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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CASA HARKONNEN / B. Herbert e K. J. Anderson
A CASA HARKONNEN / B. Herbert e K. J. Anderson

 

 

                                                                                                                                   

  

 

 

 

 

As descobertas são perigosas... mas a vida também é. Um homem que não deseja correr riscos está condenado a não aprender jamais, nem a amadurecer, nem a viver.

Planetólogo PARDOT KYNES,

Primeiro livro de leituras, escrito para seu filho Liet

Quando a tormenta de areia chegou do sul, Pardot Kynes estava mais interessado em tomar leituras meteorológicas que em procurar refúgio. Seu filho Liet (com apenas doze anos, mas acostumado aos duros costumes do deserto) examinou com olhar crítico a antiga estação meteorológica que tinham encontrado no posto de experimentos botânicos abandonado. Não tinha a menor confiança que a máquina funcionasse.

Então, Liet desviou o olhar para a tempestade que se aproximava, do outro lado do mar de dunas.

— O vento do demônio em pleno deserto. Hulasikali Wala.

Quase por instinto, verificou os fechos do seu traje destilador.

— Tormenta Coriolis — corrigiu Kynes, utilizando um termo científico no lugar da expressão fremen que seu filho tinha usado —. O movimento de rotação do planeta aumenta a velocidade dos ventos que açoitam as planícies. As rajadas podem alcançar velocidades de setecentos quilômetros por hora.

 

 

 

 

Enquanto seu pai falava, o jovem se ocupou de fechar a estação meteorológica em forma de ovo, e verificou os fechos dos respiradouros, a pesada comporta e as provisões de emergência armazenadas. Ignorou o gerador de sinais e o radiofarol de socorro. A estática da tormenta de areia reduziria a pedacinhos eletromagnéticos qualquer transmissão.

Em sociedades sofisticadas, Liet seria considerado um menino, mas a vida entre os fremen, sempre difícil e submetida a mil perigos, tinha-lhe dotado de uma maturidade que poucos alcançavam em uma idade que dobrava a sua. Estava mais preparado para enfrentar emergências que seu pai.

O planetólogo coçou sua barba loira grisalha.

— Uma boa tormenta como esta pode abranger uma extensão de quatro graus de latitude. — Aumentou o brilho das telas dos aparelhos analíticos da estação —. Eleva partículas a uma altitude de dois mil metros, de forma que ficam suspensas na atmosfera, e muito depois que a tormenta tiver passado, continua caindo pó do céu.

Liet deu um último puxão na fechadura da escotilha, satisfeito de que pudesse resistir à tormenta.

— Os fremen a chamam O-Sayal, “a chuva de areia”.

— Um dia, quando você também for planetólogo, terá que utilizar uma linguagem mais técnica — disse Pardot Kynes em tom didático —. Ainda envio mensagens ao imperador de vez em quando, embora não com tanta freqüência como deveria. Duvido que se incomode de lê-las. — Deu uns golpezinhos sobre um dos instrumentos —. Ai, acredito que está quase em cima de nós.

Liet levantou o protetor de uma janela para ver a muralha de branco, canela e estática que se aproximava.

— Um planetólogo tem que utilizar os olhos, assim como uma linguagem científica. Olhe pela janela, pai.

Kynes sorriu para seu filho.

— Já chegou o momento da estação abandonar o chão.

Manipulou uns controles adormecidos fazia muito tempo e conseguiu pôr em marcha a fileira dupla de motores suspensores. A estação lutou com a gravidade e se elevou sobre o chão.

A boca da tormenta se lançou sobre eles, e Liet fechou a placa do protetor com a esperança de que o antiquado aparelho meteorológico agüentaria. Confiava na intuição de seu pai até certo ponto, mas não em sua pratica das coisas.

A estação oval se elevou com suavidade graças aos suspensores, açoitada pelas brisas precursoras da tormenta.

— Aí vem — disse Kynes —. Agora começa nosso trabalho...

A tormenta os golpeou como um pau romo, e os precipitou para o coração da tempestade.

Dias antes, no curso de uma viagem às profundezas do deserto, Pardot Kynes e seu filho tinham descoberto os sinais familiares de uma estação de provas botânica, abandonada milhares de anos antes. Os fremen tinham saqueado quase todos os postos de investigação, e requisitado objetos valiosos, mas esta estação isolada em um oco rochoso tinha permanecido oculta até que Kynes localizara os sinais.

Liet e ele tinham aberto a escotilha cheia de pó para esquadrinhar seu interior, como espectros a ponto de entrar em uma cripta. Tiveram que esperar sob o sol ardente que a troca de atmosfera eliminasse o ar estagnado. Pardot Kynes passeou de um lado para outro sobre a areia solta, com o fôlego contido, escrutinando de vez em quando a escuridão, à espera de que pudessem entrar para investigar.

Aquelas estações de análise botânicas tinham sido construídas na idade de ouro do antigo Império. Kynes sabia que naquela época este planeta deserto não tinha sido considerado especial em nenhum aspecto, sem recursos importantes, sem motivos para ser colonizado. Quando os peregrinos Zensunni tinham chegado depois gerações de escravidão, tinham-no feito com a esperança de construir um mundo onde pudessem ser livres.

Mas isso tinha sido antes da descoberta da especiaria melange, a preciosa substância que não se encontrava em nenhum outro lugar do universo. E depois tudo tinha mudado.

Kynes já não chamava este mundo de Arrakis, o nome que constava nos registros imperiais, mas sim o nome fremen: Duna. Embora por natureza fosse um fremen, continuava a ser um servidor dos imperadores Padishah. Elrood IX lhe ordenara que descobrisse o mistério da especiaria: de onde vinha, como se formava, onde podia ser encontrada. Kynes tinha vivido treze anos com os moradores do deserto. Tinha tomado uma esposa fremen e criado um filho meio fremen para que seguisse seus passos, para que se transformasse no próximo planetólogo de Duna.

O entusiasmo de Kynes pelo planeta não tinha diminuído. Emocionava-o a perspectiva de descobrir algo novo, embora tivesse que aventurar-se em meio de uma tormenta...

Os antigos suspensores da estação zumbiam devido a luta contra o uivo do Coriolis, como um ninho de vespas enfurecidas. A nave meteorológica ricocheteava sobre as correntes de ar, como um globo de paredes de aço. O pó que projetava o vento golpeava o casco.

— Isto me recorda as tormentas matinais que via em Salusa Secundus — murmurou Kynes —. Coisas assombrosas... Muito pitorescas e muito perigosas. O vento pode levantar de surpresa e te esmagar. A intempérie não deve te surpreender ali.

— Tampouco quero que este me surpreenda — disse Liet.

Esticada para dentro, uma das pranchas laterais se curvou. O ar penetrou pela brecha com um zumbido. Liet se precipitou para a brecha. Tinha à mão a maleta de reparos e um selador de espuma, convencido de que a decrépita estação se racharia.

— Deus nos segura em sua mão, e poderíamos morrer esmagados a qualquer momento.

— Isso é o que sua mãe diria — respondeu o planetólogo sem levantar a vista das informações que o aparelho de gravação descarregava em um antiquado compressor de dados —. Veja, uma rajada alcançou oitocentos quilômetros por hora! — Sua voz não transmitia temor, só entusiasmo —. É uma tormenta monstruosa!

Liet levantou a vista do selador que tinha espalhado sobre a rachadura fina. O chiado do ar que se filtrava morreu, substituído pelo estrépito afogado de um furacão.

— Se estivéssemos fora, este vento nos esfolaria.

Kynes umedeceu os lábios.

— Tem toda a razão, mas tem que aprender a se expressar com objetividade e precisão. “Esfolaria-nos” não é uma frase que eu incluiria em um relatório ao imperador.

O estrépito do vento, o arranhar da areia e o rugido da tormenta alcançaram um crescendo. Depois, com um estalo de pressão no interior da estação, tudo se transformou em uma bolha de silêncio. Liet piscou e bocejou para desentupir os ouvidos. Um intenso silêncio repicava em seu crânio. Através do casco da estação ainda podia ouvir os ventos do Coriolis, como vozes sussurradas em um pesadelo.

— Estamos no olho. — Pardot Kynes se separou de seus instrumentos, muito satisfeito —. Um sietch no coração da tormenta, um refúgio onde menos se esperaria.

Descargas de estática azuladas chispavam ao seu redor, a fricção de areia e pó gerava campos eletromagnéticos.

— Preferiria estar de volta no sietch — admitiu Liet.

A estação meteorológica derivava no olho, a salvo e silenciosa depois do intenso tamborilar da muralha da tormenta. Encerrados na pequena nave, ambos tinham a oportunidade de falar de pai para filho.

Mas não o fizeram...

Dez minutos depois, chocaram-se contra o muro oposto da tormenta, e foram devolvidos ao fluxo com um empurrão indireto dos ventos, carregados de pó. Liet cambaleou e teve que agarrar-se. Seu pai conseguiu manter o equilíbrio. O casco da nave vibrava e matraqueava.

Kynes olhou para seus controles e ao chão. Olhou para seu filho.

— Não sei muito bem o que fazer. Os suspensores estão... — com uma sacudida, começaram a cair, como se seu cabo de segurança tivesse sido cortado — falhando.

Liet se segurou sentindo uma estranha falta de peso, enquanto a nave caía para o chão, que uma escuridão poeirenta ocultava.

Os suspensores avariados chisparam e se estabilizaram pouco antes de tocar terra. A força do gerador de campo Holtzman os protegeu do pior do impacto. Depois, a nave se chocou contra a areia, e os ventos do Coriolis rugiram por cima deles como um coletor de especiaria esmagando sob seus aros um camundongo canguru. O céu liberou um dilúvio de pó.

Pardot e Liet Kynes, que sofreram apenas contusões sem importância, levantaram-se e trocaram um olhar, depois da descarga de adrenalina. A tormenta prosseguiu seu caminho, abandonando a estação...

Liet renovou o ar do interior através de um snork de areia. Quando abriu a pesada escotilha, um jorro de areia caiu no interior, mas Liet reforçou as paredes com um aglutinador de espuma estática. Trabalhou com a ajuda de sua mochila fremen e as mãos nuas.

Pardot Kynes confiava plenamente que seu filho conseguiria que os resgatassem, de modo que trabalhou na escuridão para introduzir suas novas leituras meteorológicas em um compressor de dados antiquado.

Liet saiu ao ar livre como um bebê emergindo do útero, e contemplou a paisagem assolada pela tormenta. O deserto havia renascido: as dunas se moviam, marcos familiares mudavam; rastros, casas, até mesmo aldeias, tinham sido apagadas. Toda a depressão parecia recém criada.

Coberto de pó pálido, subiu até uma extensão de areia mais estável e viu a depressão que ocultava a estação enterrada. Ao cair, a nave abrira uma cratera na superfície do deserto, pouco antes de que a tormenta lançasse um manto de areia sobre eles.

Graças a seus sentidos fremen e a um sentido inato da orientação, Liet foi capaz de determinar sua posição aproximada, não longe da Muralha Falsa do Sul. Reconheceu as formas rochosas, as franjas dos penhascos, os picos. Se os ventos os tivessem lançado um quilômetro mais adiante, a nave teria se chocado contra as montanhas... um final ignominioso para o grande planetólogo, a quem os fremen reverenciavam como seu Umma, seu profeta.

— Pai — gritou Liet ao oco que assinalava a posição da nave afundada —, acredito que há um sietch nos penhascos próximos. Se nos aproximarmos, os fremen nos ajudarão a desenterrar o módulo.

— Boa idéia — respondeu Kynes com voz apagada —. Vá verificar. Eu ficarei trabalhando. Tive... uma idéia.

O jovem se afastou com um suspiro em direção aos salientes de rocha ocre. Andava com ritmo irregular, para não atrair nenhum verme: passo, arrasto, pausa... arrasto, pausa, passo-passo... arrasto, passo, pausa, passo...

Os amigos de Liet no sietch da Muralha Vermelha, em especial seu irmão de sangue Warrick, invejavam-no pelo tempo que passava com o planetólogo. Umma Kynes tinha levado uma visão paradisíaca às pessoas do deserto. Acreditavam no sonho de voltar a despertar Duna, e seguiam o homem.

Sem que soubessem os senhores Harkonnen (os únicos habitantes de Arrakis que processavam a especiaria, e que consideravam as pessoas meros recursos que não importava explorar), Kynes fiscalizava exércitos de trabalhadores furtivos e fiéis que plantavam erva para ancorar as dunas móveis. Estes fremen estabeleciam cultivos de cacto e arbustos resistentes em canyons protegidos, onde chegava a água das precipitações de orvalho. Nas regiões inexploradas do pólo sul tinham plantado palmeiras que se enraizaram e estavam florescendo. O projeto experimental da Depressão de Gelo produzia flores, frutas frescas e árvores anãs.

De qualquer modo, embora o planetólogo fosse capaz de orquestrar planos grandiosos em escala mundial, Liet não confiava o suficiente no bom senso de seu pai para deixá-lo sozinho durante muito tempo.

O jovem seguiu o contorno do penhasco até que descobriu sutis marcas nas rochas, um caminho que nenhum forasteiro observaria, mensagens na colocação de pedras descoloridas que prometiam comida e refúgio, sob as respeitadas regras da Bênção dos Viajantes, ao'amyah.

Com a ajuda dos fremen do sietch, poderiam desenterrar a estação meteorológica e arrastá-la até um esconderijo, onde seria desmontada ou reparada. Ao fim de uma hora, os fremen eliminariam todos os sinais e deixariam que o deserto voltasse a mergulhar num silêncio inquietante.

Mas quando olhou de novo para o lugar da colisão, Liet se alarmou ao ver que a nave se movia. Uma terça parte já se sobressaía da areia. O módulo se erguia pouco a pouco com um zumbido profundo, como uma besta de carga presa num pântano de Bela Tegeuse. Entretanto, os suspensores só tinham capacidade para erguer a nave alguns centímetros de cada vez.

Liet ficou petrificado quando compreendeu o que seu pai estava fazendo. Suspensores. Em pleno deserto!

Correu como um possesso, tropeçando e caindo, seguido de uma avalanche de areia.

— Pare, pai. Desligue isso!

Gritou até enrouquecer. Olhou para o outro lado do oceano dourado de dunas, com uma sensação de terror no estômago, para o poço infernal da longínqua Depressão do Ciélago. Procurou um ondulação reveladora, a alteração que indicava um movimento nas profundezas...

— Saia daí, pai.

Deteve-se ante a escotilha aberta, enquanto a nave continuava agitando-se sem cessar. Os campos suspensores zumbiam. Liet se agarrou ao vão da porta, saltou através da escotilha e caiu no interior da estação, assustando Kynes.

O planetólogo sorriu para seu filho.

— É uma espécie de sistema autônomo. Não sei que controles ativei, mas este módulo poderia alçar vôo em menos de uma hora. — voltou-se para seus instrumentos —. Me deu tempo de introduzir todos os dados novos em um só arquivo...

Liet agarrou a seu pai pelo ombro e o arrancou dos controles. Deu um tapa no interruptor de emergência, e os suspensores interromperam seu funcionamento. Kynes, confuso, tentou protestar, mas seu filho o empurrou para a escotilha aberta.

— Saia agora mesmo! Corra o mais rápido que puder para as rochas.

— Mas...

As aletas do nariz de Liet se dilataram por causa da exasperação.

— Os suspensores funcionam graças a um campo Holtzman, como se fossem escudos. Sabe o que acontece quando ativa um escudo pessoal em pleno deserto?

— Os suspensores voltaram a funcionar? — piscou Kynes, e seus olhos se iluminaram quando compreendeu —. Ah! Atrai um verme.

— Sempre atrai um verme. Corra!

Kynes saiu pela escotilha e saltou para a areia. Recuperou o equilíbrio e se orientou sob o sol ofuscante. Quando viu o penhasco que Liet tinha indicado, a um quilômetro de distância, correu para ele com movimentos desajeitados e irregulares, como se executasse uma dança complicada. O jovem fremen o seguiu até o refúgio que as rochas ofereciam.

Em pouco tempo ouviram um vaio ensurdecedor à suas costas. Liet olhou para trás, e depois empurrou seu pai para que corresse para o alto de uma duna.

— Mais depressa. Não sei quanto tempo temos.

Aumentaram a velocidade. Kynes tropeçou, atrasou-se.

As areias ondulavam em direção ao módulo semi-enterrado. Em direção a eles. As dunas se ondulavam ao ritmo do avanço inexorável de um verme que subia para a superfície

— Corra com todas as suas forças!

Correram para os penhascos, atravessaram a crista de uma duna, desceram, precipitaram-se para frente e a branda areia cedeu sob seus pés. As esperanças do Liet aumentaram quando viu o refúgio rochoso a menos de cem metros de distância.

O vaio aumentou de potência quando o gigantesco verme acelerou. O solo tremeu sob suas botas.

Por fim, Kynes chegou aos primeiros penhascos e se aferrou a eles como se fossem uma âncora, ofegante. Liet o obrigou a continuar até a ladeira, para que o monstro não pudesse alcançá-los quando surgisse da areia.

Momentos depois, sentados em um saliente, em silêncio enquanto respiravam pelo nariz para conter o fôlego, Pardot Kynes e seu filho viram que um redemoinho se formava ao redor do módulo semi-enterrado. Enquanto a viscosidade da areia agitada mudava, o módulo começou a afundar.

O coração do torvelinho se ergueu na forma de uma boca cavernosa. O monstro do deserto engoliu a nave junto com toneladas de areia, que caíram por uma garganta coberta de dentes de cristal. O verme voltou a mergulhar nas profundezas áridas, e Liet observou os ondulações em sua passagem, agora mais lentas, que retornavam ao terreno baixo vazio...

No silêncio que se seguiu, Pardot Kynes não parecia entusiasmado por seu encontro com a morte, mas sim mas muito decepcionado.

— Perdemos todos esses dados. — O planetólogo exalou um profundo suspiro —. Poderia ter utilizado nossas leituras para compreender melhor essas tormentas.

Liet introduziu a mão em um bolso dianteiro do seu traje destilador e extraiu o antiquado compressor de dados que tinha arrancado do painel de instrumentos do módulo.

— Mesmo enquanto procuro salvar nossas vidas, não deixo de prestar atenção à pesquisa.

Kynes sorriu, cheio de orgulho paterno.

Sob o sol do deserto, subiram pelo caminho escarpado até a segurança do sietch.

 

Cuidado, homem, pode criar vida. Pode destruir vida. Mas não tem outra alternativa que experimentar a vida. E aí reside sua maior fortaleza e sua maior debilidade.

Bíblia Católica Laranja, Livro da Sétima Kimla, 5:3

Em Giedi Prime, rico em petróleo, a equipe de trabalhadores abandonou os campos ao final de outro dia interminável. Cobertos de pó e suor, os operários saíram das áreas perfuradas e desfilaram sob um sol vermelho a caminho de casa.

Entre eles, Gurney Halleck, com o cabelo loiro empapado em suor, dava palmadas rítmicas. Era a única forma de seguir adiante, seu método particular de rebelar-se contra a opressão dos Harkonnen, que naquele momento não podiam ouvi-lo. Compôs uma canção de trabalho com letra absurda, e tentou fazer que seus companheiros o acompanhassem, ou ao menos tentassem.

 

Batalhamos todo o dia, como os Harkonnen nos obrigam,

hora após hora, desejamos uma ducha,

trabalhando, trabalhando e trabalhando...

 

As pessoas caminhavam em silêncio. Muito esgotados depois de onze horas de trabalho nos campos rochosos, para darem atenção ao trovador atrevido. Gurney desistiu de seus esforços com um suspiro de resignação, embora seu sorriso irônico não desaparecesse.

— A verdade é que somos uns desgraçados, meus amigos, mas não podemos nos conformar com isso.

Mais adiante havia um povoado de edifícios pré-fabricados, um povoado chamado Dmitri em honra ao patriarca Harkonnen anterior, o pai do barão Vladimir. Depois que o barão assumiu o controle da Casa Harkonnen, décadas atrás, tinha examinado os mapas de Giedi Prime e batizado acidentes geográficos como quisera. De passagem, tinha acrescentado um toque melodramático as formações: Ilha do Sofrimento, Baixios da Perdição, Escarpado da Morte...

Alguma geração posterior, sem dúvida, voltaria a batizá-las novamente.

Tais preocupações eram alheias a Gurney Halleck. Embora de pouca cultura, sabia que o Império era imenso, com um milhão de planetas e decilhões de habitantes... mas não era provável que viajasse além de Harko City, a metrópoles densamente povoada e poluída que projetava um perpétuo brilho avermelhado sobre o horizonte, para o norte.

Gurney examinou as pessoas que o rodeavam, gente que via todo dia. Desfilavam com os olhos baixos, como máquinas, retornando para suas humildes moradias, tão ásperos que não pôde reprimir uma gargalhada.

— Coloquem um pouco de sopa na pança, e espero que esta noite comecem a cantar. Não diz a Bíblia Católica Laranja “Regozijem-se em seus corações, porque o sol sai e fica segundo sua perspectiva do universo”?

Alguns trabalhadores murmuraram com leve entusiasmo. Era melhor que nada. Ao menos, tinha conseguido alegrar alguém. Com uma vida tão miserável, qualquer toque de cor era bem-vinda.

Gurney tinha vinte e um anos, e a pele áspera devido a trabalhar nos campos desde oito anos. Pela força do costume, seus brilhantes olhos azuis absorviam todos os detalhes... embora não houvesse grande coisa que ver no povo de Dmitri e nos campos desolados. De mandíbula angulosa, nariz muito redondo e feições esmagadas, já tinha aspecto de fazendeiro velho, e sem dúvida se casaria com alguma das garotas resignadas e de aspecto cansado do povo.

Gurney tinha passado o dia mergulhado em uma sarjeta até os ombros, dedicado a extrair toneladas de terra pedregosa com uma pá. depois de muitos anos de cultivar o mesmo chão, os aldeãos tinham que perfurá-lo mais para encontrar nutrientes na terra. O barão não queria gastar Solaris com fertilizantes, sobretudo para esta gente.

Durante as centenas de anos que estavam administrando Giedi Prime, os Harkonnen tinham convertido em costume extrair da terra tudo que contivesse um pouco de valor. Era seu direito e seu dever explorar este planeta, para depois mudar os povoados para novas terras e colheitas. Um dia, quando Giedi Prime fosse uma casca vazia, o líder da Casa Harkonnen exigiria sem dúvida um feudo diferente, uma nova recompensa por servir aos imperadores Padishah. Afinal, havia muitos planetas para escolher no Império.

Mas a política galáctica não interessava a Gurney. Seus objetivos se limitavam a desfrutar da noite iminente, a compartilhar um momento de diversão e relaxamento no lugar de encontro. Amanhã seria outro dia de trabalho extenuante.

Nos campos só cresciam tubérculos krall, duros e filamentosos. Embora quase toda a colheita fosse exportada para alimento de animais, os tubérculos eram nutritivos o bastante para assegurar que as pessoas continuassem trabalhando. Gurney os comia todo dia, assim como todo mundo. Uma terra má provoca mau gosto.

Seus pais e colegas de trabalho sabiam montões de provérbios, muitos procedentes da Bíblia Católica Laranja. Gurney os memorizava e freqüentemente os punha em música. A música era o único tesouro que lhe permitiam possuir, e a compartilhava com liberalidade.

Os trabalhadores se separaram em direção a suas moradias respectivas, embora idênticas, unidades pré-fabricadas defeituosas que a Casa Harkonnen tinha comprado de ofertas e posto ali. Gurney olhou para a casa onde vivia com seus pais e sua irmã menor, Bheth.

Sua casa tinha um toque mais alegre que as demais. Panelas velhas e enferrujadas foram cheias de terra, e nelas cresciam flores de cores alegres: pensamentos marrons, azuis e amarelos, um montão de margaridas, inclusive lírios de aspecto sofisticado. A maioria das casas tinham hortas onde as pessoas cultivavam plantas, ervas, hortaliças, embora qualquer produto de aspecto apetitoso pudesse ser requisitado e devorado pelas patrulhas Harkonnen.

O dia era quente e o ar poluído, mas as janelas de sua casa estavam abertas. Gurney ouviu a doce voz de Bheth, entoando uma melodia. Recriou-a em sua mente, com seu comprido cabelo loiro. Considerava-o “linho”, uma palavra que tinha aprendido dos poemas da Velha Terra, embora nunca tivesse visto linho tecido em casa. Bheth, de apenas dezessete anos, tinha belas feições e uma doce personalidade que ainda não fora corroída por toda uma vida dedicada ao trabalho.

Gurney utilizou o esguicho do exterior para eliminar a terra cinza grudada em seu rosto, braços e mãos. Sustentou a cabeça sob a água fria, ensopou seu cabelo loiro emaranhado, e depois utilizou os dedos grossos para tentar dar-lhes uma aparência de ordem. Agitou a cabeça e entrou em casa, beijou Bheth na bochecha e lhe jogou água fria. A moça soltou um grito e se afastou, e depois voltou para seus trabalhos culinários.

Seu pai já se jogara em uma cadeira. Sua mãe estava inclinada sobre enormes recipientes de madeira, na soleira da porta traseira, preparando kralls para o mercado. Quando se deu conta de que Gurney tinha chegado a casa, secou as mãos e entrou para ajudar Bheth a servir. Sua mãe, de pé em frente a mesa, leu vários versículos de uma surrada Bíblia Católica Laranja com voz reverente (seu objetivo era ler todo o volume para seus filhos antes de morrer), e depois se sentaram para comer. Sua irmã e ele falaram enquanto bebiam uma sopa de verduras fibrosas, condimentada só com sal e alguns ramos de ervas secas. Durante a refeição, os pais de Gurney falaram pouco, geralmente com monossílabos.

Ao terminar, levou seus pratos à pia, onde os lavou e deixou que se secassem para o dia seguinte. Afagou seu pai no ombro com as mãos molhadas.

— Vai vir comigo ao bar? É a noite de conversa.

Seu pai meneou a cabeça.

— Prefiro dormir. Às vezes suas canções conseguem que me fazer sentir muito cansado.

Gurney deu de ombros.

— Vá descansar, então.

Abriu o desmantelado roupeiro de sua pequena habitação e tirou sua mais apreciada posse: um antigo baliset, desenhado como instrumento de nove cordas, embora Gurney tivesse conseguido aprender a tocá-lo com apenas sete, pois duas cordas se quebraram e não tinham sido repostas.

Encontrara o instrumento jogado, quebrado e inútil, mas depois de trabalhar com paciência durante seis meses, lixando, aplicando uma capa de verniz com laca, ajustando peças, o baliset produziu a música mais excelsa que tinha escutado, apesar de carecer de todo o registro de tons. Gurney passava horas pelas noites tangendo as cordas, fazendo girar a roda de contrapeso. Aprendia canções que tinha ouvido, ou compunha outras novas.

Quando a escuridão caiu sobre o povoado, sua mãe se deixou cair em uma cadeira. Colocou a apreciada Bíblia em seu regaço, confortada mais por seu peso que por suas palavras.

— Não volte tarde — disse com voz seca e inexpressiva.

— Não voltarei. — Gurney se perguntou se a mulher perceberia se não voltasse naquela noite —. Necessito de toda minha força para atacar as sarjetas amanhã.

Levantou um braço musculoso e fingiu entusiasmo pelas tarefas que nunca terminariam, como todos bem sabiam. Encaminhou-se pelas ruas de terra calcada para o bar.

Anos antes, depois de uma epidemia de febre, quatro das estruturas pré-fabricadas tinham sido abandonadas. Os aldeãos tinham unido os edifícios, derrubado os muros de separação e habilitado uma ampla casa comunitária. Embora não fosse um ato contrário às numerosas restrições dos Harkonnen, as autoridades tinham contemplado com suspeita tal desdobramento de iniciativa. Mas o bar continuava em seu lugar.

Gurney se juntou a pequena multidão de homens que se reuniram ali. Alguns tinham vindo com suas esposas. Um homem já estava caído sobre uma mesa, mais esgotado que bêbado, pois sua garrafa de cerveja aguada estava pela metade. Gurney se colocou às suas costas, estendeu o baliset e tocou um acorde que despertou o homem.

— Tenho uma nova canção, amigos. Não se trata exatamente de um hino que suas mães recordem, mas vou lhes ensinar. — Dedicou-lhes um sorriso irônico —. Depois a cantarão comigo, e o mais provável é que estraguem a melodia.

Não havia nenhum bom cantor no grupo, mas as canções eram divertidas, e traziam um pouco de luz para suas vidas.

Com energia, acoplou uma letra sardônica a uma melodia familiar:

 

Oh, Giedi Prime!

Seus tons negros são incomparáveis,

desde planícies de obsidiana até mares oleosos,

até as noites mais escuras do Olho do Imperador.

 

Venham de todos os cantos

para ver o que ocultam nossos corações e mentes,

para compartilhar nossa bota de cano longo

e levantar um trocado ou dois...

até torná-lo mais encantado que antes.

 

Oh, Giedi Prime!

Seus tons negros são incomparáveis,

desde planícies de obsidiana até mares oleosos,

até as noites mais escuras do Olho do Imperador.

 

Quando Gurney terminou a canção, desenhou um sorriso em seu rosto e dedicou uma reverência aos aplausos imaginários.

— Vá com cuidado, Gurney Halleck! — gritou um dos homens com voz rouca —. Se os Harkonnen ouvirem sua voz doce, não duvide que o levarão à força a Harko para que cante para o próprio barão.

Gurney emitiu um som depreciativo.

— O barão não tem ouvido para a música, sobretudo para canções deliciosas como a minha.

Sua resposta provocou gargalhadas. Agarrou uma jarra de cerveja azeda e a engoliu.

A porta se abriu com brutalmente e Bheth entrou correndo, com o cabelo solto e a cara avermelhada.

— Uma patrulha se aproxima! Vimos as luzes dos suspensores. Trazem um transporte de prisioneiros e uma dúzia de guardas.

Os homens ficaram em pé imediatamente. Dois correram para as portas, mas outros ficaram petrificados, com aspecto abatido e derrotado.

Gurney pulsou uma nota tranqüilizadora em seu baliset.

— Conservem a calma, meus amigos. Estamos fazendo algo ilegal? “Os culpados conhecem e revelam seus crimes.” Estamos desfrutando de nossa mútua companhia. Os Harkonnen não podem nos deter por isso. De fato, estamos demonstrando como nós gostamos de nossa situação, quão felizes somos de trabalhar para o barão e seus esbirros. De acordo, companheiros?

Um sombrio grunhido foi tudo que obteve. Gurney deixou o baliset a um lado e se aproximou da janela trapezoidal do edifício comunitário, justo quando um transporte de prisioneiros parava no centro do povoado. Várias formas humanas se viam atrás das janelas do transporte, prova que os Harkonnen tinham efetuado detenções. Todas mulheres, ao que parecia. Embora segurasse a mão de sua irmã e conservasse o bom humor na aparência, Gurney sabia que os patrulheiros necessitavam de poucas desculpas para tomar mais cativas.

Brilhantes focos perfuravam o povoado. Forças couraçadas corriam pelas ruas e chamavam nas casas. Então, a porta da sala comunitária se abriu com violência.

Seis homens entraram. Gurney reconheceu o capitão Kryubi, da guarda do barão, o homem encarregado da segurança da Casa Harkonnen.

— Todos quietos para serem inspecionados — ordenou Kryubi. Um fino bigode adornava seu lábio superior. Tinha o rosto e suas bochechas pareciam fundas, como se apertasse a mandíbula com excessiva freqüência.

Gurney ficou junto à janela.

— Não estamos fazendo nada errado, capitão. Obedecemos as normas Harkonnen. Fazemos nosso trabalho.

Kryubi olhou para ele.

— Quem o nomeou líder deste povo?

Gurney não conseguiu dissimular seu sarcasmo.

— Quem lhes deu ordens de acossar aldeãos inocentes? Só conseguirão que amanhã sejamos incapazes de trabalhar.

Seus companheiros ficaram horrorizados com sua imprudência. Bheth apertou a mão de Gurney, com a intenção de fazer seu irmão se calar. Os guardas Harkonnen fizeram gestos ameaçadores com suas armas.

Gurney ergueu o queixo para indicar o transporte de prisioneiros que se via do outro lado da janela.

— O que essa gente fez? Por que foram detidas?

— Nenhum delito é necessário — disse Kryubi, indiferente a dizer a verdade.

Gurney avançou um passo, mas três guardas o derrubaram ao chão. Sabia que o barão recrutava com freqüência guardas entre os povoados agrícolas. Os novos valentões (resgatados de vidas sem perspectiva alguma, providos de uniformes novos, armas, alojamento e mulheres) costumavam olhar com desdém suas vidas anteriores e demonstravam maior crueldade que os profissionais vindos de outros planetas. Gurney confiava em reconhecer um homem de um povoado próximo, que lhe cuspiu na cara. Sua cabeça golpeou o duro chão, mas ficou em pé de um salto.

Bheth foi para seu lado.

— Não os provoque mais.

Foi o pior que pôde fazer. Kryubi apontou para ela.

— Levem essa também.

O rosto estreito de Bheth empalideceu quando dois dos três guardas a prenderam por seus braços magros. Lutou ao ser levada em para a porta, que continuava aberta. Gurney deixou o baliset a um lado e se equilibrou, mas o guarda restante tirou sua arma e o golpeou na testa e nariz com a culatra.

O jovem cambaleou mas voltou a atacar, ao mesmo tempo em que agitava os punhos como maças.

— Soltem-na!

Derrubou um guarda e libertou sua irmã do outro. A moça gritou quando os três guardas se jogaram sobre Gurney, utilizando as armas com tal brutalidade que suas costelas rangeram. Já sangrava pelo nariz.

— Ajudem-me! — gritou Gurney para os aldeãos, que tinham os olhos arregalados —. Superamos em número estes bastardos.

Ninguém foi atendeu ao seu chamado.

Debateu-se e repartiu murros, mas caiu sob uma chuva de socos e coronhadas. Levantou a cabeça com um esforço e viu que Kryubi olhava enquanto seus homens levavam Bheth para a porta. Gurney tentou livrar-se de seus inimigos.

Entre braços cobertos de manoplas e pernas almofadadas, viu os aldeãos petrificados em seus assentos, como ovelhas. Contemplavam-se com expressão contrita, mas continuaram tão imóveis como pedras de uma fortaleza.

— Ajudem-me, malditos sejam!

Um guarda o golpeou no plexo solar. Ofegou e sentiu náuseas. Perdeu a voz, ficou sem fôlego. Pontos negros dançaram ante seus olhos. Por fim, os guardas se retiraram.

Apoiou-se em um cotovelo, bem a tempo de ver o rosto desesperado de Bheth quando os soldados Harkonnen a arrastavam para a noite.

Furioso e frustrado, ficou em pé, esforçando-se por não desmaiar. Ouviu o transporte de prisioneiros se elevando na praça. Rodeado por um brilho, como um halo, afastou-se em direção a outro povoado para fazer mais cativos.

Gurney olhou para os aldeãos com seus olhos inchados. Desconhecidos. Tossiu e cuspiu sangue. Por fim, quando pôde falar, disse:

— Ficaram com as mãos cruzadas, bastardos. Não ergueram um dedo para me ajudar. — Fulminou os aldeãos com o olhar —. Como é possível que tenham permitido isto? Levaram a minha irmã!

Mas eles não eram melhores que ovelhas, e nunca o tinham sido. Deveria que saber disso.

Cuspiu sangue e saliva no chão com absoluto desprezo, cambaleou para a porta e saiu.

 

Os segredos constituem um aspecto importante do poder. O líder eficaz os pulveriza afim de manter a disciplina entre os homens.

Príncipe RAPHAEL CORRINO,

Discursos sobre a liderança em um império galáctico, 12.a edição.

 

O homem com cara de furão se erguia como um corvo à espreita no segundo nível da Residência de Arrakeen. Contemplava o átrio espaçoso.

— Tem certeza que sabem de nossa pequena velada, hummm? — Seus lábios estavam gretados por causa do ar seco, fazia anos —. Todos os convites foram entregues em pessoa? O povo foi informado?

O conde Hasimir Fenring se inclinou para o magro chefe de sua guarda pessoal, Geraldo Willowbrook, que estava a seu lado. O homem, com seu uniforme escarlate e dourado, assentiu, e entreabriu os olhos para protegê-los da brilhante luz que entrava em jorros através das janelas prismáticas, protegidas por escudos de força.

— Será uma grande celebração do aniversário de sua chegada ao planeta, senhor. Os mendigos já estão se aglomerando em frente a porta principal.

— Hummm, bem, muito bem. Minha esposa se sentirá satisfeita.

Na planta baixa, um chef levava um serviço de café para a cozinha. Aromas de comida se elevavam em volta dos dois homens, sopas e molhos exóticos preparados para a extravagante festa da noite, brochetas de carne de animais que jamais tinham vivido em Arrakis.

Fenring segurou uma balaustrada de tamarindo esculpido. Um teto gótico arqueado se erguia dois pisos acima de suas cabeças, com vigas de madeira da Elacca e clarabóias de plaz. Embora musculoso, não era um homem grande, e se encontrava diminuído pela imensidão da casa. Ele mesmo tinha ordenado a construção do teto, e de outro idêntico na sala de jantar. A nova asa leste também era de sua invenção, com seus elegantes quartos de convidados e opulentas piscinas privadas.

Na década que cumpria como Observador Imperial no planeta deserto, tinha impulsionado um sem-fim de construções. Depois de seu exílio forçado da corte de Kaitain, tinha que deixar sua marca.

Da estufa em construção, perto dos aposentos privados que compartilhava com lady Margot, ouviu o zumbido de ferramentas elétricas, junto com os cânticos dos operários. Cortavam portais em forma de arco, colocavam fontes secas em ocos, adornavam paredes com mosaicos geométricos de cores alegres. Para trazer boa sorte, uma das dobradiças que sustentavam uma porta muito ornamentada tinha a forma da mão da Fátima, amada filha de um antigo profeta da Velha Terra.

Fenring estava a ponto de se despedir de Willowbrook, quando um sonoro estrondo fez o chão tremer. Os dois homens correram pelo corredor curvo, flanqueado de prateleiras. Criados picados pela curiosidade espiaram das habitações e elevadores.

A porta do estufa oval estava aberta, e revelava uma massa de metal e plaz emaranhados. Um dos operários requeria aos gritos a presença de um médico, fazendo-se ouvir por cima dos gritos. Todo um andaime flutuante viera abaixo. Fenring jurou que administraria em pessoa um castigo apropriado, assim que a investigação descobrisse bode expiatório mais conveniente.

Fenring entrou na sala e elevou a vista. Viu um céu amarelo limão através do marco metálico aberto do teto arqueado. Só se tinham instalado umas poucas janelas com cristais filtrantes. Outras estavam destroçadas entre os restos do andaime. Falou com tom de irritação.

— No momento mais desafortunado, hummm? Esta noite ia mostrá-lo a nossos convidados.

— Sim, desafortunado, conde Fenring, senhor.

Willowbrook olhou enquanto os operários começavam a procurar vítimas entre os escombros.

Médicos com uniforme caqui entraram correndo na zona do acidente. Um deles atendeu um homem com a cara ensangüentada, ao qual acabavam de resgatar dos escombros, enquanto dois homens ajudavam a levantar uma pesada folha de plaz caída sobre outras vítimas. O andaime tinha esmagado o capataz. Estúpido, pensou Fenring, mas afortunado, tendo em conta o que eu teria feito a ele por este desastre.

Fenring consultou seu crono. Faltavam duas horas para que os convidados chegassem. Fez um gesto a Willowbrook.

— Controle esta zona. Não quero que chegue nenhum ruído daqui durante a festa. Isso não transmitiria a mensagem correta, hummm? Lady Margot e eu preparamos as festividades contudo cuidado, até o último detalhe.

Willowbrook franziu o sobrecenho, mas cuidou para não desafiar as ordens.

— Assim se fará, senhor. Em menos de uma hora.

Fenring fervia de raiva. Na realidade, pouco lhe importavam as plantas exóticas, e tinha concordado com esta cara reforma apenas como concessão a sua esposa Bene Gesserit, lady Margot. Embora ela só tivesse pedido uma modesta câmara estanque com plantas em seu interior, Fenring, sempre ambicioso, a tinha transformado em algo muito mais impressionante. Concebeu planos para recolher amostras estranhas da flora de todo o Império.

Se a estufa pudesse ser terminada algum dia...

Acalmou-se e saudou Margot na entrada abobadada, quando ela retornava dos labirínticos mercados de souk da cidade. A mulher, uma esbelta loira de olhos verde-cinzentos, figura perfeita com feições impecáveis, superava-o quase em uma cabeça. Vestia um manto desenhado para realçar sua figura, o tecido negro salpicado de pó das ruas.

— Encontraste os nabos de Ecaz, querida?

O conde contemplou com avidez os dois pesados pacotes, envoltos em grosso papel de especiaria marrom, que dois servos seguravam. Como soubera da chegada de um mercador naquela tarde, a bordo de um Cruzeiro, Margot tinha ido a Arrakeen para comprar buscadas hortaliças. Fenring tentou olhar sob os pacotes de papel, mas ela afastou sua mão com uma palmada brincalhona.

— Tudo está preparado, querido?

— Hummm, tudo vai bem — disse ele —. Entretanto, esta noite não poderemos visitar sua nova estufa. Está muito desordenada para nossos convidados.

 

Lady Margot, enquanto esperava para receber os convidados importantes, erguia-se no átrio da mansão, adornado em seu nível inferior coberto em madeira com retratos de imperadores Padishah, que remontavam até o lendário general Faykan Corrin, que lutara na Jihad Butleriana, e o culto príncipe Raphael Corrino, assim como Fondil III o Caçador e seu filho Elrood IX.

No centro do átrio, uma estátua de ouro mostrava o imperador atual, Shaddam IV, com o uniforme Sardaukar e uma espada cerimoniosa erguida. Era uma das muitas obras caras que o imperador tinha realizado na primeira década do seu reinado. Havia numerosos exemplos ao redor da residência e seus terrenos, presentes do amigo da infância de seu marido. Embora os dois homens tivessem brigado na época da ascensão de Shaddam ao trono, pouco a pouco tinham se reconciliado.

Através das portas duplas que isolavam do pó entravam damas vestidas com elegância, acompanhadas por homens vestidos com smokings pos-butlerianos negros como asa de corvo e uniformes militares de variadas cores. Margot vestia um vestido comprido até o chão, de tafetá de seda com lentejoulas esmeralda no sutiã.

Quando um arauto uniformizado anunciava seus convidados, Margot os saudava. Entravam no grande salão, onde se ouviam muitas gargalhadas, conversas e tinido de copos. Animadores da Casa Jongleur realizavam números circenses e cantavam canções engenhosas para celebrar os dez anos dos Fenring em Arrakis.

Seu marido desceu a grande escada vindo do segundo piso. O conde Fenring vestia um smoking azul escuro com uma faixa púrpura sobre o peito, feito sob medida para ele em Bifkar. Abaixou-se para que ele pudesse beijar seus lábios.

— Entre e dê as boas-vindas aos nossos convidados, querido, antes que o barão monopolize todas as atenções.

Fenring se esquivou de uma ávida duquesa de aspecto desalinhado, vinda de um dos sub-planetas Corrino. A duquesa passou um detector de venenos sobre sua taça de vinho antes de beber, e depois guardou o aparelho em um bolso de seu vestido de baile.

Margot seguiu seu marido com a vista, ele se encaminhava para falar com o barão Harkonnen, que detinha na atualidade o feudo de Arrakis e seu rico monopólio de especiaria. A luz de um fogo ofuscante, potencializado por prismas de crisol, dotava às torcidas feições do barão de um aspecto sinistro. Tinha aspecto muito ruim.

Durante os anos que Fenring e ela estavam no planeta, o barão os convidava para jantar em sua fortaleza ou para presenciar lutas de gladiadores, com escravos de Giedi Prime. Era um homem perigoso e confiante em si mesmo. O barão se apoiava em uma bengala dourada cuja cabeça recordava à boca de um verme de areia de Arrakis.

Margot percebera que a saúde do barão declinara drasticamente durante a última década. Padecia de uma misteriosa enfermidade muscular e neurológica que o fazia engordar. Por suas irmãs Bene Gesserit sabia o motivo dos problemas físicos, que tinham recaído sobre ele quando violara a reverenda mãe Gaius Helen Mohiam. Não obstante, o barão jamais descobrira a causa da sua aflição.

A própria Mohiam, outra convidada cuidadosamente selecionada para este acontecimento, passou ante a linha de visão de Margot. A grisalha reverenda madre usava um hábito com um colar cravejado de diamantes. Saudou com um sorriso tenso. Enviou uma mensagem e uma pergunta com um sutil movimento de dedos. “Que notícias há para a madre superiora Harishka? Me dê detalhes. Devo informá-la.»

Os dedos de Margot responderam: “Progressos sobre o assunto da Missionária Protetiva. Só rumores, nada confirmado. Irmãs desaparecidas ainda sem localizar. Muito tempo. Pode ser que estejam todas mortas.”

Mohiam não pareceu satisfeita. Tinha trabalhado em uma ocasião com a Missionária Protetiva, uma valiosa divisão da Bene Gesserit que difundia superstições em planetas afastados. Mohiam tinha dedicado muitos anos da sua juventude ao papel de mulher de cidade, que disseminava informação e potencializava superstições que podiam beneficiar a Irmandade. Mohiam nunca conseguira infiltrar-se na fechada sociedade fremen, mas ao longo dos séculos muitas outras irmãs tinham ido às profundezas do deserto para misturar-se aos fremen... e tinham desaparecido.

Já que estava em Arrakis em sua qualidade de consorte do conde, tinham pedido a Margot que confirmasse o trabalho sutil da Missionária. Até o momento só tinha escutado informes sem confirmação, a respeito de reverendas mães que se uniram aos fremen e passado para a clandestinidade, assim como rumores de rituais religiosos das Bene Gesserit entre as tribos. Ao que parecia, um sietch isolado tinha uma mulher santa; viajantes cobertos de pó tinham falado em uma loja de café de certa cidade sobre um messias claramente inspirado pela Panoplia Propheticus... mas nenhuma destas informações chegava dos fremen. O povo do deserto, como seu planeta, parecia impenetrável.

Possivelmente os fremen assassinaram as mulheres Bene Gesserit e roubaram a água de seus corpos.

“A estas a areia as tragou”, comunicaram os dedos de Margot.

“Tanto faz, encontre-as.” Com uma sacudida de cabeça que interrompeu a conversa silenciosa, Mohiam atravessou a sala em direção a uma porta lateral.

— Rondo Tuek —gritou o arauto —, o mercador de água.

Margot se voltou e viu um homem de cara larga, mas robusto, que cruzava o vestíbulo com um estranho passo oscilante. Mechas cinzas pendiam aos lados de sua cabeça e franjas finas sulcavam seu crânio. Tinha os olhos cinzas muito separados.

— Ah, sim... O contrabandista.

As bochechas lisas de Tuek avermelharam, mas um amplo sorriso fendeu seu rosto quadrado. Agitou um dedo em sua direção, como um professor admoestando um estudante.

— Sou um fornecedor de água que trabalha a toque de caixa para extrair umidade das calotas polares.

— Sem a diligência de sua família, estou segura de que o Império ruiria.

— Minha senhora é muito generosa.

Tuek fez uma reverência e entrou no grande salão.

Nos subúrbios da residência, os mendigos se ruíram com a esperança de que o conde tivesse um de seus estranhos gestos de benevolência. Outros espectadores tinham ido observar os mendigos, e contemplavam desejosos a fachada ornamentada da mansão. Vendedores de água, com o traje tradicional tingido de vivas cores, agitavam suas campainhas e lançavam o misterioso grito do Soo-soo Sook junto às portas. Guardas emprestados pelas tropas Harkonnen e obrigados a usar o uniforme imperial para o acontecimento, mantinham a raia aos indesejáveis e abriam caminho para os convidados. Era um circo.

Quando o último dos convidados esperados chegou, Margot olhou para um antigo crono embutido na parede, adornado com figuras mecânicas e delicados carrilhões. Estavam uma meia hora atrasados. Correu para o lado do seu marido e sussurrou em seu ouvido. Fenring enviou um mensageiro aos Jongleurs, e guardaram silêncio, um sinal conhecido para os convidados.

— Podem fazer o favor de me dar atenção, hummm? — gritou Fenring. Lacaios vestidos com aparato chegaram para escoltar os assistentes —. Nos reuniremos de novo na sala de jantar.

Conforme à tradição, o conde e a condessa Fenring desfilaram atrás do último dos convidados.

A cada lado do amplo portal que dava acesso a sala de jantar havia bacias de lajes incrustadas de ouro, decoradas com complexos mosaicos que continham os emblemas da Casa Corrino e da Casa Harkonnen, de acordo com a necessidade política. O emblema que identificava o governante anterior de Arrakis, a Casa Richese, tinha sido apagado com grandes esforços para substituí-lo pelo grifo azul dos Harkonnen. Os convidados se detinham ante as bacias, mergulhavam as mãos na água e jogavam um pouco no chão. Depois de secar as mãos, jogavam as toalhas em um monte cada vez maior.

O barão Harkonnen tinha sugerido este costume para demonstrar que para um governador planetário pouco importava a escassez de água. Era uma otimista demonstração de riqueza. Fenring gostara da idéia, e se instituíra o procedimento, com um giro benevolente, apesar de tudo: lady Margot viu uma forma de ajudar os mendigos, de uma maneira bastante simbólica. Com o consentimento a contra gosto de seu marido, anunciou que no final de cada banquete os mendigos seriam convidados a reunirem-se em frente a mansão, afim de receber a água que pudessem espremer das toalhas molhadas.

Margot, com as mãos formigantes e molhadas, entrou no longo salão com seu marido. Tapeçarias antigas adornavam as paredes. Globos de luz salpicavam a sala, todos dispostos à mesma altura sobre o chão, todos sintonizados no espectro amarelo. Sobre a reluzente mesa de madeira pendia uma aranha de cintilante quartzo de Hagal azul esverdeado, com um sensível detector de venenos oculto na parte superior da cadeia.

Um pequeno exército de lacaios separava da mesa as cadeiras dos convidados e estendia um guardanapo sobre o regaço de cada comensal. Alguém tropeçou e jogou ao chão um centro de mesa de cristal, que se fez pedacinhos. Os criados se apressaram a recolher os restos e a substituí-lo. Todo mundo fingiu não dar-se conta.

Margot, sentada à cabeceira da larga mesa, saudou com um dar de cabeça elegante ao planetólogo Pardot Kynes e a seu filho de doze anos, que se sentaram ladeando-a. Estava surpresa com o homem do deserto, ele tinha aceito seu convite, e esperava descobrir até que ponto eram certos os rumores que corriam sobre ele. Segundo sua experiência, festas como estas se destacavam pelas conversas irresponsáveis e pela hipocrisia, embora algumas coisas não escapassem à atenção de uma ardilosa observadora Bene Gesserit. Examinou com cautela o homem magro, e se fixou em um remendo no pescoço cinza de sua casaca de ornamento, e no enérgico contorno de sua mandíbula, coberta por uma barba loira.

A reverenda madre Mohiam sentou-se a duas cadeiras de distância dela. Hasimir Fenring presidia a mesa, com o barão Harkonnen a sua direita. Consciente de que o barão e Mohiam se odiavam, Margot os tinha colocado bastante afastados.

Fenring estalou os dedos, e os criados carregados com bandejas de pratos exóticos saíram por portas laterais. Percorreram a mesa, identificaram o manjar e serviram rações em cada prato.

— Obrigado por nos convidar, lady Fenring — disse o filho de Kynes olhando para Margot. O planetólogo tinha apresentado o jovem como Weichih, que significava “bem amado”. Observou que ele se parecia com o pai, mas o Kynes de maior idade tinha um olhar sonhador, Weichih possuía dureza, produto de ter crescido em Arrakis.

Margot lhe sorriu.

— Um de nossos chefs é um fremen da cidade, que preparou uma especialidade dos sietch para o banquete, pasteizinhos de especiaria com mel.

— A cozinha fremen alcançou categoria imperial? — perguntou Pardot Kynes com um sorriso irônico. Parecia nunca ter considerado a comida como algo além de mero sustento, e pensava que um jantar oficial constituía uma distração dos trabalhos mais sérios.

— A cozinha é uma questão de... gosto. — Margot escolheu as palavras com diplomacia. Seus olhos cintilaram.

— Considero sua resposta uma negativa — disse o homem.

Altas donzelas extra-planetarias foram servindo vinho azul impregnado de melange. Para assombro dos residentes, apareceram bandejas de frutos do mar, rodeados de mexilhões de Buzzell. Até os habitantes mais ricos de Arrakis provavam em escassas ocasiões os frutos do mar.

— Ah! — exclamou Fenring, satisfeito, do outro extremo da mesa, quando um criado levantou a tampa de uma bandeja —. eu adoro os nabos de Ecaz, hummm. Obrigado, querida.

O criado cobriu as hortaliças com um molho escuro.

— Nenhum gasto é excessivo para nossos honoráveis convidados — disse Margot.

— Vou explicar por que estas hortaliças são tão caras — grunhiu um diplomata de Ecaz, atraindo a atenção de todos. Bindikk Narvi era um homem pequeno, de voz profunda e troante —. A sabotagem de colheitas reduziu drasticamente nossos fornecimentos para todo o Império. Chamamos esta nova calamidade de “praga do Grumman”. — Transpassou com o olhar o embaixador de Grumman, sentado frente dele, um homem corpulento que bebia sem cessar, de pele escura e enrugada —. Nós também descobrimos uma sabotagem biológica em nossos bosques de árvores de névoa, no continente de Elacca.

Todo o Império valorizava as esculturas de árvores de névoa de Ecaz, que eram esculpiam controlando o crescimento com o poder da mente humana.

Apesar do seu tamanho, o homem de Moritani, Lupino Ord, falou com voz aflautada.

— Uma vez mais, os ecazi fingem escassez para aumentar os preços. Um truque antiquísimo, que se remonta a época em que seus antepassados ladrões foram expulsos da Velha Terra depois de cair em desgraça.

— As coisas não ocorreram assim...

— Por favor, cavalheiros — atravessou Fenring. Os grumman sempre foram muito volúveis, dispostos a deixar-se levar por uma fúria vingadora assim que percebiam o insulto mais leve. Fenring a considerava uma característica aborrecida e desagradável. Olhou para sua mulher —. Cometemos algum engano na distribuição de assentos, querida, hummm?

— Talvez na lista de convidados — replicou ela.

Risadas educadas e forçadas se elevaram ao redor da mesa. Os dois homens em litígio se calaram, embora se fulminassem com o olhar.

— Agrada-me ver que nosso eminente planetólogo veio com seu filho — disse o barão Harkonnen com tom untuoso —. Um menino muito atraente. Tem a distinção de ser o convidado mais jovem.

— É uma honra para mim me encontrar entre uma companhia tão distinta — respondeu o moço.

— Educaram-no para seguir os passos do seu pai, conforme me disseram — continuou o barão. Margot detectou um sutil sarcasmo em sua voz de baixo —. Não sei o que faríamos sem um planetólogo..

A verdade era que Kynes pouco aparecia na cidade, e quase nunca entregava os relatórios solicitados pelo imperador, embora Shaddam pouco se importasse. Margot tinha descoberto por seu marido que o imperador estava ocupado com outros assuntos, cuja natureza ignorava.

Os olhos do jovem cintilaram. Levantou uma garrafa de água.

— Posso propor um brinde aos nossos anfitriões?

Pardot Kynes piscou devido à audácia de seu filho, como se estivesse surpreso por tal delicadeza social não lhe ter ocorrido antes.

— Uma sugestão excelente — exclamou o barão. Margot se deu conta de que arrastava as palavras, devido ao consumo excessivo de melange.

O moço de doze anos falou com voz firme, antes de tomar um gole.

— Que a generosidade que exibem aqui, com tanta comida e abundância de água, seja tão somente um pálido reflexo da riqueza de seus corações.

Os convidados fizeram coro ao brinde, e Margot detectou um brilho de cobiça em seus olhos. O planetólogo, nervoso, disse por fim o que desejava expressar, quando o tinido de taças acabou.

— Conde Fenring, soube que construiu uma grande estufa. Eu gostaria de muito vê-la.

De repente, Margot compreendeu por que Kynes tinha aceito o convite, o motivo de ter saído do deserto. O homem, vestido com sua casaca e calças, simples mas confortáveis, coberto por uma capa de cor areia, parecia mais um fremen que um funcionário imperial.

— Soube do nosso pequeno segredo, hummm? — Fenring umedeceu os lábios, aparentando desconforto —. Tinha a intenção de mostrá-lo aos meus convidados esta noite, mas certos... atrasos deploráveis o impediram. Talvez em outro momento.

— Ao construir um estufa particular, não brinca com coisas que o povo de Arrakis não pode ter? — perguntou o jovem Weichih.

— Ainda — murmurou Pardot Kynes.

Margot o ouviu. Interessante. Compreendeu que seria um erro subestimar aquele homem tosco, e também o seu filho.

— Não há dúvida de que reunir plantas de todo o Império é um objetivo admirável — disse com paciência —. Considero uma exibição das riquezas que o universo oferece, mais que um aviso das necessidades do povo.

Pardot Kynes repreendeu seu filho em voz baixa mas firme.

— Não viemos aqui para impor nossos pontos de vista a outros.

— Ao contrário, peço que exponham suas opiniões — Margot se apressou a dizer, ao mesmo tempo que tentava ignorar os olhares insultantes que os embaixadores de Ecaz e Grumman trocavam —. Não nos sentiremos ofendidos, prometo-lhe.

— Sim — disse um importador de armas cartaginense, sentado no centro da mesa. Seus dedos estavam tão carregados de anéis que mal podia levantar as mãos —. Conte-nos a opinião dos fremen. Todos queremos saber!

Kynes assentiu lentamente.

— Vivo com eles há muitos anos. Para começar a compreender os fremen, tem que compreender que a sobrevivência é sua principal prioridade. Não desperdiçam nada. Tudo é reciclado para voltar a ser utilizado.

— Até a última gota de água — disse Fenring —. Até a água dos cadáveres, hummm?

Kynes passeou a vista entre seu filho e Margot.

— E sua estufa particular necessitará de uma grande quantidade desta água preciosa para sua manutenção.

— Ah, mas como Observador Imperial no planeta, posso fazer o que desejar com os recursos naturais — disse Fenring —. Considero que a estufa de minha esposa é um investimento positivo.

— Ninguém duvida dos seus direitos — disse Kynes, em um tom tão firme como a Muralha Escudo —. E eu sou o planetólogo do imperador Shaddam, assim como também fui de Elrood IX. Todos estamos obrigados por nossos deveres, conde Fenring. Não escutará de meus lábios discursos sobre ecologia. Limitei-me a responder a pergunta de sua esposa.

— Bem, planetólogo, nesse caso, nos diga algo que não saibamos sobre o Arrakis — disse o barão —. Está a muito tempo aqui. É a possessão Harkonnen em que perco mais homens. A Corporação nem sequer é capaz de pôr em órbita satélites meteorológicos suficientes para vigilância e fazer previsão metrológica. É o mais frustrante.

— E, graças a especiaria, Arrakis é também muito produtivo — disse Margot —. Em especial para você, querido barão.

— O planeta desafia toda compreensão — disse Kynes —. Será necessária mais que minha breve existência para determinar o que acontece aqui. Só sei apenas que temos que aprender a viver com o deserto, não combatê-lo.

— Os fremen nos odeiam? — perguntou a duquesa Caula, uma prima do imperador. Sustentava cravadas no garfo moelas condimentadas com conhaque.

— É uma comunidade fechada em si mesma, e desconfiam dos que não são fremen. Mas é um povo sincero e honrado, com um código de honra que ninguém desta mesa, nem sequer eu, compreende completamente.

Margot formulou a próxima pergunta com um elegante arcar de sobrancelhas, enquanto vigiava a reação do seu interlocutor.

— É verdade o que chegou a nossos ouvidos, que o senhor se transformou em um deles, planetólogo?

— Continuo a ser um servidor do Império, minha senhora, embora há muito que aprender sobre os fremen.

Ergueram-se murmúrios desde diferentes assentos, acompanhados por comentários, enquanto os primeiros pratos chegavam.

— Nosso imperador ainda não tem herdeiro — disse Lupino Ord, o embaixador de Grumman. A voz do homem era um pouco alta. Tinha bebido sem parar —. Só duas filhas, Irulan e Chalice. Não que as mulheres não sejam valiosas... — Passeou um olhar malicioso com seus olhos negros como o carvão, e captou os olhares desaprovadores de várias damas sentadas à mesa —. Mas sem um herdeiro, a Casa Corrino tem que abrir caminho para outra Grande Casa.

— Se viver tanto como Elrood, nosso imperador talvez fique no trono ainda por um século — assinalou Margot —. Talvez não estejam informados que lady Anirul está grávida de novo.

— Em algumas ocasiões, meus deveres me mantêm afastado das notícias recentes — admitiu Ord. Ergueu sua taça de vinho —. Esperemos que o próximo seja varão.

— Bravo, bravo! — gritaram vários comensais.

Mas o diplomata ecazi, Bindikk Narvi, fez um gesto obsceno. Margot tinha ouvido falar da lendária animosidade entre o arquiduque Armand Ecaz e o visconde Moritani de Grumman, mas não conhecia a gravidade da situação. Arrependeu-se de ter sentado os dois rivais tão perto.

Ord agarrou uma garrafa de pescoço fino e se serviu de mais vinho azul, antes que um criado se adiantasse.

— Conde Fenring, possui muitas obras de arte que mostram nosso imperador... quadros, estátuas, gosta de sua efígie. Shaddam não investe muito dinheiro em encargos auto-aduladores? Eles surgem por todo o Império.

— E sempre há alguém que os caça ou derruba — disse o importador de armas de Carthag com uma gargalhada zombeteira.

Em deferência ao planetólogo e ao seu filho, Margot escolheu um pastelzinho de melange da bandeja de sobremesas. Talvez os convidados não tivessem ouvido os outros rumores, que esses bondosos presentes continham aparelhos de vigilância que controlavam as atividades que aconteciam ao longo do Império. Como a placa cravada na parede que havia atrás de Ord.

—Shaddam deseja deixar sua marca como governante, hummm? — comentou Fenring —. Há muitos anos que o conheço. Deseja distanciar-se da política do seu pai, tão dilatada no tempo.

— Talvez, mas está deixando de lado o treinamento dos Sardaukar, enquanto permite que as promoções de seus generais... Como se chamam?

— Bursegs — disse alguém.

— Sim, enquanto permite que as promoções dos seus bursegs aumentem, com pensões exorbitantes e outros prêmios. A moral dos Sardaukar está relaxando, pois se exige cada vez mais com recursos cada vez menores.

Margot reparou que seu marido tinha adotado um silêncio inquietante. Contemplava o bêbado imprudente com os olhos entreabertos.

Uma mulher sussurrou algo ao embaixador de Grumman, que acariciou com um dedo a borda da taça.

— Ah, sim. Desculpo-me por dizer o evidente a alguém que conhece tão bem o imperador.

— Você é um idiota, Nord! — trovejou Narvi, como se estivesse esperando a chance de insultá-lo.

— E você é um imbecil e um homem morto.

O embaixador de Grumman ficou em pé, derrubando a cadeira. moveu-se com rapidez e precisão. Tinha sido sua embriaguez uma desculpa para provocar o outro homem?

Lupino Ord desembainhou um cortador a raios e disparou repetidas vezes contra seu adversário. Tinha planejado provocar seu rival ecazi? Os cortadores rasgaram o rosto e o peito do Narvi, e o mataram antes que os venenos das afiadas folhas surtissem efeito.

Os comensais gritaram e fugiram em todas as direções. Alguns lacaios seguraram o cambaleante embaixador e tomaram a arma. Margot estava petrificada em seu assento, mais estupefata que aterrorizada, onde falhei? Até que extremos chega esta animosidade entre Ecaz e a Casa Moritani?

— Prendam-no em um dos túneis subterrâneos — ordenou Fenring —. Que esteja vigiado em todo momento.

— Possuo imunidade diplomática! — protestou Ord em voz alta —. Não ousarão me prender.

— Jamais pense que sabe do que sou capaz. — O conde contemplou as expressões sobressaltadas que o olhavam —. Poderia permitir que meus convidados o castigassem, exercendo assim sua própria... imunidade, hummm?

Fenring moveu um braço, e levaram o homem, até que pudesse ser devolvido a Grumman são e salvo.

Uma equipe de médicos entrou correndo, os mesmos que Fenring tinha visto antes no desastre da estufa. Não puderam fazer nada pelo mutilado embaixador de Ecaz.

Quantos cadáveres caíram hoje, pensou Fenring. E não matei ninguém.

— Hummm — disse a sua mulher, de pé ao seu lado —. Temo que isto se transformará em um... incidente. O arquiduque de Ecaz apresentará um protesto oficial, e ninguém sabe como reagirá o visconde Moritani.

Ordenou aos lacaios que levassem o cadáver do Narvi do salão. Muitos convidados tinham fugido para outras salas da mansão.

— Enviamos os servos para procurar as pessoas? — Apertou a mão da sua esposa —. Odeio que a noite termine assim. Possivelmente poderíamos chamar os Jongleurs, para que contem histórias divertidas.

O barão Harkonnen se aproximou deles, apoiado em sua bengala.

— É sua jurisdição, conde Fenring, não a minha. Envie um relatório ao imperador.

— Eu cuidarei disso — disse Fenring —. Viajo para Kaitain por outro assunto, e darei a Shaddam os detalhes necessários. E as desculpas apropriadas.

 

Nos dias da Velha Terra havia peritos em venenos, pessoas de uma inteligência tortuosa especialistas no que era conhecido como “os pós da herança”.

Extrato de um videolivro, Biblioteca Real de Kaitain

 

Beely Ridondo, o chambelán da corte, atravessou a porta com um sorriso de orgulho.

— O senhor têm uma nova filha, sua Majestade Imperial. Sua esposa acaba de dar a luz uma menina sã e bela.

Em vez de alegrar-se, o imperador Shaddam IV amaldiçoou baixo e se despediu do homem. E são três! Do que me serve outra filha?

Estava de muito mau humor, pior que nunca desde a conspiração para expulsar seu decrépito pai do Trono do Leão Dourado. Shaddam entrou em seu estúdio privado com uma exalação, e passou sob uma antiga placa que rezava “A lei é a ciência definitiva”, uma tolice do príncipe herdeiro Raphael Corrino, um homem que nunca tinha se incomodado em manter a coroa imperial. Fechou a porta a suas costas e acomodou seu corpo anguloso na poltrona de respaldo alto que flutuava em frente a sua mesa.

Shaddam, um homem de média estatura, tinha um corpo de músculos fofos e nariz aquilino. Usava suas longas unhas cuidadosamente manicuradas, e o cabelo avermelhado penteado para trás com gel. Vestia um uniforme cinza dos Sardaukar com galões e adornos chapeados e dourados, mas os adornos militares não o consolavam como antes.

Muitas coisas ocupavam sua mente, além do nascimento de outra menina. Fazia pouco, em um concerto de ornamento celebrado em um dos estádios de Harmonthep, alguém tinha solto um globo com uma efígie gigantesca de Shaddam IV. Obscenamente insultante, a chamativa caricatura lhe dava ar de bufão. O globo tinha rolado sobre as multidões risonhas, até que os guardas dragão de Harmonthep o tinham reduzido a pedacinhos com seus fuzis. Até um idiota compreendia o significado que encerrava aquele ato. Face as torturas e interrogatórios mais exacerbados, nem mesmo os investigadores Sardaukar tinham conseguido descobrir quem era o responsável pela criação ou lançamento da efígie.

Em outro incidente escreveram com letras de cem metros de altura na muralha de granito do Monument Canyon, em Canidar II: “Shaddam, repousa sua coroa com comodidade sobre sua cabeça bicuda?” Em diferentes planetas do seu império, tinham desfigurado dúzias de suas novas estátuas comemorativas. Ninguém tinha visto os culpados.

Alguém o odiava o suficiente para fazer isto. Alguém. A pergunta continuava atormentando seu coração, além de outras preocupações... incluindo uma iminente visita de Hasimir Fenring para informar sobre os experimentos secretos sobre a especiaria sintética que os Tleilaxu estavam realizando.

Projeto Amal.

Iniciada durante o reinado do seu pai, muito poucas pessoas sabiam sobre essa pesquisa. O Projeto Amal, talvez o segredo melhor guardado do Império, podia proporcionar à Casa Corrino uma fonte inesgotável e artificial de melange, a substância mais preciosa do universo. Mas os malditos experimentos tleilaxu estavam exigindo muitos anos, e a situação o irritava mais a cada mês que passava.

E agora... uma terceira filha! Não sabia quando se daria ao trabalho de conhecer esta nova e inútil menina, se é que alguma vez chegaria a fazer isso.

O olhar de Shaddam se deslocou ao longo da parede chapada, até uma livraria que continha uma holofoto de Anirul vestida de noiva, junto a um grosso volume de consulta sobre grandes desastres históricos. Tinha enormes olhos de gazela, de cor avelã a certa luz, mais escuros em outros momentos, que ocultavam algo. Deveria ter percebido antes.

Era a terceira vez que esta Bene Gesserit de “patente oculta” fracassava na tentativa de lhe dar um herdeiro, e Shaddam precisava de planos de emergência para tal eventualidade. Seu rosto avermelhou. Claro que poderia engravidar várias concubinas e confiar que dessem a luz um filho homem, mas como estava casado legalmente com Anirul, enfrentaria tremendas dificuldades políticas se tentasse proclamar um bastardo como herdeiro do trono imperial.

Também podia matar Anirul e tomar outra esposa (seu pai tinha feito isso muitas vezes), mas tal ação provocaria a ira da irmandade Bene Gesserit. Tudo se solucionaria se Anirul lhe desse um filho, um menino são que pudesse designar como herdeiro.

Tantos meses de espera, e agora isto...

Tinha ouvido que as bruxas podiam escolher o sexo de seus filhos mediante manipulações na química corporal. Estas filhas não podiam ser um acidente. As intermediárias da Bene Gesserit que lhe tinham endossado Anirul o enganaram. Como ousavam fazer isso ao imperador de um milhão de planetas? Qual era o verdadeiro propósito de Anirul? Estava recolhendo material para chantageá-lo? Devia repudiá-la?

Tamborilou com um lápis sobre sua mesa de madeira de Elacca, enquanto contemplava a imagem de seu avô paterno, Fondil III. Conhecido como “o Caçador” por sua propensão a aniquilar qualquer vestígio de rebelião, Fondil não tinha sido menos temido em seu próprio lar. Embora o velho tivesse morrido muito tempo antes de Shaddam nascer, sabia algo dos métodos e disposições de ânimo do Caçador. Se Fondil topasse com uma esposa arrogante, teria encontrado uma forma de desfazer-se dela...

Shaddam apertou um botão de seu escritório, e seu chambelán pessoal voltou a entrar no estúdio. Ridondo fez uma reverência e exibiu sua calva brilhante.

— Senhor?

— Desejo ver Anirul. Agora.

— Está deitada, senhor.

— Não me obrigue a repetir a ordem.

Sem uma palavra mais, Ridondo desapareceu pela porta lateral com longos movimentos de aranha.

Momentos depois, uma pálida e excessivamente perfumada dama de companhia apareceu.

— Meu imperador — disse com voz tremula —, minha senhora Anirul deseja que lhes comunique que ela está debilitada pelo nascimento de sua filha. Suplica sua indulgência para que permita continuar deitada. Poderia considerar a idéia de ir vê-la, a ela e ao bebê?

— Entendo. Suplica minha indulgência? Não me interessa ver outra filha inútil, nem ouvir mais desculpas. Esta é a ordem do seu imperador: Anirul tem que vir agora. Tem que fazê-lo sozinha, sem a ajuda de nenhum criado ou artefato mecânico. Expressei-me com clareza?

Com sorte, cairia morta antes de chegar.

Aterrorizada, a dama de companhia fez uma reverência.

— Como desejar, senhor.

Ao fim de algum tempo, uma Anirul de pele cinzenta apareceu na soleira do estúdio, apoiada a uma coluna. Vestia um manto escarlate e dourado que não chegava a ocultar sua camisola. Embora seus pés falhassem, mantinha a cabeça erguida.

— O que pode dizer em sua defesa? — perguntou o imperador.

— O parto foi difícil, e estou muito fraca.

— Desculpas, desculpas. É inteligente para saber a que me refiro. foi bastante ardilosa para me enganar durante todos estes anos.

— Enganá-lo? — Piscou, como se Shaddam tivesse perdido o juízo —. Perdoe-me, Majestade, mas estou cansada. Por que têm que ser tão cruel, me chamando a sua presença e se negando a ver sua filha?

Shaddam tinha os lábios exangues, como se todo o sangue os tivesse abandonado. Seus olhos eram mares serenos.

— Porque poderia me dar um herdeiro varão, mas se nega.

— Isso não é verdade, Majestade, só rumores.

Necessitou de toda sua preparação Bene Gesserit para continuar de pé.

— Eu recebi informes de inteligência, não rumores. — O imperador olhou para ela com um olho, como se pudesse vê-la com maior detalhe —. Deseja morrer, Anirul?

Ela pensou que talvez ele fosse matá-la. A verdade é que não existe amor entre nós, mas se arriscaria a incorrer na ira da Bene Gesserit se acabasse comigo? No momento de sua ascensão ao trono, Shaddam tinha concordado em desposá-la porque necessitava da força de uma aliança com a Bene Gesserit em um clima político intranqüilo. Agora, depois de uma dúzia de anos, Shaddam se sentia muito confiante em seu posto.

— Todo mundo morre — disse ela.

— Mas não da forma que eu poderia ordenar.

Anirul tentou não demonstrar a menor emoção, e se recordou que não estava sozinha, que sua psique albergava as lembranças coletivas de multidões de Bene Gesserit que a tinham precedido e se conservavam na Outra Memória. Falou com voz serena.

— Não somos as bruxas tortuosas e malvadas que se diz.

Não era verdade, é obvio, embora soubesse que Shaddam só podia ter suspeitas em sentido contrário.

O semblante de seu marido não se suavizou.

— O que é mais importante para você... suas irmãs ou eu?

Anirul meneou a cabeça, contrita.

— Não têm direito de me perguntar isso. Jamais lhe dei motivos para pensar que não sou leal à coroa.

Anirul levantou a cabeça com orgulho e se recordou do lugar que ocupava no longo histórico da Irmandade. Nunca admitiria que tinha recebido ordens da hierarquia Bene Gesserit de não dar a luz um filho varão da estirpe Corrino. A sabedoria de suas irmãs ressoou em sua mente. O amor enfraquece. É perigoso, porque nubla a razão e nos distrai de nossos deveres. É uma aberração, uma desgraça, uma infração imperdoável. Não podemos amar.

Anirul tentou distrair a ira de Shaddam.

— Aceite sua filha, senhor, porque pode utilizá-la para cimentar alianças políticas importantes. Deveríamos negociar seu nome. O que acha de Wensicia? — Alarmada, tomou consciência de uma umidade morna entre suas coxas. Sangue? Teriam soltado os pontos? Gotas vermelhas estavam caindo sobre o tapete. Viu que Shaddam estava olhando para seus pés. Uma nova fúria se refletiu nas feições do imperador.

— Esse tapete pertenceu a minha família durante séculos!

Não dê sinais de fraqueza. Ele é um animal... A vontade controla a fraqueza e devolve a energia. Voltou-se pouco a pouco, deixando que caíssem mais algumas gotas, e depois se afastou com passo inseguro.

— Tendo em conta a história da Casa Corrino, tenho certeza de que se manchou de sangre em outras ocasiões.

 

Diz-se que, em todo o universo, não há nada seguro, nada equilibrado, nada duradouro, nada permanece em seu estado original, se produzem mudanças a cada dia, a cada hora, a cada momento.

Panóplia Propheticus da Bene Gesserit

 

Uma figura solitária se erguia no final do longo mole que corria sob o castelo de Caladan, perfilada contra o mar e o sol nascente. Tinha um rosto fino de pele oleácea, com um nariz que lhe dava aspecto de falcão.

Uma frota de barcos de pesca acabava de zarpar. Homens vestidos com jérseis grossos, jaquetões e chapéus de ponto perambulavam pelas cobertas, preparando os arranjos. No povoado, fios de fumaça surgiam das chaminés. Os aldeãos a chamavam de “cidade velha”, a convocação do povoado original, séculos antes que se construíssem na planície situada sob o castelo a elegante capital e o espaçoporto.

O duque Leto Atreides, vestido informalmente com calças de pescar azuis e uma blusa branca com o emblema do falcão vermelho, aspirou uma profunda baforada de ar salgado revigorante. Embora fosse o chefe da Casa Atreides, representante de Caladan no Landsraad e para o imperador, Leto gostava de levantar-se cedo com os pescadores. Às vezes convidavam o duque a seus lares, e face às objeções do chefe de segurança, Thufir Hawat, que não confiava em ninguém, reunia-se de vez em quando com eles para comer a base de ciopão.

O vento salgado aumentou de intensidade e desenhou espuma na água. Tinha vontade de acompanhar os homens, mas suas responsabilidades no planeta eram muito entristecedoras. E também havia assuntos importantes em escala interplanetária. Devia fidelidade ao Império tanto como a seus súditos, e se encontrava metido na medula de problemas complicados.

O brutal assassinato de um diplomata de Ecaz nas mãos de um embaixador Grumman não era pouca coisa, nem sequer no longínquo Arrakis, mas dava a impressão de que o visconde Moritani não se importava com a opinião pública. As Grandes Casas já estavam pedindo a intervenção imperial para evitar um conflito em maior escala. No dia anterior, Leto tinha enviado uma mensagem ao Conselho do Landsraad, oferecendo-se como mediador.

Só tinha vinte e seis anos, mas já era um veterano com uma década à frente de uma Grande Casa. Atribuía seu êxito ao fato de nunca ter perdido o contato com suas raízes. Disso podia dar graças a seu falecido pai, Paulus. O velho duque tinha sido um homem simples que gostava de misturar-se com seu povo, como o duque Leto fazia agora. Seu pai devia ter sabido (embora nunca o admitisse para Leto) que também era uma boa tática política, pois lhe rendia o carinho do seu povo. As exigências do cargo suportavam uma complicada mistura. Às vezes, Leto não sabia onde começavam e terminavam suas personalidades pública e privada.

Pouco depois de ter assumido as responsabilidades do cargo, Leto Atreides tinha assombrado o Landsraad com seu dramático Julgamento de Confisco, uma audaz manobra destinada a evitar a acusação de ter atacado duas naves tleilaxu no interior de um Cruzeiro da Corporação. A jogada de Leto tinha impressionado a muitas Grandes Casas, e recebido uma carta de felicitação de Hundro Moritani, o ardiloso e desagradável visconde de Grumman, que freqüentemente se negava a colaborar, e até a participar, em assuntos do Império. O visconde disse que admirava a “insolente manobra das normas efetuada por Leto”, o que demonstrava que “a liderança é obra de homens fortes com convicções fortes, não de funcionários que estudam as virgulas das leis”. Leto não estava muito seguro de que Moritani acreditasse em sua inocência. Acreditava que o visconde gostara de ver o duque Atreides ter saído incólume de acusações tão terríveis.

Do outro lado da disputa, Leto também mantinha contatos com a Casa Ecaz. O velho duque, seu pai, tinha sido um dos grandes heróis da Revolta de Ecaz, lutando ao lado de Dominic Vernius para derrotar os separacionistas violentos e defender os governantes do mundo vegetal protegido pelo Landsraad. Paulus Atreides tinha acompanhado o agradecido e jovem arquiduque Armand Ecaz durante a cerimônia de celebração da vitória que lhe tinha restaurado no Trono de Mogno. Entre as posses do velho duque se contava a Cadeia da Valentia que Armand Ecaz tinha colocado ao redor de seu grosso pescoço. Além disso, os advogados que tinham defendido Leto durante o julgamento na sede do Landsraad tinham vindo da região ecazi de Elacca.

Já que era respeitado pelos dois bandos em litígio, Leto pensava que talvez poderia encontrar uma forma de forçá-los a fazer as pazes. Política! Seu pai sempre o ensinara a levar em conta a situação global, dos elementos mais insignificantes até os mais decisivos.

Leto tirou do bolso da blusa um vocoder e ditou uma carta para sua primo, Shaddam IV, felicitando-o pelo nascimento de um novo filho. A mensagem seria enviada através de um correio oficial no próximo Cruzeiro da Corporação que partisse para Kaitain.

Quando Leto já não pôde ouvir o chapinho das barcos de pesca, subiu o caminho sinuoso que conduzia até o alto do escarpado.

Tomou o café da manhã no pátio em companhia de Duncan Idaho, que já tinha completado vinte anos. O jovem de cara redonda vestia o uniforme verde e negro do guarda Atreides. Tinha o grosso cabelo muito curto, para que não lhe atrapalhasse quando treinava no manejo das armas. Thufir Hawat lhe tinha dedicado muitas horas, e dizia que era um estudante muito dedicado, mas Duncan já alcançara os limites do que o guerreiro Mentat podia lhe ensinar.

Quando menino, escapara dos calabouços Harkonnen no castelo de Caladan, onde tinha se posto à mercê do velho duque. Quando crescera, continuara a ser um dos membros mais leais da Casa Atreides, e o que melhor usava as armas. Os mestres espadachins de Ginaz, aliados militares da Casa Atreides há muito tempo, tinham admitido Duncan Idaho em sua academia.

— Lamentarei sua partida, Duncan — disse Leto —. Oito anos é muito tempo...

Duncan estava sentado muito rígido, sem expressar o menor temor.

— Mas quando retornar, meu duque, poderei servi-lo melhor em todos os sentidos. Ainda serei jovem, e ninguém ousará ameaçá-lo.

— Oh, ainda continuam me ameaçando, Duncan. Não se engane.

O jovem fez uma pausa antes de lhe dedicar um sorriso leve e duro.

— Nesse caso, serão eles quem cometerão um engano. Não eu. — levou uma fatia de melão Paradan à boca, mordeu a fruta amarela e secou o suco salgado que escorria pelo seu queixo —. Sentirei falta destes melões. A comida dos barracões não tem comparação.

Cortou a fatia em porções menores.

Trepadeiras de buganvília subiam pelas paredes de pedra que os rodeavam, mas ainda era inverno e as plantas não tinham florescido. Não obstante, devido a um calor incomum e ao adiantamento da primavera, já tinham começado a aparecer brotos nas árvores. Leto suspirou de satisfação.

— Não vi um lugar mais belo em todo o Império que Caladan na primavera.

— Certamente, Giedi Prime não chega nem perto. — Duncan ergueu a guarda, inquieto ao ver o aspecto relaxado e plácido de Leto —. Temos que estar sempre vigilantes, meu duque, sem nos permitir a menor fraqueza. Não esqueça jamais a velha inimizade entre os Atreides e os Harkonnen.

— Você fala como Thufir. — Leto engoliu uma colherada do pudim de arroz pundi —. Estou seguro de que não existe homem melhor que você a serviço dos Atreides, Duncan. Mas temo que talvez vamos criar um monstro ao enviá-lo para um adestramento de oito anos. O que será quando voltar?

O orgulho se refletiu nos profundos olhos verde-azulados do jovem.

— Serei um mestre espadachim de Ginaz.

Por um longo momento, Leto pensou nos graves perigos da escola. Quase uma terça parte dos estudantes morriam durante o treinamento. Duncan tinha zombado das estatísticas, dizendo que já tinha sobrevivido a situações piores contra os Harkonnen. E tinha razão.

— Sei que vai triunfar — disse Leto. Sentiu um nó na garganta, uma profunda tristeza pela partida de Duncan —. Mas nunca pode esquecer a compaixão. Aprenda o que aprender, não retorne acreditando ser melhor que outros homens.

— Não o farei, meu duque.

Leto procurou debaixo da mesa, tirou um pacote longo e fino e o entregou a seu interlocutor.

— Este é o motivo de solicitar sua companhia para o café da manhã.

Duncan, surpreso, abriu-o e extraiu uma espada cerimoniosa muito trabalhada. Aferrou o pomo.

— A espada do velho duque! Vai emprestá-la para mim?

— É um presente, meu amigo. Lembra quando o encontrei na sala de armas, pouco depois que meu pai morreu no arena? Tinha tirado a espada da prateleira. Na época era quase tão alta quanto você, mas agora já a superou.

Duncan não encontrou palavras para agradecer. Leto olhou para o jovem de cima abaixo.

— Acredito que se meu pai tivesse vivido para ver o homem em que se transformou, ele mesmo teria lhe dado isso. Já é adulto, Duncan Idaho, e digno da espada de um duque.

— Bom dia — disse uma voz alegre. O príncipe Rhombur Vernius entrou no pátio, com cara de sono mas já vestido. O anel de jóias de fogo em sua mão direita cintilou à luz do sol. Sua irmã Kailea caminhava a seu lado, com o cabelo acobreado preso por um broche de ouro. Rhombur passeou o olhar entre a espada e as lágrimas que brilhavam nos olhos de Duncan —. O que está acontecendo aqui?

— Dei a Duncan um presente de despedida.

Rhombur assobiou.

— Muito generoso para uma menino de quadras.

— Talvez o presente seja excessivo — disse Duncan, olhando para o duque Leto. Contemplou a espada, e depois desviou a vista para Rhombur —. Nunca voltarei a trabalhar nas quadras, príncipe Vernius. A próxima vez que o vir serei um mestre espadachim.

— A espada é sua, Duncan — disse Leto em um tom mais firme, imitado de seu pai —. Não discutiremos mais o assunto.

— Como desejar, meu duque. — Duncan fez uma reverência — Peço que me desculpe, pois devo preparar minha viagem.

O jovem cruzou o pátio em grandes passos.

Rhombur e Kailea se sentaram à mesa, onde tinham disposto os pratos do seu café da manhã. Kailea sorriu para Leto, mas não com seu habitual estilo carinhoso. Durante anos, o casal tinha dado voltas nas pontas dos pés ao redor da relação romântica, pois o duque não desejava implicar-se mais devido a razões políticas, a necessidade de desposar a filha de uma Grande Casa poderosa. Os motivos eram os mesmos que o velho duque lhe tinha inculcado uma e outra vez, a responsabilidade do duque para com o povo de Caladan. Leto e Kailea só deram as mãos uma vez. Nem sequer a beijara ainda.

— A espada do seu pai, Leto? — perguntou Kailea, baixando a voz —. Era necessário? É muito valiosa.

— É apenas mais um objeto, Kailea. Significa mais para Duncan que para mim. Eu não preciso de uma espada para convocar doces lembranças do meu pai. — Leto reparou na barba loira incipiente que aparecia no rosto do seu amigo, o que contribuía para que Rhombur parecesse mais um pescador que um príncipe —. Quando foi a última vez que se barbeou?

— Infernos vermelhos! Que mais tem meu aspecto? — Tomou um gole do suco de cidrit, mas fez uma careta ao sentir a acidez —. Como se tivesse algo importante a fazer.

Kailea, que comia com rapidez e em silêncio, estudou seu irmão. A jovem tinha olhos verdes penetrantes. Sua boca de gata fez uma careta de desaprovação.

Quando Leto olhou para Rhombur, reparou que o rosto do seu amigo ainda conservava certa aparência própria da infância, mas os olhos castanhos já não eram brilhantes. Em troca, revelavam uma profunda tristeza pela perda do seu lar, o assassinato de sua mãe e o desaparecimento do seu pai. Agora, do que tinha sido uma grande família, só restavam sua irmã e ele.

— Suponho pouco importe — disse Leto —. Hoje não nos aguardam assuntos de estado, nem alguma viajem gloriosa a Kaitain. De fato, poderia parar de se banhar definitivamente. — Leto remexeu sua terrina de pudim de arroz pundi. Então, sua voz adquiriu um tom brusco —. Entretanto, continua a ser membro de minha corte, e um de meus conselheiros de maior confiança. Esperava que desenvolvesse um plano para recuperar suas posses e posição perdidas.

Como um aviso constante dos dias gloriosos de IX, quando a Casa Vernius tinha governado o mundo máquina antes da conquista dos tleilaxu, Rhombur usava ainda a hélice púrpura e cobre no pescoço de todas as camisas. Leto observou que a camisa de Rhombur estava muito enrugada e necessitava de uma lavagem.

— Leto, se tivesse alguma idéia do que tinha que fazer, embarcaria no próximo Cruzeiro e o tentaria. — Parecia confuso —. Os tleilaxu fecharam IX atrás de barreiras impenetráveis. Quer que Thufir Hawat envie mais espiões? Os três primeiros nunca conseguiram chegar à cidade subterrânea, e os dois últimos desapareceram sem deixar rastro. — Juntou os dedos —. Só posso confiar em que os ixianos leais estejam combatendo do interior e derrotem logo os invasores. Espero que tudo saia bem.

— Meu amigo o otimista — disse Leto.

Kailea franziu o sobrecenho e falou por fim.

— Passaram-se doze anos, Rhombur. Quanto tempo vai esperar que tudo se arrume por magia?

Seu irmão, incomodado, tentou mudar de assunto.

— Soube que a esposa de Shaddam deu a luz à sua terceira filha?

Kailea soprou.

— Conhecendo Shaddam, com certeza está muito aborrecido por não ter um herdeiro.

Leto se negou a aceitar pensamentos tão negativos.

— O mais provável é que esteja muito contente, Kailea. Além disso, sua esposa ainda pode lhe dar muitos filhos ainda. — Virou-se para Rhombur —. O que me recorda, velho amigo, que precisa arrumar uma esposa.

— Que cuide para que esteja sempre limpo e barbeado?

— Para começar sua Casa de novo, talvez. Para continuar a estirpe de Vernius com um herdeiro no exílio.

Kailea esteve a ponto de dizer algo. Terminou o melão, mordiscou uma torrada. Depois, desculpou-se e se levantou da mesa.

Durante o longo silêncio que se seguiu, brilharam lágrimas nas pálpebras do príncipe ixiano, que depois escorreram por suas bochechas. Secou-as, envergonhado.

— Sim. Estive pensando nisso. Como soube?

— Você já me disse isso mais de uma vez, depois de ter dado conta de duas ou três garrafas de vinho.

— É uma idéia louca. Minha Casa morreu, IX caiu nas mãos de um punhado de fanáticos.

— Bem, pois comece uma nova Casa Menor em Caladan, um novo negócio familiar. Poderíamos olhar a lista de indústrias e pensar no que não existe. Kailea tem um olho bom para os negócios. Eu proporcionarei os recursos que necessitar para se estabelecer.

Rhombur se permitiu uma risada agridoce.

— Minha fortuna sempre estará estreitamente vinculada a sua, duque Leto Atreides. Não, prefiro ficar aqui, vigiando suas costas, para impedir que dilapide todo o castelo.

Leto assentiu sem sorrir, e enlaçaram as mãos no meio aperto do Império.

 

A natureza não comete erros, erros e acertos são criações humanas.

PARDOT KYNES, Discursos em Arrakis.

 

Dias monótonos. A patrulha Harkonnen, composta por três homens, sobrevoava as ondulações douradas das dunas ao longo de um plano de vôo de mil quilômetros. Na paisagem implacável do deserto, até uma rajada de pó causava entusiasmo.

Os patrulheiros descreveram um longo círculo em seu ornitóptero couraçado, contornaram montanhas, e depois se desviaram para o sul sobre grandes planícies. Glossu Rabban, sobrinho do barão e governador provisório de Arrakis, tinha ordenado que voassem com regularidade para deixar-se ver, para demonstrar aos miseráveis povoados que os Harkonnen estavam vigiando. Sempre.

Kiel, o artilheiro, considerava a missão uma permissão para caçar qualquer fremen que encontrassem vagabundeando perto dos lugares onde se extraia especiaria. Por que aqueles vagabundos sujos imaginavam que podiam entrar nas terras dos Harkonnen sem permissão do escritório do distrito em Carthag? De qualquer modo, poucos fremen eram surpreendidos à luz do dia, e a tarefa estava se tornando pesada.

Garan pilotava o tóptero. Subia e descia como se estivesse em um brinquedo. Mantinha uma expressão estóica, embora às vezes um sorriso aparecesse em seus lábios. Ao terminar seu quinto dia de patrulha, continuava anotando discrepâncias em mapas topográficos, e resmungava cada vez que descobria um novo erro. Eram os piores mapas que utilizara em sua vida.

No compartimento de passageiros se sentava Josten, que acabava de chegar de Giedi Prime. Acostumado às instalações industriais, os céus cinzentos e os edifícios sujos, Josten contemplava as planícies arenosas e estudava as hipnóticas configurações das dunas. Divisou uma nuvem de pó para o sul, nas profundezas da Planície Funeral.

— O que é isso? Uma operação de recolhimento de especiaria?

— Nem pensar — disse Kiel —. Os colhedores lançam ao ar um fio de fumaça similar a um cone, reto e magro.

— Muito baixo para um demônio do pó. Muito pequeno. — Garan deu de ombros, moveu os controles do tóptero e se dirigiu para a nuvem parda —. Vamos dar uma olhada.

Depois de tantos dias tediosos, teriam fugido da rotina para ir investigar uma rocha grande que sobressaísse da areia...

Quando chegaram ao lugar, não encontraram rastros, nem maquinaria, nem o menor sinal de presença humana, os hectares de deserto pareciam devastados. Bolinhas coloridas manchavam as areias de um ocre mais escuro, parecido com sangue seco sob o sol abrasador.

— Parece que alguém jogou uma bomba aqui — comentou Kiel.

— Pode ser resultado de uma explosão de especiaria — sugeriu Garan —. Vamos aterrissar.

Quando o tóptero pousou sobre as areias calcinadas. Kiel abriu a escotilha. A atmosfera de temperatura controlada escapou com um vaio e foi substituída por uma onda de calor. Tossiu por causa do pó.

Garan se inclinou para frente e aspirou ar com força.

— Cheirem. — O aroma de canela queimada atacou seu olfato —. Uma explosão de especiaria, sem dúvida.

Josten passou junto a Kiel e saltou ao chão. Inclinou-se, assombrado, recolheu um punhado de areia ocre e a roçou com os lábios.

— Podemos colher especiaria fresca e levá-la. Deve valer uma fortuna.

Kiel tinha estado pensando no mesmo, mas se voltou com cenho carregado para o recém-chegado.

— Não temos equipamento para processamento. É preciso separá-la da areia, e não é possível fazer isso com os dedos.

Garan falou em voz mais baixa, mas também mais firme.

— Se voltássemos para Carthag e tentássemos vender o produto bruto a um vendedor das ruas, seriam levados presos até o governador Rabban... ou pior ainda, teria que explicar ao conde Fenring como um pouco de especiaria do imperador terminou nos bolsos de um patrulheiro.

Enquanto os soldados se aproximavam do poço irregular que havia no centro da nuvem de pó já dissipada, Josten olhou ao redor.

— Não corremos perigo? Os grandes vermes não vem reclamar a especiaria?

— Está com medo, rapaz? — perguntou Kiel.

— Nós o jogaremos para o verme se virmos um — sugeriu Garan —. Nos dará tempo de fugir.

Kiel observou movimentos na escavação arenosa, formas que serpenteavam, coisas enterradas que faziam túneis e escavavam, como vermes em carne podre. Josten abriu a boca para dizer algo, mas voltou a fechá-la.

Um ser parecido com um chicote emergiu da areia, de dois metros de comprimento e pele carnuda segmentada. Era do tamanho de uma serpente grande, e sua boca era um círculo aberto que cintilava com dentes afiados como agulhas.

— Um verme de areia! — exclamou Josten.

— É só é um filhote — disse Kiel, desdenhoso.

— Tem certeza? — perguntou Garan.

O verme moveu sua cabeça sem olhos de um lado para outro. Outros seres similares, todo um ninho, apareceram ao redor, como se tivessem sido expulsos pela explosão.

— De onde demônios saíram? — perguntou Kiel.

— Não constava em meu relatório — disse Garan.

— Podemos... pegar um? — perguntou Josten.

Kiel reprimiu uma réplica sarcástica, quando compreendei que o novato tivera uma boa idéia.

— Vamos!

Correu para a areia calcinada.

O verme intuiu o movimento e retrocedeu, sem saber se atacava ou fugia. Arqueou-se como uma serpente marinha e afundou na areia.

Josten correu e se jogou no chão para agarrar o corpo segmentado que ainda não desaparecer.

— Como é forte!

O artilheiro o imitou e segurou a cauda.

O verme tentou libertar-se, mas Garan afundou as mãos na areia e agarrou sua cabeça. Os três patrulheiros puxaram com todas as suas forças. O pequeno verme se debatia como uma enguia em uma placa elétrica.

No lado oposto do poço, mais vermes emergiram como um estranho bosque de periscópios no mar de dunas, com as bocas negras voltas para os homens. Por um momento aterrador, Kiel temeu que fossem atacar como um enxame de sanguessugas, mas as crias fugiram, desaparecendo sob a areia.

Garan e Kiel arrastaram seu cativo até o ornitóptero. Como formavam uma patrulha Harkonnen, contava com todo o equipamento necessária para prender delinqüentes, incluindo aparelhos antiquados para amarrar um cativo como se fosse um animal.

— Josten, vá procurar as cordas que há no equipamento de tração — disse o piloto.

O novo recruta voltou correndo com as cordas, fez um laço que passou pela cabeça do animal e o apertou. Garan soltou a pele segmentada e puxou a corda com força, enquanto Josten passava uma segunda corda pelo seu corpo.

—O que vamos fazer com ele? — perguntou Josten.

Em uma ocasião, no princípio de sua chegada a Arrakis, Kiel tinha acompanhado Rabban em uma caçada de vermes. Tinham levado um guia fremen, soldados armados até os dentes, e até mesmo um planetólogo. Utilizaram o guia fremen como isca e atraíram um verme enorme, que mataram com explosivos, mas antes que Rabban pudesse apoderar-se de seu troféu a besta havia se dissolvido, transformado em seres similares a amebas que caíram na areia, sem deixar nada além de um esqueleto cartilaginoso e dentes de cristal soltos. Rabban se enfureceu.

Kiel sentiu um nó no estômago. O sobrinho do barão podia considerar um insulto que três simples patrulheiros fossem capazes de capturar um verme, quando ele não conseguira fazer o mesmo.

— É melhor que o afoguemos.

— Afogá-lo? — perguntou Josten —. Por que? E por que devo desperdiçar minha ração de água nisso?

Garan se deteve.

— Ouvi dizer que os fremen fazem isso. Se sufoca à cria de um verme, dizem que cospe uma espécie de veneno. É muito estranho.

Kiel assentiu.

— Oh, sim. Esses demônios do deserto o utilizam em seus rituais religiosos. Todo mundo se entrega a orgias, e muitos morrem.

— Mas... só temos dois litrojons de água no compartimento — disse Josten, ainda nervoso.

— Então só utilizaremos um. De qualquer forma, sei onde podemos voltar a enchê-lo.

O piloto e seu artilheiro trocaram um olhar. Tinham patrulhado juntos o suficiente para ter chegado a pensar exatamente o mesmo.

Como se soubesse o destino que o aguardava, o verme se debateu com maior violência ainda, mas já estava enfraquecendo.

— Quando conseguirmos a droga — disse Kiel —, passaremos isso em grande.

De noite, voaram em silêncio sobre as montanhas afiadas como facas, aproximaram-se por trás de uma colina e aterrissaram sobre uma meseta que dominava a aldeia de Bilar Camp. Os habitantes viviam em covas escavadas e em edifícios que se estendiam para as planícies. Moinhos de vento geravam eletricidade. Nos depósitos de suprimentos brilhavam diminutas luzes que atraíam algumas mariposas e morcegos que se alimentavam delas.

Ao contrário dos misteriosos fremen, estes aldeãos estavam mais civilizados, mas também mais oprimidos. Tratava-se de homens que trabalhavam como guias do deserto e se uniam às equipes que extraiam especiaria. Tinham esquecido como sobreviver em seu planeta sem transformarem-se em parasitas dos governadores planetários.

Em uma patrulha anterior, Kiel e Garan tinham descoberto uma cisterna camuflada na meseta, um tesouro em água. Kiel ignorava de onde os aldeãos tinham tirado tanto líquido. O mais provável era que tivessem cometido uma fraude, inchando o censo para que a generosidade Harkonnen proporcionasse mais do que mereciam

A gente de Bilar Camp havia coberto a cisterna com rocha para que parecesse uma proeminência natural, mas não tinham colocado guardas ao redor de suas reservas ilegais. Por algum motivo ignorado, a cultura do deserto proibia o roubo mais que o assassinato. Confiavam que suas posses estariam a salvo de bandidos ou ladrões noturnos.

É obvio, os patrulheiros não tinham a menor intenção de roubar a água... somente a que necessitassem.

Josten correu atrás deles carregado com seu contêiner, que guardava a espessa e venenosa substância exsudada pelo verme afogado. Nervosos e assustados pelo que tinham feito, jogaram o cadáver perto do perímetro da explosão de especiaria e partiram com a droga. Preocupava ao Kiel com as emanações tóxicas do verme guardadas no interior do litrojon.

Garan manipulou o grifo da cisterna, disfarçado com astúcia, e encheu um dos contêineres vazios. Era absurdo desperdiçar toda a água só para pregar uma peça pesada nos aldeãos. Em seguida, Kiel pegou o contêiner de bílis do verme e o esvaziou dentro da cisterna. Os aldeãos teriam uma boa surpresa da próxima vez que bebessem de suas reservas ilegais.

— Isso lhes servirá de lição.

— Sabe que efeito a droga causará? — perguntou Josten.

Garan negou com a cabeça.

— Ouvi muitas histórias absurdas.

— Possivelmente deveríamos deixar que o menino provasse antes — disse o artilheiro.

Josten retrocedeu e levantou as mãos. Garan deu uma olhada na cisterna poluída.

— Com certeza tiram a roupa e dançam nus pelas ruas, gritando como possessos.

— Vamos observar — disse Kiel.

Garan franziu o cenho.

— Você vai explicar a Rabban por que chegamos tão tarde da patrulha?

— Vamos — se apressou a responder Kiel.

Enquanto o veneno do verme poluía a cisterna, os patrulheiros voltaram correndo para seu ornitóptero, contentes a contra gosto de deixar que os aldeãos descobrissem a brincadeira por si mesmos.

 

Antes de nós, todos os métodos de aprendizagem estavam poluídos pelo instinto. Antes de nós, os investigadores viciados pelo instinto possuíam um período de atenção limitado, que com freqüência não se prolongava além da duração de sua vida. Não concebiam projetos que abrangessem cinqüenta gerações ou mais. O conceito do treinamento neuromuscular total não tinha penetrado em sua consciência. Nós aprendemos a aprender.

Livro de Azhar, Bene Gesserit

 

Na verdade é uma menina especial? A reverenda madre Gaius Helen Mohiam viu a menina de proporções perfeitas realizar exercícios neuromusculares prana-bindu sobre o chão de madeira dura do módulo de treinamento da Escola Materna.

Mohiam, que acabava de chegar do banquete interrompido de Arrakis, tentava analisar sua estudante com imparcialidade, reprimindo a verdade. Jessica. Minha filha... A moça não devia saber jamais de seus antecedentes, jamais devia suspeitar. Até mesmo nos anais de reprodução Bene Gesserit, não se identificava Mohiam com o sobrenome adotado ao ingressar na irmandade, mas sim por seu nome de nascimento, Tanidia Nerus.

Jessica, com doze anos, estava imóvel, os braços caídos aos lados, enquanto tentava relaxar, paralisar o movimento de todos os músculos do seu corpo. Segurava uma espada imaginária na mão direita, com a vista cravada em um competidor quimérico. armou-se de uma enorme paz interior e concentração.

Mas o olho penetrante de Mohiam tomou nota de sacudidas quase imperceptíveis na panturrilha de Jessica, ao redor de seu pescoço, sobre uma sobrancelha. Necessitaria de mais prática para aperfeiçoar as técnicas, mas a menina tinha realizado excelentes progressos e prometia muito. Jessica fora abençoada com uma paciência infinita, a capacidade de acalmar-se e escutar o que lhe diziam.

Tão concentrada... tão cheia de possibilidades. Tal como estava previsto desde antes de sua concepção.

Jessica fez uma finta à esquerda, flutuou, deu meia volta e voltou a transformar-se em uma estátua. Seus olhos, embora olhassem para Mohiam, não viam sua professora e mentora.

A severa reverenda madre entrou no módulo de treinamento, olhou para os limpos olhos verdes da moça e percebeu um grande vazio neles, como o olhar de um cadáver. Jessica tinha desaparecido, perdida em suas fibras musculosas e nervosas.

Mohiam umedeceu um dedo e o aproximou do nariz da jovem. Percebeu o mais ínfimo movimento de ar. Os seios incipientes do esbelto torso mal se moviam. Jessica estava muito perto de uma suspensão bindu total... mas ainda faltava algo.

Há muito trabalho duro.

Na Irmandade, só a perfeição total bastava. Como instrutora de Jessica, Mohiam repetiria as velhas rotinas uma e outra vez, revisando os passos que deviam ser seguidos.

A reverenda mãe retrocedeu, estudou Jessica mas não a despertou do transe. Tentou identificar no rosto ovalado da moça suas próprias feições, ou as de seu pai, o barão Vladimir Harkonnen. O pescoço comprido e o nariz pequeno refletiam a genética de Mohiam, mas o nariz, a boca grande, os lábios generosos e a pele clara vinham do barão... de quando ainda era são e atraente. Os olhos verdes, bem separados, e a cor brônzea do cabelo procediam de latências mais longínquas.

Se soubesse. Mohiam recordou o que lhe tinham contado sobre o plano da Bene Gesserit. A filha de Jessica, quando alcançasse a idade adulta, estava destinada a dar a luz ao Kwisatz Haderach, a culminação de milênios de cuidadosas reproduções. Mohiam examinou o rosto da jovem em busca de alguma insinuação de sua importância histórica. Ainda não está preparada para descobrir isso.

Jessica começou a falar, formando as palavras com a boca enquanto recitava um mantra tão antigo como a própria escola Bene Gesserit: “Cada atacante é uma pluma que flutua em um atalho infinito. Quando a pluma se aproxima, é desviada e eliminada. Minha resposta é um sopro que afasta a pluma.”

Mohiam retrocedeu quando sua filha se entregou a uma série de rápidos movimentos, com a intenção de flutuar graças a movimentos reflexos. Mas Jessica ainda se esforçava em obrigar seus músculos a flutuar em silêncio e com suavidade, quando deveria deixá-los atuar por si só.

Os movimentos da moça tinham melhorado, eram mais concentrados e precisos. Os progressos recentes de Jessica eram impressionantes, como se tivesse experimentado uma manifestação divina que a elevara ao próximo nível. Entretanto, Mohiam ainda detectava muita energia juvenil e intensidade transbordante.

A menina era o produto de uma brutal violação, obra do barão Harkonnen, depois que a Irmandade o chantageara afim de que lhes proporcionasse uma filha. Mohiam tinha executado sua vingança durante a agressão sexual, controlando sua química corporal interna à maneira Bene Gesserit, e o contagiara com uma enfermidade dolorosa e debilitante. Uma tortura deliciosamente lenta. À medida que aumentavam seus achaques, o barão se viu obrigado a utilizar uma bengala durante o Ano Padrão anterior. Durante o banquete de Fenring, Mohiam havia se sentido tentada a contar ao homem o que lhe tinha feito.

Mas se Mohiam houvesse contado, teria se produzido outra cena de violência na sala de jantar da residência de Arrakeen, muito pior que a escaramuça entre os embaixadores de Ecaz e Grumman. Talvez teria sido obrigada a matar o barão com suas mortíferas técnicas de luta. A mesma Jessica, apesar de seu treinamento limitado, poderia acabar com o homem (seu próprio pai) com rapidez e facilidade.

Mohiam ouviu um zumbido de maquinaria e viu que um boneco em tamanho natural emergia do chão. A próxima fase da rotina. Em um abrir e fechar de olhos, a moça se voltou e decapitou o boneco com apenas um golpe.

— Mais requinte. O golpe mortal tem que ser delicado, preciso.

— Sim, reverenda madre.

— De qualquer modo, estou muito orgulhosa com sua evolução.

Mohiam falou com um tom carinhoso muito pouco habitual, um tom que suas superioras teriam desautorizado se tivessem ouvido. O amor, em qualquer forma, estava proibido.

— A Irmandade tem grandes planos para você, Jessica.

 

“Xuttuh” é uma palavra que significa muitas coisas. Todo Bene Tleilax sabe que era o nome do primeiro mestre. Mas como esse homem era algo mais que um simples mortal, existem matizes e complexidades na apelação. Segundo o tom e a inflexão vocal, “Xuttuh” pode significar “olá” ou “bendito seja”. Ou, pode constituir uma oração resumida em uma só palavra, quando um devoto se prepara para morrer pelo Grande Credo. Por tais razões, nós a escolhemos como novo nome para o planeta conquistado, antes conhecido como IX.

Disco de Treinamento Tleilaxu

 

Um plano de contingência é tão bom como a mente que o forja.

Nas profundezas do labiríntico pavilhão de pesquisa, Hidar Fen Ajidica compreendia a máxima muito bem. Um dia, o homem do imperador tentaria matá-lo. Portanto, era necessário tomar cuidadosos preparativos.

— Peço que me siga, conde Fenring — disse Ajidica com seu tom mais agradável, ao mesmo tempo em que pensava: Powindah sujo. Olhou de esguelha para o homem. Deveria matá-lo agora!

Mas o pesquisador chefe não podia fazer isso sem arriscar sua vida, e talvez jamais contasse com uma oportunidade. E mesmo que a obtivesse, o imperador enviaria seus investigadores e mais tropas Sardaukar, que interfeririam no delicado trabalho.

— Alegra-me saber que por fim fizeram progressos no Projeto Amal. Elrood IX o encarregou disso a mais de uma dúzia de anos, hummm? — Fenring caminhava por um corredor da cidade subterrânea. Vestia uma jaqueta escarlate imperial e calças douradas muito justas e cabelo castanho cortado a navalha, se projetava para fora em alguns pontos para sublinhar a envergadura de sua cabeça —. fomos extremamente pacientes.

Ajidica vestia uma bata de laboratório branca de bolsos largos. Aromas químicos impregnavam sua roupa, seu cabelo e sua pele cinzenta como um cadáver.

— Avisei desde o começo que podia levar muitos anos desenvolver um produto final. Doze anos não é mais que um piscar para desenvolver uma substância que o Império desejou durante séculos e séculos.

As aletas de seu nariz se estreitaram quando forçou um sorriso pálido.

— Não obstante, tenho a satisfação de informar que nossas tanques de axlotl modificados cresceram, nossos experimentos preliminares foram realizados e analisados. Com base nisto, descartamos soluções pouco práticas, e assim reduzimos as possibilidades.

— Ao imperador não interessa “reduzir possibilidades”, pesquisador chefe, apenas os resultados. — A voz de Fenring era glacial —. Seus gastos foram imensos, mesmo depois que financiamos a conquista das instalações ixianas.

— Nossos registros resistiriam a qualquer auditoria, conde Fenring — disse Ajidica. Sabia muito bem que Fenring jamais permitiria que um banqueiro da Corporação analisasse os gastos. A Corporação Espacial, mais que qualquer outra entidade, não devia suspeitar do objetivo do projeto —. Todos os recursos foram investidos com sabedoria. Todas as reservas de especiaria estão consignadas, tal como acordamos à princípio.

— Seu acordo foi com Elrood, homenzinho, não com Shaddam, hummm? O imperador pode deter seus experimentos a qualquer momento.

Como todos os tleilaxu, Ajidica estava acostumado a ser insultado e provocado por idiotas. negou-se a levar em consideração a ofensa.

— Uma ameaça interessante, conde Fenring, tendo em conta que você em pessoa iniciou os contatos entre meu povo e Elrood. Conservamos registros nos planetas natais tleilaxu.

Fenring se irritou e continuou em frente, entrando no pavilhão de investigações.

— Bastou-me observá-lo, investigador chefe, para perceber algo — disse com voz untuosa —. Você desenvolveu fobia pelos túneis, hummm? O medo o assaltou recentemente, de repente.

— Frescura..

Apesar da negativa, a testa de Ajidica se cobriu de suor.

— Ah, mas detecto algo em sua voz e expressão. Toma medicação para os sintomas... um frasco de pílulas no bolso direito de sua jaqueta. Vejo o volume.

— Meu estado de saúde é perfeito — balbuciou Ajidica, tentando dissimular a raiva.

— Hummm, eu diria que sua saúde depende de quão bem vão as coisas aqui. Quanto antes terminar o Projeto Amal, antes voltará a respirar ar puro no belo Tleilax. Quando foi a última vez que esteve lá?

— Faz muito tempo — admitiu Ajidica —. Não pode imaginar como é. Nenhum powin... — conteve-se —. Nenhum forasteiro foi autorizado a sair do espaçoporto.

Fenring respondeu com um sorriso irritante.

— Mostre-me o que fizeram aqui, para que possa informar a Shaddam.

Ao chegar a uma porta, Ajidica levantou um braço para impedir que Fenring passasse. O tleilaxu fechou os olhos e beijou a porta reverentemente. O breve ritual desativou os mortíferos sistemas de segurança, e a porta desapareceu em estreitas aberturas na parede.

— Agora pode entrar sem perigo.

Ajidica se afastou para deixar Fenring entrar em uma sala branca de plaz liso, onde o investigador chefe tinha preparado certo número de demonstrações para exibir os progressos do experimento. No centro da enorme sala ovalada havia um microscópio de alta resolução, uma prateleira metálica que continha garrafas e frascos de laboratório, e uma mesa vermelha sobre a qual descansava um objeto em forma de cúpula. Ajidica captou um intenso interesse nos grandes olhos de Fenring quando se aproximou da zona de demonstrações.

— Não toque em nada, por favor.

Sutis linhas pendiam no ar, e este powindah imperial não as veria ou compreenderia até que fosse muito tarde. Ajidica tentava solucionar o enigma da especiaria artificial, para depois escapar com os sagrados tanques de axlotl para um planeta seguro, nos limites do Império. Tinha tomado uma série de medidas sem revelar sua identidade, utilizando promessas e subornos, transferindo recursos... tudo sem o conhecimento de seus superiores nos planetas propriedade dos Bene Tleilax. Estava sozinho nesta empresa.

Tinha decidido que existiam hereges entre seu próprio povo, seguidores que tinham adotado tão perfeitamente a identidade de bodes expiatórios oprimidos que esqueceram a essência do Grande Credo. Era como um Dançarino Facial que, disfarçado, tivesse esquecido quem era na realidade. Se Ajidica permitisse que essa gente acessasse sua grande descoberta, entregariam a única coisa que lhes traria a supremacia que mereciam.

Ajidica pensava em continuar fingindo até que estivesse preparado. Depois, podia apoderar-se da especiaria artificial, controlá-la e ajudar seu povo e sua missão... tanto se quisessem como se não.

O conde Fenring murmurou quando se aproximou mais da forma que descansava sobre a mesa.

— Muito intrigante. Suponho que há algo dentro, hummm?

— Há algo dentro de tudo — respondeu Ajidica.

Sorriu para si quando imaginou o mercado interplanetário inundado de especiaria artificial, o que provocaria uma catástrofe econômica no seio da CHOAM e do Landsraad. Como uma rachadura minúscula em um dique, um pingo de melange sintética se transformaria em uma corrente que derrocaria o Império. Se jogasse bem suas cartas, Ajidica seria o elemento fundamental da nova ordem política e econômica, não a seu serviço, é obvio, mas a serviço de Deus.

A magia de nosso Deus é nossa salvação.

Ajidica sorriu para o conde Fenring, e mostrou dentes afiados.

— Tenha segurança, conde Fenring, de que nossos objetivos neste assunto são mútuos.

Com o tempo, de posse de uma riqueza inimaginável, Ajidica desenvolveria provas para determinar a lealdade a seu novo regime, e começaria a assimilar os Bene Tleilax. Embora agora fosse muito perigoso incluí-los em seus planos, tinha vários candidatos em mente. Com o devido apoio militar (talvez convertidos das tropas Sardaukar estacionadas no planeta?), até poderia instalar o quartel geral na bela cidade de Bandalong...

Fenring continuava examinando o equipamento de demonstração.

— Conhece o ditado “confie mas comprove”? É da Velha Terra. Eles se surpreenderiam com as intrigas que conheço. Minha esposa Bene Gesserit coleciona objetos, quinquilharias e coisas pelo estilo. Eu coleciono fragmentos de informação.

O rosto estreito do tleilaxu compôs uma expressão carrancuda.

— Entendo. — Precisava terminar aquela irritante inspeção o quanto antes —. Se quiser olhar aqui, por favor...

Ajidica pegou um frasco de plaz opaco da estante e levantou a tampa. Surgiu um aroma que recordava gengibre, a bergamota e o prego. Passou o frasco a Fenring, que contemplou uma substância espessa de cor alaranjada.

— Ainda não é melange — disse Ajidica —, embora de um ponto de vista químico possui muitos precursores da especiaria.

Verteu o xarope sobre uma placa, introduziu-a no leitor do microscópio, e depois pediu a Fenring que olhasse pelo visor. O conde viu moléculas conectadas umas com outras como os filamentos de um cabo.

— Uma cadeia protéica pouco frequente — disse o pesquisador chefe —. Estamos perto de obter resultados.

— Quão perto?

— Nós também temos nossos ditos, conde Fenring: “quanto mais perto está de um objetivo, mais longínquo parece.” Em questões de pesquisa científica, o tempo se dilata. Só Deus possui um íntimo conhecimento do futuro. O resultado poderia acontecer em questão de dias, ou anos.

— Um galimatias — murmurou Fenring. Guardou silêncio quando Ajidica apertou um botão na base da cúpula.

A superfície nebulosa de plaz clareou, e revelou areia no fundo do contêiner. O investigador tleilaxu apertou outro botão, e o interior se encheu de um pó fino. A areia se remexeu, um diminuto montículo em movimento emergiu, como um peixe saindo de águas turvas. Em forma de verme, do tamanho de uma serpente pequena, media pouco mais do meio metro de comprimento, com diminutos dentes de cristal.

— Verme de areia, forma imatura — anunciou Ajidica —, se passaram dezenove dias desde que o trouxeram de Arrakis. Não acreditam que sobreviva muito mais.

Uma caixa caiu do alto da cúpula na areia, movida por um suspensor oculto, abriu-se e deixou ao descoberto mais gelatina alaranjada brilhante.

— Amal 1522.16 — disse Ajidica —. Uma de nossas muitas variantes, a melhor versão até o momento.

Fenring olhou enquanto a boca do verme imaturo investigava a direita e esquerda, ao mesmo tempo que revelava dentes cintilantes no fundo da garganta. O animal serpenteou até a substância laranja, depois se deteve, confuso, sem tocá-la. Depois, deu meia volta e mergulhou na areia.

— Qual é a relação entre os vermes de areia e a especiaria? — perguntou Fenring.

— Se soubéssemos, o enigma estaria solucionado. Se puséssemos especiaria real nessa jaula, o verme a consumiria imediatamente. De qualquer modo, embora o verme possa identificar a diferença, ao menos se aproximou da amostra. Tentamos a besta, mas não ficou satisfeita.

—Tampouco me satisfaz sua pequena demonstração. Me disseram que continua existindo um movimento clandestino ixiano que causa dificuldades. Shaddam está preocupado com as interrupções que possa sofrer seu plano mais importante.

— Alguns poucos rebeldes, conde Fenring, com recursos escassos e limitados. Não há nada com que se preocupar.

Ajidica esfregou as mãos.

— Mas sabotaram seu sistema de comunicações e destruíram certo número de instalações, hummm?

— A agonia da Casa Vernius, nada mais. Durou mais de uma década, e logo morrerá. É impossível que se aproximem deste pavilhão de pesquisa.

— Bem, suas preocupações a respeito da segurança terminaram, pesquisador chefe. O imperador concordou em enviar mais duas legiões Sardaukar, afim de manter a paz, sob o comando do Bashar Cando Garon, um de nossos melhores homens.

Uma expressão de alarme e surpresa invadiu o rosto do diminuto tleilaxu. Avermelhou.

— Mas isso não é necessário, senhor. A meia legião destacada é mais que suficiente.

— O imperador não vê assim. Estas tropas ressaltarão a importância de seus experimentos para ele. Shaddam fará todo o possível para proteger o programa Amal, mas sua paciência terminou. — Os olhos do conde se entreabriram —. Deveria considerar isso como uma boa notícia.

— Por que? Não entendo.

— Porque o imperador ainda não ordenou sua execução.

 

O centro de coordenação de uma rebelião pode ser ambulante. Não é preciso que as pessoas tenham um lugar permanente.

CAMMAR PILRU, embaixador ixiano no exílio,

Tratado sobre a queda de governos injustos

 

Os invasores tleilaxu tinham instituído um brutal toque de recolher para qualquer um que não estivesse atribuído ao último turno de noite. Para C'tair Pilru, escapulir para assistir as reuniões dos rebeldes era outra maneira de burlar suas restrições.

Nas reuniões clandestinas dos lutadores da liberdade, realizadas de maneira irregular, C'tair podia por fim tirar suas máscaras e disfarces. transformava-se na pessoa que tinha sido antes, a que continuava vivendo em seu interior.

Sabendo que o matariam se fosse capturado, o diminuto homem de cabelo curto se aproximou do lugar do encontro. Ocultava-se nas sombras oleosas da noite, entre os edifícios do chão da caverna, sem fazer o menor ruído. Os tleilaxu tinham restaurado o céu projetado no teto da caverna, mas haviam reconfigurado a miríade de estrelas que mostravam as constelações sobre seus planetas natais. Aqui em IX, até o firmamento estava errado.

Não era o lugar glorioso que deveria ser, era uma prisão infernal sob a superfície de um planeta. Mudaremos tudo. Algum dia.

Durante mais de uma década de repressão, os elementos do mercado negro e os revolucionários tinham construído sua rede secreta. Os grupos de resistência dispersos se reuniam para trocar fornecimentos, equipamentos e informação. Mas as reuniões punham C'tair nervoso. Se os surpreendessem juntos, a rebelião seria afogada em poucos minutos com o fogo de fuzis laser.

Sempre que era possível, preferia trabalhar sozinho, como sempre tinha feito. Como não confiava em ninguém, nunca divulgava detalhes de sua vida clandestina, nem sequer para outros rebeldes. Tinha estabelecido contatos privados com poucos forasteiros no porto de entrada, aberturas e plataformas de aterrissagem na parede vertical do escarpado, onde naves fortemente guardadas transportavam produtos tleilaxu para os Cruzeiros que aguardavam em órbita.

O Império necessitava de produtos vitais de tecnologia ixiana, que agora eram fabricados sob controle tleilaxu. Os invasores necessitavam de lucros para financiar seus trabalhos, e não podiam arriscar-se a um escrutínio exterior. Embora não pudessem isolar IX do resto do Império, os tleilaxu utilizavam os serviços de poucos forasteiros.

Às vezes, nas circunstâncias mais espantosas e com grave risco de sua vida, C'tair podia subornar algum trabalhador dos transportes para que lhe derivasse um carregamento ou roubasse um componente vital. Outros elementos do mercado negro contavam com seus próprios contatos, mas se negavam a trocar esta informação. Assim era mais seguro.

Enquanto deslizava em silêncio na noite claustrofóbica, passou junto a uma fábrica abandonada, dobrou por uma rua ainda mais escura e acelerou o passo. A reunião estava a ponto de começar. Talvez esta noite...

Embora parecesse uma empresa condenada ao fracasso, C'tair confiava em encontrar maneiras de sabotar os tleilaxu, e outros rebeldes faziam o mesmo. Furiosos por não poder capturar os sabotadores, os invasores davam “exemplo” com os desgraçados suboides. Depois de torturas e mutilações, o bode expiatório era lançado do balcão do Grande Palácio para o longínquo chão da caverna, onde em outra época se construíram grandes Cruzeiros. Cada expressão do rosto da vítima, cada ferida sanguinolenta, era projetada no holocéu, enquanto as gravadoras transmitiam seus uivos e gritos.

Mas os tleilaxu entendiam bem pouco da psique ixiana. Sua brutalidade só causava maior desassossego e mais incidentes de rebelião violenta. Com o passar dos anos, C'tair percebia o cansaço dos invasores, devido aos esforços por esmagar a resistência com Dançarinos Faciais infiltrados e módulos de vigilância. Os lutadores da liberdade continuavam combatendo.

Os poucos rebeldes com acesso a notícias do exterior não censuradas informavam sobre as atividades no Império. C'tair soube graças a eles dos apaixonados discursos que seu pai, o embaixador ixiano no exílio, pronunciava no Landsraad, pouco mais que gestos fúteis. O conde Dominic Vernius, que tinha sido destronado e transformado em renegado, desapareceu completamente, e seu herdeiro, o príncipe Rhombur, vivia exilado em Caladan, sem uma força militar e sem o apoio do Landsraad.

Os rebeldes não podiam contar com ajuda externa. A vitória teria que acontecer vinda do interior. De IX.

Dobrou outra esquina, entrou em um beco estreito e se deteve sobre uma grade. C'tair entreabriu os olhos, olhou a direita e esquerda, sempre à espera de que alguém saltasse das sombras. Seus movimentos eram velozes e furtivos, muito diferentes da rotina acovardada e cooperante que seguia em público.

Deu a contra-senha e a grade desceu, para que acessasse o subsolo. Caminhou rapidamente por um corredor escuro.

Durante o turno do dia, C'tair usava uma bata cinza de trabalho. Aprendera a imitar os abúlicos suboides ao longo dos anos. Caminhava com as costas encurvadas, os olhos indiferentes a tudo. Tinha quinze cartões de identificação, e ninguém se incomodava em escrutinar os rostos das massas de trabalhadores. Era fácil tornar-se invisível.

Os rebeldes tinham criado seus próprios controles de identificação. Postavam guardas camuflados diante da instalação abandonada, sob globos luminosos infravermelhos. Câmaras móveis e detectores sônicos proporcionavam um pouco mais de proteção, mas de nada serviriam se os lutadores da liberdade fossem descobertos.

Os guardas eram visíveis neste nível. Quando C'tair murmurou sua contra-senha, indicaram-lhe com um gesto que entrasse. Muito fácil. Tinha que tolerar a esta gente e seus inúteis joguinhos de segurança afim de adquirir o equipamento que necessitava, mas não se sentia confortável.

C'tair examinou o lugar de reunião. Ao menos, tinha sido selecionado com muito cuidado. Esta instalação tinha servido para manufaturar meks de combate, para treinar os guerreiros contra um amplo espectro de táticas ou armas. Entretanto, os dominadores tleilaxu tinham decidido de forma unilateral que tais máquinas “conscientes” violavam os princípios da Jihad Butleriana. Embora todas as máquinas pensantes tivessem sido destruídas dez mil anos antes, severas proibições continuavam vigentes. Este lugar, e outros semelhantes, tinham sido abandonados depois da revolta de IX, e as linhas de produção tinham caído em desuso. Alguns equipamentos tinham sido reaproveitados para outros usos, e o resto se transformou em sucata.

Outras metas preocupavam os tleilaxu. Trabalho secreto, um imenso projeto que só eles conheciam. Ninguém, nem sequer os membros do grupo de resistentes de C'tair, fora capaz de elucidar o que tinham em mente.

No interior da instalação, os resistentes falavam aos sussurros. Não havia ordem do dia, nem líder, nem discurso. C'tair sentiu o cheiro do suor nervoso, escutou estranhas inflexões nas vozes sussurrantes. Por mais precauções que tomassem, por mais planos de fuga que imaginassem, ainda era perigoso reunir tanta gente no mesmo lugar. C'tair sempre mantinha os olhos bem abertos e conhecia a saída mais próxima.

Tinha assuntos urgentes. Havia trazido uma bolsa camuflada que continha os objetos mais vitais que reunira. Precisava trocá-los com outros resistentes para encontrar os componentes necessários para seu inovador mas problemático transmissor, o Rogo. O protótipo lhe permitia comunicar-se através da dobra espacial com seu irmão gêmeo D'murr, um Navegante da Corporação. Mas C'tair conseguia em poucas ocasiões estabelecer contato, ou porque seu irmão tinha se transformado em um ser que não era mais humano... ou porque o transmissor estava falhando.

Tirou componentes de armas, fontes de energia, aparelhos de comunicação e equipamentos de escaneio, e os deixou sobre uma mesa metálica empoeirada. Eram objetos que provocariam sua execução sumária se algum tleilaxu o detivesse para interrogatório. Mas C'tair estava bem armado e teria matado antes o homem.

C'tair exibiu seus artigos. Escrutinou os rostos dos rebeldes, os toscos disfarces e as manchas de pó intencionadas, até localizar uma mulher de grandes olhos, maçãs do rosto proeminentes e queixo estreito. Usava o cabelo muito curto em um esforço por apagar todo sinal de beleza. Conhecia-a como Miral Alechem, embora fosse provável que esse não era seu verdadeiro nome.

C'tair descobria em seu rosto ecos de Kailea Vernius, a bela filha do conde Vernius. Tanto seu irmão gêmeo como ele tinham gostado de Kailea, tinham flertado com ela... quando pensavam que nada ia mudar jamais. Agora, Kailea estava exilada em Caladan, e D'murr era um Navegante da Corporação. A mãe dos gêmeos, uma banqueira da Corporação., tinha sido morta durante a conquista de IX. E C'tair vivia como um rato furtivo, saltando de esconderijo em esconderijo...

— Encontrei o cristalpak que precisava — disse Miral.

A mulher extraiu um objeto envolto de uma bolsa que pendia de seu cinturão.

— Tenho as varinhas de modular que necessitava, calibradas com precisão... espero. Não pude verificar.

C'tair agarrou o pacote, mas não examinou a mercadoria.

— Eu farei isso já.

Entregou a Miral o cristalpak, mas não perguntou o que ela pretendia fazer com ele. Todos os presentes procuravam formas de lutar contra os tleilaxu. O resto não importava. Enquanto trocava um olhar nervoso com ela, perguntou-se se estaria pensando o mesmo que ele, que em diferentes circunstâncias talvez teriam uma relação pessoal. Mas não podia permitir isso agora. Nem com ela nem com ninguém. Isso o enfraqueceria, o distrairia de seu objetivo. Tinha que permanecer concentrado, pelo bem da causa ixiana.

Um dos guardas da porta soou o alarme, e todos ficaram em atemorizado silêncio, ao mesmo tempo em que se agachavam. Os globos luminosos se apagaram. C'tair conteve o fôlego.

Um zumbido passou sobre suas cabeças quando um módulo de vigilância sobrevoou os edifícios abandonados, com a intenção de captar vibrações ou movimentos não autorizados. As sombras ocultavam os rebeldes. C'tair repassou em sua mente todas as possíveis vias de fuga da instalação, se por acaso precisasse fugir às cegas.

Mas o zumbido se afastou. Pouco depois, os nervosos rebeldes levantaram-se e começaram a murmurar entre si, enquanto secavam o suor do rosto e soltavam gargalhadas nervosas.

C'tair, assustado, decidiu não ficar nem um segundo mais. Memorizou as coordenadas do próximo lugar de reunião, recolheu o resto de seu equipamento, passeou a vista ao redor, esquadrinhou as caras uma vez mais, gravou-as em sua mente. Se o apanhassem, possivelmente não voltaria a vê-los nunca mais.

Despediu-se de Miral Alechem com uma sacudida de cabeça e se mergulhou na noite ixiana, iluminada por estrelas artificiais. Já tinha decidido onde passar o resto de seu turno de dormir, e que identidade escolheria para o dia seguinte.

Diz-se que os fremen carecem de consciência, depois de tê-la perdido devido a seu raivoso desejo de vingança. Isto é absurdo. Só os seres mais primitivos e os sociopatas carecem de consciência. Os fremen possuem um sentido do mundo muito evoluído, centrado no bem-estar de seu povo. Seu senso de pertencer à comunidade é quase tão forte como seu sentido da individualidade. Só para os forasteiros parece que esta gente é brutal... e vice-versa.

Pardot Kynes, As pessoas de Arrakis

— O luxo é para os nobres, Liet — disse Pardot Kynes, enquanto o veículo terrestre avançava pelo terreno irregular. Aqui, em particular, podia utilizar o nome secreto de seu filho, em vez de “Weichih”, o nome reservado para os forasteiros —. Neste planeta temos que ter consciência dos arredores, e permanecer sempre alerta. Se não aprender esta lição, não viverá muito.

Enquanto Kynes dirigia os controles, apontou com um gesto para a luz da manhã que banhava as dunas.

— Aqui também há recompensas. Eu cresci em Salusa Secundus, e até aquele lugar destroçado e ferido tinha sua beleza... embora não comparável com a beleza de Duna.

Kynes exalou um longo suspiro entre seus lábios ressecados e gretados.

Liet continuou olhando através do pára-brisa. Ao contrário de seu pai, sempre propenso a comunicar seus pensamentos e a emitir declarações que os fremen tomavam como se fossem transcendentais guias espirituais, Liet preferia o silêncio. Entreabriu os olhos para estudar a paisagem, em busca de algo insignificante que não combinasse com o ambiente. Sempre alerta.

Em um planeta tão duro, era preciso desenvolver uma série de percepções, todas vinculadas para sobreviver a cada momento. Embora seu pai fosse muito mais velho, Liet não estava seguro de que o planetólogo compreendesse tanto como ele. A mente de Pardot Kynes guardava vigorosos conceitos, mas o homem de mais velho os experimentava como dados esotéricos. Não compreendia o deserto nem em sua alma nem em seu coração...

Kynes tinha vivido durante anos entre os fremen. Dizia-se que suas atividades pouco importavam ao imperador Shaddam IV, e como Kynes não pedia recursos e poucos fornecimentos, deixavam-no em paz. A cada ano que passava, foram esquecendo mais. Shaddam e seus conselheiros tinham deixado de esperar grandes revelações dos relatórios periódicos do planetólogo.

O que convinha a Pardot Kynes, e também a seu filho.

No curso de suas viagens, Kynes costumava deslocar-se até povoados distantes, onde as pessoas levavam uma vida miserável. Os verdadeiros fremen poucas vezes se misturavam com a gente da cidade, a quem desprezavam por ser tão branda, tão civilizada. Liet jamais teria vivido naqueles patéticos assentamentos nem por todos os Solaris do Império. Mesmo assim, Pardot os visitava.

Evitavam as estradas e caminhos mais movimentados, e viajavam no veículo terrestre, para verificar o funcionamento das estações meteorológicas e recolher dados, embora os devotos seguidores de Pardot teriam feito de boa vontade aquele trabalho humilde por seu Umma.

Os traços de Liet Kynes recordavam os de seu pai, embora com um rosto mais magro e os olhos fundos de sua mãe fremen. Tinha o cabelo claro, e ainda tinha barba rala, embora anos depois deixaria crescer uma barba similar a do planetólogo. Os olhos de Liet eram do azul profundo que delatava o vício em especiaria, porque toda comida e ar que se respirava no sietch estavam impregnados de especiaria.

Liet ouviu que seu pai aspirava fundo quando passaram junto à curva denteada de um canyon, onde condensadores de orvalho camuflados dirigiam a umidade para as plantações de ervas pobres.

— Está vendo? Está desenvolvendo vida própria. Várias gerações mais e conseguiremos que o planeta avance por fases, primeiro pradaria e depois bosque. A areia possui um alto conteúdo de sal, indicador de oceanos antigos, e a especiaria é alcalina. — Soltou uma risada —. As pessoas do Império ficariam horrorizadas se soubessem que utilizamos derivados da especiaria para algo tão comum como fertilizantes. — Sorriu para seu filho —. Mas nós conhecemos o valor dessas coisas, não é? Se decompusermos a especiaria, podemos impulsionar a digestão de proteínas. Mesmo agora, se voássemos alto o bastante, poderíamos ver parcelas verdes, onde cultivos de plantas seguram as dunas.

O jovem suspirou. Seu pai era um grande homem que forjava sonhos magníficos para Duna, mas como Kynes só se concentrava em uma coisa não conseguia ver o universo que o rodeava. Liet sabia que se alguma patrulha Harkonnen descobrisse as plantações, as destruiriam e castigariam os fremen.

Embora só tivesse doze anos, Liet acompanhava seus irmãos fremen em incursões de castigo, e já tinha matado vários Harkonnen. Durante mais de um ano, ele e seus amigos, sob as ordens do audaz Stilgar, tinham atacado objetivos que outros se negavam a considerar. Apenas uma semana antes, os companheiros de Liet tinham roubado uma dúzia de tópteros em um posto de fornecimentos. Infelizmente, as tropas Harkonnen se vingaram nos pobres aldeãos, pois não viam diferença entre os colonos e os fremen.

Não tinha contado a seu pai sobre suas atividades guerrilheiras, pois Pardot Kynes não compreenderia a necessidade. A violência premeditada, pelo motivo que fosse, era um conceito alheio ao planetólogo. Mas Liet faria o que fosse necessário.

O veículo terrestre se aproximou de uma aldeia encaixada nos contrafortes rochosos. Em seus mapas constava como Bilar Camp. Pardot continuou falando da melange e suas propriedades peculiares.

— Descobriram especiaria em Arrakis muito depressa. Desviou a atenção científica. Foi tão útil desde o primeiro momento que ninguém se incomodou em investigar seus mistérios.

Liet se voltou para olhar para seu pai.

— Pensei que por esse motivo o enviaram para cá... para compreender a especiaria.

— Sim... mas temos um trabalho mais importante a fazer. Ainda continuo informando ao Império com a freqüência suficiente para convencê-los de que estou fazendo meu trabalho, embora sem muito êxito.

Enquanto falava da primeira vez que estivera nessa região, desviou-se para um grupo de edifícios sujos, cor areia e pó.

O veículo terrestre estralou sobre uma rocha, mas Liet continuou olhando para o povoado, com os olhos entreabertos para proteger-se da luz da manhã. O ar possuía a fragilidade do cristal fino.

— Algo está errado — disse, interrompendo seu pai.

Kynes continuou falando por mais alguns segundos e depois parou o veículo.

— O que acontece?

— Algo está errado.

Liet apontou para o povoado.

Kynes protegeu os olhos do brilho.

— Eu não vejo nada.

— Mesmo assim, vamos com cautela.

No centro da vila, descobriram um desfile de horrores. As vítimas sobreviventes vagavam como loucos, gritando e uivando como animais. O ruído era terrível, assim como o cheiro. Arrancaram osccabelos em mechas ensangüentadas. Alguns utilizavam as unhas para arrancar os olhos, que depois sustentavam nas palmas. Cegos, cambaleavam apoiando-se contra as paredes das casa, e deixavam grandes manchas carmesins.

— Pelo Shai-Hulud! — sussurrou Liet, enquanto seu pai blasfemava em galach imperial.

Um homem com as órbitas vazias, parecendo bocas sobre os maçãs do rosto, tropeçou em uma mulher que engatinhava pelo chão. Ambos se enfureceram e arranharam, morderam, cuspiram e gritaram. Eram manchas escuras sobre a rua, contêineres de água caídos.

Havia muitos corpos estendidos no chão como insetos esmagados, braços e pernas paralisados em ângulos estranhos. Alguns edifícios estavam fechados, protegidos contra os desgraçados de fora, que golpeavam as paredes e suplicavam sem palavras que os deixassem entrar. Liet viu o rosto horrorizado de uma mulher na janela de um piso superior. Outros se escondiam, os que não tinham sido afetados pela loucura assassina.

— Temos que ajudar esta gente, pai. — Liet saltou do veículo —. Traga suas armas. Talvez precisemos nos defender.

Portavam antiquadas pistolas maula e facas. Seu pai, embora um cientista, também era um bom guerreiro, uma habilidade que reservava para defender sua visão de Arrakis. Contava-se a lenda de que tinha matado vários soldados Harkonnen que tinham tentado assassinar três jovens fremen. Esses fremen eram agora seus mais leais lugares-tenentes, Stilgar, Turok e Ommun. Mas Pardot Kynes nunca tinha lutado contra algo como isto...

Enlouquecidos os aldeãos repararam em sua presença e gemeram. Começaram a avançar.

— Não mate a menos que seja preciso — disse Kynes, assombrado com a rapidez que seu filho se proveu com um crys e uma pistola maula —. Tome cuidado.

Liet entrou na rua. O primeiro a surpreendê-lo foi o terrível fedor, como se o fôlego fétido de um leproso moribundo tivesse sido liberado pouco a pouco.

Pardot, sem acreditar em seus olhos, afastou-se alguns passados do carro. Não viu sinais de raios laser no povoado, nem marcas de projéteis, nada que indicasse um ataque Harkonnen. tratava-se de uma epidemia? Se esse era o caso, seria contagiosa. Se alguma praga ou loucura contagiosa se apropriara do povoado, não podia permitir que os fremen se apoderassem daqueles cadáveres para os destiladores de morte.

Liet avançou.

— Os fremen atribuiriam esta catástrofe aos demônios.

Duas vítimas soltaram gritos demoníacos e correram para eles, com os dedos em garras, as bocas abertas como poços sem fundo. Liet apontou a pistola maula, murmurou uma breve oração e disparou duas vezes. Os disparos alcançaram no peito os atacantes, que caíram mortos.

Liet fez uma reverência.

— Perdoe-me, Shai-Hulud.

Pardot olhou para ele. Tentei ensinar muitas coisas a meu filho, mas ao menos aprendeu a compaixão. Pode aprender toda a informação nos videolivros... mas a compaixão não. É inata.

O jovem se inclinou sobre os dois cadáveres e os examinou reprimindo seu temor supersticioso.

— Acredito que não é uma enfermidade. — Olhou para Pardot —. ajudei as curandeiras do sietch, como sabe, e... — Sua voz emudeceu.

— O que?

— Acredito que foram envenenados.

Um a um, os atormentados aldeãos que vagavam pelas ruas poeirentas caíram entre horríveis convulsões, até que só três ficaram vivos. Liet utilizou o crys e acabou com as últimas vítimas rapidamente. Nenhuma tribo ou povoado voltaria a aceitá-los, mesmo que recuperassem a saúde, por medo de que tivessem sido corrompidos por demônios. Até suas águas seriam consideradas venenosas.

Liet estranhou a facilidade com que tinha tomado a iniciativa. Indicou a seu pai dois dos edifícios fechados.

— Convença as pessoas dali que não queremos lhes fazer mal. Temos que descobrir o que aconteceu aqui. — Falava em voz baixa e fria —. E quem é o culpado.

Pardot Kynes avançou para o edifício poeirento. Arranhões e sinais de mãos ensangüentadas apareciam nas paredes de tijolo de barro e nas portas metálicas, onde as vítimas enlouquecidas tinham tentado abrir caminho. Engoliu em seco e se preparou para convencer os aterrorizados sobreviventes que sua odisséia tinha terminado.

— Onde estará, Liet?

O jovem olhava para um contêiner de água caído. Sabia que só havia uma forma de um veneno afetar tanta gente ao mesmo tempo.

— Vou dar uma olhada no fornecimento de água.

Pardot assentiu preocupado.

Liet estudou o terreno que rodeava o povoado, viu uma pista apagada que subia pela ladeira da meseta elevada. moveu-se com a velocidade de um lagarto, subiu o caminho e chegou à cisterna. Tinham dissimulado sua trilha com inteligência, embora os aldeãos tivessem cometido muitos erros. Até uma patrulha Harkonnen era capaz de descobrir aquela reserva ilegal. Examinou a zona rapidamente e observou rastros na areia.

Percebeu um intenso aroma amargo alcalino perto da abertura da cisterna, e tentou localizá-lo. Tinha sentido aquele odor poucas vezes, só durante as grandes celebrações do sietch. A Água de Vida! Os fremen só consumiam essa substância depois que uma Sayyadina tivesse transformado a exalação de um verme afogado, utilizando a química de seu próprio corpo como catalisador para criar uma droga inerte, que provocava no sietch um frenesi de êxtase. A substância, sem transformar, era uma toxina feroz.

Os habitantes do Bilar Camp tinham bebido a Água de Vida pura antes de sua transformação. Alguém tinha feito aquilo de propósito... e os envenenara.

Então viu as marcas de um ornitóptero na terra macia da meseta. Tinha que ser um tóptero Harkonnen. Uma patrulha regular... Uma brincadeira pesada?

Liet franziu o sobrecenho e desceu até o povoado devastado, onde seu pai conseguira fazer sair os sobreviventes que se entrincheiraram em suas moradias. Por sorte, esta gente não tinha bebido a água envenenada. Caíram de joelhos na rua, rodeados por aquela espantosa carnificina. Seus gritos de dor ressoaram como uivos de fantasmas.

Os Harkonnen fizeram isso.

Pardot Kynes fazia o possível por consolá-los, mas a julgar pela expressão estupefata dos aldeãos, Liet sabia que seu pai devia estar dizendo o menos adequado, expressando sua compaixão em conceitos abstratos que ninguém entendia.

Liet desceu o penhasco, e em sua mente já estava forjando planos. Assim que retornassem ao sietch, reuniria-se com Stilgar e seu comando.

E preparariam a vingança contra os Harkonnen.

 

Um império apoiado no poder não pode atrair os afetos e lealdades que os homens dedicam de bom grado a um regime de ideais e beleza. Adorne seu Grande Império com beleza, com cultura.

De um discurso do príncipe herdeiro RAPHAEL CORRINO,

Arquivos de L'Institut de Kaitain

 

Os anos tinham sido implacáveis com o barão Vladimir Harkonnen.

Enfurecido, descarregou sua bengala reforçada com cabeça de verme sobre o mostrador da sala de terapia. Potes de ungüentos, bálsamos, pílulas e hipoinjetores se chocaram contra o chão.

— Nada funciona!

Cada dia se sentia pior, seu aspecto era mais repulsivo. No espelho via uma caricatura torcida e purulenta do Adonis que tinha sido.

— Pareço um tumor, não um homem.

Piter De Vries entrou na estadia com presteza, disposto a prestar sua ajuda. O barão o atacou com a pesada bengala, mas o Mentat se esquivou do golpe com a agilidade de uma cobra.

— Saia da minha vista, Piter — gritou o barão, enquanto tentava conservar o equilíbrio —. Ou desta vez pensarei em uma forma de te matar.

— Como quiser meu barão — disse De Vries com afetada voz sedosa. Fez uma reverência e retrocedeu até a porta.

O barão sentia afeto por muito pouca gente, mas apreciava o funcionamento tortuoso da mente do Mentat pervertido, seus planos intrincados, seu pensamento a longo prazo, apesar da sua aborrecível familiaridade e falta de respeito.

— Espere, Piter. Preciso de seu cérebro Mentat. — Avançou coxeando, apoiado na bengala —. É a pergunta de sempre. Descubra por que meu corpo está degenerando, ou o enviarei ao poço de escravos mais fundo.

O homem esperou que o barão o alcançasse.

— Farei todo o possível, barão. Sei muito bem o que aconteceu com todos os seus médicos.

— Incompetentes. Nenhum sabia nada.

O barão, antes possuidor de uma excelente saúde e uma tremenda energia, padecia uma enfermidade debilitadora cujas manifestações o desgostavam e assustavam. Tinha aumentado muito de peso. O exercício não ajudava, nem os exames médicos ou as cirurgias exploratórias. Durante anos tinha provado todos os procedimentos curativos e tratamentos experimentais, sem o menor êxito.

Devido a seus fracassos, um punhado de médicos da Casa tinham recebido uma morte horrorosa nas mãos de Piter de Vries, que com freqüência descobria aplicações imaginativas de seus próprios instrumentos. Como resultado, não restava nenhum médico importante em Giedi Prime, ou ao menos nenhum visível. Os que não tinham sido executados se esconderam ou fugiram para outros planetas.

O mais irritante era que também tinham começado a desaparecer servos, e não sempre porque o barão tivesse ordenado assassiná-los. Fugiam para Harko City, desapareciam nas filas de trabalhadores desprezados e desatendidos. Quando saía às ruas acompanhado por Kryubi, o capitão de sua guarda, o barão não deixava de procurar com o olhar pessoas que se parecessem com os criados que o tinham abandonado. Por onde ia deixava um rastro de cadáveres. Os assassinatos lhe proporcionavam pouco prazer. Teria preferido uma resposta.

De Vries acompanhou o barão quando saiu para o corredor. Sua bengala ressonava no chão. Depois, pensou o homem, teria que usar um mecanismo suspensor para aliviar suas articulações doloridas.

Um grupo de trabalhadores ficou petrificado quando os dois aproximaram-se. O barão observou que estavam reparando as imperfeições que tinha provocado no dia anterior, tomado pela raiva. Todos fizeram uma reverência quando o barão passou, e soltaram suspiros de alívio quando o viram desaparecer por uma esquina.

Quando ele e DE Vries chegaram a um salão de cortinas cerúleas, o barão se sentou em um sofá negro de pele.

— Sente-se a meu lado, Piter. — Os olhos negros do Mentat passearam em redor, como um animal apanhado, mas o barão bufou de impaciência —. Não é provável que o mate hoje, sempre que me dá um bom conselho.

O Mentat manteve seu comportamento desinibido, sem revelar seus pensamentos.

— Aconselhá-lo é o único propósito de minha existência, meu barão.

Não abandonou sua postura arrogante, porque sabia o muito que custaria à Casa Harkonnen substituí-lo, embora os Bene Tleilax sempre pudessem reproduzir outro Mentat da mesma partida genética. De fato, era provável que já tivessem substitutos, à espera.

O barão tamborilou com os dedos sobre o braço do sofá.

— Muito bem, mas nem sempre me dá o conselho que necessito. — Olhou com atenção para De Vries —. É um homem muito feio, Piter. Mesmo doente como estou, ainda sou mais bonito que você.

A língua de salamandra do Mentat umedeceu os lábios manchados de púrpura pelo suco de safo.

— Mas meu doce barão, você sempre gostou de me olhar.

O rosto do barão endureceu, e se inclinou mais para o homem alto e magro.

— Chega de confiar em incompetentes. Quero que me consiga um médico Suk.

De Vries tomou fôlego, surpreso.

— Mas insististe em manter no mais absoluto segredo o seu estado. Um Suk tem que informar todas as suas atividades ao seu Círculo Interior... e enviar uma parte substancial de seus honorários.

Vladimir Harkonnen tinha convencido os membros do Landsraad de que se tornara corpulento devido aos excessos, o que era uma razão aceitável para ele, pois não implicava fraqueza. Além disso, pelos hábitos dos gostos do barão, era uma mentira fácil de acreditar. Não desejava transformar-se no bobo de outros nobres. Um grande barão não devia padecer de uma enfermidade vulgar.

— Encontre uma maneira de fazê-lo. Não utilize os canais habituais. Se um Suk pode me curar, não terei nada que ocultar.

Alguns dias depois, Piter de Vries descobriu que um doutor Suk, talentoso mas bastante pretensioso, instalara-se em Richese, um aliado dos Harkonnen. A mente do Mentat entrou em funcionamento. No passado, a Casa Richese tinha colaborado nas conspirações dos Harkonnen, incluindo o assassinato do duque Atreides na praça de touros, mas os aliados quase nunca estavam de acordo no referente às prioridades. devido a esta divergência, De Vries convidou o primeiro-ministro richesiano, Ein Calimar, a visitar a fortaleza do barão em Giedi Prime, para falar de “um assunto benéfico para ambas as partes”.

Calimar, um homem de idade avançada, vestido de maneira impecável, e que ainda conservava a forma atlética de sua juventude, tinha pele escura e um nariz largo sobre o qual se apoiavam óculos de aros metálicos. Chegou ao espaçoporto de Harko City vestido em um traje branco com lapelas douradas. Quatro guardas Harkonnen de libré azul o acompanharam até os aposentos privados do barão.

Assim que entrou nos aposentos privados, o primeiro-ministro enrugou o nariz ao sentir certo fedor, detalhe que não passou inadvertido a seu anfitrião. O corpo nu de um jovem pendia em um gabinete anexo, a apenas dois metros de distância. O barão tinha deixado a porta entreaberta de propósito. O fedor do cadáver se misturava com outros mais antigos que impregnavam os aposentos a tal ponto que nem os perfumes mais intensos podiam dissimulá-los.

— Sente-se, por favor.

O barão indicou um sofá onde eram visíveis ainda tênues manchas de sangue. Tinha preparado a entrevista com ameaças e detalhes desagradáveis subliminares, com a intenção de deixar o líder richesiano nervoso.

Calimar vacilou (um momento que deleitou o barão), e depois aceitou o convite, mas recusou uma taça de conhaque kirano, embora seu anfitrião se servisse um pouco. O barão se deixou cair em uma poltrona de suspensão. Atrás dele estava seu Mentat pessoal, que explicou o motivo da reunião.

Calimar, surpreso, meneou a cabeça.

— Deseja alugar meu médico Suk? — Continuava enrugando o nariz, e seu olhar continuou explorando a habitação em busca da origem do aroma, até deter-se na porta do gabinete. Ajustou os óculos dourados —. Eu sinto, mas não posso ajudá-lo. Um médico Suk pessoal é uma responsabilidade e uma obrigação... para não falar de um enorme dispêndio.

O barão fez uma careta.

— Tentei com outros médicos, e preferiria que este assunto não fosse revelado. Não posso pôr um anúncio, solicitando os serviços de um desses profissionais arrogantes. Entretanto, seu médico Suk estaria obrigado por seu juramento de confidencialidade, e ninguém precisa saber que o abandonou durante um breve período de tempo. — Ouviu o tom suplicante em sua voz —. Vamos, vamos, não têm compaixão?

Calimar afastou a vista do gabinete às escuras.

— Compaixão? Um comentário interessante, vindo de você, barão. Sua Casa não se incomodou em nos ajudar com nosso problema, apesar de nossos pedidos nos últimos cinco anos.

O barão se inclinou para frente. Sua bengala, com a ponta cheia de dardos envenenados que apontavam para seu interlocutor, descansava sobre seu regaço. Tentador, muito tentador.

—Talvez possamos chegar a um acordo.

Olhou para seu Mentat, pedindo uma explicação.

— Em uma palavra — disse De Vries —, quer dizer dinheiro, meu barão. A economia richesiana atravessa graves dificuldades.

— Tal como nosso embaixador explicou em várias ocasiões a seus emissários — acrescentou Calimar —. Desde que minha Casa perdeu o controle sobre as operações de especiaria em Arrakis, substituída pela sua, não esqueça, tentamos reaquecer nossa economia. — O primeiro-ministro ergueu o queixo, fingindo que ainda tinha um pouco de orgulho —. A princípio, a queda de IX significou um alívio para nós, pois eliminou a concorrência. Entretanto, nossas finanças continuam um pouco... paralisadas.

Os olhos negros do barão cintilaram, desfrutando com a confusão de Calimar. A Casa Richese, fabricante de armas exóticas e máquinas complexas, peritos em miniaturização e espelhos richesianos, tinha superado em vendas seus rivais ixianos durante a revolta de IX.

— Há cinco anos, os tleilaxu começaram a exportar produtos ixianos de novo — disse De Vries com lógica fria —. Já estão perdendo os lucros obtidos durante os últimos dez anos. As vendas de produtos richesianos têm caído enquanto a tecnologia ixiana tornou a invadir o mercado.

Calimar manteve a voz serena.

— Como pode compreender, temos que redobrar nossos esforços e investir em novas instalações.

— Richese, Tleilax, IX... Procuramos não intervir em disputas entre outras Casas. — O barão suspirou —. Oxalá reinasse a paz em todo o Landsraad.

A ira tomou as feições do primeiro-ministro.

— Estamos falando de algo mais que simples disputa, barão. Estamos falando de sobrevivência. Muitos de meus agentes desapareceram em IX, e os damos por mortos. Até pensar no que os ixianos podem fazer com seus membros me repugna. — ajustou os óculos, com a testa reluzente de suor —. Além disso, os Bene Tleilax não podem ser considerados uma Casa. O Landsraad jamais os aceitaria.

— Um mero tecnicismo.

— Nesse caso, chegamos a um beco sem saída — anunciou Calimar, ao mesmo tempo em que fazia menção de levantar-se. Olhou uma vez mais para a porta do gabinete —. Não achei que pretendiam aceitar nosso preço, por mais eficaz que seja o médico Suk.

— Espere, espere... — O barão levantou uma mão —. Os acordos comerciais e os pactos militares são uma coisa. A amizade é outra. Você e sua Casa foram aliados leais no passado. Talvez não tinha entendido bem a magnitude de seu problema.

Calimar jogou a cabeça atrás e olhou para o barão.

— A magnitude de nosso problema consiste em muitos zeros, sem pontos decimais.

Os olhos negros do barão, afundados entre dobras de gordura, adquiriram um brilho ardiloso.

—Se me enviarem seu médico Suk, primeiro-ministro, reconsideraremos a situação. Estou seguro de que os detalhe econômicos de nossa oferta agradarão em grau supremo. Considere um pagamento pela conta.

Calimar se manteve impassível.

— Antes eu gostaria de escutar a oferta, por favor.

Ao ver a expressão inescrutável do primeiro-ministro, o barão assentiu.

— Piter, diga-lhe nossa proposta.

De Vries citou um preço elevado pelo aluguel do Suk, a pagar em melange. Custasse o que custasse o médico Suk, a Casa Harkonnen abonaria os custos extraordinários contribuindo com parte de suas reservas ilegais de especiaria, ou aumentando a produção em Arrakis.

Calimar fingiu considerar a oferta, mas o barão sabia que o homem não tinha outro remédio senão aceitar.

— O Suk lhes será enviado imediatamente. Este médico, Wellington Yueh, esteve trabalhando em estudos sobre cyborgs, e desenvolveu uma interface mecano-humana capaz de restaurar extremidades perdidas através de técnicas artificiais, uma alternativa aos substitutos que os tleilaxu cultivam em suas tanques de axlotl.

— “Não construirá uma máquina a semelhança humana” — citou De Vries, o primeiro mandamento da Jihad Butleriana.

Calimar se irritou.

— Nossos advogados examinaram os procedimentos detalhadamente, e não existe qualquer violação.

— Bem, pouco me importa qual seja sua especialidade — disse o barão, impaciente —. Todos os médicos Suk possuem imensas reservas de conhecimentos, aos quais podem recorrer. Tem consciência de que é preciso manter este assunto no mais absoluto segredo?

— Não é algo que me preocupe. O Círculo Interior Suk guardou informação médica comprometedora sobre todas as famílias do Landsraad durante gerações. Não têm por que se preocupar.

— Preocupa-me mais que sua gente fale. Promete-me que não divulgarão os detalhes de nosso trato? Poderia ser igualmente problemático para você.

Pareceu que os olhos escuros do barão se afundavam ainda mais em seu rosto inchado.

O primeiro-ministro assentiu nervoso.

— Agrada-me poder ajudá-lo, barão. Tive o estranho privilégio de observar muito de perto este tal doutor Yueh. Posso assegurar que é impressionante.

 

As vitórias militares carecem de sentido, a menos que reflitam os desejos do povo. Um imperador só existe para concretizar esses desejos. Se não cumprir a vontade popular, seu reinado será curto.

Princípios, Academia de Liderança Imperial

O imperador, protegido por um capuz negro de segurança, estava sentado em sua complexa poltrona antigravitacional enquanto recebia informação do cristal riduliano. Depois de lhe entregar o resumo codificado, Hasimir Fenring ficou de pé a seu lado, enquanto uma corrente de palavras inundava a mente de Shaddam.

O imperador não gostava das notícias. Ao concluir o resumo, Fenring pigarreou.

— Hidar Fen Ajidica nos oculta muitas coisas, senhor. Se não fosse de vital importância para o Projeto Amal, liquidaria-o, hummm?

O imperador tirou o capuz de segurança e recuperou o cristal cintilante do seu receptáculo. Acostumou os olhos ao sol da manhã que se filtrava por uma clarabóia de seus aposentos privados, e depois olhou para Fenring. Este se sentou sobre o escritório de madeira de chusuk dourada, incrustada de pedras soo leitosas, como se fosse de sua propriedade.

— Entendo — murmurou Shaddam —. Esse homenzinho não gosta de receber mais duas legiões Sardaukar. O comandante Garon o pressionará para que execute seu trabalho, e percebe que o cerco se está fechando ao seu redor.

Fenring se levantou e caminhou até a janela que dominava uma profusão de flores laranja e lavanda em um jardim do telhado. Extraiu algo sob uma de suas unhas e o jogou no chão.

— Como todos, hummm?

Shaddam observou que o olhar do conde tinha vagado até as holofotos das três meninas que Anirul tinha montado sobre a parede, outro irritante aviso de que ainda não tinha um herdeiro. Irulan tinha quatro anos, Chalice um ano e meio, e Wensicia acabava de fazer dois meses. Desconectou as imagens e se voltou para seu amigo.

— Você é meus olhos no deserto, Hasimir. Preocupa-me que os tleilaxu obtenham por contrabando uma cria de verme de Arrakis. Pensei que era impossível.

Fenring deu de ombros.

— Qual o mal se roubarem uma cria ou duas? Os animais morrem pouco tempo depois de abandonar o deserto, apesar de todos os esforços por conservá-los vivos.

— Talvez não devêssemos perturbar o ecossistema. — O manto escarlate e dourado do imperador caía sobre a borda da poltrona antigravitacional até o chão. Agarrou uma fruta carmesim de uma terrina que tinha ao lado —. Em seu último relatório, nosso planetólogo do deserto afirma que a redução de determinadas espécies poderia ter conseqüências funestas nas cadeias alimentares. Diz que as futuras gerações pagarão pelos erros de hoje.

Fenring fez um gesto desdenhoso.

— Esses relatórios não deveriam preocupá-lo. Se me dispensasse do exílio, senhor, poderia apagar tais preocupações de sua mente. Pensaria por você, hummm?

— Sua nomeação como Observador Imperial não pode ser considerada um exílio. É um conde, e é meu Ministro da Especiaria. — Shaddam, distraído, pensou em pedir algo de beber, talvez com música, bailarinas exóticas, ou até mesmo um desfile militar. Só tinha que dar a ordem. Mas tais coisas não lhe interessavam nesse momento —. Deseja um título adicional, Hasimir?

Fenring desviou a vista.

— Isso só conseguiria atrair mais a atenção sobre mim. Já é difícil ocultar da Corporação minhas freqüentes viagens a Xuttuh. Além disso, os títulos normais não significam nada para mim.

O imperador atirou o talo da fruta dentro da terrina e franziu o sobrecenho. Da próxima vez ordenaria que tirassem as sementes antes de servir.

— “Imperador Padishah” é um título corriqueiro?

Ao ouvir três assobios, os homens levantaram a vista para o teto, do qual desceu um tubo de plaz transparente até depositar-se em um receptáculo que descansava sobre o escritório de chusuk. Um cilindro que continha uma mensagem urgente se deslizou do tubo. Fenring agarrou o cilindro, rompeu o selo do Correio e extraiu duas folhas de papel instroy enroladas, que entregou ao imperador apesar de seu desejo das examiná-las antes. Shaddam as desenrolou e leu com expressão de crescente desagrado.

— Hummmm? — perguntou Fenring, com sua impaciência habitual.

— Outra carta oficial de protesto do arquiduque Ecaz e uma declaração de kandy contra a Casa Moritani de Grumman. É muito grave. — secou o suco vermelho dos dedos com seu manto escarlate, e continuou lendo. Sua cara avermelhou —. Espere um momento. O duque Leto Atreides já ofereceu seus serviços como mediador ao Landsraad, mas os ecazi se encarregaram do assunto.

— Interessante — comentou o conde.

Irritado, Shaddam lançou a carta para Fenring.

— O duque Leto soube antes que eu? Como é possível? Eu sou o imperador!

— Senhor, o arrebatamento de cólera não é surpreendente, tendo em conta o comportamento do diplomata em meu banquete. — Ao ver a expressão de estupor, continuou —. O embaixador de Grumman assassinou seu rival na mesa de jantar. Não se lembra do meu relatório? Chegou-lhe há vários meses, hummm?

Enquanto Shaddam se esforçava por ordenar as peças em sua mente, fez um gesto desdenhoso em direção a uma prateleira de plaz negro que havia junto a sua mesa.

— Deve estar ali. Não li todos.

Os olhos escuros de Fenring cintilaram de irritação.

— Encontre tempo para ler os relatórios esotéricos de um planetólogo, mas não os meus? Estaria preparado para este conflito se tivesse dado atenção ao meu comunicado. Avisei-o que os grumman são perigosos e convém vigiá-los.

— Entendo. Conte-me o que diz o relatório, Hasimir. Sou um homem muito ocupado.

Fenring explicou que se viu obrigado a liberar o arrogante Lupino Ord, devido a sua imunidade diplomática. Com um suspiro, o imperador chamou seus ajudantes e convocou uma reunião de urgência com seus conselheiros.

Na sala de conferências contigua ao despacho imperial de Shaddam, uma equipe de conselheiros Mentat, porta-vozes do Landsraad e observadores da Corporação revisavam os tecnicismos do kanly, o minucioso balé de guerra desenhado para prejudicar somente os combatentes reais, com o mínimo de baixas entre os civis.

A Grande Convenção proibia o uso de armas atômicas e biológicas, e exigia que as Casas em litígio se envolvessem em uma luta controlada mediante métodos diretos e indiretos aceitos. Durante milênios, as rígidas normas tinham conformado a armação do Império. Os conselheiros resumiam os antecedentes do conflito atual, a acusação apresentada por Ecaz de que Moritani tinha cometido sabotagem biológica em seus delicados bosques de árvores de névoa, o assassinato do embaixador ecazi pelas mãos do seu homólogo de Grumman durante o banquete de Fenring, e a declaração oficial de kanly por parte do arquiduque Ecaz contra o visconde Moritani.

— Devo ressaltar — disse o Chefe Comercial imperial, agitando um dedo gorducho como um espadim no ar — que fui informado que todo um embarque de medalhas comemorativas, cunhadas, se recordar, senhor, para celebrar seu décimo aniversário no Trono do Leão Dourado, foi subtraída em um audaz golpe em uma fragata comercial. Por presumidos piratas espaciais, se acreditar nos relatórios.

Shaddam se irritou, impaciente.

— O que um roubo comum tem a ver com a situação atual?

— O carregamento estava a caminho de Ecaz, senhor.

Fenring se animou.

— Hummm, roubaram algo mais? Material de guerra, armas de algum tipo?

O Chefe Comercial consultou suas notas.

— Não... Os atacantes só se apoderaram das moedas comemorativas imperiais, sem tocar em outros bens. — Baixou a voz e murmurou como para si mesmo —: Entretanto, como utilizamos materiais inferiores na fabricação destas moedas, as perdas econômicas não são significativas...

— Recomendo que enviemos Observadores Imperiais a Ecaz e Grumman — disse o chambelán da corte Ridondo —, afim de impor a lei. É bem sabido que a Casa Moritani... er, é generosa em sua interpretação das normas oficiais.

Ridondo era um homem esquelético de pele amarelada, com a virtude de levar a cabo tarefas cujo mérito se acabava atribuindo a Shaddam. Tinha prosperado em seu cargo de chambelán.

Antes que pudesse discutir a proposta de Ridondo, outra mensagem contida em um cilindro caiu no receptáculo que havia junto a cadeira do imperador. Depois de examinar a mensagem, Shaddam o jogou sobre a mesa de conferências.

— O visconde Hundro Moritani respondeu ao insulto diplomático bombardeando o palácio ecazi e a península circundante! O Trono de Mogno foi destruído. Cem mil civis morreram e vários bosques foram incendiados. O arquiduque Ecaz se salvou por pouco junto com suas três filhas. — Fixou a vista uma vez mais no papel instroy enrolado, depois olhou para Fenring, mas se negou a pedir conselho.

— Desprezou as normas do kanly? — perguntou assombrado o Chefe Comercial —. Como é possível?

A pele cítrica da testa do chambelán Ridondo se enrugou de preocupação.

— O visconde Moritani não tem o senso de honra do seu avô, que foi amigo do Caçador. O que se deve fazer com cães selvagens como estes?

— Grumman sempre detestou seu vínculo com o Império, senhor — disse Fenring —. Sempre procura uma oportunidade de nos cuspir no rosto.

A discussão adquiriu um tom mais frenético. Enquanto Shaddam escutava a conversa, com seu aspecto mais majestoso, pensou que ser imperador era muito diferente do que tinha imaginado. A realidade era complicadíssima, e havia muitas forças competindo entre si.

Recordou ter jogado os jogos de guerra com o jovem Hasimir, e se deu conta de quanto sentia falta da companhia e do conselho do seu amigo da infância. Mas um imperador não podia revogar decisões importantes com ligeireza. Fenring continuaria em Arrakis, além de cumprir a missão de fiscalizar o programa de especiaria artificial. Era melhor que os espiões acreditassem nas histórias de atrito entre eles, embora talvez Shaddam pudesse incluir em sua agenda visitas mais freqüentes a seu companheiro da infância...

— As formas têm que ser observadas, senhor — disse Ridondo —. A lei e a tradição mantêm o Império unido. Não podemos permitir que uma casa nobre ignore as regras quando desejar. É evidente que Moritani o considera fraco e pouco inclinado a intervir nesta disputa. está zombando de você.

O Império não me escorrerá entre os dedos, prometeu Shaddam para si mesmo. Decidiu dar exemplo.

— Que se anuncie a todo o Império que uma legião de tropas Sardaukar se estabelecerá em Grumman durante dois anos. Poremos freio a este visconde. — Voltou-se para o observador da Corporação Espacial, sentado bo outro extremo da mesa —. Além disso, quero que a Corporação imponha uma tarifa elevada a todos os produtos que entrem e saiam de Grumman. Tal imposto será utilizado para reparar a ofensa cometida contra Ecaz.

O representante da Corporação guardou um longo e frio silêncio como se sopesasse a “decisão”, que na realidade era apenas um pedido. A Corporação estava fora do controle do imperador Padishah. Por fim, assentiu.

— Assim faremos.

Um dos Mentats da corte ficou rígido em sua cadeira.

— Eles apelarão, senhor.

Shaddam bufou.

— Se Moritani tiver provas, que o faça.

Fenring tamborilou com os dedos sobre a mesa, enquanto refletia nas conseqüências. Shaddam já tinha enviado duas legiões de Sardaukar a IX para fiscalizar os tleilaxu, e agora enviava mais a Grumman. Em outros pontos conflitivos do Império tinha aumentado a presença visível de suas tropas militares de elite, com a esperança de apaziguar qualquer idéia de rebelião. Tinha aumentado as patentes de Bursegs em todo o aparato militar e acrescentado mais comandantes de nível médio para que fossem enviados com as tropas caso necessário.

Mesmo assim, não deixavam de ocorrer pequenos e irritantes exemplos de sabotagem ou decapitação de efígies, como o roubo das moedas comemorativas com destino a Ecaz, o globo com a efígie de Shaddam flutuando sobre o estádio de Harmonthep, as palavras insultantes pintadas nos penhascos do Monument Canyon...

Como resultado, o número de leais Sardaukar não era muito numeroso e, devido ao caro Projeto Amal, a tesouraria imperial não contava com recursos suficientes para abastecer e treinar novos soldados. Assim, as reservas militares estavam se esvaziando, e Fenring previa um futuro problemático. Como demonstravam os atos da Casa Moritani, algumas forças do Landsraad preveniam fraqueza, farejavam sangue...

Fenring pensou na possibilidade de recordar a Shaddam tudo isto, mas preferiu se calar. Seu velho amigo parecia convencido de que podia controlar a situação sem ele, assim... era melhor ver se o conseguia.

Os contínuos problemas curvariam cada vez mais o imperador, e no final teria que chamar de volta a Kaitain seu exilado “Ministro da Especiaria”. Quando isso acontecesse, Fenring o faria suar antes de concordar.

 

A estrutura de uma organização é crucial para o êxito do movimento. Também constitui o objetivo primitivo que se deve atacar.

Cammar Pilru, Embaixador ixiano no exílio

Tratado sobre a queda de governos injustos.

 

Antes do próximo encontro com o grupo de resistentes, C'tair se disfarçou de operário suboide introvertido. Sob tal disfarce, dedicou dias a explorar as tocas subterrâneas onde os rebeldes planejavam se reunir.

O céu holoprojetado, onde se intercalavam ilhas de edifícios estalactites, tinha um aspecto falso, pois imitava a luz de um sol que não pertencia a IX. C'tair sentia dores nos braços por depositar caixas pesadas sobre plataformas automotrizes que entregavam fornecimentos, maquinaria e materiais brutos ao pavilhão de pesquisa isolado.

Os invasores tinham confiscado um grupo de instalações industriais e modificado seu aspecto, construindo sobre os telhados e comunicando os passadiços laterais. Sob o mandato da Casa Vernius, as instalações tinham sido desenhadas para adotar um aspecto estético e funcional, agora pareciam ninhos de roedores, um conjunto irregular de barricadas inclinadas e muros couraçados atrás de campos de força protetores. Suas janelas cobertas pareciam olhos cegos.

O que os tleilaxu estão fazendo ali?

C'tair utilizava roupas ordinárias, com a expressão indiferente e os olhos mortos. Concentrava-se na tediosa monotonia de suas tarefas. Quando o pó ou a terra manchavam suas bochechas ou quando a graxa engordurava seus dedos, não fazia o menor esforço por limpar-se, mas continuava trabalhando como um relógio.

Embora os tleilaxu não os suboides dignos de atenção, os invasores tinham dizimado estes operários durante a conquista de IX. Face as promessas de melhores condições e melhor tratamento, os tleilaxu tinham esmagado os suboides, muito mais que na época de Dominic Vernius.

Quando não trabalhava, C'tair vivia em um cubículo de paredes de rocha, situado na zona restringida aos suboides. Os operários tinham pouca vida social, não falavam muito entre si. Poucos reparavam no recém-chegado ou perguntavam seu nome. Nenhum se atrevia a fazer amizade. Sentia-se mais invisível que quando se ocultava na câmara secreta durante meses, no princípio da revolta.

C'tair preferia a invisibilidade. Permitia-lhe maior mobilidade.

Antes da reunião, examinou o lugar escolhido. Transportou o equipamento clandestino para a câmara de fornecimentos vazia para procurar instrumentos de vigilância. Não ousava subestimar os tleilaxu, sobretudo desde que mais duas legiões Sardaukar tinham chegado para exercer maior controle.

Ficou no centro da estadia e caminhou em um lento círculo, preocupado com os cinco túneis que conduziam à câmara. Muitas entradas, muitos lugares para uma emboscada. Refletiu um momento e sorriu quando lhe ocorreu uma idéia.

Na manhã seguinte roubou um pequeno holoprojetor, com o qual criou a imagem de um espaço de rocha. Dispôs o projetor no interior de uma abertura e o conectou. Agora, uma falsa barreira bloqueava um dos túneis, uma ilusão perfeita.

C'tair tinha vivido com suspeita e temor durante tanto tempo que nunca esperava uma conclusão feliz para seus planos. Mas isso não significava que abandonasse suas esperanças...

Os lutadores pela liberdade chegaram um a um, à medida que se aproximava a hora da reunião. Nenhum corria o risco de deslocar-se com outro rebelde. Todos foram disfarçados e tinham desculpas para o momentâneo abandono de suas tarefas.

C'tair chegou tarde. Os furtivos resistentes trocaram equipamento vital e comentaram planos aos sussurros. Ninguém tinha uma estratégia global. Alguns dos projetos eram tão impossíveis que C'tair teve que fazer um esforço para não rir, enquanto outros expressavam sugestões que desejou imitar.

Necessitava de mais varinhas de cristal para seu transmissor rogo. depois de cada tentativa de comunicar com seu longínquo irmão Navegante, os cristais se estilhaçavam e partiam, e o resultado eram dores de cabeça lacerantes.

Na última vez que tinha usado o rogo C'tair não conseguira se comunicar com D'murr. Tinha intuído sua presença e alguns pensamentos estáticos, mas sem estabelecer o menor contato. C'tair se sentiu perdido e deprimido, completamente sozinho. Compreendeu que tinha acreditado em excesso no bem-estar de seu irmão, e em descobrir que outros habitantes de IX tinham escapado e sobrevivido.

Às vezes, C'tair se perguntava o que tinha obtido em tantos anos de luta. Queria fazer mais coisas, queria dar um golpe decisivo nos tleilaxu, mas o que podia fazer? Contemplou os rebeldes reunidos, que falavam muito mas faziam pouco. Escrutinou seus rostos, percebeu cobiça nos intermediários e nervosismo em outros. C'tair se perguntou se aqueles eram os aliados que necessitava. Duvidava muito.

Miral Alechem também estava entre eles, negociava freneticamente para conseguir mais componentes que a ajudassem em seu misterioso plano. Parecia diferente dos outros, e ansiosa por entrar em ação.

Aproximou-se dela sem chamar a atenção e procurou seus olhos grandes e cautelosos.

— Prestei atenção nos componentes que está comprando. — Disse apontando com uma sacudida de cabeça para os escassos objetos que tinha nas mãos —. E não tenho nem idéia de qual é seu plano. Talvez... eu pudesse ajudar. Sou um perito em porcarias.

Ela retrocedeu um passo, como um coelho desconfiado, ao mesmo tempo em que tentava captar o significado de suas palavras. Por fim, falou com os lábios apertados.

— Tenho uma idéia. Tenho que investigar...

Antes que pudesse continuar, C'tair ouviu um movimento nos túneis, passos furtivos a princípio e depois mais decididos. Os guardas gritaram. Alguém se agachou quando um projétil passou sobre sua cabeça.

— Alguém nos traiu! — gritou um rebelde.

Na confusão, C'tair viu que soldados Sardaukar e guerreiros tleilaxu convergiam das quatro saídas e bloqueavam os túneis. Dispararam contra os resistentes como se estivessem em uma galeria de tiro.

O cubículo se encheu de gritos, fumaça e sangue. Os Sardaukar entraram com as armas desembainhadas. Alguns se limitaram a utilizar os punhos e os dedos para matar. C'tair esperou que a fumaça ficasse mais espessa, para que os rebeldes fugissem assustados, e depois se lançou para frente.

Miral, ao não ver escapatória, agachou-se. C'tair a segurou pelos ombros. Ela se debateu, como se ele fosse seu inimigo, mas C'tair a empurrou sem olhar para o muro de rocha sólida.

Atravessou-o sem problemas. C'tair a seguiu pela abertura que cobria o holograma. Sentiu uma pontada de culpa por não avisar os outros, mas se todos os rebeldes desaparecessem pela mesma via de fuga, os Sardaukar cairiam sobre eles em questão de segundos.

Miral olhou ao redor, confusa. C'tair a arrastou com ele.

— Preparei uma rota de fuga antecipadamente. Um holograma.

Puseram-se a correr pelo túnel.

Miral trotava a seu lado.

— Nosso grupo morreu.

— Nunca foi meu grupo — replicou C'tair, ofegante —. Eram aficionados.

Ela olhou para ele enquanto corriam.

— Temos que nos separar.

Ele assentiu, e ambos tomaram túneis diferentes.

C'tair ouviu ao longe que os Sardaukar gritavam ao descobrir a abertura dissimulada. Acelerou o passo, desviou-se por um túnel a sua esquerda, depois por uma ramificação ascendente e desembocou em uma gruta diferente. Por fim, chegou a um elevador que conduziria a enorme caverna.

Procurou um de seus cartões de identificação, o de um suboide que trabalhava no último turno, e o passou por um leitor. O elevador o levou para os edifícios em forma de estalactite que em outros tempos eram residência dos burocratas e nobres que serviam à Casa Vernius.

Quando chegou aos níveis superiores, correu por passarelas conectadas entre si, deslizou entre edifícios e baixou a vista para as luzes das fábricas desnaturalizadas. Por fim, já nos níveis do que antes constituía o Grande Palácio, encaminhou-se para o esconderijo que abandonara muito tempo atrás.

Entrou no cubículo e o fechou com chave. Não tinha considerado necessário esconder-se nele durante uma temporada, mas esta noite estivera mais perto de ser capturado que nunca. Na escuridão silenciosa, C'tair se deixou cair sobre o cama de armar fedorenta que tinha sido sua cama durante tantas noites tensas. Contemplou o teto baixo, que se abatia sobre ele. Seu coração martelava. Não conseguia relaxar.

Imaginou que via estrelas em cima de sua habitação, uma tempestade de luzes diminutas que banhavam a antiga superfície de IX. Enquanto seus pensamentos cruzavam a imensa extensão da galáxia, imaginou D'murr pilotando sua nave da Corporação... muito longe dali e a salvo.

C'tair tinha que entrar em contato com ele o quanto antes.

 

O universo é nossa imagem. Só os imaturos imaginam o universo como eles acreditam que é.

Sigam Visee, Instrutor chefe,

Escola de Navegantes da Corporação.

 

“D'murr — disse uma voz no fundo de sua consciência —. D'murr...”

No interior da câmara hermética situada no alto do seu Cruzeiro, D'murr nadava em gás de especiaria, agitava seus pés espalmados. Redemoinhos alaranjados giravam ao seu redor. Em seu transe de navegação, todos os sistemas estelares e planetas eram como uma grande tapeçaria, e podia seguir qualquer rota que escolhesse. Penetrar no útero do universo e conquistar seus mistérios lhe proporcionava um imenso prazer.

Reinava uma grande paz no espaço profundo. O brilho dos sóis se apagava e acendia... uma noite imensa e eterna, salpicada de diminutos pontos luminosos.

D'murr efetuava os complicados cálculos mentais necessários para prever uma rota segura por qualquer sistema solar. Guiava a imensa nave através do vazio sem limites. Era capaz de abranger os limites do universo e transportar passageiros e cargas a qualquer lugar que desejasse. Via o futuro e o conformava a sua rota.

Devido às notáveis capacidades que possuía, D'murr se contava entre os escassos humanos mutantes que tinham subido na hierarquia de Navegantes com muita rapidez. Humano. A palavra era algo mais que uma lembrança para ele.

Suas emoções (estranhos restos de sua forma física anterior) o afetavam de uma forma que não tinha esperado. Durante os dezessete Anos Padrão que tinha passado em IX com seu irmão gêmeo C'tair, não tinha tido o tempo, a sabedoria ou o desejo de compreender o que significava ser humano.

E quanto nos últimos doze anos, por vontade própria, tinha renunciado a esta duvidosa realidade e abraçado outra existência, em parte sonho e em parte pesadelo. A verdade era que sua nova aparência podia aterrorizar qualquer humano que não estivesse preparado para a visão.

Mas as vantagens, os motivos pelos quais tinha ingressado na Corporação, compensava com acréscimo. Experimentava a beleza cósmica de uma maneira desconhecida para outras formas de vida. O que podiam imaginar, ele conhecia.

Por que a Corporação Espacial o aceitara? Poucos forasteiros eram aceitos naquele corpo de elite. A Corporação concedia prioridade a seus próprios candidatos, aqueles nascidos no espaço para serem empregados fiéis da Corporação, alguns dos quais jamais tinham pisado em terra sólida.

Sou apenas um experimento, um monstro entre os monstros? Às vezes, devido ao tempo de reflexão que lhe permitia uma longa viagem, a mente de D'murr divagava. Estou sendo examinado neste preciso momento, estão lendo meus pensamentos mais aberrantes? Sempre que a consciência de sua personalidade humana anterior o invadia, D'murr experimentava a sensação de encontrar-se a beira de um precipício, enquanto decidia se devia saltar ou não ao vazio. A Corporação sempre está vigiando.

Enquanto flutuava na câmara de navegação, viajava entre os restos de suas emoções. Uma estranha sensação de melancolia o invadia. Tinha sacrificado quase tudo para se transformar no que era. Nunca mais poderia aterrissar em um planeta, a menos que saísse em um tanque de gás de especiaria hermético sobre rodas...

Concentrou-se em sua tarefa. Se permitisse que sua personalidade humana tomasse o controle, o Cruzeiro se desviaria da rota.

“D'murr — disse a voz insistente, como a dor lacerante de uma enxaqueca —. D'murr...”.

Ignorou-a. Tentou convencer-se de que tais pensamentos e remorsos deviam ser comuns a todos os Navegantes, que outros o experimentavam com tanta freqüência quanto ele. Por que os instrutores não o avisaram?

Sou forte. Posso superar isso.

Em um vôo de rotina ao planeta Bene Gesserit de Wallach IX pilotava um dos últimos Cruzeiros construídos pelos ixianos, antes que os tleilaxu se apoderassem do planeta e se decidissem por um desenho anterior e menos eficaz. Revisou mentalmente a lista de passageiros, e viu as palavras impressas sobre as paredes de seu tanque de navegação.

Um duque estava a bordo: Leto Atreides. E seu amigo Rhombur Vernius, herdeiro exilado da fortuna perdida de IX. Rostos e lembranças familiares... Uma vida atrás, D'murr tinha sido apresentado ao jovem Leto no Grande Palácio. Os Navegantes captavam fragmentos de notícias imperiais e podiam escutar conversas privadas por meio dos canais de comunicação, mas davam pouca atenção a assuntos corriqueiros. Este duque tinha ganho um Julgamento de Confisco, um ato monumental que lhe tinha granjeado um grande respeito ao longo do Império.

Para que o duque Leto ia a Wallach IX? Por que levava com ele o refugiado ixiano?

A voz longínqua e crepitante soou de novo:

“D'murr... responda...”

Compreendeu com repentina clareza que era uma manifestação de sua vida anterior. O leal e carinhoso C'tair tentava entrar em contato com ele, embora D'murr não tivesse conseguido responder durante meses. Talvez se tratasse de uma distorção causada pela contínua evolução do seu cérebro, que aumentava o abismo entre ele e seu irmão.

As cordas vocais atrofiadas de um Navegante ainda podiam pronunciar palavras, mas utilizava a boca quase sempre para consumir mais e mais melange. A expansão da mente provocada pelo transe de especiaria desterrava a vida e os contatos anteriores de D'murr. Já não podia experimentar o amor, exceto como uma lembrança fugaz. Jamais poderia voltar a tocar em um ser humano...

Extraiu uma pílula de melange concentrada com suas mãos membranosas e a introduziu em sua boca diminuta, para assim aumentar a quantidade de especiaria que fluía por seu organismo. Sua mente flutuou um pouco, mas não o suficiente para apaziguar a dor do passado, e do contato mental incipiente. Desta vez suas emoções eram muito fortes para que conseguisse vencê-las.

Seu irmão deixou por fim de chamar, mas não demoraria para voltar. Sempre o fazia.

O único som que D'murr ouvia era o vaio contínuo do gás que entrava na câmara. Melange, melange. Continuava fluindo em seu interior, apoderava-se de seus sentidos. Já não restava individualismo, logo não podia tolerar a idéia de voltar a falar com seu irmão.

Só podia escutar, e recordar...

 

A guerra é uma forma de comportamento orgânico. O exército é o meio que um grupo composto exclusivamente por homens escolhe para sobreviver. Por sua vez, o grupo feminino se sente orientado tradicionalmente para a religião. São as guardiãs dos mistérios sagrados.

Doutrina Bene Gesserit

Depois de descer do Cruzeiro que orbitava ao redor do planeta e atravessar os complicados sistemas defensivos atmosféricos, o duque Leto Atreides e Rhombur Vernius foram recebidos no espaçoporto da Escola Materna por um contingente de três mulheres vestidas com hábitos negros.

O céu branco azulado de Wallach IX não era visível de terra. Uma brisa gélida açoitava o pórtico ao ar livre onde o grupo aguardava. Leto deixou que penetrasse através de suas roupas e viu que seu fôlego saía transformado em vapor. A seu lado, Rhombur rodeou o pescoço de sua jaqueta.

A líder da comitiva de escolta se apresentou como a madre superiora Harishka, uma honra que Leto não esperava. O que eu fiz para merecer tais cuidados? Quando estivera encarcerado em Kaitain, à espera do Julgamento de Confisco, a Bene Gesserit o ajudara em segredo, mas não tinham explicado os motivos. As Bene Gesserit não fazem nada sem um propósito definido.

Harishka, velha mas enérgica, tinha olhos amendoados escuros e uma forma muito direta de falar.

— Príncipe Rhombur Vernius. — Fez uma reverência ao jovem de cara redonda, que moveu sua capa púrpura e cobre com um gesto elegante —. É uma pena o ocorrido a sua Grande Casa, uma pena terrível. Até a Bene Gesserit acha os tleilaxu... incompreensíveis.

— Obrigado, mas... estou seguro de que tudo sairá bem. O outro dia, nosso embaixador no exílio apresentou outra petição ao conselho do Landsraad. — Sorriu com otimismo forçado —. Não procuro compaixão.

— Só procuram uma concubina, correto? — A anciã se virou para guiá-los até os terrenos do complexo da Escola Materna —. Agradecemos a oportunidade de colocar uma de nossas irmãs no castelo de Caladan. Estou segura de que isso o beneficiará, e aos Atreides também.

Seguiram um caminho pavimentado entre edifícios de estuque ligados entre si, com telhado de terracota, disposto como escamas de um lagarto dos recifes. Em um pátio cheio de flores se detiveram em frente a estátua em quartzo negro de uma mulher ajoelhada.

— A fundadora de nossa velha escola — disse Harishka —. Raquella Berto-Anirul. Ao manipular sua química corporal, Raquella sobreviveu ao que teria sido um envenenamento letal.

Rhombur se agachou para ler a placa.

—Diz que todas as descrições escritas e gráficas desta mulher se perderam há muito tempo, quando os invasores incendiaram a biblioteca e destruíram a estátua primitiva. Er... como sabem qual era seu aspecto?

— Sabemos porque somos bruxas — replicou Harishka com um sorriso enrugado.

Sem acrescentar nada mais a sua resposta, a anciã desceu uma escada curta e atravessaram uma estufa úmida, onde acolitas e irmãs cuidavam de plantas e ervas exóticas. Talvez medicamentos, talvez venenos.

A Escola Materna era um lugar lendário que poucos homens tinham visto, e Leto ficou atônito devido a cálida aceitação que seu pedido audacioso tinha recebido. Pedira às Bene Gesserit que escolhessem um mulher inteligente e talentosa para Rhombur, e seu amigo despenteado tinha concordado em ir “às compras”.

Harishka cruzou rapidamente um campo verde onde mulheres vestidas com roupas curtas e leves realizavam impossíveis exercícios de estiramento ao som de uma cadência vocal emitida por uma anciã enrugada e encurvada, que repetia todos os seus movimentos. Leto pensou que seu controle corporal era assombroso.

Quando por fim entraram em um amplo edifício de estuque com vigas escuras e chãos de madeira reluzente, Leto se alegrou de ficar no caminho do vento pois as velhas paredes cheiravam a gesso. O vestíbulo dava para uma sala de práticas, onde uma dúzia de jovens vestidas com hábitos brancos aguardavam imóveis no centro, tão rígidas como soldados à espera da inspeção. Tinham os capuzes jogados para trás.

A madre superiora se deteve ante as acolitas. As duas reverendas madres que a acompanhavam se colocaram atrás das jovens.

— Quem busca por uma concubina? — perguntou Harishka. Era uma pergunta tradicional, parte do ritual.

Rhombur deu um passo a frente.

— Eu... er, o príncipe Rhombur, primogênito e herdeiro da Casa Vernius. Até é possível que procure uma esposa. — Olhou para Leto e baixou a voz —. Como minha Casa foi declarada renegada, não tenho que me prender aos estúpidos joguinhos políticos. Como outros que eu conheço.

Leto ruborizou, e recordou as lições que seu pai tinha lhe ensinado. Encontre o amor onde quiser, mas nunca se case por amor. Seu título pertence à Casa Atreides. Utilize-o para obter o acordo mais benéfico.

Tinha viajado fazia pouco a Ecaz para reunir-se com o arquiduque Armand em sua capital provisória, depois que os Moritani tinham bombardeado seu castelo ancestral. Depois da reação fulminante do imperador, que enviara uma legião de Sardaukar a Grumman para manter a afastado o furioso visconde, as hostilidades entre ambas as Casas tinham cessado, ao menos no momento.

O arquiduque Armand Ecaz solicitara que um grupo de investigação estudasse a suposta sabotagem cometida contra os famosos bosques de árvores de névoa e outras modalidades ecazi, mas Shaddam se negou. “Deixem em paz os cães adormecidos”, foi sua resposta oficial. E confiou que o problema terminaria ali.

O arquiduque, depois de agradecer as tentativas de Leto por acalmar as tensões, tinha comentado de forma extra-oficial que sua filha mais velha, Sanyá, poderia ser uma candidata ao matrimônio aceitável para a Casa Atreides. Depois de escutar a sugestão, Leto tinha considerado os ativos da Casa Ecaz, seu poder comercial, político e militar, e como complementariam os recursos de Caladan. Nem sequer tinha olhado para a moça em questão. Estude as vantagens políticas de uma aliança matrimonial. Seu pai teria se sentido satisfeito.

— Todas estas jovens estão bem treinadas em numerosas formas de agradar à nobreza — disse a madre superiora —. Todas foram escolhidas em sintonia com sua personalidade.

Rhombur se aproximou da fileira de mulheres e esquadrinhou seus rostos. Loiras, morenas, ruivas, algumas de pele tão pálida como o leite, algumas tão esbeltas e escuras como o ébano. Todas eram belas e inteligentes... e todas o examinavam com aprumo e impaciência.

Conhecendo seu amigo, Leto não se surpreendeu quando viu que Rhombur parava ante uma moça de aspecto bastante simples, de olhos cor sépia muito separados e cabelo castanho cortado como o de um homem. submeteu-se ao exame de Rhombur sem desviar a vista, sem fingir acanhamento como algumas tinham feito. Leto observou o sorriso tênue que curvava seu lábio para cima.

— Seu nome é Tessia — disse a madre superiora —. Uma jovem muito inteligente e dotada de vários talentos. É capaz de recitar os clássicos antigos à perfeição e tocar vários instrumentos musicais.

Rhombur lhe ergueu o queixo, escrutinou seus olhos castanhos escuros.

— Mas sabe rir de uma piada? E contar outra melhor em resposta?

— Jogos de palavras inteligentes, meu senhor? — respondeu Tessia —. Prefere um jogo de palavras penoso, ou uma piada tão atrevida que suas bochechas ardam?

Rhombur riu satisfeito.

— É esta!

Quando tocou o braço de Tessia, a moça saiu da fila e caminhou com ele pela primeira vez. Leto se alegrou de ver seu amigo tão feliz, mas ao mesmo tempo lhe doeu pensar em sua falta de relações. Frequentemente, Rhombur fazia coisas guiado por um impulso, mas possuía a firmeza necessária para que saíssem bem.

— Venham aqui, filhos — disse Harishka em tom solene —. Ponham-se perante mim e inclinem a cabeça.

Obedeceram, de mãos dadas.

Leto se adiantou para endireitar o pescoço de Rhombur e alisar uma ruga de um galão. O príncipe ixiano ruborizou e murmurou um “obrigado”.

— Que suas vidas sejam longas e produtivas — continuou Harishka —, e que desfrutem de sua mútua e honrada companhia. Agora estão unidos. Se nos anos vindouros desejarem se casar e selar o vínculo superior ao concubinato, contam com a bênção da Bene Gesserit. Se não ficar satisfeito com Tessia, ela poderá retornar à Escola Materna.

Surpreenderam a Leto tantas fórmulas matrimoniais no que era, basicamente, um acordo comercial. Por meio de um Mensageiro de Caladan tinha recebido uma lista de preços. Não obstante, a madre superiora dotava de certa solidez à relação e estabelecia as bases para as coisas boas que pudessem acontecer no futuro.

Tessia se inclinou e sussurrou ao ouvido de Rhombur. O príncipe exilado riu.

— A Tessia teve uma idéia interessante, Leto — disse a seu amigo —. Por que você não escolhe uma concubina? Há muitas para escolher. — Apontou para as outras acolitas —. Assim deixará de olhar para minha irmã com olhos de cordeiro degolado!

Leto avermelhou. Sua atração por Kailea era evidente, apesar de ter tentado dissimular durante anos. Negou-se a levá-la para sua cama, esmagado entre as exigências do seu cargo e as admoestações do seu pai.

— Eu tive outras amantes, Rhombur, você sabe. As garotas da cidade e do povoado acham seu duque bastante atraente. Não é nada vergonhoso, e eu posso conservar minha honra com sua irmã.

Rhombur virou os olhos.

— De modo que a filha de um pescador do porto te basta mas minha irmã não?

— Não é isso. Faço-o por respeito à Casa Vernius, e a você.

— Temo que as mulheres escolhidas não são adequadas para o duque Atreides — interrompeu Harishka —. foram escolhidas por sua compatibilidade com o príncipe Rhombur. — Seus lábios cor ameixa sorriram —. Não obstante, poderíamos chegar a outros acordos...

Elevou os olhos para uma galeria interior, como se alguém estivesse olhando-os de acima.

— Não vim procurar uma concubina — respondeu Leto, carrancudo.

— Er... é do tipo independente — disse Rhombur à madre superiora, e depois olhou para Tessia com as sobrancelhas arqueadas —. O que vamos fazer com ele?

— Sabe o que quer mas não sabe admitir — disse Tessia com um sorriso inteligente —. Um cacoete para um duque.

Rhombur deu tapinhas nas costas de Leto.

— Está vendo? Já está dando bons conselhos. Por que não toma Kailea como sua concubina e acaba com isso de uma vez? Já estou me cansando de suas angústias infantis. Entra dentro de seus direitos e... er... ambos sabemos que é o máximo que ela pode aspirar.

Leto desprezou a idéia com uma risada forçada, embora tivesse pensado nisso muitas vezes. Tinha hesitado em abordar Kailea com essa sugestão. Qual seria sua reação? Exigiria ser algo mais que uma concubina? Isso era impossível.

De qualquer modo, a irmã de Rhombur compreendia as realidades políticas. Antes da tragédia de IX, a filha do conde Vernius teria sido uma opção aceitável para um duque (talvez tivesse passado pela mente do velho Paulus). Mas agora, como cabeça da Casa Atreides, Leto nunca poderia casar-se com um membro de uma família que não possuía nenhum título ou feudo imperial.

 

O que é o Amor do qual tantos falam com uma familiaridade tão aparente? Realmente compreendem como ele é inalcançável? Acaso não existem tantas definições de Amor como estrelas no universo?

O Questionário Bene Gesserit

De uma galeria interior que permitia ver as acolitas, Jessica, de doze anos, observava o processo de seleção com olhos interessados e muita curiosidade. A reverenda mãe Mohiam, que estava a seu lado, tinha ordenado que prestasse atenção, para que Jessica absorvesse até o último detalhe com seu praticado escrutínio Bene Gesserit.

O que a professora quer que eu veja?

A madre superiora estava falando com o jovem nobre e sua recém escolhida concubina, Tessia ao-Reill. Jessica não havia esperado sua escolha. Várias das outras acolitas eram mais belas, mais curvilíneas, mais fascinantes... mas Jessica não conhecia o príncipe nem sua personalidade, não estava familiarizada com seus gostos.

Intimidava-lhe a beleza, o que era indicação de pouca auto-estima? A acolita Tessia recordava outra pessoa que tinha conhecido? Ou talvez o atraía por algum motivo difícil de explicar... seu sorriso, seus olhos, sua risada?

— Nunca tente compreender o amor — advertiu Mohiam em um sussurro ao intuir seus pensamentos —. Limite-se a trabalhar para compreender seus efeitos nas pessoas inferiores.

Outra reverenda madre trouxe um documento sobre uma tabuleta de escrever e o entregou ao príncipe para que o assinasse. Seu acompanhante, um nobre de cabelo negro e feições aquilinas, olhou sobre seu ombro para ver o que estava escrito. Jessica não ouviu suas palavras, mas conhecia o antigo Ritual do Dever.

O duque arrumou o pescoço de seu companheiro. Pensou que era um gesto terno, e sorriu.

— Serei apresentada a um nobre algum dia, reverenda madre? — sussurrou. Ninguém lhe tinha explicado qual era seu papel na Bene Gesserit, o que constituía para ela uma fonte de curiosidade constante, para irritação de Mohiam.

A reverenda mãe franziu o sobrecenho, como Jessica já tinha suspeitado.

— Saberá quando chegar o momento, filha. A sabedoria consiste em saber quando terá que perguntar.

Jessica já tinha escutado em ocasiões anteriores a mesma reprimenda.

— Sim, reverenda madre. A impaciência é uma fraqueza.

A Bene Gesserit tinha muitos ditos similares, e Jessica os tinha aprendido de cor. Suspirou exasperada mas controlou a reação, com a esperança de que sua professora não o percebesse. Era evidente que a Irmandade tinha um plano para ela. Por que não lhe revelavam o futuro? Quase todas as outras acolitas tinham alguma idéia de seus caminhos predeterminados, mas Jessica só via uma parede em branco diante dela, sem a menor inscrição.

Estão me educando para algo. Preparam-me para uma missão importante. Por que sua professora a trouxera para esta galeria neste preciso momento? Não era um acidente nem uma coincidência. A Bene Gesserit planejava tudo até o último detalhe.

— Ainda há esperança para você, filha — murmurou Mohiam —. Ordenei que observasse, mas se concentra na pessoa errada. Não é o homem de Tessia. Olhe para o outro, olhe os dois, olhe como interagem. Diga o que vê.

Jessica estudou os homens. Respirou profundamente, seus músculos se relaxaram. Seus pensamentos, como minerais suspensos em um copo de água, clarearam.

— Ambos são nobres, mas não parentes de sangue, a julgar pelas diferenças no vestir, os gestos e as expressões. — Não afastava os olhos deles —. Faz muitos anos que são amigos íntimos. Dependem um do outro. O de cabelo negro está preocupado com a felicidade de seu amigo.

Jessica captou ansiedade e impaciência na voz de sua professora, embora não pudesse imaginar por quê. Os olhos da reverenda mãe estavam cravados no segundo homem.

— Deduzo por seu porte e interação que o de cabelo escuro é um líder e leva suas responsabilidades muito a sério. Tem poder, mas não abusa dele. É melhor governante do que ele acredita. — Observou seus movimentos, o rubor da pele, a maneira que olhava para as outras acolitas e depois se obrigava a desviar a vista —. E se sente muito sozinho.

— Excelente. — Mohiam dedicou um sorriso radiante para sua pupila, mas seus olhos se entreabriram —. Esse homem é o duque Leto Atreides... e você está destinada para ele, Jessica. Um dia será a mãe de seus filhos.

Embora Jessica soubesse que devia receber esta noticia com impassividade, como um dever que devia cumprir para a Irmandade, descobriu de repente a necessidade de acalmar seu coração palpitante.

Nesse momento o duque Leto olhou para Jessica, como se pressentisse sua presença na galeria escura, e seus olhos se encontraram. Ela captou um fogo em seus olhos cinzentos, uma energia e uma sabedoria superiores a sua idade, o resultado de lidar com responsabilidades tremendas. Sentiu-se atraída por ele.

Mas resistiu. Instintos... reações automáticas, respostas... Não sou um animal. Rechaçou outras emoções, como Mohiam lhe ensinara durante anos.

As perguntas anteriores de Jessica se apagaram, e de momento não formulou novas. Uma respiração profunda e calma a conduziu à serenidade. Fossem pelos motivos que fossem, gostava do aspecto deste duque... mas tinha um dever para com a Irmandade. Esperaria até descobrir o que lhe aguardava, e faria todo o necessário.

A impaciência é uma fraqueza.

Mohiam sorriu para si mesma. Conhecendo os fios genéticos que tinha recebido a ordem de tecer, a reverenda madre tinha preparado este breve encontro, embora afastado no tempo, entre Jessica e o duque Atreides. Jessica era a culminação de muitas gerações de cuidadosas reproduções cujo objetivo era a criação do Kwisatz Haderach.

A diretora do programa, a madre Kwisatz Anirul, esposa do imperador Shaddam, afirmava que existiriam as maiores probabilidades de êxito se a filha de um Harkonnen da geração atual desse a luz uma filha Atreides. O pai secreto da Jessica era o barão Harkonnen... e quando estivesse preparada se uniria com o duque Leto Atreides.

Mohiam considerava uma suprema ironia que estes inimigos mortais, a Casa Harkonnen e a Casa Atreides, estivessem destinados a formar a união mais importante do que nenhuma das Casas jamais suspeitaria, nem toleraria.

Mal podia conter seu entusiasmo ante a perspectiva: graças a Jessica, a Irmandade se encontrava a apenas duas gerações de seu objetivo final.

 

Quando faz uma pergunta, na verdade quer saber a resposta, ou está apenas fazendo uma demonstração do seu poder?

Dmitri Harkonnen, Nota a meus filhos

 

O barão Harkonnen teve que pagar duas vezes pelo médico Suk.

Pensara que seu enorme pagamento para o primeiro-ministro richesiano Calimar seria suficiente para obter os serviços do doutor Wellington Yueh pelo tempo que fosse necessário para diagnosticar e tratar sua enfermidade. Yueh, não obstante, negou-se a cooperar.

O antipático médico Suk estava absorto em si mesmo e em sua pesquisa técnica, que realizava no laboratório lunar em órbita de Korona. Não demonstrou o menor respeito ou medo quando mencionou o nome do barão.

— Pode ser que eu trabalhe para os richesianos — disse com voz firme, carente de humor —, mas não são meus senhores.

Piter De Vries, enviado a Richese para verificar os detalhes confidenciais e comunicá-los ao barão, estudou as feições envelhecidas do médico, a teimosa indiferença. Encontrava-se em um pequeno escritório do laboratório na estação de pesquisa artificial, um grande satélite que brilhava no céu richesiano. Face a enfática solicitação do primeiro-ministro, Yueh, rosto magro, longos bigodes caídos e cabelo negro preso por um aro de prata Suk, negou-se a ir a Giedi Prime. Arrogância auto-satisfeita, pensou De Vries. Pode ser utilizada contra ele.

— Você, senhor, é um Mentat, acostumado a vender seus pensamentos e inteligência ao melhor pagamento. — Yueh juntou os lábios e estudou De Vries como se estivesse realizando uma autópsia... ou desejasse fazê-lo —. Eu, por minha vez, sou um membro do Círculo Interior Suk, formado em Condicionamento Imperial. — Deu uns golpezinhos sobre o diamante tatuado em sua testa enrugada —. Não posso ser comprado, vendido ou alugado. Não têm poder sobre mim. Agora, me permita que volte ao meu trabalho.

Fez uma leve reverência antes de despedir-se para voltar aos laboratórios richesianos.

Nunca puseram este homem na linha, nunca o castigaram, nunca o dobraram. Peter De Vries o considerou um desafio.

Nos edifícios governamentais, as desculpas e fingimento do primeiro-ministro richesiano não significaram nada para De Vries. Entretanto, utilizou a autorização do homem para atravessar os postos de segurança com o fim de retornar ao satélite Korona. Sem outra alternativa, dirigiu-se ao laboratório médico esterilizado do doutor Yueh. Desta vez sozinho devia negociar em nome do barão. Não se atrevia a voltar para Giedi Prime sem um médico Suk.

Entrou furtivamente em uma sala de paredes metálicas cheia de maquinaria, cabos e membros humanos conservados em recipientes, uma mescla da melhor tecnologia richesiana, equipamento cirúrgico Suk e espécimes biológicos de outros animais. O cheiro de lubrificantes, podridão, produtos químicos, carne queimada e circuitos quentes impregnava a atmosfera, face ao esforço dos recicladores de ar da estação por eliminar os poluentes. Várias mesas possuíam pias, tubos de metal e plaz, cabos sinuosos e máquinas distribuidoras. Sobre as zonas de dissecação pendiam holocianotipos brilhantes, que soldavam membros humanos como se fossem máquinas orgânicas.

Quando o olhar do Mentat varreu o laboratório, a cabeça de Yueh apareceu de repente do outro lado de uma prateleira, magra e manchada de graxa, com ossos tão proeminentes que pareciam feitos de metal.

— Não me incomode mais, Mentat, — disse isso com brutalidade para evitar iniciar conversa. Nem sequer perguntou como De Vries havia retornado a restrita lua Korona. O diamante tatuado de Condicionamento Imperial brilhava em sua testa, sepultado sob manchas de um lubrificante escuro que tinha espalhado ao passar a mão sem perceber —. Estou muito ocupado.

— Mesmo assim, doutor, preciso falar com você. Meu barão me obriga.

Yueh entreabriu os olhos, como se imaginasse a forma de encaixar algumas das partes cyborg no Mentat.

— Não me interessa o estado clínico do seu barão. Não é minha especialidade.

Desviou a vista para as prateleiras e mesas repletas de próteses experimentais, como se a resposta fosse evidente. Yueh continuava exibindo uma arrogância enlouquecedora, como se não pudesse ser obrigado ou corrompido por nada.

De Vries se aproximou do homenzinho sem parar de falar. Não havia dúvida de que seria castigados fosse obrigado a matar aquele médico irritante.

— Meu barão era perfeito, esbelto, orgulhoso de seu aspecto físico. Apesar de não introduzir mudanças na dieta nem no exercício, quase dobrou seu peso nos últimos dez anos. Padece uma deterioração gradual das funções musculares e parece inchado.

Yueh enrugou a testa, mas seu olhar voltou para o Mentat. De Vries observou a mudança de expressão e baixou a voz, disposto a aproveitar a oportunidade.

— Eles sintomas são familiares, doutor? Já os viu em alguma parte?

Yueh ficou pensativo. Moveu-se de forma que prateleiras cheias de aparelhos de análise se interpuseram entre o Mentat e ele. Um longo tubo de cristal continuava borbulhando ao fundo da estadia.

— Nenhum médico Suk faz consultas grátis, Mentat. Meus gastos são exorbitantes, e minha investigação vital.

De Vries sorriu quando sua mente potencializada começou a sugerir possibilidades.

— Está tão absorto em suas tarefas, doutor, que não percebeu que seu patrão, a Casa Richese, está à beira da bancarrota? Os honorários do barão Harkonnen poderia lhe garantir recursos durante muitos anos.

O Mentat pervertido introduziu a mão no bolso da jaqueta, o que fez Yueh saltar, temendo uma arma silenciosa. Em vez disso, De Vries extraiu um painel liso negro com botões. Apareceu a holoprojeção de um baú de ouro encravado de pedras preciosas no alto e nos lados, que formava desenhos dos grifos azuis Harkonnen.

— Depois de diagnosticar a enfermidade do meu barão, poderia continuar sua pesquisa como achar melhor.

Intrigado, Yueh estendeu a mão, que atravessou a imagem. A tampa da holoimagen se abriu com um chiado sintético e revelou um interior vazio.

— Encheremos esse baú com o que quiser. Melange, pedras soo, obsidiana azul, jóias de opafogo, quartzo de Hagal... material para chantagem. Todos sabe que um médico Suk pode ser comprado.

— Então, vá comprar um. Ponha um anúncio.

— Preferimos um acordo mais, hum, confidencial, tal como prometeu o primeiro-ministro Calimar.

O médico umedeceu os lábios, absorto em seus pensamentos. Todo mundo de Yueh parecia concentrado em uma pequena bolha que o rodeava, como se ninguém mais existisse e nada mais importasse.

— Não posso realizar o tratamento, mas talvez possa diagnosticar a enfermidade.

De Vries encolheu seus ombros ossudos.

— O barão não deseja retê-los mais que o necessário.

Ao contemplar a quantidade de riquezas que o Mentat prometia, Yueh pensou que seu trabalho em Korona seria muito mais produtivo com os recursos adequados. Mesmo assim, vacilou.

— Tenho outras responsabilidades. O Colégio Suk me destinou para cá com um propósito específico. As próteses cyborg serão produtos muito valiosos para Richese, e para nós, uma vez demonstrada sua viabilidade.

De Vries, com um suspiro de resignação, apertou uma tecla e o tesouro aumentou de maneira considerável.

Yueh acariciou o bigode.

— Talvez seja possível viajar entre o Richese e Giedi Prime, sob uma identidade falsa, é claro. Examinaria seu barão e voltaria para prosseguir meu trabalho.

— Uma idéia interessante — disse o Mentat —. Aceita nossas condições?

— Concordo em examinar o paciente. E pensarei no que deve conter o cofre do tesouro que me oferecem. — Yueh moveu o dedo em direção a uma prateleira próxima —. Aproxime essa tela. Já que me interrompeu, me ajude a construir um protótipo de núcleo corporal.

 

Dois dias mais tarde, em Giedi Prime, enquanto se adaptava ao ar industrial e à gravidade mais pesada, Yueh examinou o barão no hospital da fortaleza Harkonnen. Todas as portas fechadas, todas as janelas muradas, todos os criados despedidos. Piter De Vries observava, sorridente.

Yueh desprezou os históricos médicos que o barão tinha acumulado ao longo dos anos, os quais documentavam os progressos da sua enfermidade.

— Estúpidos aprendizes. Não me interessam, nem seus resultados. — Abriu seu estojo de diagnóstico e extraiu seu próprio jogo de exploratórios, complexos mecanismos que só um médico Suk muito preparado podia decifrar —. Tire a roupa, por favor.

— Está brincando?

O barão tentava conservar a dignidade, manter o controle da situação.

— Não.

O barão se distraiu das incômodas sondas e espetadas pensando em formas de matar o presunçoso Suk se ele também não descobrisse a causa da sua enfermidade. Tamborilou com os dedos sobre a mesa de exames.

— Nenhum de meus médicos foi capaz de sugerir um tratamento efetivo. Entre uma mente sã ou um corpo são, vi-me forçado a escolher.

Ignorando a voz de baixo, Yueh colocou uns óculos de lentes verdes.

— Sugerir que lute por ambas é pedir muito?

Preparou seus instrumentos e contemplou a forma nua e disforme de seu paciente. O barão estava deitado de bruços na mesa de exames. Murmurava sem cessar, queixava-se de dores e desconforto.

Yueh dedicou vários minutos examinando a pele do barão, seus órgãos internos, seus orifícios, até que uma trilha de pistas sutis começaram a se encaixar em sua mente. Por fim, o delicado exploratório Suk detectou um vetor.

— Parece que seu estado foi induzido por via sexual. É capaz de utilizar este pênis? — perguntou Yueh sem sinal de humor.

— Utilizá-lo? — O barão bufou —. Infernos e condenações, ainda é minha melhor parte.

— Irônico. — Yueh utilizou um escalpelo para obter uma amostra do prepúcio, e o barão soltou um grito de surpresa.

— Tenho que fazer uma análise.

O médico nem sequer se dignou a pedir desculpas.

Yueh depositou o fragmento de pele com a ajuda da folha fina sobre uma platina, que introduziu em uma ranhura situada na parte inferior dos óculos. Deu voltas à amostra diante de seus olhos, sob diversas iluminações. O plaz dos óculos mudou do verde ao escarlate, e depois ao lavanda. Em seguida, submeteu a amostra a uma análise química multifase.

—Isso era necessário? — grunhiu o barão.

— É só o começo. — Yueh extraiu mais instrumentos, muitos deles afiados, de sua maleta. Teriam intrigado o barão se pudesse utilizá-los em outra pessoa —. Tenho que realizar muitos exames.

Depois de vestir uma bata, o barão Harkonnen se sentou, com a pele cinzenta e suarenta, dolorido em centenas de pontos que nunca tinham doído. Várias vezes desejara matar o arrogante médico Suk, mas não se atreveu a interferir no prolixo diagnóstico. Os outros médicos tinham sido ineptos e estúpidos. Agora, suportaria o que fosse necessário para melhorar. O barão confiava em que o tratamento fosse menos agressivo, menos doloroso que as primeiras análise de Yueh. Serviu-se uma taça de conhaque kirano e a bebeu de um gole.

— Reduzi o espectro de possibilidades, barão — disse Yueh, umedecendo-os lábios —. Sua doença pertence a uma categoria de enfermidades pouco frequentes, escassamente definidas. Posso tomar outra série de amostras, se desejar que realize uma verificação tripla do diagnóstico.

— Não será necessário. — O barão se levantou e agarrou sua bengala, para o caso de precisar golpear alguém —. O que descobriu?

— O vetor de transmissão é evidente, via coito heterossexual. Uma de suas amantes femininas o infectou.

O momentâneo júbilo do barão por encontrar uma resposta desapareceu na confusão mais absoluta.

— Não tenho amantes femininas. As mulheres me repugnam.

— Entendo. — Yueh tinha ouvido muitos pacientes negar o evidente —. Os sintomas são tão sutis que não é de estranhar que médicos menos competentes os ignorassem. A princípio, nem sequer os ensinos Suk os mencionavam, e eu soube de tão intrigantes enfermidades graças a minha esposa Wanna. Ela é uma Bene Gesserit, e a Irmandade usa em algumas ocasiões estes organismos doentes...

O barão se sentou na borda da mesa. Seu rosto fofo se contorceu de raiva.

— Essas malditas bruxas!

— Ah, agora se recorda — disse Yueh, satisfeito —. Quando teve lugar o contato?

Uma hesitação.

— Faz mais de doze anos.

Yueh acariciou seus longos bigodes.

— Minha Wanna me disse que uma reverenda madre Bene Gesserit é capaz de alterar sua química interna para guardar enfermidades latentes em seu corpo.

— A cadela! — rugiu o barão —. Ela me infectou.

O médico não parecia interessado na injustiça ou na indignidade.

— Mais que passivamente infectado... esse elemento patogênico só é liberado mediante força de vontade. Não foi um acidente, barão.

O barão viu Mohiam em sua mente, com sua cara de cavalo, o trato depreciativo e carente de todo respeito que lhe dispensara durante o banquete de Fenring. Ela sabia, sabia desde o primeiro momento, tinha visto seu corpo se transformar neste farrapo detestável e corpulento.

E ela tinha era a culpada de tudo.

Yueh fechou os óculos e os guardou em seu estojo de diagnóstico.

— Nosso trato acabou. Agora vou embora. Tenho que terminar numerosas pesquisas em Richese.

— Mas concordou em me tratar.

O barão perdeu o equilíbrio ao tentar ficar em pé e caiu sobre a mesa.

— Concordei em examiná-lo, e ponto, barão. Nenhum Suk pode fazer nada por você. Não existe remédio nem tratamento conhecidos, embora esteja seguro de que, com o tempo, o estudaremos no Colégio Suk.

O barão agarrou sua bengala, por fim de pé. Pensou nos dardos venenosos ocultos na ponta. Mas também compreendeu as conseqüências políticas de matar um médico Suk. A Escola Suk tinha poderosos contatos no Império. O prazer possivelmente não valia a pena. Além disso, já tinha matado muitos médicos... e finalmente tinha uma resposta. E um alvo legítimo para sua vingança: sabia quem era o culpado por sua doença.

— Temo que deve procurar a Bene Gesserit, barão.

Sem dizer mais nada, o doutor Wellington Yueh abandonou a fortaleza Harkonnen e partiu de Giedi Prime no primeiro Cruzeiro, aliviado por não ter que relacionar-se nunca mais com o barão.

 

Algumas mentiras são mais fáceis de acreditar que a verdade.

Bíblia Católica Laranja

 

Mesmo rodeado de outros aldeãos, Gurney Halleck se sentia muito sozinho. Contemplou a cerveja aguada. Era fina e amarga, embora se bebesse o suficiente, aturdiria a dor do seu corpo e coração. Mas no final só restava uma ressaca prolongada e nenhuma esperança de encontrar sua irmã. Nos cinco meses transcorridos desde que o capitão Kryubi e a patrulha Harkonnen a tinham levado, as costelas quebradas, os hematomas e os cortes de Gurney tinham se curado. Ossos de borracha, dizia-se, uma brincadeira amarga.

No dia seguinte ao seqüestro de Bheth, tinha voltado para os campos, cavado sarjetas lenta e penosamente, plantado os desprezíveis tubérculos krall. Outros aldeãos, que o olhavam de esguelha, tinham continuado trabalhando como se nada tivesse acontecido. Sabiam que se a produtividade caísse, os Harkonnen os castigariam ainda mais. Gurney percebeu que também levaram outras moças, mas os pais das vítimas não falavam disso fora do seio da família.

Gurney cantava muito poucas vezes no bar. Embora levasse consigo o velho baliset, as cordas permaneciam em silêncio, e a música se negava a brotar de seus lábios. Bebia sua cerveja amarga e se sentava com expressão áspera, enquanto escutava as conversas cansadas dos seus companheiros. Os homens repetiam queixas sobre o trabalho, o tempo, suas esposas indiferentes. Gurney se fazia de surdo.

Embora lhe fizesse mal imaginar o que Bheth estaria sofrendo, confiava que continuasse com vida... Devia estar presa em alguma casa de prazeres dos Harkonnen, treinada para realizar atos inomináveis. E se resistisse ou não se mostrasse à altura das expectativas, eles a matariam. Tal como o ataque da patrulha tinha demonstrado, os Harkonnen sempre podiam encontrar outras candidatas para seus bordéis pestilentos.

Em casa, seus pais tinham apagado à filha de sua memória. Sem as cuidados do Gurney, teriam deixado morrer o jardim do Bheth. Seus pais tinham celebrado um funeral fictício e recitado versículos da manuseada Bíblia Católica Laranja. Durante um tempo, a mãe de Gurney manteve uma vela acesa, cuja chama oscilante contemplava enquanto seus lábios se moviam em uma prece silenciosa. Cortaram lírios e margaridas (as flores favoritas de Bheth) e formaram um ramo para honrar sua memória.

Depois, tudo acabou e continuaram suas vidas miseráveis sem falar dela, como se jamais tivesse existido.

Mas Gurney não esqueceu.

— Para você tanto faz, não é? — gritou uma noite no rosto enrugado do seu pai —. Como pode permitir que façam isto a Bheth?

— Eu não permiti nada. — Parecia que o velho olhava através do seu filho, como se fosse feito de cristal sujo —. Não podemos fazer nada, e se insistir em enfrentar os Harkonnen, pagará com sangue.

Gurney saiu como uma tromba em direção ao bar, mas os aldeãos não lhe ofereceram nenhuma ajuda. Noite após noite, zangava-se com eles. Os meses passaram como uma exalação.

Gurney se ergueu de repente em seu assento, derramando a cerveja, e percebeu o que lhe estava acontecendo. Via seu rosto embotado a cada manhã, com uma consciência gradual de que tinha deixado de ser ele. Gurney Halleck, bondoso, amante da música e a algazarra, tinha tentado insuflar nova vida n esta gente, mas em vez disso se transformara em um deles. Embora tivesse pouco mais de vinte anos, já começava a se parecer com seu envelhecido pai.

O murmúrio das conversas sem humor continuava, e Gurney olhava para as lisas paredes pré-fabricadas, os cristais arranhados das janelas. Esta monótona rotina não tinha mudado em gerações. Sua mão se fechou ao redor da jarra, e revisou seus talentos e capacidades. Não podia lutar contra os Harkonnen com força bruta ou armas, mas lhe tinha ocorrido outra idéia. Podia devolver os golpes ao barão e a seus seguidores de uma forma mais insidiosa.

Sorriu, cheio de renovada energia.

— Tenho uma canção para vocês, companheiros, como jamais ouviram.

Os homens sorriram, inquietos. Gurney agarrou o baliset, dedilhou suas cordas com brutalidade, e entoou em voz alta e forte:

 

Trabalhamos nos campos, trabalhamos nas cidades,

e este é nosso dever na vida.

Pois os rios são largos e os vales estreitos,

e o barão é... gordo.

 

Vivemos sem alegria, morremos sem pena,

e este é nosso dever na vida.

Pois as montanhas são altas e os oceanos profundos,

e o barão é... gordo.

 

Raptam a nossas irmãs, subjugam a nossos filhos,

nossos pais esquecem e nossos vizinhos fingem...

e este é nosso dever na vida!

Pois nosso trabalho é penoso e breve nosso repouso,

enquanto o barão engorda a nossos gastos.

 

Enquanto os versos se sucediam, os olhos dos ouvintes se arregalavam, horrorizados.

— Basta, Halleck! — disse um homem, ao mesmo tempo em que ficava em pé.

— Por que, Perd? — respondeu Gurney com um sorriso zombeteiro —. Gosta tanto do barão? Ouvi dizer que ele gosta de levar para seus aposentos meninos robustos como você.

Gurney entoou outra canção insultante, e outra, até que por fim se sentiu liberado. Estas melodias lhe proporcionavam uma liberdade que nunca tinha imaginado. Os espectadores estavam perturbados e inquietos. Muitos se foram enquanto continuava cantando, mas Gurney não se arredou. Ficou até muito depois da meia-noite.

Quando por fim voltou para casa, Gurney Halleck o fez caminhando orgulhoso. Havia devolvido o golpe a seus torturadores, embora eles nunca soubessem.

Não ia dormir muito naquela noite, e o trabalho começaria na primeira hora da manhã, mas isso pouco lhe importava. Sentia-se como novo. Gurney retornou para a casa onde seus pais dormiam há muito tempo. Deixou o baliset em seu roupeiro, estendeu-se em sua cama e dormiu com um sorriso nos lábios.

 

Menos de duas semanas depois, uma silenciosa patrulha Harkonnen entrou no povoado de Dmitri. Faltavam três horas para o amanhecer.

Guardas armados derrubaram a porta da moradia pré-fabricada, embora os Halleck nunca a fechassem com chave. Os homens uniformizados acenderam globos luminosos quando entraram, afastaram os móveis, destroçaram os pratos de louça. Arrancaram todas as flores que Bheth tinha plantado em velhos vasos em frente a porta principal. Rasgaram as cortinas que cobriam as pequenas janelas.

A mãe de Gurney gritou e se encolheu contra a cabeceira. Seu pai se levantou de um salto, foi à porta da habitação e viu os soldados. Em vez de defender sua casa, retrocedeu e trancou a porta, como se isso pudesse protegê-lo.

Mas os guardas só estavam interessados em Gurney. Tiraram o jovem da cama, graças aos murros que deu ao ar. Os homens acharam sua resistência divertida, e o derrubaram sobre o chão. Gurney quebrou um dente e arranhou o queixo. Tentou ficar em pé, mas dois Harkonnen o chutaram nas costelas.

Depois de revistar um pequeno armário, um soldado loiro saiu com o baliset remendado. Lançou-o ao chão, e Kryubi fez que o rosto de Gurney estivesse virado para o instrumento. Enquanto os Harkonnen apertavam a bochecha de sua vítima contra os tijolos do piso, o capitão chutou o baliset com sua bota até quebrá-lo. As cordas emitiram um gemido discordante.

Gurney gemeu, e sentiu uma dor muito mais aguda que a produzida pelos golpes. Todo o trabalho que tivera para restaurar o instrumento, todo o prazer que lhe tinha proporcionado...

— Bastardos! — espetou, o que lhe rendeu outra surra.

Esforçou-se para ver seus rostos e reconheceu a um de rosto quadrado e cabelo castanho que tinha trabalhado nas sarjetas, um rapaz que conhecia de um povoado próximo, resplandecente em seu novo uniforme com a insígnia de patente inferior de um Immenbrech. Viu outro guarda de nariz bulboso e lábio leporino, e recordou que tinha sido “recrutado” em Dmitri cinco anos antes. Mas seus rostos não expressaram a menor compaixão nem deram amostras de o reconhecer. Agora eram homens do barão, e nunca fariam nada que pudesse fazê-los voltar para suas vidas anteriores.

Ao compreender que Gurney os reconhecera, os guardas o arrastaram para fora e lhe golpearam com redobrado entusiasmo.

Durante o ataque, Kryubi se mostrou triste e meditabundo. Passou um dedo por seu fino bigode. O capitão da guarda observou sombrio como seus homens golpeavam e chutavam Gurney, extraíam energias do desprezo por sua vítima que gritava com a freqüência que eles desejavam. Por fim, se afastaram e recuperaram o fôlego.

E tiraram os porretes...

No final, quando Gurney já não podia se mover porque tinha os ossos quebrados, os músculos moídos e a pele coberta de sangue coagulado, os Harkonnen se retiraram. Sob o áspero brilho dos globos luminosos, deixaram-no coberto de sangue e gemendo.

Kryubi ergueu uma mão e indicou a seus homens que voltassem para o veículo. Levaram todos os globos exceto um, que projetava uma luz vacilante sobre o homem estendido.

Kryubi observou-o com aparente preocupação e se ajoelhou a seu lado. Murmurou palavras dirigidas apenas a Gurney. Devido a névoa de dor que envolvia seu crânio, Gurney as considerou estranhas. Tinha esperado que o capitão gritasse seu triunfo, para que todos os aldeãos o ouvissem. Em vez disso, Kryubi parecia mais decepcionado que orgulhoso.

— Qualquer outro homem teria cedido a muito tempo. A maioria dos homens teriam sido mais inteligentes. Você procurou por isso, Gurney Halleck.

O capitão meneou a cabeça.

— Por que me obrigou a fazer isto? Por que insististe fazer que a ira se desatasse sobre você? Desta vez eu salvei sua vida. Por um fio. Mas se voltar a desafiar os Harkonnen, possivelmente tenhamos que te matar. — deu de ombros —. Ou talvez mataremos sua família e o mutilaremos. Um de meus homens é habilidoso em tirar olhos com os dedos.

Gurney tentou falar várias vezes com seus lábios partidos e ensangüentados.

— Bastardos — conseguiu resmungar por fim —. Onde está minha irmã?

— Sua irmã já não é assunto seu. Foi-se. Fique aqui e esqueça-a. Trabalhe. Todos temos um trabalho a fazer para o barão, e se causa problemas no teu — as aletas do nariz de Kryubi se dilataram —, eu terei que fazer o meu. Se voltar a falar contra o barão, se o insultar, se o ridicularizar para incitar o descontentamento, terei que agir. Você é inteligente o bastante para saber disso.

Gurney meneou a cabeça com um grunhido de fúria. Só sua cólera o sustentava. Jurou que se vingaria de cada gota de sangue derramado. Descobriria o que tinha acontecido a sua irmã com seu último fôlego, e se por algum milagre Bheth continuasse com vida, ele a resgataria.

Kryubi se voltou para o transporte de tropas, onde os guardas já estavam sentados.

— Não me obrigue a voltar. — Olhou para Gurney por cima do ombro e acrescentou umas palavras muito estranhas —: Por favor.

Gurney permaneceu imóvel, enquanto se perguntava quanto tempo seus pais demorariam para sair e verificar se continuava com vida. Viu com seus olhos doloridos e semicerrados que o transporte se erguia no ar e abandonava o povoado. Imaginou se outras luzes acenderiam, se algum aldeão sairia para ajudá-lo, agora que os Harkonnen haviam partido.

Mas as casas de Dmitri continuaram às escuras. Todo mundo fingia não ter visto ou ouvido nada.

 

Os limites mais estritos são auto-impostos.

FRIEDRE GINAZ

Filosofia do professor espadachim

 

Quando Duncan Idaho chegou a Ginaz, acreditava que não necessitava de nada mais que a apreciada espada do velho duque para transformar-se em um grande guerreiro. Com a cabeça cheia de românticas esperanças, imaginava a vida de aventuras que o aguardava, as maravilhosas técnicas de luta que aprenderia. Tinha apenas vinte anos, e desejava um futuro dourado.

A realidade foi muito diferente.

A Escola de Ginaz era um arquipélago de ilhas habitadas, espalhadas como miolos de pão em águas de cor turquesa. Em cada ilha, mestres diferentes ensinavam aos estudantes suas técnicas particulares, que abrangiam da luta com escudos, as táticas militares e as habilidades no combate até a política e filosofia. Durante seus oito anos de aprendizagem, Duncan passaria de um ambiente a outro e aprenderia com os melhores guerreiros do Império.

Se sobrevivesse.

A ilha principal fazia as vezes de espaçoporto e centro administrativo, rodeado de recifes que bloqueavam o caminho das ondas bravias. Altos edifícios colados uns aos outros recordaram a Duncan os espinhos de um rato espinhos, como o animal doméstico que tivera na fortaleza prisão dos Harkonnen.

Os mestre espadachins de Ginaz, reverenciados por todo o Império, tinham destinado muitos de seus edifícios principais a museus e memoriais, o que refletia o orgulho que sentiam de suas habilidades, um orgulho que raiava a presunção. Neutros em política, entregavam-se a sua arte e permitiam que seus praticantes tomassem suas próprias decisões no que se referia ao Império. Como contribuição à mitologia, muitos líderes de Grandes Casas do Landsraad se graduaram na academia. Os mestres histriões tinham o dever de compor canções e comentários sobre as grandes façanhas dos lendários heróis de Ginaz.

O arranha-céu central, onde Duncan passaria seus últimos anos de prova, albergava a tumba de Jool-Noret, fundador da Escola de Ginaz. O sarcófago de Noret estava à vista, rodeado de plaz blindado transparente e um escudo de força Holtzman, embora só os “dignos” pudessem vê-lo.

Duncan jurou que se tornaria digno...

Uma mulher esbelta e calva, vestida com um gi negro de artes marciais, recebeu-o no espaçoporto. apresentou-se sem mais preâmbulos como Karsty Toper.

— Fui designada para me encarregar de suas posses.

Estendeu a mão em direção para a mochila e para o longo vulto que continha a espada do velho duque.

Duncan segurou a arma com ar protetor.

— Se me der sua garantia pessoal de que estes objetos não sofrerão o menor dano.

A mulher franziu o cenho e apareceram rugas em sua cabeça calva.

— Valorizamos a honra mais que qualquer outra Casa do Landsraad.

Continuou com a mão estendida.

— Não mais que a Casa Atreides — replicou Duncan, que se negava a entregar a espada.

Karsty Toper franziu o sobrecenho uma vez mais.

— Não mais, possivelmente. Mas somos comparáveis.

Duncan lhe entregou sua bagagem, e a mulher indicou um tóptero lançadeira de longa distância.

— Está vendo ali. Eles o conduzirão até sua ilha. Faça o que lhe disserem sem reclamar, e aprenda de tudo. — ficou com a mochila e a espada sob os braços —. Nós guardaremos isto até que chegue o momento de usá-lo.

Sem permitir que visse a cidade de Ginaz ou a torre administrativa da escola, Duncan foi transportados para uma ilha de vegetação exuberante que se erguia sobre o nível da água. As selvas eram espessas e as cabanas escassas. Os três tripulantes uniformizados o abandonaram na praia e partiram sem responder a nenhuma de suas perguntas. Duncan ficou sozinho e ouviu o rugido do oceano contra a borda da ilha, o que lhe recordou Caladan.

Devia acreditar que era uma espécie de prova.

Um homem muito bronzeado de cabelo branco encaracolado e membros magros e robustos saiu a para recebê-lo, afastando folhas de palmeira. Usava uma blusa negra sem mangas rodeada à cintura. Sua expressão foi impenetrável quando entreabriu os olhos para proteger-se da luz que se refletia na praia.

— Meu nome é Duncan Idaho. O senhor é meu primeiro instrutor?

— Instrutor? — O homem enrugou a testa —. Sim, rato, e meu nome é Como Reed, mas os prisioneiros não utilizam nomes aqui, porque todo mundo conhece seu lugar. Trabalhe e não cause dificuldades. Se os outros não forem capazes de colocá-lo na linha, eu o farei.

Prisioneiros?

— Sinto muito, mestre Reed, mas vim para me transformar em mestre espadachim e...

Reed riu.

— Mestre espadachim? Só faltava essa.

Sem lhe dar uma pausa, o homem atribuiu a Duncan uma equipe de trabalho, com nativos de pele escura. Duncan se comunicava com sinais, pois nenhum nativo falava o galach imperial.

Durante vários dias quentes e suarentos, os homens cavaram canais e poços para melhorar o abastecimento de água de um povoado do interior. O ar estava tão impregnado de umidade e mosquitos que Duncan mal podia respirar. Quando a noite caiu, a selva se encheu de mariposas negras que se juntaram aos mosquitos, e a pele de Duncan se cobriu de picadas inchadas. Teve que beber grandes quantidades de água para compensar o suor.

Enquanto Duncan trabalhava duro para mover pesadas pedras com as mãos, o sol queimava os músculos de suas costas nuas. O capataz Reed vigiava da sombra de uma cabana, com os braços cruzados e um chicote cravejado em uma mão. Em nenhum momento falou da aprendizagem de mestre espadachim. Duncan não protestou, não exigiu respostas. Tinha imaginado que Ginaz seria... imprevisível.

Tem que ser uma espécie de prova. Antes de fazer nove anos tinha sofrido torturas cruéis nas mãos dos Harkonnen. Tinha visto Glossu Rabban assassinar seus pais. Quando ainda era um menino, tinha matado vários caçadores na Reserva Florestal, e por fim tinha escapado para Caladan, presenciando a morte de seu mentor, o duque Paulus Atreides, na arena. Agora, depois de uma década de serviços para a Casa Atreides, preferia considerar o esforço de cada dia como um exercício de treinamento, que o endurecia para batalhas posteriores. Se tornaria um mestre espadachim de Ginaz...

Um mês depois, outro tóptero depositou na ilha um jovem ruivo. O recém-chegado parecia desconcertado na praia, aborrecido e confuso, assim como Duncan quando tinha chegado. antes que alguém pudesse falar com o ruivo, o capataz Reed enviou as equipes para cortar a espessa maleza com facões sem corte. Dava a impressão de que a selva crescia assim que a destruíam. Talvez esse fosse o objetivo de enviar sentenciados a até aquela zona, um trabalho tão perpétuo como absurdo, como o mito do Sísifo que aprendera durante seus estudos com os Atreides.

Duncan não voltou a ver o ruivo até duas noites depois, quando tentou dormir em sua primitiva cabana, construída com folhas de palmeira. O recém-chegado jazia em um refúgio no outro lado do acampamento, queixando-se de horríveis queimaduras produzidas pelo sol. Duncan saiu para ajudá-lo à luz das estrelas. Aplicou um ungüento cremoso sobre suas piores queimaduras, como tinha visto os nativos fazerem.

O ruivo vaiou de dor e reprimiu um grito. Falou por fim em galach, o que surpreendeu Duncan.

— Obrigado, seja você quem for. — Estendeu-se e fechou os olhos —. Forma desgraçada de frequentar uma escola, não acha? O que estou fazendo aqui?

O jovem, Hiih Resser, vinha de uma das Casa Menores de Grumman. Seguindo a tradição familiar, cada geração selecionava um candidato para que fosse treinado em Ginaz, mas ele tinha sido o único membro de sua geração disponível.

— Consideraram-me uma má opção, uma brincadeira cruel me enviar para cá, e meu pai está convencido de que fracassarei. — Resser deu um salto quando se levantou —. Todos costumam me subestimar.

Nenhum dos dois sabia explicar sua situação, encerrados em uma ilha-prisão.

— Ao menos isso nos curtirá — disse Duncan.

No dia seguinte, quando Como Reed os viu conversando, coçou seu cabelo encaracolado, franziu o sobrecenho e os atribuiu a diferentes equipes de trabalho, em lados opostos da ilha.

Duncan não voltou a ver Resser durante um tempo.

À medida que os meses se passavam sem a menor informação, sem exercícios estruturados, Duncan começou a enfurecer-se, pois lamentava perder tempo que poderia ter dedicado à Casa Atreides. A este ritmo, como ia transformar-se em um mestre espadachim?

Um dia, estendido em sua cabana, em vez da chamada habitual do capataz Reed, Duncan ouviu o rítmico bater das asas de um tóptero, e o coração lhe deu um salto. Correu para fora e viu um veículo aterrissar na praia. O vento das asas articuladas agitava as folhas como ventiladores.

Uma mulher esbelta e calva, coberta com um gi negro, desceu e falou com Como Reed. O robusto capataz sorriu e lhe estreitou a mão com força. Duncan não percebeu que os dente de Reed eram muito brancos. Karsty Toper se afastou e deixou que seus olhos vagassem pelos prisioneiros que tinham saído de suas cabanas, picados pela curiosidade.

O capataz Reed se virou para os condenados.

— Duncan Idaho! Venha maqui, rato.

Duncan correu pela praia rochosa para o tóptero. Quando se aproximou da máquina voadora, viu que o ruivo Hiih Resser já estava sentado na cabine. O jovem apertou sua cara sorridente e sardenta contra a janela de plaz curva.

A mulher lhe dedicou uma inclinação de sua cabeça calva, e depois lhe examinou de cima abaixo como um exploratório. Virou-se para Reed e falou em galach.

— Êxito, professor Reed?

O capataz deu de ombros, e seus olhos úmidos adotaram uma repentina expressividade.

— Os outros prisioneiros não tentaram matá-lo. Não se colocou em confusões. Nós queimamos toda sua gordura e fraqueza.

— Isso faz parte do meu treinamento? — perguntou Duncan —. Uma equipe de trabalho para me curtir?

A mulher calva cruzou os braços.

— Você estava em uma equipe de prisioneiros, Idaho. Estes homens são ladrões e assassinos, condenados a permanecer aqui para sempre.

— E me enviaram para cá? Com eles?

Como Reed se aproximou e lhe deu um surpreendente abraço.

— Sim, rato, e você sobreviveu. Assim como Hiih Resser. — Disse ao Duncan com uma palmada fraternal nas costas —. Estou orgulhoso de você.

Duncan, confuso e envergonhado, bufou de incredulidade.

— Sobrevivi a prisões piores quando tinha oito anos.

— E enfrentará piores a partir de agora. Isto foi uma prova de caráter, obediência e paciência — explicou Karsty Toper —. Um mestre espadachim tem que ter paciência para estudar seu inimigo, para criar um plano, para emboscar o inimigo.

— Mas um verdadeiro mestre espadachim costuma possuir mais informação sobre sua situação — disse Duncan.

— Agora já vimos do que é capaz, rato. — Reed se secou uma lágrima da bochecha —. Não me decepcione. Espero vê-lo último dia do seu treinamento.

— Faltam oito anos — disse Duncan.

Toper o guiou ao tóptero. Duncan sentiu uma grande alegria quando viu que a mulher havia trazido a espada do velho duque. A mulher calva teve que erguer a voz para fazer-se ouvir sobre o potente zumbido dos motores do aparelho quando acelerou.

— Agora chegou o momento de iniciar seu verdadeiro treinamento.

 

Um conhecimento especial pode supor uma terrível desvantagem se o levar por um caminho que já não pode explicar.

Admoestação mentat

Em um gabinete de meditação situado no porão mais tenebroso da fortaleza Harkonnen, Piter De Vries não podia ouvir o chiado das serras amputadoras nem os gritos das vítimas torturadas que penetravam por uma porta aberta no final do corredor. Sua concentração Mentat estava focada em assuntos muito mais importantes.

Numerosas drogas potencializavam seus processos mentais.

Sentado com os olhos fechados, meditou sobre o mecanismo do Império, a forma como as engrenagens da maquinaria se encaixavam. As Casas Grandes e Menores do Landsraad, a Corporação Espacial, a Bene Gesserit e o conglomerado comercial conhecido como CHOAM eram as engrenagens principais. E todos dependiam de uma só coisa.

Melange, a especiaria.

A Casa Harkonnen extraía enormes benefícios de seu monopólio sobre a especiaria. Anos atrás, quando tinham descoberto a existência do Projeto Amal, o barão necessitara de pouca persuasão para perceber que a ruína econômica cairia sobre ele se algum dia um substituto barato da melange fosse desenvolvido, que isso transformaria Arrakis em um planeta totalmente sem valor.

O imperador (ou muito provavelmente Fenring) tinha oculto bem o projeto. Sepultando seu alto custo nos meandros do orçamento imperial: impostos mais elevados aqui, multas inventadas ali, pagamentos de dívidas centenárias, venda de propriedades valiosas. Conseqüências, planos, preparativos, movimentos sub-reptícios que podiam ficar invisíveis. Só um Mentat podia segui-los, e as pistas conduziam a um projeto a longo prazo que provocaria a ruína econômica da Casa Harkonnen.

Mesmo assim, o barão não se resignava. Tinha tentado até mesmo desencadear uma guerra entre os Bene Tleilax e a Casa Atreides afim de destruir o Projeto Amal... mas o plano fracassara, graças ao maldito duque Leto.

Depois, infiltrar espiões no planeta antes conhecido como IX tinha constituído uma tarefa muito difícil, e suas projeções Mentat não lhe davam motivos para acreditar que os tleilaxu tivessem interrompido seus experimentos. De fato, já que o imperador enviara mais duas legiões Sardaukar para “manter a paz” em IX, cabia pensar que a investigação estava chegando ao seu fim. Ou a paciência de Shaddam.

Em seu transe, De Vries não movia um músculo, além dos olhos. Uma bandeja de drogas potenciadoras da mente pendia ao redor do seu pescoço, uma placa circular que girava muito lentamente, como um centro de mesa. Uma mosca amarela pousou sobre seu nariz, mas ele não a sentiu. O inseto desceu até seu lábio inferior e beijou o suco de safo derramado.

De Vries estudou o desdobramento de drogas e parou a placa com um piscar. A bandeja se inclinou e verteu um frasco de xarope de tikopia em sua boca... e junto com ele à mosca indefesa, seguida por uma cápsula de concentrado de melange. O Mentat mordeu e engoliu a cápsula, saboreou uma explosão de essência de canela adocicada. Logo, tomou uma segunda cápsula, mais melange do que jamais ingerira. Mas necessitava da clarividência.

Em uma cela longínqua, um torturado gritou e balbuciou uma confissão. Mas De Vries não reparou em nada. Imune às distrações, mergulhou ainda mais nas profundezas de sua mente. Notou que sua consciência se dilatava, o tempo se desdobrou como as pétalas de uma flor. Fluiu por um contínuo, e cada parte foi acessível a seu cérebro. Viu o lugar exato que ocupava nele.

Um de vários futuros possíveis apareceu em sua mente, uma extraordinária projeção Mentat apoiada em uma avalanche de informação e intuição, potencializada pelo enorme consumo de melange. A visão era uma série de dolorosas imagens de videolivro, estacas visuais cravadas em seus olhos. Viu o pesquisador chefe tleilaxu sustentar com orgulho um frasco de especiaria sintética, e rir enquanto a ingeria. Êxito!

Imagens imprecisas. Viu os Harkonnen partir de Arrakis, abandonando toda a produção de melange. Tropas de guardas Sardaukar armados acompanhavam figuras imprecisas até um transporte imperial. Viu a bandeira com o grifo azul dos Harkonnen arriada da fortaleza de Carthag e a residência de Arrakeen.

Substituída pelo emblema verde e negro da Casa Atreides!

Um som afogado surgiu de sua garganta, e sua mente Mentat se deslocou entre as imagens, obrigou-as a adotar um padrão para tentar traduzi-las.

Os Harkonnen perderão seu monopólio de especiaria. Mas não necessariamente por culpa do amal que os tleilaxu estão desenvolvendo em conivência com o imperador.

Como, então?

Enquanto a presa multitentacular das drogas se intensificava e o asfixiava, sua mente percorria uma avenida de sinapsis atrás de outra. Cada vez, só encontrava becos sem saída. Deu voltas e o tentou de novo, mas chegou à mesma conclusão.

Como acontecerá?

O consumo maciço de drogas mescladas não era um método aprovado para estimular os poderes mentais, mas ele não era um Mentat normal, uma pessoa abençoada com o dom, aceita na escola e treinada nos métodos ocultos da classificação de dados e a análise. Piter De Vries era um Mentat “pervertido”, cultivado em um tanque de axlotl tleilaxu a partir das células de um Mentat falecido e preparado por desertores da Escola Mentat. Depois de submetê-los a sua preparação pervertida, os tleilaxu perdiam o controle sobre seus Mentats, embora De Vries estava seguro de que já tinham outro ghola acabado, geneticamente idêntico a ele, à espera se por acaso o barão Harkonnen perdesse a paciência com ele pela última vez.

A “perversão” tleilaxu produzia um enriquecimento impossível de obter por outros métodos. Proporcionava a De Vries capacidades maiores, inalcançáveis para os Mentats normais. Mas também o transformavam em um ser imprevisível e perigoso, incontrolável.

Durante décadas, os Bene Tleilax tinham experimentado combinações de drogas em seus Mentats. Em seus anos de formação, De Vries tinha sido um de suas cobaias. Os efeitos tinham sido imprevisíveis e pouco concludentes, e tinham resultado em alterações (melhoras, confiava ele) de seu cérebro.

Desde que o tinham vendido à Casa Harkonnen, De Vries realizara suas próprias provas, depurado seu corpo para acomodá-lo ao estado que ele desejava. Graças à correta mescla de produtos químicos, tinha alcançado um alto grau de lucidez mental, afim de processar os dados com maior rapidez.

Por que a Casa Harkonnen perderá o monopólio da especiaria? E quando?

Parecia prudente sugerir ao barão que redobrasse suas operações, que vigiasse os depósitos secretos de melange ocultos em Lankiveil e outros lugares. Temos que nos proteger do desastre.

Suas pálpebras pesadas se agitaram e elevaram. Brilhantes partículas de luz dançavam ante seus olhos. Focou sua visão com dificuldade. Ouviu gritos. Dois homens uniformizados que empurravam uma maca, sobre a qual descansava um vulto que antes tinha sido um ser humano, passaram em frente a porta entreaberta.

Por que a Casa Harkonnen perderá o monopólio da especiaria? Compreendeu com tristeza que o efeito das drogas estava se dissipando, em seu esforço por decifrar o significado da visão. Por que? Precisava aprofundar ainda mais. Devo descobrir a resposta!

Tirou a bandeja de drogas do pescoço, derramou suco e cápsulas sobre o chão. Caiu de joelhos, recolheu várias pílulas e as engoliu. Lambeu como um animal o suco de safo derramado, antes de deitar-se no chão frio. Por que?

Quando uma agradável sensação se apoderou dele, cravou a vista no teto. As funções involuntárias de seu corpo diminuíram e adquiriu o aspecto de um morto. Mas sua mente corria a toda velocidade, sua atividade eletroquímica aumentou, os neurônios classificaram sinais, processaram, procuraram... Os impulsos elétricos saltaram abismos sinápticos, cada vez mais velozes.

Por que? Por que?

Seus caminhos cognitivos saíram disparados em todas as direções, cruzaram-se, chisparam. Íons de potássio e sódio colidiram com outros radicais nas células em seu cérebro. Os mecanismos internos falharam, pois não eram capazes de controlar o fluxo de dados. Estava a ponto de sofrer um caos mental e entrar em coma.

Mas sua maravilhosa mente Mentat entrou em modo de sobrevivência, enclausurou funções, limitou os danos...

Piter De Vries despertou sobre uma poça de resíduos de drogas. Seu nariz, boca e garganta ardiam.

Ao lado do Mentat, o barão passeava de um lado a outro, ao mesmo tempo que o repreendia como a um menino.

— Olhe o que fez, Piter. Toda essa melange desperdiçada, e quase tenho que comprar um novo Mentat dos tleilaxu. Não volte a fazer isso!

De Vries se esforçou por levantar-se, tentou contar ao barão sobre a visão, sobre a destruição da Casa Harkonnen.

— Eu... vi...

Mas não pôde articular mais palavras. Demoraria muito tempo para conseguir ordenar frases com coerência.

Pior ainda, apesar daquela desesperada overdose não tinha uma resposta para o barão.

 

Muito conhecimento nunca trás soluções simples.

Príncipe herdeiro Raphael Corrino

Discursos sobre a liderança

Dentro do círculo ártico de Lankiveil, coberto de gelo, os navios baleeiros comerciais pareciam cidades sobre a água, enormes redes processadoras que sulcavam as águas cinza aço durante meses antes de retornar aos moles do espaçoporto para depositar sua carga.

Abulurd Harkonnen, o meio-irmão mais novo do barão, preferia navios menores com tripulações nativas. Para elas, a caça à baleia era um desafio e uma arte, não uma indústria.

Um vento penetrante agitava seu cabelo loiro ao redor de suas orelhas e ombros, enquanto esquadrinhava a distância. O céu era uma sopa de nuvens sujas, mas já se acostumara ao clima. Apesar dos elegantes e caros palácios Harkonnen de outros planetas, Abulurd tinha escolhido este planeta frio e montanhoso como lar.

Estava no mar há uma semana e tentava ajudar à tripulação, apesar de sua aparência ser muito diferente da dos nativos de Lankiveil. Suas mãos estavam doloridas e cobertas de bolhas que logo se transformariam em calos. Os baleeiros budislâmicos pareciam assombrados de seu governador planetário querer trabalhar, mas conheciam suas excentricidades. Abulurd nunca tinha sido propenso à pompa e a cerimônia, ao abuso do poder, à ostentação de riqueza.

Nos mares do norte, as baleias peludas Bjondax nadavam em manadas como bisões aquáticos. As bestas de pelagem dourada eram comuns; as de manchas de leopardo muito mais raras. Vigias postados em plataformas de observação, exploravam o mar semeado de gelo com binóculos, em busca de baleias solitárias. Baleeiros livres do serviço se alternavam em rezar. Estes caçadores nativos selecionavam suas presas, e só escolhiam às de melhor pelagem, pois eram as mais apreciadas.

Abulurd cheirou o ar salgado e o aroma penetrante do temporal de neve e chuva iminente. Esperava que começasse a ação, uma caçada veloz, quando o capitão e seu imediato vociferariam ordens e tratariam Abulurd como mais um tripulante. Por enquanto, não tinha nada mais a fazer além de esperar e pensar em sua casa...

De noite, quando o navio balançava e oscilava, acompanhado pelo estrondo das partes de gelo que golpeavam o casco reforçado, Abulurd cantava ou jogava uma partida de algum jogo de azar. Recitava os sutras com a tripulação religiosa.

As estufas dos camarotes não se comparavam com as lareiras crepitantes de sua casa imponente em Tula Fjord ou sua romântica dacha particular na entrada do fiorde. Embora gostasse da caça à baleia, Abulurd já sentia falta da seu silenciosa e forte esposa. Emmi Rabban-Harkonnen e ele estavam casados a décadas, e apenas alguns dias de separação bastavam para que seus reencontros fossem mais doces ainda.

Emmi tinha sangue nobre, mas de uma Casa Menor em decadência. Quatro gerações atrás, antes da aliança com a Casa Harkonnen, Lankiveil tinha sido o feudo de uma família insignificante, a Casa Rabban, que se entregara a atividades religiosas. Construíram monastérios e seminários para retiros espirituais nas montanhas escarpadas, em vez de explorar os recursos do seu planeta.

Muito tempo antes, depois da morte de seu pai, Dmitri, Abulurd e sua esposa tinham passado sete desagradáveis anos em Arrakis. Seu meio-irmão Vladimir tinha consolidado todo o poder da Casa Harkonnen com seu punho de ferro, mas o testamento do seu pai tinha cedido o controle das operações de especiaria a Abulurd, o filho bondoso e amante dos livros. Abulurd compreendia a importância de sua posição, a riqueza que a melange proporcionava a sua família, embora nunca tivesse dominado os matizes e complexidades políticas do planeta deserto.

Abulurd se vira obrigado a partir de Arrakis em suposta desgraça. Em qualquer caso, dissessem o que dissessem, preferia viver em Lankiveil com poucas responsabilidades, entre gente que compreendia. Sentia pena da gente que padecia sob o jugo do barão no planeta deserto, mas Abulurd jurou fazer tudo quanto pudesse em seu novo lar, embora ainda não se incomodasse em reclamar o título de governador do subdistrito que lhe correspondia por direito. A tediosa política era um desperdício de esforços humanos.

Emmi e ele só tinham um filho, Glossu Rabban, de trinta e quatro anos, o qual, segundo a tradição de Lankiveil, tinha recebido o sobrenome da linhagem de sua mãe. Infelizmente, seu filho tinha uma personalidade dura e apreciava seu tio mais que seus próprios pais. Embora Abulurd e Emmi sempre tivessem desejado ter mais filhos, a linhagem Harkonnen nunca tinha sido muito fértil.

— Albina! — gritou o vigia, um rapaz de olhos penetrantes, cujo cabelo negro pendia em uma grossa trança sobre sua parka —. Baleia branca vinte graus a bombordo.

Uma intensa atividade se apoderou da embarcação. Os neuroarpoadores pegaram suas armas, enquanto o capitão aumentava a velocidade. Os homens subiram pelas escadas, faziam viseira com as mãos e cravaram a vista nas águas semeadas de icebergs que pareciam pintadas de branco. Tinha passado um dia inteiro desde a última caçada, de modo que as cobertas estavam limpas, os recipientes de processamento abertos e preparados, os homens ansiosos.

Abulurd esperou seu turno de vigia. Viu brilho entre a espuma que podiam pertencer a uma baleia albina, mas na realidade eram pedaços de gelo flutuantes. Por fim, divisou o animal quando emergiu, um arco cremoso de pelagem branca. Era jovem. As albinas, um estranho fenômeno, as expulsavam do rebanho. Poucas vezes alcançavam a idade adulta.

Os homens se prepararam quando o navio saiu em perseguição de sua presa. As rodas de oração continuavam girando e estalando na brisa.

— Se a capturarmos ilesa — gritou o capitão da ponte com voz estentórea, capaz de partir a capa de gelo —, ganharemos o suficiente para voltar para casa.

Abulurd gostava de ver a alegria e o júbilo em seus rostos. Sentiu-se emocionado, seu coração palpitava para continuar bombeando sangue naquele frio intenso. Nunca aceitava uma parte dos lucros, pois não lhe interessava o dinheiro, e permitia que os homens os dividissem entre eles.

A besta albina, ao notar que era perseguida, acelerou em direção a um arquipélago de icebergs. O capitão aumentou a velocidade dos motores. Se a baleia mergulhasse, eles a perderiam.

As baleias peludas passavam meses sob as grossas capas de gelo. Nas águas escuras alimentadas por respiradouros vulcânicos cheios de nutrientes e calor, as baleias devoravam bancos de krill, esporos e o rico plâncton do Lankiveil que não necessitava da luz do sol para fotossíntese.

Um dos rifles de longo alcance disparou e plantou um pulsador no lombo do animal. Em reação, a albina mergulhou. O tripulante que manipulava os controles enviou uma descarga elétrica através do pulsador, o que fez a baleia emergir de novo.

O navio girou e por estribor roçou um iceberg, mas o casco reforçado aguentou enquanto o capitão realizava a manobra. Dois arpoadores, que agiam com calma e precisão, ocuparam barcos de perseguição, esbeltas embarcações de proa estreita e quilhas corta gelo. Os homens se prenderam com o cinto de segurança, fecharam o dossel protetor transparente e lançaram os barcos ao mar gelado.

As barcos ricochetearam sobre as águas encrespadas, golpearam partes de gelo, mas se aproximaram do seu objetivo. A primeira embarcação descreveu um círculo e se aproximou da direção oposta. Os arpoadores cruzaram em frente a baleia albina, abriram o dossel e ficaram de pé em seus compartimentos. Com equilíbrio perfeito, cravaram estacas atordoantes na baleia.

A baleia deu meia volta e se dirigiu para o baleeiro. Os arpoadores a perseguiram, mas a barco principal já estava perto o bastante, e quatro arpoadores se inclinaram sobre a coberta. Como legionários romanos peritos na caça de javali, lançaram estacas atordoantes que deixaram a baleia inconsciente. Os dois barcos de perseguição se aproximaram do animal, e os arpoadores deram o golpe de graça.

Mais tarde, enquanto içavam os barcos de perseguição, os marinheiros descenderam pelo casco do navio até a carcaça flutuante para retirar sua pele.

Abulurd tinha presenciado cenas semelhantes muitas vezes, mas sentia aversão pelo processo, de modo que se encaminhou à coberta de estribor e olhou para as cadeias montanhosas de icebergs que se elevavam ao norte. Suas formas acidentadas lhe recordaram as rochas escarpadas que formavam as paredes do fiorde onde vivia.

O baleeiro tinha chegado ao extremo norte das águas de caça nativas. Os baleeiros da CHOAM nunca se aventuravam até aquelas latitudes, pois seus enormes navios não podiam navegar naquelas águas traiçoeiras.

Abulurd, sozinho na proa, contemplou maravilhado a pureza do gelo ártico, um brilho cristalino que potencializava a luz do sol. Ouviu o chiado dos icebergs ao se chocarem entre si e olhou, sem perceber o que sua visão periférica registrava. Algo mortificava seu inconsciente, até que seu olhar se concentrou em um dos monólitos de gelo, uma montanha quadrada que parecia apenas um pouco mais cinza que as demais. Refletia menos luz.

Forçou a vista, e logo recolheu uns binóculos caídos na coberta. Abulurd ouviu os gritos dos homens enquanto cortavam sua presa. Enfocou as lentes e examinou o iceberg.

Contente por ter encontrado uma distração do trabalho sangrento, Abulurd dedicou longos minutos a estudar os fragmentos de gelo flutuantes. Eram muito precisos, muito exatos para haver-se desprendido do iceberg.

Então, ao nível da água, viu algo que se assemelhava a uma porta.

Subiu à coberta da ponte.

— Têm trabalho para uma hora mais, não é, capitão?

O homem assentiu.

— Sim. Esta noite voltaremos para casa. Quer participar do trabalho?

Abulurd estremeceu ante a idéia de manchar-se com sangue de baleia.

— Não... Na realidade eu gostaria de usar um dos barcos para explorar... algo que descobri em um iceberg.

Em circunstâncias normais teria solicitado uma escolta, mas os baleeiros estavam ocupados. Mesmo nesses mares gelados e inexplorados, Abulurd preferia se afastar do aroma da morte.

O capitão arqueou suas sobrancelhas espessas. Abulurd adivinhou que o homem queria expressar sua contrariedade, mas guardou silêncio. Sua cara larga e esmagada só manifestava respeito pelo governador planetário.

Abulurd Harkonnen sabia dirigir uma barco, pois estava acostumado a pilotar uma para explorar as costas de seu fiorde, de modo que declinou a oferta de que outros baleeiros o acompanhassem. Cruzou as águas a pouca velocidade, atento à aparição de pedaços de gelo traiçoeiros. No navio continuava o trabalho, e o ar estava impregnado de um intenso aroma de sangue e vísceras.

Em duas ocasiões, entre aquele labirinto de montanhas flutuantes, Abulurd perdeu de vista seu objetivo, mas no final o localizou. Escondido entre os icebergs à deriva, parecia que aquele fragmento em particular não se movia. Perguntou-se se estaria ancorado.

Aproximou o barco do lado escarpado e a prendeu ao gelo. Uma sensação de irrealidade, como se estivesse perdido, envolvia o estranho monólito. Quando pisou na superfície branca compreendeu até que ponto era estranho aquele objeto.

O gelo não estava frio.

Abulurd se agachou para tocar o que se assemelhavam a fragmentos leitosos de gelo. Golpeou com os nódulos dos dedos. A substância era uma espécie de cristal artificial, um sólido translúcido que possuía a aparência do gelo... Golpeou com mais força, e o iceberg ressoou. Muito peculiar.

Dobrou uma curva para chegar ao lugar onde tinha visto uma fileira geométrica de gretas, algo que podia ser uma porta de acesso. Examinou-o até descobrir uma fenda, um painel de acesso que parecia danificado, talvez depois de uma colisão com um iceberg real. Localizou um botão de ativação, e a coberta trapezoidal deslizou para um lado.

Deu um salto quando sentiu um forte aroma de canela que reconheceu imediatamente. Tinha-o respirado muitas vezes em Arrakis. Melange.

Aspirou uma profunda baforada para assegurar-se, e depois mergulhou nos corredores escuros. O chão era liso e parecia ter sido pisoteado por muitos pés. Uma base secreta? Um posto de comando? Um arquivo secreto?

Descobriu sala após sala cheias de contêineres de nulentropia, recipientes selados que exibiam o grifo azul da Casa Harkonnen. Um armazém de especiaria colocado aqui por sua própria família... e ninguém lhe havia dito nada. Um mapa mostrava a enorme extensão do armazém submarino. Em Lankiveil, debaixo do nariz de Abulurd, o barão guardava uma enorme quantidade ilegal de especiaria!

Com aquelas reservas de especiaria poderia ter comprado todo esse sistema planetário muitas vezes. A mente de Abulurd era incapaz de assimilar o tesouro que tinha descoberto. Precisava pensar, falar com Emmi. Ela o aconselharia. Juntos decidiriam o que fazer.

Embora considerasse honrada à tripulação do baleeiro, tanta riqueza acumulada tentaria o melhor deles. Abulurd saiu rapidamente, fechou a porta e subiu ao barco.

Depois de retornar ao baleeiro, memorizou as coordenadas. Quando o capitão perguntou se tinha descoberto algo, Abulurd meneou a cabeça e voltou para seu camarote. Temia trair-se diante dos homens. Tinha uma longa viagem antes de encontrar sua esposa. Oh, quanto sentia falta dela, como necessitava do seu conselho.

Antes de zarpar do mole do Fjord Tula, o capitão deu a Abulurd o fígado da baleia, embora fosse pouco comparado com a parte da pele que tinha dado a cada um de seus tripulantes.

Quando Emmi e ele jantaram juntos no pavilhão principal pela primeira vez em uma semana, Abulurd estava nervoso e distraído, à espera de que a chef terminasse os preparativos.

O saboroso e fumegante fígado de baleia foi servido em duas bandejas de prata douradas, com guarnição de legumes sortidos, além de um prato de ostras defumadas. A longa mesa tinha capacidade para trinta convidados, mas Abulurd e Emmi estavam sentados um ao lado do outro perto de um extremo, e eles mesmos se serviam das bandejas.

Emmi possuía uma agradável e longo rosto típico de Lankiveil, e um queixo quadrado que não era belo nem gracioso, mas Abulurd a adorava. Seu cabelo era do negro mais profundo e pendia abaixo dos seus ombros, cortado horizontalmente. Seus olhos redondos eram do marrom do jaspe.

Com freqüência, Abulurd e sua esposa comiam com outros na sala comunal, e se juntavam as conversas. Mas desde que Abulurd havia retornado de sua longa viagem no baleeiro, todos sabiam que os dois queriam ficar a sós. Abulurd desejava contar a sua mulher o grande segredo que descobrira no mar de gelo.

Emmi estava em silêncio, absorta. Pensava antes de falar, e não falava a menos que tivesse algo a dizer. Escutava neste momento seu marido sem interromper. Quando Abulurd terminou seu relato, Emma continuou em silêncio, pensando no que tinha ouvido. Abulurd esperou por um longo momento que ela pesasse todas as possibilidades.

— O que vamos fazer, Emmi? — disse por fim.

— Toda essa riqueza foi roubada da parte correspondente ao imperador. Deve estar aqui há anos. — Assentiu para sublinhar suas convicções —. Você não vai querer sujar as mãos com ela.

— Mas meu próprio meio-irmão me enganou.

— Deve ter seus planos. Não lhe disse isso porque sabia que seu sentido da honra o impulsionaria a denunciá-lo.

Abulurd mastigou um pouco de legumes e engoliu, acompanhando-a com vinho branco de Caladan. A Emmi bastava o sinal mais ínfimo para saber o que estava pensando.

— É verdade.

A mulher meditou por um momento.

— Se revelar a existência deste armazém, pode nos prejudicar de muitas maneiras, as pessoas de Lankiveil e a nossa própria família. Oxalá nunca o tivesse descoberto.

Abulurd esquadrinhou seus olhos para ver se algum brilho de tentação os cruzara, mas só viu neles preocupação e cautela.

— Possivelmente Vladimir está sonegando impostos, ou malversando para encher as arcas da Casa Harkonnen — insinuou ela, com expressão mais dura —. Mas continua sendo seu irmão. Se o denunciar ao Imperador, poderia provocar um desastre para sua Casa.

Abulurd grunhiu ao cair perceber outra conseqüência.

— Se o barão for preso, eu teria que controlar todas as posses dos Harkonnen. No suposto caso de que conservássemos o feudo de Arrakis, teria que ir para lá, ou viver em Giedi Prime. — Tomou outro gole de vinho, abatido —. Não me interessa nenhuma das duas opções, Emmi. Eu gosto de viver aqui.

Ela tocou sua mão. Acariciou-a, e ele levou sua mão aos lábios e beijou seus dedos.

— Nesse caso, já tomamos a decisão — disse a mulher — Sabemos que a especiaria está ali... e ali a deixaremos.

 

O deserto é um cirurgião que afasta a pele para deixar à mostra o que há debaixo.

Provérbio fremen

Quando a lua avermelhada se ergueu no horizonte, Liet-Kynes e sete fremen abandonaram as rochas e se encaminharam para as dunas, onde seria mais fácil vê-los. Um a um, os homens fizeram o sinal do punho, de acordo com a tradição fremen ao avistar a Primeira Lua.

— Preparem-se — disse Stilgar momentos depois, com sua cara estreita como um falcão do deserto à luz da lua. Suas pupilas se dilataram, de forma que seus olhos azuis pareciam negros. Envolveu-se em sua camuflagem do deserto, assim como outros guerrilheiros veteranos —. Se diz que quando alguém espera a vingança, o tempo passa devagar mas docemente.

Liet-Kynes assentiu. Estava vestido como um menino de povoado fraco e inchado de água, mas seus olhos eram tão duros como o aço de Velam. A seu lado, seu companheiro de sietch e irmão de sangue Warrick, um moço um pouco mais alto, assentiu também. Esta noite, os dois fingiriam ser dois meninos indefesos perdidos no deserto... um alvo irresistível para a ansiada patrulha Harkonnen.

— Fazemos o que deve ser feito, Stil. — Liet apoiou uma mão sobre o ombro acolchoado de Warrick. Estes meninos de doze anos já tinham matado mais de cem Harkonnen por cabeça, e teriam deixado de contar se não fosse por uma amistosa rivalidade —. Confio minha vida a meu irmão.

Warrick cobriu a mão de Liet com a sua.

— Liet teria medo de morrer sem que eu estivesse a seu lado.

— Com ou sem você, Warrick, não penso em morrer esta noite — disse Liet, o que fez seu companheiro rier —. Penso em me vingar.

Depois da orgia de morte que assolara Bilar Camp, a ira fremen se estendeu de sietch em sietch, como água alagando a areia. Graças às marcas de tóptero achadas perto da cisterna oculta, sabiam quem eram os responsáveis. Todos os Harkonnen deviam pagar.

Chegou a notícia aos ouvidos de trabalhadores com aspecto tímido e poeirento, criados que tinham sido infiltrados nas fortalezas dos Harkonnen, até em Carthag e Arsunt. Alguns destes espiões esfregava o chão dos barracões das tropas, utilizando trapos secos e abrasivos. Outros eram vendedores de água que vendiam o prezado líquido às forças de ocupação.

À medida que o relato do povoado envenenado circulava de um soldado Harkonnen a outro, com anedotas cada vez mais exageradas, os informantes fremen descobriram quem extraía maior prazer das notícias. Estudaram a composição das patrulhas e as rotas que seguiam. Ao fim de pouco tempo, tinham descoberto quem eram os soldados Harkonnen responsáveis. E onde podiam encontrá-los...

Com um grito agudo e uma revoada de asas muito finas, um diminuto morcego distrans voou dos afloramentos de observação até eles. Quando Stilgar ergueu um braço, o morcego aterrissou sobre seu antebraço, dobrou as asas e esperou uma recompensa.

Stilgar extraiu uma gota de água do tubo que levava na garganta e deixou que caísse na boca aberta do morcego. Depois tirou um fino cilindro, o levou ao ouvido e escutou os complicados e flutuantes chiados do animal. Stilgar afagou sua cabeça, e depois o lançou ao ar da noite, como um falcoeiro faria com sua ave.

Voltou-se para o grupo que aguardava na expectativa com um sorriso de predador em seu rosto.

— Seu ornitóptero foi visto sobre a cordilheira. Os Harkonnen seguem uma rota predizível quando exploram o deserto, mas como faz muito tempo que estão em patrulha, relaxaram. Não percebem seus movimentos repetidos.

— Esta noite cairão em uma teia de morte — disse Warrick do alto da duna, e levantou o punho em um gesto nada próprio de um menino.

Os fremen verificaram suas armas, facas crys, e provaram a força das cordas estranguladoras. Apagaram todas marcas de sua passagem com os mantos e deixaram os dois jovens sozinhos.

Stilgar levantou a vista para o céu noturno e um músculo em sua mandíbula vibrou.

— Aprendi isso com Umma Kynes. Quando estávamos catalogando liquens, vimos um lagarto das rochas que pareceu desaparecer a frente de nossos olhos. Kynes me disse: “Dou-lhe o camaleão, cuja capacidade de fundir-se com seu ambiente lhe diz tudo que precisa saber sobre as raízes da ecologia e a base da identidade pessoal.” — Stilgar olhou com seriedade para seus homens, e sua expressão mudou —. Não sei muito bem o que queria dizer... mas agora todos temos que nos transformar em camaleões do deserto.

Liet, que usava roupas de cor clara, subiu em uma duna, deixando rastros claros de propósito. Warrick o seguiu com a mesma estupidez, enquanto os outros fremen se estendiam sobre a areia. Depois de tirar os tubos de respiração e cobrir seus rostos com capuzes soltos, agitaram os braços. A areia os engoliu, e ficaram imóveis.

Liet e Warrick alisaram a superfície, sem deixar outra coisa além de seus próprios rastros. Terminaram exatamente quando o tóptero da patrulha zumbiu sobre a linha de rochas, com luzes vermelhas piscando.

Os dois fremen vestidos de branco ficaram imóveis. Suas roupas destacavam-se contra a areia iluminada pela lua. Nenhum fremen de verdade seria surpreendido dessa forma, mas os Harkonnen ignoravam isso. Não suspeitariam.

Assim que o tóptero apareceu à vista, Liet fez um exagerado gesto de alarme.

— Vamos, Warrick. Temos que dar um bom espetáculo.

Os dois correram como se estivessem em pânico.

Como era de esperar, o tóptero deu uma volta para interceptá-los. Um potente foco varreu o chão, e depois um sorridente fuzileiro apareceu na cabine. Disparou sua arma laser duas vezes, e desenhou uma linha de cristal fundido sobre a superfície da areia.

Liet e Warrick caíram pelo lado íngreme de uma duna. O fuzileiro disparou duas vezes e errou.

O tóptero aterrissou sobre a superfície de uma duna próxima, muito perto de onde Stilgar e seus homens se enterraram. Liet e Warrick trocaram um sorriso e se prepararam para a segunda parte do jogo.

Kiel pendurou seu rifle laser no ombro, ainda quente, e abriu a porta.

— Vamos caçar uns fremen.

Saltou à areia assim que Garan pousou o veículo.

Atrás deles, o recruta Josten procurou sua arma desajeitadamente.

— Seria mais fácil disparar do ar.

— Que tipo de esporte seria esse? — replicou Garan com voz arruda.

— Ou é porque não quer manchar seu novo uniforme de sangue, guri? — acrescentou Kiel sem voltar-se. achavam-se junto ao veículo e olhavam para as dunas iluminadas pela lua, onde dois nômades esqueléticos fugiam, como se tivessem alguma chance de escapar depois que uma nave Harkonnen tivesse decidido caçá-los.

Garan pegou sua arma e os três homens avançaram. Os dois jovens fremen corriam como escaravelhos, mas o cerco dos soldados talvez os impelisse de dar meia volta e render-se... ou melhor ainda, a lutar como ratos encurralados.

— Ouvi histórias sobre esses fremen — disse Josten, ofegante, enquanto corria com os dois homens maiores —. Se diz que os meninos são assassinos, e suas mulheres torturam de formas que nem sequer Piter De Vries poderia imaginar.

Kiel soltou uma gargalhada.

— Temos rifles laser, Josten. O que vão fazer, nos jogar pedras?

— Alguns levam pistolas maula.

Garan olhou para o jovem recruta e deu de ombros.

— Por que não volta para tóptero e pega um atordoante? Podemos utilizar outros métodos se a coisa ficar feia.

— Sim — disse Kiel —, assim prolongaremos mais a diversão.

Os dois fremen continuavam correndo, e os Harkonnen cortavam distâncias rapidamente.

Nesse momento Josten correu para o tóptero. Do alto da duna olhou para seus companheiros, e depois seguiu até o aparelho. Quando entrou, viu um homem vestido com cores do deserto. Suas mãos tocavam os controles sem pausa.

— Ei, que diabos...

À luz da cabine viu que o intruso tinha um rosto estreita e enrugado. Seus olhos o cativaram, azul sobre azul, com a intensidade de um homem acostumado a matar. Antes que Josten pudesse reagir, uma presa de aço lhe travou o braço e foi puxado para o interior da cabine. A outra mão do fremen cintilou e viu uma faca curva de um azul leitoso que se abatia sobre ele. Um brilhante pedaço de gelo de dor mergulhou em sua garganta, até a coluna. Então a faca desapareceu, antes que uma gota de sangue pudesse aderir a sua superfície.

Como um escorpião que acaba de liberar seu aguilhão, o fremen retrocedeu. Josten caiu para frente, sentindo já a morte vermelha que transbordava de sua garganta. Tentou dizer algo, formular uma pergunta que lhe achava muito importante, mas em vez de palavras brotou um gorgolejo. O fremen puxou algo de seu traje destilador e o apertou contra a garganta do jovem, um pano que absorvia seu sangue à medida que se derramava.

Aquele homem do deserto pretendia salvá-lo? Uma bandagem? Um brilho de esperança brilhou na mente de Josten. Tinha sido todo um engano? Aquele magro nativo tentava corrigir seu erro?

Mas seu sangue fluía com muita rapidez e violência para que alguém pudesse salvá-lo. Enquanto sua vida se apagava, compreendeu que o pano absorvente não tinha em nenhum momento a intenção de conter sua ferida, mas sim de apanhar até a última gota do seu sangue para apoderar-se de sua umidade...

Quando Kiel chegou a uma distância da que podia disparar sem dificuldades contra os dois fremen, Garan olhou para trás.

— Parece que ouvi algo no tóptero.

— É provável que Josten deu uma rasteira em si mesmo — disse o fuzileiro, sem baixar a arma.

Os fremen se detiveram por fim. agacharam-se e tiraram pequenas facas.

Kiel riu.

— O que querem fazer com isso? Palitar os dentes?

— Eu palitarei os dentes do seu cadáver — gritou um dos rapazes —. Usa algum molar de ouro que possamos vender em Arrakeen?

Garan soltou uma risada e olhou para seu companheiro.

— Isto vai ser divertido.

Os soldados entraram na zona lisa arenosa.

Quando estavam a uns cinco metros de distância, a areia que os rodeava explodiu. Formas humanas surgiram do pó, cobertas de areia, silhuetas humanas bronzeadas, parecendo com cadáveres animados que saiam de um cemitério.

Garan soltou um grito inútil de advertência e Kiel disparou seu rifle, atingindo um dos atacantes no ombro. Então, as formas poeirentas se lançaram para eles. Rodearam o piloto e o impediram de utilizar a arma. Atacaram-no como sanguessugas a uma ferida aberta.

Quando obrigaram Garan a ajoelhar-se, o soldado uivou de terror. Os fremen o prenderam, até que não pudesse fazer outra coisa além de respirar e piscar. E continuar gritando.

Uma das supostas vítimas correu para ele. O jovem, Liet-Kynes, empunhava a pequena faca de que Garan e Kiel zombaram momentos antes. O moço usou a faca com extrema precisão e suavidade, e arrancou os dois olhos de Garan, que se transformou em uma réplica de Édipo.

Stilgar ladrou uma ordem.

— Amarrem-no e o mantenham vivo. Nós o levaremos vivo ao sietch da Muralha Vermelha, para que as mulheres o tratem a sua maneira.

Garan gritou outra vez.

Quando os fremen se lançaram sobre Kiel, este respondeu agitando seu fuzil como um pau, mas mãos ansiosas o prenderam, e os surpreendeu soltando o rifle. Os fremen caíram para trás ao perder o equilíbrio.

Kiel pôs-se a correr. Lutar não lhe serviria de nada. Já tinham capturado Garan, e deu por certo que Josten estava morto no tóptero. Correu como nunca em sua vida. Afastou-se das rochas e do tóptero e entrou no deserto. Talvez os fremen o alcançassem, mas teriam que suar.

Kiel corria entre as dunas sem nenhum rumo, só queria fugir para o mais longe possível...

— Capturamos o tóptero intacto, Stil — disse Warrick, vermelho pela descarga de adrenalina e muito orgulhoso de si mesmo. O líder do comando assentiu, muito sério. A notícia agradaria muito a Umma Kynes. Poderia utilizar o tóptero para suas inspeções agrícolas, e não precisava souber de onde tinha saído.

Liet olhou para o cativo cego, cujas cavidades oculares tinham sido cobertas com um pano.

— Vi com meus próprios olhos o que os Harkonnen fizeram em Bilar Camp... A cisterna envenenada, a água envenenada. — Já tinham empacotado o outro cadáver na parte posterior do veículo para ser conduzido às destilarias da morte —. Isto não compensa nem a décima parte do sofrimento.

Warrick se aproximou de seu irmão de sangue.

— Tal é meu rancor que nem sequer desejo suas águas para nossa tribo.

Stilgar o fulminou com o olhar, como se tivesse proferido um sacrilégio.

— Preferiria deixar que se mumificassem na areia, que suas águas se perdessem no ar? Seria um insulto para o Shai-Hulud.

Warrick inclinou a cabeça.

— Era minha ira que falava, Stil. Perdoe-me. Não falei a sério.

Stilgar levantou a vista para a lua. A emboscada tinha durado menos de uma hora.

— Executaremos o ritual de tal hai, para que suas almas nunca descansem. Serão condenadas a vagar pelo deserto durante toda a eternidade. — Sua voz adotou um tom temeroso —. Mas temos que apagar bem nossos rastros, para não conduzir seus fantasmas até nosso sietch.

Os fremen murmuraram quando o medo moderou o prazer da vingança. Stilgar entoou o antigo cântico, enquanto outros faziam desenhos na areia, labirínticas formas de poder que atavam os homens condenados às dunas para sempre.

Ainda podiam ver, à luz da lua, a figura em fuga do último patrulheiro.

— Essa é nossa oferenda ao Shai-Hulud — disse Stilgar depois de finalizar seu cântico. A maldição do tal hai estava completa —. O mundo alcançará o equilíbrio, e o deserto se sentirá satisfeito.

— Corre como um réptil ferido gravemente. — Liet estava muito rígido ao lado de Stilgar, embora ainda fosse pequeno comparado com o líder do comando —. Falta pouco.

Recolheram suas coisas. Os que puderam se apertaram no tóptero, enquanto outros fremen voltavam para a areia. Utilizaram um passo aleatório que tinham praticado muito, para que suas pegadas não produzissem sons estranhos no deserto.

O soldado Harkonnen continuava correndo, tomado pelo pânico. Talvez estivesse alimentando alguma louca esperança de escapar, embora a direção que tinha tomado não conduzisse a nenhum lugar.

Ao fim de poucos minutos, um verme foi atrás dele.

 

O propósito da discussão é mudar a natureza da verdade.

Preceito Bene Gesserit

O barão Vladimir Harkonnen nunca havia sentido tanto ódio por alguém em toda sua vida de maquinações.

Como é possível que essa bruxa Bene Gesserit me tenha feito isto?

Em uma manhã de Giedi Prime, entrou na sala de exercícios de sua fortaleza, fechou as portas com chave e ordenou que ninguém o incomodasse. Impossibilitado de utilizar pesos ou equipamentos de polias devido a seu crescente tamanho, sentou-se no tapete do chão e tentou realizar simples elevações de pernas. Em outro tempo tinha sido a perfeição em forma humana. Agora mal podia levantar uma perna. Sentiu-se enojado de si mesmo.

Durante dois meses, desde o momento em que tinha recebido o diagnóstico do doutor Yueh, tinha desejado arrancar os órgãos de Mohiam um a um. Depois, mantendo-a acordada e consciente através de máquinas que mantivessem suas funções vitais, faria coisas interessantes enquanto ela olhava... Queimaria seu fígado, obrigaria a bruxa a comer-se seu próprio baço, a estrangularia com suas próprias vísceras.

Agora compreendia a expressão satisfeita de Mohiam no banquete do conde Fenring.

Ela é a culpada por meu sofrimento!

Olhou-se no espelho que abrangia do chão até o teto e deu um salto. Tinha o rosto inchado e torcido. Estendeu seus pesados braços, arrancou o espelho de plaz da parede e o jogou ao chão, retorceu o material inquebrável até que seu reflexo se tornou ainda mais grotesco.

Era compreensível que Mohiam se sentisse ofendida pela violação, supunha, mas a bruxa o tinha chantageado para copular com ele, exigindo que proporcionasse à maldita Irmandade uma filha Harkonnen... duas vezes! Não era justo. A vítima era ele.

O barão tremia de raiva. Não ousava permitir que seus rivais do Landsraad descobrissem a verdade. Era a diferença entre força e debilidade. Se continuassem acreditando que tinha adquirido aquele aspecto físico corpulento e inchado devido aos excessos, com o fim de alardear de seu êxito, reteria o poder. Se ao contrário descobrissem que uma mulher, que o obrigara a copular com ela, tinha lhe irradiado uma repugnante enfermidade... O barão não poderia suportar.

Sim, ouvir os gritos de Mohiam seria uma saborosa vingança. A mulher era apenas mais um repulsivo apêndice da ordem Bene Gesserit. As bruxas se consideravam superiores, capazes de esmagar quem fosse... inclusive ao chefe da Casa Harkonnen. Deviam ser castigadas, por uma questão de orgulho familiar, de afirmação do poder e da posição social em nome de todo o Landsraad.

Além disso, seria um prazer pessoal.

Mas se agisse precipitadamente nunca conseguiria que lhe proporcionassem uma cura. O doutor Suk afirmara que não existia tratamento conhecido para a enfermidade, que isso estava nas mãos das Bene Gesserit. A Irmandade tinha infligido este sofrimento ao barão, e só elas podiam lhe devolver seu belo corpo de antigamente.

Malditas sejam!

Precisava voltar, entrar em suas mentes diabólicas e descobrir o que havia nelas. Encontraria uma forma de chantageá-las. Arrancaria seus fúnebres hábitos negros e as deixaria nuas, à espera de serem julgadas.

Atirou o espelho sobre o chão de lajes, onde ele deslizou até se chocar contra uma máquina de exercícios. Desprovido de sua bengala, perdeu o equilíbrio, escorregou e caiu.

Era muito para ele...

Depois de acalmar-se, o barão coxeou até seu estúdio e convocou Piter De Vries. Sua voz retumbou nos corredores e os criados correram de um lado para outro, em busca do Mentat.

De Vries estivera recuperando-se durante todo um mês de sua estúpida overdose de especiaria. O idiota afirmava ter tido uma visão da queda da Casa Harkonnen, mas tinha sido incapaz de oferecer alguma informação útil sobre como podia o barão combater um futuro tão desgraçado.

Agora, o Mentat podia compensar este fracasso planejando um golpe contra a Bene Gesserit. Cada vez que De Vries irritava em excesso ao barão, até o ponto de uma execução iminente, conseguia demonstrar que era indispensável.

Como posso fazer mal às bruxas? Como posso mutilá-las, fazer que se retorçam?

Enquanto esperava, o barão olhou para Harko City, com seus edifícios manchados de petróleo, sem uma árvore à vista. Geralmente, era uma paisagem que o agradava, mas agora só conseguiu aumentar sua insatisfação. Mordiscou o interior da boca, sentiu que as lágrimas de auto-compaixão retrocediam.

Esmagarei a Irmandade!

Essas mulheres não eram estúpidas. Nem muito menos. Com seus programas de reprodução e suas maquinações políticas tinham integrado a inteligência dentro de suas filas. E para melhorar este esquema tinham pretendido que seus superiores genes Harkonnen se introduzissem em sua ordem. Oh, como as odiava!

Era necessário um plano meticuloso. Truques dentro de truques...

— Meu senhor barão — disse Piter De Vries, que tinha chegado sem ser notado. Sua voz se elevou de sua garganta como uma víbora ao sair de uma fossa.

O barão ouviu vozes fortes e um estrondo metálico no corredor. Algo golpeou contra uma parede, e um móvel se rompeu. Voltou-se e viu seu sobrinho entrar, e deter-se atrás do Mentat. Mesmo caminhando a passo normal, Glossu Rabban parecia chutar o chão.

— Estou aqui, tio.

— Isso é evidente. Deixe-nos. Chamei Piter, não você.

Geralmente, Rabban dedicava seu tempo em Arrakis a cumprir os desejos de seu tio, mas quando retornava a Giedi Prime queria participar de todas as reuniões e discussões.

O barão respirou fundo e repensou.

— Pensando melhor, pode ficar, Rabban. De qualquer modo, tenho que te falar disto.

Afinal, aquele bruto era seu presumido herdeiro, a melhor esperança de futuro para a Casa Harkonnen. Melhor que o pai de Rabban, o cabeça de vento do Abulurd. Como eram diferentes, embora cada um tivesse graves deficiências.

Seu sobrinho sorriu como um cachorrinho patético, feliz de ter sido incluído.

— Me falar do que, tio?

— De que vou ordenar sua execução.

Os olhos azul claro de Rabban se obscureceram por um momento, mas logo voltaram a brilhar.

— Não.

— Por que está tão seguro?

O barão o transpassou com o olhar, enquanto os olhos do Mentat seguiam a conversa.

Rabban respondeu.

— Porque se realmente fosses ordenar minha execução, não me avisaria antes.

Um sorriso cruzou o rosto fofo do barão.

— Possivelmente não é tão idiota, afinal.

Rabban aceitou o comentário e se deixou cair sobre uma cadeira cão, e se retorceu até que o animal se acomodou a sua forma. De Vries continuou de pé, observando, esperando.

O barão repetiu os detalhes da enfermidade que Mohiam lhe tinha irradiado, e de sua necessidade de vingar-se da Bene Gesserit.

— Temos que encontrar uma forma de nos desforrar delas. Quero um plano, um delicioso plano que lhes devolva... o favor que nos fizeram.

De Vries estava de pé, com suas feições efeminadas relaxadas, os olhos desfocados. Em programa Mentat, passou mapas e planos por sua mente em hipervelocidade. Sua língua sobressaía entre os lábios manchados de vermelho.

Rabban chutou a cadeira cão com o calcanhar para que se adaptasse a outra postura.

— Por que não um ataque militar em toda escala contra Wallach IX? Podemos destruir todos os edifícios do planeta.

De Vries se remexeu e por uma fração de segundo deu a impressão de que olhava para Rabban, mas foi tão rápido que o barão não teve certeza. Não podia suportar a idéia de que os primitivos pensamentos de seu sobrinho poluíssem os delicados processos mentais de seu valioso Mentat.

— Como um touro salusano em meio de uma festa, quer dizer? — disse o barão —. Não, necessitamos de algo mais sutil. Olhe a definição em um dicionário se o conceito lhe for desconhecido.

Em vez de ofender-se, Rabban se inclinou e entreabriu os olhos.

— Temos... a não-nave.

O barão se voltou a olhar para ele, surpreso. Justo quando pensava que aquele toco era muito curto até para ingressar na Guarda da Casa, Rabban o surpreendia com uma perspicácia inesperada.

Só tinham se atrevido a utilizar a nave invisível experimental uma vez, para destruir naves tleilaxu e acusar o inexperiente duque Atreides. Como Rabban tinha matado o excêntrico inventor richesiano, não podiam copiar a tecnologia. Mesmo assim, era uma arma cuja existência ninguém suspeitava, nem sequer as bruxas.

— Talvez... a menos que Piter tenha uma idéia diferente.

— Em efeito, meu barão. — As pálpebras de De Vries tremeram, e seus olhos se concentraram —. Resumo Mentat — disse, com uma voz um pouco mais empolada do que o normal —. Descobri uma lacuna útil na Lei do Império. Algo intrigante, meu barão.

Citou-a palavra por palavra, como um teclegal, e depois recomendou um plano.

Por um momento todos as dores e sofrimentos corporais do barão desapareceram devido à euforia. voltou-se para seu sobrinho.

— Compreende agora o potencial, Rabban? Preferiria ser famoso pela sutileza que pela força bruta.

Rabban assentiu a contra gosto.

— Mesmo assim, acredito que deveríamos usar a não-nave. Para o caso de...

Ele em pessoa tinha pilotado a nave invisível e lançado o ataque que deveria ter desencadeado uma guerra total entre os Atreides e os tleilaxu.

Como não queria que o Mentat se sentisse muito confiante, o barão aceitou.

— Nunca é demais ter um plano de reserva.

Os preparativos foram rápidos e minuciosos. O capitão Kryubi insistiu que seus homens seguissem ao pé da letra as instruções de Piter De Vries. Rabban passeava pelos hangares e barracões como um senhor da guerra, e conseguia manter um nível de tensão apropriado entre as tropas.

Já tinham solicitado um transporte da Corporação, enquanto uma fragata Harkonnen tinha sido desmantelada e carregada com mais homens e armas normais, junto com a nave ultrasecreta utilizada em uma ocasião, uma década antes.

De um ponto de vista militar, a tecnologia da invisibilidade proporcionava uma vantagem sem comparação na história documentada. Em teoria, permitia que os Harkonnen dessem golpes mortais em seus inimigos sem que pudessem detectá-los. Era inimaginável o que o visconde Moritani de Grumman pagaria por algo assim.

A nave invisível tinha funcionado bem em sua primeira viagem, mas os planos futuros foram postergados, enquanto os técnicos reparavam falhas mecânicas detectadas. Embora a maioria de problemas fossem de pouca importância, outros (relacionados com o gerador de não acampo em si) resistiam aos investigadores. E o inventor richesiano já não estava vivo para oferecer sua ajuda. De qualquer modo, a nave tinha funcionado bem em provas recentes, embora os mecânicos advertissem com a voz tremula que talvez não estivesse totalmente preparada para entrar em combate.

Um dos operários mais lentos teve que ser esmagado lentamente em uma prensa de vapor para animar seus companheiros a cumprir os prazos. O barão tinha pressa.

A fragata carregada até os batentes entrou na órbita geoestacionária de Wallach IX, exatamente acima do complexo da Escola Materna. O barão, de pé na ponte da fragata com Piter De Vries e Glossu Rabban, não transmitiu o menor sinal ao quartel general da Bene Gesserit. Não era necessário.

— Anunciem suas intenções — disse uma voz feminina pelo sistema de comunicações, séria e desanimada. O barão percebera um ápice de surpresa?

— Sua Excelência o barão Vladimir Harkonnen, de Giedi Prime, deseja falar com sua madre superiora por um canal privado — De Vries respondeu em tom formal.

— Não é possível. Não foram estabelecidos contatos prévios.

O barão se inclinou e trovejou no sistema de comunicação.

— Têm cinco minutos para estabelecer uma conexão confidencial com sua madre superiora, ou me comunicarei por uma linha aberta. Poderia ser um pouco... er, embaraçoso.

Desta vez a pausa foi mais longa. Momentos antes que se cortasse a comunicação, uma voz diferente, mais áspera, soou no alto-falante.

— Sou a madre superiora Harishka. Estamos falando por minha linha de comunicação pessoal.

— Bem, pois escute com atenção.

O barão sorriu.

De Vries recitou o caso.

— Os artigos da Grande Convenção são muito explícitos no que se refere a delitos graves, madre superiora. Estas leis foram estabelecidas depois dos horrores cometidos por máquinas pensantes contra a humanidade. Um dos delitos mais pesados é o uso de armas atômicas contra seres humanos. Outro é a agressão usando armas químicas.

— Sim, sim. Não sou uma perita em história militar, mas posso encontrar alguém que cite as frases exatas, se assim o desejar. Acaso seu Mentat não se ocupa desses detalhes burocráticos, barão? Não entendo o que isto tem a ver conosco. Quer me contar também um conto para dormir?

Seu sarcasmo só podia significar que tinha começado a ficar nervosa.

— “As formalidades tem que obedecidas” — citou o barão —. “O castigo pela violação destas leis é a aniquilação imediata dos perpetradores nas mãos do Landsraad. Todas as Grandes Casas juraram contribuir com uma força combinada contra a parte infratora.” — Fez uma pausa, e seu tom se tornou mais ameaçador —. As formalidades não foram obedecidas, não é, madre superiora?

De Vries e Rabban trocaram um olhar, sorridentes.

O barão continuou.

— A Casa Harkonnen está disposta a apresentar uma queixa formal ao imperador e ao Landsraad, acusando a Bene Gesserit de uso ilegal de armas biológicas contra uma Grande Casa.

— Até agora só me disse tolices. A Bene Gesserit não aspira o poder militar. — Seu tom era de autêntica perplexidade. Era possível que não soubesse?

— Saiba então, madre superiora: possuímos provas irrefutáveis de que sua reverenda madre Gaius Helen Mohiam me transmitiu propositalmente uma enfermidade biológica, enquanto eu estava rendendo um serviço solicitado pela Irmandade. Pergunte você mesma a essa puta, caso seus subordinados lhe ocultaram esta informação.

O barão não mencionou que a Irmandade o chantageara com informação sobre atividades ilegais de armazenagem de especiaria. Estava preparado para enfrentar o problema se ele surgisse de novo, pois todos os seus depósitos de melange tinham sido transferidos para remotas regiões dos planetas Harkonnen, onde nunca seriam descobertos.

O barão se reclinou em seu assento, satisfeito, enquanto escutava o profundo silêncio. Imaginou o olhar de horror da madre superiora. Fincou um pouco mais a faca.

— Se duvidar de nossa interpretação, leia o texto da Grande Convenção uma vez mais, e veja se quer correr riscos no tribunal do Landsraad. Tampouco esqueça que o instrumento do seu ataque, a reverenda madre Mohiam, foi entregue em uma nave da Corporação. Quando a Corporação souber, não ficará nada satisfeita. — Repicou com os dedos sobre o console —. Mesmo que sua Irmandade não seja destruída, receberão severas sanções por parte do Império, pesadas multas, talvez a proscrição.

Por fim, com uma voz que quase conseguia dissimular o efeito que as ameaças tinham lhe causado, Harishka disse:

— Exagera suas afirmações, barão, mas desejo ser receptiva. O que quer de nós?

O barão pôde sentir seu estremecimento.

— Descerei em uma lançadeira à superfície e falarei em particular com você. Envie um piloto para nos guiar através dos seus sistemas defensivos planetários.

Não se incomodou em comentar que tinha tomado medidas para transmitir as provas e acusações diretamente a Kaitain, em caso de que algo lhe acontecesse durante esta viagem. A madre superiora já sabia disso.

— É obvio barão, mas não demorará para perceber que tudo isto não passa de um terrível mal-entendido.

— Que Mohiam vá à entrevista. E estejam preparada para me subministrar um tratamento e cura eficazes... do contrário, nem você nem sua Irmandade têm a menor chance de sobreviver a esta derrota.

A madre superiora não pareceu muito impressionada.

— De quanta gente se compõe seu séquito?

— Diga-lhe que trazemos todo um exército — sussurrou Rabban para seu tio.

O barão o afastou para um lado.

— Eu e seis homens.

— Aceitamos sua solicitação de entrevista.

— Posso ir, tio? — perguntou Rabban, quando a comunicação foi cortada.

— Lembra o que disse a respeito da sutileza?

— Procurei a palavra e todas suas definições, tal como me ordenou.

— Fique aqui e pense a respeito, enquanto conferencio com a chefa das bruxas.

Rabban se afastou, irritado.

Uma hora depois, um transportador da Bene Gesserit se acoplou à fragata Harkonnen. Uma jovem de cara estreita e cabelo castanho ondulado saiu à entrada. Usava um vistoso uniforme negro.

— Sou a irmã Cristane. Vou guiá-los até a superfície. — Seus olhos cintilaram —. A madre superiora os aguarda.

O barão avançou com seis soldados armados que tinha escolhido pessoalmente. Piter De Vries falou em voz baixa, para que a bruxa não pudesse ouvir.

— Nunca subestime a Bene Gesserit, barão.

O barão grunhiu e subiu ao transportador.

— Não se preocupe, Piter. Agora as tenho a minha mercê.

 

A religião é a emulação do adulto pela criança. A religião é o enraizamento das crenças passadas: a mitologia, as conjecturas, as hipóteses secretas de confiança no universo, esses manifestos que os homens têm feito em atrás do poder pessoal..., tudo misturado com retalhos de clarividência. E sempre, o mandamento definitivo não verbalizado é “Não fará perguntas!”. De qualquer modo, nós as fazemos. Quebramos esse mandamento sem pensar duas vezes. O trabalho que nos propusemos é a liberação da imaginação, a sujeição da imaginação ao sentido de criatividade mais profundo da humanidade.

Credo da Irmandade Bene Gesserit

 

Lady Margot Fenring, uma bela dama confinada em um mundo desértico, não se queixava do clima rigoroso, do calor extremo nem a falta de diversões na poeirenta cidade fortificada. Arrakeen fora construída sobre antigas salinas, o inóspito deserto se estendia para o sul e as principais elevações, incluindo a Muralha Escudo, que se elevava para o noroeste. Como se achava alguns quilômetros além da incerta fronteira dos vermes, a população nunca tinha sido atacada por um dos gigantescos vermes de areia, mas a possibilidade ainda constituía um tema de preocupação ocasional. E se algo mudasse? A vida no planeta deserto nunca era totalmente segura.

Margot pensou nas irmãs que tinham desaparecido no planeta quando trabalhavam para a Missionaria Protectiva. Haviam entrado no deserto, muito tempo atrás, seguindo as ordens da madre superiora, e ninguém havia tornado a vê-las.

Arrakeen estava imerso nos ritmos do deserto. A aridez e a importância extrema concedida à água, as ferozes tormentas que sopravam como furacões sobre um imenso mar, as lendas de perigos e sobrevivência. Neste lugar, Margot sentia uma grande serenidade e espiritualidade. Era um paraíso onde podia refletir sobre a natureza, a filosofia e a religião, longe do estéril bulício da corte imperial. Tinha tempo para fazer coisas, tempo para descobrir.

O que aquelas mulheres desaparecidas tinham descoberto?

Encontrava-se de pé em um balcão do segundo piso da residência, sob o brilho esverdeado da aurora. Uma tela filtrava o sol nascente e dotava à paisagem de um novo aspecto, deixava profundas sombras nos lugares onde os animais se ocultavam. Viu que um falcão do deserto voava para o horizonte banhado pelo sol, batia suas asas com lentidão. O amanhecer era como um óleo pintado por um dos grandes mestres, uma inundação de cores que definia os telhados da cidade e a Muralha Escudo.

Na distância, em incontáveis sietches ocultos na desolação rochosa, habitavam os escorregadios fremen. Tinham as respostas que ela necessitava, a informação essencial que a madre superiora Harishka lhe tinha encarregado de descobrir. Os nômades do deserto seguiam os ensinos da Missionaria Protectiva, ou tinham se limitado a matar as mensageiras e roubar sua água?

Atrás dela, a estufa recém terminada tinha sido fechada hermeticamente com uma eclusa pneumática que só se abria para ela. O conde Fenring, ainda adormecido em sua habitação, a ajudara a conseguir algumas das plantas mais exóticas do Império. Mas só ela podia gozar do espetáculo que proporcionavam.

Ultimamente tinha ouvido rumores sobre o sonho fremen de um Arrakis verde, típicos mitos edênicos do tipo propagado frequentemente pela Missionaria Protectiva. Podia ser uma pista das irmãs desaparecidas. Entretanto, não era estranho que um povo enfrentado um ambiente hostil desenvolvesse sonhos particulares de um paraíso, mesmo sem necessidade de as Bene Gesserit os inspirarem. Teria sido interessante comentar essas histórias com o planetólogo Kynes, e talvez lhe perguntar quem podia ser o misterioso Umma dos Fremen. Não tinha nem idéia de como isso tudo estava relacionado.

O falcão do deserto elevou o vôo, aproveitando as correntes de ar quente, e planou.

Margot tomou um gole de chá de melange. O calor tranqüilizador de sua essência de especiaria encheu sua boca. Embora estivesse vivendo em Arrakis há doze anos, consumia especiaria com moderação para não transformar-se em uma viciada cuja cor de olhos se alterava. Não obstante, a melange potencializava pelas manhãs sua capacidade de perceber a beleza natural de Arrakis. Tinha ouvido dizer que a melange nunca parecia igual duas vezes, que era como a vida, mudava a cada vez que alguém a consumia...

A mudança era um conceito essencial do planeta, uma chave para a compreensão dos fremen. Arrakis sempre parecia igual, uma desolação que se estendia até o infinito. Mas o deserto era muito mais que isso. A governanta fremen de Margot tinha sugerido um dia: “Arrakis não é o que parece, minha senhora.” Palavras estimulantes.

Alguns diziam que os fremen eram estranhos, desconfiados e fedorentos. Os forasteiros falavam com olho crítico e língua viperina, sem compaixão nem vontade de compreender a população nativa. Entretanto, Margot considerava muito intrigante as peculiaridades dos fremen. Queria descobrir mais sobre sua feroz independência para entender sua forma de pensar e como sobreviviam em Arrakis. Se chegasse a conhecê-los melhor, cumpriria sua missão com mais eficácia.

Poderia descobrir as respostas que necessitava.

Ao estudar os fremen que trabalhavam na mansão, Margot identificou padrões pouco discerniveis em linguagem corporal, inflexão vocal e aroma. Se os fremen tinham algo a dizer, e se pensavam que seu interlocutor merecia saber, revelavam. Do contrário se dedicavam a suas tarefas com diligência, a cabeça baixa, e desapareciam na tapeçaria de sua sociedade como grãos de areia no deserto.

Para obter respostas, Margot tinha pensado em formular suas perguntas sem dissimulações, exigir informação sobre as irmãs desaparecidas, com a confiança de que os criados da mansão levariam seu pedido ao deserto. Mas sabia que os fremen se limitariam a desaparecer, resistentes a coações.

Possivelmente deveria expor seus pontos vulneráveis para conseguir sua confiança. A princípio, os fremen ficariam surpreendidos, e depois confusos... e possivelmente desejariam colaborar com ela.

Meu único compromisso é com a Irmandade. Sou uma Bene Gesserit leal.

Mas como se comunicar sem ficar em evidência, sem despertar suspeitas? Pensou em escrever uma nota e deixá-la em um lugar onde fosse fácil encontrá-la. Os fremen sempre estavam escutando, sempre recolhiam informação, a sua maneira furtiva.

Não, Margot teria que ser sutil, além de tratá-los com respeito. Teria que incitá-los.

Então recordou uma prática peculiar que a Outra Memória lhe trouxe de séculos atrás... ou se tratava de uma piada que lera enquanto estudava em Wallach IX? Pouco importava. Na Velha Terra, em uma sociedade apoiada na honra conhecida como Japão, existia a tradição de contratar assassinos ninja, sigilosos mas eficazes, afim de evitar problemas legais. Quando uma pessoa desejava contratar os serviços dos misteriosos assassinos, ia a um muro, ficava de cara para ele e sussurrava o nome da vítima e a soma oferecida. Embora invisíveis, os ninjas sempre escutavam, e o contrato era estabelecido.

Na residência, os fremen sempre estavam escutando.

Margot deixou cair seu cabelo loiro sobre os ombros, afrouxou o elegante vestido de seda e saiu ao vestíbulo que dava acesso a seus aposentos. Na imensa mansão, mesmo nas primeiras horas da manhã, sempre havia gente em movimento, limpando, varrendo, dando brilho.

Margot se deteve no átrio central e ergueu a vista para o teto arqueado. Falou em voz baixa e temperada, sabendo que a arquitetura da antiga residência criava uma galeria de suspiros. Alguns a ouviriam, em diversos lugares. Não sabia quem, nem tampouco tentaria identificá-los.

— As irmãs da Bene Gesserit, às quais represento aqui, tem o maior respeito e admiração pelos costumes fremen. E eu, pessoalmente, estou interessada em seus assuntos. — Esperou a que os tênues ecos desaparecessem —. Se alguém pode me ouvir, talvez eu possua informação sobre o Lisan ao-Gaib, informação que desconhecem neste momento.

O Lisan ao-Gaib, ou Voz do Mundo Exterior, era um mito fremen relacionado com uma figura messiânica, um profeta que guardava surpreendentes paralelismos com os planos da Irmandade. Era evidente que alguma representante anterior da Missionaria Protectiva tinha introduzido a lenda como precursora da chegada do Kwisatz Haderach da Bene Gesserit. Tal preparativo se fora realizado em incontáveis planetas do Império. Não havia dúvida de que seus comentários despertariam o interesse dos fremen.

Viu uma sombra fugaz, um manto de cor parda.

Naquele da, mais tarde, enquanto observava os trabalhadores fremen ocupados em suas tarefas domésticas, Margot pensou que a olhavam com uma intensidade diferente, que a analisavam em vez de desviar seus olhos azuis sobre fundo azul.

Preparou-se para esperar, com a suprema paciência de uma Bene Gesserit.

 

A humilhação é algo que nunca se esquece.

REBEC DE GINAZ

 

A próxima ilha da escola de Ginaz era os restos de um antigo vulcão, uma crosta erma cheia de água e deixada para secar ao sol tropical. O povoado instalado dentro da terrina da cratera seca parecia outra colônia penal.

Duncan se encontrava em posição de sentido sobre o campo de exercícios de pedra, junto com outros cento e dez jovens, incluído o recruta ruivo de Grumman, Hiih Resser. Dos cento e cinqüenta primeiros, trinta e nove não tinham superado as provas iniciais.

Duncan tinha raspado seu cabelo encaracolado negro, e vestia o solto gi negro da escola. Cada estudante usava a arma que tinha levado consigo a Ginaz, e Duncan manipulava a espada do velho duque, mas aprenderia a depender sobretudo de suas habilidades e reações, não de um talismã que recordava seu lar. O jovem se sentia satisfeito, forte e disposto. Desejava iniciar seu treinamento, uma vez por todas.

Dentro do complexo da cratera, o treinador chefe dos principiantes se identificou como Jeh-Wu. Era um homem musculoso, de nariz redondo e queixo pequeno, que lhe dava a aparência de uma iguana. Seu longo cabelo escuro estava preso em tranças similares a serpentes.

— A Promessa — disse —. Em uníssono, por favor!

— A memória dos professores espadachins — entoaram Duncan e outros estudantes —, na alma, coração e mente juramos sem condições, em nome de Jool-Noret. A honra é a essência de nosso ser.

Seguiu um momento de silêncio, enquanto pensavam no grande homem que tinha estabelecido os princípios sobre os quais se fundou Ginaz, e cujos restos sagrados ainda podiam ser vistos no alto edifício administrativo da ilha principal.

Enquanto continuavam firmes, o instrutor foi passando de fila em fila, examinando os candidatos. Jeh-Wu adiantou a cabeça e deteve-se diante de Duncan.

— Desembainhe sua espada. — Falava ginazee, e um fino colar púrpura que rodeava seu pescoço traduzia suas palavras para o galach.

Duncan obedeceu, e entregou a espada do velho duque com o punho a frente. As sobrancelhas de Jeh-Wu se arquearam sob a massa de tranças que pendiam como nuvens de tormenta sobre sua cabeça.

— Lâmina excelente. Maravilhosa metalurgia. Damacero puro.

Flexionou a folha com perícia, dobrou-a para trás e a soltou, de modo que voltou para sua posição primitiva com uma vibração semelhante a de um diapasão golpeado.

— Diz-se que cada folha de damacero recém forjada é temperada no corpo de um escravo. — Jeh-Wu fez uma pausa. Suas tranças pareciam serpentes dispostas a atacar —. É idiota o bastante para acreditar em idiotices como essa, Idaho?

— Isso depende de se é verdade ou não, senhor.

O professor lhe dedicou por fim um leve sorriso, mas não respondeu a Duncan.

— Percebi que esta é a espada do duque Paulus Atreides, não é assim? — Entreabriu os olhos e falou com voz mais afetuosa —. Procure ser digno dela.

Deslizou-a na bainha de Duncan.

— Aprenderá a lutar com outras armas, até que esteja preparado para esta. Vá ao armeiro e escolha uma espada pesada, e depois vista uma armadura de corpo inteiro, uso medieval. — O sorriso de Jeh-Wu pareceu mais sinistro em seu rosto de iguana —. Precisará dela para a lição desta tarde. Vou praticar com você.

 

No campo de pedra-pome e cascalho da cratera, rodeado de imponentes penhascos, Duncan Idaho avançou penosamente com sua armadura de corpo inteiro. A cota entorpecia sua visão periférica e o obrigava a olhar para frente pela ranhura. O metal se grudava a seu corpo, e experimentava a sensação de que pesar centenas de quilos. Sobre sua cota de malha usava ombreiras, garganta, peitilho, perneiras, couraça e faldar. Carregava uma enorme espada, que devia segurar com ambas as mãos.

— Pare aí. — Jeh-Wu apontou uma zona de cascalho calcado —. Pense em como vai lutar com esse adorno. Não é tarefa simples.

Ao fim de pouco tempo, o sol da ilha transformou sua armadura em um forno claustrofóbico. Duncan, que já suava, esforçou-se para atravessar o terreno irregular. Mal podia flexionar braços e pernas.

Nenhum de outros estudantes exibiam armaduras similares, mas Duncan não se sentia afortunado.

— Preferiria usar um escudo pessoal — disse, com a voz afogada pelo casco ressonante.

— Levante sua arma — ordenou o professor.

Duncan, como um prisioneiro encadeado, ergueu desajeitadamente a espada. Com esforço, conseguiu rodear as rígidas manoplas ao redor do pomo.

— Lembre-se, Duncan Idaho, que usa a melhor armadura... Em teoria, a vantagem mais importante. Agora, defenda-se.

Ouviu um grito vindo de um ponto além de seu limitado campo de visão, e de repente se viu rodeado por outros estudantes. Golpeavam-no com espadas convencionais que ressoavam contra a chapa de aço. Soava como uma chuva de granizo brutal sobre um fino telhado metálico.

Duncan se virou e atacou com sua espada, mas se moveu com excessiva lentidão. O pomo de uma espada se chocou contra seu casco, e seus ouvidos zumbiram. Embora desse outra meia volta, mal podia ver seus competidores através da ranhura do casco, e se esquivaram com facilidade de suas cutiladas. Outra folha golpeou sua ombreira. Caiu de joelhos e lutou por levantar-se.

— Defenda-se, Idaho — disse Jeh-Wu, ao mesmo tempo que arqueava as sobrancelhas em sinal de impaciência —. Não fique parado aí.

Duncan não queria fazer mal a outros estudantes com sua enorme espada, mas nenhum de suas cutiladas alcançaram seu objetivo. Os estudantes carregaram de novo sobre ele. O suor cobria sua pele e pontos negros dançavam ante seus olhos. A atmosfera dentro do casco era asfixiante.

Posso lutar melhor!

Duncan respondeu com mais energia, e os estudantes esquivaram suas cutiladas e golpes laterais, mas a pesada armadura o impedia de mover-se com liberdade. O rugido de sua respiração e o batimento do seu coração soavam ensurdecedores em seus ouvidos.

O ataque prosseguiu, até que por fim ele caiu sobre o cascalho. O professor se adiantou e lhe tirou o pesado elmo. Duncan piscou devido ao sol cegante. Ofegou e sacudiu a cabeça, de forma que gotas de suor saíram projetadas no ar. A pesada armadura lhe esmagava contra o chão como o pé de um gigante.

Jeh-Wu se ergueu sobre ele.

— Tinha a melhor armadura de todos, Duncan Idaho. Também tinha a espada maior. — O professor contemplou sua forma indefesa e esperou que refletisse —. Entretanto fracassou completamente. Importa-se de explicar por que?

Duncan permaneceu em silêncio. Não aduziu desculpas pela vergonha e os abusos que tinha sofrido durante o exercício. Estava claro que um homem devia suportar e superar muitas penalidades durante a vida. Aceitaria a adversidade e a utilizaria para amadurecer. A vida nem sempre era bela.

Jeh-Wu se virou para os outros estudantes.

— Digam-me que lição aprenderam.

Um estudante baixo e de pele escura, vindo do planeta artificial do-Dhanab, ladrou:

— Defesas perfeitas nem sempre significam vantagem. A proteção absoluta pode transformar-se em um obstáculo, porque limita em outros aspectos.

— Muito bem. — Jeh-Wu passou um dedo por uma cicatriz em seu queixo —. Alguém mais?

— A liberdade de movimentos é melhor defesa que uma armadura — disse Hiih Resser —. O falcão está mais a salvo de ataques que uma tartaruga.

Duncan se obrigou a levantar-se, e embainhou a pesada espada com irritação. Sua voz soou rouca.

— E a arma maior nem sempre é a mais mortífera.

O professor olhou para ele, com as tranças caindo ao redor de seu rosto, e lhe deu um sorriso sincero.

— Excelente, Idaho. É possível que consiga aprender algo aqui.

 

Aprenda a reconhecer o futuro da mesma forma que um Timoneiro identifica as estrelas que o guiam e corrija o curso da sua nave. Aprenda com o passado, nunca o utilize como uma âncora.

Sigam Visee, Instrutor chefe.

Escola de Navegantes da Corporação.

 

Sob as grutas da cidade de IX, túneis subterrâneos estavam iluminados de vermelho e laranja. Gerações antes, os arquitetos ixianos tinham perfurado poços no manto fundido do planeta, que faziam as vezes de bocas famintas para os refugos industriais. O ar sufocante cheirava a produtos químicos acres e a sulfureto.

Os operários suboides suavam durante seus turnos de doze horas junto aos transportadores automáticos que lançavam refugos nas fogueiras de enxofre. Guardas tleilaxu vigiavam, suados, aborrecidos e distraídos. Operários de rosto inexpressivo se encarregavam dos transportadores, resgatavam objetos valiosos, reluzentes fragmentos de metal precioso, cabos e componentes das fábricas desmontadas.

No trabalho, C'tair roubava o que podia.

O jovem, que passava despercebido em sua fileira, conseguiu apoderar-se de vários cristais valiosos, diminutas fontes de energia, e inclusive um filtro microsensor. Depois do ataque dos Sardaukar contra os lutadores pela liberdade, ocorrido dois meses antes, já não contava com uma rede que lhe proporcionasse os produtos tecnológicos que necessitava. Liberava sozinho sua batalha, mas se negava a reconhecer a derrota.

Durante dois meses tinha vivido em um estado paranóico. Embora ainda mantivesse contatos periféricos nas grutas do porto de entrada e das docas de processamento de recursos, todos os rebeldes que C'tair conhecia, todos os contrabandistas com que tinha tratado, tinham sido assassinados.

Passava o mais desapercebido que podia, evitava seus esconderijos anteriores, temeroso de que algum dos rebeldes capturados e interrogados tivesse dado pistas sobre sua identidade. Como até seu contato com Miral Alechem estava quebrado, vivia em absoluta clandestinidade e trabalhava em uma equipe destinada aos poços onde se lançavam os refugos.

A seu lado, um dos operários estava muito nervoso, olhava ao redor uma e outra vez. O homem percebia inteligência em C'tair, embora o jovem de cabelo escuro procurasse evitá-lo. Não estabelecia contato visual, não tentava conversar, embora estivesse claro que seu colega de trabalho assim desejasse. C'tair suspeitava que o homem era outro refugiado, que fingia ser menos do que na realidade era. Mas. C'tair não podia confiar em ninguém.

Insistia em seu porte inexpressivo. Um colega de trabalho curioso podia ser perigoso, talvez um Dançarino Facial. Talvez C'tair precisasse fugir se alguém se aproximasse muito. Os tleilaxu tinham acabado sistematicamente tanto com a classe média ixiana como com os nobres, e não descansariam até ter esmagado o pó que pisavam em suas botas.

Acompanhados de um Amo, guardas uniformizados se aproximaram uma tarde na metade de um turno. C'tair, com o cabelo murcho pendendo sobre seus olhos cansados, estava empapado de suor. Seu colega de trabalho ficou rígido, e depois se concentrou na tarefa que estava executando.

C'tair se sentia resfriado e doente. Se os tleilaxu tinham vindo por ele, se sabiam quem era, o torturariam durante dias antes de executá-lo. Esticou os músculos, preparado para lutar. Talvez pudesse jogar vários deles no poço de magma antes que o matassem.

Entretanto, os guardas se dirigiram ao homem nervoso que C'tair tinha ao lado. O Amo tleilaxu que os guiava se esfregou seus dedos esqueléticos e sorriu. Tinha um nariz largo e queixo estreito. Sua pele cinzenta parecia carente de toda vida.

— Você, cidadão... suboide, ou o que for. Descobrimos sua verdadeira identidade.

O homem levantou a vista, olhou para C'tair como se lhe suplicasse ajuda, mas o jovem esquivou seu olhar.

— Não adiante disfarçar — continuou o Amo tleilaxu com voz untuosa —. Descobrimos seus documentos. Sabemos que é um contador, um daqueles que guardava inventários dos produtos de fabricação ixiana.

O guarda apoiou uma mão no ombro do operário, que se remexeu, tomado pelo pânico. Abandonou todo fingimento.

O Amo tleilaxu se aproximou do desgraçado, mais paternal que ameaçador.

— Julga-nos mau, cidadão. investimos muitos esforços para localizá-lo, porque necessitamos de seus serviços. Os Bene Tleilax, seus novos senhores, precisam de trabalhadores inteligentes que nos ajudem na sede de nosso governo. Precisamos de alguém com seus conhecimentos matemáticos.

O Amo indicou com um gesto a câmara tórrida e fedorenta. O transportador automático continuava funcionando, lançando rochas e fragmentos retorcidos de metal no poço chamejante.

— Este trabalho é indigno do seu talento. Venha conosco, lhe daremos uma tarefa muito mais interessante e valiosa.

O homem assentiu com um tênue sorriso de esperança.

— Sou um bom contador. Poderia ajudar. Poderia ser muito valioso. Devem dirigir isto como se fora um negócio.

C'tair quis pronunciar uma advertência. Como o homem podia ser tão estúpido? Se tinha sobrevivido doze anos sob a opressão tleilaxu, como não percebia que tudo era um truque?

— Vamos, vamos — disse o Amo —. Faremos uma reunião do conselho, e poderá expor suas idéias.

O guarda olhou fixamente para C'tair, e o coração do ixiano deu um salto.

— Está interessado no que estamos falando, cidadão?

C'tair fez um esforço para manter o rosto inexpressivo, para que seus olhos não aparentassem temor, para que sua voz não se alterasse.

— Agora terei mais trabalho.

Olhou para a linha de montagem.

— Então trabalhe mais.

O guarda e o Amo tleilaxu levaram seu cativo. C'tair se reintegrou a sua tarefa. Vigiou os refugos, examinou cada objeto antes que caísse no longo poço.

 

Dois dias depois, C'tair e sua equipe receberam a ordem de se concentrar no chão da gruta principal para presenciar a execução de um contador “espião”.

Quando topou com Miral Alechem durante sua monótona rotina diária, C'tair dissimulou sua surpresa.

Tinha mudado de trabalho uma vez mais, nervoso pela detenção do contador. Nunca utilizava o mesmo cartão de identificação mais de dois dias seguidos. Passava de uma tarefa a outra, atraía poucos olhares de curiosidade, mas os operários ixianos sabiam que não deviam fazer perguntas. Qualquer desconhecido podia ser um Dançarino Facial infiltrado nas equipes de trabalho, afim de descobrir sinais de descontentamento ou planos secretos de sabotagem.

C'tair devia ter paciência e fazer novos planos. Freqüentava diferentes centros de alimentação, fazia longas filas para receber a comida distribuída aos operários.

Os tleilaxu tinham posto em funcionamento sua tecnologia biológica, e criavam comida irreconhecível em tanques ocultos. Cultivavam hortaliças e raízes ao dividir as células, de maneira que as plantas só produziam tumores disformes de material comestível. Comer se transformou em um processo, não mais uma atividade agradável, apenas mais uma tarefa rotineira.

C'tair recordava os momentos passados no Grande Palácio com seu pai, o embaixador em Kaitain, e sua mãe, uma importante representante dos Bancos da Corporação. Tinham saboreado manjares deliciosos de outros planetas, os mais saborosos aperitivos e saladas, os melhores vinhos importados. Tais lembranças agora lhe pareciam fantasias. Não conseguia recordar o sabor de nenhum daqueles pratos.

Atrasou-se até o final da fila para não ter que suportar a pressa dos outros trabalhadores. Quando recebeu seu prato da garçonete, reparou nos grandes olhos escuros, o cabelo cortado descuidadamente, e o rosto estreito mas atraente de Miral Alechem.

Seus olhares se encontraram, reconheceram-se, mas ambos sabiam que não deviam falar. C'tair olhou para as mesas e Miral levantou sua colher.

— Sente-se nessa, operário. Acaba de ficar livre.

C'tair, sem hesitar, sentou-se no lugar indicado e começou a comer. Concentrou-se no prato, e mastigou lentamente para conceder à moça todo o tempo que necessitasse.

Ao fim de pouco tempo, a fila terminou e o turno de comer finalizou. Miral se aproximou por fim com sua bandeja. Sentou-se, contemplou sua terrina e começou a comer. Embora C'tair não olhasse para ela, logo começaram a murmurar, movendo os lábios o menos possível.

— Trabalho nesta linha de distribuição de comida — disse Miral —. Tive medo de mudar de trabalho e chamar a atenção.

— Tenho montes de cartões de identificação — disse C'tair. Nunca lhe havia dito seu nome verdadeiro, e não pensava em mudar de tática.

— Só restamos nós dois — disse Miral —. De todo o grupo.

— Haverá mais. Ainda tenho alguns contatos. No momento trabalho sozinho.

— Não se pode obter grandes coisas dessa maneira.

— Menos se pode conseguir se estiver morto. — Como ela sorveu sua comida e não respondeu, C'tair continuou —. Lutei sozinho durante doze anos.

— E não conseguiu grande coisa.

— Nunca será suficiente até que os tleilaxu abandonem IX e nosso povo o tenha recuperado. — Apertou os lábios, temeroso de ter falado com excessiva veemência. Comeu com lentidão de sua terrina —. Nunca me contou no que estava trabalhando, aqueles produtos tecnológicos que roubava. Tem um plano?

Miral olhou fugazmente para ele.

— Estou fabricando um aparelho detector. Tenho que descobrir o que os tleilaxu estão fazendo naquele pavilhão de pesquisa tão vigiado.

— Está protegido por exploratórios — murmurou C'tair —. Já tentei.

— Por isso necessito de um novo aparelho. Acredito que... acredito que essa instalação é o verdadeiro motivo da invasão.

C'tair se mostrou surpreso.

— O que quer dizer?

— Você percebeu que os experimentos dos tleilaxu entraram em uma nova fase? Algo muito misterioso e desagradável está ocorrendo.

C'tair ficou paralisado, com a colher na metade de caminho da boca. Olhou-a, e depois contemplou a terrina quase vazia. Era preciso que comesse mais devagar se queria acabar aquela conversa sem que ninguém percebesse.

— Nossas mulheres estão desaparecendo — disse Miral, com uma leve ira em sua voz —. Mulheres jovens, férteis e sãs. Vi que desapareciam das listas de trabalhadores.

C'tair não permaneceu em nenhum lugar por tempo suficiente para reparar nesses detalhes.

— Eles as sequestram para os haréns tleilaxu? Por que levam mulheres ixianas “impuras”?

Em teoria, nenhum forasteiro tinha visto as fêmeas tleilaxu. Tinha ouvido dizer que os Bene Tleilax guardavam suas mulheres com verdadeiro fanatismo, protegiam-nas da contaminação e das perversões do Império. Possivelmente as ocultavam porque eram tão repelentes como os homens..

Podia ser uma coincidência que todas as mulheres desaparecidas fossem saudáveis e em idade de parir? Essas mulheres dariam estupendas concubinas... mas os mesquinhos tleilaxu não pareciam propensos a permitir-se prazeres sexuais extravagantes.

— Acredito que a resposta está relacionada com o que ocorre nesse pavilhão — sugeriu Miral.

C'tair deixou sua colher sobre a mesa. Só restava um último bocado na terrina.

— Só sei que os invasores chegaram com um terrível propósito, não só para apoderar-se de nossas instalações e conquistar o planeta. Suas intenções são outras. Se só desejassem IX para aproveitar-se de seus recursos, não teriam desmantelado tantas fábricas. Não teriam interrompido a produção dos Cruzeiros de última geração, meks de combate autônomos e outros produtos que fizeram a fortuna da Casa Vernius.

A jovem assentiu.

— Concordo. Seus propósitos são outros, e estão fazendo isso atrás de escudos protetores e portas fechadas. Possivelmente eu descubra o que se trata. — Miral terminou de comer e se levantou —. Se conseguir, eu o informarei.

Quando partiu, C'tair sentiu um hálito de esperança pela primeira vez em meses. Ao menos não era o único que lutava contra os tleilaxu. Se outra pessoa estava implicada no esforço, outros estariam formando focos de resistência. Mas fazia meses que não chegavam notícias semelhantes a seus ouvidos.

Suas esperanças desapareceram. Não podia suportar a idéia de aguardar a oportunidade decisiva dia após dia, semana após semana. Talvez tivesse sido muito tímido em suas colocações. Sim, precisava mudar de tática e entrar em contato com alguém do exterior para solicitar ajuda. Teria que ir a forças de outro planeta, por mais perigoso que fosse. Precisava procurar aliados poderosos que o ajudassem a vencer os tleilaxu.

E sabia de alguém que perdia muito mais que ele.

 

O desconhecido nos rodeia em qualquer momento. É aí onde procuramos o conhecimento.

Madre superiora Raquella Berto-Anirul

Oratória contra o medo

 

Lady Anirul Corrino esperava junto com uma delegação da corte de Shaddam no trabalhado pórtico do palácio imperial. Cada pessoa estava vestida com extravagante elegância, algumas de uma forma ridícula, enquanto aguardavam a chegada de outro dignatario. Era a rotina diária, mas este convidado era diferente.

O conde Hasimir Fenring sempre fora perigoso.

Lady Anirul entreabriu os olhos para protegê-los do sol da manhã de Kaitain. Sempre imaculada, olhou para os colibri adestrados que sobrevoavam as flores. De sua órbita, os satélites de controle do clima manipulavam a circulação das massas de ar frio e quente para manter uma temperatura ótima ao redor de palácio. Anirul sentiu o delicado beijo de uma brisa cálida sobre as bochechas, o detalhe definitivo em um dia perfeito.

Perfeito... se não fosse pela chegada do conde Fenring. Embora tivesse se casado com uma Bene Gesserit tão ardilosa como ele, Fenring ainda provocava calafrios em Anirul: uma inquietante aura de derramamento de sangue o rodeava. Como mãe Kwisatz, Anirul conhecia até o último detalhe do programa de reprodução da Bene Gesserit, sabia que este homem tinha sido engendrado como Kwisatz potencial, mas saiu deficiente e era um beco biológico sem saída.

Não obstante, Fenring possuía uma mente extraordinariamente aguçada e ambições perigosas. Embora passasse a maior parte de seu tempo em Arrakis, como ministro imperial da especiaria, tinha dominado seu amigo de infância, Shaddam. Anirul detestava esta influência, que nem sequer ela, a esposa do imperador, possuía.

Uma limusine aberta, puxada por dois leões dourados de Harmonthep, aproximou-se pomposamente das portas do palácio. Os guardas a deixaram entrar, e a limusine seguiu o caminho circular entre um estrépito de rodas e enormes patas douradas. Os lacaios se adiantaram para abrir a porta esmaltada do veículo. Anirul esperou com seu cortejo, sorridente como uma estátua.

Fenring desceu. Vestira-se para a recepção com uma levita negra e cartola, bandagem púrpura e dourada, e os chamativos distintivos de sua patente, Como o imperador admirava os adornos suntuosos, o conde se divertia em seguir a corrente.

Tirou o chapéu, fez uma reverência e depois a olhou com seus grandes e brilhantes olhos.

— Minha senhora Anirul, é um prazer vê-la, hummm?

— Conde Fenring — disse a mulher com uma breve inclinação de cabeça e um sorriso radiante —. Bem-vindo de novo a Kaitain.

Sem mais palavras nem dissimulações de cortesia, Fenring colocou o chapéu em sua cabeça disforme e pôs-se a andar, pois ia ser recebido em audiência pelo Imperador. Seguiu a distância, flanqueada por outros membros presunçosos da corte.

O acesso de Fenring a Shaddam era direto, e Anirul tinha consciência de que lhe importava muito pouco que o detestasse. Tampouco se perguntava por que formara essa opinião. Desconhecia seu fracasso no plano de reprodução, assim como o potencial que tinha perdido.

Em conivência com a irmã Margot Rashino-Zea, com quem mais tarde se casou, Fenring tinha colaborado em arrumar o matrimônio de Shaddam com uma Bene Gesserit de Patente Oculta, a própria lady Anirul. Naquela época, o novo Imperador necessitava de uma sutil mas poderosa aliança durante a insegura transição posterior à morte de Elrood.

Shaddam não conhecia sua precária posição, nem sequer agora. A explosão de cólera com Grumman era uma manifestação do desassossego que crescia no império, assim como os constantes gestos de desafio, vandalismo e desfiguração dos monumentos dedicados aos Corrino. O povo já não o temia nem respeitava.

Preocupava a Anirul que o imperador pensasse que já não necessitava da influência da Bene Gesserit, e em estranhas ocasiões consultava à anciã Reveladora da Verdade, a reverenda madre Lobia. Além disso, cada vez estava mais irritado com o Anirul por não dar a luz filhos varões, ignorante de que ela obedecia as ordens secretas da Irmandade.

Os impérios se erguem e caem, pensou Anirul, mas a Bene Gesserit permanece.

Enquanto seguia Fenring, viu que andava com passo atlético para o salão do trono do seu marido. Nem Shaddam nem Fenring compreendiam todas as sutilezas e atividades que ocorriam entre bastidores, as quais influenciavam o Império. A Bene Gesserit se destacava na parcela da história, onde o brilho e a pompa das cerimônias careciam de importância. Comparados com a madre Kwisatz Anirul, tanto o imperador Padishah como Hasimir Fenring eram meros aprendizes, e nem sequer sabiam.

Sorriu para si mesma e compartilhou sua diversão com as irmãs na Outra Memória, suas companheiras constantes de milhares de vidas passadas. O milenar programa de reprodução culminaria logo com o nascimento de um Bene Gesserit varão de poderes extraordinários. Ocorreria dentro de duas gerações... se todos os planos funcionassem.

Em Kaitain, enquanto representava seu papel de devota esposa do Imperador, Anirul puxava os fios e controlava todos os esforços. Dava ordens a Mohiam em Wallach IX, que treinava com sua filha secreta, gerada com o barão Harkonnen. Vigiava as outras irmãs enquanto teciam planos para pôr Jessica em contato com a Casa Atreides.

Fenring se movia com ar confiante, pois se orientava no palácio imperial, do tamanho de uma cidade, melhor que qualquer homem, melhor ainda que o próprio imperador Shaddam. Cruzou uma magnífica entrada de lajes incrustadas de jóias e entrou na Câmara de Audiências imperial. A imensa sala guardava alguns tesouros artísticos, de valor incalculável, procedentes de um milhão de planetas, mas já os tinha visto todos. Sem olhar para trás, lançou seu chapéu para um lacaio e continuou para o trono. Um longo passeio.

Anirul se ajoelhou junto a uma das grossas colunas de sustentação. Os cortesãos revoavam com porte vaidoso, entravam em gabinetes de conversas privados. Rodeou estátuas de valor incalculável enquanto se dirigia para um gabinete que gozava de uma acústica excelente, e que estava acostumado a utilizar para escutar sem que a vissem.

O imperador Padishah Shaddam IV, octagésimo primeiro Corrino que governava o Império, estava sentado no Trono do Leão Dourado, de um tom verde-azulado e translúcido. Vestia capas de vestimentas militares, carregadas de medalhas, insígnias e cintas. Afligido pelos adornos da patente, mal podia se mover.

Sua velha Reveladora da Verdade, Lobia, estava em um gabinete situado a um lado do trono de cristal. Lobia era o terceiro apoio do trípode de assessores de Shaddam, que incluía o erudito chambelán da corte, Ridondo, e Hasimir Fenring (apesar, da divulgada deportação do conde, o imperador poucas vezes o consultava em público).

Shaddam se negou a reparar na presença da sua esposa. As quinze irmãs Bene Gesserit residentes no palácio eram como sombras silenciosas entre as habitações. Como ele queria. Sua lealdade a Shaddam era indisputável, sobretudo depois de seu matrimônio com Anirul. Algumas eram damas de companhia, e outras cuidavam das filhas reais, Irulan, Chalice e Wensicia, das quais um dia seriam professoras.

O Observador Imperial, tão parecido com um furão, seguiu o tapete vermelho, e depois subiu os longos e baixos degraus do estrado até a base do trono. Shaddam se inclinou quando Fenring se deteve, fez uma profunda reverência e olhou para ele com um sorriso.

Nem sequer Anirul sabia por que o conde tinha vindo com tanta pressa de Arrakis.

Mas o imperador não parecia satisfeito.

— Por ser meu servo, Hasimir, espero que me mantenha informado dos acontecimentos que acontecem em seus domínios. Seu último relatório está incompleto.

— Hummm, desculpe-me se Sua Alteza considera que omiti algo importante. — Fenring falava com rapidez, enquanto sua mente repassava as possibilidades e tentava adivinhar o motivo da ira de Shaddam —. Não desejo importuná-lo com trivialidades que eu mesmo posso resolver. — Seus olhos se mexeram de um lado para outro, calculadores —. Ah, o que o preocupa, senhor?

— Soube que os Harkonnen estão sofrendo grandes perdas de homens e equipamentos em Arrakis graças a atividades guerrilheiras. A produção de especiaria começou a cair de novo, e fui incomodado com numerosas queixas da Corporação Espacial. Quanto disto é verdade?

— Hummm, meu imperador, os Harkonnen choramingam demais. Talvez se trate de uma manobra para subir o preço da melange no mercado livre, ou para justificar uma solicitação de redução das tarifas alfandegárias imperiais. Como o barão explicou?

— Não pude perguntar a ele — disse Shaddam, acionando sua armadilha —. Conforme os informe de um Cruzeiro que acaba de chegar, foi para Wallach IX com uma fragata armada até os dentes. O que está acontecendo?

Alarmado, Fenring arqueou as sobrancelhas e esfregou seu nariz comprido.

— A Escola Materna da Bene Gesserit? Eu, hummm, não sabia. O barão não parece ser daqueles que se consultam com a Irmandade.

Anirul, igualmente estupefata, inclinou-se para frente em seu posto de escuta. Para que o barão Harkonnen teria ido a Wallach IX? Para procurar conselho não, certamente, porque jamais tinha ocultado seu desagrado com a Irmandade, depois de que o obrigaram a proporcionar uma filha sã para o programa de reprodução. Para que levaria uma nave militar? Acalmou seu pulso acelerado. Não parecia uma boa notícia.

O imperador soprou.

— Não é muito bom Observador, não é, Hasimir? Por que houve uma extravagante desfiguração de minha mais cara estátua de Arsunt? Isso está em seu pátio traseiro.

Fenring piscou.

— Não fui informado de nenhum vandalismo em Arsunt, senhor. Quando ocorreu?

— Alguém tomou a liberdade de acrescentar genitálias, anatomicamente corretas, a minha efígie, mas como o culpado inseriu um órgão muito pequeno, ninguém o viu até recentemente.

Fenring custou a reprimir a risada.

— Isso é muito, hummm, lamentável, senhor.

— Não me parece divertido, sobretudo somado a outros ultrajes e insultos. Faz anos que isto acontece. Quem é o culpado?

De repente, Shaddam se levantou do trono e passou uma mão pelo peitilho do uniforme, agitando as medalhas e insígnias.

— Venha até meu estúdio privado, Hasimir. Temos que falar disto com mais detalhe.

Quando ergueu a cabeça num gesto de altivez imperial, Fenring reagiu com excessiva suavidade. Anirul se deu conta de que, embora as afrontas que Shaddam tinha mencionado eram muito reais, a discussão fora uma mera manobra para convocar o conde por outros motivos. Algo de que não queriam falar diante dos outros.

Os homens são muito desajeitados quando tentam ocultar segredos.

Embora teria considerado aqueles segredos bastante interessantes, Anirul estava mais preocupada e alarmada com intenções do barão em Wallach IX. A Reveladora da Verdade e ela, em lados opostos do trono imperial, comunicaram-se através de gestos discretos.

Enviaria-se uma mensagem à Escola Materna imediatamente. A ardilosa Harishka gozaria de oportunidades suficientes para preparar uma resposta apropriada.

 

O pensamento, e os métodos de comunicar os pensamentos, criam indevidamente um sistema repleto de ilusões.

Doutrina zensunni

 

Enquanto a arrogante bruxa Cristane guiava o barão Harkonnen pelo labirinto de corredores invadidos por sombras, sua bengala ressoava como disparos sobre o frio chão de ladrilhos. Com os seis guardas atrás dele, avançava coxeando, tentando não se atrasar.

— Sua madre superiora não tem outra alternativa senão escutar — disse o barão com voz estridente —. Se não consigo a cura necessária, o imperador saberá dos crimes da Irmandade!

Cristane o ignorou. Agitou seu curto cabelo castanho sem olhar para trás.

Fazia uma noite úmida em Wallach IX, e só a brisa fria rompia o silêncio do exterior. Globos amarelos iluminavam os corredores do complexo de edifícios que formavam a escola. Só as sombras se moviam. O barão teve a impressão de entrar em uma tumba, coisa que seria se algum dia apresentasse a denúncia ao Landsraad. Quebrar a Grande Convenção era o delito mais grave que as bruxas podiam cometer. Tinha todas as cartas em sua mão.

Cristane, banhada pela luz tremula dos globos, mal sintonizados, guiou-os até que pareceu perder-se de vista. A jovem olhou para trás, mas não o esperou. Quando um dos guardas tentou ajudar o barão, este afastou o braço e continuou caminhando como podia. Um calafrio percorreu sua espinha dorsal, como se alguém tivesse sussurrado uma maldição em seu ouvido.

A Bene Gesserit contava com habilidades secretas, e devia haver montes de Irmãs naquele antro. E se a madre superiora ignorasse suas acusações? E se a velha bruxa pensava que estava blefando? Nem sequer seus soldados armados poderiam evitar que as bruxas o matassem em seu próprio ninho se decidissem atacar.

Mas o barão sabia que não ousariam agir contra ele.

Onde se esconderam todas as bruxas? Sorriu. Devem estar com medo.

O barão repassou as exigências que apresentaria, três simples concessões e não apresentaria reclamação ao Landsraad: uma cura para sua enfermidade, a entrega de Gaius Helen Mohiam intacta e preparada para humilhações sem conta... e a devolução das duas filhas que lhe tinham obrigado a gerar. O barão sentia curiosidade pelo papel que seus brotos desempenhavam nos planos das bruxas, mas supunha que poderia retirar essa exigência caso necessário. Na realidade, não desejava um par de crianças, mas lhe proporcionavam espaço para negociar.

A irmã Cristane continuou caminhando, enquanto os guardas se atrasavam para não deixar o barão para trás. Dobrou uma esquina e se perdeu nas sombras. Os globos luminosos pareciam muito amarelos, muitos cheios de estática. Começaram a lhe dar dor de cabeça, e não via com clareza.

Quando o séquito do barão dobrou a esquina, só viram um corredor vazio. Cristane tinha desaparecido.

Os frios muros de pedra devolveram os ecos dos passos desconcertados dos soldados. Uma brisa débil, como um fôlego cadavérico, reverberou e se filtrou entre as roupas do barão. Ele estremeceu. Ouviu um tênue suspiro, como pés de roedor, mas não captou nenhum movimento.

— Vá ver o que há mais a frente, e depressa! — Afundou o cotovelo no flanco do chefe —. Para onde ela foi?

Um dos guardas empunhou o rifle laser e correu pelo corredor iluminado por globos. Momentos depois se ouviram seus gritos.

— Aqui não há nada, meu barão. — Sua voz possuía uma qualidade sobrenatural e oca, como se o lugar absorvesse o som e a luz do ar —. Não vejo ninguém.

O barão esperou, alerta. Um fio de suor frio escorria por suas costas, e entreabriu seus olhos negros como uma aranha, mais de consternação que de terror.

— Chequem todos os corredores e habitações dos arredores, e voltem a me informar. — O barão cravou a vista no corredor, decidido a não entrar mais na armadilha —. E tenham a prudência de não começar a disparar mutuamente.

Seus homens desapareceram de vista, e já não ouviram nem seus passos nem seus gritos. O lugar parecia um mausoléu. E fazia um frio de mil demônios. Refugiou-se em um oco e permaneceu em silencio com as costas apoiadas contra a parede, preparado para proteger-se. Sacou uma pistola de dardos, checou sua carga de agulhas envenenadas... e conteve o fôlego.

Um globo piscou sobre sua cabeça, perdeu intensidade. Hipnótico.

Um de seus homens voltou a aparecer, sem fôlego.

— Peço que venha comigo, meu senhor. Têm que ver isto.

O homem desceu um breve lance de escada e passou em frente uma biblioteca, onde os videolivros continuavam funcionando. Suas vozes sussurrantes batiam as asas no ar vazio, sem que ninguém as escutasse. Ainda haviam marcas nos almofadões das cadeiras que seus ocupantes tinham utilizado até poucos minutos antes. Todo mundo tinha desaparecido sem se importar em fechar os programas. Os alto-falantes afogados soavam como vozes fantasmagóricas.

A inquietação do barão aumentou enquanto percorria as habitações com os soldados, e depois edifício após edifício. Não encontraram ninguém, nem sequer quando seus homens utilizaram exploratórios rastreadores de vida primitivos. Onde estavam as bruxas? Em catacumbas? Para onde Cristane tinha ido?

As bochechas do barão se acenderam de ira. Como podia apresentar suas exigências à madre superiora se não a encontrava? Harishka tentava ganhar tempo? Ao evitar a confronto, havia frustrado sua vingança. Pensava que ele iria embora sem mais?

Odiava sentir-se impotente. O barão utilizou a bengala para destroçar o leitor mais próximo da biblioteca, e depois quebrou tudo que pôde encontrar. Os guardas, satisfeitos, dedicaram-se a derrubar mesas, estantes e jogar pesados volumes através das janelas acristaladas.

Uma tarefa inútil.

— Basta — ordenou, e voltou sobre seus passos.

Chegou a um amplo escritório. Letras douradas sobre a porta indicavam que era o estúdio da madre superiora. O escuro e gentil escritório estava livre de objetos, sem arquivos nem expedientes. A cadeira estava colocada em ângulo, como se a tivessem jogado para trás com brutalidade. Ainda ardia incenso em um prato de cerâmica, e projetava um tênue aroma. Atirou-o ao chão.

Malditas bruxas. O barão estremeceu. Seus homens e ele saíram da habitação.

Uma vez no exterior, desorientou-se por completo, uma estranha sensação de ter se extraviado. Nem ele nem seus guardas sabiam qual a rota correta para voltar para a lançadeira. O barão cruzou um parque e entrou em um passadiço que rodeava um edifício de estuque e madeira, em cujo interior brilhavam luzes.

No enorme salão, centenas de pratos ainda fumegantes descansavam sobre longas mesas de pranchas, com os bancos dispostos em seu lugar. Não havia ninguém na sala. Nem uma alma.

Um soldado tocou com um dedo uma parte de carne que flutuava em uma terrina de guisado.

— Não toque isso — ladrou o barão —. Pode conter veneno subdermal.

Seria um truque típico das bruxas. O soldado se afastou.

Os olhos claros do chefe do comando inspecionaram tudo ao redor. Seu uniforme estava úmido de suor.

— Estavam aqui faz apenas alguns minutos. Ainda cheira a comida.

O barão amaldiçoou e varreu a mesa com a bengala, jogando pratos, copos e comida no chão. O estrondo despertou ecos nas paredes e chão da sala. Mas não se ouviu nenhum outro som.

Seus homens utilizaram aparelhos de detecção para repassar chãos, paredes e tetos, sem o menor êxito.

— Verifiquem a calibração desses rastreadores de vida. As bruxas têm que estar aqui, malditas sejam!

Enquanto via seus homens trabalhar febrilmente, o barão soltava faíscas. Sua pele formigava. Acreditou escutar uma tênue gargalhada afogada, mas se fundiu com o silêncio sobrenatural.

— Quer que coloquemos fogo neste lugar, meu barão? — perguntou o chefe do comando, ansioso por provocar um incêndio.

O barão imaginou toda a Escola Materna em chamas, a sabedoria, história e registros de reprodução consumidos em um inferno. Talvez as bruxas de hábito negro ficassem presas no interior de seus esconderijos secretos, e seriam assadas vivas. Valeria a pena ver isso.

Mas negou com a cabeça, irritado com a resposta que se viu obrigado a dar. Até que as bruxas lhe proporcionassem a cura que com tanto desespero necessitava, o barão Harkonnen não se atreveria a atacar a Bene Gesserit.

Uma vez obtidos seus propósitos, não obstante... recuperaria o tempo perdido.

 

A realidade não existe, apenas a ordem que impomos a tudo.

Aforismos básicos da Bene Gesserit.

Para a Jessica era um jogo de criança, embora neste jogasse com a vida.

Centenas de irmãs, que se moviam com a rapidez de morcegos, enchiam o salão de jantar, divertidas com as reações do barão. Esquivavam-se como se estivessem brincando de tocar e parar. Algumas se agachavam debaixo das mesas. Jessica e Mohiam estavam apertadas contra a parede. Todas as mulheres tinham passado pelo programa de respiração silenciosa, e se concentravam na ilusão. Nenhuma falava.

Estavam a plena vista, mas os perplexos Harkonnen não podiam vê-las nem as perceber. O barão só via o que as Bene Gesserit queriam que visse.

A madre superiora se erguia à cabeceira da mesa, e sorria como uma colegial cometendo uma travessura. Harishka tinha seus braços sardentos cruzados sobre o peito, enquanto os perseguidores foram ficando cada vez mais nervosos.

Um soldado passou a poucos centímetros de Jessica. Movia um rastreador de vida, e quase a golpeou na cara, mas só viu falsas leituras. No quadrante do exploratório, os dados piscavam e cintilavam, enquanto o soldado passava diante de Jessica, mas não viu nada registrado nas medições. Não era fácil enganar os aparelhos... mas os homens eram diferentes.

A vida é uma ilusão, que tem que se adaptar a nossas necessidades, pensou a jovem, citando uma lição aprendida de sua professora Mohiam. Todas as acolitas sabiam enganar a vista, o sentido humano mais vulnerável. As irmãs emitiam sons quase inaudíveis, diminuíam o ritmo de seus movimentos.

Consciente de que o barão estava a ponto de chegar, a madre superiora tinha reunido às irmãs no são.

— O barão Harkonnen acredita que tem tudo sob controle — havia dito com sua voz quebradiça —. Acredita que nos intimida, mas temos que despojá-lo de sua força, conseguir que se sinta impotente.

“Também estamos ganhando tempo para refletir sobre este assunto... e para que o barão cometa erros. Os Harkonnen não são famosos por sua paciência.”

O torpe barão esteve a ponto de tropeçar com a irmã Cristane, que se afastou a tempo.

— Que demônios foi isso? — O homem virou-se ao notar o movimento do ar, um fugaz aroma de tecido —. Ouvi uma espécie de rangido, como o de um hábito.

Os guardas ergueram as armas, mas não encontraram nenhum alvo. O homem obeso estremeceu.

Jessica trocou um sorriso com sua professora. Os olhos da reverenda madre, geralmente inexpressivos, brilhavam de alegria. De sua mesa elevada, a madre superiora olhava para os homens desconcertados como um ave de rapina.

Em preparação à hipnose maciça que agora dominava o barão e a seus homens, a irmã Cristane se tornou visível para eles, afim de arrastá-los para a armadilha. Mas pouco a pouco, a guia foi tornando invisível, à medida que as irmãs se concentravam naquelas vítimas fáceis.

O barão se aproximou coxeando, com o rosto transformado em uma máscara de fúria desatada. Jessica teve a oportunidade de lhe dar uma rasteira, mas não o fez.

Mohiam se colocou a seu lado, e sussurrou algo em voz baixa e espectral.

— Eles ficarão com medo, barão.

Com um sussurro que só podia chegar aos ouvidos do homem que tanto desprezava, Mohiam criou um murmúrio quase inaudível que transformou as palavras da Litania Contra o Medo em algo completamente diferente.

— Terão medo. O medo mata a mente. O medo é a pequena morte que provoca a destruição total. — passeou ao seu redor, falou na sua nuca —. Será incapaz de enfrentar seu medo. Ele o invadirá e infectará.

O barão agitou a mão, para afugentar um inseto molesto. Parecia preocupado.

— Quando pensamos no caminho do seu medo, não fica nada de você. — A irmã Mohiam se afastou dele em silêncio —. Só a Irmandade permanecerá.

O barão ficou petrificado, com o rosto pálido e as bochechas tremulas. Seus olhos negros olharam à esquerda, onde a irmã Mohiam tinha estado só uns momentos antes. Agitou a bengala nessa direção, com tal força que perdeu o equilíbrio e caiu.

— Tirem-me daqui! — gritou para seus guardas.

Dois soldados se apressaram a pô-lo em pé. O chefe do comando os guiou até as portas principais e saiu para o corredor, enquanto outros guardas continuavam procurando alvos, movendo seus rifles laser de um lado a outro.

O barão vacilou na soleira.

— Malditas bruxas. — Olhou ao redor —. Qual o caminho de volta?

— À direita, meu senhor barão — disse com voz firme o chefe do comando.

Sem que ele soubesse, Cristane lhe sussurrava diretrizes ao ouvido, muito perto dele. Quando chegassem à lançadeira, descobririam que o piloto automático já estava conectado, preparado para conduzir o barão através do complexo sistema de defesa até a fragata que esperava em órbita.

Derrotado, frustrado, impotente. O barão não estava acostumado a experimentar tais sensações.

— Elas não se atreveriam a me fazer mal — murmurou.

Várias irmãs riram.

Quando os Harkonnen fugiram como cães com o rabo entre as pernas, gargalhadas fantasmagóricas vindas do salão os seguiram.

 

O imobilismo costuma ser confundido com a paz.

Imperador Elrood Corrino IX

 

Tessia, a nova concubina de Rhombur, passeava com ele de bom humor pelos terrenos do castelo de Caladan. Divertia-se com o fato do príncipe exilado parecer mais um menino nervoso e desajeitado que o herdeiro de uma Casa renegada. Era uma manhã ensolarada, e nuvens preguiçosas sulcavam os céus.

— É difícil reconhecê-lo, meu príncipe, quando me lisonjeia desta maneira.

Caminhavam juntos pelo caminho de uma ladeira em terraços. Era evidente que o jovem se sentia um pouco violento.

— Er, antes tem que me chamar de Rhombur.

A moça arqueou as sobrancelhas, e seus olhos cor sépia cintilaram.

— Suponho que por algo se começa.

Rhombur ruborizou, e continuaram passeando.

— Acho que você me seduziu, Tessia. — Arrancou uma margarida e a ofereceu —. Como sou filho de um grande duque, não deveria permitir isso, não é verdade?

Tessia aceitou o presente e guiou a flor a frente do seu rosto singelo mas de expressão inteligente. Devolveu-lhe as pétalas.

— Imagino que viver no exílio tem suas vantagens. Ninguém percebe se o seduziram, não é? — Assinalou-lhe um dedo —. Embora o respeitaria mais se fizesse algo para remediar a desonra que caiu sobre sua família. Ser otimista não te serviu de nada em todos estes anos, não é assim? Nem confiar em que tudo sairá bem, nem pensar que não há outro remédio que continuar se queixando sem fazer nada. As palavras não substituem os atos.

Rhombur, surpreso pelo comentário, balbuciou uma resposta.

— Mas eu, er, solicitei ao embaixador Pilru que apresentasse várias queixas. Meu povo oprimido não vai derrotar os invasores, à espera de minha volta? Tenho a intenção de voltar e limpar o nome de minha família... a qualquer momento.

— Se ficar sentado aqui, esperando que seu povo faça o trabalho, não merece governar esse povo. Não aprendeu nada com Leto Atreides? — Tessia cruzou os braços —. Se quer ser um conde, Rhombur, tem que seguir suas paixões. E conseguir melhores informes de seus espiões.

Rhombur se sentia muito violentado, ferido pela verdade que suas palavras revelavam, mas desorientado.

— Como, Tessia? Não tenho exército. O imperador Shaddam se nega a intervir... e também o Landsraad. Só me concederam uma anistia limitada quando minha família foi declarada renegada. Er, que mais posso fazer?

A jovem tomou-o pelo cotovelo enquanto continuavam passeando.

— Se me permitir, talvez possa te sugerir algumas possibilidades. Em Wallach IX nos ensinam muitas coisas, incluindo política, psicologia, estratégias... Não esqueça nunca que sou uma Bene Gesserit, não uma criada comum. Sou inteligente e culta, e vejo muitas coisas que você não.

Rhombur tentava recuperar seu equilíbrio mental.

— A Irmandade a preparou para isto? — perguntou, desconfiado —. Foi designada para ser minha concubina com o propósito de me ajudar a reconquistar IX?

— Não, meu príncipe. Tampouco vou fingir que a Bene Gesserit não prefere uma Casa Vernius estável de volta ao poder. Tratar com os Bene Tleilax é muito mais difícil... e desconcertante. — Tessia passou os dedos por seu curto cabelo castanho, até que pareceu tão desalinhado como as perpétuas grenhas do príncipe —. E de minha parte, preferiria ser a concubina de um grande conde, habitante do lendário palácio de IX, que de um príncipe exilado que vive da benevolência de um duque, generoso.

Rhombur engoliu em seco, arrancou outra margarida e a cheirou.

— Eu também preferiria ser essa pessoa, Tessia.

 

Leto, acotovelado em um balcão do castelo, olhava para Rhombur e Tessia caminhar de mãos dadas por um campo de flores silvestres, que a brisa do oceano movia. Sentia uma profunda dor em seu coração, uma afetuosa inveja por seu amigo. Parecia que o príncipe ixiano caminhava sobre o ar, como se tivesse esquecido todos os problemas de seu torturado planeta natal.

Sentiu o perfume de Kailea a suas costas, um aroma doce e embriagador que lhe recordava os jacintos e lírios do vale, mas não a tinha ouvido aproximar-se. Olhou para ela, e se perguntou há quanto tempo estava observando-o olhar os amantes inseparáveis.

— Essa garota combina com ele — disse Kailea —. Nunca tinha apreciado muito a Bene Gesserit, mas Tessia é uma exceção.

Leto deu uma risada.

— Parece que ele está fascinado por ela. A demonstração incontrovertível do excelente treinamento para a sedução da Irmandade.

Kailea inclinou a cabeça. Usava uma diadema incrustada de jóias no cabelo, e tinha procurado aplicar o toque de maquiagem mais atraente. Leto sempre a tinha considerado bela, mas naquele momento lhe pareceu... esplendorosa.

— É necessário algo mais que prática de esgrima, desfile e tardes de pesca para fazer meu irmão feliz... ou a qualquer homem.

Kailea saiu para o balcão iluminado pelo sol, e Leto se sentiu incomodado ao perceber que estavam totalmente sozinhos.

Antes da queda de IX, quando ela era filha de uma poderosa Grande Casa, Kailea Vernius lhe parecia muito um casal perfeito. Com o tempo, se os acontecimentos se desenvolvessem com normalidade, o velho duque Paulus e Dominic Vernius talvez teriam arrumado um matrimônio.

Mas as coisas eram muito diferentes agora...

Não podia permitir-se o luxo de envolver-se com uma jovem dama de uma Casa renegada, uma pessoa que, em teoria, seria condenada a morte se alguma vez se implicasse na política imperial. Por ser de origem nobre, Kailea nunca poderia transformar-se em uma amante casual, como as moças do povoado que se estendia sob o castelo de Caladan.

Mas tampouco podia negar seus sentimentos.

E não podia um duque tomar uma concubina se o desejasse? Não seria motivo de vergonha para Kailea, sobretudo tendo em conta sua falta de perspectivas.

— Bem, Leto... o que está esperando? — aproximou-se mais dele, de modo que lhe roçou o braço com um de seus seios. Seu perfume o enjoou com uma descarga de feromonas —. É o duque. Pode conseguir tudo o que quiser.

Kailea arrastou a última palavra.

— E o que te faz pensar que desejo... algo? — Sua voz lhe soou estranhamente oca a seus ouvidos.

A jovem arqueou as sobrancelhas e lhe deu um sorriso tímido.

— A estas alturas, já está acostumado a tomar decisões difíceis, não é?

Leto vacilou. É verdade, o que estou esperando?, pensou.

Ambos se moveram ao mesmo tempo, e ele a recebeu em seus braços com um suspiro, tanto tempo contido, de alívio e paixão contida.

 

Desde que Leto era pequeno, recordava ter visto seu pai passar os dias ensolarados no pátio do castelo de Caladan, onde escutava pedidos, queixas e bons votos do povo. O barbudo pai de velho Paulus, grande como um urso, tinha-o chamado “o ofício de ser duque”. Leto continuava a tradição.

Uma fileira de gente subia o caminho íngreme que conduzia às portas abertas, afim de participar do arcaico sistema mediante o qual o duque resolvia as disputas. Embora existissem sistemas legais eficazes em todas as grandes cidades, Leto o fazia para aproveitar a oportunidade de manter o contato com seu povo. Gostava de responder em pessoa a seus queixa e sugestões. Preferia isso aos estudos, pesquisa de opinião e informe de supostos peritos.

Sentado ao quente sol da manhã, escutava pessoa após pessoa, enquanto a fila ia avançando. Uma anciã, cujo marido se lançara ao mar em plena tormenta, para não retornar jamais, solicitou que o declarasse morto para contrair matrimônio com o irmão do marido. O jovem duque lhe disse que esperasse um mês para ambas as petições, depois do que concordaria com o pedido.

Um menino de dez anos queria dar a Leto um falcão de mar que tinha criado desde seu nascimento. A enorme ave de crista vermelha aferrava a mão, protegida por um punho de couro, do menino, e depois elevou vôo no pátio, descreveu vários círculos (para terror dos pardais que tinham feito seu ninho nos beirais) e voltou para o menino quando este assobiou...

Leto adorava concentrar sua atenção em detalhes pessoais, pois sabia que suas decisões influíam nas vidas de seus súditos. O imenso Império, que em teoria abrangia “um milhão de planetas”, parecia muito abstrato, muito grande para influir em seu planeta. Mesmo assim, os sangrentos conflitos que ocorriam em outros planetas (como no caso de Ecaz e Grumman, ou a milenar animosidade entre a Casa Atreides e a Casa Harkonnen) afetavam seus habitantes de uma forma tão pessoal como o que ocorria em Caladan.

Fazia muito tempo que Leto era um bom partido (muito bom, de fato), e outros membros do Landsraad desejavam forjar uma aliança com a Casa Atreides e mesclar linhagens. Seria uma das filhas de Armand Ecaz, ou outra família lhe faria uma oferta melhor? Tinha que render-se ao jogo dinástico que seu pai lhe tinha ensinado.

Fazia anos que desejava Kailea Vernius, mas sua família caíra, sua Casa tinha sido declarada renegada. Um duque da Casa Atreides jamais poderia casar-se com uma mulher semelhante. Seria um suicídio político. Em qualquer caso, isso não significava que Kailea fosse menos bela, menos desejável.

Rhombur, feliz com Tessia, tinha sugerido que Leto tomasse Kailea como concubina ducal. Para Kailea não seria vergonhoso transformar-se na amante escolhida de um duque. De fato, assentaria sua precária posição em Caladan, onde vivia graças a uma anistia provisória, sem a menor garantia...

Em seguida, um homem calvo de olhos entreabertos abriu uma cesta fedorenta. Um par de guardas se lançaram sobre ele, mas retrocederam quando extraiu um peixe podre que devia estar morto a vários dias. Um enxame de moscas zumbiam a seu redor. Quando Leto franziu o sobrecenho, perguntando-se que tipo de insulto era aquele, o pescador empalideceu, ao compreender a impressão que acabava de dar.

— Oh, não, não, meu senhor duque! Não se trata de um presente. Não, olhe... Este pescado tem pústulas. Todas as minhas presas dos mares do sul tinham pústulas. — De fato, o estômago do peixe se via insalubre e leproso —. As algas marinhas estão morrendo. Algo está acontecendo, e pensei que o senhor deveria sabê-lo.

Leto olhou para Thufir Hawat, e chamou o velho guerreiro para que utilizasse suas aptidões de Mentat.

— Uma florescência de plâncton, Thufir?

Hawat enrugou a testa enquanto sua mente trabalhava, e depois assentiu.

— O mais provável é que matasse as algas marinhas, que agora estão apodrecendo. Espalham a enfermidade entre os peixes.

Leto olhou para o pescador, que se apressou a tampar a cesta e escondê-la a suas costas para afastar o fedor da poltrona do duque.

— Obrigado, senhor, por chamar nossa atenção sobre isto. Teremos que queimar as ilhas de algas mortas, e talvez acrescentar substâncias nutritivas a água para restaurar o equilíbrio correto entre as algas e o plâncton.

— Perdoe o fedor, meu duque.

O pescador estava nervoso. Um dos guardas de Leto agarrou a cesta e a levou para fora, com o braço estendido para que a brisa do mar absorvesse o cheiro.

— Sem você, possivelmente teria demorado semanas para ser informado do problema. Vá com nossa gratidão.

Graças aos excelentes satélites e estações meteorológicas de Caladan, Leto costumado receber informação (mais precisa e veloz) graças as pessoas que a estes mecanismos.

A próxima mulher queria lhe dar de presente sua melhor galinha. Depois, dois homens se lançaram em uma disputa sobre os limites de seus campos de arroz pundi, e regatearam sobre o valor de um horta arrasada por uma inundação como resultado de uma represa arrebentada. Uma anciã deu a Leto um pulôver tecido a mão. Depois, um orgulhoso pai quis que Leto tocasse a testa de sua filha recém-nascida...

O ofício de ser duque.

Tessia escutava sem ser vista ao lado do salão do apartamento que compartilhava com Rhombur no castelo de Caladan, enquanto Leto e o príncipe falavam de política imperial: o vergonhoso vandalismo que os monumentos dedicados aos Corrino sofriam, a saúde declinante do barão Harkonnen, os desagradáveis e cada vez mais graves conflitos entre o Moritani e Ecaz (face à força de pacificação Sardaukar destacada em Grumman), e os contínuos esforços dos enviados diplomáticos de Leto para insuflar um ponto de prudência na situação.

A conversa se centrou por fim nas tragédias que tinham atingido a Casa Vernius, no tempo transcorrido desde a conquista de IX. Expressar ressentimento por estes acontecimentos se transformou em uma espécie de rotina para Rhombur, embora jamais encontrasse a coragem para dar o próximo passo e reclamar o que lhe correspondia por direito. A salvo e feliz em Caladan, tinha renunciado a esperança de vingar-se... ou ao menos a tinha deixado para outro dia.

A esta altura, Tessia já estava farta.

Enquanto ainda estava na Escola Materna, tinha lido grossos informes sobre a Casa Vernius. Compartilhava com Rhombur o interesse pela história e a política tecnológica do planeta. Até conhecendo os intrincados planos da Irmandade, experimentava a sensação de que fora feita para ele, e portanto tinha a obrigação de incentivá-lo a agir. Detestava vê-lo estagnado.

Tessia, vestida com um vestido negro e amarelo longo, deixou uma bandeja chapeada com jarras de cerveja negra entre os dois homens. Falou, e sua interrupção os surpreendeu.

— Já prometi minha ajuda, Rhombur. A menos que tente fazer algo por reparar a injustiça cometida contra sua Casa, não volte a se queixar durante uma década. — Tessia ergueu o queixo arrogantemente e deu meia volta —. Por mim, não quero saber de nada mais.

Leto captou o brilho de seus olhos ardentes. Viu, estupefato, que saía da habitação com um leve farfalhar do seu vestido.

— Bem, Rhombur, esperava que uma Bene Gesserit fosse mais... discreta. Sempre é tão descarada?

Rhombur parecia surpreso. Agarrou sua cerveja e tomou um gole.

— Como Tessia conseguiu descobrir, em poucas semanas, o que eu precisava ouvir? — Um fogo iluminou seus olhos, como se a concubina tivesse lançado uma faísca sobre a lenha acumulada em seu interior durante muito tempo —. Talvez você tenha sido muito bondoso durante todos estes anos, Leto. Deu-me todas as comodidades, enquanto meu pai continua escondido, enquanto meu povo continua escravizado. — Piscou —. As coisas não vão solucionar se por si só, não é?

Leto olhou para ele longamente.

— Não, meu amigo. De maneira nenhuma.

Rhombur não podia pedir a Leto que enviasse uma força numerosa em seu nome, porque isso convidaria a uma guerra aberta entre a Casa Atreides e os Bene Tleilax. Leto já tinha arriscado tudo para impedir que isso acontecesse. Nesse momento era apenas um pedaço à deriva.

A resolução apareceu no rosto do príncipe.

— Talvez devesse fazer um gesto fundamental, voltar para meu planeta natal, embarcar em uma fragata diplomática oficial com uma escolta completa (bem, suponho que poderia alugar uma) e aterrissar no porto de entrada de IX. Reclamar meus direitos publicamente, exigir que os tleilaxu renunciem a conquista ilegal do nosso planeta. — Bufou —. O que acha que responderiam?

— Não seja idiota, Rhombur. — Leto meneou a cabeça, perguntando-se se seu amigo falava a sério ou não —. Eles o fariam prisioneiro e realizariam experimentos médicos com seu corpo. Acabaria cortado em doze partes e em uma dúzia de tanques de axlotl.

— Infernos vermelhos, Leto, o que posso fazer? — O príncipe, confuso e transtornado, ficou em pé —. Me perdoa? Preciso pensar.

Subiu um curto lance de escada até seu dormitório privado e fechou a porta. Leto contemplou seu amigo enquanto tomava sua bebida, antes de voltar para seu estúdio e à montanha de documentos que esperavam sua inspeção e assinatura.

Tessia, que vigiava de um balcão elevado, desceu rapidamente a escada e abriu a porta do dormitório. Encontrou Rhombur na cama, contemplando um quadro de seus pais pendurado na parede. Kailea o pintara, quando tinha saudade dos dias no Grande Palácio. No quadro, Dominic e Shando Vernius vestiam seus ornamentos reais, o conde calvo com uniforme branco, o pescoço adornado com as hélices púrpura e vermelhas ixianas, e ela com um vestido de seda merh lavanda.

Tessia lhe massageou os ombros.

— Não devia tê-lo envergonhar diante do duque. Sinto muito.

Rhombur percebeu ternura e compaixão em seus olhos cor sépia.

— Por que se desculpa? Tinha razão, Tessia, embora me custe admitir. Possivelmente estou envergonhado. Teria que ter feito algo para vingar meus pais.

— Para vingar todo seu povo... e para libertá-lo. — A jovem emitiu um suspiro de exasperação —. Rhombur, meu verdadeiro príncipe, quer ser passivo, vencido e resignado... ou triunfante? Pretendo te ajudar.

Rhombur sentiu que suas mãos, surpreendentemente fortes, massageavam com perícia seus músculos duros, distendiam-nos e faziam em calor. Seu contato era como uma droga relaxante, e sentiu a tentação de dormir para esquecer seus problemas.

Meneou a cabeça.

— Rendo-me sem lutar, não é?

Os dedos da concubina desceram pela coluna vertebral até a região lombar, o qual o excitou.

— Isso não significa que não possa voltar a lutar.

Kailea Vernius, com expressão perplexa, entregou um brilhante pacote negro ao seu irmão.

— Tem nosso selo familiar, Rhombur. Um Mensageiro acaba de trazê-lo de Impregna City.

Sua irmã tinha olhos verdes e cabelo acobreado preso por pentes de concha vidro. Seu rosto tinha adquirido a exuberante beleza de uma mulher, suavizada pelos contornos da juventude. Para Rhombur ela recordava sua mãe Shando, em um tempo concubina do imperador Elrood.

O príncipe, perplexo, contemplou a hélice do pacote, mas não viu outras marcas. Tessia, vestida com roupa informal e confortável, aproximou-se de Rhombur enquanto este utilizava uma pequena faca de pesca para abrir o pacote. Franziu o sobrecenho quando tirou uma folha de papel riduliano coberta de linhas, triângulos e pontos. Conteve o fôlego.

— Parece uma mensagem codificada, um código de batalha ixiano escrito em uma chave geométrica.

Kailea umedeceu os lábios.

— Nosso pai me ensinou as complexidades dos negócios, mas nada de questões militares. Não pensei que fosse necessitar delas.

— Pode decifrá-lo, meu príncipe? — perguntou Tessia, com uma voz que fez Rhombur perguntar-se se sua concubina Bene Gesserit também possuía aptidões especiais para a tradução.

Coçou seu cabelo loiro emaranhado e pegou uma caderneta.

— Er, deixe-me ver. Meu professor particular me ensinou os códigos e fez praticar sem piedade, mas faz anos que nem sequer pensava neles.

Rhombur se sentou no chão com as pernas cruzadas, e começou a escrever o alfabeto galach em uma ordem aleatória que tinha memorizado. Traçou linhas e voltou a copiar o conjunto com mais cuidado. Quando velhas lembranças despertaram em sua mente, olhou para o papel e seu pulso se acelerou. Aquilo fora escrito por alguém com conhecimentos especiais. Mas quem?

Em seguida, Rhombur identificou uma regra e transformou uma nova folha em um quadriculado. Escreveu na parte superior o alfabeto aleatório, com uma letra dentro de cada quadrado, e depois acrescentou uma configuração de pontos de codificação. Colocou a misteriosa mensagem ao lado de sua folha de decodificação, alinhou pontos com letras, e depois foi transcrevendo palavra a palavra.

— Infernos vermelhos!

 

Príncipe Rhombur Vernius, conde legal de IX: os usurpadores tleilaxu torturam ou executam nossos cidadãos por supostas infrações, e depois utilizam seus cadáveres para horríveis experimentos. Nossas mulheres jovens desaparecem. Nossas indústrias continuam controladas pelos invasores.

Não existe justiça em IX, só lembranças, esperanças e escravagismo. Ansiamos o dia em que a Casa Vernius possa esmagar os invasores e nos libertar. Com todo o respeito, solicitamos sua ajuda. Ajude-nos, por favor.

 

A nota estava assinada por C'tair Pilru, dos Combatentes Livres de IX.

Rhombur ficou em pé e abraçou sua irmã.

— É o filho do embaixador. Lembra-se, Kailea?

A jovem, com os olhos acesos de felicidade, recordou dos dois gêmeos de cabelo escuro que tinham flertado com ela.

— Um jovem bonito. Seu irmão se transformou em Navegante da Corporação, não é?

Rhombur guardou silêncio. Durante anos tinha sabido que essas coisas aconteciam em seu planeta, mas não queria pensar nisso, com a esperança de que os problemas se solucionariam sozinhos. Como podia entrar em contato com os rebeldes de IX? Como príncipe exilado sem Casa, como podia pôr fim à tragédia? Não queria pensar em todas as possibilidades.

— Não esqueça minhas palavras — disse solenemente —. Vou fazer algo a respeito. Meu povo esperou muito.

Afastou-se de sua irmã, e seu olhar se desviou para Tessia, que o observava.

— Eu gostaria de colaborar — disse a jovem —. Você sabe.

Rhombur abraçou sua irmã e sua concubina em um grande abraço de urso. Por fim sabia qual era seu destino.

 

Para aprender a respeito deste universo, é preciso concentrar-se em descobrir onde o perigo é real. A educação não pode ajudar nesta descoberta. Não é algo que se aprenda. Precisa de objetivos. Em nosso universo, consideramos que os objetivos são produtos finais, e são mortais se nos obcecarmos com eles.

FRIEDRE GINAZ, Filosofia do professor espadachim.

 

Os ornitópteros de transporte transportaram os estudantes de Ginaz em grupos, e desceram enquanto voavam em paralelo a beira de uma nova ilha, junto a escarpados de lava negra polidos por séculos de cascatas. O montículo de rocha aguçada surgia da água como um dente podre, sem vegetação, sem lugares habitados na aparência. A ilha montanhosa (carente de nome, exceto por sua designação militar), rodeada de águas profundas e traiçoeiras, achava-se no extremo leste do arquipélago.

— Olhe, outro paraíso tropical — disse Hiih Resser.

Duncan Idaho olhou por uma das pequenas janelas, apertado entre seus companheiros, e soube que aquele lugar só traria novas experiências penosas para todos.

Mas ele estava preparado.

O tóptero ganhou altitude e subiu pelo lado exposto ao vento até a boca curva de uma cratera íngreme. As chaminés ainda expeliam fumaça e cinza, e acrescentavam uma capa pesada e quente ao ar úmido. O piloto deu toda uma volta para que pudessem identificar um tóptero reluzente estacionado na borda da cratera. Sem dúvida, o pequeno aparelho seria utilizado em algum momento do treinamento. Duncan não tinha nem idéia do que lhes estava reservado.

O tóptero se dirigiu para a base do vulcão, onde curvas proeminentes de recifes gretados e fogueiras fumegantes formavam seu acampamento. Tendas coloridas salpicavam as superfícies planas da rocha de lava, e rodeavam um recinto maior. Nem a menor comodidade. Quando aterrissaram, muitos estudantes se precipitaram para escolher sua tenda, mas Duncan não percebeu nenhuma diferença entre elas.

O alto mestre espadachim que os esperava tinha a pele grossa, um arbusto de espesso cabelo cinza que lhe pendia até a metade das costas, e olhos inquietantes muito fundos. Duncan reconheceu, com uma pontada de assombro e respeito, o lendário guerreiro Mord Cour. Quando menino, em Hagal, Cord fora o único sobrevivente de seu povo mineiro massacrado. Tinha sobrevivido como um menino selvagem nos bosques dos penhascos, aprendido a lutar, e mais tarde se infiltrara no grupo de bandoleiros que tinham destruído seu povoado. Depois de ganhar sua confiança, matou sem ajuda o chefe e a todos os bandidos, para integrar-se a seguir nos Sardaukar do imperador. Tinha sido mestre espadachim pessoal de Elrood durante anos, até que por fim se retirou para a academia de Ginaz.

Depois de lhes fazer recitar em uníssono o juramento do mestre espadachim, o lendário guerreiro disse:

— Matei mais pessoas do que conheceram cachorrinhos. Rezem para não se transformarem em uma delas. Se aprenderem, não terei desculpa para matá-los.

— Não necessito de incentivos para aprender — resmungou Resser a Duncan.

O velho ouviu as palavras murmuradas e desviou a vista para o estudante ruivo. Trin Kronos, um dos outros alunos de Grumman (embora menos cordial), soltou uma risada breve na retaguarda do grupo.

Quando Mord Cour cravou seu olhar penetrante em Resser, à espera, Duncan pigarreou e deu um passo adiante.

— Mestre espadachim Cour, ele disse que nenhum de nós necessita de incentivos para aprender com um grande homem como o senhor.

Apertou o pomo da espada do velho duque.

— Ninguém necessita de desculpas para aprender de um grande homem. — Cour virou-se e olhou para os estudantes —. Sabem por que estão aqui? Em Ginaz, refiro-me.

— Porque aqui Jool-Noret começou tudo — disse o aluno de pele escura do-Dhanab.

— Jool-Noret não fez nada — replicou Cour, o que surpreendeu a todos —. Era um tremendo mestre espadachim, perito em noventa e três métodos de luta. Sabia de armas, escudos, táticas e combates corpo a corpo. Uma dúzia de peritos guerreiros o seguiam como discípulos, suplicavam que lhes ensinasse técnicas avançadas, mas o grande guerreiro sempre se negava, sempre os rechaçava com a promessa de que os treinaria quando chegasse o momento adequado. E nunca o fez!

“Uma noite, um meteoro caiu no oceano e enviou uma grande onda contra a ilha onde Jool-Noret morava. A água esmagou sua choça e o matou enquanto dormia. Seus seguidores dó puderam recuperar seu corpo, essa relíquia mumificada que com tanto orgulho lhes mostrarão na ilha administrativa.

— Mas, senhor, se Jool-Noret não ensinou nada, por que a escola de Ginaz foi fundada em seu nome? — perguntou Resser.

— Porque seus discípulos juraram não cometer o mesmo erro. Ao recordar todas as habilidades que tinham desejado aprender de Noret, fundaram uma academia onde pudessem ensinar aos melhores candidatos todas as técnicas de combate que pudessem necessitar. — A brisa carregada de cinzas agitou seu cabelo —. Bem, estão todos dispostos a se transformar em mestres espadachins?

Os estudantes responderam com um sonoro “Sim!”.

Cour meneou sua longa juba cinza e sorriu. As rajadas de vento vindas do oceano soavam como unhas afiadas contra os penhascos de lava.

— Estupendo. Começaremos com duas semanas consagradas ao estudo da poesia.

No refúgio mínimo de suas tendas, os estudantes dormiam sobre as rochas, frias durante a noite, ardentes durante o dia. Nuvens cinzas de cinzas ocultavam o sol. Sentavam-se sem cadeiras, alimentavam-se de comida salgada e seca, bebiam água armazenada em velhas barricas. Tudo tinha um gosto de sulfureto.

Ninguém se queixava das privações. Então, os estudantes já sabiam a que ater-se.

Em seu ambiente duro, aprenderam sobre metáforas e versos. Já na Velha Terra, os samurais tinham valorizado suas proezas na hora de compor haikus tanto como sua destreza com a espada.

Quando Mord Cour se erguia sobre uma rocha, junto a uma bebedouro fumegante, e recitava antigos poemas épicos, a paixão que vibrava em sua voz agitava os corações dos alunos. Por fim, quando o ancião percebeu que tinha conseguido encher seus olhos de lágrimas, sorriu e deu uma palmada. Saltou da rocha e anunciou:

— Êxito. Bem, chegou o momento de aprender a lutar.

Duncan, vestido com uma cota de malha de flexoaço, cavalgava nos lombos de uma enorme tartaruga que não parava de puxar as rédeas de seu cavaleiro. Preso à cela, com as pernas abertas para abranger a larga carapaça blindada, esgrimia uma lança de madeira com ponta cega metálica. Três competidores, armados de maneira similar, enfrentavam-no.

Tinham extraído as tartarugas de ovos roubados, e as tinham criado em baías protegidas. Os lentos colossos recordavam a Duncan os tempos em que tinha tido que lutar com uma grossa armadura. Não obstante, suas mandíbulas podiam fechar-se como portas automáticas, e quando queriam as tartarugas eram capazes de correr muito rápido. Duncan deduziu, a partir das placas rotas e estilhaçadas das conchas, que aquelas bestas eram veteranas de mais combates dos que ele tinha vivido.

Deu pequenos golpes com sua lança sobre o carapaça da tartaruga, que saiu disparada para a arreios de Hiih Resser. Agitava sua monstruosa cabeça e procurava morder tudo que estivesse ao seu alcance.

— Vou te derrubar, Resser!

Mas a tartaruga de Duncan decidiu deter-se nesse instante, e não pôde obrigá-la a mover-se de novo. As outras tartarugas tampouco colaboraram.

A justa de tartarugas era a nona prova das dez que os estudantes deviam superar para ser admitidos na próxima fase do treinamento. Durante cinco terríveis dias, respirando o ar impregnado de cinzas, Duncan nunca tinha ficado abaixo do terceiro lugar: em natação, salto em distância, mola de suspensão, funda, tiro de besta, levantamento de pesos, lançamento de faca e espeleologia. Mord Cour, de pé sobre uma rocha elevada, tinha observado todos os exercícios.

Resser, que tinha se transformado em amigo e rival de Duncan, também tinha obtido uma marca respeitável. Outros estudantes de Grumman competiam entre si, congregados ao redor do jactancioso líder Trin Kronos, que parecia muito orgulhoso de si mesmo e de sua herança (embora suas habilidades na luta não parecessem muito superiores às de outros). Kronos se vangloriava de sua vida a serviço da Casa Moritani, mas Résser falava em poucas ocasiões sobre seu lar ou sua família. Estava mais interessado em aproveitar ao máximo sua estadia em Ginaz.

Cada noite, de madrugada, Duncan e Resser trabalhavam na tenda que albergava a biblioteca, com uma montanha de videolivros. Os estudantes de Ginaz deviam aprender história militar, estratégias de batalha e técnicas de combate pessoal. Mord Cour também os incentivara a estudar ética, literatura, filosofia e meditação... tudo aquilo que não pudera estudar quando era um menino selvagem nas picos de Hagal.

Durante as sessões vespertinas com os mestres espadachins, Duncan Idaho aprendera de cor a Grande Convenção, cujas normas para os conflitos armados formavam a base da civilização imperial, segundo a Jihad Butleriana. A partir desse pensamento ético e moral, Ginaz tinha concebido o Código do Guerreiro.

Enquanto se esforçava por controlar a sua tartaruga rebelde, Duncan esfregou os olhos e tossiu. A cinza que impregnava o ar queimava seu nariz, e lhe picava a garganta. Ao redor, o oceano se chocava contra as rochas. Os fogos vaiavam e cuspiam um fedor similar a ovos podres.

Depois de esporeá-la durante um momento sem o menor êxito, a tartaruga de Resser decidiu por fim avançar, e o ruivo se esforçou por continuar sentado, movendo sua lança na direção correta. Ao fim de pouco, todas as tartarugas começaram a mover-se, mas a uma velocidade mínima.

Duncan esquivou os golpes simultâneos de lança de Resser e de seu segundo oponente, e alcançou o terceiro com o extremo de sua arma, no peito. O aluno caiu no chão e rodou para se esquivar das tartarugas que se aproximavam.

Duncan se inclinou sobre a carapaça de sua montaria, afim de se esquivar de outro golpe de Resser. Depois, sua tartaruga parou para defecar, uma operação que durou algum tempo.

Duncan olhou ao redor, indefeso em suas montaria, e viu que o outro adversário montado perseguia Resser, que se defendia admiravelmente. Quando a tartaruga finalizou sua necessidade, Duncan esperou o momento adequado e se colocou a um lado da carapaça, tão perto dos combatentes como pôde. Justo quando Resser contra-atacava com sua arma e derrubava o outro combatente, ergueu sua lança em sinal de triunfo, tal como Duncan tinha adivinhado. Nesse mesmo momento, Duncan afundou sua lança no flanco do ruivo, que caiu da tartaruga. Só Duncan, o vencedor, continuava montado.

Desmontou, ajudou Resser a levantar-se e lhe sacudiu a areia do peito e pernas. Um momento depois, a tartaruga de Duncan começou a mover-se de novo, em busca de comida.

— Seu corpo é sua melhor arma — disse Mord Cour —. Antes de confiar em que possa usar a espada em uma batalha, devem aprender a confiar em seu corpo.

— Mas professor, ensinou-nos que a mente é a arma decisiva — interrompeu Duncan.

— Corpo e mente formam uma unidade — replicou Cour com voz tão afiada como sua espada —. O que é um sem a outra? A mente controla o corpo, o corpo controla a mente. — Passeava pela praia, e as rochas rangiam sob seus pés calosos —. Tirem a roupa, todos... até as cuecas! Tirem as sandálias e deixem as armas no chão.

Os estudantes, sem questionar as ordens, despiram-se. Cinzas continuavam caindo ao seu redor, e emanações de enxofre brotavam dos fogos como o fôlego do inferno.

— Depois desta prova final, poderão me abandonar, e também a ilha. — Mord Cour umedeceu os lábios com expressão séria —. Seu próximo destino conta com mais florestas e diversões.

Alguns dos estudantes soltaram gargalhadas inquietas devido a prova que os esperava.

— Como todos superaram a prova de pilotar tópteros antes de vir a Ginaz, darei uma explicação breve. — Cour apontou para o penhasco que subia até a beira da cratera, rodeado de uma escuridão cinzenta —. Um aparelho os espera no alto. Viram-no quando os deixaram aqui. O primeiro a chegar poderá voar até seus novos barracões, limpos e confortáveis. As coordenadas já estão introduzidas no console do piloto. Os outros... voltarão para a montanha e acamparão uma vez mais sobre as rochas, sem tendas e sem comida. — Entreabriu os olhos em seu ancião rosto —. Em frente!

Os estudantes puseram-se a correr, utilizando suas reservas de energia para deixar os outros para trás. Embora Duncan não fosse o estudante mais veloz, escolheu a rota com menos paradas. Despenhadeiros íngremes interrompiam algumas trilhas na metade do caminho do cone escarpado, enquanto outras trilhas desembocavam em becos sem saída antes de chegar à cúpula. Alguns terrenos baixos pareciam tentadores, finos regatos e cascatas prometiam uma subida escorregadia e insegura. Depois de ver o tóptero na beira da cratera durante sua viagem de chegada, tinha estudado o penhasco com ávido interesse e se preparou. Recorreu a tudo o que tinha observado e iniciou a subida.

À medida que o terreno se tornava mais íngreme, Duncan alcançou os que tinham se adiantado. Escolhendo ravinas ou leitos, subiu sobre agrupamentos rochosos escarpados, enquanto outros se desviavam por trilhas de cascalho que pareciam fáceis de subir, mas que cediam sob seus pés e os enviavam penhasco abaixo. Correu ao longo de rebordos e rodeou salientes que não conduziam diretamente à cúpula mas proporcionavam um terreno mais acessível e permitiam uma subida mais veloz.

Anos atrás, quando tinha fugido para sobreviver na Reserva Florestal de Giedi Prime, Rabban tentara caçá-lo. Em comparação, isto era fácil.

A áspera rocha de lava se cravava nos pés descalços de Duncan, mas contava com uma vantagem sobre seus companheiros: tinha desenvolvido calos durante os anos que tinha passeado descalço pelas praias de Caladan.

Esquivou-se de uma bebedouro quente e subiu por uma greta que proporcionou-lhe um precário apoio para mãos e pés. Teve que apertar-se na greta, procurar proeminências e fendas que lhe permitissem içar-se pouco a pouco. Fragmentos de rocha se desprendiam e caíam.

Pelo resto, estava seguro de que Trin Kronos e outros candidatos egocêntricos fariam o impossível por sabotar a competição, em vez de concentrar-se em acelerar o passo.

Ao cair do sol, chegou a borda do vulcão, o primeiro de sua classe. Tinha subido sem descanso, escalado perigosos penhascos de calhaus, escolhido sua rota com cautela mas sem hesitação. Açoitado por outros competidores, não muito afastados, que subiam por todos os lados do cone, saltou sobre uma chaminé fumegante e correu para o ornitóptero.

Assim que viu o aparelho, olhou para trás e viu que Hiih Resser pisava nos seus calcanhares. A pele do ruivo estava arranhada e coberta de cinza.

— Ei, Duncan!

O ar estava carregado de gases e a cratera expulsava pó. O vulcão rugiu.

Perto da vitória, Duncan acelerou. Resser, ao compreender que não podia ganhar, atrasou-se, ofegante, e reconheceu com elegância a vitória do seu amigo.

Trin Kronos apareceu na cúpula por outra rota alternativa, com o rosto congestionado e iracundo quando viu Duncan tão perto do tóptero. Ao reparar que Resser, seu compatriota de Grumman, reconhecia sua derrota, ficou ainda mais furioso. Embora viessem do mesmo planeta, Kronos estava acostumado a expressar seu desprezo por Resser, para humilhar e amargurar a vida do ruivo.

Nesta classe, sobreviviam os mais aptos, e muitos estudantes tinham desenvolvido uma intensa aversão mútua. Ao ver a forma como Kronos atormentava seu compatriota, Duncan tinha formado uma opinião negativa do filho mimado de um nobre. Assim que Duncan alçasse vôo no tóptero, o mais provável seria que Kronos esperasse seus amigos de Grumman para dar uma surra em Resser e desafogar sua frustração.

Quando Duncan pôs um pé no aparelho vazio, tomou uma decisão.

— Hiih Resser! Se puder chegar antes de que eu ponha o cinto de segurança e decole, estou certo de que o tóptero pode levar nós dois.

Ao longe, Trin Kronos acelerou.

Duncan colocou o cinto de segurança, manipulou os controles de decolagem, enquanto Resser olhava incrédulo.

—Vamos!

O ruivo encontrou novas energias e sorriu. Correu para frente, enquanto Duncan se preparava para decolar. Durante seus anos a serviço do duque, alguns dos melhores pilotos do Império o tinham ensinado a pilotar naves.

Kronos, enfurecido pela decisão de Duncan de quebrar as regras, correu com todas suas forças. O painel de instrumentos do tóptero cintilou. Uma tela iluminada indicou a Duncan que os motores estavam preparados, e ouviu o poderoso vaio de suas turbinas.

Resser saltou sobre os patins do tóptero justo quando Duncan elevava o veículo. O ruivo, ofegante, agarrou-se à borda da porta da cabine e se segurou. Seus pulmões se encheram de ar.

Ao compreender que não poderia chegar ao veículo, Trin Kronos se agachou, agarrou uma rocha do tamanho de um punho e a jogou, atingindo Resser no quadril.

Duncan apertou um botão iluminado de seqüência de ação, e as asas se moveram acima e para baixo até que o aparelho se ergueu acima da calota de lava do vulcão. Resser se içou para o interior da cabine. Se agachou ao lado de Duncan, embora mal houvesse espaço, e se pôs-se a rir.

O ar deslocado pelas asas do ornitóptero esbofeteou decepcionado Kronos. O jovem jogou outra rocha, que ricocheteou sem mais conseqüências no pára-brisa de plaz.

Duncan saudou-i alegremente e jogou em Kronos uma lanterna que tinha encontrado na maleta de emergências do tóptero. O jovem de Grumman a agarrou, sem expressar a menor gratidão pela ajuda dispensada para orientar-se na crescente escuridão. Outros estudantes, esgotados e doloridos, voltavam para o acampamento a pé para passar uma fria e desventurada noite ao relento.

Duncan estendeu as asas ao máximo e acelerou. O sol mergulhou sob o horizonte, e deixou um brilho roxo-alaranjado sobre a água. A escuridão começou a cair como um pesado pano de fundo sobre a fileira de ilhas que se estendiam a oeste.

— Por que fez isto por mim? — perguntou Resser, enquanto secava o suor da testa —. Em teoria, só um de nós devia superar a prova. O mestre espadachim não nos ensinou a nos ajudar mutuamente.

— Não — disse Duncan com um sorriso —. É algo que os Atreides me ensinaram.

Ajustou a iluminação do painel de instrumentos a um brilho tênue, e voou sob a luz das estrelas para as coordenadas da próxima ilha.

 

Nunca subestime a capacidade da mente humana de acreditar no que quer, mesmo com provas em contrário.

CAEDMON ERB, Política e realidade

 

Em um esforço por compreender como a Irmandade havia evitado suas exigências, o barão e Piter De Vries se reuniram na sala de conferências da fragata militar Harkonnen. A nave se achava em órbita ao redor de Wallach IX, com as armas preparadas mas sem um alvo definido. Durante dois dias, as mensagens enviadas a Bene Gesserit não tinham recebido resposta.

Por sua vez, o Mentat não conseguia dizer para onde ou como as bruxas se esconderam: nem probabilidades, nem projeções nem recapitulações. Tinha fracassado. O barão, que não aceitava desculpas para o fracasso (e De Vries tinha fracassado), estava ansioso por matar alguém da forma mais desagradável.

Um cabisbaixo Glossu Rabban, que se sentia como um estranho, estava sentado a um lado, observando-os, e desejava dar alguma opinião.

— Afinal elas são bruxas, não é? — disse por fim, mas seu comentário não interessou ninguém. De fato, ninguém jamais escutava suas idéias.

Rabban, irritado, saiu da sala de conferências, consciente de que seu tio preferia que desaparecesse. Por que estavam discutindo a situação? Rabban não conseguia ficar sentado, sem chegar a lugar nenhum. Tinha a impressão que todos eram uns idiotas.

Como pressuposto herdeiro do barão, Rabban pensava que tinha trabalhado bem para a Casa Harkonnen. Tinha fiscalizado as operações de especiaria em Arrakis, e até lançado o primeiro ataque que deveria desembocar em uma guerra total entre os Atreides e os tleilaxu. Tinha demonstrado seu valor por várias vezes, mas o barão sempre o tratava como se fosse um retardado mental, até chamava de “cérebro de mosquito” na cara.

Se tivessem deixado que eu fosse à escola das bruxas, meu olfato as teria localizado.

Rabban sabia muito bem o que devia fazer. Também sabia que não podia pedir permissão. O barão negaria... e cometeria um grave erro. Rabban solucionaria o problema sem ajuda e depois reclamaria a recompensa. Por fim, seu tio reconheceria seu talento.

Calçando grossas botas negras, o corpulento homem percorreu os corredores da fragata, concentrado na sua missão. A nave se deslocava no silencioso abraço da gravidade. Ouviu fragmentos de conversas quando passava pelos camarotes e postos de guarda. Homens uniformizados de azul corriam de um lado para outro, sempre indiferentes a ele.

Quando deu a ordem, os homens abandonaram suas tarefas e se precipitaram para abrir um biombo. Rabban esperava com os braços cruzados, contente por ver a câmara secreta que albergava uma nave individual, esbelta e polida.

A não-nave experimental.

Tinha pilotado a nave invisível no interior de um Cruzeiro da Corporação, mais de uma década antes, e o aparelho funcionara à perfeição, completamente silencioso e invisível. Pena que o plano tivesse falhado. O erro consistira no planejamento excessivo. E Leto Atreides, maldito fosse, que não agira como se esperava dele.

Desta vez, no entanto, o plano de Rabban seria simples e direto. A nave e seu conteúdo eram invisíveis. Podia ir onde quisesse, observar o que fosse, e ninguém suspeitaria. Espiaria o que as bruxas estavam tramando, e depois, se quisesse, poderia destruir a Escola Materna.

Acionou os motores do aparelho, e o fundo da fragata se abriu para que pudesse descer. Impaciente, Rabban ativou o gerador de não-campo, e a nave desapareceu no espaço.

Durante o descida para o planeta, todos os sistemas da nave funcionaram como era de esperar. Os problemas ocasionados pelos recentes vôos de teste tinham sido reparados. Sobrevoou uma cordilheira com montanhas cobertas de erva e desceu para os edifícios da Escola Materna. Bem, então as bruxas pensavam que podiam desaparecer quando o barão pedia audiência? Gabavam-se de sua astúcia? Agora, as bruxas se negavam a responder aos pedidos de conferência. Quanto tempo imaginavam que poderiam se esquivar do problema?

Rabban tocou um botão sensor e conectou as armas. Um ataque maciço e inesperado envolveria em chamas bibliotecas, reitorias e museus, até transformá-los em cinzas.

Isso chamará sua atenção.

Perguntou-se se o barão já tinha descoberto sua partida.

Quando a nave silenciosa se dirigiu para o complexo da escola, viu grupos de mulheres passeando pelos terrenos, confiando estupidamente que não precisavam se esconder mais. As bruxas acreditavam que podiam zombar da Casa Harkonnen.

Rabban desceu mais. Os sistemas de armamento estavam prontos. As telas de tiro estavam iluminadas. Antes de reduzir a escombros os edifícios, talvez abatesse algumas mulheres, de uma em uma, só para se divertir. Graças a sua nave silenciosa e invisível, pensariam que o dedo de Deus as fulminara por sua arrogância. Tinha-as no alvo.

De repente, todas as bruxas ergueram os olhos e olharam para ele.

Sentiu algo apertar sua mente. Enquanto olhava, as mulheres brilharam e desapareceram. Sua visão se tornou imprecisa, e sentiu uma intensa dor de cabeça. Apoiou uma mão contra a têmpora, tentou focar a vista, mas a pressão que atormentava seu crânio aumentou, como se um elefante estivesse chutando sua testa.

As imagens no chão oscilaram. Os grupos de Bene Gesserit apareceram a sua frente de novo, e depois se transformaram em imagens difusas. Tudo flutuava, os edifícios, os acidentes topográficos, a superfície planetária. Rabban mal podia ver os controles.

Desorientado, com a cabeça a ponto de explodir de dor, Rabban agarrou o console de navegação. A não-nave se retorcia como um ser vivo debaixo dele, e começou a girar. Rabban emitiu um grito estrangulado, sem ter consciência do perigo, até que a rede de segurança e a espuma anticolisões se estenderam a seu redor.

A não-nave se chocou contra um pomar de maçãs, abriu uma larga brecha marrom na terra. Depois de uma ruidosa pausa, escorregou por um aterro e pousou sobre um riacho.

Os motores se incendiaram e uma fumaça azul gordurosa invadiu a cabine. Rabban ouviu o vaio dos sistemas de extinção de incêndios, enquanto liberava a espuma e a rede protetora.

Ativou uma escotilha de fuga no ventre da nave, quase asfixiado pela fumaça, e saiu do aparelho caído. Aterrissou de barriga água fumegante do riacho. Meneou a cabeça, aturdido. Voltou a vista para a não-nave e viu que o casco aparecia e desaparecia ante seus olhos.

Atrás dele, montões de mulheres desciam pelo aterro, parecendo caranguejos vestidos de negro...

 

Quando o barão Harkonnen recebeu a inesperada mensagem da madre superiora Harishka, teve vontade de estrangulá-la. Durante dias, seus gritos e ameaças não tinham recebido resposta. Agora, enquanto passeava pela ponte de comando da fragata, a velha bruxa entrava em contato com ele. Apareceu na tela ovalada.

— Lamento não estar disponível quando veio ver-me, barão, e sinto que nossos sistemas de comunicação estivessem desconectados. Sei que quer falar comigo sobre algo. — Seu tom era enlouquecedoramente plácido —. De qualquer modo, pergunto-me se antes gostaria de recuperar seu sobrinho.

Ao ver que seus lábios magros sorriam debaixo daqueles avessos olhos de cor amêndoa, o barão compreendeu que seu corpulento rosto refletia uma confusão absoluta. Virou-se e olhou para o capitão de suas tropas, e depois para Piter De Vries.

— Onde está Rabban? — Os dois homens sacudiram a cabeça, tão surpresos como ele —. Tragam-me o Rabban!

A madre superiora fez um gesto, e algumas quantas irmãs depositaram o homem a frente da tela. Apesar dos cortes e arranhões ensangüentados em seu rosto, a expressão de Rabban era desafiante. Um de seus braços pendia inerte a um flanco. Tinha as calças rasgadas à altura dos joelhos, e deixavam à mostra várias feridas.

O barão amaldiçoou. O que esse idiota fez agora?

— Sofreu uma espécie de avaria mecânica em sua nave. Vinha nos visitar, talvez? Espionar... ou mesmo atacar? — Em seguida, apareceu na tela uma imagem em vídeo da não-nave destruída, ainda fumegante na beira da horta destroçada —. Pilotava uma nave muito interessante. Veja como aparece e desaparece. Uma espécie de mecanismo de invisibilidade avariado? Muito engenhoso.

Os olhos do barão quase lhe saíram das órbitas. Deuses do inferno, também perdemos a não-nave! Não só a Irmandade tinha capturado seu sobrinho, mas também tinha permitido que a não-nave (a arma secreta mais poderosa dos Harkonnen) caísse nas mãos das bruxas.

Piter De Vries se moveu silenciosamente e sussurrou em seu ouvido, com a intenção de acalmá-lo.

— Respire devagar e profundamente, meu barão. Quer que continue as negociações com a madre superiora?

O barão se acalmou com supremo esforço e se voltou para a tela. Mais tarde se acertaria com Rabban.

— Meu sobrinho é um completo idiota. Não lhe dei permissão para usar a nave.

— Uma explicação muito conveniente.

— Asseguro que ele será severamente castigado por suas ações insensatas. Também pagaremos todos os danos causados à sua escola.

Fez uma careta, mortificado pela facilidade com que tinha reconhecido a derrota.

— Umas poucas macieiras. Não há motivos para apresentar uma denúncia... ou informar ao Landsraad, se o senhor colaborar.

— Colaborar! — As aletas do nariz do barão se dilataram, deu um passo atrás e esteve a ponto de perder o equilíbrio. Tinha provas contra elas —. Seu relatório incluiria um resumo de como sua reverenda madre liberou uma arma biológica contra minha pessoa, violando os princípios da Grande Convenção?

— De fato, nosso relatório incluiria algumas especulações — disse Harishka com um sorriso tenso —. Talvez se recorde de um incidente interessante acontecido alguns anos atrás, quando duas naves tleilaxu foram atacadas misteriosamente no interior de um Cruzeiro da Corporação. O duque Leto Atreides foi acusado de ter cometido essa atrocidade, mas negou as acusações, coisa que pareceu ridícula naquele tempo, pois não havia mais naves por perto. Nenhuma nave visível ao menos, descobrimos que também havia uma fragata Harkonnen nas cercanias, que se dirigia à coroação do imperador.

O barão se obrigou a permanecer imóvel.

— Vocês não possuem provas.

— Temos a nave, barão. — A imagem do aparelho se materializou na tela de novo —. Qualquer tribunal competente chegaria à mesma conclusão. Esta revelação interessará muito aos tleilaxu e aos Atreides. E mencionar o interesse da Corporação Espacial.

Piter De Vries passeou a vista entre o barão e a tela, enquanto seu cérebro se esforçava por encontrar uma solução aceitável, sem o menor êxito.

— Isso significará para você a pena de morte, bruxa — disse o barão —. Temos provas de que a Bene Gesserit desencadeou um agente biológico nocivo. Basta que eu pronuncie uma palavra e...

— E temos provas de outra coisa, não é? — interrompeu Harishka —. O que acha, barão? Duas provas se anulam? Ou nossa prova é muito mais interessante?

— Me dêem a cura para minha enfermidade, e considerarei a possibilidade de retirar minhas acusações.

Na tela, Harishka olhou ironicamente.

— Meu querido barão, não existe cura. A Bene Gesserit utiliza medidas permanentes. Não há nada reversível. — Parecia lhe dispensar uma compaixão zombeteira —. Por outro lado, se guardar nossos segredos, nós guardaremos os seus. E poderá recuperar seu fastidioso sobrinho... antes que lhe façamos algo irreversível também.

De Vries interrompeu, consciente de que o barão estava a ponto de explodir.

— Além disso, insistimos na devolução de nossa nave acidentada.

Não podia permitir que a Irmandade tivesse acesso à tecnologia do não campo, embora nem sequer os Harkonnen a compreendessem.

— Impossível. Nenhuma pessoa civilizada desejaria que tal nave de ataque fora reparada. Pelo bem do Império, temos que tomar medidas para deter o desenvolvimento desta tecnologia mortífera.

— Temos mais naves! — disse o barão.

— Ela é uma Reveladora da verdade, meu barão — sussurrou De Vries. A anciã Bene Gesserit observou-os com ar desdenhoso, enquanto o barão suava por encontrar uma resposta melhor.

— O que fará com os restos?

O barão apertou os punhos com tal força que os nódulos rangeram.

— Bem... nós os faremos desaparecer, é claro.

 

Quando Rabban retornou, o barão o golpeou com a bengala e o encerrou no camarote até voltarem a Giedi Prime. Apesar da sua estúpida impetuosidade, o homem continuava a ser o pressuposto herdeiro da Casa Harkonnen.

Por enquanto.

O barão passeava de um lado a outro e golpeava as paredes, enquanto tentava imaginar o pior castigo que pudesse infligir a seu sobrinho, uma pena adequada pelos incríveis prejuízos que o ataque desajeitado tinha causado. Por fim, encontrou a solução e sorriu.

Assim que voltaram para casa, Glossu Rabban foi enviado ao remoto planeta de Lankiveil, onde viveria com seu tímido pai Abulurd.

 

O comportamento dos Atreides é um exemplo de honra para nossos filhos, e é possível que também seja para nossa origem.

Duque LETO ATREIDES

Primeiro discurso à Assembléia do Landsraad.

 

Dezoito meses haviam se passado.

A lua cheia banhava o castelo de Caladan, e as torres lançavam sombras sobre a beira do escarpado que dominava o mar revolto. Do jardim ornamental, Thufir Hawat via o duque Leto e a Kailea Vernius passear junto à beira do precipício, amantes com má estrela.

Ela era sua concubina oficial, mas sem compromissos, fazia mais de um ano, e às vezes preferiam desfrutar de momentos românticos e tranqüilos como este. Leto não tinha a menor pressa em aceitar as numerosas ofertas de alianças matrimoniais que recebia de outras Casas do Landsraad.

A constante vigilância de Hawat irritava o duque, que exigia certa privacidade. Mas ao Mentat, como chefe de segurança da Casa Atreides, pouco importava. Leto era propenso a colocar-se em posições vulneráveis, a confiar muito nas pessoas que o rodeavam. Hawat preferia incorrer na desaprovação do duque por estar muito alerta, que permitir um erro fatal. O duque Paulus tinha morrido na arena porque Hawat não estivera atento o bastante. Jurou que nunca voltaria a cometer um erro semelhante.

Enquanto Leto e Kailea passeavam na noite fria, Hawat sofria se por acaso o caminho era muito estreito, muito próximo de uma queda mortal. Leto se negava a aceitar corrimões. Queria que o caminho continuasse exatamente igual como o tinha deixado seu pai, pois o velho duque também tinha passeado pelos promontórios, enquanto refletia sobre assuntos de estado. Era uma questão de tradição, e os Atreides eram homens valentes.

Hawat esquadrinhou a escuridão com lentes infravermelhas, não distinguiu outros movimentos nas sombras além dos de seus guardas postados no caminho e na base da rocha. Indicou a dois de seus homens que mudassem de posições com uma tênue luz infravermelha.

Tinha que estar sempre vigilante.

Leto segurava a mão de Kailea, contemplava suas delicadas feições e o cabelo acobreado que a brisa noturna agitava. A jovem puxou a gola da jaqueta ao redor de sua esbelta garganta. Tão formosa como qualquer outra dama do Império, a irmã de Rhombur se comportava como uma imperatriz. Mas Leto nunca poderia casar-se com ela. Devia permanecer fiel às tradições, como seu pai tinha feito, e seu avô antes que ele. O caminho da honra... e da conveniência política.

Entretanto, ninguém, nem sequer o fantasma de Paulus Atreides, podia opor-se a tal união se algum dia a Casa Vernius recuperasse sua fortuna. Durante meses, com o apoio total de Leto, Rhombur enviara em segredo modestos recursos e alguns equipamentos para C'tair Pilru e os Combatentes pela Liberdade de IX mediante canais ilegais, e em troca tinha recebido fragmentos de informação, inventários, imagens de vigilância. Agora que por fim se pôs em ação, Rhombur parecia mais animado e vivo que nunca.

Leto se deteve no alto do caminho que descia à praia e sorriu, pois sabia que Hawat estava perto, como sempre. Voltou-se para sua concubina.

— Caladan é meu lar desde que era menino, Kailea, e para mim sempre é formoso. Mas já percebi que você não é feliz aqui.

Uma gaivota noturna alçou vôo e os sobressaltou com seus grasnidos.

— Não é culpa sua, Leto. Você já fez muito por meu irmão e por mim. — Kailea não olhava para ele —. Isto não é... o lugar onde eu imaginava que viveria.

—Oxalá pudesse levá-la a Kaitain frequentemente — disse Leto, que conhecia seus sonhos —, para que pudesse desfrutar da corte imperial. Vi como resplandece nos acontecimentos da nobreza. Fica tão radiante que me entristece ter que te devolver a Caladan. Isto carece de encanto, não é o tipo de vida que estava acostumada.

As palavras eram uma desculpa por todas as coisas que não podia lhe oferecer: o luxo, o prestígio, a legitimidade de pertencer a uma Grande Casa de novamente. Perguntou-se se ela compreendia o sentido do dever que o prendia.

A voz suave de Kailea soou vacilante. Toda a tarde tinha estado nervosa. Deteve-se.

— IX desapareceu, Leto, e com ele todo seu encanto. Já aceitei isso. — Voltaram-se para olhar em silêncio o oceano negro como a noite, antes que ela voltasse a falar —. Os rebeldes de Rhombur alguma dia poderão derrotar os tleilaxu, não é?

— Sabemos muito pouco do que está acontecendo ali. Os relatórios são escassos. Acha que é melhor não tentar? — Leto observou-a fixamente com seus olhos cinzas, tentando compreender sua angústia —. Os milagres são possíveis.

Ela aproveitou a oportunidade que esperava.

— Os milagres sim. E agora tenho que te contar um, meu duque. — Ele olhou sem compreender, e os lábios de Kailea se curvaram em um estranho sorriso —. Vou ter teu filho.

Leto ficou atônito. No mar, ao longe, um bando de baleias entoava uma dramática canção como contraponto às bóias sônicas que indicavam a posição dos recifes traiçoeiros. Leto se inclinou e beijou Kailea, saboreou a conhecida umidade de sua boca.

— Está contente? — Sua voz era muito frágil —. Não tentei concebê-lo. Simplesmente aconteceu.

Leto retrocedeu um passo para examinar seu rosto.

— É claro! — Tocou seu estômago com ternura —. Sempre quis ter um filho.

— Talvez seja o momento adequado para me conseguir outra dama de companhia — disse Kailea, angustiada —. Necessitarei de ajuda para os preparativos do parto, e sobretudo quando o menino nascer.

Leto a estreitou entre seus braços fortes.

— Se quer outra dama de companhia, você a terá. — Thufir Hawat se encarregaria de investigar as possíveis candidatas com sua habitual minuciosidade —. Conseguirei dez, se assim desejar!

— Obrigado, Leto. — A jovem ficou nas pontas dos pés para beijá-lo na bochecha —. Mas uma será suficiente.

 

Pó e calor cobriam tudo. Confiando em que um clima seco seria benéfico para sua estado de saúde, o barão Harkonnen passava mais tempo em Arrakis. Mas ainda se sentia desventurado.

Em seu escritório em Carthag, o barão revisava os informes sobre a coleta de especiaria, tentava imaginar novos métodos de ocultar seus lucros do imperador, da CHOAM e da Corporação Espacial. Devido a seu tamanho cada vez maior, tinham cortado um vão na mesa para acomodar seu estômago. Seus braços flácidos descansavam sobre a superfície suja.

Um ano e meio antes, a Bene Gesserit o encurralara mediante ameaças, tinham-no chantageado sem piedade. Rabban perdera sua não-nave. As bruxas e ele se mantinham a uma distância mútua segura.

Mesmo assim, as feridas supuravam, e cada dia estava mais fraco... e gordo.

Seus cientistas tinham tentado construir outra não-nave, sem a ajuda do gênio richesiano Chobyn, que Rabban assassinara. O barão se enfurecia cada vez que pensava nas numerosas trapalhadas do seu sobrinho.

Os planos e hologravações do processo de construção original eram defeituosos, ao menos assim afirmavam os cientistas do barão. Como resultado, seu primeiro protótipo novo se chocara nos contrafortes de obsidiana do monte Ebony, e toda a tripulação tinha perecido. Fora um bom castigo.

O barão se perguntou se preferiria uma morte repentina como essa à torturante deterioração e desfalecimento progressivos que o afligia. Tinha investido uma astronômica quantidade de Solaris no laboratório de pesquisas médicas de Giedi Prime, com a ajuda reticente e esporádica do doutor Suk richesiano Wellington Yueh, mais interessado em suas pesquisas sobre os cyborgs que em encontrar formas de diminuir os sofrimentos do barão. O primeiro ministro richesiano ainda não tinha enviado a fatura por seus serviços, mas ao barão pouco importava.

Apesar de todos os seus esforços não se produziram resultados, e as contínuas ameaças não pareciam servir de nada. Para o barão, o simples ato de caminhar, que antes realizava com graça e elegância sem comparação, constituía agora uma odisséia. Logo, nem a bengala lhe seria suficiente.

— Recebi notícias de um acontecimento interessante, meu barão — disse Piter De Vries entrando nos poeirentos escritórios de Carthag.

O barão franziu o sobrecenho, incomodado pela interrupção. O Mentat, coberto com um manto azul claro, ocultou seu sorriso tinto de safo.

— A concubina do duque Leto Atreides solicitou à corte imperial os serviços de uma dama de companhia pessoal. Vim lhes informar o quanto antes. Não obstante, devido à urgência da situação tomei a liberdade de colocar um plano em prática.

O barão arqueou as sobrancelhas.

— Ah, sim? Qual é esse plano tão interessante que necessita de minha aprovação?

— Faz tempo que, certa matrona que vive na casa de Suuwok Hesban, o filho do antigo chambelán de Elrood, Aken Hesban, proporcionou-nos excelente informação sobre a família Hesban. Com meu incentivo, a dita matrona, Chiara Rash-Olin, comunicou que está interessada em trabalhar para a Casa Atreides, e vai ser entrevistada em Caladan.

— Para trabalhar no lar dos Atreides? — disse o barão. Viu que um sorriso ardiloso se desenhava no magro rosto do Mentat, que refletia a satisfação do barão. — Isso proporcionará... oportunidades interessantes.

 

Kailea esperava no vestíbulo do espaçoporto municipal de Caladan, enquanto passeava por um piso encravado de conchas marinhas e fósseis de pedra calcária. Seguia seu passados o capitão Swain Goire, que Leto tinha nomeado como seu guarda-costas pessoal. O cabelo escuro e as feições magras do militar recordavam a Kailea as de Leto.

Adiantou-se à chegada da lançadeira e sua passageira de Kaitain. Conhecera Chiara, quando a entrevistara a matrona em Caladan. A nova dama de companhia chegava com referências impecáveis, e inclusive tinha trabalhado para a família do chambelán do imperador Elrood. Conhecia inúmeras historias sobre a esplêndida corte de Kaitain. Kailea a aceitara imediatamente.

Não podia compreender por que uma anciã inteligente desejava abandonar a capital imperial por Caladan, humilde em comparação. “Ah, eu amo o mar. E a paz — tinha respondido Chiara —. Quando for mais velha, doce menina, pensará o mesmo.” Kailea duvidava, mas mal podia conter seu entusiasmo pela boa sorte que tivera ao encontrar esta mulher. Tinha esperado com impaciência enquanto Thufir Hawat investigava o passado de Chiara Rash-Olin e a interrogava sobre seus anos de serviços anteriores. Nem sequer o velho Mentat tinha conseguido descobrir uma falha em seu histórico.

À medida que avançava sua gravidez, Kailea tinha contado os dias que faltavam para que Chiara começasse a prestar seus serviços. No dia da chegada, Leto concedia audiência no castelo de Caladan, escutava as queixa e disputas de seu povo, mas Kailea partiu cedo em direção ao espaçoporto, semeado de dirigíveis, tópteros e outros aparelhos.

Kailea, com impaciência mal reprimida, estudava o edifício, reparava em detalhes que antes lhe tinham passado despercebidos. A forma bulbosa original tinha sido modificada com molduras interiores, janelas modernas e adornos, mas seu aspecto ainda era antiquado e pitoresco, ao contrário da maravilhosa arquitetura de Kaitain.

Ouviu um estalo atmosférico, até o notou no chão. Uma franja de luz que combinava o azul e o laranja rasgou a capa de nuvens, devido à descida supersônica da lançadeira em forma de bala. A pequena nave diminuiu a velocidade brutalmente graças aos suspensores de alta potência, para depois pousar sobre o campo. Os escudos piscaram e se apagaram.

— Na hora exata — disse Swain Goire a seu lado. O aprumado capitão era alto e magro, como o herói de um videolivro —. A Corporação se orgulha de sua pontualidade.

— A espera me pareceu interminável.

Kailea correu para os passageiros que desembarcavam.

Chiara não se vestira como uma criada. Usava sobre seu corpo roliço um traje de viagem muito confortável, e o ondulado o cabelo grisalho, rematado por uma boina incrustada de jóias. Suas bochechas rosadas brilhavam.

— É um prazer voltar a vê-la — ronronou Chiara. Aspirou uma profunda baforada do ar úmido e salgado. Seguiam-na oito baús antigravitacionais, a ponto de arrebentar.

Dedicou um breve olhar ao estômago arredondado e os verdes olhos de Kailea.

— Até o momento parece uma gravidez normal — comentou —. Tem muito bom aspecto, querida. Talvez um pouco cansada, mas tenho remédios para isso.

Kailea respondeu com um sorriso radiante. Por fim tinha uma companhia inteligente, alguém provido da sofisticação imperial que a ajudaria com os detalhes problemáticos, assuntos domésticos e decisões comerciais que seu exigente embora amante duque solicitaria.

Enquanto caminhava junto a sua nova dama de companhia, Kailea fez a pergunta que mais lhe interessava.

— Quais são as últimas notícias da corte imperial?

— Oh, querida! Tenho tantas coisas para lhe contar...

 

É terrível que alguém possa enriquecer graças à prática do mal, mas o poder da Verdade e da Justiça reside perdurarem... e em um homem poder dizer delas “são uma herança de meu pai”.

Calendário da Quinta Dinastia (Velha Terra).

A sabedoria do Ptahhotep.

 

No que concernia a Rabban, seu tio não podia ter concebido um castigo mais cruel pela perda da não-nave. Ao menos, Arrakis era quente e tinha céus limpos, e Giedi Prime oferecia todas as comodidades da civilização.

Lankiveil era atroz.

O tempo se arrastava com tal lentidão que Rabban chegou a apreciar os efeitos geriátricos da melange. Teria que viver mais do que o normal para compensar aquele tempo perdido de forma tão absurda.

Não lhe interessava as fortalezas monásticas isoladas nas montanhas. Da mesma forma, negava-se a ir aos povoados espalhados pelos tortuosos fiordes. Possuíam apenas pescadores fedorentos, caçadores nativos e alguns horticultores que encontravam terra fértil nas rachaduras das escarpadas montanhas negras.

Rabban passava a maior parte do tempo na ilha maior do norte, perto da capa de gelo glacial e longe dos lugares frequentados pelas baleias peludas Bjondax. Não existia civilização sob nenhum conceito, mas ao menos havia fábricas, unidades de processamento e um espaçoporto para enviar ao espaço carregamentos de pele de baleia. Ao menos, podia lidar com gente capaz de compreender que os recursos e os materiais em bruto existiam para o benefício da Casa que os possuísse.

Vivia em barracões da CHOAM e dispunha de várias habitações espaçosas para si. Embora de vez em quando jogasse cartas com outros trabalhadores, passava quase todo o tempo meditando e pensando em formas de mudar sua vida assim que retornasse a Giedi Prime. Em outras ocasiões, Rabban utilizava um chicote de ervas que tinha comprado de um empregado dos Harkonnen e se dedicava a açoitar rochas, pedaços de gelo ou focas preguiçosas que tomavam sol sobre os moles metálicos. Mas isso também acabou aborrecendo-o.

Durante a maior parte de sua sentença de dois anos, manteve-se afastado de Abulurd e Emmi Rabban-Harkonnen, com a esperança de que não soubessem do seu exílio. Por fim, quando Rabban não pôde mais ocultar por sua presença, seu pai foi aos centros de processamento da CHOAM, com a desculpa de uma visita de inspeção.

Abulurd se encontrou com seu filho no edifício dos barracões, com uma expressão otimista em seu rosto de desgraçado, como se esperasse alguma espécie de reunião piegas. Abraçou seu único filho, mas Rabban se afastou rapidamente.

Glossu Rabban, ombros largos, rosto fechado e lábios grossos, apreciava mais sua mãe que seu pai, que tinha braços magros, cotovelos ossudos e grandes nódulos. O cabelo loiro cinza de Abulurd parecia velho e sujo, e seu rosto estava curtido pela intempérie.

Rabban só conseguiu que seu pai partisse, depois de horas de conversa frívola e de prometer que iria morar com eles em Tula Fjord.

Uma semana depois chegou ao pavilhão principal, cheirou o ar acre, sentiu que a umidade lhe entrava nos ossos. Engoliu seu desagrado e contou os dias que faltavam para que o Cruzeiro o levasse de volta para casa.

No pavilhão comiam pratos muito elaborados de pescado defumado, crustáceos ao vapor, paelha de frutos do mar, mexilhões e ostras de neve, lulas e caviar ruh salgado, acompanhados das verduras amargas e fibrosas que sobreviviam no chão pobre de Lankiveil. A esposa do pescador, uma mulher de cara larga, mãos vermelhas e braços enormes, cozinhava um prato atrás de outro, e servia com orgulho cada um a Rabban. Tinha-o conhecido quando era menino, tentara mimá-lo, e agora repetia a tentativa, embora sem lhe beliscar as bochechas. Rabban a detestava.

Tinha a impressão de que não podia tirar o gosto ruim da boca, nem o cheiro dos dedos e da roupa. Só a fumaça acre das grandes chaminés conseguia aliviar seu nariz angustiado. Seu pai considerava de bom gosto utilizar fogo real em vez de estufas térmicas ou globos de calor.

Uma noite, aborrecido depois de meditar, Rabban se aferrou a uma idéia, seu primeiro brilho imaginativo em dois anos. As baleias Bjondax eram dóceis e fáceis de matar, e Rabban pensou que poderia convencer os nobres ricos das Casas Grandes e Menores a irem a Lankiveil. Recordava como tinha se divertido caçando meninos selvagens na Reserva Florestal ou a emoção de matar um grande verme de areia em Arrakis. Talvez pudesse impor a moda de caçar por esporte aquelas enormes bestas aquáticas. Encheria as arcas dos Harkonnen e transformaria de maneira radical o buraco infernal que Lankiveil era agora.

Até o barão se sentiria satisfeito.

Duas noites antes de voltar para casa, sugeriu a idéia a seus pais. Como uma família ideal, estavam sentados juntos à mesa, atacando outra comida de marinheiro. Abulurd e Emmi não paravam de olhar-se com patéticos suspiros de satisfação. Sua mãe não falava muito, mas sempre apoiava seu marido. tocavam-se com afeto.

— Estou pensando em trazer fãs de caça a Lankiveil. — Rabban bebeu um gole de vinho doce da montanha —. Perseguiremos as baleias peludas. Seus pescadores nativos serão nossos guias. Muita gente de Landsraad pagaria generosamente por um troféu semelhante. Será benéfico para todos.

Emmi piscou, olhou para Abulurd e viu que ele ficou boquiaberto. Deixou-lhe dizer o que ambos pensavam.

— Isso é impossível, filho.

Rabban deu um salto quando aquele mequetrefe o chamou de “filho”.

— Tudo que viu são os moles de processamento do norte — explicou Abulurd —, o passo final do negócio da pele de baleia, mas caçar os espécimes adequados é uma tarefa delicada, que exige cuidado e experiência. estive nos navios muitas vezes, e acredite, não é coisa fácil. Matar baleias Bjondax nunca foi considerado... um esporte.

Rabban torceu seus lábios grossos.

— Por que não? Se você é o governador planetário, supõe-se que entenda de economia.

Sua mãe meneou a cabeça.

— Seu pai compreende este planeta melhor que você. Não podemos permitir isso.

Parecia rodeada de um véu impenetrável de segurança em si mesma, como se nada pudesse perturbá-la. Rabban ferveu de raiva contida em sua cadeira, mais aborrecido que enfurecido. Esta gente não tinha direito de lhe proibir nada. Era o sobrinho do barão Vladimir Harkonnen, o suposto herdeiro de uma Grande Casa. Abulurd já tinha demonstrado que não estava à altura da responsabilidade. Ninguém escutaria as queixas de um fracassado.

Rabban se levantou da mesa e foi para sua habitação. Em uma terrina feita de uma concha de abulon, os criados da casa tinham disposto ramos de liquens cheirosos desprendidos do tronco de uma árvore, um adorno típico do Lankiveil. Rabban, tomado pela raiva, derrubou-o e a concha se partiu em mil pedaços contra o chão de madeira.

Os sons ásperos das baleias despertaram de um sonho inquieto. No profundo canal, as baleias ululavam e grasnavam com um som atonal que ressonava no crânio do Rabban.

Uma noite antes, seu pai tinha sorrido nostalgicamente ao escutar os animais. Estava com seu filho no balcão, escorregadio por causa da névoa eterna. Abulurd apontou para os estreitos fiordes onde nadavam as formas escuras e disse:

— Canções de acasalamento. Estão apaixonadas.

 

Rabban sentia vontade de matar.

Depois de escutar a negativa de seu pai, não entendia como podia descender dessa gente. Tinha suportado as penalidades daquele planeta. Tinha tolerado os repugnantes cuidados de seus pais. Desprezava a forma como tinham renunciado à grandeza que poderiam ter alcançado, para sentirem-se satisfeitos naquele lugar.

O sangue de Rabban começou a ferver.

Consciente de que não poderia dormir com o ruído das baleias, vestiu-se e desceu para o grande salão. Brasas alaranjadas da cavernosa chaminé iluminavam a sala como se o lar estivesse cheio de lava. Alguns criados já deviam estar acordados, mulheres da limpeza nas estadias posteriores, um cozinheiro na cozinha para os preparativos do dia. Abulurd nunca tinha guardas. Os habitantes do pavilhão principal dormiam com a tranqüilidade dos que não abrigam ambições. Rabban detestava tudo aquilo.

Vestiu um casaco, luvas, e saiu para fora. Desceu os toscos degraus até a beira da água, os moles e o abrigo dos pescadores. O frio condensava o ar devido à umidade do ar.

No interior do úmido e fétido abrigo encontrou o que procurava: vibroarpões de ponta dentada para caçar peixes. Suficiente para matar algumas baleias peludas. Poderia ter trazido armas mais pesadas, mas isso teria tirado toda emoção da caça.

As baleias cantavam em uníssono enquanto nadavam pelo plácido fiorde. Seus cantos ressoavam como arrotos nas paredes dos escarpados. Nuvens escuras ocultavam a luz das estrelas, mas a espectral iluminação bastava para que Rabban visse o que fazia.

Desamarrou um barco de tamanho médio do mole, pequeno o bastante para dirigi-lo sozinho, mas com um casco grosso e massa suficiente para suportar os embates de baleias apaixonadas. Zarpou e acionou o motor, até entrar no profundo canal onde as bestas chapinhavam e brincavam enquanto cantavam. As formas esbeltas sulcavam as águas, emergiam à superfície, bramavam com suas vibrantes membranas vocais.

Segurou os controles com uma mão enluvada e guiou a barco até águas mais profundas, para aproximar-se do bando. Continuaram nadando, indiferentes à sua presença. Algumas até colidiram preguiçosamente com a embarcação.

Viu os adultos manchados como leopardos. Numerosas crias os acompanhavam. Os animais levavam seus filhos com eles quando iam aos fiordes reproduzir-se? Rabban bufou e ergueu o punhado de vibroarpões.

Parou o motor e se deixou levar pela corrente, atento enquanto as baleias se dedicavam a seus assuntos, sem suspeitar do perigo. Os monstros emudeceram, como se tivessem descoberto seu barco, e depois voltaram a uivar de novo. Animais estúpidos!

Rabban lançou o primeiro vibroarpão, uma rápida seqüência de potentes lançamentos. Assim que começou a matança, a canção das baleias mudou de tom.

 

Abulurd e Emmi, protegidos com grossas batas e sapatilhas, correram para os moles. Criados confusos abriram as luzes do pavilhão principal, e os globos brilharam na escuridão.

Os longos cantos das baleias se transformaram em uma cacofonia de gritos animais. Emmi apertou o braço do seu marido para ajudá-lo a conservar o equilíbrio quando tropeçou na escada que descia à praia. Tentava orientar-se na escuridão, mas as luzes que tinham a suas costas eram muito brilhantes. Só distinguiam sombras, baleias que se agitavam... e algo mais. Por fim, ativaram o farol luminoso situado ao final do mole, que iluminou todo o fiorde.

Emmi soltou um grito de consternação. Atrás deles, os criados desciam pela escada, alguns providos de paus ou armas toscas, sem saber se receberiam ordens para defender o pavilhão principal.

Uma barco a motor se aproximou, arrastando uma pesada carga para o mole. Quando Emmi lhe deu uma cotovelada, Abulurd subiu ao mole para ver quem estava ao leme da embarcação. Não queria admitir o que já sabia no fundo de seu coração.

— Me joguem uma corda para que possa amarrá-la! — gritou a voz de Glossu Rabban.

Então apareceu sob a luz. Suava por causa do exercício, e tinha tirado a jaqueta. Seus braços, peito e rosto estavam ensanguentados.

— Acho que matei oito. Trouxe duas baleias pequenas, mas precisarei de ajuda para recuperar as outras carcaças. Vocês as esfolam no mole, ou as levam a alguma instalação?

Abulurd só podia olhar, paralisado pelo estupor. A corda caiu de sua mão como uma serpente estrangulada. Rabban se inclinou sobre a amurada do barco, recolheu a corda e a amarrou ao redor de uma coluna.

— Você... as matou? — perguntou Abulurd —. Todas?

Viu os cadáveres flutuantes de duas crias, de pelagem emaranhada e empapado do sangue que brotava de numerosas feridas. A pele estava rasgada. Seus olhos olhavam sem vida como pratos vazios.

— Claro que as matei. — Rabban franziu o cenho —. É isso que se faz quando sai para caçar.

Desceu do barco e ficou imóvel, como se esperasse que lhe felicitassem por sua façanha.

Abulurd abria e fechava os punhos, enquanto uma sensação de indignação e asco desconhecida ia tomando conta dele. Toda sua vida a tinha evitado, mas talvez possuísse o lendário temperamento Harkonnen.

Graças a seus anos de experiência sabia que a caça de baleias Bjondax devia acontecer em certas épocas e lugares, do contrário os grandes rebanhos não voltariam. Rabban não se preocupara em averiguar os dados básicos sobre a questão, não tinha usado nenhuma das técnicas, mal sabia pilotar um navio.

— Você as matou em suas zonas de acasalamento, idiota! — gritou Abulurd, e uma expressão ofendida e surpresa apareceu no rosto de Rabban. Seu pai nunca tinha falado assim antes —. Durante gerações vieram a Tula Fjord para criar seus filhotes e acasalar-se, antes de retornar aos mares árticos. Mas têm muito boa memória, uma memória que dura gerações. Uma vez que o sangue tinja a água, evitam o lugar por tanto tempo como dura a lembrança.

O rosto de Abulurd expressava horror e frustração. Seu próprio filho tinha amaldiçoado aquelas zonas de acasalamento, derramara tanto sangue no fiorde que nenhuma baleia Bjondax voltaria em décadas.

Rabban contemplou as presas que flutuavam junto ao barco, e depois desviou a vista para as águas do fiorde, ignorando seu pai.

— Alguém vai me ajudar, ou tenho que fazer isso sozinho?

Abulurd o esbofeteou e contemplou, com horror e incredulidade, sua mão, assombrado de ter batido em seu filho.

Rabban o fulminou com o olhar. Uma pequena provocação mais e mataria todos os presentes.

Seu pai prosseguiu com voz aflita.

— As baleias não voltarão para reproduzir-se. Não entende? Todos estes povoados do fiorde, toda a gente que vive aqui, dependem do comércio de peles. Sem as baleias, estes povoados morrerão. Todos os edifícios da costa ficarão abandonados. Os povoados se transformarão em cidades fantasmas da noite para o dia. As baleias não voltarão.

Rabban se limitou a menear a cabeça, sem querer compreender a gravidade da situação.

— Por que se preocupa tanto com essa gente? — Olhou para os criados agrupados atrás de seus pais, homens e mulheres que tinham nascido em Lankiveil sem sangue nobre e perspectivas, simples aldeões, simples trabalhadores —. Não têm nada de especial. Você os governa. Se tempos ruins vierem, que apertem os cintos. É a realidade de suas vidas.

Emmi olhou para ele, e deixou a emoção que sentia extravasar.

— Como te atreve a falar assim? Foi difícil perdoar muitas coisas que você fez, Glossu... mas esta foi a pior.

Rabban não deu sinais de arrependimento.

— Como vocês podem ser tão cegos e idiotas? Não têm idéia do que são, ou de quem sou eu? Somos a Casa Harkonnen! — rugiu —. Me envergonho de ser seu filho.

Sem dizer mais nada se encaminhou para o pavilhão principal, onde se lavou, recolheu seus poucos pertences e se foi. Restava apenas um dia antes que tivesse permissão para abandonar o planeta. Passaria esse tempo no espaçoporto.

Estava ansioso por retornar a um lugar onde a vida fizesse sentido para ele.

 

Um homem que insiste em caçar onde não existem animais, pode ter que esperar eternamente sem ter o menor êxito. A persistência na busca não é suficiente.

Sabedoria zensunni das peregrinações.

 

Durante quatro anos, Gurney Halleck não tinha descoberto nenhuma pista sobre o paradeiro de sua irmã, mas nunca abandonara a esperança.

Seus pais se negavam a pronunciar o nome de Bheth. Continuavam estudando a Bíblia Católica Laranja durante suas silenciosas e aborrecidas noites, encontravam serenidade ao descobrir trechos que afirmavam seu papel na vida...

Gurney ficou sozinho com sua dor.

Na noite em que recebeu a surra, sem que os habitantes de Dmitri a ajudassem, seus pais tinham arrastado por fim o corpo contundido de Gurney até o interior da moradia pré-fabricada. Guardavam alguns medicamentos, mas uma vida de privações lhes ensinara os rudimentos dos primeiros socorros. Sua mãe o deitou e curou como pôde, enquanto seu pai montava guarda junto às cortinas, esperando em silêncio que os Harkonnen retornassem.

Quatro anos depois, as cicatrizes daquela noite conferiam a Gurney um aspecto mais rude que antes. Uma expressão inquietante se instalou em sua face corada. Quando se movia, sentia dores agudas em seus ossos. Assim que foi capaz, levantou-se e voltou para o trabalho. Os aldeãos aceitaram sua presença sem comentários, e nem sequer demonstrar alívio por sua colaboração.

Gurney Halleck sabia que já não era como eles.

Tampouco desejava voltar ao bar, de modo que passava as noites em casa. Depois de meses de penosos esforços, Gurney conseguiu reparar seu baliset e extrair música do instrumento, embora sua escala fosse limitada e não estivesse completamente afinado. As palavras do capitão Kryubi se gravaram a fogo em seu cérebro, mas se negou a deixar de compor canções que interpretava em sua habitação, onde outras pessoas podiam fingir que não as ouviam. Não obstante, a sátira amarga tinha desaparecido de suas letras. Agora, as canções se concentravam nas lembranças de Bheth.

Seus pais estavam tão pálidos e gastos que era incapaz de evocar sua imagem, embora estivessem sentados na habitação ao lado. Entretanto, depois de tantos anos, recordava todos os detalhes do rosto de sua irmã, todos os matizes de seus gestos, seu cabelo enrolado, suas expressões, seu sorriso doce.

Plantou mais flores no jardim, cuidou dos lírios perfumados e das margaridas. Queria conservá-las, conservar a lembrança de Bheth através delas. Enquanto trabalhava, cantarolava suas canções favoritas e experimentava a sensação de que estava com ela. Até imaginava que talvez estivessem pensando um no outro ao mesmo tempo.

Se ela continuasse com vida...

Uma noite, muito tarde, ouviu movimentos no exterior, viu uma forma envolta em sombras que perambulava na escuridão. Pensou que estava sonhando, até que ouviu um rangido e alguém respirar fundo. Levantou-se imediatamente, ouviu que algo se afastava rapidamente.

Havia uma flor sobre o parapeito de sua janela, um lírio perfumado recém cortado, como um totem, uma mensagem. Seu vaso continha um pedaço de papel.

Gurney agarrou o lírio, indignado pelo fato de alguém zombar dele com a flor favorita de Bheth, mas enquanto cheirava a flor, jogou uma olhar ao papel. Tratava-se de meia página escrita com letra apressada mas feminina. Leu-a com tal rapidez que mal captou a essência da mensagem.

As primeiras palavras eram: “diga a nossos pais que estou viva!”

Gurney amassou o papel, saltou sobre o parapeito da janela e correu pelas ruas de terra. Olhou de um lado para outro e viu uma sombra desaparecer entre dois edifícios. A figura corria para a estrada principal, que conduzia a uma subestação de trânsito e depois entrava em Harko City.

Gurney não gritou. Isso só faria o desconhecido se apressar mais. Continuou coxeando, ignorando as dores que afligiam seu corpo ainda não recuperado. Bheth estava viva!

O desconhecido deixou a aldeia para trás e correu para os campos periféricos. Gurney supôs que tinha um pequeno veículo estacionado por perto. Quando o homem se voltou e viu a vaga silhueta que corria para ele, apertou o passo.

Gurney, ofegante, precipitou-se.

— Espere! Só quero conversar com você.

O homem não parou. À luz da lua, viu pés calçados com botas e roupas relativamente elegantes. Não era um camponês, certamente. A vida dura de Gurney tinha transformado seu corpo em uma máquina de músculos e fibras, e rapidamente diminuiu a distância. O desconhecido tropeçou no terreno irregular, o que deu a Gurney o tempo suficiente para lançar-se sobre ele.

O homem tentou se levantar e fugir para os campos, mas Gurney o reteve. Rodaram até cair em uma sarjeta de dois metros de profundidade, onde os aldeãos tinham plantado tubérculos krall.

Gurney agarrou i homem pelo peito da camisa e o empurrou contra a parede da sarjeta. Rochas, cascalho e pó caíram a seu redor.

— Quem é? Viu minha irmã? Ela está bem?

Gurney aproximou a luz do seu crono do rosto do homem. Pálido, olhos fundos que se moviam nervosamente. Feições afáveis.

O homem cuspiu terra e tentou remexer-se. Tinha o cabelo muito bem cortado. Sua roupa era a mais cara que Gurney tinha visto em sua vida.

— Onde ela está? — Gurney aproximou a cara e estendeu a nota, como se fosse uma prova acusadora —. De onde saiu isto? O que ela lhe disse? Como sabia do lírio?

O homem resfolegou e liberou um dos seus braços para esfregar um tornozelo dolorido.

— Eu... sou o recenseador Harkonnen deste distrito. Viajo de povoado em povoado. Meu trabalho é contar toda as pessoas que servem ao barão.

Gurney aumentou a pressão sobre a camisa.

— Vejo muita gente. Eu... — Emitiu uma tossezinha nervosa —. Vi sua irmã. Está em um bordel, perto de uma guarnição militar. Pagou-me o dinheiro que economizou durante anos.

Gurney respirou fundo, concentrado em cada palavra.

— Disse-lhe que meus deslocamentos me levariam ao povoado de Dmitri. Deu-me todos seu Solaris e escreveu esta nota. Disse-me o que devia fazer, e eu cumpri minha palavra. — Apartou a mão de Gurney e se levantou, indignado —. Por que você me atacou? Trouxe-lhe notícias de sua irmã.

— Quero saber mais — grunhiu Gurney —. Como posso encontrá-la?

O homem meneou a cabeça.

— Só me pagou para que trouxesse esta nota. Arrisquei minha vida, e agora vai conseguir me delatar. Não posso fazer nada mais por você, nem por ela.

As mãos de Gurney apertaram a garganta do homem.

— Claro que pode. Diga que bordel, que guarnição militar. Prefere correr o risco de ser descoberto pelos Harkonnen... ou que eu o mate? — Apertou a laringe do homem para dar exemplo —. Diga.

Era a primeira notícia que Gurney tinha recebido de sua irmã em quatro anos, e não ia deixar escapar a oportunidade. Bheth estava viva. Seu coração se inflamou de alegria.

O recenseador arquejou.

— Uma guarnição situada sobre o monte Ebony e o lago Vladimir. Perto, os Harkonnen têm poços de escravos e minas de obsidiana. Os soldados vigiam os prisioneiros. O bordel... — Engoliu em seco, temeroso de revelar a informação —. O bordel serve a todos os soldados. Sua irmã trabalha ali.

Gurney, tremulo, tentou pensar em como cruzar o continente. Tinha poucos conhecimentos de geografia, mas aprender mais. Contemplou a lua desaparecer atrás das nuvens, enquanto começava a conceber um plano provisório para libertar Bheth.

Gurney assentiu e deixou cair os braços. O recenseador saiu da sarjeta e se afastou pelos campos coxeando por causa do tornozelo torcido. Dirigia-se para um grupo de árvores, atrás do qual devia ter escondido um veículo.

Gurney, amortecido e esgotado, deixou-se cair contra a parede da sarjeta. Exalou um profundo suspiro. Pouco importava o homem que tinha escapado.

Finalmente tinha uma pista do paradeiro de sua irmã.

 

O governante eficaz castiga a oposição ao mesmo tempo em que recompensa a colaboração; move suas forças aleatoriamente; oculta os principais elementos de seu poder; põe em marcha um ritmo de contraposição que desequilibra seus oponentes.

WESTHEIMER ATREIDES

Elementos da liderança.

 

Quando o filho de Leto nasceu, teve a impressão de que o tempo passava mais depressa ainda.

O menino, vestido com uma armadura de brinquedo e provido de um escudo de papel laminado, atacou com ferocidade o touro salusano de pelúcia com sua vara, e depois retrocedeu. Victor, o filho de dois anos do duque Atreides, usava uma boina enfeitada de verde com um emblema vermelho Atreides.

Leto, de joelhos e rindo, movia de um lado a outro o touro de brinquedo para dificultar o trabalho do menino de cabelo negro, que ainda se movia com a insegurança de um bebê.

— Faça o que te ensinei, Victor. — Tentou dissimular seu sorriso com uma expressão muito séria —. Cuidado com a vara. — Fez-lhe uma demonstração —. Segure assim, e afunde-a de lado no cérebro do monstro.

O menino, obediente, tentou de novo, mal era capaz de levantar a arma. A ponta cega da vara ricocheteou na cabeça, perto da marca que Leto tinha desenhado com giz.

— Muito melhor!

Jogou o touro para um lado, agarrou o menino nos braços e o levantou por em cima da cabeça. Victor riu quando Leto lhe fez cócegas no peito.

— Outra vez? — disse Kailea em tom desaprovador —. Leto, o que está fazendo? — Estava na porta com Chiara, sua dama de companhia —. Não o afeiçoe a essas tolices. Quer que morra como o avô?

Leto se voltou para sua concubina com expressão grave.

— O touro não teve culpa, Kailea. Foi drogado por traidores.

O duque não falou do segredo que ocultava, que sua própria mãe estava implicada na conspiração, e que tinha exilado lady Helena a um monastério primitivo com as Irmãs do Isolamento.

Kailea olhou para ele, muito pouco convencida. Leto tentou adotar um tom mais razoável.

— Meu pai acreditava que essas bestas eram nobres e magníficas. Derrotar uma na arena exige muita habilidade, e honra.

— Mesmo assim..., é adequado para nosso filho? — Kailea olhou para Chiara, como se procurasse o apoio da anciã —. Tem apenas dois anos.

Leto remexeu o cabelo do menino.

— Nunca é muito cedo para aprender a lutar. Até Thufir passa. Meu pai nunca me mimou, e eu tampouco penso em fazê-lo com Victor.

— Estou segura de que sabe o que mais lhe convém — disse a jovem com um suspiro de resignação, mas o brilho agitado de seus olhos proclamava o contrário —. Afinal, você é o duque.

— É a hora da aula do Victor, querida.

Chiara consultou seu crono de pulso cravejado de jóias, uma antigüidade richesiana que havia trazido de Kaitain.

Victor, com expressão decepcionada, olhou para seu pai.

— Vá. — Leto afagou suas costas —. Um duque tem que aprender muitas coisas, e nem todas são tão divertidas como esta.

O menino resistiu por um momento, mas depois atravessou a habitação com suas curtas pernas. Chiara, com um sorriso digno de uma avó, pegou-o nos braços e levou-o para a sala-de-aula privada situada na asa norte do castelo. Swain Goire, o guarda encarregado de vigiar Victor, seguiu a dama de companhia. Kailea ficou no quarto de brincar, enquanto Leto apoiava o touro de pelúcia contra a parede, secava o pescoço com uma toalha e bebia um copo de água fresca.

— Por que meu irmão confia sempre em você, e não me conta nada? — Leto viu que sua concubina estava insatisfeita e insegura —. É verdade que essa mulher e ele estão falando de casar-se?

— Não fala a sério... Acredito que é algo que lhe ocorreu de repente. Você sabe como Rhombur é lento na hora de tomar decisões. Algum dia, possivelmente.

Kailea apertou os lábios em desaprovação.

— Mas ela não é mais que uma... Bene Gesserit. Não tem sangue azul.

— Uma Bene Gesserit foi boa o bastante para meu primo, o imperador. — Leto não falou da dor que sentia em seu coração —. Ele é quem tem que decidir, Kailea. Parece que se amam, certamente.

Kailea e ele haviam se distanciado desde o nascimento de seu filho. Ou talvez desde que Chiara chegara com todas as suas intrigas e histórias sobre a corte imperial.

— Amor? Ah, é o único ingrediente necessário para o matrimônio? — Seu rosto escureceu —. O que seu pai diria de tamanha hipocrisia, o grande duque Paulus Atreides?

Leto tentou conservar a calma, aproximou-se da porta do quarto e a fechou para que ninguém pudesse ouvi-los.

— Sabe que não posso tomá-la como esposa.

Recordava as terríveis brigas de seus pais atrás das portas grossas do seu dormitório. Não queria que isso se repetisse com ele e Kailea.

A irritação ocultava a delicada beleza de Kailea. Agitou o cabelo, e seus cachos acobreados caíram sobre seus ombros.

— Um dia nosso filho deveria ser o duque Atreides. Espero que mude de opinião quando até lá.

— É uma questão de política, Kailea. — Leto avermelhou —. Quero muito ao Victor, mas sou o duque de uma Grande Casa. Antes de qualquer coisa devo pensar na Casa Atreides.

Nas reuniões do Conselho do Landsraad, outras Casas exibiam suas filhas a Leto, com a esperança de tentá-lo. A Casa Atreides não era a família mais poderosa nem mais rica, mas Leto era apreciado e respeitado, sobretudo depois de seu comportamento valente durante o Julgamento por Confisco. Estava orgulhoso do que havia conseguido em Caladan e desejava que Kailea o apreciasse mais por isso.

— E Victor continuará a ser um bastardo.

— Kailea...

— Às vezes odeio seu pai pelas estúpidas idéias que meteu na sua cabeça. Como não posso oferecer-lhe alianças políticas, e como não possuo dote e posição, não sou aceitável como esposa. Mas como você é um duque, pode ordenar que vá para sua cama sempre que quiser.

Ofendido pela forma que Kailea expressava seu desgosto, Leto imaginou o que Chiara devia cochichar para sua concubina na intimidade de seus aposentos. Não podia haver outra explicação. Leto não gostava da anciã, mas despedi-la acabaria por separá-lo de Kailea. As duas mulheres se davam bem juntas, envolviam-se em longas conversas intelectuais, imitavam o estilo imperial.

Olhou pela janela, e pensou em como ele e Kailea tinham sido felizes alguns anos antes.

— Não mereço isso, sobretudo considerando tudo que minha família fez por você e seu irmão.

— Oh, muitíssimo obrigado. Tampouco prejudicou sua imagem, não é? Ajudar os pobres refugiados de IX para que seu amado povo veja como seu governante é benevolente. O nobre duque Atreides. Mas nós, que partilhamos da sua intimidade, sabemos que é apenas um homem, não a lenda em que tenta se transformar. Não é o herói do povo, como imagina ser. Se fosse, concordaria...

— Basta! Rhombur tem todo o direito de casar-se com Tessia, se assim desejar. Se assim decidir. A Casa Vernius foi destruída, e para ele não haverá matrimônios políticos.

— A menos que seus rebeldes reconquistem IX — replicou ela —. Leto, me diga a verdade, deseja em segredo que os rebeldes não triunfem, para assim ter sempre uma desculpa para não se casar comigo?

Leto ficou pasmo.

— Mas é claro que não!

Kailea saiu da habitação, ao que parecia convencida de que tinha ganho aquela partida.

A sós, Leto pensou no muito que a jovem tinha mudado. Durante anos estivera apaixonado por ela, muito antes de tomá-la como concubina. Tinha uma relação com ela, embora não tão oficial como Kailea desejava. A princípio se mostrou colaboradora, mas suas ambições dispararam, até complicar suas vidas sem necessidade. Nos últimos tempos, a vira com excessiva freqüência pentear-se em frente ao espelho, enfeitar-se como uma rainha... algo que jamais poderia ser. Leto não podia mudar o que ela era.

Mas a alegria que seu filho proporcionava compensava os outros problemas. Queria o menino com uma intensidade que o surpreendia. Só desejava o melhor para Victor, queria que ele se tornasse um homem decente e honrado, à maneira Atreides. Embora não pudesse nomeá-lo oficialmente herdeiro do ducado, Leto tinha a intenção de lhe conceder todos os benefícios, todas as vantagens. Um dia, Victor compreenderia as coisas que sua mãe não assumia.

 

Enquanto o menino estava sentado em frente a máquina pedagógica, brincando de reconhecer formas e identificar cores, Kailea e Chiara falavam em voz baixa. Victor apertava botões com rapidez, alcançava resultados pouco freqüentes para sua idade.

— Minha senhora, temos que encontrar uma forma de convencer o duque. É um homem teimoso, e tenta forjar uma aliança matrimonial com uma família poderosa. O arquiduque Ecaz o persegue, conforme me disseram, e lhe oferece uma de suas filhas. Suspeito que os pressupostos esforços diplomáticos de Leto para mediar o conflito entre os Moritani e os Ecaz constitui uma cortina de fumaça que oculta suas verdadeiras intenções.

Kailea entreabriu os olhos.

— Leto viaja para Grumman na semana que vem para falar com o visconde Moritani. Ele não tem filhas.

— Ele diz que vai para lá, querida, mas o espaço é imenso, e se Leto se desviar, quem vai saber? Depois de todos os anos que passei na corte imperial, compreendo estas coisas muito bem. Se Leto conseguir um herdeiro oficial, Victor será apenas mais um filho bastardo... e arruinará sua posição.

Kailea inclinou a cabeça.

— Eu disse tudo o que me aconselhou, Chiara, mas me pergunto se não fui muito longe... — Agora que Leto não podia vê-la, expressava todas seus receios e medos —. Me sinto tão frustrada. Parece que não posso fazer nada. Ele e eu fomos muito próximos antes, mas tudo saiu errado. Confiava que ao lhe dar um filho nos aproximaríamos novamente.

Chiara umedeceu seus lábios enrugados.

— Ai, querida, em épocas antigas, esses filhos eram chamados de “cimento humano”, porque uniam as famílias.

Kailea meneou a cabeça.

— Em vez disso, Victor só fez o problema ficar evidente. Às vezes penso que Leto me odeia.

— Tudo tem solução, se confiar em mim, minha senhora. — Chiara apoiou uma mão tranqüilizadora no ombro da jovem —. Para começar, fale com seu irmão. Pergunte a Rhombur o que ele pode fazer. — Sua voz era doce e razoável —.O duque sempre o escuta.

Kailea se animou.

— Isso poderia funcionar. Tentar não custa nada.

Falou com Rhombur em seus aposentos do castelo. Estava na cozinha com Tessia, e a ajudava a preparar uma salada de hortaliças locais. Rhombur a escutou com atenção enquanto cortava uma cabaça de mar púrpura sobre uma tabela.

Não pareceu compreender a gravidade da situação de sua irmã.

— Não tem direito de se queixar de nada, Kailea. Leto nos tratou como reis... er, sobretudo a você.

A jovem emitiu bufou de exasperação.

— Como pode dizer isso? Agora que tenho o Victor, valho muito mais.

Não sabia se devia ir as nuvens ou abandonar-se ao desespero.

Tessia piscou.

— Rhombur, sua única esperança é derrotar os tleilaxu. Assim que recuperar a Casa Vernius, seus outros problemas parecerão irrelevantes.

Rhombur se inclinou para beijar sua concubina na testa.

— Sim, meu amor. Não acha que estou me esforçando? Faz anos que enviamos dinheiro em segredo a C'tair, mas ainda não sei como os rebeldes estão. Hawat enviou outro espião, e o homem desapareceu. IX é um osso duro de roer, tal como nós o desenhamos.

Tessia e Kailea se surpreenderam mutuamente quando responderam em uníssono:

— Precisa se esforçar mais.

 

O Universo funciona sobre um princípio econômico básico: tudo tem um custo. Pagamos para criar nosso futuro, pagamos pelos erros do passado. Pagamos por todas as mudanças que efetuamos... e pagamos também se não quisermos mudar.

Anais dos Bancos da Corporação

Registro Filosófico

 

Dizia-se entre os fremen que era preciso respeitar e temer o Shai-Hulud, mas antes de fazer dezesseis anos, Liet-Kynes tinha montado vermes de areia muitas vezes.

Durante sua primeira viagem às regiões polares do sul, seu irmão de sangue Warrick e ele tinham convocado um verme atrás de outro, e os tinham montado até esgotá-los. Depois plantavam um martelo de areia, preparados com seus ganchos de ferro, e chamavam o próximo. Todos os fremen confiavam neles.

Durante quatro intermináveis horas, os dois jovens se agacharam com seus traje destiladores sob mantos com capuz, suportando o calor do dia sob um céu de um azul poeirento. Escutavam o rugido da areia abaixo deles, ardente devido à fricção produzida pela passagem do verme.

Longe da linha cartográfica dos sessenta graus das regiões desabitadas, cruzaram a Grande Extensão e os ergs desolados, vadearam mares de areia sem trilhas, chegaram ao Equador e continuaram para o sul, para os palmeirais proibidos próximos à calota antártica. Aquelas plantações tinham sido plantadas e cuidadas por Pardot Kynes, na primeira fase de seu sonho de despertar Duna novamente.

O olhar de Liet esquadrinhou a imensidão. Ventos invernais açoitavam a superfície da Grande Extensão, lisa como a superfície de uma mesa. Este deve ser o horizonte da eternidade. Estudou a paisagem austera, as gradações sutis, os afloramentos rochosos. Seu pai lhe dera lições sobre o deserto desde que sua jovem mente fora capaz de compreender a linguagem. O planetólogo o chamava de paisagem implacável, sem pausa... sem vacilação.

Quando anoiteceu o sexto dia de viagem, seu verme começou a dar sinais de esgotamento e nervosismo, ao ponto de tentar meter-se sob a areia, embora seus segmentos sensíveis se mantivessem abertos graças aos ganchos de ferro. Liet indicou a Warrick um recife de rocha com suas rachaduras protegidas.

— Podemos passar a noite ali.

Warrick utilizou suas varas para esporear o verme. Depois tiraram os ganchos de ferro e se prepararam para descer. Como Liet tinha chamado este monstro em particular, indicou por gestos a seu amigo que descesse pelo lombo segmentado.

— O primeiro a subir, o último a descer — disse Liet.

Warrick obedeceu. Desenganchou as caixas de suspensão, carregadas de essência de melange bruta, e as afastou do alcance do monstro. Depois correu para o alto de uma duna. Ao chegar lá ficou imóvel, pensando como a areia, tão silencioso como o deserto.

Liet deixou que o verme se enterrasse na areia e saltou no último momento, vadeando a areia como se fosse um pântano. Seu pai gostava de contar histórias dos pântanos de Bela Tegeuse e Salusa Secundus, mas Liet duvidava que esses planetas possuíssem um pingo do encanto ou vigor de Duna.

Como filho do Umma Kynes, Liet desfrutava de certas vantagens e privilégios. Embora estivesse indo muito bem naquela importante viagem às terras antárticas, sabia que seu direito de nascimento não aumentava suas chances de êxito. Todos os fremen jovens recebiam essas responsabilidades.

A Corporação Espacial exigia seu suborno periódico de especiaria.

Por uma quantidade exorbitante de essência de especiaria, a Corporação fazia a vistas grossas sobre as atividades de terraformação secretas, esquecia os movimentos dos fremen. Os Harkonnen não podiam compreender por que era tão difícil obter projeções meteorológicas e análises cartográficas detalhadas, mas a Corporação sempre negava... porque os fremen nunca esqueciam de pagar a cota.

Quando Liet e Warrick encontraram um canto do recife de lava protegido para montar seu tenda destiladora, Liet tirou os bolos de especiaria com mel que sua mãe tinha feito. Os dois jovens se sentaram, contentes com sua mútua companhia, e falaram das jovens fremen que viviam nos sietches que tinham visitado.

Ao longo dos anos, os irmãos de sangue tinham realizado muitos atos valentes, e também muitas imprudências. Algumas tinham convertido em desastres, em outras tinham escapado por um fio, mas Liet e Warrick tinham sobrevivido a todas elas. Os dois tinham colhido numerosos troféus Harkonnen, e recebido cicatrizes em troca.

Riram até bem entrada a noite da ocasião em que tinham sabotado os tópteros Harkonnen, da outra em que tinham forçado o armazém de um rico mercador e roubado guloseimas muito apreciadas, de quando tinham açoitado a miragem de uma escorregadia praia branca salgada, afim de pedir um desejo.

Satisfeitos por fim, os dois dormiram sob a luz das duas luas, com a intenção de despertar antes do amanhecer. Ainda restavam vários dias de viagem.

Uma vez atravessada a fronteira dos vermes de areia, onde a umidade do chão e os longos afloramentos rochosos impediam que os vermes se deslocassem, Liet-Kynes e Warrick continuaram a pé. Guiados por seu sentido da orientação inato, atravessaram canyons e planícies gélidas. Em gargantas rochosas com altas paredes conglomeradas, viram antigos leitos de rio secos. Seus narizes fremen sensíveis eram capazes de detectar um aumento de umidade no ar gélido.

Os dois jovens passaram uma noite no sietch das Dez Tribos, onde espelhos fundiam o permafrost do chão, produzindo assim água suficiente para que as plantas crescessem cuidadas com o máximo esmero. Tinham plantado hortas, além de palmeiras anãs.

Warrick exibia um largo sorriso. Tirou os plugues do traje destilador do nariz e aspirou uma baforada de ar puro.

— Cheiro de plantas, Liet! Até o ar está vivo. — Baixou a voz e olhou solenemente para seu amigo —. Seu pai é um grande homem.

Os curandeiros tinham uma expressão inquietante mas extasiada em seu rosto, cheios de ardor religioso ao ver que seus esforços frutificavam. Para eles, o sonho de Umma Kynes não era um novo conceito abstrato, mas um autêntico futuro próximo.

Os fremen reverenciaram o filho do planetólogo. Alguns se adiantaram para lhe tocar o braço e o traje destilador, como se assim acreditassem estar mais perto do profeta.

— E o deserto se regozijará, e florescerá como uma rosa! — gritou um ancião, citando a Sabedoria Zensunni das Peregrinações.

Outros iniciaram um canto ritual.

— O que é mais precioso que a semente?

— A água onde germina a semente.

— O que é mais precioso que a rocha?

— O chão fértil que a cobre.

Continuaram de maneira similar, mas sua adoração incomodou Liet. Warrick e ele decidiram partir assim que as obrigações da hospitalidade permitissem, depois de compartilhar café com o naib e dormir bem na noite fria.

A gente do sietch das Dez Tribos lhes deu roupas quentes, que até agora não tinham necessitado. Depois, Liet e Warrick retomaram a marcha de novo, com sua valiosa carga de especiaria concentrada.

Quando os dois jovens chegaram à lendária fortaleza do mercador de água Rondo Tuek, o edifício lhes pareceu muito mais um armazém industrial imundo que um fabuloso palácio, situado entre montanhas de gelo branco. O edifício era quadrado, ligado por numerosos tubos e valas. Maquinas de escavação tinham perfurado o chão duro como o ferro o para extrair o gelo enterrado na terra, deixando feias montanhas de detritos.

A neve antiga fora enterrada muito tempo antes em capas de pó grosso e calhaus, o conjunto consolidado por água gelada. Extrair a umidade era uma operação simples: escavavam enormes quantidades de terra e depois a aqueciam para liberar o vapor de água preso.

Liet rompeu um pedaço de terra gelada e a lambeu, sentiu o sabor do sal, assim como do gelo misturado com a areia. Sabia que a água estava ali, mas lhe parecia tão inacessível como se estivesse em um planeta longínquo. Avançaram para o edifício com suas caixas de especiaria destilada.

A instalação era feita de blocos de pseudocimento fabricados a partir dos restos do processo de extração de gelo. As paredes da fortaleza eram brancas e sem adornos, repletas de janelas e reforçadas com espelhos e coletores de energia que absorviam a luz do sol. Fornos de extração de gelo emitiam gases pardos, que impregnavam o ar de pó e areia.

Rondo Tuek era o proprietário de uma opulenta mansão em Carthag, mas se dizia que o mercador de água visitava poucas vezes sua moradia espetacular da cidade. Tuek tinha obtido abundantes benefícios com suas minas de água no sul, que vendia nas cidades do norte e nos povoados das depressões e conchas.

Entretanto, o terrível clima do hemisfério sul, em especial as imprevisíveis tormentas de areia, destruíam um carregamento de cada quatro, e Tuek se via obrigado a comprar sem cessar maquinaria nova, assim como a contratar novas equipes de trabalhadores. Por sorte para ele, um carregamento de água lhe rendia lucros suficientes para superar as perdas. Poucos empresários desejavam correr tais riscos, mas Tuek tinha contatos secretos com os traficantes, a Corporação e os fremen. De fato se dizia que a extração de água era apenas uma coberta, um negócio legal que ocultava a atividade que na realidade ganhava dinheiro: atuar como intermediário com os contrabandistas.

Warrick e Liet avançaram lado a lado entre as máquinas barulhentas e os operários de outros planetas, até as portas de entrada. Tuek utilizava sobretudo trabalhadores mercenários que nunca se deslocavam ao norte para passar o tempo na árida realidade de Duna. O mercador de água preferia assim, pois esses homens eram mais capazes de guardar segredos.

Embora Liet fosse mais baixo que Warrick, ergueu-se em toda sua estatura e o precedeu. Um homem vestido com macacão de trabalho e luvas isolantes os ultrapassou indo para seu posto, e olhou de esguelha para eles.

Liet o deteve.

— Somos uma delegação fremen, e viemos ver Rondo Tuek. Eu sou Liet-Kynes, filho de Pardot Kynes, e este é Warrick...

O operário apontou para trás.

— Está lá dentro. Vá procurar.

Encaminhou-se para uma das máquinas que perfuravam a rocha de gelo incrustada de terra.

Liet, desprezado, olhou para seu amigo. Warrick sorriu e lhe deu uma palmada nas costas.

— De qualquer modo, não temos tempo para formalidades. Vamos procurar Tuek.

Entraram no edifício cavernoso como se trabalhassem ali. O ar era frio, embora globos de calor zumbissem nas paredes e cantos. Liet obteve vagas indicações de alguns operários, que apontaram para um corredor e depois para o seguinte, até que os dois se perderam completamente em um labirinto de escritórios, terminais de controle e armazéns.

Um homem baixo e forte avançou para eles, movendo os braços.

— Não é difícil encontrar dois fremen aqui dentro — disse —. Sou Rondo Tuek. Venham aos meus aposentos privados. — O homem olhou por cima do ombro —. E tragam seu equipamento. Não deixem essas coisas por aí.

Liet tinha visto o homem só uma vez, anos antes, no banquete celebrado por Fenring em sua residência em Arrakeen. Tinha grandes olhos cinzentos, maçãs do rosto finas e um queixo quase inexistente, que transformava seu rosto num quadrado perfeito. Seu cabelo cor de ferrugem começava a rarear no alto, mas crescia com abundância nas têmporas. Era um homem de aspecto estranho que caminhava com um passo estranho, a antítese da graça que caracterizava os fremen.

Tuek os precedeu. Liet e Warrick arrastaram os contêineres. Tiveram que apressar-se para não se atrasar. Tudo naquele lugar parecia ordinário e comum, uma decepção para Liet. Mesmo no sietch mais humilde, os fremen tinham tapetes de alegres cores, ou figuras decorativas de arenito esculpido. Em os tetos tinham desenhos geométricos, em algumas ocasiões com mosaicos trançados.

Tuek os guiou até uma longa parede, tão limpa quanto as demais. Olhou para um e outro lado para ver se seus trabalhadores tinham abandonado a área, e depois apoiou a palma contra um leitor. A fechadura se abriu com um vaio e revelou uma cálida câmara repleta de riquezas inimagináveis.

Havia garrafas de cristal do melhor conhaque kirano e vinhos de Caladan alinhadas em nichos. Uma aranha incrustada de jóias lançava uma luz facetada sobre cortinas púrpura que dotavam às paredes de uma suavidade apagada, tão confortável como um útero.

— Ah, os tesouros ocultos do mercador de água — disse Warrick.

As poltronas eram enormes e macias. Havia holos de espetáculos amontoados sobre uma mesa polida. Espelhos no teto refletiam a luz das colunas coríntias luminosas, feitas de alabastro de Hagal opalescente, onde fogos moleculares iluminavam por dentro.

— A Corporação traz poucas comodidades a Arrakis. Os Harkonnen não apreciam os objetos belos, e além deles poucos os podem permitir. — Tuek encolheu seus ombros largos —. E ninguém quer transportá-las através dos infernos do hemisfério sul até minha fábrica.

Arqueou suas sobrancelhas cheias.

— Mas devido a meu acordo com seu povo — acionou um controle para fechar as portas —, a Corporação envia de vez em quando naves e as situa na órbita polar. Lançadeiras me entregam os fornecimentos que necessito. — Afagou os pesados contêineres de carga que Warrick havia trazido —. Em troca de seu... pagamento mensal de especiaria.

— Nós o chamamos de suborno de especiaria — disse Liet.

Tuek não pareceu se ofender.

— Semântica, meu filho. A essência pura de melange que os fremen extraem das profundezas do deserto é mais valiosa que a miséria encontrada pelas equipes Harkonnen no norte. A Corporação destina estes carregamentos para seu próprio uso, mas quem pode compreender o que os Navegantes fazem com ela?

Voltou a dar de ombros.

Tamborilou com os dedos sobre uma caderneta.

— Vou anotar que recebemos seu pagamento mensal. Dei ordens a meu chefe de intendência para que lhes forneça provisões suficientes para sua viagem de volta.

Liet não tinha esperado muitos detalhes de Tuek, e aceitou seu comportamento prático. Não queria ficar ali nem um minuto mais, embora as pessoas das cidades ou dos povoados tivesse prolongado sua estadia para admirar os adornos exóticos e o elegante mobiliário. Liet não tinha nascido para apreciar essas coisas.

Como seu pai, preferia passar o dia no deserto, seu lar.

Se se apressassem, Liet calculava que poderiam chegar ao sietch das Dez Tribos ao anoitecer. Desejava o calor do sol, para assim poder flexionar suas mãos congeladas.

Mas era o frio que impressionava Warrick. Ficou imóvel com os braços abertos, as botas de deserto plantadas no chão.

— Você já experimentou isso antes, Liet? — Esfregou a bochecha —. Minha pele está quebradiça. — Respirou fundo e olhou para suas botas —. E se sinto a presença de água. Está aqui, mas... presa.

Contemplou as montanhas pardas das geleiras incrustadas de pó. Warrick era impulsivo e curioso, e pediu a seu amigo que esperasse.

— Terminamos nossa missão, Liet. Não temos tanta pressa para retornar.

Liet parou.

— O que você está tramando?

— Estamos aqui, nas lendárias montanhas de gelo. Vimos os palmeirais e as plantações que seu pai iniciou. Quero dedicar um dia a explorar, a sentir o gelo sólido sob meus pés. Escalar essas geleiras seria o equivalente de escalar montanhas de ouro.

— Não veremos gelo em estado puro. A umidade está congelada no pó e na terra. — Ao ver a expressão ansiosa de seu amigo, a impaciência de Liet desapareceu —. Será como você diz, Warrick. Para que tanta pressas? — Para os dois jovens de dezesseis anos, aquela podia ser uma aventura muito maior, e mais segura, que seus ataque contra as fortalezas Harkonnen —. Vamos escalar as geleiras.

Caminharam sob a perpétua luz solar apagada do pólo sul. A tundra possuía uma beleza austera, sobretudo para alguém acostumado à realidade do deserto.

Quando deixaram as escavações industriais de Tuek para trás, a fina nuvem de pó e detritos expulsos lançava uma neblina parda sobre o horizonte. Liet e Warrick subiram mais, estilhaçaram rochas e encontraram um filme de gelo. Chuparam fragmentos quebrados do chão congelado, sentiram o sabor amargo de produtos químicos alcalinos, e cuspiram a terra e a areia.

Warrick correu, desfrutando da liberdade. Como fremen, tinham-no preparado para jamais baixar a guarda, mas os caçadores Harkonnen não se aventuravam até o pólo sul. Aqui estavam provavelmente a salvo. Provavelmente.

Liet continuava esquadrinhando o terreno e os penhascos que se elevavam em grandes massas de terra parda congelada. Agachou-se para examinar uma marca quase perceptível, um entalhe ínfimo.

— Warrick, olhe isto.

Estudaram uma pegada impressa na terra esponjosa. Depois de examinar o terreno, descobriram marcas sutis onde outros rastros tinham sido apagados de propósito e com supremo cuidado.

— Quem esteve aqui?

Warrick olhou para ele.

— E por que se escondem? — acrescentou —. Estamos longe da fábrica de água de Tuek.

Liet farejou o ar, esquadrinhou os penhascos e as formações rochosas, e viu um brilho de geada através do manto de frio.

— Possivelmente sejam exploradores que se dirigem para o pólo em busca do gelo mais limpo que poder escavar.

— Nesse caso, por que apagaram seus rastros?

Liet olhou na direção que o rastro indicava, subindo a parede escarpada de um penhasco, salpicada de barro poeirento congelado em formas caprichosas. Em sintonia com os detalhes do ambiente, olhou e estudou cada sombra, cada fenda.

— Algo não se encaixa.

Todos os alarmes em seu corpo dispararam, e indicou com um gesto a Warrick que ficasse em silêncio. Ao não perceber outros sons ou movimentos, os dois avançaram cuidadosamente. Desde pequenos, Liet e Warrick tinham aprendido a mover-se pelo deserto sem fazer ruído nem deixar rastros.

Liet ainda não podia identificar o que lhe parecia fora do lugar, mas a sensação aumentou à medida que se aproximavam. Embora o frio embotasse seus delicados sentidos, avançaram com muito cuidado. Ao subir pelo atalho de pó endurecido pelo gelo, distinguiram o que para olhos fremen era sem dúvida um caminho.

Pessoas haviam subido por esta penhasco.

Os dois jovens tentaram se tornar invisíveis no penhasco, agir como parte da paisagem, mover-se como componentes naturais. Na metade do caminho, Liet observou uma tênue descoloração na parede, uma mancha muito uniforme, muito artificial. Fora bem camuflado, mas com algumas erros visíveis.

Era uma porta oculta, grande o bastante para acolher uma espaçonave. Um armazém secreto de Rondo Tuek? Uma instalação da Corporação, ou um esconderijo de contrabandistas?

Liet permaneceu imóvel. Antes que pudesse dizer algo, outras manchas se abriram junto ao caminho, pedaços de gelo e rocha camuflados com tal destreza que nem sequer ele percebeu. Saíram quatro homens de aspecto rude. Eram musculosos e vestiam uniformes improvisados. E tinham armas.

— Movem-se bem e silenciosamente, rapazes — disse um dos homens. Era alto, com olhos brilhantes e calva reluzente. Um bigode escuro lhe caía até o queixo —. Mas esqueceram que aqui, no frio, pode-se ver o vapor do seu fôlego. Não tinham pensado nisso, não é?

Um par de homens grisalhos indicaram com suas armas que os cativos entrassem nos túneis da montanha. Warrick apoiou a mão sobre o pomo de sua faca e olhou para seu amigo. Morreriam lutando costas contra costas se necessário.

Mas Liet meneou a cabeça. Os homens não usavam as cores Harkonnen. Em alguns pontos, as insígnias tinham sido arrancadas. Devem ser contrabandistas.

— Somos seus prisioneiros? — perguntou Liet, ao mesmo tempo em que olhava com ar significativo para os fuzis.

— Quero descobrir o erro que cometemos para que nos localizassem com tanta facilidade. — O homem calvo baixou a arma —. Me chamo Dominic Vernius, e são meus convidados... por enquanto.

 

A crescente variedade e abundância de vida multiplica a um nível imenso o número de ambientes aptos para a vida. O sistema resultante é uma rede de fabricantes e usuários, devoradores e devorados, colaboradores e competidores.

PARDOT KYNES

Relatório ao imperador Shaddam IV.

 

Apesar de todas as suas maldades e ardis, do sangue que manchava suas mãos, Hasimir Fenring podia ser maravilhoso com ela. Lady Margot sentia falta dele. Ele viajara com o barão Harkonnen para as profundezas do deserto para inspecionar os lugares onde se recolhia a especiaria, depois de ter recebido uma mensagem irada de Shaddam sobre uma queda na produção de melange.

Seu marido, com fria lealdade com seus bem definidos objetivos, tinha cometido numerosas atrocidades em nome do imperador, e ela suspeitava que participara da misteriosa morte de Elrood IX. Entretanto, sua educação Bene Gesserit lhe ensinara a valorizar resultados e conseqüências. Hasimir Fenring sabia obter o que desejava, e Margot o adorava por isso.

Suspirava cada vez que entrava na estufa exuberante que seu marido tinha mandado construir para ela. Vestida com uma confortável mas elegante bata que mudava de cor a cada hora, Margot apertou a palma da sua mão contra a fechadura da porta hermética. Quando atravessou o arco adornado com mosaico e entrou na câmara, aspirou uma profunda baforada de ar. Imediatamente, começou a soar uma música relaxante, um dueto de baliset e piano.

As paredes irradiavam a amarelada luz do sol da tarde através de janelas de cristal que filtravam o sol branco de Arrakis e o transformavam em uma evocação dos dias de Kaitain. Grossas folhas ondeavam devido à circulação do ar como bandeiras de cidadãos entusiastas. Durante os últimos quatro anos, as plantas da câmara tinham florescido até o ponto de superar suas mais extravagantes expectativas.

Em um planeta onde cada gota de água era preciosa e os mendigos vagavam pelas ruas pedindo um pouco do prezado líquido, onde vendedores de água vestidos com cores brilhantes agitavam suas campainhas e cobravam preços exorbitantes por um só gole, seu retiro privado era um esbanjamento escandaloso. E valia cada gota. Como seu marido dizia sempre, o ministro imperial da Especiaria podia se permitir.

No fundo do seu passado, entre os ecos de antigas vidas que ainda estavam ao seu dispor, Margot recordou uma esposa presa em um lar estritamente islâmico, uma mulher chamada Fátima em honra à única filha da Mahoma. Seu marido era rico o bastante para manter três esposas, que mantinha presas em sua casa, embora tivesse destinado um pátio para cada uma. Depois da cerimônia matrimonial, Fátima nunca mais havia saído da casa, assim como as outras esposas. Todo seu mundo estava resumido ao pátio exuberante, com suas plantas, flores e o céu no alto. A água que emanava da fonte central proporcionava um acompanhamento musical para os instrumentos que ela tocava. Às vezes, mariposas e colibris se aproximavam para ter um banquete de néctar...

Agora, incontáveis gerações depois, em um planeta que girava ao redor de um sol mais longínquo do que aquela mulher jamais poderia imaginar, Margot Fenring se encontrava em um lugar similar, protegido, belo e cheio de plantas.

Um servok automático, provido de longos tubos e mangueiras, umedecia o ar, regava as árvores podadas, samambaias e flores. A fria umidade arrepiava a pele de Margot, seus pulmões a aspiraram. Um luxo semelhante, depois de tantos anos! Levantou uma folha molhada, afundou os dedos no chão úmido que rodeava a base da planta. Não havia nem sinal dos pulgões mutantes que esta planta transportava quando chegou de seu planeta tropical de origem, Ginaz.

Enquanto examinava as raízes, a voz da reverenda madre Biana lhe falou em sussurros da Outra Memória. A irmã, morta muito tempo atrás, que tinha sido encarregada da Escola Materna dois séculos antes, instruía Margot nos métodos delicados da ciência da horticultura. A música (a canção favorita de Biana, uma enfeitiçante melodia trovadoresca de Jongleur) tinha despertado seu fantasma interior.

Até sem a ajuda da memória de Biana, Margot se orgulhava de seu conhecimento sobre as plantas. À estufa chegavam espécimes de todo o Império. Para ela, eram como os filhos que não poderia ter com seu marido, um eunuco genético. Gostava de vê-las crescer e amadurecer em um ambiente tão hostil.

Seu marido também era um especialista em sobreviver em situações hostis.

Acariciou uma folha sedosa e larga. Eu a protegerei.

Margot perdeu a noção do tempo, esqueceu até de ir comer. Uma irmã Bene Gesserit podia jejuar durante uma semana, caso necessário. Estava sozinha com suas plantas, pensamentos e a Outra Memória.

Satisfeita, sentou-se em um banco junto a uma fonte, situada no centro do estufa. Deixou uma filarosa com suas raízes no banco, a seu lado, e fechou os olhos, descansou, meditou...

Quando voltou a si, o sol mergulhara em chamas atrás do horizonte, e lançava longas sombras desde escarpados de rocha para o oeste. As luzes da estufa se acenderam. Sentia-se maravilhosamente descansada. Levou a filarosa ao banco dos vasos de barro e tirou a planta do contêiner, que tinha ficado pequeno. Cantarolou para si a melodia do Jongleur enquanto jogava terra ao redor das raízes em um vaso de barro novo, em paz consigo mesma.

Margot deu meia volta e ficou surpresa quando viu um homem de pele enrugada a menos de dois metros de distância. Observava-a com seus olhos de um azul intenso. Pareceu-lhe vagamente familiar. Usava uma capa juba, com o capuz arremessado para trás. Um fremen!

Como conseguira entrar, com todos os sistemas de segurança e alarmes da estufa, com a fechadura de palma que só respondia a sua mão? Não o tinha ouvido aproximar-se nem com seus sentidos Bene Gesserit potencializados.

O vaso de barro da filarosa caiu de suas mãos e se quebrou, ao mesmo tempo em que Margot adotava uma postura de combate Bene Gesserit, com seus músculos disciplinados prontos a lançar golpes capazes de estripar um adversário.

— Ouvimos falar de seus estranhos métodos de luta — disse o homem sem se mover —. Mas não são treinadas para utilizá-los precipitadamente.

Margot, cautelosa, respirou devagar. Como podia saber sobre aquilo?

— Recebemos sua mensagem. Desejava falar com os fremen.

Por fim, identificou o homem. Vira-o em Rutii, uma aldeia afastada, durante um de seus deslocamentos. Era um suposto sacerdote do deserto, que abençoava as pessoas. Margot recordou o desagrado do homem quando percebeu que ela o observava. Tinha interrompido suas atividades e partido imediatamente...

Ouviu um ruído entre as folhas. Uma mulher diminuta apareceu, também fremen, também conhecida. Era Shadout Mapes, a governanta, prematuramente envelhecida e enrugada por causa do sol e do vento do deserto. Mapes também tinha descartado sua indumentária habitual, e usava uma capa para viajar pelo deserto.

— Aqui se desperdiça muita água, minha senhora — disse Mapes com voz rouca —. Exibem as riquezas de outros planetas. Este não é o costume fremen.

— Eu não sou fremen — replicou Margot com brutalidade, pois ainda não estava preparada para atacar com a ordem paralisante da Voz Bene Gesserit. Tinha armas mortíferas a seu dispor que aqueles seres primitivos nem sequer podiam imaginar —. O que querem de mim?

—Você já me viu antes — disse o homem.

— É um sacerdote.

— Sou um coroinha, um ajudante da Sayyadina — respondeu o homem sem se mover.

Sayyadina, pensou Margot. Seu pulso se acelerou. Era um título que tinha ouvido antes, em referência a uma mulher que se parecia de uma forma estremecedora com uma reverenda madre. A Missionária Protetiva usava esse nome.

De repente, tudo ficou claro. Mas tinha feito o pedido aos fremen muito tempo antes, e já abandonara a esperança.

— Vocês ouviram minha mensagem. — O sacerdote inclinou a cabeça.

— Disse que têm informação sobre o Lisan ao-Gaib. — Pronunciou o termo com grande respeito.

— É verdade. Preciso falar com sua reverenda madre.

Margot recolheu lentamente a planta que deixara cair, para dar-se tempo de recuperar a calma. Deixou no chão os restos do vaso de barro e terra, e depositou a filarosa em um vaso de barro novo, com a esperança de que sobrevivesse.

— Sayyadina de outro planeta, precisa vir conosco — disse Mapes.

Margot sacudiu a terra das mãos. Embora não permitisse que o menor brilho de emoção cruzasse seu rosto, seu coração se acelerou de impaciência. Talvez, por fim poderia transmitir alguma informação à madre superiora Harishka. Talvez descobrisse o que acontecera com as irmãs que um século antes tinham desaparecido nos desertos de Arrakis.

Seguiu os dois fremen e saíram para a noite.

 

Saber o que deveria fazer não é suficiente.

Príncipe Rhombur Vernius

As ondas interpretavam uma lenta canção de ninar sob a barco de vime, e fomentavam uma falsa sensação de paz que se impunha aos pensamentos agitados.

O duque Leto estendeu a mão por cima da amurada e pegou uma esfera flutuante, enredada nas folhas que derivava com ele. Extraiu uma faca cravejada de jóias de sua bainha de ouro e cortou o melão paradan amadurecido da estrutura vegetal submarina.

— Coma um melão, Rhombur.

O príncipe piscou, surpreso.

— Er, essa não é a faca do Imperador?

Leto deu de ombros.

— Prefiro ser prático a exibicionista. Tenho certeza que meu primo não se importará.

Rhombur pegou o melão e o girou nas mãos, ao mesmo tempo em que inspecionava a casca sob a nebulosa luz do sol.

— Kailea ficaria horrorizada. Preferiria que depositasse a faca do imperador sobre uma plataforma antigravitacional, dentro de um escudo decorativo.

— Bem, ela não sai muito para pescar comigo.

Como Rhombur não fez o menor movimento para partir o melão, Leto o recuperou, cortou a casca com a ponta da faca de Shaddam e depois o partiu.

— Ao menos não explodirá em chamas se o deixar ao sol — brincou Leto, recordando a jóia coralina que tinha destruído um de seus navios favoritos, e isolado os dois jovens em um recife afastado do continente.

— Isso não tem graça — disse Rhombur, que tinha sido o culpado.

Leto ergueu a faca e observou o brilho da luz sobre o fio.

— Utilizei-a como parte de meu uniforme oficial quando fui visitar o visconde Moritani. Acho que chamou sua atenção.

— É difícil impressionar esse homem — disse Rhombur —. O Imperador finalmente retirou os Sardaukar, e tudo está tranqüilo. Er, acha que a inimizade entre os Moritani e os Ecaz já terminou?

— Não. Fiquei com os nervos em frangalhos durante toda minha estadia em Grumman. Acredito que o visconde está esperando o momento adequado.

— E você se intrometeu. — Rhombur cortou com sua faca uma fatia de melão e lhe deu uma dentada. encolheu-se e cuspiu por cima da amurada —. Ainda está verde.

Leto riu de sua expressão e agarrou uma toalha pequena de um armário. secou as mãos e a faca cerimonial, entrou na cabine e ligou os motores.

— Ao menos, minhas obrigações não são tão desagradáveis. É melhor voltarmos para o delta. Prometi que estaria no porto de barcaças ao meio-dia para dar as boas-vindas aos primeiros carregamentos da colheita de arroz pundi deste ano.

— Ai, os perigos e exigências da liderança — disse Rhombur, e entrou também na cabine —. Olhe na geladeira portátil. Trouxe-lhe uma surpresa. Sabe aquela cerveja negra que você gosta tanto?

— Não está se referindo a cerveja Harkonnen...

— Você terá que bebê-la aqui, para que ninguém nos veja. Consegui com um contrabandista. Sem utilizar seu nome, é claro.

— Rhombur Vernius de IX, fico surpreso ao vê-lo confraternizando com contrabandistas e intermediários.

— Como acha que consigo enviar fornecimentos aos rebeldes de IX? Até o momento não fui muito eficaz, mas me pus em contato com as pessoas mais indesejáveis. — Abriu a geladeira e procurou as garrafas sem etiqueta —. E alguns demonstraram ser, er, muito engenhosos.

O duque entrou com a barco na corrente, navegando em paralelo a exuberante costa. Thufir Hawat o repreenderia por ter se afastado tanto sem um guarda de honra.

— Suponho que poderia me arrumar um par de garrafas. Desde que os Harkonnen não se levem nem um centavo.

Rhombur tirou duas garrafas da geladeira.

— Nenhum. Por coincidência, foram roubadas durante um incidente na fábrica. Uma interrupção do fornecimento elétrico causou um alvoroço na planta de engarrafamento e, er, um par de vacas foram soltas dentro da fábrica, sem que ninguém saiba como. Produziu-se uma tremenda confusão, e muita cerveja se perdeu. Um desperdício trágico. Tantas garrafas se quebraram que seria impossível contar todas.

Leto, de pé em frente aos controles, cheirou o líquido escuro e se conteve de tomar um gole.

— Como sabemos se não está envenenada? Não costumo trazer um detector de venenos a bordo do meu barco.

— Esta colheita foi engarrafada para o barão em pessoa. Só de olhar como está gordo, já se imagina a quantidade que consome.

— Bem, se é boa o bastante para o barão Harkonnen... saúde.

Leto tomou um gole de cerveja, filtrada com cristais de melange para aumentar o sabor.

Rhombur se sentou no banco ao lado de Leto, viu que o duque rodeava uma ponta rochosa e depois se dirigia para um largo delta, onde convergiam barcaças carregadas de arroz pundi. O príncipe ixiano ainda não provara sua cerveja.

— Isto é um suborno — admitiu —. Quero pedir um favor. Na realidade, dois favores.

O duque riu.

— Por uma garrafa de cerveja?

— Er, há mais na geladeira. Escute, preciso ser sincero, Leto. Eu o considero meu melhor amigo. Mesmo que negue, eu compreenderei.

— Continuará sendo meu amigo se disser não aos dois favores?

Leto continuou bebendo. Rhombur passou sua garrafa de uma mão para a outra.

— Quero fazer algo mais importante por IX, algo mais sério.

— Necessita de mais dinheiro? De outra forma posso ajudar?

— Não se trata de dinheiro. Enviei muito dinheiro a C'tair Pilru desde que entrou em contato comigo, a quatro anos. — Ergueu a vista, com o sobrecenho franzido —. Me informaram que os resistentes foram aniquilados, e que restaram poucos sobreviventes. Acredito que a situação é pior do que ele descreve. Chegou o momento de parar de brincar. — Os olhos de Rhombur adquiriram uma expressão mais dura, como a que Leto tinha visto em Dominic Vernius durante a revolta —. Quero enviar armas mais potentes, para mudar a situação atual.

Leto tomou outro longo gole de cerveja.

— Farei o que estiver ao meu alcance, dentro de limites razoáveis, para ajudar a recuperar o que é seu; sempre lhe disse isso. No que está pensando?

— Eu gostaria de enviar explosivos, como os discos de plaz que guarda em seu arsenal. São pequenos e pesam pouco, podem ser disfarçados e enviados com facilidade.

— Quantos?

Rhombur não vacilou.

— Mil.

Leto assobiou.

— Isso provocará uma grande destruição.

— Er, esse é o objetivo, Leto.

O duque continuou guiando o barco para a boca do rio.

— E como pensa em entregar esses fornecimentos a IX? Seus amigos contrabandistas podem fazê-los chegar as mãos de C'tair sem que os interceptem?

— Os tleilaxu tomaram o controle há dezesseis anos. Voltam a enviar carregamentos com regularidade, utilizando seus próprios transportes e permissões especiais da Corporação. Foram obrigados a relaxar suas restrições, porque dependem de fornecedores externos para obter materiais brutos e artigos especiais. Todas as naves aterrissam nas plataformas rochosas do cânion do porto de entrada. As grutas ocas são grandes o bastante para albergar fragatas de carga, e os túneis se cruzam com as cidades subterrâneas. Alguns dos capitães de fragata serviram com meu pai há muito tempo, e ofereceram, er, sua ajuda.

Leto pensou no conde de IX, calvo e temperamental, que combatera ao lado de Paulus Atreides durante a revolta de Ecaz. Graças à reputação de seu pai como herói de guerra, Rhombur devia ter mais aliados secretos dos que suspeitava.

— Podemos preparar contêineres marcados de uma forma especial e avisar C'tair. Acredito que... poderemos burlar todos os postos de controle. — Enfurecido de repente, descarregou seu punho sobre o banco de madeira —. Infernos vermelhos, Leto, tenho que fazer algo! Estou a quase metade da minha vida sem pisar em meu planeta natal.

— Se outra pessoa me pedisse isto... — Leto se conteve —. É possível... desde que oculte a cumplicidade da Casa Atreides. — Suspirou —. Antes de tomar a decisão, qual é o segundo favor?

O príncipe parecia mais nervoso que antes.

— Pensei muito sobre como pedir isto, e não encontrei palavras precisas. Todo me parecia muito, er, falso e manipulador... mas preciso dizer —. Respirou fundo —. É sobre minha irmã.

Leto, que estava a ponto de abrir uma segunda cerveja, parou bruscamente. Seu rosto se escureceu.

— Algumas coisas são questões privadas, até para você, Rhombur.

O príncipe lhe dedicou um sorriso compassivo. Desde que tinha tomado uma Bene Gesserit como concubina e amiga, sua prudência tinha aumentado.

— Vocês se distanciaram, embora não seja culpa de ninguém. Aconteceu, simples assim. Sei que ainda ama minha irmã, e não tente negá-lo. Fez muito pela Casa Atreides, deu sua ajuda à contabilidade e aos assuntos comerciais. Meu pai sempre dizia que era o membro da família com maior instinto para os negócios.

— Seus conselhos sempre eram acertados — disse Leto, ao mesmo tempo em que meneava a cabeça com tristeza —. Mas desde que Chiara chegou, exige cada vez mais ornamentos e enfeites. Mesmo quando os concedo, Kailea parece insatisfeita. Não é... a mesma mulher por quem eu me apaixonei.

Rhombur bebeu de sua cerveja e fez uma careta ao sentir seu gosto amargo.

— Talvez porque deixou de lhe dar oportunidades, deixou de utilizar sua intuição para os negócios. Coloque-a a frente de alguma indústria, melões paradan, arroz pundi, jóias coralinas, e verá como aumenta a produção. Não sei até onde poderia ter chegado se IX não tivesse sido invadido.

Leto afastou a garrafa.

— Ela te pediu que fizesse isto?

— Leto, minha irmã é uma mulher estranha, e peço isso como amigo, além de como seu irmão. — Rhombur afastou seu cabelo loiro —. Conceda a Kailea a oportunidade de ser algo mais que uma concubina.

Leto olhou para o príncipe exilado, e ficou tão rígido como uma estátua.

— Quer que me case com ela?

Rhombur nunca tinha utilizado sua amizade para pedir uma solução para um problema, e nem sequer tinha passado pela cabeça de Leto negar algo a seu amigo. Mas isto...

Rhombur mordeu o lábio inferior e assentiu.

— Sim, er, suponho que isso é o que estou pedindo.

Os dois guardaram silêncio, enquanto o bote balançava. Uma enorme barcaça atravessou o delta em direção aos moles.

Leto espremeu os miolos, e chegou por fim a uma difícil decisão. Respirou fundo.

— Concederei um favor... você tem que escolher qual.

Rhombur engoliu em seco, observou a expressão angustiada de Leto. Ao fim de um momento afastou a vista. Quando ergueu os ombros, Leto não sabia muito bem o que ia dizer. Colocara-o entre a espada e a parede.

Por fim, o príncipe exilado de IX respondeu com a voz tremula.

— Nesse caso, escolho o futuro do meu povo, cuja importância você me ensinou. Necessito desses explosivos. Confio que C'tair Pilru fará um bom uso deles.

Inclinou-se para frente e bebeu um gole da cerveja Harkonnen. Depois apertou o antebraço de Leto.

— Se aprendi algo com os Atreides, é que o povo é o principal, antes dos desejos pessoais. Kailea terá que compreender isso também.

O duque desviou o bote para o canal do rio, em direção às barcaças adornadas com cintas verdes que ondeavam à brisa. Havia gente reunida nos moles, carregando sacos de grãos de Caladan. Subiam carretas junto à borda do rio, enquanto chegavam barcos dos campos alagados. Alguém lançou foguetes ao ar, que chisparam e explodiram coloridos nos céus nublados.

Leto estacionou o bote junto a uma barcaça já carregada, que estava a ponto de zarpar. Um grande estrado decorativo, rodeado de bandeirinhas verdes e brancas, o esperava.

Leto esqueceu sua discussão com Rhombur, assumiu uma expressão nobre e desfrutou das festividades. Era um de seus deveres tradicionais como duque Atreides.

 

Os fatos não significam nada quando estão nublados pelas aparências. Não subestime o poder da aparência sobre a realidade.

Príncipe herdeiro RAPHAEL CORRINO

Os rudimentos do poder.

 

O barão Harkonnen subiu coxeando ao balcão da torre mais alta da fortaleza familiar, que dominava o caos de Harko City. Apoiou-se em sua bengala com o cabo em forma de cabeça de verme de areia, e o odiou.

Não obstante, sem a bengala não podia se mover.

Malditas sejam as bruxas e o que me fizeram! Nunca tinha parado de pensar em como se vingaria, mas como tanto a Irmandade como a Casa Harkonnen possuíam informação para chantagear-se mutuamente, nenhum podia atacar de maneira aberta ao outro.

Tenho que encontrar uma forma mais sutil.

— Piter De Vries! — gritou a qualquer que pudesse ouvi-lo —. Chamem meu Mentat!

De Vries sempre estava à espreita perto dele, espiando, maquinando. O barão só precisava gritar, e o Mentat pervertido o ouvia. Se os outros o obedecessem tão bem... Rabban, a madre superiora, ou mesmo aquele presunçoso médico Suk...

Tal como esperava, o homem se aproximou nas pontas dos pés, como se se movesse sobre membros de borracha. Carregava um pacote fechado nos braços, bem a tempo. Os engenheiros do barão tinham prometido resultados, e todos sabiam que os esfolaria vivos se falhassem.

— Seus novos suspensores, meu barão. — De Vries fez uma reverência e estendeu o pacote para o enorme vulto do seu amo —. Se os colocar ao redor da cintura, diminuirão o peso de seu corpo e permitirá que se mova com liberdade incomum.

O barão abriu o pacote com suas mãos gorduchas.

— A liberdade de que gozava antes.

Dentro, encaixados em uma correia, havia pequenos globos suspensores autônomos, cada um provido de sua própria fonte de alimentação. Embora não acreditava que enganasse ninguém, ao menos o cinturão suspensor ajudaria a ocultar a gravidade de sua enfermidade. E conseguiria intrigar alguns...

— Talvez seja necessário um pouco de prática antes de utilizá-los...

— Farão que me sinta ágil e são de novo.

O barão sorriu quando sustentou os suspensores diante dele, e depois colocou o cinturão ao redor da cintura, grotescamente torcida. Como seu estômago crescera tanto? Conectou os globos de um em um. A cada novo zumbido, sentia que o peso abandonava seus pés, articulações, ombros.

— Ahhhhh!

O barão deu um longo passo e saltou pela habitação como alguém que estivesse explorando um planeta de pouca gravidade.

— Olhe, Piter! Ja, ja! — Aterrissou sobre um pé, saltou no ar de novo, e chegou quase até o teto. Riu, saltou de novo e girou sobre seu pé esquerdo como um acrobata —. Isto é muito melhor.

O Mentat ficou junto à porta, com um sorriso satisfeito.

O barão aterrissou de novo e moveu a bengala de um lado para outro com um som sibilante, como um esgrimista.

— Exatamente o que eu esperava.

Descarregou a bengala com força sobre a superfície da mesa.

— É possível que demore um pouco para se acostumar com os ajustes, meu barão. Não abuse de suas forças — advertiu o Mentat, sabendo de que o barão faria justo o contrário.

O barão Harkonnen, com os andar de um bailarino gordo, cruzou a habitação e deu umas palmadas paternais nas bochechas de um estupefato Piter De Vries, para depois encaminhar-se para o balcão.

Enquanto De Vries observava os imprudentes movimentos do homenzarrão, fantasiou que o barão calculava mal seus saltos e saltava pela borda da torre no vazio. Oxalá.

Os suspensores suavizariam um pouco sua queda, mas só podiam diminuir o peso enorme. O barão se estatelaria no longínquo pavimento a uma velocidade um pouco diminuída, mas de qualquer modos se esborracharia contra o asfalto. Uma bonificação inesperada.

Como De Vries era o responsável por fiscalizar as diferentes posses da família, inclusive os armazéns secretos de especiaria como o de Lankiveil, o falecimento do barão lhe permitiria aposentar-se com a propriedade. O idiota do Rabban nem sequer desconfiaria.

Talvez um empurrão na direção adequada...

Mas o barão se segurou ao corrimão do balcão e deu alguns saltos entusiasmados. Contemplou as ruas invadidas pela fumaça e os extensos edifícios. O aspecto da metrópole era negro e imundo, edifícios industriais e torre administrativas que tinham suas raízes em Giedi Prime. Além da cidade havia povoados agrícolas e mineiros ainda mais sujos, lugares miseráveis que quase não valia a pena meter na cintura. Abaixo, como piolhos que rastejando pelas ruas, os trabalhadores formigavam entre turno e turno de trabalho.

O barão ergueu a bengala.

— Não preciso mais disso.

Deu um último olhar para as fauces chapeadas do simbólico verme de areia, percorreu com os dedos a madeira polida da bengala e a jogou no vazio.

Inclinou-se sobre o corrimão para vê-lo cair na rua, com a esperança infantil de que golpearia alguém na cabeça.

Flutuando graças aos globos do cinturão, o barão voltou para a habitação principal, onde um decepcionado De Vries olhava para a beira do balcão. O Mentat sabia que nunca poderia conspirar contra o barão, pois seria descoberto e executado. O barão poderia obter outro Mentat dos Bene Tleilax quando quisesse, talvez até mesmo um novo ghola de Piter De Vries, criado a partir de suas células mortas. Sua única esperança residia em um acidente fortuito... ou na aceleração dos efeitos da enfermidade Bene Gesserit.

— Agora nada poderá me deter, Piter — disse o barão, muito satisfeito —. É melhor que o Império tome cuidado com o barão Vladimir Harkonnen.

— Sim, suponho que sim — disse o Mentat.

 

Se te render, já está perdido. Se se recusa a ceder, apesar das probabilidades em contrário, ao menos triunfou em tentar.

Duque Paulus Atreides

Se queria resgatar sua irmã, Gurney Halleck tinha que agir sozinho.

Traçou seus planos com supremo cuidado durante dois meses, temeroso de fazer qualquer movimento, sabendo que Bheth sofria a cada momento, cada noite. Mas seu projeto estava condenado ao fracasso se não levasse em conta todas as possibilidades. Obteve mapas toscos de Giedi Prime e desenhou sua rota para o monte Ebony. Lhe pareceu muito muito longe, mais do que tinha viajado em toda sua vida.

Estava tenso, temeroso de que os aldeãos reparassem em suas atividades, mas passavam os dias com a cabeça baixa. Até seus pais falavam pouco com ele, sem perceber seu estado de ânimo, como se seu filho tivesse desaparecido junto com sua filha.

Por fim, mais preparado que nunca, Gurney esperou ao anoitecer. E então, simplesmente, se foi.

Com um saco de tubérculos krall e verduras pendurado em um ombro, e uma faca ao cinto, atravessou os campos. Escondeu-se das estradas e patrulhas, dormia de dia e viajava à luz da lua. Duvidava que o perseguissem. Os aldeãos de Dmitri suporiam que o rapaz problemático teria sido sequestrado em plena noite por torturadores Harkonnen. Com sorte, até teriam medo de denunciar seu desaparecimento.

Em várias noites Gurney conseguiu subir em transportes de carga automáticos que se arrastavam para o oeste, na direção correta. Suas formas volumosas levitavam sem parar durante toda a noite. Os transportes o transportaram por centenas de quilômetros, permitiram-lhe descansar, meditar e esperar até que encontrasse o recinto militar.

Escutava durante horas o ruído dos motores suspensores que conduziam produtos ou minerais aos centros de processamento. Sentia falta do seu baliset, que fora obrigado a abandonar em casa, porque era muito grande para acompanhá-lo. Quando tinha o instrumento, apesar de todas as suas desgraças, ainda podia compor música. Sentia falta daqueles tempos. Agora, só cantarolava para si mesmo.

Por fim, viu o cone do monte Ebony, os restos ermos e enegrecidos de um vulcão, cujas paredes se quebraram em ângulos agudos. A rocha era negra, como se estivesse coberta de alcatrão.

O recinto militar era um labirinto de edifícios, todos quadrados, sem o menor adorno. Parecia um formigueiro instalado sobre a montanha, longe dos poços de escravos e das minas de obsidiana. Entre os poços de escravos cercados com cercas e o acampamento militar, estendia-se um sem-fim de edifícios, instalações de apoio, pousadas e um pequeno bordel destinado à diversão das tropas Harkonnen.

Até o momento, Gurney tinha passado desapercebido. Os amos Harkonnen não poderiam conceber que um trabalhador braçal pisoteado, com pouca educação e recursos, pudesse ousar espionar as tropas com um objetivo pessoal em mente.

Mas tinha que entrar no lugar onde Bheth estava cativa. Gurney se escondeu e esperou, observou o recinto militar e tentou riscar um plano. Lhe ocorreram poucas alternativas.

De qualquer modo, não ia permitir que isso o detivesse.

Um homem de origem humilde e analfabeta não podia confiar em fazer-se passar por alguém que vivesse no recinto, de modo que Gurney não podia entrar no bordel. Decidiu-se por um ataque ousado. Agarrou um tubo de metal roubado de uma pilha de refugia e segurou a faca na outra mão. Sacrificaria o sigilo em troca da velocidade.

Precipitou-se por uma porta lateral do bordel e correu para o administrador, um ancião aleijado sentado uma cadeira em frente a mesa de recepção.

— Onde está Bheth? — gritou o intruso, surpreso por escutar sua voz depois de tanto tempo. Apoiou a ponta da faca sob o queixo do homem —. Bheth Halleck, onde está?

Gurney vacilou um momento. E se nos bordéis Harkonnen as mulheres não tinham nome? O velho, tremulo, viu a morte nos olhos chamejantes de Gurney, e nas cicatrizes em sua rosto.

— Habitação vinte e uma — grasnou.

Gurney arrastou o administrador, com cadeira e tudo, até um armário, onde o prendeu. Depois, correu pelo corredor.

Vários clientes mal-encarados olharam para ele, alguns meio vestidos com uniformes Harkonnen. Ouviu gritos e golpes atrás das portas fechadas, mas não tinha tempo de investigar as atrocidades. Sua mente estava concentrada em uma única coisa: habitação vinte e uma. Bheth.

Sua visão se reduziu a um ponto de luz, até que localizou a porta. Sua audácia lhe tinha ganho um pouco de tempo, mas não demorariam para chamar os soldados Harkonnen. Não sabia com que rapidez poderia tirar Bheth e esconder-se. Juntos, atravessariam correndo a paisagem e desapareceriam nos terrenos ermos. Depois, não sabia para onde iriam.

Não podia pensar. Só sabia que devia tentar.

O número estava escrito sobre o dintel em galach imperial. Ouviu ruído dentro. Gurney utilizou seu braço musculoso e arremeteu contra a porta. estilhaçou-se na ombreira e cedeu com um forte estrondo.

— Bheth!

Lançou um rugido selvagem e irrompeu na habitação mal iluminada, com a faca em uma mão e a clava de metal na outra.

A jovem soltou um grito afogado da cama. Gurney se voltou e viu que estava presa com finos cabos metálicos. Tinham esfregado uma graxa espessa sobre seus seios e na parte inferior de seu corpo, como pintura de guerra, e dois soldados Harkonnen nus interromperam suas atividades como serpentes prontas a dar o bote. Os dois homens seguravam ferramentas de formas estranhas, uma das quais soltava faíscas.

Gurney não quis imaginar o que estavam fazendo, obrigou-se a não pensar nas torturas sádicas que Bheth sofria diariamente. Seu rugido se transformou em um grito estrangulado na garganta quando a viu, e ficou paralisado por causa do estupor. A visão da humilhação de sua irmã, o espetáculo trágico do que lhe tinha acontecido durante os quatro anos transcorridos, condenou ao fracasso sua intenção de resgatá-la.

Vacilou por um instante, boquiaberto. Bheth tinha mudado muito, tinha o rosto gasto e envelhecido, o corpo magro e arroxeado... tão diferente da moça de dezessete anos que tinha conhecido. Durante a fração de segundo que Gurney permaneceu imóvel, seu ritmo enfurecido se deteve.

Os soldados Harkonnen aproveitaram esse instante para saltar da cama e cair sobre ele.

Mesmo sem manoplas, botas ou armadura, os homens o derrubaram à força de golpes. Sabiam onde deviam golpear. Um dos homens apoiou um aparelho que jogava faíscas contra sua garganta, e todo seu flanco esquerdo ficou paralisado. Agitou-se de forma incontrolável.

Bheth só podia emitir sons sem palavras, enquanto tentava libertar-se dos cabos que a sujeitavam à cama. Gurney reparou em uma cicatriz larga e fina que desenhava uma linha branca ao longo de sua garganta. Não tinha laringe.

Gurney não pôde vê-la quando sua visão se tingiu de púrpura. Ouviu passos pesados e gritos que ressoavam nas paredes. Reforços. Não podia levantar-se.

Compreendeu que tinha fracassado. Eles o matariam, e provavelmente assassinariam Bheth. Se não tivesse vacilado. Aquele instante de hesitação o derrotara.

Um dos homens olhou para ele com uma expressão de fúria. Escorria saliva por um canto da sua boca, e seus olhos azuis, que talvez tivessem sido belos em outro tempo, quando era outra pessoa, olharam-no com ódio. O guarda tomou a faca e o tubo metálico das mãos inertes de Gurney, e os sustentou no alto. Sorridente, o soldado Harkonnen atirou a faca a um lado mas conservou o tubo.

— Sabemos para onde enviá-lo, rapaz — disse.

Ouviu o estranho sussurro de Bheth uma vez mais, mas ela não conseguiu formar as palavras.

Então, o guarda descarregou o tubo metálico sobre a cabeça de Gurney.

 

Os sonhos são tão simples ou complicados como o sonhador.

Liet-Kynes

Seguindo os passos do meu pai.

Enquanto homens armados conduziam os dois jovens fremen para o esconderijo no interior da geleira, Liet-Kynes refreou sua língua. Estudava detalhes, tentava compreender quem eram aqueles fugitivos. Seus puídos uniformes púrpura e cobre pareciam imitar um estilo militar.

Os túneis tinham sido escavados em paredes de pó cimentado com permafrost e forrados com um polímero transparente. O ar era frio o bastante para que Liet pudesse ver seu fôlego, um dramático aviso da quantidade de umidade que seus pulmões perdiam cada vez que respirava.

— Bem, vocês são contrabandistas? — perguntou Warrick. A princípio tinha a vista cravada no chão pela vergonha de ter sido capturado com tanta facilidade, mas depois se sentiu intrigado e olhou ao redor.

Dominic Vernius observou-os enquanto andavam.

— Contrabandistas... e algo mais, rapazes. Nossa missão vai mais à frente do simples lucro e egoísmo.

Não parecia irritado. Sob o bigode, brilhantes dentes brancos brilharam em um sorriso sincero. Seu rosto projetava franqueza, e sua calva brilhava como madeira polida. Seus olhos cintilavam com algo levemente aparentado com o bom humor, mas o que teria podido ser uma personalidade bondosa guardava agora um vazio, como se lhe tivessem roubado uma grande parte de seu ser e a tivessem substituído por algo muito inferior.

— Não está dando muitas informações, Dom? — perguntou um homem com a cara picada de varíola, e cuja orelha direita tinha ficado reduzida a uma cicatriz —. Sempre fomos apenas nós, que demonstramos nossa lealdade com sangue, sem forasteiros. Não é, Asuyo?

— Não posso dizer que confio nos fremen menos que nesse Tuek, mas fazemos negócios com ele, não é? — disse outro dos homens, um veterano magro com um arbusto de cabelo grisalho. Sobre seu belo uniforme usado tinha acrescentado velhas insígnias de fila e algumas medalhas —. Tuek vende água, mas é muito... untuoso.

O contrabandista calvo continuou internando-se no complexo sem se deter.

— Johdam, estes meninos nos encontraram sem que eu lhes mostrasse nada. Fomos descuidados. Alegre-se de que sejam fremen, em vez de Sardaukar. Os fremen não amam o Imperador mais que nós, não é, rapazes?

Liet e Warrick se olharam.

— O imperador Shaddam está muito longe, e não sabe nada sobre Duna.

— Tampouco sabe nada de honra. — Uma tempestade cruzou o rosto do homem, mas se acalmou e mudou de assunto —. Ouvi dizer que o planetólogo imperial se integrou na comunidade nativa, que se transformou em um fremen e fala de transformar o planeta. Isso é verdade? Shaddam apóia essas atividades?

— O imperador desconhece nossos planos ecológicos.

Liet ocultou sua verdadeira identidade, não disse nada de seu pai e se apresentou com seu outro nome.

— Meu nome é Weichih.

— Bem, é estupendo ter sonhos grandiosos, impossíveis. — Dominic pareceu ausente por alguns segundos —. Todos os temos.

Liet não estava seguro sobre que ele se referia.

— Por que se escondem aqui? Quem são vocês?

Os outros esperaram por Dominic.

— Faz quinze anos que estamos aqui, e esta é só uma de nossas bases. Temos uma mais importante em outro planeta, mas ainda sinto fragilidade em nosso primeiro esconderijo em Arrakis.

Warrick assentiu.

— Você criou seu próprio sietch.

Dominic se deteve ante uma entrada onde largas janelas de plaz apareciam de um profundo abismo entre os altos penhascos. No fundo liso da fissura, uma frota de naves diferentes estavam estacionadas em estrita ordem. Ao redor de um iate, pequenas figuras se apressavam a embarcar caixas antes de se afastar.

— Temos algumas comodidades a mais que em um sietch, rapaz, e um aspecto mais cosmopolita. — Examinou os dois fremen —. Mas temos que defender nossos segredos. O que lhes deu a pista? Por que vieram aqui? Como descobriram nossa camuflagem?

Quando Warrick foi falar, Liet o interrompeu.

— E o que receberemos em troca de contar?

— Suas vidas, não é? — grunhiu Asuyo.

Liet negou com a cabeça.

— Poderiam nos matar depois de termos explicado todos os erros que cometeram. São foragidos, não fremen. Por que deveria confiar em sua palavra?

— Foragidos? — Dominic deu uma gargalhada amarga —. As leis do Império causaram mais danos que a traição de uma só pessoa... salvo talvez a do próprio Imperador. O velho Elrood, e agora Shaddam. — Seus olhos atormentados pareciam desfocados —. Malditos Corrino... — afastou-se um passo das janelas —. Não estão pensando em me denunciar aos Sardaukar, não é, rapazes? Tenho certeza de que há uma recompensa incrível por minha cabeça.

Warrick olhou para seu amigo. A expressão de ambos os era perplexa.

— Nem sequer sabemos quem é, senhor.

Alguns contrabandistas riram. Dominic exalou um suspiro de alívio e depois mostrou um brilho de decepção. Inchou o peito.

— Fui um herói da Revolta Ecazi, casei-me com uma das concubinas do Imperador. Fui derrubado quando invasores conquistaram meu planeta.

A política e a imensidão do Império eram temas que a experiência fremen de Liet não alcançava. De vez em quando, ansiava viajar a outros planetas, embora duvidasse que algum dia tivesse a oportunidade.

O homem calvo golpeou as paredes forradas de polímero.

— Estar dentro destes túneis sempre me recorda IX... — Sua voz, melancólica e oca, emudeceu —. Por isso escolhi este lugar, por isso sempre volto da outra base.

Dominic emergiu de seu sonho, surpreso de ver seus companheiros contrabandistas.

— Asuyo, Johdam, levaremos estes meninos ao meu escritório particular. — Olhou para os dois jovens com um sorriso irônico —. Foi construído como uma imitação de uma câmara do Grande Palácio, tal como eu a recordava. Não tive tempo de pegar os planos quando fugimos.

O calvo os precedeu enquanto recitava a história de sua vida, como se fosse o texto de um videolivro de história.

— Minha esposa foi assassinada pelos Sardaukar. Meu filho e minha filha vivem exilados em Caladan. A princípio, dirigi um ataque contra IX e quase perdi a vida. Perdi muitos de meus homens, e Johdam conseguiu me tirar vivo por pouco. Depois disso vivo na clandestinidade, fazendo o que posso para prejudicar esses insetos, o imperador Padishah e os renegados do Landsraad que me traíram.

Atravessaram hangares de armazenamento, onde havia todo tipo de máquinas em diversas fases de reparação ou soldagem.

— Mas meus esforços não passam de vandalismo, destruir monumentos dos Corrino, desfigurar estátuas, ridicularizar o Imperador... enfim, ser uma moléstia constante para Shaddam. Claro que com sua nova filha Josifa, já são quatro filhas e nenhum herdeiro, tem mais problemas dos que eu posso lhe causar.

Johdam grunhiu.

— Causar problemas aos Corrino se transformou em nossa maneira de viver.

Asuyo coçou seu cabelo grisalho e falou com voz rouca.

— Todos devemos a vida ao conde Vernius muitas vezes, e não vamos permitir que nada lhe aconteça. Renunciei a meu cargo, a meus ganhos, inclusive a uma patente decente no exército imperial, para me unir a este grupo heterogêneo. Não permitiremos que cachorrinhos fremen revelem nossos segredos, não é?

— Podem confiar na palavra de um fremen — disse Warrick, indignado.

— Mas não demos nossa palavra — disse Liet com olhos entreabertos —. Ainda.

Chegaram a uma habitação repleta de belos adornos, mas sem ordem alguma, como se um homem sem cultura tivesse reunido os objetos que podia recordar, embora não combinassem uns com os outros. Moedas de ouro falso transbordavam de arcas, de modo que a habitação parecia a cova do tesouro de piratas. O trato indiferente proporcionado às peças comemorativas, gravadas com a efígie de Shaddam em uma cara e o Trono do Leão Dourado na outra, produzia a impressão de que o homem calvo não sabia o que fazer com todo o dinheiro que tinha roubado.

Dominic afundou uma mão calosa em uma terrina de esferas esmeralda brilhantes, cada uma do tamanho de uma unha pequena.

— Pérolas musgosas de Harmonthep. Shando gostava muito delas, dizia que a cor era de um tom de verde perfeito.

Ao contrário de Rondo Tuek, o calvo não parecia sentir prazer em seus objetos valiosos particulares, mas extraía consolo das lembranças que lhe traziam.

Depois de despedir Johdam e Asuyo, Dominic Vernius se sentou em uma cadeira acolchoada púrpura, e ofereceu almofadões no lado oposto da mesa baixa a seus visitantes. Cores que iam do escarlate ao púrpura corriam como riachos sobre a superfície polida da madeira.

— Madeira de sangue polido. — Dominic repicou sobre a mesa com os nódulos, e uma explosão de cor se espalhou sobre a superfície —. A seiva ainda flui quando alguma luz cálida a esquenta, mesmo anos depois que a árvore foi destruída.

Olhou para as paredes. Vários desenhos toscos de pessoas pendiam em molduras caras, como se Dominic os tivesse desenhado com boa memória mas pouco talento artístico.

— Meus homens lutaram comigo nos bosques de árvores de sangue de Ecaz. Matamos muitos rebeldes, ateamos fogo a sua base oculta no bosque. Vocês viram Asuyo e Johdam. Eram dois de meus capitães. Johdam perdeu seu irmão naqueles bosques... — Respirou fundo. — Isso foi quando derramava sangue pelo imperador de bom grado, quando jurei lealdade a Elrood IX e esperei uma recompensa em troca. Ofereceu-me tudo que eu desejasse, e fiquei com a única coisa que o enfureceu.

Dominic introduziu a mão em uma panela vidrada cheia de moedas de ouro comemorativas.

— Agora faço tudo que posso para irritar o imperador.

Liet franziu o cenho.

— Mas Elrood está morto a muitos anos, desde que eu era um bebê. Shaddam IV se senta agora no Trono do Leão Dourado.

Warrick se acomodou ao lado de seu amigo.

— Não nos chegam muitas notícias do Império, mas isso ao menos sabemos.

— Shaddam é tão mau como seu pai. — Dominic brincava com várias moedas de ouro falso, que tilintavam ao entrechocar-se. Sentou-se muito rígido, como se de repente se deu conta dos muitos anos transcorridos, do tempo que estava escondido —. Muito bem, escutem. Estamos indignados e ofendidos por sua irrupção. Dois garotos... Quantos anos têm, dezesseis? — Um sorriso enrugou as bochechas de Dominic —. Meus homens se sentem envergonhados de que tenham nos descoberto. Eu gostaria muito que saíssem e nos mostrassem o que observaram. Digam seu preço, e lhes será concedido.

A mente de Liet analisava os recursos e habilidades daquele grupo. Havia tesouros por toda parte, mas nenhum deles podia utilizar ninharias como as pérolas verdes. Algumas ferramentas e máquinas podiam ser úteis...

Precavido e pensando nas conseqüências, Liet fez algo muito fremen.

— Concordaremos, Dominic Vernius, mas com a condição de deixarmos em suspense nosso pagamento. Quando desejarmos receber algo de você, pedirei, assim como Warrick. Por enquanto mostraremos a seus homens como tornar o esconderijo invisível. — Liet sorriu —. Até mesmo para olhos fremen.

Bem agasalhados, os contrabandistas seguiram os dois jovens, enquanto estes indicavam os rastros mau apagados, a descoloração da parede glacial, as trilhas muito óbvias que subiam o penhasco rochoso. Mesmo quando os fremen apontaram estes detalhes, alguns dos contrabandistas não viram o que era tão evidente para eles. Mesmo assim, Johdam franziu o sobrecenho e prometeu que efetuaria as mudanças sugeridas.

Dominic Vernius meneou a cabeça, assombrado.

— Por mais medidas de segurança que tome, sempre há uma forma de ser invadido. — Apertou os lábios —. Gerações de planejadores tentaram isolar IX à perfeição. Só nossa família real compreendia o sistema global. Que esbanjamento monumental de esforços e Solaris! Supunha-se que nossas cidades subterrâneas eram inexpugnáveis, e descuidamos da segurança. Assim como estes homens.

Deu tapinhas nas costas de Johdam. O veterano de cara picada pela varíola enrugou a testa e voltou ao trabalho.

O homem calvo suspirou outra vez.

— Ao menos, meus filhos se salvaram. — Uma expressão de repugnância se desenhou em seu rosto —. Malditos sejam os asquerosos tleilaxu e maldita seja a Casa Corrino!

Cuspiu no chão, o que surpreendeu Liet. Entre os fremen, cuspir (oferecer a água do corpo) era um gesto respeitoso que só se dedicava a poucos escolhidos. Mas Dominic Vernius utilizara o gesto como uma maldição.

Estranhos costumes, pensou Liet.

O calvo olhou para os dois fremen.

— É muito provável que minha principal base extraplanetaria sofra das mesmas deficiências. — aproximou-se mais —. Se algum de vocês desejasse me acompanhar, poderiam inspecionar as outras instalações. Visitamos Salusa Secundus de forma regular.

Liet se animou.

— Salusa? — Recordava que seu pai tinha contado histórias de sua infância no planeta —. Me disseram que é um planeta fascinante.

Johdam, que estava trabalhando perto, soltou uma gargalhada de incredulidade. Esfregou a cicatriz da sobrancelha.

— Não parece mais a capital do Império, certamente.

Asuyo assentiu com a cabeça.

Dominic deu de ombros.

— Sou o líder de uma Casa renegada, e jurei lutar contra o Império. Salusa Secundus me pareceu um bom lugar para me esconder. Quem pensaria em me procurar em um planeta prisão, submetido a mais estrita segurança do imperador?

Pardot Kynes tinha falado do terrível desastre salusano causado pela rebelião de uma família nobre não identificada. Depois de ter sido declarada renegada, tinha lançado armas atômicas proibidas sobre o planeta capital. Alguns membros da Casa Corrino tinham sobrevivido, entre eles Hassik III, que havia reconstruído a dinastia e restaurado o governo imperial em um novo planeta, Kaitain.

Pardot Kynes estava menos interessado na história ou na política que na ordem natural das coisas, como o holocausto tinha transformado um paraíso em inferno. O planetólogo afirmava que, com investimento suficiente e trabalho duro, Salusa Secundus poderia recuperar seu clima e glória anteriores.

— Algum dia, possivelmente, eu gostaria de visitar um lugar tão... interessante.

Um planeta que tanto impressionou meu pai.

Dominic soltou uma gargalhada estentórea e deu tapinhas nas costas de Liet. Era um gesto de camaradagem, embora os fremen se tocavam em escassas ocasiões, exceto durante os duelos a faca.

— Reze para nunca ter que fazê-lo, rapaz — disse o líder dos contrabandistas —. Reze para nunca ter que fazê-lo.

 

A água é a imagem da vida. Viemos da água, adaptados a partir de sua presença que tudo o abrange... e continuamos nos adaptando.

Planetólogo Imperial Pardot Kynes

— Aqui, os fremen não contam com suas comodidades, lady Fenring — disse Shadout Mapes enquanto trotava sobre suas pernas curtas. Seus passos eram tão precisos e precavidos que nem sequer levantava pó ao cruzar a planície iluminada pela lua. Em contraste com o úmida estufa, a noite seca conservava muito pouco o calor do dia —. Está com frio?

Olhou para a bela loira Margot, que caminhava orgulhosa a frente do sacerdote. Mapes usava o capuz. Os filtros do traje destilador dançavam em frente ao seu rosto, e seus olhos refletiam a luz da Segunda Lua.

— Não estou com frio — Margot limitou-se a dizer. Como só vestia sua bata, ajustou seu metabolismo para compensar a diferença de temperatura.

— Essas sapatilhas de sola fina que — repreendeu o sacerdote — não são adequadas para viajar pelo deserto.

— Vocês não me deram tempo para trocar de roupa. — Como todas as reverendas madres, tinha calos nos pés devido aos exercícios de luta que devia realizar todos os dias —. Se elas se rasgarem, irei descalça.

Os dois fremen acolheram sua serena audácia com um sorriso.

— Caminha a bom passo — admitiu Mapes —. Não é como os outros imperiais repletos de água.

— Posso ir mais depressa se quiserem — disse Margot.

Shadout Mapes tomou suas palavras como um desafio e adotou uma cadência militar, sem forçar a respiração. Margot imitou cada um de seus passos, quase sem suar. Um ave noturna passou sobre suas cabeças com um guincho.

A estrada sem pavimentar saía de Arrakeen em direção ao povoado de Rutii, entre os contrafortes da Muralha Escudo. O pequeno grupo começou a subir, primeiro um suave aclive rochoso, e depois por um íngreme e estreito atalho que bordejava uma imensa zona escorregadia.

Os fremen se moviam com rapidez e segurança nas sombras. Apesar da sua preparação, Margot tropeçou duas vezes no terreno desconhecido, e seus acompanhantes tiveram que sustentá-la, o que pareceu agradá-los.

Duas horas haviam se passado desde que abandonaram a comodidade e segurança da residência de Arrakeen. Margot começou a utilizar suas reservas corporais, mas sem mostrar o menor sinal de fraqueza. Nossas irmãs perdidas seguiram esse caminho?

Mapes e o sacerdote trocavam palavras em um idioma estranho. A memória profunda de Margot lhe revelou que era chakobsa, uma língua falada pelos fremen fazia dúzias de séculos, desde sua chegada a Arrakis. Quando reconheceu uma das frases de Shadout, Margot respondeu.

— O poder de Deus é grande.

Seu comentário pôs nervoso o sacerdote, mas sua companheira sorriu.

— A Sayyadina falará com ela.

O caminho se bifurcou várias vezes, e a mulher fremen guiava a pequena comitiva para cima, depois para baixo, ou em sentido lateral descrevendo ziguezagues, para depois subir de novo. Margot identificou os mesmos lugares à luz da lua, e compreendeu que estavam tentando desorientá-la e confundi-la. Com seus poderes mentais Bene Gesserit, Margot recordaria o caminho de volta até o último detalhe.

Impaciente e curiosa, queria repreender os fremen por aquele exercício tão inútil e aborrecido, mas decidiu não revelar suas habilidades. Depois de anos de espera, seria conduzida a seu mundo secreto, a um lugar proibido aos forasteiros. A madre superiora Harishka iria querer que ela observasse cada detalhe. Talvez Margot obtivesse por fim a informação que procurara durante tanto tempo.

Ao chegar a um saliente, Mapes apertou o peito contra a parede e seguiu um estreito atalho que bordejava um precipício, agarrando-se com os dedos. Margot a imitou sem vacilar. As luzes de Arrakeen cintilavam ao longe, e a aldeia de Rutii se escondia ao pé dos contrafortes.

Quando Mapes se encontrava a vários metros de distância, desapareceu de repente na face rochosa. Margot descobriu a entrada de uma cova, que mal permitia a passagem de uma pessoa. No interior, o espaço se alargava à esquerda, e com a tênue luz viu marcas de ferramentas nas paredes, onde os fremen tinham aumentado a caverna. Densos aromas de corpos sem lavar chegaram ao seu nariz. Shadout fez gestos para que a seguisse.

Quando o sacerdote a alcançou, Mapes abriu o selo de uma porta camuflada, que se abriu para dentro. Ouviram vozes, mescladas com o zumbido de maquinas e os ruídos de muita gente. Globos luminosos, que lançavam uma luz amarelada, flutuavam nas correntes de ar.

Mapes atravessou uma porta coberta de pele e entrou em uma sala onde algumas mulheres manipulavam teares elétricos, para tecer largas mechas de cabelo e algodão do deserto até transformá-los em tecidos. O ar quente estava impregnado de cheiro humano e incenso de melange. Todos os olhos se voltaram para a visitante ilustre.

A sala dos teares se abria para outra estadia, onde um homem cuidava de uma panela metálica suspensa sobre um fogo. A luz das chamas dançou sobre o rosto enrugado de Mapes, e deu de um brilho feroz aos seus olhos azuis. Margot observava tudo, armazenava detalhes para seu relatório posterior. Jamais tinha imaginado que os fremen ocultassem uma população tão numerosa, um povoado tão grande.

Por fim, desembocaram em uma câmara maior, com chão de terra, cheia de plantas do deserto, separadas por trilhas. Reconheceu saguaro, alfafa silvestre, creosote, ervas de pobreza. Todo um terreno de experimentos botânicos!

— Espere aqui, lady Fenring.

Mapes continuou adiante, acompanhada pelo sacerdote. Margot se agachou para examinar os cactos, viu espigas lustrosas, carne firme, novos brotos. Em outra caverna ouviu vozes e cânticos ressonantes.

Percebeu um som tênue, ergueu a vista e viu uma anciã vestida com um hábito negro. A mulher, com os braços cruzados sobre o peito, estava enrugada e magra, tão forte como fio shiga. Usava um colar de aros metálicos cintilantes, e seus olhos escuros pareciam poços escavados em seu rosto.

Algo em seu porte, em sua presença, recordou as Bene Gesserit. Em Wallach IX, a madre superiora Harishka estava se aproximando dos duzentos anos, mas esta mulher parecia ainda mais velha, com o corpo saturado de especiaria, a pele mais envelhecida pelo que pelos anos. Até sua voz era seca.

— Sou a Sayyadina Ramallo. Estamos a ponto de iniciar a Cerimônia da Semente. Una-se a nós, se na verdade é quem diz ser.

Ramallo! Conheço esse nome. Margot avançou, disposta a citar as frases secretas que identificariam seu conhecimento da Missionária Protetiva. Uma mulher chamada Ramallo tinha desaparecido nas dunas um século atrás... a última a desaparecer, de uma série de reverendas madres.

— Agora não há tempo para isso, filha — interrompeu a anciã —. Todos estão esperando. Com sua presença, sentem tanta curiosidade quanto eu.

Margot seguiu a Sayyadina até uma ampla caverna onde se reuniam milhares de pessoas. Nunca tinha imaginado que existisse um recinto tão grande dentro das rochas. Como tinham conseguido evitar a vigilância das constantes patrulhas Harkonnen? Não se tratava de um povoado miserável, mas de toda uma cidade oculta. Os fremen guardavam muitos segredos, assim como grandiosos planos, dos quais Hasimir Fenring suspeitava.

Uma muralha de aromas desagradáveis a assaltou. Alguns fremen vestiam túnicas empoeiradas, e outros traje destiladores, abertos no pescoço. De um lado se erguia o sacerdote que a tinha guiado desde Arrakeen.

Não deixei o menor rastro de minha partida na estufa. Se tiverem a intenção de me matar, ninguém jamais saberá, como aconteceu com as outras irmãs. Margot sorriu para si mesma. Não, se sofrer algum mal, Hasimir os encontrará. Possivelmente os fremen pensavam que seus segredos estavam a salvo, mas não eram rivais dignos do seu conde, caso este concentrasse seus esforços e intelecto em localizá-los.

Talvez os fremen não acreditassem, mas Margot sim.

Quando o último habitante do deserto entrou na caverna, Ramallo pegou a mão de Margot em sua mão robusta.

— Venha comigo.

A Sayyadina a precedeu pelos degraus de pedra que subiam para uma plataforma rochosa, onde se voltou para a multidão.

Fez-se silêncio na caverna, exceto pelo roçar das roupas, como asas de morcego.

Margot, um pouco nervosa, colocou-se junto à anciã. Tenho a sensação de que vou ser a protagonista de um sacrifício. Empregou exercícios de respiração para acalmar-se. Onda atrás de onda de impenetráveis olhos fremen olhavam para ela.

— Shai-Hulud está nos observando — disse Ramallo —. Que os mestres de água se adiantem.

Quatro homens abriram caminho entre a multidão. Cada par levava um pequeno saco de pele entre ambos. Depositaram-nos aos pés de Ramallo.

— Há semente? — perguntou Ramallo.

— Há semente — anunciaram em uníssono. Voltaram-se e desceram.

Ramallo abriu um dos sacos e verteu líquido sobre suas mãos.

— Bendita seja a água e sua semente.

Estendeu as mãos, de onde escorreu um líquido azul, como se as gotas fossem safiras líquidas.

As palavras e a cerimônia surpreenderam Margot, porque se pareciam com a prova de veneno Bene Gesserit, mediante a qual uma irmã se transformava em reverenda madre. Alguns agentes químicos (todos terrivelmente mortíferos) eram utilizados para induzir uma terrível agonia e uma crise mental na irmã. Uma adaptação da Missionária Protetiva? As Bene Gesserit desaparecidas tinham revelado este segredo aos fremen? Nesse caso, que mais o povo do deserto sabia sobre os planos da Irmandade?

Ramallo desenroscou a válvula do saco e o apontou em direção a Margot. Sem vacilar, Margot se ajoelhou e tomou o saco entre suas mãos, mas depois vacilou.

— Se na verdade é uma reverenda madre — sussurrou Ramallo —, beberá esta emanação do Shai-Hulud sem sofrer o menor mal.

— Sou uma reverenda madre — disse Margot —. Já passei antes por isso.

Os fremen mantiveram seu silêncio reverente.

— Nunca passou por isso, filha — corrigiu a anciã —. Shai-Hulud a julgará.

O saco desprendia o aroma familiar da especiaria, mas com um toque amargo. O acre líquido azul parecia ser o emissário da morte. Embora tivesse superado a Agonia para ser uma reverenda madre, Margot quase tinha morrido durante a cerimônia.

Mas podia fazê-lo outra vez.

A seu lado, a Sayyadina desenroscou a válvula do segundo saco. Tomou um gole e virou os olhos.

Não devo temer, pensou Margot. O medo é o assassino da mente... Recitou em sua mente toda a Litania Contra o Medo, e depois chupou a palha, até extrair uma gota. A quantidade de líquido mais ínfima tocou a ponta de sua língua.

Sentiu um sabor repugnante que penetrou até o fundo de seu crânio. Veneno! Seu corpo estremeceu, mas se concentrou em sua química com um supremo esforço, alterou uma molécula aqui, acrescentou ou tirou um radical ali. Teve que empregar todas as suas faculdades.

Margot soltou a válvula. Sua consciência flutuou, e o tempo perdeu sua eterna progressão cósmica. Abandonou seu corpo, suas capacidades Bene Gesserit tomaram o controle e começaram a alterar a química do veneno mortífero. Margot compreendeu o que devia fazer, transformar o produto químico em algo útil, criar um catalisador que transformasse o resto do líquido que os sacos continham...

O sabor se tornou doce em sua boca.

Cada ato de sua vida até aquele momento se estendeu a frente dela como uma tapeçaria. A irmã Margot Rashino-Zea, agora lady Margot Fenring, examinou-se até o último detalhe, cada célula de seu corpo, cada fibra nervosa... cada pensamento que tinha experimentado. No fundo do seu ser, Margot encontrou aquele terrível lugar escuro que nunca podia ver, o lugar que fascinava e aterrorizava todas as de sua espécie. Só o longamente esperado Kwisatz-Haderach podia olhar ali. O Lisan ao-Gaib.

Sobreviverei a isto, pensou.

A cabeça de Margot ressoava como se tivessem golpeado um gongo em seu interior. Viu uma imagem distorcida da Sayyadina Ramallo, que oscilava diante dela. Então, um dos mestres de água avançou e introduziu o extremo da válvula na boca de Margot, recuperou a gota de líquido transformado, e a seguir a introduziu no saco. A anciã soltou a segunda válvula, e outros mestres de água transportaram o veneno transformado de um contêiner para outro, como fogo que se propagasse por campos de erva ressecada.

As pessoas se apinharam ao redor dos sacos para receber gotas da droga catalisada, roçaram seus lábios no líquido.

— Você colaborou em torná-lo possível para eles — disse Ramallo, e de algum modo a consciência de Margot tomou nota de suas palavras.

Que estranho. Aquilo era tão diferente de tudo que tinha experimentado... mas nem tanto, afinal.

Pouco a pouco, como se um sonhador dançasse em sua consciência, Margot sentiu que se reintegrava à câmara de pedra, e a visão induzida pela droga já era apenas uma lembrança imprecisa. Os fremen continuavam tocando as gotas com os dedos, afastavam-se para um lado para que outros compartilhassem o prezado líquido. A euforia se espalhou pela caverna como a luz do amanhecer.

— Sim, em outro tempo fui uma reverenda madre — disse Ramallo por fim —. há muitos anos conheci sua madre superiora.

Margot, ainda aturdida pelas reverberações da poderosa droga, nem sequer pôde demonstrar surpresa, e a anciã assentiu.

— A irmã Harishka e eu fomos companheiras de classe... há muito, muito tempo. Ingressei na Missionária Protetiva e me enviaram para cá com outras nove reverendas mães. Muitas irmãs de nossa ordem se perderam aqui, assimiladas pelas tribos fremen. Outras morreram no deserto. Eu sou a última. A vida é muito dura em Duna, mesmo para uma Bene Gesserit treinada. Mesmo com a melange, que compreendemos e apreciamos de novas maneiras.

Margot cravou a vista nos olhos de Ramallo e viu compreensão neles.

— Sua mensagem falava do Lisan ao-Gaib — disse Ramallo, com voz quebradiça —. Está perto, não é? Depois de tantos milhares de anos.

Margot falou em voz baixa, enquanto os fremen iam se excitando cada vez mais com o ritual.

— Esperamos que dentro de duas gerações.

— Esta gente esperou muito tempo. — A Sayyadina olhou para a euforia que reinava na sala —. Posso lhe revelar segredos Bene Gesserit, filha, mas minha lealdade é dupla. Agora também sou uma fremen, jurei defender os valores das tribos do deserto. Certas confidências não podem ser reveladas a nenhum habitante de outro planeta. Um dia tenho que escolher uma sucessora, uma destas mulheres, sem dúvida.

Ramallo inclinou a cabeça.

— A orgia tau do sietch é um ponto de fusão entre a Bene Gesserit e os fremen. Muito antes de a Missionária Protetiva chegasse aqui, esta gente tinha descoberto o consumo do narcótico iluminador da consciência de formas mais simples e primitivas.

Nas sombras da grande caverna, os fremen se afastavam, juntos e separados, ofuscados pela droga, alguns elevados à paz interior e ao êxtase, outros impulsionados para membros do sexo oposto em uma frenética copulação. Um tecido de realidade pintado de qualquer maneira pousou sobre eles, transformou suas duras vidas em uma imagem onírica.

— Ao longo dos séculos, irmãs como eu os guiaram a seguir novas cerimônias, e adaptamos os velhos costumes fremen às nossas.

— Conseguiste grandes coisas aqui, mãe. Wallach IX se alegrará ao saber.

Enquanto a orgia fremen continuava, Margot experimentou a sensação de que estava flutuando, aturdida e afastada de tudo. A anciã ergueu uma mão semelhante a uma garra paira benzê-la, para entregá-la de novo ao mundo exterior.

— Vá e informe Harishka. — Ramallo desenhou um leve sorriso —. E lhe entregue este presente.

Extraiu um pequeno livro encadernado do bolso de seu hábito.

Margot abriu o volume e leu a página do título: Manual do deserto amigo. Debaixo, em letras menores, rezava: “O lugar transbordante de vida. Aqui se encontram o ayat e o burhan da vida. Acredite, e ao-Lat nunca o queimará.”

— É como o Livro do Azhar — exclamou Margot, surpresa ao ver uma edição adaptada aos costumes fremen —. Nosso Livro dos Grandes Segredos.

— Dê meu exemplar sagrado a Harishka. Ela gostará de saber.

Admirado agora com sua presença, o sacerdote de Rutii acompanhou Margot até a residência de Arrakeen. Chegou pouco antes do amanhecer, justo quando o céu começava a se iluminar com tons suaves, e se meteu na cama. Ninguém, exceto Shadout Mapes, sabia que tinha saído da mansão. Permaneceu acordada durante horas, emocionada...

Vários dias depois, com a mente cheia de perguntas, Margot seguiu o caminho que conduzia à cova, graças ao mapa exato que esboçara em sua cabeça. Subiu o caminho que levava a Bordo Oeste da Muralha, seguiu o estreito rebordo que dava acesso à entrada do sietch. O calor dificultava sua marcha.

Quando entrou nas sombras da cova, descobriu que o selo de porta tinha desaparecido. Passeou pelas câmaras, descobriu que estavam vazias. Nem máquinas, nem móveis, nem gente. Nenhuma prova. Só os aromas...

— Então não confia completamente em mim, Sayyadina... — disse em voz alta.

Margot permaneceu por um longo tempo na caverna onde acontecera a orgia tau. Ajoelhou-se onde tinha consumido a Água de Vida, percebeu os ecos das pessoas que tinham vivido ali por tanto tempo. Tudo desaparecido...

No dia seguinte, o conde Hasimir Fenring retornou de suas inspeções no deserto com o barão Harkonnen. Durante o jantar, satisfeito com sua presença, perguntou a sua adorável esposa o que tinha feito em sua ausência.

— Oh, nada, meu amor — respondeu ela agitando seu cabelo dourado. Roçou sua bochecha com os lábios em um beijo terno —. Cuidei do meu jardim.

Persevero na sagrada presença humana. Como eu, você deveria perseverar um dia. Rogo a sua presença. Que o futuro continue a ser incerto, porque é o tecido que recebe nossos desejos. Assim a condição humana confronta sua perpétua condição. Não possuímos mais que este momento, para nos dedicamos continuamente à sagrada presença que compartilhamos e criamos.

 

— É assim que pomos a prova os humanos, moça.

Atrás da barreira do seu escritório, a reverenda madre Gaius Helen Mohiam parecia uma estranha, com o rosto impenetrável, os olhos negros e desumanos.

— É um desafio que contém a alternativa da morte.

Tensa, Jessica estava de pé diante da Supervisora. Uma garota esquelética com longo cabelo vermelho, em seu rosto se viam as sementes de uma beleza autêntica que não demoraria para florescer. Atrás dela, a acolita que tinha comunicado a ordem da reverenda madre fechou a porta pesada. Ela se fechou com um rangido detestável.

Que tipo de prova me espera?

— Sim, reverenda madre? — Jessica reuniu suas forças e falou com voz serena e firme, enquanto imaginava uma poça pouco profunda de som.

Graças a uma promoção recente, Mohiam adquirira o título de Supervisora Superior da escola Materna de Wallach IX. Mohiam tinha seu próprio escritório particular, com livros antigos em uma vitrine de plaz transparente à prova de umidade. Sobre sua mesa ampla descansavam três bandejas de prata, e cada uma continha um objeto geométrico: um cubo de metal verde, uma pirâmide de um vermelho intenso e uma esfera dourada. As superfícies dos objetos projetavam raios de luz, que ricocheteavam entre si. Por um longo momento, Jessica contemplou a dança hipnótica.

— Precisa me escutar com supremo cuidado, moça, cada palavra, cada inflexão, cada matiz. Sua vida depende disso.

Jessica baixou as pálpebras. Seus olhos verdes se cravaram nos diminutos olhos da outra mulher, pequenos como os de um pássaro. Mohiam parecia nervosa e assustada, mas por que?

— O que é isso?

Jessica apontou para os estranhos objetos na mesa.

— Está curiosa, não é?

Jessica assentiu.

— São aquilo que você acha que são.

A voz de Mohiam era tão seca como o vento do deserto.

Os objetos giravam de maneira sincronizada, de modo que cada um revelou um buraco escuro em sua superfície, um buraco que correspondia em forma com o próprio objeto. Jessica se concentrou na pirâmide vermelha, com sua abertura em forma de triângulo.

A pirâmide começou a flutuar para ela. Isto é real, ou uma ilusão? Arregalou os olhos, paralisada.

As outras duas formas geométricas seguiram à primeira, até que as três dançaram em frente ao rosto de Jessica. Raios brilhantes saltavam e descreviam coloridos arcos espectrais que emitiam estalos quase inaudíveis.

Jessica sentiu curiosidade mesclada com medo.

Mohiam a fez esperar vários segundos, e depois disse com voz seca:

— Qual é a primeira lição? O que lhe ensinaram desde que era uma menina?

— Os humanos nunca devem se comportar como animais, é claro. — Jessica permitiu que uma insinuação de ira e impaciência se filtrasse em sua voz. Mohiam saberia que era de propósito —. Depois de tudo o que me ensinou, supervisora superior, como pode suspeitar que não sou humana? Quando lhe dei motivo...

— Silêncio. As pessoas nem sempre são humanas.

Rodeou o escritório com a agilidade de um gato e olhou para Jessica através da luz cintilante que saltava entre o cubo e a pirâmide.

A moça sentiu um comichão na garganta, mas não tossiu nem falou. Devido a sua experiência com esta instrutora, sabia que havia algo mais.

— Há séculos, durante a Jihad Butleriana, a maioria das pessoas eram simples autômatos orgânicos, que obedeciam as ordens das máquinas pensantes. Oprimidos, nunca questionavam, nunca resistiam, nunca pensavam. Eram gente, mas tinham perdido a faísca que os tornava humanos. Mesmo assim, um núcleo de sua raça resistia. Lutaram, negaram-se a ceder, e com o tempo eles venceram. Só eles recordavam o que era ser humano. Jamais devemos esquecer as lições desses tempos perigosos.

O hábito da reverenda madre rangeu quando se moveu para um lado, e de repente seu braço se moveu com uma velocidade assombrosa, um movimento impreciso. Jessica viu o extremo de uma agulha apontada para sua bochecha, pouco abaixo do olho direito.

A menina não se moveu. Os lábios ressecados de Mohiam formaram um sorriso.

— Conhece o gom jabbar, o inimigo da mão que só mata animais, os que obedecem seu instinto antes da disciplina. Esta ponta está impregnada de metacianureto. A menor espetada, e você morre.

A agulha permanecia imóvel, como se estivesse congelada no ar. Mohiam se aproximou mais do seu ouvido.

— Dos três objetos a sua frente, o primeira é dor, o outro é prazer, e o terceiro é eternidade. A Irmandade utiliza estas coisas de diversas maneiras e combinações. Para esta prova, tem que escolher a que seja mais profunda para você e experimentá-la, se é que se atreve. Não haverá mais perguntas. A prova consiste nisto.

Sem mover a cabeça, Jessica desviou a vista para examinar cada objeto. Utilizou seus poderes de observação Bene Gesserit (e algo mais, cuja origem não pôde determinar) e intuiu prazer na pirâmide, dor na caixa, eternidade na esfera. Jamais tinha se submetido a uma prova como esta, e nunca tinha ouvido falar dela, embora soubesse do gom jabbar, a lendária agulha desenvolvida na antiguidade.

— Esta é a prova — disse a reverenda madre Mohiam —. Se fracassar, eu a espetarei.

Jessica se preparou interiormente.

— E eu morrerei.

Como um abutre, a Supervisora espreitava ao lado da moça, vigiando cada piscada, cada tic. Mohiam não podia permitir que Jessica percebesse sua angústia e medo, mas também sabia que devia realizar a prova.

 

Você não deve falhar, minha filha.

Gaius Helen Mohiam tinha treinado Jessica desde a infância, mas a moça desconhecia seu parentesco, desconhecia sua importância para o programa de reprodução da Irmandade. Desconhecia que Mohiam era sua mãe.

A seu lado, Jessica tinha empalidecido por causa da concentração. O suor brilhava em sua testa. Mohiam estudou as formas geométricas, compreendeu que a moça ainda devia superar vários níveis em sua mente...

Por favor, filha, você tem que sobreviver. Não posso repetir isso. Sou muito velha.

Sua primeira filha do barão era sido fraca e defeituosa. Depois de um terrível sonho profético, Mohiam tinha matado o bebê com suas próprias mãos. Tinha sido uma visão verdadeira, Mohiam estava segura dela. Viu seu lugar na culminação do programa de reprodução milenar da Irmandade. Mas também descobriu, graças a uma surpreendente presciência, que o Império padeceria muita dor e morte, com planetas arrasados, um genocídio quase total... se o programa de reprodução se descarrilasse. Se nascesse a menina inadequada na próxima geração.

Mohiam já tinha assassinado uma de suas filhas, e estava disposta a sacrificar Jessica caso fosse necessário. Melhor matá-la que permitir a explosão de outra terrível Jihad.

A grossura de um cabelo separava a agulha envenenada da pele cremosa de Jessica. A garota tremia.

Jessica, concentrava todas as suas forças, com a vista cravada no horizonte, só via letras em sua mente, a Litania Contra o Medo. Não devo temer. O medo é o assassino da mente. O medo é a pequena morte que provoca a destruição total.

Enquanto aspirava uma profunda baforada de ar para acalmar-se, perguntou-se: Qual escolho? Se tomar a decisão incorreta, morrerei. Compreendeu que devia se aprofundar mais, e como em uma revelação, viu como se posicionavam os três objetos na viagem humana: a dor do nascimento, o prazer de uma vida, a eternidade da morte. Mohiam havia dito que devia escolher o mais profundo. Mas só um? Como podia começar, mas pelo princípio?

Primeiro, a dor.

— Vejo que escolheu — disse Mohiam, ao ver que a moça erguia a mão direita.

Jessica introduziu com cautela a mão no cubo verde, através do buraco aberto em um lado. Imediatamente, sentiu que sua pele queimava, abrasava-se, e seus ossos se enchiam de lava. As unhas dos seus dedos se desprenderam uma a uma, devoradas pelo calor feroz. Jamais em sua vida tinha imaginado tamanha agonia. E continuava aumentando.

Enfrentarei meu medo, e permitirei que passe por mim e através de mim.

Com um esforço supremo, resignou-se a viver sem sua mão e bloqueou os nervos. Se fosse preciso, o faria. Mas então, a lógica se impôs, face à agonia. Não recordava de ter visto irmãs manetas nos corredores da Escola Materna. E se todas as acolitas deviam passar por provas como esta...

Quando o medo tiver passado, não restará nada.

Uma longínqua parte analítica de seu cérebro percebeu que tampouco cheirava a carne queimada, não via fios de fumaça cinza, não ouvia o chiado da gordura ardente na carne em sua mão.

Só eu restarei.

Jessica lutou para controlar seus nervos e bloqueou a dor. Só sentia um frio intumescimento da mão até o cotovelo. Sua mão já não existia. A dor tampouco. Aprofunde mais, aprofunde mais. Momentos depois, já não tinha forma física, separou-se completamente do seu corpo.

Pelo buraco da caixa verde surgiu uma névoa. Parecida com incenso.

— Bem, bem — sussurrou Mohiam.

A névoa, uma manifestação da consciência de Jessica, introduziu-se pelo buraco de uma forma diferente, a entrada da pirâmide vermelha. Uma onda de prazer a invadiu, intensamente estimulante, mas tão assombrosa que mal pôde suportá-la. Tinha ido de um extremo a outro. Tremeu, depois fluiu e ondulou, como a enchente de uma tsunami em um mar imenso. A grande onda subiu cada vez mais...

Mas a névoa de sua consciência, depois de cavalgar sobre a crista de uma onda poderosa, caiu aos tombos por ela...

As imagens desapareceram, e Jessica sentiu as finas sandálias de tecido em seus pés, uma sensação suada e pegajosa de pele contra material, e a dureza do chão que estava abaixo. Sua mão direita... Ainda não podia senti-la, nem tampouco vê-la, nem sequer um coto no extremo do seu punho, porque só seus olhos podiam mover-se.

Olhou para a direita, viu a agulha envenenada junto a sua bochecha, o mortífero gom jabbar, e do outro lado a esfera da eternidade. O pulso de Mohiam era firme, e Jessica fixou sua vista no bicudo extremo prateado, o brilhante ponto central do universo, suspenso como uma estrela longínqua. Uma só espetada, e Jessica entraria na esfera da eternidade, em corpo e mente. Não haveria volta. A moça não sentia dor nem prazer naquele momento, só uma imobilidade intumescida, enquanto aparecia o precipício da decisão.

Compreendeu uma coisa: não sou nada.

— Dor, prazer, eternidade... Tudo me interessa — murmurou Jessica por fim, como de uma grande distância —, pois o que é um sem os outros?

Mohiam percebeu que a moça tinha superado a crise, sobrevivido à prova. Um animal não poderia compreender tais complexidades. Jessica relaxou, estremecida. A agulha envenenada retrocedeu.

Para Jessica, a penosa experiência terminou de repente. Tudo o tinha imaginado, a dor, o prazer, um nada. Toda graças ao controle da mente Bene Gesserit, a tremenda capacidade da Irmandade de dirigir os pensamentos e atos de outra pessoa. Uma prova.

Era certo que sua mão tinha entrado no cubo verde? Se convertera em uma névoa? De um ponto de vista intelectual acreditava que não. Mas quando flexionou os dedos da mão, sentiu que estavam rígidos e doloridos.

Com o hábito cheirando a suor, Mohiam tremeu, e por fim recuperou a compostura. Deu a Jessica um abraço rápido e adotou seu comportamento oficial de costume.

— Seja bem-vinda à Irmandade, humana.

 

Combati em grandes guerras para defender o Império e matei muitos homens em nome do Imperador. Assisti a sessões do Landsraad. Viajei pelos continentes de Caladan. Ocupei-me de todos os tediosos assuntos comerciais necessários para governar uma Grande Casa. E mesmo assim, os melhores momentos foram os que passei com meu filho.

Duque Paulus Atreides.

Quando o navio alado ducal desamarrou e entrou no mar, Leto se ergueu na proa e olhou para o antiquísimo edifício do castelo de Caladan, onde a Casa Atreides tinha governado durante vinte e seis gerações.

Foi incapaz de reconhecer os rostos nas janelas, mas viu uma pequena silhueta em uma janela alta. Kailea. Apesar da sua feroz resistência a que se levasse o pequeno Victor, que ainda não tinha completado dois anos e meio, tinha ido despedir-se à sua maneira silenciosa. Isso animou Leto.

— Posso pegar o leme? — O rosto redondo de Rhombur exibia um sorriso esperançoso. A brisa agitava seu cabelo loiro ingovernável —. Nunca pilotei um navio alado.

— Espere até chegar a mar aberto. — Leto olhou para o príncipe exilado com um sorriso travesso —. Será melhor. Lembra que, em certa ocasião, conseguiu que nos chocássemos contra os recifes.

Rhombur se ruborizou.

— Aprendi muito desde então. Er, bom senso, especialmente.

— É claro que sim. Tessia foi uma boa influência para você.

Quando a concubina Bene Gesserit tinha acompanhado Rhombur aos moles, agarrada ao seu braço, despediu-se dele com um beijo apaixonado.

Em contraste, Kailea tinha se negado a sair do castelo de Caladan para dizer adeus a Leto.

Na popa do navio em forma de V, o pequeno Victor ria, molhava as mãos com a espuma fresca, enquanto o capitão da guarda, Swain Goire, vigiava-o. Goire entretinha o menino, sempre disposto a protegê-lo.

Oito homens acompanhavam Leto e Victor naquela viagem de prazer. além de Rhombur e Goire, levava com ele Thufir Hawat, um par de guardas, um capitão de navio e dois pescadores, Gianni e Dom, com os quais tinha brincado quando era criança. Iriam pescar. Iriam ver os bosques de algas e as ilhas de kelp. Leto mostraria a seu filho as maravilhas de Caladan.

Kailea não queria que o menino abandonasse a proteção das muralhas do castelo, onde não se exporia a nada pior que um resfriado comum ou uma corrente de ar. Leto escutara seus protestos em silêncio, consciente de que a travessia no navio não era a causa real, mas apenas a manifestação do momento. Era o mesmo problema de sempre...

Talvez os comentários em voz baixa de Chiara tivessem convencido Kailea de que Leto era o culpado de sua situação.

“Quero ser algo mais que uma exilada!”, gritara durante a última noite que passaram juntos (como se isso tivesse algo que ver com a viagem de pesca). Leto reprimiu o impulso de lhe recordar que sua mãe tinha sido assassinada, seu pai continuava a ser um fugitivo e seu povo continuava escravizado pelos tleilaxu, enquanto que ela era a dama de um duque, vivia em um castelo com um filho são e formoso, e toda a riqueza e enfeites de uma Grande Casa. “Você não deveria se queixar, Kailea”, disse, furioso. Embora não pudesse aplacá-la, Leto desejava o melhor para seu filho.

Sob os céus cobertos de nuvens, respiravam o ar fresco do oceano e se afastavam de terra firme. O navio cortava as águas como uma faca cortaria um bolo de arroz pundi.

Thufir Hawat se mantinha atento dentro da cabine. Examinava os sistemas de sinais e os mapas meteorológicos, sempre atento a qualquer perigo que espreitasse seu amado duque. O Professor de Assassinos se conservava em excelente forma, com a pele enrugada, os músculos tensos como cabos. Sua aguçada mente Mentat era capaz de vislumbrar os mecanismos das conspirações inimigas. Estudava as conseqüências da terceira e quarta ordem que Leto, e mesmo de Kailea, com sua mente tão ardilosa para os negócios, não podia compreender.

Na primeira hora da tarde, os homens jogaram as redes. Embora sempre tivesse sido pescador, Gianni não escondia que preferia um bom bife para jantar, regado com um excelente vinho de Caladan. Mas aqui tinham que comer o que o mar proporcionava.

Quando as redes subiram cheias de seres que se agitavam, Victor correu para inspecionar os belos peixes de escamas multicoloridas. Sempre vigilante, Goire não se afastava do menino, e procurava afastá-lo dos peixes com espinhos venenosos.

Leto escolheu quatro peixes carnudos, e Gianni e Dom os levaram a cozinha para limpá-los. Depois, ajoelharam-se junto ao seu filho e ajudaram o menino intrigado a reunir os outros peixes. Juntos, jogaram-nos pela amurada, e Victor aplaudiu quando viu que as esbeltas formas escorregadias desapareciam na água.

Seu curso os conduziu até continentes flutuantes de sargaços entrelaçados, um deserto de um tom marrom esverdeado que se estendia até perder-se de vista. Largos rios corriam entre as brechas dos sargaços. Moscas voavam ao seu redor e depositavam ovos sobre as brilhantes gotas de água. Aves negras e brancas saltavam de folha em folha, devoravam camarões-rosa que serpenteavam entre as capas mornas da superfície. O aroma penetrante de vegetação podre impregnava o ar.

Quando os homens jogaram a âncora entre as algas, falaram e cantaram canções. Swain Goire ajudou Victor a lançar o fio de pescar por cima da amurada, e embora seus anzóis se enredassem nas algas, o entusiasmado menino conseguiu pescar vários peixes. Victor foi correndo até a cabine para mostrar os peixes a seu pai, que aplaudiu a proeza do seu filho. Depois de um dia tão exaustivo, o menino se encolhei em sua cama de armar pouco depois do sol se por, e caiu adormecido.

Leto jogou algumas partidas de cartas com os dois pescadores.

Embora fosse seu duque, Gianni e Dom não fizeram o menor esforço para deixá-lo ganhar. Consideravam-no um amigo, tal como Leto desejava. Mais tarde, quando contaram histórias tristes ou cantaram canções trágicas, Gianni chorou com menor insinuação sentimental.

Já tarde da noite, Leto e Rhombur se sentaram na coberta às escuras e falaram. Rhombur tinha recebido recentemente uma concisa mensagem codificada de C'tair Pilru dizendo que tinha recebido os explosivos, mas nem o menor indício de como os utilizariam. O príncipe desejava ver o que os rebeldes estavam fazendo nas cavernas ixianas, embora não pudesse ir ao planeta. Ignorava o que seu pai teria feito em uma situação similar.

Falaram dos contínuos esforços diplomáticos de Leto para mediar o litígio entre os Ecaz e os Moritani. enfrentava não só à resistência das partes, mas também o próprio imperador Shaddam, que parecia lamentar a intercessão Atreides. Shaddam acreditava que, ao postar uma legião de Sardaukar em Grumman durante vários anos, tinha solucionado o problema. Na realidade, só tinha atrasado as hostilidades. Agora que as tropas imperiais partiram, a tensão aumentava novamente...

Durante um longo tempo de silêncio, Leto olhou para o capitão Goire, que lhe recordou outro de seus amigos e guerreiros.

— Duncan Idaho já está em Ginaz a quatro anos.

— Ele se transformará em um grande mestre espadachim. — Rhombur desviou a vista para o deserto de algas, onde focas peludas entoavam um coro gorgolejante, e se desafiavam na escuridão —. E depois de tantos anos de duro treinamento, será mil vezes mais valioso para você. Logo verá.

— De qualquer modos, sinto falta dele.

Na manhã seguinte, Leto despertou em um amanhecer cinzento e fresco. Aspirou profundas baforadas de ar, e se sentiu descansado e repleto de energia. Descobriu que Victor continuava dormindo, e segurava o canto de uma manta. Rhombur bocejou e se estirou em seu beliche, mas não fez o menor gesto por seguir Leto à coberta. Até em IX, o príncipe nunca tinha sido madrugador.

O capitão do navio já tinha içado a âncora. Seguindo as instruções de Hawat (o Mentat dormia em algum momento?), entraram por um amplo canal que atravessava as algas, e saíram de novo para mar aberto. Leto se encontrava de pé na coberta de proa, desfrutando de um silêncio que era rompido apenas pelos motores do navio. Até as aves estavam caladas.

Leto observou estranhos tons de cor nas nuvens longínquas, um grupo de luzes piscantes em movimento como não se recordava de ter visto antes. O capitão, sentado na cabine, aumentou a potência dos motores e o navio acelerou.

Leto farejou o ar, percebeu um aroma metálico de ozônio, mas com uma acidez incomum. Entreabriu seus olhos cinzas, pronto a chamar o capitão. O denso aglomerado de atividade elétrica se movia em direção contrária à brisa, avançava muito próximo da água... como se estivesse vivo.

Está se aproximando de nós.

Entrou na cabine, preocupado.

— Você o viu, capitão?

O homem não afastava os olhos da coluna de direção nem do fenômeno que se precipitava para eles.

— Faz dez minutos que estou observando, meu senhor, e nesse lapso de tempo reduziu a metade da distância.

— Nunca tinha visto nada semelhante. — Leto parou junto à cadeira do capitão —. O que é?

— Tenho minhas suspeitas. — A expressão do capitão traía preocupação e medo. Puxou o acelerador e os motores rugiram com mais potência que nunca —. Acho que deveríamos fugir.

Apontou para a direita, em direção contrária às luzes que se aproximavam.

Leto adotou um tom de voz autoritário, sem a cordialidade que tinha manifestado no dia anterior.

— Explique-se, capitão.

— É um elecrán, senhor. Se quer realmente saber.

Leto riu, e depois se calou.

— Um elecrán? Isso não é um mito?

Seu pai, o velho duque, gostava de lhe contar histórias quando os dois estavam sentados junto a um fogo na praia, com a noite iluminada somente pelas chamas oscilantes.

“Você se surpreenderia ao saber o que há no mar, garoto — havia dito Paulus, apontando para as águas escuras —. Sua mãe não ficará satisfeita se souber que falei sobre isto, mas acredito que deve saber.” Deu uma longa baforada em seu cachimbo e começou o relato...

O capitão meneou a cabeça.

— Eles não são muitos, meu senhor, mas existem.

E se uma criatura tão elementar era real, Leto sabia a destruição e a morte que era capaz de provocar.

— Dê meia volta, então. Fixe um rumo que nos afaste dessa coisa. Velocidade máxima.

O capitão virou para estibordo, desenhou uma esteira branca na água imóvel, e inclinou a coberta em um ângulo inclinado o bastante para que os homens caíssem dos beliches. Leto se agarrou a um corrimão da cabine até que seus nódulos se tornarem brancos.

Thufir Hawat e Swain Goire entraram apressados na cabine e perguntaram a causa da emergência. Quando Leto apontou para a popa, os homens olharam através do plaz coberto de bafo das janelas. Goire blasfemou com uma linguagem florida que nunca utilizava diante do menino. Hawat enrugou o sobrecenho, enquanto sua complexa mente de Mentat analisava a situação e selecionava a informação que necessitava de seu armazém de conhecimentos.

— A situação é grave, meu duque.

As luzes piscantes e a aparência tempestuosa do estranho ser se aproximaram de sua popa, aumentaram a velocidade, e surgiu vapor da água. A testa do capitão se cobriu de suor.

— Ele nos viu, senhor. — Puxou com tanta força o acelerador que quase saiu com ele na mão —. Nem sequer este navio pode deixá-lo para trás. É melhor preparar-se para o ataque.

Leto soou o alarme. Ao fim de poucos segundos, outros guardas apareceram, seguidos dos dois pescadores. Rhombur chegou com Victor nos braços. O menino, assustado pelo alvoroço, agarrava-se ao rapaz.

Hawat olhou para a popa e entreabriu os olhos.

— Não sei como lutar contra um mito. — Olhou para o duque, como se de alguma forma tivesse falhado —. De qualquer forma, tentaremos.

Goire golpeou com os nódulos uma proteção da cabine.

— Este navio não nos protegerá, não é?

O guarda parecia decidido a lutar contra algo que o duque identificasse como um inimigo.

— Um elecrán é um aglomerado de fantasmas que morreram em tempestades em alto mar — disse o pescador Dom, com a voz insegura quando apareceu à porta da cabine, enquanto os outros saíam à coberta de popa para enfrentar o ser.

Seu irmão Gianni meneou a cabeça.

— Nossa avó dizia que é a vingança de uma mulher repudiada. Há muito tempo, uma mulher saiu durante uma tempestade e amaldiçoou aos gritos o homem que a abandonara. Foi atingida por um raio, e assim nasceu o elecrán.

Os olhos de Leto doíam de olhar para o elecrán, uma lula de eletricidade formada por descargas verticais de energia e fogos de gás. Raios caiam sobre a superfície. Névoa, vapor e ozônio o rodeavam como um escudo. À medida que o ser se aproximava da embarcação, aumentava de tamanho, e absorvia a água do mar como um grande gêiser.

— Também ouvi dizer que só consegue manter a forma, só consegue manter-se vivo, enquanto estiver em contato com a água — acrescentou o capitão do navio.

— Essa informação é mais útil — disse Hawat.

— Infernos vermelhos! Não vamos tirar essa maldita coisa da água — disse Rhombur —. Espero que haja outra forma de matá-la.

Hawat ladrou uma ordem rápida, e os dois guardas desencaparam seus rifles laser, armas trazidas a bordo por insistência do Mentat. Leto se perguntara para que iriam necessitar dessas armas em uma tranqüila viagem de pesca. Agora, estava contente por tê-las trazido. Dom e Gianni olharam para o ameaçador nó de energia e se refugiaram sob a coberta.

Swain Goire, depois de olhar para trás por um momento para comprovar que Victor estava com Rhombur, ergueu sua arma. Foi o primeiro a abrir fogo, e lançou uma descarga de luz tremula. A energia alcançou o elecrán e se dissipou sem causar o menor dano. Thufir Hawat disparou, assim como o segundo guarda Atreides.

— Não serviu de nada! — gritou o Mentat —. Meu duque, permaneça na segurança do camarote.

Mesmo de dentro, Leto sentiu o calor do ar, cheirou o sal queimado e as algas chamuscadas. Raios de energia primária atravessavam o corpo fluido do elecrán, que cada vez se aproximava mais do navio, um ciclone de energia em estado puro. Com uma só descarga, poderia destroçar o navio e eletrocutar todos os seus tripulantes.

— Não há segurança em lugar algum, Thufir — gritou Leto —. Não permitirei que essa coisa se apodere do meu filho!

Olhou para o menino, agarrado ao pescoço de Rhombur.

Para exibir seu poder, um raio desceu e tocou o flanco de madeira do navio, como um sacerdote que desse uma bênção. Parte do rebordo metálico da embarcação se volatilizou, enquanto faíscas dançavam ao longo de cada contato condutor. Os motores do navio tossiram e morreram.

O capitão tentou voltar a pô-los em marcha, mas foi recompensado apenas com sons ásperos e metálicos.

Goire parecia disposto a lançar-se sobre a massa, como se isso servisse de algo. Quando o navio parou de avançar, o homem continuou disparando contra o núcleo do elecrán, embora sem resultado algum. Leto percebeu que não estavam apontando para onde deviam. O navio, desprovido de energia, estava dando a volta, com a proa apontada para o monstro.

Ao compreender sua oportunidade, Leto abandonou a cabine e correu para a proa bicuda da embarcação. Hawat gritou para conter seu duque, mas Leto ergueu uma mão para proibir sua intervenção. A audácia sempre tinha sido a marca dos Atreides. Rezou para que os contos supersticiosos do capitão não se compuseram só de lendas ridículas.

— Leto! Não faça isso! — gritou Rhombur, ao mesmo tempo em que apertava Victor contra seu peito. O menino gritava e se retorcia, tentava libertar-se do abraço do seu tio e correr para seu pai.

Leto gritou para o monstro e agitou as mãos, com a esperança de distrair o ser, de oferecer-se como isca.

— Aqui! Venha a mim!

Tinha que salvar seu filho, e também seus homens. O capitão ainda estava tentando ligar os motores, mas no momento eles se negavam. Thufir, Goire e os dois guardas correram para Leto.

O duque viu que o ser aumentava. Enquanto se erguia como um tsunami iminente no ar, o ser mal mantinha um tênue contato com a água salgada que mantinha a sua existência corpórea. Uma descarga de estática prolongada fez se arreliarem os pelos de Leto, como se um milhão de diminutos insetos estivessem rastejando sobre sua pele.

Tinha que agir no momento certo.

— Thufir, Swain, apontem seus rifles para a água abaixo do monstro. Vaporizem o oceano.

Leto levantou ambos os braços para oferecer-se. Não tinha armas, nada com o que ameaçar o ser.

O brilho do aterrador elecrán aumentou de intensidade, uma massa de energia primitiva que se erguia sobre a água. Não tinha cara, nem olhos, nem presas: todo seu corpo era composto de morte.

Hawat deu a ordem quando Leto se jogou na coberta de madeira. Dois rifles laser transformaram a água em espuma e vapor, na base da cinta crepitante de raios. Nuvens de neblina branca subiram ao seu redor.

Leto rodou para um lado, com a intenção de proteger-se. Os dois guardas Atreides também abriram fogo, e vaporizaram as ondas que rodeavam o ser.

O elecrán se agitou, como se estivesse surpreso, tentou apoiar-se de novo sobre a água que fervia abaixo dele. Emitiu um grito estremecedor e golpeou o navio duas vezes mais com descargas espasmódicas. Por fim, quando seu contato se cortou definitivamente, o elecrán perdeu consistência.

Dissipou-se com uma explosão pavorosa, voltou para reino dos mitos. Uma cascata de água caiu sobre o navio, formigante e efervescente, como se ainda contivesse um pingo da presença do monstro. Gotas quentes ensoparam Leto. O cheiro de ozônio dificultava a respiração.

O oceano recuperou a paz, sereno e silencioso.

Durante a abatida volta do navio aos moles, Leto se sentiu esgotado, mas satisfeito por ter solucionado o problema e salvo seus homens, e sobretudo seu filho, sem uma baixa. Gianni e Dom já estavam improvisando as histórias que contariam em noites de tormenta.

Victor, embalado pelo ruído dos motores, dormiu no regaço do seu pai. Leto contemplava a água que sulcavam. Acariciou o cabelo escuro do menino e sorriu ao ver sua expressão de inocência. Distinguiu nas feições de Victor a linhagem imperial que Leto herdara de sua mãe: o queixo estreito, os intensos olhos cinza claro, o nariz aquilino.

Enquanto estudava o menino adormecido, perguntou-se se amava mais ao Menino que a sua concubina. Às vezes se perguntava se ainda amava Kailea, sobretudo durante o último ano, quando sua vida em comum se azedou, lenta mas inexoravelmente.

Seu pai teria sentido o mesmo seu pai por sua esposa Helena, apanhado como ele em uma relação com uma mulher de expectativas tão diferentes das suas? Como tinha degenerado seu matrimônio até esse extremo? Pouca gente sabia que lady Helena Atreides tinha planejado o assassinato do velho duque, tinha tomado as medidas necessárias para que um touro salusano o matasse.

Leto acariciou seu filho com muita suavidade para que ele não despertasse, e jurou que nunca mais permitiria que Victor se expusesse a um perigo tão grande. Seu coração se inchou de amor pelo menino, quase a ponto de explodir. Talvez Kailea tivesse razão. Não devia ter levado o menino naquela viagem.

Depois, o duque entreabriu os olhos e voltou a descobrir o aço da liderança. Ao compreender a covardia de seus pensamentos, Leto mudou de opinião. Não posso super protegê-lo. Seria um grave erro mimar este menino. Só ao enfrentar perigos e desafios, como tinha feito Paulus Atreides com Leto, o pequeno poderia ser um homem forte e inteligente, o líder que devia ser.

Baixou a vista e sorriu para Victor de novo. Afinal, pensou Leto, pode ser que este menino seja duque algum dia.

Percebeu que a linha da costa emergia da bruma matutina, e viu o castelo de Caladan e os moles. Era estupendo voltar para casa.

 

Corpo e mente são dois fenômenos observados em diferentes condições, mas de uma única e idêntica realidade. Corpo e mente são aspectos do ser vivo. Funcionam sob um peculiar sentido da sincronicidade, em que as coisas acontecem juntas e se comportam como se fossem a mesma... mas podem ser concebidas como diferentes.

Manual do pessoal médico

Escola de Ginaz.

 

Na manhã chuvosa, Duncan Idaho esperava junto com seus companheiros de classe em um novo terreno de treinamento, uma ilha mais na longa cadeia de salas-de-aula isoladas. Gotas mornas caíam sobre eles das cansativas nuvens tropicais. Parecia que naquele lugar sempre chovia.

O mestre espadachim era um gordo que vestia folgadas calças cáqui. O lenço vermelho apertado ao redor de sua enorme cabeça fazia seu cabelo avermelhado se arrepiar como espinhos com pontas molhadas. Seus olhos eram dardos pequenos, de um castanho tão escuro que era difícil distinguir as íris das pupilas. Falava com uma voz aflautada que surgia de uma caixa de voz sepultada sob sua enorme papada.

Não obstante, quando se movia, o mestre espadachim Rivvy Dinari o fazia com a agilidade e velocidade de um raptor no impulso final de um golpe mortal. Duncan não via nada ridículo no homem, e sabia que não devia subestimá-lo. A aparência gorducha era uma ilusão cuidadosamente cultivada.

— Aqui sou uma lenda — havia dito o volumoso instrutor —, e logo saberão por que.

Durante os segundos quatro anos de estudos em Ginaz, os alunos se reduziram a menos da metade dos que tinham chegado no primeiro dia, quando Duncan se viu obrigado a usar uma pesada armadura. Um punhado de estudantes já tinham perecido no treinamento desumano; muitos mais tinham desistido e partido.

— Só os melhores podem ser mestres espadachins — diziam os professores, como se isso explicasse todas as penalidades.

Duncan derrotava os outros estudantes em combate ou nos exercícios mentais tão essenciais para a batalha e estratégia. Antes de abandonar Caladan, tinha sido um dos melhores guerreiros jovens da Casa Atreides, mas jamais tinha imaginado que soubesse tão pouco.

— Os homens que lutam não se moldam com mímicos — tinha recitado o mestre espadachim Mord Cour, uma longínqua tarde —. Em situações de combate reais, os homens se moldam mediante desafios extremos que os empurram ao seu limite.

Alguns dos professores tinham ensinado táticas militares, história da guerra, filosofia e política. Enfrentavam-se em combates de retórica, antes dos combates armados. Alguns eram engenheiros e peritos em mecânica, que tinham ensinado Duncan a montar e desmontar qualquer tipo de arma, a fabricar seus artefatos de matar com os elementos mais escassos. Aprendeu a utilizar e reparar escudos, a desenhar instalações defensivas em grande escala, e a forjar planos de batalha em conflitos em pequena e grande escala.

A chuva repicava cadenciadamente sobre a praia, rochas e estudantes. Rivvy Dinari parecia indiferente à água.

— Durante os próximos seis meses aprenderão de cor o código dos samurais e a filosofia integral do bushido. Se insistirem em ser rochas escorregadias, eu serei uma corrente de água. Minarei sua resistência até que aprendam tudo que posso ensinar.

Moveu seus olhos penetrantes como uma descarga de fuzilaria, e deu a impressão de que falava em particular a cada estudante. Uma gota de chuva pendia da ponta do seu nariz, até que caiu e foi substituída por outra.

— Têm que aprender honra, do contrário não merecem aprender nada.

O sempre mal-humorado Trin Kronos, sem deixar-se intimidar, interrompeu-o.

— A honra não os fará ganhar batalhas, a menos que todos os combatentes concordem em reger-se pelas mesmas normas. Se os encher de regras absurdas, mestre, qualquer inimigo que queira quebrar as normas os derrotará.

Depois de ouvir isso, Duncan Idaho pensou que compreendia alguma das audazes e provocadoras medidas que o visconde Moritani tinha tomado durante seu conflito com Ecaz. Os grumman não obedeciam as mesmas regras.

O rosto de Dinari avermelhou.

— Uma vitória sem honra não é uma vitória.

Kronos sacudiu a cabeça, jogando gotas de chuva.

— Diga isso aos soldados mortos do grupo adversário.

Os amigos próximos murmuraram palavras de felicitação por sua resposta. Embora ensopados e sujos de barro, todos conservavam seu orgulho altivo.

A voz de Dinari soou mais estridente.

— Desejam renunciar a toda civilização humana? Preferem se transformar em animais selvagens? — O grandalhão se aproximou mais de Kronos, que vacilou, retrocedeu e pisou em uma poça —. Os guerreiros da escola de Ginaz são respeitados por todo Império. Formamos os melhores guerreiros e os maiores estrategistas, melhores ainda que os Sardaukar do imperador. Necessitamos de uma frota militar em órbita? Necessitamos de um exército preparado para rechaçar os invasores? Necessitamos de um montão de armas para dormir tranquilos à noite? Não! Porque seguimos um código de honra e todo o Império nos respeita.

Kronos o ignorou, ou não reparou no brilho assassino que surgira nos olhos do mestre espadachim.

— Nesse caso têm um ponto fraco: seu excesso de confiança.

Fez-se silêncio, quebrado só pelo constante tamborilar da chuva. Dinari enfatizou suas próximas palavras:

— Mas temos honra. Aprenda a valorizá-lo.

Chovia muito outra vez, seguindo a tônica dos últimos meses. Rivvy Dinari falava em frente as filas de alunos. Apesar da sua corpulência, o mestre espadachim se movia como uma brisa sobre o chão enlameado.

— Se sentirem vontade de brigar, devem se desfazer da angústia. Se estão enfurecidos com seu inimigo, devem se desfazer da ira. Os animais lutam como animais. Os humanos lutam com sutileza. — Furou Duncan com seu olhar azedo —. Limpe sua mente.

Duncan não respirava, não piscava. Todas as células do seu corpo se paralisaram, cada nervo tinha alcançado a êxtase. Uma brisa úmida acariciava seu rosto, mas deixou que passasse ao largo. A chuva constante ensopava suas roupas, sua pele, seus ossos, mas imaginou que fluía através dele.

— Não faça o menor movimento: não pisque, não encha o peito, controle até o último músculo. Seja uma pedra. isole-se do universo consciente.

Depois de meses de rigorosa instrução sob as ordens de Dinari, Duncan sabia diminuir o ritmo de seu metabolismo até alcançar um estado similar à morte, chamado funestus. O professor o chamava um processo de purificação destinada a preparar as mentes e os corpos para o ensino de novas disciplinas de luta. Uma vez alcançado, funestus lhe proporcionava uma sensação de paz como jamais tinha experimentado, que lhe recordava os braços de sua mãe, sua voz doce e sussurrante.

Embalado no transe, Duncan concentrou seus pensamentos, sua imaginação, seu impulso. Um intenso brilho enchia seus olhos, mas manteve o controle e se negou a piscar.

Duncan sentiu uma dor aguda no pescoço, a espetada de uma agulha.

— Ah! Ainda sangra — exclamou Dinari, como se sua missão fosse destruir o máximo de candidatos possível —. Portanto, também sangrará na batalha. Não está em um estado de funestus perfeito, Duncan Idaho.

Esforçou-se por alcançar o estado de meditação em que a mente controlava sua energia chi, até alcançar um estado de repouso e, ao mesmo tempo, encontrar-se completamente preparado para o combate. Procurou o nível de concentração máximo, sem a contaminação de pensamentos confusos e desnecessários. Sentiu que se aprofundava, ouviu a contínua investida verbal de Rivvy Dinari.

— Carrega uma das melhores espadas do Império, a espada do duque Paulus Atreides. — Abateu-se sobre o candidato, que se esforçava por manter sua concentração e serenidade —. Mas tem que ganhar o direito de utilizá-la na batalha. Você adquiriu as habilidades para a luta, mas ainda não demonstrou controlar seus pensamentos. Intelectualizar em excesso diminui a velocidade das reações e as entorpece, amortece os instintos de um guerreiro. Mente e corpo são um, e tem que lutar com ambos.

O corpulento professor caminhou ao sua redor com parcimônia. Duncan cravou a vista à frente.

— Vejo todas as pequenas rachaduras que nem sequer é capaz de perceber. Se um mestre espadachim fracassar, não só se decepciona a si mesmo, mas também põe seus camaradas em perigo, causa opróbrio para sua Casa e se desonra a si mesmo.

Duncan sentiu outra espetada no pescoço, ouviu um grunhido de satisfação.

— Melhor.

A voz de Dinari desapareceu quando foi inspecionar os outros.

Enquanto a incessante chuva caía sobre ele, Duncan manteve o funestus. O mundo emudeceu ao seu redor, como o silêncio que precede à tormenta. O tempo deixou de ter significado para ele.

— Arrr... Uh!

Com a chamada de Dinari, a consciência de Duncan começou a flutuar, como se estivesse em um navio sulcando um rio rebelde e o mestre o levasse a reboque. Mergulhou e continuou em frente, avançando na corrente para um destino que se encontrava além de sua mente. Estivera naquele rio mental muitas vezes... a travessia, quando passava para a segunda fase da seqüência de meditação. Desprendeu-se de tudo o que era velho para poder recomeçar, como uma criança. A água era limpa, transparente e morna ao seu redor, um útero.

Duncan acelerou, e o navio que era sua alma balançou. A escuridão diminuiu e viu um brilho sobre ele, que ia aumentando de intensidade. A luz cintilante se transformou em um brilho aquoso, e se viu como um ponto diminuto que nadava para cima.

— Arrr... Uh!

Ao segundo grito de Dinari, Duncan surgiu da água metafórica e retornou à chuva tropical e ao ar suave. Ofegou em busca de fôlego, e tossiu junto com os outros estudantes, para descobrir que estava completamente seco, a roupa, a pele, o cabelo. Antes que pudesse expressar seu assombro, a chuva começou a ensopar suas roupas de novo.

O obeso mestre espadachim contemplava com as mãos enlaçadas os céus cinzentos, deixava que as gotas de chuva caíssem sobre seu rosto como água batismal. Depois, inclinou a cabeça e olhou para os estudantes de um em um, deixando que o prazer transparesse em seu rosto. Seus estudantes tinham alcançado o novellus, a fase final do renascimento orgânico necessário antes de poder iniciar um novo ensino complexo.

— Para dominar um sistema de combate, devem deixar que os dominem. Devem se entregar a ele completamente. — As pontas soltas e molhadas do lenço vermelho do professor Dinari, atados atrás da sua cabeça, pendiam sobre seu pescoço —. Suas mentes são como argila macia em que se gravam impressões.

— Agora aprenderemos, professor — entoou a classe.

— Bushido — disse o professor solenemente —. Onde começa a honra? Os antigos mestres samurais penduravam espelhos em cada um de seus templos Shinto, e pediam a seus partidários que se olhassem neles para ver seus corações, os diversos reflexos de seu Deus. É no coração onde a honra germina e floresce.

Dirigiu um olhar significativo para Trin Kronos e outros estudantes de Grumman, e prosseguiu.

— Recordem-se disto sempre: a desonra é como um corte no tronco de uma árvore. Em vez de desaparecer com a idade, torna-se maior.

Obrigou a classe a repetir três vezes a máxima antes de continuar.

— O código de honra era mais valiosa para um samurai que qualquer tesouro. Nunca se duvidava da palavra de um samurai, seu bushi no ichi-gon, como nunca há dúvida sobre a palavra de um mestre espadachim de Ginaz.

Dinari sorriu por fim, expressando seu orgulho.

— Jovens samurais, primeiro aprenderão movimentos básicos com as mãos nuas. Quando tiverem aperfeiçoado estas técnicas, utilizarão armas em suas rotinas. — Dirigiu-lhes um olhar aterrador com seus olhos negros —. A arma é a extensão da mão.

Uma semana depois, os estudantes esgotados se retiraram para suas camas de armar, dentro das tendas plantadas na escarpada borda norte. A chuva tamborilava sobre seus refúgios, e ventos alísios sopravam desde a primeira hora da noite. Esgotados pelo treinamento rigoroso, Duncan se preparou para dormir. Os acessórios da loja matraqueavam, os ilhós metálicos tilintavam contra os nós de corda com um ritmo constante que os embalava. Às vezes, pensava que nunca voltaria a estar completamente seco.

Uma voz ensurdecedora o sobressaltou.

— Todo mundo para fora!

Reconheceu o timbre de voz do mestre Dinari, mas seu tom transmitia algo novo, algo detestável. Outro exercício surpresa?

Os estudantes saíram para a chuva, alguns vestidos com calções, outros nus. Sem vacilar, alinharam-se na formação habitual. A estas alturas, nem sequer sentiam a chuva. Globos luminosos oscilavam ao vento, no extremo dos cabos suspensores.

Ainda vestido com as calças cáqui, um agitado mestre Dinari passeava diante de sua classe como um animal à espreita. Seus passos eram fortes e irados. Pouco se importava em chapinhar em poças de barro. Atrás dele, o motor de um ornitóptero que acabava de aterrissar zumbia, enquanto suas asas articuladas açoitavam o ar.

Um foco estreboscópico vermelho situado sobre o aparelho iluminou a figura esbelta e calva de Karsty Toper, que tinha recebido Duncan em Ginaz. Vestia seu habitual traje negro de artes marciais, agora ensopado, e segurava uma placa diplomática reluzente impermeável à umidade. Sua expressão era dura e preocupada, como se mal pudesse conter sua ira ou indignação.

— Há quatro anos, um embaixador de Grumman assassinou um embaixador ecazi depois de ser acusado de sabotar árvores de madeira de névoa ecazi, e depois tropas grumman realizaram um bombardeio criminoso sobre Ecaz. Estas agressões ruins e ilegais violavam a Grande Convenção, e o imperador estacionou uma legião de Sardaukar em Grumman para impedir mais atrocidades.

Toper fez uma pausa para que os estudantes assimilassem as implicações.

— Terá que seguir as formalidades! — disse Dinari, que parecia muito ofendido.

Karsty Toper avançou e ergueu seu documento de cristal como se fosse um pau. A chuva escorria sobre seu couro cabeludo e por suas têmporas.

— Antes de retirar seus Sardaukar de Grumman, o imperador recebeu promessas de ambos os lados de que todas as agressões mútuas cessariam.

Duncan olhou para os outros estudantes em busca de uma resposta. Ninguém parecia saber do que a mulher estava falando ou por que o mestre espadachim parecia tão enfurecido.

— Agora, a Casa Moritani atacou de novo. O visconde não cumpriu o pacto — disse Toper —, e Grumman...

— Eles não cumpriram sua palavra! — interrompeu o professor Dinari.

— E agentes de Grumman seqüestraram o irmão e a filha mais velha do arquiduque Armand Ecaz e os executaram publicamente.

Os estudantes mumuraram sua desaprovação. Não obstante, Duncan adivinhou que não se tratava de uma simples lição de política. Teve medo do que aconteceria.

À direita de Duncan, Hiih Resser se remexeu nervoso. Usava calças curtas, sem camisa. Duas filas atrás, Trin Kronos parecia satisfeito com o que sua Casa havia feito.

— Sete membros desta classe são de Grumman. Três são de Ecaz. Embora estas Casas sejam inimigas juradas, os estudantes não permitiram que esta inimizade influisse no funcionamento de nossa escola. Devo reconhecer.

Toper guardou no bolso a placa diplomática.

O vento açoitava as pontas do lenço que Dinari usava ao redor da cabeça, mas ele parecia tão forte como um carvalho.

— Embora não tenhamos intervido nesta disputa, e mantivéssemos completamente afastados da política imperial, a Escola de Ginaz não pode tolerar tal desonra. Até me envergonha cuspir o nome dessa Casa. Todos os alunos de Grumman dêem um passo à frente. Adiante e para o centro!

Os sete estudantes obedeceram. Dois (incluído Trin Kronos) estavam nus, mas ficaram firmes com seus companheiros como se estivessem vestidos. Resser parecia alarmado e envergonhado. Kronos ergueu o queixo em sinal de indignação.

— Têm que tomar uma decisão — disse Toper —. Sua Casa violou a lei imperial e se desonrou. Depois de quatro anos em Ginaz, sem dúvida compreenderão a imensa gravidade desta ofensa. Ninguém jamais foi expulso desta escola por motivos políticos. Por conseguinte, podem denunciar a insensata política do visconde Moritani agora mesmo, ou serem expulsos para sempre da academia. — Indicou o ornitóptero que aguardava.

Trin Kronos franziu o sobrecenho.

— Assim, depois de tanta palavrório sobre a honra, pedem que renunciemos à lealdade a nossa Casa, a nossas famílias? De qualquer jeito? — Transpassou com o olhar o obeso professor —. Não pode haver honra sem lealdade. Minha eterna lealdade é para Grumman e a Casa Moritani.

— A lealdade a uma causa injusta é uma perversão da honra.

— Causa injusta? — Kronos avermelhou de indignação —. Não me corresponde discutir as decisões de meu senhor... nem a você tampouco.

Resser tinha a vista cravada à frente.

— Eu escolho ser mestre espadachim, senhor. Eu fico.

O ruivo voltou para o lado de Duncan, enquanto outros grumman olhavam para ele como se fosse um traidor.

Animados pelo exemplo de Kronos, os outros seis se negaram a claudicar.

— Correm um grave perigo ao insultar Grumman — grunhiu Kronos —. O visconde nunca esquecerá sua intromissão.

Suas bravatas não pareceram impressionar o professor Dinari nem Karsty Toper.

Os grumman se mostravam orgulhosos e arrogantes, embora era evidente que se sentissem incomodados por encontrarem-se em tal situação. Duncan simpatizava com eles, pois compreendia que eles também tinham feito uma escolha honrosa, uma forma diferente de honra, porque tinham se negado a abominar sua Casa, mesmo face às acusações. Se fosse obrigado a escolher entre a Escola de Ginaz e a lealdade à Casa Atreides, teria escolhido o duque Leto sem vacilar...

Os estudantes de Grumman, a quem só se concedeu alguns minutos para se vestirem e recolher suas posses, subiram a bordo do tóptero. As asas se estenderam, e depois bateram com fúria enquanto o aparelho sobrevoava as águas escuras até que seu foco vermelho desapareceu como uma estrela agonizante.

 

O universo é um lugar inacessível, ininteligível, completamente absurdo... com o que a vida, em especial a vida racional, é inimiga. Não há lugar seguro, nem princípio básico, do que o universo dependa. Só há relações transitivas e encobertas, confinadas em suas dimensões limitadas, e condenadas à mudança inevitável.

Meditações desde o Bifrost Eyrie

texto budislámico.

 

A matança de baleias peludas em Tula Fjord foi só o primeiro na cadeia dos desastres que se abateram sobre Abulurd Harkonnen.

Em um dia ensolarado, quando o gelo e a neve tinham começado a fundir-se depois de um longo e duro inverno, uma terrível avalanche sepultou Bifrost Eyrie, o maior dos retiros de montanha construídos pelos isolados monges budislâmicos. Também o lar ancestral da Casa Rabban.

A neve caiu como um martelo branco e varreu tudo que encontrou em seu caminho . Esmagou edifícios, sepultou milhares de devotos religiosos. O pai de Emmi, Onir Rautha-Rabban, enviou um pedido de auxílio ao pavilhão principal de Abulurd.

Com um nó no estômago, Abulurd e Emmi subiram em um ornitóptero, à frente de transportes maiores cheios de voluntários locais. Abulurd pilotava com uma mão, e segurava com a outra a de sua esposa. Durante um longo momento, estudou o firme perfil do rosto largo da sua mulher, e seu longo cabelo negro. Mesmo que ela não fosse formosa em nenhum sentido clássico, nunca se cansava de olhar para ela, ou de estar com ela.

Voaram ao longo da linha da costa, e depois se internaram nas escarpadas cordilheiras. Muitos retiros isolados careciam de estradas que conduzissem aos penhascos onde estavam assentados. Todos os materiais puros eram extraídos das montanhas. Todos os fornecimentos e pessoas chegavam via tóptero.

Quatro gerações atrás, uma fraca Casa Rabban tinha cedido os direitos industriais e econômicos do planeta aos Harkonnen, com a condição de que os deixassem viver em paz. As ordens religiosas construíram monastérios e concentraram suas energias em escrituras e sutras, na tentativa de compreender os matizes mais sutis da teologia. Para a Casa Harkonnen nada poderia lhe importar menos.

Bifrost Eyrie fora uma das primeiras cidades, como um sonho do Shangri-La nas cordilheiras. Edifícios de pedra esculpida estavam situados sobre penhascos tão altos que se elevavam sobre as nuvens perpétuas de Lankiveil. Vistos dos balcões de meditação, os picos flutuavam como ilhas em amontoados brancos. As torres e minaretes estavam cobertas de ouro, extraído com grandes sacrifícios de minas longínquas. Cada parede estava gravada com frisos ou talhas que mostravam antigas sagas e metáforas de opções morais.

Abulurd e Emmi iam a Bifrost Eyrie muitas vezes, para visitar o pai da mulher ou retirar-se quando necessitavam de paz interior. Depois de retornar a Lankiveil depois de sete anos no poeirento Arrakis, sua mulher e ele tinham necessitado de um mês em Bifrost Eyrie para limpar suas mentes.

E agora, uma avalanche quase tinha destruído o grande monumento. Abulurd não sabia se suportaria ver o espetáculo.

Estavam sentados muito tensos enquanto o ornitóptero voava. Pilotava o aparelho pelas correntes de ar traiçoeiras. Como havia poucos acidentes geográficos característicos e nenhuma estrada, confiava nas coordenadas do sistema de navegação do tóptero. O aparelho sobrevoou uma cordilheira e desceu para uma concha ocupada por uma geleira, e depois subiu por um penhasco negro em direção ao lugar onde deveria estar a cidade. O sol era cegante.

Emmi estava com seus olhos de cor jaspe cravados à frente, contava os picos para orientar-se, até que por fim estendeu o dedo para apontar, sem soltar a mão do seu marido. Abulurd reconheceu várias agulhas douradas, as pedras de um branco leitoso de que eram construídos os magníficos edifícios. Um terço de Bifrost Eyrie tinha sido apagada do mapa, como se uma vassoura gigante de neve o tivesse varrido, arrasando todos os obstáculos, fossem penhascos, edifícios ou monges.

O tóptero aterrissou no local onde deveria estar a praça da cidade, limpa agora para acolher os grupos de resgate e salvamento. Os monges e visitantes sobreviventes tinham ido para o campo nevado. Os monges utilizavam ferramentas improvisadas e até mesmo as mãos nuas para resgatar os sobreviventes, mas sobretudo para desenterrar cadáveres congelados.

Abulurd desceu do tóptero e ajudou sua mulher a sair. Tinha medo que suas pernas tremessem tanto como as dela. Embora rajadas geladas lançassem cristais de gelo em seus rostos, as lágrimas que os olhos claros de Abulurd derramavam não eram de frio.

Ao vê-los chegar, o robusto burgomestre Onir Rautha-Rabban se adiantou para recebê-los. Sua boca se abria e fechava sobre um queixo barbudo, mas não podia falar. Por fim, rodeou sua filha com seus grossos braços, e a reteve durante um longo momento. Abulurd também abraçou seu sogro.

Bifrost Eyrie tinha sido famosa por sua arquitetura, pelas janelas de cristais prismáticos que refletiam arco-íris na montanha. As pessoas que habitavam a cidade eram artesãos que criavam objetos preciosos, quae vendiam a clientes ricos de outros planetas. Os mais famosos eram os insubstituíveis livros de caligrafia delicada, assim como adornados manuscritos da enorme Bíblia Católica Laranja. Só as Grandes Casas mais ricas do Landsraad podiam permitir o luxo de uma Bíblia escrita à mão e decorada pelos monges de Lankiveil.

De particular interesse tinham sido as esculturas de cristal cantarin, lindas formações de quartzo extraídas de grutas, dispostas com supremo cuidado e sintonizadas com o comprimento de onda apropriada, de modo que a ressonância de um cristal, ao receber um leve golpe, produzia uma vibração no seguinte, e no seguinte, como uma onda de harmonia, uma música que não se parecia com nenhuma outra do Império.

— Mais equipes de trabalho e transporte vêm para cá — disse Abulurd para Onir Rautha-Rabban —. Trazem equipamento e suprimentos de emergência.

— Só o que vemos ao redor é dor e tragédia — disse Emmi —. Sei que é muito para que pense com lucidez, pai, mas se pudermos fazer algo...

O homem da barba grisalha assentiu.

— Sim, há algo que podem fazer, minha filha. — Onir olhou para os olhos Abulurd —. No mês que vem temos que pagar nosso dízimo à Casa Harkonnen. vendemos cristais suficientes, tapeçarias e livros, e já tínhamos juntado a quantidade requerida de Solaris. Mas agora... — Apontou com um gesto para as ruínas que a avalanche tinha deixado —. Tudo está sepultado aí debaixo, e necessitaremos do dinheiro que temos para ajudar...

No acordo original entre a Casa Rabban e a Casa Harkonnen, todas as cidades religiosas de Lankiveil tinham concordado em pagar uma quantia a cada ano. Como resultado, estavam livres de outras obrigações e os deixavam em paz. Abulurd levantou uma mão.

— Não deve se preocupar com isso.

Graças a história de crueldades de sua família, Abulurd sempre tinha procurado viver bem, tratar os outros com o respeito que mereciam. Mas desde a caçada de baleias que seu filho tinha arruinado a zona de acasalamento de Tula Fjord, tinha a impressão de que estava caindo em um buraco profundo e escuro. Só o amor que compartilhava com Emmi o sustentava, proporcionava-lhe energia e otimismo.

— Leve todo o tempo que necessitar. O importante agora é encontrar aos sobreviventes, e ajudá-los a reconstruir.

Onir Rautha-Rabban parecia muito abatido para chorar. Olhava para as pessoas que trabalhavam na ladeira da montanha. O sol brilhava no céu, de um azul transparente. A avalanche tinha pintado seu mundo de um branco antigo, dissimulando o alcance da desgraça que havia trazido.

 

Em Giedi Prime, na estadia privada onde ia freqüentemente para refletir com seu sobrinho e seu Mentat, o barão Harkonnen reagiu ante a notícia com a adequada indignação. Saltava em seu mecanismo antigravitacional, enquanto outros se sentavam em poltronas.

Uma nova bengala, quase decorativa, descansava contra a cadeira, para o caso de precisar agarrá-la e golpear alguém. A bengala tinha como cabeça um grifo Harkonnen, em vez da cabeça de verme de areia que tinha jogado pelo balcão.

Colunas decorativas se erguiam em cada esquina da habitação, de um estilo arquitetônico variado. Uma fonte seca enfeitava um canto. Não havia janelas (poucas vezes o barão se incomodava em admirar a vista), e sentia as lajes frias contra seus pés nus, que tocavam o chão suavemente, graças aos suspensores. Em um canto da habitação havia um poste com a bandeira da Casa Harkonnen apoiada contra a parede, que ninguém nunca se incomodou em endireitar.

O barão olhou para Glossu Rabban.

— Seu pai está exibindo outra vez seu coração mole e sua cabeça fraca.

Rabban deu um salto, temeroso de que o enviassem para colocar Abulurd na linha. Vestia uma jaqueta de pele marrom acolchoada, sem mangas, que deixava descoberto seus braços musculosos. Tinha o cabelo avermelhado esmagado devido ao capacete que usava com freqüência.

— Eu gostaria que parasse de me lembrar que ele é meu pai — disse, com a intenção de aplacar a cólera do barão.

— Durante quatro gerações, os ganhos recebidos pelos monastérios de Lankiveil nunca deixaram que vir. Esse foi nosso acordo com a Casa Rabban. Sempre pagam. Conhecem as condições. E agora, por causa de uma pequena — o barão bufou — avalanche, vão evitar seu dízimo? Como Abulurd pode desculpar seus súditos de suas obrigações? É o governador planetário, e tem responsabilidades.

— Podemos obrigar as outras cidades a pagar mais — sugeriu Piter De Vries. Retorceu-se, quanto mais possibilidades iam a sua mente. levantou-se da poltrona e atravessou a estadia em direção ao barão. A túnica solta se enrolou ao seu redor, enquanto deslizava com a graça e o silêncio de um fantasma vingativo.

— Não concordo em abrir um precedente assim — disse o barão —. Prefiro que nossas finanças sejam perfeitas, e Lankiveil conseguiu manter o acordo até agora.

Serviu-se de uma taça de conhaque kirano de uma mesinha auxiliar. Sorveu-o, com a esperança de que o licor de sabor defumado acalmaria a dor em suas articulações. Desde que começara a utilizar o mecanismo preso à cintura, o barão tinha aumentado ainda mais de peso ao ter reduzido a atividade. Sentia o corpo como um peso pendurado em seus ossos.

A pele do barão cheirava a eucalipto, devido aos óleos que acrescentava a seu banho diário. Os massagistas tinham aplicado ungüentos a sua pele, mas seu corpo deteriorado ainda se sentia debilitado.

— Se formos permissivos com uma cidade, daremos lugar a uma epidemia de desastres e desculpas.

Fez uma careta, e seus olhos negros se desviaram para Rabban.

— Compreendo que esteja aborrecido, tio. Meu pai é um imbecil.

De Vries levantou um dedo longo e ossudo.

— Deixem-me propor algo, meu barão. Lankiveil é lucrativa graças ao negócio das peles de baleia. Quase todos nossos lucros procedem dessa indústria. As poucas bagatelas e lembranças dos monastérios obtêm abundantes lucros, sim... mas em conjunto, os ganhos são insignificantes. Por uma questão de princípios, exigimos que paguem, mas não necessitamos deles.

O Mentat fez uma pausa.

— Qual é sua proposta?

O homem arqueou suas sobrancelhas.

— A proposta, meu barão, é que nesta situação particular, podemos nos permitir dar exemplo.

Rabban soltou uma gargalhada ensurdecedora, similar a de seu tio. Ainda estava ressentido com seu exílio em Lankiveil.

— A Casa Harkonnen controla o dízimo de Rabban-Lankiveil — disse o barão —. Tendo em conta as flutuações do mercado da especiaria, temos que assegurar nosso absoluto controle sobre todas as atividades que nos proporcionam dinheiro. Talvez não fiscalizamos devidamente as atividades do meu meio-irmão. Possivelmente pensa que pode ser tão misericordioso como quiser, e que nós não nos importaremos. É preciso pôr ponto final a este tipo de pensamento.

— O que vai fazer, tio?

Rabban se inclinou e seus olhos de se entreabriram.

— Você vai fazer. Necessito de alguém familiarizado com Lankiveil, alguém que compreenda as exigências do poder.

Rabban engoliu em seco, impaciente, pois sabia o que o esperava.

— Voltará para lá — ordenou o barão —. Mas desta vez não como alguém caído em desgraça. Desta vez tem um trabalho que fazer.

 

A Bene Gesserit não diz mentiras improvisadas. A verdade nos serve melhor.

Coda Bene Gesserit

Numa manhã nublada, o duque Leto estava sentado sozinho no pátio do castelo de Caladan, contemplando um café da manhã intocado de peixe defumado e ovos. Uma bandeja que continha documentos de papel impregnados em metal descansava junto a sua mão direita. Parecia que Kailea se descuidava cada vez mais com os assuntos de negócios cotidianos. Tanto a fazer, e nada interessante.

Do outro lado da mesa estavam os restos do café da manhã de Thufir Hawat. O Mentat tinha comido rapidamente e saído para cuidar dos detalhes de segurança necessários para os assuntos de estado do dia. Os pensamentos de Leto continuavam desviando-se para o Cruzeiro que tinha entrado em órbita, e para a lançadeira que logo desceria à superfície.

O que as Bene Gesserit querem de mim? Por que enviam uma delegação a Caladan? Não tinha tido nada a ver com a Irmandade desde que Rhombur tomara Tessia como concubina. Sua representante queria falar com ele sobre um “assunto de extrema importância”, mas tinha se negado a revelar nada mais.

Sentia um nó no estômago, e não dormira bem na noite anterior. A loucura do conflito entre os Moritani e os Ecaz pesava de forma constante sobre sua mente. Embora tivesse ganho prestigio no seio do Landsraad por seus esforços diplomáticos, sentia-se enojado pelo recente seqüestro e execução dos membros da família do arquiduque. Leto conhecera Sanyá, a filha de Armand Ecaz, a achara atraente, e até tinha pensado nela como uma boa candidata ao matrimônio. Mas os valentões de Grumman tinham assassinado Sanyá e seu tio.

Sabia que o conflito não se resolveria sem mais derramamento de sangue.

Leto viu que uma mariposa de brilhantes cores laranja e amarelo revoava sobre um vaso com flores colocado no centro da mesa. Por um instante, o belo inseto lhe fez esquecer seus problemas, mas as perguntas não deixavam de vir a sua mente.

Anos antes, na época do Julgamento por Confisco, a Bene Gesserit o ajudara, embora soubesse muito bem que não devia esperar uma generosidade incondicional. Thufir Hawat fizera uma advertência a Leto que este conhecia muito bem: “As Bene Gesserit não são as garotas de recado de ninguém. Fizeram esta oferta porque quiseram, porque de alguma forma as beneficiava.”

Hawat estava certo, é claro. A Irmandade era perita em conseguir informação, poder e posição. Uma Bene Gesserit de Fila Oculta estava casada com o imperador. Shaddam IV tinha uma anciã Reveladora da Verdade a seu lado a todo momento. Outra irmã se casou com o ministro da especiaria de Shaddam, o conde Hasimir Fenring.

Por que estiveram sempre tão interessadas em mim?, perguntou-se Leto.

A mariposa pousou sobre a bandeja junto a sua mão e exibiu os belos desenhos de suas asas.

Até com capacidades Mentat avançadas, Hawat era incapaz de proporcionar projeções úteis em relação aos motivos da Irmandade. Talvez Leto devesse perguntar a Tessia. Geralmente, a concubina de Rhombur dava respostas diretas. Mas embora Tessia fosse agora um membro da Casa Atreides, a jovem continuava leal à Irmandade. E nenhuma organização guardava melhor seus segredos que a Bene Gesserit.

Com um brilho de cor, a mariposa dançou no ar a frente de seus olhos. Leto estendeu uma mão com a palma para cima, e para sua surpresa, o inseto pousou sobre ela, tão leve que mal sentiu.

— Tem as respostas que estou procurando? É isso que tenta me dizer?

A mariposa depositara toda sua fé nele, convencida de que Leto não lhe faria mal. O mesmo acontecia com a sagrada confiança que o bom povo do Caladan depositava nele. A mariposa saiu voando e aterrissou no chão, à sombra da mesa do café da manhã.

De repente apareceu um criado no pátio.

— Meu senhor, a delegação chegou antes do previsto. Já está no espaçoporto!

Leto se pôs em pé brutalmente e derrubou a bandeja. Caiu sobre as lajes do chão. O criado se apressou a recolhê-la, mas Leto o afastou para um lado quando viu que a mariposa fora esmagada debaixo ela. Seu descuido tinha matado o delicado inseto. Perturbado, ajoelhou-se junto à mariposa por vários segundos.

— Está tudo bem, meu senhor? — perguntou o criado.

Leto se levantou, recolheu a bandeja e compôs uma expressão estóica.

— Informe à delegação que a receberei em meu escritório, em vez de no espaçoporto.

Enquanto o servo saía a toda pressa, Leto recolheu a mariposa morta e a deixou entre duas. Apesar do corpo do inseto estar esmagado, as asas delicadas continuavam intactas. Guardaria-a em um estojo de plaz transparente, para recordar sempre a facilidade com que um momento de descuido podia destruir a beleza...

Com seu uniforme negro, capa verde e distintivo ducal, Leto se levantou de sua mesa de madeira Elacca. Fez uma reverência quando cinco irmãs com hábito negro entraram, conduzidas por uma mulher de cabelo grisalho, bochechas fundas e olhos brilhantes. Seu olhar se desviou para uma jovem beleza de cabelo brônzeo que estava a seu lado, mas depois se concentrou na líder.

— Sou a reverenda madre Gaius Helen Mohiam. — Seu rosto não manifestava hostilidade, mas tampouco lhe ofereceu um sorriso —. Obrigado por nos permitir falar com você, duque Leto.

— Por regra geral, não concedo audiência quando me avisam com tão pouca antecipação — disse Leto com um frio assentimento. Hawat lhe aconselhara a tentar desconcertar a mulher, se fosse possível —. Entretanto, como a Irmandade não solicita com freqüência minha indulgência, posso abrir uma exceção. — Um criado fechou as portas do estúdio privado quando Leto apontou para seu guerreiro Mentat —. Reverenda madre, apresento-lhe Thufir Hawat, meu chefe de segurança.

— Ah, o famoso mestre de Assassinos — disse a mulher e sustentou seu olhar.

— Trata-se apenas de um título informal.

Hawat fez uma reverência, muito desconfiado. A tensão podia ser apalpada no ar, e Leto não sabia como aplacá-la.

Quando as mulheres se sentaram em poltronas amaciadas, Leto se descobriu fascinado pela jovem de cabelo vermelho, que continuava de pé. Tinha talvez uns dezessete anos, seus inteligentes olhos verdes olhavam para ele de um rosto ovalado com um nariz algo arrebitado e boca generosa. Seu porte era majestoso. Tinha-a visto antes? Não estava seguro.

Quando Mohiam desviou a vista para a jovem, que estava imóvel e rígida, trocaram um olhar duro, como se existisse tensão entre ambas.

— Esta é a irmã Jessica, uma acolita de muito talento, treinada em muitas disciplinas. Nós gostaríamos de oferecê-la a seu lar, com nossas saudações.

— Oferecê-la? — disse Hawat com brutalidade —. Como criada, ou espiã?

A moça deu-lhe um olhar irado, mas dissimulou sua indignação.

— Como consorte, ou como concubina. Isto o duque tem que decidir. — Mohiam ignorou o tom acusador do Mentat —. As irmãs Bene Gesserit demonstraram seu valor como conselheiras em muitas Casas, incluída a Casa Corrino. — Mantinha concentrada sua atenção em Leto, embora estava alerta a todos os movimentos de Hawat —. Uma irmã pode observar, e conclusões... mas isso não a transforma em uma espiã. Muitos nobres consideram que nossas mulheres são excelentes companheiras, belas, treinadas nas artes...

Leto a interrompeu.

— Já tenho uma concubina, a mãe de meu filho. — Olhou para Hawat e compreendeu que o Mentat estava analisando o novo dado.

Mohiam lhe dedicou um sorriso significativo.

— Um homem importante como você pode ter mais de uma mulher, duque Atreides. Ainda não escolheu uma esposa.

— Ao contrário do imperador, eu não mantenho um harém.

As outras irmãs pareciam impacientes, e a reverenda madre exalou um longo suspiro.

— O significado tradicional da palavra “harém”, duque Atreides, inclui todas as mulheres pelas quais um homem é responsável, incluídas suas irmãs e mãe, tanto como suas concubinas e esposas. Carece de conotações sexuais.

— Jogos de palavras — grunhiu Leto.

— Desejam praticar jogos de palavras, duque Leto, ou fechar um acordo? — A reverenda madre olhou para Hawat, como se não estivesse segura do que podia dizer diante do Mentat —. Um assunto que implica à Casa Atreides chegou a nosso conhecimento. Refere-se a certa conspiração perpetrada contra você há alguns anos.

Com uma sacudida apenas perceptível, Hawat concentrou sua atenção. Leto se inclinou para frente.

— Que conspiração, reverenda madre?

— Antes de lhe revelar esta informação vital, temos que chegar a um acordo. — Suas palavras não surpreenderam Leto —. Pedimos tanto em troca? — Devido à urgência da situação, Mohiam pensou que talvez fosse necessário utilizar a Voz, mas o Mentat perceberia. Jessica continuava de pé a um lado, em exibição permanente.

— Qualquer outro nobre estaria contente de ter esta menina adorável como parte de seu séquito... em qualquer qualidade.

A cabeça de Leto girava. Está claro que querem ter alguém aqui, em Caladan. Com que propósito? Só para exercer influência? Por que se dão a esse trabalho? Tessia já está aqui, se tanto necessitavam de uma espiã. A Casa Atreides é respeitada e influente, mas não exerce um poder específico no Landsraad.

Por que chamei sua atenção?

E por que insistem tanto nesta garota?

Leto rodeou a mesa e apontou para Jessica.

— Venha aqui.

A jovem cruzou o pequeno escritório. Era uma cabeça mais baixa que o duque, de pele imaculada e radiante. Dirigiu-lhe um olhar longo e impertinente.

— Ouvi dizer que todas as Bene Gesserit são bruxas — disse Leto, enquanto passava um dedo pelo vermelho sedoso de seu cabelo.

A jovem sustentou seu olhar e respondeu com voz suave.

— Mas temos corações e corpos.

Seus lábios eram sensuais, tentadores.

— Ah, mas para que foram treinados seu coração e corpo?

Jessica se esquivou da pergunta com tom tranqüilo.

— Foram treinados para serem leais, para oferecer o consolo do amor... para ter filhos.

Leto olhou para Thufir Hawat. O guerreiro, que já não estava em estado de transe Mentat, assentiu, para indicar que não se opunha ao trato. Entretanto, em suas conversas privadas, tinham planejado uma política agressiva com a delegação, para ver como as Bene Gesserit reagiam quando submetidas a pressão, para desorientá-las enquanto o Mentat observava. Parecia que aquela era a oportunidade de que tinham falado.

— Não acredito que a Bene Gesserit dê algo em troca de nada — replicou Leto, furioso de repente.

— Mas meu senhor...

Jessica não pôde terminar a frase, porque o duque desembainhou a faca que levava no cinto e apoiou a folha contra sua garganta, ao mesmo tempo em que apertava à moça contra si para imobilizá-la.

Suas companheiras Bene Gesserit não se moveram. Olharam para Leto com irritante serenidade, como se pensassem que Jessica podia matá-lo se assim decidisse. Mohiam observava a cena com olhos impenetráveis.

Jessica jogou a cabeça atrás, para deixar exposta ainda mais sua garganta. Era o costume dos lobos D, conforme lhe tinham ensinado na Escola Materna: mostre sua garganta em sinal de total submissão, e o agressor capitulará.

A ponta da faca de Leto se afundou um pouco mais em sua pele, mas não o suficiente para derramar sangue.

— Não confio em sua oferta.

Jessica recordou a ordem que Mohiam tinha sussurrado em seu ouvido antes de que a lançadeira pousasse no espaçoporto municipal de Baía. “A cadeia não deve se quebrar — havia dito sua mentora —. Tem que nos dar a filha que necessitamos.”

Jessica ignorava seu papel no programa de reprodução da Irmandade, e tampouco devia perguntar. Muitas jovens eram atribuídas como concubinas às Grandes Casas, e carecia de razões para acreditar que era diferente das demais. Respeitava suas superioras e se esforçava por demonstrá-lo, mas às vezes, os métodos rigorosos de Mohiam a irritavam. Tinham tido uma discussão a caminho de Caladan, e as sequelas ainda a incomodavam.

— Poderia matá-la agora — lhe sussurrou Leto ao ouvido.

Mas não podia ocultar, nem a ela nem para as outras irmãs, que sua ira era fingida. Anos atrás, tinha estudado este homem de cabelo escuro, oculta nas sombras de um balcão de Wallach IX.

A jovem apertou o pescoço contra a folha.

— Vocês não matam por matar, Leto Atreides. — O duque retirou o fio, mas seguiu continuou prendendo-a pela cintura —. Não têm nada que temer de mim.

— Fechamos o trato, duque Leto? — perguntou Mohiam, indiferente a seu comportamento —. Asseguro-lhe que nossa informação é muito... reveladora.

Leto não gostava que o encurralassem, mas se afastou de Jessica.

— Você disse que perpetraram uma conspiração contra mim?

Um sorriso apareceu nos cantos enrugados da boca da reverenda madre.

— Antes, você têm que concordar com o trato. Jessica fica aqui e será tratada com o devido respeito.

Leto e seu guerreiro Mentat trocaram um olhar.

— Pode viver no castelo de Caladan — disse o duque por fim —, mas não concordo a levá-la para minha cama.

Mohiam deu de ombros.

— Utilize-a como desejar. Jessica é um recurso útil e valioso, mas não desperdice seus talentos.

A biologia seguirá seu curso.

— Reverenda madre, qual é essa informação vital? — perguntou Hawat.

Mohiam pigarreou.

— Falo de um incidente ocorrido há alguns anos, devido ao qual foi falsamente acusado de atacar duas naves tleilaxu. Descobrimos que os Harkonnen estavam implicados.

Tanto Leto como Hawat ficaram tensos. O cenho do Mentat se franziu, enquanto se concentrava para armazenar mais dados.

— Têm provas disto? — perguntou Leto.

— Utilizaram uma nave de guerra invisível para disparar contra as naves tleilaxu, para implicá-lo, e assim desencadear uma guerra entre os tleilaxu e os Atreides. Temos os restos dessa nave.

— Uma nave invisível? Nunca ouvi nada semelhante.

— Mas existe. Temos o protótipo, o único de sua espécie. Por sorte, os Harkonnen sofreram problemas técnicos, o que contribuiu para sua... queda... perto de nossa Escola Materna. Também descobrimos que os Harkonnen são incapazes de fabricar outra nave igual.

O Mentat a estudou.

— Vocês analisaram a tecnologia?

— A natureza do que descobrimos não pode ser revelada. Uma arma tão temível poderia causar estragos no Império.

Leto soltou uma breve gargalhada, satisfeito por ter obtido por fim uma resposta para a pergunta que o atormentava há quinze anos.

— Thufir, entregaremos esta informação ao Landsraad, e limparemos meu nome de uma vez por todas. Reverenda madre, nos proporcione todas as provas e documentação...

Mohiam negou com a cabeça.

— Isso não faz parte de nosso trato. A tempestade passou, duque Leto. Seu Julgamento por Confisco terminou, e foi exonerado da culpa.

— Mas isso não de tudo. Algumas Grandes Casas ainda suspeitam que estive envolvido. Poderiam apresentar provas concludentes de minha inocência.

— Isso significa tanto para você, duque Leto? — Mohiam arqueou as sobrancelhas —. Possivelmente poderiam encontrar uma maneira mais eficaz de solucionar esse problema. A Irmandade não apoiará tal empenho só para gratificar seu orgulho ou salvar sua consciência.

Leto se sentiu indefeso e muito jovem ante ao intenso olhar de Mohiam.

— Como podem me dar semelhante informação e esperar que não a aproveite? Se não ten provas do que dizem, sua informação não serve de nada.

Mohiam franziu o sobrecenho e seus olhos escuros cintilaram.

— Por favor, duque Leto. Será que a Casa Atreides só está interessada em adornos e documentos? Pensei que valorizariam a verdade por ela mesma. Dei-lhe a verdade.

— Isso é o que você diz — Hawat respondeu com frieza.

— O líder sábio compreende a paciência. — Pronta para partir, Mohiam apontou para suas companheiras —. Um dia descobrirão a melhor forma de utilizar esta informação. Mas não desanime. Apenas compreender que o que ocorreu naquele Cruzeiro deveria ser muito valioso para você, duque Leto Atreides.

Hawat esteve a ponto de protestar, mas Leto levantou uma mão.

— Ela tem razão, Thufir. Essas respostas são muito valiosas para mim. — Olhou para a garota de cabelo avermelhado —. Jessica pode ficar aqui.

 

O homem que se rende ao vício da adrenalina se revolta contra toda a humanidade. Revolta-se contra si mesmo. Foge dos problemas solucionáveis da vida e admite uma derrota que suas próprias ações violentas ajudam a criar.

CAMMAR PILRU, embaixador ixiano, no exílio.

Tratado sobre a queda de governos injustos.

 

O carregamento secreto de explosivos chegou intacto por meio de equipes de partilha extraplanetarias subornadas, escondido em gavetas, entregues em um mole de carga na entrada da caverna situada nos penhascos do canyon do porto de entrada.

C'tair, que trabalhava com os carregadores, localizou as marcas sutis e desviou o contêiner de aspecto inofensivo, como tinha feito tantas vezes. Não obstante, quando descobriu os discos explosivos, empacotados cuidadosamente, ficou atônito. Devia haver mil! Além das instruções de uso dos elementos, não havia mensagem, nem sequer um código, e nenhuma fonte de informação, mas C'tair sabia a identidade do remetente. O príncipe Rhombur nunca tinha enviado tanto material. C'tair sentiu esperanças renovadas, assim como o peso de uma tremenda responsabilidade.

Restavam poucos rebeldes independentes, mas não confiavam em ninguém. C'tair se comportava da mesma forma. Além de Miral Alechem, sentia-se sozinho nesta luta, embora Rhombur e os tleilaxu pensassem, ao que parecia, que existia uma resistência muito mais numerosa e organizada.

Aqueles explosivos lhes dariam a razão.

Durante sua juventude, o príncipe Rhombur Vernius tinha sido um menino gordinho. C'tair recordava-se dele como uma espécie de bufão bondoso, que dedicava mais tempo a recolher espécimes geológicos que a aprender a arte de governar ou os processos industriais ixianos. Pelo visto, para ele sempre havia tempo.

Mas tudo tinha mudado com a chegada dos tleilaxu. Tudo.

Até no exílio, Rhombur ainda conservava códigos de passagem com a administração de embarques, e graças a eles os materiais brutos entravam na cidade-fábrica. Tinha conseguido enviar fornecimentos vitais, e agora os discos explosivos. C'tair jurou que cada um seria utilizado. Agora, sua principal preocupação era esconder os materiais de demolição antes que os preguiçosos suboides ixianos descobrissem o verdadeiro conteúdo do pacote.

Vestido com o uniforme roubado de um operário de nível superior, transportou o carregamento de explosivos à cidade estalactite em um carro antigravitacional, junto com outras entregas. Não correu para seu esconderijo. Sempre mantinha uma expressão vazia e passiva, sem conversar, sem mal responder aos comentários ou insultos dos senhores tleilaxu.

Quando chegou por fim ao nível correto e entrou em seu cubículo, protegido por sensores, através da entrada camuflada, C'tair amontoou os discos, negros e de textura rugosa, e depois se estendeu em sua cama de armar, com a respiração acelerada.

Aquele seria seu primeiro grande golpe em anos.

Fechou os olhos. Momentos depois ouviu um clique na porta, passos e rangidos. Não se moveu nem olhou porque os sons lhe eram familiares, um ápice de consolo para ele em um mundo desumano. Sentiu o tênue e doce perfume da jovem.

Fazia meses que vivia com Miral Alechem. Obstinado-se a sua mútua companhia depois de fazer amor em um túnel às escuras, apressados e nervosos, enquanto se escondiam de uma patrulha Sardaukar. Durante seus anos de patriota ixiano, C'tair tinha resistido ao impulso de criar relações pessoais, contato íntimo com outros seres humanos. Era muito perigoso, muito perturbador. Mas Miral compartilhava os mesmos objetivos e necessidades. E era tão bonita...

Ouviu que deixava algo no chão com um leve golpe. Beijou-o na bochecha.

— Trouxe algumas coisas, um cabo de alta energia, um equipamento laser, um...

Ouviu que ele respirava fundo.

C'tair sorriu, sempre com os olhos fechados. Ela tinha visto as pilhas de discos.

— Eu também trouxe algumas coisas.

De repente, levantou-se e explicou como os explosivos tinham chegado a suas mãos e como funcionavam. Cada disco negro, do tamanho de uma moeda pequena e cheio de glóbulos detonadores comprimidos, continha potência suficiente para explodir um pequeno edifício. Com apenas um punhado, colocados em lugares estratégicos, causariam tremendos danos.

Os dedos da jovem se aproximaram da pilha, vacilaram. Olhou para ele com seus olhos grandes e escuros, e enquanto isso C'tair pensou nela, como tão freqüentemente fazia. Miral era a melhor pessoa que tinha conhecido em sua vida. Era admirável a tenacidade com que corria riscos comparáveis aos dele. Não o seduzira nem tentara. Sua relação tinha acontecido, simplesmente. Pareciam feitos um para o outro.

Pensou em seu breve amor juvenil por Kailea, a filha do conde Vernius. Tinha sido uma fantasia, uma brincadeira, que possivelmente teria se transformado em realidade se IX não tivesse caído. Entretanto, Miral era toda a realidade que podia tolerar.

— Não se preocupe — a tranquilizou —. Precisa de um detonador para ativá-los.

Apontou para uma caixinha vermelha cheia de temporizadores.

Miral agarrou um disco em cada mão, inspecionou-os como faria um joalheiro de Hagal com novas gemas de fogo. C'tair se atrasou nas possibilidades que desfilavam por sua mente, pontos chave da cidade, lugares onde os explosivos causariam mais estragos aos invasores.

— Já escolhi alguns alvos — disse —. Esperava que você me ajudaria.

A jovem deixou os discos em seu lugar com cautela e depois se jogou sobre o beliche e se abraçaram.

— Você sabe que sim.

Sentiu seu fôlego quente no ouvido. Tiraram a roupa em uma exalação. Depois de fazer amor com uma intensidade atiçada por seus grandes planos, C'tair dormiu mais horas do que estava acostumado a permitir-se. Quando esteve descansado e preparado, Miral e ele repassaram o plano para verificar que tudo estava controlado, que tinham tomado todas as precauções necessárias. Depois de montar várias cargas na habitação, pegaram os outros explosivos e se aproximaram da porta. Examinaram os exploratórios para assegurar-se de que o corredor exterior estava vazio.

Com tristeza, C'tair e Miral disseram adeus em silêncio para a câmara protegida que tinha sido o esconderijo desesperado de C'tair durante tanto tempo. Agora serviria para um último propósito, e lhes permitiria dar um golpe duro dos invasores.

Os Bene Tleilax nunca saberiam o que os golpeara.

C'tair amontoou as caixas de uma em uma, junto com outras gavetas necessárias para os experimentos que os tleilaxu realizavam em seu pavilhão de pesquisas. Uma das caixas estava equipada com discos explosivos, um embarque similar a outros que se estavam sendo carregados no sistema de trilhos automatizado. O pacote seria entregue no coração de sua guarida secreta.

Não se dignou a olhar nem uma vez para a caixa em questão. Limitou-se a empilhá-la com as outras, dispôs disfarçadamente o temporizador e se apressou a carregar outra caixa. Um dos operários suboides tropeçou, mas C'tair agarrou a caixa do homem e o deixou no automotor, para evitar atrasos. Concedeu-se oportunidades suficientes, mas ainda considerava difícil dissimular seu nervosismo. Miral Alechem se encontrava em um passadiço que corria sob outro edifício. Estaria colocando cargas na base da imensa estrutura onde ficavam os escritórios tleilaxu nos níveis superiores. A estas alturas, já teria escapado.

A plataforma carregada entrou em movimento com um zumbido e acelerou para o complexo de laboratório. C'tair desejava saber o que acontecia por trás daquelas janelas fechadas. Miral não tinha conseguido descobrir, nem tampouco ele. Mas se conformaria causando estragos.

Os tleilaxu, apesar da sua sangrenta repressão, tornaram-se descuidados depois de dezesseis anos. Suas medidas de segurança eram risíveis... e agora lhes demonstraria o erro de seus costumes.

O golpe tinha que ser forte o bastante para que se cambaleassem, porque o próximo atentado não seria tão fácil.

C'tair reprimiu um sorriso de impaciência, enquanto seguia com a vista o vagão. Atrás dele, outros operários começavam a carregar outra plataforma vazia. Olhou para o teto da gruta, para os finos edifícios que se sobressaíam como ilhas invertidas através do céu projetado.

O cálculo do tempo era crucial. As quatro bombas deviam estalar quase ao mesmo tempo.

Seria uma vitória tanto psicológica como material. Os invasores tleilaxu deviam chegar à conclusão de que um movimento de resistência em grande escala e coordenado era o responsável por estes ataques, que os rebeldes contavam com numerosos membros e um plano organizado.

Nunca devem suspeitar que somos apenas dois.

Depois do êxito, talvez outros se lançassem a luta por sua conta e risco. Se gente suficiente entrasse em ação, transformaria a rebelião em grande escala numa profecia cumprida.

Respirou fundo e se voltou para outros gavetas que esperavam. Não se atrevia a exibir um comportamento que diferente do costumeiro. Módulos de vigilância se moviam sem cessar no alto, com luzes piscantes, e câmaras de observação espiavam até o menor movimento.

Não consultou seu cronômetro, mas sabia que a hora se aproximava.

Quando a primeira explosão estremeceu o chão da caverna, os abúlicos operários interromperam suas tarefas e se olharam, confusos. C'tair sabia que a detonação ocorrida nos poços de eliminação de lixo teria que ser suficiente para derrubar as estadias, para retorcer e destruir as correias transportadoras. Talvez os escombros chegassem a obstruir os poços de magma.

Antes que alguém pudesse reparar em sua expressão satisfeita, os edifícios estalactite do teto explodiram.

Nos níveis administrativos, uma série de discos explosivos destruíram seções inteiras do complexo burocrático. Uma asa do Grande Palácio ficou pendurada por longas vigas mestras e cabos reforçados quebrados.

Caíram entulhos no centro da caverna, e os operários fugiram tomados pelo pânico. Uma luz brilhante e uma nuvem de pó de rocha surgiu das câmaras do teto destroçadas.

Alarmes ensurdecedores retumbaram nas paredes de pedra. Não tinha ouvido tanto barulho desde a rebelião dos suboides. Tudo funcionava perfeitamente.

Fugiu com o resto de seus companheiros, fingindo terror, e se perdeu entre a multidão. Sentiu o cheiro de pó dos materiais de construção e do medo que o rodeava.

Ouviu uma explosão longínqua, vinda da direção do edifício onde Miral trabalhava, e soube que tinha tomado a precaução de afastar-se antes de provocá-la. Por fim, tal como esperava, a vagoneta lotada chegou à zona de carga do pavilhão de pesquisas secretas. O dispositivo final de discos explodiu em línguas de fogo e nuvens de fumaça negra. O som da detonação ressoou como uma batalha espacial entre os muros grossos.

Os incêndios começaram a propagar-se. Tropas Sardaukar irromperam como escaravelhos enlouquecidos pelo calor, afim de descobrir a origem do ataque. Dispararam para o teto, só para expressar sua ira. Os alarmes estremeciam as paredes. Os tleilaxu gritavam ordens incompreensíveis em seu idioma pelos auto-falantes, enquanto as equipes de operários murmuravam, aterrorizadas.

Mas mesmo no caos, C'tair reconheceu em alguns rostos ixianos uma espécie de satisfação, uma sensação de assombro pela vitória que acabavam de conseguir. Fazia muito tempo que tinham perdido sua vontade de combater.

Agora talvez as recuperassem.

Finalmente, pensou C'tair enquanto piscava e tentava dissimular seu sorriso. Ergueu os ombros, mas os deixou cair para voltar a assumir a expressão de prisioneiro derrotado e colaborador.

Finalmente os invasores tinham recebido um verdadeiro golpe.

 

 

                                                                   CONTINUA

 

 

Não existe modo de trocar informação sem formular opiniões.

Axioma Bene Gesserit

Do balcão de seus aposentos privados, Jessica observou sua antiquada dama de companhia, com suas bochechas rosadas como maçãs, no pátio de práticas próximo ao posto de guarda oeste. Olhou enquanto a mulher ofegante conversava com Thufir Hawat e observou que utilizava muitos gestos para falar. Ambos olharam para sua janela.

O Mentat acredita que sou estúpida?

Durante o mês em que Jessica estava vivendo em Caladan, tinham satisfeito suas necessidades com fria precisão, como uma hóspede respeitada, mas nada mais. Thufir Hawat se ocupou em pessoa de velar por seu conforto, e a instalara nos antigos aposentos de lady Helena Atreides. depois de ficarem fechadas durante tantos anos, as habitações precisaram ser arejadas, mas os belos móveis, o enorme banheiro e o solário eram mais do que Jessica necessitava. Uma Bene Gesserit precisava de poucos luxos e comodidades.

 

 

 

 

O Mentat também lhe tinha destinado uma dama de companhia, que revoava a seu redor como uma mariposa e sempre encontrava tarefas que lhe exigissem estar perto de Jessica. Era óbvio que se tratava de uma espiã de Hawat.

Jessica tinha despedido a mulher naquela mesma manhã, sem nenhuma explicação. Sentou-se para esperar as repercussões. Viria o Mestre de Assassinos em pessoa, ou enviaria um representante? Compreenderia sua mensagem implícita? Não me subestime, Thufir Hawat.

Do balcão, viu que concluía sua conversa com a mulher. Afastou-se do posto de guarda com movimentos enérgicos e confiantes, em direção ao castelo.

Um homem estranho, aquele Mentat. Enquanto estava na Escola Materna, Jessica tinha estudado o histórico do Mentat, e descoberto que tinha passado a metade de sua vida em um centro de preparação Mentat, primeiro como estudante e depois como filósofo e tático teórico, antes de ser adquirido para o recém renomado duque Paulus Atreides, o pai de Leto.

Jessica utilizou seus poderes de observação Bene Gesserit para estudar aquele homem flexível e seguro de si mesmo. Hawat não era como os outros graduados das escolas Mentat, os tipos introvertidos que fugiam do contato pessoal. Este homem mortífero era agressivo e ardiloso, com uma lealdade fanática à Casa Atreides. Em alguns aspectos, sua natureza letal era similar a do Mentat pervertido pelos tleilaxu, Piter De Vries, mas Hawat era o oposto ético do Mentat Harkonnen. Tudo era muito curioso.

De forma similar, tinha observado que o Mestre de Assassinos a esquadrinhava através de seu filtro lógico Mentat, processava dados sobre ela e... 

 

                                                                                                    Brian Herbert & Kevin J. Anderson

 

 

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