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CAPÍTULO 24
Naquela noite, às nove e meia, Stuart entrou furtivamente em casa. Era horrível chegar assim à sua querida casa como se não tivesse o direito de ali estar e tudo isso por culpa de uma sujeita de lascivos olhos verdes. Subiu as escadas na ponta dos pés e espiou para o corredor. A porta de Janie estava entreaberta. Era uma simples fresta, mas havia luz no quarto. Praguejou contra ela em silêncio, voltou e chamou um criado.
— Pode ser que alguém me procure esta noite. Quero que vá ficar à porta e espere até dez e meia no mínimo. Não quero que a campainha da porta seja tocada. É um assunto muito importante e muito reservado.
O criado suspeitou imediatamente que se tratasse de uma mulher, o que não era um caso excepcional. Assentiu em silêncio e saiu, rindo sozinho no corredor.
Stuart arrependeu-se do que tinha feito. Não devia ter sugerido que o mordomo de Allstairs fosse a sua casa. Janie iria na certa bisbilhotar se ouvisse vozes. Nunca penso nas coisas, foi a sua conclusão. Dirigiu-se ao grande vestíbulo branco, onde o criado já estava à espera.
— É um homem que estou esperando. Se vier, leve-o para a varanda onde vou esperá-lo.
......
Afastou-se e tornou a arrepender-se do que tinha feito. Os criados da cidade conheciam-se decerto muito bem. Em breve, espalhar-se-ia o boato de que o mordomo do Sr. Allstairs fizera uma visita secreta ao Sr. Coleman. Nada restava a fazer senão agir depressa.
A varanda estava deserta e fria. Stuart sentou-se e olhou para o seu relógio. Quinze minutos para as dez. Cruzou os braços e franziu a testa. Teve a certeza de que o homem não ia aparecer naquela noite, nem em qualquer outra. Fora um louco em pensar o contrário. Cruzou as pernas.
Sentia-se terrivelmente deprimido. Havia sem dúvida outras maneiras pelas quais poderia aproximar-se de Marvina. Mas dentro de uma semana ou talvez menos ela teria partido de Grandeville. O desespero que sentia subiu a um alto grau. Seria então frustrado? Nunca! Nunca fora frustrado em coisa alguma na vida e não ia começar naquela ocasião.
Ouviu passos leves nos tapetes do corredor. O coração começou a bater apressadamente. O criado entrou em companhia do mordomo de Allstairs, alto e magro, com o chapéu apertado com as duas mãos de encontro ao peito, e a calva brilhando à luz das velas. Sorrindo respeitosamente, cumprimentou Stuart, que dispensou o criado. Olhou demoradamente o mordomo.
Que abutre era ele, digno servo de tal patrão. O rosto cadavérico era comprido, sumido e lívido, com um nariz de ave de rapina e olhos que ardiam de cobiça.
— Como se chama? — perguntou Stuart com condescendência.
— Grimshaw, às suas ordens, meu chefe.
— Excelente. Pode sentar-se, Grimshaw.
Grimshaw sentou-se na beira de uma cadeira forrada de damasco rosa, com o chapéu nos joelhos. A sua atitude era de inteira humildade.
— Deve estar curioso em saber por que o convidei para vir até aqui —, disse Stuart.
— Bem, pensei que talvez quisesse fazer alguma mudança.
— Isso não —, murmurou Stuart com um sorriso. — Estou satisfeito com o meu pessoal. Estou pensando é em coisa mais importante, Grimshaw. É uma coisa que seria de extrema vantagem para você, além de meros ordenados.
— É mesmo, senhor? Quanta bondade sua —, murmurou o homem sem que o seu rosto expressasse coisa alguma além de respeitosa surpresa.
Que diabo, pensou Stuart, você sabe muito bem o que veio fazer aqui. Mas sorriu com condescendência e continuou:
— Acha que mil dólares lhe fariam um bom arranjo, Grimshaw?
— Mil dólares? — exclamou o homem, visivelmente abalado. Mas logo sacudiu a cabeça. — Não, não é bastante.
Stuart olhou para ele, empalidecendo, e perguntou em voz baixa:
— Sabe então por que lhe pedi que viesse até aqui?
— De certo modo, sei. Mas vale mais de mil dólares. Posso perder meu emprego e jamais conseguirei outra colocação em Grandeville se a coisa vier a ser sabida. Cada um tem de pensar no seu futuro.
Stuart sentiu-se tomado de ódio e de raiva, mas disse impetuosamente:
— Garanto que protegerei os seus interesses. Nada se saberá por meu intermédio. Ninguém jamais saberá.
O mordomo deu um suspiro e disse:
— Mas o Sr. Allstairs é um homem muito esperto. Nada lhe passa despercebido. Ele vai juntar os fatos. Com sua licença por falar assim, mas é um homem muito perigoso. Terei de sair imediatamente de Grandeville para fugir à raiva dele. Deve compreender, portanto, que mil dólares não serão suficientes. Tenho pensado muito em abrir uma pequena loja numa cidade muito distante daqui.
Que cachorro imundo, pensou Stuart, com essas insinuações a respeito de uma loja. Foi isso, mais do que qualquer outra coisa, que fez um bolo subir à garganta de Stuart e seus punhos se cerrarem. Mas havia tanta coisa em jogo que não podia abandonar-se a uma explosão. Disse então:
— Está bem. Ofereço-lhe mil e duzentos dólares.
O homem suspirou tristemente e fez menção de levantar-se para sair.
— Quanto então, com mil diabos? — perguntou Stuart, muito vermelho.
— Três mil dólares, meu chefe.
Stuart levantou-se de um salto, inteiramente desorientado.
— Três mil dólares! Mas você é um patife consumado, um cachorro sem vergonha!
O homem se levantou rapidamente e deu um passo atrás. Tinha o rosto deformado pelo medo. Olhou para o encolerizado Stuart e recuou mais um pouco.
— Posso retirar-me?
— Sim, pode! — gritou Stuart. — Saia logo de minha casa antes que eu o leve a pontapés até à casa daquele demônio!
O homem recuou ainda mais. Mas era astuto. Quando se viu protegido pela porta, murmurou num tom confidencial:
— A Srta. Marvina está bem protegida, chefe. Nunca mais a verá. Será daqui por diante ainda mais guardada.
Stuart, que já ia avançar sobre ele, estacou. Tudo estava perdido. Estendeu a mão à procura de uma cadeira e deixou-se cair nela. Olhou para Grimshaw e disse com voz abafada:
— Sente-se.
O homem, sem tirar os olhos de cima dele, procurou também uma cadeira e sentou-se na borda.
Mesmo com o sangue a correr-lhe impetuosamente pelas veias, Stuart sentiu que o cérebro começava a funcionar. Onde iria arranjar três mil dólares no momento? O saldo de sua conta era menos que isso. Teria de pedir um empréstimo a Sam para fazer os pagamentos relativos aos dez mil dólares que tomara das lojas. Mas pensou nessas coisas muito rapidamente. Meteu a mão no bolso e tirou um maço de notas. Contou quinhentos dólares com os dedos trêmulos. Jogou as notas para Grimshaw, que se abaixou avidamente e apanhou-as. Contou o dinheiro, fazendo estalos com a língua. Depois, dobrou as notas e guardou-as no bolso do casaco.
— Quinhentos dólares... — murmurou ele.
— Receberá mais cem dólares toda a vez que me trouxer um bilhete escrito com a letra da Srta. Marvina, que eu conheço muito bem. E no dia em que a Srta. Marvina sair de casa para se casar comigo, receberá o resto.
O homem ficou alguns minutos em silêncio. Depois, deu um suspiro e sorriu.
— Pode dar-me promissórias assinadas e um contrato nesse sentido, senhor? Amanhã.
Stuart sentiu uma onda de náuseas. O homem coçou o queixo pensativamente.
— Se me permite dizer-lhe isso, a moça chora todas as noites em seu quarto. Sei disso por intermédio da criada de quarto. Está sofrendo por sua causa.
Stuart nada disse. Franziu o rosto, mas escutou.
— Eu não sugeriria coisa alguma e diria que não havia esperança, se não tivesse conhecimento dos sentimentos da moça. Mas eu a ouvi dizer, banhada em lágrimas, a seu respeitado pai que só se casaria com o senhor e com ninguém mais. Ouvi tudo. Com a minha ajuda, o senhor não pode falhar.
Stuart continuou calado e o homem prosseguiu:
— Conheço um pequeno ministro em La Grange que poderá fazer o casamento com a maior facilidade.
— Estará presente para me servir de testemunha?
— Sem dúvida alguma. Deixarei o serviço do Sr. Allstairs nesse mesmo dia.
— Quando aparecer com a Srta. Marvina, eu lhe darei o resto. Um acordo nesse sentido lhe será entregue amanhã.
Olhou para Grimshaw carrancudamente e acrescentou:
— Não sonhe sequer em me enganar. Se você falhar ou me enganar, não encontrará lugar onde possa esconder-se de mim. Isso eu juro, está compreendendo?
Foi mais tarde para o seu quarto com as botinas na mão. Ainda havia luz no quarto de Janie. Ouviu o folhear das páginas de um livro. Quando afinal entrou em seu quarto e fechou a porta, viu que estava tremendo.
CAPÍTULO 25
O ar cortante do começo da noite do norte soprava fortemente através das ruas de Grandeville, derramando-se do lago e do rio. Luzes amarelas brilhavam nas casas compactas. Os lampiões da rua ardiam vivamente. Havia ainda uma ponta de frio à noite, embora já fosse maio, as estrelas cintilavam e a lua crescente singrava majestosamente o céu. As ruas estavam cheias de silêncio e de paz.
As rodas de uma carruagem ressoaram no silêncio e as ferraduras dos cavalos tiraram faíscas das pedras da calçada. A carruagem desceu a encosta que dava para o rio e se dirigiu para a casa de Stuart. Parou diante da porta da frente e Stuart desceu, estendendo a mão para uma senhora que vinha na carruagem. Ela se apoiou na mão e desceu. Era alta e esbelta, tinha uma capa pesada e usava um chapéu com um espesso véu. Segurando-lhe ainda a mão, Stuart foi até à porta e tocou a campainha. A carruagem rolou para as cocheiras.
O dia tinha sido febril e agitado. Stuart estava exausto e muito nervoso. Não era homem para meditar muito sobre o futuro, por mais imediato que fosse. Deixara o mau momento para quando se verificasse e o mau momento era chegado. Dentro de poucos segundos, estaria dentro de sua casa e teria de enfrentar Janie com sua nova esposa.
A moça ao lado dele estava muito calma e dócil. Desde a hora do casamento naquela tarde, pouco havia falado, limitando-se a sorrir doce e placidamente com a mão na de Stuart. Ele estava muito satisfeito com isso. No seu encantamento por ela, julgava que essa serenidade era força e sabedoria e desejava corresponder à opinião que ela fazia dele e era sem dúvida excelente. Ainda não sabia que ela não tinha opinião de qualquer espécie.
O que tinha de fazer, pensou ele enquanto esperava que abrissem a porta, era consumar sem demora o casamento. Uma filha que não era mais virgem não valia a pena salvar. Só no caso de poder essa filha ser retirada do leito nupcial com sua virgindade intacta era que a expedição teria algum sentido. Stuart resolveu excluir essa possibilidade com a maior rapidez. O pensamento lhe era muito agradável. Voltou-se para a moça com um sorriso e seus olhos pretos brilharam na escuridão. Ela lhe retribuiu o olhar com serena satisfação.
A porta se abriu e seu empregado apareceu. Quando viu a moça, não pôde dissimular o seu espanto, pois tinha visto muitas vezes Marvina Allstairs na rua. O homem se afastou e Marvina e Stuart entraram. Ela se movia como um sonho de beleza, cheia de flutuante graça e com os olhos fulvos cintilantes. Esperou como uma estátua perfeita a próxima ordem de seu senhor, seu Pigmaleão, com as mãos enluvadas cruzadas à frente do corpo. Stuart tirou-lhe gentilmente. a capa. Ela lhe deu o chapéu. Ele a tomou pela mão e levou-a para a magnífica sala de estar e chamou o empregado, que os seguia todo confuso.
— Briggs —, disse Stuart num tom de autoridade —, essa é sua nova patroa, a Sra. Coleman.
Numa voz mais alta e mais displicente, acrescentou:
— A Sra. Cauder está em casa? Tenha a bondade de apresentar-lhe meus cumprimentos e de dizer-lhe que estou pedindo que venha ficar alguns momentos comigo na sala de estar. E mais uma coisa, Briggs. Não lhe diga nada desta surpresa.
Voltou-se então para Marvina.
— Quer-se sentar perto do fogo, meu amor? A noite está bem fria.
— Sim, Stuart —, murmurou ela, sentando-se num farfalhar de sedas. Os cabelos negros lhe brilhavam à luz da lareira. No rosto de marfim e nos olhos dourados não havia qualquer expressão. Até quando sorria, o sorriso era vazio. Obedecia apenas. Se ele lhe dissesse que se levantasse e começasse a dançar, ela faria isso mesmo com calma e sem surpresa. A boca, semelhante a uma ameixa madura, produzia sorrisos automaticamente.
Era muito bom ter uma esposa calada, pensou Stuart distraidamente. Seria horrível ter em casa uma dessas mulheres que falam sem parar. Mas não era realmente nisso que estava pensando ativamente. Prestava atenção aos passos de Janie nas escadas. Qual seria a reação de Janie? Podia fazer uma ideia e era isso que lhe dava aquele desagradável arrepio na raiz dos cabelos e um amolecimento na espinha. Rezou aos seus deuses profanos para que ela mostrasse ao menos alguns resquícios de comportamento civilizado. Não queria que aquela inocente criança ficasse apavorada, aquela moça de dezoito anos que, embora tivesse idade legal, tinha vivido como emparedada. Não queria que seus ouvidos virginais fossem manchados pelas blasfêmias da grosseira e vulgar Janie, que sabia ser realmente suja quando se enfurecia.
Ouviu a porta do quarto de Janie se abrir e os seus passos leves no andar de cima. Levantou-se e ficou ao lado de sua esposa, com a mão no ombro dela.
— Meu amor —, disse ele apressadamente, encarando o brilho dourado de seus olhos obedientes —, minha prima Janie é às vezes um pouco esquisita, como já lhe disse. Não vai ficar alarmada com ela?
— Oh, não —, disse ela suavemente. E, de maneira muito estranha, os olhos dela se encheram de um brilho que ele nunca tinha visto. — Não sei se sabe, Stuart, mas já conheço a Sra. Cauder e a acho muito educada.
"Muito educada", pensou Stuart, sentindo quase vontade de rir. Ela ainda não sabia o que eram furacões, tempestades e feras soltas.
Mas Janie estava entrando, vestida de foulard branco enfeitado de amores-perfeitos, com os ombros nus cobertos por um xale de renda branca sobre o qual iam cair os cachos ruivos laboriosamente arrumados. Entrou na sala com um passo rápido, estuante de vitalidade e alegria, exclamando:
— Por onde andou, Stuart? Deixou seu jantar ficar esfriando, seu cachorro!
Parou de repente, como que petrificada, e olhou para Marvina. O rosto pequeno e estreito ficou muito pálido e as sardas do nariz grande quase pularam.
Marvina, com um vestido de seda marrom e gola de renda branca, levantou-se num movimento majestoso, sorriu e esperou. Nada poderia ser mais decente e sereno. O mau momento havia chegado. Stuart estava banhado de suor, embora estivesse sorrindo.
Avançou um passo ou dois, colocando-se involuntariamente entre a mulher e a prima. Tentou falar, mas a garganta seca não lhe permitiu articular som algum. Quanto a Janie, continuava petrificada, com o rosto contorcido, irado e malévolo como o pecado. Os ombros se encurvaram um pouco, como se fosse pular. Quando Stuart, angustiado, pigarreou, ela se voltou para ele, com os olhos cheios de ferocidade.
— Então? Que é que está acontecendo aqui?
Num tremendo esforço, Stuart encontrou a voz e começou a dizer:
— Como se atreve a falar nesse tom, como se eu não estivesse dentro de minha casa?
— Vá para o diabo, Stuart! — exclamou ela com selvagem desprezo. — Pare com essa tolice e me diga o que é que esta sujeitinha está fazendo nesta casa, nesta casa que você praticamente me prometeu que seria minha!
Bateu os pés. A sua voz subiu a um grito estridente de raiva. Compreendia tudo. Uma moça como Marvina nunca entraria naquela casa sozinha se o incrível, o impossível, o terrível não tivesse acontecido.
— Por que traz suas mulheres para esta casa, Stuart Coleman? Sempre julguei que o teto sob o qual se abrigaram meus indefesos filhos fosse respeitável e sagrado!
Stuart ficou de certo modo satisfeito com essa explosão feroz. Isso lhe dava a oportunidade de reagir no mesmo tom, com rudeza semelhante. Tivera naquela tarde uma visão desagradável de Janie desmaiada, de Janie em agonia, de Janie em lágrimas. Talvez assim ele não a pudesse enfrentar com êxito. Tudo teria degenerado num impasse terrível. Mas uma Janie furiosa, que gritava e insultava era mais fácil de enfrentar pois não havia necessidade de piedade, de escrúpulos ou de remorsos.
Disse então em voz enérgica:
— Veja como fala! Esta é minha esposa, a dona desta casa e eu exijo que seja tratada com a delicadeza e a cortesia que merece!
— Sua esposa? — murmurou ela em voz baixa e talvez mais terrível ainda. — Essa criatura é sua esposa?
— Sim, senhora, minha esposa. Casamo-nos esta tarde em La Grange, um lugar a cerca de três léguas daqui. Pode parecer-lhe uma surpresa, mas há muito que estamos planejando isso.
Olhou receoso para Marvina e ficou espantado. Não estava de modo algum perturbada. O sorriso fixo não se havia dissipado. Podia estar sozinha naquela sala, de tão alheia e desprendida que parecia. Olhava Janie com os olhos arregalados e vazios de uma criança que ainda não aprendeu a ter muitas emoções. Era evidente que não estava horrorizada, nem amedrontada.
No súbito intervalo que se seguiu às palavras de Stuart, Marvina disse com a sua voz rica e tranquila, ao mesmo tempo que fazia uma cortesia:
— Boa noite, senhora.
Stuart e Janie olharam para ela, com os rostos incrédulos vazios de qualquer expressão. Aquela atitude depois de toda a agitação, de todos os gritos e de todas as ameaças!
Stuart começou então a rir, sem poder controlar-se. Riu até que as lágrimas lhe chegaram aos olhos. Olhou então para o rosto sereno de Marvina, que nem com o seu riso se surpreendia, e para o rosto espantado de Janie e entregou-se a novo paroxismo de riso. Por fim, conseguiu conter-se, sem olhar para as duas mulheres.
Janie recobrou-se do seu espanto, mas ficou em silêncio. Sabia que qualquer palavra que dissesse naquele momento lançaria Stuart em novo acesso de hilaridade, fazendo-a parecer mais ridícula. Virou-se então para Marvina, que a olhava com o mesmo sorriso, como se nada tivesse acontecido e aquela situação fosse a mais normal possível.
— Então —, disse ela com uma voz carregada de vitríolo —, casou-se com meu primo, não foi, vagabunda?
Se ela esperava provocar Marvina e quebrar aquela calma sorridente e impassível, estava muito enganada. Marvina sorriu ainda mais radiantemente e de novo com aquele estranho brilho nos olhos.
— É verdade —, disse ela. — O casamento foi hoje à tarde. O querido Stuart foi um pouco precipitado, não acha? Devíamos tê-la convidado e eu disse isso mesmo a Stuart, mas ele foi contrário, dizendo que estava indisposta. — O sorriso foi ainda mais amplo. — O ministro foi tão gentil, mas eu teria preferido o Sr. Hawkins, de nossa igreja.
Janie a olhou com o rosto rígido e completamente transtornado pela raiva e pela maldade.
— Tinha porventura conhecimento, minha senhora —, perguntou Janie —, de que meu primo me prometeu casamento, aproveitando-se de meu estado indefeso e dando-me provas materiais de sua intenção?
Pela primeira vez, alguma estranheza transpareceu nos olhos de Marvina. Olhou para Stuart e voltou-se placidamente para Janie.
— Não sei de nada disso. Só sei é que Stuart se referiu a sua pessoa da maneira mais simpática. Tem certeza de que não está enganada?
— Enganada? — exclamou Janie, exaltando-se de novo. — Será que não entende o que eu quero dizer quando afirmo que ele se aproveitou de meu estado indefeso? Compreende, idiota, que ele dormiu comigo depois de me fazer promessas?
Parou, prendendo o fôlego na sua raiva, esperando que a moça desse um grito de horror, escondesse o rosto entre as mãos de vergonha ou procurasse fugir da sala. Mas Marvina se limitou a olhar para ela tranquilamente e a dizer:
— Isso foi muito errado.
Não houve nem uma entonação diferente da voz quando ela disse isso. Depois de falar, ficou polidamente à espera do que Janie tinha para dizer.
Mas Janie, confusa, não sabia mais o que dizer. Encarou Marvina, arregalando os olhos, sem acreditar que alguém pudesse ser assim, julgando-se na realidade vítima de um pesadelo. Olhou para o belo rosto, para a boca passiva e para os olhos dourados que a contemplavam com uma desinteressada simpatia. Não era possível acreditar naquilo!
E então toda sua frustração, seu ódio, sua raiva, sua decepção, sua lascívia, sua angústia feroz se tornaram intoleráveis. Avançou para Marvina com os dedos perigosamente encurvados como garras, com os dentes arreganhados e os olhos alucinados, produzindo horríveis sons inarticulados. Os movimentos dela foram rápidos, mas Marvina recuou instintivamente diante de toda essa fúria e levantou o braço para proteger o rosto contra o qual era desfechado o feroz ataque de Janie. As garras foram cravar-se na seda grossa da manga e, embora a fazenda se rasgasse, a pele nem foi arranhada. Não obstante, a moça recuou sob o assalto e começou a chorar baixo, como um gatinho.
Stuart ouviu o choro e se voltou. Viu Janie preparada para atacar de novo. Viu a manga rasgada do vestido de Marvina e o seu espanto. Num instante, agarrou Janie pelo braço e afastou-a da moça. Levantou o braço e bateu-lhe violentamente no rosto, primeiro de um lado e, depois, do outro, com as costas da mão. Ela então se virou contra ele como uma gata selvagem, tentando atingir-lhe os olhos e as faces. Houve um momento em que as unhas atingiram mesmo o rosto de Stuart e o sangue começou a escorrer.
Ela era pequena e ele, grande, mas Janie tinha a força de dez demônios. Conseguiu desvencilhar-se dele e tentou aproximar-se de novo de Marvina, que estava extremamente pálida e amedrontada e começava a soluçar. Os seus cabelos se haviam desfeito e lhe caíam sobre os ombros.
— Stuart! Stuart! — chamava ela em voz chorosa.
Mas Stuart, praguejando entre os dentes cerrados, estava ocupado demais para dar-lhe atenção naquele momento. Tentou agarrar os braços de Janie e prendê-los junto ao corpo. Sacudia-a violentamente até que os dentes dela tremeram. Mas ela estava quase acima de suas forças. Sentiu-se empolgado por uma espécie de horror. O rosto dela estava abaixo do dele e era o rosto de um demônio, branco e furioso, cheio de insensatez e de loucura. Nunca ele havia enfrentado nada assim em toda sua vida. Era como se estivesse em luta com um ser sobrenatural e obsceno, que lhe inspirava repulsa e pavor. Não poderia suportar que ela o tocasse. O rosto lhe ardia como se lhe houvessem derramado veneno nele. Sentiu-se mal, quase alucinado.
Odiava-a, abominava-a. Por fim, conseguiu pegar-lhe ambos os braços e prendê-los à sua frente. Ainda assim, ela conseguia virar os dedos e arranhar-lhe os pulsos. Ele não podia nem olhar-lhe o rosto, de tão deformado que estava.
— Cadela! — vociferava ele. — Cadela!
O horror que sentia dela levava-o quase à loucura. Torceu-lhe os braços até que ela começou a gritar e os criados se juntaram à porta e olharam para tudo, trêmulos. Ela jogou a cabeça para trás e gritava como uma demente. As crianças, que estavam jantando nos alojamentos dos criados, ouviram e se juntaram na escada. Até o equilibrado Robbie chorava. Angus tinha a irmã nos braços e lhe cobria os ouvidos com as mãos.
Cada vez mais horrorizado, Stuart tampou com a mão a boca de Janie. Ela tossiu e arquejou, ao mesmo tempo que tentava mordê-lo. Mas ele foi inexorável. Queria fazer cessar aqueles gritos fantásticos que o estavam alucinando. Embora trêmulo, apertou-a mais com o braço e aumentou a pressão com a outra mão. Só as pernas dela estavam livres e ela lhe dava repetidos pontapés. Não os sentia. Fechou os olhos, empenhado que estava apenas em fazer cessar aquele barulho alucinante.
Foi nesse momento, diante dessa cena edificante, que Joshua entrou, acompanhado do Xerife.
Viu os criados, que não tinham ouvido os seus repetidos toques de campainha e não lhe tinham aberto a porta. Viu as crianças agrupadas nos degraus da escada. Viu Stuart em luta com uma mulher enfurecida. Viu sua filha a alguma distância, com os olhos arregalados, o rosto confuso e pálido, os cabelos desgrenhados e o vestido rasgado.
Olhou para tudo isso incredulamente e ficou parado, apoiado em sua bengala. Só o Xerife se moveu, Stuart era seu velho amigo e ele se sentia muito confuso diante de tudo aquilo. Mas sabia o que lhe competia fazer diante da violência. Colocou fortemente a mão no braço de Stuart e segurou Janie com a outra. Apartou-os. Vendo-se livre, Janie percebeu apenas outro antagonista à sua frente e atacou-o. Ele lhe deu uma pancada seca no rosto e a fez recuar de costas até ir cair sentada numa cadeira.
— Que quer dizer isso? — perguntou energicamente. — Querem explicar o que está havendo? Fale, homem!
Mas Stuart não podia falar. Tirou o lenço do bolso e passou-o no rosto que sangrava. Janie, em sua cadeira, vendo o que estava acontecendo, chorava ruidosamente. Apontou o dedo trêmulo para o primo e exclamou:
— Ele tentou me matar! Quis estrangular-me!
Pálido e mudo como um fantasma, Stuart continuou a limpar o sangue do rosto. O Xerife, que nada compreendia, olhou-o compassivamente. Voltou-se então para os criados.
— Vão buscar uísque! — ordenou com tom autoritário. Voltou-se para Stuart — Sente-se, homem. Reaja. Aqui está uma cadeira.
Stuart sentou-se. Parecia estar passando muito mal. Com o braço sobre o joelho, descansou a cabeça na mão. O Xerife deu um suspiro.
— Tenho um mandado de prisão contra você, sob a acusação de rapto. Tem alguma coisa a dizer em sua defesa?
Stuart conseguiu falar e disse:
— Diga àquela mulher que pare com esses gritos —, implorou ele apaticamente.
Os gemidos de Janie aumentavam de intensidade. O Xerife se voltou para ela e exclamou:
— Pare com isso! Que é que está havendo aqui afinal de contas? — Um criado apareceu com um copo de uísque. O Xerife tomou o copo e colocou-o na mão de Stuart. — Tome. Beba isto.
Enquanto isso, Joshua se arrastara até junto da filha. Olhou-a inexpressivamente e disse:
— Volte para casa imediatamente, querida. Isto aqui não é lugar para você. Onde é que estão sua capa e seu chapéu? Venha, querida. Papai a receberá.
Mas Marvina nem pareceu tomar conhecimento da presença dele. Olhava apenas para Stuart, que estava tomando o uísque. Levantou as mãos e ajeitou mecanicamente os cabelos.
— Você não quer que ele seja preso, quer meu amor? — perguntou Joshua com voz branda. — Ele passará a noite na cadeia se você não vier imediatamente para casa. Quer viver aqui com essas terríveis criaturas? Venha e seu pai nunca mais falará no que aconteceu. Papai e a filhinha dele irão para longe, para muito longe para esquecer tudo isso.
Compreendia muito bem o que havia acontecido. Olhou para Janie e teve um riso irônico. Lady Vere de Vere e Sir Angus Fraser... Pois sim! Aquilo tinha sido uma maravilha. Nada poderia ter sido melhor para ele.
— Essa mulher vivia com ele, minha querida. Foi onde a sua inocência a fez cair, nesta abominável casa! Foi esse o patife que convenceu você a deixar seu pai para vir para este antro de iniquidade. Mas papai veio salvá-la e nós vamos esquecer toda essa miséria. Isso nunca aconteceu. Enquanto isso, ele vai ter o castigo que merece.
Stuart entregou o copo ao Xerife, que o olhava com pesar e compaixão.
— Muito obrigado, Bob. — Respirou fundo e disse: — Não ia matá-la, Bob, embora vontade não me faltasse. Ela atacou minha esposa.
— Escute, Stuart, Você se casou com a Srta. Marvina?
— Casei-me, sim. Esta tarde.
Stuart tomou então conhecimento de sua mulher. Levantou-se, vacilante. Voltou-se para ela e estendeu-lhe a mão. No rosto dela se esboçou um leve sorriso. Marvina deixou imediatamente o pai e se encaminhou para ele sem a menor hesitação. A sua serenidade tinha voltado. Deu-lhe a mão e sorriu para ele.
O Xerife olhou para ambos e voltou-se então para Joshua.
— Disse-me que ele a havia raptado e a estava forçando a casar-se com ele, Sr. Allstairs.
Joshua fez uma careta malévola e exclamou:
— Ela ainda não tem idade! E não acredito que ele se tenha casado com ela! Queria apenas trazê-la para esta casa!
— Pode provar o que afirma, Stuart? — perguntou o Xerife.
— Sem dúvida. Tenho a certidão aqui no bolso. Casamo-nos hoje à tarde perante um ministro metodista em La Grange. Aqui estão os nomes das testemunhas. E a moça não é menor. Tem quase dezenove anos. É uma mulher e não uma criança.
O Xerife examinou cuidadosamente o documento. O seu embaraço aumentou. Olhou para Stuart ali de pé ao lado de sua jovem esposa. Havia nele uma calma dignidade, apesar do desalinho de suas roupas e do rosto ferido, uma espécie de esplendor que era uma das suas mais fortes e magnéticas características físicas. Houve na sala um súbito silêncio, quebrado apenas pelos soluços de Janie e pelos seus apelos de justiça ao Onipotente.
— Tudo parece correto, Sr. Allstairs —, disse o Xerife, que era um homem honesto e detestava Joshua. — Sua filha tem mais de dezoito anos, que é a idade legal para o casamento. Não foi raptada, tendo ido para Stuart por sua livre e espontânea vontade. Casou-se com Stuart e agora nada há que possamos fazer.
Joshua se arrastou para o Xerife e para Stuart, tremendo dos pés à cabeça. E exclamou:
— Não há então justiça para a sedução de minha filha, que sempre foi guardada em sua inocência e protegida desses patifes? Não há punição para um homem que entra na casa de outro e lhe rouba o seu maior tesouro? Se a menina não tivesse sido tão protegida, nada disso teria acontecido. Ela pode ter idade legal, contando pelos anos, mas tem ainda o espírito de uma criança. Exijo justiça!
O Xerife franziu o rosto.
— Sr. Allstairs, a lei não considera rapto quando se trata de uma moça de idade legal fisicamente e consente em se casar com o seu pretendente, independentemente da idade mental que lhe é atribuída pelo pai. Não quer dizer que sua filha é incapaz e débil mental, de acordo com a lei?
Joshua rangeu os dentes. A filha olhou para ele e deu-lhe aquele sorriso vazio que era o seu comentário para todas as coisas.
— Querido Papai —, murmurou ela, ternamente como se tudo aquilo fosse muito natural e o pai tivesse dito as coisas mais triviais do mundo.
Joshua brandiu a bengala no ar e gritou furiosamente:
— Exijo justiça! Há uma lei moral acima da que está escrita nos livros. Esse homem é um ladrão, um patife, um libertino desclassificado cujo nome é um escárnio nos lugares de má fama, um miserável mentiroso e trapaceiro! Casou-se com minha filha de pura ambição pela fortuna dela. Está em situação financeira difícil e usa essa criança inocente para obter meu dinheiro! Foi esse o seu único objetivo em seduzir minha filha e tirá-la de casa!
— Tenha cuidado —, disse severamente o Xerife. — De acordo com a lei, pode estar dando motivo a Stuart de acioná-lo pelas coisas que está dizendo. Dou-lhe essa informação graciosamente.
Mas Joshua já não se continha de frustração, de ódio e de mágoa.
— Ele subornou meu empregado! Convenceu aquele homem com suas artimanhas a entregar-lhe minha filha, que nada sabe de homens! Subornou aquele homem! Só soube isso há duas horas, graças à criada que merecia a confiança do miserável! Não há justiça então para um pai roubado, para uma casa violada, para uma moça infelicitada?
Batia a bengala no chão com incontrolada raiva. As lágrimas lhe corriam pelas faces murchas. Apontou com a bengala a chorosa Janie.
— Veja aquela mulher, a mulher que se diz prima dele. Ele a atacou criminosamente, com intenção homicida! Isso se verificou quando ele trouxe minha filha para esta casa infame! Pergunte-lhe por que foi ela atacada, embora seja uma viúva indefesa com filhos pequenos!
O Xerife voltou-se automaticamente para Janie ao ouvir o que Joshua dizia.
— Isso não altera a situação. Mas vou interrogá-la. Sra. Cauder, quer parar de chorar e responder a algumas perguntas?
Janie estava bem a par de tudo o que se estava passando, embora não cessasse de chorar e de fazer imprecações. Nesse momento, abandonou-se a novos paroxismos de angústia, jogando-se para trás na poltrona, cobrindo o rosto com as mãos e rezando em longas exclamações estridentes. Muito aborrecido, o Xerife voltou-se para uma empregada e ordenou-lhe que fosse buscar um vidro de sais. Enquanto esperava que Janie se acalmasse, voltou-se para Stuart e disse, sacudindo a cabeça em sombria censura:
— Em que dificuldade se meteu, Stuart!
Stuart riu, mas estava extremamente inquieto. Passou o braço pelos ombros da esposa e disse:
— Embora isso possa parecer pouco gentil da minha parte, a verdade me obriga a dizer que minha prima, a Sra. Cauder, nem sempre é fiel aos fatos nas alegações que faz. Peço-lhe, Bob, que leve isso em conta quando ela puder recuperar o fôlego e estiver em condições de dizer desaforos e mentir com a sua habitual facilidade.
Tendo chegado à conclusão de que já havia exibido bastante agonia, Janie jogou para trás os cachos embaraçados, enxugou o rosto, baixou a cabeça e se tornou de repente um símbolo de vergonha e desolação, de mulher espezinhada e indefesa. O Xerife se aproximou dela.
— Sra. Cauder, peço-lhe que mantenha a calma e responda a algumas perguntas. Declarou que o Sr. Coleman tentou contra sua vida. Por quê?
A cabeça de Janie baixou ainda mais. O peito lhe arfou e ela exclamou com voz chorosa:
— Ó meu Deus, não posso nem pensar que tenha vindo para uma terra estranha sem um protetor natural, para passar por isso! Sou apenas uma pobre viúva com quatro filhos indefesos e tive a infelicidade de dar ouvido aos insistentes convites de meu primo para que eu viesse para os Estados Unidos!
O Xerife interrompeu-a, perguntando incredulamente:
— Ele lhe prometeu casamento, Sra. Cauder?
Janie levantou a cabeça. Era uma excelente atriz. Mostrou um bravo rosto branco, emocionado e puro, banhado de lágrimas. Olhou humildemente para o Xerife e fez os cílios baterem e os lábios tremerem. Disse então:
— É verdade, prometeu-me casamento várias vezes e eu acreditei nele, desde que não tenho prática das coisas do mundo e sempre fui protegida de tudo por meu caro pai e por minha cara mãe.
Deixou que novas lágrimas lhe rolassem pelas faces e continuou:
— Acreditei tanto nele que cheguei a dar-lhe vinte mil dólares do dinheiro que minha mãe me deu quando saí da Inglaterra!
— Que canalha, que sujeito sem escrúpulos, que monstro! — exclamou Joshua. — Ladrão e assassino! Explorador de viúvas e crianças, sedutor de moças puras!
— Vinte mil dólares! — exclamou o Xerife, aflito. Olhou para Stuart, que tinha ficado muito vermelho.
— Deixe-me explicar, Bob. Ela não me "deu" o dinheiro. Sabia que a fortuna dela, de cerca de setenta e cinco mil dólares, não poderia durar muito com quatro filhos para sustentar. Propus-lhe então sociedade nas minhas lojas, embora meu sócio fizesse grande oposição a isso. Agi impelido pelos motivos mais nobres, desde que sou o único parente dela nos Estados Unidos. Há um contrato, redigido em termos claros, de que ela possui uma cópia. Há outra cópia, depositada em meu banco, onde pode ser consultada a qualquer momento.
Continuou, cada vez mais animado:
— Quanto às minhas promessas de casamento, isso é uma mentira. Ela sabe muito bem disso! Pergunto-lhe em que condições eu fiz tais promessas! Foi sob sedução? Estará ela pronta a confessar que coabitou comigo nesta casa? Estará ela disposta a comprometer sua reputação em troca de uma mentira? Para conseguir uma vantagem duvidosa, estará ela pronta a ficar desmoralizada nesta cidade e em posição insustentável?
Janie abriu a boca para falar, mas viu de repente os olhos apertados e cintilantes de Stuart, o seu sorriso equívoco. As palavras dele lhe ressoaram nos ouvidos.
A expressão desagradável se acentuou no rosto de Stuart e ele teve um riso breve.
— Como vê, Bob, minha prima é uma senhora virtuosa e, embora esteja um tanto desorientada pelo insucesso de seus planos, não pode, no seu próprio interesse, declarar falsamente que foi seduzida por mim em minha própria casa, para a qual veio por sua livre vontade e desejo. Por mais nervosa e decepcionada que ela possa estar agora, é fácil ver que ela é toda virtude e modéstia e que só disse o que disse sob o domínio de uma emoção descontrolada.
O Xerife olhou Stuart desconfiadamente. Compreendeu e franziu a testa. Sacudiu a cabeça, dizendo entredentes:
— Você deve ter mais cuidado! Um dia, pode ter muito mau resultado.
Já então triunfante, dominado pelas toxinas da exaltação, Stuart voltou-se para Joshua, que piscava os olhos, imerso em confusão.
— Quanto a você, só o fato de que é agora meu sogro me impede qualquer ação decisiva contra a sua pessoa. Deve dar graças a Deus por isso. Chamou-me ladrão e eu poderia acioná-lo por isso e reclamar uma boa quantia. Fez contra mim falsas acusações, pelas quais eu poderia dar-lhe impunemente um tiro. — Fez um gesto grandioso e sorriu desagradavelmente. — Mas eu me sinto dominado esta noite pelo espírito cristão. Agradeça a minha boa natureza deixar eu de processá-lo e dar-lhe o que merece.
Janie estava tão cheia de ódio, de loucura e de frustração que não podia senão encolher-se em sua poltrona e olhar para Stuart com uma expressão que lembrava um raio pela ameaça e pela destruição que encerrava. Era um olhar que podia matar.
Stuart estava ficando cada vez mais à altura da situação. Continuou a falar a Joshua:
— Devo-lhe já muito pouco. Dentro de quatro semanas, vou receber uma grande soma procedente de uma transação comercial. Pagar-lhe-ei então todas as minhas dívidas. Disse que me casei com sua filha pelo dinheiro dela. Dentro em pouco, poderei ter muitas vezes mais dinheiro que você!
— Que patife nojento! Mentiroso e sem-vergonha! — murmurou Janie, torcendo as mãos.
Mas Joshua, que tinha ouvido Stuart em silêncio, começou a falar em voz baixa:
— Neste momento, você ganhou. Mas isto não é o fim. Chegará o dia do ajuste de contas e, com a ajuda de Deus, procurarei apressar esse dia.
Voltou-se para a filha e falou com uma voz sinceramente comovida:
— Minha querida, você mesma viu o que tem acontecido dentro desta casa. Já estou velho e você é meu único tesouro que tenho amado e guardado. Você me abandonou não por vontade própria, mas em virtude de sua inocência. Peço-lhe pela última vez que deixe esse mau homem que vai destruí-la e arruiná-la e volte para sua casa, onde ficará protegida dele. Venha para casa com Papai, querida!
Stuart fez mais pressão com o braço sobre os ombros de Marvina. Ela se encostou mais a ele e sorriu amavelmente para o pai.
— Papai querido —, murmurou ela com sua voz de mel. — Boa noite, Papai.
Stuart, glorioso como o sol ao meio-dia, cumprimentou o Xerife.
— Agora, Bob, quer fazer o favor de desembaraçar minha casa? Estou cansado e tenho de fazer um curativo nesses arranhões que tenho no rosto para livrar-me de hidrofobia. Quanto a essa mulher e seus filhos, podem ficar em minha casa por mais vinte e quatro horas. Depois disso, devem mudar-se. É essa a minha ordem, que estou disposto a fazer cumprir.
Tomou a mão de Marvina e saiu com ela da sala, passando pelos criados e pelo Xerife, por Janie e por Joshua. Viram-na sair, viram a graça elegante de seu vestido, o seu sorriso encantador e o olhar de adoração em que envolvia o marido. Não olhou para trás, nem mesmo para o pai, que tinha um aspecto de quem fora ferido pela morte.
As crianças ainda estavam na escada. Afastaram-se para o lado em mudo e triste silêncio, enquanto Stuart e Marvina subiam lentamente. Olharam para Stuart com o rosto pálido e os olhos dilatados. Stuart sorriu para elas com indiferença. Chegou ao degrau onde Angus e Laurie estavam de pé, abraçados. O rosto da menina rebrilhava de lágrimas. Mas os seus olhos azuis se fixaram com firmeza em Stuart
Ele nunca soube o que o fez parar ali ao lado da criança. Sabia apenas que alguma coisa o prendia e faria ficar ali olhando para ela, olhando-a com um curioso pulsar do coração. Curvou-se então e beijou o rostinho pálido.
— Boa noite, meu amor —, disse ele, tocando-lhe delicadamente os cabelos dourados.
Quanto a Marvina, ficou olhando as crianças com seu sorriso fixo e inexpressivo, fez um gesto de despedida e continuou, seguido por Stuart.
Chegaram à porta dos aposentos de Stuart. Este sentia o sangue pulsar violentamente. Parou à porta e tomou a mão de Marvina. Olhou para ela com intensa paixão. Ela sorriu placidamente e disse:
— Que lindas crianças, Stuart! Tenho certeza de que vou gostar muito delas.
Stuart não pôde falar. Pela primeira vez, compreendia que sua mulher era idiota, profundamente idiota.
LIVRO II
Os Filhos à Porta
"Seus filhos são privados de qualquer socorro, são pisados à porta, ninguém os defende."
JÓ, V, 4.
CAPÍTULO 26
Angus Cauder pegou os seus livros de medicina embaixo do balcão e colocou-os em cima dele. Passou as mãos magras pelo rosto e deu um suspiro. Toda a vida parecia extraída dele, de modo que ele se sentia seco e frágil. Até o espírito estava ressecado, carregado com a poeira acumulada do velho desespero, da falta de esperança e da aquiescência. Passou a língua por dentro da boca a fim de atenuar a sensação de secura que lhe vinha da alma.
Os últimos fregueses tinham saído. Até os caixeiros se haviam retirado, fechando as portas. Angus correu o dedo pelo alto dos livros e suspirou de novo. Em seguida, num gesto dramático, empurrou os livros para o lado e foi até à sala dos fundos, que servia de escritório às lojas. Caminhava um tanto encurvado, porque, além de não ser forte, era muito alto e magro. Os seus movimentos não mostravam a energia e agilidade da juventude. Caminhava como um velho, oprimido pelo peso dos anos e anquilosado por velhas decepções.
Stuart, que examinava a escrita, levantou a vista e viu o rapaz. Sorriu, recostando-se na cadeira. Estava também muito cansado. Alisou com as mãos os cabelos, onde já havia alguns fios brancos.
— Já acabou, Angus? Mas é claro, que são quase sete horas. Que é que está fazendo aqui até tão tarde?
— Era preciso dobrar algumas peças do novo foulard, Stuart.
A lâmpada em cima da mesa lançava a sua luz pálida sobre os livros de escrituração e sobre as novas paredes apaineladas, porque, mesmo ali, Stuart não dispensava o seu senso de elegância e o seu gosto pelo luxo. Angus ficou em silêncio dentro do círculo de iluminação, com os grandes olhos cinzentos ocultos, o rosto pálido e sofredor enrugado, ainda que ele fosse tão moço, cheio de reticências crônicas e de orgulho. A boca, sempre reservada e magra, era uma linha firme de cantos rígidos, como se fosse um portão de ferro implacavelmente fechado ao espírito interior e à alegria exterior. Os finos cabelos castanhos, macios e compridos, escorriam pelo crânio estreito e duas ou três madeixas caiam sobre a testa com seus nobres contornos e fortes protuberâncias.
Stuart olhou-o com furtiva inquietação. Acendeu um charuto e franziu a testa.
— Você já está aqui há seis meses, Angus. Que tal acha as lojas e tudo mais?
— Muito bem, Stuart É muito interessante, não é?
— É mesmo? Você acha interessante, Angus?
Angus hesitou. Moveu os longos pés. Vestia casimira preta e camisa branca do mesmo modo que os outros caixeiros e isso lhe dava ao corpo emaciado um aspecto fúnebre. Emergindo da roupa preta, as mãos magras e bem modeladas pareciam muito brancas e sem vida.
— As pessoas são sempre interessantes, Stuart — disse ele.
— São mesmo? — perguntou Stuart fechando a cara e olhando para o charuto. — Para mim, só servem para atrapalhar, na sua grande maioria. Entretanto, fico contente de que você não esteja insatisfeito aqui dentro.
Sabia que o jovem tinha ido procurá-lo para um determinado fim, mas não podia saber o que era. Angus nunca facilitava a comunicação entre eles. Nos seus contatos com Stuart a atitude de Angus era sempre reservada e negativa.
Quando Angus ficou calado, Stuart olhou diretamente para ele.
— Você está satisfeito, não está, Angus?
Angus baixou a cabeça e disse:
— Perdoe-me, Stuart, mas não estou. Acontece que Mamãe acha que eu devo ter um pequeno aumento.
— Acha, não é? E que é que sua mãe sugere?
Percebendo a nota de raiva na voz de Stuart Angus ficou vermelho. Levantou a cabeça e olhou para Stuart arrogantemente, embora houvesse um leve tremor em suas feições magras.
— Mamãe diz que, desde que ela é sócia das lojas e desde que eu trabalho aqui, devia ganhar um pouco mais do que os outros caixeiros. Diz ela que eu devia receber no mínimo três dólares por semana.
— E você o que é que acha disso, Angus?
— Acho que me deve pagar cinco dólares por semana.
Stuart voltou de repente a sua atenção para o charuto.
— O fumo que se consegue hoje em dia é uma vergonha! Olhe só para este charuto!
Tirou a manga de vidro da lâmpada e encostou a ponta do charuto à chama que tremeu e se enegreceu.
— É preciso provocar um verdadeiro incêndio para acender um charuto!
Recolocou a manga, tirou algumas baforadas e então olhou para Angus e sorriu:
— Muito bem, então. Prefiro sua opinião à de sua mãe. Você vai receber cinco dólares a partir do próximo sábado. Que tal?
— Muito obrigado, Stuart —, disse Angus, friamente.
Fez menção de sair, mas Stuart, impetuosamente como sempre, resolveu falar-lhe.
— Quer-se sentar um momento, Angus? Quero falar com você.
— Mas já é tarde, Stuart. Você sabe que jantamos às sete e meia. Mamãe ficará aborrecida se eu a atrasar.
— Oh, é claro que não devemos aborrecer Mamãe. Mas estou esperando minha carruagem e levá-lo-ei para casa. Dentro de cinco minutos. A pé, você não iria mais depressa. Não o vou prender muito.
Angus pensou por um momento e então disse com uma ponta de orgulho na voz independente:
— Está muito bem.
Sentou-se na borda de uma cadeira e olhou para Stuart com uma expressão vagamente hostil. Stuart notou isso e a sua indecisão cresceu. E a sua compaixão também.
— Talvez você pense que isso não é de minha conta, Angus. Mas você e eu fomos amigos há muito tempo. Ainda sou. Sempre gostei muito de você. Sabe disso, não sabe?
Angus ficou em silêncio, mas os cantos de sua boca se repuxaram num sorriso de antipatia, frio e descrente.
— Você deu ouvidos a falsas histórias a meu respeito, Angus! É evidente. Tem de acreditar que eu sempre gostei muito de você.
O rapaz moveu-se, como se fosse levantar-se e sair. Mas nada disse. Continuou a olhar Stuart e a esperar. Stuart estava ficando nervoso e pensou desconsoladamente que isso era ruim para o seu fígado. Ora, o fígado que fosse para o inferno! Não podia deixar de fazer uma tentativa de salvar aquele jovem maluco e quebrar-lhe as ridículas defesas.
— Quando você tinha quatorze anos, Angus, me disse que queria ser médico. Um amigo meu me impôs a obrigação de cuidar de você, de animá-lo e de ajudá-lo. Fiquei aborrecido porque isso para mim não era uma obrigação. De qualquer maneira, nunca me esqueci disso não só em atenção a esse amigo, mas também em atenção a você. Em junho passado, você concluiu o seu curso no ginásio. Tive uma surpresa quando sua mãe solicitou que você começasse a trabalhar nas lojas.
"Você tem feito um bom serviço aqui, Angus. Tem um espírito atilado e compreensivo. Já tem ajudado na escrita e eu tenho a ideia de encarregá-lo de uma participação maior nesse setor, ao menos para ajudar Sam, que não é mais o mesmo depois da febre que teve em março último. Mas vai custar um pouco até você poder encarregar-se de toda a escrita.
"Sim, não resta dúvida que você está indo muito bem e que um dia poderá ir excelentemente. Mas não era isso o que eu esperava de você. Já terminou o curso secundário e eu tinha toda a esperança de que fosse começar a estudar com um bom médico, por exemplo, com o Dr. Dexter. Conversei com ele na primavera passada e ele concordou em aceitá-lo como aluno. Você sabe disso. Por que mudou de ideia? Não está mais interessado em estudar medicina?
Angus respondeu numa voz sem inflexões:
— Pouco importa que eu esteja interessado ou não, o que eu tenha planejado ou o que eu queira, Stuart. Mamãe não me pode manter na ociosidade e eu estou na obrigação de ajudá-la.
— Isso é um verdadeiro absurdo! — exclamou Stuart, furioso. — Sua mãe está recebendo quase seis mil dólares por ano como produto de seu investimento nas lojas. Ainda no ano passado, se não estou enganado, ela recebeu mais do que isso. Não tocou de modo algum no seu capital. E há dois anos, quando o pai dela morreu, ela recebeu mais dez mil dólares como sua parte da herança. Ela está com todo o dinheiro guardado nos seus cofres. Ela está muito em condições de deixar você fazer aquilo com que sempre sonhou.
Angus se ajeitou na cadeira com os olhos faiscantes como se tivesse recebido uma afronta pessoal.
— Stuart, você não está a par de todos os negócios de minha mãe e considero um pouco apressado de sua parte criticá-la. Esquece que há mais três filhos e que ela não me pode exatamente mimar, Bertie tem apenas dezessete anos, Robbie não tem dezesseis e Laurie agora é que tem onze. Os meninos ainda não acabaram o curso secundário e Mamãe às vezes passa dificuldades. Tenho de ajudá-la. E meu dever. Seria imoral se eu me queixasse. Devemos deixar de lado as nossas esperanças quando elas entram em conflito com o nosso dever. Não podemos pedir aos outros que sofram e se sacrifiquem por nós. Esse egoísmo é pecaminoso e cruel.
— Você considera pecaminoso e cruel resistir às exigências absurdas e insensíveis de uma mulher ávida por dinheiro só porque ela é sua mãe?
Angus se levantou e disse com a voz entrecortada pela emoção.
— Muito boa noite, Primo Stuart.
Mas Stuart se levantou também e foi colocar-se diante da porta.
— Pelo amor de Deus, Angus! É a última vez que falo com você e tento fazê-lo ver o que sua mãe está fazendo com você. Vou dizer o que acho que devo dizer e depois você poderá ir-se embora e seja o que Deus quiser!
"Sua mãe nunca pôde gostar de você. Na sua dedicação a ela, você nunca quis ver isso! Ela está empenhada em arruinar sua vida. Já conseguiu fazer de você um pequenino e mesquinho ganhador de dinheiro. Mas você está revoltado até às profundezas da alma com o que está fazendo! Tenho observado você a trabalhar nas lojas desta porta e tenho visto o seu sofrimento. Você está morrendo, Angus. Se fosse só no corpo, não teria tanta importância. Mas é sua alma que está morrendo, Angus! Está deixando que uma mulher que o odeia, que tem prazer em contrariá-lo e torturá-lo, faça isso com você! Ela está destruindo essa coisa idiota que você chama sua alma! Ela está usando os seus melhores instintos, a sua dedicação e a sua noção do cumprimento do dever para destruí-lo!
Parou, sentindo que o fôlego lhe faltava. O seu traiçoeiro coração lhe batia fortemente no peito, causando-lhe grande dor. Que coisa! Teria de abster-se do seu uísque naquela noite. Levou a mão ao peito e fez instintivamente pressão.
Angus tinha-se afastado dele para o outro lado da mesa e, naquele momento, só a parte inferior do seu corpo estava iluminada. O rosto estava mergulhado na sombra. Mas, mesmo na sombra, o aço cinzento de seu olhar brilhava com desprezo e mágoa.
Stuart tremia. Respirou fundo, tentou dominar a veemência de sua voz e disse:
— Você fala do seu dever, mas esquece o dever que tem para com sua própria alma. Um homem tem de guardar e proteger a sua alma até ao momento de sua morte. Concorda comigo nisso, não concorda? E para guardar e proteger sua alma, o homem tem de ceder ao seu instinto. Você sempre quis ser médico. Seus sentimentos são de um homem dedicado e abnegado. Essa é que é a tendência de sua alma!
"Mas está permitindo que aquela mulher destrua sua alma para transformá-lo num animal cobiçoso e ávido, um avarento empenhado apenas em ganhar dinheiro. Já começou a ver com um sorriso que é quase de amor às moedas de ouro que lhe passam pelas mãos no balcão. Observei-o daqui. Mas não era um sorriso belo. Era horrível. Eram os estertores de sua alma que está morrendo, Angus!
Teve de parar pois o fôlego lhe faltava de novo. Mas os olhos, habitualmente tão displicentes e egoístas, ardiam de ansiedade e de súplica.
Ouviu então a voz firme de Angus.
— Está falando em alma, Primo Stuart. Mas não acredita nem na alma, nem em Deus. É um homem mau e sabe muito bem disso, Primo Stuart. Não posso dar atenção ao que me diz. As suas palavras nada significam para mim.
Fez uma pausa enquanto Stuart o olhava com incrédulo desespero.
— Tenho cumprido o meu dever aqui, Primo Stuart. Continuarei a proceder assim, se consentir que eu continue depois disto. Pode sempre confiar em mim. Quero aprender os negócios da firma, desde que minha mãe é sócia da mesma. Pretendo passar a vida nas lojas. É assim que eu quero. E não posso escutar ninguém, e muito menos você, que me queira desviar do que Deus e eu sabemos que é o meu dever. Exortações bem-intencionadas nunca podem partir de uma pessoa sem princípios. Não creio que possa dar bons conselhos ou orientação acertada a ninguém. Quais são seus motivos não sei. Desconfio de que só me esteja dizendo isso para contrariar e espezinhar minha pobre mãe, que dedicou a vida a seus filhos órfãos. Está me aconselhando a abandonar o meu dever para satisfazer meus desejos frívolos e profanos.
Ao ouvir essas imbecilidades, Stuart não sentiu nova cólera, mas foi invadido de um triste desespero. Levantou a mão como se quisesse afugentar uma nuvem de insetos que zumbissem em torno dele. Disse então com voz pausada:
— Angus, se sua mãe não deixar que você estude medicina e você tem medo de ficar sem dinheiro e ser expulso de casa, venha morar comigo. Recebê-lo-ei com prazer e lhe darei toda a ajuda necessária. Poderá morar em minha casa e estudar com o Dr. Dexter.
"Sou seu amigo. Nunca insisti em fazer o bem com ninguém senão com você. Tudo isso é muito desagradável para mim. Cada qual tem o direito de escolher a vida que quer levar. Mas estou vendo você tão escorraçado, tão confuso, tão iludido, que acho que precisa de ajuda e lhe estou oferecendo essa ajuda, Angus. Do fundo de meu coração.
Mas Angus exclamou numa voz fina e trêmula:
— Você não tem coração, Stuart! Você é um homem mau e sem fé! É um pecado ouvir o que você diz!
Depois de dizer isso, pegou o chapéu e se dirigiu para a porta. Stuart se afastou instintivamente para deixá-lo passar. O rapaz abriu a porta e saiu precipitadamente.
Stuart ouviu-lhe os passos que se afastavam na loja. Voltou vagarosamente para a mesa e deixou-se cair na sua cadeira. Enxugou o rosto banhado de suor. Como tantas vezes antes, arrependeu-se do seu impulso insensato. Sentia-se fraco e mal depois daquele encontro malsucedido com o jovem cego a quem tinha tentado ajudar.
Abriu uma gaveta da mesa e tirou uma garrafa de uísque. Bebeu longa e copiosamente. Precisava daquilo. Largou afinal a garrafa e praguejou com raiva e desespero. Que idiotazinho, que perfeito imbecil! Que fosse para o inferno com a maldita mãe dele. Não merecia coisa melhor.
Fechou a gaveta. E ficou furioso com o fato de que a mão lhe estivesse tremendo.
CAPÍTULO 27
Stuart saiu para o calmo e parado silêncio da noite de novembro. Um leve nevoeiro tinha flutuado do lago e cada lampião de rua estava cercado de uma aura irisada. Os passeios estavam escorregadios e molhados e as pedras da calçada tinham um brilho esmaecido. Em todas as casas, apareciam retângulos de luz alaranjada. Ouviam-se ao longe rumores de carros e vagões, além de leves ecos. Não se via uma só pessoa.
Depois de fechar a porta, Stuart olhou para o seu quarteirão de lojas com a profunda satisfação de sempre. Naqueles últimos cinco anos, tinha demolido a sequência irregular de prédios caóticos e reconstruíra tudo uniformemente, com três andares de altura, de modo que tudo parecia uma só construção sólida e esplêndida. Além disso, tinha mandado abrir portas nas paredes internas, de modo que era possível ir da loja central até à última sem passar pela rua. Podia-se passar do luxuoso estabelecimento para as senhoras, para a loja de calçados, onde as senhoras podiam escolher o couro para os seus sapatos sob medida em companhia dos filhos e dos maridos; dali, podiam passar para uma loja de chapéus, uma excelente inovação pois as senhoras de Grandeville costumavam ter chapeleiras prediletas, que em geral passavam fome entre as encomendas. Stuart havia dado um emprego permanente a essas mulheres, pagando-lhes salários para elas miraculosos e fazendo jus com isso à eterna dedicação e gratidão das mesmas. Agora, era possível encontrar ali chapéus para todos os gostos e grandes quantidades de fitas, flores artificiais e penas. Além dessas lojas de luxo, havia lojas de ferragens, lojas de arreios, casas de forragem, artigos de copa e até comestíveis. Uma das lojas maiores era organizada como um antigo "armazém geral", onde um lavrador podia encontrar quase tudo e encomendar o que não encontrasse, baseando-se no catálogo compilado por Stuart e Sam Berkowitz. Em suma, uma família podia entrar por uma porta e sair pela outra, completamente equipada e atendida, além de carregada de embrulhos.
Em lugares evidentes, emoldurados em ouro, havia recortes de grandes jornais mandados a Stuart de vários distantes centros metropolitanos, que lhe louvavam as inovações e o gênio comercial.
Stuart empregava no momento cerca de vinte caixeiros, homens e mulheres, uma inovação que fizera Grandeville arregalar os olhos de espanto. Todos eram bem adestrados e elegantes, conscientes de suas responsabilidades como empregados da maior e mais bela loja do país. Comportavam-se com a maior finura e distinção. Trabalhar para Stuart era não só receber salários acima de todos os sonhos da avareza, mas também gozar de um certo relevo social. Não eram "degradados" pelo trabalho que faziam. E o amor que tinham a Stuart não era apenas uma consequência de seus salários. Achavam-no bondoso, compreensivo, tolerante e atencioso. Quando ele passava pelas lojas, era seguido pelos olhares de admiração dos empregados. Conhecia-os a todos e a suas famílias. Nunca estava tão ocupado que não pudesse perguntar por uma pessoa da família doente, mandar lembranças ou ouvir com sincero interesse os problemas.
Como era natural, Stuart era odiado pelos outros patrões. Era um "revolucionário", um traidor da sua classe. Dava aos trabalhadores, que tinham nascido apenas pela graça de um Deus sábio para servir a seus patrões, uma falsa ideia de sua importância no plano social. Alguns ministros declararam que era sacrílego pagar a um caixeiro quinze dólares por semana, quando o salário justo era o habitual de seis ou sete dólares. Estava incutindo em seus empregados o orgulho, dando-lhes ideias estranhas e suscitando neles sentimentos incompatíveis com a sua posição social.
Mas, apesar dessas condenações e das ameaças de boicote, Stuart prosperava. Tinha introduzido outra ideia no comércio: O Freguês Tem Sempre Razão. Até então, em Grandeville, entre os outros negociantes, a ideia predominante era caveat emptor — o comprador que se cuide. Mas Stuart tinha uma ideia inteiramente diferente. Vendia um bom artigo por um bom preço e recebia um bom lucro, embora modesto. Se o artigo tinha algum defeito, trocava-o sem hesitação pedindo desculpas ou devolvia o dinheiro. O povo de Grandeville, a princípio estupefato, terminou confiando implicitamente nele.
Mas Stuart era também muito astuto. Só vendia à vista. Por mais importante e rica que fosse a pessoa, pagava no balcão do mesmo modo que o pequeno operário ou o lavrador. Não havia crédito para ninguém. Os lavradores, habituados a ter conta corrente, poderiam queixar-se ferozmente se não soubessem que a senhora vestida de arminho, que viajava na sua bela carruagem, tinha de abrir a bolsa e pagar como eles.
"Sem contas, não há discussões e não se perdem fregueses’’, costumava dizer Stuart. "Além disso, os fregueses sabem que quem vende à vista pode vender mais barato, recebendo um lucro menor e oferecendo um artigo melhor".
Por sugestões de Sam, foi instituída outra inovação. Um fazendeiro, depois da colheita, podia depositar nas lojas de Stuart uma certa quantia que, na sua opinião, poderia cobrir as suas compras durante o ano. Depois, esse sistema foi estendido a outros fregueses urbanos. No fim do ano, faziam-se as contas e, se houvesse saldo, este era transferido para o ano seguinte ou pago em dinheiro.
De um modo geral, a grande expansão do Empório Supremo de Grandeville decorreu dos cem mil dólares que a Sra. Coleman tinha herdado ao completar vinte e um anos.
Stuart tinha passado a ser um homem rico. E, em proporção à sua renda, as suas despesas tinham crescido desordenadamente. Em vista disso, só raramente tinha uma grande soma de dinheiro em caixa. Os lucros eram empregados nas lojas e uma parte considerável era gasta à sua maneira peculiar.
A estrada de ferro tinha chegado a Grandeville e Stuart a utilizava no mínimo duas vezes por ano para visitar Nova York, para tratar ali da remessa de novas mercadorias, correr as lojas à procura de novas ideias e divertir-se. Essa última atividade lhe custava uma pequena fortuna. Era muito apreciado pelas senhoras mais luxuosas e mais alegres de Nova York. Chicago, a dinâmica cidade que crescia nos Lagos, também o conhecia como acontecia com Saratoga e o seu prado de corridas de cavalos, de que ele gostava muito. Nova Orleans e outras cidades do Sul viam-no também de vez em quando. Num verão, sem a companhia da Sra. Coleman, tinha ido a Paris.
Vivia luxuosamente com sua esposa e com sua filha única, Mary Rose, que já tinha cinco anos e a quem ele adorava. Não se privava de nada. Por isso, aos trinta e quatro anos, estava gordo demais, seu rosto vermelho passara a ficar manchado, o fígado dava sinais violentos de sua existência e já tivera dois ou três ataques de gota. Mas continuava a ser "uma bela figura de homem" e era imponente agora graças à nova corpulência e ao variado guarda-roupa, com um esplendor que seus numerosos inimigos não lhe perdoavam. A sua generosidade, a sua magnanimidade, as suas temerárias extravagâncias não contribuíam para torná-lo simpático aos conservadores e aos piedosos.
Stuart havia construído o pequeno e confortável convento atrás da igreja de Nossa Senhora da Boa Esperança e criara uma escola paroquial ao lado do convento. Ali, os filhos dos pobres podiam ser adequadamente educados e aprendiam ofícios e trabalhos de agulha, outras ideias revolucionárias que escandalizaram a comunidade durante algum tempo. Stuart propôs a construção de uma escola semelhante para os filhos dos protestantes pobres e só depois de três longos anos a proposta foi aceita e, ainda assim, depois de grande esforço da parte do Prefeito Cummings. "Dentro em pouco, ele vai abrir escolas para os negros", diziam com indignação.
Tinha ideias para um hospital público, mas a inovação provou tanta oposição e tanto horror que ele desistiu momentaneamente de levá-la avante. Discutia-a, porém, frequentemente, com o Padre Houlihan, que tinha entusiasmo por ela. O padre prometeu que as freiras do convento iriam servir no hospital e Stuart sem dúvida levou em consideração a ideia, incorporando-a aos seus planos para o hospital numa determinação que não esmorecia.
Só o Padre Houlihan e Sam Berkowitz compreendiam aquele homem impetuoso e contraditório, aquele homem de grandes e pitorescas incoerências, cóleras e blasfêmias, de compaixão, de bondade e de fúria, de egoísmo, incompreensões e brutalidade. Sabiam que os seus grandes defeitos vinham do excesso de suas virtudes, que lhe era intolerável qualquer sofrimento e que era essencial para a sua paz de espírito procurar aliviá-lo.
Apesar de tudo isso, era uma eterna criança. Era esse traço infantil que o fazia ficar, como naquela noite de novembro, diante de suas lojas e olhar, cheio de incansável admiração, para aquele fruto de seu trabalho.
Tinha esquecido momentaneamente Angus. Mas, quando viu a carruagem que esperava, praguejou em voz baixa e se dirigiu para ela a golpear raivosamente o passeio com sua bengala de castão de ouro. O seu temperamento não melhorou com a dificuldade que encontrou em abotoar o botão do meio da sua capa de muitas golas. Tinha bebido e comido com moderação nos últimos tempos, mas, apesar disso, continuava a engordar. Sentiu com apreensão a onda de calor que lhe percorria o corpo. Devia ter sido o uísque que tomara demais e tudo por culpa daquele garoto insolente. Quando passou sob a luz do lampião, mostrou o rosto excessivamente vermelho e abatido. Nas dobras das faces, bem como nas papadas do queixo, o vermelho tinha quase um tom arroxeado. Era um rosto de plenitude e dissipação, temerário e violento. A vida dissipada fazia um pouco difícil para ele subir à carruagem com a velha agilidade e a sua raiva contra si mesmo e contra Angus aumentou.
Tinha havido um alarmante latejar no seu pé direito gotoso. Naquele momento, estava melhorando. Quando a carruagem começou a rodar pelas ruas vazias, Stuart teve consciência de um sadio apetite. Devia realmente começar a fazer aquele trajeto de poucos quilômetros a pé, como lhe recomendara o médico. Iria começar no dia seguinte. Naquela noite, não beberia mais nada. No jantar, comeria apenas uma vez um bom prato de rosbife. Sentiu-se então, depois dessas resoluções, um homem muito virtuoso e enérgico. Era uma vida triste para um homem cheio de vida, especialmente na parte da proibição de muitos contatos com as mulheres. Entretanto, o médico lhe havia assegurado que, depois de viver como um monge durante seis meses, ele poderia voltar a uma vida mais normal.
Tinha uma visita a fazer antes de ir para casa. A carruagem começou a entrar em ruas modestas, na parte sul da cidade. Cerca de meia hora depois, chegou à bela casa branca do Padre Houlihan.
O padre fora atacado ultimamente de uma complicação intestinal que o deixara muito exausto. Naquele verão, tinha havido na cidade muitos casos de tifo. O padre estava em convalescença, mas naquela época as suas funções eram exercidas por seu coadjutor, o jovem Padre Billingsley, que vivia com ele na mesma casa. Stuart não gostava do Padre Billingsley, que era jovem, intolerante, fanático, muito empenhado em conseguir conversões e muito severo e piedoso. Por sua vez, o Padre Billingsley também não gostava de Stuart, que o intimidava e até amedrontava.
"Uma promessa danada de jesuíta, sou capaz de apostar!" tinha dito Stuart dele e em sua presença. Era raro que se dirigisse diretamente ao jovem padre, tratando-o sempre pela terceira pessoa e com a maior rudeza. O Padre Billingsley era alto e emaciado na sua batina preta e tinha um rosto longo, magro e pálido cheio de fervor religioso, no qual brilhavam olhos vivos e irrequietos quanto os de Stuart.
Quando Stuart entrou na casa do padre naquela noite, num estado de espírito não muito favorável, não procurou disfarçar a sua careta de desagrado ao ver o Padre Billingsley sentado ao lado do Padre Houlihan, diante da lareira. O padre mais velho, de robe, xale verde e chinelos, estava ainda muito pálido e abatido, revelando nos olhos azuis cansados, mas ainda ativos os efeitos da doença. Recebeu Stuart com um prazer simples, estendendo-lhe as duas mãos. O Padre Billingsley, com uma expressão de censura no rosto jovem e pálido, mostrava em silêncio que estava "aborrecendo" o seu superior, segundo pensou Stuart. Sabia apenas que, agora, quando vinha ver o Padre Houlihan, este lhe parecia cansado e exausto, embora paciente e delicado como sempre. Stuart fechou a cara para o padre mais moço, não tomou conhecimento de seu cumprimento e perguntou zangado por que seu amigo estava parecendo mais uma vez um rabanete descascado.
— Ora, meu caro Stuart —, disse o Padre Houlihan —, a verdade é que estou recuperando rapidamente as forças. Talvez tenha lido demais hoje à tarde.
— Pois saiba —, disse Stuart —, que o seu aspecto é o da barriga de um linguado pescado há uma semana. Será que o Dr. Malone não vem vê-lo todos os dias, como eu recomendei àquele carniceiro!
— Ora, Stuart, bem sabe que não deve chamar o Dr. Malone assim só porque ele acha que a cirurgia deve estender-se ao abdômen, em contrário à opinião geral dos médicos. Carniceiro, ora essa! Foi você mesmo que sugeriu que o Dr. Malone devia dirigir o hospital —, disse o Padre Houlihan, sem poder conter um sorriso.
— Ele não vai dirigir coisa nenhuma se não tratar melhor de você! Não permitirei que ninguém, seja lá quem for, se descuide de você ou o aborreça!
Olhou de novo ferozmente para o Padre Billingsley, que, embora com medo, levantou a cabeça e tentou parecer severo e importante.
O Padre Houlihan segurou a mão do outro padre, sorriu para ele e disse:
— Com este amigo a meu lado, é muito difícil que alguém deixe de cuidar de mim ou me aborreça, como você diz, Stuart.
Encolhendo rudemente os ombros, Stuart olhou para o fogo. A sua atitude sugeria que nada no momento lhe seria mais agradável do que a ausência do Padre Billingsley. Mas o jovem padre que, por uma questão de consciência, não deixava passar a menor oportunidade de resistir a Stuart, não se retirou da sala, apesar da grande vontade que tinha. Sentou-se vagarosamente e a sua mocidade se revelou no seu olhar de aflição e melancolia.
Num esforço para restaurar a paz na sala, o Padre Houlihan disse:
— O Dr. Malone me permitiu sair um pouco em sua carruagem, Stuart, a partir de amanhã, se isso não lhe vai causar nenhum transtorno.
— A carruagem estará aqui pontualmente às duas horas! — disse Stuart e acrescentou, rindo: — Será bom vê-lo de novo na rua, velho pirata! E daqui, a pouco, poderemos recomeçar o nosso joguinho às quartas e domingos.
Desde que o Padre Billingsley não parecia aprovar qualquer jogo de cartas aos domingos, o Padre Houlihan olhou para ele com o ar de quem pede desculpas e murmurou:
— Assim poderemos encher de novo a caixa dos pobres. Será muito bom...
Há homens que podem insultar delicadamente. Stuart não pertencia a essa classe superior. A sua maneira de insultar o Padre Billingsley era desconhecer por completo a presença dele, falando e agindo como se ele não estivesse na sala. Olhou para o fogo e disse:
— Talvez seja um consolo para você, Grundy, saber que me deu a gota de novo e pôs em polvorosa este meu maldito fígado.
— Eu? Como assim? Que foi que eu fiz, meu caro Stuart?
— Ih! Não me venha com essa cara de fantasma assustado! — exclamou Stuart. Apertou a mão do padre e acrescentou: — Eu não devia ter falado assim, porque na verdade você está inocente. Quero dizer apenas que tomei seu conselho e conversei com aquele sujeitinho chamado Angus.
— E então? Que foi que ele disse?
— Bem, só faltou me mandar para o inferno com armas e bagagens. Está claro que empreguei todos os argumentos que você gentilmente elaborou para mim. Não adiantou nada. Disse que eu era um homem mau e ímpio, sem fé e sem coração. Estava querendo apenas transviar o pobre cordeirinho querendo afastá-lo de sua querida mamãe. Que megera é aquela mulher! E o pobrezinho é orgulhoso como Lúcifer, insolente e estagnado e morto como água de sarjeta! Fique sabendo que não quer saber de mais nada conosco e tudo isso é obra daquela cadela! Ela me odeia terrivelmente, embora vivamos nestes últimos anos numa espécie de paz armada e tudo seja doçura e amabilidade entre nós. Ela não podia deixar de fazer isso, pois do contrário não receberia mais um convite para qualquer coisa de nenhum de meus amigos.
— Espere aí, Stuart. Fale-me de Angus.
Stuart contou então todo o desagradável caso, com muitos gestos e nomes feios. O Padre Houlihan percebeu então que ele ficara profundamente magoado, muito mais do que confessaria, mesmo a si próprio.
— Que diabo, eu gostava do garoto! Você sabe muito bem disso, Grundy! Dele e da pobre Laurie! Queria muito bem à pobre menina. Não faz ainda uma semana que a vi nas lojas com a mãe. Que coisa linda! Vai ser uma beleza, uma mulher notável! Mas não adianta nada, Grundy. Janie envenenou as crianças contra mim e eu não posso fazer mais nada por elas...
— Os filhos à porta —, murmurou o padre com profunda tristeza.
— Como?
— Nada, meu amigo. É uma coisa muito triste. Não pode continuar insistindo com ele?
— Não. Estou convencido de que, se eu fizer isso, ele deixará as lojas apesar do aumento de salário. Ele é assim. Orgulhoso, teimoso, cego e cheio de razões. Tenho receio de que não haja mais salvação para ele, Grundy! Devia ver como está olhando para o dinheiro que entra nas caixas! Parece a alegria de um demônio!
O Padre Billingsley tossiu timidamente e murmurou olhando para Stuart:
— Nunca se deve desistir de salvar uma alma.
Stuart olhou para o Padre Houlihan e disse com pesado sarcasmo:
— Acho, Grundy, que a salvação das almas é uma missão reservada a quem tem capacidade.
O Padre Billingsley ficou vermelho e já ia replicar, quando o Padre Houlihan se lhe antecipou e disse:
— Gostaria muito de que você fizesse mais pelo rapaz, Stuart. Não lhe sei dizer como deverá agir. Você conhece todas as circunstâncias muito melhor do que eu. Posso apenas rezar. Mas sei que, algum dia, minhas preces serão atendidas. Enquanto isso, faça o que puder, ainda que seja bem pouco.
Stuart se levantou e disse com uma insinuação bem grosseira:
— Não sou intrometido. Deixo cada homem salvar ou perder a alma à vontade. Isso é da conta dele, exclusivamente dele e, quem se meter, não passa de uma comadre mexeriqueira, seja lá quem for!
O Padre Houlihan viu, com compaixão, que o outro padre estava todo trêmulo. Recostou-se na sua cadeira, fechou os olhos e disse:
— Muito bem! Vamos ver o que as preces podem fazer. Apesar do que diz, Stuart, sei que não vai abandonar o rapaz. Agora, outro assunto, Stuart. Descobriu alguma coisa sobre a organização que se chama "Nada Sabe"?
— Bem, já falei sobre isso com outras pessoas e andei fazendo algumas indagações. Só sei até agora que, como você já disse, é uma organização anticatólica e antiestrangeira. É um ajuntamento brutal e repulsivo de desordeiros, mentirosos, ignorantes e cretinos. Talvez não acredite, mas os chefes são elementos de nosso clero. Tem havido alguns sermões bem exaltados aqui em Grandeville.
— Não sei de muito a respeito dessa organização — continuou. — Mas sei que, quando um país está agitado como este está agora em torno da questão da escravidão, há fanáticos que tentam desviar o sentimento nacional contra uma vítima fácil, que possa ser assassinada, enforcada ou espancada sem risco de derramamento de sangue para os atacantes ou de intervenção da lei. O país está exaltado a respeito da escravidão e o conflito não tardará a se verificar. Os poderosos sabem que não querem a guerra, nem qualquer outra espécie de conflito com o Sul. Imaginaram então fazer dos católicos bodes expiatórios para que o Norte e o Sul tenham em quem descarregar impunemente a sua raiva. A intolerância, como você mesmo diz, é uma sanguessuga numa ferida; chupa todo o sangue. Os poderosos imaginaram a organização "Nada Sabe" como uma sanguessuga a fim de impedir o povo de fazer a guerra para libertar os negros.
— É claro —, disse o padre, angustiado. — É um velho estratagema dos opressores desviar a justa indignação do povo para caminhos indiferentes ainda que sangrentos, encontrando uma vítima cujos sofrimentos não tenham importância para eles. É o que se faz na Rússia. — Sorriu tristemente e acrescentou: — Stuart, você é um bom homem. Deus o proteja. Faça o que puder.
Depois que Stuart saiu, Houlihan se voltou para o Padre Billingsley e disse severamente:
— Nossas mãos não estão limpas, Padre. Deus sabe que não estão. Stuart teve alguma razão em dizer o que disse. Devemos ouvi-lo pelo bem de nossas almas, pelo bem de nossas vidas. Há lugar para todos nós aqui, para todos os homens com o coração cheio de boa vontade, para todos os oprimidos e sofredores! Não nos devemos odiar, nem incitar uns contra os outros só porque temos crenças e costumes diferentes. Quem é presunçoso ao ponto de dizer que está certo e os outros estão errados? Fujamos do ódio, que poderá voltar-se um dia contra nós!
CAPÍTULO 28
Não estava na natureza de Stuart ser intrometido. Detestava todos os que vivem em constante ansiedade a respeito do bem-estar dos outros. Para ele, isso era presunção. Além disso, julgava que aqueles que não têm capacidade de tratar da própria vida são de algum modo desprezíveis e fracos. Ajudá-los era agravar-lhes a irresponsabilidade.
Mas as admoestações do Padre Houlihan fizeram-no chegar ao ponto em que resolveu fazer uma visita a Janie para convencê-la a desistir de exercer pressão sobre o filho. Depois dessa decisão, ficou tão furioso que se tornou insuportável. Só Deus sabia as dificuldades com que lutava, financeiras e particulares. Não era casado com o pior exemplo de debilidade mental congênita de toda a humanidade? Não tinha uma filha querida cuja frágil saúde não melhorava apesar das águas de Saratoga e de longas temporadas nas montanhas? Não eram as mulheres umas mercenárias infernais, exigentes e insaciáveis? Não tinha de cuidar de seu fígado e de um sócio que vivia a examinar a escrita e a recomendar menos empréstimos e menos extravagâncias? Era uma vida infernal. Seus planos nunca davam certo. Joshua Allstairs não se havia absolutamente abrandado. Stuart raramente o via e, ainda assim, de longe. Não tivera quaisquer notícias sinistras dele, mas podia vê-lo como uma aranha, encolhida no fundo de sua horrível casa, dando tempo ao tempo, planejando a sua vingança e o momento em que pudesse arrasar Stuart para sempre. Era enervante pensar nele dentro daquela casa em silêncio, observando e esperando. Havia ocasiões em que isso era tão intolerável que Stuart tinha vontade de ir até lá e dizer ao odioso velho que entrasse logo em ação, que fizesse quanto antes o que tinha de fazer!
— Você tem apenas de ser calmo e cauteloso, deixar de gastar como um louco e ficar vigilante —, dizia Sam. — Nada poderá ofendê-lo se não partir de você mesmo, Stuart.
Era inútil explicar a qualquer pessoa e, muito menos, a Sam, com seu sonho organizado, que para uma pessoa como Stuart ser cauteloso e vigilante, ser econômico e previdente era pior do que morrer e que ele morreria asfixiado se tivesse de contar centavos e controlar as suas despesas. Quando pensava apenas que a compra de uma pulseira de brilhantes para uma favorita podia ser uma extravagância ou que a compra de um velho espelho francês ou de um tapete antigo tinha de ser adiada, isso o lançava em verdadeiros abismos de depressão e melancolia, a tal ponto que a vida lhe parecia uma prisão onde ele estava condenado a passar a pão e água. Enchia cada vez mais sua casa de coisas magníficas e belas, amontoando-as febrilmente como um homem perseguido empilha móveis de encontro à porta para impedir que os seus perseguidores entrem e se apoderem dele. Só o Padre Houlihan e Sam sabiam que essa era a atitude de um homem que tem medo da pobreza e da vida, que tem um medo terrível dos outros homens.
Às vezes, ficava completa e ingenuamente surpreso ao descobrir que havia outras coisas para temer além da pobreza e da fome. Era com incredulidade que tomava conhecimento de que outros homens temiam a perda de prestígio, de amor, da saúde, da família, dos amigos, da posição e do poder. Espantou-se de saber que havia homens que temiam até a perda do amor de Deus!
Odiava os que não tinham dinheiro, pois de certo modo representavam uma ameaça para ele e pareciam dizer-lhe: "Como vê, é possível viver sem dignidade, sem esperança, sem orgulho e sem salvação, sob o domínio do homem mais imundo que tenha dinheiro nos bolsos." Desse ódio, nascera o seu sentimento de compaixão e sem qualquer paradoxo.
Quanto mais dinheiro obtinha, maiores eram as suas extravagâncias, pois ele precisava de ter uma segurança constante de sua invulnerabilidade. Com essa necessidade de bêbedo, seu terror místico de Joshua, a imbecilidade de sua esposa e a saúde frágil de sua filhinha e com as constantes e ansiosas advertências de Sam, Stuart podia verdadeiramente dizer que tinha tantos problemas seus que não precisava absolutamente de interessar-se pelos dos outros.
Apesar disso, num domingo enevoado de dezembro, foi a casa de Janie.
Tinha partido com calma suficiente na sua carruagem, resmungando e mordendo os lábios, mas capaz, em dados momentos, de cumprimentar um conhecido que passava ou de piscar o olho para alguma bela mocinha que passava em outra carruagem ao lado de sua distraída mamãe. Mas à medida que se aproximava da casa de Janie, mais furioso e mais confuso ficava. Passou por um bar que era um de seus preferidos. Desde que era domingo, estava naturalmente fechado. Mas para os fregueses regulares e especiais, havia sempre uma porta dos fundos que se abria discretamente. Ainda era cedo, quatro horas da tarde, e Stuart tinha seguido com relutância a recomendação do médico de que não bebesse coisa alguma senão na hora do jantar. Entretanto, ao ver o bar, chegou à conclusão de que precisava de um drinque ou de mais de um antes de enfrentar Janie.
Saltou da carruagem, deu a volta até à porta dos fundos e bateu nela três vezes com a bengala. Abriram imediatamente e ele entrou para a sala dos fundos. Estava cheia de conhecidos seus que o acolheram com prazer.
Tranquilizado, feliz e lisonjeado, como só um homem simples pode ficar ante as demonstrações de amizade dos companheiros de bar, Stuart sentou-se a uma mesa redonda e pediu bebidas para si e para os cinco homens que o cercavam. Travava-se uma violenta discussão política e Stuart começou a participar exuberantemente dela.
Fora um ardoroso whig, mas entrara para o novo Partido Republicano desde que o mesmo fora formado em 1854. Fizera uma campanha entusiástica em favor do primeiro candidato republicano, que fora derrotado havia um mês por James Buchanan, democrata e décimo quinto presidente dos Estados Unidos. Stuart se considerava pessoalmente insultado com o resultado dessas eleições e sugeriu sombriamente que sabia de confidências sinistras acerca do pleito.
— Prestem bem atenção ao que estou dizendo —, exclamava ele —, mas a verdade é que houve sujeira. Não estou autorizado a revelar o que me foi dito em confiança por uma pessoa ilustre, mas me fizeram compreender que o Sul teve muita ingerência, e não de maneira honesta, na eleição de um democrata. A camarilha escravocrata entrou em ação, podem ter certeza disso. E o pior de tudo não é isso. Essa pessoa, um amigo íntimo meu, que mantém sempre estreito contato com a Wall Street, me assegurou que no ano que vem o país sofrerá um pânico financeiro. Isso é aliás o que sempre acontece quando um democrata é eleito.
— Quer dizer —, murmurou um de seus amigos —, que os democratas vão ter de enfrentar uma crise preparada por seus amigos, os whigs, e vão levar a culpa de tudo?
A discussão se acalorou. Buchanan, com suas simpatias pelos sulistas, iria atiçar a má vontade já existente entre os Estados do Norte e os do Sul. Não tinham os escravocratas saqueado a cidade de Lawrence, no Kansas? Um louco chamado John Brown não tinha massacrado cinco homens favoráveis à escravidão perto do rio Pottawatomie? Como é que fatos dessa natureza poderiam continuar a acontecer sem que as chamas se ateassem a todo o país? E os democratas eram sem dúvida culpados de tudo.
— Nada disso. São os republicanos que gostam dos negros que estão causando tudo isso —, disse um dos homens.
— Eu não gosto de negros! — disse Stuart depois de tomar um grande gole de uísque. — Mas não quero a guerra e só poderemos evitá-la se ficarmos com a cabeça no lugar.
— E que é que me dizem da decisão Dred Scott? Vai lançar todo o país em confusão. Vocês vão ver —, disse outro homem.
— Eu, por mim, só quero é ganhar dinheiro em paz! — disse Stuart, dando um soco na mesa. — Não quero ser embrulhado em nenhum sentimentalismo meloso a respeito dos Direitos do Homem, de escravidão e de princípios. Já há problemas de sobra no mundo sem ser preciso ir procurá-los com espadas e bandeiras, tudo em nome de Deus e da Justiça!
Mas um homem jovem, com o rosto sério e firme, exclamou:
— É esse o credo de todos os homens egoístas e enfatuados através do mundo! Sou o guardião de meu irmão?, perguntam eles, debruçados no seu dinheiro. "Vão-se embora, não me amolem. Tenho meus negócios, minha loja, minha fábrica, minha usina de que cuidar e minhas contas para pagar. Deus? Justiça? Misericórdia? Dignidade? Que coisas são essas? Fazem-me ganhar dinheiro, aumentam o meu saldo no banco, são bens tangíveis? Não? Então não quero saber de nada disso!"
Olhou para os outros homens da mesa, inclusive para Stuart, que sorria ironicamente e disse:
— E então vem o caos, a ruína e a morte, como justa punição para tanto egoísmo e cobiça. Não pensem nem por um momento, meus amigos, que quando o dia chegar, como infalivelmente chegará, algum de vocês vá escapar!
A ideia era tão acabrunhante que Stuart pediu outra rodada. Declarou:
— Não quero a guerra. Quem é que quer? Por que certas pessoas gostam de falar demais? Não estou interessado na escravidão. Nunca pensei muito nisso, exceto como um tema de discussão. Mas tenho uma ideia! Por que os abolicionistas não pagam a cada fazendeiro um preço justo pelos seus escravos e não libertam os negros? Afinal de contas, os fazendeiros têm um grande patrimônio investido em seus escravos. É injusto e inconcebível que se possa sugerir que eles os libertem sem uma justa compensação. É claro que isso é inconstitucional!
— Vejam só esse patriota americano de quatro costados! — exclamou outro homem. — Há quanto tempo você está neste país, Coleman? Que é que você sabe sobre os Estados Unidos? Afinal de contas, você é irlandês!
Diante dessa insinuação contra o seu americanismo, Stuart se levantou da cadeira com os punhos cerrados e o rosto congestionado. Dois de seus amigos se levantaram com ele e seguraram-no. Outras pessoas na sala, percebendo com prazer a possibilidade de uma briga, arregalaram os olhos e viraram as suas cadeiras. Esse Coleman! Esse irlandês! Não podia estar cinco minutos num lugar sem puxar uma briga. Era muito divertido.
Stuart, debatendo-se nos braços dos que o seguravam e lhe recomendavam calma, correu os olhos furiosos pelo bar. De repente, ficou rigidamente imóvel, como se estivesse petrificado.
Sentado a uma mesa afastada, alheio a tudo, mergulhado num atordoamento de bêbedo, um rapaz muito moço estava com a cabeça baixa diante de uma garrafa e de um copo vazio. A luz da lâmpada lhe brilhava sobre a cabeça de fartos cabelos castanhos, sobre o rosto corado e jovem com os olhos fechados. Era um jovem grande, vestido no rigor da moda, com calças fulvas bem justas, casaco mais escuro e camisa de folhos. Ao lado da garrafa, viam-se o seu chapéu de castor, a sua bengala e as suas luvas. Num dedo, brilhava um anel com uma pedra preciosa.
Stuart olhou para ele e empalideceu, enquanto os amigos o largavam ainda sem muita tranquilidade e lhe seguiam a direção dos olhos. Um deles começou a rir sem muita vontade.
— Passa quase todo o tempo aqui, bebendo —, disse ele. — Muito moço ainda, mas talvez seja quem mais bebe aqui. Gasta uma verdadeira fortuna em bebidas e sempre sozinho. Nunca o viu antes por aqui, Stuart?
Mas Stuart deixou a mesa onde estava e se dirigiu para a mesa do jovem. As outras pessoas na sala, percebendo-lhe a consternação e o silêncio acabrunhado, observavam com intenso interesse. Stuart não tomava conhecimento de mais ninguém. Quem estava diante dele era Bertie Cauder, o predileto de Janie, que dormia o sono pesado e estupidificante da embriaguez.
Stuart puxou uma cadeira e sentou-se. Sentia-se mal. Nunca tinha prestado muita atenção a Bertie, mas nos seus raros encontros com o jovem, tinha gostado de seu jeito jovial, de seus olhos azuis cintilantes, de sua atitude que parecia implicar que a vida não passava de uma pilhéria, mas muito agradável. Nada parecia afligi-lo. Stuart nunca o vira sem um amplo sorriso e um riso muito fácil. Era muito estimado na escola e tinha muitos amigos. As suas maneiras eram insinuantes e encantadoras e todos simpatizavam com ele até as pessoas mais azedas e desconfiadas. Ria das raivas da mãe e ria de Angus, da sua solenidade, do seu orgulho amargo e dos seus silêncios. Ria de Robbie, que era seu irmão favorito, e de suas ambições. Ria de tudo. Era como um espelho liso de prata a dançar ao sol.
E estava ali agora no seu sono de bêbedo. Não era evidentemente a primeira vez que isso acontecia. Não era de admirar, pensou Stuart, amargamente. Não tinha qualquer ocupação e não tinha ambições. Era um fraco e um tolo, como tantas pessoas sorridentes e encantadoras, a quem todos estimavam.
Não obstante, o violento coração de Stuart estava abalado. Sentia ao mesmo tempo cólera, piedade e desgosto.
Pegou a garrafa vazia e jogou-a longe, fazendo-a quebrar-se. Olhou de novo para Bertie Cauder e, de repente, deixou de sentir raiva. Era um rosto jovem, que se mostrava ali vulnerável e trágico perdido naquele sono de ébrio.
Colocou a mão no ombro de Bertie e disse em voz baixa:
— Vamos, Bertie! Acorde que eu vou levá-lo para casa!
Mas Bertie se balançou vagarosamente na cadeira e teria caído no chão sujo do bar se Stuart não o agarrasse pelos braços. A cabeça descansou no peito de Stuart, como se fosse a de uma criança adormecida. Stuart olhou-o e soltou uma praga que foi quase um soluço.
Percebeu que alguém estava ao lado dele e, levantando a vista, viu que o irmão de Bertie, Robbie, estava ali, sério e reservado, com uma tranquilidade perfeitamente indiferente. Robbie ainda era pequeno, embora tivesse já dezessete anos, com um rosto maduro ainda que magro e muito moreno, e olhos pretos e vivos que tudo viam e com coisa alguma se perturbavam. Tudo em seu rosto era atenuado e delicado, cheio de uma aristocracia peculiar, de um requinte trabalhado. A sua expressão era reservada, mas sem o áspero orgulho e a melancolia de Angus. A boca delicada, fina e móvel sorria levemente. Não seguia a moda predominante dos cabelos compridos. Os seus cabelos pretos e lisos eram cortados rente e brilhavam como o pelo de uma foca. Nas suas roupas, havia também reserva e distinção. As calças e o casaco eram da melhor casimira preta, a camisa severa e branca e sem folhos e a gravata preta de plastron não tinha alfinete.
— Outra vez —, murmurou ele. — Quase sempre, tenho de vir buscá-lo aqui. Há um quarto aí ao lado, Stuart, onde ele costuma "descansar" até que eu possa levá-lo para casa. Quer fazer o favor de ajudar-me?
Um fluxo de ódio se espalhou pelo rosto de Stuart. Como sempre, Robbie fazia-o sentir-se inadequado, pesado, espalhafatoso e absurdo.
— Se não é a primeira vez que isso acontece, por que sua querida mamãe ainda não tomou alguma providência? E você mesmo? Ele não é seu irmão predileto? Por que nunca fez nada?
Robbie olhou-o com indiferente gravidade e disse com uma nota de censura na voz:
— É justamente o que estou procurando fazer. Quer ter a bondade?
Pegou um dos braços de Bertie enquanto Stuart pegava o outro e, juntos, puseram de pé o inconsciente Bertie. Um pouco arrastando-o e um pouco carregando-o, abriram uma porta e chegaram a uma pequena sala escura onde havia várias cadeiras, uma mesa e um sofá vergado no meio. Robbie estava perfeitamente calmo. Não olhou uma só vez para as outras pessoas no bar. Era como se às considerasse criaturas sem importância, que só tinham existência quando alguém lhes queria concedê-la. Fechou a porta calmamente depois de passar. Todos os seus gestos eram repassados de autoridade e decisão.
Sentaram Bertie no sofá, encostando-o à parede. Vinham-lhe da boca golfadas de uísque azedo. A cabeça lhe descambou para o peito e ele deu um suspiro. As mãos pendiam inertes ao lado dele. Eram grandes mãos brancas, cheias de joias e bem tratadas como as de uma mulher.
Stuart ficou parado ao lado do sofá, sentindo crescerem-lhe a raiva e o desgosto. Irritavam-no também as maneiras de Robbie. Tudo isso se acumulou e o fez levantar a mão e bater em Bertie primeiro numa das faces e depois na outra.
— Acorde, idiota! — exclamou ele. — Cretino miserável e indigno! Acorde e se envergonhe de si mesmo!
Robbie sentou-se numa cadeira ao lado e começou a olhar Stuart com um leve sorriso, ao mesmo tempo que brincava com a corrente do relógio estendida de um para outro lado do colete de seda preta florida.
— Ele já vai acordar, Stuart —, disse ele calmamente. — Não é preciso agitar-se tanto, por favor. Se quiser ficar sentado durante algum tempo, a não ser, é claro, que tenha outros e mais urgentes compromissos, vai ter o prazer de ser ouvido por ele.
Stuart afastou rudemente uma cadeira da mesa, plantou-a a considerável distância de Robbie e olhou o jovem com raiva.
— Seu irmão predileto! E você nem cuida dele!
Robbie olhou calmamente para o irmão. Por um instante, os vivos olhos pretos se suavizaram e o sorriso desapareceu. Disse então, olhando ainda para Bertie:
— Gosto muito dele de fato. E ele se sente feliz assim. Quem sou eu para interferir com a sua felicidade?
— Como é que pode dizer uma coisa dessas? Acha então que esse torpor de embriaguez possa ser felicidade? Acha que, quando um homem faz esse papel vergonhoso e cai nessa degradação, ninguém deve fazer nada para impedi-lo?
Robbie ficou durante algum tempo em silêncio, como se meditasse. Disse por fim:
— É evidente que você não compreende, Stuart. Você acha que se pode impedir isso, que se pode fazê-lo sentir a vergonha disso, que é possível salvá-lo por meio de exortações e eu lhe digo que nada pode ser feito.
Continuou brincando distraidamente com a corrente do relógio:
— Por exemplo, você bebe, Stuart. Mas não é um bêbedo apesar das quantidades sem dúvida consideráveis de álcool que ingere. Como vê, há uma diferença entre você e Bertie, entre você, que bebe, e Bertie, que é um bêbedo. Acha muito sutil a distinção?
— Está falando como um jovem paspalhão presunçoso —, disse Stuart com rudeza;
Robbie sorriu e sacudiu polidamente a cabeça.
— Talvez eu não me tenha expressado de maneira bem clara, Primo Stuart. Estudei esses assuntos e tive uma longa conversa com meu médico, o Dr. Gibson. Há toda uma bibliografia sobre o assunto, que eu tive ocasião de consultar.
"Por exemplo, como disse e sem nenhuma intenção de ofender, você é um bebedor. Mas você tem sempre um motivo para beber. Está com raiva e bebe alguns copos. Você está deprimido e sempre por uma razão boa e suficiente bebe uma certa quantidade. O uísque é para você um anestésico que entorpece as sensações muito agudas que o afligem. Quando estas estão entorpecidas, você pára de beber. Bebe com os amigos pelo convívio e pelo companheirismo. Em suma, você bebe, mas sempre por algum motivo. Mas Bertie bebe sem motivo, sem qualquer motivo. Por isso é que é bêbedo.
Stuart continuou a olhar Robbie com superioridade, mas também com alguma confusão. Sentia-se com o seu corpo enorme desajeitado diante daquela elegância jovem, precisa e esclarecida.
Robbie continuou calmamente:
— Há outra distinção entre você e Bertie e que não é tão sutil assim. Você gosta do sabor da bebida e a aprecia, não apenas pelos efeitos que produz ou porque lhe permite gozar uma boa companhia. Ora, nenhum bêbedo gosta da bebida. Detesta a bebida, fica sufocado com ela. Um homem que gosta da bebida sempre se controla. Mas o homem que bebe e bebe sozinho, sem qualquer motivo aparente, é um homem que não pode parar.
Tudo isso era demais para o simples Stuart. Olhou fixamente para Robbie e disse com elaborado e inútil sarcasmo:
— Com toda a certeza, nenhum de vocês jamais exortou esse jovem idiota a ser um homem, não é mesmo?
— O problema é justamente esse, Stuart. Bertie não quer ser um homem.
— Como assim?
— É exatamente isso, Primo Stuart. Ele não quer ser um homem. De vez em quando, sente a pressão para ser um homem dentro de si mesmo. Mas resiste. A resistência dele é beber. Quando bebe, torna-se completamente irresponsável, incapaz de ser um homem e libertado dessa necessidade. Torna-se de novo uma criança que deve ser cuidada, guardada, amada e protegida. Ninguém espera que ele cuide de si mesmo. Vem a ser de novo a criança negligente.
Robbie cruzou as mãos lentamente no colo e contemplou Stuart pensativamente.
"Quem pode dar força a Bertie? Nasceu com esse núcleo essencial de fraqueza. Nada pode fortalecê-lo. Nada pode dar consistência a esse núcleo gelatinoso. Não temos o poder de ajudá-lo. Só ele poderá ajudar-se e eu duvido até disso. O homem inerentemente fraco não tem vontade, nem quer ter. Não quer enfrentar os trabalhos, as adversidades, os deveres e as responsabilidades da vida adulta. Nada pode fazê-lo enfrentá-los. É inútil. Podemos apenas conservá-lo feliz até que ele morra dessa aflição.
— Você é um demoniozinho cruel! — exclamou Stuart.
— Não, Primo Stuart. Sou realista. Não pense que sou insensível ao sofrimento de nosso insuficiente Bertie. Mas nada posso fazer. Posso apenas observar e assisti-lo quando a sua infantilidade o leva a situações como esta.
Stuart olhou para Robbie em silêncio, sentindo alguma coisa que se parecia com um medo humilde e em que havia muito ódio impotente.
Robbie olhou para o irmão com frieza e disse:
— Ele deve ter bebido muito desta vez. Saiu de casa de manhã cedo. Essa bebedeira começou há quatro dias. Em geral, quatro dias são suficientes. Mas este já é o quinto dia e ele ainda está bebendo. Acho que vou ter de esperar até que ele possa andar.
Stuart se levantou, sentindo-se terrivelmente deprimido.
— Estou com minha carruagem aí fora. Ia mesmo fazer uma visita a sua mãe. Podemos levar Bertie.
— Ah, muito obrigado, Stuart. Isso vai facilitar muito as coisas. Quer-me ajudar? Creio que nós dois poderemos levá-lo.
— E sua mãe, Robbie? Que é que ela pensa de tudo isso?
— Bem, às vezes, ela pensa que ele é um ótimo rapaz. É quando está bem-humorada. Ela admira um homem que bebe. Acha isso viril ou, pelo menos, creio que é essa a sua opinião. Mas, quando não está bem-humorada, briga, insulta-o e até bate nele. Isso denota apenas incompreensão da parte dela.
— Ela dá dinheiro demais a ele.
Robbie sorriu como se isso fosse a observação absurda de alguma criança.
— Fique certo de que Bertie, se não tivesse dinheiro, venderia qualquer coisa ou roubaria alguém a fim de poder beber. Mamãe tem algum respeito por minha opinião. Consegui convencê-la de que deixar de dar dinheiro a Bertie não seria bom nem para a reputação da família, nem para o próprio Bertie. Não seria conveniente reduzir-lhe a mesada ou privá-lo completamente de dinheiro. Isso só serviria para criar problemas maiores para ele e para todos nós. É muito melhor para ele ter o dinheiro para comprar todo o uísque que quiser. Pode ficar certo, Stuart, de que ele precisa desesperadamente disso. Levo sempre uma garrafa para casa para ele, pois, do contrário, morreria ou ficaria louco.
— Já teve uma dessas suas conversas de ministro com ele? — perguntou Stuart, que não queria aceitar a fria e terrível sentença de Robbie sobre o irmão.
Robbie apertou os lábios para não sorrir de novo.
CAPÍTULO 29
Angus tinha o costume de ler para sua mãe nas tardes de domingo. Não concordava com os livros que ela escolhia, mas tinha o dom de trancar resolutamente a consciência a tudo o que lhe desagradava ou era reprovável. Podia ler em voz alta durante horas, numa voz excelente, grave e bem modulada sem guardar uma simples frase ou o menor conceito de tudo o que tinha lido. As cenas voluptuosas descritas nos romances amorosos passavam por ele como nuvens que não mereciam atenção. Os mais ardorosos encontros de alcova não lhe faziam sequer corar o rosto pálido. Os diálogos brilhantes e espirituosos não lhe despertavam absolutamente o senso de humor. Janie observava-o às vezes com divertido interesse enquanto ele lia, não compreendendo a sua falta de desconcerto ou emoção. Ficava deitada na sua chaise-longue, com uma mantilha ou um xale de rendas sobre os ombros magros, provando de vez em quando um bombom ou um gole de chá e escutando atentamente e com evidente prazer.
Tinha já quase quarenta anos e precisava de óculos para ler. Mas a sua vaidade e o ódio e o medo que tinha de envelhecer não lhe permitiam confessar essa necessidade.
Por isso, reclinava-se confortavelmente e fazia Angus ler para ela. Ele não reclamava, embora sugerisse às vezes trechos da Bíblia ou páginas mais apropriadas para o domingo. A reação pronta, violenta e muitas vezes blasfema de Janie a tais sugestões fizera-o desistir. Havia ocasiões em que Janie o olhava fazendo conjecturas fantasiosas ou cínicas enquanto ele, sentado numa cadeira sem braços, levantava o livro nas mãos e lia sem que o seu jovem rosto sério refletisse qualquer expressão provocada pelas coisas da leitura.
Naquele domingo, Janie estava de muito bom humor. Lá fora, o céu era como estanho polido, rebrilhante da luz difusa do sol. Os galhos negros das árvores se entrelaçavam do lado de fora das vidraças, perto das quais estava ela na sua chaise-longue. Podia olhar para o sossego dominical da rua lá embaixo e ver de vez em quando as carruagens que passavam pela calçada. Ao longe, a cruz no campanário de uma igreja brilhava à luz refletida. O som dos sinos anunciava o serviço vespertino. O fogo crepitava na lareira de mármore e lançava longos reflexos rosados sobre a sólida mobília preta, que era toda conforto e mau gosto. A cama com dossel onde ela dormia era branca e coberta de colchas de rendas e pequenas almofadas. As cortinas das janelas eram de seda rosa e muito ricas e pesadas, de acordo com o gosto de Janie. Numa mesinha ao lado dela, estava a bandeja do chá com todos os seus acompanhamentos, inclusive scones que ela ensinara a cozinheira a fazer. O chá fumegava no bule de Limoges, o fogo crepitava, o céu cor de estanho estava sem nuvens, os sinos enchiam o ar de um suave murmúrio e a casa estava em silêncio. Só a voz de Angus se elevava, fluida, eloquente e clara. Era preciso apenas um leve esforço de imaginação para que ela se julgasse na Inglaterra e não em terra estranha.
Comprara aquela alta e estreita casa de tijolos logo depois de sair da fabulosa mansão de Stuart. Num espírito de contrição, ela conseguira comprar a casa bem abaixo do seu preço original. Era feia, com os seus três andares de altura, os seus corredores escuros, as suas escadas inesperadamente estreitas e os seus quartos quadrados e de pé direito alto. Mas era também muito confortável, quente no inverno, fresca no verão e espantosamente seca para Grandeville. Sombria, inexpressiva e triste, com uma varanda de madeira, janelas estreitas, enfeites de madeira e pequenas excrescências de pedras que fingiam sacadas, a casa era respeitável e ficava na segunda rua da cidade e era cercada de outras casas semelhantes. O gramado em frente à casa era estreito, marginado de sebes, pardacentas naquele inverno, e grandes árvores. Mas o terreno era bem grande. Havia um jardim nos fundos, uma boa cocheira e outras construções. A rua era chamada Avenida Porter e ficava bem perto do rio. Ficava perto também do quartel, onde havia uma guarnição de soldados penosamente conscientes da proximidade do Canadá. Janie ouvia todas as noites com muita clareza o toque de recolher e às vezes também a alvorada. Isso nunca deixava de interessar-lhe e de fazê-la vibrar. De vez em quando, os soldados marchavam pelas ruas perto do rio, muito alinhados e sérios, ao som de tambores e clarins, com as bandeiras desfraldadas e os oficiais muito garbosos nos seus cavalos pretos. Havia especialmente um, de grandes bigodes e ombros excelentes, que nunca deixava de fazer-lhe continência quando ela corria à janela para ver. Era tudo muito romântico.
Tinha apenas duas empregadas e fazia ela mesma grande parte do trabalho, polindo as pratas, remendando e bordando com muita perícia. Gostava de ordem e de limpeza e não tinha a menor dúvida em ajudar para que tudo saísse a seu contento. O seu vigor natural, que não havia absolutamente diminuído com os anos, encontrava uma afortunada vazão nesse trabalho.
De um modo geral, vivia bem contente. Tinha o dom feliz de ajustar-se às circunstâncias e sentir prazer onde quer que estivesse. Era muito admirada em Grandeville, especialmente pelos homens, e desde que era hospitaleira, divertida e alegre, os seus convites para jantar eram pressurosamente aceitos. Pela primeira vez na vida, tivera o cuidado de cultivar a amizade das mulheres e tinha muitas amigas sinceramente dedicadas, não tendo quase inimigas. Janie não era mulher para dar murros em faca de ponta. Como o vinho, enchia os cálices do meio em que vivia e cintilava convidativamente neles.
A princípio, tinha pensado em casar-se. Mas nenhum marido possível lhe havia agradado entre aqueles gordos negociantes, curtidores, negociantes de cavalos, açougueiros, banqueiros e vendedores de terrenos. Além disso, o ar de Grandeville parecia favorecer a longevidade das mulheres e os viúvos eram poucos.
Suportou muito bem sua velha humilhação. Depois de um breve intervalo, tinha convidado Stuart com sua nova esposa para jantar e deu uma festa para eles. Durante esse jantar, tinha sido uma hostess perfeita, inundando-os de olhares repassados de carinho, falando muito em "minha cara Marvina" e repreendendo afetuosamente Stuart por ter-se esquecido dos parentes durante o período embevecido da lua-de-mel, perdoando-o num tom gentilmente malicioso, implorando aos outros convidados que o amassem e perdoassem com olhares muito comovidos. De um modo geral, saiu-se excelentemente e Stuart, ruborizado e confuso, ficou-lhe muito grato por isso.
Ela chegara a enganar Stuart, que chegou a visitá-la sozinho, acreditando ingenuamente na reforma de Janie. As primeiras visitas dele tinham sido recebidas com insultos, recriminações e pragas. Tinha jurado nunca mais ir vê-la. Mas Janie, estreitando maliciosamente os olhos verdes, dera gargalhadas e gritara: "Duvido que tenha essa coragem, cachorro!" Entretanto, embora ele continuasse a visitá-la sozinho, as suas visitas eram, para manter as aparências, poucas e bem espaçadas. Posteriormente, uma paz precária começou a reinar entre eles e, então, Janie passou a apreciar a companhia dele. Com ele, ela podia ser natural. Sabia que ele tinha medo dela e a odiava, mas sabia também que podia diverti-lo.
Ia fazer visitas a ele e a Marvina, mostrando-se tão simpática e afetuosa com a moça que Marvina a adorava. Levava sempre em sua companhia um de seus filhos e às vezes mais de um.
A prosperidade das lojas lhe assegurava uma boa renda que ela administrava sabiamente porque possuía naturalmente bom tino comercial. O resto de seu dinheiro estava depositado num dos bancos de Joshua e lhe rendia juros bastante agradáveis. Tinha mesmo comprado alguns terrenos a conselho de Stuart e os revendera com bom lucro.
Havia, portanto, muita razão para o seu contentamento. Se seu espírito vivia a fazer planos, não havia ainda qualquer sinal deles. A grande saúde e a vitalidade de que dispunha faziam-na gozar a vida, gozá-la dia a dia de uma maneira que não estava ao alcance de uma mulher "verdadeiramente virtuosa".
Gostava muito daquelas tardes de domingo quando Angus lia para ela durante horas depois de um almoço farto, bem servido e bem feito. Cochilava às vezes. Inclinava a cabeça ruiva nas almofadas e sorria suavemente nas fronteiras do sono.
Não cochilava naquele domingo. O romance era muito interessante e a incongruência de Angus ler aquelas passagens quentes era muito divertida para que ela deixasse de gozá-la.
Ela o olhava, sorrindo, enquanto ele lia:
"E então, preparada para dormir com um vaporoso robe branco que lhe revelava toda a inocente e provocante formosura, Lady Isobelle foi até à janela e olhou para os jardins banhados pelo luar. Os cabelos negros lhe desciam pelos ombros de mármore em ondas de ébano. Abriu a vidraça e o luar se derramou numa chuva de prata sobre a gentil forma redonda dos seios mal ocultos. Ela levantou os olhos para as estrelas e implorou em voz alta: "Não deixeis que ele venha procurar-me esta noite, queridas que guardais minha pureza e minha honra, porque decerto não poderei resistir-lhe mais.
"Mas houve um toque rápido e furtivo na porta do quarto e esta foi instantaneamente aberta, porque a bela e inocente criatura se esquecera de trancar a última barreira que a protegia da lascívia de seu pretendente, o qual, desprezando a sua situação indefesa e sabendo que nenhum grito dela poderia acordar a irmã que dormia e compreendendo que nunca, nunca ela permitiria que a irmã soubesse que o marido a quem adorava perseguia licenciosamente a gentil e desprotegida Lady Isobelle, se aproveitava audaciosamente de todas essas coisas. Ele a viu entre os reposteiros da janela banhada pelo luar, palpitante como uma corça acuada, com todo o seu corpo brilhando através das dobras diáfanas do robe, a cabeça inclinada para trás, o seio perfeito à mostra e o rosto branco como a neve. Com um gemido selvagem, ele avançou para ela, comprimindo os lábios ardentes nos lábios, no pescoço, no seio da moça, enquanto ela se quedava em seus braços, soluçando e incapaz de resistir-lhe. Quando ele a levantou num ímpeto e a carregou para a cama, ela não soube de mais nada."
Angus fez uma pausa para virar a página. Os seus movimentos eram calmos e alheados. Pigarreou automaticamente pois já fazia horas que estava lendo da perseguição e sedução da desesperada e indefesa Lady Isobelle. A sua fisionomia austera e pálida era como a de uma estátua, imutavelmente reservada e séria, com o olhar sem pressa. O longo corpo magro no fúnebre terno preto despertou o senso de humor de Janie e ela começou a rir.
Ele olhou para ela com fria surpresa.
— Foi o fim do capítulo, Mamãe. Quer que eu comece outro?
Mas Janie estava convulsionada pelo riso. Angus olhava-a, espantado.
— Em que é que está achando tanta graça, Mamãe?
Janie parecia quase jovem quando ria sem reservas. Os anos lhe haviam avivado as feições. Mas os olhos conservavam a sua vivacidade, os cabelos ainda estavam com a cor natural, embora secretamente ajudados, e seus ares e sua graça persistiam. Usava um peignoir de veludo verde-escuro, com um xale de renda branco passado pelos ombros e seu pescoço e suas mãos resplandeciam de joias.
— Ora essa, Angus, você parece feito de pedra! — exclamou ela afinal, quando pôde ter fôlego. — Meu Deus, você já tem mais de dezenove anos e não sabe mais do que um pinto na casca. Por favor, veja meus sais! Você quase me fez sufocar!
Angus, confuso, entregou-lhe o vaso cinzelado de sais que foi apanhar em cima da penteadeira. Ela aspirou os fortes vapores perfumados duas ou três vezes, riu, sacudiu a cabeça e arrolhou o vaso. Tornou a cair nas almofadas, exausta de tanto rir, e olhou firmemente para o filho.
— Sente-se, Angus —, disse ela de repente numa voz calma e cheia de intenções.
Ele se sentou obedientemente, porque a obediência era o seu pecado capital.
Olhou atentamente para a mãe. A inexplicável dedicação que tinha por ela aumentara com o correr dos anos em lugar de diminuir. O seu severo e austero egotismo impossibilitava-o ainda de pensar qualquer mal daqueles sobre quem lançara o seu amor como um manto rutilante.
O pobre e infeliz jovem sabia tudo sobre o "pecado", mas nada sabia sobre o mundo dos homens e sobre a imortal perversidade destes. Estava a ponto de ser um grande apóstolo ou um grande vilão. A intenção de Janie era de que ele fosse vilão pois assim poderia servi-la. Ela era muito hábil. Sabia da dedicação que ele tinha por ela e isso, embora a divertisse, enchia-a de escárnio. Mas compreendia que se tratava de uma arma que podia ser usada contra Angus e contra aqueles a quem ela odiava.
— Como vão as lojas, meu bem? — perguntou ela, com uma súbita mudança de tom.
— Muito bem, Mamãe. Quase não temos tempo de atender a todas as encomendas.
Passou então a língua furtivamente pelos lábios, ao mesmo tempo que seus olhos cinzentos brilhavam. Janie sorriu consigo mesma, satisfeita.
— Você teve muita razão em falar com Stuart como falou, meu bem —, disse ela, pensativamente. — Orgulho-me de você. É incrível pensar que ele tenha tido a audácia de tentar convencê-lo a desobedecer a sua pobre mamãe, que tanto tem sofrido há tantos anos! Mas não vamos falar mais nisso. Não guardo dele o menor rancor. É tão aborrecido guardar rancor, Angus! E, além do mais, é preciso ter muito boa memória...
"Você sabe que o meu desejo secreto é de que um dia você seja o proprietário das lojas. A maneira de conseguir isso temos de deixar nas mãos de Deus. Espero poder um destes dias comprar um interesse maior nas lojas e, como é natural, meu interesse será de meus filhos.
Deu um suspiro. Angus estava rígido em sua cadeira e olhava-a com apaixonada intensidade.
— Meu amor —, disse Janie com voz firme, depois de alguns momentos de silêncio —, sempre lhe disse que o dinheiro é tudo neste mundo velho e mau. Você acredita em sua mãe, não é? Afinal, sua mãe já viveu bem mais do que você e tem maior experiência da vida. Obrigada, meu bem, vejo que você me compreende. E é por isso que devo, embora possa ser acusada de indelicadeza, puxar o assunto de Gretchen Schnitzel.
Ao ouvir isso, Angus se tornou ainda mais pálido. Murmurou então com voz débil e constrangida:
— Mas, Mamãe, embora a Srta. Schnitzel seja sem dúvida uma moça exemplar e muito digna, não tem o menor interesse para mim.
Janie, escandalizada com essa atitude, levantou o corpo na cadeira, deixando o xale escorregar-lhe dos ombros, e exclamou:
— Não lhe interessa? Que coisa odiosa, indelicada e imprópria você disse! Que quer dizer com isso? Responda-me imediatamente!
Angus se encolheu na cadeira. As longas mãos brancas que mostravam os dedos de um cirurgião tremeram. Passou a língua pelos lábios secos e murmurou:
— Tenha calma, por favor, Mamãe. Olhe seu coração. Não gosto de Gretchen Schnitzel, Mamãe. Desculpe, mas a acho repulsiva. É gorda e branca como uma manta de toucinho e baixa como um barril. Os cabelos são claros, mas ásperos e os olhinhos azuis parecem de um porco. Depois, ela é alemã, Mamãe, e eu nunca pude gostar de alemães.
Janie então replicou tranquilamente:
— Eu gosto de todo o mundo que tem dinheiro. Será que já se esqueceu com tanta rapidez de minhas lições? Já consultei com você a Bíblia que nos assegura que Deus ama o homem de riqueza e de posses e despreza o pobre. Isso não o convence? Quem tem dinheiro, seja um cachorro, seja um alemão, é respeitado por Deus e pelo mundo. Não vou repetir tudo isso para você. Você sabe de tudo isso e, se já se esqueceu, é um idiota.
Deu de repente uma risada cujo som não foi nada agradável.
"Gretchen é a herdeira do pai, herdeira dos curtumes, das contas de banco e das propriedades dele. Ela é o grande partido de Grandeville. Só Deus sabe por que ela voltou os olhos para você, Angus! E só Deus sabe por que os dignos papai e mamãe dela não puseram você pela porta a fora, sempre que você foi visitar a família! Não costumo discutir os ditames da sorte. Gretchen lhe é favorável; o papai e a mamãe dela lhe são favoráveis. Parece-me que isso basta.
Deu então um soluço convulsivo e cobriu o rosto com as mãos cheias de joias. Angus se levantou e deu um passo na direção dela. Ela tirou as mãos do rosto e mostrou as faces autenticamente banhadas de lágrimas.
— Você iria destruir todas as minhas esperanças, você, meu filho? Acha que dinheiro se tira do ar? Não pensa um só instante na subsistência de sua pobre mãe? Devem seus irmãos passar fome? Temos de ser o alvo da chacota dos imbecis e dos patifes? Como poderemos elevar-nos acima de nossos inimigos sem dinheiro?
"Não compreende então que para que minhas ambições sobre meus filhos se realizem, precisamos de dinheiro, não algumas miseráveis libras, mas muitos milhares delas? As lojas! Como poderemos herdá-las e apossar-nos dela, se não tivermos dinheiro? E o dinheiro está à sua disposição na pessoa de Gretchen Schnitzel! E você ainda tem a coragem de me dizer que não se interessa por ela!
— Mamãe!
Mas ela o olhou com franca aversão e deliberadamente se afastou dele.
— Não me toque, Angus! Você é um filho ingrato, a quem eu criei com ternura e amor, fundando em você todas as esperanças, rezando pelo dia em que você nos vingaria de todas as humilhações que nos foram impostas! Pode ir-se embora, Angus! Afaste-se da vista de sua aflita mãe, cujo amor e cuja devoção você tem inteira liberdade de desprezar! Pode rir das tristezas e dos sonhos desta pobre infeliz. Pode dar as costas a Gretchen Schnitzel e ao dinheiro dela que nos poderiam salvar!
Ele olhou para ela com um desespero tão profundo que outra mulher menos resoluta teria ficado abalada. Mas ela, percebendo esse desespero, falou com maior tristeza ainda e inconsolável dor. Encolheu-se no fundo da sua cadeira, como se estivesse completamente abandonada. Sacudiu a cabeça, suspirou e fechou os olhos.
— Pode ir, Angus, é um favor que lhe peço —, murmurou ela em voz débil. — Mande Daisy falar comigo. Não, mande Laurie, minha filha, minha pobre filhinha. Deve haver nesta casa alguém que não seja insensível aos meus sofrimentos.
Mas Angus sentou-se na beira de sua cadeira, com as mãos abertas sobre os joelhos. Estremeceu violentamente e seu coração se abalou. Pensou então em Gretchen Schnitzel e um profundo sentimento de repulsa o sacudiu. Mas ele o dominou com fanática energia, represando a náusea que lhe subia à boca.
Foi então que, de repente, por uma das mais estranhas e misteriosas razões, ouviu o eco distante de um canto heroico e num relance viu o selvagem rosto branco e os olhos ardentes de um homem que lhe haviam ensinado durante muitos anos a odiar. Fazia muitos anos que não ouvia aquele canto, nem via aquele rosto e seu coração se abriu para ele espontaneamente, como um pássaro que voa da escuridão para a luz.
E então, de tal modo estava desorientado, destorcido e deformado que esse rosto e essa voz lhe pareceram maus e essa visão lhe surgiu como uma advertência. Devia ser isso, pensou ele. Não havia outra explicação. A última vez em que tivera essa visão de seu pai foi quando fizera o último apelo à mãe para que esta o deixasse estudar medicina. Como nessa época a voz tinha sido forte, perversa e exultante! Fugira da mãe enfurecida para ir conversar com o ministro, que lhe dissera solenemente que seu primeiro dever era obedecer à mãe, que sabia mais e tanto se havia sacrificado por ele. Era a vontade de Deus que os pais fossem honrados e obedecidos. Qualquer opinião em contrário só podia ser inspirada pelo demônio.
Aquela exaltação espontânea do coração tinha sido então esmagada por ele com piedoso entusiasmo. E nunca mais se repetira até aquele dia.
Aprumou o corpo na cadeira. O rosto e a voz se desvaneceram, num último brilho, num derradeiro eco, mergulhando nos abismos do desesperado esquecimento. Vencera mais uma vez o seu eu pecaminoso.
— Mamãe —, disse ele com voz clara —, por favor, escute. Você está certa e eu estou errado. Perdoe-me.
Mas Janie não se moveu logo. Continuou como se estivesse sucumbida e perdida. Mas abriu lentamente os olhos e olhou para Angus. Viu o rosto tenso e pálido, os olhos ardentes. Viu a sua humildade, a sua exaltação, o seu amor por ela, a conquista dos seus mais profundos instintos, a violação de si mesmo. Viu a sua inocência que, estranhamente para Janie, agora lhe parecia uma coisa terrível e patética.
Janie não tinha consciência. Mas houve naquele momento nela uma incômoda e curiosa efervescência que ela não pôde de pronto controlar. Nunca tinha amado Angus. Desprezara-o e ridicularizara-o sempre. Não obstante, ao olhá-lo naquele momento, a efervescência lhe encheu o coração e lhe fez chegar um aperto à garganta. Sentiu até um ridículo impulso de gritar: "Vá-se embora daqui idiota, e nunca mais olhe para aquela gorducha ridícula, está bem?"
Mas, felizmente, ao mesmo tempo que essas incríveis palavras lhe tremeram na ponta da língua, a razão e o bom-senso tomaram a assumir o comando dentro dela. Fingiu um sorriso de ternura e de perdão e estendeu languidamente a mão para ele.
— Meu filho querido, perdoe sua mãe se ela foi muito severa ou se deixou levar demais por suas emoções. Eu devia saber que meu amor sempre acabaria vendo o caminho do dever.
Ela estava tremendo e pela primeira vez o tremor não era fingido. Era genuíno. Como ela estivera perto de ser derrotada! Como tinha sido bom que ela se tivesse calado antes que as palavras insensatas e terríveis lhe saíssem dos lábios! Que era que tinha havido com ela? Que loucura, que estupidez!
Angus se levantou prontamente e tomou-lhe a mão.
— Oh, Mamãe! Quem deve pedir perdão sou eu! — Deu um profundo suspiro e acrescentou: — Amanhã mesmo pedirei ao Sr. Schnitzel que leve em consideração as minhas pretensões à Srta. Gretchen.
Ela sorriu para ele com a vivacidade que lhe era tão peculiar e fascinante. Bateu carinhosamente na mão dele e disse com uma alegria de antecipação:
— Você vai ver! Faremos com eles o mesmo que fizeram conosco! Vão amaldiçoar o dia em que nos espezinharam! Vão ver!
Levantou-se e começou a mover-se como se fosse uma mocinha. Andava no quarto de um lado para outro, rindo e sacudindo os cachos ruivos. Era toda energia e vida e o robe lhe rodava em torno das sandálias que lhe cobriam os pés pequenos e às vezes se levantava nos volteios, mostrando as pernas magras, calçadas de meias de seda. Parecia quase bela na sua alegre veemência e Angus a contemplava.
Ela se havia esquecido dele. Mas quando afinal o viu, quase o amou pelo triunfo que lhe ia proporcionar. Parou diante dele, bateu-lhe carinhosamente no braço e riu alto.
— Você é um bom rapaz, meu querido. Que faria eu, uma viúva sozinha e abandonada como eu sou, se não tivesse um homem como você dentro de casa?
De repente, o rosto dela ficou inquieto e preocupado. Correu os olhos em torno, como se estivesse procurando alguma coisa.
— Onde está Bertie? Por onde tem andado ele? Há dias que não o vejo!
O rosto de Angus se fechou. Tinha-se tornado muito hábil em proteger a mãe do conhecimento das bebedeiras do irmão até o último dia em que ele entrava em colapso. Era assim que Janie ainda não sabia que o colapso era o final de muitos dias de bebida. Por mais incrível que fosse, acreditava ainda que o dia do colapso era o primeiro dia e que o que acontecia apenas era que Bertie ainda não sabia aguentar a bebida como um homem.
Quando Angus hesitou, procurando um meio-termo entre a verdade e as evasivas, ela perguntou estridentemente:
— Onde está ele? Não me diga que está bebendo de novo!
— Não tenho certeza, mas creio que ele falou em ir fazer uma visita a Alice Cummings.
Janie se acalmou e sorriu.
— Então é isso, hem? Mas ela é ainda muito criança. Que idade tem ela, Angus?
— Quinze anos, se não estou enganado, Mamãe.
— É verdade, é verdade. A mãe dela me disse, mas eu me havia esquecido. Não é mais tão criança assim. E, afinal de contas, a escolha de Bertie não é má. Ali há dinheiro! — Deu uma risada. — Eu sabia que Bertie ia usar a cabeça, o cachorro! — Pensou no filho predileto e um assomo de ternura lhe suavizou os olhos. — E vai indo bem nos estudos também. Como, não sei, porque nunca o vejo pegar num livro, mas o Sr. Braithe me disse que foi um dos alunos mais brilhantes que já passaram pela escola.
— É, sim —, disse Angus mecanicamente.
— No ano que vem —, disse Janie toda feliz —, ele irá trabalhar nas lojas. Bertie sabe o que quer.
Angus olhou para as mãos e não disse nada. Janie olhou para ele com impaciência e fez um gesto de encerramento da conversa.
— Estou com dor de cabeça, Angus. Mande Laurie vir escovar-me os cabelos. Ela nunca se lembra por si mesma. Como é horrível ter uma filha negligente!
Angus se encaminhou em silêncio para a porta, muito rígido e emaciado no seu terno preto. "Parece um agente funerário", pensou Janie, sentindo vontade de rir. Talvez tivesse sido melhor botá-lo para trabalhar como coveiro. Seu Bertie e até o antipático Robbie a serviriam bem melhor nas lojas. Mas não, refletiu ela, nenhum de seus dois outros filhos tinha aquele instinto inerente de rapacidade e cobiça que transparecia com tanta força sob o exterior piedoso e gentil de Angus. Que era que Stuart lhe havia dito sobre ele e que a surpreendera tanto pela sua inesperada sutileza? "Ele substituiu o amor de Deus e dos homens pelo sentimento do dever." A sua rigidez de caráter escocesa estava intacta, embora Stuart a tivesse chamado de terrível. Bem, o rapaz era obstinado, mas era fraco. Os virtuosos e os duros eram os piores patifes, pensou ela com um sorriso.
Jogou-se na cadeira e entregou-se a agradáveis meditações. A tarde de dezembro ia descambando para a noite. A luz da lareira era mais viva dentro do quarto. Podia sentir-lhe o calor nos pés. Cantarolou um pouco bem baixinho, com a sua voz rouca.
Tinha prosperado. Disso ela sabia. Tinha vindo de longe para uma terra estranha, sem a ajuda de ninguém. Estava gozando a vida e tinha bons planos para o futuro. Sentia-se poderosa e invencível e essas sensações eram bem agradáveis.
CAPÍTULO 30
Angus desceu o estreito corredor a caminho do quarto da irmã. O corredor era muito escuro e úmido, cheirando à cera e à fria falta de ventilação. As empregadas dormiam nos seus alojamentos no terceiro andar, descansando do árduo trabalho do grande almoço do domingo. Dentro em pouco, acordariam para preparar o chá da tarde. Mas, naquele momento, a casa estava em silêncio, salvo quando longos sons reverberavam através dela como num longo túnel vazio.
Angus ouvia esses ecos desencarnados que percorriam corredores e quartos sem que tivessem manifestamente origem humana. Cresciam e diminuíam, acentuando a melancolia fria e crepuscular do dia e da casa. Angus parou de repente e se apoiou com a mão na parede. Sentiu a umidade do papel que a cobria. A tessitura do papel se impregnou com curiosa intensidade na palma de sua mão, de tal modo que ali, na penumbra do corredor, ele se sentiu cercado de entidades vivas que o miravam do fundo de sua imobilidade. Era uma coisa que sempre lhe sucedia. Desde a infância, sentia-se, de vez em quando, subitamente dominado por um estranho e aflitivo sentimento de consciência nos objetos mais comuns que o cercavam e isso lhe convulsionava de terror o coração. Era apenas uma leve mudança no plano das coisas, mas isso bastava para dar-lhe uma sensação de desorientação, de medo anônimo, de desgarramento e ele voltava para as coisas os olhos de um estranho apavorado e perdido. Nunca pôde compreender o terrível abatimento que desabava sobre ele, o desespero e o peso de ferro que lhe substituíam o lento e calmo bater do coração.
Naquele momento, esfregou a mão no papel de parede e olhou em torno tão opresso que não podia nem suspirar. Não podia ver o desenho de rosas vermelhas do papel, nem as suas folhas verdes enroscadas. Nada via senão a fraca luz que se coava pela pequena janela ao fim do corredor, onde este se dobrava em ângulo reto para o ponto onde ele estava. Nada podia ouvir senão os longos ecos que percorriam os corredores como fantasmas errantes. Nada podia sentir senão a agonia daquele desânimo, daquele temor e daquela angústia não identificada e a trama do papel sob sua mão fria.
Mas, de repente, desejou a morte com avassaladora intensidade. Esse desejo também era seu conhecido. Trazia uma negra pressão, uma vontade de fuga. Era uma agonia que lhe esfriava os lábios e comprimia os pulmões. Já então, o terror o dominava, embora o seu desânimo não fosse menor. Uma batalha se travava dentro dele; de um lado, o desespero e a angústia; do outro, o medo e a vontade de viver.
Durante todo esse tempo, ficou silencioso e imóvel como se fosse um fantasma ali no corredor sombrio onde a janelinha era um retângulo de luz pálida. Olhava firmemente para a janela, cuja débil iluminação lhe caía sobre as feições rígidas e brancas e sobre os olhos vazios e arregalados. Não podia mover-se. O braço inteiriçado, com a mão encostada à parede, lhe servia de ponto de apoio. Estava petrificado pelo sofrimento.
Por fim, como se estivesse a libertar-se de grilhões, moveu-se e disse apenas em voz alta:
— Meu Deus!
Dantes, tinham sido sempre essas as palavras que o libertavam do terrível encantamento. Mas dessa vez não o libertaram. Foram como uma pedra pesada lançada em negros abismos insondáveis que desaparecia sem deixar vestígio e nem sequer um eco de sua passagem. Repetiu a frase e foi de novo como uma pedra a cair, fria e informe, sem sentido.
Parecia-lhe que já estava ali havia mais de uma hora, varrido por escuras vagas de angústia em que não brilhava uma só estrela. Mas devia ter sido apenas um breve instante. Quando pôde prosseguir na sua marcha pelo corredor, sentia-se fraco e abatido como se estivesse a levantar-se da cama depois de longa doença e a dor que o invadia era como um fogo lento que lhe consumia todo o corpo cansado. Sofria como se estivesse acometido de uma interminável tristeza.
Chegou à janelinha e parou involuntariamente. Olhou para os jardins dois andares abaixo. Viu os tijolos molhados das alamedas sinuosas sobre as quais se inclinavam os galhos frios das árvores descarnadas. Viu os muros brancos além e os canteiros de flores devastados. Viu o estanho pálido do céu de dezembro, tão silencioso quanto a própria morte. Não havia um só pardal a saltitar pela relva pardacenta ou pousado num galho. Não havia vento, embora aquela fosse uma terra de ventos quase constantes. Tudo estava frígido, sem movimentos e sem vida.
Agarrou os caixilhos da janela e disse simplesmente em voz alta:
— Não posso mais.
Disse isso repetidamente, com uma veemência apática e pesada que não tinha ainda nem paixão, nem sentido. Não se perguntou: Que é que eu não posso mais aguentar? Sabia instintivamente que a resposta seria terrível demais e lhe tornaria impossível a vida. Só escutava o som de sua voz, na sua inflexão obstinada, e esse som, ao mesmo tempo que expressava a sua tremenda agonia, também a atenuava. Era uma espécie de magia. Depois de escutar suas palavras durante alguns momentos, no seu frio delírio sem sentido, podia recuperar-se e seguir mais fraco do que dantes, mais atordoado do que delirante, quase como tinha sido anteriormente.
Não obstante, seu rosto estava entanguido, fixado nos planos e nas rugas de um tormento sem voz. Bateu na porta de Laurie e, ao ouvir o som da voz clara e jovem da irmã, abriu a porta, olhou e sorriu. Era o sorriso de um velho.
Laurie estava sentada à beira da lareira, lendo à sua luz incerta e vermelha. O pequeno quarto estava imerso em sombra e a luz da lareira era um pequeno lago espraiado no tapete. Laurie usava um vestido de lã preta sobre o qual estava passado o seu avental com franzidos de musselina branca. Os longos cabelos dourados que lhe desciam até abaixo da cintura estavam presos na cabeça por uma fita vermelha. Olhou para o irmão. O rostinho era sereno e cheio de dignidade. Levantou-se, jogando para trás os cabelos, e o seu sorriso se tornou mais amplo. Era uma menina alta, de quase doze anos já. Havia nela um ar de calma e gentil autoridade e uma maturidade superior à sua idade.
— Está na hora do chá, Angus? — perguntou ela.
Mas ele não passou da porta e se limitava a olhá-la com uma agudeza pungente, que era a consequência do abatimento em que se encontrava. Laurie era afável, jovem e vivaz. Era a antítese da melancolia e do desespero em que estava o irmão. Era a voz normal que o chamava da escuridão que o havia quase engolfado. Era a voz que o fazia despertar do pesadelo. A simples presença de Laurie fazia a crise por que ele passara bater precipitadamente em retirada.
Angus entrou no quarto, sentindo que acabava de voltar de uma jornada que levara séculos. Esfregou as mãos e disse:
— Está frio.
Aproximou-se do fogo e curvou-se ansiosamente sobre ele. Laurie olhava-o em silêncio e seu rosto, que dia a dia ficava mais belo, parecia mais fluido à luz da lareira e cheio de sofrimento amadurecido.
Angus pegou a pá de carvão e jogou mais um pouco nas brasas escarlates. O fogo crepitou, lançando fagulhas radiantes e ressoando pela chaminé. Angus se voltou para a irmã e sorriu.
— Que era que você estava lendo, Laurie?
— Estava lendo Bleak House, de Dickens.
— Um romance, Laurie? No Dia do Senhor? Onde estão os seus livros de catecismo e a sua Bíblia?
Laurie encolheu de leve os ombros.
— Já estudei meu catecismo, Angus. E já li os textos.
— Mas não meditou sobre eles?
— Meditei, sim. Mas não posso passar o dia inteiro nisso.
— Dar um dia a Deus nos sete que tem a semana é muito pouco, Laurie.
Mas ela nada disse. Angus olhou para a mesinha de cabeceira e a Bíblia. Disse então na voz monótona da apatia completa:
— Quer que eu lhe tome a lição, Laurie?
— Não, muito obrigada.
Se havia alguma ironia na presteza da resposta, Angus sentiu-a mais do que a ouviu. Laurie alisou os cabelos com as palmas das grandes mãos belas, tão brancas e tão perfeitas, olhando-o impassivelmente.
— Onde encontrou esse romance, Laurie? — perguntou Angus, sem compreender a dor que sentia no coração.
Um leve sorriso de ironia e desinteresse se mostrou nos lábios de Laurie.
— Foi o primo Stuart quem me deu. Foi um dos quatro livros de Dickens que ele me deu pelo Natal. São muito interessantes. Você devia lê-los, Angus.
— Não tenho tempo para perder com tolices —, disse ele com orgulhosa severidade. — Você também não devia perder tempo com isso, Laurie. O mundo é grave e sério e nele não há lugar para frivolidades.
A menina ia responder com rispidez. A resposta já se mostrava pronta e viva em seus olhos azuis. Mas as palavras não chegaram a ser articuladas. No lugar delas, um sorriso terno, quase maternal, se lhe mostrou nos lábios. Aproximou-se de Angus e lhe tomou a mão delicadamente.
— Não se incomode, Angus. Já estudei minhas lições. Não chega?
Angus fez um movimento como se quisesse tirar a mão, empenhado em mostrar o seu desprazer. Mas a expressão dela era tão gentil e terna que ele acabou sorrindo. Passou a mão pelos cabelos da irmã e disse:
— São tão bonitos seus cabelos, Laurie. — Foi então que se lembrou e acrescentou: — Ah, sim. Mamãe quer que você vá escovar-lhe os cabelos. Ela está com dor de cabeça.
No mesmo instante, o rosto da menina se fechou e ela voltou a ser distante e reservada. Mas disse com indiferença:
— Está bem. Já vou.
Ajeitou o avental e o vestido e saiu prontamente do quarto, com um andar firme, fácil e macio que um dia encantaria milhares de pessoas. Angus continuou no quarto e, depois que ela saiu, teve a impressão de que tudo fora invadido por um frio de morte e que até o fogo podia apagar-se.
Angus viu o reprovável romance no chão e apanhou-o com verdadeira repugnância. Abriu uma página ao acaso e leu:
"Ela é como a manhã. Com aqueles cabelos dourados, aqueles olhos azuis e aquelas faces em flor, é como a manhã de verão. Os pássaros aqui se confundirão."
Angus levantou os olhos do livro e voltou-se para a porta pela qual sua irmã tinha saído. Sentiu a mais estranha emoção. Era como se fosse uma dor voluptuosa em que se misturavam alegria e uma avassaladora ternura. Esqueceu-se de que era o Dia do Senhor e de que aquele era o livro repreensível de Dickens. "Ela é como a manhã!" As belas palavras eram como um clarão deslumbrante ante seus olhos enevoados. A dourada Laurie, sua querida. O livro lhe tremeu nas mãos. Quem cuidava de Laurie senão ele? Quem a amava senão ele? Ela era seu tesouro, sua responsabilidade, tudo o que ele tinha.
Sentou-se no banco perto do fogo, sentindo um peso nas pálpebras como de lágrimas. Uma tristeza informe e imensa voltava a dominá-lo. Sabia que Laurie o amava. Mas ela vinha mudando muito ultimamente. Falara sempre pouco, mas nunca deixara de sorrir. Mas só acontecera até algumas semanas antes. Que tinha havido com sua Laurie? Passara a haver nela uma dura frieza, que nunca se desarmava e era sempre fechada e impenetrável. A mãe dizia que ela era "uma atrevida egoísta e sem coração". Não! Havia um coração no peito de Laurie, mas esse coração estava morrendo!
Que era que estava matando a doçura e o coração de Laurie? Que era que a estava tornando tão fria e impassível como uma estátua? Que era que estava matando o coração de Laurie, o coração de uma criança?
Ela raramente cantava agora. O piano no grande salão quase não enchia mais a casa com suas notas suaves, acompanhando Laurie a cantar. Angus podia ouvir os ecos de sua voz cheia e bela, uma voz que era tão forte, tão clara, tão majestosa que nem parecia a voz de uma criança! A voz fora um pouco educada na escola, mas os métodos e as regras de suas professoras não tinham prejudicado ou tolhido as suas qualidades naturais e espontâneas. Era como uma torrente dourada que nada podia deter. Enchia toda a casa quando ela cantava. Era a voz de um anjo, tranquila, mas triunfante, que ressoava sem esforço em todos os cantos. Podia cantar a balada mais fútil e ela se transformava numa rapsódia celestial. Podia modular alguns exercícios e eles pareciam um movimento de sinfonia. Até as criadas deixavam o que estivessem fazendo e ficavam a escutar, enlevadas.
Havia quanto tempo Laurie não cantava? Angus não se lembrava mais. Com o coração de Laurie, também a sua voz estava morrendo. Tinha silenciado como um regato murmuroso que se congelasse com o frio do inverno.
— Oh, Laurie, Laurie! — murmurou ele angustiado e o livro de Dickens lhe caiu das mãos. Levantou-se e começou a andar de um lado para outro no pequeno quarto, pensando. Que havia acontecido a Laurie? Por que tinha sido ele tão cego e tão surdo? Como pudera ele ser tão insensível ao silêncio, ao congelamento, à indiferença da irmã? Muitas vezes tinham passeado juntos nos domingos à tarde. Desde quando? Não se lembrava mais. Só sabia era que no negro desespero sem voz em que vivia se havia afastado dela e a esquecera. A voz dela não tinha tido forças para segui-lo. Ou talvez ela se tivesse deixado espontaneamente ficar para trás.
Lembrou-se então do último domingo em que tinham passeado juntos pela beira do rio. A lembrança lhe veio penetrante e clara como um raio de luz. Tinha sido num domingo de primavera, nos fins de maio. O dia era muito luminoso, polido e frio, típico das terras do Norte. Embora o vento fosse como uma parede de gelo inviável, a lembrança dos sete meses de inverno fazia o dia parecer festivo, brilhante e alegre. Era uma libertação de meses intermináveis de neve e de temporais que varriam a terra negra como milhares de cortantes cimitarras. As margens do rio estavam enlameadas. A relva, que reverdecia lentamente, era ainda curta e incerta. Mas o céu estava puro e imenso, pleno de radiosa luz e as águas tumultuosas do rio estavam quase aniladas na sua intensidade de cor. Tão claro e translúcido era naquele dia o ar que se viam perfeitamente as casas e as árvores verdes da margem canadense. Aqui e ali, um bloco de gelo ainda descia a corrente, brilhando ofuscantemente à luz do sol. Havia no ar uma amplitude e uma promessa, um murmúrio de vida palpitante e embora o vento avermelhasse as faces de Laurie e a fizesse segurar o grande chapéu de castor ou prender as saias, ela ria de prazer com o desaparecimento do inverno. Estava ao lado de Angus e ainda que ele fosse oito anos mais velho do que ela, a cabeça de Laurie lhe chegava à altura dos olhos.
Um bando de gaivotas brancas tinha passado no alto, colhendo nas asas à luz do sol. Os seus pios melancólicos ecoaram no silêncio, unindo-se à voz constante do vento. As pedras da margem, embranquecidas pelo inverno, brilhavam ao sol, beijadas pelas águas verdes do rio. Angus e Laurie caminhavam cuidadosamente por entre essas pedras, bem perto da água, olhando para o lado canadense, para as gaivotas e para o rio. Atrás deles, ficavam os densos bosques, cheios do canto dos pássaros. De vez em quando, ouviam-se ao longe os sinos da manhã de domingo. Era tudo muito tranquilo, luminoso e frio.
Angus tinha encontrado algumas violetas nos bosques, onde a luz primaveril era branca e nevoenta. Essas violetas tinham sido presas ao peito da capa de Laurie. A doce cor das flores era menos vívida que a de seus olhos. A sua boca era de um vermelho vivo.
Ela começara então a cantar suavemente, como se estivesse sozinha e cantasse para si mesma. A voz dela parecia fazer parte do luminoso cenário. Angus se pusera a escutar reverentemente. A voz se elevou, poderosa, mas pura e fácil como ouro liquido, de modo que todo o ar parecia tomado por ela. Cantava o que o pai deles costumava cantar e que ele já havia quase esquecido: ó, Estrela da Manhã! E Angus escutara, com o coração num momento exaltado enormemente e, no outro, invadido por súbita e arrasadora angústia.
Queria pedir a Laurie que não cantasse mais aquilo, que era para ele uma agonia, um desespero amorfo. Era o canto de um homem cuja memória ele estava convencido de que representava para ele uma potência do mal, encaminhando-lhe os pensamentos para as coisas alegres e pagãs e afastando-o daquilo que ele sabia que era seu dever. Mas não pôde falar. Limitou-se a escutar.
Não sabia quando ela havia parado de cantar. Só pouco a pouco tomara conhecimento de que ela estava em silêncio e que as vozes do vento, do rio e das gaivotas tinham voltado com renovada intensidade. Angus sentiu o corpo todo petrificado pelo frio e estremeceu.
Olhara para Laurie com os lábios entorpecidos e os olhos a arder. E vira que ela o estava olhando com tanta seriedade que chegara a assustá-lo.
— O canto de Papai —, havia ela murmurado.
Ele não pudera desviar os olhos da estranha tristeza que cobria o rosto da irmã. Ela parecia acusá-lo, não com raiva ou desdém, mas com uma infinita mágoa.
— O canto de Papai —, repetiu ela. — Lembra-se, Angus?
Mas ele não podia falar. Podia apenas soltar a mão dela e afastar-se para o lado. Não via mais da luz do sol senão a desolação, nada do rio senão uma ameaça de morte.
— Angus —, dissera Laurie —, você não vai mais à igreja comigo.
— Não.
— Por quê?
— Não sei —, dissera ele na sua voz inerte e neutra. — Parece que nada há mais ali para mim. Além disso, Mamãe precisa de mim aos domingos.
Laurie nada dissera logo. Quando ele a tinha olhado furtivamente, tinha visto que ela sorria com uma amargura nova e que sob os cílios os olhos dela faiscavam.
Dissera então a Angus:
— Nunca houve nada para ninguém na igreja. Deus não pode ser tão duro e severo como diz o ministro. Quando eu tiver idade bastante e puder fazer o que quiser, também não irei mais à igreja.
— Oh, Laurie, isso é lá coisa que se diga? Você é muito menina e não pode julgar essas coisas!
— Mas você julgou, não foi?
Mas ele não dera resposta a isso e voltara os olhos para o rio.
— Mas você não esqueceu o seu presbiterianismo, não foi? — perguntara ela com voz suave e levemente irônica.
— Você não deve falar assim, Laurie! Você é muito moça e não sabe! É quase uma criança!
— A mãe de minha avó tinha apenas dois anos mais do que eu quando se casou. Não sou tão criança assim. Agora, escute, Angus. Quando eu era pequena, você me falava muito em ser médico. Agora, não fala mais nisso. Por quê?
Depois de um longo silêncio, ele havia respondido muito friamente:
— Tudo isso era tolice, Laurie. Estou agora trabalhando nas lojas. Mamãe me convenceu de que meu desejo era ridículo e de que ela precisava de mim lá para proteger o investimento dela.
Ficara espantado ao ouvi-la rir. Não era uma gargalhada, mas um riso irônico e bastante desagradável.
— As coisas que Mamãe não quer passam a ser ridículas —, dissera ela. — Ela não quer que Robbie seja advogado, mas Robbie vai ser advogado. Ela quer que Bertie vá para as lojas com você. Mas Bertie não irá para as lojas. Você queria ser médico. E foi para as lojas.
— Laurie! — exclamara ele num grito de dor e de raiva.
Mas ela o olhara desdenhosamente, abanando a cabeça.
— Mamãe quer de mim apenas que seja uma boa moça bem prendada e faça um bom casamento. Mas eu não vou ser uma boa moça e não quero fazer um bom casamento. Farei o que eu bem quiser. Só você que é uma tigela de mingau, Angus.
Ela se havia afastado abruptamente dele e seguia por entre as pedras, levantando a saia. Ele correra atrás dela e a pegara pelo braço.
— Você é cruel, Laurie, e não sabe o que diz.
Ela puxara o braço e o olhara com faiscante desdém. Mas dissera apenas:
— Posso achar meu caminho sozinha, Angus.
E agora ali, diante da lareira, lembrava-se daquele domingo e das palavras de Laurie. Pareciam-lhe enormemente significativas e ele disse em voz alta:
— Não compreendo.
Contudo, quando tentava compreender, sentia-se cheio de medo e de completa desolação.
Laurie nunca mais havia cantado e nunca mais havia passeado com ele ou sequer falado muito com ele. Nunca lhe passara pela cabeça que ela o estivesse evitando. Mas, já agora, acreditava nisso.
Era incrível que isso estivesse acontecendo com Laurie, que sempre fora sua irmãzinha querida. Experimentou então um terrível medo e um tremendo sentimento de culpa. "Posso achar meu caminho sozinha", dissera ela. A frase era cheia de significação, de tristeza e de repúdio.
Passeou pelo quarto, olhando para os poucos objetos de Laurie. Mas era o quarto de uma pessoa estranha, que não gostava mais dele e queria que ele saísse. Uma das fitas dela estava esquecida em cima da cama. Apanhou-a distraidamente e a fita lhe escorregou entre os dedos, como se quisesse fugir dele. Mas Angus enrolou-a nos dedos, sentindo a macieza da seda e pensando nos cabelos dourados que ela amarrara. Sem saber por que fazia isso, guardou a fita no bolso.
Em seguida, como se estivesse com muita pressa, saiu do quarto e voltou para os aposentos da mãe.
CAPÍTULO 31
— Cuidado! — exclamou Janie irritadamente, afastando a cabeça da escova empunhada por Laurie. — Você é incrivelmente desajeitada, Laurie. E descuidada como o diabo. Já se esqueceu de que tem de levantar um punhado de cabelos da cabeça e escová-los delicadamente? Chega! Dê-me essa escova!
Laurie entregou calmamente a escova. Com a mesma calma, acendeu as lâmpadas do quarto, indo da mesa até à lareira com absoluta serenidade e dignidade. Apagou então a vela de cera com que acendera as lâmpadas e colocou-a junto com as outras num vaso em cima da cornija da lareira. Bocejou, limpou o avental dos cabelos ruivos da mãe que nele tinham ficado. Janie a observava e disse afinal:
— Você não serve mesmo para nada, Laurie. Nem mesmo na escola você procura estudar. Não sei para que estou pagando cem libras por ano para que você estude lá. Você não merece isso. É inteiramente desajeitada. Disseram-me que você nunca aprenderá a dançar com graça, nem que estude mil anos. Não tem boas maneiras. Resiste a todos os esforços de suas professoras. Seu francês é abominável. Tinha algumas esperanças de você no piano, mas a Srta. Humphrey me disse que você não mostra o menor interesse e toca piano como se estivesse fazendo um favor. Nem seu canto está melhorando. Soube que sua voz dia a dia fica pior por falta de um estudo consciencioso. Quanto aos seus trabalhos de agulha, parecem feitos por uma criancinha. Você não mostra interesse em coisa alguma. Os exercícios de ginástica não concorrem absolutamente para melhorar sua postura, porque você é sem inteligência e sem jeito como um animal. Onde é que você foi arranjar esse tamanho todo? Todas as mulheres de minha família sempre foram pequenas e graciosas. Você é graciosa como uma vaca, Laurie, e é uma vergonha para mim.
Diante do silêncio de Laurie, continuou ainda com maior entusiasmo:
— Sei muito bem que você não tem culpa das suas deficiências de aparência, desses pés e dessas mãos grandes e dessa altura horrível que você tem. Você nunca poderá atrair os homens, porque os homens não admiram moças mais altas do que eles e que, ainda por cima, têm de calçar sapatos grandes como os de um cavalariço. Mas você poderia ao menos fazer algum esforço para se distinguir em seus estudos. Fiquei sabendo que não mudará de classe este ano e fará companhia a meninas pequenas, alguns anos mais moças do que você. Não posso acreditar que uma filha minha seja tão sem inteligência! Se você fizesse ao menos um pequeno esforço, poderia aprender um pouco de línguas e de música ou, quando nada, aprender a andar como uma senhora!
Impassível, sem demonstrar no rosto a menor reação, Laurie olhava para a mãe, de pé junto à lareira. Tinha os pés separados numa posição particularmente desgraciosa, com as mãos para as costas. Janie podia ver os tornozelos fortes da filha, a sua vitalidade escocesa e a sua impassibilidade. Continuou a exclamar com sua voz áspera:
— Aí está você parada como uma vaca, sem qualquer graça ou feminilidade! Você é grande e imbecil! Sua única ocupação é ler romances e sonhar! Anda por esta casa com seu andar pesado e sem graça, sem se dar ao trabalho nem de arrumar seu quarto. É por acaso amiga das outras moças da boa sociedade aqui? Não, você as acha muito água com açúcar, como já disse. Convida-as para tomar chá aqui, como eu lhe sugeri? Nada disso! São muito insípidas para minha filha grandalhona e sabida! Prefere os cavalos da cocheira, os cavalariços, os romances e os passeios pela beira do rio pulando por entre as pedras como se fosse um garoto! Mostra você algum interesse pelo seu guarda-roupa? Não, meu amor de filha se aborrece e bate os pés e se impacienta com as modistas, fazendo-as desistir, desesperadas. Naturalmente, prefere um vestido de baetilha em feitio de saco, desde que lhe cubra o corpo.
Janie jogou longe a escova num acesso de raiva.
— Meu Deus! Que castigo é ter uma filha assim inteiramente sem distinção, com pés enormes e uma cara sem graça e sem brilho! Que é que vai ser de você? Quem é que a vai querer? A única ambição decente para uma moça é fazer um bom casamento para recompensar seus pais e torná-los orgulhosos. Montar a sua casa e tomar o seu lugar no mundo da moda, da sociedade e do prestígio. Mas parece que eu terei de carregar pelo resto da vida o fardo de sua feiura, de sua obstinação, de seus pés enormes e de sua imprestabilidade.
Laurie disse então com absoluta calma:
— Está absolutamente certa, Mamãe. Jamais conseguirei um bom casamento. Sei disso. Os rapazes não me admiram. É desagradável, mas é um fato. Não sei ainda o que vou fazer, mas escolherei o meu caminho.
Janie olhou para ela, furiosamente.
— Diz que vai escolher seu caminho? Como? Que é que você pode fazer?
Laurie sorriu e disse:
— Acho que deve haver maneiras mais agradáveis de viver do que dirigir a casa da mãe da gente.
Ao ouvir esse absurdo, atirou-se na cadeira e deu uma gargalhada horrível, ressumante de ódio.
— Não vai dirigir casa nenhuma para mim, idiota! É incapaz disso, como de tudo mais! Algum dia já foi à cozinha para olhar as panelas? Já mostrou algum interesse pelas compras? Já chamou a atenção de alguma empregada para varrer embaixo das camas? Já contou a roupa de cama e mesa e as pratas? Deus bem sabe que você tem idade suficiente para fazer tudo isso, mas não faz, preferindo ficar trancada no quarto a ler romances! Você não cuida nem do que é seu e ainda tem a coragem de sugerir que poderia dirigir a casa por mim!
— Parece mesmo que sou completamente inútil —, murmurou Laurie.
Mas isso só serviu para enfurecer ainda mais Janie, que deu um salto na cadeira como se fosse levantar-se e bater em Laurie. Esta a olhou serenamente, apenas com um brilho intenso nos olhos azuis.
— É claro, Mamãe, que eu posso sempre ser uma governanta ou uma professora de crianças.
Janie ficou tão insultada com isso que nem pôde falar. Laurie não tomou conhecimento disso e continuou:
— Mas, desde que não tenho cabeça para estudar, nem capacidade para tomar conta de uma casa, não posso ser nem professora, nem governanta e não há esperança para mim.
Janie falou então numa explosão de raiva:
— É bom ficar sabendo desde já que não poderá viver a vida toda nas minhas costas! Não pretendo manter uma moça sadia como você na ociosidade pelo resto da vida! Tem um ano ou dois para procurar algum homem inferior que a queira, ainda assim não como um ornamento! Homens de dinheiro e de posição querem mulheres de fortuna ou de beleza que sejam uma graça para o seu lar e não uma desajeitada e cretina como você!
Laurie ficou calada e sem o menor sinal de perturbação. A sua impassibilidade era para a mãe uma das coisas mais odiosas. Correu os olhos com indiferença pelo quarto e se olhou despreocupadamente no espelho em frente. Viu o rosto belo e forte, com os olhos luminosos e inteligentes e a boca enérgica. Viu a largura dos ombros jovens, que eram quadrados e não caídos como era a moda admirada, e a coluna grega do pescoço com a sua pele cremosa. Reconheceu vagamente que tudo nela era em escala majestosa, muito grande, mas isso era uma coisa que não a contristava. Certo dia, num momento raro de afeição, Janie a chamara de braw lassie (moça de bom aspecto). Sim, ela reconhecia que era de fato muito braw. A saúde lhe coloria os lábios e as faces, a energia se derramava de seus olhos azuis. Até o nariz, bem formado, reto e branco, era grande demais, apesar de seu feitio clássico. Era uma criatura feita para as charnecas e os morros, para as montanhas e os penhascos, para os mares ululantes. Nunca aprenderia a arte gentil de desmaiar, de falar com voz tímida, de revirar os olhos. Pensava em tudo isso com a sua habitual e fria indiferença.
Levantou os braços de criança e sentiu o macio fluir dos bons músculos. A carne estuava de força. Deixou cair os braços e levou de novo as mãos às costas. Abriu ainda mais os pés.
Angus abriu a porta. Estava ofegante e vermelho. Laurie olhou para ele e houve uma imperceptível contração em seu rosto. Olhou depois para a mãe. Angus disse então a Janie na sua maneira habitualmente abrupta e sem tato:
— Mamãe, lembrei-me agora de que Laurie não está mais cantando.
Janie olhou para ele, atônita. Teria ficado maluco o pobrezinho? Murmurou uma praga e deixou-se cair com raiva nas almofadas da cadeira. Quanto a Laurie, voltou-se lentamente e contemplou o irmão com fria desatenção.
Mas Angus, exaltado, ainda sob o domínio de seu sofrimento, aproximou-se de Janie e disse com balbuciante ansiedade:
— Todas as professoras disseram que nunca tinham ouvido uma voz como a dela, Mamãe. Há... pode haver muito dinheiro nisso.
Só Deus sabe que intenção sutil havia nas suas maneiras e nas suas palavras trêmulas, mas ele conseguiu fazer Janie cessar as suas pragas e olhar para ele, passando a língua nos lábios.
— É verdade, Mamãe. Laurie pode ser uma grande cantora. Ela pode ir a toda a parte e ganhar muito dinheiro. É um crime desperdiçar um talento assim.
— Que quer dizer com isso? — perguntou Janie, cobrindo os pés com a manta.
— Mamãe, deve ter ouvido falar em grandes cantoras que são famosas em Nova York, Paris e Londres. Você mesma me contou que ouviu Jenny Lind cantar em Londres em 1847 e que aplausos prodigiosos ela ganhou. Não se lembra? Ela fez o papel de Alice em Roberto do Diabo de Meyerbeer. Mais tarde, ela se apresentou em óperas em Manchester e Liverpool. Depois, esteve em Berlim, em Paris e em toda a Europa, recebendo por toda a parte onde ia e cantava a admiração e até a adulação de todas as cabeças coroadas. Ouvi dizer também que ela cantou aqui nos Estados Unidos e ganhou um dinheirão.
Mas Janie prorrompeu numa gargalhada, cheia de maldade e de ódio. Apontou para a imóvel Laurie, que a tudo escutava com um brilho peculiar no rosto.
— Está querendo dizer que aquela massa bruta que está ali pode vir a ser outra Jenny Lind? — perguntou ela, quando pôde tomar fôlego. — Olhe para ela! Parece uma vaca num pasto! Só mesmo da sua cabeça, Angus!
Mas Angus era obstinado e estava exaltado.
— Você sabe que eu estou certo, Mamãe! Sabe o que disseram as professoras dela. Já a ouviu cantar. Observei-a nessas ocasiões e vi que você ficou encantada. Nós todos ficamos. Escute, Mamãe. Leve-a para um bom professor. Leve-a para Nova York. Deixe outras pessoas julgarem.
Janie tornou a dar uma gargalhada. Mas parou de súbito e olhou para a filha.
— Que é que suas professoras na escola dizem sobre sua voz agora? Diga para seu irmão desmiolado ficar sabendo.
Mas Laurie se conservou calada, ainda olhando para Angus de um jeito duro e vigilante.
— Eu posso dizer o que é que elas dizem! — continuou Janie. — Dizem que ela não canta nunca e, quando é forçada a isso, assassina as mais doces baladas e parece um bezerro desmamado. Está entendendo, seu bobo?
— Que é que essas mulheres podem saber? Nunca ouviram uma voz de verdade. Pensam que uma voz de mulher deve ser doce e vazia como um chocalho de vaca. Como podem julgar uma voz rica, pura e forte como a de Laurie? Essas professoras já ouviram alguma ópera? Já ouviram Jenny Lind como você, Mamãe? Que é que elas sabem de volume, de grandeza e de presença? A voz de Laurie tem volume, grandeza e pureza. Foi feita para o palco...
— Está por acaso sugerindo que eu faça de minha filha uma atriz?
— Estou apenas sugerindo que permita que alguma pessoa competente ouça Laurie e que, se essa pessoa achar que ela tem uma grande voz, você a mande para uma das melhores escolas de música de Nova York...
— E com que é que eu vou fazer isso, meu fabricante de projetos e sonhos? — exclamou Janie, enfurecida como sempre ficava quando alguém sugeria que ela gastasse dinheiro.
— Estarei disposto a pagar por isso, Mamãe —, disse Angus com dignidade.
Janie deu outra gargalhada. O riso mau a fez rolar a cabeça nas almofadas. Angus, muito pálido, esperou que o riso se acalmasse e disse, com muita calma:
— Tenho o suficiente para levá-la a um bom professor. Depois disso, tudo estará em suas mãos. Mais tarde, eu poderei ajudar, mas talvez então seja tarde demais.
Foi então que Laurie interveio. A sua voz, lenta, calma, rica e cheia de ressonâncias, encheu o quarto.
— Mamãe tem razão, Angus —, disse ela. — Sua ideia é inteiramente absurda. Não tenho voz nenhuma, mas lhes agradeço o elogio. — Fez uma pausa e o seu tom de voz se tornou mais alto e mais firme: — Não estou mais cantando e nunca mais vou cantar!
— Ela tem mais juízo do que você, Angus —, disse Janie.
Mas os seus olhos ainda estavam apertados e pensativos. A imaginação dela era suficientemente vigorosa para fazê-la ouvir de novo a magnífica voz de Jenny Lind no teatro de Londres. E então seu coração, seu pequeno coração emurchecido, começou a bater com força.
Mas Laurie deu dois passos na direção de Angus. O seu rosto jovem estava de novo animado, belamente violento e emocionado. Os olhos azuis faiscavam como fogo.
— Eu lhe ficarei muito grata se cuidar de sua vida e guardar para si mesmo suas tolas opiniões.
Por um momento, Angus ficou como que petrificado. Nunca tinha visto veemência igual na doce Laurie silenciosa a quem tanto amava. Era como se fosse uma pessoa estranha e inimiga que o repudiava, que o olhava cheia de desprezo e ódio, de acusação e de repulsa.
— Laurie —, murmurou ele, estendendo as mãos tomado de medo.
Mas ela se afastou dele, com um gesto violento. Nesse momento, ouviu-se embaixo um confuso rumor de vozes de homens, de portas que batiam, de pés arrastados e, por fim, o riso leve e claro de Robbie.
Janie levantou-se, puxou o xale para os ombros, correu para a porta do quarto e abriu-a, ao mesmo tempo que gritava irritadamente:
— Que é isso aí embaixo? Que é que está havendo?
Ouviu-se então a voz forte de Stuart que dizia:
— Trouxemos para casa seu filho bêbedo! Quer descer para vê-lo?
CAPÍTULO 32
Janie desceu as escadas voando, com as saias enfunadas atrás dela. Fechava com as mãos o peito de seu peignoir. Stuart viu-a chegar. Bertie estava esparramado nos últimos degraus da escada, com um sorriso idiota e sonolento no rosto congestionado. Os cabelos vermelhos estavam úmidos e desgrenhados. Robbie estava ao lado dele, com uma expressão quase de indiferença. Uma empregada acendera a lâmpada na base do corrimão e a sua luz mostrava perfeitamente a cena.
Mas Janie não via ninguém a não ser seu filho predileto. Correu até ele, mas de repente parou e olhou-o em silêncio. Stuart ia dizer coisas ásperas e violentas, mas não pôde falar. Nunca tinha visto Janie assim, com o rosto devastado pela tragédia. Ficou ali, com os pés calçados de sandálias no mesmo degrau em que descansava a cabeça do filho, imóvel como uma estátua. Os lábios tremiam, o pescoço magro e sardento pulsava, as mãos que prendiam o robe de veludo tremiam. Era uma velha de olhos arrasados.
O coração de Stuart fez, como sempre, a cólera transformar-se em piedade. Murmurou:
— Tivemos de trazê-lo para casa, Janie. Não se aflija. Ele é ainda um garoto e os garotos fazem muitas coisas impensadas.
Olhou para Robbie e disse irritadamente:
— Não fique aí parado. Dê-me uma mão aqui. Pegue-o por baixo do braço, assim. Cuidado! Vamos, Bertie. Você tem pernas e pode ficar de pé. Passe o braço por meus ombros. — Viu Angus no alto da escada e gritou furiosamente: — Venha cá! Venha nos ajudar a levar seu irmão para o quarto dele!
Angus desceu lentamente as escadas, altivo e em silêncio. Olhou para o irmão, que pendia inerte entre Stuart e Robbie. Viu a cabeça pendente, os lábios franzidos no riso imbecil e os olhos semicerrados da embriaguez. Estremeceu. Virou-se então para a mãe e pousou a mão nos ombros trêmulos de Janie.
— Por favor, suba, Mamãe, e vá ficar com Laurie. Ela não deve vê-lo assim. Isso não tem importância, Mamãe. Como você sempre disse, Bertie tem muita alegria de viver.
Janie evidentemente não o ouviu, mas afastou-lhe o braço com rígida violência. Apoiou-se ao corrimão e cobriu o rosto com as mãos.
— Vamos! — gritou Stuart para Angus. -— Segure-lhe as pernas. Ele não se aguenta em pé e eu não vou carregá-lo sozinho por estas escadas. Sim, segure-lhe as pernas. Devagar!
Trabalhosamente, vacilando e lutando, levaram Bertie pela escada acima. No meio do caminho, ele começou a cantar incoerentemente e entre soluços. Era uma canção alegre e libertina. Duas ou três vezes tomou conhecimento dos que o carregavam e beijou Stuart e depois Robbie com exagerado entusiasmo. "Sou forte, sabem?", murmurou. "Mas não sei o que é que há com minhas pernas. Não tenho culpa..." Recomeçou a cantar, jogando a cabeça para trás por entre acessos de riso. Era pesado, bem nutrido e parecia ter só carne e ossos. As pernas, nos braços de Angus, pareciam de chumbo e a luz das lâmpadas se refletia nas botas bem polidas. Quase chegando ao alto da escada, pareceu reconhecer Angus e, ao ver-lhe o rosto carrancudo e pálido, desatou numa gargalhada tão violenta que quase desequilibrou Stuart e Robbie que tiveram de parar, a fim de não rolar pela escada.
Janie continuava embaixo, encostada ao corrimão e ainda com as mãos sobre o rosto.
Levaram Bertie para o quarto dele e jogaram-no de qualquer maneira em cima da cama. Era o quarto mais belo da casa, com muitas janelas, tapetes macios, quadros finos emoldurados nas paredes brancas e um agradável fogo que ardia na lareira de mármore preto. Robbie acendeu uma lâmpada.
Stuart enxugou o rosto suarento com o lenço. Tirou o chapéu alto e jogou-o em cima de uma mesa. Passou o dedo em torno do plastron que o apertava. Exclamou:
— Será um verdadeiro assombro se, ao fim de tudo isso, eu não tiver um ataque de coração ou não rebentar um vaso! Esse patifezinho precisa de um pontapé no traseiro ou de um bom soco no queixo!
Mas essas rudes palavras escondiam, como sempre, a sua inquietação. Não podia esquecer Janie, largada lá embaixo nas escadas. Olhou furiosamente para Bertie e empurrou com violência uma perna gorda que pendia fora da cama. Fez uma careta quando viu a seda de seu colete listrado manchada pela baba de Bertie. "Garoto sujo", murmurou entredentes, limpando o colete com o lenço. Ficou ao lado da cama e xingou Bertie com todo o vigor. Mas tudo isso era para esquecer a cara de Janie lá embaixo na escada.
Robbie o observava com frio interesse. De pé ao lado da cama, Angus olhava o irmão bêbado com amarga taciturnidade. Stuart olhou para os dois rapazes e apertou os lábios. Antipatizava imensamente com ambos. Eram os dois muito magros e estavam vestidos com o mesmo terno fúnebre de casimira preta. Mas Robbie tinha distinção. A roupa preta lhe realçava a elegância e a segurança aristocrática. Ao contrário, Angus parecia um coveiro, pensou Stuart com raiva.
— Que é que se vai fazer agora com esse patife? — perguntou ele a Robbie.
— Vamos despi-lo, naturalmente —, disse Robbie, calmamente. Voltou-se então para o irmão e disse: — É a primeira vez que lhe peço isso, Angus, mas gostaria de uma pequena ajuda sua.
— Não conte comigo desta vez —, disse Stuart. — Já estou bastante sujo. Tenham cuidado, que eu acho que ele vai vomitar.
Robbie abaixou-se, pegou o urinol embaixo da cama e colocou-o ao lado da cabeça balouçante de Bertie, no chão. Em seguida-, ele e Angus tiraram as calças de Bertie e jogaram numa cadeira a roupa elegante e enxovalhada. Depois, Robbie pegou as roupas, fez uma espécie de trouxa com elas e guardou-as no armário. Era todo serenidade e eficiência. Dava instruções a Angus, que obedecia no seu fechado silêncio. Todos os atos de Angus eram remotos. Reprimia severamente qualquer manifestação pessoal, mas estava extremamente pálido.
Puseram Bertie sob os cobertores, depois de vestir-lhe uma camisa de dormir de linho com folhos. Ele ali ficou com os belos cabelos ruivos pousados no travesseiro de fronha bordada, ainda com o sorriso idiota no rosto. Mas os olhos estavam bem abertos e se fixaram na luz da lâmpada.
— Ih, já é noite! — exclamou ele com uma surpresa satisfeita.
— Virou os olhos e viu Robbie. — Robbie velho. Bom amigo. Que foi feito do dia inteiro, Robbie?
— Sumiu dentro de sua garrafa —, disse Robbie, com o seu sorriso frio. — Como vai? A cabeça está doendo?
— Terrivelmente —, disse Bertie, depois de pensar um pouco.
— E o estômago então... Parece até que estou a bordo. Daqui a pouco, vou botar cargas ao mar...
Robbie pegou prontamente o vaso de louça que tinha flores pintadas e colocou-o junto da boca do irmão. Foi bem na hora. Stuart foi até uma janela e abriu-a, deixando entrar o ar frio de dezembro. Procurou fechar o nariz com nauseado desgosto. Esticou a cabeça para fora da janela, a fim de ver se não ouvia os vômitos dentro do quarto. Olhou para a rua e viu os lampiões acesos, que iluminavam as calçadas de pedra. As árvores negras estavam prateadas pelo luar. Mas ainda não podia tirar da lembrança o rosto de Janie.
Voltou-se para o quarto. Robbie tinha saído com o vaso. Angus continuava ao lado da cama, no mesmo lugar onde Stuart o havia deixado. Olhava para o irmão com o seu rosto fechado, que não dizia absolutamente nada. Bertie estava deitado, com a cabeça no travesseiro e arquejava, muito pálido, com lábios arroxeados e olhos encovados. O quarto cheirava a vômito e a uísque azedo.
— Não fique com essa cara de reprovação, Angus! Isso não é um caso de vida e morte. Devemos dar o desconto da juventude e da impetuosidade do garoto. Ele tem um bom coração e, com isso, mostrou apenas sua virilidade...
Mas Angus continuou a olhar para o irmão amargamente e disse:
— Ele é um libertino e um bêbado. E perdulário e perverso. Traz vergonha para esta casa, sofrimento para a mãe e desmoralização para a irmã. O que há no coração dele é iniquidade e impiedade.
Stuart olhou-o com repugnância e raiva.
— Está falando como um idiota! Ou como um maldito ministro! Meu pai dizia que todo o escocês era ou advogado ou bêbado ou ministro! E eu acho que tinha toda a razão! Quem é você para julgar este rapaz, seu ministro de meia cara? Que sabe você dos motivos que levam um homem a beber?
Angus levantou os olhos para Stuart.
— Por que Bertie bebe? Que é que o leva a isso? Ele é o predileto de nossa mãe. O dinheiro que tem no bolso é ilimitado. Tem tudo o que deseja e nada lhe é negado.
Durante todo esse tempo, Bertie arquejava ruidosamente na cama. Ao ouvir as palavras de Angus, sorriu com uma afabilidade infantil. Murmurou então na sua voz pastosa de bêbado.
— E isso mesmo... Tudo o que ele quer. Nada lhe é negado. Isso mesmo. Todos gostam de Bertie. Bertie tem um coração de ouro. Bertie não precisa de nada.
De repente, começou a rir, agitando-se na cama, enchendo o quarto com a sua gargalhada nervosa.
Nesse intervalo, Robbie tinha voltado para o quarto e recolocara o vaso no chão, perto da cama. Limpou as mãos cuidadosamente com o lenço e olhou para Bertie, perguntando com a sua gentileza impessoal:
— Está melhor?
Bertie parou de rir no mesmo instante. Os seus olhos se enterneceram ao voltarem-se para Robbie e, quase imediatamente, se encheram de lágrimas. Estendeu a mão e Robbie a tomou entre as suas palmas secas.
— Robbie —, murmurou Bertie —, você é meu irmão de verdade, não é?
— Claro que sou. Agora, fique bonzinho e tente dormir.
— Você não me vai abandonar não é, Robbie? Apesar da bebida e de tudo mais? É um demônio que está dentro de mim. Não tenho razão nenhuma para fazer isso. Você compreende, não é, Robbie?
— É claro, é claro. Agora, descanse, Bertie, que isso só lhe pode fazer bem.
Mas Bertie continuava exaltado. Começou a soluçar, desesperadamente agarrado às mãos de Robbie. Delirava. Acusou-se. Chorou copiosamente. A sua agitação cresceu, enquanto Stuart o olhava alarmado, vendo a sua extrema palidez e os seus lábios arroxeados.
Foi então que Janie entrou no quarto, puxando o xale contra o corpo, como se estivesse sentindo muito frio. Mas o rosto lívido estava ao mesmo tempo abatido e cheio de virulência. Olhou desconfiadamente para Stuart, para Angus e para Robbie. Aproximou-se da cama e sentou-se à esquerda de Bertie. Tirou a mão dele da de Robbie, levou-a ao peito e olhou para todos ferozmente como uma leoa que protegesse o filhote.
— Saiam todos! — exclamou. — Deixem-me com meu filho. Não lhe estão fazendo bem algum com suas pilhérias e brincadeiras. Coitadinho! Quer é ficar sozinho com a mãe dele!
A primeira reação de Stuart foi de cólera, mas logo depois viu o desespero, a atitude defensiva, a vergonha e o medo de Janie.
— Calma, Janie. Fizemos o que foi possível por ele.
Hesitou. Tinha muita pena dela, daquela nova Janie, tão desesperada e arrasada. Com a forte intuição de sua natureza primitiva, sabia que Janie havia afinal compreendido aquilo em que dera o filho e que não lhe era mais possível esconder de si mesma esse penoso conhecimento.
Disse então impulsivamente:
— Quero ajudá-la, Janie. Farei tudo o que puder...
Mas ela gritou, cheia de ódio e de frustração:
— Não queremos ajuda sua, Stuart Coleman! Você teve coragem de deixar uma pobre viúva para enfrentar o mundo sozinha com os filhos!
— Ora, Mamãe —, disse Robbie, com voz calma, mas cheia de autoridade —, devia ser grata a Stuart que encontrou Bertie e o trouxe para casa.
Mas a vergonha de Janie se tornou mais violenta diante disso. Estendeu o braço ameaçadoramente na direção do primo e gritou estridentemente:
— Saia!
Houve um conflito de desgosto, indignação e pena dentro de Stuart. Apanhou, por fim, o chapéu. Robbie olhou para ele sacudindo de leve a cabeça, como a pedir-lhe desculpas. Angus continuava sumido no seu tipo especial de inconsciência. Era como um fantasma que a ninguém via e não era visto por ninguém.
Mas a indignação acabou levando a melhor dentro de Stuart. Apontou para Bertie e disse a Janie com os olhos faiscantes:
— Aí está seu filho e não culpe a ninguém senão a você mesma do estado vergonhoso em que ele se encontra! Você o mimou tanto que o privou de toda a virilidade, dignidade e controle! A culpa é sua, minha cara, e de ninguém mais, diga você o que quiser com esse mau gênio que tem!
Fez uma pausa. A sua voz com a raiva se tinha tornado mais forte.
"Trouxe seu filho para casa em minha carruagem, carregando-o do antro onde estava como se fosse um saco de batatas. Seu filho vomitou em cima de mim e me causou a maior repugnância. Eu tinha pensado em vir a sua casa hoje para conseguir a libertação de seu filho Angus de suas ordens, para que você lhe permitisse estudar medicina. Tinha pensado em lhe pedir que me deixasse ajudá-lo e assegurar a boa vontade que certas pessoas têm para com ele. Entretanto, em troca de tudo isso, só recebo insultos!
Angus se movera de repente ao ouvir as palavras de Stuart. Levantou para ele os grandes olhos cinzentos e contemplou-o de maneira estranha. À luz vacilante da lâmpada de querosene, seu rosto pareceu diminuir e encolher-se.
Janie olhava para Stuart e nada podia ser mais carregado de ódio e de raiva do que seu olhar. Ainda estava sentada ao lado de Bertie e com a mão do filho de encontro ao seio.
Bertie murmurava coisas no seu delírio de bêbado. E então, no silêncio que se seguiu às palavras de Stuart, começou a falar com voz alta e clara, tocada de jovialidade.
— Sou um homem inteligente! Sou o homem mais inteligente do mundo! Vocês todos querem alguma coisa, estão sempre querendo alguma coisa! Mas Bertie Cauder não! Inteligente como é, não quer nada, nada mesmo!
Todos ficaram em silêncio a ouvi-lo. Depois de falar, porém, ele mergulhou num sono profundo. A respiração era entrecortada, mas ele estava sorrindo.
De súbito, a raiva de Stuart desapareceu. Sentia-se cansado e pesado, mas olhou para todos eles apenas com frustração. Viu o frio Robbie, que o olhava com um leve sorriso. Viu o sombrio e reservado Angus. Viu Janie, que o odiava no mais violento silêncio. Viu Bertie que dormia. Sentiu hostilidade no ambiente, sentiu que era repelido com desprezo.
Disse então com um tom incerto:
— Vocês, escoceses, são uma raça fria, sombria e secreta. — Apontou para Angus: — Vocês estão sempre endurecendo a espinha moral com a terrível religião que seguem e vivem fazendo danos em suas salas frias contra gente melhor do que vocês. — Voltou-se de novo para Janie e Robbie. — Há em vocês alguma coisa terrível, alguma coisa que é demais para quem é como eu.
Saiu do quarto. Desceu o corredor. Uma porta se abriu e nela apareceu a jovem Laurie, com os seus cabelos dourados e os seus tranquilos olhos azuis. Olharam-se no corredor mal iluminado. Stuart quis dizer alguma coisa, mas não pôde. Começou a descer a escada. Estava quase no último degrau quando sentiu que lhe tocavam o braço. Estava tão certo de que era Laurie que se espantou quando se voltou e viu que era apenas Robbie.
— Não se aborreça —, disse ele. —Mamãe está muito nervosa. Não lhe estou pedindo desculpas pela indelicadeza dela. Mas você conhece Mamãe, Stuart. Quanto a Angus...
— Você acha tudo isso muito divertido, não é? Com seus sorrisos e sua frieza, o que acontece é que você não tem coração.
— Não pense que eu acho nada disso particularmente divertido. E muito raro que eu ache graça em alguma coisa. Como o filósofo de Éfeso, só acho graça mesmo é quando vejo um burro comendo um espinheiro no meio da grama.
Stuart o encarou, franzindo a testa. Mas saiu sem dizer mais uma só palavra.
CAPÍTULO 33
Angus era um dos oito guarda-livros e empregados de escritório que trabalhavam para o Empório Supremo de Grandeville, depois que fizera o seu aprendizado nas lojas. O escritório primitivo, nos fundos da loja principal, tinha sido ampliado para comportar várias estantes e mesas altas, onde, à luz dos candeeiros de querosene suspensos do teto, os empregados trabalhavam nos livros ou escreviam cartas. Angus ainda não ocupava um posto de direção, embora Stuart o estivesse preparando para isso. Ele trabalhava com afinco, dentro de um silêncio remoto e cortês, sendo muito temido, antipatizado e respeitado por seus companheiros menos rígidos. Não tinha a menor importância para ele trabalhar até às nove ou dez horas da noite, sozinho, com a cabeça castanha e pequena inclinada sobre os livros, com a pena a fazer somas e subtrações rápidas, ao mesmo tempo que virava as páginas metodicamente. Se o seu rosto severo e austero apresentava sinais de exaustão, isso só servia para aumentar-lhe a tranquila energia. Sam Berkowitz, cujo escritório era ao lado, muitas vezes, ao passar, ficava perto do jovem empregado sem ser visto, com a testa franzida e os olhos cheios de tristeza.
O Natal chegou e passou. Era um dos períodos em que Stuart e Janie "estavam sem se falar". Como todos os outros períodos semelhantes, continuaria até que um encontro fortuito em casa de um amigo comum ou na rua ou nas lojas os colocasse diante um do outro, fazendo com que se falassem polidamente. Cumprimentavam-se imperturbavelmente e com sorrisos sinceros de prazer seguia-se uma conversa amável que apagava as coisas desagradáveis que tinha havido.
Stuart ia então fazer uma visita à prima ou ela ia até à casa dele e tudo era perdoado e esquecido até à próxima vez.
Stuart tinha expressamente proibido que o nome dele fosse incluído nos presentes de Natal de sua esposa a Janie, mas permitiu que ela e a filha fossem visitar a família Cauder no dia de Ano Novo, que era a festa tradicional dos escoceses. Quando Marvina voltou, toda cheia de sorrisos plácidos, Stuart interrogou-a demoradamente sobre o comportamento da prima, pois sempre se esquecia de que a mulher era uma pobre idiota, que nunca percebia nada de desagradável ou chocante. Mas Marvina se limitava a olhar para ele e dizer que Janie tinha sido muito delicada e gentil com ela.
Stuart não transmitia aos filhos de Janie as raivas que tinha dela. Se se encontrava acidentalmente com Robbie ou via Angus nas lojas ou nos escritórios, podia mostrar-se um pouco formalizado e distante. Mas não mencionava a mãe deles, nem mostrava de qualquer maneira o seu desprazer.
Entretanto, tinha ficado profundamente magoado dessa vez e passou várias semanas sem falar com Angus, nem tomar conhecimento de sua existência. A "briga", nessa ocasião, não se limitara a ele e Janie. Os filhos dela tinham participado, o que era excepcional. Tinham visto como ele fora expulso da casa dela como se fosse um vagabundo e tinham ouvido os seus protestos mútuos de nunca mais se falarem. Ao menos por uma questão de dignidade, Stuart tinha de se mostrar frio e distante em relação a Angus, com quem, de qualquer maneira, passara a antipatizar.
O terrível inverno do Norte caíra de novo sobre Grandeville e deveria prolongar-se até abril ou talvez maio. Muros de neve, às vezes de dois metros de altura, marginavam os passeios, laboriosamente desembaraçados com as pás. Uma camada de gelo misturado com neve cobria as pedras da calçada, numa altura que em muitos casos chegava a trinta centímetros. Todos os telhados ficavam inteiramente cobertos de neve, sobre a qual flutuava a fumaça azul das escondidas chaminés. Um frio cortante e um vento violento e quase constante varriam a cidade. Com intervalos de alguns dias, desabava uma nevasca, enchendo o ar de partículas de neve como areia branca, que fustigava impiedosamente aqueles que tinham a infelicidade de andar na rua. Grandes dunas, que também pareciam de areia, se empilhavam juntos às cercas e às paredes das casas, bem como nos espaços vários, e os ventos lhes davam formas estranhas e rugas. Vinha então um intervalo de tremendo frio, completamente calmo e silencioso, com os céus inteiramente parados e a neve tão ofuscante que não se podia olhar para ela sem que as lágrimas viessem aos olhos. Todas as casas ficavam emparedadas e petrificadas em montões de brancura, as vidraças cobertas de geada e apenas os penachos de fumaça das chaminés a darem notícia de que havia vida dentro daquelas tocas. Mas, nos dias luminosos e frios, os trenós apareciam e desciam o leito irregular das ruas com as campainhas tilintando e os seus ocupantes embrulhados em peles até ao pescoço. A cidade se movimentava de sob o seu túmulo de gelo e neve e emergia, tremendo de frio, para cuidar de sua vida. Para quem vinha de fora, esses invernos eram intoleráveis. Viviam tão longe do rio cinzento e ossificado quanto possível, porque de sua superfície desolada os ventos partiam como alfanjes afiados sobre a pele.
Era quase inacreditável para alguém que o verão já tivesse um dia sorrido sobre aquela terra e, quando os primeiros dias de primavera surgiam, trazendo sol quente e ruas por onde corria a neve derretida, uma espécie de nervosismo dominava todos os habitantes. Durante quase sete meses, tinham sofrido agonias de frio, de temporais incessantes, de nevascas e noites negras; de lutas constantes para conseguir um pouco de calor dentro de suas casas. Então, nos fins de abril, se o destino se mostrava amável, a geada desaparecia das vidraças, a lama aparecia entre montões de neve suja e quem tinha boa vista podia ver até os brotos irrompendo dos galhos negros das árvores. O aparecimento de um tordo merecia duas colunas nos jornais locais. Os céus se suavizavam, ficavam enevoados e até ternamente doces e embora ainda houvesse ocasionais tempestades de neve trazidas por nuvens negras e ameaçadoras e embora uma camada de geada voltasse a cobrir as vidraças, todos podiam afirmar confiantemente que o inverno estava quase acabado. Em maio, a neve já havia desaparecido por completo, salvo algumas placas escuras nas paredes das casas voltadas para o norte. No dia primeiro de junho, podia-se ter certeza de que não haveria mais neve até chegar outubro. As pessoas saíam então das casas e faziam planos febris para o verão.
Os invernos eram tão melancólicos, tão terrivelmente deprimentes e cheios de dura desesperança, que quaisquer brigas, mal-entendidos ou inimizades que começavam nos sete meses de desolação tinham inevitavelmente de esperar o degelo para que fossem esquecidos. Por isso, foi só no fim de fevereiro, por ocasião do primeiro enganoso degelo, que Stuart tomou conhecimento de Angus Cauder. E, ainda assim, isso só aconteceu porque Angus entrou no seu escritório.
Stuart estava mal-humorado. Voltara pouco antes de Nova York, onde tinha ido examinar uma nova partida de rendas, veludos, penas e bric-à-brac vinda da França. A mercadoria estava em ordem e os fretes não tinham sido muito altos. Mas, pouco antes de partir para Nova York, Stuart havia jurado a si mesmo e a Sam que seria tão econômico quanto possível nas suas despesas pessoais, que só trataria de negócios e voltaria sem demora. Nada de mulheres, de bailes, de festas, de joias, de extravagâncias. Sam havia aprovado gravemente essas resoluções, embora sem muita esperança. Esse pessimismo era justificado, embora Stuart não lhe tivesse dado pessoalmente as más notícias. Mas a dignidade reservada de Stuart, a sua recusa a comentar a viagem, as suas maneiras pomposas e o seu jeito de trancar-se durante horas no escritório haviam confirmado as piores previsões de Sam. Por outro lado, o rosto de Stuart estava mais vermelho do que de costume e mostrava marcas de forte dissipação nas olheiras fundas e nas rugas nos cantos da boca. Além disso, mancava um pouco e, de vez em quando, praguejava violentamente por trás da sua porta fechada. Angus não poderia ter escolhido um momento menos oportuno para invadir o escritório de Stuart.
Mas viu logo que era uma má ocasião porque Stuart o olhava, com uma cólera impessoal. O pé direito descalço estava estendido em cima de uma cadeira. O peito da camisa estava aberto como se ele estivesse sentindo falta de ar. O colete florido estava também desabotoado. Havia no escritório uma atmosfera de sofrimento, calor e desordem. Angus, que nada sabia das extravagâncias de Stuart em Nova York, acreditou, no seu habitual egotismo de homem estreito e concentrado, que o olhar de aborrecimento e de irritação que Stuart lhe lançou era causado exclusivamente pela sua presença.
— Que é? — exclamou Stuart.
Contraiu o rosto espasmodicamente ao sentir uma pontada de dor no pé. Angus interpretou erradamente o fato e ficou alarmado.
— Gostaria de falar com você durante alguns momentos, Primo Stuart —, disse ele com altiva dignidade.
— Quer, não é? — exclamou Stuart, com franca irascibilidade. — Então fale.
Mas Angus sentiu a garganta seca e apertada. Tinha sempre dificuldade em falar fosse com quem fosse. Olhando-o zangadamente, Stuart chegou à conclusão de que cada vez gostava menos de Angus. Grundy achava que ele devia ter pena dele. Era mais uma das ideias absurdas do padre!
— Bem, fale logo, que eu sou um homem ocupado. Escute aqui, se é mais dinheiro que está querendo, nem precisa falar. Não é possível. E não se fala mais nisso!
Uma expressão de tormento se mostrou no rosto de Angus. Stuart o olhou iradamente. Mas o seu instinto sutil fora despertado. Que era que havia com aquele idiota? Por que estava ali com aquela cara de condenado à morte?
— Bem, fale logo! — exclamou ele. — Dê o seu recado e vá saindo. Se você não tem o que fazer, eu tenho!
Angus apoiou as mãos na mesa de Stuart. Sem saber por que, esse gesto comoveu Stuart. Aquelas mãos apertadas na borda da mesa sugeriam sofrimento, angústia e repressão.
— Primo Stuart, creio que lhe devo desculpas. Não o compreendi bem. Foi um erro de minha parte e uma indelicadeza.
— Desculpas, hem? Muito bem. É muito gentil de sua parte, sem dúvida. Mas de que é que está pedindo desculpas? Refere-se por acaso à minha sugestão de que fosse estudar com o Dr. Dexter, à sua impertinente recusa e aos seus insultos? Neste caso, fique sabendo que já esqueci tudo isso. Basta para você?
O pé gotoso doía terrivelmente. O seu rosto se contorceu de dor. O seu olhar para Angus foi fuzilante.
— Não mudou de ideia, hem? Desejo informar-lhe que não estou mais interessado no caso. Pode voltar para sua querida mamãe.
Angus ficou vermelho. Estendeu a mão com um orgulho amargo e disse:
— Não, Primo Stuart, não é por minha causa que estou aqui a ouvir as suas frases pouco generosas. Perdoe-me o que acabei de dizer. Não foi nada delicado. Sei que é o mais generoso dos homens e o mais bondoso. Não me esqueci de suas gentilezas no passado comigo e com minha irmã. Tem havido alguns mal-entendidos, mas não é disso que eu quero falar.
Stuart compreendia que torturas deviam ter custado aquelas palavras a um homem tão rigoroso. Para um temperamento assim, pedir desculpas e reconhecer os seus erros era quase pior do que a morte. Angus acreditava que só agia da maneira mais justa e certa.
— Está muito bem —, disse Stuart, sentindo-se abrandado, apesar das dores que sentia e da sua antipatia por Angus. — Aceito as suas desculpas. É só isso o que você deseja?
— Não, Primo Stuart. Queria falar-lhe era sobre minha irmã Laurie.
— Laurie? Que é que há com a menina? — exclamou Stuart; esquecendo-se imediatamente do pé que latejava e concentrando o seu interesse em Angus.
— Bem, não há nada com ela.
Sempre em luta com a dificuldade de falar, Angus procurava as palavras exatas que devia empregar. Stuart percebeu essa luta, como se Angus fosse um cego a procura de palavras como seixos num cesto cheio e a rejeitar uma por uma, pois as arestas lhe feriam os dedos. Compreendeu que devia fazer sugestões, pois, do contrário, poderia ficar sem saber o que Angus queria.
— Bem, se Laurie não está doente e se não há nada com ela, você não tem motivos para se preocupar. A não ser que ache que há alguma coisa de anormal com a menina.
— É exatamente isso. Nem tudo vai bem com da.
— Ela se sente infeliz, então? — perguntou Stuart, franzindo a testa.
— Sim, ela se sente infeliz.
— Mas por quê? Goza de boa saúde. Talvez seja um pouco alta demais para a idade dela. Mas tem um rosto lindo. — Stuart fez uma pausa e acrescentou com voz mais suave: — Um rosto lindo.
Ficou sem saber por que motivo sentia aquele baque no coração e aquela ternura ao pensar em Laurie. Com mais gentileza do que até então, perguntou:
— Por que está aflito a respeito de Laurie, Angus? Sempre foram tão amigos um do outro. Ela confiava tanto em você.
Angus não pôde compreender. Baixou a cabeça a ponto de Stuart não lhe poder ver o rosto. Mas deu um suspiro.
— Ela não confia mais em você? — perguntou Stuart. — É isso que o aflige?
— É, sim...
— Sabe por que ela não confia mais em você?
Angus levantou o rosto cheio de angústia, mas disse com firmeza:
— Faço uma ideia. Creio que ela acha que eu devia estudar medicina em vez de vir trabalhar nas lojas. Quando eu era menino, falava muito com ela sobre isso e fazia meus planos. Laurie não sabe que às vezes... as circunstâncias nos impedem de levar avante nossos sonhos e esperanças.
— Não vou mais insistir com você nesse ponto, Angus. Você deve saber o que deseja melhor do que eu.
— Muito obrigado. Mas Laurie é ainda muito jovem e não compreende. E eu não sei o que devo dizer a ela. Laurie é um pouco... obstinada e não compreenderia ainda que eu explicasse. Creio que às vezes Laurie é um pouco egoísta. Sei que ela gosta de mim e é justamente por isso que é egoísta... por minha causa...
— Compreendo —, disse Stuart, pensativamente. — É uma criaturinha intolerante, não é? — Olhou para Angus com compassiva curiosidade e continuou: — Por conseguinte, desde que Laurie julga que você traiu... a si mesmo... não confia mais em você. Está zangada com você. Sempre suspeitei de que Laurie fosse inflexível. Há em você alguma coisa dela, Angus. Vocês, escoceses, parecem feitos de ferro. Não leve a mal, mas acho que ceder aos inflexíveis é acrescentar o rigor à tirania que exercem. Você deve agir como quiser, Angus.
Sentia mais curiosidade do que nunca e esperou que Angus falasse. Mas o jovem se limitou a olhar para ele com sombria tristeza.
Stuart, deixando-se guiar pela sua intuição, continuou:
— Bem, Laurie não confia mais em você porque julga que você traiu a si mesmo. Mas o pior de tudo é que a natureza dela está mudando em consequência da falta de confiança e de seu afastamento de você. É isso?
— É sim! — exclamou Angus, abandonando por um momento a sua reserva. — Disse exatamente a verdade, Primo Stuart!
Stuart estava realmente interessado. Chegou a colocar no chão o pé doente e não sentiu coisa alguma.
— E isso não é nada bom para Laurie. Compreendo muito bem. Mas que poderia você fazer de bom por Laurie que ela não ressentisse por vir de você em quem não confia mais?
Angus tremia. Afastou-se da mesa e sentou-se numa cadeira ao lado de Stuart. Parecia vibrar de uma paixão contida e inarticulada.
— Já ouviu Laurie cantar, Primo Stuart?
Stuart franziu a testa, procurando lembrar-se. Sorriu, por fim.
— Já, sim! É uma bela voz! Muito forte e muito pura para uma menina da idade dela! Mas ela deve ter na escola professoras que lhe estão desenvolvendo a voz.
— Mas Laurie não quer cantar na escola e as professoras desistiram. Também não quer cantar em casa. Laurie deixou de cantar!
— Deixou de cantar, hem? E não canta porque se sente infeliz. E ela se sente infeliz por sua causa, Angus. Acha que eu estou certo?
— Está, sim, Primo Stuart. Sei que está.
— Mas você não pode ceder à obstinação e à incompreensão infantil de Laurie. Sendo assim, que é que você quer que eu faça?
Angus baixou a cabeça e começou a falar numa voz muito triste e cansada:
— Laurie não encontra amor dentro de nossa casa, Primo Stuart. Ninguém a ama senão eu. E ela não quer mais saber de mim. Ela vai ficar cada dia mais dura, obstinada e reservada, Stuart. E isso será uma morte para ela, pois a natureza de Laurie é feita de amor.
Levantou para Stuart os olhos desesperados
"Será a morte também da bela voz de Laurie, Stuart. E é uma voz que deve ser dada ao mundo para o bem de Laurie e do mundo. Não posso ver uma coisa tão admirável em Laurie morrer assim.
"Bem sabe que Laurie sempre gostou muito de você, Stuart. Nunca falou muito de você em casa por causa de... Mamãe. Mas sei que ela gosta de você e o admira muito. Você poderia ter influência com Laurie. Ela o escutaria. Se você pudesse conseguir que ela aceitasse sua ajuda, assegurando que isso lhe daria prazer, tenho certeza de que ela faria o que você lhe pedisse.
— E que era que eu deveria pedir, Angus?
— Pediria que ela cantasse para algum grande professor que você arranjaria para ela e, se na opinião desse professor Laurie tivesse uma bela voz, digna de ser cultivada, você pediria a ela que estudasse com esse professor ou fosse para qualquer escola que ele sugerisse.
Stuart estava atônito. Recostou-se na sua cadeira e franziu a testa.
Mas Angus continuou, sem nenhuma dificuldade mais com as palavras que lhe jorravam dos lábios.
— Não acho que a voz de Laurie deva ser cultivada apenas para dar prazer à família e aos amigos. Acho que deve ser cultivada para o mundo. Laurie pode ser outra Jenny Lind, talvez até maior que Jenny Lind!
A cabeça de Stuart rodava e ele levantou a mão.
— Um momento, Angus! Está sugerindo que Laurie poderia ser uma atriz? Aparecer num palco iluminado? Nunca poderia esperar isso de você, Angus! Onde está sua piedade, sua religião? — Sorriu zombeteiramente. Não podia evitar essa farpa, mas logo se arrependeu ao ver a cara compungida de Angus. Continuou: — Estou surpreso, Angus. Mas não ligue ao que eu digo. O fato é que você está sugerindo que Laurie seja uma atriz e você sabe o que é que o mundo pensa das atrizes. Tenho visto e conhecido muitas em Nova York.
— Não, Primo Stuart. Não estou sugerindo que Laurie seja uma "atriz". Jenny Lind não é uma atriz. Canta em belas óperas e é uma grande artista. É isso o que eu desejo para Laurie.
Stuart estava mais confuso do que nunca. Tentou sorrir.
— Você não pode julgar, Angus. Você não pode saber se Laurie tem uma voz como a de Jenny Lind.
— Mas você pode saber, Primo Stuart. Você é um homem do mundo.
Stuart, na sua simplicidade, sentiu-se lisonjeado.
— Não vamos discutir isso, por enquanto, Angus.
Ficou em silêncio, procurando ver se se lembrava plenamente da voz de Laurie. Era ridículo sem dúvida. Havia muitas moças que tinham boas vozes. Teria de confessar a Angus que nunca ouvira Jenny Lind cantar. O seu gosto pessoal se cifrava em music halls e alegres soubrettes cujas vozes nem sempre eram das melhores. Era forçado a comparar a voz pura e forte de Laurie com as desafinações roucas de mulheres vestidas com toilettes provocantes. Não sabia também exatamente o que era uma ópera. Talvez as óperas preferissem vozes como as de Laurie. E as cantoras de ópera usariam também aquelas toilettes? Franziu a testa. Se Laurie tivesse de vestir-se assim e atrair a atenção de homens dissolutos, ele teria de protegê-la.
Quebraria a cabeça de qualquer homem que achasse as pernas de Laurie bonitas.
Disse então com uma ponta de irritação:
— Não posso compreender você, Angus. Gostaria de ver sua irmã com roupas leves exibindo-se ao mundo inteiro?
— Não! Mas Mamãe não falou em roupas leves quando se referiu a Jenny Lind. Falou apenas da voz, da beleza e da fascinação dela.
Stuart percebeu que a sua reputação como homem do mundo corria sério perigo. Acomodou-se na cadeira com uma expressão majestosa e disse:
— Ah, Jenny Lind! Tinha-me esquecido de Jenny Lind. Sem dúvida, essa bela senhora não usa roupas leves. Isso estaria abaixo da dignidade dela. De modo que é como outra Jenny Lind que você quer ver Laurie? Sem roupas leves?
— Acho que sim.
Stuart lembrou-se de alguma coisa e disse:
— Parece que você já discutiu isso com sua mãe. Ela não ficou revoltada com a ideia de ver sua irmã... cantando óperas num palco?
— Primo Stuart, Mamãe compreende que Jenny Lind ganha uma fortuna. Tem cantado para as cabeças coroadas da Europa e para o Presidente dos Estados Unidos. Tem uma comitiva quase real. Mamãe me escutou com muita atenção.
Stuart sorriu.
— Neste caso, você não tem de se incomodar. Sua mãe conseguirá um professor em condições para julgar a voz de Laurie.
Angus torceu as mãos. E então contou a Stuart a cena que se passara entre sua mãe, sua irmã e ele. Stuart escutou, com absorvente interesse. Quando Angus terminou, disse depois de pensar um pouco:
— Esse caso é todo muito delicado, Angus. Laurie disse que você fosse cuidar de sua vida. Sua mãe mostrou interesse. Isso é de esperar, pois ela não pode deixar de levar em conta a fortuna que Jenny Lind está acumulando. Não é indiferente também à fama e à glória. Entretanto, não está inteiramente convencida. A dúvida dela é agravada pela obstinação de Laurie e pela repulsa dela em relação a você.
"Se eu fizer as enormes despesas de mandar buscar um professor em Nova York para vir até aqui ouvir Laurie, há sempre a probabilidade de que Laurie se negue a cantar ou não aceite o veredicto, se for favorável.
Angus estendeu as mãos para Stuart num gesto infinitamente patético.
— Ela não recusará, Primo Stuart, contanto que você lhe peça. Ela gosta de você. Mas não deve absolutamente mencionar meu nome, pois isso seria fatal.
Stuart olhou para o rosto comovido e trêmulo de Angus. Mordeu os lábios pensativamente.
— Acha então que eu posso ter influência sobre Laurie? Talvez esteja certo. Mas imagine que a opinião do professor seja favorável, entusiástica até? Laurie precisaria de anos de estudos, talvez em Nova York. Você acha que sua mãe estaria disposta a arcar com essas despesas?
Angus ficou em silêncio durante alguns momentos. Disse por fim:
— Não, não estaria. Sei disso. Ainda que ela estivesse convencida de que Laurie iria ganhar uma fortuna com sua voz. Quase acredito que ela gostaria de frustrar Laurie. Não quero dizer com isso que Mamãe seja cruel ou mesquinha! Nada disso! Mas Mamãe é uma mulher e talvez não possa compreender as óperas. Poderia achar isso... imoral para Laurie.
— Deixe de ser bobo! — exclamou Stuart. — Você sabe muito bem que ela se oporia a qualquer coisa que favorecesse Laurie porque não gosta da menina! Você está farto de saber que ela não gosta de nenhum de vocês a não ser daquele bêbado que é Bertie! Não seja idiota e não minta para si mesmo! Quando veio falar comigo, pensei que fosse para ter uma conversa leal e honesta, de homem para homem! Mas se pensa que pode me embair com suas piedosas mentiras e sua revoltante lealdade com sua mãe, pode sair neste momento e nunca mais me incomodar!
Angus levantou-se. Afastou-se alguns passos de Stuart. Quase lhe deu as costas e saiu correndo do escritório. Mas parou a tempo. Stuart olhou para ele e deu uma risada.
— Sua delicada mamãe pode achar isso "imoral’’, não é? Que é que você sabe de sua mãe, meu jovem imbecil? Formou na cabeça uma imagem fantástica dela como num vitral e agrada à sua vaidade acreditar que essa imagem corresponde à realidade!
Levantou-se com esforço e continuou:
"Leve a sua história fantástica para longe de mim e seja muito feliz! "Imoral"... Pois sim! Não posso tolerar um homem que mente para si mesmo! Vamos ser honestos, com todos os diabos! Se você não sabe quem é sua mãe, ainda posso perdoá-lo. Mas você não é criança. Sabe muito bem quem ela é ou então procura iludir-se. Posso ter pena da ignorância, mas não tolero a cegueira voluntária!
Esperava que Angus saísse depois disso. Mas o jovem continuou onde estava, cheio de desespero, de agonia e de vergonha.
— Tenho pena de você pelo que é, Angus. Quer muito bem a sua irmã, pois do contrário não ficaria aí ouvindo as verdades que estou dizendo sobre sua mãe. Sim, tenho pena de você.
Parou para tomar fôlego. O coração traiçoeiro o estava mais uma vez dominando. Sentia-se cheio de piedade e de amolecedora tristeza. Tentou imprimir severidade à voz quando disse:
— Você veio pedir-me que ajude Laurie. Não disse que não a ajudaria. Perguntei apenas se sua mãe estaria disposta a ajudar sua irmã. Você disse que não. Vamos supor então que eu trouxesse um professor para ouvir sua irmã e a opinião dele fosse favorável. Vamos supor ainda que, neste caso, eu me oferecesse para mandar Laurie para uma escola de música e canto em Nova York e sua mãe não quisesse deixá-la ir. Que deveríamos fazer neste caso, de acordo com as suas sugestões?
— Quando Mamãe se convencer de que Laurie poderá fazer uma fortuna com sua voz, ouvindo isso do professor, não fará mais qualquer oposição. Haveria tanto dinheiro...
— Ah — exclamou Stuart.
— Mas Mamãe não adiantaria o dinheiro. Diria que não tem. Mas consentiria em que você gastasse o seu, Stuart.
— Sem dúvida, sem dúvida —, disse Stuart. Tamborilou com os dedos na mesa e acrescentou: — O que me pede não é fácil, Angus. Faz alguma ideia do que isso me poderá custar?
Angus olhou para ele muito pálido e cheio de orgulho.
— Não seria por muito tempo, Primo Stuart. No fim, eu lhe pagaria tudo. Não sei se sabe, mas vou-me casar com a Srta. Gretchen Schnitzel quando ela completar dezessete anos, isto é, daqui a um ano e meio. O pai dela já deu consentimento.
Incrédulo, Stuart deixou-se cair na sua cadeira. Ficou muito pálido de surpresa e consternação.
— Que história mais maluca é essa, Angus?
— É verdade, Primo Stuart! O noivado vai ser anunciado em junho quando Gretchen completar dezesseis anos. Nós nos casaremos um ano depois. Poderei pagar-lhe então todas as despesas que fizer com Laurie.
Mas Stuart tinha ficado furioso de novo.
— Pretende mesmo casar-se com aquela moça repulsiva, Angus Cauder? Vai-se casar com aquela horrível alemã e com os nojentos pais dela, os donos do curtume?
Angus ficou em silêncio, mas não desviou o olhar do rosto de Stuart.
— Onde está seu orgulho? — perguntou Stuart, ainda sem querer acreditar e terrivelmente preocupado. A ideia lhe era francamente intolerável. — Onde está o seu sentimento de honra, o seu respeito próprio? Que é que essa moça tem senão dinheiro? Não tem graça, nem prendas, nem qualquer espécie de encanto. É feia, horrorosa! É a digna filha dos pais que tem. Meu Deus! Se ela tivesse alguma beleza, seria possível talvez fechar os olhos aos pais e aos curtumes, mas ela não tem nada, nada mesmo! Meu Deus, Angus! Olhe para mim, Angus! Bem nos olhos! Diga-me que é uma brincadeira, uma mentira! Não posso tolerar isso! Afinal de contas, você é meu parente!
Mas Angus encarou firmemente o primo.
— Não é mentira, Primo Stuart! E devo dizer que me ofende com as coisas que diz sobre a Srta. Schnitzel!
Stuart ficou ali parado, balançou tristemente a cabeça e perguntou:
— Você... ama essa moça?
Angus apertou os lábios pálidos e respondeu:
— Pretendo casar-me com ela, Stuart.
— Mas por quê? Em nome de Deus, por quê?
Angus ficou em silêncio. Stuart teve então um pensamento. Agarrou Angus pelos ombros e perguntou com uma expressão terrível:
— Foi sua mãe, não foi?
— Não me agradam suas perguntas, Stuart. Além do mais, isso não é de sua conta.
Stuart deixou cair as mãos e voltou mancando para a sua cadeira. Sentou-se, levou a mão ao rosto para cobrir os olhos e disse:
— Vejo que nada mais adianta. Pode ir, Angus. Quanto a Laurie, vou mandar buscar um professor para ouvi-la. Teremos de esperar a decisão dele.
Deixou cair a mão do rosto e viu que Angus ainda estava ali.
— Meu Deus! — exclamou Stuart Que Deus tenha piedade de você, jovem idiota! Saia, pelo amor de Deus! Não vê que estou passando mal?
Depois que Angus saiu, Stuart ficou sozinho com os seus desvairados pensamentos. Bateu então na mesa com os punhos fechados e gritou:
— Que megera! Que cadela de coração negro! Cadela imunda!
CAPÍTULO 34
Quase sempre, nas noites de sexta-feira, Stuart ia à casa de Sam Berkowitz. Quando isso acontecia, era porque se sentia mortalmente aborrecido, confuso, vagamente amedrontado ou perdido. Ou quando estava estourando de raiva e queria um ouvido amigo e um interesse simpático. Nessas ocasiões, não achava a companhia do Padre Houlihan especialmente tranquilizadora porque o padre tinha tanta certeza da eterna bondade, sabedoria e misericórdia de Deus que irritava em vez de tranquilizar um homem como Stuart que via muitos exemplos em contrário.
Preferia, portanto, quando se sentia dominado por uma raiva impotente, ir à casa de Sam, onde a melancolia vivia e onde a paciência era levedada com tristeza, inteligência e perguntas cépticas. Sam escutava as suas furiosas e incoerentes diatribes, ora sorrindo, ora penalizado e assentia em silêncio fumando e olhando para algum ponto logo à direita da cabeça de Stuart. Então, quando Stuart se calava por absoluta falta de fôlego, Sam abria as suas Escrituras e lia. Stuart nem sempre compreendia ou recebia explicações, mas se sentia tranquilizado pelos clamores dos profetas, pelas lamentações de Jó, pelas veemências de Elias e pelas severidades de Isaias. Ali havia sabedoria, dor, tristeza e rebelião que vinham do coração dos velhos profetas e estavam mais perto do turbulento coração de um celta do que a doce esperança dos santos do Novo Testamento.
A Sra. Berkowitz, velha e atacada de artrite, insistia em ser carregada para baixo nas noites de sexta-feira, a fim de "presidir" a mesa e acender as velas. Antes disso, orientava de seu quarto nas complicações da cozinha judaica a empregadinha alemã que trabalhava na cozinha. A Sra. Berkowitz se mostrava particularmente insistente nas noites em que Stuart aparecia. Ele a olhava por trás de seus candelabros, trêmula da doença e da velhice, tão pequena e tão frágil. Ouvia-a murmurar as suas preces e as suas bênçãos, o rosto coberto pelas mãos nodosas, por entre cujos dedos escorria às vezes uma lágrima. As velas ardiam na escuridão da pequena sala quente e a voz trêmula e débil da Sra. Berkowitz se elevava em estranhas palavras de prece sobre as luzes amarelas. O ritual antigo e misterioso acendia outra luz no coração inquieto e violento do irlandês e o seu sangue celta se agitava incontroladamente, como numa recordação sem nome.
A forte imaginação celta fazia-o ver luzes semelhantes a brilhar em casas cheias de paz, de tristeza ou de medo através do mundo acompanhando a luz do sol do ocaso, levando a sua luz para a escuridão enquanto a terra girava. O rastro das velas acesas era como uma corrente de esperança eterna e de fé, cheia de sentido sob as estrelas despertas. Muitos milhares de noites negras podiam vir, carregadas de opressão, medo, terror e loucura, mas as velas continuariam acesas, frágeis e intrépidas, como vozes de conforto de irmãos para irmãos através das fronteiras de todas as terras, afirmando a sua fé em Deus, a lembrança do Seu amor e da Sua misericórdia e a crença na paz e na fraternidade finais.
Embora não tivesse fé, e realmente não tivesse crença nem esperança em coisa alguma, Stuart achava um conforto profundo e místico nas velas acesas, que eram não apenas uma afirmação de Deus, mas uma alegria para o coração e para os olhos dos que se sentavam às mesas. Havia uma toalha branca bem engomada na mesa dos Berkowitz, com pratas polidas e copos de cristal de vinho. Havia pratos ricos e estranhos e pão fresco e branco à luz das velas. O fogo na lareira, as velas, o aroma convidativo da galinha assada, da sopa quente amarela e do vinho tinto velho davam a Stuart uma sensação de intemporalidade e força e ele olhava para a sala fechada com satisfação cansada de quem afinal encontrou refúgio.
A Sr. Berkowitz, com o lenço na cabeça, os miúdos olhos pretos muito vivos e o enrugado rosto sorridente, sabia pouco inglês. Mas escutava com grande atenção a voz grave do filho e as palavras ardorosas e zangadas do amigo.
Stuart sabia que não devia falar, por mais perturbado que estivesse, enquanto o jantar não terminasse. Quando isso acontecia, grande parte da sua agitação se havia dissipado e ele podia discutir as coisas com mais calma e menos incoerência. Olhava para o rosto moreno e sulcado de Sam, com os lábios comprimidos, os bondosos olhos castanhos, e as suas exclamações mais furiosas lhe morriam na garganta. Parecia-lhe então que tinha sido muito precipitado e tinha dado importância à coisas que realmente não a tinham.
Chegou naquela noite de sexta-feira ainda furioso e ressentido da conversa que tivera com Angus. Sam, depois de ver-lhe o rosto alterado, levou-o para a pequena sala de jantar sem dizer uma palavra. Foi então buscar a mãe, carregando-a nos braços pela escada enquanto ela olhava ansiosamente para Stuart.
Falaram apenas nas trivialidades habituais durante a refeição, enquanto a Sra. Berkowitz servia ansiosamente Stuart várias vezes de macarrão e galinha. Ela tinha a firme convicção de que ele tinha pouco apetite e precisava de ser bem alimentado. Só quando Stuart não podia mais, ela parava com um tímido sorriso de satisfação.
Ela estava muito cansada naquela noite e Sam levou-a de novo para cima enquanto ela lançava bênçãos sobre o hóspede por cima do ombro do filho. A empregada levou os pratos e limpou a toalha. Uma tempestade se estava formando. Stuart ouvia os uivos do vento contra as janelas. As cortinas se balançavam ao vento e de alguma fenda sob uma porta vinha um cortante sussurro de vento gelado. Stuart afastou uma cortina e olhou para fora. À vacilante luz de um lampião, viu o torvelinho de flocos brancos que giravam além do círculo amarelo de luz plantado na escuridão. Depois, até esse pequeno círculo foi obliterado pelos flocos de neve. Era uma noite feia. Dentro de uma ou duas horas, as ruas estariam cobertas de dunas brancas e o ar cortaria a carne como o gume de uma faca. Não se via uma só pessoa. A rua era apenas desolação.
Stuart voltou para junto da lareira, praguejando displicentemente contra o rigor do inverno do Norte e lembrando-se do calor de seu capote forrado de peles. Ouviu o apito distante de um trem, logo sufocado pelo uivar do vento que varria os lagos congelados.
Sam voltou e serviu conhaque velho em pequenos cálices. Sentou-se ao lado de Stuart diante da lareira e provou o conhaque num silêncio amistoso. Mas observava Stuart com furtiva atenção. Sentia fortemente a inquietação e a confusão do amigo.
— Uma noite horrível —, comentou Sam, ouvindo o vento que sacudia as vidraças.
— Por aqui, as noites sempre são horríveis durante oito meses do ano —, murmurou Stuart sombriamente.
Passou a mão pelos espessos cabelos pretos e se lembrou de que tinha notado naquela manhã mais fios brancos entre eles.
— As noites são sempre horríveis —, murmurou Stuart —, e eu já estou cansado disso.
— Acho que estamos cansados é das coisas dentro de nós —, disse Sam. — Ou das coisas que julgamos ver dentro de nós. É a crença que temos nelas que nos enche de cansaço. Se não acreditarmos...
Abriu as mãos e levantou os ombros no gesto imemorial de sua raça que era uma mistura de humor e de tristeza.
— Isso é um verdadeiro absurdo! — exclamou Stuart. — Quer dizer que se eu não acreditar em Janie ou na imbecilidade dos filhos dela, nada disso existe!
— Se você pensa que o que você acredita em relação àquela mulher não é verdade, é bem possível que deixe de ser verdade mesmo. Para você, é claro. Para você, meu amigo. Se você pensar que ela é boa e os filhos também, todos eles passarão a ser bons... para você.
— Absurdo! Pense eu o que pensar, ela continuará a ser uma megera e os filhos, uns idiotas!
Sam recostou-se em sua cadeira e falou pensativamente:
— Conheci em outros tempos um homem. Não prestava. Era cruel e duro e, no fundo do coração, um assassino. Era isso o que os outros sabiam dele ou julgavam saber. O mal que ele fazia transparecia de toda a sua pessoa. Era o que todos viam. Mas esse homem tinha mulher e filhos, que o julgavam o mais bondoso e o mais justo dos homens. Para eles, o homem era isso. Quem, então, estava certo?
— Você está ficando como o velho Grundy, Sam, e tenta embrulhar-me com essas sutilezas metafísicas.
— Não, tudo é uma questão de ponto de vista. O homem que está na montanha diz que o vale é baixo. O homem que está no vale diz que a montanha é alta. O homem que está no sopé da montanha vê uma altura que não pode escalar. Mas o homem que está de longe vê apenas uma pequena elevação.
— Ora, pare com isso, Sam! — exclamou Stuart, irritado. — Você não me está ajudando em nada!
Sam sorriu. Quando ele sorria, as rugas de seu rosto cansado se atenuavam e sua expressão era de divertida doçura. Até os olhos dançavam.
— Talvez você saiba melhor, Stuart. Quanto mais se pensa, mais se perdem de vista os contornos da realidade. Você é como uma criança, Stuart. Vê apenas, sem pensar. Talvez por isso saiba melhor.
— Escute, Sam, vamos aos fatos. Não tem notado o que está acontecendo? Nossas vendas estão caindo. Os fazendeiros vêm menos à cidade fazer compras. Os fregueses estão mais cautelosos e procuram comprar artigos mais baratos e em menor quantidade. Que é que há? Onde é que está o dinheiro? Não há menos dinheiro nesta terra! Deve estar sendo guardado. Por quê?
— É melhor perguntar: Por que foi que o povo perdeu a confiança? Alguma coisa afetou evidentemente a confiança do povo. Que foi? Quando se puder resolver esse problema em cada nova queda de confiança, poder-se-á resolver todo o complexo problema do pânico. Às vezes, é apenas um boato. Alguém diz que a safra foi prejudicada por isso ou por aquilo e será bem menor. Outras vezes, suspeita-se do partido político que está no poder. Deixe-me dizer-lhe de novo que tudo é como o caso da montanha que, vista de longe, parece pequena e, vista de perto, parece grande. O dinheiro é uma coisa intangível. É uma coisa imaginária. É fácil e pronto quando há confiança, mas se perde quando essa confiança desaparece. Pode ser que eu esteja errado, mas acho que estou certo.
— Você ainda está dizendo coisas absurdas ou, pelo menos, incompreensíveis. Só sei é que nossas dívidas e compromissos são enormes e que nossas vendas estão caindo. Essa é que é a realidade que temos de enfrentar e não as suas montanhas "intangíveis"! A filosofia nunca entrou na coluna do ativo e nunca fez desaparecer a do passivo. Você pode olhar calmamente para as coisas e falar por meio de enigmas. Mas eu não sou calmo e o que estou vendo é a falência se as coisas continuarem desse jeito!
Sam estava muito sério e disse:
— Tem toda a razão, Stuart. Já estão começando a falar em pânico. Na Wall Street, se diz que é uma coisa inevitável. Mas eu não sou financista, nem estudioso de economia. Sou apenas um negociante e não sei de nada. Fez uma pausa e continuou, quase no tom de quem pede desculpas: — Sabe o que é que devemos fazer? Cortar despesas, restringir, economizar. Vender o que temos e só comprar sortimentos novos à vista. Temos de operar num círculo mais estreito e mais cauteloso. Enquanto isso, devemos tratar de saldar os nossos compromissos o mais depressa possível. Em suma, temos de apertar os cintos.
Sam sabia, antes mesmo que houvesse no rosto de Stuart uma expressão de pavor e de raiva, que iria encontrar uma furiosa resistência da parte do amigo. Apressou-se em dizer:
— É preciso que você me compreenda. Não tendo dívidas, poderemos muito bem contentar-nos com lucros menores. Ainda havendo pânico, as pessoas têm de viver. Podem comprar menos e coisas mais baratas, mas não deixarão de comprar. O negociante capaz de resistir à tempestade é aquele que não tem dívidas, que vende o que é possível, que vive frugalmente com pequenos lucros até que o mau tempo passe. Será marcar passo sem dúvida, mas por algum tempo apenas, porque as crises econômicas têm de passar inevitavelmente. Muitos naufragam. Mas quem se apressou em fazer-se solvente nunca é um dos náufragos.
— Está falando como um covarde, Sam! É gente como você que produz os pânicos. Você não tem confiança!
Mas Sam disse gravemente:
— Tenho confiança de que a tempestade passará. Mas não poderei ter confiança se não tomar as cautelas necessárias para que não seja um dos náufragos! Quero tomar precauções. Quero trancar bem portas e janelas para que a tempestade, quando passar, cause o menor dano possível. Se eu deixar portas e janelas abertas, estarei fazendo um convite à destruição.
Stuart sentiu-se tomado da velha sensação de enjoo que sempre o acometia ante qualquer sugestão de economia ou cautela. Exclamou:
— Que alma pequenina tem você, Sam! Que alma amedrontada, furtiva, miserável! É assim que se fazem e crescem as grandes empresas? Acha que alguém poderá prosperar se tiver medo de comprar dois metros de chita quando não tiver a certeza de vendê-los imediatamente? Só se faz alguma coisa de grande com a confiança implícita de que haverá fregueses com dinheiro suficiente para comprarem o que se tiver para vender!
Mas Sam se tornou mais severo e disse pausadamente:
— Você não me compreende. É você agora que está falando absurdos. Se um freguês não tiver a confiança implícita, como diz você, de que amanhã terá mais dois dólares, não gastará dois dólares hoje. É justamente isso que está acontecendo. Os fregueses não acreditam que amanhã vão ter os dois dólares, de modo que hoje só gastam um dólar ou nada. Isso é um fato que temos de compreender. Não sei por que estão com medo de amanhã não ter os dois dólares. Já lhe disse que não sou estudioso de assuntos financeiros. Só sei é que estou diante da mulher apavorada que tem receio de que amanhã não tenha os dois dólares e prefere guardar o seu dinheiro para comprar pão para a família quando os dólares se acabarem.
Stuart, dominado pelo seu antigo medo, levantou-se e começou a passear de um lado para outro na sala, alisando os cabelos e esfregando as mãos.
— Você está com medo —, continuou Sam. — Você sabe, ao fundo do coração, que as mulheres estão gastando nas lojas cinquenta centavos e não dois dólares porque já têm receio de amanhã precisar do dinheiro para comprar pão. Mas você não quer escutar. Não se contenta em comprar uma peça de chita apenas porque não acredita que amanhã não vai conseguir vender duas. Entretanto, pode ser que não consiga vender nem meia peça. É por isso que lhe estou dizendo que compre só uma peça hoje a dinheiro e pague, se puder, as muitas peças que comprou ontem. E isso o mais depressa possível.
:— São uns imbecis! — exclamou Stuart. — Não compreendem que, para usar sua metáfora, se não comprarem duas peças hoje, talvez não possam comprar meia peça amanhã?
— Talvez as pobres mulheres não entendam nada de economia, Stuart. E, desde que você tem de tratar com as pobres mulheres, não pode deixar de aceitar os receios delas.
— Está bem, está bem! Qual é a solução, então?
— Tenho pensado muito nisso —, disse Sam depois de um longo silêncio. — Devo confessar que estava mesmo à espera de que você viesse falar comigo. Já lhe dei o meu conselho. Agora, não vou usar metáforas. Vou falar direta e claramente. Mas, antes, quero fazer-lhe uma pergunta: Qual é seu saldo nos bancos?
Stuart mordeu os lábios muito vermelho e disse furiosamente:
— Posso levantar...
— Não lhe perguntei quanto você pode levantar. Quero saber qual é o seu saldo em dinheiro nos bancos.
— Deve andar em dez mil dólares!
Sam sacudiu a cabeça e disse lentamente:
— E suas dívidas sobem a mais de cem mil dólares...
Deu um suspiro. Pegou o cálice de conhaque, levou-o aos lábios e tornou a pousá-lo na mesinha, sem provar uma só gota.
— Das lojas, dos últimos seis meses de movimento, você terá apenas cinco mil dólares, Stuart. Com isso, não poderá pagar as suas dívidas, pois, infelizmente, você tem de viver além de pagar suas dívidas.
— Já sei! — exclamou Stuart. — Você está com medo de ser arruinado por mim, juntamente comigo!
Sam olhou cheio de mágoa para Stuart, que logo ficou de rosto vermelho.
— Você sempre me acusa de coisas feias —, disse o judeu tristemente. — Mas tem consciência de que essas acusações são injustas.
— Tenho sempre de pedir desculpas a você, Sam. Mas desta vez não vou pedir. Você bem sabe que eu tenho a língua solta. Mas de qualquer maneira, posso sempre tomar dinheiro emprestado. Minha casa está quase paga. Além disso, não temos nas mãos uma porção de ações que devem valer alguma coisa?
— Mas é justamente isso que estou dizendo! Temos de vender o que temos e pagar todas as dívidas. Comprar um pouco mais e só à vista quando pudermos. Será uma maneira de apertar o cinto até que a mesa seja posta de novo.
— Mas você se esquece de que temos uma encomenda que está para chegar no valor de vinte e cinco mil dólares!
Sam sacudiu a cabeça.
— Não podemos aceitá-la. As lojas de Nova York vão comprá-la decerto ainda no cais. Estava para lhe dizer isso. Não podemos aceitar essa encomenda.
Stuart olhou para ele, sombriamente.
— Você tem o dinheiro, Sam.
— Tenho o dinheiro, sim. Para meu povo. Não posso gastar esse dinheiro para comprar mercadorias que não conseguiremos vender talvez por muito tempo. Não posso lançar mão desse dinheiro que pertence a meu povo.
— Você não será capaz de me emprestar esse dinheiro para me salvar? No último caso, para salvar a você mesmo.
Pela primeira vez em muitos anos, Stuart viu um assomo de cólera nos olhos do amigo.
— Você fala de salvar a você e a mim, Stuart! Mas ninguém estaria falando agora de salvação se você não tivesse sido imprudente e desajuizado com o seu dinheiro! Nunca deixei de avisá-lo e você nunca me quis escutar. Você tinha de gastar. Você tinha de gastar numa casa cheia de tesouros inúteis, em mulheres, em joias, em cavalos e em outros desperdícios. E agora me diz que eu tenho de salvá-lo! Quer que eu gaste com você o dinheiro que não me pertence, que foi lenta e penosamente acumulado para aqueles que não têm esperança, nem mesmo de vida, se eu não usar esse dinheiro em benefício deles!
— Não se esqueça de que, se eu cair, você cairá também! Talvez me compre pelo preço que lhe convier! E pode ser até que me bote simplesmente para fora!
Mas Sam se limitou a olhá-lo, com uma mistura de raiva, desprezo e compaixão. Foi até uma mesa num canto e apanhou uma folha de papel.
— Aqui estão os números, meu caro Stuart. Simples números que podem ser compreendidos com facilidade. Não será preciso muito tempo para explicá-los. Depois, você pode esquecê-los à vontade!
"Na conta das lojas, temos dezessete mil dólares nos bancos. Só. Nossas dívidas são de oitenta e dois mil dólares. Temos investidos em nosso estoque nas lojas noventa mil dólares. Esse estoque se está movendo lentamente, como um rio congelado no inverno antes da chegada da primavera. É preciso pagar os empregados e fazer regularmente os pagamentos relativos às dívidas. No mês que vem, Stuart, a sua retirada será de quatrocentos dólares apenas. A minha também. Entretanto, você tem suas dívidas pessoais a atender nos bancos. Tem as suas hipotecas e as suas despesas. E há sempre os empregados, que vivem dos salários que lhes pagamos. É neles que estou pensando agora.
Stuart olhou para ele em silêncio e deixou-se cair pesadamente na sua poltrona. Sam continuou a falar:
— Você falou dos fundos particulares que eu tenho depositado nos bancos para o meu povo. Já lhe disse mais de uma vez que se você precisasse de meu dinheiro, ele seria seu. Eu tenho um fundo pessoal — de cerca de sete mil dólares — fora do que economizei para meu povo e que não é meu. Esse fundo é seu, Stuart, se você quiser e precisar dele.
Stuart nada disse e Sam continuou num tom mais animado:
— Esses sete mil dólares e os seus dez mil dólares, Stuart, poderão ajudá-lo. Mas só se não comprarmos, se economizarmos, se vivermos frugalmente, se vendermos o que temos e não comprarmos mais. Até que o rio degele na primavera e volte a rolar as suas águas. Todos os nossos lucros, Stuart, têm de ser usados para pagar as dívidas das lojas. Não devemos tirar coisa alguma. Seus dez mil dólares e meus sete mil devem servir para nossas despesas particulares até que o rio corra de novo.
— Meu Deus! — exclamou Stuart. — Gasto dez mil dólares por mês comigo. Quanto tempo esse dinheiro me vai durar?
— Tem de reduzir as suas despesas, meu amigo.
— Mas como?
Sam hesitou, deu um suspiro e olhou severamente para o amigo.
— Você me mostrou o colar e os brincos de brilhantes que comprou para uma certa senhora de Chicago. Terá de devolver essas joias, meu caro Stuart. Haverá um pouco de prejuízo, sem dúvida. Se não me engano, deu doze mil dólares por elas. O joalheiro com toda certeza só lhe dará onze mil dólares por elas. Ou quem sabe se não devolverá o dinheiro integralmente?
— Dei apenas dois mil dólares de entrada pelas joias —, disse Stuart, desviando o olhar.
— Ainda assim, devolva. Receberá talvez mil e quinhentos dólares de seu dinheiro. De qualquer maneira, será uma dívida a menos.
Stuart ponderou sombriamente o caso. Então, o medo, como um animal, saltou-lhe de novo ao pescoço, e, na enormidade de seu pânico, levantou-se de um salto.
— Não posso! Não posso! Viver assim como um mendigo, economizando, será uma morte para mim! Você não sabe nada disso! Nada! Como pode você compreender um homem como eu?
Sam olhou-o calmamente e perguntou:
— De que é que você está com medo, Stuart? Que é que o apavora tanto?
Stuart disse então das profundezas subconscientes de seu ser:
— Tenho medo do mundo... Sentou-se de novo e olhou para o fogo. Disse quase inaudivelmente, como se estivesse falando em sonho: — Há mais alguma coisa de que você se esqueceu ou que, pelo menos, não mencionou. Eu lhe devo ainda quatorze mil dólares do dinheiro que você me emprestou. Eram dezessete mil, mas eu já lhe paguei três mil. Não falou disso. Será que se esqueceu?
— Algum dia lhe pedi alguma coisa, Stuart?
Stuart passou as mãos pelo rosto.
— Não, Sam. Sei que você não faria isso.
— Escute, Stuart. Você diz que tem medo do mundo. Medo por quê?
— Eu sei o que é o mundo, Sam.
— Eu também sei, Stuart. Mas não tenho medo do mundo. Sei tudo o que ele pode fazer de pior e, ainda assim, não tenho medo. Quando se sabe do máximo, do pior que pode acontecer, então há uma certa tranquilidade que nada mais pode abalar.
Stuart parecia não o ter ouvido. Começou a falar com uma voz mecânica, como se o seu subconsciente apenas estivesse falando, sem intervenção do seu eu consciente.
— Nunca fui um mau rapaz. Era mais ou menos como um cachorrinho. A minha vontade era ser amigo de todo mundo. Se alguém me falava amavelmente, meu coração logo se abria cheio de amor. O mundo me parecia um lugar cheio de beleza e de interesse, de boa vontade, de aventura e de bondade. Isso era quando eu era um rapazinho. Mesmo quando via coisas más, bocas retorcidas ou olhos inamistosos, isso me parecia uma coisa acidental. Era uma coisa desagradável e possível, mas não universal. Lia e acreditava nas mentiras dos homens bons que tinham morrido havia muito tempo. Para mim, a "dignidade humana", a "fraternidade universal" e a "bondade paternal de Deus" não eram simples frases. Julgava que todos as conheciam e viviam de acordo com elas. Às vezes, sem dúvida, cometiam-se erros, mas por culpa de alguns poucos que desconheciam essas coisas ou não as compreendiam. Os que erravam eram criminosos, odiados e repelidos pelo mundo inteiro. Acreditei em tudo isso até quase ter vinte anos de idade.
"Eu compreendia a mentira. Fui um jovem mentiroso fora do comum. Mas minhas mentiras eram inofensivas e nunca tinham a intenção de prejudicar a ninguém. Compreendia essas mentiras. Para mim, davam graças à vida, quer fossem ditas por bondade ou por brincadeira, não sendo de esperar que ninguém fosse acreditar nelas. Mas as mentiras ditas com malícia, com a intenção de prejudicar, de causar sofrimento ou destruição ou proferidas por simples crueldade, nessas eu não podia acreditar! E não acreditei até aos vinte anos de idade!
Sam ouvia pacientemente e Stuart continuou:
"Compreendia as pequenas maldades, as manifestações de mau humor e as antipatias entre as pessoas. Mas não acreditava que houvesse grandes maldades sem causa, capazes de fazer os homens levantarem-se uns contra os outros até à morte. Não acreditava que houvesse crueldade que só se verificavam porque um homem era mais forte de que seu vizinho e desejava destruir esse vizinho de pura e irracional ruindade. Não compreendia que a crueldade e a maldade eram atributos humanos tão naturais quanto a cor dos olhos ou o formato do nariz. Acreditei até aos vinte anos que houvesse boa vontade entre os homens!
Sam murmurou alguma coisa, mas Stuart não o ouviu. Estava dominado por grande exaltação e torcia os dedos como se estivesse sofrendo. Continuou:
"Mas havia uma coisa que eu só soube ao chegar à idade adulta. Não sabia que havia o ódio. É claro que havia alguns rapazes de minha idade de quem eu não gostava e a quem evitava mesmo na Inglaterra e, depois, quando vim para os Estados Unidos. Tive minhas brigas com esses rapazes quando me chamavam de "irlandês sujo" e de outras coisas. Apesar disso, não acreditava no ódio. Mas agora sei que há apenas no mundo ódio, crueldade, cobiça assassina e hostilidade. Sei que cada homem se levanta contra seu vizinho, como uma fera alucinada, e que não há decoro, nem honestidade em lugar algum!
Sam teve a impressão de que estava diante de um homem em delírio, que não seria capaz de ouvi-lo. Ainda assim, disse:
— Meu Stuart, está esquecendo o Padre Houlihan? Acha que ele é assim também?
— O Padre Houlihan? Sim, acredito que ele é um bom homem. Mas é bom para mim. Será também para os outros? Você me falou da montanha que parece diferente para homens colocados em pontos de observação diferentes. Penso que você também é um bom homem, mas como é que eu posso saber? Que é que os outros pensam de você? De qualquer maneira, você e Grundy são apenas dois homens e eu não conheci outros que fossem bons como vocês.
Sam sentia na própria carne o sofrimento de Stuart. O coração dele estava pesado de tristeza.
"E foi assim. Foi horrível para mim quando cheguei a compreender. Depois, tive medo. Você não pode compreender o medo que eu senti. Comecei então a ver que um homem tinha apenas uma defesa contra os outros homens: dinheiro. Quanto mais dinheiro um homem tivesse, mais alta era a muralha que o protegia dos outros homens. Foi por isso que compreendi que eu devia ter dinheiro, muito dinheiro. Por isso é que devo ter propriedades: para mostrar aos outros homens que minha muralha é bem alta e que eles nunca poderão escalá-la para atingir-me e destruir-me.
Voltou-se para Sam e sorriu. Era um sorriso triste e mau.
"Já disse um pouco dessas coisas a Grundy e ele tentou convencer-me com algumas de suas banalidades. Falou-me em "cristandade". Como se tivesse havido em qualquer tempo uma cristandade no mundo! Li já, não sei onde, que só houve um cristão e foi crucificado. Mas eu sei que só houve um cristão e foi um judeu. E, se é verdade a história, só houve um cristão e foi Deus. Nunca poderia ter sido um homem. Não, não poderia ter sido um homem, mesmo na carne. Se realmente existiu, coisa de que eu duvido. Há ocasiões em que sei, no fundo de meu coração, que Ele não passou de um belo mito. Alguém O inventou, como foram inventados os profetas mais antigos. Saiu do espírito dos judeus, que são grandes inventores. Tenho visto em você também essa capacidade de invenção.
Sam disse então numa voz clara, cheia de misterioso desafogo:
— Sempre soube, meu pobre Stuart, que você é um bom homem.
Stuart voltou para ele o olhar vazio. Sacudiu então a cabeça, como se tivesse ouvido palavras numa língua estranha, sem qualquer significação para ele.
Sam levantou-se. Foi até onde estava o amigo, pousou a mão no ombro dele e disse calmamente:
— Stuart, você deve escutar-me. Eu disse que você é um bom homem. Pode não parecer assim a outros, mas só a alguns. Você é apenas parte da carne de outros homens; não está separado deles. O que está em seu espírito e em seu coração está no espírito e no coração dos outros homens. Ninguém é feito de uma substância diferente dos outros homens. Desse modo, o que acontece com um acontece, em escala maior ou menor, com todos.
"Se há bondade em seus pensamentos, e eu sei que há, se há bondade em suas intenções, se há bondade em seu coração, delicadeza e alguma justiça, há essas qualidades também nos outros, maiores ou menores. Uma pedra num campo não é diferente das outras. Vêm todas da mesma terra, embora algumas sejam de tamanho ou feitio diferentes. Assim sendo, você não é um estranho neste mundo, olhando para criaturas estranhas de carne diferente.
Stuart franziu a testa como se tentasse compreender. Mas sorriu tristemente para o amigo.
Sam continuou:
— Não há apenas ruindade, no mundo, meu pobre amigo. Olhemos um pouco em torno de nós. Inventamos um pouco de lei e de ordem. Temos justiça. Temos alguma misericórdia. Temos alguma confiança nos outros e em sua palavra. Temos hospitais e asilos, do mesmo modo que temos prisões e forcas. Grandes livros são escritos e os homens os leem e meditam. Entre dez mil mentirosos, há alguns homens honestos. Os homens têm esperança de um mundo melhor e, mesmo no coração dos assassinos e dos mentirosos, há a crença oculta num mundo melhor. Tudo ainda é imperfeito. Tudo é ainda confusão e treva. Mas se todos os homens fossem maus e se só houvesse mal no mundo, não haveria nem o pouco de lei e de ordem que existe e a vida seria impossível. Se todos os homens fossem apenas maus, as Escrituras não teriam sobrevivido até hoje.
Tirou a mão do ombro de Stuart, mas continuou ao lado dele. Levantou a cabeça grisalha e sorriu.
— Você fala de seu medo. Mas eu não tenho medo. Sei que os outros homens são como eu, ainda que sejam melhores ou piores. Somos todos os mesmos. Isso é uma coisa que devemos aprender. Quando aprendermos isso, compreenderemos que nada temos a temer um do outro e que ninguém fará mal a outro a não ser por medo. É o medo que é a escuridão, a crueldade e o crime. Quando cada homem disser a si mesmo: "Por que vou temer meu irmão?" então o mundo com que sonhamos terá chegado.
Stuart nada disse. Mas sacudia repetidamente a cabeça. Sam sorriu como para alguma coisa invisível.
— Acredito na América e acredito que o medo terá fim. Haverá então paz, bondade e a paternidade de Deus. Sim, creio nisso e na América. Esse dia chegará. Talvez ainda leve muitos e muitos anos. Mas chegará.
As velas que a Sra. Berkowitz acendera tinham-se queimado até ao fim. Mas de repente deram uma última explosão de luz que iluminou toda a sala. Havia uma nota triunfante nessa luz final.
Mas Stuart só viu a escuridão que se seguiu.
— Não acredito na América. Não acredito em coisa alguma. Você fala como o velho Grundy, Sam. Só sei é que tenho medo. Mas vamos falar das lojas.
Sam disse então confiantemente:
— Talvez as coisas não venham a ser tão más quanto eu julgo, Stuart. Mas há sempre uma maneira e nós a vamos encontrar. Não, nada é nunca tão ruim quanto pensamos.
CAPÍTULO 35
Janie estava sentada na sua cozinha bem aquecida e separava cuidadosamente uma pilha de vestidos usados, mas ainda luxuosos. Depois de meticuloso exame, punha de lado os que se destinavam à filha de sua cozinheira, Sra. Gordon. Hesitava às vezes, mas logo, com um gesto rápido, juntava à pilha um vestido ainda em bom estado de veludo ou de foulard. Essa pilha, toda vermelha, púrpura, azul e violeta, crescia aos seus pés.
Havia poucas pessoas de sua classe em quem Janie confiasse. Mas, com um estranho sentimento democrático, confiava em suas empregadas, que a adoravam, especialmente a Sra. Gordon. Na verdade, ela era muito generosa com elas, ria muito com elas e se mostrava sempre cheia de pilhérias e de alegrias, salvo nos seus momentos de rabugice. Mas as empregadas achavam a sua rabugice fascinante e admiravam a riqueza do seu vocabulário de nomes feios. Janie não tinha a menor dúvida, quando encontrava uma empregada polindo as argolas e as varetas de metal da passadeira de uma escada, em sentar-se alguns degraus acima e empenhar-se com ela numa conversa animada e alegre. Separavam-se depois para continuar os trabalhos do dia, com a amizade e a admiração renovadas de parte a parte. Os jardineiros e os cavalariços tinham sempre grande prazer em vê-la porque havia nela tal despreocupação, tamanho bom humor repassado de malícia e piadas que sabiam que podiam contar ao menos com meia hora de alegria e risadas. Ela pagava bons salários e era generosa de outras maneiras, como na concessão de férias e no interesse pelos seus casos pessoais. Não obstante, tomavam poucas liberdades com ela, pois não desconheciam os seus acessos de mau gênio e de violência, que não passavam com facilidade.
Ela gostava da companhia dessa gente, por mais incultos que todos fossem. Eram quase sempre simples, rudes e sinceramente licenciosos, com observações atiladas ainda que livres. Na presença deles, ela nunca tinha de fingir que era uma senhora distinta. Podia ser uma daquelas pessoas e uma certa rudeza essencial nela era satisfeita e estimulada. Entretanto, nenhum de seus filhos ouvia jamais essas conversas com os empregados, porque estas se distinguiam por uma falta de reserva e pela sua alta impropriedade. Mas, às vezes, Laurie ou Angus ouviam as retumbantes gargalhadas da mãe na cozinha, acompanhadas do riso desatado da Sra. Gordon. A porta era então fechada de repente.
As empregadas eram muito amigas de outras empregadas da cidade e, quando voltavam de seus dias de folga, tinham sempre boatos e mexericos para despejar nos ouvidos interessados e maliciosos da patroa. Essa bolsa de escândalos constituía a luz e o interesse da vida de Janie e, quando um boato era particularmente interessante e escandaloso, a empregada era muitas vezes gratificada com uma peliça de veludo, uma moeda de prata de meio dólar ou uma noite extra de folga.
A cozinha era o lugar predileto de Janie em toda a casa. Era uma cozinha bem grande, uma das maiores peças da casa com o seu chão de ladrilhos vermelhos e as suas paredes de estuque branco. Tinha uma grande janela que dava para os jardins dos fundos e nela havia bancos espaçosos e cheios de almofadas. Numa das paredes, estavam penduradas as panelas rebrilhantes de cobre e, na outra, estendia-se o grande fogão de ferro e tijolos, onde o fogo estava sempre aceso e as panelas fumegavam. Havia na cozinha três confortáveis cadeiras de balanço e uma delas era a favorita de Janie porque era pequena e bem acolchoada e seus pés podiam tocar o chão.
Estava-se no verão, o breve e não muito quente verão do Norte e pela janela aberta entrava uma brisa suave e o chilrear dos pássaros. As árvores brilhavam ao sol e a grama estava bem verde e viçosa. As rosas subiam pelo muro branco do jardim e outras flores se abriam em explosões de cor através dos canteiros. Um salgueiro chorão era como uma fonte verde e frágil no centro do jardim e os seus galhos se moviam docemente no ar radioso, perto de um nobre álamo de galhos dourados. Os pombos voavam sobre o teto de ardósia cinzenta da casa e sobre os telhados vermelhos das cocheiras, destacando-se contra um céu de turquesa.
Tudo era tranquilo e pacífico. As panelas crepitavam no fogão e as cortinas das janelas flutuavam mansamente. A Sra. Gordon se movia pesadamente, mas com rapidez. Era uma mulher grande e gorda, cabeluda e de rosto alegre, cujos olhos azuis cintilavam de espírito, malícia e contentamento. Era a melhor amiga de Janie e tinha sempre uma porção de histórias para contar que muito divertiam a sua patroa. As suas histórias nunca eram bondosas. Tinham sempre um fundo de licenciosidade e escândalo. A Sra. Gordon pensava o pior possível de todo mundo e o pior era sempre biológico.
Janie estava separando roupas para a filha dela que era casada com "um espirro de gente". E, como sempre acontecia às mulheres casadas com tais criaturas, tinha muitos filhos. A Sra. Gordon não gostava nem um pouco dos netos. Para ela eram "pirralhos" ou "bastardos", muito embora a filha fosse legitimamente casada com o marido cronicamente doente.
Comentava sem a menor piedade:
— Seria de esperar que um camarada que passa o tempo todo na cama só se levantando para fazer as suas necessidades, tivesse um pouco mais de juízo na cabeça. Mas não! Não se levanta da cama, mas de dez em dez meses, regular como um relógio, lá está a pobre de minha filha de barriga de novo e sem poder parar de lavar roupa para sustentar aquele excomungado! É um inferno, Sra. Cauder, sabe?
— Sempre achei que aquilo é a última parte do homem que morre e, mesmo assim, não se pode ter certeza —, disse Janie, rindo.
Estava muito bem arrumada e simpática naquela manhã. Bem-humorada, sorria ainda ao lembrar-se de algumas histórias bem apimentadas que a cozinheira lhe havia contado.
Disse em dado momento:
— Gostei muito do que me contou sobre o Prefeito! Já ocupa o cargo há não sei quantos anos e ainda belisca o traseiro das empregadas às escondidas! Quem iria pensar isso de um homem tão solene como o Sr. Cummings?
— E se faz passar por um homem muito religioso! — exclamou a cozinheira. — Com uma mulher tão boa e uma filha tão bonita!
— Bem, a verdade é que não se pode culpar muito quem é casado com uma mulher como Alicia. Toda metida a importante, com aqueles ares de quem acha que tudo está fedendo! Nunca pude simpatizar com ela. Cheguei a pensar na filha dela, Alice, para meu Bertie. Mas o rapaz não quis sabor dela. Quem está suspirando agora por ela é Robbie. Não sei se devo dizer que está suspirando, pois Robbie é sempre tão frio. E Alicia ainda faz cara feia como se meus filhos não fossem bons demais para aquela lambisgoia! Quem devia fazer cara feia era eu porque quem são os Cummings, afinal de contas? O pai dele não passava de um taverneiro e vendedor de cavalos. Nós, na Inglaterra, temos ideias diferentes, sabe? Meu Bertie tem bom gosto e essa história de vender cavalos não lhe cheira bem.
A cozinheira já conhecia bem a patroa. Sorriu, fixou nela os olhos astutos e disse:
— Bem, a menina é bonita e o pai tem dinheiro. Talvez o Sr. Robbie não pudesse encontrar coisa muito melhor por aqui. A verdade é que aqui em Grandeville não há muito o que escolher e seus rapazes poderiam ter mais sucesso numa cidade maior.
Janie suspirou. Fingiu-se deprimida, mas a Sra. Gordon sabia que era pura conversa.
— E aí está o meu pobre Angus que se vai casar em novembro com um barril de banha. Como é horrível aquela Gretchen Schnitzel! E os curtumes do pai dela que cheiram mal a léguas de distância! É como se ele se casasse dentro de um chiqueiro!
— Bem, mas é um chiqueiro rico...
— Sem dúvida. Meu Angus irá longe com esse dinheiro. Sabe onde tem a cabeça. Foi muito bem educado e já tem os seus planos. Só vai precisar é de ficar com o lenço no nariz.
— Talvez ele vá trabalhar nos curtumes.
— Isso não! Schnitzel (que nome, meu Deus!) tem outros filhos, como você sabe. E Angus tem outras ideias. E a mamãe dele também. Angus se casará com a moça, Gordon, embora eu não a possa tolerar. Que horror! Dentro de alguns anos, estará maior do que uma pipa!
— Talvez o Sr. Angus aumente um pouco o tamanho dela —, disse a cozinheira, rindo.
— Tenho minhas dúvidas, Gordon, tenho minhas dúvidas. Acho que lhe falta capacidade. E talvez ele pense que isso é pecado. Para Angus, tudo é pecado. Não tem ido à igreja ultimamente, mas não importa. Parece pensar que a maneira própria de povoar a terra é encarregar de tudo as abelhas, como acontece com as flores.
Ela e a Sra. Gordon iniciaram uma verdadeira tempestade de gargalhadas. Tentaram imaginar a noite de núpcias de Angus, com os gritos de Gretchen e as torturas e a vergonha de Angus. Depois disso, ficaram durante vários momentos sem fôlego.
— Meu Robbie, não —, disse Janie, quando pôde falar de novo. — Será muito racional e criterioso com sua Alice. Antes do ato, entrará numa discussão muito séria e lógica do assunto. Enquanto ela esperar de camisola na cama, ele passeará de um lado para outro no quarto, com as mãos nas costas no melhor estilo napoleônico, e perguntará o que ela pensa. Terá chegado a alguma conclusão válida sobre o caso? Com meu Robbie será assim.
Riram de novo. A Sra. Gordon sentou-se em outra cadeira de balanço que simbolizava o leito nupcial e tratou de imitar a pobre Alice Cummings que esperava, ruborizada e com o dedo na boca. Por fim, levantou o avental para cobrir o rosto.
— Ah! Isso terminaria no mesmo instante a discussão! — exclamou Janie, com novas gargalhadas.
A cozinheira voltou às suas panelas e perguntou:
— Quando é que o Sr. Bertie vai voltar da cura de repouso que está fazendo em Saratoga?
O rosto de Janie se entristeceu e foi com voz bem branda que ela respondeu:
— Na semana que vem, eu acho. Coitadinho! Tão bonito e tão forte, quem podia desconfiar de que ele tivesse uma fraqueza nos pulmões? E, ainda por cima, uma doença de estômago. Se alguém me tivesse dito que isso iria acontecer a Bertie, eu nunca poderia acreditar. Com Angus ou mesmo com Robbie, não digo nada. Mas com Bertie, tão forte, tão bonito, tão alegre, nunca! Ele me escreveu dizendo que está quase bom e ansioso para voltar.
— Que foi que o Sr. Robbie disse depois da visita que fez a ele?
— Oh, Robbie acha que Bertie vai indo muito bem. Ficou muito animado. — Deu um suspiro e acrescentou: — Quem poderia esperar uma coisa dessas? Meu querido Bertie, sempre tão alegre e bem-humorado, sem o menor problema no mundo...
A voz áspera se adoçou de amor e de tristeza. As mãos tremeram e ela bateu as pálpebras para dissipar as lágrimas que a cegavam. A cozinheira, que gostava realmente dela, olhou-a furtivamente com muita pena. Aquele beberrão imprestável! Como era que afligia assim o coração da mãe? Mas, afinal de contas, ele era mesmo um amor e, quando estava em casa, enchia tudo de alegria. Acabou suspirando também.
Durante algum tempo, houve um pesado silêncio na cozinha. Então, ao longe, ouviram-se as notas de um piano. Logo em seguida, elevou-se o som de uma voz jovem, pura, cheia e forte, que parecia a meditação de um anjo. A Sra. Gordon ergueu a cabeça e um olhar de ternura lhe apareceu no rosto gordo.
— Ah! Laurie está estudando.
Janie franziu a testa.
— Mas será que é preciso ela gritar desse jeito a estas horas da manhã?
Mas a cozinheira não ouviu a observação. Ouviu apenas aquela voz perfeita e celestial, que subia e descia solfejando uma escala, mas faria desse solfejo uma coisa bela, cheia de glória, de doçura e de seriedade. As lágrimas vieram aos olhos da Sra. Gordon. A brisa cessou. Os pombos ficaram em silêncio. Era como se toda a terra estivesse escutando.
E então a voz se tornou grave e lenta, como notas de órgão que murmurassem uma prece angélica. A própria Janie foi obrigada a escutar, mas murmurou:
— A menina tem uma boa voz. O que eu duvido é que ela tenha mesmo a ambição de aproveitar essa voz. Só aceitou o tal professor para agradar a Stuart! Não foi porque tivesse alguma vontade. Só Stuart é que consegue alguma coisa com aquela malcriada! Pois eu não a ouvi dizer a ele que só aceitaria o professor e só estudaria porque queria que ele achasse a voz dela bonita! Sujeitinha assanhada! Se ela fosse dois anos mais velha, eu não teria dúvida em prendê-la num quarto escuro por isso e trataria de vigiá-la bem, vestindo-lhe calças bem justas! Parecia uma gata toda melosa quando disse isso!
Levantou-se de repente e bateu a porta com toda força, exclamando:
— Onde já se viu gritar assim de manhã cedo?
Mas a cozinheira não se deu por vencida.
— Ouça bem o que eu estou dizendo, Sra. Cauder! Ainda vai ter muito orgulho dessa menina! Uma voz assim vale ouro!
— Também espero, com todo esse dinheiro que se está gastando com ela, ainda que o dinheiro não seja meu! Se aquele idiota quer gastar dois mil dólares por ano para pagar um professor para ela, que lhe faça muito bom proveito. Ele sempre foi gastador e quixotesco. Só não sei ainda é por que ele está fazendo isso. Se pensa que depois vai ter lucro às custas de minha filha, está muito enganado. Tomei minhas providências. Obriguei-o a assinar um contrato pelo qual ele abria mão de qualquer dinheiro que ela viesse a ganhar e ele teve de assinar antes que ela cantasse uma nota que fosse para o tal professor de Nova York!
— E ele ainda hospeda em casa dele o Sr. Berry, sem deixar de lhe pagar os dois mil dólares. Por que é que ele está fazendo isso por sua filha?
— Isso é que eu não sei. Quando era menino, tratava dos passarinhos de pata quebrada. Não importunou o meu Angus a pretexto de querer ajudá-lo até que o rapaz foi forçado a dizer-lhe bem na cara que não se metesse na vida dele? Não ficou todo nervoso a respeito de Bertie até que eu deixei meu querido ir para Saratoga? E não é ele que paga todas as contas? Se o idiota quer gastar o dinheiro dele com meus filhos, que é que eu vou fazer? É melhor que sejam meus filhos do que todas as mulheres da cidade. Agora por que ele faz isso não sei. Talvez seja um intrometido, que não pode viver sem se meter na vida dos outros.
— Talvez tenha bom coração —, sugeriu a Sra. Gordon.
— Nada disso, Gordon. É apenas um imbecil. Não pode deixar de querer ajudar os outros. Vai acabar pedindo esmola que é como acabam todos os que querem fazer o bem neste mundo. E eu vou ficar muito contente com isso!
Levantou-se então e disse:
— Pronto. Cinco vestidos meus e seis de Laurie para sua filha.
Meteu a mão no bolso, tirou um rolo de notas e escolheu uma.
— Tome, leve isto para sua filha. Com o novo filho, ela vai precisar.
CAPÍTULO 36
Bertie e Robbie Cauder passeavam naquela manhã de domingo pela margem do rio do lado canadense. Tinham atravessado na barca cerca de uma hora antes e estavam a caminho do Frenchman’s Creek, onde pretendiam alugar um barco para remar durante algumas horas. Era um esporte favorito deles. Bertie levava uma mochila com sanduíches de carne fria e uma garrafa de vinho.
Era uma resplandecente manhã de outono. O rio, à direita, era de um anil brilhante sob um céu dificilmente menos colorido. As margens gramadas desciam para a água, mosqueadas pela sombra dos álamos e dos bordos. As árvores se estavam transformando em grandes manchas avermelhadas que se destacavam contra o céu azul. Havia no ar o chilrear dos pássaros e o derradeiro zumbido das abelhas. A margem americana do outro lado das águas se desenhava nitidamente em verde.
Um clarim ressoou estridente e musical no ar tranquilo. Um pouco adiante, no caminho cheio de sulcos e poeira, ficava o quartel da guarnição canadense. No alto, flutuava a bandeira inglesa, a Union Jack, ostentando todas as suas cores. Os dois rapazes avistaram os velhos muros cinzentos do quartel, sobre os quais se estendia o sol e a sombra das árvores, mas não viam ninguém. Quando se aproximaram do quartel e de Fort Erie, as casas brancas foram mais frequentes e o silêncio compacto do domingo se tornou ainda mais acentuado pelo mugir do gado, pelos latidos dos cães ou pelo cacarejar das galinhas. Alguns jardins se voltavam para o caminho, por trás de cercas brancas e neles viçavam as últimas rosas, zínias e papoulas do verão. Ouviam às vezes a batida de uma bomba, o ranger de um portão ou uma voz ininteligível. Mas não viam ninguém.
Passaram pelo quartel. Na poeira amarela do pátio, três ou quatro soldados canadenses conversavam, apoiados em seus fuzis. Os jovens rostos bigodudos se voltaram com tranquila curiosidade para os dois rapazes. Robbie e Bertie tiraram o chapéu e sorriram. Os soldados fizeram continência e olharam os dois até desaparecerem de vista. Atrás deles, a Union Jack se desfraldava ao vento.
— Sabe de uma coisa, Robbie? Fiquei emocionado quando vi ali nossa velha bandeira. Um sentimento curioso, não acha?
Mas Robbie disse friamente:
— Curioso? Nem tanto. O patriotismo é uma velha emoção primitiva. Está enraizada na raça. Atavismo profundo. É uma sobrevivência do instinto do rebanho. Não é fácil nos libertarmos desses instintos primitivos, Bertie. Haverá necessidade de muitas gerações de educação e pensamento racional. De qualquer maneira, não é coisa para nosso tempo.
Bertie, como sempre, ficou vagamente confuso e desanimado com a lógica de Robbie e a sua maneira fácil de abolir as emoções. Disse então:
— Não sei se entendo o que você quer dizer, Rob. Só quis dizer foi que quando vi ali a velha bandeira, compreendi como estava longe de minha terra.
Robbie olhou para o irmão com um sorriso em que havia afeição, cepticismo e tristeza.
— Você sempre vai viver longe de sua terra, Bertie. Mas não vamos falar mais disso. Saímos para dar um passeio e isso é que importa.
Sentia muito que tivesse deprimido Bertie. Mas não tolerava qualquer espécie de sentimentalismo. Acreditava firmemente que haveria um dia paz e felicidade para toda a humanidade, mas só quando os homens começassem a pensar racionalmente. Com todas aquelas tolices, todos aqueles fetiches, não era de admirar que o espírito humano ainda vagueasse pelas sombrias florestas subterrâneas da história primitiva, como um peixe cego a mexer em detritos vegetais. Que era que o espírito descobria naquela desolação submarina? Sereias e cavalos-marinhos, monstros verdes e brilhos de matéria fosforescente em decomposição.
Os dois rapazes vestiam roupas domingueiras. Bertie estava resplandecente e belo com calça cinza de casimira e casaco de tom cinza mais escuro. Havia nele alguma coisa do esplendor de Stuart Coleman, embora ele fosse mais magro e um pouco mais baixo do que o primo. Os cabelos ruivos apareciam sob o chapéu alto cinzento. Levava na mão uma bengala de castão de prata. A camisa de folhos estava imaculada e bem engomada. Tinha evidentemente recuperado a sua boa saúde, embora houvesse manchas escuras sob os alegres olhos azuis e uma certa palidez em torno da boca móvel e quase constantemente sorridente. Desde que lhe faltava a violência e o ímpeto de Stuart, o seu olhar nunca era rápido ou furioso, mas sempre se mostrava cintilante, interessado ou terno.
Quanto a Robbie, usava o seu terno habitual de casimira preta, com uma camisa de linho simples e limpa. Caminhava ao lado do irmão, elegante e sério, como um símbolo de aristocracia e certeza judiciosa. Até suas luvas e o chapéu eram pretos. Levava uma bengala de ébano com castão de ouro.
Chegaram à boca do Frenchman’s Creek, onde dois velhos pescadores alugavam barcos com material de pesca. Estavam ambos dormindo em sua velha cabana. Robbie bateu na porta com a bengala e, depois de alguma insistência, um dos velhos apareceu. Robbie sorriu para ele.
— Alô, Bob. Pode alugar um barco para mim e para o Sr. Bertie? Alguns caniços e iscas também, sim?
Sentaram-se os dois no banco em frente da cabana, enquanto o velho, resmungando, se preparava para atendê-los. Pegou uma pá e começou a cavar a terra à procura de minhocas para servirem de iscas. Um velho cachorro magro saiu da cabana e se aproximou dos dois rapazes, sentindo-lhes o faro. Robbie encolheu o corpo para evitar qualquer possível contato com o animal. Mas o sorridente Bertie coçou a cabeça do cachorro com as mãos brancas e cheias de anéis. O animal pôs as patas nos joelhos dele e olhou-o com adoração. Os olhos quase vidrados brilharam de alegria e o animal esfregou a cabeça nos joelhos de Bertie, com imenso desgosto para Robbie.
— Pobre cachorro —, murmurou Bertie, na sua voz enternecida. — Um belo animal no fim da vida.
— Você vai ficar cheio de pulgas! — exclamou Robbie. — E talvez de mais alguma coisa. Suas calças já estão cheias de pelos.
Mas Bertie continuou a fazer festas ao cachorro, evitando, porém, a língua com que ele queria lamber-lhe o rosto para manifestar a sua amizade.
Robbie disse então com uma raiva que não podia definir:
— Largue esse cachorro, Bert! Pode ter alguma doença. Não se esqueça do que lhe apareceu na pele no verão passado. Quer ficar doente?
De repente e com uma violência que não lhe era muito comum, pegou o cachorro pelo pescoço e afastou-o do irmão. Então, com um pontapé, fê-lo rolar pelo chão, levantando poeira e ganindo. O cachorro levantou-se, olhou para o seu adorado Bertie e deu alguns passos em sua direção. Mas Robbie levantou a bengala ameaçadoramente. O cachorro parou, arquejante e com os olhos torturados.
— Passa fora, sujeira! — gritou Robbie.
O cachorro olhou para ele e recuou. Depois, baixando a velha cabeça e o rabo quase sem pelos, foi para os fundos da cabana, ganindo baixinho.
Bertie voltou-se para o irmão, cujo rosto pálido e moreno estava avermelhado, e sacudiu a cabeça.
— Não devia ter feito isso, Robbie...
Ainda sorria. Mas os olhos azuis tinham uma fixidez estranha.
— Você não tem um pingo de juízo, Bert —, disse Robbie, encolhendo os ombros. — Não me surpreenderei se você pegar alguma doença.
Mas Bertie, ainda sorrindo, continuou a sacudir a cabeça.
Robbie estava muito irritado e foi inspecionar o trabalho do velho. Disse então friamente, tocando o ombro do velho com a bengala:
— Menos terra e mais minhocas, está ouvindo? Não queremos lama para nada, Bob.
O pescador disse um nome feio, sem interromper o seu trabalho. Bertie continuava sentado no banco a olhar para o rio e para a distante margem americana. Havia nele um ar de desolação.
Mas estava de novo muito alegre quando os dois embarcaram e começaram a subir o pequeno rio a remos. Às vezes, cantava, inclinando para trás a bela cabeça. Tinha tirado o casaco e abrira a gola da camisa. A luz do sol cintilava nos brilhantes de seus dedos. Cantava e a sua voz ecoava alegremente na água.
Robbie, que reservava os seus esforços para a viagem de volta rio abaixo, reclinava-se na popa do barco e olhava displicentemente em torno.
Era estranha a diferença entre o cenário que os dois irmãos viam. Robbie sentia o calor do sol do outono, era agradável em sua cabeça e em seus ombros, que as águas eram azuis e o céu muito claro. Mas era só o que seus sentidos percebiam. Estava às voltas com os seus pensamentos abstratos.
Mas Bertie via coisa inteiramente diferente. O barco subia o afluente e, à medida que deixava o rio turbulento, as águas se tornavam mais estreitas e mais quietas. As margens ainda gramadas desciam em rampa para a água verde e transparente e as longas frondes dos salgueiros chorões varriam a superfície com os dedos frágeis, lançando sombras delicadas, aéreas e intangíveis. O verde-garrafa das folhas dos nenúfares flutuava na superfície tranquila e as belas flores surgiam como estrelas, tocadas de um puro aroma. As libélulas deslizavam pelo ar como joias e no fundo do mato os pássaros cantavam. Através dos galhos dos salgueiros, divisavam-se fragmentos do céu azul. Houve um ponto em que o rio se alargou de súbito para dar lugar a uma ilhazinha, onde uma garça branca estava imóvel, com as penas levemente coloridas pelo sol e a destacarem-se contra a folhagem sombria. E tudo era coberto pelo claro e espectral silêncio.
Bertie estava calado, embora os lábios se mostrassem franzidos, como se ele fosse assobiar. Tinha o rosto muito sério. Ele via coisas que Robbie não via ou não queria dar-se ao trabalho de ver.
Chegaram ao seu lugar predileto. Havia uma abertura entre as árvores, a ribanceira era menos pronunciada e bem coberta de grama. Encostaram o barco, apanharam a mochila e subiram a margem. Sentaram-se sob um grupo de árvores a alguma distância do rio, apoiando as costas nos troncos. Estavam cercados de uma paz imóvel e farfalhante, na qual só se ouviam os cantos dos pássaros no alto. Acenderam charutos e sorriram um para o outro.
— Muito agradável aqui —, disse Robbie. Abriu a mochila e tirou dois livros. Um deles eram os seus Comentários de Direito Penal e o outro era o Keats de Bertie. Olhou para este pequeno volume e jogou-o displicentemente para o irmão. — Por que você lê essas tolices poéticas eu não sei —, disse ele, mas afetuosamente. Abriu seu livro e olhou para o relógio. — Comeremos daqui a uma hora. É o tempo de ler dois ou três capítulos. O Juiz Taylor vai me fazer amanhã perguntas sobre eles.
Bertie pegou seu livro, suspirou e sorriu.
— Vou sentir muita falta de você quando for estudar em Harvard, Robbie.
— Ora, só irei pelo Natal e de vez em quando estarei em casa. O inverno passará bem depressa.
— Para mim, não —, disse Bertie, abrindo o livro. E repetiu em voz mais baixa: — Para mim, não.
— Bem, eu sei o que são os invernos aqui —, disse Robbie. — Daqui a menos de um mês, teremos neve. Mas você estará decerto muito interessado em seu trabalho de retratos.
— Ah, sim...
— Você poderia ir estudar em Nova York.
— Eu não —, disse Bertie. — Nova York não me interessa.
Robbie o olhou tristemente e pensou que o irmão não se interessava por Nova York ou por qualquer coisa. Não se interessava por si, pela vida ou fosse por que fosse no mundo.
Mas Bertie parecia em paz e muito feliz quando começou a ler seus versos. Não havia em seu corpo ou nas suas atitudes uma só linha que não fosse bela e perfeita. Robbie não podia compreender o que era que o atormentava. Começou a ler, mas, a princípio, não pôde captar o sentido. Mas, valendo-se do seu rigoroso senso de disciplina, logo se embrenhou nas complexidades do direito penal, "tal como era praticado no Estado soberano de Nova York".
Mas, apesar de tudo, com grande irritação, Robbie começou a descobrir que o livro não lhe interessava muito. Os pensamentos do que lia não se lhe fixavam na cabeça, o que era uma coisa fora do comum. Começou a pensar cada vez mais no irmão e afinal deixou de ver a página impressa que tinha à sua frente.
Pensava em Bertie com a tristeza e a opressão com que se pensa nos mortos ou nos que estão inexoravelmente para morrer. Mas eram pensamentos sem palavras. Exprimiam apenas uma vaga inquietação, uma angústia informe. Nada havia que ele pudesse fazer por Bertie. E Bertie nada podia fazer por si mesmo. Dentro daquela bela cabeça, não havia vontade, nem desejo. Era como uma folha iluminada pelo sol que, quando o sol sumia, não tinha luz própria, nem procurava a luz. Limitava-se a esperar.
Tinha conhecido mulheres, mas só como se conhece a comida e se esquece para só pensar de novo nela quando a fome volta. Era incapaz de amar. Robbie duvidava até de que o irmão tivesse por ele mais que uma afeição infantil, talvez um pouco mais forte do que poderia sentir por alguém ou por alguma coisa.
Então, Robbie se lembrou de repente da cena com o cachorro velho. Das profundezas frias e sem cor de seu coração, subiu um grito silencioso, como uma explosão de angústia. Bertie! Bertie! Há alguma coisa que você nunca me disse! Há alguma coisa que você me poderia dizer e que eu poderia tentar compreender!
Bertie sentiu a intensidade de seu olhar, levantou a vista e sorriu.
— Escute, Robbie. Eu sei que você detesta poesia mas quero que escute isso. São dois trechos que eu marquei e que você tem de escutar!
Esperou que Robbie protestasse violentamente. Mas, com leve surpresa, ouviu Robbie dizer com excepcional gentileza:
— Está bem. Leia.
Bertie começou a ler numa voz que Robbie nunca tinha ouvido:
"Escuto nas trevas e muitas vezes / tenho amado um pouco a repousante Morte / chamando-lhe doces nomes em muitas rimas sonhadoras / para dispersar no ar meu hálito calmo; / agora, mais que nunca, parece grande morrer / cessar à meia-noite sem dor..."
A bela voz dele se calou e ele olhou para Robbie. Este não falou. Fitava com os olhos pretos o rosto do irmão. Mas sentia em si mesmo uma imobilidade gelada como a própria morte.
Bertie voltou de novo os olhos para o livro e disse.
— Aqui está o outro trecho:
"As melodias que se ouvem são doces, mas as que não se ouvem / são mais doces; tocai, pois, gaitas suaves, tocai; / não para o ouvido sensível, mas, mais cativantes, / cantai para o espírito músicas sem tom; / belo jovem, sob as árvores, não podes deixar / teu canto como não podem as árvores perder as folhas..."
Robbie não ouviu a voz de Bertie parar. Ouviu apenas:
"Belo jovem, sob as árvores, não podes deixar / teu canto como não podem as árvores perder as folhas..."
Ficou sabendo então que Bertie tinha um canto, mas não era um canto que ele pudesse jamais dizer a alguém no mundo. Não tinha palavras para ele; tinha apenas dor, uma dor que ele enfrentava com o sorriso brilhante e os olhos alegres.
Robbie sabia também, com a misteriosa presciência que tão raramente lhe ocorria, que sempre veria seu irmão, como o jovem do poema, a cantar seu canto irreal sob árvores perpetuamente cobertas de folhas, imutáveis para sempre, enquanto ele estaria morto.
Voltou a si com um sobressalto. Tinha ouvido um som estranho.
Bertie tinha baixado a cabeça para os joelhos e estava chorando.
CAPÍTULO 37
Angus tinha o costume de acompanhar sua irmã Laurie até à casa de Stuart todos os domingos à tarde a fim de que a menina pudesse tocar durante uma hora ou pouco mais para seu benfeitor.
Mas naquele primeiro domingo de novembro, Angus tinha ido para a cama com um forte resfriado febril e Janie pediu ao filho mais moço, Robbie, que levasse Laurie à casa de Stuart. Robbie, exausto e aborrecido, não viu isso com muito agrado, mas não estava na sua natureza discutir iradamente e já era suficientemente adulto para não recusar um favor ou desobedecer a uma ordem, quando isso não lhe era muito inconveniente. Não havia, portanto, razão bastante para que ele não acompanhasse sua jovem irmã pelas ruas de Grandeville, num domingo.
Robbie não tinha predileção particular para Laurie, embora simpatizasse displicentemente com ela porque, em certas coisas, se parecia com Bertie. Tinha os mesmos olhos azuis de Bertie, os cabelos eram um pouco mais dourados e possuía também a boa cor e a estatura clássica do irmão. Mas ela e Robbie conversavam pouco, porque ele a achava um "tanto chata", apesar de toda a sua beleza. Além disso, embora tivesse apenas treze anos, ela era quase tão alta quanto ele e, desde que a sua baixa estatura o aborrecia um pouco, a companhia dela não lhe era muito agradável.
Entretanto, estava disposto a ser gentil com ela, por mais desinteressante que fosse a sua conversa, durante a caminhada um pouco longa até a casa de Stuart. Por outro lado, ele desejava conversar em particular com Stuart. Recomendou, portanto, a Laurie que se agasalhasse bem e não se esquecesse do seu regalo. De fato, as ruas já estavam cheias de neve e gelo e um vento firme, ártico e enregelante, varria as ruas desoladas, sob um céu carregado e feio.
O interminável inverno do Norte tinha desabado em fins de outubro. Até meados de maio do ano seguinte, a cidade ficaria presa entre as garras geladas dos lagos e do rio. Robbie odiava esse clima e via os próximos sete meses de rigoroso inverno com pesar e desgosto.
Embora uma expressão sentimental como "coração confrangido" fosse exagerada em relação a Robbie, ele estava sofrendo no momento um estado de espírito bem semelhante. Analítico e lógico tal como era, para poder experimentar uma emoção verdadeira, Robbie se aborrecia com aquela opressão no peito que lhe entorpecia os movimentos. Entretanto, por mais disciplinado que fosse, não conseguia livrar-se daquele mal-estar, daquela desesperança profunda. Já tomei a minha decisão, dizia ele severamente a si mesmo, e, portanto, não pensarei mais no caso. Mas as emoções negadas e contidas, embora ele se recusasse a reconhecer a sua existência, não aceitavam a decisão tomada pela razão.
Pensando em tudo isso, atravessou com a irmã as ruas desertas e desoladas. Já tinham feito mais de metade do caminho quando ele percebeu que não tinha trocado uma só palavra com Laurie. Era muito polido e civilizado para não sentir algum desconforto com isso. Por isso, olhou de lado para ela, enquanto segurava o chapéu alto, sorriu friamente e disse:
— Tempo horrível, não é, Laurie?
Ela voltou o rosto para ele e retribuiu o sorriso, fazendo-o notar distraidamente que era um belo rosto.
— É, sim —, murmurou ela.
— Não estou sendo um companheiro muito interessante para você, Laurie. É uma pena que Angus esteja resfriado. Você teria muito mais o que conversar com ele.
— Angus e eu não temos mais nada que conversar —, disse ela, com fria tranquilidade.
Robbie se mostrou polidamente surpreso. Olhou para Laurie e viu que o rosto dela estava rígido e sério sob o chapéu de castor, com uma expressão inteiramente amadurecida. Sentiu então uma ponta de interesse.
— Mas vocês sempre foram tão amigos, Laurie.
Ela não respondeu. Limitou-se a andar um pouco mais depressa, forçando-o humilhantemente a quase correr para não se distanciar dela. Estava quase convencido de que a pequenina Alice Cummings é que era a mulher para ele, abandonando de chofre a sua admiração pelas mulheres de formas monumentais. Laurie seria gigantesca, pensou ele irritadamente.
— Angus foi sempre seu protetor —, disse ele, aborrecido com sua leve falta de fôlego. — Vocês dois eram muito unidos.
— Angus mudou —, disse ela.
— Sim? — exclamou Robbie, com redobrado interesse.
Ficou um pouco desconcertado quando a irmã olhou para ele com seu estranho sorriso, como se o julgasse ingênuo.
— Angus mudou. Só isso.
— Todos nós mudamos —, disse Robbie friamente. — Você esperava que ele ficasse criança a vida toda?
— Não. O que eu não esperava era que um homem virasse criança.
Robbie ficou espantado. Pensou que era uma coisa fora do comum para ser dita por uma menina que ainda não tinha quatorze anos. Teria ouvido bem? Se tinha, então suas noções preconcebidas a respeito de Laurie estavam erradas e ele seria forçado a fazer uma revisão. Isso provocaria uma certa confusão mental e exigiria tempo. Preferia analisar, catalogar e arquivar suas conclusões permanentemente.
— Não compreendo, minha filha.
— Por que está tão interessado, Robbie? Você e Angus nunca se entenderam muito bem. Ou é apenas curiosidade?
— Curiosidade? — exclamou Robbie. — Ora essa! Estou apenas puxando conversa.
— Não gosto de conversar —, disse Laurie. — Acho que é uma perda de tempo.
Antes que pudesse dominar-se, Robbie teve consciência de sua profunda antipatia pela irmã e de um sentimento renovado de humilhação.
— Parece que sua educação tem sido tristemente negligenciada —, murmurou ele. — Não sabe que a boa conversa é uma necessidade numa sociedade civilizada?
Laurie deu uma risada, tocou no braço de Robbie e disse:
— Neste caso, parece que sua educação também foi negligenciada.
Robbie não pôde deixar de achar graça e disse:
— Creio que tem razão, Laurie. Eu estava apenas falando como acho que se deve falar a uma irmã mais moça. Mas, na verdade, nós, os Cauder, não somos muito civilizados, não acha? Mas que é que se pode esperar quando se tem uma mãe deliciosamente pouco civilizada?
Laurie estava sorrindo. Mas, ao ouvir essas últimas palavras, fechou o rosto, apertou os lábios e caminhou um pouco mais depressa.
Robbie sentiu imediatamente uma intensificação do seu mal-estar. Laurie lhe parecera de súbito Bertie. O andar, a cor dos cabelos, as linhas do perfil, tudo isso era de Bertie. Como a pessoa se apega ao retrato de alguém que morreu ou está ausente para sempre, Robbie desejou apegar-se a Laurie.
— Laurie, você sabe que se parece muito com Bertie? — perguntou ele, surpreso com as palavras que havia proferido quase involuntariamente.
Ela diminuiu o passo. Voltou-se para ele e, nos seus olhos azuis, Robbie viu compaixão e uma ternura nova.
— Acha, Robbie querido? — perguntou ela, estendendo-lhe a mão. Continuaram a caminhar de mãos dadas.
— Sim, minha querida. Acho que se parece muito. E eu gosto muito de Bertie.
— Eu sei —, disse Laurie. — E fico satisfeita de me parecer com Bertie.
Não se falaram de novo até chegarem à casa de Stuart. Ali estava o que se chamava a "Loucura do Irlandês". Parecia um templo isolado de beleza, incongruente naquele cenário rude e selvagem.
Laurie e Robbie subiram o caminho calçado de lajes de pedra e abriram o portão de ferro trabalhado. Quando levantaram a aldrava da porta, o som ressoou muito forte no imenso e desolado silêncio.
Mas o rebrilhante vestíbulo preto e branco estava bem aquecido e cheio de um aroma doce e langoroso e iluminado pelas lâmpadas. Uma empregada ajudou Laurie a tirar a capa e o chapéu. Enquanto Robbie era semelhantemente atendido, Laurie alisou os cabelos dourados e olhou para o seu vestido de lã vermelha. Depois, encaminhou-se com Robbie para o grande e belo salão de cabeça erguida e de novo serena e séria.
Stuart, Marvina e a filhinha deles já os esperavam. Estava também presente o Sr. Richard Berry, o professor de Nova York, um homem baixo e moreno de barba negra cheia e olhos muito vivos. Aproximou-se, com os pés voltados para fora como um dançarino, e fez uma profunda reverência. Embora fosse um homem da Nova Inglaterra, afetava ares europeus, apropriados a um professor de canto. Poderia até ter beijado a mão da jovem Laurie se ela lhe desse a oportunidade. Olhou inquietamente para Robbie e, quando Stuart se aproximou e fez as apresentações, curvou-se em nova reverência. Não gostava de homens pequenos e antipatizou com os olhos finos e irônicos de Robbie.
Marvina, uma visão radiosa em veludo azul, se aproximou pisando graciosamente o tapete Aubusson para cumprimentar Laurie e o irmão. Beijou o rosto da menina e voltou para Robbie o seu sorriso vazio. A vida conjugal e a maternidade tinham feito bem a Marvina que estava mais cheia de corpo e com formas esculturais. Mas não havia maturidade em seu rosto inexpressivo, nem nos olhos dourados. Teria para sempre o rosto de uma criança.
— Mas, minha querida, suas mãos estão frias! — disse ela na sua voz sem expressão. — E quem a trouxe hoje foi o caro Robbie e não Angus. Por quê?
— Angus está resfriado —, disse Robbie, polidamente. Não gostava de gente imbecil. Mas até uma pessoa imbecil era melhor do que aquela mulher encantadora que nem imbecil era, de tão vazia. Ela o inquietava. Era como se estivesse falando com uma estátua. Era uma surpresa quando ela dava resposta a alguma coisa, pois a impressão que se tinha era de que ela não ouvia o que se lhe dizia e era capaz de qualquer reação por trás do mármore perfeito daquela fronte.
Olhou com curiosidade para Stuart, tão calmo e sorridente ao lado da mulher, e ficou mais uma vez sem saber como aquele homem violento e tempestuoso suportava a companhia daquela mulher vazia, que nada mais era do que uma grande boneca na qual ecoavam os pensamentos e as palavras dos outros. Mas, pensou ele, talvez uma mulher assim fosse tranquilizante.
A pequena Mary Rose se aproximou então, sorrindo, de Laurie, de quem ela gostava muito. A menina pegou a mão de Laurie e olhou para ela. Era uma criaturinha muito frágil, com um rostinho triangular, pálido e magro. A boca era rasgada e sensível e uma massa de cabelos pretos sem brilho lhe caía sobre os ombros débeis. O narizinho reto tinha narinas trêmulas. Mas os olhos, enormes, pretos e cheios de tristeza, eram também plenos de doçura e vibrantes de luz. Era tão frágil e terna que o próprio Robbie não foi insensível ao seu encanto e sorriu, tocando-lhe a face com os dedos.
O grande salão estava bem aquecido e iluminado. O fogo crepitava na lareira de mármore. No piano, havia um vaso com rosas de estufa. Viam-se rosas por toda a parte, provenientes da extensa estufa de Stuart. Robbie olhou para tudo com aprovação. Havia bom gosto em tudo. Como sempre acontecia quando entrava naquela casa, o respeito que sentia por Stuart crescia consideravelmente.
Stuart insistia em estar presente às lições de Laurie. Sentou-se com a filha no colo. A menina se aninhou entre seus braços, encostando a cabecinha ao peito do pai. De vez em quando, erguia os olhos e contemplava-o em tímida e completa adoração. Marvina se sentou ao lado dele com a graça inconsciente de uma atriz, com o lustroso veludo azul a cair elegantemente ao longo das coxas e das pernas e o colo branco a resplandecer à luz das lâmpadas. O sorriso vazio e lindo que lhe era habitual já estava estampado no rosto. Robbie se sentou na sua poltrona forrada de cetim francês e se preparou para uma hora de tédio absoluto. Não compreendia música e não se interessava por ela. Mas voltou os olhos polidamente para Laurie, que estava de pé junto ao piano, enquanto o Sr. Berry tocava alguns acordes floreados. Em torno, brilhavam as luzes, acentuando as cores delicadas dos móveis, dos reposteiros e dos tapetes, tocando a madeira clara trabalhada com filamentos de luz rósea e misturando-se com as lanças vermelhas que dardejavam do fogo.
Laurie não tinha começado a cantar ainda. Robbie correu os olhos pelo salão. O rosto de Stuart estava carrancudo e sombrio. Brincava distraidamente com um anel dos cabelos da filha, a quem de vez em quando acariciava o rosto. Tinha sido um ano bem difícil para ele, pensou Robbie, com involuntária simpatia. E o ano ruim ainda não estava terminado. Robbie sabia muito a esse respeito em vista das observações malévolas da mãe. O "pânico" não fizera bem algum a Stuart e poderia prejudicá-lo mais ainda se ele não tivesse cuidado. Era sem dúvida nisso que ele estava pensando. Havia rugas profundas e zangadas em torno da boca sombria. Os olhos estavam encovados e anuviados. Era um homem impetuoso e leviano, pensou Robbie continuando as suas reflexões. E muito turbulento. Mas havia alguma coisa nele...
O Sr. Berry se virou do piano para os presentes e anunciou dramaticamente:
— Quem é Sílvia, de Schubert! A Srta. Laurie vem praticando esta peça há algum tempo e vai nos dar agora uma elegante execução, para vosso prazer!
Robbie viu um sorriso irreprimível aflorar aos lábios de Laurie. Estava ao lado do professor, alta, séria e incrivelmente calma! Robbie achou tudo isso muito interessante. Havia em Laurie um ar de tranquilo alheamento, que indicava uma maturidade muito superior à sua idade.
Abriu a boca então e emitiu a voz pura e sem esforço, cheia de suave força e melancolia. O alheamento havia desaparecido. Todo o seu corpo participava de sua voz e parecia vibrar. Tudo nela passara a ser vivo, arrebatado, intenso e veemente. Ela havia esquecido os que a escutavam. Tinha a cabeça voltada para trás e o rosto estava iluminado de êxtase forte de sua paixão. Os cabelos rolavam-lhe pelas costas; o seio jovem arfava. Levantou as mãos e elas ficaram diante dela, erguidas, com as palmas para cima, como em súplica. Não era mais uma menina; era uma mulher. Voltou a cabeça como que impelida por uma atração irresistível e desvairada e olhou para Stuart, enquanto a voz se derramava dela como um rio de ouro.
Stuart olhou para ela também. A mão que se movia lentamente parou e descansou passivamente no ombro da filha. Através do salão iluminado, os olhos dele e de Laurie se encontraram. E houve nele visível tensão, apesar de toda a sua imobilidade.
Robbie tinha ouvido Laurie cantar de longe em casa, mas não se interessara e nem mesmo tomara pleno conhecimento disso. O seu coração exato e bem ordenado, tão cuidadosamente isento de emoções, nunca fora tocado pela música, pois carecia dos órgãos necessários para perceber uma arte tão nobre e tão puramente instintiva e emocional. Mas, naquele momento, o seu espírito frio se sentia enormemente conturbado e experimentava a presença de uma paixão avassaladora, cheia de exaltação e de terror, na voz e no jovem rosto de Laurie.
Pensou consigo mesmo que o dinheiro não tinha sido desperdiçado. Ela podia verdadeiramente cantar. Mas o pensamento era mecânico. Havia naquele salão alguma coisa mais do que aquela voz, por mais gloriosa, perfeita, plena e heroica. Havia ali alguma coisa abandonada e terrível, uma coisa alheia a toda a razão e que poderia arrastar a razão numa torrente de fogo, lançando-lhe os fragmentos num mar ululante.
Olhou para Laurie, como se o sentido de tudo aquilo estivesse com ela. Viu que o rosto dela estava branco e apaixonado, com os olhos azuis dilatados. Viu que ela só olhava para Stuart. Olhou então para o dono da casa. Viu a mão parada nos cabelos pretos da filha. Não podia ver o perfil de Stuart, pois estava um pouco afastado dele. Mas pressentiu a paixão de Stuart que respondia ao rosto e à voz de Laurie.
Robbie franziu a testa. Ora, a menina mal tinha quatorze anos. Só iria completar quatorze anos daí a um mês. Achou muito estranho que se tivesse lembrado disso com precisão. Até então, nunca tomara conhecimento da idade de Laurie. Mas não era uma criança que estava ali cantando. Era uma mulher, que não sentia vergonha, e suplicava, humilhando-se, numa fome e num arrebatamento que não admitiam recusa.
Robbie apertou os lábios. Aquilo tudo era insensatez, sem dúvida. Aquele canto nunca ia terminar? Olhou para Marvina, que continuava com o seu sorriso vazio e balançava levemente a cabeça ao compasso da música. De vez em quando, levava aos lábios um lenço perfumado. Batia o compasso também com a ponta do sapato, sob a barra de seu vestido de veludo azul.
Quando Robbie viu Marvina assim, chegou à conclusão de que não era senão uma idiota. Por fim, Laurie parou de cantar. Sorriu para o Sr. Berry que, com uma judiciosa inclinação da cabeça, começou a criticar o desempenho.
— Um pouco de tensão em algumas notas agudas —, disse ele, ilustrando a sua observação com algumas notas tocadas no piano. — Atenuou um pouco esta passagem.
Repetiu o trecho no piano e fez Laurie cantá-lo de novo.
Nesse ponto, nada havia de anormal na atmosfera do salão. Tudo voltara a ser calmo e comum. A repetição das notas aborreceu Robbie. Tirou do bolso o lenço para enxugar as mãos que estavam ridiculamente úmidas.
Stuart voltara a afagar os cabelos de Mary Rose. Parecia subitamente exausto. Marvina bocejou, percebeu o que estava fazendo e sorriu ainda mais como se pedisse desculpas. O Sr. Berry estava apontando um trecho com alguma irritação a Laurie, que se inclinava atenciosamente para ele. Uma madeixa dos cabelos dourados lhe caiu sobre o rosto atento. Ela emitiu algumas notas, fazendo sinais afirmativos com a cabeça. Tudo se tornara muito enfadonho e Robbie não pôde deixar de bocejar.
Olhou furtivamente o seu relógio. Através dos reposteiros meio corridos, viu que estava nevando de novo. Flocos torvelinhantes vinham bater nas vidraças polidas. O fogo crepitava na lareira e subia, alaranjado, pela chaminé, como se fosse tocado por um forte vento. Então, para Robbie, o salão, toda a casa pareceu vazia e fria apesar de todo o seu esplendor e beleza.
Lembrou-se então de que tinha de falar com Stuart. Esquecera-se disso, na ridícula confusão de seus pensamentos. Stuart estava dizendo alguma coisa a Mary Rose, que ria. Marvina tornou a bocejar. O Sr. Berry fechou o piano e perguntou a Stuart:
— Gostou do canto, Sr. Coleman?
— Muito. Muito mesmo. Laurie está indo muito bem, não está?
O Sr. Berry adotou uma pose de imensa gravidade.
Olhou para o teto, projetando com isso a barba preta e disse:
— Sim, está melhorando. Vai crescendo. Mas vai precisar de muito mais ainda antes de poder ser aceita em nossa escola de Nova York. Sugiro mais um ano de rigorosa aplicação. Eu disse rigorosa aplicação. Nada de frivolidades, nem de displicências. Há necessidade de uma séria dedicação, que é difícil de encontrar nos jovens. Uma dedicação religiosa, por assim dizer, Sr. Coleman. Uma determinação inflexível. Mas eu creio que a Srta. Laurie tem em si tudo isso.
Informou então a Laurie que teria o prazer de dar-lhe aula na terça-feira. Os estudos se estendiam pela semana e aos domingos os resultados eram apresentados a Stuart e sua família.
Uma empregada entrou com uma bandeja de chá. Marvina, toda graça e sorrisos, sentou-se diante da bandeja e começou a servir o chá, acompanhado de torradas e biscoitos. Todos se sentaram perto dela e em volta do fogo. Stuart parecia ter-se esquecido de tudo menos da filha, que ainda estava sentada no seu colo. Pegou um pedaço de torrada e pediu-lhe que comesse. Recusou a princípio, mas acabou cedendo à insistência do pai e para fazer-lhe a vontade, mas seu apetite era bem pequeno.
O Sr. Berry havia embarcado entusiasticamente no assunto das óperas que ouvira em Berlim, Paris e Londres. Enquanto falava, gesticulava febrilmente tendo um pedaço de bolo na mão e deixava cair migalhas no tapete e na roupa. Stuart escutava com muita atenção, pois o assunto lhe interessava pessoalmente. Marvina tagarelava amistosamente com Laurie, que lhe dava uma atenção polida. Às vezes, ela olhava Marvina com a testa franzida como se estivesse imersa em graves e profundos pensamentos. Era jovem de novo, pouco mais que uma criança, e comia com prazer, jogando de vez em quando para trás os cabelos dourados. Robbie tomava chá, que ele detestava, e comia bolos sem qualquer interesse.
— Sim, é uma voz indiscutivelmente wagneriana!— exclamava Berry, continuando a sua conversa com Stuart. — Posso já ouvir a Srta. Laurie em Lohengrin! Que magnífica Elsa ela será! Tem presença natural para o papel. Não precisará nem de usar peruca. Os cabelos são perfeitos! E tem indiscutivelmente a estatura! Será uma sensação, Sr. Coleman, uma positiva sensação! Receberá ovações em todas as grandes capitais do mundo! Será recebida pelas cabeças coroadas! Quanto aos Estados Unidos —, abriu as mãos num gesto significativo —, quem aprecia as artes nos Estados Unidos? Este é um país bárbaro, Sr. Coleman, um país bárbaro! Nunca haverá nada aqui!
O rosto de Stuart se fechou imediatamente. Mudou a filha de um joelho para outro e perguntou:
— Que é que há de errado com os Estados Unidos? É um país jovem, sem dúvida. Mas não se esqueça de que os países jovens são capazes de tudo! Quando os Estados Unidos adquirirem a consciência plena de sua força e atingirem a maioridade, mostrarão o seu gênio próprio. Como será, não sei. Mas tenho certeza de que o vai mostrar ao mundo. Nada é impossível aqui!
O Sr. Berry ficou um pouco desconcertado com isso. Murmurou apenas:
— Não duvido. Mas ainda não vejo sinais.
— O gênio deste país não será igual ao da Europa —, disse Stuart, com crescente irritação. — Será com certeza alguma coisa nova. Veem-se os sinais por toda a parte. Os Estados Unidos têm vigor. Pode achar isso feio. Mas o que eu vejo nisso é força. Já esqueceu a história? Houve um tempo em que Roma era uma nação jovem e bárbara. A Grécia zombava dela. Mas Roma teve depois o seu esplendor.
— Mas foi um esplendor bárbaro! — exclamou o Sr. Berry, ansioso por mostrar a sua erudição. — Não se esqueça de que Roma nunca se aproximou da glória da Grécia. Roma nunca produziu as artes e as ciências da Grécia, e na filosofia, então, nem é bom falar...
— Eu sei —, exclamou Stuart, interrompendo-o rudemente. — Foi outro tipo de gênio! Não sei por que certas pessoas acham que só um tipo de atividade tem valor. É insensato esperar que todos os homens tenham olhos azuis, só porque se admiram olhos azuis. Será que é incapaz de ver a variedade, a mudança, a policromia? Para ser admirada e apreciada, a paisagem do mundo tem de ser uniforme e monótona? Onde está a sua apreciação das diferenças, da individualidade?
Robbie estava um pouco surpreso. Não podia deixar de reconhecer que a argumentação de Stuart era boa. Mas por que estava ele tão exaltado? Essa exaltação fazia as suas palavras parecerem pueris e ridículas. Quando um homem falava exaltadamente e dizia o que tinha para dizer numa voz tartamudeante e atropelada, os outros deixavam de ouvi-lo e sorriam apenas superiormente de sua veemência.
Um sorriso furtivo tocou os lábios do Sr. Berry e ele inclinou um pouco a cabeça, a fim de dissimulá-lo. Robbie, no mesmo instante, antipatizou com ele e resolveu entrar na discussão, dizendo com sua voz fria e neutra:
— Concordo com você, Stuart. Mas os homens não gostam de ser originais. O que uma vez lhes agradou e lhes despertou a admiração, sempre lhes parece o melhor. Reprovam em proporção direta à diferença. Um homem com uma nova filosofia, um músico com um ritmo novo, um planejador com uma nova ideia, um arquiteto com um projeto novo, todos eles são sempre objeto de desprezo para o mundo asnático, que tem ideias preconcebidas e se aferra ao passado. Isso decorre de timidez e de um medo de mudar inerente na natureza humana. Aceitar uma nova ideia ameaça a segurança precária sempre num universo em constante mudança.
Stuart tinha escutado, franzindo a testa. Disse então com impaciência:
— É isso mesmo o que eu quero dizer. Muito obrigado. É por isso que eu digo que o gênio dos Estados Unidos é diferente. Ainda se está desenvolvendo. Está em movimento. Não podemos ainda ver os contornos. É tudo tão novo!
Olhou para a mulher. Pareceu de repente exausto e desanimado. Disse então numa voz calma e delicada:
— Quer chamar a babá, minha cara? A menina estava muito cansada e dormiu.
Marvina, sem deixar de sorrir, estendeu a mão e puxou a faixa da campainha perto dela. Depois, voltou os olhos para a filha. O sorriso não aumentou de ternura. Continuou parado, como se fosse o sorriso pintado de um retrato.
A babá chegou e levou a criança adormecida. Marvina seguiu-a com os olhos. Robbie comparou-a a uma gata irracional, que acompanhava involuntariamente com o olhar vadio qualquer movimento que lhe atraísse a atenção. Quando a porta se fechou depois da saída da babá, Marvina se voltou graciosamente para as pessoas reunidas em torno do fogo e lhes ofereceu chá de novo.
Robbie disse a Laurie, que estava com os olhos fitos no fogo:
— Vamos, Laurie? Está nevando forte e nós temos muito que andar.
Marvina disse amavelmente:
— Podemos mandar a carruagem levá-la para casa, minha cara.
Mas não havia interesse na voz dela.
O Sr. Berry saiu da sala com muitas reverências e depois de dar ainda algumas instruções em voz baixa a Laurie. Esta saiu para o hall, seguida pela graciosa Marvina, que se lembrou afinal de cumprimentá-la pelo canto. Stuart e Robbie ficaram sozinhos. Stuart abriu uma caixa de prata e tirou um charuto. Acendeu-o com uma vela. Depois, encostou o cotovelo à cornija da lareira e ficou a olhar para o fogo. Parecia ter esquecido Robbie.
Este se aproximou dele e disse em voz baixa:
— Eu queria falar com você, Stuart
Stuart levantou a cabeça e olhou em silêncio para ele.
— Não sei se alguém já lhe agradeceu devidamente o que você está fazendo por Laurie. Se não, eu lhe agradeço agora. É muita bondade sua.
Stuart franziu a testa e encolheu os ombros.
— Bem, a menina tem voz. Você reconhece isso, não é mesmo? E como sua mãe disse que não podia pagar um professor...
Robbie riu, com um riso bem desagradável.
— Ela sabia perfeitamente que Laurie tem uma boa voz. Bastava que você esperasse discretamente um pouco para que ela largasse o dinheiro para o professor. Mas você não esperou. Ela esperou porque é muito sabida.
— Duvido muito de que ela tivesse "largado" o dinheiro, como você diz. Ela não gosta da menina. E eu, pelo meu lado, não gosto de esperar.
— Minha mãe é ambiciosa. Uma vez certa de que Laurie poderia cantar, teria gasto qualquer dinheiro. Sei disso e acho uma pena.
Stuart nada disse e Robbie continuou:
— Outra coisa. Sei que sugeriu a minha mãe mandar de novo Bertie para Saratoga. Vim-lhe pedir que não faça isso, Stuart, por favor!
Stuart olhou-o com surpresa e perguntou:
— Por quê? Acha que dessa vez sua mãe poderá "largar" o dinheiro?
— Não, tenho certeza de que ela não vai fazer isso. Eu a convenci de que não adiantava.
Stuart tirou o braço da lareira. Olhou para Robbie com curiosidade.
— Você a convenceu? Por quê? O último tratamento não fez bem a ele? Depois disso, levou seis meses afastado da garrafa. Será que já voltou?
— Já, sim. Não adianta. — Pareceu de repente muito cansado e repetiu: — Não adianta. Houve um tempo em que eu tinha uma ideia diferente a respeito de Bertie. Essa ideia ainda é parcialmente certa. Mas a razão é mais profunda do que eu havia pensado. Sei agora que se ele tem desejo de alguma coisa é da morte.
— Por que diz isso? Está falando como um idiota!
— Não, sei que estou certo e que nada é capaz de dar a Bertie o desejo de viver. Não é que ele esteja cansado de viver. O que acontece é que a vida não tem atrativos para ele.
Olhou para Stuart sombriamente e disse:
— Já viu um espelho numa parede, Stuart? Fica ali pendurado sempre. Às vezes, o sol brilha nele. Às vezes, abandona-o. Fica então na escuridão. Limita-se a refletir. Não tem vida própria. É perfeitamente estático. Talvez, se pudesse exprimir uma opinião própria, pediria que o tirassem da parede. Talvez dissesse que está cansado de ficar ali parado, refletindo o sol ou a escuridão.
Stuart olhou para ele. A sua intuição compreendia. Mas a sua razão se negava violentamente a aceitar uma coisa tão terrível.
— Não sei o que é que você está dizendo! Espelho? Que é que tem seu irmão a ver com espelhos? Escute aqui! De vez em quando, fico farto da vida e de seus problemas e chego a desejar momentaneamente a morte! Mas isso passa. No fundo, não quero mesmo morrer. Só sinto mesmo essa vontade absurda de morrer porque estou vivo. Mas isso passa, como uma dor de barriga. É preciso continuar vivendo!
— Mas Bertie não quer continuar vivendo —, disse calmamente Robbie. Hesitou e disse então alguma coisa realmente extraordinária para quem era tão racional. — Há algumas coisas que não podem ser ditas com palavras. Têm de ser sentidas. E o que sinto a respeito de Bertie. Tive uma conversa com ele há cerca de dois meses. Ele não disse muito. Foi mais o jeito dele. Percebi então que não adiantava. Nada poderia dar a Bertie o desejo de viver. Não é um vazio, Stuart. É mais do que isso.
— Mas que é que ele pode querer? — perguntou Stuart num protesto contra o que sentia em seu quente e tempestuoso coração.
— Já lhe disse, Stuart. Ele nada quer. E não pode suportar a vida, sabendo que não quer nada. Não lhe posso explicar direito. Estou-me expressando muito mal. Mas sei que isso está no espírito dele, como um pesadelo!
— Mas por que se sente ele assim? — perguntou Stuart
— Não sei, Stuart, não sei. Talvez tivesse nascido assim. Bertie é flexível. Concorda com tudo. É encantador e simpático. Mostra-se sempre agradável e consente em tudo. Por quê? Na minha opinião, é porque ele acha que nada é suficientemente importante para merecer oposição, combate ou recusa. Já o vi concordar com duas opiniões inteiramente diferentes, meneando afirmativamente a cabeça, como se estivesse convencido. Mas não estava. Não estava nem interessado. Trata-se de alguma coisa ainda mais negativa.
Stuart pensou no terrível caso durante alguns momentos e perguntou:
— Como está ele agora?
— Já há algumas semanas, bebe quase ininterruptamente. Desde que tivemos a conversa de que lhe falei. Está terrivelmente doente. Quase não come. Fica estendido na cama e bebe. Minha mãe quis afinal impedi-lo de conseguir bebida. Eu disse a ela que não adiantava. Ele acharia um meio de conseguir bebida, ainda que fosse preciso levantar-se da cama e roubar. Nada o faria recuar. É como um homem viciado em drogas ou hipnotizado, que procura a única coisa capaz de mantê-lo vivo. Só nos cabe deixá-lo beber e morrer. É isso o que ele quer. Quem somos nós para dizer que é melhor para ele viver? Como podemos compreender o que ele é?
— Você o deixaria cometer suicídio?
Robbie encolheu os ombros.
— É isso o que ele quer. Poderíamos afastá-lo da bebida durante algum tempo. Mas ele voltaria. E isso só serviria para lhe prolongar a agonia. — Deu um suspiro e continuou: — É essa a situação. Não posso deixá-lo agora. Como sabe, eu devia ir para a Universidade de Harvard depois do Natal. Desisti dessa ideia, ao menos temporariamente. Vou ficar com Bertie.
Stuart se mostrou profundamente preocupado.
— Por que é que vai fazer isso? Já não tinha planejado tudo? Não tem necessidade de ir?
— Creio que sim. Mas isso pode esperar. Posso continuar a estudar com o Juiz Taylor. Creio que realmente não tenho necessidade de ir. Ao menos, não é absolutamente necessário. Há alguns cursos de Filosofia que eu gostaria de fazer além de estudar Direito. Mas posso ser advogado sem ir para Harvard. Segundo o Juiz Taylor, dentro de dois anos, poderei começar a trabalhar no foro de Grandeville sem maiores formalidades.
Stuart olhou-o com renovado interesse. Afinal de contas, o rapaz era humano. Mas não pôde deixar de dizer ironicamente:
— Você diz respeitar tanto a razão. Mas isso que pretende fazer não é contrário a toda a razão?
— Sem dúvida. Mas, às vezes, há coisas mais fortes do que a razão.
Stuart sentiu um ímpeto de simpatia para ele e colocou-o a mão afetuosamente no ombro do rapaz.
— Que idade tem você, Robbie? Dezoito anos? Ora, tem ainda tempo de sobra pela frente. Escute aqui, se precisar de alguma coisa, quer fazer o favor de me procurar?
Robbie olhou-o com firmeza e perguntou:
— Stuart, por que é que você tem sempre tanto trabalho conosco?
Stuart apertou com mais força o ombro de Robbie e de repente afastou a mão.
— Palavra que eu não sei —, murmurou ele com um sorriso. — Talvez eu seja mesmo intrometido porque a verdade é que eu não gosto de nenhum de vocês, não gosto mesmo!
Robbie riu.
Quando ele se dirigiu para a porta, Stuart acompanhou-o e disse:
— Escute, Robbie, é melhor você parar com essas suas ideias a respeito de Bertie. Acho que elas não lhe farão bem algum!
CAPÍTULO 38
Joshua Allstairs se curvou sobre sua bengala e olhou longa e pensativamente para o seu visitante.
Os últimos sete anos não tinham aumentado a benevolência do velho, embora tivessem tido um efeito salutar sobre a sua piedade. O tempo havia também encolhido ainda mais o seu corpo entanguido e ele cada vez se parecia mais com uma velha aranha. Tudo nele era sombrio, exceto os olhos vivos e predatórios fixos inexoravelmente em Sam Berkowitz.
— Ah, sim —, murmurou ele, sorrindo benignamente. — Pode fumar, se quiser, Sr. Berkowitz. Embora eu não use a erva nociva, por motivos morais e de outra natureza, não faço objeção a que outros queiram pôr em perigo as suas almas imortais.
Sam acendeu o cachimbo lenta e gravemente. Recostou-se na cadeira e olhou Allstairs, pensativamente. Joshua, por sua vez, observou atentamente o outro. Por que estaria aquela abominável criatura a visitá-lo, por que lhe escrevera pedindo que ele lhe desse alguns momentos de seu tempo? Joshua passou a língua pelos lábios e preparou-se para o prazer que ia ter.
Sam deu um pequeno suspiro. Em seguida, sorriu e pareceu um tanto confuso ao dizer:
— É um pequeno assunto de negócios. Não ocuparei muito o seu tempo, Sr. Allstairs.
— Não pretendo ir aos bancos hoje —, disse Joshua.
— Apesar disso, não tomarei seu tempo. O que lhe vou dizer pode parecer estranho, Sr. Allstairs. Mas quero fazer-lhe uma pergunta. É verdade que tem em seu poder várias notas emitidas em favor do Banco First National, do Banco de Broadway e do Banco American de Nova York por meu sócio, Sr. Coleman, na importância de 21.000 dólares?
Disse isso calmamente com os olhos bem concentrados sobre Joshua.
O outro foi tomado de surpresa. O seu rosto se encolheu até parecer a polpa seca de uma noz mumificada. Olhou para Berkowitz de modo inamistoso e disse pomposamente:
— Sr. Berkowitz, acaba de me fazer a mais extraordinária pergunta. E, segundo concordará, muito assombrosa também. Não sei onde consegui essa informação. Não posso compreender! Afinal de contas, as transações comerciais não costumam ser coisas de conhecimento comum de partes não interessadas.
— Mas eu sou uma parte interessada —, disse Sam Berkowitz.
— Bem, é claro. Tenha a bondade de perdoar minhas palavras impetuosas. Compreendo que tudo o que diz respeito a seu sócio de certo modo lhe diz respeito também. Mas creio que está agindo dentro de uma presunção errada. Não a respeito das notas que parece acreditar que estão em meu poder, mas quanto à ideia de que eu lhe vá dizer seja o que for sobre elas.
Sam tirou uma baforada lenta do cachimbo e não respondeu logo. Balançou uma das pernas cruzadas sobre a outra. Não estava perturbado. Joshua o observava com intenções maléficas, curvando as garras sobre o castão da bengala.
— Tenho razões para acreditar que possui estas notas, Sr. Allstairs. Não me pergunte quem foi que me informou porque não lhe direi. Mas eu sei que as possui. A única pessoa que não sabe disso é Stuart.
Os olhos de Joshua fuzilaram. Repuxou os lábios para dentro da boca murcha. Enterrou ainda mais a cabeça nos ombros encurvados. Era a própria imagem do mal.
Sam sorriu e continuou:
— Sei também que comprou essas notas com abatimento, porque os bancos que as tinham em carteira estavam muito alarmados durante o pânico e fizeram a operação com desconto para ter dinheiro em caixa. Sei também que as comprou embora não estivessem vencidas.
— Vão-se vencer daqui a quinze dias! — exclamou Joshua, antes de refletir no que estava dizendo.
— Sei disso. E sei que sem dúvida vai reclamar o pagamento.
Joshua não respondeu, mas seu rosto se encheu de um clarão maligno.
— Estou disposto a comprar-lhe essas notas, dando-lhe uma boa margem de lucro, Sr. Allstairs.
Joshua deu um salto da cadeira.
— Comprá-las de mim? Ninguém as comprará nem pelo dobro do dinheiro! Acha então, judeu imundo, que eu vou abrir mão da chance que há tanto espero de me vingar daquele patife ímpio? Acha que esperei tanto para me ver frustrado agora?
Nem os olhos faiscantes, nem a agitação, nem os insultos tiveram qualquer efeito visível sobre Sam. Continuou a olhá-lo calmamente como se aquilo fosse de fato uma simples conversa de negócios.
Mas a sua calma e o seu jeito de tranquila espera é que fizeram efeito sobre Joshua. Respirou profundamente três ou quatro vezes e então parou de repente.
— Quer comprar essas notas? — perguntou ele a Sam.
— Foi o que me trouxe aqui. Sou sócio de Stuart. Ou já se esqueceu disso?
— Não —, disse Joshua, sorrindo. — Não me esqueci. E compreendo tudo. Está por acaso insinuando que se cansou da maneira de proceder do Sr. Coleman? Das dívidas que contrai e dos crimes que comete, fazendo a firma viver em perigo constante?
— Pode presumir isso mesmo, Sr. Allstairs —, disse Sam, impassível.
Joshua o observou e então começou a rir, balançando-se para a frente e para trás na sua cadeira.
— Eu sabia! Eu sabia! Eu bem que avisei aquele sujeito há muito tempo! Um judeu é sempre um sócio perigoso! Não é que eu o esteja condenando, Sr. Berkowitz! Claro que não. Muito ao contrário, estou admirando-o. Como eu, você estava à procura de sua oportunidade, não é mesmo?
— Pode presumir isso também —, disse Sam, sorrindo. — Mas não se esqueça, Sr. Allstairs, de que tudo isso deve ficar entre nós.
Joshua assentiu radiante. Aproximou-se mais de Sam e disse:
— Sei de muitas coisas de que não faz nem ideia, Berkowitz! Sei de todas as transações e de todas as dívidas do Empório Supremo de Grandeville. Sei que ainda não se livraram por completo das consequências do pânico. Sei também qual é a quantia exata que está depositada em seu nome nos bancos. Berkowitz, tenho admiração pela sua pessoa. Sei que é um homem cauteloso, expedito e econômico. Sem dúvida alguma, as extravagâncias e as negligências criminosas de Coleman o enfurecem.
— Sem dúvida —, disse Sam, com um suspiro.
— E deseja ver-se livre dele?
Sam inclinou a cabeça.
— Precisa é de um sócio, Berkowitz, um sócio capitalista que não se imiscua nos assuntos da firma.
Sam refletiu brevemente que um sócio assim seria de fato muito bom.
— Quando, Berkowitz, quando Coleman estiver definitivamente afastado?
Sam nada disse e seus olhos se apertaram astutamente.
Joshua sorriu, cheio de admiração.
— Berkowitz, há muito que admiro o seu tino comercial. Sei que foi você que fez do Empório o que ele é e sei o que poderá fazer dele se tirar Coleman de seu caminho. E é por isso que lhe estou perguntando se pode aceitar um sócio capitalista.
— Eu poderia pensar num sócio assim —, murmurou Sam. A sua voz era séria, talvez ansiosa, mas muito cautelosa também.
Joshua esfregou as mãos.
— Vai ser tudo muito fácil. Apresentará minhas notas a nosso admirável e imprudente amigo e, com isso, forçarei a saída dele do Empório Supremo de Grandeville. Passarei a ser então seu sócio capitalista.
Olhou para Sam com um ar de encantada e afetuosa cumplicidade e disse:
— Creio que isso resolve o problema para nossa mútua satisfação.
Sam nada disse. Continuou a fumar o seu cachimbo com os olhos impassíveis.
Joshua ficou impaciente.
— Está tudo resolvido, Berkowitz. Compreendo, é claro, que tem de parar e pensar no caso. Sei que tinha pensado em apresentar essas notas a Coleman a fim de forçá-lo a sair da firma, deixando-lhe o campo livre, sem qualquer sócio, não é assim?
Sam olhou para o lado e pareceu confuso. Joshua apontou o dedo para ele e riu no fundo da garganta.
— É muito esperto, sabe? Mas eu o admiro, palavra que o admiro. Tenho a impressão de que não me quer como sócio. Quero uma participação no Empório Supremo de Grandeville. Se tem receio de que eu vá interferir com a administração de sua firma, pode ficar descansado. Tenho pensado muito no assunto. Quando comprei as notas foi com a ideia de ser seu sócio. Confio no seu critério. Confio implicitamente em você. — Riu com mais prazer. — Ele pensou que podia confiar também em você. Mas aquele libertino desavergonhado não se pode comparar com Joshua Allstairs!
A sua fisionomia se alterou de novo, tornando-se carregada de ódio. Continuou:
— Ele me tomou minha filha, a única pessoa que eu tinha neste mundo! Foi um bom marido para ela? Deu-lhe uma boa vida? Não! Despedaça o coração da pobre, ostentando os seus casos com outras mulheres! Todo o mundo sabe disso! Agora, eu lhe pergunto: isso era coisa que se fizesse com uma pobre moça que confiou nele e colocou a vida nas mãos dele?
Sam suspirou profundamente. Olhou para Joshua e disse com toda a sinceridade:
— Sei disso também e não lhe posso dizer quanto sinto.
Joshua se exaltou. Brandiu a bengala e disse:
— Não descansarei enquanto não o derrubar, enquanto não o vir rastejando pelo chão a implorar misericórdia pelos seus crimes contra Deus e contra os homens! Foi um juramento que eu fiz. Planejei e esperei. Ninguém me fará recuar! Só quando eu o vir como um mendigo em farrapos, esmolando um pedaço de pão para matar a fome, ficarei satisfeito! Quando ele estiver arruinado, minha filha estiver de novo comigo e a filha dela abrigada em meus braços, poderei pensar em perdão!
— Compreendo —, murmurou Sam. — Não seria de esperar outra coisa.
Exausto, Joshua deixou-se recostar na cadeira, olhou fixamente para Sam e murmurou:
— É um homem que tem coração e perspicácia, pois me compreende.
— Compreendo, concordo. Apesar disso, quero que me venda essas notas.
Joshua se exaltou instantaneamente. Exclamou tremendo dos pés à cabeça:
— Não lhe vou vender as notas! Não lhe disse com bastante clareza o que eu quero? Acha que vou transferir para suas mãos a minha vingança?
— Acho —, disse brevemente Sam.
— Então é um perfeito idiota e eu estava inteiramente enganado a seu respeito!
Sam cruzou os braços no peito e perguntou:
— Já se esqueceu de que eu posso ter também uma pequena vingança a exercer?
— Como assim?
— Stuart me deve dezoito mil dólares em notas pessoais assinadas. Sei que nunca receberei esse dinheiro. Há outros motivos também. É por isso que eu preciso dessas notas.
— Não percebe então, obtusa criatura, que teremos uma vingança mútua? — exclamou Joshua. — Isso não lhe basta?
— Não —, disse Sam, pensativamente. — Não basta.
— É verdade então o que sempre ouvi dizer que a vingança de um judeu é insondável e inexorável?
Os olhos de Sam faiscaram estranhamente, mas ele nada disse.
— Ele tem sido seu amigo. Ele confiou em você. Entregou-se indefesamente em suas mãos —, murmurou Joshua com evidente prazer. — Ele confiava em você mais que em qualquer outra pessoa. Entregou-se a você sem reservas. E você é capaz de fazer isso com ele.
— Sim, quero comprar as notas dele com uma boa margem de lucro para a sua pessoa.
— Por mais que eu o admire pelo seu espírito de vingança, isso não é possível, Berkowitz. Acho que nossa vingança deve ser mútua. Posso assegurar-lhe que as coisas não serão mais fáceis para ele. Gostarei de ver-lhe a cara quando ele compreender que seu melhor amigo o traiu! Quero ver-lhe a cara. Tenho de estar presente. É minha única condição.
Sam moveu-se um pouco na sua cadeira e disse com voz clara:
— Pagar-lhe-ei vinte e quatro mil dólares. Não há juros vencidos porque sei que Stuart pagou pontualmente todos os juros. Terá, portanto, um lucro líquido de três mil dólares. Na realidade, mais que isso. Comprou essas notas por dezessete mil dólares. Assim sendo, o seu lucro será de sete mil dólares, o que não é pouco, Sr. Allstairs.
— É bem teimoso, sabe? — exclamou Joshua num assomo de raiva. — Quantas vezes quer que lhe diga que não lhe venderei essas notas? Ainda que perca três mil dólares de lucros imediatos.
— Deve vender —, disse Sam, com a maior gentileza. — Asseguro-lhe que deve vender... Porque, se não vender, informarei as autoridades competentes de seu pequeno tráfico no Movimento Subterrâneo. Informarei as autoridades de que neste momento há vinte infelizes negros num certo prédio de sua propriedade e que você extraiu muito dinheiro desses pobres coitados para fazê-los passar para o Canadá. Direi também da fortuna que já ganhou nessas condições. Os seus cúmplices são conhecidos.
— Chantagista! — gritou Joshua, inteiramente fora de si.
— Infelizmente, creio que não passo mesmo de um chantagista —, murmurou Sam.
Joshua nada disse. O fogo morria na lareira escura. O vento de abril sacudia as vidraças. O velho podia ter expirado naquele momento na sua cadeira, pois estava imóvel e havia em seus olhos um brilho de morte. Afinal, começou a murmurar de novo. Era um som como o sussurro das folhas secas, como a passagem de um rato pela palha. Sam o ouviu, mas durante vários momentos não pôde compreender as palavras.
— Fui traído. Fui entregue a meus amigos infiéis. Fui preso na armadilha de um ímpio judeu, de um dos matadores de Cristo! Eu, um cristão, fui entregue às mãos do sarraceno, do abominável, de um dos assassinos do amado do Cordeiro!
Diante dessas terríveis e odiosas palavras, Sam não ficou perturbado, embora seus olhos se tornassem mais claros e firmes, voltados para Joshua. Talvez estivesse apenas um pouco mais pálido.
— Devo ter essas notas. Agora —, disse ele, com a sua habitual delicadeza.
Joshua pareceu ter enlouquecido. Começou a gritar. Levantou a bengala para bater em Sam, mas este se limitou a afastar a cadeira para longe do seu alcance. Joshua começou a dizer coisas incoerentes. O seu rosto estava horrivelmente contorcido e havia perdido qualquer aparência humana.
— Terei minha vingança também por isso! — exclamou. — Você não viverá no país pelo qual meus pais morreram, não poderá mais poluir esta terra sagrada! Eu sei o que eu sei! Você vai morrer como o cão judeu que é!
— Quero as notas agora! — disse Sam.
Levantou-se calmamente. Tirou o relógio e disse:
— Já lhe tomei muito tempo. Dê-me as notas agora.
Puxou o seu talão de cheques. Correu os olhos à procura de pena e tinta. Apontou então para a faixa da campainha ao lado de Joshua.
— Chame seu empregado e peça tinta e uma caneta. Vou-lhe fazer um cheque de vinte e quatro mil dólares agora.
CAPÍTULO 39
Sam abriu em silêncio a porta do escritório de Stuart e ficou parado no limiar.
Stuart não o ouvira entrar. Na realidade, não ouviria ainda que Sam tivesse feito barulho. Estava olhando para a parede à frente de sua mesa com os olhos cegos e secos de um homem mergulhado em extremo desespero. Tinha entre os dedos flácidos um charuto apagado.
Sam ficou a olhá-lo durante muito tempo. Viu o perfil fatigado e parado. Viu os fios brancos cada vez mais abundantes na cabeça de Stuart.
Tossiu delicadamente. Stuart teve um sobressalto e virou a cabeça. Um sorriso triste lhe aflorou aos lábios, sem chegar aos olhos.
— Entre, Sam —, disse com voz débil e rouca.
Apontou uma cadeira. Sam sentou-se e olhou o amigo com profunda tristeza e compreensão.
— Sabe que neste mês não terá das lojas mais de duzentos dólares? — perguntou ele em voz baixa. — Acabo de verificar a escrita.
Stuart nada disse. Tinha virado de novo a cabeça para a parede em frente. Sam deixou cair as mãos e os ombros no seu gesto antigo e expressivo.
— Você não tomou meus conselhos, Stuart.
Stuart resmungou alguma coisa. Levou as mãos ao rosto. Houve silêncio no escritório. Do outro lado da porta havia o pesado e ressoante silêncio das lojas sem movimento. Sam ouvia os murmúrios dos caixeiros inquietos e o arrastar de seus pés a limpar balcões já limpos mais uma vez. Olhavam para as vitrinas e notavam cada pessoa que passava na esperança frustrada de vê-la entrar.
— Não adianta —, disse Stuart, com voz pesada. — O povo não tem dinheiro ou não tem confiança. A nossa freguesia não pára de cair.
— Não está pior do que no mês passado. E está sem dúvida melhor do que há três meses —, disse Sam. — Estamos começando a ver a luz.
— Ver a luz? — exclamou Stuart. — Mas isso não basta para me salvar. Nem mesmo se os negócios se recuperassem por completo dentro de seis, de cinco ou de quatro meses!
Stuart se levantou bruscamente, empurrando a cadeira com o pé. Começou a andar no escritório de um lado para outro com passos irregulares, passando repetidamente as mãos pelos cabelos que de vez em quando puxava. De repente, parou diante do amigo e exclamou:
— Sei muito bem que isso não lhe interessa! Por que lhe iria interessar? Mas também não vejo necessidade alguma de ficar aí parado a me olhar como uma estátua! Veio gozar a minha desgraça, foi?
Sam disse então com estranha calma:
— Já lhe disse que nos estamos recuperando, Stuart. Muito lentamente sem dúvida, mas nos estamos recuperando. Estamos pagando as nossas dívidas. Todos os meses, as dívidas são pagas regularmente, ainda que com imenso trabalho. Não estamos contraindo novas dívidas. Dentro de dois meses, estaremos quites. Será que isso não lhe dá alguma alegria?
Stuart parou diante de Sam num estado de violenta exaltação. Em seguida, com movimentos tateantes, procurou sua cadeira e deixou-se cair nela:
— Sim, o que você diz é verdade —, murmurou ele. — A respeito das lojas. Mas não é verdade a respeito de minhas dívidas particulares. Eu devo dinheiro. Você deve ter adivinhado isso.
Sam voltou os olhos para o chão e esperou.
Stuart começou a rir desagradavelmente.
— Pensou que eu estava vivendo do dinheiro das lojas? Se pensou, é um idiota. Aliás, você sempre foi um idiota, Sam!
Sam levantou os olhos cheios de raiva, empurrou a cadeira para trás num gesto instintivo e exclamou severamente:
— Estou cansado disso! Estou cansado de ser chamado de idiota! Não vou tolerar mais isso! Está acabado! Chega!
Tinha-se levantado também e encarava Stuart, que empalideceu e disse com voz arrastada:
— Perdão! Não sei mais o que estou dizendo. Mas é que você não sabe...
Caiu de novo em sua cadeira. Cobriu o rosto com as mãos.
Sam foi para junto dele e começou a falar numa voz calma, mas, apesar disso, estranhamente exaltada:
— Pedem sempre perdão depois que nos dizem tudo o que querem. Sempre, quando nos tomam o dinheiro, o sangue, o trabalho e até a vida. Sempre quando nos ofendem, nos degradam e nos usam, quando nos infligem sofrimento, quando nos impelem para as trevas, para o exílio e para a dor. Sempre, quando nos ferem na face e espezinham nossos filhos. Sempre, quando devemos submeter-nos à loucura e ao ódio, às superstições e à cobiça, à crueldade e às abominações! Sempre, quando se saciam em nós, quando se cansam e se apavoram da própria maldade, voltam-se então para nós e nos pedem perdão!
Stuart olhou para Sam e viu o amigo como nunca o vira, cheio de uma estranha exaltação, mas, apesar disso, controlado e severo.
Sam levantou a mão como numa invocação e exclamou:
— Pedem perdão e nós sempre pedimos ao Pai que lhes perdoe porque eles não sabem o que fazem! Mas eu digo que sabem muito bem o que fazem! Sabem porque não se cansam de levantar a mão contra nós e fazer-nos morrer!
"Mas vai chegar o dia em que deixaremos de perdoar! Algum dia, quando o fardo que pesa sobre nós for além de nossas forças, clamaremos a Deus e em nossos corações haverá cólera e não mais paciência! E então Deus nos ouvirá, olhará para a nossa aflição e fará justiça!"
Stuart arregalou os olhos para ele. Ficou então muito vermelho e baixou os olhos. Murmurou então:
— Não há nada disso, Sam. Mas estou envergonhado. E não lhe vou pedir perdão, pois isso seria um insulto.
Depois de uma longa pausa, Sam sentou-se ao lado dele. Estava cansado e muito pálido. Tirou alguns papéis do bolso e colocou-os na mesa diante de Stuart.
— É isso que o está preocupando? — perguntou ele severamente.
Stuart olhou abstratamente as notas que estavam diante dele. De repente, empertigou o corpo e ficou muito pálido.
— Onde conseguiu isso?
Sam respondeu friamente:
— Com nosso amigo Joshua Allstairs.
Stuart voltou-se violentamente para o amigo.
— Com Allstairs? Com Allstairs?
— Sim, com Allstairs. Comprei-as dele ontem. Por vinte e quatro mil dólares. Ele as havia comprado dos bancos por muito menos.
— Ele as comprou —, murmurou Stuart desvairadamente. — Comprou para me arruinar. Era o que ele estava planejando.
— Sem dúvida.
— E teria feito isso.
— Sem dúvida.
Stuart olhou para as notas, estupefato. Apanhou-as e examinou-as, como se fosse tudo um sonho e ele não pudesse acreditar. Deixou-as depois cair na mesa e se voltou para Sam. Tentou falar e não pôde.
Sam apanhou as notas com gestos comedidos, rasgou-as metodicamente e, depois, foi até à lareira e jogou os fragmentos dentro do fogo.
Stuart olhou para as costas de Sam. Tremia descontroladamente.
— Sam —, murmurou ele.
Mas Sam não se voltou.
Stuart passou as mãos trêmulas pelo rosto. Quando as tirou, os olhos estavam cheios de lágrimas.
— Era o dinheiro da ilha, Sam. O dinheiro de seu povo!
— Era.
— E você fez isso por mim!
Sam voltou-se da lareira. Tinha um leve sorriso nos lábios, embora o rosto parecesse triste.
— Sim, fiz isso por você. Você é um idiota, Stuart!
Olharam-se. O sorriso cansado de Sam aumentou. Stuart sacudiu a cabeça e murmurou:
— Perdoe-me.
Em seguida, sentou-se e baixou a cabeça sobre os braços estendidos na mesa.
Sam hesitou. Olhou para o homem a quem salvara da completa ruína à custa de um sacrifício tão terrível para sua vida. Quis dizer alguma coisa, mas não pôde.
Virou-se então e saiu da sala.
CAPÍTULO 40
A Ilha do Rio parecia incendiada de carmesim, âmbar, escarlate, ouro e bronze sob um céu de um luminoso verde-azul que parecia pintado por um pincel enorme e grosso na grande abóbada. As poucas nuvens brancas eram muito nítidas e com as bordas debruadas de luz. O rio, de um cintilante verde de jade, translúcido e suave, batia delicadamente nas margens gramadas. A própria ilha resplandecia de cor naquele princípio de novembro. O inverno estava atrasado. A terra estava banhada de um verão temporão dourado e o ar suave, impregnado do cheiro de madeiras que ardiam, estava tomado por uma névoa sonhadora, que esfumava as distâncias do rio, deixando apenas ouvir-se a sua voz murmurosa. Havia também em tudo uma paz envolvente. O sol de outono transmitia um calor gentil, embora o vento fosse um pouco frio. Às vezes, a névoa se dissipava um pouco e viam-se as águas verdes a rolar para as Cataratas. A margem americana à esquerda e a margem canadense à direita eram manchas indistintas de escarlate e verde além das águas que circundavam a ilha.
As árvores farfalhavam lentamente e, de vez em quando, uma folha cor de cobre flutuava no ar. No mato, coelhos e esquilos corriam sobre as folhas já caídas. Castanheiros-da-índia tinham juncado o chão de castanhas. Trepadeiras de flores vermelhas se emaranhavam pelos rochedos e florinhas do campo amarelas viçavam nos lugares mais quentes. Não se viam mais os tordos e os outros pássaros do verão, mas as gaivotas sobrevoavam o rio com os seus gritos e os pardais estavam em grande atividade entre as árvores abrasadas. Às vezes, trazidos de longe pelo vento e pela água, ouviam-se o longo apito da barca ou o barulho de suas máquinas.
Sam Berkowitz e o Padre Houlihan estavam passeando na ilha naquela tarde de domingo. Caminhavam sozinhos. A ilha era muito grande. Duas ou três vezes, viram as paredes de madeira de uma fazenda solitária, ouviram o latido de um cachorro distante ou o ranger das rodas de um carro de madeira. Mas até esses sinais de vida desapareceram quando se internaram nos bosques e foram sair no lado norte da ilha, onde nada havia para ser visto ou ouvido salvo a margem canadense e a água do rio. Sentaram-se ali numa pequena elevação do terreno.
Havia profunda compreensão entre aqueles dois amigos e de poucas palavras eles precisavam. Ambos podiam querer bem a Stuart com um afeto paternal e desejar protegê-lo. Mas entre si mantinham uma velha amizade completa e igual, como homens.
O padre tirou o grande chapéu preto e começou a abanar-se com ele. A sua corpulência não havia diminuído com a passagem dos anos. Os joanetes também lhe doíam. Coçou-os sem constrangimento e olhou para as botinas empoeiradas. A cabeça calva rebrilhava à luz refletida entre as árvores. O grande rosto rosado gotejava de suor. Mas havia paz e meditação em seus olhos azuis.
Sam, num terno marrom empoeirado, estirou as pernas e se reclinou apoiado nos cotovelos. O rosto magro estava cansado, mas muito calmo. O vento lhe agitava os cabelos brancos. Um esquilo passou correndo por perto com uma castanha na boca. Parou um instante para mirar com os olhos assustados os dois homens sentados sob as árvores.
— Quatro horas —, disse o Padre Houlihan depois de consultar o grande relógio de prata. — Até quando o homem do barco vai esperar por nós?
— Até às cinco, Padre.
— Muito bem. Isso quer dizer que ainda temos quase uma hora. Isto aqui é muito agradável.
Mas, de repente, ficou triste. Olhou para Sam, que estava calado, com os olhos voltados para a água. Ele e o Padre Houlihan iam com frequência passear ali na ilha, cheios de planos. Mas nunca falavam muito. Entendiam-se sem falar e quase sempre voltavam da ilha renovados e mais confiantes ainda na sua amizade.
Mas naquele domingo o Padre Houlihan estava muito triste. Queria falar com Sam e procurava desajeitadamente as palavras. Mas não as encontrava e, como possuía grande delicadeza, hesitava em falar do que sentia em seu coração dolorido e simples.
Olhou então para o rio, apertando os lábios e rezando um pouco. Olhava às vezes furtivamente para o amigo, em cujo rosto cansado se via grande resignação. O Padre Houlihan suspirou repetidamente, apertando os olhos, lutando consigo mesmo e rezando ao santo de sua devoção para que pudesse encontrar as frases corretas para falar ao outro homem que nada tinha dito da grande pena que o afligia.
Por fim, o padre disse:
— Sabe que do Velho Testamento prefiro os salmos?
Sam olhou para ele com delicadeza, mas sem interesse.
O padre pôs as mãos nos joelhos, olhou para o rio e disse:
— Há um salmo que sempre me faz pensar em você, Sam.
— Qual é?
O padre sorriu, com um ar tímido e infantil.
— Você se importa se eu o disser? Deve conhecê-lo muito bem.
"Senhor, quem há de morar em vosso tabernáculo?
Quem habitará em vossa montanha sagrada?
O que vive na inocência e pratica a justiça,
O que pensa o que é reto no seu coração,
Cuja língua não calunia.
O que não faz mal a seu próximo E não ultraja seu semelhante.
O que tem por desprezível o malvado,
Mas sabe honrar os que temem a Deus.
O que não retrata juramento mesmo com dano seu,
Não empresta dinheiro com usura,
Nem recebe presente para condenar o inocente,
Aquele que assim proceder jamais será abalado."
Proferiu lentamente as solenes palavras, com profunda e contida paixão, como se estivesse orando. No fim, seus olhos estavam úmidos de lágrimas. Estendeu a mão e tocou no ombro do amigo.
Sam não olhou para o padre. Sorriu cansadamente e disse:
— É muita bondade de sua parte, Padre. Mas não é verdade. Não existe no mundo inteiro um homem assim. A não ser você.
O Padre Houlihan ficou muito vermelho e disse:
— Não, não! Não faça esse juízo de mim! Sou na realidade um homem mau e pecador. Não consigo dominar meu coração, nem meus pensamentos. Há momentos em que tenho vontade de matar. Não acredita? Há ocasiões em que eu seria capaz de fazer coisas terríveis! Quando vejo como o homem pode ser cruel com seu irmão, implacável e cego! Não, Sam, não faça bom juízo a meu respeito. Sou um homem fraco e vulnerável, nunca penso como devo antes de agir e tenho uma língua que corta como faca.
Sam riu e olhou o amigo com afetuoso interesse.
— Vivo tão ocupado fazendo penitências pelos meus pecados —, disse o Padre Houlihan —, que na verdade não tenho tempo de analisar minha alma ou de tentar compreender mesmo um pouco a Deus.
Houve de novo silêncio entre eles e o Padre Houlihan ficou outra vez sem saber o que dizer. Que poderia fazer para consolar seu amigo? Nada. O santo de sua devoção devia estar muito ocupado no momento e não lhe podia dar atenção. Isso o fazia sentir-se muito humilde e deprimido.
O tempo passou.
Limpando a batina, o Padre Houlihan sentiu que levava um livrinho no bolso. Tirou-o e sorriu, olhando para Sam. Talvez alguns trechos do livro pudessem dar outra direção aos sombrios pensamentos de Sam.
— Já leu alguma coisa de Thoreau, Sam? É um filósofo maravilhoso. É um dos meus favoritos, pois o considero imbuído da vida e da energia deste país e do espírito que o anima. Incomoda-se que eu leia um pouco?
— Claro que não —, disse Sam e, embora não sentisse muita disposição, voltou-se para escutar.
O Padre Houlihan tinha uma voz boa e flexível, forte e cheia de sinceridade. Estendeu a mão para a água e para as árvores e disse:
— Thoreau falou disso. Ouça: "Quando caminhamos, tomamos naturalmente a direção dos campos e dos bosques. Que seria de nós se tivéssemos de passear sempre por um jardim ou uma alameda? Até algumas seitas de filósofos sentiram a necessidade de transportar os bosques para si, desde que não podiam ir aos bosques."
Fez uma pausa e murmurou:
— Penso às vezes que num sentido espiritual mais profundo que qualquer outro esse trecho se refere aos Estados Unidos, terra de amplidões, de florestas, de águas e de céus gloriosos. Ouça o que diz Thoreau: "Os céus da América parecem infinitamente mais altos e mais azuis, o ar é mais fresco, o frio é mais intenso, a lua parece maior, as estrelas são mais brilhantes, o trovão é mais forte, o relâmpago é mais vivido, o vento é mais forte, a chuva é mais pesada, as montanhas são mais altas, os rios são mais longos, as florestas são maiores e as planícies são mais amplas."
— Sim —, disse o padre, com o rosto ardendo de entusiasmo —, e o coração é maior, a alma é mais forte, o espírito é mais livre, a esperança não tem fronteiras e a fé é mais nobre. Não há fim para o que é esta terra! Você mesmo, Sam, disse que era a Terra da Promissão para todos os homens!
Ficaram de novo em silêncio. Sam voltara ao seu abatimento. Aborrecido com o santo de sua devoção, o Padre Houlihan deixou de lado todo o tato e disse impulsivamente:
— Stuart me disse o que você fez por ele e tudo o que isso representou para você!
— Ele fala demais —, murmurou Sam, depois de alguns momentos de aborrecimento e impaciência.
— Não se importou de que ele me tivesse dito?
— Não, decerto. Mas acho...
— Acha que ele poderia ter sido mais reservado? — perguntou o Padre Houlihan, rindo. — Nem Stuart nem eu pertencemos a uma raça reservada. Falamos impetuosamente e dizemos tudo o que o coração ou o diabo nos manda. Explodimos, gritamos, praguejamos, lamentamos, amamos ou elogiamos, com a voz a todo pano. Somos uma raça barulhenta. Falamos muito, mas nunca fazemos planos, nem tramas. Talvez por isso Deus nos venha a perdoar as línguas barulhentas.
Sam sorriu apenas delicadamente e o padre continuou:
— Foi uma coisa boa que você fez! Foi uma coisa muito boa! E Stuart não foi insensível ao preço que isso lhe custou!
Sam franziu as sobrancelhas brancas, como se estivesse impaciente. Apoiou as mãos na terra da ilha e um lampejo de dor lhe passou pelos olhos. Podia ver na sua imaginação aquela bela ilha colonizada, cheia de casas brancas cercadas de jardins e de campos arados, de pomares fartos e de pastos cheios de nédio gado. Podia ver o teto de uma sinagoga, ali entre os pinheiros altaneiros. Podia ver as paredes de uma escola. Podia ouvir os risos das crianças, as vozes felizes das mulheres, os tons mais profundos de homens libertados que erguiam os olhos para um céu livre e pacífico. E a dor, a pungente agonia interior, se lhe refletiu no rosto.
Exclamou então:
— Diz que foi uma coisa boa que eu fiz! Não pense que me deu algum prazer ter pago os colares de brilhantes que Stuart deu às mulheres, as carruagens e as capas de peles que o fizeram contrair pesadas dívidas! Paguei tudo isso com a vida de homens torturados e com as lágrimas das crianças!
O padre olhou para Sam com profunda tristeza e compreensão. Apertou a mão de Sam que se curvava sobre o solo da ilha que não iria mais ser um refúgio para os exilados e os oprimidos.
— Não tenho palavras com que o possa confortar ou animar, Sam. Qualquer coisa que eu pudesse dizer não faria sentido. Só posso dizer é que nunca soube de coisa mais bondosa e generosa. E sei que Deus não se esquecerá disso. Deus compreenderá. Seja lá como for, Deus vai ajudá-lo.
Mas Sam se limitou a sorrir debilmente e as rugas em torno de sua boca ficaram mais fundas.
O Padre Houlihan disse então:
— Foi por Stuart que você fez isso e não pelas mulheres dele! Fez isso porque gostava dele. Ele é seu amigo. Acha que a coisa é mais fácil para ele? Acha que ele é inteiramente insensível?
— Escute —, disse Sam com voz pesada —, se isso serviu para lhe dar uma lição, creio que o dinheiro não foi desperdiçado. Mas não acredito que isso lhe sirva de lição.
O padre sacudiu tristemente a cabeça.
— Stuart é o que é. Com todos os seus defeitos, é um dos homens melhores deste mundo. Do contrário, não gostaríamos tanto dele. Também ele tem seus trabalhos e não são menores pelo fato de que ele os toma nos próprios ombros. É uma criança. Nunca poderá tolerar a crueldade e a perversidade dos outros.
— Não, é uma coisa que ele nunca será capaz de compreender! — disse gravemente Sam.
Levantaram-se e começaram a caminhar na direção da pequena ponte onde o barco esperava. O dia de outono se tornara bronzeado com a aproximação do crepúsculo. A névoa era mais densa e o rio mais verde e mais trovejante. O cheiro das fogueiras vinha com mais força no vento que refrescava.
Pararam por um momento na ponte onde o homem do barco esperava, a fumar calmamente. O Padre Houlihan disse então com exultação:
— Não precisamos de ilhas ou de lugares remotos para abrigar os sofredores e os oprimidos! Toda esta terra está aberta para eles, de uma fronteira a outra, de mar a mar! Tudo está aqui à espera com a promessa de Deus, com a esperança de Deus, sob a asa de Deus! Esta é a Terra Prometida!
Naquela mesma hora, milhares de homens ansiosos estavam lendo o livro A Crise Iminente, de Hinton Rowman Helper. Já podiam então escutar o distante rolar das rodas de aço que se precipitavam sobre uma terra que seria dilacerada numa sangrenta agonia.
CAPÍTULO 41
Janie estava sentada ao lado da cama de Bertie. O dia sombrio e espectral de dezembro pairava lá fora como a própria morte. Montões e dunas de neve se encurvavam e desciam dos gramados mortos para as ruas e os galhos das árvores vazias estavam carregados de pesada brancura. Tinha começado a nevar de novo e os flocos esvoaçavam diante das vidraças num lúgubre silêncio. Envolta em seu xale, Janie tremia e voltava os pés para o fogo baixo.
Tinha havido dois meses de paz naquela casa da Avenida Porter, durante os quais Bertie se mostrara alegre de novo, recusando gentilmente até um copo de vinho ao jantar e vendo os amigos e parentes que o visitavam tomarem o seu uísque ou o seu conhaque com absoluto desinteresse e indiferença. Mas ninguém percebia os prenúncios da tempestade dentro dele, os primeiros relâmpagos, os primeiros trovões distantes, as primeiras rajadas do temporal. Um dia, fugia para o seu torvelinho de destruição e o velho Bertie desaparecia durante muito tempo. Quando afinal emergia, depois de dias e até semanas de completo aniquilamento, era como um viajante cansado que voltava de lugares terríveis e distantes, trazendo nos olhos e no aspecto a lembrança de coisas tremendas e indizíveis.
Seguiam-se então o longo tratamento, o desespero, a angústia, até que o viajante pudesse de novo sorrir e reiniciar a longa jornada para a saúde e para a tranquilidade.
Naquele dia Bertie estava passando muito mal. Voltara para a família havia apenas uma semana de suas excursões secretas e torvas. De cada vez que voltava, a penosa ascensão para a saúde e para a normalidade era mais longa, mais difícil e mais perigosa. Os médicos nada podiam receitar-lhe senão repouso, sossego, boa alimentação e calmantes. Era então que Janie tratava dele incansavelmente, preparando-lhe as comidas de que ele gostava, adulando-o para comer, lendo para ele, rindo com ele e montando-lhe guarda ao leito enquanto ele dormia agitadamente.
Mas ela era muito realista, quando se via forçada a pensar, para acreditar que houvesse alguma salvação para seu querido.
Um candeeiro brilhava num canto do belo quarto de Bertie, lançando breves sombras trêmulas sobre as paredes brancas. Janie olhava o rosto adormecido de Bertie. Via a magreza daquele rosto, os olhos encovados, a boca retraída, as faces cavadas. Tinha uma expressão estranha, mais remota que pacífica, severa e austera, uma expressão que ele nunca tinha quando estava consciente. Ela não conhecia esse Bertie. Quem ela conhecia era o Bertie que ria, cantava, assobiava, fazia brincadeiras e dançava, falava sem parar, provocava todo o mundo e enchia a casa de uma presença que era como a luz do sol. Os cabelos ruivos no travesseiro eram a única coisa que ela reconhecia e, ao olhá-los, sentia um aperto na garganta e um ardor intolerável nos olhos.
O frio do quarto lhe pareceu amargo. Levantou-se e atiçou os carvões vermelhos da lareira e ficou olhando para eles com a angústia a oprimir-lhe o exíguo coração. O fogo reativado lhe reluzia no rosto sardento e nos olhos verdes.
Foi até à cama onde Bertie estava estendido como um morto. Só a leve respiração e o débil tremor das narinas mostravam que ele ainda vivia. Curvou-se sobre ele e tocou-lhe de leve os cabelos.
Sentou-se de novo ao lado dele. Olhou para o perfil emaciado e começou a pensar.
Meu bom Deus, disse ela consigo mesma, que é que está errado, que foi que aconteceu ao meu Bertie? Que foi que eu fiz? Que foi que alguém fez? Por que faz ele essas coisas?
Ela já sabia a essa altura que não era apenas excesso de energia, exaltação de espírito, imprudência ou falta de juízo que causavam as tentativas inconscientes de suicídio que levavam Bertie para o país negro dos relâmpagos e das fúrias. Alguma coisa impelia Bertie para a destruição. Que era?
Sentada ali no quarto, enquanto o dia se transformava lentamente em noite, rebuscou o coração e a memória com a dolorosa e triste honestidade de uma mãe sentada junto ao leito de morte do filho. Onde foi, perguntou ela humildemente, que eu falhei a Bertie?
O espírito confuso e torturado percorreu lentamente de novo, como abatido e choroso penitente, os anos da vida de Bertie, parando diante de cada vago marco da estrada, na ânsia de descobrir se, entre a relva morta e os sinais dos anos desaparecidos, havia algum indício que pudesse ser visto. Foi recuando, recuando até os dias do nascimento de Bertie, quando o bebê rosado e quente, com a sua coroa de cabelos ruivos, lhe repousava nos braços.
Os marcos passavam lentamente em turva procissão pelo seu espírito. Bertie aos três anos caminhando atrás do moreno e encolhido Robbie de quem ele gostava. Bertie no jardim com os braços cheios de flores. Bertie encantado com a irmãzinha recém-nascida. Bertie rindo do zangado e tímido Angus. Bertie sempre rindo e brincando, generoso e afável. Bertie, de quem todos gostavam pela doçura de sua natureza e pela sua beleza. Só seu jovem e rude pai não o notava, nem acarinhava. Robin, com os olhos negros, o rosto contorcido e a voz estridente, poderia ser um indício?
Janie ajeitou o xale nos ombros, passou a língua pelos lábios secos e arregalou os olhos para as sombras. Podia ver Robin claramente de novo, tão jovem, tão inquieto, levantando a cabeça como um potro selvagem aterrado com a presença de estranhos. Via-o de novo veementemente, sempre brigando, furioso e amargurado. E o pequeno Bertie de quatro anos ficava ao lado do pai, olhando-o com os zombeteiros olhos azuis, mas silencioso como nunca fora antes.
Podia até ouvir a voz de Robin, que parecia esquecida através de tantos anos, a soar de novo forte e clara naquele quarto onde o filho dele estava prostrado na mais terrível inconsciência, dizendo:
— Você arranca o coração de um homem! O coração e a alma! Arranca e esmaga tudo para fazer a sua vontade!
Robin desapareceu, voltando para a sua sepultura, e no silêncio do quarto só se ouviam os carvões que rolavam na lareira.
Não, gritou ela para si mesma, não arranquei, nem esmaguei o coração e a alma de Bertie! Dei-lhe tudo o que ele quis! Não lhe neguei nada! Por ele, teria sacrificado a vida de todos os outros!
Ele deve ter compreendido que ninguém e nada no mundo tinha valor para mim senão ele!
No restolho dos anos mortos, havia um indício que brilhava debilmente.
Continuou. Outro marco da estrada. Bertie tinha então quatorze anos. Fora uma noite, com seu jeito sorridente e carinhoso, para dar um beijo nela antes de ir dormir. Ficara ao lado dela, silhuetado junto à janela no céu azul do verão. Havia uma lua crescente nesse céu e uma estrela que piscava. O ar estava cheio do aroma doce das plantas e do orvalho. Ele a beijara. Depois, encostara-se à cadeira e dissera de repente:
— Mamãe, eu gostaria de ir para o mar!
Como tinham sido vivos e claros seus olhos! Ela nunca os vira assim. Segurara a jovem mão forte e batera nela indulgentemente.
— Para o mar?! Para fazer o quê, rapaz?
Ele havia tremido nessa ocasião ou ela imaginava apenas que ele havia tremido? Mas Bertie dissera com uma espécie de desespero contido na voz:
— Quero ir para o mar! Sempre gostei do mar! Lembra-se de que sempre lhe pedia livros com histórias do mar e sempre adorei a água? Creio que é no mar que eu me realizarei, Mamãe!
Ela o olhara, espantada com a sua veemência e, então, começara a rir. Estaria imaginando que ele a olhara da maneira mais estranha? Ele havia exclamado então, puxando a mão que ela segurava:
— Não me diga, Mamãe, como sempre faz, que isso é uma tolice! Não me diga que é uma coisa tola e boba! Tenho de acreditar em alguma coisa, seja lá onde for!
Ela se mostrara muito terna e gentil com ele. Troçara amistosamente da ideia dele. Ele, seu querido e belo Bertie, queria mesmo ser um marinheiro malcheiroso e horrendo? Quem dá atenção a marinheiros? Que era que ele podia lucrar em ser um marinheiro? Que coisa mais ridícula! Ela mesma, sua mamãe que o adorava, mal podia conter o riso ante essa ideia de ver seu Bertie partir para o mar! E que queria ele dizer com aquela história de ter de acreditar em alguma coisa?
Bertie nada mais dissera. Tornara a beijá-la delicadamente e saíra. Mas saíra de cabeça baixa, como se estivesse atordoado e perdido.
Janie sacudiu a cabeça repetidamente, tremendo sob seu xale. Estaria aí outro indício? Tivera mesmo o tolo tanta vontade assim de ir para o mar? Fora levado a beber em consequência dessa frustração? Não podia ser. Se ele realmente quisesse, poderia ter ido. Ela acabaria concordando porque não lhe podia negar nada. Mas... ele não tivera coragem.
Reconheceu isso com um tremendo baque de angústia. Faltara coragem a Bertie. Na verdade, nunca quisera profundamente coisa alguma. Entretanto, naquela noite ele tinha querido partir para o mar. Quisera isso como jamais antes ou depois quisera coisa alguma. E assim fora porque ele sentira que poderia descobrir no mar alguma coisa em que acreditar. Mas, depois, não quisera mais isso.
Torturada pelos seus pensamentos, Janie se levantou e foi até à cama. Ficou ali, curvada sobre o filho, dominada pela maior dor de toda sua vida.
Sabia agora que tinha decidido, quase desde o instante em que Bertie nascera, que ele nunca deveria deixá-la, nem ter qualquer interesse na vida senão o amor dela. E fora assim que sempre que ele havia demonstrado qualquer desejo capaz de afastá-lo por pouco que fosse da influência dela, ou qualquer vontade de ficar livre num mundo onde os homens têm de tomar as suas decisões e seguir os seus caminhos e no qual ele seria um homem emancipado e com vida independente, ela se opusera, não com violência ou obstinação, mas com risos e carinhos. Tinha-o feito ver como os desejos dele eram absurdos. Havia despojado de todo o valor, finalidade e dignidade qualquer vida ou qualquer sonho para que se tivessem voltado os olhos jovens de Bertie com ansiedade e esperança.
Ela o tinha conservado, sem dúvida. Ele não a deixara. Mas o que restava dele ao seu lado era uma ruína, que não possuía verdade alguma, que não acreditava em nada de importante, de belo ou de digno, e que estava morrendo em consequência disso.
Seria tarde demais? perguntou ela a si mesma com terrível e dilacerante angústia. Poderia alguma coisa convencer Bertie de que havia na vida valor, sentido, finalidade, força e verdade? Pessoalmente, ela não acreditava nessas coisas. Mas ela era forte. Podia viver e gozar a vida com entusiasmo e paixão, porque tinha prazer em cada momento que passava e que esse prazer se bastava a ri mesmo e era por si mesmo uma razão. Bertie era "fraco". Tinha de acreditar na grandeza, na validade e no sentido oculto da vida. Quando deixara de acreditar, a vida perdera todo sentido para ele.
Teria Bertie perdido toda a capacidade de acreditar nas amáveis mentiras que os homens fracos tinham inventado para ocultar a verdade? Tinha de descobrir se ainda havia alguma esperança para ele, se ainda era possível incutir-lhe a falsidade de que a vida tem valor e Deus está no Seu céu, seriamente interessado pelos assuntos da humanidade.
Enxugou os olhos, suspirando profundamente. Virou-se e viu Robbie perto dela a observá-la. Não o tinha ouvido entrar. Quase não podia mais vê-lo na densa escuridão do quarto, com a qual ele se fundia com o seu terno preto.
Como ela tinha sempre odiado aquele "preto", de quem Bertie gostava! Quantos ciúmes havia tido dele no seu amor por Bertie! Não gostava nada de Robbie, mas via nele a única esperança para Bertie. Estendeu a mão e apertou com força o braço magro do filho, dizendo:
— Quero falar com você, Robbie —, disse ela.
Saiu do quarto depois de um último olhar para Bertie e Robbie seguiu-a. Foi para seus aposentos e Robbie acendeu as lâmpadas e atiçou o fogo. Janie deixou-se cair numa poltrona e embrulhou-se no xale. Parecia velha, cansada e deprimida. Mas seus olhos verdes brilhavam determinadamente.
Robbie sentou-se perto dela e esperou, cruzando as pernas. Ela o olhou fixamente. Sim, sempre o odiara. Mas, por outro lado, sempre o admirara também. De todos os seus filhos, aquele era o único inteligente e equilibrado, o único que não se deixava perturbar pelas suas emoções ou ser arrastado pelas suas paixões. Via as coisas completas e com clareza. Era por isso que nunca se mostrava perturbado ou agitado. Era o forte.
— Bertie não está melhor —, disse ela.
— Não está dormindo bem?
— Está. Mas, quando se levantar, vai beber de novo, algumas semanas depois.
— Sei perfeitamente disso.
— Escute, Robbie. Você sempre viveu em muita intimidade com ele. É a primeira vez que lhe pergunto isso. Há alguma coisa que possamos fazer?
— Não, acho que não. Talvez não compreenda, mas a verdade é que Bertie não quer coisa alguma. Bebe porque acha que nada tem valor e porque nada há que ele deseje.
Com grande surpresa para Robbie, a mãe baixou a cabeça e disse:
— Eu sei. Seu irmão é um fraco, Robbie.
A surpresa foi tão grande que durante alguns momentos ele nada pôde dizer e olhou para a mãe com um respeito novo. Disse por fim:
— Sim, tem razão, Bertie é um fraco. Nunca teve o espírito ou a coragem de descrer de você, Mamãe. Nunca procurou saber das coisas por si mesmo. Confiou em você. Nunca chegou a compreender que não se pode confiar em ninguém, quando se trata de si mesmo. Talvez ele nunca tivesse querido deixar de confiar em você. Era mais fácil acreditar.
Esperava que ela reagisse com incontida fúria. Mas ela disse com calma e sinceridade:
— Tem toda a razão, Robbie. Sabemos agora que Bertie é fraco e nada quer. Não é necessário que eu explique as coisas para você. Você é o único de meus filhos que tem bom senso. Sabe o que eu quero dizer?
— Sei, Mamãe —, respondeu Robbie, sentindo de repente muita pena dela.
— Que é que vamos fazer, Robbie? — perguntou Janie, abrindo as mãos num gesto que para ela era infinitamente patético.
Ele se levantou e começou a andar de um lado para outro no quarto, com a cabeça baixa em meditação.
— Tenho pensado muito no caso, Mamãe —, disse ele, parando em dado momento diante da mãe e olhando para ela com o respeito e a consideração que se concedem a uma pessoa da mesma categoria mental. — Há anos que penso nisso. Sinceramente, não creio que possamos fazer coisa alguma. Ainda que você tivesse cedido a Bertie em todos os seus desejos, não sei se isso teria dado algum resultado. As pessoas fracas, quando têm liberdade de fazer o que querem, terminam quase invariavelmente em confusão, correndo como coelhos de um montão de comida para outro, sem decidir por onde devem começar a comer. Acabam cheias de insatisfação, de fome e de desorientação, constituindo um encargo, uma despesa e uma fonte de preocupação para os outros.
Janie deu um suspiro.
— Você me convenceu a não o mandar para Saratoga de novo. Isso o teria ajudado um pouco, prolongando-lhe a vida e a saúde. Mas você disse que eu não devia.
— E estava certo, Mamãe. Para que prolongar-lhe a infelicidade?
— Disse uma coisa muito cruel, Robbie.
— Devemos dar-lhe conforto e proteção, Mamãe. Nada mais podemos fazer.
Robbie viu de repente Bertie sentado sob uma árvore, com o rosto banhado pela luz verde e líquida. A árvore já perdera as folhas duas vezes, mas a imagem de sonho permanecia com Bertie "perpetuamente moço".
E toda a razão de Robbie foi levada numa torrente impetuosa de dor. Exclamou:
— Deixe-o em paz, Mamãe! Deixe-o ir! Não sei o que quero dizer e não posso fazê-la compreender, porque não compreendo também! Mas sei que devemos deixá-lo ir. É o que ele quer. É a única coisa que ele quer e vai ser a última.
CAPÍTULO 42
Angus Cauder se casou com Gretchen Schnitzel cinco dias antes do Natal num ambiente de grande pompa. O casamento se realizou na Igreja Luterana de Bethlehem, com a presença de uma grande reunião teutônica, que pareceu muito estranha à alma celta dos Cauders e dos Colemans. Os Schnitzels tinham um verdadeiro exército de primos, tios, todos grandes, belicosos e abrutalhados, mais ou menos parecidos até na sua má vontade. Eram todos empregados de maior ou menor categoria de Otto Schnitzel e era evidente que antipatizavam com Angus, vagamente receosos de que de viesse a comandá-los. Dividiam-se entre o impulso de adulá-lo, como um futuro chefe, e o de tratá-lo com condescendência, como novato e inferior. Em consequência, eram afligidos pela confusão que tanto assalta o teuto, no impulso igual e contraditório de oprimir e de humilhar-se.
Os três irmãos de Gretchen, Heinrich, Adolph e Hans, estavam presentes, tão brancos, tão gordos e tão baixos quando ela, num estado visível de descontentamento. Tinham feito tudo para impedir aquele casamento, mas o pai deles tinha dado o seu consentimento. Ocupavam de cara fechada, com as gordas esposas e os filhos, os bancos reservados à família da noiva.
Entre os convidados, estavam os Schnickelburgers e os Zimmermanns que, curiosamente, muito se pareciam com os Schnitzels. Janie, olhando para eles, comentava consigo mesmo que fora dar num chiqueiro de porcos e não se surpreenderia muito se, de repente, todos começassem a grunhir, abafando a música do órgão, e mostrassem os cascos das patas por baixo das calças e dos vestidos. Era sem dúvida muito apropriado que se dedicassem ao negócio de matadouros, curtumes e salsichas. Só lhe provocavam desprezo e aborrecimento.
Ficou satisfeita quando a cerimônia terminou. Para ela, aquilo tudo tinha o ar do sacrifício de um inocente a Moloque.
O jovem casal foi morar na residência dos pais da noiva na Rua Franklin, uma monstruosidade de torreões, umidade, corredores sombrios, salas quadradas e lareiras de mármore preto. O terceiro andar tinha sido preparado para os noivos, com as paredes revestidas de nogueira preta, o chão atravancado de pesados móveis de mogno, veludo e crina e reposteiros de veludo vermelho. Angus desapareceu naquela casa como numa cripta e não foi visto durante três semanas, tempo durante o qual estava sem dúvida gozando a sua lua-de-mel. Todas as noites, durante essas três semanas, Janie divertiu-se com conjecturas altamente impróprias sobre o que estava acontecendo. Quando tornou a ver o filho, procurou descobrir-lhe no rosto quaisquer alterações de natureza catastrófica. Mas Angus parecia o mesmo, calma e timidamente arrogante, silencioso e reservado, cheio de austero orgulho e de frieza. Janie não sabia se devia ficar decepcionada ou tranquilizada. De qualquer maneira, a sua curiosidade foi insatisfeita.
Stuart, como patrão de Angus, foi também convidado, mas tinha recusado com grande energia. Não queria saber de sentir o cheiro dos curtumes e de ter qualquer contato com os grandes animais a quem temia e detestava. O Padre Houlihan tinha achado que isso não era gentil da parte dele.
— Escute, Grundy, já se esqueceu de que foi Otto Schnitzel quem trouxe para Grandeville a organização "Nada Sabe" e que foi ele que mandou os desordeiros quebrarem a pedradas os vitrais de sua igreja na hora da missa? Esses vitrais me custaram cinco mil dólares e agora você acha que devo sentar-me à mesa daquele porco e ouvir os insultos que ele queria dizer sobre você?
— Ora, Stuart, isso é apenas produto de ignorância —, disse o Padre Houlihan. — Não resta dúvida de que foi uma coisa muito feia quebrarem os vitrais, principalmente os do lado leste, que eram os de que eu mais gostava! Mas isso é apenas ignorância, Stuart, e vai acabar passando.
— Grundy, eu lhe quero muito bem, mas você é um idiota! — havia exclamado Stuart, irritado.
O Padre Houlihan se aborreceu com essa opinião, até porque coincidia com as suas desconfianças.
— Você é danado para insultar os outros, Stuart! Será que não respeita minha batina? Quem é que é idiota?
Stuart quase não viu mudança no trabalho de Angus nas lojas, salvo o fato de que ele se tornara ainda mais rígido, mais frio e mais calado. Não sabia se era imaginação sua, mas notou que, com o correr das semanas, Angus se tornava mais magro, mais pálido e mais sombrio.
Esses escoceses são assim mesmo, pensou Stuart. Podem ser esquartejados ou queimados vivos e se limitam a proferir textos da Bíblia ou palavras vazias. Irritou-se de ainda estar insensatamente interessado pelo jovem homem, com quem sinceramente antipatizava.
No fim do verão de 1860, menos de um ano depois do casamento de Angus, Stuart recebeu um bilhete um pouco incoerente do Padre Houlihan, em que este lhe pedia que fosse até à casa dele.
Quando lá chegou, o Padre Houlihan se mostrou ao mesmo tempo alegre, nervoso e misterioso. Agravou a impaciência de Stuart insistindo em que a irmã servisse à visita chá com um pedaço de bolo. Acompanhou-o, cheio de satisfação. Stuart resignou-se e esperou.
— Ande logo, Grundy! — exclamou, quando não aguentou mais. — Que é que me está escondendo com esse mistério todo? Pare de balançar a cabeça como um boneco e diga logo!
O Padre Houlihan, depois do chá com uma boa fatia de bolo, recostou-se na cadeira e cruzou as mãos sobre a barriga redonda. Olhou Stuart cheio de prazer e exclamou:
— Você não é nem capaz de imaginar de que se trata, Stuart, de tão incrível que é a coisa!
— Diga logo para eu ver se é mesmo.
O Padre Houlihan tirou do prato com extrema habilidade um punhado de migalhas e jogou-as na boca.
— Ninguém se compara a Sarah em matéria de cozinha! Vou dizer a ela que embrulhe uma fatia desse bolo para você levar!
— Diga logo, Grundy. Que é que há?
Mas o padre queria aumentar a sensação da notícia que ia dar e não havia pressa no mundo que pudesse fazê-lo desistir desse prazer. Começou a contar uma história muito comprida a respeito do novo hospital que Stuart havia financiado, o Hospital das Irmãs de Caridade, anexo à Igreja de Nossa Senhora da Boa Esperança. Tinha chegado o equipamento que Stuart comprara e o Dr. Malone, o chefe dos médicos, estava muito satisfeito e se dissera muito grato a Stuart. E a Madre Mary Elizabeth pedira ao padre que agradecesse a Stuart e lhe manifestasse a esperança de que ele pudesse fazer em breve outra visita ao hospital para ver os resultados de sua generosidade.
— E para uma pessoa reservada como ela é, mostrou-se extremamente entusiástica —, disse o Padre Houlihan.
— É muita bondade dela —, disse Stuart. — Mas não foi para falar dela e do velho Malone que você me chamou, foi?
— De certo modo, foi —, disse o irritante padre, sorrindo. Em seguida, não se pôde mais controlar e exclamou: — Stuart, acho que nossas preces estão prestes a ser atendidas!
— E que era que estávamos pedindo em nossas preces? — perguntou Stuart com infinita paciência.
— Não são preces novas, Stuart. São muito antigas. Referem-se a Angus Cauder.
— Angus? Que é que há com aquele camarada?
O Padre Houlihan sentou-se na borda da cadeira com os olhos faiscantes.
— Você nem vai acreditar, Stuart! Angus esteve no hospital pela primeira vez há cerca de um mês e perguntou ao Dr. Malone com o seu jeito tímido se podia assistir a algumas operações e observar tudo!
— Não! — exclamou Stuart, subitamente interessado.
O padre fez repetidos sinais afirmativos, encantado com o interesse de Stuart.
— É verdade, sim. Desde então, tem aparecido no hospital três noites por semana e fica durante uma hora, inclusive aos domingos. Toma emprestado os livros de medicina do Dr. Malone. Já esteve presente a várias operações. Faz visitas aos doentes. E como sabe! O Dr. Malone diz que é espantoso o que ele sabe de medicina. Podia quase começar a clinicar por conta própria. Tem tido várias conversas com os outros médicos e estes custaram a se convencer de que ele não fosse médico também. Creia que não estou exagerando. O Dr. Malone ficou tão impressionado que sugeriu que Angus estudasse com ele, pois poderia em pouco tempo receber o diploma!
— E que foi que Angus disse?
O Padre Houlihan pareceu meio desconcertado e disse:
— Nesse ponto é que as coisas não são tão boas assim, Stuart. Parece que ele ficou com medo ou coisa que o valha. Fosse como fosse, depois disso, passou mais de uma semana sem aparecer no hospital. O Dr. Malone é muito inteligente e não tornou a fazer a sugestão. Apesar disso, permite a Angus examinar os doentes e apresentar timidamente as suas sugestões. O Dr. Malone diz que ele tem muito jeito com os doentes e que as sugestões dele são muito acertadas e revelam profundo conhecimento. Segundo o Dr. Malone, Angus é muito delicado e interessado, especialmente nos casos graves, e basta a sua presença para infundir ânimo e esperança nos doentes. É quase um milagre na opinião do Dr. Malone. Os doentes o procuram e chamam-lhe "Doutor". Dizem que ninguém pode reconhecer Angus dentro do hospital. Parece outro homem, todo interessado, amável e seguro.
— Que coisa! — exclamou Stuart. — Bem, eu tenho notado que ele anda sempre às voltas com uma porção de livros, mas, desde que nossas relações não são lá muito boas, nunca lhe fiz qualquer pergunta. O caso é esse então! Que é que vamos fazer agora, Grundy?
— Nada, Stuart. Nada mesmo. Ele deve achar seu caminho, apenas com a ajuda de Deus. Qualquer coisa que você dissesse só poderia assustá-lo e levá-lo a uma resistência que poderia ser permanente. Deixe-o em paz com Deus. Com Deus, nada se perde.
Stuart tinha sérias dúvidas a esse respeito, mas ficou calado. Começou a pensar, a apresentar sugestões. Que tal se ele, Stuart, fosse falar com Janie? Não, isso não serviria de nada. Falar com Angus era impossível. E Robbie, por quem Stuart havia ganho muito respeito? Não, seria inútil ir falar com Robbie, que desprezava o irmão mais velho e quase nunca era visto em sua companhia.
— Entregue tudo a Deus —, repetia o Padre Houlihan, que tinha, na opinião de Stuart, uma fé um tanto enervante e pouco prática.
Stuart, que era um homem de ação, ficou exasperado com tudo aquilo. Começou a andar na sala de um lado para outro, enquanto o Padre Houlihan o olhava ansiosamente, insistindo em que Angus devia achar o seu caminho com a ajuda de Deus; Qualquer interferência poderia estragar tudo. O segredo devia ser bem guardado. Se os Schnitzels descobrissem que o genro alimentava sonhos particulares e odiosos, poderiam destruir qualquer esperança que se tivesse em relação a Angus. Ninguém devia saber. E o próprio Angus não devia ter conhecimento de que seus amigos sabiam do que ele andava fazendo.
— Que luta deve estar havendo dentro dele! — exclamou sombriamente Stuart.
— Sim, ele deve estar sofrendo, Stuart! Mas qual é o homem que pode resistir ao apelo de Deus? Quando Deus quer, o homem obedece consciente ou inconscientemente.
No dia seguinte, Stuart viu Angus nas lojas e olhou-o com discreta curiosidade. Como estava pálido e magro o pobre-diabo! Mas ninguém poderia ser mais rígido, mais frio e mais altivo do que ele com aquele rosto descarnado e aqueles olhos cinzentos. Aproximou-se dele e perguntou:
— Tem recebido notícias de Laurie, Angus?
— Não, Stuart. E você?
— Recebi uma carta dela no sábado. Diz que está muito contente na escola, em companhia das outras alunas. Está aprendendo com muito afinco francês, alemão e italiano e diz que a voz dela também está melhorando muito. Recebi também uma carta do Professor Morelli, que diz que ela está fazendo progressos notáveis e poderá ir para a Itália e para a Alemanha dentro de alguns meses. Boas notícias para uma pessoa tão jovem, não acha?
— Ela daqui a pouco vai fazer dezesseis anos —, murmurou Angus com os olhos voltados para o chão. Tinha no rosto uma expressão de tristeza e abatimento. Acrescentou: — Ela nunca me escreve. Só escreve para Mamãe e, às vezes, para Robbie querendo saber de Bertie.
— Pois ela procede muito mal com isso —, disse Stuart sem muita habilidade. —• Afinal de contas, foi graças a você que ela teve essa chance. Será que ela não sabe disso?
— Ela só é grata a você, Stuart. E é por você, porque você assim o deseja, que ela está fazendo tudo isso. Deve achar descabida a participação que tive nisso.
Acrescentou então, sem poder suportar o olhar de pena de Stuart e reassumindo a sua velha posição de orgulho e arrogância:
— Não pense que me esqueci de quanto você tem feito por Laurie, Stuart. Algum dia, pagar-lhe-ei tudo. E, por falar nisso, creio que lhe poderei fazer um pagamento no mês que vem. De cem dólares. Depois disso, passarei a fazer pagamentos regulares. Gostaria de que você me apresentasse uma conta completa.
— Ora, vá para o diabo! — exclamou Stuart, dominado de súbita raiva. — Fique com seu maldito dinheiro! Nada tem para me dizer senão insultos?
Olhou para Angus, cujo rosto ficara levemente vermelho.
— Acha então que ela iria aceitar seu dinheiro, sujeitinho presunçoso? Basta ela saber que você está pagando os estudos dela para que Laurie abandone tudo no mesmo instante.
— Mas você não vai dizer nada a ela, não é, Stuart? — perguntou ansiosamente Angus.
— Faria isso no mesmo instante. Está muito bem, faça o que quiser. Não posso impedi-lo. Mas na mesma hora em que receber seu primeiro pagamento, escreverei a Laurie.
E rodou nos calcanhares, deixando Angus sumido em desespero e sofrimento.
CAPÍTULO 43
Mas, apesar das esperanças inocentemente benévolas do Padre Houlihan, as visitas sub-reptícias de Angus ao Hospital das Irmãs de Caridade cessaram de repente, sem qualquer motivo compreensível. O Dr. Malone deu essa notícia com muito pesar.
O Padre Houlihan tinha uma natureza muito impulsiva e apaixonada e não podia suspirar com resignação e dar as costas a um problema, deixando os acontecimentos a cargo de Deus. Embora tivesse uma fé simples e profunda em Deus, tinha a firme convicção de que não havia mal algum em ajudar a Deus por métodos diretos, o que era uma maneira piedosa de chamar a atenção de Deus. Por atos, pela oração, pela concentração e por uma humilde insistência, acreditava firmemente que poderia chamar a atenção de Deus e que, muitas vezes, o Senhor era compelido a fazer milagres diante da simples tenacidade dos suplicantes.
Quando informou Stuart dos seus planos para perturbar a paz do Onipotente, Stuart deu uma gargalhada.
— Grundy, você é um sujeito danado de intrometido! Não me surpreenderia nada que o santo de sua devoção acabasse puxando-lhe as orelhas. Deixe Angus em paz. Como nós dizemos, vamos deixar o demônio ser cozinhado no seu próprio molho.
— Você diz isso porque desconhece a eficácia da oração, Stuart.
— Está bem. Reze então. Quanto a mim, lavei já as mãos em relação àquele camarada. Virou um porco cheio de cobiça. Você devia ver o prazer com que ele pega em dinheiro. Deixe de atormentar seu santo e deixe Angus deslizar calmamente para o inferno.
O Padre Houlihan muitas vezes caminhava desconsoladamente nos arredores do hospital e nos seus corredores, com muita satisfação para Madre Mary Elizabeth. Ela considerava particularmente o padre um homem muito desleixado e não aprovava as suas frequentes e retumbantes risadas. Naquela ocasião, empenhou-se com ela em conversas piedosas, excessivamente sérias, sentindo-se muito intimidado e deprimido pela fé intelectual e severa da freira. Persuadiu-a, porém, a rezar por Angus e, tendo assim recrutado os seus serviços para atormentar o Senhor, sentiu considerável satisfação.
Numa tarde de domingo, o Padre Houlihan fez uma visita ao hospital e teve uma de suas discussões profundamente depressivas com Madre Mary Elizabeth. Sentia, às vezes, que isso era de certo modo um sacrifício e era essa a sua única satisfação. Madre Mary Elizabeth era de uma velha família da Nova Inglaterra e pessoa de grande inteligência e esmagadora erudição. Lia e escrevia fluentemente em seis línguas e como o Padre Houlihan só podia falar com fluência uma língua e era deploravelmente incerto em matéria de latim, salvo nas orações e na celebração da missa, era sempre com desânimo que se retirava da presença dela, julgando-se simplório e ignorante e certo de que ela só podia ter desprezo pela sua escassa ilustração. E desde que ele era enormemente gordo e baixo, ao passo que Madre Mary Elizabeth era aristocraticamente alta e esbelta, o seu sentimento de inferioridade não podia ser atenuado senão em particular quando dava vazão e muitas a eloquentes pragas, pelas quais fazia depois aflita penitência.
Chegou a acreditar que sua fé era muito primitiva, simples e revoltantemente infantil. Madre Mary Elizabeth poderia discorrer com facilidade e eloquência sobre muitos assuntos obscuros e era, além disso, muito mística. O Padre Houlihan via-se envolvido em discussões que tinham uma semelhança precária com o velho problema de saber quantos anjos poderiam dançar na ponta de uma agulha. Desde que se tratava de problemas que estavam inteiramente acima de sua compreensão, ele se afastava da augusta presença da freira sentindo-se tremendamente pueril e indigno.
O Padre Houlihan recordava as freiras simples e ignorantes de sua infância, de rostos bondosos e mãos calosas, e acabava julgando que Madre Mary Elizabeth era um grande erro e isso lhe inspirava sombrias meditações sobre a educação das mulheres. Antipatizava muito com a freira e saía sempre da presença dela magoado e envergonhado.
Por tudo isso, naquele domingo, estava num estado de espírito muito baixo. Tinha-se afastado apenas alguns metros do hospital quando foi quase atropelado por uma carruagem preta com rebrilhantes arreios de prata. Os cavalos pretos refugaram de súbito e ficaram durante alguns momentos com as patas dianteiras erguidas enquanto o cocheiro os puxava pelas rédeas. O Padre Houlihan retirou-se apressadamente para o passeio e apanhou o chapéu que caíra ao chão. Isso foi para ele a gota de água que lhe fez transbordar a paciência. Começou a praguejar de maneira bastante audível e a olhar com má vontade os ocupantes da carruagem.
— Por que não olham por onde andam? — exclamou ele. — Querem mesmo atropelar os outros? Pensam que são donos da rua?
A carruagem não seguiu. O cocheiro sorria desdenhosamente. Mas o homem que estava ao lado da moça na carruagem pareceu muito confuso e perturbado e desceu para o passeio. Com a vermelhidão a cobrir-lhe o rosto, o Padre Houlihan reconheceu Angus Cauder e sorriu desajeitadamente.
— Ah, é você, Angus —, murmurou, ele. — Eu não sabia!
Angus hesitou, mas, depois, tirou o chapéu e disse formalmente:
— Como está, Padre Houlihan? Desculpe, mas desceu do passeio um pouco inesperadamente. Desculpe.
— A culpa foi minha —, disse o padre, olhando para Angus com muita ansiedade.
Não tinha visto Angus desde o casamento dele, havia já um ano. Achou-o triste, pálido e muito magro. Fazia pena de ver, mas estava mais altivo do que nunca e calmamente arrogante. Olhava seu velho amigo com distante polidez e uma secreta aversão.
— Quer que o levemos a algum lugar, Padre? — perguntou Angus apontando para a carruagem com a mão enluvada.
Ora, pensou o Padre Houlihan sentindo o coração dilatar-se, isso pode bem ser uma oportunidade que S. Francisco me dispensa. Mas olhou de novo para a carruagem e perdeu toda a animação.
A moça sustentou o olhar do Padre Houlihan com desprezo e repulsa. Estava ali sentada com sua capa de peles e seu enorme chapéu, como um montão letárgico de deplorável obesidade jovem, com as mãos metidas no regalo. O rosto era de lua cheia, branco como toucinho e com a mesma falta de expressão. Tinha, entretanto, a rude boniteza de uma camponesa ignorante e evidentemente se considerava uma pessoa de grande distinção. Enquanto o Padre Houlihan a olhava com surpresa e pesar, encolheu os ombros ostensivamente, tirou uma das mãos do regalo para mostrar os anéis e virou a cabeça para outro lado, fitando as costas do cocheiro sem dar mais atenção ao padre.
É essa então a mulher do rapaz, pensou o padre. Deus o proteja.
Voltou-se para Angus e disse com um penoso sorriso:
— Muito obrigado, Angus. Mas estou fazendo visitas por aqui. — Teve alguns segundos de hesitação e acrescentou: — Tenho sentido muito sua falta. Por que não aparece um dia para conversarmos um pouco?
Desde que Angus não visitava a casa do padre havia muitos anos, o convite era surpreendente. As sobrancelhas de Angus se arquearam um pouco, mas ele disse apenas:
— Muito obrigado.
Olhou para a esposa. Era evidente que ela desejava ir-se embora. Mas era evidente também que sentia a pressão da mais elementar gentileza e estava pensando em apresentar seu velho amigo a Gretchen. Mas a atitude dela logo o dissuadiu desse intento.
O Padre Houlihan colocou a mão no ombro do rapaz. Angus recuou um pouco, mas se conteve.
— Irá ver-me em breve, Angus? Estou ansioso por isso. Há tanto tempo que não conversamos.
Angus disse então com relutante cerimônia:
— Há muito tempo mesmo. Como vai passando?
— Muito bem, mas a verdade é que não estou ficando mais moço, sabe?
— Bem, foi um prazer vê-lo, Padre Houlihan —, disse Angus sorrindo. Mas o sorriso foi uma pálida contorção sem sentido. Antes de subir de novo para a carruagem, disse: — Lembranças à Sra. O’Keefe, sim?
— Está bem —, murmurou o padre.
Mas a carruagem seguia já pela rua, rebrilhando ao pálido sol de dezembro. O padre ficou a olhá-la, até que a viu dobrar uma esquina.
Continuou a caminhar com o coração pesado e o passo lento e fraco. Os seus lábios se moviam em prece.
Entrou humildemente em sua bela igrejinha e se ajoelhou diante de um dos altares. As paredes lisas e arqueadas da igreja brilhavam como neve. O chão branco era banhado pela luz crepuscular e refletia vagamente os bancos, enquanto as colunas altas e esguias se erguiam como troncos de árvores para o teto belamente cheio de nervuras. Os altares resplandeciam à luz das velas e o ar estava impregnado do aroma das rosas trazidas das estufas de Stuart. Ali havia paz, silêncio e sagrada meditação, aqui e ali interrompidos por uma tosse ou um arrastar de pés.
O Padre Houlihan, cujo espírito nunca era profundo, nem tortuoso, e que não tinha em bom conceito nem a dialética, nem a obscuridade, acreditava, como Emerson, na "farinha na barrica; o leite na panela; a balada na rua; as notícias do navio; o relance dos olhos; a forma e o comportamento do corpo; mostrem-me a razão essencial dessas coisas e o mundo não é mais um depósito monótono e confuso de coisas, mas passa a ter forma e ordem; não há coisas ínfimas, não há enigmas, mas um plano une e anima os mais altos pináculos e as mais baixas covas". Era essa sua crença. Os filósofos que discutissem suas obscuras e sábias filosofias. Os padres cultos podiam discutir os assuntos dialéticos até se perderem numa nuvem de palavras e ficarem com os pés muito acima da terra comum. Um milhão de anjos podiam dançar na ponta das agulhas na sua essência incógnita. Deus podia ser discutido, comentado, dissecado até tornar-se tênue e dissipado para finalmente desaparecer e explodir em mil fragmentos intangíveis e deixar de existir. Isso não interessava ao Padre Houlihan que só queria saber era de "farinha na barrica e o leite na panela" que tudo explicavam.
Mas naquele momento, com súbita confusão, as coisas deixaram de ser tão simples.
Pela primeira vez na vida, o Padre Houlihan teve a noção horrível e sinistra de que o mundo era complicado demais para o homem e talvez para Deus também. O espírito inocente do padre foi invadido por pensamentos terríveis, que muito o afligiam. Via-se num universo cheio de seres estranhos, entre os quais não podia descobrir um só rosto conhecido. Aqueles poucos momentos com Angus tinham sido como uma porta para uma sala confortável, repleta de afeição e cordialidade. Mas a porta se abrira de repente, mostrando-lhe a interminável e desolada região que havia além dela e de cuja existência ele nunca havia suspeitado. Estava no limiar, atordoado e trêmulo, sentindo os ventos tempestuosos a açoitarem-lhe o rosto e vendo estrelas que não eram as estrelas que ele conhecia. Não podia explicar essas coisas. Podia apenas sofrer, temer e assombrar-se.
Tinha pensado que a alma humana fosse tão despida de complicações quanto a sua, ansiosa pela luz e pronta a abandonar as suas penas ante a palavra de um Deus que esperava, disposta a eximir-se de pecados e erros se lhe mostrassem o caminho. Mas via naquela hora que a alma humana, nos seus aspectos desconhecidos e terríveis, era como a lua. Mostrava ao mundo um lado iluminado artificialmente pelas circunstâncias, exigências e convenções, enquanto o lado escuro sugeria intensamente o pavor e o mistério que o cercavam, mas nunca era avistado.
"A farinha na barrica, o leite na panela." Não, não era mais possível uma explicação tão bondosa e chã para o mundo dos homens e para o céu de Deus. Ao mesmo tempo que sofria, o Padre Houlihan sentia uma tremenda humilhação e desespero por ter sido tão inocente. Talvez Deus tivesse desprezo também pela filosofia elementar em que até então acreditara.
Estava tão cheio de dor e de angústia que não podia rezar. Com as mãos humildemente postas, continuou ajoelhado diante do altar, deixando que o inundasse a luz eterna que vinha dele, remota como a luz das últimas estrelas. De repente, a sua visão se desfez, deixando-lhe os olhos molhados.
Durante muitos anos, tinha procurado a explicação das guerras, das crueldades, das loucuras, das traições e da insensibilidade de coração. Tinha visto todas essas coisas e elas o atormentavam. Mas tinha julgado que fossem erros, cometidos apenas pelos cegos e desorientados e ignorantes e, ao lado da raiva que lhe provocavam, tinha havido o desejo ansioso de ensinar e de guiar. Sei agora, pensava ele, que tenho sido um idiota. Há na alma humana terríveis abismos e regiões pavorosas, de que nunca soube e em que nunca acreditei.
Um grande terror arrebatou o padre. Tudo o que o cercava era estranho. Exclamou em voz alta:
— Meu Deus! Meu Deus!
A sua voz era um grito de agonia e as poucas pessoas que estavam na igreja levaram um susto e voltaram os olhos para ele na penumbra.
CAPÍTULO 44
Sem saber do insondável desespero a que tinha lançado seu velho e inocente amigo, ainda que inadvertidamente, Angus continuou na carruagem ao lado de sua esposa, que em solteira se chamava Gretchen Schnitzel. Ia ao lado dela em silêncio, tão imóvel como uma estátua, a olhar fixamente para a frente. Tão bem disciplinados eram os seus pensamentos naqueles últimos anos que quase nunca se via mais atormentado pela sua velha inquietação espiritual, pelo seu velho abatimento e terror. Quando sentia as trevas crescerem na sua direção como uma invisível e temível maré, afastava dela a consciência resoluta e severamente. Tinha agora um meio de incutir em seu espírito pensamentos claros e comuns, como se acendem as lâmpadas de uma casa quando a terra rola inexoravelmente para a noite desconhecida e apavorante. E, como se correm as cortinas das janelas para excluir o frio e a escuridão da noite, Angus corria as cortinas da disciplina sobre os assomos do seu subconsciente.
Uma das coisas que ele não se permitia era fazer reflexões sobre sua mulher. Estava ali; casara-se com ela; era bastante. Ela lhe pusera nas mãos uma fortuna em potencial. Morava com ela na casa dos sogros na Rua Franklin e, embora a casa fosse repulsiva e muito úmida, era pelo menos bem confortável. O Sr. e a Sra. Schnitzel eram cansativos em suas conversas e rudes de maneiras, mas eram pessoas dignas e ele esperava que cada vez tivessem mais consideração por ele.
Era já subgerente das lojas e recebia cinquenta dólares por semana. Desse dinheiro, tirava escrupulosamente vinte e cinco dólares por semana para pagar sua "pensão" e a de Gretchen na mansão Schnitzel. A princípio, o sogro tinha resmungado uma recusa, mas, quando Angus insistira, o proprietário dos matadouros tinha-o olhado com um respeito obtuso.
Nunca perguntava a si mesmo se gostava ou não de sua mulher. Dava a Gretchen delicadeza e respeito. Não queria jamais saber se ela era inteligente, tinha distinção ou era capaz de ter ideias próprias ou que espécie de criatura ela era. Eram gentis um com o outro e manifestamente indiferentes.
Janie podia interessar-se pelas intimidades que se desenrolavam por trás da porta daquele quarto enorme, vermelho e completamente horroroso. Conhecendo e amando a vida com todo o seu entusiasmo, Janie poderia ter ficado espantada. Na verdade, a paixão, no seu sentido mais exultante, com sua intensa consumação, seu amor, seu ardor e sua ternura, não desempenhava papel algum na atmosfera conjugal daquele quarto. Só se pode dizer é que Angus e Gretchen se uniam, com tão pouco abandono e delírio quanto é possível imaginar e que eram apenas suficientes para que o ato fosse executado.
Angus passara a ter uma paixão apenas e com a ideia fixa de seu espírito disciplinado e estéril tinha dirigido o desejo árido que ainda o possuía para essa paixão. E essa paixão era o dinheiro. Mas não o desejava da mesma maneira de Stuart, pelo prazer, pela segurança e pela paz de espírito que podia trazer. Desejava-o por ele mesmo, como princípio e fim.
O espírito de Angus era um castelo de torres sem ventilação e sem sol, ordenado, silencioso e desabitado, sem ecos nos salões altaneiros, nem suspiros nos corredores vários. O que restava de sua mocidade estava acorrentado em negras masmorras sob o chão compacto de pedra que não deixava passar qualquer gemido que ainda dali partisse.
Mas havia um quarto, cuja porta, como a do quarto do Barba Azul, nunca se abria e nele estava sua irmã Laurie. Ele não tinha coragem de colocar a chave na fechadura, nem de abrir a porta. Não tinha coragem de vê-la, reconstituída pela memória. Tinha, conforme dizia pomposamente a si mesmo, "cumprido o seu dever" para com ela e assegurara o seu futuro. Fechava então a porta sobre os olhos e a voz de Laurie.
Em relação às outras pessoas de seu conhecimento e de sua família, Angus não chegava a ter nem uma atitude tão positiva. Considerava Stuart um imbecil libertino e rude, privado de moral e de decência, um homem que não devia ser levado a sério, que só merecia desprezo e de quem era preciso sempre desconfiar. Não obstante, ainda temia Stuart, embora negasse isso. Tinha igual desprezo por Sam e desconfiava ainda mais dele do que do primo, embora reconhecesse a capacidade, a cautela e o espírito de economia de Sam. Acabaria por afastar a ambos do Empório Supremo de Grandeville, não com espírito de vingança, mas com uma indiferença quase impessoal.
Angus sentia por Bertie apenas um frio e remoto desgosto. Representava uma coisa indescritivelmente indecente e desprezível, que não merecia a atenção de qualquer homem inteligente e civilizado. Tanto quanto isso interessava a Angus, Bertie já estava morto ou à morte em consequência de sua corrupção e ele desviava resolutamente os olhos desse espetáculo odioso. Desejava apenas que Bertie nunca impusesse a sua existência à consciência de seu irmão mais velho e, enquanto isso acontecesse, Angus lhe faria a honra de esquecê-lo.
Robbie era um pouco diferente e isso de certo modo enfurecia Angus. Por mais que ele procurasse não tomar conhecimento do irmão mais moço, por mais que o encarasse com gelado desinteresse, a personalidade de Robbie se lhe impunha desagradavelmente. Tinha sempre a enervante desconfiança de que Robbie se divertia com ele e não o considerava uma pessoa de real importância. Sentia que Robbie o analisava com científica objetividade, com uma curiosidade puramente intelectual. Angus sentia que Robbie o via como um "espécime", um objeto, um fenômeno comum, sem qualquer laço pessoal com ele.
Em resumo, Robbie não se impressionava com Angus.
Angus não se sentia humilhado. Sentia apenas desdém pelo fato de que o irmão fosse tão obtuso e pouco observador. Julgava que a frieza e a correção de Robbie eram não produto de uma disciplina pessoal, mas manifestações naturais do seu temperamento. Procurava convencer-se de que desprezava Robbie e de que o irmão não passava de um verme, calmo e despreocupado em meio aos acontecimentos. Quando Robbie dissera certa vez em conversa que o dinheiro era apenas um meio para um fim e que, quando a pessoa não desejava particularmente fim algum, o dinheiro perdia todo e qualquer valor, Angus sentira uma espécie de exultação gelada ao ver assim confirmado o desdém que tinha pelo irmão. O fato de que Robbie tivesse sido admitido ao foro local e de que o velho Juiz Taylor proclamasse entusiasticamente que o jovem homem subiria em breve à magistratura quase não impressionara Angus. Algum dia, pensava ele compenetradamente, poderia dar a Robbie o lugar de consultor jurídico das lojas. Isso lhe dava um sentimento muito grande de virtude e magnanimidade.
Era, portanto, uma estátua de gelo que fazia companhia a Gretchen na carruagem naquele dia azul de outubro. Estava rígido como uma barra de aço e tão intransigente e inerte quanto uma pedra. Tinha esquecido por completo a existência da mulher. Naquele momento, apesar de sua imobilidade, os cativos nas masmorras tinham começado a agitar-se e a gemer. Apaziguou-os. Calaram-se, mas ele continuou a sentir o tristonho olhar dos prisioneiros. Uma débil luz se mostrava por trás da porta que escondia Laurie.
De repente, foi acometido de um curioso fenômeno físico. Havia mais ou menos um ano, quando era provocado daquela maneira, uma dor terrível lhe atravessava às vezes a cabeça, intermitentemente, com intervalos de cerca de dez segundos. Começava na têmpora direita, corria pela parte anterior do crânio como uma faca fulgurante e parecia ir sair na têmpora esquerda. As primeiras dores eram suportáveis, mas a quinta, a sexta e as que se seguiam estavam quase acima da sua capacidade de resistência. Cerrava os punhos, fechava os olhos, apertava os dentes e esperava num ofegante silêncio, sem uma só exclamação mesmo quando estava só. Na verdade, a dor era tão intensa que não permitia um grito abafado ou um movimento sequer. A última dor parecia dilacerar-lhe o cérebro em fragmentos luminosos como um ovo esmagado e ele sentia por todo o corpo impulsos trêmulos de dissolução. Por fim, abria os olhos e via um mundo fluido, irreal e destorcido, ao mesmo tempo que o rosto estava lívido e banhado de suor, o coração disparava e a respiração era entrecortada.
Tinha ido consultar um médico, que lhe receitara óculos para "ver de perto", sono, repouso e cuidado com a alimentação. Nada disso tinha dado resultado.
Durante esses acessos, a consciência se afastava como se ele tivesse morrido. Desse modo, só quando abriu os olhos e viu as ancas dos cavalos e o céu vesperal de outubro e quando disfarçadamente enxugou com o lenço o suor do rosto, tomou conhecimento de que Gretchen lhe estava falando e olhando para ele.
— Está de novo com dor de cabeça, Angus? Que coisa! Parece que as pílulas do Dr. Schultz já deviam ter dado resultado!
Angus respirou fundo e aprumou o corpo.
— Nada dá resultado, meu amor. Mas o Dr. Schultz me garantiu que não é nada de grave. Apenas uma manifestação de meu temperamento nervoso.
— Pois você não me parece um homem nervoso. E há uma coisa que eu acho muito estranha. Você quase que só tem esses ataques quando nós estamos assim juntos e não há absolutamente motivo para você ficar nervoso. Será que sou eu que o aborreço, Angus?
— Que tolice, Gretchen! — replicou ele com magnanimidade. Havia ainda um tremor violento no seu sangue. Mas ele sabia que isso passaria dentro em pouco. — Não há razão evidentemente para esses acessos. Vão acabar passando.
Ela olhou sem nenhuma simpatia para o rosto pálido e para os olhos muito parados do marido. Disse então com desdém, voltando os pensamentos para outro assunto.
— Aquele padre horroroso! Como teve coragem de falar com você, Angus? Parecia um mendigo!
— Foi muito atrevimento —, murmurou Angus. Tirou do bolso o relógio de ouro, presente do sogro, e exclamou: — Quase cinco horas, Gretchen! Acho que temos de voltar. O chá hoje é às seis horas, não se esqueça.
Deu uma ordem ao cocheiro que tocou o chapéu com o chicote e deu a volta com a carruagem.
Gretchen tinha começado a sorrir com satisfação.
— Papai me disse que na última reunião dos "Nada Sabe" foi aprovada uma resolução que coloca fora da lei a Igreja Católica Romana. Como isso será agradável e como é necessário! Mas Papai me disse que você não foi à reunião, Angus.
— Já se esqueceu, minha cara? Eu estava nas lojas trabalhando na escrita.
— Afinal de contas —, continuou Gretchen —, todos devem compreender que este é realmente um país alemão!
Angus olhou para ela. O coração que estava começando a acalmar-se bateu de novo depressa e o sangue lhe subiu ao rosto. Disse então:
— Sou então um homem muito mal informado. Sempre soube que os fundadores dos Estados Unidos foram ingleses com alguns escoceses e irlandeses. Talvez, Gretchen, você ache errado que se fale inglês aqui e que as leis dos Estados Unidos se baseiem no direito inglês.
— Ora, os ingleses são na realidade alemães. E não me consta que houvesse muitos escoceses e irlandeses, que são criaturas odiosas!
Mas Angus sentiu-se de repente exausto. Encolheu-se no fundo da carruagem e nada mais disse até chegarem à hedionda mansão da Rua Franklin.
CAPÍTULO 45
O hall da casa de Otto Schnitzel era alto, sombrio e cavernoso, execravelmente decorado com tapetes vermelhos, cadeiras douradas e de pelúcia tortuosamente trabalhadas e reposteiros escarlates. Cheirava fortemente a cera de abelhas e a friagem, mesmo naquela tarde quente de outubro. Uma criada alemã tomou o capote, o chapéu e a bengala de Angus e ajudou Gretchen a tirar a capa e o chapéu. Anunciou então que "Herr Schnitzel e Frau Schnitzel" estavam esperando a filha e seu marido no salão e que o jantar seria servido dentro de uma hora.
Angus agradeceu-lhe gravemente. Olhou para a mulher e viu-lhe o grande rosto branco rebrilhar no escuro. O alto de sua cabeça com os cabelos da cor de linho áspero só chegava à altura do queixo dele. O corpo era gordo e desajeitado e as grandes mãos rechonchudas estavam pesadas de anéis. O vestido de veludo marrom com os enormes arcos da saia-balão lhe acentuava a obesidade e o corpo disforme. A cabeça era plantada quase diretamente nos ombros roliços e o pescoço era indicado apenas por uma pequena gola de renda presa por um broche de camafeu orlado de pérolas. Acima da gola havia mais que uma sugestão de um avantajado queixo duplo. O busto era, como os ombros, enorme e amatronado e caía pelo próprio peso. Os braços quase faziam estourar o veludo do vestido. Quando ela passava, o soalho rangia, embora fosse sólido e resistente.
Olhou para Angus com o seu jeito cansado e belicoso, que era também indolentemente desafiador.
— Vamos para onde estão Mamãe e Papai, Angus? — perguntou ela no tom de quem dava uma ordem.
Encaminhou-se para as portas que separavam o hall do salão. Angus, seguindo-a, parecia cadavérico e rígido no seu terno preto, pairando acima dela como uma árvore congelada, com o seu passo lento e silencioso.
O longo salão estreito se estendia por todo o comprimento da casa e era aberto em janelas de grande altura e estreitas como seteiras, envoltas nas ubíquas cortinas vermelhas. Um tapete florido de cores esmaecidas cobria o chão. Os pesados móveis de nogueira preta eram estofados de crina e de pelúcia lilás ou escarlate. Mesas pesadas com panos de veludo de franjas douradas sustentavam lâmpadas de cristal com bases complicadas de ouro ou prata. O fogo brilhava na lareira de mármore preto por trás de um guarda-fogo de metal dourado e polido que refletia o salão horrendo e opressivo.
Otto Schnitzel, dono de matadouros e cidadão respeitável e rico burguês, estava sentado diante do fogo, lendo o jornal local, The Commercial, e fazendo de vez em quando comentários mal-humorados para a mulher numa voz áspera e zangada. Era um homem baixo e extremamente gordo, com uma grande calva e orelhas vermelhas e protuberantes. Era de esperar naquela cabeça quadrada um rosto em grande escala. Mas o rosto era excepcionalmente pequeno, com as feições rudes e pequenas muito avermelhadas, os lábios comprimidos numa expressão cruel e desconfiada e os pequenos olhos azul-claros a brilhar antipaticamente por trás dos óculos grossos, que viviam a escorregar pelo nariz curto, gordo e arrebitado.
Frau Schnitzel parecia gigantesca em comparação com ele. Tinha um aspecto abrutalhado e impiedoso, arrogante e insensível.
Quando Angus e Gretchen entraram, a Sra. Schnitzel olhou-os com o seu ar habitual dominador e desconfiado e disse irritadamente:
— Estão com meia hora de atraso. Onde estavam?
O Sr. Schnitzel largou o jornal e comentou, arregalando os olhos:
— Atrasados.
As barbatanas do espartilho de Gretchen estalaram quando ela se curvou para beijar a mãe. Teve um risinho desagradável e disse com má vontade:
— A culpa não foi minha, cara Mamãe. Mas aquele velho padre horrível, Sr. Houlihan, fez Angus parar e conversar demoradamente com ele. Quase o atropelamos. Foi uma pena que isso não tivesse acontecido.
O Sr. Schnitzel e sua afável mulher olharam acusadoramente para Angus e ficaram esperando num silêncio exasperado as explicações e as desculpas que ele tinha para dar.
Mas Angus olhou para eles com cerimoniosa reserva e com altivez.
— Sinto muito que nos tivéssemos atrasado —, disse ele. — O Padre Houlihan devia estar preocupado com alguma coisa e quis atravessar a rua à frente de nossa carruagem. Fui forçado a pedir-lhe desculpas, embora a culpa fosse dele. Tivemos uma breve conversa e, depois, seguimos nosso caminho.
O Sr. Schnitzel resmungou alguma coisa e plantou os pés no jornal caído ao chão. A Sra. Schnitzel encolheu os ombros e perguntou maliciosamente:
— Ele tentou convertê-lo, Angus?
Angus apertou os lábios e olhou para a sogra com uma frieza que muitas vezes a fazia recuar.
— O Padre Houlihan nunca tentou converter-me. Ele é amigo íntimo de Stuart e foi muito bom para mim quando eu era garoto.
A Sra. Schnitzel riu desdenhosamente e sacudiu a cabeça. Mas o marido disse rispidamente:
— Foi bom para você, hem? Essa gente vive procurando converter os outros. Não quero nada disso em minha família!
Tenho de controlar-me, pensou Angus. O Padre Houlihan nada significa para mim. Nem ao menos gosto dele. Mas alguma coisa começou a latejar-lhe no pescoço e um fio de dor lhe chegou às têmporas. Disse desdenhosamente:
— Não me parece que eu já tenha demonstrado alguma simpatia pelo catolicismo.
— Ele pediu que você fosse à casa dele, Angus —, disse Gretchen, aproximando-se da mãe. Os pais dela, ouvindo isso, olharam Angus cheios de acusação e cautela.
— É verdade —, disse ele, conservando-se a alguma distância deles e olhando firmemente para a frente.
— Pretende ir? — perguntou o Sr. Schnitzel num tom de intimidação.
Angus voltou lentamente os olhos para ele e pareceu meditar por longo tempo, durante o qual o Sr. Schnitzel ficou rubro de raiva contida. Por fim, Angus disse:
— Não, acho que não. Pode ser que vá. Mas, no momento, é coisa que não penso fazer.
Como sempre, o teuto se deixou intimidar por uma resistência fria e firme. O Sr. Schnitzel, depois de um olhar furibundo para o genro, baixou a vista e murmurou:
— Está bem. Não vamos pensar mais nisso.
— Café, Angus? — perguntou com precipitação a afável Sra. Schnitzel.
— Por favor —, disse Angus.
A Sra. Schnitzel começou a mexer nas xícaras, enquanto Gretchen colocava açúcar e creme no café. O Sr. Schnitzel empurrou para perto do genro um prato de bolinhos. Respeitava Angus. Admirava os seus modos distintos e a sua integridade. Temia também o seu olhar frio e a sua resistência à intimidação. Sorriu para ele e disse:
— Acabo de ler no Commercial que a festa de noivado de seu irmão Robbie com Alice Cummings será realizada com um jantar na casa do Prefeito no mês que vem —, disse ele num tom pesadamente amistoso. — Muito bom para ele. Há dinheiro ali. Quando será o casamento?
— Não tenho certeza, mas acho que será em novembro. Por falar nisso, soube que Robbie será nomeado juiz substituto em janeiro. Foi o que nos informou o Juiz Taylor. Depois, no ano que vem, quando o Juiz Taylor se aposentar, ele se candidatará ao cargo.
— Ótimo, ótimo —, disse o Sr. Schnitzel.
Mas a Sra. Schnitzel não se mostrou satisfeita e disse:
— Mas ele é muito moço, moço demais. E nada tem de simpático. É muito presunçoso apesar de seu jeito calmo. Desculpe, Angus, mas nunca simpatizei com ele. Não tem traquejo social e nem procura ser delicado. Quanto a Alice Cummings, é uma mocinha muito sem graça, muito artificial e excessivamente doce. Acho que essa doçura é pura hipocrisia.
Angus disse calmamente:
— A Srta. Cummings é considerada um excelente partido e todos acham que Robbie é muito feliz em consegui-la.
— Nunca votei em Cummings —, disse o Sr. Schnitzel belicosamente, lançando de novo um olhar provocador para Angus. — Na minha opinião, é muito maneiroso e eu sempre o julguei um mentiroso. Por exemplo, a biblioteca que ele abriu para o público. Imagine! As mãos sujas de trabalhadores pegando em livros. Para que querem livros esses porcos? Basta que façam bem o seu trabalho e depois vão para os seus barracos onde ninguém mais os veja! É o que eu acho e assim é que deve ser. Livros para porcos e cachorros! Pura tolice! Tudo isso é coisa de Cummings com suas ideias absurdas de educação pública. E seu primo, Stuart Coleman, que deu dois mil dólares para a biblioteca e foi escolhido para a diretoria, apesar de suas dívidas escandalosas!
— Escandalosas mesmo! — exclamou a Sra. Schnitzel.
— É anarquismo isso! — exclamou o Sr. Schnitzel, com um violento repelão na cadeira.
— E um ato anticristão! — disse Gretchen estridentemente.
Angus olhou para todos com o rosto muito pálido e parado.
Tenho de controlar-me, pensou ele. Disse então em voz baixa:
— Não tenho condições para julgar da conveniência da biblioteca.
O Sr. Schnitzel estava quase fora de si, com o rosto apoplético. Sacudiu o dedo gordo na direção de Angus e gritou:
— Cummings não vale nada! E seu Stuart não é melhor! Ele me acusa de alojar meus trabalhadores em chiqueiros! São meus barracos, não são? É minha terra perto dos matadouros, não é? Isto é um país livre ou não é? Agitadores miseráveis! Chamando-me aos tribunais para forçar-me a limpar o que é meu quando o gado, de qualquer maneira, está satisfeito com as coisas como são!
— É sempre assim quando as pessoas se misturam com judeus,— disse a Sra. Schnitzel com alguma obscuridade.
— E vai fazer a limpeza, Sr. Schnitzel? — perguntou Angus, sentindo a dor queimar-lhe a testa.
O Sr. Schnitzel ficou em silêncio durante alguns momentos, esparramado na cadeira como um montão de carne enfurecida.
— Só quando tiverem um mandado judicial —, disse por fim.
— Nunca antes.
— Vão ter. Robbie está preparando tudo —, informou Angus com um sorriso frio.
O Sr. Schnitzel cerrou os punhos gordos e disse um nome feio. Gretchen levou as mãos aos ouvidos e riu. A Sra. Schnitzel deu um grito.
— Vou lutar! — Vou lutar com a ajuda de Deus! — gritava o Sr. Schnitzel agitando no ar os punhos cerrados. — Vamos ver quem tem mais prestígio e mais dinheiro!
Angus tomou um gole de café e disse:
— Tem toda a razão. Eu o ajudarei na luta, se me for possível.
— Ótimo, ótimo. Você tem bom senso, Angus. Afinal de contas, um dia você terá parte também naquelas propriedades.
Angus fez um sinal de aquiescência com dignidade. A Sra. Schnitzel olhou-o com aprovação e Gretchen lhe deu um olhar quase de carinho.
— Não posso ver qualquer sentido em tentar elevar as pessoas comuns acima de seus instintos e de sua natureza —, disse Angus, gravemente. — É uma insensatez.
O Sr. Schnitzel teve outro pensamento. Olhou para o jornal a seus pés e pisou-o como se fosse uma coisa viva.
— E outra coisa. Parece que aquele sujeito do interior, o tal Abraham Lincoln, será o próximo presidente. Sou inteiramente desfavorável a isso. Acho um desaforo um homem do povo aspirar à presidência! Isso em minha terra nunca seria permitido. Nós lá temos respeito à família, à raça e à tradição. Se ele for eleito, a guerra com o Sul será inevitável. Os homens do Sul são cavalheiros e não vão tolerar uma coisa dessas!
— Talvez ele seja derrotado —, disse Angus. — Não posso crer que o povo americano seja tão destituído de senso e de espírito de proporção para eleger para a presidência um lavrador e advogado do interior.
O Sr. Schnitzel estava agitado.
— Esses negros! Fiquem sabendo que ainda vamos ter muitos problemas com esses negros!
— É este horrível país! — exclamou a Sra. Schnitzel. — Aqui não se dá atenção ao sangue, à raça e à educação. É um país de imbecis e de rústicos!
Gretchen emitiu o seu risinho ácido e olhou maliciosamente para Angus.
— Sabe o que foi que Angus disse hoje, Papai? Disse que este é um país inglês.
— Tolice! — exclamou o Sr. Schnitzel dando um murro no braço da poltrona. — Temos muitos alemães aqui também! É virão mais, muito mais! Vamos dar jeito neste país, fazendo dele terra alemã e ensinando ao povo boas maneiras e bom governo. É o destino! Nada pode impedir que isso aconteça! Acabaremos com toda essa confusão e colocaremos todo o mundo em seu lugar!
Angus acabou de tomar o café e limpou cuidadosamente os dedos no guardanapo.
— Teremos este maldito país nas palmas das mãos! — exclamou o Sr. Schnitzel ainda mais violentamente.
— Cuidado com seu coração, Otto —, disse a Sra. Schnitzel, com um olhar ameaçador para Angus.
Angus perguntou calmamente:
— Sr. Schnitzel, sua família na Alemanha pertencia à classe militar? Aos Junkers talvez? Ou à velha nobreza alemã?
O Sr. Schnitzel resfolegou, abriu a boca e tornou a fechá-la. O seu olhar para Angus foi homicida.
Angus olhou-o com o seu sorriso breve e frio. Virou-se para Gretchen.
— Creio que está na hora de vestir-se para o jantar, meu amor.
— Outra coisa —, disse a Sra. Schnitzel. — Ninguém se vai opor à construção desse colégio católico na Rua Principal? Canisius, acho que é assim que se vai chamar. Será que ninguém tem amor a este país para impedir uma coisa assim?
— E onde foi que arranjaram o dinheiro? — exclamou o Sr. Schnitzel. — Tiraram-no da boca do povo que passa fome! Conseguiram-no com as suas manobras criminosas! E soube que seu parente, o honrado Sr. Coleman, vai dar cinco mil dólares! E também o amigo judeu dele, Berkowitz, e Cummings, se não estou enganado.
Angus se levantou e disse com calma autoridade:
— Vamos, Gretchen. — Voltou-se para o Sr. Schnitzel. — Nada sei a respeito do colégio. Mas compraram o terreno e o resto não é de minha conta. Se acha que pode impedir a construção, tem toda a liberdade de assim proceder. Mas, como o Sr. mesmo disse, este é um país livre.
Gretchen saiu do salão com ele sem muita vontade, depois de um sorriso de desculpa para os pais.
A Sra. Schnitzel se acomodou na sua poltrona e disse:
— Muitas vezes fico sem saber quais são os verdadeiros sentimentos de Angus. É quase sempre muito cáustico e não respeita os seus sentimentos, Otto.
Mas o Sr. Schnitzel, que na realidade gostava muito de Angus e tinha orgulho dele, disse desdenhosamente:
— Que é que vocês, mulheres, entendem dessas coisas? Eu conheço Angus. Sejam quais forem as suas ideias, ele nunca permitirá que isso o atrapalhe.
CAPÍTULO 46
Se alguém fosse dizer a Stuart Coleman, felizmente ignorante de tudo, quais eram os pensamentos que se formavam metodicamente no espírito de Angus Cauder, seu parente e subordinado, ficaria espantado e, em seguida, estouraria em incrédulas gargalhadas. É verdade que ele sentia uma zangada inquietação na presença de Angus e traduzia isso num tratamento desdenhoso, tendo o cuidado de exagerar um desprezo que dificilmente sentia e deixando deliberadamente de tomar conhecimento dele nas ocasiões próprias. "O rapaz perdeu todas as emoções menos o amor ao dinheiro", dizia ele consigo mesmo, cheio de aborrecimento. "Ainda há poucos anos, era humano. Agora, é apenas uma imagem de pedra de si mesmo."
Mas o fato de que ele, Stuart, e Sam Berkowitz estivessem já postos de lado como inferiores no espírito de Angus teria parecido a Stuart o sonho de um demente. Poderia ter tido um indício desses sentimentos se tivesse visto o sorriso levemente irônico de Angus quando olhava os livros de escrituração e via as grandes quantias que Stuart retirava em adiantamento sobre lucros futuros.
Poderia também ter sentido alguma inquietação se soubesse que Joshua Allstairs e Angus tinham-se tornado amigos discretos e distantes e que Joshua fazia questão de ter longas e derramadas conversas com seu cliente sobre assuntos que só de leve se referiam às lojas e às suas contas e dívidas. Se soubesse, teria exclamado: "Onde estão a lealdade e a gratidão desse jovem patife?" Mas Stuart nunca teria compreendido um homem que não via qualquer deslealdade ou ingratidão nas suas tramas, mas apenas retidão. Nunca poderia ter compreendido quem acreditava que um homem de virtude devia dispor do poder de destruir e alijar aqueles que não tinham "virtude" e estavam, portanto, fora do âmbito da dignidade como seres humanos e fora da consideração, da tolerância e da justiça de homens "melhores".
......
De fato, Angus acreditava que os favoritos do céu eram destinados a ordenar os assuntos daqueles que não gozavam da aprovação de Deus e dirigi-los arbitrariamente sem piedade, sem dúvida e sem indulgência. Homens mais sábios poderiam ter dito a Stuart que se poderia achar alguma cordialidade e generosidade em homens que eram abertamente canalhas, mas que não se encontraria senão inflexibilidade, crueldade e dureza de coração naqueles que acreditavam que tinham a aprovação de Deus, o direito e a justiça, para as suas opressões e crimes contra seus semelhantes.
Infelizmente, o ingênuo Stuart sabia apenas que o seu jovem subgerente era muito competente e inteligente. Stuart, que detestava dar ordens, delegava esse dever desagradável a Angus, que tinha inspirado aos caixeiros e aos outros empregados ódio e profundo respeito. Um certo ambiente de displicência e entusiasmo havia desaparecido das lojas, fenômeno que afligia o observador Sam Berkowitz, sendo substituído por uma atenção rigorosa ao trabalho e uma operosidade automática. Angus era temido, ainda que abominado, e, em consequência disso, a ordem predominava, as contas eram rigorosamente feitas e ninguém merecia confiança. Em consequência disso, a amizade desaparecera entre os empregados e cada qual procurava ganhar vantagens para promoção às custas dos companheiros que dantes só lhe mereciam camaradagem e simpatia. Angus tinha introduzido nas lojas o vírus da desconfiança e da exigência ambiciosa e, embora a disciplina e a ordem reinassem, a luz da devoção se apagara para sempre e fora substituída pela cobiça.
Sam via tudo isso. Vivia deprimido e triste. Mas sabia que não adiantaria nada conversar com Stuart, que não compreenderia e ainda o olharia com indignação.
Angus era pródigo tanto nos prêmios quanto nas punições. E incentivava a espionagem. Tinha agora o seu escritório, pequeno, arrumado e austero nos fundos da terceira loja. Quase todas as decisões relativas ao pessoal das lojas eram tomadas ali sem que Stuart ou Sam Berkowitz fossem consultados.
— Há agora uma certa falsidade nas lojas, apesar do desejo superficial de agradar e servir —, dissera a Sra. Cummings a seu marido, o Prefeito. — Não posso explicar bem o que há. Os caixeiros continuam a ser atenciosos e amáveis, solícitos em servir. Não posso explicar, Frank, mas os sorrisos desaparecem no instante em que a gente dá as costas e o freguês não é mais um amigo, a quem é um prazer atender, mas apenas uma fonte de dinheiro. E o pior é que eu acho que o pobre Stuart não sabe de nada disso.
— Mas você tem de reconhecer que não há mais uma certa displicência e morosidade —, respondera o marido. — Foi você mesma, quem disse. O serviço é pronto e eficiente.
— É verdade, Frank. Mas falta uma coisa mais valiosa. Dantes, era um prazer fazer compras ali. Encontravam-se as amigas em volta dos balcões e podia-se levar horas a conversar nas cadeiras, discutindo os artigos que queríamos comprar. Agora, somos servidas com rapidez e, se a gente pára a fim de conversar, as sedas são retiradas e as cadeiras são ostensivamente arrumadas, dando a impressão de que não se tem mais nada que fazer ali, que a nossa ausência seria bem vista e que a única coisa que interessa é abrirmos a bolsa para pagar.
— Bem, tudo isso é mais comercial, Alicia —, disse o Sr. Cummings sem muita convicção.
— Talvez, mas é muito menos agradável. Nada mudou nas lojas a não ser a boa vontade e a amabilidade. E eu, pessoalmente, gosto mais disso do que de um serviço rápido e eficiente.
Stuart, que era uma alma cordial, via apenas que suas freguesas se mostravam ansiosas por terminar as compras e sair quando ele as encontrava e olhavam-no quase como se pedissem desculpas pela sua demora. Isso o deixava apreensivo, mas ele continuava a não compreender. Via que as confortáveis cadeiras das lojas quase não eram mais ocupadas e temia vagamente que ninguém mais se interessasse em ficar ali conversando e...
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