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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CASA ATREIDES / B. Herbert e K. J. Anderson
A CASA ATREIDES / B. Herbert e K. J. Anderson

 

 

                                                                                                                                   

  

 

 

 

 

Transmissão da Corporação Espacial à corporação mercantil galáctica Combine Honnete Ober Advanced Mercantis.

“Nossa responsabilidade específica nesta missão extra-oficial consistiu em explorar os planetas desabitados com o objetivo de encontrar outra fonte da preciosa especiaria melange, da qual tanto depende o Império. documentamos as viagens de muitos de nossos Navegantes e Pilotos, que inspecionaram centenas de planetas. Entretanto, até a data não obtivemos o menor êxito. A única fonte de melange que existe no universo conhecido continua a ser o planeta deserto Arrakis. A Corporação, a CHOAM e todos os outros elementos dependentes têm que continuar sujeitos ao monopólio dos Harkonnen.

Não obstante, o esforço de explorar territórios longínquos em busca de novos sistemas planetários e novos recursos dá seus frutos. As explorações detalhadas e os mapas orbitais contidos nas folhas de cristal riduliano anexas serão de grande importância comercial para a CHOAM.

“Depois de cumprir as especificações do contrato assinado previamente, solicitamos a CHOAM que deposite a quantia acordada em nossa sede oficial do Banco da Corporação.

A sua Alteza Real o imperador Padishah Elrood IX, regente do Universo Conhecido”

 

 

 

 

De seu fiel súdito o barão Siridar Vladimir Harkonnen e Senhor Supremo de Giedi Prime, Lankiveil e planetas aliados.

“Senhor, permita-me uma vez mais reafirmar o compromisso de servi-lo com lealdade no planeta deserto Arrakis. Durante os sete anos posteriores à morte de meu pai, envergonha-me dizer que meu incompetente meio-irmão Abulurd permitiu que a produção de especiaria se reduzisse. As perdas de equipes foram elevadas, e as exportações desceram a níveis abismais. Devido à dependência do Império pela especiaria melange, este fato poderia trazer graves conseqüências. Não duvidem que minha família tomou medidas para corrigir tão desafortunada situação: Abulurd foi afastado de suas funções e deportado ao planeta Lankiveil Seu título de nobreza foi retirado, embora seja possível que algum dia reclame o governo de algum distrito.

“Agora que a supervisão direta de Arrakis depende de mim, permita-me dar minha garantia pessoal de que utilizarei todos os meios necessários (dinheiro, dedicação e mão de ferro) para conseguir que a produção de melange alcance ou exceda nossos níveis de produção anteriores.

Como ordenou sabiamente, a especiaria tem que fluir.

A melange é o elemento econômico primitivo das atividades da CHOAM. Sem a especiaria, as reverendas madres da Bene Gesserit não poderiam realizar suas experiências de observação e controle humano, os Navegadores da Corporação não poderiam localizar caminhos seguros através do espaço, e milhares de cidadãos imperiais morreriam devido à síndrome de abstinência. Qualquer néscio sabe que a dependência de apenas uma substância degenera em abusos. Todos corremos um grave perigo.

Análise econômica de circulação de materiais da CHOAM

 

O barão Vladimir Harkonnen, esbelto e musculoso, estava inclinado para frente, ao lado do piloto do ornitóptero. Esquadrinhou com olhos negros através do cristal côncavo, ao mesmo tempo que seu olfato sentia o aroma da areia e do pó onipresentes.

Enquanto o ornitóptero couraçado voava a considerável altura, o sol branco de Arrakis arrancava reflexos das areias infinitas. A visão das dunas, que brilhavam devido ao calor do dia, feriu suas retinas. A paisagem e o céu eram de um branco cegante. Nada conseguia distrair o olho humano.

Um lugar infernal

O barão desejava retornar à placidez industrializada e a complexidade civilizada de Giedi Prime, o planeta central da Casa Harkonnen. Tinha melhores coisas a fazer no quartel general da família, situado na cidade de Carthag, e seus gostos exigentes desejavam outras diversões.

Mas a especiaria tinha prioridade absoluta. Sempre. Sobretudo quando surgia uma greve tão selvagem como seus rastreadores tinham informado.

Na cabine lotada, o barão apresentava um ar de confiança absoluta, indiferente às oscilações produzidas pelas turbulências de ar. As asas mecânicas do ornitóptero batiam ritmicamente, como as de uma vespa. O couro negro de seu casaco se ajustava perfeitamente sobre seus peitorais bem desenvolvidos. Com mais de quarenta anos, era atraente, com um ar de fanfarronice em suas feições. Usava o cabelo vermelho-dourado cortado e penteado conforme instruções precisas, para que destacasse seu penteado característico. O rosto do barão era imberbe, as maçãs do rosto altas e bem esculpidas. Ao longo do seu pescoço e mandíbula destacavam músculos muito pronunciados, dispostos a deformar seu rosto em uma expressão raivosa ou em um duro sorriso, segundo as circunstâncias.

— Quanto falta?

Olhou de esguelha para o piloto, que dava sinais de nervosismo.

— O lugar fica nas profundezas do deserto, barão. Tudo indica que se trata de uma das mais ricas concentrações de especiaria jamais escavada.

O aparelho estremeceu quando passaram sobre um afloramento de lava negra. O piloto engoliu em seco e se concentrou nos controles do ornitóptero.

O barão relaxou em seu assento e reprimiu a impaciência. Estava satisfeito porque o novo tesouro estava a salvo de olhos inquisidores, longe de funcionários imperiais ou da CHOAM que pudessem levar registros chatos. O senil imperador Elrood IX não tinha por que saber nada sobre a produção de especiaria dos Harkonnen em Arrakis. Graças a informes falsificados com supremo cuidado e livros de contas manipulados, para não falar dos subornos, o barão contava aos supervisores extra planetários somente o que queria que soubessem.

Passou a mão pelo suor que cobria seu lábio superior, e ajustou os controles da cabine do ornitóptero para uma temperatura mais fresca e um ambiente mais úmido.

O piloto, nervoso por ter sob sua responsabilidade um passageiro tão importante e de caráter tão mutável, aumentou a velocidade. Olhou para a projeção cartográfica do console, e estudou os contornos do terreno deserto que se estendia até perder-se de vista.

Depois de examinar as projeções cartográficas, sua escassez de detalhes desagradou o barão. Como alguém podia orientar-se naquele planeta deserto? Como era possível que um planeta vital para a estabilidade econômica do Império nunca tivesse sido cartografado? Outra falha de seu fraco meio-irmão, Abulurd.

Mas Abulurd se fora, e o barão estava no comando. Agora que Arrakis é meu, porei tudo em ordem. Assim que retornasse a Carthag, poria gente a trabalhar em novos mapas e planos, se os malditos Fremen não matassem uma vez mais os exploradores, ou destruíssem os pontos cartográficos.

Durante quarenta anos este mundo deserto tinha sido o semi-feudo da Casa Harkonnen, um acordo político garantido pelo imperador, com a bênção da poderosa CHOAM. Embora sórdido e desagradável, Arrakis era uma das jóias mais importantes da coroa imperial, em virtude da preciosa substância que fornecia.

Entretanto, depois da morte do pai do barão, Dimitri Harkonnen, o velho imperador tinha concedido o poder, devido a alguma deficiência mental, ao fraco Abulurd, que conseguira arruinar a produção de especiaria em apenas sete anos. Os lucros caíram, e perdeu o controle graças a contrabandistas e sabotagem. Caído em desgraça, o imbecil tinha sido deposto e exilado sem título oficial em Lankiveil, onde não podia prejudicar muito às atividades baleeiras desenvolvidas no planeta.

Em todo o Império, Arrakis (um inferno que alguns consideravam um castigo) era a única fonte conhecida da melange, uma substância muito mais valiosa que qualquer metal precioso. Neste mundo seco valia mais que seu peso em água.

Sem especiaria, as viagens espaciais seriam impossíveis... e sem viagens espaciais, o Império cairia. A especiaria prolongava a vida, protegia contra doenças e acrescentava vigor à existência. O barão, que a consumia com moderação, agradecia sobremaneira a sensação que produzia. Claro que a melange, em contrapartida, era ferozmente aditiva, o que mantinha seu preço alto...

O ornitóptero couraçado sobrevoou uma cordilheira que parecia uma mandíbula cheia de dentes podres. Ao longe, o barão viu uma nuvem de pó que se estendia como uma bigorna até o céu.

— São os trabalhos de coleta, barão.

Ornitópteros de ataque semelhantes a falcões apareceram como pontos negros no céu monocromático e se precipitaram para eles. O comunicador soou, e o piloto enviou um sinal de identificação. Os defensores, mercenários com ordem de manter afastados moradores indesejáveis, descreveram um círculo e adotaram uma posição protetora no céu.

Enquanto a Casa Harkonnen alimentasse a ficção de progresso e benefícios, a Corporação Espacial não tinha por que ser informada de nenhuma descoberta de especiaria. Nem o imperador nem a corporação de comércio galáctico CHOAM. O barão ficaria com a melange e aumentaria seus já enormes depósitos.

Depois dos anos de decadência, se o barão conseguisse ao menos a metade do que era capaz, a CHOAM e o Império notariam uma grande melhora. Sim isso os contentaria, não reparariam em suas consideráveis manobras, nunca suspeitariam da existência de suas reservas secretas. Um estratagema perigoso, se fosse descoberto... mas o barão sabia como tratar os olhos curiosos.

Enquanto se aproximavam da nuvem de pó, pegou um binóculo e regulou as lentes. A ampliação lhe permitiu ver a fábrica de especiaria em funcionamento. Com seus gigantescos pneumáticos e enorme capacidade de carga, a monstruosidade mecânica era incrivelmente cara, e valia todos os Solaris que sua manutenção custava. Suas escavadoras expulsavam pó avermelhado, areia cinza e lascas de pedra à medida que afundavam e cavavam a superfície do deserto, em busca da especiaria.

Unidades terrestres móveis percorriam a areia estripada nas vizinhanças da fábrica, afundavam sondas sob a superfície, recolhiam amostras, riscavam o plano do veio de especiaria enterrada. No céu, maquinaria mais pesada transportada por ornitópteros jumbo dava voltas, esperando. Na periferia, aparelhos de observação percorriam as areias de um lado a outro, com vigias a bordo concentrados em encontrar sinais de vermes. Qualquer dos gigantescos vermes de areia de Arrakis podia engolir todo o complexo.

— Senhor barão — disse o piloto ao mesmo tempo que lhe estendia o comunicador —, o capitão da equipe de trabalho deseja falar com o senhor.

— Fala o barão. Informe. Quanta especiaria encontrou?

O capitão respondeu com voz áspera, pelo visto indiferente à importância do homem com quem estava falando.

— Faz dez anos que dirijo equipes de especiaria, e este depósito supera tudo que vi até agora. O problema e que está enterrada a grande profundidade. Geralmente, os elementos deixam a especiaria descoberta, e assim a encontramos. Desta vez está muito concentrada, mas...

O barão só aguardou um momento.

— Sim, o que acontece?

— Está acontecendo algo estranho, senhor. Nos aspectos químicos, quero dizer. Há dióxido de carbono que se filtra de baixo, uma espécie de bolha formada sob nossos pés. O coletor está escavando através de capas exteriores de areia para acessar à especiaria, mas também há vapor de água.

— Vapor de água!

Era algo inédito em Arrakis, onde a de umidade do ar era mínima, mesmo no melhor dos dias.

— Talvez encontramos um antigo aquífero, senhor, sepultado sob uma capa de rocha.

O barão jamais tinha imaginado que se encontraria água sob a superfície de Arrakis. Considerou a possibilidade de explorar um curso de água e vendê-la à população. Isso irritaria sem dúvida aos mercadores de água existentes, que já se davam ares de importância excessiva.

Sua voz de baixo retumbou.

— Acha que está poluindo a especiaria?

— Não sei, senhor — disse o capitão —. A especiaria é uma matéria estranha, mas nunca tinha visto uma jazida semelhante. Não parece... normal.

O barão olhou para o piloto do ornitóptero.

— Ponha-me em contato com os rastreadores. Pergunte se localizaram sinais de vermes.

— Não há sinais de vermes, meu senhor — disse o piloto ao ver a resposta na tela. O barão observou gotas de suor na testa do homem.

— Ha quanto tempo o coletor esta lá embaixo?

— Quase duas horas normais, senhor.

O barão franziu o cenho. Já deveria ter aparecido um verme.

Sem perceber, o piloto tinha deixado aberto o sistema de comunicações, e o capitão da equipe confirmou a circunstância pelo alto-falante.

— Nunca demoraram tanto, senhor. Os vermes sempre vêm. Sempre. Mas algo está acontecendo ali embaixo. Os gases estão aumentando. Cheira-se no ar.

O barão absorveu o ar reciclado da cabine e detectou o aroma almiscarado de canela da especiaria bruta recolhida do deserto. O ornitóptero se encontrava a algumas centenas de metros do coletor principal.

— Também detectamos vibrações subterrâneas, uma espécie de ressonância. E não gosto disso, senhor.

— Você não é pago para gostar — replicou o barão —. É um verme profundo?

— Não acredito, senhor.

Examinou os cálculos estimados que o coletor de especiaria emitia. As cifras nublaram sua mente.

— O que estamos obtendo desta escavação equivale à produção mensal das outras jazidas.

Tamborilou com os dedos sobre sua coxa.

— Entretanto, senhor, sugiro que nos preparemos para recolher tudo e abandonar a jazida. Poderíamos perder...

— De maneira alguma, capitão — disse o barão —. Não há sinais de vermes, e quase recolheu a carga de toda uma feitoria. Se precisar, baixaremos um coletor vazio. Não vou abandonar uma fortuna em especiaria porque esta ficando nervoso... só porque tem uma sensação estranha. Ridículo!

Quando o chefe da equipe tentou defender seu ponto, o barão o interrompeu.

— Capitão, se é um covarde nervoso, escolheu mal a profissão e a Casa que lhe dá emprego. Continue.

Fechou o comunicador e tomou nota mentalmente de despedir aquele homem o quanto antes.

No alto flutuavam os transportadores preparados para recolher o coletor de especiaria e a sua tripulação assim que aparecesse um verme. Mas por que demoravam tanto? Os vermes sempre protegiam a especiaria.

A especiaria. Saboreou a palavra em seus pensamentos.

A substância, rodeada de superstições, existia em uma quantidade desconhecida, como um chifre de unicórnio moderno. Por outro lado, Arrakis era tão inóspito que ninguém tinha descoberto ainda a origem da melange. Na imensa extensão do Império, nenhum explorador nem prospector tinha encontrado melange em nenhum outro planeta, nem ninguém tinha conseguido sintetizar um substituto, apesar de séculos de tentativas. Desde que a Casa Harkonnen detinha o governo de Arrakis, e portanto controlava toda a produção de especiaria, o barão não desejava que se desenvolvesse um substituto ou se encontrasse outra fonte.

Equipes do deserto peritas localizavam a especiaria, e o Império a utilizava mas, alem disso, os detalhes não eram conhecidos. Sempre existia risco para os trabalhadores, o perigo de um ataque de verme muito cedo, de que um transportador se danificasse, de que uma feitoria de especiaria não fosse içada a tempo.

Tormentas de areia inesperadas surgiam com surpreendente velocidade. Os números de baixas e de perdas de equipes eram estarrecedores... mas a melange pagava quase qualquer custo, em dinheiro ou sangue.

Enquanto o ornitóptero descrevia círculos a um ritmo constante, o barão estudou o espetáculo industrial. O sol abrasador se refletia no casco poeirento da feitoria de especiaria. Os rastreadores continuavam sulcando o ar, enquanto veículos terrestres coletavam amostras.

Ainda não se viam sinais de nenhum verme, e cada momento que passava permitia à equipe recolher mais especiaria. Os trabalhadores receberiam bonificações, exceto o capitão, e a Casa Harkonnen se enriqueceria ainda mais. Os registros seriam alterados mais adiante.

O barão se voltou para o piloto.

— Chame a base mais próxima. Ordene que preparem outro transportador e outra fabrica de especiaria. Este veio parece inesgotável. — Baixou a voz —. Se ainda não apareceu nenhum verme talvez haja tempo...

O capitão da equipe de terra voltou a chamar, retransmitindo em uma freqüência geral desde que o barão tinha fechado seu receptor.

— Senhor, nossas sondas indicam que a temperatura está se elevando abaixo do solo... Um pico drástico! Algo está acontecendo lá embaixo, uma reação química. Além disso, um de nossos grupos de exploração terrestre acaba de encontrar um ninho de trutas de areia.

O barão grunhiu, furioso com o homem porque se comunicou mediante um canal não codificado. E se espiões da CHOAM estivessem escutando? Além disso, ninguém se importava com as trutas de areia. Aqueles animais gelatinosos que viviam sob a areia eram tão irrelevantes para ele como um enxame de moscas ao redor de um cadáver.

Tomou nota mental de castigar o homem com algo mais que a demissão e lhe negar a bonificação. Abulurd em pessoa deve ter escolhido esse bastardo afeminado.

O barão viu as diminutas figuras dos exploradores avançando pela areia, brincando de correr como formigas enlouquecidas por vapor ácido. Correram de volta para a fabrica de especiaria principal. Um homem saltou de seu veículo encravado na areia e se precipitou para a porta aberta da enorme máquina.

— O que esses homens estão fazendo? Estão abandonando seus postos? Desça um pouco para vê-los melhor.

O pilotou inclinou o ornitóptero e desceu como um escaravelho detestável para a areia. Os homens se agacharam, tossiram, enquanto tentavam colocar filtros sobre o rosto. Dois caíram sobre a areia. Outros retrocederam depressa para a fabrica de especiaria.

— Tragam o transportador! Tragam o transportador! — gritou alguém.

Todos os rastreadores informaram.

— Não vejo sinais de vermes.

— Ainda nada.

— Tudo limpo por aqui.

— Por que estão evacuando? — perguntou o barão, como se o piloto soubesse.

— Algo está acontecendo! — chiou o capitão —. Onde está o transportador? Precisamos dele já!

A terra oscilou. Quatro operários caíram de bruços na areia antes de chegar à rampa da fabrica de especiaria.

— Olhe, meu senhor! — O piloto apontou para baixo, com voz trêmula de terror. Quando o barão deixou de concentrar-se nos homens acovardados, viu que a areia tremia ao redor da jazida, e vibrava como um tambor.

O coletor de especiaria se inclinou e escorregou para um lado. Abriu-se uma rachadura na areia, e toda a jazida começou a erguer-se no ar como uma bolha de gás em uma panela de barro salusana fervendo.

— Tire-nos daqui! — gritou o barão. O piloto olhou para ele por uma fração de segundo, e o barão lhe deu um tapa na bochecha com a mão esquerda, veloz como o raio —. Mexa-se!

O piloto puxou os comandos e iniciou a subida. As asas articuladas bateram furiosamente.

Abaixo deles, a bolha subterrânea alcançou seu ponto máximo e explodiu. O coletor de especiaria, as equipes móveis e todo o resto saltou pelos ares. Uma gigantesca explosão de areia se elevou para o ar, arrastando rocha destroçada e a volátil especiaria alaranjada. A gigantesca fabrica foi feita em pedacinhos, que foram espalhados como trapos perdidos em uma tormenta Coriolis.

— Que diabos aconteceu ali?

Os olhos escuros do barão se arregalaram, incrédulos, ao contemplar a magnitude do desastre. Toda a preciosa especiaria desaparecida, engolida em um instante. Toda a equipe destruída. Não pensou na perda de vidas, apenas nos gastos para treinar outras equipes.

— Segure-se, meu senhor! — gritou o piloto. Os nódulos dos seus dedos ficaram brancos sobre os comandos.

Uma potente rajada de vento os alcançou. O ornitóptero couraçado perdeu sua posição no ar, enquanto as asas se agitavam freneticamente. Os motores zumbiram e grunhiram, ao mesmo tempo em que tentavam manter a estabilidade. Projéteis de areia se chocaram contra as janelas de plaz. Obstruídos pelo pó, os motores do ornitóptero falharam. O aparelho perdeu altitude e caiu para o revolto estômago do deserto.

O piloto gritou palavras ininteligíveis. O barão agarrou seus protetores contra colisões, e viu que a terra se precipitava para ele rapidamente, disposto a esmagá-lo como um inseto.

Como cabeça da Casa Harkonnen, sempre tinha pensado que morreria nas mãos de um assassino traidor... mas ser vítima de um desastre natural imprevisível lhe pareceu quase divertido.

Enquanto caíam, viu a areia aberta como uma ferida. As correntes de convecção e as reações químicas absorviam o pó e a melange bruta. O rico veio de especiaria se transformou em uma boca leprosa disposta a engoli-los.

Mas o piloto, que tinha parecido fraco e distraído durante o vôo, adotou uma rigidez total, devida à concentração e a determinação. Seus dedos voavam sobre os comandos, aproveitando as correntes, mudava o fluxo de um motor para outro afim de aliviar o estrangulamento produzido pelo pó nos tubos de recepção de ar.

Por fim, o ornitóptero nivelou, estabilizou-se e voou a baixa altura sobre a planície de dunas. O piloto emitiu um suspiro de alívio.

O barão viu sombras translúcidas reluzentes no grande desfiladeiro aberto na areia, sombras similares a vermes sobre uma carcaça: trutas de areia que corriam para a explosão. Não demorariam para surgirem os gigantescos vermes. Aqueles monstros não resistiriam a tentação.

Por mais que tentasse, o barão não conseguia compreender a especiaria.

O ornitóptero ganhou altitude e os conduziu para os rastreadores e transportadores, que tinham sido tomados de surpresa. Não tinham conseguido recuperar a fabrica de especiaria e seu precioso carregamento antes da explosão, e não podia culpar ninguém por isso. Só a si mesmo. O barão tinha dado ordens explícitas para se manterem afastados.

— Acabou de salvar minha vida, piloto. Como se chama?

— Kyrubi, senhor.

— Muito bem, Kyrubi. Já tinha visto algo semelhante? Que aconteceu ali embaixo? Qual foi a causa da explosão?

O piloto respirou fundo.

— Ouvi os Fremen falarem a respeito de algo que chamam explosão de especiaria. — Agora parecia uma estátua, como se o terror o tivesse transformado em algo muito mais forte —. Ocorre nas profundezas do deserto, onde muito pouca gente pode presenciar.

— Quem se importa com o que dizem os Fremen? — Seu lábio se curvou desdenhoso quando pensou nos sujos nômades indígenas do grande deserto —. Todos ouvimos falar de explosões de especiaria, mas ninguém viu nenhuma. Superstições estúpidas.

— Sim, mas as superstições sempre tem uma base. Eles viram muitas coisas no deserto.

O barão admirou o homem por sua determinação em falar, embora Kyrubi devia conhecer seu temperamento e espírito vingativos. Talvez seria prudente promovê-lo...

— Dizem que uma explosão de especiaria é uma explosão química — continuou Kyrubi —, talvez o resultado de uma massa de pré-especiaria sob as areias.

O barão pensou na informação recebida. Não podia negar a evidência de seus próprios olhos. Algum dia, possivelmente alguém descobriria a verdadeira natureza da melange e seria capaz de evitar desastres como este. Até o momento, como a especiaria parecia inesgotável para aqueles dispostos a levar a cabo o esforço, ninguém tinha se incomodado em efetuar análises detalhadas. Para que perder tempo em testes, quando uma fortuna aguardava? O barão tinha o monopólio de Arrakis, mas era um monopólio apoiado na ignorância.

Apertou os dentes e compreendeu que, assim que voltasse para Carthag, seria obrigado a relaxar um pouco, liberar suas tensões acumuladas com algumas diversões, talvez com mais vigor de imaginação. Desta vez teria que encontrar um candidato especial, em vez de um de seus amantes habituais, alguém a quem nunca mais voltaria a utilizar. Isso o liberaria das travas.

Já não é preciso ocultar esta jazida do imperador, pensou. Seria registrada, como se fosse um achado, e documentaria a destruição dos equipamento e da equipe. Tampouco seria necessário manipular os registros. O velho Elrood não se sentiria nada satisfeito, e a Casa Harkonnen deveria assumir o prejuízo econômico.

Enquanto o piloto voltava, os sobreviventes da patrulha examinavam os danos sofridos, e mais tarde informaram pelo comunicador sobre a perda de homens, equipamento e a carga de especiaria. O barão sentiu a raiva ferver em seu interior.

Maldito Arrakis. Maldita seja a especiaria, e maldita seja nossa dependência dela!

 

Somos generalistas. Não se pode delimitar com nitidez problemas de alcance planetário. A planetologia é uma ciência feita sob medida.

Pardot Kynes, Tratado sobre a recuperação ambiental da Salusa Secundus depois do holocausto

 

No planeta imperial Kaitain, imensos edifícios beijavam o céu. Magníficas esculturas e opulentas fontes, como visões de um sonho, flanqueavam as avenidas de chão acristalado. Uma pessoa podia contemplar o espetáculo durante horas.

Pardot Kynes só conseguiu vislumbrar o espetáculo urbano, enquanto os guardas reais escoltavam-no até o palácio. Não tinham paciência para a curiosidade de um simples planetólogo, nem tampouco nenhum interesse nas maravilhas da cidade. Seu trabalho consistia em escoltá-lo ao imenso salão abobadado do trono, e sem mais demora. Não se podia fazer o imperador do Universo Conhecido esperar por uma tolice.

Os membros da escolta de Kynes usavam uniformes cinza e negro, impecavelmente limpos e cobertos de galões e medalhas, todos os botões e adornos reluzentes, até a última cinta alisada e engomada. Quinze dos homens escolhidos em pessoa pelo imperador, os Sardaukar, rodeavam-no como um exército.

Mesmo assim, o esplendor da capital do planeta sobressaltava Kynes. Voltou-se para o guarda mais próximo e disse:

— Estou acostumado a trabalhar ao ar livre, ou atravessando pântanos de planetas onde ninguém mais quer ir. Nunca tinha visto, ou imaginado, nada parecido a isto nas paisagens selvagens e afastadas que estudei.

Os guardas não responderam ao forasteiro gorducho. Os Sardaukar eram treinados para serem máquinas de combate, não anfitriões.

— Aqui me esfregaram até a terceira capa e me vestiram como um nobre.

Kynes tocou o grosso tecido trançado de sua jaqueta azul escuro, cheirou o sabão e o aroma de sua pele. Sua face estava limpa, com o cabelo escasso e loiro penteado para trás.

A escolta subiu a toda pressa uma escada, que parecia interminável, com degraus de pedra adornados com filigranas de ouro e pedras soo cintilantes de cor nata.

Kynes se virou para o guarda da esquerda.

— Esta é minha primeira viagem ao planeta. Suponho que quando se trabalha aqui, depois de um tempo nem se repara na paisagem.

Suas palavras se apoiaram em um sorriso ofegante, mas uma vez mais caíram em ouvidos surdos.

Kynes era um perito e respeitado ecologista, geólogo e meteorologista, especializado em botânica e microbiologia. Era um prazer para ele desentranhar os mistérios de planetas inteiros, mas as pessoas eram muito freqüentemente um mistério insondável para ele, como estes guardas.

— Kaitain é muito mais... confortável que Salusa Secundus. Cresci ali — continuou —. Também estive na Bela Tegeuse, e é quase tão espantoso, iluminado por sóis anões.

Por fim, Kynes olhou à frente e murmurou para si:

— O imperador me fez vir da outra metade da galáxia. Eu gostaria de saber por que.

Nenhum dos homens lhe ofereceu a menor explicação.

O cortejo passou sob uma arcada de rocha de lava carmesim, que suportava a pesada opressão de uma idade muito avançada. Kynes ergueu a vista, e com sua experiência de geólogo reconheceu a curiosa e imensa pedra: uma antiga arcada do planeta destruído Salusa Secundus.

Surpreebdeu-o que alguém conservasse uma relíquia tão antiga do austero planeta onde Kynes tinha passado muitos anos, um planeta prisão isolado com um ecossistema destruído. Mas então se lembrou, e sentiu-se como um idiota por ter esquecido que Salusa tinha sido em outro tempo a capital imperial, milênios antes... antes do desastre que o alterou. Sem dúvida a Casa Corrino havia trazido intacta a arcada como uma lembrança de seu passado, ou como uma espécie de troféu para demonstrar que a família imperial tinha superado a adversidade da devastação do seu planeta.

Enquanto o cortejo atravessava o arco de lava e entrava no ressoante esplendor do palácio, soou uma fanfarra executada por instrumentos de sopro que Kynes não reconheceu. Nunca tinha dedicado muito tempo ao estudo da música e das artes, nem sequer quando criança. Para que, quando havia tanta ciência natural para assimilar?

Pouco antes de passar sob o teto resplandecente de jóias da imensa estrutura real, Kynes contemplou uma vez mais o céu espaçoso e azul.

Durante a viagem, dentro de uma seção fechada do Cruzeiro da Corporação, Kynes tinha aproveitado o tempo para aprender algo sobre o planeta capital, embora nunca tivesse aplicado seus conhecimentos sobre planetas a um lugar tão civilizado. Kaitain fora planejada e construída com gosto primoroso, e contava com avenidas flanqueadas por árvores, arquitetura esplêndida, jardins bem regados, muralhas de flores e muito mais.

Os relatórios imperiais afirmavam que o clima era sempre temperado. As tormentas não existiam. Nenhuma nuvem manchava o céu. A princípio pensava que a informação era pura propaganda turística, mas quando a bela nave escolta da Corporação aterrissou, observou a flotilha de satélites meteorológicos, a tecnologia que, mediante força bruta, dominava o clima e conservava Kaitain como um lugar plácido e sereno. Os engenheiros do clima podiam modificar o tempo, para que se ajustasse ao que um louco tinha decidido como ótimo, mas estavam expostos a outro perigo ao criar um habitat que, a longo prazo, afetava negativamente a mente, o corpo e o espírito. A família imperial nunca tinha entendido. Continuava relaxada sob seus céus ensolarados e passeava por seus esplêndidos viveiros, indiferente à catástrofe ecológica que algum dia desabaria ante seus olhos. Seria um desafio ficar no planeta e estudar os efeitos, mas Kynes duvidava que o imperador Elrood IX o tivesse convocado para isso.

A escolta entrou no palácio, passaram em frente a estátuas e pinturas clássicas. A ampla sala de audiências poderia ser uma arena de antigas lutas de gladiadores. O chão se estendia a frente deles como uma planície de quadrados de pedra polida e multicolorida, cada um procedente de um dos planetas do Império. Foram acrescentando nichos e quadros à medida que o Império crescia.

Os funcionários da corte, adornados com vestimentas deslumbrantes e plumas brilhantes, iam de um lado para outro exibindo tecidos feitos com fios de metal precioso. Carregados com documentos, dedicavam-se a assuntos inimagináveis, corriam para realizar reuniões, sussurravam entre si como se só eles compreendessem suas funções reais.

Kynes era um estranho neste mundo político. Preferia a desolação. Embora o esplendor o fascinasse, desejava a solidão, as paisagens inexploradas, e os mistérios da flora e da fauna. Aquele lugar tão ocupado ia lhe dar dor de cabeça de um momento para outro.

Os guardas Sardaukar o conduziram por um longo caminho sob luzes prismáticas, com enérgico passo marcial que ressoava em uníssono. Os tropeções de Kynes causavam a única dissonância.

Mais adiante, sobre um estrado elevado de cristal verde-azulado, descansava o Trono do Leão Dourado translúcido, esculpido em uma só peça de quartzo de Hagal. E sobre a deslumbrante cadeira estava sentado o velho em pessoa: Elrood Corrino IX, regente imperial do Universo Conhecido.

Kynes observou-o. O imperador era um homem muito fraco, quase esquelético, com uma cabeça enorme sobre um pescoço magro. O regente ancião, rodeado de um luxo tão incrível e uma riqueza tão imensa, parecia insignificante. Entretanto, com um movimento mínimo de seu dedo, o imperador podia condenar planetas inteiros à aniquilação e matar milhões de pessoas. Elrood ocupava o Trono do Leão Dourado durante quase um século e meio.

Quantos planetas havia no Império? Quantas pessoas aquele homem governava? Kynes se perguntou se era possível que alguém possuísse tal quantidade de informação.

Enquanto era guiado até a base do estrado, Kynes sorriu hesitante para Elrood; depois engoliu em seco, desviou a vista e abaixou a cabeça. Ninguém tinha explicado qual era o protocolo no palácio, e não conhecia os costumes e frivolidades sociais. O tênue aroma de canela da melange chegou ao seu nariz, procedente de uma jarra de cerveja de especiaria que o imperador tinha sobre uma mesinha ao lado do trono.

Um pajem se adiantou, saudou o chefe da escolta Sardaukar com um movimento de cabeça, virou-se e trovejou em galach, o idioma comum:

— O planetólogo Pardot Kynes!

Kynes empertigou-se, enquanto perguntava a si mesmo por que fora apresentado de forma tão ostensiva, quando era evidente que o imperador sabia quem ele era. Do contrário não o teria convocado. Kynes ficou em duvida se devia dizer olá, mas decidiu deixar que a corte determinasse o desenrolar dos acontecimentos.

— Kynes — disse o velho imperador com voz aguda e áspera, afligida por muitos anos de ordens firmes —, vem a mim muito bem recomendado. Nossos conselheiros estudaram muitos candidatos, e o escolheram. O que tem a dizer?

O imperador se inclinou e arqueou as sobrancelhas, de forma que sua fronte se enrugou até o alto do crânio.

Kynes murmurou algo a respeito de sentir-se honrado e lisonjeado, depois pigarreou e formulou a verdadeira pergunta.

— Mas, senhor, para que fui escolhido exatamente?

Elrood estalou a língua e se reclinou no trono.

— Me agrada ver alguém mais preocupado em satisfazer sua curiosidade que seguir a etiqueta, ou adular estes bajuladores estúpidos e bufões. — Quando sorriu, o rosto de Elrood pareceu adquirir a textura da borracha e as rugas se alargaram. Sua pele possuía, o tom cinzento do pergaminho —. O relatório diz que cresceu em Salusa Secundus, e que escreveu relatórios complexos e definitivos sobre a ecologia do planeta.

— Sim, senhor... majestade. Meus pais eram funcionários, enviados para trabalhar em sua prisão imperial. Eu era muito pequeno e me levaram com eles.

Na verdade, Kynes tinha ouvido rumores de que seu pai ou sua mãe tinham aborrecido o imperador e tinham sido exilados naquele planeta. Mas Pardot Kynes tinha achado aquela desolação fascinante. Depois que os professores terminaram sua educação, passava seus dias explorando as terras ermas, tomava notas, estudava os insetos, as ervas e os animais que tinham conseguido sobreviver ao antigo holocausto atômico.

— Sim, eu sei — disse Elrood —. Depois de um tempo seus pais foram transferidos para outro planeta.

Kynes assentiu.

— Sim, senhor. Foram para Harmonthep.

O imperador agitou a mão para desprezar a referência.

— Mas mais tarde retornou a Salusa. Por vontade própria?

— Bem, tinha muitas coisas que aprender em Salusa — respondeu, e reprimiu um dar de ombros.

Kynes passara anos em ambientes desertos, decifrando os mistérios do clima e dos ecossistemas. Tinha sofrido muitas privações, suportado muitos desconfortos. Em uma ocasião, foi atacado por tigres Laça e sobrevivido. Depois, Kynes publicara um longo tratado sobre seus anos ali, abrindo notáveis janelas de compreensão sobre o planeta capital imperial, antes tão encantador e agora abandonado.

— A desolação selvagem do planeta estimulou meu interesse pela ecologia. É muito mais interessante estudar um... mundo desolado. Tenho dificuldade em aprender algo em um lugar muito civilizado.

Elrood riu do comentário e olhou ao redor, para que outros membros da corte o imitassem.

— Como Kaitain, quer dizer?

— Bem, estou seguro de que também tem que cobrir lugares interessantes, senhor — disse Kynes, rogando não ter cometido uma estupidez indesculpável.

— Muito bem dito! — trovejou Elrood —. Meus conselheiros agiram com sabedoria ao escolhe-lo, Pardot Kynes.

Sem saber o que dizer nem fazer, o planetólogo executou uma reverência desajeitada.

Depois dos anos passados em Salusa Secundus, tinha viajado para os pantanosos e intrincados terrenos do obscuro Bela Tegeuse, e depois a outros lugares que o interessavam. Podia sobreviver em qualquer lugar. Suas necessidades eram escassas. O mais importante para ele era acumular conhecimentos científicos, estudar as rochas e ver que segredos os processos naturais tinham escondido.

Mas agora a curiosidade o espicaçava. Por que tinha chamado a atenção de uma forma tão grande?

— Se me permite perguntar de novo, majestade... Que missão me destinam? — E se apressou a acrescentar —: É obvio, sinto-me muito honrado em servi-lo no que desejar.

— Você, Kynes, foi reconhecido como um homem capaz de analisar complexos ecossistemas afim de aproveitá-los para as necessidades do Império. Nos o escolhemos para ir ao planeta deserto Arrakis e usar sua magia ali.

— Arrakis! — Kynes não pôde dissimular seu estupor e júbilo —. Acredito que os habitantes nômades Fremen o chamam de Dune.

— Chame-se como for — disse Elrood com certa brutalidade —, é um dos planetas mais desagradáveis, embora importantes, do Império. Como deve saber, Arrakis é a única fonte da especiaria melange.

Kynes assentiu.

— Sempre me perguntei por que nenhum explorador encontrou especiaria em outros planetas. E por que ninguém sabe como ela surge.

— Você descobrirá isso para nós — disse o imperador —. Agora é a hora.

De repente, Kynes compreendeu que talvez tivesse se excedido, e sentiu um leve temor. Encontrava-se no salão do trono mais importante de um milhão de planetas, e estava falando com o imperador Elrood IX pessoalmente. Outros membros da corte olhavam para ele, alguns com desaprovação, outros com horror, e alguns poucos com expressão de perversa alegria, como se intuíssem seu castigo iminente.

Mas Kynes imaginou imediatamente a paisagem de areias calcinadas pelo sol, dunas majestosas e monstruosos vermes de areia, imagens que só tinha visto em videolivros. Esqueceu sua insignificante falta de tato, conteve o fôlego e esperou para escutar os detalhes da missão.

— É de vital importância para o futuro do Império que conheçamos os segredos da melange. Até hoje, ninguém dedicou tempo nem esforços para desvendar seus mistérios. As pessoas pensam que Arrakis é uma fonte inesgotável de riquezas, e ninguém se preocupa com a mecânica ou os detalhes. Crasso engano. — Fez uma pausa —. Este é o desafio que enfrentará, Pardot Kynes. Eu o nomeio planetólogo imperial oficial de Arrakis.

Enquanto Elrood falava, examinou aquele homem maduro, curtido pela intempérie. Compreendeu que Kynes não era um homem complicado. Seus sentimentos e afinidades transpareciam em seu rosto. Os conselheiros da corte tinham dito que Pardot Kynes não tinha ambições políticas e obrigações. Seu único interesse verdadeiro residia em seu trabalho e na compreensão da ordem natural do universo. Nutria uma fascinação quase infantil pelos planetas longínquos e os ambientes hostis. Executaria sua tarefa com um entusiasmo ilimitado, e proporcionaria respostas sinceras.

Elrood tinha passado quase toda sua vida política rodeado de lacaios néscios, aduladores descerebrados que diziam o que, em sua opinião, ele queria escutar. Mas este homem tosco, pouco acostumado às convenções sociais, era diferente.

Nesse momento era fundamental que compreendessem os fatos inerentes à especiaria, com o objetivo de melhorar a eficácia das operações, operações que eram vitais. Depois de sete anos do governo inepto de Abulurd Harkonnen, e dos acidentes e enganos cometidos pelo ambicioso barão Vladimir Harkonnen, preocupava ao imperador que a produção e distribuição de especiaria se paralisasse. A especiaria devia fluir.

A Corporação Espacial precisava de enormes quantidades de melange para encher as câmaras herméticas de seus Navegadores mutantes. Ele, e o conjunto da alta classe do Império, necessitavam de (cada vez mais) doses diárias de melange para conservar a vitalidade e prolongar suas vidas. A Ordem da Bene Gesserit precisava da especiaria para criar e treinar mais reverendas mães. Os Mentat necessitavam dela para concentrar sua mente.

Mesmo desaprovando a desastrada administração do barão Harkonnen, Elrood não podia se apoderar de Arrakis. Depois de décadas de manipulações políticas, a Casa Harkonnen tinha tomado o controle depois de expulsar a Casa Richese.

Há mil anos o Império concedia o governo de Arrakis a uma família escolhida, para que arrancasse as riquezas da areia durante um período que não devia exceder um século. Cada vez que o feudo mudava de mãos, um dilúvio de súplicas e petições inundava o palácio. O apoio da Landsraad implicava muitos compromissos, alguns dos quais eram muito caros para Elrood.

Embora fosse o imperador, seu poder dependia de um equilíbrio, cauteloso e instável, com numerosas forças, incluídas as Grandes e Menores Casa do Landsraad, a Corporação Espacial e monopólios comerciais como a CHOAM. Era ainda mais difícil lutar com outras forças, forças que preferiam agir na sombra.

Tenho que desequilibrar a balança, pensou Elrood. Este assunto de Arrakis durou muito.

O imperador se inclinou para frente e percebeu que Kynes estava cheio de alegria e entusiasmo. Estava ansioso para ir ao planeta deserto. Melhor assim.

— Descubra tudo que puder sobre Arrakis e me envie informações regularmente, planetólogo. A Casa Harkonnen receberá instruções de dar todo o apoio e a colaboração que necessitar. Embora não sintam nenhum prazer em ter um observador imperial farejando em seu território.

Nesse momento, como o barão Harkonnen acabava de assumir o governo do planeta, dependia completamente do imperador.

— Forneceremos tudo que for necessário para sua viagem. Faça uma lista e entrega-a a meu chambelán. Quando chegar a Arrakis, os Harkonnen receberão ordens de atender todos os seus pedidos.

— Minhas necessidades são escassas — disse Kynes —. Só necessito de meus olhos e minha mente.

— Sim, mas espero que o barão possa lhe oferecer algumas comodidades a mais.

Elrood sorriu de novo e se despediu do planetólogo com um gesto. O imperador observou que ao sair da sala de audiências Kynes andava com um passo muito mais vivo.

 

Não construirá uma máquina a semelhança da mente humana.

Primeiro Mandamento da Jihad Butleriana, tal como consta na Bíblia Católica Laranja

 

O sofrimento é o grande professor dos homens, ditava o coro de velhos atores no cenário. Embora os cômicos fossem simples cidadãos do povo que vivia à sombra do castelo do Caladan, prepararam-se bem para a representação anual da obra oficial da Casa. Os trajes eram coloridos, embora não fossem totalmente autênticos. Os cenários (a fachada do palácio do Agamenon, o pátio lajeado) exibiam um realismo apoiado só no entusiasmo e em algumas seqüencias filmadas da antiga Grécia.

Já fazia algum tempo que se representava a longa peça de Tosquio, e fazia calor no teatro. Globos de luz iluminavam o cenário e algumas filas de assentos, mas as tochas e os braseiros que rodeavam os atores perfumavam o edifício com uma fumaça aromática.

Face aos ruídos de fundo, os roncos do velho duque ameaçavam chegar aos ouvidos dos atores.

— Acorde, pai! — sussurrou Leto Atreides, ao mesmo tempo em que dava uma cotovelada nas costelas do duque Paulus —. Nem sequer chegamos na metade da peça.

Paulus se remexeu no assento do seu camarote, e sacudiu migalhas de pão imaginárias de seu peito largo. Sombras dançaram sobre seu rosto fino e enrugado e sua barba grisalha. Usava o uniforme negro dos Atreides, com o emblema do falcão vermelho.

— Tudo se reduz a falar e posar, rapaz. — Piscou em direção ao cenário, onde os anciões apenas se moveram —. E cada ano vemos o mesmo.

— Essa não é a questão, Paulus, querido. — Do outro lado do duque estava sentada a mãe de Leto, lady Helena, vestida com seus melhores ornamentos e concentrada nas palavras solenes do coro grego —. Preste atenção ao contexto. Afinal, é a história de sua família, não da minha.

Leto passeou o olhar entre seus pais, consciente de que a história familiar da Casa Richese de sua mãe possuía tanta grandeza e miséria como a da Casa Atreides. Richese tinha caído de uma idade de ouro para sua atual fragilidade econômica.

A Casa Atreides se gabava de que suas raízes remontavam a mais de doze mil anos de antigüidade, até os filhos de Atreus na Velha Terra. A família se orgulhava de sua longa história, face aos numerosos incidentes, trágicos e desonrosos, que a balizavam. Os duques tinham transformado em uma tradição anual a representação da tragédia clássica Agamenon, o filho mais famoso do Atreus e um dos generais que tinham conquistado Tróia.

Leto Atreides, de cabelo negro como asa de corvo e nariz aquilino, parecia-se muito com sua mãe. Assistia a peça, vestido com roupas incômodas, vagamente consciente do fundo extraterrestre da história. O autor da obra tinha dado como certo que o público captaria as referências esotéricas. O general Agamenon tinha sido um grande militar de uma das guerras lendárias da história humana, muito antes da criação das máquinas pensantes que tinham escravizado à humanidade, muito antes que a Jihad Butleriana tivesse libertado à humanidade.

Pela primeira vez em seus quatorze anos, Leto sentiu o peso da lenda sobre seus ombros. Intuiu uma relação com os rostos e personalidades do desafortunado passado de sua família.

— É melhor a fortuna não invejada — recitaram em coro os anciões —. Preferível a saquear cidades, melhor que seguir as ordens de outros.

Antes de zarpar para Tróia, Agamenon tinha sacrificado sua própria filha para que os deuses lhe concedessem ventos favoráveis. Sua desventurada esposa, Clitemnestra, dedicou os dez anos de ausência de seu marido a planejar sua vingança. Agora, depois da batalha final da guerra da Tróia, acendeu-se uma fileira de fogueiras ao longo da costa, para comunicar a vitória ao país.

— Toda a ação acontece fora do cenário — murmurou Paulus, embora nunca tivesse sido um bom leitor ou crítico literário. Vivia o momento, espremia cada gota da experiência e do êxito. Preferia passar o tempo com seu filho ou seus soldados —. Todo mundo fica quieto ante o cenário, à espera da chegada de Agamenon.

Paulus se aborrecia com a falta de ação, sempre repetia para seu filho que era melhor uma decisão errada que não tomar nenhuma. Na obra, Leto pensava que o velho duque se identificava com o grande general, um homem de seu agrado.

O coro de anciões continuou recitando, Clitemnestra saiu do palácio para pronunciar um discurso, e o coro continuou de novo. Um arauto, que fingia ter desembarcado, chegava ao cenário, beijava o chão e recitava um longo solilóquio.

— Agamenon, glorioso rei! Merece nossas boas-vindas por ter aniquilado Tróia e a pátria dos troianos. Os altares de nossos inimigos jazem em ruínas, seus deuses já não os confortam e seus terrenos estão ermos.

Guerra e destruição. Leto pensou na juventude de seu pai, quando tinha lutado pelo imperador, esmagando uma sangrenta rebelião em Ecaz e vivido aventuras com seu amigo Dominic, agora conde da Casa Vernius, de IX. Quando se encontrava a sós com Leto, o velho duque falava freqüentemente daqueles tempos com nostalgia indissimulada.

Nas sombras de seu camarote, Paulus exalou um suspirou sem ocultar seu aborrecimento. Lady Helena fulminou-o com o olhar, voltou sua atenção à obra e compôs um sorriso mais plácido ainda, se por acaso alguém olhasse. Leto dedicou a seu pai uma careta de compaixão, e Paulus piscou um olho. O duque e sua esposa interpretavam seus papéis à perfeição.

Por fim, o vitorioso Agamenon chegou ao cenário em um carro, acompanhado por sua amante, a profetisa meio louca Cassandra. Enquanto isso, Clitemnestra se preparava para a aparição de seu odiado marido, ao mesmo tempo em que fingia amor e devoção.

O velho Paulus ameaçou afrouxar o colarinho do uniforme, mas Helena puxou sua mão. Seu sorriso não mudou em nada.

Leto sorriu para si ao presenciar aquele ritual, tão freqüente entre seus pais. Sua mãe se esforçava sempre por conservar o que chamava “sentido de decoro”, enquanto o velho se comportava com muito menos formalidade. Enquanto seu pai lhe ensinara muitas coisas sobre a arte de governar e liderança, lady Helena educara seu filho em protocolo e estudos religiosos.

Richese por nascimento, lady Helena Atreides tinha nascido em uma Casa importante que perdera quase todo seu poder e prestígio por culpa de ambições econômicas fracassadas e intriga políticas. Depois de ter sido expulsa do governo de Arrakis, a família da Helena tinha salvara parte de sua respeitabilidade graças a um matrimônio de conveniência com os Atreides. Várias de suas irmãs tinham contraído matrimônio com membros de outras Casas.

Apesar de suas diferenças, em certa ocasião o velho duque confessou a Leto que a amara com todo seu coração durante os primeiros anos de sua união. Com o tempo, a relação se degradou, e tivera muitas amantes e talvez alguns filhos ilegítimos, embora Leto fosse seu único herdeiro oficial. À medida que transcorriam as décadas, estabeleceu-se uma inimizade entre marido e mulher, o que provocou profundas desavenças. Agora, o matrimônio era apenas uma questão política.

— Para começar, casei-me por política, rapaz — havia dito —. Nunca me teria ocorrido outra coisa. Em nossa posição, o matrimônio é uma ferramenta. Se tentar acrescentar amor a isso, tudo se estraga.

Às vezes Leto se perguntava se Helena amara o duque em algum momento, ou só sua posição e título. Ultimamente parecia que tinha assumido o papel de assessora de imagem oficial de Paulus. Sempre se esforçava em mantê-lo elegante e apresentável. Significava muito, tanto para sua reputação como para a dele.

No cenário, Clitemnestra deu as boas-vindas ao seu marido e estendeu tapeçarias púrpura sobre o chão para que caminhasse sobre elas. Rodeado de uma grande pompa, ao som das fanfarras, Agamenon entrou em seu palácio, enquanto a profetisa Cassandra, muda de terror, negava-se a entrar. Previa sua própria morte e o assassinato do general. Ninguém a ouviu, é obvio.

Por meio de canais políticos cultivados com supremo tato, a mãe de Leto mantinha contatos com outras Casas poderosas, no entanto o duque Paulus tecia sólidos vínculos com o povo de Caladan. Os duques Atreides se dedicavam ao serviço de seus súditos, e cobravam só o que era justo, a partir de seus negócios familiares. Era uma família enriquecida, embora não em excesso, e não espoliava seus cidadãos.

Na obra, quando o general recém-chegado ia ao banho, sua traiçoeira esposa o vestiu com uma túnica púrpura e lhe deu muitas facadas, junto com sua amante.

— Deuses! Deram-me uma punhalada mortal! — lamentava-se Agamenon de fora do cenário. O velho Paulus sorriu e se inclinou para seu filho.

— Matei muitos homens no campo de batalha, mas nunca ouvi nenhum deles dizer isso enquanto morria.

Helena o fez se calar.

— Os deuses me protejam, outra punhalada! Morrerei! — gritava Agamenon.

Enquanto o público estava absorto na tragédia, Leto tentou analisar a situação e como se relacionava com sua vida. Afinal, supunha-se que era a herança familiar.

Clitemnestra admitiu o assassinato, proclamou o direito a vingar-se de seu marido pelo sangrento sacrifício de sua filha, por deitar-se com prostitutas em Tróia e por ter trazido sua amante, Cassandra, para sua própria casa.

— Glorioso rei — choramingou o coro —, nosso afeto é ilimitado, nossas lagrimas intermináveis. A aranha o apanhou na sinistra rede da morte.

O estômago do Leto se revolveu. A Casa Atreides tinha cometido horríveis maldades no passado longínquo. Mas a família tinha mudado, talvez instigada pelos fantasmas da história. O velho duque era um homem de honra, respeitado pelo Landsraad e amado por seu povo. Leto esperava estar a sua altura quando chegasse o momento de tomar as rédeas da Casa Atreides.

Recitaram os últimos versos da obra, os atores se adiantaram até a beira do cenário e fizeram uma reverência aos líderes políticos e econômicos reunidos, vestidos com seus melhores ornamentos.

— Bom, fico feliz que tenha terminado — suspirou Paulus, enquanto se acendiam as luzes do teatro. O velho duque ficou em pé e beijou a mão de sua esposa, enquanto saíam do camarote real —. Vá na frente, querida. Tenho que falar com Leto. Espere-nos na sala de recepções.

Helena olhou um momento para seu filho e se afastou pelo corredor do antigo teatro de pedra e madeira. Seu olhar denotava que sabia muito bem as intenções de Paulus, mas se rendia à arcaica tradição de que os homens falavam de assuntos importantes enquanto as mulheres se ocupavam de outras coisas.

Mercadores, homens de negócios importantes e outros respeitados membros da comunidade começaram a invadir o corredor, enquanto bebiam vinho de Caladan e comiam canapés.

— Por aqui, rapaz — disse o duque, se dirigindo para um passadiço que corria por trás do cenário.

Leto e ele passaram em frente a dois guardas que saudaram. Depois subiram quatro pisos no elevador, até chegar a um camarim dourado. Globos de cristal de Balut flutuavam no ar e projetavam um quente brilho alaranjado. Em outro tempo moradia de um lendário ator caladano, a câmara estava reservada agora para o uso exclusivo dos Atreides e seus conselheiros mais íntimos, em momentos que exigiam privacidade.

Leto se perguntou por que seu pai o levara ate ali.

Depois de fechar a porta a suas costas, Paulus se acomodou em uma poltrona flutuante verde e negra, e indicou a Leto que se sentasse a frente dele. O jovem obedeceu e ajustou os controles para que a poltrona se elevasse no ar, até que seus olhos ficassem à mesma altura dos de seu pai. Leto só fazia isto em privado, nem sequer diante de sua mãe, que teria tachado aquele comportamento de inapropriado e desrespeitoso. Por outro lado, o velho duque considerava que a audácia de seu filho constituía um divertido reflexo de sua personalidade quando era jovem.

— Você já é maior, Leto — começou Paulus, e extraiu uma trabalhado cachimbo de madeira de um compartimento no braço da poltrona. Não perdeu o tempo com amenidades —. Tem que aprender mais coisas do que há aqui. portanto, vou enviá-lo para IX para estudar.

Examinou o jovem de cabelo negro tão parecido a sua mãe, mas de uma pele mais olivácea. Tinha o rosto estreito, de ângulos pronunciados e profundos olhos cinzas.

IX! O pulso de Leto se acelerou. O planeta máquina. Um lugar estranho e misterioso. Todo o Império conhecia a incrível tecnologia e inovações do intrigante planeta, mas poucos forasteiros tinham pisado nele. Leto se sentiu desorientado, como se estivesse de pé sobre a ponte de um navio em plena tormenta. Seu pai adorava surpreendê-lo dessa forma, para ver como Leto reagia ante uma situação inesperada.

Os ixianos guardavam segredo a respeito de suas atividades industriais. Havia rumores que operavam nos limites da legalidade, que fabricavam aparelhos que quase violavam as proibições do Jihad contra as máquinas pensantes. Por que meu pai me envia para esse lugar, e como o acertou isso? Por que ninguém pediu minha opinião?

Uma robomesa emergiu do chão ao lado do Leto, com um copo cristalizado de ácido cítrico. Os gostos do jovem eram conhecidos, da mesma maneira que se sabia que o velho duque só desejava o cachimbo. Leto tomou um gole da bebida e franziu os lábios.

— Estudará ali por um ano — prosseguiu Paulus —, conforme as tradições das Grandes Casa aliadas. Viver em IX significará um contraste com nosso bucólico planeta. Aprenda com ele.

Contemplou o cachimbo que segurava. Esculpido em madeira da Jacarandá elaccana, era de um marrom intenso e cintilava à luz dos globos.

— O senhor esteve ali? — Leto sorriu quando recordou —. Para ver seu camarada Dominic Vernius, não é?

Paulus tocou o botão de combustão em um lado do cachimbo, o que acendia o fumo, que era na realidade uma alga marinha rica em nicotina. Deu uma longa baforada e exalou a fumaça.

— Em muitas ocasiões. Os ixianos formam uma sociedade isolada e desconfiam dos forasteiros. Em conseqüência, você terá que suportar muitas medidas de segurança, interrogatórios e varreduras de scanner. Sabem que se baixarem a guarda, sequer um instante, poderia ser fatal. Tanto as Grandes Casas como as Menores cobiçam o que IX possui, e desejariam tomar-lhe.

— Richese, por exemplo — disse Leto.

— Não diga isso a sua mãe. Richese é só uma sombra do que foi, porque IX os derrotou em uma guerra econômica total. — inclinou-se para frente — Os ixianos são professores da sabotagem industrial e apropriações de patentes. Na atualidade, os richesianos só sabem fazer cópias pobres carentes de inovações.

Leto refletiu sobre estes comentários, que eram novos para ele. O velho duque exalou a fumaça, com as bochechas inchadas e um tremor na barba.

— Em respeito a sua mãe, rapaz, filtramos a informação que acaba de ouvir. A Casa Richese foi uma perda muito trágica. Seu avô, o conde Libam Richese, tinha uma família numerosa, e passava mais tempo com sua prole que vigiando os negócios. Não é surpreendente que seus filhos crescessem muito mimados e dilapidassem sua fortuna.

Leto assentiu, atento como sempre às palavras de seu pai. Não obstante, já sabia mais do que Paulus imaginava. Tinha visto em privado hologravações e videolivros que seus professores tinham deixado a seu alcance por descuido. Entretanto, agora pensou que talvez tudo se tratava de um plano preconcebido para lhe abrir a história da família de sua mãe como uma flor, de pétala em pétala.

Junto com seu interesse familiar por Richese, Leto sempre tinha considerado IX igualmente intrigante. Em outro tempo adversário industrial de Richese, a Casa Vernius de IX tinha sobrevivido como centro tecnológico. A poderosa família real de IX era das mais ricas do Império, e ele ia estudar ali.

As palavras de seu pai interromperam seus pensamentos.

— Seu companheiro de aprendizagem será o príncipe Rhombur, herdeiro do nobre título de Vernius. Espero que se dêem bem. São da mesma idade.

O príncipe de IX. Tomara que não fosse um pirralho mimado, como tantos filhos das poderosas famílias do Landsraad. Por que não podia ser uma princesa, com a aparência da filha do banqueiro da Corporação que tinha conhecido no mês anterior no Baile do Solstício da Maré?

— Bem... como é o príncipe Rhombur? — perguntou.

Paulus riu, insinuando toda uma vida de anedotas picantes.

— Não sei. Faz muito tempo que não vejo Dominic nem sua esposa Shando. — Sorriu, como se lembrasse de uma piada privada —. Ah, Shando... Era uma concubina imperial, mas Dominic a roubou do velho Elrood debaixo de seu nariz. — Soltou uma sonora gargalhada —. Agora têm um filho... e também uma filha. Chama-se Kailea.

O duque continuou, com um sorriso enigmático.

— Tem muito que aprender, meu filho. Dentro de um ano, os dois deverão estudar em Caladan, um intercâmbio de serviços pedagógicos. Rhombur e você serão transportados aos campos de arroz pundi nos pântanos do sul, viverão em cabanas e trabalharão nos arrozais. Viajarão sob o mar em uma câmara de Nells, e mergulharão para extrair gemas coralinas. — Sorriu e deu tapinha no ombro de seu filho —. Há coisas que as salas-de-aula e os videolivros não ensinam.

— Sim, senhor.

Inalou a doçura do tabaco de alga marinha. Franziu o cenho, e esperou que a fumaça tivesse ocultado sua expressão. Aquela drástica e inesperada mudança em sua vida não tinha nenhuma graça, mas respeitava seu pai. A base de muitas lições duras, Leto tinha aprendido que o velho duque sabia muito bem do que falava, e que só desejava que seu filho seguisse seus passos.

O duque se reclinou em sua poltrona flutuante, que oscilou no ar.

— Filho, sei que isto não o agrada, mas será uma experiência vital para você e para o filho do Dominic. Aqui, em Caladan, aprenderão nosso maior segredo: como ganhar a total lealdade de nossos súditos, por que confiamos em nosso povo implicitamente, ao contrário dos ixianos.

Paulus ficou sério.

— Meu filho, isto é mais essencial que algo que tenha aprendido em um mundo industrial: as pessoas são mais importantes que as máquinas.

Era um adágio que Leto tinha escutado com freqüência, uma frase tão importante para ele como respirar.

— Por isso nossos soldados lutam tão bem.

Paulus se inclinou e deu uma última baforada.

— Um dia você será duque, rapaz, patriarca da Casa Atreides e respeitado representante na Landsraad. Sua voz será igual a de qualquer outro governante das Grandes Casas. É uma grande responsabilidade.

— Estarei à altura.

— Estou seguro disso, Leto... mas relaxe um pouco. O povo sabe quando não é feliz, e quando seu duque não é feliz, a população não é feliz. Tem que deixar que a pressão flua por cima e através de você. Dessa forma não poderá se prejudicar. — Estendeu um dedo em advertência —. Divirta-se mais.

Divirta-se. Leto pensou uma vez mais na filha do banqueiro da Corporação, imaginou o contorno de seus seios e quadris, seus lábios úmidos, a forma provocante como tinha falado com ele.

Talvez não fosse tão sério como seu pai pensava...

Tomou outro gole de suco.

— Senhor, com sua lealdade demonstrada, com a reconhecida fidelidade dos Atreides a seus aliados, por que os ixianos nos submetem a seus procedimentos de interrogatório? Acham que um Atreides, com tudo o que foi inculcado nele, poderia transformar-se em um traidor? Poderíamos chegar a ser algum dia como... como os Harkonnen?

O velho duque franziu o sobrecenho.

— Em uma época não fomos muito diferentes deles, mas há histórias que ainda não está preparado para escutar. Lembra da peça que acabamos de ver. — Ergueu um dedo —. As coisas mudam no Império. As alianças se formam e dissolvem conforme seu capricho.

— Nossas alianças não.

Paulus olhou para os olhos cinzas do jovem, e depois desviou o olhar para o lugar onde a fumaça de seu cachimbo redemoinhava,

Leto suspirou. Queria saber muitas coisas, e o quanto antes, mas forneciam as informações em pequenas doses, como os petit fours que sua mãe oferecia nas festas.

Ouviram às pessoas abandonar o teatro antes da próxima representação de Agamenon. Os atores descansariam, trocariam de vestimenta e se preparariam para outro público.

Leto, sentado na sala privada com seu pai, sentiu-se mais homem que nunca. Talvez da próxima vez também acendesse um cachimbo. Talvez bebesse algo mais forte que suco de cidrit. Paulus olharia com orgulho nos seus olhos.

Leto sorriu e tentou se imaginar como duque Atreides, mas experimentou um intenso sentimento de culpa quando reparou que seu pai teria que morrer antes de herdar o anel de selo ducal. Não desejava isso, e sentiu-se satisfeito porque ainda faltava muito tempo para pensar nisso.

 

Corporação Espacial: uma coluna do trípode político que sustenta a Grande Convenção. A Corporação foi a segunda escola de treinamento físico-mental (veja-se Bene Gesserit) depois do Jihad Butleriano. O monopólio da Corporação sobre as viagens e transportes espaciais, assim como do banco internacional, considera-se o ponto inicial do Calendário Imperial.

Terminologia do Império

 

Da posição privilegiada que lhe dava o Trono do Leão Dourado, o imperador Elrood IX olhou sério para o homem de costas largas e expressão contrariada que se erguia ao pé do estrado real com uma bota apoiada no primeiro degrau. Calvo como a bola de mármore de uma balaustrada, o conde Dominic Vernius ainda se comportava como um herói de guerra popular e condecorado, apesar de que seus dias de glória tinham acontecido há muito tempo. Elrood duvidava que alguém os recordasse.

O chambelán imperial, Aken Hesban, plantou-se junho ao visitante e ordenou com tom brusco que afastasse o pé ofensor. Hesban tinha o rosto gasto, e a boca emoldurada por um longo bigode. Os últimos raios do sol do entardecer lançavam franjas sobre a parte superior de uma parede, brilhantes rios dourados que penetravam pelas estreitas janelas em forma de prisma.

O conde Vernius de IX afastou o pé, tal como lhe fora ordenado, mas continuou olhando com cordialidade para Elrood. O emblema ixiano, uma hélice púrpura e cobre, adornava o pescoço do manto de Dominic. Embora a Casa Corrino fosse muito mais poderosa que a família regente de IX, Dominic tinha o costume irritante de tratar o imperador como a um igual, como se sua história passada (boa e má) lhe permitisse dispensar as formalidades. O chambelán Hesban não aprovava isso de forma alguma.

Décadas atrás, Dominic tinha comandado legiões de tropas imperiais durante as cruéis guerras civis, e depois não tinha respeitado o imperador como era devido. Mais tarde, Elrood tinha se metido em problemas políticos com seu impulsivo matrimônio com Fala, sua quarta esposa, e vários líderes do Landsraad se viram obrigados a utilizar o poderio militar de sua Casa para impor de novo a estabilidade. A Casa Vernius de IX estava entre esses aliados, assim como os Atreides.

Dominic sorriu sob seu extravagante bigode e olhou para Elrood com expressão cansada. O velho abutre não ganhara o trono por obra de grandes façanhas nem por compaixão. Em certa ocasião, o tio avô do Dominic, Gaylord, havia dito: “Se tiver nascido para manter o poder, tem que demonstrar que o merece mediante boas obras... ou renunciar. Fazer menos é agir sem consciência.”

Dominic, plantado sobre o chão de quadrados de pedra polidos, que em teoria vieram de todos os planetas do Império, aguardava com impaciência que Elrood falasse. Um milhão de planetas? É impossível que haja tantas pedras aqui, embora não seja possível contá-las.

O chambelán olhou para ele como se sua dieta tivesse sido reduzida a leite azedo. Não obstante, o conde Vernius conhecia as regras do jogo e se negou a impacientar-se, negou-se a perguntar o motivo de lhe terem convocado. Manteve-se imóvel e sorriu para o ancião. A expressão e os olhos faiscantes de Dominic insinuavam que conhecia mais segredos vergonhosos do ancião do que sua mulher, Shando, tinha-lhe confessado, mas suas próprias suspeitas irritavam Elrood, como se tivesse um espinho de Elaccan fincado no corpo.

Algo se moveu à direita, e Dominic distinguiu nas sombras de uma porta arqueada uma mulher vestida de negro, uma daquelas bruxas Bene Gesserit. Não viu seu rosto, oculto em parte por um capuz. Famosas monopolizadoras de segredos, as Bene Gesserit sempre espreitavam nas cercanias dos centros de poder, espiavam e manipulavam sem cessar.

— Não perguntarei se é verdade, Vernius — disse por fim o imperador —. Minhas fontes são de absoluta confiança, e sei que cometeu este ato terrível. Tecnologia ixiana!

Fingiu cuspir. Dominic não se intimidou. Elrood sempre superestimava a eficácia de seus gestos melodramáticos.

Dominic não apagou seu sorriso, uma esplêndida demonstração de bons dentes.

— Não me lembro de ter cometido nenhum “ato terrível”, senhor. Pergunte a sua Reveladora da Verdade, se não acreditar em mim. — Olhou para a Bene Gesserit vestida de negro.

— Pura retórica. Não se faça de idiota, Dominic.

Ele se limitou a esperar, para que o imperador se visse obrigado a acusá-lo de algo concreto.

Elrood soprou, e o chambelán o imitou.

— Maldito seja, o desenho de seu novo Cruzeiro permitirá que a Corporação, graças a seu abusivo monopólio do transporte espacial, aumente o volume de seus carregamentos em dezesseis por cento!

Dominic fez uma reverência sem deixar de sorrir.

— De fato, meu senhor, conseguimos um aumento de dezoito por cento. Trata-se de uma melhora substancial sobre o desenho anterior, que não só implica um casco novo mas também uma tecnologia dos escudos que pesa menos e ocupa menos espaço. Portanto, aumento de eficácia. Esse é a medula da inovação ixiana, que pelo resto cimentou a grandeza da Casa Vernius ao longo dos séculos.

— Sua alteração reduz o número de vôos que a Corporação precisa fazer para transportar a mesma quantidade de carregamento.

— Naturalmente, senhor. — Dominic olhou para o ancião como se sua estupidez fosse infinita —. Se aumentarem a capacidade de cada Cruzeiro, reduzem o número de vôos necessários para transportar a mesma quantidade de material. Uma simples questão de matemática.

— Seu novo desenho causou grandes contratempos à Casa Imperial, conde Vernius — disse Eleven Hesban, enquanto segurava o colar de seu cargo oficial como um lenço. Seus bigodes caídos pareciam as presas de uma morsa.

— Bem, imagino que sou capaz de compreender os motivos míopes de sua preocupação, senhor — respondeu Dominic, sem dignar-se a olhar para o pomposo chambelán. Os impostos imperiais se apoiavam no número de vôos, não no volume da carga, e o novo desenho do Cruzeiro aparelharia uma redução nos ganhos da Casa Corrino.

Dominic abriu suas mãos sulcadas de cicatrizes, ao mesmo tempo que compunha sua expressão mais razoável.

— Como pode pedir que detenhamos o progresso? IX não violou os termos da Grande Revolução. Contamos com o apoio total da Corporação Espacial e da Landsraad.

— Fez isso mesmo sabendo que incorreria em minha ira?

Elrood se inclinou para frente, cada vez mais parecido com um abutre.

— Por favor, senhor! — sorriu Dominic, desdenhando as preocupações do imperador —. Os sentimentos pessoais não podem interferir na marcha do progresso.

Elrood se levantou do trono. Suas roupas oficiais cairam como toldos sobre seu corpo esquelético.

— Não posso voltar a negociar com a Corporação um imposto apoiado na tonelagem métrica, Dominic. Como você já sabe!

— E eu não posso mudar as leis de mercado. — Dominic sacudiu sua cabeça reluzente e deu de ombros —. Se trata de negócios, Elrood.

Os funcionários da corte soltaram uma exclamação afogada, devido à familiaridade com que Dominic Vernius tratava o imperador.

— Tenha cuidado — advertiu o chambelán.

Dominic não lhe deu atenção e continuou.

— Esta modificação de desenho afeta muita gente, e a quase todos de maneira positiva. Só o que nos preocupa são nossos progressos e trabalhar o melhor possível para nosso cliente, a Corporação Espacial. O custo do novo Cruzeiro equivale a mais do que muitos sistemas planetários ganham em um Ano Padrão.

Elrood fitou-o fixamente.

— Talvez chegou o momento de meus administradores e concessionários de licenças inspecionarem suas fábricas — disse em tom ameaçador —. Recebi informes que os cientistas ixianos estão desenvolvendo máquinas pensantes ilegais, que violam o Jihad. E também recebi queixa da repressão contra sua classe operária subóide. Não é assim, Aken?

O chambelán assentiu com semblante sombrio.

— Sim, alteza.

— Não correram semelhantes rumores — sorriu Dominic, embora com certa vacilação —. Tampouco existem provas.

— Recebemos relatórios anônimos, mas não se guardaram os registros. — O imperador estalou seus dedos longos, enquanto um sorriso sincero cruzava seu rosto —. Sim, acredito que o melhor seria uma inspeção surpresa de IX, antes que possa ordenar que se oculte tudo.

— O acesso às instalações internas de IX está proibido, segundo um antigo acordo assinado entre o Império e a Landsraad.

Dominic estava furioso, mas tentava conservar a compostura.

— Eu não assinei esse acordo. — Elrood olhou para as unhas —. E sou imperador há muito tempo.

— Seu antecessor o assinou, e isso o compromete.

— Possuo o poder de fazer e desfazer acordos. Talvez não se lembre que sou o imperador Padishah, e que posso fazer o que quiser.

— A Landsraad terá a última palavra a respeito, Roody. — Dominic se arrependeu de ter utilizado o apelido, mas já era muito tarde.

O imperador, vermelho de fúria, ficou em pé de um salto e estendeu um dedo, tremulo e acusador, para Dominic.

— Como se atreve?

Os guardas Sardaukar prepararam suas armas.

— Se insistir em uma inspeção imperial — disse Dominic com um gesto desdenhoso —, apresentarei um protesto oficial ante o tribunal da Landsraad. Precisa de argumentos, e sabe disso. — Fez uma reverência e retrocedeu —. Estou muito ocupado, senhor. Se me perdoar, preciso partir.

Elrood fulminou-o com o olhar, furioso pelo apelido que Dominic tinha utilizado. Roody. Ambos os homens sabiam que aquele apelido só era usado por uma ex-concubina de Elrood, a formosa Shando... que agora era lady Vernius.

Depois da rebelião dos Ecazi, o imperador Elrood tinha condecorado o valente e jovem Dominic, além de lhe conceder uma expansão de seu feudo que incluía outros planetas do sistema Alkaurops. A convite de Elrood, o jovem conde Vernius tinha passado muito tempo na corte, um herói de guerra utilizado como adorno em banquetes imperiais e solenidades estatais. O fogoso Dominic tinha sido muito popular, um convidado recebido com prazer, um companheiro orgulhoso e divertido.

Mas ali foi onde Dominic conheceu Shando, uma das numerosas concubinas do imperador. Naquele tempo, Elrood não estava casado com ninguém. Sua quarta e última esposa Fala, havia falecido cinco anos antes, e já tinha dois herdeiros varões (embora o mais velho, Pamir, morreria envenenado naquele mesmo ano). O imperador sempre estava rodeado de belas mulheres, principalmente para manter as aparências, já que em poucas ocasiões se deitava com Shando ou as outras concubinas.

Dominic e Shando se apaixonaram, mas conservaram sua relação em segredo durante muitos meses devido ao perigo que a situação os colocava. Estava claro que Elrood tinha perdido todo interesse nela depois de cinco anos, e quando solicitou que a exonerassem do serviço para abandonar a corte imperial, Elrood, embora perplexo, concordou. Ele a apreciava, e não encontrou motivos para recusar um pedido tão simples.

As outras concubinas tinham pensado que Shando era uma néscia por renunciar a uma vida de luxos e caprichos, mas ela estava farta daquela existência e desejava um verdadeiro matrimônio e ter filhos.

Assim que foi liberada do serviço imperial, Dominic Vernius se casou com ela, e fizeram seus votos com o mínimo de pompa e cerimônia, mas dentro da mais estrita legalidade.

Depois de descobrir que outro homem a desejava, o orgulho masculino de Elrood o impulsionou a mudar de idéia, mas já era muito tarde. Tinha guardado rancor de Dominic desde aquele momento, paranóico pelos segredos de quarto que Shando confessaria a seu marido.

Roody.

A bruxa Bene Gesserit que espreitava perto do trono mergulhou nas sombras, atrás de uma coluna salpicada de granito de Canidar. Dominic ficou em dúvida se os acontecimentos a agradavam ou não.

Dominic se obrigou a não acelerar o passo nem a vacilar. Passou com ar decidido pelos dois guardas Sardaukar e saiu para o vestíbulo exterior. A um sinal de Elrood, eles o executariam imediatamente.

Dominic caminhou mais depressa.

Os Corrino eram conhecidos por seu temperamento explosivo. Em mais de uma ocasião se viram obrigados a pagar por suas reações precipitadas e mau aconselhadas, usando a imensa riqueza familiar. Matar o chefe da Casa Vernius durante uma audiência imperial poderia ser mais um desses atos irrefletidos... a não ser pela implicação da Corporação Espacial. A Corporação tinha favorecido IX com cuidados crescentes e benefícios e tinha adotado o desenho do Cruzeiro, e nem sequer o imperador e seus brutais Sardaukar podiam opor-se a ela.

Era uma circunstância irônica, tendo em conta o poderio militar da Casa Corrino, porque a Corporação não possuía forças armadas, nem armamento próprio. Mas sem a Corporação e seus Navegadores, que se orientavam com segurança pelas dobras espaciais, não existiriam as viagens espaciais, nem os bancos interplanetários, nem império a governar. Em um abrir e fechar de olhos, a Corporação podia recusar seus favores, dissolver exércitos e pôr fim às campanhas militares. De que serviriam os Sardaukar se ficassem restringidos a Kaitain?

Dominic chegou por fim à saída principal do palácio imperial, passou sob o arco de lava salusano e esperou que três guardas o submetessem a uma varredura de segurança.

Por azar, a proteção da Corporação só chegava até ali.

Dominic sentia pouco respeito pelo imperador. Tinha tentado dissimular seu desprezo pelo patético regente de um milhão de planetas, mas cometera o engano de pensar que se tratava de um homem simples, o antigo amante de sua esposa. Elrood, humilhado, era capaz de aniquilar todo um planeta em um ataque de ira. O imperador era um indivíduo vingativo. Como todos os Corrino.

Tenho meus contatos, pensou Elrood, enquanto se afastava de seu adversário. Posso subornar alguns dos operários que estão fabricando componentes para esses Cruzeiros otimizados, embora seja difícil, porque se diz que esses subóides são imbecis. E se isso não funcionar, Dominic, posso localizar outras pessoas com as quais se indispôs. Seu engano será não lhes dar importância, Elrood recriou mentalmente a encantadora Shando, e recordou os momentos mais íntimos que tinham compartilhado, fazia décadas. Lençóis de seda merh púrpura, a enorme cama, os incensários, os globos de luz acristalados. Como imperador, podia possuir todas as mulheres que desejasse, e tinha escolhido Shando.

Durante dois anos tinha sido sua concubina favorita, inclusive durante a vida de sua esposa Fala. Pequena e de silhueta delicada, tinha uma aparência frágil, parecendo uma boneca de porcelana, que a jovem tinha cultivado durante os anos passados em Kaitain. Não obstante, também possuía uma grande energia e adaptabilidade. Tinham se divertido compondo juntos quebra-cabeças gramaticais multilíngües. Shando tinha sussurrado Roody em seu ouvido quando a convidara para o leito imperial, e o tinha gritado durante os momentos de paixão.

Ouviu sua voz na memória. Roody... Roody... Roody...

Entretanto, como era uma plebéia não podia se casar com o Shando. Nem sequer tinha pensado nessa possibilidade. Os chefes das Casas reais poucas vezes contraíam matrimônio com suas concubinas, e um imperador nunca. O jovem e arrojado Dominic tinha obtido, com seus ardis, que Shando obtivesse a liberdade, que enganasse Elrood, e depois a tinha levado para IX, onde se casaram em segredo. A estupefação se estendeu mais tarde a Landsraad, e apesar do escândalo tinham continuado casados durante todos estes anos.

E a Landsraad, face à petição de Elrood, negou-se a fazer qualquer coisa a respeito. Afinal, Dominic tinha se casado com a moça, e o imperador não demonstrava a menor intenção de fazê-lo. Tudo de acordo com a lei. Apesar de seus ciúmes, Elrood não podia afirmar que Shando tivesse cometido adultério.

Mas Dominic Vernius conhecia seu apelido íntimo. Que mais ela teria contado? Isso o corroia como uma chaga.

Viu Dominic na tela do monitor de segurança preso ao punho. Tinha chegado à porta principal, e uma série de pálidos raios de segurança o percorriam, raios vindos de um scanner que era outra máquina sofisticada ixiana.

Se enviasse um sinal, as sondas apagariam a mente do homem, transformariam-no em um vegetal. Um aumento de potência inesperado, um terrível acidente... Seria irônico que Elrood utilizasse um scanner ixiano para matar o conde de IX.

Desejava muito fazê-lo. Mas agora não. Não era o momento apropriado, perguntas incomodas surgiriam, talvez uma investigação fosse aberta. Tal vingança exigia sutileza e planejamento. Dessa forma, a surpresa e a vitória seriam muito mais satisfatórias.

Elrood apagou o monitor.

De pé junto ao trono, o chambelán Aken Hesban não perguntou por que o imperador sorria.

 

A principal função da ecologia é a compreensão das conseqüências.

Pardot Kynes.

Ecologia de Bela Tegeuse, relatório inicial ao Império

 

Sobre o horizonte, afiado como uma navalha, as cores do amanhecer tingiam a atmosfera. Ao fim de um breve momento, uma luz cálida iluminou a paisagem de Arrakis, um repentino banho de calor e luminosidade. O sol esbranquiçado surgia sobre o horizonte, permitindo que aquele brilho se insinuasse na árida atmosfera.

Agora que por fim tinha chegado ao planeta deserto, Pardot Kynes respirou fundo, e depois recordou que devia usar a máscara para impedir a perda de umidade. Uma leve brisa agitava seu ralo cabelo loiro. Estava em Arrakis a apenas uma semana e já intuíra que aquele planeta ermo escondia mais mistérios do que poderia decifrar em toda uma vida.

Teria preferido que o abandonassem a seus próprios recursos. Ansiava por vagar sozinho pelo Grande Bled com seus instrumentos e cadernos de cálculo, para estudar as características da rocha de lava e as capas estratificadas das dunas.

Entretanto, quando Glossu Rabban, sobrinho do barão e herdeiro teórico da Casa Harkonnen, anunciou sua intenção de entrar no deserto para caçar um dos lendários vermes de areia, Kynes não quis perder semelhante oportunidade.

Como simples planetólogo, um cientista em vez de um guerreiro, sentia-se deslocado. As tropas do deserto dos Harkonnen se muniram com armas e explosivos da fortaleza blindada central. Subiram em um transporte de tropas conduzido por um homem, Lunado Thekar, que afirmava ter vivido em uma aldeia do deserto, embora agora fosse um mercador de água de Carthag. Parecia mais um Fremen do que admitia, embora desse a impressão de que nenhum Harkonnen percebesse.

Rabban não tinha pensado em nenhum plano concreto para seguir o rastro daqueles enormes animais. Não queria ir a nenhuma jazida de especiaria, se por acaso sua equipe atrapalhasse os trabalhos. Queria capturar e matar uma dessas bestas com seus próprios meios. Havia se provido de todas as armas imagináveis, e confiava em seu talento instintivo para a destruição.

Dias antes, Kynes tinha chegado a Arrakis a bordo de uma lançadeira diplomática, e aterrissado na poeirenta cidade, de construção bastante recente. Ansioso por começar, tinha apresentado seus títulos imperiais ao barão em pessoa. O homem magro e ruivo tinha examinado os documentos de Kynes com atenção, e depois verificado o selo imperial. Umedeceu seus grossos lábios, antes de prometer sua colaboração a contra gosto.

— Deve sempre ter a prudência de se manter afastado dos lugares onde se trabalha.

Kynes fez uma reverência.

— Não tenho outro desejo além de ficar sozinho e afastado das atividades trabalhistas, meu senhor barão.

Tinha passado os dois primeiros dias na cidade, dedicado a comprar indumentária apropriada para o deserto, a falar com gente das aldeias fronteiriças, a aprender tudo que pôde sobre as lendas do deserto, as advertências, os costumes, os mistérios inexplorados. Como compreendia a importância dessas coisas, Kynes tinha investido uma soma substancial na aquisição do melhor traje destilador para sobreviver no deserto, assim como uma para-bússola, tendas destiladoras e aparelhos de funcionamento certificado para guardar notas.

Se dizia que muitas tribos dos enigmáticos Fremen viviam no coração do deserto. Kynes queria falar com eles, compreender como sobreviviam em um ambiente tão hostil. Não obstante, os Fremen pareciam incômodos dentro dos limites de Carthag, e fugiam sempre que tentava falar com eles.

Kynes não se entusiasmava muito com a cidade. A Casa Harkonnen tinha construído excessivas sedes oficiais quando, quatro décadas antes, as manipulações da Corporação lhes tinha conferido Arrakis em semi-feudo. Carthag tinha sido construída com a rapidez própria da mão de obra humana inesgotável, sem dar atenção aos detalhes: blocos de edifícios eretos com materiais de segunda mão, para propósitos estritamente funcionais. Nem uma gota de elegância.

Parecia que Carthag tinha sido transportada sem o menor escrúpulo para aquele ambiente. Sua arquitetura ofendia a sensibilidade de Kynes. O planetólogo possuía uma capacidade inata para perceber as bases de um ecossistema, para compreender como as peças se encaixavam em um ambiente natural. E aquele centro demográfico era um erro, como uma pústula na pele do planeta.

Arraken, outro posto fronteiriço situado no sudoeste, era uma cidade mais primitiva que tinha crescido pouco a pouco, com naturalidade, construída sob uma barreira montanhosa chamada Muralha Escudo. Talvez Kynes devesse tê-la visitado em primeiro lugar, mas as conveniências políticas o obrigaram a estabelecer sua base com os governantes do planeta. Ao menos, isso tinha lhe concedido a oportunidade de caçar um dos gigantescos vermes de areia. O amplo ornitóptero que transportava à equipe de caça de Rabban decolou, e Kynes não demorou para vislumbrar o verdadeiro deserto. Olhou pela janela para a paisagem ondulada. Graças a sua experiência em outros ambientes desérticos, pôde identificar formações de dunas, formas e curvas sinuosas que revelavam ventos sazonais, correntes de ar dominantes e a severidade das tormentas. Havia muito que aprender das linhas e ondulações, como rastros digitais do clima. Apoiou a testa contra o cristal. Nenhum outro passageiro parecia interessado na paisagem.

Os soldados Harkonnen se remexiam, mortos de calor dentro de seus pesados uniformes blindados azuis. Suas armas matraqueavam entre si e arranhavam as pranchas do chão. Os homens pareciam incomodados com seus escudos corporais, mas a presença de um escudo e seu campo Holtzman despertaria os instintos assassinos dos vermes próximos. Hoje, Rabban queria encarregar-se da matança.

Glossu Rabban, vinte e um anos, filho do desafortunado governador anterior do planeta, estava sentado muito ereto perto do piloto, e esquadrinhava a areia em busca de objetivos. Era um jovem de cabelo castanho muito curto, de ombros largos, voz profunda e mau gênio. Os pálidos olhos azul claro olhavam de um rosto bronzeado. Parecia fazer todo o possível por ser o contrário de seu pai.

— Veremos rastros de vermes do céu? — perguntou. Thekar, o guia do deserto, estava muito perto dele, como se quisesse compartilhar o espaço pessoal de Rabban.

— As areias mudam de forma e ocultam o rastro de um verme. Quase sempre se movem a grande profundidade. Não o verão aproximar-se até que saia para a superfície e decida atacar.

O alto e anguloso Kynes escutava com atenção e tomava nota mentalmente. Queria gravar todos os detalhes em seu caderno, mas teria que esperar um pouco.

— Então, como vamos encontrar um?

— Não é tão simples, meu senhor Rabban — respondeu Thekar —. Os grandes vermes têm seus próprios domínios, alguns dos quais abrangem centenas de quilômetros quadrados. Dentro dessas fronteiras, caçam e matam os intrusos.

Rabban, cada vez mais impaciente, virou-se em seu assento. Seu semblante se escureceu.

— Saberemos encontrar o domínio de um verme?

Thekar sorriu e seus olhos escuros e profundos adotaram um olhar longínquo.

— Todo o deserto é propriedade dos Shai-Hulud.

— Quais? Pare de me enrolar.

Kynes pensou que Rabban ia esbofetear o homem do deserto.

— Tanto tempo vivendo em Arrakis, e não sabia disto, meu senhor Rabban? Os Fremen pensam que os vermes de areia são deuses — Thekar respondeu em voz baixa —. São chamados de Shai-Hulud.

— Então hoje mataremos um deus — anunciou Rabban com orgulho, o que provocou as brincadeiras de outros caçadores que viajavam na parte posterior do compartimento. Virou-se para o guia —. Dentro de dois dias parto para Giedi Prime e quero levar um troféu. Nossa caçada será um êxito.

Giedi Prime, pensou Kynes. O planeta natal da Casa Harkonnen. Ao menos não terei que me preocupar com ele depois que tiver partido.

— Conseguira seu troféu, meu senhor — prometeu Thekar.

— Não duvido — disse Rabban em um tom mais detestável.

Kynes, sentado a sós na parte posterior do transporte de tropas e embutido em sua indumentária do deserto, sentia-se incomodado em semelhante companhia. Não lhe interessavam as ambições gloriosas do sobrinho do barão, mas se a excursão lhe permitisse dar uma boa olhada em um dos monstros, compensaria meses de esforços solitários.

Rabban mantinha o olhar cravado à frente. Grossas dobras de pele rodeavam seus olhos. Escrutinava o deserto, sem ver nenhuma das belezas paisagísticas que Kynes observava.

— Tenho um plano, e vamos colocá-lo em prática.

Rabban se virou para os soldados e abriu o sistema de comunicação com os ornitópteros que voavam em formação ao redor do transporte. As dunas ondulavam abaixo deles como rugas na pele de um ancião.

— Esse afloramento — ele apontou e leu em voz alta as coordenadas — será nossa base. Aterrissaremos na areia a uns trezentos metros da rocha. Thekar baixará com um aparelho batedor. Depois procuraremos refúgio nos afloramentos rochosos, aonde o verme não se aproximará.

O homem do deserto ergueu a vista, alarmado.

— Vai me deixar ali? Mas, meu senhor, eu não...

— Você me deu a idéia. — O jovem se voltou para as tropas uniformizadas —. Thekar diz que este engenho Fremen, o batedor, atrai os vermes. Cravaremos um no chão, junto com explosivos suficientes para dar conta do monstro quando chegar. Thekar, nós o deixaremos ali para que prepare os explosivos e ative o batedor. Será capaz de correr e se refugiar entre nós antes que um verme chegue, não é?

Rabban lhe dedicou um sorriso satisfeito.

— Eu... eu... — balbuciou Thekar —. Parece que não há outra alternativa.

— Embora não creia, é muito provável que o verme se dirija antes ao batedor. Os explosivos se encarregarão dele antes que você se transforme em seu próximo objetivo.

— Isso me consola, meu senhor — disse Thekar.

Kynes, intrigado pelo aparelho Fremen, pensou que devia conseguir um. Oxalá pudesse presenciar de perto como aquele nativo escapava do verme. Não obstante, o planetólogo teve a prudência de guardar silêncio para não chamar a atenção de Rabban, com a esperança de que o fogoso Harkonnen não o convocasse como voluntário para ajudar Thekar.

No compartimento de pessoal, situado na parte posterior da nave, o bator — chefe de um pequeno destacamento —, e seus subordinados se armavam com fuzis laser. Montaram explosivos no engenho similar a uma estaca que Thekar havia trazido. O batedor.

Kynes viu que se tratava de um simples mecanismo de relojoaria provido de mola que emitia uma forte vibração rítmica. Uma vez na areia, o batedor enviava seus ecos até os limites do deserto, onde os Shai-Hulud podiam ouvi-los.

— Assim que aterrissarmos, será melhor que conecte esses explosivos rapidamente — disse Rabban a Thekar —. Os motores desses ornitópteros bastarão para atrair o verme, sem a ajuda de seu brinquedo Fremen.

— Sei muito bem, meu senhor — disse Thekar. Sua pele olivácea se tingiu de um tom cinzento e oleoso de terror.

As aletas dos ornitópteros beijaram a areia e levantaram nuvens de pó. A escotilha se abriu, Thekar agarrou o batedor e saltou. Dirigiu um olhar ofegante ao aparelho, antes de encaminhar-se para a duvidosa segurança da linha de rocha sólida, a uns trezentos metros de distância.

O bator estendeu os explosivos ao desventurado homem do deserto, enquanto Rabban indicava com um gesto que se apressassem.

— Espero que não se transforme em comida de verme, meu amigo — disse com uma gargalhada.

Antes que as portas do ornitóptero voltassem a fechar, o piloto elevou o vôo e Thekar ficou sozinho.

Kynes e outros soldados Harkonnen se precipitaram para o lado do transporte, o para presenciar os desesperados movimentos do guia. Enquanto olhavam, o homem do deserto se transformou em um ser humano diferente, primitivo.

— Perdoe-me. Que quantidade de explosivos é necessária para matar um verme? — perguntou Kynes.

— Thekar deve ter de sobra, planetólogo — respondeu o bator —. Lhe demos o suficiente para explodir uma pequena cidade.

Kynes voltou sua atenção ao drama que estava se desenvolvendo na areia. Enquanto o aparelho se erguia, Thekar trabalhava com frenesi, concentrado em conectar os explosivos através de cabos de linho shiga. Kynes viu que pequenas luzes piscavam. Depois, o homem esquelético afundou o batedor na areia, junto à mortífera armadilha, como se cravasse uma estaca no coração do deserto.

O ornitóptero se dirigiu em linha reta para o baluarte rochoso onde o grande caçador Rabban esperaria são e salvo. Thekar acionou o mecanismo do batedor e pôs-se a correr.

Os soldados fizeram apostas sobre o resultado.

Ao fim de alguns momentos o aparelho aterrissou sobre uma rocha enegrecida e cheia de buracos, que se assemelhava a um recife no deserto. O piloto desligou os motores, e as portas do transporte se abriram. Rabban afastou seus soldados aos empurrões para ser o primeiro a descer. Outros o seguiram. Kynes esperou que chegasse sua vez.

Os guardas ocuparam suas posições e dirigiram seus prismáticos para a pequena figura que corria. Rabban estava imóvel, segurando seu fuzil laser de alta potencia, embora Kynes ignorasse o que pretendia fazer com a arma. O sobrinho do barão centrou a lente telescópica no batedor e os explosivos acumulados.

Um dos ornitópteros de rastreamento informou de possíveis sinais de um verme de areia a uns dois quilômetros ao sul.

Thekar corria freneticamente, levantando pequenas nuvens de areia. Avançava para a segurança, as ilhas rochosas no mar de areia, mas ainda se encontrava a boa distância.

Kynes se fixou na estranha maneira de correr de Thekar. Parecia que saltava e dançava de uma forma errática, como um inseto espasmódico. Kynes se perguntou se se tratava de uma espécie de ardil para enganar o verme de areia que se aproximava. Era uma técnica que os viajantes do deserto aprendiam? Nesse caso, quem poderia ensiná-la a Kynes? Era preciso que descobrisse todo o concernente a esse lugar e essa gente, os vermes, a especiaria e as dunas. Não apenas pela ordem imperial. Pardot Kynes queria saber. Assim que se envolvia em um projeto, detestava as perguntas sem resposta.

O grupo esperou, e o tempo transcorreu com lentidão. Os soldados conversavam. O homem do deserto continuava sua fuga peculiar, e se aproximava muito lentamente. Kynes notou que as microcapas de seu traje destilador absorviam as gotas de suor.

Ajoelhou-se e estudou a rocha âmbar que havia a seus pés. Era lava basáltica e continha bolsas de erosão formadas a partir de bolhas refrigerantes restantes na rocha fundida, ou de uma pedra mais frágil corroída pelas lendárias tormentas do Coriolis de Arrakis.

Kynes recolheu um punhado de areia e deixou que escorresse entre seus dedos. Comprovou, sem surpreender-se, que os grãos de areia eram partículas de quartzo e cintilavam ao sol junto com algumas partículas de um material mais escuro, talvez magnetita.

Tinha visto em outros lugares colorações avermelhadas na areia, estrias de tons torrados, laranja e coral, o que revelava a existência de diversos óxidos. Alguns tons talvez se deviam a depósitos da especiaria melange, mas Kynes nunca tinha visto especiaria sem processar no deserto. Ainda não.

Por fim, os ornitópteros de rastreamento confirmaram que um verme se aproximava. Grande e veloz.

Os guardas ficaram em pé. Kynes percebeu uma ondulação na areia, como se um dedo gigantesco se movesse sob a superfície e alterasse as capas superiores. O tamanho o assombrou.

— Um verme se aproxima pelo flanco! — anunciou o bator.

— Dirige-se em linha reta para Thekar! — gritou Rabban com prazer cruel —. O homem se acha entre o batedor e o verme. Que azar.

Mesmo daquela distância, Kynes viu que Thekar abandonava seu curso errático e começava a correr como um possesso, ao perceber que o verme se precipitava para ele a toda velocidade. Kynes imaginou sua expressão de horror e desespero.

Então, com sombria resolução, Thekar parou e caiu de bruços sobre a areia, completamente imóvel, com a vista cravada no ciclo, talvez rezando com ardor aos Shai-Hulud.

Agora que as ínfimas vibrações dos passos tinham parado, o longínquo batedor parecia tão estrondoso como uma banda imperial. Tump, tump, tump. O verme parou, e depois se desviou para os explosivos acumulados.

Rabban deu de ombros, como se aceitasse com indiferença uma derrota irrelevante.

Kynes ouviu o rugido das areias, a chegada do monstro. Cada vez estava mais perto, como um ferro atraído por um ímã mortífero. À medida que se aproximava do batedor, o verme se afundava mais no subsolo, para logo descrever um círculo, emergir e engolir o que lhe tinha atraído, irritado ou despertado qualquer outra reação instintiva que experimentassem aqueles colossos cegos.

Quando o verme surgiu da areia, deixou a descoberto uma boca grande o bastante para engolir uma espaçonave, enquanto suas fauces se abriam como as pétalas de uma flor. Ao fim de um instante tragou o insignificante ponto negro do batedor e todos os explosivos. Seus dentes de cristal brilharam como diminutos espinhos aguçados que desciam em espiral por sua garganta sem fundo.

De trezentos metros de distância, Kynes viu colinas de pele arcaica, pregas superpostas de blindagem que protegiam o monstro quando se movia clandestinamente. O verme engoliu a isca carregada de explosivos e começou a desaparecer na areia.

Rabban se ergueu com um sorriso diabólico no rosto e manipulou os pequenos controles de transmissão. Uma brisa quente cobriu de pó seu rosto, salpicou seus dentes de grãos de areia. Apertou um botão.

Um estrondo longínquo fez tremer o deserto. Diminutas avalanches de areia se desprenderam das dunas. A bomba seqüenciada rasgou os condutos internos do verme, destroçou suas vísceras e rachou seus segmentos blindados.

Quando o pó se dispersou, Kynes viu a monstruosidade agonizante que se retorcia em um atoleiro de areia, como uma baleia peluda.

— Essa coisa mede mais de duzentos metros de comprimento! — gritou Rabban, entusiasmado pelo tamanho da sua presa.

Os guardas o aclamaram. Rabban se virou e deu um tapa nas costas de Kynes com força suficiente para deslocar um ombro.

— Isso sim é um troféu, planetólogo. Levarei-o para Giedi Prime.

Thekar chegou por fim, quase despercebido, suado e ofegante, e se içou até a segurança das rochas. Olhou para trás com sentimentos desencontrados, para a criatura estendida na areia.

Quando o verme deixou por fim de retorcer-se, Rabban dirigiu a expedição. Guardas impacientes correram entre gritos e exclamações de júbilo. Kynes, ansioso por ver de perto o espécime, também correu atrás dos soldados.

Minutos depois, ofegante e acalorado, Kynes se deteve ante a massa imponente do verme ancião. Tinha a pele escamosa, coberta de cascalho, coberta de calos a prova de erosões. Entre os segmentos rasgados pelas explosões viu uma pele tenra e rosada. A boca do verme parecia o poço de uma mina, flanqueada por facas de cristal.

— É o animal mais temível deste miserável planeta! — grasnou Rabban —. E eu o matei!

Os soldados observavam de uma distância segura, pouco desejosos de correr riscos desnecessários. Kynes se perguntou como o sobrinho do barão pensava levar o troféu. Considerando a propensão à extravagância dos Harkonnen, supôs que Rabban imaginaria uma forma.

O planetólogo se virou e viu que o esgotado Thekar se materializou junto a eles. Seus olhos emitiam um brilho prateado, como se um fogo ardesse em seu interior. Talvez por ter estado tão perto da morte, e de ter visto o deus do deserto aniquilado pelos explosivos dos Harkonnen, sua perspectiva do mundo houvesse mudado.

— Shai-Hulud — sussurrou. E se voltou para Kynes, como se sentisse uma alma gêmea —. Este é muito velho. Um dos vermes mais velhos.

Kynes avançou para examinar a pele perebenta, os segmentos, e se perguntou como ia analisar e diseccionar o espécime. Supôs que Rabban não se oporia. Caso fosse necessário, Kynes invocaria a missão recebida do imperador para fazê-lo ceder.

Mas quando se aproximou mais, com a intenção de tocá-lo, viu que a pele do velho verme se movia. A besta já não vivia, suas funções nervosas tinham cessado, mas suas capas exteriores tremiam e mudavam de forma, como se estivessem se fundindo.

Enquanto Kynes contemplava o espetáculo, assombrado, uma chuva de fragmentos celulares translúcidos se desprenderam do corpo do verme, como escamas entregues à areia ardente, onde desapareceram.

— O que está acontecendo? — gritou Rabban.

Parecia que o verme estava evaporando ante seus olhos. A pele se transformava em diminutos pedaços similares a amebas, que se agitavam e depois se aglutinavam com a areia. O colosso ancião se fundiu com o deserto. Ao final só restaram costelas cartilaginosas e dentes de leite. Depois, até esses restos foram afundando pouco a pouco até dissolverem-se em pequenos montões de gelatina coberta de areia.

Os soldados Harkonnen retrocederam alguns metros.

Kynes teve a sensação de ter presenciado mil anos de putrefação em poucos segundos. Entropia acelerada. O faminto deserto parecia ansioso por apagar até o último sinal, por ocultar o fato de que um humano tinha derrotado um verme de areia.

Enquanto Kynes pensava nestes termos, cada vez mais confuso e estupefato, apesar de ter perdido a oportunidade de diseccionar o espécime, pensou que o ciclo vital daquelas bestas devia ser muito estranho.

Tinha muito que aprender sobre Arrakis...

Rabban se ergueu, furioso. Seu pescoço se esticou como um cabo de ferro.

— Meu troféu!

Virou-se, fechou os punhos e derrubou Thekar com um golpe. Por um momento Kynes pensou que o sobrinho do barão ia matar o homem do deserto, mas Rabban desviou sua fúria para os restos do verme, que foram afundando na areia.

Amaldiçoou-o aos gritos. Depois, enquanto Kynes observava, uma expressão decidida apareceu nos olhos frios e ameaçadores de Rabban. Seu rosto torrado pelo sol avermelhou um pouco mais.

— Quando retornar a Giedi Prime, caçarei algo muito mais satisfatório.

E ato seguido, como se tivesse esquecido o verme, deu meia volta e se afastou.

 

Quem observa os sobreviventes, aprende com eles.

Doutrina Bene Gesserit

 

De todos os milhares de mundos lendários do Império, o jovem Duncan Idaho nunca tinha conhecido outro além de Giedi Prime, um planeta transbordante de petróleo, coberto de indústrias, infestado de construções artificiais, ângulos retos, metal e fumaça. Os Harkonnen gostavam que seu lar fosse assim. Duncan nunca tinha conhecido outra coisa em seus oito anos de vida.

Neste momento, até os becos escuros e imundos de seu lar perdido teriam proporcionado um espetáculo esplêndido. Depois de meses de encarceramento com o resto de sua família, Duncan se perguntava se algum dia sairia da enorme cidade prisão do Barony. Ou se viveria para ver seu nono aniversário, para o qual já devia faltar pouco. Passou uma mão por seu negro cabelo encaracolado, apalpou o suor. E continuou correndo. Os caçadores estavam se aproximando.

Duncan se encontrava agora debaixo da cidade prisão, com seus perseguidores nos calcanhares. Atravessou agachado os estreitos túneis de manutenção, e se sentiu como o roedor coberto de placas que sua mãe lhe tinha permitido conservar como mascote quando tinha cinco anos. Agachou-se ainda mais, deslizou por espaços diminutos, poços de ventilação fedorentos e tubos de condução de energia. Os adultos, devido a seu tamanho e suas armaduras, nunca poderiam segui-lo até ali. Arranhou o cotovelo nas paredes de metal, internou-se em lugares onde nenhum ser humano poderia se mover.

O menino tinha jurado que não se deixaria apanhar pelos Harkonnen, ao menos hoje não. Odiava seus jogos, negava-se a ser o mascote ou a presa de alguém. Orientou-se na escuridão guiando-se pelo aroma e pelo instinto, sentiu uma brisa viciada no rosto e percebeu a direção da corrente.

Seus ouvidos registravam ecos enquanto avançava: os sons dos outros meninos prisioneiros que fugiam, também desesperados. Em teoria eram seus companheiros de equipe, mas Duncan tinha aprendido, graças a fracassos anteriores, que não devia confiar em pessoas cujos instintos selvagens não estavam à altura dos seus.

Jurou que desta vez se livraria dos caçadores, mas sabia que nunca conseguiria completamente. Neste ambiente controlado, equipes de caça o apanhariam de novo e o poriam a prova, uma e outra vez. Chamavam isso de treinamento. Ignorava de que.

Ainda sentia dores no flanco direito por causa do último episódio. Como se fosse um animal, seus torturadores tinham passado seu corpo por uma máquina de costurar pele e um reparador neuro-celular. Suas costelas ainda não tinham se recuperado totalmente, mas melhoravam a cada dia que passava. Pelo menos até agora.

Com o localizador implantado em seu ombro, Duncan jamais poderia escapar da metrópole prisão. Barony era uma construção megalítica de plástico e plaz blindado, de 950 pisos de altura e 45 quilômetros de comprimento, sem entradas no nível do solo. Sempre encontrava muitos lugares onde se esconder durante os jogos praticados pelos Harkonnen, mas nunca a liberdade.

Os Harkonnen tinham muitos prisioneiros, e métodos sádicos para obrigá-los a cooperar. Se Duncan ganhasse esta caçada de treinamento, se evitasse os perseguidores durante tempo suficiente, os carcereiros prometeram que ele e sua família poderiam reintegrar-se a suas vidas anteriores. Prometeram o mesmos a todos os meninos. Os novatos necessitavam de um objetivo, um prêmio pelo qual lutar.

Atravessava por instinto passadiços secretos, ao mesmo tempo em que procurava ocultar seus passos. Não muito longe, a suas costas, ouviu o estampido e o vaio de um fuzil atordoante, o grito de dor de um menino, e depois espasmos arrepiantes, quando outro dos pequenos foi abatido.

Se os caçadores o capturassem, fariam-lhe mal, às vezes a sério e às vezes pior, segundo o fornecimento de novatos. Não era como brincar de esconder. Ao menos não para as vítimas.

Mesmo na sua idade, Duncan já sabia que a vida e a morte tinham um preço. Os Harkonnen eram indiferentes ao número de candidatos que sofressem durante o curso de seu treinamento. Assim os Harkonnen jogavam. Duncan compreendia as diversões cruéis. Tinha visto outros sentir prazer nelas, em especial nos meninos com os quais compartilhava sua reclusão, quando arrancavam as asas dos insetos ou colocavam fogo nas crias de roedores. Os Harkonnen e seus soldados eram como meninos adultos, só que com maiores recursos, maior imaginação e maior maldade.

Sem fazer o menor ruído, encontrou uma estreita e oxidada escada de acesso e subiu na escuridão, sem parar para pensar. Duncan tinha que decidir-se pelo inesperado, esconder-se onde lhes dificultasse a localização. Os degraus, rachados e cobertos de sulcos pela idade, machucaram suas mãos.

Esta seção da antiga Barony ainda funcionava. Condutos de energia e tubos elevadores sulcavam o edifício principal como tocas de vermes, retos, curvos, torcidos em ângulos oblíquos. O lugar era como uma enorme carreira de obstáculos, onde os soldados dos Harkonnen podiam disparar sobre sua presa sem o perigo de danificar edifícios mais importantes.

No corredor principal, sobre sua cabeça, ouviu pés que corriam, vozes filtradas pelos comunicadores de capacete, e depois um grito. Um assobio próximo indicou que os guardas tinham localizado seu implante.

O fogo branco de um fuzil laser varreu o teto sobre sua cabeça e fundiu as pranchas de metal. Duncan se soltou da escada e caiu. Um guarda armado apontou para ele. Outros dispararam de novo, acertaram as escoras, e a escada caiu atrás do menino.

Aterrissou no chão de um poço inferior, e a pesada escada caiu sobre ele. Mas Duncan conteve um grito de dor. Só teria servido para que os perseguidores se aproximassem mais, embora não tivesse esperanças de evitá-los durante muito tempo, devido ao implante em seu ombro. Quem, a não ser os Harkonnen, podiam ganhar este jogo?

Ficou em pé e correu com um novo e frenético desejo de liberdade. Decepcionado, viu que o pequeno túnel dava para um passadiço mais amplo. Mais amplo significava problemas. Os adultos poderiam segui-lo até ali.

Ouviu gritos atrás de si, mais pés que corriam, disparos, e depois um grito estrangulado. Supunha-se que os perseguidores utilizavam fuzis atordoantes, mas Duncan sabia que, em uma fase tão avançada da caçada do dia, quase todos os outros teriam sido capturados... e as apostas eram altas. Os caçadores não gostavam de perder.

Duncan tinha que sobreviver. Tinha que ser o melhor. Se morresse, não voltaria a ver sua mãe. Mas se vivesse e derrotasse esses bastardos, talvez sua família obtivessem a liberdade, ao menos a liberdade de que podiam desfrutar os funcionários dos Harkonnen em Giedi Prime.

Duncan tinha visto outros novatos derrotar os perseguidores, mas esses meninos depois tinham desaparecido. Terei que acreditar nas noticias, os ganhadores e suas famílias tinham obtido a liberdade. Duncan precisava de provas, e tinha muitos motivos para duvidar do que os Harkonnen diziam. Mas queria acreditar, não podia abandonar a esperança.

Não entendia por que tinham encarcerado seus pais. O que poderiam ter feito funcionários governamentais de pouca importância para merecer tal castigo? Só lembrava que um dia sua vida era normal e relativamente feliz, e no seguinte todos estavam ali, escravizados. Agora, o jovem Duncan se via obrigado quase a cada dia a fugir e lutar por sua vida, e pelo futuro de sua família. Estava melhorando.

Recordou aquela última tarde normal, em um jardim de grama bem podada, situado em um das terraços de Harko City, um dos estranhos parques com vistas que os Harkonnen permitiam a seus súditos. Os jardins e os sebes eram criados e fertilizados em jardins, porque as plantas não enraizavam bem no solo impregnado de resíduos de um planeta já explorado em excesso.

Os pais e outros familiares de Duncan estavam praticando jogos ao ar livre, lançavam bolas para buracos espalhados na erva, enquanto mecanismos internos de alta entropia faziam as bolas ricochetearem e saltarem aleatoriamente. O menino tinha observado que os jogos dos adultos eram muito diferentes, aborrecidos e estruturados, comparados aos que praticava com seus amigos.

Uma jovem se achava perto dele, e observava os jogos. Seu cabelo de cor chocolate, a pele negra e maçãs do rosto altas, mas sua expressão tensa e olhar duro diminuíam sua notável beleza. Não sabia quem era, apenas que se chamava Janess Milan e trabalhava com seus pais.

Enquanto Duncan contemplava os jogos dos adultos e ouvia as gargalhadas, sorriu para a mulher e observou:

— Estão treinando para ser velhos.

Pelo visto, Janess não se interessava pela sua opinião, porque lhe respondeu grosseiramente.

Duncan continuou contemplando os jogos à luz caliginosa do sol, mas cada vez sentia mais curiosidade pela desconhecida. Desconfiou que ela estava tensa. Janess olhava com freqüência para trás, como se esperasse algo.

Momentos depois soldados Harkonnen irromperam, detiveram seus pais, seu tio e dois sobrinhos. Compreendeu de maneira intuitiva que Janess tinha sido a causadora de tudo, por motivos que desconhecia. Nunca havia tornado a vê-la, e sua família estava presa já há meio ano...

Atrás dele, uma abertura se abriu no teto com um rugido. Dois perseguidores com uniforme azul se deixaram cair, apontaram as armas para ele e soltaram uma gargalhada de triunfo. Duncan se lançou para frente, correndo em ziguezague. Um raio laser ricocheteou nas pranchas da parede, e deixou uma marca no corredor, parecida com um raio.

Duncan sentiu o cheiro de ozônio do metal chamuscado. Se um raio o atingisse, morreria. Detestava as risadas dos perseguidores, como se estivessem zombando dele.

Um par de caçadores surgiram de um corredor lateral, a um metro dele, mas Duncan foi mais rápido. Eles não reagiram com rapidez. Golpeou um no joelho e empurrou o outro para um lado, antes de passar entre os dois a toda velocidade.

O homem cambaleou e depois gritou, quando um raio laser chamuscou sua armadura.

— Parem de disparar, idiotas! Podem nos atingir!

Duncan correu como nunca tinha corrido, consciente que suas pernas infantis não podiam superar os adultos treinados para lutar. Mas recusava-se a se render. Não estava em seu sangue.

Mais adiante, onde o corredor se alargava, viu luzes brilhantes em um cruzamento de passadiços. Quando se aproximou, parou um momento e comprovou que o corredor transversal não era um túnel, mas um tubo elevador, um poço cilíndrico com um campo Holtzman no centro. Trens bala levitantes percorriam o tubo sem resistência, viajando de um extremo ao outro da enorme prisão.

Não havia portas nem passadiços abertos. Duncan não podia continuar correndo. Os homens apareceram perto dele e apontaram com os fuzis. perguntou-se se o abateriam caso se rendesse. Provavelmente, pensou, pois isso lhes proporcionaria uma boa descarga de adrenalina.

O campo antigravitacional brilhava tênue no centro do poço horizontal. Sabia mais ou menos como funcionava. Só restava um lugar para onde ir, e não estava certo do que aconteceria, mas sabia que se os guardas o capturassem o castigariam, ou talvez o matassem.

Virou-se e cravou a vista no campo antigravitacional. Respirou fundo e saltou para o interior do poço.

Seu cabelo negro e encaracolado ondeou quando caiu. Gritou, um som a meio caminho entre um uivo de desespero e um grito de liberação. Se morresse aqui, ao menos seria livre.

Então, o campo Holtzman o envolveu de súbito. Duncan, com o estômago subindo ao peito, encontrou-se à deriva em uma rede invisível. Flutuava sem cair, pendurado no centro neutro do campo. Esta força mantinha suspensos os trens bala quando atravessavam a gigantesca Barony. Não era assombroso que o suspendesse. Viu que os guardas corriam para a beira da plataforma e gritavam encolerizados. Um deles agitou um punho. Dois apontaram suas armas.

Duncan moveu freneticamente braços e pernas, tentou nadar, tentando afastar-se.

Um guarda gritou e desviou o fuzil de outro com um tapa. Duncan tinha ouvido falar dos efeitos terríveis que aconteciam quando um raio laser cruzava um campo Holtzman. Geravam um potencial destrutivo interativo em teoria tão mortífero como os engenhos atômicos proibidos.

Em conseqüência, os guardas dispararam seus fuzis atordoantes.

Duncan se retorceu no ar. Embora precisasse de um ponto de apoio, ao menos não seria um alvo fixo. Os raios passaram ao lado.

Protegido pelo campo Holtzman, notou que a pressão do ar mudava a seu redor e intuiu as correntes. Girou no ar, até que viu as luzes de um trem bala que se aproximava.

E se encontrava no centro do campo!

Duncan se revolveu em desespero. Derivou para o lado oposto da zona de levitação, longe dos guardas. Continuaram disparando, mas a mudança na pressão de ar desviou ainda mais os raios. Os homens uniformizados ajustaram os controles.

Abaixo dele havia outros portais, rampas e plataformas que conduziam às vísceras de Barony. Possivelmente poderia chegar a um... se conseguisse escapar do campo que o prendia.

Um raio atordoante roçou suas costas, perto do ombro, e Duncan experimentou a sensação de que milhares de insetos o picavam.

Por fim, libertou-se do campo e caiu de cabeça para baixo. Viu a plataforma bem a tempo. Estendeu o braço que não estava amortecido e segurou um corrimão. O trem passou com um estrondo e enviou uma massa de ar que não o atingiu por centímetros.

Não tivera tempo para adquirir muita aceleração em sua queda. De qualquer modo, a parada repentina quase lhe arrancou o outro braço. Duncan se içou com muita dificuldade e se meteu em um túnel, mas só encontrou um diminuto nicho com paredes de metal. Não viu nenhuma saída. A escotilha estava fechada. Golpeou-a com os punhos, mas não podia ir a lugar algum.

Então, a porta exterior se fechou a suas costas, e ficou preso no nicho. Preso. Desta vez, tudo tinha terminado.

Momentos depois, os guardas abriram a escotilha posterior. Seus olhares, quando ergueram as armas, expressavam uma mescla de ira e admiração. Duncan esperou com resignação que o abatessem.

Não obstante, o capitão sorriu e disse:

— Parabéns, garoto. Você conseguiu.

 

Duncan, esgotado e de volta a sua cela, estava sentado com seus pais. Faziam sua refeição diária a base de cereais insípidos, bolachas ricas em fécula e folhinhas de proteína, uma comida satisfatória do ponto de vista dietético, mas carente de todo sabor. Até o momento, seus captores não haviam dito nada mais ao menino, além do “você conseguiu”. Isso devia significar a liberdade. Ao menos, esperava.

A cela da família estava muito suja. Embora seus pais tentassem mantê-la limpa, precisavam de vassouras, pano ou sabão, e contavam com muito pouca água, que não podia ser desperdiçada.

Durante os meses de confinamento, Duncan tinha sido submetido a um treinamento vigoroso e violento, enquanto a família permanecia em sua cela, temerosa, sem nada para fazer, sem trabalho nem diversões. Tinham dado um número a todos eles, assim como endereços de celas de escravos. Aguardavam com temor alguma mudança em sua sentença.

Duncan relatou a sua mãe suas aventuras, com entusiasmo e orgulho, como tinha superado seus perseguidores em astúcia, como tinha vencido os melhores rastreadores Harkonnen. Nenhum dos outros meninos tinha conseguido naquele dia, mas Duncan estava seguro de que ganhara a liberdade.

Seriam libertados de um momento para outro. Tentou imaginar sua família livre de novo, fora do cárcere, contemplando uma noite clara e estrelada.

Seu pai olhava com orgulho para o menino, mas sua mãe custava a acreditar que aquilo pudesse ser verdade. Tinha bons motivos para não confiar nas promessas dos Harkonnen.

Aos poucos, as luzes da cela piscaram e o campo opaco da porta ficou transparente, para depois se abrir. Um grupo de guardas uniformizados de azul apareceu junto ao sorridente capitão que o tinha apanhado. O coração de Duncan deu um salto. Vão nos libertar?

Os homens uniformizados se afastaram em deferência a um homem de costas largas, lábios grossos e músculos pronunciados. Seu rosto estava queimado pelo sol e corado, como se passasse muito tempo longe do tenebroso Giedi Prime.

O pai de Duncan ficou em pé como se fosse impulsionado por uma mola e fez uma reverência desajeitada.

— Meu senhor Rabban!

Sem dar atenção aos pais, os olhos de Rabban só se fixavam no jovem novato de rosto arredondado.

— O capitão dos caçadores me disse que você é o melhor — disse a Duncan. Quando entrou na cela, os guardas se aglutinaram atrás dele. Rabban sorriu.

— Deveria vê-lo no exercício de hoje, meu senhor — disse o capitão dos caçadores. — Nunca tive um tutelado mais cheio de recursos.

Rabban assentiu.

— Número 11.368, vi o histórico de suas caçadas. Suas feridas foram graves? Não? É jovem, não demorarão para cicatrizar. — Seus olhos se endureceram —. Promete muito. Vamos ver como se sai contra mim.

Virou-se.

— Venha comigo para começarmos a caçada, garoto. Rápido.

— Meu nome é Duncan ldaho — replicou o menino num tom de desafio —. E não sou um número.

Sua voz era fraca e aguda, mas denotava uma valentia que sobressaltou seus pais. Os guardas, surpresos, voltaram-se para ele. Duncan olhou para sua mãe para lhe pedir apoio, ou como se esperasse uma recompensa. Em vez disso, ela tentou fazê-lo se calar.

Rabban arrebatou o fuzil laser de um guarda. Sem titubear, disparou um raio mortal no peito do pai de Duncan. O homem saiu projetado para a parede. Em seguida, Rabban moveu a arma e vaporizou a cabeça da mãe de Duncan.

Duncan gritou. Seus pais caíram ao chão, montes sem vida de carne queimada e borbulhante.

— Agora não tem mais nenhum nome, 11.368 — disse Rabban —. Venha comigo.

Os guardas o prenderam e não deixaram que corresse para seus pais. Nem sequer lhe concederam tempo para chorar.

— Estes homens o prepararão para começarmos a próxima rodada de festas. Preciso de uma boa caçada.

Os guardas o arrastaram para fora da cela, enquanto Duncan esperneava e gritava. Sentia-se morto por dentro, exceto por uma chama gelada de ódio que floresceu em seu peito e queimou todos os vestígios de sua infância.

 

O povo tem que acreditar que seu governante é um homem melhor que eles, do contrário não o seguiriam. Alem disso, um líder tem que ser alguém que dá a seu povo todo o pão e circo que necessita.

Duque Paulus Atreides

 

As semanas de preparativos para sua ida para IX transcorreram como uma exalação, enquanto Leto tentava assimilar e armazenar todo um ano de lembranças, e gravar em sua mente todas as imagens de sua casa natal. Sentiria falta do ar salgado e úmido de Caladan, suas manhãs envoltas em névoa e das sonoras tormentas do entardecer. Como um planeta máquina árido e sem cor podia comparar-se com isso?

Dos muitos palácios e vilas de férias do planeta, o castelo de Caladan, encravado no alto de um escarpado que dominava o mar, era o lugar que Leto levava em seu coração, a sede do governo. Algum dia, quando por fim usasse o anel de selo ducal, seria o vigésimo sexto duque Atreides que tomaria posse do castelo.

Sua mãe, Helena, dedicava muito tempo a ele, via presságios por toda parte e citava passagens da Bíblia Católica Laranja. Não gostava da ideia de perder seu filho por um ano, mas não se oporia às ordens do duque, ao menos declaradamente. Havia uma expressão preocupada em seu rosto, e Leto compreendeu que se preocupava especialmente com o fato de que Paulus tivesse escolhido, dentre todos os lugares, IX.

— É um foco supurante de tecnologia suspeita — disse-lhe quando seu marido não pôde ouvi-la.

— Tem certeza de que não reage assim porque IX é o principal rival da Casa Richese, mãe? — perguntou Leto.

— Claro que não! — Seus dedos longos interromperam por um momento a costura de um elegante colarinho da sua camisa —. A Casa Richese se atem à tecnologia antiga, confiável e verdadeira, aparelhos que cumprem as normas prescritas. Ninguém dúvida da fidelidade de Richese às normas do Jihad.

Olhou-o com seus olhos escuros, que ao pouco se umedeceram. Acariciou seu ombro. Graças a um crescimento recente, estava quase tão alto quanto ela.

— Leto, Leto, não quero que perca sua inocência ali, nem sua alma — disse —. Vai lhe custar muito.

Mais tarde, no salão, durante um tranqüilo jantar familiar a base de ensopado de pescado e pães-doces, Helena tinha pedido uma vez mais ao velho duque que o enviasse para outro lugar. Paulus se limitou a rir de suas preocupações, mas no final, a serena mas firme recusa de sua mulher em ver a razão o enfureceu.

— Dominic é meu amigo, e por Deus que eu não poderia colocá-lo nas mãos de melhor homem!

Leto, que tentava se concentrar em seu prato, estava inquieto pelos protestos de sua mãe, mas apoiou seu pai.

— Quero ir, mãe — disse. Deixou a colher junto à terrina e repetiu a frase que sempre dizia —: É para o meu bem.

Durante a educação de Leto, Paulus tinha tomado muitas decisões que Helena não tinha compartilhado: pôr o menino para trabalhar com aldeãos, relacionar-se com os cidadãos de igual para igual, permitir que fizesse amizade com meninos de classes inferiores. Leto compreendia o sentido comum disto, já que algum dia seria o duque dessa gente, mas Helena ainda se opunha em diversas frentes, e citava com freqüência passagens da Bíblia Católica Laranja para justificar suas opiniões.

Sua mãe não era uma mulher paciente, pouco afetuosa com seu filho único, embora se revestisse de uma fachada impecável durante as reuniões importantes e os acontecimentos públicos. Sempre se queixava de sua aparência, e repetia que nunca teria mais filhos. Educar um filho e dirigir a casa ducal já ocupava a maior parte de seu valioso tempo, que de outra maneira teria dedicado ao estudo da Bíblia Católica Laranja e outros textos religiosos. Era evidente que Helena tinha gerado um filho por obrigação a Casa Atreides, mas não pelo desejo de criá-lo.

Não era de estranhar que o velho duque procurasse a companhia de mulheres menos suscetíveis.

Às vezes, de noite, atrás das enormes placas de teca elaccana, Leto ouvia as discussões e os gritos de seus pais. Lady Helena podia protestar tanto quanto quisesse sobre o fato de seu filho ser enviado a IX, mas o velho duque Paulus era a Casa Atreides. Sua palavra era lei, no castelo e em Caladan, por mais que sua esposa tentasse convencê-lo a mudar de opinião.

É para o seu bem.

Leto sabia que o matrimônio de seus pais tinha sido uma união de conveniência, um acordo comercial fechado entre as Casas do Landsraad para satisfazer as exigências das famílias importantes. Tinha sido uma ação desesperada por parte da arruinada Richese, e a Casa Atreides sempre podia esperar que a antiga grandeza daquela casa inovadora e tecnológica renascesse de novo. Enquanto isso, o velho duque tinha recebido substanciais concessões e recompensas por aceitar uma das numerosas filhas da Casa Richese.

— Uma casa nobre não pode permitir arrebatamentos e o romantismo que as pessoas inferiores experimentam quando os hormônios guiam seus atos — sua mãe havia dito em certa ocasião, quando lhe explicava a política dos matrimônios. Sabia que um destino idêntico o aguardava.

Seu pai concordava com ela a esse respeito, e era ainda mais inflexível.

— Qual é a primeira regra da Casa? — repetia o velho duque.

E Leto a citava, palavra por palavra:

— Nunca se casar por amor, porque arruinaria nossa Casa.

Aos quatorze anos, Leto nunca se apaixonara, embora tivesse experimentado os calores do desejo. Seu pai o incentivava a flertar com as moças da aldeia, a brincar com todas que achasse atraentes, mas sem nunca prometer nada. Leto duvidava, dada sua posição como herdeiro da Casa Atreides, que alguma dia tivesse a possibilidade de se apaixonar, sobretudo pela mulher que um dia seria sua esposa.

Uma semana antes da partida de Leto, seu pai o agarrou pelo ombro e o levou para confraternizar com o povo, insistindo que devia saudar até mesmo os criados. O duque foi acompanhado de uma pequena guarda de honra à cidade marítima situada ao pé do castelo, comprou coisas, viu seus súditos e se fez ver. Paulus estava acostumado a ir acompanhado de seu filho nestas saídas, e Leto sempre passava muito bem.

Sob o céu azul claro, o velho duque ria com facilidade, transmitia seu bom humor contagiante. As pessoas sorriam quando o robusto homem passava entre eles. Leto e seu pai passearam pelo bazar, deixaram para trás as bancas de verduras e pescado fresco e se detiveram para inspecionar belas tapeçarias tecidas com fibras ponji e outros artigos exóticos. Paulus Atreides costumava comprar ninharias ou lembranças para sua esposa, sobretudo depois de suas escapadas, embora o duque, ao que parecia, não conhecesse muito bem os gostos de Helena e escolhesse coisas pouco apropriadas para ela.

O duque parou em frente a um posto de ostras e observou o céu azul, surpreso pelo que considerava uma brilhante ideia. Olhou para seu filho, e um amplo sorriso fendeu sua barba.

— Ah, é preciso se despedir com um espetáculo adequado rapaz. Transformaremos sua partida em um acontecimento memorável para todo Caladan.

Leto se encolheu por dentro. Já tinha escutado em ocasiões anteriores as loucas idéias de seu pai, e sabia que o velho Duque as colocaria em prática, sem obedecer o bom senso.

— O que têm em mente, senhor? O que devo fazer?

— Nada, nada. Anunciarei uma celebração em honra a meu filho e herdeiro. — Agarrou a mão de Leto e a ergueu no ar, numa saudação triunfal, e depois sua voz se impôs à multidão —. Vamos celebrar uma tourada, um espetáculo antigo para o povo. Será um dia de celebração para Caladan, com holoprojeções transmitidas a todo o globo.

— Com touros salusanos? — perguntou Leto, que imaginou as monstruosas bestas de lombo arqueado, suas cabeças negras cobertas de múltiplos chifres, os olhos injetados. Quando criança visitava com freqüência os estábulos para olhar aqueles animais monstruosos. Yresk, o responsável pelos estábulos, um dos antigos empregados de sua mãe em Richese, preparava os touros para os ocasionais espetáculos de Paulus.

— É obvio — disse o velho duque —. E como de costume, eu os enfrentarei. — Moveu o braço com elegância, como se imaginasse uma capa colorida —. Estes velhos ossos ainda são bastante ágeis para se esquivar dessas bestas. Ordene a Yresk que prepare um, a menos que você queira escolhê-lo pessoalmente, rapaz.

— Pensei que nunca mais faria isso — disse ele —. Quase aconteceu um ano de...

— De onde tirou essa idéia?

— De seus conselheiros, senhor, é muito perigoso. Não é por isso que outros o substituíram nas corridas?

O ancião riu.

— Que tolice! Só me mantive afastado do arena por uma razão: os touros foram piores durante um tempo, algum desequilíbrio genético não os fazia aptos para as corridas. Isso mudou, e os novos touros são mais selvagens que nunca. Yresk diz que estão preparados para a luta, e eu também. — Rodeou os estreitos ombros do Leto —. Que melhor ocasião para uma tourada que a partida de meu filho? Assistirá esta corrida, a primeira de sua vida. Sua mãe já não poderá dizer que é muito pequeno.

Leto assentiu a contra gosto. Uma vez que tomava uma decisão, seu pai nunca se retratava. Ao menos, Paulus era destro, e utilizaria um escudo pessoal.

Com a ajuda de escudos pessoais, Leto tinha lutado contra muitos competidores humanos, consciente das vantagens e limitações do escudo. Um escudo podia parar tiros de projéteis e armas mortíferas de alta precisão, mas qualquer folha que se movesse a velocidade baixa podia atravessá-lo. Um touro salusano furioso, com seus chifres afiados, podia mover-se com a lentidão suficiente para atravessar o escudo melhor sintonizado.

Engoliu em seco, intrigado pelos novos touros. Os que o velho Yresk tinha lhe mostrado já pareciam bastante perigosos. Tinham acabado com a vida de três matadores, que Leto recordasse...

Entusiasmado com a idéia, o duque Paulus anunciou no bazar, usando os microfones instalados nos postos. Ao ouvir, o povo reunido no mercado prorrompeu em vivas, com os olhos brilhantes. Riram, em parte pela perspectiva do espetáculo em si, e também pelo dia de descanso e celebração que acabava de lhes conceder.

Leto sabia que sua mãe não gostaria da ideia de Paulus toureando e que Leto presenciasse o acontecimento, mas também sabia que, assim que Helena começasse a protestar, a resolução do velho duque seria mais inquebrável que nunca.

O estádio se estendia sob o sol do meio-dia. Os degraus formavam uma imensa arquibancada, tão abarrotada de gente que, nos extremos, pareciam pequenos peixes coloridos. O duque tinha decidido que o espetáculo seria grátis. Estava orgulhoso de sua habilidade e era um exibicionista nato.

Grandes bandeiras verde-negras ondulavam na brisa, enquanto uma banda soava dos alto-falantes. Colunas enfeitadas com os falcões dos Atreides cintilavam com emblemas que tinham sido polidos e pintados para o acontecimento. Milhares do ramos de flores colhidas nos campos e terras baixas foram lançadas na arena, uma insinuação muito pouco sutil de que o duque gostaria que as pessoas jogassem flores cada vez que matasse um touro.

Nos aposentos destinados aos matadores, Paulus esperava o momento da verdade. Leto estava de pé atrás de uma proteção, e escutava à multidão impaciente.

— Pai, estou muito preocupado pelo perigo que vai correr. Não deveria fazer isso... e muito menos por mim.

O velho duque desprezou o comentário com um gesto.

— Leto, meu filho, precisa compreender que governar pessoas e ganhar sua lealdade consiste em algo mais que assinar papéis, arrecadar impostos e assistir às reuniões do Landsraad.

Alisou sua capa vermelha, estendida diante de um espelho.

— Dependo dessa gente para produzir tudo que Caladan possa proporcionar. Eles tem que fazer de bom grado, trabalhando até a fadiga, e não só para tirar proveito mas também por sua honra e sua glória. Se a Casa Atreides fosse à guerra de novo, essa gente derramaria seu sangue por mim. Entregariam sua vida sob nossas bandeiras. — Tocou sua armadura —. Quer esticá-la?

Leto agarrou as cintas do peitilho de couro negro, puxou-as e as amarrou. Não disse nada, mas assentiu para indicar que compreendia.

— Como duque de meu povo, preciso lhes dar algo em troca, demonstrar meu valor. E não só para que se divirtam, mas também para gravar em suas mentes que sou um homem de grande importância, de heróicas dimensões... alguém a quem Deus concedeu a bênção para governá-los. Não conseguirei isso a menos que demonstre. A liderança não é um processo passivo.

Paulus checou o cinto do escudo e sorriu.

— Nunca se é muito velho para aprender — citou —. É uma frase de Agamenon... só para demonstrar que não estou tão adormecido quanto parece.

Thufir Hawat, o especialista em armas de rosto severo, aproximou-se do duque. Como Mentat leal, Hawat não criticava as decisões de seu superior. Deu o melhor conselho que pôde, sussurrando o que tinha observado nos movimentos da nova manada de touros salusanos mutantes.

Leto sabia que sua mãe estaria no camarote ducal. Iria vestida com seus melhores ornamentos, interpretaria seu papel, saudaria o povo. Na noite anterior, uma vez mais, produziu-se uma acalorada discussão atrás das portas do dormitório. Por fim, o duque Paulus a silenciara com uma ordem terminante e foi dormir; precisava descansar para enfrentar as provas que o aguardavam no dia seguinte.

O duque colocou sua capa debruada de verde e pegou os instrumentos que necessitaria para vencer o touro selvagem: as adagas e uma longa vara enfeitada com plumas, com uma toxina nervosa na ponta. Thufir Hawat sugerira que o responsável pelos estábulos tranqüilizasse o touro para diminuir seus impulsos assassinos, mas o duque adorava os desafios. Não desejava inimigos drogados.

Paulus virou o botão de ativação do escudo e conectou o campo. Era um simples meio escudo para proteger seu flanco. O duque utilizava uma capa de cores brilhantes, chamada muleta, para proteger seu outro flanco. Fez uma reverência para seu filho, para seu Mentat e para os preparadores que esperavam na entrada da arena.

— Que o espetáculo comece — disse.

Leto o viu sair para a arena, enfeitado como um ave ansiosa por voar. Quando surgiu, soou uma ovação.

Leto se situou para trás da proteção, e piscou devido ao brilho do sol. Sorriu quando seu pai descreveu um lento círculo ao redor do arena, agitando sua capa e fazendo uma reverência ao seu povo. Leto percebeu com orgulho o amor e admiração que sentiam por aquele homem valente.

Enquanto esperava à sombra, Leto jurou que tentaria aprender tudo a respeito dos triunfos de seu pai, para que um dia o povo lhe demonstrasse igual respeito e admiração. Triunfos... Este seria mais um na longa lista do seu pai, supôs Leto. Mas não podia evitar sentir-se preocupado. Muitas coisas podiam mudar num piscar de um escudo, no brilho de um corno afiado, no golpe de uma pata contra o chão.

Soaram os trompetes e a voz do apresentador narrou os detalhes da tourada iminente. O duque Paulus apontou com um elegante gesto da sua luva adornada com lantejoulas para as amplas portas reforçadas do outro lado da arena.

Leto se mudou para outra arcada afim de gozar de melhor perspectiva, e percebeu que não ia assistir uma farsa. Seu pai ia lutar por sua vida.

Os ajudantes tinham preso as bestas ferozes, e o responsável pelos estábulos em pessoa tinha selecionado uma para a corrida. Depois de inspecionar o animal, o duque ficara satisfeito, seguro de que sua bravura agradaria à multidão. Ansiava entrar no campo de batalha.

As portas maciças se abriram com um rangido das dobradiças, e o touro salusano saiu trotando, meneando sua cabeça coberta de chifres e deslumbrado pela luz. Seus olhos facetados refulgiam de raiva. As escamas do lombo, negro como asa de corvo, refletiam cores iridescentes.

Paulus assobiou e agitou a capa.

— Venha cá, estúpido!

Os espectadores riram.

O touro se virou para ele, baixou a cabeça e emitiu um bufo potente.

Leto viu que seu pai ainda não tinha ligado o escudo protetor. Paulus moveu sua capa colorida para provocar a ira da besta. O touro salusano chutou o chão, soprou e carregou. Leto quis gritar, advertir seu pai. Tinha esquecido da sua proteção? Como esperava sobreviver sem escudo? Mas o touro passou ao lado e Paulus deu um giro, para que o animal arremetesse. Seus chifres retorcidos rasgaram a parte inferior do tecido em pedaços. O velho duque deu as costas ao touro, confiante em excesso. Dedicou uma reverência zombeteira ao público, endireitou-se e depois, com calma, sem pressa, ligou seu escudo pessoal.

O touro atacou de novo, e o duque utilizou a adaga para espetá-lo em seu flanco escamoso, antes de lhe causar uma leve ferida no flanco. Os olhos facetados do animal captaram múltiplas imagens de seu torturador adornado com cores vivas.

Carregou de novo.

Move-se com muita rapidez para penetrar o escudo, pensou Leto. Mas se cansar e diminuir a velocidade, poderia ser muito perigoso...

Enquanto a corrida continuava, Leto observou que seu pai procurava enriquecer o espetáculo para que o público se divertisse. O velho duque poderia matar o touro a qualquer momento, mas preferia saborear a experiência.

A julgar pela reação dos espectadores, Leto sabia que se falariam durante anos daquele acontecimento. A vida dos camponeses e pescadores era muito aborrecida e dura, mas esta celebração ficaria gravada em suas mentes, uma orgulhosa imagem de seu duque. Note o que fazia o velho Paulus, apesar de sua idade!, diriam.

Por fim, o touro chegou a beira do esgotamento, com os olhos injetados, pesados e cansados estertores, enquanto seu líquido vital se derramava sobre a areia. Paulus decidiu pôr fim ao desafio. Tinha prolongado o espetáculo durante quase uma hora. Embora coberto de suor, ainda conservava sua aparência nobre, e não permitia que seus movimentos denotassem cansaço nem que suas roupas se desalinhassem.

Em seu camarote, Lady Helena continuava movendo suas bandeirolas, com um sorriso frio na boca.

Aquela altura, o touro era uma máquina enlouquecida, um monstro raivoso com poucos pontos vulneráveis em sua blindagem de escamas negras. Quando o animal carregou contra ele, os chifres cintilantes erguidos como lanças, Paulus fez uma finta à esquerda e deu meia volta. A seguir Paulus atirou a capa para o chão e agarrou o haste de sua lança com ambas as mãos. Concentrou toda sua força em uma potente estocada lateral. Executada sem a menor falha e de uma beleza sem comparação, a folha da lança penetrou por uma fenda da pele blindada do touro, atravessou uma intercessão de osso e crânio, e perfurou os dois cérebros separados do animal: a forma mais difícil e sofisticada de matá-lo.

O touro estacou, resfolegou, bufou e caiu fulminado sobre a areia.

Paulus plantou o pé sobre a cabeça coberta de chifres, apoiou-se na lança, extraiu-a com um puxão e a jogou no chão. Em seguida, desembainhou sua espada e a fez girar sobre sua cabeça com um gesto de triunfo.

Os espectadores ficaram em pé como um só homem, gritaram, uivaram e aclamaram. Agitaram as bandeiras, apoderaram-se dos ramos que enfeitavam os suportes de vasos e os lançaram à arena. Fizeram coro o nome de Paulus várias vezes.

O patriarca Atreides, divertindo-se com a adoração que despertava, sorriu, deu meia volta e abriu a jaqueta, para que os espectadores vissem seu torso manchado de sangue e coberto de suor. Agora era o herói. Podia desprezar a etiqueta.

Quando os longos vivas emudeceram, o duque ergueu a espada e golpeou diversas vezes até cortar a cabeça do touro. Finalmente, cravou a espada ensangüentada no chão da praça e com ambas as mãos agarrou os chifres do touro e levantou sua cabeça.

— Leto! — gritou sem olhar para trás, e sua voz retumbou na arena —. Leto, meu filho, venha aqui!

Leto, ainda protegido pelas sombras da arcada, titubeou um momento e depois avançou. Cruzou o arena com a cabeça bem erguida, até deter-se junto ao seu pai. A multidão o aclamou com renovado entusiasmo.

O velho duque ofereceu ao seu filho a cabeça ensangüentada do animal.

— Entrego-a a Leto Atreides! — anunciou ao público apontando para seu filho —. Vosso futuro duque!

A multidão continuou aplaudindo e gritando hurras. Leto segurou um dos chifres do touro. Seu pai e ele sustentaram o troféu no alto, e dele caiam grossas gotas vermelhas.

Quando Leto ouviu que o povo gritava seu nome, sentiu que algo se agitava em seu interior e perguntou-se pela primeira vez se era isso que sentia um líder de homens.

 

N'kee: veneno de ação lenta que se concentra nas glândulas suprarenais; uma das toxinas mais insidiosas permitidas sob os acordos da Paz da Corporação e as restrições da Grande Convenção (veja-se Guerra de Assassinos).

Manual dos Assassinos

 

— Hummmm, o imperador nunca morrerá, como bem sabe, Shaddam. — Hasimir Fenring, um homem miúdo de grandes olhos escuros e cara de doninha, estava sentado do outro lado do console e diante de seu visitante, o príncipe herdeiro Shaddam —. Ao menos enquanto for bastante jovem para desfrutar do trono.

Fenring observou com olhar penetrante que a bola negra pousava sobre um ponto de pouco valor. O herdeiro do Império, que tinha terminado seu turno, não estava nada satisfeito com o resultado. Tinham sido companheiros íntimos durante quase toda sua vida, e Fenring sabia muito bem como distrai-lo no momento preciso.

Da sala de jogos do luxuoso apartamento de cobertura de Fenring, Shaddam podia ver as luzes do palácio imperial de seu pai, que brilhavam sobre a ladeira da colina a um quilômetro de distância. Com a ajuda de Fenring se livrara de seu irmão mais velho Fafnir fazia muitos anos, mas o Trono do Leão Dourado parecia tão fora de seu alcance como sempre.

Shaddam saiu para o balcão e exalou um longo e profundo suspiro.

Era um homem de traços pronunciados, com mais de trinta anos, de queixo firme e nariz aquilino. Usava o cabelo avermelhado curto, engomado e em forma de capacete. Lembrava os bustos de seu pai esculpidos um século antes, durante as primeiras décadas do reinado de Elrood.

Começava a anoitecer, e duas das quatro luas de Kaitain apareciam no ciclo, do outro lado do gigantesco edifício imperial. Planadores iluminados sulcavam os calmos céus do ocaso, perseguidos por bandos de pássaros cantores. Nessas ocasiões, Shaddam precisava se afastar do enorme palácio.

— Cento e trinta e seis anos de reinado — continuou Fenring com seu tom nasal —. E o pai de Elrood governou durante mais de um século. Pense nisso, hummmm? Seu pai subiu ao trono quando só tinha dezenove anos, e você tem quase o dobro dessa idade. — O homem de rosto largo fitou seu amigo com seus grandes olhos negros —. Isso não o incomoda?

Shaddam não respondeu e fixou a vista na linha do horizonte, consciente de que devia retomar a partida, mas seu amigo e ele estavam metidos em jogos muito mais importantes.

Depois de longos anos de estreita associação, Fenring sabia que o herdeiro imperial era incapaz de concentrar-se em problemas complicados quando outras diversões o distraíam. Então, acabarei com esta distração.

— É minha vez — disse.

Fenring ergueu uma varinha em seu lado do globo escudo e a passou através do escudo para ativar um disco interior, o que fez uma bola negra situada no centro do globo levitar. Com um cálculo perfeito, Fenring retirou a varinha e a bola caiu no centro de um receptáculo oval, conseguindo assim a pontuação máxima.

— Maldito seja, Hasimir, outra partida perfeita para você — disse Shaddam enquanto voltava do balcão —. Não obstante, quando for imperador, será prudente o bastante para me deixar ganhar?

Os olhos do Fenring eram alertas e ferozes. Eunuco genético, incapaz, de gerar filhos devido a suas deformações congênitas, era um dos guerreiros mais mortíferos do Império, mais feroz que qualquer Sardaukar.

— Quando for imperador? — Fenring e o príncipe herdeiro compartilhavam tantos segredos mútuos que nenhum dos dois ocultava nada ao outro —. Shaddam, escute o que estou dizendo, hummmm? — Emitiu um suspiro de exasperação —. Tem trinta e quatro anos e ainda está esperando que sua vida comece, o que te corresponde por direito de nascimento, Elrood pode viver outras três décadas, no mínimo. É um velho burseg teimoso, e tendo em conta a quantidade de cerveja de especiaria que engole, é capaz de enterrar nós dois.

— Nesse caso, para que falar disso? — Shaddam brincava com os controles da máquina, demonstrando que queria jogar outra partida —. Tenho aqui tudo que preciso.

— Prefere jogar até ficar velho? Pensei que desejava coisas melhores, hummm? O destino de seu sangue Corrino.

— Ah, sim. E se não cumprir meu destino — disse Shaddam com amargura —, o que será de você?

— Ficarei muito bem, obrigado.

A mãe de Fenring tinha sido treinada na Bene Gesserit antes de entrar no serviço imperial como dama de companhia da quarta esposa de Elrood. Tinha lhe educado bem, preparando-o para grandes empresas.

Mas Hasimir Fenring estava aborrecido com seu amigo. Em certo momento, pouco antes de cumprir os vinte anos, Shaddam tinha ambicionado muito o trono imperial, até o ponto de inspirar Fenring a envenenar o filho mais velho do imperador, Fafnir, que naquela época tinha quarenta e seis anos e aguardava ansioso o momento da coroação.

Fazia quinze anos que Fafnir tinha morrido, mas o velho abutre não dava sinais de morrer. No mínimo, Elrood deveria abdicar por sua própria vontade. Enquanto isso, Shaddam tinha perdido a energia, e se contentava em desfrutar os prazeres que sua posição lhe proporcionava. Ser príncipe herdeiro facilitava a vida. Mas Fenring queria muito mais, para seu amigo e para ele.

Shaddam o fulminou com o olhar. Fala, a mãe do príncipe herdeiro, o rechaçara quando era pequeno (o único filho que tivera com Elrood), e tinha deixado que sua dama de companhia, Chaola Fenring, exercesse de nodriza. Desde meninos, Shaddam e Hasimir tinham falado sobre o que fariam quando o príncipe ocupasse o Trono do Leão Dourado. Imperador Padishah Shaddam IV.

Mas para Shaddam, tais conversas já não continham a magia de sua infância. Tinham passado muitos anos, uma excessiva espera sem objetivo. A esperança e o entusiasmo tinham dado espaço à apatia. Por que não passar os dias jogando?

— Você é um bastardo — disse Shaddam —. Vamos jogar outra partida.

Fenring fechou o console ignorando a sugestão de seu amigo.

— Talvez, mas há muitos assuntos graves no Império que exigem atenção, e sabe tão bem como eu que seu pai é um incompetente. Se o diretor de uma empresa conduzisse seus negócios como seu pai governa o Império, seria destituído. Pense no escândalo da CHOAM, por exemplo, a operação de extração de pedras soo.

— Ah, sim. Tem toda a razão, Hasimir.

Shaddam exalou um profundo suspiro.

— Impostores nobres: um duque, uma duquesa... Toda uma família de farsantes, sob o nariz de seu pai. Quem vigiava? Agora desapareceram em um planeta que não se acha sob o controle imperial. Isso nunca deveria ter ocorrido, hummm? Imagine os benefícios perdidos para Buzzel e os sistemas anexos. No que Elrood estava pensando?

Shaddam afastou a vista. Não gostava de discutir sobre assuntos imperiais sérios. Davam-lhe dor de cabeça. Tendo em conta o vigor aparente de seu pai, esses detalhes pareciam longínquos e irrelevantes para ele.

Mas Fenring insistiu.

— Tal como estão as coisas, suas possibilidades são remotas. Cento e cinqüenta e cinco anos, e ainda goza de uma saúde excelente. Fondil III, seu predecessor, viveu cento e setenta e cinco anos. Qual é a idade máxima que um imperador Corrino alcançou?

Shaddam franziu o sobrecenho e lançou um olhar ofegante ao aparelho de jogo.

— Sabe que não dou atenção a essas coisas, nem sequer quando o preceptor se zanga comigo.

Fenring apontou com um dedo.

— Elrood viverá duzentos anos, não tenha dúvida. Tem um grave problema, meu amigo... a menos que me escute.

Arqueou suas sobrancelhas finas.

— Ah, sim, mais ideias tiradas do Manual de assassinos, suponho. Tome cuidado para que não o surpreendam lendo-o. Já sabe o castigo que se impõe pela posse de um livro proibido.

— As pessoas tímidas só estão destinadas a trabalhos tímidos. Nossos futuros, Shaddam, são muito mais amplos. Pense nas possibilidades, hipotéticas, é obvio. Além disso, o que tem de mau o veneno? Funciona muita bem e só afeta à pessoa escolhida, tal como diz a Grande Convenção. Nem mortes colaterais, nem perda de ganhos, nem destruição de propriedades hereditárias. Limpo e rápido.

— Os venenos são empregados nos assassinatos entre as Casas, não para o que está pensando.

— Não se queixou quando me encarreguei de Fafnir, hummmm? Agora teria mais de sessenta anos, e ainda não teria saboreado o trono. Quer esperar tanto tempo?

— Basta — insistiu Shaddam, embora resignado —. Nem se atreva a imaginar isso. Não é justo.

— E é justo negar o que te corresponde por direito de nascimento? Qual seria sua eficácia como imperador se não puder assumir o poder antes de ser um ancião senil como seu pai? Olhe o que aconteceu em Arrakis. Quando substituímos Abulurd Harkonnen, o dano já era irremediável. Abulurd não sabia usar o chicote assim os trabalhadores não o respeitavam. Agora o barão o utiliza com excessiva prodigalidade, e a moral esta caindo, o que causa deserções e sabotagens cada vez mais freqüentes. Claro que não culpam os Harkonnen. Tudo aponta para seu pai, o imperador Padishah, e às decisões errôneas que tomou. — Baixou a voz —. Você tem que fazer isso pela estabilidade do Império.

Shaddam olhou para o teto, como se procurasse olhos espiões ou outros aparelhos de escuta, embora soubesse que Fenring escaneava com regularidade seu apartamento de cobertura e o protegia com escudos impenetráveis.

— Em que tipo de veneno está pensando? Só falando de um ponto de vista hipotético, é obvio.

Uma vez mais, olhou para o palácio imperial. O edifício resplandecente parecia um graal lendário, um troféu inalcançável.

— Algo que aja lentamente, hummmm? Dará a impressão que Elrood está envelhecendo. Ninguém se perguntará o que ocorre, pois já é muito velho. Deixe que me encarregarei disso. Como futuro imperador, não deveria se preocupar com os detalhes desses assuntos. Sempre fui seu coordenador, lembra-se?

Shaddam mordiscou o lábio inferior. Ninguém no Império sabia mais coisas sobre esse homem que ele. Havia a possibilidade de que seu amigo o traísse algum dia? Sim... embora Fenring soubesse muito bem que seu melhor caminho para o poder era Shaddam, o desafio consistia em controlar a ambição do seu amigo, em estar sempre um passo adiante dele.

O imperador Elrood IX, sabedor das habilidades mortíferas de Fenring, o utilizara em certo número de bem-sucedidas operações clandestinas. Elrood chegara a suspeitar do papel de Fenring na morte do príncipe herdeiro Fafnir, mas aceitara como algo inerente à política do Império. Ao longo dos anos Fenring tinha assassinado uns cinqüenta homens e uma dúzia de mulheres, e algumas de suas vítimas tinham sido também seus amantes, sem distinção de sexo. Orgulhava-se de ser um assassino capaz de olhar sua vítima nos olhos ou de matar pelas costas, sem o menor remorso.

Havia dias em que Shaddam desejava que o ambicioso Fenring e ele nunca tivessem forjado uma amizade de infância, porque assim não teria que enfrentar escolhas difíceis. Shaddam deveria ter abandonado seu companheiro de berço desde que aprendeu a andar. Era perigoso relacionar-se com um assassino tão implacável, e em certas ocasiões se sentia envergonhado por sua relação.

Mas Fenring era seu amigo. Existia uma atração mútua, algo indefinível de que tinham falado algumas vezes sem chegar a conclusão alguma. Nesse momento, Shaddam considerava mais fácil aceitar a amizade (e para seu próprio bem, achava que fosse amizade) em lugar de tentar cortá-la, o que poderia ser extremamente perigoso.

Uma voz ao seu lado interrompeu seus pensamentos.

— Seu conhaque favorito, meu príncipe.

Fenring lhe oferecia uma taça de conhaque kirano escuro.

Aceitou a taça, mas contemplou o líquido com suspeita, enquanto o remexia na taca. Detectava outra cor que não tinha terminado se mesclado? Aproximou o nariz, inalou o aroma como se fosse um perito, embora o que tentava era detectar algum agente químico estranho. O conhaque parecia normal. Mas Fenring teria tomado todo tipo de precauções. Era um homem sutil e tortuoso.

— Posso chamar o provador se quiser. Eu nunca o envenenaria, Shaddam — disse Fenring com um sorriso de possesso —. Entretanto, seu pai se encontra em uma posição muito diferente.

— Ah, sim. Um veneno de ação lenta, você disse? Creio que já tem alguma substância em mente. Quanto tempo meu pai viverá depois de que tiver iniciado o processo? Se chegarmos a um acordo, quero dizer.

— Dois anos, possivelmente três. O suficiente para que seu declínio pareça normal.

Shaddam alisou o queixo se esforçando para compor uma pose majestosa. Sua pele estava perfumada, seu cabelo avermelhado oleado com gel e penteado para trás.

— Tem que saber que só abrigaria uma idéia tão traiçoeira pelo bem do Império... para evitar que meu pai continue cometendo trapalhadas.

Um sorriso matreiro se insinuou na cara de doninha.

— É obvio.

— Dois ou três anos — murmurou Shaddam —. Tempo suficiente para me preparar com vistas às grandes responsabilidades da liderança, suponho... enquanto você atende algumas das tarefas mais desagradáveis do Império.

— Não vai beber o conhaque, Shaddam?

Shaddam sustentou o olhar duro daqueles olhos enormes e sentiu um calafrio de medo em sua espinha dorsal. Áquela altura estava muito comprometido para não confiar em Fenring. Inalou uma baforada de ar e bebeu o saboroso licor.

Três dias depois, Fenring deslizou como um fantasma entre os escudos e detectores do palácio e se deteve ante o imperador adormecido, que roncava pesadamente.

Ninguém no universo se importa.

Nenhuma outra pessoa poderia entrar no dormitório do imperador. Mas ele tinha seus métodos: um suborno aqui, um horário manipulado ali, uma concubina indisposta, um porteiro distraído, o chambelán enviado para um recado urgente. Tinha feito isso muitas vezes, preparando o inevitável. Todos estavam acostumados a ver Fenring andando livremente pelo palácio, e sabiam que era melhor não fazer muitas perguntas. Agora, segundo seu cálculo preciso (do qual ate um Mentat se sentiria orgulhoso), Fenring contava com três minutos. Quatro, com sorte.

Tempo suficiente para mudar o curso da história.

Com o mesmo cálculo de tempo exato que demonstrara durante a partida com Shaddam, assim como com seus ensaios com manequins e duas desafortunadas criadas da cozinha, Fenring esperou imóvel, enquanto estudava a respiração da sua vítima como um tigre Laça a ponto de saltar. Em uma mão sustentava uma longa agulha do tamanho de um microcabelo entre dois esbeltos dedos, e na outra segurava um tubo opaco. O velho Elrood estava de costas, na posição correta, como uma múmia, com a pele tensa sobre o crânio.

Guiado por uma mão segura, o tubo opaco se aproximou. Fenring contou, à espera...

Entre duas aspirações de Elrood, Fenring acionou uma alavanca do tubo e orvalhou o rosto do ancião com um potente jorro anestésico.

Não aconteceu nenhuma mudança visível em Elrood, mas Fenring sabia que o amortecedor nervoso tinha um efeito imediato. Em seguida, uma agulha autoguiada, fina como uma fibra, subiu pelo nariz do homem, atravessou suas cavidades nasais e se alojou no lóbulo frontal do cérebro. Fenring não esperou mais de um instante para lançar a bomba de tempo química. Tudo acabou em questão de segundos. Sem provas nem dor. A maquinaria interna, indetectável e provida de múltiplas capas, se pôs em ação. O pequeno catalisador cresceria e multiplicaria os danos, como a primeira célula podre de uma maçã.

Cada vez que o imperador consumisse sua bebida favorita (a cerveja de especiaria), seu cérebro liberaria diminutas dose do veneno catalisador em seu fluxo sanguíneo. Em conseqüência, um componente normal da dieta do ancião se transformaria quimicamente em chaumurky: veneno administrado em uma bebida. Sua mente apodreceria pouco a pouco... uma metamorfose que seria muito agradável de contemplar.

Fenring adorava a sutileza.

Kwisat Haderach: o caminho mais curto.

 

É o nome dado pelas Bene Gesserit ao desconhecido para o que procuraram uma solução genética: um Bene Gesserit varão cujos poderes mentais e orgânicos podem fazer ponte no espaço e no tempo.

Terminologia do Império

 

Era outra manhã gelada. O pequeno sol branco azulado de Laoujin banhava os telhados de terracota e dissipava a chuva.

A reverenda mãe Anirul Sadow Tonkin tinha fechado o pescoço de seu hábito negro para se proteger do vento úmido que soprava do sul e umedecia seu cabelo castanho curto. Caminhou rapidamente sobre os paralelepípedos molhados, em direção à porta arqueada do edifício administrativo das Bene Gesserit.

Chegava tarde e corria, apesar de ser um espetáculo indigno de uma mulher de sua categoria, como se fosse uma colegial ruborizada. A madre superiora e seu conselho seleto estariam esperando na câmara, afim de celebrar uma reunião que não poderia começar sem Anirul. Só ela possuía as projeções de reprodução de toda a Irmandade, assim como o conhecimento total da Outra Memória.

O enorme complexo da Escola Materna de Wallach IX era a base das operações da Bene Gesserit no entroncamento do Império. Aqui se tinha erguido o histórico primeiro santuário da Irmandade, nos dias posteriores ao Jihad Butleriano, quando se fundaram as grandes escolas da mente humana. Alguns dos edifícios localizados no enclave de aprendizagem tinham milhares de anos, e os ecos de fantasmas e lembranças ressoavam em suas paredes. Outros tinham sido construídos em épocas mais recentes, com estilos muito similares aos originais. A aparência bucólica do complexo da Escola Materna obedecia um dos preceitos principais da Irmandade: mínima aparência, máximo conteúdo. O rosto de Anirul eram longo e estreito, o que proporcionava ao seu rosto a aparência de um gamo, mas seus olhos continham a sabedoria de milênios.

Os edifícios de estuque e madeira, uma combinação de estilos arquitetônicos clássicos, contavam com telhas de terra cor Siena cobertas de musgo, assim como com janelas duplamente seladas, desenhadas para aproveitar o máximo do calor e da luz naturais do diminuto sol. As ruas e ruelas, singelas e estreitas, em combinação com a aparência arcaica do centro de ensino, desmentiam as sutis complexidades e o peso da história que se repartiam no interior. Os visitantes altivos não ficavam impressionados, o que nada importava à Irmandade.

Ao longo e ao largo do Império, as Bene Gesserit passavam quase desapercebidas, mas sempre intervinham em assuntos vitais, inclinavam o equilíbrio político em momentos cruciais, observavam, agiam, conseguiam seus objetivos. Era muito melhor que outros as subestimassem. Dessa forma, as irmãs encontravam menos obstáculos.

Apesar das suas deficiências e dificuldades superficiais, Wallach IX continuava a ser o lugar perfeito para desenvolver os músculos psíquicos exigidos pelas reverendas mães. O complexo vigamento de estruturas e trabalhadores do planeta era muito valioso, muito enraizado na história e na tradição para ser substituído. Sim, havia climas mais benignos em planetas mais hospitaleiros, mas qualquer irmã que não fosse capaz de suportar estas condições não tinha lugar entre as dificuldades, os ambientes hostis e, com freqüência, as dolorosas decisões que uma verdadeira Bene Gesserit devia enfrentar.

A reverenda mãe Anirul controlou sua respiração entrecortada e subiu os degraus, escorregadios por causa da chuva, do edifício administrativo e logo se deteve para olhar para a praça. Manteve as costas bem eretas, mas sentia todo o peso da história e da memória, e para uma Bene Gesserit existia pouca diferença entre ambas. As vozes de gerações anteriores despertavam ecos na Outra Memória, uma cacofonia de sabedoria, experiência e opiniões acessíveis a todas as reverendas mães, em especial a Anirul.

Naquele mesmo lugar, a primeira madre superiora, Raquell Berto Anirul (cujo sobrenome Anirul tinha adotado), fizera seus lendários discursos ao embrião da Irmandade. Raquell tinha forjado uma nova escola a partir de um grupo de irmãs desesperadas e dóceis que ainda não tinham se livrado do jugo de séculos de máquinas pensantes.

Teria consciência do que estava iniciando tanto tempo atrás?, perguntou-se Anirul. Tantos desejos e tantos planos que apoiou em uma única e secreta esperança. Em certas ocasiões, a presença da madre superiora Raquell lhe respondia. Mas hoje não.

Graças à capacidade de acessar à multidão de memórias vitais enterradas em sua psique, Anirul sabia qual era o degrau exato que sua ilustre antecessora tinha pisado, e pôde ouvir suas palavras exatas. Um calafrio a obrigou a deter-se. Embora fosse jovem em anos e de pele suave, albergava certa velhice, como todas as reverendas madres vivas, mas nela as vozes falavam mais alto. Era tranqüilizador contar com aquela turba de lembranças que forneciam conselho em tempos de necessidade. Impediam que cometesse enganos fatais.

Mas Anirul seria acusada de distração e atraso imperdoáveis se não fosse à reunião. Algumas diziam que era muito jovem para ser a Madre Kwisatz, mas a Outra Memória lhe tinha revelado mais que a qualquer outra irmã. Compreendia a preciosa busca, que remontava a muitos séculos, do Kwisatz Haderach melhor que as outras reverendas madres, porque as vidas anteriores lhe tinham revelado tudo, ao mesmo tempo em que ocultavam os detalhes a maior parte das Bene Gesserit.

A idéia de um Kwisatz Haderach tinha sido o sonho da Irmandade durante milhares e milhares de anos, concebido em reuniões clandestinas até antes da vitória do Jihad. A Bene Gesserit tinha muitos programas de reprodução dirigidos a selecionar e potencializar diversas características da humanidade, e ninguém os compreendia em sua totalidade, mas as linhas genéticas do programa messiânico constituíam o segredo melhor guardado na história documentada do Império, tão secreto que até as vozes da Outra Memória se negavam a divulgar os detalhes.

Entretanto, tinham revelado a Anirul o projeto em sua totalidade, e a mulher compreendia todas as implicações. Tinha sido escolhida como a Madre Kwisatz desta geração, a guardiã do objetivo mais importante da Bene Gesserit.

Não obstante, o prestígio e o poder não a desculpavam de chegar tarde às reuniões do conselho. Havia muitas madres que ainda a consideravam jovem e impetuosa.

Abriu uma pesada porta, coberta de hieróglifos em uma língua que só as reverendas madres recordavam, e entrou em um vestíbulo onde outras dez irmãs, vestidas com hábitos negros providos de capuz como o seu, aguardavam reunidas. Um murmúrio das conversas ressoava no edifício. “É possível ocultar tesouros no interior de uma concha gasta e carente de pretensões”, rezava um dito popular da Bene Gesserit.

As irmãs se afastaram para abrir caminho a Anirul. Apesar de seu corpo ser alto e ossudo, Anirul conseguia conferir graça a seus movimentos, mas não lhe era fácil. Seguiram-na entre sussurros quando entrou na câmara octogonal, o lugar de reunião das dirigentes da antiga ordem. Seus passos arrancaram rangidos do chão de madeira e a porta se fechou a suas costas.

Bancos de madeira branca de Elacca ladeavam a sala. A madre superiora Harishka estava sentada em um, como uma irmã comum. De ascendência mestiça, que revelava linhagens diversas da humanidade, a madre superiora era velha e encurvada, e seus olhos de cor amêndoa vigiavam sob seu capuz negro.

As irmãs se dirigiram para os lados da sala e tomaram assento nos bancos, assim como a madre superiora. Aos poucos o roçar dos hábitos cessou e ninguém mais falou. O velho edifício rangeu. Fora, caíam silenciosas cortinas de água que cobriam a luz branco azulada do sol.

— Anirul, espero seu relatório — disse por fim a mãe superiora, com um leve tom de irritação devido a seu atraso. Harishka era a superiora de toda a Irmandade, mas Anirul estava investida de toda a autoridade para tomar decisões sobre o projeto —. Você nos prometeu um resumo das projeções genéticas.

Anirul ocupou seu posto, no centro da sala. O teto abobadado se abria como uma flor até o extremo superior das vidraças góticas. Em cada seção de janela, os vitrais apresentavam os emblemas familiares das grandes líderes históricas da ordem.

Anirul respirou fundo para combater o nervosismo e emudecer a multidão de vozes que tagarelavam em seu interior. Muitas irmãs não gostariam do que ia dizer. Embora as vozes de vidas passadas lhe oferecessem consolo e apoio, ia expor sua análise particular da situação, e deveria defendê-la. Ao mesmo tempo, teria que ser sincera. A madre superiora era uma especialista em não deixar escapar o menor engano. A madre superiora anotava tudo, e seus olhos amendoados brilhavam de expectativa e impaciência.

Anirul pigarreou e iniciou seu relatório com um sussurro que chegou a todos os ouvidos da sala mas a nenhum lugar mais. Nada escapava para que fosse captado por aparelhos de escuta ocultos. Todas conheciam seu trabalho, mas lhes proporcionou todos os detalhes, para sublinhar a importância do que ia dizer.

— Milhares de anos de cuidadosa reprodução nos aproximaram mais que nunca do nosso objetivo. Durante noventa gerações, um plano iniciado antes que os guerreiros butlerianos nos conduzissem à libertação das máquinas pensantes, a Irmandade planejou criar nossa própria arma. Nosso próprio super ser, que estenderá pontes no tempo e espaço com sua mente.

Suas palavras ressoaram. As outras Bene Gesserit não se moveram, apesar de parecerem aborrecidas com seu resumo do projeto. Muito bem, darei algo que alimentará suas esperanças.

— Mediante o DNA calculo que estamos a apenas três gerações do êxito. — Seu pulso se acelerou —. Logo teremos nosso Kwisatz Haderach.

— Seja precavida quando falar da mãe de todos os segredos — advertiu a madre superiora, mas sua severidade não conseguiu ocultar sua saturação.

— Sou precavida com todos os aspectos de nosso programa, madre superiora — replicou Anirul em um tom excessivamente altivo. Reprimiu-se, apagou toda expressão de seu rosto, mas as demais já tinham percebido o deslize. Correriam murmúrios sobre sua insolência, sua juventude, sua falta de preparação para um papel tão importante —. Por isso estou tão certa do que devemos fazer. As amostras genéticas foram analisadas, todas as possibilidades projetadas. O caminho está mais livre de obstáculos que nunca.

Muitas irmãs antes que ela tinham trabalhado para alcançar aquele objetivo incrível, e agora seu dever consistia em administrar as decisões finais sobre a reprodução, assim como fiscalizar o nascimento e educação de uma nova menina, que seria com toda probabilidade a avó do Kwisatz Haderach.

— Tenho os nomes dos consortes genéticos finais — anunciou Anirul —. Nosso índice de emparelhamentos indica que contam com as maiores probabilidades de êxito.

Fez uma pausa para saborear a atenção absoluta de todas as irmãs.

Qualquer forasteiro teria pensado que Anirul era apenas mais uma reverenda madre, que não se distinguia em nada das outras irmãs nem possuía nenhum talento especial. As Bene Gesserit eram especialistas em guardar segredos, e a Mãe Kwisatz era um dos mais importantes.

— Necessitamos de uma linhagem em particular de uma Casa antiga. Este produzirá uma filha, nosso equivalente à mãe da Virgem Maria, que logo deverá aceitar o homem que escolhermos. Estes dois serão os avós e sua descendência, também uma filha, será preparada aqui, em Wallach IX. Esta mulher Bene Gesserit será a mãe de nosso Kwisatz Haderach, um menino que nós educaremos, sob nosso completo controle.

Anirul deixou escapar estas últimas palavras com um lento suspiro, e refletiu sobre a enormidade do que havia dito.

Apenas mais algumas décadas, e o assombroso nascimento aconteceria, provavelmente durante a vida de Anirul. Enquanto voltava ao passado por meio dos túneis da Outra Memória e se conscientizava do tecido temporal estendido em preparação desse acontecimento, Anirul compreendeu quão afortunada era por viver nessa época. No interior de sua mente, suas predecessoras formavam uma cauda espectral que observavam e aguardavam ansiosas.

Quando o programa de reprodução desse seus frutos por fim, já não seria preciso que as Bene Gesserit continuassem existindo como uma presença sutil e manipuladora na política do Império. Tudo lhes pertenceria, e o arcaico sistema feudal galáctico cairia.

Embora ninguém falasse, Anirul detectou preocupação nos olhos de suas irmãs, acossadas por uma dúvida que nenhuma se atrevia a expressar.

— E qual é esta linhagem? — perguntou a madre superiora.

Anirul não vacilou e se ergueu ainda mais.

— Temos que obter uma filha do... barão Vladimir Harkonnen.

Leu surpresa nos rostos. Os Harkonnen? Tinham sido incluídos nos programas de reprodução, é obvio, como todas as Casas do Landsraad, mas ninguém tinha imaginado que O Salvador das Bene Gesserit viesse da semente de semelhante homem. O que pressagiava tal linhagem para o Kwisatz Haderach? Se nascesse um super-homem da estirpe Harkonnen, as Bene Gesserit seriam capazes de controlá-lo?

Todas estas perguntas, e muitas outras, circularam entre as irmãs, sem que nenhuma emitisse o menor som, nem sequer um sussurro direto. Anirul compreendeu com clareza.

— Como todas sabem — disse por fim —, o barão Harkonnen é um homem astuto e manipulador. Embora tenhamos certeza de que se encontra informado dos numerosos programas de reprodução das Bene Gesserit, não podemos lhe revelar nosso plano, mas temos que imaginar uma forma que deixe grávida à irmã escolhida sem lhe explicar o motivo.

A mãe superiora franziu seus lábios.

— Os apetites sexuais do barão se concentram exclusivamente em homens e rapazes. Não aceitará uma amante feminina, sobretudo se nós a impusermos.

Anirul assentiu.

— Nossas capacidades de sedução serão postas a prova como nunca. — Dirigiu um olhar desafiante à reverenda madre —. Mas não tenho dúvida que, com todos os recursos das Bene Gesserit, acharemos uma forma de dobrá-lo.

 

Como reação ao estrito tabu butleriano contra as máquinas que realizam funções mentais, certo número de escolas desenvolveram seres humanos aperfeiçoados, com o fim de que assumissem a maioria das tarefas que eram executadas pelos ordenadores. Algumas das principais escolas que nasceram do Jihad incluem as Bene Gesserit, com sua preparação física e mental intensiva, a Corporação Espacial, com sua capacidade presciente de localizar atalhos seguros entre as dobras espaciais, e os Mentat, cujas mentes similares a ordenadores são capazes de proezas de raciocínio extraordinárias.

Ikbhan, Tratado sobre a mente, volume I

 

Enquanto se preparava para ausentar-se de seu lar durante um ano inteiro, Leto tentava aferrar-se a sua confiança em si mesmo. Sabia que era um passo muito importante e compreendia por que seu pai tinha escolhido IX como centro de estudos. Mas sentiria falta de Caladan.

Não era a primeira viagem do jovem herdeiro ducal a um sistema estelar diferente. Leto e seu pai tinham explorado os múltiplos mundos de Gaar e o planeta Pilargo, envolto em névoas perenes, que se considerava a origem dos primitivos caladanos, mas não tinham sido mais que meras excursões, embora sempre emocionantes.

Entretanto, a perspectiva de ausentar-se durante tanto tempo, e sozinho, angustiava-o mais do que esperava, embora não se atrevesse a admitir. Algum dia serei duque.

Vestido com seus melhores ornamentos, Leto aguardava no espaçoporto municipal de Baia, acompanhado do velho duque, a chegada da lançadeira que o transportaria até um Cruzeiro da Corporação. Duas malas antigravitacionais flutuavam perto de seus pés.

Sua mãe tinha sugerido que tivesse criados, caixas cheias de roupas e jogos, e provisões de boa comida caladana, mas Paulus, entre gargalhadas, tinha explicado que quando tinha a idade do Leto tinha sobrevivido meses em um campo de batalha com o escasso conteúdo de sua mochila. Não obstante, insistiu que Leto levasse uma das facas de pesca tradicionais em Caladan em uma bainha presa em suas costas.

Leto concordou com seu pai, como de costume, e decidiu levar pouca bagagem. Além disso, IX não era um planeta ermo, mas uma potência industrial. Não sofreria muitas privações enquanto estudava.

Em público, lady Helena suportava a decisão com elegância e estoicismo. Incorporou-se ao grupo que se despedia de Leto vestida com seus melhores ornamentos e uma capa resplandecente. Embora o futuro duque soubesse que sua mãe sofria por seu bem-estar, lady Atreides não traiu em nenhum momento seus sentimentos.

Leto ajustou as lentes dos prismáticos de seu pai e as enfocou nos vestígios da noite. Um ponto brilhante se movia diante das estrelas. Quando ajustou a teleobjetiva, o ponto cresceu até que Leto reconheceu um Cruzeiro em órbita baixa, rodeado pela mancha tremula de um sistema defensivo protetor.

— Está vendo? — perguntou Paulus, de pé junto ao seu filho.

— Está ali, com todos os escudos ativados ao máximo. Preocupam-se com alguma ação militar? Aqui?

Tendo em conta as graves conseqüências políticas e econômicas, Leto não podia imaginar que alguém se atrevesse a atacar uma nave da Corporação. Embora a Corporação Espacial não mantivesse nenhum poder militar próprio, podia enfraquecer qualquer sistema solar, mediante a anulação dos serviços de transporte. Com seus complexos mecanismos de vigilância, a Corporação era capaz de seguir o rastro e identificar qualquer atacante e enviar mensagens ao imperador, que por sua vez mandaria os Sardaukar imperiais, segundo os acordos de um tratado mútuo.

— Nunca subestime as táticas do desespero, filho — disse Paulus, sem dar mais explicações. Em algumas ocasiões tinha contado ao seu filho historias de falsas acusações contra particulares, situações tramadas no passado para eliminar inimigos do imperador ou da Corporação.

Leto pensou em tudo o que ia abandonar, e o que mais ia sentir falta seria a perspicácia de seu pai, as breves mas sagazes lições que o velho duque lhe dava quando menos esperava.

— O Império funciona além das leis — continuou Paulus —. Uma base igualmente forte é a rede de alianças, favores e propaganda religiosa. As crenças são mais poderosas que os fatos.

Leto contemplou a nave, magnífica e longínqua, e franziu o cenho. Às vezes era difícil diferenciar a verdade da ficção...

Viu que um ponto alaranjado aparecia debaixo da enorme nave. A cor se transformou em uma mancha de luz descendente, que tomou a forma de uma lançadeira, que não demorou para flutuar sobre o campo de aterrissagem da Baía. Quatro gaivotas brancas revoaram ao seu redor, aproveitando as correntes de ar produzidas pela lançadeira em sua descida, e depois se dirigiram para os escarpados.

Um escudo brilhou e se apagou ao redor da lançadeira. A brisa salgada da manhã agitava os estandartes que enfeitavam as sebes do espaçoporto. A lançadeira, uma nave branca em forma de bala, flutuou para a plataforma de embarque, onde Leto e seu pai se mantinham afastados da guarda de honra. Uma multidão de curiosos saudava e gritava do perímetro da pista de aterrissagem. A nave e a plataforma se conectaram, e uma porta se abriu na fuselagem.

Sua mãe avançou para despedir-se e o abraçou sem dizer uma palavra. Tinha ameaçado presenciar sua partida de uma torre do castelo, mas Paulus a convencera a ir ao espaçoporto. A multidão o aclamou e se despediu aos gritos. O duque Paulus e lady Helena seguraram sua mão.

— Lembre-se do que te disse, filho — disse Paulus, em referência aos numerosos conselhos que tinha dado durante os últimos dias —. Aprenda sobre IX, aprenda tudo.

— Mas use a cabeça para discernir o que é verdade — acrescentou sua mãe.

— Sempre — respondeu —. Sentirei falta dos dois. Tentarei fazê-los sentir orgulho de mim.

— Já sentimos, filho.

O ancião retrocedeu para a escolta. Trocou saudações Atreides com o rapaz (a mão direita aberta junto à têmpora), e todos os soldados o imitaram. A seguir Paulus avançou para abraçar Leto.

Momentos depois, a lançadeira pilotada automaticamente se elevou sobre os escarpados negros, o mar bravio e as terras férteis de Caladan. Leto estava sentado em uma poltrona do salão de observação, e olhava por uma janela. Quando a nave alcançou a escuridão anil do espaço, viu a silhueta metálica do Cruzeiro da Corporação, e em sua superfície o sol cintilava.

Quando se aproximaram, um buraco se abriu na parte inferior. Leto respirou fundo, e a imensa nave engoliu a lançadeira. Pensou no que tinha visto em um videolivro sobre Arrakis, a cena de um verme de areia tragando um recolector de especiaria. A metáfora o inquietou.

A lançadeira deslizou com suavidade no mole de acoplamento de uma nave de passageiros Wayku, pendurado em seu ancoradouro dentro do Cruzeiro. Leto subiu a bordo, seguido de suas malas flutuantes, e decidiu seguir as instruções de seu pai. Aprenda de tudo. Sua decidida curiosidade afugentou seus temores, e Leto subiu por uma escada até o salão de passageiros principal, onde encontrou assento em um banco junto a outra janela. Dois mercadores de pedras soo estavam sentados perto, e sua conversa veloz estava salpicada de gíria. O velho Paulus queria que Leto se valesse por si só, e para enriquecer a experiência Leto viajava como um passageiro normal, sem luxos especiais, pompa nem séquito, nem a menor indicação de que era filho de um duque.

Sua mãe teria se horrorizado.

A bordo da nave, vendedores Wayku usando óculos escuros e fones de ouvido passavam de passageiro em passageiro, vendendo pratos prontos e beberagens perfumadas a preços exorbitantes. Leto rechaçou com um gesto um vendedor persistente, embora os caldos e as brochetas de carne assada cheirassem muito bem. Ouviu a música que soava nos fones do homem e viu que sua cabeça, ombros e pés se moviam ao ritmo da música que seu cérebro recebia. Os Wayku trabalhavam e atendiam os clientes, mas conseguiam viver em sua própria cacofonia sensorial. Preferiam o universo interior a qualquer espetáculo exterior.

A nave, que controlava os Wayku para a Corporação, transportava passageiros de um sistema a outro. Os Wayku, uma desafortunada Grande Casa cujos planetas tinham sido destruídos durante a Terceira Guerra do Saque de Carvão, agora eram ciganos e viviam como nômades a bordo dos Cruzeiros da Corporação. Embora antigas condições de rendição proibissem os membros de sua raça a pisar em qualquer planeta do Império, a Corporação lhes concedera asilo, por motivos ignorados. Durante gerações, os Wayku não demonstraram o menor interesse em solicitar ao imperador a anistia ou a revogação daquelas severas restrições.

Leto olhou pelo guichê do salão e viu a área de carga do Cruzeiro iluminada, uma câmara de vazio tão grande que, em comparação, a zona de passageiros parecia um grão de arroz. Viu o teto sobre sua cabeça, mas não as paredes, a quilômetros de distância. Outras naves, grandes e pequenas, estavam estacionadas ali, fragatas, cargueiros, lançadeiras e couraçados. Pilhas de caixas amarradas juntas (contêineres sem piloto desenhados para levar material de uma órbita baixa à superfície de um planeta) estavam penduradas junto às principais escotilhas exteriores.

Normas da Corporação, gravadas em cristais ridulianos fixados na parede principal de cada sala, proibiam aos passageiros abandonar o isolamento de sua zona. Leto vislumbrou pelos guichês adjacentes os passageiros de outra zona, uma mistura de raças que se dirigiam a todos os cantos do Império.

Os garçons Wayku finalizaram seu primeiro turno de serviço, e os passageiros esperaram. A viagem através da dobra espacial não durava mais de uma hora, mas em certas ocasiões os preparativos da partida exigiam dias.

Por fim, sem qualquer anúncio, Leto detectou uma tênue vibração que parecia provir de muito longe. Sentiu-o em todos os músculos do seu corpo.

— Devemos estar viajando — disse um dos mercadores de pedras soo, que não pareciam nada impressionados. A julgar pela rapidez com que desviou a vista e a forma estudada com que ignoraram o fato, Leto pensou que o mercador devia considerá-lo um caipira analfabeto.

Em uma câmara isolada situada sobre a nave, um Navegador da Corporação, submerso em um contêiner de gás saturado de melange, começou a vasculhar o espaço com sua mente. Vislumbrou e teceu um caminho seguro através do tecido do espaço tempo, que transportaria o Cruzeiro e seu conteúdo até distâncias imensas.

Na noite anterior, enquanto jantavam no castelo, a mãe de Leto perguntou se esses Navegadores violavam de algum modo a interação homem máquina proibida pelo Jihad Butleriano. Sabendo que Leto logo estaria em IX e correria o risco de se corromper, formulou com tom inocente a sugestão enquanto mastigava uma parte do peixe grelhado enfeitado com suco de limão. Costumava utilizar um tom mais razoável para lançar suas afirmações provocadoras. O efeito foi o mesmo de lançar um penhasco em um lago de águas serenas.

— Que tolice, Helena! — saltou Paulus enquanto secava a barba com um guardanapo —. Onde estaríamos sem os Navegadores?

— Só porque se acostumou com alguma coisa, isso não a transforma em correta, Paulus. A Bíblia Católica Laranja não diz nada a respeito das conveniências pessoais definirem a moralidade.

Antes que seu pai se metesse numa discussão, Leto interveio.

— Pensei que os Navegadores só viam um caminho, um caminho seguro. De fato, são os geradores Holtzman que controlam a nave. — Decidiu acrescentar um trecho que recordava da Bíblia —: “O senhor supremo do mundo material é a mente humana, e as bestas do campo e as máquinas da cidade devem estar subordinadas a ela eternamente”.

— É obvio, querido — disse sua mãe, e abandonou o tema.

Não notou nenhuma mudança de sensação quando entraram na dobra espacial. Antes que Leto se desse conta, o Cruzeiro chegou a outro sistema solar, Harmonthep.

Uma vez ali, Leto teve que esperar mais cinco horas, enquanto entravam e saíam da área de carga do Cruzeiro naves de carga e lançadeiras, assim como transportes e uma superfragata. Depois, a nave da Corporação se afastou de novo, dobrou o espaço até chegar a um novo sistema solar (desta vez, Kirana Aleph), onde o ciclo se repetiu.

Leto tirou uma sesta nos compartimentos de dormir, e depois saiu para comprar duas brochetas de carne fumegante e uma potente taça de tee. Sua mãe teria gostado que guardas da Casa Atreides o escoltassem, mas Paulus tinha insistido que só havia uma maneira de que seu filho aprendesse a cuidar de si mesmo. Leto tinha um programa e instruções, e tinha jurado ater-se a elas.

Por fim, na terceira parada, uma tripulante Wayku ordenou a Leto que descesse três níveis e subisse em uma lançadeira automática. Tratava-se de uma mulher de aspecto severo, vestida com um uniforme chamativo, e parecia não estar de humor para conversa. Música melódica surgia de seus fones de ouvido.

— Estamos em IX? — perguntou Leto enquanto agarrava suas malas antigravitacionais, elas o seguiram quando se moveu.

— Estamos no sistema do Alkaurops — anunciou a mulher. Não podia ver seus olhos, ocultos atrás óculos escuros —. IX é o nono planeta. Desembarcará aqui. Já lançamos as caixas de carga.

Leto obedeceu e se encaminhou para a lançadeira indicada, embora desejasse ter recebido mais informações. Não sabia muito bem o que devia fazer quando chegasse ao planeta industrializado de alta tecnologia, mas supôs que o conde Vernius o receberia, ou ao menos enviaria alguém em seu lugar.

A lançadeira automática saiu do interior do Cruzeiro para a superfície de um planeta coberto de montanhas, gelo e nuvens. A lançadeira funcionava de acordo com um número limitado de instruções, e a conversa não estava incluída em seu repertório de habilidades. Leto era o único passageiro à bordo, ao que parecia era a única pessoa que viajava para IX. O planeta recebia pouquíssimos visitantes.

Enquanto olhava pela janela, Leto experimentou a horrível sensação de que algo tinha saído errado. A lançadeira Wayku se aproximava de uma elevada mesa de bosques alpinos que cresciam em vales resguardados. Não viu edifícios, nenhuma das grandes estrutura ou fábricas que tinha esperado. Não havia fumaça no ar, nem cidades, nem o menor sinal de civilização.

Aquele não podia ser o mundo industrializado de IX. Olhou em redor, tenso, preparado para defender-se. Teria sido traído? Teria sido atraído até ali para serabandonado?

A lançadeira se deteve sobre uma planície árida, semeada de rochas de granito e pequenos brotos de flores brancas.

— Deve desembarcar aqui, senhor — anunciou o robopiloto com voz sintética.

— Onde estamos? — perguntou Leto —. Meu destino é a capital de IX.

— Devem desembarcar aqui.

— Responda! — Seu pai teria utilizado uma voz ensurdecedora para impedir qualquer resposta, mesmo daquela estúpida máquina —. Isto não pode ser a capital de IX. Olhe ao redor!

— Têm dez segundos para descer da nave, senhor, ou será expulso à força. Os horários da Corporação são muito estritos. O Cruzeiro já está preparado para partir para um novo sistema.

Leto amaldiçoou a si mesmo, deu um empurrão em suas malas e saiu à superfície coberta de penhascos. Ao fim de poucos segundos, a nave branca em forma de bala se elevou e diminuiu até transformar-se em um ponto de luz alaranjada no céu, antes de desaparecer de vista por completo.

O par de malas o seguiu, e um vento limpo revolveu seu cabelo. Leto estava sozinho.

— Olá? — gritou, mas ninguém respondeu.

Estremeceu quando viu as escarpadas montanhas polvilhadas de neve e gelo glacial. Impressionavam, um planeta oceânico em sua maior parte, tinha poucas montanhas que alcançassem aquela altitude. Mas não tinha vindo para ver montanhas.

— Olá! Sou Leto Atreides, de Caladan! — gritou —. Há alguém aqui?

Um funesto presságio angustiou seu peito. Estava longe de seu lar, em um planeta desconhecido, sem meios de averiguar onde se encontrava. IX é isto? O vento era frio e penetrante, mas na planície reinava um detestável silêncio.

Tinha passado a vida escutando o sussurro do oceano, as canções das gaivotas e o agitação dos aldeãos. Ali não via nada, nenhum comitê de boas-vindas, nem sinais de civilização. O planeta parecia virgem e vazio!

Se me abandonaram aqui, alguém poderá me encontrar?

Espessas nuvens ocultavam o céu e um sol longínquo. Estremeceu de novo e se perguntou o que fazer, para onde ir. Se queria ser duque, tinha que aprender a tomar decisões.

Começou a nevar.

 

O pincel da história pintou Abulurd Harkonnen da forma mais desfavorável possível. Julgado pelos patrões de seu meio-irmão mais novo, o barão Vladimir, e de seus filhos, Glossu Rabban e Feyd Rautha Rabban, Abulurd era um tipo de homem muito diferente. Entretanto, devemos analisar as freqüentes descrições de sua fraqueza, incompetência e decisões equivocadas à luz do fracasso fundamental da Casa Harkonnen. Embora exilado em Lankiveil e despojado de todo poder real, Abulurd conseguiu uma vitória que nenhum membro de sua extensa família conseguiu igualar: aprendeu a ser feliz com sua vida.

Enciclopédia do Landsraad das Grandes Casas, edição post Jihad

 

Embora os Harkonnen fossem formidáveis adversários no campo das manipulações, do subterfúgio e da desinformação, as Bene Gesserit eram as mestras indiscutíveis.

Na intenção de dar o próximo passo em seu ambicioso programa de reprodução, um projeto em que tinham trabalhado durante dez gerações antes da queda das máquinas pensantes, a Irmandade precisava encontrar algo que obrigasse ao barão a render-se a sua vontade.

Não demoraram muito em descobrir o ponto fraco da Casa Harkonnen.

A jovem irmã da Bene Gesserit Margot Rashino Zea se apresentou como nova criada no frio e inóspito Lankiveil, e assim se infiltrou no lar de Abulurd Harkonnen, o meio-irmão do barão. A bela Margot, selecionada em pessoa pela Mãe Kwisatz Anirul, tinha sido adestrada nas diversas formas de espiar e obter informação, de relacionar ínfimos dados desconexos para fazer uma idéia mais ampla.

Também conhecia sessenta e três formas de matar um ser humano só com os dedos. As irmãs se esforçavam por manter sua aparência de sisudas intelectuais, mas também tinham seus comandos. A irmã Margot era uma das melhores.

A casa principal de Abulurd Harkonnen se assentava sobre uma abrupta língua de terra que penetrava na água, ladeada pelo estreito fiorde de Tula. Um povoado de pescadores rodeava a mansão de pedra. As granjas se encontravam terra adentro, nos vales estreitos e rochosos, mas quase todos os mantimentos do planeta procediam do mar gélido. A economia do Lankiveil se apoiava na frutífera indústria de peles de baleia.

Abulurd vivia na base das montanhas, cujas cúpulas muita poucas vezes se viam, devido às eternas nuvens de um tom cinza aço e a névoa perpétua. A casa principal e o povoado circundante eram o mais parecido a uma capital que aquele planeta fronteiriço podia oferecer.

Como chegavam poucos forasteiros, Margot tomou precauções para evitar que reparassem nela. Era mais alta que a maioria dos nativos, corpulentos e musculosos, de modo que andava um pouco encurvada. Tingiu de escuro o cabelo cor de mel e o usava hirsuto e desgrenhado, como muitos aldeãos. Aplicou produtos químicos em sua pele suave e pálida, até que adotou um tom mais escuro e aparentou estar curtida pela intempérie. Integrou-se ao ambiente e todo mundo a aceitou sem olhar duas vezes. Para uma mulher treinada pela Irmandade, manter o engano foi fácil.

Margot só era uma mais das numerosas espiões Gesserit enviadas às posses dos Harkonnen, e sua missão consistia em examinar toda a documentação referente a seus negócios. O barão carecia de motivos para suspeitar de uma investigação naquele momento (tivera poucos contatos com a Irmandade), mas se alguma das espiãs era descoberta, o malvado e vicioso homem não duvidaria em torturá-la até receber explicações. Por sorte, pensava Margot, qualquer Bene Gesserit bem treinada podia parar seu coração muito antes de que a dor a obrigasse a revelar segredos.

Por tradição, os Harkonnen eram propensos às manipulações e a ocultação, mas Margot sabia que encontraria a prova acusatória necessária. Embora outras irmãs tinham proposto procurar o mais perto possível do centro de suas operações, Margot tinha chegado à conclusão que Abulurd era o objetivo perfeito. Afinal, o meio-irmão do barão tinha dirigido as operações relacionadas com a especiaria de Arrakis durante sete anos. Tinha que contar com alguma informação. Se escondiam algo, o barão o faria aqui, debaixo do nariz de Abulurd.

Uma vez que as Bene Gesserit descobrissem alguns erros dos Harkonnen e conseguissem provas das indiscrições econômicas do barão, disporiam da arma decisiva para chantageá-lo e levar adiante seu programa de reprodução.

Margot, vestida como qualquer aldeã com peles e lãs tingidas, deslizou no interior da rústica mansão. Era um edifício alto, construído com madeira escura. Em todas as habitações, os lares impregnavam o ar de fumaça resinosa e os globos luminosos, de um tom laranja amarelado, faziam o possível por imitar à luz do sol.

Margot limpava, tirava o pó, ajudava na cozinha... e procurava relatórios econômicos. Por dois dias seguidos, o meio-irmão do barão a saudou com um sorriso cordial. Não notou nada estranho. Era um tipo crédulo, que pelo visto não preocupava com sua segurança, e permitia que aldeãos e forasteiros entrassem nas dependências principais e quartos de convidados de sua mansão, mesmo que se acotovelassem com ele. Seu cabelo era loiro cinzento, comprido até os ombros, e um rosto corado e enrugado que sempre exibia um meio sorriso. Dizia-se que tinha sido o favorito de seu pai Dimitri, que tinha incentivado Abulurd a tornar-se responsável pelas posses dos Harkonnen... mas Abulurd tinha tomado muitas decisões erradas, apoiadas nas pessoas e não nas exigências comerciais. Isso tinha provocado sua queda.

Vestida com as grossas e andrajosas roupas de Lankiveil, Margot mantinha fixos no chão seus olhos verde-acinzentados, ocultos atrás de óculos que os faziam parecer castanhos. Poderia ter se transformado em uma beldade loira, e de fato tinha considerado a possibilidade de seduzir Abulurd e lhe soltar a língua, mas ao final tinha descartado o plano. O homem parecia devoto de corpo e alma a sua rechonchuda esposa, Emmi Rabban, a mãe de Glossu Rabban. Apaixonou-se por ela em Lankiveil fazia muito tempo, contraído matrimônio para decepção de seu pai e viajado com ela de planeta em planeta ao longo de sua carreira caótica. Abulurd parecia insensível a toda sedução feminina que não fosse a de sua mulher,

Por isso, Margot utilizou encantos simples e uma silenciosa inocência para obter acesso a relatórios econômicos escritos, livros poeirentos e salas de inventário. Ninguém a atrapalhou.

Com o tempo, e aproveitando qualquer oportunidade, encontrou o que necessitava. Utilizou técnicas de memorização foto instantânea aprendidas em Wallach IX e examinou cristais ridulianos gravados, absorveu colunas de cifras, manifestos de carga, listas de equipes confiscadas ou postos em serviço, perdas suspeitas e danos produzidos por tormentas.

Em habitações próximas, grupos de mulheres esfolavam e estripavam pescado, trocavam ervas, cortavam raízes e frutos azedos para as perolas fumegantes de ensopado, que Abulurd e sua esposa serviam para toda a casa. Insistiam em comer o mesmo e na mesma mesa que todos os seus trabalhadores. Margot acabou suas indagações pouco antes de a chamada para comer soasse em todos os aposentos da casa...

Mais tarde, em privado, enquanto escutava a tormenta caindo no exterior, revisou os dados em sua mente e estudou os registros de produção de especiaria que Abulurd possuía de Arrakis, assim como a atual correspondência do barão com a CHOAM, além das quantidades de melange roubadas de Arrakis por várias organizações de contrabandistas.

Teria guardado os dados até que as irmãs tivessem a oportunidade de analisá-los, mas Margot queria descobrir a resposta por si só. Fingiu dormir e mergulhou no problema, até cair em profundo transe.

As cifras tinham sido manipuladas com maestria mas, depois que Margot eliminou as máscaras e telas, encontrou a resposta. Uma Bene Gesserit podia vê-la, mas duvidava que os conselheiros econômicos do imperador ou os contadores da CHOAM detectassem a fraude.

A menos que alguém lhes indicasse.

Sua descoberta sugeria que falsificavam os dados da produção de especiaria, muito abaixo da realidade, nos informes enviados ao imperador e a CHOAM. Ou os Harkonnen estavam vendendo melange de maneira ilícita (duvidoso, porque seria fácil seguir a pista), ou estavam acumulando reservas secretas.

Interessante, pensou Margot, ao mesmo tempo em que arqueava as sobrancelhas. Abriu os olhos, aproximou-se de uma janela reforçada e olhou por volta do mar de metal líquido, as ondas selvagens apanhadas no interior dos fiordes, as lúgubres nuvens negras que pendiam sobre os bastiões acidentados de rocha. ao longe, as baleias interpretavam uma estranha e triste canção.

No dia seguinte reservou uma passagem para o próximo Cruzeiro da Corporação. Depois se livrou do disfarce e subiu para um cargueiro cheio de peles de baleia processadas. Duvidou que alguém em Lankiveil tivesse reparado em sua chegada ou partida.

 

Há quatro coisas que não se podem ocultar: o amor, a fumaça, uma coluna de fogo e um homem correndo através do bled.

Sabedoria Fremen

 

Sozinho no deserto silencioso e árido: tal como devia ser. Pardot Kynes descobriu que trabalhava melhor sem outra coisa além de seus pensamentos e muito tempo para pensar. As pessoas distraíam, e muito poucas pessoas possuíam a mesma concentração ou o mesmo estímulo.

Como planetólogo imperial em Arrakis, precisava absorver a imensa paisagem por todos os poros de sua pele. Em outro tempo tinha adotado a mentalidade necessária para sentir o pulso de um planeta. Agora, de pé em uma escarpada formação rochosa negra e vermelha que tinha se elevado da depressão que o rodeava, o homem magro e curtido pela intempérie olhou em ambas as direções. Deserto por toda parte.

O mapa em sua tela chamava a cordilheira de Borda da Montanha Oeste. Seu altímetro anunciava que os picos mais altos superavam muito a altitude de seis mil metros, mas não viu neve, geleiras, gelo, nem sinais de precipitação em parte alguma.

Até mesmo as cúpulas mais acidentadas de Salusa Secundus, que as explosões atômicas tinham arrasado, estavam cobertas de neve. Mas nesta zona o ar era tão desesperadamente seco que a água não sobrevivia em nenhuma forma.

Kynes olhou para o sul, para a parte do deserto conhecida como Planície Funerária. Sem dúvida os geógrafos poderiam encontrar abundantes diferenças para classificar a paisagem em subseções, mas poucos humanos que se aventuraram em suas vísceras tinham retornado. Aquele era o domínio dos vermes. Na realidade, ninguém necessitava de mapas.

Kynes, pensativo, recordou antigas cartas de navegação da Velha Terra, com suas misteriosas zonas inexploradas onde se dizia: “Aqui há monstros.” Sim, pensou, enquanto recordava a caçada do incrível verme de areia que Rabban tinha executado. Aqui há monstros, de verdade.

Sobre o penhasco denteado da Borda da Muralha, tirou os filtros das fossas nasais do traje destilador e esfregou um ponto dolorido do nariz, onde o filtro roçava de maneira constante. Depois afastou a proteção da boca para respirar o tênue ar abrasador. Segundo suas instruções para andar pelo deserto, sabia que não devia expor-se de maneira desnecessária à perda de água, mas Kynes precisava aspirar os aromas e vibrações de Arrakis, tomar o pulso do planeta.

Percebeu o aroma do pó reaquecido, do sal dos minerais, os diversos sabores de areia, lava e basalto. Era um planeta desprovido dos aromas úmidos da vegetação em crescimento ou podre, dos aromas que traíam os ciclos da vida e da morte. Só areia e rocha e mais areia.

Depois de uma inspeção minuciosa, porém, até o deserto mais cruel revelava o bulir da vida, com cantos exóticos e animais e insetos adaptados a habitats hostis. ajoelhou-se para examinar bolsas ocultas nas rochas, diminutos ocos onde se refugiasse a mais ínfima umidade da manhã. Descobriu líquens agarrados à dura superfície de pedra.

Umas poucas bolotas duras indicavam os dejetos de um pequeno roedor, talvez um rato canguru. Os insetos podiam construir seus lares em altitudes elevadas, junto com um pouco de erva batida pelo vento ou ervas solitárias. Nos paredões verticais se refugiavam os morcegos, e só saíam ao ocaso para caçar traças e mosquitos. De vez em quando divisava no céu azul um ponto escuro, que devia ser um falcão ou um ave carniceira. Sobreviver parecia muito difícil para animais tão grandes.

Mas então, como os Fremen sobrevivem?

Tinha visto suas formas poeirentas nas ruas das aldeias, mas a gente do deserto era reservada, dedicava-se a seus assuntos e desaparecia Em seguida. Kynes tinha observado que os aldeãos “civilizados” os tratavam de uma forma diferente, mas não estava claro se isso se devia à admiração ou ao desprezo. “A cultura provém das cidades; a sabedoria, do deserto”, dizia uma antiga máxima Fremen.

Segundo algumas nota antropológicas que tinha encontrado, os Fremen constituíam os restos de um antigo povo nômade, os Zensunni, que tinham sido escravos arrastados de planeta em planeta. depois de terem sido liberados, ou possivelmente de terem escapado de seu cativeiro, tinham tentado durante séculos encontrar um lar, mas foram perseguidos por onde iam. Por fim, instalaram-se em Arrakis.

Kynes tinha ouvido rumores de que povoados Fremen inteiros estavam ocultos nas depressões e contrafortes rochosos da Muralha Escudo. Viviam de uma terra que não proporcionava quase nada... Como conseguiam?

Kynes ainda tinha muito que aprender de Arrakis, e certamente os Fremen poderiam lhe ensinar muitas coisas. Se conseguisse encontrá-los.

Na poeirenta Carthag, os Harkonnen se mostraram reticentes a proporcionar uma equipe ao indesejável planetólogo. O responsável por fornecimentos tinha examinado com o cenho franzido o selo do imperador Padishah que garantia apoio à Kynes, e o autorizara a levar roupa, uma tenda destiladora, um equipamento de sobrevivência, quatro litrojons de água, algumas rações de conservas e um velho ornitóptero individual com abundante fornecimento de combustível. Eram artigos suficientes para uma pessoa como Kynes, que desconhecia os luxos. Não se interessava pelos atavios oficiais nem as comodidades inúteis. Estava muito mais interessado no problema de compreender Arrakis.

Depois de estudar os mapas das tormentas previstas e os ventos reinantes, Kynes se afastou no ornitóptero para nordeste, em direção ao coração do terreno montanhoso rodeado de regiões polares. Como as latitudes equatoriais eram ermos calcinados pelo sol, a maioria dos centros de população se agrupavam ao redor das terras altas.

Enquanto pilotava o sobrecarregado ornitóptero, prestava atenção ao potente zumbido de seus motores e à vibração das asas móveis. No ar e sozinho: essa era a melhor maneira de tomar nota das vistas, de conseguir uma ampla perspectiva das imperfeições e mapas biológicos, as cores da rocha, os canyons.

Através das janelas dianteiras, arranhadas pela areia, viu riachos e gargantas secos, ramais divergentes de leques aluviais de antigos rios. Parecia que a abrasão produzida pela água tinha esculpido as paredes dos canyons, como um fio de linho shiga que tivesse serrado os estratos. Em certa ocasião acreditou ver uma praia incrustada de sal que talvez tinha sido um fundo seco de mar. Entretanto, quando voou para lá não conseguiu encontrá-la.

Kynes ficou convencido de que aquele planeta tivera água em outro tempo. Muita. Qualquer planetólogo perceberia. Mas onde ela tinha ido parar?

A quantidade de gelo retido nas calotas polares era insignificante. Mercadores de água o recolhiam e transportavam até as cidades, onde a vendia por preços exorbitantes. As calotas não possuíam gelo suficiente para justificar oceanos desaparecidos ou rios secos. A água desapareceu, tinha sido levada do planeta... ou estava escondida?

Kynes continuou voando, com os olhos bem abertos. Tomava nota de todos os detalhes interessantes que via. necessitaria de anos para reunir informação suficiente para escrever um tratado bem documentado, mas durante o mês passado ali tinha irradiado dois relatórios sobre seus progressos ao imperador, com o fim de demonstrar que estava cumprindo sua missão. Havia entregue os relatórios a um Correio imperial e a um representante da Corporação, um em Arraken, o outro em Carthag. Mas ignorava se Elrood ou seus conselheiros os tinham lido.

Kynes se perdia quase todo o tempo. Seus mapas eram de uma inexatidão deplorável ou de uma falsidade absoluta, o que o desconcertava. Se Arrakis era a única fonte de melange, o que transformava esse planeta em um dos mais importantes do Império, por que se tinha cartografado tão mau o terreno? Se a Corporação Espacial tivesse instalado alguns satélites de alta resolução, quase todos os problemas se teriam solucionado. Ninguém parecia saber a resposta.

De qualquer forma, perder-se não causava grandes preocupações a um planetólogo. Afinal, era um explorador, o que exigia que vagasse quase sem rumo. Mesmo quando seu ornitóptero começou a vibrar, continuou em frente. O motor de propulsão iônica era forte, e o aparelho funcionava bastante bem, inclusive em buracos e rajadas de ar quente. Contava com combustível suficiente para várias semanas.

Kynes recordava muito bem os anos passados no duro Salusa, tentando compreender a catástrofe que o tinha assolado séculos antes. Tinha visto fotos antigas, soube a beleza que tinha sido sua capital. Mas em seu coração, sempre seria o lugar infernal que era agora.

Algo terrível tinha ocorrido em Arrakis, mas não tinham sobrevivido testemunhas ou gravações do antigo desastre. Não acreditava que tivesse sido uma guerra atômica, embora seria fácil defender essa teoria. As guerras desatadas antes e durante a Jihad Butleriana tinham sido devastadoras, tinham transformado sistemas solares inteiros em escória e pó.

Mas aqui tinha acontecido algo diferente.

Mais dias, mais vagabundagens.

Em uma cordilheira silenciosa e erma situada na metade do planeta, Kynes subiu à cúpula de outro pico rochoso. Tinha pousado seu ornitóptero sobre uma depressão semeada de calhaus, e depois tinha subido o penhasco, carregado com parte do equipamento.

Ao estilo carente de imaginação dos primeiros cartógrafos, aquele curvo braço de rocha que formava uma barreira entre o Erg de Habanya (ao este) e a grande depressão do Ciélago (ao oeste) tinha sido batizado para sempre como Falsa Muralha Oriental. Decidiu que seria um bom lugar para estabelecer um posto de coleta de dados.

Kynes, que sentia o esgotamento nas coxas e ouvia o tinido de seu traje destilador, estava consciente de que suava muito. Mesmo assim, seu traje absorvia e reciclava toda sua umidade corporal, e além disso estava em boa forma. Quando não pôde mais suportar, tomou um gole morno pelo tubo próximo a sua garganta, e depois continuou subindo pela superfície acidentada. “O melhor lugar para conservar água é seu próprio corpo, dizia a sabedoria popular Fremen, segundo o comerciante que lhe tinha vendido o equipamento. Já tinha se acostumado ao traje destilador, uma espécie de segunda pele.

Ao chegar à topo acidentado (1.200 metros de altitude, segundo seu altímetro), deteve-se em frente a um refúgio natural formado por um saliente rochoso. Ali montou sua estação meteorológica portátil. Seus aparelhos analíticos registrariam as velocidades e direções dos ventos, as temperaturas, as pressões barométricas e as flutuações da umidade relativa.

Ao redor do globo, instalaram-se estações de análise muito antes que descobrissem as propriedades da melange. Naquela época Arrakis não era mais que um planeta árido, com poucos recursos e carente de interesse, atraindo apenas colonizadores desesperados. Muitas daquelas estações foram avariadas, abandonadas e mesmo esquecidas.

Kynes duvidava que a informação procedente dessas estações fosse fidedigna. No momento só confiava nos dados que seus instrumentos forneciam. Com a ajuda de um pequeno ventilador, um analisador de ar engoliu uma amostra da atmosfera e deu as leituras de sua composição: 23% de oxigênio, 75,4% de nitrogênio, 0,023% de dióxido de carbono, junto com outros gases em proporção ínfima.

As cifras eram muito peculiares. podia-se respirar sem problemas, é óbvio, e era o que se esperava de um planeta normal com um ecossistema florescente. Entretanto, nesse reino abrasador aquelas pressões parciais suscitavam grandes interrogações. Sem mares, sem tormentas de água, sem massas de plâncton, sem envoltório vegetal, de onde saía o oxigênio? Era absurdo.

As únicas formas grandes de vida nativa que conhecia eram os vermes de areia. Haveria tantos que seu metabolismo influíra de maneira quantificável na composição da atmosfera? Cresciam algumas formas estranhas de plâncton dentro da areia? Sabia-se que os depósitos de melange possuíam um componente orgânico, mas Kynes não tinha nem idéia sobre a origem. Existe alguma relação entre os vorazes vermes e a especiaria?

Arrakis era um mostruário de mistérios ecológicos.

Uma vez terminados seus preparativos, deu meia volta. Então, percebeu com estupor que algumas partes daquele nicho tão pouco natural, situado sobre a cúpula de um pico isolado, tinham sido modeladas.

Agachou-se, assombrado, e percorreu com os dedos entalhes ásperos. Degraus esculpidos na rocha! Mãos humanas os tinham feito pouco tempo antes, para facilitar o acesso a esse lugar. Um posto avançado? Um mirante? Um posto de observação Fremen?

Um calafrio o percorreu, e o traje destilador absorveu com avidez um fio de suor. Ao mesmo tempo sentiu uma onda de emoção, porque os Fremen podiam transformarem-se em aliados, um povo endurecido que compartilhasse suas intenções, a necessidade de compreender e melhorar...

Quando Kynes se voltou, sentiu-se desprotegido.

— Olá! — gritou, mas só o silêncio do deserto respondeu.

Como tudo isto se relaciona?, perguntou-se. E que sabem os Fremen disso?

 

Quem pode saber se IX foi muito longe. Ocultam suas instalações, mantêm na escravidão seus operários e afirmam seu direito ao segredo. Ante tais circunstâncias, como não vão se sentir tentados a violar as restrições da Jihad Butleriana?

Conde ILBAN RICHESE

Terceira apelação ao Landsraad

 

Utilize seus recursos e seu engenho, costumava dizer o velho duque. Agora, só e tremuli, Leto analisou a situação.

Contemplou sua sombria e inesperada solidão sobre a superfície erma de IX, ou de onde foase que estava. Tinha sido abandonado por acidente ou por traição? Qual era a pior possibilidade? A Corporação teria os dados sobre o planeta em que o tinham desembarcado sem contemplações. Seu pai e as tropas da Casa Atreides mandariam uma expedição para encontrá-li quando não aparecesse em seu lugar do destino, mas quanto demorariam? Quanto tempo poderia sobreviver aqui? Se Vernius era o responsável pela traição, informaria ao conde de seu desaparecimento?

Tentou ser otimista, mas sabia que passaria muito tempo antes que a ajuda chegasse. Leto não tinha comida nem roupas quentes, nem sequer um refúgio portátil, teria que solucionar o problema por si só.

— Olá! — gritou de novo. A imensa extensão deserta engoliu suas palavras sem se preocupar em lhe devolver algum eco. Considerou a possibilidade de explorar as cercanias em busca de algum ponto característico da paisagem ou uma aldeia, mas decidiu ficar onde estava. A seguir passou em revista mentalmente às posses que levava na bagagem, e tentou pensar em algo que servisse para enviar uma mensagem.

De repente, ouviu um rangido a um lado, entre um arbusto verde azulado de plantas espinhosas que se esforçavam por sobreviver na tundra. Sobressaltado, deu um salto para trás e depois examinou o arbusto. Assassinos? Um bando que pretendia capturá-lo? O resgate por um herdeiro ducal poderia reportar uma montanha de Solaris, além da ira de Paulus Atreides.

Puxou a faca curva da capa que levava às costas e se preparou para defender-se. Seu coração palpitava enquanto tentava preparar-se para o que fosse. Um Atreides não tinha escrúpulos na hora de derramar sangue necessário.

Os ramos e folhas se abriram para revelar uma plataforma de plaz redonda sobre a terra. Com um zumbido de maquinaria, um tubo elevador transparente emergiu do subsolo, incongruente por completo naquela paisagem acidentada.

Dentro do tubo transparente havia um jovem corpulento, com um sorriso de boas-vindas no rosto. Seu cabelo era loiro e rebelde, e parecia desgrenhado apesar de estar penteado com supremo cuidado. Usava largas calças de estilo militar e uma camisa de camuflagem que mudava de cor segundo o ambiente. Seu rosto, pálido e franco, parecia cheio devido à gordura infantil que já deveria ter desaparecido. Uma pequena bolsa pendurava de seu ombro esquerdo, similar a que tinha na mão. Aparentava a idade de Leto.

O elevador transparente parou e uma porta curva se abriu. Um jorro de ar quente acariciou o rosto e as mãos de Leto. Agachou-se, preparado para atacar com sua faca, embora fosse difícil que aquele jovem de aspecto inócuo fosse um assassino.

— Leto Atreides, não é? — perguntou o desconhecido. Falava em galach, o idioma comum do Império —. Que tal começamos com uma excursão?

Os olhos cinzentos de Leto se entreabriram e cravaram na hélice ixiana púrpura e cobre que adornava o pescoço da camisa do moço. Leto tentou dissimular seu alívio e procurou conservar uma aparência compatível com sua condição. Assentiu e baixou a faca, que o desconhecido tinha fingido não reparar.

— Sou Rhombur Vernius. pensei que você gostaria de esticar um pouco as pernas antes de descer. Sei que está acostumado com a natureza, embora eu prefira o subsolo. Possivelmente depois de passar um tempo conosco se sentirá em casa em nossas cidades subterrâneas. IX é muito bonito.

Ergueu a vista para as nuvens e o temporal de neve e chuva.

— Droga, por que está chovendo? Infernos carmesins, odeio os climas imprevisíveis! — Rhombur meneou a cabeça —. Disse ao controle de tempo que preparasse um dia quente e ensolarado. Peço-lhe desculpas, príncipe Leto, mas isto é muito triste para mim. O que acha de descermos ao Grand Palais?

Rhombur deixou cair as duas bolsas no elevador e deu um empurrão nas malas de Leto.

— Me alegro em conhecê-lo finalmente. Meu pai sempre fala dos Atreides. Estudaremos juntos durante um tempo, certamente árvores genealógicas e política do Landsraad. Sou o octogésimo sétimo na linha sucessória ao Trono do Leão Dourado, mas acredito que sua posição é ainda superior a minha.

O Trono do Leão Dourado. A linha de sucessão das Casas se elaborou segundo um complicado sistema combinado entre a CHOAM e o Landsraad. A posicção de Leto era bastante mais elevada que a do príncipe ixiano. Por parte de mãe, era o bisneto do Elrood IX, descendente de uma das três filhas que tivera com sua segunda esposa, Yvette, mas a diferença era insignificante. O imperador tinha muitos bisnetos. Nenhum deles chegaria a ser imperador. Ser um duque da Casa Atreides já era honra suficiente, pensava Leto.

Os dois jovens trocaram o semi-aperto de mãos do Império, e entrelaçaram os dedos. O príncipe ixiano usava um anel de jóias resplandecentes como o fogo na mão direita, e Leto não sentiu calos em sua palma.

— Pensei que estava em lugar errado — disse Leto, e permitiu que sua inquietação e confusão transparecessem por fim —. Pensei que tinha sido abandonado em uma rocha desabitada. IX é isto realmente? O planeta máquina?

Apontou para os espetaculares picos, a neve e as rochas, os bosques sombrios.

Leto observou a hesitação de Rhombur, e recordou os comentários de seu pai a respeito da obsessão ixiana pela segurança.

— Oh, er, você já verá. Procuramos ser discretos. O príncipe indicou que entrasse no tubo, e a porta de plaz se fechou. Desceram a uma velocidade alarmante pelo que parecia um quilômetro de rocha, mas Rhombur continuou falando como se isso fosse coisa normal.

— Devido a natureza de nossas operações técnicas, lx possui incontáveis segredos, e muitos inimigos gostariam de nos destruir. Tentamos manter ocultos de olhos curiosos nossas atividades e recursos. Os dois jovens atravessaram um favo luminoso de material artificial e entraram em uma imensa extensão de ar que revelou um enorme mundo subterrâneo, um país de conto de fadas escavado na casca planetária.

A sua frente surgiram gigantescas coroas de graciosas vigas mestras, conectadas com colunas tão altas que não se divisava a base. A cápsula de paredes de plaz continuou descendo, flutuando sobre um mecanismo antigravitacional ixiano. O chão transparente da cápsula provocava em Leto a inquietante sensação de cair pelo ar. Aferrou-se ao corrimão lateral, enquanto suas malas flutuantes evoluíam a seu redor.

Olhou para cima e viu o que parecia o ciclo nublado ixiano e o sol branco-azulado que se filtrava através das paredes. Projetores ocultos na superfície do planeta transmitiam imagens reais a telas de alta resolução que cobriam o teto de rocha.

Em comparação com o enorme mundo subterrâneo, até o interior de um Cruzeiro da Corporação parecia minúsculo. Leto viu edifícios geométricos que pendiam do teto da abóbada de pedra, como estalactites de cristal habitadas, conectadas entre si por passarelas e tubos. Veículos aéreos em forma de lágrima sulcavam silenciosamente aquele reino subterrâneo. Planadores ocupados por passageiros passavam a grande velocidade, como manchas de cores brilhantes. No chão da caverna avistou um lago e rios, protegidos dos olhos do exterior.

— Vernii — disse Rhombur —. Nossa capital.

Enquanto a cápsula deslizava entre os edifícios suspensos, Leto viu veículos terrestres, ônibus e um sistema de metro aéreo. Teve a sensação de achar-se no interior de um floco de neve mágico.

— Seus edifícios são de uma beleza incrível — disse enquanto absorvia todos os detalhes —. Sempre tinha imaginado IX como um ruidoso mundo industrial.

— Nós, er, fomentamos essa impressão aos forasteiros. Temos descoberto materiais estruturais que não só são agradáveis de um ponto de vista estético, mas também muito leves e fortes. Ao viver no subsolo, estamos protegidos e ocultos.

— O que permite conservar a superfície do planeta em condições impecáveis — disse Leto. A expressão do príncipe de IX deu a entender que nunca tinha pensado nisso.

— Os nobres e os administradores vivem nos edifícios superiores — continuou Rhombur —. Operários, capatazes e as equipes de subóides vivem abaixo, em seus bairros. Todo mundo trabalha ombro a ombro pela prosperidade de IX.

— Há mais níveis abaixo desta cidade? Há gente que vive a maior profundidade?

— Bem, na realidade não se trata de gente. São subóides — reforçou Rhombur com um gesto desdenhoso —. Nós os criamos para realizarem trabalhos penosos sem se queixar. Um grande triunfo da engenharia genética. Não sei o que faríamos sem eles.

Seu compartimento flutuante se desviou de uma linha de metro aéreo e continuou sua descida. Quando se aproximaram do palácio mais espetacular, Leto disse:

— Suponho que seus investigadores me aguardam. — Ergueu o queixo e se preparou para a prova —. Nunca fui submetido a um escaneamento mental.

Rhombur riu.

— Posso conseguir que o submetam a um sondagem mental, se deseja experimentar... — O príncipe ixiano o estudou com atenção —. Leto, Leto, se não confiássemos em você nunca teria obtive permissão para vir a IX. A segurança, er, mudou muito desde os tempos de seu pai. Não acredite nessas sinistras histórias que nós mesmos difundimos. Servem para assustar os curiosos.

A cápsula pousou por fim sobre uma ampla galeria construída na base de telhas entrelaçadas, e Leto notou que um aparelho de sujeição surgia por baixo. A câmara começou a mover-se lateralmente em direção a um edifício de plaz blindado.

Leto procurou dissimular seu alívio.

— De acordo. Me submeterei a seu julgamento.

— E eu farei o mesmo quando for a seu planeta. Água, peixes e céus imensos. Caladan parece... er, maravilhoso. — Seu tom insinuava justamente o contrário.

O pessoal da casa vestido com librés negras e brancas surgiu do edifício de plaz blindado. Os homens e mulheres uniformizados formaram uma fila de cada lado do caminho do tubo e ficaram firmes.

— Este é o Grand Palais — explicou Rhombur —, onde nosso pessoal atenderá todos os seus desejos. Como é nosso único visitante neste momento, eles vão mimá-lo como nunca.

— Toda esta gente só para servir a mim?

Leto recordou os tempos em que tivera que descamar e fatiar os peixes que pegava, se quisesse comer.

— Você é um dignitário importante, Leto. O filho de um duque, amigo de nossa família, um aliado no Landsraad. Esperava menos?

— Na verdade, sou de uma Casa que não possui grandes riquezas, de um planeta cujo único encanto vem dos pescadores, os fazendeiros que cultivam os melões paradan flutuantes e os cultivadores de arroz pundi.

Rhombur riu.

— Você é muito modesto!

Os jovens, seguidos das malas flutuantes, subiram três amplos e elegantes degraus e entraram no Grand Palais.

Leto passeou a vista pelo vestíbulo principal e contemplou as aranhas de cristal ixiano, o mais formoso de todo o Império. Taças e vasos de cristal adornavam mesas de marmolplaz, e a cada lado de uma mesa de recepção de blaquita havia estátuas de lapisjade em tamanho natural do conde Dominic Vernius e sua esposa, lady Shando Vernius. Leto reconheceu o casal real pelas trifotos que tinha visto.

O pessoal uniformizado entrou no edifício e se colocou à espera de receber instruções. Ao fundo do vestíbulo se abriram portas duplas e Dominic Vernius, calvo e de costas largas, aproximou-se com o aspecto de um djinn saído de uma garrafa. Usava um manto sem mangas prateado e dourado, com uma borda branca no pescoço. Uma hélice ixiana púrpura e cobre adornava seu peitilho.

— Ah, então este é nosso jovem visitante! — trovejou Dominic de bom humor.

Rugas se desenharam ao redor de seus olhos castanhos. Suas feições eram muito parecidas com as de seu filho, mas em seu caso a gordura tinha formado dobras e rugas coradas, e seu bigode, escuro e cheio, emoldurava seus dentes. O conde Dominic era vários centímetros mais alto que seu filho. As feições do conde não eram estreitas e pronunciadas como as das linhagens Atreides e Corrino, pois procedia de uma linhagem já antiga nos tempos da Batalha de Corrin.

Shando, ex-concubina do imperador e agora esposa de Dominic, caminhava a seu lado, vestida com um traje de aspecto oficial. Suas feições belamente cinzeladas, seu nariz fino mas delicado e sua pele lhe concediam uma beleza majestosa, que se teria revelado até vestida com trapos. Parecia frágil e delicada a primeira vista, mas seu porte denotava a energia de seu caráter.

Ao seu lado, sua filha Kailea parecia querer superar sua mãe, com um vestido lavanda de brocado que ressaltava seu cabelo acobreado escuro. Kailea parecia mais jovem que Leto, mas caminhava com graça e concentração estudadas, como se temesse perder o papel de um momento para outro. Tinha sobrancelhas finas e arqueadas, assombrosos olhos cor de esmeralda e uma boca generosa e felina, sobre um queixo estreito. Kailea executou uma reverência perfeita e extravagante com um leve sorriso.

Leto respondeu a cada apresentação, procurando não olhar para a filha de Vernius. Repetiu os gestos que sua mãe lhe tinha inculcado, abriu uma mala e extraiu uma caixa incrustada de jóias, um dos tesouros da família Atreides. Sustentou-o ante si, erguido em toda sua estatura.

— Para o senhor, lorde Vernius. Contém objetos únicos de nosso planeta. Também trago um presente para lady Vernius.

— Excelente, excelente! — Como se o cerimonial o impacientasse, Dominic aceitou o presente e indicou a um criado que o recolhesse —. Desfrutarei do seu conteúdo esta noite, quando houver mais tempo. — esfregou as mãos. Aparentava que se sentiria melhor em uma ferraria ou em um campo de batalha que em um luxuoso palácio —. fez boa viagem, Leto?

— Sem incidentes, senhor.

— Ah, alegra-me sabê-lo.

Dominic riu.

Leto sorriu, inseguro de como causar boa impressão. Pigarreou.

— Sim, senhor, mas pensei que tinham me abandonado quando a Corporação me deixou em seu planeta e só vi uma extensão erma.

— Ah! Pedi a seu pai que não lhe contasse sobre nossa pequena brincadeira. Fiz o mesmo com ele quando nos visitou pela primeira vez. Ele acreditou estar sozinho e perdido. — Dominic transbordava de afabilidade —. Parece bastante descansado, jovenzinho. Na sua idade, o lag espacial não afeta muito. Quando saiu de Caladan, faz dois dias? É assombrosa a rapidez com que os Cruzeiros percorrem enormes distancia. Incrível. Estamos melhorando seu desenho para que cada nave possa transportar mas carga útil. — Sua voz ressonante conseguia que os lucros parecessem mais grandiosos —. Nosso segundo modelo será terminado na última hora de hoje, outro triunfo para nós. Vamos lhe mostrar todas as modificações que fizemos, para que façam parte de sua aprendizagem.

Leto sorriu, mas já sentia a cabeça a ponto de explodir. Ignorava quanta informação mais poderia assimilar. Quando o ano terminasse, seria uma pessoa totalmente diferente.

 

Há armas que não podem ser sustentadas nas mãos.

Só podem ser empunhadas na mente.

Doutrina Bene Gesserit

 

A lançadeira das Bene Gesserit desceu pelo lado escuro de Giedi Prime e aterrissou no espaçoporto bem guardado de Harko City, pouco antes de meia-noite, hora local.

O barão, preocupado com o que as malditas bruxas queriam dele, agora que tinha retornado do poço infernal que era Arrakis, saiu para um balcão elevado da fortaleza Harkonnen para ver as luzes da nave que chegava.

Ao redor, as torres monolíticas de plaz negro e aço projetavam luzes frias para a escuridão manchada de fumaça. Ruas e passarelas estavam cobertas por toldos e cercas providas de filtros para proteger os pedestres dos refugos industriais e a chuva ácida. Com um pouco mais de imaginação e atenção aos detalhes durante sua construção, Harko City poderia ter sido impressionante. Em vez disso, parecia velha e esgotada.

— Tenho os dados para você, meu barão — disse uma penetrante voz nasal atrás dele, tão próxima como um assassino.

O barão, virou-se, sobressaltado, ao tempo em que flexionava seus braços musculosos. A forma magra de seu Mentat pessoal, Piter De Vries, erguia-se na porta do balcão.

— Nunca volte a fazer isto, Piter. Você desliza como um verme. — A comparação trouxe para sua mente a expedição de caça pelo deserto de seu sobrinho Rabban, assim como seus nefastos resultados —. Os Harkonnen matam vermes, já sabe.

— Ouvi dizer — replicou De Vries —. Mas às vezes mover-se em sigilo é o melhor método de obter informação.

Um sorriso irônico se desenhou em seus lábios, manchados de vermelho devido ao suco de safo que os Mentat bebiam para aumentar suas capacidades. O barão, sempre em busca de prazeres físicos e armado da curiosidade suficiente, tinha provado o safo, mas o considerou uma substância vil e amarga.

— É uma reverenda mãe e seu séquito — disse De Vries, ao mesmo tempo em que apontava para as luzes da lançadeira —. Quinze irmãs e seus acompanhantes, junto com quatro guardas homens. Não detectamos armas.

De Vries tinha sido treinado como Mentat pelos Bene Tleilax, feiticeiros genéticos que produziam alguns dos melhores computadores humanos do Império. Mas o barão não queria uma simples máquina de processamento de dados com cérebro humano. Queria um ser humano calculador e inteligente, alguém que não só compreendesse e computasse as conseqüências dos planos dos Harkonnen, mas também utilizasse sua imaginação corrupta para ajudar o barão a obter seus propósitos. Piter De Vries era uma criação especial, um dos infames Mentats pervertidos dos Tleilaxu.

— Mas o que querem? — murmurou o barão, enquanto contemplava a lançadeira, que acabava de aterrissar —. Essas bruxas parecem muito confiantes, vindo aqui. — Seus soldados uniformizados de azul irromperam como uma manada de lobos antes que as passageiras saíssem da nave —. Poderíamos as desintegrá-las em um instante com nossas defesas mais elementares.

— As Bene Gesserit não precisam de armas, meu senhor barão. Alguns dizem que elas mesmas são uma arma. — De Vries levantou um dedo magro —. Nunca é prudente provocar a ira da Irmandade.

— Já sei, idiota! Bem, como se chama essa reverenda mãe e o que quer?

— Gaius Helen Mohiam. Quanto a seus desejos... a Irmandade se negou a revelar.

— Malditas sejam e seus segredos — grunhiu o barão. Avançou a grandes pernadas para o corredor para ir ao encontro da lançadeira.

Piter De Vries sorriu enquanto o seguia.

— Quando uma Bene Gesserit fala, costuma empregar adivinhações e insinuações, mas suas palavras também contêm muita verdade. É preciso desentranhá-la.

O barão respondeu com outro grunhido e continuou andando. Piter o seguiu.

Enquanto caminhava, o Mentat repassou seus conhecimentos sobre as bruxas de hábito negro. As Bene Gesserit se dedicavam a numerosos projetos de reprodução, como se cultivassem humanidade para seus propósitos desconhecidos. Também possuíam um dos maiores banco de dados de informação do Império, e utilizavam suas bibliotecas para estudar os movimentos dos povos, assim como os efeitos das ações de uma pessoa na política interplanetária.

Como Mentat, De Vries adoraria ter acesso àquele armazém de conhecimentos. Com tal tesouro de dados poderia realizar cálculos e projeções essenciais, talvez projeções suficientes para acabar com a Irmandade.

Mas as Bene Gesserit não permitiam o acesso a estranhos, nem sequer ao imperador. Portanto, um Mentat não tinha muito em que apoiar-se para efetuar seus cálculos. De Vries só podia tentar adivinhar as intenções das bruxas recém chegadas.

As Bene Gesserit se dedicavam a manipular em segredo políticas e sociedades, para que pouca gente pudesse rastrear as áreas exatas de influência. Entretanto, a reverenda mãe Gaius Helen Mohiam sabia planejar e executar uma entrada espetacular. Com o hábito negro batendo como asas, flanqueada por dois guardas masculinos de imaculadamente uniformizados, e seguida por seu acompanhante, entrou na sala de recepções da fortaleza Harkonnen.

O barão, sentado em frente a um reluzente escritório de plaz negro, esperava para recebê-la, acompanhado de seu Mentat pervertido, que se erguia a um lado com alguns guardas pessoais escolhidos para a ocasião. Afim de exibir seu desprezo e falta de interesse pelas visitantes, o barão usava um manto informal e desalinhado. Não tinha preparado uma recepção para elas, nem cerimônia alguma.

Muito bem, pensou Mohiam, talvez seja melhor que transformemos este encontro em um assunto privado.

Identificou-se com voz sonora e firme e avançou um passo para ele, deixando seu séquito para trás. Tinha um rosto comum que denotava mais energia que delicadeza. Nem feia nem atraente. De perfil, seu nariz parecia muito grande, embora de frente não se notava.

— Barão Vladimir Harkonnen, minha Irmandade tem assuntos a tratar com o senhor.

— Não me interessa falar de nenhum assunto com bruxas — replicou o barão, e apoiou seu queixo sobre os dedos. Seus olhos negros como aranhas examinaram o séquito e se detiveram especialmente no aspecto físico dos guardas. Os dedos da sua outra mão se agitavam nervosos sobre sua coxa.

— Mesmo assim, o senhor ouvirá o que tenho a dizer. — A voz da mulher era de ferro.

Ao ver que o barão se enfurecia, Piter De Vries se adiantou.

— Devo recordar-lhe, reverenda mãe, onde estão? Ninguém as convidou a vir aqui.

— E talvez eu deveria recordar-lhes — replicou a mulher ao Mentat — que somos capazes de efetuar detalhadas análises de todas as atividades relacionadas com a produção de especiaria em Arrakis... O equipamento usado, a mão de obra empregada, todo isso comparado com a produção de especiaria informada a CHOAM e calculada com nossas projeções precisas. Qualquer anomalia deveria ser muito... reveladora. — Arqueou as sobrancelhas —. Já fizemos um estudo preliminar apoiado em informes de primeira mão de nossas... — sorriu — fontes.

— Quer dizer espiões — atravessou o barão, indignado.

A mulher percebeu que ele se arrependia de suas palavras tão logo acabou de pronunciá-las porque confirmavam sua culpa.

O barão se levantou, flexionou seus braços musculosos, mas antes que pudesse replicar às insinuações de Mohiam, De Vries interveio.

— Talvez seja melhor que a reverenda mãe e o barão se reunissem a sós. Não há necessidade de transformar uma simples conversa em um espetáculo... e em algo suscetível de ser documentado.

— Estou de acordo — se apressou a aceitar Mohiam, enquanto dedicava ao Mentat pervertido um olhar de aprovação —. Nos retiramos para seus aposentos, barão?

O barão fez uma careta com seus lábios grossos.

— Por que deveria levar uma Bene Gesserit para meus aposentos privados?

— Porque não têm alternativa — replicou ela em voz baixa e inflexível.

O barão se assustou com tamanha audácia, mas depois lançou uma gargalhada estentórea.

— Por que não? Não há nada menos ostentoso que isso.

De Vries os observava com os olhos entreabertos. Estava reconsiderando sua sugestão, repassando dados e calculando probabilidades. A bruxa tinha aceito a idéia com excessiva rapidez. Queria estar a sós com o barão. Por que? Por que devia fazê-lo em privado?

— Permita eu que os acompanhe, meu barão — disse De Vries, e se encaminhou para a porta que os conduziria por corredores e tubos elevadores até a suíte privada do barão.

— Trata-se de um assunto entre o barão e eu — disse Mohiam.

O Harkonnen se agitou.

— Não dê ordens a minha gente, bruxa — disse com ar ameaçador.

— Quais são suas instruções, então? — perguntou a mulher com insolência.

Um momento de hesitação.

— Concedo-lhe uma audiência privada.

Mohiam inclinou apenas a cabeça, e depois olhou para seus acompanhantes e guardas. De Vries captou um veloz movimento de seus dedos, uma espécie de sinal.

A mulher cravou seus olhos de ave nos do Mentat, e De Vries ficou imóvel quando falou.

— Há uma coisa que pode fazer, Mentat. Pode ser tão amável e procurar que meus acompanhantes sejam bem tratados e alimentados, porque não temos tempo para ninharias. Temos que retornar quanto antes a Wallach IX.

— Faça-o — ordenou Harkonnen.

Com um olhar de despedida a De Vries, como se fosse o serviçal mais baixo do Império, a mulher seguiu o barão para fora do salão...

Quando entrou em seus aposentos, o barão se alegrou ao ver que tinha deixado sua roupa suja espalhada. Alguns móveis estavam fora de seu lugar, algumas manchas vermelhas na parede não tinham sido esfregadas com suficiente entusiasmo. Queria sublinhar que a bruxa não merecia um tratamento educado, nenhuma recepção cortês.

Cruzou os braços, ergueu os ombros e seu queixo.

— Muito bem, reverenda mãe, me diga o que deseja. Não tenho tempo para mais jogos de palavras.

Mohiam se permitiu um leve sorriso.

— Jogos de palavras? — Sabia que a Casa Harkonnen conhecia os matizes da política; talvez não o bondoso Abulurd, mas sim o barão e seus conselheiros —. Muito bem, barão. A Irmandade descobriu um uso para sua linha genética.

Fez uma pausa, e desfrutou da expressão assombrada que apareceu no rosto do barão. Antes que ele pudesse balbuciar uma resposta, Mohiam explicou fragmentos cuidadosamente selecionados do guia. Mohiam ignorava os detalhes e os motivos. Só sabia obedecer.

— Sem dúvida sabe que durante muitos anos nossa Irmandade incorporou linhagens importantes. Nossas irmãs representam todo o espectro da humanidade nobre, albergamos os traços desejáveis de quase todas as Grandes e Menores Casa do Landsraad. Contamos até com algumas representantes, erradicadas há muitas gerações, da Casa Harkonnen.

— Querem reforçar sua parte Harkonnen? — perguntou o barão com cautela —. É isso?

— O senhor compreendeu bem. Temos que conceber um filho seu, Vladimir Harkonnen. Melhor dizendo, uma filha.

O barão retrocedeu alguns passos, estupefato, e depois soltou uma gargalhada.

— Terão que procurar em outro lugar. Não tenho filhos nem é provável que os tenha. O processo de reprodução, como necessita de mulheres, me repele.

Mohiam, que conhecia muito bem as preferências do barão, não disse nada. Ao contrário de muitos nobres, não tinha descendência, nem sequer filhos ilegítimos.

— Não obstante, queremos uma filha Harkonnen, barão. Não um herdeiro, nem sequer um pretendente, de modo que não deve se preocupar com... ambições dinásticas. Estudamos as linhagens com atenção e a mescla desejável é muito específica. Deve me deixar grávida.

As sobrancelhas do barão se arquearam ainda mais.

— Por que iria fazer isso, por todas as luas do Império?

Olhou-a de cima abaixo, despindo-a com os olhos. Mohiam era uma mulher de aspecto normal, de rosto larga e cabelo castanho murcho, sem traços chamativos. Era maior que ele, próxima ao final de seus anos férteis.

— Em especial com você — acrescentou.

— As Bene Gesserit determinam estas coisas mediante projeções genéticas, não pela atração física.

— Bem, pois me nego. — O barão deu meia volta e cruzou os braços —. Saia. Leve seus parceiros e saia de Giedi Prime.

Mohiam olhou-o por alguns momentos, ao mesmo tempo em que assimilava os detalhes da estadia. Como utilizava técnicas analíticas Bene Gesserit, aprendeu muitas coisas sobre o barão e sua personalidade a partir de como mantinha sua fedorenta toca, um espaço que não estava cuidado nem decorado para visitantes oficiais. Sem saber, revelava muito sobre sua personalidade.

— Como desejar, barão — disse —. A próxima parada de minha lançadeira será Kaitain, onde já temos uma entrevista marcada com o imperador. Minha biblioteca pessoal na nave contém cópias de todos os registros que demonstram suas atividades de armazenamento de especiaria em Arrakis, e documentação sobre seus métodos de alterar a produção para ocultar seus armazéns particulares dos olhos da CHOAM e da Casa Corrino. Nossa análise preliminar contêm informação suficiente para iniciar uma auditoria global sobre suas atividades e o depor como diretor provisório da CHOAM.

O barão olhou-a fixamente. Nenhum dos dois se moveu, mas leu em seus olhos que dizia a verdade. Sem dúvida aquelas malditas bruxas tinham utilizado seus diabólicos métodos intuitivos para determinar com exatidão o que tinha feito, como tinha enganado Elrood IX. Também sabia que Mohiam não hesitaria em pôr em prática sua ameaça.

Cópias de todos os registros... De nada lhe serviria destruir sua nave. A Irmandade infernal guardaria outras cópias em outra parte.

Era muito provável que a Bene Gesserit possuísse material para chantagear também à Casa Corrino, talvez dados indiscretos sobre negócios importantes mas sub-reptícios da Corporação Espacial e a poderosa CHOAM. Dados com os quais poderia forçar pactos. A Irmandade era especialista em descobrir as fraquezas de seus inimigos em potência.

O barão se enfureceu, mas não podia fazer nada para evitar a chantagem. Aquela bruxa podia destruí-lo com apenas uma palavra, e obrigá-lo a atender seu pedido.

— Para facilitar as coisas, possuo a capacidade de controlar minhas funções corporais — disse Mohiam —. Posso ovular à vontade, e garanto que não será necessário repetir esta tarefa desagradável. A partir de apenas um encontro com você, posso garantir o nascimento de uma menina. Não terá que se preocupar mais conosco.

As Bene Gesserit não paravam de tecer maquinações, e com elas nada era certo. O barão franziu a sobrancelha, enquanto repassava as possibilidades. Com essa filha que tanto desejavam, as bruxas tentavam criar um herdeiro ilegítimo e alegar direitos sobre a Casa Harkonnen na próxima geração? Era uma possibilidade sem sentido. Já estava educando Rabban para o cargo, e ninguém se oporia.

— Eu... — Procurou as palavras —. Necessito de um momento para refletir, e tenho que falar com meus conselheiros.

Mohiam esteve a ponto de virar os olhos, mas indicou com um gesto que não havia pressa. Afastou uma toalha manchada de sangue e se ajeitou no divã, para esperar com comodidade.

Apesar de sua personalidade desprezível, Vladimir Harkonnen era um homem atraente, musculoso e de feições agradáveis, cabelo avermelhado e lábios grossos. Entretanto, as Bene Gesserit inculcavam em todas as irmãs a crença fundamental de que a cópula era uma mera ferramenta para manipular os homens e obter deles a descendência que se integrasse na rede, geneticamente inter-relacionada, da Irmandade. Não obstante, proporcionava-lhe um grande prazer ter ao barão a sua mercê.

A reverenda mãe se reclinou, fechou os olhos e se concentrou no fluxo de hormônios do seu corpo, no funcionamento interno de seu sistema reprodutivo...

Sabia qual seria a resposta do barão.

 

— Piter! — gritou o barão enquanto percorria os corredores —. Onde está meu Mentat?

De Vries surgiu com sigilo de um corredor adjacente, onde tinha tentado utilizar as câmeras ocultas que tinha instalado nos aposentos privados do barão.

— Estou aqui, meu barão — disse, e tomou um gole de um diminuto frasco. O sabor do safo disparava reações em seu cérebro, disparava seus neurônios e avivava suas capacidades mentais —. O que a bruxa pediu? O que ela quer?

O barão virou-se, depois de ter encontrado por fim o objetivo apropriado para sua raiva.

— Quer que a engravide! Quer meu sêmen!

Engravidá-la?, pensou De Vries, e acrescentou a sua base de dados mental. Voltou a analisar o problema a hipervelocidade.

— Quer ser a mãe de minha filha! É incrível!

De Vries estava em modo Mentat.

Dado; não existe outra maneira de que o barão tenha filhos. Odeia ss mulheres. Além disso, de uma perspectiva política, é muito cauteloso para disseminar sua estirpe indiscriminadamente.

Dado: as Bene Gesserit guardam numerosos registros genéticos em Wallach IX, numerosos projetos de reprodução, cujos resultados estão abertos à interpretação. Se o barão tivesse um filho (uma filha?), o que as bruxas esperam obter?

Existe algum defeito ou vantagem nos genes dos Harkonnen que desejam aproveitar? Seu único propósito é castigar da forma mais humilhante o barão? Nesse caso, em que as ofendeu pessoalmente?

— Só a idéia me repugna! Cobrir essa poedeira — grunhiu o barão —, De qualquer modo, a curiosidade me deixa louco. O que a Irmandade está procurando?

— Não consigo estabelecer uma projeção, barão. Dados insuficientes.

Parecia que o barão ia esbofetear De Vries, mas se conteve.

— Não sou um reprodutor das Bene Gesserit!

— Barão — De Vries disse com calma —, se for verdade que possuem informação sobre suas atividades ilegais, não pode permitir que isso seja revelado. Se estivessem sondando, não há dúvida que sua reação já lhes revelou tudo que precisavam saber. Se oferecerem provas a Kaitain, o imperador enviará seus Sardaukar para exterminar à Casa Harkonnen e substituí-la por outra Grande Família, como fizeram com os Richese antes de nós. Agradaria Elrood, sem dúvida. Ele e a CHOAM podem suspender seus contratos em qualquer momento. Até poderiam entregar Arrakis e a produção de especiaria à Casa Atreides, por exemplo, só para humilhá-lo.

— Os Atreides! Jamais permitirei que minhas propriedades caiam em suas mãos.

De Vries sabia que havia tocado um ponto sensível. A inimizade entre os Harkonnen e os Atreides se iniciou muitas gerações atrás, durante os trágicos acontecimentos da Batalha de Corrin.

— Deve fazer o que a bruxa exige, barão — disse —. As Bene Gesserit ganharam esta fase do jogo. Prioridade: proteger a fortuna de sua Casa, suas posses de especiarias e seus armazenamentos ilegais. — O Mentat sorriu —. Pode se vingar mais adiante.

O barão tinha empalidecido.

— Piter, a partir deste mesmo momento quero que comece a destruir provas e a dispersar nossas reservas. Envie tudo para lugares onde ninguém pensará em investigar.

— Também para os planetas dos nossos aliados? Eu não recomendaria, barão. Muitas complicações. E as alianças mudam.

— Muito bem. — Os olhos do barão se iluminaram —. Concentre a maior parte em Lankiveil, debaixo do nariz do meu estúpido meio-irmão. Nunca suspeitarão de Abulurd.

— Sim, meu barão. Excelente ideia.

— É claro que é uma excelente ideia! — Vladimir franziu a sobrancelha. Pensar em seu meio-irmão o tinha recordado seu mimado sobrinho —. Onde está Rabban? Possivelmente a bruxa prefira seu sêmen.

— Duvido muito, barão. Seus projetos genéticos costumam ser muito específicos.

— Bem, onde ele está? Rabban! — O barão virou-se e percorreu o corredor, como se procurasse algo para acossar —. Não o vi o dia todo.

— Foi para outra de suas caçadas estúpidas, no Posto de Vigilância Florestal. — De Vries conteve um sorriso —. Está sozinho para enfrentar o perigo, barão, e acredito que o melhor será que vá para seus aposentos. O dever lhe chama.

 

A regra básica é nunca apoiar a fraqueza; apoiar sempre a força.

O livro Azhar da Bene Gesserit

Compilação dos Grandes Secretos

 

A nave planou sobre a erma paisagem noturna, carente das luzes de Giedi Prime e de gases industriais. Duncan Idaho, sozinho em um compartimento da nave, olhava por uma janela de plaz, enquanto a prisão da Barony se afastava deles.

Ao menos seus pais não eram mais prisioneiros. Rabban os matara para enfurecê-lo e obrigá-lo a lutar. Durante os últimos dias de preparativos, a fúria de Duncan aumentara imensamente.

As paredes nuas da adega estavam cobertas de geada. Duncan estava transido, com o coração cheio de dor, os nervos contidos, a pele parecia um manto insensível. Os motores vibravam através do chão. Ouvia nas cobertas superiores os movimentos da partida de caça. Os homens levavam fuzis com miras rastreadoras. Riam e conversavam, preparados para a caçada noturna.

Rabban também estava ali em cima.

Com o propósito de proporcionar a Duncan o que chamavam de uma “boa chance”, a partida de caça tinha-lhe armado com uma faca romo (dizendo que não queriam que se machucasse), uma lanterna e uma corda: tudo o que um menino de oito anos necessitaria para evitar um esquadrão de caçadores profissionais Harkonnen em um território que conheciam como a palma da mão...

Acima, em uma poltrona macia e almofadada, Rabban sorriu ao pensar no menino aterrorizado e enfurecido no compartimento de carga. Se Duncan Idaho fosse maior e mais forte, seria tão perigoso como um animal. O pirralho era resistente para seu tamanho, Rabban tinha que admitir. A forma que tinha evitado os preparadores de elite Harkonnen nas vísceras de Barony era admirável, sobretudo o truque com o tubo elevador.

A nave se afastou da cidade prisão, das zonas industriais encharcadas de petróleo, em direção a uma reserva de caça situada em uma meseta elevada, um lugar onde preponderavam pinheiros escuros e penhascos de arenito, cavernas, rochas e rios. A zona, desenhada totalmente, tinha inclusive alguns exemplares de vida selvagem melhorada geneticamente, cruéis predadores ansiosos pela carne tenra de um menino tanto quanto os próprios caçadores Harkonnen.

A nave pousou sobre um prado semeado de calhaus. Inclinou-se em um ângulo pronunciado, mas se endireitou com a ajuda dos estabilizadores. Rabban envio um sinal de controle de seu cinturão.

A porta hidráulica que havia diante do menino se abriu e o liberou de seu cárcere. O ar frio da noite cortou suas bochechas. Duncan considerou a possibilidade de pôr-se a correr e refugiar-se entre os pinheiros. Uma vez ali, esconderia-se sob o manto de agulhas secas e mergulharia em um sono protetor.

Mas Rabban queria que o menino fugisse e se ocultasse, e sabia que não chegaria muito longe. No momento, Duncan tinha que agir apoiando-se no instinto, compensado pela inteligência. Não era o momento adequado para empreender ações inesperadas e imprudentes. Ainda não.

Duncan esperaria na nave até que os caçadores explicassem as regras, embora imaginasse o que deveria fazer. O cenário era maior, a caçada mais longa, as apostas mais elevadas... mas em essência se tratava do mesmo jogo para o qual tinha sido treinado na cidade prisão.

A escotilha superior se abriu a suas costas, e revelou duas formas rodeadas de um halo tênue: uma pessoa que reconheceu como o capitão dos caçadores de Barony, e o homem de costas largas que tinha matado seus pais: Rabban.

O menino afastou a vista da repentina luz e focou seus olhos, acostumados à penumbra, no prado e as espessas sombras das árvores. Era uma noite estrelada. Duncan ainda sentia dor nas costelas, como resultado de seu adestramento cruel.

— O Posto de Vigilância Florestal — disse o capitão dos caçadores —. Como férias no deserto. Desfrute-as! Isto é um jogo, garoto. Nós o deixamos aqui, concedemos uma vantagem e saímos à caça. — Seus olhos se entreabriram —. Mas não tenha falsas ilusões. Isto é muito diferente de suas sessões de preparação em Barony. Se perder, morrerá, e sua cabeça dissecada se juntará a outros troféus que adornam a parede de lorde Rabban.

O sobrinho do barão dedicou a Duncan um largo sorriso. Rabban tremia de nervosismo e impaciência.

— E se escapar? — perguntou Duncan.

— Não escapará — respondeu Rabban.

Duncan não insistiu. Se forçasse uma resposta, o homem mentiria. Se conseguisse escapar, teria que inventar suas próprias regras.

Obrigaram-no a descer para o prado, salpicado de orvalho. Usava roupas leves e sapatos gastos. O frio da noite o cortou como uma faca.

— Sobreviva o que puder, garoto! — gritou Rabban da porta da nave, e se meteu dentro enquanto a vibração dos motores aumentava seu ritmo —. me conceda uma boa caçada. A última foi muito decepcionante.

Duncan permaneceu imóvel enquanto a nave se erguia no ar, em direção a um pavilhão de caça vigiado. Dali, depois de tomar alguns copos, a partida de caça sairia em perseguição à sua presa.

Possivelmente os Harkonnen brincariam com ele por algum tempo e se divertiriam com sua atividade... ou talvez quando o apanhassem estariam entediados até os ossos, ansiosos por tomar uma bebida quente, e utilizariam suas armas para matá-lo na primeira oportunidade.

Duncan correu para o refúgio que as árvores ofereciam.

Seus pés deixaram um rastro de erva esmagada. Roçou os ramos grossos das árvores perenes e espalhou o tapete de agulhas secas enquanto subia para salientes abruptos de arenito.

À luz da lanterna, viu que exalava jorros de vapor, como pulsações do coração. Continuou subindo para os penhascos mais altos. Subiu aferrando-se à rocha sedimentária. Naquela zona, ao menos, não deixaria muitos sinais de pegadas, embora houvesse bolsas de neve nos salientes, parecidas com pequenas dunas.

Os afloramentos sobressaíam da ladeira da colina, sentinelas destacados sobre o tapete do bosque. O vento e a chuva tinham criado fossas e entalhes nos penhascos, alguns apenas suficientes para servir como tocas de roedores, e outros grandes o bastante para esconder um adulto. Duncan, incentivado pelo desespero, subiu até o limite do esgotamento.

Quando chegou ao cume de uma elevação rochosa, que sua lanterna tingiu de um tom oxidado e torrado, se agachou e olhou ao redor. perguntou-se se os caçadores já estariam à caminho. Não andariam muito longe.

Ouviu uivos de animais. Apagou a lanterna. Suas costelas e costas doíam, assim como o ponto do braço em que tinham implantado o localizador.

A suas costas, mais penhascos escarpados se elevavam nas sombras, semeados de entalhes e rebordos, cobertos de árvores esqueléticas que lembravam pelos de verrugas. Uma grande distância separava-o da cidade mais próxima.

O Posto da Guarda Florestal. Sua mãe tinha falado desta reserva de caça isolada, favorita do sobrinho do barão. Rabban é tão cruel porque precisa demonstrar que não é como seu pai, havia dito em uma ocasião.

O menino tinha passado a maior parte de seus nove anos no interior de edifícios gigantescos, respirando ar reciclado impregnado de lubrificantes, solventes e gases de combustão, jamais tinha conhecido o frio do planeta, suas noites geladas, a claridade das estrelas.

O céu era uma imensa abóbada negra, em que se vislumbravam diminutos brilhos de luz, uma chuva de alfinetes que perfuravam as distâncias da galáxia. No espaço, os Navegantes da Corporação utilizavam sua mente para guiar os Cruzeiros, grandes como cidades, entre as estrelas.

Duncan nunca tinha visto uma nave da Corporação, nunca tinha saído de Giedi Prime, e agora duvidava que alguma vez o conseguisse. Como tinha vivido nas vísceras de uma cidade industrial, nunca fora estimulado a aprender os desenhos que as estrelas formavam. Não obstante, mesmo que soubesse se orientar ou reconhecer as constelações, não tinha nenhum lugar aonde ir...

Agachado sobre o rebordo estudou seu mundo. Curvou-se e juntou os joelhos ao peito para conservar o calor corporal, mas continuou tremendo.

Ao longe, onde o terreno elevado mergulhava em um vale coberto de árvores em direção à austera silhueta do pavilhão de caça, viu uma fileira de luzes, globos luminosos que oscilavam como uma procissão de fadas. A partida de caça, bem descansada e armada, seguia seu rastro, sem se apressar. Eles estão se divertindo a valer. Duncan olhou e esperou, transido e desesperado. Tinha que decidir se queria viver. O que faria? Para onde iria? Quem o ajudaria?

O fuzil laser de Rabban tinha desintegrado o rosto de sua mãe, que já não poderia beijar, e seu cabelo, que já não poderia acariciar. Nunca mais ouviria sua voz quando o chamava de “doce Duncan”.

Os Harkonnen pretendiam repetir a jogada com ele, e não podia evitar isso. Era apenas um menino com uma faca romo, uma lanterna e uma corda. Os caçadores contavam com rastreadores richesianos, armaduras corporais climatizadas e armas potentes. Superavam-no em uma proporção de dez por um. Não tinha a menor chance.

Seria mais fácil esperar que chegassem. Inevitavelmente os rastreadores o localizariam, seguiriam o sinal implantado... mas podia estragar sua diversão. Se se rendesse, demonstrando assim seu desdém para diversões tão bárbaras, conseguiria uma pequena vitória, a única possível.

Ou, Duncan Idaho podia lutar, tentar prejudicar em todo possível aos Harkonnen. Sua mãe e seu pai não tinham gozado de nenhuma chance de lutar por suas vidas, mas Rabban lhe estava concedendo essa possibilidade.

Rabban o considerava um menino indefeso. A partida de caça pensava que acossar um menino proporcionaria certa diversão.

Ficou em pé com as pernas inchadas, sacudiu as roupas e parou de tremer. Não vou me render, decidiu. Só para lhes dar uma lição, só para demonstrar que não podem zombar de mim.

Duvidava que os caçadores usassem escudos pessoais. Considerariam desnecessário tal proteção, sobretudo contra um menino.

O tato da faca que guardava no bolso era duro e tosco, inútil contra uma armadura. Mas podia conseguir algo mais com a folha, algo dolorosamente necessário. Sim, lutaria com todas as suas forças.

Duncan subiu o penhasco, apoiando-se em rochas e árvores caídas, até chegar a um fossa escavada na arenito. Rodeou os montes de neve para não deixar rastros.

O implante localizador os conduziria até ele, lá onde quer que fosse.

Sobre a cavidade, um saliente da parede quase vertical lhe proporcionou sua segunda chance: partes de arenito soltos, cobertos de liquens, enormes pedras brutas. Talvez pudesse movê-los...

Duncan deslizou no interior da fossa, onde não encontrou mais calor apenas mais escuridão. A entrada era tão baixa que um adulto teria que arrastar-se para acessar seu interior. Não havia outra saída. A cova não oferecia muita proteção. Teria que se apressar.

Acendeu a pequena lanterna, tirou a camisa e sacou a faca. Sentia o volume do implante localizador em seu braço esquerdo, na parte posterior do tricípite.

Sua pele já estava amortecida pelo frio, e sua mente aturdida pelas circunstâncias. Entretanto, quando manipulou a faca, sentiu-a perfurando seu músculo. Fechou os olhos e afundou mais a ponta.

Cravou a vista em na escura parede da cova e viu que a pálida luz lançava sombras esqueléticas. Sua mão direita se movia como se tivesse vida própria, como uma sonda para desenterrar o diminuto localizador. A dor se retirou para um canto remoto de sua consciência.

Por fim, o implante saiu, um diminuto micro fragmento de metal que caiu com um tinido sobre o chão da cova. Tecnologia sofisticada de Richese. Duncan, morto de dor, agarrou uma pedra para despedaçar o localizador. Mas pensou melhor: deixou a pedra e empurrou o diminuto dispositivo para as sombras, para que ninguém pudesse vê-lo.

Era melhor deixá-lo ali como isca.

Duncan se arrastou para fora e agarrou um punhado de neve. Gotas vermelhas caíram sobre o saliente de arenito. Aplicou um emplastro de neve à ferida do ombro, e o frio atenuou a dor do corte. Apertou o emplastro até que a neve tingida de rosa derreteu em seus dedos. Agarrou outro punhado, indiferente às marcas que deixava no chão. De qualquer modo, os Harkonnen viriam até ali.

Ao menos, a neve tinha estancado a hemorragia.

Depois subiu por cima da cova, procurando não deixar rastros. Viu que as luzes oscilantes do vale se dividiam. Os membros da partida de caça tinham escolhido caminhos diferentes para subir à colina. Um ornitóptero zumbiu sobre sua cabeça.

Duncan se moveu a maior velocidade possível, mas procurou não voltar a derramar sangue. Aplicou farrapos da sua camisa sobre a ferida, até ficar com o peito exposto ao frio, e depois se cobriu com os restos do objeto. Talvez os predadores do bosque farejassem o sangue e o seguissem, não em busca de diversão, mas de comida. Era um problema que não desejava considerar naquele momento.

Chegou ao saliente que dominava seu refúgio anterior. O instinto de Duncan o aconselhava a afastar-se o máximo possível daquele lugar, mas se obrigou a parar. Assim seria melhor. Se agachou atrás das partes de rocha soltas, mediu-as para ter certeza que teria forças para movê-los, e se preparou para esperar.

Em pouco tempo, o primeiro caçador subiu o penhasco que conduzia à cova. Provido de uma armadura antigravitacional, empunhava um fuzil laser. Olhou para um equipamento que recebia os sinais do localizador richesiano.

Duncan conteve o fôlego, imóvel. Um fio de sangue escorria por seu braço esquerdo.

O caçador se deteve ante s fossa, observou a neve removida, as manchas de sangue, o piscar do seu localizador. Embora Duncan não pudesse ver seu rosto, imaginou o sorriso de triunfo.

O caçador se arrastou para o interior da cova, com o fuzil a frente.

— Peguei você, garotinho!

Duncan empurrou um penhasco coberto de liquens por cima da borda. Esse logo se deslocou por volta do segundo e lhe deu um forte empurrão. As duas pedras caíram, dando voltas no ar.

Ouviu o som do impacto e um rangido estremecedor. E a exclamação afogada do homem.

Duncan se arrastou para a borda, viu que um dos penhascos tinha caído para um lado e rolado pelo penhasco, arrastando os calhaus em seu caminho.

O outro penhasco tinha aterrissado sobre as costas do caçador, destruindo sua coluna vertebral.

Duncan desceu a toda pressa. O caçador ainda estava vivo, embora paralisado. Suas pernas se agitavam, e os saltos de suas botas golpeavam o chão recoberto de geada gelada. Duncan já não sentia medo dele.

Apontou sua lanterna para os olhos frágeis e estupefatos do homem. Aquilo já não era um jogo. Sabia o que os Harkonnen lhe fariam, tinha visto o que Rabban fizera a seus pais.

Agora, Duncan jogaria segundo suas regras.

O caçador agonizante murmurou algo ininteligível. Duncan não vacilou. agachou-se com olhos sombrios e entreabertos, olhos que já não eram mais de um menino. A faca deslizou sob a mandíbula do homem. O caçador se retorceu, ergueu o queixo, mais em sinal de aceitação que de desafio, e a faca se cravou. Um jorro de sangue brotou da jugular e formou uma poça escura e pegajosa no chão.

Duncan não perdeu tempo pensando no que tinha feito, não podia esperar que o cadáver do caçador esfriasse. Retirou o cinturão, encontrou um pequeno estojo de primeiros socorros e uma barra alimentícia. Em seguida pegou o fuzil laser e com a culatra destroçou o localizador richesiano manchado de sangue. Já não necessitava dele como chamariz. Que os perseguidores o seguissem valendo-se de seu engenho.

Supôs que até agradeceriam o desafio, depois que sua fúria se aplacasse.

Duncan se arrastou para fora. O fuzil laser, quase tão alto como ele, chacoalhou enquanto o carregava. Na planície, a fileira de luzes da partida de caça ia se aproximando.

Agora, melhor armado e animado, Duncan se perdeu na noite.

 

Muitos elementos do Império acreditam que detinham o poder absoluto: a Corporação Espacial com seu monopólio sobre as viagens interestelares, a CHOAM com sua ditadura econômica, a Bene Gesserit com seus segredos, os Mentats com seu controle dos processos mentais, a Casa Corrino com seu trono, as Grandes e Menores Casa do Landsraad com suas enormes posses. Pobres de nós no dia em que uma destas facções resolver demonstrar que tem razão.

Conde Hasimir Fenring. Despachos de Arrakis

 

Leto teve uma hora para refrescar-se e descansar em seus aposentos em Grand Palais.

— Er, sinto apressá-lo — disse Rhombur enquanto saía para o corredor de paredes acristaladas —, mas você não vai querer perder isto. Levamos meses para construir um Cruzeiro. Me avise quando estiver preparado para ir à coberta de observação.

Leto, ainda nervoso, mas agradecido por poder ficar sozinho por alguns minutos, inspecionou sua bagagem e olhou para a habitação. Contemplou seus pertences, guardadas com muito cuidado, muitos mais do que o necessário, incluindo bagatelas, um pacote de cartas de sua mãe e uma Bíblia Católica Laranja. Tinha prometido a ela que a cada noite leria alguns versículos.

Pensou no tempo que necessitaria para sentir-se em casa (um ano inteiro ausente de Caladan), e deixou tudo como estava. Logo teria tempo para ocupar-se disso. Um ano em IX.

Cansado depois de sua longa viagem, com a mente ainda aturdida pela estranheza daquela metrópole subterrânea, Leto tirou a camisa e se jogou sobre a cama. Mal tinha conseguido provar a dureza do colchão e ajeitar o travesseiro, quando Rhombur chamou à porta.

— Vamos, Leto! Se apresse! Vista-se, vamos pegar um transporte.

Enquanto tentava colocar seu braço esquerdo pela manga, Leto se reuniu com o outro adolescente no corredor.

Um metrô os conduziu entre os edifícios invertidos até os subúrbios da cidade subterrânea, e depois uma cápsula elevadora os baixou até o segundo nível de edifícios, cobertos de cúpulas de observação. Rhombur abriu caminho entre as multidões que abarrotavam as galerias e janelas. Agarrou Leto pelo braço enquanto deixavam para trás os guardas de Vernius e os espectadores. O príncipe estava com o rosto avermelhado, e se virou para outros.

— Que horas são? Já aconteceu?

— Ainda não. Faltam uns dez minutos.

— O Navegante chegará a qualquer momento. Sua câmara está sendo escoltada através do campo.

Rhombur murmurou agradecimentos e desculpas, ao mesmo tempo em que guiava seu confuso acompanhante até uma janela de metacristal situado na parede inclinada da galeria de observação.

Abriu-se outra porta no fundo da sala, e a multidão se afastou para dar passagem a dois jovens de cabelo escuro, gêmeos idênticos, a julgar por seu aspecto. Ladeavam a irmã de Rhombur, Kailea, como orgulhosa escolta. Durante o breve momento que a tinha perdido de vista, observou Leto, Kailea tinha posto um vestido diferente, menos frívolo mas não menos formoso. Parecia que sua presença embriagava os gêmeos, e seus cuidados constantes agradavam Kailea. Sorriu para os dois e guiou-os até um ponto estratégico na janela de observação.

Rhombur conduziu Leto até eles, muito mais interessados na vista que nos membros da multidão. Leto olhou ao redor e supôs que os espectadores eram autoridades importantes. Olhou para baixo, ainda ignorante do que ia acontecer.

Um imenso recinto se perdia na distância, no ponto onde o teto da gruta e o horizonte se confundiam. Divisou um Cruzeiro já terminado, uma nave do tamanho de um asteróide semelhante ao que o tinha transportado de Caladan a IX.

— Esta é, er, a fábrica mais importante de IX — disse Rhombur —. É a única superfície do Império capaz de produzir um Cruzeiro. Todo mundo utiliza diques espaciais. Aqui, em um ambiente terrestre, a segurança e eficácia da construção em grande escala é muito rentável.

A nave reluzente ocupava quase toda a caverna subterrânea. Um leque de revestimentos dorsais decorativos brilhavam no lado mais próximo. Sobre a fuselagem se destacava uma cintilante hélice ixiana púrpura e acobreada, entrelaçada com o símbolo branco da Corporação Espacial, que simbolizava o infinito.

A nave descansava sobre um mecanismo elevador, que erguia a nave sobre o nível do chão para que grandes caminhões terrestres pudessem circular sob o casco. Operários subóides, usando uniformes brancos e chapeados, examinavam a fuselagem com aparelhos manuais e realizavam tarefas mecânicas rotineiras. Enquanto as equipes de operários inspecionavam a nave da Corporação, para prepará-la para sair ao espaço, fileiras de luzes dançavam ao redor da fábrica: barreiras de energia para repelir os intrusos.

Gruas e suportes elevadores pareciam diminutos parasitas que rastejavam sobre o casco do Cruzeiro, mas quase toda a maquinaria fora retirada para as paredes inclinadas da câmara, para não atrapalhar um... lançamento? Leto pensou que era impossível. Milhares de operários se mexiam, retiravam equipamentos e preparavam a decolagem da nave formidável.

Os murmúrios do público aumentaram de intensidade, e Leto pressentiu que algo ia acontecer. Viu numerosas telas e imagens transmitidas por câmaras ocultas.

— Mas... — perguntou, aturdido pelo espetáculo — como fazem? Uma nave deste tamanho? O teto é de rocha, e todas as paredes parecem sólidas.

Um dos gêmeos olhou para ele com um sorriso.

— Você já vai ver.

Os dois jovens tinham grandes olhos fundos em seus rostos quadrados e expressão concentrada. Eram alguns anos mais velhos que Leto. Sua pele pálida era uma conseqüência inevitável de viver no subsolo. Não viu emblemas familiares no pescoço de sua roupa, e decidiu que não eram da Casa Vernius.

Kailea pigarreou e olhou para seu irmão.

— Rhombur — disse —, está esquecendo suas maneiras.

Rhombur recordou suas obrigações.

— Ah, sim! Este é Leto Atreides, herdeiro da Casa Atreides de Caladan. Apresento-lhe C'tair e D'murr Pilru. Seu pai é o embaixador de IX em Kaitain, e sua mãe é banqueira da Corporação. Vivem em uma das casas do Grand Palais, de modo que os verá freqüentemente.

Os jovens fizeram uma reverência e pareceu que se aproximavam ainda mais de Kailea.

— Estamos nos preparando para os exames da Corporação, que acontecerão dentro de poucos meses — disse C'tair —. Temos a esperança de pilotar uma nave como esta algum dia.

Sua cabeça morena apontou para a nave enorme. Kailea olhou-os com preocupação em seus olhos verdes, como se sua aspiração de ser Navegantes não a convencesse.

Leto sentiu-se comovido pelo entusiasmo que viu nos olhos castanhos do jovem. O outro irmão era menos sociável, e parecia interessado apenas na atividade que se desenvolvia abaixo.

— A câmara do Navegante chegou — disse D'murr.

Um volumoso contêiner negro flutuou sobre um caminho espaçoso, elevado sobre elevadores industriais. Era uma tradição dos Navegantes da Corporação ocultarem sua aparência atrás de espessas nuvens de especiaria. Acreditava-se que o processo de transformação em Navegante transformava a uma pessoa em algo mais que humano, algo mais evoluído. A Corporação não confirmava nem negava as especulações.

— Não se vê nada dentro — disse C'tair.

— Sim, mas tem um Navegante dentro. Posso sentir.

D'murr se inclinou para frente, como se desejasse atravessar a janela de observação de metacristal. Quando os gêmeos deixaram de lhe dar atenção, fascinados pela nave, Kailea se voltou para Leto e sustentou seu olhar com brilhantes olhos esmeralda.

Rhombur indicou a nave e prosseguiu sua conversa veloz .

— Estes novos modelos de Cruzeiro otimizados têm emocionado meu pai. Não sei estudaram sua história, mas o princípio dos Cruzeiros eram de fabricação, er, richesiana. IX e Richese competiam para conseguir os contratos da Corporação, mas pouco a pouco ganhamos a mão, derrubando todos os aspectos de nossa sociedade no processo: subsídios, er, recrutamentos, arrecadação de impostos, o que fizesse falta. Em IX não fazemos as coisas pela metade.

— Também ouvi que são mestres na sabotagem industrial e nas leis sobre patentes — comentou Leto, recordando as palavras de sua mãe.

Rhombur meneou a cabeça.

— Mentiras espalhadas pelas Casas que nos invejam. Infernos carmesins, nós não roubamos idéias nem patentes. Só sustentamos uma guerra tecnológica com Richese, e ganhamos sem disparar um tiro. Demos-lhes golpes mortais, tão definitivos como se tivéssemos utilizado armas atômicas. Era ou eles ou nós. Faz uma geração, perderam a administração de Arrakis, quase ao mesmo tempo em que perdiam sua liderança tecnológica. Uma liderança familiar desastrosa, suponho.

— Minha mãe é richesiana — disse Leto, sarcástico.

Rhombur ruborizou, envergonhado.

— Oh, sinto muito. Tinha me esquecido.

Alisou-se o emaranhado cabelo loiro para ocupar as mãos em algo.

— Não foi nada. Não somos cegos — disse Leto —. Sei do que estão falando. Richese ainda existe, mas em uma escala muitíssimo menor. Muita burocracia e poucas inovações. Minha mãe nunca quis me levar lá, nem sequer para visitar sua família. Muitas lembranças dolorosas, suponho, embora suspeite que acreditava que as bodas com meu pai contribuiria para recuperar a fortuna de Richese.

O contêiner que guardava o misterioso Navegante entrou por um orifício no extremo dianteiro do Cruzeiro. A câmara negra desapareceu nas vísceras da nave como um mosquito engolido por um peixe.

Embora fosse mais jovem que seu irmão, Kailea falou em tom muito sério:

— O novo programa de Cruzeiros será para nós o mais vantajoso de todos os tempos. Graças a este contrato, grandes quantias ingressarão em nossas contas. A Casa Vernius receberá vinte e cinco por cento de todos os Solaris que economizarmos para a Corporação Espacial durante a primeira década.

Leto, impressionado, pensou nas humildes atividades de Caladan: a colheita de arroz pundi, as barcos que descarregavam as mercadorias dos navios... e os vivas que a população dedicava ao velho duque depois das corridas de touros.

Os alto-falantes montados ao longo e largo da imensa câmara emitiram sirenes. Os operários subóides, como limagens de ferro atraídas por um campo magnético, abandonaram as imediações do Cruzeiro. Piscaram luzes em outras janelas de observação das torres. Leto distinguiu diminutas formas apertadas contra janelas longínquas.

Rhombur se aproximou de Leto, enquanto os espectadores guardavam silêncio.

— Que aconteceu? — perguntou Leto —. O que vai acontecer?

— O Navegante vai decolar — disse C'tair.

— Ele se afastará de IX, para começar sua viagem — acrescentou D'murr.

Leto contemplou o teto de rocha, a barreira impenetrável de casca planetária, e compreendeu que era impossível. Ouviu um tênue zumbido, pouco perceptível.

— Tirar uma nave destas características para o exterior não é difícil, er, ao menos para eles. — Rhombur cruzou os braços sobre o peito —. Muito mais fácil que introduzir um Cruzeiro em um espaço fechado como este. Só um Timoneiro treinado é capaz.

Enquanto Leto olhava, com a respiração contida como todos os outros espectadores, o Cruzeiro refulgiu fugazmente, perdeu definição e desapareceu por completo.

Um forte estampido ressonou na gruta, devido ao repentino deslocamento de ar. Um tremor percorreu o edifício de observação, e os ouvidos de Leto se tamparam.

Agora, a cova estava vazia, um imenso espaço fechado sem o menor sinal do Cruzeiro, só equipamento abandonado e um mapa de brilhos apagados no chão, paredes e teto.

— Lembra-se de como o Navegante dirige uma nave? — perguntou D'murr, ao perceber a confusão do Leto.

— Dobra o espaço — disse C'tair —. O Cruzeiro não atravessou a casca rochosa de IX em nenhum momento. O Navegante se limitou a ir daqui... para seu destino.

De entre o público se elevaram aplausos. Rhombur parecia muito satisfeito quando indicou o imenso vazio que se estendia sob seus pés.

— Agora temos lugar para começar a construir outro!

— Pura e simples economia de meios. — Kailea olhou para Leto —. Não perdemos nem um segundo.

 

As concubinas permitidas a meu pai graças ao acordo entre a Bene Gesserit e a Corporação não podiam, é obvio, dar a luz a um Sucessor Real, mas as intrigas eram constantes e cansativas em sua semelhança. Minha mãe, minhas irmãs e eu nos transformamos em peritas em evitar sutis instrumentos de morte.

Na casa de meu pai, da princesa Irulan

 

As salas de aula destinadas ao príncipe herdeiro Shaddam no palácio imperial bastariam para receber um povoado de alguns planetas. O herdeiro dos Corrino meditava desinteressado diante de sua máquina de ensino, enquanto Fenring o observava.

— Meu pai ainda quer que eu tenha aulas como um menino. — Shaddam olhou para as luzes e os mecanismos giratórios da máquina —. Já deveria estar casado a esta altura. Já deveria ter um herdeiro imperial.

— Para que? — riu Fenring —. Para que o trono possa saltar uma geração e passar diretamente para seu filho, quando for maior de idade, hummmm?

Shaddam tinha trinta e quatro anos, e pelas circunstâncias atuais se encontrava a uma vida de distância de tornar-se imperador. Cada vez que o velho tomava um gole de cerveja de especiaria ativava mais o veneno secreto, mas fazia meses que o n'kee agia e o único resultado visível era um comportamento cada vez mais irritável. Como se não tivesse mau gênio suficiente!

Naquela mesma manhã Elrood repreendera Shaddam por não prestar mais atenção aos estudos.

— Observe e aprenda! — Uma das tediosas frases de seu pai —. Imite Fenring, ao menos uma vez.

Na infância Hasimir Fenring tinha assistido as aulas com o príncipe herdeiro. Em teoria fazia companhia a Shaddam, ao mesmo tempo em que adquiria conhecimentos sobre política e intrigas cortesãs. Nos estudos Fenring sempre se destacava mais que seu amigo. Devorava todos os dados que podiam ajudar a melhorar sua posição.

Sua mãe, Chaola, uma dama de companhia introspectiva, estabeleceu-se em uma casa tranqüila e viveu de sua pensão, depois da morte da quarta esposa do imperador, Fala. Ao criar os dois meninos juntos enquanto atendia à imperatriz Fala, Chaola tinha proporcionado a Fenring a oportunidade de ser muito mais que um simples acompanhante, quase como se tivesse planejado tudo.

Agora, Chaola fingia não entender o que seu filho fazia na corte, embora tivesse recebido o treinamento Bene Gesserit. Fenring era bastante inteligente para saber que sua mãe compreendia muito mais coisas do que sua posição sugeria, e que muitos planos e projetos de reprodução se desenvolveram sem que ele soubesse.

Shaddam soltou um suspiro de desespero e se voltou.

— Por que o velho não morre e me facilita as coisas? — cobriu a boca, alarmado com suas próprias palavras.

Fenring passeava de um lado para outro, ao mesmo tempo em que observava as bandeiras do Landsraad. O príncipe herdeiro devia saber de cor as cores e emblemas de cada Grande e Pequena Casa, mas Shaddam não conseguia recordar os nomes de todas as famílias.

— Seja paciente, meu amigo. Tudo a seu tempo. — Fenring acendeu uma varinha de incenso perfumado e inalou a fumaça —. Enquanto isso, instrua-se em temas que serão úteis ao seu reinado. Necessitará dessa informação em um futuro próximo, hummmm?

— Pare de fazer esse ruído, Hasimir. Deixa-me nervoso.

— Hummmm?

— Já me irritava quando era menino, e ainda consegue. Basta!

Na habitação contigua, atrás de supostas telas de intimidade, Shaddam ouviu as risadas de seu professor particular, o roçar de roupas, de lençóis, de pele contra pele. O professor passava as tardes com uma mulher esbelta e extraordinariamente bela, treinada sexualmente para chegar à Classe Perita. Shaddam tinha dado ordens à moça, e suas artes mantinham o professor distraído, para que Fenring e ele pudessem manter conversas privadas, algo bastante difícil em um lugar infestado de olhos observadores e ouvidos atentos.

Entretanto, o professor ignorava que a moça seria entregue como presente a Elrood, um complemento perfeito de seu harém. Aquele pequeno erro proporcionaria ao príncipe herdeiro uma boa ameaça para usar contra o fastidioso professor. Se o imperador chegasse a descobrir...

— Aprender a manipular as pessoas é uma parte importante da arte de governar — Fenring dizia com freqüência depois de sugerir uma idéia.

Isso, ao menos, Shaddam compreendia. Enquanto o príncipe herdeiro escutar meus conselhos, pensava Fenring, será um bom governante.

As telas mostravam enfadonhas estatísticas de meios de embarque, exportações fundamentais aos principais planetas, imagens holográficas de todos os produtos concebíveis, dos melhores cortes de baleia e tapeçarias áudio relaxantes ixianas... fio shiga, fabulosos objetos de arte Ecazi, arroz pundi e excremento de mulo. Tudo surgia da máquina de ensino como uma fonte de sabedoria descontrolada, como se Shaddam devesse conhecer e recordar todos os detalhes. Mas para isso existem os peritos e os conselheiros.

Fenring lançou um olhar para a tela.

— De todas as coisas do Império, Shaddam, qual considera a mais importante, hummmm?

— Agora você também é meu professor particular, Hasimir?

— Sempre — respondeu Fenring —. Se você for um grande imperador, beneficiará ao povo... e a mim.

A cama da habitação contigua produziu sons rítmicos.

— A paz e a tranquilidade são os mais importantes — grunhiu Shaddam.

Fenring apertou uma tecla da máquina. Apareceu a imagem de um planeta deserto. Arrakis. Fenring se sentou ao lado de Shaddam.

— A especiaria melange. Isso é o mais importante. Sem ela o Império desmoronaria.

Inclinou-se e seus dedos voaram sobre os controles, convocando imagens do planeta deserto e as atividades de coleta de especiaria. Shaddam contemplou uma sequência em que um gigantesco verme do deserto destruía uma fábrica de coleta nas profundezas do deserto.

— Arrakis é a única fonte conhecida de melange em todo o universo. —Fenring apoiou o punho sobre a mesa —. Mas por que? Com todos os exploradores e prospectores imperiais, e a enorme recompensa que a Casa Corrino ofereceu durante gerações, por que ninguém encontrou especiaria em outro lugar? Afinal, com um bilhão de planetas no Império, tem que haver em outra parte.

— Um bilhão? — Shaddam umedeceu os lábios —. Hasimir, sabe que isso é uma hipérbole para as massas. Não há mais de um milhão.

— Um milhão, mil, que importa, hummmm? O que quero dizer é que se a melange for uma substância que se encontra no universo, deveríamos localizá-la em mais de um lugar. Sabe algo do planetólogo que seu pai enviou a Arrakis?

— É obvio, Pardot Kynes. Esperamos outro relatório dele a qualquer momento. Já se passaram várias semanas desde o último. — Ergueu a cabeça com orgulho —. Eu os leio assim que chegam.

Ouviram ofegos e risadas vindos da habitação contigua, pesados móveis arrastados, algo que caía ao chão com um golpe surdo. Shaddam se permitiu um leve sorriso. A concubina era muito bem treinada, sem dúvida.

Fenring virou os olhos e voltou para a máquina de ensinar.

— Preste atenção, Shaddam. A especiaria é vital, e entretanto apenas uma Casa de um só planeta controla toda a produção. A ameaça de um racionamento é muito séria, face à supervisão imperial e as pressões da CHOAM. Para preservar a estabilidade do Império, necessitamos de uma fonte melhor de melange. Deveríamos criá-la sinteticamente, se for necessário. Necessitamos de uma alternativa... — voltou-se para o príncipe herdeiro com olhos cintilantes — que se ache sob nosso controle.

Shaddam apreciava mais estas discussões que as aulas programadas com o professor.

— Ah, sim! Uma alternativa a melange mudaria o equilíbrio de poder no Império, não é?

— Exato! Tal como estão as coisas, a CHOAM, a Corporação, as Bene Gesserit, os Mentats, o Landsraad. até a Casa Corrino, todos competem pela produção e distribuição da especiaria de um planeta, mas se existisse uma alternativa, nas mãos da Casa Imperial, os membros de sua família se transformariam em imperadores autênticos, não em simples marionetes sob o controle de outras forças políticas.

— Não somos marionetes — replicou Shaddam —. Nem mesmo meu decrépito pai o é. — Dirigiu um olhar nervoso para o teto, procurando câmaras espiãs ocultas embora Fenring já tivesse escaneado toda a sala.

— Como quiser, meu príncipe — disse Fenring, sem ceder um milímetro —. Se pusermos as rodas para girar, receberá esses benefícios quando o trono for seu. — Brincou com a máquina de ensinar —. Observe e aprenda! — disse, imitando com um falsete a voz de Elrood.

Shaddam riu do sarcasmo.

A máquina mostrou cenas dos lucros industriais de IX, de todas as novas invenções e modificações realizadas durante o frutífero governo da Casa Vernius.

— Por que acha que os ixianos não utilizam sua tecnologia para encontrar uma alternativa à especiaria? — perguntou Fenring —. Receberam ordens diversas vezes para que analisassem a especiaria e desenvolvessem uma alternativa, mas só se importam com suas máquinas de navegação e seus estúpidos medidores de tempo. Quem se importa em saber a hora exata nos planetas do Império? Em que esses projetos são mais importantes que a especiaria? A Casa Vernius é um fracasso total, no que se refere a você.

— Esta máquina de ensinar é ixiana. O irritante desenho do novo Cruzeiro é ixiano. E também seu veículo terrestre de alto rendimento e...

— Não importa — interrompeu Fenring —. Não acredito que a Casa Vernius dedique algum de seus recursos tecnológicos para solucionar o problema da alternativa à especiaria. Para eles não é uma prioridade.

— Então meu pai deveria guiá-los com, mas firmeza. — Shaddam enlaçou as mãos às costas e tratou de compor um porte imperial, avermelhado de indignação forçada —. Quando eu for imperador me encarregarei de que essa gente compreenda suas prioridades. Ah sim, eu em pessoa decidirei o que é o mais importante para o Império e a Casa Corrino.

Fenring rodeou a máquina de ensinar como um tigre Laça à espreita. Agarrou uma tâmara açucarada de uma bandeja de fruta que havia em uma mesa lateral.

— O velho Elrood fez afirmações similares muito tempo atrás, mas até o momento não cumpriu nenhuma delas. — Agitou sua mão com longos dedos —. Oh, a princípio pediu aos ixianos que investigassem o assunto. Também ofereceu uma generosa recompensa ao primeiro explorador que descobrisse pré-especiaria em planetas inexplorados. — meteu a tâmara na boca, chupou seus dedos pegajosos e engoliu a fruta —. Nada de nada.

— Nesse caso meu pai deveria aumentar a recompensa — disse Shaddam —. Não se esforçou o suficiente.

Fenring estudou suas unhas bem cortadas, e depois olhou para os olhos de Shaddam.

— Não será porque o velho Elrood não deseja considerar todas as alternativas necessárias?

— Ele é incompetente, mas não tão estúpido. Por que o faria?

— Imagine que alguém sugerisse utilizar os Bene Tleilax, por exemplo. Como única solução possível.

Fenring se apoiou contra uma coluna de pedra para observar a reação de Shaddam.

Uma expressão de asco cruzou o rosto do príncipe herdeiro.

— Os repugnantes Tleilaxu! Quem trabalharia com eles?

— Poderiam encontrar a resposta que procuramos.

— Não fala sério. Não se pode confiar nos Tleilaxu.

Recriou em sua mente a raça de pele cinzenta, cabelo grisalho e a pequena estatura, os olhos de contas, o nariz chato e os dentes afiados. Mantinham-se afastados dos forasteiros, isolavam seus planetas centrais, cavavam uma sarjeta social em que pudessem mergulhar com prazer.

Entretanto, os Bene Tleilax eram verdadeiros feiticeiros genéticos Utilizavam métodos pouco ortodoxos e detestáveis do ponto de vista social, manipulavam carne morta ou viva, refugos biológicos. Graças a seus misteriosos mas poderosos contêineres de axlotl podiam cultivar clones de células vivas e gholas de mortos. Um aura escorregadia e furtiva rodeava os Tleilaxu. Como alguém podia levá-los a sério?

— Pense nisso, Shaddam. Por acaso não são os Tleilaxu professores da química orgânica e a mecânica celular, hummmm? — Fenring soprou —. Graças a minha própria rede de espionagem, descobri que os Bene Tleilax, face à repugnância que despertam, desenvolveram uma nova técnica. Eu mesmo possuo... algumas de suas habilidades técnicas, e acredito que esta técnica Tleilaxu pode ser aplicada na produção de melange artificial... nossa própria fonte. — Cravou seus olhos brilhantes nos de Shaddam —. Ou não quer considerar todas as alternativas, e permitir que seu pai conserve o controle?

Shaddam se remexeu em seu assento, vacilante. Teria preferido estar jogando uma partida de bolaescudo. Não gostava de pensar naqueles seres anões. Os Bene Tleilax, fanáticos religiosos, eram muito reservados e não recebiam convidados. Indiferentes à opinião que suscitavam em outros planetas, enviavam seus representantes para observar e assinar tratados do mais alto nível, oferecendo seus produtos únicos de bioengenharia. Corriam rumores de que nenhum forasteiro tinha visto uma mulher Tleilaxu. Nunca. Pensou que deviam ser assombrosamente belas... ou incrivelmente feias.

Ao ver que o príncipe herdeiro estremecia, Fenring lhe apontou um dedo.

— Shaddam, não caia na mesma armadilha que seu pai. Como amigo e conselheiro, devo investigar possibilidades que passaram desapercebidas, hummmm? Esqueça esses sentimentos e pense na possível vitória se isto funcionar: uma vitória sobre o Landsraad, a Corporação, a CHOAM e a maldita Casa Harkonnen. É divertido pensar que todas as argúcias empregadas pelos Harkonnen para apoderar-se de Arrakis depois da queda de Richese não lhes terão servido de nada.

Sua voz adquiriu um tom mais untuoso, mais razoável.

— Qual o problema se tivermos que fazer um trato com os Tleilaxu, se com isso a Casa Corrino acabar com o monopólio da especiaria e estabelecer uma fonte independente?

Shaddam olhou para ele, dando as costas para a máquina de ensinar.

— Tem certeza disso?

— Não, não tenho — replicou Fenring —. Ninguém terá certeza até que se consiga. Mas ao menos temos que considerar a idéia, lhe dar uma oportunidade. Do contrário, alguém o fará... Inclusive até os Bene Tleilax. Temos que fazê-lo por nossa própria sobrevivência.

— O que acontecerá quando meu pai descobrir? — perguntou Shaddam —. A idéia não o agradará.

O velho Elrood nunca pensava por si só e o chaumurky de Fenring já tinha começado a fossilizar seu cérebro. O imperador sempre tinha sido um patético peão, manipulado por forças políticas. Talvez o abutre senil tivesse feito um trato com a Casa Harkonnen para lhes confiar o controle da produção de especiaria. Não seria uma surpresa para Shaddam saber que o poderoso barão tinha o velho Elrood preso por pés e mãos. A Casa Harkonnen era fabulosamente rica, e seus meios de influência eram uma lenda.

Seria estupendo deixá-los de joelhos.

Fenring cruzou os braços.

— Posso conseguir que tudo isto aconteça, Shaddam. Tenho contatos. Posso trazer aqui um representante dos Bene Tleilax sem que ninguém saiba. Pode defender nosso caso perante a Corte Imperial, e se seu pai o rechaçar, talvez averigüemos quem controla o trono... O rastro estaria fresco. Ponho a maquinaria em marcha, hummmm?

O príncipe herdeiro deu um olhar para a máquina de ensinar, que continuava dando aula para um aluno inexistente.

— Sim, sim, é claro — disse, impaciente agora que tinha tomado uma decisão —. Não percamos mais tempo. E pare de fazer esse ruído.

— Vai demorar um pouco para dispor todas as peças em seu lugar, mas o investimento valerá a pena.

Ouviu-se um longo gemido na habitação contigua, e depois um grito de êxtase, cada vez mais forte, até parecer que as paredes iam cair.

— Nosso professor aprendeu a agradar a sua pupila — disse Shaddam com um sorriso —. Ou possivelmente a vadia está fingindo.

Fenring riu e meneou a cabeça.

— Essa não era ela, meu amigo. Era a voz dele.

— Eu gostaria de saber que estão fazendo ali dentro — disse Shaddam.

— Não se preocupe. Tudo está gravado para que se divirta mais tarde. Se nosso amado professor colaborar conosco e não causar problemas, olharemos para nos divertir. Se, ao contrário, se tornar difícil, esperaremos até que seu pai tenha recebido como presente à nova concubina para seu prazer pessoal... e então passaremos ao imperador Elrood uma seleção destas imagens.

— E sairemos bem com a nossa — disse Shaddam.

— Exato, meu príncipe.

 

O planetólogo tem acesso a muitas fontes, dados e projeções. Entretanto, suas ferramentas mais importantes são os seres humanos. Só cultivando a cultura ecológica entre o povo poderá salvar todo um planeta.

Pardot Kynes. O caso de Bela Tegeuse.

 

Enquanto recolhia notas para seu próximo relatório ao imperador, Pardot Kynes descobriu prova de sutis manipulações ecológicas. Suspeitava dos Fremen. Que outros responsáveis podiam existir nos baldios de Arrakis?

Chegou à conclusão de que o número de habitantes do deserto era muito maior do que os Harkonnen supunham, e de que os Fremen alimentavam um sonho próprio... mas o planetólogo se perguntava se tinham desenvolvido um plano concreto para transformá-lo em realidade.

Enquanto meditava sobre os enigmas geológicos e ecológicos do planeta deserto, Kynes adquiriu a certeza de que estava a seu alcance insuflar vida naquelas areias calcinadas. Arrakis não era a pedra bruta morta que aparentava na superfície, mas sim uma semente capaz de dar frutos magníficos... desde que o meio ambiente recebesse os cuidados apropriados.

Os Harkonnen não iriam se incomodar. Embora governadores do planeta a décadas, o barão e sua corte caprichosa se comportavam como simples convidados, absolutamente dispostos a efetuar investimentos em Arrakis. Como planetólogo, tinha observado os sinais. Os Harkonnen estavam saqueando o planeta, despojavam-no de toda a melange possível sem pensar no futuro.

As maquinações políticas e as alternâncias de poder podiam desequilibrar as alianças com facilidade. dentro de poucas décadas, sem dúvida, o imperador entregaria o controle das operações relacionadas com a especiaria a outra Grande Casa. Fazer investimentos em Arrakis não beneficiava em nada os Harkonnen.

Pelo resto, muitos de seus habitantes eram pobres: contrabandistas, mercadores de água, comerciantes a quem custaria pouco fechar o negócio e mudar-se para outro planeta. A ninguém interessavam os apuros do planeta. Arrakis não era mais que um recurso a espremer e desprezar.

Não obstante, Kynes pensava que os Fremen tinham outros planos. Dizia-se que os solitários habitantes do deserto se aferravam a seus costumes. Durante sua longa história, tinham vagado de planeta em planeta, pisoteados e escravizados, antes de fundar seu lar em Arrakis, um planeta que chamavam Dune desde tempos remotos. Era a gente que se dedicava mais àquele lugar. Sofriam as conseqüências dos atos dos exploradores.

Se Kynes pudesse ganhar a colaboração dos Fremen, e se existiam felpas como ele suspeitava, poderiam realizar mudanças em grande escala. Assim que tivesse acumulado dados suficientes sobre mapas climáticos, conteúdo atmosférico e flutuações sazonais, poderia desenvolver um calendário realista, um plano que transformaria Arrakis, em longo prazo, em um planeta verde. Poderia ser feito!

Fazia uma semana que tinha concentrado suas atividades ao redor da Muralha Escudo, uma enorme cordilheira que abrangia as regiões do pólo norte. A maioria dos habitantes se estabeleceram em terrenos rochosos e protegidos, de difícil acesso aos vermes, conforme acreditava.

Para examinar o território de perto, Kynes decidiu viajar sem pressa em um veículo terrestre individual. Rodeou a base da Muralha Escudo, tomou medidas e recolheu espécimes. Mediu o ângulo dos estratos das rochas para determinar o fenômeno geológico que tinha originado uma barreira montanhosa tão formidável.

Com o tempo e meticulosos estudos, até poderia encontrar capas de fósseis, massas de pedra calcária com conchas marinhas ou seres oceânicos primitivos petrificados, procedentes do passado do planeta, muito mais úmido. Até o momento, a sutil evidencia de água primitiva era visível para o olho treinado. Descobrir aquele substrato criptozóico seria a pedra angular de seu tratado, a prova incontestável de suas suspeitas...

Uma manhã, cedo, Kynes subiu em seu veículo, deixando rastros no chão erodido da muralha montanhosa. Naquela zona todos os povoados, do maior até o mais humilde, estavam mapeados, sem dúvida para facilitar o pagamento de impostos e a exploração dos Harkonnen. Era uma sorte contar com esses mapas.

Chegou aos arredores de um lugar chamado Windsack, onde tinham instalado um posto de guarda e barracões para os soldados Harkonnen, que viviam em uma precária aliança com os moradores do deserto. Kynes continuou seu caminho sobre o terreno desigual. Enquanto cantarolava para si, examinou as paredes dos penhascos. O zumbido dos motores era como uma canção de berço, e se perdeu em seus pensamentos.

Depois, quando passou por um topo e rodeou um saliente rochoso, sobressaltou-se ao ver um combate desesperado. Seis soldados trajando os melhores ornamentos dos Harkonnen e providos de escudos corporais brandiam espadas cerimoniosas contra três jovens Fremen que tinham encurralado.

Kynes freou o veículo. A deplorável cena lhe recordou o tigre Laça bem alimentado que tinha visto em uma ocasião em Salusa Secundus, brincando com um pobre rato de terra. O tigre não necessitava de mais comida, só se divertia brincando de predador. Tinha encurralado o aterrorizado roedor entre umas rochas, arranhava-o com suas garras largas e curvas, abria feridas dolorosas e sangrentas, feridas não mortais, de propósito. O tigre Laça brincou com o rato durante vários minutos, enquanto Kynes observava com seus prismáticos de alta potência. Aborrecido por fim, o tigre a decapitou com uma dentada e se afastou rebolando.

Em compensação, os três jovens Fremen opunham uma resistência muito mais feroz que o rato de terra, mas só contavam com facas e trajes destiladores. Os nativos do deserto não tinham a menor chance ante a capacidade militar e as armas dos soldados Harkonnen.

Mas não se renderam.

Os Fremen jogavam pedras com precisão, mas os projéteis ricocheteavam contra os escudos. Os Harkonnen riram e se aproximaram mais.

Kynes desceu de seu veículo, fascinado pela cena. Ajustou seu traje destilador, afrouxou as sujeições para gozar de mais liberdade de movimentos. Comprovou que usava a máscara bem posta, mas não fechada. De momento não sabia se devia observar de longe, como tinha feito com o tigre Laça, ou intervir de alguma forma.

Havia dois soldados Harkonnen para cada Fremen, e se Kynes fosse defender os jovens só conseguiria sair ferido ou ser acusado de resistência às autoridades Harkonnen. Um planetólogo imperial não devia intrometer-se em incidentes locais.

Apoiou a mão na faca que levava no cinto. Em qualquer caso, estava preparado, mas esperava ver tão somente uma troca de insultos, ameaças, e talvez uma pequena refrega que terminaria ressentidamente e com algumas contusões.

Mas de repente a natureza do confronto mudou, e Kynes compreendeu sua estupidez. Não se tratava de um simples jogo, mas de uma briga muito séria. Os Harkonnen ansiavam por sangue.

Os seis soldados se lançavam sobre os Fremen, que não cederam terreno. Um deles caiu, sangrando por uma artéria do pescoço.

Kynes esteve a ponto de gritar, mas engoliu suas palavras quando uma neblina vermelha turvou sua visão. Enquanto viajava pelo planeta tinha imaginado grandiosos planos para utilizar os Fremen como uma ferramenta, um autêntico povo do deserto com o qual compartilhar idéias. Pensava em utilizá-los como mão de obra para seu projeto de transformação ecológica. Seriam seus aliados e colaboradores entusiastas.

Agora, aqueles Harkonnen imbecis tentavam, sem motivo aparente, matar seus trabalhadores, as ferramentas com as quais ele pretendia transformar o planeta. Não podia permitir.

Enquanto o terceiro membro do grupo sangrava sobre a areia, os outros dois Fremen, armados só com facas, atacaram com uma ferocidade assombrosa.

— Taqwa![1] — gritaram.

Dois Harkonnen caíram, e seus quatro camaradas não foram em sua ajuda com a velocidade necessária. Os soldados de uniforme azul, vacilantes, avançaram para os jovens.

Kynes, indignado pela patente injustiça dos Harkonnen, agiu guiado por um impulso. Deslizou por trás dos soldados, com sigilo e rapidez. Conectou seu escudo pessoal e desembainhou sua faca de ponta envenenada.

Durante os duros anos vividos em Salusa Secundus, tinha aprendido a usar aquele tipo de arma, e também a matar. Seus pais tinham trabalhado em uma das mais infames prisões do Império, e os ambientes que Kynes tinha conhecido em suas explorações lhe tinham exigido com freqüência defender-se de temíveis predadores.

Não emitiu nenhum grito de batalha, porque isso teria dado acabado com o fator surpresa. Kynes segurava a arma embaixo. Não era muito valente mas sim impulsivo. Como se tivesse vontade própria, a faca atravessou pouco a pouco o escudo corporal do Harkonnen mais próximo, e se afundou para cima, até o osso. A lâmina penetrou sob a caixa torácica do homem, perfurou seus rins e cortou a coluna vertebral.

Kynes extraiu a faca, e a afundou no flanco de um segundo soldado Harkonnen. O escudo deteve a ponta envenenada um segundo, mas quando o Harkonnen se mexeu, Kynes lhe afundou a arma no abdômen, com a ponta para cima.

Dois Harkonnen tinham caído feridos mortalmente. Os dois sobreviventes contemplaram aturdidos aquela inesperada reviravolta nos acontecimentos, e uivaram de cólera. Afastaram-se um do outro, com a atenção concentrada em Kynes, embora os Fremen continuassem dando amostras de valentia, preparados para lutar com unhas e dentes se fosse necessário.

Os Fremen se lançaram sobre seus atacantes.

— Taqwa! — gritaram de novo.

Um dos Harkonnen lançou um cutilada mas Kynes se moveu com rapidez, encorajado pela vitória sobre suas duas primeiras vítimas. Descreveu um arco com a faca, atravessou o escudo e cortou a garganta de seu atacante. Um entrisseur. O guarda deixou, cair a espada e levou as mãos ao pescoço em uma tentativa inútil de conter a hemorragia.

O quinto Harkonnen mordeu o pó.

Enquanto os dois Fremen atacavam o único sobrevivente, Kynes se inclinou sobre o jovem ferido e falou.

— Fique calmo. Vou ajudá-lo.

O jovem tinha sangrado muito, mas Kynes levava um estojo de primeiros socorros no cinturão. Aplicou um cicatrizante na ferida do pescoço, e utilizou hipofrascos de plasma e estimulantes de alta potencia para manter o jovem vivo. Tomou o pulso: batimento regular.

Kynes verificou a gravidade da ferida e se espantou que o jovem não tivesse sangrado mais. Sem atendimento médico, teria morrido em poucos minutos, mas Kynes estava surpreso de que tivesse sobrevivido por tanto tempo. O sangue Fremen coagula com assombrosa rapidez. Outro dado para arquivar em sua memória. Um processo adaptado de sobrevivência para reduzir a perda de umidade no deserto mais seco?

— Eeeeeaah!

— Nooo!

Kynes levantou a vista para ouvir gritos de dor e terror. Os Fremen tinham arrancado os olhos do Harkonnen sobrevivente e agora se dedicavam a esfolá-lo lentamente. Guardaram partes de pele em bolsas que levavam junto ao quadril.

Kynes se levantou, coberto de sangue e ofegante. Depois de contemplar aquela crueldade começou a perguntar-se se tinha agido bem. Aqueles Fremen eram iguais a animais selvagens. Tentariam matá-lo agora, mesmo depois do que tinha feito por eles? Era um completo desconhecido para aqueles jovens desesperados.

Observou e esperou, e quando os jovens terminaram sua tortura horrenda, olhou-os nos olhos e pigarreou antes de falar em galach imperial.

— Meu nome é Pardot Kynes, e sou o planetólogo imperial destinado para Arrakis.

Reparou em sua pele manchada de sangue e decidiu não estender a mão para saudá-los. Talvez interpretassem mal o gesto.

— É um prazer. Sempre desejei conhecer os Fremen.

 

É mais fácil ser aterrorizado por um inimigo que se admira.

Thufir Hawat, Mentat e responsável pela segurança da Casa Atreides.

 

Oculto pelos grossos pinheiros, Duncan Idaho se ajoelhou sobre as agulhas suaves e sentiu um pouco de calor por fim. O ar frio da noite amortecia o aroma resinoso das árvores perenes, mas ao menos aqui estava protegido da brisa, afiada como navalha. Afastou-se o suficiente da cova para descansar. Só um momento.

Sabia que os caçadores Harkonnen não descansariam. Sentiriam-se mais motivados agora que tinha matado um deles. Possivelmente sintam mais prazer na caçada, pensou. Especialmente Rabban.

Duncan abriu o estojo de primeiros socorros que roubara do caçador e tirou um pequeno pacote de ungüento de novapele, que ao aplicar sobre o corte no ombro endureceu até formar uma atadura orgânica. Depois, devorou a ração nutritiva e guardou os pacotes nos bolsos.

Com a lanterna examinou o fuzil laser. Nunca tinha empunhado uma arma semelhante, mas tinha visto os guardas e caçadores usá-las. Embalou a arma e apalpou seus mecanismos e controles. Apontou o canhão para cima e tentou compreender seu funcionamento. Se queria lutar, tinha que aprender.

De repente, um raio branco saiu disparado para as taças das árvores. Explodiram em chamas, e pedaços de agulhas fumegantes caíram como neve vermelha.

Assustado, Duncan deixou cair o fuzil e retrocedeu engatinhando, mas em seguida recolheu a arma e tentou memorizar a combinação de botões que tinha apertado.

As copas ardiam como uma fogueira e projetavam volutas de fumaça acre. Duncan voltou a disparar, mas desta vez apontou, para comprovar que podia utilizar o fuzil para defender-se. A arma pesada não fora feita para um menino, sobretudo com o ombro e as costelas doloridas, mas poderia utilizá-la. Tinha que fazê-lo.

Como sabia que os Harkonnen se precipitariam para a chama, Duncan correu em busca de outro lugar onde pudesse se esconder. Dirigiu-se a um terreno elevado, perto da borda do penhasco, para continuar observando as luzes dispersas dos caçadores. Sabia com exatidão quantos eram e a distância que os separava dele.

Como podem ser tão estúpidos, que nem sequer se escondem?, perguntou-se. Excesso de confiança... Era esse seu erro? Nesse caso, seria útil. Os Harkonnen esperavam que se moldasse ao seu jogo, para depois acovardar-se e morrer no momento preciso. Duncan teria que decepcioná-los.

Talvez desta vez jogaremos a minha maneira.

Enquanto corria, se esquivava das manchas de areia e se mantinha afastado da vegetação ruidosa. Não obstante, a concentração de Duncan em seus perseguidores o distraiu de ver o perigo real. Ouviu um rangido de ramos atrás e por cima dele, o estalo dos arbustos, e a seguir um roçar de garras sobre a rocha, acompanhado de uma respiração pesada e rouca.

Não se tratava de um caçador Harkonnen, mas algum predador do bosque que farejava seu sangue.

Duncan se deteve e olhou para cima em busca de olhos que brilhassem nas sombras. Mas não se voltou para o afloramento rochoso que se projetava sobre sua cabeça até que ouviu um rosnado. À luz das estrelas, viu a silhueta agachada, de um cão selvagem, com o lombo arrepiado, as fauces abertas e as presas à mostra. Tinha os olhos cravados em sua presa: um menino de carne tenra.

Duncan retrocedeu e disparou o fuzil. Errou, mas o raio desprendeu fragmentos de rocha. O predador uivou e retrocedeu. Duncan disparou de novo, e desta vez abriu um buraco em sua anca direita. O animal desapareceu na escuridão com um rugido de dor.

O grito do predador, assim como os disparos do fuzil, atrairiam os caçadores Harkonnen. Duncan pôs-se a correr de novo à luz das estrelas.

 

Rabban, com os braços cruzados, contemplou o cadáver de seu caçador, estendido junto à cova. O ardiloso menino o tinha atraído para uma armadilha. Muito engenhoso. Um pedra bruta jogada sobre suas costas e uma faca romo em sua garganta. O golpe de graça.

Rabban refletiu tentando analisar a provocação. Percebia o aroma acre da morte até no frio da noite. Não era isso o que desejava, uma provocação?

Um dos caçadores rastejou ao interior do oco e com sua lanterna iluminou as manchas de sangue e o localizador richesiano destroçado.

— Aqui está a explicação, meu senhor. O pirralho tirou o aparelho de rastreamento. — O caçador engoliu em seco —. Um menino muito esperto. Boa presa.

Rabban contemplou o cadáver por alguns momentos mais. A queimadura do sol ainda ardia em suas bochechas. Sorriu pouco a pouco, e por fim explodiu em sonoras gargalhadas.

— Um menino de oito anos, com apenas sua imaginação e um par de armas incompetentes acabou com um de meus melhores homens!

Riu de novo. Os outros o observaram com nervosismo.

— Esse menino é perfeito para a caçada — proclamou Rabban. Depois, golpeou o cadáver com a ponta de sua bota —. E este inútil não merecia fazer parte de minha equipe. Deixem-no aqui para que apodreça. Que os carniceiros dêem conta dele.

Então, dois dos rastreadores captaram chamas nas árvores, e Rabban apontou.

— Ali! O pirralho tenta esquentar as mãos. — Riu uma vez mais, e por fim seus homens o acompanharam —. Será uma noite muito emocionante.

 

De uma elevação Duncan esquadrinhava a distância, longe do pavilhão custodiado. Uma luz piscou e se apagou, e quinze segundos depois reacendeu se apagou. Algum tipo de sinal que não procedia dos caçadores Harkonnen, muito afastados do pavilhão, do posto de guarda e das aldeias próximas.

A luz cintilou, e depois se fez a escuridão. Quem mais anda por aqui?

O Posto do Guarda Florestal era uma reserva exclusiva dos membros da família Harkonnen. Qualquer intruso era eliminado ou utilizado como presa em alguma caçada. Duncan olhou para a luz, que se apagava e acendia. Estava claro que se tratava de uma mensagem... Quem a estava enviando?

Respirou fundo e se sentiu pequeno mas desafiante em um mundo muito grande e hostil. Não tinha para onde ir nem a menor chance, mas até aquele momento tinha conseguido evitar os caçadores... Poderia resistir muito mais? Os Harkonnen não demorariam para chamar reforços, ornitópteros, localizadores vitais, e até mesmo animais farejadores que seguissem o aroma do sangue de sua camisa, como o cão selvagem tinha feito.

Duncan decidiu dirigir-se para as pessoas que emitiam os misteriosos sinais e confiar em sua sorte. Não esperava encontrar ninguém disposto a ajudá-lo, mas não renunciou à esperança. Talvez descobrisse algum meio de escapar, possivelmente como vagabundo.

Mas antes estenderia outra armadilha aos caçadores. Tinha imaginado algo que os surpreenderia, e lhe parecia me bastante simples. Se pudesse matar mais alguns perseguidores, suas chances de escapar aumentariam.

Depois de estudar as rochas, as manchas de neve e as árvores, escolheu o melhor ponto para sua segunda emboscada. Acendeu a lanterna e dirigiu o raio para o chão, para que nenhum olho sensível percebesse de longe seu brilho.

A distância que o separava de seus perseguidores não era muito grande. De vez em quando ouvia um grito, via os globos luminosos da partida que iluminavam seu caminho através do bosque, enquanto os rastreadores tentavam adivinhar o caminho que sua presa tomaria.

Duncan desejava que adivinhassem, mas jamais desconfiariam de suas intenções. Ajoelhou-se junto a uma depressão, introduziu a lanterna na neve e a afundou.

O brilho que se projetava através da neve era como água diluindo-se em uma esponja. Diminutos cristais de gelo refratavam a luz e aumentavam seu brilho, A depressão brilhava como uma ilha de luz.

Correu para o refúgio das árvores, com o fuzil pronto para disparar. Estendeu-se sobre um tapete de agulhas de pinheiro, com cuidado de não apresentar o menor alvo, e depois apoiou o canhão do fuzil sobre uma pequena rocha.

E esperou.

Os caçadores apareceram, como era de prever, e Duncan pensou que os papéis haviam se invertido: agora ele era o caçador e eles a presa. Apontou com os dedos tensos sobre o botão de disparo. Por fim, os caçadores chegaram ao alvo e deram voltas ao redor da depressão luminosa, tentando elucidar que significava aquilo.

Dois deles se voltaram para as árvores, como se temessem um ataque. Outros formavam silhuetas sob a luz espectral, alvos perfeitos, tal como Duncan tinha esperado.

Na retaguarda do grupo reconheceu um homem corpulento de porte autoritário. Rabban! Duncan pensou em seus pais brutalmente assassinados e disparou sem vacilar.

Mas nesse momento um dos exploradores se plantou em frente a Rabban para lhe comunicar seu relatório. O raio atravessou o homem, que caiu inerte.

Rabban reagiu com uma agilidade surpreendente para um homem de seu tamanho e se lançou para um lado, enquanto o raio surgia pelo peito do explorador e mergulhava na depressão. Duncan disparou de novo e atingiu um segundo caçador. Os outros começaram a disparar às cegas para as árvores.

Os próximos alvos de Duncan foram os globos luminosos. Explodiram um após o outro, e os caçadores ficaram mergulhados na escuridão. Abateu mais dois, enquanto o resto se dispersava.

Como a carga do fuzil estava se esgotando, o menino retrocedeu para ocultar-se atrás da colina de onde tinha lançado seu ataque, e depois correu desesperadamente para a luz que tinha visto. Fosse o que fosse, era sua única chance.

Os Harkonnen ficariam desorientados e desorganizados durante alguns momentos. Sabendo que era sua última oportunidade, Duncan esqueceu toda precaução. Correu, escorregou colina abaixo, chocou-se contra as rochas, mas não dedicou tempo para sentir a dor dos arranhões e das contusões. Não podia esconder seu rastro, nem tampouco tentou.

Atrás dele, à medida que aumentava a distância, ouviu grunhidos afogados, assim como gritos dos caçadores: uma manada de cães selvagens os tinha atacado. Duncan sorriu e continuou para a luz que piscava de forma intermitente perto do bordo da reserva florestal.

Quando chegou por fim, correu para um claro. Descobriu um ornitóptero silencioso, um aparelho de alta velocidade que podia transportar vários passageiros. A luz provinha do teto do aparelho, mas Duncan não viu ninguém. Esperou em silêncio por alguns momentos e avançou com cautela. Uma nave abandonada? Eles a teriam deixado para ele? Uma armadilha dos Harkonnen? Mas por que iriam fazer isso? Já o estavam caçando. Ou se tratava de um salvador milagroso? Duncan Idaho tinha obtido muitas coisas naquela noite e já estava esgotado, aturdido por tantas mudanças em sua vida, mas tinha apenas oito anos e não sabia pilotar o aparelho, embora fosse sua única esperança de escapar. Mesmo assim, possivelmente encontraria provisões dentro, mais comida, outra arma...

Apoiou-se contra o casco, inspecionou a zona, sem fazer o menor ruído. A escotilha estava aberta mas o interior do misterioso ornitóptero se encontrava às escuras. Avançou com cautela e empunhando o fuzil.

Então, mãos surgidas das sombras lhe arrebataram a arma das mãos. Duncan cambaleou para trás ao mesmo tempo em que reprimia um grito.

A pessoa que aguardava no interior do veículo lançou o fuzil sobre as pranchas da coberta e agarrou o menino pelos braços. Mãos ásperas apertaram a ferida em seu ombro, e Duncan lançou uma exclamação de dor.

Esperneou e se revolveu, e quando levantou a vista viu uma mulher de rosto amargurado, cabelo cor chocolate e pele escura. Reconheceu-a imediatamente: Janess Millam, a mesma que tinha estado a seu lado durante os jogos no jardim... pouco antes dos soldados Harkonnen capturarem seus pais e enviarem toda sua família para a cidade prisão de Barony.

Essa mulher o vendera para os Harkonnen.

Janess lhe tampou a boca antes que pudesse gritar e imobilizou sua cabeça com firmeza. Não podia escapar.

— Peguei você — disse com voz rouca.

Acabava de vendê-lo novamente.

 

Consideramos os diversos planetas como reserva genéticas, fontes de conhecimento e sonhos, fontes do possível.

Análise da Bene Gesserit, Arquivos de Wallach IX

 

O barão Vladimir Harkonnen era um perito em atos desprezíveis, mas o fato de ver-se obrigado àquela cópula turvava mais que qualquer vil situação em que tivesse participado. Desarmava-o completamente.

E além disso, por que a reverenda mãe tinha que comportar-se com tanta calma e presunção?

Despediu-se de seus guardas e funcionários, afim de eliminar todo possível espião da cidadela Harkonnen. Onde demônios está Rabban quando preciso dele? Caçando! Voltou para seus aposentos privados, com o estômago revirado.

Um nervoso suor molhava sua testa quando atravessou a arcada adornada, e conectou as cortinas de intimidade. Talvez se apagasse os globos luminosos e fingisse que fazia outra coisa...

Quando entrou, o barão experimentou grande alivio ao perceber que a bruxa não tirara a roupa nem se reclinara sedutoramente sobre os lençóis, à espera de sua volta. Estava sentada, vestida dos pés a cabeça, uma irmã da Bene Gesserit, mas com um insuportável sorriso de superioridade nos lábios.

O barão teve vontades de apagar aquele sorriso com um bofetão. Respirou fundo, assombrado de que aquela bruxa o fizesse sentir-se tão indefeso.

— O máximo que posso lhes oferecer é um frasco com meu esperma — disse tentando aparentar serenidade —. Fecunde a si mesma. Isso bastará para satisfazer seus propósitos. — Elevou seu queixo —. As Bene Gesserit terão que se conformar com isso.

— Não é possível, barão — disse a reverenda madre, sentada muito ereta sobre o divã —. Conhece as normas. Não criamos fetos em contêineres como os Tleilaxu. As Bene Gesserit têm de dar a luz mediante procedimentos naturais, sem intromissões artificiais, por motivos que é incapaz de compreender.

— Sou capaz de compreender muitas coisas — grunhiu ele.

— Isto não.

Tampouco tinha pensado que seu truque funcionasse.

— Necessitam do sangue Harkonnen. O que acha do meu sobrinho Glossu Rabban? Ou melhor ainda, seu pai, Abulurd. Vão a Lankiveil, e com ele engendrarão tantos filhos quantos quiserem. Não terão que ter tantos aborrecimentos.

— Inaceitável — disse Mohiam e lhe cravou um olhar frio. Seu rosto era comum mas implacável —. Não vim aqui negociar, barão. recebi ordens. Devo retornar a Wallach IX grávida de minha filha.

— Mas e se...

A bruxa levantou uma mão.

— Deixei muito claro o que acontecerá se discordar. Tome uma decisão. Conseguiremos nosso propósito de uma maneira ou outra.

De repente, sua habitação se transformou num lugar desconhecido e ameaçador para o barão. Ergueu os ombros, flexionou os bíceps. Embora fosse um homem musculoso, de corpo esbelto e reflexos rápidos, sua única escapatória parecia ser submeter aquela mulher pela força. Não obstante, conhecia as habilidades combativas das Bene Gesserit, em especial seus métodos estranhos e ancestrais... e duvidou de quem sairia vitorioso.

Ela se levantou e cruzou a habitação com passos silenciosos, para sentar-se muito rígida na beira da cama desordenada do barão.

— Se lhe servir de consolo, este ato me satisfaz tão pouco quanto a você.

Contemplou o corpo bem torneado do barão, suas costas largas, seu peitoral firme e o abdômen liso. Seu rosto tinha uma expressão altiva, que indicava seu berço nobre. Em outras circunstâncias, Vladimir Harkonnen teria sido um amante aceitável, como os preparadores masculinos com quem a Bene Gesserit tinha emparelhado Mohiam durante seus anos férteis.

Já tinha dado oito filhos à escola Bene Gesserit, e todos tinham sido criados longe dela em Wallach IX ou em outros planetas de treinamento. Mohiam nunca tinha tentado segui-los. A Irmandade não permitia. Aconteceria o mesmo com a filha que teria do barão Harkonnen.

Como muitas irmãs bem treinadas, Mohiam possuía a capacidade de manipular suas funções corporais. Para chegar a reverenda madre tinha que conseguir alterar sua bioquímica mediante a ingestão de um veneno que aumentava os limites da consciência. Ao transmutar a droga mortal com seu corpo, mergulhou em suas linhagens anteriores, o que lhe permitia conversar com todas as suas antepassadas femininas, as vociferantes vidas interiores da Outra Memória.

Podia preparar seu útero, ovular à vontade, até escolher o sexo de seu filho no momento em que esperma e óvulo se uniam. As Bene Gesserit queriam uma filha, uma filha Harkonnen, e Mohiam a teria, tal como lhe tinham ordenado.

Como só conhecia poucos detalhes dos numerosos programas de reprodução, Mohiam não entendia por que as Bene Gesserit necessitavam daquela combinação de genes em particular, por que a tinham selecionado para gerar a menina e por que nenhum outro Harkonnen podia produzir uma descendência adequada aos interesses da Bene Gesserit. Só estava cumprindo seu dever. Para ela, o barão era uma ferramenta, um doador de esperma que devia resignar-se a seu papel.

Mohiam recolheu a saia escura e se estendeu sobre a cama, ao mesmo tempo em que olhava para ele.

— Venha, barão, não percamos mais tempo. Afinal, isso não é grande coisa. — Seu olhar desceu para a virilha do barão.

Quando ele avermelhou de raiva, ela continuou em voz baixa.

— Possuo a capacidade de aumentar seu prazer ou de atenuá-lo. Em qualquer caso, os resultados serão os mesmos. — Sorriu com seus lábios magros —. Pense nas reservas de melange que poderão conservar sem que o imperador saiba. — Sua voz se endureceu —. Por outra parte, tente imaginar a reação do velho Elrood contra a casa Harkonnen se descobrir que o enganaram desde o primeiro momento.

O barão franziu o sobrecenho e avançou para a cama. Mohiam fechou os olhos e murmurou uma bênção Bene Gesserit, uma oração para acalmar-se e concentrar suas funções corporais em seu metabolismo interno.

O barão estava mais enojado que excitado. Não suportava a visão da forma nua de Mohiam. Por sorte, ela conservava quase toda a roupa, assim como ele.

A mulher o manipulou até conseguir uma ereção, e Vladimir manteve os olhos fechados durante todo o ato mecânico. Não havia outra alternativa que não fosse fantasiar sobre conquistas anteriores, a dor, o poder... algo para afastar sua mente do repugnante e incompetente ato da cópula entre homem e mulher.

Não se tratava de fazer amor, nem muito menos, mas sim de um aborrecido ritual entre dois corpos com o objetivo de trocar material genético. Nem mesmo desfrutaram dele sexualmente.

Mas Mohiam conseguiu o que desejava.

Piter De Vries se plantou em silêncio frente a sua janela privada de observação. Como Mentat, tinha aprendido a deslizar como uma sombra, a ver sem ser visto. Uma antiga lei da física afirmava que o mero ato de observação mudava os parâmetros. Qualquer bom Mentat sabia contemplar uma cena como se fosse invisível, sem que as pessoas sujeitas a seu escrutínio percebessem conta.

De Vries tinha presenciado com freqüência as travessuras sexuais do barão. Às vezes os atos o repugnavam, em outras ocasiões o fascinavam... mas muito poucas vezes lhe proporcionavam idéias.

Agora, mantinha os olhos colados aos diminutos orifícios de observação, absorvendo os detalhes, enquanto o barão se via forçado a copular com a bruxa Bene Gesserit. A cena lhe pareceu muito divertida, e sentiu prazer com o desconcerto do homem. Nunca tinha visto o barão superado pelos acontecimentos. Oh, oxalá tivesse tido tempo de gravar a cena, para deleitar-se com a cena outras vezes.

Assim que a mulher anunciou suas exigências, De Vries soube qual seria o desenlace. O barão se transformou no peão perfeito, apanhado sem remissão, sem a menor possibilidade de escolha.

Mas por quê?

Inclusive com suas grandes destrezas de Mentat, De Vries não conseguia compreender o que a Irmandade desejava da Casa Harkonnen ou de sua descendência. A combinação genética não podia ser tão espetacular.

Mas no momento, o Mentat se limitou a desfrutar do espetáculo.

Muitas invenções melhoraram de forma seletiva habilidades ou aptidões concretas, acentuaram um aspecto ou outro. Entretanto, nenhum conseguiu sequer roçar a complexidade ou adaptabilidade da mente humana.

 

Ikbhan, Tratado sobre a mente, Volume II

 

Leto se erguia ofegante junto a Zhaz, o capitão da guarda, na sala de treino do Grand Palais. O instrutor era um homem anguloso de cabelo castanho arrepiado, sobrancelhas povoadas e barba quadrada. Assim como seus tutelados, não vestia camisa, apenas calças curtas de luta. O cheiro de suor e metal aquecido impregnava o ar, mesmo com os esforços de um aparelho de extração de ar. Como quase todas as manhãs, o instrutor dedicava mais tempo a olhar que a lutar. Deixava que as máquinas de luta se ocupassem do trabalho.

Depois de seus estudos, Leto adorava a mudança de ritmo, o exercício físico, o desafio. Já tinha se adaptado a uma rotina, com base em horas de treinamento físico e mental de alta tecnologia, e mais horas dedicadas a visitar as instalações tecnológicas e receber instrução sobre filosofia mercantil. Começava a simpatizar com o entusiasmo de Rhombur, embora freqüentemente tivesse que ajudar o príncipe ixiano a entender conceitos difíceis. Rhombur não era curto de entendimento, mas desconhecia muitos assuntos práticos.

Cada três manhãs, os jovens saíam de suas salas-de-aula e se exercitavam na sala de treino automatizada. Leto agradecia o exercício e a descarga de adrenalina, mas tinha a impressão de que Rhombur e o instrutor de combate consideravam esta atividade como algo antiquado, exigido só pelas lembranças bélicas do conde Vernius.

Leto e o capitão de cabelo arrepiado viram que o corpulento príncipe Rhombur atacava com uma lança dourada um polido mek de combate. Zhaz não lutava com seus tutelados. Acreditava que se as forças de segurança e ele cumprissem seu dever, nenhum membro da Casa Vernius teria que rebaixar-se jamais ao bárbaro combate corpo a corpo. Não obstante, colaborava na programação dos autômatos de combate autodidatas.

O mek, do tamanho de um homem, encontrava-se em posição de descanso, e consistia em um ovóide negro sem traços distintivos, sem braços, pernas, nem rosto. Entretanto, assim que começava o combate, o engenho ixiano gerava uma série de toscas proeminências e adaptava diversas formas, apoiando-se na informação de seus sensores, que lhe indicava a melhor forma de defender-se de um adversário. Podia projetar punhos de aço, facas, cabos de flexoaço e outras surpresas de qualquer ponto de seu corpo. Seu rosto mecânico podia desaparecer por completo ou mudar de expressão, de uma estupidez destinada a enganar o inimigo até uma alegria diabólica, passando por um olhar feroz. O mek interpretava e reagia, aprendia a cada passo.

— Lembrem-se, nada de movimentos regulares — gritou Zhaz para Rhombur. Sua barba se sobressaía como uma pá de seu queixo —. Não deixe que ele calcule suas intenções.

O príncipe se agachou quando dois dardos romos passaram sobre sua cabeça. Uma faca surpresa lançada pelo mek causou um fio de sangue no ombro do jovem. Face à ferida, Rhombur fez uma finta e atacou, e Leto se sentiu orgulhoso de que seu colega real não gritasse de dor.

Rhombur tinha pedido conselho a Leto em várias ocasiões, inclusive críticas sobre seu estilo de lutar. Leto respondeu com sinceridade, mas sem esquecer que não era um instrutor profissional, e tampouco queria revelar muito sobre as técnicas Atreides. Rhombur as aprenderia com o Thufir Hawat, o professor de armas do velho duque.

A ponta da espada do príncipe encontrou um ponto fraco no corpo negro do mek, e este caiu morto.

— Muito bem, Rhombur! — gritou Leto.

Zhaz assentiu.

— Muito melhor.

Leto tinha lutado duas vezes com o mek naquele dia, e o derrotara em cada ocasião, com um grau de dificuldade superior ao utilizado pelo príncipe Rhombur. Quando Zhaz perguntou a Leto como tinha adquirido aquela destreza, o jovem Atreides se mostrou esquivo, porque tampouco desejava se vangloriar. Entretanto, agora tinha provas de que o método de treinamento Atreides era superior, face à arrepiante quase inteligência do mek. A preparação de Leto incluía facas, punhais, atordoantes de balas lentas e escudos corporais, e Thufir Hawat era um instrutor muito mais perigoso e imprevisível que qualquer autômato.

Enquanto Leto agarrava sua arma e se preparava para o próximo combate, as porta se abriram e Kailea entrou, coberta de jóias e de um cômodo vestido de fibra metálica cujo desenho parecia calculado para dotá-la de um aspecto esplêndido mas informal. Carregava um punção e um caderno gravador riduliano. Arqueou as sobrancelhas e fingiu surpresa ao encontrá-los na sala.

— Oh! Perdoem-me. Vim dar uma olhada no desenho do mek.

A filha dos Vernius estava acostumada a distrair-se com passatempos intelectuais e culturais, além de estudar comércio e arte. Leto não conseguia afastar os olhos dela. Em certos momentos os olhos da moça pareciam flertar com ele, mas quase sempre o ignorava com tal intensidade, que Leto suspeitava que compartilhava a mesma atração que ele.

Durante o tempo em que estava no Grand Palais, Leto tinha cruzado com ela na sala de jantar, nas galerias de observação ao ar livre e em bibliotecas. Tinha respondido com fragmentos de conversa desajeitada. Além do brilho sugestivo de seus belos olhos verdes, Kailea não o tinha incentivara de nenhuma outra forma, mas Leto não conseguia parar de pensar nela.

Não é mais que uma menina brincando de dama, lembrou-se Leto. Pena que não pudesse convencer sua imaginação disso. Kailea acreditava que estava destinada a um futuro muito mais glorioso que viver no subsolo de IX. Seu pai era um herói de guerra, o chefe de uma das Grandes Casas mais ricas, e sua mãe tinha sido concubina imperial devido a sua grande beleza, e a moça tinha uma cabeça excelente para os negócios. Era evidente que Kailea Vernius contava com um sem-fim de possibilidades.

A moça concentrou toda sua atenção no ovóide cinza imóvel.

— Convenci nosso pai a pensar na possibilidade de comercializar nossos meks de combate de última geração. — Examinou a máquina de treinamento, mas olhava para Leto com a extremidade do olho, tomava nota de seu perfil elegante —. Nossos aparelhos de combate são os melhores, reguláveis, versáteis e autodidatas. O mais próximo de um adversário humano que se desenvolveu desde o Jihad.

Leto sentiu um calafrio, e pensou em todas as advertências de sua mãe. Se estivesse presente, estaria apontando um dedo acusador e assentiria satisfeita. Leto olhou para o ovóide.

— Está dizendo que esta coisa tem cérebro?

— Por todos os Santos e pecadores, insinua que violamos as restrições impostas depois da Grande Revolução? — replicou o capitão Zhaz, estupefato —. “Não construirá uma máquina a semelhança da mente humana.”

— Somos muito, er, cuidadosos com isso, Leto — disse Rhombur, enquanto secava o suor da nuca com uma toalha púrpura —. Não há nada com que se preocupar.

Leto não se conformou.

— Bem, se o mek escanear as pessoas, se as prevê, como você disse, como processa a informação? Senão mediante um cérebro eletrônico, como? Isto não é só um aparelho sensível. Aprende e adapta seus ataques.

Kailea tomou notas no caderno de cristal e dominou um dos cachos dourados de seu cabelo acobreado escuro.

— Há muitas zonas cinzentas, Leto, e se agirmos com cautela a Casa Vernius obterá tremendos benefícios. — Passou um dedo por seus lábios curvos —. De qualquer modo, o melhor séria oferecer alguns modelos sem marca no mercado negro, afim de sondar as perspectivas.

— Não se preocupe, Leto — disse Rhombur, para encerrar o tema incômodo. Gotas de suor caiam de seu cabelo loiro e sua pele estava avermelhada por causa do esforço —. A Casa Vernius conta com equipes de Mentats e conselheiros legais que examinam a lei até o último detalhe. — Olhou para sua irmã para que o apoiasse.

Ela assentiu com ar ausente.

Em alguma das sessões de instrução recebidas no Grand Palais, Leto tinha aprendido sobre disputas de patentes interplanetárias, tecnicismos menores, regras sutis. Os ixianos tinham descoberto uma forma substancialmente diferente de utilizar aparelhos mecânicos para processar dados, uma forma que não conjurava o espectro das máquinas pensantes, como as que tinham escravizado à humanidade durante tantos séculos? Não entendia como a Casa Vernius podia ter criado um mek de combate autodidata, sensível e regulável sem ter violado a proibição da Jihad.

Se sua mãe soubesse, ordenaria que voltasse para casa, por mais que seu pai se opusesse.

— Vamos ver se é um produto tão bom como diz — disse Leto. Agarrou uma arma e deu as costas a Kailea. Sentiu os olhos da jovem cravados em seus ombros nus, nos músculos de suas costas. Zhaz retrocedeu para ver melhor.

Leto passou a lança de uma mão para a outra, adotou uma posição de combate clássica e gritou para a forma oval um grau de dificuldade.

— Sete ponto vinte e quatro!

Oito pontos mais alta que antes.

O mek não se moveu.

— Muito alta — disse o professor de treinamento, e adiantou sua mandíbula barbada —. desconectei os níveis altos por causa de sua periculosidade.

Leto franziu o cenho. O instrutor de combate não queria que seus estudantes sofressem o menor percalço. Thufir Hawat teria rido dessa presunção.

— Pretende se exibir para a jovem dama, maese Atreides? Poderia acabar morto.

Olhou para Kailea, que também o observava mas com uma expressão zombeteira. Baixou a vista para o caderno riduliano e riscou mais algumas cifras. Leto se ruborizou. Zhaz agarrou uma toalha de uma prateleira e a lançou para Leto.

— A sessão terminou. As distrações deste tipo não são boas para seu treinamento, e podem causar feridas graves. — voltou-se para a princesa —. Lady Kailea. Peço-lhe que não entre na sala de treinamento quando Leto Atreides estiver combatendo com nossos meks. Muitas hormônios soltos no ar! — O capitão da guarda não podia dissimular sua diversão —. Sua presença poderia ser mais perigosa que a de qualquer inimigo.

 

Temos que fazer uma coisa em Arrakis que jamais se tentou em escala planetária. Temos que utilizar o homem como uma força ecológica construtiva, introduzindo vida terraformada e adaptada: uma planta aqui, um animal ali, um homem em tal lugar, afim de transformar o ciclo da água e construir um novo tipo de paisagem.

Relatório do planetólogo imperial

Pardot Kynes, dirigido ao imperador Padishah Elrood IX (não enviado)

 

Quando os Fremen manchados de sangue pediram a Pardot Kynes que os acompanhasse, já não sabia se era seu convidado ou, ao contrário, seu prisioneiro. Em qualquer caso, a perspectiva o intrigava. Por fim teria a oportunidade de experimentar em pessoa sua misteriosa cultura.

Um dos jovens transportou seu companheiro ferido até o pequeno veículo terrestre de Kynes. O outro Fremen esvaziou os compartimentos posteriores das amostras geológicas que tanto lhe tinham custado recolher, afim de deixar local. O planetólogo estava muito estupefato para protestar. Além disso, não queria contrariar aquela gente. Queria aprender muito mais sobre eles.

Em questão de momentos guardaram os cadáveres dos soldados Harkonnen nos recipientes, com algum propósito ignorado. Talvez uma profanação ritual de seus inimigos. Descartou a improvável possibilidade de que os jovens queriam enterrar os mortos. Ocultam os cadáveres pelo temor de represálias? Isso tampouco o convencia, não se encaixava com o pouco que sabia sobre os Fremen. Eles os levam para obter algo, talvez a água de suas malhas?

Então, sem perguntar, sem agradecer nem fazer comentários, o primeiro Fremen se afastou a toda velocidade no veículo, com seu companheiro ferido e os cadáveres dos soldados. Kynes o viu partir, junto com seu equipamento de sobrevivência no deserto e os mapas, incluídos muitos que ele tinha esboçado.

Ficou sozinho com o terceiro jovem. Guardião ou amigo? Se os Fremen pretendiam abandoná-lo sem provisões, não demoraria para morrer. Possivelmente poderia orientar-se e voltar a pé para o povoado de Windsack, mas tinha prestado pouca atenção à convocação dos centros de população durante suas recentes vadiagens. Um final ingrato para um planetólogo imperial, pensou.

Ou talvez os jovens que tinha salvado queriam algo mais dele. Devido aos sonhos que tinha forjado para o futuro de Arrakis, Kynes desejava conhecer os Fremen e seus costumes heterodoxos. Aquela gente representava um valioso tesouro, oculto dos olhos imperiais. Pensou que lhe dariam boas-vindas entusiásticas quando lhes contasse suas idéias.

O jovem Fremen utilizou um pequeno jogo de emplastros para cobrir um rasgão na perna da calça do traje.

— Venha comigo — disse a seguir. voltou-se para uma muralha de rocha que se elevava a pouca distância —. Siga-me, ou morrerá aqui. — Dirigiu-lhe um breve olhar com seus olhos anil —. Acha que os Harkonnen demorarão muito em querer vingar seus mortos? — ironizou.

Kynes correu para ele.

— Espere! Você ainda não me disse seu nome.

O jovem olhou para ele de uma maneira estranha. Tinha as íris e as córneas azuis, o que revelava um longo vício em especiaria, e uma pele curtida pelas intempéries que o fazia parecer mais velho.

— Vale a pena trocar nomes? Os Fremen já sabem quem você é.

Kynes piscou.

— Bem, acabo de salvar sua vida, a sua e a de seus companheiros. Isso não é importante para seu o povo? Na maioria das sociedades é.

O jovem se sobressaltou, mas pareceu resignar-se.

— Tem razão. Você forjou um vínculo de água entre nós. Me chamo Turok. Bem, temos que ir.

Um vínculo de água? Kynes seguiu seu acompanhante.

Turok subiu pelas rochas em direção à parede vertical. Kynes o seguia como melhor podia. Só quando se aproximaram o planetólogo observou uma descontinuidade nos estratos, uma fenda que partia a rocha levantada, formando uma fissura camuflada pelo pó e cores apagadas.

O Fremen mergulhou nas sombras da rachadura com a velocidade de um lagarto do deserto. Kynes seguiu a bom passo, picado pela curiosidade e angustiado pela possibilidade de se perder. Esperava conhecer mais Fremen e aprender seus costumes. Nem sequer perdeu tempo em pensar que talvez Turok o conduzisse a uma armadilha. Do que serviria? O jovem poderia tê-lo matado com facilidade em qualquer momento.

Turok se deteve para que Kynes o alcançasse. Apontou para lugares concretos na parede que se elevava perto.

— Aqui, aqui e aqui.

Sem esperar para ver se seu acompanhante tinha entendido, o jovem apoiou os pés nos lugares indicados.

Apoios para mãos e pés quase invisíveis. O jovem subiu pela parede, e Kynes tentou imitá-lo. Parecia que Turok estava brincando com ele, ou possivelmente o testando.

Mas o planetólogo o surpreendeu. Não era um burocrata repleto de água nem um inepto. Como tinha explorado e percorrido os planetas mais duros do Império, estava em boa forma.

Kynes não ficou para trás, e utilizou as pontas dos dedos para içar seu corpo. Momentos depois, o rapaz Fremem parou e se agachou sobre um saliente estreito. Kynes se sentou a seu lado e procurou não ofegar.

— Aspire pelo nariz e espire pela boca — disse Turok —. Seus filtros são mais eficazes assim. Acho que conseguirá chegar ao sietch.

— O que é um sietch? — perguntou Kynes. Reconheceu vagamente o antigo idioma Chakobsa,[2] mas não tinha estudado sua arqueologia ou fonética. Sempre o considerara irrelevante para seus estudos científicos.

— Um lugar secreto onde refugiar-se. Ali vive meu povo.

— Quer dizer que é sua casa?

— O deserto é nossa casa.

— Desejo muito falar com os seus — disse Kynes e, incapaz de conter seu entusiasmo, completou —: Formei certas opiniões sobre este planeta e também desenvolvi um plano que talvez os interesse, que possivelmente interesse a todos os habitantes de Arrakis.

— Dune — replicou o Fremen —. Só os imperiais e os Harkonnen chamam a este lugar de Arrakis.

— De acordo. Que seja Dune.

 

No coração das rochas um Fremen velho e grisalho, caolho de um olho aguardava. A órbita vazia estava coberta por uma massa enrugada de pálpebras flexíveis. Naib do sietch Fremen, Heinar também tinha perdido dois dedos em um duelo com facas crys, quando era jovem. Mas tinha sobrevivido, e seus inimigos não.

Heinar demonstrara ser um líder severo mas competente. Com os anos, o sietch tinha prosperado, a população não tinha diminuído e suas reservas ocultas de água aumentavam com cada ciclo das luas.

Na caverna que servia de enfermaria, duas anciãs atendiam o imprudente Stilgar, o jovem ferido que tinha chegado em um veículo terrestre momentos antes. As anciãs checaram a bandagem que o forasteiro tinha aplicado, e a melhoraram com alguns de seus medicamentos. As bruxas conferenciaram entre si e depois assentiram para o líder do sietch.

— Stilgar viverá, Heinar — disse uma delas —. A ferida seria mortal se não tivesse sido atendido imediatamente. O forasteiro o salvou.

— O forasteiro salvou um louco irresponsável — disse o naib com a vista cravada no jovem estendido na cama de armar.

Durante semanas tinham chegado aos ouvidos de Heinar informes preocupantes sobre um forasteiro. Agora, esse homem, Pardot Kynes, era conduzido até o sietch por uma rota diferente, através de passadiços de rocha. As ações do forasteiro eram desconcertantes. Um servidor imperial que matava Harkonnen?

Ommun, o jovem Fremen que tinha acompanhado Stilgar até o sietch, esperava angustiado junto ao seu amigo ferido nas sombras da cova. Heinar olhou para o jovem, e deixou que as mulheres continuassem atendendo seu paciente.

— O que íamos fazer, Heinar? — Ommun parecia surpreso—. Eu necessitava do seu veículo para trazer Stilgar aqui.

— Podia ter pego o veículo terrestre e todas as posses desse homem, e doado sua água para a tribo — disse o naib em voz baixa

— Ainda podemos fazê-lo — disse uma das mulheres com voz áspera, — assim que Turok chegar com ele.

— Mas o forasteiro atacou e matou os Harkonnen! Nós três teríamos morrido se não fosse por sua intervenção — insistiu Ommun —. Por acaso não se diz que o inimigo de meu inimigo é meu amigo?

— Não confio na lealdade deste indivíduo, e nem sequer a entendo — disse Heinar, enquanto cruzava seus robustos braços sobre o peito —. Sabemos quem é, é obvio. O forasteiro foi enviado pelo Império. Dizem que é planetólogo. Está em Dune porque os Harkonnen se viram obrigados a lhe permitir trabalhar, mas só responde ao imperador... se é que responde para alguém. Há muitas perguntas sem resposta a respeito dele.

Heinar se sentou em um banco de pedra esculpido na parede. Uma tapeçaria de fibras trançadas pendia sobre a abertura da porta, o que proporcionava uma escassa intimidade. Os habitantes do sietch tinham aprendido que a intimidade estava na mente, não no ambiente.

— Falarei com este Kynes e descobrirei o que quer de nós, por que defendeu três jovens estúpidos e despreocupados contra um inimigo que não o incomodava. Depois, levarei o assunto ao Conselho de Anciões e eles decidirão. Temos que adotar as medidas que mais beneficiem o sietch.

Ommun tragou engoliu em seco e recordou a valentia com que Kynes tinha lutado contra os soldados. Não obstante, seus dedos deslizaram até a bolsa guardada em seu bolso, para contar as medidas de água que continha, anéis de metal que indicavam a riqueza acumulada que tinha na tribo.

Se os anciões decidissem matar o planetólogo, Turok, Stilgar e ele dividiriam o tesouro de água em partes iguais, junto com a recompensa pelos seis Harkonnen mortos.

 

Quando Turok o guiou por fim através das aberturas dissimuladas e uma porta, e entraram no sietch propriamente dito, Kynes imaginou o lugar como uma cova de infinitas maravilhas. Os aromas eram densos e impregnados de humanidade. Aromas de vida, da população encerrada, a comida, dejetos ocultos, até mesmo da morte aproveitada através de procedimentos químicos. Confirmou suas suspeitas de que os jovens Fremen não haviam roubado os corpos dos Harkonnen para realizar alguma espécie de mutilação supersticiosa, mas que pretendiam se apoderar da água de seus corpos. Do contrário os teriam abandonado...

Kynes tinha suposto que, quando encontrasse por fim um povoado Fremen, este seria primitivo, sem comodidades. Mas ali, nessa gruta secreta, com covas laterais, passadiços de lava e túneis que se estendiam como uma rede através da montanha, Kynes percebeu que o povo do deserto vivia de uma forma austera mas confortável. Os aposentos rivalizavam com aqueles que os funcionários Harkonnen na cidade de Carthag desfrutavam. E eram mais ecológicos.

Enquanto Kynes seguia a seu jovem guia, sua atenção saltava de uma visão fascinante a outra. Magníficas tapeçarias tecidas a mão cobriam partes do chão. Almofadões e mesas baixas feitas de metal e pedra polida adornavam as habitações laterais. Os artigos de madeira extra planetária eram escassos e muito antigos: um verme de areia esculpido e um jogo de mesa fabricado de marfim ou osso.

Uma máquina antiga reciclava o ar do sietch, e impedia que escapasse a menor umidade. Percebeu o penetrante aroma de canela da especiaria bruta, como incenso, mas que dissimulava o fedor de corpos suados em estadias estreitas.

Ouviu vozes de mulheres e crianças, e o pranto de um menino, sempre em voz baixa. Os Fremen falavam entre si e olharam para o forasteiro com desconfiança quando passou acompanhado de Turok. Alguns anciões lhe dedicaram olhares maliciosos. Sua pele parecia ressecada e acartonada. Todos os olhos eram azuis.

Por fim, Turok indicou a Kynes que se detivesse no interior de uma ampla sala de reuniões, uma cripta natural dentro da montanha. A gruta contava com espaço suficiente para albergar centenas de pessoas em pé. Além disso, bancos e galerias subiam em ziguezague até os muros de apoio. Quanta gente vive neste sietch? Kynes ergueu a vista para um balcão elevado, talvez uma tribuna para discursos.

Ao fim de um momento, um orgulhoso ancião se adiantou e olhou com desdém para o visitante. O homem só tinha um olho e se movia com o porte de um líder.

— Este é Heinar — sussurrou Turok em seu ouvido —, o naib de nosso sietch.

Kynes ergueu uma mão em saudação.

— É um prazer conhecer o líder desta prodigiosa cidade — proclamou.

— Que quer de nós, homem do Império? — perguntou Heinar, inflexível. Suas palavras ressonaram como aço contra a pedra.

Kynes respirou fundo. Tinha esperado esta oportunidade durante muitos dias. Para que perder tempo? Quanto mais demoravam os sonhos em materializar-se, mais difícil seria transformá-los em realidade.

— Sou Pardot Kynes, planetólogo do imperador. Tive uma visão, senhor, um sonho para você e para seu povo. Desejo compartilhá-lo com todos os Fremen, se me escutarem.

— É melhor escutar o vento quando atravessa um arbusto de creosoto que perder tempo com as palavras de um néscio — replicou o líder do sietch com autoridade, como se se tratasse de um velho adágio daquele povo.

Kynes olhou para ele e, com a esperança de causar boa impressão, replicou:

— Mas se alguém se nega a escutar palavras de verdade e esperança, quem é mais néscio?

O jovem Turok afogou uma exclamação. Alguns curiosos que observavam a cena de corredores laterais olharam para Kynes com os olhos arregalados, assombrados de que falasse com seu naib com tanta audácia.

O rosto de Heinar se endureceu. encolerizou-se e imaginou o planetólogo degolado no chão da caverna. Apoiou a mão sobre o cabo de sua faca.

— Põe em dúvida minha liderança?

O naib desembainhou a folha curva e fulminou Kynes com o olhar, mas ele não cedeu.

— Não, senhor. Ponho em dúvida sua imaginação. Vocês são valentes o bastante para realizar a tarefa, ou estão muito assustados para escutar o que tenho a dizer? — O líder do sietch continuava tenso. Kynes sorriu com expressão sincera —. É difícil falar com você enquanto estiver aí em cima, senhor.

Heinar deu um sorriso e contemplou sua faca.

— Uma vez desembainhado, o crys não pode ser guardado de novo sem provar sangue.

Fez um corte no antebraço, onde apareceu uma fina linha vermelha que se coagulou em segundos.

Os olhos de Kynes brilharam de entusiasmo, refletiram a luz projetada pelos cachos de globos luminosos flutuando na ampla sala de reuniões.

— Muito bem, planetólogo. Falará até que o fôlego se esgote em seus pulmões. Como seu destino ainda não está decidido, ficará no sietch até que o Conselho de Anciões decida o que fazer com você.

— Mas antes me escutarão — respondeu Kynes.

Heinar deu meia volta, afastou-se um passo do balcão elevado e falou sem se virar.

— É um homem estranho, Pardot Kynes. Um servidor imperial e um convidado dos Harkonnen. Por definição, é nosso inimigo. Mas também matou os cães Harkonnen. Nos colocou em um pequeno dilema!

O líder do sietch ordenou que preparassem uma habitação para aquele alto e curioso planetólogo, que seria seu prisioneiro e convidado ao mesmo tempo.

E enquanto se afastava Heinar pensou: Qualquer homem que deseje dizer palavras de esperança aos Fremen, depois de tantas gerações de sofrimentos e peregrinações... ou está louco ou é muito valente.

 

Acredito que meu pai só teve um verdadeiro amigo. Foi o conde Cachemir Fenring, o eunuco genético e um dos guerreiros mais implacáveis do império.

De Na casa de meu pai, pela princesa Irulan.

 

Mesmo da câmara mas alta do observatório imperial, o brilho da opulenta capital apagava o brilho das estrelas sobre Kaitain. Construído séculos antes pelo culto imperador Padishah Raphael Corrino, seus herdeiros recentes tinham utilizado pouco o observatório, ao menos não para seu propósito de estudar os mistérios do universo.

O príncipe herdeiro Shaddam percorria com passos breves o frio chão metálico, enquanto Fenring brincava com os controles de um estelarscopio de alta potencia. O eunuco genético cantarolava, e emitia sons insípidos e desagradáveis.

— Quer parar de fazer esses ruídos? — disse Shaddam —. Concentre-se nas malditas lentes.

Fenring continuou cantarolando apenas mais baixo.

— As regulagens têm que conservar um equilíbrio muito preciso, hummmm? Prefere que o estelarscopio seja perfeito em vez de rápido.

Shaddam grunhiu.

— Não me perguntou o que preferia.

— Decidi por você. — Levantou-se e executou uma reverência de uma formalidade irritante —. Meu senhor príncipe, ofereço-lhe uma imagem da órbita. Veja com seus próprios olhos.

Shaddam aplicou o olho ao visor até que uma forma adquiriu uma definição surpreendente. A imagem oscilava entre uma resolução sem mácula e escuras ondulações provocadas pela distorção atmosférica.

O gigantesco Cruzeiro tinha o tamanho de um asteróide. Flutuava sobre Kaitain e aguardava a chegada de uma flotilha de naves pequenas vindas da superfície. Um leve movimento chamou a atenção de Shaddam, que divisou os brilhos de motores quando as fragatas separaram de Kaitain com diplomatas e emissários a bordo, seguidas por transportes repletos de artefatos e carregamento da capital imperial. As fragatas eram imensas, flanqueadas por esquadrilhas de naves menores, mas a curva do casco do Cruzeiro diminuía todo o resto.

Ao mesmo tempo, outras naves abandonaram o Cruzeiro e desceram para a capital.

— Delegações — disse Shaddam —. Trazem tributos a meu pai.

— Impostos, na realidade... De tributos, nada — assinalou Fenring —. É a mesma coisa, em um sentido passado de moda, é obvio. Elrood ainda é seu imperador, hummmm?

O príncipe herdeiro o fulminou com o olhar.

— Mas durante quanto tempo mais? Seu maldito chaumurky vai demorar décadas? — Shaddam se esforçava por falar em voz baixa, embora geradores de ruído branco subsônicos distorcessem suas vozes para frustração de todos os aparelhos de escuta —. Não pôde encontrar um veneno diferente, mais rápido? A espera está me enlouquecendo! Quanto tempo já passou? Não durmo bem há um ano.

— Acredita que teríamos de ter planejado um assassinato mais rápido? Não é aconselhável. — Fenring voltou a postar-se ante o estelarscopio e ajustou os rastreadores automatizados para que seguissem a órbita do Cruzeiro —. Tenha paciência, meu senhor príncipe. Lembre-se que quando sugeri o plano, já tinha se resignado a esperar durante décadas. Que são um ano ou dois, comparados com a longevidade de seu reinado, hummmm?

Shaddam afastou Fenring com uma cotovelada para não ter que olhar para seu cúmplice na conspiração.

— Agora que por fim pusemos o mecanismo em ação, aguardo com impaciência a morte de meu pai. Não me conceda tempo para refletir a respeito e me arrepender de minha decisão. Morrerei de impaciência antes de subir ao Trono do Leão Dourado. Eu estava destinado a reger os destinos do Império, Hasimir, mas alguns dizem que jamais gozarei dessa oportunidade. Até tenho medo de me casar e ter filhos, por culpa disso.

Se esperava que Fenring tentasse convencê-lo do contrário, seu amigo o decepcionou com um silêncio absoluto.

Fenring voltou a falar ao cabo de alguns segundos.

— O n'kee é um veneno lento por definição. Trabalhamos muito para levar a cabo nosso plano. Sua impaciência só pode prejudicá-lo. Uma ação mais precipitada despertaria suspeitas no Landsraad, hummmm? Aferrariam-se a qualquer fio solto, a qualquer escândalo, para minar sua posição.

— Mas eu sou o herdeiro da Casa Corrino! — disse Shaddam, e baixou a voz até transformá-la em um sussurro rouco —. Como podem duvidar de meu direito?

— E sobe ao trono imperial com toda sua bagagem, todas suas obrigações, antagonismos passados e prejuízos. Não se engane, meu amigo. O imperador é apenas uma força considerável entre muitas que formam a delicada malha de nosso Império. Se todas as Casas se aliassem contra nós, nem sequer as poderosas legiões Sardaukar de seu pai poderiam contê-las. Ninguém se atreve a correr esse risco.

— Quando subir ao trono, tenho a intenção de fortalecer meu título.

Shaddam se afastou do estelarscopio.

Fenring meneou a cabeça com tristeza.

— Apostaria um porão de carga cheio de peles de baleia que quase todos os seus predecessores juraram o mesmo a seus conselheiros desde a Grande Revolução. — Respirou fundo e arqueou seus grandes olhos escuros —. Mesmo que o n'kee funcione como planejamos, resta um ano de espera, no mínimo... então é melhor se acalmar. Console-se com os crescentes sintomas de envelhecimento que vimos em seu pai. Incentive-o a beber mais cerveja de especiaria.

Shaddam, irritado, voltou para o aparelho e estudou as articulações do casco ao longo do Cruzeiro, a marca dos estaleiros ixianos e a sigla da Corporação Espacial. O hangar estava cheio de frotas de fragatas de diversas Casas, carregamentos atribuídos a CHOAM e preciosos registros destinados aos arquivos bibliotecários de Wallach IX.

— A propósito, a bordo do Cruzeiro viaja alguém interessante — disse Fenring.

— Ah, sim?

Fenring cruzou os braços sobre seu peito estreito.

— Uma pessoa que aparenta ser um simples vendedor de arroz pundi e raiz de chikarba, a caminho de uma estação de trânsito Tleilaxu. Leva sua mensagem para os Amos Tleilaxu, sua proposta de se reunir com eles e negociar um investimento imperial secreto em um projeto de grande escala destinado a encontrar um substituto para a melange.

— Minha proposta? Eu não propus nada! — Uma expressão de asco cruzou a cara de Shaddam.

— Hummmm, creio que realmente o fez, meu príncipe. A possibilidade de utilizar os heterodoxos Tleilaxu não significa desenvolver uma especiaria sintética? Teve uma magnífica idéia! Mostre a seu pai como é preparado.

— Não me jogue a culpa, Hasimir. A idéia foi sua.

— Não quer receber o reconhecimento?

— Absolutamente.

Fenring arqueou as sobrancelhas.

— Você realmente pretende acabar com o monopólio de Arrakis e proporcionar à Casa Imperial uma fonte de melange particular e ilimitada, não é?

Shaddam sorriu.

— Claro que sim.

— Então traremos um Amo Tleilaxu em segredo para que presente sua proposta ao imperador. Logo saberemos até onde o velho Elrood pretende chegar.

 

A cegueira pode adotar muitas formas, além da incapacidade de ver. Seus pensamentos almejam cegar os fanáticos. Seus corações almejam cegar a todos os líderes.

Bíblia Católica Laranja

 

Durante meses, Leto tinha vivido na cidade subterrânea do Vernii como convidado de honra de IX. Já tinha se acostumado à singularidade de seu novo ambiente, à rotina e à confiante segurança ixiana, o suficiente para esquecer toda precaução.

O príncipe Rhombur sempre acordava tarde, enquanto Leto, justamente o contrário, era um madrugador como os pescadores de Caladan. O herdeiro Atreides vagava sozinho pelos edifícios similares a estalactites, aproximava-se das janelas de observação e contemplava os processos de desenho e manufaturas ou as cadeias de montagem. Aprendeu a utilizar os sistemas de trânsito e descobriu que o cartão de biopasse que o conde Vernius lhe dera abria muitas portas.

Leto aprendeu mais com suas vadiagens e sua voraz curiosidade que nas sessões pedagógicas com seus diversos professores. Como recordava o conselho do seu pai, que devia aprender de tudo, utilizava os tubos de ascensão autoguiado. Quando não havia nenhum disponível, acostumou-se às passarelas, os elevadores de carga ou as escadas que comunicavam os níveis entre si.

Uma manhã, depois de vagar descansado e inquieto, subiu até um dos átrios superiores e saiu para uma galeria de observação. Embora fossem fechadas hermeticamente, as cavernas de IX eram tão imensas que contavam com suas próprias correntes de ar, embora não resistissem a comparação com as torres do castelo e os penhascos açoitados pelo vento de seu lar. Respirou fundo. O ar sempre cheirava a pó de rocha. Ou talvez fosse sua imaginação?

Leto esticou os braços e olhou para a imensa gruta que tinha guardado o Cruzeiro da Corporação. Entre os restos do andaime e da maquinaria de apoio, distinguiu o esqueleto de outro imenso casco, soldado por equipes de subóides. Reparou que os habitantes dos níveis inferiores trabalhavam com a eficácia de insetos.

Uma plataforma de carga passou sob a galeria em sua descida gradual para a zona de trabalho. Leto se inclinou sobre o corrimão e viu que a superfície da plataforma estava carregada de minerais brutos arrancados da casca do planeta.

Guiado por um impulso, subiu sobre o corrimão e saltou sobre um montão de vigas e pranchas destinadas ao Cruzeiro. Supôs que encontraria uma forma de subir de novo até os edifícios estalactite, utilizando seu cartão de biopasse e seu sentido da orientação. Um piloto, situado sob a plataforma, guiava a carga. Não pareceu reparar em seu passageiro inesperado, ou possivelmente não se importou.

Brisas frescas alvoroçaram o cabelo de Leto enquanto descia para a superfície. Pensou nos ventos dos oceanos e respirou fundo. Sob a imensa abóbada do teto sentiu uma liberdade que lhe recordou a beira do mar, e também uma dolorosa saudade das brisas oceânicas de Caladan, do bulício do mercado, das estentóreas gargalhadas de seu pai e até mesmo das preocupações de sua mãe.

Rhombur e ele passavam muito tempo confinados nos edifícios de IX, e Leto sentia falta da carícia do ar fresco e do vento frio em seu rosto. Possivelmente pediria a Rhombur que o acompanhasse à superfície de novo. Os dois poderiam vagar pelos territórios desertos e contemplar o céu infinito, e Leto poderia estirar os músculos e sentir o calor do sol, em vez da iluminação holográfica desdobrada no teto da caverna.

Embora o príncipe ixiano não fosse um guerreiro comparável a Leto, tampouco era o típico menino mimado das Grandes Casa. Tinha interesses próprios, e gostava de colecionar rochas e minerais. Rhombur era afável e generoso, e muito otimista, mas não se devia interpretar mal seu caráter. Por baixo daquela fachada aprazível havia uma fria determinação e desejo de se destacar em todas as atividades.

Na gigantesca gruta dedicada à fabricação os suportes e gruas elevadoras estavam sendo preparados para o novo Cruzeiro, que já estava tomando forma. Equipamento e maquinaria esperavam perto, e planos holográficos brilhavam no ar. Mesmo com todos os recursos e massas enormes de operários subóides, uma nave de tais características necessitava de quase um ano para sua construção. O custo de um Cruzeiro equivalia ao produto interno bruto de muitos planetas, de maneira que só a CHOAM e a Corporação podiam financiar projetos semelhantes, enquanto a Casa Vernius, como fabricante, recebia benefícios incríveis.

A dócil classe operária de IX superava em muito os administradores e nobres. No chão da gruta, portas baixas construídas na rocha sólida serviam de entrada para as moradias. Leto nunca tinha visitado os subóides, mas Rhombur lhe havia assegurado que as classes baixas eram bem atendidas. Leto sabia que as equipes trabalhavam todo o dia na construção das naves. Os subóides davam a pele pela Casa Vernius.

A plataforma de carga desceu levitando para o chão da caverna, e equipes de trabalhadores foram descarregar os materiais. Leto saltou e aterrissou agachado. Levantou-se e sacudiu a roupa. Os dóceis subóides tinham a pele pálida, salpicada de sardas. Olharam para ele com olhos de cordeiro antes de prosseguir suas tarefas.

Pelo que Rhombur e Kailea lhe tinham contado, Leto imaginava que os subóides eram menos que humanos, musculosos trogloditas sem mente que se limitavam a trabalhar e suar. Mas as pessoas que o rodeavam teriam passado por normais em qualquer lugar. Talvez não fossem cientistas ou diplomatas, mas tampouco pareciam animais.

Com os olhos totalmente abertos, Leto caminhou pela gruta enquanto observava os trabalhos de construção do Cruzeiro de uma distância prudente. Admirou a organização de uma obra tão incrível. O ar estava impregnado do aroma acre de solda laser e materiais fundidos.

Os subóides seguiam um plano preciso, e utilizavam instruções minuciosas como se formassem um organismo múltiplo. Concluíam cada fase do projeto sem se afligir com a quantidade de trabalho que ainda restava. Os subóides não conversavam nem se alvoroçavam como os pescadores, fazendeiros e operários de Caladan. Estes trabalhadores de pele pálida só se concentravam em suas tarefas.

Imaginou um ressentimento bem dissimulado, uma ira latente abaixo daquelas serenas caras pálidas, mas não teve medo. O duque Paulus sempre tinha animado Leto a brincar com os meninos das aldeias, a sair nos barcos de pesca, a misturar-se com mercadores e tecedores no mercado. Até tinha passado um mês trabalhando nos arrozais pundi. Para saber governar o povo — dizia o velho duque — antes precisa compreendê-lo.

Sua mãe tinha desaprovado essas atividades, é obvio, insistindo que o filho de um duque não devia sujar as mãos com o barro dos arrozais, a roupa com o lodo de uma captura de pescado. “De que servirá para nosso filho saber esfolar e estripar um pescado? Será o governante de uma Grande Casa.” Mas os desejos de Paulus Atreides eram lei.

E Leto devia admitir que, face aos músculos doloridos e a pele queimada pelo sol, aqueles momentos de trabalho duro o tinham satisfeito de uma forma que nem grandes banquetes ou recepções no castelo de Caladan conseguiram. Como resultado, acreditava compreender às pessoas comuns, seus sentimentos e sua dedicação ao trabalho. Leto era grato por isso. O velho duque se sentia muito orgulhoso de seu filho, por compreender algo tão fundamental.

Enquanto passeava entre os subóides, Leto tentou compreendê-los da mesma maneira. Potentes globos luminosos flutuavam sobre o estaleiro. A gruta era tão enorme que os ruídos não despertavam ecos, mas desapareciam na distância.

Viu uma das entradas dos túneis inferiores, e decidiu que séria uma boa oportunidade para descobrir mais coisas sobre a cultura subóide. Talvez descobrisse algo que até Rhombur ignorava.

Quando uma equipe de operários saiu por uma arcada, vestidos com seus macacões de trabalho, Leto entrou. Vagou pelos túneis descendentes, passeou em frente a moradias escavadas na rocha, dependências idênticas e espaçosas que lhe recordaram as câmaras de uma colméia. de vez em quando, não obstante, percebia toques caseiros: tecidos ou tapeçarias de cores vivas, alguns desenhos nas paredes de pedra. Sentiu o aroma de comida, ouviu conversas em voz baixa, mas nenhuma música e poucas risadas.

Pensou nos dias passados estudando nos arranha-céu invertidos das alturas, com seus pisos polidos e janelas de cristalplaz facetados, as camas macias, as roupas confortáveis e as comidas saborosas.

Em Caladan, os cidadãos comuns podiam pedir audiência ao duque sempre que quisessem. Leto recordou que seu pai e ele passeavam pelos mercados, falavam com os mercadores e artesãos, permitiam que os vissem e o tratassem como a pessoas reais, em vez de governantes sem rosto.

Pensou que Dominic Vernius não tinha consciência das diferenças que existiam entre ele e seu camarada Paulus. O conde calvo e robusto dedicava toda sua atenção e entusiasmo a sua família e aos trabalhadores mais próximos, prestava atenção às operações industriais e na política econômica que escoravam a fortuna de IX, mas Dominic considerava os subóides simples recursos. Sim, cuidava bem deles, do mesmo modo que cuidava da manutenção de sua preciosa maquinaria. Mas Leto se perguntava se Rhombur e sua família tratavam os subóides como pessoas.

Já tinha descido muitos níveis, e notou a incômoda sensação do ar estagnado. Os túneis se tornavam mais escuros e desertos. Os silenciosos corredores conduziam a estadias abertas, zonas comunais onde ouviu vozes e roçar de corpos. Esteve a ponto de se afastar, sabendo que tinha estudos e conferências sobre operações mecânicas e processos industriais. Era muito provável que Rhombur não tivesse tomado o café da manhã ainda.

Leto se deteve na arcada e viu vários subóides em uma sala de descanso. Não havia assentos nem bancos, de modo que todos estavam de pé. Escutou as monótonas e desapaixonadas palavras de um subóide baixo e musculoso que se erguia ao fundo da sala. Em sua voz e no fogo de seus olhos detectou emoções peculiares, tendo em conta o que sabia sobre os subóides, quer dizer, que eram pacíficos e resignados.

— Nós construímos os Cruzeiros — disse o subóide, e ergueu um pouco mais a voz —. Fabricamos os objetos tecnológicos, mas não tomamos nenhuma decisão. Fazemos o que nos ordena, mesmo quando sabemos que os projetos são ímpios.

Os subóides começaram a murmurar.

— Algumas das novas tecnologias violam o que está proibido pela Grande Revolução. Estamos criando máquinas pensantes. Não precisamos compreender os planos e os desenhos, porque sabemos para que servirão.

Leto voltou para as sombras da arcada. Como tinha convivido freqüentemente com gente comum, não sentia medo, mas algo estranho estava acontecendo ali. Sentiu vontade de fugir, mas precisava escutar.

— Como somos subóides não gozamos dos benefícios da tecnologia ixiana. Vivemos com simplicidade e poucas ambições, mas temos nossa religião. Lemos a Bíblia Católica Laranja e sabemos distinguir o bom do mau. — O orador ergueu um punho —. E sabemos que muitas das coisas que estamos fabricando aqui não são boas!

O público se agitou de novo, a ponto de enfurecer-se. Rhombur tinha insistido que os subóides não eram ambiciosos, pois careciam de capacidade para isso. Mas Leto estava vendo algo muito diferente.

O orador entreabriu os olhos e falou com tom detestável.

— O que vamos fazer? Devemos exigir respostas dos nossos amos? Devemos fazer algo mais?

Passeou a vista pelos presentes e de repente, como duas flechas afiadas, seus olhos localizaram Leto entre as sombras da arcada.

— Quem é você?

Leto levantou as mãos.

— Sinto muito. Eu me perdi. Não queria incomodar. — Geralmente, sabia causar boa impressão, mas a confusão o atrapalhava.

Os subóides se voltaram para ele, e a compreensão iluminou seus olhos. Assimilaram as implicações do que Leto tinha ouvido.

— Sinto muito — disse Leto —. Não queria me intrometer.

Seu coração palpitava e o suor brilhava sua testa. Sentiu um perigo extremo.

Vários subóides avançaram para ele parecendo autômatos.

Leto lhes dedicou seu sorriso mais cordial.

— Se quiserem, falarei com o conde Vernius em seu nome e exporei suas queixas...

Os subóides não se detiveram. Leto pôs-se a correr pelos corredores de teto baixo, perseguido pelos subóides, que lançavam rugidos de raiva. Leto não recordava o caminho de volta à caverna...

O fato de ter se perdido o salvou. Os subóides tentavam interceptá-lo nos corredores que conduziam à superfície, mas Leto ia à deriva e se desviava aleatoriamente. Às vezes se escondia em nichos vazios, até que por fim chegou a uma pequena porta que dava para a câmara iluminada por globos luminosos. Correu para um elevador de emergência, passou seu cartão de biopasse pelo leitor e subiu para os níveis superiores.

Ainda tremulo por causa da descarga de adrenalina, Leto não acreditava no que acabava de escutar, e não sabia o que os subóides teriam feito se tivessem conseguido capturá-lo. Sua indignação o assombrara. Teoricamente não acreditava que o matassem, o filho do duque Atreides, o hóspede de honra da Casa Vernius. Afinal, tinha oferecido sua ajuda.

Mas estava claro que os subóides guardavam uma profunda violência, um rancor aterrador que tinham ocultado de seus amos indiferentes.

Leto se perguntou se haveria outros grupos de dissidentes, com oradores carismáticos como o que tinha escutado, capazes de entender a insatisfação da imensa população trabalhadora.

Enquanto subia no elevador, olhou para baixo e contemplou os operários, que interpretavam seu papel com total inocência. Devia informar sobre o que tinha ouvido. Alguém acreditaria? Certamente estava aprendendo sobre IX mais do que desejava.

 

A esperança pode ser a arma mais poderosa de um povo massacrado, ou o maior inimigo dos que estão a ponto de fracassar. Temos que estar sempre conscientes de suas vantagens e limitações.

Diário pessoal de lady Helena Atreides

 

Depois de semanas viajando sem destino aparente, a nave de carga saiu do Cruzeiro e descendeu para a atmosfera nebulosa de Caladan.

Para Duncan Idaho, o final de sua longa odisséia parecia próximo.

No hangar, Duncan empurrou uma pesada caixa. Suas quinas metálicas arranharam o chão metálico, mas por fim conseguiu afastá-la e aproximar-se de uma pequena porta. Duncan contemplou o planeta. Por fim, começou a acreditar.

Caladan. Meu novo lar.

Mesmo de uma órbita elevada, o aspecto do Giedi Prime era tenebroso e ameaçador, como uma ferida infectada. Mas Caladan, lar do lendário duque Atreides, inimigo mortal dos Harkonnen, parecia uma safira iluminada pelo sol.

Depois de tudo o que tinha passado, ainda lhe parecia impossível que a amargurada e traiçoeira Janess Milam tivesse cumprido sua palavra. Ela o resgatara por motivos misteriosos, para vingar-se, mas isso não importava a Duncan. Estava ali.

Tinha sido pior que o pesadelo que reviveu durante os dias passados no Cruzeiro a caminho de Caladan.

Na escuridão do Posto de Guarda Florestal, quando se aproximara do misterioso ornitóptero, a mulher o imobilizara. O menino lutou, mas Janess, com uma força surpreendente, o puxara para o interior do aparelho e fechado a escotilha. Duncan se debateu como um animal selvagem, tentando livrar-se de sua captora, mas Janess disse:

— Se não parar agora mesmo, Idaho, eu o entregarei aos caçadores Harkonnen.

E ligou os motores do ornitóptero. Duncan sentiu que um detestável zumbido percorria a pequena nave e vibrava no assento e no chão.

— Você já me vendeu uma vez para os Harkonnen! Foi você que enviou aqueles homens para matar meus pais. Você é o motivo de terem me treinado com tanta crueldade, e de que agora me caçarem. Sei o que fez!

— Sim, mas as coisas mudaram. — voltou-se para os controles —. depois do que me fizeram, não colaboro tom os Harkonnen.

Duncan, indignado, apertou os punhos. O sangue da ferida manchava sua camisa puída.

— O que lhe fizeram? — Não podia imaginar nada parecido à angústia que sua família e ele tinham suportado.

— Você não entenderia. É apenas um menino, outro de seus peões. — Janess sorriu enquanto a nave decolava —. Mas graças a você vou me vingar deles.

— Talvez seja só sou um menino, mas passei toda a noite lutando contra os Harkonnen. Vi Rabban matar meus pais. Quem sabe o que fizeram aos meus tios e primos?

— Duvido que alguém chamado Idaho continue vivo em Giedi Prime, sobretudo depois da humilhação que você lhes causou esta noite.

— Se fizeram isso, desperdiçaram energia em vão. Não conhecia meus parentes.

Janess aumentou a velocidade da nave, que sobrevoou as árvores enquanto se afastava da reserva de caça.

— Eu vou ajudá-lo a fugir dos caçadores, então feche o bico e se alegre. Não há escolha.

Pilotava a nave sem as luzes, com o som dos motores amortecido, mas Duncan não acreditava que pudesse escapar dos Harkonnen. Tinha matado vários caçadores e, ainda pior, tinha humilhado e zombado de Rabban. Duncan se permitiu um sorriso de satisfação e se deixou cair no assento contiguo ao de Janess, que tinha posto o cinto de segurança.

— Por que eu deveria confiar em você?

— Eu lhe pedi que confiasse? — Fulminou-o com o olhar —. Aproveite a situação.

— Vai me contar algo?

Janess guardou silêncio por alguns momentos antes de responder.

— É verdade, eu denunciei seus pais para os Harkonnen. Tinha ouvido rumores, sabia que seus pais tinham provocado a ira das autoridades, e os Harkonnen não gostam de quem os enfurece. Eu queria prosperar e compreendi que tinha a oportunidade ao alcance da mão. Pensei que receberia uma recompensa por denunciá-los Além disso, foram seus pais que provocaram seus próprios problemas. Cometeram erros. Eu só tentei me aproveitar disso. Não foi nada pessoal. De qualquer forma, se eu não o tivesse feito, outro os denunciaria.

Duncan franziu o sobrecenho e fechou os punhos. Oxalá tivesse a coragem de utilizar a faca contra aquela mulher, mas isso provocaria a queda do aparelho. Era sua única forma de escapar. No momento.

O rosto da mulher ficou irado.

— E o que os Harkonnen me deram em troca? Uma recompensa, uma promoção? Nada. Nem sequer obrigado. Só um tapa na boca. — Fez uma careta —. Não é fácil fazer algo assim. Acha que eu gostei? Mas em Giedi Prime as boas oportunidades são poucas, e já tinha deixado muitas passarem. Isso devia ter mudado minha situação, mas quando fui rogar um pouco de consideração, me expulsaram e ordenaram que não voltasse. Tudo por nada, o que é ainda pior. — Suas narinas se dilataram —. Ninguém faz isso com o Janess Milam sem pagar caro.

— E então você não faz isto por mim — disse Duncan —. Não se sente culpado pelo que fez, nem pela dor que causou a tantos inocentes. Só quer se vingar.

— Ouça, guri, aproveite as oportunidades quando se apresentarem.

Duncan ficou em silêncio e agarrou duas barras de cereal e uma garrafa de suco fechada. Começou a comer. As barras tinham gosto de canela, um potenciador de sabor utilizado para simular a melange.

— De nada — disse Janess com sarcasmo.

O moço não respondeu e continuou mastigando.

Durante toda a noite o ornitóptero sobrevoou as terras em direção a cidade de Barony. Por um momento, Duncan pensou que a mulher pensava em devolvê-lo a prisão, onde tudo recomeçaria. Introduziu a mão no bolso e tocou sua faca. Entretanto, Janess deixou a prisão para trás e continuou para o sul, passando por cima de uma dúzia de cidades e povoados.

Fizeram uma pausa de um dia, ocultaram-se durante a tarde e renovaram suas provisões em uma pequena estação de trânsito. Janess lhe comprou um macacão azul, limpou sua ferida e lhe administrou um tosco tratamento médico. Não o fez com carinho especial, mas para que não chamasse a atenção.

Partiram ao anoitecer, em direção ao sul, para um espaçoporto independente. Duncan ignorava os nomes dos lugares que visitavam, e tampouco perguntou. Nunca lhe tinham ensinado geografia. Sempre que fazia uma pergunta, Janess respondia aos gritos ou o ignorava.

O espaçoporto possuía um estilo mais próprio da classe mercantil e da Corporação que dos Harkonnen. Era funcional e eficiente, sem concessões ao luxo ou a beleza visual. Os corredores e salas eram amplos, a fim de possibilitar o deslocamento dos contêineres herméticos que transportavam os Navegantes da Corporação.

Janess estacionou o aparelho em um lugar de que seria fácil decolar, e ativou os sistemas de segurança.

— Siga-me — disse para Duncan e mergulhou no caos do espaçoporto —. Tome cuidado, porque se o perder aqui não irei procurá-lo.

— E se ele fugir? Não confio em você.

— Vou te embarcar em uma nave que o levará para longe de Giedi Prime e dos Harkonnen. — Olhou para ele —. Você escolhe, guri. Não quero que me dê mais problemas.

Duncan apertou os dentes e a seguiu sem mais comentários.

Janess parou em frente a um velho cargueiro; vários trabalhadores subiam a bordo pesadas caixas.

— O segundo de bordo é um velho meu amigo — disse Janess —. Me deve um favor.

Duncan não perguntou que tipo de pessoas uma mulher como Janess podia considerar como amigos, nem o que tinha feito para merecer esse favor.

— Não vou pagar nem um só solar por sua passagem, Idaho. Sua família já pesou bastante sobre minha consciência e não me deu nada em troca. Não obstante, meu amigo Renno diz que você pode viajar no hangar, desde que não coma outra coisa além das rações normais nem lhe custe tempo ou créditos.

Duncan observou as atividades que se desenvolviam a seu redor. Não tinha nem idéia de como seria a vida em outro planeta. O cargueiro parecia velho e vulgar, mas se o tirasse de Giedi Prime seria como um ave dourada dos céus.

Janess agarrou seu braço e o arrastou para a rampa.

— Estão subindo materiais recicláveis e outras mercadorias que levarão a uma estação de processamento de Caladan. É a sede da Casa Atreides, arqui-inimigos dos Harkonnen. Já ouviu falar da inimizade entre essas Casas? — Duncan negou com a cabeça e Janess riu —. Claro que não. Como um pequeno roedor como você saberia algo sobre o Landsraad e as Grandes Casas?

Deteve um dos operários que guiavam uma plataforma elevadora.

— Onde está Renno? Diga que Janess Milam está aqui e quer vê-lo agora mesmo. — Olhou para Duncan, que esperava muito rígido e tentava compor um aspecto apresentável —. Diga que trouxe o pacote que prometi.

O homem ativou o comunicador que levava na lapela e murmurou algo. Depois, sem olhar para Janess, introduziu sua carga no transportador.

Duncan esperou, observando a atividade que se desenvolvia ao seu redor, enquanto Janess passeava nervosa. Ao fim de pouco tempo um homem de aspecto descuidado saiu, sujo de lubrificantes, sujeira e suor gordurento.

— Renno! — exclamou Janess —. Já era hora!

O homem lhe deu um forte abraço, seguido de um longo beijo. Janess se afastou assim que pôde e apontou para Duncan.

— É esse. Leve-o para Caladan. — Sorriu —. Não me ocorre melhor vingança que mandá-lo onde menos querem que esteja, e onde menos poderão encontrá-lo.

— Você se mete em jogos muito perigosos. Janess — disse Renno.

— Eu gosto de jogar. — Deu-lhe um leve murro no peito —. Não diga nada a ninguém.

Renno arqueou as sobrancelhas.

— Que sentido teria voltar para este espaçoporto repugnante, se você não estiver esperando? Quem me faria companhia em minha cama solitária? Não, não me beneficiaria em nada te denunciar. Mas ainda está em dívida comigo.

Antes de ir, Janess cravou seus olhos em Duncan, mostrando certa compaixão.

— Escute, guri, quando chegar a Caladan insista em ver o duque Paulus Atreides em pessoa. O duque Atreides. Fale que escapou dos Harkonnen e peça para entrar a serviço de sua casa.

Renno arqueou as sobrancelhas e murmurou algo ininteligível.

Janess manteve a expressão tensa e concentrada, enquanto pensava que estava pregando uma última peça cruel no menino que tinha traído. Não existia a menor chance de um moleque sujo e anônimo pudesse pisar no Grande Salão do castelo de Caladan, mas isso não impediria que ele tentasse... possivelmente durante anos.

Já tinha obtido uma vitória ao roubar o garoto do grupo de caça Harkonnen. Tinha descoberto que iriam levá-lo ao Posto do Guarda Florestal e tinha feito um grande esforço para encontrá-lo, salvá-lo e entregá-lo aos maiores inimigos dos Harkonnen. O que seria do menino à partir daquele momento lhe era indiferente, mas se divertia ao imaginar as tribulações que Duncan enfrentaria antes de render-se por fim.

— Vamos — grunhiu Renno, e o agarrou pelo braço —. Vou encontrar um lugar no hangar onde poderá dormir e de esconder.

Duncan não olhou para Janess. perguntou-se se a mulher esperava que se despedisse dela ou lhe agradecesse, mas se negou a fazê-lo. Ela não o ajudara por sentir remorsos. Não, não se rebaixaria, e nunca perdoaria Janess pelo papel que desempenhara na destruição de sua família. Era uma mulher muito estranha.

Subiu à rampa, com a vista à frente, sem saber para onde ia. Confuso e órfão, sem idéia do que faria a seguir, entrou na nave...

Renno não lhe ofereceu consolo nem muitos mantimentos, mas ao menos o deixou em paz. O que Duncan mais necessitava era de tempo para se recuperar, alguns dias para selecionar suas lembranças e aprender a viver com as que não poderia esquecer.

Dormiu sozinho na área de carga do velho transporte, rodeado de sucata e produtos recicláveis. Nenhum era macio, mas dormia bastante bem sobre o chão, que cheirava a metal oxidado, com as costas apoiada contra uma parede fria. Foi sua época mais tranquila nos últimos tempos.

Por fim, quando a nave desceu em Caladan para entregar sua carga e abandoná-lo em um planeta desconhecido, Duncan estava disposto a enfrentar o que fosse necessário. Contava com seu instinto e sua energia. Nada o desviaria de seu objetivo.

Agora, só tinha que encontrar o duque Paulus Atreides.

 

A história nos permite ver o evidente, mas, infelizmente, apenas quando já é muito tarde.

Príncipe Raphael Corrino

 

Quando examinou o despenteado cabelo negro de Leto, suas roupas cobertas de pó e os fios de suor que escorriam sobre seu rosto, Rhombur riu. Não pretendia que sua reação fosse ofensiva, mas parecia incapaz de acreditar na história absurda que Leto tinha contado. Retrocedeu e examinou seu amigo.

— Infernos carmesins! Não acha que está, er... exagerando um pouco, Leto?

Rhombur se aproximou de uma das amplas janelas. Em nichos distribuídos por toda a parede da habitação se viam curiosidades geológicas recolhidas para seu prazer e orgulho. A coleção de minerais, cristais e gemas agradava muito mais a Rhombur que as comodidades de sua posição como filho do conde. Poderia ter adquirir muitos espécimes mais, mas o príncipe tinha encontrado cada rocha em suas explorações das cavernas e pequenos túneis.

Mas durante todas as suas explorações Rhombur, e de fato toda a família Vernius, tinha permanecido cego ao mal-estar dos trabalhadores. Agora, Leto compreendia por que o velho duque tinha insistido em que aprendesse a conhecer seus súditos e a conhecer o estado de ânimo do povo. “No fundo, rapaz, governamos às custas de seus sofrimentos — havia dito Paulus —, embora por sorte a maioria da população não perceba. Se for um bom governante, ninguém pensará nisso.”

Parecendo desconcertado pelas notícias dramáticas e com a aparência desalinhada de Leto, o jovem de cabelo revolto olhou para as massas de operários que trabalhavam nos estaleiros. Tudo parecia tranqüilo, como de costume.

— Leto, Leto... — Apontou um dedo rechonchudo para as massas inferiores, na aparência satisfeitas, que trabalhavam como parasitas obedientes —. Os subóides nem sequer são capazes de decidir por si mesmos o que vão jantar, muito menos se unir para iniciar uma rebelião. Isso exige muita... iniciativa.

Leto meneou a cabeça, ainda ofegante. O cabelo suado colava à testa. Sentia-se mais tremulo agora que estava a salvo, sentado em uma cômoda poltrona auto moldável dos aposentos de Rhombur. Durante a fuga, só o instinto o guiara. Agora, enquanto tentava relaxar, não conseguia controlar seu pulso. Tomou um longo gole de um copo de suco que encontrou na bandeja do café da manhã de Rhombur.

— Só estou informando o que vi, Rhombur, e não imagino ameaças. Experimentei-as o suficiente para saber a diferença. — inclinou-se e seus olhos cinzas cintilaram —. Repito, algo está acontecendo. Os subóides estavam falando de derrubar a Casa Vernius, de destruir tudo e de apoderar-se de IX. Estavam se preparando para ações violentas.

Rhombur vacilou, como se ainda esperasse ouvir o pior.

— Bem, o direi ao meu pai. Pode lhe contar sua versão e estou seguro de que, er, ele investigará o assunto.

Os ombros de Leto caíram. E se o conde Vernius ignorasse o problema, até que fosse muito tarde?

Rhombur alisou o manto púrpura e sorriu. Coçou a cabeça, perplexo. Parecia que abordar o tema de novo lhe exigiria muita energia. Parecia verdadeiramente confuso.

— Mas... se você esteve lá embaixo, Leto, observou que tratamos bem os subóides. Nós lhe damos comida, teto, família, trabalho. Sim, pode ser que fiquemos com a parte do leão, mas as coisas são assim. Nossa sociedade é assim. Mas não oprimimos nossos operários. De que podem se queixar?

— Talvez eles vejam isso de outra maneira. A opressão física não é o único tipo de maus tratos.

Rhombur sorriu, levantou-se e estendeu a mão.

— Venha, meu amigo. Isto pode ser uma mudança interessante em nossas aulas de política de hoje. Podemos utilizá-lo como um caso hipotético.

Leto o seguiu, mais entristecido que decepcionado. Receava que eles enfrentassem o problema como uma simples discussão teórica.

Da torre mais alta do Grand Palais, o conde Dominic Vernius governava um império industrial oculto do mundo exterior. O homem passeava pelo piso transparente do seu Escritório Orbital, que pendia como uma magnífica bola de cristal do teto da caverna.

As paredes e o chão do escritório eram de cristal ixiano, sem juntas nem distorções. Pareciam caminhar no ar, flutuando sobre seus domínios. Em certas ocasiões, Dominic se sentia como uma deidade que observasse seu universo do alto. Passou uma palma calosa sobre seu crânio recém raspado. Ainda sentia um formigamento na pele devido às loções revigorantes que Shando utilizava quando lhe massageava o crânio.

Sua filha Kailea estava sentada em uma poltrona flutuante e o observava. O duque aprovava que se interessasse pelos assuntos ixianos, mas hoje estava muito preocupado para dedicar muito tempo a discutir com ela. Sacudiu migalhas imaginárias do manto sem mangas recém lavado, deu meia volta e voltou a passear ao redor de seu escritório.

Kailea continuou observando-o em silêncio, embora compreendesse o problema que enfrentavam.

Dominic não esperava que o velho “Roody” aceitasse bem a perda de impostos causada pelo desenho do novo Cruzeiro ixiano. Não, o imperador encontraria alguma forma de transformar uma simples decisão comercial em uma afronta pessoal, mas Dominic não tinha nem idéia de que forma adotaria a desforra, nem onde ela aconteceria. Elrood sempre tinha sido imprevisível.

— Tem que ficar sempre um passo por diante dele — disse Kailea —.Você é perito nisso.

Pensou na forma que seu pai utilizara para roubar a concubina do imperador debaixo do nariz dele... O que Elrood nunca tinha esquecido. Um toque de ressentimento apenas perceptível em suas palavras. Ela preferia ter crescido na maravilhosa Kaitain, em vez daqui, sob o chão.

— Não posso me antecipar se ignorar a direção em que ele se move — respondeu Dominic. O conde ixiano parecia flutuar de cabeça para baixo, com o teto de rocha e as Torres do Grand Palais sobre sua cabeça, e o ar sob os pés.

Kailea arrumou uma dobra do seu vestido, alisou o tecido e estudou uma vez mais os registros de embarque e os manifestos comparados, com a esperança de decidir a forma mais proveitosa de distribuir a tecnologia íxiana. Dominic não esperava que ela fizesse melhor que seus peritos, mas deixava que se divertisse. Sua ideia de enviar meks de combate autodidatas para alguns traficantes do mercado negro tinha sido um golpe de mestre.

Deteve-se um momento e um sorriso nostálgico apareceu em seu rosto, de forma que seu comprido bigode mergulhou nas rugas que rodeavam sua boca. Sua filha era de uma beleza extraordinária, uma obra de arte em todos os sentidos, feita para ser um adorno na casa de algum grande senhor... mas também era muito inteligente Kailea era uma mescla estranha: fascinada pelos cerimoniais e maneiras da corte, e por tudo o relacionado com a grandeza de Kaitain, mas também decidida a compreender o funcionamento interno da Casa Vernius. Naquela idade já tinha consciência das complexidades dos negócios de bastidores que constituíam a verdadeira chave para que uma mulher adquirisse poder no Império, a menos que ingressasse na Bene Gesserit.

Dominic acreditava que sua filha não compreendia a decisão de Shando de abandonar a corte imperial e ir com ele para IX. Por que abandonaria a amante do homem mais poderoso do universo todo aquele esplendor, para casar-se com um herói de guerra curtido pela intempérie que vivia em uma cidade subterrânea? Em algumas ocasiões, Dominic se fazia a mesma pergunta, mas seu amor por Shando não conhecia limites, e sua esposa lhe tinha confirmado freqüentemente que jamais se arrependera dessa decisão.

Kailea oferecia um rude contraste com sua mãe em tudo, exceto em seu aspecto. Era impossível que a jovem se sentisse confortável com suas roupas e ornamentos extravagantes, mas sempre estava bem vestida, como se temesse deixar passar uma oportunidade. Talvez se sentisse ofendida pelas possibilidades perdidas de sua vida, e teria preferido estar sob a tutela de um patrocinador no palácio imperial. Dominic tinha observado que brincava com o afeto dos filhos gêmeos do embaixador Pilru, como se casar-se com um deles pudesse lhe facilitar o acesso à embaixada de Kaitain. Mas C'tair e D'murr Pilru iriam se submeter a um exame para ingressar na Corporação Espacial, e se fossem aprovados abandonariam o planeta dentro de uma semana. Em qualquer caso, Dominic estava seguro de que poderia arrumar um matrimônio mais vantajoso para sua única filha.

Talvez até mesmo com Leto Atreides...

Um visicom brilhou na parede. Uma mensagem importante, as últimas notícias sobre os alarmantes rumores que se espalhavam como veneno numa cisterna.

— Sim? — disse.

Sem esperar que lhe perguntasse, Kailea atravessou o piso invisível e ficou a seu lado para ler o relatório, que apareceu sobre a superfície do escritório. Seus olhos esmeralda se entreabriram enquanto lia.

O aroma do perfume de sua filha e o brilho de seu cabelo brônzeo escuro provocaram um sorriso paternal em seu rosto. Que jovem era. Tão jovem e tão atenta aos assuntos de Estado.

— Tem certeza de que quer se preocupar com isto, filha? — perguntou, com o desejo de protegê-la das más notícias. As relações trabalhistas eram mais complicadas que as inovações tecnológicas. Kailea se limitou a olhar para ele, irritada com a pergunta.

O conde leu mais detalhe sobre o que lhe tinham contado antes, embora ainda não acreditasse em tudo que Leto Atreides tinha visto e ouvido. Estavam-se acontecendo distúrbios nas dependências subterrâneas, onde os operários subóides tinham começado a queixar-se: uma situação sem precedentes.

Kailea respirou fundo e ordenou seus pensamentos.

— Se os subóides tem motivos de queixa, por que não escolheram um porta-voz? Por que não entregaram um pedido oficial?

— Oh, só o que fazem é resmungar, filha. Afirmam que estão sendo obrigados a montar máquinas que violam a jihad e não querem realizar “trabalhos blasfemos”.

A tela escureceu assim que terminaram de ler o relatório, e Kailea se levantou, com os braços cruzados.

— De onde tiraram uma idéia tão ridícula? Como podem sequer começar a questionar os matizes e complexidades que supõem dirigir estas operações? Foram criados e treinados em instalações ixianas. Quem terá metido essas idéias em suas cabeças?

Dominic compreendeu que sua filha tinha formulado uma pergunta muito interessante.

— Tem razão. Os subóides não poderiam chegar a essas conclusões sem ajuda.

Kailea continuava indignada.

— Não percebem tudo que lhes damos e o que isso custa? Olhei os custos e os benefícios. Os subóides não sabem que sua situação é excelente, comparada com os trabalhadores de outros planetas. — Meneou a cabeça com uma expressão de desagrado. Olhou através do chão para as fábricas na caverna,m —. Eles deveriam visitar Giedi Prime, ou Arrakis. Então não se queixariam de IX.

Mas Dominic não deixou que se desviasse do tema que ela mesma tinha iniciado.

— Os subóides foram criados para alcançar uma inteligência limitada, apenas o suficiente para realizar as tarefas necessárias, e se espera que as executem sem queixas. Faz parte de sua estrutura mental. — Olhou para o piso da gruta, onde os operários formigavam encarregados da construção do Cruzeiro —. Pode ser que nossos bio-engenheiros ignorassem algo importante? Os subóides tem razão? A definição de mentes autômatas abrange um amplo campo, mas poderiam existir zonas cinzentas...

Kailea sacudiu a cabeça e agitou seu caderno de cristal.

— Nossos Mentats e assessores legais são meticulosos sobre as proibições precisas da Jihad, e nossos métodos de controle de qualidade são eficazes. Pisamos em terreno sólido, e podemos provar todas as nossas afirmações.

Dominic mordiscou o lábio inferior.

— Não é possível que os subóides possuam dados específicos, já que não existem violações. Ao menos, não cruzamos a fronteira conscientemente, sob nenhuma circunstância.

Kailea observou seu pai.

— Talvez devesse ordenar ao capitão Zhaz e a uma equipe de inspetores que não deixem pedra sobre pedra, que investiguem todos os aspectos de nossos processos de desenho e fabricação. Mostre aos subóides que suas queixas são infundadas.

Dominic considerou a idéia.

— Não quero ser muito duro com os operários. Detesto as medidas enérgicas, e não desejo nenhuma revolta. Temos que tratar bem os subóides, como sempre fizemos. — Olhou para sua filha, e lhe pareceu que era já uma pessoa adulta.

— Sim — disse Kailea —. Assim eles trabalham melhor.

 

Assim como o conhecimento de seu próprio ser, o sietch forma uma base firme, da qual salta para o mundo e para o universo.

Ensinamento Fremen

 

Pardot Kynes estava tão fascinado pela cultura, religião e rotina diária dos Fremen que tinha esquecido o debate sobre seu destino. O naib Heinar lhe havia dito que podia explicar suas idéias, assim ele falava e falava em qualquer oportunidade.

Durante todo um ciclo de luas, os Fremen discutiram suas opiniões em privado e nas assembléias a portas fechadas dos anciões do sietch. Alguns deles até simpatizavam com aquele estranho forasteiro.

Embora sua sorte ainda não estivesse decidida, Kynes não perdeu tempo. Os guias do sietch o levaram a todas as partes e lhe ensinaram muitas coisas que poderiam lhe interessar, mas o planetólogo também fazia perguntas para as mulheres que trabalhavam nas fábricas de trajes destiladores, aos velhos que cuidavam das provisões de água, e para as avós que se encarregavam dos fornos ou juntavam os refugos e pedaços de sucata.

A frenética atividade das cavernas o assustava. Alguns trabalhadores pisoteavam resíduos de especiaria para extrair combustível, outros coalhavam especiaria para que fermentasse. Os tecelões que trabalhavam com teares mecânicos utilizavam seu próprio cabelo, o pelo de ratos mutantes, molhos de algodão do deserto, e até mesmo tiras de pele de animais selvagens para fabricar seus tecidos resistentes. E, é obvio, nas escolas se treinava os jovens Fremen nas habilidades necessárias para sobreviver no deserto, assim como em técnicas de combate desumanas.

Uma manhã, Kynes despertou descansado, apesar de ter passado a noite sobre uma palhinha no chão duro. Durante grande parte de sua vida tinha dormido ao relento, sobre terrenos incômodos. Seu corpo encontrava descanso quase em qualquer parte. Tomou o café da manhã, fruta desidratada e tortas secas que as mulheres Fremen tinham preparado em fornos térmicos. Uma barba incipiente cobria seu rosto.

Uma jovem chamada Frieth lhe levou uma bandeja com café de especiaria em uma cafeteira ornamentada. Durante todo o ritual manteve seus olhos azuis cravados no chão, como tinha feito todas as manhãs desde a chegada de Kynes ao sietch. O planetólogo não tinha dado atenção aos seus cuidados frios e eficientes até que alguém lhe sussurrara: “Ela é a irmã solteira de Stilgar, cuja vida você salvou dos cães Harkonnen.”

Frieth tinha um rosto formoso e uma suave pele bronzeada. Seu cabelo parecia comprido o bastante para chegar até sua cintura se algum dia o liberasse de seus anéis de água e o deixasse cair. Seu caráter era aprazível mas observador, ao estilo dos Fremen. Corria para satisfazer qualquer desejo que Kynes expressasse sem que ele se desse conta. Se não estivesse tão concentrado em observar tudo que o rodeava, teria reparado em como ela era bela.

Depois de tomar até a última gota do café impregnado de melange, Kynes tirou sua caderneta eletrônica para tomar notas. Ouviu um ruído, levantou a vista e viu o robusto Turok na porta.

— Vou levá-lo para onde desejar, planetólogo, desde que não saia do sietch.

Kynes assentiu e sorriu, indiferente às restrições de ser um cativo. Não o aborreciam. Subentendia-se que nunca sairia vivo do sietch a menos que os Fremen o aceitassem e confiassem nele. Se se unisse à comunidade, não haveria segredos entre eles. Por outro lado, se os Fremem decidissem executá-lo, seria absurdo ocultar segredos de um morto.

Previamente, Kynes tinha visto os túneis, as câmaras onde armazenavam os mantimentos, as provisões de água e até mesmo os destiladores de mortos Huantti. Tinha contemplado fascinado às famílias de homens endurecidos pelo deserto, cada um com várias esposas. E os tinha visto rezar para Shai-Hulud. Tinha começado a compilar um esboço mental desta cultura e dos vínculos políticos e familiares no seio do sietch, mas seriam necessárias décadas para decifrar as relações sutis e os matizes das obrigações que tinham recaído sobre seus parentes muitas gerações antes.

— Eu gostaria de ir ao alto da rocha — disse, recordando seus deveres de planetólogo imperial —. Se pudéssemos recuperar parte do equipamento que estava em meu veículo, porque suponho que os guardaram, eu gostaria de estabelecer uma estação meteorológica aqui. É fundamental reunir dados climatológicos: variações de temperatura, umidade atmosférica e comportamento dos ventos, de todos os lugares isolados possíveis.

Turok se virou para ele, surpreso. Deu de ombros.

— Como quiser, planetólogo.

Como conhecia os hábitos conservadores dos anciões do sietch, Turok era pessimista sobre a sorte daquele homem entusiasta mas, não muito brilhante. Era um esforço inútil para Kynes prosseguir seu trabalho. Mas se o deixava feliz em seus últimos dias...

— Vamos — disse Turok —. Ponha o traje destilador.

— Só ficarei fora alguns minutos.

Turok olhou para ele com o cenho carregado.

— Um só hálito de umidade significa água desperdiçada no ar. Não somos tão ricos para nos permitir esse luxo.

Kynes deu de ombros, vestiu seu uniforme de superfície e ajustou os fechos desajeitadamente. Turok suspirou e o ajudou, ao mesmo tempo em que explicava a forma mais eficaz de usar o traje e ajustar os fechos para otimizar sua eficiência.

— Você comprou um traje destilador decente. É de manufatura Fremen — observou —. Ao menos, nisto escolheu bem.

Kynes o seguiu até a câmara de armazenamento onde guardavam seu veículo terrestre. Os Fremen tinham retirado os acessórios, e seu equipamento se encontrava distribuído em caixas abertas sobre o chão da caverna, inspecionado e catalogado. Não havia dúvida de que os habitantes do sietch tinham tentado descobrir como podiam utilizar aquelas coisas.

Eles pensam em me matar, compreendeu Kynes. Será que não escutaram nenhuma palavra do que eu disse? Por estranho que parecesse, a idéia não o deprimiu nem assustou. Aceitou a certeza como um desafio. Não estava disposto a se render. Ainda havia muito por fazer. Teria que fazê-los compreender.

Entre as peças desordenadas encontrou seu aparelho meteorológico e encaixou os componentes, mas sem fazer comentários sobre o que tinha acontecido com suas posses. Sabia que os Fremen tinham uma mentalidade comunal: tudo o que um indivíduo possuía era propriedade de toda a comunidade. Como tinha passado quase toda sua vida sozinho, dependendo unicamente de suas próprias habilidades, era-lhe difícil assimilar aquela mentalidade.

Turok não se ofereceu para carregar o equipamento, mas o precedeu por alguns degraus no muro de pedra. Kynes ofegava, mas não se queixou. Seu guia ia afastando os defletores de umidade e selos de porta. Turok olhou por cima do ombro para ver se o planetólogo o seguia, e depois caminhou com mais rapidez.

Saíram por uma fenda para o pico arredondados. O jovem Fremen se refugiou à sombra das rochas, enquanto Kynes se expos ao sol. A pedra era de uma cor parda acobreada, com manchas de liquens. Bom sinal pensou. Plantas precursoras de sistemas biológicos.

Enquanto contemplava a ampla vista da Grande Concha, viu dunas de rochas recém desintegradas, assim como areia antiga e oxidada.

A julgar pelos vermes de areia que tinha visto e pelo plâncton que abundava nas areias ricas em especiaria, Kynes sabia que Dune já possuía a base de um complexo ecossistema. Estava seguro de que bastaria um empurrãozinho na direção correta para fazer aquele lugar adormecido florescer.

Os Fremen poderiam fazê-lo.

— Homem imperial — disse Turok —, o que vê quando olha para o deserto dessa maneira?

Kynes respondeu sem olhar.

— Um sem-fim de possibilidades.

 

Em uma câmara selada situada nas profundidades do sietch, o naib Heinar estava sentado à cabeceira de uma mesa de pedra, e seu único olho brilhava. O naib do sietch, que tentava manter-se à margem da discussão, olhava para os anciões do conselho enquanto gritavam uns com aos outros.

— Conhecemos a lealdade desse homem — disse Jerath —. Trabalha para o Império. Já viram seu curriculum. Está em Dune como hóspede dos Harkonnen. — Usava um aro de prata no lóbulo esquerdo, um tesouro arrebatado de um contrabandista que tinha matado em duelo.

— Isso não significa nada — disse Avalanche —. Como Fremen, não tomamos emprestadas outras roupas, outras máscaras, e fingimos nos adaptar? É um método de sobrevivência em determinadas circunstâncias. Vocês, mais que ninguém, deveriam saber que não se pode julgar às pessoas unicamente pela aparência.

Garnah, um ancião de aspecto fatigado e cabelo comprido, apoiou seu longo queixo sobre os dedos.

— Estou furioso com esses três jovens idiotas pelo que fizeram depois que o planetólogo os ajudou a derrotar os Harkonnen. Qualquer adulto sensato teria dado de ombros e feito a sombra desse homem se reunir com as dos seis insetos na terra... com certo remorso, é obvio, mas isso é o que deveriam ter feito. — Suspirou —. São jovens inexperientes. Nunca deveriam ter se aventurado sozinhos no deserto.

Heinar soprou.

— Não pode culpá-los, Garnah. Existia a obrigação moral. Pardot Kynes tinha salvo suas vida. Até esses jovens imprudentes tiveram consciência da carga de água que tinha recaído sobre seus ombros.

— E o que me diz de suas obrigações para com o sietch e nosso povo? — insistiu o cabeludo Garnah —. A dívida contraída com um simples servidor imperial pesa mais que sua lealdade para nós?

— Ele é louco — disse Jerath —. Já ouviram o diz? Quer árvores, quantidades enormes de água, irrigação, colheitas... Imagina um vergel onde existe um deserto. — Soprou e se tocou o aro de sua orelha —. Afirmo que está louco.

Avalanche apertou a boca em sinal de ceticismo.

— Depois de milhares de anos errando de um lado para outro, o que por fim nos trouxe para cá e fez de nosso povo o que somos, como podem desprezar um homem por sonhar com o paraíso?

Jerath franziu o sobrecenho, mas aceitou o raciocínio.

— Talvez Kynes esteja louco — disse Garnah —, mas só o suficiente para ser um santo. Talvez esteja louco o bastante para ouvir as palavras de Deus de uma forma que nós não podemos.

— Essa é uma questão que não nós decidiremos — disse Heinar, utilizando por fim a voz de comando de um naib, afim de reconduzir a discussão para o tema tratado —. A escolha que enfrentamos não está relacionada com a palavra de Deus, mas com a sobrevivência de nosso sietch. Pardot Kynes viu nossos costumes, viveu em nosso lugar secreto. Por ordem imperial, envia relatórios a Kaitain sempre que chega a uma cidade. Pensem no perigo que isto nos coloca.

— Mas e tudo o que disse sobre o paraíso no Dune? — perguntou Avalanche, que ainda tentava defender o estrangeiro —. Água em qualquer parte, dunas rodeadas de erva, altas palmeiras, qanats[3] abertos através do deserto.

— Fantasias — grunhiu Jerath —. O homem sabe muito sobre nós e sobre Dune. Não podemos permitir que conheça tantos segredos.

Avalanche insistiu de novo.

— Mas matou os Harkonnen. Isso não trás para nós, para nosso sietch, uma dívida de água? Salvou três membros de nossa tribo.

— Desde quando devemos algo ao Império? — perguntou Jerath.

— Qualquer um pode matar os Harkonnen — acrescentou Ganath com um encolhimento de ombros, apoiando o queixo sobre o outro punho —. Eu mesmo já o fiz.

Heinar se inclinou.

— De acordo, Avalanche. O que opina sobre esse renascimento de Dune? Onde está a água para tudo isso? Existe alguma possibilidade de que o planetólogo possa conseguir o que diz?

— Você o ouviu? — replicou Garnah em tom zombeteiro —. Diz que a água está aqui, em uma quantidade muito superior a que possuem nossos estoques miseráveis.

Jerath arqueou as sobrancelhas e soprou.

— Esse homem está em nosso planeta há um mês ou dois, e já sabe onde encontrar o grande tesouro que nenhum Fremen conseguiu descobrir em gerações e gerações no deserto. Provavelmente encontrará um oásis no Equador? Oras!

— Ele salvou três dos nossos — insistiu Avalanche.

— Três idiotas que cruzaram o caminho dos cães Harkonnen. Não me sinto ligado a ele por tê-los salvado. Além disso, viu nossas facas crys. Vocês conhecem nossa lei: quem vê essa faca tem que ser purificado ou sacrificado...

— Isso é verdade — admitiu Avalanche.

— Todos sabem que Kynes viaja sozinho e explora zonas inóspitas — disse Heinar com um dar de ombros —. Se desaparecer, desapareceu. Nem os Harkonnen, nem as autoridades imperiais suspeitarão de nós.

— Interpretarão isso como um simples acidente. Nosso planeta não é um lugar acolhedor — disse Garnah.

Jerath se limitou a sorrir.

— Para falar a verdade, é possível que os Harkonnen fiquem satisfeitos por se livrarem desse intrometido. Se o matarmos, não correremos nenhum risco.

O silêncio pesou no ar poeirento durante um momento.

— O que tem deve ser, será — sentenciou Heinar ao mesmo tempo em que ficava em pé —. Todos sabemos. Não pode haver outra resposta, não podemos mudar de opinião. Devemos proteger o sietch acima de tudo, custe o que custar, sem nos importar com o peso em nossos corações. — Cruzou os braços sobre o peito —. Está decidido. Kynes tem que morrer.

 

Duzentos e trinta e oito planetas explorados, muitos quase inabitáveis (ver cartas estelares anexas). Estudos de recursos enumeram materiais brutos valiosos. Muitos destes planetas merecem uma segunda visita, seja para exploração de minerais ou para possível colonização. Não obstante, como em outros relatórios, não se encontrou especiaria.

Relatório do perito independente, terceira expedição, entregue ao imperador Corrino III

 

Hasimir Fenring subornara os guardas e criados do velho Elrood afim de preparar o que tinha chamado de “um encontro secreto com um importante, embora inesperado, diplomata”. O homem com cara de doninha utilizara sua língua de ouro e sua vontade de ferro para manipular os horários do imperador e conseguir um espaço. Fenring, como um acessório do palácio durante mais de três décadas, em virtude de sua amizade com o príncipe herdeiro Shaddam, era um homem influente. Graças a diversos métodos de persuasão, convencia a todos que precisava convencer.

O velho Elrood não suspeitava de nada.

Na hora marcada para a chegada do delegado Tleilaxu, Fenring cuidou para que Shaddam e ele estivessem presentes na sala de audiências, em teoria como estudantes da burocracia, dedicados e concentrados para transformarem-se em líderes úteis do Império. Elrood, que gostava de pensar que estava instruindo seus protegidos em importantes temas de Estado, não imaginava que os dois jovens riam às suas costas.

Fenring se aproximou do príncipe herdeiro e sussurrou:

— Isto vai ser muito divertido, hummmm?

— Observe e aprenda — disse Shaddam, para depois erguer o queixo e sorrir em tom zombeteiro.

As enormes portas esculpidas se abriram, cintilantes e com pedras soo e cristais de chuva. Os guardas Sardaukar, imóveis com seus uniformes cinza e negro, ficaram firmes para receber o recém-chegado.

— O espetáculo começa — disse Fenring. Shaddam e ele riram.

Pajens vestidos com librés se adiantaram para apresentar o visitante de outro planeta e lhe ofereceram uma pompa processada e traduzida eletronicamente.

— Meu senhor imperador, Alteza de Um milhão de Mundos, o professor Hidar Fen Ajidica, representante dos Bene Tleilax, para celebrar um encontro privado.

Um anão de pele cinzenta entrou orgulhoso no salão, ladeado por guardas de rosto pálido e seus próprios servidores. Seus pés calçados em sapatilhas deslizaram sobre as pedras polidas do chão.

Uma onda de surpresa e desagrado percorreu os cortesãos. O chambelán Aken Hesban, com os bigodes caídos, ergueu-se indignado atrás do trono e cravou a vista nos conselheiros de audiências do imperador, como se fosse uma espécie de brincadeira.

Elrood IX se inclinou em seu enorme trono e pediu para ver sua agenda.

Assim, pego de surpresa, talvez o velho idiota fique surpreso o bastante para escutar, pensou Fenring. Com surpreendente astúcia, os olhos de águia do chambelán Hesban pousaram sobre ele, mas Fenring lhe devolveu o olhar com uma expressão de inocência.

Ajidica, o representante Tleilaxu, esperou paciente, deixando que os sussurros e murmúrios fluíssem a seu redor. Tinha uma cara estreita, nariz largo e barba negra bicuda, que sobressaía de seu queixo partido. Roupas marrons lhe concediam um ar de certa importância. Sua pele parecia curtida pela intempérie, e em suas mãos, sobretudo nas palmas e nos dedos, destacavam-se manchas pálidas e descoloridas, como se a freqüente exposição a produtos químicos virulentos tivesse neutralizado a melanina. Apesar da sua diminuta estatura, o Professor Tleilaxu avançou como se tivesse todo direito de estar na sala do trono de Kaitain.

Shaddam estudou Ajidica, e seu nariz se enrugou, devido ao aroma de comida tão característico dos Tleilaxu.

— Que o único e verdadeiro Deus o ilumine de todas as estrelas do Império, meu senhor imperador — disse Hidar Fen Ajidica, ao mesmo tempo em que juntava as mãos, fazia uma reverência e citava a Bíblia Católica Laranja. Deteve-se em frente ao enorme trono de quartzo de Hagal.

Os Tleilaxu eram famosos por manipular os mortos e conservar cadáveres para aproveitar os recursos das células, mas ninguém podia negar que eram geneticistas brilhantes. Uma de suas primeiras criações tinha sido um notável recurso alimentício novo, o bacer (“a carne mais saborosa deste lado do paraíso”), um cruzamento entre uma lesma gigante e um porco terráqueo. A população ainda imaginava que eram mutações engendradas em depósitos, seres horríveis que excretavam resíduos viscosos e fedorentos, e cujas múltiplos bocas trabalhavam incessantemente remexendo lixo. Este era o contexto no qual as pessoas imaginavam os Bene Tleilax, mesmo enquanto saboreavam medalhões de bacer macerados em molhos preparados com saborosos vinhos de Caladan.

Elrood ergueu seus ombros ossudos. Olhou com o cenho carregado para o visitante.

— O que... isto faz aqui? Quem deixou este homem entrar? — O velho imperador passeou a vista pela sala, com olhos cintilantes —. Nenhum Mestre Tleilaxu entrou em minha corte para celebrar uma audiência privada. Como posso saber que não é um Dançarino Facial? — Elrood olhou para seu secretário pessoal e depois para seu chambelán —. E como foi incluído em minha agenda, como posso saber que você não é um Dançarino Facial? Isto é revoltante.

O secretário pessoal retrocedeu, ofendido pela insinuação. O diminuto Ajidica olhou para o imperador, sem deixar que o ressentimento transparecer, sem deixar se afetar por eles.

— Meu senhor Elrood, pode nos testar e comprovar que nenhum de nossos metamorfos assumiu a identidade de um membro de sua corte. Asseguro-lhe que não sou um Dançarino Facial. Nem tampouco um assassino, nem um Mentat.

— Para que veio? — perguntou Elrood.

— Minha presença foi solicitada, por ser um dos principais cientistas dos Bene Tleilax. — O anão não se moveu nem um centímetro, e continuou imóvel ao pé do Trono do Leão de Ouro, envolto em suas roupas marrons —. Desenvolvi um ambicioso plano que pode beneficiar à família imperial e também o meu povo.

— Não estamos interessados — replicou o imperador Padishah. Desviou o olhar para seus Sardaukar e ergueu uma mão enrugada para ordenar uma expulsão forçosa. Os servos da corte contemplavam a cena, divertidos e ansiosos.

Hasimir Fenring se adiantou, consciente de que só tinha um instante para interceder.

— Posso falar, imperador Elrood? — Não esperou para receber permissão, mas tentou adotar uma expressão inocente e interessada —. A incrível audácia deste delegado Tleilaxu despertou minha curiosidade. Gostaria de saber o que veio nos dizer.

Cravou a vista no inexpressivo rosto de Hidar Fen Ajidica. O Mestre de pele cinzenta parecia indiferente ao tratamento grosseiro que recebia. Nada em seu comportamento traía sua relação com Fenring, que lhe sugerira a idéia da especiaria sintética, uma idéia que não demorara a encontrar apoio entre os cientistas Tleilaxu.

O príncipe herdeiro Shaddam olhou para seu pai com expressão inocente e ansiosa.

— Pai, você me ordenou que aprendesse tudo que puder do exemplo de sua liderança. Seria muito útil para mim observar como lida com esta situação com imparcialidade e firmeza.

Elrood ergueu uma mão adornada com anéis que tremia por causa de espasmos tênues mas incontroláveis.

— Muito bem, escutemos o que este Tleilaxu veio dizer. Um momento apenas, sob pena de receber um severo castigo se decidirmos que esbanjou nosso precioso tempo. Observe e aprenda. — O imperador olhou de esguelha para Shaddam, e depois tomou um gole da cerveja de especiaria que tinha ao lado —. Será breve.

Tem razão, pai. Não resta muito tempo, pensou Shaddam, sem apagar seu sorriso inocente.

— Minhas palavras exigem privacidade, meu senhor imperador — disse Ajidica —, assim como a maior discrição.

— Eu decidirei sobre isso — replicou Elrood —. Fale de seu projeto.

O Professor Tleilaxu enlaçou suas mãos dentro das volumosas mangas de suas vestimentas marrons.

— Os rumores são como uma epidemia maligna, senhor. Se escapam, propagam-se de pessoa a pessoa, freqüentemente com efeitos mortíferos. É melhor tomar algumas precauções iniciais, que ver-se obrigado a adotar medidas de erradicação mais tarde.

Ajidica permaneceu imóvel e se negou a falar até que a sala de audiência ficasse vazia.

O imperador, impaciente, despediu todos com um gesto, funcionários, pajens, embaixadores, bufões e guardas. Os homens de segurança Sardaukar se postaram em frente as portas, das quais podiam proteger o trono, mas todos os outros presentes partiram, murmurando e arrastando os pés. Ergueram-se telas de intimidade para impedir que ninguém escutasse.

Fenring e Shaddam se sentaram perto do trono, fingindo ser estudantes absortos, embora ambos ultrapassassem os trinta anos. O velho imperador, de aspecto frágil e doentio, indicou que ficassem como observadores, e o Tleilaxu não protestou.

Durante todo o tempo, o olhar de Ajidica não se afastou de Elrood O imperador olhou para o anão e fingiu aborrecimento. Satisfeito por fim as precauções, e ignorando o asco que o imperador sentia dele e da sua raça, Hidar Fen Ajidica falou.

— Nós, os Bene Tleilax, realizamos experimentos em todos os campos da genética, química orgânica e mutações. Em nossas fábricas desenvolvemos recentemente técnicas heterodoxas para sintetizar, digamos, substâncias pouco usuais. — Suas palavras eram concisas e eficientes, sem proporcionar mais detalhes do que o necessário —. Nossos resultados iniciais indicam que poderíamos criar um produto sintético que, em todas as suas propriedades químicas importantes, seria idêntico a melange.

— Especiaria? — Elrood dedicou a Tleilaxu toda a sua atenção. Shaddam observou um tic na bochecha direita do seu pai, debaixo do olho — Criada em laboratório? Impossível!

— Não é impossível, meu senhor. Contando com tempo e condições adequadas para seu desenvolvimento, esta especiaria artificial poderia fornecer uma reserva inesgotável, produzida em quantidades industriais e... destinada com exclusividade à Casa Leitão, se assim o desejar.

Elrood se inclinou como um ave de rapina mumificada.

— Isso nunca foi possível.

— Nossas análises demonstram que a especiaria é uma substância de base orgânica. Graças a experimentos minuciosos, acreditamos que nossos depósitos de axlotl podem ser modificados para produzir melange.

— Da mesma forma que criam gholas a partir de células humanas mortas? — disse o imperador com cara de asco —. E clones?

Shaddam, intrigado e surpreso, olhou para Fenring. Depósitos de axlotl?

Ajidica não afastou a vista de Elrood.

— Sim... com efeito, meu senhor.

— Por que veio a mim? — perguntou Elrood —. Imaginava que os diabólicos Tleilaxu criariam um substituto da especiaria para seu uso exclusivo, e deixariam o Império a sua mercê.

— Os Bene Tleilax não são uma raça poderosa, senhor. Se descobríssemos a forma de produzir nossa própria melange e guardássemos segredo, desencadearíamos sobre nós a ira do Império. O senhor enviaria os Sardaukar, arrancaria-nos o segredo e nos destruiria. A Corporação Espacial e a CHOAM lhe dariam sua colaboração de bom grado e, por outro lado, os Harkonnen defenderiam seu monopólio de especiaria a todo custo.

Ajidica lhe dedicou um leve sorriso desprovido de humor.

— Fico feliz em saber que compreendem sua posição subordinada — disse Elrood, e descansou seu cotovelo ossudo sobre o braço do trono —. Nem sequer a Grande Casa mais rica desenvolveu uma força militar capaz de opor resistência a meus Sardaukar.

— Por isso, decidimos prudentemente nos aliar a mais poderosa presença da galáxia: a Casa Imperial. Dessa forma colheremos os maiores benefícios de nossa nova pesquisa.

Elrood apoiou um longo dedo sobre seus lábios, magros como papel, enquanto refletia. Esses Tleilaxu eram preparados, e podiam fabricar a substância com exclusividade para a Casa Corrino, a preço de custo, o imperador contaria com uma poderosa moeda de mudança.

A diferença econômica seria enorme. Poderia levar a Casa Harkonnen a bancarrota. O planeta deserto de Arrakis perderia quase todo seu valor, porque era muito caro extrair o produto da areia.

Se aquele anão pudesse fazer o que insinuava, o Landsraad, a CHOAM, a Corporação Espacial, os Mentats e a Bene Gesserit se veriam obrigados a suplicar o favor do imperador afim de conseguir fornecimentos. Quase todos os membros importantes das famílias nobres eram viciados em melange, e o próprio Elrood poderia transformar-se em seu fornecedor. Sentiu-se entusiasmado.

Ajidica interrompeu os pensamentos de Elrood.

— Permita-me salientar que não será uma tarefa simples, senhor. É extraordinariamente difícil analisar a estrutura química concreta da melange, e temos que separar os componentes necessários dos irrelevantes. Para alcançar este objetivo, os Tleilaxu necessitam de enormes recursos, assim como liberdade e tempo para prosseguir nossas investigações.

Fenring se remexeu sobre os degraus e olhou para o imperador.

— Meu senhor, compreendo agora que o Mestre Ajidica teve razão ao solicitar que a audiência fosse privada. Essa pesquisa ser realizada em segredo, se a Casa Corrino desejar a exclusividade. Certos poderes do Império fariam o impossível por impedir que criassem um fornecimento independente e inesgotável de especiaria, hummmm?

Fenring percebeu que o ancião compreendia as enormes vantagens políticas e econômicas que a proposta de Ajidica podia proporcionar, apesar do aborrecimento instintivo para com os Tleilaxu. Percebeu que a balança estava se inclinando, que o imperador senil estava chegando à conclusão que Fenring desejava. Sim, ainda é possível manipular o velho caduco.

O próprio Elrood tinha consciência das numerosas forças postas na balança. Dado que os Harkonnen eram ambiciosos e intratáveis, preferia ter posto à frente de Arrakis uma outra Grande Casa, mas o barão conservaria o poder durante muitas décadas ainda. Por razões políticas, o imperador se viu forçado a conceder aquele valioso semifeudo a Casa Harkonnen, depois de descartar os Richese, e os novos proprietários do feudo se obstinado a ele. Muito. Nem sequer a derrota do período de governo de Abulurd (nomeado a pedido de seu pai, Dmitri Harkonnen) obtivera o resultado desejado. De fato, o efeito tinha sido o contrário, quando o barão se instalou no poder mediante manobras de todo tipo.

Mas o que faremos com Arrakis depois?, pensou Elrood. Eu gostaria de conseguir seu controle total. Sem seu monopólio da especiaria, seria um lugar barato. Ao preço justo, seria útil para outras coisas... Uma zona de manobras militares incrivelmente dura, talvez?

— Expor suas idéias a nós foi muito acertado, Hidar Fen Ajidica. — Elrood enlaçou as mãos sobre o regaço, com um tinido de anéis de ouro, mas se negou a pedir desculpas por sua grosseria anterior —. Faça o favor de nos entregar um resumo detalhado de suas necessidades.

— Sim, meu senhor imperador. — Ajidica se inclinou de novo, sem tirar as mãos das mangas —. O mais importante é que meu povo necessitará de equipamentos e recursos... e de um lugar para realizar as pesquisas. Eu estarei no comando do projeto, mas os Bene Tleilax necessitam de uma base tecnológica apropriada e instalações industriais. Se possível, que já funcionem e que estejam bem protegidas.

Elrood refletiu. Entre todos os planetas do Império, tinha que existir algum lugar, um planeta com alta tecnologia e aptidões industriais...

As peças do quebra-cabeças encaixaram, e ele viu com muita clareza: uma forma de apagar do mapa a seu velho rival, a Casa Vernius, vingar-se de Dominic por lhe ter roubado sua concubina, e pelo novo desenho dos Cruzeiros, que ameaçava causar prejuízos nos lucros do Império. Oh, isto será magnífico!

Hasimir, que seguia continuava nos degraus do pedestal de cristal do trono, não entendeu por que o imperador sorria com tanta satisfação. O silêncio se prolongou por um longo momento. Perguntou-se se aquela pausa estava relacionada com os lentos efeitos do chaumurky, que lhe devorava o cérebro. Dentro de pouco, o velho se transformaria em um ser irracional e paranóico. E depois morreria. De uma forma horrível, espero.

Mas antes, todos os mecanismos estariam em movimento.

— Sim, Hidar Fen Ajidica. Temos o lugar que necessitam para seus trabalhos — disse Elrood —. Um lugar perfeito.

Dominic não precisa saber até que seja muito tarde, pensou o imperador. E depois tem que saber quem é o responsável, pouco antes de morrer.

O momento, como em tantos assuntos do Império, tinha que ser preciso.

 

A Corporação Espacial trabalhou durante séculos para rodear nossa elite de Navegantes de um halo místico. Somos reverenciados, do Piloto mais inferior ao Timoneiro de maior talento. Vivem em contêineres de gás de especiaria, vêem todos os caminhos que percorrem o espaço e o tempo, guiam naves até os limites do Império. Mas ninguém sabe o custo humano ao transformar-se em Navegante. Temos que conservá-lo em segredo, porque se soubessem a verdade, se compadeceriam de nós.

Manual de Treinamento da Corporação Espacial para Timoneiros (secreto).

 

O austero edifício da embaixada da Corporação contrastava com o resto do esplendor ixiano na cidade das estalactites. Era de cor parda, funcional, muito diferente das deslumbrantes e ornamentadas torres da caverna. As prioridades da Corporação Espacial não estavam precisamente na ornamentação e a ostentação.

Naquele dia, C'tair e D'murr Pilru seriam examinados, com a esperança de se tornarem em Navegantes da Corporação. C'tair não sabia se estava emocionado ou aterrorizado.

Enquanto os gêmeos atravessavam ombro a ombro uma passarela acristalada que desembocava do Grand Palais, C'tair considerou tão repulsivo esteticamente o edifício da embaixada, que sopesou a possibilidade de desistir. Tendo em conta a enorme riqueza da Corporação, a falta de luxo lhe pareceu estranha, ao ponto de incomodá-lo.

Como se pensasse o mesmo, mas para chegar a uma conclusão diferente, seu irmão se virou para C'tair e disse:

— Uma vez que as maravilhas do espaço se abram para a mente de um Navegante, que outros adornos são necessários? Pode qualquer ornamentação rivalizar aos prodígios que um Navegante vê durante um só trajeto através da dobra-espacial? O universo, irmão! Todo o universo.

C'tair assentiu.

— Tem razão, a partir de agora temos que utilizar critérios diferentes. Abra sua mente. Lembre-se do que nos dizia o velho Davee Rogo? As coisas vão ser muito... diferentes.

Se fossem aprovados nos exames teria que partir, embora não sentisse nenhum desejo de abandonar a bela cidade subterrânea do Vernii. Sua mãe, S'tina, era uma importante banqueira da Corporação, seu pai era um respeitado embaixador, e, com a ajuda do próprio conde Vernius, tinham concordado em dar aos gêmeos aquela oportunidade. IX se sentiria orgulhoso dele. Talvez erigissem uma estátua em sua honra algum dia, ou dariam o nome dele e de seu irmão a uma gruta...

Enquanto seu pai cumpria seus deveres diplomáticos com o imperador e um milhar de funcionários em Kaitain, seus filhos gêmeos se preparavam na cidade subterrânea para coisas mais importantes. Durante sua infância, que tinham passado clandestinamente, C'tair e seu irmão tinham ido a sede da Corporação para ver sua mãe. Sempre tinham sido convidados no edifício, mas desta vez os gêmeos iam ao encontro de uma prova muito mais dura.

Dentro de algumas horas o futuro de C'tair seria decidido. Banqueiros, interventores e peritos em comércio eram seres humanos, burocratas. Mas um Navegante era muito mais.

Por mais que tentasse se animar, C'tair não estava seguro de superar as provas. Quem era ele, para pensar que podia se tornar um Navegante da Corporação? Seus pais só tinham concedido aos gêmeos uma oportunidade, não uma garantia. Poderia conseguir? Era tão especial? Alisou seu cabelo escuro e sentiu o suor nos dedos.

“Se superarem a prova se transformarão em representantes importantes da Corporação Espacial — havia dito sua mãe, sorrindo com orgulho —. Muito importantes.”

C'tair sentiu um nó na garganta, e D'murr se ergueu em toda sua estatura.

Kailea Vendos, a princesa da casa de IX, também lhes desejara o melhor. C'tair suspeitava que a filha do conde estava zombando deles, mas tanto seu irmão como ele gostavam de flertar com ela. de vez em quando até fingiam ficar enciumados quando Kailea mencionava o jovem Leto, herdeiro da Casa Atreides. Tentava que os gêmeos competissem por seu afeto, e eles se rendiam de bom grado a seu desejo. De qualquer forma, C'tair duvidava que suas famílias concordassem em consentir com um matrimônio, assim não via nenhum futuro nesse caminho.

Se C'tair ingressasse na Corporação, seus deveres o levariam para longe de IX e da cidade subterrânea que tanto amava. Se se transformasse em um Navegante, muitas coisas mudariam...

Chegaram à sala de espera da embaixada com meia hora de antecipação. D'murr passeou atrás de seu irmão, que estava nervoso, absorto e nada comunicativo, concentrado em seus pensamentos e desejos. Embora o aspecto dos dois irmãos fosse quase idêntico, D'murr parecia muito mais forte, mais entregue ao desafio, e C'tair se esforçava por imitá-lo.

Engoliu em seco na sala de espera, enquanto repetia as palavras que seu irmão e ele compartilharam como um mantra naquela manhã, em suas habitações. Quero ser Navegante. Quero ingressar na Corporação. Quero abandonar IX e sulcar os caminhos estelares, com minha mente vinculada ao universo.

Aos dezessete anos, ambos se sentiam capazes de suportar um processo de seleção tão rigoroso, que os ligaria permanentemente a uma forma de vida, mesmo que se arrependessem. A Corporação queria mentes flexíveis e maleáveis, dentro de corpos amadurecidos. Os Navegantes treinados na adolescência tinham demonstrado ser os melhores, e alguns alcançavam a patente maior de Timoneiros. Não obstante, esses candidatos aceitos tão cedo podiam se transformar em sombras fantasmagóricas, aptas unicamente para tarefas secundárias. Aplicava-se eutanásia aos fracassados.

— Está preparado, irmão? — perguntou D'murr. C'tair extraía integridade e entusiasmo da confiança de seu irmão.

— Totalmente — disse —. Você e eu seremos Navegantes da Corporação.

C'tair deixou de lado seus receios e se convenceu que desejava aquele destino. Seria um reconhecimento ao seu talento, uma honra para a família... mas não podia afastar o espectro da dúvida que o atormentava. No fundo do seu coração, não desejava abandonar IX. Seu pai, o embaixador, tinha inculcado em seus dois filhos um profundo afeto pelos prodígios da engenharia subterrânea, as inovações e a acuidade tecnológica deste planeta. IX era um planeta sem comparação em todo o Império.

E é obvio, se partisse, perderia Kailea para sempre.

Quando indicaram que entrassem no labirinto da embaixada, os gêmeos atravessaram o portal sentindo-se muito sozinhos. Não tinham acompanhantes, ninguém que os aclamassem no triunfo ou os consolasse no fracasso. Nem sequer seu pai estava presente para oferecer apoio. O embaixador tinha partido para Kaitain, afim de preparar outra reunião do subcomitê do Landsraad.

Aquela manhã, enquanto o relógio debulhava os minutos de forma ominosa, C'tair e D'murr tinham se sentado na residência do embaixador para tomar o café da manhã, havia uma mesa repleta de bolos coloridos, enquanto sua mãe reproduzia uma mensagem que seu pai havia hologravado. Tinham pouco apetite, mas escutaram as palavras de Cammar Pilru. C'tair tentou captar algo especial nelas, algo que fosse útil, mas a imagem do embaixador se limitou a transmitir ânimo e trivialidades, como eco de um discurso muito usado que tivesse utilizado muitas vezes durante sua carreira diplomática.

Em seguida, depois de um abraço final, sua mãe tinha beijado a ambos antes de sair a toda pressa para a sede do Banco da Corporação, uma parte do aborrecido edifício que agora estava a frente deles. S'tina manifestara o desejo de acompanhar seus filhos durante as provas, mas a Corporação tinha proibido. Os exames de Navegante significavam algo muito íntimo e pessoal. Os gêmeos tinham que enfrentá-los sozinhos e separados, usando apenas as suas capacidades. Sua mãe estaria em seu escritório, provavelmente preocupada com eles.

Quando S'tina se despediu, conseguiu apagar quase todo o desespero e horror de seu rosto. C'tair tinha percebido um brilho, mas D'murr não. Perguntou-se o que sua mãe teria oculto durante os preparativos para a prova. Não deseja que triunfemos?

Os Navegantes constituíam a matéria que compõe as lendas, rodeados de segredos e superstições transpiradas pela Corporação. C'tair escutara rumores sobre deformações corporais, danos que a imersão constante e intensa na especiaria podia infligir à mente humana. Nenhum forasteiro jamais tinha visto um Navegante, então como eram essa gente e quais as mudanças que aconteciam no corpo de alguém provido de capacidades mentais tão fenomenais? Seu irmão e ele riam daquelas especulações estúpidas, e se convenceram de que tais idéias eram mentiras.

Mas serão? O que minha mãe teme?

— Concentre-se, C'tair! Parece preocupado — disse D'murr.

C'tair respondeu sarcástico:

— Preocupado? É claro que sim. Pergunto-me por que. Estamos a ponto de passar pela prova mais importante de nossa vida, e ninguém sabe como preparar-se para ela. Acredito que ainda estamos um pouco verdes.

D'murr olhou para ele com enorme preocupação e apertou seu braço.

— Seu nervosismo pode ser a chave do seu fracasso, irmão. O exame de Navegante não tem nada a ver com a preparação ou com os estudos, apenas a vocação natural, e a capacidade de expandir nossas mentes. Temos que atravessar o vazio sãs e salvos. Agora lembre-se do que nos disse o velho Davee Rogo: só conseguirá se deixar que sua mente supere as limitações que os outros se impõem. C'tair, abra sua imaginação e supere essas limitações comigo.

A confiança do seu irmão parecia inquebrantável, e C'tair se viu obrigado a assentir. Davee Rogo. Fazia anos que não pensava no aleijado e excêntrico inventor ixiano. Quando tinham dez anos, os gêmeos tinham conhecido o famoso inventor Rogo. Seu pai os apresentara, gravando hologramas de ambos com o cientista para o álbum de lembranças da embaixada, e depois se afastou para saudar outros personagens importantes. Os dois moços tinham seguido falando com o inventor, e ele lhes tinha convidado a visitar seu laboratório. Durante os dois anos seguintes, Rogo se transformara em uma espécie de tutor extra-oficial de C'tair e D'murr, até sua morte. Agora, os gêmeos só conservavam de Davee Rogo suas lembranças, e a confiança que triunfariam.

Rogo brigaria comigo por minhas dúvidas, pensou C'tair.

— Pense, irmão. Como alguém se prepara para a tarefa de transportar naves enormes de um sistema para outro em um abrir e fechar de olhos? — Para demonstrar, D'murr piscou um olho —. Você assará. Nós dois passaremos. Prepare-se para mergulhar no contêiner de especiaria.

Enquanto caminhavam para o mostrador de recepção interior da embaixada, C'tair olhou para a cidade subterrânea de Vernii, além das fileiras rutilantes de globos luminosos que onde estavam construindo outro Cruzeiro. Talvez algum dia pilotasse aquela mesma nave. Ao pensar na forma como aquele Navegante vindo de outros mundos tinha saído com o novo Cruzeiro para o espaço, o jovem se sentiu tomado de entusiasmo. Gostava de lX, queria ficar no planeta, queria ver Kailea uma última vez... mas também desejava ser Navegante.

Os irmãos se identificaram e esperaram em silêncio em frente ao mostrador de marmolplaz, cada um absorto em seus pensamentos, como se estivessem em transe para aumentar suas possibilidades de triunfo. Manterei minha mente completamente aberta, preparada para tudo.

Uma bela examinadora veio encontrá-los, vestida com um traje cinza folgado. O símbolo do infinito da Corporação costurado na sua lapela, mas não usava jóias nem adornos.

— Bem-vindos — disse sem apresentar — a Corporação procura os melhores talentos porque nosso trabalho é de uma importância decisiva. Sem nós, sem as viagens espaciais, a malha do Império se rasgaria. Pensem nisto, e compreenderão por que temos que ser tão exigentes.

Seu cabelo era de um castanho avermelhado, muito curto. C'tair a consideraria atraente em outro momento, mas agora só podia pensar no exame iminente.

A examinadora checou suas identificações de novo e depois os acompanhou até câmaras de exame.

— Trata-se de um exame individual, que devem encarar sozinhos. Não há forma de atrapalhar nem de se ajudar mutuamente — disse.

C'tair e D'murr, alarmados pela separação, olharam-se, e depois se desejaram sorte em silêncio.

A porta da câmara se fechou atrás de D'murr com um ruído estrondoso e aterrador. Notou nos ouvidos a diferença de pressão de ar. Sentia-se sozinho, muito sozinho, mas sabia que estava à altura do desafio.

A confiança significa ter metade da batalha ganha.

Observou as paredes couraçadas, as gretas seladas, a falta de ventilação. Um gás surgia de uma abertura no teto... Nuvens espessas de cor alaranjada, com um aroma picante que queimou suas fossas nasais. Veneno? Drogas? Então, D'murr compreendeu o que a Corporação lhe tinha reservado.

Melange!

Fechou os olhos e percebeu o inconfundível aroma da estranha especiaria. Melange, uma incrível quantidade no ar, que enchia a câmara e impregnava todos os seus poros. D'murr, que conhecia o valor da especiaria de Arrakis devido ao meticuloso trabalho de sua mãe no Banco da Corporação, aspirou outra grande baforada. O que custava aquilo! Não sentiu estranhou que a Corporação examinasse só a uns poucos escolhidos. O custo de um só exame seria suficiente para comprar o complexo de uma sede em outro planeta.

A riqueza controlada pela Corporação Espacial (em bancos, transporte e explorações) assombrava-o. A Corporação chegava a todas as partes, tocava tudo. Queria ser membro dela. Para que necessitavam de ornamentações frívolas, se tinham tanta melange?

Sentiu que as possibilidades giravam como um detalhado mapa topográfico, com ondulações e intercessões, um aglomerado de pontos, e atalhos que entravam e saíam do vazio. Abriu sua mente para que a especiaria pudesse transportá-lo para qualquer ponto do universo.

Quando a névoa alaranjada rodeou D'murr, não pôde mais ver as paredes monótonas da câmara. Notou que a melange se introduzia em todos os seus poros e células. Uma sensação maravilhosa! Imaginou que era um Navegante reverenciado, que expandia sua mente até os limites do Império e abrangia tudo...

D'murr continuou sulcando o espaço, sem abandonar a câmara de provas, ou ao menos pensou.

 

O exame foi muito pior do que C'tair imaginara.

Ninguém havia dito o que devia fazer. Não teve a menor chance. Engasgou-se com o gás de especiaria, enjoou, lutou por conservar o controle de sua mente. A overdose de melange o aturdiu, até o ponto de não recordar quem era ou que fazia ali. Esforçou-se por concentrar-se, mas foi inútil.

Quando recuperou a consciência, com a roupa limpa e o cabelo e a pele recém lavados (talvez para que a Corporação pudesse recuperar até a última partícula de melange?), a curvilínea examinadora estava olhando para ele. Dedicou a C'tair um sorriso triste e meneou a cabeça.

— Você bloqueou sua mente para a ação do gás de especiaria, e reintegrou ao mundo normal. — Suas próximas palavras soaram como uma sentença de morte —: Não é de utilidade para a Corporação.

C'tair se levantou e tossiu. Inspirou pelo nariz, que ainda ardia devido ao potente aroma de canela.

— Sinto muito. Ninguém me explicou o que devia...

A mulher o ajudou a levantar-se, disposta a acompanhá-lo para fora da embaixada.

Sentia uma enorme angústia no coração. A examinadora não teve necessidade de responder quando lhe tirou da zona de recepção. C'tair passeou a vista ao redor, procurando seu irmão, mas a sala de espera estava vazia.

Então, percebeu que seu fracasso não era o pior acontecimento que devia enfrentar.

— Onde está D'murr? Ele passou?

A examinadora assentiu.

— Admiravelmente.

Indicou-lhe a saída, mas o jovem olhou para o corredor interior e a câmara selada onde seu irmão tinha entrado. Precisava felicitar D'murr, embora a vitória fora agridoce. Ao menos, um dos dois seria Navegante.

— Nunca mais voltará a ver seu irmão — disse a examinadora —. Agora, D'murr Pilru é nosso.

Depois de um breve instante de confusão, C'tair correu para a porta da câmara selada. Golpeou-a com os punhos e gritou, mas não recebeu resposta. Em seguida, guardas da Corporação o tiraram dali com eficácia e rapidez.

Ainda enjoado pela overdose de melange, C'tair não percebeu para onde o conduziam. Piscando e desorientado, encontrou-se na passarela de cristal da embaixada. Abaixo dele, outras ruas e passarelas buliam de tráfico e pedestres que iam de um edifício a outro.

Agora estava mais sozinho que nunca.

A examinadora se plantou na escalinata da embaixada para impedir que C'tair entrasse novamente. Embora sua mãe trabalhasse ali, C'tair sabia que as portas daquele edifício, assim como as portas do futuro que tinha imaginado, tinham se fechado para sempre.

— Alegre-se por seu irmão! — exclamou a examinadora, e sua voz expressou por fim um pouco de vida —. Ele entrou em outro mundo. Viajará para lugares inimagináveis.

— Eu o verei novamente, ou poderei falar com ele? — perguntou C'tair, como se tivessem roubado uma parte de seu ser.

— Duvido — disse a examinadora, ao mesmo tempo em que cruzava os braços sobre o peito. Franziu o sobrecenho —. A menos que... sofra uma regressão. Seu irmão mergulhou tão completamente no gás de especiaria que começou o processo de conversão no mesmo momento A Corporação não pode renunciar esse talento. Já começou a mudança.

— Devolvam-no ao que era antes — disse C'tair com lágrimas nos olhos —. Apenas por alguns minutos.

Queria sentir-se feliz por seu gêmeo, e orgulhoso. D'murr tinha superado a prova que tanto tinha significado para ambos.

Os gêmeos sempre tinham estado muito unidos. Como poderiam viver separados? Talvez sua mãe pudesse usar suas relações na Corporação para permitir que se despedissem. Ou talvez seu pai usasse seus privilégios de embaixador para conseguir recuperar D'murr.

Mas C'tair sabia que isso nunca ocorreria. Agora compreendia. Sua mãe sabia, e temera perder seus dois filhos.

— Na maioria de casos, o processo é irreversível — disse a examinadora.

Guardas de segurança saíram e a flanquearam.

— Acredite — disse a examinadora —. Você não gostaria de voltar a ver seu irmão.

 

O corpo humano é uma máquina, uma mistura de elementos químicos orgânicos, condutores de fluidos e impulsos elétricos. Um governo é como uma máquina de sociedades interativas, leis, culturas, recompensas e castigos, normas de conduta. E no final, o universo é como uma máquina, planetas ao redor de sóis, estrelas reunidas em amontoados, amontoados e outros sóis que formam galáxias inteiras... Nosso trabalho é manter a máquina em funcionamento.

Escola Interior Suk, doutrina fundamental

 

O príncipe herdeiro Shaddam e o chambelán Aken Hesban, ambos carrancudos, viram se aproximar um homem diminuto e esquelético que, não obstante, caminhava como se fosse um gigante mutelliano. Depois de anos de adestramento e condicionamento, todos os médicos Suk pareciam propensos a levar-se muito a sério.

— Este Yungar me recorda mais um artista de circo que um respeitado profissional da medicina — disse Shaddam, enquanto tomava nota das sobrancelhas arqueadas, os olhos negros e o acréscimo de um cinza resistente —. Espero que saiba o que faz. Só quero os melhores cuidados para meu pobre pai doente.

A seu lado, Hesban deu um puxão em seu longo bigode, mas não disse nada. Usava um comprido manto azul com adornos dourados. Durante anos, Shaddam tinha detestado aquele homem pomposo sempre à sombra de seu pai, e tinha jurado nomear um novo chambelán depois de ser nomeado. E enquanto aquele médico Suk não encontrasse explicações para a piora progressiva de Elrood, a preponderância de Shaddam estaria assegurada.

Hasimir Fenring insistia que nem sequer todos os recursos da famosa Escola Interior Suk conseguiriam deter o que se pôs em marcha. Nenhum detector de venenos era capaz de localizar o elemento químico catalisador implantado no cérebro do ancião, já que na realidade não era um veneno, mas se transformava numa substância perigosa com a presença da cerveja de especiaria. E à medida que se sentia pior, Elrood consumia cada vez mais cerveja.

O diminuto medico, que não media mais de um metro de estatura, tinha a pele suave mas os olhos de um ancião, devido aos imensos conhecimentos médicos armazenados em seu cérebro. Um diamante negro tatuado marcava o centro de sua mente enrugada. Seu cabelo, recolhido na nuca com um aro de prata Suk, era mais comprido que a de uma mulher, e chegava quase até o chão.

Is Yungar fez o cumprimento característico de sua profissão.

— Têm o pagamento? — Olhou para o chambelán e depois para o príncipe herdeiro —. Precisa saldar as contas antes de iniciar o tratamento. Tendo em conta a idade do imperador, nossos cuidados podem ser muito prolongados... e infrutíferos à longo prazo. Tem que pagar suas faturas, como qualquer outro cidadão. Rei, mineiro, artesão, isso não nos importa. Todos os humanos querem estar sadios, e não podemos tratar todo mundo. Nossos cuidados estão a disposição unicamente dos que querem e podem pagar.

Shaddam apoiou uma mão na manga do chambelán.

— Claro, não pouparemos em gastos com a saúde de meu pai, Alten. Tudo está arrumado.

Encontravam-se dentro da porta arqueada da sala de audiências imperial, sob os afrescos pintados no teto que representavam acontecimentos épicos da história da família Corrino: o sangue da Jihad, a desesperada resistência na ponte do Hreihgir, a destruição das máquinas pensantes. Shaddam sempre tinha considerado pesada e aborrecida a história imperial antiga, de pouca relevância para seus atuais objetivos. Pouco importava o que tivesse acontecido séculos e séculos atrás. Só esperava que não fosse necessário tanto tempo para que acontecesse uma mudança no palácio.

Na sala povoada de ecos, o magnífico trono encravado de jóias do imperador Padishah se elevava tentadoramente vazio. Funcionários da corte e algumas Bene Gesserit vestidas com seus hábitos negros vagavam em nichos e passadiços laterais, procurando passar desapercebidos. Um par de guardas Sardaukar armados até os dentes estavam imóveis ao pé da escalinata, atentos a tudo que acontecia ao redor. Shaddam se perguntou se o obedeceriam naquele instante, sabendo que seu pai se encontrava encerrado em seus aposentos, doente. Decidiu não tentar descobrir. Muito em breve saberia.

— Todos estamos familiarizados com essas promessas — disse o médico —. Em qualquer caso, desejo receber o pagamento antecipadamente.

Tom obstinado, olhar impertinente que não se afastava de Shaddam, desde que o príncipe herdeiro tinha falado. Yungar gostava de praticar estranhos jogos de poder, mas logo seria expulso de sua fraternidade.

— Pagar antes de ver o paciente? — exclamou o chambelán —. Quais são suas prioridades, homem?

Por fim, o doutor Yungar se dignou a olhar para ele.

— Já tratou conosco em ocasiões anteriores, chambelán, e sabe o que custa formar um médico Suk, totalmente condicionado e treinado.

Como herdeiro do Trono do Leão Dourado, Shaddam estava familiarizado com o Condicionamento Imperial Suk, que garantia absoluta lealdade ao paciente. Em séculos de história médica ninguém tinha conseguido corromper um graduado da Escola Interior.

A certos membros da corte real era muito difícil conciliar a lendária lealdade Suk com sua cobiça inesgotável. Os médicos jamais tinham renunciado a sua postura de não tratar ninguém, nem sequer um imperador, em troca da simples promessa de uma remuneração. Os médicos Suk não confiavam. O pagamento devia ser em dinheiro e no ato.

Yungar falou com uma choramingação irritada.

— Embora não sejamos tão importantes como os Mentats ou as Bene Gesserit, a Escola Suk continuas sendo uma das maiores do Império. Apenas minha equipe é mais cara que uma dúzia de planetas. — Yungar indicou uma maleta que flutuava a seu lado —. Não recebo seu pagamento para meu benefício particular, é obvio. Só sou um médico, uma pessoa de confiança. Quando retornar, seus créditos irão comigo para a Escola Suk, em benefício da humanidade.

Hesban olhou-o com ódio. Seu rosto avermelhou e seus bigodes tremeram.

— Digamos em benefício da parte de humanidade que pode permitir-se seus serviços.

— Correto, chambelán.

O ar de importância que se dava o médico fez Shaddam estremecer. Quando ocupasse o trono, seria capaz de iniciar mudanças que colocassem aqueles Suk em seu devido lugar? Tudo no seu devido tempo.

Suspirou. Seu pai tinha permitido que muitos fios lhe escapassem entre os dedos. Embora Shaddam detestasse manchar as mãos de sangue, tirar do caminho o imperador ancião era uma ação necessária.

— Se os gastos do tratamento constituírem sua preocupação fundamental — disse o médico Suk, ao mesmo tempo em que aguilhoava com discrição o chambelán —, podem contratar um médico mais barato para o imperador do Universo Conhecido.

— Chega de discussões — interrompeu Shaddam —. Venha comigo, doutor.

Yungar assentiu e deu as costas ao chambelán, como se ele fosse um ser desprezível.

— Agora sei por que usam uma tatuagem em forma de diamante em suas testas — grunhiu Hesban enquanto os seguia —. Carregam tesouros em suas mentes.

O príncipe herdeiro os precedeu até uma câmara protegida e atravessou uma cortina elétrica para entrar em uma cripta interior. Sobre uma mesa de ouro situada no centro da estadia havia broncos de opafogo, danikins de melange e bolsas entreabertas que revelavam pedras soo cintilantes.

— Isto será suficiente — disse o Suk —. A menos que o tratamento seja mais complicado do que supomos. — O médico voltou sobre seus passos, flanqueado por sua maleta flutuante —. Já conheço o caminho para a habitação do imperador.

Sem dar mais explicações, Yungar atravessou uma porta e subiu uma escalinata que conduzia aos aposentos onde descansava o imperador.

Guardas Sardaukar permaneceram ante o campo de força que protegia a cripta do tesouro, enquanto Shaddam e Hesban seguiam o médico. Fenring já estava esperando junto ao leito do doente, emitindo seus ruídos irritantes e procurando que o tratamento não sortisse efeito.

O enrugado imperador jazia em uma ampla cama imperial, sob um dossel das melhores seda merh, bordadas seguindo o antigo método terráqueo. Os postes eram de ucea esculpida, uma madeira dura nativa da Elacca. Fontes relaxantes, dispostas em nichos das paredes, jorravam água fresca, que sussurrava e borbulhava. Globos luminosos perfumados, acesos ao mínimo, flutuavam nos rincões da habitação.

Enquanto Shaddam e Fenring observavam, o médico Suk despediu com um gesto um criado vestido com libré e subiu os dois estreitos degraus que conduziam ao leito. Três formosas concubinas imperiais espreitavam atrás do doente, como se suas presenças pudessem revitalizá-lo. O fedor do ancião impregnava o ar, mesmo com a ventilação e o incenso.

O imperador Elrood vestia roupas de cetim e um gorro de dormir antiquado que cobria seu crânio, salpicado de manchas de idade. Estava deitado sobre os lençóis, já que se queixava de um calor excessivo. O homem tinha um aspecto gasto e mal podia manter os olhos abertos.

Shaddam se sentiu satisfeito ao ver quanto tinha piorado a saúde do seu pai desde a visita do embaixador Tleilaxu. De qualquer modo, Elrood tinha dias bons e maus, além do irritante hábito de recuperar sua vitalidade depois de uma recaída importante como esta.

Deve estar sedento, pai, pensou Shaddam. Beba um pouco mais de cerveja.

O médico abriu sua maleta e mostrou vários instrumentos brilhantes, sensores e frascos coloridos para analisar líquidos. Yungar introduziu a mão na maleta e extraiu um pequeno aparelho branco, que entregou a Elrood.

Depois de lhe tirar o gorro de dormir e revelar uma calva suarenta, o doutor Yungar escaneou o crânio de Elrood e levantou a cabeça do ancião para examiná-la. O imperador grunhiu, seu aspecto frágil, fraco e velho. Shaddam se perguntou que aspecto teria ele mesmo depois de viver cento e cinqüenta anos... preferivelmente ao fim de um longo e glorioso reinado. Durante o exame reprimiu um sorriso e conteve o fôlego. A seu lado, Fenring permanecia tranquilo e reservado. Só o chambelán presenciava a cena com semblante preocupado.

O medico guardou seu equipamento e depois estudou o cubo que continha o histórico médico do paciente. Por fim, anunciou para o atordoado ancião:

— Nem mesmo a melange pode conservá-lo jovem eternamente, senhor. Na sua idade é natural que a saúde comece a declinar. Às vezes com grande rapidez.

Shaddam exalou um suspiro inaudível de alívio.

Elrood se levantou com dificuldade, e suas concubinas dispuseram travesseiros borlas que apoiasse as costas. Profundas rugas apareceram em seu rosto cinzento e inchado.

— Mas a poucos meses me sentia muito melhor.

— A velhice não é uma linha perfeita num gráfico. Há picos e quedas, recuperações e recaídas. — O médico teve a audácia de utilizar um tom de prepotente, como se insinuasse que o imperador não podia compreender conceitos tão complicados —. O corpo humano é uma sopa química e bioelétrica, e acontecimentos aparentemente inconseqüentes podem provocar grandes mudanças. esteve submetido a tensões ultimamente?

— Sou o imperador! — replicou Elrood como se o Suk fosse terrivelmente estúpido —. Tenho muitas responsabilidades. Isto provoca tensões, é obvio.

— Nesse caso, comecem a delegar mais funções ao príncipe herdeiro e seus ajudantes de confiança, como Fenring. O senhor não vai viver eternamente. Nem mesmo um imperador pode fazê-lo. Planeje o futuro. — O médico fechou a maleta. Shaddam sentiu vontade de abraçá-lo —. Deixarei uma prescrição e aparelhos para que se sinta melhor.

— A única prescrição que desejo é mais especiaria em minha cerveja.

Elrood deu um longo e ruidoso gole de sua jarra.

— Como preferir — disse o esquelético doutor Suk. Tirou uma bolsa da maleta e a deixou na mesa —. Estes aparelhos servem para descansar os músculos, se necessitar. Cada aparelho contém instruções para que suas concubinas os utilizem para diminuir suas dores.

— De acordo, de acordo — disse Elrood —. Deixe-me de uma vez. Tenho trabalho a fazer.

O doutor Yungar desceu os degraus da cama e fez uma reverência.

— Com sua permissão, senhor.

O imperador, impaciente, agitou uma mão nodosa em sinal de despedida. As concubinas sussurraram entre si, com os olhos totalmente abertos. Duas delas agarraram os aparelhos para descansar os músculos e brincaram com os controles.

Shaddam sussurrou a um servente que acompanhasse o médico e o chambelán Hesban, que se encarregaria de pagá-lo. Era evidente que Hesban queria ficar no hall e falar de certos documentos, tratados e outros assuntos de Estado com o ancião, mas Shaddam, convencido de que era capaz de cuidar desses assuntos, queria afastar o pesado conselheiro.

Quando o Suk se foi, Elrood disse para seu filho:

— Talvez o médico tenha razão, Shaddam. Há um assunto que quero discutir com você e com Hasimir. Um projeto político que desejo levar adiante, com independência de minha saúde. Eu lhes contei sobre meus planos sobre IX, e da tomada de poder pelos Tleilaxu?

Shaddam virou os olhos. Claro, velho idiota! Fenring e eu nos ocupamos de quase todo o trabalho. Foi nossa idéia enviar Dançarinos Faciais a IX, para que se infiltrassem entre a classe trabalhadora.

— Sim, pai. Conhecemos os planos.

Elrood indicou que se aproximassem, e as feições do ancião se nublaram. Shaddam viu pela extremidade do olho que Fenring expulsava às concubinas, e que depois se aproximava para escutar as palavras do imperador.

— Esta manhã recebi uma mensagem cifrada de nossos agentes em IX. Já conhece a inimizade que nutro pelo conde Vernius.

— Ah, sim... Nós sabemos, pai — disse Shaddam. Pigarreou —. Uma velha afronta, uma mulher roubada...

Os olhos úmidos de Elrood se iluminaram.

— Ao que parece nosso audaz Dominic esteve brincando com fogo, treinando seus homens com meks de batalha móveis que analisam os competidores e processam dados, talvez usando um cérebro informatizado. Também vendeu estas “máquinas inteligentes” no mercado negro.

— Sacrilégio, senhor — murmurou Fenring. — Isso é contrário aos regulamentos da Grande Convenção.

— Exato — corroborou Elrood —, e esta não é a única infração. A Casa Vernius também está desenvolvendo sofisticadas otimizações cyborg. Reposições corporais mecânicas. Podemos utilizar isso em nosso benefício.

Shaddam franziu a testa, aproximou-se mais do ancião e sentiu o aroma amargo da cerveja de especiaria em seu hálito.

— Cyborgs? São mentes humanas acopladas a corpos robóticos, e portanto não violam a Jihad.

Elrood sorriu.

— Mas nós entendemos que existiram certos... compromissos. Certo ou não, é o tipo ideal de desculpa que nossos impostores necessitam para terminar a tarefa. O momento de agir é agora. A Casa Vernius se encontra à beira da destruição, e um empurrãozinho a derrubará.

— Hummmm, isso é interessante — disse Fenring —. Então, os Tleilaxu se apoderarão das sofisticadas instalações ixianas para suas pesquisas.

— Isto é muito importante, e vocês verão como cuido desta situação — disse Elrood —. Observe e aprenda. Já pus meu plano em marcha. Os trabalhadores subóides ixianos estão, digamos, preocupados, com estes desenvolvimentos, e nós estamos... — fez uma pausa para provar sua jarra de cerveja de especiaria e estalou os lábios — inspirando seu descontentamento por meio de nossos representantes.

Elrood deixou a jarra vazia e mergulhou numa letargia repentina. Acomodou seus travesseiros, deitou-se de costas e dormiu.

Shaddam trocou um olhar de cumplicidade com Fenring e pensou na conspiração dentro da conspiração: sua participação secreta nos acontecimentos de IX, Fenring e ele tinham sido os responsáveis por colocar o Professor Tleilaxu em contato com Elrood. Agora, os Bene Tleilax, utilizando seus metamorfos geneticamente modificados, estavam açulando o ardor religioso e o descontentamento entre as classes inferiores de IX. Para os fanáticos Tleilaxu, qualquer ameaça de uma máquina pensante, e dos ixianos que as criavam, era obra de Satanás.

Quando os dois jovens abandonaram a habitação do imperador, Fenring sorriu, absorto em pensamentos similares. Observe e aprenda, havia dito o velho idiota.

Elrood, bastardo condescendente, você sim que tem que aprender... e não lhe resta muito tempo para isso.

 

Os líderes da Jihad Butleriana não definiram com precisão a inteligência artificial, mas previram todas as possibilidades de uma sociedade imaginativa. Em conseqüência, contamos com zonas cinzentas substanciais para manobrar.

Opinião legal Ixiana - confidencial

 

Embora a explosão fosse longínqua, a onda de choque fez tremer a mesa em que Leto e Rhombur estavam sentados, estudando. Fragmentos de plasmento do teto, onde tinha aparecido uma larga rachadura, choveram sobre eles. Um raio se desenhou em uma das amplas janelas de plaz, que se partiu imediatamente.

— Infernos carmesins! O que foi isso? — exclamou Rhombur.

Leto se pôs em pé de um salto. Atirou os livros para um lado e procurou a origem da explosão. Viu o lado oposto da gruta subterrânea, onde vários edifícios se transformaram em escombros. Os dois jovens trocaram olhares de perplexidade.

— Prepare-se — disse Leto, alarmado.

— Para que?

Leto o ignorava.

Tinham assistido juntos a uma das aula do Grand Palais, primeiro para estudar Filosofia dos Cálculos e as bases do Efeito Holtzman, e depois sistemas de fabricação e distribuição ixianos. Das paredes pendiam quadros antigos dentro de molduras fechadas hermeticamente, incluindo obras dos velhos mestres terráqueos Claude Monet e Paul Gauguin, com placas interativas que permitiam a artistas ixianos ampliá-los. Desde que Leto informara sobre sua aventura nos túneis dos subóides, não ouvira nada sobre discussões ou investigações posteriores. Talvez o conde imaginasse que o problema se resolveria por si só.

Outra onda de choque fez a habitação vibrar, e esta foi mais potente e próxima. O príncipe de IX agarrou a mesa para impedir que caísse. Leto correu para a janela rachada.

— Olhe, Rhombur!

Alguém gritou em uma das ruas que comunicavam com os edifícios de estalactites. À esquerda, uma cápsula de transporte fora de controle se chocou contra o chão, entre uma nuvem de cristais estilhaçados e membros mutilados de passageiros.

A porta da sala-de-aula se abriu com estrépito, o capitão Zhaz da Guarda Imperial irrompeu como um louco, armado com um dos novos rifles laser modulados por impulsos, Seguiram-no quatro subordinados, todos armados da mesma forma, todos uniformizados com o branco da Casa Vernius. Ninguém em lx, em especial o conde, tinha pensado que Leto ou Rhombur necessitariam de proteção de um guarda-costas.

— Venha conosco, jovens amos! — disse Zhaz, quase sem fôlego.

Os olhos escuros do homem, emoldurados por sua barba castanha, brilharam de assombro quando reparou nos fragmentos de pedra caídos do teto, e depois na janela rachada. Embora estivesse disposto a lutar até a morte, era evidente que Zhaz não entendia o que estava ocorrendo na cidade de Vernii, geralmente tão pacífica.

— O que está acontecendo, capitão? — perguntou Rhombur, enquanto os guardas os acompanhavam no corredor, onde as luzes piscavam. Sua voz se quebrou por um momento, e depois soou com mais energia, como era de esperar do herdeiro do conde —. Diga-me, minha família está a salvo?

Outros guardas e membros da corte ixiana corriam de um lado para outro, gritando estridentemente, em contraponto com outra explosão. De baixo ouviram o tumulto de uma multidão enfurecida, tão longínqua que parecia um murmúrio profundo. Então, Leto distinguiu o zumbido de disparos de fuzis laser. Antes que o capitão respondesse a Rhombur, Leto adivinhou a origem dos distúrbios.

— Há problemas com os subóides, meus senhores! — gritou Zhaz —. Não se preocupem, logo os controlaremos. — Tocou um botão em seu cinturão, e uma porta invisível até esse momento se abriu na parede recoberta de mármore. O capitão e a guarda da Casa se prepararam durante tanto tempo contra ataques externos, que não sabiam como lutar contra uma revolta interna —. Sigam-me e os porei a salvo! Estou certo de que sua família estará esperando.

Quando ambos os jovens se agacharam para passar pela meia porta oculta atrás dos cristais, o portal se fechou a suas costas. À luz amarela dos globos luminosos de emergência se acendeu, Leto e Rhombur correram junto a uma via eletromagnética, enquanto o capitão do guarda gritava freneticamente por um comunicador manual. O instrumento projetava uma luz lavanda, e Leto ouviu o som metálico da voz que respondia.

— A ajuda está à caminho!

Segundos depois, um carro blindado apareceu na via e parou. Zhaz subiu com os dois jovens herdeiros e um par de guardas, enquanto os outros homens da segurança ficavam para defender sua fuga. Leto se deixou cair em um assento, enquanto Zhaz e Rhombur se apertavam diante. O carro começou a mover-se.

— Os subóides derrubaram duas colunas de diamante — disse Zhaz, enquanto consultava a tela do comunicador —. Parte da casca superior caiu. — Seu rosto empalideceu de incredulidade. Coçou a barba. — Isso é impossível.

Leto, que tinha visto os sinais da tormenta que se aproximava, sabia que a situação devia ser ainda pior do que o capitão imaginava. Os problemas de IX não iriam ser resolvidos em uma hora.

Ouviu-se um relatório emitido por uma voz metálica, que parecia desesperada.

Os subóides estão subindo em massa dos níveis inferiores! Como é... Como é possível que se organizaram tão bem?

Rhombur amaldiçoou, e Leto dirigiu um olhar significativo para seu amigo corpulento. Tinha tentado avisar os ixianos, mas a Casa Vernius se negara a considerar a gravidade da situação.

Uma rede de segurança caiu sobre Leto assim que se acomodou, e o veículo continuou acelerando com um zumbido, enquanto subia por cavernas ocultas no teto de rocha. O capitão Zhaz ativou um teclado de comunicações na parte dianteira do compartimento, e seus dedos dançaram sobre as teclas. Um brilho azul rodeou suas mãos. A seu lado, Rhombur observava o capitão com muita atenção, consciente de que se esperava que assumisse o comando.

— Estamos em uma cápsula de fuga — explicou um guarda a Leto —. Por enquanto ambos estão a salvo. Os subóides não conseguirão atravessar nossas defesas superiores, uma vez que as tenhamos ativado.

— Mas e meus pais? — perguntou Rhombur —. E Kailea?

— Temos um plano para este caso. Você e sua família devem encontrá-los em um ponto de reunião. Por todos os santos e pecadores, espero que meus homens lembrem do que devem fazer. É a primeira vez que não se trata de um exercício.

O veículo mudou várias vezes de via, acelerou ainda mas e subiu no escuro. Ao fim de pouco tempo, a via se nivelou e uma luz iluminou o carro, quando passou em frente a uma imensa janela de plaz blindado unidirecional. Puderam ver rapidamente os distúrbios que aconteciam no chão: os brilhos de incêndios e as manifestações que invadiam a cidade. Outra explosão, e uma das passarelas transparentes superiores estalou em mil pedaços, que caíram para o fundo da caverna. Figuras diminutas de pedestres se precipitaram para seu fim.

— Pare aqui, capitão! — gritou Rhombur —. Tenho que ver o que está acontecendo.

— Por favor, senhor, não demore mais de alguns segundos — suplicou o capitão —. Os rebeldes poderiam abrir uma brecha nessa parede.

Leto custou a acreditar o que estava ouvindo. Rebeldes? Explosões? Evacuações de emergência? IX tinha parecido ser tão sofisticado, tão pacífico, tão... alheio às discórdias. Como os insatisfeitos com sua sorte, os subóides, tinham planejado um ataque tão maciço e coordenado? De onde tinham obtido os recursos?

Através do painel unidirecional, Leto viu que os soldados de Vernius lutavam uma batalha perdida contra enxames de inimigos no chão da caverna. Os subóides lançavam explosivos caseiros ou bombas incendiárias, enquanto os ixianos repeliam as turbas com tiros púrpura de seus fuzis laser.

— O comando diz que os subóides estão se rebelando em todos os níveis — disse Zhaz sem acreditar no que ouvia —. Gritam “Jihad” quando atacam.

— Infernos carmesins! — exclamou Rhombur —. O que isso tem a ver com a Jihad? O que tem a ver conosco?

— Temos que nos afastar da janela — insistiu Zhaz, ao mesmo tempo que puxava a manga de Rhombur —. É preciso chegar ao ponto de encontro.

Rhombur se afastou da janela, no momento em que parte de uma rua laje caia abaixo ela, e ondas de subóides surgiam dos túneis.

O veículo acelerou e girou à esquerda na escuridão, para depois subir mais uma vez. Rhombur assentiu para si, com o rosto tenso e decomposto.

— Temos centros de comando secretos nos níveis superiores. Tomamos precauções para este tipo de situações, e a esta altura nossas unidades militares devem ter rodeado os centros de fabricação vitais. Não demorarão muito para sufocar a sublevação.

O filho do conde falava como se tentasse convencer a si mesmo.

Zhaz se inclinou sobre o teclado, e a luz pálida banhou seu rosto.

— Olhem, teremos problemas mais adiante, senhor!

Mexeu nos controles. O veículo oscilou e Zhaz tomou uma via lateral. Os outros dois guardas prepararam suas armas, ao mesmo tempo em que esquadrinhavam a escuridão que os rodeava.

— A Unidade Quatro foi aniquilada — disse o capitão Zhaz —. Os subóides abriram caminho através das paredes laterais. Vou chamar a Três!

— Aniquilada? — disse Rhombur, e seu rosto avermelhou de vergonha ou medo —. Como os subóides conseguiram isso?

— O comando diz que os Tleilaxu estão envolvidos, e também alguns de seus dançarinos faciais. Estão armados até os dentes. — Soltou uma exclamação quando viu os relatórios que chegavam —. Deus nos proteja!

Uma avalanche de perguntas assaltou Leto. Os Tleilaxu? Por que atacam IX? É um planeta mecanizado... e os Tleilaxu são fanáticos religiosos. Temem tanto às máquinas ixianas que utilizaram seus metamorfos criados em contêineres para infiltrar-se entre o proletariado subóide? Isso explicaria a coordenação. Mas por que tanto interesse?

Enquanto o veículo avançava, Zhaz mantinha a vista fixa no tabuleiro de comunicações, onde recebia os relatórios da batalha.

— Por todos os santos e pecadores! Engenheiros Tleilaxu explodiram as tubulações que transmitem calor do núcleo do planeta.

— Mas precisamos dessa energia para que as fábricas funcionem — gritou Rhombur.

— Também destruíram as linhas de reciclagem que servem para transportar os refugos industriais e os gases de escape no manto. — A voz do capitão ficou indignada —. Estão atacando o coração de IX, paralisando nossa capacidade de fabricação.

Enquanto Leto pensava no que tinha aprendido durante os meses passados no planeta, as peças do quebra-cabeças começaram a encaixar em sua mente.

— Pense bem — disse —, tudo isto pode ser reparado. Sabiam exatamente onde golpear para enfraquecer IX sem causar danos permanentes... — Leto assentiu com ar sombrio, agora que tinha compreendido tudo —. Os Tleilaxu querem este planeta e suas instalações intactas. Querem tomar o controle.

— Não seja ridículo, Leto. Jamais entregaríamos IX para os repugnantes Tleilaxu.

Rhombur parecia mas perplexo que irritado.

— Pode ser que não haja outra alternativa, senhor — disse Zhaz.

Quando Rhombur ladrou uma ordem, um guarda abriu o compartimento e extraiu um par de pistolas de dardos e cinturões escudo, que entregou para os dois príncipes.

Leto prendeu o cinturão sem fazer perguntas e tocou um botão para confirmar se o aparelho funcionava. Sentiu o contato frio da arma de projéteis em sua mão. Checou o carregador de dardos mortíferos, aceitou dois que o guarda lhe deu e os embutiu em compartimentos do cinturão.

O veículo mergulhou em um túnel comprido e escuro. Leto viu luz ao fundo. Recordou o que seu pai lhe havia dito a respeito dos Tleilaxu: “Destroem tudo aquilo que se parece com uma máquina pensante.” IX era um objetivo natural para eles.

A luz o deslumbrou, e penetraram nela como uma exalação.

 

A religião e a lei que governam a as massas têm que ser uma. Um ato de desobediência tem que constituir um pecado, e exige um castigo religioso. Isto produzirá o duplo beneficio de gerar maior obediência e maior valentia. Temos que depender nem tanto da valentia individual, mas da valentia de toda a população.

Pardot Kynes, discurso dirigido aos representantes dos sietches mais importantes

 

Indiferente ao destino que tinham decidido para ele, Pardot Kynes passeava pelos túneis, acompanhado de seus agora fiéis seguidores Ommun e Turok. Os três foram visitar Stilgar, que descansava e se restabelecia nos aposentos familiares.

Assim que viu seu visitante, Stilgar se sentou na cama. Embora sua ferida pudesse ter sido fatal, o jovem Fremen se recuperou quase por completo em um espaço muito curto de tempo.

— Devo-lhe a água de minha vida, planetólogo — disse, e cuspiu ritualmente no chão da caverna.

Kynes se sobressaltou um momento, mas depois acreditou compreender. Conhecia a importância da água para aquela gente, sobretudo da apreciada umidade contida no corpo de uma pessoa. Para Stilgar sacrificar uma gota de saliva significava lhe render uma grande honra.

— Eu... agradeço sua água, Stilgar — disse Kynes com um sorriso forçado —. Mas pode conservar o resto. Quero que se restabeleça.

Frieth, a silenciosa irmã de Stilgar, estava junto à cama do jovem, sempre ocupada, e seus olhos de um azul muito profundo se moviam de um lugar para outro, em busca de algo novo para fazer. Olhou por um longo momento para Kynes, como se lhe estivesse analisando, mas sua expressão era indecifrável. Depois saiu em silêncio para trazer mais ungüentos que acelerariam a recuperação do seu irmão.

Mais tarde, enquanto Kynes passeava pelos passadiços do sietch, muitos curiosos se reuniram para ouvir o que ele dizia. Envolvidos em suas tarefas cotidianas, a presença do alto e barbudo planetólogo continuava a ser uma novidade interessante. Suas loucas mas, visionárias palavras talvez soassem ridículas, como uma absurda fantasia, mas até os meninos do sietch seguiam o forasteiro.

A multidão ruidosa acompanhou Kynes enquanto soltava seu discurso, fazia gestos e olhava para o teto como se pudesse ver o ciclo. Por mais que se esforçassem, os Fremen eram incapazes de imaginar as nuvens que se aglomeravam para verter água sobre o deserto. Gargantas de umidade que caem do céu vazio? Absurdo!

Alguns meninos riram só de pensar que podia chover em Dune, mas Kynes continuou falando, explicando os passos de seu procedimento para extrair vapor de água do ar. Recolheria até a última gota de orvalho dos lugares sombreados, afim de remodelar Arrakis de forma precisa e preparar o caminho de uma ecologia nova e brilhante.

— Precisam pensar neste planeta em termos de engenharia — disse Kynes, com o tom de um professor que se dirige aos alunos. Gostava de ter um público tão atento, embora não estivesse seguro de que entendessem muito —. Em seu conjunto, este planeta é uma mera expressão da energia, uma máquina impulsionada por seu sol. — Baixou a voz e olhou para uma menina que o observava com os olhos totalmente abertos —. Precisamos remodelá-lo de maneira que se adapte a nossas necessidades. Temos a capacidade de fazer isso em... Dune. Mas contamos com a energia e a auto-disciplina necessárias?

Levantou a vista e olhou para outro ouvinte.

— Só nós podemos dizer.

Àquelas alturas, Ommun e Turok tinham escutado quase todas as conferências de Kynes, e suas palavras tinham se enraizado. Agora, quanto mais descobriam de seu entusiasmo transbordante e sua absoluta sinceridade, mais começavam a acreditar. Por que não sonhar? A julgar pela expressão de seus ouvintes, era evidente que outros Fremen também começavam a considerar as possibilidades.

Os anciões do sietch qualificavam estes conversos de crédulos e otimistas. Kynes, inabalável, continuava propagando suas idéias, por mais extravagantes que parecessem.

O naib Heinar, com expressão sombria, entreabriu seu único olho e estendeu o crys sagrado, ainda embainhado. O corpulento guerreiro que se erguia imóvel a frente dele ergueu as mãos para receber o presente.

O naib entoou as palavras rituais.

— Uliet, Liet maior, foste eleito para a tarefa pelo bem de nosso sietch. É um cavalheiro da areia e um dos maiores guerreiros Fremen.

Uliet, um homem de meia idade e feições duras inclinou a cabeça. Continuou com as mãos estendidas. Esperou sem pestanejar. Embora fosse um homem de profundas convicções religiosas, procurou dissimular seu ardor.

— Pegue este crys consagrado, Uliet.

Heinar empunhou o cabo esculpido e extraiu a larga folha branca de sua capa. A faca era uma relíquia sagrada para os Fremen, fabricado a partir do dente de cristal de um verme de areia. Aquele arma em particular se adaptava ao corpo de seu proprietário, de forma que quando este morria, a faca se dissolvia.

— Sua folha foi impregnada na venenosa Água da Vida, e benta pelo Shai-Hulud — continuou Heinar —. Tal como manda nossa tradição, a sagrada folha não pode ser embainhada de novo até que tenha provado sangue.

Uliet pegou a arma, aflito de repente pela importância da tarefa para a qual tinha sido eleito. De natureza muito supersticiosa, tinha observado os gigantescos vermes do deserto e montado sobre eles muitas vezes. Mas nunca tinha chegado ao extremo de familiarizar-se com aqueles seres fabulosos. Não podia esquecer que eram manifestações do grande criador do universo.

— Obedecerei a vontade do Shai-Hulud.

Uliet aceitou a faca envenenada e a segurou no alto.

Outros anciões estavam reunidos atrás do naib, firmes em sua decisão.

— Leve dois coletores de água — disse Heinar — para recolher a água do planetólogo e utilizá-la em benefício de nosso sietch.

— Talvez devêssemos reservar uma pequena quantidade para plantar um arbusto em sua honra — propôs Avalanche, mas ninguém o apoiou.

Uliet saiu da câmara ereto em toda sua estatura e com ar orgulhoso, um verdadeiro guerreiro Fremen. Não tinha medo do planetólogo, embora o forasteiro falasse com ardor de seus planos ridículos e extravagantes, como se fosse guiado por uma visão divina. Um estremecimento percorreu a espinha dorsal do assassino.

Uliet entreabriu seus olhos azuis e afastou esses pensamentos enquanto percorria os corredores escuros. Dois coletores de água o seguiam, carregando garrafões vazios para recolher o sangue de Kynes, e com panos absorventes para secar até a última gota que caísse no chão da caverna.

Não foi difícil encontrar o planetólogo. Um séquito o seguia com expressão de entusiasmo ou ceticismo tingido de assombro. Kynes, que sobressaía sobre outros, caminhava sem rumo, falava e movia os braços. Seu rebanho o seguia a uma prudente distância. Alguns faziam perguntas, mas a grande maioria se limitava a escutar.

— A grande pergunta do homem não é quantos sobreviverão dentro do sistema — estava dizendo Kynes quando Uliet se aproximou esgrimindo a faca bem visível e a missão estampada em seu rosto —, mas um tipo de existência será possível para os sobreviventes.

Uliet avançou pela multidão. Os ouvintes do planetólogo viram o assassino e sua faca. Afastaram-se e trocaram olhares astutos, alguns decepcionados, outros atemorizados. Emudeceram. Assim eram os costumes do povo Fremen.

Kynes não se deu conta de nada disso. Riscou um círculo no ar com um dedo.

— Aqui é possível encontrar água na superfície, mediante uma mudança leve mas viável. Poderemos conseguir se me ajudarem. Pensem nisso: caminhar ao ar livre sem um traje Destilador. — Apontou para dois meninos mais próximos. Eles se afastaram envergonhados —. Imaginem isto: tanta umidade no ar que os trajes destiladores não serão necessários.

— Quer dizer que haverá água nos lagos e poderemos beber dela sempre que quisermos? — ironizou um dos observadores mais céticos.

— Certamente. Vi isso em muitos planetas, e nada impedirá que também façamos isso aqui, em Dune. Graças a armadilhas de vento poderemos retirar a água do ar e utilizá-la para plantar erva, arbustos, algo que armazene a água nas células e raízes, e a conserve. De fato, por trás desses lagos poderemos plantar pomares de árvores frutíferas.

Uliet continuou avançando, em transe. Os coletores de água se atrasaram. Não seriam necessários até que o assassinato se consumasse.

— Que tipo de fruta? — perguntou uma menina.

— Oh, a que quiser — disse Kynes —. Primeiro, teríamos que examinar o estado do chão e a umidade. Uvas, possivelmente, nas encostas rochosas. E portyguls, laranjas redondas. Ai, como eu gosto! Meus pais tinham uma árvore em Salusa Secundus. Os portyguls têm uma casca dura e enrugada, mas fácil de cortar. O fruto fica nos galhos, doces e suculentos, e de um laranja mais intenso que possam imaginar.

Uliet só via uma neblina avermelhada. Tinha sua missão gravada a fogo no cérebro, e obscurecia todo o resto. As ordens do naib Heinar ressoavam em seu cérebro. Entrou na zona vazia onde as pessoas tinham retrocedido para escutar as palavras do planetólogo. Uliet procurava não escutar os sonhos, procurava não pensar nas visões que Kynes pregava. Estava claro que aquele homem era um demônio enviado para perverter as mentes dos seus ouvintes...

Uliet cravou a vista à frente, enquanto Kynes continuava percorrendo o corredor, alheio a tudo. Descrevia com gestos exuberantes pastos, canais e bosques. Pintava quadros em sua imaginação. O planetólogo umedeceu os lábios, como se já estivesse saboreando o vinho de Dune.

Uliet se plantou à frente dele e ergueu a faca envenenada.

No meio de uma frase, Kynes reparou no desconhecido. Parecendo irritado pela distração, piscou uma vez e se limitou a dizer:

— Afaste-se.

Passou ao lado e continuou falando.

— Ai, os bosques! Verdes e exuberantes até perder-se de vista, cobrem colinas, baixios e vales. Nos velhos tempos, a areia invadia as plantas e as destruía, mas no novo Dune será o contrário: o vento transportará as sementes por todo o planeta, e crescerão mais plantas e árvores, como crianças.

O assassino estava imóvel, estupefato pelo fato de ter sido descartado com tanta espontaneidade. Afaste-se. A importância de sua missão o paralisava. Se matasse esse homem, as lendas Fremen o chamariam de Uliet o Destruidor de Sonhos.

— Não obstante, antes temos que instalar armadilhas de ar nas rochas — continuou Kynes, sem fôlego —. São sistemas simples, fáceis de construir, e coletarão a umidade, canalizando-a até lugares onde possamos utilizá-la. Claro, teremos imensas cisternas subterrâneas para toda a água, um passo para devolver a água à superfície. Sim, eu disse devolver. Em outro tempo, a água corria livremente por Dune. Vi os sinais.

Uliet contemplou desolado a faca envenenada, incapaz de acreditar que aquele homem não o temesse. Afaste-se. Kynes tinha enfrentado a morte e a ignorado. Guiado Por Deus.

Uliet continuava quieto, com a faca na mão, e as costas desprotegidas do servidor imperial zombava dele. Seria muito fácil afundar a faca na sua coluna.

Mas o assassino não podia se mover.

Viu a confiança do planetólogo, como se algum guardião sagrado o protegesse. A visão do grande futuro que aquele homem pregava para Dune já tinha cativado aquela gente. E os Fremen, por sua vida dura e as gerações de inimigos que os expulsara de planeta em planeta, necessitavam de um sonho.

Talvez tivesse recebido, por fim, um guia, um profeta. A alma de Uliet se condenaria para sempre se ousasse matar o mensageiro enviado por Deus, esperado durante tanto tempo!

Mas tinha aceito a missão encomendada pelo líder do sietch, e sabia que a faca não podia voltar a ser embainhada sem que tivesse provado sangue. Neste caso, o dilema não podia ser resolvido com um corte sem importância, porque a folha estava envenenada. Um simples arranhão o mataria.

Eram feitos irreconciliáveis entre si. A mão do Uliet tremeu sobre o punho da faca esculpida.

Sem perceber que todos tinham emudecido a seu redor, Kynes continuou falando sobre a colocação de armadilhas de vento, mas seu público, consciente do que ia acontecer, olhava para o reputado guerreiro.

Então, a boca de Uliet se encheu de água. Tentou não pensar nisso, mas, como num sonho, teve a impressão de que saboreava o doce e pegajoso suco de portyguls, fruta fresca que podia ser colhida de uma árvore... um pedaço de polpa luxuriosa mudado de um lugar a outro com água pura de um lago. Água para todo mundo.

Uliet retrocedeu um passo, e depois outro, com a faca erguida em um gesto cerimonioso. Retrocedeu um terceiro passo, enquanto Kynes falava de trigo, planícies cobertas de centeio e pancadas de chuva na primavera.

O assassino deu meia volta, aturdido, pensando na palavra que o mensageiro havia dito: Afaste-se.

Contemplou a faca que segurava. Então Uliet se balançou, parou, e voltou a balançar-se para frente, e de forma deliberada caiu sobre sua faca. Seus joelhos não se dobraram, nem tampouco se encolheu nem tentou evitar seu destino, enquanto se deixava cair de bruços sobre a faca. A ponta envenenada se afundou por baixo do esterno até atingir seu coração. Seu corpo tremeu, estendido no chão. Ao fim de poucos momentos, Uliet morreu. Sangrou muito pouco.

Os Fremen gritaram, impressionados pelo presságio que acabavam de presenciar, e se afastaram. Agora, quando olharam para Kynes com ardor religioso, o planetólogo vacilou e se calou por fim. Virou-se e viu o sacrifício que aquele Fremen acabara de fazer por ele, o derramamento de sangue.

— O que aconteceu aqui? — perguntou —. Quem era este homem?

Os coletores de água se apressaram para recolher o cadáver de Uliet. Cobriram o assassino caído com mantas, toalhas e panos, e se afastaram para levá-lo aos destiladores de mortos e começar o processo.

Os outros Fremen olharam para Kynes com reverência.

— Olhem! Deus nos indicou o que temos que fazer — exclamou uma mulher —. Ele guiou Uliet. Ele falou a Pardot Kynes.

— Umma Kynes — disse alguém. Profeta Kynes.

Um homem se levantou e olhou para os outros congregados.

— Seríamos loucos se não o escutássemos agora.

Algumas pessoas saíram correndo em todas direções do sietch. Como não compreendia a religião Fremen, Kynes não entendia nada.

Entretanto, a partir desse momento pensou que não seria difícil encontrar ouvintes.

 

Nenhum forasteiro jamais conheceu uma mulher Tleilaxu e viveu para contar. Considerando a propensão dos Tleilaxu para a manipulação genética (vejam-se, por exemplo, informes anexos sobre clones e gholas), esta simples observação levanta um sem-fim de perguntas adicionais.

Análise da Bene Gesserit

 

Uma mulher ixiana sem fôlego, provida dos créditos de Correio, chegou a Kaitain com um importante comunicado para o imperador. Entrou no palácio como um furacão. Nem mesmo Cammar Pilru, embaixador oficial de IX, estava informado da mensagem nem das terríveis notícias sobre a revolta dos subóides.

Como as comunicações fotos instantâneas de dobra-espacial não existiam entre planetas, os Correios oficiais embarcavam em Cruzeiros rápidos, portadores de comunicações memorizadas imediatamente para entregá-las em pessoa a seus destinatários. O resultado era imensamente mais veloz que por rádio ou outras ondas eletrônicas, que demorariam anos para cruzar um espaço tão imenso.

Escoltada por dois homens da Corporação, a Correio Yuta Brey solicitou uma entrevista imediata com o imperador. A mulher se negou a revelar do que se tratava, nem mesmo seu próprio embaixador, que soube do vôo e correu para a sala de audiências. O magnífico Trono do Leão Dourado estava vazio. Elrood voltara a sentir-se doente e fatigado.

— Só posso entregar esta mensagem ao imperador, uma solicitação urgente do conde Dominic Vernius — disse Brey ao embaixador Pilru. A Corporação e a CHOAM utilizavam diversas técnicas de choque para doutrinar os Correios oficiais, afim de garantir precisão e lealdade —. Entretanto, não se afaste muito, embaixador. Também trago notícias vitais referentes a possível queda de IX. Deve estar informado da situação.

O embaixador Pilru soltou uma exclamação afogada e suplicou por mais informação, mas a mulher guardou silêncio. Deixou a suas escoltas da Corporação e o diplomata ixiano na sala de audiências. Guardas de elite Sardaukar examinaram seus créditos e a conduziram a um hall adjacente ao dormitório do imperador.

O imperador, com aspecto gasto e envelhecido, usava um manto com o emblema imperial na lapela. Estava sentado em uma poltrona de respaldo alto, com os pés apoiados sobre um aquecedor. A seu lado se erguia um homem alto de bigodes caídos, que se identificou como o chambelán Aken Hesban.

Brey se surpreendeu ao ver o ancião sentado daquela forma tão vulgar, e não no majestoso no trono. Seus olhos tintos de azul estavam invadidos pela enfermidade, e mal podia manter a cabeça erguida sobre seu pescoço esquelético. Parecia que poderia falecer a qualquer momento.

Apresentou-se com uma breve reverência.

— Sou a Correio Yuta Brey de IX, senhor, com uma importante solicitação do conde Dominic Vernius.

O imperador franziu o sobrecenho quando ouviu o nome de seu rival, mas não nada disse, preparado para dar seu golpe. Tossiu e cuspiu em um lenço.

— Estou ouvindo.

— Somente o imperador pode ouvir — replicou a mulher, e olhou com insolência para Hesban,

— Ah, sim? — disse Elrood com um sorriso tenso —. Ultimamente não ouço muito bem, e este distinto cavalheiro é meu ouvido. Ou deveria dizer meus ouvidos? Se utiliza o plural nestes casos?

O chambelán se inclinou e sussurrou algo ao imperador.

— Acabo de ser informado que é meus ouvidos — disse Elrood com um firme assentimento.

— Como quiser — disse Brey.

Recitou as palavras memorizadas, utilizando as entonações empregadas pelo conde Dominic Vernius.

— Estamos sendo atacados pelos Bene Tleilax, sob a falsa alrgação de distúrbios internos. Através de dançarinos faciais infiltrados, os Tleilaxu fomentaram uma insurreição entre nossa classe operária. Graças a estes meios traiçoeiros, os rebeldes contaram com a vantagem da surpresa. Muitas de nossas instalações defensivas foram destruídas ou sitiadas. Como dementes, gritam Jihad! Jihad!

— Guerra Santa? — perguntou Hesban —. Por que? O que estão fazendo agora em IX?

— Não temos idéia, senhor chambelán. É bem sabido que os Tleilaxu são fanáticos religiosos. Nossos subóides são criados para seguir instruções, do que se desprende que é fácil manipulá-los. — Yuta Brey vacilou —. O conde Dominic Vernius solicita respeitosamente a imediata intervenção dos Sardaukar do imperador contra este ato ilegal.

Expôs muitos detalhes sobre as posições militares ixianas e Tleilaxu, incluindo o alcance da rebelião, as fábricas inutilizadas e os cidadãos assassinados. Uma das vítimas mais importantes era a esposa do embaixador, uma banqueira, morta por causa de uma explosão no edifício da embaixada da Corporação.

— Eles foram muito longe. — Hesban, indignado, parecia disposto a dar a ordem de defender IX. A solicitação da Casa Vernius era razoável. Olhou para o imperador —. Senhor, se os Tleilaxu desejam acusar IX de violar as normas da Grande Convenção, que o façam em um tribunal do Landsraad.

Apesar do incenso e das bandejas de canapés com especiaria, Brey ainda sentiu um aroma de enfermidade no ar viciado do hall. Elrood se remexeu sob seu pesado manto. Entreabriu os olhos.

— Tomaremos em consideração sua solicitação, Correio. Neste momento, preciso descansar um pouco, ordens dos médicos, como sabe. Falaremos do assunto amanhã. Rogo-lhe que tome um refresco e escolha uma câmara nos aposentos de nossos dignitários visitantes. Pode ser que também deseje se reunir com o embaixador ixiano.

Um olhar de alarme apareceu nos olhos da mulher.

— Esta informação é de poucas horas atrás, senhor. Nossa situação é desesperada. Tenho instruções de lhe dizer que o conde Vernius considera fatal qualquer atraso.

Hesban respondeu em voz alta, ainda confuso pela falta de iniciativa de Elrood.

— O imperador não lhe diz nada, jovem. Solicita, e pronto.

— Minhas mais sinceras desculpas, senhor. Rogo-lhe que perdoe minha agitação, mas hoje vi meu planeta receber um golpe mortal. Que resposta devo dar ao conde Vernius?

— Tenha paciência. Entrarei em contato com ele no seu devido tempo, quando tiver considerado minha resposta.

A cor abandonou o rosto de Brey.

— Posso perguntar quando?

— Não! — trovejou Elrood —. Sua audiência acabou. — Fulminou-a com o olhar.

O chambelán Hesban se encarregou da situação: apoiou uma mão no ombro de Brey e a conduziu para a porta, enquanto olhava para o imperador.

— Como quiser, senhor.

Brey fez uma reverência, e os guardas de elite a acompanharam para fora da habitação.

Elrood tinha visto ira e desespero na expressão da Correio quando compreendeu que sua missão tinha fracassado.

Mas tudo tinha funcionado perfeitamente.

Assim que a Correio ixiana e o chambelán da corte saíram, o príncipe herdeiro Shaddam e Fenring entraram na sala de espera. Elrood sabia que estavam escutando às escondidas.

— Pouca educação estão adquirindo, não é? — disse —. Observe e aprenda.

— O senhor administrou a situação como um mestre, pai. Os acontecimentos estão se desenrolando exatamente como previu.

Com uma boa ajuda invisível do Fenring e eu.

O imperador sorriu, e depois teve um acesso de tosse.

— Meus Sardaukar seriam mais eficientes que os Tleilaxu, mas não podia correr o risco de que minha mão fosse notada logo no início. Um protesto oficial de IX ao Landsraad provocaria problemas. Temos que nos livrar da Casa Vernius e pôr em seu lugar os Tleilaxu como nossos marionetes, com legiões Sardaukar para encarregar-se da repressão e garantir a conquista.

— Hummmm, possivelmente seria preferivel referir-se a isso como procurar uma transição suave e organizada. É melhor evitar a palavra “repressão”.

Elrood sorriu com seus lábios exangues e exibiu os dentes, de tal forma que sua cabeça pareceu mais que nunca com uma caveira.

— Muito bem, Hasimir, está aprendendo a ser um político... apesar de seus métodos bastante diretos.

Embora os três conhecessem os verdadeiros motivos da rebelião em IX, nenhum falou dos benefícios que receberiam depois que Hidar Fen Ajidica tivesse iniciado as pesquisas para obter a especiaria artificial.

O chambelán Hesban invadiu a habitação.

— Desculpe-me, senhor. Quando deixei a Mensageira com suas escoltas da Corporação, ela informou ao embaixador que o senhor tinha se negado a agir, conforme mandam os regulamentos imperiais. Ela se reuniu com o embaixador Pilru para solicitar uma audiência com os membros do Conselho do Landsraad.

— Hummmm, ela está se adiantando, senhor — disse Fenring.

— Absurdo — replicou o velho imperador, e depois procurou sua onipresente jarra de cerveja —. O que uma mensageira sabe de regulamentos imperiais?

— Embora não recebam o treinamento completo de um Mentat, os Mensageiros Licenciados têm uma memória perfeita, senhor — disse Fenring, ao mesmo tempo em que se aproximava do imperador para situar-se na posição que sempre ocupava o chambelán Hesban —. Não pode processar os conceitos, mas é muito possível que tenha acesso em seu cérebro a todas os regulamentos e códigos.

— Ah, sim, mas como pode opor-se à decisão do imperador se ele nem sequer a expressou? — perguntou Shaddam.

Hesban retorceu o bigode, e franziu o cenho em direção ao príncipe herdeiro, mas se absteve de repreender Shaddam por sua ignorância da lei imperial.

— Por mútuo acordo entre o Conselho Federado do Landsraad e a Casa Corrino, o imperador tem que prestar auxílio imediato, ou convocar uma reunião urgente do Conselho de Segurança para tratar o assunto. Se seu pai não agir antes de uma hora, o embaixador ixiano tem pleno direito de convocar o Conselho sem esperar.

— O Conselho de Segurança? — Elrood fez uma careta e olhou para o chambelán Hesban, e depois para Fenring —. Que regulamento essa mulher infernal está citando?

— Volume trinta, seção seis ponto três, da Grande Convenção.

— O que diz?

Hesban respirou fundo.

— Está relacionada com situações de guerra entre Casas, nas quais uma das partes em litígio apela ao imperador. O regulamento foi redigido para proibir que os imperadores tomassem partido. Nesses casos, devem agir como arbitro neutro. Neutro, sim, mas... devem agir. — Moveu os pés —. Senhor, temo que não compreendo seu desejo de atrasar a intervenção. Não pretende condenar os Tleilaxu?

— Há muitas coisas que você não compreende, Aken — disse o imperador —. Limite-se a cumprir meus desejos.

O chambelán pareceu ofendido.

— Hummmm. — Fenring passeou por trás da poltrona de encosto alto, e depois agarrou uma massa de fruta caramelizada de uma bandeja —. Tecnicamente, a Mensageira tem razão, senhor. Não pode atrasar a decisão em um ou dois dias. O regulamento também diz que, se é convocada, a reunião do Conselho de Segurança não pode terminar sem uma decisão firme. — Fenring apoiou um dedo sobre seus lábios enquanto pensava —. Os grupos hostis e seus representantes têm direito a assistir. No caso dos ixianos, seu representante poderia ser tanto a Corporação Espacial quanto o embaixador Pilru, que, devo acrescentar, tem um filho ameaçado pela revolta de IX, e outro filho que acaba de ingressar na Corporação.

— Lembre-se também que a esposa do embaixador foi assassinada durante os distúrbios — acrescentou Hesban —. Há gente morrendo.

— Levando em conta nossos planos para utilizar as instalações de IX, seria melhor manter a Corporação à margem dos acontecimentos — disse Shaddam.

— Planos? — O chambelán pareceu alarmado ao descobrir que certas decisões importantes tinham sido ocultas dele. Virou-se para Elrood —. Que planos são esses, senhor?

— Mais tarde, Aken. — O imperador franziu o sobrecenho e puxou o manto sobre seu peito fundo —. Maldita seja essa mulher!

— Os homens da Corporação estão esperando no salão — insistiu Hesban —. O embaixador Pilru solicitou uma audiência com o senhor. Dentro de pouco tempo, outras Casas serão informadas dos acontecimentos, sobretudo as que têm diretórios na CHOAM. Os distúrbios de IX provocarão graves conseqüências econômicas, ao menos em um futuro imediato.

— Traga-me os regulamentos e dois Mentats para que efetuem análise independentes. Encontrem alguém que nos tire desta confusão! — O imperador pareceu reanimar-se de repente, animado pela crise —. A Casa Corrino não vai interferir na conquista de IX pelos Tleilaxu. Nosso futuro depende disso.

— Como quiser, senhor.

Hesban fez uma reverência e saiu rapidamente, ainda perplexo, mas disposto a obedecer as ordens.

Minutos depois um criado entrou na sala de espera com um projetor e uma tela oval de plaz negro. O criado montou o aparelho sobre uma mesa. Fenring a moveu para que o imperador a visse bem.

Hesban retornou, flanqueado por dois Mentats, com os lábios manchados de suco de safo. Guardas Sardaukar impediram que vários representantes se introduzissem na estadia. Dançaram imagens sobre a mesa, palavras negras impressas em galach. Shaddam, ao lado de seu amigo, esquadrinhou os meandros da lei, como se tentasse localizar algo que tivesse passado desapercebido a todos.

Os dois Mentats se mantiveram imóveis, com os olhos cravados na distância, enquanto realizavam análises diferentes da lei e seus códigos.

— Para começar — disse um deles —, analisem o parágrafo seis ponto três.

As palavras desfilaram pelo projetor, e depois pararam em uma página concreta. Um parágrafo estava sublinhado em vermelho, e uma segunda holocópia da mensagem apareceu no ar. A cópia flutuou até pousar sobre o regaço do imperador, para que ele e outros pudessem lê-la.

— Não funcionará resultado — disse o segundo Mentat — Remete a setenta e oito ponto três, volume doze.

Elrood leu o regulamento e passou uma mão sobre a página, que desapareceu.

— Maldita Corporação — resmungou —. Nós os obrigaremos a ajoelhar assim que...

Fenring pigarreou para impedir que o imperador terminasse.

O holoprojetor começou a procurar de novo, enquanto os Mentats aguardavam em silêncio. O chambelán Hesban se aproximou para estudar as páginas que passavam a sua frente ele.

— Malditas sejam estes regulamentos! Eu gostaria de dinamitar todas as leis. — Elrood não conseguia se acalmar—. Sou eu o governador do Império, ou não? Tenho que agradar ao Landsraad, tenho que respeitar os caprichos da Corporação... Um imperador não deveria inclinar-se ante outros poderes.

— Tem razão, senhor — reconheceu Hesban —, mas estamos presos em um matagal de tratados e alianças.

— Pode ser que aqui haja algo — disse Fenring —. Apêndice Jihad dezenove zero zero e quatro. — Fez uma pausa —. Em questões relacionadas com a Jihad Butleriana e as proibições estabelecidas com posterioridade, concede-se ao imperador a faculdade de tomar decisões referentes ao castigo dos que desobedecem a proibição contra as máquinas pensantes.

Os olhos fundos do imperador se iluminaram.

— Ah, e como se suscitou certa dúvida sobre possíveis violações ixianas, talvez possamos proceder legalmente com as devidas precauções. Sobretudo porque recebemos relatórios inquietantes sobre certas máquinas novas.

— Sim? — respondeu o chambelán.

— Realmente. Lembra-se dos meks de combate autodidatas que são vendidos no mercado negro? Isso merece uma investigação minuciosa.

Shaddam e Fenring trocaram um sorriso. Todos sabiam que essa atividade não resistiria a uma investigação prolongada, mas no momento bastava para que Elrood atrasasse sua decisão. Em um dia ou dois, os Tleilaxu consolidariam sua conquista. Sem apoio externo, a Casa Vernius estava perdida.

Hesban assentiu enquanto estudava o texto.

— Segundo este apêndice, o imperador Padishah é o “Santo Guardião da Jihad, encarregado de protegê-la e a todos os seus representantes.

— Ah, sim. Neste caso, poderíamos pedir as supostas provas do embaixador Tleilaxu, e depois conceder um tempo limitado a Pilru para responder. — Shaddam fez uma pausa e olhou para Fenring em busca de apoio —. Quando acabar o dia, o imperador poderia pedir um afastamento temporário das hostilidades.

— Mas então será muito tarde — disse o chambelán Hesban.

— Exato. IX cairá e não poderemos fazer nada para impedir.

 

Como muitas delícias culinárias, a venganxa é um prato que se saboreia melhor lentamente, depois de uma preparação longa e minuciosa.

Imperador Elkood IX Reflexões em seu leito de morte

 

Meia hora depois, Shaddam viu entrar no hall do imperador os dois embaixadores inimigos para celebrar uma audiência privada destinada a solucionar o problema. Por sugestão de Fenring, estava vestido com uma vestimenta mais oficial, adornada com ornamentos militares, de modo que enquanto seu pai exibia um aspecto desalinhado e doentio, ele tinha a aparência de um líder.

O embaixador ixiano tinha o rosto largo, com a pele lisa e bochechas rosadas. Todo seu corpo parecia enrugado em um macacão de estamena, com lapelas largas e pescoço fraco. Como admitia que não conhecia a situação de IX detalhadamente, trouxe consigo a Mensageira Yuta Brey, como testemunha ocular.

O único delegado Tleilaxu que conseguiram encontrar, Mofra Tooy, era um homem de pouca estatura, cabelo laranja emaranhado e pele cinzenta. O homem projetava uma raiva contida, e seus pequenos olhos escuros fulminaram seu colega ixiano. Tooy tinha recebido instruções precisas sobre o que devia dizer.

O embaixador Pilru continuava consternado e confuso pela situação, e só agora começava a assimilar a morte de sua esposa, com a conseguinte dor. Todo lhe parecia muito irreal. Um pesadelo. Remexeu-se em seu lugar, preocupado com seu planeta, seu cargo e seu filho desaparecido, C'tair. O olhar do embaixador vagava pela sala em busca de apoio entre os conselheiros e funcionários do imperador. Sentiu um calafrio ao ver seus olhares inflexíveis.

Dois agentes da Corporação, de aspecto inexpressivo, esperavam na parte posterior do hall. Um deles tinha o rosto corado e cheio de cicatrizes. A cabeça do outro era disforme, arredondada na nuca. Shaddam tinha visto gente semelhante em ocasiões anteriores, gente que tinha enfrentado a preparação para Navegantes da Corporação mas que não tinha suportado os rigores do processo de seleção.

— Primeiro escutaremos Mofra Tooy — disse o imperador com a voz rouca —. Quero que explique as suspeitas do seu povo.

— E o motivo para terem iniciado uma ação tão violenta e sem precedentes! — interveio Pilru. Os outros ignoraram seu desabafo.

— Nós descobrimos atividades ilegais em IX — começou o Tleilaxu com voz aguda —. Os Bene Tleilax consideram fundamental deter esta calamidade, antes que outra insidiosa inteligência mecânica se propague pelo Império. Se tivéssemos esperado, possivelmente a raça humana teria padecido por outro milênio de escravidão. Não tivemos outra alternativa senão agir como fizemos.

— Mentiroso! — rugiu Pilru —. Por que se dizem defensores da lei e da ordem sem se submeter ao procedimento legal exigido? Carecem de provas, porque não aconteceram atividades ilegais em IX. Nós respeitamos todas as diretrizes da Jihad.

Com notável calma para um Tleilaxu, Tooy manteve o olhar fixo nos presentes, como se o embaixador nem sequer fosse merecedor de seu desprezo.

— Nossas forças iniciaram uma ação necessária antes que as provas pudessem ser destruídas. Por acaso não aprendemos com a Grande Revolução? Uma vez ativada, uma inteligência mecânica adquire tendências vingativas, e é capaz de desenvolver a capacidade de autocopiar-se e espalhar-se como um incêndio incontrolado. IX é a origem de todas as mentes mecânicas. Nós, os Tleilaxu, continuamos a Guerra Santa com o objetivo de libertar o universo deste inimigo. — Embora o embaixador ixiano o sobrepujasse por duas cabeças, Tooy gritou —: Jihad! Jihad!

— Estamos vendo, senhor — disse Pilru, retrocedendo vários passos —. Este comportamento é inqualificável.

— “Não construirás nenhuma máquina a semelhança da mente humana” — citou o Tleilaxu —. Você e a Casa Vernius serão destruídos por seus pecados.

— Acalme-se.

Elrood conteve um sorriso, e indicou a Tooy que retornasse a sua posição anterior. O diminuto delegado obedeceu a contra gosto.

Pilru e a Mensageira ixiana conferenciaram em voz baixa antes que o embaixador voltasse a tomar a palavra.

— Peço ao imperador que exija provas dessas violações. Os Bene Tleilax, agindo como bandidos, destruíram nossa base comercial sem primeiro apresentar suas acusações ao Landsraad. — E se apressou a acrescentar —. Nem ao imperador.

— Estamos reunindo as provas — replicou Tooy —. Incluirão o verdadeiro motivo dos atos criminosos cometidos pelos ixianos. Seus margens de lucros são falsas, e põem em perigo sua condição de membros da CHOAM.

Viva, pensou Shaddam, e trocou um olhar de cumplicidade com Fenring. Os relatórios que falsificamos com tanta mestria! Ninguém manipulava os documentos melhor que Fenring.

— É mentira — disse Pilru —. Nossos lucros são maiores que nunca, graças ao novo desenho dos Cruzeiros. Perguntem à Corporação. Seu povo não tem direito a incitar a violência...

— Tínhamos todo o direito de proteger o Império de outro período de domínio das máquinas. Seus subterfúgios não enganam sobre o motivo de fabricar mentes mecânicas. Seus lucros são mais valiosos que o bem-estar da humanidade? Estão vendendo suas almas!

As veias se marcaram nas têmporas de Pilru, que perdeu toda sua calma de diplomata.

— Está mentindo, bastardo, isto não é uma farsa monstruosa! — Virou-se para Elrood —. Senhor, peço-lhe que envie os Sardaukar a lX para proteger nosso povo de uma invasão ilegal realizada pelas forças dos Bene Tleilax. Não violamos nenhuma lei.

— Violar a Jihad Butleriana é uma acusação muito grave — disse o imperador pensativo, embora tudo aquilo nada lhe importasse. Tampou a boca quando voltou a tossir —. Não podemos ignorar uma acusação dessas. Pense nas conseqüências...

Elrood falava com deliberada lentidão, coisa que Shaddam achou divertida. O príncipe herdeiro não podia deixar de admirar algumas facetas de seu pai, mas Elrood já não era jovem, e tinha chegado o momento de sangue novo tomar as rédeas do poder.

A Mensageira falou.

— Imperador Elrood, os Tleilaxu tentam ganhar tempo enquanto as batalhas acontecem em lX. Utilize seus Sardaukar para impor um afastamento das hostilidades, e depois cada lado apresentará seu caso e as provas ante o tribunal.

O imperador arqueou as sobrancelhas e olhou para ela.

— Como simples Mensageira, não está qualificada para discutir comigo —. Dirigiu-se aos Sardaukar —: Expulsem esta mulher.

O desespero transpareceu na voz da mulher.

— Perdoe-me, senhor, mas conheço muito de perto a crise de lX, e meu senhor Vernius me instruiu para que desse todos os passos necessários. Exigimos que os Bene Tleilax apresentem provas imediatamente ou retirem suas forças. Não estão reunindo provas. Trata-se de uma tática difamatória!

— Quando poderão apresentar as provas? — perguntou o imperador, olhando para Tooy.

— Supostas provas — corrigiu Pilru.

— No prazo de três dias imperiais, senhor.

Os ixianos protestaram.

— Mas senhor, nesse tempo podem fortalecer suas conquistas militares e falsificar provas. — Os olhos do Pilru cintilaram —. Já assassinaram minha esposa, destruíram edifícios... Meu filho desapareceu. Não permita que continuem nos saqueando durante três mais dias!

O imperador refletiu enquanto os reunidos a guardavam em silêncio.

— Tenho certeza que exageram a gravidade da situação para me obrigar a tomar uma decisão precipitada. Levando em conta as acusações, inclino-me por esperar as provas, ou a sua ausência. — Olhou para seu chambelán —. O que me diz, Aken? Isto está dentro da lei imperial?

Hesban murmurou sua aprovação.

Elrood se inclinou em direção a Pilru. como se lhe estivesse concedendo um favor incrível.

— Não obstante, as provas devem ser apresentadas em dois dias, não três. Pode conseguir isso, embaixador Tooy?

— Será difícil, senhor, mas... como quiser.

Pilru avermelhou de cólera.

— Meu senhor, como é possível que esteja do lado destes Tleilaxu asquerosos?

— Embaixador, seus comentários não são bem recebidos em meu hall imperial. Tenho o maior respeito por seu conde... e por sua dama Shando, é óbvio.

Shaddam olhou para os agentes da Corporação, no fundo da sala. Estavam conversando em sua linguagem secreta. Uma violação da Jihad Butleriana era algo muito sério para eles.

— Mas dentro de dois dias meu planeta estará perdido.

Pilru dirigiu um olhar suplicante para os homens da Corporação, mas os agentes permaneceram em silêncio e não olharam para ele.

— Não pode fazer isto, senhor! Condenará nosso povo à destruição! — gritou Yuta Brey a Elrood.

— Mensageira, você é muito impertinente, assim como Dominic Vernius. Não ponha mais a prova minha paciência. — Elrood olhou severamente para o representante dos Tleilaxu —. Embaixador Tooy, me traga provas incontestáveis em de dois dias, ou retire suas forças de IX.

Mofra Tooy fez uma reverência. Um sorriso se insinuou nos cantos de sua boca.

— Muito bem — disse o embaixador ixiano, tremulo de raiva —. Solicito agora mesmo que o Conselho de Segurança do Landsraad se reúna imediatamente.

— E assim será, conforme ditam as leis — replicou Elrood —. Agi da maneira que, em minha opinião, serve melhor ao Império. Mofra Tooy se dirigirá ao Conselho em um prazo de dois dias, e vocês poderão fazer o mesmo. Se nesse período quiser retornar ao seu planeta, um Cruzeiro estará à disposição, advirto-lhes, porém, que se estas acusações forem verdadeiras, embaixador, a Casa Vernius terá que responder a muitas coisas.

 

Dominic Vernius, com a calva coberta de suor, estudou seu embaixador em Kaitain. Pilru acabara de transmitir um relatório estarrecedor ao conde e sua esposa. Era evidente que o homem estava ansioso por sair à procura do seu filho, perdido no caos da cidade subterrânea, embora fizesse menos de uma hora que chegara ao planeta. Encontravam-se em um dos centro de operações subterrâneo, nas profundezas do teto de rocha, pois o Despacho Orbital transparente era muito vulnerável em tempos de guerra. ouviam-se ruídos de maquinaria, transportes de tropas e equipamentos através das catacumbas da casca planetária.

Os ataques defensivos não tinham sortido efeito. Graças a sabotagens bem planejadas e a barricadas erguidas estrategicamente, os Tleilaxu controlavam a maior parte do mundo subterrâneo, e os ixianos foram sendo abandonados em zonas cada vez menores. O número dos subóides rebeldes ultrapassava em muito ao dos defensores ixianos, vantagem que os invasores Tleilaxu aproveitavam ao máximo, já que manipulavam com facilidade os operários.

— Elrood nos traiu, meu amor — disse Dominic, abraçando sua esposa. Só conservavam as roupas que vestiam e alguns objetos que tinham conseguido resgatar. O conde compreendera finalmente a magnitude da conspiração —. Sabia que o imperador me odiava, mas nunca esperei um comportamento tão vil, nem sequer dele. Oxalá eu tivesse provas.

A dama Shando, pálida e frágil, embora seus olhos cintilassem com determinação de ferro, respirou fundo. Delicadas rugas circundavam sua boca e olhos deliciosos, a única indicação de sua idade avançada, sutis avisos que serviam a Dominic para amar cada dia mais sua beleza, amor e caráter. A mulher puxou seu braço.

— E se eu fosse vê-lo e me entregasse a sua mercê? Talvez se mostrasse razoável devido às lembranças que conserva de mim...

— Não permitirei que faça isso. Ele agora te odeia, e a mim por me casar com você. Roody desconhece o significado da palavra compaixão. — Dominic fechou os punhos e escrutinou o rosto do embaixador Pilru, mas não descobriu a menor esperança. Olhou para Shando de novo disse —. Conhecendo-o como conheço, não há dúvida de que se acha imerso em intrigas tão complexas que não poderia recuar mesmo que quisesse. Nunca receberemos compensações de guerra, mesmo que saíssemos vitoriosos. A fortuna de minha família será confiscada, e o poder me será arrebatado. — Baixou a voz e tentou dissimular seu desespero —. E tudo para vingar-se de mim por ter roubado sua mulher há tanto tempo atrás.

— Farei o que me pede, Dominic — disse Shando em voz baixa —. Me fez sua esposa em vez de sua concubina. Sempre lhe disse…

Sua voz emudeceu.

— Eu sei, meu amor. — Apertou sua mão —. Eu também faria tudo por você. Valeu a pena... apesar disto.

— Espero suas ordens, meu senhor — disse o embaixador Pilru, muito agitado. C'tair tinha que estar em algum lugar, escondido, lutando, talvez morto.

Dominic mordiscou o lábio.

— É evidente que ele ordenou a destruição da Casa Vernius, e só há uma alternativa. Todas essas acusações inventadas não significam nada, assim como o papel em que estão escritas as leis. O imperador tenta nos destruir, e não podemos lutar contra a Casa Corrino, sobretudo contra traições como esta. O Landsraad vai ignorar o assunto, e depois se precipitará sobre os despojos da guerra. — Ergueu os ombros e se elevou em toda sua estatura —. Pegaremos as armas atômicas e escudos da família e fugiremos para onde o Império não possa nos alcançar.

Pílru gritou.

— Transformar-se em... um renegado, meu senhor? O que será de nós?

— Infelizmente, não há opção, Cammar. É a única forma de escapar com vida. Ponha-me em contato com a Corporação e peça um transporte de emergência. Cobre qualquer favor que nos devam. Os homens da Corporação estiveram presentes durante sua audiência com o imperador, de modo que conhecem nossa situação. Diga-lhes que queremos levar nossas forças militares, as poucas que restaram. — Dominic inclinou a cabeça —. Nunca imaginei que chegaria este momento... expulsos de nosso palácio e de nossas cidades...

O embaixador assentiu e abandonou a estadia.

Uma parede do centro administrativo cintilou e apareceram quatro projeções, em outros tantos painéis, das batalhas que aconteciam em todo o planeta, cenas transmitidas por visicoms. As baixas ixianas continuavam aumentando.

Dominic meneou a cabeça.

— Devemos falar com nossos amigos e colaboradores mais íntimos e lhes informar dos perigos que enfrentarão se nos acompanharem. Será mais difícil e perigoso fugir conosco que ser subjugados pelos Tleilaxu. Ninguém será obrigado a nos acompanhar, só voluntários. Sendo uma Casa renegada, todos os nossos familiares e partidários serão alvo dos caçadores de glória.

— Caçadores de recompensas — corrigiu Shando com voz afogada pela pena e ira —. Teremos que nos separar, Dominic, para apagar nossa pista e aumentar nossas chances de sobreviver.

Na parede, a imagem de dois painéis desapareceu quando os Tleilaxu destruíram os visicoms.

Dominic suavizou sua voz.

— Mais tarde, quando tivermos recuperado nossa Casa e nosso planeta, recordaremos o que fizemos aqui e o que se disse. Isto é história. vou contar-lhe um conto, um caso para Leto ao que nos visita.

— Eu gosto de seus contos — disse a mulher, com um doce sorriso em seu rosto enérgico mas delicado. Seus olhos cor avelã cintilaram —. Muito bem, o que contaremos a nossos netos?

Por um momento, o conde Vernius se concentrou em uma rachadura que surgira no teto e na água que escorria por uma parede.

— Em tempos remotos Salusa Secundus era a capital do Império. Sabe porquê a mudaram para Kaitain?

— Algum problema com as armas atômicas? — respondeu Shando —. Salusa ficou destruída.

— Segundo a versão imperial, foi um acidente, mas a Casa Corrino diz isso porque não quer dar idéias às pessoas. A verdade é que outra família renegada, uma Grande Casa cujo nome foi apagado dos arquivos históricos, conseguiu aterrissar em Salusa com as armas atômicas de sua família. Durante um audaz ataque bombardearam a capital e provocaram uma catástrofe ecológica. O planeta ainda não se recuperou.

— Um ataque com armas atômicas? Não sabia.

— Depois, os sobreviventes transportaram o trono imperial de Kaitain, em um sistema diferente, mais seguro, onde o jovem imperador Hassik III reconstruiu o governo. — Ao perceber preocupação no rosto de sua mulher, abraçou-a com força —. Nós não fracassaremos, meu amor.

Os outros painéis se apagaram quando os Tleilaxu desativaram os últimos visicoms.

 

No Império existe o princípio do individual, nobre mas poucas vezes utilizado, pelo qual uma pessoa que viola uma lei escrita em uma situação de extremo perigo ou necessidade pode solicitar uma sessão especial da corte de jurisdição, afim de explicar e sustentar a necessidade de seus atos. Certo número de procedimentos legais derivam deste princípio, entre eles o Jurado Drey, o Tribunal Cego e o Julgamento de Confisco.

Lei do Império - Comentários

 

Face às desastrosas perdas militares durante a revolta inesperada, em IX continuavam existindo muitos lugares secretos. Séculos atrás, durante os tempos paranóicos posteriores ao momento em que a Casa Vernius se encarregou das operações mecânicas, engenheiros chamados em segredo tinham construído uma colméia secreta de habitações impermeáveis a transmissões, câmaras de algas e esconderijos impossíveis de descobrir graças ao notável engenho ixiano. Um inimigo demoraria séculos para encontrá-los. Até a Casa governante tinha esquecido a metade deles.

Guiados pelo capitão Zhaz e os guarda-costas privados, Leto e Rhombur se ocultaram em uma câmara cujas paredes estavam cobertas de algas, onde se entrava por um túnel que mergulhava na casca do planeta. Os sensores do inimigo só detectariam os sinais de vida das algas, já que potentes campos de desativação rodeavam o resto da câmara.

— Teremos que ficar aqui por alguns dias — disse Rhombur, que se esforçava por recuperar seu habitual otimismo —. Até então, forças do Landsraad ou do Império terão vindo em nosso resgate, e a Casa Vernius começará a reconstruir lX. Tudo acabará bem.

Leto guardou silêncio. Se suas suspeitas estavam certas, poderia demorar muito mais que isso.

— Esta câmara é um simples ponto de reunião, maese Rhombur — disse o capitão Zhaz —. Esperaremos o conde e seguiremos suas ordens.

Rhombur assentiu.

— Sim, meu pai saberá o que fazer. Ele já esteve em muitas situações militares difíceis. — Sorriu —. Em algumas delas com seu pai, Leto.

Este apoiou uma mão firme no ombro do príncipe, como amostra de solidariedade. Mas ignorava quantas vezes Dominic Vernius tinha participado de campanhas defensivas desesperadas como esta. Leto tinha a impressão de que todas as vitórias passadas de Dominic tinham consistido em ataques contra grupos de rebeldes dispersos.

Recordando o que seu pai tinha lhe ensinado (“estude os detalhes em seu entorno em qualquer circunstância difícil, Leto inspecionou o esconderijo. Procurou rotas de fuga, pontos vulneráveis. A câmara tinha sido escavada em cristal de rocha maciço, com uma capa exterior da vegetação espessa que dotava ao ar de um acre toque orgânico. A cavidade contava com quatro apartamentos, uma ampla cozinha com provisões de sobrevivência e uma nave de emergência capaz de alcançar uma órbita planetária baixa.

Silenciosas máquinas atrito controlavam recipientes de entropia nula no núcleo da caverna, encarregados de manter comida e bebida frescos. Esses recipientes continham roupas, armas, videolivros e jogos ixianos, para que os refugiados se distraíssem. A interminável espera podia ser a parte mais difícil daquele refúgio, mas os ixianos haviam tomado todas as precauções necessárias.

Já era noite segundo seus relógios. Zhaz situou seus guardas nos corredores exteriores e na porta camuflada. Rhombur o metralhou com um sem-fim de perguntas, a maioria das quais o capitão não soube responder: O que estava acontecendo lá fora? Podiam ter esperança de serem libertados por ixianos leais, ou os invasores Tleilaxu os prenderiam, ou fariam algo ainda pior? Algum ixiano viria informar a morte de seus pais? Por que ninguém tinha aparecido no ponto de reunião? Tinha idéia de quanta extensão da capital permanecia intacta? Se não, quem poderia descobrir?

Um alarme o interrompeu. Alguém tentava entrar na câmara.

O capitão Zhaz ativou um monitor manual, apertou um botão que iluminou a sala e ativou uma videojanela. Leto viu três rostos conhecidos muito perto dos visicoms do corredor secundário: Dominic Vernius e sua filha Kailea, com o vestido rasgado e o cabelo desalinhado. Entre os dois seguravam a dama Shando, que parecia semi consciente, com os braços e o corpo enfaixados grosseiramente.

— Permissão para entrar — disse Dominic com uma voz que soou metálica pelos alto-falantes —. Abra, Rhombur. Zhaz! Necessitamos atenção médica para Shando. — Seus olhos estavam sombrios.

Rhombur Vernius se precipitou para os controles, mas o capitão da guarda o deteve com um gesto imperioso.

— Por iodos os Santos e pecadores, lembre-se dos dançarinos faciais, amo!

Leto se lembrou que os metamorfos Tleilaxu eram capazes de assumir aparências familiares e penetrar nas áreas mais seguras. Leto agarrou o braço ao príncipe ixiano, enquanto Zhaz interrogava e recebia uma contra-senha. Por fim, apareceu uma mensagem procedente do sensor biométrico. Confirmado: conde Dominic Vernius.

— Permissão concedida — disse Rhombur pelo transmissor de voz —. Entre. Mãe, o que aconteceu?

Kailea parecia aflita, como se ainda não acreditasse na repentina destruição de todos os seus planos de futuro. Os recém chegados cheiravam a suor, fumaça e medo.

— Sua irmã estava repreendendo os subóides e lhes dizendo que voltassem a trabalhar — disse Shando com uma sombra de alegria apesar da dor —. Uma estupidez.

— E alguns deles estavam a ponto de fazê-lo... — disse a jovem, e suas bochechas se ruborizaram de ira.

— Até que alguém tirou uma pistola maula e abriu fogo. Menos mal que tinha má pontaria.

Shando tocou o braço e o flanco, e se encolheu de dor.

Dominic afastou os guardas e abriu um estojo de primeiro socorros para curar as feridas de sua mulher.

— Não é grave, meu amor. Beijarei suas cicatrizes mais tarde. Não deveria ter se exposto tanto.

— Nem mesmo para salvar Kailea? — Shando tossiu, e lágrimas brilharam em seus olhos —. Você teria feito o mesmo para me proteger mim ou seus filhos, até mesmo Leto Atreides. Não tente negar.

Dominic evitou seu olhar e assentiu a contragosto.

— Mas ainda estou transtornado... Como esteve perto de morrer. Não teria me restado nada por que lutar.

— Engana-se, Dominic. Ainda teria restado muito.

Leto desconfiou do que tinha impulsionado uma jovem e bela concubina a abandonar seu imperador, e por que um herói de guerra tinha incorrido na ira do Elrood para casar-se com ela.

No corredor oculto exterior, meia dúzia de soldados armados tomaram posições em frente a porta fechada. Pelo monitor exterior, Leto viu que os outros (tropas de choque para o caso de uma incursão violenta dos rebeldes) tinham canhões laser, sensores e equipamentos sônicos de defesa no túnel de acesso à câmara.

Rhombur, aliviado ao ver que sua família estava a salvo, abraçou seus pais e a sua irmã.

— Tudo sairá bem — disse —. Já verão.

Apesar da sua ferida, a dama Shando se mostrava orgulhosa e valente, embora ao redor de seus olhos avermelhados houvesse traços de lágrimas. Kailea olhou envergonhada para Leto. Parecia derrotada e frágil, sem seu habitual comportamento altivo. Leto sentiu vontade de consolá-la, mas vacilou. Tudo parecia muito inseguro, muito aterrador.

— Não temos muito tempo, crianças — disse Dominic, secando o suor da testa —, e desta vez serão necessárias medidas desesperadas. — Seu crânio raspado estava manchado de sangue. Aliada ou inimiga?, perguntou-se Leto. O emblema esmigalhado da hélice pendia de sua lapela.

— Nesse caso, não é momento para nos chamar de crianças — respondeu Kailea para surpresa de todos —. Nós também devemos lutar.

Rhombur se ergueu em toda sua estatura, majestoso ao lado de seu pai corpulento, em vez de malcriado e rechonchudo.

— E estamos dispostos a ajudá-lo a reconquistar IX. Vernii é nossa cidade e voltará para nossas mãos.

— Não, vocês três ficarão aqui. — Dominic ergueu uma mão calosa para sossegar os protestos de Rhombur —. Primeiro é preciso salvar os herdeiros. Não admito discussões. Cada momento de discussão me afasta de meu povo, e neste momento eles necessitam de minha liderança desesperadamente.

— Vocês são muito jovens para combater — disse Shando, e uma expressão dura e inflexível apareceu em seu rosto delicado —. São o futuro de suas respectivas Casas.

Dominic se plantou a frente de Leto e olhou-o nos olhos pela primeira vez, como se por fim o considerasse um homem.

— Leto, seu pai nunca me perdoaria se algo acontece com seu filho. Já enviamos uma mensagem ao velho duque e o informamos da situação. Em resposta, seu pai prometeu ajuda limitada e enviou uma missão de resgate para levar você, Rhombur e Kailea sãos e salvos a Caladan. — Dominic apoiou suas mãos sobre os ombros de seus dois filhos —. O duque Atreides os protegerá, vai conceder-lhes asilo. É tudo que pode fazer no momento.

— Isso é ridículo — disse Leto, e seus olhos cinzas cintilaram —. Vocês também deveriam se refugiar na Casa Atreides, meu senhor. Meu pai nunca lhes daria as costas.

Dominic sorriu.

— Não tenho dúvida de que Paulus faria o que diz, mas não posso, porque isso significaria condenar meus filhos.

Rhombur olhou para sua irmã, alarmado. A dama Shando assentiu e continuou. Seu marido e ela já tinham discutido as diversas possibilidades.

— Rhombur, se Kailea e você viverem exilados em Caladan, estarão a salvo. Ninguém se preocupará com isso. Suspeito que esta sangrenta revolta foi planejada com apoio e influência do Império, e todas as peças encaixaram em seu lugar.

Rhombur e Kailea trocaram um olhar de incredulidade.

— Apoio do Império?

— Ignoro o que o imperador deseja de IX — disse Dominic —, mas a aversão de Elrood está dirigida a mim e a sua mãe. Se os acompanhar à Casa Atreides, os caçadores nos perseguirão. Encontrarão alguma desculpa para atacar Caladan. Não, sua mãe e eu temos que encontrar uma maneira de desviar esta luta de vocês.

Rhombur estava indignado. Sua pele pálida avermelhou.

— Podemos resistir aqui por uma temporada, pai. Não quero abandoná-lo.

— Tudo já dito, meu filho. Além da operação de resgate dos Atreides, não receberemos nenhuma ajuda. Nem Sardaukar imperiais, nem exércitos do Landsraad que rechacem os Tleilaxu. Os subóides são simples peões. Enviamos pedidos a todas as Casas Maiores e ao Landsraad, mas ninguém reagirá com a rapidez necessária. Alguém estava mais preparado que nós...

A dama Shando mantinha a cabeça erguida, apesar da dor e da sua aparência desalinhada. Havia sido a dama de uma Grande Casa, e concubina imperial antes disso, mas nascera de classe humilde. Shando seria feliz mesmo sem as riquezas de um governo ixiano.

— Mas o que será de vocês dois? — perguntou Leto, pois nem Rhombur nem Kailea tinham coragem para perguntar.

— A Casa Vernius se declarará... renegada.

Shando baixou a voz por um segundo no silêncio que surgiu.

— Infernos carmesins! — disse Rhombur, e sua irmã soltou uma exclamação afogada.

Shando beijou seus filhos.

— Levaremo-nos o que pudermos salvar, e depois Dominic e eu nos separaremos e nos esconderemos. Talvez durante anos. Alguns dos mais leais nos acompanharão, outros fugirão, e outros ficarão aqui, para bem ou para mau. Começaremos uma nova vida, e talvez a sorte nos sorrirá.

Dominic deu um apertão de mãos desajeitado em Leto, não ao estilo imperial mas sim como na Velha Terra, já que o Império, do imperador a todas as Casas Maiores, tinha abandonado à Casa Vernius. Uma vez que se declarasse renegada, a família Vernius já não pertenceria ao Império.

Shando e Kailea soluçaram em silêncio e se abraçaram, enquanto Dominic segurava seu filho pelos ombros. Pouco depois, o conde Vernius e sua esposa saíram pelo túnel de acesso à câmara, acompanhados por um contingente de guardas, enquanto Rhombur e sua irmã os observavam pelo monitor do visicom.

 

Na manhã seguinte, os três refugiados estavam sentados em incômodas mas eficientes poltronas flutuantes, comendo barrinhas energéticas, bebendo suco de Ixap e esperando.

Kailea falava pouco, como se tivesse perdido a energia necessária para se opor às circunstâncias. Seu irmão maior tentava animá-la, sem o menor êxito. Isolados, não sabiam nada do que acontecia no exterior, ignoravam se tinham chegado reforços, se a cidade continuava queimando...

Kailea tinha se lavado, feito um grande esforço para reconstruir seu vestido rasgado e exibia sua aparência alterada como um símbolo.

— Esta semana eu devia participar de um baile — disse com a voz inexpressiva —. O solstício de Dur, um dos acontecimentos sociais mais importantes em Kaitain. Minha mãe disse que poderia ir quando fosse maior. — Olhou para Leto e emitiu uma triste gargalhada —. Como este ano poderiam me prometer a um marido apropriado, suponho que já sou maior para assistir a um baile. Não acha?

Beliscou sua manga rasgada. Leto não sabia o que dizer. Tentou imaginar o que teria respondido Helena à filha de Vernius.

— Quando chegarmos ao Caladan, direi a minha mãe que celebre um grande baile para lhes dar as boas-vindas. Você gostaria, Kailea?

Sabia que lady Helena desconfiava dos ixianos devido a suas crenças religiosas, mas tinha certeza que sua mãe concordaria, tendo em conta as circunstâncias. Ao menos, jamais cometeria uma estupidez social.

Os olhos de Kailea cintilaram, e Leto se encolheu.

— Com os pescadores dançando uma giga obscena e os arrozeiros entregues a algum rito de fertilidade?

Suas palavras eram ácidas, e Leto pensou que seu planeta e sua herança eram inadequados para alguém como ela. Não obstante, Kailea se abrandou e tocou o braço de Leto.

— Sinto muito, Leto. Sinto muitíssimo. É que tinha muita vontade de ir a Kaitain, de ver o palácio imperial, as maravilhas da corte.

Rhombur falou com semblante áspero.

— Elrood nunca teria permitido, mesmo que fosse porque ainda está zangado com nossa mãe.

Kailea se levantou e passeou de um lado a outro.

— Por que ela o deixou? Poderia ter ficado no palácio, rodeada de luxos... E em vez disso escolheu esta... pocilga. Uma pocilga invadida agora por insetos. Se nosso pai a tivesse amado de verdade, teria pedido que se sacrificasse tanto? É absurdo.

Leto tentou consolá-la.

— Não acredita no amor, Kailea? Vi a forma que seus pais se olhavam.

— É claro que acredito no amor, Leto. Mas também acredito no bom senso, e em sopesar os prós e os contras.

Kailea procurou nos arquivos de entretenimento algo que a distraísse. Leto decidiu não insistir e se virou para Rhombur.

— Deveríamos aprender a pilotar o ornitóptero. Para o caso de precisarmos.

— Não é preciso. Eu se pilotá-lo — disse Rhombur.

Depois de tomar um gole do suco, Leto apertou os lábios.

— Mas e se o ferirem, ou algo pior? O que faremos então?

— Ele tem razão — disse Kailea, sem levantar seus olhos esmeralda dos arquivos de entretenimento. Sua voz soava frágil e cansada —. Vamos ensiná-lo, Rhombur.

O herdeiro da Casa Vernius olhou para Leto.

— Bem, você sabe como funciona um ornitóptero ou uma lançadeira?

— Aprendi a pilotar ornitópteros quando tinha dez anos, mas as únicas lançadeiras que vi eram automáticas.

— Máquinas descerebradas que realizam funções prefixadas. Odeio essas coisas... embora nós as fabricamos. — Agarrou um pedaço de barra energética —. Ou melhor, fabricávamos. Antes que os Tleilaxu chegassem.

Levantou a mão direita e esfregou o anel que o identificava como herdeiro da casa ixiana.

Ao seu sinal, um amplo quadrado desceu do teto e pousou sobre o chão. Leto olhou pelo oco e viu uma esbelta forma chapeada armazenada.

— Acompanhem-me. — Rhombur subiu sobre o painel e Kailea o imitou —. Vamos testar os sistemas.

Quando Leto subiu, sentiu um puxão para cima. Os três atravessaram o teto e subiram pelo flanco de uma nave chapeada, até uma plataforma montada sobre a fuselagem.

O ornitóptero recordou a Leto uma lancha espacial, um pequeno aparelho de corpo estreito e janelas de plaz. A ornave, uma combinação de ornitóptero e espaçonave, podia funcionar no planeta ou em órbita baixa. Como violavam o monopólio da Corporação sobre as viagens espaciais, as ornaves estavam entre os segredos mais zelosamente guardados de IX, e só eram empregadas como último recurso.

Abriu-se uma escotilha no flanco do aparelho, e Leto ouviu que os sistemas da nave o rodeavam com um zumbido de maquinaria e aparelhos elétricos. Rhombur os precedeu até um centro de comando provido de dois assentos de respaldo alto e brilhantes painéis situados a frente de cada um deles. Acomodou-se em um assento, e Leto no outro. O flexível material sensiforme se amoldou a seus corpos. Tênues luzes verdes brilharam sobre os painéis tateantes. Kailea se sentou atrás do seu irmão, com as mãos apoiadas sobre o respaldo da poltrona.

— Porei o seu em modo tutelar. A própria nave o ensinará a pilotá-la.

O painel de Leto adquiriu um tom amarelo. Enquanto se interrogava a respeito dos tabus sobre as mentes mecânicas da Jihad Butleriana, enrugou o rosto, confuso. Até que ponto aquela nave podia pensar por si mesma? Sua mãe lhe advertira que não acreditasse em muitas coisas, sobretudo coisas ixianas. Através do pára-brisa de plaz, via apenas a rocha cinza na superfície interior da câmara de algas.

— Pensa com sozinha, como os meks de treinamento que me ensinou?

Rhombur fez uma pausa.

— Sei o que está pensando, Leto, mas esta máquina não imita os processos de pensamento humanos. Os subóides não entendem nada. Assim como nosso mek de combate autodidata, que analisa o adversário para tomar decisões, não pensa, apenas reage à velocidade da luz. Lê seus movimentos, antecipa-se e reage.

— A mim isso parece o mesmo que pensar.

No painel que havia a frente de Leto dançavam miríades de luzes.

Kailea suspirou, frustrada.

— Faz milhares de anos que a Jihad Butleriana acabou e a humanidade ainda se comporta como se fôssemos roedores aterrorizados que se escondem das sombras. Existem movimentos antiixianos em todo o Império porque construímos máquinas complexas. As pessoas não compreendem o que fazemos, e os mal-entendidos alimentam as suspeitas.

Leto assentiu.

— Pois então me ajude a entender. Comecemos.

Olhou para o painel de controle e procurou não se impacientar. Depois dos acontecimentos dos últimos dias, todos sofriam os efeitos da tensão acumulada.

— Coloque seus dedos sobre as placas de identificação — disse Rhombur —. Não toque no painel. Deixe os dedos alguns centímetros acima.

Depois de fazer isso, Leto ficou rodeado de um pálido brilho amarelado que provocou um formigamento em sua pele.

— Está assimilando os componentes de seu corpo: a forma do sua rosto, cicatrizes diminutas, digitais, folículos de cabelo, marcas retinianas. Ordenei à máquina que aceite seus dados. — A luz diminuiu —. Já está autorizado. Ative o tutorial passando seu polegar direito sobre a segunda fileira de luzes.

Leto obedeceu, e uma tela de realidade virtual apareceu a frente de seus olhos, mostrando uma vista aérea que mostrava montanhas escarpadas e gargantas rochosas.

A mesma paisagem que tinha visto meses atrás, no dia em que desembarcara da lançadeira da Corporação.

De repente viu faíscas na câmara oculta de baixo. Explosões e estalos de estática o ensurdeceram. A imagem sintética da paisagem se tornou imprecisa, voltou a entrar em foco e desapareceu. Seus ouvidos retumbavam.

— Sente-se — disse Rhombur —. Isto não é uma simulação.

— Eles nos localizaram!

Kailea se deixou cair em um assento baixo, atrás de Leto, e um campo de segurança pessoal a rodeou imediatamente. Leto sentiu que o calor de outro campo o envolvia, enquanto Rhombur tentava imobilizar-se no assento do piloto.

Rhombur viu na tela de vigilância da ornave que soldados Tleilaxu e subóides armados invadiam o túnel de acesso à câmara oculta, ao mesmo tempo em que disparavam seus fuzis laser para destruir as portas escondidas. Os atacantes já tinham ultrapassado a segunda barreira. O capitão Zhaz e alguns de seus homens jaziam no chão, formando montículos fumegantes.

— Talvez seus pais tenham conseguido fugir — disse Leto —. Espero que estejam a salvo.

Rhombur se preparou para a decolagem. Leto se apertou contra o assento, enquanto tentava conservar a calma. A simulação externa ainda enchia seus olhos, distraía-o com visões das antigas paisagens ixianas.

Uma luz azul cintilou no exterior da nave. Uma explosão os sacudiu. Rhombur soltou um grito ao mesmo tempo em que caía do seu assento. Um fio de sangue escorria por seu rosto.

— Que demônios aconteceu? — gritou Leto —. Rhombur!

— Isto é real, Leto! — gritou Kailea —. Tire-nos daqui.

Leto operou o painel para passar de modo tutorial para ativo, mas Rhombur ainda não tinha terminado de preparar a nave. Outra explosão destruiu a parede da câmara, e fragmentos de rocha cobertas de algas voaram pelos ares. Várias figura apareceram na sala principal.

Rhombur gemeu. Abaixo, os subóides gritaram e apontaram para a nave dos três fugitivos. Disparos de fuzil laser atingiram as paredes de pedra e o casco da ornave. Leto ativou a seqüência de auto lançamento. Apesar de suas preocupações anteriores, desejava que a mente mecânica da nave funcionasse com absoluta eficácia.

A ornave subiu por um canal, atravessou um pico rochoso, uma capa de neve e saiu por fim para céu aberto, semeado de nuvens. Leto se esquivou de um feixe de raios laser, defesas automáticas em poder dos rebeldes. Entreabriu os olhos para protegê-los da luz solar.

Leto avistou um Cruzeiro numa órbita planetária baixa. Dois jorros de luz surgiram da nave, como dois vs, um sinal familiar para Leto: naves Atreides.

Leto enviou um sinal de identificação na linguagem de guerra especial que seu pai e seus professores tinham ensinado. Naves de resgate apareceram de cada lado da ornave, para escoltá-lo. Os pilotos fizeram sinais de que o tinham reconhecido. Um jato purpúreo disparado da nave de estibordo pulverizou uma nuvem sob onde se ocultavam aparelhos inimigos.

— Você está bem, Rhombur?

Kailea examinou as feridas do seu irmão.

O jovem se remexeu, levou uma mão a cabeça e grunhiu. Uma caixa de componentes eletrônicos montada no teto tinha caído em sua cabeça.

— Infernos carmesins! Não ativei a tempo o maldito CSP.

Piscou e enxugou o sangue do rosto.

Leto seguiu à escolta até a segurança do Cruzeiro, onde viu duas grandes fragatas de batalha Atreides. Enquanto a ornave entrava no hangar, chegou uma mensagem em galach pelo sistema de comunicações, mas reconheceu o acento caladano.

— Menos mal que esperamos uma hora mais do que o combinado. Bem-vindo a bordo, príncipe Leto. seus acompanhantes estão bem? Há quantos sobreviventes?

Olhou para Rhombur, que acariciava o crânio dolorido.

— Três, mais ou menos ilesos. Tirem-nos de IX.

Uma vez a bordo, a ornave ficou estacionada entre os escolta Atreides, dentro do imenso hangar do Cruzeiro, Leto olhou para cada lado pelas portas de embarque das naves maiores viu soldados Atreides uniformizados de verde e negro, com o emblema do falcão. Exalou um profundo suspiro de alívio e olhou para Rhombur, cuja irmã estava ajudando-o a se recuperar.

— Bem — disse o príncipe ixiano —, esqueça as simulações, amigo. Sempre é melhor aprender na prática.

Então perdeu a consciência e caiu para um lado.

 

Até a Casa mais pobre pode ser rica em lealdade. A lealdade comprada com subornos ou salários é vazia e fraca, e pode falhar no pior momento. Entretanto, a lealdade que surge do coração é mais forte que o diamante e mais valiosa que a melange mais pura.

Duque Paulus Atreides

 

Nos limites da galáxia, no interior do hangar de carga de outro Cruzeiro, um transporte espacial ixiano anônimo descansava entre as naves abarrotadas. O transporte fugitivo tinha saltado de uma rota de carga para outra, e em cada ocasião tinha mudado de nome.

Dentro da nave, Dominic e Shando estavam sentados como passageiros entre os restos de suas forças armadas. Muitos guardas da família tinham morrido, e muitos não tinham chegado a tempo à nave. Outros tinham decidido ficar e enfrentar as conseqüências da revolução.

O criado pessoal da dama Shando, Omer, remexeu-se e encolheu seus ombros estreitos. Usava o rígido cabelo negro cortado pela linha do pescoço, mas agora, tanto o cabelo como o pescoço pareciam um pouco desalinhados. Omer era o único criado da dama que tinha escolhido acompanhar a família ao exílio. Homem tímido, o aborrecia a perspectiva de começar uma nova vida entre os Tleilaxu.

Os relatórios sucintos do embaixador Pilru tinham deixado claro que não podiam esperar ajuda das forças militares do Landsraad ou do imperador. Ao declararem-se renegados, tinham cortado todos os laços e obrigações com a lei imperial.

Os assentos, contêineres e armários da nave renegada estavam cheios de jóias e objetos de valor, coisas que podiam ser vendidas por dinheiro em metálico. Seu exílio talvez durasse muito tempo.

Dominic, sentado ao lado de sua esposa, segurava sua mão pequena e delicada. Rugas de preocupação se desenhavam em sua face.

— Elrood enviará comandos em nossa perseguição — disse —. Eles nos caçarão como animais.

— Por que não nos deixa em paz de uma vez? — murmurou Omer —. Já perdemos tudo.

— Não é suficiente para Roody — disse Shando, e se virou para seu criado. Estava sentada com as costas retas, majestosa —. Nunca me perdoou por convencê-lo a me deixasse partir. Nunca menti, mas pensa que o enganei.

Olhou pela janela estreita, ladeada de sercromo cintilante. A nave ixiana era pequena, sem distintivos da Casa Vernius. Um veículo simples utilizado para subir carga ou transportar passageiros de terceira classe. Shando apertou a mão do seu marido e tentou não pensar em como tinham caído.

Recordou o dia em que partiu da corte imperial, banhada, perfumada e engalanada com flores recém cortadas nas estufas de Elrood. As outras concubinas tinham lhe dado broches, jóias, lenços coloridos que brilhavam com o calor corporal. Era então jovem e entusiasta, e seu coração estava cheio de gratidão pelas lembranças e experiências, e também ansioso por iniciar uma nova vida junto ao homem que amava.

Shando tinha guardado seu romance com o Dominic em segredo, e se separado de Elrood de uma forma que ela considerava amistosa. O imperador lhe tinha dado sua bênção. Elrood e ela tinham feito amor pela última vez, falado com afeto das lembranças que compartilhavam. Elrood não compreendera seu desejo de abandonar Kaitain, mas possuía muitas outras concubinas. A perda de Shando significava pouco para ele... até que descobriu que ela o deixara pelo amor de outro homem.

Agora, o vôo errante de Shando desde lX era muito diferente daquele que a tinha afastado de Kaitain. Suspirou amargurada.

— Depois de um reinado de século e meio, Roody aprendeu a esperar o momento da vingança.

Dominic, sem o menor indício de ciúmes, riu ao ouvir a frase.

— Bem, agora ele saldou contas conosco. Teremos que ser pacientes e encontrar alguma forma de recuperar a fortuna de nossa Casa. Se não por nós, por nossos filhos.

— Confio em Paulus Atreides, ele cuidará bem deles — disse Shando — É um bom homem.

— Entretanto, não podemos confiar que ninguém cuide de nós — recordou Dominic —. vai ser uma prova muito dura de enfrentar.

Dominic e Shando não demorariam para separar-se, adotar novas identidades e esconder-se em planetas isolados, com a esperança de reunir-se algum dia. Tinham pago um suborno enorme à Corporação, de modo que não existiam registros de seus respectivos destinos. Marido e mulher se abraçaram, conscientes de que a partir desse momento não haveria nada seguro em suas vidas.

A frente deles se estendia um espaço inexplorado.

 

Sozinho entre os restos da martirizada IX, C'tair Pilru se escondeu em uma pequena habitação a prova de transmissões. Tinha certeza que os subóides não o encontrariam. Acreditava que era sua única possibilidade de sobreviver à carnificina.

Sua mãe tinha lhe mostrado este lugar escondido atrás da parede de uma masmorra do Grand Palais, escavado na rocha. Como membros da corte de Vernius, e filhos do embaixador em Kaitain, atribuiu-se a C'tair e D'murr um lugar para sua segurança pessoal em caso de emergência. Com a mesma metódica eficácia que mostrava diariamente como banqueira da Corporação, S'tina o preparara para qualquer eventualidade e tendo certeza que seus filhos recordassem. Suado, faminto e aterrorizado, C'tair tinha experimentado um imenso alívio ao descobrir o esconderijo secreto intacto entre o caos, disparos e explosões.

Depois, a salvo e aturdido, a comoção do que sua cidade estava padecendo, seu planeta, o golpeara com toda força. Não podia acreditar em tudo o que se perdera, quanta grandeza transformada em pó, sangue e fumaça.

Seu irmão gêmeo tinha desaparecido, arrebatado pela Corporação para ser treinado como Navegante. Em seu momento tinha lamentado a perda, mas ao menos isso significava que D'murr estava a salvo da revolução. C'tair não desejava aquilo a ninguém... mas esperava que seu irmão tivesse recebido a notícia. Os Tleilaxu a teriam ocultado?

C'tair tentara entrar em contato com seu pai, mas o embaixador tinha ficado preso em Kaitain em plena crise. Entre incêndios, explosões e bandos de subóides assassinos, C'tair se vira com poucas opções, exceto esconder-se e sobreviver. O jovem de cabelo escuro morreria se tentasse chegar aos centros administrativos da Casa Vernius.

Sua mãe já tinha morrido.

C'tair se escondia em sua pequena habitação com os globos luminosos apagados, e ouvia o barulho dos combates longínquos e os sons, muito mais retumbantes, de sua própria respiração, dos batimentos do coração de seu coração. Estava vivo.

Três dias antes, tinha visto os revolucionários destruir uma asa do edifício da Corporação, a seção do bloco cinzento que mantinha todas as instalações bancárias ixianas. Sua mãe estava ali. D'murr e ele tinham visitado seus escritórios muitas vezes durante sua infância.

Sabia que S'tina havia caído das abóbadas dos registros, incapaz de escapar e reticente em acreditar que os subóides rebeldes ousariam atacar uma sede neutra da Corporação. Mas os subóides não entendiam de política nem das sutis ramificações do poder. S'tina tinha enviado a C'tair uma transmissão final, aconselhando-o a se esconder, não se arriscar, e marcado um encontro para quando a violência diminuísse. Nenhum dos dois tinha acreditado que a situação pudesse piorar.

Mas enquanto C'tair olhava, explosivos colocados pelos subóides rebeldes tinham destruído parte do edifício, que se desprendeu de seus alicerces no teto da caverna e caiu ao chão da gruta, matando centenas de rebeldes, assim como banqueiros e funcionários da Corporação. Todos que estavam ali dentro.

O ar se encheu de fumaça e gritos, e as escaramuças continuaram. Compreendeu que seria inútil procurar sua mãe, e ao dar-se conta de que todo seu mundo estava vindo abaixo, correu para o único refúgio que conhecia.

Escondido em sua guarida, dormiu em posição fetal e despertou com uma vaga sensação de determinação, embotada em parte pela raiva e dor. C'tair encontrou as provisões guardadas nas câmaras de armazenamento de entropia nula e fez um inventário. Verificou o estado das armas antiquadas que estavam num pequeno armário. Ao contrário das câmaras de algas, maiores, este lugar secreto não possuía uma ornave. Esperava em que o cubículo não estivesse incluído em nenhum mapa, secreto ou não. Do contrário, os Tleilaxu e seus seguidores subóides o localizariam.

C'tair, atordoado e apático, escondia-se e deixava passar o tempo, inseguro de quando poderia escapar, ou ao menos enviar uma mensagem. Não acreditava que nenhuma ação militar externa chegasse a tempo de salvar IX. Isso já deveria ter acontecido. Seu pai tinha partido a tempo. Alguns rumores afirmavam que a Casa Vernius tinha fugido, e se declarado renegada. O Grand Palais estava abandonado e saqueado, e logo se transformaria no quartel geral dos novos senhores de IX.

Kailea teria conseguido partir com sua família, fugindo da destruição? C'tair assim esperava, para seu bem, caso contrário, teria sido um dos alvos preferidos dos enfurecidos revolucionários. Era uma jovem muito bela, educada para bailes e jantares, luxos e intrigas palacianas, não para lutar pela sobrevivência com unhas e dentes.

Punha-o doente pensar em sua amada cidade, saqueada e arrasada. Lembrou dos passadiços de cristal, os edifícios em forma de estalactite, os magníficos lucros conseguidos na construção de Cruzeiros, naves que podiam desaparecer como por arte de magia graças aos poderes dos Navegantes da Corporação. Freqüentemente ele e D'murr tinham explorado os túneis largos, as grutas enormes, observando a prosperidade que desfrutavam todos os habitantes de IX. Agora, os subóides tinham destruir tudo. E por quê? Duvidava que eles mesmos compreendessem.

Talvez C'tair descobrisse uma passagem que conduzisse à superfície, entraria em contato com uma nave de transporte, utilizaria créditos roubados para comprar uma passagem de IX e partiria para Kaitain, onde localizaria seu pai. Era ainda o embaixador Pilru, de um governo no exílio? Provavelmente não.

Não, C'tair não podia partir e abandonar o planeta a sua sorte. IX era seu lar, e se negou a fugir. Jurou que sobreviveria de algum jeito. Faria o que fosse preciso. Assim que o pó se assentasse, vestiria roupas velhas e fingiria ser mais um dos ixianos derrotados, subjugado pelos novos senhores do planeta. Entretanto, duvidava de estar a salvo.

Não, se tentasse continuar a luta...

Durante as semanas seguintes, C'tair conseguiu sair de seu esconderijo durante as noites subterrâneas programadas, graças a um rastreador de vida ixiano que lhe permitia se esquivar dos guardas Tleilaxu e demais inimigos. Desolado, viu a magnífica Vernii ruir ante seus olhos.

O Grand Palais estava ocupado agora por anões repugnantes, traiçoeiros usurpadores, de pele cinza que tomaram todo um planeta ante os olhos indiferentes do Império. Seus representantes furtivos tinham invadido a cidade subterrânea. Patrulhas de invasores semelhantes a furões revistavam os edifícios em forma de estalactites em busca de nobres ocultos. Os pelotões de Dançarinos Faciais demonstravam uma eficácia muito superior a das classes inferiores.

Abaixo, os subóides vagueavam pelas ruas, sem saber o que fazer. Logo se aborreceram e voltaram com semblante ásperos para seus antigos trabalhos. Corno os Dançarinos Faciais já não lhes diziam o que deviam desejar ou exigir, os subóides não organizavam assembléias e não tomavam decisões. Suas vidas retornaram à antiga rotina, sob a direção de senhores diferentes, com cotas de produção mais rígidas. C'tair observou que os novos capatazes Tleilaxu tinham que obter enormes lucros para compensar os custos materiais da conquista.

C'tair vagava pelas ruas da cidade subterrânea sem que ninguém se importasse com ele, entre o povo derrotado, supervisores e famílias de trabalhadores de classe média que tinham sobrevivido às purgações e não tinham para onde ir. Vestido em farrapos, percorria passarelas deterioradas, entrava nos níveis superiores da cidade e tomava elevadores que desciam até os escombros dos centros de fabricação. Não podia esconder-se eternamente, mas tampouco podia permitir que o vissem.

C'tair se negava a aceitar que a batalha estivesse perdida. Os Bene Tleilax tinham poucos amigos no Landsraad, e não poderiam resistir ao embate de uma resistência coordenada. Não obstante, parecia que não existia algo semelhante em IX.

Um dia, camuflado entre um pequeno grupo de transeuntes acovardados em uma passarela lateral, viu desfilar uma coluna de soldados loiros, de feições cinzeladas. Vestiam uniformes cinzas com adornos chapeados e dourados. Não eram ixianos ou subóides, nem tampouco Tleilaxu. Altos e musculosos, os altivos soldados carregavam atordoantes, coletes anti-motim negro, e mantinham a ordem. Uma nova ordem. Reconheceu-os, horrorizado.

Os Sardaukar do imperador!

C'tair se enfureceu ao ver que tropas imperiais colaboravam com os usurpadores, e compreendeu mais detalhes da conspiração, mas dissimulou seus sentimentos. Não podia permitir que ninguém prestasse atenção nele. Ouviu os grunhidos dos ixianos nativos. Face a presença dos Sardaukar, nem sequer as classes médias estavam contentes com a nova situação. O conde Vernius tinha sido um governante bondoso, embora algo despreocupado. Os Bene Tleilax, por sua vez, eram fanáticos religiosos com normas brutais. Muitas das liberdades que os ixianos tinham garantidas desapareceriam rapidamente sob o governo Tleilaxu.

C'tair desejava se vingar daqueles invasores traiçoeiros. Jurou que se dedicaria àquela tarefa todo o tempo que fosse preciso.

Enquanto caminhava pelas ruas tristes e deterioradas do chão da gruta, se entristeceu ao ver edifícios enegrecidos e caídos do teto. A cidade superior tinha sido destruída. Duas das colunas de diamante que sustentavam o imenso teto de rocha tinham voado aos pedaços, e as avalanches tinham sepultado blocos inteiros de moradias subóides.

C'tair reprimiu um gemido, consciente de que quase todas as obras de arte públicas ixianas tinham sido destruídas, incluindo o estilizado modelo do Cruzeiro da Corporação que embelezava a Praça da Cúpula. Até mesmo o formoso céu de fibra óptica que recobria o teto de rocha tinha sido prejudicado, e as projeções eram imprecisas agora. Era do conhecimento comum que os austeros e fanáticos Tleilaxu nunca tinham apreciado a arte. Para eles isso era um simples estorvo.

Recordou-se que Kailea Vernius era aficionada pela pintura e esculturas móveis. Tinha falado com C'tair a respeito de determinados estilos que faziam furor em Kaitain, e tinha assimilado ansiosamente todas as imagens turísticas que seu pai trazia dos lugares para onde o levavam seus deveres de embaixador. Mas agora a arte tinha desaparecido, e Kailea também.

Uma vez mais, C'tair se sentiu paralisado pela solidão.

Enquanto deslizava entre as ruínas de uma dependência do que fora um jardim botânico, C'tair se deteve de repente, estupefato. Vislumbrou algo e forçou a vista. Dos escombros fumegantes emergiu a imagem imprecisa de um ancião, pouco visível. C'tair piscou. Era imaginação, um holograma tremulo de um disco diário... ou outra coisa? Não tinha comido em todo o dia, e estava tenso, muito cansado. Mas a imagem continuava ali.

Entre a fumaça e os vapores acres reconheceu a forma frágil do velho inventor Davee Rogo, o gênio aleijado amigo dos gêmeos, aos quais tinha ensinado durante algum tempo. Quando C'tair soltou uma exclamação afogada, a aparição começou a sussurrar com voz fraca e entrecortada. Era um fantasma, uma visão, uma alucinação? Parecia que o excêntrico Rogo dizia a C'tair o que fazer, os componentes tecnológicos que precisava e como montá-los.

— Você é real? — sussurrou C'tair, ao mesmo tempo em que se aproximava —. O que está dizendo?

Por algum motivo, a imprecisa imagem do velho Rogo não respondeu a suas perguntas. C'tair não o entendeu, mas escutou. A seus pés havia cabos e peças metálicas, pertencentes a uma máquina destruída por explosivos. Estes são os componentes que preciso.

Agachou-se, procurou com a vista observadores indesejáveis e recolheu as peças que perduravam em sua mente, junto com outros restos tecnológicos: fragmentos de metal, cristais de plaz e células eletrônicas. O velho lhe tinha proporcionado uma espécie de inspiração.

C'tair guardou o material nos seus bolsos e debaixo da roupa. IX mudaria muito sob a nova ditadura Tleilaxu, e qualquer resto do precioso passado de civilização poderia ser valioso. Se os Tleilaxu o parassem, confiscariam tudo...

Durante os próximos dias de explorações obsessivas, C'tair não voltou a ver a imagem do ancião, não conseguiu compreender muito bem o que tinha acontecido, mas se esforçou para aumentar sua coleção tecnológica, seus recursos. Continuaria a batalha... sozinho, se fosse necessário.

A cada noite passava debaixo do nariz do inimigo. Saqueava seções vazias, tanto da cidade superior como da inferior, antes que equipes de reconstrução se desfizeram de relíquias incomodas.

Com a lembrança do que a visão de Rogo tinha sussurrado em sua imaginação, começou a construir...

 

Quando as naves de resgate Atreides retornaram a Caladan e se aproximaram do espaçoporto de Baía City, o velho duque preparou uma recepção pouco espetacular. Os tempos e as circunstâncias eram muito tristes para que os ministros de protocolo, a orquestra e os porta-estandartes oferecessem um grande espetáculo.

O duque Atreides se erguia ao ar livre, e forçou a vista quando as naves aterrissaram. Usava sua capa favorita de pele para se proteger do vento. Todos os criados e soldados convocados aguardavam em posição de sentido junto à plataforma, mas pouco importava seu traje ou a impressão que causasse. Paulus estava alegre por seu filho ter voltado para casa são e salvo.

Lady Helena estava ao seu lado, com as costas bem rígida, vestida com traje e capa oficiais, impecável. Quando a fragata se imobilizou na zona de aterrissagem do espaçoporto, Helena olhou para seu marido com uma expressão de superioridade, como se lhe dissesse “eu avisei”, e depois exibiu um sorriso de boas-vindas. Nenhum observador suspeitaria que tiveram em várias discussões aos gritos enquanto o Cruzeiro estava à caminho, com seu filho a bordo.

— Não entendo como pode oferecer asilo a esses dois — disse a mulher, em voz baixa mas fria. Seus lábios continuavam sorrindo —. Os ixianos violaram as proibições da Jihad, e agora estão pagando o preço, É perigoso interferir nos castigos de Deus.

— Os filhos de Vernius são inocentes, e serão hóspedes da Casa Atreides todo o tempo necessário. Por que continua me contrariando? Já tomei a decisão.

— Pouco importa que grave em pedra suas decisões. Se me escutar, talvez tire o véu dos olhos e veja o perigo que enfrentamos por causa da sua presença. — Helena estava tão perto do seu marido como era de esperar —. Estou preocupada por nós e por nosso filho.

A nave estendeu suas escoras e se imobilizou. Paulus, exasperado, virou-se para sua mulher.

— Helena, estou em dívida com Dominic Vernius mais do que imagina, e eu não fujo das minhas obrigações. Até sem a dívida de sangue que nos uniu para sempre depois de Ecaz, ofereceria asilo a seus filhos. Faço isso tanto por amor como por sentido de dever. Abrande seu coração, mulher. Pense no que esses meninos sofreram.

Uma rajada de vento alvoroçou seu cabelo castanho avermelhado, mas Helena nem sequer se alterou. Ironicamente, foi a primeira a levantar a mão para saudar quando a porta da nave se abriu. Falou por um canto da boca.

— Paulus, você está oferecendo seu pescoço para o verdugo imperial, e sorri enquanto isso. Pagaremos por esta loucura de formas inimagináveis. Só quero o melhor para todo mundo.

Os guardas que os rodeavam fingiam não ouvir a discussão. Uma bandeira verde e negra ondeou na brisa. A rampa da nave se estendeu.

— Por acaso sou o único que pensa na honra de nossa família, em vez de em política? — grunhiu Paulus.

— Shhh! Não erga a voz.

— Se apoiasse minha vida só em decisões prudentes e alianças vantajosas, não seria um homem, e muito menos um homem merecedor de ser duque.

Os soldados formaram um corredor para os desterrados de IX passar. Leto foi o primeiro a sair. Respirou fundo, para absorver o ar fresco vindo do mar, e piscou sob o sol nebuloso de Caladan. Havia se lavado e posto roupas limpas, mas seus movimentos ainda denotavam cansaço. Sua pele parecia cinzenta, tinha o cabelo revolto, e as lembranças desenharam rugas na testa que se elevava sobre seus olhos perspicazes.

Leto aspirou outra profunda baforada de ar, como se não tivesse absorvido bastante o aroma salobro do mar próximo, o aroma de pescado e fumaça de lenha. Olhou para seu pai, que estava alegre por ver seu filho de novo, mas cheio de raiva e indignação pela sorte da Casa Vernius.

Rhombur e Kailea se situaram junto a Leto, vacilantes, no alto da rampa. Os olhos esmeralda de Kailea estavam inquietos, e passeou o olhar pelo novo mundo, como se o céu fosse muito grande. Leto quis consolá-la. Uma vez mais, reprimiu-se, desta vez devido a presença de sua mãe.

Rhombur se ergueu em toda sua estatura e fez um esforço visível por erguer os ombros e afastar seu cabelo loiro rebelde. Sabia que agora era o que restava da Casa Vernius, o rosto que todos os membros do Landsraad veriam, enquanto seu pai, o conde renegado, ocultava-se em algum lugar. Sabia que a luta acabava de começar. Leto apoiou uma mão forte no ombro de seu amigo e o animou a caminhar para a plataforma de recepção.

Ao fim de um momento de imobilidade, Leto e Paulus avançaram um para o outro ao mesmo tempo. O duque apertou sua barba manchada de cinza contra a cabeça de seu filho. Abraçaram-se, sem dizer uma palavra. Separaram-se, e Paulus pousou suas mãos largas e calosas sobre os bíceps de seu filho, sem deixar de olhar para ele.

Leto viu sua mãe atrás deles, com um cálido, embora forçado, sorriso de boas-vindas. O olhar da mulher se desviou um segundo para Rhombur e Kailea, e depois voltou para ele. Leto sabia que lady Helena Atreides receberia os dois exilados com todo o cerimonial reservado para as visitas de dignitários importantes. Não obstante, reparou que tinha escolhido jóias e cores resplandecentes com as insígnias da Casa Richese, rival de IX, para dar uma punhalada nos exilados. O duque Paulus parecia não perceber.

O velho duque dedicou uma vigorosa saudação a Rhombur, que ainda tinha a ferida da cabeça enfaixada.

— Bem-vindo, rapaz, bem-vindo — disse —. Tal como prometi ao seu pai, você e sua irmã ficarão conosco, protegidos pelo poder da Casa Atreides, até que tudo se solucione.

Kailea olhava para as nuvens como se nunca tivesse visto o céu. estremeceu, como se estivesse perdida.

— Se algum dia se solucionar.

Lady Helena, conforme a suas obrigações, avançou para segurar a filha de Vernius pelo braço.

— Venha, filha. Vamos ajudá-los a se instalar.

Rhombur apertou a mão do velho duque ao estilo imperial.

— Não sei como expressar meu agradecimento, senhor. Kailea e eu temos consciência do perigo que correm ao nos conceder asilo.

Helena olhou para seu marido, que a ignorou.

Paulus apontou para o castelo sobre os penhascos.

— A Casa Atreides coloca a lealdade e a honra muita acima da política. — Olhou preocupado para seu filho. Leto exalou um profundo suspiro, enquanto recebia a lição como uma estocada —. Lealdade e honra — repetiu Paulus —. Assim tem que ser, sempre.

 

 

                                                                   CONTINUA

 

 

Só Deus pode criar seres vivos e conscientes.

Bíblia Católica Laranja

 

Na Sala de Partos número um do complexo do Wallach IX, uma menina recém-nascida chorava sobre uma mesa. Uma filha com a estirpe genética do barão Vladimir Harkonnen. O cheiro de sangue e desinfetante impregnava o ar, envolto no rangido de roupas limpas e esterilizadas. Globos luminosos projetavam sua luz forte, que se refletia nas toscas paredes de pedra e nas superfícies metálicas polidas. Muitas filhas tinham nascido aqui, muitas novas irmãs.

Com mais emoção do que as Bene Gesserit costumavam exibir, as reverendas madres de hábito escuro examinaram a menina com seus instrumentos, e falaram dela com preocupação. Uma irmã extraiu uma amostra de sangue com uma hipoagulha, enquanto outra raspava uma zona de pele com uma cureta. Ninguém erguia a voz. Tom de pele estranho, bioquímica pobre, raquítica...

 

 

 

 

Gaius Helen Mohiam, empapada em suor, tentava recuperar o controle sobre seu corpo mal-tratado. Embora sua aparência dissimulasse sua idade real, parecia muito velha para ter filhos. O parto a havia enfraquecido muito, mais que os oito anteriores. Agora se sentia velha e acabada.

Duas acolitas correram para sua cama e a empurraram até um lado do portal arqueado. Uma delas pôs um pano úmido sobre sua testa , e a outra aproximou uma esponja molhada de seus lábios, para espremer algumas gotas de líquido em sua boca seca. Mohiam já tinha feito sua parte, a Irmandade se encarregaria do resto. Embora desconhecesse os planos traçados para a menina, sabia que sua filha tinha que sobreviver.

Na mesa de inspeção, mesmo antes de secar o sangue e o muco em sua pele, viraram o bebê e o apoiaram contra a superfície do escaner embutido na parede. A menina, aterrorizada, gritou, e sua voz ficava mais fraca a cada momento.

Sensores eletrônicos enviaram os biorresultados para uma unidade central, que mostrava uma coluna de dados no monitor, dados que foram analisados pelas...

 

 

[1] Literalmente: "o preço da liberdade. Algo de grande valor. O pedido de um deus a um mortal (e o medo provocado por este pedido). Assim consta na Terminologia do Império que Frank Herbert acrescentou ao seu primeiro DUNE. (N. Sel T.)

[2] Chamada de “linguagem magnética”, derivada em parte do antigo Bhotani. Um compêndio de antigos dialetos modificados pela necessidade de conservar o segredo, mas principalmente a linguagem de caça dos Bhotani, assassinos mercenários da Primeira Guerra de Assassinos (segundo a Terminologia do Império do Dune). (N. do E.)

[3] Canais ao ar livre para transportar água sob condições controladas (veja-se Teminologia do Império de DUNE): (N. do T.) 

 

                                                                                                    Brian Herbert & Kevin J. Anderson

 

 

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