Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A CASA DOS ESPÍRITOS
Primeira Parte
Rosa, a Bela
«Barrabás chegou à família por via marítima», anotou a menina Clara com a sua delicada caligrafia. Já nessa altura tinha o hábito de escrever as coisas importantes e, mais tarde, quando ficou muda, escrevia também as trivialidades, sem suspeitar que cinquenta anos depois os seus cadernos me iriam servir para resgatar a memória do passado e sobreviver ao meu próprio espanto. O dia em que chegou Barrabás era Quinta-Feira Santa.
Vinha numa jaula indigna, coberto dos próprios excrementos e de urina, com um olhar extraviado de preso miserável e indefeso, adivinhando-se, porém, pelo porte real da cabeça e pelo tamanho do esqueleto o gigante lendário que veio a ser. Era um dia aborrecido e outonal, que em nada fazia imaginar os acontecimentos que a menina registou para serem recordados e que ocorreram durante a missa das doze, na paróquia de San Sebastián, à qual assistiu com toda a família. Em sinal de luto, os santos estavam tapados com panos roxos que as beatas sacudiam anualmente do arcaz da sacristia e, por baixo dos lençóis de luto, a corte celestial parecia um amontoado de móveis esperando mudança, sem que as velas, o incenso ou os gemidos do órgão pudessem contrastar com esse lamentável efeito. Erguiam-se vultos ameaçadores no lugar dos santos de corpo inteiro, com rostos idênticos, de expressão enjoada, com complicadas cabeleiras de cabelo de morto, rubis, pérolas, esmeraldas de vidro pintado e vestuário de nobres florentinos. O único favorecido com o loto era o padroeiro da igreja, São Sebastião, porque, na Semana Santa, reservava para os fiéis o espectáculo do seu corpo torcido numa posição indecente, atravessado por meia dúzia de flechas, escorrendo sangue e lágrimas, como um homossexual sofredor, cujas chagas, milagrosamente frescas graças ao pincel do padre Restrepo, faziam Clara estremecer de nojo.
Era uma longa semana de penitência e jejum, não se jogava às cartas, não se tocava música que incitasse à luxúria e ao esquecimento, observava-se, na medida do possível, a maior tristeza e castidade, apesar de, justamente nesses dias, o aguilhão do demónio tentar com maior insistência a débil carne católica. O jejum consistia em tenros pastéis de massa folhada, saborosos guisados de legumes, fofas tortilhas e grandes queijos trazidos do campo, com que as famílias recordavam a Paixão do Senhor, tendo o cuidado de não provar o mais pequeno pedaço de carne ou de peixe, sob pena de excomunhão, como dizia, insistindo, o padre Restrepo. Ninguém se atreveria a desobedecer-lhe. O sacerdote estava munido de um grande dedo incriminador para apontar os pecadores em público e uma língua treinada para agitar os sentimentos.
- Tu, ladrão, que roubaste o dinheiro do culto! - gritava do púlpito apontando um cavalheiro que fingia preocupar-se com qualquer sujidade na lapela do casaco para esconder a cara. - Tu, desavergonhada, que te prostituis nos molhes! - e acusava Dona Ester Trueba, inválida pela artrite e beata da Senhora do Carmo, e que abria os olhos surpreendida, sem saber o significado daquela palavra nem onde ficavam os molhes. - Arrependei-vos, pecadores, carcaças imundas, indignos do sacrifício de Nosso Senhor! Jejuai! Fazei penitência!
Levado pelo entusiasmo do seu zelo vocacional, o sacerdote tinha de conter-se para não desobedecer declaradamente às instruções dos superiores eclesiásticos, sacudidos por ventos de modernismo, e que se opunham ao cilicio e à flagelação. Era partidário de vencer as fraquezas da alma com uma boa chicotada na carne. Era famoso pela sua oratória de enfreada. Os fiéis seguiam-no de paróquia em paróquia, suavam ouvindo-o descrever os tormentos dos pecadores no inferno, as carnes estraçalhadas por engenhosas máquinas de tortura, os fogos eternos, os garfos que trespassavam os membros viris, os répteis asquerosos que se introduziam pelos orifícios femininos e outros suplícios que introduzia em cada sermão para espalhar o terror de Deus. O próprio Satanás era descrito até às suas mais intimas anomalias com a pronúncia galega do sacerdote, cuja missão neste mundo era sacudir as consciências dos indolentes crioulos.
Severo del Valle era ateu e mação, mas tinha ambições políticas. Não podia por isso dar-se ao luxo de faltar à missa mais concorrida dos domingos e dias de festa, para que todos pudessem vê-lo. Nívea, a esposa, preferia entender-se com Deus sem auxilio de intermediários, tinha profunda desconfiança das sotainas, aborrecia-se com as descrições do céu, do purgatório e do inferno, mas acompanhava o marido nas suas ambições políticas, na esperança de que, conseguindo ele um lugar no Congresso, ela podia obter o voto feminino, pelo qual lutava fazia dez anos, sem que os seus numerosos estados de gravidez a fizessem desanimar. Nessa Quinta-Feira Santa o padre Restrepo tinha levado os ouvintes ao limite da resistência com as suas visões apocalípticas, e Nívea começou a sentir enjoos. Perguntou a si mesma se não estaria grávida de novo. Apesar das abluções com vinagre e das esponjas de fel, tinha dado à luz quinze filhos, dos quais dez restavam ainda vivos, e tinha razões para supor que já se estava acomodando à idade, porque a sua filha Clara, a mais pequena, tinha dez anos. Parecia que, por fim, tinha acabado o ímpeto da sua assombrosa fertilidade. Fez por atribuir a sua indisposição ao momento do sermão do padre Restrepo, quando ele a apontou referindo-se aos fariseus que pretendiam legalizar os bastardos e o matrimónio civil, desarticulando a Família, a Pátria, a Propriedade e a Igreja, dando às mulheres a mesma posição que aos homens, em aberto desafio à lei de Deus, que nesse aspecto era muito precisa. Nívea e Severo ocupavam com os filhos toda a terceira fila de bancos. Clara sentava-se ao lado da mãe. Esta apertava-lhe a mão com impaciência quando o discurso do sacerdote se estendia demasiado pelos pecados da carne, porque sabia que isso levaria a pequena a imaginar aberrações que iam para lá da realidade, como era evidente pelas perguntas que fazia e a que ninguém sabia responder. Clara era muito precoce e tinha a transbordante imaginação herdada, via materna, por todas as mulheres da família. A temperatura da igreja aumentara e o cheiro penetrante das velas, do incenso e da multidão apinhada contribuiu para a fadiga de Nívea. Queria que a cerimónia terminasse de vez para regressar à frescura da sua casa, sentar-se no corredor dos fetos e saborear o refresco de orchata que a Ama preparava nos dias de festa. Olhou os filhos, os mais pequenos estavam cansados, rígidos na roupa domingueira e os mais velhos começavam a ficar distraídos. Poisou os olhos em Rosa, a mais velha das filhas vivas, e, como sempre, ficou surpreendida. A sua estranha beleza de uma qualidade perturbadora, à qual nem ela escapava, parecia fabricada de material diferente do da raça humana. Nívea soube que ela não era deste mundo ainda antes de a dar à luz porque a viu em sonhos, por isso não se surpreendeu quando a parteira deu um grito ao vê-la. Ao nascer, Rosa era branca, lisa, sem rugas, como uma boneca de louça, com o cabelo verde e os olhos amarelos, a criatura mais formosa que tinha nascido na terra desde os tempos do pecado original, como disse a parteira benzendo-se. Desde o primeiro banho, a Ama lavou-lhe o cabelo com infusão de camomila, que lhe enfraqueceu a cor, dando-lhe tonalidades de bronze velho, e punha-a nua ao sol, para fortalecer a pele, translúcida nas zonas mais delicadas do ventre e das axilas, onde se adivinhavam as veias e a textura secreta dos músculos. Aqueles passes de cigana, no entanto, não foram suficientes e depressa correu o boato que tinha nascido um anjo. Nívea esperou que as ingratas fases do crescimento dessem à sua filha algumas imperfeições, mas nada disso aconteceu, bem pelo contrário, aos dezoito anos Rosa não engordara e não lhe tinham rebentado borbulhas, mas havia acentuado, isso sim, a sua graça marítima. O tom da pele, com reflexos azulados, e o do cabelo, a lentidão dos movimentos e o caracter silencioso evocavam um habitante aquático. Tinha qualquer coisa de peixe e se tivesse uma cauda com escamas seria certamente uma sereia, mas as suas pernas punham-na no limite impreciso entre a criatura humana e o ser mitológico. Apesar de tudo, a jovem fizera uma vida quase normal, tinha um noivo e um dia havia de casar-se, passando dessa maneira a responsabilidade da sua formosura para outras mãos. Rosa inclinou a cabeça e um raio filtrou-se pelos vitrais da igreja, dando-lhe uma halo de luz ao perfil. Algumas pessoas voltaram-se para a ver e cochicharam, como frequentemente sucedia, mas Rosa parecia não dar por nada, era imune à vaidade e nesse dia estava mais ausente que de costume, imaginando novos animais para bordar na sua toalha, metade pássaros, metade mamíferos, cobertos de plumas matizadas e providos de cornos e cascos, tão gordos e com asas tão curtas que desafiavam as leis da biologia e da aerodinâmica. Raras vezes pensava no noivo, Esteban Trueba, não por falta de amor, mas por temperamento esquecedor, e porque dois anos de separação são grande ausência. Ele trabalhava nas minas do Norte. Escrevia-lhe metodicamente e Rosa respondia-lhe de vez em quando, mandando-lhe versos copiados e desenhos de flores a tinta-da-china, em papel de pergaminho. Através dessa correspondência, que Nívea violava regularmente, inteirou-se dos sobressaltos do oficio de mineiro, sempre ameaçado por derrocadas, perseguindo veios fugidios, pedindo créditos por conta da boa sorte, acreditando que acabaria por aparecer um maravilhoso filão de ouro, que lhe permitiria fazer rápida fortuna e regressar para levar Rosa de braço dado ao altar, tornando-se assim o homem mais feliz do universo, como dizia sempre no fim das cartas. Rosa, no entanto, não tinha pressa em casar-se, quase esquecera o único beijo que haviam trocado na despedida e também a cor dos olhos desse noivo tenaz. Por influência das novelas românticas, que eram a sua única leitura, gostava de o imaginar com botas de cabedal, a pele queimada pelos ventos do deserto, cavando a terra em busca de tesouros de piratas, dobrões espanhóis e jóias dos Incas, e era inútil que Nívea a tentasse convencer de que as riquezas das minas estavam metidas nas pedras, porque para Rosa era impossível que Esteban Trueba recolhesse toneladas de penhascos na esperança de que, ao submetê-los a iníquos processos crematórios, cuspissem um grama de ouro. Entretanto, esperava por ele sem se aborrecer, imperturbável na gigantesca tarefa que tinha imposto a si própria: bordar a toalha maior do mundo. Começou com cães, gatos e borboletas, mas logo a fantasia se apoderou do seu trabalho e foi surgindo um paraíso de animais impossíveis que nasciam da agulha em frente dos olhos preocupados do pai. Severo considerava que era tempo da filha sair da modorra e de ter os pés assentes na terra, de aprender algumas tarefas domésticas e preparar-se para o matrimónio, mas Nívea não compartilhava dessa inquietação. Preferia não atormentar a filha com exigências terrenas, pois pressentia que Rosa era um ser celestial, que não tinha sido feito para durar muito tempo no bulício grosseiro deste mundo, por isso deixava-a em paz com os seus fios de bordar e não comentava aquele jardim zoológico de pesadelo.
Uma barba do espartilho de Nívea quebrou-se, cravando-se-lhe uma ponta entre as costelas. Sentia-se sufocar dentro do vestido de veludo azul, com a gola de renda demasiado alta, as mangas muito estreitas, a cintura tão apertada que, quando tirava o cinto, passava uma boa meia hora com retorcidelas de barriga até as tripas se acomodarem na sua posição normal. Tinham discutido isso muitas vezes, ela e as amigas sufragistas, e haviam chegado à conclusão de que, enquanto as mulheres não encurtassem as saias e o cabelo e não despissem os saiotes, tudo ficava na mesma, mesmo que pudessem estudar medicina ou tivessem direito a voto, porque de modo algum teriam coragem de o fazer; ela própria não tinha coragem para ser das primeiras a abandonar a moda. Notou que a voz da Galiza tinha deixado de martelar-lhe o cérebro. Estava numa dessas grandes pausas do sermão que o padre empregava com frequência, por conhecer bem o efeito de um silêncio incómodo. Os seus olhos ardentes aproveitavam esses momentos para observar os paroquianos um por um. Nívea largou a mão de Clara e procurou um lenço na manga para enxugar uma gota de suor que lhe escorria pelo pescoço. O silêncio tornou-se pesado, o tempo pareceu parar dentro da igreja, mas ninguém se atreveu a tossir ou a ajeitar-se no banco, para não atrair a atenção do padre Restrepo. As suas últimas frases ainda vibravam entre as colunas.
E nesse momento, como Nívea recordou anos mais tarde, no meio da ansiedade e do silêncio, ouviu-se com toda a nitidez a voz da pequena Clara:
- Pst! Padre Restrepo! Se o conto do inferno for pura mentira chateamo-nos...
O dedo indicador do jesuíta, que já estava no ar para assinalar novos suplícios, ficou suspenso como um pára-raios sobre a sua cabeça. As pessoas deixaram de respirar e os que estavam cabeceando acordaram. Os esposos del Valle foram os primeiros a reagir ao sentir que o pânico os invadia e ao ver que os filhos começavam a agitar-se nervosos. Severo compreendeu que devia actuar antes que rebentasse o riso geral ou se desencadeasse algum cataclismo celestial. Pegou na mulher pelo braço e em Clara pelo pescoço e saiu arrastando-as a grandes passadas, seguido pelos outros filhos, que se precipitaram em tropel para a porta. Conseguiram sair antes que o sacerdote pudesse invocar um raio que os transformasse em estátuas de sal, mas do umbral da porta ouviram a sua terrível voz de arcanjo ofendido:
- Endemoninhada! Soberba endemoninhada!
Estas palavras do padre Restrepo permaneceram na memória da família com o peso de um diagnóstico e, nos anos seguintes, tiveram ocasião de as recordar variadas vezes. A única que não voltou a pensar nelas foi a própria Clara, que se limitou a anotá-las no seu diário para logo as esquecer. Os pais, em contrapartida, não puderam ignorá-las, apesar de concordarem que a possessão demoníaca e a soberbia eram dois pecados demasiado grandes para uma criança tão pequena. Temiam a maldição do povo e o fanatismo do padre Restrepo. Até esse dia, não tinham posto nome às excentricidades da filha mais nova nem as haviam relacionado com influências satânicas. Tomavam-nas como uma característica da menina, como o coxear era a de Luís e a beleza a de Rosa. Os poderes mentais de Clara não causavam incómodo a ninguém e não produziam desordem de maior; manifestavam-se quase sempre em assuntos de pouca importância e na estrita intimidade do lar. Algumas vezes, à hora da refeição, quando estavam todos reunidos na grande sala de jantar da casa, sentados em absoluta ordem de dignidade e hierarquia, o saleiro começava a vibrar e deslocava-se depois pela mesa fora entre copos e pratos, sem ter havido para isso nenhuma fonte de energia conhecida nem truque de ilusionista. Nívea dava um puxão às tranças de Clara e com esse sistema conseguia que a filha abandonasse a distracção lunática e devolvesse a normalidade ao saleiro, que acabava por recuperar a imobilidade. Os irmãos tinham-se organizado para que, no caso de haver visitas, aquele que estivesse mais perto deter com a mão o que estivesse andando sobre a mesa antes que os estranhos dessem conta disso e apanhassem um susto. A família continuava a comer sem comentários. Também se tinham habituado aos presságios da irmã mais nova. Ela anunciava os tremores de terra com alguma antecipação, o que resultava muito útil naquele pais de catástrofes, porque dava tempo de pôr a salvo a baixela e deixar ao alcance da mão as pantufas para sair noite dentro. Aos seis anos Clara previu que o cavalo havia de deixar cair Luís, este negou-se a dar-lhe ouvidos e desde então tinha um quadril deslocado. Com o tempo, encurtou-se-lhe a perna esquerda e teve de usar um sapato especial com uma grande sola que ele próprio fabricava. Nessa ocasião Nívea inquietou-se, mas a Ama tranquilizou-a dizendo que há muitos meninos que voam como as moscas, que adivinham os sonhos e falam com as almas, mas que tudo isso lhes passa quando perdem a inocência.
- Nenhum chega a grande nesse estado - explicou. – Espere que à menina lhe chegue a demonstração e vai ver que perde a mania de andar a mover os móveis e a anunciar desgraças.
A Ama preferia Clara. Tinha-a ajudado a nascer e era a única pessoa que compreendia a natureza extravagante da menina. Quando Clara saiu do ventre da mãe, a Ama embalou-a, lavou-a e desde esse momento amou desesperadamente a frágil criança com os pulmões cheios de expectoração, sempre à beira de perder o alento e pôr-se roxa, que tinha feito reviver com o calor dos seus grandes peitos quando lhe faltava o ar, porque sabia que era esse o único remédio para a asma, muito mais eficaz que os folhados aguardentados do doutor Cuevas.
Nessa Quinta-Feira Santa, Severo passeava pela sala preocupado com o escândalo que a filha tinha dado na missa. Argumentava que só um fanático como o padre Restrepo podia acreditar em possessos em pleno século vinte, o século das luzes, da ciência e da técnica, no qual o demónio tinha ficado definitivamente desprestigiado. Nívea interrom-peu-o para dizer que não era essa a questão. O que era grave é que, se as proezas da filha transcendiam as paredes da casa e o padre começava a investigar, toda a gente iria saber.
- Vai começar a chegar gente para a ver como se ela fosse um fenómeno - disse Nívea.
- E o Partido Liberal vai para o caralho - rematou Severo, que via o prejuízo que podia ser para a sua carreira política ter uma possessa na família.
Estavam nisto quando chegou a Ama arrastando as chinelas, com o frufru de saiotes engomados, a anunciar que no pátio estavam uns homens a descarregar um morto. Assim era. Entraram com uma carraça de quatro cavalos, ocupando todo o primeiro pátio, pisando as camélias e sujando de trampa o empedrado reluzente, num turbilhão de pó, num empinar de cavalos e maldições de homens supersticiosos que faziam gestos contra o mau olhado. Traziam o cadáver do tio Marcos com toda a sua bagagem. Aquele tumulto era dirigido por um homenzinho melífluo, vestido de negro, de labita e chapéu demasiado grande, que iniciou um discurso solene para explicar as circunstâncias do caso, mas que foi brutalmente interrompido por Nívea, que se lançou sobre o ataúde empoeirado que continha os restos do seu irmão mais querido. Nívea gritava que abrissem a tampa, para o ver com os próprios olhos. Já em ocasião anterior havia sido encarregada de o enterrar, e por isso mesmo tinha o direito de duvidar que dessa vez fosse verdadeira a sua morte. Os seus gritos atraíram a multidão de criados da casa e todos os filhos, que acudiram correndo ao ouvir o nome do tio pronunciado com lamentações de luto.
Havia um par de anos que Clara não via o tio Marcos, mas recordava-o bem. Era a única imagem perfeitamente nítida da sua infância e para a evocar não necessitava sequer de consultar o daguerrótipo do salão, onde ele aparecia vestido de explorador, apoiado a uma caçadeira de dois canos de modelo antigo, o pé direito sobre um tigre da Malásia, na mesma atitude triunfante que ela tinha visto na Virgem do altar-mor pisando o demónio vencido entre nuvens de gesso e anjos pálidos. A Clara bastava fechar os olhos para ver o tio em carne e osso, curtido pelas inclemências de todos os climas do planeta, magro, com bigodes de flibusteiro, entre os quais assomava um estranho sorriso com dentes de tubarão. Parecia impossível que ele estivesse naquele caixão negro no meio do pátio.
Em cada visita que Marcos fez a casa da irmã Nívea, ficou por vários meses, dando alegria aos sobrinhos, especialmente a Clara, e provocando uma tempestade na qual a ordem doméstica perdia os horizontes. A casa atafulhava-se de baús, animais embalsamados, lanças de índios, bagagens de marinheiro. Por todos os lados se tropeçava em utensílios indescritíveis, e apareciam bichos nunca vistos que tinham viajado desde terras remotas para acabarem esmagados debaixo da vassoura implacável da Ama em qualquer canto da casa. As maneiras do tio Marcos eram as de um canibal, como dizia Severo. Passava a noite fazendo movimentos incompreensíveis na sala. Soube-se mais tarde que eram exercícios destinados a aperfeiçoar o domínio da mente sobre o corpo e a melhorar a digestão. Fazia experiências de alquimia na cozinha, enchendo toda a casa de fumaradas fétidas e arruinando as panelas com substancias sólidas que não podiam soltar-se do fundo. Enquanto os outros tentavam dormir, arrastava as malas pelos corredores, ensaiava sons agudos com instrumentos selvagens e ensinava espanhol a um papagaio cuja língua materna era de origem amazónica. De dia, dormia numa rede que tinha esticado entre duas colunas do corredor, cobrindo-se apenas com uma tanga que punha Severo de péssimo humor, mas que Nívea desculpava porque Marcos tinha-a convencido de que era assim que pregava o Nazareno. Clara recordava perfeitamente, apesar de ser muito pequena na altura, a primeira vez que o tio Marcos chegou a casa no regresso de uma das suas viagens. Instalou-se como se fosse para sempre. Ao fim de pouco tempo, aborrecido de apresentar-se em tertúlias de senhoras em que a dona da casa tocava piano, de jogar as cartas e iludir os constrangimentos de todos os seus parentes para que assentasse cabeça e começasse a trabalhar como ajudante no escritório de advogado de Severo del Valle, comprou um realejo e percorreu as ruas com a intenção de seduzir a prima Antonieta e, ao mesmo tempo, alegrar o público com a sua música de manivela. A máquina não passava de um caixote manhoso provido de rodas, mas ele pintou-a com motivos de marinheiros e pôs-lhe uma chaminé falsa de barco. Ficou com aspecto de fogão a carvão. O realejo tocava uma marcha militar e uma valsa alternadamente e entre cada volta de manivela o papagaio, que tinha aprendido espanhol, apesar de manter o sotaque estrangeiro, atraía o público com gritos agudos. Tirava também com o bico papelitos de uma caixa para vender a sorte aos curiosos. Os papéis cor-de-rosa, verdes e azuis eram tão engenhosos que indicavam sempre os mais secretos desejos do cliente. Além dos papéis da sorte, vendia bolinhas de serradura para divertir as crianças e pós contra a impotência, de que falava a meia voz com os transeuntes afectados por esse mal. A ideia do realejo surgiu como um último e desesperado recurso para atrair a prima Antonieta, depois de falharem outras formas mais convencionais de a cortejar. Pensou que nenhuma mulher de perfeito juízo podia permanecer impassível perante uma serenata de realejo. Foi isso que fez. Colocou-se debaixo da janela dela ao entardecer, tocando a sua marcha militar e a sua valsa no momento em que ela tomava chá com um grupo de amigas. Antonieta não se deu por achada até que o papagaio começou a chamá-la pelo seu nome de baptismo e então chegou à janela. A sua reacção não foi a que esperava o enamorado. As amigas encarregaram-se de espalhar a noticia por todos os salões da cidade e, no dia seguinte, as pessoas começavam a passear pelas ruas centrais esperando ver com os próprios olhos o cunhado de Severo del Valle tocando realejo e a vender bolas de serradura com um papagaio barulhento, simplesmente pelo prazer de tirar a prova de que também nas melhores famílias havia boas razões para ter vergonha.
Em face da tempestade familiar, Marcos teve de desistir do realejo e escolher métodos menos conspícuos para atrair a prima Antonieta. Marcos não desistiu de a assediar. De qualquer modo, no fim não teve êxito, porque a jovem casou-se dum dia para o outro com um diplomata vinte anos mais velho, que a levou para um pais tropical cujo nome ninguém conseguiu recordar, mas que sugeria negritude, bananas e palmeiras, onde ela ultrapassou a recordação do pretendente que arruinara os seus dezassete anos com uma marcha militar e uma valsa. Marcos ficou abalado durante dois ou três dias, ao fim dos quais anunciou que nunca havia de casar e que iria dar a volta ao mundo. Vendeu o realejo a um cego e deixou o papagaio de herança a Clara, mas a Ama envenenou-o secretamente com uma boa dose de óleo de fígado de bacalhau porque não podia suportar o seu olhar lascivo, as pulgas e os gritos desregrados oferecendo papelinhos para a sorte, bolas de serradura e pós para a impotência.
Foi a mais longa viagem de Marcos. Regressou com um carregamento de enormes caixas que se armazenaram no último pátio, entre o galinheiro e a casa da lenha, até acabar o Inverno. No começo da Primavera, fê-las passar ao Parque dos Desfiles, um enorme descampado onde se juntava o povo para ver marchar a tropa durante as festas da Pátria, com um passo de ganso que tinham copiado dos Prussianos. Ao abrir as caixas, viu-se que tinham lá dentro peças soltas de madeira, metal e tela pintada. Marcos passou duas semanas juntando as partes de acordo com as instruções de um manual em inglês, que ele decifrou com uma imaginação invencível e um pequeno dicionário. Quando o trabalho ficou pronto, surgiu um pássaro de dimensões pré-históricas, com um rosto de águia furiosa pintado na parte da frente, asas móveis e um hélice no lombo.
Causou emoção. As famílias da oligarquia esqueceram o realejo e Marcos tornou-se a novidade da temporada. As pessoas faziam passeios aos domingos para ir ver o pássaro e os vendedores de quinquilharias e os fotógrafos ambulantes fizeram o seu negócio. No entanto, em pouco tempo começou a esgotar-se o interesse do público. Marcos anunciou então que, mal o tempo desanuviasse, pensava levantar voo no pássaro e passar por cima da cordilheira. A noticia correu em poucas horas e converteu-se no acontecimento mais comentado do ano. A máquina jazia com a pança assente em terra firme, pesada e torpe, mais com o aspecto de um pato ferido do que de um desses modernos aeroplanos que começavam a fabricar-se na América do Norte. Nada na sua aparência permitia supor que pudesse mover-se e muito menos levantar voo e atravessar as montanhas nevadas. Os jornalistas e curiosos acudiram em tropel. Marcos sorria imóvel face à avalancha de perguntas, posando para os fotógrafos sem oferecer nenhuma explicação técnica ou cientifica a respeito de como pensava realizar a sua proeza. Houve gente que viajou da província para ver o espectáculo. Quarenta anos depois, o seu sobrinho-neto Nicolau, a quem Marcos não chegou a conhecer, desenterrou a iniciativa de voar que sempre estivera presente nos homens da sua estirpe. Nicolau teve a ideia de fazê-lo com fins comerciais, numa salsicha gigantesca cheia de ar quente, que levaria impresso um anúncio publicitário de bebidas gasosas. Mas, nos tempos em que Marcos anunciou a sua viagem em aeroplano, ninguém acreditava que esse invento pudesse servir para alguma coisa de útil. Ele fazia-o por espírito aventureiro. O dia marcado para o voo amanheceu enevoado, mas havia tanta expectativa que Marcos não quis adiar a data.
Apresentou-se pontualmente no local e não deu sequer uma olhadela para o céu que se cobria de nuvens cinzentas. A multidão atónita encheu as ruas circundantes, empoleirou-se nos telhados, nas varandas das casas próximas e apertou-se no parque. Nenhuma concentração política conseguiu reunir tanta gente até meio século depois, quando o primeiro candidato marxista aspirava, por meios totalmente democráticos, a ocupar a poltrona dos presidentes. Clara recordaria em toda a sua vida esse dia de festa. As pessoas vestiram-se como na Primavera, adiantando-se um pouco à inauguração oficial da temporada, os homens com fatos de linho branco e as senhoras com chapéus de palhinha italiana, que fizeram furor nesse ano.
Desfilaram grupos de alunos das escolas, com os professores, levando flores para o herói. Marcos recebia as flores e gracejava, dizendo que esperassem que ele caísse para lhe levarem flores ao enterro. O bispo em pessoa, sem que ninguém lhe pedisse, apareceu com dois incensórios a benzer o pássaro, e o orfeão da polícia tocou música alegre e sem pretensões, para o gosto popular. A policia, a cavalo e com lanças, teve dificuldade em manter a multidão afastada do centro do parque, onde estava Marcos, vestido com calças de mecânico, com grandes óculos de automobilista e o seu capacete de explorador. Para o voo levava, além disso, a sua bússola, um binóculo e uns estranhos mapas de navegação aérea que ele próprio tinha traçado baseando-se nas teorias de Leonardo da Vinci e nos conhecimentos astrais dos Incas. Contra toda a lógica, à segunda tentativa, o pássaro elevou-se sem problemas e mesmo com certa elegância entre os estalidos do esqueleto e os estertores do motor. Subiu dando às asas, perdendo-se nas nuvens, despedido por uma explosão de aplausos, assobios, lenços, bandeiras, acordes musicais do orfeão e aspersões de água benta. Em terra ficou o comentário da concorrência maravilhada e dos homens mais instruídos, que tentaram dar uma explicação razoável do milagre. Clara continuou olhando o céu até muito tempo depois do tio se ter tornado invisível.
Acreditou vê-lo dez minutos mais tarde, mas tratava-se apenas de um pardal que passava. Passados três dias, a euforia provocada no país pelo primeiro voo de aeroplano desvaneceu-se e ninguém tornou a lembrar-se do episódio, excepto Clara, que olhava incansavelmente as alturas.
Sem haver notícias do tio voador durante uma semana, supôs-se que tinha subido até se perder no espaço sideral. Os mais ignorantes especulavam com a ideia de que chegaria à Lua. Severo determinou, com uma mistura de tristeza e de alívio, que o seu cunhado tinha caído com a máquina nalguma garganta da cordilheira, onde nunca mais seria encontrado. Nívea chorou inconsolável e ofereceu velas a Santo António, padroeiro das coisas perdidas. Severo opôs-se à ideia de mandar dizer algumas missas, porque não acreditava nesse recurso para ganhar o céu e muito menos para voltar à terra, e defendia que as missas e as promessas, assim como as indulgências e o tráfico de imagens e escapulários eram um negócio desonesto. Em vista disso, Nívea e a Ama puseram todas as crianças a rezar o terço às escondidas, durante nove dias. Entretanto, grupos de exploradores e andinistas voluntários procuraram-no incansavelmente por picos e quebradas da cordilheira, percorrendo, uma por uma, todas as passagens acessíveis, até que por último regressaram triunfantes e entregaram à família os restos mortais dentro de um féretro selado, negro e modesto. Enterraram o intrépido viajante num funeral grandioso. A morte converteu-o num herói e o seu nome esteve vários dias nos títulos dos jornais. A mesma multidão que se juntou para se despedir dele no dia em que levantou voo no pássaro desfilou em frente do ataúde. Toda a família o chorou como ele merecia, menos Clara, que continuou esquadrinhando o céu com paciência de astrónomo. Uma semana depois da inumação, apareceu no umbral da porta da casa de Nívea e de Severo del Valle o próprio tio Marcos, de corpo presente, com um alegre sorriso entre os bigodes de pirata. Graças às rezas clandestinas das mulheres e das crianças, como ele próprio admitiu, estava vivo e em posse de todas as suas faculdades, incluindo a do bom humor. Apesar da nobre origem dos seus mapas aéreos, o voo tinha sido um fracasso, perdera o aeroplano e teve de regressar a pé, não trazendo todavia nenhum osso partido e com o espírito aventureiro intacto. Isto consolidou para sempre a devoção da família por Santo António e não desenganou as gerações futuras, que também tentaram voar por diversos meios. No entanto, legalmente, Marcos era um cadáver. Severo del Valle teve de pôr todo o seu conhecimento das leis no sentido de devolver a vida e a condição de cidadão ao cunhado. Ao abrir o caixão, diante das autoridades respectivas, todos viram que se tinha enterrado um saco de areia. Este facto enodoou o prestigio, até então sem mácula, dos exploradores e andinistas voluntários; desde esse dia foram considerados pouco menos que malfeitores.
A heróica ressurreição de Marcos acabou por fazer esquecer a toda a gente a história do realejo. Voltaram a convidá-lo para todos os salões da cidade e, pelo menos por algum tempo, o seu nome foi solicitado. Marcos viveu em casa da irmã por alguns meses. Uma noite foi-se embora sem se despedir de ninguém, deixando os baús, os livros, as armas, as botas e todo o instrumental. Severo, e até mesmo Nívea, respiraram aliviados. A sua última visita tinha durado tempo de mais.
Mas Clara sentiu-se tão afectada que passou uma semana caminhando sonâmbula a chupar no dedo. A menina, que então tinha sete anos, aprendera a ler os livros de contos do tio e, devido às suas habilidades adivinhatórias, estava mais perto dele que de nenhum membro da família. Marcos pretendia que a rara virtude da sua sobrinha podia ser uma fonte de lucros e uma boa oportunidade para desenvolver a sua própria clarividência. Tinha a teoria de que esta condição estava presente em todos os seres humanos, especialmente nos da sua família, e que se não funcionava com eficiência era só por falta de treino. Comprou no Mercado Persa uma bola de vidro que, em sua opinião, tinha propriedades mágicas e vinha do Oriente, embora mais tarde se soubesse que era apenas uma bóia de bote de pesca; pô-la sobre um pano de veludo negro e anunciou que podia ver a sorte, curar o mau olhado, ler o passado e melhorar a qualidade dos sonhos, tudo por cinco centavos. Os seus primeiros clientes foram as criadas da vizinhança. Uma delas fora acusada de ladra, porque a patroa tinha perdido um anel. A bola de vidro indicou o lugar onde se encontrava a jóia: tinha rebolado para baixo de um roupeiro.
No dia seguinte havia uma bicha de gente à porta da casa. Chegavam os cocheiros, os comerciantes, os fornecedores de leite e água e mais tarde, apareceram discretamente alguns empregados municipais e senhoras distintas, que deslizavam discretamente ao longo das paredes, procurando não serem reconhecidas. A clientela era recebida pela Ama, que punha as pessoas por ordem na antecâmara e cobrava os honorários. Este trabalho mantinha-a ocupada quase todo o dia e chegou a prendê-la tanto que descuidou os seus afazeres na cozinha. A família começou a queixar-se de que a única coisa que havia para o jantar era feijões e marmelada. Marcos arranjou a cocheira com uns cortinados puídos que tinham pertencido em tempos ao salão, mas que o abandono e a velhice tinham tornado tripas cheias de pó. Era ali que atendia o público com Clara. Os dois adivinhos vestiam túnicas «da cor dos homens da luz», como Marcos chamava ao amarelo. A Ama tingiu as túnicas com pó de açafrão, fazendo-as ferver na panela destinada ao manja branco. Marcos tinha, além da túnica, um turbante amarrado na cabeça e um amuleto egípcio pendurado ao pescoço.
Deixara crescer a barba e o cabelo e estava mais magro do que nunca. Marcos e Clara ficavam totalmente convincentes, sobretudo porque a menina não necessitava olhar a bola de vidro para adivinhar o que cada um queria ouvir. Soprava-o ao ouvido do tio Marcos, que transmitia a mensagem ao cliente e improvisava os conselhos que lhe pareciam ajuizados. Assim se propagou a sua fama, porque os que chegavam ao consultório débeis e tristes saiam cheios de esperança, os namorados que não eram correspondidos obtinham orientação para cativar o coração indiferente e os pobres levavam infalíveis artimanhas para apostar nas corridas de cães. O negócio chegou a ser tão próspero que a antecâmara estava sempre atafulhada de gente e a Ama começou a ter desmaios por estar parada tanto tempo.
Nessa ocasião Severo não teve necessidade de intervir para pôr fim à iniciativa empresarial do seu cunhado, porque os dois adivinhos, ao notar que a sua perícia podia modificar o destino da clientela, que seguia à letra as suas palavras, atemorizaram-se e decidiram que era um oficio de trampolineiros. Abandonaram o oráculo da cocheira e dividiram os ganhos ao meio, ainda que a única que de facto estava interessada no aspecto material fosse a Ama.
De todos os irmãos del Valle, Clara era a que tinha mais resistência e interesse em ouvir os contos do tio. Podia repeti-los um por um, sabia de memória várias palavras de índios estrangeiros, conhecia os seus costumes e podia descrever a maneira como atravessavam pedaços de madeira nos lábios e nos lóbulos das orelhas, assim como os ritos de iniciação e os nomes das serpentes mais venenosas e seus antídotos. O tio era tão eloquente que a menina podia sentir na sua própria carne a mordedura quente das víboras, ver o réptil deslizar sobre a almofada, entre os troncos de jacarandás e escutar os gritos das guacamaias (Ave da família dos papagaios. Arara. (N. T.)) através das cortinas do salão. Lembrava-se sem hesitações do trajecto de Lope de Aguirre em busca do El Dorado, dos nomes impronunciáveis da flora e da fauna vistas ou inventadas pelo seu tio maravilhoso, sabia que os lamas comem chá salgado com gordura de iaque e podia descrever com pormenor as opulentas nativas da Polinésia, os arrozais da China ou as planícies brancas dos países do Norte, onde o gelo eterno mata os animais e os homens que se distraem, petrificando-os em poucos minutos. Marcos tinha vários diários de viagem onde escrevia os seus itinerários e as suas impressões, assim como uma colecção de mapas e livros de contos de aventuras, e até de fadas, que guardava nos baús no quarto das vasilhas, ao fundo do terceiro pátio da casa. Saíram dali para povoar os sonhos dos seus descendentes até que foram queimados por erro, meio século depois, numa pira infame.
Da sua última viagem, Marcos regressou num caixão. Tinha morrido de uma misteriosa peste africana que o foi pondo enrugado e amarelo como um pergaminho. Ao sentir-se doente iniciou a viagem de volta, esperando que os cuidados da sua irmã e a sabedoria do doutor Cuevas lhe tornassem a dar a saúde e a juventude, mas não resistiu aos sessenta dias de travessia de barco e, por alturas de Guaiaquil, morreu consumido pela febre e delirando sobre mulheres perfumadas e tesouros escondidos. O capitão do barco, um inglês de apelido Longfellow, esteve a ponto de o lançar ao mar embrulhado numa bandeira, mas Marcos tinha feito tantos amigos e apaixonado tantas mulheres a bordo do transatlântico, apesar do seu aspecto campesino e do seu delírio, que os passageiros o impediram, e Longfellow teve de o armazenar, junto às hortaliças do cozinheiro chinês, para o preservar do calor e dos mosquitos do trópico, até que o carpinteiro de bordo improvisasse um caixão. Em El Callao conseguiram um féretro apropriado e alguns dias depois o capitão, furioso pelos contratempos que aquele passageiro tinha causado à Companhia de Navegação e a ele pessoalmente, descarregou-o sem contemplações no cais, estranhando que ninguém aparecesse a reclamá-lo nem a pagar as despesas extraordinárias. Mais tarde soube que naquelas latitudes o correio não oferecia o mesmo crédito que na sua longínqua Inglaterra e que os seus telegramas se tinham evaporado no caminho. Felizmente para Longfellow, apareceu um advogado da alfândega que conhecia a família del Valle e que se ofereceu para tratar do assunto, metendo Marcos e a sua complicada bagagem num carro de aluguer e levando-o para a capital, para o único domicilio fixo que dele se conhecia: a casa da irmã.
Para Clara esse teria sido um dos momentos mais dolorosos da sua vida, se Barrabás não tivesse chegado misturado com os instrumentos do tio. Ignorando a confusão que ia pelo pátio, o seu instinto levou-a directamente ao canto onde tinham posto a jaula. Dentro estava Barrabás. Era um montão de ossinhos cobertos por pêlo de cor indefinida, cheio de peladas infectas, um olho fechado e outro escorrendo remelas, imóvel como um cadáver na sua própria porcaria. Apesar desta aparência, a menina não teve dificuldade em identificá-lo:
- Um cãozinho! - exclamou.
Encarregou-se do animal, tirou-o da jaula, embalou-o contra o peito e, com cuidados de missionária, conseguiu deitar-lhe água no focinho inchado e seco. Ninguém se tinha preocupado em alimentá-lo desde que o capitão Longfellow, que como todos os ingleses tratava muito melhor os animais que os humanos, o depositou no cais. Enquanto o cão esteve a bordo junto ao dono moribundo, o capitão alimentou-o pela própria mão e passeou-o pela coberta, dando-lhe todas as atenções que não dera a Marcos, mas uma vez em terra firme foi tratado como parte da bagagem. Clara tornou-se uma mãe para o animal, sem que ninguém lhe disputasse esse privilégio duvidoso, conseguindo reanimá-lo. Dois dias mais tarde, logo que se acalmou a tempestade da chegada do cadáver e do enterro do tio Marcos, Severo reparou no bicho peludo que a filha levava nos braços:
- Que é isso? - perguntou.
- É o Barrabás - disse Clara.
- Entrega-o ao jardineiro para que o mate. Pode contagiar-nos com alguma doença - ordenou Severo.
Mas Clara tinha-o adoptado:
- É meu, papá. Se mo tirar, juro-lhe que deixo de respirar e morro.
Ficou em casa. Em pouco tempo corria por todos os lados devorando as franjas das cortinas, as almofadas e os pés dos móveis. Saiu rapidamente da agonia e começou a crescer. Quando se lhe deu banho, soube-se que era negro, de cabeça quadrada, patas muito grandes e pêlo curto. A Ama sugeriu que lhe cortassem a cauda para ficar como os cães finos, mas Clara teve uma birra que acabou em ataque de asma e ninguém voltou a falar no assunto. Barrabás ficou com o rabo inteiro, que com o tempo chegou a ter o comprimento de um taco de golfe, com movimentos incontroláveis que varriam as porcelanas das mesas e tombavam candeeiros. Era de raça desconhecida. Não tinha nada em comum com os cães que vagueavam pelas ruas e muito menos com os animais de raça pura que algumas famílias aristocráticas criavam. O veterinário não soube dizer qual era a sua origem e Clara supôs que vinha da China porque grande parte do conteúdo da bagagem do tio eram recordações desse pais distante. Tinha uma capacidade ilimitada de crescimento.
Aos seis meses era do tamanho de uma ovelha e com um ano tinha a proporção de um poldro. A família, desesperada, perguntava até onde ele ia crescer, e começou-se a duvidar que fosse realmente um cão. Especularam que podia tratar-se de um animal exótico caçado pelo tio explorador nalguma região remota do mundo e que, provavelmente, no seu estado primitivo era feroz.
Quando Nívea lhe observava as patas de crocodilo e os dentes afiados, o seu coração de mãe estremecia ao pensar que o animal podia arrancar a cabeça de um adulto com uma dentada e com maior razão a de um dos seus filhos. Mas Barrabás não mostrava ferocidade alguma, bem pelo contrário. Tinha brincadeiras de gatinho. Dormia abraçado a Clara, dentro da cama, com a cabeça no almofadão de penas, tapado até ao pescoço porque tinha frio, mas depois, quando já não cabia na cama, estendia-se no chão a seu lado, com o focinho de cavalo apoiado na mão da menina. Nunca se ouviu ladrar nem tão pouco rosnar. Era negro e silencioso como uma pantera, apreciava o presunto e as compotas de fruta e, sempre que havia visitas e se esqueciam de o fechar, entrava sorrateiro na sala de jantar, dando volta à mesa para, com delicadeza, tirar dos pratos os bocados preferidos sem que nenhum dos comensais se atrevesse a impedi-lo. Apesar da sua mansidão de donzela, Barrabás inspirava terror Os fornecedores fugiam precipitadamente quando aparecia na rua e uma vez a sua presença provocou pânico entre as mulheres que faziam bicha em frente da carroça que distribuía o leite, espantando o cavalo percherão que saiu disparado no meio de um quebrar de bilhas de leite entornadas na calçada. Severo teve de pagar todos os prejuízos e mandou amarrar o cão no pátio, mas Clara teve outra crise nervosa e a decisão foi adiada por tempo indefinido. A fantasia popular e o desconhecimento da sua raça atribuíram a Barrabás características mitológicas. Constava que continuava a crescer e que, se não fosse a brutalidade de um carniceiro, que lhe pôs termo à existência, teria chegado ao tamanho de um camelo. As pessoas acreditavam que era um cruzamento de cão e égua, supunham que podiam aparecer-lhe asas, cornos e um bafo sulfuroso de dragão, como os animais que Rosa bordava no seu interminável manto. A Ama, farta de apanhar porcelana partida e ouvir os boatos de que se transformava em lobo nas noites de lua cheia, usou para ele o mesmo sistema que para o papagaio, mas a superdose de óleo de fígado de bacalhau não o matou, deu-lhe uma caganeira de quatro dias que encheu a casa de alto a baixo e que ela mesma teve de limpar.
Eram tempos difíceis. Eu tinha então à volta de vinte e cinco anos, mas julgava que tinha à minha frente pouca vida para construir um futuro e conseguir a posição que desejava.
Trabalhava que nem um animal, e as poucas vezes que me sentava para descansar, obrigado pelo tédio de algum domingo, sentia que estava a perder momentos preciosos e que cada minuto de ócio me afastava de Rosa mais um século. Vivia na mina, numa barraca de tábuas com telhado de zinco que eu próprio construi com a ajuda de dois serventes. Tinha uma única divisão, onde arrumei os meus haveres, com um janelo em cada parede, para fazer circular o ar quente do dia, fechados com postigos à noite, quando soprava o vento glacial. Todo o meu mobiliário consistia numa cadeira, uma cama de campanha, uma mesa rústica, uma máquina de escrever e uma pesada caixa forte que teve de ser levada no lombo de uma mula através do deserto, onde eu guardava as jornas dos mineiros, alguns documentos e uma pequena bolsa de lona em que brilhavam os pedacinhos de ouro que representavam o fruto de tanto esforço. Não era cómoda, mas eu estava habituado à falta de comodidades. Nunca havia tomado banho em água quente e as recordações que tinha da infância eram de frio, solidão e um eterno vazio no estômago. Ali comi, dormi e escrevi durante anos, sem mais distracções que uns quantos livros, lidos muitas vezes, uma pilha de jornais já atrasados, textos em inglês, que me serviram para aprender os rudimentos dessa magnifica língua, e um caixa com chave onde guardava a correspondência que mantinha com Rosa. Tinha-me acostumado a escrever-lhe à máquina, com uma cópia que guardava para mim e que ordenava por datas junto às poucas cartas que dela recebi. Comia o mesmo rancho que se fazia para os mineiros e tinha proibido que circulasse álcool dentro da mina. Nem o tinha em casa, porque sempre pensei que a solidão e o aborrecimento acabam por fazer do homem um alcoólico. Talvez a recordação que tenho de meu pai, com o colarinho desabotoado, a gravata frouxa, manchada, os olhos turvos e o hálito pesado, com um copo na mão, tenha feito de mim um abstémio. Não tenho boa cabeça para a bebida, embebedo-me com facilidade. Descobri isso aos dezasseis anos e nunca mais o esqueci. Uma vez a minha neta perguntou-me como consegui viver tanto tempo sozinho e tão afastado da civilização. Não sei. Porém, deve ter sido mais fácil para mim do que para muitos outros, porque não sou uma pessoa sociável, não tenho muitos amigos nem gosto de festas nem de barulho, pelo contrário, sinto-me melhor sozinho.
Custa-me muito tornar-me intimo das pessoas. Nesse tempo não tinha ainda vivido com uma mulher e por isso não podia deitar fora o que não conhecia. Não era namoradeiro, nunca o fui, nem sou de natureza fiel, apesar de bastar a sombra de um braço, a curva de uma cintura, o redondo de um joelho de mulher para que me venham ideias à cabeça, ainda hoje, quando já estou tão velho que ao olhar-me ao espelho não me reconheço. Pareço uma árvore torcida. Não estou a querer justificar os meus pecados da juventude com a história de que não podia controlar o ímpeto dos meus desejos, nem mais ou menos. Nessa idade estava acostumado às relações sem futuro com mulheres de vida fácil, já que não tinha possibilidade com outras. Na minha geração distinguíamos entre as mulheres decentes e as outras e também dividiam ~s as decentes em próprias e alheias. Não pensava no amor antes de conhecer Rosa, o romantismo afigurava-se-me perigoso e inútil e, se alguma vez gostei de alguma rapariga, não me atrevi a aproximar-me dela com medo de ser repelido e do ridículo. Fui muito orgulhoso e por causa do meu orgulho sofri mais que outros.
Passou muito mais de meio século, mas ainda tenho gravado na memória o momento preciso em que Rosa, a bela, entrou na minha vida como um anjo distraído que ao passar me roubou a alma. Ela ia com a Ama e outra criança, provavelmente alguma irmã mais nova. Creio que levava um vestido lilás, mas não estou certo disso, porque não tenho olhos para roupa de mulher e ela era tão formosa que mesmo que levasse uma capa de arminho eu não podia ver senão o seu rosto. Habitualmente não tenho a mania das mulheres, mas teria de ser tarado para não notar essa aparição que provocava um tumulto com a sua passagem, congestionando o tráfego, com aquele incrível cabelo verde que lhe emoldurava a cara como um chapéu de fantasia, o porte de fada e aquela maneira de se mover como se voasse. Passou diante de mim sem me ver e entrou flutuando na confeitaria da Praça de Armas. Fiquei na rua, estupefacto, enquanto ela comprava caramelos de anis, escolhendo-os um por um, com um riso de cascavel, metendo uns na boca e dando outros à irmã. Não fui o único hipnotizado: em poucos minutos formou-se uma multidão de homens que espreitava pela montra. Então não resisti. Não me ocorreu que estava muito longe de ser o pretendente ideal para aquela jovem celestial, uma vez que não tinha fortuna, estava longe de ser bom rapaz e tinha pela frente um futuro incerto. E não a conhecia! Mas estava deslumbrado e decidi nesse momento que ela era a única mulher digna de ser minha esposa e que, se eu a não pudesse ter, preferia ficar solteiro. Segui-a todo o caminho de regresso a casa. Subi para o mesmo eléctrico e sentei-me atrás dela, sem poder tirar os olhos da sua nuca perfeita, do pescoço redondo, dos ombros suaves acariciados pelos caracóis verdes que se escapavam do penteado. Não dei pelo movimento do eléctrico, porque ia com os meus sonhos. Quando deslizou pelo passeio e passou ao meu lado as suas surpreendentes pupilas de ouro detiveram-se um pouco nas minhas. Devo ter morrido um pouco. Não podia respirar e senti o pulso parar. Quando recuperei a compostura, tive de saltar para o passeio, com risco de partir algum osso, e corri em direcção à rua que ela havia tomado. Adivinhei onde vivia ao ver uma mancha lilás esfumando-se por um portão. Desde esse dia montei guarda em frente da casa, passeando pelo quarteirão como cão vadio, espiando, subornando o jardineiro, metendo conversa com as criadas, até que consegui falar com a Ama e essa santa mulher se compadeceu de mim e aceitou fazer-lhe chegar as cartas de amor, as flores e as incontáveis caixas de caramelos de anis com que tentei conquistar o seu coração. Também lhe mandava acrósticos. Não sei fazer versos, mas havia um livreiro espanhol, que era um génio para a rima, a quem eu mandava fazer poemas, canções, qualquer coisa cuja matéria-prima fosse tinta e papel. A minha irmã Férula ajudou-me a aproximar da família del Valle, descobrindo remotos parentescos entre os nossos apelidos e procurando a oportunidade de nos cumprimentarmos à saída da missa. Aconteceu assim que pude visitar Rosa. No dia em que entrei na sua casa e a tive ao alcance da voz, não me veio nada à cabeça para dizer-lhe. Fiquei mudo, com o chapéu na mão e a boca aberta, até que os pais, que conheciam esses sintomas, me ajudaram. Não sei o que Rosa viu em mim, nem por que razão, com o tempo, me aceitou para marido. Cheguei a ser o seu noivo oficial sem ter de legalizar nenhuma proeza sobrenatural porque, apesar da sua beleza inumana e das suas inumeráveis virtudes, Rosa não tinha pretendentes. A mãe deu-me uma explicação: disse-me que nenhum homem se sentia suficientemente forte para passar a vida a defender Rosa do desejo dos outros. Muitos tinham-na rondado, perdendo a razão por causa dela, mas, até eu aparecer no horizonte, não se tinha decidido por ninguém. A sua beleza era de meter medo, por isso admiravam-na de longe, sem se aproximarem. Nunca pensei nisso, na verdade. O meu problema era que eu não tinha nem um tostão, mas sentia-me capaz, por força do amor, de transformar-me num homem rico. Olhei à minha volta procurando um caminho rápido, dentro dos limites da honestidade, em que me tinham educado, e vi que para triunfar precisava de ter padrinhos, estudos especiais ou qualquer capital. Não era bastante ter um apelido respeitável. Suponho que, se tivesse tido dinheiro para começar, teria apostado às cartas ou nos cavalos, mas como não era o caso tive de pensar em trabalhar em alguma coisa que, embora arriscada, pudesse dar-me fortuna.
As minas de ouro e de prata eram o sonho dos aventureiros; podia afundá-los na miséria, matá-los de tuberculose ou torná-los homens poderosos. Era tudo uma questão de sorte. Obtive a concessão de uma mina no Norte com a ajuda do prestigio do apelido da minha mãe, que serviu para que o Banco me desse uma fiança. Decidi-me a explorar a mina até ao último grama de ouro, nem que para isso tivesse de espremer o cerro com as próprias mãos e moer as rochas a pontapés. Por Rosa estava disposto a isso e a muito mais.
No fim de Outono, quando a família se tranquilizara a respeito das intenções do padre Restrepo, que teve de acalmar a sua vocação de inquisidor depois que o bispo em pessoa o advertiu que deixasse em paz a pequena Clara del Valle, e quando todos se tinham resignado à ideia de que o tio Marcos estava realmente morto, começaram a concretizar-se os planos políticos de Severo. Tinha trabalhado durante anos com esse fim. Foi um triunfo para ele quando o convidaram a apresentar-se com candidato do Partido Liberal nas eleições parlamentares, em representação de uma província do Sul onde nunca tinha estado e que nem se encontrava facilmente no mapa.
O partido estava muito necessitado e Severo muito ansioso por ocupar um lugar, de modo que não tiveram dificuldade em convencer os humildes eleitores do Sul a nomearem Severo como seu candidato. O convite foi apoiado por um porco assado, rosado e monumental, enviado pelos eleitores à casa da família del Valle. Ia sobre uma grande bandeja de madeira, perfumado e brilhante, com salsa no focinho e uma cenoura no rabo, repousando num leito de tomates. Tinha uma costura na barriga e dentro ia cheio de perdizes que por sua vez estavam cheias de cerejas. Chegou acompanhado por uma garrafa com meio galão da melhor aguardente do pais. A ideia de tornar-se deputado ou, melhor ainda, senador, era um sonho largamente acarinhado por Severo. Tinha levado as coisas até essa meta com um minucioso trabalho de contactos, amizades, conciliábulos, aparições públicas discretas mas eficazes, dinheiro e favores que fazia às pessoas adequadas no momento preciso. Aquela província do Sul, ainda que remota e desconhecida, era do que ele estava à espera.
O dia do porco foi uma terça-feira. Na sexta-feira, quando do porco não restava mais que os coiratos e a pele que Barrabás roía no pátio, Clara anunciou que haveria outro morto em casa:
- Mas é um morto por engano - disse.
No sábado, passara a noite mal disposta e acordou aos gritos. A Ama deu-lhe um chá de tília e ninguém fez caso, porque estavam ocupados com os preparativos da viagem ao Sul e porque a bela Rosa tinha acordado com febre. Nívea deu ordens para que deixassem ficar Rosa na cama, o doutor Cuevas disse que não era nada de grave, que lhe dessem uma limonada morna bem açucarada, com álcool para ela suar com a febre. Severo foi ver a filha, encontrou-a afogueada e com os olhos brilhantes, afundada nas rendas cor de manteiga dos lençóis. Levou-lhe de presente um carnet de baile e autorizou a Ama a abrir a garrafa de aguardente e deitar-lhe um pouco na limonada. Rosa bebeu a limonada, embrulhou-se no xaile de lã e adormeceu de seguida ao lado de Clara, com quem partilhava o quarto. Na manhã do domingo trágico, a Ama levantou-se cedo como sempre. Antes de ir à missa foi à cozinha preparar o pequeno almoço da família. O fogão a lenha e carvão tinha ficado preparado de véspera, e ela acendeu a fornalha com os restos das brasas ainda mornas. Enquanto aquecia a água e fervia o leite, foi arrumando os pratos para os levar depois para a sala de jantar. Começou a cozer a aveia, a coar o café, a torrar o pão. Arranjou as bandejas, uma para Nívea, que tomava sempre o pequeno almoço na cama, e outra para Rosa que por estar doente tinha direito ao mesmo. Cobriu a bandeja de Rosa com um guardanapo de linho bordado pelas freiras, para o café não esfriar e não entrarem moscas, e espreitou o pátio para ter a certeza de que Barrabás não estava perto. Tinha a mania de a assaltar quando ela passava com o pequeno almoço. Ao vê-lo distraído com uma galinha, aproveitou para sair para a grande viagem pelos pátios e corredores, desde a cozinha, ao fundo da casa, até ao quarto das meninas, no outro extremo. Em frente da porta de Rosa vacilou, apanhada pela força do pressentimento. Entrou no quarto sem se fazer anunciar, como era seu costume, e notou que cheirava a rosas apesar de não ser época de tais flores. Então a Ama soube que se tinha dado uma desgraça irreparável. Pôs a bandeja na mesa de cabeceira com cuidado e caminhou lentamente até à janela. Abriu as pesadas cortinas e o sol da manhã entrou no quarto. Voltou-se angustiada e não ficou surpresa ao ver Rosa morta, mais bela do que nunca, com o cabelo definitivamente verde, a pele cor de marfim novo e os olhos amarelos, abertos. Aos pés da cama estava a pequena Clara observando a irmã. A Ama ajoelhou-se junto da cama, pegou na mão de Rosa e começou a rezar. Ficou a rezar até que se ouviu por toda a casa um terrível lamento de barco perdido. Foi a primeira e última vez que Barrabás teve voz. Uivou todo o dia pela morta, até rebentar os nervos aos habitantes da casa e aos vizinhos, que acudiram atraídos por esse gemido de naufrágio.
Ao doutor Cuevas bastou olhar o corpo de Rosa para saber que a morte se devia a algo muito mais grave que uma febre de trazer por casa. Começou a pesquisar por todos os lados, inspeccionou a cozinha, passou os dedos pelas caçarolas, abriu os sacos de farinha, os pacotes de açúcar, as caixas de frutas secas, revolveu tudo e tudo deixou espalhado na sua passagem como se fosse um furacão. Mexeu nas gavetas de Rosa, interrogou os criados um por um, acusou a Ama até pô-la fora de si e, finalmente, as suas pesquisas conduziram-no à garrafa de aguardente que inspeccionou sem hesitações. Não comunicou a ninguém as suas dúvidas, mas levou a garrafa para o laboratório. Três horas depois estava de volta com uma expressão de horror que lhe transformava o rosto rubicundo de fauno numa máscara pálida que não o abandonou durante todo esse caso terrível. Dirigiu-se a Severo, agarrou-o por um braço, chamou-o de parte:
- Na aguardente havia suficiente veneno para rebentar um touro - segredou-lhe. - Mas para ter a certeza de que foi isso que matou a menina tenho de fazer uma autópsia.
- Quer dizer que a vai abrir? - gemeu Severo.
- Não completamente. Na cabeça não vou tocar, apenas no aparelho digestivo - explicou o doutor Cuevas.
Severo sentiu-se enfraquecer.
A essa hora Nívea estava esgotada de chorar, mas, quando soube que pensavam levar a filha para a morgue, recuperou a energia de repente. Só se acalmou com o juramento de que levariam Rosa directamente de casa para o Cemitério Católico. Então consentiu em tomar o calmante que o médico lhe deu e dormiu durante vinte horas. Ao anoitecer, Severo tratou dos preparativos. Mandou os filhos para a cama e autorizou os criados a retirarem-se mais cedo. Permitiu que Clara passasse a noite no quarto da outra irmã, porque a viu demasiado impressionada com o sucedido. Depois de se apagarem as luzes e da casa entrar no sossego, chegou o ajudante do doutor Cuevas, um jovem mirrado e míope que entaramelava a voz. Ajudaram Severo a transportar o corpo de Rosa para a cozinha e colocaram-no com delicadeza sobre o mármore onde a Ama amassava o pão e picava os legumes. Apesar da força do seu carácter, Severo não pôde resistir no momento em que tiraram a camisa de dormir da sua filha e apareceu a esplendorosa nudez de sereia. Saiu cambaleando, bêbado de dor e deixou-se cair no salão chorando como uma criança. Também o doutor Cuevas, que tinha visto nascer Rosa e a conhecia como a palma da mão, teve um sobressalto ao vê-la sem roupa. O jovem ajudante, por seu lado, começou a dar impressão de cansado e continuou ofegante pelos anos que se seguiram, cada vez que recordava a visão incrível de Rosa a dormir nua sobre a mesa da cozinha, com os grandes cabelos caindo como uma cascata vegetal até ao chão.
Enquanto eles trabalhavam no ofício terrível, a Ama, cansada de chorar e de rezar, pressentindo que algo de estranho estava acontecendo nos seus territórios do terceiro pátio, levantou-se, embrulhou-se num xaile e saiu para dar uma volta à casa. Viu luz na cozinha, mas as portas e os postigos das janelas estavam fechados. Seguiu pelos corredores silenciosos e gelados, atravessando os três corpos da casa, até chegar ao salão. Pela porta entreaberta viu o patrão que se passeava com ar desolado. O lume da chaminé tinha-se apagado. A Ama entrou.
- Onde está a menina Rosa? - perguntou.
- O doutor Cuevas está com ela, Ama. Fica aqui e bebe um copo comigo - suplicou Severo.
A Ama ficou de pé com os braços cruzados apertando o xaile contra o peito. Severo apontou-lhe o sofá e ela aproximou-se com timidez. Sentou-se a seu lado. Era a primeira vez que estava tão perto do patrão desde que vivia naquela casa.
Severo encheu um cálice de xerez para cada um e bebeu o seu de um trago. Apertou a cabeça com os dedos arrepelando os cabelos e mastigando entre dentes uma incompreensível e triste ladainha. A Ama, que estava rigidamente na beira da cadeira, descontraiu-se ao vê-lo chorar. Estendeu a mão áspera e com um gesto automático alisou-lhe o cabelo com a mesma carícia que durante vinte anos tinha feito para consolar os filhos. Ele levantou os olhos e observou a face sem idade, as maçãs do rosto indígena, o carrapito negro, o amplo regaço onde tinha visto chorar e dormir todos os seus descendentes, e sentiu que aquela mulher quente e generosa como a terra podia dar-lhe consolo. Apoiou-lhe a testa na saia, aspirou o cheiro suave do avental engomado e rompeu a soluçar como uma criança, vertendo todas as lágrimas que tinha aguentado na sua vida de homem. A Ama caçou-lhe as costas, deu-lhe palmadinhas de consolo, falou-lhe a meia voz como fazia para adormecer os meninos, cantou-lhe em sussurro as suas baladas de camponesa, até que conseguiu tranquilizá-lo. Ficaram sentados muito juntos, bebendo xerez, chorando de vez em quando e lembrando os bons tempos em que Rosa corria pelo jardim surpreendendo as borboletas, com a sua beleza de fundo de mar.
Na cozinha, o doutor Cuevas e o seu ajudante prepararam os sinistros utensílios e os frascos malcheirosos, puseram aventais de oleado, arregaçaram as mangas e começaram a esgravatar na intimidade da bela Rosa, até provar, sem lugar para dúvidas, que a jovem tinha ingerido um dose superlativa de veneno para ratazanas.
- Isto estava destinado a Severo - concluiu o doutor lavando as mãos no lava-loiças.
O ajudante, demasiado emocionado pela formosura da morta, não se resignava a deixá-la cosida como um saco e sugeriu arranjá-la um pouco mais. Dedicaram-se ambos à tarefa de preservar o corpo com unguentos e enchê-lo com emplastros de embalsamador. Trabalharam até às quatro da madrugada, hora em que o doutor Cuevas se declarou vencido pelo cansaço e pela tristeza e saiu. Na cozinha ficou Rosa nas mãos do ajudante, que a lavou com uma esponja, tirando-lhe as manchas de sangue, lhe vestiu a camisa bordada para tapar a costura que exibia desde a garganta até ao sexo e lhe deu um jeito no cabelo.
Depois limpou os vestígios do seu trabalho.
O doutor Cuevas encontrou no salão Severo acompanhado pela Ama, ébrio de pranto e xerez.
- Está pronta - disse. - Arranjámo-la um pouco para que a mãe a possa ver.
Explicou a Severo que as suas suspeitas eram fundadas e que no estômago de sua filha tinha encontrado a mesma substância mortal que existia na aguardente oferecida. Então Severo recordou-se da previsão de Clara e perdeu o resto da compostura, incapaz de resignar-se à ideia de que a filha tinha morrido em seu lugar. Caiu abatido, dizendo que era ele o culpado, por ser ambicioso e fanfarrão, que ninguém o tinha mandado meter-se na política, que estava muito melhor quando era um simples advogado e pai de família, que renunciava naquele momento e para sempre à maldita candidatura do Partido Liberal, às suas pompas e obras, que esperava que nenhum dos seus descendentes voltasse a misturar-se com a política, que isso era um negócio de aldrabões e bandidos, até que o doutor Cuevas teve dó dele, acabando de o embebedar. O xerez pôde mais que a dor e a culpa. A Ama e o doutor levaram-no em braços até ao quarto de dormir, despiram-no e meteram-no na cama. Depois foram à cozinha, onde o ajudante acabava de aprontar Rosa.
Nívea e Severo del Valle despertaram tarde na manhã seguinte.
Os parentes tinham ornamentado a casa para os ritos da morte, as cortinas estavam corridas, adornadas com crepes negros e ao longo das paredes alinhavam-se as coroas de flores que enchiam o ar com o seu aroma doce. Tinham feito uma câmara ardente na sala de jantar. Sobre a grande mesa, coberta com um pano negro de reflexos dourados, estava o caixão branco de Rosa com rebites de prata. Doze velas amarelas em candelabros de bronze iluminavam a jovem com luz difusa. Tinham-na vestido com o vestido de noiva e posto a coroa de flores de laranjeira em cera que guardava para o dia do casamento.
Ao meio-dia começou o desfile de familiares, amigos e conhecidos a dar os pêsames e acompanhar os del Valle no seu luto. Apresentaram-se em casa até os seus mais encarniçados inimigos políticos e a todos Severo del Valle observou fixamente, procurando descobrir em cada par de olhos que via o segredo do assassino, mas em todos, inclusive no presidente do Partido Conservador, viu o mesmo pesar e a mesma inocência.
Durante o velório, os cavalheiros circulavam pelos salões e corredores da casa, comentando em voz baixa os seus assuntos de negócios. Mantinham silêncio respeitoso quando se aproximava alguém da família. No momento de entrar na sala de jantar e aproximar-se do ataúde, para olhar Rosa pela última vez, todos estremeciam, porque a sua beleza não tinha senão aumentado naquelas horas. As senhoras passavam ao salão onde ordenaram em circulo as cadeiras da casa. Ali havia comodidade para chorar à vontade, desabafando as próprias tristezas com o bom pretexto da morte dos outros. O pranto era copioso, mas digno e calado. Algumas murmuravam orações em voz baixa. As criadas da casa circulavam pelos salões e corredores oferecendo chávenas de chá, cálices de conhaque, lenços limpos para as mulheres, bolos caseiros e pequenas compressas embebidas em amoníaco para as senhoras que sofriam de enjoos pelo ambiente fechado, o cheiro das velas e a dor. Todas as irmãs del Valle, menos Clara, que era ainda muito jovem, estavam vestidas de negro rigoroso, sentadas ao redor da mãe como uma roda de corvos. Nívea, que tinha chorado todas as lágrimas, mantinha-se rígida na cadeira, sem um suspiro, sem uma palavra e sem o alivio do amoníaco porque lhe causava alergias. Os visitantes que chegavam davam-lhe os pêsames. Alguns beijavam-na em ambas as faces, outros abraçavam-na estreitamente por alguns segundos, mas ela dava a impressão de não reconhecer nem os mais íntimos. Tinha visto morrer outros filhos na primeira infância ou ao nascer, mas nenhum lhe dera a sensação de perda que tinha naquele momento.
Cada irmão despediu-se de Rosa com um beijo na testa gelada, menos Clara que não quis aproximar-se da sala de jantar. Não insistiram porque conheciam a sua extrema sensibilidade e a sua tendência para caminhar sonâmbula quando a imaginação se lhe agitava. Ficou no jardim, de cócoras ao lado de Barrabás, negando-se a comer ou a participar no velório. Só a Ama se preocupou com ela e procurou consolá-la, mas Clara mandou-a embora.
Apesar das preocupações que Severo tomou para abafar os murmúrios, a morte de Rosa foi um escândalo público. O doutor Cuevas ofereceu a quem o quis ouvir a explicação perfeitamente razoável de que a morte da jovem se devia, segundo ele, a uma pneumonia fulminante. Mas corria o boato de que tinha sido envenenada por engano, em lugar de seu pai. Os assassinatos políticos eram desconhecidos no pais naquele tempo e o veneno, em qualquer caso, era um recurso de mulheres, algo desprestigiado e que não se usava desde a época colonial, porque mesmo os crimes passionais resolviam-se cara a cara. Elevou-se um clamor de protesto pelo atentado e, antes que Severo o pudesse evitar, saiu a noticia publicada num jornal da oposição, acusando veladamente a oligarquia e acrescentando que os conservadores até eram capazes de fazer isso, porque não podiam perdoar a Severo del Valle que, a despeito da sua classe social, se tivesse passado para o grupo liberal. A policia tentou seguir a pista da garrafa de aguardente, mas a única coisa que se apurou foi que não tinha a mesma origem que o porco cheio de perdizes e que os eleitores do Sul não tinham nada a ver com o assunto. A misteriosa garrafa foi encontrada por casualidade junto da porta de serviço da casa dos del Valle no mesmo dia e à mesma hora da chegada do porco assado. A cozinheira supôs que fazia parte do mesmo presente. Nem o zelo da policia nem as pequenas pesquisas que Severo realizou por sua conta, por intermédio de um detective privado, conseguiram descobrir os assassinos, e a sombra dessa vingança pendente ficou presente em gerações posteriores. Foi o primeiro dos muitos actos de violência que marcaram o destino da família.
Recordo-me perfeitamente. Esse dia tinha sido muito feliz para mim porque tinha aparecido um novo veio, o abundante e maravilhoso filão que eu tinha perseguido durante todo aquele tempo de sacrifício, de ausência e de espera, e que poderia representar a riqueza que eu desejava. Estava certo de que em seis meses teria dinheiro suficiente para me casar e que dentro de um ano poderia começar a considerar-me um homem rico. Tive muita sorte, porque, no negócio de minas, eram mais os que se arruinavam do que os que triunfavam, como estava dizendo, escrevendo, a Rosa nessa tarde, tão eufórico, tão impaciente que os dedos travavam-se-me nas teclas da velha máquina, saindo palavras pegadas. Estava nisto quando ouvi na porta as pancadas que me cortaram a respiração para sempre. Era um arrieiro com um par de mulas que me trazia um telegrama da povoação, enviado por minha irmã Férula, e que anunciava a morte de Rosa.
Tive de ler o pedaço de papel três vezes até compreender o tamanho da minha desolação. A única ideia que não me tinha ocorrido era que Rosa fosse mortal. Sofri muito pensando que ela, aborrecida por esperar por mim, decidisse casar-se com outro, ou que nunca chegasse a aparecer o maldito filão que pusesse uma fortuna nas minhas mãos, ou que a mina se pudesse desmoronar, esmagando-me como uma barata. Considerei todas essas possibilidades e algumas mais, mas nunca a morte de Rosa, apesar do meu proverbial pessimismo, que me faz sempre esperar o pior. Senti que sem Rosa a vida não tinha significado para mim. Esvaziei-me por dentro como um balão picado, foi-se-me todo o entusiasmo. Fiquei sentado na cadeira olhando o deserto pela janela, quem sabe por quanto tempo, até que lentamente a alma me voltou ao corpo. A minha primeira reacção foi de cólera. Dei murros nos frágeis tabiques de madeira da casa até me sangrarem os nós das mãos, rasguei em mil pedaços as cartas, os desenhos de Rosa e as cópias das minhas cartas que eu tinha guardado, meti à pressa nas malas a minha roupa, os papéis e a bolsinha de lona onde estava o ouro e fui logo procurar o capataz para lhe entregar as jornas dos trabalhadores e as chaves da cantina. O arrieiro ofereceu-se para me acompanhar até ao comboio. Tivemos de viajar uma boa parte da noite a cavalo, com mantas de Castela como único abafo contra a morrinha, avançando com lentidão naquelas solidões intermináveis onde só o instinto do meu guia dava garantias de chegarmos ao destino, por não termos nenhum ponto de referência. A noite estava clara e estrelada, sentia o frio trespassar-me os ossos, apertar-me as mãos, entrando-me na alma. Ia pensando em Rosa e desejando com veemência irracional que a sua morte não fosse verdade, pedindo ao céu com desespero que tudo fosse engano ou que, reanimada pelo meu amor, recuperasse a vida e se levantasse do seu leito de morte, como Lázaro. Eu chorava por dentro, afundado na dor e no gelo da noite, cuspindo blasfémias contra a mula que andava tão devagar, contra Férula, portadora de desgraças, contra Rosa por ter morrido e contra Deus por o ter permitido, até que começou a amanhecer, vi desaparecer as estrelas e surgirem as primeiras cores do nascer do Sol, tingindo de vermelho e laranja a paisagem do Norte, e com a luz voltou-me algum alento. Comecei a resignar-me pela minha desgraça e a pedir, não já que ela ressuscitasse, mas apenas que eu conseguisse chegar a tempo de a ver antes de ser enterrada. Apressámos o passo e, uma hora mais tarde, o arrieiro despediu-se de mim na minúscula estação por onde o comboio de via reduzida unia o mundo civilizado com aquele deserto onde passei dois anos.
Viajei mais de trinta horas sem parar nem para comer, esquecido até da sede, mas consegui chegar a casa da família del Valle antes do funeral. Dizem que entrei em casa coberto de pó, sem chapéu, sujo e barbudo, com sede e furioso, perguntando aos gritos pela minha noiva. A pequena Clara, que então era apenas uma menina magra e feia, veio ao meu encontro quando entrei no pátio, pegou-me na mão e levou-me silenciosamente à sala de jantar. Estava ali Rosa, entre as pregas brancas de cetim no caixão branco, conservada intacta três dias depois de morrer, e mil vezes mais bela do que eu me lembrava, porque Rosa na morte tinha-se transformado subtilmente na sereia que sempre fora em segredo.
- Maldita seja! Fugiu-me das mãos! - dizem que disse, gritei, caindo de joelhos a seu lado, escandalizando os parentes, porque ninguém podia compreender a minha frustração por ter passado dois anos escavando a terra para me tornar rico, com o único propósito de levar um dia a jovem ao altar, e por fim a morte tinha-ma roubado. Momentos depois chegou a carreta, enorme, negra e reluzente, puxada por seis cavalos com penacho, como se usava então, e conduzida por dois cocheiros de libré. Saiu de casa a meio da tarde, debaixo de chuvisco fraco, seguida de uma procissão de carros que levavam os parentes, os amigos e as coroas de flores. Por costume, as mulheres e as crianças não assistiam aos enterros, isso era assunto de homens, mas Clara conseguiu à última da hora misturar-se com o cortejo, para acompanhar a irmã Rosa. Senti a sua mãozinha enluvada agarrada à minha e durante todo o trajecto tive-a a meu lado, pequena sombra silenciosa, que originava uma ternura desconhecida na minha alma. Nesse momento, eu nem dei conta que Clara não tinha pronunciado uma só palavra em dois dias, e passariam mais três antes que a família se alarmasse pelo seu silêncio.
Severo del Valle e os filhos mais velhos levaram aos ombros o ataúde branco de Rosa com rebites de prata, e eles próprios o colocaram no nicho aberto do mausoléu. Iam de luto, silenciosos e sem lágrimas, como corresponde às normas de tristeza num pais habituado à dignidade da dor. Depois de fechadas as portas do túmulo e de se terem retirado os parentes, os amigos e os coveiros, fiquei ali, parado, entre as flores que escaparam às dentadas de Barrabás e acompanharam Rosa ao cemitério. Devo ter parecido um pássaro de Inverno, com a aba do casaco abanando ao vento, alto e fraco, como eu era nesse tempo, antes de se cumprir a maldição de Férula e começar a encolher. O céu estava cinzento ameaçando chuva. Suponho que fazia frio, mas julgo que o não sentia, porque a raiva consumia-me. Não podia despregar os olhos do pequeno rectângulo de mármore onde tinham gravado o nome de Rosa, a bela, e as datas que limitavam a sua curta passagem por este mundo, em altas letras góticas. Pensava que tinha perdido dois anos a sonhar com Rosa, a trabalhar para Rosa, a escrever a Rosa, a desejar Rosa e que no fim de tudo nem sequer tinha a consolação de ser enterrado a seu lado. Pensei nos anos que tinha para viver e cheguei à conclusão de que sem ela não valia a pena, porque nunca iria encontrar em todo o universo outra mulher com o cabelo verde e a sua formosura marinha. Se me tivessem dito que ia viver mais de noventa anos teria metido um balázio na cabeça. Não ouvi os passos do guarda do cemitério, que se aproximou por detrás de mim. Por isso surpreendi-me quando me tocou no ombro:
- Como se atreve a tocar-me? - rugi.
Recuou assustado, o pobre homem. Algumas gotas de chuva molhavam tristemente as flores dos mortos.
- Desculpe, cavalheiro, são seis horas e tenho de fechar - julgo que me disse.
Tentou explicar-me que o regulamento proibia que pessoas estranhas ao pessoal do cemitério permanecessem no recinto depois do pôr do Sol, mas não o deixei acabar, meti-lhe algumas notas na mão e empurrei-o para que se fosse embora e me deixasse em paz. Vi-o afastar-se olhando-me por cima do ombro. Deve ter pensado que eu era um louco, um desses dementes necrófilos que por vezes rondam os cemitérios.
Foi uma longa noite, talvez a mais longa noite da minha vida. Passei-a sentado junto do túmulo de Rosa, falando com ela, acompanhando-a na primeira parte da sua viagem ao Mais-Além, quando é mais difícil desprendermo-nos da terra e se necessita do amor dos que ficam vivos, para ir pelo menos com o consolo de ter semeado alguma coisa no coração dos outros. Recordava o seu rosto perfeito e maldizia a minha sorte. Fiz notar a Rosa os anos que passei metido num buraco na mina, sonhando com ela. Não lhe disse que não tinha visto mais mulheres em todo esse tempo, além de miseráveis prostitutas envelhecidas e gastas, que serviam todo o acampamento com mais boa vontade do que mérito. Mas disse-lhe que tinha vivido entre homens rudes e sem lei, comendo grão-de-bico e bebendo água limosa, longe da civilização, pensando nela noite e dia, levando na alma a sua imagem como um estandarte que me dava forças para continuar picando a montanha, mesmo que desaparecesse o veio, doente do estômago a maior parte do ano, gelado de frio à noite e alucinado pelo calor durante o dia, tudo isso com o único fim de me casar com ela e eis que ela se vai embora e me morre à traição, antes que eu pudesse cumprir os meus sonhos, deixando-me uma desolação miserável. Disse-lhe que ela me tinha enganado, atirei-lhe à cara que nunca tínhamos estado completamente sós, que só a tinha podido beijar uma vez. Tinha mantido o amor com recordações e desejos compensadores, mas impossíveis de satisfazer, com cartas atrasadas e desbotadas que não podiam reflectir os meus sentimentos nem a dor da sua ausência, porque não tenho facilidade para o género epistolar e muito menos para escrever sobre as minhas emoções. Disse-lhe que esses anos na mina tinham sido uma perda irremediável, que se eu tivesse sabido que ela ia durar tão pouco neste mundo teria roubado o dinheiro necessário para casar com ela e construir um palácio ornamentado com tesouros do fundo do mar: corais, pérolas, nácar, onde a teria mantido sequestrada e onde só eu tivesse acesso. Tê-la-ia amado sem parar por um tempo quase infinito, porque estava certo de que se ela tivesse estado ao pé de mim não teria bebido o veneno destinado a seu pai e teria durado mil anos. Falei-lhe das caricias que tinha reservadas para ela, dos presentes com que lhe iria fazer surpresa, da forma como a teria tornado enamorada e feliz.
Nessa noite acreditei que tinha perdido para sempre a capacidade de me apaixonar, que nunca mais podia rir-me nem perseguir uma ilusão. Mas nunca mais é muito tempo. Tirei a prova disso ao longo da vida. Vi a raiva crescer dentro de mim como um tumor maligno, manchando as melhores horas da minha existência, incapacitando-me para a ternura ou para a clemência. Mas, acima da confusão e da ira, o sentimento mais forte que me lembro ter tido nessa noite foi o desejo frustrado, porque jamais poderia realizar o desejo de afagar Rosa com as mãos, de penetrar nos seus segredos, de soltar o verde manancial do seu cabelo e afundar-me nas suas águas mais profundas. Evoquei com desespero a última imagem que tinha dela, recortada entre as pregas de cetim do seu ataúde virginal, com a flor de laranjeira de noiva coroando-lhe a cabeça e um rosário entre os dedos. Não sabia que assim mesmo, com a flor de laranjeira e o rosário, tornaria a vê-la por um instante fugaz muitos anos mais tarde.
Com as primeiras luzes do amanhecer, o guarda voltou. Deve ter sentido pena por aquele louco semicongelado que tinha passado a noite entre os lívidos fantasmas do cemitério e estendeu-me o cantil:
- É chá quente. Beba um pouco, senhor - ofereceu-me.
Mas eu repeli-o com um empurrão e afastei-me, rogando pragas, a grandes passadas raivosas por entre as fileiras de tumbas e ciprestes.
Na noite em que o doutor Cuevas e o seu ajudante estriparam o cadáver de Rosa na cozinha, para descobrir a causa da sua morte, Clara estava na cama com os olhos abertos, tremendo no escuro. Tinha a terrível dúvida de que a irmã morrera porque ela o tinha dito. Acreditava que, assim como a força da sua mente podia mover o saleiro, igualmente podia ser a causa das mortes, dos tremores de terra e de outras desgraças maiores. A mãe tinha-lhe explicado em vão que ela não podia provocar os acontecimentos, apenas os podia ver com alguma antecipação. Sentia-se desolada e culpada, e pensou que se pudesse estar com Rosa sentir-se-ia melhor. Levantou-se descalça, em camisa, e entrou no quarto de dormir que tinha compartilhado com a irmã mais velha, mas não a encontrou na cama, onde a tinha visto pela última vez. Saiu para a procurar pela casa. Tudo estava escuro e silencio o. A mãe dormia drogada pelo doutor Cuevas, e os irmãos e os criados tinham-se retirado mais cedo para os seus quartos. Percorreu os salões, deslizando agarrada às paredes, assustada e gelada. Os móveis pesados, as grossas cortinas drapejadas, os quadros nas paredes, o papel com as suas flores pintadas sobre pano escuro, os candeeiros apagados oscilando nos tectos e os matagais de fetos sobre colunas de loiça pareceram-lhe ameaçadores. Notou que no salão brilhava um pouco de luz por uma frincha debaixo da porta. Esteve vai não vai para entrar, mas receou encontrar o pai e que ele a mandasse de volta para a cama. Dirigiu-se então para a cozinha, pensando que no peito da Ama encontraria aconchego. Cruzou o pátio principal, entre as camélias e as laranjeiras anãs, atravessou os salões do segundo corpo da casa e os sombrios corredores abertos, onde as luzes ténues dos candeeiros a gás ficavam acesas toda a noite, a oscilar durante os tremores de terra e a espantar os morcegos e outros bichos nocturnos, e chegou ao terceiro pátio, onde estavam as dependências de serviço e as cozinhas. Ali, a casa perdia o aspecto senhorial, começava a desordem dos canis, dos galinheiros e os quartos dos serviçais. Mais para a frente estava a cavalariça, onde se guardavam os velhos cavalos que Nívea ainda usava, apesar de Severo del Valle ter sido um dos primeiros a comprar um automóvel. A porta e os postigos da cozinha e o reposteiro estavam fechados. O instinto advertiu Clara de que algo de anormal se estava a passar lá dentro; tratou de espreitar, mas o nariz não lhe chegava ao peitoril da janela e teve de arrastar um caixote e encostá-lo à parede; trepou e pôde olhar por um buraco entre o postigo de madeira e o peitoril da janela que a humidade e o tempo tinham deformado. E foi então que viu o interior.
O doutor Cuevas, esse homem grande, bonacheirão e doce, de farta barba e ventre opulento, que a ajudara a nascer e a tratara em todas as doenças da infância e ataques de asma, tinha-se transformado num vampiro gordo e escuro como os das ilustrações do tio Marcos. Estava inclinado sobre a mesa onde a Ama preparava a comida. A seu lado estava um jovem desconhecido, pálido como a lua, com a camisa manchada de sangue e os olhos perdidos de amor. Viu as pernas branquinhas de sua irmã e os seus pés nus. Clara começou a tremer. Nesse momento, o doutor Cuevas afastou-se e ela pôde ver o horrendo espectáculo de Rosa estendida de costas, sobre o mármore, aberta de alto a baixo por um golpe profundo, com os intestinos postos ao lado dentro da saladeira. Rosa tinha a cabeça virada em direcção à janela de onde ela estava espiando, e o seu cabelo verde compridíssimo caia como um feto da mesa até aos azulejos do chão, manchados de vermelho. Tinha os olhos fechados, mas a menina, por efeito das sombras, da distância e da imaginação, julgou ver-lhe uma expressão suplicante e humilhada.
Clara, imóvel sobre o caixote, não pôde deixar de olhar até ao fim. Ficou espreitando pela frincha muito tempo, arrefecendo sem dar por isso, até que os dois homens acabaram de esvaziar Rosa, de injectar-lhe líquidos nas veias e banhá-la por dentro e por fora com vinagre aromático e essência de alfazema. Ficou ali até que a encheram de emplastros de embalsamador e a coseram com uma agulha de colchoeiro. Ficou até que o doutor Cuevas se lavou no lava-loiças e enxugou as lágrimas, enquanto o outro limpava o sangue e as vísceras. Ficou até que o médico saiu, vestindo o casaco negro com um gesto de tristeza mortal. Ficou até que o jovem desconhecido beijou Rosa nos lábios, no pescoço, nos seios, entre as pernas, a lavou com uma esponja, lhe vestiu a camisa bordada e lhe ajeitou o cabelo, arquejando de cansaço. Ficou até que o ajudante a carregou nos braços com a mesma ternura comovente que teria tido ao pegar-lhe ao colo para passar pela primeira vez a porta de uma casa, se tivesse sido sua noiva. E não conseguiu mover-se até aparecerem as primeiras luzes. Então deslizou até à cama, sentindo por dentro todo o silêncio do mundo. O silêncio encheu-a por inteiro e não tornou a falar durante nove anos, até puxar da voz para anunciar que se ia casar.
Recordo-me perfeitamente. Esse dia tinha sido muito feliz para mim porque tinha aparecido um novo veio, o abundante e maravilhoso filão que eu tinha perseguido durante todo aquele tempo de sacrifício, de ausência e de espera, e que poderia representar a riqueza que eu desejava. Estava certo de que em seis meses teria dinheiro suficiente para me casar e que dentro de um ano poderia começar a considerar-me um homem rico. Tive muita sorte, porque, no negócio de minas, eram mais os que se arruinavam do que os que triunfavam, como estava dizendo, escrevendo, a Rosa nessa tarde, tão eufórico, tão impaciente que os dedos travavam-se-me nas teclas da velha máquina, saindo palavras pegadas. Estava nisto quando ouvi na porta as pancadas que me cortaram a respiração para sempre. Era um arrieiro com um par de mulas que me trazia um telegrama da povoação, enviado por minha irmã Férula, e que anunciava a morte de Rosa.
Tive de ler o pedaço de papel três vezes até compreender o tamanho da minha desolação. A única ideia que não me tinha ocorrido era que Rosa fosse mortal. Sofri muito pensando que ela, aborrecida por esperar por mim, decidisse casar-se com outro, ou que nunca chegasse a aparecer o maldito filão que pusesse uma fortuna nas minhas mãos, ou que a mina se pudesse desmoronar, esmagando-me como uma barata. Considerei todas essas possibilidades e algumas mais, mas nunca a morte de Rosa, apesar do meu proverbial pessimismo, que me faz sempre esperar o pior. Senti que sem Rosa a vida não tinha significado para mim. Esvaziei-me por dentro como um balão picado, foi-se-me todo o entusiasmo. Fiquei sentado na cadeira olhando o deserto pela janela, quem sabe por quanto tempo, até que lentamente a alma me voltou ao corpo.
A minha primeira reacção foi de cólera. Dei murros nos frágeis tabiques de madeira da casa até me sangrarem os nós das mãos, rasguei em mil pedaços as cartas, os desenhos de Rosa e as cópias das minhas cartas que eu tinha guardado, meti à pressa nas malas a minha roupa, os papéis e a bolsinha de lona onde estava o ouro e fui logo procurar o capataz para lhe entregar as jornas dos trabalhadores e as chaves da cantina. O arrieiro ofereceu-se para me acompanhar até ao comboio. Tivemos de viajar uma boa parte da noite a cavalo, com mantas de Castela como único abafo contra a morrinha, avançando com lentidão naquelas solidões intermináveis onde só o instinto do meu guia dava garantias de chegarmos ao destino, por não termos nenhum ponto de referência. A noite estava clara e estrelada, sentia o frio trespassar-me os ossos, apertar-me as mãos, entrando-me na alma. Ia pensando em Rosa e desejando com veemência irracional que a sua morte não fosse verdade, pedindo ao céu com desespero que tudo fosse engano ou que, reanimada pelo meu amor, recuperasse a vida e se levantasse do seu leito de morte, como Lázaro. Eu chorava por dentro, afundado na dor e no gelo da noite, cuspindo blasfémias contra a mula que andava tão devagar, contra Férula, portadora de desgraças, contra Rosa por ter morrido e contra Deus por o ter permitido, até que começou a amanhecer, vi desaparecer as estrelas e surgirem as primeiras cores do nascer do Sol, tingindo de vermelho e laranja a paisagem do Norte, e com a luz voltou-me algum alento.
Comecei a resignar-me pela minha desgraça e a pedir, não já que ela ressuscitasse, mas apenas que eu conseguisse chegar a tempo de a ver antes de ser enterrada. Apressámos o passo e, uma hora mais tarde, o arrieiro despediu-se de mim na minúscula estação por onde o comboio de via reduzida unia o mundo civilizado com aquele deserto onde passei dois anos.
Viajei mais de trinta horas sem parar nem para comer, esquecido até da sede, mas consegui chegar a casa da família del Valle antes do funeral. Dizem que entrei em casa coberto de pó, sem chapéu, sujo e barbudo, com sede e furioso, perguntando aos gritos pela minha noiva. A pequena Clara, que então era apenas uma menina magra e feia, veio ao meu encontro quando entrei no pátio, pegou-me na mão e levou-me silenciosamente à sala de jantar. Estava ali Rosa, entre as pregas brancas de cetim no caixão branco, conservada intacta três dias depois de morrer, e mil vezes mais bela do que eu me lembrava, porque Rosa na morte tinha-se transformado subtilmente na sereia que sempre fora em segredo.
- Maldita seja! Fugiu-me das mãos! - dizem que disse, gritei, caindo de joelhos a seu lado, escandalizando os parentes, porque ninguém podia compreender a minha frustração por ter passado dois anos escavando a terra para me tornar rico, com o único propósito de levar um dia a jovem ao altar, e por fim a morte tinha-ma roubado. Momentos depois chegou a carreta, enorme, negra e reluzente, puxada por seis cavalos com penacho, como se usava então, e conduzida por dois cocheiros de libré. Saiu de casa a meio da tarde, debaixo de chuvisco fraco, seguida de uma procissão de carros que levavam os parentes, os amigos e as coroas de flores. Por costume, as mulheres e as crianças não assistiam aos enterros, isso era assunto de homens, mas Clara conseguiu à última da hora misturar-se com o cortejo, para acompanhar a irmã Rosa. Senti a sua mãozinha enluvada agarrada à minha e durante todo o trajecto tive-a a meu lado, pequena sombra silenciosa, que originava uma ternura desconhecida na minha alma. Nesse momento, eu nem dei conta que Clara não tinha pronunciado uma só palavra em dois dias, e passariam mais três antes que a família se alarmasse pelo seu silêncio.
Severo del Valle e os filhos mais velhos levaram aos ombros o ataúde branco de Rosa com rebites de prata, e eles próprios o colocaram no nicho aberto do mausoléu. Iam de luto, silenciosos e sem lágrimas, como corresponde às normas de tristeza num pais habituado à dignidade da dor.
Depois de fechadas as portas do túmulo e de se terem retirado os parentes, os amigos e os coveiros, fiquei ali, parado, entre as flores que escaparam às dentadas de Barrabás e acompanharam Rosa ao cemitério.
Devo ter parecido um pássaro de Inverno, com a aba do casaco abanando ao vento, alto e fraco, como eu era nesse tempo, antes de se cumprir a maldição de Férula e começar a encolher. O céu estava cinzento ameaçando chuva.
Suponho que fazia frio, mas julgo que o não sentia, porque a raiva consumia-me. Não podia despregar os olhos do pequeno rectângulo de mármore onde tinham gravado o nome de Rosa, a bela, e as datas que limitavam a sua curta passagem por este mundo, em altas letras góticas. Pensava que tinha perdido dois anos a sonhar com Rosa, a trabalhar para Rosa, a escrever a Rosa, a desejar Rosa e que no fim de tudo nem sequer tinha a consolação de ser enterrado a seu lado. Pensei nos anos que tinha para viver e cheguei à conclusão de que sem ela não valia a pena, porque nunca iria encontrar em todo o universo outra mulher com o cabelo verde e a sua formosura marinha. Se me tivessem dito que ia viver mais de noventa anos teria metido um balázio na cabeça. Não ouvi os passos do guarda do cemitério, que se aproximou por detrás de mim. Por isso surpreendi-me quando me tocou no ombro:
- Como se atreve a tocar-me? - rugi.
Recuou assustado, o pobre homem. Algumas gotas de chuva molhavam tristemente as flores dos mortos.
- Desculpe, cavalheiro, são seis horas e tenho de fechar - julgo que me disse.
Tentou explicar-me que o regulamento proibia que pessoas estranhas ao pessoal do cemitério permanecessem no recinto depois do pôr do Sol, mas não o deixei acabar, meti-lhe algumas notas na mão e empurrei-o para que se fosse embora e me deixasse em paz. Vi-o afastar-se olhando-me por cima do ombro. Deve ter pensado que eu era um louco, um desses dementes necrófilos que por vezes rondam os cemitérios.
Foi uma longa noite, talvez a mais longa noite da minha vida. Passei-a sentado junto do túmulo de Rosa, falando com ela, acompanhando-a na primeira parte da sua viagem ao Mais-Além, quando é mais difícil desprendermo-nos da terra e se necessita do amor dos que ficam vivos, para ir pelo menos com o consolo de ter semeado alguma coisa no coração dos outros. Recordava o seu rosto perfeito e maldizia a minha sorte. Fiz notar a Rosa os anos que passei metido num buraco na mina, sonhando com ela. Não lhe disse que não tinha visto mais mulheres em todo esse tempo, além de miseráveis prostitutas envelhecidas e gastas, que serviam todo o acampamento com mais boa vontade do que mérito. Mas disse-lhe que tinha vivido entre homens rudes e sem lei, comendo grão-de-bico e bebendo água limosa, longe da civilização, pensando nela noite e dia, levando na alma a sua imagem como um estandarte que me dava forças para continuar picando a montanha, mesmo que desaparecesse o veio, doente do estômago a maior parte do ano, gelado de frio à noite e alucinado pelo calor durante o dia, tudo isso com o único fim de me casar com ela e eis que ela se vai embora e me morre à traição, antes que eu pudesse cumprir os meus sonhos, deixando-me uma desolação miserável. Disse-lhe que ela me tinha enganado, atirei-lhe à cara que nunca tínhamos estado completamente sós, que só a tinha podido beijar uma vez. Tinha mantido o amor com recordações e desejos compensadores, mas impossíveis de satisfazer, com cartas atrasadas e desbotadas que não podiam reflectir os meus sentimentos nem a dor da sua ausência, porque não tenho facilidade para o género epistolar e muito menos para escrever sobre as minhas emoções. Disse-lhe que esses anos na mina tinham sido uma perda irremediável, que se eu tivesse sabido que ela ia durar tão pouco neste mundo teria roubado o dinheiro necessário para casar com ela e construir um palácio ornamentado com tesouros do fundo do mar: corais, pérolas, nácar, onde a teria mantido sequestrada e onde só eu tivesse acesso. Tê-la-ia amado sem parar por um tempo quase infinito, porque estava certo de que se ela tivesse estado ao pé de mim não teria bebido o veneno destinado a seu pai e teria durado mil anos. Falei-lhe das caricias que tinha reservadas para ela, dos presentes com que lhe iria fazer surpresa, da forma como a teria tornado enamorada e feliz.
Nessa noite acreditei que tinha perdido para sempre a capacidade de me apaixonar, que nunca mais podia rir-me nem perseguir uma ilusão. Mas nunca mais é muito tempo. Tirei a prova disso ao longo da vida. Vi a raiva crescer dentro de mim como um tumor maligno, manchando as melhores horas da minha existência, incapacitando-me para a ternura ou para a clemência. Mas, acima da confusão e da ira, o sentimento mais forte que me lembro ter tido nessa noite foi o desejo frustrado, porque jamais poderia realizar o desejo de afagar Rosa com as mãos, de penetrar nos seus segredos, de soltar o verde manancial do seu cabelo e afundar-me nas suas águas mais profundas. Evoquei com desespero a última imagem que tinha dela, recortada entre as pregas de cetim do seu ataúde virginal, com a flor de laranjeira de noiva coroando-lhe a cabeça e um rosário entre os dedos. Não sabia que assim mesmo, com a flor de laranjeira e o rosário, tornaria a vê-la por um instante fugaz muitos anos mais tarde.
Com as primeiras luzes do amanhecer, o guarda voltou. Deve ter sentido pena por aquele louco semicongelado que tinha passado a noite entre os lívidos fantasmas do cemitério e estendeu-me o cantil:
- É chá quente. Beba um pouco, senhor - ofereceu-me.
Mas eu repeli-o com um empurrão e afastei-me, rogando pragas, a grandes passadas raivosas por entre as fileiras de tumbas e ciprestes.
Na noite em que o doutor Cuevas e o seu ajudante estriparam o cadáver de Rosa na cozinha, para descobrir a causa da sua morte, Clara estava na cama com os olhos abertos, tremendo no escuro. Tinha a terrível dúvida de que a irmã morrera porque ela o tinha dito. Acreditava que, assim como a força da sua mente podia mover o saleiro, igualmente podia ser a causa das mortes, dos tremores de terra e de outras desgraças maiores. A mãe tinha-lhe explicado em vão que ela não podia provocar os acontecimentos, apenas os podia ver com alguma antecipação.
Sentia-se desolada e culpada, e pensou que se pudesse estar com Rosa sentir-se-ia melhor. Levantou-se descalça, em camisa, e entrou no quarto de dormir que tinha compartilhado com a irmã mais velha, mas não a encontrou na cama, onde a tinha visto pela última vez. Saiu para a procurar pela casa. Tudo estava escuro e silencioso. A mãe dormia drogada pelo doutor Cuevas, e os irmãos e os criados tinham-se retirado mais cedo para os seus quartos. Percorreu os salões, deslizando agarrada às paredes, assustada e gelada. Os móveis pesados, as grossas cortinas drapejadas, os quadros nas paredes, o papel com as suas flores pintadas sobre pano escuro, os candeeiros apagados oscilando nos tectos e os matagais de fetos sobre colunas de loiça pareceram-lhe ameaçadores. Notou que no salão brilhava um pouco de luz por uma frincha debaixo da porta. Esteve vai não vai para entrar, mas receou encontrar o pai e que ele a mandasse de volta para a cama. Dirigiu-se então para a cozinha, pensando que no peito da Ama encontraria aconchego. Cruzou o pátio principal, entre as camélias e as laranjeiras anãs, atravessou os salões do segundo corpo da casa e os sombrios corredores abertos, onde as luzes ténues dos candeeiros a gás ficavam acesas toda a noite, a oscilar durante os tremores de terra e a espantar os morcegos e outros bichos nocturnos, e chegou ao terceiro pátio, onde estavam as dependências de serviço e as cozinhas. Ali, a casa perdia o aspecto senhorial, começava a desordem dos canis, dos galinheiros e os quartos dos serviçais. Mais para a frente estava a cavalariça, onde se guardavam os velhos cavalos que Nívea ainda usava, apesar de Severo del Valle ter sido um dos primeiros a comprar um automóvel. A porta e os postigos da cozinha e o reposteiro estavam fechados. O instinto advertiu Clara de que algo de anormal se estava a passar lá dentro; tratou de espreitar, mas o nariz não lhe chegava ao peitoril da janela e teve de arrastar um caixote e encostá-lo à parede; trepou e pôde olhar por um buraco entre o postigo de madeira e o peitoril da janela que a humidade e o tempo tinham deformado. E foi então que viu o interior.
O doutor Cuevas, esse homem grande, bonacheirão e doce, de farta barba e ventre opulento, que a ajudara a nascer e a tratara em todas as doenças da infância e ataques de asma, tinha-se transformado num vampiro gordo e escuro como os das ilustrações do tio Marcos. Estava inclinado sobre a mesa onde a Ama preparava a comida. A seu lado estava um jovem desconhecido, pálido como a lua, com a camisa manchada de sangue e os olhos perdidos de amor. Viu as pernas branquinhas de sua irmã e os seus pés nus. Clara começou a tremer. Nesse momento, o doutor Cuevas afastou-se e ela pôde ver o horrendo espectáculo de Rosa estendida de costas, sobre o mármore, aberta de alto a baixo por um golpe profundo, com os intestinos postos ao lado dentro da saladeira. Rosa tinha a cabeça virada em direcção à janela de onde ela estava espiando, e o seu cabelo verde compridíssimo caia como um feto da mesa até aos azulejos do chão, manchados de vermelho. Tinha os olhos fechados, mas a menina, por efeito das sombras, da distância e da imaginação, julgou ver-lhe uma expressão suplicante e humilhada.
Clara, imóvel sobre o caixote, não pôde deixar de olhar até ao fim. Ficou espreitando pela frincha muito tempo, arrefecendo sem dar por isso, até que os dois homens acabaram de esvaziar Rosa, de injectar-lhe líquidos nas veias e banhá-la por dentro e por fora com vinagre aromático e essência de alfazema. Ficou ali até que a encheram de emplastros de embalsamador e a coseram com uma agulha de colchoeiro. Ficou até que o doutor Cuevas se lavou no lava-loiças e enxugou as lágrimas, enquanto o outro limpava o sangue e as vísceras. Ficou até que o médico saiu, vestindo o casaco negro com um gesto de tristeza mortal.
Ficou até que o jovem desconhecido beijou Rosa nos lábios, no pescoço, nos seios, entre as pernas, a lavou com uma esponja, lhe vestiu a camisa bordada e lhe ajeitou o cabelo, arquejando de cansaço. Ficou até que o ajudante a carregou nos braços com a mesma ternura comovente que teria tido ao pegar-lhe ao colo para passar pela primeira vez a porta de uma casa, se tivesse sido sua noiva. E não conseguiu mover-se até aparecerem as primeiras luzes. Então deslizou até à cama, sentindo por dentro todo o silêncio do mundo. O silêncio encheu-a por inteiro e não tornou a falar durante nove anos, até puxar da voz para anunciar que se ia casar.
Las Tres Marias
Na sala de jantar da casa, entre móveis antiquados e maltratados que num passado longínquo tinham sido boas peças vitorianas, Esteban Trueba jantava com a irmã Férula a mesma sopa gordurosa de todos os dias e o mesmo peixe insípido de todas as sextas-feiras. Eram servidos por uma criada que os tinha atendido toda a vida, na tradição dos escravos pagos desse tempo. A velha ia e vinha entre a cozinha e a sala, curvada e meio cega, mas ainda enérgica, levando e trazendo as travessas com ar solene. Dona Ester Trueba não acompanhava os filhos à mesa. Passava as manhãs imóvel na cadeira, olhando pela janela o movimento da rua, vendo como o decorrer dos anos ia deteriorando o bairro que na sua juventude tinha sido distinto. Depois do almoço, mudavam-na para a cama, instalando-a de modo a que pudesse estar meio sentada, única posição que a artrite lhe permitia, sem mais companhia que as leituras beatas dos seus livrinhos pios de vidas e milagres dos santos. Ficava ali até ao dia seguinte, em que tornava a repetir-se a mesma rotina. A sua única saída à rua era para assistir à missa do domingo na Igreja de São Sebastião, a dois passos da casa, onde Férula e a criada a levavam na cadeira de rodas.
Esteban acabou de esgravatar no peixe esbranquiçado entre o emaranhado de espinhas e poisou os talheres no prato. Sentava-se rígido, tal como caminhava, muito direito, com a cabeça ligeiramente inclinada para trás e um pouco de lado, olhando de traves, com uma mistura de altivez, desconfiança e miopia. Essa atitude seria desagradável se os seus olhos não fossem surpreendentemente doces e claros. A posição, tão dura, era própria de um homem forte e baixo que quisesse parecer mais alto, mas ele media um metro e oitenta e era muito magro. Todas as linhas do seu corpo eram verticais e ascendentes, desde o nariz afiado e adunco e as sobrancelhas em bico até à testa alta coroada por uma juba de leão que penteava para trás. Tinha ossos largos e mãos com dedos espalmados. Caminhava com grandes passadas, movia-se com energia e parecia muito forte, sem lhe faltar, contudo, certa graça nos gestos. Tinha um rosto muito harmonioso, apesar do gesto austero e sombrio e da frequente expressão de mau humor. O seu traço predominante era o mau génio e a tendência para se tornar violento e perder a cabeça, característica que tinha desde a infância, quando se atirava ao chão, com a boca cheia de espuma, sem poder respirar, de raiva, torcendo-se como um endemoninhado. Tinham de o mergulhar em água gelada para recuperar o controlo. Mais tarde aprendeu a dominar-se, mas ficou-lhe para o resto da vida aquela ira sempre pronta que precisava de pouco estímulo para rebentar em ataques terríveis.
- Não volto à mina - disse.
Era a primeira frase que trocava à mesa. Decidira isso com a irmã, na noite anterior, ao dar conta que não tinha sentido continuar a fazer vida de eremita em busca de uma riqueza rápida. Tinha a concessão da mina por mais dois anos, tempo suficiente para explorar bem o maravilhoso filão que descobrira, mas pensava que, embora o capataz o roubasse um pouco ou não soubesse explorá-la como ele, não havia nenhuma razão para se ir enterrar no deserto. Não desejava tornar-se rico à custa de tantos sacrifícios. Tinha a vida à sua frente para enriquecer se pudesse, para chatear-se e esperar a morte, sem Rosa.
- Tens de trabalhar nalguma coisa, Esteban - disse Férula. - Sabes que gastamos muito pouco, quase nada, mas os remédios da mamã são caros.
Esteban olhou a irmã. Era ainda uma linda mulher de formas opulentas e rosto ovalado de madona romana, mas, através da pele pálida com reflexos de pêssego e os olhos cheios de sombras, adivinhava-se já a fealdade da resignação. Dormia no quarto a seguir ao de Dona Ester, disposta a acudir correndo para ao pé dela para lhe dar as mezinhas, pôr-lhe a arrastadeira, aconchegar-lhe as almofadas. Tinha uma alma atormentada. Comprazia-se na humilhação e nos trabalhos abjectos, acreditava que ia conseguir o céu pelo processo terrível de sofrer injustiças, por isso sentia prazer em limpar as pústulas das pernas doentes da mãe, lavando-a, afundando-se nos seus cheiros e misérias, investigando-lhe o bacio. Odiava-se tanto a si própria por esses prazeres tortuosos e inconfessáveis como tinha ódio a sua mãe por servir de instrumento para isso. Atendia-a sem se queixar, mas procurava com subtileza fazer-lhe pagar o preço da sua invalidez. Sem o dizer abertamente, estava presente entre as duas o facto de que a filha tinha sacrificado a sua vida para cuidar da mãe, e que, por isso, tinha ficado solteira. Férula tinha deixado dois noivos com o pretexto da doença da mãe. Não falava disso, mas toda a gente sabia. Tinha gestos bruscos e rudes, com o mesmo mau carácter do irmão, mas era obrigada pela vida, e pela sua condição de mulher, a dominar-se, e a morder o freio. Parecia tão perfeita que chegou a ter fama de santa. Citavam-na como exemplo pela dedicação que Ester tinha por ela e pela maneira como tinha criado o seu único irmão quando a mãe caiu doente e o pai morreu deixando-os na miséria. Férula adorara o irmão Esteban quando era menino. Dormia com ele, dava-lhe banho, levava-o a passear, trabalhava de sol a sol cosendo roupa para fora para lhe pagar o colégio, e chorou de raiva e impotência no dia em que Esteban teve de começar a trabalhar num cartório porque em casa o que ela ganhava para comer não chegava. Tinha-o cuidado e servido como fazia agora com a mãe, envolvendo-o também a ele na rede invisível da culpabilidade e das dividas de gratidão por pagar. O rapaz começou a afastar-se dela mal pôs calças compridas. Esteban podia recordar o momento exacto em que se deu conta que a irmã era um sombra fatídica. Foi quando ganhou o primeiro salário. Decidiu que guardaria para si cinquenta centavos para realizar um sonho que acarinhava desde a infância: tomar um café vienense. Tinha visto, através das janelas do Hotel Francês, os empregados que passavam com as bandejas no ar levando tesouros: copos grandes de cristal coroados por torres de creme batido e decorados com uma linda ginja cristalizada. No dia do seu primeiro salário passou diante do estabelecimento muitas vezes antes de se atrever a entrar. Finalmente passou com timidez a porta, com a boina na mão, e avançou até à luxuosa sala, entre lustres e móveis de estilo, com a sensação de que toda a gente olhava para ele, que mil olhos criticavam o seu fato demasiado apertado e os seus sapatos velhos.
Sentou-se na beira da cadeira, com as orelhas a escaldar, e fez o pedido ao empregado com uma voz sumida. Esperou impaciente, espiando nos espelhos o ir e vir das pessoas, saboreando de antemão o prazer tantas vezes imaginado. Chegou finalmente o seu café vienense, muito mais impressionante do que imaginara, soberbo, delicioso e acompanhado por três frasquinhos de mel. Contemplou-o longamente fascinado, por fim atreveu-se a pegar na colher de cabo grande e, com um suspiro de felicidade, mergulhou-a no crome. Sentia água na boca. Estava disposto a fazer durar aquele instante o mais possível, esticá-lo até ao infinito. Começou a mexer, vendo como se misturava o liquido escuro do copo com a espuma do creme. Mexeu, mexeu, mexeu... E, de repente, a ponta da colher bateu no cristal, abrindo um orifício por onde saltou o café em jorro. Caiu-lhe na roupa. Esteban, horrorizado, viu todo o conteúdo do copo espalhar-se sobre o seu único fato, ante o olhar divertido dos ocupantes das outras mesas. Pagou, pálido de frustração, e saiu do Hotel Francês com cinquenta centavos a menos, deixando à sua passagem um rego de café vienense nas macias alcatifas. Chegou a casa humilhado, furioso, perturbado. Quando Férula soube o que tinha sucedido, comentou com azedume: «Isso aconteceu por gastares o dinheiro dos remédios da mamã com os teus caprichos. Deus castigou-te.» Nesse momento, Esteban viu perfeitamente os mecanismos que sua irmã usava para dominar, a forma como conseguia fazê-lo sentir-se culpado, e compreendeu que devia libertar-se. à medida que se foi afastando da sua tutela, Férula foi antipatizando com ele. A liberdade que ele tinha, doía-lhe a ela como uma acusação, como uma injustiça. Quando se enamorou de Rosa e ela o viu desesperado, como um garoto, pedindo-lhe ajuda, necessitando dela, perseguindo-a pela casa para lhe suplicar que se aproximasse da família del Valle, que falasse a Rosa, que subornasse a Ama, Férula voltou a sentir-se importante para Esteban. Por algum tempo pareceram reconciliados. Mas aquele encontro não durou muito e Férula não tardou ver que tinha sido utilizada. Alegrou-se quando viu partir o irmão para a mina. Desde que começou a trabalhar, aos quinze anos, Esteban manteve a casa e assumiu o compromisso de o fazer sempre, mas para Férula isso não era suficiente. Sentia-se mal por ter de ficar fechada entre aquelas paredes hediondas, com velhice e remédios, acordada pelos gemidos da doente, atenta ao relógio para lhe dar os remédios, aborrecida, cansada, triste, enquanto o irmão ignorava essas obrigações. Ele podia ter um destino luminoso, livre, cheio de êxitos. Podia casar-se, ter filhos, conhecer o amor. No dia em que mandou o telegrama anunciando-lhe a morte de Rosa sentiu um formigueiro estranho, quase de alegria.
- Tens de trabalhar em alguma coisa - repetiu Férula.
- Nunca vos faltará nada enquanto eu viver - disse ele.
- É fácil de dizer - respondeu Férula, enquanto tirava uma espinha de peixe dos dentes.
- Penso que vou para o campo, para Las Tres Marias.
- Isso são ruínas, Esteban. Sempre te disse que é melhor vender essa terra, mas tu és teimoso que nem um burro.
- Nunca se deve vender a terra. É a única coisa que fica quando o resto se acaba.
- Não estou de acordo. A terra é uma ideia romântica, o que enriquece os homens é o bom faro para os negócios – defendeu Férula. - Mas tu dizias sempre que um dia ias viver para o campo.
- Esse dia chegou. Odeio esta cidade.
- Porque não dizes antes que odeias esta casa?
- Também - respondeu ele brutalmente.
- Gostava de ter nascido homem, para poder ir também – disse ela cheia de ódio.
- E eu não gostava de ter nascido mulher - disse ele.
Acabaram de comer em silêncio.
Os irmãos estavam muito afastados e a única coisa que ainda os unia era a presença da mãe e a recordação apagada do amor que tinham tido um pelo outro na infância. Tinham crescido numa casa arruinada, presenciando a destruição moral e económica do pai e a seguir a lenta doença da mãe. Dona Ester Trueba começou a padecer de artrite desde muito nova, foi-se tornando rígida até acabar por mover-se com grande dificuldade, como que amortalhada em vida, e por último, quando já não podia dobrar os joelhos, instalou-se definitivamente na sua cadeira de rodas, na sua viuvez e desolação. Esteban recordava a sua infância e a juventude, os fatos apertados, o cordão de São Francisco que o obrigavam a usar, quem sabe se em paga de promessas da mãe ou da irmã, as camisas remendadas com cuidado e a solidão. Férula, cinco anos mais velha, lavava e engomava, dia sim dia não, as suas duas únicas camisas, para ele estar sempre limpo e apresentável, e recordava-lhe que por parte da mãe ele usava o apelido mais nobre e de mais alta linhagem do Vice-Reino de Lima. Trueba não tinha sido mais que um lamentável acidente na vida de Dona Ester, destinada a casar com alguém da sua classe, mas tinha-se apaixonado perdidamente por aquele doidivanas, emigrante da primeira geração, que em poucos anos delapidou o seu dote e a seguir a sua herança. Mas de nada serviu a Esteban o passado de sangue azul, se em casa não havia com que pagar as contas da loja e se tinha de ir a pé para o colégio porque não tinha um centavo para o eléctrico.
Recordava que o mandavam para a escola com o peito e as costas forrados com papel de jornal porque não tinha roupa interior de lã e o seu casaco era uma lástima, e que sofria imaginando que os companheiros podiam ouvir o barulho do papel esfregando-se contra a pele. No Inverno, a única fonte de calor era uma braseira no quarto da mãe, onde se reuniam os três para poupar velas e carvão. Tinha sido uma infância de privações, de incomodidades, de amarguras, de intermináveis terços nocturnos, de medos e de culpas. De tudo isso não lhe ficara mais que a raiva e o orgulho exagerado.
Dois dias depois, Esteban Trueba partiu para o campo. Férula acompanhou-o à estação. Ao despedir-se, beijou-o friamente na face e esperou que subisse para o comboio, com as duas malas de couro com fechaduras de bronze, as mesmas que tinha comprado para ir para a mina e que deviam durar-lhe toda a vida, como lhe tinha prometido o vendedor. Recomendou-lhe que cuidasse de si e tratasse de visitá-las de vez em quando; ele disse que o faria sem esforço, mas ambos sabiam que estavam destinados a não se ver durante muitos anos e no fundo sentiam um certo alivio.
- Avisa-me se a mamã piorar - gritou Esteban pela janela quando o comboio se pôs em marcha.
- Não te preocupes - respondeu Férula no cais, agitando o seu lenço.
Esteban Trueba encostou-se no banco forrado de veludo vermelho e agradeceu a iniciativa dos Ingleses de construir carruagens de primeira classe, onde se podia viajar como um cavalheiro, sem ter de suportar as galinhas, os canastros, os volumes de cartão amarrados com cordel e o choramingar das crianças dos outros. Felicitou-se por ter decidido comprar uma passagem mais cara, pela primeira vez na vida, e concluiu que era nos pormenores que estava a diferença entre um cavalheiro e um camponês. Por isso, embora em má situação, desse dia em diante iria gastar dinheiro nas pequenas comodidades que o faziam sentir-se rico.
- Não voltarei a ser pobre! - decidiu, pensando no filão de ouro.
Pela janela do comboio viu passar a paisagem do vale central. Vastos campos estendiam-se no sopé da cordilheira, campinas férteis de vinhedo, de trigais, de luzerna e de maravilha. Comparou tudo isso com as desoladas planícies do Norte, onde tinha passado dois anos metido num buraco, no meio de uma natureza agreste e lunar cuja beleza aterradora não se cansava de olhar, fascinado pelas cores do deserto, pelos azuis, os roxos, os amarelos dos minerais à flor da terra.
- Para mim a vida está a mudar - murmurou.
Fechou os olhos e adormeceu.
Desceu do comboio na estação de San Lucas. Era um lugar miserável. A essa hora não se via vivalma no cais de madeira, com um telhado arruinado pela intempérie e pelas formigas. Dali podia ver-se todo o vale através de uma neblina ténue que subia da terra molhada pela chuva da noite. As montanhas longínquas perdiam-se entre as nuvens de um céu carregado e só a ponta nevada do vulcão se distinguia nitidamente, recortada contra a paisagem e iluminada por um tímido sol de Inverno. Olhou à volta. Na sua infância, a única época feliz que podia recordar, antes que o pai acabasse por arruinar-se e abandonar-se à bebida e à própria vergonha, tinha andado a cavalo com ele por aquela região. Recordava que em Las Tres Marias tinha brincado no Verão, mas isso tinha sido há tantos anos que a memória quase se desvanecia e não podia reconhecer o lugar. Procurou com a vista a povoação de San Lucas, mas apenas descortinou um casario longínquo, desbotado na humidade da manhã. Percorreu a estação. Estava fechada, com um cadeado na porta do único escritório. Havia um aviso escrito a lápis, mas estava tão apagado que não conseguiu lê-lo. Ouviu que nas suas costas o comboio se punha em marcha e começava a afastar-se deixando atrás uma coluna de fumo branco. Estava sozinho naquele apeadeiro silencioso. Pegou nas malas e começou a andar pelo barro e pelas pedras de um carreiro que ia ter à povoação. Caminhou mais de dez minutos, pedindo que não chovesse, porque só com muita dificuldade conseguia avançar com as pesadas malas por aquele caminho e viu que a chuva o tornaria em poucos segundos num lamaçal intransitável. Ao aproximar-se das casas viu fumo nalgumas chaminés e suspirou aliviado, porque a principio teve a impressão de que era um vilório abandonado, tal a sua ruína e solidão.
Deteve-se à entrada da aldeia, sem ver ninguém. Na única rua, ladeada de modestas casas de adobe, reinava o silêncio, e teve a sensação de caminhar em sonhos. Acercou-se da casa mais próxima, que não tinha nenhuma janela e cuja porta estava aberta. Deixou as malas no passeio e entrou chamando em voz alta. Dentro estava escuro, porque a luz só vinha da porta, de modo que necessitou de alguns segundos para adaptar a vista e acostumar-se à penumbra. Então viu duas crianças brincando no chão de terra batida que o olhavam com grandes olhos assustados e, num pátio mais à frente, uma mulher que caminhava secando as mãos com o avental. Ao vê-lo, esboçou um gesto instintivo para desviar uma madeixa de cabelo que lhe caía sobre a testa. Saudou-a e ela respondeu tapando a boca com a mão para esconder as gengivas sem dentes. Trueba explicou-lhe que precisava de alugar um carro, mas ela pareceu não compreender e limitou-se a esconder as crianças nas pregas do avental, com um olhar sem expressão. Ele saiu, pegou na bagagem e seguiu o seu caminho.
Quando tinha percorrido quase toda a aldeia sem ver ninguém e começava a desesperar, ouviu atrás de si as patas de um cavalo. Era uma carroça desengonçada conduzida por um lenhador. Parou à sua frente e obrigou o condutor a deter-se.
- Pode levar-me a Las Tres Marias? Pago-lhe bem! - gritou.
- Que vai lá fazer, cavalheiro? - perguntou o homem. – Isso é uma terra de ninguém, um barrocal sem lei.
Mas aceitou levá-lo e ajudou-o a pôr a bagagem entre os atados de lenha. Trueba sentou-se a seu lado na boleia. De algumas casas saíram crianças correndo atrás da carroça. Trueba sentiu-se mais só do que nunca.
A onze quilómetros da aldeia de San Lucas, por um caminho devastado invadido pelo mato e cheio de covas, apareceu a tabuleta de madeira com o nome da propriedade. Estava pendurada de uma corrente partida, de modo que o vento fazia-a bater contra o poste com um ruído surdo que lhe soou como um tambor de luto. Bastou dar uma olhada para compreender que só um hércules podia tirar aquilo da desolação. A erva daninha tinha comido o carreiro e para onde quer que olhasse só via penhascos, matagais e monte. Não havia nem sinais de pastos, nem restos de vinhas que ele recordava, ninguém que viesse recebê-lo. A carroça avançou lentamente, seguindo um rasto que a passagem dos animais e dos homens tinha traçado no mato. Ao fim de pouco tempo, viu a casa do fundo, que ainda se mantinha de pé, mas que surgiu como uma visão de pesadelo, cheia de escombros, de redes de capoeira pelo chão, e de lixo. Tinha metade das telhas partidas e uma trepadeira selvagem que entrava pelas janelas e cobria quase todas as paredes. à volta da casa viu alguns casebres de adobe sem cal, sem janelas, com telhados de palha negros de fuligem. Dois cães lutavam encarniçadamente no pátio.
O chiar das rodas da carroça e as maldições do lenhador atraíram os ocupantes dos casebres, que foram aparecendo aos poucos. Olhavam os recém-chegados com estranheza e desconfiança. Tinham passado quinze anos sem verem nenhum patrão e haviam concluído que simplesmente o não tinham. Não podiam reconhecer naquele homem alto e autoritário o menino de caracóis castanhos que há muito tempo atrás brincava naquele mesmo pátio. Esteban olhou-os e também não conseguiu recordar nenhum. Eram um grupo miserável. Viu várias mulheres de idade indefinida, com a pele gretada e seca, algumas aparentemente grávidas, todas vestidas de farrapos desbotados e descalças. Calculou que haveria pelo menos uma dúzia de crianças de todas as idades. As mais pequenas estavam nuas. Outros rostos assomaram às ombreiras das portas, sem se atreverem a sair. Esteban esboçou um gesto de saudação, mas ninguém respondeu.
Algumas crianças correram a esconder-se detrás das mulheres.
Esteban desceu da carroça, descarregou as duas malas e deu algumas moedas ao lenhador.
- Se quiser fico à sua espera, patrão - disse o homem.
- Não, eu fico aqui.
Dirigiu-se à casa, abriu a porta com um empurrão e entrou. Dentro havia suficiente luz, porque a manhã entrava pelos postigos partidos e pelos buracos do telhado, onde as telhas tinham cedido. Estava cheia de pó e teias de aranha, com um aspecto de total abandono, e era evidente que nesses anos todos nenhum dos camponeses se atrevera a deixar a sua choça para ocupar a grande casa senhorial vazia. Não tinham tocado nos móveis; eram os mesmos da sua infância, nos mesmos lugares de sempre, mas os mais feios, sombrios e desengonçados de tudo o que podia recordar. Toda a casa estava alcatifada com uma camada de erva, de pó e de folhas secas. Cheirava a túmulo. Um cão esquelético ladrou furiosamente, mas Esteban Trueba não fez caso e o animal, finalmente cansado, foi para um canto coçar as pulgas. Deixou as malas sobre uma mesa e saiu para percorrer a casa, lutando contra a tristeza que começava a invadi-lo. Passou de um quarto para outro, viu a deterioração que o tempo tinha feito em todas as coisas, a pobreza, a sujidade, e sentiu que aquilo era um buraco muito pior do que a mina. A cozinha era uma grande divisão sórdida, de tecto alto e paredes enegrecidas pelo fumo da lenha e do carvão, bolorenta, em ruínas, mas onde ainda estavam penduradas de pregos, nas paredes, as caçarolas e frigideiras de cobre e de ferro que não tinham sido usadas em quinze anos e em que ninguém tinha tocado em todo esse tempo. Os quartos de dormir tinham as mesmas camas e os grandes armários com espelhos ovais que o pai comprou noutro tempo, mas os colchões eram um montão de lã apodrecida e de bichos que neles tinham feito ninho durante gerações. Escutou os passinhos discretos das ratazanas no forro do tecto. Não conseguiu descobrir se o piso era de madeira ou de tijoleira porque não se via em lado nenhum e a imundície cobria-o por completo. A camada cinzenta de pó escondia o contorno dos móveis. Onde tinha sido o salão, ainda se via o piano alemão com uma perna partida e as teclas amarelecidas, soando como um cravo desafinado. Nas estantes havia alguns livros ilegíveis, com as páginas comidas pela humidade, e no chão restos de revistas muito antigas, que o vento espalhara. Os cadeirões tinham as molas à vista e havia um ninho de ratos na poltrona onde a mãe se sentava a tecer antes que a doença lhe transformasse as mãos em garfos.
Quando acabou de correr a casa, Esteban tinha as ideias mais claras. Sabia que tinha à sua frente um trabalho titânico, porque, se a casa estava naquele estado de abandono, não podia esperar que o resto da propriedade estivesse em melhores condições. Por um momento teve a tentação de carregar as duas malas na carroça e voltar pelo mesmo caminho que o tinha trazido, mas pôs logo de parte esse pensamento, e achou que, se havia alguma coisa que pudesse acalmar a dor e a raiva de ter perdido Rosa, era partir as costas trabalhando naquela terra abandonada. Tirou o casaco, respirou profundamente e saiu para o pátio, onde estava ainda o lenhador, junto dos caseiros, reunidos a certa distância, com a timidez própria da gente do campo. Observaram-se mutuamente com curiosidade. Trueba deu dois ou três passos até eles e percebeu um leve movimento de recuo no grupo, correu os olhos pelos camponeses maltrapilhos e tentou fazer um sorriso amigável às crianças sujas de ranho, aos velhos remelosos e às mulheres sem esperança, mas saiu-lhe apenas um trejeito.
- Onde estão os homens? - perguntou.
O único homem novo deu um passo em frente. Provavelmente tinha a mesma idade que Esteban Trueba, mas parecia mais velho.
- Foram-se embora - disse.
- Como te chamas?
- Pedro Segundo Garcia, senhor - respondeu o outro. - Eu sou o patrão agora. Acabou a festa. Vamos trabalhar. Quem não gostar da ideia vá-se embora imediatamente. Aos que ficarem não faltará que comer, mas terão de esforçar-se. Não quero fracos nem gente insolente, ouviram?
Olharam-se assombrados. Não tinham compreendido nem metade do discurso, mas sabiam reconhecer a voz do patrão quando a escutavam.
- Entendidos, patrão - disse Pedro Segundo Garcia. – Não temos onde ir, vivemos sempre aqui. Ficamos.
Um menino agachou-se e pôs-se a cagar e um cão sarnento aproximou-se a cheirá-lo. Esteban, enojado, deu ordem de levar a criança, lavar o pátio e matar o cão. Assim começou a nova vida que, com o tempo, havia de fazê-lo esquecer Rosa.
Ninguém me vai tirar da cabeça a ideia de que fui um bom patrão. Quem tivesse visto Las Tres Marias nos tempos do abandono e a visse agora, que é um bom modelo, teria de concordar comigo. Por isso não posso aceitar que a minha neta me venha com a história da luta de classes, porque, se virmos bem, esses pobres camponeses estão muito pior agora do que há cinquenta anos. Eu era como um pai para eles. Com a reforma agrária fodemo-nos todos.
Para tirar Las Tres Marias da miséria, destinei todo o capital que tinha poupado para casar com Rosa e tudo o que me enviava o capataz da mina, mas não foi o dinheiro que salvou esta terra, mas sim o trabalho e a organização. Correu a notícia de que havia um novo patrão em Las Tres Marias e que estavam tirando as pedras com bois e lavrando os prados para semear. Começaram logo a chegar homens a oferecerem-se como braçais, porque eu pagava bem e lhes dava bastante comida. Comprei animais. Os animais eram sagrados para mim e, embora passássemos o ano sem provar carne, não se sacrificavam. Assim cresceu o gado. Organizei os homens em grupos de quatro e, depois de trabalhar no campo, dedicávamo-nos a reconstruir a casa senhorial. Não eram carpinteiros nem pedreiros, tive de lhes ensinar tudo, com a ajuda de manuais que comprei. Até canalizações fizemos com eles arranjamos os telhados, caiámos tudo e limpámos até deixar a casa brilhante por dentro e por fora. Reparti os móveis entre os caseiros, menos a sala de jantar, que ainda estava intacta apesar do pó que tinha invadido tudo, e a cama de ferro forjado que tinha sido dos meus pais. Fiquei a viver na casa vazia, sem mais mobiliário que essas duas coisas e uns caixotes onde me sentava, até que Férula me mandou da capital os móveis novos que lhe encomendei. Eram peças grandes, pesadas, faustosas, feitas para resistir muitas gerações e adequadas para a vida no campo, e a prova é que foi preciso um terramoto para as destruir. Encostei-os às paredes, pensando na comodidade e não na estética, e logo que a casa ficou confortável senti-me satisfeito e comecei-me a acostumar à ideia de que ia passar muitos anos, talvez toda a vida, em Las Tres Marias.
As mulheres dos caseiros faziam turnos para servir na casa senhorial e encarregaram-se da minha horta. Em breve vi as primeiras flores no jardim, que tracei por minhas próprias mãos e que, com muito poucas modificações, é o mesmo que existe hoje em dia. Nessa época, a gente trabalhava sem contar anedotas. Creio que a minha presença lhes tornou a dar segurança e viram que pouco a pouco aquela terra se convertia num lugar próspero. Era gente boa e simples, não havia revoltados. Também é certo que eram muito pobres e ignorantes. Antes de eu chegar, limitavam-se a cultivar as suas pequenas quintarolas familiares, que lhes davam o indispensável para não morrer de fome desde que as não flagelasse alguma catástrofe, como a seca, a geada, a peste, a formiga ou o caracol, casos em que as coisas se tornavam muito difíceis para eles. Comigo tudo isso mudou. Fomos recuperando os pastos, um por um, reconstruímos o galinheiro e os estábulos e começam os a praticar um sistema de regas para que as sementeiras não dependessem do clima, mas de um mecanismo cientifico. Mas a vida não era fácil. Era muito dura. Por vezes, eu ia à aldeia e voltava com um veterinário que via as vacas e as galinhas e que, de passagem, dava uma olhada nos doentes. Não é que eu partisse do principio de que, se os conhecimentos do veterinário chegavam para os animais, também serviam para os pobres, como me diz a minha neta quando me quer pôr furioso. O que se passava era que não se conseguiam médicos por aquelas paragens. Os camponeses consultavam uma bruxa indigena que conhecia o poder das ervas e da sugestão, em quem tinham grande confiança, muito mais que no veterinário. As parturientes davam à luz com a ajuda das vizinhas, da oração e de uma parteira que quase nunca chegava a tempo, porque fazia a viagem de burro, mas que tanto servia para fazer nascer uma criança como para tirar um vitelo atravessado numa vaca. Os doentes graves, esses que nenhum encantamento da bruxa nem mezinha do veterinário podiam curar, eram levados por Pedro Segundo Garcia ou por mim, numa carroça, ao hospital das freiras, onde às vezes havia um médico de turno que os ajudava a morrer. Os mortos iam parar a um pequeno campo santo junto da igreja abandonada ao pé do vulcão, onde há agora um cemitério como Deus manda. Uma ou duas vezes por ano, eu conseguia que um padre fosse benzer os casamentos, os animais e as máquinas, baptizar as crianças e dizer algumas orações atrasadas aos defuntos. As únicas diversões eram capar porcos e touros, as lutas de galos, a raia e as incríveis histórias de Pedro Garcia, o velho, que em paz descanse. Era o pai de Pedro Segundo e dizia que o seu avô tinha combatido nas fileiras dos patriotas que escorraçaram os Espanhóis da América. Ensinava as crianças a deixar-se picar por aranhas e a tomar urina de mulher grávida para as imunizar. Conhecia quase tantas ervas como a bruxa, mas confundia-se no momento de decidir a sua aplicação e cometia alguns erros irreparáveis. Para arrancar dentes, no entanto, reconheço que tinha um sistema insuperável, que lhe tinha dado justa fama em toda a região: era uma combinação de vinho tinto e pais-nossos que punha o paciente em transe hipnótico. A mim tirou-me um molar sem dor e, se estivesse vivo, seria o meu dentista.
Muito depressa comecei a sentir-me bem no campo. Os meus vizinhos mais próximos ficavam a uma boa distância a cavalo, mas não me interessava a vida social, agradava-me a solidão e além disso tinha muito trabalho entre mãos. Fui-me convertendo num selvagem, esqueci as palavras, encurtou-se o vocabulário, tornei-me muito mandão. Como não tinha necessidade de aparentar isto ou aquilo, acentuou-se o mau carácter que sempre tive. Tudo me dava raiva, indignava-me quando via as crianças rondando as cozinhas para roubar pão, quando as galinhas esvoaçavam pelo pátio, quando os pardais invadiam os milheirais. Quando o mau humor começava a estorvar-me e me sentia incomodado dentro da própria pele, sala à caça. Levantava-me muito antes do nascer do Sol e partia de espingarda ao ombro, com o meu bornal e o meu cão perdigueiro. Gostava de uma cavalgada no escuro, do frio do amanhecer, do olhar largo pela sombra, do silêncio, do cheiro da pólvora e do sangue, sentir contra o ombro o recuar da arma com um coice seco e de ver a presa cair aos trambolhões; isso tranquilizava-me e, quando regressava de uma caçada, com quatro coelhos miseráveis no bornal e umas quantas perdizes tão chumbadas que nem serviam para serem cozinhadas, meio morto de fadiga e cheio de lama, sentia-me aliviado e feliz.
Quando penso nesses tempos, dá-me uma grande tristeza. A vida passou por mim multo rápida. Se voltasse a começar, há alguns erros que não cometeria, mas em geral não me arrependo de nada. Sim, fui um bom patrão, disso não há dúvida.
Nos primeiros meses, Esteban Trueba esteve tão ocupado canalizando a água, cavando poços, arrancando pedras, limpando cavalariças e reparando galinheiros e estábulos, que não teve tempo de pensar em nada. Deitava-se estafado e levantava-se de madrugada, tomava um magro pequeno almoço na cozinha e partia a cavalo para vigiar os trabalhos do campo. Não regressava antes do anoitecer. Nessa hora fazia a única refeição completa do dia, sozinho na sala de jantar da casa. Nos primeiros meses fez tenção de tomar banho e de mudar de roupa diariamente à hora de jantar, como tinha ouvido que faziam os colonos ingleses nas aldeias mais longínquas da ásia e da áfrica, para não perder a respeitabilidade e a autoridade. Vestia-se com a melhor roupa, barbeava-se e punha no gramofone as mesmas árias das suas operas preferidas todas as noites. Mas a pouco e pouco deixou-se vencer pela rusticidade e aceitou que não tinha vocação de penitente, especialmente se não tinha ninguém que pudesse apreciar o esforço. Deixou de se barbear, cortava o cabelo quando lhe chegava aos ombros e continuou a tomar banho só porque tinha o hábito muito arreigado, mas despreocupou-se da sua roupa e das suas maneiras. Foi-se tornando um bárbaro. Antes de dormir, lia um bocado ou jogava xadrez - tinha desenvolvido a habilidade de competir contra um livro sem fazer batota e de perder partidas sem se aborrecer. No entanto, a fadiga do trabalho não foi suficiente para sufocar a sua natureza robusta e sensual. Começou a passar mal as noites, os cobertores pareciam-lhe muito pesados, os lençóis demasiado suaves. O seu cavalo dava passadas irrequietas e de repente transformava-se numa fêmea formidável, numa montanha dura e selvagem de carne, sobre a qual cavalgava até moer os ossos. Os macios e perfumados melões da horta pareciam-lhe descomunais peitos de mulher e surpreendia-se enterrando a cara na manta da sua montada, buscando no cheiro acre do suor do animal a semelhança com aquele aroma longínquo e proibido das suas primeiras prostitutas. De noite, excitava-se com pesadelos de mariscos apodrecidos, de pedaços enormes de rês esquartejada, de sangue, de sémen, de lágrimas. Acordava tenso, com o sexo como um ferro entre as pernas, mais violento do que nunca. Para aliviar-se corria a mergulhar-se todo nu no rio e aprofundava-se nas águas geladas até perder a respiração, mas então julgava sentir mãos invisíveis que lhe acariciavam as pernas. Vencido, deixava-se flutuar à deriva, sentindo-se abraçar pela corrente, beijado pelos limos, fustigado pelas canas da margem. Ao fim de pouco tempo a sua necessidade oprimida era notória, não se acalmava nem com imersões nocturnas no rio, nem com infusões de canela, nem pondo pedra alúmen debaixo do colchão, nem sequer com as manipulações vergonhosas que no internato punham os rapazes malucos e os deixavam cegos e os fariam desaparecer na condenação eterna. Quando começou a olhar com olhos de concupiscência as aves do curral e as crianças que brincavam nuas na horta, e até a massa crua do pão, compreendeu que a sua virilidade não se acalmaria com substitutos de sacristão. O seu sentido prático disse-lhe que tinha de procurar uma mulher e, uma vez tomada a decisão, a ansiedade que o consumia acalmou-se e a sua raiva pareceu acalmar-se também. Nesse dia, amanheceu, sorrindo pela primeira vez em tanto tempo.
Pedro Garcia, o velho, viu-o sair assobiando pelo caminho até ao estábulo e abanou a cabeça inquieto.
O patrão andou todo o dia ocupado em lavrar um terreno que acabava de mandar limpar e que tinha destinado a semear milho. Depois foi com Pedro Segundo Garcia ajudar uma vaca que nessa altura estava a parir e tinha o vitelo atravessado. Teve de introduzir-lhe o braço até ao cotovelo para dar volta à cria e ajudá-la a mostrar a cabeça. Apesar de tudo, a vaca morreu, mas isso não o pôs de mau humor. Ordenou que alimentassem o vitelo com uma garrafa, lavou-se num balde e voltou a montar a cavalo. Normalmente era a sua hora da comida, mas não tinha fome. Não tinha nenhuma pressa, porque já tinha feito a sua escolha.
Tinha visto muitas vezes a rapariga carregando na anca um irmãozinho ranhoso, com um saco às costas ou um cântaro de água do poço à cabeça. Tinha-a observado enquanto lavava roupa, agachada nas pedras planas do rio, com as pernas morenas polidas pela água, esfregando os trapos descoloridos com as rudes mãos de camponesa. Tinha ossos grandes e rosto com traços índios, com a face gorda e a pele escura, de expressão calma e doce, e a sua enorme boca carnuda, que conservava ainda os dentes, quando sorria iluminava-se, mas fazia-o muito poucas vezes. Tinha a beleza da primeira juventude, embora ele pudesse ver que isso se iria embora muito depressa, como sucede às mulheres nascidas para parir muitos filhos, trabalhar sem descanso e enterrar os seus mortos. Chamava-se Pancha Garcia e tinha quinze anos.
Quando Esteban Trueba saiu a procurá-la, já tinha caído a tarde e estava mais fresco. Percorreu, com o cavalo a passo, as longas alamedas que dividiam os pastos, perguntando por ela aos que passavam, até que a viu no caminho que conduzia ao seu casebre. Ia dobrada sob o pesado feixe de espinheiro para o fogão da cozinha, sem sapatos, cabisbaixa. Olhou-a do alto do cavalo e sentiu nesse mesmo instante a urgência do desejo que o tinha incomodado durante tantos meses. Aproximou-se a trote até pôr-se a seu lado. Ela viu-o, mas seguiu o seu caminho sem o olhar, pelo costume ancestral de todas as mulheres da sua estirpe de baixar a cabeça em frente do macho. Esteban baixou-se e tirou-lhe o fardo, segurou-o um momento no ar e logo o atirou com violência para a beira do caminho, apanhou a rapariga com um braço pela cintura e levantou-a com um repelão bestial, sentando-a à frente da sela, sem que ela opusesse nenhuma resistência. Esporeou o cavalo e partiram a galope para o rio. Desmontaram sem trocar nem uma palavra e mediram-se com os olhos. Esteban desapertou o largo cinturão de couro e ela recuou, mas apanhou-a de um sacão. Caíram abraçados entre as folhas dos eucaliptos.
Esteban não tirou a roupa. Atacou-a com ferocidade, cravando-se nela sem preâmbulos, com uma brutalidade inútil. Deu-se conta demasiado tarde, pelas salpicadelas de sangue no vestido, que a jovem era virgem, mas nem a humilde condição de Pancha, nem as oprimidas exigências do seu apetite lhe permitiram ter contemplações. Pancha Garcia não se defendeu, não se queixou, não fechou os olhos. Ficou de costas, olhando o céu com uma expressão espavorida, até que sentiu o homem que cala com um gemido a seu lado. Então começou a chorar suavemente. Antes dela a sua mãe, antes da sua mãe a sua avó tinham sofrido o mesmo destino de cadela. Esteban Trueba compôs as calças, apertou o cinto, ajudou-a a pôr-se em pé e sentou-a na garupa do cavalo. Tomaram o caminho de regresso. Ele ia assobiando. Antes de a deixar no casebre, o patrão beijou-a na boca:
- A partir de amanhã quero que trabalhes lá em casa - disse.
Pancha disse que sim, sem levantar os olhos. Também a mãe e a avó tinham servido na casa senhorial.
Nessa noite Esteban Trueba dormiu como um justo, sem sonhar com Rosa. De manhã sentia-se cheio de energia, maior e poderoso. Foi para o campo cantarolando e, no regresso, Pancha estava na cozinha, atarefada, mexendo o manjar branco numa grande panela de cobre. Nessa noite esperou-a com impaciência e, quando se calaram os ruídos domésticos do velho casarão de adobe e começaram as andanças das ratazanas, sentiu a presença da rapariga no umbral da porta.
- Vem Pancha - chamou-a. Não era uma ordem, mas antes uma súplica.
Dessa vez Esteban teve tempo para a gozar e fazê-la gozar. Percorreu-a tranquilamente, aprendendo de memória o cheiro a fumo do seu corpo e da sua roupa lavada com cinza e passada com ferro a carvão. Conheceu a textura do seu cabelo negro e liso, da sua pele suave nos sítios mais recônditos, áspera e calosa nos outros, dos seus lábios frescos, do seu sexo sereno e do seu ventre amplo. Desejou-a com calma e iniciou-a na ciência mais secreta e mais antiga. Provavelmente foi feliz nessa noite e nalgumas noites mais, brincando como dois cachorros na grande cama de ferro forjado que tinha sido do primeiro Trueba e que já estava meio coxa, mas que ainda podia resistir às investidas do amor.
Cresceram os seios de Pancha Garcia e arredondaram-se-lhe as ancas. Esteban Trueba melhorou por algum tempo o mau humor e começou a interessar-se pelos seus caseiros. Visitou-os nos casebres de miséria. Descobriu na penumbra de um deles um caixote cheio de papel de jornal onde compartilhavam o sono uma criança de peito e uma cadela recém-parida. Noutro, viu uma anciã que há quatro anos estava morrendo e que tinha os ossos à vista pelas chagas das costas. Num pátio conheceu um adolescente idiota que se babava, com uma corda ao pescoço, atado a um poste, falando de coisas de outro mundo, nu e com um sexo de macho que esfregava incansavelmente contra o chão. Deu-se conta, pela primeira vez, que o pior abandono não era o das terras e dos animais, mas o dos habitantes de Las Tres Marias, que tinham vivido no desamparo desde a época em que o seu pai jogou o dote e a herança de sua mãe. Decidiu que era tempo de levar um pouco de civilização a esse canto perdido entre a cordilheira e o mar.
Em Las Tres Marias começou uma febre de actividade que sacudiu a modorra. Esteban Trueba pôs os camponeses a trabalhar como nunca o tinham feito. Cada homem, mulher, velho ou criança que pudesse ter-se nas pernas foi empregado pelo patrão, ansioso de recuperar em poucos meses os anos de abandono. Mandou construir um celeiro e despensas para guardar alimentos para o Inverno, mandou salgar a carne de cavalo e fumar a de porco e pôs as mulheres a fazer doces e conservas de frutas. Modernizou a ordenha, que não passava de um barracão cheio de esterco e moscas, e obrigou as vacas a produzir suficiente leite. Iniciou a construção de uma escola com seis salas porque tinha a ambição de que todas as crianças e adultos das Tres Marias deviam aprender a ler, escrever e somar, ainda que não fosse partidário de que adquirissem outros conhecimentos, para que não se lhes enchesse a cabeça com ideias impróprias ao seu estado e condição. No entanto, não conseguiu um professor que quisesse trabalhar naquelas lonjuras e, perante a dificuldade de apanhar os garotos com promessas de açoites e caramelos para alfabetizá-los ele mesmo, abandonou a ilusão e deu outros usos à escola. Sua irmã Férula enviava-lhe da capital os livros que ele encomendava. Era literatura prática. Com eles aprendeu a dar injecções nas pernas e fabricou um rádio de galena. Gastou os seus primeiros ganhos na compra de tecidos rústicos, uma máquina de costura, uma caixa de pílulas homeopáticas com o seu manual de instruções, uma enciclopédia e um carregamento de cartilhas, cadernos e lápis. Acarinhou o projecto de fazer um refeitório onde todas as crianças recebessem uma refeição completa por dia, para crescerem fortes e sãs e poderem trabalhar desde pequenas, mas compreendeu que era loucura obrigar as crianças a virem do extremo da propriedade por um prato de comida, de maneira que mudou o projecto para um oficina de costura. Pancha Garcia foi a encarregada de desvendar os mistérios da máquina de costura. A principio, julgava que era um instrumento do diabo, dotado de vida própria, e negava-se a aproximar-se, mas ele foi inflexível e ela acabou por dominá-la. Trueba organizou uma cantina. Era um modesto armazém onde os caseiros podiam comprar o necessário sem ter de fazer a viagem de carroça até San Lucas. O patrão comprava as coisas por grosso e revendia-as pelo mesmo preço aos seus trabalhadores. Impôs um sistema de vales, que funcionou a princípio como uma forma de crédito e com o tempo chegou a substituir o dinheiro legal. Com os seus papéis cor-de-rosa comprava-se de tudo na cantina e pagavam-se os salários. Cada trabalhador tinha direito, além dos famosos papelinhos, a um pedaço de terra para cultivar no seu tempo livre, seis galinhas por família por ano, uma porção de sementes, uma parte da colheita que cobrisse as suas necessidades, pão e leite para o dia e cinquenta pesos que se dividiam pelo Natal e pelas festas nacionais entre os homens. As mulheres não tinham esse bónus, mesmo que trabalhassem como os homens de igual para igual, porque não eram consideradas chefes de família, excepto no caso das viúvas. O sabão para lavar, a lã para tecer e o xarope para fortalecer os pulmões eram distribuídos gratuitamente, porque Trueba não queria à sua volta gente suja, com frio ou doente. Um dia leu na enciclopédia as vantagens de uma dieta equilibrada e começou a sua mania das vitaminas, que havia de durar-lhe para o resto da vida. Tinha acessos de cólera quando verificava que os camponeses davam às crianças só o pão e alimentavam os porcos com leite e ovos. Começou a fazer reuniões obrigatórias na escola para lhes falar das vitaminas e de caminho informá-los sobre as notícias que conseguia captar através dos escarcéus infernais da galena. Aborreceu-se rapidamente de perseguir a onda com o arame e encomendou da capital um rádio transoceânico, munido de duas enormes baterias. Com ele podia captar algumas mensagens coerentes no meio de um ensurdecedor barulho de assobios de ultramar. Assim soube da guerra na Europa e seguiu os avanços das tropas num mapa que pendurou no quadro da escola e que ia marcando com alfinetes. Os camponeses observavam-no estupefactos, sem compreender, nem remotamente, o propósito de cravar um alfinete na cor azul e no dia seguinte passá-lo para a cor verde. Não podiam imaginar o mundo do tamanho de um papel suspenso no quadro, nem os exércitos reduzidos à cabeça de um alfinete. Na realidade, a guerra, os inventos da ciência, o progresso da indústria, o preço do ouro e as extravagancias da moda não os preocupavam. Eram contos de fadas que em nada modificavam a estreiteza da sua existência. Para aquele impávido auditório, as notícias da rádio eram afastadas e alheias, e o aparelho desprestigiou-se rapidamente quando foi evidente que não podia prever o estado do tempo. O único que demonstrava interesse pelas mensagens vindas do ar era Pedro Segundo Garcia.
Esteban Trueba compartilhou com ele muitas horas, primeiro junto do rádio de galena e depois com o de bateria, esperando o milagre de uma voz anónima e remota que os pusesse em contacto com a civilização. Isto, no entanto, não conseguiu aproximá-los. Trueba sabia que aquele rude camponês era mais inteligente que os outros. Era o único que sabia ler e era capaz de manter uma conversação de mais de três frases. Era o mais parecido com um amigo que tinha em cem quilómetros à volta, mas o seu orgulho monumental impedia-o de reconhecer nele alguma virtude, excepto aquelas próprias da sua condição de bom trabalhador do campo. Nem era partidário das familiaridades com os subalternos. Por seu lado, Pedro Segundo odiava-o, mesmo que nunca tivesse posto nome a esse sentimento tormentoso que lhe abrasava a alma e o enchia de confusão. Pressentia que nunca se atreveria a fazer-lhe frente, porque ele era o patrão. Teria de suportar as suas cóleras, as suas ordens injustas e a sua prepotência durante o resto da vida. Nos anos em que Las Tres Marias estiveram abandonadas, ele tinha assumido de forma natural o mando da pequena tribo que sobreviveu nessas terras esquecidas. Tinha-se acostumado a ser respeitado, a mandar, a tomar decisões e a não ter mais que o céu sobre a sua cabeça. A chegada do patrão mudou-lhe a vida, mas não podia deixar de admitir que agora viviam melhor, que não passavam fome e que estavam mais protegidos e seguros. Algumas vezes, Trueba julgou ver-lhe nos olhos um brilho assassino, mas nunca pôde acusá-lo de uma insolência que fosse. Pedro Segundo obedecia sem refilar, trabalhava sem se queixar, era honesto e parecia leal. Se via passar a irmã Pancha no corredor da casa senhorial, com o vaivém pesado de fêmea satisfeita, baixava a cabeça e calava-se.
Pancha Garcia era jovem e o patrão era forte. O resultado previsto da sua relação começou a notar-se em poucos meses. As veias das pernas da rapariga apareceram como lombrigas na sua pele morena, o seu gesto tornou-se mais lento, o seu olhar mais largo, perdeu o interesse pelas brincadeiras descaradas na cama de ferro forjado e rapidamente ficou com a cintura grossa e os seios a caírem-lhe com o peso de uma nova vida que lhe crescia nas entranhas. Esteban levou muito tempo a dar-se conta disso, porque quase nunca a olhava e, passado o entusiasmo do primeiro momento, nem a acariciava. Limitava-se a utilizá-la como uma medida higiénica que lhe aliviava a tensão do dia e lhe oferecia uma noite sem sonhos. Mas chegou o momento em que a gravidez de Pancha foi evidente inclusivamente para ele. Tomou-lhe r pulsa. Começou a vê-la como uma enorme vasilha que continha uma substância informe e gelatinosa, que não podia reconhecer como seu filho. Pancha abandonou a casa do patrão e regressou ao casebre de seus pais onde não lhe fizeram perguntas. Continuou a trabalhar na cozinha senhorial, amassando o pão e cosendo à máquina, cada dia mais deformada pela maternidade. Deixou de servir Esteban à mesa e evitou encontrar-se com ele, já que nada tinham a compartilhar. Uma semana depois de ela sair da sua cama, voltou a sonhar com Rosa e despertou com os lençóis húmidos. Olhou pela janela e viu uma menina delgada que estava a pendurar roupa recém-lavada no arame. Não parecia ter mais que treze ou catorze anos, mas estava completamente desenvolvida. Nesse momento voltou-se e olhou-o, tinha o olhar de uma mulher.
Pedro Garcia viu o patrão sair assobiando a caminho do estábulo e abanou a cabeça inquieto.
No decurso dos dez anos seguintes, Esteban Trueba tornou-se o patrão mais respeitado da região, construiu casas de tijolo para os seus trabalhadores, conseguiu um professor para a escola e subiu o nível de vida a toda a gente nas suas terras. Las Tres Marias era um bom negócio, que não precisava da ajuda do filão de ouro mas, pelo contrário, serviu de garantia para prorrogar a concessão da mina. O mau carácter de Trueba tornou-se lenda e acentuou-se até chegar a incomodá-lo a ele próprio. Não aceitava que ninguém o contestasse, não tolerava nenhuma contradição e considerava que a menor discordância era provocação. Também aumentou a sua voluptuosidade. Não passava nenhuma rapariga da puberdade à idade adulta sem que ele a fizesse provar o bosque, a orla do rio ou a cama de ferro forjado. Quando não ficaram mulheres disponíveis em Las Tres Marias, dedicou-se a perseguir as de outras fazendas, violando-as num abrir e fechar de olhos, em qualquer lugar do campo, geralmente ao entardecer. Não se preocupava em fazê-lo às escondidas porque não tinha medo de ninguém. Nalgumas ocasiões, chegaram a Las Tres Marias um irmão, um pai, um marido ou um patrão a pedir-lhe contas, mas, ante a sua violência descontrolada, essas visitas de justiça ou de vingança foram cada vez menos frequentes. A fama da sua brutalidade estendeu-se por toda a zona e causava invejosa admiração entre os machos da sua classe. Os camponeses escondiam as raparigas e apertavam os punhos inutilmente, pois não podiam fazer-lhe frente. Esteban Trueba era mais forte e tinha impunidade. Por duas vezes apareceram cadáveres de camponeses de outras fazendas crivados por tiros de espingarda e a ninguém coube dúvida de que se tinha de procurar o culpado em Las Tres Marias, mas os polícias rurais limitaram-se a anotar o facto no livro de registos, com a trabalhosa caligrafia dos semianalfabetos, acrescentando que tinham sido surpreendidos a roubar. A coisa não passou dali. Trueba continuou cultivando o seu prestigio de racha-diabos, semeando a região de bastardos, colhendo ódio e armazenando culpas que não lhe faziam mossa, porque se lhe havia curtido a alma e tranquilizado a consciência com o pretexto do progresso. Em vão Pedro Segundo Garcia e o velho padre do hospital das montanhas trataram de lhe sugerir que não eram as casinhas de tijolo nem os litros de leite que faziam um bom patrão, ou um bom cristão, mas sim dar às pessoas um salário decente em vez de papelinhos cor-de-rosa, um horário de trabalho que não lhes moesse os rins e um pouco de respeito e dignidade. Trueba não queria ouvir falar dessas coisas que, segundo ele, cheiravam a comunismo.
- São ideias degeneradas - dizia entre dentes, - ideias bolchevistas para sublevar os rendeiros. Não se dão conta de que esta pobre gente não tem cultura nem educação, não pode assumir responsabilidades, são crianças. Como vão saber o que lhes convém? Sem mim estariam perdidos. A prova é que, quando volto a cara, vai tudo para o diabo e começam a fazer asneiras. São muito ignorantes. A minha gente está muito bem, que mais querem? Não lhes falta nada. Se se queixam é porque são mal agradecidos. Têm casas de tijolo, preocupo-me em assoar os moncos, em tirar os parasitas aos garotos, levar-lhes vacinas e ensinar-lhes a ler. Há por aqui outra fazenda que tenha a sua própria escola? Não! Sempre que posso, levo-os ao padre para que lhes diga umas missas, por isso não percebo porque vem o padre falar-me de injustiça. Não tem de se meter no que não sabe e não é da sua incumbência. Eu queria vê-lo a tomar conta desta propriedade, para ver se ia andar com paninhos quentes. Com estes pobres diabos há que ter mão dura, é a única linguagem que entendem. Se nos tornarmos brandos, não nos respeitam. Não nego que muitas vezes fui demasiado severo, mas fui sempre justo. Tive de lhes ensinar tudo, até a comer, porque se fosse por eles alimentavam-se só de pão! Se me descuido, dão o leite e os ovos aos porcos. Não sabem limpar o cu e querem ter o direito de voto! Se não sabem onde estão, como vão saber de política? São capazes de votar pelos comunistas, como os mineiros do Norte, que com as greves prejudicam todo o pais, justamente quando o preço do minério está no seu ponto máximo. Mandar para lá a tropa era o que eu faria no Norte, para os correr à bala, a ver se aprendem de uma vez por todas. Infelizmente, o cacete é a única coisa que funciona nestes países. Não estamos na Europa. Aqui o que se necessita é um governo forte, um patrão forte. Seria muito bonito sermos todos iguais, mas não o somos. Isso salta à vista. Aqui a única pessoa que sabe trabalhar sou eu e desafio a que me provem o contrário. Sou o primeiro a levantar-se e o último a deitar-se nesta maldita terra. Se fosse por mim, mandava tudo para o caralho e ia viver como um príncipe na capital, mas tenho de estar aqui, porque se me ausento, ainda que seja uma semana, isto cai de rastos e estes infelizes começam a morrer de fome. Lembrem-se como era isto quando cheguei, faz nove ou dez anos: uma desolação. Era uma ruína de pedras e abutres. Uma terra de ninguém. Estavam todos os pastos abandonados. Ninguém se tinha lembrado de canalizar a água. Contentavam-se em plantar quatro alfaces imundas nos seus quintais e deixavam que tudo o resto se afundasse na miséria. Foi necessário eu chegar para haver aqui ordem, lei, trabalho. Como não vou estar orgulhoso? Trabalhei tão bem que já comprei as duas terras vizinhas e esta propriedade é a maior e mais rica de toda a zona, a inveja de toda a gente, um exemplo, uma propriedade modelo. E agora que a estrada passa ao lado, duplicou o seu valor, se quisesse vendê-la podia ir-me embora para a Europa e viver dos meus rendimentos, mas não vou, fico aqui a chatear-me. Faço isto por esta gente. Sem mim, estariam perdidos. Se vamos ao fundo das coisas, não servem nem para fazer recados, sempre o disse: são como crianças. Não há nenhum que faça o que tem a fazer sem que eu tenha de estar por trás a chicoteá-lo. E depois vêm-me com a história de que somos todos iguais! É de morrer a rir, caralho...
Para a sua mãe e irmã mandava caixotes com frutas, carnes salgadas, presuntos, ovos frescos, galinhas vivas e em escabeche, farinha, arroz e grão em sacos, queijos do campo, e todo o dinheiro de que necessitavam, porque isso não lhe faltava. Las Tres Marias e a mina produziam como era devido pela primeira vez desde que Deus pôs aquilo no planeta, como ele gostava de dizer a quem quisesse ouvi-lo. Dava a Dona Ester e Férula o que tinham ambicionado, mas não teve tempo, em todos esses anos, para as ir visitar ainda que fosse de caminho, nalguma das suas viagens ao Norte. Estava tão ocupado no campo, nas novas terras que tinha comprado e em outros negócios em que começava a pôr a luva, que não podia perder o seu tempo junto ao leito de uma enferma. Além disso, existia o correio que os mantinha em contacto e o comboio que lhe permitia mandar tudo o que quisesse. Não tinha necessidade de as ver. Tudo se podia dizer por carta. Tudo menos o que não queria que soubessem, como a recua de bastardos que ia nascendo como por artes mágicas. Bastava tombar uma rapariga no prado e pô-la prenha imediatamente, era coisa do demónio, tanta fertilidade era insólita, mas estava seguro de que metade das crianças não eram suas. Por isso decidiu que, fora o filho de Pancha Garcia, que se chamava Esteban como ele e que não tinha dúvida disso porque a sua mãe era virgem quando a possuíra, os outros podiam ser seus filhos e podiam não o ser, e sempre era melhor pensar que o não eram. Quando chegava a sua casa alguma mulher com uma criança nos braços para reclamar o apelido ou alguma ajuda, punha-a na rua com um par de notas na mão e a ameaça de que, se tornasse a importuná-lo, corrê-la-ia a pontapés para que não lhe ficasse vontade de andar abanando o rabo ao primeiro homem que visse e de acusá-lo depois a ele. Foi assim que nunca se inteirou do número exacto dos seus filhos e, na realidade, o assunto não lhe interessava. Pensava que, quando quisesse ter filhos, procurava uma esposa da sua classe, com a bênção da Igreja, porque os únicos que contavam eram os que levavam o apelido do pai, os outros eram como se não existissem... Que não lhe viessem com a monstruosidade de que todos nasciam com os mesmos direitos e herdavam igual, porque nesse caso ia tudo para o caralho e a civilização regressava à Idade da Pedra. Recordava-se de Nívea, a mãe de Rosa, que, depois do marido renunciar à política aterrado pela aguardente envenenada, iniciou a sua própria política. Juntava-se às outras senhoras nas fileiras do Congresso e da Corte Suprema, provocando um espectáculo acalorado que metia os maridos a ridículo. Sabia que Nívea saia de noite a colar cartazes sufragistas nas paredes da cidade e era capaz de passear pelo centro em pleno meio-dia de um domingo, com uma vassoura na mão e um barrete na cabeça, pedindo que as mulheres tivessem os direitos dos homens, que pudessem votar e entrar na universidade, pedindo também que todas as crianças gozassem da protecção da lei, mesmo que fossem bastardas.
- Essa senhora está mal da cabeça! - dizia Trueba. – Isso seria ir contra a natureza. Se as mulheres não sabem somar dois mais dois, ainda menos poderão pegar num bisturi. A sua função é a maternidade, o lar. Por este caminho, qualquer dia vão querer ser deputados e juizes, até presidentes da República! E entretanto estão fazendo uma confusão e uma desordem que pode terminar em desastre. Andam publicando panfletos indecentes, falam pela rádio, sentam-se em lugares públicos e tem de ir lá a polícia com um ferreiro para que lhes ponha as algemas e as possa levar presas, que é como devem estar. É lamentável que haja sempre um marido influente, um juiz de poucos brios ou um parlamentar com ideias revoltosas que as põe em liberdade... Mão lura é o que faz falta também neste caso.
A guerra na Europa tinha terminado e os vagões cheios de mortos era um clamor longínquo, mas que ainda não se apagara. De lá, estavam chegando as ideias subversivas trazidas pelos ventos incontroláveis da rádio, do telégrafo e dos barcos carregados de emigrantes, que chegavam como um tropel atónito, escapando à fome da sua terra, assolados pelo rugido das bombas e dos mortos apodrecendo nos sulcos do arado. Era ano de eleições presidenciais e de preocupação pela reviravolta que os acontecimentos estavam tomando. O país despertava. A onda de descontentamento que agitava o povo embatia contra a sólida estrutura daquela sociedade oligárquica. Nos campos houve de tudo: seca, caracol, febre aftosa. No Norte havia desemprego e na capital sentia-se o efeito da guerra afastada. Foi um ano de miséria em que só faltou um terramoto para rematar o desastre.
A classe alta, no entanto, dona do poder e da riqueza, não se deu conta do perigo que ameaçava o frágil equilíbrio da sua posição. Os ricos divertiam-se dançando o charleston e os novos ritmos do jazz, o fox-trot e cumbias (Dança típica da costa colombiana (N. T.)) de negros que eram uma maravilhosa indecência. Renovaram-se as viagens de barco à Europa, que se haviam suspendido durante os quatro anos de guerra, e tornaram-se moda outras à América do Norte. Chegou a novidade do golfe, que reunia a melhor sociedade para bater numa bolinha com um taco, tal como duzentos anos antes faziam os índios naqueles mesmos lugares. As damas punham colares de pérolas falsas até ao joelho e chapéus de penico enfiados até às sobrancelhas, cortavam o cabelo como os homens e pintavam-se como meretrizes, tinham acabado com o espartilho e fumavam de perna cruzada. Os cavalheiros andavam deslumbrados pelo invento dos carros norte-americanos, que chegavam ao país pela manhã e se vendiam no mesmo dia à tarde, apesar de custarem uma pequena fortuna e não passarem dum estrépito de fumo e de porcas soltas correndo a uma velocidade suicida pelos caminhos que tinham sido feitos para os cavalos e outras bestas naturais, mas em nenhum caso para máquinas de fantasia. Nas mesas de jogo, jogavam-se as heranças e as riquezas fáceis do após-guerra, abria-se o champanhe e chegou a novidade da cocaína para os mais refinados e viciosos. A loucura colectiva parecia não ter fim.
Mas no campo os novos automóveis eram uma realidade tão remota como os vestidos curtos, e mesmo os que se livraram do caracol e da febre aftosa não acharam que fosse um bom ano. Esteban Trueba e outros senhores da terra da região juntavam-se no clube da povoação para planear a acção política antes das eleições. Os camponeses ainda viviam como nos tempos coloniais, não tinham ouvido falar de sindicatos, nem de domingos festivos, nem de salário mínimo, mas já começavam a infiltrar-se nas propriedades os delegados dos novos partidos de esquerda, entravam disfarçados de evangelizadores com uma bíblia debaixo de braço e panfletos marxistas debaixo do outro, pregando simultaneamente a vida abstémia e a morte pela revolução. Esses almoços de confraternização dos patrões terminavam em bebedeiras romanas ou em lutas de galos, e ao anoitecer tomavam de assalto o Farolito Rojo, onde as prostitutas de doze anos e Carmelo, o único maricas do bordel e da aldeia, bailavam ao som de uma grafonola antediluviana, sob o olhar atento de Sofia, que já não estava para essas cavalgadas, mas que ainda tinha energia para o gerir com mão de ferro e para impedir que se pusessem os polícias a esfregar a paciência e os patrões a exceder-se com as raparigas, fodendo sem pagar. Entre todas, Tránsito Soto era a que melhor bailava e a que mais resistia às investidas dos bêbados, era incansável e nunca se queixava de nada, como se tivesse a virtude tibetana de deixar o mísero esqueleto de adolescente nas mãos dos clientes e mudar a alma para uma região afastada. Agradava a Esteban Trueba porque não se cortava às inovações e brutalidades do amor, sabia cantar com voz de pássaro rouco e porque lhe disse uma vez que chegaria muito longe e ele achou graça a isso.
- Não vou ficar no Farolito Rojo toda a vida, patrão. Vou para a capital, porque quero ser rica e famosa - disse.
Esteban ia ao lupanar porque era o único lugar de diversão da povoação, mas não era homem de prostitutas. Não gostava de pagar pelo que podia fazer por outros meios. Mas no entanto apreciava Tránsito Soto. A jovem fazia-o rir.
Um dia, depois de fazer amor, sentiu-se generoso, o que raramente lhe sucedia, e perguntou a Tránsito Soto se gostava que ele lhe desse um presente.
- Empresta-me cinquenta pesos, patrão! - pediu ela por fim.
- É muita prata. Para que a queres tu?
- Para uma passagem de comboio, um vestido vermelho, uns sapatos de salto alto, um frasco de perfume e para fazer a permanente. É tudo o que eu preciso para começar. Vou devolvê-los um dia, patrão. Com juros.
Esteban deu-lhe os cinquenta pesos porque nesse dia tinha vendido cinco novilhos e andava com os bolsos cheios de notas e também porque a fadiga do prazer satisfeito o punha um pouco sentimental.
- A única coisa que sinto é que não te vou voltar a ver, Tránsito. Tinha-me acostumado a ti.
- Vamo-nos voltar a ver, sim, patrão. A vida é longa e dá muitas voltas.
Essas comezainas no clube, as rixas de galos e as tardes no bordel culminaram num plano inteligente, ainda que não original de todo, para fazer votar os camponeses. Deram-lhes uma festa com empadas e muito vinho, sacrificaram-se algumas reses para assar, tocaram-lhes canções na guitarra, impingiram-lhes alguns discursos patrióticos e prometeram-lhes que se vencesse o candidato conservador teriam uma gratificação, mas se vencesse outro qualquer ficavam sem trabalho. Além disso, controlaram as urnas e subornaram a polícia. Depois da festa meteram os camponeses dentro de carroças e levaram-nos a votar, bem vigiados, entre chalaças e gargalhadas, a única oportunidade em que tinham familiaridades com eles: compadre para aqui compadre para acolá, conte comigo que eu não lhe falto, patrãozinho, assim agrada-me, homem, tens de ter consciência patriótica, olha que os liberais e os radicais são todos uns poltrões e os comunistas são uns ateus, filhos da pura, que comem criancinhas.
No dia das eleições tudo correu como estava previsto, em perfeita ordem. As Forças Armadas garantiram o processo democrático, tudo em paz, um dia de Primavera mais alegre e com mais sol que os outros.
- Um exemplo para este continente de índios e de negros, que passam a vida em revoluções, para derrubar um ditador e pôr outro. Este é um pais diferente, uma verdadeira República, temos orgulho cívico, aqui o Partido Conservador ganha de caras e não necessita de um general para haver ordem e tranquilidade, não é como essas ditaduras da região onde se matam uns aos outros, enquanto os gringos levam todas as matérias-primas - afirmou Trueba na sala de jantar do clube, brindando com um copo na mão, no momento em que soube dos resultados da votação.
Três dias depois, quando se tinha voltado à rotina, chegou a carta de Férula a Las Tres Marias. Esteban Trueba tinha sonhado essa noite com Rosa. Fazia muito tempo que isso não lhe acontecia. No sonho viu-a com o seu cabelo de salgueiro solto pelos ombros, como um manto vegetal que a cobria até à cintura, a pele dura e gelada, da cor e textura do alabastro. Ia nua e levava um embrulho nos braços, caminhava como se caminha nos sonhos, aureolada pelo resplendor que flutuava à volta do seu corpo. Viu-a aproximar-se lentamente e, quando quis tocá-la, ela atirou o embrulho para o chão, partindo-se a seus pés. Ele baixou-se, apanhou-o e viu uma menina sem olhos que lhe chamava papa. Acordou angustiado e andou de mau humor toda a manhã. Por causa do sonho, sentiu-se inquieto muito antes de receber a carta de Férula. Entrou na cozinha para tomar o pequeno almoço, como todos os dias, e viu uma galinha que andava a bicar as migalhas no chão. Mandou-lhe um pontapé que lhe abriu a barriga, deixando-a agonizante num charco de tripas e penas, batendo as asas no meio da cozinha. Isso não o acalmou, pelo contrário, aumentou a sua raiva e sentiu que começava a afogar-se. Montou no cavalo e foi a galope vigiar o gado que estavam a marcar. Nessa altura chegou a casa Pedro Segundo Garcia, que tinha ido à estação de San Lucas deixar uma encomenda e tinha passado pela povoação a recolher o correio. Trazia a carta de Férula.
O sobrescrito aguardou toda a manhã sobre a mesa da entrada. Quando Esteban Trueba chegou foi directamente tomar banho porque vinha coberto de suor e pó, impregnado do cheiro inconfundível dos animais aterrorizados. Depois sentou-se no escritório a fazer contas e ordenou que lhe servissem a comida numa bandeja. Não viu a carta da irmã até à noite, quando percorreu a casa como fazia sempre antes de se deitar, para ver se as luzes estavam apagadas e as portas fechadas. A carta de Férula era igual a todas as que tinha recebido dela, mas, ao tê-la na mão, soube, ainda antes de a abrir, que o seu conteúdo lhe mudaria a vida. Teve a mesma sensação que quando pegara no telegrama da irmã anunciando-lhe a morte de Rosa, anos atrás.
Abriu-a sentindo que lhe estalavam as fontes pelo pressentimento. A carta dizia laconicamente que Dona Ester Trueba estava a morrer e que Férula, depois de tantos anos a cuidar dela e a servi-la como uma escrava, tinha de aguentar que a sua mãe nem sequer a reconhecesse, mas que chamava dia e noite pelo seu filho Esteban, porque não queria morrer sem vê-lo! Esteban nunca tinha querido realmente a sua mãe, nem se sentia bem na sua presença, mas a notícia deixou-o a tremer. Compreendeu que já não lhe serviam os pretextos sempre novos que inventava para não a visitar, e que tinha chegado o momento de fazer o caminho de volta à capital e enfrentar pela última vez essa mulher que estava presente nos seus pesadelos, com o seu cheiro rançoso a medicamentos, os seus queixumes ténues, as suas intermináveis orações, essa mulher sofredora que tinha povoado de proibições e terrores a sua infância e carregado de responsabilidades e culpas a sua vida de homem.
Chamou Pedro Segundo Garcia e explicou-lhe a situação. Levou-o ao escritório e mostrou-lhe o livro da contabilidade e as contas da cantina. Entregou-lhe um molho com todas as chaves, menos a da adega, e anunciou-lhe que, a partir desse momento e até ao seu regresso, ele era o responsável por tudo o que havia em Las Tres Marias. Pedro Segundo Garcia recebeu as chaves, meteu o livro das contas debaixo do braço e sorriu de alegria.
- Cada um faz o que pode, nada mais, patrão – disse encolhendo os ombros.
No dia seguinte, Esteban Trueba refez, pela primeira vez em muitos anos, o caminho que o tinha levado de casa da mãe para o campo. Foi numa carroça com as duas malas de couro até à estação de San Lucas, tomou a carruagem de primeira classe dos tempos da companhia inglesa de caminhos-de-ferro e tornou a percorrer os vastos campos que se estendiam no sopé da cordilheira.
Clara, Clarividente
Clara tinha dez anos quando decidiu que não valia a pena falar e se fechou no mutismo. A sua vida mudou de maneira notável. O médico da família, o gordo e afável doutor Cuevas, tentou curá-la do silêncio com pílulas da sua invenção, com vitaminas em xarope e zaragatoas de bórax na garganta, mas sem nenhum resultado aparente. Deu conta de que os seus medicamentos eram ineficazes e que a sua presença punha a menina em estado de terror. Ao vê-lo, Clara começava a berrar e refugiava-se no canto mais afastado, encolhida como um animal acossado, de maneira que abandonou as curas e recomendou a Severo e Nívea que a levassem a um romeno, de apelido Rostipov, que estava causando sensação nessa temporada. Rostipov ganhava a vida fazendo truques de ilusionista nos teatros de variedades e tinha realizado a incrível façanha de estender um arame desde a ponta da catedral até à cúpula da Irmandade Galega, do outro lado da praça, para a atravessar caminhando pelo ar com uma vara por única segurança. Apesar do seu lado frívolo, Rostipov estava provocando uma confusão nos círculos científicos porque nas horas livres melhorava a histeria com varinhas mágicas e transes hipnóticos. Nívea e Severo levaram Clara ao consultório que o romeno tinha improvisado no hotel. Rostipov examinou-a cuidadosamente e por fim declarou que o caso não era da sua incumbência, porque a pequena não falava porque não queria mesmo, e não porque não pudesse. De qualquer modo, face à insistência dos pais, fabricou umas pílulas de açúcar pintadas de cor violeta e receitou-as advertindo de que era um remédio siberiano para curar surdos e mudos. Mas a sugestão não funcionou neste caso e o segundo frasco foi devorado por Barrabás por descuido, sem que isso provocasse no animal nenhuma reacção apreciável. Severo e Nívea tentaram fazê-la falar com métodos caseiros, com ameaças e súplicas e até deixando-a sem comer, a ver se a fome a obrigava a abrir a boca, para pedir o jantar, mas nem isso resultou.
A Ama tinha a ideia de que um bom susto podia conseguir que a menina falasse e passou nove anos inventando recursos desesperados para aterrorizar Clara, o que só conseguiu imunizá-la contra a surpresa e o espanto. Em pouco tempo, Clara não tinha medo de nada, não a comoviam as aparições de monstros lívidos e magros no seu quarto nem as pancadas dos vampiros e demónios na janela. A Ama disfarçava-se de flibusteiro sem cabeça, verdugo da Torre de Londres, de cão lobo e de diabo cornudo, segundo a inspiração do momento e as ideias que tirava de uns folhetos de terror que comprava para esse fim e donde, embora não fosse capaz de os ler, copiava as ilustrações. Adquiriu o costume de deslizar silenciosamente pelos corredores para assaltar a menina no escuro, de uivar detrás das portas e de lhe esconder bichos vivos na cama, mas nada disto conseguiu arrancar-lhe uma palavra que fosse. Às vezes Clara perdia a paciência, atirava-se ao chão, torcia-se e gritava, mas sem articular nenhum som em idioma conhecido, ou então anotava na pequena lousa que trazia sempre consigo os piores insultos para a pobre mulher, que ia para a cozinha chorar pela incompreensão.
- Faço isto para teu bem, meu anjinho! - soluçava embrulhada no lençol ensanguentado e com a cara mascarrada de cortiça queimada.
Nívea proibiu-a de continuar a assustar a filha. Verificou que o estado de perturbação aumentava os seus poderes mentais e produzia desordem nas aparições que andavam à volta da criança. Além disso, aquele desfile de figuras truculentas estava a destruir o sistema nervoso de Barrabás, que nunca teve bom faro e era incapaz de reconhecer a Ama debaixo dos seus disfarces. O cão começou a urinar-se sentado, deixando à sua volta um imenso charco, e com frequência rangia os dentes. Mas a Ama aproveitava qualquer descuido da mãe para continuar nas suas invenções de curar a mudez com o mesmo remédio com que se curam os soluços.
Retiraram Clara do colégio das freiras onde se tinham educado todas as irmãs del Valle e puseram-lhe professores em casa. Severo mandou vir de Inglaterra uma instrutora, Miss Agatha, alta, toda ela cor de âmbar e com grandes mãos de pedreiro, mas que não resistiu à mudança de clima, à comida picante e aos voos autónomos do saleiro deslocando-se sobre a mesa de jantar e acabou por regressar a Liverpool. A que se seguiu foi uma suíça que não teve melhor sorte, e a francesa que chegou graças aos contactos do embaixador desse pais com a família era tão rosada, redonda e doce que ficou grávida em poucos meses e, ao fazerem-se investigações sobre o caso, soube-se que o pai era Luís, irmão mais velho de Clara. Severo casou-os sem lhes perguntar a opinião e, contra todas as previsões de Nívea e suas amigas, foram muito felizes. Em face destas experiências, Nívea convenceu o marido de que aprender idiomas estrangeiros não era importante para uma criança com habilidades telepáticas e que era muito melhor insistir com as classes de piano e ensinar-lhe a bordar.
A pequena Clara lia muito. O seu interesse pela leitura era indiscriminado, e tanto lhe serviam os livros mágicos dos baús encantados de tio Marcos como os documentos do Partido Liberal que o pai guardava no escritório. Enchia incontáveis cadernos com anotações privadas, onde foram ficando registados os acontecimentos desse tempo, que graças a isso não se perderam apagados pela neblina do esquecimento, e que posso usar agora para recuperar a sua memória.
Clara, clarividente, conhecia o significado dos sonhos. Esta habilidade era natural nela e não requeria os intrincados estudos cabalísticos que usava o tio Marcos com mais esforços e menos acerto. O primeiro a dar-se conta disso foi Honório, o jardineiro da casa, que sonhou um dia com cobras que lhe andavam entre os pés e que, para as desenrolar deles, tinha de lhes dar patadas até que conseguiu esmagar dezanove. Contou isto à menina enquanto podava as roseiras, só para a entreter, porque gostava muito dela e lhe fazia pena que fosse muda. Clara tirou a lousa do bolso do avental e escreveu a interpretação do sonho de Honório: terás muito dinheiro, durar-te-á pouco, ganhá-lo-ás sem esforço, joga no dezanove. Honório não sabia ler, mas Nívea leu-lhe a mensagem entre conjecturas e risadas. O jardineiro fez o que lhe diziam e ganhou oitenta pesos num antro clandestino que havia por detrás da casa do carvão. Gastou-os num fato novo, numa bebedeira memorável com todos os seus amigos e numa boneca de loiça para Clara. A partir de então a menina teve muito trabalho decifrando sonhos às escondidas da mãe, porque quando se soube da história de Honório iam perguntar-lhe o que quer dizer voar sobre uma torre com asas de cisne, ir numa barca à deriva e cantar uma sereia com voz de viúva, nascerem dois gémeos pegados pelas costas, cada um com uma espada na mão, e Clara anotava sem vacilar, na lousa, que a torre é a morte e aquele que voa por cima salvar-se-á de morrer num acidente, o que naufraga e escuta a sereia perderá o trabalho e passará privações, mas vai ajudá-lo uma mulher com a qual fará um negócio, os gémeos são marido e mulher forçados no mesmo destino, ferindo-se mutuamente com golpes de espada.
Os sonhos não eram a única coisa que Clara adivinhava. Também via o futuro e conhecia a intenção das pessoas, virtudes que manteve ao longo da sua vida e aumentou com o tempo. Anunciou a morte do padrinho, Don Salomon Valdés, que era corretor da Bolsa do Comércio e que, julgando ter perdido tudo, pendurou-se do candeeiro do seu elegante escritório. Ali o encontraram por insistência de Clara, com o aspecto de um carneiro triste, tal como ela o descreveu na lousa. Previu a hérnia do pai, todos os tremores de terra e outras alterações da natureza, a única vez que caiu neve na capital matando de frio os pobres nas aldeias e os roseirais nos jardins dos ricos, e a identidade do assassino das colegiais muito antes que a polícia descobrisse o segundo cadáver, mas ninguém acreditou e Severo não quis que a filha tivesse opinião sobre assuntos criminais que eram estranhos à família. Clara deu conta imediatamente que Getúlio Armando ia dar cabo de seu pai com o negócio das ovelhas australianas porque o leu na cor da aura. Escreveu isso ao pai, mas este não fez caso e, quando veio a lembrar-se das previsões da filha mais nova, já tinha perdido metade da fortuna, e o seu sócio andava pelas Caraíbas transformado em homem rico, com um serralho de negras cuzudas e um barco próprio para apanhar sol.
A habilidade de Clara para mover objectos sem lhes tocar não passou com a menstruação, como vaticinava a Ama, mas, pelo contrário, foi-se acentuando até ter tanta prática que podia mover as teclas do piano com a tampa fechada, ainda que nunca conseguisse deslocar o instrumento pela sala, como era seu desejo. Nessas extravagâncias ocupava a maior parte da energia e do tempo. Desenvolveu a capacidade de adivinhar uma assombrosa percentagem de cartas do baralho e inventou jogos de fantasia para divertir os irmãos. O pai proibiu-a de descobrir o futuro nas cartas e de invocar fantasmas e espíritos travessos que molestavam o resto da família e aterrorizavam a criadagem, mas Nívea compreendeu que quanto mais limitações e sustos tivesse de impor à sua filha mais nova mais lunática ela se punha, de modo que decidiu deixá-la em paz com os seus truques de espiritista, os seus jogos de pitonisa e o silêncio de caverna, fazendo por amá-la sem condições e aceitá-la tal como era. Clara cresceu como uma planta selvagem, apesar das recomendações do doutor Cuevas, que tinha trazido da Europa a novidade dos banhos de água fria e dos choques eléctricos para curar os loucos.
Barrabás acompanhava a menina dia e noite, excepto nos períodos normais da sua actividade sexual. Estava sempre a rondá-la como uma gigantesca sombra, tão silenciosa como a própria menina, deitava-se a seus pés quando ela se sentava e dormia a seu lado com resfolegar de locomotiva. Chegou a ter uma ligação tão grande com a dona que, quando ela sala da cama para caminhar sonâmbula pela casa, o cão seguia-a na mesma atitude. Em noites de lua cheia era comum vê-los passear pelos corredores, como dois fantasmas flutuando à luz pálida. À medida que o cão foi crescendo tornaram-se evidentes as suas distracções. Nunca compreendeu a natureza translúcida do vidro e nos seus momentos de emoção costumava bater nas janelas ao correr, com a inocente intenção de apanhar algumas moscas. Cala do outro lado num estardalhaço de vidros partidos, surpreendido e triste. Naquele tempo os vidros vinham de França por barco e a mania do animal de se lançar contra eles chegou a ser um problema, até que Clara idealizou o recurso extremo de pintar gatos nas vidraças. Ao tornar-se adulto Barrabás deixou de fornicar com as pernas do piano, como fazia na infância, e o seu instinto reprodutor manifestava-se só quando farejava alguma cadela com o cio nas proximidades. Nessas ocasiões não havia corrente nem porta que o pudessem reter, lançava-se para a rua vencendo todos os obstáculos que se lhe punham pela frente e perdia-se por dois ou três dias. Voltava sempre com a pobre cadela pendurada atrás, suspensa no ar, atravessada pela sua enorme masculinidade. Tinham de esconder as crianças para que não vissem o horrendo espectáculo do jardineiro molhando-os com água fria até que, depois de muita água, patadas e palavrões, Barrabás se desprendia da sua namorada, deixando-a agonizante no pátio da casa, onde Severo tinha de a acabar com um tiro de misericórdia.
A adolescência de Clara decorreu suavemente na grande casa de três pátios de seus pais, mimada pelos irmãos mais velhos, por Severo que a preferia entre todos os filhos, por Nívea e pela Ama, que alternava as suas sinistras excursões disfarçada de cuco com os cuidados mais ternos. Quase todos os irmãos tinham casado ou partido, uns de viagem, outros para trabalhar na província, e a grande casa, que havia albergado uma família numerosa, estava quase vazia, com muitos quartos fechados. A menina ocupava o tempo que lhe deixavam os preceptores a ler, a mover sem lhes tocar os objectos mais diversos, a prender Barrabás, a praticar jogos de adivinhar, e a aprender a tecer, o que, de todas as artes domésticas, foi a única que conseguiu dominar. Desde aquela Quinta-Feira Santa em que o padre Restrepo a acusou de endemoninhada, houve uma sombra sobre a sua cabeça que o amor de seus pais e a discrição dos irmãos conseguiu controlar, mas a fama das suas estranhas habilidades circulou em voz baixa pelas tertúlias de senhoras. Nívea notou que ninguém convidava a filha e até os próprios primos a evitavam. Procurou compensar a falta de amigos com uma dedicação total, com tanto êxito que Clara cresceu alegremente e sempre recordaria a infância como um período luminoso da sua existência, apesar da solidão e da mudez. Em toda a sua vida guardaria na memória as tardes partilhadas com a mãe na salinha de costura, onde Nívea cosia à máquina roupa para os pobres e lhe contava histórias e anedotas familiares, lhe mostrava os daguerreótipos da parede e contava o passado.
- Está a ver este senhor tão sério, com barba de pirata? É o tio Mateus, que foi ao Brasil por causa de um negócio de esmeraldas, mas uma mulata de fogo deitou-lhe mau olhado. Caiu-lhe o cabelo, desprenderam-se-lhe as unhas, soltaram-se-lhe os dentes. Teve de ir a um curandeiro, um bruxo vudu, um negro retinto, que lhe deu um amuleto e os dentes seguraram-se-lhe, nasceram-lhe novas unhas e recuperou o cabelo.
Clara sorria sem dizer nada e Nívea continuava falando porque se tinha acostumado ao silêncio da filha. Por outro lado, tinha a esperança que, de tanto lhe meter ideias na cabeça, mais cedo ou mais tarde ela faria uma pergunta e recuperaria a fala.
- E este - dizia - é o tio João. Eu gostava muito dele. Uma vez deu um peido e foi a sua condenação à morte, uma grande desgraça. Aconteceu num almoço no campo. Estávamos todos nós, as primas, num lindo dia de Primavera, com os nossos vestidos de musselina e os nossos chapéus com flores e fitas, e os rapazes vestiam a melhor roupa domingueira. João tirou o casaco branco, parece que o estou vendo! Arregaçou a camisa e pendurou-se airoso no ramo de uma árvore para provocar, com as suas proezas de trapezista, a admiração de Constança Andrade, que foi Rainha da Vindima, e logo desde a primeira vez que a viu, perdeu a tranquilidade, devorado pelo amor. João fez duas flexões impecáveis, deu uma volta completa e, no movimento seguinte, lançou uma sonora ventosidade. Não se ria Clarinha! Foi terrível. Fez-se um silêncio de espanto e a Rainha da Vindima começou a rir descontroladamente. João vestiu o casaco, estava muito pálido, afastou-se do grupo sem pressa e não o voltámos a ver mais. Procuraram-no até na Legião Estrangeira, perguntaram por ele em todos os consulados, mas nunca mais se soube da sua existência. Penso que se tornou missionário e foi cuidar leprosos para a Ilha da Páscoa, que é onde mais longe conseguiria chegar para esquecer e para que o esquecessem, porque fica fora das rotas de navegação e nem sequer figura nos mapas dos Holandeses. Desde então, as pessoas recordam-no como João do Peido.
Nívea levava a filha à janela e mostrava-lhe o tronco seco do álamo.
- Era uma árvore enorme - dizia. - Mandei-o cortar antes de nascer o meu filho mais velho. Dizem que era tão alto que da ponta se podia ver toda a cidade, mas o único que chegou tão acima não tinha olhos para a ver. Cada homem da família del Valle, quando quis vestir calças compridas, teve de trepar por ele para provar o seu valor. Era qualquer coisa como um rito de iniciação. A árvore estava cheia de marcas. Eu própria pude comprovar, quando a cortaram. Desde os primeiros ramos intermédios, grossos como chaminés, já se podiam ver as marcas deixadas pelos avós que fizeram a subida na sua época. Pelas iniciais gravadas no tronco sabia-se quais tinham subido mais alto, quais os mais valentes, e também quais se tinham detido, assustados. Um dia tocou a vez a Jerónimo, o primo cego. Subiu tacteando os ramos sem vacilar, porque não via a altura e não pressentia o vazio. Chegou lá acima, mas não conseguiu terminar o jota da sua inicial, porque se desprendeu como uma gárgula e caiu de cabeça no chão, aos pés do pai e dos irmãos. Tinha eu quinze anos. Levaram o corpo à mãe, envolto num lençol, a pobre mulher cuspiu-lhes a todos na cara, gritando-lhes insultos de marinheiro e amaldiçoou a raça de homens que tinham incitado o filho a subir à árvore, até que as irmãs da caridade a levaram atada num colete-de-forças. Eu sabia que os meus filhos haviam um dia de continuar essa bárbara tradição. Por isso mandei-o cortar. Não queria que Luís e os outros meninos crescessem com a sombra deste patíbulo na janela.
Clara acompanhava por vezes a mãe e duas ou três das suas amigas sufragistas a visitar as fábricas, onde subiam a caixotes, para arengar às operárias enquanto, a distância prudente, os capatazes e patrões observavam, ruidosos e agressivos. Apesar da sua pouca idade e da completa ignorância das coisas do mundo, Clara podia perceber o absurdo da situação e descrevia nos seus cadernos o contraste entre a mãe e as suas amigas, com casacos de pele e botas de camurça, falando de opressão, de igualdade e de direitos a um grupo triste e resignado de trabalhadoras, com os aventais toscos de cotim e as mãos vermelhas de frieiras. Da fábrica, as sufragistas iam para a confeitaria da Praça das Armas, tomar chá com pastelinhos e comentar os programas da campanha, sem que esta distracção frívola as afastasse nem um segundo dos seus inflamados ideais. Outras vezes a mãe levava-a às aldeias dos subúrbios e aos bairros de lata, onde chegavam com o carro carregado de alimentos e roupa que Nívea e as amigas cosiam para os pobres. Também nesta ocasião a menina escrevia, com assombrosa intuição, que as obras de caridade não podiam mitigar a injustiça monumental. A relação com a mãe era alegre e intima, e Nívea, apesar de ter tido quinze filhos, tratava-a como se fosse a única, estabelecendo um vinculo tão forte que se prolongou pelas gerações posteriores como uma tradição familiar.
A Ama tinha-se tornado uma mulher sem idade, que conservava intacta a força da juventude e podia andar aos saltos pelos cantos assustando a mudez, tanto como podia passar o dia mexendo com um pau na marmita de cobre, num fogaréu dos diabos, no centro do terceiro pátio, onde borbulhava a marmelada, um líquido espesso cor de topázio que ao esfriar se vazava em moldes de todos os tamanhos que Nívea repartia pelos seus pobres. Acostumada a viver rodeada de crianças, quando os outros cresceram e se foram embora a Ama dedicou a Clara todas as suas ternuras. Embora a menina já não tivesse idade para isso, banhava-a como se fosse um bebé, mergulhando-a na banheira esmaltada em água perfumada com alfavaca e jasmim, esfregava-a com uma esponja, ensaboava-a meticulosamente sem esquecer nenhum cantinho das orelhas ou dos pés, friccionava-a com água-de-colónia, punha-lhe pó de talco com um hissope de penas de cisne e penteava-lhe o cabelo com infinita paciência até o deixar brilhante e dócil como uma planta do mar. Vestia-a, abria-lhe a cama, levava-lhe o pequeno almoço numa bandeja, obrigava-a a tomar chá de tília para os nervos, de macela para o estômago, de limão para a transparência da pele, de arruda para os maus fígados e de hortelã-pimenta para a frescura do hálito, até que a menina se tornou um ser angelical e formoso que deambulava pelos pátios e corredores envolta num aroma de flores, num rumor de saiotes engomados e num halo de risos e fitas.
Clara passou a infância e entrou na juventude dentro das paredes de sua casa, num mundo de histórias assombrosas, de silêncios tranquilos, onde o tempo não se marcava com relógios nem com calendários e onde os objectos tinham vida própria, as aparições se sentavam à mesa e falavam com os humanos, o passado e o futuro faziam parte da mesma coisa e a realidade do presente era um caleidoscópio de espelhos desordenados onde tudo podia acontecer. É uma delicia para mim ler os cadernos dessa época, onde se descreve um mundo mágico que acabou. Clara habitava um universo inventado por ela, protegida das inclemências da vida, onde se confundiam a verdade prosaica das coisas materiais e a verdade tumultuosa dos sonhos, onde nem sempre funcionavam as leis da física ou da lógica. Clara viveu esse período ocupada nas suas fantasias, acompanhada pelos espíritos do ar, da água e da terra, tão feliz que não sentiu a necessidade de falar durante nove anos. Todos tinham perdido a esperança de tornar a ouvir-lhe a voz quando, no dia do seu aniversário, depois de soprar as dezanove velas do bolo de chocolate, estreou uma voz que tinha estado guardada durante todo aquele tempo e que tinha ressonância de instrumento desafinado:
- Vou casar imediatamente - disse.
- Com quem? - perguntou Severo.
- Com o noivo de Rosa - respondeu ela.
E então deram conta que tinha falado pela primeira vez em todos esses anos e o prodígio remexeu a casa até aos alicerces e provocou o pranto de toda a família. Chamaram-se uns aos outros, espalhou-se a noticia pela cidade, consultaram o doutor Cuevas, que não podia acreditar, e, na confusão por Clara ter falado, todos se esqueceram do que ela tinha dito e só se recordaram dois meses mais tarde, quando apareceu Esteban Trueba, a quem não tinham visto desde o enterro de Rosa, para pedir a mão de Clara.
Esteban desceu na estação e carregou ele mesmo as duas malas. A cúpula de ferro que os Ingleses haviam construído imitando a Estação Vitória, nos tempos em que; tinham a concessão dos caminhos-de-ferro nacionais, não mudara nada desde a última vez que tinha estado ali anos antes os mesmos vidros sujos, os garotos a engraxar sapatos, as vendedeiras de pão-de-ovos e doces crioulos e os carregadores com as boinas escuras com a insígnia da coroa britânica, que ninguém tinha pensado substituir por outra com as cores da bandeira. Apanhou um fiacre e deu a direcção da casa da mãe. A cidade pareceu-lhe desconhecida, havia uma desordem de modernismo, um prodígio de mulheres mostrando as canelas, de homens com colete e calças de pregas, uma barulheira de operários fazendo buracos no pavimento, tirando árvores para pôr postes, tirando postes para pôr edifícios, tirando edifícios para plantar árvores, um estorvo de pregoeiros ambulantes gritando as maravilhas do afiador de facas, do amendoim torrado, do «bonequinho que baila sozinho, sem arame, sem fios, veja você mesmo, pegue nele», um vento de lixeiras, de fritos, de fábricas, de automóveis esbarrando com os fiacres e as tranvias de tracção a sangue, como chamavam aos cavalos velhos que puxavam os transportes colectivos, uma respiração de multidão, um rumor de correria, de ir e vir com pressa, de impaciência e horário fixo. Esteban sentiu-se oprimido. Odiava aquela cidade mais do que a recordava, evocou as alamedas do campo, o tempo medido pelas chuvas, a vasta solidão dos seus pastos, a fresca mansidão do rio e da sua casa silenciosa.
- Isto é uma cidade de merda - concluiu.
O fiacre levou-o a trote à casa onde se tinha criado. Estremeceu ao ver como o bairro se tinha deteriorado durante esses anos, desde que os ricos quiseram viver mais acima que os outros e a cidade crescera até às faldas da cordilheira. Da praça onde brincara em menino nada restava, era um sitio baldio cheio de carroças do mercado estacionadas entre o lixo onde escavavam os cães vadios. A sua casa estava devastada. Viu nela todos os sinais do tempo. Na porta envidraçada com motivos de pássaros exóticos no cristal trabalhado, fora de moda e desengonçada, havia um batente em forma de mão feminina agarrando uma bola. Tocou e teve de esperar algum tempo, que lhe pareceu interminável, até que a porta se abriu com um puxão de uma corda que ia do trinco à parte superior da escada. A mãe habitava o segundo piso e alugava o rés-do-chão a uma fábrica de botões. Esteban começou a subir os degraus que rangiam e que já não eram encerados há muito tempo. Uma criada velhíssima, cuja existência tinha esquecido por completo, esperava-o lá em cima, e recebeu-o com lacrimosas manifestações de afecto, tal como o recebia aos quinze anos, quando voltava do notário onde ganhava a vida copiando mudanças de propriedade e de procurações de desconhecidos. Nada tinha mudado, nem sequer o lugar dos móveis, mas tudo pareceu diferente a Esteban, o corredor com as tábuas gastas, alguns vidros partidos, mal remendados com pedaços de cartão, uns fetos cheios de pó definhando em vasos oxidados e potes de loiça rachada, um cheiro fétido de comida e urinas que dava volta ao estômago. «Que pobreza!» pensou Esteban, sem perceber onde ia parar todo o dinheiro que enviava à irmã para viver com decência.
Férula saiu a recebê-lo com uma triste careta de boas-vindas. Havia mudado muito, já não era a mulher opulenta que deixara anos atrás, tinha emagrecido e o nariz parecia enorme no seu rosto anguloso, tinha um ar de melancolia e ofuscação, cheiro intenso a lavanda e roupa antiquada. Abraçaram-se em silêncio.
- Como está a mamã? - perguntou Esteban.
- Vem vê-la, está à tua espera - disse ela.
Passaram por um corredor de quartos com comunicação entre si, todos iguais, escuros, de paredes mortuárias, tectos altos e janelas estreitas, as paredes forradas de papel com flores desbotadas e donzelas languidas, manchado pela fuligem dos braseiros e pela pátina do tempo e pela pobreza. De muito longe chegava a voz de um locutor de rádio anunciando as pílulas do doutor Ross, pequeninas mas eficientes, que combatem a prisão de ventre, a insónia e o mau hálito. Pararam em frente da porta fechada do quarto de Dona Ester Trueba.
- Está aqui - disse Férula.
Esteban abriu a porta e necessitou de alguns segundos para ver no escuro. O cheiro a medicamentos e podridão bateu-lhe na cara, o odor adocicado do suor, da humidade, da clausura e de algo que a principio não identificou, mas que logo se colou a ele como uma peste: o cheiro da carne em decomposição. Entrava um fio de luz pela janela entreaberta, viu a cama larga onde morrera o seu pai e onde dormia a mãe desde o dia do casamento, de negra madeira esculpida, com um dossel de anjos em alto-relevo e penduricalhos de brocado vermelho estafados pelo uso. A mãe estava semideitada. Era um bloco de carne compacta, uma monstruosa pirâmide de gordura e trapos, terminada por uma pequena cabecinha calva com olhos doces, surpreendentemente vivos, azuis e inocentes. A artrite tinha-a tornado um ser monolítico, não podia dobrar as articulações nem virar a cabeça, tinha os dedos em garfo, como patas de um fóssil, e para manter a posição na cama necessitava do apoio de uma gaveta nas costas, segura por uma trave de madeira que por sua vez assentava na parede. Notava-se o passar dos anos pelas marcas que a viga deixara na parede, um rasto de sofrimento, um caminho de dor.
- Mamã... - murmurou Esteban, e a voz quebrou-se-lhe no peito num pranto contido, apagando de uma penada as recordações tristes, a infância pobre, os cheiros rançosos, as manhãs gélidas e a sopa gordurosa da sua meninice, a mãe doente, o pai ausente e essa raiva comendo-lhe as entranhas desde o dia em que usou a razão, esquecendo tudo menos os únicos momentos luminosos em que aquela mulher desconhecida que jazia na cama o tinha embalado nos braços, lhe tinha tocado na testa para lhe ver a febre, lhe havia cantado uma canção de embalar, se tinha inclinado com ele sobre as páginas de um livro, soluçado de pena por vê-lo levantar-se ao nascer do Sol para ir trabalhar quando era ainda um menino, soluçado de alegria ao vê-lo regressar à noite, «tinha soluçado, mãe, por mim».
Dona Ester Trueba estendeu a mão, não era uma saudação, mas apenas um gesto para o deter:
- Filho, não se aproxime - e tinha a voz inteira, tal como ele recordava a voz cantante e sã de uma jovenzinha.
- É por causa do cheiro - explicou Férula secamente. - Pega-se.
Esteban afastou a colcha de damasco esfiapada e viu as pernas da mãe. Eram duas colunas arroxeadas, cobertas de chagas, onde as larvas das moscas e os vermes faziam ninhos e cavavam túneis, duas pernas apodrecendo em vida, com uns pés descomunais cor azul-pálido, sem unhas nos dedos, rebentando pelo pus, pelo sangue negro, pela fauna abominável que se alimentava da sua carne, «mãe, por Deus, da minha carne».
- O doutor quer cortar-mas, filho - disse Dona Ester com a sua voz tranquila de rapariga, - mas estou muito velha para isso e muito cansada de sofrer, por isso é melhor morrer. Mas não queria morrer sem vê-lo, porque em todos estes anos cheguei a pensar que você estava morto e que as suas cartas era a sua irmã quem as escrevia, para não me dar essa dor. Acenda a luz, filho, para o ver melhor. Meu Deus! Parece um selvagem!
- É a vida do campo, mamã - murmurou ele.
- Enfim! Está ainda forte. Quantos anos tem?
- Trinta e cinco.
- Boa idade para se casar e assentar cabeça, para eu poder morrer em paz.
- A mamã não vai morrer - suplicou Esteban.
- Quero ter a certeza de que terei netos, alguém que leve o meu sangue, que tenha o nosso apelido. Férula perdeu as esperanças de casar, mas você tem de procurar esposa. Uma mulher decente e cristã. Mas antes disso tem de cortar esse cabelo e essa barba, está a ouvir-me?
Esteban disse que sim. Ajoelhou-se junto da mãe e pôs a cara na sua mão inchada, mas o cheiro fê-lo recuar. Férula pegou-lhe no braço e tirou-o daquele quarto de pesadelo. Lá fora respirou profundamente, com o fedor colado nas narinas e então sentiu a raiva, a sua raiva tão conhecida, subir-lhe como uma onda quente à cabeça, injectar-lhe os olhos, pôr-lhe blasfémias de pirata nos lábios, «raiva pelo tempo passado sem pensar em si, mãe», não quis dizer isso, «porra, está a morrer, a velha, e eu não posso fazer nada, nem sequer acalmar-lhe a dor, aliviar-lhe a podridão, tirar-lhe este cheiro de meter medo, este caldo de morte em que está a ser cozinhada, mãe».
Dois dias depois Dona Ester Trueba morreu no leito dos suplícios onde tinha padecido os últimos anos da sua vida. Estava sozinha porque a sua filha Férula tinha ido, como acontecia todas as sextas-feiras, aos bairros dos pobres, na Misericórdia, rezar o terço aos indigentes, aos ateus, às prostitutas e aos órfãos, que lhe atiravam com lixo, lhe vazavam penicos e lhe cuspiam na cara, enquanto ela, de joelhos nas lajes do chão, gritava pais-nossos e ave-marias em incansável ladainha, suja de porcaria de indigente, de cuspo de ateu, de desperdício de prostituta e caca de órfão, chorando, aí de humilhação, pedindo perdão para os que não sabem o que fazem, e sentindo que os ossos a abandonavam, que uma languidez mortal lhe punha as pernas em algodão, que um calor de Verão lhe metia pecados nos músculos, «afasta de mim esse cálice, Senhor», porque o ventre rebentava-se-lhe em chamas de Inferno, «ai de santidade, de medo, Pai Nosso, não me deixes cair em tentação, Jesus».
Esteban também não estava com Dona Ester quando ela morreu silenciosamente no leito dos suplícios. Tinha ido visitar a família del Valle para ver se lhe restava alguma filha solteira, porque, com tantos anos de ausência e tantos de barbárie, não sabia por onde começar a cumprir a promessa feita à mãe de dar-lhe netos legítimos e concluiu que, se Severo e Nívea o tinham aceite como genro nos tempos de Rosa, a bela, não havia nenhuma razão para que não o aceitassem de novo, especialmente agora que era homem rico e não tinha de escavar a terra para arrecadar o seu ouro, agora quando tinha tudo o que era necessário na sua conta do Banco.
Esteban e Férula encontraram a mãe morta na cama. Tinha um sorriso calmo, como se a doença tivesse querido poupar-lhe a quotidiana tortura no último instante de vida.
No dia em que Esteban Trueba pediu para ser recebido, Severo e Nívea del Valle recordaram as palavras com que Clara tinha quebrado a sua longa mudez, por isso não manifestaram nenhuma estranheza quando o visitante lhes perguntou se tinham alguma filha em idade de casar. Fizeram as contas e informaram que Ana se tinha feito freira, Teresa estava muito doente e todas as outras estavam casadas, menos Clara, a mais nova, que ainda estava disponível, mas que era um ser um tanto extravagante, pouco apta para as responsabilidades matrimoniais e para a vida doméstica. Com toda a honestidade contaram-lhe as excentricidades da filha mais nova, sem esconder o facto de que tinha permanecido sem falar durante metade da sua existência, porque não lhe apetecia fazê-lo e não porque não pudesse, como tinha dito muito bem o romeno Rostipov e confirmado o doutor Cuevas com inúmeros exames. Mas Esteban Trueba não era homem para se deixar amedrontar por histórias de fantasmas que andam pelos corredores, por objectos que se movem à distância com o poder da mente ou por presságios de má sorte, e muito menos pelo prolongado silêncio, que considerava uma virtude. Concluiu que nenhuma dessas coisas eram inconvenientes para deitar filhos sãos e legítimos ao mundo e pediu para conhecer Clara. Nívea foi buscar a filha e os dois homens ficaram sozinhos no salão, ocasião que Trueba, com a franqueza habitual, aproveitou para apresentar sem preâmbulos a sua solvência económica.
- Por favor, não diga mais, Esteban! - interrompeu Severo.
- Primeiro tem de ver a menina, conhecê-la melhor, e também porque temos de atender aos desejos de Clara. Não lhe parece?
Nívea regressou com Clara. A jovem entrou no salão com as faces coradas e as unhas negras, porque tinha estado a ajudar o jardineiro a plantar batatas de dálias e nessa ocasião faltou-lhe a clarividência para esperar o futuro noivo com aspecto mais esmerado. Ao vê-la, Esteban pôs-se de pé assombrado. Lembrava-se dela como uma criança fraca e asmática, sem a menor graça, mas a jovem que tinha na frente era um delicado medalhão de marfim, com rosto doce e uma mata de cabelo castanho, crespo e desordenado escapando do penteado em caracóis, olhos melancólicos, que se transformavam numa expressão matreira e coriscante quando sorria, com um riso franco e aberto, a cabeça ligeiramente inclinada para trás. Ela saudou-o com um aperto de mão, sem dar mostras de timidez:
- Estava à sua espera - disse simplesmente.
A visita de cortesia prolongou-se por um par de horas, falando da temporada lírica, das viagens à Europa, da situação política e dos resfriados de Inverno, bebendo mistelas e comendo pastéis de massa folhada. Esteban observava Clara com toda a discrição de que era capaz, sentindo-se a pouco e pouco seduzido pela rapariga. Não se recordava de ter estado tão interessado em alguém desde o dia glorioso em que viu Rosa, a bela, comprando caramelos de anis na confeitaria da Praça de Armas. Comparou as duas irmãs e chegou à conclusão de que Clara ganhava em simpatia, ainda que Rosa, sem dúvida, tivesse sido muito mais formosa. Caiu a noite e entraram duas criadas a correr as cortinas e a acender as luzes, então Esteban reparou que a visita tinha durado demasiado tempo. Os seus modos deixavam muito a desejar. Saudou Severo e Nívea rigidamente e pediu para visitar Clara de novo.
- Espero não a aborrecer, Clara - disse corando. - Sou um homem rude, do campo, e pelo menos quinze anos mais velho. Não sei tratar com uma jovem como você...
- Você quer casar comigo? - perguntou Clara, e ele notou-lhe um brilho irónico nas pupilas de avelã.
- Clara, por amor de Deus! - exclamou a mãe horrorizada. - Desculpe Esteban, esta menina foi sempre muito impertinente.
- Quero saber mamã, para não perder tempo - disse Clara.
- Eu também gosto das coisas directas - sorriu feliz Esteban. - Sim, Clara, foi por isso que vim.
Clara pegou-lhe pelo braço e acompanhou-o até à saída. No último olhar que trocaram, Esteban compreendeu que ela o aceitara e sentiu-se invadido de alegria. Ao subir para o fiacre, sorria, sem poder acreditar na sua boa sorte e sem saber por que razão uma jovem encantadora como Clara o tinha aceite sem o conhecer. Não sabia que ela havia visto o seu próprio destino, e que por isso o tinha chamado com o pensamento e estava disposta a casar sem amor.
Deixaram passar alguns meses por respeito ao luto de Esteban Trueba, durante os quais ele a cortejou à antiga, da mesma forma como tinha feito com a irmã Rosa, sem saber que Clara detestava os caramelos de anis e que os acrósticos a faziam rir. No fim do ano, pelo Natal, anunciaram oficialmente o noivado no jornal e puseram as alianças na presença dos pais e dos amigos íntimos, mais de cem pessoas ao todo, num banquete pantagruélico onde desfilavam as bandejas com perus recheados, os porcos com caramelo, os congros de água fria, as lagostas gratinadas, as ostras vivas, as tortas de laranja e limão das Carmelitas, de amêndoas e nozes das Dominicanas, de chocolate e ovos-moles das Clarissas, e caixas de champanhe trazidas de França através do cônsul, que fazia contrabando aproveitando-se dos privilégios diplomáticos, mas tudo servido e apresentado com grande simplicidade pelas antigas servas da casa, com os aventais negros de todos os dias, para dar ao festim a aparência de uma modesta reunião familiar, porque toda a extravagar ia era uma prova de grosseria e condenada como um pecado de vaidade mundana e um sinal de mau gosto, devido ao passado austero e um tanto triste daquela sociedade descendente dos mais esforçados emigrantes castelhanos e bascos. Clara era uma aparição de rendas brancas de Chantilly e de camélias naturais, libertando-se como um periquito feliz dos nove anos de silêncio, dançando com o noivo debaixo dos toldos e lampiões, alheia por completo às advertências dos espíritos que lhe faziam sinais desesperados por detrás das cortinas, mas que no meio da multidão e do barulho ela não via. A cerimónia das alianças mantinha-se igual desde os tempos coloniais. Às dez da noite, um criado circulou por entre os convidados tocando um sininho de cristal, calou-se a música, parou o baile e os convidados reuniram-se no salão principal. Um sacerdote pequeno e inocente, adornado com os paramentos de missa grande, leu o emaranhado sermão que tinha preparado, exaltando virtudes confusas e impraticáveis. Clara não o ouviu porque, quando parou o barulho da música e a luta dos bailarinos, prestou atenção aos sussurros dos espíritos entre as cortinas e reparou que há já muitas horas não via Barrabás. Procurou-o com os olhos, pondo os sentidos alerta, mas uma cotovelada da mãe devolveu-a às urgências da cerimónia. O padre terminou o discurso, benzeu os anéis de ouro e em seguida Esteban pôs um à noiva e colocou outro no próprio dedo.
Nesse momento um grito de terror sacudiu os presentes. As pessoas afastaram-se, abrindo caminho, por onde entrou Barrabás, mais negro e maior do que nunca, com uma faca de carniceiro espetada no lombo até ao cabo, sangrando como um boi, com as grandes patas de potro a tremer, o focinho babando um fio de sangue, os olhos enevoados pela agonia, passo a passo, arrastando uma pata atrás da outra num avançar ziguezagueante de dinossauro ferido. Clara caiu sentada no sofá de seda francesa. O canzarrão aproximou-se dela, colocou-lhe a grande cabeça de fera milenária na saia e ficou a olhá-la com olhos enamorados, que se embaciaram pouco a pouco, ficando cego, enquanto a renda branca de Chantilly, a seda francesa do sofá, a almofada persa e o parquet (em francês no texto (N. T.)) se ensoparam de sangue. Barrabás foi morrendo, sem pressa alguma, com os olhos presos em Clara, que lhe acariciava as orelhas e murmurava palavras de consolo, até que finalmente num único estertor se tornou rígido. Então todos pareceram despertar de um pesadelo e um rumor de espanto percorreu o salão, os convidados começaram a despedir-se à pressa, a escapar contornando os charcos de sangue, pegando de passagem nas estolas de pele, nos chapéus de copa, nas bengalas, nos guarda-chuvas, nas bolsas de missanga. No salão da festa ficaram apenas Clara com o animal no regaço, os seus pais, que se abraçavam paralisados pelo mau presságio, e o noivo, que não entendia a causa de tanto alvoroço por um cão morto mas que, quando viu que Clara parecia em transe, levantou-a nos braços e levou-a meio inconsciente até ao quarto, onde os cuidados da Ama e os sais do doutor Cuevas impediram que tornasse a cair no estupor e na mudez. Esteban Trueba pediu ajuda ao jardineiro e os dois atiraram para o carro o cadáver de Barrabás, que com a morte aumentou de peso até ser quase impossível levantá-lo.
O ano passou com os preparativos para a boda. Nívea ocupou-se em ajudar Clara, que não demonstrava o menor interesse no conteúdo dos baús de sândalo e continuava fazendo experiências com a mesa de pé-de-galo e as suas cartas de adivinhar. Os lençóis bordados com primor, as toalhas de renda e a roupa interior que há dez anos atrás as freiras tinham feito para Rosa, com as iniciais entrelaçadas de Trueba e del Valle, serviram para o enxoval de Clara. Nívea encomendou em Buenos Aires, em Paris e em Londres vestidos de viagem, roupa para o campo, trajes de festa, chapéus à moda, sapatos e carteiras de pele de lagarto e camurça, e outras coisas que se guardavam embrulhadas em papel de seda e se conservavam com lavanda e cânfora, sem que a noiva lhes desse mais que uma olhadela distraída.
Esteban Trueba pôs-se à frente de um grupo de pedreiros, carpinteiros e canalizadores para construir a casa mais sólida, ampla e soalheira que se pudesse conceber, destinada a durar mil anos e a albergar várias gerações de uma família numerosa de Truebas legítimos. Encarregou dos planos um arquitecto francês e mandou vir parte dos materiais do estrangeiro para que a sua casa fosse a única com vitrais alemães, com socos talhados na áustria, com torneiras de bronze inglesas, com mármores italianos no chão e fechaduras pedidas por catálogo dos Estados Unidos, que chegaram com instruções trocadas e sem chaves. Férula, horrorizada pelas despesas, procurou evitar que ele continuasse a fazer loucuras, comprando móveis franceses, lustres e almofadas turcas, com o argumento de que se iam arruinar e se voltaria a repetir a história do Trueba extravagante que os tinha engendrado mas Esteban demonstrou-lhe que era bastante rico para dar-se a esses luxos e ameaçou-a de forrar as portas de prata se continuasse a chateá-lo. Então ela disse que tanto esbanjamento era seguramente pecado mortal e que Deus os ia castigar por gastar em pirosices de novo rico o que seria melhor empregue ajudando os pobres.
Apesar de Esteban Trueba não ser amante de inovações antes, pelo contrário, ter grande desconfiança pelos transtornos do modernismo, decidiu que a sua casa devia ser construída como os novos palacetes da Europa e América do Norte, com todas as comodidades embora mantendo um estilo clássico. Queria que fosse o mais despojada possível de arquitectura indígena. Não queria três pátios, corredores, fontes barulhentas, quartos escuros, paredes de adobe branqueadas de cal, nem telhas poeirentas, mas dois ou três pisos heróicos, fileiras de colunas brancas, uma escada senhorial que desse meia volta sobre si mesma e aterrasse num hall (Em inglês no texto (N. T.)) de mármore branco, janelas grandes e iluminadas e, de uma maneira geral, um aspecto de ordem e acerto de beleza e civilização, próprio dos povos estrangeiros, e de acordo com a sua nova vida. A sua casa devia ser o reflexo dele próprio, da sua família e do prestigio que pensava dar ao apelido que o pai tinha sujado. Desejava que o esplendor se visse da rua, por isso mandou desenhar um jardim francês com um pavilhão versalhesco, maciços de flores, um relvado liso e perfeito, repuxos e algumas estátuas representando os deuses do Olimpo e talvez algum índio selvagem da história americana, nu e coroado de penas, como uma concessão ao patriotismo. Não podia saber que aquela mansão solene cúbica, compacta e bojuda, colocada como um chapéu com o seu contorno verde e geométrico, acabaria por encher-se de protuberâncias, de múltiplas escadarias torcidas que conduziam a lugares vagos, de torreões, de postigos que não se abriam e de portas suspensas no vazio, de corredores torcidos e de olhos-de-boi que ligavam os quartos para a hora da sesta, de acordo com a inspiração de Clara, que, cada vez que necessitava de instalar um novo hóspede, mandaria fazer outro quarto em qualquer parte, e, se os espíritos lhe indicavam que havia um tesouro oculto ou um cadáver insepulto nos alicerces, deitaria abaixo uma parede, até deixar a mansão transformada num labirinto encantado, impossível de limpar, que desafiava numerosas leis urbanísticas e municipais. Mas quando Trueba construiu o que todos chamavam «a grande casa da esquina», tinha o selo solene que procurava impor a tudo o que o rodeava, em recordação das privações da infância. Clara nunca foi ver a casa durante o processo de construção. Parecia interessar-lhe tão pouco como o próprio enxoval, depositando as decisões nas mãos do noivo e da futura cunhada.
Ao morrer a mãe, Férula viu-se sozinha e sem nada de útil para dedicar a sua vida, numa idade em que já não tinha a ilusão de casar-se. Por algum tempo andou visitando bairros de lata todos os dias, numa frenética obra piedosa que lhe provocou uma bronquite crónica e não trouxe nenhuma paz à sua alma atormentada. Esteban quis que viajasse, que comprasse roupa e se divertisse pela primeira vez na sua melancólica existência, mas ela tinha o hábito da austeridade e passava demasiado tempo fechada em casa. Tinha medo de tudo. O casamento do irmão consumia-a na incerteza, porque pensava que isso ia ser mais um motivo de afastamento para Esteban, que era o seu único sustento. Tinha medo de terminar os seus dias trabalhando nalgum asilo para solteironas de boas famílias, por isso sentiu-se muito feliz ao descobrir que Clara era incompetente para todas as coisas da vida doméstica e que, sempre que tinha de enfrentar uma decisão, adoptava um ar distraído e vago. «É um pouco idiota», concluiu Férula encantada. Era evidente que Clara seria incapaz de administrar o casarão que o seu irmão estava a construir e que necessitaria de muita ajuda. Com maneiras subtis procurava fazer saber a Esteban que a sua futura mulher era uma inútil e que ela, com o seu espírito de sacrifício tão amplamente demonstrado, podia ajudá-la e estava disposta a fazê-lo. Esteban não seguia a conversa quando se entrava por esse caminho. à medida que se aproximava a data do matrimónio e se via na necessidade de decidir do seu destino, Férula começou a desesperar. Convencida de que não ia conseguir nada com o irmão, procurou a oportunidade de falar a sós com Clara e encontrou-a um sábado às cinco da tarde quando a viu a passear na rua. Convidou-a a tomar chá no Hotel Francês. As duas mulheres sentaram-se rodeadas de pastelinhos com creme e porcelana da Baviera, enquanto ao fundo do salão uma orquestra de senhoras interpretava um melancólico quarteto de cordas. Férula observava disfarçadamente a sua futura cunhada, que parecia de quinze anos e ainda tinha a voz desafinada, produto dos anos de silêncio, sem saber como abordar o tema. Depois de uma pausa enorme em que comeram uma bandeja de biscoitos e beberam duas chávenas de chá de jasmim cada uma, Clara ajeitou uma mecha do cabelo que lha cala sobre os olhos, sorriu e deu uma palmadinha carinhosa na mão de Férula:
- Não te preocupes. Vais viver connosco e seremos as duas como irmãs - disse a rapariga.
Férula sobressaltou-se, perguntando a si própria se seriam certos os boatos sobre a habilidade de Clara para ler o pensamento dos outros. A sua primeira reacção foi de orgulho e teria recusado a oferta apenas pela beleza do gesto, mas Clara não lhe deu tempo. Inclinou-se e beijou-a na face com tanta candura que Férula perdeu o controlo e rompeu a chorar. Há muito tempo que não derramava uma lágrima e comprovou assombrada quanta falta lhe fazia um gesto de ternura. Não se lembrava da última vez que alguém lhe tinha tocado espontaneamente. Chorou longo tempo, libertando-se de muitas tristezas e solidões passadas, da mão de Clara que a ajudava a assoar-se e, entre soluço e soluço, lhe dava mais pedaços de pastel e sorvos de chá. Ficaram chorando e falando até às oito horas da noite e, nessa tarde, no Hotel Francês, selaram um pacto de amizade que durou muitos anos.
Logo que terminou o luto por morte de Dona Ester e a grande casa da esquina ficou pronta, Esteban Trueba e Clara del Valle casaram-se numa cerimónia discreta. Esteban ofereceu a sua noiva um adereço de brilhantes, que ela achou muito bonito e que guardou numa caixa de sapatos, esquecendo em seguida onde o tinha posto. Foram de viagem a Itália e, a dois dias de embarcarem, Esteban sentia-se apaixonado como um adolescente, apesar dos balanços do barco terem dado a Clara intermináveis enjoos e da clausura lhe produzir asma. Sentado a seu lado no estreito camarote, pondo-lhe panos molhados na testa e segurando-a quando vomitava, sentia-se profundamente feliz e desejava-a com uma intensidade injustificada, tomando em consideração o seu lamentável estado. Ao quarto dia ela acordou melhor e saíram para a coberta para ver o mar. Ao vê-la com o nariz corado pelo vento e rindo-se por qualquer pretexto, Esteban jurou a si próprio que mais cedo ou mais tarde ela acabaria por amá-lo tal como ele necessitava de ser amado, ainda que para conseguir isso tivesse de empregar os recursos mais extremos. Dava-se conta que Clara não lhe pertencia e que, se ela continuava habitando um mundo de aparições, de mesas pé-de-galo que se mexem sozinhas e de baralhos que vêem o futuro, o mais provável era que não chegasse a pertencer-lhe nunca. A despreocupada e impudica sensualidade de Clara também não lhe chegava. Desejava muito mais que o seu corpo, queria apoderar-se dessa matéria imprecisa e luminosa que havia no seu interior e que lhe escapava ainda nos momentos em que ela parecia morrer de prazer. Sentia que as suas mãos eram muito pesadas, os seus pés muito grandes, a sua voz muito dura, a barba muito áspera, o seu costume de violações e de prostitutas muito arreigado, mas, mesmo que tivesse de virar-se do avesso como uma luva, estava disposto a seduzi-la.
Regressaram da lua-de-mel três meses depois. Férula esperava-os com a casa nova, que ainda cheirava a pintura e cimento fresco, cheia de flores e travessas com frutos, tal como Esteban lhe tinha ordenado. Ao cruzar o umbral pela primeira vez, Esteban levantou a mulher nos braços. A irmã ficou surpreendida por não sentir ciúmes e viu que Esteban parecia ter rejuvenescido.
- Fez-te muito bem o casamento - disse.
Levou Clara a dar uma volta pela casa. Ela passeava os olhos, achava tudo muito bonito, com a mesma cortesia com que tinha celebrado um pôr do Sol no alto mar, a Praça de São Marcos ou o adereço de brilhantes. à porta do quarto destinado a ela, Esteban pediu que fechasse os olhos e levou-a pela mão até ao centro.
- Já os podes abrir - disse-lhe encantado.
Clara olhou à volta. Era uma grande divisão com as paredes forradas de seda azul, móveis ingleses, grandes janelas com balcões abertos sobre o jardim e uma cama de dossel e cortinas de gaze que parecia um veleiro navegando na água mansa da seda azul.
- Muito bonito - disse Clara.
Então Esteban indicou-lhe o lugar onde estava parada. Era a maravilhosa surpresa que tinha preparado para ela. Clara baixou os olhos e deu um grito pavoroso; estava de pé sobre o lombo negro de Barrabás, que jazia aberto, patas para o lado, transformado em almofada, com a cabeça intacta e dois olhos de vidro olhando-a com a expressão de desamparo própria da taxidermia. Seu marido conseguiu segurá-la antes que caísse desmaiada no chão.
- Esteban, eu disse-te que ela não ia gostar! – disse Férula.
A pele curtida de Barrabás foi rapidamente tirada do quarto e mandada para um canto da cave, juntamente com os livros mágicos dos baús encantados do tio Marcos e outros tesouros, onde ficou livre das traças e do abandono com uma tenacidade digna de melhor causa, até que outras gerações a recuperaram.
Depressa se tornou evidente que Clara estava grávida. O carinho que Férula sentia pela cunhada transformou-se em paixão por cuidar dela, uma dedicação em servi-la e uma tolerância ilimitada para resistir às suas distracções e excentricidades. Para Férula, que tinha dedicado a sua vida a cuidar de uma anciã que ia apodrecendo sem remissão, cuidar de Clara foi como entrar na glória. Banhava-a em água perfumada com alfavaca e jasmim, esfregava-a com uma esponja, ensaboava-a, friccionava-a com água-de-colónia, punha-lhe pó de talco com um hissope de penas de cisne e penteava-lhe o cabelo até o deixar brilhante e dócil como uma planta do mar, tal como antes tinha feito a Ama.
Muito antes de se acalmar a sua impaciência de marido recente, Esteban Trueba teve de regressar a Las Tres Marias, onde não punha os pés fazia mais de um ano e que, apesar dos esmeros de Pedro Segundo Garcia, reclamava a presença do patrão. A propriedade que antes parecia um paraíso e era todo o seu orgulho, agora parecia-lhe fastidiosa. Olhava as vacas inexpressivas ruminando nos pastos, a lenta tarefa dos camponeses repetindo os mesmos gestos todos os dias ao longo da vida, o imutável contorno da cordilheira nevada e a frágil coluna de fumo do vulcão, e sentia-se como um preso.
Enquanto ele esteve no campo, a vida na grande casa da esquina mudava para se acomodar a uma suave rotina sem homens. Férula era a primeira a despertar, porque lhe tinha ficado o hábito de madrugar desde a época em que velava junto da mãe enferma, mas deixava a sua cunhada dormir até tarde. A meio da manhã, levava-lhe pessoalmente o pequeno almoço à cama, abria as cortinas de seda azul para que entrasse o sol pelos vidros, enchia a banheira de porcelana francesa pintada com nenúfares, dando tempo a Clara para sacudir a modorra saudando os espíritos presentes, puxar a bandeja e molhar as torradas no chocolate espesso. Tirava-a da cama acariciando-a com cuidados de mãe e dizendo-lhe as noticias agradáveis do jornal, que cada dia eram menos, por isso tinha de preencher as lacunas com histórias sobre os vizinhos, pormenores domésticos e anedotas inventadas que Clara achava muito bonitas e cinco minutos depois já não recordava, de modo que era possível voltar a contar-lhe a mesma várias vezes por dia, e ela divertia-se sempre como se fosse a primeira vez.
Férula levava-a a passear para que apanhasse luz, faz bem à criança; a fazer compras, para que quando nasça não lhe falte nada e tenha a roupa mais fina do mundo; a almoçar no Clube de Golfe, para que todos vejam como te puseste bonita desde que te casaste com o meu irmão; visitar os teus pais, para que não julguem que os esqueceste; ao teatro, para que não passes todo o dia fechada em casa. Clara deixava-se conduzir com uma doçura que não era imbecilidade, mas distracção, e gastava toda a sua capacidade de concentração em inúteis tentativas de comunicar telepaticamente com Esteban, que não recebia as mensagens, e em aproveitar a sua própria clarividência.
Pela primeira vez desde que podia recordar, Férula sentia-se feliz. Estava mais perto de Clara do que alguma vez tinha estado de alguém, mesmo da mãe. Uma pessoa menos original que Clara teria acabado por aborrecer-se com os mimos excessivos e a constante preocupação da cunhada, ou teria sucumbido ao seu caracter dominante e meticuloso. Mas Clara vivia noutro mundo. Férula detestava o momento em que o irmão regressava do campo e a sua presença enchia toda a casa, rompendo a harmonia que se estabelecia na sua ausência. Com ele em casa, ela devia pôr-se na sombra e ser mais prudente na forma de se dirigir aos criados, tanto como nas atenções que tinha para com Clara. Todas as noites, no momento em que os esposos se retiravam para os seus quartos, sentia-se invadida por um ódio desconhecido, que não podia explicar e que lhe enchia a alma de funestos sentimentos. Para se distrair retomava o vicio de rezar o terço nos asilos e de confessar-se ao padre António.
- Ave-Maria puríssima.
- Concebida sem pecado.
- Estou a ouvir-te, minha filha.
- Padre, não sei como começar. Creio que é pecado o que fiz...
- Da carne, minha filha?
- Ai! A carne está seca, padre, mas o espírito não. Atormenta-me o demónio.
- A misericórdia de Deus é infinita.
- O padre não conhece os pensamentos que podem existir na mente de uma mulher sozinha, uma virgem que não conheceu homem, não por falta de oportunidades, mas porque Deus mandou uma longa doença a minha mãe e tive de cuidar dela.
- Esse sacrifício está registado no céu, minha filha.
- Mesmo com pecado de pensamento, padre?
- Bom, depende do pensamento...
- De noite não posso dormir, sufoco. Para me acalmar levanto-me e caminho pelo jardim, vagueio pela casa, vou ao quarto de minha cunhada, encosto o ouvido à porta, às vezes entro em pontas dos pés para a ver quando dorme, parece um anjo, tenho a tentação de meter-me na sua cama para sentir o calor da sua pele e da sua respiração.
- Reza, minha filha. A oração ajuda.
- Espere, não lhe disse tudo. Tenho vergonha.
- Não deves envergonhar-te de mim, porque não sou mais do que um instrumento de Deus.
- Quando o meu irmão vem do campo é muito pior, padre. De nada me serve a oração, não posso dormir, transpiro, tremo, por fim levanto-me e atravesso toda a casa às escuras, deslizando devagarinho com muito cuidado para o soalho não ranger. Oiço-os através da porta do quarto e uma vez pude até vê-los, porque a porta tinha ficado entreaberta. Não lhe posso contar o que vi, padre, mas deve ser um pecado terrível. Não é culpa de Clara, ela é inocente como uma criança. É o meu irmão que a leva a isso. Ele será condenado, por certo.
- Só Deus pode julgar e condenar, minha filha. Que faziam eles?
Então Férula podia passar uma boa meia hora a contar os pormenores. Era uma narradora virtuosa, sabia fazer as pausas, medir a entoação, explicar sem gestos, pintando um quadro tão vivo que o ouvinte parecia estar mesmo a vê-lo; era incrível como podia perceber da porta entreaberta a qualidade dos estremecimentos, a abundância dos orgasmos, as palavras murmuradas ao ouvido, os cheiros mais secretos - um prodígio, na verdade. Liberta daqueles tumultuosos estados de ânimo, regressava a casa com a sua máscara de ídolo, impassível e severa, a dar ordens, contando os talheres, determinando a comida, fechando à chave, exigindo ponha-me isto aqui, se o apanham, mudem as flores dos jarrões, mudavam-nas, lavem os vidros, façam calar esses pássaros do diabo, que a barulheira não deixa dormir a senhora Clara e com tanto cacarejo a criança vai espantar-se e é capaz de nascer com asas. Nada escapava aos seus olhos vigilantes e estava sempre em actividade, em contraste com Clara, que achava tudo muito bonito e tanto lhe fazia comer trufas recheadas ou sopa de sobras, dormir em colchão de penas ou sentada numa cadeira, banhar-se em águas perfumadas ou não tomar banho. à medida que avançava o estado de gravidez, parecia ir-se desligando irremissivelmente da realidade, voltando-se para o interior de si própria, num diálogo secreto e constante com a criança.
Esteban queria um filho que tivesse o seu nome e passasse à sua descendência o apelido dos Trueba.
- É uma menina e chama-se Blanca - disse Clara desde o dia em que anunciou a sua gravidez.
E assim foi.
O doutor Cuevas, de quem Clara tinha perdido finalmente o medo, calculava que o parto devia dar-se em meados de Outubro, mas em princípios de Novembro ela continuava bamboleando uma pança enorme, em estado semi-sonâmbulo, cada vez mais distraída e cansada, asmática, indiferente a tudo o que a rodeava, inclusivamente a seu marido, a quem por vezes nem sequer reconhecia e lhe perguntava «que quer você?» quando o via a seu lado. Logo que o médico se descartou de qualquer possível erro nas suas matemáticas e foi evidente que Clara não tinha nenhuma intenção de parir por via natural, tratou de abrir a barriga à mãe e tirar Blanca, que sucedeu ser uma menina mais peluda e feia do que era normal. Esteban sentiu um calafrio quando a viu, convencido de que tinha sido enganado pelo destino e, em vez do Trueba legítimo que prometera a sua mãe no leito de morte, tinha engendrado um monstro e, para cúmulo, do sexo feminino. Revistou a menina pessoalmente e comprovou que ela tinha todas as partes no sítio correspondente, pelo menos aquelas que eram visíveis ao olho humano. O doutor Cuevas consolou-o com a explicação de que o aspecto repugnante da criança se devia ao facto de ter estado mais tempo que o normal dentro da mãe, ao sofrimento da cesariana e à sua constituição pequena, delgada, morena e um pouco peluda. Clara, pelo contrário, estava encantada com a filha. Pareceu despertar de um longo sono e descobrir a alegria de estar viva. Pegou a menina nos braços e não a largou mais, andava com ela presa ao peito, dando-lhe de mamar a todo o momento, sem horário fixo e sem contemplações com as boas maneiras ou o pudor, como uma indígena. Não quis enfaixá-la, cortar-lhe o cabelo, abrir-lhe furos nas orelhas ou contratar-lhe uma aia para a criar, e muito menos recorrer ao leite de algum laboratório, como faziam todas as senhoras que podiam pagar esse luxo. Nem aceitou a receita da Ama de dar-lhe leite de vaca diluído em água de arroz, porque concluiu que, se a natureza tivesse querido que os humanos se criassem assim, teria feito que os seios humanos segregassem esse tipo de produto. Clara falava à menina todo o tempo, sem usar meias palavras nem diminutivos, em espanhol correcto, como se dialogasse com uma adulta, da mesma maneira pausada e razoável com que falava aos animais e às plantas, convencida de que, se isso tinha dado resultado com a flora e a fauna, não havia razão nenhuma para não ser indicado também para a menina. A combinação de leite materno e conversação teve a virtude de transformar Blanca numa menina saudável e quase formosa, que não se parecia em nada com o tatu que era quando nasceu.
Poucas semanas depois do nascimento de Blanca, Esteban Trueba pôde comprovar, através das brincadeiras no veleiro de água mansa da seda azul, que a esposa não tinha perdido com a maternidade o encanto ou a boa disposição para fazer amor, mas bem pelo contrário. Por seu lado, Férula, demasiado preocupada com a criação da menina, não tinha tempo para ir rezar aos asilos, para confessar-se ao padre António e muito menos para espreitar pela porta entreaberta.
O Tempo dos Espíritos
Na idade em que a maioria das crianças anda com fraldas e de gatas, balbuciando incoerências e escorrendo baba, Blanca parecia uma anã, caminhava aos tropeções, mas nas duas pernas, falava correctamente e comia sozinha, devido ao sistema de sua mãe a tratar como pessoa crescida. Tinha todos os dentes e começava a abrir os armários para desarrumar o conteúdo, quando a família decidiu ir passar o Verão a Las Tres Marias, que Clara só conhecia de ouvir falar. Nesse período da vida de Blanca, a curiosidade era mais forte que o instinto de sobrevivência e Férula passava apuros, correndo atrás dela para evitar que se atirasse do segundo andar, se metesse no forno ou engolisse o sabão. A ideia de ir com a menina para o campo parecia-lhe perigosa, estafante e inútil, já que Esteban podia arranjar-se sozinho em Las Tres Marias, enquanto elas desfrutavam de uma existência civilizada na capital. Mas Clara estava entusiasmada. O campo parecia-lhe uma ideia romântica, porque nunca tinha estado dentro de um estábulo, como dizia Férula. Os preparativos da viagem ocuparam toda a família durante mais de duas semanas e a casa encheu-se de baús, cestos e malas. Alugaram uma carruagem especial no comboio para se deslocarem com a incrível bagagem e os criados que Férula considerou necessário levar, além das gaiolas dos pássaros, que Clara não quis abandonar, e as caixas com os brinquedos de Blanca, cheias de arlequins mecânicos, figurinhas de loiça, animais de trapo, bailarinas de corda com cabelos de gente e articulações humanas, que viajavam com os seus próprios vestidos, coches e baixelas. Ao ver aquela multidão desconcertada e nervosa e aquela confusão, Esteban sentiu-se derrotado pela primeira vez na vida, especialmente quando descobriu entre a bagagem um Santo António de tamanho natural, com olhos estrábicos e sandálias de couro lavrado. Olhava o caos que o rodeava, arrependido da decisão de viajar com a mulher e a filha, perguntando a si próprio como era possível que ele só precisasse de duas malas para ir pelo mundo fora e que elas, em comparação, levassem aquele carregamento de trastes e aquela procissão de criados que nada tinham a ver com o propósito da viagem.
Em San Lucas tomaram três carros que os conduziram a Las Tres Marias envoltos numa nuvem de pó, como ciganos. No pátio do fundo esperavam para lhes dar as boas-vindas todos os caseiros com Pedro Segundo Garcia, o administrador, à cabeça. Ao ver aquele circo ambulante, ficaram atónitos. Sob as ordens de Férula, começaram a descarregar os carros e a meter as coisas em casa. Ninguém prestou atenção a um menino que tinha aproximadamente a mesma idade de Blanca, nu, ranhoso, com a barriga inchada pelos parasitas, de formosos olhos negros com expressão de ancião. Era o filho do administrador, chamava-se, para o diferenciar do pai e do avô, Pedro Tercero Garcia. Na confusão de instalar-se, conhecer a casa, ver a horta, saudar toda a gente, armar o altar de Santo António e espantar as galinhas das camas e os ratos dos roupeiros, Blanca tirou a roupa e saiu nua com Pedro Tercero. Brincaram por entre os embrulhos, meteram-se por baixo dos móveis, molharam-se com beijos babosos, mastigaram o mesmo pão, sorveram os mesmos moncos, bezuntaram-se com a mesma caca, até que, por fim, adormeceram abraçados debaixo da mesa da sala de jantar. Ali os encontrou Clara às dez da noite. Tinha-os procurado durante horas com tochas, os caseiros em grupos tinham percorrido a margem do rio, os celeiros, os prados e os estábulos, Férula tinha pedido de joelhos a Santo António, Esteban estava esgotado de os chamar e a própria Clara invocara inutilmente os seus dotes de vidente. Quando os encontrou, o menino estava de costas no chão e Blanca deitava-se com a cabeça apoiada no ventre pançudo do seu novo amigo. Nessa mesma posição seriam surpreendidos muitos anos depois, para desdita de ambos e não lhes chegaria a vida para o pagar.
Desde o primeiro dia, Clara compreendeu que havia um lugar para ela em Las Tres Marias e, tal como apontou nos seus cadernos de anotar a vida, sentiu que por fim tinha encontrado a sua missão no mundo. Não a impressionaram as casas de tijolo, a escola e a abundância de comida, porque a sua capacidade para ver o invisível detectou o receio, o medo e o rancor dos trabalhadores, e o imperceptível rumor que se acalmava quando virava a cara, que lhe permitiram adivinhar algumas coisas sobre o carácter e o passado de seu marido. O patrão tinha mudado, apesar de tudo. Todos puderam apreciar que deixara de ir ao Farolito Rojo, acabaram-se as suas tardes de pândega, de luta de galos, de apostas, as violentas iras e, sobretudo, o mau hábito de tombar raparigas nos trigais. Atribuíram-no a Clara. Por seu lado, ela também mudou. Abandonou da noite para a manhã a sua languidez, deixou de achar tudo muito bonito e pareceu curada do vício de falar com os seres invisíveis e mover os móveis com recursos sobrenaturais. Levantava-se ao amanhecer com o marido, partilhavam o pequeno almoço já vestidos, ele ia vigiar os trabalhos e tarefas do campo, enquanto Férula se encarregava da casa, dos criados da capital que não se acostumavam às incomodidades e às moscas do campo, e de Blanca. Clara dividia o tempo entre a sala de costura, a cantina e a escola, onde fez o seu quartel-general para aplicar remédios contra a sarna e parafina contra os piolhos, desentranhar os mistérios da cartilha, ensinar as crianças a cantar «tenho uma vaca leiteira, tenho uma vaca malhada», e ensinar as mulheres a ferver o leite, curar a diarreia e branquear a roupa. Ao entardecer, antes que os homens regressassem do campo, Férula reunia as camponesas e as crianças para rezar o terço. Acudiam por simpatia, mais por isso que por fé, e davam à solteirona a oportunidade de recordar os bons tempos dos seus bairros de lata. Clara esperava que a cunhada terminasse as místicas ladainhas de pais-nossos e ave-marias e aproveitava a reunião para repetir as instruções que tinha ouvido à mãe quando se sentava nas filas do Congresso na sua presença. As mulheres escutavam-na risonhas e envergonhadas, pela mesma razão por que rezavam com Férula: para não desgostar a patroa. Mas aquelas frases inflamadas pareciam-lhes contos de loucos. «Nunca se viu que um homem não possa bater na sua própria mulher, se não lhe chega é porque não a quer ou porque não é um homem a sério; onde se viu que aquilo que ganha um homem ou o que produz a terra ou põem as galinhas seja dos dois, se quem manda é ele? onde se viu que uma mulher possa fazer as mesmas coisas que um homem, se ela nasceu com mamas e sem colhões? pois é, dona Clarita», diziam. Clara desesperava-se. Elas acotovelavam-se e sorriam tímidas, com as bocas desdentadas e os olhos cheios de rugas, curtidas pelo sol e pela vida má, sabendo de antemão que, se tivessem a peregrina ideia de pôr em prática os conselhos da patroa, os maridos davam-lhes uma surra. E bem merecida, certamente, como a própria Férula sustentava. Em pouco tempo Esteban teve conhecimento da segunda parte das reuniões para rezar e entrou em cólera. Era a primeira vez que se chateava com Clara e a primeira que ela o via num dos seus famosos ataques de raiva. Esteban gritava como um alienado, passeando pela sala com grandes passadas e dando murros nos móveis, argumentando que, se Clara pensava seguir os passos de sua mãe, ia encontrar um macho bem assente que lhe baixaria as cuecas e lhe daria uma carga de açoites para lhe tirar as malditas ganas de andar arengando às pessoas, que lhe proibia terminantemente as reuniões para rezar ou para qualquer outro fim e que ele não era nenhum boneco de palha a quem a mulher pudesse meter a ridículo. Clara deixou-o gritar e dar pancadas nos móveis até que se cansou e, depois, distraída como sempre estava, perguntou-lhe se sabia mexer as orelhas.
As férias alargaram-se e as reuniões na escola continuaram. Terminou o Verão e o Outono cobriu o campo de fogo e ouro, mudando a paisagem. Começaram os primeiros dias frios, as chuvas e a lama, sem que Clara desse sinais de querer regressar à capital, apesar da pressão contida de Férula, que detestava o campo. No Verão, tinha-se queixado das tardes de calor, espantando moscas, da terra do pátio, que empoeirava a casa como se vivessem no poço de uma mina, da água suja da banheira, onde os sais perfumados se transformavam em sopa de chineses, das baratas voado as, que se metiam entre os lençóis, dos caminhos dos ratos e das formigas, das aranhas que de manhã esperneavam no copo de água sobre a mesa de cabeceira, das galinhas insolentes, que punham ovos nos sapatos e cagavam na roupa branca do armário. Quando mudou o clima, teve novas calamidades para lamentar: o lodaçal do pátio, os dias mais curtos, às cinco estava escuro e não havia nada mais para fazer que não fosse enfrentar a longa noite solitária, o vento e o frio, que ela combatia com cataplasmas de eucalipto, sem poder evitar que se contagiassem uns aos outros numa cadeia sem fim. Estava farta de lutar contra os elementos sem mais distracção do que ver crescer Blanca, que parecia um antropófago, como dizia, ao brincar com esse garoto sujo, Pedro Tercero, que era como se a menina não tivesse alguém da sua classe com quem se misturar, estava a adquirir maus modos, andava com as bochechas lambuzadas, e crostas secas nos joelhos, «olhem como fala, parece um índio, estou cansada de lhe tirar piolhos da cabeça e pôr-lhe azul de mitilene na sarna». Apesar das queixas, conservava a rígida dignidade, o rosto inalterável, a blusa engomada e o molho de chaves pendurado à cintura, nunca suava, não se cansava e mantinha sempre o seu ténue aroma de lavanda e limão. Ninguém pensava que alguma coisa pudesse alterar o seu autodomínio, até um dia em que sentiu comichão nas costas. Era uma coceira tão forte que não pôde evitar coçar-se com dissimulação, mas nada podia aliviá-la. Por fim foi tomar banho e tirou o espartilho, que mesmo nos dias de maior trabalho trazia vestido. Ao soltar as fitas, caiu no chão um ratinho aturdido que tinha ali estado toda a manhã procurando inutilmente furar até à saída, entre as barbas duras da faixa e a carne oprimida da dona. Férula teve a primeira crise de nervos da sua vida. Aos gritos acudiram todos e encontraram-na metida na banheira, lívida de terror e ainda meio nua, com alaridos de maníaca, e indicando com um dedo trémulo o pequeno roedor, que se punha trabalhosamente em pé e procurava avançar até um lugar seguro. Esteban disse que era a menopausa e não havia que fazer caso. Nem fizeram caso quando teve o segundo ataque. Era o aniversário de Esteban. Amanheceu um dia de sol, e havia muita agitação na casa porque pela primeira vez iam dar uma festa em Las Tres Marias, desde os dias esquecidos em que Dona Ester era uma rapariguinha. Convidaram vários parentes e amigos, que fizeram a viagem de comboio desde a capital, e os proprietários da zona, sem esquecer os notáveis da aldeia. Com uma semana de antecedência prepararam o banquete: meia rês assada no pátio, pastel de rins, ensopado de galinha, guisado de milho, torta de manjar branco, lúcumas (Fruto do lúcumo, árvore sapotácea da América do Sul. (N.T.)), e os melhores vinhos da colheita. Ao meio-dia começaram a chegar os convidados em carros ou a cavalo, e a grande casa de adobe encheu-se de conversas e risos. Férula distraiu-se um momento para correr para a casa de banho, uma dessas imensas casas de banho onde a latrina ficava no meio da divisão, rodeada por um deserto de cerâmicas brancas. Estava instalada naquele assento solitário como um trono, quando se abriu a porta e entrou um dos convidados, nada menos que o regedor da aldeia, abrindo a braguilha e um pouco embriagado com o aperitivo. Ao ver a senhora, ficou paralisado de confusão e surpresa e, quando pôde reagir, a única coisa que lhe ocorreu foi avançar com um sorriso torcido, atravessar toda a divisão, estender a mão e saudá-la com uma vénia:
- Zorobabel Blanco Jamasmié, às suas prezadas ordens - apresentou-se.
«Santo Deus! Ninguém pode viver entre gente tão rústica. Se querem fiquem vocês neste purgatório de incivilizados, que eu volto para a cidade, quero viver como cristã, como sempre vivi», exclamou Férula quando conseguiu falar do assunto sem pôr-se a chorar. Mas não foi. Não queria separar-se de Clara, tinha chegado até a adorar o ar que ela exalava e, mesmo que já não tivesse ocasião de dar-lhe banho e dormir com ela, procurava demonstrar-lhe a sua ternura com mil pequenos pormenores aos quais dedicava a existência. Aquela mulher severa e tão pouco complacente consigo mesma e com os demais podia ser doce e risonha com Clara e, por vezes, por extensão, também com Blanca. Só com ela se dava ao luxo de ceder ao seu transbordante desejo de servir e ser amada, só com ela podia manifestar, embora dissimuladamente, os mais secretos e delicados desejos da sua alma. Ao longo de tantos anos de solidão e tristeza, tinha ido decantando as emoções e limpando os sentimentos, até os reduzir a umas quantas terríveis e magníficas paixões, que a ocupavam por completo. Não tinha capacidade para as pequenas perturbações, para os rancores mesquinhos, as invejas dissimuladas, as obras de caridade, os carinhos mornos, a cortesia amável ou as considerações citadinas. Era um desses seres nascidos para a grandeza de um só amor, para o ódio exagerado, para a vingança apocalíptica e para o heroísmo mais sublime, mas não conseguiu realizar o seu destino à medida da sua romântica vocação, e esse destino decorreu chato e cinzento, entre as paredes de um quarto de enferma, em míseros asilos, em tortuosas confissões, onde essa mulher grande, opulenta, de sangue ardente, feita para a maternidade, para a abundância, a acção e o ardor, se foi consumindo. Nessa época tinha à volta de quarenta e cinco anos, a sua esplêndida raça e os seus afastados antepassados mouriscos mantinham-na polida, com o cabelo todo negro e sedoso, com uma única mecha branca na frente, o corpo forte e delgado e o andar resoluto de gente sã, contudo o deserto da sua vida dava-lhe um aspecto muito maior. Tenho um retrato de Férula tirado nesses anos, durante um aniversário de Blanca. É uma velha fotografia cor de sépia, descolorida pelo tempo, onde todavia ainda é possível vê-la com clareza. Era uma régia matrona, mas tinha no rosto um ricto amargo que lhe denunciava a tragédia interior. Provavelmente esses anos junto de Clara foram os únicos felizes para ela, porque só com Clara pôde ter intimidade. Ela foi a depositária das suas mais subtis emoções, e a ela pôde dedicar a sua enorme capacidade de sacrifício e veneração. Uma vez atreveu-se a dizê-lo, e Clara escreveu no seu caderno de anotar a vida que Férula a amava muito mais do que ela merecia, ou podia retribuir. Por esse amor sem medida, Férula não quis ir-se embora de Las Tres Marias nem sequer quando caiu a praga das formigas, que começou com um ronrom nos prados, uma sombra escura que deslizava com rapidez comendo tudo, as maçarocas, os trigais, a luzerna e a maravilha. Regavam-nas com gasolina e largavam-lhes fogo, mas reapareciam com novos brios. Pintavam com cal viva os troncos das árvores, mas elas subiam sem parar e não respeitavam pêras, maçãs, nem laranjas, metiam-se na horta e acabavam com os melões, entravam na leitaria e o leite de manhã estava azedo e devoravam os frangos vivos, deixando um desperdício de penas e uns ossinhos de lástima. Faziam caminhos dentro de casa, entravam pelas canalizações, apoderavam-se da despensa, tudo o que se cozinhava tinha de se comer logo porque, se ficava uns minutos sobre a mesa, chegavam em procissão e devoravam-no. Pedro Segundo Garcia combateu-as com água e fogo e enterrou esponjas empapadas em mel de abelhas, para que se juntassem atraídas pelo doce e pudesse matá-las sem risco, mas foi tudo inútil. Esteban Trueba foi à aldeia e regressou carregado de pesticidas de todas as marcas conhecidas, em pó, em líquido e em pílulas, e deitou tanto por todos os lados que não se podiam comer os legumes porque davam cólicas de barriga. Mas as formigas continuavam a aparecer e a multiplicarem-se, cada dia mais insolentes e decididas. Esteban foi outra vez à aldeia e mandou um telegrama para a capital. Três dias depois, desembarcou na estação Mister Brown, um gringo anão, munido de uma mala misteriosa, que Esteban apresentou como técnico agrícola especialista em pesticidas. Depois de se refrescar com um jarro de vinho com frutas, abriu a mala em cima da mesa. Extraiu dela um arsenal de instrumentos nunca vistos, começou por pegar numa formiga e observá-la detidamente com um microscópio.
- Porque olha tanto para ela, Mister, se são todas iguais? - disse Pedro Segundo Garcia.
O gringo não lhe respondeu. Quando acabou de identificar a raça, o estilo de vida, a localização dos formigueiros, os hábitos e até as suas mais funestas intenções, tinha passado uma semana e as formigas metiam-se nas camas das crianças, tinham comido as reservas de alimento para o Inverno e começavam a atacar os cavalos e as vacas. Então Mister Brown explicou que tinham de as fumigar com um produto da sua invenção que tornava os machos estéreis, com o qual deixavam de se multiplicar, e logo a seguir deviam borrifá-las com outro veneno, também da sua invenção, que provocava uma enfermidade mortal nas fêmeas, e isso, assegurou ele, acabaria com o problema.
- Em quanto tempo? - perguntou Esteban Trueba, que da impaciência estava passando à fúria.
- Um mês - disse Mister Brown.
- Para nessa altura já terem comido, até os homens, Mister?! - disse Pedro Segundo Garcia. - Se mo permite, patrão, vou chamar o meu pai. Há três semanas que me vem dizendo que conhece um remédio para a praga. Eu creio que são coisas de velho, mas não perdemos nada em tirar a prova.
Chamaram o velho Pedro Garcia, que chegou arrastando os pés, tão escuro, mirrado e desdentado que Esteban se sobressaltou ao verificar a passagem do tempo. O velho escutou com o chapéu na mão, olhando o chão e mastigando o ar com as gengivas nuas. Depois pediu um lenço branco que Férula lhe trouxe do armário de Esteban e saiu de casa, cruzou o pátio e foi direito à horta, seguido por todos os habitantes da casa e pelo anão estrangeiro, que sorria de desprezo, estes bárbaros, oh God! O ancião baixou-se com dificuldade e começou a apanhar formigas. Quando tinha um punhado, pô-las dentro do lenço, atou as quatro pontas e meteu o atado no chapéu.
- Vou-lhes mostrar o caminho, para que se vão embora, formigas, e para que levem as outras - disse.
O velho montou num cavalo e foi murmurando pelo caminho conselhos e recomendações para as formigas, orações de sabedoria e fórmulas de encantamento. Viram-no afastar-se até ao limite da propriedade. O gringo sentou-se no chão a rir como um maluco, até que Pedro Segundo Garcia o sacudiu:
- Vá rir-se da sua avó, Mister, olhe que o velho é meu pai - advertiu-o.
Ao entardecer Pedro Garcia regressou. Desmontou lentamente, disse ao patrão que tinha posto as formigas na estrada e foi para sua casa. Estava cansado. Na manhã seguinte viram que não havia formigas na cozinha nem na dispensa, buscaram no celeiro, no estábulo, nos galinheiros, foram aos pastos, e até ao rio, revistaram tudo e não encontraram uma só, nem para amostra. O técnico pôs-se frenético:
- Ter de dizer-me como fazer isso! - gritava.
- Falando-lhes, pois, Mister. Diga-lhes que se vão, que aqui estão chateando e elas entendem - explicou Pedro Garcia, o velho.
Clara foi a única que considerou natural o procedimento. Férula agarrou-se a isso para dizer que se encontravam num buraco, numa região inumana, onde não funcionavam as leis de Deus nem o progresso da ciência, que qualquer dia começavam a voar vassouras, mas Esteban Trueba fê-la calar: não queria que metessem novas ideias na cabeça da mulher. Nos últimos dias Clara tinha voltado aos afazeres lunáticos, a falar com as aparições e a passar horas escrevendo nos cadernos de anotar a vida. Quando perdeu o interesse pelo escola, pela oficina de costura ou pelas reuniões feministas e voltou a dar a opinião de que tudo era muito bonito, compreenderam que estava outra vez grávida.
- Por culpa tua! - gritou Férula ao irmão.
- Espero bem que sim - respondeu ele.
Em breve se tornou evidente que Clara não estava em condições de passar a gravidez no campo e parir na aldeia, por isso organizaram o regresso à capital. Isso consolou um pouco Férula, que sentia a gravidez de Clara como uma afronta pessoal. Viajou primeiro, com parte da bagagem e os criados, para abrir a grande casa da esquina e preparar a chegada de Clara. Esteban, dias depois, acompanhou a mulher e a filha de volta à cidade, e deixou novamente Las Tres Marias nas mãos de Pedro Segundo Garcia, que se tinha tornado o administrador, embora por isso não ganhasse mais privilégios, mas apenas mais trabalho.
A viagem de Las Tres Marias até à capital acabou por esgotar as forças de Clara. Eu via-a cada vez mais pálida, asmática, olheirenta. Com o bambolear dos cavalos e depois com o do comboio, o pó do caminho e a sua natural tendência para o enjoo, ia perdendo as energias a olhos vistos e eu não podia fazer muito para ajudá-la, porque quando estava mal preferia que não lhe falassem. Ao descermos na estação tive de a segurar porque lhe fraquejavam as pernas.
- Creio que vou elevar-me - disse.
- Aqui não! - gritei-lhe, espantado com a ideia de que saísse voando por cima das cabeças dos passageiros que estavam na gare.
Mas ela não se referia concretamente à levitação, mas sim a subir a um nível que lhe permitisse libertar-se da incomodidade, do peso da sua gravidez e da profunda fadiga que se lhe estava a meter nos ossos. Entrou noutro dos seus longos períodos de silêncio, julgo que lhe durou vários meses, durante os quais se servia da lousa de escrever, como nos tempos da mudez. Nessa ocasião não me alarmei, porque supus que recuperaria a normalidade como tinha acontecido depois do nascimento de Blanca e, por outro lado, eu tinha acabado por compreender que o silêncio era o último refúgio inviolável de minha mulher, e não uma doença mental, como pretendia o doutor Cuevas. Férula cuidava dela da mesma forma obsessiva como cuidara antes da nossa mãe, tratava-a como se fosse uma inválida, não queria deixá-la nunca sozinha e tinha-se descuidado de Blanca, que chorava todo o dia porque queria regressar a Las Tres Marias. Clara deambulava como uma sombra gorda e calada pela casa, com um desinteresse budista por tudo o que a rodeava. A mim nem sequer me olhava, passava a meu lado como seu eu fosse um móvel e quando lhe dirigia a palavra ficava na lua, como se não me ouvisse ou não me conhecesse. Não tínhamos voltado a dormir juntos. Os dias ociosos na cidade e a atmosfera irracional que se respirava punham-me os nervos em franja. Fazia por me manter ocupado, mas isso não era suficiente, estava sempre de mau humor. Sala todos os dias para vigiar os meus negócios. Nessa época comecei a especular na Bolsa do Comércio e passava horas estudando os altos e baixos dos valores internacionais, dediquei-me a investir em prata, a formar sociedades ou a fazer importações. Passava muitas horas no Clube. Comecei também a interessar-me pela política e até entrei num ginásio, onde um gigantesco treinador me obrigava a exercitar músculos que eu não suspeitava ter no corpo. Tinham-me recomendado que me dessem massagens, mas nunca gostei disso: detesto que me toquem mãos mercenárias. Mas nada daquilo me podia preencher o dia, estava incomodado e aborrecido, queria voltar para o campo; mas não me atrevia a deixar a casa, onde por todos os motivos se necessitava de um homem sensato no meio daquelas mulheres histéricas. Além disso, Clara estava a engordar demasiado. Tinha uma barriga tão descomunal que mal se podia suster no seu frágil esqueleto. Por pudor não queria que eu a visse nua, mas ela era minha mulher e eu não ia permitir que tivesse vergonha de mim. Ajudava-a a tomar banho, a vestir-se, quando Férula não se adiantava, e sentia uma pena infinita por ela, tão pequena e fraca, com aquela pança monstruosa, aproximando-se perigosamente o momento do parto. Muitas vezes, preocupei-me pensando que podia morrer ao dar à luz e fechava-me com o doutor Cuevas a discutir a melhor maneira de a ajudar. Tínhamos concordado que, se as coisas não se apresentassem bem, era melhor fazer-lhe outra cesariana, mas eu não queria que a levassem para uma clínica e ele negava-se a fazer-lhe outra operação como a primeira, na sala de jantar da casa. Dizia que não havia comodidades, mas nesses tempos as clínicas eram um foco de infecções e, lá, eram mais os que morriam do que os que se salvavam.
Um dia, faltando pouco para a data do parto, Clara desceu sem aviso prévio do seu refúgio bramânico e voltou a falar. Quis uma chávena de chocolate e pediu-me que a levasse a passear. O coração deu-me uma volta. Toda a casa se encheu de alegria, abrimos champanhe, mandei pôr flores frescas em todas as jarras, encomendei-lhe camélias, as suas flores preferidas e atapetei com elas o seu quarto, até que ela começou a ter asma e tivemos de as tirar dali rapidamente. Corri a comprar-lhe um broche de diamantes na rua dos joalheiros judeus. Clara agradeceu-me efusivamente, achou-o muito bonito, mas nunca lho vi posto. Suponho que terá ido parar a algum lugar impensado onde o pôs e logo o esqueceu, como quase todas as jóias que lhe comprei ao longo da nossa vida em comum. Chamei o doutor Cuevas, que apareceu com o pretexto de tomar chá, mas na realidade vinha examinar Clara. Levou-a ao quarto e depois disse-nos, a Férula e a mim, que, se a sua crise mental parecia curada, tinha de se preparar para um parto difícil, porque a criança era muito grande. Nesse momento, Clara entrou na sala e deve ter ouvido a última frase.
- Tudo correrá bem, não se preocupem - disse.
- Espero que desta vez seja um homem, para ter o meu nome - gracejei.
- Não é um, são dois - respondeu Clara. - Os gémeos vão-se chamar Jaime e Nicolau respectivamente - acrescentou.
Aquilo foi demasiado para mim. Suponho que estoirei pela pressão acumulada nos últimos meses. Fiquei furioso, disse que eram nomes de comerciantes estrangeiros, que ninguém se chamava assim na minha família, nem na sua, que pelo menos um devia chamar-se Esteban, como eu e como meu pai, mas Clara explicou que os nomes repetidos criavam confusão nos cadernos da vida e manteve-se inflexível na sua decisão. Para a assustar, parti com um murro um jarrão de porcelana que, julgo eu, era o último vestígio dos tempos faustosos do meu bisavô, mas ela não se comoveu e o doutor Cuevas sorriu por detrás da chávena de chá, o que me indignou ainda mais. Saí batendo com a porta, e fui ao Clube.
Nessa noite embebedei-me. Em parte porque precisava disso e em parte por vingança, fui ao bordel mais conhecido da cidade, que tinha um nome histórico. Quero deixar claro que não sou homem de prostitutas e que só nos períodos em que me foi dado viver sozinho por longo tempo recorri a elas. Não sei o que me passou pela cabeça nesse dia, estava picado com Clara, andava chateado, sobravam-me energias, tentei-me. Nesses anos o negócio do Cristóbal Colón era florescente, mas não tinha adquirido ainda o prestigio internacional que chegou a ter quando aparecia nas cartas de navegação das companhias inglesas e nos folhetos turísticos e o filmaram para a televisão. Entrei num salão com móveis franceses desses com pés retorcidos, onde me recebeu uma matrona nacional que imitava na perfeição o sotaque de Paris, e que começou por me dar a conhecer a lista de preços e em seguida me perguntou se eu tinha alguém em especial na ideia. Disse-lhe que a minha experiência se limitava ao Farolito Rojo e alguns miseráveis lupanares de mineiros do Norte, de maneira que qualquer mulher jovem e limpa me servia bem.
- O senhor é muitô simpático, mesiú - disse ela. - Vou-lhe trazer o melhor da casa.
Ao seu chamamento acudiu uma mulher enfiada num vestido de cetim preto demasiado apertado, que mal continha a exuberância da sua feminilidade. Tinha o cabelo puxado sobre uma orelha, um penteado de que eu nunca tinha gostado, e à sua passagem ficava um terrível perfume almiscarado a flutuar no ar, tão persistente como um gemido.
- Tenho alegria em vê-lo, patrão - saudou, e então reconheci-a, porque a voz era a única coisa que não tinha mudado em Tránsito Soto.
Levou-me pela mão a um quarto fechado como um túmulo, com as janelas cobertas de cortinas escuras, onde não penetrava um raio de luz natural desde tempos ignotos, mas que de todos os modos parecia um palácio comparado com as sórdidas instalações do Farolito Rojo. Ali, tirei pessoalmente o vestido de cetim preto a Tránsito, desarmei o seu horrendo penteado e pude ver que nesses anos tinha crescido, engordado, embelezado.
- Vejo que progrediste muito - disse-lhe.
- Graças aos seus cinquenta pesos, patrão. Serviram-me para começar - respondeu-me. - Agora posso devolvê-los actualizados, porque com a inflação já não valem o que valiam antes.
- Prefiro que me faças um favor, Tránsito! - e ri-me.
Acabei de lhe tirar os saiotes e comprovei que não existia quase nada da rapariga delgada, com os joelhos e cotovelos salientes, que trabalhava no Farolito Rojo, excepto a sua incansável disposição para a sensualidade e a sua voz de pássaro rouco. Tinha o corpo depilado e tinha friccionado a pele com limão e mel de hamamélide, como me explicou, até ficar suave e branca como a de uma criança. Tinha as unhas pintadas de vermelho e uma serpente tatuada à volta do umbigo, que podia fazer mover em círculos enquanto mantinha em perfeita imobilidade o resto do corpo. Simultaneamente ao demonstrar-me a sua habilidade para ondular a serpente, contou-me a sua vida.
- Se tivesse ficado no Farolito Rojo, que teria sido de mim, patrão? Já não teria dentes, seria uma velha. Nesta profissão desgastamo-nos muito, temos de nos cuidar. É por isso que eu não ando pela rua! Nunca gostei disso, é muito perigoso. Na rua temos de ter um chulo, porque senão arrisca-se muito. Ninguém nos respeita. Mas por quê dar a um homem o que custa tanto a ganhar? Nesse sentido as mulheres são muito brutas. São filhas do rigor. Necessitam de um homem para se sentirem seguras e não se dão conta de que a única coisa que há a temer são os próprios homens. Não sabem administrar, necessitam sacrificar-se por alguém. As putas são as piores, patrão, acredite-me. Deixam a vida para trabalhar para um chulo, alegram-se quando ele lhes liga, sentem-se orgulhosas de o ver bem vestido, com dentes de ouro, com anéis e, quando ele as deixa ou vai com outra mais nova, perdoam-lhe porque «é homem». Não, patrão, eu não sou assim. Nunca estive por conta, por isso nem que fosse louca nunca me poria a sustentar fosse quem fosse. Trabalho para mim, o que ganho gasto-o como eu quero. Custou-me muito, não julgue que foi fácil, porque as donas dos prostíbulos não gostam de lidar com mulheres, preferem entender-se com os chulos. Não ajudam nenhuma de nós. Não têm consideração.
- Mas parece que aqui te apreciam, Tránsito. Disseram-me que eras a melhor da casa.
- E sou. Mas este negócio ia por água abaixo se não fosse eu, que trabalho que nem um burro- disse ela. - As outras já estão como esfregões, patrão. Aqui vêm só velhos, já não é como dantes. Há que modernizar isto, para atrair os funcionários públicos, que não têm nada para fazer ao meio-dia, a juventude, os estudantes. Há que ampliar as instalações, dar mais alegria ao local e limpar. Limpar a fundo! Assim a clientela teria confiança e não estaria a pensar que pode apanhar um esquentamento, não é verdade? Isto é uma porcaria. Não limpam nunca. Olhe, levante a almofada e tenho a certeza que lhe salta um percevejo. Já o disse à madame, mas não fez caso. Não tem olho para o negócio.
- E tu tens?
- Pois claro, patrão! A mim ocorre-me um milhão de coisas para melhorar o Cristóbal Colón. Eu tenho entusiasmo por esta profissão. Não sou como essas que andam só a queixar-se e deitam as culpas à má sorte, quando as coisas lhes correm mal. Não vê onde cheguei? Já sou a melhor. Se me empenho, posso ter a melhor casa do pais, juro-lhe.
Eu estava a divertir-me muito. Sabia apreciá-la, porque de tanto ver a ambição no espelho, quando fazia a barba de manhã, tinha acabado por aprender a reconhecê-la quando a via nos demais.
- Parece-me uma excelente ideia, Tránsito. Porque não montas o teu próprio negócio? Eu entro com o capital - ofereci-lhe, fascinado com a ideia de ampliar os meus interesses comerciais nessa direcção, como devia estar de bêbado!
- Não, obrigado, patrão! - respondeu Tránsito, acariciando a sua serpente com uma unha pintada de laca chinesa. - Não me convém sair de um capitalista para cair noutro. O que há a fazer é uma cooperativa e mandar a madame para o caralho. Não ouviu falar disso? Tenha cuidado, olhe que se os seus caseiros formam uma cooperativa, no campo, você está fodido. O que eu quero é uma cooperativa de putas. Podem ser putas e maricas, para ampliar mais o negócio. Nós pomos tudo, o capital e o trabalho. Para que queremos um patrão?
Fizemos amor de maneira violenta e feroz, que eu quase tinha esquecido de tanto navegar no veleiro de águas mansas da seda azul. Naquela desordem de almofadas e lençóis, apertados no nu vivo do desejo, enroscando-nos até desfalecer, voltei a sentir-me com vinte anos, contente por ter nos braços uma fêmea brava e apertada que não desfalecia em fiapos quando a montavam, uma égua forte que se podia cavalgar sem contemplações, sem que as mãos nos ficassem pesadas, a voz muito dura, os pés muito grandes ou a barba muito áspera, voltei a sentir-me como aquele que resiste a um chorrilho de palavrões ao ouvido e não necessita de ser embalado com ternuras nem enganado com galanteios. Depois, adormecido e feliz, descansei um bocado a seu lado, admirando-lhe a curva sólida das ancas e a tremura da serpente.
- Voltaremos a ver-nos, Tránsito - disse ao dar-lhe a gratificação.
- Isso mesmo lhe disse eu antes, patrão, recorda-se? - respondeu-me com um último vaivém da serpente.
Na realidade, não tinha intenção de tornar a vê-la. Preferia esquecê-la.
Não teria mencionado este episódio se Tránsito não houvesse desempenhado papel tão importante para mim muito tempo depois, porque, como já disse, não sou homem de prostitutas. Mas esta história não se tinha podido escrever se ela não tivesse intervido para nos salvar e salvar, ao mesmo tempo, as nossas recordações.
Poucos dias depois, quando o doutor Cuevas lhes estava preparando o ânimo para voltar a abrir a barriga de Clara, morreram Severo e Nívea del Valle, deixando vários filhos e quarenta e sete netos vivos. Clara soube antes dos outros, através de um sonho, mas não o disse a ninguém, a não ser a Férula, que procurou tranquilizá-la, explicando que a gravidez produz um estado de sobressalto no qual os maus sonhos são frequentes. Duplicou os cuidados, friccionava-a com óleo de amêndoas doces para evitar as estrias na pele do ventre, punha-lhe mel de abelhas nos mamilos para não gretarem, dava-lhe a comer cascas de ovo moída para que tivesse bom leite e não se lhe furassem os dentes, e rezava orações de Belém para um bom parto. Dois dias depois do sonho, chegou Esteban Trueba a casa mais cedo que de costume, pálido e descomposto, agarrou a irmã Férula por um braço e fechou-se com ela na biblioteca.
- Os meus sogros morreram num acidente - disse-lhe apenas. - Não quero que Clara saiba antes do parto. Tem de se fazer um muro de censura à sua volta, nem jornais, nem rádio, nem visitas, nada! Vigia os criados para que ninguém lhe diga nada.
Mas as suas boas intenções ficaram desfeitas pela força das premonições de Clara. Nessa noite voltou a sonhar que os pais caminhavam por um campo de cebolas e que Nívea ia sem cabeça, de modo que, assim, soube todo o ocorrido sem necessidade de o ler no jornal nem de o ouvir pela rádio. Acordou muito excitada e pediu a Férula que a ajudasse a vestir, porque devia sair à procura da cabeça de sua mãe. Férula correu até onde estava Esteban e este chamou o doutor Cuevas, que, embora com risco de prejudicar os gémeos, lhe deu uma beberagem para loucos destinada a fazê-la dormir dois dias, mas que nela não teve o menor efeito.
Os esposos del Valle morreram tal como Clara o sonhou e tal como, a brincar, Nívea tinha anunciado frequentemente que morreriam:
- Qualquer dia vamo-nos matar nesta máquina infernal – dizia Nívea, apontando o velho automóvel de seu marido.
Severo del Valle teve desde jovem um fraco pelos inventos modernos. O automóvel não foi excepção. Nos tempos em que toda a gente andava a pé, em coche de cavalos ou em velocípedes, ele comprou o primeiro automóvel que chegou ao pais, e que estava exposto como curiosidade numa montra do centro. Era um prodígio mecânico que se deslocava a velocidade suicida de quinze a vinte quilómetros por hora, no meio do assombro dos peões e das maldições daqueles que à sua passagem ficavam salpicados de barro ou cobertos de pó. A principio foi combatido como um perigo público. Eminentes cientistas explicaram através da imprensa que o organismo humano não estava feito para resistir a uma deslocação de vinte quilómetros por hora, e que o novo ingrediente, a que chamavam gasolina, podia inflamar-se e produzir uma reacção em cadeia que acabaria com a cidade. O padre Restrepo, que tinha a família del Valle na mira desde o desagradável episódio com Clara na missa de Quinta-Feira Santa, constituiu-se em guardião dos bons costumes e fez ouvir a sua voz da Galiza contra os «amicis rerum novarum», amigos das coisas novas, como esses aparelhos satânicos, que comparou com o carro de fogo em que o profeta Elias desapareceu em direcção ao céu. Mas Severo ignorava o escândalo e em pouco tempo outros cavalheiros seguiram o seu exemplo, até que o espectáculo dos automóveis deixou de ser uma novidade. Usou-o mais de dez anos, negando-se a mudar de modelo quando a cidade se encheu de carros modernos que eram mais eficientes e seguros, pela mesma razão que a esposa não quis eliminar os cavalos de tiro até que morreram tranquilamente de velhice. O Sunbeam tinha cortinas com rendas e floreiras de cristal nas costas dos bancos, onde Nívea mantinha flores frescas, era todo forrado de madeira polida e de couro castanho claro e as suas peças de bronze eram brilhantes como o ouro. Apesar da sua origem britânica, foi baptizado com um nome indígena, Covadonga. Era perfeito, na verdade, com excepção dos travões, que nunca funcionaram bem. Severo orgulhava-se das suas habilidades mecânicas. Desarmou-o várias vezes, tentando arranjá-lo e outras tantas confiou-o ao Grande Cornudo, um mecânico italiano, que era o melhor do pais. Devia a alcunha a uma tragédia que tinha empobrecido a sua vida. Diziam que sua mulher, farta de lhe pôr os cornos sem ele dar por isso, abandonou-o numa noite de tempestade, mas, antes de se ir embora, atou uns cornos de carneiro que conseguiu no carniceiro no alto da porta da oficina de mecânica. No dia seguinte, quando o italiano chegou ao trabalho, encontrou uma cambada de miúdos e vizinhos gozando com ele. Aquele drama, no entanto, não diminuiu em nada o seu prestigio profissional, mas ele não conseguiu
A viagem de Las Tres Marias até à capital acabou por esgotar as forças de Clara. Eu via-a cada vez mais pálida, asmática, olheirenta. Com o bambolear dos cavalos e depois com o do comboio, o pó do caminho e a sua natural tendência para o enjoo, ia perdendo as energias a olhos vistos e eu não podia fazer muito para ajudá-la, porque quando estava mal preferia que não lhe falassem. Ao descermos na estação tive de a segurar porque lhe fraquejavam as pernas.
- Creio que vou elevar-me - disse.
- Aqui não! - gritei-lhe, espantado com a ideia de que saísse voando por cima das cabeças dos passageiros que estavam na gare.
Mas ela não se referia concretamente à levitação, mas sim a subir a um nível que lhe permitisse libertar-se da incomodidade, do peso da sua gravidez e da profunda fadiga que se lhe estava a meter nos ossos. Entrou noutro dos seus longos períodos de silêncio, julgo que lhe durou vários meses, durante os quais se servia da lousa de escrever, como nos tempos da mudez. Nessa ocasião não me alarmei, porque supus que recuperaria a normalidade como tinha acontecido depois do nascimento de Blanca e, por outro lado, eu tinha acabado por compreender que o silêncio era o último refúgio inviolável de minha mulher, e não uma doença mental, como pretendia o doutor Cuevas. Férula cuidava dela da mesma forma obsessiva como cuidara antes da nossa mãe, tratava-a como se fosse uma inválida, não queria deixá-la nunca sozinha e tinha-se descuidado de Blanca, que chorava todo o dia porque queria regressar a Las Tres Marias. Clara deambulava como uma sombra gorda e calada pela casa, com um desinteresse budista por tudo o que a rodeava. A mim nem sequer me olhava, passava a meu lado como seu eu fosse um móvel e quando lhe dirigia a palavra ficava na lua, como se não me ouvisse ou não me conhecesse. Não tínhamos voltado a dormir juntos. Os dias ociosos na cidade e a atmosfera irracional que se respirava punham-me os nervos em franja. Fazia por me manter ocupado, mas isso não era suficiente, estava sempre de mau humor. Sala todos os dias para vigiar os meus negócios. Nessa época comecei a especular na Bolsa do Comércio e passava horas estudando os altos e baixos dos valores internacionais, dediquei-me a investir em prata, a formar sociedades ou a fazer importações. Passava muitas horas no Clube. Comecei também a interessar-me pela política e até entrei num ginásio, onde um gigantesco treinador me obrigava a exercitar músculos que eu não suspeitava ter no corpo. Tinham-me recomendado que me dessem massagens, mas nunca gostei disso: detesto que me toquem mãos mercenárias. Mas nada daquilo me podia preencher o dia, estava incomodado e aborrecido, queria voltar para o campo; mas não me atrevia a deixar a casa, onde por todos os motivos se necessitava de um homem sensato no meio daquelas mulheres histéricas. Além disso, Clara estava a engordar demasiado. Tinha uma barriga tão descomunal que mal se podia suster no seu frágil esqueleto. Por pudor não queria que eu a visse nua, mas ela era minha mulher e eu não ia permitir que tivesse vergonha de mim. Ajudava-a a tomar banho, a vestir-se, quando Férula não se adiantava, e sentia uma pena infinita por ela, tão pequena e fraca, com aquela pança monstruosa, aproximando-se perigosamente o momento do parto. Muitas vezes, preocupei-me pensando que podia morrer ao dar à luz e fechava-me com o doutor Cuevas a discutir a melhor maneira de a ajudar. Tínhamos concordado que, se as coisas não se apresentassem bem, era melhor fazer-lhe outra cesariana, mas eu não queria que a levassem para uma clínica e ele negava-se a fazer-lhe outra operação como a primeira, na sala de jantar da casa. Dizia que não havia comodidades, mas nesses tempos as clínicas eram um foco de infecções e, lá, eram mais os que morriam do que os que se salvavam.
Um dia, faltando pouco para a data do parto, Clara desceu sem aviso prévio do seu refúgio bramânico e voltou a falar. Quis uma chávena de chocolate e pediu-me que a levasse a passear. O coração deu-me uma volta. Toda a casa se encheu de alegria, abrimos champanhe, mandei pôr flores frescas em todas as jarras, encomendei-lhe camélias, as suas flores preferidas e atapetei com elas o seu quarto, até que ela começou a ter asma e tivemos de as tirar dali rapidamente. Corri a comprar-lhe um broche de diamantes na rua dos joalheiros judeus. Clara agradeceu-me efusivamente, achou-o muito bonito, mas nunca lho vi posto. Suponho que terá ido parar a algum lugar impensado onde o pôs e logo o esqueceu, como quase todas as jóias que lhe comprei ao longo da nossa vida em comum. Chamei o doutor Cuevas, que apareceu com o pretexto de tomar chá, mas na realidade vinha examinar Clara. Levou-a ao quarto e depois disse-nos, a Férula e a mim, que, se a sua crise mental parecia curada, tinha de se preparar para um parto difícil, porque a criança era muito grande. Nesse momento, Clara entrou na sala e deve ter ouvido a última frase.
- Tudo correrá bem, não se preocupem - disse.
- Espero que desta vez seja um homem, para ter o meu nome - gracejei.
- Não é um, são dois - respondeu Clara. - Os gémeos vão-se chamar Jaime e Nicolau respectivamente - acrescentou.
Aquilo foi demasiado para mim. Suponho que estoirei pela pressão acumulada nos últimos meses. Fiquei furioso, disse que eram nomes de comerciantes estrangeiros, que ninguém se chamava assim na minha família, nem na sua, que pelo menos um devia chamar-se Esteban, como eu e como meu pai, mas Clara explicou que os nomes repetidos criavam confusão nos cadernos da vida e manteve-se inflexível na sua decisão. Para a assustar, parti com um murro um jarrão de porcelana que, julgo eu, era o último vestígio dos tempos faustosos do meu bisavô, mas ela não se comoveu e o doutor Cuevas sorriu por detrás da chávena de chá, o que me indignou ainda mais. Saí batendo com a porta, e fui ao Clube.
Nessa noite embebedei-me. Em parte porque precisava disso e em parte por vingança, fui ao bordel mais conhecido da cidade, que tinha um nome histórico. Quero deixar claro que não sou homem de prostitutas e que só nos períodos em que me foi dado viver sozinho por longo tempo recorri a elas. Não sei o que me passou pela cabeça nesse dia, estava picado com Clara, andava chateado, sobravam-me energias, tentei-me. Nesses anos o negócio do Cristóbal Colón era florescente, mas não tinha adquirido ainda o prestigio internacional que chegou a ter quando aparecia nas cartas de navegação das companhias inglesas e nos folhetos turísticos e o filmaram para a televisão. Entrei num salão com móveis franceses desses com pés retorcidos, onde me recebeu uma matrona nacional que imitava na perfeição o sotaque de Paris, e que começou por me dar a conhecer a lista de preços e em seguida me perguntou se eu tinha alguém em especial na ideia. Disse-lhe que a minha experiência se limitava ao Farolito Rojo e alguns miseráveis lupanares de mineiros do Norte, de maneira que qualquer mulher jovem e limpa me servia bem.
- O senhor é muitô simpático, mesiú - disse ela. - Vou-lhe trazer o melhor da casa.
Ao seu chamamento acudiu uma mulher enfiada num vestido de cetim preto demasiado apertado, que mal continha a exuberância da sua feminilidade. Tinha o cabelo puxado sobre uma orelha, um penteado de que eu nunca tinha gostado, e à sua passagem ficava um terrível perfume almiscarado a flutuar no ar, tão persistente como um gemido.
- Tenho alegria em vê-lo, patrão - saudou, e então reconheci-a, porque a voz era a única coisa que não tinha mudado em Tránsito Soto.
Levou-me pela mão a um quarto fechado como um túmulo, com as janelas cobertas de cortinas escuras, onde não penetrava um raio de luz natural desde tempos ignotos, mas que de todos os modos parecia um palácio comparado com as sórdidas instalações do Farolito Rojo. Ali, tirei pessoalmente o vestido de cetim preto a Tránsito, desarmei o seu horrendo penteado e pude ver que nesses anos tinha crescido, engordado, embelezado.
- Vejo que progrediste muito - disse-lhe.
- Graças aos seus cinquenta pesos, patrão. Serviram-me para começar - respondeu-me. - Agora posso devolvê-los actualizados, porque com a inflação já não valem o que valiam antes.
- Prefiro que me faças um favor, Tránsito! - e ri-me.
Acabei de lhe tirar os saiotes e comprovei que não existia quase nada da rapariga delgada, com os joelhos e cotovelos salientes, que trabalhava no Farolito Rojo, excepto a sua incansável disposição para a sensualidade e a sua voz de pássaro rouco. Tinha o corpo depilado e tinha friccionado a pele com limão e mel de hamamélide, como me explicou, até ficar suave e branca como a de uma criança. Tinha as unhas pintadas de vermelho e uma serpente tatuada à volta do umbigo, que podia fazer mover em círculos enquanto mantinha em perfeita imobilidade o resto do corpo. Simultaneamente ao demonstrar-me a sua habilidade para ondular a serpente, contou-me a sua vida.
- Se tivesse ficado no Farolito Rojo, que teria sido de mim, patrão? Já não teria dentes, seria uma velha. Nesta profissão desgastamo-nos muito, temos de nos cuidar. É por isso que eu não ando pela rua! Nunca gostei disso, é muito perigoso. Na rua temos de ter um chulo, porque senão arrisca-se muito. Ninguém nos respeita. Mas por quê dar a um homem o que custa tanto a ganhar? Nesse sentido as mulheres são muito brutas. São filhas do rigor. Necessitam de um homem para se sentirem seguras e não se dão conta de que a única coisa que há a temer são os próprios homens. Não sabem administrar, necessitam sacrificar-se por alguém. As putas são as piores, patrão, acredite-me. Deixam a vida para trabalhar para um chulo, alegram-se quando ele lhes liga, sentem-se orgulhosas de o ver bem vestido, com dentes de ouro, com anéis e, quando ele as deixa ou vai com outra mais nova, perdoam-lhe porque «é homem». Não, patrão, eu não sou assim. Nunca estive por conta, por isso nem que fosse louca nunca me poria a sustentar fosse quem fosse. Trabalho para mim, o que ganho gasto-o como eu quero. Custou-me muito, não julgue que foi fácil, porque as donas dos prostíbulos não gostam de lidar com mulheres, preferem entender-se com os chulos. Não ajudam nenhuma de nós. Não têm consideração.
- Mas parece que aqui te apreciam, Tránsito. Disseram-me que eras a melhor da casa.
- E sou. Mas este negócio ia por água abaixo se não fosse eu, que trabalho que nem um burro- disse ela. - As outras já estão como esfregões, patrão. Aqui vêm só velhos, já não é como dantes. Há que modernizar isto, para atrair os funcionários públicos, que não têm nada para fazer ao meio-dia, a juventude, os estudantes. Há que ampliar as instalações, dar mais alegria ao local e limpar. Limpar a fundo! Assim a clientela teria confiança e não estaria a pensar que pode apanhar um esquentamento, não é verdade? Isto é uma porcaria. Não limpam nunca. Olhe, levante a almofada e tenho a certeza que lhe salta um percevejo. Já o disse à madame, mas não fez caso. Não tem olho para o negócio.
- E tu tens?
- Pois claro, patrão! A mim ocorre-me um milhão de coisas para melhorar o Cristóbal Colón. Eu tenho entusiasmo por esta profissão. Não sou como essas que andam só a queixar-se e deitam as culpas à má sorte, quando as coisas lhes correm mal. Não vê onde cheguei? Já sou a melhor. Se me empenho, posso ter a melhor casa do pais, juro-lhe.
Eu estava a divertir-me muito. Sabia apreciá-la, porque de tanto ver a ambição no espelho, quando fazia a barba de manhã, tinha acabado por aprender a reconhecê-la quando a via nos demais.
- Parece-me uma excelente ideia, Tránsito. Porque não montas o teu próprio negócio? Eu entro com o capital - ofereci-lhe, fascinado com a ideia de ampliar os meus interesses comerciais nessa direcção, como devia estar de bêbado!
- Não, obrigado, patrão! - respondeu Tránsito, acariciando a sua serpente com uma unha pintada de laca chinesa. - Não me convém sair de um capitalista para cair noutro. O que há a fazer é uma cooperativa e mandar a madame para o caralho. Não ouviu falar disso? Tenha cuidado, olhe que se os seus caseiros formam uma cooperativa, no campo, você está fodido. O que eu quero é uma cooperativa de putas. Podem ser putas e maricas, para ampliar mais o negócio. Nós pomos tudo, o capital e o trabalho. Para que queremos um patrão?
Fizemos amor de maneira violenta e feroz, que eu quase tinha esquecido de tanto navegar no veleiro de águas mansas da seda azul. Naquela desordem de almofadas e lençóis, apertados no nu vivo do desejo, enroscando-nos até desfalecer, voltei a sentir-me com vinte anos, contente por ter nos braços uma fêmea brava e apertada que não desfalecia em fiapos quando a montavam, uma égua forte que se podia cavalgar sem contemplações, sem que as mãos nos ficassem pesadas, a voz muito dura, os pés muito grandes ou a barba muito áspera, voltei a sentir-me como aquele que resiste a um chorrilho de palavrões ao ouvido e não necessita de ser embalado com ternuras nem enganado com galanteios. Depois, adormecido e feliz, descansei um bocado a seu lado, admirando-lhe a curva sólida das ancas e a tremura da serpente.
- Voltaremos a ver-nos, Tránsito - disse ao dar-lhe a gratificação.
- Isso mesmo lhe disse eu antes, patrão, recorda-se? - respondeu-me com um último vaivém da serpente.
Na realidade, não tinha intenção de tornar a vê-la. Preferia esquecê-la.
Não teria mencionado este episódio se Tránsito não houvesse desempenhado papel tão importante para mim muito tempo depois, porque, como já disse, não sou homem de prostitutas. Mas esta história não se tinha podido escrever se ela não tivesse intervido para nos salvar e salvar, ao mesmo tempo, as nossas recordações.
Poucos dias depois, quando o doutor Cuevas lhes estava preparando o ânimo para voltar a abrir a barriga de Clara, morreram Severo e Nívea del Valle, deixando vários filhos e quarenta e sete netos vivos. Clara soube antes dos outros, através de um sonho, mas não o disse a ninguém, a não ser a Férula, que procurou tranquilizá-la, explicando que a gravidez produz um estado de sobressalto no qual os maus sonhos são frequentes. Duplicou os cuidados, friccionava-a com óleo de amêndoas doces para evitar as estrias na pele do ventre, punha-lhe mel de abelhas nos mamilos para não gretarem, dava-lhe a comer cascas de ovo moída para que tivesse bom leite e não se lhe furassem os dentes, e rezava orações de Belém para um bom parto. Dois dias depois do sonho, chegou Esteban Trueba a casa mais cedo que de costume, pálido e descomposto, agarrou a irmã Férula por um braço e fechou-se com ela na biblioteca.
- Os meus sogros morreram num acidente - disse-lhe apenas. - Não quero que Clara saiba antes do parto. Tem de se fazer um muro de censura à sua volta, nem jornais, nem rádio, nem visitas, nada! Vigia os criados para que ninguém lhe diga nada.
Mas as suas boas intenções ficaram desfeitas pela força das premonições de Clara. Nessa noite voltou a sonhar que os pais caminhavam por um campo de cebolas e que Nívea ia sem cabeça, de modo que, assim, soube todo o ocorrido sem necessidade de o ler no jornal nem de o ouvir pela rádio. Acordou muito excitada e pediu a Férula que a ajudasse a vestir, porque devia sair à procura da cabeça de sua mãe. Férula correu até onde estava Esteban e este chamou o doutor Cuevas, que, embora com risco de prejudicar os gémeos, lhe deu uma beberagem para loucos destinada a fazê-la dormir dois dias, mas que nela não teve o menor efeito.
Os esposos del Valle morreram tal como Clara o sonhou e tal como, a brincar, Nívea tinha anunciado frequentemente que morreriam:
- Qualquer dia vamo-nos matar nesta máquina infernal – dizia Nívea, apontando o velho automóvel de seu marido.
Severo del Valle teve desde jovem um fraco pelos inventos modernos. O automóvel não foi excepção. Nos tempos em que toda a gente andava a pé, em coche de cavalos ou em velocípedes, ele comprou o primeiro automóvel que chegou ao pais, e que estava exposto como curiosidade numa montra do centro. Era um prodígio mecânico que se deslocava a velocidade suicida de quinze a vinte quilómetros por hora, no meio do assombro dos peões e das maldições daqueles que à sua passagem ficavam salpicados de barro ou cobertos de pó. A principio foi combatido como um perigo público. Eminentes cientistas explicaram através da imprensa que o organismo humano não estava feito para resistir a uma deslocação de vinte quilómetros por hora, e que o novo ingrediente, a que chamavam gasolina, podia inflamar-se e produzir uma reacção em cadeia que acabaria com a cidade. O padre Restrepo, que tinha a família del Valle na mira desde o desagradável episódio com Clara na missa de Quinta-Feira Santa, constituiu-se em guardião dos bons costumes e fez ouvir a sua voz da Galiza contra os «amicis rerum novarum», amigos das coisas novas, como esses aparelhos satânicos, que comparou com o carro de fogo em que o profeta Elias desapareceu em direcção ao céu. Mas Severo ignorava o escândalo e em pouco tempo outros cavalheiros seguiram o seu exemplo, até que o espectáculo dos automóveis deixou de ser uma novidade. Usou-o mais de dez anos, negando-se a mudar de modelo quando a cidade se encheu de carros modernos que eram mais eficientes e seguros, pela mesma razão que a esposa não quis eliminar os cavalos de tiro até que morreram tranquilamente de velhice. O Sunbeam tinha cortinas com rendas e floreiras de cristal nas costas dos bancos, onde Nívea mantinha flores frescas, era todo forrado de madeira polida e de couro castanho claro e as suas peças de bronze eram brilhantes como o ouro. Apesar da sua origem britânica, foi baptizado com um nome indígena, Covadonga. Era perfeito, na verdade, com excepção dos travões, que nunca funcionaram bem. Severo orgulhava-se das suas habilidades mecânicas. Desarmou-o várias vezes, tentando arranjá-lo e outras tantas confiou-o ao Grande Cornudo, um mecânico italiano, que era o melhor do pais. Devia a alcunha a uma tragédia que tinha empobrecido a sua vida. Diziam que sua mulher, farta de lhe pôr os cornos sem ele dar por isso, abandonou-o numa noite de tempestade, mas, antes de se ir embora, atou uns cornos de carneiro que conseguiu no carniceiro no alto da porta da oficina de mecânica. No dia seguinte, quando o italiano chegou ao trabalho, encontrou uma cambada de miúdos e vizinhos gozando com ele. Aquele drama, no entanto, não diminuiu em nada o seu prestigio profissional, mas ele não conseguiu compor os travões do Covadonga. Severo optou por trazer uma pedra grande no automóvel e, quando estacionava em descidas, um passageiro pisava o travão de pé e o outro descia rapidamente e punha a pedra diante das rodas. O sistema em geral dava bom resultado, mas nesse domingo fatal, assinalado pelo destino como o último das suas vidas, não foi assim. Os esposos del Valle saíram a passear pelos arrabaldes da cidade, como faziam sempre que havia um dia de sol. Os travões depressa deixaram de funcionar por completo e, antes que Nívea conseguisse saltar do carro para colocar a pedra, ou Severo pudesse manobrar, o automóvel foi rodando cerro abaixo. Severo tentou desviá-lo ou detê-lo, mas o diabo tinha-se apoderado da máquina, que voou descontrolada até se espetar contra uma carroça carregada de ferragens de construção. Uma das laminas entrou pelo pára-brisas e decapitou Nívea num abrir e fechar de olhos. A cabeça saiu-lhe disparada e, apesar das buscas da policia, dos guardas florestais e dos vizinhos voluntários que saíram a buscar-lhe o rasto com cães, foi impossível durante dois dias dar com ela. No terceiro dia, como os corpos começaram a feder, tiveram de enterrá-los incompletos, num funeral magnifico a que assistiu a tribo del Valle e um número incrível de amigos e conhecidos, além das delegações de mulheres que foram despedir-se dos restos mortais de Nívea, considerada então a primeira feminista do pais e de quem os seus inimigos ideológicos disseram que, se tinha perdido a cabeça em vida, não havia razão para que a conservasse na morte. Clara, recolhida em casa, rodeada de criados que a cuidavam, com Férula como guardiã e drogada pelo doutor Cuevas, não assistiu ao enterro. Não fez nenhum comentário que indicasse que sabia do horroroso assunto da cabeça perdida, para consideração de todos os que haviam tentado poupar-lhe essa última dor; no entanto, quando terminaram os funerais e a vida pareceu voltar à normalidade, Clara convenceu Férula que a acompanhasse a procurá-la e foi inútil que a sua cunhada lhe desse mais beberagens e pílulas, porque não desistiu da ideia. Vencida, Férula compreendeu que não era possível continuar alegando que o caso da cabeça era um mau sonho e que o melhor era ajudá-la nos seus planos, antes que a ansiedade acabasse por dar cabo dela. Esperaram que Esteban Trueba saísse. Férula ajudou-a a vestir-se e chamou um carro de aluguer. As instruções que Clara deu ao motorista foram algo imprecisas:
- O senhor vá para a frente, que eu vou-lhe dizendo o caminho - disse-lhe, guiada pelo seu instinto para ver o invisível.
Saíram da cidade e entraram no espaço aberto onde as casas se distanciavam e começavam as colinas e os vales suaves. À indicação de Clara, viraram por um caminho lateral e seguiram entre os vidoeiros e campos de cebolas, até que disse ao motorista que parasse junto de uns matagais.
- É aqui - disse.
- Não pode ser! Estamos longíssimo do lugar do acidente! - duvidou Férula.
- Digo-te que é aqui! - insistiu Clara, descendo do carro com dificuldade, balançando o enorme ventre, seguida por sua cunhada, que dizia orações entredentes, e pelo homem, que não tinha a menor ideia do objectivo da viagem. Tentou rastejar entre o mato, mas o volume dos gémeos impediram-na.
- Faça-me o favor, senhor, meta-se ali e passe-me uma cabeça de senhora que vai encontrar - pediu ao motorista.
Ele arrastou-se debaixo dos espinhos e encontrou a cabeça de Nívea, que parecia um melão solitário. Pegou-lhe pelo cabelo e saiu com ela gatinhando. Enquanto o homem vomitava apoiado numa árvore próxima, Férula e Clara limparam a Nívea a terra e os seixos que se lhe tinham metido pelas orelhas, pelo nariz e pela boca, e compuseram-lhe o cabelo, que se lhe havia despenteado um pouco, mas não puderam fechar-lhe os olhos. Envolveram-na num xaile e regressaram ao carro.
- Apresse-se, senhor, porque creio que vou dar à luz! - disse Clara ao motorista.
Chegaram justamente a tempo de acomodar a mãe na sua cama. Férula tratou dos preparativos enquanto iam buscar o doutor Cuevas e a parteira. Clara, que com os solavancos do carro, as emoções dos últimos dias e as beberagens do médico tinha adquirido a facilidade para dar à luz que não teve com a sua primeira filha, apertou os dentes, agarrou-se ao mastro da mezena e do traquete do veleiro e entregou-se à tarefa de dar ao mundo, na água mansa da seda azul, Jaime e Nicolau, que nasceram precipitadamente, ante o olhar atento da avó, cujos olhos continuavam abertos observando-os da cómoda. Férula agarrou-os um de cada vez pela mecha de cabelo húmido que lhes coroava a nuca e ajudou-os a sair com puxões, com a experiência adquirida a ver nascer potros e vitelos em Las Tres Marias. Antes que chegassem o médico e a parteira ocultou debaixo da cama a cabeça de Nívea, para evitar explicações complicadas. Quando eles chegaram, tiveram muito pouco que fazer, porque a mãe descansava tranquila e as crianças, minúsculas como sete-mesinhos, mas com todas as suas partes inteiras e em bom estado, dormiam nos braços da sua extenuada tia.
A cabeça de Nívea tornou-se um problema, porque não tinham onde a pôr para que a não vissem. Por fim, Férula colocou-a dentro de uma chapeleira de couro envolvida em trapos. Discutiram a possibilidade de a enterrar como Deus manda, mas teria sido uma papelada interminável para conseguir que abrissem o túmulo para incluir nele o que faltava e, por outro lado, temiam o escândalo se se tornava pública a maneira como Clara a tinha encontrado onde os sabujos tinham fracassado. Esteban Trueba, temeroso do ridículo como sempre foi, optou por uma solução que não desse argumentos às más línguas, porque sabia que o estranho comportamento de sua mulher era motivo de chacota. Tinha constado a habilidade de Clara para mover objectos sem lhes tocar e para adivinhar o impossível. Alguém desenterrou a história da mudez de Clara durante a sua infância e a acusação do padre Restrepo, aquele santo varão que a Igreja pretendia converter no primeiro boato do pais. O par de anos em Las Tres Marias serviu para calar os murmúrios e para que as pessoas esquecessem, mas Trueba sabia que bastava uma insignificância, como o assunto da cabeça da sagra, para que voltassem com falatórios. Por isso, e não por desleixo, como se disse anos mais tarde, a chapeleira guardou-se na cave à espera de uma ocasião adequada para dar-lhe sepultura cristã.
Clara recompôs-se do duplo parto com rapidez. Entregou as crianças, para serem criadas, à cunhada e à Ama, que, depois da morte dos antigos patrões, se empregou em casa dos Trueba para continuar servindo o mesmo sangue, como dizia. Tinha nascido para embalar filhos alheios, para usar a roupa que os outros deitavam fora, para comer as suas sobras, para viver de sentimentos e tristezas emprestadas, para envelhecer debaixo do tecto dos outros, para morrer um dia no seu cubículo do último pátio, na sua cama que não era sua e ser enterrada na vala comum do Cemitério Central. Tinha cerca de setenta anos, mas mantinha-se imperturbável no seu trabalho, incansável nas lides da casa, sem acusar o tempo, com agilidade para disfarçar-se de cuco e assaltar Clara nos cantos quando lhe vinha a mania da mudez e da lousa, com força para lidar com os gémeos e ternura para compreender Blanca, tal como antes o tinha feito com a sua mãe e a sua avó. Tinha adquirido o hábito de murmurar orações constantemente, mas, quando se deu conta de que ninguém em casa era crente, assumiu a responsabilidade de orar pelos vivos da família, e por certo também pelos mortos, como um prolongamento dos serviços que lhes tinha prestado em vida. Na velhice chegou a esquecer para quem rezava, mas manteve o costume com a certeza de que ele serviria a alguém. A devoção era a única coisa que compartilhava com Férula. Em tudo o resto foram rivais.
Uma sexta-feira, pela tarde, tocaram à porta da grande casa da esquina três senhoras translúcidas, de mãos ténues e olhos de bruma, com chapéus com flores passados de moda e banhadas num intenso perfume a violetas silvestres, que se infiltrou por todos os quartos e deixou a casa cheirando a flores por vários dias. Eram as três irmãs Mora. Clara estava no jardim e parecia tê-las esperado toda a tarde, recebeu-as com um menino em cada peito e com Blanca brincando a seus pés. Olharam-se, reconheceram-se, sorriram-se. Foi o começo de uma apaixonada relação espiritual que lhes durou toda a vida, e que, se as suas previsões se cumprissem, continuaria no Mais-Além.
As três irmãs Mora eram estudiosas do espiritismo e dos fenómenos naturais, eram as únicas que tinham a prova irrefutável de que as almas podem materializar-se, graças a uma fotografia que as mostrava à volta de uma mesa e voando por cima das suas cabeças um ectoplasma difuso e alado, que alguns descrentes atribuíam a uma mancha na revelação do retrato e outros a um simples engano do fotógrafo. Inteiraram-se, por condutas misteriosas ao alcance dos iniciados, da existência de Clara, puseram-se em contacto telepático com ela e compreenderam de imediato que eram irmãs astrais. Por meio de discretas averiguações deram com a sua direcção da terra e apresentaram-se com os seus próprios baralhos impregnados de fluidos benéficos, uns jogos de figuras geométricas e números cabalísticos de sua invenção, para desmascarar os falsos parapsicólogos, e uma bandeja de pastelinhos comuns e correntes de presente para Clara. Fizeram-se amigas intimas e, a partir desse dia, procuravam juntar-se todas as sextas-feiras para invocar os espíritos, trocar cabalas e receitas de cozinha. Descobriram a forma de enviar energia mental da grande casa da esquina até ao outro extremo da cidade, onde viviam os Mora, num velho moinho que tinham transformado na sua extraordinária morada, e também no sentido inverso, com o que podiam apoiar-se nas circunstancias difíceis da vida quotidiana. As Mora conheciam muitas pessoas, quase todas interessadas nesses assuntos, que começaram a chegar às reuniões das sextas-feiras e trouxeram os seus conhecimentos e fluidos magnéticos. Esteban Trueba via-as desfilar pela casa e pôs como únicas condições que respeitassem a sua biblioteca, que não utilizassem as crianças para experiências psíquicas e, fossem discretas, porque não queria escândalo público. Férula não aprovava estas actividades de Clara, porque lhe pareciam em desacordo com a religião e os bons costumes. Observava as sessões a uma distancia prudente, sem participar, mas vigiando pelo rabo do olho enquanto tecia, disposta a intervir logo que Clara entrasse nalgum transe. Tinha verificado que a cunhada ficava exausta depois de algumas sessões em que servia de médium e começava a falar em idiomas pagãos com uma voz que não era a sua. A Ama também vigiava com o pretexto de oferecer chavenazinhas de café, espantando as almas com os seus saiotes engomados e o seu cacarejar de orações murmuradas e de dentes soltos, mas não fazia isso para cuidar de Clara nos seus próprios excessos, mas para verificar que ninguém roubava os cinzeiros. Era inútil que Clara lhe explicasse que as suas visitas não tinham o menor interesse neles; principalmente porque ninguém fumava, porque a Ama tinha classificado todos, excepto as três encantadoras jovens Mora, como um bando de rufias evangélicos.
A Ama e Férula detestavam-se. Disputavam entre si o carinho das crianças e lutavam por cuidar de Clara nas suas extravagâncias e desvarios, num surdo e permanente combate que se desenrolava nas cozinhas, nos pátios, nos corredores, mas nunca perto de Clara, porque as duas estavam de acordo em evitar-lhe essa moléstia. Férula tinha chegado a gostar de Clara com uma paixão zelosa que se parecia mais com a de um marido exigente que com a de uma cunhada. Com o tempo perdeu a prudência e começou a deixar transparecer a sua adoração em muitos pormenores que não passavam despercebidos a Esteban. Quando ele regressava do campo, Férula procurava convencê-lo de que Clara estava naquilo a que chamavam «um dos seus maus momentos», para que ele não dormisse na sua cama e não estivesse com ela mais que ocasiões contadas e por tempo limitado. Defendia recomendações do doutor Cuevas que depois, ao serem confrontadas com o médico, resultavam invenções. Interpunha-se de mil maneiras entre os esposos e se tudo lhe falhava incitava os três meninos a que pedissem para ir passear com o seu pai, ler com a mãe, que os tapassem porque tinham febre, que brincassem com eles; «pobrezinhos necessitam do seu papa e da sua mamã. Passam todo o dia nas mãos dessa velha ignorante que lhes mete ideias atrasadas na cabeça, que os está pondo imbecis com as suas superstições, o que há a fazer com a Ama é interná-la, dizem que as servas de Deus têm um asilo para empregadas velhas que é uma maravilha, tratam-nas como senhoras, não têm de trabalhar, há boa comida, isso seria o mais humano, pobre Ama, já não dá para mais», dizia. Sem poder detectar a causa, Esteban começou a sentir-se incomodado na sua própria casa. Sentia a mulher cada vez mais afastada, mais rara e inacessível, não podia alcançá-la nem com presentes, nem com as suas tímidas mostras de ternura, nem com a paixão desenfreada que o comovia sempre na sua presença. Em todo esse tempo, o seu amor tinha aumentado até se tornar numa obsessão. Queria que Clara não pensasse em ninguém mais que nele, que não tivesse mais vida que aquela que pudesse repartir com ele, que lhe contasse tudo, que não possuísse nada que não viesse das suas mãos, que dependesse dele totalmente.
Mas a realidade era diferente Clara parecia andar voando de aeroplano, como o seu tio Marcos, desprendida do solo firme, procurando Deus em disciplinas tibetanas, consultando os espíritos com mesas de pé-de-galo que davam pancadinhas, duas para sim, três para não, decifrando mensagens de outros mundos, que podiam indicar-lhe até o estado das chuvas. Uma vez, anunciaram que havia um tesouro escondido debaixo da chaminé e ela mandou primeiro deitar abaixo a parede, mas não apareceu, depois foi a escada, nada, a seguir a metade do salão principal, nada. Por último aconteceu que o espirito, confundido com as modificações arquitectónicas que ela tinha feito em casa, não reparou que o esconderijo dos dobrões de ouro não estava na casa dos Trueba, mas do outro lado da rua, em casa dos Ugarte, que se negaram a deitar abaixo a sala de jantar porque não acreditaram no conto do fantasma espanhol. Clara não era capaz de fazer as tranças a Blanca para ir para a escola, disso se encarregavam Férula e a Ama, mas tinha com ela uma estupenda relação baseada nos mesmos princípios que ela tinha tido com Nívea: contavam contos, liam os livros mágicos dos baús encantados, consultavam os retratos de família, contavam-se anedotas dos tios que deixavam escapar ventos e dos cegos que caem como gárgulas dos álamos, saíam a olhar a cordilheira e a contar as nuvens, comunicavam entre si num idioma inventado que suprimia o te ao castelhano e o substituía por éne e o érre por éle, de maneira que ficavam falando como o chinês da tinturaria. Entretanto, Jaime e Nicolau cresciam separados do binómio feminino, de acordo com o principio daqueles tempos de que se «têm de fazer homens». As mulheres, por seu lado, nasciam com a sua condição incorporada geneticamente e não tinham necessidade de a adquirir com as vicissitudes da vida. Os gémeos tornaram-se fortes e brutais nos jogos próprios da sua idade, primeiro caçando lagartixas para cortar-lhes a cauda, ratos para os fazer dar corridas e borboletas para lhes tirar o pó das asas e, mais tarde, dando murros e patadas de acordo com as instruções do mesmo chinês da tinturaria, que era um avançado para a sua época e que foi o primeiro a levar ao pais o conhecimento milenário das artes marciais, mas ninguém fez caso quando demonstrou que podia partir tijolos com a mão e quis montar a sua própria academia, por isso acabou lavando roupa alheia. Anos mais tarde, os gémeos acabaram de fazer-se homens, escapando do colégio para se meterem no sitio baldio da lixeira, onde trocavam os talheres de prata da mãe por uns minutos de amor proibido com uma mulherona imensa que os podia embalar aos dois nos seus peitos de vaca holandesa, afogá-los aos dois na pulposa humidade das axilas, esmagá-los nos músculos de elefante e levar os dois à glória com a cavidade escura, sumarenta, quente do seu sexo. Mas isso não durou muito e Clara nunca o soube, de modo que não o pôde anotar nos cadernos para que eu o lesse algum dia. Vim a saber por outras vias.
Os assuntos domésticos não interessavam a Clara. Vagueava pelos quartos sem estranhar que tudo estivesse em perfeito estado de ordem e limpeza. Sentava-se à mesa sem perguntar quem preparava a comida e onde compravam os alimentos, tanto lhe fazia que fosse este ou aquele quem a servisse, esquecia o nome dos empregados e por vezes até o dos próprios filhos, no entanto parecia estar sempre presente, como um espírito benéfico e alegre, a cujo passo acertavam os relógios. Vestia-se de branco, porque decidiu que era a única cor que não alterava a sua aura, com os vestidos simples que lhe fazia Férula na máquina de coser e que preferia aos vestidos com véus e pedrarias que lhe dava o marido, com o propósito de deslumbrá-la e vê-la à moda.
Esteban sofria repentes de desespero porque ela o tratava com a mesma simpatia com que tratava toda a gente, falava-lhe com o tom mimoso com que acariciava os gatos, era incapaz de ver se ele estava cansado, triste, eufórico ou com vontade de fazer amor, mas em contrapartida adivinhava, pela cor das suas radiações, quando ele estava tramando alguma velhacaria e podia desarmar-lhe uma zanga com duas frases trampolineiras. Exasperava-o que Clara nunca parecesse estar realmente agradecida por nada e nunca necessitar nada que ele pudesse dar-lhe. Na cama era distraída e risonha como em tudo o resto, descontraída e simples, mas ausente. Sabia que tinha o corpo para fazer todas as ginásticas aprendidas nos livros que escondia num compartimento da biblioteca, mas até os pecados mais abomináveis com Clara pareciam brincadeiras de recém-nascido, porque era impossível salpicá-los com o sal de qualquer mau pensamento ou a pimenta da submissão. Enfurecido, nalgumas ocasiões Trueba voltou aos antigos pecados e tombava uma camponesa robusta nos matagais, durante as separações forçadas em que Clara ficava com os miúdos na capital e ele tinha de tomar cargo do campo, mas o acontecido, longe de aliviá-lo, deixava-lhe um mau sabor na boca e não lhe dava nenhum prazer, que durasse especialmente, porque se o tivesse contado a sua mulher, sabia que se teria escandalizado por ele ter maltratado outra, mas de maneira alguma pela sua infidelidade. Os ciúmes, como muitos outros sentimentos propriamente humanos, não tocavam Clara. Também foi ao Farolito Rojo duas ou três vezes, mas deixou de o fazer porque já não funcionava com a prostitutas e tinha de engolir a humilhação com pretextos, ditos entre dentes, de que tinha bebido muito vinho, de que lhe tinha caído mal o almoço, de que andava constipado há vários dias. Não voltou, todavia, a visitar Tránsito Soto, porque pressentia que ela tinha em si própria o perigo da continuação. Sentia um desejo insatisfeito fervendo-lhe nas entranhas, um fogo impossível de apagar, uma sede de Clara que nunca, nem mesmo nas noites mais fogosas e prolongadas, conseguia saciar. Dormia extenuado, com o coração a pontos de lhe estalar no peito, mas até nos sonhos estava consciente de que a mulher que repousava a seu lado não estava ali, mas era apenas uma dimensão desconhecida a que ele jamais poderia chegar. Por vezes perdia a paciência e sacudia Clara furioso, gritando-lhe os piores insultos e terminava chorando no seu regaço e pedindo depois perdão pela sua brutalidade. Clara compreendia, mas não podia remediá-lo. O amor desmedido de Esteban Trueba por Clara foi sem dúvida o sentimento mais poderoso da sua vida, maior inclusivamente que a raiva e o orgulho, e meio século depois continuava invocando-o com o mesmo estremecimento e a mesma urgência. No leito de ancião, chamá-la-ia até ao fim dos seus dias.
As intervenções de Férula agravavam o estado de ansiedade em que se debatia Esteban. Cada obstáculo que sua irmã atravessava entre Clara e ele punha-o fora de si. Chegou a detestar os próprios filhos porque absorviam a atenção da mãe, levou Clara a uma segunda lua-de-mel nos mesmos sítios da primeira, escapavam-se para hotéis em fins-de-semana, mas tudo era inútil. Convenceu-se de que Férula era quem tinha a culpa de tudo, que tinha semeado na sua mulher o gérmen maléfico que a impedia de o amar, e que, roubava com carícias proibidas o que lhe pertencia a ele, como marido. Punha-se lívido quando surpreendia Férula dando banho a Clara, tirava-lhe a esponja das mãos, mandava-a embora com violência e puxava Clara da água praticamente no ar, sacudindo-a, proibia-lhe que voltasse a deixar-se banhar, porque na sua idade isso era um vício e acabava secando-a ele, embrulhando-a no seu robe, levando-a para a cama com a sensação de que estava a ser ridículo. Se Férula servia a sua mulher uma chávena de chocolate, tirava-lha das mãos com o pretexto de que a tratava como a uma inválida, se lhe dava um beijo de boas-noites, afastava-a com um safanão dizendo que não era bom beijocarem-se, se lhe escolhia os melhores pedaços da bandeja, afastava-se da mesa enfurecido. Os dois irmãos chegaram a ser rivais declarados, mediam-se com olhares de ódio, inventavam argúcias para se desclassificarem mutuamente aos olhos de Clara, espiavam-se, vigiavam-se. Esteban desistiu de voltar ao campo e encarregou Pedro Segundo Garcia de tudo, inclusivamente das vacas importadas, deixou de sair com os amigos, de ir jogar golfe, de trabalhar, para vigiar dia e noite os passos da irmã e ficar à frente dela quando se acercava de Clara. A atmosfera da casa tornou-se irrespirável, densa e sombria e até a Ama andava como que assombrada. A única que permanecia alheia por completo ao que estava sucedendo, era Clara, que na sua distracção e inocência não se dava conta de nada.
O ódio de Esteban e Férula demorou muito tempo a estalar. Começou com um mal-estar dissimulado e um desejo de ofenderem-se nos mais pequenos pormenores, mas foi crescendo até que ocupou toda a casa. Nesse Verão Esteban teve de ir a Las Tres Marias porque, justamente no momento das colheitas, Pedro Segundo Garcia caiu do cavalo e foi parar com a cabeça partida ao hospital das freiras. Logo que o seu administrador recuperou, Esteban regressou à capital sem avisar. No comboio, ia com um pressentimento atroz, como um desejo inconfessado de que tivesse acontecido algum drama, sem saber que o drama já tinha começado quando ele o desejou. Chegou à cidade a meio da tarde, mas foi directamente ao Clube, onde jogou uma partida de bisca e jantou, sem conseguir acalmar a inquietação e a impaciência, ainda que não soubesse o que o estava esperando. Durante o jantar houve um pequeno tremor de terra, os lustres baloiçaram com a habitual chocalhada de cristal, mas ninguém levantou a vista, todos continuaram a comer e os músicos a tocar sem perder uma nota, excepto Esteban Trueba, que se sobressaltou como se aquilo tivesse sido um aviso. Acabou de comer à pressa, pediu a conta e saiu.
Férula, que em geral tinha os nervos sob controlo, nunca tinha podido habituar-se aos tremores de terra. Chegou a perder o medo aos fantasmas que Clara invocava e aos ratos do campo, mas os tremores de terra comoviam-na até aos ossos e continuava a tremer muito tempo depois deles terem passado. Nessa noite, ainda não se tinha deitado, foi ao quarto de Clara, que tinha tomado a infusão de tília e estava dormindo sossegadamente. à procura de um pouco de companhia e calor, encostou-se a seu lado procurando não a acordar e murmurando orações silenciosas para que aquilo não degenerasse em terramoto. Ali a encontrou Esteban Trueba. Entrou em casa tão silencioso como um bandido, subiu ao quarto de Clara sem acender as luzes e apareceu como um furacão em frente das duas mulheres adormecidas, que o julgavam em Las Tres Marias. Atirou-se a sua irmã com a mesma raiva com que o teria feito se ela fosse o sedutor da esposa e arrancou-a da cama aos puxões, arrastou-a pelo corredor, fê-la descer a escada aos empurrões e introduziu-a à viva força na biblioteca, enquanto Clara, da porta do quarto, gritava sem compreender o que tinha acontecido. A sós com Férula, descarregou a sua fúria de marido insatisfeito e gritou à irmã o que devia dizer-lhe, desde machona até meretriz, acusando-a de lhe perverter a mulher, de desviá-la com caricias de solteirona, de a pôr lunática, distraída, muda e espiritista com artes de lésbica, de brincar com ela na sua ausência, de manchar até o nome dos filhos, a honra da casa e a memória de sua santa mãe, que já estava farto de tanta maldade e que corria com ela de casa, que se fosse embora rapidamente, que não queria tornar a vê-la nunca mais, e lhe proibia que se aproximasse da mulher e dos filhos, que não faltaria dinheiro para subsistir com decência enquanto ele vivesse, tal como lhe tinha prometido uma vez, mas que se voltasse a vê-la a rondar a família a mataria, que metesse isso bem na cabeça. Juro-te pela nossa mãe que te mato.
- Maldito sejas, Esteban! - gritou-lhe Férula. – Estarás sempre sozinho, encolher-te-á a alma e o corpo e morrerás como um cão!
E saiu para sempre da grande casa da esquina, em camisa de dormir e sem levar nada consigo.
No dia seguinte Esteban Trueba foi ver o padre António e contou-lhe o que se tinha passado sem dar pormenores. O sacerdote escutou-o calmamente com o olhar impassível de quem já antes tinha ouvido a história.
- Que desejas de mim, meu filho? - perguntou quando Esteban acabou de falar.
- Que faça chegar a minha irmã todos os meses um envelope que eu lhe entregarei. Não quero que tenha necessidades económicas. E esclareço que não o faço por carinho, mas para cumprir uma promessa.
O padre António recebeu o primeiro envelope com um suspiro e esboçou o gesto de dar a bênção, mas Esteban já tinha dado meia volta e saía. Não deu nenhuma explicação a Clara do que se tinha passado entre ele e sua irmã. Disse-lhe que a tinha corrido de casa, que lhe proibia tornar a mencioná-la na sua presença e sugeriu-lhe que, se ela tinha algo de decência, nem a devia mencionar nas suas costas. Mandou tirar a sua roupa e todos os objectos que pudessem recordá-la e fez de conta que ela tinha morrido.
Clara compreendeu que era inútil fazer-lhe perguntas. Foi à sala de costura buscar o pêndulo, que lhe servia para comunicar com os fantasmas e que usava como instrumento de concentração. Estendeu no chão um mapa da cidade, suspendeu o pêndulo a meio metro e esperou que as oscilações lhe indicassem a direcção da cunhada, mas depois de o tentar durante toda a tarde deu-se conta que o sistema não resultaria se Férula não tinha um domicílio fixo. Em face da ineficácia do pêndulo para a localizar, saiu a vaguear de carro, esperando que o instinto a guiasse, mas nem isso deu resultado! Consultou a mesa de pé-de-galo sem que nenhum espirito guia aparecesse para conduzi-la aonde Férula, através das ruelas da cidade, a chamasse com o pensamento, mas não obteve resposta nem tão pouco as cartas do tarot a iluminaram. Então decidiu recorrer aos métodos tradicionais e começou a procurá-la entre as amigas, interrogou os fornecedores e a todos os que tinham relações com ela, mas ninguém a tinha voltado a ver. As averiguações levaram-na, por fim, aonde estava o padre António.
- Não a procure mais, senhora - disse o sacerdote. – Ela não quer vê-la.
Clara compreendeu que essa era a causa pela qual não tinham funcionado nenhuns dos seus infalíveis sistemas de adivinhação.
- As irmãs Mora tinham razão - disse para si. - Não se pode encontrar quem não quer ser encontrado.
Esteban Trueba entrou num período muito próspero. Os seus negócios pareciam tocados por uma varinha mágica. Sentia-se satisfeito com a vida. Era rico, tal como tinha dito um dia que viria a ser. Tinha a concessão de oito minas, estava exportando fruta para o estrangeiro, formou uma empresa construtora e Las Tres Marias, que tinha crescido muito em tamanho, estava transformada na melhor propriedade da região. Não o afectou a crise económica que convulsionou o resto do país. Nas províncias do Norte a falência das salitreiras tinha deixado na miséria milhares de trabalhadores. As famélicas tribos de desempregados, que arrastavam as mulheres, os filhos, os velhos, buscando trabalho pelos caminhos, tinham acabado por aproximar-se da capital e lentamente formaram um cordão de miséria à volta da cidade, instalando-se de qualquer maneira, entre tábuas e pedaços de cartão, no meio do lixo e do abandono. Vagueavam pelas ruas em busca de uma oportunidade para trabalharem, mas não havia trabalho para todos e a pouco e pouco os rudes operários, adelgaçados pela fome, encolhidos pelo frio, andrajosos, desolados, deixaram de pedir trabalho, pediam simplesmente uma esmola. Tudo se encheu de mendigos. E depois de ladrões. Nunca se tinham visto geadas mais terríveis que as desse ano. Houve neve na capital, um espectáculo inusitado que se manteve em primeiro plano nos jornais, celebrado como uma notícia festiva, enquanto nas populações marginais os meninos de manhã estavam azuis, congelados. Nem a caridade chegava para tantos desamparados.
Foi o ano do tifo exantemático. Começou como outra calamidade dos pobres e logo adquiriu características de castigo divino. Nasceu nos bairros dos indigentes, por culpa do Inverno, da desnutrição, da água suja das regueiras. Juntou-se ao desemprego e repartiu-se por todo o lado. Os hospitais não davam vencimento. Os enfermos deambulavam pelas ruas com os olhos perdidos, tiravam os piolhos e lançavam-nos às pessoas sãs. Pegou-se a praga, entrou em todos os lugares, infectou os colégios e as fábricas, ninguém podia sentir-se seguro. Todos viviam com medo, interpretando os signos que anunciavam a terrível enfermidade. Os contagiados começavam a tiritar com um frio de gelo nos ossos e aos poucos eram tomados pelo estupor. Ficavam parados como imbecis, consumidos pela febre, cheios de manchas, cagando sangue, com delírios de fogo e de naufrágio, caindo ao chão com os ossos de lã, as pernas de trapo e um gosto de bílis na boca, o corpo em carne viva, uma pústula vermelha ao lado de outra azul e outra amarela e outra negra, vomitando até as tripas e gritando a Deus que tivesse piedade e que os deixasse morrer de vez, que não aguentavam mais, que a cabeça se lhes rebentava e a alma se lhes ia em merda e espanto.
Esteban propôs levar toda a família para o campo, para a preservar do contágio, mas Clara não quis ouvir falar no assunto. Estava muito ocupada a socorrer os pobres numa tarefa que não tinha princípio nem fim. Sala muito cedo e às vezes chegava perto da meia-noite. Esvaziou os armários da casa, tirou a roupa às crianças, os cobertores das camas, os casacos do marido. Tirava a comida da despensa e estabeleceu um sistema de envio com Pedro Segundo Garcia, que mandava de Las Tres Marias queijos, ovos, carnes secas, frutas, galinhas, que ela distribuía entre os seus necessitados. Adelgaçou e sentia-se magra. À noite voltou a caminhar sonâmbula.
A ausência de Férula sentiu-se na casa como um cataclismo e até a Ama, que sempre tinha desejado que esse momento chegasse um dia, se comoveu. Quando começou a Primavera e Clara pôde descansar um pouco, aumentou a tendência para fugir à realidade e perder-se no sonho. Ainda que não contasse com a impecável organização da cunhada para impedir o caos da grande casa da esquina, despreocupou-se das coisas domésticas. Delegou tudo nas mãos da Ama e dos outros criados e sumiu-se no mundo das aparições e das experiências psíquicas. Os cadernos de anotar a vida complicaram-se, a sua caligrafia perdeu a elegância de convento que sempre tivera, e degenerou em traços calcados que às vezes eram tão minúsculos que não se podiam ler e outras tão grandes que três palavras enchiam a página.
Nos anos seguintes juntou-se à volta de Clara e das três irmãs Mora um grupo de estudiosos de Gourdieff, de rosa-cruzes, de espiritistas e de boémios noctívagos que faziam três refeições diárias em casa e alternavam o seu tempo entre consultas peremptórias aos espíritos da mesa de pé-de-galo e à leitura dos versos do último poeta iluminado que aterrava no regaço de Clara. Esteban permitia essa invasão de extravagantes porque há muito tempo se tinha dado conta que era inútil interferir na vida da mulher. Decidiu que pelo menos os meninos varões deviam estar à margem da magia, de modo que Jaime e Nicolau foram internados num colégio inglês vitoriano, onde qualquer pretexto era bom para lhes baixar as calças e dar-lhes chibatadas no traseiro, especialmente a Jaime, que se marimbava para a família real britânica e aos doze anos estava interessado em ler Marx, um judeu que provocava revoluções em todo o mundo. Nicolau herdou o espírito aventureiro do tio-avô Marcos e a propensão da mãe, de fabricar horóscopos e decifrar o futuro, mas isso não constituía um delito grave para a rígida formação do colégio, mas apenas uma excentricidade, por isso o jovem foi muito menos castigado que seu Irmão.
O caso de Blanca era diferente porque o pai não intervinha na sua educação. Considerava que o destino dela era casar-se e brilhar em sociedade, daí a faculdade de comunicar com os mortos, se ela mantinha um tom frívolo, poder ser uma atracção. Defendia que a magia, como a religião e a cozinha, era um assunto propriamente feminino e, talvez por isso, era capaz de sentir simpatia pelas três irmãs Mora. Em contrapartida, detestava os espirituados do sexo masculino quase tanto como os padres. Por seu lado, Clara andava por toda a parte com a filha agarrada às saias, convidava-a para as sessões dos membros das sociedades secretas, com os artistas misérrimos de quem era mecenas. Tal como a mãe o tinha feito com ela em tempos de mudez, levava agora Blanca para ver os pobres, carregada de presentes e consolações.
- Isto serve para nos tranquilizar a consciência, minha filha - explicava a Blanca. - Mas não ajuda os pobres. Eles não necessitam de caridade mas sim de justiça.
Era nesse ponto onde tinha as maiores discussões com Esteban, que tinha outra opinião a esse respeito.
- Justiça! é justo que todos tenham o mesmo? Os mandriões o mesmo que os trabalhadores? Os tontos o mesmo que os inteligentes? Isso não se passa nem com os animais! Não é uma questão de ricos e de pobres, mas das mesmas oportunidades, mas essa gente não faz nenhum esforço. É muito fácil estender a mão e pedir esmola! Eu só acredito no esforço e na recompensa. Graças a esta filosofia cheguei a ter o que tenho. Nunca pedi um favor a ninguém e não cometi nenhuma desonestidade, o que prova que qualquer um pode fazê-lo. Eu estava destinado a ser um pobre infeliz escriturário de notário. Por isso não aceitarei ideias bolchevistas em minha casa. Vão fazer caridade para os asilos, se querem! Isso está muito bem; é bom para a formação das senhoras. Mas não me venham com as mesmas cretinices de Pedro Tercero Garcia, porque não vou aguentar isso!
Era verdade, Pedro Tercero Garcia estava a falar de justiça em Las Tres Marias. Era o único que se atrevia a desafiar o patrão, apesar das cargas de porrada que lhe tinha dado seu pai, Pedro Segundo Garcia, sempre que o surpreendia. Desde muito novo que o rapaz fazia viagens sem autorização à aldeia para conseguir livros emprestados, ler os jornais e conversar com o mestre-escola, um comunista ardente que anos mais tarde matariam com um balázio entre os olhos. Também se escapava de noite para o bar de San Lucas, onde se reunia com sindicalistas que tinham a mania de endireitar o mundo, entre dois golos de cerveja, ou com o gigantesco e magnífico padre José Dulce Maria, um sacerdote espanhol com a cabeça cheia de ideias revolucionárias que lhe valeram ser atirado pela Companhia de Jesus para aquele canto do mundo, mas nem por isso renunciou a transformar as parábolas bíblicas em panfletos socialistas. No dia em que Esteban Trueba descobriu que o filho do seu administrador estava a introduzir literatura subversiva entre os rendeiros, chamou-o ao escritório e diante do pai deu-lhe um arraial de pancada com uma chibata de pele de cobra.
- Este é o primeiro aviso, ranhoso de merda! - disse-lhe sem levantar a voz e olhando-o com olhos de fogo. - A próxima vez que te encontrar chateando as pessoas, prendo-te. Na minha propriedade não quero revoltosos, porque aqui mando eu e tenho direito de rodear-me de pessoas de quem gosto. Eu não gosto de ti, fica sabendo. Aguento-te pelo teu pai, que me serviu lealmente durante muitos anos, mas anda com cuidado, porque podes acabar muito mal. Retira-te!
Pedro Tercero Garcia era parecido com o pai, moreno, de faces esculpidas em pedra, com grandes olhos tristes, cabelo negro e duro, cortado à escovinha. Tinha só dois amores, seu pai e a filha do patrão, a quem amou desde o dia em que dormiram debaixo da mesa da sala de jantar, na sua tenra infância. E Blanca não se livrou da mesma fatalidade. Cada vez que ia de férias ao campo e chegava a Las Tres Marias, no meio da poeirada provocada pelos carros carregados com a complicada bagagem, sentia o coração a bater-lhe como um tambor africano de impaciência e ansiedade. Era a primeira a saltar do veiculo e a largar a correr até casa e encontrava Pedro Tercero Garcia no mesmo sitio em que se tinham visto pela primeira vez, de pé à porta da casa, meio oculto pela sombra da porta, tímido e escuro, com as calças puídas, descalço, com olhos de velho espreitando o caminho para a ver chegar. Os dois corriam e abraçavam-se, beijavam-se, riam, davam um ao outro encontrões carinhosos, e rebolavam pelo chão, puxando os cabelos e gritando de alegria.
- Pára, miúda! Deixa esse maltrapilho! - gritava a Ama procurando separá-los.
- Deixa-os lá, Ama, são meninos e gostam um do outro – dizia Clara, que sabia mais.
Os meninos escapavam, correndo, escondiam-se para contarem um ao outro tudo o que tinham acumulado durante esses meses de separação. Pedro entregava-lhe, envergonhado, uns animaizinhos esculpidos que tinha feito para ela, em pedaços de madeira, e em troca Blanca dava-lhe os presentes que tinha Juntado para ele: um canivete que se abria como uma flor e um pequeno íman que atraía por obra de magia os pregos enferrujados do chão. No Verão em que ela chegou com parte do conteúdo do baú dos livros mágicos do tio Marcos, tinha à volta de dez anos e ainda Pedro Tercero lia com dificuldade, mas a curiosidade e a ânsia conseguiram o que não se tinha podido obter com chibatadas. Passaram o Verão lendo, deitados entre as canas do rio, entre os pinheiros do bosque, entre as espigas dos trigais, discutindo as virtudes de Sandokan e Robin dos Bosques, a má sorte do Pirata Negro, as histórias verídicas e edificantes do Tesouro da Juventude, o malicioso significado das palavras proibidas no dicionário da Real Academia da Língua Espanhola, o sistema cardiovascular em estampas, onde podiam ver um tipo sem pele, com todas as veias e o coração exposto à vista, mas com calções. Em poucas semanas o menino aprendeu a ler com voracidade. Entraram no mundo amplo e profundo das histórias impossíveis, dos duendes, das fadas, dos náufragos que se comem uns aos outros depois de tirar à sorte, dos tigres que se deixam amestrar por amor, dos inventos fascinantes, das curiosidades geográficas e zoológicas, dos países orientais onde há génios dentro de garrafas, dragões nas grutas e princesas prisioneiras nas torres. Iam frequentemente visitar Pedro Garcia, o velho, a quem o tempo tinha gasto os sentidos. Foi ficando cego a pouco e pouco, uma película azul celeste cobria-lhe as pupilas. «São as nuvens que me estão entrando pela vista», dizia. Agradecia muito as visitas de Blanca e Pedro Tercero, que era seu neto, mas que ele já tinha esquecido. Escutava os contos que eles seleccionavam dos livros mágicos e que tinham de lhe gritar ao ouvido, porque ele também dizia que o vento lhe estava entrando pelas orelhas e por isso estava surdo. Em troca, ensinava-lhes a imunizarem-se contra as picadas dos bichos malignos e demonstrava-lhes a eficácia do seu antídoto, pondo um lacrau vivo no braço. Ensinava-os a procurar água. Tinham de segurar um pau seco com as duas mãos e caminhar tocando o solo, em silêncio, pensando na água e na sede que tem o pau, até que de repente, ao sentir a humidade, o pau começa a tremer. Tem de se cavar ali, dizia-lhes o velho, mas esclarecia que esse não era o sistema que ele empregava para localizar os poços no solo de Las Tres Marias, porque ele não necessitava do pau. Os seus ossos tinham tanta sede que ao passar pela água subterrânea, mesmo que fosse profunda, o seu esqueleto avisava-o. Mostrava-lhes as ervas do campo e fazia-os cheirá-las, prová-las, acariciá-las para conhecerem o seu perfume natural, o seu sabor e a sua textura e assim poderem identificar cada uma, segundo as suas propriedades curativas: acalmar o espirito, expulsar os fluidos diabólicos, polir os olhos, fortificar o ventre, estimular o sangue. Nesse terreno a sua sabedoria era tão grande que o médico do hospital das freiras ia visitá-lo para lhe pedir conselho. No entanto, toda a sua sabedoria não pôde curar uma cãibra da sua Pancha, que a despachou para o outro mundo. Deu-lhe a comer bosta de vaca e, como isso não resultasse, deu-lhe bosta de cavalo, envolveu-a em mantas e fê-la suar o mal até que a deixou nos ossos, deu-lhe fricções de aguardente com pólvora por todo o corpo, mas foi inútil; Pancha foi-se embora numa diarreia interminável que lhe esturgiu as carnes e a fez padecer uma sede insaciável. Vencido, Pedro Garcia pediu autorização ao patrão para a levar à aldeia numa carroça. Os dois meninos acompanharam-no. O médico do hospital das freiras examinou Pancha cuidadosamente e disse ao velho que estava perdida, que se a tivesse levado antes e não lhe tivesse provocado aquela suadeira tinha podido fazer algo por ela, mas que o seu corpo já não podia reter nenhum liquido e era como uma planta com as raízes secas. Pedro Garcia ofendeu-se e continuou negando o fracasso mesmo quando regressou com o cadáver da filha envolto numa manta, acompanhado pelos meninos assustados, e o descarregou no pátio de Las Tres Marias resmungando contra a ignorância do doutor. Enterraram-na num sitio privilegiado no pequeno cemitério junto à igreja abandonada ao pé do vulcão, pois lhe tinha dado o único filho que levou o seu nome, embora não tivesse levado apelido, e um neto, o estranho Esteban Garcia, que estava destinado a cumprir um terrível papel na história da família.
Um dia o velho Pedro Garcia contou a Blanca e a Pedro Tercero o conto das galinhas que se puseram de acordo para enfrentar um raposo que se metia todas as noites no galinheiro para roubar os ovos e devorar os pintainhos. As galinhas decidiram que já estavam fartas de aguentar a prepotência do raposo, esperaram-no organizadas e, quando entrou no galinheiro, fecharam-lhe a passagem. Rodearam-no e caíram-lhe em cima às bicadas até o deixarem mais morto que vivo.
- E então viu-se que o raposo escapava com o rabo entre as pernas, perseguido pelas galinhas - terminou o velho.
Blanca riu-se com a história e disse que isso era impossível porque as galinhas nascem estúpidas e débeis e os raposos nascem astutos e fortes, mas Pedro Tercero riu-se. Ficou toda a tarde pensativo, ruminando o conto do raposo e das galinhas, e talvez fosse esse o instante em que o menino começou a fazer-se homem.
Os Amantes
A infância de Blanca passou-se sem grandes sobressaltos, alternando aqueles Verões quentes em Las Tres Marias, onde descobrira a força de um sentimento que crescia com ela, e a rotina da capital, semelhante à das outras meninas da sua idade e meio, apesar de que a presença de Clara punha uma nota extravagante na sua vida. Todas as manhãs aparecia a Ama com o pequeno almoço a sacudir-lhe a modorra e vigiar-lhe o uniforme, esticar-lhe as peúgas, pôr-lhe o chapéu, as luvas e o lenço, arrumar os livros na bolsa, enquanto intercalava orações murmuradas por alma dos mortos com recomendações em voz alta para que Blanca não se deixasse enganar pelas freiras.
- Essas mulheres são todas umas depravadas - avisava-a - que escolhem as alunas mais bonitas, mais inteligentes e de boas famílias para as meter no convento, rapam a cabeça às noviças, pobrezinhas, e destinam-nas a perder a vida fazendo tortas para vender e cuidando velhinhos dos outros.
O motorista levava a menina ao colégio, onde a primeira actividade do dia era a missa e a comunhão obrigatória. Ajoelhada no seu banco Blanca aspirava o intenso perfume do incenso e as açucenas de Maria, e padecia o suplício combinado das náuseas, da culpa e do aborrecimento. Era a única coisa de que não gostava no colégio. Gostava dos altos corredores de pedra, da limpeza imaculada do pavimento de mármore, das paredes brancas nuas, do Cristo de ferro que vigiava a entrada. Era uma criança romântica e sentimental, com tendência para a solidão, de poucas amigas, capaz de emocionar-se até às lágrimas quando floresciam as rosas no jardim, quando aspirava o ténue odor a pano e sabão das freiras que se inclinavam sobre as tarefas, quando se deixava ficar para trás para sentir o silêncio triste das aulas vazias. Passava por tímida e melancólica. Só no campo, com a pele dourada pelo sol e a barriga cheia de fruta morna, correndo com Pedro Tercero pelos prados, era risonha e alegre. A mãe dizia que essa era a verdadeira Blanca e que a outra, a da cidade, era uma Blanca em hibernação.
Devido à agitação constante que reinava na grande casa da esquina, ninguém, excepto a Ama, deu conta de que Blanca estava a tornar-se uma mulher. Entrou de súbito na adolescência. Tinha herdado dos Trueba o sangue espanhol e árabe, o porte senhoril, a expressão soberba, a pele azeitonada e os olhos escuros dos seus genes mediterrânicos, mas tingidos pela herança da mãe, de quem tirou a doçura que jamais tivera algum Trueba. Era uma criança tranquila que se entretinha sozinha, estudava, brincava com as bonecas e não manifestava a menor inclinação natural pelo espiritismo da mãe ou pelas iras do pai. A família dizia, em tom de graça, que era a única pessoa normal em várias gerações e, na verdade, parecia ser um prodígio de equilíbrio e serenidade. Por volta dos treze anos começou-se-lhe a desenvolver o peito, a cintura a estreitar-se-lhe, adelgaçou e esticou como uma planta adubada. A Ama apanhou-lhe o cabelo num carrapito, levou-a a comprar o primeiro corpete, o primeiro par de meias de seda, o primeiro vestido de mulher, e uma colecção de toalhas pequeninas para aquilo que ela chamava a demonstração. Entretanto, a mãe continuava a fazer dançar as cadeiras por toda a casa, tocando Chopin com o piano fechado e declamando os belíssimos versos sem rima, argumento nem lógica de um poeta jovem que tinha sido acolhido em casa, de quem se começava a falar por todo o lado, sem notar as mudanças que se produziam na filha, sem ver o uniforme do colégio com as costuras rebentadas, nem se dar conta que a cara de fruta se tinha subtilmente transformado num rosto de mulher, porque Clara vivia mais atenta à aura e aos fluidos que aos quilos ou centímetros. Um dia viu-a entrar na sala de costura com o vestido de sair e admirou-se de que aquela rapariga alta e morena fosse a sua pequena Blanca. Abraçou-a, encheu-a de beijos e avisou-a de que em breve teria a menstruação.
- Sente-se e eu explico-lhe o que isso é - disse Clara.
- Não me mace, mãe, já vai fazer um ano que me vem todos os meses - riu Blanca.
A relação de ambas não sofreu grandes mudanças com o desenvolvimento da rapariga, porque estava baseada nos sólidos princípios da total aceitação mútua e na capacidade para gozarem juntas quase todas as coisas da vida.
Nesse ano, o Verão fez-se anunciar cedo, com um calor seco e abafado que cobriu a cidade com uma reverberação de sonho mau, por isso adiaram um par de semanas a viagem a Las Tres Marias. Como acontecia todos os anos, Blanca esperou ansiosamente o momento de ver Pedro Tercero e, como todos os anos, ao descer do carro a primeira coisa que fez foi procurá-lo com o olhar no lugar de sempre. Descobriu a sua sombra escondida no umbral da porta e saltou do veículo, precipitando-se ao seu encontro com a ânsia de tantos meses a sonhar com ele, mas viu, surpreendida, que o menino dava meia volta e saía escapando-se.
Blanca andou toda a tarde percorrendo os lugares onde se reuniam, perguntou por ele, chamou-o aos gritos, procurou-o em casa de Pedro Garcia, o velho, e, por último, ao cair da noite deitou-se vencida, sem comer. Na enorme cama de bronze, dorida e admirada, afundou a cara na almofada e chorou desconsoladamente. A Ama levou-lhe um copo de leite com mel e adivinhou logo a causa do seu amuo.
- Alegro-me! - disse com um sorriso torcido. - Já não tens idade para brincar com esse ranhoso cheio de pulgas!
Meia hora mais tarde, Clara entrou para a beijar e encontrou-a soluçando os últimos estertores de um pranto melancólico. Por um momento Clara deixou de ser um anjo distraído, colocando-se à altura dos simples mortais que aos catorze anos sofrem o primeiro mal de amor. Quis perguntar, mas Blanca era muito orgulhosa ou já demasiado mulher e não lhe deu explicações, de modo que Clara se limitou a sentar-se um pouco na cama e acariciá-la até que se acalmou.
Nessa noite, Blanca dormiu mal e despertou ao amanhecer rodeada pelas sombras do grande quarto. Ficou olhando as ornamentações do tecto até que ouviu o canto do galo e então levantou-se, abriu as cortinas e deixou entrar a luz suave do nascer do Sol e os primeiros ruídos do mundo. Aproximou-se do espelho do armário e olhou-se longamente. Tirou a camisa e observou o corpo pela primeira vez em pormenor, compreendendo que todas aquelas mudanças eram a causa do seu amigo ter fugido. Sorriu com um novo e delicado sorriso de mulher. Vestiu roupa velha do Verão passado, que quase não lhe servia, envolveu-se numa manta e saiu em bicos de pés para não despertar a família. Lá fora o campo sacudia-se da modorra da noite e os primeiros raios de Sol cruzavam como sabres os picos da cordilheira, aquecendo a terra e evaporando o orvalho numa fina espuma branca que apagava os contornos das coisas e fazia da paisagem uma visão de sonho. Blanca começou a andar em direcção do rio. Tudo estava ainda calmo, os seus passos esmagavam as folhas caídas e os ramos secos, produzindo um leve crepitar, único ruído naquele vasto espaço adormecido. Sentiu que as alamedas imprecisas, os trigais dourados e os longínquos cerros arroxeados, perdendo-se no céu translúcido da manhã, eram uma recordação antiga na sua memória, algo que antes tinha visto exactamente assim e que nesse instante já o tinha vivido. A finíssima chuva da noite tinha empapado a terra e as árvores, sentiu a roupa ligeiramente húmida e os sapatos frios. Respirou o perfume da terra molhada, das flores apodrecidas, do húmus, que lhe despertava um prazer desconhecido nos sentidos.
Blanca chegou ao rio e viu o amigo de infância sentado no sítio onde tantas vezes se tinham encontrado. Nesse ano, Pedro Tercero não tinha crescido como ela, pelo contrário, continuou o mesmo menino delgado, pançudo e moreno, com uma sábia expressão de ancião nos olhos negros. Ao vê-la, pôs-se de pé e ela calculou que media meia cabeça mais que ele. Olharam-se desconcertados, sentindo pela primeira vez que eram quase estranhos. Por um tempo que pareceu infinito, ficaram imóveis, acostumando-se às mudanças e às novas distâncias, mas então piou um pardal e tudo voltou a ser como no Verão anterior. Tornaram a ser dois meninos que correm, se abraçam e riem, caem no chão, se rebolam contra os calhaus, murmurando os seus nomes sem se cansar, felizes por estarem juntos uma vez mais. Por fim acalmaram-se. Ela tinha o cabelo cheio de folhas secas, que ele tirou uma por uma.
- Vem, quero mostrar-te uma coisa - disse Pedro Tercero.
Levou-a pela mão. Caminharam, saboreando aquele amanhecer do mundo, arrastando os pés no barro, apanhando talos tenros para lhes sugar a seiva, olhando-se e sorrindo, sem falar, até que chegaram a um prado afastado. O Sol aparecia por cima do vulcão, mas o dia ainda não acabara de se instalar e a terra bocejava. Pedro disse-lhe para se deitar no chão e guardar silêncio. Rastejaram aproximando-se dos matos, deram uma pequena volta e então Blanca viu-a. Era uma formosa égua baia, dando à luz sozinha na colina. Os meninos, imóveis, fazendo por que não se ouvisse nem a sua respiração, viram-na arquejar e esforçar-se até que apareceu a cabeça do potrozinho e, em seguida, depois de bastante tempo, o resto do corpo. O animalzinho caiu no chão e mãe começou a lambê-lo, deixando-o limpo e brilhante como madeira encerada, animando-o com o focinho para que tentasse erguer-se. O potrozinho tentou pôr-se em pé, mas dobraram-se-lhe as frágeis pernas de recém-nascido e ficou deitado, olhando a mãe com ar desvalido, enquanto ela relinchava saudando o Sol da manhã. Blanca sentiu a felicidade estalando no peito e brotarem-lhe as lágrimas nos olhos.
- Quando for grande, vou-me casar contigo e vamos viver aqui, em Las Tres Marias - disse num sussurro. Pedro ficou a olhá-la com expressão de velho triste e negou com a cabeça. Era ainda muito mais pequeno que ela, mas já conhecia o seu lugar no mundo. Também sabia que amaria aquela menina durante toda a sua existência, que esse amanhecer perduraria na sua recordação e que seria o último que veria no momento de morrer.
Passaram esse Verão oscilando entre a infância, que ainda os retinha, e o despertar do homem e da mulher. Por momentos corriam como crianças, fazendo esvoaçar galinhas e tresmalhando vacas, fartavam-se de leite morno acabado de ordenhar e ficavam com bigodes de espuma, roubavam pão saído do forno, trepavam às árvores para construir casinhas com ramos. Outras vezes escondiam-se nos lugares mais secretos e densos do bosque, faziam camas de folhas e brincavam a que estavam casados, acariciando-se até ficarem extenuados. Não tinham perdido a inocência para tirarem a roupa sem curiosidade e banhar-se nus no rio, como o tinham feito sempre, mergulhando na água fria e deixando que a corrente os arrastasse sobre as pedras lustrosas do fundo. Mas havia coisas que já não partilhavam como dantes. Aprenderam a ter vergonha. Já não faziam competição para ver quem fazia o maior charco de urina e Blanca não lhe falou daquela matéria escura que lhe manchava as cuecas uma vez por mês. Sem que ninguém o dissesse, deram-se conta de que não podiam ter familiaridades diante das outras pessoas. Quando Blanca vestia a roupa de senhora e se sentava à tarde no terraço a beber limonada com a família, Pedro Tercero observava-a de longe, sem se aproximar. Começaram a esconder-se para as suas brincadeiras. Deixaram de andar de mãos dadas à vista dos adultos e ignoravam-se para não atrair a sua atenção. A Ama respirou mais tranquila, mas Clara começou a observá-los mais cuidadosamente.
Terminaram as férias e os Trueba regressaram à capital carregados de frascos de doces, compotas, caixotes de fruta, queijos, galinhas e coelhos em escabeche, cestos com ovos. Enquanto arrumavam tudo nos carros que os levariam ao comboio, Blanca e Pedro Tercero esconderam-se no celeiro para se despedirem. Nesses três meses tinham chegado a amar-se com aquela paixão arrebatada que os transtornou durante o resto das suas vidas. Com o tempo, esse amor tornou-se mais invulnerável e persistente, mas tinha já, então, a mesma profundidade e certeza que o caracterizou depois. Sobre um monte de grão, aspirando o aromático pó do celeiro, à luz dourada e difusa da manhã que passava por entre as tábuas, beijaram-se por todo o lado, lamberam-se, morderam-se, chuparam-se, soluçaram e beberam as lágrimas dos dois, juraram-se amor eterno e combinaram um código secreto que lhes serviria para se comunicarem durante os meses de separação.
Todos os que viveram aquele momento dizem que foi por volta das oito da noite quando apareceu Férula, sem que nada fizesse prever a sua chegada. Todos puderam vê-la com a blusa engomada, o molho de chaves à cintura e o carrapito de solteirona, tal como a tinham visto sempre em casa. Entrou pela porta da sala de jantar no momento em que Esteban estava a trinchar o assado e reconheceram-na imediatamente, apesar de não a verem fazia seis anos e estar muito pálida e muito mais velha. Era um sábado e os gémeos, Jaime e Nicolau, tinham saído do internato para passar o fim-de-semana com a família, de modo que também estavam ali. O seu testemunho é muito importante, porque eram os únicos membros da família que viviam afastados por completo da mesa de pé-de-galo, preservados da magia e do espiritismo pelo rígido colégio inglês. Primeiramente, sentiram um frio súbito na sala de jantar e Clara mandou fechar as janelas, porque pensou que era uma corrente de ar. Logo a seguir ouviram o tilintar das chaves e quase em seguida abriu-se a porta e apareceu Férula, silenciosa e com uma expressão distante, ao mesmo tempo que a Ama entrava pela porta da cozinha com a travessa da salada. Esteban Trueba ficou com a faca e o garfo de trinchar no ar, paralisado pela surpresa, e os três meninos gritaram «tia Férula!» quase em uníssono. Blanca levantou-se para ir ao seu encontro, mas Clara, que se sentava ao seu lado, estendeu a mão e segurou-a por um braço. Na realidade, Clara foi a única que se deu conta, ao primeiro olhar, do que se estava a passar, devido à sua grande familiaridade com os assuntos sobrenaturais, apesar de que nada no aspecto da cunhada denunciasse o seu verdadeiro estado. Férula deteve-se a um metro da mesa, olhou-os a todos com olhos vazios e indiferentes e logo avançou para Clara, que se pôs de pé, sem nenhum movimento para se aproximar, mas fechou os olhos e começou a respirar agitadamente, como se estivesse incubando um dos seus ataques de asma. Férula aproximou-se dela, pôs-lhe uma mão em cada ombro e deu-lhe um breve beijo na testa. Na sala de jantar só se ouvia a respiração ofegante de Clara e o tilintar metálico das chaves na cintura de Férula. Depois de beijar a cunhada, Férula passou por ela e saiu por onde tinha entrado, fechando a porta nas costas com suavidade. Na sala de jantar ficou a família imóvel, como se fosse um pesadelo. A Ama começou logo a tremer tanto que lhe caíram as colheres da salada e o barulho da prata a bater contra o parquet (Em francês no texto. (N. T.)) sobressaltou todos. Clara abriu os olhos. Continuava a respirar com dificuldade e calam-lhe lágrimas pela face e pelo pescoço, manchando-lhe a blusa.
- Férula morreu - anunciou.
Esteban largou os talheres de trinchar o assado sobre a toalha e saiu a correr da sala de jantar. Foi até à rua chamando a irmã, mas não encontrou nem rasto dela. Entretanto, Clara mandou um criado buscar casacos e quando o esposo regressou estava a vestir o seu e tinha as chaves do automóvel na mão.
- Vamos a casa do padre António - disse.
Fizeram o caminho em silêncio. Esteban conduzia com o coração oprimido, procurando a antiga paróquia do padre António nesses bairros de pobres onde fazia muitos anos não punha os pés. O sacerdote estava a pregar um botão na sotaina puída quando chegaram com a noticia de que Férula tinha morrido.
- Não pode ser! - exclamou. - Estive com ela há dois dias e estava de boa saúde e com boa disposição.
- Leve-nos a sua casa, padre, por favor - suplicou Clara. - Eu sei porque lho digo. Está morta.
Em face da insistência de Clara, o padre António acompanhou-os. Durante aqueles anos de solidão, ela tinha vivido num daqueles bairros de lata onde ia rezar o terço contra a vontade dos beneficiados nos tempos da sua juventude. Tiveram de deixar o carro a vários quarteirões de distância, porque as ruas se foram tornando mais e mais estreitas, até que compreenderam que estavam feitas só para andar a pé ou de bicicleta. Meteram-se por elas caminhando, evitando os charcos de água suja que transbordava das regueiras, contornando o lixo empilhado em montões onde os gatos esgatanhavam como sombras. O bairro era uma comprida rua de casas arruinadas, todas iguais, pequenas e humildes vivendas de cimento, com uma só porta e duas janelas pintadas de cor parda, desbotadas, comidas pela humidade, com arames estendidos através da rua, onde de dia se pendurava roupa ao sol, mas a essa hora da noite, vazios, mexiam-se imperceptivelmente. Ao centro da ruela havia um único chafariz para abastecer as famílias que viviam ali e só os faróis iluminaram o corredor entre as casas. O padre António saudou uma velha que estava junto do chafariz à espera que se enchesse um balde com o jorro miserável que sala da torneira.
- Viu a senhora Férula? - perguntou.
- Deve estar em casa, padre. Não a vi nos últimos dias - disse a velha.
O padre António apontou uma das vivendas, igual às outras, triste, descascada e suja, mas a única que tinha dois vasos, pendurados junto da porta, onde cresciam uns pequenos tufos de cardeais, a flor do pobre. O sacerdote bateu à porta.
- Podem entrar! - gritou a velha do chafariz. - A senhora nunca põe a chave na porta. Aí não há nada que roubar!
Esteban abriu a porta chamando a irmã, mas não se atreveu a entrar. Clara foi a primeira a passar o umbral. Dentro estava escuro e veio-lhes ao encontro o inconfundível aroma de lavanda e de limão. O padre António acendeu um fósforo. A débil chama abriu um círculo de luz na penumbra, mas antes que pudessem avançar ou dar conta do que os rodeava apagou-se.
- Esperem aqui - disse o padre. - Eu conheço a casa.
Avançou às apalpadelas e ao fim de pouco tempo acendeu uma vela. A sua figura destacou-se grotescamente e viram o seu rosto deformado pela luz que lhe dava por baixo flutuando a meia altura, enquanto a gigantesca sombra bailava contra as paredes. Clara descreveu esta cena com minúcia no diário, pormenorizando com cuidado os dois quartos escuros, cujas paredes estavam manchadas pela humidade, a pequena casa de banho suja e sem água corrente, a cozinha onde havia sobras de pão velho e um tacho com um pouco de chá. O resto da vivenda de Férula pareceu a Clara congruente com o pesadelo que tinha começado quando a sua cunhada apareceu na sala de jantar da grande casa da esquina para se despedir. Deu-lhe a impressão de ser o armazém de um vendedor de roupa usada ou os bastidores de uma mísera companhia de teatro em digressão. De pregos nas paredes estavam pendurados trajos antiquados, boás de penas, esquálidos pedaços de papel, colares de pedras falsas, chapéus que se tinham deixado de usar há meio século, saiotes desbotados com as rendas desfeitas, vestidos que tinham sido ostentosos e cujo brilho já não existia, inexplicáveis casacos de almirante e casulas de bispo, tudo misturado numa irmandade grotesca, onde se anichava o pó de anos. Pelo chão havia uma confusão de sapatos de cetim, bolsas de debutantes, cinturões de bijuteria, suspensórios e até uma brilhante espada de cadete militar. Viu cabeleiras tristes, postiços com enfeites, frascos vazios e um não mais acabar de coisas impossíveis, semeadas por todos os lados. Uma porta estreita separava os dois únicos quartos. No outro, jazia Férula na sua cama, engalanada como rainha austríaca, com um vestido de veludo roído pela traça, saiotes de tafetá amarelo e, na cabeça, bem enfiada, brilhava uma incrível peruca frizada de cantora de ópera. Ninguém estava com ela, ninguém soube da sua agonia e calcularam que tinha morrido há muitas horas, porque os ratos começavam já a mordiscar-lhe os pés e a devorar-lhe os dedos. Estava magnifica na sua desolação de rainha e tinha no rosto a expressão doce e serena que nunca tivera na sua existência de pesadelo.
- Gostava de vestir-se com roupa usada que conseguia em segunda mão e apanhava nas lixeiras, pintava-se e punha estas cabeleiras, mas nunca fez mal a ninguém, pelo contrário, até ao fim dos seus dias rezava o terço para salvação dos pecadores - explicou o padre António.
- Deixem-me sozinha com ela - disse Clara com firmeza.
Os dois saíram para a viela, onde começavam já a juntar-se os vizinhos. Clara tirou o casaco de lã branca e arregaçou as mangas, aproximou-se da cunhada, tirou-lhe com suavidade a peruca e viu que ela estava quase calva, velha e desvalida. Beijou-a na testa tal como ela a tinha beijado poucas horas antes na sala de jantar de sua casa e em seguida procedeu com toda a calma, a improvisar os ritos de morte. Despiu-a, lavou-a, ensaboou-a meticulosamente, sem esquecer nenhum cantinho, friccionou-a com água-de-colónia, pôs-lhe pó de talco, escovou a meia dúzia de cabelos amorosamente, vestiu-a com os mais extravagantes e elegantes andrajos que encontrou, pôs-lhe a cabeleira de soprano, retribuiu-lhe na morte os infinitos serviços que Férula lhe tinha prestado em vida. Enquanto trabalhava, lutando contra a asma, falava-lhe de Blanca, que já era uma mulherzinha, dos gémeos, da grande casa da esquina, do campo, «e se visses como te sentimos a menos, cunhada, a falta que me fazes para cuidar desta família, já sabes que eu não sirvo para as tarefas da casa, os rapazes estão insuportáveis, em compensação Blanca é uma menina adorável, e as hortênsias que tu plantaste com a tua própria mão em Las Tres Marias, puseram-se maravilhosas, há algumas azuis, porque pus moedas de cobre na terra adubada, para que rebentassem com essa cor, é um segredo da natureza, e todas as vezes que as ponho nas jarras recordo-me de ti, mas também me recordo de ti quando não há hortênsias, recordo-me sempre, Férula, porque a verdade é que desde que saíste de ao pé de mim ninguém mais me deu tanto amor».
Acabou de a arranjar, ficou um pouco falando com ela e acariciando-a e depois chamou o marido e o padre António, para tratarem do enterro. Numa caixa de bolachas encontraram intactos os envelopes com o dinheiro que Esteban tinha enviado mensalmente a sua irmã durante aqueles anos. Clara deu-os ao sacerdote para as suas obras piedosas, convicta de que esse era o destino que Férula pensava dar-lhes de qualquer modo.
O padre ficou ao pé da morta para que os ratos não lhe faltassem ao respeito. Era cerca da meia-noite quando saíram. À porta tinham-se juntado os vizinhos do bairro para comentar a notícia. Tiveram de abrir passagem afastando os curiosos e espantando os cães que farejava n no meio das pessoas. Esteban afastou-se a grandes passadas levando Clara pelo braço quase de rastos, sem dar atenção à água suja que salpicava as impecáveis calças cinzentas do alfaiate inglês. Estava furioso porque a irmã, mesmo depois de morta, conseguia fazê-lo sentir-se culpado, como quando era uma criança. Recordou a sua infância, quando ela o rodeava com as suas solicitudes obscuras, envolvendo-o em dividas de gratidão tão grandes que não conseguiria pagá-las em todos os dias da sua vida. Tornou a sentir o sentimento de indignidade que frequentemente o atormentava na sua presença e a detestar o seu espírito de sacríficio, a sua severidade, a sua vocação para a pobreza e a sua inabalável castidade, que ele sentia como uma acusação pela sua natureza egoísta, sensual e ansiosa de poder. «Que o Diabo te leve, maldita!» disse entredentes, negando-se a admitir, nem no mais íntimo do coração, que sua mulher tão-pouco chegou a pertencer-lhe depois de ele ter posto Férula fora de casa.
- Porque vivia assim, se lhe sobrava dinheiro? – gritou Esteban.
- Porque lhe faltava tudo o resto - replicou Clara docemente.
Durante os meses que estiveram separados, Blanca e Pedro Tercero trocaram por correio missivas inflamadas, que ele assinava com nome de mulher e ela escondia logo que chegavam. A Ama conseguiu interceptar uma ou duas, mas não sabia ler e, mesmo que soubesse, o código secreto impedia-a de inteirar-se do conteúdo, afortunadamente para ela, porque o seu coração não teria resistido. Blanca passou o Inverno tecendo um poncho com lã escocesa na aula de lavores do colégio, pensando nas medidas do rapaz. De noite dormia abraçada ao poncho, aspirando o odor da lã e sonhando que era ele quem dormia na sua cama. Pedro Tercero, por sua vez, passou o Inverno compondo canções na guitarra para cantar a Blanca e a esculpir a sua imagem em quanto bocado de madeira lhe caía nas mãos, sem poder afastar a recordação angélica da rapariga, com aqueles tormentos que lhe ferviam no sangue, lhe abrandavam os ossos, lhe estavam fazendo mudar de voz e a sair pêlos na cara. Debatia-se inquieto entre as exigências do corpo, que se transformava no de um homem, e a doçura de um sentimento que ainda estava contido pelos jogos inocentes da infância. Ambos esperaram a chegada do Verão com uma impaciência dolorosa e, finalmente, quando este chegou e tornaram a encontrar-se, o poncho que Clara tinha tecido não entrava a Pedro Tercero pela cabeça, porque nesses meses tinha deixado para trás a meninice e alcançado as proporções de homem adulto, e as ternas canções de flores e amanheceres que ele tinha composto para ela soaram-lhe ridículas, porque tinha o porte de uma mulher e as suas urgências.
Pedro Tercero continuava a ser delgado, com o cabelo teso e os olhos tristes, mas ao mudar a voz adquiriu uma tonalidade rouca e apaixonada com a qual seria conhecido mais tarde, quando cantasse a revolução. Falava pouco e era escuro e rude no trato, mas terno e delicado com as mãos, tinha grandes dedos de artista com que esculpia, arrancava lamentos das cordas da guitarra e desenhava com a mesma facilidade com que segurava as rédeas de um cavalo, brandia o machado para cortar lenha ou guiava o arado. Era o único em Las Tres Marias que enfrentava o patrão. Seu pai, Pedro Segundo, disse-lhe mil vezes que não olhasse o patrão nos olhos, que não lhe respondesse, que não se metesse com ele, e no seu desejo de protegê-lo, chegou a dar-lhe grandes sovas para lhe baixar a grimpa. Mas o filho era rebelde. Aos dez anos já sabia tanto como a mestra-escola de Las Tres Marias e aos doze insistia em fazer a viagem ao liceu da povoação, a cavalo ou a pé, saindo da casinha de tijolos às cinco da manhã, chovesse ou trovejasse. Leu e releu mil vezes os livros mágicos dos baús encantados do tio Marcos, e continuou alimentando-se com outros que lhe emprestavam os sindicalistas do bar e o padre José Dulce Maria, que também o ensinou a cultivar a sua habilidade natural para fazer versos e para traduzir em canções as suas ideias.
- Meu filho, a Santa Madre Igreja está à direita, mas Jesus esteve sempre à esquerda - dizia-lhe enigmaticamente entre dois golos de vinho de missa com que celebrava as visitas de Pedro Tercero.
Assim foi que um dia Esteban Trueba, que estava descansando no terraço depois do almoço, o ouviu cantar qualquer coisa de galinhas organizadas que se uniam para enfrentar o raposo e o venciam. Chamou-o.
- Quero ouvir-te. Canta, para ver! - ordenou-lhe.
Pedro Tercero pegou na guitarra com um gesto apaixonado, acomodou a perna numa cadeira e dedilhou as cordas. Ficou-se a olhar fixamente o patrão enquanto a sua voz de veludo se elevava apaixonada na calmaria da sesta. Esteban Trueba não era parvo e compreendeu o desafio.
- Aí está! Vejo que a coisa mais estúpida se pode dizer cantando - grunhiu. - Aprende a cantar canções de amor!
- Eu gosto, patrão. A união faz a força, como diz o padre José Dulce Maria. Se as galinhas podem enfrentar o raposo, o que é que detém os homens?
Pegou na guitarra e saiu arrastando os pés, sem que o outro discorresse o que lhe podia dizer, apesar de já ter a raiva à flor dos lábios e começar-lhe a subir a tensão. Desde esse dia, Esteban Trueba teve-o na mira, observava-o, desconfiava. Tratou de impedir que fosse ao liceu, inventando tarefas de homem crescido, mas o rapaz levantava-se mais cedo e deitava-se mais tarde para as cumprir. Foi nesse ano que Esteban o açoitou com a chibata diante do seu pai porque levou aos rendeiros as novidades que andavam a circular entre os sindicalistas do povo, ideias de domingos, de feriados, de salário mínimo, de reforma e serviços médicos, de licença maternal para as mulheres grávidas, de votar sem pressões e, o mais grave, a ideia de uma organização camponesa que pudesse enfrentar os patrões.
Nesse Verão, quando Blanca foi passar férias a Las Tres Marias, esteve a pontos de não o reconhecer, porque media quinze centímetros mais e tinha deixado muito para trás o menino barrigudo que compartilhou com ela todos os Verões da sua infância. Ela desceu do carro, esticou a saia e pela primeira vez não correu a abraçá-lo, fez-lhe apenas uma inclinação de cabeça à maneira de saudação, embora com os olhos dissesse o que os outros não deviam ouvir e que, por outro lado, já lhe tinha dito na sua impudica correspondência em código. A Ama observou a cena pelo canto do olho e sorriu em ar de gozo. Ao passar em frente de Pedro Tercero, fez-lhe uma careta:
- Aprende, ranhoso, a meter-te com os da tua classe e não com senhoras - gracejou entredentes.
Nessa noite Blanca jantou com toda a família na sala de jantar o ensopado de galinha com que sempre os recebiam em Las Tres Marias, sem que se vislumbrasse nela nenhuma ansiedade durante a prolongada sobremesa em que o pai bebia conhaque e falava sobre vacas importadas e minas de ouro. Esperou que a mãe fizesse sinal de retirar-se, parou calmamente, desejou as boas-noites a cada um dos presentes e foi para o quarto. Pela primeira vez na sua vida, fechou a porta à chave. Sentou-se na cama sem tirar a roupa e esperou no escuro até que se calassem as vozes dos gémeos gritando no quarto ao lado, os passos dos criados, as portas, os ferrolhos e a casa se acomodou no sono. Então abriu uma janela e saltou, caindo sobre as matas de hortênsias que muito tempo atrás a tia Férula tinha plantado. A noite estava clara, ouviam-se os grilos e os sapos. Respirou profundamente e o ar levou o cheiro doce dos pêssegos que secavam no pátio para as conservas. Esperou que os olhos se acostumassem à escuridão e depois começou a andar, mas não pôde seguir mais longe porque ouviu o ladrar furioso que os cães de guarda soltavam na noite. Eram quatro mastins que se tinham criado amarrados com correntes e que passavam o dia encerrados, que ela nunca tinha visto de perto e sabia que a não podiam reconhecer. Por um instante sentiu que o pânico a fazia perder a cabeça e esteve a ponto de começar a gritar, mas então lembrou-se de que Pedro Garcia, o velho, lhe tinha dito que os ladrões andavam nus para não serem atacados pelos cães. Sem hesitar despiu a roupa com toda a rapidez que os nervos lhe permitiam, pô-la debaixo do braço e caminhou com passo tranquilo, rezando para que os animais não lhe farejassem o medo. Viu-os correr ladrando e continuou sem perder o ritmo da marcha. Os cães aproximaram-se, rosnando desconcertados, mas ela não parou. Um deles, mais audaz que os outros, aproximou-se a cheirá-la. Recebeu o bafo morno da sua respiração nas costas, mas não fez caso. Continuaram a rosnar e a ladrar por algum tempo, acompanharam-na um bocado e, por fim, fartos, deram meia volta. Blanca suspirou aliviada e deu-se conta que estava a tremer e coberta de suor, teve de apoiar-se numa árvore e esperou até que passasse a fadiga que tinha posto os seus joelhos em papas. Depois vestiu-se a toda a pressa e deitou a correr em direcção ao rio.
Pedro Tercero esperava-a no mesmo sitio onde se tinham encontrado no Verão anterior e onde muitos anos antes Esteban Trueba se tinha apoderado da humilde virgindade de Pancha Garcia. Ao ver o rapaz, Blanca corou violentamente. Durante os meses em que tinham estado separados, ele amadureceu no duro oficio de fazer-se homem e ela, por seu lado, esteve recolhida entre as paredes do seu quarto e do colégio das freiras, preservada das durezas da vida, alimentando sonhos românticos com varas de tecer e lã escocesa, mas a imagem dos seus sonhos não coincidia com aquele jovem alto que se aproximava murmurando o seu nome. Pedro Tercero estendeu a mão e tocou-lhe o pescoço junto da orelha. Blanca sentiu algo quente que lhe corria pelos ossos e lhe abanava as pernas, fechou os olhos e abandonou-se. Ele puxou-a a si e rodeou-a com os braços, ela afundou o nariz no peito daquele homem que não conhecia, tão diferente do menino magro com quem se acariciava até ficar extenuada poucos meses antes. Aspirou-lhe o odor novo, esfregou-se contra a sua pele áspera, apalpou aquele corpo enxuto e forte e sentiu uma paz grandiosa e completa, em que nada se parecia com a agitação que se havia apoderado dele. Procuraram-se com as línguas, como o faziam antes, embora parecesse uma caricia acabada de inventar, caíram ajoelhados beijando-se com desespero e rebolaram sobre o leito macio da terra húmida. Descobriram-se pela primeira vez e não tinham nada que dizer um ao outro. A Lua percorreu todo o horizonte, mas eles não a viram, porque estavam ocupados em explorar a sua mais profunda intimidade, metendo-se cada um na pele do outro, incansavelmente.
A partir dessa noite, Blanca e Pedro Tercero encontravam-se sempre no mesmo lugar à mesma hora. De dia ela bordava, lia e pintava insípidas aguarelas nos arredores da casa, ante o olhar feliz da Ama, que por fim podia dormir tranquila. Clara, por sua vez, pressentia que algo de estranho estava sucedendo, porque podia ver uma nova cor na aura da filha e pensava adivinhar a causa. Pedro Tercero fazia as suas lides habituais no campo e não deixou de ir à povoação ver os amigos. Ao cair da noite estava morto de fadiga, mas a perspectiva de se encontrar com Blanca devolvia-lhe a força. Não era em vão que tinha quinze anos. Assim passaram todo o Verão e muitos anos mais tarde os dois recordariam essas noites veementes como a melhor época das suas vidas.
Entretanto, Jaime e Nicolau aproveitavam as férias fazendo todas aquelas coisas que estavam proibidas no internato britânico, gritando até esganiçar-se, lutando sob qualquer pretexto, transformados em dois imundos ranhosos, maltrapilhos, com os joelhos cheios de crostas e a cabeça cheia de piolhos, fartos de fruta apanhada de fresco, de sol e de liberdade. Saiam de manhãzinha e não voltavam a casa até ao anoitecer, ocupados em caçar coelhos à pedrada, galopar a cavalo até perder o fôlego e espiar as mulheres que ensaboavam a roupa no rio.
Assim passaram três anos, até que o terramoto mudou as coisas. No fim dessas férias, os gémeos regressaram à capital antes do resto da família, acompanhados pela Ama, os criados da cidade e grande parte da bagagem. Os rapazes iam directamente para o colégio enquanto a Ama e os outros empregados preparavam a grande casa da esquina para a chegada dos patrões.
Blanca ficou com os pais no campo uns dias mais. Foi então que Clara começou a ter pesadelos, a caminhar sonâmbula pelos corredores e a despertar aos gritos. Durante o dia andava como que imbecilizada, vendo sinais premonitórios no comportamento dos animais: que as galinhas não põem o seu ovo diário, que as vacas andam espantadas, que os cães uivam à morte e as ratazanas, as aranhas e os vermes saem dos seus esconderijos, que os pássaros abandonam os ninhos e estão a partir em bandos, enquanto as suas crias gritam de fome nas árvores. Olhava obsessivamente a ténue coluna de fumo branco do vulcão, observando as mudanças na cor do céu. Blanca preparou-lhe infusões calmantes e banhos mornos e Esteban recorreu à antiga caixinha de pílulas homeopáticas para tranquilizar, mas os sonhos continuaram.
- A terra vai tremer! - dizia Clara, cada vez mais pálida e agitada.
- Sempre tremeu, Clara, por Deus - respondia Esteban.
- Desta vez será diferente. Haverá dez mil mortos.
- Não há tanta gente em todo o pais - gracejava ele.
Começou o cataclismo às quatro da madrugada. Clara despertou pouco tempo antes com um pesadelo apocalíptico de cavalos rebentados, vacas arrebatadas pelo mar, gente rastejando debaixo das pedras e cavernas abertas no chão por onde se afundavam casas inteiras. Levantou-se lívida de terror e correu ao quarto de Blanca. Mas Blanca, como todas as noites, tinha fechado à chave a porta e deslizado pela janela em direcção ao rio. Nos últimos dias, antes de voltar à cidade, a paixão do Verão adquiriu características dramáticas, porque na iminência de uma nova separação, os jovens aproveitavam todos os momentos possíveis para se amarem desenfreadamente. Passavam a noite no rio, imunes ao frio e ao cansaço, entregando-se com a força do desespero, e só ao vislumbrar os primeiros raios do amanhecer Blanca regressava a casa entrando pela janela do quarto, onde chegava justamente a tempo de ouvir cantar os galos. Clara foi até à porta do quarto, quis abri-la mas estava trancada. Bateu e como ninguém respondesse saiu correndo, deu meia volta à casa e viu então a janela aberta de par em par e as hortênsias de Férula todas pisadas. Num instante compreendeu a causa da cor da aura de Blanca, as suas olheiras, o fastio, a sonolência matinal e as aguarelas vespertinas. Nesse mesmo momento começou o terramoto.
Clara sentiu que o solo se sacudia e não pôde aguentar-se em pé. Caiu de joelhos. As telhas desprenderam-se e choveram à sua volta com estrépito ensurdecedor. Viu a parede de adobe da casa quebrar-se como se tivesse levado uma machadada de frente, a terra abrir-se, tal como tinha visto em sonhos e uma enorme fenda aparecer na sua frente, engolindo na passagem os galinheiros, a empena do lavadouro e parte do estábulo. O tanque de água escorregou e caiu ao chão espalhando mil litros de água em cima das galinhas sobreviventes que esvoaçavam desesperadas. Ao longe, o vulcão deitava fogo e fumo como um dragão furioso. Os cães soltaram-se das correntes e correram enlouquecidos, os cavalos que escaparam ao desmoronar do estábulo cheiraram o ar e relincharam de terror antes de fugir assustados pelo campo fora, os álamos abanaram como bêbados e alguns caíram com as raízes no ar, esmagando os ninhos dos pardais. E o mais tremendo foi aquele rugido do fundo da terra, aquele resfolgar de gigante que se sentiu durante longo tempo, enchendo o ar de espanto. Clara fez por se arrastar até casa chamando Blanca, mas os estertores do solo impediram-na. Viu os camponeses que saiam espavoridos das casas, gritando ao céu, abraçando-se uns aos outros, aos puxões às crianças, aos pontapés nos cães, aos empurrões aos velhos, tratando
Durante os meses que estiveram separados, Blanca e Pedro Tercero trocaram por correio missivas inflamadas, que ele assinava com nome de mulher e ela escondia logo que chegavam. A Ama conseguiu interceptar uma ou duas, mas não sabia ler e, mesmo que soubesse, o código secreto impedia-a de inteirar-se do conteúdo, afortunadamente para ela, porque o seu coração não teria resistido. Blanca passou o Inverno tecendo um poncho com lã escocesa na aula de lavores do colégio, pensando nas medidas do rapaz. De noite dormia abraçada ao poncho, aspirando o odor da lã e sonhando que era ele quem dormia na sua cama. Pedro Tercero, por sua vez, passou o Inverno compondo canções na guitarra para cantar a Blanca e a esculpir a sua imagem em quanto bocado de madeira lhe caía nas mãos, sem poder afastar a recordação angélica da rapariga, com aqueles tormentos que lhe ferviam no sangue, lhe abrandavam os ossos, lhe estavam fazendo mudar de voz e a sair pêlos na cara. Debatia-se inquieto entre as exigências do corpo, que se transformava no de um homem, e a doçura de um sentimento que ainda estava contido pelos jogos inocentes da infância. Ambos esperaram a chegada do Verão com uma impaciência dolorosa e, finalmente, quando este chegou e tornaram a encontrar-se, o poncho que Clara tinha tecido não entrava a Pedro Tercero pela cabeça, porque nesses meses tinha deixado para trás a meninice e alcançado as proporções de homem adulto, e as ternas canções de flores e amanheceres que ele tinha composto para ela soaram-lhe ridículas, porque tinha o porte de uma mulher e as suas urgências.
Pedro Tercero continuava a ser delgado, com o cabelo teso e os olhos tristes, mas ao mudar a voz adquiriu uma tonalidade rouca e apaixonada com a qual seria conhecido mais tarde, quando cantasse a revolução. Falava pouco e era escuro e rude no trato, mas terno e delicado com as mãos, tinha grandes dedos de artista com que esculpia, arrancava lamentos das cordas da guitarra e desenhava com a mesma facilidade com que segurava as rédeas de um cavalo, brandia o machado para cortar lenha ou guiava o arado. Era o único em Las Tres Marias que enfrentava o patrão. Seu pai, Pedro Segundo, disse-lhe mil vezes que não olhasse o patrão nos olhos, que não lhe respondesse, que não se metesse com ele, e no seu desejo de protegê-lo, chegou a dar-lhe grandes sovas para lhe baixar a grimpa. Mas o filho era rebelde. Aos dez anos já sabia tanto como a mestra-escola de Las Tres Marias e aos doze insistia em fazer a viagem ao liceu da povoação, a cavalo ou a pé, saindo da casinha de tijolos às cinco da manhã, chovesse ou trovejasse. Leu e releu mil vezes os livros mágicos dos baús encantados do tio Marcos, e continuou alimentando-se com outros que lhe emprestavam os sindicalistas do bar e o padre José Dulce Maria, que também o ensinou a cultivar a sua habilidade natural para fazer versos e para traduzir em canções as suas ideias.
- Meu filho, a Santa Madre Igreja está à direita, mas Jesus esteve sempre à esquerda - dizia-lhe enigmaticamente entre dois golos de vinho de missa com que celebrava as visitas de Pedro Tercero.
Assim foi que um dia Esteban Trueba, que estava descansando no terraço depois do almoço, o ouviu cantar qualquer coisa de galinhas organizadas que se uniam para enfrentar o raposo e o venciam. Chamou-o.
- Quero ouvir-te. Canta, para ver! - ordenou-lhe.
Pedro Tercero pegou na guitarra com um gesto apaixonado, acomodou a perna numa cadeira e dedilhou as cordas. Ficou-se a olhar fixamente o patrão enquanto a sua voz de veludo se elevava apaixonada na calmaria da sesta. Esteban Trueba não era parvo e compreendeu o desafio.
- Aí está! Vejo que a coisa mais estúpida se pode dizer cantando - grunhiu. - Aprende a cantar canções de amor!
- Eu gosto, patrão. A união faz a força, como diz o padre José Dulce Maria. Se as galinhas podem enfrentar o raposo, o que é que detém os homens?
Pegou na guitarra e saiu arrastando os pés, sem que o outro discorresse o que lhe podia dizer, apesar de já ter a raiva à flor dos lábios e começar-lhe a subir a tensão. Desde esse dia, Esteban Trueba teve-o na mira, observava-o, desconfiava. Tratou de impedir que fosse ao liceu, inventando tarefas de homem crescido, mas o rapaz levantava-se mais cedo e deitava-se mais tarde para as cumprir. Foi nesse ano que Esteban o açoitou com a chibata diante do seu pai porque levou aos rendeiros as novidades que andavam a circular entre os sindicalistas do povo, ideias de domingos, de feriados, de salário mínimo, de reforma e serviços médicos, de licença maternal para as mulheres grávidas, de votar sem pressões e, o mais grave, a ideia de uma organização camponesa que pudesse enfrentar os patrões.
Nesse Verão, quando Blanca foi passar férias a Las Tres Marias, esteve a pontos de não o reconhecer, porque media quinze centímetros mais e tinha deixado muito para trás o menino barrigudo que compartilhou com ela todos os Verões da sua infância. Ela desceu do carro, esticou a saia e pela primeira vez não correu a abraçá-lo, fez-lhe apenas uma inclinação de cabeça à maneira de saudação, embora com os olhos dissesse o que os outros não deviam ouvir e que, por outro lado, já lhe tinha dito na sua impudica correspondência em código. A Ama observou a cena pelo canto do olho e sorriu em ar de gozo. Ao passar em frente de Pedro Tercero, fez-lhe uma careta:
- Aprende, ranhoso, a meter-te com os da tua classe e não com senhoras - gracejou entredentes.
Nessa noite Blanca jantou com toda a família na sala de jantar o ensopado de galinha com que sempre os recebiam em Las Tres Marias, sem que se vislumbrasse nela nenhuma ansiedade durante a prolongada sobremesa em que o pai bebia conhaque e falava sobre vacas importadas e minas de ouro. Esperou que a mãe fizesse sinal de retirar-se, parou calmamente, desejou as boas-noites a cada um dos presentes e foi para o quarto. Pela primeira vez na sua vida, fechou a porta à chave. Sentou-se na cama sem tirar a roupa e esperou no escuro até que se calassem as vozes dos gémeos gritando no quarto ao lado, os passos dos criados, as portas, os ferrolhos e a casa se acomodou no sono. Então abriu uma janela e saltou, caindo sobre as matas de hortênsias que muito tempo atrás a tia Férula tinha plantado. A noite estava clara, ouviam-se os grilos e os sapos. Respirou profundamente e o ar levou o cheiro doce dos pêssegos que secavam no pátio para as conservas. Esperou que os olhos se acostumassem à escuridão e depois começou a andar, mas não pôde seguir mais longe porque ouviu o ladrar furioso que os cães de guarda soltavam na noite. Eram quatro mastins que se tinham criado amarrados com correntes e que passavam o dia encerrados, que ela nunca tinha visto de perto e sabia que a não podiam reconhecer. Por um instante sentiu que o pânico a fazia perder a cabeça e esteve a ponto de começar a gritar, mas então lembrou-se de que Pedro Garcia, o velho, lhe tinha dito que os ladrões andavam nus para não serem atacados pelos cães. Sem hesitar despiu a roupa com toda a rapidez que os nervos lhe permitiam, pô-la debaixo do braço e caminhou com passo tranquilo, rezando para que os animais não lhe farejassem o medo. Viu-os correr ladrando e continuou sem perder o ritmo da marcha. Os cães aproximaram-se, rosnando desconcertados, mas ela não parou. Um deles, mais audaz que os outros, aproximou-se a cheirá-la. Recebeu o bafo morno da sua respiração nas costas, mas não fez caso. Continuaram a rosnar e a ladrar por algum tempo, acompanharam-na um bocado e, por fim, fartos, deram meia volta. Blanca suspirou aliviada e deu-se conta que estava a tremer e coberta de suor, teve de apoiar-se numa árvore e esperou até que passasse a fadiga que tinha posto os seus joelhos em papas. Depois vestiu-se a toda a pressa e deitou a correr em direcção ao rio.
Pedro Tercero esperava-a no mesmo sitio onde se tinham encontrado no Verão anterior e onde muitos anos antes Esteban Trueba se tinha apoderado da humilde virgindade de Pancha Garcia. Ao ver o rapaz, Blanca corou violentamente. Durante os meses em que tinham estado separados, ele amadureceu no duro oficio de fazer-se homem e ela, por seu lado, esteve recolhida entre as paredes do seu quarto e do colégio das freiras, preservada das durezas da vida, alimentando sonhos românticos com varas de tecer e lã escocesa, mas a imagem dos seus sonhos não coincidia com aquele jovem alto que se aproximava murmurando o seu nome. Pedro Tercero estendeu a mão e tocou-lhe o pescoço junto da orelha. Blanca sentiu algo quente que lhe corria pelos ossos e lhe abanava as pernas, fechou os olhos e abandonou-se. Ele puxou-a a si e rodeou-a com os braços, ela afundou o nariz no peito daquele homem que não conhecia, tão diferente do menino magro com quem se acariciava até ficar extenuada poucos meses antes. Aspirou-lhe o odor novo, esfregou-se contra a sua pele áspera, apalpou aquele corpo enxuto e forte e sentiu uma paz grandiosa e completa, em que nada se parecia com a agitação que se havia apoderado dele. Procuraram-se com as línguas, como o faziam antes, embora parecesse uma caricia acabada de inventar, caíram ajoelhados beijando-se com desespero e rebolaram sobre o leito macio da terra húmida. Descobriram-se pela primeira vez e não tinham nada que dizer um ao outro. A Lua percorreu todo o horizonte, mas eles não a viram, porque estavam ocupados em explorar a sua mais profunda intimidade, metendo-se cada um na pele do outro, incansavelmente.
A partir dessa noite, Blanca e Pedro Tercero encontravam-se sempre no mesmo lugar à mesma hora. De dia ela bordava, lia e pintava insípidas aguarelas nos arredores da casa, ante o olhar feliz da Ama, que por fim podia dormir tranquila. Clara, por sua vez, pressentia que algo de estranho estava sucedendo, porque podia ver uma nova cor na aura da filha e pensava adivinhar a causa. Pedro Tercero fazia as suas lides habituais no campo e não deixou de ir à povoação ver os amigos. Ao cair da noite estava morto de fadiga, mas a perspectiva de se encontrar com Blanca devolvia-lhe a força. Não era em vão que tinha quinze anos. Assim passaram todo o Verão e muitos anos mais tarde os dois recordariam essas noites veementes como a melhor época das suas vidas.
Entretanto, Jaime e Nicolau aproveitavam as férias fazendo todas aquelas coisas que estavam proibidas no internato britânico, gritando até esganiçar-se, lutando sob qualquer pretexto, transformados em dois imundos ranhosos, maltrapilhos, com os joelhos cheios de crostas e a cabeça cheia de piolhos, fartos de fruta apanhada de fresco, de sol e de liberdade. Saiam de manhãzinha e não voltavam a casa até ao anoitecer, ocupados em caçar coelhos à pedrada, galopar a cavalo até perder o fôlego e espiar as mulheres que ensaboavam a roupa no rio.
Assim passaram três anos, até que o terramoto mudou as coisas. No fim dessas férias, os gémeos regressaram à capital antes do resto da família, acompanhados pela Ama, os criados da cidade e grande parte da bagagem. Os rapazes iam directamente para o colégio enquanto a Ama e os outros empregados preparavam a grande casa da esquina para a chegada dos patrões.
Blanca ficou com os pais no campo uns dias mais. Foi então que Clara começou a ter pesadelos, a caminhar sonâmbula pelos corredores e a despertar aos gritos. Durante o dia andava como que imbecilizada, vendo sinais premonitórios no comportamento dos animais: que as galinhas não põem o seu ovo diário, que as vacas andam espantadas, que os cães uivam à morte e as ratazanas, as aranhas e os vermes saem dos seus esconderijos, que os pássaros abandonam os ninhos e estão a partir em bandos, enquanto as suas crias gritam de fome nas árvores. Olhava obsessivamente a ténue coluna de fumo branco do vulcão, observando as mudanças na cor do céu. Blanca preparou-lhe infusões calmantes e banhos mornos e Esteban recorreu à antiga caixinha de pílulas homeopáticas para tranquilizar, mas os sonhos continuaram.
- A terra vai tremer! - dizia Clara, cada vez mais pálida e agitada.
- Sempre tremeu, Clara, por Deus - respondia Esteban.
- Desta vez será diferente. Haverá dez mil mortos.
- Não há tanta gente em todo o país - gracejava ele.
Começou o cataclismo às quatro da madrugada. Clara despertou pouco tempo antes com um pesadelo apocalíptico de cavalos rebentados, vacas arrebatadas pelo mar, gente rastejando debaixo das pedras e cavernas abertas no chão por onde se afundavam casas inteiras. Levantou-se lívida de terror e correu ao quarto de Blanca. Mas Blanca, como todas as noites, tinha fechado à chave a porta e deslizado pela janela em direcção ao rio. Nos últimos dias, antes de voltar à cidade, a paixão do Verão adquiriu características dramáticas, porque na iminência de uma nova separação, os jovens aproveitavam todos os momentos possíveis para se amarem desenfreadamente. Passavam a noite no rio, imunes ao frio e ao cansaço, entregando-se com a força do desespero, e só ao vislumbrar os primeiros raios do amanhecer Blanca regressava a casa entrando pela janela do quarto, onde chegava justamente a tempo de ouvir cantar os galos. Clara foi até à porta do quarto, quis abri-la mas estava trancada. Bateu e como ninguém respondesse saiu correndo, deu meia volta à casa e viu então a janela aberta de par em par e as hortênsias de Férula todas pisadas. Num instante compreendeu a causa da cor da aura de Blanca, as suas olheiras, o fastio, a sonolência matinal e as aguarelas vespertinas. Nesse mesmo momento começou o terramoto.
Clara sentiu que o solo se sacudia e não pôde aguentar-se em pé. Caiu de joelhos. As telhas desprenderam-se e choveram à sua volta com estrépito ensurdecedor. Viu a parede de adobe da casa quebrar-se como se tivesse levado uma machadada de frente, a terra abrir-se, tal como tinha visto em sonhos e uma enorme fenda aparecer a sua frente, engolindo na passagem os galinheiros, a empena do lavadouro e parte do estábulo. O tanque de água escorregou e caiu ao chão espalhando mil litros de água em cima das galinhas sobreviventes que esvoaçavam desesperadas. Ao longe, o vulcão deitava fogo e fumo como um dragão furioso. Os cães soltaram-se das correntes e correram enlouquecidos, os cavalos que escaparam ao desmoronar do estábulo cheiraram o ar e relincharam de terror antes de fugir assustados pelo campo fora, os álamos abanaram como bêbados e alguns caíram com as raízes no ar, esmagando os ninhos dos pardais. E o mais tremendo foi aquele rugido do fundo da terra, aquele resfolgar de gigante que se sentiu durante longo tempo, enchendo o ar de espanto. Clara fez por se arrastar até casa chamando Blanca, mas os estertores do solo impediram-na. Viu os camponeses que saiam espavoridos das casas, gritando ao céu, abraçando-se uns aos outros, aos puxões às crianças, aos pontapés nos cães, aos empurrões aos velhos, tratando de pôr a salvo os pobres haveres naquele estrondo de tijolos e telhas que saiam das próprias entranhas da terra, como um interminável rumor de fim do mundo.
Esteban Trueba apareceu no umbral da porta no preciso momento em que a casa se partiu como uma casca de ovo e se desmoronou numa nuvem de pó, esmagando-o debaixo de uma montanha de escombros. Clara rastejou até lá chamando-o aos gritos, mas ninguém respondeu.
A primeira sacudidela do terramoto durou quase um minuto e foi a mais forte que se tinha registado até à data naquele pais de catástrofes. Atirou ao chão quase tudo o que estava em pé e o resto acabou por se desmoronar com o rosário de tremores menores que se seguiu estremecendo o mundo até ao amanhecer. Em Las Tres Marias, esperaram que nascesse o Sol para contar os mortos e desenterrar os soterrados que ainda gemiam debaixo da derrocada, entre eles Esteban Trueba, que todos sabiam onde estava mas ninguém tinha esperança de encontrar com vida. Foram necessários quatro homens a mando de Pedro Segundo, para remover o monte de terra, telhas e adobes que o cobria. Clara tinha abandonado a sua distracção angélica e ajudava a tirar as pedras com força de homem.
- Temos de o tirar! Está vivo, ouve-nos! - assegurava Clara e isso dava-lhes ânimo para continuar.
Com as primeiras luzes apareceram Blanca e Pedro Tercero, intactos. Clara caiu em cima da filha e deu-lhe um par de bofetadas, mas logo a abraçou chorando aliviada por a saber a salvo e por a ter a seu lado.
- O seu pai está ali! - apontou Clara.
Os rapazes puseram-se a trabalhar com os demais e ao cabo de uma hora, quando já tinha nascido o Sol naquele universo de angústia, tiraram o patrão do túmulo. Os ossos partidos eram tantos, que não se podiam contar, mas estava vivo e tinha os olhos abertos.
- Temos de levá-lo à povoação para ser visto pelos médicos - disse Pedro Segundo.
Estavam discutindo a maneira de o transladar sem que os ossos lhe saíssem por todos os lados como de um saco roto, quando chegou Pedro Garcia, o velho, que graças à cegueira e à velhice tinha suportado o terramoto sem se comover. Agachou-se ao lado do ferido e com grande cautela percorreu-lhe o corpo, tacteando-o com as mãos, olhando com os seus dedos antigos, até não deixar nada por contabilizar nem fractura sem ter em conta.
- Se lhe mexerem, morre - avisou.
Esteban Trueba não estava inconsciente e ouviu-o com toda a clareza, recordou-se da praga das formigas e achou que o velho era a sua única esperança.
- Deixem-no, ele sabe o que faz - balbuciou.
Pedro Garcia mandou trazer uma manta e, com a ajuda do filho e do neto, colocaram sobre ela o patrão, levantaram-no com cuidado e acomodaram-no sobre uma mesa improvisada que tinham armado no centro daquilo que antes era o pátio, mas que já não era mais que uma pequena clareira naquele pesadelo de cascalho, de cadáveres de animais, de choros de crianças, de gemidos de cães e orações de mulheres. Entre as ruínas recuperaram um odre de vinho, que Pedro Garcia distribuiu em três partes, uma para lavar o corpo do ferido, outra para lhe dar a tomar e outra que ele bebeu com parcimónia, antes de começar a compor-lhe os ossos, um por um, com paciência e calma, esticando aqui, ajustando dali, colocando cada um no seu sitio, entalando-os, envolvendo-os em tiras de lençol para os imobilizar, dizendo entredentes ladainhas de santos curandeiros, invocando a boa sorte e a Virgem Maria, e suportando os gritos e blasfémias de Esteban Trueba, sem mudar em nada a beatifica expressão de cego. às tantas, reconstruiu-lhe o corpo tão bem, que os médicos que o observaram depois não podiam acreditar que isso fosse possível.
- Eu nem sequer o teria tentado - reconheceu o doutor Cuevas ao saber do sucedido.
Os destroços do terramoto mergulharam o país num grande luto. Não bastou a terra sacudir-se até deitar tudo ao chão, mas também o mar se afastou várias milhas e regressou numa única e gigantesca onda que pôs barcos sobre as colinas, muito longe da costa, levou casebres, caminhos e animais e submergiu várias ilhas do Sul mais de um metro abaixo do nível da água. Houve edifícios que caíram como dinossauros feridos, outros que se desfizeram como castelos de cartas, os mortos contavam-se aos milhares e não ficou família que não tivesse alguém por quem chorar. A água salgada do mar arruinou as colheitas, os incêndios devoraram zonas inteiras da cidade e povoações e, por último, correu lava e caiu cinza como a minar do castigo sobre as aldeias próximas dos vulcões. As pessoas deixaram de dormir nas suas casas, aterrorizadas com a possibilidade de que o cataclismo se repetisse, improvisavam acampamentos em lugares desertos, dormiam nas praças e nas ruas. Os soldados tiveram de conter a desordem e fuzilavam sem mais trâmites quem surpreendiam a roubar porque, enquanto os mais cristãos enchiam as igrejas clamando perdão pelos seus pecados e rogavam a Deus para que aplacasse a sua ira, os ladrões percorriam os escombros e onde aparecia uma orelha com um brinco ou um dedo com um anel cortavam-nos com uma facada, sem considerar que a vitima estivesse morta ou apenas aprisionada nos escombros. Desenvolveu-se uma imensidade de gérmenes que provocou diversas pestes em todo o pais. O resto do mundo, demasiado ocupado com a guerra, apenas soube que a natureza se tornara louca nesse longínquo lugar do planeta, mas mesmo assim chegaram carregamentos de medicamentos, cobertores, alimentos e materiais de construção, que se perderam nos misteriosos labirintos da administração pública, até ao ponto de, muito anos depois, se poderem comprar os guisados enlatados da América do Norte e o leite em pó da Europa ao preço de requintados manjares nos armazéns exclusivos.
Esteban Trueba passou quatro meses envolto em ligaduras, rígido entre talas, pensos e agrafes, num atroz suplício de pontadas e imobilidade, devorado pela impaciência. O seu carácter piorou até que ninguém o pôde suportar. Clara ficou no campo para cuidar dele e, quando se normalizaram as comunicações e se restaurou a ordem, mandaram Blanca interna para o colégio, porque a mãe não podia encarregar-se dela.
Na capital, o terramoto surpreendeu a Ama na cama e, apesar de ali se ter sentido menos que no Sul, também a matou de susto. A grande casa da esquina estalou como uma noz, abriram-se gretas nas paredes, e o grande lustre de cristal da sala de jantar caiu com um clamor de mil sinos, fazendo-se em fanicos. Fora isso, a única coisa grave foi a morte da Ama. Quando passou o terror do primeiro momento, os criados deram conta que a anciã não tinha saído fugindo para a rua como as outras pessoas. Entraram para a ir buscar e encontraram-na na cama, com os olhos desorbitados e o pouco cabelo que lhe restava eriçado de pavor. No caos desses dias, não puderam fazer-lhe um enterro digno, como ela tinha esperado, mas tiveram de a enterrar a toda a pressa sem discursos nem lágrimas. Não assistiu ao seu funeral nenhum dos numerosos filhos alheios que ela com tanto amor tinha criado.
O terramoto marcou uma mudança tão importante na vida da família Trueba que a partir de então dividiram os acontecimentos em antes e depois dessa data. Em Las Tres Marias, Pedro Segundo Garcia voltou a assumir o cargo de administrador, pela impossibilidade do patrão sair da cama. Tocou-lhe a tarefa de organizar os trabalhadores, devolver a calma e reconstruir a ruína em que se tinha transformado a propriedade. Começaram por enterrar os mortos no cemitério ao pé do vulcão, que milagrosamente se tinha salvo do rio de lava que desceu pelas ladeiras do cerro maldito. Os novos túmulos deram um ar festivo ao humilde campo santo e plantaram fileiras de vidoeiros para darem sombra aos que visitavam os seus mortos. Reconstruíram as casinhas de tijolo uma por uma, exactamente como eram dantes, os estábulos, a leitaria e o celeiro e voltaram a preparar a terra para as sementeiras, agradecidos de que a lava e a cinza tivessem caído para outro lado, salvando a propriedade. Pedro Tercero teve de renunciar aos seus passeios à aldeia, porque o pai queria-o a seu lado. Acompanhava-o de mau humor, fazendo-lhe notar que rebentavam as costas para tornar a pôr de pé a riqueza do patrão, porque eles continuavam a ser tão pobres como dantes.
- Sempre foi assim, filho. Não se pode mudar a lei de Deus - respondia-lhe o pai.
- Sim, pode-se mudar, pai. Há gente que o está a fazer, mas aqui nem sequer temos notícias. No mundo estão a passar-se coisas importantes - replicava Pedro Tercero e citava sem pausas o discurso do professor comunista ou do padre José Dulce Maria.
Pedro Segundo não respondia e continuava trabalhando sem vacilações. Fazia vista grossa quando o filho, aproveitando-se da doença do patrão ter relaxado a vigilância, rompia o cerco de censura e introduzia em Las Tres Marias os folhetos dos sindicalistas, os jornais políticos do professor e as estranhas versões bíblicas do padre espanhol.
Por ordem de Esteban Trueba, o administrador começou a reconstrução da casa senhorial seguindo o mesmo plano que tinha originalmente. Nem sequer mudaram os adobes de palha e barro cozido por modernos tijolos, ou modificaram o vão das janelas demasiado estreito. O único melhoramento foi canalizar água quente para os banhos e mudar o antigo fogão a lenha por uma máquina a petróleo à qual, no entanto, nenhuma cozinheira chegou a habituar-se, terminando os seus dias atirada para o pátio para uso indiscriminado das galinhas. Enquanto se construía a casa, improvisaram um refúgio de tábuas com tecto de zinco onde acomodaram Esteban no seu leito de inválido e dali, através de uma janela, ele podia observar os progressos da obra e gritar instruções, fervendo de raiva pela forçada imobilidade.
Clara mudou muito nesses meses. Teve de pôr-se ao lado de Pedro Segundo Garcia na tarefa de salvar o que pudesse ser salvo. Pela primeira vez na sua vida tomou a seu cargo, sem nenhuma ajuda, os assuntos materiais, porque já não contava com o marido, com Férula ou com a Ama. Despertou ao fim de uma longa infância em que tinha estado sempre protegida, rodeada de cuidados, de comodidades e sem obrigações. Esteban Trueba adquiriu a mania de que tudo o que comia lhe caia mal, excepto o que ela cozinhava, de modo que passava uma boa parte do dia metida na cozinha depenando galinhas para fazer canjas de doente e amassando pão. Teve de fazer de enfermeira, lavá-lo com uma esponja, mudar-lhe as ligaduras, pôr-lhe a arrastadeira. Ele ficou cada dia mais irritadiço e despótico, exigia-lhe «põe-me uma almofada aqui, não, mais acima, traz-me vinho, não, disse-te que queria vinho branco, abre a janela, fecha-a, dói-me aqui, tenho fome, tenho calor, coça-me as costas, mais abaixo». Clara chegou a temê-lo muito mais que quando era o homem são e forte que se introduzia na paz da sua vida com o seu cheiro de macho ansioso, o seu vozeirão de furacão, a sua guerra sem quartel, a sua prepotência de grande senhor, impondo a sua vontade e atirando os seus caprichos contra o delicado equilíbrio que ela mantinha entre os espíritos do Mais-Além e as almas necessitadas do Mais-Aqui. Chegou a detestá-lo. Logo que os ossos se soldaram e ele pôde mover-se um pouco, voltou a Esteban o desejo tormentoso de abraçá-la e, todas as vezes que ela passava a seu lado, dava-lhe uma palmada, confundindo-a na sua perturbação de doente com as robustas camponesas que nos seus anos de moço o serviam na cozinha e na cama. Clara sentia que já não estava para essas cavalgadas. As desgraças tinham-na espiritualizado e a idade e a falta de amor pelo marido tinham-na levado a considerar o sexo como um passatempo algo brutal, que lhe deixava as articulações doridas e produzia desordem no mobiliário. Em poucas horas, o terramoto fê-la aterrar na violência, na morte e na vulgaridade e pô-la em contacto com as necessidades básicas, que antes tinha ignorado. De nada lhe serviram a mesa de pé-de-galo ou a capacidade de adivinhar o futuro nas folhas de chá face à urgência de defender os caseiros da peste e da desorientação, a terra da seca e do caracol, as vacas da febre aftosa, as galinhas da gosma, a roupa da traça, os seus filhos do abandono e o marido da morte e da sua ira incontida. Clara estava muito cansada. Sentia-se sozinha, confundida e nos momentos das decisões a única pessoa a que podia recorrer em busca de ajuda era Pedro Segundo Garcia. Esse homem leal e silencioso estava sempre presente, ao alcance da sua voz, dando certa estabilidade à barafunda trágica que tinha entrado na sua vida. Frequentemente, ao fim do dia, Clara chamava-o para lhe oferecer uma chávena de chá. Sentavam-se nas cadeiras de vime debaixo de um alpendre, à espera que chegasse a noite para aliviar a tensão do dia. Olhavam o escuro que cala suavemente e as primeiras estrelas que começavam a brilhar no céu, ouviam coaxar as rãs e então ficavam calados. Tinham muito coisa em que falar, muitos problemas a resolver, muitos acordos pendentes, mas ambos compreendiam que aquela meia hora em silêncio era um prémio merecido, sorviam o chá sem pressas, para fazê-lo durar, e cada um pensava na vida do outro. Conheciam-se há mais de quinze anos, estavam perto todos os Verões, mas no total tinham trocado muito poucas frases. Ele tinha visto a patroa como uma luminosa aparição estival, alheia aos afãs brutais da vida, de uma espécie diferente das outras mulheres que tinha conhecido. Mesmo agora, com as mãos metidas na massa ou com o avental ensanguentado pela galinha do almoço, parecia-lhe uma miragem na reverberação do dia. Só ao entardecer, na calma desses momentos que partilhavam com as suas chávenas de chá, podia vê-la na sua dimensão humana. Secretamente tinha-lhe jurado lealdade e, como um adolescente, por vezes fantasiava com a ideia de dar a vida por ela. Apreciava-a tanto como odiava Esteban Trueba.
Quando foram colocar o telefone, faltava muito à casa para ser habitável. Fazia quatro anos que Esteban Trueba lutava por consegui-lo e foram-lho pôr justamente quando não tinha nem um tecto para o proteger da intempérie. O aparelho não durou muito, mas serviu para chamar os gémeos e ouvir-lhes a voz como se estivessem noutra galáxia, no meio de um barulho ensurdecedor e das interrupções da telefonista da aldeia, que participava na conversa. Por telefone souberam que Blanca estava doente e as freiras não queriam tomar conta dela. A menina tinha uma tosse persistente e dava-lhe febre com frequência. O terror da tuberculose estava presente em toda a parte, porque não havia família que não tivesse um tísico a lamentar, de modo que Clara decidiu ir buscá-la. No mesmo dia em que Clara viajava, Esteban Trueba partiu o telefone à bengalada, porque começou a tocar, e ela gritou que já ia, que se tinha calado, mas o aparelho continuou a tocar e ele, num repente de fúria caiu-lhe em cima às pancadas, deslocando-se com isso, a clavícula que a Pedro Garcia, o velho, tanto lhe tinha custado a consertar.
Era a primeira vez que Clara viajava sozinha. Tinha feito o mesmo trajecto em vários anos, mas sempre distraída, porque contava com alguém que se encarregasse dos pormenores prosaicos, enquanto ela sonhava observando a paisagem pela janela. Pedro Segundo Garcia levou-a até à estação e acomodou-a no assento do comboio. Ao despedir-se, ela inclinou-se e beijou-o ligeiramente na face e sorriu. Ele levou a mão à cara para proteger do vento aquele beijo fugaz e não sorriu, porque a tristeza o tinha invadido.
Guiada pela intuição mais que pelo conhecimento das coisas ou por lógica, Clara conseguiu chegar até ao colégio da filha sem contratempos. A Madre Superiora recebeu-a no escritório espartano, com um Cristo enorme e sangrento na parede e um incongruente ramo de rosas vermelhas sobre a mesa.
- Chamámos o médico, senhora Trueba - disse-lhe. - A menina não tem nada nos pulmões, mas é melhor levá-la, o campo far-lhe-á bem. Nós não podemos assumir a responsabilidade, compreenda.
A freira tocou uma sineta e entrou Blanca. Estava mais magra e pálida, com sombras violáceas debaixo dos olhos que teriam impressionado qualquer mãe, mas Clara compreendeu imediatamente que a doença da filha não era do corpo, mas da alma. O horrendo uniforme cinzento fazia-a muito mais pequena do que era, apesar das suas formas de mulher estalarem as costuras. Blanca ficou surpreendida ao ver a mãe, a quem recordava como um anjo vestido de branco, alegre e distraído, e que em poucos meses se tinha tornado numa mulher eficiente, com as mãos calejadas e duas profundas rugas nos cantos da boca.
Foram ver os gémeos ao colégio. Era a primeira vez que se encontravam depois do terramoto, e tiveram a surpresa de comprovar que o único lugar do território nacional que não tinha sido tocado pelo cataclismo fora o velho colégio, dai terem-no ignorado por completo. Ali os dez mil mortos passaram sem pena nem glória, enquanto eles continuavam cantando em inglês e jogando o críquete, comovidos apenas pelas notícias que chegavam da Grã-Bretanha com três semanas de atraso. Admiradas, viram que aqueles rapazes, que tinham sangue de mouros e espanhóis nas veias e que tinham nascido no último canto da América, falavam o castelhano com sotaque de Oxford e a única emoção que eram capazes de manifestar era a surpresa, levantando a sobrancelha esquerda. Não tinham nada em comum com os dois rapazes exuberantes e piolhosos que passavam o Verão no campo. «Espero que tanta fleuma saxónica não mos ponha idiotas», balbuciou Clara ao despedir-se dos filhos.
A morte da Ama, que apesar dos seus anos era a responsável pela grande casa da esquina na ausência dos patrões, originou o desleixo dos criados. Sem vigilância, abandonaram as suas tarefas e passavam o dia numa orgia de sesta e anedotas, enquanto as plantas secavam por falta de rega e as aranhas passeavam pelos cantos. A deterioração era tão evidente que Clara decidiu fechar a casa e despedi-los a todos. Depois entregou-se ao trabalho de cobrir os móveis com lençóis e pôr naftalina por todos os lados. Abriram as gaiolas de pássaros uma por uma e o céu encheu-se de caturras, canários, pintassilgos e cristofués (Pássaro pouco maior do que a calhandra que abunda nos vales da Venezuela. (N. T.)), que deram voltas cegos pela liberdade e finalmente voaram em todas as direcções. Blanca notou que em todos esses trabalhos não apareceu nenhum fantasma por detrás das cortinas, não chegou nenhum rosa-cruz atraído pelo seu sexto sentido nem nenhum poeta faminto chamado pela necessidade. A sua mãe parecia ter-se tornado uma senhora comum e rústica.
- A mamã mudou muito - observou Blanca.
- Não fui eu, filha, foi o mundo que mudou – respondeu Clara.
Antes de se irem embora, foram ao quarto da Ama no pátio dos criados. Clara abriu os seus caixotes, tirou a mala de cartão que a boa mulher usou durante meio século e revistou o roupeiro. Não havia mais que um pouco de roupa, umas alpergatas velhas e caixas de todos os tamanhos, atadas com fitas e elásticos, onde ela guardava estampas da Primeira Comunhão e do Baptismo, mechas de cabelo, unhas cortadas, retratos desbotados e alguns sapatinhos de bebé gastos pelo uso. Eram recordações de todos os filhos da família del Valle e depois dos Trueba que lhe tinham passado pelos braços e que ela embalara no peito. Debaixo da cama encontrou um atado com os disfarces que a Ama usava para lhe espantar a mudez. Sentada na enxerga, com esses tesouros no regaço, Clara chorou longamente aquela mulher que tinha dedicado a sua existência a fazer mais cómoda a dos outros e que morrera sozinha.
- Depois de tanto tentar assustar-me, foi ela que morreu de susto - observou Clara.
Mandou transladar o corpo para o mausoléu dos del Valle, no Cemitério Católico, porque supôs que ela não gostaria de estar enterrada com os evangelistas e os judeus e teria preferido seguir na morte aqueles que tinha servido em vida. Pôs um ramo de flores junto da lápide e foi com Blanca para a estação, de regresso a Las Tres Marias.
Durante a viagem de comboio, Clara pôs a sua filha em dia sobre as novidades da família e a saúde do pai, esperando que Blanca lhe fizesse a única pergunta que sabia que ela desejava fazer, mas Blanca não mencionou Pedro Tercero e Clara não se atreveu a fazê-lo. Tinha a ideia que, ao nomear os problemas, estes materializavam-se e já não era possível ignorá-los; por outro lado, se ficam no limbo das palavras não ditas, podem desaparecer sozinhos, com o decorrer do tempo. Na estação, Pedro Segundo esperava-as com o carro e Blanca surpreendeu-se ao ouvi-lo assobiar todo o trajecto para Las Tres Marias, pois o administrador tinha fama de taciturno.
Encontraram Esteban Trueba sentado num cadeirão forrado de felpa azul, ao qual tinham adaptado rodas de bicicleta, à espera que chegasse da capital a cadeira de rodas que tinha encomendado e que Clara trazia na bagagem. Dirigia com enérgicas bengaladas e impropérios os progressos da casa, tão absorto que as recebeu com um beijo distraído e se esqueceu de perguntar pela saúde da filha.
Nessa noite comeram numa rústica mesa de tábuas, iluminados por um candeeiro de petróleo. Blanca viu a mãe servir a comida nos pratos de barro feitos artesanalmente, tal como os tijolos, porque no terramoto tinha-se partido toda a loiça. Sem a Ama para dirigir os assuntos da cozinha, tinham simplificado as coisas até à frugalidade e partilhavam apenas uma espessa sopa de lentilhas, pão, queijo e marmelada, que era menos do que ela comia no internato nas sextas-feiras de jejum. Esteban dizia que, mal pudesse aguentar-se nas pernas, iria em pessoa à capital comprar as coisas mais finas e caras para mobilar a casa, porque já estava farto de viver como um labrego, por culpa da maldita natureza histérica daquele país do caralho. De tudo o que se falou à mesa, a única coisa que Blanca reteve foi que tinha despedido Pedro Tercero Garcia com ordem de não voltar a pôr os pés na propriedade, porque o surpreendeu a levar ideias comunistas aos camponeses. A rapariga empalideceu ao ouvi-lo e deixou cair o conteúdo da colher no vestido. Só Clara percebeu a alteração, porque Esteban estava embrenhado no monólogo de sempre sobre os mal-nascidos que mordem a mão a quem lhes dá de comer, «e tudo por causa desses politiqueiros do diabo! Como esse novo candidato socialista, um fantoche que se atreve a cruzar o pais de Norte a Sul no seu comboio de pacotilha, sublevando gente de paz com a sua fanfarronice bolchevista, mais vale que não se aproxime daqui, porque se desce do comboio nós fazemo-lo em puré, já estamos preparados, não há um só patrão em toda a região que não esteja de acordo, não vamos permitir que venham pregar contra o trabalho honrado, o prémio justo para os que se esforçam, a recompensa dos que vingam na vida, não é possível que os mandriões tenham o mesmo que nós, que trabalhamos de sol a sol e sabemos investir o nosso capital, correr os riscos, assumir as responsabilidades, porque se vamos à semente, o conto de que a terra é de quem a trabalha, vai dar-lhes a volta, porque aqui o único que sabe trabalhar sou eu, sem mim isto era uma ruína e continuaria a sê-lo, nem o próprio Cristo disse que temos de dividir o fruto do nosso esforço com os mandriões e esse ranhoso de merda, Pedro Tercero, atreve-se a dizê-lo na minha propriedade, se não lhe meti uma bala na cabeça é porque estimo muito o pai e de certa forma devo a vida ao seu avô, mas já o avisei que se o vejo dar voltas por aqui faço-o em papas a tiros de espingarda.»
Clara não tinha participado na conversa. Estava ocupada a pôr e tirar as coisas da mesa e a vigiar a filha pelo rabo do olho, mas ao tirar a terrina com o resto das lentilhas ouviu as últimas palavras da cantilena de seu marido.
- Não podes impedir que o mundo se transforme, Esteban. Se não é Pedro Tercero Garcia, será outro a trazer novas ideias a Las Tres Marias - disse.
Esteban Trueba deu uma bengalada na terrina que a mulher tinha nas mãos e atirou-a para longe, despejando o conteúdo pelo chão. Blanca pôs-se de pé aterrorizada. Era a primeira vez que via o mau humor do pai dirigido contra Clara e pensou que ela entraria num dos transes lunáticos e que sairia a voar pela janela, mas nada disso aconteceu. Clara apanhou os restos da terrina partida com a calma habitual, sem dar mostras de ouvir os palavrões de marinheiro que Esteban cuspia. Esperou que ele acabasse de refilar, deu-lhe as boas-noites com um beijo na face e saiu levando Blanca pela mão.
Blanca não perdeu a tranquilidade pela ausência de Pedro Tercero. Ia todos os dias ao rio e esperava. Sabia que a notícia do seu regresso ao campo chegaria ao rapaz mais cedo ou mais tarde e que o chamamento do amor o alcançaria onde quer que ele estivesse. Assim foi, de facto. Ao quinto dia viu chegar um maltrapilho, coberto com uma manta de Inverno e um chapéu de aba larga, arrastando um burro carregado com utensílios de cozinha, panelas de estanho, bules de cobre, grandes marmitas de ferro esmaltadas, conchas de todos os tamanhos, com um chocalhar de latas que anunciava o seu andar com dez minutos de antecipação. Não o reconheceu. Parecia um velho miserável, um desses tristes viajantes que vão pela província com a mercadoria de porta em porta. Parou em frente dela, tirou o chapéu e então ela viu os formosos olhos negros a brilhar no meio de uma melena e de uma barba hirsuta. O burro ficou a mordiscar a erva e a mastigar as folhas ruidosas aborrecido, enquanto Blanca e Pedro Tercero saciavam a fome e a sede acumuladas em tantos meses de silêncio e separação, rebolando sobre pedras e matos, gemendo como desesperados. Depois ficaram abraçados entre as canas da margem. No zunzum dos besouros e coaxar das rãs, ela contou-lhe que tinha posto cascas de plátano e papel nos sapatos para ter febre e comido giz moído até lhe dar tosse de verdade, para convencer as freiras de que a sua moleza e a sua palidez eram sintomas seguros da tuberculose.
- Queria estar contigo - disse, beijando-o no pescoço.
Pedro Tercero falou-lhe do que estava acontecendo no mundo e no pais, da guerra longínqua que mantinha meia humanidade num estripalhar de metralha, numa agonia de campo de concentração e numa imensidão de viúvas e órfãos, falou-lhe dos trabalhadores na Europa e América do Norte, cujos direitos eram respeitados, porque a mortandade de sindicalistas e socialistas das décadas anteriores tinha produzido leis mais justas e repúblicas como Deus manda, onde os governantes não roubam o leite em pó dos sinistrados.
- Os últimos a dar conta das coisas, somos sempre nós, os camponeses não nos inteiramos do que se passa noutros lados. Ao teu pai odeiam-no aqui. Mas têm-lhe tanto medo que não são capazes de se organizarem para lhe fazer frente. Percebes Blanca?
Ela entendia, mas nesse momento o seu único interesse era aspirar o seu cheiro a grão fresco, lamber-lhe as orelhas, meter os dedos naquela barba densa, ouvir os seus gemidos enamorados. Também temia por ele. Sabia que não só o pai lhe meteria na cabeça a bala prometida, como também qualquer dos patrões da região faria o mesmo com gosto. Blanca recordou a Pedro Tercero a história do dirigente socialista que um par de anos antes percorria a região de bicicleta, distribuindo panfletos nas herdades e organizando os trabalhadores, até que os irmãos Sanchez o apanharam, o mataram à paulada e o penduraram num poste do telégrafo no cruzamento de dois caminhos, para que todos o pudessem ver. Esteve ali um dia e uma noite recortando-se no céu, até que chegaram os polícias a cavalo e o tiraram. Para dissimular deitaram as culpas aos índios da reserva, apesar de toda a gente saber que eram pacíficos e que, se tinham medo de matar uma galinha, com maior razão tinham medo de matar um homem. Mas os irmãos Sanchez desenterraram-no do cemitério, voltaram a exibir o cadáver e isto já era demasiado para atribuir aos índios. Mas nem por isso a justiça se atreveu a intervir e a morte do socialista foi rapidamente esquecida.
- Podem-te matar - suplicou Blanca abraçando-o.
- Tomarei cuidado - tranquilizou-a Pedro Tercero. – Não ficarei muito tempo no mesmo sitio. Por isso não poderei ver-te todos os dias. Espera-me aqui neste lugar. Eu virei todas as vezes que puder.
- Amo-te - disse ela soluçando.
- Eu também.
Voltaram a abraçar-se com o ardor insaciável próprio da sua idade, enquanto o burro continuava mastigando a erva.
Blanca preparou as coisas para não regressar ao colégio, provocando a si própria vómitos com salmoura quente, com cerejas verdes e fadigas, apertando a cintura com uma cilha de cavalo, até que adquiriu fama de má saúde, que era justamente o que ela pretendia. Imitava tão bem os sintomas das mais diversas doenças que poderia ter enganado uma junta de médicos e ela mesma chegou a convencer-se de que era muito doente. Todas as manhãs, ao acordar, fazia uma revisão mental ao seu organismo para ver onde lhe doía e que novo mal a atormentava. Aprendeu a aproveitar qualquer circunstancia para se sentir doente, desde uma mudança de temperatura até ao pólen das flores, e a transformar todo o pequeno mal-estar em agonia. Clara era da opinião de que o melhor para a saúde era ter as mãos ocupadas, e assim manteve à distância os mal-estares da sua filha dando-lhe trabalho. A rapariga tinha de se levantar cedo, como todos os outros, tomar banho em água fria e dedicar-se aos seus afazeres, que incluíam ensinar na escola, coser na fábrica e fazer todas as tarefas de enfermaria, desde pôr pensos até suturar feridas com agulhas e fio de costureiro, sem que lhe valessem de nada os desmaios ao ver o sangue nem os suores frios quando tinha de limpar um vómito. Pedro Garcia, o velho, que já tinha cerca de noventa anos e apenas arrastava os ossos, partilhava a ideia de Clara de que as mãos são para se usar. Assim foi que um dia, quando Blanca se andava a lamentar de uma terrível enxaqueca, a chamou e sem preâmbulos lhe pôs uma bola de barro no regaço. Passou a tarde a ensinar-lhe a modelar a argila para fazer vasilhas de cozinha, sem que a rapariga se lembrasse das suas doenças. O velho não sabia que estava a dar a Blanca o que mais tarde seria o seu único meio de vida e o seu consolo nas horas mais tristes. Ensinou-a a mover o torno com o pé enquanto fazia voar as mãos sobre o barro brando, para fabricar vasilhas e cântaros. Mas muito depressa Blanca descobriu que os utensílios a aborreciam e que era muito mais divertido fazer figuras de animais e pessoas. Com o tempo, dedicou-se a fabricar um mundo em miniatura de animais domésticos e personagens dedicados a todos os ofícios, carpinteiros, lavadeiras, cozinheiras, todos com as suas pequenas ferramentas e móveis.
- Isso não serve para nada! - disse Esteban Trueba quando viu a obra da filha.
- Procuremos-lhe a utilidade - sugeriu Clara.
Assim surgiu a ideia dos presépios. Blanca começou a produzir figurinhas para o presépio, não só os reis magos e os pastores, mas também uma multidão de pessoas dos tipos mais diversos e toda a espécie de animais, camelos e zebras de África, iguanas da América e tigres da Ásia, sem ter em conta para nada a zoologia própria de Belém. Depois compôs animais que inventava, pegando meio elefante com a metade de um crocodilo, sem saber que estava a fazer com barro o mesmo que sua tia Rosa, a quem não conheceu, fazia com os fios de bordar na sua gigantesca colcha, enquanto Clara especulava que, se as loucuras se repetem na família, deverá ser porque existe uma memória genética que impede que se percam no esquecimento. Os multitudinários presépios de Blanca transformaram-se numa curiosidade. Teve de treinar duas raparigas para a ajudarem, porque não dava vazão aos pedidos, nesse ano toda a gente queria ter um para a noite de Natal, especialmente porque eram de graça. Esteban Trueba determinou que a mania do barro estava bem como diversão de rapariga, mas que, se se transformasse em negócio, o nome dos Trueba seria colocado junto aos dos comerciantes que vendiam pregos nas casas de ferragens e peixe frito no mercado.
Os encontros de Blanca e Pedro Tercero eram distanciados e irregulares, mas por isso mesmo mais intensos. Nesses anos, ela acostumou-se ao sobressalto e à espera, resignou-se com a ideia de que sempre se amariam às escondidas e deixou de alimentar o sonho de se casar e de viver numa das casinhas de seu pai. Frequentemente passava semanas sem que se soubesse alguma coisa dele, mas de repente aparecia ao longe um carteiro em bicicleta, um evangelista pregando com uma Bíblia no sovaco, ou um cigano falando numa língua pagã, todos eles tão inofensivos, que passavam sem levantar suspeitas ao olho vigilante do patrão. Reconhecia-o pelas suas pupilas negras. Não era a única: todos os caseiros de Las Tres Marias e muitos camponeses de outras herdades também o esperavam. Desde que o jovem era perseguido pelos patrões ganhou fama de herói. Todos queriam escondê-lo por uma noite, as mulheres teciam-lhe ponchos e peúgas para o Inverno e os homens guardavam-lhe a melhor aguardente e o melhor charque (Carne salgada e seca ao vento. (N. T)) da época. O seu pai, Pedro Segundo Garcia, suspeitava que o filho violava a proibição de Trueba e adivinhava os vestígios que deixava na sua passagem. Estava dividido entre o amor pelo filho e o seu papel de guardião da propriedade. Além disso, tinha medo de o reconhecer e também que Esteban lho lesse na cara, mas sentia uma secreta alegria ao atribuir-lhe algumas das coisas estranhas que estavam sucedendo no campo. A única coisa que não lhe passou pela imaginação, foi que as visitas do filho tivessem algo a ver com os passeios de Blanca Trueba ao rio, porque essa possibilidade não estava na ordem natural do mundo. Nunca falava do filho, excepto no seio da família, mas sentia-se orgulhoso dele e preferia vê-lo transformado em fugitivo do que ser mais um do montão, semeando batatas e colhendo pobreza como todos os outros. Quando ouvia cantarolar algumas das canções de galinhas e raposos, sorria pensando que o filho tinha conseguido mais adeptos com as suas baladas subversivas do que com os panfletos do Partido Socialista que distribuía incansavelmente.
A Vingança
Ano e meio depois do terramoto, Las Tres Marias tinha voltado a ser a herdade modelo de antes. Estava de pé a grande casa senhorial igual à de origem, mas mais sólida e com uma instalação de água quente nas casas de banho. A água era como chocolate claro e por vezes até limos apareciam, mas sala alegre e em forte jorro. A bomba alemã era uma maravilha. Eu circulava por todo o lado sem mais apoio que um grosso bastão de prata, o mesmo que tenho agora e que a minha neta diz que o não uso por ser coxo, mas sim para dar força às minhas palavras, brandindo-o como um argumento contundente. A longa doença amoleceu o meu organismo, piorou o meu caracter. Reconheço que, por fim, nem Clara podia travar as minhas raivas. Outra pessoa teria ficado inválida para sempre por causa do acidente, mas eu fui ajudado pela força do desespero. Pensava na minha mãe, sentada na cadeira de rodas apodrecendo em vida, e por isso dava-me tenacidade para me conter e pôr-me a andar, ainda que fosse à custa de maldições. Creio que as pessoas tinham medo de mim. Até a própria Clara, que nunca tinha temido o meu mau génio, em parte porque eu tinha o cuidado de não o dirigir contra ela, andava assustada. Vê-la com medo de mim punha-me frenético.
Pouco a pouco Clara foi mudando. Via-se que andava cansada e notei que se afastava de mim. Já não tinha simpatia por mim, as minhas dores não lhe davam compaixão mas enfado, dei conta de que evitava a minha presença. Atrever-me-ia a dizer que nessa época ela tinha mais prazer em ordenhar as vacas com Pedro Segundo, do que em fazer-me companhia no salão. Quanto mais distante estava Clara, maior era a necessidade que eu sentia do seu amor. Não tinha diminuído o desejo que tive dela ao casar-me, queria possui-la completamente, até ao seu último pensamento, mas aquela mulher diáfana passava ao meu lado como um sopro e, mesmo que a agarrasse com as duas mãos e a abraçasse com brutalidade, não podia aprisioná-la. O seu espírito não estava comigo. Quando me teve medo, a vida tornou-se-nos um purgatório. De dia, cada um de nós andava ocupado com as suas coisas. Tínhamos os dois muito que fazer. Só nos encontrávamos à hora das refeições e, então, era eu quem fazia toda a conversa porque ela parecia vaguear pelas nuvens. Falava muito pouco, tinha perdido aquele riso fresco e atrevido que foi a primeira coisa que gostei nela, já não deitava para trás a cabeça, rindo-se com todos os dentes. Sorria apenas. Pensei que a idade e o meu acidente nos estava separando, que estava aborrecida da vida matrimonial, isso acontece a todos os casais e eu não era um amante delicado, desses que oferecem flores a cada momento e dizem coisas bonitas. Mas tentei aproximar-me dela. Como o tentei, meu Deus! Aparecia no seu quarto quando estava atarefada com os cadernos de anotar a vida ou na mesa de pé-de-galo. Tratei inclusivamente de compartilhar esses aspectos da sua existência, mas ela não gostava que lessem nos seus cadernos e a minha presença cortava-lhe a inspiração quando conversava com os espíritos, de modo que tive de desistir. Abandonei também o propósito de estabelecer uma boa relação com Blanca. A minha filha desde pequenina era estranha e nunca foi a menina carinhosa e terna que eu teria desejado. Na realidade parecia um quirquincho (Mamífero da América do Sul de cuja carapaça os índios fazem um bandolim de doze cordas. (N. T.)). Desde que me lembro foi arisca comigo e não teve de superar o complexo de Édipo porque nunca o teve. Mas já era uma senhorita, parecia inteligente e madura para a sua idade, estava muito ligada à mãe. Pensei que poderia ajudar-me e tratei de a conquistar como aliada, dava-lhe presentes, tentava gracejar com ela, mas evitava-me também. Agora que já estou muito velho e posso falar disto sem perder a cabeça com raiva, creio que a culpa de tudo estava no seu amor por Pedro Tercero Garcia. Blanca era insubornável. Nunca pedia nada, falava menos que a mãe e, se eu a obrigava a dar-me um beijo de bons-dias, fazia-o com tão má vontade que ele me doía como uma bofetada. «Tudo mudará quando regressarmos à capital e fizermos uma vida civilizada», dizia eu então, mas nem Clara nem Blanca demonstravam o menor interesse em deixar Las Tres Marias, pelo contrário, cada vez que eu mencionava o assunto, Blanca dizia que a vida no campo lhe tinha voltado a dar a saúde, mas que ainda não se sentia forte, e Clara recordava-me que tinha muito que fazer no campo, que as coisas não estavam de modo a deixá-las em meio. A minha mulher não punha de parte os refinamentos a que tinha estado habituada e, no dia em que chegou a Las Tres Marias o carregamento de móveis e artigos domésticos que encomendei para lhe fazer surpresa, limitou-se a achar tudo muito bonito. Eu próprio tive de decidir onde se poriam as coisas, a ela isso parecia não lhe importar nada. A nova casa vestiu-se com um luxo que nunca tinha tido, nem sequer nos dias esplendorosos que antecederam meu pai, que a arruinou. Chegaram grandes móveis coloniais em carvalho e nogueira, trabalhados à mão, pesados tapetes de lã, candeeiros de ferro e cobre martelado. Encomendei na capital uma baixela de porcelana pintada à mão, digna de uma embaixada, cristaleira, quatro caixotes atafulhados de adornos, lençóis e mantas bordadas, uma colecção de discos de música clássica e ligeira com o seu moderno gira-discos. Qualquer mulher se teria encantado com tudo isso e teria tido ocupação para vários meses organizando a sua casa, menos Clara, que era impermeável a essas coisas. Limitou-se a ensinar um par de cozinheiras e treinar algumas raparigas, filhas dos caseiros, para servirem em casa, - e logo que se viu livre dos tachos e das vassouras regressou aos cadernos de anotar a vida e às cartas de tarot nos momentos de ócio. Passava a maior parte do dia ocupada na oficina de costura, na enfermaria e na escola. Eu deixava-a tranquila, porque esses afazeres justificavam-lhe a vida. Era uma mulher caridosa e generosa, com ânsia de fazer felizes os que a rodeavam, a todos menos a mim. Depois da derrocada construímos a cantina e, para lhe agradar, suprimi o sistema de papelinhos cor-de-rosa e comecei a pagar às pessoas com notas, porque Clara diria que isso lhes permitia fazer compras na aldeia e poupar. Não era certo. Só servia para os homens se embebedarem na taberna de San Lucas e as mulheres e crianças passarem dificuldades. Por causa desse tipo de coisas lutámos muito entre nós. Os caseiros eram a causa de todas as nossas discussões. Bom, nem de todas. Também discutíamos por causa da guerra mundial. Eu seguia o avanço das tropas nazis num mapa que tinha posto na parede do salão, enquanto Clara fazia peúgas para os soldados aliados. Blanca deitava as mãos à cabeça, sem compreender a causa da nossa paixão por uma guerra que não tinha nada a ver connosco e que estava acontecendo do outro lado do oceano. Suponho também que tínhamos mal-entendidos por outros motivos. Na realidade, muito poucas vezes estávamos de acordo em alguma coisa. Não creio que a culpa de tudo fosse o meu mau génio, porque eu era um bom marido, nem sombra do estoira-vergas que tinha sido em solteiro. Ela era a única mulher para mim. E ainda o é.
Um dia Clara mandou pôr um ferrolho na porta do seu quarto e não voltou a aceitar-me na sua cama, excepto naquelas ocasiões em que eu forçava tanto a situação que negar-se teria significado uma ruptura definitiva. A princípio pensei que tinha algumas dessas misteriosas indisposições que dão às mulheres de vez em quando, ou seja, a menopausa, mas quando o assunto se prolongou por várias semanas, decidi falar com ela. Explicou-me com calma que a nossa relação matrimonial se tinha deteriorado e por isso tinha perdido a sua boa disposição para os folguedos carnais. Deduziu naturalmente que, se não tínhamos nada a dizer, também não podíamos partilhar a mesma cama, e pareceu surpreendida de que eu passasse todo o dia enraivecendo-me contra ela e à noite quisesse as suas caricias. Tentei fazer-lhe ver que nesse sentido os homens e as mulheres somos um pouco diferentes e que a adorava apesar de todas as minhas manias, mas foi inútil. Nesse tempo mantinha-me mais são e mais forte do que ela, apesar do meu acidente e de Clara ser mais nova. Com a idade eu tinha adelgaçado. Não tinha nem um grama de gordura no corpo e mantinha a mesma resistência e força da juventude. Podia passar todo o dia cavalgando, comer fosse o que fosse sem sentir a vesícula, o fígado e outros órgãos internos de que as pessoas falam constantemente. Doíam-me os ossos, isso sim. Nas tardes frias ou nas noites húmidas a dor dos ossos esmagados no terramoto era tão intensa que mordia a almofada para não ouvirem os meus gemidos. Quando não podia mais, enfiava um bom golo de aguardente e duas aspirinas pela goela abaixo, mas nem isso me aliviava. O estranho é que, se a minha sensualidade se tinha tornado mais selectiva com a idade, era quase tão inflamável como na minha juventude. Gostava de olhar as mulheres, e ainda hoje gosto. É um prazer estético quase espiritual. Mas só Clara despertava em mim um desejo concreto e imediato, porque na nossa longa vida em comum tínhamos aprendido a conhecer-nos e cada um tinha na ponta dos dedos a geografia precisa do outro. Ela sabia onde estavam os meus pontos mais sensíveis, podia dizer-me exactamente o que eu necessitava ouvir. Numa idade em que a maioria dos homens está aborrecido da sua mulher e necessita do estimulo de outras para encontrar a chispa do desejo, eu estava convencido que apenas com Clara podia fazer amor como nos tempos da lua-de-mel, incansavelmente. Não sentia a tentação de procurar outras.
Recordo que começava a assediá-la ao cair da noite. De tarde ela sentava-se a escrever e eu fingia saborear o cachimbo, mas na realidade estava a espiá-la pelo canto do olho. Logo que eu calculava que se ia deitar – porque começava a limpar o aparo e a guardar os cadernos - adiantava-me. Ia a coxear até à casa de banho, arranjava-me, vestia um roupão de felpa episcopal que tinha comprado para a seduzir, mas que ela nunca pareceu dar conta da sua existência, ficava de ouvido colado à porta e esperava-a. Quando a ouvia avançar pelo corredor, assaltava-a. Tentei tudo, desde cobri-la de carícias e presentes até ameaçá-la de deitar a porta abaixo e moê-la com bengaladas, mas nenhuma dessas alternativas resolvia o abismo que nos separava. Suponho que era inútil que eu tentasse fazê-la esquecer com as minhas manifestações amorosas à noite o mau humor com que a atacava durante o dia. Clara evitava-me com aquele ar distraído que acabei por detestar. Não posso compreender o que me atraía tanto nela. Era. uma mulher madura, sem nenhum coquetismo, que arrastava ligeiramente os pés e tinha perdido a alegria injustificada que a fazia tão atraente na sua juventude. Clara não era sedutora nem terna comigo. Estou certo de que não me amava. Não havia razão para a desejar dessa forma descomedida e brutal que me afundava no desespero e no ridículo. Mas não podia evitá-lo. Os seus pequenos gestos, o seu suave odor a roupa limpa e sabão, a luz dos seus olhos, a graça da sua nuca delgada coroada pelos caracóis rebeldes, de tudo isso eu gostava nela. A sua fragilidade produzia em mim uma ternura insuportável. Queria protegê-la, abraçá-la, fazê-la rir como nos velhos tempos, tornar a dormir com ela ao meu lado, a sua cabeça no meu ombro, as pernas encolhidas debaixo das minhas, tão pequena e quente, a sua mão no meu peito, vulnerável e preciosa. Por vezes, tinha intenções de a castigar com uma fingida indiferença, mas ao cabo de alguns dias dava-me por vencido, porque parecia muito mais tranquila e feliz quando eu a ignorava. Fiz um furo na parede da casa de banho para a ver nua, mas isso punha-me em tal estado de perturbação que preferi voltar a tapá-lo com argamassa. Para a ferir, fiz gala de ir ao Farolito Roio, mas o seu único comentário foi que isso era melhor que forçar as camponesas, o que me surpreendeu, porque não imaginava que soubesse disso. Em face deste comentário, tornei a tentar as violações, nada mais do que para a incomodar. Pude comprovar que o tempo e o terramoto tinham feito estragos na minha virilidade e que já não tinha forças para rodear a cintura de uma robusta rapariga e alçá-la sobre a garupa do cavalo, e muito menos tirar-lhe a roupa aos puxões e penetrá-la contra a sua vontade. Estava na idade em que se necessita ajuda e ternura para fazer amor. Tinha ficado velho, porra!
Ele foi a única pessoa que deu conta de que estava a diminuir. Notou-o pela roupa. Não era simplesmente por lhe sobrar nas costuras, mas por lhe ficarem grandes as mangas e as pernas das calças. Pediu a Blanca que se sentasse à máquina de costura, mas perguntava-se inquieto se Pedro Garcia, o velho, não lhe teria posto os ossos ao contrário e por isso estava encolhendo. Não o disse a ninguém, como não falou nunca das suas dores, por uma questão de orgulho.
Por esses dias, preparavam-se as eleições presidenciais. Num jantar de políticos conservadores na povoação, Esteban Trueba conheceu o conde Jean de Satigny. Usava sapatos de pelica e casaco de linho cru, não suava como os demais mortais e cheirava a colónia inglesa, estava sempre queimado pelo hábito de meter uma bola com um pau através dum pequeno arco em plena luz do meio-dia e falava arrastando as últimas silabas das palavras, comendo os erres. Era o único homem que Esteban conhecia que punha verniz brilhante nas unhas e deitava colírio azul nos olhos. Tinha cartões de visita com o escudo da família e observava todas as regras conhecidas do civismo e outras inventadas por ele, como comer as alcachofras com pinças, o que provocava estupefacção geral. Os homens gozavam-no pelas costas, mas logo se viu que tratavam de imitar-lhe a sua elegância, os seus sapatos de pelica, a sua indiferença e o seu ar civilizado. O título de conde colocava-o num nível diferente ao dos outros emigrantes que tinham chegado da Europa Central fugindo às pestes do século passado, de Espanha escapando à guerra, do Médio Oriente com os seus negócios de turcos e arménios da Ásia a vender a sua comida típica e as suas bagatelas. O conde de Satigny não necessitava ganhar a vida, como fez saber a toda a gente. O negócio das chinchilas era só um passatempo para ele.
Esteban Trueba tinha visto as chinchilas vadiando pela propriedade. Caçava-as a tiro, para não lhe devorarem as sementeiras, mas não lhe tinha ocorrido que esses roedores insignificantes pudessem tornar-se em casacos de senhora. Jean de Satigny procurava um sócio que entrasse com o capital, o trabalho, os criadouros e corresse todos os riscos, para dividir os lucros a meias. Esteban Trueba não era aventureiro em nenhum aspecto da sua vida, mas o conde francês tinha a graça alada e o engenho que podiam cativá-lo, por isso perdeu muitas noites acordado, estudando a proposta das chinchilas e fazendo contas. Entretanto, Monsieur de Satigny passava longas temporadas em Las Tres Marias, como convidado de honra. Jogava com a bolinha em pleno sol, bebia quantidades exorbitantes de sumo de melão sem açúcar e rondava delicadamente as cerâmicas de Blanca. Chegou, inclusivamente, a propor à rapariga exportá-las para outros lugares onde havia um mercado seguro para os artesanatos indígenas. Blanca fez por tirá-lo do erro, explicando-lhe que ela não tinha nada de índio nem a sua obra, mas a barreira da língua impediu que ele compreendesse o seu ponto de vista. O conde foi uma aquisição social para a família Trueba porque, desde o momento em que se instalou na propriedade, choveram os convites das herdades vizinhas, para as reuniões com as autoridades políticas da povoação e para todos os acontecimentos culturais e sociais da região. Todos queriam estar perto do francês, com a esperança de que algo da sua distinção se contagiasse, as jovenzinhas suspiravam ao vê-lo e as mães desejavam-no como genro, disputando entre si a honra de o convidar. Os cavalheiros invejavam a sorte de Esteban Trueba, que tinha sido escolhido para o negócio das chinchilas. A única pessoa que não se deslumbrou pelos encantos do francês e não se maravilhou pela maneira de descascar uma laranja com os talheres sem a tocar com os dedos, deixando as cascas em forma de flor, ou pela habilidade para citar poetas e filósofos franceses na língua natal, foi Clara, que todas as vezes que o via tinha de lhe perguntar o nome e se desconcertava quando o encontrava de roupão de seda a caminho da casa de banho da sua própria casa. Blanca, por seu lado, divertia-se com ele e agradecia-lhe a oportunidade de mostrar os seus melhores vestidos, pentear-se com esmero e de pôr a mesa com a melhor loiça inglesa e os candelabros de prata.
- Pelo menos tira-nos da barbárie - dizia.
Esteban Trueba estava menos impressionado pelo espalhafato do nobre do que pelas chinchilas. Pensava como diabo não lhe tinha ocorrido a ideia de curtir-lhes a pele, em vez de perder tantos anos criando aquelas malditas galinhas que morriam de qualquer diarreia sem importância, e aquelas vacas que por cada litro de leite que lhes ordenhava comiam um hectare de forragem, e uma caixa de vitaminas e além disso enchiam tudo de moscas e de merda. Clara e Pedro Segundo Garcia, em troca, não partilhavam o seu entusiasmo pelos roedores, ela por razões humanitárias, porque lhe parecia atroz criá-los para lhes arrancar a pele, e ele porque nunca tinha ouvido falar de criadores de ratos.
Uma noite o conde saiu para fumar um dos seus cigarros orientais, especialmente trazidos do Líbano, vá lá alguém saber onde isso fica! como dizia Trueba, e para respirar o perfume das flores que subia em grandes baforadas do jardim e inundava os quartos. Passeou um pouco pelo terraço e mediu com a vista a extensão do parque que se estendia à volta da casa senhorial. Suspirou, comovido com aquela natureza pródiga que podia reunir, no mais esquecido pais da terra, todos os climas da sua invenção, a cordilheira e o mar, os vales e os cumes mais altos, rios de água cristalina e uma benigna fauna que permitia passear com toda a confiança, com a certeza de que não apareciam víboras venenosas ou feras esfomeadas, e, para total perfeição, nem havia negros rancorosos ou índios selvagens. Estava farto de percorrer países exóticos atrás de negócios de barbatanas de tubarão para afrodisíacos, ginseng para todos os males, figuras esculpidas pelos esquimós, piranhas embalsamadas do Amazonas e chinchilas para fazer casacos de senhora. Tinha trinta e oito anos, pelo menos isso confessava, e sentia que por fim tinha encontrado o paraíso na terra, onde podia montar empresas tranquilas com sócios ingénuos. Sentou-se num tronco a fumar no escuro. De súbito viu uma sombra agitar-se e teve a ideia fugaz de que podia ser um ladrão, mas em seguida pô-la de parte, porque os bandidos naquelas terras estavam longe dali como os animais malignos. Aproximou-se com prudência e avistou Blanca, que deitava as pernas por uma janela e descia como um gato pela parede, caindo entre hortênsias sem o menor ruído. Vestia-se de homem, porque os cães já a conheciam e não necessitava de andar em pelota. Jean de Satigny viu-a afastar-se procurando as sombras do alpendre da casa e das árvores, pensou segui-la, mas teve medo dos mastins e pensou que não tinha necessidade disso para saber onde ia uma rapariga que salta por uma janela de noite. Sentiu-se preocupado, porque o que acabava de ver punha em perigo os seus planos.
No dia seguinte, o conde pediu Blanca Trueba em casamento. Esteban, que não tinha tido tempo para conhecer bem a filha, confundiu a sua plácida amabilidade e entusiasmo em colocar os candelabros de prata na mesa com o amor. Sentiu-se muito satisfeito de que a filha, tão aborrecida e de má saúde, tivesse apanhado o galã mais solicitado da região. «Que terá ele visto nela?» perguntou a si próprio, admirado. Disse ao pretendente que devia consultar Blanca, mas que estava seguro de que não haveria nenhum inconveniente e que, por seu lado, se adiantava a dar-lhe as boas-vindas à família. Mandou chamar a filha, que nesse momento estava ensinando geografia na escola, e fechou-se com ela no escritório. Cinco minutos depois, abriu-se a porta violentamente e o conde viu sair a jovem com as faces coradas. Ao passar por ele atirou-lhe um olhar assassino e voltou-lhe a cara. Outro menos teimoso teria pegado nas malas e ido para o único hotel da povoação, mas o conde disse a Esteban que estava certo de conseguir o amor da jovem, se lhe dessem tempo para isso. Esteban Trueba ofereceu-lhe hospedagem em Las Tres Marias enquanto considerasse necessário. Blanca não disse nada, mas desde esse dia deixou de comer à mesa com eles e não perdeu oportunidade de fazer sentir ao francês que lhe era indesejável. Guardou os vestidos de festa, os candelabros de prata e evitou-o cuidadosamente. Disse ao pai que se ele tornava a mencionar o assunto do casamento regressava à capital no primeiro comboio que passasse pela estação e entrava como noviça no colégio.
- Hás-de mudar de opinião - rugiu Esteban Trueba.
- Duvido - respondeu ela.
Nesse ano a chegada dos gémeos a Las Tres Marias foi um grande alívio. Levaram uma lufada de ar fresco e bulício ao clima opressivo da casa. Nenhum dos três irmãos soube apreciar os encantos do nobre francês, apesar dele fazer esforços discretos para ganhar a simpatia dos jovens. Jaime e Nicolau riam-se das suas maneiras, os sapatos de maricas e o apelido estrangeiro, mas Jean de Satigny nunca se ofendeu. O seu bom humor terminou por desarmá-los e conviveram o resto do Verão amigavelmente, chegando inclusivamente a aliar-se para arrancar Blanca da raiva em que se tinha metido.
- Já tens vinte e quatro anos, irmã. Queres ficar para tia? - diziam.
Procuravam entusiasmá-la para cortar o cabelo e copiar os vestidos que faziam furor nas revistas, mas ela não tinha nenhum interesse por essa moda exótica que não tinha a menor oportunidade de sobreviver na poeirada do campo.
Os gémeos eram tão diferentes entre si que não pareciam irmãos. Jaime era alto, forte, tímido e estudioso. Obrigado pela educação do internato, chegou a desenvolver com o desporto uma musculatura de atleta, mas na realidade considerava que essa era uma actividade esgotante e inútil. Não podia compreender o entusiasmo de Jean de Satigny em passar a manhã perseguindo uma bola com um pau para a meter num buraco, quando era mais fácil colocá-la com a mão. Tinha estranhas manias que se começaram a manifestar nessa época e que se foram acentuando ao longo da vida. Não gostava que respirassem perto, que lhe dessem a mão, que lhe fizessem perguntas pessoais, lhe pedissem livros emprestados ou lhe escrevessem cartas. Isso dificultava-lhe o trato com as pessoas mas não conseguiu isolá-lo, porque cinco minutos depois de o conhecerem, saltava à vista que, apesar da sua atitude atrabiliária, era generoso, cândido e tinha uma grande capacidade de ternura, que procurava inutilmente dissimular, porque isso o envergonhava. Interessava-se pelos outros muito mais do que queria admitir, era fácil comovê-lo. Em Las Tres Marias os caseiros chamavam-lhe «o patrãozinho» e iam ter com ele sempre que precisavam de alguma coisa. Jaime escutava-os sem comentários, respondia com monossílabos e terminava virando-lhes as costas, mas não descansava até solucionar o problema. Era insociável e a mãe dizia que nem mesmo quando era pequeno se deixava acariciar. Desde menino tinha gestos extravagantes, era capaz de tirar a roupa que levava vestida para a dar a outro, como o fez em várias ocasiões. O afecto e as emoções pareciam-lhe sinais de inferioridade e só com os animais perdia as barreiras do exagerado pudor, rebolava no chão com eles, acariciava-os, dava-lhes de comer na boca e dormia abraçado aos cães. Podia fazer o mesmo com as crianças de tenra idade, sempre que ninguém o estivesse a observar, porque em frente das pessoas preferia fazer o papel de homem rijo e solitário. A formação britânica de doze anos de colégio não conseguiu desenvolver nele o spleen que se considerava o melhor atributo num cavalheiro. Era um sentimental incorrigível. Por isso, interessou-se pela política e decidiu que não seria advogado como o pai lhe exigia, mas médico para ajudar os necessitados como lhe sugeriu a mãe que o conhecia melhor. Jaime tinha brincado com Pedro Tercero Garcia durante toda a infância, mas foi nesse ano que aprendeu a admirá-lo. Blanca teve de sacrificar um par de encontros no rio, para que os dois jovens se reunissem. Falavam de justiça, de igualdade, de movimento camponês, de socialismo, enquanto Blanca os escutava com impaciência, desejando que acabassem depressa para ficar só com o seu amante. Essa amizade uniu os dois rapazes até à morte, sem que Esteban Trueba o suspeitasse.
Nicolau era formoso como uma donzela. Herdou a delicadeza e a transparência da pele da mãe, era pequeno, delgado, astuto e rápido como um raposo. De inteligência brilhante, sem fazer nenhum esforço ultrapassava o irmão em tudo o que empreendiam juntos. Tinha inventado um jogo para atormentá-lo: punha-se do contra em qualquer tema e argumentava com tanta habilidade e certeza que terminava por convencer Jaime, que estava equivocado, obrigando-o a admitir o erro.
- Estás certo de que eu tenho razão? - dizia finalmente Nicolau ao irmão.
- Sim, tens razão - grunhia Jaime, cuja rectidão o impedia de discutir de má-fé.
- Ah! Alegro-me - exclamava Nicolau. - Agora vou-te demonstrar que quem tem razão és tu e que o equivocado sou eu. Vou-te dar os argumentos que tu me deverias dar se fosses inteligente.
Jaime perdia a paciência e cala-lhe em cima com pancada, mas a seguir arrependia-se, porque era muito mais forte que o irmão e a sua própria força fazia-o sentir culpado. No colégio, Nicolau usava o engenho para chatear os outros e, quando se via obrigado a enfrentar uma situação de violência, chamava o irmão para o defender enquanto ele o animava pelas costas. Jaime acostumou-se a dar a cara por Nicolau e chegou a parecer-lhe natural ser castigado em seu lugar, fazer as suas tarefas e esconder as suas mentiras. O interesse principal de Nicolau nesse período da sua juventude, à parte as mulheres, foi desenvolver a habilidade de Clara para adivinhar o futuro. Comprava livros sobre sociedades secretas, de horóscopos e de tudo o que tivesse características sobrenaturais. Nesse ano deu-lhe para desmascarar milagres, comprou As Vidas dos Santos em edição popular e passou o Verão procurando explicações simples nas mais fantásticas proezas de ordem espiritual. A mãe ria-se dele.
- Se não podes perceber como funciona o telefone, meu filho - dizia Clara - como queres compreender os milagres?
O interesse de Nicolau pelos assuntos sobrenaturais começou a manifestar-se um par de anos antes. Nos fins-de-semana, em que podia sair do internato, ia visitar as três irmãs Mora ao seu velho moinho, para aprender ciências ocultas. Mas viu-se logo que não tinha nenhuma disposição natural para a clarividência ou a telequinésia, de modo que teve de conformar-se com a mecânica das cartas astrológicas, o tarot e os pauzinhos chineses. Como uma coisa traz a outra, conheceu em casa das Mora uma formosa jovem chamada Amanda, um pouco mais velha do que ele, que o iníciou na meditação ioga e na acupunctura, ciências com as quais Nicolau chegou a curar o reumatismo e outras doenças menores, mais do que o seu irmão conseguia com a medicina tradicional, depois de sete anos de estudo. Mas tudo isso foi muito depois.
Nesse Verão, tinha vinte e um anos e aborrecia-se no campo. O irmão vigiava-o estreitamente para que não incomodasse as raparigas de Las Tres Marias, apesar de Nicolau se aproveitar disso para seduzir todas as adolescentes da zona, com artes de galantaria que nunca se tinham visto por aquelas bandas. O resto do tempo passava-o a investigar milagres, tratando de aprender os truques da mãe para mover o saleiro com a força da mente, e escrever versos apaixonados a Amanda, que os devolvia pelo correio, corrigidos e melhorados, sem que isso conseguisse desanimar o jovem.
Pedro Garcia, o velho, morreu pouco antes das eleições presidenciais. O pais estava perturbado pelas campanhas políticas, os comboios triunfais iam do Norte para o Sul levando os candidatos instalados na cauda, com a sua corte de prosélitos, saudando todos do mesmo modo, prometendo todos as mesmas coisas, embandeirados e com uma chinfrineira de orfeão e altifalantes que espantava a calma da paisagem e embasbacava o gado. O velho tinha vivido tanto que já não era nada mais que um montão de ossinhos de cristal cobertos por uma pelanga amarela. O rosto era uma renda de rugas. Falava enquanto caminhava, com um matraquear de castanholas, não tinha dentes e só podia comer papinhas de bebé, além de cego tinha ficado surdo, mas nunca lhe faltou o conhecimento das coisas e a memória do passado e do imediato. Morreu sentado na cadeira de vime ao entardecer. Gostava de ficar à porta do rancho sentindo cair a tarde, que ele adivinhava pela mudança subtil de temperatura, pelos ruídos do pátio, o trabalho das cozinhas, o silêncio das galinhas. Foi ali que a morte o encontrou. A seus pés, estava o bisneto Esteban Garcia, que já tinha à volta de dezoito anos, ocupado em vazar com um prego os olhos a um frango. Era filho de Esteban Garcia, o único bastardo do patrão que levou o seu nome, embora não o apelido. Ninguém recordava a sua origem nem a razão pelo qual tinha esse nome, excepto ele mesmo, porque a sua avó Pancha Garcia, antes de morrer conseguiu envenenar-lhe a sua infância com a história de que, se o seu pai tivesse nascido no lugar de Blanca, Jaime ou Nicolau, teria herdado Las Tres Marias e poderia ter chegado a Presidente da República, só por o ter querido. Naquela região semeada de filhos ilegítimos e de outros legítimos que não conheciam o pai, ele foi provavelmente o único que cresceu odiando o seu apelido. Viveu castigado pelo rancor contra o patrão, contra a avó seduzida, contra o pai bastardo e contra o próprio destino inexorável de labrego. Esteban Trueba não o distinguia entre os restantes miúdos da propriedade, e era mais um no montão de crianças que cantavam o hino nacional na escola e faziam bicha para receber o presente de Natal. Não se recordava de Pancha Garcia nem de ter tido um filho dela, e muito menos daquele neto malicioso que o odiava e que não o observava de longe para lhe imitar os gestos e copiar a voz. O menino passava as noites imaginando horríveis doenças ou acidentes que pusessem fim à existência do patrão e de todos os seus filhos para ele poder herdar a propriedade. Então transformava Las Tres Marias no seu reino. Acarinhou essas fantasias toda a vida, e mesmo depois de saber que jamais teria alguma coisa por via da herança culpou sempre Trueba da existência obscura que tinha forjado contra ele e sentia-se castigado, inclusivamente nos dias em que chegou ao cume do poder e os teve todos na mão.
O menino percebeu que algo tinha mudado no velho. Aproximou-se, tocou nele e o corpo cambaleou. Pedro Garcia caiu no chão como um saco de ossos. Tinha as pupilas cobertas pela película leitosa que os tinha deixado sem luz ao longo de um quarto de século. Esteban Garcia pegou no prego e dispunha-se a picar-lhe os olhos, quando chegou Blanca e o afastou com um empurrão, sem suspeitar que aquela criança escura e malvada era seu sobrinho e que dentro de alguns anos seria o instrumento de uma tragédia para a sua família.
- Deus meu, o velhinho morreu! - soluçou inclinando-se sobre o corpo encarquilhado do ancião que lhe povoara a infância de contos e lhe protegera os amores clandestinos.
Enterraram Pedro Garcia, o velho, com um velório de três dias em que Esteban Trueba ordenou que não se regateassem gastos.
Acomodaram-lhe o corpo num caixão de pinho rústico, com o traje domingueiro, o mesmo que usou quando se casou e que vestia para votar e receber os seus cinquenta pesos no Natal. Vestiram-lhe a única camisa branca, que lhe ficava muito folgada no pescoço, porque a idade o tinha encolhido, a gravata de luto e um cravo vermelho na lapela, como fazia sempre que havia festa. Seguraram-lhe a mandíbula com um lenço e puseram-lhe o chapéu negro, porque tinha dito muitas vezes que o queria tirar para saudar Deus. Não tinha sapatos, mas Clara roubou uns a Esteban Trueba para que todos vissem que não ia descalço para o Paraíso.
Jean de Satigny entusiasmou-se com o funeral, tirou da sua bagagem uma máquina fotográfica com tripé e fez tantos retratos ao morto que os seus familiares pensaram que lhe podia roubar a alma e por precaução escavacaram as chapas. Ao velatório acudiram camponeses de toda a região porque Pedro Garcia, no século de vida, tinha-se aparentado com muitos habitantes da província. Chegou a bruxa, que era ainda mais velha do que ele, com vários índios da tribo, os quais a uma ordem sua começaram a chorar o finado e não deixaram de o fazer até terminar a pândega, três dias depois. As pessoas juntaram-se à volta do rancho do velho, a beber vinho, tocar guitarra e vigiar os assados. Também chegaram dois padres de bicicleta, para benzer os restos mortais de Pedro Garcia e a dirigir os ritos fúnebres. Um deles era um gigante rubicundo com forte acento espanhol, o padre José Dulce Maria, a quem Esteban Trueba conhecia de nome. Esteve quase a impedir-lhe a entrada na sua propriedade, mas Clara convenceu-o de que não era o momento de antepor os seus ódios políticos ao fervor cristão dos camponeses. «Pelo menos porá alguma ordem nos assuntos da alma», disse ela. De maneira que Esteban Trueba acabou por lhe dar as boas-vindas e convidá-lo a ficar em sua casa com o irmão leigo, que não abria a boca e olhava sempre para o chão, com a cabeça de lado e as mãos juntas. O patrão estava comovido com a morte do velho que lhe tinha salvo as sementeiras das formigas e a vida da invalidez, e queria que todos recordassem esse enterro como um acontecimento.
Os padres reuniram os caseiros e os visitantes na escola, para voltar a dar uma passagem nos esquecidos Evangelhos, e dizer uma missa pelo descanso da alma de Pedro Garcia. Depois retiraram-se para o quarto que lhes tinham dado na casa senhorial, enquanto os outros continuavam na patuscada que tinha sido interrompida com a sua chegada. Essa noite, Blanca esperou que se calassem as guitarras e o choro dos índios e que todos fossem para a cama, para saltar pela janela do quarto e enfiar na direcção habitual, protegida pelas sombras. Tornou a fazê-lo durante as três noites seguintes, até que os sacerdotes se foram embora. Todos menos os seus pais souberam que Blanca se encontrava com um deles no rio. Era Pedro Tercero Garcia, que não quis perder o funeral do avô e aproveitou a sotaina para falar aos trabalhadores casa por casa, explicando-lhes que as próximas eleições eram a sua oportunidade de sacudir o jugo com que sempre tinham vivido. Escutavam-no surpreendidos e confusos. O seu tempo media-se por estações, os seus pensamentos por gerações, eram lentos e prudentes. Só os mais jovens, os que tinham rádio e ouviam as notícias, os que às vezes iam à povoação e conversavam com os sindicalistas podiam seguir o fio das suas ideias. Os restantes escutavam-no porque o rapaz era o herói perseguido pelos patrões, mas no fundo estavam convencidos de que dizia loucuras.
- Se o patrão descobre que vamos votar nos socialistas, fodemo-nos - disseram.
- Não pode saber! O voto é secreto - alegou o falso padre.
- Isso pensas tu, filho - respondeu Pedro Segundo, seu pai. - Dizem que é secreto, mas depois sabem sempre em quem votamos. Além disso, se ganham os do teu partido, vão-nos pôr na rua, não teremos trabalho. Eu vivi sempre aqui. Que faria eu?
- Não nos podem correr a todos, porque o patrão perde mais quevocês se vocês se vão embora - argumentou Pedro Tercero.
- Não importa por quem vamos votar. Eles ganham sempre.
- Mudem o voto - disse Pedro Tercero. - Mandaremos gente do partido para controlar as mesas de voto e para verificar se as urnas ficam seladas.
Mas os camponeses desconfiavam. A experiência havia-lhes ensinado que o raposo acaba sempre por comer as galinhas, apesar das baladas subversivas que andavam de boca em boca cantando o contrário. Por isso, quando passou o comboio do novo candidato do Partido Socialista, um doutor míope e carismático que movia multidões com o seu discurso inflamado, eles olharam-no da estação, vigiados pelos patrões que montavam um cerco à sua volta, armados com caçadeiras e cajados. Escutaram respeitosamente as palavras do candidato, mas não se atreveram a fazer-lhe nem um gesto de saudação, excepto alguns braçais que acudiram em bando munidos de paus e picaretas, que o vitoriaram até se esganiçarem porque eles não tinham nada a perder, eram nómadas do campo, vagueavam pela região sem trabalho fixo nem família, sem amo e sem medo.
Pouco depois da morte e do memorável enterro de Pedro Garcia, o velho, Blanca começou a perder as cores de maçã e a sofrer fadigas naturais que não eram produzidas por deixar de respirar e vómitos matinais que não eram provocados por salmoura quente. Pensou que a causa estava no excesso de comida, era a época dos pêssegos dourados, dos damascos, do milho tenro preparado em caçarolas de barro e perfumado com alfavaca, era o tempo de fazer as marmeladas e as conservas para o Inverno. Mas o jejum, a maçela, os purgantes e o repouso não a curaram. Perdeu o entusiasmo pela escola, pela enfermaria e até pelos presépios de barro, tornou-se mole e sonolenta, podia passar horas deitada à sombra olhando o céu, sem se interessar por nada. A única actividade que manteve foram as escapadas nocturnas no rio com Pedro Tercero.
Jean de Satigny, que não se tinha dado por vencido no seu assalto romântico, observava-a. Por discrição, passava umas temporadas no hotel da povoação e fazia algumas viagens curtas à capital, donde regressava carregado de literatura sobre as chinchilas, as suas gaiolas, o seu alimento, as suas doenças, os seus métodos reprodutivos, a forma de curtir-lhes a pele e, em geral, tudo o que dizia respeito a esses pequenos animais cujo destino era transformarem-se em estolas. Na maior parte do Verão, o conde foi hóspede em Las Tres Marias. Era um visitante encantador, bem educado, tranquilo e alegre. Tinha sempre uma frase amável na ponta dos lábios, celebrava a comida, divertia-os à tarde tocando piano no salão, onde competia com Clara nos nocturnos de Chopin, e era uma fonte inesgotável de anedotas. Levantava-se tarde e passava uma ou duas horas dedicado ao seu arranjo pessoal, fazia ginástica, trotava à volta da casa sem se importar com a chacota dos rudes camponeses, remolhava-se na banheira de água quente, e demorava-se muito a escolher a roupa para cada ocasião. Era um esforço perdido, já que ninguém lhe apreciava a elegância e, frequentemente, a única coisa que conseguia com os trajes ingleses de montar, os casacos de veludo e os chapéus tiroleses com pena de faisão era que Clara, com a melhor das intenções lhe oferecesse roupa mais apropriada para o campo. Jean não perdia o bom humor, aceitava os sorrisos irónicos do dono da casa, as más caras de Blanca e a perene distracção de Clara, que ao fim de um ano ainda continuava a perguntar-lhe o nome. Sabia cozinhar algumas receitas francesas, muito esmeradas e magnificamente apresentadas, com as quais contribuía quando tinham convidados. Era a primeira vez que viam um homem interessado pela cozinha, mas supuseram que eram costumes europeus e não se atreveram a dizer-lhe piadas para não passar por ignorantes. Nas suas viagens à capital, trazia, para além do respeitante às chinchilas, revistas de moda, os folhetins de guerra que se haviam popularizado para criar o mito do soldado heróico e novelas românticas para Blanca. Nas conversas à sobremesa referia-se, por vezes, com tom de mortal aborrecimento, aos seus Verões com a nobreza europeia nos castelos de Liechtenstein ou na Costa Azul. Nunca deixava de dizer que estava feliz por ter trocado tudo isso pelo encanto da América. Blanca perguntava-lhe por que razão não tinha escolhido as Caraíbas, ou pelo menos um pais de mulatas, coqueiros e tambores, se o que buscava era o exotismo, mas ele achava que não havia na terra outro sitio mais agradável que aquele pais esquecido do mundo. O francês não falava da vida pessoal, excepto para fornecer alguns indícios imperceptíveis que permitiam ao interlocutor astuto dar-se conta do seu esplendoroso passado, da sua fortuna incalculável e da sua nobre origem. Não se conhecia com certeza o seu estado civil, a sua idade, a sua família ou de que parte da França provinha. Clara era da opinião que tanto mistério era perigoso e tratou de desentranhá-lo com as cartas do tarot, mas Jean não permitiu que lhe tirassem a sorte nem que lhe investigassem as linhas da mão. Nem sabia o seu signo do zodíaco.
Para Esteban Trueba tudo isso não tinha importância. Para ele era suficiente que o conde estivesse disposto a entretê-lo com uma partida de xadrez ou de dominó, que fosse habilidoso e simpático e nunca pedisse dinheiro emprestado. Desde que Jean de Satigny visitava a casa, era muito mais suportável o aborrecimento do campo, onde às cinco da tarde não havia nada mais para fazer. Além disso, gostava que os vizinhos o invejassem por ter aquele hóspede distinto em Las Tres Marias.
Corria o boato de que Jean pretendia Blanca Trueba, mas nem por isso deixou de ser o galã predilecto das mães casamenteiras. Clara também o estimava, ainda que não tivesse nenhum cálculo matrimonial. Por seu lado, Blanca acabou por se acostumar à sua presença. Era tão discreto e suave no trato que pouco a pouco Blanca esqueceu a proposta matrimonial. Chegou a pensar que tinha sido uma espécie de brincadeira do conde. Tornou a tirar os candelabros de prata do armário, a pôr a mesa com a loiça inglesa e a usar os vestidos da cidade nas tertúlias da tarde. Frequentemente, Jean convidava-a para ir à povoação ou pedia-lhe que o acompanhasse nos seus numerosos convites sociais. Nessas oportunidades Clara tinha de ir com eles, porque Esteban Trueba era inflexível nesse ponto: não queria que vissem a filha sozinha com o francês. Em contrapartida, permitia-lhes passear sem chaperon pela propriedade, desde que não se afastassem demasiado e que regressassem antes de anoitecer. Clara dizia que se queriam cuidar da virgindade da jovem isso era muito mais perigoso que ir tomar chá à herdade Uzcátegui, mas Esteban estava seguro de que não havia nada a temer de Jean, já que as suas intenções eram nobres, tinha de precaver-se era das más línguas, que podiam destroçar a honra da filha. Os passeios campestres de Jean e de Blanca consolidaram uma boa amizade. Davam-se bem. Gostavam ambos de sair a meio da manhã a cavalo, com a merenda no cesto e várias malinhas de lona e couro com a bagagem de Jean. O conde aproveitava todas as paragens para pôr Blanca contra a paisagem e fotografá-la, apesar de ela resistir um pouco porque se sentia vagamente ridícula. Esse sentimento justificava-se ao ver os retratos revelados, onde aparecia com um sorriso que não era o seu, numa postura incómoda e com um ar de infelicidade, devido, segundo Jean, a que não era capaz de posar com naturalidade e, segundo ela, porque ele a obrigava a pôr-se torcida e aguentar a respiração durante longos segundos até que se imprimisse a chapa. De uma maneira geral, escolhiam um lugar sombrio debaixo das árvores, estendiam uma manta sobre a erva e sentavam-se para passar algumas horas. Falavam da Europa, de livros, de histórias familiares de Blanca ou das viagens de Jean. Ela ofereceu-lhe um livro do Poeta e ele entusiasmou-se tanto que aprendeu longas passagens de memória e podia recitar os poemas sem vacilar. Dizia que era o melhor que se tinha escrito em matéria de poesia e que nem sequer no francês, o idioma das artes, havia alguma coisa que pudesse comparar-se. Não falavam dos seus sentimentos. Jean era solicito, mas não suplicante ou insistente, pelo contrário fraternal e brincalhão. Beijava-lhe a mão para se despedir, fazia-o com um olhar de escolar que dava todo o romantismo ao gesto. Se lhe admirava um vestido, um guisado ou uma figura do presépio, o seu tom tinha um sabor irónico que permitia interpretar a frase de muitas maneiras. Se cortava flores para ela ou a ajudava a desmontar do cavalo, fazia-o com tal desenvoltura que tornava o galanteio uma atenção de amigo. De qualquer modo, para o prevenir, Blanca fez-lhe saber, sempre que se apresentou ocasião, que não casaria com ele nem morta. Jean de Satigny sorria com o brilhante sorriso de sedutor, sem dizer nada, e o mínimo que Blanca podia notar é que era muito mais gentil que Pedro Tercero.
Blanca não sabia que Jean a espiava. Tinha-a visto saltar pela janela vestida de homem em muitas ocasiões. Seguiu-a algum tempo, mas voltava para trás, temendo que os cães o surpreendessem na escuridão. Todavia, pela direcção que ela tomava, tinha concluído que ia sempre rumo ao rio. Entretanto, Trueba não acabara de se decidir a respeito das chinchilas. Como experiência, acedeu em instalar uma gaiola com alguns casais daqueles roedores, imitando em pequena escala a grande indústria modelo. Foi a única vez que se viu Jean de Satigny a trabalhar de mangas arregaçadas. No entanto, as chinchilas contraíram uma doença própria das ratazanas e foram morrendo em menos de duas semanas. Nem sequer lhes puderam curtir as peles porque o pêlo pôs-se-lhes opaco e cala-lhes da pele como penas de ave molhada com água a ferver. Jean viu horrorizado os cadáveres pelados, com as patas tesas e os olhos brancos, deitando por terras as esperanças de convencer Esteban Trueba, que perdeu todo o entusiasmo pela pelaria ao ver aquela mortandade.
- Se a peste tivesse dado à indústria modelo estaria totalmente arruinado - concluiu Trueba.
Entre a peste das chinchilas e as escapadelas de Blanca, o conde passou vários meses ocupando o tempo. Começava a estar cansado daquelas diligências e pensava que Blanca nunca se iria prender aos seus encantos. Vendo que o criador de roedores nunca mais se decidia, resolveu que era melhor precipitar as coisas antes que outro mais esperto ficasse com a herdeira. Além disso, começava a gostar de Blanca, agora que estava mais robusta e com aquela languidez que lhe tinha atenuado as maneiras de camponesa. Preferia as mulheres plácidas e opulentas, e a visão de Blanca deitada sobre almofadões observando o céu à hora da sesta recordava-lhe a mãe. Por vezes, conseguia comovê-lo. Jean aprendeu a adivinhar, por pequenos pormenores imperceptíveis para os outros, quando Blanca tinha já planeada uma excursão nocturna ao rio. Nessas ocasiões, a jovem ficava sem jantar, com o pretexto duma dor de cabeça, despedia-se cedo e tinha um brilho estranho nas pupilas, uma impaciência e uma ânsia nos gestos que ele conhecia. Uma noite decidiu segui-la até ao fim, para terminar com aquela situação que ameaçava prolongar-se indefinidamente. Estava seguro que Blanca tinha um amante, mas acreditava que não podia ser nada de sério. Pessoalmente, Jean de Satigny não tinha nenhum preconceito em relação à virgindade, nem tinha posto a si próprio esse assunto quando decidiu pedi-la em casamento. O que nele lhe interessava eram outras coisas, que não se perderiam por um momento de prazer na margem do rio.
Depois de Blanca se retirar para o quarto e o resto da família também, Jean de Satigny ficou sentado no salão, às escuras, atento aos ruídos da casa, até à hora em que calculou que ela saltasse pela janela. Então saiu para o pátio e ficou entre as árvores à espera dela. Esteve escondido na sombra mais de meia hora, sem que nada de anormal perturbasse a paz da noite. Aborrecido de esperar, dispunha-se a retirar-se quando reparou que a janela de Blanca estava aberta. Viu que ela tinha saltado antes que ele se colocasse no jardim a vigiá-la.
- Merde - resmungou em francês.
Fazendo votos por que os cães não alertassem toda a casa com o seu ladrar e não lhe saltassem em cima, dirigiu-se para o rio pelo caminho que tinha visto Blanca tomar doutras vezes. Não estava habituado a andar com o calçado fino pela terra lavrada nem a saltar pedras e ladear charcos, mas a noite estava muito clara, com uma formosa lua cheia iluminando o céu com um resplendor fantasmagórico e, mal lhe passou o medo de que aparecessem os cães, pôde apreciar a beleza do momento. Andou um bom quarto de hora antes de avistar os primeiros canaviais da margem e então redobrou de prudência e aproximou-se mais silenciosamente, tendo cuidado nos passos para não pisar ramos que o pudessem denunciar. A lua reflectia-se na água com um brilho de cristal e a brisa abanava suavemente as canas e as copas das árvores. Reinava o mais completo silêncio e por breves instantes teve a ilusão de que estava vivendo um sonho de sonâmbulo, no qual ia caminhando sem avançar, sempre no mesmo sitio encantado, onde o tempo se tinha detido e onde tentava tocar as árvores, que pareciam estar ao alcance da mão, e encontrava o vazio. Teve de fazer um esforço para recuperar o habitual estado de espírito, realista e pragmático. Num recanto da paisagem, entre grandes pedras cinzentas iluminadas pela luz da Lua, viu-os, tão perto que quase os podia tocar. Estavam nus. O homem estava de costas, com a cara virada para o céu, com os olhos fechados, mas não teve dificuldade em reconhecer o sacerdote jesuíta que tinha ajudado à missa do funeral de Pedro Garcia, o velho. Isso surpreendeu-o. Blanca dormia com a cabeça apoiada no ventre liso e moreno do amante. A ténue luz lunar punha reflexos metálicos nos seus corpos e Jean de Satigny estremeceu ao ver a harmonia de Blanca, que nesse momento lhe pareceu perfeita.
O elegante francês levou quase um minuto a abandonar o estado de sonho em que a visão dos enamorados o tinha mergulhado, a placidez da noite, a Lua e o silêncio do campo, e ao dar-se conta de que a situação era mais grave do que tinha imaginado. Na atitude dos amantes reconheceu o abandono próprio dos que se conhecem há muito tempo. Aquilo não tinha um aspecto de aventura erótica de Verão, como supusera, mas de um casamento da carne e do espírito. Jean de Satigny não podia saber que Blanca e Pedro Tercero tinham dormido assim no primeiro dia em que se conheceram e que o continuaram a fazer sempre que puderam, ao longo desses anos, mas apesar disso percebeu-o por instinto. Procurando não fazer o mais pequeno ruído que os pudesse alertar, deu meia volta e regressou, pensando como encarar o assunto. Ao chegar a casa, já tinha tomado a decisão de contar tudo ao pai de Blanca, porque a ira sempre pronta de Esteban Trueba lhe pareceu o melhor meio para resolver o problema. «Eles que se amanhem», pensou.
Jean de Satigny não esperou pela manhã. Bateu à porta do quarto do anfitrião e, antes que este conseguisse sair completamente do sono, deu-lhe a sua versão. Disse que não podia dormir com o calor e que, para tomar ar, tinha caminhado distraidamente em direcção ao rio e encontrara o deprimente espectáculo da sua futura noiva dormindo nos braços do jesuíta barbudo, nus à luz da Lua. Por um instante, isso desorientou Esteban Trueba, que não podia imaginar sua filha deitada com o padre José Dulce Maria, mas em seguida percebeu o que se tinha passado, da burla de que tinha sido vitima durante o enterro do velho e de que o sedutor não podia ser outro senão Pedro Tercero Garcia, aquele maldito filho de uma cadela que lho haveria de pagar com a vida. Vestiu as calças a toda a pressa, calçou as botas, pôs a espingarda ao ombro e tirou da parede o cavalo marinho.
- O senhor espera-me aqui - ordenou ao francês, que de qualquer modo não tinha nenhuma intenção de o acompanhar.
Esteban Trueba correu ao estábulo, montou no cavalo sem o selar. Ia a espumar de indignação, com os ossos soldados reclamando pelo esforço e o coração saltando no peito. «Vou matá-los, aos dois», resmungava como uma ladainha. Saiu para o caminho, na direcção indicada pelo francês, mas não teve necessidade de chegar ao rio, porque a meio encontrou Blanca, que regressava a casa cantarolando, com o cabelo em desalinho, a roupa suja e o ar feliz de quem não tinha nada que pedir à vida. Ao ver a filha, Esteban Trueba não pôde conter o mau caracter e correu para ela com o cavalo e o chicote no ar, descarregando-lhe uma chicotada atrás da outra, até que a rapariga caiu e ficou estendida, imóvel na lama. O pai saltou do cavalo, sacudiu-a até a fazer voltar a si e gritou-lhe todos os insultos conhecidos e outros inventados no arrebatamento da situação.
- Quem é? Diga-me o seu nome ou mato-a - exigiu-lhe.
- Não lhe direi nunca - soluçou ela.
Esteban Trueba compreendeu que aquele não era o sistema para obter alguma coisa da filha, que tinha herdado a sua própria teimosia. Viu que se tinha excedido no castigo, como sempre. Fê-la subir para o cavalo e voltaram a casa. O instinto, ou o alvoroço dos cães, acordaram Clara e os criados, que esperavam à porta com todas as luzes acesas. A única pessoa que não se viu por nenhum lado foi o conde, que na confusão aproveitou para fazer as malas, atrelar os cavalos ao coche e partir discretamente para o hotel da povoação.
- Que fizeste Esteban, por Deus! - exclamou Clara ao ver a filha coberta de barro e sangue.
Clara e Pedro Segundo Garcia levaram Blanca em braços para a cama. O administrador tinha empalidecido mortalmente, mas não disse nem uma só palavra. Clara lavou a filha, aplicou-lhe compressas frias nas fontes e acarinhou-a até que conseguiu tranquilizá-la. Depois deixou-a a dormir, foi encontrar-se com o marido, que se tinha fechado no escritório e passeava dando murros nas paredes, dizendo maldições e dando pontapés nos móveis. Ao vê-la, Esteban dirigiu toda a fúria contra ela, culpando-a de ter criado Blanca sem moral, sem sentido de classe, porque podia compreender-se se ela o tivesse feito com alguém bem-nascido, mas não com um labrego, um boçal, um fanático, um ocioso, um inútil.
- Devia tê-lo morto quando lho prometi! Deitando-se com a minha própria filha! Juro que o vou procurar e quando o agarrar capo-o, corto-lhe os tomates, ainda que seja a última coisa que faça na minha vida, juro por minha mãe que ele se vai arrepender de ter nascido.
- Pedro Tercero Garcia não fez nada que tu próprio não tenhas feito - disse Clara, quando pôde interrompê-lo. - Tu também te deitaste com mulheres solteiras que não são da tua classe. A diferença é que ele fê-lo por amor, e Blanca também.
Trueba olhou-a, imobilizado pela surpresa. Por um instante a sua ira pareceu esvaziar-se e não quis acreditar no que ouvia, mas imediatamente uma onda de sangue subiu-lhe à cabeça. Perdeu o domínio e desferiu um murro na cara da mulher, atirando-a contra a parede. Clara caiu sem um grito. Esteban pareceu despertar de um transe, ajoelhou-se a seu lado, balbuciando, chorando, pedindo desculpas e chamando-a pelos nomes ternos que só usava na intimidade, sem compreender como tinha podido levantar a mão para ela, que era o único ser que realmente lhe importava e a quem nunca, nem mesmo nos piores momentos da sua vida em comum, tinha deixado de respeitar. Levantou-a em braços, sentou-a carinhosamente num cadeirão, molhou um lenço para lhe pôr na testa e fez-lhe beber um pouco de água. Por fim, Clara abriu os olhos. Deitava sangue pelo nariz. Quando abriu a boca, cuspiu vários dentes, que caíram no chão, e um fio de saliva sangrenta correu-lhe pelo queixo e pelo pescoço.
Clara, logo que pôde levantar-se, afastou Esteban com um empurrão, ergueu-se com dificuldade e saiu do escritório, fazendo por caminhar de pé. Do outro lado da porta estava Pedro Segundo Garcia, que conseguiu segurá-la no momento em que cambaleava. Ao senti-lo a seu lado, Clara abandonou-se. Poisou a cara tumefacta no peito daquele homem que tinha estado a seu lado durante os momentos mais difíceis da sua vida e pôs-se a chorar. A camisa de Pedro Segundo Garcia tingiu-se de sangue.
Clara nunca mais na vida voltou a falar ao marido. Deixou de usar o seu apelido de casada e tirou do dedo a fina aliança de ouro que ele lhe tinha colocado, há mais de vinte anos, naquela noite memorável em que Barrabás morreu assassinado por uma faca de carniceiro.
Dois dias depois, Clara e Blanca abandonaram Las Tres Marias e regressaram à capital. Esteban ficou humilhado e furioso, com a sensação de que algo tinha partido para sempre da sua vida.
Pedro Segundo levou a patroa e a filha à estação. Desde aquela noite, não tinha tornado a vê-las e permanecia silencioso e intratável. Instalou-as no comboio e ficou depois com o chapéu na mão, de olhos baixos, sem saber como despedir-se. Clara abraçou-o. A princípio, ele manteve-se ri rido e desconcertado, mas logo foi vencido pelos próprios sentimentos e atreveu-se a envolvê-la com os braços e a dar-lhe um beijo imperceptível no cabelo. Olharam-se pela última vez através da janela e ambos tinham os olhos cheios de lágrimas. O fiel administrador chegou à sua casa de tijolos, fez um embrulho com os escassos pertences, meteu num lenço o pouco dinheiro que tinha podido poupar em todos aqueles anos de serviço e partiu. Trueba viu-o despedir-se dos caseiros e montar a cavalo. Tentou detê-lo explicando-lhe que o que se tinha passado não tinha nada que ver com ele, que não era justo que por culpa do filho perdesse o trabalho, os amigos, a segurança.
- Não quero estar aqui quando encontrar o meu filho, patrão - foram as últimas palavras de Pedro Segundo Garcia antes de partir a trote até à estrada.
Como me sentia sozinho, nessa altura! Ignorava que a solidão não mais me abandonaria e que a única pessoa que tornaria a estar perto de mim no resto da minha vida seria uma neta boémia e estroina, com o cabelo verde como Rosa. Mas isso seria vários anos mais tarde.
Depois da partida de Clara, olhei à volta e vi muitas caras novas em Las Tres Marias. Os antigos companheiros de caminhada estavam mortos ou tinham-se afastado. Já não tinha nem minha mulher nem minha filha. O contacto com os meus filhos era mínimo. Tinham falecido minha mãe, minha irmã, a boa Ama, Pedro Garcia, o velho. E também Rosa me veio à memória como uma dor inesquecível. Já não podia contar com Pedro Segundo Garcia, que esteve a meu lado durante trinta e cinco anos. Deu-me para chorar. As lágrimas caíam-me, sozinhas, eu sacudia-as com a mão, mas vinham outras. «Vão todos para o caralho!», gritava eu pelos cantos da casa. Passeava-me pelos quartos vazios, entrava no quarto de Clara e procurava no seu roupeiro e na sua cómoda qualquer coisa que ela tivesse usado para levar ao nariz e recuperar, ainda que fosse por um momento passageiro, o seu ténue odor a limpeza. Estendia-me na sua cama, enfiava a cara na sua almofada, acariciava os objectos que tinha deixado sobre o toucador e sentia-me profundamente desolado.
Pedro Tercero Garcia tinha toda a culpa do que se havia passado. Por culpa dele Blanca tinha saído de junto de mim, por causa dele eu tinha discutido com Clara, por causa dele Pedro Segundo tinha saído da propriedade, por causa dele os caseiros olhavam-me com receio e cochichavam nas minhas costas. Tinha sido sempre um revoltado e o que eu devia ter feito desde o princípio era corrê-lo a pontapés. Deixei passar o tempo por respeito ao pai e ao avó e o resultado foi que aquele ranhoso de merda me roubou o que eu mais gostava no mundo. Fui ao posto da aldeia do povo e subornei os carabineiros para me ajudarem a procurá-lo. Dei-lhes ordens de não o prenderem, mas de mo entregarem sem fazer escarcéu. No bar, no barbeiro, no clube e no Farolito Rojo, fiz saber que havia uma recompensa para quem me entregasse o rapaz.
- Cuidado, patrão. Não se ponha a fazer justiça por suas mãos, olhe que as coisas mudaram muito desde o tempo dos irmãos Sanchez - avisaram-me. Mas não quis escutá-los. Que teria feito a justiça nesse caso? Nada.
Passaram perto de quinze dias sem nenhuma novidade. Eu sala para percorrer a propriedade, entrava nas terras vizinhas, espiava os caseiros. Estava convencido de que me escondiam o rapaz. Aumentei a recompensa e ameacei os carabineiros de os fazer destituir por incapazes, mas tudo foi inútil. Cada hora que passava aumentava-me a raiva. Comecei a beber como nunca o tinha feito, nem nos meus tempos de solteiro. Dormia mal e tornei a sonhar com Rosa. Uma noite sonhei que lhe batia como a Clara e que os seus dentes também calam no chão. Despertei aos gritos, mas estava sozinho e ninguém me podia ouvir. Estava tão deprimido que deixei de fazer a barba, não mudava de roupa, julgo que nem tomava banho. A comida parecia-me amarga, tinha um sabor a bílis na boca. Esfolei os nós dos dedos esmurrando as paredes e rebentei um cavalo galopando para espantar a fúria que me consumia as entranhas. Nesses dias ninguém se aproximava de mim, as criadas serviam-me à mesa a tremer, o que me punha ainda pior.
Um dia, estava no corredor fumando um cigarro antes da sesta quando se aproximou um menino moreno que ficou em frente de mim em silêncio. Chamava-se Esteban Garcia. Era meu neto, mas eu não o sabia, e só agora, devido às terríveis coisas que ocorreram por obra sua, acabei por saber do parentesco que nos une. Era também neto de Pancha Garcia, uma irmã de Pedro Segundo, a quem na realidade não recordo.
- O que é que queres, ranhoso? - perguntei ao menino.
- Eu sei onde está Pedro Tercero Garcia - respondeu-me.
Dei um salto tão brusco que a cadeira de verga onde estava sentado, se virou. Agarrei o rapaz pelos ombros e sacudi-o:
- Onde? Onde está esse maldito? - gritei-lhe.
- Dá-me a recompensa, patrão? - balbuciou o menino aterrorizado.
- Tê-la-ás! Mas primeiro quero ter a certeza de que não me estás a mentir. Vamos, leva-me onde está esse desgraçado!
Fui buscar a espingarda e salmos. O menino indicou-me que tínhamos de ir a cavalo porque Pedro Tercero estava escondido na serração dos Lebus, a várias milhas de Las Tres Marias. Como não me passou pela cabeça que estivesse ali? Era um esconderijo perfeito. Nessa época do ano, a serração dos alemães estava fechada e ficava longe de todos os caminhos.
- Como soubeste que Pedro Tercero Garcia está lá?
- Toda a gente o sabe, patrão, menos o senhor - respondeu-me.
Fomos a trote porque naquele terreno não se podia correr. A serração estava encravada numa ladeira da montanha e ali não se podia forçar muito os animais. No esforço para trepar, os cavalos arrancavam chispas nas pedras com os cascos. Julgo que as suas pisadas eram o único ruído da tarde abafada e quieta. Ao entrar na zona dos bosques, mudou a paisagem e o ar refrescou, porque as árvores erguiam-se em filas apertadas, fechando a entrada à luz do Sol. O chão era uma almofada avermelhada e mole onde as patas dos cavalos se afundavam brandamente. Então o silêncio rodeou-nos. O menino ia adiante, montado na sua besta sem albarda, colado ao animal como se fossem um só corpo, e eu ia atrás, taciturno, ruminando a minha raiva. Por momentos a tristeza invadia-me, era mais forte que a cólera que tinha estado incubada durante tanto tempo, mais forte que o ódio que sentia por Pedro Tercero Garcia. Deve ter passado um par de horas antes de avistar os casebres baixos da serração, distribuídos em semicírculo numa clareira do bosque. Naquele lugar, o cheiro da madeira e dos pinheiros era tão intenso que por um momento distrai-me do objectivo da viagem. Caíram sobre mim a paisagem, o bosque, o silêncio. Mas essa fraqueza não durou mais que uns segundos.
- Espera aqui e cuida dos cavalos. Não te movas.
Desmontei. O menino pegou nas rédeas do animal e eu parti acaçapado com a espingarda aperrada nas mãos. Não sentia os sessenta anos nem as dores dos velhos ossos moídos. Ia animado pela ideia de me vingar. De uma das casotas sala uma pequena coluna de fumo, vi um cavalo amarrado à porta, conclui que ali devia estar Pedro Tercero e dirigi-me para a casa dando uma volta. Os dentes batiam-me com impaciência, ia pensando que não queria matá-lo ao primeiro tiro porque isso seria muito rápido e o prazer ia-se embora num minuto, tinha esperado tanto que queria saborear o momento de fazê-lo em pedaços, mas também não lhe podia dar uma oportunidade de escapar. Era muito mais jovem que eu e se não podia surpreendê-lo estava fodido. Levava a camisa empapada em suor, pegada ao corpo, um véu cobria-me os olhos, mas sentia-me com vinte anos e com a força de um touro. Entrei no casebre arrastando-me silenciosamente, o coração a bater-me como um tambor. Encontrei-me dentro de uma grande casa que tinha o chão coberto de serradura. Havia grandes pilhas de madeira e máquinas tapadas com pedaços de lona verde para as preservar do pó. Avancei ocultando-me entre as pilhas de madeira, até que, de súbito, o vi. Pedro Tercero Garcia estava deitado no chão, com a cabeça sobre uma manta dobrada, dormindo. A seu lado havia uma pequena fogueira de brasas sobre umas pedras e uma panela para ferver água. Parei sobressaltado e pude observá-lo à vontade, com todo o ódio do mundo, fazendo por fixar para sempre na minha memória esse rosto moreno, de feições quase infantis, onde a barba parecia um disfarce, sem compreender que diabo tinha visto minha filha naquele cabeludo ordinário. Tive de fazer um grande esforço para controlar o tremor das mãos e dos dentes. Levantei a espingarda e avancei um par de passos. Estava tão perto que podia fazer-lhe voar a cabeça sem apontar, mas decidi esperar uns segundos para que o pulso se me tranquilizasse. Esse momento de vacilação perdeu-me. Creio que o hábito de se esconder tinha afinado o ouvido a Pedro Tercero Garcia e o instinto advertiu-o do perigo. Numa fracção de segundo deve ter tomado consciência, mas ficou com os olhos fechados, preparou todos os músculos contraiu os tendões e pôs toda a sua energia num salto formidável que de um só impulso o deixou parado a um metro do sitio onde se cravou a minha bala. Não consegui apontar de novo, porque se agachou, apanhou um pedaço de madeira e atirou-mo, batendo em cheio na espingarda, que voou para longe. Recordo que senti uma onda de pânico ao ver-me desarmado, mas imediata-mente me dei conta de que ele estava mais assustado do que eu. Observámo-nos em silêncio, ofegando, cada um esperava o primeiro movimento do outro para saltar. E então vi o machado. Estava tão perto, que podia alcançá-lo esticando apenas o braço, e foi isso que fiz sem pensar duas vezes. Peguei no machado e com um grito selvagem que me saiu do fundo das entranhas lancei-me contra ele, disposto a rachá-lo de alto a baixo com um só golpe. O machado brilhou no ar e caiu sobre Pedro Tercero Garcia. Um jorro de sangue saltou-me à cara.
No último instante levantou os braços para deter a machadada e o fio da ferramenta decepou-lhe num ápice três dedos da mão direita. Com o esforço, caí para a frente de joelhos. Ele levou a mão ao peito e saiu correndo, saltou sobre as pilhas de madeira e os troncos espalhados pelo chão, alcançou o cavalo, montou de um salto e perdeu-se com um grito terrível entre as sombras dos pinheiros. Deixou atrás de si um rego de sangue.
Fiquei de gatas no chão, arquejando. Levei vários minutos a acalmar-me e a compreender que não o tinha morto. A minha primeira reacção foi de alívio porque, ao sentir o sangue quente que me atingira a cara, o ódio despejou-se-me subitamente, e tive de fazer um esforço para recordar por que razão o queria matar, para justificar a violência que me estava a afogar, que me fazia estalar o peito, zumbir os ouvidos, que me turvava a vista. Abri a boca deses-perado, para meter ar nos pulmões, consegui pôr-me de pé, mas comecei a tremer, dei um par de passos e cai sentado sobre um montão de tábuas, atordoado, sem poder recuperar o ritmo da respiração. Julguei que ia desmaiar, o coração saltava-me no peito como uma máquina enlouquecida. Deve ter passado muito tempo, não sei. Por fim levantei os olhos, parei e apanhei a espingarda.
O menino Esteban Garcia estava a meu lado, olhando-me em silêncio. Tinha apanhado os dedos cortados e pegava neles como num molho de espargos sangrentos. Não consegui evitar as náuseas, tinha a boca cheia de saliva, vomitei manchando as botas, enquanto o garoto sorria impassível.
- Larga isso, ranhoso de merda! - gritei, batendo-lhe na mão.
Os dedos caíram sobre a serradura, tingindo-a de vermelho.
Apanhei a espingarda e avancei cambaleando para a saída. O ar fresco do entardecer e o perfume pesado dos pinheiros bateram-me na cara, devol-vendo-me o sentido da realidade. Respirei com avidez, de boca aberta. Caminhei até ao cavalo com grande esforço, doía-me todo o corpo e tinha as mãos presas. O menino seguia-me.
Regressámos a Las Tres Marias procurando o caminho na escuridão, que cala rapidamente depois do pôr do Sol. As árvores dificultavam a marcha, os cavalos tropeçavam nas pedras e nas moitas, os ramos atingiam-nos ao passar. Eu estava como que no outro mundo, confundido e aterrado pela minha própria violência, agradecido de que Pedro Tercero tivesse escapado, porque estava certo de que se ele tivesse caído teria continuado a dar-lhe com o machado até o matar, destroçar, fazê-lo em bocados, com a mesma decisão com que estava disposto a meter-lhe um tiro na cabeça.
Eu sei o que dizem de mim. Dizem, entre outras coisas, que matei um ou vários homens na minha vida. Culparam-me da morte de alguns camponeses. Não é verdade. Se o fosse, não me importaria de o reconhecer, porque na minha idade essas coisas podem dizer-se impunemente. Já me falta muito pouco tempo para ser enterrado. Nunca matei um homem e quando mais perto estive de o fazer foi nesse dia em que peguei no machado e me atirei a Pedro Tercero Garcia.
Chegámos a casa à noite. Desci com dificuldade do cavalo e caminhei até ao terraço. Tinha-me esquecido por completo do menino que me acompa-nhava, porque em todo o trajecto não abriu a boca, por isso surpreendi-me ao sentir que me puxava pela manga.
- Vai dar-me a recompensa, patrão? - disse.
Despedi-o com um empurrão.
- Não há recompensa para os traidores que denunciam. Ah! E proíbo-te que contes o que se passou! Ouviste-me? - grunhi.
Entrei em casa e fui directamente beber um gole da garrafa. O conhaque queimou-me a garganta e devolveu-me algum calor. Estendi-me depois no sofá, arquejando. Ainda me batia desesperadamente o coração e estava enjoado. Com as costas da mão limpei as lágrimas que me escorriam pelas faces. Lá fora ficou Esteban Garcia, em frente da porta fechada. Como eu, chorava de raiva.
Pedro Garcia, o velho, morreu pouco antes das eleições presidenciais. O pais estava perturbado pelas campanhas políticas, os comboios triunfais iam do Norte para o Sul levando os candidatos instalados na cauda, com a sua corte de prosélitos, saudando todos do mesmo modo, prometendo todos as mesmas coisas, embandeirados e com uma chinfrineira de orfeão e altifalantes que espantava a calma da paisagem e embasbacava o gado. O velho tinha vivido tanto que já não era nada mais que um montão de ossinhos de cristal cobertos por uma pelanga amarela. O rosto era uma renda de rugas. Falava enquanto caminhava, com um matraquear de castanholas, não tinha dentes e só podia comer papinhas de bebé, além de cego tinha ficado surdo, mas nunca lhe faltou o conhecimento das coisas e a memória do passado e do imediato. Morreu sentado na cadeira de vime ao entardecer. Gostava de ficar à porta do rancho sentindo cair a tarde, que ele adivinhava pela mudança subtil de temperatura, pelos ruídos do pátio, o trabalho das cozinhas, o silêncio das galinhas. Foi ali que a morte o encontrou. A seus pés, estava o bisneto Esteban Garcia, que já tinha à volta de dezoito anos, ocupado em vazar com um prego os olhos a um frango. Era filho de Esteban Garcia, o único bastardo do patrão que levou o seu nome, embora não o apelido. Ninguém recordava a sua origem nem a razão pelo qual tinha esse nome, excepto ele mesmo, porque a sua avó Pancha Garcia, antes de morrer conseguiu envenenar-lhe a sua infância com a história de que, se o seu pai tivesse nascido no lugar de Blanca, Jaime ou Nicolau, teria herdado Las Tres Marias e poderia ter chegado a Presidente da República, só por o ter querido. Naquela região semeada de filhos ilegítimos e de outros legítimos que não conheciam o pai, ele foi provavelmente o único que cresceu odiando o seu apelido. Viveu castigado pelo rancor contra o patrão, contra a avó seduzida, contra o pai bastardo e contra o próprio destino inexorável de labrego. Esteban Trueba não o distin-guia entre os restantes miúdos da propriedade, e era mais um no montão de crianças que cantavam o hino nacional na escola e faziam bicha para receber o presente de Natal. Não se recordava de Pancha Garcia nem de ter tido um filho dela, e muito menos daquele neto malicioso que o odiava e que não o observava de longe para lhe imitar os gestos e copiar a voz. O menino passava as noites imaginando horríveis doenças ou acidentes que pusessem fim à exis-tência do patrão e de todos os seus filhos para ele poder herdar a propriedade. Então transformava Las Tres Marias no seu reino. Acarinhou essas fantasias toda a vida, e mesmo depois de saber que jamais teria alguma coisa por via da herança culpou sempre Trueba da existência obscura que tinha forjado contra ele e sentia-se castigado, inclusivamente nos dias em que chegou ao cume do poder e os teve todos na mão.
O menino percebeu que algo tinha mudado no velho. Aproximou-se, tocou nele e o corpo cambaleou. Pedro Garcia caiu no chão como um saco de ossos. Tinha as pupilas cobertas pela película leitosa que os tinha deixado sem luz ao longo de um quarto de século. Esteban Garcia pegou no prego e dispunha-se a picar-lhe os olhos, quando chegou Blanca e o afastou com um empurrão, sem suspeitar que aquela criança escura e malvada era seu sobrinho e que dentro de alguns anos seria o instrumento de uma tragédia para a sua família.
- Deus meu, o velhinho morreu! - soluçou inclinando-se sobre o corpo encarquilhado do ancião que lhe povoara a infância de contos e lhe protegera os amores clandestinos.
Enterraram Pedro Garcia, o velho, com um velório de três dias em que Esteban Trueba ordenou que não se regateassem gastos. Acomodaram-lhe o corpo num caixão de pinho rústico, com o traje domingueiro, o mesmo que usou quando se casou e que vestia para votar e receber os seus cinquenta pesos no Natal. Vestiram-lhe a única camisa branca, que lhe ficava muito folgada no pescoço, porque a idade o tinha encolhido, a gravata de luto e um cravo vermelho na lapela, como fazia sempre que havia festa. Seguraram-lhe a mandíbula com um lenço e puseram-lhe o chapéu negro, porque tinha dito muitas vezes que o queria tirar para saudar Deus. Não tinha sapatos, mas Clara roubou uns a Esteban Trueba para que todos vissem que não ia descalço para o Paraíso.
Jean de Satigny entusiasmou-se com o funeral, tirou da sua bagagem uma máquina fotográfica com tripé e fez tantos retratos ao morto que os seus familiares pensaram que lhe podia roubar a alma e por precaução escavacaram as chapas. Ao velatório acudiram camponeses de toda a região porque Pedro Garcia, no século de vida, tinha-se aparentado com muitos habitantes da província. Chegou a bruxa, que era ainda mais velha do que ele, com vários índios da tribo, os quais a uma ordem sua começaram a chorar o finado e não deixaram de o fazer até terminar a pândega, três dias depois. As pessoas juntaram-se à volta do rancho do velho, a beber vinho, tocar guitarra e vigiar os assados. Também chegaram dois padres de bicicleta, para benzer os restos mortais de Pedro Garcia e a dirigir os ritos fúnebres. Um deles era um gigante rubicundo com forte acento espanhol, o padre José Dulce Maria, a quem Esteban Trueba conhecia de nome. Esteve quase a impedir-lhe a entra-da na sua propriedade, mas Clara convenceu-o de que não era o momento de antepor os seus ódios políticos ao fervor cristão dos camponeses. «Pelo menos porá alguma ordem nos assuntos da alma», disse ela. De maneira que Esteban Trueba acabou por lhe dar as boas-vindas e convidá-lo a ficar em sua casa com o irmão leigo, que não abria a boca e olhava sempre para o chão, com a cabeça de lado e as mãos juntas. O patrão estava comovido com a morte do velho que lhe tinha salvo as sementeiras das formigas e a vida da invalidez, e queria que todos recordassem esse enterro como um acontecimento.
Os padres reuniram os caseiros e os visitantes na escola, para voltar a dar uma passagem nos esquecidos Evangelhos, e dizer uma missa pelo des-canso da alma de Pedro Garcia. Depois retiraram-se para o quarto que lhes tinham dado na casa senhorial, enquanto os outros continuavam na patus-cada que tinha sido interrompida com a sua chegada. Essa noite, Blanca esperou que se calassem as guitarras e o choro dos índios e que todos fossem para a cama, para saltar pela janela do quarto e enfiar na direcção habitual, protegida pelas sombras. Tornou a fazê-lo durante as três noites seguintes, até que os sacerdotes se foram embora. Todos menos os seus pais souberam que Blanca se encontrava com um deles no rio. Era Pedro Tercero Garcia, que não quis perder o funeral do avô e aproveitou a sotaina para falar aos trabalha-dores casa por casa, explicando-lhes que as próximas eleições eram a sua oportunidade de sacudir o jugo com que sempre tinham vivido. Escutavam-no surpreendidos e confusos. O seu tempo media-se por estações, os seus pensamentos por gerações, eram lentos e prudentes. Só os mais jovens, os que tinham rádio e ouviam as notícias, os que às vezes iam à povoação e conver-savam com os sindicalistas podiam seguir o fio das suas ideias. Os restantes escutavam-no porque o rapaz era o herói perseguido pelos patrões, mas no fundo estavam convencidos de que dizia loucuras.
- Se o patrão descobre que vamos votar nos socialistas, fodemo-nos - disseram.
- Não pode saber! O voto é secreto - alegou o falso padre.
- Isso pensas tu, filho - respondeu Pedro Segundo, seu pai. - Dizem que é secreto, mas depois sabem sempre em quem votamos. Além disso, se ganham os do teu partido, vão-nos pôr na rua, não teremos trabalho. Eu vivi sempre aqui. Que faria eu?
- Não nos podem correr a todos, porque o patrão perde mais que vocês se vocês se vão embora - argumentou Pedro Tercero.
- Não importa por quem vamos votar. Eles ganham sempre.
- Mudem o voto - disse Pedro Tercero. - Mandaremos gente do partido para controlar as mesas de voto e para verificar se as urnas ficam seladas.
Mas os camponeses desconfiavam. A experiência havia-lhes ensinado que o raposo acaba sempre por comer as galinhas, apesar das baladas subversivas que andavam de boca em boca cantando o contrário. Por isso, quando passou o comboio do novo candidato do Partido Socialista, um doutor míope e carismático que movia multidões com o seu discurso inflamado, eles olharam-no da estação, vigiados pelos patrões que montavam um cerco à sua volta, armados com caçadeiras e cajados. Escutaram respeitosamente as palavras do candidato, mas não se atreveram a fazer-lhe nem um gesto de saudação, excepto alguns braçais que acudiram em bando munidos de paus e picaretas, que o vitoriaram até se esganiçarem porque eles não tinham nada a perder, eram nómadas do campo, vagueavam pela região sem trabalho fixo nem família, sem amo e sem medo.
Pouco depois da morte e do memorável enterro de Pedro Garcia, o velho, Blanca começou a perder as cores de maçã e a sofrer fadigas naturais que não eram produzidas por deixar de respirar e vómitos matinais que não eram provocados por salmoura quente. Pensou que a causa estava no excesso de comida, era a época dos pêssegos dourados, dos damascos, do milho tenro preparado em caçarolas de barro e perfumado com alfavaca, era o tempo de fazer as marmeladas e as conservas para o Inverno. Mas o jejum, a maçela, os purgantes e o repouso não a curaram. Perdeu o entusiasmo pela escola, pela enfermaria e até pelos presépios de barro, tornou-se mole e sonolenta, podia passar horas deitada à sombra olhando o céu, sem se interessar por nada. A única actividade que manteve foram as escapadas nocturnas no rio com Pedro Tercero.
Jean de Satigny, que não se tinha dado por vencido no seu assalto romântico, observava-a. Por discrição, passava umas temporadas no hotel da povoação e fazia algumas viagens curtas à capital, donde regressava carregado de literatura sobre as chinchilas, as suas gaiolas, o seu alimento, as suas doenças, os seus métodos reprodutivos, a forma de curtir-lhes a pele e, em geral, tudo o que dizia respeito a esses pequenos animais cujo destino era transformarem-se em estolas. Na maior parte do Verão, o conde foi hóspede em Las Tres Marias. Era um visitante encantador, bem educado, tranquilo e alegre. Tinha sempre uma frase amável na ponta dos lábios, celebrava a comida, divertia-os à tarde tocando piano no salão, onde competia com Clara nos nocturnos de Chopin, e era uma fonte inesgotável de anedotas. Levantava-se tarde e passava uma ou duas horas dedicado ao seu arranjo pessoal, fazia ginástica, trotava à volta da casa sem se importar com a chacota dos rudes camponeses, remolhava-se na banheira de água quente, e demorava-se muito a escolher a roupa para cada ocasião. Era um esforço perdido, já que ninguém lhe apreciava a elegância e, frequentemente, a única coisa que conseguia com os trajes ingleses de montar, os casacos de veludo e os chapéus tiroleses com pena de faisão era que Clara, com a melhor das intenções lhe oferecesse roupa mais apropriada para o campo. Jean não perdia o bom humor, aceitava os sorrisos irónicos do dono da casa, as más caras de Blanca e a perene dis-tracção de Clara, que ao fim de um ano ainda continuava a perguntar-lhe o nome. Sabia cozinhar algumas receitas francesas, muito esmeradas e magnifi-camente apresentadas, com as quais contribuía quando tinham convidados. Era a primeira vez que viam um homem interessado pela cozinha, mas supu-seram que eram costumes europeus e não se atreveram a dizer-lhe piadas para não passar por ignorantes. Nas suas viagens à capital, trazia, para além do respeitante às chinchilas, revistas de moda, os folhetins de guerra que se haviam popularizado para criar o mito do soldado heróico e novelas român-ticas para Blanca. Nas conversas à sobremesa referia-se, por vezes, com tom de mortal aborrecimento, aos seus Verões com a nobreza europeia nos castelos de Liechtenstein ou na Costa Azul. Nunca deixava de dizer que estava feliz por ter trocado tudo isso pelo encanto da América. Blanca perguntava-lhe por que razão não tinha escolhido as Caraíbas, ou pelo menos um pais de mulatas, coqueiros e tambores, se o que buscava era o exotismo, mas ele achava que não havia na terra outro sitio mais agradável que aquele pais esquecido do mundo. O francês não falava da vida pessoal, excepto para fornecer alguns indícios imperceptíveis que permitiam ao interlocutor astuto dar-se conta do seu esplendoroso passado, da sua fortuna incalculável e da sua nobre origem. Não se conhecia com certeza o seu estado civil, a sua idade, a sua família ou de que parte da França provinha. Clara era da opinião que tanto mistério era perigoso e tratou de desentranhá-lo com as cartas do tarot, mas Jean não permitiu que lhe tirassem a sorte nem que lhe investigassem as linhas da mão. Nem sabia o seu signo do zodíaco.
Para Esteban Trueba tudo isso não tinha importância. Para ele era suficiente que o conde estivesse disposto a entretê-lo com uma partida de xadrez ou de dominó, que fosse habilidoso e simpático e nunca pedisse dinheiro emprestado. Desde que Jean de Satigny visitava a casa, era muito mais suportável o aborrecimento do campo, onde às cinco da tarde não havia nada mais para fazer. Além disso, gostava que os vizinhos o invejassem por ter aquele hóspede distinto em Las Tres Marias.
Corria o boato de que Jean pretendia Blanca Trueba, mas nem por isso deixou de ser o galã predilecto das mães casamenteiras. Clara também o estimava, ainda que não tivesse nenhum cálculo matrimonial. Por seu lado, Blanca acabou por se acostumar à sua presença. Era tão discreto e suave no trato que pouco a pouco Blanca esqueceu a proposta matrimonial. Chegou a pensar que tinha sido uma espécie de brincadeira do conde. Tornou a tirar os candelabros de prata do armário, a pôr a mesa com a loiça inglesa e a usar os vestidos da cidade nas tertúlias da tarde. Frequentemente, Jean convidava-a para ir à povoação ou pedia-lhe que o acompanhasse nos seus numerosos convites sociais. Nessas oportunidades Clara tinha de ir com eles, porque Esteban Trueba era inflexível nesse ponto: não queria que vissem a filha sozinha com o francês. Em contrapartida, permitia-lhes passear sem chaperon pela propriedade, desde que não se afastassem demasiado e que regressassem antes de anoitecer. Clara dizia que se queriam cuidar da virgindade da jovem isso era muito mais perigoso que ir tomar chá à herdade Uzcátegui, mas Esteban estava seguro de que não havia nada a temer de Jean, já que as suas intenções eram nobres, tinha de precaver-se era das más línguas, que podiam destroçar a honra da filha. Os passeios campestres de Jean e de Blanca consolidaram uma boa amizade. Davam-se bem. Gostavam ambos de sair a meio da manhã a cavalo, com a merenda no cesto e várias malinhas de lona e couro com a bagagem de Jean. O conde aproveitava todas as paragens para pôr Blanca contra a paisagem e fotografá-la, apesar de ela resistir um pouco porque se sentia vagamente ridícula. Esse sentimento justificava-se ao ver os retratos revelados, onde aparecia com um sorriso que não era o seu, numa postura incómoda e com um ar de infelicidade, devido, segundo Jean, a que não era capaz de posar com naturalidade e, segundo ela, porque ele a obrigava a pôr-se torcida e aguentar a respiração durante longos segundos até que se imprimisse a chapa. De uma maneira geral, escolhiam um lugar sombrio debaixo das árvores, estendiam uma manta sobre a erva e sentavam-se para passar algumas horas. Falavam da Europa, de livros, de histórias familiares de Blanca ou das viagens de Jean. Ela ofereceu-lhe um livro do Poeta e ele entusiasmou-se tanto que aprendeu longas passagens de memória e podia recitar os poemas sem vacilar. Dizia que era o melhor que se tinha escrito em matéria de poesia e que nem sequer no francês, o idioma das artes, havia alguma coisa que pudesse comparar-se. Não falavam dos seus sentimentos. Jean era solicito, mas não suplicante ou insistente, pelo contrário fraternal e brincalhão. Beijava-lhe a mão para se despedir, fazia-o com um olhar de escolar que dava todo o romantismo ao gesto. Se lhe admirava um vestido, um guisado ou uma figura do presépio, o seu tom tinha um sabor irónico que permitia interpretar a frase de muitas maneiras. Se cortava flores para ela ou a ajudava a desmontar do cavalo, fazia-o com tal desenvoltura que tornava o galanteio uma atenção de amigo. De qualquer modo, para o prevenir, Blanca fez-lhe saber, sempre que se apresentou ocasião, que não casaria com ele nem morta. Jean de Satigny sorria com o brilhante sorriso de sedutor, sem dizer nada, e o mínimo que Blanca podia notar é que era muito mais gentil que Pedro Tercero.
Blanca não sabia que Jean a espiava. Tinha-a visto saltar pela janela vestida de homem em muitas ocasiões. Seguiu-a algum tempo, mas voltava para trás, temendo que os cães o surpreendessem na escuridão. Todavia, pela direcção que ela tomava, tinha concluído que ia sempre rumo ao rio.
Entretanto, Trueba não acabara de se decidir a respeito das chinchilas. Como experiência, acedeu em instalar uma gaiola com alguns casais daqueles roedores, imitando em pequena escala a grande indústria modelo. Foi a única vez que se viu Jean de Satigny a trabalhar de mangas arregaçadas. No entanto, as chinchilas contraíram uma doença própria das ratazanas e foram morrendo em menos de duas semanas. Nem sequer lhes puderam curtir as peles porque o pêlo pôs-se-lhes opaco e cala-lhes da pele como penas de ave molhada com água a ferver. Jean viu horrorizado os cadáveres pelados, com as patas tesas e os olhos brancos, deitando por terras as esperanças de convencer Esteban Trueba, que perdeu todo o entusiasmo pela pelaria ao ver aquela mortandade.
- Se a peste tivesse dado à indústria modelo estaria totalmente arruinado - concluiu Trueba.
Entre a peste das chinchilas e as escapadelas de Blanca, o conde passou vários meses ocupando o tempo. Começava a estar cansado daquelas diligências e pensava que Blanca nunca se iria prender aos seus encantos. Vendo que o criador de roedores nunca mais se decidia, resolveu que era melhor precipitar as coisas antes que outro mais esperto ficasse com a her-deira. Além disso, começava a gostar de Blanca, agora que estava mais robusta e com aquela languidez que lhe tinha atenuado as maneiras de camponesa. Preferia as mulheres plácidas e opulentas, e a visão de Blanca deitada sobre almofadões observando o céu à hora da sesta recordava-lhe a mãe. Por vezes, conseguia comovê-lo. Jean aprendeu a adivinhar, por peque-nos pormenores imperceptíveis para os outros, quando Blanca tinha já planeada uma excursão nocturna ao rio. Nessas ocasiões, a jovem ficava sem jantar, com o pretexto duma dor de cabeça, despedia-se cedo e tinha um brilho estranho nas pupilas, uma impaciência e uma ânsia nos gestos que ele conhecia. Uma noite decidiu segui-la até ao fim, para terminar com aquela situação que ameaçava prolongar-se indefinidamente. Estava seguro que Blanca tinha um amante, mas acreditava que não podia ser nada de sério. Pessoalmente, Jean de Satigny não tinha nenhum preconceito em relação à virgindade, nem tinha posto a si próprio esse assunto quando decidiu pedi-la em casamento. O que nele lhe interessava eram outras coisas, que não se perderiam por um momento de prazer na margem do rio.
Depois de Blanca se retirar para o quarto e o resto da família também, Jean de Satigny ficou sentado no salão, às escuras, atento aos ruídos da casa, até à hora em que calculou que ela saltasse pela janela. Então saiu para o pátio e ficou entre as árvores à espera dela. Esteve escondido na sombra mais de meia hora, sem que nada de anormal perturbasse a paz da noite. Aborrecido de esperar, dispunha-se a retirar-se quando reparou que a janela de Blanca estava aberta. Viu que ela tinha saltado antes que ele se colocasse no jardim a vigiá-la.
- Merde - resmungou em francês.
Fazendo votos por que os cães não alertassem toda a casa com o seu ladrar e não lhe saltassem em cima, dirigiu-se para o rio pelo caminho que tinha visto Blanca tomar doutras vezes. Não estava habituado a andar com o calçado fino pela terra lavrada nem a saltar pedras e ladear charcos, mas a noite estava muito clara, com uma formosa lua cheia iluminando o céu com um resplendor fantasmagórico e, mal lhe passou o medo de que aparecessem os cães, pôde apreciar a beleza do momento. Andou um bom quarto de hora antes de avistar os primeiros canaviais da margem e então redobrou de prudência e aproximou-se mais silenciosamente, tendo cuidado nos passos para não pisar ramos que o pudessem denunciar. A lua reflectia-se na água com um brilho de cristal e a brisa abanava suavemente as canas e as copas das árvores. Reinava o mais completo silêncio e por breves instantes teve a ilusão de que estava vivendo um sonho de sonâmbulo, no qual ia caminhando sem avançar, sempre no mesmo sitio encantado, onde o tempo se tinha detido e onde tentava tocar as árvores, que pareciam estar ao alcance da mão, e encontrava o vazio. Teve de fazer um esforço para recuperar o habitual estado de espírito, realista e pragmático. Num recanto da paisagem, entre grandes pedras cinzentas iluminadas pela luz da Lua, viu-os, tão perto que quase os podia tocar. Estavam nus. O homem estava de costas, com a cara virada para o céu, com os olhos fechados, mas não teve dificuldade em reconhecer o sacerdote jesuíta que tinha ajudado à missa do funeral de Pedro Garcia, o velho. Isso surpreendeu-o. Blanca dormia com a cabeça apoiada no ventre liso e moreno do amante. A ténue luz lunar punha reflexos metálicos nos seus corpos e Jean de Satigny estremeceu ao ver a harmonia de Blanca, que nesse momento lhe pareceu perfeita.
O elegante francês levou quase um minuto a abandonar o estado de sonho em que a visão dos enamorados o tinha mergulhado, a placidez da noite, a Lua e o silêncio do campo, e ao dar-se conta de que a situação era mais grave do que tinha imaginado. Na atitude dos amantes reconheceu o abandono próprio dos que se conhecem há muito tempo. Aquilo não tinha um aspecto de aventura erótica de Verão, como supusera, mas de um casamento da carne e do espírito. Jean de Satigny não podia saber que Blanca e Pedro Tercero tinham dormido assim no primeiro dia em que se conheceram e que o continuaram a fazer sempre que puderam, ao longo desses anos, mas apesar disso percebeu-o por instinto. Procurando não fazer o mais pequeno ruído que os pudesse alertar, deu meia volta e regressou, pensando como encarar o assunto. Ao chegar a casa, já tinha tomado a decisão de contar tudo ao pai de Blanca, porque a ira sempre pronta de Esteban Trueba lhe pareceu o melhor meio para resolver o problema. «Eles que se amanhem», pensou.
Jean de Satigny não esperou pela manhã. Bateu à porta do quarto do anfitrião e, antes que este conseguisse sair completamente do sono, deu-lhe a sua versão. Disse que não podia dormir com o calor e que, para tomar ar, tinha caminhado distraidamente em direcção ao rio e encontrara o deprimente espectáculo da sua futura noiva dormindo nos braços do jesuíta barbudo, nus à luz da Lua. Por um instante, isso desorientou Esteban Trueba, que não podia imaginar sua filha deitada com o padre José Dulce Maria, mas em seguida percebeu o que se tinha passado, da burla de que tinha sido vitima durante o enterro do velho e de que o sedutor não podia ser outro senão Pedro Tercero Garcia, aquele maldito filho de uma cadela que lho haveria de pagar com a vida. Vestiu as calças a toda a pressa, calçou as botas, pôs a espingarda ao ombro e tirou da parede o cavalo marinho.
- O senhor espera-me aqui - ordenou ao francês, que de qualquer modo não tinha nenhuma intenção de o acompanhar.
Esteban Trueba correu ao estábulo, montou no cavalo sem o selar. Ia a espumar de indignação, com os ossos soldados reclamando pelo esforço e o coração saltando no peito. «Vou matá-los, aos dois», resmungava como uma ladainha.
Saiu para o caminho, na direcção indicada pelo francês, mas não teve necessidade de chegar ao rio, porque a meio encontrou Blanca, que regressava a casa cantarolando, com o cabelo em desalinho, a roupa suja e o ar feliz de quem não tinha nada que pedir à vida. Ao ver a filha, Esteban Trueba não pôde conter o mau caracter e correu para ela com o cavalo e o chicote no ar, descarregando-lhe uma chicotada atrás da outra, até que a rapariga caiu e ficou estendida, imóvel na lama. O pai saltou do cavalo, sacudiu-a até a fazer voltar a si e gritou-lhe todos os insultos conhecidos e outros inventados no arrebatamento da situação.
- Quem é? Diga-me o seu nome ou mato-a - exigiu-lhe.
- Não lhe direi nunca - soluçou ela.
Esteban Trueba compreendeu que aquele não era o sistema para obter alguma coisa da filha, que tinha herdado a sua própria teimosia. Viu que se tinha excedido no castigo, como sempre. Fê-la subir para o cavalo e voltaram a casa. O instinto, ou o alvoroço dos cães, acordaram Clara e os criados, que esperavam à porta com todas as luzes acesas. A única pessoa que não se viu por nenhum lado foi o conde, que na confusão aproveitou para fazer as malas, atrelar os cavalos ao coche e partir discretamente para o hotel da povoação.
- Que fizeste Esteban, por Deus! - exclamou Clara ao ver a filha coberta de barro e sangue.
Clara e Pedro Segundo Garcia levaram Blanca em braços para a cama. O administrador tinha empalidecido mortalmente, mas não disse nem uma só palavra. Clara lavou a filha, aplicou-lhe compressas frias nas fontes e acarinhou-a até que conseguiu tranquilizá-la. Depois deixou-a a dormir, foi encontrar-se com o marido, que se tinha fechado no escritório e passeava dando murros nas paredes, dizendo maldições e dando pontapés nos móveis. Ao vê-la, Esteban dirigiu toda a fúria contra ela, culpando-a de ter criado Blanca sem moral, sem sentido de classe, porque podia compreender-se se ela o tivesse feito com alguém bem-nascido, mas não com um labrego, um boçal, um fanático, um ocioso, um inútil.
- Devia tê-lo morto quando lho prometi! Deitando-se com a minha própria filha! Juro que o vou procurar e quando o agarrar capo-o, corto-lhe os tomates, ainda que seja a última coisa que faça na minha vida, juro por minha mãe que ele se vai arrepender de ter nascido.
- Pedro Tercero Garcia não fez nada que tu próprio não tenhas feito – disse Clara, quando pôde interrompê-lo. - Tu também te deitaste com mulhe-res solteiras que não são da tua classe. A diferença é que ele fê-lo por amor, e Blanca também.
Trueba olhou-a, imobilizado pela surpresa. Por um instante a sua ira pareceu esvaziar-se e não quis acreditar no que ouvia, mas imediatamente uma onda de sangue subiu-lhe à cabeça. Perdeu o domínio e desferiu um murro na cara da mulher, atirando-a contra a parede. Clara caiu sem um grito. Esteban pareceu despertar de um transe, ajoelhou-se a seu lado, balbuciando, chorando, pedindo desculpas e chamando-a pelos nomes ternos que só usava na intimidade, sem compreender como tinha podido levantar a mão para ela, que era o único ser que realmente lhe importava e a quem nunca, nem mesmo nos piores momentos da sua vida em comum, tinha deixado de respeitar. Levantou-a em braços, sentou-a carinhosamente num cadeirão, molhou um lenço para lhe pôr na testa e fez-lhe beber um pouco de água. Por fim, Clara abriu os olhos. Deitava sangue pelo nariz. Quando abriu a boca, cuspiu vários dentes, que caíram no chão, e um fio de saliva sangrenta correu-lhe pelo queixo e pelo pescoço.
Clara, logo que pôde levantar-se, afastou Esteban com um empurrão, ergueu-se com dificuldade e saiu do escritório, fazendo por caminhar de pé. Do outro lado da porta estava Pedro Segundo Garcia, que conseguiu segurá-la no momento em que cambaleava. Ao senti-lo a seu lado, Clara abandonou-se. Poisou a cara tumefacta no peito daquele homem que tinha estado a seu lado durante os momentos mais difíceis da sua vida e pôs-se a chorar. A camisa de Pedro Segundo Garcia tingiu-se de sangue.
Clara nunca mais na vida voltou a falar ao marido. Deixou de usar o seu apelido de casada e tirou do dedo a fina aliança de ouro que ele lhe tinha colocado, há mais de vinte anos, naquela noite memorável em que Barrabás morreu assassinado por uma faca de carniceiro.
Dois dias depois, Clara e Blanca abandonaram Las Tres Marias e regressaram à capital. Esteban ficou humilhado e furioso, com a sensação de que algo tinha partido para sempre da sua vida.
Pedro Segundo levou a patroa e a filha à estação. Desde aquela noite, não tinha tornado a vê-las e permanecia silencioso e intratável. Instalou-as no comboio e ficou depois com o chapéu na mão, de olhos baixos, sem saber como despedir-se. Clara abraçou-o. A princípio, ele manteve-se rígido e desconcertado, mas logo foi vencido pelos próprios sentimentos e atreveu-se a envolvê-la com os braços e a dar-lhe um beijo imperceptível no cabelo. Olharam-se pela última vez através da janela e ambos tinham os olhos cheios de lágrimas. O fiel administrador chegou à sua casa de tijolos, fez um embrulho com os escassos pertences, meteu num lenço o pouco dinheiro que tinha podido poupar em todos aqueles anos de serviço e partiu. Trueba viu-o despedir-se dos caseiros e montar a cavalo. Tentou detê-lo explicando-lhe que o que se tinha passado não tinha nada que ver com ele, que não era justo que por culpa do filho perdesse o trabalho, os amigos, a segurança.
- Não quero estar aqui quando encontrar o meu filho, patrão - foram as últimas palavras de Pedro Segundo Garcia antes de partir a trote até à estrada.
Como me sentia sozinho, nessa altura! Ignorava que a solidão não mais me abandonaria e que a única pessoa que tornaria a estar perto de mim no resto da minha vida seria uma neta boémia e estroina, com o cabelo verde como Rosa. Mas isso seria vários anos mais tarde.
Depois da partida de Clara, olhei à volta e vi...
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