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A CONVERSÃO DO DIABO / Leonid Andreiev
A CONVERSÃO DO DIABO / Leonid Andreiev

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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A CONVERSÃO DO DIABO

 

- Quem não ama o bem ?

Uma vez, um diabo, já entrado em anos e a quem tinham apelidado, no inferno, de Narigão, sentiu, inesperadamente, certa inclinação à virtude. Entregara-se na sua mocidade, como todos os diabos, a insignificantes proezas diabólicas, mas, com a idade, já um tanto cansado do seu oficio, tornara-se comedido..

Embora gozasse de ótima saúde, os excessos juvenis quebraram-lhe um pouco as forças e ele não sentia entusiasmo algum pelas tolices da mocidade. Cada vez sentia mais acentuada propensão para a ordem (virtude esta muito comum entre os diabos); dotado de espírito firme e esclarecido, embora um tanto metafísico, gostava de filosofar.

Acabou por perder a fé na perfeição do inferno e nos costumes diabólicos. Enfadava-se principalmente nos dias festivos, quando não tinha nenhuma tarefa a desempenhar e não sabia como matar o tempo, tanto mais que era celibatário. Para lutar contra essa situação que tanto lhe perturbava o espirito, entregou-se ao trabalho, mudando várias vezes de ofício. De inicio, instalou-se como diabo tentador em uma igrejinha católica de Florença.

Ali, segundo suas próprias palavras, saboreou pela primeira vez o repouso de espirito.

Ali, também principiou sua conversão.

A igreja, era muito pequena, e ele tinha pouco trabalho. As míseras velhacadas que tanto agradavam que diabos jovens - apagar as velas, fazer com que o sacristão tropeçasse ou que as velhinhas, enquanto rogavam a Deus, pensassem coisas escabrosas - não o agradavam; ao contrário, chegavam a lhe causar engulhos. Quanto às tataranhadas importantes, não se oferecia oportunidade para elas.

Todos os paroquianos eram pessoas modestas, que dificilmente se deixavam tentar. Nem ouro, que nunca haviam visto; nem o amor passional, que jamais conheceram; nem os orgulhosos sonhos de ambição, completamente estranhos a sua natureza, podiam turvar a paz de suas almas superficiais, razão pela qual todos os esforços do diabo eram inúteis.

Quanto aos pecados insignificantes, os fieis entregavam-se a eles de-per-si, sem necessidade de serem tentados pelo diabo, e este não precisava quebrar a cabeça para inventar coisa alguma, mesmo porque o numero dos pequenos pecados muito reduzido.

A principio quis tentar o pároco em pessoa, mas todas suas tentativas fracassaram; o pároco era um velho já desdentado, um tanto volvido a infância novamente, e puro como uma donzela. Somente conseguia faze-lo esquecer, algumas tardes, as palavras de sua oração, substituindo-as por outras, ou comer carne nos dias de jejum, ou entôo dormir até muito tarde, faltando a missa da madrugada. Mas o diabo sentia muito bem que tudo isso não passava de pecadilhos exteriores e que semelhantes meios não bastam para a perdição da alma de um crente.

Pouco a pouco começou a cansar-se do seu oficio, pondo no trabalho cada vez mais indiferença ou formalismo.

Por descargo de consciência, ocasionalmente contava, a alguma velha ajoelhada diante da Virgem, uma anedota escabrosa, cuspia duas ou três vezes num canto da igreja, ou fazia com que o velho sacerdote confundisse as palavras da missa sempre no mesmo ponto. Depois de haver cumprido o seu dever, apressava-se a sentar no se lugar favorito, a sombra de uma coluna, para acompanhar, devotadamente, num breviário furtado, as palavras do santo oficio. Mas esse passatempo, embora agradável, era contrario a natureza ativa do diabo.

Para não permanecer ocioso começou paulatinamente a trabalhar. Tornou-se, por vontade própria, uma espécie de sacristão-ajudante, da igreja. Varria-a de manha, limpava o metal das portas, ativava os candeeiro durante a missa e, junto aos demais paroquianos, acompanhava o coro, cantando em voz de falsete o "Ora pro nobis."

Se lhe acontecia entrar na igreja pela porta da rua, molhava suas garras na água benta, benzendo-se com ela. Quando todos os crentes se acercavam do pároco para que os abençoasse, acompanhava a multidão, atropelando as pessoas, conforme seus hábitos diabólicos.

Durante as raras visitas ao inferno, onde precisava apresentar informes acerca de suas atividades (os quais, por sua vez, eram arqui-falsos, como todos os informes dos diabos de Satanás), nosso diabo sentia aumentar cada vez mais seu asco pelo inferno, e por seus costumes, sua barulheira infernal, sua sujeira e desordem. As bruxas gritadeiras, que antigamente lhe pareciam tão cativantes e belas, não lhe inspiravam agora senão aversão; se divertia prendendo-lhes as vassouras com a porta, observando depois o terror e as torturas dessas desventuradas, que procuravam inutilmente livrar suas vassouras de tal aperto. No inferno todo o mundo mentia e re-mentia sem cessar; cada palavra era um embuste. Satanás mentia mais do que todos juntos; e o nosso diabo, que já havia perdidos hábitos do ambiente, sentia-se enfermo, ansioso por sair dali, para respirar um pouco.

Após uma de suas visitas ao inferno, voltou com particular satisfação à tranqüila igrejinha e durante dois dias e duas noites dormiu como um justo atrás da coluna. Quando despertou, disfarçou-se de homem, dirigindo-se ao confessionário, onde se achava o.pároco, pois era hora das confissões.

O velho sacerdote ficou estupefato. quando este senhor desconhecido, já idoso, de expressão triste e aborrecida, nariz grande, lábios finos e enrugados, apresentou-se como diabo. Mas este lhe jurou, e o sacerdote acabou por acreditá-lo. Com curiosidade perfeitamente infantil, pôs-sé a interroga-lo sobre as coisas do inferno.

O diabo, porém, não mostrou desejo de querer falar nelas.

- Ai ! meu padre. Aquilo não é viver; é um verdadeiro inferno . . .

- Bem, mas onde estão os teus cornos e os teus cascos ? - perguntou o padre, curiosamente. - E para que vieste aqui ? Para, tentar-me, ou para arrepender-te ? Se julgas que me tentas, previno-te de que não o conseguiras.

E com um sorriso levemente irônico acrescentou:

- Eu, meu caro senhor não me deixo tentar !

- Pois apesar de tudo., logrei faze-lo cair em tentação muitas vezes. Recorda-se da carne que comeu no ultimo dia de jejum ?

- Que carne ?

- Faz hoje quinze dias. - O sacerdote ficou inquieto.

- Então, foste tu quem me sugeriste essa idéia pecadora ? Ai meu Deus ! Vai-te . . . vai-te . . . Não te quero ver mais ! Põe teus cornos na cabeça, vai-te . . . Se não fizeres, chamarei o sacristão.

- Vim para arrepender-me ... e o senhor me escorraça ! - exclamou tristemente o diabo. - No entanto, esta escrito no Evangelho que se uma ovelha desgarrada . . .

- Mas, conheces tu o Evangelho ? - perguntou o assombrado sacerdote.

- O senhor pode examinar-me - respondeu orgulhosamente o diabo.

- Impossível !

- Interrogue-me e vera.

- Eis uma surpresa ! Vamos a minha casa; ali te examinarei. Não convém que continues neste santo lugar. . . Que coisa tão extraordinária ! Um diabo que conhece o Evangelho ! . Vamos para casa ! . . .

Durante toda a noite o pároco, em sua casa, examinou o.diabo e cada vez mais se assombrava.

- Tu es um verdadeiro sábio em questões religiosas ! Realmente ! - Porventura as estudaste ?

- Um pouco - respondeu modestamente o diabo. Apesar dessa modéstia, conservava sua dignidade; não se humilhava; nem mostrava demasiada afetação.

Via-se logo que era um diabo sério, ponderado e judicioso. Não se orgulhava dos seus conhecimentos, e por isso agradava mais ainda ao velho sacerdote.

- Afinal, - perguntou-lhe o padre - o que desejas ?

- Afinal, - perguntou-lhe o padre, - que desejas ?

Então o diabo caiu de joelhos, exclamando:

- Ensine-me, meu padre, a praticar a virtude. Sinto grande desejo disso. Eu não posso viver sem praticar a virtude, porem não sei como faze-lo. Quanto ao Satanás e a todos os misteres diabólicos, renuncio a eles para sempre.

E, com o fito de confirmar suas palavras, o diabo cuspiu desdenhosamente três vezes seguidas.

O pároco, então, bateu amigavelmente no ombro do diabo; este afastou-se um pouco, pois não lhe agradava que o tratassem com demasiada familiaridade e perguntou insistentemente e com melancólica entonação na voz:

- Meu padre, vai o Senhor ensinar-me a praticar a virtude ?

- Já o veremos ! Antes de mais nada, é preciso começar ler as obras dos Santos. Tu conheces bem a Bíblia, mas isso só não basta . . . Vai passear um pouco . . . Enquanto passeias, far-te-ei uma lista do que deves ler.

- Ouve, meu amigo. .. Estas sempre assim ?

- Que diz o senhor ?

- Falo da tua aparência . . . Tens um aspecto estranho . . . Dir-se-ia que comes pouco e te entregas sempre a tristes reflexões . . . Ou talvez não estejas sempre assim ! . . . Se podes tomar outra forma, mostra-me . . . embora seja eu velho, nunca vi outros diabos . . .

Mas o diabo não lhe quis dizer a verdade.

- Não ! Estou sempre assim - foi a resposta.

- Verdade ? . . . Tanto melhor . . . Pois olha: vai dar uma voltazinha, enquanto eu trabalho para o teu bem . . . embora tivesse dito que es sábio, na realidade, meu amigo, ainda te falta muito . . . muito . . .

- O que mais me interessa e aprender a praticar a virtude. Ensinar-me-a o senhor ?

- Sim, sim . . . - disse o velho sacerdote, tranqüilizando-o. - Leras muitos livros e aprenderas tudo . . . Não tenhas medo . . .

Durante dois anos o diabo estudou de cabo a rabo todos os livros que o sacerdote lhe dera, esforçando-se por encontrar neles resposta à pergunta que o perturbava: No que consiste bem e como fazê-lo para que não se transforme no mal?

Há muito tempo que conhecia a língua hebraica e agora estudou também o grego, para poder ler os livros religiosos não traduzidos, no próprio original. Comparou os textos, procurando os erros que tinham escapado aos outros, fez vários descobrimentos e chegou mesmo a criar novos esquemas religiosos.

Com tudo isso a saúde do nosso abnegado diabo começou a ressentir-se sensivelmente. Emagreceu e, apesar de tudo, não pôde encontrar resposta ao problema que tanto o preocupava. Acabou por desesperar-se.

Ao fim de dois longos anos de sofrimento e trabalhos, apresentou-se em casa do sacerdote. Despertando-o em plena noite, gritou-lhe:

- Salva-me, meu padre !

- Vamos vamos !. O que aconteceu ? - perguntou o sacerdote espantado. - Que te sucede agora ?

- Li todos os seus livros e continuo tão ignorante como antes a respeito de tudo que se refere ao bem. Salva-me, meu padre ! Eu não posso viver assim !

- Está certo de que lestes todos os livros? Tens tão pouca paciência ?

- Todos, meu padre ! Agora mesmo terminei o ultimo. Desgraçadamente, paramim, tenho um espírito curioso, diabólico e incapaz de suportar contradições, e os seus livros estão cheios delas . . .

O sacerdote, moveu a cabeça num gesto de reprovação.

- Isso é mau ! . . . muito mau . . . Em vez de crer, não fazes outra coisa senão criticar e procurar contradições. Satanás te incita a isso.

- Que posso fazer ? Não posso ser de outra maneira. Não encontro nesses livros senão contradições. De um lado, tudo é proibido de outro, tudo é permitido; o que é bom segundo um livro, torna-se mau noutro. Por exemplo: para começar dignamente uma nova vida, tinha a intenção de me casar com uma mulher honrada, afim de praticar o bem ao seu lado. Mas depois de ter lido todos esses livros, já não sei se o matrimonio é um bem ou é um mal.

- Aquele que se sente capaz . . .

- Não se trata disso. O senhor, por exemplo, celibatário, como todos os sacerdotes católicos, que consideram o matrimonio como um pecado mortal. No entanto, os antigos patriarcas, que eram tão santos como os senhores, possuíram mulher, e ate muitas mulheres cada um. Se São Joaquim não se tivesse casado, não teria aquela filha, que era uma santa também . . .

- Cala-te, pecador ! . . . É realmente perigoso falar contigo. Obriga-nos a incorrer em heresias . . . Se te parece bem, casa-te.

- Não é isto que espero do senhor.

- Que esperas então ?

- Preciso de uma resposta que me possa servir sempre, para todos os casos da vida, que encerre em si nenhuma contradição, e que me indique como devo proceder para não cometer erros. Isso e o que necessito. Quanto ao matrimonio, como não tenho pressa, esperarei um pouco. Entretanto, meu padre, reflita. Concedo-lhe o prazo de sete dias. Se, transcorrido este prazo, o senhor não me puder dar uma resposta clara e decisiva, voltarei ao inferno, e o senhor não me vera nunca mais.

Estava furioso o pobre diabo ! Como se apaixonara pela causa do bem !

O velho sacerdote, compreendendo seu estado de alma, não se zangou ao ouvir suas grosseiras palavras e começou a refletir. Refletiu seis dias seguidos.

No sétimo, chamou o diabo, dizendo-lhe:

-Es um diabo inteligente e, no entanto, ao leres os livros, escapou-te uma coisa muito importante. Olha aqui: vê o que esta escrito: "Ama a teu próximo como a ti mesmo". Bem vês que não pode ser mais claro. Ama. A isto se reduz tudo.

O sacerdote tinha um ar triunfal.

Mas o diabo não parecia nem um pouco entusiasmado, e respondeu:

- Não ! Isso não está claro. Para provar o amor do próximo, é preciso fazer-lhe algum bem; mas como ignoro em que consiste o bem, posso fazer-lhe algum mal, algum grande mal, até mesmo arremessa-lo ao inferno. Além disso, não é nada difícil isso de dizer que devemos amar ao próximo como a nós mesmos . . .

- Como és exigente ! Pois bem: ama o teu próximo simplesmente, e não como a ti mesmo. Então compreenderás tudo, principiarás a praticar o bem, sem nenhum esforço de tua parte.

- Amar ? Como se isto fosse tão fácil ! É precisamente o que não posso fazer. De que maneira quer o senhor que um diabo ame ? Compreenda-me padre, que sendo diabo por natureza, não posso me sentir como um anjo; mas ao mesmo tempo não quero fazer mal, antes, ao contrário, pretendo somente fazer o bem. Isto é o que desejo que o senhor me ensine.

O sacerdote respondeu-lhe tristemente:

- Por desgraça, por causa da tua natureza, tu possues uma alma abominável.

- Claro ! - confirmou o diabo. - Por isso quero lutar contra minhas inclinações naturais. Não quero ser condenado ao inferno para toda a eternidade, pois aspiro ao céu, como os anjos. Espero que os anjos não sejam os únicos candidatos ao céu, não é verdade ? . . . Preciso que o senhor me ajude. Concedo-lhe, novamente, um prazo de sete dias. Se não encontrar o senhor nenhum meio de salvar-me, acabou-se. Irei para o inferno !

Passaram-se outra vez os sete dias.

O sacerdote chamou novamente o diabo e lhe disse:

- Depois de largas reflexões, encontrei para ti dois preceitos muito práticos. Espero que não tenhas nenhuma dificuldade em adota-los. Está escrito no Evangelho: "Se te pedem a camisa, dá-a, embora não tenhas outra." Outro preceito ordena: "Se te dão uma bofetada na face direita, oferece igualmente a esquerda." Segue estes mandamentos. Será a tua primeira prova. Logo veremos o resultado. Hás de convir que é muito simples !

O diabo refletiu um pouco, sorrindo, depois, alegremente:

- Isto sim ! Agora já sei o que é o bem. Não sei como lhe agradecer...

Transcorreram outras duas semanas.

O velho sacerdote estava certo de que havia encontrado o meio de salvar a alma do diabo. Mas logo este voltou a sua casa. Mostrava-se mais triste do que nunca: estava com o rosto cheio de manchas de sangue e de cicatrizes. Brilhava no seu corpo escuro uma camisa complemente nova.

- Isto não dá resultado ! - declarou com voz pesarosa !

- Que dizes ? Que te aconteceu ? - perguntou assustado o sacerdote - é de se acreditar que brigaste com alguém. Olha teu nariz . . . E teus olhos ? . . . Ai ! meu Deus ! Tinhas a intenção de praticar o bem e, ao invés, te entregaste a brigas . . . Ou será que alguém te feriu ?

- Não ! O caso é que eu briguei.

- Mas, como ? Não te havia dito: "Se alguém te dá uma bofetada na face direita, oferece igualmente a esquerda ?" Não te recordas ?

- Sim, recordo-mo perfeitamente. Estive durante quinze dias, passeando pela cidade, à procura de alguém que me esbofeteasse, mas como ninguém o fez, me vi na impossibilidade de cumprir o santo preceito.

- Mas não disseste que andaste a brigar ?

- Isto é outro caso. Tive uma disputa com certo senhor; ele me deu uma bengala na cabeça. Naturalmente eu lhe devolvi a pancada. A discussão acabou numa verdadeira batalha. Sem me ufanar disso, devo informar ao senhor que ele não foi sem uma lembrança minha: quebrei-lhe duas costelas.

O velho sacerdote fez um gesto de desesperação:

- Mas, homem ! Eu te havia dito "Se te esbofeteiam a face direita . . . Mas o diabo o interrompeu, gritando:

- Eu digo ao senhor que não me deram na cara, mas na cabeça. Se se tratasse do rosto, teria sabido como fazer . . .

O pobre sacerdote ficou completamente desnorteado. Afinal, depois de um largo silêncio, disse ao diabo:

- Ai meu Deus ! Como és estúpido ! Geralmente mostras grande habilidade, e até mesmo regular erudição, mas no que se refere ao conceito do bem, qualquer um o entende melhor. Como não compreendeste que as palavras do Evangelho devem ser interpretadas num sentido mais amplo ?

- No entanto, o senhor mesmo disse que não se deve interpretar os santos preceitos, e sim cumpri-los ao pé da letra !..

- Tu és um desgraçado ! Que vou fazer agora contigo ? Não posso seguir-te por toda a parte, para acautelar-te sobre os erros . . . É preferível que não saias à rua . . . E que quer dizer esta camisa nova ? Ganhas-te-a, de presente ?

- Qual ! Comprei-a para dar ao primeiro que ma pedisse. Durante quinze dias estive passeando pela cidade, entre os pobres. Pediram-me tudo que o senhor possa imaginar, menos a camisa. Provavelmente ignoram o caminho do bem . . .

- Desgraçado ! Mil vezes desgraçado ! - exclamou furioso o sacerdote. - Mas não acabaste de dizer que te pediram muitas coisas ?

- Sim.

- Pediram-te, por exemplo, pão ? - Sim.

- E não lhes deste ?

- Não. Esperava que me pedissem a camisa . . . Veja, meu padre, que não faço senão asneiras. Não me repreenda o senhor, se me engano ao procurar o caminho do bem. Quero encontra-lo, custe o que custar. Por algum motivo renunciei ao inferno, como a todos os seus prazeres. Por algum motivo passei, durante dois anos, os dias e as noites sobre os livros, devorando-os. Agora vejo que não existe salvação para mim . . .

- Espera . . . e não te desesperes. Vou ensinar-te ainda umas tantas coisas . . . Diz-me, porém; por que deu aquele homem uma bengalada na tua cabeça ? Talvez sejas uma vitima inocente e, nesse caso, uma parte dos teus pecados poderá ser perdoada.

O diabo fez um ar de dúvida.

- Nem eu mesmo o sei. Antes, também acreditava ser uma vítima inocente, mas agora já não sei mais nada. A coisa ocorreu da seguinte forma: depois de longos passeios pela cidade, cansado e desesperado, mas ainda cheio do mais ardente desejo de fazer o bem, sentei-me margem do rio Arno, para descansar um pouco e restaurar as forças. De repente vi que um homem se afogava no rio. Nos seus esforços desesperados para se salvar, chegou muitas vezes perto de mim.

- E tu, infeliz ?

- Eu ? Contemplei-o, perguntando a mim mesmo como era possível que ele se mantivesse à tona da água quando, segundo todas as leis da física, ele já devia ter-se afogado. Enquanto assim refletia, acudiu uma porção de gente, atraída pelos seus gritos. Se o senhor quer saber a verdade, não foi um só que me bateu, mas inúmeros . . .

Triste e abatido, cheio de feridas e cicatrizes, o diabo permaneceu de pé ante o sacerdote.

Este contemplava-o atentamente, com ar pensativo.

Depois suspirou e, aproximando-se dele, atraiu-o para perto de si, beijando-lhe a fronte. Ao fazer isso, percebeu que a cabeça do diabo estava coberta de sangue seco.

O diabo, depois de haver recebido o beijo, disse com voz assustada;

- Tenho medo, meu padre. Vi no inferno horrores sem nome, mas jamais me senti tão perturbado e inquieto como agora. Não há nada mais terrível do que aspirar apaixonadamente o bem e não saber como ele é. Não consigo compreender como podem viver as pessoas na terra, ignorando o que é o bem. Com todo o meu coração, tenho piedade delas !

- Vivem, apesar de tudo, respondeu o sacerdote. - Uns, como animais, sem se preocuparem com estes graves problemas; outros procuram, como tu, o caminho do bem e da virtude, e sofrem porque não conseguem encontra-lo. Outros, ainda, crendo haverem encontrado o bom caminho, inventam preceitos saudáveis e vivem perfeitamente com eles.

- E essa gente se salva ? - perguntou o diabo, desconfiado.

- Só Deus o sabe ! Isto vai alem dos nossos conhecimentos . . . Quanto a ti, não te desesperes. Eu não te abandonarei, e te ensinarei ainda algumas coisas mais.Não me faltara tempo nem paciência para tanto. Tu es um diabo muito impulsivo, mas não se deve perder a esperança. Agora, vai lavar as feridas da cabeça.

Assim terminou a conversa entre o diabo e o sacerdote.

Ambos ignoravam que, precisamente no momento de beijar o sacerdote a fronte abominável do diabo, ao mesmo tempo que este, por sua vez, se compadecia dos que desconheciam o bem, se realiza esse mesmo bem, que eles inutilmente buscavam.

Separaram-se. O sacerdote foi a procura de novos caminhos que conduzissem ao bem. O diabo encerrou-se na igreja, atras das empoeiradas colunas, para ali se restabelecer dos ferimentos, e esforçar-se por compreender os grandes e misteriosos problemas do bem e do mal.

O sacerdote começou, novamente, a ensinar o bem ao dócil diabo. Isto, porem, foi a causa de uma nova série de aborrecimentos para ambos. Dava o bom padre a seu discípulo ensinamentos pormenorizados para as diferentes circunstancias da vida, e tudo caminhava bem enquanto estas se apresentavam justamente sob o mesmo aspecto, e na mesma ordem prevista pelo professor. O diabo executava, não só zelosamente, mas com abnegação, tudo quanto lhe era ordenado, dando provas de uma vontade de ferro. Não obstante, o débil engenho humano não podia prever todas as complicações da vida, e ele se enganava a cada instante, procedendo bem num caso e portando-se mal noutro.

Se um pobre lhe pedia alguma coisa de forma não prevista pelo sacerdote, negava-o. Eram tão freqüentes estes casos, que o próprio sacerdote principiava a desanimar-se. Não suspeitava que a vida tivesse tantos e tão variados aspectos, nem que escondesse em si tantos e tão obscuros mistérios, e tantos e tão inesperados problemas.

"De onde provem tudo isto ?" - pensava quebrando a cabeça, enquanto o diabo, sentado atras de uma coluna da igreja, curava as feridas, soltando suspiros dolorosos, e sem nada compreender.

Não só o diabo, mas também o servo de Deus não conseguia compreender nada daquilo.

E o velho padre continuava pensando: "não haverá mais remédio a não ser que lhe permita comentar os preceitos, embora seja um tanto perigoso. Ensinar-lhe-ei as leis gerais, e ele que as comente depois tratando de adapta-las as circunstancias."

Com suma docilidade o diabo se aveio com este novo sistema.

Sentia-se alquebrado, quase sem energias, mas estava pronto a todos os sacrifícios. Até então todos os seus sacrifícios não lhe haviam servido para nada. Batiam-lhe tanto, que só isto bastaria para fazer dele um mártir; mas em vez de acontecer isso, as pancadas não faziam mais do que sobrecarrega-lo de novos pecados, pois os que lhe batiam tinham sobradas razoes para se enfurecerem contra ele.

Alias, ele mesmo o reconhecia, assim como o sacerdote que o protegia. O pobre diabo, que jamais vira uma só lagrima, aprendeu ate a chorar. Chorava tanto, que somente por suas lagrimas e por seu fervoroso desejo de encontrar o caminho do bem merecia ser inscrito no numero dos santos.

Quando o sacerdote anunciou ao diabo que daquela data em diante lhe seria dado comentar os preceitos e adapta-los a vida real, tal como os compreendia, ele sentiu-se cheio de alegria e foi com certo orgulho que declarou :

- Agora, meu padre, o senhor pode ficar tranqüilo a meu respeito. Já que o senhor permite que eu comente os preceitos, não farei mais tolices. Tenho espirito firme e idéias positivas; há muito tempo que não bebo álcool, e estou certo de não mais me enganar. Somente lhe peço que não me oculte nada. Diga-me qual a lei mais importante e mais grave da vida. Principiaremos por esta e depois o senhor me ensinara as outras.

O velho sacerdote pôs-se a procurar na sua memória e a consultar tudo quanto havia lido e aprendido durante a sua vida. Depois soltou um suspiro de consolo e disse:

- Existe uma lei como a que tu queres, mas tenho medo de revela-la, pois é perigosa. Tenho, porem, confiança na ajuda de Deus. Presta atenção para não cometeres nenhum erro. Olha ! . . . E abrindo um livro sagrado, o sacerdote mostrou ao diabo estas palavras, grandes e misteriosas: * * * NÃO TE OPONHAS AO MAL * * *

Ao ver estas terríveis palavras, o diabo ficou assustadissimo, perdendo todo o seu habitual orgulho:

- Tenho medo, meu padre disse ele. Estou quase certo de cometer erros com isto.

O sacerdote também estava assustado. E ambos, o servo de Deus e o de Satã, cheios de terror, se contemplavam reciprocamente.

- Apesar de tudo, experimenta ! - disse, por fim, o padre. - O que há de bom nesta lei é que tu mesmo não deveras fazer nada, sem deixar os demais fazerem contigo o que bem quiserem. Permita-lhes procederem a vontade e submete-te repetindo sempre esta frase: "Perdoai-os, Deus Onipotente, porque não sabem o que fazem." - Estas palavras são importantíssimas. Não as esqueça !

O diabo se foi, novamente, a procura do caminho do bem.

Passaram-se dois meses sem que aparecesse.

Durante esse tempo o velho cura esperava o ansiosamente, a todo momento. Finalmente ele regressou.

Havia emagrecido horrivelmente e todo ele era apenas ossos. Estava faminto e sedento. Tudo quanto possuía lhe havia sido arrebatado. Estava todo coberto de cicatrizes.

O velho sacerdote sentiu certa alegria: tudo testemunhava que seu discípulo não se havia oposto ao mal. No entanto, impressionava-o dolorosamente a expressão de temor e de angustia que se lia nos olhos do diabo. Este, respirando com dificuldade e escarrando sangue, olhou para o velhinho, a quem amava com todo o corarão e a velha igreja, onde encontrara um refugio sossegado e desandou a chorar, perdidamente. O sacerdote pôs-se a chorar também adivinhando que sucedera qualquer coisa de muito grave.

- Vamos ! Conta-me os erros que acaso cometeste.

- Não cometi nenhum - respondeu tristemente o diabo. - Procedi de acordo com a lei que o senhor me ensinou sem me opor ao mal.

- Então, por que choras, fazendo-me também chorar ?

- Ah !, meu padre ! Antigamente não sofria, mas agora sofro infinitamente.Talvez o que fiz, seguindo suas indicações, seja verdadeiramente o bem, mas por que não me causa ele nenhuma alegria ? E impossível que aquele que pratique o bem, não sinta alegria de espécie alguma. Se o senhor soubesse quanto eu sofro ! Sente-se, e lhe contarei tudo. O senhor mesmo vera onde esta o bem e o que tenho feito.

E o diabo contou minuciosamente como o haviam perseguido, batido, saqueado e maltratado. Eis aqui o que lhe acontecera por ultimo :

- Achava-me deitado, meu padre, atras de uma grande pedra a beira da estrada e vi a aproximação de dois bandidos. Do outro lado da estrada e na mesma direção, vinha uma mulher com um embrulho nos braços que parecia de valor.

Os bandidos correram para ela e gritaram: "Da-nos isso !" Mas a mulher negou-se. Então um dos bandidos tirou sua espada . . .

- E o que fez ? - exclamou, com voz comovida, o sacerdote.

- Feriu com ela a infeliz mulher, partindo-lhe a cabeça. Ela caiu, juntamente com o precioso fardo que levava nos braços. Quando os bandidos o abriram viram que. o tesouro da assassinada era uma criança. Os bandidos puseram-se a rir e um deles, o que estava com a espada, segurou a criança por uma das perninha, alçou-a no ar e . . .

- Como? - perguntou, trêmulo, o sacerdote.

- . . . atirou-a contra as pedras . . .

O sacerdote se pôs a gritar:

- Mas tu, tu ? . . . Não fizeste nada para defender a mãe e o filho ? DESGRAÇADO ! COMO NÃO ATACASTE OS BANDIDOS ??

- Com o que ? Antes do acontecido me haviam roubado até meu bastão, única arma que possuía.

- Vamos ver ! . . . Uma vez que tu és diabo, deves ter cornos... Devia ataca-los com os teus cornos ! Na tua qualidade de diabo, podias haver encontrado um meio de lutar contra eles.

- O senhor se esquece, meu padre, que está escrito: NÃO TE OPONHAS AO MAL ?

Reinou um demorado silêncio. Depois o sacerdote pálido como um cadáver, caiu de joelhos, e disse cheio de remisão:

- A culpa é minha ! Não foste tu, nem foram os bandidos quem assassinou a mãe e o filho. O assassino fui eu . . . Espera um pouco meu amigo: vou rogar a Deus que perdoe nossos pecados.

A oração durou muito tempo, tanto, que o diabo dormiu.

O sacerdote o despertou dizendo-lhe:

- Estas grandes palavras não são para nós. Em geral, não se necessitam palavras, nem leis. Vejo bem claro, que alguma vezes é preciso odiar. Em algumas ocasiões convém deixar-se bater, mas há circunstâncias em que se torna necessário maltratar os demais. Este é o verdadeiro sentido do bem !

- Nesse caso estou perdido - disse resolutamente o diabo, com uma triste entonação na voz. - O senhor pode fazer por seu lado o que lhe agrade; a mim, porém, dê-me leis para seguir.

- Nada mais posso fazer ! Para que te enganes outra vez e me faças pecar ? Não, meu amigo; basta. Acabaram-se as regras ! Já não existem mais regras que valham !

O diabo ficou furioso.

- Mas se não existem regras é que tampouco existe o bem?

- Como ? Não existe o bem ? Então, não é o bem isto de ocupar-me de ti há tanto tempo ?. Vai-te ! És um ingrato !

Mas o diabo, que parecia sumir-se no mais profundo desespero, replicou:

- O que o senhor me ensinou é bem pouca coisa. Não tem do que se ufanar.

- É difícil ensinar o diabo.

- Se o senhor não possui forças para ensinar o diabo, é porquê o seu bem vale muito pouco.

- Cala-te, desgraçado, ou te porei na rua.

- Faça-o. Não me restará outro remédio senão voltar ao inferno.

Reinou novamente o silêncio. Depois o diabo disse:

- Hei de regressar, por força, ao inferno, meu padre?

Sua voz era tão triste e comovida, que o sacerdote se condoeu e, com um gesto de amizade, lhe falou:

- Perdoa-me que te haja ofendido, meu amigo. Quanto ao problema do bem, vou fazer-te uma pergunta: tu és um diabo curioso de saber tudo; provavelmente visitaste inúmeros templos e museus e viste muitas obras de arte. Dize-me: agradaram-te?

O diabo refletiu um pouco, e respondeu:

- Umas sim, outras não.

- Mas o que apreciaste foi por sua beleza, não é verdade?

- Naturalmente.

- E ouviste falar que existem leis para a beleza ?

- Sim, muito já se escreveu sobre isso.

- Muito bem. Suponhamos, agora, que aprendeste essas leis. Poderias criar algo de belo ?

- Não basta conhecer as leis; necessita-se também ter talento e isso me falta.

- Eis ai ! Mas então, por que, ó animal, pretendes praticar o bem, sem talento para ele ? Requer-se mais talento para o bem do que para a beleza. O bem exige um enorme talento.

O diabo contemplava, com grande assombro, o sacerdote.

- Ótima saída ! - disse. - O senhor exagera, meu padre. Se eu pinto um mau quadro, não me mandarão, por esse crime, ao inferno, ao passo que se quebro a cabeça a meu próximo, já não será a mesma coisa. Alem disso, ninguém me obriga a pintar quadros. No entanto, existe a obrigação moral de fazer o bem. Mandam faze-lo e não indicam de que maneira . . . E se alguém se engana, ainda o castigam.

- Não te dizia eu que para fazer o bem é preciso talento ?

- E no caso de não o possuir, devo sofrer eternamente as penas infernais, não e isso ?

O sacerdote fez um gesto desesperado dizendo:

- Não sei, meu amigo. Perdi a cabeça, falando contigo.

- Pois não me fale mais do talento. De-me regras ou leis. Desejo fazer o bem e o seu dever é ensinar-me como devo faze-lo. Do contrario. . .

Estava tão enfurecido, que ameaçou ir a casa de outro sacerdote.

O velho pároco sentiu-se ofendido, e disse num tom de censura:

- Portas-te mal, muito mal comigo. Sofri em tua companhia, esperei trazer-te ao bom caminho como a ovelha desgarrada, principiei a querer-te como a um filho e tu pretendes agora me atraiçoar. Eu também tenho amor próprio e não é justo que o firas. Se não te parece mal, em lugar dessas regras gerais, perigosas não somente para um diabo mas também para um homem, vou traçar-te uma linha, de procedimento, a que deves te submeter-te-ter todos os dias. Tenho muito tempo de sobra, e começarei a trabalhar imediatamente. Farei, para ti, uma espécie de agenda para todo o ano; nela encontraras tudo quanto deves fazer diariamente . . . Mas não deveras te afastar um milímetro sequer do que estiver escrito nela. Caso contrario, cometeras novos erros. Se esqueceres alguma coisa, ou tiveres duvida a propósito de qualquer detalhe, melhor será que nada facas, a expor-te a novas desventuras. Fecha os olhos, tapa os ouvidos, Não te movas e fica sossegado, pois assim, pelo menos, estarás livre de dar mau passo. Hoje mesmo principiarei a trabalhar e tu subiras no alto da igreja e permaneceras ali, quietinho. Se te aborreceres, auxilia um pouco o sineiro. O coitado já esta. velho e se esquece de tocar os sinos, muitas vezes. Toca o, pois, para a gloria de Deus !

O velho sacerdote entregou-se ao trabalho com afinco, enquanto o diabo principiou a não fazer nada. Instalara-se num pequeno desvão situado na torre da igreja, entre os sinos, as cordas e os trastes velhos. Uma das paredes da torre tinha na sua parte superior uma janelinha cheia de teias de aranha. Cada dois ou três dias.o velho sacerdote levava ao diabo um pouco de comida, sentando-se um instante ao seu lado, a fim de conversar com ele. O resto do tempo o diabo não via ninguém e não fazia outra coisa senão refletir.

O sacerdote temia essas reflexões, vendo nelas - e razão tinha ele - uma espécie de ação, impelindo-o a cerrar hermeticamente o espirito do diabo, não deixando que ele pensasse em nada. Este prometia obedecer-lhe, porem isso era mais forte do que a sua vontade. Tornava-se dificílimo não pensar no que havia visto e ouvido, no que consistia sua idéia fixa, isto e, no bem. O bem possui tantas formas . . . O próprio Deus diz tão depressa uma coisa como.outra ! Ha inumeráveis verdades que se cruzam, entrechocam-se, batem-se umas contra as outras. Parece que se contradizem, mas na realidade não é assim. Qual é pois a "verdade verdadeira" ? Ou, se todas são verdades, como distingui-las e encontrar a que possa servir melhor ?

Tais pensamentos quase enlouqueciam o diabo inspirando-lhe mesmo certo terror. Permanecia, durante horas inteiras, imóvel no seu canto empoeirado, sem se mover, sem respirar sequer.

- Que ha, meu amigo ? Aborreceste ? perguntava-lhe o velho sacerdote ao trazer-lhe a comida. Paciência ! Não deves fazer nada ! prosseguia ele. Breve terminarei meu trabalho, e então começaras a viver. É verdade que a minha saúde me traz cada vez mais apreensivo, mas farei todo o esforço possível para concluir o trabalho antes de minha morte. Não te posso deixar dessa maneira . . .

O diabo ouviu-o. No entanto, pareceu não perceber coisa alguma, tão absorto estava em suas reflexões.

- Contradições por toda a parte ! murmurou com os olhos cheios de espanto.

- Como ? exclamou alarmado o sacerdote. Onde encontras tantas contradições ? As contradições não existem senão no espirito, que, sempre descontente, procura a lógica em tudo. O principal não é o espirito, mas a consciência. Isto, porem, se se vive com a consciência tranqüila !

- Mas, por acaso a consciência não é guiada pelo espirito ? O senhor, meu padre, se contradiz.

- Oh ! santo Deus ! Como es difícil de te contentares ! Cada conversa contigo me fatiga enormemente e acabo com dor de cabeça. Devo, no entanto, conserva-la serena, pois, do contrario, não poderei acabar o trabalho que estou fazendo. Para dizer a verdade, es um diabo muito desagradável l Confessa-me, com franqueza se obedeces exatamente as minhas ordens .

- Em que ?

- Ficas imóvel ? Não fazes nada, absolutamente nada ?

- Sim. Ontem matei uma mosca, tão somente porque me aborrecia demasiado ! . . . não sei se é ou não permitido matar moscas . . .

- Moscas ?.. Naturalmente ! . . . Isto, é espera um pouco. . . . Estas vendo? Agora, eu mesmo ignoro se pode ou não matar moscas. Grande acontecimento ! Antes que me fizesses tal pergunta, jamais havia pensado nisso e, também eu, matava moscas . . . Agora . . .

- A mosca e um ser vivo - disse o diabo com triste acento.

- Quem o duvida ? - respondeu comovido o sacerdote. - Então, também eu matei seres vivos ! Quão pecador sou ! . . .

O diabo, que procurava soluções claras e precisas, perguntou-lhe:

- Em resumo, é licito ou não é licito matar moscas ?

- Moscas ? . . .

Tais palestras perturbavam os dois. Ambos acabavam confusos e, mirando-se reciprocamente, com olhares estúpidos, não sabiam de que maneira prosseguir.

O sacerdote não levava muito a serio essas contradições; de regresso a sua casa, esquecia-se delas e punha-se, tranqüilamente, a trabalhar. Mas para o diabo elas constituíam verdadeiro martírio. Cheio de forças diabólicas, capaz de mover montanhas, permanecia indeciso ante as moscas que o picavam e - como uma criança - não sabia de que modo portar-se com elas. Como se as moscas compreendessem seu estado de alma pareciam zombar e caçoar dele: zumbiam insolentemente ao redor de sua cabeça, metiam-se-lhe nas suas peludas orelhas, faziam cocegazinhas nos seus lábios cerrados, assumiam posturas provocadoras, desafiavam-no . . .

O diabo havia odiado muito em sua vida, mas todos estes ódios não era nada comparados ao ódio feroz que nutria pelas débeis e insignificantes moscas . . .

O sacerdote estava cada vez mais fraco: a saúde declinava e as poucas forcas diminuíram cada vez mais . . . Sentia-se a todo o instante tão cansado, que era obrigado a se deitar um pouco.

Há três anos que o diabo estava encerrado no canto da torre da igreja, condenado a uma magoa absoluta, esperando pacientemente o programa do bem, que o sacerdote lhe havia prometido. Não atormentava mais o professor com as suas contradições; suplicava-lhes somente, que concluísse quanto antes o seu trabalho.

- Apresse-se, meu padre !

- Não tenhas medo, amigo ! Não morrerei sem concluir minha obra. Segundo os meus cálculos, ainda me restam seis meses de vida, pouco mais ou menos. Sim,. seis meses ! Meu trabalho está quase terminado. Continua tranqüilo, e não percas o ânimo. Vim precisamente para te anunciar uma boa notícia: hoje vão queimar vivo um herege. Vem comigo para assistir o espetáculo. Isto nos agradará, e nos divertirá um pouco.

- Não obstante, está escrito nas Santas Escrituras: "Não matarás" - pensou o diabo porém, não disse uma palavra ao sacerdote e aceitou gostosamente a proposta, sobretudo porque se aborrecia terrivelmente na solidão.

Há muito tempo já que estavam queimando o herege e o povo se divertia a valer. O diabo experimentava, também, certa alegria, porque aquilo lhe recordava o inferno. Mas lembrou-se, repentinamente, da mosca, a qual não se atreveu a matar, e as contradições começaram, a desassossega-lo outra vez Olhou o velho sacerdote e viu que este, mantendo-se de pé a custa de grandes sacrifícios, por causa de sua debilidade, estava pálido de emoção; tremiam-lhe as mãos, nos seus olhos brilhavam lágrimas de felicidade, e todo o seu semblante parecia. iluminado por uma divina alegria.

No inferno, os diabos queimavam, com freqüência, os pecadores, mas durante essa operação seus rostos jamais exprimiram tão grande felicidade. Ficou estonteado, sem nada compreender. O sacerdote estava louco de alegria. Regozijou-se tanto com o espetáculo que, de regresso à casa, foi obrigado a se meter no leito, tal era a sua emoção.

O diabo não se pôde conter e entabulou conversa:

- Quisera saber, meu padre, por que se regozija o senhor desse modo.

- Pois é muito natural: acabam de queimar um herege - respondeu o padre com doce acento na voz.

- Esquece o senhor que está escrito nas Santas. Escrituras: "Não matarás ?". No entanto, mataram um. homem, e o senhor se alegra !

- Ninguém o matou.

- Mas se o queimaram !

- Claro, meu amigo ! Queimaram-no, graças a Deus. Revirou os olhos, deliciado, e seu rosto expressou. uma beatitude tão cândido e inocente, como a de uma criança.

O diabo esfregava a fronte enrugada, com sua ampla e peluda garra, e quebrava a cabeça para explicar-se esta nova contradição. "Não entendo nada pensava. - Provavelmente tudo dependerá de como se faça o bem." E, com o coração opresso, resolveu ter paciência e esperar que o sacerdote concluísse o trabalho. Mas não voltou ao seu cantinho; permaneceu junto ao padre, como criado. Servia-lhe a comida, arranjava-lhe o aposento, limpava-lhe a roupa e varria o solo.

- Em tudo isto - dizia - não pode haver o menor pecado.

Quando o sacerdote, vencendo sua crescente debilidade, se assentava à mesa para escrever, o diabo esticava o busto largo e musculoso, seguindo o trabalho com o olhar, temeroso de que seu professor cometesse o menor erro.

Aquele trabalho era a sua única e ultima esperança.

Afinal, o manuscrito ficou pronto. A vida de seu autor parecia acabar-se com ele. O sacerdote já não podia se levantar da cama; nela foi obrigado a escrever, deitado, as ultimas linhas. Eram irregulares e pouco legíveis, mas tornaram-se as mais queridas para o diabo, precisamente por serem as ultimas.

Ajoelhado ante o sacerdote moribundo, o diabo recebeu de suas mãos aquela preciosa dádiva, e beijou com verdadeiro amor a mão esquelética que a entregara.

- Estás contente ? - perguntou-lhe o sacerdote. - Pois eu também estou. Mas tem cuidado, para não praticares nenhuma tolice !

- Agora estou seguro de mim - respondeu alegremente o diabo. - Vou cumprir, palavra por palavra e letra por letra, tudo o que esta escrito aqui. A menos que o senhor haja cometido algum erro . . .

- Sim; eu sei que porás muito zelo nisso. Mas, pelo amor de Deus ! não percas o manuscrito, porque não encontrarias outro . . . Onde pensas ir ? Se não te distanciares muito, vem ver-me de vez em quando. Sentirei falta de ti. Acostumei-me tanto a ver-te ! Antes, teu nariz parecia-me muito feio; agora me agrada . . . O que é o habito ! . . . Onde pensas ir ? . . .

- Vou percorrer o mundo ! - respondeu o diabo.

- Pena que o senhor morra logo. O senhor devia viver ainda seis meses, pelo menos. Assim poderia lhe contar muitas e boas coisas. Ah ! se o senhor soubesse como estou ansioso para fazer o bem ! Que lastima que o senhor não possa ver-me trabalhar !

O diabo partiu, mas eis aqui o que lhe aconteceu:

Em lugar de começar sua obra com juízo, conforme o programa elaborado pelo velho sacerdote, apresentou-se no inferno, para nele propagar o bem.

Por que o fez ?

Não se sabe. Talvez tenha perdido a razão, de alegria, talvez movido pelo orgulho e pela vaidade e quisesse exibir-se perante os demais diabos, ou talvez tivesse sentido a imperiosa necessidade de visitar o lugar de seu nascimento. O caso foi que mal abandonou a casa do sacerdote, encaminhou-se diretamente ao inferno, sem a mínima hesitação.

Qual foi o resultado da visita ?

Apenas abriu a boca para pregar um sermão e os demais diabos plantaram-se diante dele e começaram também a pronunciar sermões acerca da necessidade do bem, ate com mais energia e eloquência do que ele. Todos eram especialistas na arte de mentir.

Num instante toda a verdade se transformou numa mentira e as mais santas palavras, gritadas por aqueles lábios impuros e desavergonhados, tornaram-se em abomináveis opróbrios. Todo o inferno se encheu de predicadores e de santos. E Satanás, alegre com esta nova diversão, se pôs diante de todos e, morrendo de rir, entoava cânticos religiosos com voz fanhosa.

Algumas bruxas, velhas e repelentes, representavam comédias cujos assuntos eram a Verdade, o Bem e a Virtude. Nunca, ate então, nem nos dias de maiores festivais, teve o inferno um aspecto tão infernal. Vieram depois cenas de obscenidade, cheias de gestos impudicos e, por ultimo, acabaram brigando uns com os outros.

Nosso diabo, que ha muito tempo havia perdido o costume da vida infernal, assim como a forca física e a habilidade, era maltratado e batido como nenhum outro. O mais triste de tudo, porem, foi que, no curso da luta, lhe rasgaram o manuscrito. Quando, depois de conseguir livrar-se das mãos de um grupo de bruxas ébrias, deitou sobre o pobre manuscrito um olhar e o viu completamente roto, ficou quase louco de dor, e soltou longos e queixosos gemidos.

No seu desespero chegou a insultar o próprio Satanás. Este deu tais mostras de cólera, que o infeliz discípulo do velho sacerdote se apressou a fugir. Corria com toda a velocidade que lhe permitiam suas pernas cansadas, apertando ao peito o manuscrito despedaçado. Corria a casa do velho professor, para que este lhe desse outro.

Mas o velho sacerdote estava moribundo.

- Espere o senhor um momento ! - suplicava-lhe o diabo, ajoelhando-se diante de sua cama. - Espera ! Acabam de rasgar o meu manuscrito !

Durante dez minutos pelo menos, o diabo gritou, gemeu e implorou, rogando que lhe trocassem por outro o manuscrito rasgado.

Depois, esforçou-se por tranqüilizar-se e deixando de lado o manuscrito, aproximou-se ainda mais da cama do velho sacerdote. Após um prolongado silencio, este abriu, penosamente, os lábios ressequidos, perguntando com voz débil:

- Fizeste alguma nova tolice ?

O diabo lançou um olhar triste ao manuscrito esfacelado, mas, para não afligir o moribundo, ocultou-lhe a verdade.

- Não é nada, meu padre, senão que vê-lo assim me enche de pesar. É verdade

que o senhor vai morrer ? Ou o senhor vivera ainda um pouco ?

- Nem um só dia mais, meu amigo. Ontem fiz os meus preparativos para a grande viagem; decidi, porem, esperar mais um dia, com a ilusão de tornar a ver-te. E aqui estas ! . . . Graças, meu amigo ! . . . Faça o favor de levantar a cortininha da janela; quero olhar os arredores pela última vez.

Mas pela janela somente se via um cantinho de telhado vermelho e um pedacinho de céu, onde pairava uma nuvem vagarosa. O sacerdote se pôs a contempla-la com alegria, enquanto o diabo pensava: "O que olha ele ? Não ha nada a ver: o telhado e um pedacinho do céu . . . Será porventura a nuvem que lhe causa tanta felicidade ? . . . "

E teve uma idéia. "Vou leva-lo ao alto do campanário: dali verá todas as

nuvens que passam no céu e todos os telhados de sua Florença . . . E assim o fez.

Sem nada perguntar ao sacerdote, segurou em seus braços musculosos o corpo frágil e extenuado deste e levou-o, com muitas precauções, ao campanário, sobre uma pequena plataforma, da qual se descortinava o admirável panorama da cidade e dos campos circunvizinhos.

- Agora olhe, meu padre. Isto é melhor do que olhar pela janela. Aqui se aprecia uma vista mais ampla e mais bela.

Puseram-se, ambos, a olhar, cheios de admiração.

O sol já estava quase escondido. Na margem oposta do rio Arno, sobre uma elevada colina, distinguiam-se alguns ciprestes negros, que pareciam prontos a perfurar o sol mortiço com suas copas agudas. Na outra margem do rio, nos confins do horizonte, estendiam-se as montanhas que, aos suaves reflexos azulados do entardecer, pareciam diáfanas e fantásticas. Toda a formosa cidade estava como que rodeada de gigantescas grinaldas de flores perfumadas. Os povoados longínquos, situados nas encostas da montanha, pareciam florezinhas rosadas, espalhadas aqui e ali. As sombras crepusculares perdiam-se entre as montanhas . . .

- Eu nasci atras dessas montanhas, meu amigo ! Ali esta minha aldeia natal. Ali amei uma linda criaturinha, mas renunciei ao amor para servir a Deus. Durante inúmeros anos não pude me esquecer dela, nem da aldeia e muitas vezes olhei na direção das montanhas, suspirando saudosamente. O sacerdote moribundo olhava cheio de alegria a seu redor e se entregava a suas recordações. O sol desaparecia pouco a pouco.

- Amo também Florença, esta formosa cidade, em que vivi tanto tempo - continuou o sacerdote. - Agradava-me sentir sob meus pés as pedras tépidas de suas calcadas. Ah !, meu amigo, quando se anda pela terra setenta anos, esta se torna em alguma coisa assim como nossa mãe e ate suas pedras perdem a dureza . . . E isto que estou dizendo será ainda mais certo ali, onde vou agora . . .

O diabo soltou um suspiro; o sacerdote, que continuava em seus braços, sentiu-o, compreendeu a dor do diabo e lhe disse com moribunda entonação:

- Não suspires. .. Não te desesperes. .. É muito possível meu amigo, que também vás ao Paraíso. . . porque és . . . um diabo . . . muito bom . . .

O sol verteu manchas sangrentas pelo céu, empurrando o horizonte extinguindo-se. O velho sacerdote extinguiu-se com o sol. Morreu, abandonando sua querida Florença e todas aquelas terras, que tanto amava.

Desesperado, o diabo esforçava-se por desperta-lo, falando-lhe com voz rude e áspera:

- E as estrelas, meu padre ? O senhor não admirou ainda as estrelas ! O senhor não viu ainda a lua, que esta quase a surgir no horizonte, e vai projetar, neste instante, sua pálida luz sobre as lajes da sua amada Florença. Abra os olhos, meu padre, e olhe ! Suplico-lhe . . .

Quando compreendeu que tudo estava findo, e que seu amigo e protetor estava bem morto, transportou-o para baixo, para sua alcova. Enquanto o levava em seus braços, pensava: "Subi com ele vivo ao campanário e o desço morto ! . . . "

Uma dor profunda apoderou-se da alma do diabo.

Agitava-se, chorava, gemia, uivava como um animal feroz, repelando os cabelos: não estava acostumado dor humana, e manifestava-a de forma ridícula. Tão grande era seu desespero, que apanhando seu único tesouro - o manuscrito despedaçado - o atirou a um canto.

No entanto, ao fazer isto, não compreendia que, precisamente naquele mesmo instante, se realizava o bem, esse bem intangível e misterioso, que ele procurara com tanto afã e a custa de tantos e tão grandes sofrimentos.

E não o compreendeu em toda a sua vida.

Aquele precioso manuscrito tinha um aspecto muito desagradável. Rasgado, maltratado, com as folhas engorduradas pelas garras dos demônios que o tocaram, achava-se ante os tristes olhos do nosso diabo, que envelhecera muitos anos num só dia. Abriu-o com mão tremula, na primeira pagina, e mergulhou largo tempo no estudo das linhas cuidadosamente escritas.

À medida que ia lendo, seus olhos exprimiam espanto e incompreensão. Ao terminar, estava fora de si, de tão surpreso e assustado. Ate então, nunca, nem nos momentos mais difíceis de sua vida, teve o diabo um ar tão estúpido e assombrado.

O manuscrito inteiro lhe parecia uma pilhéria de mau gosto. Dir-se-ia que o velho sacerdote zombava do bem e do pobre diabo que tão ansiosamente aspirava pela virtude.

Também, o sacerdote havia, com certeza, perdido o juízo nos seus últimos dias, porque, agora se recordava o diabo, balbuciava, com a gravidade de uma criança que diz cândida simplicidade, coisas néscias, atribuindo grande importância as coisas mais insignificantes.

De qualquer forma ele via, claramente, que o haviam enganado. Perdeu sua ultima esperança e sentiu-se furioso. Todo o manuscrito, da primeira à ultima pagina, estava composto de curtas prescrições, que diziam, semana por semana, dia por dia, hora por hora, o que o diabo teria de fazer.

Não havia nele uma só lei geral, nem uma só regra, nem um só principio. A palavra "Bem", tampouco, era mencionada, uma única vez. Nele figurava simplesmente a descrição minuciosa do que se devia fazer em tal dia e a tal hora. O manuscrito parecia-se, portanto mais do que qualquer outra coisa, com um livro de receitas.

O que mais dolorosamente impressionou o diabo foi não ver em todo o manuscrito nem uma só das formosas verdades que a humanidade recolheu durante milhares de anos e que estão destinadas a embelezar o bem. Ele mesmo conhecia inúmeras delas; esperava, com razão, que o velho sacerdote que

tanto estudara, colocasse grande quantidade destas verdades em sua obra. Mas

não pusera uma que fosse.

Subitamente um raio de esperança iluminou seu coração. Havia-o feito calculadamente o velho sacerdote, para que o diabo deduzisse por si mesmo as conclusões gerais ? O velho sacerdote era muito malicioso. . . .

O diabo pôs-se a trabalhar. Examinou palavra por palavra, letra por letra com minucioso cuidado. Copiava, comprovava comparando os textos, esforçando-se por se apoderar do fio sutil e apenas perceptível, que conduzia ao bem. Se o fio se quebrava, esforçava-se por juntar as extremidades.

Não se cansava nem se irritava, esperando sempre chegar a conclusões necessárias, as regras do bem, regras que iriam servir para todos os povos e a todas as épocas. Não era ambicioso, mas as vezes dizia consigo com certo orgulho, talvez trabalhasse para a humanidade. Julgar-se-ia sua obra; reconheceriam o muito do seu trabalho e seria erigido um templo novo e magnifico em sua homenagem !..

Impossível descrever o seu desespero e o seu horror, quando, depois de terminado o trabalho, nada encontrou absolutamente nada. Nem uma idéia geral, nem uma verdade concludente, clara, indiscutível :

" Não mataras; porem, se for necessário mata. "

" Não mentiras; porem, se for preciso, mente. "

" Da tudo que tens ao próximo; porem, algumas vezes, tira-lhe o que possua."

" Não cometas adultério, ainda que, a rigor, possas comete-lo "

" Não cobices a mulher do teu próximo; porém, se não há outro remédio, podes tirar-lhe sua mulher, seu escravo e seu boi."

E assim por diante, em tudo o mais. Quase não havia uma só prescrição do manuscrito, que não fosse desmentida páginas adiante. Em seus esforços para chegar a conclusões gerais e claras, o diabo encontrava a cada passo mil contradições.

O mais terrível era que o sacerdote admitia, prescrevendo mesmo em alguns casos, os assassínios e as mentiras, com uma serenidade desconcertante.

- Quer dizer que sempre esteve a me enganar ! exclamou o diabo pesaroso. Instintivamente uma idéia medonha passou por sua cabeça. Imaginou que o sacerdote fora um grande pecador. Porventura fora Satanás em pessoa que havia querido achincalhar o diabo ? ! .

Encolhido num canto, dizia para si, cheio de terror:

- Sim . . . sim . . . é ele . . . é Satanás ! . . . Sabendo de que eu

procurava o bem com todo o meu coração, disfarçou-se em sacerdote, como eu me disfarcei em homem, e me perdeu para sempre. Não conhecerei jamais a verdade, jamais compreenderei o que é o bem. Serei desgraçado para todo o sempre. Desgraçado e maldito ! . .

Esperou que a porta se abrisse e que Satanás nela se mostrasse com a boca escancarada no seu riso alegre e ruidoso. Satanás o perdoaria e o convidaria a voltar com ele para o inferno.

Mas Satanás não apareceu e a porta continuou silenciosa.

Depois de haver refletido, o diabo disse com seus botões:

- Viverei no desespero fazendo o que ordena este manuscrito, sem saber jamais o que é o bem ! Estou maldito para todo o sempre ! . . .

Foi envelhecendo cada vez mais.

Quando, de acordo com o manuscrito, precisava salvar alguém, salvava; quando era preciso matar, matava. Pouco a pouco se habituou a isso, tranqüilizando-se.

Cumprindo ao pé da letra tudo o que ordenava o manuscrito, chegou até a sentir certa alegria. Apesar da certeza de estar maldito para todos os séculos, mal se desgostava com isso. Deixou, mesmo, de pensar no bem.

Passava, no entanto, algumas vezes, por situações difíceis. Isso acontecia quando o manuscrito, meio destruído, interrompia-se e o diabo ficava sem saber o que havia de fazer em tal ou qual dia.

Subia, então, ao campanário e ali permanecia horas e horas, dias inteiros, sem fazer nada, em plena vagabundagem. Os olhos fechados para não ver, os ouvidos tapados para não ouvir, permanecia imóvel como uma estátua. Suas mãos, capazes de derrubar montanhas, estavam cruzadas sobre o peito, condenadas à impotência. Sua abundante cabeleira tornara-se completamente branca.

Ao vê-lo quieto e inerte, na velha igreja de Florença, ninguém diria ser aquele mesmo diabo um ser vivo, condenado ao sofrimento; acreditar-se-ia, mais facilmente, tratar-se de qualquer vetusta coluna, à qual ninguém até esse momento, tivesse prestado atenção.

Transcorriam assim as horas e os dias, sem que ele fizesse o mínimo movimento, numa inércia absoluta. As moscas passeavam no seu rosto e metiam-se-lhe pelos ouvidos e pela boca; um pó cinzento cobria-lhe todo o corpo; as aranhas teciam suas teias sobre sua cabeça . . .

E ali continuava, sempre imóvel, aquele pobre diabo velho, tão amante do bem.

 

                                                                                Leonid Andreyev  

 

 

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