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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CASA GRANDE / Taylor Caldwell
A CASA GRANDE / Taylor Caldwell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Só uma mulher que fosse ao mesmo tempo exímia romancista seria capaz de descrever com tanta perícia e profundidade os abismos de uma alma negra de mulher.
Um homem teria  falhado na tarefa ingente de penetrar os motivos, descobrir os sentimentos, analisar as reações e dissecar os atos para expor em todos os seus matizes e contrastes essa mulher que pairava sobre uma família e sobre várias vidas como um anjo mau.
Um de seus filhos, dotado de agudo senso crítico, pensou, um dia, ao ver-lhe as mãos, que eram "as mãos de uma assassina".
Levara à tristeza e à morte prematura o marido, um jovem alegre com a alma cheia de esperanças e de música, e fora uma força implacavelmente metódica de destruição e de morte na vida de seus filhos. Desviou-se para a embriaguez e o desejo de suicídio, para a ambição que enregelava a alma, para a negação da própria personalidade a fim de servir aos seus caprichos, desejos e cobiças.
Entretanto, suas vítimas a amavam e só ela e talvez Satanás pudessem saber por quê.
O retrato vivo dessa má mulher é pintado pela autora magistralmente contra o fundo turbulento da vida dos Estados Unidos no século passado antes da Guerra Civil do Norte contra o Sul e durante esse agitado período.
Um romance grandioso pela magnitude do cenário no tempo e no espaço, pela verdade autêntica dos personagens e pelo seu tratamento, presente sempre, do velho e insolúvel problema do mal.

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CAPÍTULO 1
Janie Driscoll Cauder, em seus últimos anos de vida, costumava dizer, com o sorriso e a inclinação de cabeça, que Laurie, filha dela, não podia tolerar sem cravar as unhas nas palmas das mãos:
— Quando aqui cheguei, era uma jovem viúva com vinte malas e bolsas, três garotos e uma garotinha, sem ninguém para cuidar de mim e só a ajuda de Deus para me sustentar. Ah, se não tivesse sido o bom Deus, que seria de mim, uma jovem viúva, desembarcando sozinha em terra estranha, sem casa e sem parentes para me darem abrigo?
É verdade que Janie, diante de uma assistência cheia de servil admiração, deixava de mencionar que, além de "vinte malas e bolsas, três garotos e uma garotinha", estava de posse também de quinze mil libras esterlinas, que lhe tinham sido dadas pela mãe irlandesa que a adorava. Se ela falasse nas quinze mil libras, isso enfraqueceria consideravelmente a imagem patética da jovem viúva pondo os pés delicados com tanto destemor e tanta bravura nas insensíveis praias de uma "terra estranha", rodeada pelos filhos e pela vasta bagagem. Janie sempre fazia ver as circunstâncias em torno dela como imensas e avassaladoras, a fim de que os que a ouviam pudessem perceber bem o contraste com a sua figura tão pequena, tão frágil, tão infantil e tão destemida contra o sombrio fundo cinzento de Nova York em março de 1850, como uma criaturinha irrequieta, de queixo erguido bem acima das fitas do chapéu e os olhos alegres iluminados por um humor cheio de vivacidade.
Nova York sofrera uma tempestade de neve no dia anterior e a neve estava acumulada em montões estriados de fuligem no cais de madeira. Contra um céu de chumbo, os mastros do grande navio se destacavam emaranhados de cordas e entre eles pousavam as largas chaminés que tinham vomitado fumaça vigorosa, mas intermitentemente através do Atlântico revolto. Centenas de imigrantes, cercados de crianças que gritavam e choravam, tentando aquecer as mãos avermelhadas sob aventais e xales finos, irrompiam no cais, arrastando trouxas de roupas de cama resgatadas dos porões úmidos do navio, malas de pano de tapete puído e vários embrulhos cheios de protuberâncias. Janie, com a capa de marta, o elegante vestido de lã cinza e o pequeno chapéu enfeitado de violetas de veludo, era uma visão radiosa. Tinha viajado naturalmente na primeira classe e ganhara, como de costume, uma chusma de amigos cheios de admiração e de amor, que a ajudaram a desembarcar a bagagem e chegaram a arrebatar algumas das malas menores das mãos dos camaroteiros. Esses amigos eram todos homens, pois as mulheres não se mostravam muito cordiais com Janie depois de um ou dois dias de conhecimento. E assim, o pequeno chapéu francês de Janie se agitava animadamente entre chapéus altos e largos sobretudos de gola de pele, e seu riso, emocionantemente alto e jovial, ressoava escachoante. Às vezes, a mãozinha enluvada emergia do fundo do regalo de marta para atingir fortemente no peito ou no braço algum cavalheiro mais insistente, como se o censurasse, e às vezes puxava graciosamente uma grossa manta escocesa dos ombros de outro.
Os filhos estavam um pouco longe dela, bem vestidos, simpáticos e calados. O mais velho, Angus Driscoll Cauder, segurava a mão da irmãzinha com firmeza, embora a mão estivesse um pouco fria. Era o menos bem-dotado dos filhos de Janie. Era excepcionalmente alto, moreno e sério, com os seus treze anos de idade. Tinha uma expressão reservada, fria e sem animação. Era pálido e as feições eram magras e pequenas, o nariz breve e afilado, de narinas apertadas e estreitas, a boca de lábios finos e repuxados. Tinha, porém, um bom queixo, bem feito e com uma covinha, e se alguém se desse ao trabalho de olhá-lo bem depois de um primeiro relance, perceberia olhos cinzentos muito claros, cor de fumaça.
A irmãzinha, que se agarrava tão firmemente a ele, era uma bela criança de cerca de seis anos. Sob o chapéu de castor, com as largas fitas marrons, derramava-se uma cascata de cabelos louros tão brilhantes que formavam como que uma gola de ouro pálido acima da gola debruada de peles do casaquinho bojudo. Os olhos grandes e sorridentes eram de um azul translúcido, sombreados por cílios dourados. Tinha um suave rostinho redondo cor de leite e rosa-chá e um grande sorriso róseo que tremia fácil por entre uma porção de covinhas. O fato de que o vento cortante que soprava do mar lhe avermelhasse o nariz arrebitado não lhe diminuía a emocionante beleza nem o ar de alegria tímida, mas ansiosa.
Embora as quatro crianças estivessem reunidas num círculo, um olhar vivo perceberia que na realidade formavam dois grupos distintos. Um deles era constituído de Angus e da irmã e o outro, de Bertram (Bertie) Coleman Cauder e Rob Roy (Robbie) Duncan Cauder. As pessoas estranhas podiam sentir-se tomadas de simpatia por Bertie, que era o predileto da mãe. O garoto de onze anos era quase tão alto quanto Angus, mas era mais bem feito de corpo, consideravelmente sólido e extremamente belo. Tinha um grande rosto redondo, muito vivo, corado e risonho, com grandes dentes brancos que se mostravam em sorrisos constantes e inocentemente maliciosos, e luminosos olhos azuis, um tanto pequenos. A cabeça era grande, redonda e forte, coberta de cabelos castanhos ondulados e com reflexos dourados e os seus modos eram ágeis, vivos e irrequietos.
Robbie era o "preto", como Janie dizia com sincero desprazer. Era pequeno. Tinha herdado a pequenez e a magreza de Janie. Parecia pouco mais velho que Laurie, sua irmã. Apesar disso, nada havia de infantil ou capaz de despertar compaixão em seu corpo magro e compacto. Havia ocasiões em que Robbie parecia um vigoroso gnomo.
Enquanto Janie continuava a tratar com os seus admiradores e sua voz, tão rouca e alegre, tão aguda e cordial, continuava a ressoar acima da confusão das outras vozes, até Bertie, o efervescente, caiu num silêncio descontente. O vento aumentava de intensidade e o céu ficava mais carregado. Eram quase cinco horas da tarde e as sombras da noite corriam em grandes ondas do mar e se estendiam sobre a cidade atrás do cais. Um ronco surdo subia do oceano. O vento assobiava por entre os mastros dos navios e os tripulantes corriam pelas cobertas. A multidão começava pouco a pouco a dispersar-se. Nas margens baixas e irregulares de Nova York, começaram a piscar luzes amarelas. O cais de madeira curvava-se e ressoava com os passos apressados.
Um homem jovem, alto e esbelto, vestido com um longo sobretudo castanho-claro com gola de marta e trazendo à cabeça um chapéu alto inclinado num ângulo elegante, passou por entre a multidão. O seu andar era gracioso e ele era todo elegância e distinção. As calças castanhas justas eram presas por tiras sob os sapatos pretos finos e bem engraxados. Levava na mão uma fina bengala de ébano com castão de ouro com a qual afastava levemente do caminho garotos, mulheres trêmulas e até homens. O sobretudo estava aberto e se balançava, mostrando um colete de seda florida e folhos brancos engomados. Tinha um rosto moreno e cheio, simpático e vivo, com uma boca sutil e sorridente e olhos pretos, muito grandes e penetrantes. Os cabelos pretos, penteados para trás, frisavam-se nas pontas de maneira muito atraente. O ar era displicente, calmo e arrogante. Levava entre os dedos de uma das mãos enluvadas um longo charuto. Era sem dúvida um grande cavalheiro, como pensavam muitas mulheres que se encolhiam para deixá-lo passar.
Parou perto dos quatro filhos de Janie Driscoll Cauder e examinou-os. Levou o charuto à boca e tirou uma baforada calma.
— Deus do Céu! — disse então.
Voltou a caminhar, mais depressa dessa vez. Aproximou-se das crianças, sorriu para elas com os dentes brancos a brilharem entre os lábios e perguntou gentilmente, percorrendo com os olhos os rostos, um por um:
— São vocês os garotos de Janie?
Os quatro olharam para ele do fundo de seu frio desconforto. Só Robbie respondeu, avançando com cortesia e calma, ao mesmo tempo que tirava o chapéu:
— É o nosso Primo Stuart? — perguntou ele com sua voz leve, sem inflexão.
— Claro que sou —, disse o homem, com um cumprimento de cabeça, sorridente. — Ou, melhor, sou primo da mãe de vocês, Stuart Coleman.
A pequena Laurie fez automaticamente uma cortesia, enquanto os outros três cumprimentavam brevemente. Bertie havia recuperado a sua espontânea alegria. Aproximou-se de Stuart, pegou-o pelo braço e disse:
— Estamos quase mortos de frio. Quer livrar mamãe daqueles homens?
O sorriso desapareceu do rosto de Stuart. Olhou pensativamente para Bertie. Bateu bondosamente na mão firme em seu braço e disse:
— É o que eu vou fazer.
Voltou então sua atenção para Laurie, que o estava observando com os grandes olhos azuis, cheios de curiosidade e de calma.
— Alô, minha linda —, disse Stuart docemente.
Estendeu a mão e fez um carinho no rostinho redondo e frio. Ela sorriu radiosamente para ele, mas depois ficou vermelha e escondeu o rosto no braço de Angus.
— Como é que vocês se chamam? — perguntou Stuart.
Como de hábito, Robbie assumiu o comando da situação. Apontou para o irmão mais velho e disse numa voz controlada:
— Aquele ali é Angus. — Apontou Bertie, que estava ainda agarrado afetuosamente ao braço de Stuart. — Esse é Bertie, Bertram. Eu sou Rob Roy, Robbie. E aquela é Laurie, nossa irmã.
— Quatro, hem? — murmurou Stuart, pensativamente. — Não sabia que vocês eram quatro. — Sorriu um pouco. — Janie foi um tanto descuidada. Pensei que só ia trazer dois no máximo. Só mencionou Bertie e Laurie.
Robbie encolheu os ombros com indiferença e Stuart o olhou com alertada presteza. Virou-se em seguida e olhou Janie que ainda ria com um grupo de homens, já então isolada com eles num canto do cais.
— Janie como sempre —, comentou em voz baixa.
Sorriu para as crianças tranquilizando-as e partiu na direção da prima e de seu grupo de admiradores. Ficou nas proximidades, sacudindo a bengala e fumando. Disse então de repente e em voz bem alta:
— Pelo amor de Deus, Janie!
Os homens pularam como cabritos assustados e se separaram instintivamente, mostrando entre eles a mulher pequena e vivaz. Ela olhou para Stuart e então correu em passinhos rápidos ao encontro do primo, soltando exclamações, estendendo uma das mãos enluvadas e segurando com a outra o grande regalo de marta. A capa de marta se ergueu atrás dela, as pequenas sandálias francesas crepitaram sob a saia cinza e o véu lilás foi levantado pelo vento das violetas de veludo do chapéu. Atirou-se nos braços do sorridente Stuart enquanto os homens que a tinham rodeado juntaram-se e sorriram constrangidamente. Ela se derramou em beijos extravagantes, gritinhos roucos e abraços perfumados.
— Stuart, meu querido! — exclamou ela, enquanto as lágrimas fáceis lhe rolavam pelas faces. — Onde foi que você esteve todo esse tempo?
— Deixe-me olhar para você —, disse ele, afastando-se um pouco. — É a mesma velha Janie, embora não a veja desde o dia de seu casamento.
Stuart Coleman estava com vinte e oito anos e tinha apenas quatorze anos quando vira a prima pela última vez. Mas se lembrava muito bem do rostinho triangular, da pele um pouco pálida e do forte sortimento de sardas castanhas num nariz francamente grande e romano. Lembrava-se da boca rasgada com o seu sorriso esperto, audaz e alegre e dos dentinhos brancos e quadrados, brilhantes e perfeitos. Lembrava-se dos cintilantes olhos verdes, impiedosos, astutos e sempre a tremer de um riso incipiente sob as finas sobrancelhas castanhas e com uns fortes toques de âmbar que davam àqueles olhos uma qualidade felina e indomável. E se lembrava também dos flamantes cabelos ruivos que eram naturalmente lisos e sempre se mostravam tortuosamente enrolados em cachos que lhe contornavam o rosto vivo e desciam até aos ombros. Janie não havia mudado muito. Tinha trinta e dois anos e não possuía a menor beleza, apesar da esbelteza do corpo, do seu bom gosto em vestir-se e do uso sem reservas de ruge e de pó.
Stuart Coleman, que não era tolo, sabia tudo a respeito de Janie. Mas ela o divertia e encantava. Beijou-a cordialmente enquanto ela o abraçava, mas sabia que eram hipócritas as lágrimas de alegria de Janie. Uma criatura falsa, pensou ele. Mas uma alma alegre. Ficou sabendo no mesmo instante por que ela tinha na realidade ido para os Estados Unidos. Queria casar-se com ele. Riu consigo mesmo.
— Venha. Tenho uma carruagem aí à espera e vou levá-los a todos para o hotel —, disse ele, fazendo-lhe um carinho no queixo. — Essa é sua bagagem? Tudo isso? Meu Deus!
Apontou com a bengala as malas e bolsas. Olhou de lado para os homens desconcertados e separados que começavam a desaparecer no crepúsculo como cachorros escorraçados.
Janie se pendurava toda no seu braço e não tirava dele os verdes olhos dançarinos. De repente, relaxou o corpo todo e se mostrou muito feminina. Deu um suspiro, levou o lenço aos olhos secos e perguntou com voz chorosa:
— Que seria de mim sem você, meu amor?
Stuart sorriu e respondeu:
— Sério que não sei, querida. Mas vamos que a carruagem está esperando. Reúna seus lindos filhos e vamos.

CAPÍTULO 2
Quando queria impressionar alguém, como queria impressionar naquele momento seu primo Stuart Coleman, Janie não deixava de ter algumas apreensões. A mãe dela fora prima do pai já falecido de Stuart e Gordon Coleman nunca tinha simpatizado com Janie. Sendo assim, pensou ela observando Stuart cautelosamente, que teria o jovem ouvido dela?
Stuart tinha ouvido muita coisa, mas, sendo um homem de juízo, deixara Janie "deitar-se na cama que fizera", como dizia com alguma secura. Sabia de tudo a respeito de Janie. Continuou a olhar pelas janelas salpicadas de lama da grande diligência que os levava todos para sua casa em Grandeville, no estado de Nova York, e fingia estar muito interessado na paisagem plana e sem atrativos diante da qual passava o sacolejante veículo.
O pai dele tinha sido um homem que falava demais e com impertinência. Simpatizava muito com sua prima Bridget Murphy, mãe de Janie, e ficara furioso com o casamento dela com aquele "horrível escocês, Duncan Driscoll". Gordon Coleman era um "irlandês maluco" na opinião da família, que não previa um bom fim para ele. Casara-se com a mãe de Stuart, já então morta, e fora com ela para os Estados Unidos a fim de tentar a vida quando Stuart tinha quatorze anos. A família, dando graças ao céu, tinha contribuído generosamente para o fundo que fizera o exílio possível. Embora todos gostassem muito do jovem Stuart, tinham tido prazer em livrar-se de parentes que eram um ônus constante para suas bolsas relutantes. Quando tiveram notícia do espantoso êxito de Gordon, não mudaram de opinião a respeito dele. Preferiram dizer invejosamente que isso só fora possível porque até os mais broncos idiotas podiam ganhar dinheiro na América. Graças às rancorosas diatribes de Gordon Coleman é que Stuart ficara sabendo de tanta coisa a respeito de Janie e da família dela.
O pai de Janie, Duncan Driscoll, um "homem das planícies" de Barhead, na Escócia, comprara, graças à considerável herança recebida de um tio, uma fazenda excepcionalmente extensa logo depois da fronteira inglesa. Já era bastante censurável que ele tivesse comprado terras na Inglaterra, mas ainda era pior que ele, sendo marítimo, fizesse da fazenda um retumbante sucesso. Isso bastava para fazer qualquer escocês de respeito fremir de indignação. Que podia ele entender de bois, carneiros e outros animais? Duncan, sem dúvida, entendia muito e, como era um homem de resolução e inteligência, prosperou desde o início. Mas quando se casou com a viçosa irlandesa chamada Bridget Murphy, até a família o abandonou de maneira completa e rápida.
Duncan, com a inabalável serenidade de um escocês próspero, não se mostrou de modo algum preocupado com essa situação. Era amistoso com todos, embora não gostasse particularmente de ninguém, e se mostrava agradável e cordial com os parentes da mulher. Permitia até que o primo dela, Gordon Coleman, ocupasse uma casinha nas terras dele com a mulher e o filho. Gordon era porteiro da propriedade e exercia o seu pendor irlandês de proprietário, sendo uma espécie de capataz para os outros trabalhadores da fazenda. Faltava-lhe, porém, o bom humor e o espírito afável dos irlandeses, sendo por isso odiado pelos trabalhadores.
A mulher de Duncan deu-lhe dezessete filhos, dos quais Janie era a caçula. Embora Gordon Coleman, que odiava mais a Duncan do que a qualquer outra pessoa, sem dúvida porque recebera dele benefícios sem conta, antipatizasse com todos os filhos de Bridget com irredutível e profunda aversão, detestava particularmente Janie. O filho dele, Stuart, que nascera cerca de cinco anos depois de Janie, revelou desde cedo um revoltante apego à menina e ela a ele. Ela descia correndo da grande casa cinzenta do morro e invadia a casinha ao lado dos portões, com os cabelos vermelhos flutuando ao vento, os olhos verdes dançando e um sorriso escancarado na boca.
Janie chegou a se tornar uma obsessão para aquele homem sombrio e frustrado. Desde que o ódio tem uma memória tão ilimitada quanto o amor, ele compilou um verdadeiro prontuário a respeito de Janie. Mesmo nos Estados Unidos, muito anos depois, enriqueceu de fatos novos esse prontuário e revelou tudo ao filho. O que Stuart não soube do contato direto com Janie, ficou sabendo por intermédio do pai.
Janie fora mimada pelo pai e pelos irmãos mais velhos, ainda que todos ficassem compreendendo tudo a respeito dela desde que balbuciara as primeiras palavras. A mãe tinha, porém, verdadeira adoração por essa filha de sua velhice e nada era caro demais ou de qualquer modo excessivo para a arteira criaturinha. Bridget, gorda, velha e quase analfabeta, nada via de mais fascinante no mundo do que aquele último fruto que lhe saíra do ventre e nada do que Janie fizesse poderia ser repreensível aos seus olhos encantados. Janie ganhara capa de peles, com estola, chapéu e regalo quando tinha apenas cinco anos de idade. Janie tinha tido pôneis das Shetland, jardim particular, criada de quarto, relógio de ouro e um estojo de joias cheio de anéis, correntes e berloques. O veludo e a seda de seus vestidos eram importados da França, do mesmo modo que as delicadas rendas de suas roupas íntimas de cambraia. Os seus sapatos vinham de Londres. Desde cedo, aprendeu a usar loções para a pele, que, apesar de todos os esforços ansiosos das empregadas, sempre foi distintamente amarelada. Ainda que evitasse por todos os meios o contato do sol em sua pele, o grande nariz predatório sempre conseguia colher uma safra de sardas castanhas pela primavera, por mais que ela as banhasse com soro de leite.
Os empregados odiavam e temiam a pequena Janie, desde a mais humilde servente da cozinha ao professor de Oxford contratado especialmente para ensinar-lhe. Era fértil em travessuras cruéis que negava veementemente quando a mãe em lágrimas lhe chamava delicadamente a atenção. Janie tinha a capacidade de olhar a pessoa diretamente nos olhos e, sem a menor vacilação, declarar firmemente que não fizera aquilo de que era acusada. Uma vez, depois de uma diabrura especialmente perigosa, quando um empregado da fazenda quase morrera atacado por um touro ao qual Janie abrira furtivamente a porteira, Duncan deu uma surra em regra na filha. O resultado foi que Bridget passou um mês sem lhe dirigir a palavra e só voltou às boas depois que o homem aflito deu de presente a Janie três cortes de veludo e um manto de arminho.
Apesar disso, suas maneiras eram tão encantadoras quando ela desejava e sabia mostrar-se tão doce e meiga que podia "dobrar" qualquer pessoa que quisesse. Tinha pequenas delicadezas e podia até dominar o tom rouco e um pouco áspero de sua voz que se tornava quase suave. Podia amarrar com nós cegos as fitas da touca de Bridget quando ela cochilava na sua cadeira diante da lareira ou colocar alfinetes na almofada de veludo vermelho predileta da mãe, fazendo Bridget levantar-se com um grito de angústia e com as mãos nas volumosas nádegas. Podia fazer qualquer dessas ruindades, mas era sempre perdoada quando conseguia fazer uma grande lágrima rolar-lhe pelo rosto e os lábios tremerem.
Mal tinha ela dez anos, a mãe cheia de cuidados começou a procurar ansiosamente entre os fazendeiros da vizinhança um marido conveniente para a filha. As irmãs dela tinham-se casado todas antes de terem dezessete anos com rapazes sérios e robustos da vizinhança e estavam bem instaladas em excelentes propriedades. Com aflição cada vez maior para Bridget, Janie não mostrou interesse, durante a sua adolescência, pelos rapazes casadouros do lugar. Só aos dezenove anos foi que seu olhar cobiçoso caiu sobre o jovem Robin Cauder e o seu desejo se fixou nele.
Desde que Janie era profundamente ambiciosa, a preferência dela em relação a Robin Cauder era inexplicável. Na verdade, Robin tinha apenas a roupa do corpo e nas calças justas e surradas uma pequena coleção de shillings e pence. Nascera nas sombrias e violentas montanhas da Escócia, sendo um dos muitos filhos de um pastor que pouco tinha para comer. Desde tenra idade, Robin fora destinado a ser também pastor e através das profundas neves das montanhas negras levava o seu rebanho para procurar a magra vegetação que havia em baixo da neve. Era então que cantava em honra da estrela da manhã isolada no céu e com uma voz tão dourada, tão forte e tão segura que até parecia que os rochedos ásperos e as árvores retorcidas o escutavam. Até os carneiros levantavam as cabeças, como se estivessem fascinados. Cantava as baladas escocesas, cheias de rude melancolia, cheias de morte, de moças apaixonadas e de jovens infelizes, cheias de guerra, de glória e de ódio à Inglaterra. Envolvia-se nas mantas, indiferente aos terríveis ventos que lhe torciam o saiote escocês em torno das jovens pernas avermelhadas, erguia o rosto para o céu pálido da manhã e cantava como um verdadeiro anjo.
Era também angélica a sua beleza. Alto, robusto, cheio de graça, tinha uma pele morena clara, belos olhos negros, o nariz hebraico do verdadeiro escocês das montanhas e uma negra massa de cabelos encaracolados. As moças logo o amavam. Mas Robin só amava as suas montanhas selvagens e a música de seu canto. Tinha apenas dezesseis anos quando deixou as montanhas e se foi a cantar, como um menestrel, pelas vilas e aldeias da Escócia. Embora sem estudos, a voz de Robin encantava e inebriava seus pobres ouvintes a tal ponto que lhe davam muitos pence e até shillings. Gostavam de ouvir-lhe o riso, rico e jovial, cheio da alegria de viver.
Percorreu assim a Escócia, como um jovem cantor ambulante, durante um ano inteiro, vivendo alegremente com estranhos que lhe davam pousada, ainda que se tratasse apenas de um lugar diante da lareira acesa fracamente num fojo no chão ou num estábulo com o gado. Tinha dezessete anos quando chegou a Barhead, na Escócia, e estendeu os olhos curiosos para o lado inglês da fronteira. Sabia que os ingleses eram mais pródigos em matéria de dinheiro que os seus cautelosos compatriotas. Transpôs a fronteira e cantou nas tavernas inglesas até que mesmo os prosaicos lavradores ingleses levantavam a cabeça da cerveja aquecida que bebiam e escutavam boquiabertos. Foi numa dessas tavernas que um amigo do ministro local o ouviu cantar e o convenceu a ir visitar o presbitério. O ministro, entusiasmado por tão magnífica voz, conseguiu que Robin aprendesse os monótonos hinos da respeitabilidade e cantasse na sua capela. Robin achou tudo isso muito aborrecido porque não lhe agradava ficar parado no mesmo lugar. Resolveu só continuar ali até que tivesse dez libras no bolso. Enquanto isso, dormia no sótão da casa do ministro, onde os lençóis eram limpos e adequados.
Janie o ouviu cantar na capela. Olhou-o do banco da família. Desde o primeiro dia, desejou-o com voracidade. Decidiu que se casaria com o jovem de dezessete anos e com ninguém mais. Deu calmamente essa espantosa notícia aos pais, que se viram lançados em desesperada perplexidade. Duncan se enfureceu e deblaterou. Bridget derramou baldes de lágrimas. Os irmãos e as irmãs sentaram-se, com os calções ou os vestidos de lã, e ergueram as mãos em clamoroso horror. Janie se manteve firme. Ficaria solteirona e seria alvo das zombarias dos vizinhos se não tivesse o seu Robin.
Enquanto isso, Robin estava, para sua felicidade, ignorante da fúria que lavrava por Stronghold, a fazenda da família Driscoll. Havia notado Janie no banco da capela com o corpozinho frágil coberto de veludos, sedas e peles, coberta de joias como uma Jezabel, e com uma cor bem suspeita nas faces pálidas. Embora percebesse que ela o observava firmemente com os olhares compridos de seus olhos verdes e sorria embevecida quando ele cantava, nunca se sentira atraído por ela. Nunca tivera amor pelo dinheiro. Desejava apenas era passar a vida cantando, despreocupado, irrequieto e cheio de alegria. A posição de Janie não o impressionava nem um pouco.
Foi só quando ela achou meios de abordá-lo no caminho para a casa do ministro que começou a olhá-la com interesse. Não era homem capaz de recusar qualquer prazer em perspectiva. Mas Janie era esperta. Tinha de ser casamento ou nada. Vestia-se com o que tinha de melhor e se mostrava tão alegre, tão divertida, tão cheia de seu riso rouco que, por fim, o rapaz é que a esperava na estrada. Janie compreendeu sem demora que as peles, as sedas e seus melhores chapéus de castor nada representavam para ele. Sutil como sempre, logo descobriu o caminho para aquele coração esquivo. Murmurava entre suspiros que não passava de um pobre passarinho preso numa gaiola de ouro e que nada desejava mais do que correr mundo, pois seu espírito estava sufocado em Stronghold. Quando Robin falava de lugares remotos e recordava as suas montanhas, Janie conseguia fazer os olhos cintilarem banhados em sua luz verde ou encherem-se de lágrimas e externava então o desejo de um dia ver aquelas montanhas.
Mas tudo isso poderia ter dado em nada se Duncan um dia não tivesse procurado, tomado de verdadeira fúria, a casa do intimidado e trêmulo ministro, dizendo aos gritos que queria ver imediatamente o tal sujeito, pois do contrário poria a casa abaixo com as próprias mãos do telhado aos alicerces. Robin, ouvindo a algazarra, desceu do seu sótão com negligência e graça. Não se deixou intimidar por Duncan. Quando afinal, por entre as imprecações e as ameaças, percebeu o sentido das palavras do velho, jogou a cabeça para trás e deu boas gargalhadas.
Apesar disso, ficou também ofendido, porque, além de teimoso, era orgulhoso. Com que então ele não servia para Janie? Tinha de partir imediatamente dali, com o bolso cheio de libras, não era? Riu ainda mais. Na primeira vez em que se encontrou com Janie na estrada, perguntou se ela se queria casar com ele.
O casamento levou dois meses para se realizar, pois Janie ficou presa dentro de casa, desde que Duncan tinha conseguido finalmente superar as lágrimas e as súplicas de Bridget. Janie entrou em "crise". Deixou de comer e de beber, disposta a chorar até que tivesse seu Robin. Os chorosos pedidos da mãe não tiveram qualquer resultado. Janie trancou-se dentro de seu quarto. Lá fora, os ventos pardacentos do outono faziam dançar folhas mortas de encontro às janelas fechadas. Soluçava bem alto e então prestava atenção. Se, ao fim de algum tempo, não ouvia os passos alarmados ou os suspiros profundos da mãe diante da porta, Janie entregava-se a um acesso de fúria, gemendo e gritando como uma alma penada, deixando-se cair violentamente no chão e batendo os pés como uma possessa no assoalho polido.
Duncan, que era excepcionalmente duro, cedeu afinal.
— Pode ficar com seu vagabundo e os dois que se vão estourar nas profundas do inferno! — gritou ele uma bela manhã diante da porta fechada de Janie.
Depois disso, saiu da casa batendo as portas, montou no seu cavalo e galopou até à primeira taverna que encontrou. Quando voltou, dentro de uma névoa dourada de atordoamento, Janie estava sentada diante da lareira tomando leite e conhaque, enquanto Bridget adejava de um lado para outro em torno da filha recuperada.
Alguns dias depois, Robin foi procurado por dois dos irmãos mais velhos de Janie. Declararam, com uma raiva contida, que tinham ido comunicar que o pai deles dava seu consentimento ao casamento de Robin com Janie.
Ora, Robin não via Janie havia quase duas semanas e, para dizer a verdade, já a tinha quase esquecido. Encarou cheio de assombro os irmãos dela e então seu rosto moreno se tingiu de intenso rubor. Praguejou intimamente contra a loucura insensata e obstinada que o havia levado àquela situação. Nada disse aos jovens lavradores, mas logo que eles saíram, resolveu fugir. Casar-se com uma pequena e ficar amarrado a um lugar? Não, isso não era para ele!
Tentou fugir na manhã seguinte. Mas, na estrada de volta para a Escócia, encontrou a cavalo o mais velho e mais forte dos irmãos de Janie. Robin olhou para o rosto do homem com os olhos implacáveis e deu uma gargalhada. Ajeitou a mochila nos ombros, virou-se e voltou assobiando para a casa do ministro.
Casou-se com Janie seis semanas depois. Gordon Coleman não compareceu. Mas a mulher dele e Stuart estavam presentes. Stuart havia acompanhado as peripécias do namoro de Janie com uma grande curiosidade de colegial. Na verdade, ficou radiante com o triunfo astucioso da prima e a julgava uma criatura audaciosa e aventureira cuja vida seria interessante observar e seguir. Nunca mais ele e Janie correriam pelos bosques caçando borboletas, sentindo sob os pés a relva macia e vendo os raios oblíquos do sol da tarde coarem-se por entre as colunas das árvores. Nunca mais olharia ao lado de Janie a luz branca da primavera no céu crepuscular, nem correriam juntos para o rio a fim de patinar no gelo escuro e cintilante sob o sol de inverno. Lembrava-se de Janie a subir pelo tronco inclinado de uma velha árvore e, então, agarrar-se a um galho baixo e balançar-se no espaço, sustentada pelas mãos. Como as saias dela se enfunavam ao frio vento da floresta e como as pernas pareciam magras e nervosas na ponta das longas calças cheias de rendas e de folhos! Na verdade, Janie era tão irrequieta como um inseto, tão barulhenta quanto um grilo e tão audaciosa quanto um esquilo. Ninguém podia sentir-se entediado ao lado dela, por mais arteira e maliciosa que fosse. E demonstrava por Stuart uma tumultuosa afeição, apesar de sua tendência a atormentá-lo e de suas cruéis provocações e malícias.
Lembrando-se de como ela andava interminavelmente em companhia dele, de como o agredia num momento e o adulava no momento seguinte, lembrando-se do riso rouco e jovial, que ecoava pelos bosques em tons quase obscenos, lembrando-se de sua avareza e de suas repentinas generosidades, sentiu a tristeza invadir-lhe a alma.
Foi num dia pardacento e frio de outono que Robin e Janie se casaram. Pelas janelas de vidraças estreitas escorria uma água plúmbea. A grande casa cinzenta, escura como sempre, salvo na cozinha, onde as panelas de cobre rebrilhavam ao fogo, tinha um cheiro frio de umidade. Abaixo das janelas dos fundos, havia um grande banco e Stuart se sentou ali, bocejando e esperando com os outros o aparecimento de Janie e do noivo. As janelas davam para uma horta cercada por um muro de pedra. No centro da horta meio maltratada, havia uma árvore nodosa e retorcida. Poças de água apareciam no meio da vegetação emaranhada e molhada e a água das poças tremia e se enrugava ao vento frio como lagos em miniatura açoitados por um temporal. Tudo isso tinha um aspecto desolado, cheio de tristeza e de infinita melancolia. Um cachorro latia desesperadamente. Ao longe, o gado mugia surdamente de volta aos estábulos. E, enquanto Stuart olhava, uma névoa tênue começou a elevar-se da horta malcuidada, enroscando-se em torno das plantas, estendendo-se no ar como uma écharpe ou enovelando-se em rolos como cogumelos.
Não era um dia de bons presságios. O fogo tinha sido aceso no grande salão, que era raramente usado, salvo em grandes ocasiões como o Natal (embora Duncan, o escocês, fosse contrário à comemoração "papista" da festa), os casamentos ou os enterros. Em consequência disso, as paredes recobertas de lambris escuro tinham uma camada de umidade e, nos lugares mais afastados da lareira, a água escorria em muitos pontos sobre a madeira envernizada. Os móveis de mogno, escorregadios com o seu estofamento de crina, de tapeçaria ou de veludo, brilhavam foscamente à luz da lareira, enquanto um largo tapete turco se estendia pesadamente de parede a parede. Os numerosos convidados sentiam essa atmosfera lúgubre e se amontoavam, empunhando os seus copos de uísque, nas proximidades da grande lareira de mármore negro. Os homens tinham-se fortalecido prodigiosamente e suas rudes vozes camponesas se estavam tornando extremamente altas. As mulheres, com suas grandes saias de veludo e suas capas debruadas de peles, tinham-se afastado decorosamente dos homens e conversavam na voz baixa que é de bom-tom usar em casamentos ou enterros. As lâmpadas, ainda não acesas por economia, estavam à espera do toque de uma vela. A escuridão se adensava nos cantos.
Perto da parede do norte, estava sentada a filha mais velha do ministro, uma jovem magra e doentia, vestida de marrom-escuro, cujo rosto pálido e magro era parcialmente escondido pelo chapéu. Ao lado dela, estava um pequeno órgão e, junto desse órgão, se postava com ar muito infeliz o filho único do ministro, um garoto muito gordo de cerca de dez anos, encarregado de abastecer o instrumento de ar quando chegasse a hora de tocar a marcha nupcial. Ninguém dava a menor atenção a essas pobres criaturas abandonadas, embora o garoto fungasse sem parar e passasse disfarçadamente pelo nariz a manga do casaco, o que provocava da irmã alguns ruídos discretos de censura e a apresentação de um lenço.
Um dos irmãos, descontente com a escuridão crescente, tomou a liberdade de acender uma lâmpada num canto afastado, mas essa luz só serviu para intensificar a escuridão. O fogo da lareira não era suficiente para aquecer a sala. Quando o ministro velho e triste entrou, com o casaco molhado e manchado e de chapéu na mão, todos o olharam sem simpatia como se ele não fosse vítima de sua cupidez pessoal, mas um servo venal punido justamente pelo céu com a mais tremenda pobreza.
Ninguém tinha ainda visto o noivo, o rude rapaz moreno de dezessete anos, e à medida que o tempo passava e havia sons preliminares no andar de cima, os presentes começaram a ficar nervosos e alguns dos homens foram até às janelas a fim de olhar para a noite que caía.
— Parece que o gajo deu no pé —, disse um dos mais jovens entredentes para um amigo. — Palavra que dou até razão a ele.
O ministro, aventurando-se a dizer alguma coisa numa voz gaguejada, anunciou que Robin tinha vindo em companhia dele e ia aparecer imediatamente.
Robin entrou nesse momento, com um bem talhado casaco cinza-pérola e calças de um cinza mais claro, indumentária essa que fez todos olharem-no cheios de espanto. Levava no braço um chapéu alto de castor cinza e em torno do pescoço jovem os folhos da camisa cintilavam bem engomados. Estava cercado de tal auréola de esplendor, frescura e juventude que pareceu iluminar a sala. Movia-se entre aqueles criadores de cavalos e lavradores com leveza e espontânea graça. Embora o rosto estivesse mais sério que de costume e um tanto apreensivo, nada conseguia atenuar-lhe o ar natural de brilhante vivacidade. As senhoras se moveram muito empertigadas nas cadeiras e os rostos mais carrancudos das velhas mais rabugentas desabrocharam quase num sorriso à vista dele. Os homens resmungaram, murmuraram cumprimentos e arregalaram os olhos. Mas o ministro ficou ao lado do moço a quem tinha chegado a querer bem e sorriu-lhe gentilmente.
Todos tiveram um sobressalto quando a filha do ministro atacou pesadamente o órgão. Ouviram-se então passos na escada envernizada. Todos se levantaram, as senhoras com um grande farfalhar de panos e deixando as fitas dos chapéus caírem sobre os amplos bustos. Duncan entrou no salão levando a filha pelo braço, com uma expressão muito séria e sombria. Logo atrás, vinha a gorda Bridget, que chorava copiosamente e estava em companhia das outras filhas.
Nada poderia dar beleza a Janie, embora ela tivesse esfregado vigorosamente as faces com um pedaço de flanela vermelha molhada até que elas brilharam suspeitamente e tivesse esfregado os largos lábios com o mesmo material até ficarem doloridos. Parecia excepcionalmente infantil levada pelo braço do pai enorme e parecia encolher o corpo, cheia de meiguice e modéstia como se achasse esmagadora a convergência de tantas emoções. Desde que os vestidos novos de Janie eram sempre avidamente observados, todos os olhos femininos se fixaram nela e as bocas se entreabriram de inveja e de espanto. O vestido de noiva de Janie, trazido às pressas de Londres pela última diligência, fora importado da França. Janie sempre tivera chique e se adaptara bem às modas. O corpo pequeno, mas bem feito fazia plena justiça à criação do costureiro, que era toda de cetim branco e rendas. Da delgada cintura, a saia descia até aos pés como um enorme sino inclinado, com uma cauda de renda na qual estavam cosidas pequenas pérolas. O corpete, brilhante como o luar visto através de nuvens tênues, era aportado ao corpo com botões de cristal. Os cabelos ruivos desapareciam por completo sob uma névoa das mais finas rendas, coroada de flores de laranjeira artificiais. Nos braços finos, enrugavam-se as luvas brancas de pelica.
Mas, de repente, toda essa glória se desmoronou. Duncan parou de súbito e com tal violência quase no limiar do salão, de tal modo que Janie falseou o pé e caiu sobre ele. Duncan correu os olhos pelo salão, com o rosto rubro de cólera.
— Por que diabo ainda não acenderam essas malditas luzes? — perguntou ele aos gritos, batendo repetidamente com o pé no chão.
Houve um murmúrio confuso entre os convidados e os parentes. Bridget parou de chorar e as filhas ficaram intensamente vermelhas. Entrou então às carreiras no salão uma criada de touca e avental, com as saias enfunadas pelo vento. Levava uma vela na mão e correu para o fogo, tratando todos de abrir caminho para ela. Acendeu a vela no fogo da lareira e saiu como uma flecha de mesa em mesa. Todos tinham os olhos voltados para ela. A filha do ministro ficou tão desconcertada pela explosão de Duncan e pela confusão resultante que começou a chorar. O garotinho se esqueceu de tocar o fole do órgão. A música morreu num último gemido e ele deu um grito de terror.
Nesse mesmo instante, o som mais estranho se elevou no silêncio funéreo e atônito. Era o riso de Robin, um pouco rude, mas bem alto e alegre. O rapaz estava encostado a uma mesa e a sua alegria o sacudia tanto que ele teve de apoiar-se na mesa, com a cabeça jogada para trás e a boca tão escancarada que se viam todos os seus dentes. A atenção estupefata dos presentes voltou-se então para o rapaz. As lâmpadas acesas mostravam os olhos arregalados e fitos nele. Ao lado da mãe, Stuart começou a sorrir.
Por fim, tão subitamente como quando começara a rir, Robin parou e ficou muito pálido. Aprumou o corpo e olhou vaziamente à frente para nada em particular. Uma das irmãs de Janie deu um beliscão na chorosa filha do ministro e ela começou a bater nas teclas do órgão com febril energia. O garoto tocou o fole. Tudo estava resolvido e seguia o seu curso normal, mas Janie tremia de raiva e Duncan tinha o olhar parado de um homem que acaba de levar uma surra.
Depois disso, tudo perdeu o interesse. Stuart desconfiou de que Janie nunca perdoaria ao marido aquela explosão de alegria rude e incontrolável. A cerimônia foi efetuada de maneira suficientemente respeitável e o jantar foi muito substancial e agradável, consistindo em presunto, carne fria, cerveja e uísque, tudo isso convenientemente apreciado pelos homens. Mas nada erradicou do espírito de Janie a rude humilhação que havia sofrido. Sorriu, riu, aceitou beijos e apertos de mão, com os olhos verdes muito brilhantes, mas quando via Robin, muito pálido e afastado de todos, o seu olhar era virulento.
Ela o fez pagar por isso. Pelo espaço de dois meses, durante os quais ele começou a odiá-la, ela o privou da única alegria que ele teve com o casamento.

CAPÍTULO 3
Logo depois do casamento de Janie com seu Robin, Stuart foi levado para os Estados Unidos pelos pais. Depois disso, soube de todas as histórias por intermédio do pai. Gordon, incentivado pelo ódio, correspondia-se com sua prima Bridget, mãe de Janie, e foi daquela pobre mulher apenas alfabetizada que as notícias atravessavam o longo oceano verde para se fixarem no cérebro rancoroso de Gordon.
Parece que Duncan Driscoll teve alguma surda simpatia pelo jovem precipitado tão involuntariamente no seio de sua família. De qualquer maneira, levou algum tempo sem fazer pressão sobre Robin para assumir o lugar que lhe cabia na casa e aprender a arte de ser um senhor rural. Robin vagueava incessantemente saindo da grande casa de pedra, passando o tempo nas tavernas e às vezes, com estranha obediência, seguindo o sogro através das terras e ouvindo abstratamente as explicações que dava sobre a administração da fazenda em geral. Duncan não insistiu. Robin continuou a passar muito tempo fora de casa, voltando quase sempre um pouco tonto e se mostrando de dia para dia menos inclinado a conversar. Mas foi ao fim do primeiro ano de casamento que se notou que Robin passara a cantar muito raramente e, quando o fazia, era baixo e em tom melancólico.
Foi então que ele começou a desenvolver outra característica que tinha ficado escondida sob sua displicente juventude. Quando ele e Janie estavam casados havia dois anos, mostrou-se sujeito a sombrios acessos de violenta depressão, durante os quais se enfurecia e gritava ferozmente. Depois disso, ficava repentina e sombriamente calado durante muitos dias. O rosto jovem de Robin se tornou mais pesado e ainda mais pálido. O clarão de seus olhos negros não era mais um fogo alegre, mas uma raiva apaixonada e maléfica. A culpa não era toda de Janie. Ela havia tomado aquele jovem falcão selvagem em suas mãos predatórias e, embora o retivesse, atônita e magoada com as suas lutas, tentando mimá-lo e agradar-lhe, ela merecia alguma piedade pelos ferimentos que ele lhe infligia com o seu bico dilacerante, que o desespero tornara mais acerado. Não era só ela que ele odiava. Odiava aquela fazenda próspera e confortável, aquele campo tranquilo, a terra de prados verdes e de sol, e a desesperança daquela paz. Tudo aquilo o havia capturado e aprisionado. Tinha ódio da prisão e da carcereira. No começo, tentara ser paciente e até dócil, com uma indiferente resignação escocesa. Mas era demais para ele que ainda era muito moço.
— Ele vai desaparecer qualquer dia destes, minha querida. Preste atenção ao que lhe estou dizendo —, dizia Duncan à mulher, com uma nota de esperança na voz.
Mas Robin ficou, embora nem os seus irritados cunhados, que o desprezavam pelas suas maneiras rudes e pelo desprezo do dinheiro que mostrava, nem a pobre, gorda e amorosa Bridget, nem Janie soubessem por quê. Só Duncan compreendia. Robin poderia partir quando quisesse, mas nunca mais seria livre. A lembrança da prisão acompanhá-lo-ia para sempre. As suas asas tinham sido quebradas. Duncan sabia que as criaturas selvagens nunca podem conhecer uma prisão. A memória delas é muito longa. Os escoceses nunca esquecem injúrias, dificuldades, sofrimentos, injustiças ou desespero, por mais longe que tudo isso lhes esteja no passado.
O primeiro filho apareceu treze meses depois do casamento. Foi o moreno, fraco e pequeno Angus, de pernas compridas. Robin olhou-o apaticamente e, logo em seguida, afastou-se. Mas depois, comovido em sua própria juventude por aquele entezinho indefeso, começou a brincar com ele, porque era tão pequeno e parecia tão indefeso. Quando Angus tinha dois anos, Robin era muito apegado a ele e o levava nos braços para bem longe da casa até à floresta mais próxima e ficava horas sem voltar para casa. Dizia-se na aldeia que, nessas ocasiões, Robin cantava no meio da floresta e às vezes subia numa montanha próxima com o filho nos braços e enchia o ar frio e vazio com os seus bravos cantos. Janie não se importava com isso. Não gostava muito do pequeno Angus e, desde que já então odiava Robin, fingia achar que o menino se parecia com ele. Ela também tinha um menino nos braços, seu querido, seu predileto, o rosado Bertie de olhos azuis sorridentes.
Dois anos tinham passado e Robin ainda nada fazia para ajudar Duncan. E isso não lhe era solicitado. Era bastante para ele levar o filho para a floresta e para as montanhas. Nunca perdera a sua negra melancolia, mas alguma coisa que parecia paz descera sobre ele naqueles tempos. Quando Rob Roy nasceu, Robin não pareceu tomar conhecimento do fato. Mais tarde, quando percebeu que tinha um terceiro filho, pareceu espantado e ficou muito calado. Mal tinha vinte e três anos e a vida lhe desaparecera para sempre do rosto. Mostrava a delicadeza patética e confusa dos seres selvagens que foram aprisionados, mas não domesticados. As suas furiosas brigas com Janie tinham passado a ser muito raras. Falava com ela muito pouco, mesmo quando estavam na cama. Passavam dias sem que ele dirigisse uma só palavra à família de sua mulher. Já então, a família o tinha dado por um "caso perdido" e não pensava mais nele.
Duncan já estava bem velho quando Laurie nasceu e se irritava com a algazarra das crianças. Janie se tornara implicante e discutia desabaladamente com o pai. Bridget, como sempre, vivia em adoração e uma ou outra das crianças estava sempre nos seus braços.
Pela segunda vez, quando Laurie apareceu, Robin se mostrou interessado. A linda menina com os cabelos dourados e os olhos como o céu de inverno do norte fascinou-o, fixando-lhe a atenção. Angus, que já estava com quase oito anos, era o companheiro constante e silencioso do pai e caminhava ao lado dele através dos prados, enquanto Robin carregava Laurie, cantando baixinho para ela.
Só Angus e Laurie sabiam o que Robin cantava para eles ou com que alegria brincava com eles, quando estava sozinho com os filhos. Eram vistos às vezes de longe. Robin corria e as crianças o seguiam, cheias de risos e de alegria. Os cabelos dourados de Laurie se agitavam ao vento, as pernas magras de Angus eram céleres e os anéis negros de cabelos de Robin lhe caíam pelo rosto.
Fosse por que fosse, Robin jamais cantava para os filhos suas baladas escocesas. Cantava outras coisas, belas, terríveis, ricas e majestosas. Só depois de ser uma mulher foi que Laurie compreendeu que esses cantos nasciam do coração de Robin e não de qualquer folclore ou da pena de algum compositor. Cada uma das crianças tinha uma canção predileta. A de Angus era Ó Estrela da Manhã! A de Laurie era O Amor é Maior do que a Vida!
Laurie tinha quatro anos de idade quando Robin morreu. Foi atacado de um "resfriado reumático" e morreu em dois dias. A doença não era grave e os médicos ficaram atônitos quando ele de repente deixou de falar e se descobriu que ele deixara a sua prisão para sempre. Nem os dois filhos a quem amava conseguiram retê-lo. Pouco antes de morrer, mandou chamar o pequeno Angus, que tinha esperado durante horas à porta do pai no trágico silêncio sem lágrimas do sofrimento profundo. Robin disse apenas, segurando a mão magra do filho:
— Você não esquecerá nossos cantos, meu rapaz, e ajudará sua irmãzinha a se lembrar, não é mesmo?
Angus, sem poder falar, tinha feito um sinal afirmativo com a cabeça e se inclinou para beijar Robin, que sorria. Quando Angus levantou a cabeça e tentou falar, Robin ainda sorria e olhava para ele. Mas já estava morto.
Só Duncan sabia de que ele tinha morrido. Só Duncan, olhando o rosto jovem e vívido, naquele momento estranhamente selvagem, livre e feliz, ficou contente. Só Duncan chorou, embora Janie tivesse feito copioso uso de uma cebola para provocar lágrimas.
Na verdade, Janie não estava descontente com a morte do odioso rapaz com quem se havia casado. Ele tinha sido para ela durante anos um fardo, uma vergonha e uma fonte de mágoa. Estava livre dele. Com o seu vigor característico, principiou a planejar sua vida nova.
Viveu ainda dois anos com os velhos pais, mas seu espírito aquisitivo e ávido não estava tranquilo. Era uma aventureira inata. A inquietação e o mau humor cresceram à medida que o seu vigor aumentava. Nada a satisfazia. Duncan sugeriu francamente que havia uma fortuna à disposição do homem que tivesse coragem bastante para casar-se com sua filha mais moça. Muitos se candidataram. Mas Janie não queria mais saber de uma vida tranquila.
Ainda chegavam cartas dos Estados Unidos de Stuart. Os pais dele tinham morrido. Dizia pouco sobre sua maneira de viver, e só uma ou duas vezes mencionou uma "casa de negócios" que, conforme declarava, ia muito bem na cidade movimentada e vital de Grandeville, situada em alguma estranha massa de água chamada de "Grandes Lagos". Uma casa de negócios? perguntou a família, descontente. Quem já ouvira dizer que se pudesse ganhar muito dinheiro numa casa de negócios? Mas quando Stuart mencionou de passagem que fizera mais de dez mil dólares no ano anterior (dez mil dólares num cálculo apressado equivaliam a duas mil libras!), os parentes ficaram espantados. Janie tinha muito orgulho das cartas de Stuart. Carregava-as na bolsa durante vários dias. Lembrava-se de Stuart com agrado. Quando, num Natal, ele lhe mandara uma miniatura de si mesmo, ficou encantada com a sua beleza e com a malícia de seus negros olhos irlandeses.
Foi numa tempestuosa manhã de janeiro que Janie comunicou que pegaria os filhos e partiria para os Estados Unidos.
Bridget ficou prostrada de tristeza. Mas Duncan recebeu a notícia com azedo interesse e uma esperança nascente. Janie tinha transformado a casa naqueles últimos anos num verdadeiro inferno com as suas implicâncias, seus gritos, seu mau humor, seus truques e sua avidez. Tinha enchido a casa do velho de crianças que estavam sempre gritando, pedindo ou reclamando. Duncan rezava a seus deuses para que Janie estivesse falando sério e, pela primeira vez em muitos anos, foi terno para com a filha e começou a discutir com ela vastos e complexos planos.
Janie dissimulou a sua raiva e a sua decepção. Tinha decidido a princípio deixar com os pais todos os seus filhos, menos seu querido Bertie. Quatro crianças nos Estados Unidos! Tinha esperado que, ao menos, a mãe se opusesse e pedisse que as crianças ficassem com ela para alegrar-lhe a velhice. Mas Bridget tinha sido advertida com alguma rudeza por Duncan de que não concordaria absolutamente com isso e que Janie teria de ir para os Estados Unidos com todos os filhos ou ficar em casa com todos eles. Deu largas a uma raiva senil, mas violenta ao discutir o assunto com Bridget.
— Ela não vai deixar os filhos em minha casa! — exclamou ele. — Quer livrar-se das suas responsabilidades, mas não vai ser assim! Estou farto dos caprichos dela, está ouvindo, minha cara? Quero morrer em paz na minha cama sem ver a cara dela!
Diante do ultimato do pai, Janie quase desistiu de seus alegres planos. Tinha, porém, escrito a Stuart e recebeu a resposta dele, cheia de bom humor e de recomendações para que ela fosse. Janie anunciou então que nada a faria separar-se dos filhos e que iria partir como uma viúva sozinha que não tinha um lar.
Bridget entregou-lhe as quinze mil libras que o pai lhe deixara de herança. E Janie foi para os Estados Unidos com as bênçãos sinceras dos pais.

CAPÍTULO 4
Durante as suas primeiras horas na diligência, Janie enchera os ouvidos do primo de histórias terríveis sobre os sofrimentos por que tinha passado a bordo durante a travessia. Passara muito mal! Tinha ficado no beliche duro, atirada de um lado para outro durante noites escuras e tempestuosas! Que comida horrível lhe tinham dado e como os camaroteiros a haviam esquecido, deixando-a desolada e às portas da morte durante horas seguidas! Pintou um quadro sinistro para Stuart, todo cheio de sombras e sofrimento, em que ela sobressaía, a mulher corajosa que ela era, que suportara coisas incríveis sem uma queixa e com gentil paciência. Um camaroteiro, que se insinuara traiçoeiramente em sua confiança, lhe roubara um anel precioso. As crianças tinham ficado a bordo sem ter quem as olhasse, enquanto a pobre mãe delas gemia e soluçava no beliche, espantada com o tratamento que lhe era dispensado, pensando na insensibilidade de seus pais e suportando a saudade e o abandono com meiga resignação.
Stuart assumiu uma expressão de simpatia e fez uma leve pressão na mão de Janie. Dissimulou como pôde a incredulidade que se lhe espelhava nos olhos. Janie era muito divertida. Mas os filhos dela eram ainda mais divertidos. Enquanto Janie contava a sua história triste, tocando de vez em quando os olhos secos com um lenço perfumado, Stuart observava as reações de Angus, Bertie, Robbie e Laurie. Angus saíra da sua peculiar letargia e olhava para a mãe, com as finas sobrancelhas pretas erguidas em severa perplexidade, mordendo os lábios com os dentes brancos e com as mãos apertadas nervosamente sobre a manta. Bertie sorria. Robbie, porém, olhava a mãe com indiferente desprezo e encolhendo os ombros. Quando seus olhos se encontraram com os de Stuart, sorriu de leve, com divertido desdém, voltando-se imediatamente depois para olhar através das janelas empoeiradas e sacolejantes. A pequena Laurie se limitou a olhar para a mãe, piscando rapidamente os olhos azuis cheios de preocupação e confusão, apesar de sua pouca idade.
Quando Janie parou a fim de tomar fôlego, completamente dominada pelas emoções do que contava, Angus murmurou timidamente:
— Mas, Mamãe, você não passou tão mal assim. Foi só na primeira noite. Depois, você dançou. Não se lembra, Mamãe? Todos os homens iam para a porta de seu camarote discutindo quem era que ia dançar primeiro com você. E, Mamãe —, continuou ele, encolhendo-se ao sentir o olhar cheio de ódio da mãe —, você se vestia tão bem, com tantos anéis e tantas joias e só voltava quando já estava quase amanhecendo. Lembro-me até —, disse ele com nervosa precipitação, ao sentir que o olhar de Janie aumentava de virulência sobre ele —, de que muitas vezes já era dia claro. Uma vez, você chegou cantando e a mulher do camarote vizinho bateu na parede e você disse coisas para ela e deu gargalhadas. Os homens que estavam à porta deram gargalhadas também. E o anel não foi roubado. Você o achou hoje de manhã.
— Ora, cale essa boca —, disse Robbie, aborrecido, sem tirar os olhos das janelas pelas quais contemplava a paisagem de inverno lá fora. Bertie riu, bateu com o pé na canela do irmão mais velho e piscou-lhe o olho numa bem-humorada advertência.
Mas o pobre Angus, evidentemente convencido de que Janie estava apenas inocentemente esquecida dos fatos e cometia erros de cuja correção lhe seria grato, continuou olhando ansiosamente para a mãe:
— Não se lembra, Mamãe? E os camaroteiros foram muito bons conosco, levando-nos o café da manhã quando você se esquecia de nos levar para o salão, pois estava dormindo a sono solto. E você deu gorjeta a todos e eles choraram no último dia e você os beijou e agradeceu a todos. Todos disseram que você era a Rainha de Bordo e o comandante lhe mandou uma cesta de frutas com os seus cumprimentos.
Aí está, pensou Stuart contendo o riso, um inocente que nunca aprenderá coisa alguma em toda sua vida. Olhou com pena para o rosto ansioso do garoto, para os aflitos olhos cinzentos e para a boca trêmula. Viu como as mãos com os dedos entrelaçados se apertavam convulsivamente sobre a manta. Era uma atitude estarrecedora.
Mas Janie olhava para ele com raiva, mostrando no rosto rubor e tensão. Não podia nem falar e o que lhe saía da garganta era um arquejo áspero como um rugido animal. Em seguida, sem o menor aviso, curvando-se do lugar onde estava sentada ao lado de Stuart, bateu violentamente na cabeça do pobre Angus com o punho fechado. Ele tentou esquivar-se, chorando, e protegeu a cabeça com os braços magros, mas Janie encontrou falhas em sua guarda e continuou a bater. Os olhos estavam cheios de uma verde alucinação sob os cachos vermelhos e as dançantes violetas do chapéu. Mordia os lábios e emitia horríveis sons ofegantes nos seus frenéticos esforços. As saias se sacudiam e balançavam com a agitação. Conseguia manter os pés firmes no chão da diligência em movimento, a qual felizmente não tinha outros passageiros além dos Cauders e de Stuart. A agilidade de Janie era notável. Batia, negaceava, avançava, atacava com tamanha velocidade, tamanha destreza, tantos golpes certeiros e enérgicos que era difícil seguir-lhe os movimentos, só se podendo ver o esvoaçar de suas saias, o delirante balanço de seu chapéu e a dança dos pequenos pés.
Durante tudo isso, os dois outros garotos, com grande presteza, levantaram os pés do chão da diligência e os puseram em cima do banco, encolhidos com os joelhos sob o queixo. A pequena Laurie, sentada ao lado do irmão atacado, não se havia movido. Estava parada e muito branca, olhando para a mãe agitada. No seu rosto havia horror, um frio e espantado horror em que não havia medo e estava muito perto do ódio. Quanto a Angus, não chorou, nem encolheu o corpo, tentando expor pontos menos vulneráveis às pancadas da mãe. Limitou-se a esboçar uma defesa tímida com os braços em volta da cabeça e sua atitude trágica e humilde, cheia de desespero e resignação, fez o coração de Stuart bater numa veemente raiva contra Janie. Apesar disso, talvez nada tivesse feito se não visse no rosto da pequena Laurie a lembrança viva de muitas outras cenas semelhantes.
Foi então que agarrou Janie pelas saias e puxou-a violentamente para o banco da diligência. Nesse mesmo instante, as rodas do veículo encontraram na estrada uma pedra particularmente resistente e os passageiros foram sacudidos como bonecos dentro de uma caixa. Em consequência disso, Janie foi atirada para o lado com muita rudeza, mas isso não lhe fez passar a raiva. Ao contrário, certa sem dúvida de que Stuart era culpado do balanço da diligência, voltou-se para ele, tomada de uma fúria insensata e cega e lhe deu uma pancada firme e forte no rosto. Irritado com isso, Stuart agiu instintivamente, levantando a mão e atingindo violentamente a prima na altura das orelhas, afastando-a depois dele, com uma exclamação de aborrecimento.
O chapéu de Janie lhe caiu sobre o rosto, de modo que só a boca trêmula foi visível, e ficou ali preso. Ela havia caído num canto do banco da diligência onde estava sentada e ali procurou firmar-se e segurar a aba do chapéu que lhe fazia pressão sobre o nariz. Fez acompanhar as suas lutas de movimentos espasmódicos das pernas esticadas e de alguns gritinhos roucos. As saias tinham subido até os joelhos, mostrando as pernas pequenas, mas bem-feitas elegantemente calçadas de meias de seda branca e Stuart, voltando a si de sua raiva, olhou-as por um momento com automática admiração. Depois, o espetáculo daquela mulher que se debatia enraivecida em luta com o chapéu obstinado lhe pareceu estranhamente engraçado e deu uma risada. Pegou as saias de Janie e as baixou, empurrou o chapéu para cima e mostrou o rosto alterado pela raiva, no qual os olhos verdes brilhavam cheios de malignidade.
— Você já é bem crescida, Janie —, disse ele com bom humor.
— Não deve levantar as saias, ao menos em público. E agradeça a esse seu nariz avantajado, senão teria ficado sufocada pelo chapéu.
— Tocou-lhe a face e sorriu. — Você é uma menina sem modos e, de vez em quando, precisa de levar umas palmadas.
Janie ficou em seu canto, toda ofegante e cheia do mais louco ódio pelo primo. Este sorriu para ela e disse, sacudindo a cabeça:
— Você precisa também de tomar providências urgentes com essa pele. Esse tom amarelado não combina bem com a cor de seus cabelos.
Janie abria a boca retorcida e proferia uma série de nomes feios. Stuart, apesar de tudo, sentia-se escandalizado e cobriu-lhe a boca. Janie imediatamente lhe mordeu a mão. Stuart retirou a mão com um grito e instintivamente esboçou o gesto de bater nela. Desistiu, porém, e murmurou alguma coisa que só ela ouviu. Em seguida, com o rosto fechado e os olhos aportados, afastou-se tanto quanto possível dela e olhou para a frente.
Janie se debulhou em lágrimas, desatadas e confrangedoras. Brigas não eram novidade para ela. Brigara sempre com os irmãos e com as irmãs, que mais se aproximavam dela pela idade. Triunfava invariavelmente sobre eles, intimidando-os ou reduzindo-os a abjeta submissão. Nunca encontrara pessoa alguma que se afastasse dela com desprezo como Stuart ou que fosse capaz de ouvir-lhe os soluços com aborrecida indiferença. Chorou mais alto. Stuart nem voltou a cabeça. Estava olhando para Angus e Laurie.
Bertie e Robbie, que haviam observado a refrega entre a mãe e o primo com profundo e absorvente interesse, não pareciam absolutamente perturbados. Tinham visto muitas vezes a mãe bater em seus tios e tias, sempre que a contrariavam ou tentavam dar-lhe conselhos.
Não eram Bertie e Bobbie que interessavam a Stuart, portanto. Eram Angus e Laurie. Angus se encolhera, de modo que seu corpo comprido e magro parecia muito menor. Estava derreado no banco de couro da diligência numa atitude de trágica prostração. O rosto moreno e magro estava lívido à luz espectral que vinha das janelas. Os olhos cinza estavam semicerrados. Mal parecia respirar. As mãos estavam estendidas flacidamente ao lado dele, com as palmas para cima. Parecia quase inconsciente. Corria no nariz um filete de sangue de que ele parecia não tomar o menor conhecimento. Janie devia tê-lo arranhado ferozmente no lado direito do rosto, pois também ali havia sangue. Via-se ainda uma mancha escura e feia no lado direito das têmporas. Cheio de uma piedade que era estranha nele, Stuart chegou à conclusão de que o abatimento do rapaz decorria mais de vergonha por aquela demonstração de mau gênio da mãe do que da violência física exercida contra ele.
A pequena Laurie, toda trêmula, com o lábio inferior preso entre os dentinhos brancos, ajoelhou-se ao lado do irmão e tentou estancar o sangue com seu lencinho. O chapéu de castor lhe caíra para os ombros e o sol poente, aparecendo por trás de uma grossa camada de nuvens cinzentas, nimbava-lhe os longos cabelos dourados. Ela era muito calma e todos os seus movimentos eram ternos e gentis. Limpou o sangue de Angus e comprimiu o lenço contra a base do nariz, deixando-o ali. Stuart ficou surpreso e comovido. Quando Angus abriu os olhos e viu a irmãzinha, esta lhe sorriu corajosamente e beijou-lhe gentilmente o rosto, mas sem diminuir a pressão sob o nariz. Angus deu um suspiro. Aproximou-se mais da irmã e tornou a fechar os olhos. Laurie murmurou suave e repetidamente alguma coisa.
Tudo isso comoveu ainda mais Stuart e o encheu de ternura pela pequena Laurie.
Percebeu que os soluços e gemidos de Janie aumentavam de ferocidade e que ela começava a torcer o corpo no banco, fazendo tudo o que era possível para atrair-lhe a atenção. Virou-se para ela com um gesto violento e ameaçador, dizendo:
— Fique quieta, ouviu?
Janie ficou tão surpresa com essa reação tão estranha ao seu acesso de raiva e nervosismo que ficou imediatamente em silêncio. Quer dizer, pensou ela astutamente, que não é essa a maneira de conquistar Stuart. Procurou assumir uma atitude humilde e meiga. Deixou que lágrimas de verdade lhe rolassem pateticamente pelas faces e uma delas tremia espasmodicamente. Olhou para Stuart com suplicante humildade. Fez a boca tremer. Baixou a cabeça e chorou mansamente. Do seu canto, Stuart olhava-a atentamente, com os olhos faiscantes e os lábios cerrados.
— Ah, Stuart, meu amor, você não faz nem uma ideia do que eu tenho tido de suportar desse hipócrita e mentiroso! Só Deus sabe! Não sei o que foi que eu fiz para ser castigada desse jeito. Não é de admirar que eu tenha perdido a cabeça. Já tolero isso há treze anos. Ele fez o próprio pai que já morreu virar-se contra mim e me intrigou com minha mãe e meu pai com suas mentiras, para me afligir e me humilhar.
A voz rouca de Janie procurou ser muito queixosa e meiga. Estendeu timidamente a mão para o braço de Stuart. Ele teve um movimento instintivo de repulsa, mas não lhe afastou a mão.
— Ele mente como você não pode nem imaginar, Stuart —, continuou ela. — E é um mentiroso que nunca se esquece de ir para a igreja aos domingos, com seu livro de preces debaixo do braço. Sempre rezando, sempre espionando e sempre mentindo com esses olhos falsos, afastando todos de mim com suas falsas delicadezas e seus choros! '
Voltou-se para Bertie, seu predileto, e disse:
— Meu querido, diga a seu primo que eu estou dizendo a verdade e que essa serpente, que é seu irmão, faz de minha vida um inferno com suas mentiras. Diga a seu primo, Bertie!
Bertie sorria ao ouvir a mãe e disse com um sorriso ainda maior:
— Bem, ele a contraria...
— Contraria? O que ele faz comigo é mais do que a sensibilidade de uma mulher pode suportar! Juro diante do céu! Eu, que tenho sido a mais extremosa das mães para meus pobres órfãos, que tenho rezado sozinha por eles, com o coração a estalar dentro do peito, pensando na melhor maneira de protegê-los de um mundo cruel e insensível, acabei descobrindo que criei uma víbora em meu seio!
A voz dela, rouca e áspera, se tornou mais densa com o rude sotaque de seus antepassados, e Stuart, ouvindo-a, lembrou-se da jovem Janie e das montanhas de sua terra, o que lhe atenuou um pouco a raiva e a repulsa. Aborreceu-se com isso. Queria odiar Janie, mas ouvindo-a falar, sentia de novo o cheiro dos fogos de turfa, via o céu do crepúsculo em que aparecia como uma joia a primeira estrela e ouvia o chocalho das vacas tangidas para os estábulos e os risos dos lavradores que voltavam dos campos. Foi a nostalgia que o fez abrandar-se em relação a Janie e dar um breve suspiro.
Janie ouviu o suspiro e sentiu um baque no coração murcho. Olhou-o ternamente através dos cílios.
— Fique quieta —, disse Stuart, esforçando-se por ser severo. — Ainda que seja verdade tudo o que você diz, foi dura demais com o menino.
— Pode ficar certo que é verdade, Stuart! Mas reconheço que perdi a cabeça. Tenho um gênio impossível, Deus me perdoe, e não me posso conter quando ouço mentiras. "Quem diz a verdade envergonha o diabo", costuma dizer meu querido pai. Detesto mentiras e amo a verdade, meu caro Stuart. Sei que é uma fraqueza minha, mas não me posso conter quando ouço uma mentira. "Janie sempre diz a verdade, sejam quais forem as consequências", costuma dizer minha querida mamãe. "Ainda que isso lhe custe a vida, a menina é capaz de enfrentar qualquer um, dizendo a verdade. Nada de mentiras com ela!" Ah, Mamãe, Mamãe! — exclamou Janie com a voz descontrolada pela emoção, levando as mãos ao peito e erguendo os olhos para o céu. — Pensar que sua filha foi reduzida a isto, numa terra estranha, entre desconhecidos, praticamente órfã, tangida de sua casa para procurar um novo lar para seus filhinhos em terra alheia, sem amigos e sem atenções, viúva e indefesa!
— Ora, deixe disso —, murmurou Stuart, batendo na mão de Janie. — Parece mesmo que fez uma viagem difícil. Agora, deixe de lamentar-se e tome meu lenço para enxugar as lágrimas. O seu já está ensopado.
O único desejo de Stuart no momento era atenuar ou impedir qualquer castigo particular que pudesse ser infligido às duas pobres crianças. Se ele se mantivesse irredutível e frio, Janie poderia descarregar o seu ódio e a sua frustração sobre Angus e Laurie. Disso, ele não tinha dúvida.
— Você quase matou o garoto, Janie —, disse ele, aproximando-se da prima e enxugando-lhe as lágrimas com falsa ternura. — Bem sei que tudo isso que me contou é bem duro para você. Mas tem de prometer que terá mais calma com o pobre garoto. Prometa, vamos. Se tiver mais um desses acessos, fecharei as portas e deixarei você sozinha na neve, com a graça de Deus. Olhe para seu filho. Parece uma raposa depois de encontrada pelos cães. Neste país, enforcam mulheres por muito menos, Janie.
A astuciosa Janie, ainda chorando, deu uma demonstração de seu admirável talento teatral. Fez uso de muita sutileza. Meio atordoada, deixou que os olhos se arregalassem de completo espanto ao voltá-los para o massacrado Angus e para Laurie. Fingiu um violento sobressalto. Levou de novo as mãos ao peito e disse num murmúrio estrangulado:
— Não! Não! Não posso acreditar! Não fui eu que fiz isso, meu Deus! Diga que não fui eu!
Agarrou Stuart febrilmente pelo braço e se jogou contra ele, desatada em lágrimas e em angústia, e lhe implorou com os olhos verdes cheios nesse momento de um horror habilmente simulado:
— Será que me pode perdoar, Stuart? Ajude-me, meu amor, ajude-me! — Prorrompeu em soluços que até para ela pareciam sinceros e levou a sua habilidade ao ponto de ficar realmente mais pálida do que de costume, enquanto o rosto se contraía convulsivamente. — Tudo meu gênio, meu horroroso gênio! Como é que pude fazer isso com meu filhinho, com meu pobre órfão? Oh! Diga-me que não fui eu!
Por mais que Stuart apreciasse a pequena cena e em silêncio desse parabéns a Janie pelo excelente desempenho, não deixava de sentir-se embaraçado diante do olhar zombeteiro de Bertie e do frio desprezo que havia nos olhos de Robbie. Gostaria de dizer: "Pare com isso, menina. Chega. Não está enganando ninguém." Mas não teve coragem. Disse, portanto, com voz grave:
— Foi você mesmo que fez isso e me deu uma grande vergonha. Agora, poupe suas lágrimas para seus filhos e trate de ir consolá-los.
Embora ainda se lembrasse da presteza com que Janie costumava agir, ficou espantado quando a viu dar um salto e cair de joelhos diante dos dois filhos a quem maltratara, sem se esquecer de ajeitar o vestido para que caísse graciosamente às suas costas e de dar, com a mesma intenção, um toque nos cabelos. Foi um detalhe que Stuart achou muito interessante.
Abriu os braços para Angus e Laurie, soluçando ruidosamente. Apertou depois Angus de encontro ao seio. Abraçou-o freneticamente, acalentando nos ombros a pobre cabeça ensanguentada, afagando-o, beijando-o ternamente, murmurando desculpas cheia de desespero e contrição e implorando o perdão do céu, a chorar incoerentemente.
Stuart observou de novo Robbie e Bertie. Este sorria ironicamente. Robbie franziu um pouco a testa e encolheu os ombros. Mas a pequena Laurie tinha-se afastado o mais possível da mãe, indo encolher-se no canto do banco. Ficou ali visivelmente trêmula, com o rostinho muito pálido e os olhos azuis a brilharem intensamente na meia luz da diligência, enquanto os cabelos dourados lhe caíam em desordem pelos ombros e pelo pescoço.
Stuart sentiu-se mais uma vez tomado de profunda compaixão por ela.
Voltou então a sua atenção para Janie e Angus. O menino estava deitado nos braços delirantes da mãe. Deixava-a tratá-lo à sua maneira áspera e febril. Tolerava-lhe os beijos.
Então, com grande espanto para Stuart, o menino começou a chorar também e a retribuir os carinhos da mãe com desesperado abandono.
— Oh, Mamãe! — exclamava ele. — Oh, Mamãe!

CAPÍTULO 5
Embora Janie soubesse que os Estados Unidos eram bem maiores do que a Inglaterra e a Escócia juntas, ficou atônita com as suas distâncias manifestamente intermináveis, à medida que os dias iam passando em várias carruagens e desconfortos diversos. O espírito insular não podia aceitar horizontes remotos, ilimitados e em constante e eterna mudança.
Ao quinto dia de uma horrorosa viagem, tinha começado a desprezar todos os americanos que, sem dúvida alguma, não eram cavalheiros. Quanto às mulheres, eram monótonas e desinteressantes, de voz afetada e rouca e capazes de suportar todos os desconfortos com piedosa resignação. Sentavam-se com as mãos calçadas de mitenes no colo, com os chapéus pretos ou castanhos enfiados sem nenhuma elegância na cabeça, os rostos pálidos muito sérios e tristes, enquanto seus maridos, sem dúvida julgando sufocante a companhia das esposas, recorriam firmemente à garrafa em todas as tavernas e hotéis pelos quais passavam as diligências. Acabavam, porém, notando com encantada surpresa a pitoresca e sedutora Janie, com sua falsa suavidade e seus cintilantes olhos verdes e, então, bebiam menos, olhando-a, fascinados. Lançavam-lhe olhares tímidos e desajeitados, apesar da presença de seus quatro filhos e de Stuart, que achava tudo muito divertido.
Ela passara a se mostrar cheia de ternura e de suavidade com os filhos, compreendendo que Stuart ficava satisfeito com isso. Quando Angus a "contrariava", pois parecia que era uma coisa de que ele não se podia abster, ela dizia docemente, erguendo para ele o dedo enluvado:
— Não, meu querido. Talvez Mamãe esteja enganada, mas é muito feio o filhinho dela dizer que não.
Quando deparava com Laurie a olhá-la fixamente, à sua estranha maneira tão pouco infantil, não gritava mais, como era seu costume: "Se continuar a me olhar com essa cara, vai levar uma surra, sua sapinha!" Limitava-se a sorrir ternamente para Laurie e perguntar-lhe se estava sentindo alguma coisa.
O seu prazer sensual de viver sobreviveu sem risco a todos esses dias terríveis e desde que ela sentia uma profunda curiosidade por todas as coisas, raramente o tédio a afligia. E a viagem não lhe foi exaustiva, pois, apesar de sua pequenez e de sua magreza, era dotada de excelente constituição. Até seus ataques de "bílis" atestavam a sua energia e, embora sua pele sofresse com isso e se tornasse extremamente amarelada e embora isso talvez explicasse os seus ataques de mau gênio, a sua resistência era notável. Enquanto outras senhoras sentiam desmaios e ficavam exaustas, tendo de interromper temporariamente a viagem, ou chegavam a ter o rosto verde quando os homens faziam uso de charutos, de cachimbos ou de uísque, Janie parecia mais viçosa com tudo isso. A admiração de Stuart aumentou.
Enquanto isso, a paisagem que tinha começado a mostrar-se triste, monótona e morta, cheia da lama de março e sulcada por uma água oleosa e cor de chumbo, tornou-se cada vez mais desolada vista das janelas das carruagens. Enquanto seguiam rumo ao norte, a terra era plana e rasa e nela as lufadas erguiam torvelinhos de neve, O sopé das montanhas era negro como carvão e também deserto e nu, vendo-se apenas aqui e ali um pinheiro enfezado que lutava para viver e manter-se ereto sob os céus inclementes. As casas das fazendas se encolhiam à beira da estrada como se procurassem proteção e as suas cercas pareciam tremer ao impacto dos ventos soluçantes. A fumaça pairava acima dos telhados, fugindo em rolos finos das chaminés. As carruagens passavam por pequenos lagos congelados, onde a água já começava a apontar através do gelo cinzento. Bosques retorcidos e nodosos, despojados de todas as folhas, desfilavam lentamente atrás deles. Por outro lado, o ar estava cada vez mais frio, de modo que os passageiros das diligências tremiam e as senhoras, de passagem pelos hotéis, reclamavam tijolos aquecidos a fim de minorar-lhes os sofrimentos. As estradas eram piores, cheias de sulcos congelados ou de espessa lama, e as crianças, que tinham atravessado o Atlântico sem sentir coisa alguma, vomitavam angustiadamente nos cantos. Os veículos jogavam e se balançavam, acompanhados pelos gritos e pragas dos cocheiros, havendo dias em que não se faziam mais de quinze quilômetros. Os dias eram ruins, mas as noites eram ainda piores, sem lua e sem estrelas, inundadas de plúmbeas sombras crepusculares, fazendo os passageiros perderem toda a noção do tempo e dando-lhes a impressão de que estavam sendo ainda sacolejados para sempre dentro da escuridão, do frio e da angústia.
A região se tornou mais selvagem quando tocaram as fronteiras da Pensilvânia. À luz nevoenta do dia, os viajantes podiam ver a massa distante das montanhas estriadas de neve, sob a qual pairavam densas nuvens cinzentas. A estrada foi subindo e alguns passageiros ficaram de coração pequeno ao divisar lá embaixo os estreitos vales tortuosos ou os lagos gelados espectrais que brilhavam às vezes como metal sob os raios do sol esquivo. Em certas ocasiões, ao crepúsculo, uma névoa amarelada caía sobre a paisagem desolada e gigantesca dando a tudo um ar fantástico e terrível de solidão e imensidade, ao mesmo tempo que o poente decalcava em fogo as montanhas distantes. Todos os sinais de habitações tinham desaparecido e só se via a erma e tremenda grandeza da terra branca gelada, das imensas montanhas negras e dos grandes rios parados e, ao pôr-do-sol, a ingente conflagração cósmica, reduzindo o mundo a um pálido nevoeiro purpúreo e a um caos informe.
Janie, que raramente tomava conhecimento de alguma coisa salvo do que era quente, confortável e imediato, tinha longos momentos de silêncio, enquanto olhava a paisagem com um toque de medo no rosto afilado e insolente. A sua alma de insular das planícies era tomada por um horror trêmulo e sem nome. Lembrando as doces colinas de sua terra, sentia-se aterrada com aquela gigantesca imensidão. Foi com voz abafada que disse a Stuart a seu lado:
— Isso é de tirar o fôlego.
Stuart lançou os olhos pela janela e disse com o ar superior do viajante experimentado:
— Ora, isso não é nada. Uns montinhos apenas. Já passei pelas Montanhas Rochosas, quando fui à Califórnia há coisa de um ano. Tenho feito também um pouco de pioneirismo.
— Tudo tão grande! — exclamou Janie. — Será que esta terra não tem fim?
— Minha querida, você só está vendo uma pontinha —, disse Stuart com um sorriso de indulgência. — Isto aqui é mais largo do que o Atlântico. Você não faz nem ideia.
Esperava com isso provocar o espanto e o interesse de Janie, mas ela se embrulhou mais na capa de peles e deu um suspiro que pareceu tirar-lhe todo o fôlego do corpo. A luz ensanguentada do poente acentuou-lhe o perfil estreito, o grande nariz predatório e a boca rasgada e fina com sua expressão de crueldade. Murmurou:
— Lá em nossa terra, os campos são coalhados de margaridas e os carneiros pastam nas colinas.
Ao ouvir isso, Stuart sentiu uma súbita e violenta saudade dos claros crepúsculos da Inglaterra pela primavera. Tão nitidamente como se as estivesse contemplando com seus olhos materiais, reviu as suaves colinas verdes sob o silêncio lírico do céu de heliotrópio. Viu os vales tranquilos com suas casas brancas e baixas. Sentiu o cheiro dos espinheiros e dos campos ceifados e ouviu a música distante dos chocalhos dos bois. Escutou o débil balido dos carneiros e a resposta melancólica das ovelhas a ecoar no silêncio cheio de ternura. Ah, Inglaterra, Inglaterra! pensou o jovem irlandês que nunca vira a terra de seus antepassados.
Será que as crianças se lembram também e sentem-se tristes? Laurie estava dormindo com a cabeça no ombro de Angus, que lançava o olhar tristemente pelas janelas da diligência. Stuart sentiu-se de repente alarmado. O rosto pequeno e parado do menino tinha a expressão mais remota e abstrata, como se ele nada estivesse vendo da cena selvagem e desolada lá fora. Era o rosto de um sonhador e não de uma criança, carregado de tristeza.
Bertie dormia, com um sorriso gentil a encurvar-lhe os lábios. Stuart não pôde deixar de sorrir. Já gostava de Bertie, que ria muito e nunca se queixava, por mais cansado que estivesse. O garoto achava motivo para rir em tudo e seu bom humor nunca falhava. Os cabelos ruivos estavam desgrenhados na bela cabeça. Havia várias covinhas profundas que lhe tremiam perto dos lábios, embora estivesse dormindo inconscientemente.
Quando Stuart olhou para Robbie, seu sorriso foi ainda mais amplo. Robbie estava tentando ler à luz deficiente. O garoto estava sempre lendo. Lia fria e metodicamente, fechado dentro de si mesmo. Mas não dava a impressão de ser um intelectual. Havia em sua leitura uma absorção, uma concentração desagradável. Esticou o pescoço para ver se conseguia ler o título do livro. Ficou então surpreso. O título era: Casos Famosos nos Tribunais de Old Bailey.
Direito! Stuart riu intimamente, mas olhou Robbie com mais interesse e uma curiosa e cautelosa aversão. Um pedacinho de gente como aquele! Sua aversão aumentou.

CAPÍTULO 6
Na manhã do penúltimo dia, as montanhas pareceram mais baixas como muros a distância, mas o frio se tornou mais intenso. A terra em torno deles passara a ser plana, nua, negra e imóvel como a morte. As povoações foram mais extensas, formando pequenas aldeias ou vilas. Assegurada de que a longa viagem estava quase no fim, Janie se mostrou muito interessada. Até então, não havia feito muitas perguntas a Stuart sobre o lugar onde ele morava ou sobre seus negócios. Estivera muito empenhada em insinuar-se nas boas graças dele, procurando diverti-lo e fasciná-lo. Começou então a olhá-lo com furtiva especulação, embora, quando ele se voltava de súbito, a encontrasse a rir encantadoramente.
Tinha de saber tudo a respeito dele. Que espécie de cidade seria Grandeville? Stuart explicou que era mais uma aldeia grande em desenvolvimento que uma verdadeira cidade. Mas era uma localidade dinâmica e em rápida expansão, situada às margens das águas revoltas do lago Erie. Ali é que tinha nascido o famoso Expresso Wells-Fargo. (Dezoito malas de Janie já tinham sido despachadas à frente para Grandeville por esse expresso, com grande admiração de Janie.) Era uma cidade bem movimentada essa Grandeville, ponto de comunicação entre o Leste e o insondável Oeste. Havia comerciantes ali e muita gente que ia até ali para conseguir passagem e embarque para as suas pessoas e suas mercadorias para os Grandes Lagos. Stuart respondeu a uma das perguntas de Janie que sim, que era possível ver por lá índios que passavam em silêncio e que do outro lado de algum rio enorme, podia avistar-se o Canadá. Isso tranquilizou um pouco a Janie. O Canadá era um posto avançado da Inglaterra, sobre o qual flutuava a velha Union Jack! Isso era bom, muito bom. Stuart prometeu que alugaria um barco e a levaria até ao Canadá na primeira oportunidade.
Avisou-lhe, porém, de que não iria encontrar em Grandeville a qualidade requintada e polida das cidades inglesas. Era um lugar rude e primitivo, cheio de algazarra, de tumulto e da movimentação do comércio e que, de algum modo, crescia selvagemente. As ruas ainda não eram calçadas. Viviam cheias de lama e os passeios eram de tábuas lascadas e fora do lugar. Quase todas as casas eram de madeira e terrivelmente feias, disse Stuart francamente. Só algumas casas eram de tijolos e pedra e a dele estava entre elas, tendo "uma bela vista para o rio", conforme acrescentou.
Mas Janie, com o coração a bater mais depressa com essa antevisão de Grandeville, com homens rudes que lutavam pelo ouro novo naquela terra nova, com saloons onde circulavam mulheres de má fama e bebidas fortes, cheia de luta, de energia e de estranheza, não se sentia absolutamente deprimida com a descrição que Stuart lhe fazia. Tinha alma de aventureira sem delicadeza, nem escrúpulos. O sangue lhe corria mais depressa nas veias. Escutou com prazer as histórias que Stuart lhe contava a respeito da casa onde morava. Disse que a mobília era de mogno e que havia belos tapetes do Oriente, e que ela iria encontrar ali "um lar".
— E não somos inteiramente desprovidos de civilização. Não somos exatamente um posto de fronteira. Grandeville é velha para esta parte do mundo. Os ingleses a incendiaram em 1812 e já naquele tempo a cidade era velha.
Quando falava do selvagem e ainda indomado Oeste, assumia um ar de superioridade. Grandeville era uma cidade muito cosmopolita. Janie iria encontrar por lá alemães, ao lado dos índios, dois ou três judeus e pessoas estranhas da Europa Oriental, que mascateavam e tinham lojas, que eram alfaiates e artesãos. Todos trabalhavam entusiasticamente para fazer de Grandeville um trepidante centro de comércio.
Falou-lhe de dois amigos seus, um padre católico, chamado padre "Grundy" Houlihan, e Sam Berkowitz, um judeu alemão, e um comerciante seu rival. Janie arqueou as sobrancelhas claras, olhando o primo com um sorriso superior de admiração.
— Um papista e um judeu! Coitadinho de meu Stuart!
Stuart ficou aborrecido com essa observação.
— Deixe disso! Você tem sangue irlandês e não se esqueça de que sua mãe era papista e meu pai, também.
Quanto a Sam Berkowitz, era um verdadeiro gênio e um demônio no pôquer, podendo bater o padre Houlihan 80% das vezes. Os três se reuniam todas as noites e passavam horas muito agradáveis. Esses seus amigos eram homens de bom senso e grande argúcia. Stuart passaria uma vida muito vazia sem eles, pois não teria uma pessoa inteligente com quem pudesse passar as horas de descanso.
Sim, admitiu com uma ponta de raiva, que havia "gente distinta" em Grandeville, mas eram todos tão chatos e tão mortos como arenques defumados. Havia, por exemplo, Joshua Allstairs, um imundo usurário a quem quase todas as propriedades de Grandeville estavam hipotecadas. Era inglês. Podia-se esperar coisa melhor de um inglês? Stuart tinha o rosto vermelho quando se referiu a Allstairs, a quem devia dez mil dólares.
— Não há mulheres elegantes e que se vistam na moda? — perguntou Janie.
Stuart não respondeu logo. Ainda estava com o rosto muito vermelho. Por fim, seus olhos brilharam e ele piscou para Janie.
— Ah, sim! Várias. Há uma casa cheia delas e todas muito alegres e bonitas.
Pigarreou significativamente. Janie esboçou um sorriso, levou a mão ao rosto, olhou-o por cima dos dedos com maliciosa modéstia, deu-lhe uma cotovelada e murmurou:
— Cachorro!
Janie perguntou em seguida se havia bailes em Grandeville e Stuart lhe assegurou que muitas soirées eram efetuadas, com excelente música e as toaletes das mulheres verdadeiramente notáveis.
— Temos uma aristocracia, sabe? As mulheres importam os vestidos diretamente de Paris!
Disse também que Grandeville era uma cidade do "movimento subterrâneo", na qual eram acolhidos os escravos que fugiam das fazendas do Sul para serem encaminhados ao Canadá.
— É uma atividade florescente —, disse ele, com algum pesar. A fim de impressionar Janie, falou-lhe dos cavalheiros da Virgínia, dos gentis aristocratas e das casas majestosas e belas do Sul.
— Iremos até lá um dia para fazer uma visita —, disse ele e acrescentou misteriosamente: — Tenho alguns planos em vista.
Foi só há um mês que Sam me fez a sugestão... É claro que nada está assentado ainda, mas a ideia é muito interessante. Sam vive cheio de ideias.
Ficou então curiosamente calado e observou Janie, pensativamente. Sorria às vezes e seus olhos negros brilhavam maliciosamente. De algum modo, transmitiu os seus pensamentos a Janie, porque ela perguntou com alguma displicência:
— E ainda não encontrou uma mulher de seu agrado, meu amor?
Stuart tossiu para disfarçar. Fingindo timidez, desviou os olhos da prima.
— Ainda não —, murmurou com voz pausada. — É bem verdade que Marvina Allstairs, filha única do velho Joshua, se mostre muito impressionada com minha pessoa. E o menos que se pode dizer é que é uma moça de muito dinheiro.
Isso lançou Janie em abismos de consternação. Olhou Stuart à procura de algum indício positivo. Mas o patife se limitou a cantarolar baixinho.
Desde que tinha muita consideração por Janie, sentiu-se de súbito muito deprimido. Tinha previsto aquele momento com malicioso prazer. Seria muito interessante ver a cara de Janie quando ele falasse de Marvina Allstairs. Mas, naquele momento, a coisa não lhe parecia tão interessante assim. Janie tinha vindo de muito longe à procura dele. Trouxera em sua companhia os quatro pobres garotos através de intermináveis milhas de oceano. Irritou-se então com ela, numa medida de legítima defesa. Ela não podia ter sinceramente acreditado que um homem sete ou oito anos mais moço fosse querer casar-se com ela, apesar de todos os anos que tinham passado juntos na infância e na mocidade! Ela não poderia ter pensado a sério que as relações da infância e uma fortuna atualmente considerável poderiam fazer esquecer-lhe a idade, os filhos e seu estado não virginal! Era muita pretensão de Janie e era até vergonhoso que ela pensasse assim! Havia também em tudo isso insensibilidade e atrevimento! Janie era uma idiota.
Mas Janie fez ouvir sua voz rouca e manhosamente suave.
— E essa tal Marvina é bonita?
Stuart assumiu uma pose séria e meditativa. Não olhou para Janie quando respondeu:
— Sim, é de uma beleza rara. E, além disso, uma moça de posição e muito prendada!
Stuart pensou no odioso Joshua Allstairs, que não tinha visto com bons olhos as pretensões de Stuart à filha. Joshua era um inglês que odiava todos os estrangeiros, particularmente os irlandeses, a quem considerava com desprezo um pouco abaixo dos negros e dos índios. Havia permitido a entrada de Stuart em sua casa porque se tratava de um moço agressivo com uma rara capacidade de ganhar dinheiro e porque, apesar de sua raça, não era papista. Além disso, o velho Joshua gostava de jogar whist e Stuart era um excelente jogador e, ainda, sabia distinguir um bom uísque e não era um adversário desprezível no xadrez. Stuart, procurando ganhar-lhe as simpatias, inventara uma longa série de antepassados ilustres escoceses e irlandeses, falando até de uma sede de condado que era o tronco da família. Allstairs, que não tinha antepassados que não tivessem sido lojistas e artesãos em Londres, ficou impressionado, principalmente com a "sede do condado".
— Meu pai era da Irlanda do Norte —, dissera Stuart, mentindo à grande. — Era descendente indireto de Lord MacIlleney. Meu primo, o atual detentor do título, ia quase sempre visitar meus pais na Inglaterra. É casado com Amélia Courtney, cujo pai, Lord Devonshire, tem muito prestígio na Câmara dos Lordes. — E acrescentara, fiel ao princípio de que tanto vale ser preso por mil quanto por um milhão: — Dick, isto é, meu primo Lord MacIlleney, prometeu que viria até aqui fazer-me uma visita. Tenho certeza de que vai gostar muito dele.
Apesar disso, o velho Joshua, que guardava zelosamente a sua bela Marvina, não se mostrava bem disposto a respeito das pretensões de noivado de Stuart. Não era possível esquecer o fato lamentável de que Stuart era irlandês e era incontestável que os irlandeses eram uma raça inferior, constituída de patifes, mentirosos, assassinos, ladrões e vagabundos. Pior ainda, viviam ainda sob a influência de uma igreja abominável e adoravam "imagens gravadas". (Joshua era um presbiteriano fervoroso.) Apesar de todas as vantagens de Stuart como noivo, de sua perícia no whist e no xadrez, de sua fortuna em ascensão, de sua elegância, de suas boas maneiras e de seu espírito, Joshua hesitava. Tinha feito uma boa fortuna naquela detestada América, em consequência do fato de que era pessoalmente um ladrão, um charlatão, um explorador e um patife sem escrúpulos. A sua intenção era voltar para a Inglaterra com a filha e casá-la com um nobre ou, pelo menos, com algum homem de posição.
Stuart pensou em todas essas coisas e seu rosto sempre tão alegre e vivo se tornou sombrio. Janie percebeu isso e seu coração que estava bem pequeno recomeçou a animar-se. O aperto que sentia no estômago se atenuou. Umedeceu os lábios e observou atentamente o primo. Tudo foi então sol brilhante e rosas desabrochadas. Enquanto há vida, há esperança, pensou ela, sorrindo intimamente. Stuart não havia falado muito de Joshua Allstairs e a sutil e inteligente Janie tinha percebido pela sua expressão que o velho usurário não via com bons olhos a hipótese de um noivado. O espírito de Janie continuou a tecer a sua teia de aranha e um sorriso sonhador lhe tocou os lábios.
Mudou simpaticamente de assunto. Mostrou-se toda cheia de afabilidade e de pilhérias equívocas, dispensando a Stuart tapas vigorosos e olhares brejeiros, até que o fez rir de novo e sentir prazer com o riso dela.
Mais tarde, naquela noite, através das finas paredes de tábuas que dividiam os quartos do hotel, Stuart ouviu a voz irada e praguejante de Janie, as pancadas que caíam sobre alguma vítima silenciosa e, por fim, o grito estridente e aterrado de Laurie:
— Não, Mamãe! Não bata mais nele!
Stuart compreendia tudo. Fervendo de raiva impotente, podia apenas desprezar-se pelo sofrimento infligido ao pequeno Angus e à irmã em consequência de uma coisa que o culpado era ele, Stuart. Teve de conter-se uma dúzia de vezes para não invadir os aposentos de Janie e espancá-la violentamente, salvando as crianças. Encolheu então os ombros no seu desespero. Não adiantava coisa alguma. Nada havia que ele pudesse fazer.
Mas murmurou repetidamente, entre os dentes cerrados:
— Megera! Cadela!
Toda a sua compaixão por Janie tinha desaparecido. Passara a odiá-la virulentamente.

CAPÍTULO 7
Muito antes do amanhecer, no último dia, Stuart acordou inquietamente de seu cochilo e acomodou-se no banco da carruagem. Ansioso por voltar para casa, decidira, depois de consultar Janie, não parar para pousar em qualquer hospedaria na noite anterior e prosseguir viagem a fim de chegar a Grandeville antes da noite.
O ar abafado e cheio de pó da carruagem era de um frio cortante. Apesar das mantas que tinha a envolver-lhe as pernas, Stuart sentia-se enregelado e angustiado. Havia no céu negro uma delgada fatia de lua e cintilantes estrelas. Podia ver a essa débil luz, os vultos encolhidos de Robbie, Angus e Laurie, deitados sob suas mantas no banco em frente. As crianças dormiam em atitudes de completo abandono e exaustão. Stuart não podia ver-lhes os rostos mergulhados na penumbra, mas, ainda assim, uma longa madeixa solta dos cabelos de Laurie rebrilhava. Janie dormia ao lado de Stuart e encostada nele, tendo ao lado seu predileto, Bertie.
Não havia som senão o que a carruagem fazia sobre a estrada irregular. Até os cocheiros cochilavam na boleia, embalados pela escuridão, pelo rolar das rodas de madeira e pelo leve bater dos cascos dos cavalos. De vez em quando, os arreios tilintavam levemente. A carruagem jogava como um barco e as janelas se balançavam nos caixilhos, enquanto as portas rangiam.
Stuart sentia-se terrivelmente deprimido. Tinha uma natureza volátil que ou se elevava aos píncaros da exultação ou descia a profundezas escuras, sem meio termo. Embora já estivesse habituado a essas curvas de exaltação e de mau humor, pensava que cada um desses estados era permanente, sempre que se via dominado por ele. Naquele momento, tinha certeza de que aquela pesada melancolia iria acompanhá-lo pelo resto da vida. Moveu-se com alguma dificuldade e tentou olhar através da janela salpicada de lama. Nada viu além do céu escuro com suas estrelas e da escuridão amorfa e plana da terra. Deu um suspiro, afastou-se de Janie que resmungou sem acordar e se encostou no lado da carruagem.
O doentio e vago desespero dos celtas se abatia sobre ele como um peso esmagador. Havia muito aprendera que era inútil procurar uma causa ou, pelo menos, uma causa relevante. As menores coisas bastavam quase sempre para fazê-lo mergulhar em profundo abatimento. Os acontecimentos importantes em geral causavam-lhe exaltação porque eram assuntos que ele quase sempre podia enfrentar e dominar. Nunca o deprimiam. Era o zumbir de um inseto, uma sensação breve de picada no corpo, o jeito do vento, o aspecto do céu, uma palavra, um olhar e, às vezes, até o movimento de uma saia de mulher que tinham o poder de engolfá-lo no misterioso horror da depressão completa, inexplicável e absurda. Havia ocasiões em que pensava que ia ficar louco.
Sem ser reticente, queixara-se de passagem desses estados de espírito a seus dois amigos, padre Houlihan e Sam Berkowitz.
— Weltschmerz —, dissera Sam com um suspiro. Explicara em seguida a palavra a Stuart, que havia dado uma risada, achando a ideia ridícula. "Dor do mundo"? Por quê? Pessimismo sentimental? Que era que isso tinha a ver com Stuart Coleman? Amava o mundo demais e o achava cheio de prazer e não de dor.
— Na alma que está dentro de você —, dissera o padre Houlihan.
Stuart rira também e não com menos desdém do que tinha rido de Sam. Alma? Pelo amor de Deus, não tinha senão o seu corpo vigoroso e cheio de disposição. Se estava bem escondida no fundo dele, como uma semente ou um caroço de fruta e, pelo que lhe interessava, podia assim continuar.
— Não tenho nada de que me arrependa, porque nunca faço nada de que me possa arrependa —, tinha dito ele ao padre, sentindo-se com isso muito lúcido e inteligente.
Já então terrivelmente acordado, passou em revista os acontecimentos dos últimos dias. Viu os cabelos dourados de Laurie, os rostos dos meninos e cerrou os punhos. Janie é que era a culpada de tudo.
Nunca penso bem nas coisas, refletiu ele. Meto-me nas situações mais difíceis e depois fico sem saber como foi que se verificaram. Sou um verdadeiro imbecil! Que é que eu vou fazer com ela? Durante toda minha vida, sempre me esquivei de assumir responsabilidades para com os outros. Sempre fugi a qualquer perspectiva de casamento. Sempre consegui livrar-me honrosamente da menor ameaça de ingerência com os outros e com os seus problemas. Entretanto, aqui estou com essa mulher estranha e com seus filhos. Que é que eu vou fazer? Nunca pensei que ela me levasse a sério.
Sentia-se confuso e furioso ao lembrar-se de que ficara muito satisfeito quando Janie lhe escrevera dizendo que estava com vontade de ir para os Estados Unidos, como se ir para os Estados Unidos fosse um simples passeio que se dava numa carruagem para, depois de uma rejeição ou duas, voltar para casa! Não tinha visto senão a possibilidade da presença de Janie. Não pensara um só instante nos filhos.
Devagar, pensou ele, fazendo uma parada súbita em suas meditações sobre o assunto. Janie tinha dinheiro. Quinze mil libras esterlinas em dinheiro. Não havia pensado nisso e sentiu por um momento justificada complacência. Apertou os lábios como se fosse assobiar. A fortuna de Janie equivalia mais ou menos a setenta e cinco mil dólares! Não lhe seria muito difícil conseguir um pequeno empréstimo de dez mil dólares e pagar àquele sanguessuga de Joshua Allstairs. Depois de reembolsado do dinheiro, Joshua teria muito mais respeito pelo pretendente da filha.
Stuart ficou muito interessado. O sangue se lhe aqueceu. Entrevia de repente todas as possibilidades de setenta e cinco mil dólares.
No seu júbilo e exaltação, Stuart deixou de lado o pensamento cauteloso de que Janie talvez não estivesse disposta a emprestar-lhe o dinheiro, se isso fosse na realidade meio caminho andado para seu casamento com a bela Marvina. Mas ele saberia manobrar Janie. Teria a fortuna dela bem segura antes que se tornasse noivo oficial de Marvina. Bastava no momento que ele soubesse ganhar a confiança da cadela de olhos verdes, adulando e lisonjeando a prima para que ela acreditasse sabe Deus em quê. Pensou em Janie sem o menor escrúpulo. Não fora ela para os Estados Unidos com o propósito deliberado de forçá-lo a casar-se com ela? Ele nada lhe devia. Se ele, por sua vez, usasse de um truque para com ela, neste caso ganharia quem fosse mais esperto. Além disso, ele se encarregaria de duplicar-lhe a fortuna e isso, ao fim de tudo, seria bom demais para aquela bisca.
Stuart estava exultante. A sua crise de depressão tinha passado. Sentia-se de novo entusiástico, enérgico e forte. Olhou para a janela, ansioso por que o dia nascesse. Estava impaciente para entrar em ação.
Para os lados do nascente, o céu já se ia alterando. Estava do azul claro mais puro, com tonalidade de anil mais no alto. Ao longo da linha escura da terra, havia uma faixa de fogo imóvel, mas que se tornava mais forte de momento a momento. Bem no meio do translúcido azul, havia a cintilação radiosa e pura da estrela da manhã. Acima dela, brilhava a tira recurva e prateada da lua, que empalidecia visivelmente. Como estava tranquila a terra adormecida, como era escura e caótica em suas formas indefinidas, como era silenciosa! Era como se ainda fosse nascer e não estivesse com pressa. O silêncio do amanhecer tinha uma intensidade mais profunda do que a serenidade da noite ou a imobilidade do sono. Havia nele uma presciência, uma expectativa imponderável, que deixava de ser irrefletida e estava preparada para a vida, para o mundo que lhe daria forma e ser.
A majestade inefável do dia empolgou a atenção volúvel de Stuart e a alma do celta foi estranhamente comovida e dominada. Sentia-se humilhada e indizivelmente triste. De súbito, pareceu a Stuart que nada tinha importância e, menos do que o resto, ele próprio. Não rezava desde os tempos de criança. Mas naquele momento houve uma agitação nele, como se as mãos pesadas ansiassem por levantar-se em prece. Palavras esquecidas vieram-lhe do fundo da infância: "Quando contemplo Teus céus, a obra de Tuas mãos, a lua e as estrelas que ordenaste, que é o homem?"
A tristeza de Stuart chegou ao ponto máximo e então sua sadia resistência acudiu em ajuda e ele encolheu os ombros. Ouviu alguém mover-se dentro da carruagem. Angus e Laurie tinham acordado e as duas crianças olhavam com os rostos pálidos e embevecidos para o céu do amanhecer, Stuart olhou-os furtivamente. Viu o perfil puro de Laurie, com a boca entreaberta e os olhos azuis dilatados à luz pálida da manhã. Viu o rosto vincado e triste de Angus, tão jovem e tão timidamente trágico. As duas crianças estavam de mãos firmemente dadas. Os cabelos de ouro de Laurie caíam-lhe pelos ombros, desgrenhados e escachoantes. Era ainda uma criança, mas já tinha jeito de mulher.
Janie bocejava e resmungava, começando a acordar. Bertie já estava acordado e esfregava os olhos vigorosamente. Mas Angus e Laurie não tomavam conhecimento senão da manhã, inclinando-se para a janela com a triste ansiedade dos exilados que divisam os contornos escuros das praias natais.
Stuart teve então um sobressalto. Laurie tinha começado a cantar baixinho, mas com pura firmeza. Tinha a mais doce e inocente voz, mas estranhamente forte e afinada para uma criança como ela. Cantava como para si mesma uma estranha canção gaélica. Era como se estivesse repetindo alguma coisa que lhe haviam ensinado. Stuart tinha esquecido quase todo o gaélico que sabia, mas conseguiu pegar algumas palavras. Era um hino à estrela da manhã.
A doce e bela voz jovem encheu a carruagem como o som delicado de uma harpa. A própria Janie escutou ainda tonta de sono, mas com uma impaciência contida. Stuart não tomou conhecimento dela. Via apenas a menina que cantava como se estivesse sozinha e meditasse. Angus escutava com os olhos fitos na estrela e na lua.
Angus tinha naquele momento uma estranha visão. Via montanhas negras e amontoadas, tocadas pela primeira luz da manhã. Via as montanhas desertas e desoladas envoltas em véus brancos e nuvens de neve. Via aquele céu, com a estrela e a lua, acima deles, cheios de silêncio e de imponência. E via a pessoa que cantava, não Laurie, mas um jovem forte e esbelto, que louvava a estrela da manhã com o rosto erguido, os olhos negros exaltados, cheios da humildade e do êxtase de uma adoração ilimitada. De repente, Angus começou a chorar em silêncio, com as lágrimas a rolar-lhe pelas faces. Não sentia exaltação; sentia-se apenas privado e exilado, dentro de uma imensa dor. Era apenas uma criança e não tinha palavras para exprimir o seu sofrimento. Sabia apenas que tinha o coração repleto de agonia.
Laurie terminou o seu canto e encostou a cabeça no ombro de Angus. Bocejando sem parar, Janie disse de mau humor:
— É melhor mesmo parar com seus miados tão cedo assim, menina. Fez um barulho de acordar os mortos.
Stuart inclinou-se para Laurie. Tinha uma vontade enorme de tocar na menina, mas alguma coisa o impedia. Disse então com muita ternura:
— Que belo canto foi esse, querida?
Laurie virou o rosto para ele. A luz mais clara da manhã nascente caía sobre o lindo rostinho. Os olhos azuis estavam parados como se vissem alguma coisa além do primo da mãe e, embora ela sorrisse vagamente, Stuart sabia que ela não o estava realmente vendo.
— Foi um canto que Papai nos ensinou —, murmurou ela. — Era a canção de Papai que ele fez para Angus. Fez uma para mim também.
— Foi mesmo? — perguntou Stuart com maior delicadeza ainda. — E qual foi a canção que ele fez para você?
Laurie hesitou e um leve rubor lhe tocou as faces. Baixou os olhos e disse:
— Chama-se O Amor é Maior do que a Vida.
Stuart franziu as sobrancelhas.
— É uma canção muito estranha para uma menina. Não sabe o que quer dizer isso, sabe?
Foi a voz estridente de Janie que lhe respondeu:
— Robin mimava muito essas crianças. Era um verdadeiro absurdo. Ele nunca foi um pai às direitas para a família que tinha. Agora, Laurie, penteie esses cabelos e se comporte como uma mocinha. E você, Angus, pare de olhar pela janela e chorar como uma criança. Onde está seu lenço?
Stuart nunca tinha dado muita atenção a Robbie desde a partida de Nova York, mas naquele momento seus olhos se encontraram involuntariamente com os do garoto. Robbie tinha nos lábios o seu sorriso triste e contorcido, sarcástico e irreverente. Era uma cara de gnomo que olhava para Stuart, velha, irônica e impessoalmente cruel, como se ele achasse Stuart muito interessante, muito ingênuo e talvez um pouco bronco.
Bertie bocejava amplamente, com os anéis ruivos desgrenhados e o rosto belo e simpático sorridente como sempre. Olhou para os irmãos e, por um momento intangível, a sua expressão se tornou sombria, como se fosse tocada pela compaixão. Era incrível. Stuart mal pôde acreditar. Sentiu-se desorientado como se tivesse chegado a um estranho país povoado das mais esquisitas criaturas.
O dia foi correndo e o cansaço dos viajantes aumentou à medida que se aproximaram de Grandeville. O céu estava ficando muito carregado para os lados do nordeste. Os silêncios eram maiores, como se estivessem exaustos até de falar. Até a loquaz Janie se trancava num pesado mutismo.
Sentado num canto da carruagem, Stuart franzia a testa, pensando. Não era dado a longas meditações. Mas, naquele momento, o seu espírito estava curiosamente empenhado no esforço de desembaraçar-se da vacilante desorientação de suas impressões. E, estranhamente, não era tanto da linda Laurie, de Janie, de Angus ou de Bertie que pensava, quanto de Robbie. Não podia esquecer a expressão singular do garoto quando o olhara naquela manhã, nem as sensações humilhantes que experimentara.
Irritado com aquela obsessão mental em relação a Robbie, lembrou-se de que tinha falado bem poucas vezes com o garoto durante a viagem. Robbie vivia tão calado, tão metido consigo mesmo, tão pensativo e reservado, que não era de estranhar que não se desse muita atenção a ele. Para isso contribuíam ainda a sua estatura pequena e magra, a sua falta de pitoresco e a sua reserva. Nunca procurava afirmar-se em coisa alguma. Sentava-se calado na carruagem durante dias inteiros e nunca se unia aos outros. Nunca se queixava, nem agia de maneira infantil, adulando para conseguir favores como Bertie, metido desoladamente dentro de si mesmo como Angus ou dentro de tímida confusão, como Laurie.
Perdendo rapidamente o equilíbrio e o bom senso, Stuart não podia desviar os olhos daquele vulto esguio e silencioso no fundo da carruagem. Janie costumava chamar o garoto de "preto". Era preto de fato. Dos cabelos aos olhos repletos de uma espantosa expressão de ferocidade impessoal e fria, da pele bem morena à boca dura, calma e bem feita. Tinha mãos pequenas e delicadas, mas dotadas de estranha firmeza. Não parecia uma criança. Era muito compacto, consciente e calmamente enérgico. Com certeza, o coração também é preto, pensou rancorosamente Stuart.
Que era que ele via naquele absurdo livro? Sem dúvida, era tudo puro fingimento. Queria impressionar os outros com o seu gosto pela leitura.
Foi só ao escurecer que Stuart se dispôs a falar sobre o assunto que o obcecava e aborrecia.
— Escute aqui, Robbie —, disse ele com um sorriso e um tom zombeteiro. — Que é que acha de tão interessante nesse livro enorme, grande demais para um garotinho como você?
Robbie levantou os olhos pretos sem muito interesse e fixou-os em Stuart. Ficou por um momento em silêncio, enquanto um leve rubor lhe subia às faces. Disse, por fim:
— O livro é muito interessante, primo Stuart. Creio que já lhe falei uma vez sobre ele. Trata dos julgamentos dos crimes de morte em Old Bayley, em Londres.
— Crimes de morte? — exclamou Stuart, arqueando as sobrancelhas e procurando mostrar um espanto divertido e indulgente. — Que é que pode haver nisso de interessante para você, um garoto que mal saiu das fraldas?
Esperava embaraçar Robbie, reduzindo-o à sua condição de menino indefeso. Mas Robbie se limitou a olhá-lo com a sua gravidade impenetrável que Stuart achava extremamente irritante. Um leve sorriso lhe aflorou aos lábios e ele encolheu os ombros quase imperceptivelmente, como se julgasse Stuart aborrecido e imaturo.
— Pois esses assuntos me interessam e muito! Espero ser advogado um dia e gosto de ler sobre os julgamentos dos crimes de morte. Os juízes e os advogados são em geral tão pouco inteligentes! Ora, veja! Era mais que evidente que Jervis tinha assassinado a mulher. Entretanto, foi absolvido por falta de provas! Qualquer pessoa pode ver como ele enganou os jurados!
Stuart não deu mais resposta. Recostou-se no seu canto um pouco desconcertado, enquanto Robbie voltava à leitura de seu livro. Janie riu zombeteiramente, como se tivesse orgulho da precocidade de seu detestável rebento. Ela não gostava absolutamente de Robbie, mas tinha uma espécie de admiração por ele e pelos seus modos eficientes que de certo modo a eximiam de muitas responsabilidades.
— Ele é vivo, hem? — exclamou ela.
Mas Stuart estava de novo confuso, desorientado e cheio de súbito ódio pelo pequeno Robbie. O fato o fez ficar calado e amuado por mais meia hora.
Bertie, o garoto de boa natureza e modos gentis, sentia-se um pouco entediado. Implicou durante algum tempo com a mãe e, depois, quando ela lhe deu um tapa e disse um nome feio, desistiu e bocejou. Foi então que seus luminosos olhos azuis pousaram em Robbie, como se fossem uma mosca irrequieta. Estendeu a mão e arrebatou o livro aberto no colo do irmão e jogou-o no chão empoeirado da carruagem. Robbie levantou-se com um grito de raiva e atacou o irmão. Janie começou a gritar e a bater indiscriminadamente nos dois, enquanto eles rolavam pelo chão engalfinhados, levantando uma nuvem de poeira, e se esmurravam furiosamente. Stuart ajudou Janie a desapartar a mistura de braços, pernas e roupas amarrotadas.
— Chega! Chega! — gritava ele, afastando Robbie de Bertie, que estava começando a levar desvantagem. Jogou Robbie violentamente para o seu canto do banco, enquanto Janie, que sustinha Bertie com muita moderação o fazia sentar-se ao lado dela e lhe limpava as roupas empoeiradas.
Robbie estava sentado e arquejante, limpando as roupas com uma fúria silenciosa. Olhava para o irmão com uma raiva feroz. Passou as mãos pela cabeça para ajeitar os cabelos desgrenhados. Tremia dos pés à cabeça.
Bertie, convenientemente contido por Janie, mas ainda rindo descontroladamente, olhou para Robbie. Os dois se encararam por um momento. Então, com surpresa para Stuart, Robbie começou a sorrir. Tirou das calças a última mancha de poeira com muita displicência e seu sorriso se alargou. Os olhos pretos dançavam nas órbitas.
— Um dia destes lhe darei uma surra de que você não vai mais se esquecer —, murmurou ele. E sua voz era de uma criança.
Mas não voltou a ler. Ele e Bertie começaram a se dizer coisas e trocar ameaças nos tons insignificantes e ferozes da infância.

CAPÍTULO 8
Janie deixara de se queixar, fossem quais fossem os seus pensamentos. Desde que passara a ter alguma coisa a ganhar era toda afabilidade e bom humor. Reduzia a nada os desconfortos, zombava deles e aceitava tudo.
Desde o princípio, detestara os Estados Unidos, não com paixão ou vingança, mas de maneira objetiva e sem prevenção pessoal. Apesar disso, habituou-se em breve ao país e começou a procurar as vantagens que poderia tirar dele.
Tivera uma agradável surpresa com a casa de Stuart, onde estava hospedada com os filhos.
— Deve valer alguma coisa —, murmurou Stuart com relutância ante as manifestações de admiração da prima. — Tomei dez mil dólares emprestados ao velho Allstairs para construí-la.
Janie, que sentia um desprezo atônito por quem precisava de tomar dinheiro emprestado para construir uma casa, não fez comentário algum sobre isso. Dentro de seus princípios, podia compreender muito bem que alguém tomasse dinheiro emprestado para comprar terras ou criar negócios, mas tomar dinheiro emprestado para comprar "bugigangas" era positivamente ofender a Deus. Havia alguma coisa fundamentalmente errada num homem que gostava de coisas bonitas a ponto de assumir compromissos para comprá-las. Graças ao seu desprezo secreto por Stuart, sentia cada vez mais o seu domínio sobre ele e confiança em si mesma. Passara muitas horas difíceis na viagem de Nova York até ali. Mas todas as suas apreensões estavam quase dissipadas. Era de novo mais velha do que Stuart, a mimá-lo, a tratá-lo afetuosamente e a trocar piadas livres com ele.
Era na verdade uma casa estranhamente bela aquela, construída de pedra clara e de frente para o rio. Era também extremamente grande, o que espantou Janie, e de belas proporções, possuindo dezesseis peças, cada qual mais atraente e repousante do que a outra. Havia três altos andares. As janelas eram todas altas, estreitas e protegidas de grades. Tinha o aspecto de um templo grego, com as suas oito colunas que se erguiam por toda a altura da casa, sustentando no alto uma graciosa sacada. A pedra tinha sido levada para Grandeville numa barcaça pelo canal. Stuart nunca se cansava de contar a história da árdua jornada. Os blocos se juntavam tão bem que era preciso olhar com muito cuidado para ver os pontos de junção e eram tão polidos e rebrilhantes que pareciam feitos do mais puro mármore branco. Quando se entrava no vestíbulo central, via-se a curva graciosa de uma escadaria que ia até à terceira galeria. Do teto pendia um grande lustre, resplandecente de cristal e dourados. À noite, todas as suas velas eram acesas, quer se estivessem esperando visitas, quer não. Janie achou isso uma extravagância, mas Stuart replicou, irritado:
— Construí esta casa para meu prazer e não para ser admirada pelos outros.
O chão de grande vestíbulo era espantoso, sendo construído de uma peça aparentemente inteiriça de granito preto brilhantemente polido que, como o exterior da casa, tinha a aparência do mármore. Muitas das relações de Stuart ficavam mal impressionadas com o efeito assombroso da casa, deliberadamente feita em preto e branco e se revoltavam com uma ideia tão estranha. Era fantástico. Só um irlandês, diziam, poderia pensar em coisa tão fora do comum. O madeirame era puro e cintilantemente branco, as lareiras eram de pedra preta polida, sendo imensas, mas curiosamente delicadas na sua estrutura e forma. Os altos tetos eram de estuque branco moldado, discretamente tocado de um friso dourado. O grande salão, frio, mas belo, tinha um parquete marchetado, parcialmente coberto por um grande tapete Aubusson dos mais suaves matizes de azul, rosa e vermelho-claro. Os móveis, também belos, eram de linhas austeramente perfeitas. Os graciosos sofás e poltronas eram forrados de seda adamascada, tapeçarias e veludos em tonalidades correspondentes às do tapete.
Em todas as mesas trabalhadas, havia lâmpadas de cristal e estranhas caixas rebrilhantes. Nas paredes brancas, viam-se quadros de flores e de cenas rurais.
— Não há retratos de antepassados ilustres —, disse Stuart, rindo. — Mas estou pensando em comprar alguns em Londres para impressionar a gente do lugar.
O grande salão de jantar tinha lambris de madeira clara e era de tom vermelho e azul-claro. Os móveis, na melhor tradição de Chippendale, eram impecáveis. Havia uma biblioteca também, com as paredes cobertas de livros impressionantes, que Stuart sinceramente confessou que não eram para ser lidos, pois ele nada tinha de "intelectual". As lombadas, vermelhas e azuis, correspondiam também às cores do tapete e dos reposteiros. Ali, havia uma lareira sempre acesa, mesmo no verão.
— O clima aqui é muito frio —, explicou Stuart —, e terrivelmente úmido.
Havia oito grandes quartos, quase todos de frente para o rio. Quatro deles, com seus quartos de vestir, ficavam no segundo andar; os outros quatro, no terceiro andar. Dois dos quartos maiores tinham também salas de estar. Todos tinham lareiras, mas, em vista dos verões breves e dos longos invernos inclementes naquela terra do norte, havia também estufas. Os móveis dos quartos eram também de irrepreensível gosto, tendo grandes camas com dossel, tapetes e cortinas, tudo levado, com os outros móveis, da Inglaterra e do continente.
Infelizmente, os ambiciosos planos de Stuart para a sua casa não se tinham estendido a terrenos vastos. O dinheiro havia desaparecido da maneira mais desconcertante. Conseguira comprar apenas menos de um hectare de Joshua Allstairs, depois de calculado o preço da casa e dos móveis. Entretanto, no reduzido terreno, Stuart tinha demonstrado um bom gosto exigente e inesperado. Não permitiu que as árvores ou os matos escondessem a vista do rio, que corria abaixo da ribanceira que descia da casa. Da porta partia um caminho que se curvava graciosamente e era feito de lajes brancas, dando a impressão de que o rio fazia parte da casa e de seus terrenos, sendo uma delicada extensão dos mesmos. Mas, dos dois lados e nos fundos da casa, cresciam altos e nobres álamos e castanheiros, árvores que davam à casa um ar de permanência e segurança. Stuart havia aproveitado ao máximo o terreno dos fundos, de modo que os jardins, as alamedas e as grutas pareciam maiores do que realmente eram. Depois, desde que a casa ficava num ponto isolado, a alguma distância do centro da cidade, e os terrenos vizinhos ainda estavam baldios e em estado natural, Stuart nunca informou aos conhecidos que aquelas extensões de bosques e matos não lhe pertenciam. Gozava-os serenamente e tinha até planos para incorporá-los de futuro à sua propriedade. Caçava neles de consciência tranquila e, de vez em quando, levava seus convidados a passeio por aqueles trechos de mata virgem, muito embora Joshua tivesse mandado colocar ali cartazes que proibiam a entrada de estranhos.
Chegara ao extremo de mandar fazer as estrebarias nos limites de suas terras, ultrapassando-os até um pouco. Gostava muito de cavalos e tinha oito de boa linha de sangue e boa criação. Tinha também quatro carruagens muito bem trabalhadas. Perto das estrebarias, havia uma pequena construção onde se alojavam os seus cinco empregados.
Stuart pouco ligava à opinião de quem não o pudesse ajudar, nem prejudicar e revelava ingenuamente o preço da casa e de seus móveis a quem quer que tivesse a indelicadeza de perguntar-lhe. Por isso, quando Janie sugeriu habilmente que todo aquele esplendor devia ter custado mais de duas mil libras, concordou prontamente.
— Eu tinha dez mil dólares meus —, disse ele. — Tomei mais dez mil emprestados ao velho Joshua, aquele patife. Foi a primeira hipoteca sobre a velha loja.
Janie teve tato bastante para não dar opinião. Lembrou-se, entretanto, do que o pai dissera certa vez a respeito de um vizinho que não tinha antecedentes, nem família discerníveis: "Um mendigo sempre levanta um palácio quando pode tomar emprestado algumas libras."
Era para Stuart uma alegria constante e também uma justificação saber que possuía a casa mais bela e mais espetacular da região. Quando, aos domingos, belas carruagens passavam pela estrada à beira do rio e os que passavam procuravam não olhar para as belas montanhas além da casa, ele exclamava:
— Não querem olhar os idiotas, mas a casa lhes enche os olhos!
Quando lhe chegavam aos ouvidos comentários desfavoráveis, no sentido de que ele era um louco, que dentro em breve pediria falência e iria acabar pedindo esmola, não se aborrecia. Isso só lhe dava prazer. Mas quando lhe foram dizer que o velho Joshua comentara que o vestíbulo de granito preto não lhe agradava e que ele mandaria reformá-lo, logo que a casa passasse a ser de sua propriedade, rangera os dentes de raiva. Amava tão apaixonadamente a casa que construíra que jurou intimamente que tocaria fogo nela de preferência a vê-la nas mãos de Joshua Allstairs.
— Farei isso com o coração sangrando —, murmurava no escuro, deitado em sua cama —, mas farei.
Mas, no íntimo, não acreditava que sua amada casa pudesse ser-lhe tirada das mãos. Lutaria até à morte por ela. Era o seu tesouro, o tesouro do seu coração. Confortava-o como uma mulher; enchia-lhe a vida como uma dúzia de filhos. Era a sua razão de viver e o seu motivo de trabalhar. Era a expressão de sua alma. Nunca se cansava de passear de peça em peça, alegrando-se com o que via, passando a mão pelas madeiras e exultando com os móveis. De certo modo, a casa era sua religião, que o consolava das canseiras e lhe satisfazia os instintos mais profundos. E, de uma estranha maneira, sentia-a tão completa que não tinha necessidade de uma mulher com quem a partilhasse. Havia ocasiões em que ficava diante dos grandes espelhos dourados durante muitos minutos e sorria para si mesmo, com lágrimas nos olhos.
Janie, que suspeitava de grande parte disso, divertia-se crua e intensamente com essa loucura, essa devoção de um homem a uma casa e acabou reconhecendo que devia haver por trás desse esplendor e dessa beleza mais do que uma simples revolta contra uma infância pobre. De certo modo, a casa era a alma de Stuart, parte da fantasia que ele tinha na alma, parte da sua natureza sonhadora e mística. Stuart podia ser áspero e ávido em seu desejo de ganhar dinheiro. Mas a aspereza e a avidez eram dedicadas a uma beleza viva.
Stuart havia herdado a loja do pai. Superficial e displicente por natureza, ter-se-ia contentado em fazer alguns lucros pequenos e fáceis, em perder o seu dinheiro jogando com companheiros felizes, em fazer incursões periódicas pelo país ou em gastá-lo com as mulheres. Não era, por temperamento, um homem de negócios hábil ou empreendedor. A casa lhe modificara a natureza, dando-lhe uma ambição inquieta, nervosa e cruel. A casa não era mais dele. Ele é que pertencia a ela.
Os melhores quartos tinham sido dados a Janie e seus filhos. A presença deles revoltou e deprimiu tremendamente Stuart. Estremecia intimamente quando uma das crianças arrastava os pés ou corria por um dos assoalhos envernizados. Sofria verdadeiras torturas mentais quando as crianças invadiam o salão ou o seu escritório. Sentia suores frios quando as via sentadas nas cadeiras. Convencia-se então de que tinha de livrar-se delas, depois, é claro, que houvesse conseguido de Janie o empréstimo que pretendia. Até lá, guardava para si mesmo suas ideias e seus sentimentos.
Grandeville era uma cidade feia de cerca de vinte e cinco mil habitantes. Constava de uma comprida rua no meio, chamada de rua Principal, com ramificações menores e sem plano de um lado e do outro. A parte "velha" da cidade se estendia também à beira do rio, mas a cerca de cinco quilômetros da casa de Stuart e ali viviam as "velhas" famílias, que se haviam enriquecido rapidamente com os curtumes, os matadouros, as estrebarias onde se vendiam cavalos e as casas comerciais da comunidade. Como o velho Joshua, havia também quem fizesse grandes fortunas por meios misteriosos. Outros eram comerciantes e possuíam barcaças e barcos que transportavam mercadorias entre as cidades dos Lagos. Os homens das famílias "velhas" não eram mais aventureiros. Formavam a burguesia, confortável e contente, mas gananciosa, cobiçosa e, ainda por cima, oportunista.
Viviam nas casas mais feias, altas e estreitas, com paredes de tijolos vermelhos, todas enfeitadas de cúpulas e torreões, com largas varandas sombrias e estrebarias ao lado de jardins por trás de gradis de ferro. Pelas ruas calçadas de pedras, moviam-se as suas carruagens imponentes e brunidas, com suas mulheres altivas e contrafeitas. Os passeios eram de tábuas ou de pedras e eram conservados em estado razoável de limpeza. O único toque de beleza era dado pelos velhos álamos e castanheiros que marginavam as ruas e enchiam o verão do norte de sonoros murmúrios. Entretanto, escureciam um cenário já sombrio e davam aquela parte da cidade um ar desolado, hostil e repulsivo.
As casas eram mobiliadas com um gosto execrável que bem combinava com o seu exterior. As preferências dos donos das casas recaíam em móveis pesados e pretos de nogueira e mogno, estofados de crina e de pelúcia vermelha, de enfeites horrorosos e tapetes de Bruxelas, em cortinas de renda engomada de Nottingham e veludo.
— Querem ser como os ingleses de Manchester, nem que morram sufocados —, dissera Stuart uma vez, rindo com desprezo das portas e janelas de vitrais, tão estreitas como seteiras, cujos reposteiros vedavam os escassos raios de sol que conseguiam escoar-se através da densa folhagem das árvores.
Tremia só de lembrar-se das salas de jantar apaineladas, das salas estreitas e sombrias como criptas, de escadarias de carvalho quadradas, e de estreitos corredores espectrais. Lembrava-se do frio que sentira em muitas daquelas casas em ásperas noites de inverno, curvando o corpo para magros fogos escondidos no fundo de lareiras de mármore. Até os jardins eram úmidos mesmo nos mais quentes dias de verão, cheirando a mofo e a terra podre, bem como a imensa respeitabilidade.
A maior e mais feia casa de tijolos vermelhos na melhor rua (que era chamada Estrada do Rio) era a mansão de Joshua Allstairs e todo o horror das casas vizinhas podia ser encontrado ali em maior escala. Stuart jurava a seus amigos que, quando saía daquela casa, tinha de correr imediatamente para sua casa a fim de trocar a roupa que ficara verde e embolorada na sala de Joshua.
— Até uma hora depois, ainda fico tirando larvas dos cabelos —, dizia ele.
Longe desse bairro imponente, do outro lado da rua Principal, ficava a cidade "nova", composta de pequenas casas de tijolos vermelhos e, na maioria dos casos, de chalés e cabanas de madeira. Ali, viviam os elementos novos, os detestados alemães, os turbulentos e bebedores irlandeses e as outras raças anônimas e desprezadas. Havia ali nomes estranhos, revoltantes e intoleráveis para os exigentes descendentes de aventureiros ingleses ou escoceses que ali haviam chegado mais de sessenta anos antes. Ali estavam os operários humildes que labutavam nos curtumes e matadouros vis, nas duas pequenas fundições de ferro e nas oficinas, que cuidavam das estrebarias e limpavam as ruas e os esgotos, que trabalhavam no cais durante os meses de verão em que os lagos estavam livres de gelo, que forneciam as empregadas domésticas para os moradores das grandes casas e que se empregavam em muitas outras ocupações. Como ainda eram recém-chegados da Europa, mantinham em relação a seus altivos patrões aquela mistura de servilismo e dedicação tão própria de sua classe, e, quando esses elementos se combinavam com uma grande dose de medo e a ameaça de iminente fome em função do simples capricho dos patrões, podia contar-se com a sua docilidade. Ali também, naquela parte da cidade, ficavam as florescentes tavernas (de propriedade dos grandes) onde um homem, e às vezes uma mulher, podia receber um gole de anestesia que lhe tornasse a vida suportável. Joshua era dono de muitas dessas tavernas.
A única beleza existente naquele bairro triste era a pequena igreja de Nossa Senhora da Boa Esperança. Embora não fosse católico, Stuart, num de seus gestos supremamente arrojados e generosos, tinha abastecido a pequena e assustada comunidade católica para a sua igreja da mesma pedra branca de que fora construída sua casa. Uma das razões para esse gesto fora a sua nova amizade com o padre Houlihan, mas a maior de todas as razões fora o fato de que ele odiava os moradores da cidade "velha" e a opressão que exerciam sobre a populaça fraca e silenciosa da cidade "nova", pela qual tinha, entretanto, o mesmo desprezo. Embriagado com sua própria magnanimidade gastou seu dinheiro impensadamente na construção da igreja, contribuindo com a metade das despesas. O padre Houlihan, muito atarantado, muito surpreso e muito cheio de emoção, não pôde senão formular fracos protestos ante a extravagância de seu jovem amigo.
Mandaram-se buscar mosaicos na Itália e belas rendas e um órgão excelente e pequeno foram remetidos de Nova Orleans. Foi só quando Stuart sugeriu cheio de entusiasmo que se mandasse buscar mármore de Carrara para pavimentar o chão foi que o padre Houlihan despertou de seu torpor e recusou categoricamente com lágrimas nos olhos. Stuart ainda tentou comprar a terra onde a igreja era construída a Joshua Allstairs, recebendo uma recusa formal. Apesar disso, Allstairs concordou finalmente em arrendar o terreno mediante o pagamento de uma certa quantia, que Stuart prontamente garantiu.
Mais tarde, Joshua perguntou a Stuart, olhando-o de soslaio:
— Por que se mostra tão interessado nesses papistas pagãos?
Stuart tinha encolhido os ombros displicentemente, mas não pôde impedir que uma certa vermelhidão lhe chegasse ao rosto.
— Palavra que não sei. O padre deles é meu amigo e um sujeito muito decente. E o pobre-diabo não tem um lugar onde possa reunir a sua gente.
Não podia confessar que já estava arrependido de sua insensata generosidade e, como sempre procurou, cheio de assombro, analisar a cegueira impulsiva de seu gesto. Tinha mais do que uma leve suspeita de que o seu motivo era um insolente e desdenhoso desafio à gente da cidade "velha", que mal o aceitara e ainda evidentemente o desprezava. Quando o padre havia sugerido que a verdadeira razão de qualquer ato, bom ou mau, ficava tão no fundo da alma que não poderia ser analisada, Stuart troçou dele, embora secretamente ficasse um pouco surpreso e satisfeito. Esperava, mais que acreditava, que o verdadeiro impulso que o levara a gastar furiosamente o seu dinheiro em benefício dos "papistas pagãos" fosse meritório e viesse de alguma insuspeitada profundeza de sua alma. Perdeu essa pequena esperança quando verificou o saldo de sua conta no banco e se arrependeu de tudo. Não sabia na verdade por que fazia certas coisas.
Apesar disso, não se passava um domingo sem que passasse lentamente com a sua carruagem pela igreja na hora da missa. Fazia parar os cavalos perto da porta e ficava sentado com um estranho sorriso nos lábios, escutando as vozes cristalinas do coro e a nobre grandeza da música que vinha do órgão que ele havia doado. Contemplava a luz do sol incidindo na cruz dourada e incendiando os pequenos vitrais das janelas. Mas, embora o padre Houlihan lhe tivesse informado de que havia uma placa numa das paredes em que seu nome estava inscrito como doador, nada poderia convencê-lo a entrar na igreja. Por que era assim, ele não sabia absolutamente. Sabia apenas que a beleza de joia da igrejinha lhe inspirava a mesma afetuosa paixão —embora em grau menor — que sua bela casa. Era sua criação, seu monumento.
Os arrependimentos de Stuart não duravam muito. Quando equilibrou de novo sua situação financeira, pagou as imagens de Nossa Senhora e de S. José feitas na Itália. Era bastante para ele que a igreja fosse bela e cintilasse como uma pedra preciosa no meio da lama.
Não podia ser também insensível ao fato de que a sua generosidade tivera como resultado a prosperidade de sua casa de negócio. As pessoas a quem tinha auxiliado passaram a ser fregueses exclusivos de seu estabelecimento. Mas, para fazer-lhe justiça, ele não havia pensado nisso a princípio, embora aceitasse com um sorriso contido de falsa modéstia os elogios feitos à sua sagacidade por muitos de seus colegas e até pelo -temível Joshua. Ah, pensavam então que ele era um comerciante esperto?
As últimas casas da rua Principal consistiam quase exclusivamente em lojas e tavernas. Havia lojas de arreios e lojas de roupas, lojas de forragem e lojas de comestíveis, lojas de calçados, armazéns e açougues. Mas todos esses estabelecimentos eram pigmeus quando comparados com a casa de Stuart, que tinha como gerente Sam Berkowitz.
Chamava-se o "Empório Supremo de Grandeville".

CAPÍTULO 9
Não tinha sido no começo o "Empório Supremo de Grandeville". Tinha sido apenas a "Loja de Sam" ou, sem preconceito, a "Loja do Judeu". Quinze anos antes, Sam Berkowitz tinha chegado a Grandeville com sua mãe velha e uma mala de mascate às costas. Já naquela época, Grandeville tinha um ar de dinamismo e vitalidade e Sam, exausto, tinha decidido ficar por ali. Alugara uma pequena loja de arreios e ali expusera à venda as suas escassas mercadorias. Não havia exatamente prosperado porque, embora fosse cheio de teorias brilhantes que Stuart iria explorar depois, Sam não era homem de negócios. Não era que ele não tivesse queda para o comércio. O que acontecia era que o comércio, no seu aspecto mais sórdido de comprar pelo preço mais baixo possível e vender por um preço correspondente às posses dos fregueses, não tinha interesse para ele. Além disso, era espiritualmente muito velho para dar grande importância a lucros. Um teto sobre sua cabeça, paz, pão e um pouco de carne eram o que lhe bastava. A sua exaustão crônica vinha mais do espírito que do corpo. E sua velha mãe não podia mais ajudá-lo.
Não havia uma razão visível para explicar a chegada da família Coleman a Grandeville. Havia cidades maiores e mais florescentes do que aquela. Mas ali estavam eles: Gordon, com menos de trezentos dólares, um jovem filho e uma esposa. Gordon poderia nunca ter conhecido Sam Berkowitz se, num dia quente de verão, não tivesse andado pelos cais do canal para ver a descarga de um grande barco que vinha do centro do Estado. Em dado momento, tomou conhecimento de uma discussão perto dele. Era um homem alto e magro, de cabelos ruivos, que estava empenhado numa conversa um tanto áspera com um homenzinho vivo e sabido ao lado de uma pilha de mercadorias descarregadas. Gordon franziu a testa. O homem magro e ruivo, tão mal vestido, estava falando com sotaque estrangeiro e voz incerta. Tinha todo o aspecto de um judeu e não era competidor para o outro sujeito que fumava um charuto e soprava a fumaça na cara do judeu, ao mesmo tempo que dizia displicentemente:
— Os preços subiram e eu não posso fazer nada. Se quiser pagar, muito bem. Se não quiser, tanto faz para mim.
Sam levantara os braços e os ombros numa atitude de resignado desespero. Olhou para as mercadorias e sacudiu a cabeça, dizendo:
— Não posso pagar.
O homenzinho sorriu, mudou o chapéu alto de ângulo e disse com os olhos brilhantes:
— Ande logo com isso! Vocês, judeus, andam sempre cheios de dinheiro! Como se eu não soubesse...
Sam nada mais disse. Levantou a cabeça, passou a mão pelo rosto e começou a afastar-se. Havia em seus apertados olhos castanhos um ar de sofrimento, de impotência e de antiga resignação.
Gordon Coleman era um homem taciturno e sem amigos, cheio de mau humor e de desconfiança. Se o homenzinho tivesse um jeito menos esperto e cruel, se o seu acento inglês fosse menos pronunciado, se a sua aparência fosse menos ardilosa e segura, Gordon ter-se-ia afastado também com indiferença. Mas, sendo o homenzinho o que era, odiou-o no mesmo instante. Durante toda a sua vida, tinha odiado os homens sabidos e arrogantes, cruéis e prósperos. Foi esse ódio que o fez aproximar-se e perguntar severamente:
— Que é que está havendo por aqui?
Sam, que já ia passar por ele, parou e olhou-o timidamente. Tocou o gorro de pano que tinha à cabeça e disse com gentileza:
— As mercadorias que encomendei combinei com ele por cinquenta dólares. Agora, o preço subiu para setenta e cinco. Não posso pagar. Tenho apenas cinquenta dólares.
Havia em Sam Berkowitz alguma coisa delicada e simples que conquistou as simpatias involuntárias de Gordon Coleman. Não era um homem impulsivo, mas detestou o homenzinho que os olhava com um sorriso astuto.
— Que mercadorias? Que são elas? — perguntou ele.
Foi apenas uma curiosidade enraivecida que o fez falar, ao mesmo tempo que lançava ao homenzinho um olhar carregado de má vontade.
Sam levantou as mãos eloquentemente e deixou-as cair.
— Tenho uma pequena loja. Vendo coisas para as cozinhas das senhoras. Panelas. Frigideiras. Também linha, chitas. Coisas assim. Agora, não tenho mais mercadorias e vou fechar a loja.
Gordon ficou sombriamente calado. Tinha menos de duzentos dólares. Não tinha perspectivas de negócios e sentiu seu interesse despertado. Se emprestasse vinte e cinco dólares a Sam Berkowitz, poderia ter algum lucro com isso. Hesitou. Depois, meteu a mão no bolso e tirou algum dinheiro. Contou lenta e deliberadamente aquele abominável dinheiro americano. Sam contemplava-o, espantado. O homenzinho se aproximou como um pequeno rato compacto e bem vestido, todo cheio de vivacidade e interesse.
— Assim é que se fala! Assim é que se fala! — exclamou ele. — Sempre se deve ajudar um companheiro e ganhar alguma coisa com isso! Qual é sua próxima encomenda, meu caro Sr. Berkowitz?
Gordon conteve a vontade de dar-lhe um vigoroso pontapé. Sentiu a pele arrepiar-se por todo o corpo, até à raiz dos cabelos.
Tencionava, a princípio, ficar em Grandeville apenas o tempo suficiente para que Sam lhe pagasse o dinheiro, com os juros corretos. Mas fazia várias visitas à loja porque se sentia muito sozinho e cheio de nostalgia. Sam era seu único amigo. Sentava-se junto ao velho balcão na lojinha mal cuidada, tão cheia de poeira e desesperança e olhava as pequenas transações com as donas de casa que chegavam com as suas toucas e as suas cestas. Desde que Gordon tinha raiva de quase todo o mundo, detestou aquelas mulheres de rostos magros e olhos maus. Ia até ali para gozar o seu ódio. Mas a Sam Berkowitz ele não odiava.
Isso era uma coisa muito estranha. Talvez fosse porque o gentil e delicado Sam não era homem para enfrentar aquelas mulheres mesquinhas e duras. Talvez fosse a lembrança que tinha de ser explorado por aqueles que o desprezavam. Fosse por que fosse, começou a interessar-se pela loja. Era tranquilizador conversar com Sam, que tinha uma gratidão ilimitada por ele e o considerava um cavalheiro muito superior. Discutiu com Sam, mostrando que ele quase sempre era logrado e tinha de vender os seus artigos abaixo do custo. O seu egocentrismo, havia tanto espezinhado, cresceu e floresceu com as atenções de Sam. E então, um belo dia, empurrou Sam para os fundos da loja e enfrentou pessoalmente as primeiras mulheres que apareceram para fazer compras. Estavam habituadas à tímida depressão de Sam que se acovardava diante delas. Mas o que viam naquela hora era um irlandês truculento de rosto vermelho e um brilho belicoso nos olhos. Ao fim do dia, Gordon estava exultante. O sucesso o embriagava. Tinha enfrentado o mundo, tinha lutado com ele e tinha vencido. Além disso, tinha conseguido pelas mercadorias quase duas vezes mais que Sam.
Passou a ser sócio de Sam e este não se podia sentir mais feliz. Agora que estava livre da ingrata necessidade de tratar com o público, estava cheio das ideias mais magníficas. Suas ideias eram intermináveis. Depois de fechada a loja, ele e Gordon se sentavam na pequena sala atrás da porta dos fundos e conversavam. A velha Sra. Berkowitz mexia num caldeirão de ferro no fogão e olhava a ambos com amor.
Dentro de alguns meses, Gordon se havia mudado com a família da hospedaria onde estavam pessimamente alojados para um pequeno chalé perto da loja. O jovem Stuart foi colocado em serviço ao balcão e na entrega das compras maiores. Nessa época, todas as prateleiras ficaram cheias e a qualidade e variedade das mercadorias aumentaram. Stuart e seu pai vendiam os artigos. Sam comprava-os, examinando os catálogos e as notas que eram mandadas pelos fabricantes e negociantes de outras cidades.
Ao fim de um ano, o jovem Stuart foi forçado a frequentar uma escola de primeira classe em Grandeville, onde travou conhecimento com a bem nutrida progênie da cidade "velha". Foi então que encontrou pela primeira vez a distinção entre as classes e o ódio racial pelo qual os Estados Unidos seriam conhecidos no futuro. Chamavam-lhe de "irlandês sujo", de "papista imundo" e de "rato de sarjeta". Mesmo depois de convencer os seus perseguidores de que não era "papista", não podia negar o seu sangue irlandês. Entretanto, quando com os seus punhos e as suas imprecações mais fortes, tornou conhecido geralmente o fato de que nascera na Escócia de mãe escocesa, a vida se lhe tornou mais tolerável. Mas ele sabia e seus inimigos também sabiam que o pai dele pagava por sua educação o dobro da mensalidade paga pelos pais dos outros.
Não sendo tímido por natureza, chegou a ser agressivo e provocador por simples atitude defensiva. Era maior e mais pesado que os seus contemporâneos. Tinha-se feito respeitar pela força dos braços e dos nomes feios. Não tinha a maior vontade de fazer amizade com esses jovens nobres cuja riqueza provinha de curtumes, matadouros e pura venalidade. Mas Gordon, obcecado pela ideia de que o filho se tornasse um gentleman, obrigava-o a frequentar a escola.
Quando Stuart completou dezoito anos e se viu livre da escola, onde, pelo menos, conseguira alguma proeminência em latim, literatura e belas-artes, a loja se transformara no Empório Supremo de Grandeville. Além disso, tinha absorvido duas lojas vizinhas e estava prosperando. Tinha até um segundo andar, o que era uma grande inovação. Gordon era um vendedor difícil, mas honesto. Sam era um hábil e bem inspirado comprador. Tinha sido de Sam a ideia de que talvez as senhoras de Grandeville estivessem dispostas a comprar para as suas casas mais artigos de qualidade do que até então tinham sido encontrados na cidade. Por que iriam as senhoras mandar buscar coisas em Chicago, Nova York e Filadélfia, quando poderiam encontrá-las por um preço melhor ali mesmo em Grandeville? Além disso, muitas senhoras compravam coisas nesses lugares distantes sem sequer vê-las. Ali, poderiam examiná-las, discutir o preço e pensar.
Em consequência disso, finas cortinas de rendas apareceram na loja. Poucas. Foram vendidas em dois dias. Mais tarde, o arrojado Sam apresentou alguns excelentes tapetes orientais e alguns aparelhos de porcelana francesa importada. As senhoras ficaram entusiasmadas e a loja passou a viver repleta. Além disso, havia ao balcão um moço elegante e belo ao lado do carrancudo Gordon, que nunca aprendera a bajular ninguém. As carruagens enchiam a rua diante da loja e as senhoras diziam coisas muito vivas umas às outras quando se acotovelavam para comprar. Um dia, a própria mulher do prefeito chegou com toda a sua pompa e saiu triunfalmente levando um aparelho de porcelana de Limoges e um trinchante de prata, com uma raiva contida para as outras senhoras derrotadas.
Foi Stuart quem sugeriu que a loja poderia ser totalmente irresistível se perdesse o seu ar antipático e descuidado de velhice. Era um jovem de muita imaginação, impulso e pitoresco. Além disso, como as senhoras tinham observado com aprovação, possuía um corpo muito elegante e maneiras encantadoras. E foi assim que, mesmo sob os protestos irados do pai, estendeu um tapete de Bruxelas pelo andar térreo da loja e colocou algumas cadeiras para o conforto das freguesas. Ele mesmo conservava as vitrinas das lojas rebrilhantes como espelhos. Chegou a sugerir que se servisse chá às freguesas em determinadas horas, mas foi derrotado nisso pelo pai furioso, sendo abandonado até pelo seu amigo mais leal, Sam Berkowitz. Desistiu da ideia, mas não de todo.
Quando Stuart tinha vinte e dois anos a loja era enorme e a mulher do prefeito dizia às amigas: "É quase tão grande quanto as lojas de Filadélfia e, mesmo ali, duvido muito de que se encontre uma freguesia mais distinta." A loja se estendia por três andares e tinha sido consideravelmente ampliada. Blocos para descer das carruagens foram colocados junto aos passeios e havia sempre um boy, embora não com o uniforme que o delirante Stuart havia projetado, para ajudar as senhoras a descerem.
Stuart não era completamente desajuizado. Sabia que o que dava sangue e vida a uma casa de negócio era a freguesia dos lavradores e dos habitantes mais pobres da cidade. Por isso, ao lado da loja resplandecente e elegante, havia outra loja grande e limpa, mas mais simples, onde se vendiam por preços módicos chitas e artigos domésticos. Ali, as mulheres dos lavradores e as senhoras mais humildes podiam fazer suas compras, com seus xales e chapéus rústicos sem se sentirem intimidadas pela presença das pessoas mais ricas.
Stuart não era um cínico. Tivera a princípio um pouco de receio da sua ideia de fazer distinções de classes entre as freguesas. Não ficariam as mulheres dos lavradores e as senhoras mais humildes zangadas com a sugestão implícita de que não eram dignas de misturar-se às mais elegantes e que poderiam ser mais bem recebidas em outro lugar? Mas, com espanto e alguma decepção íntima, viu que a loja mais humilde foi recebida com gratidão e prazer pelas freguesas. Viu então que seu gesto era apreciado e considerado muito conveniente por aquelas que tinham sido sutilmente insultadas. Eram, portanto, os oprimidos que criavam os opressores, aceitando a opressão com um sentimento de conveniência. Eram os oprimidos que faziam a distinção de classes, que se humilhavam diante dos "superiores" e se deixavam ser tratados como seres humanos menores.
Cheio de compaixão e de desprezo, Stuart, nas horas de menor movimento na loja elegante, ia para o balcão da loja mais pobre. Mostrava-se ali cheio de gentileza e cortesia, com um leve toque de requintada benevolência. Providenciava, porém, para que as mercadorias mais baratas oferecidas fossem da melhor qualidade possível na sua espécie e para que os preços fossem razoáveis.
Ao tempo em que o pai de Stuart morreu, tinha o jovem vinte e cinco anos e o Empório Supremo de Grandeville estava absorvendo quase todo o comércio das zonas rurais adjacentes. Havia departamentos em lojas subsidiárias, onde os lavradores podiam comprar arreios e ferramentas, zuarte e botas, forragem e fumo. O Empório tinha devorado os pequenos estabelecimentos individuais que lhe haviam surgido pelo caminho. A primeira loja, de departamentos tinha aparecido, embora ainda não tivesse esse nome. "Tudo Para a Mansão e Para a Cabana" era seu lema, saído da cabeça de Stuart Coleman, competentemente ajudado e secundado por Sam Berkowitz, que era comprador e tesoureiro.
Livre da inibição da presença de Gordon, que profetizava sempre os mais sinistros resultados das expansões e inovações, Sam mostrou realmente todo o seu valor. Chegou a haver uma loja onde se vendiam exclusivamente estufas e equipamento para lareiras. Sam e Stuart foram as alturas ainda mais vertiginosas. Numa pequena loja filial, havia artigos exclusivamente para crianças, do mais fino nanzuque a peças de fazenda que podiam ser cortadas no tamanho apropriado para fraldas. Havia pequenos gorros e luvas de peles, feitos das mais finas peles brancas, mantas para carrinhos de tamanho conveniente, berços de vime pintados de branco, brinquedos de madeira e as mais finas rendas francesas.
Já então, o Empório Supremo de Grandeville tinha absorvido todo um quarteirão de lojas e armazéns e se estendia de frente para várias ruas, magnífico e sem competidores.
Anos depois, outras grandes lojas iriam apresentar-se como os inovadores da loja de departamentos, mas na realidade o Empório Supremo de Grandeville foi o primeiro de seu gênero e sua fama se estendeu até à própria Nova York.
Tudo isso não foi conseguido sem gigantescas tensões e aflitivas dívidas. Desde que Stuart e Sam aplicavam os seus lucros na expansão e em mais arrojadas inovações, eram obrigados a tomar dinheiro emprestado. E como Joshua Allstairs controlava o Primeiro Banco Nacional e era categoricamente contrário ao Empório Supremo de Grandeville, sem apresentar argumentos claros salvo o de achar o estabelecimento "pretensioso" e ridículo, Stuart era obrigado a pagar juros exorbitantes. Mas o sucesso fantástico do Empório, graças à variedade de seu sortimento e às suas inovações, sempre dissipou quaisquer dúvidas que Stuart pudesse ter. Quando tinha vinte e seis anos, um ano depois da morte de seu pai, construiu a sua magnífica mansão, tendo contraído um empréstimo de dez mil dólares para poder fazê-la. Teve então um motivo para a sua expansão e o seu sucesso. Extraía as ideias do cérebro inesgotável de Sam como um mágico tira coelhos de uma cartola. Muitas vezes, os coelhos saíam de sua cartola também. Ele e Sam raramente discordavam.
Embora Stuart continuasse a ser "aquele irlandês" e não fosse plenamente aceito na sociedade mais alta de Grandeville, era bastante elegante e rico para ser considerado um bom partido pelas moças das melhores famílias. Mas Stuart tinha a sua casa e isso lhe bastava. Os seus desejos mais vigorosos eram perfeitamente satisfeitos numa certa casa discreta dos arredores da cidade, onde com frequência se encontrava com os austeros maridos e pais da melhor sociedade. Ali, podia também beber e jogar num ambiente elegante. Joshua Allstairs, como era natural, participava também dos lucros desse estabelecimento.
Dois anos antes da chegada de Janie a Grandeville, Stuart tinha tido permissão para travar conhecimento com Marvina Allstairs. Ela voltava de uma escola para moças perto de Filadélfia e era dona de um guarda-roupa e joias notáveis. Era o tesouro do coração do pai e, de certo modo, representava para o velho Joshua o que a casa representava para Stuart Era a razão de sua rapacidade e de sua cobiça, sua inflexibilidade e sua ruindade, sua posse de bordéis e de bancos, seus vapores e seus negócios, seus investimentos e sua patifaria.
Joshua guardava-a zelosamente. Examinava cuidadosamente todos os convites que chegavam à casa e acompanhava-a aonde quer que ela fosse. Era velho, egoísta e quase inválido, mas conseguia achar forças para que ela não fosse a lugar algum sem a companhia dele. Havia, porém, poucas casas aonde ela pudesse ir e o pai não se cansava de desviar-lhe os pensamentos de Grandeville para Nova York, Boston e Filadélfia e, melhor ainda, para a Inglaterra, onde estava na realidade o destino dela. Residia temporariamente em Grandeville, mas não viveria para sempre naquela pequena cidade.
Stuart poderia nunca ter conhecido essa pérola de mulher se não tivesse feito uma noite uma visita inesperada ao velho Joshua na casa deste a fim de pleitear um empréstimo urgente para sua casa.
Marvina estava sentada com o pai no enorme e sombrio salão da horrível casa quando Stuart chegou e foi-lhe apresentado.
Foi Marvina, e não Stuart, quem resolveu que ia ficar em Grandeville e casar-se com ele.

CAPÍTULO 10
Stuart fora levado cerimoniosamente ao salão onde o velho Joshua pairava como uma aranha cinzenta e magra sobre a mosca luminosa da filha. Nada havia na cabeça em ebulição de Stuart além dos planos de sua casa. Como muitos homens de temperamento violento e veemente, só podia pensar numa coisa a cada tempo e essa coisa, no momento, era a bela mansão que estava projetando perto do rio. Na verdade, quando viu à luz fraca das lâmpadas um vulto feminino, sua primeira sensação foi de irritado aborrecimento e frustração. Ficou ciente de que se tratava da filha de Joshua e de que a presença dela iria dificultar-lhe as argumentações persistentes que já havia mentalmente elaborado.
Um empregado acendeu discretamente mais duas lâmpadas e as sombras recuaram um pouco, mostrando ainda melhor a hediondez do salão guarnecido de vermelho-escuro e de mogno, com suas extensões de veludos e tapetes de Bruxelas, os lambris de carvalho e o escasso fogo no fundo da lareira de mármore preto. Stuart deu um profundo suspiro. Aquele salão, repleto dos mais pesados e mais horrendos móveis de mogno, atravancado de mesinhas redondas cobertas de panos de veludo bordados a ouro e com pequenas borlas e juncadas de abajures de bronze e de porcelana e de uma profusão de enfeites e de objects d’art, sempre o sufocava e lhe dava uma sensação de infinita tristeza. Desde que o ar jamais entrava naquela casa, havia um cheiro penetrante de mofo, cera e umidade. Era uma atmosfera hostil e repulsiva, acentuada pelos retratos escuros espalhados pelas paredes. Percebia-se instintivamente que ali só havia desconfiança e ódio em relação a todos os que eram de fora. Era um lugar odioso, não menos odioso do que o dono da casa e quem entrava ali não podia deixar de ter consciência da má vontade, da rapacidade e da ruindade do homem. Até a criadagem se ajustava perfeitamente à maneira de ser do patrão e demonstrava pelos olhares furtivos e inamistosos que aquilo era uma antecâmara do inferno servida por demônios menores.
Stuart, que já conhecia o ambiente da terrível casa, se fortalecera previamente com uma boa dose de uísque. Apesar disso, não pôde deixar de sentir um arrepio e o sangue congelar-se. Não seria surpresa se a respiração lhe saísse dos lábios numa nuvem de vapor.
O velho Joshua não se moveu da sua poltrona de alto espaldar ao lado da lareira. Limitou-se a apertar as mãos nodosas no castão da bengala e a contemplar Stuart com os olhos apertados. Mas a filha, surpresa com aquela visita inesperada, levantou-se numa onda de gentil confusão e incerteza. Sabia que o pai não queria que ela se mostrasse gentil com qualquer pessoa de Grandeville e a sua primeira ideia foi fugir. Mas Stuart apareceu perto da porta do salão e ela não pôde conter uma pequena exclamação de surpresa.
Na verdade, Stuart, com as suas calças justas, tão esticadas ao longo das pernas que pareciam outra pele, com botas estreitas bem polidas, elegantemente vestido num casaco marrom, com colete florido e camisa de folhos, os dedos rutilantes de anéis e uma corrente de ouro a brilhar no colete, era a coisa mais bela que ela já havia visto em matéria de homens jovens. Era tão alto, de ombros tão largos, de rosto tão moreno, jovem e cintilante, de presença tão insinuante que a moça ficou parada, como que fascinada e boquiaberta de espanto.
Desde que Joshua sempre se havia referido a Stuart, nas poucas vezes em que o mencionara com desprezo à filha, como "aquele irlandês estúpido", Marvina ficou por um momento sem poder acreditar que aquele fosse o jovem Sr. Coleman. E assim só pôde ficar parada junto à lareira como uma ave bela e tímida prestes a levantar voo e olhar para Stuart na mais completa estupefação.
Dominado pela ideia de convencer o velho Joshua a emprestar-lhe dez mil dólares e passando em revista todos os seus argumentos, ao mesmo tempo que tentava respirar naquela atmosfera sufocante e úmida, Stuart não concentrou logo a sua atenção em Marvina. Só depois que o velho Joshua resmungou "boa noite" e apontou para a moça numa espécie de apresentação contrafeita é que Stuart tomou conhecimento por inteiro da presença dela. Cumprimentou-a com indiferença e, então, empertigou-se todo, pois a vira e havia ficado atônito.
Nunca vira beleza mais perfeita, tanta esbelteza de corpo e perfeição de rosto, tanta graça e leveza. Marvina tinha apenas dezesseis anos, mas a altura e o porte faziam-na parecer alguns anos mais velha. Usava um vestido de cetim cinza, justo até à delgada cintura, de onde descia até o chão num enorme sino cintilante e drapejado, colhendo a luz em centenas de ondas prateadas. Os ombros de marfim estavam quase de todo nus e possuíam uma forma delicada e perfeita, parecendo à luz da lâmpada brilhar como se tivessem sido polidos e amaciados pela mão enternecida de um artista. Os braços estavam nus também e mostravam a mesma qualidade delicada e perfeita. Stuart pôde ver de relance o jovem seio suave e que pulsava delicadamente na sua doçura de marfim. Tinha ao pescoço um colar de pérolas que brilhavam com vida própria sobre a carne não menos perfeita.
Se o corpo era belo, o rosto não o era menos e Stuart o olhou, completamente estarrecido. Era oval e cinzelado em planos frágeis de extrema delicadeza e perfeição, na sua palidez. Mas a boca cheia, embora não fosse grande, era como uma doce ameixa escura e os grandes olhos brilhantes eram de um espantoso tom dourado, vivido e radiante, que escurecia e se expandia por entre espessos cílios pretos como um fogo de ouro. O nariz era pequeno e quase translúcido, com narinas que pulsavam encantadoramente. Os cabelos fartos, negros, cintilantes e lisos, penteados para trás da testa baixa e larga, passavam pelas orelhas onde brilhava uma pérola e iam terminar num chignon espesso na base do pescoço branco.
Tão ofuscante era a sua beleza que escondia, como uma luz forte, qualquer indício de sua natureza. Era impossível dizer que espécie de espírito vivia por trás de toda aquela beleza e perfeição. Era estática. Nem mesmo o fogo líquido dos olhos dava o menor indício. Era como a cintilação distante e fria das estrelas. E era assim que para quase todos, até para seu pai, ela possuía uma qualidade de mistério e distância.
O velho Joshua viu a estupefação de Stuart. Isso não lhe desagradou. Sorriu sob seu longo nariz de abutre. Seu egoísmo e a paixão que tinha pela filha eram invariavelmente exaltados quando via o efeito da beleza dela sobre os outros, como se ela fosse uma obra de arte que ele tivesse trazido de lugares distantes para exibi-la ali. Quando os criados olhavam para ela com intimidada admiração, não se sentia afrontado. Esperava, quase exigia, para ela, dos mais altos e dos mais baixos, uma assombrada adoração.
Por isso, ficou ali sentado em sua poltrona, curvado e entrevado, quase paralítico, como uma emaciada aranha cinzenta, as mãos nodosas sobre o castão da bengala e os olhos maus rebrilhantes de satisfação ao perceber as manifestações de atônita incredulidade de Stuart Era um homem baixo, mal chegando aos ombros da filha e estava tão atacado de reumatismo, vivendo tão aflito pelas dores da carne e dos ossos encolhidos, que não podia caminhar sem a bengala e, ainda assim, de maneira rastejante e oblíqua, todo encurvado. Fazia um barulho arrastado e intermitente quando andava e esse barulho, quando ouvido nos corredores dos bancos ou das casas a que ia de raro em raro em companhia da filha, infundia um estranho e trêmulo terror no coração dos que o ouviam, tinha um rosto estreito, como de um "linguado cinzento", segundo dizia Stuart, mas encimado por um espantoso crânio redondo e grande, que parecia feito de pedra polida. A sua expressão sarcástica e perversa se animava às vezes de temível alacridade sempre que se enfurecia ou achava uma graça perversa em alguma coisa, quando projetava novos lucros ou uma patifaria nova ou quando via as lutas inúteis de suas vítimas, que eram muitas.
Joshua Allstairs tinha-se casado já com mais de cinquenta anos com uma moça tímida e muito bela, natural de Filadélfia e filha de um homem irremediavelmente endividado com Joshua. A pobre moça tinha vivido apenas um mês depois do nascimento de sua filhinha e tinha expirado num último alento satisfeito de libertação. Agora, Joshua tinha mais de setenta anos e a idade só servira para aumentar a maldade de sua alma e as suas sinistras maquinações.
Vestia-se de cinza com toques de prata o que lhe acentuava os atributos de corpo e de espírito que o fariam parecer uma aranha. A sua terrível casa era como uma enorme e imóvel concha de pedra em cujo centro ele vivia como uma palpitação vigilante de malignidade, constantemente alerta e ameaçadora, sem a menor piedade.
Ali estava o alto poder de Grandeville. Até as cidades de Nova York, Boston, Filadélfia e Chicago sabiam de sua existência, odiavam-no e temiam-no.
— Sente-se, Sr. Coleman, sente-se —, disse, num tom irascível depois de ter-se rejubilado com o mudo espanto de Stuart. Olhou para a filha, hesitou e, então, tornou a olhar para Stuart O seu olhar era como uma faca rebrilhante arremessada. Tinha o costume de mandar Marvina sair sempre que apareciam pessoas estranhas. Mas estava com disposição a divertir-se naquela noite. Seria interessante observar Stuart completamente escravizado. Tocou então a filha de leve, mas firmemente com a mão ressequida e ela tornou a sentar-se, sem dizer uma palavra. Stuart, movendo-se como se estivesse atordoado, sentou-se também na poltrona que Joshua lhe apontou. Os dois jovens continuaram a olhar um para o outro como se estivessem enfeitiçados.
Joshua levantou tanto os ombros que eles quase lhe chegaram às orelhas. Descansou o queixo nas mãos entrelaçadas no castão da bengala. Olhou Stuart quase com maliciosa afeição.
— Então, como é que vai sua magnífica loja? — perguntou ele com a voz fina, mas maligna, cheia de zombeteira indulgência.
— Muito bem —, murmurou Stuart com voz rouca, sem afastar os olhos de Marvina.
Que beleza! Que beleza arrasadora! Não sentia o coração atingido. Estava apenas deslumbrado. Não sentia suas paixões e seus desejos despertados pela moça, do mesmo modo que não o seriam por um retrato de comovente doçura.
Os seus pensamentos eram confusos. A imaginação lhe representou uma escadaria branca que se curvava para o alto como uma fica de mármore e por essa escada deslizava Marvina com vestido prateado como o luar, com todos os seus movimentos e gestos luminosos e leves como prata líquida. A imagem era tão cheia de encantamento que lhe deu um baque no coração. O sangue começou a correr-lhe aceleradamente nas veias e ele pensou, na sua confusão, que aquela imagem seria realidade algum dia. Nada poderia impedi-lo. Era uma coisa decidida e firme. As suas pulsações estavam começando a fazer-lhe mal na sua rapidez e violência. Mas o coração ainda estava incólume, e o desejo também, mas firmou-se na determinação de ter a sua casa com aquela escadaria por onde teria de deslizar Marvina.
Joshua apertou ainda mais os olhos. Então aquele grosseiro e audacioso moço tinha sido flechado, hem? Aquele demônio ímpio e profano, com suas roupas elegante e suas dívidas, sua ânsia pelo jogo e suas mulheres, nunca! Joshua passou furtivamente a língua pelos lábios e ergueu ainda mais os ombros ossudos. Se quisesse, podia olhar para Marvina. Daí não passaria.
— Quer um pouco de chá ou de cidra fresca? — perguntou ele. — Como deve saber, meu caro Stuart, não se serve álcool nesta casa, nem mesmo vinho.
Stuart voltou-se para ele, como se estivesse sonhando. Olhou para Joshua durante algum tempo e pôde afinal murmurar com voz rouca:
— Não, muito obrigado.
Era visível a luta que se travava dentro dele. Aprumou o corpo na poltrona e comprimiu fortemente os lábios, que ficaram um pouco descorados. A sua expressão era sombria, mas havia no fundo dela firmeza e determinação.
Joshua olhou para a filha e então franziu a testa e se moveu inquietamente na poltrona. Que era que tinha havido com a menina? Estava olhando firmemente para Stuart, com os lábios entreabertos e os olhos banhados de uma luz embevecida. Que diabo!
Bem. Não era de admirar essa atitude dela. Nunca vira tanto brilho e vigor em toda sua vida. Menina boba. Era preciso mostrar-lhe sem demora que, por trás de toda aquela vitalidade, boa aparência e energia, estava o espírito mais infantil que era possível e talvez também o mais inconsequente e imbecil. Tinha de abrir-lhe os olhos e mostrar o idiota que ele era, fantástico e inconsciente. Mais tarde, ela também zombaria dele deliciosamente com o pai.
Stuart estava decidido a não olhar para Marvina de novo até cumprir o propósito que levara até ali. Na verdade, não tinha coragem de olhar. Levantou a cabeça num desafio e olhou para o velho.
Joshua olhou sorridente para a filha que sonhava.
— Querida, você deve um dia visitar a loja do Sr. Coleman ou melhor, as lojas. É tudo muito notável. Sentimos verdadeiro orgulho do Empório Supremo de Grandeville, orgulho e espanto!
A moça voltou lentamente a cabeça para o pai. Parecia estar dormindo embora estivesse com os olhos bem abertos.
— Está bem —, murmurou ela, com as mãos brancas entrelaçadas no colo.
— Não sei se ainda se lembra, querida, mas passamos por... essas lojas quando voltávamos da igreja ontem. Achou tudo muito divertido, lembra-se?
A moça ficou em silêncio. Olhava apenas para Stuart e este olhava apenas para Joshua. O rosto dele estava ainda mais carrancudo. Tinha gotas de suor na fronte, embora a frigidez da sala não houvesse diminuído.
— Espantoso, tudo espantoso —, murmurou Joshua, com um breve riso no fundo da garganta seca. Em seguida, levantou o dedo nodoso e balançou-o para Stuart, sorrindo. — Mas há um limite para o espantoso, não acha? Às vezes, é preciso espantar menos e refletir mais.
As espessas sobrancelhas grisalhas em tão vivo contraste com a expansão polida do crânio se arquearam diabolicamente sobre os olhos malévolos. Olhando-o, Stuart sentiu as pulsações tomarem um ritmo doentio. Não podia olhar para aquele homem sem ódio e sem um inexplicável medo.
— Será que se está referindo à hipoteca que tem sobre as três lojas mais novas? Não está recebendo pontualmente os juros devidos?
Joshua encolheu os ombros, levantou uma das mãos da bengala e deixou-a cair.
— Sem dúvida alguma. Não recebi a menor queixa do banco. Nada tenho de que reclamar, caro Stuart. Mas deve perdoar o meu interesse, por assim dizer, paternal. Sempre me interessei muito por seus arrojados empreendimentos e nunca deixei de admirá-los. Não obstante, tenho tido momentos de inquietação em que me pergunto: "Será que esse jovem se está expandindo além da sua capacidade de absorver o investimento?" Até agora, muito bem. Orgulho-me de você, meu jovem. Perdoa as preocupações de um velho, não é mesmo?
Stuart ficou em silêncio durante alguns momentos, olhando Joshua com aquele perigoso, mas invencível ódio. Ficou mais carrancudo do que nunca e disse sem qualquer entonação na voz:
— Muito obrigado, Sr. Allstairs.
Joshua inclinou a cabeça humildemente.
— Posso estar errado e até parecer às vezes intrometido, mas o bem-estar de meus jovens amigos está sempre em meu coração.
— E o seu dinheiro também, Sr. Allstairs —, disse Stuart, sem poder conter as palavras rudes e insolentes.
Joshua ficou encantado com isso. Olhou de relance para a filha Um pouco de cor tingia o marfim pálido do rosto de Marvina. Ótimo! Ela então havia ficado indignada com aquilo?
— Dinheiro... — murmurou o velho, inclinando a cabeça para o lado. — É a raiz de todo o mal, segundo diz a Bíblia. Mas eu tenho obrigações para com os meus depositantes.
Miserável, porco e explorador hipócrita, pensou Stuart, apaixonadamente. Mas, dessa vez, refreou a língua. Tinha consciência dos olhos de Marvina voltados para ele como uma corrente elétrica, mas não se voltou para ela.
— Há muito tempo, descobri qual é a coisa mais difícil nesta nossa vida melancólica —, disse Joshua Allstairs, num tom tristonho e meditativo —, é conciliar as exigências do mundo com nossa consciência. É preciso transigir, sempre transigir. Deve-se dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.
Como, por exemplo, os lucros que você tira dos bordéis, pensou Stuart. Apertou ainda mais os lábios. Mas, apesar de seu silêncio, havia nela uma sombria e profunda tensão que Joshua, que era muito arguto, sentiu e compreendeu. Isso lhe agradava cada vez mais. Talvez fosse possível incitar o idiota a dizer alguma coisa que o desmoralizasse de todo...
— Não obstante, é difícil —, murmurou ele, deixando cair a mão com um gesto patético. — Às vezes, é preciso ser firme em face das mais urgentes súplicas, como acontece no caso de uma renovação de crédito a certos lavradores e negociantes. Fica-se entre as comoventes súplicas dos que não podem saldar os seus compromissos, de um lado, e a confiança dos depositantes, do outro. Que se pode fazer? Como se pode chegar a uma conciliação?
— Espero —, disse Stuart, com venenosa ironia —, que eu nunca o venha forçar a tão aflitiva decisão.
— Espero que não, espero que não —, disse Joshua, quase num sussurro. — Eu não saberia o que fazer. Teria de levar o problema aos pés de Deus e esperar humildemente uma solução.
Stuart sentiu-se quase sufocado de raiva e de desprezo. Cerrou os punhos com força e por um momento esqueceu a presença de Marvina no seu desejo de esmagar aquele abominável santarrão.
Joshua olhou-o com fingida ternura e disse:
— Você me compreende, não é assim, Stuart? Só um crente poderia fazer o que você está fazendo, ajudando o nosso prezado Sr. Houlihan a construir uma igreja.
— Ele se chama padre Houlihan, Sr. Allstairs —, disse Stuart com voz contida.
Joshua tornou a entrelaçar as mãos e descansá-las no castão da bengala.
— Perdoe, meu jovem amigo, mas me julgo na obrigação de instar mais uma vez para que visite minha igreja, partilhando das consolações do serviço e das verdades do Evangelho.
Stuart respirou fundo e seus olhos brilharam.
— Sr. Allstairs, estou disposto a acompanhá-lo a qualquer parte, até ao inferno, se escutar e consentir na proposta que lhe vou fazer.
Diante dessas palavras espantosas e imprudentes, Joshua olhou para a filha. Ainda olhando para ela, disse com uma voz cheia de tristeza e censura:
— Devo lembrar-lhe, meu caro senhor, que há uma jovem presente e eu não permito que se fale dessa maneira na presença dela.
Marvina tinha ficado muito pálida. Baixara a cabeça e o pai não podia ver-lhe o rosto. Mas podia perceber que ela estava tremendo. Para ele bastava.
Stuart levantou-se e disse, cheio de agitação e de fúria:
— Apresento minhas desculpas a sua filha, Sr. Allstairs. Se ela quiser, levá-la-ei para fora desta sala. Mas não tenho mais tempo a perder.
Joshua levantou a mão.
— Tenho certeza de que minha filha o perdoa, meu jovem. Não vamos falar mais nisso. Tenho certeza também de que ela compreende. Ela já perdoou seu sangue irlandês e suas relações com pagão papista, não é assim, querida?
Marvina produziu um leve murmúrio. Em seguida, levantou a cabeça e, desviando-a dos dois homens, olhou fixamente para o fogo.
— Não julgo a ninguém —, disse Joshua numa voz branda, mas carregado de intenção. — Essa não é minha província. Deixo isso aos cuidados de Deus.
— Muito nobre de sua parte —, disse Stuart, já completamente desorientado. — Creio que o Onipotente deve ser grato por tanta condescendência.
Era um homem inteligente e se arrependeu, como de costume. Via com bastante clareza que tinha feito inocentemente o jogo daquele demônio. Mas isso era coisa que naquele momento não lhe importava muito. Exclamou:
— Quer ou não quer que eu lhe exponha um assunto da maior urgência?
Joshua olhou para Stuart com um sorriso de simpatia e disse:
— Sente-se, meu caro jovem. Deixa-me nervoso assim de pé com as mãos nas costas da cadeira. Mas veja, vivo muito sozinho. É raro para mim ter oportunidade de discutir com um amigo assuntos que me são caros.
Quase cego de desgosto e raiva, Stuart sentou-se de novo, com o corpo empertigado e um pouco ofegante. A vontade que sentia era dizer alguns desaforos bem contundentes a Joshua, mas se conteve, ainda que tardiamente. Disse, entretanto, com violência e o calor ainda a dominá-lo:
— Devo entrar logo no assunto, sem fazê-lo mais perder tempo. Sr. Allstairs?
— Pode falar, meu caro Stuart —, disse Joshua, com um gesto condescendente da mão.
— Quero um empréstimo de dez mil dólares.

CAPÍTULO 11
Uma coisa era provocar Stuart para que seu temperamento irlandês quente e irrefletido se manifestasse para sua humilhação e ruína. Outra, bem diferente, era discutir negócios com ele, quando Joshua poderia ver-se forçado a demonstrar sua avidez e frieza para espanto e talvez aflição da filha.
Joshua nunca dissera à filha uma só palavra a respeito de seus negócios. Ela não devia saber que o dinheiro que lhe comprava as mais finas pérolas, peles, fazendas e carruagens, joias e escolas tinha a sua origem nos bordéis, nas fazendas tomadas aos lavradores no vencimento das hipotecas, nas lojas e pequenas indústrias arruinadas e nos pardieiros da cidade em expansão. Aproveitava-se, para isso, da velha ideia convencional de que as mulheres não têm capacidade para compreender as complexidades financeiras e não tinham interesses além dos seus vestidos, de suas casas e de suas famílias.
Em vista disso, sorriu para Stuart com doçura quase paternal e disse suavemente:
— Dez mil dólares? Como é precipitado, meu jovem! Bem, teremos de discutir isso, não acha?
Virou-se para a filha e disse gentilmente:
— Querida, posso pedir-lhe que se retire para que o Sr. Coleman e eu possamos ter uma enfadonha conversa de negócios?
Stuart compreendeu e não reprimiu o seu sorriso contrafeito. Levantou-se prontamente e cumprimentou a moça incerta. Ela se levantou tão graciosamente quanto uma ave se levanta no ar, com um forte rubor nas faces, e olhou para o pai, que também se levantou com muita dificuldade. Marvina estava evidentemente muito confusa. Curvou-se e beijou o rosto de Joshua, enquanto suas belas mãos se agitavam um pouco. Joshua lhe retribuiu o beijo e afagou-lhe o rosto.
— Boa noite, meu bem —, disse ele e, naquele momento, uma luz estranha lhe brilhou nos olhos maus.
Ela se voltou para a porta. Stuart se dirigiu prontamente para onde ela estava e levou-a até à porta. Cumprimentou-a então de novo. Ela era muito alta. Os olhos dela estavam apenas um pouco mais baixos do que os dele, quando ela os levantou lentamente, movendo os negros cílios. Stuart estava bem perto dela e podia ver-lhe a perfeição translúcida da pele e o vermelho dos lábios. Foi então que pela primeira vez a desejou. A luz dourada daqueles olhos deslumbrou-o. Sentiu um calor pelo corpo e um zumbido nos ouvidos. Olhou profundamente para dentro do ouro liquido dos olhos e para a leve separação entre os seios que o decote mostrava. Pensou que era a inocência que o olhava do fundo daquela confusão e daquele silêncio. Não sabia ainda que era apenas o vazio.
Ela se ruborizou de novo, a tal ponto que até as orelhas ficaram carminadas. Depois, cumprimentou brevemente e afastou-se. Ele ficou a olhá-la. Viu-a subir como um pássaro, alada e sinuosa, a enorme escadaria de carvalho e de mármore, apoiando-se no corrimão, com as saias prateadas flutuando atrás dela. Passou por uma lâmpada e a luz brilhou no macio negror de seus cabelos. Ela não olhou para trás, mas se moveu muito devagar, com uma graça infinita e indescritível, sabendo que ele a olhava. Só depois que ela desapareceu por completo de sua vista foi que ele pôde voltar-se.
Voltou lentamente para a sala. A frieza e a umidade tinham deixado de agir sobre ele. Sentia todo o corpo aquecido e vibrante. Ocorreu-lhe de súbito que não ouvira absolutamente a voz de Marvina salvo no breve murmúrio com que ela havia respondido ao pai. Pouco importava. Desejava com imensa paixão aquela criatura tão bela.
— Bela menina, hem? — perguntou Joshua com voz quase suplicante, ao mesmo tempo que olhava atentamente Stuart.
Este nada disse. Olhou para o fogo, cujo calor lhe parecia agora insuportável. Tornou a sentar-se e respirou fortemente. Joshua, que já estava decidido a informar que a filha estava destinada a uma vida muito longe de Grandeville, resolveu ficar calado. O idiota que se emaranhasse à vontade em sonhos e desejos inúteis. Seriam maiores assim seus sofrimentos e humilhações posteriores.
— Dez mil dólares? — murmurou Joshua, sacudindo a cabeça com um ar de amável censura. — É muito dinheiro, Stuart! Não se esqueça de que ainda me deve doze mil dólares.
Esfregou as palmas das mãos produzindo um som como o de uma cobra que passasse por cima de folhas secas. Riu benignamente.
Stuart recuperou a sua presença de espírito com dificuldade. Por fim, lembrando-se da casa que queria construir e que seria um cenário tão apropriado para aquela divina criatura que lhe deslumbrara os sentidos e encantara o espírito, sentiu que a determinação e o ardor lhe voltavam impetuosamente. Quase gritou em resposta:
— Não tem motivo algum de queixa! Tem recebido regularmente as amortizações e os juros!
— É a pura verdade, é a pura verdade —, disse Joshua com voz cheia e assentindo benevolamente. — Não me arrependo de emprestar-lhe o dinheiro, Stuart. Dinheiro é como ferramenta e enferruja com a falta de uso. O seu crédito comigo é muito alto. Mas creio que não se incomodará se, em nome de meus depositantes — o que é para mim um mandato sagrado, Stuart — eu procurar satisfazer-me com algumas perguntas, não é mesmo?
— Pode fazer as perguntas.
— Posso saber então qual é o novo plano que lhe exige esses dez mil dólares, que você vem pedir com tanta calma?
Stuart inclinou-se para ele e aproximou a cadeira. Apesar do exíguo calor da lareira, tinha as faces em fogo e os olhos lhe ardiam.
— Quero uma casa, uma boa casa, uma casa tal como não existe em Grandeville, atualmente. Deve ser alguma coisa fora do comum, uma casa feita não para se viver temporariamente, mas para sempre. Tenho os planos todos na cabeça e quero tudo do bom e do melhor. Os dez mil dólares — acrescentou de imprudentemente no seu entusiasmo — serão apenas um começo.
— Ah —, murmurou Joshua, estreitando os olhos voltados atentamente para o outro.
— Tenho oito mil dólares em dinheiro para começar e gostaria de ter mais. Mas Sam e eu empregamos nas lojas tudo o que ganhamos. Temos uma encomenda a chegar pela qual já pagamos quatorze mil dólares. Mas os oito mil dólares chegarão para começar. Já comprei a pedra pela qual pagarei cinco mil dólares que sairão dos oito mil de que disponho. Mas isso é apenas o começo e é por esse motivo que eu preciso dos dez mil dólares.
O rosto de Joshua nada revelou sobre seus pensamentos. Limitou-se a perguntar:
— Onde pretende construir?
Stuart hesitou por um momento e então se abriu.
— Quero comprar algumas terras que lhe pertencem. Tem um grande terreno perto do rio. Dois hectares, se não estou enganado. Ou talvez mais. É o que eu desejo comprar.
— Dois hectares! — exclamou Joshua, pigarreando para ganhar tempo. — Para lhe dizer a verdade, eu mesmo estava pensando em construir ali. Tenho também outros planos, como, por exemplo, uma seção de cais naquele local. Talvez a estrada de ferro, que não tardará a chegar a Grandeville, venha a precisar daqueles terrenos por um bom preço. — Sacudiu a cabeça. — Não, Stuart. Escolha e compre outro lugar para sua casa. Eu teria de pedir um preço acima de suas forças e isso seria muito ruim para nós dois.
— Quanto? — perguntou Stuart, encarando-o cheio de ódio.
— Aquele terreno — disse Joshua — fica no ponto mais estreito do rio. Já ouvi dizer que se pretende estabelecer um novo serviço de barcas e haverá necessidade de construir cais, barracões, etc.
— Quanto? — tornou a perguntar Stuart, com o rosto franzido de tensão.
Joshua examinou os dedos e olhou afetadamente para Stuart, dizendo então:
— Mil e seiscentos dólares o hectare.
— Mil e seiscentos? — exclamou Stuart. Ficou durante alguns momentos sem poder falar. Murmurou afinal em voz contida: — Ora, ora! Comprou todas aquelas terras, cerca de cem hectares, por 1.000 dólares. Isso aconteceu há menos de cinco anos. Pagou dez dólares por hectare e tem coragem de pedir agora 1.600 dólares pelo que lhe saiu quase de graça?
— Isso foi há cinco anos —, disse Joshua sorrindo em lugar de ficar zangado. — Grandeville cresceu consideravelmente de lá para cá, meu jovem. E justamente a expansão da cidade vai seguindo o caminho do rio. Daqui a mais cinco anos, aquelas terras valerão o dobro do que lhe estou pedindo. Vou-lhe dizer uma coisa. Ainda na semana passada, um negociante de cereais quis comprar-me parte daqueles terrenos para construir depósitos. Ofereceu-me dois mil dólares por hectare e eu não aceitei. O preço de mil e seiscentos que lhe estou propondo é na realidade uma concessão que eu lhe faço.
— Não há nesta região terreno algum que valha mil e seiscentos dólares o hectare e você sabe muito bem disso, seu... seu...
Joshua encolheu os ombros com paciência cristã.
— Está bem, Stuart. Não vejo necessidade alguma de discutirmos. Mil e seiscentos dólares é o meu preço e eu realmente não tenho a menor vontade de vender. Por que não constrói sua casa em outro lugar? Tenho bons terrenos que poderão interessar-lhe a oitenta dólares o hectare.
— Onde?
Joshua pareceu imerso em profunda concentração e ergueu os olhos para o teto cheio de sombras.
— Deixe ver... Ah, já sei! Tenho um terreno ótimo para você, Stuart! Fica bem perto da casa de seu grande amigo o Sr. Houlihan... perdão, o "padre" Houlihan. Fica na zona sul da cidade. Reconheço que em alguns pontos aquela zona não é muito desejável. Mas há nas bordas, vamos dizer, um terreno verdadeiramente excelente. Quatro hectares. Posso vendê-lo a cem dólares por hectare.
— Junto da pedreira e das olarias?
— É claro. Estou vendo que conhece bem o local. Seria ótimo quando quisesse visitar seu amigo. Fica apenas a alguns passos da casa dele. E, desde que são tão bons amigos, a presença dos paroquianos dele deve dar-lhe considerável prazer.
Stuart encarou-o com os olhos fuzilantes.
— Minha casa! Acha que eu iria construir minha casa perto daqueles suínos alemães e daqueles estivadores e varredores de ruas irlandeses?
O velho ódio dos celtas pelos teutos congestionou-lhe o rosto a ponto de parecer que ele ia sufocar. Levantou as mãos num gesto violento.
— Meu caro amigo, meu caro e jovem amigo! — exclamou Joshua, abrindo os braços em fingido horror. — Você me surpreende! Não são todos esses homens nossos irmãos aos olhos de Deus? E não estamos numa república onde todos os homens são iguais? Além disso, não se esqueça de que é irlandês.
Stuart não se pôde mais conter e levantou-se num repelão. Olhou para Joshua com tanta raiva que o velho estendeu involuntariamente a mão para a corda da campainha a fim de chamar os empregados. Mas não chegou a puxá-la. O olhar de Stuart paralisava-o e ele se limitou a voltar para o jovem com olhos esgazeados nos quais se estampava o medo.
— Perto de seus bordéis? Perto de suas tavernas? Perto de seus matadouros, olarias e curtumes imundos? — perguntou Stuart, cerrando e descerrando as mãos com incontrolada fúria. — Onde eu poderia ter o espetáculo de suas prostitutas desfilando diante de minha casa à noite e ver os bêbedos atirados na sarjeta pelos seus empregados? Meu Deus! Palavra que eu devia matá-lo pelo desaforo!
— Calma, calma —, murmurou Joshua, lançando um olhar inquieto e sinceramente alarmado para a porta. Continuou a falar, tentando dissimular o seu medo. — Sente-se, meu caro Stuart, faça o favor. Deixe de me olhar como um touro enraivecido. Se o ofendi dizendo que não é melhor do que as pessoas que moram naquela parte da cidade, peço-lhe desculpas. Mas repare que você mesmo, em vista das suas ligações com aquele degradado papista Houlihan e com o judeu Berkowitz, perdeu quase qualquer direito a consideração por parte da sociedade. Cavalheiros que têm pretensões a alguma distinção não se ligam a criaturas assim. "Pelos seus amigos serão conhecidos", podemos dizer parafraseando as palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo.
— E você se atreve a mencionar o nome do padre Houlihan em relação a você? — gritou Stuart, quase fora de si. — Acredita por um momento sequer que se pode comparar a Sam Berkowitz? Você que nunca teve um pensamento honesto nessa cabeça imunda, que nunca fez caridade a ninguém, que nunca teve um gesto de bondade em toda a sua vida?
Joshua recostou-se na poltrona, embora o seu corpo anquilosado estivesse retesado pelo medo. Assumiu um ar de complacente superioridade. Olhou para Stuart com profunda e agitada tristeza.
— Meu caro jovem, estou surpreso e até magoado com sua extraordinária exaltação. Nunca tive má intenção. Nunca alimentei em meu coração sentimentos baixos de raiva ou de vingança. Fui eu que lhe pedi que viesse a minha casa esta noite e me pedisse um empréstimo de dez mil dólares? Eu lhe disse por acaso: "Sr. Coleman, tenha a bondade de entrar em minha casa e iniciar negociações para a transferência de dez mil dólares de meu bolso para o seu?" Foi por minha vontade que veio e é por minha vontade que me está insultando?
Stuart ficou em silêncio. Sentia-se de repente terrivelmente mal. Arrependeu-se de ter deixado à solta a sua língua, que era como um cavalo fogoso e incontrolável. Tinha perdido a casa, tinha perdido Marvina. Para sempre. Pior ainda, julgava-se um rematado idiota.
Joshua olhou-o atentamente. Viu Stuart empalidecer. Não sentiu a menor piedade pelo jovem impetuoso e de sangue quente a quem humilhara tanto. Era insignificante, desprezível, menos que um cão, menos que poeira! Era um patife irlandês!
Entretanto, nenhum desses pensamentos malévolos se estampou no rosto do velho. Ao invés disso, numa voz repassada de gravidade e gentileza, murmurou:
— Sente-se, Stuart. Sinto muito não poder aceitar as suas condições. Mas ouça o que vou fazer. Estou disposto a vender-lhe meio hectare daquelas terras por setecentos dólares. São seiscentos dólares menos do que me ofereceu o homem dos cereais. Que é que eu posso fazer mais para demonstrar a minha boa vontade?
Abriu as mãos num gesto tímido e indefeso. Stuart não se deixou iludir por isso. Mas sentiu-se tomado de uma imensa onda de alívio, tão intensa que lhe deu uma sensação de fraqueza. Isso queria dizer que nem a casa, nem Marvina estavam irremediavelmente perdidas! Não via que não tinha passado de um joguete nas mãos de Joshua. Só depois iria compreender isso. Sentia no momento apenas uma trêmula gratidão pelo fato de que não tivesse sido posto para fora da casa antes que sua missão estivesse cumprida.
Tornou a sentar-se e Joshua olhou-o com agrado.
— É melhor assim, muito melhor. Nós nos entenderemos muito melhor sem raiva e sem insultos. Somos homens educados, não é verdade, Stuart?
— Como é que quer os setecentos dólares? — perguntou Stuart, dominando as suas emoções em conflito.
— À vista, meu caro Stuart. É uma transação muito pequena para ser objeto de um empréstimo.
— Está muito bem. E... os dez mil dólares?
— Isso é outro assunto —, disse Joshua com alguma hesitação. — Deixe-me pensar um pouco.
Curvou a cabeça sobre as mãos entrelaçadas na bengala, como se estivesse rezando. Nada poderia ser mais patético que sua atitude, que parecia sugerir que estava em luta com as tendências mais interesseiras de seu espírito, enquanto a alma e o coração eram de todo favoráveis a seu jovem amigo. E Stuart o olhava com um ódio profundo e tumultuoso que não podia ocultar. O fogo estalava lugubremente. As sombras pareciam rastejar pelas bordas do salão.
Por fim, Joshua levantou a cabeça com o rosto cinzento e enrugado todo radiante. Deu uma palmada no joelho e riu.
— Já sei, meu jovem! Quando você tiver lançado os alicerces de sua casa e começar a construir com seus oito mil dólares, eu lhe emprestarei dez mil dólares. Vou mandar-lhe um contrato nesse sentido amanhã mesmo. Que tal? Não acha excelente?
Stuart olhou-o carrancudamente e perguntou:
— E mais?
— Presumo que quer saber dos juros, não é? — perguntou Joshua, recostando-se na poltrona e pensando de novo. — Compreenda, Stuart, que eu estou numa posição um tanto delicada. Você já me deve uma vasta soma de dinheiro. Não me pode dar outra hipoteca sobre suas lojas. Tenho deveres para com os meus depositantes. Tenho de proteger por todos os meios a confiança daqueles que dependem de mim. Não reclamo disso. Ao contrário, alegro-me, pois, essa é que é a atitude cristã. Meu único recurso, portanto, é aceitar uma primeira hipoteca sobre sua casa.
— Compreendo, estou disposto a aceitar isso, mas acho que, neste caso, poderia aumentar o montante do empréstimo. Que juros vai cobrar?
— Deixe ver —, murmurou Joshua. — Uma casa como você pretende construir é um investimento arriscado. Quem iria em Grandeville comprar uma casa que vai custar no mínimo vinte mil dólares? Quem é o homem que tem o dinheiro ou é suficientemente imprudente para cometer essa extravagância? Seria um elefante branco. Assim sendo, se você deixasse de pagar, não por culpa sua é claro, eu teria em minhas mãos uma casa sem possibilidades de ter um comprador. Estaria ameaçado de perder meus dez mil dólares. Ou, melhor, o prejuízo seria de meus depositantes. Seria sobrecarregar muito esses laboriosos lavradores, esses pequenos comerciantes que confiam em mim. Pense também nos dólares depositados em meu banco pelos trabalhadores humildes, que arrancaram cada dólar com o suor do trabalho honesto. Tenho de proteger todos esses homens. Nenhum deles jamais dirá que Joshua Allstairs lhes fez perder um centavo que fosse ou pôs em risco um dinheiro tão penosamente conseguido.
— Quais são os juros? — perguntou Stuart.
— Para fazer justiça àqueles que confiam em mim, eu devia pedir 12%. Mas, em vista da consideração paternal que tenho por você, só vou querer 10%.
— Dez por cento! — exclamou Stuart, quase dando um pulo da cadeira. — Mas isso é criminoso! E também é ilegal!
— Ilegal? — perguntou Joshua, com voz magoada. — Levando em conta o risco que vou assumir? Outro qualquer não se contentaria com menos de 15%. Além disso, você não tem obrigação de espécie alguma de aceitar. Se quiser, poderemos dar o assunto por encerrado.
Stuart se levantou. O corpo todo lhe tremia e ele sentia muito frio. Por mais audacioso que fosse, a enormidade da proposta apavorava-o. O bom-senso lhe impunha retirar-se imediatamente antes de se deixar acorrentar àquele demônio.
Mas passou-lhe de novo pela imaginação o sonho de sua casa e de Marvina, como uma ave de plumagem branca, a flutuar pela escadaria e ele se sentiu inteiramente vencido.
Apertou com as mãos as costas da cadeira, contemplou Joshua com olhos que cintilavam estranhamente e disse:
— Feito.
Joshua olhou para ele com um sorriso simpático.
— Feito —, disse ele. — E seja muito feliz em sua casa, Stuart. Escute aqui, está pensando em contrair laços matrimoniais? É para isso que quer uma casa?
Mas Stuart não respondeu. Continuou a fitar Joshua com aquele olhar estranho e Joshua, intimidado, só pôde retribuir o olhar dentro de um profundo silêncio.

CAPÍTULO 12
Joshua Allstairs raramente recebia ao mesmo tempo mais de três ou quatro convidados em casa e, ainda assim, sem muita frequência. Tinha como desculpas válidas a doença, a idade e a falta de uma dona de casa. É verdade que tinha a filha, mas esta era jovem e inexperiente, não sendo correto ainda que ela assumisse os deveres de dona de casa. Além disso, ele não tinha outras parentas mais velhas em Grandeville.
Apesar disso, seus amigos e companheiros de transações muitas vezes apareciam para jantar, como acontecia com aqueles que lhe deviam dinheiro. As visitas destes últimos eram quase sempre feitas a convite de Joshua, que queria ter certeza por meios sutis de que seu dinheiro não corria risco. Stuart estava neste caso.
Embora não fosse muito dado a investigar os motivos dos outros, Stuart era suficientemente astuto e intuitivo, como só um celta pode ser, e desde cedo descobriu as verdadeiras intenções de Joshua. Tivera um malicioso prazer em recusar os convites, salvo quando estes se tornavam peremptórios ou quando não podia pagar um título no dia exato. Mas quando se sentia seguro e tudo corria bem, recusava cerimoniosamente, sem se dar sequer ao trabalho de inventar uma desculpa.
Mas passou a atender a todos os convites, ostensivamente para informar o velho amigo dos progressos na construção de sua mansão. Ele tinha dois motivos sendo o primeiro e temporariamente mais importante a oportunidade de insinuar-se nas boas graças de Marvina e namorá-la furtivamente. O segundo era a necessidade que sentia de falar de sua casa e das maravilhas que tinha encomendado para ela. Nesse último motivo, havia muito do gabola, muito da ostentação vaidosa do galo e também a vontade de impressionar a moça e de inspirar-lhe o desejo de ser dona de todo esse esplendor. Era assim que, duas vezes por semana pelo menos, ia jantar com Joshua e com a filha dele na horrível e enorme cripta de um salão de jantar, onde se-serviam batatas aguadas, peixe frio e ovos brancos dentro de um molho misterioso e numa baixela de prata cara, mas horrenda. Era uma fonte interminável de perplexidade para Stuart a origem da louça e da prataria de Joshua, porque eram excepcionais e ninguém em Grandeville tinha jamais visto, em lojas próximas ou distantes, peças mais feias. Na opinião de Stuart, eram feitas de encomenda e, sendo excrescências da alma hedionda de Joshua, de acordo com os planos dele.
Em geral, antes de ir para a casa de Joshua, ele se forrava com boas doses de uísque e um bife bem suculento. Depois disso, cheio de energia e de audácia, atravessava as ruas da cidade em sua mais bela carruagem puxada por dois cavalos pretos e descia à porta do banqueiro da maneira mais grandiosa e arrogante. Só mediante tais preparativos podia ele suportar jantar com Joshua e evitar náuseas diante dos pratos insípidos. Fortalecido, bem alimentado e exuberante, podia declinar a comida que lhe era oferecida, suportar a frigidez úmida do salão de jantar e enfrentar com segurança e equilíbrio o velho implacável.
Nesses jantares frequentes, ele e Joshua conversavam sobre muitos assuntos. Joshua, que era um tanto ilustrado e culto e se interessava profundamente por política e história, debatia muitos temas. Em seu estado normal, Stuart ter-se-ia confessado com um sorriso ignorante de todos esses assuntos, mas, deliciosamente inebriado tanto pelo uísque quanto pelos olhos dourados de Marvina, não havia tópico em que ele não demonstrasse ao menos um conhecimento para conversar. Desde que era naturalmente inteligente e cheio de imaginação, surpreendia muitas vezes Joshua com suas observações que, embora proferidas em linguagem simples e sem afetação, possuíam quase sempre a sutileza antiga de um homem cujo cérebro é bem arrumado. Em certa ocasião em que Joshua declarou que a história e a geografia eram inseparáveis, o espírito de Stuart captou imediatamente a ideia e discutiu voluvelmente o assunto, provocando com isso a raiva sombria de Joshua. Mais tarde, Stuart não pôde lembrar-se exatamente de seus argumentos, mas compreendeu que tinham sido brilhantes e sentiu-se vaidoso com isso. Mas seu espírito continuou belamente inocente do que tinham sido, em momentos mais delirantes, observações agudas.
Ele se excedia na presença de Marvina e, embora os seus argumentos às vezes fossem ingênuos, eram ditos com tanta segurança e tamanha sugestão de significados mais profundos que aturdiam provavelmente a moça, cuja inteligência não era lá grande coisa.
Ao fim de quatro meses, Stuart não tinha mais conhecimento do espírito de Marvina do que tivera na primeira noite, salvo o fato de que ela tinha uma voz cheia e doce como um rio lento de mel, mas que era muito raramente empregada. Bastava, porém, a Stuart que ela sorrisse como um anjo, que ela corasse quando ele a olhava com mais firmeza e que fosse manifestamente dócil, bem-educada e de modo algum muito inteligente. Era também uma exímia harpista e, depois do jantar, cantava para ele coisas doces e inócuas totalmente sem expressão, mas criando uma imagem maravilhosa de beleza quando as mãos brancas tangiam as cordas e o seio se erguia. O jovem apaixonado ficava então inteiramente deslumbrado e a olhava com o ar orgulhoso e encantado de um proprietário.
Sabia que Marvina não era insensível a ele. Podia olhá-la e fixar-lhe o olhar, sentindo-se então como a serpente que fascina um pássaro indefeso e esvoaçante. Sentia pena por essa fascinação daquela bela e inocente criatura! Tinha compaixão dela porque era incapaz de resistir-lhe, mas, na verdade, qual era a mulher que podia opor-lhe resistência? Não sabia, porém, que Joshua observava tudo isso com malicioso prazer e esfregava as mãos numa alegre antecipação.
Na verdade, Joshua, como Stuart e quase todas as outras pessoas que entravam em contato com a arrebatadora Marvina, nada sabia da filha. Desde a infância, ela tinha sido calada, embora não secreta. Tinha sido sempre dócil e moldável, sorrindo quando lhe dirigiam a palavra, procedendo com um sentimento de absoluta obediência e jamais se arriscando a dar uma opinião pessoal. A verdade era que Marvina, embora pudesse escrever com boa caligrafia, fosse capaz de ler com alguma expressão, soubesse aritmética e geografia suficientemente para passar nos exames mais simples e pudesse bordar com exatidão, mas sem inspiração, tocar piano e harpa e dançar como uma fada, tendo ainda condições para conversar sobre os temas próprios de uma moça elegante e de boa família, era quase analfabeta. A alma era quase sem personalidade, o coração vivia quase imune a qualquer sentimento e bem raras tinham sido as ocasiões em que um pensamento mais profundo havia toldado a placidez rasa do lago de seu espírito.
Marvina era, pois, uma primitiva e obtinha o que desejava. Poucas coisas desejava ardentemente. Uma delas era Stuart.
Posteriormente, o padre Houlihan diria, cheio de medo, que nunca teria acreditado que uma criatura humana pudesse nascer e viver sem alma se não tivesse conhecido Marvina. Para ele, ela se tornou um belo horror sorridente que ia acordar nas profundezas de sua superstição céltica, velhas histórias de criaturas que andavam, sorriam, falavam e viviam como as outras criaturas humanas, mas que na realidade não existiam e que, quando passavam da percepção dos outros para a ilusão da morte, desapareciam para sempre como um sopro de névoa, sem deixar traço, nem lembrança. Desde que não tinham alma, nem verdade, o próprio Deus não sabia que tivessem vivido, pois não tinham tido meios de comunicarem-se com Ele. O inferno não tinha também conhecimento deles, pois eram incapazes de praticar o mal.
Dizer que Stuart a amava teria sido um grande exagero. Tinha ele a crença beata de que um homem não podia nunca amar uma mulher com tudo o que o amor implicava: amizade, comunhão, camaradagem, ternura perceptiva e dedicação profunda. Uma esposa era uma mulher com quem se dormia e procriava e tinha de ser, durante o dia, uma dona de casa e uma mãe.
Levava-lhe flores e livros. Ela recebia os presentes com evidente prazer, tomando as flores nos belos braços ou segurando os livros entre os dedos brancos. Mas as flores não a impressionavam. Os livros eram para ela como se fossem fechados em mármore. Tinha os olhos tão cegos quanto o espírito. Movia-se e sorria instintivamente, como se concordasse inconscientemente.
Tão estonteado ficou Stuart que chegou a acompanhar Marvina e seu sinistro pai todos os domingos à igreja. Livrava-se do tédio do estéril culto protestante olhando para a moça e imaginando toda a espécie de prazeres. Ela se sentava muito séria, de chapéu, capote, vestido e mãos enluvadas, sem tirar corretamente os olhos do enfadonho ministro, enquanto o seu perfil perfeito brilhava na penumbra da igreja como marfim trabalhado. Nunca parecia tomar conhecimento da presença de Stuart durante as suas devoções. Enchia o ar desolado da igreja de um resplendor e de uma glória que eram positivamente indecentes, na opinião das senhoras mais feias.
Se Stuart bebia mais do que de costume nas tardes e nas noites de domingo, não sabia por quê. Disse uma vez ao padre Houlihan que tinha de tirar a poeira de um domingo protestante que lhe ficara na garganta. Mas era a poeira do vazio, da associação com o vazio que o desorientava, impelindo-o para o uísque.
Um domingo protestante em Grandeville era uma coisa tremendamente triste. "Escondem-se debaixo da cama e cobrem a cabeça com os urinóis", dizia Stuart. E era sem dúvida verdade que Grandeville se tornava durante vinte e quatro horas uma cidade morta, cinzenta e fria, na qual só os sinos das igrejas ressoavam pelas ruas desertas. De vez em quando, uma carruagem discreta passava quase em silêncio pelas calçadas durante as horas em que não havia serviços nas igrejas e, dentro de algumas das casas, os homens empanturrados de almoços substanciais, dissipavam dormindo as horas vazias e opressivas. Só de raro em raro se via um garoto quase morto de tédio a palmilhar preguiçosamente os passeios, ou um grupo de família que tomava um pouco de ar. De um modo geral, Grandeville se encolhia sob as suas árvores num pesado silêncio, enquanto o rio faiscante se dourava aos raios do crepúsculo, observado apenas por poucos olhos.
Stuart sempre tivera o costume de fugir dos limites do protestantismo de Grandeville aos domingos e ir para a zona pobre da cidade chamada pelos que a odiavam de "Cidade do Papa". Ali, podia encontrar-se um pouco de vida. Nas ruas sujas, os rapazes jogavam bola ou se reuniam nas esquinas para conversar animadamente e olhar as esbeltas moças que passavam em companhia das mães e dos irmãos. Viam-se ali rostos estrangeiros, que ainda traziam viva a lembrança dos domingos europeus, que tinham sido cheios de alegria e despreocupação. As crianças corriam gritando pelos passeios de tábuas e as mães, com xales nos ombros, conversavam às portas. O padre Houlihan fazia visitas aos seus paroquianos e as crianças o seguiam num afetuoso cortejo. Tinha sempre os bolsos cheios de nozes, maçãs e balas para elas, que o estimavam muito.
Stuart se dirigia, portanto, para o bairro de má reputação, mas onde havia vida, felicidade simples e alegria sem entraves. Às vezes, se empenhava em jogar malha com outras almas degradadas ou em discutir política acaloradamente, sem entender nada de nada, com grandes irlandeses jovens de rosto vermelho. Ia acabar sempre indo tomar uma cerveja fria na modesta casa do padre Houlihan, acompanhada de fatias de carne fria e bom pão. Era então que Sam Berkowitz aparecia e os três entravam pela noite num animado jogo de cartas ou numa discussão entrecortada de risadas.
— O domingo foi feito para o homem e não o homem para o domingo —, dizia o padre Houlihan. — Que alegria tem essa pobre gente durante seis dias da semana? Nenhuma. Só conhecem o trabalho, o suor e um sono pesado de exaustão. O bom Deus fez o domingo para que seus filhos pudessem ser alegres e felizes durante algumas horas, esquecendo como a vida e os patrões são duros.
Essas opiniões não eram aceitas pela Grandeville protestante, onde os domingos eram cinzentos, áridos, frios, amargos e completamente mortos. Na realidade, havia muito, tinham tentado fazer aprovar certas leis segundo as quais seria um delito praticar jogos nas ruas, conversar em voz alta, rir em praça pública ou jogar cartas e entregar-se a outros prazeres inocentes durante o domingo.
— É cruel e errado fazer do domingo um dia de tristeza —, dizia o padre Houlihan, abanando melancolicamente a cabeça. — Se aprovarem essas leis, quero ser o primeiro a ir para a cadeia, em sinal de protesto contra essa tentativa de fazer do domingo um dia de servidão penal e de abatimento.
As leis não foram aprovadas. Grandeville teve de contentar-se com as táticas de fria censura, ostracismo e exemplo para combater a alegria dominical dos habitantes da "Cidade do Papa" pagã. Não tiveram muito sucesso, embora os guardas passassem de vez em quando pelas ruas sujas e malcuidadas pedindo aos grupos que riam e discutiam que fossem para outro lugar e advertindo as crianças para que fizessem menos barulho. Mas nada diziam ao padre Houlihan que os observava pesarosamente.
A igreja do padre era pequena e pobre antes que Stuart lhe construísse a esplêndida capela. Os desordeiros de outros bairros da cidade adquiriram prontamente o hábito de quebrar os vitrais, dilapidar as imagens e danificar o interior. Stuart contratou então uma guarda para proteger a capela com pistolas e cassetetes. O padre Houlihan protestou, mas a guarda continuou.
— Deus nos protegerá —, dissera o padre.
— Só estamos ajudando Deus —, retrucara Stuart.
— Mas temos também a lei do nosso lado, Stuart.
— A lei vive no bolso dos políticos e os políticos vivem no bolso dos ricos.
Enquanto isso, a casa de Stuart se ia levantando perto do rio. Era cada vez maior o número de curiosos que iam até lá para ver o andamento das obras. Até os homens que tangiam os animais no caminho de sirga paravam a fim de ouvir e as barcaças quase se imobilizavam nas águas túrgidas do canal e a fumaça das chaminés dos que viviam nos barcos subia ao ar numa coluna reta.
Stuart levava muitas vezes Marvina e o pai para verem a casa. A moça passava com seu passo delicado e gracioso por entre montões de pedras brancas, ajudada pelo dedicado Stuart que depois tratava de ajudar-lhe o pai. Os dias de inverno se transformaram em primavera e o rio corria azul sob céus luminosamente azuis. O verão chegou, todo ouro e ventos suaves. Então, foi inverno de novo, o rio foi tomado pelos gelos e a margem canadense se tornou uma mancha escura contra os poentes em chamas.
Já então, Stuart estava dominado de verdadeira paixão pela casa e se dedicava inteiramente a ela. Era para ele uma coisa viva, bela e perfeita, num prolongamento de seus sonhos. Quando a construção terminou finalmente em fevereiro do segundo ano, Stuart se mudou para lá e entregou-se todo ao seu êxtase.
Então, num domingo, depois que Marvina se havia retirado, ele a pediu em casamento ao pai.

CAPÍTULO 13
Esse acontecimento se verificou cerca de quatro meses antes de Janie chegar. Stuart estava escrevendo à prima suas habituais cartas animadoras e imprudentes, enquanto ela exprimia a determinação de "começar a vida de novo" na América. Para dizer a verdade, Stuart pouco acreditava nisso. Tinha na cabeça nessa ocasião coisas mais importantes. A Inglaterra estava muito distante e as pessoas que ali viviam mal existiam em sua consciência.
Naquele domingo em que, com o sangue acelerado e uma aparência tão calma como sempre, abordou Joshua Allstairs para pedir-lhe a mão da filha, Stuart não estava pensando absolutamente em Janie.
O almoço foi execrável como sempre. Stuart naquela manhã se fortalecera além do habitual com frequentes libações. Reprimiu a exaltação e o álcool o fez atravessar as cerimônias da igreja dentro de um magnífico alheamento. Durante as preces e os hinos prolongados e enfadonhos, acompanhados do sermão, viu apenas Marvina linda no seu vestido de veludo e peles, com o rosto emoldurado por um chapéu de castor guarnecido de renda de seda. Ela lhe sentia sem dúvida o encantamento porque de vez em quando olhava para ele, com uma luz profunda refletida nos olhos fulvos. Stuart não sabia que era apenas o reflexo do tumulto que lavrava nele.
De vez em quando, havia confiado a Sam Berkowitz os seus planos sobre Marvina. Sam se limitara a olhá-lo sem nada dizer. Numa dessas ocasiões, Stuart disse exaltadamente:
— Pense só no que nós podemos fazer com cem mil dólares, Sam!
— Você acha que o pai dela vai concordar? — perguntara calmamente Sam.
— Naturalmente! Há algum pretendente por aqui melhor do que eu? Por que não?
— Pois eu acho que o pai vai dizer que não.
Desde que Stuart tinha também algumas dúvidas secretas a esse respeito, a observação de Sam o fez ficar furioso.
— E eu acho que o pai vai dizer sim, está ouvindo. Por que não? Só porque eu lhe devo alguns miseráveis dólares? Ele sabe muito bem que eu vou pagar tudo. Que motivo teria para não concordar?
Sam olhou-o com triste desânimo e disse:
— Apenas porque Allstairs não presta.
Sam nada mais dissera. Tinha voltado para as lojas e passeara por elas como um fantasma inquieto. O movimento não tinha sido tão bom ultimamente, talvez porque Stuart estivesse ausente a maior parte do tempo, ocupado em dar os retoques finais em sua bendita casa e em rejubilar-se com ela. Sam tivera de entrar com uma boa soma de seu dinheiro para pagar a última nota da casa. Stuart não tinha a rigor qualquer fundo de reserva. Cheio de vergonha e irritação, propusera pagar a Sam juros muito altos pelo adiantamento feito, mostrando-se muito insistente nisso. Mas Sam o olhara com eloquente afeição e sofrimento e o assunto fora deixado de lado.
— Aceita então uma hipoteca de mil dólares sobre a casa?
Sam quis dar uma gargalhada, mas receou que Stuart ficasse ofendido. Pôs a mão no ombro dele e disse:
— O que é meu é seu, meu amigo. Além disso, você não disse que vai reservar um canto da casa para mim? Pois eu estou pagando por esse canto. Nada mais justo.
— Sabe o que foi que houve, Sam? Foi aquele altar na igreja do padre. Custou mais do que eu esperava. Mas o outro era feio demais e não servia. Por que será que as igrejas custam tão caro?
Sam olhou-o com profundo afeto. Stuart era uma verdadeira criança! Sincero e imprudente, ávido e displicente, tudo ao mesmo tempo! Um homem como ele não devia ser contaminado pelo sangue dos Allstairs. Seria uma coisa criminosa e revoltante. E aquela moça então com aqueles olhos vazios e aquele corpo sem alma! Era uma ideia intolerável a união dos dois. Mas não era possível discutir com aquele jovem cego que nem desconfiava de que ia atirar-se nos braços do mal. As portas do inferno são guardadas por criaturas que não têm alma e contemplam com olhos mortos de estátuas os que para lá descem.
E então Sam murmurou em hebraico uma frase sonora: "Salva minha alma das destruições e meu amado dos leões."
— Que foi que você disse? — perguntou Stuart, franzindo a testa, mas Sam afastou-se. — Você e seu Talmude!
E assim, o uísque, a embriaguez da presença de Marvina, a determinação de possuí-la e a sua fortuna e a turbulência negra e inquieta que havia dentro dele levaram Stuart a Joshua Allstairs naquela tarde de domingo, poucos meses antes da chegada de Janie.
Fosse por que fosse, Joshua estava naquela tarde excepcionalmente afável e bem-humorado. Isso alegrou muito a Stuart Não sabia que Joshua estava plenamente consciente do que ele ia dizer e se regozijava de antemão.
Quando Stuart levou um charuto à boca com as mãos trêmulas, Joshua não o contrariou, lembrando-lhe que estavam no dia do Senhor e que o fumo não era permitido em sua casa. Ficou a olhá-lo das profundezas de sua poltrona, encantoado na sua malignidade cinzenta.
Stuart levou algum tempo para conseguir acender o charuto e praguejou entre dentes. A testa estava banhada de suor e o rosto se mostrava muito vermelho. Quando afinal conseguiu acender o charuto e tirou a primeira baforada, virou-se abruptamente para Joshua.
— Sr. Allstairs —, disse ele sem preâmbulos, esquecendo por completo as frases bonitas e floreadas que havia preparado e que havia projetado proferir com uma mistura de dignidade e respeito —, desejo sua permissão para aspirar à mão da Srta. Marvina.
Calou-se então. Não sabia que estava visivelmente arquejando. Fixou em Joshua os olhos pretos numa mistura de desafio, súplica e arrogância. Retesou os músculos, preparando-se para a batalha.
Mas Joshua continuou a olhá-lo com benevolência. Riu até um pouco, bem-humoradamente, esfregando as mãos no castão da bengala. Nada podia haver de mais indulgente e afetuoso do que sua expressão.
— Eu já desconfiava disso —, murmurou de. — Ama então minha filha?
— Adoro-a! — exclamou Stuart. Engoliu em seco e acrescentou: — Espero então que não seja contrário.
 — A menina nem tem dezoito anos ainda —, murmurou mansamente Joshua.
Stuart, perdendo inteiramente a cabeça diante da calma do outro, exclamou impetuosamente:
— Muitas moças são esposas e até mães com essa idade, Sr. Allstairs!
— Ela lhe deu algum estímulo, Stuart?
Stuart franziu a testa e respondeu:
— Moças bem-educadas não costumam dar o que chama de estímulo, Sr. Allstairs. Mas tenho motivos para acreditar que a Srta. Marvina não é indiferente à minha pessoa.
Ora, Joshua tinha já completado os seus planos para levar Marvina para a Inglaterra antes do fim do ano e podia sem perigo naquela ocasião divertir-se às custas de Stuart. Preparou-se para gozar plenamente a sua maldade e o seu ódio.
— Ora, Stuart —, disse ele —, vamos ser sensatos. Que tem você para oferecer a minha filha, criada, como sabe, em circunstâncias de requinte e luxo? Suas lojas? Eu as acho maravilhosas e não tenho dúvida de que um dia você será um homem muito rico e empreendedor. Mas ainda não é. Que tem para oferecer? Está endividado. Na minha opinião, você se está expandindo além de suas reservas. Em última análise, meu caro, você não passa de um lojista. Meus projetos para Marvina são muito mais altos.
Stuart ficou muito vermelho e apertou os lábios.
— Por outro lado, você é irlandês —, disse — Joshua, baixando a voz quase a um sussurro. — Faça-me a justiça de compreender que eu não tenho preconceitos. E estamos na América, onde as criaturas mais estranhas podem tornar-se muito poderosas. Perdoe a um velho que só tem um tesouro, Stuart, mas a verdade é que acho seu sangue irlandês repugnante...
— Minha mãe era escocesa —, murmurou Stuart, tendo raiva de si mesmo logo depois de ter dito isso.
Joshua sacudiu a cabeça.
— Vamos deixar de lado por um momento seus antecedentes, Stuart. Afinal de contas, estou sendo tolerante, não acha? Quem é você realmente, Stuart? Tem falado de parentes ilustres na Escócia e na Inglaterra, bem como na Irlanda, mas eu ainda não vi nenhum deles. Às vezes, tenho pensado que você... exagera um pouco. Perdoe-me se o estou ofendendo sem querer. Mas eu gostaria de ter algumas provas indiscutíveis desses parentes seus.
— Pois vai tê-las! — exclamou Stuart e se lembrou de repente de Janie. — Ah, sim! Já me ia esquecendo! A Sra. Cauder, minha prima, vem fazer-me uma visita aqui. É uma senhora rica e de muito boa família.
— Hum —, murmurou Joshua, desagradavelmente surpreso. — Posso perguntar-lhe quem é a Sra. Cauder?
— Minha prima. O pai dela tem extensas propriedades e Janie tem considerável fortuna pessoal. — A imaginação de Stuart começou então a funcionar. — Sir Angus Fraser é primo dela pelo lado paterno. Deve ter ouvido falar nele. Tem vários quadros na Academia Real.
Ficou irritado consigo mesmo por não poder lembrar-se dos outros antepassados e parentes ilustres de que tinha discorrido tão confiantemente a Joshua no passado e que havia inventado no impulso do momento para impressionar o velho demônio. Mas seu espírito só tropeçou momentaneamente nesse obstáculo. Esperou fervorosamente que Joshua tivesse esquecido os nomes augustos que inventara. Janie era, porém, tangível. Existia e era rica. Stuart esperava que ela o apoiasse nas coisas que inventara e sua confiança se restabeleceu.
Joshua olhava-o atentamente. Se fosse verdade, era uma circunstância inesperada e desagradável.
— Lembra-se de Sir Angus Fraser? — perguntou Stuart, deixando-se levar pela imaginação. — O retrato que ele fez da Duquesa de York é considerado uma das obras-primas da Academia.
Joshua estava perturbado.
— Sir Angus Fraser? Sem dúvida que me lembro do quadro... — Fez uma pausa e perguntou: — E a Sra. Cauder? Tem filhos que estão viajando com ela, não é verdade?
— Sem dúvida —, disse Stuart com entusiasmo, embora não tivesse pensado até então nos filhos de Janie. — Creio que o filho mais velho, Angus, herdará o título, visto que Sir Angus não tem descendência masculina.
Estava um tanto confuso a respeito das leis inglesas de herança, mas calculou astutamente que Joshua sabia delas tão pouco quanto ele.
— Não há possibilidade alguma de que você venha a herdar o título? — perguntou Joshua, confirmando com isso as suas suspeitas.
Stuart pensou um instante. Aí estava uma admirável possibilidade, mas o caminho era arriscado demais até para os poderes de sua imaginação. Sacudiu tristemente a cabeça.
— Infelizmente, não. Só os herdeiros em linha reta, se não estou enganado.
Joshua mostrou um súbito interesse.
— E qual é a idade desse filho da Sra. Cauder?
— É um garotinho ainda. Doze ou treze anos, no máximo.
Joshua ficou profundamente desapontado. Mas logo reagiu. Afinal de contas, uma diferença de alguns anos não tinha a menor importância. Marvina podia esperar. Procurou mostrar o seu desprendimento anterior.
— Está bem, Stuart, parece que tem mesmo parentes ilustres. Neste caso, passemos a outro assunto. Você está pesadamente endividado, Stuart, não apenas comigo, mas também com outros, graças a consideráveis encomendas de mercadorias.
Stuart franziu a testa. As suas dívidas eram um assunto delicado. Disse com altivez:
— Nunca falhei uma só vez no pagamento do capital ou dos juros. Meus negócios correm admiravelmente bem. Espero dentro de um ano estar completamente livre de dívidas, inclusive da sua. Só lhe devo seis mil dólares do empréstimo original e os dez mil dólares da casa. Considero esses dez mil dólares como um assunto particular, sem qualquer relação com as minhas lojas.
Joshua meditou. Aquele idiota havia assinado um acordo mediante o qual a falta de um só pagamento dos dez mil dólares daria a ele, Joshua, a posse da casa. Olhou Stuart distraidamente e murmurou:
— É claro, é claro...
Agora, se a tal Sra. Cauder pudesse livrar Stuart dessa dívida de dez mil dólares, isso seria muito desagradável e até uma verdadeira infelicidade. Entretanto, não havia dúvida de que ela podia fazer isso. O rosto de Joshua se tornou uma máscara de ruindade frustrada, contraída e horrenda.
De qualquer maneira, uma mulher que tinha como primo o ilustre Sir Angus Fraser, pintor de retratos da família real e de outras figuras notáveis, não podia ser desprezada, especialmente quando tinha um filho poucos anos mais moço que Marvina.
— Espere um momento, espere um momento —, disse Joshua, franzindo a testa e encolhendo os lábios. Fixou em Stuart os olhos de ofídio. Não seria conveniente contrariar essa exaltada Sra. Cauder. O melhor era contemporizar para ver.
Joshua bateu nos lábios pensativamente com o castão da bengala. Tinha de passar muitas coisas em revista. Estreitou os olhos, fazendo sair deles um brilho mau. Disse então:
— Meu caro Stuart, não lhe posso dar desde já uma resposta a respeito de minha filha. Ela ainda é muito moça e inexperiente, apesar da idade. Vamos dizer, portanto, o seguinte apenas: não sou contrário às suas pretensões. Está bem?
A exultação de Stuart não pôde ser contida. O seu temperamento impetuoso varreu todas as inquietações. Iria conseguir tudo o que queria!
Levantou-se com o rosto radiante e exclamou:
— Tenho então sua permissão para falar com a Srta. Marvina?
— Calma, calma —, disse Joshua, sacudindo a cabeça, mas sorrindo e pensando que precisava de ficar algumas horas sozinho para refletir sobre tudo aquilo. — Não foi isso que eu falei. Disse apenas que, no momento, não me oponho. Mas há muitas coisas que devem ser levadas em conta.
— Construí minha casa para ela! — disse Stuart com entusiasmo.
— Escute, eu disse que há muitas coisas que devem ser levadas em conta. Deve permitir que um velho pense bem antes de abrir mão do seu tesouro.
Depois que Stuart partiu, numa onda de entusiasmo e embriaguez, Joshua ficou sentado sozinho por muito tempo, até que o fogo se apagou na lareira. Levantou-se então resmungando e subiu para os aposentos da filha.

CAPÍTULO 14
Marvina estava sentada diante da lareira na saleta de seus aposentos. Vestia um robe folgado de veludo carmesim debruado de peles. Os cabelos negros lhe desciam pelos ombros. Quando o pai entrou, estava olhando para o fogo, tão imóvel quanto uma estátua pintada. Virou-se para ele com um sorriso amável e estendeu o rosto para ser beijada. As suas maneiras eram serenas, tranquilas e sem interesse.
Joshua sentou-se ao lado dela e olhou-a com apaixonada intensidade. A luz da lareira brilhava sobre suas feições perfeitas e destituídas de qualquer expressão.
— Está pensando, querida? — perguntou ele gentilmente.
— Estou, sim, Papai —, respondeu ela com sua voz cheia e lenta.
— Coisas agradáveis, sem dúvida?
— Sim, Papai.
— Está contente, meu amor?
— Estou sim, Papai.
— Não a estou atrapalhando?
— Não, Papai.
Joshua ficou em silêncio. A filha tinha falado com docilidade e calma, como se fosse um eco sem pressa da voz dele. Pela primeira vez desde que ela tinha nascido, Joshua sentiu um frio no coração. Os olhos, que o contemplavam quase fixamente, eram belos, mas vazios. Pensou pela primeira vez: Que haverá por trás desse rosto? Era como uma boneca bela e grande, que esperava inerte que alguém a segurasse e manobrasse.
Quase com irritação, perguntou abruptamente:
— Em que era que você estava pensando?
Ela o olhou sem expressão e até sem a menor surpresa no olhar.
— Ora, Papai, em muitas coisas. Como é bom que a primavera venha aí. Na capa de peles que você me comprou há uma semana. Na festa da semana que vem. É errado pensar nessas coisas num domingo, Papai?
Disse isso placidamente e se voltou de novo para o fogo.
— Pensamentos frívolos, sem dúvida, meu amor —, disse Joshua com uma severidade da qual não estava excluída a simpatia.
Mas Marvina nada disse em resposta. Continuou a olhar para o fogo e mostrou um sorriso vazio, mas de infinita doçura. O pai teve de súbito a ideia desagradável de que ela se havia esquecido da presença dele. Mas, quando pigarreou, ela voltou de novo os olhos obedientemente para ele.
— O Sr. Coleman acaba de sair, meu amor. Pediu-me que lhe apresentasse os seus cumprimentos.
— Sim, Papai.
Tinha havido alguma alteração naquele belo rosto? Havia um tom mais vivo naqueles lábios? Mas as maneiras da moça permaneceram imutáveis.
— É um moço fascinante, não acha?
— É essa a opinião geral, Papai.
— Mas qual é sua opinião? — perguntou Joshua, insistentemente.
— O Sr. Coleman é muito gentil, Papai. Um cavalheiro perfeito e a conversa dele é muito inteligente.
— Humm —, murmurou Joshua, cujos olhos quase saíam das órbitas, tamanha era a intensidade com que observava a filha.
— Não o acha antipático?
— Não, Papai —, disse ela, olhando para ele com os olhos dourados bem abertos e à espera.
— Gosta dele?
— Gosto, Papai.
— Acha a conversa dele agradável, Marvina? — perguntou o pai com a voz estranhamente rouca.
A cabeça dela estava inclinada e uma madeixa dos cabelos escondia-lhe o perfil.
— Ele é muito educado, Papai.
Ah, é apenas uma mocinha reservada, pensou Joshua, suspirando, como se se livrasse de uma pressão intolerável.
— Marvina, meu amor, ele me pediu permissão para fazer-lhe a corte.
Joshua viu que ela estava tremendo e que baixara ainda mais a cabeça.
— Sim, Papai? — disse ela, com voz quase inaudível.
— Você não vai recusar, segundo creio? — perguntou ele em voz alta e áspera.
Ela levantou a cabeça e mostrou os olhos cheios de lágrimas.
— Não, Papai, desde que seja de seu gosto.
Joshua ficou em silêncio, com os seus pensamentos em completa confusão. Poucas horas antes, tivera a intenção de recusar a pretensão de Stuart com risos e zombarias, indo depois contar tudo à filha para rir com ela da presunção daquele irlandês desprezível e insignificante. Chegara a imaginar antecipadamente as gargalhadas de Marvina.
Mas naquele momento não podia senão ficar ali, sumido em silêncio. Muitas coisas tinham mudado. Sentira poucos momentos antes a horrível presença de um incubo. Fora libertado dessa ideia lúgubre pelo rubor, pelas lágrimas e pela agitação de Marvina. Não estava entendendo mais nada!
Sem dúvida alguma, não tinha pensado em Stuart como um marido para Marvina. Entretanto, estava ali naquele momento quase impondo-o à filha. Sentiu-se de súbito triste, desalentado e muito velho.
Levantou-se e encaminhou-se para a porta, apoiado na bengala. Chegando à porta, parou e olhou para trás. A filha o estava olhando com silenciosa ansiedade.
— Vamos ver, vamos ver! — exclamou ele. — Enquanto isso, você não deve dar o menor estímulo a ele, Marvina!
Joshua esperou. Se ela dissesse: "Não, Papai", ele poderia prorromper em exclamações incoerentes e deixá-la abruptamente. Mas, para seu espantado alívio, ela se limitou a sorrir e o fogo da lareira lhe iluminou as faces ruborizadas.

CAPÍTULO 15
Por fim, Janie tinha chegado com suas malas, sua fortuna e seus filhos.
Durante a viagem até Grandeville, Stuart tinha pensado com mais coerência e energia do que até então fizera. Era cada vez mais evidente que Janie não se ajustava bem ao papel de parenta "ilustre" que esperavam Joshua Allstairs e os outros a quem ele tinha efervescentemente anunciado a sua próxima chegada. Janie era grosseira e inculta de maneiras e de conversas. Falava sempre muito alto e sem o menor respeito pelas conveniências. Mas tinha dinheiro. E possuía um guarda-roupa excelente, que superava até em qualidade e variedade o de Marvina.
Não obstante, Stuart tinha sérias dúvidas de que as recatadas e rígidas senhoras de Grandeville fossem aceitar Janie Cauder. A prima detestava as pessoas piedosas, severas e afetadas e não podia deixar de escandalizá-las. Praguejava como um granadeiro e as opiniões que tinha sobre as coisas sagradas fariam empalidecer até um homem tolerante como o padre Houlihan. Se alguém soubesse que Janie não era inimiga de um bom uísque, gostava de levantar as saias quase até à cintura para aquecer-se diante do fogo e beber o seu grogue sem água e Stuart estaria completamente arrumado.
Teve, porém, algum conforto lembrando-se das histórias que o pai lhe havia contado a respeito da aristocracia inglesa. Duquesas que praguejavam, que montavam a cavalo como homens, que gostavam de cerveja, de uísque e de cachorros, eram muito comuns. Talvez ele pudesse fazer Janie passar por uma delas. De qualquer maneira, que eram os "aristocratas" americanos?
O quadro se tornou um pouco mais suave em seu tom, perdendo os seus tons escarlates originais. Imaginava-se dizendo com grande e divertida indulgência a certas senhoras: "Faço questão de que conheça a Sra. Cauder, minha querida prima. Trata-se de uma pessoa muito excêntrica, verdadeiramente representativa da aristocracia inglesa. Desde que um aristocrata não tem o menor receio de que alguém lhe ponha em dúvida a família, os títulos ou a posição, pode ser perfeitamente natural, sem afetação, nem fingimentos. Já teve ocasião de observar que uma senhora ou um cavalheiro da mais elegante e irrepreensível família não precisa de fingir coisa alguma e em geral não teme a opinião das classes inferiores ou até de sua própria classe?"
Ensaiava essas frases, mas as suas apreensões não se atenuavam. Janie já estava com ele havia uma semana. Não poderia mais prendê-la dentro de quatro paredes. A qualquer momento, as senhoras, em grupo, começariam a visitá-la. Janie deixaria assim de ser o seu terrível segredo.
A natureza acudiu em seu socorro sob a forma de doenças.
Sete dias depois de ter chegado a Grandeville, Janie teve gentilmente um resfriado e Bertie e Robbie seguiram-lhe o exemplo. No oitavo dia, tiveram de ficar de cama. O médico manifestou a sua preocupação e Stuart respirou aliviado. Tivera um prazo de graça. Animou-se novamente e, desde que o problema tinha tido um adiamento de duas semanas no mínimo, deixou de pensar nele.
Pôde até fazer uma visita às suas lojas e conversar alegremente com as freguesas, sem precisar de observar se alguma delas tinha ouvido qualquer coisa desagradável a respeito de Janie,-por intermédio da criadagem. Conseguiu até visitar Joshua e Marvina com a maior despreocupação e comentar pesarosamente os sofrimentos de Janie, lamentando que a festa que pretendia dar em honra dela tivesse de ser adiada. Pôde ainda ser bondoso para com os outros filhos de Janie, Angus e Laurie.
Via que os dois estavam em dificuldades. Os criados não simpatizavam com eles. A mãe detestava-os. Vagueavam pelos terrenos da casa e pelas suas salas proibidas como pequenos fantasmas. O próprio Stuart displicente não podia ser insensível à miséria em que os dois viviam.
Estava-se no começo de abril. O rio estava entupido de pedaços de gelo que vinham dos Lagos. Esses blocos se quebravam e comprimiam junto às margens, rebrilhando ao sol novo. Entre eles, a água azul-escura espumava. Deles subia um frio penetrante e vivo, que varava até as roupas quentes capazes de resistir às mais duras nevadas do inverno. O gelo se estendia interminavelmente para a frente e para trás, branco e quebrado, marchando como uma avalancha para as cataratas. Mas as árvores mostravam os seus primeiros brotos e, quando o vento amainava, o ar tinha uma suavidade e uma frescura que animavam o coração. O céu, de um azul límpido e luminoso, se curvava sobre a terra como uma pura cúpula de luz. A terra ainda estava nua e pardacenta, empapada de água, mas dela subia um odor forte e fecundo. As primeiras barcaças do Canal e os primeiros vapores dos Lagos não tinham conseguido ainda romper os gelos, mas já circulavam rumores deles. Um viajante anunciou que a primeira barcaça do Canal tinha sido avistada em Utica. Dentro de duas ou três semanas, deveria chegar a Grandeville. Através de toda a região do norte, havia um murmúrio de grande atividade e esperança, sendo fácil esquecer a massa de gelo que descia trovejantemente para o Niágara e a parede de ar gelado que se elevava quase constantemente dela.
Os crepúsculos raramente agora eram frios e escarlates. Viam-se nesses dias no poente os mais puros lagos de um verde muito claro e os últimos raios de sol que caíam sobre as águas escuras e os blocos de gelo eram quentes e rubros, embora isolados ainda e silenciosos. Algumas crianças tinham encontrado açafrão nos bosques e os tordos tinham voltado enchendo o ar puro da tarde com o seu canto argentino e triste que caía da altura como se fossem gotas redondas de água clara. É verdade que as bordas dos tanques e das poças de água se cobriam à noite de uma camada de gelo e que, às vezes, lufadas de neve caíam sobre a paisagem pardacenta e sobre os blocos de gelo. Mas o meio-dia era sempre gentil e festivo e o fogo surdo já não lavrava aos crepúsculos. À noite, as estrelas eram menos duras e cintilantes e a lua mostrava uma face mais suave.
Numa noite, mais doce e perfumosa que as outras, Stuart voltou das lojas, indagou polidamente e sem muita esperança do estado de saúde de Janie e encontrou Angus e Laurie que, no jardim pardo e molhado, escutavam os tordos. Encaminhou-se para eles e, quando se aproximou, o olhar tímido e retraído que lhe lançaram fez o coração dele confranger-se.
— Ora, ora —, disse de com uma cordialidade não muito tranquila. — Vocês dois não têm medo do sereno da noite?
Angus murmurou alguma coisa e Laurie lhe fez uma reverência. Stuart olhou a menina atenta e involuntariamente. Todas as suas belas cores tinham desaparecido. O rostinho, emoldurado pelos cachos dourados e pelo grande chapéu, estava muito pálido. Tremia visivelmente dentro do seu casaco marrom com gola de peles. Pobrezinha! Desde que chegara, não ouvira de Stuart senão repreensões quando corria pela preciosa casa ou deixava as marcas das unhas nas balaustradas. Não era de admirar que os olhos estivessem tão compridos e tão sumidos entre sombras pálidas. Lembrou-se de seus primeiros e comoventes encontros com a criaturinha na carruagem. Tinha tido então verdadeira simpatia por ela. Não lhe pôde tolerar a expressão de timidez, tristeza e medo, nem a maneira pela qual se aproximou mais do pálido Angus e segurou-lhe a mão. As duas crianças sabiam que não eram queridas e nem sequer toleradas e só podiam olhar o mundo, cheias de triste confusão.
— Que estão fazendo aqui? — perguntou ele, aproximando-se e tentando sorrir amavelmente.
— Estamos escutando os passarinhos —, disse Angus em voz baixa.
As crianças sorriram por delicadeza e ficaram em silêncio, olhando para Stuart com os olhos bem abertos e incertos. Ele sentiu um aperto na garganta e olhou para o céu com afetada naturalidade.
— Vai ser uma noite ótima. Querem dar um passeio até à beira do rio comigo?
Laurie olhou timidamente para o irmão, que lhe apertou a mão com mais força, dizendo então cortesmente:
— Seria muito bom, primo Stuart.
Tentou caminhar ao lado deles, mas os dois procuraram ficar um pouco atrás, ainda incertos e receosos. Seguiu então à frente, balançando um pouco o corpo, cheio de pena e intranquilidade. As crianças olhavam-no pelas costas com toda a sua altura, o casaco marrom com gola de peles, o chapéu alto luzidio, a bengala, as polainas e as calças claras. Julgavam-no uma figura magnífica!
No verão, a longa rampa até o rio ficava coberta de uma grama nova, verde e fresca. Mas a grama ainda estava pardacenta e filetes de água escura corriam por ela. Stuart observou com tristeza que a lama que ali havia não iria melhorar a aparência de suas botinas polidas. Parou um instante. Mas as crianças patinhavam alegremente na lama atrás dele, e em vista disso, continuou. Arrependeu-se automaticamente do impulso que o fizera descer até o rio, de cujos blocos de gelo vinha um vento bem frio. Ora, aqueles pobres-diabos estavam habituados à lama inglesa e a lama americana em comparação com ela era até uma brincadeira. Levantou a gola do casaco e continuou.
— Pronto! — exclamou, parando a alguns metros de distância da margem do turbulento Niágara. A água escura fervia por entre os blocos de gelo, arrastados em massa para as cataratas, mas aqui e ali os blocos se afastavam por um momento e podia ver-se que a água era da cor de uma cintilante turquesa. Além da implacável agitação dos gelos, ficava a mancha escura da margem canadense e, acima dela, havia uma faixa de céu tão clara que até fazia mal aos olhos. Mais acima dessa faixa, estendia-se um lago de puro verde, tranquilo e sem nuvens. Podia-se quase imaginar velas navegando nesse lago, tão perfeita era a ilusão. Bem mais acima, o céu já estava escuro e nele brilhava solitária a estrela da tarde.
Via-se dali perfeitamente no alto da encosta a casa branca de Stuart, que, no ar límpido do crepúsculo primaveril, brilhava como um templo grego de mármore e parecia elevar-se no ar. Para os lados do lugar onde Stuart e as crianças estavam, as margens se desagregavam em pedras e lama. As terras em torno da casa eram bem tratadas, mas de um lado e do outro estendiam-se os bosques cerrados.
O silêncio era grande e o rio impetuoso, o lago verde a oeste, o vento frio que se elevava dos gelos, a mancha distante da margem canadense, a beleza da estrela solitária, tudo isso dava à cena uma certa solenidade desolada e selvagem. Até o surdo trovejar do gelo arrastado pelas águas intensificava o silêncio. Esquecendo as crianças, Stuart olhou para o rio e para o céu e sentiu a alma cheia de melancolia e ansiedade. Começou a tremer.
Ouviu então a voz calma e tímida de Angus.
— Tudo isso é muito estranho e muito belo, não é, primo Stuart?
Stuart sorriu para o garoto, que tinha o rosto quase entorpecido de frio, e disse:
— Sem dúvida, meu caro Angus, mas extremamente desagradável nesta época do ano. Espere até ver isto aqui no verão.
Angus sorriu polidamente. A pequena Laurie olhou para o rio e depois para o céu. Alguns débeis raios do sol no ocaso brilharam no seu rostinho. O vento frio lhe havia dado alguma cor às faces infantis e os olhos azuis estavam radiosos. O vento lhe agitava os cabelos de ouro, espalhando-lhe pelos ombros as madeixas luminosas. Stuart olhava-a dentro de um encantamento. A beleza de Laurie lhe feria o coração com uma espécie de indescritível e dolorosa doçura. Quase com timidez, ele lhe tocou o rosto com a mão enluvada e lhe afagou o queixo. Ela virou o rosto lentamente para ele e sorriu. Era o mais belo sorriso que ele já tinha visto, tímido e inocente, confiante e compreensivo.
Sem saber ao certo o que fazia, curvou-se e beijou-lhe o rosto com grande emoção e uma espécie de obscura ternura. Ela não se esquivou, nem pareceu amedrontada. Mas, com muita timidez e num gesto comovente, colocou a mão sobre a mão de Stuart e ficou ali, entre o irmão e o primo, tranquila e segura.
O pobre Angus de olhos assustados e rosto magro, viu isso e teve de disfarçar as lágrimas, voltando os olhos para o rio. Tremia violentamente no seu casaco preto fino e o vento lhe agitava as calças em torno das pernas magras, dando-lhe um aspecto cômico de espantalho. Usava um chapéu alto de castor, que tinha de manter na cabeça com a mão livre. O perfil, muito magro e severo para um garoto de sua idade, ficou rígido com o esforço que fazia para manter a sua compostura. Mas, de repente, seu coração se abriu para Stuart com ansiosa intensidade.
Embora contida, Stuart a sentiu e olhou para o menino com furtiva compaixão. Deus do céu! Como podia ele ter sido cruel e negligente com aquelas pobres crianças que, embora fossem hóspedes mal recebidos em sua casa, não o eram por sua culpa! Sentiu um ímpeto de cólera e de piedade dentro do coração. Com a sua habitual impetuosidade, jurou que faria alguma coisa para que os dois se sentissem felizes.
— Está gostando dos Estados Unidos, Angus? — perguntou com uma voz cheia de calma ternura.
O menino olhou firmemente para o rio tentando controlar-se e disse:
— Não tenho visto muita coisa, primo Stuart. Mas o pouco que tenho visto é muito belo, como isto aqui. — Olhou para Stuart com os seus olhos velados e acrescentou: — Sua casa é muito bela também. Muito mais do que a de Vovô.
— Sente falta de seu avô? — perguntou Stuart. — E da Inglaterra?
Angus hesitou. Tinha receio de ofender Stuart, que estava sendo tão bom para eles. Disse então:
— Bem, aqui tudo é estranho. Lá, nós conhecíamos todos os carneiros, os bois e os cavalos. Conhecíamos a igreja, a casa paroquial, os campos e as montanhas. Das pessoas então, nem se fala. Conhecíamos todas pela voz.
— Compreendo isso muito bem, Angus. Foi o mesmo que senti quando vim para cá. Sabe qual foi a casa em que eu morei, não sabe?
— Sei, sim. Quem mora nela agora é o Sr. Kirkland. É o gerente de Vovô. Vovô está ficando velho. O Sr. Kirkland tem três filhas e um garoto mais velho. Brincávamos muito com eles e a casa é bem bonita.
— Você gostaria de voltar, Angus?
Angus hesitou um pouco antes de responder:
— Nós nunca mais vamos voltar, primo Stuart.
— Ora, não deve falar assim. Tenho a impressão de que sua mãe não gosta dos Estados Unidos. Tem estado de cama desde que chegou e, ao que me dizem os empregados, não faz segredo de sua vontade de voltar com todos vocês.
Diante dessa menção da mãe, o rosto de Angus se alterou e ele deu um suspiro. Um instante depois, repetiu:
— Nós nunca mais vamos voltar.
Stuart mordeu os lábios. Em seguida, disse com falsa animação:
— Neste caso, acho que deve aproveitar ao máximo isto aqui. Irá para a escola, a mesma escola em que eu estudei. Fará amigos por lá. E poderá ir de novo à igreja. Isto aqui não é um mau lugar. Angus.
— Eu gostaria de ir à igreja —, murmurou Angus.
Stuart franziu a testa, lembrando-se do que Janie tinha dito, um mentiroso que gostava de ir à igreja. Não sabia se ela tinha razão. Não tinha pessoalmente grande respeito pela verdade, considerando-a bem enfadonha às vezes e uma coisa que devia ser usada com muita moderação como os temperos na comida. Tinha observado que as pessoas que professavam um violento amor à verdade eram singularmente desagradáveis e em geral evitadas pelas pessoas mais civilizadas. Apesar disso, devia-se ensinar os jovens a dizerem a verdade, quer os mais velhos gostassem disso, quer não.
— Por que você quer ir à igreja? — perguntou. — Parece-me um lugar bem aborrecido.
Angus disse então na mais estranha voz:
— Na igreja, há paz e a presença de Deus, que é bondade.
Stuart olhou-o em inquieto silêncio. Passou os nós dos dedos no rosto entorpecido pelo frio. Parecia-lhe uma coisa terrível que uma criança sofresse da falta de bondade e, não podendo encontrá-la nos homens, fosse procurá-la numa igreja.
— Sabe, Angus, você deve conhecer meu bom amigo, o padre Houlihan. É um homem muito bom, Angus, e gosta muito dos jovens.
Sentiu a tensão dentro dele relaxar-se. Era a solução! O padre devia conhecer aquelas criaturas tristes e desoladas. Tinha o dom sagrado da bondade.
Mas Angus levantou para ele os olhos arregalados e solenes.
— Mas ele é papista, primo Stuart. Os papistas adoram deuses e ídolos estranhos. Vovô diz que são todos pagãos. Não sei se gostaria de conhecer o padre Houlihan.
Stuart ficou furioso e exclamou:
— Quanta tolice! Seu avô não sabe o que diz! O padre Houlihan é um dos bons homens de Deus e tem um coração de ouro. Deve dar-se por muito feliz de o conhecer, se chegar mesmo a conhecê-lo!
— Desculpe, primo Stuart. Não tive a intenção de ofendê-lo. Nunca conheci um papista. Talvez Vovô esteja errado.
Stuart se arrependeu imediatamente da sua reação. Sorriu, embora ainda estivesse com o rosto muito vermelho.
— Escute, não ligue ao que eu digo. É que eu fico sempre furioso diante do preconceito. — Fez uma pausa e apontou para o rio, acima dos blocos de gelo. — Olhe à direita, rio abaixo. Que é que está vendo?
Angus apurou os olhos nas sombras que se adensavam. Cerca de três quilômetros rio abaixo, havia um vulto escuro entre os gelos em movimento.
— Parece uma ilha, Primo Stuart.
— E é uma ilha. Chama-se Ilha do Rio. É um bom pedaço de terra, cheio de matas, de prados e de terra fértil. Poucas pessoas vivem ali, dois ou três fazendeiros e alguns posseiros. É uma ilha inteiramente subdesenvolvida.
Fez uma pausa e continuou:
— Já me ouviu falar sem dúvida de meu amigo e sócio Sam Berkowitz?
Angus murmurou o seu assentimento.
— Pois bem, Angus, vou-lhe contar alguma coisa a respeito do mundo, especialmente aquele a que chamamos o Velho Mundo. Parece que em alguns países um homem é odiado quando tem um formato de nariz diferente do dos outros homens que o cercam, ou quando tem o cabelo de cor diferente, tem costumes estranhos ou reza a Deus de outra maneira.
Angus interrompeu-o ansiosamente, desejando ser agradável a Stuart com a revelação de seus conhecimentos.
— Eu sei! Vovô me contou como os papistas costumavam queimar os protestantes e como nas cruzadas os sarracenos eram mortos e enforcados.
Stuart franziu a testa:
— Bem, é isso que eu quero dizer. Até certo ponto. Tudo isso, na minha opinião, é imbecilidade e está acima da compreensão humana. Todos nós matamos aquilo de que temos medo e costumamos ter medo de um homem um pouco diferente de nós. Por que não sei. Talvez seja o pecado original.
"Ora, muito bem, Sam Berkowitz veio de um pais onde ele e sua gente eram odiados porque rendiam culto a Deus de uma maneira antiga e diferente. Era um país onde os ricos e poderosos oprimiam o povo e queriam mantê-lo oprimido em proveito próprio e para continuar com as suas casas ricas e cheias de prata. Tinham medo do povo e de que um dia o povo começasse a pensar: "Por que nossas casas também não devem ter tetos sem goteiras, por que nossas mesas não devem ter pão, vinho e carne em abundância? Não são nossas mãos que lavram os campos, não é nosso trabalho que constrói essas ricas casas, não é nosso suor que rega o trigo?"
Enquanto dizia essas palavras em voz retumbante, Stuart via o padre Houlihan a proferir essas mesmas coisas.
Angus olhava-o ansiosamente. Até a pequena Laurie erguera o rosto dentro do crepúsculo que descia e escutava com a boca entreaberta.
— Bem —, continuou Stuart —, assim é que eram as coisas na terra de Berkowitz. O povo ali começou a pensar e a ficar inquieto, olhando em derredor e murmurando coisas. Os seus corações se inflamaram com a certeza da crueldade, da injustiça e do desespero. E, assim, as suas vozes se tornaram mais fortes e mais ameaçadoras e os homens ricos e poderosos tiveram ainda mais medo.
"Procuraram então algum meio de satisfazer o povo que vivia tão miserável, tão faminto e tão oprimido. Eram ambiciosos e cruéis demais para dar ao povo pão, liberdade e esperança. Para fazer isso, teriam de tirar dinheiro do bolso. Foi então que voltaram os olhos para os homens da raça de Sam, que eram mais pobres e mais oprimidos do que os outros. Os homens da raça de Sam não eram amados no país dele porque não acreditavam na fé predominante e porque pessoas cruéis haviam divulgado toda a espécie de histórias cruéis e mentirosas a respeito deles.
"Em vista disso, os ricos tiveram uma ideia muito hábil. Por que não dizer ao povo que a fome e o frio que sofriam eram culpa dos pobres-homens da raça de Sam?
— Mas o povo não poderia acreditar numa coisa tão boba! — exclamou Angus, deixando-se levar pela força do seu entusiasmo juvenil. — Os ricos não poderiam enganar o povo dessa maneira!
— Mas foi isso exatamente o que aconteceu —, disse Stuart tristemente. — Na verdade, meu caro Angus, o povo é capaz de acreditar em qualquer coisa desde que esteja sofrendo. O povo é cego e sem inteligência e, quando está reunido, pode ser ainda mais cruel e feroz do que os animais selvagens. O povo acreditou, talvez porque quisesse mesmo acreditar. Teve assim um pretexto para matar e saquear os homens da raça indefesa de Sam. Além disso, havia mais segurança nessa atitude do que na revolta contra os verdadeiros causadores de seus sofrimentos, que eram seus senhores. Alguns dos homens do povo seriam sacrificados se eles voltassem a sua cólera contra aqueles que os oprimiam. Na verdade, tiveram a aprovação de seus senhores.
Quase não podia mais ver o rosto de Angus no escuro, mas sentia as emoções exacerbadas do garoto, a sua incredulidade e o seu terror, o seu desordenado pavor em face desse primeiro conhecimento com a monstruosidade do mundo dos homens. Alguma coisa dentro dele foi profundamente abalada e despedaçada.
Stuart disse então:
— O mundo não é o que você acredita que seja, Angus. É um lugar mau, cheio de gente má. Cada homem tem o dever de contribuir para a luta contra o mal. — Sentia o coração exultante com o entusiasmo que lhe despertavam as suas próprias palavras. — Podemos errar, podemos desviar-nos do caminho certo, mas temos fé em que o mal pode ser destruído e em que acabaremos vencendo. Talvez não agora e nem mesmo daqui a quinhentos anos. Mas um dia, quando Deus determinar.
Angus ficou em silêncio e Stuart continuou:
— Mas tenho de lhe contar minha história. Já é quase noite e este ventinho está ficando cada vez mais forte. Levante a gola do casaco, Angus.
"Ora, o povo na terra de Sam se levantou, na sua dor, na sua fome e na sua cegueira, contra a raça de Sam e os ricos cruzaram os braços sorrindo, muito confortáveis e seguros nas suas casas bem aquecidas e fartas, diante de suas lareiras acesas e de suas mesas com boa comida servida em pratos de prata. A raiva do povo foi desviada dos verdadeiros ladrões e assassinos. Em vista disso, Sam saiu da terra dele e veio para cá, de bolsos vazios, trazendo apenas os braços para trabalhar e a sua fé....
— Em Deus! — exclamou Angus.
— Está bem, em Deus, se você quiser. Mas o que eu quis dizer foi que ele tinha fé em que devia haver em algum lugar do mundo segurança para os oprimidos. Pensou que havia encontrado esse lugar nos Estados Unidos, onde acreditamos, ou dizemos acreditar, que todos os homens são iguais. Exceto os negros, é claro. E Sam veio para Grandeville.
"Um dia, ele olhou para a ilha do Rio, que ali está e teve uma ideia magnífica. Por que aquela ilha grande e abandonada não podia ser transformada numa colônia para outras pessoas de sua raça que sairiam dos países onde viviam e se livrariam para sempre das turbas assassinas e dos senhores cruéis? Na verdade, Angus, você deve saber que o que aconteceu na terra de Sam aconteceu em muitos outros países também, ainda acontece hoje em dia e continuará a acontecer no futuro.
"Sam ficou muito entusiasmado com sua ideia. Tornou-se um sonho para ele, um sonho maravilhoso. Falou comigo e com o padre Houlihan sobre isso e o padre Houlihan também achou a ideia maravilhosa. Ele e Sam foram procurar o prefeito para conversar sobre o assunto. Ora, veja, aquela ilha é terra americana e é de propriedade de algumas pessoas que estariam dispostas a vendê-la por um preço conveniente. Sam e o padre Houlihan foram falar com essas pessoas depois de conversarem com o prefeito e um preço foi fixado. Sam está trabalhando duramente para conseguir esse dinheiro. E espera qualquer destes dias dar a ilha a seu povo para que viva nela.
Estava tão escuro já que Stuart mal podia divisar os rostos das crianças. Mas sentia a trêmula ansiedade de Angus.
— O Sr. Berkowitz é judeu, não é, primo Stuart?
— É, sim.
Angus ficou em silêncio, mas as suas emoções pareciam crescer e vibrar. Deu então um profundo suspiro e disse com a voz a fremir de emoção:
— Muito obrigado, primo Stuart.
Stuart sentiu-se profundamente emocionado, embora não soubesse por quê. Apertou o ombro de Angus e o garoto voltou os olhos para o rio.
— Mas por que o Sr. Berkowitz quer aquela ilha, primo Stuart? Nos Estados Unidos, há liberdade para todos os homens, não há? Ele não está em segurança em qualquer lugar aqui, com toda a sua gente?
Stuart disse então ironicamente:
— Sem dúvida alguma! Aqui é a terra dos livres e a casa dos bravos. Não temos ódio aqui de ninguém, a não ser dos católicos, dos judeus e dos pobres negros escravos. O país assegura liberdade a todos, desde que sejam da mesma espécie dos que já estão aqui. O padre Houlihan poderia contar-lhe uma história muito interessante.
Teve pena de ter abalado as últimas esperanças do pobre garoto. Mas a verdade era necessária. Ora, a verdade...
— Vamos voltar para casa —, disse ele.
Sentia-se terrivelmente cansado e deprimido. Queria apenas era jantar sozinho na sua bela sala e cochilar diante do fogo, enquanto pensava na vida. Mas teve um súbito impulso e disse:
— Você e a pequena Laurie querem jantar comigo, Angus?

CAPÍTULO 16
Foi um jantar muito agradável e Stuart, depois de seus primeiros receios de que Laurie derramasse leite no seu tapete de Aubusson ou manchasse o fino damasco, sentiu-se muito feliz com a presença das duas crianças. Alguma coisa infantil, veemente e simples dele mesmo foi satisfeita e exaltada.
Laurie comeu como uma perfeita mocinha, dando muita atenção às suas maneiras e sorrindo durante quase todo o tempo, com o rostinho encantador cercado pelos lindos cabelos dourados. Quando Stuart ou o irmão adorado diziam alguma coisa, voltava para quem falava o azul deslumbrante de seus olhos e escutava atentamente, quer entendesse, quer não. Quanto ao pobre Angus, a sua expressão de sofrimento havia desaparecido e até as faces pareciam mais cheias na radiosa luz que lhe enchia o rosto. Os olhos estavam bem abertos e límpidos e ele de vez em quando ria a alguma pilhéria de Stuart.
Um estranho garoto, pensou Stuart de Angus, com uma mistura de pena e admiração. Mesmo contra a sua vontade, tinha acreditado em algumas histórias de Janie, segundo as quais Angus era bronco e sem inteligência, manhoso e furtivo, choramingas, beato cantador de salmos e incorrigivelmente mentiroso. Não se dera ao trabalho de investigar essas afirmações de Janie, porque não se interessara por Angus e pelas outras crianças senão para desejar que se fossem quanto antes de sua preciosa casa. Agora, começava a duvidar e a detestar Janie com redobrado ardor.
E então, com horror e indignação, começou a compreender que Angus era cega, terrível e incrivelmente dedicado à mãe.
A princípio, Stuart não pôde acreditar nesse revoltante fato. Um rapaz, com a inteligência e a agudeza de Angus, não podia deixar de saber o que Janie realmente era! Tinha experiência pessoal dela, de sua ruindade, de sua disposição traiçoeira e cruel, de suas mentiras.
Entretanto, Angus falava dela com simplicidade e simpatia, com a mais comovente expressão de ternura. O garoto amava a mãe. Isso era bastante para ele. Mas por que ele a amava? Durante o jantar, Stuart tentou aprofundar esse problema. Chegou, pouco a pouco, à conclusão de que o rapaz era cego de muitas maneiras. Só se lembrava dos raros momentos de bondade de Janie, de seu riso, de seu espírito e de sua alegria. Lembrava-se da frivolidade dela, que devia parecer ao garoto uma coisa adorável. Não lhe via os pecados. Quando ela era cruel para com ele e sua irmãzinha, acreditava-se culpado de uma maneira ou de outra ou julgava não compreender. O que ela dizia era infalível, em todas as suas opiniões e todos os seus preconceitos.
Stuart sentiu-se cada vez mais revoltado ao ouvir o que Angus dizia e cada vez mais entristecido. Viu, num clarão de intuição, que Janie corromperia um dia aquele rapaz bom e simples, apesar de sua integridade e de sua inocência, e que essa corrupção seria uma coisa terrível. Entretanto, que poderia ele, Stuart, fazer? Percebeu que, se começasse a abrir os olhos de Angus, inspirar-lhe-ia desconfiança, despedaçando-lhe o coração. Angus era uma dessas pessoas que têm necessidade de amar e de crer e que, quando veem a sua crença e o amor traídos, se desagregam por completo e passam talvez a ser más também.
Além disso, Janie era tudo o que ele tinha. Stuart não tinha ilusões de que Angus acabasse por impressionar a mãe com sua nobreza e sua integridade. Ao contrário, ela é que o poluiria e arruinaria, como não podia deixar de acontecer em face da sua força maior e do conhecimento que tinha das coisas perversas.
Angus não sabia que a mãe o odiava. Iria sabê-lo algum dia, mas ainda não fazia a menor ideia disso.
Enquanto falava a Stuart sem qualquer constrangimento, apoiado em sua confiança nova, mostrou-se interessado nas lojas. Nada era mais agradável para Stuart do que falar dos empreendimentos que lhe eram tão caros. Discorreu longamente, enquanto Angus o ouvia fascinado.
Disse por fim, pensativamente:
— Deve ser um homem muito rico, primo Stuart.
Stuart franziu a testa. Por algum motivo, a referência de Angus ao dinheiro não lhe agradou. Estava em desacordo com a natureza do garoto.
— Que importância tem isso? — perguntou ele displicentemente. — Você gosta de dinheiro, Angus?
Angus hesitou. Olhou para o prato de manjar branco que o criado colocara diante dele e murmurou:
— Não sei. Nunca tive muito dinheiro, nem nunca senti necessidade dele. Mas Mamãe diz que quando alguém afirma que o dinheiro não é nada é porque não tem necessidade dele ou não tem esperança de vir a tê-lo.
Stuart franziu de novo a testa.
— Sua mãe tem o dinheiro em alta conta, não é, Angus?
O menino levantou o rosto e sorriu, satisfeito.
— É, sim. Mamãe diz que quem não tem dinheiro é como se estivesse morto e enterrado. E que é preciso fazer tudo para ter dinheiro, muito dinheiro. Do contrário, a pessoa será odiada, não terá sossego dentro de sua casa e que até Deus despreza o homem que não tem energia para trabalhar e ganhar dinheiro.
— Por que é que Deus vai desprezar um homem assim?
Mas Angus estava verdadeiramente inspirado.
— Quanto a isso, há a história dos talentos. Lembra-se, primo Stuart? Um homem tinha quatro talentos e enterrou-os. Outro tinha dois ou três e devolveu-os sem acréscimo ao patrão. Mas outro tinha apenas um talento e esforçou-se para produzir mais com ele. Deus amou esse homem e lançou os outros nas trevas exteriores porque não procuraram aumentar o que tinham.
Stuart se mostrou muito irritado.
— Não creio que esses "talentos" tivessem alguma relação com dinheiro. Não me consta que Deus jamais fosse banqueiro.
Angus sacudiu a cabeça modestamente.
— Eram dinheiro, sim, primo Stuart. O talento era uma moeda dos hebreus.
Stuart teve uma inspiração. Era preciso fazer alguma coisa para colocar o garoto no caminho certo e salvá-lo da marcha para a destruição.
— Escute aqui, Angus, essa história dos talentos tem de ser entendida como uma alegoria, uma parábola. O que com ela se quer fazer claro é que cada qual deve aumentar os dons que recebeu de Deus, tais como inteligência, bondade, fé e caridade.
Mas Angus insistiu na sua interpretação muito literal da Bíblia.
— Os talentos eram uma moeda dos hebreus, primo Stuart
Stuart sentiu-se extremamente confuso. Tinha pessoalmente o maior respeito pelo dinheiro e julgava-o a suprema bênção dos céus para os homens. Havia muito decidira que nada o impediria de consegui-lo de qualquer maneira possível e vinha cumprindo essa decisão. Apesar disso, alguma coisa dentro dele se revoltava e enfurecia diante do espetáculo da incipiente corrupção daquele garoto.
Disse então sombriamente, sentindo-se muito pueril:
— O dinheiro é uma coisa explosiva, Angus. Pode fazer as coisas mais terríveis. Pode devastar e destruir.
Angus sorriu para ele e Stuart teve confirmada a sua suspeita de que estava sendo pueril. A verdade era que aquele sorriso era singularmente adulto e indulgente. Stuart ficou aborrecido e se levantou abruptamente da mesa, muito agastado com Angus.
As crianças seguiram-no docilmente para a sala-de-estar. Não havia contado com isso. Sentia-se muito cansado. Mas não podia ser grosseiro e mandá-las embora. Desejavam-lhe a companhia como quem está com frio deseja um fogo aceso. Laurie até aproximou-se dele e deu-lhe a mão confiantemente.
Deu um suspiro e sentou-se na sua poltrona. Em seguida, depois de olhar para o rosto lindo e resplandecente da menina, fê-la sentar-se impulsivamente em seus joelhos e começou a brincar com os seus cachos dourados. Beijou-a e disse:
— Um dia destes você vai começar a destroçar corações, minha linda.
Angus sentou-se perto dele num tamborete. A luz do fogo da lareira caía quente e vermelha sobre ele. Fios de luz vermelha dançavam nas bordas dos belos sofás e cadeiras e formavam poças rebrilhantes nas mesas envernizadas. Os reposteiros tinham sido abertos nas janelas e suas dobras brilhavam. O vento do começo da noite se tornara um rugido profundo, que falava de lugares e terras estranhas.
Stuart ouvia o vento. A sua alma de celta se sentia inquieta e vária. Via o vento correr para o mar e seu sangue antigo se agitava.
Foi isso que o fez dizer a Laurie com grande ternura e fitando-lhe os olhos:
— Quer que eu lhe conte uma história, meu bem?
— Quero, sim! — exclamou ela, com tímida ansiedade, adorando-o.
Stuart, recuperando plena consciência, ficou aborrecido. O vento, por um instante, não foi mais do que um ruído incômodo nas janelas e entre as árvores. Então, aquela voz ruidosa penetrou de novo em todas as células de seu corpo.
Stuart pensou. Que história era uma que sua avó lhe havia uma vez contado, numa época em que ele não devia ser mais velho que Laurie? Era apenas um fantasma, um jeito de-história, mas ele não a esquecera de todo e sabia que havia nela estranhos sentidos ocultos. Não sabia exatamente quais eram os sentidos, mas podia senti-los. Angus, profundamente interessado e ardente, olhava para ele à espera.
Stuart viu, com súbita nitidez interior, a avó sentada no seu canto quente da lareira, com o xale sobre os ombros e o cachimbo fumegante na boca murcha. Viu os reflexos escuros do fogo nos ladrilhos vermelhos, o negror encardido das paredes de madeira e a cintilação dos cobres polidos da lareira. Viu as vidraças em losango da janelinha no alto que tremiam ao impacto da ventania lá fora e como, às vezes, a luz da vela tremia ao ser agitada, e ia brilhar em cada vidraça, enquanto a janela resplandecia momentaneamente como um pequeno espelho. Era noite fechada lá fora, noite velha e morta, com uma turbulência entre as árvores que as faria gemer.
Na lembrança de Stuart, aquela sala com a mulher velha tinha assumido uma qualidade intemporal e oculta, que fazia tudo parecer mais um conto de fadas do que uma lembrança real. E foi assim que ele contou a história a Laurie vendo diante dos olhos a avó e a lareira e com o vento a ressoar-lhe nos ouvidos.
A história nada era, afinal de contas, senão impressões e sonhos.
— Era uma vez uma menina que vagueava sem pouso e depois de muito caminhar durante muitos dias, exausta de fome, de abandono e de tristeza, deparou com o muro alto de um estranho jardim. Podia ver acima do muro os galhos das árvores mais esquisitas, pois as folhas eram lisas e brilhantes como metal e entre elas pendiam frutas redondas e douradas bem diferentes das outras frutas. Havia passarinhos pousados nos galhos, mas imóveis como se estivessem sonhando, com as suas penas amarelas, vermelhas, azuis e roxas. A menina teve vontade de comer uma fruta e olhou em volta à procura do portão de entrada. Encontrou-o afinal escondido entre as pedras. Cheia de medo, empurrou o portão que se abriu sem fazer barulho. A menina entrou no jardim. Não havia som algum e a luz do sol era uma claridade turva e tênue, como se tudo fosse um sonho. Nenhuma folha se balançava. Não havia vento. Os pássaros pousados nas árvores dormiam. Havia muitas flores que pendiam na claridade fantástica, parecida com a que precede o nascer do sol. A menina viu rosas e amores-perfeitos e grandes lírios de cálices listrados de amarelo e grandes folhas pendentes. Havia caminhos por entre as flores, calçados de pedras esparsas, por entre as quais a grama crescia.
O ar, pesado e sonolento, estava cheio do perfume das flores e das moitas a tal ponto que a menina mal podia respirar. Havia também o velho e encantado cheiro das flores do sabugueiro, mais doce e mais embriagador do que todos os outros. A menina andou pelos caminhos e olhou para os relógios de sol, ficando vagamente surpresa de ver que, embora a luz fosse suave e transparente, os relógios de sol não marcavam a hora. Não havia sombras neles. Na verdade, não havia sombras de espécie alguma naquele jardim. Tudo ficava parado e sem barulho naquele jardim fora do tempo. Tudo dormia. Mas o aroma do sabugueiro de vez em quando se desprendia em breves lufadas cheirosas como se alguma coisa o tivesse agitado. Nenhum pássaro dava um pio ou quebrava o silêncio com o bater de uma asa.
"A menina chegou a um pequeno lago no fundo da relva espessa. Era como um escudo redondo de metal cintilante e nada encrespava o espelho de suas águas, nem sequer a sombra de um peixe ou o voo de um inseto. Dois cisnes, brancos e parados, dormiam na superfície que refletia o azul claro do céu. Além do lago, as árvores eram grandes, escuras e velhas, com as copas curvas nas quais se viam os frutos dourados, que brilhavam à meia luz como pequenos sóis amarelos.
"Então, a menina teve medo. Sabia que tinha de sair quanto antes daquele jardim enfeitiçado e descobrir o caminho para o portão escondido e para a estrada. Talvez seu anjo da guarda lhe dissesse ao ouvido que andasse depressa. Ela disse então chorando que estava muito cansada e com muita sede e muita fome. Ia comer um dos frutos dourados e descansar um pouco. Depois disso, continuaria sua viagem à procura de um lar.
"Subiu aos galhos da árvore mais próxima, colheu uma fruta e cravou nela os dentinhos brancos. Ficou sentada ali nos galhos, enquanto os pássaros continuavam a dormir, imóveis, ao lado dela, como se também fossem frutos. O fruto era muito doce, sumarento e delicioso. Tinha gosto de mel e de vinho e a sua polpa era tão satisfatória quanto o pão. E abaixo da menina se estendia o jardim vasto e cheio de flores, o lago, os cisnes e as árvores, tudo banhado numa tênue e leve luminosidade feita de pérola e de sol, com o odor doce e embriagador do sabugueiro impregnando tudo.
"Satisfeita e descansada, a menina desceu da árvore e ficou ao pé dela, dizendo em voz alta que estava na hora de partir dali. Mas quase não ouviu sua voz que pareceu afogar-se no ar. Sentiu então muito sono, tanto sono que não pôde resistir. Deitou-se na relva macia e adormeceu.
"Não devia ter dormido muito ou, então, outro dia tinha chegado porque, quando acordou, o jardim continuava na mesma. Levantou-se. Olhou em torno, alheada. Tinha esquecido quem era, de onde vinha e para onde ia. De nada mais se lembrava senão do jardim encantado e onde o tempo estava parado."
Laurie e Angus tinham escutado a história quase sem respirar. Os olhos azuis de Laurie eram como um fogo tranquilo na meia luz da sala.
— E a menina nunca mais saiu do jardim? — perguntou Laurie, sentindo lágrimas de piedade pela menina que só se lembrava de seu encantamento e de seus sonhos.
— Saiu, sim —, disse Stuart. — A menina viveu muito tempo no jardim, mas não sabia os dias, desde que não havia noites. Só havia aquela névoa cor de pérola que se filtrava entre as árvores. Essa menina era muito feliz dentro de seu sonho. Comia os frutos das árvores, dormia, falava com as flores e com os cisnes silenciosos e sentia o cheiro do sabugueiro. Olhava para as corolas dos lírios, afagava as rosas, que não tinham espinhos e nunca murchavam. Andava pelos caminhos e olhava para os pássaros.
"Um dia, porém, encontrou o velho portão e teve uma grande surpresa ao vê-lo. Não se lembrava dele. Empurrou-o e ele se abriu sem fazer barulho. Saiu e se viu na estrada esburacada. Olhou para trás e quase não pôde ver mais o jardim. A névoa cor de pérola tinha caído sobre de como uma nuvem translúcida. E então, pela primeira vez em muitas eras, a menina ouviu o vento do céu. Era um barulho forte e trovejante que lhe encheu o coração de medo. Quis voltar correndo para o jardim quente e silencioso, mas o portão se afastou da mão dela e se fechou. Por mais esforços desesperados que fizesse, não conseguiu mais abri-lo. Tentou escalá-lo, mas ele parecia tornar-se cada vez mais alto e cheio de arestas finas e cortantes. Por fim, deixou-se cair no chão, cansada e a memória lhe voltou. Chorou então longa e sentidamente até ficar exausta.
"Descobriu então que não era mais uma menina, mas uma mulher crescida. Levantou-se e começou a caminhar pela estrada. Era no inverno, fazia muito frio e a neve começou a cair por entre as árvores descarnadas onde não se via um só pássaro.
— Ela encontrou uma casa e alguém que gostasse dela? — perguntou Laurie, muito pálida e ansiosa.
Stuart hesitou. Era uma história muito estranha e que não lhe parecia muito clara. Duvidou, numa misteriosa intuição, de que devesse contar o resto às crianças.
— Não —, disse ele, olhando para os olhos marejados de Laurie —, ela nunca pôde encontrar uma casa. Nunca encontrou ninguém que realmente gostasse dela, ao menos como ela queria que gostassem. O pior de tudo foi que, depois de ter estado no jardim, o mundo pareceu muito feio, barulhento, cruel e frio para a menina. Não pôde mais habituar-se a ele. E, um dia, tentou voltar para o jardim, para o cheiro do sabugueiro e para os frutos dourados. Mas não conseguiu. E morreu de pesar no meio da neve.
Olhou então para os olhos de Laurie e teve o mais estranho pensamento. Julgou que o jardim dos sonhos se refletia nos olhos dela.
Angus ficou em silêncio e não fez qualquer comentário sobre a história. Stuart se sentiu de repente muito cansado e errado. Colocou delicadamente Laurie no chão.
— Está na hora de dormir, meu bem —, disse ele, beijando-lhe o rosto.

CAPÍTULO 17
Janie se recuperou da gripe mais depressa que seus filhos Bertie e Robbie. Enquanto os dois garotos ainda estavam de cama, tossindo sem parar e ameaçados de febre, Janie se levantou bem-disposta e se sentou à janela de seu quarto, de onde podia ver a encosta que reverdecia e o rio ainda cheio de blocos de gelo. A vista não lhe parecia muito risonha, mas seu espírito naturalmente enérgico não permitia qualquer ideia de desolação.
Vestida com um belo peignoir de veludo negro, guarnecido de pelica branca, com os pés apoiados numa almofada branca, Janie voltava para a água os irrequietos olhos verdes e se abandonava a toda espécie de planos. Tinha de novo torturado os cabelos ruivos em complicados cachinhos e aplicara ruge e pó no rosto pálido e sardento. Apesar da magreza resultante da gripe, parecia mais ávida e animada do que nunca. O sol de abril entrava pelas janelas e lhe pousava agradavelmente nos ombros. Ouvia o vento forte quase ártico daquela primavera do norte, mas estava confortavelmente isolada dele. Esperava com um leve sorriso a pairar na boca pintada e móvel.
Stuart lhe havia solicitado alguns minutos e ela pegou o espelho e examinou o rosto. Não era belo, pensou ela, mas era animado e vivo, como sua querida mãe tantas vezes lhe havia dito. E bem cheio de inteligência e interesse. Ah, se não fossem aquelas sardas e aquele grande nariz romano com as narinas ávidas! Inclinou a cabeça numa atitude própria para disfarçar o nariz. Tinha-se perfumado fartamente e o cheiro forte impregnava quase todo o quarto grande e bem preparado, com as paredes brancas, os candelabros de ferro, as portas e a lareira brancas, a cômoda e o armário de mogno delicados, o macio tapete redondo, a grande cama com dossel e as cadeiras estofadas de damasco azul e rosa. O seu amor ao luxo, que era bem desenvolvido, sentia-se plenamente satisfeito com tudo o que ela via.
Sem dúvida, Stuart estava em boas condições de prosperidade. Animou-se ainda mais ao pensar nele e sorriu astutamente. Era um bom rapaz e daria muito certo com ela. Viveriam muito bem juntos. O coração murcho vibrou com alguma coisa que parecia quente afeição e prazer.
Pensou de repente no pobre Robin selvagem com sua voz estranha e comovente, seu rosto iluminado e seus gestos exuberantes. Franziu a boca num cruel desprezo e apertou os olhos cintilantes. Tinha sido um idiota apático, uma cotovia ridícula, que não sabia senão cantar. Teve um riso breve e nada simpático. Nada recebera de Robin a não ser quatro filhos incômodos e indesejados. Quando era bem jovem, uma moça queria um homem na cama. Quando ficava mais velha, queria dinheiro no banco. Mas isso só vinha com o juízo.
A porta de seu armário estava entreaberta e Janie olhou a fila comprida de seus vestidos, os veludos, as pelicas, as capas de marta e arminho, os mantos de seda. Na prateleira de cima, estavam as caixas com seus belos chapéus, cada qual mais encantador do que o outro, e seus regalos. Naquela rude cidade de fronteira, ela seria indiscutivelmente a mulher mais elegante e bem vestida. Ensinaria àquela gente rústica e bárbara os requintes da sociedade polida, as normas sutis da boa educação. Viu-se, levada langorosamente pelo braço de Stuart, entrando num salão obscuro, onde todas as mulheres malvestidas lhe invejariam a toalete maravilhosa, enquanto os homens ficariam literalmente arrasados.
Tão empenhada estava ela na escolha do vestido com que devia aparecer pela primeira vez na sociedade de Grandeville que não ouviu Stuart bater à porta. Só depois que ele fez ouvir a voz forte foi que ela ergueu os olhos num sobressalto.
Stuart apareceu à porta com um amplo sorriso. Estava muito nervoso, mas disfarçava isso com um bom humor afetado. Atravessou o quarto ensolarado e, inclinando-se, beijou-lhe gentilmente o rosto.
— Muito bem! Como fico contente de vê-la completamente restabelecida, meu amor! — exclamou ele.
Correu em seguida os olhos pelo quarto para ver se não tinha havido algum estrago durante a doença de Janie e se as empregadas haviam deixado alguma partícula de pó nas superfícies cintilantes. Ah! Seria a marca de um copo na mesinha de cabeceira? Curvou-se e examinou a marca, inclinando a cabeça de um lado e de outro, passando, por fim, os dedos na superfície da mesa. A sua testa se desfranziu. Era apenas o jeito da própria madeira. Satisfeito, levantou a cabeça, olhou para o fogo na lareira e voltou para junto de Janie ainda com mais afabilidade.
Janie observara-o com os olhos apertados e um leve sorriso. Mas se acalmou quando o viu voltar com toda a sua jovialidade e beleza. Stuart apoiou a mão nas costas da cadeira onde ela estava sentada com um sorriso ao mesmo tempo alheado e pensativo.
Ele tinha alguma coisa em mente e devia usar uma certa dose de duplicidade. Julgava-se às vezes um homem muito hábil, astuto e esperto e desejava ansiosamente que todos fizessem esse juízo dele. Entretanto, bem no fundo do coração, odiava as pessoas sabidas e tinha medo delas, embora lhes invejasse a serenidade e a paz de espírito. Na opinião dele, paz de espírito era uma coisa que só mereciam os imbecis e os maus, uns porque eram tão rasos que nem consciência tinham e os outros, porque tinham tido a vantagem de nascer sem consciência.
O olhar de Janie era muito firme ao seu jeito curioso e começou a afligi-lo. Afagou-lhe o rosto, sentou-se ao lado dela e tomou-lhe a magra mão sardenta.
— Está-se sentindo bem agora, querida?
— Perfeitamente —, disse ela com sua voz alta e rouca. Mostrou-se então gentil com ele. — Como você foi delicado e atencioso comigo enquanto estive doente, meu querido Stuart. Fique sabendo que me deixou arrasada.
— Ora, minha filha —, disse ele, recostando-se na cadeira e cruzando as pernas —, não tem nada que agradecer. Quis que nada lhe faltasse durante sua doença. Era meu dever. E seus filhos foram bem cuidados também. Tomei as providências necessárias. E agora podemos tratar de outros assuntos, não acha?
Ficou então em silêncio, olhando-a atentamente. Poderia fazê-la passar por uma parenta ilustre? Sem dúvida alguma, seus vestidos, suas joias, seus perfumes (e seu dinheiro) eram impressionantes. E se ele pudesse convencê-la a refrear a língua e a não dar gargalhadas tão inconvenientes, tudo estaria bem! Sorriu desajeitadamente.
— A esposa do prefeito, Sra. Cummings, mandou fazer-lhe visitas, Janie. Deseja saber quando você estará com a saúde restabelecida para comparecer a uma festa que ela vai dar em sua honra. Não sei se sabe, mas Cummings e eu somos bons amigos.
Janie disfarçou um pouco a sua agradável surpresa.
— O prefeito, Stuart? Que interessante! Tenha a bondade de informar a essa senhora que estarei suficientemente recuperada para atender ao seu gentil convite em qualquer dia da semana que vem. Que tal ela, Stuart? É bonita? Jovem? Elegante?
Stuart pensou em Alicia Cummings, baixa, gorda, de rosto redondo e rosado, vivos olhos azuis, o sorriso mais doce deste mundo e uma inteira despreocupação em matéria de linha ou elegância.
— É uma senhora —, disse ele com calor, como se a estivesse defendendo de todas as Janies. — Todos gostam dela. Não, não é jovem. Mas é muito boa. Faz obras de caridade, sem fanatismo, nem falsa piedade. A companhia dela é muito agradável, pois ela é muito delicada, bondosa e sinceramente interessada. Além disso, é muito inteligente e culta.
— É muito fácil uma mulher ser boa e interessada quando há homens simpáticos presentes —, disse Janie, passando a língua pelos lábios.
Fizera de repente a Sra. Cummings parecer uma velha lasciva, cheia de desejos obscenos pelos rapazes e manchada de todas as ruindades. Stuart sentiu-se revoltado. Tirou a Sra. Cummings do pensamento como se até isso naquele momento fosse capaz de ofendê-la.
Dominou-se, porém. Apenas, franziu um pouco irritadamente a boca. Disse então numa voz mais ou menos contida:
— A Sra. Cummings é boa para todo o mundo. É a confidente natural de todas as moças de seu círculo de relações e de qualquer pessoa que precise de amizade na hora da aflição. Nunca ouvi falar mal dela.
A vontade que tinha era levantar-se e sair do quarto. Não podia mais suportar o sorriso malicioso de Janie, que lhe descerrava entre os lábios pintados os dentes agudos. Nesse instante, ela lhe pareceu horrível e odiosa.
Ela disse então num tom terrivelmente falso:
— Tenho certeza de que a Sra. Cummings é muito agradável e terei enorme prazer em aceitar-lhe o convite. Tenha a bondade de apresentar-lhe os meus respeitos e agradecimentos por sua gentileza.
— Está bem —, disse Stuart secamente, mas em seguida acrescentou: — Gostaria de sair de carro comigo e ir fazer uma visita às minhas lojas? O dia está bonito e vai fazer-lhe bem. Mas é bom se agasalhar. O tempo é muito frio aqui até quase o mês de maio. Esse sol quente engana muito.
— É claro que vou gostar muito disso, Stuart —, disse ela, levantando-se e demonstrando sincero prazer. — É muita gentileza sua, meu querido!
Ele se levantou, um pouco inquieto e disse:
— Antes de vir para cá, passei pelo quarto para ver Bertie e Robbie. Bertie ainda está um pouco caído, mas Robbie já está às voltas com o seu livro de crimes. Está até tomando notas e fazendo desenhos. É um verdadeiro diabrete!
— Um garoto inteligente é que ele é —, murmurou Janie. — Vamos fazer dele um bom advogado.
Stuart hesitou e então olhou para ela e disse, muito sério:
— Estive conversando com Angus também. Tem quase quatorze anos e já está bem grande. Sabe o que foi que ele me disse outro dia? Que o avô tinha prometido que ele ia ser médico. Ele deveria ir para Edimburgo a fim de estudar com o Dr. Macintosh, o famoso cirurgião. Quase lhe prometi que ele iria estudar com um bom médico aqui nos Estados Unidos.
Janie franziu antipaticamente o rosto e perguntou:
— Médico?
— Tem queda para isso, Janie. Tem alma de médico, altruísta e abnegado. Sei disso, pois sei ver sempre a verdadeira bondade. Ele tem até uma tendência a ser mártir.
— É um hipócrita! — exclamou Janie, exaltadamente. — O que ele aprecia mesmo é se meter na igreja e é para lá que ele irá, se você não tiver cuidado, deixando de lado as lições.
— E que mal há nisso? — perguntou Stuart, esquecendo-se das suas intenções ao entrar no quarto. — Pretendo levá-lo ao padre Houlihan a fim de que ele lhe dê conselhos e orientação.
— Isso é que não! — exclamou Janie dando um pulo da cadeira e com os olhos verdes a fuzilarem de raiva. — Você não vai fazer de meu filho um maldito papista! Não quero que ele adore ídolos como um pagão e saia por aí queimando gente viva!
— Ora, vá para o inferno! — gritou Stuart, rubro de cólera. — Está falando como uma imbecil! Meu amigo, o padre Houlihan, não vai fazer mal algum ao garoto! Nem por sonho procurará convertê-lo! O padre Houlihan tem tato e inteligência, compreende? Será que você não pode ter um pensamento bom para ninguém?
Janie não se abalou. Era uma coisa que sempre a animava e lhe dava redobrada energia ser tratada com violência.
— Você não o pode levar para ver um padre! — gritou ela. — Vou dar ordens expressas a Angus nesse sentido!
O punho cerrado de Stuart se abriu. Tinha vontade de esbofeteá-la. A vontade que sentia era muito grande. Involuntariamente, os músculos se contraíram e ele levantou o braço.
Janie teve outra ideia. Tinha visto o gesto involuntário de Stuart e isso excitava a sua natureza de leoa.
— Conselhos? Orientação? — exclamou com o mais absoluto desprezo. — Que conselhos, seu idiota? Que orientação meu filho precisa além da minha?
Não podia resistir à tentação de provocar uma explosão de violência de Stuart contra ela.
— Porque ele tem como mãe uma megera! — exclamou Stuart com voz ainda mais alta. — Porque você faz da vida dele um inferno, atormentando-o e espancando-o, amedrontando o pobre garoto com essa natureza negra que você tem, ruim como é!
Então, de repente, ficaram ambos sombriamente calados. A respiração entrecortada dos dois era perfeitamente audível no silêncio ensolarado do quarto. Janie estava pensando irritadamente na loucura que fizera em contrariar Stuart quando era de seu interesse amaciá-lo a fim de o encaminhar para o casamento. E Stuart pensava que tinha posto tudo a perder e que nada mais poderia apaziguar Janie para fazê-la servir aos seus planos. Ambos estavam arrependidos e praguejavam intimamente.
Stuart foi o primeiro a se recuperar. Forçou um sorriso. O rosto ainda estava vermelho e banhado de suor. Disse então com a voz ligeiramente rouca:
— Não sei por que ainda discutimos e gritamos um com o outro, como no tempo em que éramos crianças, Janie. Isso me faz até ter saudade dos velhos tempos.
Imensamente tranquilizada, Janie riu e disse:
— Os velhos tempos! Sinto até vontade de chorar quando penso neles, Stuart!
E desde que estava tão excitada e estimulada, as lágrimas lhe saíram aos borbotões.
Embora a odiasse, Stuart não podia ser insensível às lágrimas de uma mulher. Havia nele um fundo de irredutível brandura. Além disso, sentia-se tão aliviado com o término da discussão que chegou a tremer. Aproximou-se dela, passou o braço pelos ombros dela e beijou-lhe os cabelos.
— Deixe disso, minha querida! Você me está partindo o coração! Pode-me perdoar, Janie? Ficarei inconsolável se não me perdoar.
Janie podia sempre perceber a duplicidade. Mas viu que Stuart estava sendo sincero e a sua animação cresceu. Chorou abraçada a ele, disse que não prestava mesmo e não merecia qualquer gentileza da parte dele, embora ele tivesse sido tão gentil e atencioso com ela. O que ele devia fazer era mandá-la arrumar as malas, pondo-a para fora da casa dele e fazendo-a voltar para a Inglaterra.
— Não, não —, murmurou Stuart, com pena dela e, ao mesmo tempo, vendo-a no ponto que desejava, como uma viúva indefesa largada com quatro filhos num mundo insensível. — Eu é que estava errado. Esta é minha casa e nela você é uma hóspede querida, a minha velha e adorada Janie. Perdão, meu bem.
Rebolcaram-se em sentimentalismo. Stuart, ao menos, era sincero. Janie ria intimamente, com o rosto escondido no ombro dele.
Pouco depois, estavam de novo sentados juntos e de mãos dadas. Janie era toda ardor e estímulo. Stuart se sentia meio tonto e fraco. Mas se mostrava muito bondoso para com a prima. Achou que já podia entrar no assunto de seus antecedentes ilustres. Teve muito tato, na sua nova duplicidade.
— Isto aqui é uma sociedade vulgar e nova —, começou ele. — A gente daqui nada sabe de maneiras elegantes ou da verdadeira aristocracia. Em vista disso, são todos aqui extremamente exigentes. Acreditam que uma pessoa fina deve ser muito requintada na sua maneira de falar, com uma linguagem cheia de sublimidade e apuro. Seriam capazes de perder os sentidos se ouvissem alguma palavra mais áspera. Nunca observaram de perto uma pessoa realmente distinta e a criam de acordo com a sua imaginação. Desde que são de origem baixa, julgam que devem tratar as pessoas inferiores como se estas fossem servos e eles tivessem nascido na mais alta nobreza. Alguns pensam até em promover caçadas com casacos vermelhos e matilhas de cães, mas há um pronunciado preconceito nos Estados Unidos contra os costumes ingleses, muito embora a quase totalidade da população seja de origem inglesa. Mas todos adoram o jeito inglês, invejam-no e procuram furtivamente imitá-lo.
— Mas tudo isso é imensamente divertido! — exclamou Janie, cheia de desdenhoso riso para com esses plebeus.
— Mas é uma coisa muito comovente —, disse Stuart. — Essas criaturas malnascidas e pior criadas têm de recorrer a essas afetações e a esses desejos ocultos para ter um consolo da vida sórdida que levam, exclusivamente devotada ao dinheiro. Cada qual tem direito ao seu consolo particular. Não devemos esquecer, porém, que esses simuladores são poderosos nos Estados Unidos. São tão poderosos que podem manter a escravidão nos Estados do Sul e explorar os operários nas suas fábricas no Norte. Intimidam, perseguem, asfixiam e oprimem, de acordo com a sua natureza de pessoas malnascidas. É na verdade uma coisa muito triste. Alguém devia ensinar-lhes a verdadeira gentileza e a bondade simples dos que são autenticamente bem-nascidos. Alguém devia convencê-los de que as pessoas verdadeiramente nobres não vivem preocupadas com o dinheiro. Seria uma verdadeira revolução para os americanos.
Janie sorriu irresistivelmente. Como era simplório o querido Stuart com aquela cara séria e aquelas palavras tristonhas! Mas resolveu aceitar a disposição dele.
— Compreendo —, murmurou ela gravemente, com o seu espírito ágil prevendo já onde ele queria chegar.
Stuart deu um suspiro de alívio.
— Ótimo, Janie! Então, quando for apresentada a eles, se você se mostrar simples, natural, bem-nascida, sem afetações, nem arrebiques, será fatalmente condenada por não ser uma aristocrata. Será então olhada com má vontade. Se você se expressar de uma maneira forte, como é de seu costume, ficarão horrorizados. Se você disser que não tem antecedentes ilustres e se abstiver de gabar-se e exagerar, será tida como inferior. Você é uma lady. Mas deve exercer toda a força de sua imaginação para convencer essa gente de que é mesmo. Deve corresponder à ideia que fazem de pessoas nobres.
Janie, que era naturalmente atriz, ficou encantada.
— Você vai ver como eu vou falar, corar e tomar atitudes da maneira mais estupenda possível! Serei tão sensível que desmaiarei se alguém disser uma palavra menos inocente e cairei para trás se um homem assoar o nariz em minha presença! E inventarei os antepassados mais ilustres, com castelos cheios de retratos e fantasmas, fossos e pontes levadiças! Vamos ver: Lady Constance Vere de Vere era minha bisavó materna e todo mundo sabe que o tom mais alto de uma voz bastava para fazê-la desmaiar.
— Esplêndido —, disse Stuart, embora com algumas dúvidas. Não tinha falado em nenhuma Lady Vere de Vere. Devia falar com Janie a respeito de Sir Angus Fraser. Com um sorriso um tanto contrafeito, falou a Janie de suas invenções anteriores.
Ela riu abandonadamente e chegou a dar palmadas no joelho de Stuart de tão satisfeita que ficou. Ele se sentiu envergonhado tanto por si mesmo, quanto por ela. Mas, de qualquer maneira, era um alívio que Janie o compreendesse de maneira tão completa e estivesse disposta a desempenhar o seu papel.
— Só quero é que eles a apreciem e não a interpretem mal, nem a reprovem, minha querida —, disse ele de maneira não muito convincente. — Quero que lhe façam justiça.
Janie piscou o olho.
— Quanto a isso, não tenha dúvida alguma, meu caro Stuart. Vão me adorar!
— Nada de anedotas, nem de bater no braço dos homens com o leque, nada de tropeçar, nem de mostrar os tornozelos, nem de praguejar ou dizer coisas apimentadas, ouviu?
— Nada disso! — exclamou Janie, sentando-se na poltrona com a atitude mais elegante, semicerrando os olhos e fingindo que se abanava com o lenço. — Serei a viúva mais delicada e distinta, do mais puro sangue azul, com uma voz de anjo e com cílios dançantes. Você vai ver! Vai sentir-se orgulhoso de mim!
Stuart tinha sérias dúvidas. Mas suspirou com alivio e levantou-se. Janie olhou para ele e teve outra ideia.
— Esse Allstairs de que você falou, meu bem, também faz parte da aristocracia local, juntamente com sua encantadora filha, Marvina?
Stuart, recorrendo de novo à sua fácil duplicidade, sorriu amplamente e encarou-a firmemente, dizendo:
— Claro, meu amor. Ele é o homem mais rico de Grandeville e um dos mais ricos de todo o Estado. É um homem terrível. Você vai conhecê-lo. A Srta. Marvina? Bem, confesso que houve um tempo em que me senti interessado pelo seu rostinho bonito. Mas, meu Deus, como é vazia! Parece uma boneca de cera pintada. Não há nada lá dentro. Seja boa com ela, minha querida Janie. A pobrezinha não tem o juízo nem de uma criança recém-nascida. Não se divirta às custas dela.
— Você não tem por acaso algum compromisso com esse tesouro, Stuart? Algum compromisso que possa ser mal interpretado por um pai tirano?
— Não, não há nada! Como já disse, me interessei, como muitos outros homens em Grandeville. Mas cheguei à conclusão de que a vida com uma boneca vazia seria uma coisa lamentável.
Criou novo ânimo. Tinha-se saído muito bem! Janie ficara quase convencida. Os penetrantes olhos verdes dela estavam quase suaves.
— Mas você não disse que pretendia pedir a mão dela, meu bem? — perguntou ela.
Ele riu, ficou vermelho e bateu no ombro dela.
— Não posso ter mudado de ideia?
Janie estava profundamente interessada em tudo aquilo. Acreditara sempre que Stuart era uma alma simples, incapaz de dissimular com algum sucesso e que, certamente, nunca poderia enganar uma pessoa tão esperta quanto Janie Cauder. O pobrezinho não passava de uma criança, de um simplório, de um bobalhão.
Olhou para ele significativamente e esperou. Ele sabia o que ela queria e todo o seu corpo recuou, cheio de repulsa.
Mas curvou-se deliberadamente e beijou-a nos lábios com ardor.
Ele havia dado o primeiro passo. O outro seria dado mais tarde naquele mesmo dia. Valia a pena. Mas, quando saiu do quarto, não podia acreditar nisso, no fundo de seu coração revoltado.
Quando ficou sozinha, Janie se dirigiu para a cômoda, abriu a última gaveta e tirou de baixo de finas roupas íntimas de rendas e linho uma garrafa de uísque quase vazia. Levantou-a, deixando que a luz do sol incidisse sobre o líquido dourado. "Ah, ah", disse ela, estalando os lábios e rindo de prazer. Levou a garrafa aos lábios e bebeu um grande gole. "Ah", murmurou de novo, numa prolongada respiração cheia de satisfação. Arrolhou a garrafa e tornou a escondê-la em gestos lentos e enternecidos. "Uma gota é uma boa coisa para a alma do homem", tinha dito muitas vezes o pai dela, contando como o pai dele costumava beber um copo cheio de uísque três vezes ao dia com seu mingau, seu haggis e seu carneiro assado. O velho tinha vivido até alcançar a bela idade de cento e dez anos e nunca tinha havido uma manhã em que ele não saísse de manta e kilt para subir as montanhas nevadas para ver os carneiros e passear, vigoroso e feliz, com toda a sua altura e a sua magnífica saúde.
Jane concordava manifestamente com o pai em que uma boa gota era o elixir da longa vida. O efeito era excelente sobre ela, depois que trancou a gaveta e guardou a chave no seio. Começou a cantarolar baixinho e, de repente, se pôs a dançar pelo quarto, em verdadeiras cabriolas, exultando e rindo como se nada a pudesse conter, com as saias a voar em torno das pernas magras, os cachos ruivos agitados pelo movimento e o rosto contorcido numa alegre máscara de prazer perverso.

CAPÍTULO 18
Stuart levou a sua melhor carruagem, puxada por dois luzidios cavalos pretos, para o caminho ensaibrado ao lado da casa. Arreios e rodas rebrilhavam ao sol da primavera. O cocheiro puxou as rédeas e saltou. Stuart pretendia guiar. Ficou ao lado do veículo, passando delicadamente a mão pela carroçaria preta bem envernizada, soprando as lâmpadas de prata e polindo-as cuidadosamente com o lenço. Bateu carinhosamente nas ancas pretas dos cavalos bem lavados, que o olharam de lado, mostrando o branco dos olhos. Stuart fingiu então examinar os arreios de prata. Depois, satisfeito com tudo, aspirou fortemente o ar, resplandecente de sol e ficou à espera de Janie.
Ela apareceu na porta lateral e Stuart olhou-a ansiosamente, preocupado com a sua aparência nos lugares públicos de Grandeville. Mas no mesmo instante se tranquilizou. Janie, como se soubesse em que carruagem ia sair, estava toda de veludo preto e lilás. O vestido, elegantemente drapejado e preso, assentava-lhe perfeitamente. Várias correntes de prata lhe pendiam do pescoço. Usava sobre essa elegância uma capa de marta e luvas de pelica preta. O grande chapéu de veludo preto tinha violetas na aba, realçando-lhe os cabelos ruivos. Desceu vagarosamente os degraus para o caminho e Stuart, satisfeito, estendeu-lhe galantemente a mão. Era a imagem da pequena viúva delicada e inteligente, toda fragilidade e modéstia. Ela havia até usado de reserva em matéria de ruge e, sob o mais leve toque de pó, as suas sardas eram evidentes e mais tocantes na sua simplicidade. Só quando ela sorriu maliciosamente para Stuart, mostrando os dentes pequenos e brancos de animal de rapina, a imagem se distorceu.
Ela deixou que ele a ajudasse a embarcar na carruagem, onde se sentou com os olhos modestamente baixos, as mãos enluvadas metidas em seu regalo. Stuart subiu então e se sentou ao lado dela. Começou então a rir.
— Não exagere. Procure ser um pouco mais natural.
Ela o olhou, com os olhos verdes fuzilando maliciosamente e, por um instante, mostrou-lhe a ponta da língua. Isso agradou muito a Stuart. Ali estava a velha Janie alegre a quem ele tinha amado e cujas travessuras ele tinha achado tão fascinantes.
— Não se esqueça! Nada de nomes feios e uma voz muito baixa e suave —, disse ele, com simpatia.
Stuart estava também muito elegante com seu capote de muitas golas, o chapéu alto de castor, os folhos da camisa e as luvas. Guiou os impetuosos cavalos pela rampa até à estrada lamacenta que ia para a cidade. Sentia-se despreocupado. Ao lado dele, Janie se mostrava muito quieta e graciosa, mas Stuart podia sentir-lhe a vitalidade contida, como uma onda de eletricidade. Se ela continuar a se comportar assim, pensou ele, tudo estará bem.
Evitando deliberadamente as ruas mais pobres, levou a carruagem pelos bairros mais sossegados, onde as árvores ainda estavam sem folhas e as sebes se mostravam ressequidas. A água corria por entre as pedras das ruas. Os passeios de tábuas ainda estavam molhados. As casas tinham um ar desolado com as fachadas de tijolos vermelhos ou de madeira manchadas das chuvas de inverno e da fuligem das chaminés. Mas o vento que vinha dos Lagos e do rio era forte com um cheiro agradável. O sol era luminoso e claro num céu de um azul translúcido. Stuart tinha avisado Janie de que a viagem seria longa. Mas ela não estava enfadada com a jornada. Olhava para tudo com um interesse superior. Achava a cidade feia e lamacenta, com uma rude falta de simetria e de beleza. As casas altas e estreitas por trás dos gramados cheios de lama eram de fato excessivamente horrendas, com suas cúpulas, seus enfeites de madeira e suas longas e sombrias varandas. Aqui e ali, uma mulher malvestida com um grande chapéu e uma capa de cor escura caminhava lentamente pelos passeios ou as crianças brincavam, desforrando-se da longa prisão do inverno. Passavam outras carruagens e os seus ocupantes esticavam o pescoço a fim de olhar a bela carruagem de Stuart, trocar cumprimentos com ele (Stuart levava delicadamente o chicote até à altura do chapéu) e ver a elegante senhora, sentada ao lado dele tão bem abrigada sob seus vestidos e as mantas do veículo.
Stuart lhe informou que aquela era a Rua Niágara, assim chamada porque acompanhava o curso do rio por alguma distância. Era a rua da classe média, onde moravam os homens das profissões liberais e onde ficavam as lojas. Sentava-se com o corpo muito ereto, controlando os cavalos e conversando displicentemente com Janie, explicando os pontos de interesse e apontando-os com o chicote. Sem interromper as suas explicações, cumprimentava constantemente as carruagens que passavam e sorria, com os dentes fortes brilhando ao sol da manhã. Por fim, virou para a Rua Principal e apontou:
— Minhas lojas.
Janie inclinou-se para olhar com sincero interesse para a fonte de renda de Stuart, que lhe tinha provocado tantos dias de absorventes conjeturas. Ficou então profundamente impressionada. As lojas ocupavam todo um extenso quarteirão e embora elas fossem desiguais, tendo sido construídas em épocas diferentes por diversos proprietários, tinham um ar grandioso e compacto, com as vitrinas limpas e cintilantes e numerosas carruagens paradas à porta. Tudo era movimento, com entradas e saídas, vendo-se empregados solícitos que acompanhavam até às carruagens senhoras bem vestidas, com os braços cheios de caixas e embrulhos. Quando passaram lentamente pelas primeiras lojas, Janie ficou impressionada com os interiores repletos, a atividade dos caixeiros, as freguesas ali reunidas e o movimento constante pelas portas. Olhou para os grandes cartazes dourados que diziam "Empório Supremo de Grandeville" e para a bandeira das tiras e das estrelas hasteada num mastro diante da loja principal.
Stuart estava um pouco corado de orgulho e um crescente constrangimento. As senhoras nos passeios paravam a fim de olhar para a elegante equipagem. Reuniram-se em grupos. Viram Stuart oferecendo grandiosamente a mão à senhora estranha que desceu, mostrando modestamente a ponta das sandálias e baixando o chapéu, de modo a esconder o rosto. Cochicharam entre elas, furtivamente. Devia ser a elegante parenta inglesa do Sr. Coleman! Que peles, que veludos, que elegância e que maneiras! Esticaram o pescoço para examinar-lhe as roupas e a invejaram. Tentaram ver-lhe o rosto, mas só enxergaram de relance alguns cachos ruivos. Ficaram satisfeitas porque era coisa sabida que uma mulher ruiva nunca podia ser bonita.
Stuart fingiu completo desconhecimento das pessoas que os observavam. Parecia ternamente ocupado com a elegante criatura que apoiava timidamente a mão em seu braço e entrava a passos lentos na rica loja com a saia de veludo a dançar graciosamente em torno dela e o regalo junto ao rosto, como para proteger do vento a pele delicada. Entraram na loja principal com um passo majestoso, medido e cerimonioso, como se fossem dançar no ritmo de um minueto. Um garoto de rua, que observava absorto o espetáculo, prorrompeu em aplausos irônicos enquanto Stuart e Janie desapareciam dentro da loja. As senhoras, que tinham por princípio jamais reconhecer a existência das classes inferiores, concederam ao garoto perspicaz o reconhecimento gracioso de sua manifestação e ficaram muito satisfeitas com ele. Continuaram no passeio discutindo a recém-chegada e falavam em vozes inconscientemente afetadas, como se estivessem antecipadamente apurando a sua gramática e a sua correção de linguagem.
Janie ficou espantada, apesar dos sorrisos superiores que tinha planejado, com o interior realmente elegante e luxuoso da loja principal, com seus tapetes turcos vermelhos, as poltronas confortáveis de pelúcia vermelha, os balcões de mogno polido, as prateleiras largas e bem arrumadas com o seu sortimento verdadeiramente notável de sedas, linhos, veludos e damascos, os aparelhos de excelente porcelana de Limoges e Haviland, as pratas, os ornamentos sortidos de Dresden e de mármore, as rendas, as fitas e os perfumes e todos os outros artigos especialmente destinados a seduzir o coração feminino.
Janie ficou satisfeita com o ar de prosperidade da grande loja. Havia três caixeiros em atividade, todos de terno preto, camisa branca de folhos e botinas bem lustradas que serviam às senhoras ansiosas e curiosas. Havia peças de seda, de veludo ou de linho abertas nos balcões e era constante o som de tesouras que cortavam. As saias-balão flutuavam, com muito farfalhar, de um balcão para outro, enquanto os chapéus se inclinavam uns para os outros em consulta e os regalos eram levados ao rosto para esconder sussurros e avaliações. Os boys corriam de um lado para outro, levando as compras para as carruagens. A campainha era tocada constantemente no meio da agitação. A porcelana examinada tilintava e eram muitas as senhoras que regateavam um preço com um caixeiro atencioso. O sol da primavera rolava como uma catarata pelas vitrinas, orladas de veludo azul escuro. Havia um perfume discreto de sachê e água de rosas e o rico cheiro dos tecidos caros. As senhoras tinham deixado os seus agasalhos nas costas de algumas cadeiras e os forros vermelhos, azuis e roxos davam toques de cor à movimentada cena.
Janie tinha esperado fazer uma entrada grandiosa e dominante, capaz de intimidar por completo aquela gente bárbara, mas durante algum tempo ela e Stuart passaram inteiramente despercebidos em meio àquela atividade. Stuart sentia-se crescer de complacência e importância. Batia de leve na pequena mão enluvada que lhe pousava no ombro em eloquente e encantada comunicação.
Uma senhora robusta de meia-idade vestida de seda preta, capa de peles e um grande chapéu preto, virou-se, chamou o boy que a esperava e mandou-o apanhar algumas compras novas que fizera. Tinha um rosto cheio, mas muito inteligente com faces rubicundas, olhos azuis faiscantes e um canto da boca permanentemente erguido de maneira levemente irônica e uma sobrancelha escura também levantada. Os cabelos lisos eram bem grisalhos e isso realçava pelo contraste a juventude de seu rosto. Os seus movimentos eram firmes e seguros e as outras senhoras lhe sorriam respeitosamente enquanto ela se preparava para partir.
Stuart olhou para ela e fez-lhe uma profunda reverência. Impeliu delicadamente Janie para a frente. A senhora esperava, com o canto da boca e a sobrancelha mais levantados do que nunca, enquanto olhava para Janie com simpatia e franqueza.
— Como está, prezada Sra. Cummings? — perguntou gentilmente Stuart. — Permita-me apresentar-lhe minha cara prima, a Sra. Cauder. É uma grande honra! Janie, minha querida, esta é a Sra. Howard Cummings, esposa do Prefeito da cidade.
As duas senhoras fizeram uma breve cortesia. Em seguida, a Sra. Cummings estendeu a mão a Janie, que a tomou entre os dedos estreitos. Odiou no mesmo instante a Sra. Cummings, cuja mão era gorda, quente e forte. Odiou os espertos olhos bondosos que a examinavam, o canto da boca erguido e a sobrancelha arqueada. Quanto à Sra. Cummings, o seu rosto sincero tomou uma expressão sutilmente suave, ao mesmo tempo que houve o rápido estreitamento de uma pálpebra.
— Magnífico! — exclamou a Sra. Cummings. — Minha querida, espero que goste de nossa Grandeville. Recebeu minhas visitas durante sua doença? Stuart lhe transmitiu o meu convite para um jantar?
A voz naturalmente rouca e retumbante de Janie se transformou num discreto murmúrio.
— Estou verdadeiramente encantada em conhecê-la, Sra. Cummings! Stuart falou tanto de seus queridos amigos. Foi muita bondade sua lembrar-se de mim, uma estranha em terra alheia, tão longe de minha mãe, de meu pai e de meus irmãos. — Fez uma breve pausa para deixar o ar de tristeza invadir-lhe o rosto. Era toda meiguice e fragilidade. Ergueu então a cabeça para olhar corajosamente para a Sra. Cummings e deixou que um sorriso lhe aflorasse ao rosto. — Mas não vou ser infeliz aqui! Seria impossível diante de tanta bondade e gentileza dos amigos de Stuart! Tenho certeza de que não serei ingrata!
A Sra. Cummings sorriu, mas nada disse. Olhava fixamente para Janie, mas não com má vontade. Por fim, disse:
— Sei que tem quatro filhos, Sra. Cauder. Devem ser-lhe um consolo.
Janie suspirou, tocou os lábios com o lenço e murmurou:
— Não pode nem imaginar o que eles representam para mim, minha cara Sra. Cummings! Não sei se suportaria a vida sem meus queridos.
— Creio que merece inveja —, disse a Sra. Cummings, que deu um suspiro e tornou a sorrir. — Tenho apenas uma filha, minha pequena Alice, que tem dez anos de idade, é um pouco frágil, segundo creio. Será muito agradável para ela conhecer seus filhos, Sra. Cauder.
De repente, a bondosa mulher se mostrou nervosa e um pouco ofegante, o que era surpreendente, pois ela era famosa por sua calma e equilíbrio. Disse apressadamente:
— Tenho de ir agora. Não se esqueça de meu jantar, sim, Sra. Cauder? Nem você, Stuart!
Voltou-se para Stuart ao dizer-lhe o nome e olhou estranhamente para ele, com o canto da boca e a sobrancelha em posição normal. A sua cor havia também desaparecido inexplicavelmente.
Stuart fez uma reverência, exprimindo sua profunda gratidão. Enquanto ele falava, o estranho olhar da Sra. Cummings se aprofundou. Ela lhe tocou rapidamente o braço com os dedos e se afastou. Stuart abriu-lhe gentilmente a porta. Ela sorria para ele de maneira breve e perturbada e saiu, seguida pelo boy que levava os embrulhos. Depois de um momento de hesitação e esquecendo Janie por completo, Stuart acompanhou a Sra. Cummings, afastou-lhe o cocheiro e ajudou-a a subir à carruagem. Ela se fingiu muito ocupada em ajeitar a capa e o chapéu, enquanto o boy deixava as compras na carruagem. A intuição céltica de Stuart murmurava alguma coisa. Com a testa franzida pensativamente, voltou em passos lentos para a loja. Que era que havia perturbado tanto a Sra. Cummings? Para ser justo, não podia culpar Janie de nada, pois ela fora toda gentileza e discrição. Talvez a Sra. Cummings tivesse sentido alguma pontada súbita, uma dor de cabeça repentina. Isso devia explicar tudo. Com isso, seu ânimo volúvel tornou a melhorar e foi com um passo firme que ele entrou na loja, fechou a porta e foi outra vez para junto de Janie.
Ela lhe deu no braço um beliscão secreto, mas violento. Ele torceu o corpo e proferiu uma exclamação. Mas ela o estava olhando maliciosamente e disse:
— Então é essa a nossa querida Sra. Cummings? Como ela parece gostar de você, meu caro Stuart!
— Ela é uma de minhas melhores freguesas! — exclamou Stuart acaloradamente, como se estivesse defendendo a Sra. Cummings. — Eu lhe asseguro que a freguesia dela me é muito valiosa, Janie! Preferiria magoar todas as outras senhoras da cidade, menos ela!
Janie interrompeu-o, dizendo com suavidade:
— Mas eu não a magoei, meu bem! Não fui toda delicadeza e respeitabilidade?
Stuart não soube o que responder.
Outra senhora, tendo acabado de fazer as suas compras, apareceu. Era uma mulher enorme e gorda, vestida de veludo vermelho com a capa guarnecida de pele preta de foca, com um regalo imenso e um chapéu carmesim que era talvez o maior que se via na loja. Era monumental e informe; dominava tudo com o seu simples volume. O chapéu cobria um rosto rosado de feitio indiscutivelmente porcino, com olhos pretos miúdos que completavam a impressão repulsiva que ela dava. A boca era grossa e franzida num jeito cronicamente arrogante e belicoso, ao passo que o nariz curto e grosso era igual a um focinho. Brincava com pulseiras cheias de berloques e tinha as faces e a testa banhadas de suor. Desprendia um cheiro sufocante de almíscar. Os cabelos eram espessos, amarelados e ásperos. Devia ter perto de quarenta anos e dava a impressão de completa insensibilidade, desconfiança, grosseria e brutalidade.
Stuart fez-lhe uma profunda reverência e sorriu, embora a detestasse pela sua arrogância e irredutível rusticidade, pelo seu jeito dominante e pelas suas pretensões à distinção.
— Minha cara Sra. Schnitzel! — exclamou amavelmente. — Não a tenho visto ultimamente. Espero que não tenha estado doente.
A Sra. Schnitzel olhou-o com toda a sua altivez suína, como se desconfiasse de alguma intenção oculta em suas palavras amáveis. Deu a impressão de que todo o seu corpo inchava e se eriçava. Por fim, dignou-se dar um sorriso de suprema condescendência.
— Estive em Nova York, Sr. Coleman —, disse ela com uma voz profunda e ressoante em que havia um sotaque teutônico bem carregado.
Levantou impressionantemente a grande cabeça e virou-se para olhar fixamente Janie, a quem desprezou imediatamente por ser pequena e graciosa. A antipatia lhe brilhou nos olhos miúdos.
— Ah, sim —, disse Stuart, ficando vermelho. — Sra. Schnitzel, esta é minha prima, a Sra. Cauder, que acaba de chegar da Inglaterra. Janie, apresento-lhe a Sra. Otto Schnitzel, esposa do proprietário de um dos nossos maiores matadouros.
A senhora cumprimentou cheia de majestade, como uma imperatriz que toma conhecimento da presença audaciosa de uma pessoa inferior. Janie levantou os olhos para aquele rosto suíno.
— Sra. Schnitzel! — murmurou ela, numa mistura de incredulidade e zombaria, mas se dominou prontamente.
Fez uma cortesia. A Sra. Schnitzel não correspondeu ao cumprimento. Pareceu inflar-se ainda mais de importância e condescendência. Afastou-se como um barco de velas cheias, num remoinho das saias de veludo vermelho e com a capa esvoaçando em sua esteira. Stuart abriu a porta para ela, fazendo-lhe uma reverência e ficou olhando o majestoso e agitado afastamento da dama teutônica. Voltou a Janie, que quase não podia conter o riso.
— Meu querido Stuart! — sussurrou ela, quase a tremer de alegria e com os olhos a brilhar incontidamente. — Que mulher detestável! Schnitzel! Pelo amor de Deus, que quer dizer esse nome? Schnitzel...
Stuart não pôde deixar de sorrir. Sua alma céltica não podia deixar de detestar os teutônicos.
— É um nome alemão —, disse ele, falando também em voz baixa. — Há muitos alemães em Grandeville. É uma gente horrível, muito abrutalhada. São donos de matadouros, curtumes e fábricas de salsichas. Está de acordo com a natureza deles. Só alguns são aceitos em nossa melhor sociedade, entre eles os Schnitzels, que são muito ricos e muito pretensiosos.
— Schnitzel! — exclamou Janie. — Que nome horrível! Todos eles têm nomes assim?
— Alguns são piores, como, por exemplo, os Schnickelburgers. Psiu! Estamos falando alto demais. Gostaria de ver as outras lojas?
Janie sacudiu a cabeça, ainda rindo.
— Por que a América permite essa gente aqui? Que nomes! Que caras! Que...
— São uns porcos! — disse Stuart e seu rosto se tornou carrancudo.
Lembrava-se, com raiva, de que Otto Schnitzel tinha aconselhado o Prefeito por entre ameaças a proibir a construção de mais qualquer igreja católica em Grandeville e a impedir a vinda de freiras para a cidade. Fora também Emil Schnkkelburger quem insultara publicamente o pobre padre Houlihan, salpicando-o de lama com as rodas de sua carruagem. Outro alemão, Gustav Zimmermann, tinha ordenado a Sam Berkowitz que descesse do passeio para dentro da lama e, como Sam se negara a obedecer, resolvera recuar, mas de bengala erguida e dizendo retumbantes insultos em alemão.
Stuart tinha ficado tão perturbado que resolveu não apresentar mais Janie às outras senhoras, que a olhavam furtivamente, visivelmente interessadas. Saiu com Janie impetuosamente e levou-a para conhecer as outras lojas.
À medida que iam de uma para outra, mais impressionada Janie se sentia. Bateu as pálpebras pensativamente. A sua maneira de tratar Stuart se tornou mais íntima, mais terna e mais deliciada. A prosperidade do primo era manifesta e isso queria dizer que suas quinze mil libras estavam a salvo de suas ambições. Aquele vasto e próspero estabelecimento não podia deixar de ser uma fonte de considerável renda. Stuart, apesar da opinião que ela fizera dele, devia ser dotado de muito tino comercial e de notável espírito empreendedor. Via que ele tinha muitos empregados. Via as suas excelentes carruagens. Via a intensa atividade. Ouvia o tilintar do dinheiro. Havia um movimento de colmeia em torno das lojas e Stuart lhe assegurou que, aos sábados, as ruas em frente às lojas ficavam intransitáveis. Todas as barcaças que subiam o Canal vinham carregadas de mercadorias encomendadas por ele. Duas vezes por ano, ele ia a Nova York, onde negociava a importação dos mais finos artigos da Inglaterra e da França e até da Itália e do Oriente. Dizia que não havia limite para o que ele podia fazer. Sugeriu que tinha planos magníficos, mas estes tinham de esperar um pouco. Não havia encerrado ainda a sua expansão.
Ela via claramente que isso não era fanfarronada e que tudo se baseava na mais hábil intuição comercial. Aquilo era uma terra para sonhadores, para empreendedores e audaciosos, para aventureiros com imaginação que arriscavam muito e ganhavam em grande escala. A alma insular de Janie sentia-se abalada.
— Você deve economizar muito dinheiro, meu amor —, murmurou ela, sondando-o e umedecendo avidamente os lábios.
Stuart hesitou. Sorriu para ela com ar superior e disse:
— Não é esse o meio de ganhar dinheiro na América, meu bem. Isto aqui não é a Inglaterra, onde se trabalha penosamente para juntar um penny a outro penny. "Muitos poucos fazem um muito", costuma dizer seu estimado pai. Mas aqui a mentalidade é muito diferente. Na Inglaterra, deposita-se o dinheiro no banco e fica-se esperando que ele vá lentamente crescendo. Nos Estados Unidos, empregamos tudo o que ganhamos em nossas empresas e trabalhamos para que ele gere consideráveis fortunas. Isto é uma terra de enormes distâncias e não uma ilhazinha estreita. Não é possível fazer cálculos muito exatos aqui. Para ganhar dinheiro aqui, é preciso arriscar e não com pequenas quantias, mas com fortunas.
Janie era também inteligente e intuitiva. Sentiu-se abalada nas suas fundações. Via todas as possibilidades. De repente, as suas quinze mil libras se transformaram numa migalha, numa simples gota de água num poço de ouro sem fundo. Tinha-se julgado uma herdeira rica. Não passava de uma pobre viúva com um óbolo. O coração ardeu-lhe de cobiça. Não faria nenhum favor com suas escassas libras a Stuart, que tinha em vista centenas de milhares de libras.
Aproximou-se mais dele enquanto iam de loja em loja. Stuart tinha querido impressioná-la. Tinha esperado, na melhor das hipóteses, colocá-la num estado de espírito em que ela pudesse mostrar-se disposta a um empréstimo de dez mil dólares. Se soubesse a que ponto ela estava impressionada, daria pulos de prazer.
Janie encontrou-se com Sam Berkowitz numa das lojas e olhou-o sem muita simpatia. Desconhecendo toda a extensão do papel por ele desempenhado naquela deslumbrante prosperidade, considerou-o um simples agregado, que era ali mantido graças à nobre generosidade de Stuart. Mostrou-se muito fria e reservada com ele, como devia ser uma cristã, enquanto ele a olhava em silêncio com os olhos castanhos e a cumprimentava gentilmente. Janie não soube que, quando ela se afastou, ele a acompanhou com o olhar, abanando um pouco a cabeça.

CAPÍTULO 19
Janie jantou sozinha com Stuart naquela noite pela primeira vez desde a sua doença. A bela sala de jantar estava toda dourada à luz das velas. Stuart ordenara um jantar muito bem cuidado. Tratou Janie com excelentes vinhos. Pouco a pouco, a frieza dela se aqueceu e uma luz dourada se difundiu por toda ela. Ria cada vez mais, com seu melhor vestido de veludo azul e suas pérolas, enquanto os cachos ruivos lhe brilhavam sobre os ombros magros. Contava com sua voz áspera as piadas mais arrojadas e seu copo nunca ficava vazio. Nunca ela se sentira mais deliciosamente livre, mais fascinante, mais cheia de espírito e de controle, mais inteligente e brilhante. Estava afinal no lugar que lhe cabia. A velha casa fora inteiramente esquecida. Os filhos não existiam. Não tinha pais, nem recordações. Era uma senhora elegante, rainha dos salões, das valsas, da música e dos belos vestidos, empenhada em fascinar um belo e querido companheiro com quem se ia casar. Graças a essa exaltação, parecia interessante até a Stuart. Como podia de ter esquecido a alegre companhia que era Janie? Como tinha esquecido que era quase impossível ficar entediado na presença dela e que as suas frases efervescentes e cheias de malícia eram tão inteligentes?
Numa onda de riso incontrolável, passaram à sala-de-estar, onde havia um grande fogo aceso na lareira e um variado sortimento de licores. Beberam repetidamente à saúde um do outro. Sentiam-se tomados da mais terna afeição excitada. As gargalhadas de Janie podiam ser ouvidas em cantos bem afastados da casa. De repente, ela se levantou e começou a valsar sozinha. Nos rodopios, as saias se levantaram, mostrando-lhe as pernas e até as coxas de maneira bastante licenciosa. Stuart aplaudia freneticamente. Janie se esmerou na sua demonstração, piruetando e saltando ainda mais, enquanto Stuart batia palmas e gritava: "Bravo! Bravo!" No alto, as crianças, já deitadas, escutavam. Na sua camisa de dormir, Bertie se levantou e foi até ao alto da escada. Estalou os dedos e disse a Robbie, que se mostrava inteiramente indiferente: "Mamãe está de novo fazendo das dela." Angus suspirou e fechou a porta do quarto da irmãzinha assustada, depois de se certificar de que ela tinha feito as suas orações. Os empregados espiaram a festa e se afastaram com sorrisos dúbios.
Janie, afinal, não pôde mais e se deixou cair, exausta do esforço e dos risos, num sofá de damasco. Deixou que Stuart a tomasse pela mão e a levantasse. Ele a beijou de pura exuberância. Ela colou o corpo ao dele com uma ferocidade de leoa, num ardor tão grande que isso foi uma súbita advertência para ele. Conseguiu afastar-se e se sentou perto dela, enquanto Janie, ainda rindo, ajeitava os cabelos e compunha as saias.
— Nunca me diverti tanto em toda minha vida! — exclamou ela, agitando os braços. — Você é um verdadeiro demônio, Stuart!
Sentado, com as mãos nos joelhos, Stuart ria descontroladamente. Olhou-a demoradamente, pensando que Janie era de fato um pedacinho lindo de mulher. Sentia o sangue correr-lhe aceleradamente pelas veias. Que diabo! Ela não era nenhuma criança, mas uma mulher mais velha do que ele, sabida e experiente. Uma noite com ela podia ser bem agradável e ninguém precisava saber disso.
Ela lhe notou os olhos e sentiu um tremor percorrer-lhe o corpo. Ora, havia muitas maneiras de esfolar um gato, como se dizia em sua terra. Não havia dúvida alguma de que Stuart a estava achando desejável. Ela sabia muito a respeito de homens e tinha certeza de que, uma vez envolvido com ela, ele não poderia mais recuar, ainda mais porque tinha um coração ingênuo e bondoso.
Levantou os braços com deliberado langor e arrumou os cabelos. A cintura era delgada e fina, acentuada pelo espartilho. Lamentou que não tivesse um busto mais cheio. Stuart se agitou na sua poltrona.
Mas havia uma coisa que Janie não sabia a respeito de Stuart. Ele era tenaz e astuto. Sabia quase sempre o que tinha de fazer. Mais tarde, levaria outras coisas em consideração. Não tinha escrúpulos.
Foi até o sofá e sentou-se ao lado dela. Tomou-lhe a mão e beijou-a amorosamente. Depois, embora ainda sentisse os vapores do vinho, tinha o espírito lúcido. Janie o olhava ansiosamente e muito calada. Stuart imprimiu ao rosto uma expressão de seriedade, de gravidade até.
— Janie, meu amor —, começou ele em voz pausada e bem ponderada —, você me disse que tem quinze mil libras. Isso, em dinheiro americano, vem a ser setenta e cinco mil dólares mais ou menos. — Abanou a cabeça judiciosamente. — É muito pouco para os Estados Unidos e a sua situação me vem preocupando muito. Ainda que você torne a se casar, esse dinheiro não representa grande coisa. Gostaria de ver você com bem mais do que isso. Acho que é o menos que posso fazer por você.
Janie estava em silêncio, com os olhos brilhando à luz da lareira. Passou a língua pelos lábios num gesto que nela era um sinal de cobiça. Apertou mais a mão dele e disse suavemente:
— Sim.
— É o menos que posso fazer, sim —, disse ele em voz mais alta como se estivesse respondendo às advertências de um interlocutor invisível. — Pensei então numa maneira de aumentar o seu dinheiro. Veja bem que vou enfrentar muitas dificuldades. Mas estou preparado para discussões, discordâncias e protestos. Temos uma sociedade comercial fechada e uma coisa dessas nunca nos passou pela cabeça...
Fez uma pausa, deu um suspiro, franziu a testa e virou a cabeça para o lado.
— Continue, Stuart —, disse Janie, cheia de interesse. — Afinal de contas, somos primos, não somos?
Stuart suspirou e levou algum tempo sem responder. Continuou, por fim, numa voz mais baixa e relutante:
— Janie, seu dinheiro poderia ficar em segurança nos bancos, mas os juros são muito baixos. Se você decidisse não se casar de novo, não poderia viver só com esses juros, da maneira confortável a que está habituada. Isso não lhe seria possível aqui nos Estados Unidos e, ainda mais, com seus quatro filhos. Dinheiro não cresce por si mesmo. Você se veria obrigada a lançar mão de seu capital. Seu dinheiro sumiria sem demora. Quem se casaria então com uma viúva pobre, com quatro filhos?
Janie olhou-o, sentindo o medo que as palavras dele inspiravam. Piscou os olhos e mordeu os lábios.
Stuart parecia muito perturbado.
— Não pense que é fácil para mim dizer-lhe isso, Janie. Quero fazer alguma coisa por você. Já falei com outra pessoa... mas houve protestos...
— O judeu! — exclamou Janie furiosamente, batendo no sofá com os punhos fechados.
Stuart teve um sobressalto.
— Não diga isso, Janie! A verdade não é bem assim. Compreenda que um homem tem de proteger os seus interesses. Além disso, pensei em outro meio!
— Diga, Stuart! Diga! — exclamou Janie, com o rosto aceso de ansiedade.
Ele se voltou para ela e segurou-lhe os ombros. As mãos eram fortes. O rosto estava cheio de entusiasmo. Ele era também um excelente ator.
— Escute, Janie, está disposta a investir vinte mil dólares nas minhas lojas?
Uma onda de frieza se abateu sobre Janie, produto de uma velha cautela e desconfiança bem escocesas. Afastou-se um pouco de Stuart, mas ele continuou a agarrá-la. Ela lhe estudou o rosto, já então em seu juízo perfeito. Mas não pôde ver nele nada que não fosse interesse e generosa afeição por ela.
— Continue —, disse ela com voz grossa.
Stuart não pôde mais conter o seu entusiasmo. Levantou-se e começou a passear de um lado para outro na sala. Acentuava as suas palavras batendo o punho fechado na palma da outra mão. A representação dele foi tão convincente que todas as suspeitas de Janie se dissiparam. O seu interesse aumentou e ela se sentou na beira do sofá para ouvi-lo.
— Janie, vou-lhe dizer uma coisa que ninguém sabe, exceto naturalmente os bancos! Sam e eu temos uma renda de mais de cinquenta mil dólares por ano daquelas lojas! Isso é um segredo e eu lhe estou falando numa base rigorosamente confidencial. Se você investir vinte mil dólares nas lojas, terá uma bela renda líquida anual de cinco mil dólares! Se investir mais, a sua renda será proporcionalmente maior! E tudo isso sem tocar no seu capital! Será sócia do Empório Supremo de Grandeville, cujas possibilidades são ilimitadas! Não é possível prever qual será depois a sua renda! Já lhe disse que pretendemos expandir-nos e você já viu tudo com seus próprios olhos!
Ele a olhou, com olhos acesos e rosto congestionado.
— Está compreendendo, Janie! Sabe o que lhe estou oferecendo a fim de protegê-la?
Janie enrolou um cacho num dos seus dedos trêmulos. Estava muito pálida e Stuart tornou a sentar-se ao lado dela, rindo intimamente e com evidente alegria.
— Acho que posso convencer a Sam, Janie! Creio que ele acabará compreendendo que é meu dever para com você, que é minha prima. Se conseguir, terei os papéis prontos amanhã, meu amor. E então, não terá mais preocupações na vida. Terá apenas de ficar com essa graça e essa beleza, sentadinha vendo sua renda crescer e podendo prever lucros cada vez maiores à medida que nós nos expandirmos!
Janie disse então com voz rouca:
— Mas, Stuart, você disse que foi obrigado a pedir emprestado dez mil dólares ao Sr. Allstairs para construir sua casa. Por que não tirou esse dinheiro de seu negócio?
Stuart foi tomado de surpresa ante essa pergunta direta. Enrugou a testa e arrependeu-se de sua língua solta. Era muito dele aquela tendência idiota a falar sem pensar. Riu como se estivesse confuso e esfregou afetuosamente os nós dos dedos no rosto de Janie.
— Falei demais, querida. Você não deve dizer isso a ninguém. Compreenda que quase todo o meu dinheiro está metido no negócio. Sam e eu também aplicamos na empresa os nossos lucros. Talvez isso seja um tanto complicado demais para a sua cabecinha feminina, mas vou tentar explicar-lhe. Se eu tivesse retirado dez mil dólares do negócio, teria de reduzir os lucros. E isso eu não quero. De maneira alguma! Nada deve prejudicar ou retardar a nossa expansão! O dinheiro que tomei a Allstairs foi um empréstimo particular. Não tem qualquer relação com as lojas.
Dizia as suas mentiras de maneira tão simples, com um ar tão pueril de confusão que a astuta Janie foi completamente envolvida. De certo modo, foi seduzida também pelo juízo que Stuart fazia da acuidade dela. Era bom que ele soubesse mesmo que era difícil embair alguém como Janie Cauder.
— Compreendo —, murmurou ela, para ajudá-lo habilmente. Sacudiu a cabeça, censurando-o. — Você não está nada bem, meu amor. Mas não importa. — Deu um profundo suspiro e os olhos lhe brilharam de novo. — Quer aprontar os papéis amanhã, Stuart?
Ele quase perdeu a cabeça com a sua vitória. Isso queria dizer que no dia seguinte poderia jogar na cara diabólica de Joshua Allstairs os dez mil dólares que lhe devia. Em seguida, faria um rápido casamento com Marvina e com a fortuna dela. Os planos lhe fervilhavam na cabeça. Teria de ser de certo modo uma espécie de rapto. Antes que Janie se desiludisse e sem o conhecimento do velho Joshua. Marvina tinha idade suficiente para se casar e era o ídolo do pai. Ele ficaria furioso e faria as piores ameaças. Mas nada poderia fazer. Ao fim de algum tempo, haveria a reconciliação e então, no devido tempo, a grande fortuna dele lhe cairia nas mãos. Quase não se podia conter na sua exaltação e no seu delírio. Não tinha sonhado que tudo seria tão fácil quanto fora. A opinião que tinha de si mesmo subiu a alturas vertiginosas: Como ele era diabolicamente hábil! Que brilhante sujeito era ele! Teve visões que lhe deram a volta à cabeça.
Tomou Janie nos braços e beijou-a violentamente. Ela se abraçou a ele, com uma boca faminta e tumultuosa. Stuart não estava pensando nela. Acariciava-a mecanicamente, enquanto o coração lhe batia fortemente.
E então, lentamente a princípio, mas cada vez com mais rapidez, teve consciência da paixão desenfreada que tinha nos braços. Os seus sentidos fizeram-no dar um recuo brusco. Mas os braços de Janie apertaram-no com mais força. Ela lhe puxou a cabeça e colou a boca na dele, enquanto os dedos se lhe embaraçavam nos cabelos. O sangue subiu-lhe impetuosamente à cabeça.
Mais tarde, enquanto Stuart esperava no quarto dela às escuras, Janie estava contente de não haver acendido as velas. Não queria que Stuart visse como o corpo dela era magro, apesar da flama lasciva que lavrava nela como um incêndio.

CAPÍTULO 20
Stuart Coleman não teve oportunidade no dia seguinte de "jogar os dez mil dólares na cara de Allstairs" pela simples razão de que tanto Joshua quanto sua adorada Marvina tinham caído de cama dois dias antes, atacados da gripe de mudança de estação. Stuart acordou no dia seguinte com a melhor das disposições. Não sentia remorsos, nem escrúpulos. Era muito sadio e muito realista para dar guarida a tais sentimentos. Esperava, na sua generosidade, que a "indiscrição amiga" tivesse sido gozada por Janie tanto quanto o fora por ele. Janie não era uma mocinha indefesa, uma frágil hóspede cuja virtude ele tinha de respeitar. Janie não tinha o menor respeito pela própria virtude e era suficientemente forte e sadia para saber que virtude era coisa que ela não possuía. Se tinha havido alguma sedução em todo o caso, pensou Stuart rindo, o seduzido fora ele e não Janie.
Fez a primeira refeição sozinho e saiu bem cedo para entender-se com Sam Berkowitz e convencê-lo de qualquer maneira. Não podia ser outra a disposição de Stuart. Sam às vezes se mostrava difícil e muito obstinado. A notícia de que ele e Stuart tinham mais um sócio devia, no mínimo, estarrecê-lo. Stuart foi formulando as frases com que iniciaria a conversa enquanto seguia pelas ruas silenciosas e tocadas de sol, jogando a bengala para o ar e assobiando exuberantemente. Comprou um jornal, correu os olhos pelos títulos e continuou. A vida era sem dúvida muito feliz e tranquila! É certo que havia rumores um tanto alarmantes no Sul e ameaças imprudentes e muito francas contra um Norte, que não compreendia o problema da escravidão. Mas isso não tinha a menor importância. Os exaltados trocariam impropérios e insultos, mas a paz prevaleceria. Pelo menos, era o que Stuart esperava. Quanto à Europa, havia muito que se desinteressava dela.
Foi só quando chegou à casinha bem cuidada de Sam num bairro pouco elegante que lhe surgiram as primeiras dúvidas. Franziu a testa, aborrecido. Não queria e não ia recuar. Sam devia ser convencido disso desde o início. Mas era certo que haveria algumas discussões desagradáveis e era isso que aborrecia Stuart.
A porta foi-lhe aberta por uma empregada. A velha mãe de Sam quase não saía mais da cama, entrevada pelo reumatismo, e havia muito que não descia de manhã. Mas Sam não tardou a aparecer na sala, alto, magro e encurvado, com os cabelos precocemente grisalhos. Estava em mangas de camisa e os olhos se mostravam vivos e curiosos. Mas, como sempre, estava sereno e tranquilo, com o rosto moreno cheio de afeto e gentileza.
— É bem cedo para você, Stuart, não é? — exclamou com o seu sotaque carregado e simpático. Se sentia alguma inquietação, não a deixava transparecer. — Quer tomar café comigo?
— Não, Sam, muito obrigado. Já tomei café em casa. — Com um sorriso ostensivo, Stuart levantou as abas do fraque, sentou-se numa poltrona forrada de veludo e descansou a bengala entre os joelhos. — Há um pequeno assunto de negócios que eu achei que devia vir discutir com você antes da abertura dos bancos.
Sam mostrou-se ansioso no mesmo instante. Sentou-se com movimentos lentos e olhou para Stuart com os olhos míopes.
— Dinheiro? Dinheiro outra vez, Stuart? Está precisando de dinheiro?
— Que é que você quer dizer com isso? — perguntou Stuart irritadamente, aproximando a sua cadeira. — Será que eu vivo precisando de dinheiro?
— Quase sempre —, respondeu Sam com um sorriso.
— Será um mendigo? Está querendo dizer que eu sou um mendigo, Sam Berkowitz?
— Não —, disse Sam, sem se perturbar. — Estou querendo dizer apenas que você vive precisando sempre de dinheiro.
Stuart não pôde deixar de sorrir.
— Quem é que não vive precisando de dinheiro? Além disso, uma firma deve ter apenas um sócio solvente. Bem, o assunto que quero conversar com você é mesmo dinheiro. Mas não é dinheiro de que eu esteja precisando. É dinheiro que vai cair em nossas mãos.
Com isso, Sam ficou verdadeiramente alarmado. Conhecia Stuart muito bem. Quando ele adotava essa atitude displicente, as coisas andavam muito mal. Sentiu-se então invadido por um alarma muito maior. Iria Stuart anunciar-lhe o seu noivado com Marvina Allstairs?
— Não fique com essa cara, Sam —, disse Stuart, rindo. — O que lhe quero dizer é que posso entrar imediatamente na posse de vinte mil dólares.
Sam franziu os lábios com uma expressão de profunda preocupação.
— Quando um homem diz que vai conseguir vinte mil dólares com essa facilidade toda, creio que está na hora de chamar a polícia. Mas desculpe a interrupção, Stuart. Pode falar.
— É o que eu estou tentando fazer, ora essa! Vinte mil dólares imediatamente. E não há necessidade de chamar a polícia. Não sou ladrão de bancos, embora reconheça que essa linha não deixa de ter suas atrações. Não, trata-se de minha prima, a Sra. Cauder. Ela concordou em me emprestar vinte mil dólares, imediatamente.
Sam olhou-o em silêncio. Tudo estava muito claro. Stuart era belo, insinuante e muito amável. Não lhe seria difícil conseguir de uma mulher suscetível uma importância tão grande. Sam ficou ao mesmo tempo tranquilizado e contristado. Não esperava isso de Stuart.
— É muita bondade dela, Stuart —, disse Sam, lentamente. — Será que, pelo fato de ser sua prima, não exige garantias?
Stuart tossiu. Tinha chegado ao ponto difícil. Olhou para o castão dourado da bengala com grande concentração. Disse então com voz branda.
— Ela não pediu garantias. Eu é que as dei.
Sam não pôde deixar de dizer:
— Sua casa, Stuart, que já está tão hipotecada a Joshua Allstairs?
— Não estou gostando de seu tom, fique sabendo disso, Sam! É desnecessário e inamistoso o seu procedimento. Acha que eu sou tão canalha a ponto de enganar uma pobre viúva desamparada, como ela diz que é? Acha que vou roubar o pão dos órfãos e, ainda por cima, dar-lhes um pontapé no traseiro? Pensei que fizesse melhor juízo de mim, Sam!
— Calma —, disse Sam com um sorriso. — Você bem sabe que tenho a melhor opinião possível a respeito de meus amigos. Não se zangue, meu caro Stuart. Afinal de contas, eu nada disse demais. Acha que foi impertinência minha querer saber quais foram as garantias que você deu?
— Claro que não. Foi justamente isso que lhe vim dizer. Ofereci a Janie uma espécie de sociedade nas lojas.
Sam ficou atônito. Levantou-se vagarosamente e olhou incredulamente para Stuart sem poder falar.
— Não fique assim com essa cara de enforcado, Sam. Vou explicar tudo, resumidamente.
"Disse a ela — e não menti — que um investimento de vinte mil dólares nas lojas lhe asseguraria uma renda anual de mais ou menos cinco mil dólares. Posso garantir-lhe que isso atiçou por completo a cobiça de minha prima. Os lábios lhe tremiam avidamente. Foi para mim uma coisa muito edificante essa cupidez feminina. Cada um de nós retira atualmente da firma duas vezes mais, até porque o nosso investimento é consideravelmente maior. Outra sócia, uma mulher que não terá voz ativa na administração da firma, põe vinte mil dólares à nossa disposição. Acho que isso deve ser recebido com exclamações de alegria. Concorda comigo? Não, vejo que não concorda. Não faz mal. Ouça.
"Pense no que nós podemos fazer com vinte mil dólares, Sam. Lembra-se do estoque daquela firma falida em Nova York que podemos conseguir quase de graça? Vou efetuar a compra imediatamente. Não deve estar esquecido de como discutimos-isso com pesar um dia destes e chegamos a pensar em contrair um empréstimo para comprar esse estoque. Agora, podemos comprá-lo. Estou esperando os gritos de alegria.
Sam sentou-se vagarosamente. Seus olhos castanhos estavam penetrantes e sombrios. Stuart esperou o comentário de Sam, mas este disse apenas com muita calma:
— Você não me está dizendo tudo, Stuart.
— Não, de fato não estou —, disse Stuart mordendo os lábios e sem olhar diretamente para Sam. — Preciso de dez mil dólares desse dinheiro urgentemente, Sam. Quero pagar imediatamente àquele velho patife, Allstairs.
"A minha ideia é colocar os vinte mil dólares na firma e tomar emprestado dez mil dólares, que pagarei em parcelas mensais, deduzidas de minhas retiradas. Uma vez livre dos juros escorchantes que pago àquele agiota, poderei fazer com a maior facilidade esses pagamentos. Janie receberá uma soma determinada em intervalos regulares, como a renda de seu investimento. Vou tratar dos papéis hoje mesmo.
Sam olhou-o firmemente e disse:
— Vou ofendê-lo, Stuart, mas é necessário. Você paga regularmente a Joshua Allstairs porque tem receio de perder sua casa. E sabe que não é só a casa que perderá, mas também o seu prestígio. Mas, libertado disso, não vai pagar regularmente à firma. Entretanto, a firma terá de pagar regularmente à Sra. Cauder, quer os negócios sejam bons, quer sejam maus. Você e eu podemos esperar, Stuart, podemos ter calma e paciência. Não nos será difícil apertar os cintos. Mas a Sra. Cauder não poderá apertar o cinto. É uma viúva e tem quatro filhos.
— Espere aí! Você me está chamando um ladrão irresponsável! — exclamou Stuart muito vermelho, encobrindo com gritos a sua confusão. — O que você está dizendo é que eu pretendo falhar nos meus pagamentos à firma! Está sugerindo que eu vou lesá-lo nos seus malditos lucros!
Sam levantou a mão e disse em tom claro e firme:
— Já lhe disse mais de uma vez, meu caro Stuart, que tudo o que eu tenho é seu, quando você precisar. Não estou magoado com o seu tom, não estou zangado. Estou apenas com medo e por sua causa.
"Ainda não acabei. Tenha a bondade de me escutar. Você e eu podemos esperar. Mas a Sra. Cauder não pode. É para protegê-la que eu estou falando e você sabe muito bem disso. Você está muito endividado, Stuart. Tem dívidas por toda a parte. No mês passado, perdeu quase mil dólares com jogo e com mulheres. Foi você mesmo que me disse. No ano passado, comprou aquele colar para aquela mulher em Saratoga. Já o pagou, Stuart? Aí estão mais dois mil dólares. E as corridas de cavalos, Stuart? Você não pode resistir aos cavalos. Sei de tudo isso. Pode se zangar comigo, mas sabe muito bem que estou dizendo a verdade.
— Assinarei promissórias! — exclamou Stuart, furiosamente. — Assinarei todas as promissórias que você quiser! Poderá descontá-las com seus usurários! Pode me vender e vá para o inferno!
Mas Sam se limitou a sorrir tristemente. Abanou repetidamente a cabeça.
— Você sabe que está falando sem pensar, Stuart. Se você falir, o mesmo acontecerá comigo e eu o acompanharei sem me lamentar. Para que eu preciso de dinheiro senão para executar os planos que tenho para meu povo? O que eu tenho é seu. Mas não posso ver você se arruinar. E não posso cruzar os braços enquanto você marcha para o desastre.
Stuart levantou-se num repelão e disse veementemente:
— Juro por Deus que você está enganado a meu respeito, Sam. Pagarei tudo o mais depressa possível. Dou-lhe minha palavra de honra. Não é a primeira vez que você me chama a atenção e eu não me importo com isso. Não contrairei mais dívidas pessoais até que tudo esteja pago. E há mais uma coisa que garantirá os pagamentos. Pretendo casar-me com Marvina Allstairs o mais depressa possível, com ou sem o consentimento do pai.
Se Sam estava perturbado, ficou inteiramente arrasado ao ouvir isso. Mas nada disse. Torceu nervosamente as mãos e olhou para Stuart com uma expressão de desespero.
Stuart tinha recuperado a sua animação e continuou jubilosamente sem notar a expressão de Sam:
—"Ainda que o velho patife seja contrário, há outros meios. Marvina deverá herdar uma considerável fortuna pessoal quando completar vinte e um anos, de seu avô, pai de sua mãe, que era de Pittsburgh. Acredito que esse dinheiro ande por volta dos cem mil dólares. Você e eu podemos administrar bem as lojas durante mais três anos, ainda que os negócios corram mal, coisa em que não acredito. As lojas vão cada vez melhor, segundo você mesmo acha.
Mas Sam disse em voz baixa e trêmula, com os olhos voltados para o chão:
— Vai-se casar com essa moça, Stuart, porque gosta dela e não para conseguir benefícios para as lojas?
— Certamente, Sam. Sinto-me muito atraído por ela. Não chego ao ponto de dizer que me casaria ainda que ela não tivesse um centavo. Mas eu a preferiria com uma pequena fortuna a outra com uma fortuna maior. A não ser, é claro, que a fortuna da outra fosse realmente notável.
Tornou a sentar-se, cheio de bom humor e energia.
— O velho patife não resistirá por muito tempo. Adora a filha e eu serei um marido modelo. Dentro em breve, ele se abrandará, tenho certeza disso!
O desespero de Sam aumentou. Aquela mulher fria, que parecia morta. Aquela golem de cara bonita. Ela conseguiria congelar o coração ardente e vigoroso de Stuart, destruindo-lhe a alma! Era uma coisa intolerável, mas nada ele poderia fazer. Quando os homens estão empenhados na própria destruição, a voz dos amigos é sufocada pelos ventos da paixão.
Stuart pousou a mão no joelho do amigo e sacudiu-o afetuosamente.
— Por que me está olhando assim, Sam? Será que você não compreende? Tudo está indo maravilhosamente! Desculpe ter sido um pouco rude com você. Mas deve compreender, Sam, que eu não iria magoá-lo por nada deste mundo. O que acontece é que eu sempre falo demais. Mas, no fundo do coração, sei perfeitamente quem é você e lhe quero um grande bem.
Sam cobriu com os dedos frios a mão de Stuart. Ainda assim, nada disse.
— Você me perdoa, não é, Sam?
Sam levantou-se e passou as mãos pelo rosto.
— Não há nada o que perdoar, Stuart. Pode esperar um pouco por mim? Iremos juntos ao banco e ao escritório de nosso advogado.
Mas, outra vez, depois de todas essas providências, Stuart foi frustrado em seus planos de ir procurar Joshua Allstairs e entregar-lhe o cheque de dez mil dólares. Depois de melhorarem da gripe, pai e filha foram passar três semanas nas montanhas a fim de se recuperarem num ar mais alto e mais doce do que o que circulava pelas ruas frias de Grandeville.
Enquanto estava nas montanhas, Joshua aperfeiçoou os planos de levar a filha para a Inglaterra naquele verão e ali deixá-la sob a guarda e a proteção de pessoas já escolhidas.
Stuart ficou satisfeito com o adiamento, embora momentaneamente decepcionado. Havia também formulado seus planos e bem audaciosos eram eles.
Janie Cauder passara a ser sócia capitalista do Empório Supremo de Grandeville e considerava-se muito feliz. Não tinha mais dúvidas de que Stuart se casaria com ela. Mostrava-se cheio de delicadeza e afeição para com ela. Era bondoso com os filhos dela, que mostravam gostar muito de Stuart, exceto Robbie, que o considerava particularmente um simplório. Quando Stuart sugeriu que os três garotos ingressassem na mesma escola que ele havia frequentado, Janie ficou muito contente. Era muita generosidade do querido Stuart interessar-se assim pelo futuro dos filhos dela!
A pequena Laurie parecia ser a predileta de Stuart. Passeava com ela à tardinha pela beira do rio e, de suas janelas, Janie podia ver os dois a caminharem de mãos dadas ao lado das águas turbulentas.

CAPÍTULO 21
Angus olhou com tímida curiosidade e incerta cautela a casa do Padre Houlihan. Não era absolutamente um "covil de iniquidade", como ele fora levado a acreditar que fossem as casas de todos os padres, de acordo com as opiniões do avô, que tinha ódio azedo ao "papismo". Era uma casinha branca, média, cercada de uma grade de madeira branca e tendo à frente um gramado que reverdecia ao sol de maio. Perto da casa, havia roseiras em flor. As vidraças das pequenas janelas estavam bem limpas, com cortinas baratas. A porta branca apresentava uma aldrava de cobre bem polido com o feitio de uma cabeça feroz de urso. A casa era vizinha da bela igrejinha branca e parecia colocar-se sob sua proteção.
O interior da casa era tão simples, arrumado e despretensioso quanto o seu exterior. Um tapete turco vermelho se estendia sobre o assoalho encerado e os móveis eram todos de carvalho sólido e de couro, vendo-se aqui e ali um quadro religioso nas paredes revestidas de carvalho. Havia até um pequeno órgão, algumas mesinhas de carvalho e um fogo aceso na lareira de ladrilhos azuis. (Stuart tinha oferecido quase todos os móveis da casa.). Em algumas mesas, havia vasos com narcisos e tulipas, orgulho do jardim do Padre Houlihan que ele cultivava pessoalmente, sujando a batina de lama e ficando de vez em quando apoplético.
Sobre a cornija da lareira, havia um crucifixo de ébano e marfim, também presente de Stuart, belamente esculpido. Angus olhou para o crucifixo espantado e então, para irritação de Stuart, desviou os olhos como de alguma coisa indecente. Mas o garoto se mostrou muito polido e quando Stuart lhe indicou uma cadeira, sentou-se na beira, com o chapéu nos joelhos.
Stuart olhava Angus com um esforço para manter-se severo. Mas o que o preocupava realmente era a maneira de incutir no menino a necessidade de guardar segredo a respeito daquela visita para com Janie. Era uma tarde de domingo e Stuart ia encontrar-se ali com Sam Berkowitz para o habitual jogo de cartas depois das Vésperas. Teriam à sua espera cerveja, o bom presunto cozido da Sra. O’Keefe e um pão bem gostoso. Como de costume, Stuart arrependia-se do impulso que o fizera levar Angus à casa do padre. Tinha encontrado Angus no meio da tarde com uma cara tão triste que irrefletidamente o convidara para fazer uma visita com ele à casa de um amigo. O menino aceitara o convite pressurosa e gratamente, Stuart não havia revelado a identidade do amigo até o momento em que estavam quase chegando à porta da casa. Não sabia mais por que tinha levado Angus, mas suspeitava de que tinha sido por algum sentimento de piedade. O instinto lhe dizia que Angus precisava de um amigo que fosse compassivo, simples e bom e não havia ninguém com essas qualidades que pudesse comparar-se ao padre.
Sorriu incontidamente. Talvez algum dia viesse a contar a Angus como conhecera o Padre Houlihan, mas isso só poderia acontecer daí a muitos anos.
O encontro se havia verificado em circunstâncias extremamente desagradáveis. Parecia que dois paroquianos do Padre Houlihan eram ricos, o que era por si só uma coisa surpreendente. Cada uma das duas famílias tinha um filho único e mimado pelos pais, que lhes deixavam nas mãos muito dinheiro. Numa noite de sábado, os dois tinham ido parar no bordel mais caro e luxuoso da cidade (naturalmente de propriedade de Joshua Allstairs). Stuart estava lá também. As mulheres estavam quase nuas e eram jovens e alegres e os rapazes começaram a divertir-se na sala do bordel, com uma mulher ao colo e um copo de uísque na mão. Stuart estava em posição semelhante.
Os pais deviam ter sido informados dessa excursão noturna de seus rebentos pelos domínios da Vênus venal. Como, ao que parecia, os pais eram muito conhecidos na casa, apelaram para o padre, não querendo evidentemente solicitar a intervenção da polícia. O Padre Houlihan, alma intrépida, havia invadido o bordel, armado apenas com a sua indignação e o seu pesar. Não tinha a intenção de censurar a dona da casa ou as mulheres. Só queria era salvar os garotos desencaminhados. Se ele tivesse pensando um momento ou dois, refletiu Stuart depois, teria agido menos impulsivamente e com mais respeito pela sua batina. Mas, celta como ele era, agira primeiro para arrepender-se depois. Como ele conseguira passar pelos cérberos que guardavam a porta do bordel, nunca ninguém soube e, muito menos, o exaltado Padre Houlihan.
De qualquer maneira, havia irrompido impetuosamente na sala, aos gritos e com o rosto muito vermelho de vergonha e de raiva. Os dois garotos ficaram muito pálidos, fizeram as mulheres saírem do colo deles e deixaram os copos caírem no chão. O Padre Houlihan, cada vez mais envergonhado e encolerizado, tinha dado um pescoção em cada um dos garotos e mandou-os sair da casa, proferindo imprecações num sotaque carregadíssimo.
Na confusão reinante, uma das mulheres tinha perguntado em voz estridente:
— Quem é, afinal de contas, esse camarada?
Stuart, que ria descontroladamente, olhou para a longa batina preta que dançava em torno das pernas do padre e disse:
— Não conhece? É a famosa Sra. Grundy. (Personagem de uma peça inglesa do século XVIII, de Thomas Morton, que se tornou símbolo das mulheres de espírito estreito e convencional. N. T.)
Desde que o Padre Houlihan estava cada vez mais envergonhado e exibia sintomas da mais completa exasperação contra os dois pobres garotos, Stuart resolveu intervir, sem deixar de dar gargalhadas. O vigoroso vocabulário do padre lhe despertara intensa admiração e isso, combinado com a sua confusão envergonhada, e a sua energia, tinham provocado em Stuart uma sincera compaixão. Fez os dois garotos saírem rapidamente da casa e voltou para o padre que estava ofegante e enxugava o suor do rosto com um grande lenço branco. Stuart segurou-o pelo braço. O padre resistiu e na linguagem menos clerical possível mandara-o para o inferno. Os dois saíram da casa juntos.
Uma vez do lado de fora, o padre se voltara ferozmente contra ele.
— É uma vergonha e um crime você trazer dois garotos como esses para o vício e para a perdição!
— Não fui eu que os levei coisa nenhuma! — exclamou Stuart ainda rindo e, então, explicou ao padre o que havia realmente dirigido os passos dos garotos até ali. O padre fizera uma cara de espanto e de horror e, de repente, começara a rir, mesmo contra a sua vontade. Stuart observou-lhe então que era extremamente inconveniente para um padre entrar num bordel, mesmo para salvar garotos desencaminhados.
— Eu nunca penso —, murmurou o padre, tristemente. — Acha que fui visto?
— Sem dúvida alguma —, disse Stuart.
Tornou-se amigo do Padre Houlihan a partir desse momento. Aquele "eu nunca penso" era coisa muito conhecida dele. Foi até à casa do padre com seu novo amigo. Naquele tempo, a casa não era branca. Era mais uma miserável cabana de madeira com as tábuas lascadas. Durante a caminhada, o Padre Houlihan lamentou o seu temperamento impulsivo e disse que teria de fazer muita penitência por causa disso. A sua atitude era tão séria, tão vigorosa e tão pueril que Stuart se sentiu ainda mais encantado.
Quando chegaram diante da triste cabana, o Padre Houlihan olhou para Stuart e deu um suspiro.
— Não compreendo como um homem decente assim, tendo mulher e tudo mais, vai a um antro de perdição como aquele!
— Não tenho mulher, nem tudo mais —, disse Stuart. O Padre Houlihan pareceu mais conformado, mas, ainda assim, levantou o dedo para ele e disse:
— Apesar disso, não deixa de ser um homem decente!
Tinha sido esse o começo de uma amizade que iria acompanhá-los pelo resto da vida, uma bela amizade que as frequentes discussões e discordâncias reforçavam. Pelo menos uma vez por mês, Stuart saía da casa do padre furiosamente, acompanhado pela voz do padre que lhe dizia coisas vigorosas e muito pouco edificantes. Começavam então a escrever um para o outro cartas em que se pediam humildemente desculpas e no próximo domingo estavam de novo juntos.
Stuart ainda estava à procura das palavras com que devia advertir Angus quando o Padre Houlihan apareceu, enchendo a pequena sala de vitalidade, saúde e entusiasmo. Era essa a sua disposição habitual e a sua energia nunca era amortecida desde que acreditava na bondade essencial da humanidade, apesar de todo o seu conhecimento em contrário.
— Ora, muito bem! — exclamou ele com a sua voz forte e olhou para Angus com amistosa curiosidade e simpatia. Stuart já lhe falara do garoto e ele estava preparado, como sempre, a amar os jovens e desprotegidos.
Angus se levantou com desconfiança, agarrando a aba do chapéu, com o rosto magro e pálido um pouco vermelho. Não podia olhar diretamente para o padre e o coração lhe batia com força. Tinha esperado um jesuíta sombrio, magro e sutil, com um rosto a transpirar maldade e diante de quem ele devia manter-se em rigorosa vigilância. Mas aquele homem baixo, gordo e completamente calvo de cerca de quarenta anos parecia mais o Frei Tuck bonachão das histórias de Robin Hood do que qualquer dialético latino emaranhado em complexas maquinações. Quase não chegava à altura dos ombros de Stuart e sua batina se estendia sobre a grande barriga e os ombros largos tão justa que chegava a estar esticada. Tinha mãos pequenas e gordas, muito brancas, expressivas e bem tratadas, pois eram a sua única vaidade. Tudo nele era expressivo, volátil e dinâmico. Transpirava a alegria de viver e um ardente afeto por tudo, mesmo quando estava triste, o que era muito raro.
Tinha uma grande cabeça redonda e a calva reluzia, suarenta e rosada. Só acima das orelhas e da nuca roliça, havia alguns cabelos dourados, relíquias de uma vasta cabeleira. As orelhas eram enormes e rosadas e se projetavam da cabeça num jeito de agradável surpresa, de alerta e de escuta. O rosto era muito redondo e largo, rosado e limpo, com uma série de papadas. A sua corpulência era uma fonte de grande desespero e era objeto de muitas meditações tristonhas, mas a verdade é que ele não podia resistir à boa comida e à cerveja, apesar de todas as preces que fazia para ter ajuda e mortificar a carne.
Tinha espessas sobrancelhas douradas sobre olhos azuis que eram sempre vivos e bem-humorados. O nariz era grande e abatatado. Mas a boca era delicada, sempre cercada de covinhas comoventes e com um sorriso a tremer nos cantos.
Era uma alma simples. Mas era também extremamente intelectual, um fato que não lhe perturbava a simples fé. Tinha dito uma vez a Stuart que não acreditava em muito conhecimento. Achava que o conhecimento excessivo entorpece e ofusca a alma e reduz ao silêncio a intuição do coração. Não obstante, a sabedoria não o entorpecera, nem ofuscara e a intuição de seu coração era tão pura na sua lucidez, na sua presciência e na sua bondade como se ele fosse um recém-nascido. Desconfiava de todos os homens sutis, de todos os dialéticos, de todos os realistas e de todos os sofistas, fossem da religião ou fossem do século, e era por isso talvez que não era favorito das autoridades eclesiásticas e nunca deixara de ser um padre humilde. Talvez fosse por demais honesto, direto, vigoroso, simples e pragmático para fazer carreira nos altos escalões eclesiásticos. Estava acima da hipocrisia. Falava muitas vezes desse vício, mas nunca pôde realmente compreendê-lo e ficava sempre apavorado e desconcertado quando o encontrava nos outros. Era também um mau homem de negócios e muito vago a respeito de contas, o que também o prejudicava aos olhos do bispo. Nunca tratava de fazer prosélitos, coisa pela qual era frequentemente censurado. Sabia apenas, na sua sincera perplexidade, que amava Deus e que outros homens sem dúvida amavam também a Deus, de várias maneiras. Mas nunca levava vantagem de espécie alguma nas conversas que tinha com o seu severo bispo e, embora se mantivesse humilde diante daquele augusto personagem, saía do palácio episcopal mais confuso do que nunca, murmurando novos argumentos e a sacudir a cabeça desconsoladamente. Muitas vezes, deixava-se ficar parado no passeio do palácio, a olhá-lo veementemente, num estado de espírito muito envergonhado e confuso, firmemente disposto a sair-se melhor, embora não fizesse a menor ideia de como isso seria possível.
O seu amor a Deus dava-lhe uma grande e bela dignidade, que nem a sua corpulência, nem o seu prazer de viver conseguiam atenuar. A sua fé era como uma luz no grande rosto rosado e nos vivos olhos azuis. Tinha também um mau gênio terrível e uma língua sem freios. Reagia de maneira violenta quando se convencia de alguma canalhice ou crueldade.
Desde que era tão sem afetação e tão sincero, sempre olhava de maneira firme e direta para os outros, mas com tal bondade que isso raramente ofendia. Olhou assim e com muito interesse para o jovem Angus, mas este, corando e pouco à vontade, olhava-o de vez em quando timidamente e logo desviava o olhar. Houve um pouco de silêncio na sala. Stuart estava um pouco à parte, olhando e sorrindo. O Padre Houlihan continuou a observar Angus à sua maneira simples e direta. Por fim, pouco a pouco, mas de maneira clara, uma sombra de tristeza e afeição passou pelo rosto do padre, enevoando-lhe brevemente os olhos azuis. Desde que não havia reflexos em sua visão espiritual, ele via sem distorção.
— Ora, muito bem —, disse ele de novo, mas quase num murmúrio indistinto dessa vez. O quente crepúsculo de maio se adensava. O Padre Houlihan apanhou uma vela de cera na cornija da lareira, acendeu-a no fogo e saiu pela sala a acender as lâmpadas, levantando-as cuidadosamente para que a claridade suave enchesse todos os cantos,
Stuart estava aborrecido com Angus. O garoto havia murmurado um cumprimento inarticulado e permanecera de pé, amedrontado, rígido e contrafeito, sabe Deus com que ideias na cabeça. Stuart lhe havia recomendado que tratasse seu amigo como "Padre" e ele bem sabia como a palavra era dura de passar por aquela jovem garganta presbiteriana. Teria sido um erro de sua parte levar o camaradinha até ali para causar problemas para seu amigo Grundy?
Angus observava furtivamente o padre enquanto este ia de lâmpada em lâmpada. O garoto parecia confuso. A visão que tinha das coisas se mostrava toda deformada. Quando se aproximou da última lâmpada, o Padre Houlihan se queixou de que sua irmã se esquecera de enchê-la. Acendeu-a e sorriu. Ainda havia querosene que chegasse.
— Como é que vai passando hoje, Stuart? — perguntou.
— Bem, como de costume. E você?
— Magnificamente. Sempre vou magnificamente.
Estava de pé com a vela na mão e a luz dourada lhe caía no rosto quando ele se voltou para Angus. Era um rosto simpático, apesar da vermelhidão, da gordura e da sua energia camponesa. Sorriu então para Angus. Era um belo sorriso de bondade, de gentileza e de simpatia.
Soprou a vela e sacudiu-a de um lado para outro na mão.
— É esse então o nosso Angus, o rapaz que quer ser um bom médico, não é?
Angus ficou muito vermelho. Mas conseguiu mostrar um sorriso tímido e mudou a posição dos pés.
O Padre Houlihan tornou a colocar a vela em cima da lareira, depois de esmagar com as unhas a ponta enegrecida. Voltou-se para Angus e deu um suspiro de inveja.
— Era médico que eu queria ser quando estava na velha terra.
Sacudiu a cabeça e encaminhou-se para onde estava Angus. Desde que o garoto era alto e o Padre Houlihan era bem baixo, os olhos dos dois estavam quase no mesmo nível. O padre encarou aqueles jovens olhos tão cheios de medo e de ansiedade e viu neles a apreensão e a desconfiança que inspirava.
— Os olhos dele lembram a névoa das montanhas da Escócia —, murmurou ele, delicadamente. — Passei muitos anos na Escócia, perto de Inverness, onde eu tinha um primo. Ele tinha carneiros. Ainda me lembro das madrugadas escocesas, pouco antes do amanhecer, com a estrela da manhã acima das montanhas.
A sua voz forte estava nesse momento repassada de ternura. Angus levantou de repente a cabeça e olhou o padre sem medo e com ansiedade.
— Meu pai fez um canto dedicado à estrela da manhã! — exclamou ele e, em seguida, ficou mais vermelho do que nunca. Os olhos se lhe encheram de lágrimas e ele virou a cabeça para o lado. O padre olhou para o garoto e seu rosto se encheu de tristeza.
— Talvez ele esteja agora no céu cantando para os anjos —, disse ele, com grande ternura.
Angus nada disse, mas havia soluços em sua garganta. O Padre Houlihan passou o braço pelos ombros do garoto não com violência, a fim de não alarmá-lo, mas com muita lentidão e delicadeza.
— Vou rezar uma oração por seu papai, amanhã —, disse ele.
Angus se moveu inquietantemente, mas, sentindo o calor do braço passado pelos seus ombros, não pôde resistir na sua fome de carinho e ficou parado. Mas olhou para o Padre Houlihan com uma severidade incerta, dizendo com resolução:
— Não podemos rezar pelos mortos. Estão nas mãos de Deus e não precisam mais de nossas orações, que não os podem mais ajudar, nem prejudicar.
As lágrimas lhe corriam livremente pelas faces.
O Padre Houlihan ficou em silêncio por um momento e então disse, batendo gentilmente no ombro do garoto:
— Eu gostaria de saber que meus amigos se lembram de mim, mandando-me o seu carinho em forma de orações que Deus ouve em meu benefício. Não posso deixar de pensar que eles sabem e que Deus ouve quando rezamos com amor e tristeza.
— Mas não podemos modificar o destino de ninguém, que é fixado no momento em que a pessoa nasce —, declarou Angus obstinadamente. — Antes mesmo do nascimento. Predestinação.
O Padre Houlihan não era homem para discutir questões de dogma com ninguém, especialmente com um garoto que sofria. Mas disse com voz quente e terna:
— Não sei, mas creio que seria uma crueldade de Deus condenar uma pessoa antes mesmo de nascer. Não posso acreditar que Deus seja menos misericordioso do que os homens. Ora! — disse ele, dando um suspiro. — É claro que não podemos saber ainda dessas coisas. O que temos de fazer é confiar na eterna bondade e no amor de Deus. É só o que podemos saber.
Tornou a apertar o ombro de Angus. Tirou então a mão e teve um sorriso cordial.
— Vai ser então médico? E um bom médico, não tenho dúvida alguma. Os bons médicos já nascem, como os sacerdotes, trazendo a vocação na alma.
Angus ainda estava obstinado, mas a sua resolução se atenuava. Olhava já o Padre Houlihan com menos severidade e menos timidez. Sentia alguma coisa quente e doce invadir-lhe a alma, como uma consolação. Lembrou-se então de que o avô lhe tinha dito muitas vezes que os sequazes de Roma eram como serpentes, insinuantes e macias, procurando a quem podiam devorar com palavras sedutoras e gestos ternos.
— Obrigado, Sr. — começou ele desajeitadamente e percebeu então o olhar de Stuart voltado para ele. — Reverendo... — corrigiu ele por entre os dentes.
O pobre garoto esperava que isso satisfizesse o primo de sua mãe. Os padres deviam ser reverendos também...
O Padre Houlihan olhou, todo sorridente, para ele.
— Como é, Angus? Está gostando dos Estados Unidos?
— Muito, obrigado —, respondeu Angus cortesmente.
As mãos já lhe doíam de tanto agarrar as abas do chapéu. Como se tivesse compreendido isso, o Padre Houlihan tomou-lhe o chapéu e colocou-o ao lado do de Stuart, em cima de uma mesa. Angus ficou olhando para o chapéu, meio aflito e incerto, mas nada havia que ele pudesse fazer.
O padre voltou-se para Stuart e disse:
— Sam já está aí. Está lá na sala dos fundos com as cortinas descidas. Não vai jogar, como de costume?
— Que é que acha que eu vim fazer aqui, Grundy? — perguntou Stuart ruidosamente.
Podia sentir os olhos escandalizados e amedrontados de Angus fitos nele e teve o impulso momentâneo de sacudir um pouco o garoto e botar-lhe um pouco de juízo na cabeça. Mas evitou olhar para ele.
O Padre Houlihan hesitou e olhou para Angus.
— Que é que nosso amigo vai fazer enquanto nós jogamos? — murmurou ele.
Angus meteu no bolso os dedos trêmulos e disse, quase incoerentemente:
— Sempre trago comigo aos domingos meu Novo Testamento.
Tirou do bolso um livrinho encadernado em preto e colocou-o de encontro ao peito, como se quisesse protegê-lo.
— Muito bem! — exclamou o Padre Houlihan.
Stuart mostrou uma expressão de paciência dificilmente contida e olhou para o padre com um gesto de aquiescência. O Padre Houlihan encolheu os ombros e saiu da sala, seguido de Stuart e de Angus que fechava a retaguarda com o passo temeroso de quem vai entrar em catacumbas onde se poderiam encontrar todas as espécies de blasfemos horrores. Em dado momento, o padre voltou-se e tocou o braço de Stuart
— Pobre garoto, pobre garoto —, murmurou ele, com uma súplica na voz.
Passaram por um pequeno corredor sombrio e foram dar numa sala muito confortável, onde o fogo estava aceso na lareira. Dois cachorros se levantaram ao vê-los e começaram a latir de alegria. Eram spaniels pretos e peludos, que começaram a dar pulos em torno do padre. Voltaram então as suas demonstrações de alegria para Stuart, que lhes afagou as cabeças. Depois, voltaram-se, com a língua de fora, para Angus, cujo rosto se encheu de tímida satisfação. Reconhecendo um amigo, os cachorros começaram a fazer-lhe festas, com latidos de satisfação. O garoto pegou um deles nos braços e começou a rir. O riso era relutante e fraco, talvez por falta de uso, mas muito infantil. O cachorro lambeu alegremente o rosto de Angus, enquanto o seu companheiro, enciumado, tentava subir pelas pernas do garoto. Angus lutou com o animal que tinha nas mãos, tentando livrar-se das lambidelas sem largar o corpozinho gordo e irrequieto. Riu de novo cheio de satisfação e voltou-se para o Padre Houlihan, que olhava a cena sorridente e compassivamente.
— Gostaria muito de ter um cachorro! — exclamou Angus num assomo de sinceridade. — Mas Mamãe não deixa.
Não havia nesse momento na voz dele nem tensão, nem cautela.
Colocou o cachorro no chão e ele se uniu imediatamente ao companheiro na tentativa de escalar as pernas de Angus. Foi então que ele viu que havia outra pessoa na sala, que se levantava lentamente de uma pequena mesa coberta com um pano verde e na qual havia dois baralhos e uma caixa de madeira.
Angus teve uma surpresa e no mesmo instante voltou a sentir-se tímido e reservado. Devia ser o Sr. Sam Berkowitz, de quem Stuart lhe havia falado. Angus ficou mais uma vez cheio de desconfiança e reticência. Era a primeira vez na vida que via um judeu e, do que havia sabido a respeito da raça hebraica, estava preparado para ver alguém que se parecesse muito com o Fagin da famosa história de Dickens.
Mas o garoto observou confusamente que aquele homem não era Fagin. Era um homem alto, muito magro e encurvado, com abundantes cabelos brancos, embora o rosto simpático e inteligente fosse ainda moço. Olhou para Angus, com timidez e reserva também, mas com um leve sorriso. Era evidente que o Sr. Berkowitz não ligava à elegância, pois as roupas enrugadas lhe caíam muito mal no corpo. Tinha nas mãos cartas que baralhava distraidamente.
—•Meu jovem primo, Angus —, disse Stuart displicentemente, indo até à lareira e esfregando as mãos. — Angus, este é o Sr. Berkowitz.
Sam inclinou levemente a cabeça e sorriu para o garoto.
— Muito prazer —, disse ele no seu sotaque carregado e olhou pensativamente para Angus.
— Muito prazer —, murmurou Angus.
Sentia-se de novo contrafeito e amedrontado. Mas o Padre Houlihan estava atiçando o fogo e puxou uma cadeira para perto do seu calor. Angus sentou-se, murmurando os seus agradecimentos. Os cachorros se interessaram de novo por ele e tentaram subir-lhe para o colo. Angus esqueceu o seu medo e ajudou-os. Os animais se ajeitaram nos seus joelhos e demonstraram efusivamente o seu entusiasmo. Angus começou a sorrir e abraçou-os enternecidamente. O Padre Houlihan foi até a mesa, onde Stuart já estava sentado, e sentou-se. Piscou o olho para Stuart. As costas largas da batina brilhavam à luz da lareira.
— Muito bem! — exclamou ele. — Quem é que acham que vai ganhar hoje?
— Quem sempre ganha —, disse Stuart, de cara fechada. — Não sei se sabe, mas há uma lei contra os trapaceiros. Eu poderia massacrá-lo que seria absolvido sem a menor dificuldade. — Bateu na caixa de madeira, em cujo alto se via uma abertura e a inscrição: "Para os Pobres". — Eu gostaria de saber quanto dinheiro você tira dessa caixa depois que Sam e eu saímos.
O Padre Houlihan deu uma gargalhada.
— Eu sei que, se você estivesse no meu lugar, seria muito capaz de fazer isso. Mas eu, não. Só abro a caixa uma vez por mês e dou tudo aos pobres. Da última vez, havia cento e noventa dólares.
Os três amigos tinham o costume de reunir-se ali às quartas e aos domingos à noite para jogar. Mas quem ganhava era obrigado a depositar nos domingos todos os seus lucros na caixa dos pobres.
— É uma coisa muito curiosa —, disse Stuart, enquanto baralhava as cartas e começava a dá-las —, mas você sempre ganha nas quartas-feiras, enquanto Sam e eu ganhamos invariavelmente nos domingos. Isso se deve às suas orações, não é mesmo?
— Deus sempre recompensa quem ajuda os pobres, rindo. — Olhou as cinco cartas que Stuart lhe tinha dado e deu um suspiro. — Você pode me acusar de trapaça, mas que é que eu vou dizer dessas cartas que você me deu?
— Nada, hem? — perguntou Stuart. — Nem um parzinho?
— De qualquer maneira, não dá para abrir —, disse o padre, largando as cartas em cima da mesa. Olhou para Stuart e para Sam, na expectativa.
— Eu abro —, disse Sam, colocando duas fichas azuis na mesa.
— Pois eu aumento para quatro —, disse Stuart, depois que o Padre Houlihan abanou a cabeça tristemente e largou as cartas com um gesto expressivo.
— Nós dois, como sempre —, resmungou Stuart. — Grundy está de fora, como sempre.
O Padre Houlihan descansou os braços gordos em cima da mesa e ficou apreciando a jogada com vivo interesse. Dentro em pouco, havia cinco dólares em fichas na mesa.
— Trinca de reis —, disse Stuart, mostrando o jogo.
— Ganhou, Stuart —, disse Sam, sorrindo e encolhendo os ombros.
Enquanto isso, Angus estava tomando conhecimento da abominação que se praticava a poucos passos dele, ao calor da lareira. Estava muito pálido e rígido com o choque. Os olhos estavam arregalados. Já não dava atenção às festas dos cachorros. Tinha razão então. Aquilo era mesmo um covil de iniquidade, em que Stuart, seu ímpio parente, violava o Dia do Senhor em companhia de um padre mau e perverso e de um judeu que, desde que nascera, fora lançado nas trevas exteriores. Sentia pena e terror por Stuart, que era tão inocente e tão bom que não percebia a natureza diabólica daqueles dois que o estavam arrastando para a perdição. Sentiu lágrimas nos olhos e teve vontade de implorar a Stuart que fugisse daquele lugar demoníaco antes que fosse tarde demais. A sua agitação era extrema a tal ponto que a boca lhe tremia e o terror mais completo lhe enchia os olhos.
Os cachorros sensíveis perceberam-lhe a emoção e ficaram parados a olhá-lo, ganindo baixinho. Afagou-os automaticamente e os animais se acomodaram.
"Vovô tinha razão", pensava Angus com o coração cheio de medo. Olhou para as costas rebrilhantes da batina do padre, para a base da grande calva vermelha e para o rosto misterioso de Sam com o seu sorriso calmo. Aqueles dois iriam devorar o pobre Stuart e arrastá-lo para o poço com eles. Angus apertou nas mãos a sua Bíblia como se fosse um talismã contra todas as artimanhas do demônio. Sentia as pernas frias e paralisadas. A boca e a garganta estavam ressecadas.
Stuart havia-o esquecido. Estava mergulhado no jogo com o rosto carrancudo e atento. De vez em quando, murmurava entre os dentes nomes feios.
— Que coisa! Não me vem um jogo que preste! — exclamou. Pegou de repente as cartas com que o padre tinha passado, olhou-as de má vontade e disse: — Não, suas cartas estão igualzinhas às minhas!
— Pensou que eu estava fugindo de propósito, hem? — perguntou o padre complacentemente.
— Não posso compreender! Como é que você só recebe boas cartas às quartas-feiras?
O padre sorriu e disse piedosamente:
— Deus protege os seus pobres...
Pouco depois, Stuart pediu uma carta e soltou uma exclamação. Sam largou as suas cartas.
— Um royal straight flushl — exclamou Stuart. — O primeiro que faço em minha vida, talvez o último e logo num domingo!
Os outros começaram a rir. O Padre Houlihan inclinou-se para ver o milagre. Depois, contou as fichas na mesa.
— Vinte dólares!
Mas Stuart estava fora de si, compreendendo toda a extensão da calamidade. Deu murros na mesa.
— Um royal straight flush! Pela primeira vez em mil anos! O que eu poderia fazer com esse dinheiro! E isso tinha de acontecer neste antro do vício num domingo, quando tenho de entregar tudo para a caixa dos pobres!
Sam e o padre davam gargalhadas com o furor de Stuart. Agarraram-se um ao outro, como se corressem o risco de cair das cadeiras. As lágrimas jorravam dos olhos do padre de tanto rir. Enxugou os olhos e abandonou-se a novos paroxismos. Até o judeu silencioso não se podia conter. Baixou a cabeça para a mesa e riu fracamente.
Stuart continuou a lamentar a sua sorte ou falta de sorte e, diante da alegria dos outros, a sua exasperação aumentava. Os cachorros começaram a latir. Pularam do colo de Angus e começaram a correr pela sala na maior agitação.
Só algum tempo depois foi que o jogo pôde prosseguir.

CAPÍTULO 22
Uma calma relativa prevaleceu durante algum tempo, embora de quando em quando Stuart se lamentasse e praguejasse. Nessa agitação, tinham todos esquecido o garoto calado e pálido que estendia para eles os olhos arregalados do seu canto ao pé da lareira.
Uma chuva miúda de primavera começou a cair, sussurrando nas vidraças. O fogo crepitava na lareira e a sua luz piscava além do guarda-fogo de cobre. Os cachorrinhos dormiam no tapete e resmungavam de vez em quando, em seus sonhos. Da lâmpada se derramava uma luz suave. A salinha confortável estava meio enevoada com a fumaça dos charutos de Stuart e do padre e do cachimbo de Sam. Numa das paredes, havia várias prateleiras de livros, cujas lombadas vermelhas e azuis estavam bojudas de tanto uso. Era tudo muito agradável e cheio de cordialidade e conforto para todos os que estavam na sala, exceto Angus.
Muito tempo havia passado, cheio do barulho da chuva, do fogo, dos resmungos dos cachorros, do bater das cartas e do tatalar das fichas, das pragas de Stuart e dos risos dos outros. Angus estava sentado havia uma hora num estado de tensão e rigidez, como num transe cataléptico, a segurar o Novo Testamento como se seus dedos fossem de ferro. Não afastava os olhos dos jogadores. As pálpebras lhe ardiam e estavam vermelhas da fumaça e da tensão. De quando em quando, o frio lhe inteiriçava o jovem corpo emaciado.
Por fim, a natureza veio em seu socorro com um protesto contra a constrição de seus músculos e ele foi forçado a relaxar o corpo. Dores agudas lhe percorreram os braços e as pernas. As costas pareciam distendidas. Contra a sua vontade, recostou-se no espaldar da confortável poltrona em que estava sentado, pela primeira vez. Mas o coração tremia e a cabeça latejava. A sua visão se nublou e ele fechou os olhos. Longas lágrimas lentas se lhe acumularam sob as pálpebras fechadas. Era pouco mais que uma sombra no fundo da poltrona, a mão lhe pendia vulneravelmente sobre o braço da poltrona e a sua palidez era a brancura da morte.
Não estava mais amedrontado. Não sabia ao certo quais eram as suas emoções. Sabia apenas que estava perdido e sozinho, mais sozinho do que de costume. Estava ainda terrivelmente cansado. O Novo Testamento permanecia fechado em seus joelhos. Mais uma hora passou.
Houve um rápido movimento à porta e Angus, quase adormecido em sua exaustão, teve um sobressalto. Uma senhora baixa e gorda estava entrando. Tinha cabelos prateados, duas romãs nas faces e um avental branco sobre a saia preta.
— Já querem jantar, pecadores? — exclamou ela.
— Um momento, O’Keefe —, disse Stuart, sem tirar os olhos das cartas.
Sam fez menção de levantar-se e cumprimentou cortesmente a senhora. O Padre Houlihan estava muito interessado no seu jogo e disse:
— Um momento, Sara. Não, Stuart. É você quem fala.
— Isto aqui está mais quente do que aquele lugar ruim —, disse a Sra. O’Keefe, tirando os óculos para limpá-los. — E nada de ar! Não sei como foi que ainda não ficaram sufocados!
Encaminhou-se para a janela e, quando passou por Angus, parou e olhou-o, muito espantada.
— E quem é que temos aqui?
Angus se levantou, embora todas as juntas lhe estalassem e doessem. Olhou-a, preparado para ficar de novo amedrontado, mas aquela senhora sorridente e de vivos olhos azuis nada tinha de alarmante. Retribuiu-lhe o sorriso e cumprimentou-a, com uma rápida inclinação de cabeça.
Stuart olhou por cima do ombro e encarou Angus como se ele fosse uma aparição. Esquecera o garoto por completo. Disse então:
— O’Keefe, este é Angus Cauder, filho de minha prima. Esta é a Sra. O’Keefe, Angus, irmã do Padre Houlihan.
A voz de Stuart parecia arrependida e contrafeita. Afastou uma madeixa de cabelos da testa banhada de suor.
— Ih! Estou com o corpo todo molhado de suor. Desculpe que eu tivesse deixado de lhe dar atenção todo esse tempo, Angus.
Mas Angus e a Sra. O’Keefe se estavam olhando em silêncio. Pobrezinho, pensava a mulher, é de comida que ele precisa e não é pouca. Deu umas palmadinhas carinhosas no braço magro. Virou a cabeça para o lado, fez um ar de censura e disse:
— Não é uma vergonha que ele tivesse deixado você aqui sozinho enquanto eu estava lá em cima, ansiosa por uma companhia? Deviam ter levado logo você para mim.
Angus tentou lembrar-se friamente de que estava diante de outra papista, condenada inevitavelmente a horríveis tormentos eternos. Mas não podia ser indiferente a tanta bondade e amabilidade.
— Muito obrigado, senhora. Não teve importância. Eu... eu estava descansando...
A Sra. O’Keefe respondeu rindo:
— Ora, Angus! Na sua idade, não se precisa de descansar e, sim, de rir e brincar.
O Padre Houlihan, sentindo-se culpado de não ter dado a atenção devida a um hóspede dentro de sua casa, ficou sem saber o que dizer para justificar-se. Tinha muito medo da irmã e respeitava-lhe a língua. Começou a pigarrear, mas a Sra. O’Keefe deixou-o firmemente de lado e disse a Angus:
— Não quer esticar as pernas um pouco e me ajudar a botar a mesa do jantar para esses pecadores?
Angus, numa agonia de renovada timidez, seguiu a Sra. O’Keefe até a cozinha mais alegre e mais simpática que já vira, toda de ladrilhos vermelhos e de cobres, de grandes janelas com bancos laterais cheios de vasos de flores e, encostado à parede, um grande fogão de onde a fumaça subia. Havia pratos de presunto cozido, de maçãs assadas, de carne fria, conservas, pão branco e cerveja fria.
— Meu amor, ponha a toalha na mesa e depois os guardanapos. O que tem a argola é do padre. O dobrado ao comprido é do Sr. Berkowitz e o dobrado ao quadrado, do Sr. Coleman. Eles gostariam de guardanapos limpos todas as vezes, mas isso é uma extravagância. Aqui, meu querido, este prato e este guardanapo são para você. E pensar que aqueles sujeitos não me falaram de você. Gosta de presunto?
— Gosto... Gosto muito, obrigado.
Angus deu um suspiro. O calor e a simpatia lhe invadiam os membros frios. Olhou para as costas do corpo grande e ativo da Sra. O’Keefe e, sem saber por que, a maneira pela qual o avental branco estava amarrado num grande laço de panos engomados lhe deu de novo vontade de chorar. Piscou os olhos através das lágrimas e disse quase num gemido:
— Eles jogam cartas assim todos os domingos, Sra. O’Keefe?
— Jogam, sim, esses excomungados —, disse ela com prazer. Mas alguma coisa na voz do garoto lhe chamou tardiamente a atenção e ela se voltou imediatamente, cravando nele os vivos olhos azuis. — Por que, meu filho?
Angus ficou muito vermelho e os pratos quase lhe caíram das mãos.
— Por nada. É apenas que na Escócia não fazemos essas coisas. O domingo é um dia de descanso...
— E é mesmo, Angus! Os pobres queridos estão descansando. — Olhou-o com simpatia cada vez maior e perguntou: — Você não gosta disso, não é?
— Não, não é isso... É que me parece estranho...
A Sra. O’Keefe observou-o durante algum tempo num bondoso silêncio. Disse então com uma voz gentil e maternal.
— Meu filho, há uma coisa que você deve aprender desde já. Só o que um homem tem dentro do coração é que é bom ou mau. Se a pessoa é ruim, perversa, mal-intencionada, cruel e egoísta, pode ir à igreja à vontade e rezar quanto quiser que isso não adianta nada. Nada mesmo. Essa é que é a verdade de Deus, meu filho.
Ela havia falado com muita energia e sinceridade. Angus olhava-a, piscando os olhos e tentando conciliar essas ideias com o que lhe haviam ensinado. Balbuciou:
— Acha então que eles são bons apesar de tudo e que Deus os perdoará por profanarem o Dia do Senhor?
— Profanaram o Dia do Senhor? Mas, meu Deus, não estão fazendo nada ao Dia do Senhor. Procuram apenas ser um pouco felizes. E foi para isso que Deus fez o domingo e os outros dias: para que fôssemos felizes. Acha, meu querido, que Deus quer que nos sintamos infelizes?
Angus olhou para ela. Uma expressão curiosa lhe passou pelo rosto e ele disse, quase incoerentemente:
— Sim, era o que pensava. Não sabia de nada disso antes, mas era o que eu pensava.
A Sra. O’Keefe, que era uma mulher impulsiva, aproximou-se dele, beijou-o carinhosamente e tomou-o nos braços gordos, tão reconfortantes e seguros. Ele se deixou ficar afastando os pratos e experimentando uma curiosa sensação de doçura e consolação. Foi inteiramente dominado por sua emoção sentimental. Eram os braços de sua avó Driscoll que sentia a envolverem-no com o mesmo cheiro nostálgico de carne limpa e macia, maternal e substancial, ajuda nos momentos difíceis, ternura nas horas de aflição. Era tão apaixonada a sua fome de amor que quase não pôde suportar a emoção que lhe crescia no peito.
Levou os pratos e voltou prontamente à cozinha. Viu a Sra. O’Keefe cortar um bolo em fatias e perguntou:
— Os católicos odeiam os protestantes, Sra. O’Keefe?
Ela olhou para ele e sorriu:
— Não tenho dúvida de que há muitos que odeiam. E há protestantes que odeiam os católicos. É sempre assim com gente que não tem juízo. Sentem-se na obrigação de odiar alguma coisa. Talvez seja o pecado original, não sei. É uma dessas coisas que a gente tem de aceitar no mundo, como aceita a doença, as aflições, os desastres e a morte.
O espírito de Angus estava em confusão. Aproximou-se da Sra. O’Keefe e esta, compreendendo a angustiosa necessidade do garoto, parou o que estava fazendo e olhou-o com compassiva gentileza. Sabia do tumulto que lavrava naquele pobre coração despreparado e agradeceu humildemente a oportunidade que lhe era dada de aliviá-lo de certo modo.
— Tenho ouvido tantas coisas, sabe? — murmurou ele timidamente. — Tudo me parecia tão simples. Os bons de um lado, os maus do outro...
— E o lado dos bons era naturalmente o lado de seu papai, de sua mamãe, de seu avô, da Inglaterra também e de sua igreja, não era?
— Bem, de certo modo, sim —, disse ele, lutando com as palavras como se fossem objetos estranhos. — Nunca me pareceu necessário fazer perguntas sobre isso. É muito difícil fazer perguntas e muito triste também porque pode acontecer que nosso lado não esteja certo e se possa dizer alguma coisa de bom sobre o outro lado também. Mas isso faz com que as coisas deixem de ser simples e eu gosto de tudo bem simples, sabe?
Olhou para ela com desesperada intensidade e disse:
— Tenho lido os livros também, Sra. O’Keefe, e sei como os católicos queimaram e enforcaram os protestantes, sei do massacre da Noite de S. Bartolomeu e das perseguições aos huguenotes na França. Como... o Reverendo Houlihan explica isso? Essas coisas não são mentiras. É o que Filipe da Espanha fez aos holandeses, com o apoio dos padres.
A Sra. O’Keefe tomou a mão magra de Angus e disse em voz pausada e com o rosto muito grave:
— Pode ser verdade o que você diz, meu filho. Mas os protestantes fizeram o mesmo aos católicos, sabe? Fizeram isso também uns com os outros, na sua ignorância e na sua loucura. Que é que o Padre diz? Ele sabe de todas essas coisas, de tudo o que a Igreja fez e os seus cruéis padres. Mas os padres eram humanos. Não eram melhores do que os outros homens, apesar de todos os seus paramentos. O Padre sabe de tudo isso mas tem fé não apenas em Deus, mas também na humanidade, sabendo que um dia toda ela será boa e cheia de amor e misericórdia. Ainda na semana passada, ele disse a nosso querido Stuart: "Já me têm perguntado por que sou sacerdote numa igreja que tem uma história tão triste de sangue, perseguição e intolerância. Agora, eu lhe pergunto: por que você pertence ao Partido Republicano e é agora cidadão dos Estados Unidos? Será que o Partido Republicano não tem defeitos? Estarão as mãos dos Estados Unidos limpas de agressão, de conquista, de guerra e de outras coisas horríveis? Se um homem não ingressar num partido, numa igreja ou num país porque encontra nesses grupos qualquer defeito ou mancha, ficará fora deles e sozinho no mundo! Não, não podemos ser tão loucos a esse ponto. O que nos cabe é auxiliar o bem e combater o mal. Graças à nossa fé e aos nossos atos quotidianos, poderemos tornar a história mais branda e concorrer para a libertação da humanidade nas idades futuras".
Angus tinha ouvido, fitando os olhos ternos da boa mulher. A sua mão se aqueceu pouco a pouco na dela. Ficaram assim durante vários momentos, sorrindo um para o outro.
Por fim, Angus murmurou:
— Padre... Houlihan é um homem muito bom. Estou contente de que Stuart me tenha trazido aqui esta noite. Estou muito contente de conhecê-la também, Sra. O’Keefe.
Uma expressão de paz e de serenidade se mostrou no rosto do pobre rapaz. Tornou a sorrir e deu um suspiro. Carregou os pratos de comida para a outra sala, movendo-se como dentro de um sonho. A Sra. O’Keefe olhava-o com lágrimas nos olhos.
Stuart estava depositando de má vontade tudo o que ganhara na caixa dos pobres, fazendo amargos protestos. Mas, além do dinheiro que ganhara, depositou furtivamente algumas moedas de ouro. Disse então:
— Grundy, fique sabendo que um dia vou fiscalizar o que você faz desse dinheiro. Ninguém me tira da cabeça que tudo vai acabar é em sua algibeira.
— Deixe de reclamar, ouviu? — replicou o padre. — É bem possível que sua sorte indecente se repita na próxima quarta-feira, meu caro Stuart, e que você venha a fazer outro royal.
Todos se sentaram então para comer à luz da lareira. O fogo cintilava sobre as pratas e sobre a alvura da toalha. Sam Berkowitz serviu-se de algumas fatias de carne fria. O Padre Houlihan piscou o olho para Stuart e disse a Sam:
— Por que você é tão intolerante, meu caro Sam? Por que não prova este delicioso presunto que Sara preparou com tanto gosto para nós?
Sam sorriu e uma expressão de sombrio humor se lhe espalhou no rosto.
— Vou deixar de ser intolerante, Padre. Na próxima sexta-feira da Quaresma, virei comer um bom prato de presunto em sua companhia.
O Padre Houlihan riu desesperadamente, batendo com o garfo na mesa.
— Ganhou, Sam! Mas, se quiser mesmo, venha, que eu conseguirei uma dispensa especial. Vale bem a pena!
A conversa continuou animada, às vezes acalorada, às vezes até violenta, ora pontilhada de gargalhadas, ora solene e séria. Angus a tudo escutava numa espécie de entorpecimento. Havia entrado numa terra estranha e quente, que era assombrosa, mas sumamente reconfortante. Viu os três homens e a Sra. O’Keefe tomarem cerveja e isso não lhe pareceu mais monstruoso numa noite de domingo, mas natural e inocente. Ouviu as discussões políticas e, quando começaram a falar da escravidão, parou de comer para prestar atenção.
O Padre Houlihan disse, apontando o talher para Stuart, que acabara de discordar violentamente dele:
— Vou-lhe dizer uma coisa, Stuart. Vamos ter uma terrível guerra em torno dessa questão. Sei disso como se já estivesse vendo. Nada pode impedi-lo. Os homens estão muito exaltados e muito violentos. Há grandes interesses no Norte que não podem competir nos mercados de trabalho contra o Sul, com o seu trabalho escravo. A causa da abolição é sagrada. Depois que a guerra for travada, não como uma cruzada santa, como o povo acreditará, mas por motivos econômicos, a escravidão será abolida. Graças à cobiça dos homens, uma grande injustiça será corrigida. Tenho de discordar das Escrituras Sagradas nesse ponto. Um espinheiro pode às vezes dar bom fruto e as pedras podem transformar-se em pão.
— Ainda não creio que cheguemos a lutar por causa dos negros —, disse Stuart, pensando de novo, com pesar, que poderia ter ganho uma fortuna no movimento subterrâneo de fuga de escravos para o Canadá. — Eu, da minha parte, sei que não vou lutar para libertar os negros. Tenho mais o que fazer.
O Padre Houlihan sacudiu a cabeça sorrindo e disse:
— Duvido muito que possa resistir a uma luta, meu caro.
O rosto de Stuart mostrou então uma expressão estranha. Olhou furtivamente para Sam. Alguma coisa o vinha afligindo ultimamente. Disse então jovialmente:
— Por falar nisso, Sam, esqueci-me de lhe dizer uma coisa que vai interessar-lhe muito.
Sam olhou para ele meio desconfiado. Quando Stuart assumia esse ar de jovialidade, de despreocupação, havia alguma artimanha em marcha.
— Que é que há desta vez, Stuart? — perguntou ele, inquieto.
— Já vi que está desconfiado, Sam —, disse Stuart, franzindo a testa.
— E não é só ele —, disse sorrindo o Padre Houlihan. — Eu também estou desconfiado. Como vê, Stuart, você não consegue enganar seus velhos amigos.
Stuart recostou-se na cadeira e correu os olhos pela mesa com um ar de exasperação.
— Nunca vi amigos que tivessem tão pouca fé num homem! Parece que o melhor é não dizer nada a ninguém.
Mas Sam estava perturbado e disse:
— Pode falar, Stuart.
— Ora, não é nada demais! Apenas uma chance para um excelente negócio. Você bem sabe, Sam, que fui eu que tive a ideia de anunciar em todo o país que estávamos dispostos a comprar grandes partidas de mercadorias recusadas pelos retalhistas por um motivo ou outro, inclusive de massas falidas. Você mesmo reconheceu que foi uma excelente ideia. Foi assim que conseguimos aquela partida de porcelana recusada em Utica e que nos deu ótimos lucros. Pagamos à vista e conseguimos as mercadorias quase de graça. A notícia naturalmente se espalhou e há muita inveja entre os retalhistas por não terem pensado nisso antes. Mas estão corrigindo os seus erros agora que mostramos o caminho.
— Sim, sei disso muito bem. Continue, Stuart —, disse Sam, ao mesmo tempo que o Padre Houlihan escutava com toda a atenção.
Stuart tinha começado a falar rapidamente e com uma ponta de irritação.
— Ora, embora tenhamos constantemente maior número de imitadores, ainda estamos à frente de todos os outros. Oferecemos bons preços. Nossos anúncios são mais bem redigidos e atraem mais ofertas de carregamentos recusados ou sobras do estoque. Os outros têm fé em nós.
"Ora, há três dias, fui procurado em casa por um homem. Duas semanas antes, eu tinha recebido uma carta de um fabricante de armas e pólvora num lugar da Pensilvânia chamado Windsor. Nessa carta, solicitavam-me que eu recebesse um dos sócios da firma, um tal Raoul Bouchard, que queria tratar comigo de um assunto confidencial e muito importante. Pensei então: "Que é que eu tenho com essa firma chamada Barbour & Bouchard?" É verdade que vendemos pólvora, fuzis e outras armas de fogo quando podemos comprar esses artigos em grandes quantidades e vendê-los por um preço compensador. Mas por que uma firma que fabrica esses artigos poderia ter um assunto confidencial e importante a discutir comigo, isto é, conosco? Eu sabia que eles fabricavam um excelente tipo de armas chamado de "Sessions". Lembra-se, Sam? Nós compramos uma partida dessas armas remetida para uma firma que faliu em Syracuse. A mercadoria era ótima e nós a vendemos com um bom lucro. Mas nada disso explicava por que esse tal Bouchard queria falar comigo debaixo de tanto segredo.
Sam nada disse. As compridas mãos estavam pousadas na mesa, entrelaçadas. Os olhos castanhos estavam apertados e receosos. Stuart evitava olhar diretamente para de.
— Como disse, o tal Bouchard me procurou em casa há três dias. Era um francês todo risonho, de cabelos pretos frisados e olhos buliçosos como os de um demônio feliz. Trazia uma carta do presidente da firma, um tal Ernest Barbour. Ele me fez prometer que o assunto de que íamos tratar não seria discutido fora de nossa firma. Fiz naturalmente a promessa e a estou cumprindo.
O Padre Houlihan não pôde deixar de sorrir, mas nada disse. Depois, a sua expressão voltou a ser grave e pensativa.
— Bem —, continuou Stuart —, o Sr. Bouchard me fez uma proposta muito interessante. De acordo com ela, devo anunciar discretamente a compra de grandes partidas de fuzis de qualquer espécie e adquiri-los até o máximo de dez mil fuzis.
— Dez mil fuzis! — exclamou Sam. — Para que esse cavalheiro precisa de dez mil fuzis? E por que não os fabrica ele mesmo, já que o produto dele é tão bom?
Stuart ficou confuso e murmurou:
— Como é que vou saber? Talvez ele queira dispor imediatamente de uma boa porção de fuzis baratos para vender a baixo preço e, como a firma dele tem um certo prestígio, não quer que esse artigo inferior tenha a sua marca. Deve ser para proteger também esse prestígio que ele não quer anunciar por si mesmo, nem aparecer nessa transação. Ninguém deve saber, segundo me disse, que Barbour & Bouchard estão envolvidos nisso.
Sam e o padre trocaram um longo olhar aflito. Sam disse então:
— Esse tal Bouchard lhe disse todas essas coisas com toda essa franqueza?
— Claro que sim! Que importância tem isso? Querem esses fuzis, comprados discretamente. Querem que eu remeta as armas, depois da compra, para uma certa cidade da fronteira no Kentucky, não em grandes quantidades, mas em pequenas partidas. Deram-me um certo nome. Sempre que comprar os fuzis, devo dar instruções para a remessa para essa cidade e pagar à vista. É claro que eu nem verei os fuzis, que jamais chegarão a Grandeville. Minha parte é a publicidade, a compra e a remessa. Só.
Bateu no bolso e continuou:
— Tenho aqui o nome do homem e do depósito para onde os fuzis têm de ser mandados. O nome do homem me é completamente desconhecido. Tudo é muito confidencial. E eu devo receber exatamente o dobro do preço dos fuzis como meu lucro.
Mas Sam estava olhando alarmado para o Padre Houlihan e disse:
— Dez mil fuzis remetidos a um homem desconhecido numa cidade obscura do Sul. Por quê? Isso é que eu quero saber!
— Mas, meu Deus —, disse Stuart batendo com o punho na mesa —, não acha que os sulistas precisam de fuzis para caçar e para outras coisas?
Mas Sam não se deixou intimidar. Olhou diretamente para Stuart e disse:
— Por que então Barbour & Bouchard não podiam comprar diretamente esses fuzis ou fabricá-los, o que seria ainda mais barato, embolsando os lucros? Tenho conhecimento dessa firma e sei que a produção deles é muito grande. Mas reconheço que podem ter necessidade imediata desses fuzis.
— É isso naturalmente —, murmurou Stuart
— Por que então o segredo, a confidência, a necessidade de que o nome deles não apareça?
— Isso eu não sei e, na verdade, não me interessa. Só estou interessado é nos lucros!
— Segredo, armas, remessas obscuras. Isso não me agrada nada. Não gosto desses Barbour & Bouchard. São homens maus. Cheiram mal a léguas de distância. Dez mil fuzis expedidos debaixo do mais profundo segredo. Tudo isso é muito suspeito e creio que posso dizer por quê.
Stuart arrependeu-se, como de costume, de ter falado demais. Disse então:
— Não temos nada com isso. Nossa participação é apenas anunciar, comprar e remeter.
Mas Sam não lhe deu atenção e disse ao padre:
— Não faz nem três semanas que li nos jornais que essa firma recebeu uma encomenda do Governo Federal de vinte e cinco mil fuzis novos, que devem ser fabricados imediatamente. É evidente que eles não desejam esses dez mil fuzis para o governo dos Estados Unidos. Desejam todo o segredo e querem que esses fuzis sejam mandados para uma cidade do Sul. Qual é a conclusão que tira de tudo isso, meu caro amigo?
— A evidente, meu caro Sam —, disse o padre, visivelmente aflito. Voltou-se para Stuart e perguntou: — Compreende tudo, não é mesmo, meu filho?
— Não! — exclamou Stuart violentamente. — Não uso minha imaginação! Aceito o que os outros me dizem e não me ponho a bisbilhotar o que não é de minha conta!
— Não vê então, meu Stuart? Esses homens não podem envolver-se pessoalmente nisso. Negariam a pé firme qualquer participação no caso de uma investigação do governo. O perigo será seu juntamente com os lucros. Se você, na hora do perigo, declarar que eles foram os instigadores e que você recebeu deles uma visita e uma proposta, dirão que só entraram em contato com você como retalhista, para vender os produtos deles. Têm poder e prestígio e eles é que mereceriam crédito e não você.
Stuart ficou momentaneamente convencido. Mas disse com voz pausada:
— Preciso desse dinheiro. Preciso desses lucros. E vou fazer esse negócio.
— Sou seu sócio —, disse Sam com voz forte. — E não vou concordar com isso.
— Empregarei então meu dinheiro! Tomarei dinheiro emprestado! Sei onde posso tomar dinheiro com facilidade!
O rosto dele estava congestionado e Stuart correu os olhos pelos amigos como se os desafiasse.
— Vai servir de instrumento ao crime, à guerra fratricida? — perguntou severamente o padre.
Stuart sorriu sombriamente para ele. Estava ofegante.
— Não disse que a causa da Abolição era sagrada? Pois estou disposto a ajudar tão nobre causa!
O padre estava muito pálido e disse com os olhos muito sérios:
— Ajudar o Sul a armar-se não é servir a uma causa sagrada.
Sam não era homem de muito falar. Era muito raro que discutisse os negócios das lojas a não ser com Stuart. Mas estava tão alarmado que não se pôde mais conter. Disse então numa voz que o próprio Stuart nunca tinha ouvido:
— Você fala de sua necessidade de dinheiro, Stuart. Sei que você precisa de dinheiro... nunca deixa de precisar. Você não se conforma em viver modestamente até conseguir uma fortuna. Você vive imprudentemente dia a dia. Quando os homens são imprudentes, precisam de muito dinheiro e o conseguem, sofra quem sofrer. Não é a cobiça que o faz desejar isso; é a necessidade. Muito tenho recomendado que economize, que guarde o seu dinheiro até poder gastá-lo do jeito que lhe agrade. Mas você não me ouve. Os homens são impelidos a coisas reprováveis pela necessidade, pela extravagância.
— Você está mesmo decidido a fazer isso? — perguntou o Padre Houlihan com grande ansiedade. — Seria para mim intolerável se eu pensasse que o que você tem feito por mim fez você contrair tantas dívidas que agora é forçado a empenhar-se em atividades reprováveis para recuperar seus prejuízos.
O irrequieto Stuart se comoveu com essa simples aflição. Apertou a mão do padre e disse, deixando de lado Sam e suas observações desagradáveis:
— Não se preocupe, Grundy. O que fiz por você me custou muito pouco. Não, preciso de muito dinheiro, preciso sempre! E não vou esperar até ficar entrevado e murcho como o velho patife que é Allstairs para comprar aquilo que desejo. Pode ser que então eu não deseje mais nada. Sinceramente, estou em dificuldades. Vejo um meio de ganhar um bom dinheiro. Seria um louco se recusasse. Se eu recusar a proposta, outros vão agarrá-la. Recusando, terei apenas a consciência limpa e consciência limpa nunca pagou hipotecas, nunca serviu para comprar um homem ou uma mulher, nunca preparou uma casa e nunca sequer comprou pão.
Sam nada disse. Sacudiu a cabeça de um lado para outro, cheio de tristeza e de medo. Stuart, recuperando o seu bom humor, brincou com ele.
— Posso contar com você para me pagar a fiança e me tirar da prisão, Sam? Na pior das hipóteses, levará ao infeliz prisioneiro uma cesta com frutas e talvez uma serra e um bom pedaço de corda?
O rosto simpático de Stuart estava muito vermelho. Todos tinham esquecido Angus, que a tudo ouvia cheio de espanto e medo. A Sra. O’Keefe, sem dar atenção à discussão entre os homens, continuava a encher os copos e tinha dado a Stuart o copo de uísque sempre reclamado por ele.
Sam e o padre olhavam Stuart em silêncio. Gostavam muito dele e viam-no como uma criança irrefletida e não como uma pessoa fundamentalmente má. Se ele fosse naturalmente ruim e predatório, não seria amigo deles, nem o prezariam tanto. Julgavam-no um menino perpétuo, imaturo e violento, que tinha de ser protegido de seus próprios atos impensados.
— Ficarei rezando para que você não faça isso, para bem de sua alma —, disse afinal o Padre Houlihan numa voz cansada.
Stuart deu uma gargalhada.
— Minha alma? Ora, eu não tenho alma. Mas, de qualquer maneira, eu lhe agradeço, Grundy. Se eu sentir alguma coisa dentro do peito, correrei imediatamente para você a gritar: Eureka!
Foi então que tomou conhecimento da presença de Angus, que o olhava, imerso em angústia.
— Já está pronto, Angus? Daqui a pouco iremos saindo. Já é tarde e sua cara mamãe deve estar preocupada.
— Conversaremos sobre tudo isso, amanhã —, disse Sam.
— Não adianta, Sam. Já aceitei e já comecei a gastar o adiantamento que me deram. Está fechada a transação.
Com esforço e com um rosto triste que tentava sorrir, o Padre Houlihan olhou gentilmente para o pálido Angus.
— Quer então ser médico, meu filho? Por quê?
Angus olhou-o ansiosamente e disse:
— Foi sempre minha vontade... Padre Houlihan. É tão terrível ver os outros sofrerem. Creia que não penso em ganhar dinheiro. Só quero é ajudar os outros, encontrar cura para as doenças e aliviar a dor.
Stuart deu uma gargalhada zombeteira.
— Não foi você mesmo que há poucos dias tentou convencer-me de que o dinheiro era tudo na vida?
— Se eu não puder ser médico, vou precisar de muito dinheiro,•— disse Angus com simplicidade. — Mas, se eu for médico, não vou precisar de dinheiro.
Stuart riu ainda mais. Mas o padre olhou para o garoto com grave intensidade e disse:
— Compreendo perfeitamente. Quando um homem não pode ter a sua alma, precisa de dinheiro.
E, nas profundezas de seu coração, fez uma prece.
— Que sofisma danado! — exclamou Stuart. — Palavra que não posso acompanhar o raciocínio do garoto.
Mas o padre pôs a mão firmemente no ombro de Angus e disse a Stuart:
— Muito lhe será perdoado, meu filho, se você proteger este menino e lhe der a oportunidade de ser médico.
— Isso compete à mãe dele, Grundy. E eu tenho a impressão de que ela não me deixará interferir. Além disso, ser médico para quê? Não se ganha dinheiro com isso. E segundo ele mesmo me disse, o que esse pequeno escocês quer é dinheiro!
Mas o padre insistiu:
— Você vai ajudá-lo, Stuart? Quero que assuma esse compromisso comigo!
— Não me dê mais compromissos! Já tenho compromissos de sobra! Farei o que puder. Mas tudo isso não tem pé nem cabeça.
Apontou para Sam, com quem estava aborrecido, e disse:
— Veja Sam. Economiza todos os centavos. Para quê?
Sam levantou a cabeça e disse, olhando diretamente para ele:
— Você bem sabe que eu desejo comprar a Ilha do Rio para meu povo, Stuart. Sempre acreditei que a América foi a Terra da Promissão que Moisés viu do alto da montanha, para todos os homens sofredores, perseguidos e oprimidos. Creio que ele a viu através dos oceanos e através do tempo. Trago esse sonho dentro do meu coração, Stuart, e tenho de fazer tudo para torná-lo realidade.
Stuart riu, talvez um pouco alto demais.
— E aqui estamos nós três! Você, Sam, é dedicado a seu sonho, Grundy a seu Deus e eu, a minha casa. No fundo, vem tudo dar no mesmo!
— Deus abençoou esta terra —, disse Sam. — É maior do que qualquer outra terra, pois tem o seu sonho. Nada pode destruir um homem ou uma nação quando há um sonho.
Stuart sorriu contrafeito. O Padre Houlihan sorriu com apaixonada ternura. Angus escutara, com o coração a bater da maneira mais estranha.

CAPÍTULO 23
Stuart olhou sombriamente para Joshua Allstairs. O coração dele estava atacado de uma fria raiva.
— Que é que quer mais? — perguntou com voz contida. — Já lhe paguei seus dez mil dólares. Tenho um contrato que me renderá no mínimo trinta mil dólares, pelo qual já recebi substancial adiantamento.
"Minhas lojas estão em situação próspera. Tenho planos de expansão que começarei a executar neste verão. Dentro em breve, dominarei todo o comércio retalhista em Grandeville. Dentro de alguns meses, um ramal da estrada de ferro chegará a esta cidade. Quando isso acontecer, poderei fazer as compras com mais rapidez e ampliar o campo de meus negócios. Não há nada que me possa deter. Tenho a melhor casa de Grandeville, de que a Srta. Marvina terá orgulho em ser a dona. Terei uma boa fortuna no mais breve tempo possível.
Joshua sorriu. Aquilo lhe era imensamente agradável. Juntou as pontas dos dedos descarnados e olhou Stuart com perversa benignidade.
— Meus antecedentes —, continuou Stuart —, são no mínimo tão bons quanto os seus. Já conhece minha prima, a Sra. Cauder, que é uma senhora de fortuna. Ouviu dela mesma a história de alguns de nossos parentes, como Lady Vere de Vere e Sir Angus Fraser. Há nomes assim em sua árvore genealógica? Que mais quer?
Joshua deu um suspiro, mas continuou a sorrir sob o seu nariz de abutre.
— Stuart —, disse ele com fingida suavidade —, ainda que você pertencesse à Casa Real da Inglaterra, ainda que fosse milionário, eu continuaria a negar a mão de minha filha a um irlandês vagabundo.
"E você é um vagabundo, meu caro Stuart, e sabe muito bem disso. Você não tem fé, nem religião. Você é ímpio e blasfemo. Deus é uma palavra que nada representa para você. É também um bêbedo e um homem que aprecia a companhia de meretrizes. Seus maiores amigos são um judeu e um padre negro. Você não é aceito na melhor sociedade por esses e muitos outros motivos. Você não é nem honesto. Tenho conhecimento de muitas das suas transações. Você não tem escrúpulos...
Stuart esqueceu que era um suplicante e que era de seu interesse aplacar aquele sujo patife. Levantou-se impetuosamente e exclamou:
— E você é um dono de tavernas, dono de bordéis, usurário, explorador e ladrão! É assim que ganha o seu imundo dinheiro e mais de fábricas de bebidas, que diz hipocritamente detestar! Você rouba os miseráveis escravos que fogem para o Canadá! Você tem financiado as coisas mais nefandas! Tenho feito algumas coisas sujas, não nego, mas nunca explorei o corpo de uma mulher, nunca roubei um escravo faminto e nunca explorei a miséria de fazendeiros arruinados!
"Você é um canalha imundo! — continuou a gritar, enquanto Joshua se encolhia na sua cadeira. — Canalha desprezível e monstruoso! Explorador de mulheres e de bêbedos! E tem a audácia de me censurar com essa cara de santo como se suas mãos fossem limpas e o seu corpo entrevado estivesse puro como a neve!
— Você é mesmo um irlandês desprezível! — disse Joshua com a mão no cordão da campainha e o rosto mortalmente pálido. Vem-me insultar dentro de minha casa só porque recuso a mão de minha filha! Saia, saia antes que eu chame a polícia!
Mas Stuart estava exaltado demais para ligar a isso. Continuou diante de Joshua com os punhos cerrados e os olhos esbugalhados.
— Não há ninguém nesta cidade que não saiba de todas as suas sujeiras e não o odeie por isso! Você é uma abominação! Chamou-me de blasfemo. Mas toda a palavra que lhe sai da boca é uma blasfêmia, patife hipócrita!
"Escute aqui, se eu fosse menos homem do que sou e mais parecido com você, trataria de seduzir sua filha em vez de vir procurá-lo decentemente e pedir-lhe a mão. E ainda não sei se não é isso o que vou fazer para lhe servir de lição, seu porco! Acha que sinto muita alegria quando penso que meus filhos podem sair como você, com seu sangue nas veias? Ou que uma filha minha seja uma vagabunda, com a alma igual à sua?
Joshua puxou a corda da campainha com tanta violência que ela se partiu em suas mãos. Mas o mordomo, um homem alto e magro com um sorriso servil, apareceu à porta. Joshua o viu com alívio, pois tremia dos pés à cabeça.
— Mostre a esse cachorro a porta da rua! E nunca mais o deixe entrar aqui!
Stuart deu uma gargalhada feroz.
— Entrar aqui, neste antro de um ladrão? Nesta antecâmara dos bordéis? Neste poço de serpentes de um usurário? Mas não pense que está tudo encerrado entre nós! Ainda temos contas a ajustar!
Fortalecido pela presença do mordomo e pelo seu ódio, Joshua gritou:
— Ainda nos veremos nos tribunais, quando eu requerer a sua falência, cachorro!
Stuart se acalmou de repente. A raiva desapareceu, deixando-o apenas com o riso e o desprezo.
— Isso é mais fácil de dizer do que de fazer, por mais ladrão que você seja. Ainda há juízes neste país. A história ainda não está acabada. Isto é apenas um capítulo.
Olhou para Joshua como se ele fosse uma obscenidade intolerável e saiu num repelão, arrogante e exultante com a sua mocidade, a sua saúde e o seu desprezo. A raiva o embriagava como se fosse uísque. Nunca se sentira tão enérgico e invulnerável. O mordomo, ainda com um sorriso profissional, acompanhou-o até ao hall espectral, iluminado por uma luz pálida, O homem deu a Stuart o chapéu, a bengala e as luvas, fazendo uma reverência constrangida.
Havia alguma coisa na maneira de ser do homem que fez Stuart parar e olhá-lo atentamente. Estava mais calmo, embora suas emoções ainda estivessem exacerbadas. Lembrou-se de que os ladrões são sempre dedicados aos seus patrões muito mais do que um homem decente poderia ser a um patrão honesto. Aquele mordomo estava sem dúvida dentro da tradição. Entretanto, desde que nada tinha a perder, Stuart resolveu ver se conseguia transpor as defesas do homem.
Olhou rapidamente para a porta da sala onde ficara Joshua. Voltou-se então para o mordomo que continuava a olhá-lo com o seu sorriso permanente. Os seus olhos, encarando os de Stuart, exprimiam um vigilante interesse. Embora o julgasse detestável, Stuart se aproximou dele e disse em voz baixa:
— Estou todas as noites em casa às dez horas até o fim desta semana.
O homem nada disse. Cumprimentou de novo e abriu a porta. Stuart saiu para o ar frio da manhã de maio e olhou para trás. A porta fora prontamente fechada.
Nesse momento, a sua segurança desapareceu de súbito. Saiu pela rua no seu passo firme habitual, mas estava mais calmo. Os vapores da cólera e do triunfo começaram a abandoná-lo. Havia anos que ele desejava dizer umas coisas a Joshua Allstairs. O ódio que lhe tinha era como um veneno em seu sangue. Aquilo tinha sido uma libertação. Entretanto, sentia-se consideravelmente deprimido.
Refletiu, porém, que, se tivesse continuado a tratar Joshua com todo o respeito e deferência, ganharia com isso apenas novos insultos untuosos e benignos. De qualquer maneira, o velho não lhe teria cedido a filha. As respeitosas importunações de Stuart, as suas súplicas contidas só serviriam para provocar a malignidade do velho, que se regozijaria com as humilhações impostas. Sendo assim, Stuart nada perdera e livrara o organismo de uma considerável carga de veneno.
A sua depressão era muito grande. Mas a efervescência natural de seu espírito não o deixaria ainda dessa vez cair muito. Dirigiu-se para as lojas e ao tempo em que lá chegou sorria de novo e cumprimentava as senhoras com o máximo de deferência e afabilidade. As freguesas adoravam-no, condescendiam em tudo com ele e até as mais velhas olhavam-lhe os ombros largos e a cintura delgada com pensativo enternecimento.
Mas Sam Berkowitz, sutil e sensível como sempre, logo percebeu que havia alguma coisa fora dos eixos em Stuart apesar das suas conversas e amabilidades com as freguesas. Stuart costumava dizer que não podia guardar segredos do amigo, que devia ser um feiticeiro e saber tudo por artes mágicas. De qualquer maneira, Sam observou atentamente Stuart e, ao fim de algum tempo, ficou mais tranquilizado. Não era dinheiro evidentemente dessa vez. Quando precisava de dinheiro ou estava em dificuldades financeiras depois de alguma terrível extravagância, Stuart ficava com uma expressão irritadiça e preocupada e se mostrava apressado, um tanto brusco e confuso. Naquele dia, não estava mostrando nenhum desses sintomas. Apesar disso, parecia estar pensando profundamente. Estava inquieto e franzia os lábios de maneira muito significativa. Estava fazendo planos sem dúvida, pensou Sam, mais ou menos tranquilizado. Mas, se não era dinheiro, que podia ser?
Não sendo dinheiro, só podia ser mulher. Só dinheiro e mulheres podiam desviar a atenção de Stuart de suas amadas lojas. De repente, Sam compreendeu. Stuart devia ter ido pedir a mão de Marvina Allstairs em casamento e fora recusado. A tranquilidade de Sam aumentou notavelmente. Tinha sido uma boa coisa, uma coisa muito boa, graças a Deus!
Às cinco horas daquela tarde, Janie apareceu luxuosamente vestida e na melhor carruagem de Stuart. Entrou majestosamente na loja principal, toda vestida em veludo lilás e em arminho. Ao vê-la, o rosto de Stuart ficou vermelho, mas ele se aproximou gentilmente e conduziu a prima a uma cadeira vazia. As poucas senhoras que estavam naquela ocasião na loja cumprimentaram com a cabeça a viúva e lhe sorriram. Até então, Janie tinha sido um grande sucesso social e conseguira as boas graças até das pessoas para quem Stuart não era favorito e que só com relutância o aceitavam. A meiguice, a amabilidade de Janie, sua proclamada gratidão pela bondade dos novos amigos que vinha encontrar em "terra estranha", a sua admiração por tudo, a sua conversa fascinante e a sua cuidadosa dicção tinham impressionado a todos muito favoravelmente. Além disso, era evidente que ela era uma senhora rica, dona de joias notáveis e com o mais elegante ar europeu.
Sam tinha ido para o escritório dos fundos da loja a fim de começar a fazer a escrita do dia. Ficou surpreso quando viu Stuart entrar de repente, fechar a porta e dizer no maior nervosismo:
— Escute aqui, você tem de ir até a loja e me dizer diante de Janie que eu não me posso esquecer de nosso jantar desta noite.
— Mas nós não vamos jantar juntos —, disse Sam.
— Quem foi que disse que vamos? Mas não estou com nenhuma disposição de jantar sozinho com Janie esta noite. Se jantar, ela vai querer complemento e eu estou num estado que não posso tolerar isso. Sua mãe poderá preparar alguma coisa para mim, se eu aparecer por lá. Se você achar que não, irei para alguma taverna.
— Compreendo —, murmurou Sam, pensativamente.
Era uma coisa triste Stuart viver sempre envolvido com mulheres. Sam ainda se lembrava de uma senhora casada de pouco juízo que durante vários meses aparecera na loja todos os dias só para ver Stuart e das cenas aflitivas que tinha havido a portas fechadas ali naquele mesmo escritório.
Stuart saiu do escritório para atender as freguesas que rareavam pois já se ia aproximando a hora do jantar. Janie o esperava calmamente, cheia de modéstia e compostura. Ele quase não olhava para ela e desenvolvia toda a sua gentileza junto às freguesas retardatárias. Janie sorria e de vez em quando mordia os lábios para avivar-lhes a cor. A porta do escritório permanecia fechada, embora Stuart com frequência lançasse para lá olhares furiosos. A última freguesa se preparava para sair. Os caixeiros dobravam as peças de seda e veludo e conversavam, descansando de um dia de árduo trabalho.
Stuart levou a última senhora até à carruagem e ainda se demorou um pouco em conversa com ela ao mesmo tempo que a sua cólera aumentava. Que era que Sam estava esperando? Afinal, não teve outro recurso senão voltar para a loja e dizer a Janie:
— Bem, vamos indo, meu amor?
Janie se levantou, sorrindo gentilmente. Foi exatamente nesse momento exasperante que Sam abriu a porta do escritório e entrou na loja. Stuart olhou-o, tranquilizado. Sam aparentou surpresa diante da presença de Janie e cumprimentou-a:
— Boa tarde, Sra. Cauder.
— Boa tarde, Sr. Berkowitz —, disse Janie de maneira um tanto reservada, mas polida. Em seguida, pôs a mão no braço de Stuart. — Já está ficando tarde, querido. Vamos?
Sam tossiu nervosamente. Fingiu olhar para Stuart todo confuso, mas a sua perplexidade era sincera. Disse então em voz baixa e hesitante:
— Mas, Stuart, você não combinou ir jantar hoje lá em casa para discutirmos alguns assuntos financeiros urgentes?
— É verdade! — exclamou Stuart. — Mas não podemos deixar isso para amanhã à noite? Janie veio-me buscar e eu tinha alguma coisa em vista para esta noite.
Sam, pouco habituado a essas manobras, ficou calado, sem saber o que devia fazer. Mas Stuart piscou o olho significativamente e ele sacudiu a cabeça, tristemente, dizendo:
— Infelizmente, não... Os contadores dos bancos estarão aqui amanhã e esses casos terão de estar resolvidos.
— É o diabo, mas que é que se vai fazer? — exclamou Stuart. Voltou-se para Janie e tomou-lhe a mão. — Está vendo como é minha vida, meu amor? Negócios, sempre negócios. E Sam então não me dá um momento de folga. Mas é claro que ele está certo.
Janie olhou com ódio para Sam e este ficou ainda mais confuso. Murmurou alguma coisa ininteligível e fez um movimento expressivo com as mãos. Tinha medo de Janie, como tinha medo de todas as pessoas cruéis e sem coração.
— Parece que nada se pode fazer —, disse Janie com rudeza. — Mas não posso deixar de deplorar, Stuart, que você esteja sempre à disposição de coisas ou pessoas insensíveis.
Stuart ficou vermelho e olhou receosamente para Sam, mas este não esboçou a menor reação.
— Senhora —, disse Stuart, todo formalizado —, há coisas que as mulheres não podem compreender. Posso levá-la até sua carruagem?
Levou Janie com toda a cerimônia até a rua. O céu crepuscular de maio ainda guardava as últimas claridades do sol. O ar frio do Norte corria pelas ruas como uma parede de água fresca. Stuart ajudou Janie a subir na carruagem. Ela estava furiosa e decepcionada. Mas conseguiu dar a Stuart um sorriso sedutor e lânguido, ao mesmo tempo que lhe perguntava num sussurro:
— Volta cedo?
— Se puder —, respondeu ele, também num sussurro e com um sorriso.
Ficou olhando a carruagem que se afastava pela rua calçada. Janie lhe acenou com o lenço e ele deu adeus em resposta.
Estava bem aborrecido quando voltou para a loja. Já estava cansado de Janie e de seus jeitos experientes, havendo nele uma decência fundamental que se revoltava. Bateu a porta com raiva. Os caixeiros já tinham saído. Sam estava esperando e Stuart pôde sentir-lhe nos olhos uma censura muda, mas firme.
— Pensei que nunca mais ia ver-me livre dela —, exclamou Stuart, colocando uma cadeira no lugar. — Não sei como é que me meto em tão horríveis confusões! Que é que eu faço para isso? Nada! Eu lhe juro, Sam, nada. Mas as mulheres vivem em volta de mim sem me dar um minuto de descanso!
Sam sorriu.
— Você vai-se casar com a Sra. Cauder, Stuart?
Ante essa revoltante sugestão, Stuart esqueceu o seu embaraço e deu uma estrondosa gargalhada.
— Casar-me com ela? Pelo amor de Deus, Sam! Acha que sou um idiota? Já lhe dei algum dia a impressão de ser um imbecil?
— Já, sim.
Stuart olhou-o espantado e Sam continuou a falar com a mesma firmeza:
— Nos seus casos com as mulheres, meu Stuart, você não exibe o menor sinal de inteligência. E não aprende. Todo o homem está sujeito a perder a cabeça, mas um homem inteligente não perde a cabeça mais de uma vez. Era preciso perder a cabeça com essa Sra. Cauder em sua casa?
Stuart ficou muito vermelho. Mas acabou rindo e murmurou:
— Até que não foi tão mal assim perder a cabeça. Mas uma vez chega e sobra. O mal com as mulheres é esse. Para elas, nunca chega. Recebem os botões de rosa, mas insistem em guardá-los até que ficam murchos e então não perdem ocasião de jogá-los na cara dos homens. Não quero saber mais delas.
Sam disse com um suspiro:
— Você prometeu ao Padre Houlihan olhar favoravelmente para a sobrinha dele. O casamento pode ser uma boa coisa para você, meu amigo.
— Acho que tem razão, Sam —, disse Stuart, consultando o relógio. — Vamos, Sam? Muito obrigado por ter-me livrado desta vez.
— Está bem. Mas vou ter agora de convidá-lo para jantar todas as noites?
— Quem sabe? Que era que eu faria sem você, Sam?
— Já se esqueceu de que a Sra. Cauder é agora nossa sócia? Essas cenas podem repetir-se.
— Ora, o futuro que dê seu jeito. Enquanto isso, tenho o que fazer. Vamos?
Assobiava alegremente enquanto saía da loja e fechava as portas. Sam sentiu-se de repente cheio de inquietação.

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                                              CONTINUA
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CAPÍTULO 24
Naquela noite, às nove e meia, Stuart entrou furtivamente em casa. Era horrível chegar assim à sua querida casa como se não tivesse o direito de ali estar e tudo isso por culpa de uma sujeita de lascivos olhos verdes. Subiu as escadas na ponta dos pés e espiou para o corredor. A porta de Janie estava entreaberta. Era uma simples fresta, mas havia luz no quarto. Praguejou contra ela em silêncio, voltou e chamou um criado.
— Pode ser que alguém me procure esta noite. Quero que vá ficar à porta e espere até dez e meia no mínimo. Não quero que a campainha da porta seja tocada. É um assunto muito importante e muito reservado.
O criado suspeitou imediatamente que se tratasse de uma mulher, o que não era um caso excepcional. Assentiu em silêncio e saiu, rindo sozinho no corredor.
Stuart arrependeu-se do que tinha feito. Não devia ter sugerido que o mordomo de Allstairs fosse a sua casa. Janie iria na certa bisbilhotar se ouvisse vozes. Nunca penso nas coisas, foi a sua conclusão. Dirigiu-se ao grande vestíbulo branco, onde o criado já estava à espera.
— É um homem que estou esperando. Se vier, leve-o para a varanda onde vou esperá-lo.

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Afastou-se e tornou a arrepender-se do que tinha feito. Os criados da cidade conheciam-se decerto muito bem. Em breve, espalhar-se-ia o boato de que o mordomo do Sr. Allstairs fizera uma visita secreta ao Sr. Coleman. Nada restava a fazer senão agir depressa.
A varanda estava deserta e fria. Stuart sentou-se e olhou para o seu relógio. Quinze minutos para as dez. Cruzou os braços e franziu a testa. Teve a certeza de que o homem não ia aparecer naquela noite, nem em qualquer outra. Fora um louco em pensar o contrário. Cruzou as pernas.
Sentia-se terrivelmente deprimido. Havia sem dúvida outras maneiras pelas quais poderia aproximar-se de Marvina. Mas dentro de uma semana ou talvez menos ela teria partido de Grandeville. O desespero que sentia subiu a um alto grau. Seria então frustrado? Nunca! Nunca fora frustrado em coisa alguma na vida e não ia começar naquela ocasião.
Ouviu passos leves nos tapetes do corredor. O coração começou a bater apressadamente. O criado entrou em companhia do mordomo de Allstairs, alto e magro, com o chapéu apertado com as duas mãos de encontro ao peito, e a calva brilhando à luz das velas. Sorrindo respeitosamente, cumprimentou Stuart, que dispensou o criado. Olhou demoradamente o mordomo.
Que abutre era ele, digno servo de tal patrão. O rosto cadavérico era comprido, sumido e lívido, com um nariz de ave de rapina e olhos que ardiam de cobiça.
— Como se chama? — perguntou Stuart com condescendência.
— Grimshaw, às suas ordens, meu chefe.
— Excelente. Pode sentar-se, Grimshaw.
Grimshaw sentou-se na beira de uma cadeira forrada de damasco rosa, com o chapéu nos joelhos. A sua atitude era de inteira humildade.
— Deve estar curioso em saber por que o convidei para vir até aqui —, disse Stuart.
— Bem, pensei que talvez quisesse fazer alguma mudança.
— Isso não —, murmurou Stuart com um sorriso. — Estou satisfeito com o meu pessoal. Estou pensando é em coisa mais importante, Grimshaw. É uma coisa que seria de extrema vantagem para você, além de...

 

 

 

                                                   

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