presidente. Por favor, mantenha-nos informados. — Pelt virou-se. — Apanhámos um vivo, graças a Deus!

—Um sobrevivente do submarino?

O presidente pôs-se de pé.

—Bem, é um marinheiro russo. Um helicóptero recolheu-o há uma hora. Vai a caminho do hospital da base de Norfolk. Recolheram-no duzentas e noventa milhas a nordeste de Norfolk, portanto deve ser do submarino. Está em estado muito grave, mas o hospital foi avisado.

O presidente dirigiu-se à secretária e levantou o telefone.

— Grace, quero falar imediatamente com Dan Foster... Almirante, fala o presidente. O homem que recolheram quanto tempo demora a chegar a Norfolk? Mais duas horas? — Fez um trejeito. — Almirante, ligue para o hospital e diga-lhe que eu disse para fazerem tudo o que puderem por esse homem. Quero-o tratado como se fosse meu filho, está a perceber? Bom... Quero boletins médicos de hora a hora, e os melhores especialistas, os melhores! Obrigado, almirante. — Desligou. — Bem...

— Talvez tenhamos sido demasiado pessimistas, Alex — disse Pelt.

— Poderemos ver o nosso homem? — perguntou logo Arbatov.

— Com certeza — respondeu o presidente. — Têm médico na Embaixada, não têm?

— Temos, senhor presidente.

— Leve-o consigo. Gozará de todos os privilégios. Eu próprio tratarei disso. Jeff, continuam à procura de mais sobreviventes?

— Continuam, senhor presidente. A área está a ser sobrevoada por uma dúzia de aviões e vão mais dois barcos a caminho.

— Muito bem! — O presidente apertou as mãos, entusiasmado como um garoto num bazar. — Se conseguirmos recolher mais alguns sobreviventes, talvez possamos dar ao seu país um bom presente de Natal, Alex. Faremos tudo o que pudermos, tem a minha palavra.

—’É muito amável, senhor presidente. Comunicarei imediatamente esta boa notícia ao meu país.

— Calma, Alex.—O presidente ergueu as mãos. — Acho que isto merece uma bebida.

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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