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A COSTA DE MOSQUITO / Paul Theroux
A COSTA DE MOSQUITO / Paul Theroux

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A COSTA DE MOSQUITO

Primeira Parte

 

                     O BARCO DAS BANANAS

 

Passámos pela mansão do «Pequeno» Polski em direcção à estrada principal e depois percorremos os oito quilómetros até Northampton, com o pai sempre a falar, durante todo o caminho, acerca de selvagens e do horror da América, e de como esta se transformara numa ulcerada e perigosa zona de drogados, de portas fechadas à chave, de raivosos devoradores de carne morta, de milionários criminosos e de gente mo­ralmente desprezível. E olha só para as escolas. E olha só para os políticos. E que não havia um único licenciado de Harvard que fosse capaz de mudar um pneu furado ou fazer dez flexões de braços. E que havia gente em Nova Iorque que vivia de comida para cães e gatos e seriam capazes de matar por causa de uns trocos. Seria isso normal? Se não era, então por que é que ninguém acabava com tais coisas?

      - Não sei - disse, respondendo a si mesmo. - Estou apenas a pensar em voz alta.

      Antes de sairmos de Hatfield, parara a camioneta no alto de uma lomba da estrada e apontara para sul.

      - Aí vêm os selvagens - afirmou.

      E lá vinham eles, surgidos de um grupo de árvores e atravessando os campos por entre os celeiros do Polski, mal delineados na atmosfera viscosa e vibrante de calor. Eram escuros, as suas roupas eram farrapos. Alguns traziam trapos na cabeça e outros usavam chapéus de abas largas. Havia ali homens e rapazes, alguns não muito mais velhos do que eu, e todos empunhavam longas facas.

      O dedo do pai assustava-me mais do que os homens. Continuava a apontar. Faltava-lhe a ponta do indicador até à principal articulação, pelo que o coto do dedo, coberto com pregas de pele cozidas umas às outras e com horríveis cicatrizes, só conseguia indicar uma direcção mais ou menos aproximada.

      - Que diabo vieram eles aqui fazer? - Inquiriu. - Pelo dinheiro? Mas como é que pode ser pelo dinheiro?

      Mastigava a ponta do charuto com o ar de quem queria extrair dali as respostas às suas perguntas.

      Estava-se a meio da manhã e já fazia demasiado calor para um dia de Maio no Massachusetts. O vale parecia queimado pela seca Primavera por que estávamos a passar, e as valas pouco profundas fumegavam como excremento de vaca ainda fresco. Nos sulcos que haviam sido rasgados de uma ponta à outra do campo viam-se apenas as minúsculas plumas do milho a rebentar. Ali, não piava uma única ave. Os campos de espargos, para onde os homens se dirigiam, mostravam-se tão castanhos e lisos como se o escalpe verde da erva tivesse sido pelado e a calvície da terra houvesse sido alisada por um cilindro.

      O pai abanou a cabeça, soltou o travão e cuspiu pela janela.

      - De certeza que não é pelo dinheiro - declarou. - Nos nossos dias um dólar vale apenas vinte cêntimos.

      Para lá de Hatfield e da casa de Polski e no ponto mais alto da depressão que constituía o vale existiam ameias de verdura, algumas tão pálidas como espuma de limonada e outras que eram protuberâncias escuras ou pilhas salientes de mato, com estacadas de ramos rebentando por todo o lado, muito de acordo com a ideia que eu fazia de uma selva. Algumas horas antes, quando acordáramos, o chão estivera coberto com brilhantes contas de frio orvalho. Pensava nele como sendo gelo de Verão. Nessa altura respirara nuvens de vapor e havia bolsas de nuvens no céu. Agora o Sol já ia alto, enchendo o vale de luz e calor, que flamejava contra aqueles homens e fazia deles escanzelados demónios.

      Talvez fosse por esse motivo, apesar de já antes ter visto aqueles homens, os selvagens, naquele mesmo lugar e suficientemente perto para notar como o Sol lhes deixava manchas negras na pele de tom de couro castanho escuro, que a sua visão me alarmara, tal como o dedo do pai.

      - Aqui está o que eu mais odeio - declarou, quando entrámos em Northampton. Usava um boné de basebol e conduzia com o cotovelo de fora da janela da camioneta. - Não são as garotas do colégio, apesar de serem bastante más. Olha para além, para a Annie «Rebocador». Repara no tamanho dela. É tão grande que bastavam onze como ela para fazer uma dúzia. Mas aquilo é gordura, não é saúde. Aquilo é dos hamburgers. - Meteu a cabeça de fora do carrinho e gritou: - Isso é dos hamburgers!

      Ao longo da rua principal «São todos uma cambada de drogados»), passámos por uma estação de serviço da Gettye e o pai uivou ante o preço da gasolina. «DOIS MORTOS EM TIROTEIO», lia-se no cartaz de um quiosque de jornais, o que o fez dizer: «Estupores.» Bastava a palavra «Cobranças», escrita na fachada de uma loja, para o deixar todo irritado. Perto da loja das ferramentas existia uma máquina que vendia gelo aos sacos.

      - Vendem gelo... cinco quilos por um quarto de dólar, mas a água é de todos, como o ar! E os tipos vendem o gelo! A água é a nova indústria em crescimento! Água mineral, água da fonte, água gasosa.

Aí está a grande novidade... «A água é boa para si!» Cerveja com poucas calorias... sabes o que lá está dentro? Sabes por que é que te deixa magro? Sabes por que é que custa mais do que a outra? Porque é água!

      O pai dizia «água» à maneira do Sul: águuua.

      Deu por ali umas voltas, cada vez mais rabugento, até descobrir um parquímetro onde o tempo de estacionamento ainda não expirara. Es­tacionou e voltámos para trás, a pé, até à loja das ferramentas.

      - Quero vedante de borracha, dois metros e meio dele, com espuma isoladora - disse o pai, e, enquanto o homem ia à procura do vedante, prosseguiu: - Se calhar é por causa disso que a gasolina é tão cara. Metem-lhe água. Não me acreditas? Se insistes em que há moralidade no comércio - no entanto, eu não dissera uma palavra -, então talvez queiras explicar-me por que motivo dois terços das carnes inspeccionadas pelo Governo apresentam substanciais quantidades de nitratos capazes de provocar o cancro, e por que é que a maior parte dos enlatados, é um facto comprovado, não tem qualquer valor nutritivo...

      O empregado da loja regressou com uma tira de borracha e entregou-a ao pai, que a examinou e devolveu.

      - Não o quero - declarou.

      - Mas foi isso que me pediu - disse o homem.

      O pai fez uma careta de compaixão.

      - Quem diabo é você, um empregado dos japoneses?

      - Se não o quer, só tem de dizer.

      - Foi isso mesmo o que fiz, pá. É fabricado no Japão. Não quero que os meus dólares, que tanto me custaram a ganhar, sejam transformados em moeda estrangeira e vão parar aos filhos do Sol Nascente. Não quero sustentar toda uma nova geração de kamikazes. Quero um bocado de vedante de borracha americana, com isolamento de espuma... Eh, você trabalha aqui ou não? - soltou uma praga porque o homem se afastara e fora atender outro cliente.

      O pai encontrou o vedante que procurava numa loja de ferramentas mais pequena, na rua lateral, mas quando voltamos à camioneta quase que tinha ataques por causa das coisas que não dissera na primeira loja.

      - Devia ter-lhes dito sayonara, devia ter feito uma cena.

      Um polícia tinha as mãos apoiadas no nosso parquímetro, com o queixo pousado sobre os dedos, tal como um cavador apoiado no cabo da enxada. Olhou para o pai e esboçou uma espécie de sorriso que queria dizer «Olá», mas depois viu-me e mordeu os lábios.

      - Ele não devia estar na escola?

      - Está doente - respondeu o pai sem se deter.

      O polícia acompanhou o pai até à porta da camioneta, enfiou os polegares no cinturão da arma e perguntou:

      - Um momento! Então por que é que não está na cama?

      - Com uma infecção provocada por fungos?

      O polícia baixou a cabeça e ficou a olhar para mim do outro lado do assento da camioneta.

      - Vamos, Charlie, mostra-lhe. O tipo não acredita em mim. Descalça o sapato e deixa-o cheirar...

      Desatei o atacador mas o polícia interveio:

      - Pronto, está bem!

      - Não peça desculpa - continuou o pai, sorrindo para o polícia. ­A boa educação é um sinal de fraqueza... e não é maneira de combater o crime.

      - Disse alguma coisa? - perguntou o polícia, cerrando os maxilares e endireitando-se. Estava muito zangado e tinha um ar cauteloso e pesado.

      - Estava só a pensar em voz alta - respondeu o pai, ainda a sorrir.

      Não abriu mais a boca enquanto não chegámos à estrada de Hatfield.

      - Eras mesmo capaz de tirar os sapatos e de mostrar ao polícia que não tens nada nos pés?

      - Disseste-me para o fazer - respondi.

      - Muito bem. Mas que espécie de país é este que transforma os lojistas em traidores e os homens honestos em mentirosos? E nunca ninguém pensa em ir-se embora daqui! Charlie, eu penso nisso todos os dias!

      Continuou a guiar durante mais um bocado.

      - E sou o único que o faz porque sou o último homem!

 

      Aquela era a nossa vida, a quinta e a cidade. O pai gostava de trabalhar na quinta do «Pequeno» Polski, mas a cidade provocava-lhe ataques de fúria. Era por isso que não me deixava ir à escola, nem ao Jerry e às gémeas.

      Mais tarde, mas nesse mesmo dia, enquanto consertava uma bomba, avistámos outra vez os selvagens.

      - Vieram da selva. Trabalhadores migrantes. Nem sabem o que perderam. Trocaria de lugar com eles, mas pensam que isto aqui é o paraíso. Não deviam ter para cá vindo.

      Uma ano antes, o pai inventara uma bomba de água para o Polski. Tinha um dedo sensível espetado no chão como se fosse uma raiz e quando a terra secava aquele fio-nervo activava um interruptor que ligava a bomba. O pai, um inventor, era um perfeito génio em relação a tudo o que fosse mecânico. «Nove patentes», gostava ele de dizer. «Seis pendentes». Gabava-se de ter abandonado Harvard para conseguir uma boa educação. Tinha mais orgulho no seu primeiro emprego, como porteiro, do que no curso de Harvard. Inventara um esfregão mecânico. Segurava-se nele com força e o esfregão corria pelo chão e depois espremia-se sozinho. Usar aquele esfregão era como dançar com uma mulher sem cabeça, dizia. Chamava-lhe «A Mulher Silenciosa». O que ele mais gostava de fazer era de desmontar coisas, até livros, até a

Bíblia. Dizia que a Bíblia era como que um manual de instruções, um manual de reparações para uma invenção inacabada. Uma das teorias do pai era a de que existiam partes da Bíblia que nunca ninguém lera, tal como existiam zonas do Mundo onde nunca ninguém pusera os pés.

      - Achas isso mau? Pelo contrário! São os espaços vazios que um dia nos salvarão. Aí não há tipos esquisitos, não há polícias, não há ladrões, não há assaltantes, não há drogados, não há aerossóis. Não estou perdido, como aqueles - disse, apontando para os selvagens. ­Eu sei como sair disto.

      Tocou nas diferentes partes da bomba com os dedos, como um médico a examinar um bebé em busca de inchaços, sempre a falar a respeito de espaços vazios e de selvagens. Levantei os olhos e vi-os. Pareciam deslizar para fora daquelas zonas bravias que acabara de des­crever. Vimo-los a avançar para os campos mais elevados e, apesar de sabermos que iam apenas cortar mais espargos, tinham o aspecto de quem andava à procura de dedos para cortar.

      - Vieram do sítio mais seguro da Terra... a América Central. Sabes o que lá têm? Energia geotérmica. Toda a energia de que necessitam encontra-se a mil e quinhentos metros abaixo da terra. É o umbigo da Terra. Por que é que vieram para aqui?

      Lá iam eles através dos campos, aqueles selvagens, debruçados e adejando. Tinham enormes sapatos e pequenas cabeças pendentes, e quando passavam pelos bosques assustavam os corvos e provocavam uma tempestade de crocitos. As aves saltam para o ar como luvas negras arrancadas da corda da roupa e sacudidas pelo vento, voando para trás e abrindo as penas a cada batida das asas.

- Lá donde eles vêm não há televisão. Não há nenhuma «videoca­nalhice» japonesa. Passa-me essa lata do óleo. Aqui a natureza é jovem, mas o ecos sistema dos trópicos é imensamente velho e não se modificou desde que o mundo é mundo. Por que é que pensam que somos nós que temos as soluções? Fé... é isso o que queres dizer? Ou a fé é apenas cantar Vem até Jesus em lá bemol?

      Encaixou a chave nos parafusos do tubo saliente e depois ajustou o bico da lata de óleo à junção e apertou-a. Libertou o tubo com as duas mãos e suspirou.

      - Não, senhor! Ter fé é acreditar em qualquer coisa que sabemos que não é verdade. Ah!

      Meteu o dedo cortado dentro do tubo enferrujado da bomba e puxou cá para fora uma válvula de latão e um esguicho de água.

      - A água não se pode beber na terra de origem daqueles selvagens. Tem bichos. Ervas daninhas. Pois não têm o bom senso de a ferver e purificar. Nunca ouviram falar em filtragem. Os germes metem-se-lhes no corpo e ficam verdes, como a água, e morrem. Os restantes pensam que estar lá não é bom... há aranhas grandes como cachorrinhos, mos­quitos, cobras, inundações, pântanos e aligátores. Não fazem a menor

ideia do que é a energia geotérmica. Porquê mudar aquilo quando podem vir para aqui para se desfazerem em bocados? Mandem-me o desventurado refugo da vossa produtiva costa. Bebam uma Coca-Cola, vejam televisão, vivam da segurança social, arranjem dinheiro fácil. Virem­-se para o crime. O crime neste país compensa... os ladrões tornaram-se em pilares da sociedade. Acabam todos nos assaltos e no roubo de malas de senhora.

      A água escorria agora da bomba e os circuitos internos tiquetaqueavam e mediam.

      - Nunca mais volto a Northampton. É demasiado enervante. Estou farto de encontrar pessoas que querem as coisas que eu já tive e rejeitei. Já tive todos os dólares que quis, Charlie. E não me fales em educação. Aquele polícia desta manhã era um tipo com estudos... e tudo o que quer da vida é o que a televisão lhe dá. Não confiarei nele nem para me ir buscar sanduíches! Já tive tudo isso... aquilo que as pessoas, ambicionam. São coisas que não resultam e é irritante ouvir os ignorantes a louvá-las.

      Sorriu-se para mim.

      - É um mundo imperfeito - disse.

      Agora ria-se para o dedo amputado.

      - Que estão os russos a fazer enquanto esta gente vê televisão?

      Levam a cabo algumas experiências muito interessantes com a água. Extraem-lhe todos os gases, extraem-lhe tudo, incluindo o oxigénio e o hidrogénio. Depois de lhe tirarem tudo, selam-na em potes de conservas, como se se tratasse de pêssegos. Deixam-na de lado durante uns tempos. Depois, quando se servem dessa água para regar as plantas, estas crescem duas ou três vezes mais depressa, tornam-se em grandes monstros sau­dáveis. Os feijões trepam para fora das estacas, as abóboras ficam grandes como balões.

      Fez um gesto para a água.

      - Sabes, estou só a pensar em voz alta. Que é que achas? Achas que se passa alguma coisa de errado com a chuva? Diz qualquer coisa! Disse-lhe que não sabia.

      - Achas que alguém devia ir falar com Deus, para que este repensasse o tempo que faz cá em baixo? Digo-te, Charlie, é um mundo imperfeito. A América está num beco sem saída.

      Pôs a mão em taça por debaixo do tubo de saída da água e levou-a à boca. Sorveu a água.

      - Isto é como champanhe para aqueles selvagens.

      Dando estalinhos com os lábios, deu a entender que se tratava de um líquido maravilhoso.

      - Olha, repara nas coisas que tu e eu temos e a que não prestamos atenção. O gelo, por exemplo. Não o têm no seu país. Se vissem uma pedra de gelo provavelmente pensavam que era um diamante, ou uma jóia qualquer. Não lhes parece o fim do mundo o facto de não haver gelo. Mas pensa bem nisso. Imagina os problemas que têm, sem uma refrigeração apropriada.

      - Talvez não tenham electricidade - disse-lhe.

      - Claro que não têm - respondeu o pai. - Estamos a falar da selva, Charlie. No entanto, pode-se ter refrigeração sem electricidade. Tudo o que precisas é de sucção. Inicia um processo de vácuo e aí tens a refrigeração. Escuta, até podes fazer gelo do fogo.

      - Então, por que é que eles não o fazem?

      - Porque não sabem - retorquiu. - É por isso que são selvagens. Começou a montar outra vez as peças da bomba.

      - Devem ter toda a espécie de doenças - continuou, fazendo um gesto com a chave na direcção que os homens haviam tomado. - Aqueles... têm doenças.

      Parecia simultaneamente fascinado e repelido pelos homens. Transmi­tia-me aqueles sentimentos contando-me qualquer coisa importante e avisando-me a seguir para não me interessar demasiado pelo assunto. Perguntara a mim mesmo como é que o pai sabia tanta coisa a respeito dos homens a que chamava selvagens. Afirmava que o sabia por expe­riência própria, por ter vivido em lugares inóspitos, entre gente primitiva. Usava a palavra «selvagens» com uma certa afeição, como se gostasse um pouco deles, por o serem. Na sua natureza havia um respeito por tudo o que era selvagem e bravio. Via essas características como um desafio pessoal, como uma coisa que podia ser corrigida com uma ideia ou uma máquina. Pensava ter a resposta para todos os problemas, se alguém se desse ao trabalho de o escutar.

      Os corvos voltaram para os bosques, voando a grande velocidade em direcção ao topo das árvores e depois descrevendo círculos desconfiados até pousarem para comer.

      - Aqueles homens são perigosos? - perguntei.

      - Não tão perigosos como o americano médio... e só quando se enfurecem. Sabemos que estão zangados quando os vemos a sorrir. É o sinal... tal como acontece com os cães.

      Virou-se para mim com um largo sorriso. Percebi que queria que lhe perguntasse mais coisas.

      - E então?

      - Então, transformam-se em animais. Em assassinos. Os animais também parecem sorrir, antes de nos morderem.

      - Aqueles homens mordem?

      - Vou dar-te um exemplo. Sabes como o fazem? Achas que te matam? Pois vou dizer-to, Charlie, meu rapaz. Esvaziam-te.

      Dizia aquilo com a pronúncia do Sul e quando o fazia eu sentia-me como se uma centena de garras aguçadas me estivesse a arrancar o escalpe.

      - É por isso que é preciso coragem para lá ir... e não apenas o vulgar bom senso. É preciso coragem verdadeira, a coragem das quatro da madrugada. Quem é que a tem?

      Trabalhámos no exterior até o céu se tornar da cor das chamas e depois marchámos para casa, para o jantar.

      - Tens de o admitir, rapaz - afirmou o pai. - Isto é melhor do que ir à escola.

 

      Naquela noite abri os olhos no escuro e soube que o meu pai não estava em casa. A sensação da falta de alguém é muito mais forte do que a sensação da presença. Não era apenas por não ouvir o seu ressonar assobiado (que em geral soava tal e qual como uma das suas válvulas de escape), nem sequer por todas as luzes estarem apagadas. Era uma sensação de vazio, como se no ar da casa, no local onde deveria encontrar-se o corpo do meu pai, existisse um buraco com a forma de uma múmia. O meu receio era o de que aquele homem imprevisível estivesse morto ou pior do que morto... vazio e assombrando a propriedade. Sabia que se fora. Com uma certa preocupação de culpa - tinha então treze anos -, sentia-me responsável por ele.

      Não havia luar mas mesmo assim, e por não existirem fechaduras, a casa era fácil de revistar. O pai desaprovava as portas fechadas. Digo que desaprovava mas o que quero dizer é que ameaçava bater-nos se as fechássemos. Quem se escondia por detrás de uma porta fechada não prestava para nada, afirmava. Gritava frequentemente para a porta da casa de banho: «Não se barriquem aí dentro!» Crescera numa pequena aldeia de pescadores na costa do Maine - a que chamava «Dogtown» -, onde as portas fechadas eram desconhecidas. Durante os anos que passara na índia e em África mantivera sempre a mesma norma, era o que dizia. Nunca tive a certeza se, na verdade, visitara esses lugares. Cresci na crença de que o mundo lhe pertencia e de que tudo o que ele dizia era verdade.

      Era grande e ousado em tudo o que empreendia. A seu respeito, os únicos factos vulgares eram o fumar charuto e usar um boné de basebol durante todo o dia.

      Espreitei primeiro para o quarto e verifiquei que só jazia uma figura na cama de latão, um vulto envolto num lençol, na ponta mais afastada. A mãe. Fiquei com a certeza de que saíra porque pendurava sempre o fato-macaco no varão da cama e não o via lá. Desci as escadas e atravessei as diversas divisões. O gato dormia no soalho como um patim tombado. Parei no corredor e escutei. Como era Primavera, havia um forte odor a lilases e a terra lavrada, bem como uma brisa suave. Lá fora soava uma torrente de grilos, enquanto um frenético grilo aprisionado no interior soltava cricris impacientes. Excepto esse grilo, a casa estava tão silenciosa como se estivesse enterrada.

      As minhas botas de borracha encontravam-se logo à entrada da porta. Enfiei-as, ainda de pijama, e meti pelo carreiro para ir procurar o meu velho.

      Estávamos rodeados por campos lavrados. As beiras de cada campo eram separadas por bosques, que serviam para quebrar o vento. O milho e o tabaco começavam a rebentar, e, apesar de ser mais fácil caminhar pelos sulcos, mantive-me no carreiro com os braços em frente do rosto para afastar os troncos. O que me fazia confusão não eram os ramos, mas as teias de aranha, que se agarravam às minhas pestanas. Aqueles bosques estavam cheios de charcos pantanosos e o som da noite era o das pequenas e escorregadias rãs da Primavera, brilhantes como falsas iscas para peixes, que pareciam trinar. As árvores eram azuis e negras, como enormes feiticeiros. Onde é que eu fora parar?

      Abandonara a casa sentindo-me envolvido pela escuridão, mas quanto mais me afastava menos escuro me parecia. Agora a terra era de um amarelo enlameado, algumas árvores eram cor de cinza e os seus cimos sobressaiam como espinhos de aço. O céu era de um cinzento pesado. Via algumas nuvens. Uma delas tinha a forma de uma fatia de pão e calculo que a Lua estivesse por detrás, escondida, porque a nuvem apresentava um aspecto oleoso e brilhante, como se ocultasse uma cidade industrial existente nos céus.

      Passado um bocado já desejava não ter saído de casa com tanta pressa. As botas estavam-me largas nos pés e provocavam um som parecido com o chapinhar. Os mosquitos mordiam-me através do pijama. Tinha os braços arranhados pelas silvas. Devia ter posto o chapéu, os insectos metiam-se-me nos cabelos. De vez em quando tinha a sensação de que alguém seguia atrás de mim. Virava-me de repente para deparar com o tolo sorriso de caveiras desenhadas nos troncos descascados das árvores, ou com ramos mortos como dedos esqueléticos que se estendiam para mim. Este era um dos meus medos. O outro era o de encontrar uma doninha fedorenta e ficar coberto pelo seu cheiro. Nesse caso teria de enterrar o pijama num buraco e voltar para casa todo nu.

      O bosque tornou-se menos cerrado. Via árvores isoladas de encontro ao céu, e uma outra fila em frente de um campo amarelado. Um monte de pedras disse-me onde estava. Aquele ponto alto fora abandonado por ser impossível de lavrar. Era estreito e levantava-se no fim dos bosques, dando ao lugar o aspecto de um navio. Visto de lado e de dia, era uma escuna com uma proa rochosa, uma carga no convés e trinta mastros folhosos, encalhados nos campos de espargos, por entre os bosques quebra-ventos, que pareciam ilhas.

      Ali a plantação era quase toda de espargos. A cultura estava pronta, a colheita começara. É uma plantação engraçada, não cresce em sulcos. Os campos são lisos e planos como parques de estacionamento. A distância não se conseguem ver as plantas dos espargos, mas se nos aproximarmos muito então vemos os frutos, nada de flores e nada de folhas, apenas gordas velas verdes saindo do chão por todo o lado. Do sítio onde me encontrava não podia ver nada a não ser o terreno liso, como que aplanado por um cilindro, e o seu brilho baço, como uma intumescência num mar sem ondas. Para lá daqueles campos ficava a faixa negra da noite, onde receava que o meu pai se encontrasse.

      Havia também pirilampos. Eram insignificantes, nada brilhantes, menos do que fósforos, vibrando aqui e acolá, nunca duas vezes no mesmo sítio. Tinham a sua luz própria mas nada mais iluminavam e eram como pequenas. e baças estrelas em que não se podia confiar e que morriam na escuridão.  .

      Porém, mais longe, havia um amontoado de luzes que não morriam.    Tartamudeavam, eram archotes, e, quando verifiquei que essas luzes tinham homens por baixo, dirigi-me directamente para lá, através do campo de espargos, pisando e partindo os frutos com as botas a afundarem­-se na crosta de terra.

      Já mais perto, vi as altas chamas tremulando numa única fileira, uma procissão de pessoas atrás umas das outras, segurando os archotes por cima da cabeça, com as chamas a estalar como bandeiras. Os chapéus de abas largas estavam iluminados mas não lhes via os corpos. Saíam de uma faixa de pinhal onde existia uma velha construção a que chamá­vamos a «Casa dos Macacos».

      Homens com archotes avançando à meia-noite pelos campos do vale... Nunca vira uma coisa assim. Era uma serpente de chamas e pensei ouvir um som chocalhante, o agitar de grãos dentro de uma lata. No entanto, sentia-me mais curioso do que assustado, e escondera-me tão bem e estava ainda tão distante que aquela coisa não constituía uma ameaça.

      A procissão prosseguia do outro lado de um muro de pedra existente entre as culturas, milho jovem do outro lado, espargos deste. Imaginei que se me vissem me atacariam e me pegariam fogo. Este pensamento, e o conhecimento de que naquele local me encontrava a salvo, provocaram­-me um arrepio de excitação. Dobrei-me, corri para uma vala, acachapei­-me no fundo e observei com atenção.

      Nesse momento mudaram de direcção e vieram direitos a mim. Ter-me­-iam visto a correr? O meu coração quase parou quando os archotes passaram por uma abertura no muro de pedra, e pensei: «Oh, Deus, vão pegar-me fogo!»

      Rastejei para trás na vala, e como me encontrava numa posição deitada, a água começou a entrar nas botas. Pouco depois já as tinha cheias. No entanto, não abri a boca. Uma das histórias favoritas do meu pai era a do rapaz espartano que tinha uma raposa dentro da camisa, já não me lembro porquê, e que deixou que o animal lhe devorasse a barriga, porque era demasiado valente para gritar por socorro. Os pés molhados nem se podiam comparar. No chão, perto de mim, cresciam plantas rasteiras. Puxei-as para cima da cabeça e achatei-me de encontro aos lados da vala. Estava completamente escondido.

      Os homens encontravam-se perto. Ainda tagarelavam - pareciam felizes - e eu conseguia ouvir o sibilar dos archotes. As chamas soavam como lençóis pendurados ao vento numa corda de roupa, não crepitavam, soltavam estalos. Olhei para cima, esperava ver portadores de tochas com caras de loucos, mas o que vi quase me fez soltar um grito. O homem da frente transportava uma enorme cruz negra.

      A cruz não era feita de tábuas, mas sim arredondada, construí da com dois grossos postes amarrados um ao outro. Ostentavam horríveis marcas brancas nos sítios onde os ramos haviam sido desbastados, tal como feridas ovais sobre uma pele. Por detrás do fulano que levava a cruz, e ainda mais assustador, seguia outro homem transportando um corpo humano, uma coisa mole, com a cabeça caída, os pés a balançarem e os braços a oscilar de um lado para o outro. Transportava o corpo como quem transporta um saco de cereais. Era uma coisa grande, mole e pesada, com os membros pendurados de um modo assustador. À luz dos archotes, o homem que o transportava tinha um rosto amarelo... e sorria.

 

      Não tive vontade de ver mais. Tremia de frio. «Pode-se fazer gelo do fogo», dissera o pai. Agora, acreditava. Aquele fogo gelara-me as tripas.

      Mantive a cabeça baixa e a boca fechada, apesar de estar enlameado, molhado, e mordido pelos insectos. Sentira o calor dos archotes e o seu cheiro... de tão perto que haviam estado de mim. A seguir afastaram­-se. Levantei a cabeça muito devagarinho e vi os archotes a brilhar no bosque em forma de navio por onde eu próprio passara. Os ramos das árvores saltavam na luz e aquela linha saltitante de riscas quentes e de sombras atravessou para o outro lado, onde parou e brilhou.

      Gatinhei para fora da vala, empurrei as plantas rasteiras para o lado e despejei as botas. A seguir, mantendo-me junto da vala, chapinhei até onde me foi possível, agachei-me para atravessar o campo de espargos e entrei no bosque. Naquele momento a procissão encontrava-se para lá das árvores, tudo o que ali ficara fora o cheiro a gasolina e a folhas queimadas. Naquele sítio estava bem escondido e de facto até podia ver tudo, por detrás de um montão de pedras.

      Dois dos homens estavam debruçados. Deviam estar a amarrar o morto à cruz, porque depois, sob a ardente luz do círculo de archotes, vi que a levantavam com o homem lá preso, os pulsos amarrados, os pés pendurados e a cabeça inclinada para um lado.

      Tudo aquilo tinha um ar perverso e fiquei à espera de ouvir os homens a soltarem gritos de morte, mas não, permaneceram tranquilos, até alegres, era como um daqueles pesadelos que vemos acontecerem a nós mesmos sem os podermos explicar, e isso era o pior de tudo. Depois de todos aqueles ziguezagues através dos campos, tinha tanto medo de revelar a minha presença e de ser queimado vivo que até me esqueci da razão que ali me levara. Porém, no momento em que vi a cruz erguida, recordei-me de que andava à procura do meu pai. A recordação e a visão tiveram lugar ao mesmo tempo, pelo que pensei: «Aquela pessoa morta e retorcida é o meu velho.»

      Sentei-me, tapei os olhos com as mãos e tentei parar de chorar mas continuei debulhado em lágrimas, até que a certa altura senti que tinha uma cabeça muito pequena e bastante molhada. Pensei também, sem saber porquê, que iriam atirar as culpas para cima de mim.

      Tudo o que podia fazer era ver e ouvir. Já me habituara àquela visão tenebrosa, e quanto mais olhava mais me sentia responsável por ela, como se se tratasse de algo que eu imaginara, um pensamento diabólico que saltara para fora da minha cabeça. Observar tornava-me numa parte da visão.

      Não tive tempo para me preocupar. De repente, os homens apagaram os archotes. Depois das luzes e das sombras e da cruz iluminada, viam-se apenas camisas e chapéus... andrajosos esqueletos de um branco de osso movendo-se sem corpos... e silêncio, enquanto os homens, aqueles far­rapos, avançavam para mim.

      Levantei-me muito depressa e corri para salvar a vida.

 

      «Sou o último homem!» Este fora um dos mais frequentes gritos do pai. De regresso à cama, era doloroso permanecer naquela casa sem portas fechadas, não a sonhar mas a pensar. Sentia-me pequeno e en­colhido. O pai, que acreditava que iria haver uma guerra na América, preparara-me para a sua morte. Dissera durante todo o Inverno: «Está a chegar... Vai acontecer aqui qualquer coisa de horrível». Mostrava-se inquieto e falador. Dizia que os sinais estavam em todo o lado, nos preços altos, nas criaturas irritadiças, nas preocupações íntimas, na es­tupidez e na ambição das pessoas, e no facto de andarem gordas como porcos. Cometiam-se crimes sangrentos nas cidades e os criminosos não eram punidos. Não seria uma guerra vulgar, dizia, mas sim uma em que nenhum dos lados estaria inocente.

      «Os gordos estúpidos combaterão com os criminosos magrizelas» dis­sera um dia. «Odiarás uns e terás medo dos outros. Todos os cérebros da nação ficarão danificados. Em quem poderemos confiar?»

      As suas frases tinham um tom de desgosto e, por vezes, no mais profundo daquele Inverno branco, mostrava-se muito sombrio. Um dia a água congelou nos canos do «Pequeno» Polski e o pai foi chamado para os desentupir. Parámos na neve, à beira de uma vala recentemente escavada, ligando aos tubos os fios da «Caixa dos Trovões» do pai para os descongelar. (Este aparelho era de sua própria invenção e tinha muito orgulho nele - patente pendente -, apesar de quando o utilizou pela primeira vez quase matar a mãe Polski, que tinha a mão pousada numa torneira, que ficou electrificada quando ele ligou a corrente.) Vimos os canos a aquecerem e a libertarem vapor. O gelo estalava lá dentro, agitava-se e chocalhava como pedrinhas. O pai escutava com grande deleite os ruídos provenientes de dentro dos canos, e depois virou-se para mim, à beira da vala meia coberta de neve.

      - Quando ela chegar, serei o primeiro a morrer. Primeiramente matam sempre os mais espertos... aqueles que receiam que sejam mais espertos do que eles. Depois, já sem ninguém que os impeça de prosseguir, vão desfazer-se em bocados, uns aos outros. Vão transformar este belo país num buraco tenebroso.

      Não havia desespero nas suas palavras, apenas uma simples constatação de factos. A guerra era uma certeza, mas ainda lhe restavam algumas esperanças. Dizia que acreditava nele próprio e em nós.

      - Vou levá-los para longe daqui... fazemos as malas e partimos.

      Fecharemos as portas a tudo isto...

      Gostava da ideia de partir, de se mudar, de começar de novo num lugar vazio, onde nada existisse para além do seu cérebro e da caixa das ferramentas.

      - Serei o primeiro a morrer.

      - Não.

      - Matam sempre primeiro os mais espertos.

      Não me era possível refutar aquilo. Era o homem mais esperto que eu conhecia. Tinha de ser o primeiro a morrer.

      Até ver a procissão a marchar à meia-noite e o corpo morto na cruz, não conseguia perceber como é que alguém seria capaz de o matar. No entanto, aquela noite foi o bastante. Estava agora convencido, e encontrava-me sozinho. O homem mais forte por mim conhecido fora pendurado em dois paus e abandonado num campo de milho. Era o fim do mundo.

      - Sou o último homem, Charlie!

      As negras horas iam passando. Em breve seria manhã e teria de enfrentar toda a gente para lhes dizer que o pai o predissera. Por isso continuei na cama, pensando em como o pai dissera que o país estava condenado. Prometera salvar-nos e fazer-nos fugir dali antes que fosse demasiado tarde. Agora fora-se e eu era muito fraco para salvar os outros, e no sonho que finalmente tive na parte mais fria da noite vi-me a conduzir a mãe, as gémeas e o Jerry por entre campos a arder, debaixo de um sol ferido de morte, um céu cor de sangue, com as roupas em farrapos, no meio do fumo, sem nada para comer. Dependiam de mim e só eu o sabia, mas tinha medo de lhes dizer porque era demasiado tarde e estava a conduzi-los para a direcção errada.

      No céu manchado, negro e vermelho, avistei o rosto trocista do pai, depois de caminharmos e caminharmos, e ele dizia:

      - Onde é que tu andaste, filho?

      Tapei os olhos. Ainda me encontrava no sonho e triste, a mãe e os garotos atrás de mim, o desastre pela frente e sem hipótese de fuga.

      - Onde é que tu...?

      Acordei e vi-lhe o rosto, queimado pelo sol e zangado. Levantei-me porque receava que me batesse, primeiro com medo de que estivesse morto, e depois com medo porque estava debruçado por cima de mim. Foi o seu charuto que me disse que não estava a sonhar, mas sentia-me demasiado impressionado para chorar.

      - Tive um sonho mau.

      Pensei: foi tudo um sonho, os homens com os archotes, o corpo na cruz, os selvagens rindo-se, o sol ferido e o céu. Fiquei muito feliz. O sol clareava as cortinas do meu quarto e as aves chilreavam para mim.

      - Deves ter sonhado com heras venenosas - disse o pai.

      - Tens o pior caso que eu já vi!

      Quando disse aquilo, começou a doer. Sentia a cara rugosa e esfolada e os braços também.

      - Não lhe toques, para não se espalhar mais. Sai da cama e põe qualquer coisa nisso.

      Dirigiu-se para a porta do quarto e disse-me, enquanto eu enfiava as roupas:

      - Andaste a fazer asneiras na mata... foi o que foi.

      No patamar, a tábua solta no soalho confirmou-me que tudo estava normal. Cheirou-me a café e a bacon, ouvi as gémeas a chorar e nunca na minha vida me sentira tão contente. Fui para a casa de banho. No espelho, a minha cara parecia uma romã, e os braços e os ombros estavam inflamados por causa da hera venenosa. Espalhei loção de calamina sobre a pele e corri para a cozinha.

      - É um fantasma - disse Herry quando viu a minha cara pintada de branco.

      - Pobrezinho - comentou a mãe, colocando um prato de ovos na minha frente e beijando-me no alto da cabeça.

      - A culpa foi dele - declarou o pai.

      Aquilo não era nada. Depois do que vira, um caso de envenenamento com heras parecia-me a própria salvação.

      - Come - continuou o pai. - Temos trabalho para fazer.

      Queria trabalhar, carregar-lhe com a caixa das ferramentas, passar-lhe a lata do óleo, ser seu escravo e fazer tudo o que me pedisse. Merecia ser castigado. Queria esquecer-me daqueles archotes e dos homens. Voltara a ter treze anos. Antes, sentira-me com quarenta.

      - Vai ter comigo à oficina quando acabares - disse-me o pai.

      - Pobre Charlie - lamentou-se a mãe. - Onde é que fizeste isso?

      - Andei metido na mata, mãe - respondi baixinho. - A culpa foi minha.

      Abanou a cabeça e sorriu. Sabia que eu estava arrependido.

      - Mãe! - gritou o Jerry. - O Charlie está a olhar para mim com aquela cara!

      A oficina do pai ficava por detrás da casa. Havia máximas e citações escritas em bocados de cartão e penduradas nas prateleiras, havia ferra­mentas, tubos, rolos de arame e várias máquinas. Além de motores de todas as espécies, uma pistola de lubrificação e um torno, que davam à oficina um certo ar de arsenal, era também aí que se encontrava a sua «Caixa dos Trovões» e uma engenhoca que servia para tudo e a que o pai chamava «Esmagador de Átomos».

      No chão e mais ou menos com o tamanho de uma arca, de pé sobre uma das pontas, via-se uma caixa de madeira que construíra e na qual mexericara durante quase toda a Primavera. Lá dentro não havia nem fios nem motor, montara-a com um maçarico. Estava cheia de canos, grelhas, reservatórios, tubos de cobre por baixo e uma porta que dava para uma caixa de lata no cimo. Cheirava a petróleo e eu pensava que se tratava de uma qualquer espécie de forno, porque por detrás havia como que uma chaminé. O pai disse que tínhamos de carregar aquela coisa na camioneta.

      Tentei levantá-la. Nem se mexeu.

      - Queres dar cabo das costas? - perguntou o pai.

      Com muito cuidado e levando todo o seu tempo, instalou uma calha num tripé e acabámos por meter a caixa cheia de tubos dentro da camioneta.

      - O que é isto?

      - Chama-lhe «Banheira das Minhocas» ou depósito alimentador. Sa­berás para que serve quando o «doutor» Polski o souber.

      Metemos pela estrada das traseiras e fomos até à quinta de Polski pelos trilhos dos tractores, junto dos campos. Quando passámos pelo quebra-ventos que parecia um navio, lembrei-me que fora ali que vira a procissão de homens com archotes. Fora por debaixo do maciço de árvores que observara os homens reunidos e o corpo a ser levantado na cruz. Esperei que o pai metesse por um atalho que me confirmasse, ao ver pegadas ou milho espezinhado, que não sonhara. O pai virou para a direita. Sustive a respiração.

      O que era aquilo no meio do campo lavrado? Uma cruz, um homem morto pendurado nela, farrapos negros e um chapéu preto, um rosto que parecia uma caveira, mãos partidas e pés torcidos.

      Fiquei gelado e não consegui evitar as tremuras na voz quando lhe perguntei o que era.

      O pai continuava a conduzir bem depressa pelo caminho irregular.

      Não virou a cabeça. Sorriu-se e disse: .

      - Não me digas que nunca tinhas visto um espantalho para os pássaros.

      Carregou no acelerador. - Deve ser um espantalho muito bom!

      Olhei para trás e vi-o suspenso sobre o campo vazio, velhas roupas cheias de palha. O suor fizera com que a inflamação provocada pela hera começasse a dar-me comichões. Tinha vontade de arranhar a cara.

      - Não há dúvida de que te assustou! - continuou, soltando uma gargalhada.

 

      Segundo se dizia, o «Pequeno» Polski, que ouvira falar nas invenções do meu pai, visitara-o e implorara-lhe que fosse com ele para Hatfield. Nessa altura vivíamos no Maine, não em Dogtown mas nos bosques. O pai tentava um ano de auto-suficiência, cultivando hortaliças, construin­do painéis solares e mantendo-nos longe da escola. Polski prometera-lhe dinheiro e uma parte da quinta. O pai não se decidira a mexer-se. Polski dissera que enfrentava problemas pouco usuais porque queria, por meios mecânicos, prolongar a época das culturas ou até conseguir duas épocas por ano. Era uma boa área para a educação dos garotos, era um vale protegido e feliz, a quilómetros de qualquer outro lado. Esta foi a história que me contaram, mas eu sabia qual a verdade. As coisas não tinham corrido bem no Maine. O pai recusara-se a sulfatar os vegetais, e os vermes tinham-nos devorado antes de podermos colhê-los. A chuva e as tempestades haviam causado estragos nos painéis solares. Durante algum tempo o pai não quis comer e foi levado para o hospital. Chamou-lhe «Palácio do Borborinho», mas saíra de lá a sorrir e dissera: «Não senti nada.» Estava de novo saudável. Apenas, de vez em quando, se esquecia dos nossos nomes. Fomos para Hatfield sem nada, pois ele gostava de começar do zero.

      Era impossível pensar em Polski - ou fosse em quem fosse - como sendo o patrão do pai. O pai não aceitava ordens.

      Descrevia Polski como «o baixote» e chamava-lhe «gorducho» ou «doutor Polski», mas este «doutor» era puro sarcasmo, destinado a afastar qualquer tentativa de amizade. Pensava que Polski e quase todos os outros homens eram seus inferiores.

      - Possui gente - dizia o pai -, mas não me possui a mim.

      Polski esperava-nos no pátio da entrada quando lá chegámos. Tinha olhos cinzentos e duros como pervincas. Era mais velho que o pai, pequeno e gordo, e parecia sempre cheio de serradura. Usava uma camisa aos quadrados, umas botas limpas e um cinto que lhe transformava o fato-macaco em dois sacos. O seu jipe brilhava, as botas nunca tinham lama e não havia manchas de suor no seu chapéu. Não fumava. Andava sempre vestido para trabalhos sujos, mas nunca se sujava. Era a primeira vez que entrávamos na sua mansão, mas não sei dizer se isso era por o pai se recusar terminantemente a entrar lá ou por nunca ter sido convidado para o fazer. Talvez Polski soubesse que era melhor não o convidar, para não ter de aturar um dos seus discursos a respeito dos tolos e dos hamburgers. Eu espreitara pelas janelas e vira a mesa polida, a jarra de flores em cristal lapidado, os pratos em fila no armário e as costas atarefadas da mãe Polski, que varria e limpava. Nada daquilo tinha um ar convidativo e a mãe       Polski parecia fazer parte da sala. - Belo dia - disse Polski.

      - É verdade - respondeu o pai.

      - Espero que continue assim no fim-de-semana. Tenho coisas para fazer no sábado.

      «Cosas pr'fezer sábdo», foi o que ele disse, mas o pai não fez comentários. Estava excitado. Guiara com impaciência, ansioso para mostrar a Polski a sua «Banheira das Minhocas». Tinha orgulho nela, fosse aquilo o que fosse. No entanto, continuava sentado na camioneta, mastigando o charuto.

      - Tem um fósforo, «doutor»?

      Polski semicerrou um dos olhos e abanou-se um pouco sobre os calcanhares. A pergunta intrigava-o.

      - Fez todo este caminho para me pedir um fósforo, senhor Fox?

      - Pois!

      - Já volto, não demoro.

      Polski pronunciava os erres como vês, não demovo, fósfovo, ladvão, vealmente. A culpa era do lábio inferior que batia nos dentes da frente. Desapareceu dentro de casa.

      - Até parece que tens sarna - disse o pai, depois de estudar a minha cara inflamada e os braços. - Espero que tenhas aprendido a lição.

      Saltou para fora da camioneta e instalou a talha detrás dela.

      - Vamos fazer com que a tampa lhe salte - declarou, descarregando a «Banheira das Minhocas» para o chão. - Vai ficar com os cabelos em pé.

      Polski regressou com uma caixa de fósforos grandes de cozinha, olhou para a «Banheira das Minhocas» e comentou:

      - E pequena demais para um caixão.

      - Pergunto a mim próprio se me fará mais um pequeno favor disse o pai. - Um pequeno copo de água, da torneira...

Murmurando «um copo de água vulgar», Polski voltou a entrar em casa. Era fácil de perceber, pelo modo como o dissera e pela maneira como batera a porta, que estava a ficar exasperado. Quando regressou com a água e a entregou ao pai, declarou:

      - O senhor é um homem misterioso, Fox. Mostve lá o que é isso.

      - E o senhor é um cavalheiro.

      Polski olhou para mim pela primeira vez.

      - Hera venenosa. Ficaste coberto dela. Que coisa!

      Ao ouvir aquele «cobeto» e «cosa», recuei um pouco e toquei na cara, envergonhado. Havia sido enganado por um espantalho. Já percebera tudo. Fazia sentido instalar o espantalho durante a noite, para que os pássaros não ficassem a saber. Era essa a minha lição?

      - Que vem a ser isso? - perguntava o Polski ao pai.

      - Vou dizer-lhe o que isto não é - respondeu, abrindo a porta da caixa de madeira e revelando o compartimento de metal fechado com uma placa com dobradiças e com o vedante de borracha que tínhamos comprado em Northampton. - Não é um caixão, nem é um bocado de carne deteriorada. Ah! - Abriu a tampa metálica e continuou: - Quero que me diga o que é que vê aqui dentro.

      - Nada.

      - És testemunha, Charlie.

      - Pois, só que tem os olhos quase fechados, de inchados que estão! - afirmou Polski, rindo-se.

      O pai despejou parte da água do copo, um pouco de cada vez, parecendo medi-la, até só restarem cerca de dois centímetros no fundo. Meteu o copo dentro do compartimento de metal, fechou-lhe a tampa e a caixa, e depois acendeu um fósforo.

      - Não me diga que vai ferver esse copo de água! - exclamou Polski.

      - Tenho coisas melhores para fazer.

      - Tais como?

      Polski agitou os lábios depois da pergunta. Era ele quem estava a ferver. O pai respondeu:

      - Garanto-lhe que não vai ficar desapontado.

      - Que diabo de cheiro é este? Petróleo?

      - Certo. Petróleo, o combustível, mais barato da América.

      - E o mais mal-cheiroso.

      - Opiniões diferentes - retorquiu o pai, o que fez Polski resmungar.

      - E está a dizer-me que não vai cozinhar nada?

      - Não é bem isso.

      O pai divertia-se. Fez qualquer coisa na parte detrás da caixa de madeira, onde se encontravam os tubos e o elemento de aquecimento. «Banheira das Minhocas» era um bom nome para aquela caixa de tubinhos. Acendera uma mecha que era alimentada e humedecida por um bico do depósito de combustível, e ao ajustar a chama fez sair nuvens de, fuligem pegajosa do alto da chaminé. Ouviu-se um borbulhar lá dentro; um som parecido com o que faz um estômago com fome, mas tirando essa manifestação de descontentamento por parte daqueles tubos, nada mais aconteceu, não se ouviu nenhum motor, nem havia ali muito calor.

      - Arrota ou peida-se? - inquiriu o pai. - Era o que estava a perguntar a si mesmo?

Polski resmungou de embaraço, pestanejou e tomou um ar impaciente, enquanto esfregava as solas nas pedrinhas do chão. O calor começou a sair em ondas negras pela chaminé. Polski recuou.

      - Se esses tubos estão fechados, vai rebentar - declarou. - Por causa da pressão.

      - Esconda-se em casa, se quiser, mas tenho aqui um conjunto completo de válvulas de segurança. Está a deitar fumo porque a pus a funcionar a toda a força para demonstração. - Espreitou lá para dentro. - Aguenta bem.

      Olhava para a sua obra com um ar orgulhoso, parecia tão seguro dela, tão descuidadamente confiante, que eu quase esperava que aquilo se abrisse com um jacto de chamas e lhe explodisse na cara. Já não seria a primeira explosão. «Era só uma experiência», dizia o pai. O tecto da oficina estava chamuscado e não fora a abrir uma lata de atum que o pai perdera a ponta de um dedo, como às vezes afirmava. - Se eu quisesse cozinhar um copo de água, enfiava-o no forno. Só que nunca me apeteceu água assada.

      Polski olhou para mim em busca de aprovação, mas depois ficou de rosto sombrio quando viu a coluna de fumo oleoso. Enfiou a cabeça entre os ombros e semicerrou os olhos à espera do estouro.

      - Gosta de a ouvir ronronar? - perguntou o pai.

      - Está mas é a rosnar - retorquiu Polski.

      - Não tem um único fio - continuou o pai, andando devagar em volta da caixa. -    Não está ligada a lado nenhum. Não tenho nada na manga. Não tem peças móveis, «doutor». Nada que se gaste. É eterna.

      - É mesmo o que me fazia falta para o galinheiro - disse Polski, olhando para mim. - Durante o Inverno poderei manter as galinhas quentes como torradinhas e a porem regularmente... se não as matar com os fumos.

      - É um grande brincalhão. Os fumos podem ser corrigidos, é apenas uma questão de ajustamentos mais finos. Só lhe queria mostrar o que ela pode fazer.

      - Eu diria que é capaz de acabar com o negócio às doninhas fedorentas.

      Polski pigarreou, limpou a garganta e cuspiu, e depois pontapeou um pouco de terra para cobrir o escarro.

      - Como vão os velhos espargos? - perguntou o pai.

      - São demais. A culpa é deste tempo seco. Estão a crescer com o calor, estão quase todos maduros. Tenho mais do que os que posso armazenar.

      «Más d'que possu avmzná.»

      - Então venda-os!

      - Isso era o que eles queriam.

      - Toda a gente gosta de espargos.

      - O mercado está inundado - disse Polski. Encheu a boca com saliva e cuspiu-a em jacto, como resposta. - Nem lhe digo a quanto estou a vendê-los. Dentro em breve terei de os vender a um dólar a tonelada... ou de os dar.

      - Era uma boa ideia.

      Irei parar a um asilo.

      - Claro que sim - afirmou o pai. - E você também, senhor Fox. - Já lá estive. É educativo.

      - O velho armazém frigorífico está a rebentar - continuou Polski. - Depois quero que me dê uma vista de olhos pelos fusíveis. Não sei quanto é que eles vão trazer hoje, mas se for mais do que duas carradas, estou metido num sarilho. Já tive semanas em que os vendi a um dólar cada cinco quilos. Este ano vai arruinar-me, estou afundado em espargos...

      Continuou a lamentar-se e a cuspir, dizendo que isto e aquilo e pontapeando a terra até que, por fim, no que era quase um grito, afirmou: - Suponho que esse copo de água já deve estar bem cozinhado! - Isso não me surpreenderia - respondeu o pai com toda a calma.

      - Então importa-se de a abrir, senhor Fox?

      - Ele quer que a gente a abra - disse o pai, virando-se para mim.

      - Convence-o tu, Charlie - pediu Polski, novamente irritado. ­

      O teu pai não escuta o que eu lhe digo.

      - Nada de lavrar com o meu bezerro - retorquiu o pai. Respirando fundo e dolorosamente, Polski pediu, numa voz que já era de sofrimento:

      - Vejam lá se essa coisa já derreteu!

      O pai chupou o cigarro. Saboreou-o. Engoliu o fumo. Soprou e formou um anel de fumo no ar imóvel, sem vento. Era uma roda azul, apareceram-lhe pedais, um guiador, e rolou para longe. Vimo-la afastar-se em direcção aos campos, desfazendo-se em bocados, como uma vírgula de uma frase escrita no céu, preenchendo a pausa do meu pai com um atraso visível.

      - Vamos a isso - declarou.

      Abriu a porta, levantou a chapa de metal e sem se baixar e sem olhar lá para dentro, pegou no copo de água, fazendo um floreado com o braço como se fosse um mágico. Entregou-o a Polski, que o fez saltar de mão para mão, soprando nos dedos.

      - Batata quente - disse Polski. - Fria, quero dizer! - Voltou a soprar para as pontas impecáveis dos dedos. - Cozinhado é que ele não está, isso de certeza.

      - Vamos, despeje-o - pediu o pai.

      Polski tentou. Virou o copo de boca para baixo e sacudiu-o.

      - Não despeja. - Deu uma palmada no fundo. - Não quer sair. - Gelo - explicou o pai, e a palavra permitiu-lhe sorrir e soltar um silvo, tudo ao mesmo tempo.

      - Eh, esta é boa! - exclamou Polski impressionado, mesmo contra a sua vontade.

      As tripas da «Banheira das Minhocas» continuavam a gorgolejar e a chiar suavemente, e o fumo oleoso ainda saía. Tinha um aspecto cómico e com uma grande barriga, como um menino gordo de casaco aberto, a fumar uma beata.

      Polski aqueceu o copo nas mãos, fez saltar o disco de gelo de dentro dele, e atirou-o para o meio das roseiras. . - Devia ter calculado que era uma geleira - comentou. - Devia ter esperado isso de si.

      - Mas de onde vem a electricidade? - perguntou o pai, numa voz sarcástica. -       Onde está o fio de ligação?

      - Disse-me que trabalhava a petróleo.

      - Quer dizer que consegui fazer gelo com fogo?

      - Assim parece.

      - E o petróleo é barato. Isto poupa energia.

      - Tenho trabalho para fazer - disse Polski. - Estou enterrado em espargos até às orelhas.

      - Não quer saber como ela funciona?

      - Noutra altura.

      - Meta a mão ali dentro. Veja que fria que está... até é capaz de lhe arrancar a pele dos dedos. Aposto que nunca viu uma coisa assim.

      - Não - confirmou Polski -, mas já tinha ouvido falar. Inventou uma coisa que já foi inventada há uns trinta anos. - Polski começou a afastar-se. - É tal e qual como vir ter comigo com uma torradeira. «Olha, sem fios. E a torrada salta cá para fora!» Bom... mas continua a ser uma torradeira. E isso continua a ser uma geleira. Não se pode inventar uma invenção.

      - É a perfeição! - declarou o pai e Polski encolheu-se ante a palavra «pefêção». - Aperfeiçoei-a. As outras eram pequenas. Ineficientes. Usa­vam líquido refrigerante de baixa potência. Não percebiam nada de líquidos refrigerantes até ontem à tarde. Trabalhavam a gás. Não eram capazes de fazer um cubo de gelo nem que as atafulhassem de neve. Amónia e água. Brometo de lítio. Água salgada. Mas este brinquedo - tocou-lhe com ternura -, este brinquedo utiliza uma nova fórmula de líquido de alta expansão, amónia enriquecida e hidrogénio sob pressão. É um modelo à escala. Estou a planear fazer uma enorme. Que pensa?

      - Isso já é outra coisa - respondeu Polski. - Um constante perigo de incêndio.

      - Nunca, se for ventilada. - O pai explicava, não implorava. - Nunca, se for bem vedada. Já registei a patente para estas válvulas, não se rale com o resto, não se rale com a ideia original. Isto é... poesia.

      - E um grande risco. - Polski nem sequer o escutava. - Uma geleira grande seria um constante risco de incêndio. Fumos por todo o lado. Seria como uma fornalha de pressão. Se rebentasse, os bocados iam parar a Pittsfield. Sabe onde pode montar uma coisa dessas? Num sítio distante, num daqueles sítios onde experimentam as bombas atómicas, onde ninguém se pode aleijar. Isso mesmo, num sítio longe. Aqui não, onde provocará prejuízos e assustará os cavalos. Está a arriscar a vida com uma engenhoca assim.

      Endureceu a cara para o pai.

      - Não há risco - disse este. - Estou a pedir-lhe para que considere o princípio da coisa. - Uma caixa de fogo que faz gelo! Sem barulho! Sem electricidade!

      - A electricidade é barata.

      - Quantos anos tem, «doutor»? - perguntou o pai sorrindo para ele. Cuspindo com o lábio inferior, Polski atirou um bocado de saliva para o chão escarrado.

      - E daqui a dez anos? - perguntou o pai. - E então? Ou daqui a vinte? Pense no futuro.

      - No futuro já cá não estarei.

      - Aí está o epitáfio da América. É criminoso. É conversa fiada.

      - Não posso ter chamas a arder por todo o lado - disse Polski. ­

      Passo bem sem elas.

      Ante isto, o pai borrifou-o de gargalhadas.

      - Não passa de uma chama pequenina - comentou, como se estivesse a explicar uma vela ao Jerry, falando devagar, meio trocista, meio professor. - Uma luz-piloto. Chegue aqui e veja-a. Mal se vê. Ora, é preciso uma chama maior para acender um charuto de dez cêntimos.

      - Não há dúvida de que é engenhosa, - respondeu Polski, olhando para o relógio enterrado nos pêlos do pulso. - Sempre afirmei que você tem o engenho dos ianques.       Mas agora não tenho tempo. Dentro de algumas horas vou estar enterrado em espargos. Vai ser um caso sério.

      - Não está interessado nela - afirmou o pai, martelando com o coto do dedo na tampa -, não é assim?

      - Aposto que pensa que tem aí uma mina de ouro.

      - Uma mina de ouro é só uma mina de ouro.

      Polski já esmagava a gravilha do pátio. Virando-se, oscilando na gravilha, prosseguiu:

      - Não é com essa engenhoca que irá ficar rico, senhor Fox.

      O pai deixou que uma gargalhada lhe encurvasse a língua, mas tinha os olhos obscurecidos pela pala do boné. Ficou a ver o Polski a afastar-se.

      - Se alguma vez quiser ser rico, o que não me interessa, cultivarei espargos.

      - Não enriqueceria com eles - replicou Polski sem se virar. – Acabaria por arranjar uma úlcera.

      O pai enfiou os polegares nos bolsos e afastou os pés. Era uma posição de polícia.

      - Vamos deixá-lo entregue à úlcera, «doutor».

      - Não se vá embora zangado, senhor Fox - gritou Polski do pátio, sempre sem se virar. - Já lhe disse que é uma bela engenhoca, mas que não me serve de nada.

      Enfiou-se dentro de cada e chamou pela mulher, «Cherl», que se chamava Cheryl.

      - Cultivaria espargos - disse o pai - e contrataria cinquenta selvagens imigrantes para os cortar. Era isso o que eu faria. Tu, Charlie, terias um novo par de sapatos de ténis e o melhor fato-macaco que o dinheiro pudesse comprar. - Apagou a chama da «Banheira das Minhocas», olhou para ela com amizade, como se fosse uma criatura viva e continuou: - Aquele peru vesgo chamou-lhe «engenhoca».

      Sorriu e o rosto radiante como que se alargou.

      - Não podia pedir uma reacção melhor do que aquela. - Mas ele não gostou muito dela - disse eu.

      - Estás a ser muito brando. - O pai riu-se e sublinhando as palavras, dizendo-as aos bocados, prosseguiu: - Ele odiou-a! - Soltou um som trocista. - O desprezo dos ignorantes... a mais estúpida espécie de reacção. «É um grande risco.» Estou-lhe grato por isso, foi o que me trouxe aqui. São estas coisas que me fazem andar para a frente, Charlie. Imagina só se ele gostasse dela. Sim, deixava-me muito preocupado. Envergonhado de mim mesmo. Teria de voltar para a cama.

      Polski abandonou a casa pela porta das traseiras, trepou para o jipe, pôs o motor em andamento e meteu a marcha atrás.

      - Lá vai ele - disse o pai. - O velho João Fossão. Dêem a estes tipos um catálogo de feijões e todos eles pensam que são pioneiros, homens da fronteira.

      Polski corria apressado, aos saltos pela estrada, em direcção aos campos.

      - Aquela porcaria a que ele chama jipe é que uma engenhoca ­afirmou o pai, apontando com o dedo cortado. - Isto é uma criação. Não é possível comprá-la com dinheiro.

      Estava tão violentamente seguro de si próprio que não havia nada que eu pudesse dizer e ele também não me perguntou. Portanto, sem falar, carregámos a «Banheira das Minhocas» na carrinha.

      - Parece um menino gordo - disse eu.

      - Esta aqui é um bebé. Quando eu fizer uma grande, é isso o que lhe iremos chamar... «Menino Gordo». - Mirou a minha cara marcada pela hera venenosa e comentou: - Eh, estás com um aspecto horrível.

      - «Menino Gordo» - repetiu o pai quando nos encaminhávamos para a estrada, mastigando as palavras como se fossem pastilha elástica. A meio do caminho olhei-o de esguelha, às escondidas, e vi-o a sorrir. Por que seria?

 

      O pai continuava a sorrir quando passámos pelo campo que tinha o espantalho e enfiámos por um caminho coberto de ervas que dava para um maciço de pinheiros negros. Havia uma tabuleta pregada a um tronco que dizia «PROIBIDA A ENTRADA», e para lá dela a casa no meio dos pinheiros que era conhecida pelo nome - de «Casa dos Macacos» .

      Já a vira de outras vezes, mas à distância. Nunca quisera chegar-me suficientemente perto para lhe espreitar o interior. De qualquer modo, como dizia a tabuleta, era proibido. Tinha quase a certeza de que alguns dos selvagens viviam ali, porque ouvira música de rádio a sair dela, e por vezes escutara gritos.

      Outrora as tábuas tinham sido brancas mas agora estavam descoloridas e riscadas pelas intempéries. Aquela casa de madeira tinha o ar de querer voltar a ser uma árvore, mas uma árvore petrificada. Nenhuma das janelas tinha cortinas e muitas nem sequer vidros. A sua única protecção era dada pelas escuras árvores em volta e ostentava algumas das suas marcas de resina. Subimos o caminho coberto de caruma e então, mais perto, verifiquei que a porta de rede estava rasgada e uma goteira se soltara e se agitava como um catavento tonto. A calha do beiral, escorrendo de encontro à casa, deixara uma mancha musgosa nas tábuas. Toda a casa parecia podre, destruída e cheia de fantasmas.

      - Anda daí, Charlie, quero mostrar-te uma coisa.

      Não podia recusar. Entrámos juntos na casa. Cheirava a suor e a feijões cozidos, a roupas sujas e a fumo de madeira. O papel da parede despegava-se em crostas amarelas e a própria pintura estava a cair, levantando-se em bolhas, aqui e acolá.

      - Dizem que esta casa é a «Casa dos Macacos» - disse eu.

      - Quem é que diz isso?

      - Os rapazes.

      - Dava-lhes cabo do pêlo! Não quero ouvir-te chamar-lhe isso! Não havia nem cadeiras nem mesas e o primeiro quarto era como todos os outros, colchões espalmados no chão e cobertores verdes do Exército sobre os colchões, caixas de cartão um pouco amachucadas, empilhadas a um canto, com farrapos e meias. O restante lixo era composto por latas de sardinhas abertas, sacos com restos de pão e garrafas vazias de leite azedo. Numa prateleira, um transístor mantinha-se inteiro porque estava amarrado com fita adesiva. Em todo o resto da casa havia mais colchões espalmados e mais lixo, roupas velhas, pentes e louça suja. Estava tudo arranhado e estragado como uma jaula de macacos. No entanto aquilo não era uma confusão viva, tinha o ar de ter sido abandonado e deixado para trás, como se quem quer que fosse que ali vivera se tivesse ido embora para sempre.

- Olha para esta pobre gente - disse o pai. Pegou num cobertor miserável e atirou-o para junto da parede. - Olha o que eles possuem.

      Zangado, começou a andar de quarto em quarto, como se procurasse qualquer coisa que sabia que não estava lá. Segui-o, mas mantive-me à distância. Agitava os braços e fazia movimentos violentos em direcção àquelas coisas imundas.

      - Voltam para aqui à noite... é onde dormem.

      Deu um pontapé num colchão.

      - Olha só o que comem!

      Pisou uma lata de sardinhas que deu um pulo de rã para o corredor.

      - Que diabo, nem sequer comem os malditos espargos que colhem… Foi então que soube que eram os selvagens.

      - ... apesar de não os poder censurar se os roubassem. Caminhou barulhentamente para as traseiras da casa, meteu a cabeça por uma janela e soltou uma gargalhada de tristeza...

      - Tomam banho numa selha; Fazem as necessidades naquela barraca. Achas isto justo? Estou a fazer-te uma pergunta! Admiras-te de que cheirem mal como os bodes, que vivam nesta miséria e que façam coisas de que não se pode falar, que só os tipos esquisitos fazem?

      Na verdade nada daquilo me admirava. O que me intrigava era o pai, que sempre lhes chamara selvagens, que me avisara para me manter longe deles, e que sabia tanto a seu respeito. Guiara a direito para a casa e entrara, sem medo de que um dos selvagens estivesse por ali a mandriar ou enrolado num cobertor, e que se atirasse ao pai e lhe cortasse o pescoço.

      - Acho que não devíamos estar aqui - disse-lhe.

      - Eles gostam de visitas, Charlie, recebem-nas bem. É um velho costume... da selva. Sê simpático para com os estranhos, dizem, porque nunca se sabe se um dia não se será um estranho, perdido na selva, sem água, ou morrendo das dentadas dos animais. Essa é a lei da selva... caridade. Não há aí a crueldade que as pessoas pensam que existe. Temos muita coisa a admirar nos selvagens. Sim, eles gostam de visitas.

      - Mas aqui não é selva.

      - Não - respondeu o pai -, porque nenhuma selva é tão assassina e traiçoeira como esta terra. Trocaram a verdura das árvores por esta ruína. É patético... e deixa-me muito zangado, porque acabarão por vir a ser parte do problema.

      - Começara a marchar para fora da casa. - Preciso de ar - explicou.

      No entanto, em vez de nos metermos na camioneta para nos irmos embora dali, descarregou a «Banheira das Minhocas», a sua geleira. Colocou-a sobre patins e arrastámo-la para dentro de casa. O pai instalou­-se no quarto das traseiras, acendeu-lhe a mecha e colocou lá dentro uma bandeja com água.

      - Quando virem este gelo vão ficar como loucos - declarou.

      - Queres dizer que ma vamos dar? Então, e todo o trabalho que tiveste com ela?

      - Ouviste o que disse aquele baixote do Polski. Não lhe serve de nada. Nós temos o nosso frigorífico. Esta gente vai apreciá-la. Não lhes vai custar nada a manter e poderão guardar lá a comida e poupar dinheiro. Podem regressar dos campos e tomar uma boa bebida fria. Sempre melhorará um pouco a desgraça desta ruína. Isso é o que interessa. - Estava ajoelhado no chão, ajustando a chama. - Gelo é civilização.

Deu um estalo de admiração com a língua e os dentes.

      - Vão ficar intrigados sobre quem a deixou aqui - disse eu.

      - Não, não vão.      ­

      Abandonámos a velha casa, os seus colchões e as migalhas dos ratos e eu senti-me como se tivesse sido acabado de apresentar a uma vida selvagem. Encontrava-se muito perto da nossa bem organizada casa e, no entanto, era selvagem. Era outra, diferente da nossa. Vazia e solitária. Assustara-me, não por ser perigosa, mas por ser tão miserável e com um aspecto tão sem esperança. Começara mal e continuara para pior. Permaneceria assim, com todo o seu lixo, as latas vazias e as paredes escrevinhadas, os riscos de macacos na madeira, o enferrujado balde das lavagens, o lavatório que não funcionava, o lixo das varridelas, os sapatos retorcidos que me faziam pensar em pés também retorcidos.

      - Mete medo - afirmei.

      - Ainda bem que pensas assim - respondeu o pai.

      Conduziu ao longo da estrada, suspirando quando metia as mudanças. - É a América - prosseguiu. - Uma desgraça. Dá-me cabo do coração.

 

      Depois daquilo fiquei satisfeito por chegar aos campos familiares e por ajudar o pai nas tarefas triviais e monótonas. Suando ao calor, voltara a ter comichões por causa da hera venenosa, mas não me queixei. O pai também não falou no assunto, tinha a certeza de que eu andara a fazer asneiras nos arbustos e aquele era o meu castigo.

      Polski tinha dez ovelhas gordas e uma pequena manada de vacas. Reparámos o transformador da cerca eléctrica que as separava e desen­tupimos o tubo de descarga num bebedouro.

      Dantes, neste país, existiam oportunidades para um homem como eu - afirmou o pai.

      Por volta do meio-dia dirigimo-nos para o grande armazém-frigorífico, sem janelas. No interior das paredes espessas fazia frio. Havia o gaguejar de um circuito sobrecarregado, o ar mantinha-se imóvel e sentia-se o forte aroma dos espargos a amadurecer no escuro. Os rebentos estavam amarrados em molhos de quilo e meio. Como as pontas são quebradiças e delicadas, são difíceis de armazenar. Estavam arrumados nas prateleiras com tanto cuidado como se fossem molhos de munições prestes a explodir. Era claro que Polski já não tinha muito espaço livre, mas o pai comentou que era espantoso que ele armazenasse os espargos uma vez que havia uma tão grande procura.

      - Ah, e olha para aquilo!

      Lá no alto, pendurado num gancho, estava um casaco de visão, provavelmente da mãe Polski, posto ali no frio para o proteger das traças. Era de um dourado-escuro e cada um dos finos pêlos brilhava quando o pai lhe apontava a lanterna eléctrica.

      O casaco levou o pai a rir-se do estado do mundo, onde havia seres humanos a dormir no chão de uma casa em ruínas, e uma tonelada de espargos e um casaco de visão numa confortável instalação com ar condicionado, que custava uma fortuna para arrefecer. Era um horrível gozo, afirmou. A estupidez das pessoas! Se os selvagens soubessem como estavam a ser enganados, iriam ali, cortariam a cabeça ao Polski e dançariam em cima do casaco de peles.

      Descobriu um fusível rebentado no sistema de refrigeração. Enquanto o substituía, disse-me:

      - O baixote tem razão. Não tem aqui um centímetro de espaço livre e ainda estão em plena colheita. Toma nota do que te digo, o homem irá fazer-nos uma visita muito em breve. Vai ter bastante em que pensar, e não se recordará do que me disse esta manhã. Há pessoas que nunca aprendem.

      A meio da tarde trabalhávamos ao lado da estrada, escavando uma valeta que se entupira de terra durante o degelo de Março. Estava tanto calor como no dia anterior e o pai tirara a camisa. Segurava no carrinho de mão que ele enchia, quando ouvi vozes.

Pela estrada vinham três garotos de bicicleta, garotos de Hatfield, que voltavam a casa depois da escola. Baixei-me. Não queria que me vissem ali, a trabalhar vestido com roupas velhas. O meu pai dobrou-se todo como um cavador. Tive vergonha dele, que não se ralava com o que as pessoas pensavam. Por outro lado, invejei-o por ser tão livre e odiei-me por sentir vergonha. Os garotos tocaram as campainhas das bicicletas e cantaram, para me chamarem a atenção e me fazer sentir mal. Não sabiam que o pai passara meses a inventar uma geleira que funcionava a fogo e que naquela manhã a dera, sem mais nem menos, e que agora pegava na picareta como qualquer trabalhador rural.

      Não era capaz de olhar para a cara deles. Gritaram de novo quando passaram por nós. Pouco depois olhei para cima e vi-os a oscilar pela estrada de terra.

      O pai continuava a cavar a valeta, ou antes, a desmanchar a terra acumulada no fundo com uma pá de sua própria invenção que se parecia com uma grande forma de sapato.

      - Não te envergonhes - disse-me. - Viste coisa espantosas, hoje, Charlie. E que estiveram aqueles palermas a fazer? A cheirar cola no pátio da escola, gabando-se dos brinquedos, vendo bonecos, fazendo barulho. Ver televisão... é tudo o que fazem na escola. Dão cabo dos olhos. Nada disso te faz falta.

      Polski apareceu depois do jantar, tal como o pai previra. Jerry e as gémeas já estavam na cama e a mãe tratava-me da cara com loção. O pai descrevia o casaco da mãe Polski pendurado no armazém-frigorífico.

      - Tanta vaidade e despesa - disse. - A idiota da mulher ainda fica muito mais feia quando o usa! Com aqueles dentes e o casaco parece-se com uma marmota maluca, capaz de nos morder uma perna se olharmos de esguelha para ela! Imagina, assassinam e esfolam vinte belos animais para que uma mulher infeliz...

      Ouvindo o jipe de Polski a chocalhar à entrada, o pai levantou-se e virou-se para mim:

      - Está na hora da cama, Charlie.

      A mãe levou-me para cima e disse-me, quando já estávamos no meu quarto:

      - Andei todo o dia preocupada contigo. Por que é que tens esse ar tão triste?

      - Tenho a impressão de que nos vai acontecer qualquer coisa respondi-lhe.

      - Que queres dizer?

      - Qualquer coisa terrível.

      - Quando somos novos, o mundo parece-nos impossível, grande e estranho, e até ameaçador. Se pensares demasiado nele ficas preocupado.

      - Mas o pai não é novo...

      A mãe olhou para mim.

      - ... e está preocupado.

      - Não - disse ela. - Mas, neste momento, tem muito em que pensar. Já o vi assim mais vezes... a matutar. Quando isso acontece tem ideias maravilhosas. Um destes dias vai falar-nos da sua nova invenção.

      - Vai acontecer-nos qualquer coisa - insisti.

      - Qualquer coisa boa - declarou a mãe. - Agora, vai dormir, meu querido.

      Quis rezar depois da luz apagada. Fechei os olhos com força mas a reza não saiu.       Não sabia como era. Pensei «Por favor» e foi tudo o que consegui rezar. As vozes lá em baixo, o seu ressoar, faziam com que o coração me saltasse no peito. Fui até à porta, esgueirei-me para o patamar no cimo das escadas e ouvi a troça do meu pai.

      - Deixa-me confuso, «doutor»! Fico sem saber se sou surdo ou cego! Nesta mesma manhã mostrei-lhe um modelo, a funcionar, de uma geleira ao preço da chuva. Virou-lhe as costas e disse-me que tinha de ir regar os tomates. Agora está aqui, talvez a perder o seu programa de televisão favorito, pedindo-me que...

      - Mas eu disse-lhe que estava interessado - afirmou Polski numa voz assustada.     - Então devo ser surdo como uma porta - respondeu o pai -, porque não ouvi nada.

      - E estou interessado, agora.

      - O seu interesse e mais dez cêntimos não chegam nem para eu conseguir uma chávena de café frio.

      Espreitei por cima do corrimão. O pai andava de um lado para o outro, ao comprido da sala. Polski sentara-se num banco baixo. Sentara-se como as raparigas se sentam na retrete, com os joelhos juntos e o rosto chegado para a frente.

      - O armazém-frigorífico está cheio depois da colheita de hoje - disse Polski. - O que quero saber é isto: que vou eu fazer com o que apanharem amanhã, e no dia seguinte?

      - Podem continuar a rebentar com fusíveis - retorquiu o pai. ­Sempre servirá para ajudar a passar o tempo.

      - Deve haver uma maneira de preparar o celeiro. Quero dizer, isolá-lo e instalar um sistema de arrefecimento no sítio onde está a palha. Posso contratar os carpinteiros, mas o problema está na refrigeração. Se tratasse dela, aguentávamos até ao fim das colheitas.

      - Não percebo. Esta manhã mostrei-lhe um dispositivo refrigerador que era uma perfeição, e tudo o que senhor fez foi afastar-se na sua carripana. Que palavra é que usou? Ah, sim, chamou-lhe engenhoca. Fiquei a coçar a cabeça! Não via nenhuma engenhoca em lado nenhum! «Doutor...» - disse o pai com ares importantes ainda estou a coçar a cabeça de perplexidade!

      - Aquela geleira foi uma boa ideia - afirmou Polski. - Mas o que pretendo é uma coisa mais... corriqueira. O armazém-frigorífico que me fez o ano passado estava bem para a colheita desse ano, mas este ano temos uma colheita enorme e tenho de agir de acordo com isso. Não pense que ando à procura de soluções milagrosas...

      - Isolar o celeiro não é problema - reconheceu o pai. - Pode-se encher o espaço entre as paredes com lã de vidro, soprada por um compressor... mas há muito ar naquele celeiro. Quanto? Três mil metros cúbicos... ou mais? Será preciso um arrefecimento de níveis múltiplos para manter uma temperatura constante, pois de outro modo estará a congelar uma parte e a assar a outra. Ventiladores, termostatos, bobinas.

      Está a falar-me de quilómetro e meio de tubos de cobre, isto já sem falar nos fios e acessórios eléctricos.

      - Vê, está a compreender o meu problema.

      - E nem sequer quis olhar para a minha «Banheira das Minhocas»... a geleira que lhe mostrei esta manhã.

      - É demasiado pequena.

      - Um modelo à escala é sempre pequeno.

      - Preciso de qualquer coisa cem vezes maior.

      «Quaquecosa», Polski começara a gaguejar.

      - O senhor não compreende as suas aplicações.

      - Não quero incêndios.

      - Vai ficar falido só com as contas da electricidade. Três mil metros cúbicos?     Quantos quilovátios? Vai-lhe custar uma fortuna. - A seguir repetiu: - Uma futuna!

      - Deixe de tentar poupar-me dinheiro, senhor Fox.

      - Não se trata de dinheiro, o que me custa é o desperdício, «doutor». É ele que está a enviar este país para o fundo.

      - Não sou eu quem dirige o país e isto não é nenhuma brincadeira. Compreendo que lhe estou a falar no assunto com pouca antecedência, mas preciso de mais espaço para armazenagem a frio e conto consigo para mo arranjar.

      - Continuo a perguntar a mim mesmo, e estou só a pensar em voz alta, entenda, continuo a perguntar a mim mesmo para que é isso?

      - Para quê? - retorquiu Polski. - Porque há demasiados espargos este ano, senhor Fox.

      - Está a colhê-los muito depressa ou a vendê-los demasiado devagar?

      - Nem sequer estou a vender... os outros é que o fazem. É por isso que o preço está tão baixo.

      - Escute, o senhor está no negócio dos armazenistas ou no da venda? Estou a perguntar-lhe, porque não percebo nada dessas coisas. Sou um trabalhador, não um economista.

      Ainda curvado no banco, Polski virou o rosto atormentado para o pai e disse, com uma voz de desafio:

      - Venderei quando os preços subirem, nunca antes. Entretanto, todos os rebentos que cortar irão para o frigorífico.

      - É a coisa mais suja de que já ouvi falar - afirmou o pai.

      - É o negócio.

      - Então é um negócio desonesto. Está a provocar uma falta de espargos... apesar de eles não faltarem. Assim o preço subirá... apesar de já ser um óptimo preço. Bom, não é tão mau como assaltar um banco, mas é bastante mau. Diria que está mais ao menos ao nível do roubo das caixas de esmolas - O pai estava agora de pé junto de Polski ostentando um sorriso horrível. - E que ganha com isso? Alguns dólares, um novo par de calças, um relógio de pulso que se acende no escuro e talvez mais um calhambeque. Acha que vale a pena?

      - Qualquer agricultor digno desse nome observa a situação do mercado - explicou Polski, juntando os joelhos.

      - Há observar... e há influenciar - disse o pai, que voltou a mostrar-se ferozmente simpático. - Faça favor de estar à vontade, «doutor». Não precisa de estar aí todo encolhido. A cadeira que está por trás de si tem um sistema hidráulico.

      - Estou aqui muito bem, obrigado.

      - Bom, digo-lhe isto porque o senhor se sentou em cima da minha máquina de massajar pés.

      Polski pôs-se de pé num salto.

      Pegando no banco mais ou menos com a forma de um sapato, o pai prosseguiu:

- É terrível como as pessoas negligenciam os pés. Está a ver esta abertura? Mete-se o pé aqui dentro e agitam-se os dedos. Isso põe a funcionar os dedos mecânicos que lá estão dentro. Por curioso que pareça, a coisa funciona. Quer prestar um grande favor aos seus velhos e cansados pés?

      Polski disse que não e encaminhou-se para a cadeira, que era parecida com a de um dentista. Sentou-se nela com muito cuidado mas, contra a sua vontade, a cadeira inclinou-se e rodeou-o, levantou-lhe os pés do chão e virou-o na direcção do pai.

      - Hidráulica - explicou o pai.

      Com um ar teimoso e o queixo para a frente como se lhe fossem tirar um dente, Polski prosseguiu:

      - Tenho uma quinta para tratar e algo como vinte toneladas de produto para vender. Tenho de actuar o melhor que posso.

      - É simples. Venda o produto para arranjar espaço para mais. Ganha na quantidade o que perde no preço e ainda se sai muito bem da jogada. Faz mais sentido do que estar a distorcer o mercado. Mas não, isso não lhe interessa, o senhor quer mais... usando mão-de-obra escrava. Lucros? Não fabriquei essa cadeira nem inventei a máquina de massajar pés para ganhar cinquenta mil por ano com elas. Fi-lo por causa do lumbago e dos pés fatigados, e se conseguir aliviar os sofrimentos de mais alguém, pois muito bem. É assim que eu sou. Mas o senhor quer jogar com o mercado e ganhar tudo duma vez. Isso não é negociar... é roubar.

      - Não vim para aqui discutir a ética da agricultura, senhor Fox. Tenho um problema e o senhor parece ter a solução. Por favor, acabemos com as divagações.

      Polski tornara-se verde, o homem sofria. O meu pai respondeu-lhe: - O senhor mostrou-se demasiado frio para a minha geleira. - Não me parece prática.

      - Se pensa assim, então está muito afastado da realidade. É a invenção mais prática que há. Funcionará com coisa nenhuma... não apenas a petróleo mas também a gás metano obtido de uma solução de merda de galinha, coisa que não falta por aqui. Além disso, apesar de ter um pouco mais de tubos do que é habitual, não tem qualquer espécie de fios. - Quanto tempo seria preciso para a montar?

      - Um instantinho. Disse-me que o dinheiro não é problema.

      - Bom, sim, mas dentro de limites razoáveis.

      - Não comece a fazer marcha atrás - disse o pai.

      - Estaria interessado em instalar um refrigerador a funcionar a fogo, é isso? Para os excedentes?

      O pai hesitou antes de responder. Nunca antes o vira hesitar. Devia estar a fazer cálculos.

      - Estou quase tentado a fazê-lo - afirmou.

      - É a sua oportunidade, senhor Fox. Fará um favor a nós dois. O pai olhou para o tecto da sala e disse:

      - Vejo uma vasta instalação refrigeradora com armazéns. Tem sete ou oito níveis do tamanho de dois celeiros e mais qualquer coisa, com as suas passarelas metálicas no interior, os reflectores e o isolamento por fora. Parece-se com uma catedral, com uma chaminé a fazer de campanário. Que é aquela saliência no chão? Aquilo é a unidade ener­gética, a máquina principal, os tubos, os tanques de líquidos refrigerantes, a fonte de calor. Todos os tubos e tanques estão debaixo da terra, protegidos com chumbo, para o caso de guerra nuclear, acidente ou actos de Deus. A chaminé tem deflectores espirais de tubos para con­servação do calor e para o dirigir de volta à fonte de energia, o próprio fogo... fazendo uma reciclagem do calor, por assim dizer. Mas há perda de calor, há sempre, é por isso que precisamos de condutas dentro da chaminé. Sopramos o ar quente desses tubos através de uma grelha... e aí tem a sua incubadora. Pode aproveitar esse calor para incubar os ovos, aquecer as capoeiras dos pintos e das galinhas, que em devido tempo lhe fornecerão o combustível. Gás metano. Nada se perde. Aí tem a sua refrigeração. Aí tem o seu gelo. Aí tem o seu aquecimento. Venda os ovos de que não necessita e coma os restantes ao pequeno-al­moço. Mantenha os seus vegetais frescos. Faça um cano para sua casa... e terá ar condicionado... frio no Verão, quente no Inverno. Barato, fácil de operar, sem desperdícios, sem avarias e rentável. Só que tem uma coisa...

      Polski rastejara para fora da cadeira hidráulica como um raccoon para fora de uma armadilha que não funcionara. Observava o pai com uma gentil expressão esperançosa, sorrindo tristemente enquanto ele descrevera a sua visão das instalações refrigeradoras. Numa voz incerta e limpando a garganta, perguntou:

      - O que é?

      - Não quero fazer-lhe nenhum favor. O senhor só quer ter isso para enganar as pessoas, fazer subir os preços e criar escassez no mercado. Pensei que Polski ia chorar.

      - Não pode obrigar-me a vender os espargos. - Polski olhou em volta como se procurasse um lugar onde cuspir, e, ainda todo enrugado, prosseguiu: -      Se eu soubesse o que fazer com eles...

      - Coma-os.

      - A sua conversa vai fazê-lo perder o emprego, senhor Fox.

      - É melhor isso do que ser forçado a trabalhar numa coisa dessas.

      - Continue... e poderei ser obrigado a mandá-lo embora.

      - Tenha cuidado... - retorquiu o pai, que atravessou a sala, tirou um charuto de dentro da caixa e levou muito tempo para o acender. Quando já o fumava olhou para o homem e continuou: - irei para onde me apreciem.

      Polski virara as costas ao pai e falava para os seus próprios pés: - Não quero tornar-lhe a vida difícil.

      - As pessoas que dizem isso em geral pensam o contrário. Essa frase soa-me a uma ameaça.

      - Entenda-a como quiser.

      - Mãe! - gritou o pai. - Ele acabou de me ameaçar!

      A mãe, onde quer que estivesse, não respondeu.

      - Sabia que era um erro vir aqui - disse Polski, arrastando-se muito devagar em direcção à porta.

      Senti pena dele, parecia tão pequeno, com o pai a atirar-lhe fumo do charuto para cima, com as rugas de derrota nos ombros do casaco e a pequena cabeça a passar a porta. Queria que o pai fizesse as pazes com o Polski e que as coisas continuassem como dantes. Agora sabia que tinha de acontecer qualquer coisa.

      Voltei para o quarto a gatinhar, perguntando a mim mesmo o que seria. O som de que me apercebi a seguir foi o de Polski a pôr o jipe em andamento, logo seguido pelo resmungo do pai:

      - Boa viagem! - e a seguir, num tom muito claro, como um mugido num estábulo, a voz da mãe:

      - Estás louco!

      - Estou feliz, mãe.

      - Que queres tu agora?

      - Espaço para me mexer. Acabei de o compreender...

      - Por favor, Allie...

      - Nunca quis isto aqui - disse o pai. - Estou farto de todas as pessoas a fingir que são o velho Dan Beavers com as suas mocassinas, as calças de cotim e os cinturões japoneses, de todos estes falsos pioneiros, com as carroças cheias de twinkies de pão enlatado e de queijos que se espalham como um aerossol. Passa-me aí o penico de plástico e vamos falar de auto-suficiência!

      - Não sabes o que dizes!

      - Escuta... - disse o pai, mas já não consegui ouvir mais nada.

 

      Quando no dia seguinte o pai disse: «Vamos às compras», tive a certeza de que iríamos à lixeira. Muito raramente comprávamos coisas nas lojas. Tínhamos poucas necessidades, pois cultivávamos e criávamos quase toda a nossa comida. O trabalho mantinha-nos no «Pequeno» Polski, e havia um certo perigo em ir às lojas durante o dia, pois podíamos ser apanhados pelos polícias ou pelos inspectores escolares, por eu não andar na escola. «Nesse caso irás para a escola», dizia o pai, «e eu irei para o seu equivalente... a prisão. Que fizemos nós para merecermos um tal castigo?». Em segredo, eu queria ir à escola. Sentia-me como um velho ou um excêntrico quando via as outras crianças. Também muito em segredo, preferia os bolos das fábricas, como os Twinkies e os Devil Dogs, aos pães de banana da mãe. O pai dizia que os bolos comprados nas lojas eram porcaria e veneno, mas pensava que a sua única objecção se devia ao facto de, nas poucas vezes em que me apanhara a comê-los, ter de lhe explicar que os comprara com dinheiro que Polski me dera em paga de biscates. Polski dissera-me que o pai era uma pessoa peculiar, e esse era outro segredo que tinha de guardar. Comprá­vamos sal, farinha de segunda, fruta, atacadores para os sapatos e outras pequenas coisas em Hatfield, ou Florence, mas «ir às compras» em geral significava uma visita à lixeira e aos sucateiros em volta de North­ampton, onde ajudava o pai a remexer por entre os venenosos montes de lixo em busca dos fios e do metal que utilizava nas suas invenções.

      Havia gaivotas na lixeira. Eram coisas sujas e gordas que berravam e faziam o ninho no meio dos sacos de plástico cheios de lixo e que procuravam rasgá-los. Perseguiam-se umas às outras lutando por restos, e provocavam um verdadeiro motim quando chegava a camioneta do lixo. O pai odiava-as, chamava-lhes «devoradoras de restos». Gritavam-lhe e ele gritava-lhes em resposta. No entanto, debatendo-se por entre os montões de sacos e de caixotes, com uma forquilha na mão, gritando para as aves aos pulos à sua volta ou pairando por cima dele, por vezes parecia-me que tanto o pai como aquelas preguiçosas e despudoradas gaivotas lutavam pelos mesmos restos.

      - Ora aqui está um perfeito conjunto de rodas - dizia o pai, assustando as gaivotas, puxando por um velho carrinho de bebé do meio do lixo mal cheiroso e sacudindo as cascas de laranja. As outras pessoas levavam coisas para o lixo... e o pai tirava-as de lá e levava-as para casa. ­Um estúpido qualquer deitou isto fora.

      Hoje, porém, num dia normal de trabalho, passámos pelas estufas e pelos jardins de rosas de Hadley, atravessámos Northampton a toda a pressa e continuámos em direcção ao pico. A mãe seguia na cabina ao lado do pai, enquanto eu viajava agachado na traseira, com Jerry e as gémeas.

      - Vou ver as bicicletas de dez velocidades - disse Jerry.

      - Podemos comprar gelados - afirmou Clover.

      - Pois eu quero chocolate! - retorquiu April.

      - O pai não deixa - expliquei-lhes. - E não vamos às compras, este não é o caminho.

      - É, pois - afirmou Jerry. - É o atalho do pai.

      Não, já estávamos longe de Northampton, no campo. Atingimos o rio Connecticut e seguimo-lo. Era largo, oleoso e menos azul do que perto de Hatfield. Do outro lado havia edifícios de tijolo e surgiu a cidade de Springfield. Atravessámos a ponte e tivemos de nos segurar aos lados da camioneta por causa do vento que soprava forte no meio do rio. Nele viam-se bocados de espuma de plástico que se fizera amarela e se parecia com bocados de gordura de presunto.

      Nunca antes tínhamos feitos compras em Springfield. As pessoas que andavam nos passeios pareciam sabê-lo. Olhavam para nós, de pé nas traseiras da camioneta, agarrados ao tejadilho. Continuámos a andar até chegarmos ao largo cheio de lojas, onde estacionámos... com as pessoas sempre a olhar. O pai saiu e disse-nos que o seguíssemos e que nos mantivéssemos juntos. Estava bem disposto, mas assim que entrámos na primeira loja começou a praguejar.

      - Tens a certeza a respeito dos chapéus? - perguntou a mãe.

      - Estás a brincar? Lá faz quarenta graus à sombra. Apanharão uma insolação se não andarem com as cabeças tapadas.

      Experimentámos chapéus de pescador, chapéus-de-sol e bonés de marinheiro. Os preços deixaram o pai furioso.

      - Bonés de base boi serão mais do que suficientes - afirmou, compran­do-nos desses.

      Usando aqueles bonés, fomos atrás dele como patinhos em fila. Naquela loja vendiam de tudo, pipocas, pneus de borracha, espingardas, torradeiras, casacos, livros, óleo para motores, palmeiras em vasos, escadas e papel para escrever. O pai pegou numa torradeira eléctrica.

      - Olhem para isto. A ligação à terra nem sequer está como deve ser! Morre-se electrocutado antes de se conseguir uma torrada... ou ficamos nós torrados por causa da falta de um fio...

      Falava alto e atraía as atenções.

      - Bicloreto para as madeiras! - exclamou.

      Fiquei com a ideia de que as pessoas que olhavam para nós sabiam que raramente saíamos para ir às compras. Em público, o pai era embaraçador. Não se importava com os estranhos. Alguns dias antes, na loja de ferragens de Northampton, dissera: «Está a trabalhar para os japoneses?» e eu tivera vontade de esconder a cabeça com vergonha. Hoje ainda estava mais nervoso.

      - Chamam a isto um abre-latas? - dizia. - Uma porcaria capaz de nos cortar um dedo ou arrancar-nos um bocado para nos deixar a sangrar até à morte! Isto é uma arma perigosa, mãe!

      Seguimos todos a monte para a secção de Campismo e Ar Livre. Aproximou-se de nós um homem em mangas de camisa, com um rosto muito macio e o cabelo colado à cabeça. Não tinha nada o ar de um campista, mas disse «Olá» a todos nós, piscou o olho às gémeas e comentou, tal como toda a gente fazia, a sua semelhança.

      - Em que lhes posso ser útil? - perguntou, acenando com a cabeça e permitindo-me ver-lhe melhor o cabelo que estava penteado a partir de uma orelha para cima da cabeça, em camadas muito bem arranjadas, o que fazia com que olhássemos não para o cabelo mas para a careca que se encontrava por debaixo.

      O pai disse que queria ver cantis.

      Jerry formou a palavra «campismo» com os lábios, mas trocei dele, franzindo o nariz.

      O homem entregou-lhe um cantil. O pai pôs-lhe um polegar em cima e disse que o cantil era tão fininho que, se lhe apetecesse, era capaz de o achatar todo. Olhou para o cantil com atenção e riu-se muito alto.

      - Feito na Formosa - comentou! - Hão-de saber muita coisa a respeito de cantis... se perderam a guerra!

      - Custa apenas um dólar e quarenta e nove - disse o empregado.

      - Não vale um chavo - respondeu o pai. - De qualquer modo ando à procura de coisa maior.

      - Que tal estes sacos para água? - inquiriu o homem, pegando num pela ponta agitando-o no ar.

      - Eu próprio podia fazer uma coisa dessas com um bocado de lona, agulha e linha. De onde é isso? Coreia! Vês, aqui está... os tipos têm lá aquelas fábricas miseráveis e o trabalho escravo, na Coreia e na Formosa. São os pequenos coolies que fazem isto. Levantam-se de ma­drugada, trabalham durante todo o dia, sem nunca apanharem um pouco de ar fresco. Estão acorrentados às máquinas... e quase não chegam com os pés aos pedais.

      Estava a dar-nos uma lição, mas o empregado escutava-o e fazia caretas. - Estão tão subalimentados que mal se aguentam de pé. Sofrem de tracoma e raquitismo. Não sabem o que fabricam, tanto podia ser isto como tapetes para banheiras. Foi por isso que fomos para a guerra na Coreia do Sul, para lutarmos por indústrias de trabalho intensivo, o que quer dizer rapazinhos magrizelas a fabricarem sacos de água e chávenas pequeninas... para nós. Não se sintam tristes. É o progresso. É para isso que servem os Orientais. Toda a gente devia ter coolies, não é assim?

      Agora, suspenso das mãos do homem, o saco para água parecia uma coisa maldita. O homem pô-lo de lado e acamou o cabelo, enquanto ficávamos todos muito silenciosos, a mãe, o Jerry, as gémeas e eu. O pai resmungava. Eu puxara para cima o colarinho da camisa, para esconder os efeitos da hera venenosa.

      - Que vem a seguir na lista?

      - Sacos de dormir - respondeu a mãe. .

      - Na prateleira - disse o homem e o pai encaminhou-se para lá. - Nem sequer são à prova de água. Haviam de servir para grande coisa, no meio de uma monção.

      - São para utilizar dentro de uma tenda - explicou o empregado. - E se tiver de o usar debaixo de chuva? De onde veio isto? Do deserto de Gobi, da Mongólia, ou de outro sítio desses?

      - Hong Kong - respondeu o homem.

      - Não andei longe! - afirmou o pai, retorcendo-se de satisfação. ­

      Fazem muito campismo em Hong Kong, é uma coisa que se vê logo. Olha para as costuras... desfaziam-se em dois dias. Um simples cobertor dava melhor resultado.

      - Os cobertores estão na secção dos Artigos para o Lar.

      - E onde é que são feitos? No Afeganistão?

      - Não sei, senhor.

      - Que diabo se passa com este país? - perguntou o pai.

      - É melhor do que alguns outros locais que eu poderia citar.

      - E pior que muitos outros - retorquiu o pai. - Podíamos fazer disto em Chicopee e dar emprego a toda a gente. Por que é que não o fazemos? Não gosto da ideia de saber que os magrizelas dos garotos orientais são obrigados a fazer lixo que nos é vendido.

      - Ninguém é obrigado - disse o empregado.

      - Já alguma vez foi à Corei a do Sul?

      - Não - respondeu o homem, assumindo a expressão encurralada que as pessoas tomavam quando falavam com o meu pai, a expressão que Polski ostentara no rosto na noite anterior.

      - Então não sabe de que é que está a falar, pois não? - insistiu o pai. - Deixe-me ver mochilas... mas se forem do Japão pode ficar com elas.

      - Estas são chinesas... da República Popular. Não lhe devem interes­sar.

- Mostre cá -, disse o pai, que pegou na pequena mochila verde como se se tratasse de um farrapo, virando-se para Clover. - Há alguns anos atrás, estivemos praticamente em guerra com a República Popular. Chamavamos-lhes «Chineses Vermelhos», «Vermelhos», «comunas»...

      Pergunta a quem quiseres. Agora vendem-nos mochilas... provavelmente para a próxima guerra. Onde é que está o golpe? Está em que são mochilas de terceira qualidade, nem sequer servem para transportar sandes. Achas que vamos ganhar essa guerra contra os chineses?

      Clover tinha cinco anos de idade. Escutou o pai e a seguir coçou a barriga com dois dedos.

      - Garotinha, não me interessa o que pensas... mas não vamos ganhar essa guerra.

      O empregado começara a sorrir. O pai viu-o e virou-se para ele:

      - Nessa altura, meu amigo, já não sorrirá. A próxima ser combatida aqui mesmo, é certo e sabido...

      Era o que dissera no Inverno, naquelas mesmas palavras, mas na altura eu pensara que se tratava apenas de palavreado. Hoje estava com a mesma disposição, quase esperava ouvi-lo dizer ao vendedor: «Vão matar-me em primeiro lugar... matam sempre primeiro os mais espertos.» Empurrou a mochila para um lado.

      - Vende qualquer coisa parecida com bússolas, ou terei de as procurar noutro lado?

      - Temos uma linha completa de bússolas - disso o homem. Alisou a mochila com a palma da mão e dobrou-a como se fosse uma peça de roupa saída da lavandaria. A seguir guardou-a e colocou uma caixa em cima do balcão. - Esta é uma das melhores - afirmou, tirando uma bússola da caixa. - Tem todas as características dos modelos mais caros, mas custa apenas dois dólares e vinte e cinco.

      - Deve ser uma bússola chinesa - comentou o pai. - Aponta sempre para o Leste.

      - Uma das características é a estabilidade. Quando a soltamos... assim... - carregou numa mola da caixa - a agulha fica livre. Veja, para ali é o Norte, na direcção da Automotive. Na realidade, esta bússola é fabricada aqui mesmo no Massachusetts.

      - Então embrulhe-a - respondeu o pai. - Acabou de fazer uma venda. - Passou o braço em volta da mãe. - Que mais há nessa lista?

      - Tecidos de algodão, agulhas e linha, rede para mosquiteiros... - Tecidos - disse o homem. - Na secção seguinte. Muito bom dia.

      - Tínhamos feito melhor em ir à lixeira - comentou o pai, quando nos afastámos.      Na secção seguinte pegou num bocado de tecido que parecia um véu de noiva, e afirmou: - É isto mesmo.

      - Setenta e nove o metro - disse a empregada, fazendo estalar a tesoura. Era velha e tremia e o modo como tesourava o ar fazia-a parecer diabólica.

      - Está bem.

      - Quantos metros? - Clique-clique, fez a tesoura. Estava impaciente.

      Tinha cabelos como teias da aranha, caídos sobre o rosto e quase um bigode.

      - Levamos a peça inteira - disse o pai. - Se realmente tem vontade de ser útil - acrescentou, agarrando um punhado de cabelos de Jerry -, corte o cabelo a este garoto. Acabe-lhe Com este ar infeliz.

      Porém, a velhota não sorriu porque tinha de desenrolar toda a peça de rede mosquiteira para a poder medir e calcular o preço.

      Partimos em busca de outras coisas. Nunca antes vira os meus pais a comprar tanta coisa numa só manhã, nem sequer pelo Natal. Deixámos aquela loja e fomos para a Sears e a seguir para o Armazém do Exército e da Marinha. Comprámos lanternas e cantis feitos na América, mochilas, facas-de-mato, sacos de dormir impermeáveis e sapatos novos para todos nós. Gastar o dinheiro deixava o pai furioso. Questionou com os empre­gados e queixou-se de que estava a ser roubado.

      - Posso permitir-me ser roubado - declarou -, mas, então, e os pobres diabos que não se podem dar a esse luxo?

      Não fazia ideia nenhuma das razões que o levavam a comprar aqueles artigos e era embaraçoso ouvi-lo protestar. Até a mãe começava a ficar zangada.

      No drugstore, enchendo um cesto de arame de coisas como gaze e pomadas («Para a nossa farmácia de primeiros-socorros»), meteu-se a comparar os preços das aspirinas e dirigiu-se para a estante das revistas em busca de um exemplar da Scientific American. Ficou muito aborrecido ao vê-la misturada com revistas com miúdas e comentou:

      - Isto é um insulto. Olha - prosseguiu, apontando para a estante -, metade daquilo é pornografia. Há homens casados que nunca viram coisas assim. Algumas até são novidade para os estudantes de Medicina! Quem pode acreditar numa coisa destas? Os garotos vêm aqui comprar chocolates e é com isto que deparam. No entanto, se perguntarmos a qualquer professor o que pensa do assunto, é capaz de nos responder que é isto mesmo o que os médicos recomendam. Charlie, para onde é que estás a olhar?

      Estava a olhar para revista, com o traseiro premiada numa feira.

      - Estás a lançar olhares cobiçosos para um nu - disse, antes de lhe poder responder. - Olha-o bem... é o último que verás. Mãe, há gente que se enterra neste lixo, fingindo que não tem nada de mal. A mim dá-me vontade de vomitar. Fico como louco.

      - Suponho que gostarias que o proibissem - respondeu a mãe.

      - Proibir? Não, acredito na liberdade de expressão. Mas será necessário ter isto misturado com as histórias aos quadradinhos e com os chocolates? Ofende-me! E, de qualquer modo... porque não proibi-los? É lixo, menospreza o corpo humano, retrata as pessoas como se fossem postas de carne. Sim, libertemo-nos destas revistas e das de quadradinhos... são todas prejudiciais. Que tal vai o negócio?

      Encontrava-se agora ao balcão, falando com a caixa. - Vai bem - disse a mulher - não me posso queixar.

      - Não me surpreende - retorquiu o pai -, deve fazer uma bela maquia em pornografia. Dizem que a pornografia a retalho é a nova grande indústria, a de maior crescimento... isso e outras porcarias. Deve dar uma grande satisfação ganhar muitos dólares dessa maneira...

      - Limito-me a trabalhar aqui - afirmou a mulher, carregando nos botões da caixa registadora.

      - Oh, claro - respondeu o pai. - Por que é que não as há-de vender? É um país livre, e a senhora não acredita em censuras. Uma vez leu um livro, não foi? Era verde? Ou era azul?

      Acossada, era o que a mulher parecia. Tal como um pequeno coelho a mordiscar o cheiro do cano de uma caçadeira.

      O pai pagou-lhe os artigos para a farmácia de primeiros-socorros e continuou:

      - Esqueceu-se de nos dizer «Muito bom dia».

      - Nunca desistes, pois não? - perguntou a mãe já na rua.

      - Mãe, este país está perdido. Ninguém se rala, o que é o pior de tudo. É a atitude das pessoas... «Limito-me a trabalhar aqui...», não foi o que a ouviste dizer? Vendem porcaria, compram porcaria, comem porcaria...

      - Queremos gelados - disse Clover.

      - Estás a ver? Têm fome de porcaria... os nossos próprios filhos.

      A culpa é nossa. Muito bem, venham comigo, garotos!

      Levou-nos ao supermercado A&P e logo à entrada, na secção das frutas, pegou num cacho de bananas.

      - Dois dólares! - exclamou. Fez o mesmo a um par de toranjas embrulhadas em celofane: - Noventa e cinco cêntimos! - E um ananás: - Três dólares! - A seguir foram as laranjas: - Trinta e nove cêntimos cada! - Parecia o pregoeiro de um leilão, gritando os preços enquanto seguia ao longo do balcão das frutas frescas.

      - Não vamos comprar nada? - perguntei, quando saímos de mãos vazias.

      - Não. Só quero que se recordem destes preços. Três dólares por um ananás. Preferia ter de comer minhocas. Podem-se comer minhocas, sabem? São só proteínas.

      Meteu-se na cabina da camioneta com a mãe e nós trepámos para a traseira. Ouvia a voz dele a vibrar no vidro de trás, enquanto atra­vessávamos Springfield. Ainda falava quando parámos na estrada para meter gasolina. Estávamos à vista do rio, cheio e rápido, com as árvores prenhes de rebentos novos e suspensas sobre ele, mas, no entanto, cinzento como a água de um banho. Nos despejos das fábricas oscilavam, como pequenas ondas, as barrigas brancas dos peixes mortos.

      A porta da cabina bateu com força.

      - Um dólar e dez o galão - dizia o pai para o espantado empregado das bombas. O homem tinha um pingo húmido em cada narina e uma etiqueta na camisa que dizia «Fred». - Duplicou de preço num ano.

      Portanto, passa a ser dois e vinte no próximo ano e, provavelmente, cinco no ano seguinte... se tivermos sorte. É maravilhoso! Sabe quanto custa a produção de um barril de petróleo? Quinze dólares... é tudo! Quantos galões há num barril? Trinta e cinco? Quarenta? Faça a conta. Oh, esqueci-me, você só trabalha aqui.

      - Não me atire as culpas... culpe o administrador - disse o homem, que continuou a bombear gasolina para o nosso depósito.

      - Fred, eu não culpo o administrador, que faz o melhor que pode. Culpo as companhias petrolíferas, a indústria automóvel, os grandes negócios. Os Árabes, os Palestinianos. Sabes o que é que estes, na verdade, são? Filisteus - Uma bela palavra. É melhor ires ver o que significa. Além disso, Fred, culpo-me a mim mesmo por não ter imaginado um método para uma mais barata extracção de petróleo das argilas xistosas. Temos triliões de toneladas de argilas petrolíferas neste país. - Não há escolha - comentou Fred, aspirando as duas gotas para dentro do nariz. - Temos de continuar apagar.

      - Eu tenho escolha - afirmou o pai. - Não vou continuar a pagar.

      - São oito dólares e quarenta cêntimos - declarou Fred.

      Por momentos pensei que o pai iria recusar-se a pagar, mas puxou pela carteira e contou o dinheiro que meteu na mão suja de Fred, enquanto o observávamos da traseira da camioneta.

      - Não senhor, não vou continuar a pagar - continuou o pai. ­Deixa-me fazer-te uma pergunta. Já alguma vez imaginaste, ao ver como as coisas estão agora, o que irá acontecer mais tarde?

      - Às vezes. Desculpe, mas estou muito ocupado. - Semicerrou os olhos, encolheu a cabeça entre os ombros e afastou-se, acossado.

      - Pergunto isso a mim mesmo durante todo o tempo. E digo a mim próprio: «As coisas não podem continuar assim. Um dólar só vale vinte cêntimos.»

      - É ainda pior em Nova Jérsia - disse Fred. - Tenho lá um primo.

      Desde Janeiro que estão a racionar a gasolina.

      - Há um mundo inteiro aí fora! - gritou o pai, apontando com o dedo cortado.

      O homem afastou-se ainda mais, assustado pelo dedo.

      - Parte desse mundo ainda está vazio - prosseguiu o pai. - A maior parte dele desabitado. Comes espargos?

      - Como?

      - Sabes por que é que os espargos são tão caros... e, no fim de contas, todos os outros vegetais? Porque os agricultores amontoam a produção até que os preços subam. Só então os põem no mercado, só quando sabem que o consumidor não tem outro remédio senão pagar. Podiam vendê-los por metade do preço e mesmo assim ainda ficavam ricos. Não sabias disso, pois não? Os tipos que os cortam ganham um dólar por hora e são trabalhadores não sindicalizados, apenas selvagens que ainda há pouco andavam a atirar lanças uns aos outros. Os espargos não custam nada a cultivar, Deus faz a maior parte do trabalho. Da próxima vez que comeres espargos lembra-te do que acabei de te dizer. As companhias petrolíferas fazem o mesmo... armazenam a produção até que os preços subam. Trigo, cevada, aveia? Damo-las aos Russos para que os preços se mantenham altos... e era à mesma uma coisa muito fácil transformá-los em álcool para combustível. Entretanto, paga-se, paga-se, paga-se, e obriga-se os pequenos core anos a fazerem-nos sacos de dormir e equipa-se o Exército com mochilas chinesas... e ninguém pergunta onde...

      Ante a referência às mochilas chinesas, Fred declarou:

      - Eh, tenho clientes à espera...

      - Não te prendas comigo, Fred - disse o pai, sacudindo-lhe a mão.

      - Lembra-te apenas do que te disse.

      Já na estrada, enfiou a cabeça pela janela e perguntou-nos:

      - Acham que foi uma boa ensinadela? Claro que foi!

      Havia rebentos nalgumas árvores, pequenas e pálidas folhas noutras, e no ar pairava um doce suspiro de Primavera. As vacas permaneciam nalgumas pastagens, tão imóveis como figurinhas, e no declive que dava para a estrada viam-se pequenas e arredondadas macieiras cobertas pela espuma branca das suas flores. Percebia, pela maneira como o pai conduzia; que ainda ia zangado, mas no meio de toda aquela beleza, as delicadas árvores no ar perfumado de flores, não conseguia perceber o que é que estava errado nem por que é que gritava. Enfiou por uma estrada secundária pouco antes de entrarmos em Northampton. Aqui havia alguns maciços de flores selvagens, amarelas, bem como a brilhante cor vermelha de um cardeal, como um coração a bater entre as costelas de arbustos.

      - Quando formos acampar - disse Jerry -, terei uma tenda só para mim e não vos deixarei lá entrar.

      - O pai não comprou nenhuma tenda - respondi-lhe.

      - Eu faço um telheiro - retorquiu - e não vos deixo entrar.

      - Também vou acampar - declarou Clover.

      - Não vais gostar de acampar - disse Jerry. - Vais chorar e a April também.

      - Não me parece que vamos acampar - insisti.

      - Então para que são todas essas coisas? - perguntou Jerry. Estávamos agachados na traseira da camioneta, no meio das caixas e dos sacos de papel. Onde é que vamos?

      - Vamos para longe daqui - retorquiu-lhe eu e depois de lhe responder, acreditei que era verdade.

      - Gosto de estar aqui - afirmou April. - Não me quero ir embora.

      O Verão é a minha estação favorita.

      - O Charlie não sabe nada - prosseguiu Jerry. - É burro, foi por isso que se deixou apanhar pelas heras venenosas.

      - Eu vi-o a coçar-se - troçou Clover.

      - Parece uma doença - continuou April. - Vai para longe de mim, não quero apanhar a tua doença!

      Detestava ter de continuar ali sentado no meio daquelas crianças parvas e estúpidas, e parecia-me que, com o pai a conduzir como um louco através daqueles campos e colinas maravilhosas e pelos pomares com um ar tão novo que as flores não haviam perdido uma única pétala, acabaríamos por ir esbarrar num muro de tijolo. Aguardava qualquer coisa repentina e dolorosa, porque nos últimos dias tudo fora tão pouco habitual. Os garotos não sabiam disso, mas eu estivera com o pai, ouvira-o e vira coisas que não se encaixavam no que conhecia. Mesmo coisas familiares como aquele espantalho que havia sido erguido como se de um demónio se tratasse e que me enchera de terror.

      - Vai acontecer-nos qualquer coisa - declarei. - Fazes-me sentir esquisita - disse Clover.

      Não falei no que me ocorrera quando o pai andava nas compras em Springfield... que o pai era um homem desapontado. Estava zangado e desgostado. Mas se pretendia fazer qualquer coisa de drástico, não se esqueceria de cuidar de nós. Fazíamos sempre parte dos seus planos.

      Quando chegámos à cidade de Florence, parou ao lado da estrada e gritou-me:

      - Charlie, vem comigo. Os outros ficam aí.

      Havíamos estado ali há cerca de um mês, comprando sementes.

      Hoje voltámos à mesma loja de sementes, seca e cheia de teias de aranha. Cheirava a sacos de serapilheira. A poeira das sementes e de coisas secas irritou-me a pele inflamada e provocou-me comichões.

      - Você, outra vez! - disse uma voz por detrás de uma fila de sacas gordas. O homem apareceu, sacudindo poeira do avental. Tinha profundas rugas no rosto e olhou directamente para as minhas marcas de hera venenosa.

      - Senhor Sullivan - disse-lhe o pai, entregando-lhe um bocado de papel -, preciso de duzentos quilos de cada uma dessas coisas. Sementes híbridas, as de maior produção que tenha, e se já estiverem tratadas contra o míldio, pois tanto melhor. Quero-as seladas em sacos à prova de água, dos mais resistentes. Preciso delas hoje, quer dizer, agora.

      - Anda muito atarefado, senhor Fox. - O homem tirou um par de óculos da algibeira do avental, soprou nas lentes, encaixou-os sobre as orelhas e examinou o pedaço de papel. - Posso tratar disto. - Olhou para o pai por cima das lentes. - Mas o senhor e Polski vão ter uma boa trabalheira se quiserem lançar à terra todas estas sementes. É um pouco tarde, não é?

      - É Inverno na Austrália - respondeu o pai. - Estão a colher abóboras em Moçambique e a apanhar folhas na Patagónia. Na China, neste momento, estão a enfiar os pijamas.

      - Não sabia que os chineses usavam pijamas.

      - É a única coisa que usam - retorquiu o pai. - Nas Honduras ainda estão a lavrar.

      - Onde é isso?

      O pai ignorou-o, escolhia pacotes de sementes de flores de uma prateleira.

      - Ipomeias - comentou. Estas flores adoram o sol e farão com que me recorde de Dogtown.

      Com os sacos de sementes, as caixas e embrulhos de equipamento de campismo não restava muito espaço para nós, garotos, na traseira da camioneta. Já estava com medo de todo o trabalho que iria ter para descarregar tudo aquilo, mas quando chegámos a casa o pai disse-me: - Deixa tudo onde está. Vou colocar-lhe um oleado por cima, não vá dar-se o caso de chover.

      - Pai, vamos a algum lado? - perguntou Clover. - Claro que vamos, boneca.

      - Acampar? - inquiriu Jerry.

      - Mais ou menos.

      - Então por que é que não fazemos as malas? - quis saber April. - Lá porque não estamos a fazer as malas, isso não quer dizer que não vamos para parte nenhuma. Já ouviram falar em viajar sem muitas coisas atrás de nós? Já alguma vez ouviram falar em abandonar tudo e partir?

      Estava na cozinha com a mãe, escutando a conversa.

      - Mãe, de que está o pai a falar? Para onde é que vamos? Aproximou-se de mim e apertou-me a cabeça de encontro ao peito do avental.

      - Pobre Charlie - disse. - Quando andas a matutar em qualquer coisa, pareces um velhote pequenino. Não te preocupes, tudo irá correr bem.

      - Mas para onde vamos? - insisti.

      - O pai no-lo dirá quando estiver preparado para o fazer.

      A mãe não fazia ideia nenhuma! Sabia tanto como nós. Senti-me muito chegado a ela naquele momento e havia um soluto de amor e tristeza no meu sangue. No entanto, havia também mais qualquer coisa, porque a mãe estava perfeitamente calma. A sua lealdade para com o pai deu-me forças. Apesar de não afugentar a minha tristeza, a sua crença fez-me acreditar e ajudou-me a partilhar a sua paciência. No entanto, lamentava-a, porque me lamentava a mim mesmo por não saber mais do que sabia.

      Durante a tarde, o pai pareceu descontraído e não mostrou tenção de trabalhar. Passou duas horas ao telefone, uma coisa muito rara, não por causa das perguntas que fazia mas sim por causa do tempo gasto a fazê-las.

      - Estou a falar de Hatfield, Massachusetts! - disse para o telefone, como se estivesse a pedir socorro.

      Num dia normal estaríamos na camioneta, dando a volta à quinta, mas naquela tarde ficámos livres. Disse-nos para irmos brincar com as bicicletas e quando largou o telefone («Estamos com sorte!»), dirigiu -se para a oficina e começou a juntar as suas ferramentas, assobiando durante todo o tempo.

      Foi para casa cerca das quatro horas. Saiu de lá pouco depois com um sobrescrito na mão. Continuava a assobiar e disse-me para o levar ao Polski.

      Quando lá cheguei o Polski, de luvas de borracha, lavava o jipe. - A tua inflamação está com melhor aspecto - disse. - Que me trazes aí?

      Entreguei-lhe a carta. Fechou a torneira da mangueira e virou-se para mim:

      - Queria dar-te vinte e cinco cêntimos para me lavares o jipe, mas não te consegui ver durante toda a manhã.

      Rasgou o sobrescrito e segurou a carta a todo o comprimento do braço para poder ler. Nela viam-se os ousados arcos da bela escrita do meu pai... e era uma mensagem curta. Magoava-me saber que, por não me deixar ir à escola, me impedia de aprender a escrever como ele. Sabia que aprendera na escola aquela escrita elegante e cada vez que a via sentia-me fraco e estúpido.

      Polski começara a cuspir e a suspirar:

      - Ora esta! - E acrescentou: - Então é assim, não é?

      Tinha a cara cinzenta como um bocado de carne velha. Queria ir-me embora mas não me deixou.

      - Charlie, anda cá, chega aqui. Tenho uma coisa para te dizer.

      Queres um bolinho? E que tal um copo de leite?

      Disse que estava bem, apesar de ter preferido os vinte e cinco cêntimos pela lavagem do jipe ou autorização para me ir embora, porque as amizades do Polski, tal como as do pai, incluíam sempre um sermão. Dirigimo-nos para o pátio. Sentou-me numa cadeira de baloiço e acres­centou:

      - Volto já.

 

      Olhei através dos campos de espargos e vi, na dourada luz da tarde, o rio e as árvores. A nossa própria casa parecia pequena e solene no seu rectângulo de horta. Tinha um telhado dourado e o do pátio era como uma sobrancelha, enquanto a pintura era branca como o sal.

      Polski apareceu com um copo de leite e um prato de biscoitos de chocolate. Bebi uns goles de leite e peguei um biscoito.

      - Tira outro - disse-me. - Come os que quiseres.

      Fiquei logo a saber que vinha ali um sermão.

      Ficou a ver-me comer dois biscoitos. Parecia sorrir ao ver a maneira como eu os mastigava e fiquei com a impressão que o barulho das mastigadelas me saía pelas orelhas.

      - Tenho andado com vontade de te dizer uma coisa, Charlie. ­Calou-se e sentou mais perto de mim, na cadeira, tão perto que tive de pousar o copo de leite no chão. - O teu pai pensa que sou parvo.

      Não disse uma palavra, o que ele estava a dizer era uma meia verdade e a verdade completa era muito pior.

      Acenou com a cabeça ante o meu silêncio, considerando-o como um «sim», fixou a boca numa expressão de aviso, com uma forma parecida com a de um sorriso, e continuou:

      - Muito antes de teres nascido, no Massachusetts havia o hábito de enforcar os assassinos condenados. Parece uma coisa horrível mas a maioria deles merecia-o. Andava por aqui um homem chamado Mooney, o Mooney «Aranha», era assim que lhe chamavam e calculo que percebes porquê...

      Não fazia ideia nenhuma, mas a imagem que agora tinha na mente era a de um homem peludo a gatinhar pelo chão, com enormes olhos negros muito salientes. Polski continuava a falar:

      - ... vivia com o pai. Nunca foi à escola. Não era muito mais velho do que tu quando começou a roubar, ao princípio coisas pequenas e sem valor, depois objectos maiores. Habituou-se a isso e tornou-se num ladrão. Já te disse que o pai era um bocado anormal da cabeça? Bom, pois era. Completamente avariado. Sofrera um choque provocado por uma explosão de granada, dizia-se. Se lhe gritássemos ou fizéssemos um grande barulho, caía no meio do chão. Deixava-se cair como uma pedra. Além disso, tinha montes de ideias malucas. Que pai, hein? Quando o Mooney «Aranha» andava pelos vinte anos de idade, matou um homem. Não se limitou a matá-lo, cortou-lhe a, garganta com uma navalha de barbear. Quase arrancou a cabeça ao tipo, que era de cor, e deixou-a pendurada apenas por um bocadinho de pele. A Polícia apanhou-o com facilidade, sabiam onde o procurar! Em casa do pai, pois onde haveria de ser? Mooney foi condenado à morte por enforcamento.

      De repente Polski olhou para cima e disse:

      - Aquilo pode ser um bocado de chuva que vem aí, na nossa direcção. Ficou numa total imobilidade, olhando para o espaço durante quase um minuto, antes de continuar a história. Agora olhava para a nossa casa, e a casa parecia devolver-lhe o olhar.

      - No dia do enforcamento, amarraram as mãos de Mooney e condu­ziram-no para o pátio da prisão. Isto foi na velha prisão de Charles Street, em Boston. Eram seis da manhã. Sabes como nos sentimos tão abatidos, às seis da manhã? Bem, era assim que o Mooney se sentia, ou era ainda pior porque sabia que dentro de poucos minutos estaria a oscilar na corda. Obrigaram-no a caminhar para o cadafalso. Parou ao fundo das escadas e declarou: «Quero dizer uma coisa ao meu pai.» «Sim, senhor.» - Polski virou para mim os olhos que pareciam búzios. - O pai estava a assistir a tudo. Era uma espécie de testemunha... o familiar mais próximo, sabes? Mooney disse: «Tragam-no aqui, quero dizer-lhe uma coisa.» Tiveram de lhe conceder aquele último pedido. Fosse o que fosse que um condenado pedisse, tinham de lho conceder. Se pedisse torta de morangos e fosse Janeiro, tinham de lhe arranjar uma fatia, nem que tivessem de a mandar vir da Florida. Mooney pediu o pai. O pai aproximou-se. Mooney olhou para ele e disse: «Chega-te um pouco mais.» O pai aproximou-se mais uns passos. «Quero dizer-te uma coisa ao ouvido», insistiu Mooney. O pai chegou-se mesmo junto dele, Mooney inclinou-se e colocou a cabeça junto da do pai tal como se faz quando se quer contar um segredo a alguém. Então, de repente, o pai soltou um grito capaz de acordar os mortos, e recuou a cambalear, agarrado à cabeça e ainda a gritar.

      Polski deu-me tempo para meditar naquilo, apesar de eu me ter preparado para o ouvir gritar, para ficar a saber como fora o som do grito. - E o que é que o filho lhe disse? - perguntei.

      - Nada.

      - Mas então por que é que o pai gritou?

      Polski passou com a língua por cima dos dentes.

      - Porque Mooney lhe arrancou a orelha com uma dentada! Ainda a tinha na boca. Cuspiu-a e depois declarou: «Isto foi por teres feito de mim aquilo que sou.»

      Vi os lábios húmidos de Mooney «Aranha», o sangue no queixo, a pequena orelha enrugada, caída no chão.

      - Arrancou a orelha ao velho - insistiu Polski, levantando-se. - «Isto foi por teres feito de mim aquilo que sou.»

      Permaneci sentado na cadeira de baloiço. Polski terminara mas eu queria mais. Queria uma conclusão... mas a história acabava ali. Fiquei com a imagem do velho agarrado à cabeça, inclinado, com Mooney parado nos degraus da forca e a orelha cinzenta caída no chão como uma folha de cartilagem murcha.

      - O teu pai é o homem mais obnóxio que conheço - disse Polski. - Pertence à pior espécie de chatos... um tipo que julga que sabe tudo e que por vezes tem razão.

      Então, agitando toda a serradura que parecia cobri-lo, acrescentou:

      - Cheguei à conclusão de que é perigoso. Diz-lhe isso, Charlie.

      Diz-lhe que é um homem perigoso, e que um dia destes ainda acabará por vos matar a todos. Diz-lhe que fui eu quem o afirmei. Agora... acaba de beber esse leite e marcha para casa!

      O pai estava sentado na cadeira hidráulica quando cheguei a casa. Fumava um charuto. Por cima do seu rosto sorridente pairava uma nuvem de fumo que era uma nuvem de satisfação. Agitou o fumo com a mão.

      - Que disse ele?

      - Nada.

      O pai continuava a sorrir. Abanou a cabeça.

      - A sério - insisti.

      - Estás a mentir - afirmou baixinho. - Está bem. Mas quem é que estás a tentar proteger? Ele ou eu?

      Fiquei com a cara muito quente e olhei para o chão.

      - Dentro de vinte e quatro horas nada disso terá qualquer importância - declarou o pai.

 

      A última coisa que vi quando nos afastámos da casa foi a grande quantidade de fitas vermelhas amarradas aos ramos mais baixos das nossas árvores. Pendiam moles, no orvalho da manhã. Passava uma hora depois do nascer do Sol. Tudo tinha um ar macio e cinzento sob a fraca mas quente luz, excepto aquelas fitas vermelhas. Tinham sido penduradas ali durante a noite pelos selvagens.

      Estávamos sentados à mesa do jantar, ouvimos vozes e o arrastar de pés nas ervas altas. O pai disse «Olá» e foi à porta. Quando acendeu a luz exterior vi mais de uma dúzia de rostos negros amontoados à entrada. Pensei para mim: vieram buscá-lo, vão arrastá-lo daqui para fora.

      - São os homens, mãe - disse ele, não lhes chamando selvagens. - Escolheram uma boa altura, não há dúvida! - respondeu ela.

      O pai virou-se outra vez para eles e fez-lhes sinal para entrarem. O primeiro, que era alto e que depois verifiquei ser o mais preto de todos, avançou com um ar desajeitado, sorrindo e trazendo uma catana. «Oh, meu Deus!», exclamei para dentro de mim mesmo. Trazia-a com um ar muito à vontade, como se fosse uma simples chave-inglesa. Se lhe apetecesse podia levantá-la e cortar o pai em duas metades. Os restantes seguiram-no, deslizando com pés de gato, apesar de terem enormes sapatos. Usavam camisas brancas, com remendos feitos com bocados ainda mais brancos, mas muito limpas e passadas. Murmuravam, riam e encheram a sala com o que eu sabia que era o cheiro a cão da sua própria casa, cheiro a suor, caganitas de ratos e óleo. As gémeas e Jerry gaguejaram para eles, pois estavam assustados e Jerry quase vomitou o jantar por causa do cheiro.

      No entanto, também os homens, incluindo o que trazia a catana, pareciam um pouco assustados. Os seus rostos eram máscaras retorcidas e marcadas por equimoses, e os cabelos tão negros e oleosos como a cauda de um rato almiscarado, ou então em cachos de apertados caracóis que pareciam o recheio de um colchão rebentado. Na sua maioria eram índios escuros com narizes de falcão, mas os restantes eram pretos ou quase, de longas mãos pendentes. Alguns tinham rostos tão pretos que não conseguia distinguir-lhes os narizes ou as faces. Olhavam para nós, em volta da sala, como se nunca antes tivessem entrado numa casa decente e procurassem decidir se a deveriam destruir ou ajoelharam-se para uivar. O silêncio e a confusão fervilhavam na sala como uma fúria.

      O pai agarrou o grandalhão pelo ombro e declarou: - Que querem vocês, seus desordeiros?

      Os homens riram-se como crianças e agora eu via que olhavam para o pai com um ar obediente. Os seus rostos brilhavam de admiração e gratidão. Quando percebi que estávamos a salvo, os homens pareceram-me menos feios e aloucados.

      - Este é senhor Semper - disse o Pai. Serviu-se do aperto de mão para puxar para a frente o gigantesco homem. - Fala perfeitamente o inglês, não é, senhor Semper?

      - Não - respondeu o Sr. Semper num queixume, olhando para a mãe com um ar de desespero.

      Eu conhecia aquele Semper. Fora a cara dele que eu vira a atravessar os campos à meia-noite. Transportara nos braços o espantalho. Agora reparava que tinha uma cicatriz junto da boca. Ainda bem que não vira a cicatriz naquele noite...

      - Vê se encontras por aí cerveja, mãe. Estes cavalheiros estão com sede.

      Pouco depois cada um daqueles homens estava agarrado a uma garrafa de cerveja. O Sr. Semper puxou o queixo para a frente e arrancou a cápsula com os molares. Os restantes fizeram o mesmo e cuspiram as cápsulas. Tomaram uns envergonhados goles de cerveja e não tiraram os olhos de cima do pai.

      - Que tens tu para mim, irmão? - perguntou o pai.

      Equilibrando a catana na palma da mão, o Sr. Semper respondeu: - Isto.

      - É uma beleza! - comentou o pai, experimentando a lâmina com o polegar. - Até me podia barbear com ela!

      O Sr. Semper começou a falar numa rápida algaraviada.

      O pai compreendia-o! Virou-se para nós e disse:

      - Estão a agradecer-nos a «Banheira das Minhocas». Não vos disse que eram civilizados? Vejam, são uns verdadeiros cavalheiros - acrescentou virando-se para os homens e pronunciando qualquer coisa na língua deles.

      O Sr. Semper soltou uma gargalhada que era como um grito. Tinha umas gengivas maravilhosamente moldadas, como cera macia a envolver as raízes dos dentes. Mirava o pai com olhos fluidos e meio fechados, e quando o pai passou em volta uma tigela cheia de amendoins, o Sr. Semper acenou com a cabeça e abriu os lábios para murmurar agrade­cimentos.

      O que mais me admirava era o facto de aquela multidão de homens se encontrar na nossa casa. Durante meses vira-os a atravessarem os campos em silêncio, primeiro plantando e mais tarde, quando a colheita de espargos já estava madura, debruçados sobre eles a cortarem-nos. Tinha a certeza de que eram estes os homens que vira naquela noite transportando os archotes, durante a cerimónia do espantalho. Os homens tinham-me parecido selvagens, a casa onde viviam metera-me medo por causa do cheiro, os rostos haviam-me parecido inchados e cruéis. Porém, ali estavam eles, quinze dos homens mais estranhos em que eu jamais pusera os olhos. No entanto, assim de perto, não tinham ar de selvagens. Pareciam pobres e obedientes. Os remendos das camisas estavam de acordo com as equimoses nas caras, as mãos estavam estaladas do trabalho, tinham pó nos cabelos. Os grandes narizes partidos faziam com que os ombros parecessem inclinados, e as calças esfarrapadas davam-lhe um aspecto... não perigoso como esperara, mas sim fraco.

      - Eles querem conhecer-te - disse o pai.

      Apresentou-nos a todos, as gémeas, o Jerry e eu, e trocámos apertos de mão com toda a gente. Tinha as palmas das mãos estaladas e húmidas, e a pele era escamosa. As unhas eram amarelas. As suas mãos pareciam patas de galinha e depois vi que a minha mão ficara com cheiro.

      - Precavi-me com a compra de um bom mapa - disse o pai, abrindo-o e alisando-o por debaixo de um candeeiro. Os homens agitaram-se para olhar para ele. - Um mapa é tão bom como um livro... bom, na verdade, até é melhor. Há meses que ando a estudar este. Sei tudo o que preciso de saber. Vejam como aquilo no meio está em branco... não tem estradas, não tem cidades, não tem nomes. Outrora a América também foi assim!

      - Muita água aí - disse o Sr. Semper, percorrendo os rios azuis com o dedo.

      O mapa mostrava uma saliência de território, o volume de uma costa com um interior vazio. Tinha as veias dos rios a azul, as terras baixas a verde e as montanhas a laranja... nenhuns nomes, apenas cores brilhantes. O dedo do pai era muito apropriado para apontar para aquele mapa.

      - É para aqui que vamos - disse ele e o dedo que não existia apontava para nada, para os contornos de um vazio. - Tens a certeza de que não queres vir connosco, irmão?

      O Sr. Semper mostrou os dentes e as narinas abriram-se-lhe como as de um cavalo.

      - Preferem ficar aqui e encarar a música - declarou o pai. ­

      É irónico, não é? É uma espécie de troca de lugares... de permuta de países. O Sr. Semper riu-se, deu palmadas com as mãos e disse:

      - Tu ir muito longe!

      - Sou o americano que desaparece - respondeu o pai, sorrindo-se para ele.

      Veias negras incharam ao lado dos olhos do Sr. Semper, esticando a pele brilhante como se fossem minhocas aprisionadas, quando se agachou ao nosso lado e, um a um, passou os longos braços em volta das gémeas, do Jerry e de mim.

      - Este pai é grande homem. Ele também meu pai. - Os resmungos do Sr. Semper cheiravam a vapores de amendoins digeridos. - Nós, os seus filhos.

      Parecia-me que aquilo era uma coisa ridícula de se dizer, mas recordei­-me de que o pai fora bom para aqueles homens, porque eram pobres. Era a maneira de o Sr. Semper dizer obrigado pela geleira que trabalhava a fogo.

      Os restantes homens permaneciam silenciosos. O pai sorriu-se para a mãe e explicou:

      - Não façam nada que eu não fizesse, foi o que lhes disse em espanhol. - Fala-lhes da liberdade de movimentos - disse a mãe.

      Depois de o Sr. Semper agarrar os dedos do meu pai e de lhe murmurar pela última vez junto do rosto, e de irem todos a vassourar por entre as ervas, levantou a catana e cortou o ar, usando-a como se fosse o sabre de um pirata.

      - Allie, tem cuidado! - exclamou a mãe.

      - Estou ansioso por partir!

      - Trocar de lugares - murmurou a mãe. - Pobres homens.

      - É tudo o que têm para negociar... não têm mais nada. E é isso mesmo o que estamos a fazer. Nunca pensaria no caso se não fossem eles. Inspiraram-me.

      Houve um movimento lá fora. Os homens haviam parado por debaixo das árvores.

      - Mas é uma vigarice - disse o pai. - Fico com a sensação de os deixar entregues aos abutres.

 

      Foi apenas na manhã seguinte que reparei nas fitas que os homens haviam amarrado aos ramos. Eram fitas vermelhas muito baratas, mas na manhã cinzenta tinham um ar rico e festivo, e davam às árvores um toque de esplendor.

      Pouco depois já não conseguia distinguir as fitas nem a casa. Ficou cada vez mais pequena e desapareceu, logo seguida pelas copas das árvores. De imediato, tudo se escondeu abaixo da estrada.

      Ao passarmos pela casa de Polski, lembrei-me do que ele me dissera, mas aquela história a respeito do Mooney deixava-me confuso. Aquela mordidela na orelha significava que compreendera que o pai fora cruel para com ele, ou servia para provar que os criminosos nunca se modificam e continuam maldosos, mesmo na escada para o cadafalso? Quanto ao resto da conversa de Polski, acerca do meu pai ser sabichão e perigoso, não podia transmitir-lhe esse recado. O pai sabia que eu estivera a mentir. «Mas quem é que estás a tentar proteger? Ele ou eu?»

      A resposta era... nenhum deles. Procurava proteger-me a mim mesmo.

      Agora, nada daquilo fazia diferença. Abandonávamos Hatfield. O pai trouxera consigo a «Caixa dos Trovões» e o «Esmagador de Átomos», a maior parte das ferramentas, alguns livros, e tudo o que comprara, o material de campismo. Mas o resto, a casa e toda a sua mobília, tínhamos deixado para trás. Todas as peças de mobiliário, os pratos, as camas, as cortinas, as plantas da mãe, o rádio, as lâmpadas nos casquilhos, as roupas nas gavetas, o gato a dormir na cadeira hidráulica. A porta ficara escancarada. Seria uma maneira de o pai nos tranquilizar? Se sim, então fora um êxito. Excepto quanto a algumas mudas de roupa que trazíamos nas mochilas, o resto ficara.

      O pai acordara e dissera:

      - Bom, vamos embora. - Atravessara a casa a toda a pressa sem olhar nem para um lado nem para o outro. - Vamo-nos pôr a andar daqui.

      Só mais tarde me ocorreu que era isto o que faziam os verdadeiros refugiados. Tomavam o pequeno-almoço e desapareciam, deixando os pratos no lava-louça e a porta da frente meio aberta. Havia naquilo mais drama do que se tivéssemos empacotado cuidadosamente todos os nossos pertences e deixássemos a casa vazia.

      A casa oscilava agora, para cima e para baixo, uma pequena miniatura entre os campos a quase dois quilómetros de distância. Nunca tivera um ar mais pacífico. Era a nossa toca. Uma vez que todas as nossas coisas lá continuavam e porque o relógio ainda fazia tiquetaque, sentia que poderia voltar para lá em qualquer momento, para a encontrar tal como a deixara e para a reivindicar.

      Por isso não me importava de partir... mas onde é que íamos? Como não o sabia, a lentidão do tempo deixava-me doente. Uma vez ultrapassada Springfield, o pai meteu pela auto-estrada e vimos as vilas e as cidades a erguerem-se junto de cada saída. Vimos chaminés, igrejas e altos edifícios. Habituámo-nos a ver autocarros de janelas muito sujas, camiões que assobiavam ao passar, com rajadas de vento enfumarado e as lonas negras a adejar por cima das cargas. As tabuletas indicavam Connecticut e depois Nova Iorque. Parámos para almoçar num dos restaurantes Howard Johnson's. «Desprezo tudo o que este lugar representa!», declarou o pai, que não quis comer. Afirmou que os mexilhões fritos se calhar nem sequer tinham estômagos e eram feitos de cordéis. «Hamburgers!», gritou. Depois Nova Jérsia. Aqui encontravam-se as chaminés mais altas e o ar mais poluído que jamais vira. Os pássaros eram pequenos e oleosos. As pessoas que passavam nos carros, em especial as raparigas, olhavam embasbacadas para mim e para o Jerry. Puxámos para baixo as palas dos nossos bonés de basebol, para que não nos olhassem. Fechei os olhos e rezei para que chegássemos. A velocidade de condução do pai naquela estrada rápida fazia-me pensar numa fuga apressada à frente de uma trovoada, por um caminho comprido e sempre a direito, pelo meio de uma paisagem que não passava de uma fossa oleosa. Nunca vira chamas como aquelas que saltavam do alto das chaminés. Até podíamos ouvir o barulho das cabeleiras de fogo que se agitavam nos tubos negros.

      «Baltimore», indicava uma tabuleta. «Próximas Sete Saídas.» Metemos pela terceira e vimos um centro comercial igual ao que havíamos deixado para trás em Springfield, naquela manhã. Passámos por um subúrbio que me fez lembrar Chicopee e depois entrámos na própria cidade. Tinha muito mais colinas do que qualquer outra do Massachusetts. As casas e hotéis haviam sido construí dos em tijolos ao longo de ruas muito inclinadas. Naquele princípio de noite, o crepúsculo reflectia-se na água próxima, ajudado pela curva de um céu azul-rosado, nada que se parecesse com aquilo a que eu estava habituado em Hatfield, onde o pôr do Sol era de um verde-bolorento com toques de ouro. A luz leitosa do oceano de Baltimore e as suas nuvens cor de cimento constituíam como que uma ampla palidez, não obstruí da pelas árvores. As poucas e pequenas árvores que conseguia avistar lutavam contra o vento.

      Cerca de cinco minutos depois surgiu o verdadeiro sol-posto e tudo era diferente. Uma parte do céu escurecia com um tom acinzentado, a outra era de um vermelho-vivo, e havia um montão de nuvens em forma de garras com a cor da casca das lagostas cozidas, também estaladas e quebradas como elas. Aquele brilhante céu purpúreo era para mim uma novidade. Chamei o pai para que olhasse para ele.

      - Poluição! - gritou-me. - É a refracção nos fumos da gasolina! Continuou a conduzir, enfiando a nossa camioneta no meio do trânsito, dirigindo-se para a parte baixa da cidade. Estacionámos junto de um armazém.

      - Que estamos a fazer aqui? - perguntou Jerry.

      O pai apontou com o nó do dedo cortado para cima do armazém e declarou:

      - Aquele é o nosso hotel.

      Era a proa amarela e branca de um navio. Os buracos de onde saíam os cabos pareciam narinas a sangrar manchas de ferrugem. Não podíamos ver o resto do navio, mas a avaliar pelo tamanho da proa, era grande. Não disse da minha satisfação por termos um sítio onde ficar. Já era escuro. Pensara que iríamos dormir num qualquer acampa­mento junto da estrada.

      Subimos o passadiço de tábuas e um marinheiro que se encontrava no convés mostrou ao pai para onde devíamos ir. Nós quatro ocupámos um camarote e a mãe e o pai ficaram num outro, ao lado. Tudo tinha um cheiro ácido de tinta a secar. Entre os nossos dois camarotes ficava um cubículo com um chuveiro e um lavatório. Enfiámos os nossos pertences por debaixo dos cubículos inferiores e ficámos à espera que acontecesse qualquer coisa. De manhã, no Massachusets, à noite, num navio... a quase mil quilómetros de distância. Até parecia que o pai era capaz de fazer milagres.

      - É um barco! - exclamou Clover. - Estamos num barco de verdade! O pai enfiou a cabeça na porta do nosso camarote e perguntou: - Então, o que acham disto?

      O navio estava a ser carregado, os guindastes giraram e guincharam durante toda a noite, as passadeiras rolantes zumbiam por debaixo de nós, e através das nuas paredes de aço do nosso camarote ouvia a carga a ser arrastada no porão.

      Permanecemos acostados ao cais enquanto a carga - caixotes com dizeres e até automóveis - era embarcada. Comemos na sala de jantar vazia e durante o dia observamos os guindastes a girarem de um lado para o outro. Que eu visse, não havia mais passageiros... e o pai continuava a recusar-se a dizer para onde íamos. Isso preocupava-me e fazia-me sentir especialmente dependente dele. Não sabia o nome do navio e nenhuma das pessoas que vira até ali sabia falar inglês. Éramos ignorados pela tripulação. O pai tinha-nos nas suas mãos.

      Uma manhã, antes da partida, abandonámos o navio e fomos para a cidade na nossa velha camioneta. Atravessámos uma ponte e dirigimo-nos em direcção à água. No fim da estrada havia uma praia. A mãe ficou na cabina da camioneta a ler enquanto nós passeávamos ao longo da praia, fazendo as pedras ressaltar na água e vendo os barcos à vela. Ao fundo da praias havia um paredão quebrado, algumas pedras caídas dentro de água e outras na areia.

      - A maré vai subir - disse o pai. Chupou o charuto e atirou-o para a espuma. - Quem é que me quer demonstrar a sua valentia?

      Já sabia o que ia acontecer. Já nos fizera isto um certo número de vezes. Desafiava-nos a avançar para nos sentarmos numa rocha, e a ficar lá até que a subida da maré nos ameaçasse. Era uma brincadeira de Verão a que jogávamos no cabo Cod. No entanto, em Baltimore, era ainda Primavera, estava demasiado frio para nadar e tínhamos as roupas vestidas. Não acreditei que estivesse a falar a sério, pelo que lhe disse que era capaz de tentar, à espera que me respondesse com uma gargalhada.

      - Estás a fazer-nos esperar - foi o que respondeu.

      Uma onda rebentou e recuou deslizando, arrastando areia e pedrinhas.

      Sem sequer tirar as roupas ou até os sapatos, corri para uma rocha coberta de algas junto à linha de água e empoleirei-me, à espera que o pai me chamasse. As gémeas e Jerry riam-se. O pai permaneceu de pé num ponto mais alto da praia, sem nos prestar grande atenção. Ao princípio nenhuma onda me incomodou. Subiam até atrás de mim, passavam por mim, transformavam-se em espuma e desapareciam.

      - O Charlie está com medo! - gritou Jerry.

      Não disse nada. Deixei-me ficar ali ajoelhado, numa posição instável, agarrado à rocha com as pontas dos dedos. Era quase como estar numa sela sem estribos. Não sabia se era eu quem desafiava o bluft do pai, ou se ele desafiava o meu. Uma sucessão de ondas encharcou-me as pernas e molhou-me os sapatos. Formou-se uma lagoa em frente da minha rocha. Agora, a água atingia-me os dedos e deixava-os dormentes.

      Estava a ensaiar uma desculpa para desistir quando, na amarelada luz do fim da tarde, vi a silhueta do meu pai, com o Sol abaixo do ombro. Era uma pessoa escura, não o conhecia, e ele observava-me como se fosse um estranho, com mais curiosidade do que afeição. Éramos duas pessoas na incerteza, uma numa rocha e a outra na areia, criança e adulto. Não o conhecia, ele não me conhecia. Tinha de esperar para descobrir quem nós éramos.

      Justamente nesse momento - com o pai tão simples e obscuro como um mero veraneante ocasional, duvidando de mim - chegou a onda. Bateu-me com força por detrás, trepou pelas minhas costas e esfregou-se no meu pescoço, empurrando-me e fazendo-me flutuar, e largando-me tão depressa como me apanhara. Tremi de frio e agarrei-me à rocha com força, a pensar que o meu peito ia rebentar com o grito que lá sustinha.

      - Ele conseguiu! - guinchava Jerry, correndo em círculos na praia. - Está todo molhado!

      Agora já conseguia ver a cara do pai. Por ela passou como que uma qualquer selvajaria, como uma memória desesperada que lhe fixava o queixo numa expressão louca. Depois sorriu e gritou-me que saísse dali. No entanto, deixei que outras duas ondas se quebrassem em cima de mim antes de desistir e cambaleei para a areia. Contra a minha vontade, comecei a chorar por causa do frio.

      - Assim é melhor - disse o pai, enquanto as gémeas pulavam à minha volta e tocavam as minhas roupas molhadas. No entanto, aquilo soava como um cumprimento a ele próprio e não a mim. - Descalça esses sapatos.

      O pai levou um sapato em cada mão quando caminhámos pela areia em direcção à mãe e à camioneta.

      - Eh, calce os sapatos ao rapaz. - Era uma voz por detrás de nós.

      - Há vidros partidos e caca na areia.

      Virámo-nos e vimos um negro. Tinha um transístor encostado à orelha e usava uma apertada meia de lã enfiada na cabeça. Pestanejou para o pai, que tinha duas vezes o tamanho dele e ainda sorria.

      - Ora aqui está o homem que eu procurava - declarou o pai.

      O homem desligou o transístor. Parecia verdadeiramente intrigado.

      Disse que se chamava Sidney Torch e que não vivia ali perto, mas que vira alguns garotos a partirem garrafas de vidro na praia, pelo que era perigoso andar por ali descalço por causa dos cortes nos pés. Não queria problemas, afirmou, porque não era ninguém, ia apenas visitar o irmão e nunca nos tinha visto antes.

      - Só lhe queria contar uma coisa - disse o pai de uma maneira simpática e o negro, que o olhou de esguelha, começou a rir-se baixinho. - Ninguém gosta deste país tanto como eu - começou o pai. - É por: isso que me vou embora, porque não suporto ficar aqui a ver o que se passa. - Deu uns passos e colocou o braço por cima do homem, Sidney Torch; - É tal e qual como quando a minha mãe morreu. Não fui capaz de ver. Fora sempre forte como um touro mas partiu a anca e, depois de estar algum tempo no hospital, apanhou uma pneumonia dupla. E ali estava, jazendo na cama, a morrer. Aproximei-me e peguei-lhe na mão. Sabe o que me disse? Pois disse: «Por que é que eles não me dão veneno para os ratos?» Não quis ver e não fui capaz de ouvir. Portanto, fui-me embora. Dizem que foi uma luta terrível... mas já estava condenada. Depois de morrer, voltei para casa. Algumas pessoas seriam capazes de dizer que o meu comportamento foi o máximo de desumanidade. No entanto, nunca o lamentei. Amava-a demais para poder vê-la morrer.

      Naquele momento já o Sr. Torch remexia nos botões do transístor com movimentos nervosos. Nunca tinha ouvido a história do pai, mas era típico dele contar detalhes da sua vida pessoal a um estranho. Talvez fosse a sua maneira de evitar as traições, divulgando os seus segredos a pessoas que encontrava por acaso e que nunca mais voltaria a ver.

      - É uma história na verdade muito triste - disse o Sr. Torch.

      - Então não lhe entendeu o sentido - retorquiu o pai.

      O Sr. Torch ficou com um ar atrapalhado, e quando a mãe me viu todo molhado e gritou para o pai: «O que é que estiveste a tentar provar?», o Sr. Torch aspirou golfadas de ar e recuou.

      O pai dirigiu-se-lhe de novo. Tinha uma proposta a fazer-lhe.

      - Senhor Torch - anunciou - estou preparado para lhe vender esta camioneta por vinte e dois dólares, que foi quanto me custou o seu registo. - Eu só disse que o rapaz se devia calçar - murmurou o Sr. Torch.

      - Ou então, troco-a pelo seu transístor. Há outro na camioneta, que já não me serve para nada - insistiu o pai, estendendo a mão e o negro submeteu-se e entregou-lhe o transístor.

      Regressámos ao navio na camioneta. O Sr. Torch seguia sentado na traseira, com Jerry e comigo.

      - O vosso velho sabe falar - afirmou. - Devia ser um pregador. Era capaz de pregar até nos saltarem as orelhas. Mas digo-vos uma coisa... de negócios não percebe nada! - Riu-se para si mesmo e perguntou: - Para onde é que vocês vão?

      Dissemos que não sabíamos.

      - Aquele que vai ali atrás do volante é o vosso pai? Se eu fosse a vocês ficava com algumas dúvidas!

      - O meu pai é Allie Fox - disse Jerry.

      O Sr. Torch raspou os dentes com uma unha comprida.

      - O génio - acrescentei eu.

      - Isso mesmo - confirmou o Sr. Torch.

      Chegados ao navio, o pai entregou-lhe as chaves e disse-lhe que, afinal, também podia ficar com o transístor. Já não o queria. Subimos para bordo e pronto.

      - Livre, finalmente! - exclamou o pai, parado no estreito convés ao lado do nosso camarote.

      As luzes de Baltimore davam à cidade um halo de nuvens brilhantes. A noite não era negra, apenas de uma espécie diferente de luz pardacenta. Os ruídos do trânsito eram abafados e nervosos. Uma brisa raspou pelo casco do navio e era como se este não tivesse qualquer ligação com a cidade e já estivéssemos no mar. Olhámos para a zona do cais de onde o Sr. Torch se afastara, levando a camioneta.

      - Se a Polícia o manda parar - disse a mãe - vão pensar que a roubou. Será preso.

      - Não me ralo! - respondeu o pai, muito satisfeito consigo próprio. - Dei-a! Leva-a, foi o que eu disse! Não me serve para nada! Viste a expressão na cara dele? Uma camioneta de borla, com uma transmissão nova. Tal como a «Banheira das Minhocas»! Tal como Polski e o emprego! Agora, os conveses estão desimpedidos!

      - Mas, afinal, o que é que deste? - retorquiu a mãe num tom cortante. - Uma camioneta velha que nem valia o trabalho de a deitar fora. Um frigorífico de fabrico caseiro que cheirava mal como o diabo. Uma coisa que nem valia a pena ter.

      - Era isso mesmo o que eu queria dizer.

      - Não finjas que és melhor do que na verdade és.

      O pai continuava a olhar para baixo, para as amarras que nos ligavam a Baltimore.

      - Adeus, América - declarou. - Se alguém perguntar, digam que naufragámos. Adeus a todo o teu lixo e toda a tua hediondez! Muito bom dia para ti!

 

      Partimos de Baltimore naquele navio, o Unicorn, a meio da noite. As paredes dos camarotes vibravam como se estivessem apoiadas nos dentes de uma serra eléctrica. O meu beliche rosnava e baloiçava não me deixando dormir. Encostei a cara à vigia e vi a espuma da ondulação, como cal sobre gelo negro. Ouvi o som de uma sereia, o toque de um sino e uns chuviscos que pareciam pedrinhas a cair num balde de ferro. A porta de aço chocalhava mas nenhuma das crianças acordou. De manhã estávamos no mar alto.

      Ali, no meio do oceano, o navio ganhou vida. A sala de jantar estava cheia aquando do pequeno-almoço. As outras três mesas foram ocupadas por duas famílias, uma delas muito numerosa. Depois de nos apresentarmos, os crescidos deram os bons-dias ao pai e à mãe e as crianças fizeram-nos caretas. Nós éramos uns estranhos sossegados, enquanto eles faziam grande barulheira e pareciam sentir-se ali à vontade. Agiam como se já antes tivessem viajado no Unicorn. Eram os Spellgood e os Bummick.

      - O senhor chama-se Fox - disse um dos homens para o pai no nosso primeiro dia no mar. - Já se esqueceu do meu nome, mas eu não me esqueci do seu.

      - Claro que não - respondeu o pai. - O meu é muito mais fácil de recordar do que o seu.

      O homem era o Reverendo Gurney Spellgood, um missionário. A cada refeição era ele quem levava a família - duas mesas cheias - a entoar, em voz alta, um hino de acção de graças, antes de se atirarem à comida. O comportamento dos Bummick era estranho, pois esta família de quatro pessoas de rostos castanhos estava sempre a discutir, e à medida que as suas vozes aumentavam de tom, competindo umas com as outras, começavam a gritar noutra língua. O pai disse que era espanhol e'que eles eram mestiços. Um dia, no convés da popa, o senhor Bummick, que era tremendamente gordo, disse ao meu - pai que uma das coisas que sempre tivera vontade de fazer era rebentar com uma janela em Baltimore e depois correr para o navio e partir. «Nunca me apanhariam!» O pai disse-nos para nos mantermos afastados dos Bummick.

      Além da reunião para orar, que era organizada pelos Spellgood, o que acontecia todos os dias, era muito raro vermos aquela gente, excepto à hora das refeições. Ao jantar do segundo dia, os nove Spellgood não se encontravam nas suas mesas.

      - O que aconteceu aos nossos cantores de hinos? - perguntou o pai ao Sr. Bummick. - Se calhar estão enjoados... e a dar de comer aos peixes, não?

      O Sr. Bummick disse que não, que estavam com o capitão. Que era costume do capitão convidar os passageiros, por turnos, para jantarem com ele.

      - Engraçado - comentou o pai. - Estava a pensar em convidá-lo para jantar connosco, mas decidi não o fazer. Não gosto do corte da sua bujarrona (1).

 

      Os Bummick ficaram a olhar para ele.

      - Estava só a brincar - explicou o pai.

      Nunca sorria quando dizia uma graça. De facto, até tomava um ar especialmente mal-humorado quando tentava ser engraçado. Era embaraçoso saber que estava a brincar e ver o espanto na cara das outras pessoas.

      Na noite seguinte foram os Bummick que jantaram com o capitão.

      - Creio que se esqueceu da nossa existência, reverendo - disse o pai para Gurney Spellgood. - Ficava muito grato se rezasse por nós.

      - «Os últimos serão os primeiros» - afirmou o Reverendo Spellgood, cruzando as mãos e sorrindo.

      - Alguns - respondeu o pai.

      - Perdão?

      - «Os homens virão do Norte e do Sul e sentar-se-ão à mesa do Reino de Deus. E eis que alguns dos últimos serão os primeiros e alguns dos primeiros serão os últimos.» Lucas.

      - Estava a citar Mateus - explicou o Reverendo Spellgood.

      - Está enganado - retorquiu o pai, levantando o dedo incompleto.

      - Mateus diz muitos e não alguns. Mas a melhor parte está no capítulo dezanove: «Todo o que deixou casas, ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou filhos, ou terras por amor do meu nome, esse receberá cem vezes mais e herdará a vida eterna.»

      - Essa é a minha divisa, irmão - disse o Reverendo Spellgood. ­Compreendeu a minha missão.

      - E, no entanto, não posso deixar de notar - continuou o pai, agitando o dedo para as duas mesas de Spellgood, onde também havia uma avozinha - que não deixou ninguém para trás de si. - Muito depressa, acrescentou: - Estava apenas a brincar.

      Porém, depois daquilo, o Reverendo Spellgood tentou levar o pai para

 

(1) Trocadilho intraduzível. Em inglês, bujarrona (jib) é o nome de uma vela de navio, mas significa também a «pinta» de uma pessoa. (N. do T.).

 

discussões sobre as escrituras e incluí-lo nas orações, no convés. Na manhã seguinte, o Reverendo Spellgood fê-lo parar quando o viu a passear no convés com os mapas. Eu estava perto, a pescar na amurada.

      - «Não temos um grande aspecto neste momento», reverendo, «mas o tempo e a experiência dar-nos-ão polidez e oramos para que venhamos a ser setas luzidias na aljava do Todo-Poderoso.»

      - Ezequiel? - perguntou o Reverendo Spellgood.

      - Joe Smith - respondeu o pai com uma gargalhada. - Profeta e mártir, e fundador de uma das vinte mais ricas companhias dos Estados Unidos.

      «Cupanhias», era como o pai o dizia, com um toque de puro ódio.

      O Reverendo Spellgood encarou o oceano e continuou:

      - «Tu que caminhaste pelo mar em teus cavalos, através da capa das grandes águas...»

      - Hosea.

      - Habbakuk - disse o Reverendo Spellgood. - Capítulo três.

      - Isso é clorofórmio - afirmou o pai. No entanto, ter falhado aquela citação espicaçara-o. Virou-se para Spellgood e, na frente de toda a sua numerosa família, perguntou, com uma voz aborrecida: - Mas diga-me, quantas flexões consegue fazer? Ah!

      Os Spellgood ficaram calados.

      - «Da feitura de muitos livros não há fim, e muito estudo é a saturação da carne.» Eclesíastes. Além disso, tenho mais que fazer ­disse o pai voltando a dedicar-se aos mapas.

      Foi por uma das filhas do Reverendo Spellgood, uma rapariga chamada Emily, que tinha uma cara de pato sem queixo, que descobri para onde ia o Unicorn. Os dias eram agora quentes e cheios de Sol. Estávamos a três dias de Baltimore e parecia que a Primavera se transformara em Verão. A tripulação andava de um lado para o outro sem camisa. Eu passava a maior parte do dia a pescar.

      - Nunca apanhas nada - disse Emily, aproximando-se de mim.

      - Está demasiado calor - respondi, porque no passado só pescara em ribeiros e em zonas sombrias do rio Connecticut. - Os peixes vão para o fundo no tempo quente e não comem.

      - Se pensas que isto é calor, então espera até chegares à cidade de La Ceiba.

      - Onde é isso?

      - É para onde tu vais neste barco, parvo. Nas Honduras.

      Era a primeira vez na vida que ouvia aquele nome, que tinha o som de um sombrio segredo.

      Juntou-se a nós um dos jovens Spellgood.

      - Este nem sequer sabe para onde vamos! - disse-lhe Emily e ambos se riram de mim.

      No entanto, valia a pena ser gozado, a fim de descobrir para onde o pai nos levava. Agora compreendia aquele negócio com o senhor Semper e os outros homens. Eram das Honduras. O pai estava a trocar de lugares. No mapa, no exterior da sala do rádio, as Honduras pareciam-se com a saliência de terra no mapa do pai, mas mais pequenas, eram agora como uma casca de tartaruga vazia vista de lado, cheia de dedadas, e La Ceiba era uma bolinha na costa. A cidade estava quase gasta de tanto ter sido tocada. Alfinetes espetados no mapa mostravam o nosso avanço desde Baltimore. O último alfinete encontrava-se paralelo com a Florida, e por isso é que fazia tanto calor.

      O mar estava liso como um espelho, verde perto do navio e azul lá mais para longe. Não corria uma brisa. O convés era uma frigideira e parte da tinta estalara com o calor. Continuei a pescar.

      Emily Spellgood não me deixava em paz. Era mais ou menos da minha idade e usava calças a três quartos.

      - Em La Ceiba faz muito mais calor do que aqui - disse-me. ­Nunca lá estiveste mas nós já. O meu pai é bastante famoso na cidade, temos uma missão na selva. É muito bonita.

      Queria pescar qualquer coisa para lhe mostrar. Lançava a linha e observava os bandos de gaivotas que nos seguiam. Pairavam guinchando sobre a popa, flutuavam no rasto do navio e mergulhavam para apanharem restos largados pela cozinha. Nunca pousavam no navio, mas arrancavam­-me da mão bocados de pão se lhos estendesse. O pai odiava-as. «Co­medoras de cadáveres!» Foram elas que me deram a ideia da pesca, pois vira algumas a apanharem peixes do tamanho de cavalas, no mar por detrás do navio.

      No anzol espetava bocadinhos de courato de bacon, sem bóia e apenas com o peso suficiente para poder lançar a linha. Emily continuava atrás de mim, dizendo:

      - Chama-se Guampu. Temos um fantástico barco a motor e todos os índios...

      A linha esticou-se e eu dei-lhe um puxão. Ouviu-se um grito humano entre os guinchos das gaivotas. Agarrara um pássaro. O anzol devia ter-lhe entrado até meio da garganta porque quando levantou voo levou a linha com ela, puxando-a como se fosse a corda de um papagaio, gritando. Batia as asas com força e procurava escapar-se. Mergulhou no rasto do navio, depois apareceu de novo à superfície e tentou voar, mas quando a linha ficou esticada oscilou no ar e soltou gritos lancinantes. As outras gaivotas voavam como loucas à sua volta, picando-lhe a cabeça por curiosidade e por medo.

      Larguei a linha, que chicoteou a água como se eu tivesse feito um lançamento para as trutas, e a grande ave em pânico bateu as asas sobre as ondas arrastando cinquenta metros de linha presa ao bico. Não voou até muito longe. Um pouco mais adiante pousou na água e ali ficou, sacudindo a cabeça como um pato doméstico e batendo com as asas na água.

      - Mataste-a! - exclamou Emily. - Mataste o pobre pássaro. Isso dá azar... e é uma crueldade! Pensei que eras simpático, mas és um assassino! - Correu pelo convés e a seguir ouvi-a gritar: - Pai, aquele rapaz matou uma gaivota!

      Durante o resto do dia andei por ali com uma dor na garganta, como se tivesse engolido um anzol.

      - Mata uma por mim, Charlie - disse-me o pai (como é que ele soubera da história?) -, mas não deixes que ninguém veja.

      Quando voltei a encontrar o Reverendo Spellgood, este olhou para mim como se me quisesse atirar pela borda fora. A seguir perguntou-me:

      - Deste os bons-dias a Jesus? Ou limitas-te a fazer flexões como o teu pai e viras as costas ao Senhor?

      - O meu pai consegue fazer cinquenta flexões - respondi-lhe.

      - Sansão conseguia fazer quinhentas, mas era um homem bom.

      Nessa noite foi a nossa vez de jantar com o capitão. Antes disso só lhe pusera os olhos em cima uma única vez e quando usava o boné de capitão. Sem ele e nas roupas de caqui, parecia-se com um agricultor, um pouco rabugento e de cabelo curto, mais ou menos da idade do Polski. Como não tinha pescoço, as orelhas, os lóbulos das orelhas, batiam-lhe no colarinho. Os olhos azuis desprovidos de pestanas davam-lhe o ar de duvidar de tudo o que lhe diziam e faziam-no parecer-se com um peixe, com um bacalhau morto pousado em cima de uma pedra. Tinha uma boca pequena e estreita e lábios de peixe que aspiravam o ar sem se abrirem.

      A sua sala de jantar era de tecto baixo e a mobília fora envernizada num tom tão escuro que parecia ter sido tirada de um boião de conservas. Prateleiras em conserva, armários em conserva, e uma arca em conserva que dizia «Capitão Ambrose Smalls» na tampa.

      O capitão Smalls falava com outro homem quando entrámos na #sala. Estavam à mesa, debruçados sobre gráficos. O homem, que tinha a camisa e as mãos cheias de óleo, tirou o boné quando nos viu entrar mas continuou a falar.

      - Tem de ser das soldaduras - afirmou. - Não vejo que mais possa ser, a não ser que a bomba esteja a perder a sucção. Acha que devemos isolar a antepara?

      - É no número seis... um dos maiores - disse o capitão. - É melhor ver os tanques de lastro. Dizes que é mau?

      - Neste momento é apenas um problema de condensação.

      O capitão levantou-se e endireitou os ombros.

      - Esta boa gente está esfomeada. Falamos depois.

      O homem enrolou os gráficos e saiu da sala.

      - Em vez de afogar os seus problemas, por que é que não os ensina a nadar? - perguntou o pai. O capitão cerrou a boca e mirou-o com os seus olhos sem pestanas. - Tem um furo na banheira, hein? - insistiu o pai, fazendo uma careta; estava a brincar.

      O capitão franziu o cenho de peixe para ele.

      - Um problema numa bomba do porão, a bombordo. Nada com que valha a pena preocupar-se, o problema é meu.

      - Pode ser de um empanque, numa das cabeças dos cilindros - disse o pai. - A água do mar é terrível para os empanques. Desgasta os materiais, mesmo aqueles a que chamam de fibras miraculosas. E o calor. Os empanques não suportam negligências, estragam-se. Mas está bem, nós sabemos nadar.

      - Não tem cilindros, é uma bomba centrífuga. Nem sequer temos a certeza de ser da bomba - retorquiu o capitão. - Façam o favor de se sentar.

      O pai abriu o guardanapo com um esticão, como se fosse uma peça de roupa para passar a ferro. Enfiou-o debaixo do queixo, ficando com um bibe. Jerry e as gémeas fizeram o mesmo, mas eu pus o guardanapo sobre o estômago, tal como fizera o capitão Smalls. A mãe pousou o dela no colo. O pai olhou para mim e sorriu, porque eu imitara o capitão.

      - Deve ser das palhetas - continuou o pai. - Ou pode ser do motor. Não o aconselho a selar a antepara. Acabará por se encher e o senhor ficará tão condescendente que desligará a bomba. Isso provocará vibrações. Tantas vibrações que lhe cairão os dentes e serão o diabo para o navio...

      - Está a deixar arrefecer a sopa - interrompeu-o o capitão. - É a sua primeira visita às Honduras?

      O pai enfiou uma colherada de sopa na boca e não respondeu. Foi a mãe quem o fez.

      - É mais do que uma visita. Pensamos lá ficar algum tempo.

      - Já alguma vez lá estiveram?

      - Encontrei um selvagem que já lá viveu - declarou o pai. - Uma vez comi uma banana das Honduras. Soube-me bem, portanto, pensei cá para mim: «Por que não emigrar?»

      O capitão ignorou-o e continuou a falar para a mãe.

      - Na maior parte das coisas, as Honduras estão atrasadas cinquenta anos. La Ceiba é uma cidade atrasada.

      - Para mim é óptimo - prosseguiu o pai. - Era um camponês, lá de onde venho. No entanto, vamos para Mosquitia.

      A mãe ficou a olhar para ele. Aquilo era uma novidade.

      - Ah, aí vive-se na Idade da Pedra - afirmou o capitão -, tal como na América antes da chegada dos primeiros colonos. Só há índios e florestas. Não há estradas. É tudo floresta virgem.

      - A América também se está a transformar numa selva – retorquiu o pai com nova careta.

      - E pântanos - insistiu o capitão. - São tão maus que quando lá entramos nunca mais conseguimos sair.

      - Parece-me perfeito. - O pai parecia genuinamente satisfeito.

      Conhece o país como as costas da sua mão, não é verdade?

      - Apenas a costa, que já é bastante má. Nunca me apanhariam no interior. Alguns dos membros da tripulação vêm dessas partes. Um está na prisão de bordo, neste momento. Vou pagar-lhe quando chegarmos ao porto e nunca mais conseguirá embarcar num navio. Alguns desses homens dão-me dores de cabeça, mas sou eu quem manda aqui.

      - Deve ser agradável ser rei no seu próprio país.

      O capitão ficou a olhar para ele mas eu tinha a certeza de que o pai falara a sério e dissera aquilo como um cumprimento.

      - Gurney Spellgood tem lá uma missão. A sua igreja fica algures no rio. - Penso que a sua teologia não é grande coisa.

      - E quais poderão ser as suas actividades? - perguntou o capitão, aborrecido com o que o pai dissera do Reverendo Spellgood.

      O pai não respondeu, odiava perguntas directas como «Onde é que vai?», «O que faz?» e «Para que serve isso?». Nós nunca as fazíamos. Foi a mãe quem respondeu para quebrar o silêncio:

      - Allie, o meu marido, costumava interessar-se muito pela Bíblia. Ele e o Reverendo Spellgood estiveram a discuti-la. É isso o que ele quis dizer. É a única pessoa que conheço que deixa as Testemunhas de Jeová entrarem-lhe em casa. Aplica-lhes o terceiro grau...

      - Sim, entretive-me com ela, muito por alto. É uma espécie de manual de instruções para o proprietário, não é? Para a civilização ocidental, claro. Porém, não funciona. Comecei a perguntar a mim mesmo... Onde é que está o problema? A culpa é nossa ou do manual?

      - E que vai fazer a Mosquitia com a sua bela família? Uma pergunta directa, mas o pai enfrentou-a.

      - Vou deixar crescer o cabelo. Já reparou que tenho o cabelo muito crescido? Tenho motivos para isso. Viajei muito, mas não gosto de falar no assunto, só a mim diz respeito. É difícil viver na América, fazem-se demasiadas perguntas pessoais. Não suporto ter de lhes responder. E que tem isto a ver com o cabelo? Pois já lhe digo. Os barbeiros eram aqueles que me faziam mais perguntas. Verdadeiras entrevistas. Quando deixei de cortar o cabelo, as perguntas pararam. Portanto, creio que vou continuar a deixá-lo crescer, por causa da minha paz de espírito.

      - Há alguns anos atrás, tivemos a bordo uma pessoa como o senhor. Planeava passar o resto da vida nas Honduras. Desembarcou e nós ficámos a carregar o navio. Eram ananases. O fulano regressou connosco. Não conseguiu suportar aquilo, só lá esteve dois dias.

      - Não espere por nós, a não ser que queira que os ananases apodreçam.

      - Numa das viagens trouxe a família comigo - prosseguiu o capitão.

      - Passaram alguns dias em Tegoose e depois visitaram as ruínas. Foram uns dias agradáveis.

      - Não creio que vamos para as ruínas, porque as estamos a abandonar - disse o pai. - Já agora que estamos a falar de nações difíceis e duras, um pouco antes de irmos para Baltimore, fizemos algumas compras. Fomos a Springfield, a um daqueles centros comerciais que são como... círculos comerciais. Comprávamos sapatos e quando paguei a conta olhei para o armazém, que tinha a porta aberta e onde se via um daqueles painéis com instruções para os empregados. Havia um slogan escrito em letras gordas: «Se vendeste a um cliente exactamente aquilo que ele queria, então não fizeste uma venda.» Numa sapataria! Deu-me vontade de sair dali ainda com os sapatos velhos.

      - É o negócio - comentou o capitão.

      - São as ruínas - retorquiu o pai. - Comemos quando não temos fome, bebemos quando não temos sede, compramos o que não neces­sitamos e atiramos fora tudo o que é útil. Não vendas a um homem aquilo que ele quer... vende-lhe o que ele não quer. Faz de conta que ele tem dois metros e meio de altura e dois estômagos, além de dinheiro para queimar. Não é lógico... é diabólico.

      - E, portanto, vai para as Honduras.

      - Precisamos de férias. Se tivéssemos dinheiro para isso, teríamos ido para a ilha de João Fernandes, mas não quisemos vender o porco.

      A mãe riu-se daquilo. Ria-se muitas vezes, pensava que o pai era engraçado.

      - A minha família já está crescida - declarou o capitão. - A minha mulher sente-se feliz onde está, em Verona, na Florida. Este navio é a minha casa. Já andei por muitos portos... na costa oriental, México, América Central, através do Canal e para norte, do outro lado, e digo-lhes uma coisa, mais palmeira menos palmeira, é tudo o mesmo.

      - Isso é uma espécie de medo - disse o pai. - Quando um homem diz que as mulheres são todas iguais, prova que tem medo delas. Já dei umas voltas ao Mundo. Já estive em lugares onde nunca chove e noutros onde a chuva nunca pára de cair. Não diria que esses países são iguais e as pessoas são tão diferentes quanto os cães. Não iria lá se pensasse que eram todos iguais e se fosse capitão de um navio permanecia no meu beliche. Espero lugares diferentes. Se as Honduras não o forem, voltamos para casa.

      - Gurney entoa os seus hinos. Bummick trabalha para a companhia das frutas. Isso é outra história, mas devem gostar de lá estar, ou não ficariam.

      - Se houver espaço, ficarei feliz. Acabou-se-nos o espaço na América. Foi por isso que eu disse: «Vamos embora!» As pessoas, em geral, não dizem coisas dessas, já reparou? Os americanos nunca saem de casa. As pessoas dizem que querem uma nova vida, portanto, mudam-se para Pittsburgo. Que espécie de vida nova é essa? Ou então vão para a Florida e pensam que emigraram. Tal como disse, viajei muito, mas nunca consegui encontrar americanos que planeassem ficar lá, com a excepção de alguns aleijados e de atrasados mentais que não sabiam onde estavam. A maior parte dos americanos são como pombos-correios e nenhum deles tem a convicção suficiente para fazer o que nós estamos a fazer... agarrando em nós mesmos e indo para um novo país, para sempre. Suponho que pensa que é desleal, mas um homem não consegue suportar tudo. Eu? Já me sinto melhor neste navio. É por isso que lhe estou a dizer o que não fui capaz de dizer a ninguém lá na terra. Se dissesse que me ia embora, chamar-me-iam fora-da-lei. Os americanos pensam que abandonar os Estados Unidos para sempre é um acto cri­minoso, mas não vi outra saída. Para podermos pensar, precisamos de espaço para os cotovelos. Pois - continuou o pai, agora a rir-se -, como já deve ter reparado, eu penso com os cotovelos!

      Durante todo este tempo, as gémeas, Jerry e eu permanecíamos entalados de encontro à parede, onde os nossos braços batiam quando comíamos. As gémeas tinham bocadinhos de pão torrado na sopa, porque o capitão também os tinha. No entanto, não os comeram porque pareciam lavagem para porcos. Jerry, que odiava salsichas (o pai estava sempre a dizer que as faziam com beiços de cavalos e orelhas de vacas), mal tocou no prato principal, excepto umas quantas ervilhas. Os garotos também davam pontapés uns aos outros por debaixo da mesa. Fiquei com tanta vergonha deles que comi tudo o que o criado preto meteu na minha frente. Estava na ponta da mesa, junto do capitão, que me cumprimentou dizendo que eu tinha muito apetite e que iria crescer bastante para ser muito grande... e onde é que eu tinha metido toda aquela comida?

      - Se quiseres, mostro-te a ponte - disse-me. - Já te tenho visto a pescar na popa. Temos um sonar... podemos ver os peixes no ecrã. Saberás qual o melhor momento para lançar a linha. Queres subir?

      Perguntei ao pai se podia ir.

      - Ouviste o que disse o capitão, Charlie. É ele quem manda. Este navio é o seu país, pode fazer o que quiser. É ele quem dita as leis. Todos estes homens e todas as bombas do porão lhe pertencem... quer funcionem, quer não.

      - Hasteio a bandeira dos Estados Unidos, senhor Fox - disse o capitão. - Não desprezo o meu país.

      - Nem eu - retorquiu o pai.

      O capitão aspirou o ar lentamente e insistiu:

      - Ouvi o senhor a fazê-lo.

      - Não tenho país - explicou o pai. - Um dia destes, muito em breve, também o senhor não o terá.

      - Capitão - interveio a mãe -, gostaria de descer lá abaixo e de ver os porões, a casa das máquinas e os alojamentos da tripulação. As crianças devem estar interessadas. Será uma boa lição... e poderão tirar algumas fotografias.

      - Vê, estamos nós mesmos a educar estes garotos - disse o pai. ­Não me sentia satisfeito com as escolas. São apenas pátios de jogos e só aprendem a pintar com os dedos. Professores pouco alfabetizados, garotos analfabetos. Os cegos a conduzirem os cegos. Claro que ficam estragados... É desesperante.

      - Os estudos em casa têm as suas limitações - afirmou o capitão. - Alguma vez experimentou?

      O capitão disse que, quanto a ele, as escolas públicas eram boas e concluiu:

      - Nunca tive qualquer razão de queixa do sistema escolar.

      Ao ouvir aquilo, o pai estendeu o braço para uma das estantes e puxou por um livro. Colocou-o nas mãos de Clover. A seguir pediu-lhe:

      - Abre-o, querida, e lê o que lá vires.

      Clover abriu-o e leu:

      - Os erros da bússola são por vezes utilizados nos cál... cálculos de bússola como termo es... espacífico. É a soma al... alga... algagébrica das va... variações e desvios, isto porque as va... variações dependem da localização ge... geográfica e os desvios da rota do navio...

      - Chega - disse o pai, fechando o livro de repente. - Só tem cinco anos. Gostava de ver um garoto da escola a ler aquilo.

      - Rapariga esperta - comentou o capitão.

      - Olhe, pense nesta actual crise de energia - continuou o pai. – A culpa é das escolas. Temos energia eólica, energia das marés, energia solar e álcool... e ninguém liga. Acham graça e falam disso por alto, na escola, mas toda a gente vai para lá a consumir petróleo árabe e óleo esquimó... para depois dizerem umas asneiras a respeito de moinhos de vento. Bom, e que há de novo nos moinhos de vento? Os holandeses já os utilizam há anos. As escolas continuam a ensinar lições ultrapassadas e a andar atrás das últimas modas... Não admira que os miúdos cheirem cola e tomem drogas! A culpa não é deles! Também eu tomaria drogas se tivesse de escutar aquelas asneiras. E ninguém vê como as coisas podiam ser simples. Eh, estou só a pensar em voz alta, mas repare no magnetismo. Já alguma vez ouviu alguém dizer qualquer coisa com sentido a respeito de energia magnética?

      - Os geradores têm magnetos lá dentro - disse o capitão.

      - Electroímanes. Esses precisam de energia... e energia quer dizer combustível.      Estou a falar dos magnetos naturais.

      - Não vejo como é que isso poderia funcionar.

      - Do tamanho de uma roda gigante.

      - Não há magnetos tão grandes!

      - Um milhar deles, sobre um par de rodas.

      - Atraíam-se uns aos outros e colavam-se.

      - Estou um passo à sua frente - retorquiu o pai. - Colocamo-los em ângulos diferentes, ao longo de trezentos e sessenta graus, pelo que se obtém um efeito de atracção-repulsão com os campos magnéticos alternados.

      - E para que serve isso?

      - Temos uma máquina de movimento perpétuo. Podíamos iluminar toda uma cidade com uma máquina assim. No entanto, fale no assunto a alguém e olharão para si como quem olha para um doido - disse o pai enfrentando o capitão, como se o desafiasse a olhar para ele desse modo.

      - O Allie é inventor - explicou a mãe. - Estou a ver - respondeu o capitão.

      - Estritamente falando - continuou o pai -, não existem invenções. Quer dizer, não há criação, trata-se apenas de ampliar o que já existe, de fazer uns acertos... Podiam ensinar essas coisas nas escolas. O Edison queria que a invenção fosse um tema escolar, como o Francês ou os Estudos Sociais. Mas não, as escolas preferem pôr os miúdos a fazer bonecos, quando podiam ensiná-los a ler. Encorajam-nos a papaguear! A escola é uma brincadeira! Harvard é uma brincadeira!

      - O capitão está a oferecer-te café, Allie.

      O capitão tinha a cafeteira suspensa sobre a chávena do pai e este comentou:

      - Estão a ver? É sempre a mesma coisa. Quando se começa a falar num assunto importante, como o fim da civilização tal como a conhecemos, as pessoas dizem: «Esquece-te disso... toma lá uma bebida!» É um mundo curioso. Estou satisfeitíssimo por lhe estar a dizer adeus.

      - Então não quer café? - perguntou o capitão.

      - Não, obrigado. A cafeína faz-me falar demais. Eh, gosto deste barco de bananas! Vou até ao camarote para fumar um charro. Pensei que os olhos do capitão lhe iam saltar da cara.

      - Estava só a brincar - esclareceu o pai.

 

      O Unicorn avançava agora muito mais devagar. Era fácil de perceber pelos alfinetes espetados no mapa. Disse-o ao pai e ele respondeu-me:

      - Não percas esses alfinetes de vista, Charlie. Eu ando muito ocupado a ver se me escondo de Gurney Spellgood e dos seus cantores de hinos. Ele reza para que me junte a eles... e eu rezo para que me deixem em paz. Vamos a ver quais as orações que serão atendidas...

      Nessa mesma manhã, mas mais tarde, olhava para os alfinetes amon­toados em cima uns dos outros, quando Emily Spellgood deu um pulo por detrás de mim e perguntou:

      - Por que é que não estás a pescar?

      - Não me apetece - respondi, saindo do convés.

      - De onde vens tu? - insistiu, seguindo atrás de mim.

      - Springfield - respondi, citando a maior terra que conhecia.

      - Nunca ouvi falar em Springfield. Qual é a equipa de lá?

      De que diabo estava ela a falar?

      - É segredo - retorqui.

      - Nós somos de Baltimore. Baltimore tem os Orioles. É a minha equipa. Quase ganharam o campeonato. Estou a estrear um soutien. Encaminhei-me para a popa.

      - Sei por que é que não estás a pescar. Aquela gaivota que mataste levou-te a linha. Foi bem-feito, porque és um assassino. Mataste uma ave inocente, uma criatura de Deus. Elas são úteis, comem os restos. O meu pai disse uma oração por essa gaivota.

      - O meu pai disse uma oração pelo teu - respondi.

      - Não tem o direito de o fazer - protestou. - O meu pai não precisa de orações, faz o trabalho do Senhor. Aposto que nem sequer têm uma equipa. - Temos sim. Aparece na televisão.

      - Qual é o teu programa favorito na televisão?

      Aquilo arrumou-me. Não tínhamos televisão. O pai odiava-a, tal como aos rádios, aos jornais e aos cinemas.

      - Os programas de televisão não prestam - respondi eu, utilizando a frase que o pai andava sempre a dizer.

      - Deves ser maluco - disse Emily. Fiquei com a sensação de que o pai me deixara ficar mal, porque não soube o que dizer a seguir. Emily continuou: - Eu vejo o O Incrível Hulk, Os Marretas e Modelos de Hollywood, mas o meu favorito é O Caminho das Estrelas. Ao sábado à tarde vejo O Mascarilha... e vi Frankenstein combate o Monstro do Espaço e o Godzilla. Metiam medo. Ao domingo de manhã todos nós vimos As Boas Novas e cantamos os hinos. O meu pai já esteve nesse programa. Foi ele quem leu o sermão. Perdeu o lugar e teve de parar. Disse que as luzes lhe faziam mal aos olhos. As luzes da TV até queimam as pessoas... é por isso que aparecem todas vermelhas. Aposto que o teu pai nunca esteve na TV.

      - O meu pai é um génio - respondi.

      - Pois, mas que é que ele faz?

      - É capaz de fazer gelo do fogo. Eu vi.

      - E para que serve isso?

      - É melhor do que rezar.

      - Isso é pecado - retorquiu Emily. - Deus castigar-te-á por isso.

      Irás para o Inferno.

      - Não acreditamos em Deus.

      Aquela resposta deixou-a chocada.

      - Deus acabou de te ouvir! - gritou. - Então, quem é que fez o mundo?

      - O meu pai diz que quem quer que fosse fez um mau trabalho, e pergunta por que é que há-de adorar alguém que fez esta confusão?

      - Jesus disse-nos para o fazermos!

      - O meu pai diz que Jesus era um profeta judeu e maluco.

      - Não era judeu - disse Emily. - Isso de certeza. Deves andar numa escola muito estúpida, se pensas assim.

      Não queria falar da escola - nem de Deus -, porque só me lembrava de metade das coisas que o pai me dissera.

      - Lá na escola estudamos Comunicações - continuou Emily. ­

      Miss Barsotti é a professora. Tem um Impala novo. É mesmo bonito, branco com estofos vermelhos e ar condicionado. Gasta nove litros aos cem. Uma vez deu-me uma boleia, no assento da frente. A nossa escola em Baltimore tem duas piscinas... uma delas de tamanho olímpico. Já aprendi a nadar. Naquele dia, no dia da boleia, Miss Barsotti comprou-me um Whopper e uma Coca-Cola. Diz que o namorado dela é biónico.

      O discurso deixou-me sem fala. Eu não tinha escola, não tinha piscina e não tinha nenhuma Miss Barsotti. Olhei por cima da amurada, para o espelho verde do mar e pensei: se este é o tipo de parvos que vão à escola, então o pai tem razão. No entanto, ela sabia coisas que eu não sabia, movimentava-se num mundo maior e mais complicado que o meu, falava outra linguagem. Não podia competir com ela. Quis saber qual a minha estrela de cinema favorita, e qual o cantor, e apesar de ter ouvido o pai a considerar essa gentes como bobos e palhaços, não havia convicção na minha voz quando repeti o que ele me dissera. Quis saber qual o cereal que eu preferia para o pequeno-almoço, e fiquei demasiado embaraçado para lhe dizer que a mãe fazia os nossos cereais de nozes e rolinhos de aveia, porque me pareceram improvisados e vulgares. Depois disse-me que era capaz de dançar «disco» e eu fiquei perdido.

      - O teu pai é missionário - retorqui -, não podes viver em Baltimore. - Ah, isso é que vivemos. O meu pai tem duas igrejas. Uma é em Guam­pu, nas Honduras, e a outra em Baltimore. A de Baltimore é um drive-in (1). - Que espécie de drive-in?

      - Há só uma espécie... aquela em que se entra com os carros. As pessoas entram com os carros e rezam... mas só aos domingos de manhã, quando não há filme. Eh, tu és burro, és como um zambu.

      Emily Spellgood era daquele outro mundo onde o pai nos proibira de entrar... mas que, no entanto, me parecia muito atraente. Tinha coisa de que as pessoas se podiam gabar. Fazia com que a nossa vida parecesse aborrecida e caseira, tal como os remendos nas nossas roupas. Se não podia ter aquela vida, então estava satisfeito por irmos para muito longe, para onde ninguém nos podia ver.

      Fui salvo pelo capitão Smalls. Apareceu numa espécie de varanda no convés superior e chamou-me:

      - Anda cá acima, Charlie. Quero mostrar-te uma coisa.

      - Vou ajudá-lo a dirigir o navio - disse, afastando-me de Emily Spellgood.

      Na ponte, o capitão Smalls mostrou-me a bússola e os mapas. Deixou­-me segurar na roda do leme e fez uma demonstração com o sonar. Os cardumes de peixes viam-se como sombras. Dois conveses mais abaixo e ainda na popa, Emily ficara na amurada. Perto dela encontravam-se dois tripulantes, um a regar a tampa de um porão e o outro a esfregar com uma rodilha.

      - O meu pai inventou um esfregão mecânico - disse-lhe. - A gente quase que dança com ele, mas funciona sozinho.

      - O teu pai deve ser um homem fascinante.

      - É um génio - respondi.

      - É melhor que seja - retorquiu o capitão. - Sabes para onde vos está a levar?

      - Sim, senhor!

      - Vês aquele homem naquele pendural, lá à proa?

      O homem estava empoleirado num pilar cor de laranja e pintava-a de branco.

      - A razão porque consegue fazer aquilo com tanta facilidade... é por ele ser meio macaco. No sítio de onde veio vivem quase todo o tempo nas árvores. Alguns até têm caudas. Não é assim, senhor Eubie?

      Eubie estava ao leme, mas não o mexia.

 

(1) Cinema ao ar livre em que os espectadores assistem nos seus automóveis. (N. do E.).

 

      - É verdade, capitão - respondeu.

      Olhei atentamente para aquele homem pendurado e apercebi-me da sua semelhança com os homens do Polski.

      - A selva dos Mosquitos - continuou o capitão. - Há aí gente que nunca viu um homem branco e que não sabe o que é uma roda. Pergunta ao Reverendo Spellgood. Quando querem comer, trepam a uma árvore e apanham um coco. Não precisam de trabalhar, tudo o que necessitam está à sua volta... e de borla. Alguns nem sequer usam roupas. É uma vida fácil e livre.

      - É por isso que vamos para lá - expliquei.

      - Pois, mas aquilo não é lugar para vocês - continuou o capitão. ­

      Imagina um jardim zoológico... só que os animais estão do lado de fora e as pessoas estão presas em jaulas... casas, campos e missões. Olhas pela vedação e vês as criaturas todas a olhar para ti. Elas são livres mas tu não. É assim que as coisas são.

      - O meu pai saberá o que fazer.

      - Tegoose é um sítio muito mau - disse o capitão -, mas pelo menos é uma cidade. Eu não mandaria a minha família sozinha para a selva, para que lhe uivassem, rosnassem e lhe mordessem.

      - Não estaremos sozinhos.

      - Odeio bichos - insistiu o capitão. - Nunca encontrarás um bicho neste barco. Não os suporto. No entanto, o teu pai deve gostar muito deles. Cobras, besouros, percevejos, moscas, mosquitos, lodo, ratos. ­Abanou a cabeça. - E aquilo cheira mal.

      O telefone tocou. O capitão atendeu e uma voz inumana, do outro lado da linha, disse-lhe qualquer coisa.

      - Pois - respondeu e desligou. A seguir virou-se para Eubie: ­Vamos ter mau tempo pela frente. - Para mim, disse-me: - Vamos apanhar vento. Agora é melhor ires andando, mas quando quiseres aparece aqui para falares comigo.

      Ao almoço, o pai perguntou-me o que o capitão dissera a seu respeito.

      - Aposto que disse mal de mim, hein?

      - Não - respondi. - Só me mostrou o sonar.

      - Pergunto a mim mesmo que mais terá ele recebido pelo Natal. Jerry disse que um dos Spellgood lhe falara dos escorpiões. Morria-se se eles nos picavam. Clover e April tinham conversado com um dos membros da tripulação.

      - Ensinou-nos palavras em espanhol - afirmou Clover.

      - Uma vez fui picado por um escorpião, e ainda aqui ando. Falo espanhol como um nativo. Quanto ao sonar, Charlie, já li coisas a seu respeito e aposto que posso ensinar a esse capitão mais do que ele é capaz de aprender!

      - És um paranóico - disse a mãe, saindo da mesa.

      - Estás zangada com qualquer coisa - comentou o pai, que depois olhou para nós.      - Acham que sou um paranóico?

      Dissemos que não.

      - Então, venham comigo.

      Levou-nos para o convés da popa. O Reverendo Spellgood começara a pregação empoleirado no seu lugar habitual, a plataforma de um guincho. Permanecia ali, sob o céu coberto de nuvens, o cabelo empurrado para um lado pelo vento, orando para a família reunida na sua frente. Logo que viu o pai, saltou para o convés e deu-lhe as boas-vindas. Ele disse-lhe que estávamos muito ocupados. O Reverendo Spellgood respon­deu que tinha um presente para ele, uma Bíblia.

      - Não preciso dela - disse o pai.

      Spellgood achou a resposta muito engraçada. Riu-se e olhou por cima do ombro para a família.

      - Precisas, sim, irmão - declarou, mostrando-lhe uma Bíblia forrada a jeans.

      - Fique com ela.

      - Esta é a mais recente de todas - afirmou Spellgood. - A Bíblia Blue-Jeans. Foi traduzida em Memphis por toda uma equipa de especia­listas e desenhada por um psicólogo.

      O pai pegou-lhe e deu-lhe algumas voltas. A seguir segurou-a entre dois dedos, como se a Bíblia estivesse encharcada.

      - Temos também uma versão em espanhol - prosseguiu o reverendo. - Usamo-la na nossa paróquia. Aquela gente gosta dela. As outras, com dourados, fitinhas de cor e todas essas coisas, assustavam-nos. Essa é para si, irmão.

      O pai mostrou-nos a Bíblia. O tecido de jeans era verdadeiro, cosido por cima da capa, e tinha um bolsinho preso com anilhas de metal.

      - Olhem bem para isto, rapazes - disse o pai. - Isto é o tipo de coisa para que vos tenho chamado a atenção. - Devolveu-a ao Reverendo Spellgood, dizendo: - O seu reino não é deste mundo, reverendo. O meu é.

      - Que Deus lhe perdoe.

      - O Homem é Deus - retorquiu o pai.

      Avançámos junto às escotilhas da popa, até onde se encontrava o alto pilar de aço. Os paus-de-carga que tínhamos visto a carregar a carga do cais, em Baltimore, estavam fixados com seis cabos cada um. O pai disse que se chamavam ovéns e que estavam presos por moitões ao topo do guindaste.

      - Do pendural - disse-lhe eu.

      - Desculpa, Charlie. Do pendural.

      - Foi o que o capitão lhe chamou.

      - Bom, se foi o que ele lhe chamou, então deve ser esse o nome. Aquilo ali é um turco e os cabos, como já disse, são ovéns. Pergunto a mim mesmo até onde conseguirias trepar nos ovéns. Serás capaz de ir até ao topo?

      O céu - agora dividido em três partes - era púrpura, amarelo-pálido e cinzento. O vento atirava gotas de água. As nuvens tinham-se amontoado sob a forma de chapéus fora de moda, com bicos e plumas, e o mar já não parecia tropical. Tinha a cor das baías, riscado por tiras de espuma, e parecia estar a ser empurrado por baixo por formas como espáduas de baleias e barbatanas de tubarões.

      - Achas que és capaz, Charlie?

      Enquanto o navio oscilava lentamente, vi o pilar, os paus-de-carga e os ovéns abanando para um lado e para o outro. Ficava enjoado só de olhar assim para cima. Disse ao pai que estava enjoado. Disse-me para olhar para o horizonte durante um bocado e que logo me sentiria melhor.

      - O enjoo é apenas uma incompreensão no ouvido interno.

      - Jee... sus! - A voz do Reverendo Spellgood chegava até nós em farrapos transportados pelo vento. - ... Amor... as graças do Senhor...

      O vento gemia nos ovéns tal como fazia nas vedações de Polski durante as noites de Inverno, quando o ar arrancava um fino grito aos arames.

      - Pode chover - disse eu.

      - A água nunca fez mal a ninguém.

      - O Charlie está com medo - afirmou Clover.

      - Não, o Charlie não está com medo - disse o pai. - Está a estudar os ovéns para ver onde se poderá agarrar, não é, filho?

      - Há uma escada no poste - acrescentou Clover.

      - Qualquer idiota consegue subir uma escada. Mas aqueles ovéns, se os trepares, ficarás pendurado por cima da água.

      - Ali? - perguntei, apontando para o sítio em que se cruzavam sobre o convés.

      - Não - respondeu -, no exterior. - Fez um gesto para os borrifos atirados pelo vento. - Ali é que é divertido. Os rapazes da tua idade faziam isso constantemente nos grandes navios à vela.

      Estava a testar-me, tal como fizera na praia perto de Baltimore, onde me desafiara a sentar-me na rocha. O pilar metálico não era mais alto do que muitos ulmeiros a que eu trepara na quinta do Polski, mas o balanço do navio e o mar riscado de espuma branca provocavam-me dores de barriga.

      - Dói-me um pé - disse.

      - Usa as mãos.

      - Pai, tenho medo - declarei num sussurro.

      - Então, terás de o fazer - insistiu -, porque fazê-lo é a única maneira de não ter medo. Ou preferes ir juntar-te àqueles santos cantores e esqueceres o assunto?

      Os Spellgood haviam iniciado um hino, que o vento transformava num som lento-rápido, resmungo-grunhido.

      Não havia cabos atravessados nos ovéns, eram lisos e espessos, seis cabos suspensos dos moitões no alto do pendural. Se os trepasse à mão, ficaria suspenso. Imaginei um método melhor. Se os trepasse à mão, parte do caminho, e depois pousasse os pés no cabo inferior, poderia avançar numa posição mais vertical, tal como se caminhasse no alto de um muro, agarrado a uma corda fixa.

      - Estás a demorar - disse o pai. - Quanto mais tempo perderes mais assustado ficas.

      - O capitão pode zangar-se comigo.

      - Ah, então é desse parvo que tens medo!

      - Deixa-me experimentar, pai - pediu Jerry.

      - Poderás fazê-lo depois do Charlie.

      Aquilo foi o meu incentivo. Para poder ver o Jerry a tentar e a falhar, teria de ser eu o primeiro. Descalçei os sapatos e trepei para os moitões inferiores, que seguravam os cabos ao casco do navio. Icei-me um pouco.

      - Bom rapaz! - disse o pai.

      Trepei mais alguns centímetros e fiquei a olhar para a parte de cima do seu boné de basebol.

      O vento empurrava-me e as gaivotas, como farrapos enlouquecidos, gritavam-me como se quisessem vingar-se daquela que eu matara. Ouvia a voz esganiçada do Reverendo Spellgood, dirigindo o hino cantado pela família. Encontrava-me apenas a dois ou três metros de altura, mas o vento era já tão forte como no cimo de uma colina, muito mais forte do que em baixo porque o convés estava abrigado pela lona da amurada. Esperei que o pai visse as minhas calças sacudidas pelo vento e percebesse como este me puxava as pernas à medida que subia. A meia altura virei-me e pousei os pés no outro cabo. Segurei-me nessa posição durante um bocado para descansar os braços, tal como uma aranha numa racha da parede.

      Olhava directamente para baixo, para o mar. Fervia por baixo de mim, quase todo espuma, e parte da espuma saltava-me para os pés. Ali em cima, os ovéns soltavam um som diferente, um grito mais solitário, por estarem mais perto uns dos outros. O balanço do navio fazia-me oscilar. Tinha frio pela primeira vez desde que me encontrava no navio. O movimento e o frio deixavam-me mal disposto, daí ter ficado a olhar para o mar durante um instante. O tempo tornara-se tão mau que era impossível dizer onde acabava o mar e começava o céu, o que me deixou ainda mais mal disposto. Tudo tão cinzento como cobertores velhos. As gaivotas continuavam a gritar-me do alto do pilar e a cortar com os bicos a neblina semelhante a algodão.

      Segurando-me bem aos cabos e tentando avançar horizontalmente, recomecei a subida. Os cabos dos ovéns eram gordurentos e as minhas mãos e os meus pés escorregavam se tentasse avançar demasiado depressa. Quando olhei para baixo outra vez, o pai era minúsculo, não passava de uma pequena figura no convés, que me obrigara a fazer aquilo... e que nem sequer estava a olhar! Debati-me com os cabos escorregadios sob o vento forte e verifiquei que me faltavam apenas cerca de dois metros. Porém, chegara à parte mais difícil, pois os cabos formavam um molho apertado e não me conseguia encaixar entre eles. Via com nitidez as roldanas dentro dos moitões e a placa de latão com o nome do fabricante, aparafusada no topo do pendural e salpicada de sal.

      Agora todo o branco navio rolava e balançava num negro mar cheio de altos e baixos. Agarrei-me com firmeza e tive um novo medo... o medo de não conseguir descer dali. Só podia cair. A milhas de distância, sobre a água embranquecida, uma escura nuvem encapuçada parecia um demónio a abrir caminho por entre as outras nuvens de um amarelo sujo. Não sabia se os pingos de água que me atingiam eram salpicos ou chuva, mas o seu martelar assustou-me e paralisou-me as mãos.

      - Atenção!

      Era a voz do capitão saindo do altifalante. Fiquei surpreendido por conseguir ouvi-la acima do barulho do vento.

      - Rodriguez e Santos para a popa! Vistam os coletes salva-vidas e tragam um cabo. Sr. Fox, deixe-se ficar onde está!

      Pensei que se referia a mim e deixei-me ficar. Algum tempo depois, dei-me conta de que um negro trepava pelos ovéns, por baixo de mim. Houve uma coisa que me satisfez, o homem trepava tal como eu o fizera, primeiro suspenso e depois agarrando-se aos cabos como uma aranha. Tinha os olhos muito abertos e ofegava. Apareceu mesmo por debaixo de mim, colocou-me um braço em volta da cintura e puxou-me sem dizer uma palavra. A seguir, enrolou as pernas em volta dos ovéns e deixou-se deslizar, transportando-me suspenso por cima da água como quem leva uma saca de comida. A força do aperto e o cheiro do homem eram muito piores do que a visão do mar a espumar por debaixo de nós. O negro passou-me a outro homem que se encontrava no convés e este pousou-me com cuidado junto do pai.

      Entretanto, o capitão gritava com o pai e nem sequer aguardava pelas respostas.

      - Quem diabo pensa que é? Está a tentar matar esse rapaz? Não tem o direito...

      Porém, o pai cruzara os braços e desafiava o capitão com uma espécie de sorriso de homem surdo.

      - Você não deve estar bom da cabeça! - gritou o capitão.

      O pai descruzou os braços e não pareceu nada preocupado.

      - Se quer um bocado de excitação, pois irá tê-la, porque vamos apanhar mau tempo. Se provocar mais algum sarilho como este, ponho-o em terra em San Juan. Lembre-se disso, Sr. Fox. - Virou-se para mim e prosseguiu: - Foi uma coisa muito estúpida, Charlie. Pensei que fosses mais sensato.

      O pai não falou enquanto o capitão não se afastou, mas a seguir disse: - Se tivesses trepado um pouco mais depressa, ele não te veria. A propósito, não chegaste ao cimo.

      - Medroso - murmurou Jerry.

      Desejei ter caído dos ovéns para o mar e morrido afogado. Então teriam pena. Ainda pensei em atirar-me pela borda fora, mas um único olhar para a água foi o suficiente para me assustar.

      Eram apenas três da tarde mas o céu apresentava-se de um cinzento de cobertor. As vagas do mar estavam cobertas por franjas de espuma que o vento desfazia em borrifos, e moviam-se tão lentamente como goma ao longo dos oscilantes flancos do navio. Cambaleei, mas não foi por causa do susto que apanhara nos ovéns, pois Jerry e as gémeas também cambaleavam.

      - Passa-se qualquer coisa com este navio - disse o pai. - Reparem... Pegou num dos discos de borracha do jogo do tombadilho e pousou-o de cabeça para baixo, deitado sobre a face polida. Deslizou tremendo pelo convés, bateu num turco e foi para junto de um dos pilares da amurada.

      - O navio está a subir e a descer - afirmou Jerry.

      - Apenas a descer - explicou o pai. Olhou para a ponte e sorriu. - É por isso que ele está tão irritado. Queres ir lá acima e perguntar ao teu amigo o que se passa?

      Estava a falar comigo. Abanei a cabeça. Não me atrevia a enfrentar o capitão depois do que ele dissera ao pai, a respeito da minha subida aos ovéns. O capitão não compreendia que aquilo era um jogo a que brincávamos com frequência. Se o tivesse feito melhor, o pai não teria sido apanhado e não lhe gritariam.

      - O Charlie não quer ir perguntar ao capitão - prosseguiu. - Então, e vocês? Querem ir lá acima e ouvir o que ele tem para dizer?

      - Quero perguntar-te a ti - disse Clover.

      - Boa menina!

      A mãe apareceu no convés com o seu impermeável amarelo, agarrada à amurada.

      - Um dos homens acabou de me dizer que vem aí uma tempestade. É melhor irem para dentro, o mar já está bravo - declarou, e depois olhou para mim. - Charlie, estás coberto de óleo!

      - Esteve a trepar aos ovéns, e fui eu que o mandei. Desceu por ordem do capitão.

      Olhou para o pai com um ar de impotência e uma expressão de verdadeira agonia. Pensei que ia começar a chorar.

      - Não te vires contra mim, mãe.

      - Leva-os para dentro - respondeu.

      - O problema não é a tempestade - disse o pai. - O problema é o navio. Suponho que o capitão isolou o porão, depois de cheio de água.

      Não conseguiu bombeá-la. Quanto pesam cinco litros de água, April?

      - Cinco quilos - guinchou April, e Clover fez uma careta amuada.

      - Era o que eu ia dizer.

      - Com o peso de um compartimento do porão cheio de água e com mar agitado, parte da carga deve ter mudado de posição. Se a bomba de bombordo está avariada, não pode contrabalançar esse desequilíbrio enchendo ou vazando os tanques de lastro. No fundo, trata-se de um problema de bombas. Vejo que devemos estar com uma inclinação de cerca de vinte graus. Estão a ver o convés? É a subir! - O pai olhou para mim. - Que grande capitão que ele é! Nem consegue manter o navio direito!

      Os Spellgood encontravam-se de joelhos perto da plataforma do guin­cho que lhes servia de igreja ao ar livre. Usavam capuzes bicudos para a chuva e formavam uma fileira que parecia uma vedação de paus terminados em bico.

      - Venham para aqui, irmãos e irmãs! - gritou o Reverendo Spellgood. Tinha o cabelo molhado e uma madeixa pegada ao nariz. - Rezem um pouco connosco. Rezem para que as águas se acalmem.

      - Isto ainda não é nada - afirmou o pai. - Vai ser muito pior. Tão para Sul? Provavelmente é um tufão que se calhar até já tem nome, um nome como Mabble ou Jimmy.

      - Então, reze pelo tufão - retorquiu o Reverendo Spellgood. – As orações são a resposta.

      O pai grasnou para ele, disse-lhe que era melhor fazer qualquer coisa prática e que o navio estava vinte graus inclinado e que não se endireitava.

      - As orações são práticas! As orações são um selo de correio aéreo na nossa carta de amor para Jesus! .

      No entanto, o pai continuou a resmungar e empurrou-nos para a porta do camarote, dizendo:

      - Gurney é um homem assustado. A sua Bíblia Blue-Jeans tem um rasgão no fundo das calças. Como não sabe o que se passa reza como nunca! Eu sei o que se passa, o porão está cheio, a carga deslocou-se, o navio inclinou-se para bombordo. É um problema que pode ser resolvido, se se souber como. Não é nada que precise de orações. Mas... não sou eu quem manda aqui, ouviram o que o homem disse. Sou um passageiro e faço contas de continuar a jogar um gin rummy(1) até que a sineta toque para o jantar... a não ser que também esteja avariada!

      Parecia muito contente consigo próprio por ter descoberto o que estava mal no navio. Nas horas que decorreram até ao jantar, foi o único membro da família que não ficou verde. Até chegou a sugerir um jogo de pingue-pongue, mas a mesa estava tão inclinada que era impossível.

      Durante o jantar dessa noite, depois do hino de acção de graças que eu já sabia de cor, o Reverendo Spellgood fez um discurso. Ficou de pé todo torto como um homem com dores nas costas, por causa da inclinação do navio. Apesar de estar virado para a família e de se dirigir a ela, fê-lo em voz muito alta. Percebi que queria que toda a gente o ouvisse.

      Eis o que ele disse:

 

(1) Variedade de jogo de cartas. (N. do E.)

 

      - Uma vez, houve uma tempestade no mar e os passageiros de um navio apanhado por essa assustadora tempestade ficaram tão enjoados que deitaram fora quase todo o guisado. Rebolavam pelo chão como porcos, gritando e chorando. A tempestade enraivecida durou todo o dia e já pensavam que a morte lhes ia fazer uma visita. Então, uma dessas pessoas enjoadas viu um rapazinho que não o estava e perguntou­-lhe: «Rapaz, por que é que não estás enjoado quando todos os outros vomitam as tripas e o mar está tão mau?» O rapaz levantou-se e respondeu de um modo muito simples e inocente: «O meu pai é o capitão». Aquele rapaz acreditava, aquele rapaz confiava, era diferente de todos os outros que vomitavam e cuspiam. Os outros rebolavam pelo chão, sentindo-se miseráveis, gemendo e duvidando, doentes como cães, enquanto o rapaz andava feliz como um gafanhoto. O rapaz tinha no coração algo de grande valor. Tinha a fé. «O meu pai é o capitão.» Era assim que procediam os cristãos - concluiu Spellgood, com as palavras a saírem aos safanões, a cara verde, agarrando-se à cadeira, e indo-se, pouco depois, embora, creio que para vomitar, pois já nessa altura a sopa saltara para fora dos pratos de toda a gente e a sala de jantar estava silenciosa, excepto quanto ao som da louça a chocalhar.

      - É uma bonita história - disse o pai. - Mas tu vomitaste, Charlie, portanto, creio que não tens confiança no capitão... Ah, olha quem aí vem.

      Era o capitão Smalls. Parecia irritado, como se tivesse entrado onde não queria, e nem sequer se sentou. O Reverendo Spellgood entrou logo atrás, muito sorrateiro, e olhou com tristeza para a comida.

      O capitão fez um pequeno discurso. Disse que já devíamos ter notado que o tempo mudara. Acabaríamos por ultrapassá-lo e esperava que ninguém fosse suficientemente louco para ir para o convés, e muito menos para trepar aos cabos. Aqui, virou os olhos de peixe para o pai. Sim, continuou, a tempestade deslocava-se para nordeste e o navio avançava para sudoeste ao longo do caminho da tempestade. Se andás­semos depressa, poderíamos ultrapassá-la antes que se tornasse muito pior. Se andássemos devagar, seríamos apanhados. O mau tempo não tinha nada de invulgar mas era preciso ter o bom-senso de tomar algumas precauções, tal como permanecer longe dos cabos e não fazer outras asneiras no convés. Todas as garrafas de vidro e outros objectos soltos deviam ir para dentro dos armários. Terminou, dizendo:

      - Como sabem, tenho tanto controle sobre o tempo como um peixe. Ficou surpreendido quando começámos às gargalhadas, porque assim que acabou de dizer aquela frase, ficou com a cara ainda mais parecida com um peixe e abriu e fechou a boca como um cachucho.

      O Sr. Bummick disse-lhe que guardaria as garrafas e explicou que se tratava apenas de garrafas com tónicos para o cabelo, frascos de geleia e mais nada.

      - Eu esvaziarei a minha - afirmou o pai. - Mas, entretanto, que se passa com o navio? Tem controle sobre isso, não tem?

      Na sala, todos os olhos se deslocaram do pai para o capitão.

      - O navio está sob controle, Sr. Fox - respondeu o capitão. Agora as atenções estavam voltadas para o pai. Virou-se para nós e pediu:

      - Preciso de um objecto redondo.

      Levou a mão à cara de Jerry. Fazendo um movimento casual, o pai fingiu extrair uma bola de pingue-pongue da boca do Jerry. Os garotos Spellgood ficaram espantados, o Sr. Bummick deixou pender a língua de admiração. No entanto, eu já antes vira aquelas habilidades, os truques com as cartas, o anel que desaparecia e a maneira como ganhava às cartas. O pai, que proibira toda a espécie de entretenimentos, tinha de nos entreter ele próprio.

      - Obrigado, Jerry - disse. - Voltando à vaca fria, capitão, como é que me explica isto?

      Colocou a bola de plástico em cima da mesa. Lá foi ela, poque-poque­-poque por entre os pratos da sopa e por cima do tampo, puca-puca-puca pelo pavimento, pipiti-pipiti-pipiti-pip-pip-pip por entre as pernas do capitão, e poque de encontro à parede perto dos Bummick, onde ficou parada.

      - Alguém pode partir uma perna se a pisar e escorregar - afirmou o capitão. - Pode ficar aleijado para o resto da vida.

      - No sítio onde está, aquela bola de pingue-pongue não faz mal a ninguém... e não pode de lá sair. Porquê? Porque o seu navio está com uma inclinação de vinte graus... ou mais. É por causa de um compartimento do porão, cheio de água? A carga deslocou-se? A bomba deixou de funcionar? Não consegue encher os tanques de lastro para o equilibrar? Não sei. Estou apenas a pensar em voz alta. Mas se está a controlar o navio, por que é que não o mantém direito sobre a quilha? Temos andado a subir o declive do convés durante toda a tarde, e se alguém acabar por partir uma perna, capitão, não vai ser por causa da bola de pingue-pongue. Não senhor, vai ser por ter escorregado no convés todo inclinado. Gostava de saber qual é a situação legal se eu ficar paralisado por causa das suas... técnicas de navegação.

      Em vez de olhar para a nossa, o capitão olhou para as outras mesas.

      - Vai ficar direito - afirmou o capitão. - Tenho dois homens a tratar disso.

      - Ora! - retorquiu o pai. - Está tão inclinado que o risco do meu cabelo apareceu do lado errado! Está a fazer com que os Spellgood cantem desafinados. O Reverendo Spellgood começa as suas orações pelo fim, pelo «Amém!». Os meus garotos não conseguem engolir e o sangue sobe-lhes à cabeça quando se sentam! Tão inclinado que a minha mulher coçou uma coxa a pensar que coçava a cabeça!

      O Sr. Bummick levou as mãos às orelhas e riu-se tanto que acabou por se engasgar e tossir.

      - Olha, ele pensa que estou a brincar - prosseguiu o pai. – Estou apenas a dizer a verdade. Tenho de fazer tudo de cabeça para baixo... ou não resulta.    Sinto-me como um astronauta. O meu estômago pensa que estamos na Austrália.

      - Basta, Sr. Fox - declarou o capitão, mas o Sr. Bummick continuava a rir-se e a tossir.

      - E olhe para isto! - continuou o pai, levantando o coto do dedo. - O seu navio está tão torto que me cortei ao barbear e arranquei metade do dedo. - Muito depressa, por causa das exclamações de horror (o dedo era muito feio), acrescentou: - Estava só a brincar.

      O capitão virou as costas ao pai e afirmou:

      - Não se preocupem, temos tudo sob controle.

      Encaminhou-se para a porta. A maneira como andava comprovava o ponto de vista do pai. Um dos ombros ia mais alto do que outro. - Eu não estou controlado, capitão - disse o pai.

      - Posso fazer com que fique e não se possa mexer nem uma polegada, Sr. Fox.

      - Muito obrigado, capitão. Tenho estado a examinar a inclinação do seu navio e as minhas observações levam-me a concluir que é cada vez maior.

      - Como assim?

      - Oh, porque o centro de resistência lateral do casco, está mais perto da proa do que o centro de gravidade. Está a dar guinadas para o lado, ainda não deu por isso? Não creio que tenhamos grande sorte se apanharmos um tempo realmente mau...

      Parou de falar no preciso momento em que uma onda atingiu o navio por bombordo, atirando a sala de jantar para o lado, despejando mais sopa dos pratos e obrigando o capitão a cambalear e a agarrar-se à porta para não cair.

      - Aí tem uma amostra - insistiu o pai. - Olhe, capitão, não é altura para orgulhos. Sabemos que este mundo é imperfeito. A inata estupidez dos objectos inanimados... não é assim? Creio que Deus está a tentar dizer-nos que nos ajudará, se nos ajudarmos a nós mesmos. Não serve de nada dizer-nos: «Não se preocupem», porque estamos nas Caraíbas e é aqui, corrija-me se eu não tiver razão, que as pequenas tempestades se transformam em tremendos furacões. Aquele barulho que estamos a ouvir não é o de um jacto Jumbo a passar pela vigia... é o vento.

      - Está a atrasar o jantar, meu amigo - disse o capitão.

      - Bolas! - exclamou o pai. Nunca o tinha ouvido dizer «bolas!» ­

      Ninguém o vai manter na barriga o tempo suficiente para que isso faça diferença. Tal como estava a dizer... penso que o navio está adernado. Terei razão?

      - É um pequeno problema de distribuição do peso.

      - A bola de pingue-pongue ainda não se mexeu, portanto, chamemos­-lhe inclinação.

      - Endireitaremos a carga.

      - Portanto, admite que ela se deslocou.

      - É um pequeno problema.

      A chuva puxada a vento martelou no vidro da vigia como borrifos numa chapa de grelhados.

      - Então ainda bem - retorquiu o pai -, porque tenho uma pequena solução. Calculo que se trata de um problema com uma bomba e que Um dos compartimentos do porão está cheio com algumas toneladas de corrente do Golfo. Portanto, não tem maneira de redistribuir o peso, capitão. Mas sabe, creio que o posso ajudar.

      - Duvido.

      - Tenho a certeza. Gostaria de participar. E se eu conseguir endireitar este navio, se o senhor não ficar contente com o meu trabalho, pode deixar-me, e a toda a minha família, no porto mais próximo.

      - Pode ser Cuba - disse o capitão colocando a mão por cima da boca, talvez para evitar o sorriso.

      - A perspectiva deve chegar para o tentar - continuou o pai.

      O capitão ficou silencioso. Na vigia, a chuva e o vento estalavam como paus a arder. Por fim, olhou para o pai mas dirigiu-se aos outros.

      - Os senhores são testemunhas. Se este homem me fizer perder o meu tempo, pagará por isso.

      - Não temos nada a perder.

      - Aqui, o senhor e a sua família são os únicos com algo a perder.

      Que Deus o ajude!

      - É tudo boa gente.

      - Sr. Fox, estamos de acordo. Venha ter comigo depois do jantar e dar-lhe-ei uma oportunidade. É melhor que coma bem porque amanhã poderá achar-se numa terra estranha, onde ao pequeno-almoço comem pessoas como o senhor.

      O capitão Smalls saiu e bateu com a porta. Fez-se um silêncio e ninguém sabia para onde olhar.

      - Eu não vos disse que este navio estava de cabeça para baixo? - perguntou o pai. - Todo o alfabeto da minha sopa de letras está ao contrário!

      Ninguém se riu. A tempestade piorara e agora todos sabiam por que é que o navio adernava. O resto da refeição foi servido muito depressa, por criados cambaleantes que seguravam as bandejas com as duas mãos, em vez de as segurarem com as pontas dos dedos.

      A discussão que se seguiu, que ouvi da casa de banho entre os camarotes, foi a meu respeito. O pai queria que eu fosse com ele. «É educativo», afirmou, mas a mãe disse que não. Não queria que eu ficasse a pé a metade da noite, nem que andasse a bater com a cabeça na casa das máquinas. O pai declarou que eu sabia mais sobre a reparação de bombas do que qualquer daqueles selvagens, mas não falava a sério, o que queria era alguém para lhe fazer companhia. Não gostava de trabalhar sozinho. Precisava de alguém que lhe escutasse os discursos.

      De qualquer modo, não lhe podia dar uma grande ajuda porque as mãos ainda me doíam de ter trepado os cabos dos ovéns.

      - Meteste-nos num sarilho, Allie - disse a mãe, falando-lhe no mesmo tom com que falaria com Clover -, portanto, agora trata de nos livrar dele.

      - O capitão é que está metido num sarilho - respondeu, confiante como sempre. - Num caso normal, nunca me ofereceria para o ajudar. Preferia ficar a ver como é que ele se safava. No entanto, estou preocupado com a segurança dos passageiros e penso que é tempo de este navio começar a andar a direito e depressa. Aqui está a minha caixa de ferramentas. Onde que é está o boné de basebol? Não sou capaz de fazer nada sem o boné...

      Antes de se ir embora - e estava com o seu ar habitual, como quando ia trabalhar para a quinta do Polski -, meteu a cabeça no nosso camarote e perguntou-me:

      - Queres algum recado para o teu amigo?

      Sem esperar pela resposta, enfiou pelo corredor, batendo com a caixa de ferramentas nas paredes, cada vez que o navio balançava.

      Foi então que percebi que fazia tudo aquilo apenas por minha causa, porque o capitão me convidara para a ponte, porque eu admirara o sonar, e porque o capitão gritara com ele na minha frente e dissera: «Você não está bom da cabeça!» Já conseguira provar que era capaz de fazer mais citações do que Gurney Spellgood, que podia muito bem com o Sr. Bummick... mas agora queria demonstrar que era melhor do que o capitão.

      Não tinha dúvidas de que o conseguiria. Nunca o vira falhar. As pessoas, por vezes, não entendiam o pai, porque fazia caretas quando brincava e ria-se quando falava a sério. Também nos dava informações que não faziam falta nenhuma, como: «Isto são os turcos.» Mas aqueles de nós que o conheciam, nunca duvidavam dele. Se havia uma coisa que o pai não sabia, era isto: que não precisava de andar sempre a exibir-se à nossa frente. Na altura, pensei que o pai gostava de correr riscos. No entanto, qual é o risco para um homem forte? Não receava nada, portanto, estávamos a salvo. Eu era o rapazinho da história do Reverendo Spellgood... confiava no pai. Não tinha medo.

      O navio recebeu o choque das ondas e do vento durante toda a noite, e o som era como o ressoar de pedras de sílex de encontro ao casco. Bati com a cabeça na estrutura do meu beliche, e Clover e April choraram. Acordaram-me para me dizerem que não conseguiam dormir. Escutei o barulho da água. Por vezes parecia que chocalhava no pavimento e avançava pelos corredores, e que estávamos debaixo de água. Afoguei-me durante toda a noite, em sonhos. A manhã surgiu escura, o navio ainda arfava e balouçava. Porém, agora já não se esforçava, os movimentos eram fáceis, não aquelas descidas súbitas com as ondas todas a baterem de um lado e com os conveses inclinados. Era um movimento desprendido e livre, uma deslocação para cima e para baixo que fazia com que os meus lápis rebolassem, para um lado e para o outro, em cima da mesa do camarote.

      O pai não apareceu ao pequeno-almoço. O Reverendo Spellgood levou a família a cantar o hino habitual e os Bummick comeram em silêncio. A mãe partiu o ovo escalfado com a colher como se lhe quisesse provocar uma concussão.

      - Ao menos o pai não nos obriga a cantar - declarou.

      Mas o pai apareceu a cantar. A porta da sala de jantar abriu-se e o pai entrou, ainda com o boné de basebol. Tinha o rosto pálido e por barbear, e o nariz sujo de óleo. Cantava: «Debaixo do bam,/Debaixo do bu;/ Debaixo da árvore do bambu!»

      - Amém, irmão - disse o Reverendo Spellgood.

      - Pode dizer que foi o poder da oração, reverendo... mas eu diria que se tratou de hidrostática. Eh, era capaz de comer um cavalo!

      Disse-nos o que tinha feito. Trabalhara até à meia-noite na reparação da bomba. «As buchas estavam gastas», explicou. A seguir, haviam esvaziado a água do mar do porão, mas isso só corrigira um pouco da inclinação. Dirigindo a tripulação («Foi divertido, foi como estar de volta ao Polski a trabalhar com aqueles selvagens»), tinham esvaziado um tanque de balastro e, a seguir, com a ajuda de guinchos, colocaram de novo nos seus lugares os contentores da carga. «Um deles tinha um Toyota lá dentro, um enorme e estúpido jipão, um daqueles pesadelos japoneses.» O trabalho só acabara de madrugada, mas o navio ganhara velocidade e endireitara-se.

      - O teu amigo capitão foi para a cama por volta das quatro, quando quase tudo estava arrumado. - O pai piscou-me um olho. - Não aguentou a tensão. Que te disse eu da coragem das quatro da manhã?

      O criado trouxe-lhe café e ovos. O pai falou-lhe em espanhol. O homem escutava com os dentes a baterem.

      - Disse-lhe que já não tem que se preocupar - explicou-nos. - Que tratei de tudo lá em baixo. A partir de agora teremos uma navegação sem problemas. Bom, vou-me deitar. Sorri, mãe.

      - Estava a pensar no pobre do capitão. Sabes, tu consegues ser muito irritante.

      O pai colocou os cotovelos em cima da mesa e sussurrou:

      - Foi maravilhoso ver a maneira como os homens seguiam as minhas ordens. Assim que a bomba começou a funcionar, ficaram todos do meu lado. Mãe - acrescentou, e o seu rosto branco assustou-me -, eu podia ter iniciado um motim lá em baixo!

      Com o pai a dormir, o navio era mais sossegado. Durante o dia as nuvens diminuíram, a tempestade amainou e a voz do Reverendo Spell­good e os seus hinos eram agora mais fortes do que o som do vento nos ovéns. Quando o Sol surgiu, o ambiente tornou-se tropical e fez desaparecer toda a humidade do navio. O pai apareceu ao fim da tarde, barbeado e limpo, e foi dar um passeio pelo convés. Tanto os Spellgood como os Bummick lhe perguntaram quando chegaríamos ao nosso destino. O pai discutiu com eles as várias possibilidades. Rebolava-se todo nos louvores daquela gente, tratava os tripulantes pelos nomes e brincava com eles em espanhol.

      O capitão Smalls permaneceu na ponte. Não convidou ninguém para jantar com ele. Na verdade, nunca mais o vimos.

      - Está apenas envergonhado - disse o pai. - É natural. Suponho que pensa que tive uma boa educação na universidade.

      Emily Spellgood seguia-me de convés para convés. Deu-me uma linha de pesca que roubara a um dos irmãos. O pai conseguira impressionar até aquela garota gabarola. Passei o resto do tempo a pescar com ela atrás de mim. Apanhei alguns peixes achatados e cheios de espinhas, um que tinha barbatanas rígidas e direitas como asas e um outro tão vermelho como uma flor.

      - Tenho de ir à casa de banho - disse Emily.

      Fiquei todo encarnado. Fingi que havia qualquer coisa que não estava bem com os meus apetrechos de pesca e entretive-me a mexericar-lhes.

      - Tens alguma namorada, Charlie?

      Disse-lhe que não.

      - Então, eu podia ser a tua namorada.

      Tinha um ar tão triste, tão simples e solitário. Era uns centímetros mais alta do que eu. Disse-lhe que estava bem mas que tinha de ser segredo.

      Tocou-me numa perna e apertou-a. Era a primeira vez que uma rapariga me tocava e a perna deu um salto com tanta força que cheguei a pensar que se ia soltar da articulação. Emily abriu muito os olhos e disse-me, num murmúrio:

      - Agora vou para a casa de banho a pensar em ti.

      Fugiu a correr e fiquei à espera. Pensei que voltara a ter a inflamação provocada pela hera venenosa, tantas eram as comichões. Mal conseguia pescar, porque não via bem. Quando voltei a vê-la, estava a rezar junto da plataforma do guincho.

      Isto foi no dia em que chegámos à cidade de La Ceiba. O mar estava liso e verde, e a terra para lá dele era uma cordilheira de montanhas, negras e azuis, com nuvens penduradas nelas como rolos de fumo. Navegámos para o cais e as nuvens afundaram-se mais nas montanhas e nas copas das árvores, revelando uma série de picos, alguns como espinhos dorsais de monstruosos lagartos, outros como dentes molares.

 

                       A CASA DO GELO DE JERÓNIMO

 

      Sete pelicanos de penas escuras e pintalgadas voaram por cima do mar verde, em formação, como uma esquadrilha de aviões em voo rasante.

      - Odeio aqueles pássaros - disse o pai. Havia também gaivotas e abutres. - Há qualquer coisa nas costas que atrai todos os comedores de carne morta - acrescentou.

      Via-se uma vaca na praia, vagões de comboio no cais, e a cidade de La Ceiba, muito baixa, exibia um ar amarelado e apinhado. Centenas de homens tinham ido ao encontro do navio, não para nos darem as boas-vindas, mas para discutirem uns com os outros. Tudo tinha um ar atrasado.

      - Vocês, garotos, podem ir andando. Já têm as vossas mochilas. No entanto, estávamos tão alarmados com o barulho e o calor que esperámos que se despachasse do funcionário dos passaportes e carregasse as ferramentas e as sacas de sementes na carreta de um negro. A seguir fomos atrás dele com a mãe, que parecia suster a respiração.

      Os Spellgood, sempre a cantar hinos, foram recebidos por uma trupe de meninas de coro negras, de vestidos cor-de-rosa e chapéus de palha inclinados para trás. Os Bummick foram abraçados por pessoas que se pareciam com os Bummick, um rapaz, uma mulher e dois velhos vestidos de caqui. Havia barcos de madeira amarrados ao cais, carregando caixotes de sopas desidratadas e sacas de arroz. Tinham coberturas de lona em vez de cabinas, e nomes como Little Haddy, Lucy e Island Queen.

      Nunca vira tanta gente junta sem fazer nada, permanecendo por ali, sentados ou de pé, chamando nomes uns aos outros. No ponto onde o cais se juntava à rua principal, vendiam cestos de frutas e bolas de gordura envoltas em folhas verdes. Estava lá uma negra muito gorda, com um vestido rasgado e uma catatua branca empoleirada num ombro. Usava um par de chinelos de quarto muito sujos e vendia laranjas. O pai comprou seis laranjas e perguntou-nos:

      - Quanto é que custavam na loja de Springfield?

      - Trinta e nove cêntimos cada uma - responde Clover.

      - E eu acabei de comprar seis por um quarto de dólar! Penso que viemos para o sítio apropriado!

      O pai meteu-se no meio da multidão e a mãe comentou:

      - Adoro-o quando está assim tão feliz! Olhem para ele! Apressámo-nos em direcção à praia e quando o alcançámos ouvimo-lo dizer:

      - Não estou a ver ninguém a invadir esta cidade. Não consigo imaginar barcaças de desembarque nesta praia. Tu consegues, mãe?

      - Para que é que alguém se daria a esse incómodo?

      - Era exactamente o que eu queria dizer.

      Declarou que gostava de andar na praia e sentir a areia entre os dedos dos pés. O negro ficou na estrada, com os nossos pertences na carreta. Tinha ar de quem estava habituado a esperar. Passámos pela frente de um edifício baixo, virado para o mar. Na sua frente e na praia, um rapaz com uma espingarda observava dois outros rapazes que abriam uma vala profunda na areia. O pai disse que os cavadores eram presos e que o edifício baixo era a Prisão Central.

      - Nos Estados Unidos, passarões como estes estão a olhar para a televisão, portanto, não me digam que abrir buracos é uma tortura. Estão apenas a enterrar os desgostos.

      A vaca avançava lentamente em direcção a umas barracas, com os cascos a enterrarem-se na areia castanha. Nunca tinha visto uma vaca tão magrizela... e que estava ela a fazer na praia? Ali perto, um cão roía um crânio que me parecia ser de outro cão. O mar era acastanhado, as ondas preguiçosas lançavam garrafas de plástico, farrapos e cascas de cocos para a areia escura. Quando me encontrara na amurada do Unicorn, vira aquela praia de um branco encadeante, mas ali perto dos prisioneiros que cavavam, da vaca, do cão que rosnava para o crânio, a impressão era diferente. Tudo aquilo e o ar empestado davam-lhe a atmosfera de uma incrustada e enlouquecida costa de selva. A costa de Mosquito, chamara-lhe o pai... e era um bom nome. Gente descalça observava-nos, mas ninguém nadava na água. Um homem, na parte baixa da praia, atirou uma rede redonda e mole para dentro de água. A seguir puxou-a para fora, sacudiu-a para que os pesos caíssem e segurou-a com os dentes enquanto a desembaraçava. Atirou-a outra vez. Vi-o fazer isto oito vezes. Não apanhou um único peixe. Aquela actividade era mais uma lavagem da rede do que uma pescaria. Ouvíamos gente a gritar no cais e o barulho metálico dos guindastes do navio. O Unicorn jazia amarelecendo sob o sol-poente. Tive pena de já não nos encontrarmos nele.

      Passámos pelo homem com a rede em direcção às barracas encostadas à praia. Havia gente a viver nelas, apesar de não serem melhores do que palheiros e nem sequer servirem para galinheiros por causa das tábuas soltas, e dos telhados que tinham todo o aspecto de deixarem entrar a chuva. No entanto, havia lá gente cozinhando e dormindo, vi o lume e as redes de dormir. Por causa das barracas, era difícil caminhar na areia, pois de cada uma delas saía um rego de água negra que se estendia pela praia. Levavam lodo, espuma e coisas ainda piores, e corriam para o mar.      A praia era a lixeira e o mar o vazadouro.

      - Allie, já vi o bastante - disse a mãe.

      Quando fizemos o caminho de regresso para junto da carreta, ouvimos música. Vimos um rapaz com uma flauta, a cambalear na nossa direcção. Tocava uma gorjeante canção que lançou uma suave magia sobre a praia, agora num tom tão púrpura e azul como o céu por cima do mar. Era uma estranha música, com uma melodia gotejante, que adoçava o ar como gotas de chuva. O rapaz era uma sombra, a sua flauta não era maior do que um raminho, mas a canção era um convite para ficarmos um pouco mais de tempo na costa de Mosquito. Tinha em si uma promessa e um apelo, liquefeita como o pipilar de um papa-figos numa árvore frondosa.

      Mas o rapaz foi-se e ficaram as vozes secas na súbita escuridão. Tive medo. Estávamos tão longe de casa. O pai e a mãe caminhavam à nossa frente, de mãos dadas e murmurando. Nós, crianças, seguíamo-los e pensávamos: «E agora?»

      - Isto é tudo lixo, cheira mal, é uma porcaria. Odeio este lugar ­disse Jerry.

      - Não digas isso ao pai - aconselhei-o.

 

      Entrámos na cidade à noite, sob uma lua brilhante e cheia de manchas, e foi como um passe de mágica... os halos dos velhos candeeiros, os edifícios sólidos, as árvores acolhedoras, as ruas meio desertas e o zunzum do trânsito. Fomos para um hotel e do nosso quarto a cidade era como veludo. Imaginei que toda ela era feita de almofadas verdes, fantasmagoricamente tranquila e fresca. Sonhei com prados de relva e rebolei-me, abri os braços e voei sob uma luz amanteigada e por cima de lugares que conhecia. Era frequente conseguir voar durante os sonhos, não muito alto, mas o suficiente para que as pessoas tivessem de virar os rostos para cima para me poderem ver. Estava uma bela noite e ter chegado ao fim daquela tempestuosa viagem por mar, era como ter chegado a casa.

      Porém, de manhã, aves a que não podia dar um nome, gritaram de encontro à janela e, na escuridão do quarto empoeirado, brilhavam faixas de luz nas fendas das portadas. Abri-as e vi que a cidade como que explodira sob a luz do Sol. Uma cidade fendida, descolorida, repleta de gente que gritava por cima dos ensurdecedores apitos dos automóveis. Agora nem era mágica, nem tinha nada de familiar. Os odores e sons eram uma discussão idiota que eu não conseguiria vencer, e fazia tanto calor que até me vinha o cheiro da velha tinta do parapeito. Tinha sido enganado e odiava o que via. Fora preciso tanto tempo para chegar ali... e mesmo que partíssemos agora, precisaríamos de muitos dias para voltarmos à nossa própria casa.

      A mãe e o pai estavam noutro quarto. Nós espreitávamos pela nossa janela para aquela cidade de pequenas lojas. Havia uma igreja caiada do outro lado de um jardim de palmeiras, onde se viam homens de pé sem fazer nada. A musica de rádio na rua - a rua! - estava tão alta que o barulho parecia aquecer o ar. Recordei-me da sinistra praia, dos rapazes presos a cavarem na areia, um deles metido no buraco até aos ombros. Estava à espera de árvores, selva, tranquilidade e pássaros a cantar. O pai prometera-nos uma coisa melhor do que a que tínhamos em casa e não aquele sítio cheio de pó. Era como um pesadelo de ruínas de Verão, uma cidade destruída pela luz.

      O hotel cheirava a tapetes e à cozinha. O quarto onde se encontravam as nossas quatro camas era uma cela nua, mas numa parede havia uma fotografia colorida, provavelmente recortada de um calendário, de uma cena da Nova Inglaterra. Bosques, um lago que reflectia uma montanha, uma canoa vermelha no lago. Quem quer que fosse que a recortara e colara na parede, sabia que era mais bonita do que a cidade.

      - Parece o lago Wyola - disse Jerry.

      O pai foi acordar-nos. Soprou fumo de charuto no nosso quarto e declarou estar esfomeado.

      - Continua contente - comentou Clover.

      Quando nos aproximámos da sala de jantar do hotel para tomarmos o pequeno-almoço, ouvimos cantar um hino... Eram os Spellgood que também ali tinham ficado, cantando com as cabeças dobradas sobre os pratos da comida. A Emily parou de se coçar quando me viu. A sala de jantar daquele hotel era como a do Unicorn, com os Spellgood em duas mesas, nós na nossa e trabalhadores da companhia das frutas, iguais aos Bummick, nas outras. Todos se preparavam para o pequeno-al­moço.

      - Ah, cá está o Sr. Fox! - exclamou o Reverendo Spellgood. ­Penso que o Bom Deus sempre nos quer juntar! Se ficar aqui na área algum tempo, junte a sua família e faça-nos uma visita. Pode encontrar-nos em Guampu, fazendo o trabalho do Senhor.

      - O Senhor não me mencionou Guampu - respondeu o pai. - De qualquer modo, gostaria que Ele falasse comigo. Podia dar-lhe algumas sugestões, no caso de estar a planear outros mundos. Não há duvida que criou aqui uma grande confusão.

      - Meu amigo - disse o Reverendo Spellgood com um ar triste -, há muito trabalho a fazer.

      - Já tinha dado por isso.

      - Nunca chegou a dizer-me qual a sua intenção ao vir para aqui ­prosseguiu o Reverendo Spellgood.

      - Tem toda a razão, Gurney. Nunca lho disse.

      O pai sentou-se depois daquela resposta e tomamos o nosso pequeno-almoço, feijões esmagados que pareciam barro vermelho, um pequeno quadrado de um húmido queijo de cabra e um montão de tortilhas.

      - Vamos embora daqui - afirmou o pai. - Da cidade? - inquiriu a mãe.

      - Deste hotel. Metade das pessoas que se encontram na sala está armada. Até o Gurney tem uma arma... Traz uma pistola por debaixo da camisa. Deve estar convencido que pertence ao Exército do Senhor. Já estive lá fora. Só há soldados e garotos engraxadores. Não sei quais os piores, eles ou os missionários.

      Emily Spellgood olhava para mim do outro lado da sala.

      - Não percebo por que é que temos de ficar aqui. Podíamos meter­-nos à estrada - disse a mãe.

      - Não há estradas... e é nisso que está a beleza deste país. No entanto, não somos os Robinson Suíços e não ocupamos terra ilegalmente. Vou comprar um bocado de terra, pagamento a pronto. Não quero que um desses pistoleiros me expulse, ou me assalte à mão armada. Depois disso, ficaremos sozinhos e então não me ralo que... Oh, Deus, aí vem ele outra vez!

      Era o Reverendo Spellgood, conduzindo a família para a saída da sala de jantar. Piscou o olho ao pai e pronunciou:

      - Guampu!

      Emily escapou-se por trás da minha cadeira e murmurou-me:

      - Vou à casa de banho, Charlie.

      - O Charlie está a corar! - gritou Jerry.

      Mudámo-nos nesse mesmo dia, sob uma chuva torrencial, para outro hotel. Chamava-se «A Gardénia» e ficava na extremidade oriental de La Ceiba, numa estrada arenosa junto à praia. A chuva continuava a cair, arrancando as folhas das árvores. Caía a direito, barulhenta, espessa e cinzenta, e parava tão depressa como surgira. A seguir vinha o sol e o vapor, e regressavam os cheiros.

      O hotel era um edifício de dois andares coberto a estuque. Por baixo da pintura de um verde desbotado, viam-se as rachas das paredes. O seu comprido pátio de entrada tinha uma boa vista para o mar e para o cais, onde o Unicorn continuava atracado. O navio era a minha esperança. Por cima da superfície da água chegavam-me os sons das vozes dos homens, o estrépito das correntes e os arranques das camionetas de carga. Durante o dia éramos os únicos no hotel, mas, à noite, um pouco antes de irmos para a cama, havia mulheres que se sentavam nas cadeiras de verga do pátio, bebendo Coca-Cola. Mais tarde, havia música e gargalhadas. Do meu quarto ouvia homens, gritos e portas a bater, e, por vezes, o ruído de vidros partidos. Nunca vi essa multidão que, no entanto, me acordou muitas vezes com o barulho dos pés, com canções e gritarias. De manhã tudo estava tranquilo. A única pessoa que por ali andava era uma velha com uma vassoura, que varria o lixo para um monte e depois o levava num balde.

      O gerente do hotel era um italiano chamado Tosco. Usava uma pulseira de prata e beliscava-nos a cara com demasiada força. Outrora, vivera em Nova Iorque. Dizia que fora um inferno.

      - Entendo o que quer dizer - comentava o pai.

      Tosco gostava das Honduras. Era agradável e barata. Ali podia-se fazer o que se quisesse, afirmava.

      - E que tal é o presidente? - perguntou o pai.

      - Igual ao Mussolini - respondeu Tosco.

      O nome escureceu o rosto do pai. Com essa sombra ainda estampada na cara, continuou:

      - E como era o Mussolini?

      - Duro. Forte. Não era para brincadeiras. - Fechou um punho e agitou-o por debaixo do queixo do pai. - Era assim.

      - Então é melhor que não se meta no meu caminho.

      O pai passava parte dos dias na cidade. Enquanto lá estava, a mãe dava-nos lições na praia, sob um céu de trovoada. Era como brincar. Escrevia na areia húmida com um pauzinho, dando-nos problemas de aritmética para resolver, ou palavras para soletrar. Ensinou-nos os dife­rentes tipos de formações nebulosas. Se por acaso encontrávamos um peixe morto, desmanchava-o e dizia-nos os nomes de cada uma das partes. Havia flores a crescer por debaixo das palmeiras. Apanhava-as e ensinava-nos os nomes das partes da flor. Em Hatfield estudávamos dentro de casa para evitar o inspector escolar, mas eu preferia aquelas lições na rua, em que estudávamos o que descobríssemos na praia.

      A mãe era diferente do pai. O pai fazia-nos prelecções mas ela nunca botava discurso. Quando ele por ali andava, a mãe dava-lhe toda a sua atenção, mas logo que ficava sozinha, essa atenção era nossa. Respondia a todas as perguntas, mesmo às mais estúpidas, como, por exemplo: «De onde é que vem a areia?» ou «Como é que os peixes respiram?».

      Quando regressávamos ao hotel, em geral, o pai já lá estava no pátio, com alguém da cidade.

      - Este é o senhor Haddy - dizia. - Um velho marinheiro destas costas.

      O homem de pele de ameixa seca levantava-se com os ossos a ranger e saudava-nos. Não havia nada que Juanita Shumbo não soubesse a propósito da criação de perus. Era uma velha negra de olhos vermelhos. O Sr. Sanchez passara a vida a subir e descer o Patuca. Era pequenino e acastanhado, com um bigode curvo. O Sr. Diego falava zambu como um nativo, dizia o pai, fazendo com que o homem dissesse uma saudação em zambu. Pareceu-me um espirro. Havia muitos outros e todos eles escutavam o pai com toda a atenção. Mostravam-se respeitosos e pareciam nervosos, sentados nas cadeiras ao abrigo do sol, olhando-o com admi­ração.

      - O pai é maravilhoso para os estranhos - dizia a mãe.

      Os estranhos deixavam-me inquieto pois não tinha uma ideia clara a respeito dos planos do pai ou sobre qual o papel daquela gente.

      Desejava ter a coragem do pai. Como não a tinha, agarrava-me a ele ou à mãe, porque tudo o que eu conhecera e que fora confortável me havia sido tirado. Os outros garotos eram demasiado jovens para com­preenderem até que ponto nos encontrávamos longe de casa. Excepto quando ao Unicorn, ainda no cais, o passado fora apagado.

      Uma tarde, quando voltávamos da praia, vimos Tosco junto ao hotel a conversar com o seu Chevrolet. Fazia-lhe perguntas e chamava-lhe nomes feios. Estava de pé, junto à grelha do radiador, gritando-lhe, batendo-lhe e acabando por fazê-lo estremecer com um pontapé.

      - É estúpido - disse, sacudindo o pé por causa das dores. – Não quer andar. Odeia-me.

      - O meu marido arranja-o.

      Nessa noite e com um dos seus novos amigos - o tal Sr. Haddy -, o pai arranjou o carro. Afirmou que as máquinas tinham corpo mas não possuíam cérebro. O Sr. Haddy ficou a olhá-lo como se o pai tivesse dito qualquer coisa muito sábia. Tosco ficou tão contente com o trabalho de reparação que declarou que podíamos servir-nos do carro sempre que quiséssemos. No dia seguinte, a mãe disse-lhe que queria ir dar uma volta connosco, enquanto o pai estava ocupado na cidade. Íamos a Tela?, perguntou Tosco. Não, respondeu a mãe, íamos para leste, em direcção a Trujillo. Tosco soltou uma gargalhada.

      - Estarão de regresso bem depressa - afirmou, entregando-lhe as chaves.

      - Qual a estrada que devo tomar?

      - Só há uma - foi a resposta.

      Atravessámos a cidade e pude então ver que ela era ao mesmo tempo mais rica e mais pobre do que pensava. Havia capoeiras como as da praia, mas também havia grandes casas com relvados. As melhores estavam rodeadas por vedações. Para mim, isso era o mais estranho porque o vale do Connecticut era uma terra sem vedações, excepto para as vacas e cavalos. Fez-me lembrar o que o capitão Smalls dissera, a respeito de as Honduras serem um jardim zoológico com as pessoas dentro das jaulas e os animais do lado de fora. Até àquele momento, estávamos de fora.

      Daquela rua da cidade fomos dar à estrada principal e virámos para a esquerda. Avançámos menos de seiscentos metros e a estrada começou a ficar cheia de raízes de árvores e de pedras partidas. Na nossa frente apareceu uma ponte por cima de um rio. Era uma ponte de caminho-de-ferro, mas não havia outra. Os carros atravessavam-na um de cada vez. A mãe esperou pela sua vez e depois guiou por cima das travessas e dos carris daquela ponte metálica. Por debaixo de nós havia mulheres a lavarem a roupa no rio de águas da cor do cacau.

      Para lá da ponte, a estrada desaparecia, passava a ser um largo mar de lama que passava por debaixo da porta do carro, depois transformava-se numa picada estreita e, por fim, não era mais do que o leito seco de um ribeiro onde os pedregulhos eram mais altos que o nosso pára-choques.

      - Chegámos ao fim da linha - disse a mãe.

      Estávamos a quilómetro e meio do hotel.

      Experimentámos outras estradas. Uma acabava na praia, outra na margem do rio - o mesmo rio da primeira vez - e uma terceira transformou­-se numa pedreira, que fazia parte de uma montanha. No fim de duas dessas estradas, cães escanzelados saltaram às nossas janelas, a ladrar. Era uma cidade de becos sem saída.

      - Não vou desistir assim tão facilmente - afirmou a mãe.

      Seguimos em direcção a Tela, na estrada para Oeste. As faldas das montanhas estavam cobertas por elegantes palmeiras, e, por baixo delas, onde a terra era plana, havia plantações de bananeiras e de toranjas, e campos de ananases. A mãe parou o carro para que pudéssemos estudar a maneira como as bananas cresciam, mas quando desembarcámos vimos uma congregação de abutres entre as ervas altas da beira da estrada. Eram carecas e vigiavam um cão que mastigava as costelas rosadas de uma vaca morta. O cão iniciara o repasto por debaixo de uma prega de pele. A vaca devia ter sido atropelada por um carro, disse a mãe, e alguém empurrara a carcaça para a berma. De vez em quando um abutre saltava do meio do bando - havia vinte e três na congregação - e atirava-se a um bocado de carne pendente e tentava arrancá-lo. No entanto, o cão, rosnando e mastigando, mantinha os abutres à distância. Durante a maior parte do tempo, aquelas aves de aspecto horrível olhavam-no como caveiras de bruxas. As asas pareciam saias a arrastar.

      Mais adiante e na mesma estrada, deparámos com um cão morto. Cinco abutres abriam-lhe um buraco na barriga. Agitaram as asas e saltaram para o lado, para deixar passar o carro, e voltaram logo para o cadáver do cão. Clover e April disseram que estavam a ficar mal dispostas e perguntaram se não podíamos voltar para trás. Foi o que fizemos, sem chegar a ver Tela.

      Então aquilo eram as Honduras... Cães mortos e abutres, uma praia porca e capoeiras, estradas que não levavam a lado nenhum. A vista de bordo do navio parecera uma gravura, mas agora estávamos dentro dela. No meio de tudo aquilo, as laranjas não tinham significado e o sol tornava as coisas ainda piores. Fora por causa de um sítio assim que o pai nos arrastara para fora de casa?

      De volta ao hotel, encontrámos o pai sentado no pátio com um outro homem, um que eu nunca vira. Ao ver a mãe, o homem levantou-se com pouca firmeza nas pernas.       Quando falou, saltaram-lhe perdigotos da boca.

      - Estou a conversar com o seu marido - declarou. - É louco!

      - Louco como uma raposa - respondeu a mãe.

      Ouvimos o estalo de um trovão e o martelar da chuva na cobertura. Começara a cair de repente e a direito, fazendo marcas na areia.

      ­- Esta é a mulher mais bonita que vi em toda a minha vida afirmou o homem.

      - O senhor não é muito velho. Talvez seja essa a explicação retorquiu a mãe afastando-se e levando os miúdos consigo.

      - Fica aqui comigo - disse-me o pai. - Este é o Sr. Weerwilly.

      Estamos a falar de propriedades.

      - Bom, bom - murmurou o homem.

      - Este é o meu filho mais velho, o Charlie. - O Sr. Weerwilly inclinou a cabeça para mim e continuou: - Eu sou alemão, portanto, vou chamar-te Karl. Sabes uma coisa, Karl? Este homem é louco.

      - Não - respondi-lhe, olhando para o pai, que sorria.

      - Sim! É maluco! Estou farto de lhe dizer que este país é uma porcaria. Responde-me que gosta muito dele. Sabes, Karl, esta é a última colónia do mundo e eu sou um camponês. Quantos alemães haverá aqui? Não mais do que vinte. Mas há milhares de americanos... Milhares!

      - Em Jerónimo não há - afirmou o pai.

      - Ele pensa que Jerónimo é uma maravilha. É louco. Não conhece Jerónimo. Jerónimo não é nenhuma maravilha. É melhor que La Ceiba, lá isso é verdade. Quatrocentos dólares por um acre? Aqui custaria muito mais.

      - Ouviste-o, Charlie - disse o pai, pousando os olhos no Sr. Weerwilly. - Quando a estrada lá chegar, o preço sobe. Não tenho dinheiro, sou um camponês. Tenho de vender a minha terra - Calou-se e começou a rir-se. - Mas que pode você fazer em Jerónimo?

      - Posso fazer o que quiser.

      - Então, não deve querer muita coisa.

      Odiava aquele homem, odiava a sua maneira de falar em voz muito alta. A língua grossa enchia-lhe demasiado a boca e interferia com as palavras. Agarrou-se ao meu joelho e cuspiu perdigotos das beiçolas.

      - Trabalho apenas com as minhas mãos. A companhia das frutas tem máquinas. Se preciso de limpar um bocado de terra ou algo assim, sirvo-me de uma catana. A companhia tem bulldozers. A companhia pode espalhar insecticidas de helicóptero. Eu tenho uma pequena bomba. A companhia paga demasiado aos trabalhadores, duas lempiras por dia. Que posso eu fazer? Por um cacho de bananas recebo uma lempira, apenas um dólar. Um cêntimo por uma laranja ou por uma toranja. ­

      Sorveu a cerveja e prosseguiu: - É por isso que passo fome. Pfuuu!

      - Não passa fome - disse-me o pai. - Tem o meu dinheiro no bolso.

      - É louco - declarou o Sr. Weerwilly.

      - Creio que vou lá para dentro - respondi.

      - Vai, vai, Karl - concordou o Sr. Weerwilly. - Adeus.

      - Fica aqui comigo - insistiu o pai. - Pergunta-lhe se não tem o meu dinheiro no bolso.

      Iniciei a pergunta mas o Sr. Weerwilly fez-me uma feia careta de palhaço e apertou-me o joelho.

      - Sabes por que é que eu gosto deste homem, Karl? Porque odeia a companhia... e porque não é um missionário. Além disso, sabe fazer coisas.

      - Coisas? - perguntei

      - Coisas! - confirmou o Sr. Weerwilly. - Já me disse como posso transportar a água para os meus terraços. Nem sequer os amigos me souberam dizer isso. É por isso que gosto dele... e também porque paga a pronto.

      - És testemunha, Charlie, não te esqueças.

      - Mas nós somos diferentes - prosseguiu o Sr. Weerwilly. - O senhor é um imperialista americano. Tira-me a terra. Eu sou um pobre comunista, apenas um camponês. Tenho de lha vender. Agora só me resta a casa e algumas árvores.

      O Sr. Weerwilly continuou a falar, repetindo-se constantemente, dei­tando perdigotos, bebendo cerveja e cuspindo. O tempo foi passando devagar. Por que é que o pai queria que eu ficasse ali sentado, com a chuva a cair à nossa volta?

      - ... mas sei por que é que vai levar aquela bela mulher e as crianças para Jerónimo - continuou o Sr. Weerwilly. - Porque é maluco!

      - Ouviu o que ela disse. Maluco como uma raposa.

      - E aqui pode comprar comida por alguns tostões. E usar só uma camisa. Pode arranjar uma rapariga por cinco lempiras.

      - Cuidado, Weerwilly - respondeu o pai, fazendo-lhe uma careta feroz.

      Zangado, apontou-lhe com o dedo cortado e fez com que o Sr. Weerwilly estremecesse. Suponho que o homem pensou que o coto do dedo a sair do punho fechado, fosse o cano de uma arma, porque levou as mãos à camisa.

      - Charlie, pergunta-lhe onde é que está o contrato.

      Fiz a pergunta.

      - Obrigado por me teres lembrado desta coisa - respondeu o Sr. Weerwilly tirando um sobrescrito de dentro da camisa e deixando-o cair sobre a mesa.

      O pai rasgou-o, mas eu não olhava para ele. Observava o Sr. Weerwilly. Quando abrira a camisa para tirar o envelope, passara com a mão por um coldre de couro negro preso ao peito com correias.

      - O homem está com muita pressa - comentou o sr. Weerwilly. - Parece um diploma de Harvard - disse o pai.

      - Está em espanhol.

      - Sei ler - replicou o pai.

      Não conseguia tirar os olhos do enchumaço do coldre por debaixo da camisa do Sr. Weerwilly.

      - Pensa que o vigarizei.

      O pai leu o documento com toda a atenção, franzindo a testa, avançando com o coto do dedo ao longo das linhas. A seguir declarou:

      - Foi um prazer fazer negócio consigo.

      O Sr. Weerwilly terminou a cerveja e arrotou. Levantou-se, agarrou-me pelos cabelos e torceu-me a cabeça para que me virasse com ele. Lançou-me um dos seus sorrisos feios e concluiu:

      - Talvez ele não seja assim tão maluco.

      Riu-se, tocando no enchumaço por debaixo da camisa. Depois de se ter afastado, o pai virou-se para mim.

      - Obrigado por teres ficado, Charlie. Não é um caso triste? Estava bêbado. Pensei que não me desse o papel. Podia ter-se ido embora com o dinheiro. - Dobrou o papel e voltou a metê-lo no sobrescrito. - Estava a armar-se em difícil.

      - Tinha uma pistola.

      - É verdade. Pensava que me enganava.

      - Não tiveste medo?

      Pegou-me na mão com ternura. A sua mão estava quente, pegajosa e tremia na minha.

      - Não - respondeu-me. Largou-me e pegou no sobrescrito. – Consegui o que queria.

      - Terra?

      - Jerónimo - respondeu-me o pai.

      - Uma cidade?

      - Não te rias assim, Charlie. É uma povoação pequenina.

      A chuva martelava na cobertura e batia nas flores dos hibiscos, obrigando-as a acenar. Escurecia a areia e tamborilava no Chevrolet de Tosco, enquanto os raios brilhavam sobre o mar negro de tinta.

      - De qualquer modo - acrescentou -'- serei o presidente da Câmara. Ficámos ali sentados até a chuva passar e depois surgiu a mãe com os garotos. Tosco serviu-nos o jantar ali, no pátio.

      - Vimos uma vaca morta - contou Jerry, explicando-lhe como o cão estava a comê-la junto da berma da estrada, observado por abutres que «tinham bicos como descascadores de batatas», e Clover e April descre­veram o cão morto no meio da estrada e os abutres aos saltos para lhe arrancarem bocados.

      - Deram-lhe tantas bicadas que fiquei mal disposta - concluiu Clover. - O pai não está impressionado - comentou a mãe.

      - Não suporto esses pássaros.

      A mãe falou-lhe das estradas, de como conduzira por cima de raízes e valas, como era preciso atravessar uma ponte sobre carris escorregadios e travessas soltas, para depois descobrir que o caminho tinha tantas pedras que não se podia continuar... Como uma das estradas dava para uma pedreira e outra para o mar, e como as estradas não eram estradas e depois de menos de quilómetro e meio se deparava com árvores, ou com um cão, geralmente morto. As estradas não davam para lado nenhum.

      - Bebo a isso! - disse o pai.

      - As pessoas vão à casa de banho no meio da rua. Sim! - protestou, porque April começara com risinhos. - Eu vi uma!

      - É bom para o ruibarbo - comentou o pai.

      - Tudo o que vimos foram bananas - disse Clover. - O pai continua a sorrir - notou a mãe.

      - Dá-lhe as novidades, Charlie.

      - O pai comprou uma povoação.

      - Estás a brincar! - exclamou a mãe.

      - Aqui tens a prova. Posso apontar-te o lugar no mapa, o nome está lá, preto no branco... Deve ser mais ou menos do tamanho de South Hadley. Vendeu-ma um alemão bêbado. Tentou cultivar bananeiras. Há por lá uns quantos selvagens, mas tirando isso apenas a luz do Sol.

      - Aposto que está lá um cão morto! - afirmou Jerry.

      - Talvez um cão vivo _ declarou o pai -, mas não há apanhadores de cães. Não há polícias, não há telefone, não há electricidade, não há aeroporto... nada! O lugar menos importante que pode existir. O alemão fartou-se de dizer mal dele... mas o que me disse soou-me a louvores! Falámos em começar do zero. Pois bem, Jerónimo é o zero.

      - E como vamos para lá? - perguntou a mãe.

      - Não me incomodes com questões triviais - retorquiu o pai. – Já disse o suficiente. Excepto o alemão e o Registo de Propriedades, ninguém mais sabe para onde vamos. Desse ponto de vista, é melhor do que uma ilha deserta. - Levantou o coto do dedo. - Todos de bico calado!

      Nesse momento aproximou-se um carro do hotel, estacionando em cima de uma poça de água. Saíram de lá quatro mulheres com vestidos brilhantes, de cabelos pretos compridos e malas de mão. Atravessaram o pátio em direcção ao bar. Reconheci-lhes as gargalhadas.

      - Aí vêm as damas da noite - comentou o pai. - Esta reunião fica adiada.

      Tosco aproximou-se do pai quando nos dirigíamos para os quartos. Agradeceu-lhe, mais uma vez, por lhe ter reparado o carro e repetiu que o podíamos utilizar sempre que quiséssemos.

      - O senhor é um cavalheiro - disse o pai.

      - Mas agora não precisam de um carro, eh? Ouvi dizer que compraram Jerónimo - declarou Tosco, beijando a ponta dos dedos. - Jerónimo é magnífico!

      Durante a noite, a barulheira foi ainda pior do que de costume e durou até quase de madrugada. Olhei para o cais, do outro lado da baía brilhante, e vi que o Unicorn partira.

      O desaparecimento do navio branco deixou-me meio cego e com uma sensação de impotência, como se da minha cabeça houvessem tirado qualquer coisa que lá fazia falta. A esperança. Sentira-me seguro porque o navio estava ali... e podíamos ir para casa. Agora, sentia-me abando­nado.

      Depois disso, nunca mais saí de junto do meu pai. Arranjei todas as desculpas possíveis para o acompanhar à cidade. Permaneci pacien­temente sentado em lojas e armazéns, enquanto comprava coisas que afirmava fazerem-lhe falta em Jerónimo. Equipamento, chamava-lhes, tubos e acessórios. A companhia das frutas vendia aquilo barato, afirmou. Fiz o que me diziam para fazer e, em geral, descobria-me acocorado à sombra de uma árvore com o homem chamado Haddy, enquanto o pai inspeccionava montes de tubos de cobre ou velhas caldeiras e discursava para o vendedor da sucata dizendo-lhe que estava a ajudá-lo a ver-se livre daquelas porcarias e que nem sequer sabia o que iria fazer com elas.

      - É uma pena deitar isto fora - dizia, actuando como se tivesse piedade deles por lá terem aquelas peças e como se levá-las não fosse mais do que um favor.

      Já antes ouvira tudo aquilo, mas mesmo assim permanecia perto dele. Com a partida do Unicorn quebrara-se o nosso último laço com a América. Em parte, o pai tivera razão quando me acusara de estar do lado do capitão Smalls, pois sentira que o velho tomaria conta de nós. Por vezes tivera a mesma sensação junto do «Pequeno» Polski.

      Agora, porém, o pai era o único responsável. Levara-nos para aquele lugar distante e com as suas maneiras de mágico surpreendera-nos quando comprara uma povoação, meio armazém de tubos de cobre, e um hectare de velhas caldeiras.

      Afirmou que aquilo era a matéria-prima da civilização, mas eu não me ralava nada com isso. Só queria estar perto dele. Receava a sua ousada coragem e recordava-me do alemão e da pistola. «Se morrer», pensei, «estamos perdidos.» Sempre que não o tinha à vista sentia-me preocupado e só deixava de o estar quando o ouvia assobiar ou cantar: «Debaixo do bam,/ Debaixo do bu/» Notou que nunca o largava. Muitas vezes parava e perguntava-me:

      - Que tal me estou a sair? Respondia-lhe que muito bem, mas não sabia o que o pai andava a fazer nem porquê. A única coisa que sabia era que, fosse o que fosse, ia fazê-lo no meio dos selvagens.

 

      - De que diabo está a falar? - perguntou o Sr. Haddy. Tinha cara de rã e uns dentes tão salientes que os dois da frente pareciam bocados de osso resse­quido, por estarem sempre de fora. - A água é mais calma durante a noite. - Não de onde eu venho - retorquiu o pai. - É igual de noite ou de dia. Portanto, vamos embora.

      - Afinal, de quem é o barco? - inquiriu a mãe.

      O Sr. Haddy continuava a protestar com o pai.

      - Eu não disse que a sua água é mais calma durante a noite... disse que esta o é. É muito agitada durante o dia e às vezes chove como o diabo. De noite é uma criancinha.

Pronunciava as palavras num tom preguiçoso e falava numa voz sem entoação, com sobressaltos de ênfase, e passava para o crioulo sempre que o pai se mostrava pouco razoável.

      - Não percebe nada disto, é o que é! Tonda pillit me!

      - Leve-nos daqui para fora!

      - Além disso - continuou o Sr. Haddy -, vamos precisar de todo o dia para carregar este estúpido montão na lancha.

      - Então mexa-se!

      - É capaz de não caber. Todos aqueles tubos...

      - Vamos experimentar.

      - O seu homem é muito bom para arranjar sarilhos - disse o Sr. Haddy, virando-se para a mãe.

      Não era difícil transportar as nossas coisas do hotel para o cais onde se encontrava atracado o barco do Sr. Haddy, o Little Haddy. As sacas de sementes, o equipamento de campismo, as caixas de ferramentas... tudo isso foi numa só viagem. Porém, as caldeiras e tubos eram outra história. Por fim, essa carga mais pesada acabou por ser transportada numa camioneta que chocalhou ao longo das principais ruas de La Ceiba até ao cais, juntando atrás de si uma procissão de gente que aumentava à medida que a camioneta avançava.

      - Esta porcaria vai afundar-me o barco - afirmou o Sr. Haddy. ­Ah, vai, vai. Vai afundá-lo.

      O Little Haddy era um barco a motor, em madeira, com uma roda de leme no interior de uma cabina de tecto achatado instalada na popa. Tinha doze metros de convés aberto, em parte coberto por um toldo de lona. Das amuradas pendiam pneus, para amortecer as pancadas. A tinta estava estalada e solta aqui e acolá, mostrando tábuas acinzentadas de sal. No casco, por debaixo da linha de água, crescia uma pelagem verde. Era tal e qual como os barcos que eu vira encalhados nos bancos de lama ou virados acima da linha de água na costa do Massachusetts.

      Parte do tabuado do convés estava solto e sem calafetagem e em muitos sítios fora pintalgado de alcatrão. Até os cabos tinham o aspecto mole e descorado das cordas deitadas para o lixo. O porão era tão pouco profundo que o Sr. Haddy tinha de se ajoelhar lá dentro e bater com a cabeça para arrumar as nossas coisas. Ficou cheio muito depressa. O resto, três caldeiras e os tubos, seguiria amarrado no convés. Cada vez que içávamos qualquer coisa para bordo, o Little Haddy gemia e afundava-se mais na água, erguendo a proa.

      As pessoas da cidade que tinham ido atrás da camioneta mantinham-se na sua sombra e olhavam para o Sr. Haddy e para o pai a transportarem a carga. O pai conhecia pelo nome vários daqueles mirones. Brincava com eles em inglês e espanhol. Estava em La Ceiba havia menos de uma semana e já era conhecido de uma maneira amigável, até respeitosa, apesar de no cais ninguém se mexer para o ajudar a tirar a carga da camioneta e levá-la para o barco.

      O pai uivava com o esforço e comentou:

      - Estão-se nas tintas, se eu rebentar com as costas.

      - Podias ficar aqui, tio - disse um dos mirones.

      - Não ficava aqui nem que me pagassem - respondeu o pai, trans­portando um molho de tubos de cobre para o convés, onde se soltaram  e espalharam, tilintando de encontro à madeira.

      - La Ceiba é boa terra.

      - Não é lugar para garotos - disse o pai.

      - Há muitos garotos aqui!

      - Por que é que será - continuou o pai, avançando para as pessoas e deixando que o suor lhe escorresse pela cara - que apesar de esta gente passar a vida a cultivar frutas, a apanhá-las, embrulhá-las, carregá­-las, enlatá-las e tudo o resto... são todos tão fraquinhos? Pois eu digo-lhes porquê. Porque fazem tudo menos comê-las. Nunca vi tanta gente ma­grizela na minha vida. Só pele e osso, é o que são. Admitam, pessoal, vocês são uns fracos!

      As pessoas riram-se e encolheram-se ainda mais na sombra da camio­neta. O sol do meio-dia incidia no cais de ferro, e na sua extremidade, onde brincavam Jerry e as gémeas, parecia estar molhado e oscilar sob as ondas de calor. Os pelicanos pousavam nas estacas e a costa brilhava. A luz caía com força, lançando-se contra a areia.

      - A cidade pertence à companhia - prosseguiu o pai. - Uma economia de monocultura e a monocultura de uma companhia. Podem ficar com ela. Não vou deixar que a minha família passe fome aqui.

      - Não passamos fome - disse um homem. - Somos gente forte.

      Quem falara fora um homem grande com um farrapo atado em volta da cabeça, tatuagens verdes nos músculos dos braços, tão grande que mesmo descalço era mais alto que o pai.

      - Ora, vocês são uns coitadinhos de uns encolhidos - declarou o pai. - Comem demasiados hamburgers, arroz descascado e açúcar branco. O que vocês precisam é de vitaminas. Tu - disse para o homem grande, batendo-lhe no peito - precisas de chumbo no teu lápis.

      O homem soltou altas gargalhadas, não se irritou com os abusos do pai. Flectiu os músculos, para que a multidão os visse.

      - Muito bem, Sansão! Queres fazer uma experiência?

      - Outro sarilho - comentou o Sr. Haddy - e ainda nem carregámos o barco.

      - Quantas flexões consegues fazer? - perguntou o pai.

      - Sansão!- gritou outro homem.

      - Posso levantar aquela caldeira - disse o homem.

      - Claro que podes. És capaz de a levantar, de soltar um grito e de a atirar... e talvez partas qualquer coisa. Mas quantas elevações consegues fazer, homem-macaco?

      - Tem cuidado, Allie - disse a mãe.

      - Aquele tipo calmeirão não vale nada - explicou-lhe o Sr. Haddy, depois de a puxar para um lado.

      - Abram um espaço - ordenou o pai. - Deixem este cavalheiro respirar!

      No meio do círculo de mirones que gritavam para o encorajar, o homem começou a fazer flexões de braços. O pai agachou-se na frente dele e disse-lhe para tocar com o queixo no chão e manter as costas direitas. Ia contando enquanto o homem subia e descia. De súbito o homem deixou-se cair com um grunhido e já não foi capaz de se levantar outra vez.

      - Vinte e duas! - exclamou o pai. - Nada mal, mas olhem para ele... ficou todo roto. - Abraçou a mãe e prosseguiu: - Aqui a minha jovem noiva era capaz de fazer o mesmo antes do pequeno-almoço.

      O homem rebolou para o lado e levantou-se. Tinha os olhos semi­cerrados, ofegava e parecia um pouco combalido do esforço que fizera.

      - Segura aqui - disse-me o pai, passando-me o boné de basebol e o charuto.

      - Fantochada - comentou o Sr. Haddy.

      O pai enrolou as mangas da camisa e colocou-se em posição no cais, com as costas já encharcadas de suor. Dobrando os braços rapida­mente, fez vinte e duas flexões, enquanto os mirones contavam. Parou por instantes, sorriu-se para o homenzarrão ofegante e fez mais vinte e oito.

      - Cinquenta! - exclamou.

      A seguir fez mais vinte e cinco. Quando se levantou tinha a cara vermelha e falta de fôlego, mas afirmou:

      - Aí está! Setenta e cinco é para principiantes! Podia fazer muitas mais mas tenho de continuar com o trabalho.

      Adoraram-no por causa daquilo e quando voltou à tarefa de carregar a lancha avançaram oito homens para o ajudar. Passaram o resto da tarde a transportar o equipamento com o pai e o Sr. Haddy.

      - É uma coisa engraçada - disse o pai para a mãe. - Estão a ajudar-me porque pensam que sou forte. Se fosse fraco, não mexeriam um dedo. Era de pensar que fosse ao contrário. E perguntas a ti mesma por que é que esta gente é selvagem?

      - Não pergunto nada - retorquiu a mãe, que foi buscar os miúdos.

      - Por outro lado - continuou o pai -, não interessa que um tipo seja um selvagem, desde que seja um cavalheiro. Lembra-te disso, Charlie - concluiu, entrando para o barco e rindo-se sozinho.

      A noite caiu e a cidade ficou com um aspecto mais agradável. Ardiam pequenas luzes no cais e nos escritórios do porto brilhavam algumas janelas. As palmeiras, tão esguias e esfarrapadas durante o dia, passaram a ter cabeças penugentas e essas plumas escuras como chapéus-de-chuva, abrigavam os edifícios, agora mais acolhedores. Para oeste, para lá das montanhas, viam-se ainda algumas riscas de um vermelho de sangue do pôr do Sol. A cidade agachava-se por debaixo das montanhas, acachapada, um lago de pequenas luzes na escuridão. Mortiças lantejoulas brilhavam nas cabanas instaladas nas vertentes das montanhas.

      Jerry bocejava no colo da mãe - era já demasiado grande para se sentir ali confortável - e as gémeas dormiam debaixo do toldo. Eram dez horas. Chovera duas vezes desde o meio da tarde e os relâmpagos continuavam a riscar o céu sobre o mar em explosões súbitas. Parecia cruel ter de deixar a cidade àquela hora. A nossa família costumava deitar-se cedo e a hora de ir para a cama passara há muito. Invejava as pessoas que se encontravam nas casas que via dali, as que estavam às janelas e até as que imaginava balançando nas redes de dormir, nas barracas da praia. Não achava nada interessante estar a bordo do estreito barco a ouvir o mar a chapinhar de encontro ao casco de madeira. Sentei-me num caixote e estremeci. A mãe deitou-se, com o Jerry e as gémeas, todos em sacos-camas. Olhei para a costa... não me queria ir embora da cidade.

      O motor gaguejara lentamente durante toda a última hora. O Sr. Haddy levantou um alçapão, debruçou-se lá para dentro com uma comprida chave inglesa e fez com que o motor soltasse um estrépito que fez vibrar as tábuas partidas do convés. Os fumos do gasóleo sufocaram-me.

      - Já vi varinhas mágicas com motores melhores do que este – disse o pai. - Olha como está a falhar! Escuta-o! Isto é um motor?

      - Que pássaros são aqueles? - perguntei. Estava a observá-los desde o pôr do Sol. Tinham corpos pequenos e asas achatadas, e dançavam em tomo das luzes do cais, guinchando como as andorinhas.

      - Um pássaro nocturno qualquer - respondeu o pai, sem olhar para cima. Continuava de testa franzida ante os ruídos do motor.

      - São morcegos - esclareceu o Sr. Haddy.

      Eram centenas, o suficiente para cobrirem as luzes. Agora sentia-me ansioso por ir embora dali a bordo do barco.

      O pai dirigiu-se para a proa.

      - Estamos quase prontos, mãe. Fiz-te café no fogão - disse ele. - Tenho estado pronta todo o dia. As crianças dormem – respondeu a mãe.

      O Sr. Haddy soltou um assobio agudo por entre os dentes salientes e perguntou:

      - Estás a ouvir, Ta Tom?

      Um homem que dormia no cais levantou-se como um insecto perturbado, desamarrou os cabos e atirou-os para dentro da lancha. O Sr. Haddy encheu as bochechas de ar e baixo:u uma alavanca, uma barra de ferro junto da roda do leme, tal como a alavanca das mudanças de um tractor, e Ta Tom empurrou o casco com o pé. Partíamos direitos ao mar negro.

      - Pois, são morcegos - disse o Sr. Haddy, inclinando-se para fora da casa do leme. - Quem me dera ir para Utila.

      Perguntei-lhe porquê.

      - Porque são só duas horas. Até Santa Rosa são dez - explicou, com os dedos compridos pendurados na roda do leme.

      - Pensei que íamos para Jerónimo.

      - Jerónimo é no meio da selva. As lanchas não vão lá... só lá vivem uns tipos com caudas...

      - Não faças perguntas ao homem - interveio o pai. - Importa-se que eu segure no leme, Sr. Haddy?

      O Sr. Haddy não se afastou do leme e, de facto, até o segurou com mais força.

      - É contra os regulamentos.

      - Quais regulamentos?

      - Os do meu barco. Eu governo, vocês são os passageiros.

      - Vá dar uma volta - disse o pai.

      O Sr. Haddy ficou onde estava,

      - Conheço todas as estrelas dos dois hemisférios - prosseguiu o pai. - Sou um mestre do sextante e do quadrante. Sou capaz de calcular um meridiano através do reflexo do Sol num balde de alcatrão.

      - Regulamentos.

      - E quantas flexões consegue fazer?

      O Sr. Haddy soltou uma gargalhada mas não soltou o leme. Chegou-se mais a ele e colocou o nariz quase em cima do vidro sujo da casa do leme.

      O eco do motor vinha até nós reflectido nas palmeiras da costa e soava de encontro ao cais de ferro de La Ceiba quando lhe demos a volta para nos dirigirmos para leste, onde a noite era mais profunda.

      - Temos comida, temos combustível, temos todas as nossas coisas - declarou o pai. - Estou muito satisfeito por nos irmos embora. Sem ofensa, Sr. Haddy, aquela cidade não é um bom sítio para as crianças.

      Olhámos para trás. Mesmo àquela curta distância a cidade tornara-se mais plana e mais bonita. Era um pequeno charco de luz por baixo das sombras das montanhas e dos amontoados de prateadas nuvens de tempestade.

      - Sabe para onde vai, pai?

      - Sr. Haddy, vamos para casa. Dê-me esse leme e eu levo-o até lá inteirinho.

      O Sr. Haddy agarrou-se ao leme e conduziu-nos através das enluaradas rugas do mar. O pai suspirou. Lambeu a ponta de um charuto, um comprido charuto hondurenho. Tinha um cesto cheio deles. Acendeu-o e a chama que brilhou na ponta do charuto mostrou uns olhos furiosos e ardentes pousados no Sr. Haddy.

      - É o primeiro barco de alto mar que vejo que não tem uma bússola a bordo - murmurou. - Felizmente trouxe a minha, mas não digo onde a guardei.

      Havia pequenas cabanas ao longo da costa, tremulando como lanternas sob as palmeiras. Depois a escuridão tornou-se maior, as luzes diminuíram de tamanho e deixou de se ver a costa e tudo passou a ser uma negra mancha de terra, mar e vagos clarões, na cada vez maior ondulação. - Sei para onde estás a olhar, Charlie - disse o Sr. Haddy – Não são pássaros.

      Não lhe disse que estava a olhar para os pontos de luz da costa.

      - Quando eu era pequenino - continuou, olhando também para a costa - vivíamos perto da lagoa Brewer. Foi aí que aprendi o zambu, os índios ensinaram-mo. Uma noite estava sozinho no quarto e houve uma grande agitação, movimentos, batidas. Acordei e chamei a minha mãe: «Mãe, vem depressa, aconteceu qualquer coisa!» Ela apareceu com uma luz e disse: «Fantochada! Não aconteceu nada, estiveste a sonhar com espíritos.» Os espíritos são os nossos fantasmas. Mas de repente ficou toda cinzenta. «Que sangue é esse na tua almofada?» perguntou, e que grito que soltou! Olhei para a almofada e estava vermelha. Sangue! Perguntou-me se sentia alguma coisa na cabeça. Estava a sangrar mas não sentia nada.

      - E por que é que sangrava? - perguntei-lhe.

      - «Ah!», disse a minha mãe. Bateu com força no chão e um morcego grande como o diabo foi contra a parede. Depois de o enxotar, espreitou a minha cabeça. O velho morcego estivera a chupar-me o sangue de uma orelha e deixara lá os buracos dos dentes. O sangue continuava a sair. Havia caca de morcego em todo o quarto... e a caca de morcego cheira bem mal!

      Abriu muito os olhos castanhos na minha direcção: - Sei para onde estavas a olhar. Para os morcegos.

      Não estivera, mas estava agora.

      O pai mantinha-se silencioso, fumando, com o ar de quem queria arrancar à força as mãos do Sr. Haddy da roda do leme.

      - Conheci um fulano - prosseguiu o Sr. Haddy - a quem um morcego chupou um dedo do pé enquanto ele dormia. Oh, os morcegos atiram-se às pessoas. Alguns dos que andam por aí são grandes como almofadas... e perto de Bluefields são do tamanho de tamanduás, mordem-nos através das luvas.

      Na escura casa do leme só lhe conseguia ver os dentes ressequidos, brancos como tinta, e ouvia-o a tentar assobiar por entre eles.

      - Morcegos da fruta - disse o pai.

      - Oh, claro, morcegos da fruta - respondeu o Sr. Haddy e de muitas outras espécies.

      - Comem bananas - explicou o pai.

      - Pois, mas se não conseguem bananas, atiram-se às pessoas.

      - Fale-nos nos tubarões - pediu o pai.

      - Já vi alguns tubarões.

      - Grandes como cães?

      - Maiores.

      O pai apontou com o coto do dedo e declarou:

      - O Norte é para ali, senhor Haddy.

      - Sei disso muito bem. Conheço o Norte tão bem como o meu nome.

      - Neste mesmo momento - prosseguiu o pai com um ar sonhador - há alguém na América a pintar linhas amarelas numa estrada, enquanto outra pessoa qualquer embrulha meia cebola num bocado de celofane de supermercado, ou atira um espremedor eléctrico para o lixo, dizendo: «Está estragado.» Alguém acabou de abrir uma lata de sopa com sabor a chocolate, numa bela cozinha, só porque não consegue pôr o carro em andamento para ir jantar fora. Essa pessoa não queria a sopa, mas sim um hamburger. Alguém acabou de se envenenar com uma salsicha de nitrato vermelho, mas sorri porque lhe soube muito bem. E todos eles praguejam contra o presidente. Querem-no diferente.

      Ficou silencioso durante alguns momentos.

      - É verdade, para ali é o Norte - disse o Sr. Haddy.

      - Ali - continuou o pai, virado para a escuridão - há um decorador de interiores, provavelmente um tipo esquisito, de pé no átrio de um banco. Foi contratado para o redecorar. O banco está falido. Precisa de depositantes. Talvez um átrio novo seja uma ajuda. Porém, o decorador não sabe de que cor o deve pintar nem onde pôr os gerânios. Pergunta ao banqueiro: «O que é que quer que esta sala diga?»

      - Não tenho bem a certeza disso - respondeu o Sr. Haddy.

      - Alguém puxa pela cabeça para descobrir um nome novo para os com flakes - afirmou o pai. - Outra pessoa acabou de morrer por causa deles.

      - Isso é mau - comentou o Sr. Haddy.

      - Mas nós vamos para casa.

      - Já alguma vez lhe contei aquela do tigre, da minha mãe e do ianqui? - Conte lá, Sr. Haddy, mas primeiro passe-me o leme.

      - Nunca lhe passarei o leme. Sou o capitão, sou o timoneiro e este é o meu barco.

O pai ficou silencioso. Por vezes libertava um certo cheiro quando estava zangado e naquele momento chegou-me uma pequena baforada, um eflúvio a gato.

      - Vocês são os passageiros - insistiu o Sr. Haddy, mas como uma voz já não tão segura.

      - Se eu fosse do género dos passageiros, ainda agora estaria ali ­disse o pai, apontando para norte, na direcção dos Estados Unidos. ­Vai para a cama, Charlie.

      Desenrolei o saco-cama junto da mãe e enfiei-me dentro dele. O motor vibrava de encontro às minhas costas. A massa de estrelas por cima da minha cabeça era como um mar de pontinhas brilhantes, um milhão de pequeninas estrelas mortas e à deriva na maré do céu.

      Quando acordei estava ainda mais escuro do que quando me deitara. A escuridão como que se apertara em tomo do barco oscilante e não havia estrelas. O molho de sacos-camas junto de mim disse-me que Jerry e as gémeas ainda estavam a dormir. Ardia uma pequena luz na casa do leme.

      O pai estava ao leme, a mãe a seu lado com um mapa e o Sr. Haddy não se via em lado nenhum. Com as mãos no leme e a luz da lanterna a distorcer-lhe o rosto, o pai tinha um ar ansioso e impaciente. Perguntei-lhe onde estava o Sr. Haddy.

      - Atirei-o pela borda fora - respondeu. - Não conseguiu aguentar o esforço.

      Até que ponto confiava eu no pai? Completamente. Acreditava em tudo o que ele dizia. Até olhei para a popa, para o nosso rasto de espuma, esperando ver os dentes no rosto a afogar-se do Sr. Haddy.

      - Está a brincar contigo, Charlie - disse a mãe. - O Sr. Haddy está a dormir.

      - Mandei-o para a cama - explicou o pai. - Ah, gostava de ter um barco assim.

      Tinha um charuto apagado na boca e manobrava a roda do leme com os dedos muito abertos, o rosto iluminado de encontro ao vidro da casa do leme.

      Por detrás dele a mãe segurava-o com leveza pelo ombro, a mão branca a mantê-lo afastado, tal como segurara Jerry e as gémeas na amurada do Unicornn. Tinha o rosto pálido, rodeado pelos cabelos macios e pendentes, e não ostentava qualquer expressão. Os seus olhos escuros reflectiam a escuridão que existia à sua frente e pareciam absorver a chama da lanterna. Estava calma, mas o pai dobrava-se para a frente como se se esforçasse por se libertar daquela mão. Viam-se as sombras dos músculos da queixada e o rosto contorcia-se tentando tirar algum sentido da escuridão. Havia um brilho de certeza nos seus olhos, como reflexos de goma-laca. Estava activo e atento. Não virava os olhos, virava toda a cabeça quando queria olhar para o lado.

      O pai e a mãe mantiveram-se naquela posição, sem falar, durante algum tempo. Quanto mais os observava mais me pareciam um homem feroz e um anjo, enquanto o barco era um exemplo do tipo de vida que levávamos, abrindo caminho através de águas negras com a selva escura de um lado e o mar profundo no outro, a noite sem lua por cima de nós.

      No entanto, só avistei a selva muito mais tarde, depois de o Sr. Haddy acordar e me dizer que estávamos a passar ao largo da lagoa Guayamoreto, logo a seguir a Trujillo.

      A pouco e pouco, a escuridão parecida com profundezas de tinta abrandou um pouco, tornou-se de um cinzento-claro e, sem revelar nada mais do que mar, ficou cor do pó. A toda a nossa volta espessou-se aquela madrugada de pó até que, tornando-se mais áspera e cor da cinza, num nascer de Sol sem sol, nos atirou com relances de um mar saponáceo, da linha da costa e da selva, que se parecia com um montão de negras algas. Em breve o Sol subia uma hora no céu, sobre o nível da costa escalvada.

      - O pai está a conduzir o meu barco! - exclamou o Sr. Haddy, admirado. A bordo, era a única pessoa surpreendida pelo facto de o pai ter tomado as coisas nas suas mãos. - Fez-se capitão ontem à noite. Bem me queixei de que era uma quebra dos regulamentos, mas não serviu de nada.

      Penso que todos nós estávamos secretamente satisfeitos por ver o pai ao leme do barco de outro homem, num mar pouco familiar e ao largo de uma costa estranha. Era mais uma prova de que ele era capaz de fazer tudo.

      O Sr. Haddy invocou Deus quando um relâmpago se imprimiu de súbito no nevoeiro. Nuvens barbadas coraram de luz e desapareceram. Houve uma pausa mortal, um trovão, a coisa mais parecida com uma bomba que eu jamais ouvira, e pouco depois o mar à nossa volta apareceu salpicado de gotas do tamanho de berlindes. Faixas de luz da madrugada e nuvens de tempestade fundiam-se no amplo céu por cima do mar tropical, com o sol a empurrar a oblíqua tempestade em direcção à costa. A chuva não caía de um modo regular. Seguimos o nosso caminho no barco, para leste ao longo da costa, através dos contornos arqueados da chuva que caía, e que umas vezes batia nas ferragens do pai e encharcava todo o convés, e outras vezes desaparecia em silêncio, deixando escureci das as tábuas molhadas.

      Excepto quanto a uma ligeira oscilação, o mar estava tão calmo como estivera durante a saída de La Ceiba. As nuvens abriram-se, havia todo um céu delas por cima do mar chão, movendo-se para o lado e mudando de formas, colunas de nuvens, telhados de nuvens, que se desfaziam e empurravam a caminho da costa. O sol abriu caminho por entre elas e deixou-nos encandeados. Era fogo, brilho e calor, com a parte inferior do disco ainda mergulhada numa nuvem de água de lavar pratos. Quando caiu sobre nós com toda a sua força, levantou vapor e cheiros de todas as tábuas da lancha encharcada.

      - Estaremos em Santa Rosa para o pequeno-almoço - afirmou o Sr. Haddy. - Já não falta muito... talvez mais meia hora. Já quase a podemos ver.

      - Tenho uma novidade para si, cavalheiro - disse o pai. Tomaremos o pequeno-almoço aqui mesmo. Olhe o que eu e a mãe apanhámos, enquanto todos vocês estavam mortos para o mundo...

      Baixou-se e tirou de dentro de um cesto um molho de peixes às riscas. Cinco peixes bem gordos estavam presos pelas guelras.

      - Trate de arranjar estes peixes, Sr. Haddy, enquanto a mãe acende o fogão. Os rapazes arrumarão o convés e poderemos mastigar comida verdadeira. Ou preferirá parar em Santa Rosa para comer feijões do mês passado?

      O Sr. Haddy pegou nos peixes e começou a abri-los. Um pouco mais adiante, Jerry e as gémeas gatinharam para fora dos sacos-camas e esfregaram os olhos. A mãe preparou uma bacia com água fresca para nos podermos lavar e depois acendeu o lume no fogão (que era um bidão de aço cortado ao meio, com uma grelha por cima), e deixou a cafeteira ao lume.

      - Vou dizer-lhe mais uma coisa - continuou o pai. - Não paramos em Santa Rosa.

      O Sr. Haddy abria os peixes como se fossem sobrescritos e arrancava­-lhes os molhinhos de tubos que eram tripas cinzentas. Com um bocado daquele esparguete pegajoso agarrado aos dedos, comentou:

      - Primeiro diz-me que não quer ir a Trujillo, porque não quer ver os missionários. Agora quer fazer de mim um come dor de peixes e diz que não vamos a Santa Rosa. Não há nada de mal em Santa Rosa, que diabo!

      - Estive a olhar para o mapa - disse o pai.

      - O pai e o seu mapa - respondeu o Sr. Haddy escamando os peixes como se estivesse a castigá-los e a castigar o dedo, fazendo saltar escamas prateadas que se espalharam por todo o convés.

      - Não disse que não íamos lá - explicou o pai. - Disse que não parávamos.

      Comemos o peixe debaixo do toldo da proa por causa de eventuais gaivotas. O Sr. Haddy abriu a cabeça de um peixe e no seu cérebro encontrou um fragmento de uma substância clara como vidro, uma espécie de esfera. O pai decidiu usá-la ao pescoço.

      - Tal e qual como um zambu - disse o Sr. Haddy, que depois nos pediu para olharmos para cima. Ali, debaixo das longas fiadas de gotas de chuva, estava um cais e alguns edifícios amarelos, bem como a fita verde da selva. - Aqui é Santa Rosa.

      Era, afirmou o pai, um insulto para a verde costa de Mosquito, não mais do que dez edifícios baixos e a torre de uma igreja. Vapor e fumo, telhados vermelhos e meia dúzia de garotos no cais.

      - Paramôs em Santa Rosa? - perguntou o Sr. Haddy.

      - Nunca paro até chegar ao sítio para onde vou.

      - Se eu estivesse a guiar este barco, tinha parado ali - queixou-se o Sr. Haddy, olhando para mim com um ar triste. O branco dos olhos, cercado por um anel vermelho, estava marcado por manchas castanhas. Tínhamos passado o cais e a praia. A mãe disse-lhe para não se preocupar. Respondeu que não estava preocupado, mas sim muito confuso.

      - Mantenha a camisa vestida! - gritou-lhe o pai, da casa do leme. As gémeas iam à proa.

      - Conseguimos ver o fundo! - gritou April e Jerry correu para a frente, para espreitar.

      - Nem sequer percebo por que é que não estou ao leme -lamentou-se o Sr. Haddy. - Das outras vezes não o larguei. Olhem, vejam aquela água castanha... ali. É a boca do rio. Mas... que está o homem a fazer?!

      Havia uma abertura na costa, uma abertura larga, onde a corrente de um rio chocava com a maré enchente. As ondas atiravam-se para o lado, lançando lodo para cima de bancos de areia. Um pouco mais para cima avistava paus e ramos a descerem em direcção ao mar.

      O pai virou o barco em direcção àquela maré castanha. Um pescador, mergulhado até aos joelhos na água, lançou a rede e acenou-nos. O Little Haddy enfiou o nariz na corrente, lançando borrifos para o ar dos dois lados da proa.

      - Não é por aí o caminho, pai! - gritou o Sr. Haddy. Continuava sentado, de cara franzida, junto dos restos do pequeno-almoço, as espinhas dos peixes, côdeas de pão e chávenas de café vazias. - Não me dá ouvidos - murmurou.

      Levantou-se e dirigiu-se para a casa do leme, para se queixar. - Por favor, senhor, isto não é uma canoa, é um barco!

      - Sente-se - respondeu-lhe o pai.

      - Sou o timoneiro. Não subo por estes rios!

      - Isto não é um rio vulgar... é uma inundação. Engraçado, a primeira vez que vi Santa Rosa no mapa não reparei no rio. Quando o vi, pareceu-me pequeno. Foi a chuva que me deu a ideia. Há uma cheia no rio. Tem água suficiente para nos levar durante quase todo o caminho até Jerónimo.

      - Mas não é para barcos! Rebentamos de encontro a uma rocha! - O homem não confia em mim - disse o pai.

      - Consigo, ou perco a minha licença ou perco o barco! Oh, o meu chapéu!

      O barco começara a cabecear na corrente, inclinando-se para um lado e para o outro. As ferragens velhas do pai tilintavam e esfregavam-se umas nas outras.

      - Allie! - gritou a mãe, encharcada por uma chuvada de espuma.

      Agora o barco parecia mais leve, mergulhando com facilidade na ondulação da foz do rio. Segurei-me com força, com medo de que a água o inundasse.

      - Não posso fazê-lo sozinho - disse o pai. - Preciso da sua ajuda, Sr. Haddy. Vá para a proa e se aparecerem algumas rochas avise-me. Estamos contra a corrente, não faz sentido desligar o motor agora. Então, o q,le é que me diz... alinha comigo ou não? - perguntou o pai e uma chuva de borrifos voltou a atingir a janela da casa do leme.

      - Mais um sarilho - afirmou o Sr. Haddy, sem sorrir. - Não gosto destes rios. Os tipos aí, no meio da selva, tipos pretos, têm caudas!

      Tratava-se do rio Aguan, explicou o pai, e na margem de Santa Rosa começara a juntar-se gente, talvez a pensar que iríamos a terra. Traziam cestos de frutas, molhos de cocos e esteiras em palha. Quando nos viram â dirigirmo-nos para o meio do rio, avançando contra os ramos flutuantes e os restos de canas partidas, começaram a gritar, chamando-nos para a costa. Os cães também nos ladraram.

      Continuámos em frente, para lá do povoado a seguir a Santa Rosa, das barracas torcidas, das cabanas em cima de estacas e das fileiras de canoas viradas sobre a margem. Passámos a entrada, que parecia um portão, de uma lagoa verde e seguimos lutando contra o rio que subia até à borda da proa do barco. Ali fazia mais calor porque o Sol estava por cima das palmeiras e as nuvens de tempestade haviam desaparecido para o interior. Não existiam montanhas, nem sequer colinas. Não existia nada para além da margem do rio, coberta de palmeiras e arbustos baixos, e árvores de cascas amarelas. O céu descia até às copas das árvores. A cheia do rio enlameado inundara os arbustos das margens.

      O Sr. Haddy debruçava-se à proa. Lamentava-se numa espécie de canção de tristeza, e mostrava-nos os fundilhos das calças. De vez em quando gritava: «Rochas a bombordo!» ou «Rochas à proa!» O oceano ficava-nos à popa e quando descrevemos uma curva do rio perdemo-lo de vista, desaparecido juntamente com a brisa fresca, as comichões provocadas pelo sal e os cheiros a peixe. Estávamos rodeados pela selva; a curta distância do rio, e todas as árvores piavam, cobertas de aves e insectos. O barco ficou com um aspecto diferente. No mar parecera delapidado e muito pequeno, mas ali, abrindo caminho por aquele rio estreito, tinha um aspecto grande e poderoso com o motor a ressoar de encontro às margens, espantando as garças e afastando as borboletas para o lado.

      - Olhem para aquele tipo - disse o pai quando o Sr. Haddy se serviu da corrente para ameaçar um homem numa canoa. O Sr. Haddy apontava aves para Jerry e para as gémeas e metia-se com as mulheres que interrompiam as esfregadelas de roupa nas zonas mais arenosas da margem, para nos verem passar.

      - Nunca devem ter visto um barco - disse o Sr. Haddy.

      - Até onde é que vamos? - perguntou a mãe.

      - Até batermos no fundo - respondeu o pai.

      Conseguimos avançar vinte quilómetros ou mais, subindo o rio até cerca do meio-dia, isto antes de o Sr. Haddy começar a gritar que havia rochas por todos os lados. Não fazia sinais, limitava-se a gritar. A água ali já não era enlameada, consegui ver enguias e cardumes de pequenos peixes no fundo arenoso. Nalguns sítios mal havia espaço entre as margens para a passagem do barco, e a água, muito rápida, abrandava-nos a marcha e saltava para o convés.

      Foi num desses canais estreitos e tortuosos que vi os homens nas árvores. Ao princípio tomei-os por troncos retorcidos ou por pedras esquisitas... por tudo menos por homens. Tinham as cabeças apoiadas nos ramos e alguns agachavam-se nos arbustos, homens de pele escura e brilhante. Outros estavam de joelhos, de costas para nós. Estivemos tão perto deles que não era possível chamar a atenção do pai sem que me ouvissem. Uns quantos tinham paus, lanças e redes de pesca, mas permaneceram silenciosos e não nos ameaçaram.

      Fui para a proa, onde o Sr. Haddy continuava debruçado. Também os vira, olhava para as árvores. Foi então que um velho negro vestindo apenas um par de calções de caqui saiu da água para a margem carregando um balde.

      - Então que tal? - perguntou o Sr. Haddy, dirigindo-se ao homem. Este deixou cair o balde na lama da margem, espalhando o seu conteúdo de peixes. - Zambus - disse o Sr. Haddy. - Não têm caudas.

      Porém, ao dizer aquilo levantara os olhos do rio e deixara de prestar atenção à corrente. Ouviu-se uma pancada debaixo de nós, o barco foi atirado para cima e as gémeas caíram no convés.

      - Mordi a língua! - gritou Jerry.

      O barco virou-se para um lado empurrado pela corrente. Inclinou-se e fez cair o fogão. Estávamos bem presos ao fundo. No mesmo instante o motor foi-se abaixo e os ramos e destroços trazidos pelo rio empilharam­-se de encontro ao casco. O pai deu um pontapé no fogão fumegante, atirando-o para o rio, onde se afundou no meio do seu próprio vapor.

      -, Sr. Haddy. Pergunte àquele cavalheiro onde estamos. O Sr. Haddy não perguntou. Observou o homem ajoelhado a recolher os peixes e gritou para o pai:

      - Isto aqui é o Balde-de-Peixe!

      Então, enquanto o rio se escarvava à nossa volta, na margem apa­receram sete ou oito homens, todos pretos, com grandes cabeças. Usavam calções e traziam redes e paus. O pai saltou da popa com uma corda. Mergulhou na água até à cintura e começou a avançar para a margem.

      Os homens viram-no prender o Little Haddy a uma árvore. Afastaram­-se um pouco, como que para lhe dar mais espaço, apesar de estarem a dez metros de distância.

      O pai falou-lhes em espanhol com uma voz amigável.

      Ficaram a olhar. Pareciam compreender mas não respondiam.

      - Então como é? - gritou o Sr. Haddy da proa.

      - Aqui mesmo - respondeu um dos homens.

      - Eles falam inglês?! - exclamou o pai, começando a rir às gargalhadas. Os negros ficaram satisfeitos. Abriram as bocas para o verem rir. - Bom dia, pai. Chamo-me Francis Lungley. Precisa de ajuda?

      - Eh, tenho andado à tua procura por todo o lado - disse o pai.

 

      Jerónimo, apenas um nome, era no enlameado final de um caminho enlameado. Por ter sido outrora uma clareira, agora abandonada, estava mais coberta por arbustos e ervas do que qualquer selva. Sob outros pontos de vista não era diferente de cinquenta outros locais cobertos de mato por onde havíamos passado durante a caminhada desde a margem do rio dos Zambus, a que o sr. Haddy chamara «Balde-de-Peixe». Era quente, húmida, malcheirosa, cheia de insectos, coberta de folhas moles de um verde-escuro «tal como velhas notas de dólar», como disse o pai.

      Jerónimo fez-me lembrar uma vez em que estava no Massachusetts à pesca. O pai apontou para um pilar de madeira, pequeno e preto, e disse: «Ali é a fronteira do Estado.» Olhei para o tronco apodrecido... a fronteira do Estado, aquilo?! Jerónimo era assim. Tinham de nos explicar o que era. Nunca a tomaríamos por um povoado. Tinha uma árvore enorme, um tronco como um pilar de ponte, que servia de apoio a um montão de ramos folhosos cheios de pequenos galhos. Era uma guanacaste e por debaixo dela havia quase meio hectare de sombra. Ainda ali se encontrava o que restava da barraca de Weerwilly e dos seus falhanços, tudo com um ar triste e acidental. Não obstante, as ruínas abandonadas só serviam para que Jerónimo parecesse ainda mais selvagem, naquela tarde húmida.

      Uma outra coisa que lá se via era uma cadeira fumegante no meio das ervas, uma cadeira de braços, isolada e a deitar fumo. O estofo estava calcinado e parte das molas ficara à vista. O cheiro que lançava flutuava nos arbustos. A cadeira queimada, inútil e fumegante, era tão pouco importante como o lugar propriamente dito, e o pai era a única pessoa que estava certa de que tínhamos chegado ao nosso destino.

      As gémeas sentaram-se e lamentaram-se. O rosto de Jerry estava vermelho por causa do calor húmido, que parecia vapor.

      - Aposto que te vai fazer subir àquela árvore, Charlie - disse o Jerry. - Aposto que vais ter medo.

      O pai metera-se no meio dos arbustos que lhe davam pelo peito.

      Tinha o boné de basebol virado para o lado e gritava:

      - Nada... nada! Foi com isto mesmo que sonhei... nada! Olha, mãe... - Tens razão, não vejo nada - retorquiu a mãe.

      - E tu vês, Charlie?

      Disse-lhe que não.

      Continuou a abrir caminho no meio dos arbustos.

      - Vejo uma casa aqui - afirmou. - Uma espécie de celeiro além, com uma oficina... uma verdadeira oficina de ferreiro, com uma forja. Para ali, a estufa e as plantações. Limpamos e queimamos toda a área e ficamos com quatro ou cinco acres de boa terra agrícola. Colocamos um depósito de água naquela elevação e desviaremos parte do ribeiro para levarmos água aos campos. Teremos de deitar abaixo algumas destas árvores, mas ficarão muitas outras, e, de qualquer modo, precisamos dos troncos para uma ponte. Imagino que a casa deve estar virada para Leste... ficaremos com vista sobre as colinas e sobre o sol-nascente. Vejo ali em baixo um atracadouro e uma rampa até ao abrigo do barco. Um par de protecções à esquerda e à direita da casa principal e ficaremos a salvo de inundações. O terreno é suficientemente alto mas faremos a casa sobre estacas por uma questão de segurança e usaremos a parte de baixo como cozinha. Gostaria de que para aquele lado houvesse uma drenagem... cheira-me a pântano. Mas isso é fácil, umas quantas valas de noventa centímetros resolverão o problema, e logo que consigamos controlar a água poderemos cultivar arroz e levar a cabo algumas obras sérias de hidráulica. O mais difícil é a fábrica. Vejo-a naquela cavidade, a favor do vento. Podemos tirar vantagens do combustível que cresce por aqui... parecem ser madeiras duras. Será canja fazê-las escorregar pelo declive...

      Naquele momento, por baixo da guanacaste, os zambus e o Sr. Haddy pousavam as suas cargas. O Sr. Haddy tirou os sapatos e fez uma careta ao ouvir a voz do pai. Este continuou a falar, marcando o sítio da casa, delineando os caminhos que pretendia abrir e dividindo a terra em campos de feijões e valas de escoamento. Tínhamos chegado há dez minutos.

      No entanto, nem sequer a bombástica voz do pai fazia com que Jerónimo deixasse de ser um montão de arbustos malcheirosos e uma clareira coberta de mato.

      Os zambus viam-na à sua própria maneira. Havia colinas por detrás e um ribeirito a correr no meio. Os zambus diziam que as colinas eram montanhas - as Esperanzas - e que o ribeirito era um rio - o Bonito - enquanto Jerónimo, para os seus olhos injectados de sangue, era uma quinta - a estância. Estes nomes grandiloquentes estavam todos errados e eram imaginários, mas eram semelhantes aos nomes dos próprios zambus. O homem seminu que não se calava, apontando para o ribeirito estreito e chamando-lhe rio Bonito, dizia chamar-se John Dixon. Foi o homem de enorme cabeleira lanosa e calções esfarrapados - Francis Lungley - que nos disse o nome das montanhas, e foi o mais taciturno entre eles, Bucky Smart, que denominou de estância a barraca enferrujada.

      Podiam chamar-lhe aquilo que lhes apetecesse, mas eu sabia que Jerónimo não era mais do que uma cabana de telhado de zinco num trilho da selva e um campo de bananeiras que se fora abaixo por causa de uma doença que deixava manchas negras nas folhas. Aqui estava um barco a remos partido e mais adiante alguns troncos cortados que ninguém se dera ao trabalho de serrar e empilhar. As vedações que ali pudessem ter existido haviam-se transformado novamente em árvores, uma fileira de árvores novas que poderia ter sido um chiqueiro de porcos, lama, ervas e a cadeira que cheirava a veneno.

      O pai regressou e afirmou: - _ maravilhoso.

      Nesse preciso momento, um pequeno porco negro correu e pulou por entre as ervas, passando junto a nós. O zambu Bucky levantou-se e fez-lhe uma careta feia, como se o quisesse matar com os dentes da frente. Seguiu-o com os olhos mas depois encolheu os ombros e agachou-se sobre os tornozelos. Devia estar cansado, primeiro carregara com Clover e depois com a April, durante todo o caminho desde o Balde-de-Peixe.

      - Aquilo era um pecari-de-lábios-brancos - disse o sr. Haddy. - Preocupações - declarou Francis Lungley.

      - Não estou preocupada - respondeu Clover.

      - É isso o que estes rapazes lhes chamam... preocupações. É um nome. Se apareceu aqui um, isso quer dizer que há cinquenta ou cem no meio da mata.

      - Weerwilly deve ter vivido naquela barraca - disse o pai. – Mas que buraco! Nem morto me apanhavam ali dentro!

      - De qualquer modo - afirmou o sr. Haddy, parecendo-se ainda mais com uma rã quando se virou para o pai -, já lá há gente dentro, o que lhe poupa trabalho.

      Caras como bolas de futebol, na janela da cabana enferrujada, esprei­tavam-nos de olhos muito abertos no meio de trepadeiras cheias de flores.

      - Glórias-da-manhã - disse o pai, correndo para a cabana.

      Os rostos recuaram um pouco quando o pai pegou numa enorme flor e perguntou:

      - Como se chama?

      - Maywit - foi a resposta trémula.

      - Está a dizer-lhe o nome da flor - afirmou o sr. Haddy. - Isso é o nome da flor e não das pessoas. Provavelmente, chamam-se Jones. Jones-da-selva, Jones-o-homem-galinha. - O sr. Haddy agarrou-se à cabeça. - Quem me dera estar na minha lancha... mas o pai abriu-lhe um buraco no fundo.

      O pai ainda tentava obter respostas de dentro da cabana, mas os rostos haviam desaparecido da janela.

      Montámos as nossas tendas por baixo dos ramos da guanacaste e acendemos uma fogueira muito fumarenta, tal como o pai nos disse para fazer, para afuguentarmos os mosquitos. A mãe separou os nossos pertences e os sacos da comida do meio da bagagem e pendurou-os nos ramos, fora do alcance dos ratos... pois já tínhamos visto dois. As mochilas e as tendas fizeram o pai lembrar-se das compras em Springfield. Disse ao Jerry para contar a história do equipamento de campismo americano feito por crianças escravas na China e no Japão. O pai interrompeu-o e proferiu o seu discurso sobre a guerra na América, mas os zambus riram-se nos sítios errados.

      Quando começámos a comer, o sr. Haddy disse: - Aí vem Jones-o-homem-galinha.

      Eram os Maywit, carregados com frutas - limas, bananas, papaias -, além de mãos-cheias de mandioca e uma cabaça com qualquer coisa a que chamavam wabool. Timidamente, presentearam o pai com aquilo, que ele distribuiu por nós, dizendo:

      - Isto manterá as vossas tripas a funcionar! - Mostrou uma papaia ao Sr. Haddy e prosseguiu: - Dois dólares, no supermercado! Duas lempiras por uma!

      - Pêra-manteiga - disse o Sr. Maywit, nervoso.

      - Como é que é? - perguntou o Sr. Haddy.

      - Aqui mesmo - respondeu Francis Lungley.

      - Não estava a falar contigo - retorquiu o senhor Haddy. - Tu disse, virando-se para o Sr. Maywit -, como é que é?

      Porém, o homem estava demasiado assustado para falar.

      - Quero que todos conheçam os nossos amigos e vizinhos, os Maywit - declarou o pai.

      Eles miraram-nos, nós mirámo-los. Aquela família também tinha um pai, uma mãe e quatro filhos, mas o mais pequeno estava nu e era transportado como se fosse uma mochila, por uma das raparigas. Eram os nossos reflexos... sombras encarquilhadas de nós mesmos. O homem era baixo e tinha uma pele castanha que parecia uma casca, a mulher possuía olhos de galinha e os garotos andavam com as pernas sujas.

      - Esse é mesmo o vosso nome, Maywit? - perguntou o Sr. Haddy.

      - Não prestem atenção a este intruso - disse o pai.

      O homem murmurou um «Au» de concordância. A seguir, pestanejou para afastar as moscas das pálpebras e continuou:

      - íamos já sair da sua casa, pai.

      - Vocês não vão sair para lado nenhum. Vão ficar aqui. Tenho trabalho para fazerem.

      - Mais sarilhos - comentou o Sr. Haddy, levando os zambus a rirem-se. - Queres trabalhar?

      O homem disse que não se importava e lançou olhares zangados para os dedos dos pés.

      - Aquela é a tua casa. Podem lá ficar enquanto se mostrarem úteis - prosseguiu o pai. - Tenho uma casa minha ali, por detrás das valas, por cima do atracadouro e um pouco à esquerda do celeiro, perto dos campos de feijões.

      «Não vejo casa nenhuma», disse alguém baixinho. Os zambus, os Maywit e o Sr. Haddy percorreram os arbustos com os olhos, em busca das coisas que o pai dissera. Não havia valas, não havia celeiro, não havia casa nem campos de feijões. A seguir, ficaram a olhar para o dedo dele.

      - Só porque as não vemos, não quer dizer que não estejam lá ­declarou o Sr. Haddy, que teve um ataque de riso.

      O pai continuava a sorrir para os arbustos quando Clover se queixou:

      - Pai, há formigas a quererem entrar na minha tenda.

      - Há formigas por todo o lado - confirmou o Sr. Haddy. - Também há tigres. Alguns desses babuínos conseguem ser maiores do que um homem adulto. Quando vinha para aqui pisei caca de macaco, no trilho.

      - Elas são pequeninas - disse a mulher dos olhos de galinha, a Sr. A Maywit.

      - Claro, são pequeninas - confirmou o Sr. Maywit pegando numa formiga com os dedos e atirando-a para longe, não o fazendo com nojo mas sim com gentileza, com uma espécie de pena.

      - Prestem atenção ao que diz essa gente - disse o Sr. Haddy. ­Sabem do que estão a falar. Vivem aqui. Perguntem-me coisas sobre a costa, mas não me façam perguntas sobre a selva.

      Era verdade, o Sr. Haddy sabia tudo sobre as costas marítimas, mas ali fungava e troçava da selva. Fora do seu elemento, portava-se como um palhaço.

      - Carregam folhas - afirmou o Sr. Maywit -, mas não nos fazem mal.

      - Amanhã construirei uma plataforma para essas tendas e algumas armadilhas para insectos - prometeu o pai. - Não quero formigas e aranhas a passear por cima dos meus filhos.

      - Veio da Nicarágua, pai? - perguntou o Sr. Maywit.

      - Não, não veio da Nicarágua - respondeu o Sr. Haddy. - Por que é que perguntas isso?

      - Têm lá problemas. As últimas pessoas que aqui passaram vinham de lá, da Nicarágua. - Falava de um modo lento e espantado como se tivesse acabado de acordar e se esforçasse por se interessar pelas próprias palavras.

      - Somos dos Estados Unidos - explicou o pai.

      A Sra. Maywitt soltou um suspiro de apreço e o Sr. Maywit comentou: - Isso é outro lugar, de certeza.

      O pai pousou a mão no chão esponjoso.

      - Mas agora esta é a nossa terra. Acham que é um país estrangeiro?

      O Sr. Maywit abanou a cabeça. Não, não pensava que fosse.

      O ar à nossa tinha um tom de sopa verde, como a água num tanque de peixes, e as sombras verdes subiam à medida que o Sol baixava.

      - Passa por aqui muita gente, como esses da Nicarágua? – perguntou a mãe.

      - Alguns pregadores, Ma - respondeu a Sra. Maywit olhando para a mãe com os seus olhos de galinha. - Igreja de Deus. Testemunhas de Jeová. Berram...

      - E Dunkers - acrescentou o Sr. Maywit.

      - E Dunkers.

      - Se apanhar aí algum deles... mostro-lhes onde é a porta – afirmou o pai. - Quando tivermos uma porta!

      - Não vale a pena - concluiu o Sr. Maywit.

      O Sol estava agora por detrás das colinas e apesar de o céu ainda ter luz, as sombras verdes já alcançavam a nossa árvore. No escuro, Jerónimo tinha mais substância. Tinha sons, o estalar de insectos, o piar de aves, o murmúrio aquoso do rio. Os sons davam-lhe dimensão e os odores formas. No extremo mais afastado uma ave cantava melodiosamente numa árvore.

      O pai fez um pequeno discurso na escuridão crescente.

      - Viemos para aqui em três etapas - declarou. Disse-lhes como saíra de casa a toda a pressa e fora até Baltimore, depois para La Ceiba e a seguir viajara no Little Haddy. Fez com que tudo soasse a aventura, mas na altura os acontecimentos haviam-me parecido acidentais e nada divertidos. - De que é que estávamos à procura? Pois andávamos à vossa procura.

      Disse o nome de todos os presentes, mesmo dos silenciosos zambus que tinham carregado com as sacas de sementes e os tubos de metal desde Balde-de-Peixe. Não sei como, mas conhecia os seus nomes inteiros. Para mim, o mais notável era que o pai não dormira durante dois dias. Carregara o Little Haddy e fizera setenta e cinco flexões no cais, encar­regara-se do leme ao longo da costa e durante a subida do rio, e depois levara-nos em fila indiana através do trilho até Jerónimo. Era estranho, mas ficava cheio de energia e muito falador sempre que passava algum tempo sem dormir.

      Jerry e as gémeas já tinham adormecido. A mãe cabeceava. O pai caminhava de um lado para o outro à luz da fogueira verde, agitava o ar enfumarado e dizia que se sentia feliz, que tinha planos, e que estava muito satisfeito por haver ali tanta gente para testemunhar aquele momento histórico.

      Afirmou que não acreditava em acasos.

      - Andava à vossa procura - declarou - e que faziam vocês? Estavam à minha espera. Se não estivessem à minha espera, teriam ido para outro lado qualquer. Mas não, estavam aqui quando cá cheguei. Preciso de vocês, boa gente, e tenho a sensação de que vocês precisam de mim.

      Toda a gente concordou que era assim mesmo. Francis Lungley afirmou:

      - Fui até ao rio sem saber porquê. Tinha de lá ir. Foi então que vi aparecer aquele velho barco.

      - Foi por isso que espreitei pela janela - disse o Sr. Maywit, com o mesmo tom de voz mistificado. - Não sei porquê. Avistei este homem dos Tados Nidos. De pé na erva. Foi por isso.

      - E eu tive um sonho - declarou o Sr. Haddy. - A respeito de um homem. E este foi o homem, porque usava as mesmas roupas que o homem do meu sonho e um chapéu em bico. Tinha-o visto no meu sonho.

      Eu sabia que o Sr. Haddy estava a gozar. Ele mesmo me contara que encontrara o pai no cais de La Ceiba e pensara que fosse um missionário da Igreja Morávia. Resolvi não o contradizer naquele momento porque o ambiente em volta da fogueira de acampamento, em Jerónimo, se tornara muito solene.

      - Fui enviado para aqui - disse o pai. - Não lhes vou dizer quem me enviou, nem porquê. Não lhes vou dizer quem sou nem o que vou fazer. Isso seria apenas conversa. Vou mostrar-lhes por que estou aqui. Esperem e verão. Se não gostarem do que irão ver, podem matar-me.

      O cansaço provocara-lhe uma voz rouca. Repetiu mais uma vez, numa espécie de silvo: «Podem matar-me», e depois calou-se. Ouviram-se murmúrios. O Sr. Haddy coçou o dedo grande do pé e afirmou que nunca ousaria fazer uma coisa dessas, matar o pai, mas que esperava ver a sua lancha reparada muito em breve.

      - Não vim aqui para vos dar ordens - prosseguiu o pai. - Vim aqui para trabalhar para vocês. Se não trabalhar o suficiente, digam-mo e eu trabalharei mais. Venham até mim e digam: «Senhor, vai ter de fazer muito melhor do que isto.» Estou a trabalhar para vocês, boa gente, e irão ver coisas que nunca antes viram. O que é que querem que faça primeiro? Vocês é que sabem.

Ninguém falou.

      - Querem comida? - perguntou o pai. - Querem uma ponte, feijões, uma bomba e um galinheiro?

      O Sr. Maywit pigarreou.

      - Ouvi-o - disse o pai - e obedecerei. Esses índios aí em cima nas colinas olharão para baixo, para aqui, e não vão acreditar no que os seus olhos irão ver. Ficarão febris de espanto.

      Todos os que o escutavam estavam como que petrificados. Os únicos sons eram os da selva, e uma palmada aqui e acolá quando alguém esmagava um mosquito. Para lá das tendas e da nossa pequena fogueira, a selva era negra. Uma negritude que gritava e grunhia, que se erguera e nos envolvera nos seus ruídos e nas suas pregas agridoces. Os insectos escondidos estavam excitados e as árvores escureci das soltavam sons como os das vassouras.

      - Agora, vamos para a cama - declarou o pai - ...antes que sejamos comidos vivos pelos insectos.

      Disse-o, mas ficou junto do fogo.

      - Não vai dormir? - perguntou o Sr. Haddy.

      - Nunca durmo! - respondeu o pai.

      No dia seguinte plantámos os feijões miraculosos. O pai transformou o acto numa cerimónia. Alinhou os homens e fê-los cavar com pás de fabrico caseiro, tábuas que cortara e a que dera a forma de lâminas. O Sr. Haddy não cavou, declarando: «Não sou um agricultor, sou um marinheiro», a que o pai retorquiu: «Ele não quer que os seus dedos preênseis se sujem.» Os homens, ombro com ombro, cavavam a terra. Não era difícil. O alemão Weerwilly tivera ali uma horta, ainda lá se encontravam muitas das estacas dos seus feijoeiros.

      A meio da tarde havíamos arrancado cerca de um acre de ervas. O pai foi buscar as sementes dos feijões. Chamavam-se «feijões miraculosos», explicou, porque eram de uma variedade que produzia em quarenta dias. Deu nomes aos primeiros que plantou: «este é o capitão Haddy», disse, levantando um feijão. «Este é o Francis» e levantou outro. A seguir metia-os nos buracos. «Este aqui é o senhor Maywit. Este é o Charlie, este é o Jerry...»

      Caminhava ao longo dos sulcos e quando se lhe acabaram os nomes começou a semear mais depressa. Metade do campo ficou com feijões miraculosos, e o resto com milho, tomates e pimentos... Eram as sementes que trouxera de Florence, no Massachusetts. Durante a tarde choveu. O pai disse que já o esperava e que aquilo também fazia parte da cerimónia.

      Naquela noite, quando ficámos sozinhos, a mãe perguntou-lhe: - Não estarás a exagerar um bocado, Allie?

      O pai limitou-se a rir e disse que fora sua intenção tirar-nos para fora dos Estados Unidos, para nos salvar. Não pensara em vir também a salvar outras pessoas. No entanto, era o que estava a acontecer. Se não tivéssemos ido para ali, aquela gente limitava-se a preguiçar e os abutres acabariam por os comer.

      - Quero dar às pessoas uma oportunidade de mostrarem o que sabem - declarou.

      No dia seguinte perguntou ao Sr. Maywit qual era a sua ocupação.

      - Fui sacristão outrora. Em Limon - respondeu o Sr. Maywit. ­

      Polia os metais, deixava-os a brilhar. Punha as flores. Pendurava os números no quadro. Limpava os urinóis.

      O pai ficou com um ar desencorajado.

      - Também sei fazer barbas.

      - E cortar o cabelo?

      - Cortar o cabelo e pentear. Fazer caracóis com o ferro. Enrolar e alisar. E também sei como encerar...

      Pequenos ratos nocturnos, chamados pacas, roíam-nos os cantos das tendas. Comemos pacas. Sabiam bem e o pai disse que era uma justiça poética. Construímos uma plataforma de madeira para as tendas, para que ficassem secas por dentro e se mantivessem direitas, pois as estacas das espias não se aguentavam no chão molhado.       No rio montámos uma armadilha em forma de funil que conduzia os peixes para uma caixa de arame. De uma estrutura simples com um telhado e parte da rede mosquiteira, construímos um abrigo à prova de mosquito, onde nos juntávamos. Aquilo eram engenhocas e não invenções, mas tornavam a vida mais confortável e poucos dias depois já se conseguia ver o esqueleto de uma colónia a surgir em Jerónimo.

      Todas as noites os zambus viravam-nos as costas e desapareciam na selva. Reapareciam todas as manhãs, com um ar enrugado e húmido. Tinham lá um acampamento, disse o pai. Quando chegou o fim da primeira semana, o Sr. Haddy deixou Jerónimo com alguns zambus. O Sr. Haddy não voltou logo, mas os zambus regressaram puxando trenós feitos com troncos por meio de arneses que o pai fizera para eles. Nos trenós vinha o resto dos nossos abastecimentos que ainda se encontravam no Little Haddy.

      As caldeiras, os depósitos e o resto dos metais velhos foram arrastados para um lado e empilhados. O pai utilizou alguns dos tubos para a sua primeira invenção verdadeira em Jerónimo, uma simples roda de pés que fazia mover uma fiada de cocos cortados ao meio, numa torre montada na margem do ribeiro, e que tirava água para dentro de um bidão. A altura a que se encontrava o bidão dava à água força suficiente para a conduzirmos por canos para onde a queríamos, mas quase toda ela ia para uma barraca fechada que passou a chamar-se a «casa dos banhos». Lavávamos aí as roupas, tomávamos duches, fervíamos água para beber. Aquilo também melhorou a nossa vida.

A água em excesso corria por uma vala feita com pedras e por baixo da casa dos banhos, até uma retrete à beira da clareira, onde se encontrava a nossa latrina. A retrete estava sempre limpa, mas a latrina dos Maywitt estava sempre imunda e tão cheia de moscas que o pai afirmou:

      - Quem quer que seja que use aquele trono deve ser o deus das Moscas.

      A primeira invenção, uma bomba feita no próprio local, era uma peça de tecnologia primitiva. Os Maywit e os zambus ficaram muito impressionados com os seus movimentos e com o chapinhar da água, mas disseram que não compreendiam por que o pai fizera tal coisa durante a época das chuvas, quando havia água por todo o lado.

      - Estamos a construir para o futuro, para a estação seca - explicou o pai. Afirmou que era civilizado fazer aquilo. - E sabem por que é que é perfeita?

      - Porque não é preciso ir lá abaixo com um balde - respondeu o Sr. Maywit.

      - Isso é óbvio - continuou o pai. - Não. É perfeita porque funciona por si própria, usa a energia que aqui existe e não é poluidora. Tenta fazer uma no Massachusetts e mandam-te para um psiquiatra. Aí não estão interessados na perfeição.

      Alguns dias mais tarde, depois de uma forte chuvada, o rio encheu e a roda de pás foi arrancada dos seus suportes. O pai reforçou-a com bocados de metal, pelo que a bomba continuou a fornecer-nos água e a limpar a latrina.

      Cada vez que o pai fazia qualquer coisa, dizia:

      - É por isto que estou aqui.

      Uma das políticas do pai era de que ninguém deveria estar sem fazer nada.

      - Se alguma vez me virem sentado, façam o mesmo - afirmava. Porém, o pai até comia de pé. Parte do feijoal estava dividido em talhões, um talhão para cada criança, e tínhamos de manter a nossa parte bem mondada, assim como outras tarefas que nos estavam desti­nadas: recolher lenha e manter limpa a armadilha para os peixes. Quando as nossas tarefas terminavam, devíamos recolher pedras do tamanho de ovos de galinha e servirmo-nos delas para pavimentar os caminhos. Portanto, havia sempre qualquer coisa para fazer, o que até era bom, porque nos distraía do calor e dos insectos... e da incerteza também, porque apesar de o pai dizer: «É por isto que estou aqui», nós não sabíamos por que é que estávamos ali e tínhamos medo de perguntar.

      Nas primeiras semanas a maior parte do trabalho foi de limpeza da terra. A tarefa de remover arbustos e pequenas árvores revelou-nos melhor as actividades de Weerwilly e trouxe à luz algumas das coisas que ele abandonara. Encontrámos um arado, rolos de rede de arame para galinheiro e algumas pequenas ferramentas, bem como uma lanterna, que funcionava bastante bem, e um bidão de óleo com combustível suficiente para nos durar meses. Estas descobertas encheram o pai de entusiasmo e convenceram-no de que Werwilly falhara por ser descuidado, tal como os americanos que deitavam fora madeiras e arames em perfeito estado. Disse que se os Maywit tivessem sido um pouco mais espertos teriam encontrado aquelas coisas e que se poderiam ter servido delas para melhorar o local, em vez de andarem a brincar aos deuses das Moscas.

      Um dia, quando seguia atrás de um zambu que limpava a terra, deparei com um pássaro a agitar-se num molho de ervas. No entanto, não eram as ervas que o mantinham preso mas sim uma teia de aranha, uma espessa teia de aranha que parecia um rolo de algodão. Ajoelhei-me, desembaracei o pássaro e soltei-o, antes de pensar em procurar a aranha. A seguir vi-a, grande como a minha mão, castanha e peluda, da cor da raiz das ervas. O zambu Bucky disse-me que era uma Hanancy, e que não só apanhava pássaros como também os comia, e que se eu não tivesse cuidado era capaz de me comer também a mim. O pássaro, de uma cor de pêssego, era um dos que só apareciam durante algumas semanas por ano. Calculei que fosse uma ave migratória, demasiado inocente para ter consciência das aranhas escondidas nas ervas da selva. Fiquei algo preocupado quando me lembrei que éramos um pouco como aquele pássaro.

      No meio das ervas havia de tudo, escorpiões, cobras, arames, ossos de galinha, ratos, pacas, garrafas de vinho, ninhos de formigas e pás. Cortámos as ervas para que os mosquitos não tivessem onde se reproduzir, mas durante esse processo foram muitas as vezes em que encontrámos coisas úteis. Por exemplo, enquanto prosseguiam os trabalhos de limpeza da clareira (conduzidos pela mãe, contagiada pelo desejo do pai de limpar Jerónimo inteira para nos vermos livres de insectos), o Sr. Maywit e o pai escavavam buracos para encaixar os postes da nossa nova casa. O pai não se calava e estava sempre a dizer que o que lhe fazia falta era ferramenta para a abertura dos buracos. Nesse mesmo dia, mais tarde, Francis Lungley fez tilintar a catana de encontro a um objecto metálico. Levou-o ao pai, que afirmou tratar-se da ponta metálica de uma ferramenta para a escavação de buracos para postes.

      Fez funcionar as lâminas, que pareciam queixadas e disse:

      - Tudo o que necessita é de um par de pegas e podemos trabalhar! Levou-lhe menos de uma hora para pôr a ferramenta a funcionar. - Precisava de uma escavadora destas... e ela apareceu. Agora digam lá... foi um acidente ou trata-se de parte de um grande desígnio?

      A nossa melhor descoberta durante a limpeza da clareira foi um montão de madeira já cortada em tábuas. O pai disse que se tratava da melhor qualidade de mogno, uma madeira tão boa, que até lhe dava vontade de construir um piano. Era demasiado pesada para utilizar-se na casa, mas sabia muito bem que fazer com ela. Foi posta de lado, depois de enxotadas as serpentes que tinha no meio, e deixada a secar.

      - Descubram-me mais madeira desta ali para aquele lado - disse ele, e naquele mesmo dia descobriu-se mais madeira, mas os zambus riram-se, porque a madeira se encontrava exactamente onde o pai dissera que estaria.

      A mãe trabalhava ao lado dos zambus, usando uma das camisas do pai e com o cabelo enfiado num lenço. A ideia fora do pai, que afirmou que nenhum dos zambus deixaria de trabalhar enquanto uma mulher se mantivesse de pé a cortar arbustos. Em breve a maior parte de Jerónimo fora limpa e queimada. Parecia que houvera ali uma batalha, terra negra, troncos chamuscados, vapor e fumo a sair de buracos da terra. A cabana do Sr. Maywit continuou no seu sítio, coberta de glórias-da-manhã e no meio de uma ilha de bananeiras. O que viria a ser a nossa casa era um curral rectangular de trinta postes que se elevavam a cerca de um metro e oitenta do chão. Logo que se assentou o soalho sobre aqueles postes, os acessórios da cozinha foram retirados de debaixo da guanacaste e instalados sob as tábuas. O rés-do-chão transformou-se na nossa cozinha.

      Durante a limpeza da terra descobriram-se alguns quadrados de chapa de zinco ondulada. O pai não gostou do aspecto delas e durante um certo número de dias subiu o rio com três zambus para irem cortar bambus. Saía de manhã muito cedo e cerca de uma hora depois começavam a aparecer os bambus, cortados em bocados de dois metros e meio, flutuando rio abaixo até Jerónimo. Eram os outros zambus quem os trazia para terra, ajudados pelos Maywit e pela mãe. No entanto, a maior parte do transporte era feito pelo rio, disse o pai. Tinha um verdadeiro génio para simplificar todas as tarefas.

      Esses bambus, com cerca de doze centímetros e meio de espessura, foram cortados ao comprimento com todo o cuidado e alisados por dentro para parecerem calhas. Colocando-os por cima dos barrotes do telhado e encaixando-os como se fossem telhas, dispostos ao comprido em duas camadas, uma virada para baixo e outra para cima, conseguiu-se um telhado inteiramente à prova de água. O pai ficou tão contente que cantou: «Debaixo do bam! Debaixo do bu!»

      Fez as paredes da mesma maneira. Ficámos com quatro divisões e um pórtico, a que o pai chamou «galeria». Todo o conjunto levou enormes beirais, como uma grande casa para pássaros.

      O pai estava tão entusiasmado com a casa e com os projectos de trabalho em Jerónimo que as nossas lições pararam. A mãe afirmou que estavam a negligenciar-nos. Devíamos passar algum tempo com os garotos, disse. Então, e a nossa educação?

      - Esta é a toda a educação de que precisam - respondeu o pai. ­

      Toda a gente na América devia receber uma semelhante. Quando a América for devastada e destruída, estas são as técnicas que poderão salvar estes rapazes. Nada de poesias, ou pinturas, ou de saber qual a capital do Texas... mas sim saber como sobreviver, reconstruindo uma civilização das ruínas fumegantes.

      Era o seu velho discurso sobre a guerra na América, mas agora ele achava que descobrira um remédio.

      Os Maywit e os zambus olhavam para a casa de bambus como se esta fosse um milagre.

      - Não pintam quadros, não tecem cestos, não esculpem rostos em nozes de coco, nem escavam saladeiras de madeira. Não cantam, nem dançam, nem escrevem poemas. Não são capazes de desenhar uma linha recta. É por isso que gosto deles. São inocentes. Um pouco tocados pela religião, mas isso passa-lhes. Mãe, aqui há esperança.

      Durante a construção da casa o pai encorajou-nos a vermos como ele fazia, na companhia dos garotos Maywit. Clover e April davam-se bem com as raparigas Maywit, apesar de Clover as aborrecer obrigando-as a repetirem o alfabeto vezes sem conta, e Jerry brincava com o rapaz chamado Drainy que também tinha dez anos. Não havia nenhum da minha idade, o que me deixava livre para ajudar o pai ou para brincar sozinho.

      Drainy era um rapaz de olhos de insecto, cabeça rapada e buracos entre os dentes. Tinha uma colecção de pequenos carros e bicicletas de brincar, feitos de arame de cabides. Quando brincava com o Jerry descobri alguns daqueles brinquedos e pu-los a andar pelo chão. O pai perguntou-me o que eram.

      Mostrei-lhos. Estavam muito bem-feitos. Tinham partes móveis e pareciam-se, até aos mais pequenos detalhes, com triciclos, com pedais e rodas.

      O pai ficava fascinado com tudo o que fosse mecânico. Sentou-se e estudou-os.    Depois de meditar sobre eles durante vários minutos e de os experimentar, declarou:

      - Foram feitos com a ajuda de instrumentos sofisticados. Vês como este arame está torcido e preso? Não há soldaduras, e os ângulos e curvas estão perfeitos.

      Olhou para mim e piscou-me o olho.

      - Charlie - continuou -, creio que há alguém que nos anda a ocultar ferramentas. Não avaliei bem esta gente. Davam-me jeito os instrumentos de precisão que foram utilizados para fazer isto.

      Mostrou os brinquedos ao Sr. Maywit, que disse que sim senhor, que eram do filho, de Drainy. Este foi chamado à galeria.

      - Onde é que os arranjaste? - perguntou o pai.

      - Fi-los.

      - Leva o tempo que quiseres, rapaz - continuou o pai -, mas mostra-me como é que os fizeste. Eu dou-te um bocado de arame. Agora vai buscar as tuas ferramentas e faz um para mim.

      O pai deu alguns bocados de arame ao rapaz, mas Drainy não se mexeu. Segurou-os entre os dedos com um ar estúpido, chupando os dentes.

      - Não queres mostrar-me as tuas ferramentas?

      O Sr. Maywit deu uma palmadinha no ombro do rapaz.

      - Ele não tem ferramentas.

      - Então, no fim de contas, não és capaz de os fazer? - perguntou o pai. - Sou - respondeu o rapaz.

      Drainy acocorou-se, meteu o arame entre os dentes, mastigou-o e puxou-o como se fosse um fio dentário, transformou o arame numa roda dentada, que segurou para o pai ver.

      A excitação do Sr. Maywit até o fazia gaguejar:

      - Ele... ele fê-lo... com os dentes!

      - Toma bem cuidado com essas dentuças, rapaz - disse o pai para Drainy -, e lava-as todos os dias. Precisarei delas mais tarde.

      A vida não foi nada fácil durante aquelas primeiras semanas em Jerónimo. Não era nenhum reino de coqueiros, com comida gratuita, cabanas e dias de sol, debaixo do bam, debaixo do bu. A selva era feia e inútil, não nos servia para nada. E onde estavam os animais selvagens? Havia qualquer coisa de muito teimoso nas árvores da selva, a maneira como se amontoavam umas em cima das outras, não nos dando sombra. Vi crueldade nas trepadeiras pendentes e egoísmo nas suas raízes. Foi tudo trabalho e mais trabalho, e uma rotina que nos ocupava todas as horas da luz do dia. No Unicorn e em La Ceiba, e até em Hatfield, fazíamos mais ou menos o que nos apetecia. O pai deixava-nos sozinhos e ia tratar dos seus afazeres. Em geral, eu ajudara-o, mas por vezes não o fizera. Aqui, as coisas eram dife­rentes.

      Tocava uma campainha ao nascer do Sol, altura em que o pai já tinha o lume aceso e o café feito. Os Maywit juntavam-se a nós, haviam deixado de cozinhar para si mesmos na semana da nossa chegada a Jerónimo. Depois de comermos ananases e papas de aveia, o pai gritava pelos zambus e dizia-nos quais os objectivos do dia. Aos domingos indicava-nos sempre os objectivos para a semana seguinte; terminar a casa, arranjar não sei quantos alqueires de pedras, limpar uma certa quantidade de terreno, cortar estacas para os feijoeiros, cavar valas para escoamento da água. Os Maywits ocupavam-se principalmente da horta, os zambus da limpeza do terreno e da construção, e as crianças, as dos Maywit e nós, colhiam e limpavam.

      Executávamos os trabalhos durante a manhã e à hora do almoço já fazia um calor terrível, pois estávamos em Julho. O almoço era sempre sopa quente, pois o pai tinha a ideia de que precisávamos de suar muito para nos mantermos frescos, tal como a natureza. Os trabalhos da tarde eram com frequência interrompidos pela chuva, mas esta nunca durava muito tempo e logo voltávamos às nossas tarefas. Todas as actividades terminavam ao fim da tarde, pois era então que apareciam as moscas negras e os mosquitos, cujas picadas eram uma tortura.

      Um pouco antes do pôr do Sol fazíamos bicha na casa dos banhos para nos lavarmos. Uma das regras era um duche todos os dias. Em Hatfield nunca andáramos tão limpos, mas aqui o pai tornara-se num maníaco da limpeza. Também nos obrigava a mudar de roupas diaria­mente. As roupas para lavar eram atiradas para dentro de uma selha e um dos cheiros de Jerónimo era o permanente odor a roupas a ferver. A Sra. Maywit sempre lavara as roupas da sua família no rio, mas agora servia-se da selha de zinco. O pai estava muito satisfeito por os Maywit seguirem o nosso exemplo e tomarem também um duche diário. Só os zambus continuavam a ser os mesmos, cheiravam mal como o diabo, tal como acontecia com o pai, quando se zangava.

      Nos primeiros dias havíamos passado o princípio da noite, a hora dos mosquitos, entre o jantar e a altura de deitar, no interior da estrutura à prova de insectos. Depois da casa acabada sentávamo-nos na galeria (também à prova de mosquitos) até chegar a hora de irmos para dentro. Os Maywit juntavam-se a nós com frequência. O Sr. Maywit falava-nos dos índios das montanhas e dos rios. Gostava de dar informações. Disse ser verdade o que o Sr. Haddy nos contara acerca de alguns índios terem caudas compridas. Afirmou que havia uma tribo de índios só com gigantes e outra só com pigmeus.

      A mais estranha história do Sr. Maywit era a respeito de uns índios a que chamava «Mascadores». Afirmou que os Mascadores viviam numa certa zona de Mosquitia e confessou ter pensado, quando nos vira pela primeira vez, que éramos mascadores. Estes mantinham-se escondidos em cidades secretas, na selva. Estavam ali há mais tempo que os índios Mosquitos, Paias, Tuacas ou Zambus. No entanto, não valia a pena ter medo dos Mascadores, porque eram gente pacífica e virtuosa. Também eram muito altos, construíam pirâmides e eram, sob todos os aspectos, um povo nobre.

      - Está a esquecer-se de uma coisa importante, senhor Maywit ­disse o pai. - São índios brancos. Mais brancos do que eu... e até mais brancos do que o senhor.

      Os Maywit eram da cor do café instantâneo, de cabelos avermelhados e olhos verdes.

      - Já os viu? - perguntou o Sr. Maywit.

      - O pai sabe tudo - respondeu Clover.

      - Sei desses Mascadores - declarou o pai. - Fale-nos no ouro deles, senhor Maywit.

      - Não sei nada a respeito de ouro.

      - Têm minas de ouro - continuou o pai. - Pepitas do tamanho de nozes. Martelam-nas para as fazerem fininhas e escrevem nelas. Enrolam­-nas e fazem pulseiras. Têm pó de ouro e placas de ouro... lingotes com um metro de largura.

      - Foi Haddy quem lhe disse isso?

      - Não - respondeu o pai. - Poupe o fôlego, senhor Maywit, não quero ouvir falar de índios brancos que são anjos. Quero que me fale dos diabos da Nicarágua.

      - Os que andam com cabuzes?

      - Não só esses mas também os que fazem com que as coisas saiam erradas, nos dão dores de cabeça e de dentes, pneus furados e deixam entrar os mosquitos, escondem coisas que nos pertencem e que nunca mais aparecem. Os que fazem ruídos esquisitos à noite, nos mantêm acordados, nos deitam a casa abaixo e a incendeiam.

      - Nunca ouvi falar neles - disse o Sr. Maywit. - Onde ouviu?

      - É lógico. Se existem Mascadores brancos cheios de ouro em cidades secretas, têm de existir diabos horríveis que só fazem o mal, não é assim?

      - Allie está a brincar consigo, senhor Maywit - interveio a mãe. ­Não está a falar a sério. Penso que essa sua história sobre os Mascadores foi muito interessante.

      - Mas ele já a tinha ouvido.

      - Diga-me qualquer coisa que eu não saiba. Esqueça-se dos Mascadores e dos diabos. Se acredita neles, nunca conseguirá fazer nada... passará metade da sua vida a olhar por cima do ombro. Pessoalmente, não acredito nos Mascadores, a não ser que eu seja um deles. - Fez uma careta. - O que está inteiramente dentro das possibilidades.

      Jerry disse que não acreditava nos Mascadores, April afirmou que era uma superstição parva, tal como o Coelhinho da Páscoa, o Pai Natal e Deus.

      O Sr. Maywit declarou que podíamos pensar o que quiséssemos, mas que ele acreditava em Deus e a Sr. a Maywit também. Tinham visto Deus com os seus próprios olhos na igreja do pregador, em Santa Rosa.

      - E então qual era o aspecto de Deus? - perguntou o pai.

      - Como um pássaro numa nuvem - respondeu o Sr. Maywit. – Foi o que disse a Ma Kennywick.

      - Então, o senhor não viu Deus?

      - Não, a Ma Kennwyck viu-o e eu vi a Ma Kennwyck.

      - Vivam os pregadores! - exclamou a Sr. a Maywit de olhos de galinha. - Foi uma experiência - afirmou o Sr. Maywit.

      - Sim, de certeza. Agora digam-me qualquer coisa que eu não saiba - insistiu o pai.

      - Sabe dos espíritos do mal?

      - O Sr. Haddy já me falou neles - disse eu.

      - Mas o Sr. Haddy fugiu ao assunto - continuou o pai. - Deixemos que o cavalheiro fale. Muito bem, cavalheiro, já nos provou a existência de Deus, ou seja, que Ma Kennywick gritou que o Todo-Poderoso parece um pássaro numa nuvem. Agora, diga-nos o que são os espíritos malignos.

      - Os pregadores falaram-me deles e muita gente, até os Zambus, acreditam em espíritos do mal. Em geral, pai, são fantasmas.

      - De gente morta - disse o pai.

      - De gente viva.

      - Estou a ver.

      - Toda a gente tem um espírito do mal. São iguais a nós, mas são o nosso outro eu. Têm corpos seus.

      - Portanto, metade do mundo é feito de gente e a outra metade de espíritos do mal, é isso?

      - Não interessa - respondeu o Sr. Maywit.

      A Sra. Maywit retorcia os dedos.

      - Excepto que não os conseguimos apanhar.

      - São invisíveis? - perguntou o pai.

      - Eles estão aqui - continuou o Sr. Maywit -, em qualquer lado. À espera.      Aparecem de vez em quando e fazem-nos gritar. É nessa altura que os pregadores os vêem. Nunca vi o meu.

      - E como é que sabe que eu não sou o seu espírito do mal?

      O Sr. Maywit não disse mais uma palavra. Olhou para o pai e o seu rosto cor de café ficou cinzento de medo. Apareceu-lhe uma nova ruga circular em volta dos olhos. Era como se só naquele momento compreendesse quem era aquele homem e estivesse prestes a render-se à sua própria crença.

      - Basta, Allie - repreendeu a mãe, virando-se para os Maywit.

      Não vêem que ele está a brincar?

      - Não faz mal - disse o Sr. Maywit, mas a voz tremia-lhe.

     

      O pai estava interessado no que o Sr. Maywit dissera, mas continuou a brincar e a troçar a respeito dos Mascadores e dos espíritos malignos. Tinha a certeza de que ele acreditara em parte naquilo... a história era demasiado boa para não se acreditar nela. Fantasmas vivos! índios brancos! Sabia, por experiências passadas, que o pai nunca brincava tanto, excepto quando discutia qualquer coisa séria. Se alguém tinha medo, o pai brincava. Se a pessoa tentava ser engraçada, o pai citava a Bíblia ou perguntava: «Ainda não ouviu dizer que vai haver uma guerra?»

      Era uma pessoa complicada também de outras maneiras. Depois de chegarmos a Jerónimo afirmou que podia passar sem dormir. Ficava acordado quando íamos para a cama e já trabalhava quando nos levan­távamos de manhã. Também dizia que podia passar muitos dias sem comer, que nunca adoecia e que não era mordido pelos mosquitos. Isto mistificava os Maywit e os Zambus, mas eu sabia que ele estava apenas a tentar dar o exemplo, que se trabalhássemos muito e não nos queixás­semos, os outros teriam de proceder do mesmo modo. O trabalho e a falta de sono não o deixavam irritável. De facto, nunca o vira tão feliz. A mãe, que o amava à sua maneira, também era feliz.

      Agora tínhamos uma casa e um certo número de invenções que nos facilitavam a vida. Os zambus, que havíamos encontrado por acaso na margem do rio, no Balde-de-Peixe, pareciam contentes. Andavam por ali de calções e camisas de manga curta, que a mãe lhes fizera de um bocado de lona. Os Maywit, com a ajuda do pai, melhoraram a sua própria casa.

      Os nossos feijões miraculosos já estavam meio crescidos e já mostravam vagens, que o pai afirmava que estariam prontas para serem colhidas dentro de poucas semanas. As outras culturas floresciam ao lado dos canais de irrigação. Quando se entrava em Jerónimo pelo lado do trilho, avistava-se qualquer coisa que parecia um povoado, casas, hortas, cami­nhos pavimentados com pedras e a bomba a despejar a água para o bidão. Era o lugar civilizado que o pai vira no primeiro dia, quando tudo o que nós tínhamos visto fora ervas, um montão de lama e uma cadeira fumegante.

      Tive mais sorte do que qualquer outro. Quando as gémeas se foram abaixo por causa dos problemas no estômago, e depois a mãe e o Jerry, eu não adoeci. Notei que o pai ficou a gostar um pouco mais de mim por causa disso. Tinha uma certa maneira de insinuar que se alguém estava doente era a fingir, ou, pelo menos, a exagerar. Nunca dizia: «Ele está doente», mas sim «Ele diz que está doente» ou «Ele afirma que está doente».

      - Não tenho tempo para adoecer - afirmava. - Se tivesse algum tempo livre, então se calhar ficava doente como um cão!

      Um dia, o Sr. Haddy voltou. Nessa altura já o pai começara a construção daquilo a que chamava a «fábrica», mas que de momento não passava de uma grande estrutura de troncos descascados com dois andares de altura, na concavidade do terreno já limpo. As caldeiras foram para aí. Ouvimos o motor antes de vermos o barco. O pai fez-me trepar ao cimo de um dos troncos para poder espreitar.

      - Quem é? - perguntou, tomando um tom que me pareceu zangado, o que acontecia pela primeira vez desde que estávamos em Jerónimo.

      - É o Little Haddy - respondi eu, que avistava o toldo rasgado e a pequena casa do leme.

      O pai ficou satisfeito, mas quando descemos ao rio não gostou nada do que viu. O Sr. Haddy não estava sozinho. Havia um homem com ele, um branco, que desembarcava carregado como uma mula.

      O Sr. Haddy explicou que esgotara a água do barco e a reparara em Balde-de-Peixe. A seguir descobrira que sem as caldeiras e toda aquela sucata de metal o barco flutuava com facilidade mesmo na parte do rio menos funda. Depois de passar duas semanas em Santa Rosa, para uma reparação em condições, decidira experimentar se conseguiria fazer todo o caminho até Jerónimo, navegando pelo rio Bonito, a partir do ponto em que este desaguava no Aguan.

      - Trago-lhes comida verdadeira, de Santa Rosa - referia-se a mariscos que trazia em cestos, no convés. A seguir mostrou-nos uma tartaruga morta. Tinham-lhe arrancado as barbatanas e a sua cabeça de lagarto, de bico ossudo, pendia da enorme carapaça. - É uma tartaruga.

      Porém, o pai não estava interessado.

      - Quem é esse hamburger? - perguntou. - Este é o Sr. Struss, de Santa Rosa.

      - Como está? - disse o homem, que avançou para a margem enlameada e pousou a mala. A seguir tirou os óculos escuros e tentou sorrir, mas teve de fechar os olhos à pressa por causa do sol, o que lhe deu um ar de vesgo. Era um pouco mais velho do que o pai e mais gordo e tinha manchas escuras de suor em todas as saliências do corpo, círculos debaixo dos braços e uma faixa de humidade em volta da cintura. Virou para nós o seu sorriso sofredor. - Mas que belos garotos - declarou. A seguir olhou para detrás de nós. - Ah, e construíram uma bela casa.

      - Que é que quer? - perguntou o pai, bloqueando o caminho e mantendo o homem a enterrar-se no lodo.

      Os zambus haviam pousado as ferramentas e os Maywit apareceram em molho, vindos da horta. Ficaram ali cerca de dezassete pessoas, a olhar para o pai e para o estranho.

      - O senhor Haddy disse-me que vinha para aqui. Foi suficientemente amável para me dar uma boleia.

      - É um passageiro pagante, mas fui eu que tomei conta do leme.

      Ele trabalhou com a sonda. Conhecia o caminho.

      - Já aqui estive antes. O Sr. Roper conhece-me. Não é verdade? Falava para o Sr. Maywit.

      - Não há aqui nenhum Sr. Roper - afirmou o pai. - É um caso de troca de identidades. O calor está a fazer-lhe mal.

      O Sr. Maywit soltou uns risinhos e manteve-se de boca fechada. O homem ficou confuso. Voltou a colocar os óculos de sol, pegou nas manchas de suor da camisa, agitou-a para se refrescar e continuou:

      - Vim aqui para lhes fazer uma pergunta.

      - Não estamos interessados nas suas perguntas.

      - Acabou de lhe dar resposta, irmão. Ainda bem que aqui vim, porque a pergunta é: Já estão salvos? Tenho uma curiosa sensação de que o Senhor...

      - O Senhor está no alto daquela árvore - disse o pai, apontando com o dedo cortado para um pássaro empoleirado num ramo.

      O homem ficou a olhar para o dedo do pai e até ajustou os óculos de sol para o ver melhor.

      - Vá-se embora - continuou o pai, mostrando o seu sorriso de homem surdo.

      - Não pode responder por essa gente aí...

      - Não estou a responder - declarou o pai. - No que a mim diz respeito, o senhor nem sequer abriu a boca nem fez nenhuma pergunta. Não tem autorização para a fazer. Sou dono deste sítio e não lhe dou autorização para desembarcar. Se quiser falar com esta gente, terá de o fazer em qualquer outro lado, fora de Jerónimo. A cerca de seiscentos metros para Norte daqui, encontrará um pequeno pântano. É Swamp­ mouth, a entrada em Jerónimo. Não há que enganar. Vá para lá e faça todas as pregações que quiser. Ponha-se a caminho, Sr. Struss - concluiu, entregando-lhe a mala.

      - Foi o Senhor que aqui me enviou - disse o Sr. Struss.

      - Tretas! - retorquiu o pai. - O Senhor nem faz ideia de que este lugar existe. Se assim não fosse, já teria feito qualquer coisa para o melhorar.

      - O rio não lhe pertence, irmão.

      - Está a pensar em caminhar sobre a água? - perguntou o pai. ­

      Se assim é, não diga nem mais uma palavra antes de estar a meio da corrente.

      O Sr. Struss examinou-nos. Respirava com dificuldade e tinha montes de moscas em cima dos ombros.

      - Sabem que sou um homem justo - disse-nos o pai. - Se algum de vocês quiser ir com ele, não o impedirei. Corram para o pântano e escutem o que o homem tem para dizer. Alguém está interessado?

      O Sr. Maywit e a sua mulher de olhos de galinha olharam ansiosos para o pai. Os zambus soltaram uns risinhos.

      - Desculpe, senhor Roper, não se importa...

      - Cale-se - ordenou o pai e Francis Lungley riu-se às gargalhadas.

      - É melhor fazer o que o meu marido lhe disse - interveio a mãe.

      - Encontrará algumas canoas em Swampmouth e posso dar-lhe um saco com o almoço. Não terá qualquer dificuldade em ir dali até à costa.

      - O Senhor quer-me aqui - afirmou o homem.

      - É disto que eu mais gosto em vocês - afirmou o pai -, a vossa falta de presunção. Escute, não vou tentá-lo com o martírio, portanto, desapareça e não volte cá.

      Um pouco depois, do pórtico da casa, vimos o Sr. Struss a descer o rio direito ao pântano. Numa das mãos levava a mala e na outra o saco de comida que a mãe lhe dera. Ia sozinho.

      - Imaginem - disse o pai - aquele hamburger fez todo este caminho para nos fazer uma pergunta estúpida. - Colocou o rosto muito perto do do Sr. Maywit e perguntou-lhe: - Estás salvo?

      - Sim, pai.

      A seguir fez a mesma pergunta a todos os outros, um de cada vez, e todos disseram que sim e se riram com ele. Fez-me também a pergunta e respondi que sim, mas estava junto da janela e vi que, ao ouvir-nos rir, o Sr. Struss olhava para cima. Parecia doente mas continuou a andar.

      Os dias passaram. Foram dias de sol, com muito pouca chuva e abafados de poeira. No entanto, as noites eram uma fúria, com o estridor dos insectos e os grunhidos dos pássaros, grunhidos que, por vezes, se transformavam em gritos. A escuridão ajudava-nos a ouvir os suaves ruídos provocados pelos macacos aos saltos nos ramos, enquanto os estalidos de alguns insectos eram como estalidos de combustão, como se cada arbusto e cada árvore estivessem a arder. A noite, o calor era ainda mais sufocante do que de dia e fazia com que o sono se parecesse com a morte. Era um mergulho sem sonhos no meio de toda aquela confusão.

      O pai passou esses dias a martelar... não nos disse para quê, mas os seus olhos diziam-me que os seus pensamentos eram como tempestades. Todos os homens de Jerónimo trabalhavam na «fábrica» com o pai. Até ali não passava de um esqueleto, com tubos presos a paus e os homens pendurados como macacos nas vigas, seguindo as ordens. Era um trabalho lento e durante muito tempo aquilo não se pareceu com coisa nenhuma.

      No dia a seguir à colheita do feijão, o pai declarou um feriado. Era o nosso primeiro dia livre em seis semanas de trabalho. Os zambus apanharam um pássaro chamado mutum e os Maywit trouxeram mandioca cozida, bananas e outras frutas. O pai não permitiu que se matasse nenhuma das galinhas dos Maywit.

      - Isso seria viver dos nossos capitais - declarou.

      Tivemos uma tarde de festa no pátio da frente. O Sr. Maywit e o Sr. Haddy fizeram turnos e contaram-nos histórias acerca da costa de Mosquito - piratas e canibais -, e Clover e April cantaram: «Debaixo do bam,/Debaixo do bu!»

      O pai fez um discurso a nosso respeito. Que éramos tijolos, afirmou. Depois continuou, explicando tudo o que era possível fazer com tijolos.

      Só se zangou uma vez, foi quando o Sr. Haddy gabou a comida. O pai odiava que alguém falasse de comida, de a cozinhar ou de a comer. Só os parvos o faziam. Era uma coisa egoísta e indecente, falar do sabor do que se comia.

      Afirmou que aquela era a nossa primeira acção de graças.

      Já estávamos em Agosto. O Sr. Maywit disse que o sabia sem olhar para o calendário por causa de um certo pássaro que já chegara. Era um pássaro muito pequeno e brilhante, verde e amarelo, que soltava uns sons chilreados que me fizeram pensar na música de flauta que ouvira ao rapaz da praia, na nossa primeira noite em La Ceiba.

      Continuámos a trabalhar na «fábrica». As tábuas de mogno foram içadas para os seus lugares e presas aos postes. Os pavimentos não me disseram nada, mas quando os lados começaram a subir, a estrutura tomou uma forma que me era familiar. Calculei o que era ainda antes de estar terminada.

 

      A maior parte deles, incluindo os Maywit (que tinham visto um em Trujillo), pensava que o pai enlouquecera e construíra um silo.

      - Eh! E que cereal é que lá vai meter dentro? - perguntou o Sr. Haddy, falando por todos.

      O pai respondeu que não ia guardar nada lá dentro e muito menos cereais.

      - Esperem e verão o que dali vai sair! E que continuará a sair para sem­pre! Escutem - continuou num murmúrio, ,de olhos postos na estrutura -, aquela engenhoca é eterna. Não falhará.

      Não tinha o feitio de garrafa de alguns silos, não tinha o formato de um termo, nem entradas para cereais. Era alta e quadrada, sem janelas e apenas com uma porta a seis metros de altura. Não havia escadas para a porta. Era uma simples construção de madeira, um enorme armário de mogno erguido na clareira da floresta. Era uma caixa - mas uma caixa gigantesca - com uma cobertura de lata. Uma estranheza de tal magnificência que se bastava a si própria como uma pirâmide egípcia. As suas enormes formas eram o suficiente. Não precisava de ter uma finalidade. No entanto, eu sabia que era a «Banheira das Minhocas», ampliada mil vezes.

      Mal acabou de se erguer e logo surgiram bandos de pessoas para a verem. Suponho que as marteladas eram ouvidas nos bosques. O pai recebeu bem todos esses estranhos. Eram índios das montanhas e cam­poneses de língua espanhola, crioulos e zambus. Os índios não ficavam, mas os outros faziam-no, o Sr. Harkins e o Sr. Peaselee, a velha Sra. Kennywick (a que vira Deus na igreja dos pregadores) e alguns outros. Disseram que tinham visto a casa - era assim que lhe chamavam - a subir. Maravilhavam-se com ela. Era mais alta do que as árvores e de cimo achatado, diferente de tudo o que a rodeava. Tinham-na visto de muito longe.

      Aquela curiosidade era uma vantagem. No preciso momento em que o pai necessitava de ajuda, aquela gente surgira de entre as árvores dispostas a ajudá-lo. Acabada a construção dos outros edifícios, a primeira colheita já feita e as restantes para muito em breve - era tudo o que precisávamos -, toda a gente em Jerónimo julgava que o nosso trabalho terminara. Isso fazia com que a «fábrica», como o pai lhe continuava a chamar, constituísse uma verdadeira surpresa. Para que servia? Que estava ali a fazer?

      O pai prometeu outras maravilhas, mas ainda era necessário acrescentar mais madeiras à estrutura e fazer tijolos.

      - Onde estão os tijolos, pai? - perguntou o Sr. Maywit.

      - Estás em cima deles! - respondeu o pai, apontando para o chão com o coto do dedo. - Barro! Tudo isso são tijolos à espera de serem feitos!

      Também era necessário trabalhar metais.

      - A Idade do Ferro chegou a Jerónimo - declarou o pai. – Um mês atrás estávamos na Idade da Pedra, cavando vegetais com pás de madeira e matando ratos com machados de pedra. Estamos a andar depressa. Dentro de alguns dias estaremos em mil oitocentos e trinta e dois! A propósito, minha gente, faço conta de saltar por cima de todo o século vinte.

      Havia mais canalizações naquela estrutura do que numa barragem hidroeléctrica, mas a construção continuou sem problemas. Os recém-che­gados ficavam satisfeitos por ajudar e gostavam de ouvir o pai, que falava durante todo o tempo.

      - Uma das doenças do século vinte? - disse o pai - Vou dizer-lhes qual é a pior. As pessoas não conseguem ficar sozinhas. Não toleram a solidão e por isso vão para os cinemas, comem hamburgers, publicam os seus nomes e números de telefone nos pasquins e pedem: «Por favor, telefonem-me!» É nojento! as pessoas odeiam a sua própria companhia... choram quando se vêem ao espelho! Ficam assustadas com o aspecto das suas próprias caras. Talvez isso seja a chave de tudo...

      A maior parte dos canos era encurvada, tantos canos encurvados que até uma vaca ficaria com os olhos tortos. Alguns desses canos encurvados tínhamos nós trazido de La Ceiba e outros foram feitos na forja. A forja foi construída com os primeiros tijolos e os foles (um simples fogo não era suficientemente quente) foram feitos com duas tábuas e bocados de couro. O pai poupou o maçarico e utilizou-o apenas nas ligações finais, porque não queria gastar a garrafa do gás. Os mirones que por ali andavam ficavam fascinados com o aspecto do pai com a máscara de soldar na cara, os olhos a brilharem por detrás do vidro, luvas e avental de amianto, segurando um maçarico sibilante.

      - Por que é que as coisas são cada vez piores e mais mal feitas? ­perguntava na sua voz, ecoante e enfraquecida debaixo da máscara, como se saísse de uma concha. - Por que é que as coisas não melhoram? Porque aceitamos que se estraguem! Porém, não é obrigatório que assim aconteça. Podiam durar eternamente. Por que é que as coisas são cada vez mais caras? Qualquer burro pode ver que deveriam ser mais baratas à medida que a tecnologia se torna mais eficiente. É o desespero de aceitar a senilidade da obsolescência...

      Gostavam da sua conversa, mas adoravam a chuva de fagulhas e os fragmentos de metal morto que voavam do maçarico. Ficavam espantados ao verem barras de ferro amolecer e pingar como alcatrão por debaixo da chama azul.

      O maçarico era um dos brinquedos do pai. Havia outros, como a «Caixa dos Trovões» e o «Esmagador de Átomos», e até alguns muito mais simples, como o «Castor», que trabalhava tubos e lhes abria roscas, uma espécie de mandíbula operada à mão com uma boca cheia de dentes. Para ele eram brinquedos, mas para os outros eram magia. Quando pegava num tubo enferrujado, o limpava, lhe abria roscas e o dobrava tantas vezes que ficava a parecer-se com uma manivela, todos se amontoavam para o verem trabalhar. Nesse momento era um feiticeiro de máscara de ferro transformando um bocado de sucata numa peça simétrica para as canalizações que eram o estômago e os intestinos da «fábrica». Afirmava que mesmo com aquele seu equipamento tão básico era capaz de transformar o mais simples varão ou tubo no mais minúsculo circuito de um computador.

      - Era capaz de fazer microchips do mais espesso bloco de ferro que por aí ande. Sou capaz de fazer falar o estúpido do metal. É isso o que são os circuitos de um computador... palavras e parágrafos de uma linguagem primitiva - afirmou, falando directamente para o Sr. Harkins. - Ninguém considera os computadores como primitivos... mas são... São selvagens mecânicos.

      Afirmou que estava a fazer um monstro.

      - Sou o Doutor Frankenstein! - uivou através da máscara de soldar.

      Disse que um par daqueles canos eram os pulmões, que um outro era o «buraco do traseiro» e que dois tanques eram um par de rins. Falava sempre na «fábrica» como um «ele». «Ele hoje precisa de uma moela?» ou «Isto assenta perfeitamente no fígado dele», ou ainda «Que tal este tubo para lhe servir de goela?». Harkins e Peaselee riam-se daquilo e perguntaram ao pai se o monstro tinha nome.

      - Diz-lhe, Charlie. Recordava-me do nome.

      - «Menino Gordo» - respondi. Toda a gente sussurrou o nome.

      Jerry e as gémeas ficaram surpreendidos por eu saber qualquer coisa que eles não sabiam, não apenas o nome mas também a finalidade, como funcionava e qual o seu aspecto quando estivesse pronto. Mostraram­-me um certo respeito e durante algum tempo até deixaram de me chamar «parvo» e «nabo».

      Até a mãe ficou um pouquinho curiosa acerca do modo como eu sabia aquilo. Disse-lhe que tinha visto o modelo à escala. Lembrei-me da manhã em que eu e o pai havíamos carregado a pequena «Banheira das Minhocas» na camioneta e passado pelo espantalho para fazer uma demonstração ao Polski, com o pai primeiro feliz e depois zangado, e a caixa de madeira a rosnar e a produzir um disco de gelo dentro de um copo. Lembrei-me também de mais coisas, do vedante de borracha em Northampton, do polícia, e do pai a dizer: «Nunca ninguém pensa em ir-se embora deste país. Mas eu penso nisso todos os dias!» Lembrei-me da «Casa dos Macacos» e do seu: «É uma desgraça!»

      Tudo isso fora muito longe dali, mas ao ver aquela enorme construção sem janelas, à beira da clareira, compreendi por que é que tínhamos ido para ali... Para construir o «Menino Gordo» e fabricarmos gelo.

      Este era o lugar distante e vazio de que o pai sempre falara. Aqui podia fazer tudo o que lhe apetecesse sem ter de dar satisfações a ninguém. Não havia nenhum Polski.

      - Olhamos para Jerónimo e podemos dizer em que século estamos - afirmou o pai. - Isto faz parte do nosso planeta original, com pessoas a condizer... e ainda perguntas a ti mesmo por que é que corri com aquele missionário?

      O pai encontrara a sua terra selvagem.

      As pessoas começaram a ter medo do «Menino Gordo». Tudo começou com Francis Lungley que declarou ter ouvido ruídos lá dentro, durante a noite. O Sr. Maywit disse que aquilo lançava um cheiro, não um cheiro a máquina mas a algo parecido com o bafo de um tigre.

      - Há morcegos lá dentro - acrescentou a Sra. Kennywick, o que era verdade.

      - Tem vinte e dois olhos durante a noite - disse o Sr. Haddy, o que não era verdade.

      Todos o olhavam com ansiedade, como se fosse um monstro perigoso. Ninguém queria lá entrar a não ser que o pai fosse o primeiro, mas este tinha o hábito de cantar lá dentro, o que assustava todos. Uma manhã, o Sr. Harkins declarou que o monstro se fora embora. Corremos para o exterior e vimos que continuava lá.

      - Voltou neste momento - explicou o Sr. Harkins.

      Os zambus continuavam a ouvir ruídos lá dentro. Eram vozes, vozes de bruxas, afirmavam.

      O pai disse-lhes que se acalmassem.

      - Não há nada de que ter medo - afirmou. - Nem sequer é nada de novo, não é uma invenção. - No entanto, continuaram todos com medo. - É uma maravilha, mas não é mágica. As pessoas dizem que sou um inventor. Não sou. Olhem, que faço eu aqui?

      - Sarilhos - respondeu o Sr. Maywit, que aprendera a palavra com o Sr. Haddy.

      - Vou dizer-lhes o que faço aqui... o que faz qualquer pessoa que inventa uma coisa. Estou a ampliar.

      Martelando uma caldeira, falando enquanto trabalhava, o pai explicou que a maior parte das invenções ou era adaptações ou ampliações.

      - Considerem o corpo humano - prosseguiu, dizendo que este continha toda a química e toda a física que precisávamos de conhecer. As melhores invenções são baseadas na anatomia humana. Ele próprio pedira duas patentes sobre ideias que copiara do corpo... o «Tanque Autovedante» e o «Músculo de Metal». Declarou que não havia melhor exemplo de engenharia do que a articulação da coxa humana. A tecnologia dos computadores não passava de uma desastrada imitação de um cérebro, pois o nosso sistema nervoso central era um milhão de vezes mais complicado. - Isolamento? Olhem para os tecidos gordos! - Era preciso estudar as coisas naturais. Todos os que olhassem bem para um jacaré ou para uma tartaruga eram capazes de fazer um veículo blindado. O mundo natural mostrava ao homem o que era possível num mundo sem aves não existiriam aviões. - Os aviões são apenas pardais ampliados, com espaço para meter as pernas.

      Os zambus observavam o pai e os outros escutavam, estremecendo, aquele homem que quanto mais trabalhava mais falava.

      - O que é um selvagem? Um selvagem é alguém que não se preocupa em olhar à sua volta e, portanto, não sabe que pode modificar o mundo.

      Todos olharam em volta e responderam que sim senhor, era isso mesmo.

      O pai continuou, afirmando que selvajaria era ver e não acreditar que nós próprios fôssemos capazes de fazer, o que era uma condição terrível. O homem que via um pássaro e o transformava num deus porque não era capaz de se imaginar a voar, era um selvagem dos mais primitivos. Havia tribos que não tinham o bom senso suficiente para construírem cabanas. Andavam nus e apanhavam pneumonias duplas. No entanto, viviam na vizinhança de aves que construíam ninhos e coelhos que escavavam tocas. Portanto, tratava-se de selvagens que não valiam nada, que nem sequer tinham a imaginação suficiente para se abrigarem da chuva.

      - Não estou a dizer que todas as invenções são boas. Não viram ainda que todas as invenções perigosas são invenções não naturais? Querem um exemplo? Vou dar-lhes o melhor que conheço. O queijo que se espalha em cima do pão, saído de um aerossol. Mais baixo do que isto, não se pode chegar.

      A gargalhada da Sra. Kennywick soou esquisitamente e o Sr. Haddy disse que nunca ouvira falar de queijo a esguichar de uma lata.

      - Como creme de barbear - explicou o pai. - Um nojo. E a camada de ozone? O gás da lata devora-a. Há nisso quatro coisas erradas, o queijo, o esguicho, a lata e a sanduíche. - Continuava a martelar na caldeira. - Nunca fiz nada que nunca antes existisse sob uma forma semelhante - prosseguiu. - Escolho uma coisa, ou parte de uma coisa, e amplio-a... como as minhas válvulas, o meu «Músculo de Metal» e o meu «Tanque Autovedante». Tirei essas ideias da anatomia humana, válvulas do coração, músculos estriados, as paredes do estômago. Escutem, fiz tanques de gás à prova de furos! Foi apenas uma questão de escala e de aplicação e, digamos a verdade, de aperfeiçoamento. Quer dizer, de fazer um trabalho um pouco melhor que o de Deus.

      Sempre que o pai mencionava Deus, as pessoas de Jerónimo olhavam para o céu e ficavam com um ar muito culpado e envergonhado, enco­lhendo-se como se esperassem a queda de um raio. O pai reparou nisso e mudou de assunto.

      - As pessoas falam da invenção da roda. Que é que há de tão maravilhoso, na roda? Não é nada quando comparada com um rolamento de esferas, e há rolamentos de esferas na natureza... temos um muito rudimentar, em cada anca! O desenvolvimento das lentes? Todas as invenções ópticas são um plágio do olho humano... apesar de eu admitir que o olho humano é muito inferior, em comparação.

      O Sr. Haddy disse que já antes pensara naquilo. Que tudo eram olhos e narizes, mas com nomes diferentes... e que os guindastes e guinchos no porto de La Ceiba eram como braços, apenas maiores e mais enferrujados.

      - Então está a perceber a ideia - retorquiu o pai. - E o que é isto?

      - Um sarilho - afirmou o Sr. Haddy - e aí dentro ninguém me apanha.

      - É o interior de um corpo humano. As suas entranhas e órgãos vitais. O peito. O tubo digestivo. Respiração. Sistema circulatório. Tecido gordo. Porquê construí-lo? Porque o mundo é imperfeito! É por isso que faço o que faço. É por isso que não acredito em Deus - deixem lá de olhar para cima, gentes! - porque se podemos fazer aperfeiçoamentos, então Deus não é grande coisa, pois não?

      Ninguém respondeu e ninguém ousava entrar sozinho no «Menino Gordo». Lá dentro estava escuro, demasiado fresco e cheio de canos de ferro. Não tinha janelas, o isolamento tornava-o viscoso e havia murmúrios nos cantos mais escuros.

      - Não há nada de que ter medo - insistiu o pai, olhando para mim. Percebi logo o que iria acontecer, não me tirava os olhos de cima. ­O Charlie não tem medo. Querem vê-lo subir até ao topo?

      Os rostos na clareira brilharam na minha direcção como mostradores de relógios.

      - Não sai de lá vivo - disse Francisc Lungley.

      - Um comentário ignorante - replicou o pai.

      - Pai, por que é que o Charlie está a tremer? - perguntou Clover.

      - O Charlie não está a tremer.

      Tive de obedecer.

      Estava a trabalhar nos foles. Larguei-os, limpei as mãos e olhei para todas aquelas caras de relógio. Diziam três e um quarto com as suas expressões preocupadas e perguntei a mim mesmo porquê. Alguns olhavam para mim, outros para o pai. Se não tivessem um ar tão parvo e assustado, sentir-me-ia melhor ao penetrar no «Menino Gordo»... mas assim como estavam, revolviam-me as tripas.

      - Oh, bolas! - exclamei, entrando.

      O pai fechou a porta atrás de mim e tirou-me a maior parte da luz. Tudo o que conseguia ver através das fendas do chão ainda por tapar, era o Sol a brilhar de um modo empoeirado pelas aberturas da porta lá do alto.

      Era como estar dentro de um corpo monstruoso, debaixo dos lábios frios do seu tanque-estômago. Os tubos de ferro elevavam-se ao longo das paredes. Pegajosos de massa vedante e ainda a cheirarem a soldaduras recentes, tinham um odor a ovos podres e a carne transformada em lama, e o aspecto escorregadio das pedras cobertas de limos. Onde a luz que entrava pelas fendas iluminava tubos ferrugentos, via que aquelas manchas avermelhadas se pareciam com carne. O menor movimento dos meus pés provocava um enorme ribombar... um ribombar de órgão.

      Uma semana antes escalara o exterior com toda a facilidade. No entanto, era a primeira vez que lá estava dentro sozinho, com a porta fechada, no escuro, subindo para o topo. Engoli em seco, ingerindo o pânico, e olhei para cima pois o topo era a única saída. Comecei a trepar pelos canos da secção central, pelos depósitos que o pai dizia serem rins, pelo meio do peito enferrujado até ao tubo de aço a que ele chamava «goela». Os únicos sons que penetravam naquelas paredes eram os gritos de April e Glover a brincarem com os filhos dos Maywit... lá fora ao sol.

      Ainda não havia nenhum fluido nos tubos do «Menino Gordo». Por causa do eco, era como estar dentro de qualquer coisa gigantescamente morta. As sombras eram tubos frios retorcidos que chiavam enquanto eu subia. Tomei balanço e passei para uma grelha com bicos que Drainy. Maywit fabricara com os dentes e rastejei ao longo dela, apalpando o caminho com os dedos.

      Olhei para baixo no exacto momento em que disse a mim mesmo: «Não olhes para baixo.» Fiquei a olhar. Reconheci o que vi. Aquilo não era nenhuma barriga, era o cérebro do pai, a parte mecânica do seu cérebro e as complicações da sua mente, tão forte, grande e misteriosa. Tudo me foi revelado, mas era demais para mim, como uma página de um livro, cheia de segredos, mas impressa com letras demasiado pequeninas. Estava tudo tão bem encaixado, tão bem aparafusado e ajustado que parecia ter algo de egoísta. Via que havia ali uma ordem, mas essa ordem - as suas dimensões - assustava-me. «Tal como o corpo humano», dissera o pai, mas esta era a mais sombria parte do corpo e na escuridão estavam as juntas e as articulações da sua mente, uma selva de ferro contorcido e de pançudos tanques suspensos por finos arames, cicatrizes de soldaduras, canos que eram trepadeiras, o peso das pontas de metal apontadas para o tecto como forquilhas, e por todo o lado o equilíbrio de pequenas dobradiças.

      Fiquei tonto. Não conseguia compreender o suficiente para me sentir seguro. Pensei para comigo: «É possível morrer aqui... ou enlouquecer, se se ficar fechado cá dentro.»

      Esforcei-me por atingir a porta e abri-a. Lá em baixo vi chapéus de palha. Alguém - não o pai - gritou para mim. Encostaram uma escada ao «Menino Gordo» e deixaram-me descer, olhando para a minha cara com um ar muito preocupado.

      - Afinal não veio a berrar! - afirmou Francis Lungley.

      - É a tua vez, Fido! - disse o pai, empurrando Lungley para a porta. - Lá para dentro! Leva o tempo que quiseres... habitua-te a isso!

      Um a um, mandou-os a todos lá para dentro e bateu com a porta, fazendo-os trepar pelos tubos até à saída superior, para que perdessem o medo. Só o não fez com a Sra. Maywit, a Sra. Kennywick e as crianças. Afirmaram que não se importavam, que estavam dispostas a fazê-lo, mas o pai respondeu:

      - Isso é tudo o que interessa... estar pronto para o fazer!

      Afirmou que enviava as pessoas lá para dentro para que dominassem o medo. Acreditei nele, mas também imaginei que os queria espantar com a sua habilidade de ianque e dar-lhes um relance da sua mente, do modelo que estava dentro do «Menino Gordo». Claro que não o mencionei, sabia o que vira. Por outro lado fiquei satisfeito por o pai me ter forçado a lá entrar... estava a fazer de mim um homem.

      Todos compararam a experiência com coisas diferentes. O Sr. Maywit disse que era como estar na torre da igreja. Os zambus afirmaram que aquilo era como uma gruta que havia nas Esperanzas e o Sr. Harkins afirmou que fora como um sonho que outrora tivera, mas quando o tentou explicar a voz falhou-lhe e surgiram-lhe lágrimas nos olhos.

      - Bah! - exclamou o Sr. Haddy. - É como a casa das máquinas de alguns desses barcos das bananas. Caldeiras e tubos.

      Ao ouvir aquilo, Jerry insistiu em entrar mas o pai não deixou.

      - Espero que todos tenham admirado a rede por cima dos pulmões de evaporação - disse o pai. - Aquele belo trabalho foi obra do Drainy.

      Drainy fabricara a rede com os dentes, tal e qual como fazia os brinquedos de arame, com grampos e laços e nós que mastigava, fixando-os depois com os molares.

      - Como devem ter reparado, o «Menino Gordo» não está a respirar - continuou. - É por isso que quis que o vissem agora, antes de ficar vivo. Então irá ser perigoso e será proibido lá entrar. Vai ter trabalho para fazer e nessa altura não quero ninguém a passear nas suas tripas.

      As tábuas lisas de mogno da enorme casa do gelo captavam o verde e o ouro do sol na clareira da selva e brilhavam como uma pele.

      - Vocês não vão acreditar no que ele vai conseguir fazer.

      O pai tinha orgulho na construção e estava contente por haver ali pessoas que seriam testemunhas. Ninguém duvidava nem dele nem das coisas que construía. Gostava de nos fazer andar atrás dele durante a manhã, desde a bomba no rio até à casa dos banhos e através dos campos, salientado como tudo funcionava bem, a água a chapinhar, as rodas a girarem, os híbridos a crescerem e os vegetais bem verdes. Andávamos por caminhos que havíamos pavimentado, junto de plantas que tínhamos plantado.

      O que o pai prometera no primeiro dia em Jerónimo estava agora ali para todos verem, comida, água e abrigo. Era tudo como ele predissera, mas mais ordeiro e feliz do que imagináramos. Nesses passeios de inspecção matinal, levava a mãe pelo braço e falava para toda a gente, falando para ela.

      Chamava àquele bocado de selva uma civilização superior.

      - Tal como a América poderia ter sido - dizia. - Mas a América apodreceu e tomou-se combustível. A ambição levou os piores a go­vernarem-se e os melhores caíram vítimas do sistema.

      Os zambus não sabiam de que estava ele a falar, mas gostavam do modo como falava. Conseguia fazê-los rir, gritando: «Reóstatos! Termo­ dinâmica!»

      - Sou o último homem! - declarava.

      Porém, mesmo quando não dizia coisas para se divertir eu tinha de manter a cabeça baixa ou ele perguntaria:

      - De que é que te estás a rir, Charlie?

      Mas quem é que se riria de algumas das coisas que dizia?

      - Temos de manter as bocas fechadas - afirmava - ou toda a gente e mais os irmãos cairão em cima de nós, todos os pregadores e outros, abrindo estações de serviço, cinemas drive-in e restaurantes de refeições rápidas. Emitindo catálogos. Oh, claro, instalavam tudo o que pudessem. Abriam um supermercado ao lado do «Menino Gordo», para lhe roubarem os clientes! Aposto o último dólar em como instalariam um representante da Toyota em Swampmouth. Tudo isto passava a ser um parque de estacionamento desde aqui até às colinas! Enfiavam-nos com toda a porcaria pela boca abaixo!

      - Era bom ter uma loja chinesa - disse o Sr. Maywit.

      - Ah, este quer uma loja chinesa!

      - Para poder comprar sal, farinha e óleo - explicou o senhor Maywit, encolhendo os ombros.

      - Poupe o seu dinheiro - retorquiu o pai. - Para isso não é precisa nenhuma loja chinesa. O mar está cheio de sal, do melhor sal que existe, sem aditivos. A farinha será fácil de arranjar quando aquele milho estiver pronto. Nós próprios a moeremos! Olhem para ele, como cresce! Eu próprio trouxe aquele híbrido do Massachussetts. É três vezes maior do que as vossas variedades hondurenhas.

      - E o óleo? - insistiu o Sr. Harkins.

      - Já tinha ouvido, e a minha resposta é: «Amendoins!» Ali adiante, a seguir às batatas, há meio acre deles. É preciso dar-lhes tempo. Não há pressa. Vai-se embora para qualquer lado?

      Logo que se fizesse a colheita das batatas e dos inhames, o pai iria banir a cultura de mandioca. Era uma cultura de preguiçosos, como ele dizia. E a das bananas também. Na verdade nem era preciso mondar, mas a mandioca degradava os solos e não era nutritiva. Se a cultivássemos transformava-nos em tipos esquisitos.

      Continuou o trabalho no «Menino Gordo», a fixação e soldadura de mais tubos, a selagem dos tanques, o acabamento da fornalha e da chaminé. Agora, ninguém o receava. Os zambus preferiam trabalhar lá dentro, por ser muito mais fresco. Possuía paredes duplas, e o telhado e a parede ocidental haviam sido cobertos de folhas de zinco, que reflectiam os raios do Sol.

      - Se fossem painéis solares, seríamos auto-suficientes em electricidade - disse o pai. - Mas nós não precisamos nem de electricidade nem de combustíveis fósseis, esta é uma civilização superior.

      Testávamos as fugas enchendo os tubos de água. Havia esguichos finos a sair de nove junções, que o pai assinalou e vedou depois de despejados os canos. Foi então que declarou que tudo estava pronto e que ia a Trujillo com o Sr. Haddy buscar «plasma» para o «Menino Gordo».

      Encomendara amoníaco e hidrogénio. Agora queria transportá-lo até Jerónimo, mas tinha receio de despertar a curiosidade dos missionários e de vir a receber mais visitas indesejadas, tal como o Sr. Struss ou alguém da fé dos Spellgoods, ou um vendedor de Toyotas.

      - Costumava lavar os vidros da igreja com amoníaco - disse o Sr. Maywit.

      - Viva o pregador - declarou a Sr. a Maywit.

      - Deixa isso - respondeu o marido.

      O Sr. Haddy fez notar que não existia um único vidro de janela em Jerónimo, o que era verdade.

      - Pode-se fazer de tudo com o amoníaco - explicou o pai. - O relógio de amoníaco é o mais perfeito aparelho para medir o tempo que existe no mundo. Não me acreditam? - O Sr. Maywit fazia uma careta. - Escutem, o tiquetaque é a oscilação de um átomo de azoto numa molécula de amoníaco. O Francis sabe tudo a este respeito, não é?

      - É verdade, pai - disse Francis.

      - Vou servir-me de amoníaco enriquecido - continuou o pai. – O que é que pensam que andei a fazer em La Ceiba? A cuspir para o chão como os outros? Não senhor, estava a tratar do amoníaco. Esse é o meu segredo. Quanto mais enriquecido for, mais rápida será a evaporação. Depois logo vêem.

      - Já tinha ouvido dizer - afirmou o Sr. Maywit.

      - Ele faz tudo sozinho, para arranjar sarilhos - declarou o Sr. Haddy, enquanto os zambus se limitavam a olhar. - Enriquece-os. É assim mesmo.

      - É mais tóxico - disse o pai e os zambus riram-se do «tóxico» -, mas depois de estar selado no sistema, já não há perigo. E é eterno. Vejam os ácidos do vosso estômago. Eram capazes de vos abrir um belo buraco na camisa, se vertessem. Há amoníaco na natureza, sabem, nas matérias vegetais apodrecidas, na água do mar, no solo, e até na urina.

      O Sr. Maywit afirmou que também ouvira dizer aquilo.

      - Quer que vá consigo a Trujillo? - perguntou. - Compro sal e óleo para a Ma.

      O pai pousou a mão na camisa do Sr. Maywit, feita de uma saca de farinha, no sítio onde dizia La Rosa, no ombro.

      - Preciso de ti aqui, homem. A partir de agora és o meu supervisor-de­-campo. Tens de ficar, para depois me dizeres o que tenho de fazer.

      A seguir falou para toda a gente, a Sra. Kennywick, os zambus, Harkins, Peaselee, os Maywit e nós.

      - Recebo ordens de vocês - declarou. - São vocês que mandam aqui. Se querem que o «Menino Gordo» funcione, têm de me mandar descer o rio até Trujillo, para ir buscar os seus fluidos vitais.

      O pai acabou por os encorajar a dizer: «Sim, por favor, vá.»

      - Entretanto, colham alguns desses tomates. Ele... - apontou para a camisa de saca de farinha do Sr. Maywit - ... quer uma loja chinesa!

      A mãe perguntou-lhe quanto tempo estaria fora. O pai respondeu que calculava uma semana, já prevendo «impedimentos imprevistos».

No dia seguinte o Little Haddy, já preparado para o rio, abandonou Jerónimo em direcção à costa. Mas Haddy trabalhava com a sonda e o pai ia ao leme. O Sr. Haddy comentou, para que todos pudessem ouvir:

      - Este costumava ser o meu barco.

      Corremos ao longo da margem quase até Swampmouth, mas perdemo­-los de vista no meio da espessa folhagem que o pai comparava com velhas notas de dólar.

 

      Com o pai longe dali, Jerónimo ficou em sossego, não havia discursos e as marteladas acabaram. Os únicos sons eram os da água a chapinhar na bomba e a correr nas valas. O resto era o habitual murmúrio da selva, tão contínuo como o silêncio, aves, insectos e gritos de macacos, que mudavam de tom com o calor e se transformavam num uivo reprimido depois do cair da noite.

      A mãe não se encarregou de tomar conta de tudo. Quando O pai andava por ali, fazíamos as coisas à maneira dele e andávamos sempre de um lado para o outro, mas a mãe não inventava nada e não fazia discursos. Quando falava era em geral para pedir com toda a delicadeza que lhe explicassem a maneira local de fazer qualquer coisa.

      Um bom exemplo foi o da seca dos pimentos. Depois de os pequenos pimentos vermelhos aparecerem nos arbustos, o Sr. Maywit disse que precisavam de ser secos. Se o pai lá estivesse teria fabricado uma banheira de dez lados, de folha de metal, a que chamaria «Tremonha dos Pimentos» ou algo desse género, própria para secar pimentos, tal como fizera a armadilha para peixes, a casa dos banhos e as telhas de bambu.

      A mãe pediu à Sra. Kennywick e à Sra. Maywit que lhe explicassem como enfiar os pimentos e pendurá-los a secar.

      - Vocês é que sabem - declarou a mãe.

      Foi um dia inteiro de trabalho, enfiar os pimentos nos fios. A mãe e as outras mulheres sentaram-se lado a lado, numa esteira colocada no pátio, amarrando os pimentos a bocados de fio que no fim ficavam com o aspecto de uma peça de fogo-de-artifício. O pai não o faria e de certeza que não se sentava no chão. Primeiro construiria uma cadeira, provavelmente reclinável, com uma superfície de trabalho, ope­rada a pedais, e sem necessitar de manutenção. «Olha como ela se ajusta aos contornos do corpo, mãe!»

      A mãe fez com que os zambus lhe ensinassem a limpar e a esfolar animais como as pacas, e como pregar peixes numa tábua, para os secar, e também como defumar carne. Eram métodos lentos, sujos e tradicionais, mas não estava com pressa, disse ela. Essas actividades tornaram-se nas nossas lições em Jerónimo, as tarefas caseiras da gente da selva, a preparação das coisas que colhíamos ou caçávamos. Não tínhamos liberdade para brincar enquanto não dominássemos essas lidas.

      Esta era uma maneira muito diferente da do pai. O pai era um inovador que não se importava nada de pôr uma dúzia de pessoas a limpar madeira ou a cavar valas sem lhes explicar para quê, e só no fim afirmaria: «Acabaram de realizar um grande aperfeiçoamento!» Ou então pedia-lhes que adivinhassem a finalidade de uma determinada coisa (até àquele momento ainda ninguém adivinhara para que servia o «Menino Gordo»), e ria-se quando lhe davam a resposta errada. Tinha a sua própria maneira de fazer as coisas e gostava de dizer às pessoas que os métodos por elas utilizados eram apenas uma perda de tempo e de esforço. «Agora vou mostrar-lhes como deviam ter feito», diria, e quando elas ficassem de boca aberta, acrescentaria: «Então, o que é que acham disto?»

      Nunca fora um bom ouvinte, mas sabia que não precisava de ouvir. Tínhamos escutado a sua voz onde quer que houvéssemos estado, mas desde o dia da chegada que a tagarelice do pai fora tão constante como a dos gafanhotos de Jerónimo, que cantavam de manhã à noite, e conseguia ser ainda mais alta do que os gritos dos macacos uivadores. Agora, porém, a sua voz desaparecera. Não se construía nada, não havia inspecções, a forja estava fria. Não se falava de «alvos», não havia sessões na galeria e deixámos de ouvir dizer: «Só preciso de quatro horas de sono!»

      Limpávamos a armadilha para os peixes, mondávamos a horta e apanhámos os primeiros tomates. A mãe dirigia as coisas com delicadeza, dando sugestões e não ordens. Fez pão de mandioca, coisa que o pai nunca pensara fazer. A Sra. Maywit deu-lhe a receita. A Sra. Kennywick mostrou-lhe como fazer wabool de bananas apodrecidas.

      Com os seus modos calmos e inquiridores, a mãe descobriu uma coisa de espantar. Surgiu-lhe a ideia de que seria educativo para nós se aprendêssemos os nomes das árvores existentes em Jerónimo e à sua volta. Perguntou aos zambus como se chamavam e para que serviam, para poder escrever numa pequena tabuleta, que depois pregava aos troncos, para que as decorássemos.

      Descobriu então que algumas árvores da extremidade sul da clareira eram sapotilhas. Nem sequer os Maywit o sabiam. Os zambus chamavam­-lhes «chicletes» e explicaram como se extraía a seiva das árvores, que depois era fervida e batida e se transformava em placas de borracha.

      - Há aqui seiva suficiente para se conseguir uma tonelada de borracha - declarou a mãe, que achou graça à descoberta. - De certeza que isso era o que diria o Allie. Esperem até que ele o saiba... e fará galochas novas para todos!

      Trabalhar com o pai era trabalhar, trabalhar com a mãe era estudar e brincar, mas durante a maior parte do tempo deixava-nos entregues a nós próprios. Não nos sentíamos vigiados tal como acontecia quando o pai andava por ali, e a pouco e pouco aventurámo-nos cada vez para mais longe da clareira, e até para fora de Jerónimo, para longe do chapinhar da nossa água e dos gritos dos nossos macacos.

 

      Fui eu que tive a ideia de partir, abrir um trilho e instalar um acampamento. Era como um dos desafios do pai... mas desafiei-me a mim próprio para o fazer, incitando os outros. Isso dava-me coragem. Desafiámos também os filhos dos Maywit e chamámos-lhes nomes, e pouco depois todos nós chamávamos nomes uns aos outros. Alice e Drainy não tinham medo, mas os mais pequenos, Leon e Veryl (que era conhecida por «Pequenucha») eram tímidos e ficavam sempre para trás.

      Descobrimos um trilho que se afastava do rio em direcção a uma zona da selva repleta de pássaros aos gritos. Havia ali monstros, disse Drainy, e logo todos os garotos dos Maywit concordavam que era em lugares como aqueles que se encontravam os espíritos malignos. Clover disse que eram parvos por pensarem assim. Instalámos o nosso acampa­mento perto de uma profunda lagoa no meio de uma pequena clareira da selva, a cerca de meia hora de caminho de Jerónimo, no meio de árvores vermelhas e lianas.

      Drainy afirmou que havia monstros na água, pelo que nenhum deles quis entrar na lagoa. No entanto, isso era porque não sabiam nadar, mas nós sabíamos. Andarmos por ali a nadar enquanto eles nos observavam dava-nos uma sensação de superioridade e Jerry disse que eles eram uns atrasos.

      No entanto, não tinham medo dos cães-d'água, das cobras ou dos lagartos verdes. Alguns desses lagartos eram tão grandes como gatos. Se lhes disséssemos: «Ali está o teu espírito maligno naquela árvore», tremiam de medo porque não podiam vê-lo. Quando vimos um animal peludo e parecido com um porco a esgravatar entre os arbustos, Alice disse: «Oh, é uma vaca da montanha.» Para nós parecia-nos um monstro, mas aquela rapariguinha não tinha medo, portanto, também não de­víamos ter.

      Para acamparmos ali erguemos primeiro um telheiro com ramos, depois uma cabana e redes de dormir feitas de videiras. Clover e Alice fizeram-nos assentos, cavaram um buraco para uma fogueira e apanharam flores. Clover não era suficientemente forte para levar a cabo trabalhos pesados, mas sabia como pôr os garotos Maywit a trabalhar. Verifiquei que era igualzinha ao pai. Era firme como ele, não escutava o que lhe diziam e só ficava feliz se andasse a dirigir as operações.

      Havia ali uma planta parecida com um leque e que, segundo nos disse Alice, tinha raízes comestíveis. Clover pôs toda a gente a colher essas raízes em cestos de fabrico caseiro, para depois as comermos. Sabiam a cenouras cruas e chamavam-se iautias. Com aquelas raízes, mais as bananas e outras frutas que apanhávamos pelo caminho, podíamos comer refeições no acampamento.

      Clover queixou-se de que Jerry e April nunca ajudavam. Alice declarou que a «Pequerrucha» estava sempre a comer e nunca apanhava nada. Drainy lamentou-se, afirmando que trabalhava mais que todos os outros. Em Jerónimo nunca ninguém se queixava, mas aqui todos protestavam.

      Portanto, decidi inventar o dinheiro. Ter tudo gratuito não era bom. A partir de agora, disse-lhes que teriam de comprar a comida na loja do acampamento.

      - E onde é que é a loja do acampamento, meu parvo? – perguntou Clover.

      Respondi a primeira coisa que me veio à cabeça.

      - Estás sentada em cima da loja - e apontei para o banquinho dela.

      Calei-lhe os protestos nomeando-a lojista e expliquei-lhe que pequenas pedrinhas arredondadas serviriam como dinheiro, porque naquele lugar musgoso não havia muitas.

      - Quero comprar comida, Ma - disse Leon. - Onde está o dinheiro?

      - Não tenho nenhum.

      - Então trata de cavar.

      Era uma brincadeira nova e bastante boa. Partimos em busca de pedrinhas e todos nós juntámos um montinho delas. Para mim era fácil, porque quando mergulhava na lagoa podia apanhar no fundo todas as pedras que quisesse. Tornei-me na pessoa mais rica de todo o acampa­mento.

      Clover também dirigia a escola, instalada no nosso primeiro telheiro. Drainy tomava conta da igreja, uma árvore a que havíamos prendido uma cruz de arame. Erguemos vedações com ramos e num dos telheiros Drainy fez uma caixa de arame que disse ser o aparelho de rádio. O rádio era imaginário, mas o telefone era real, dois meios cocos ligados por um bocado de cordel.

      - É como ter voltado para casa - comentou Jerry.

      Não era. Era a maneira como viviam as outras pessoas, com rádios, escolas e igrejas... e dinheiro. No entanto, sentíamo-nos felizes ali no acampamento, mais felizes do que em Jerónimo. Gostava daquele lugar por ele ser secreto e acima de tudo por estar cheio de coisas que o pai proibira. Gastar dinheiro na loja e falar ao telefone eram coisas agradáveis. Quando Clover deixou de saber que mais lições dar, passei eu a ser o professor. Ensinei os Maywit a contar dinheiro, a fazerem contas de aritmética e a escrever os nomes. Jerry queria colocar uma tabuleta de «Proibida a Entrada» mas eu disse-lhe que isso só serviria para deixar as pessoas ainda mais curiosas. Em vez disso, fiz com que toda a gente ajudasse a cavar um buraco no meio do caminho, que serviria de armadilha para apanhar intrusos ou até grandes animais como as vacas da montanha. Drainy dizia que havia por ali tigres - referia-se aos gatos selvagens ou aos jaguares - e eu queria apanhar um. Enterrámos estacas aguçadas no fundo da armadilha e depois cobrimo-la com uma camada de ramos e terra para que ficasse igual ao trilho. Era à maneira dos Zambus, afirmou Drainy. O pai era capaz de nos matar por termos feito aquilo, mas ainda se encontrava na costa.

      Dissemos orações, cantámos hinos que Alice nos ensinou e levámos a cabo longos e resmungantes serviços religiosos sob o abrigo da árvore sagrada.

      Continuávamos a ajudar em Jerónimo, apanhando pimentos, mondan­do a horta, verificando a armadilha para os peixes e tratando de outras tarefas. Porém, logo que terminávamos esses trabalhos e a mãe estava satisfeita, escapávamo-nos para o nosso acampamento na selva, regres­sando a tudo o que o pai odiava. Aquilo compensava-nos de todas as coisas que nunca conseguíramos ter no Massachusetts e abafava dentro de mim uma profunda saudade pelos Estados Unidos. Foi assim que consegui vencê-la.

      Demos um nome ao nosso acampamento: «O Acre.»

      «O Acre» ajudou-me a compreender um pouco do orgulho que o pai tinha em Jerónimo. Até o termos construído, não percebia por que é que se gabava tanto do que fizera em Jerónimo. O pai insistira em que olhássemos atentamente para a horta, para os caminhos empedrados e para os trabalhos de hidráulica. Queria que nos maravilhássemos com o facto de nos mantermos secos sob a chuva, frescos mesmo nos dias mais quentes, e livres de insectos. Estava feliz e foi n'«O Acre» que percebi porquê. Olhei em volta e vi que o tipo de vida e as coisas que nós próprios havíamos feito eram nossas. Até os garotos Maywit se mostravam satisfeitos com o que tínhamos feito. No entanto, sentia que as nossas realizações eram maiores do que as do pai, porque comíamos os frutos que cresciam à nossa volta, utilizávamos tudo o que encontrá­vamos e nos tínhamos adaptado à selva. Não fora preciso trazer um barco carregado de sementes e ferramentas, nem inventar nada. Vivíamos como macacos.

      Foi Drainy quem teve a ideia de que deveríamos ser baptizados. Afirmou que iríamos todos para o Inferno se o não fizéssemos e insistiu em que fosse à maneira da Igreja de Ma Maywit, mergulhados no lago enquanto ele dizia orações por cima de nós. Parecia divertido, portanto, despimo-nos, ficando apenas com as roupas interiores, e preparámo-nos para o baptismo.

      - Eu baptizo-os - declarou Drainy. - Sei como é.

      - Só há uma coisa - disse Alice -, o Drainy não sabe nadar. Não pode baptizar-nos sem saber nadar. Pode ser apanhado pelos monstros que estão dentro da água - concluiu, afastando-se.

      - Se tens medo, podemos esquecer o assunto - afirmei, virando-me para o Drainy.

      - Não tenho medo - retorquiu, sentando-se na margem e agitando os pés dentro de água. - E vocês vão para o Inferno se não forem baptizados.

      - Não acreditamos no Inferno - declarou Clover. - Só as pessoas ignorantes acreditam no Inferno.

      - Se a Alice puxar as calças para baixo e mostrar a racha então vai mesmo para o Inferno! - disse Drainy.

      Alice estava na escola. Meteu a cabeça pela janela e gritou:

      - Drainy Roper, põe-te a andar daqui para fora! - Mal acabara de pronunciar aquela frase, Alice tapou a boca com a mão. - Não é assim que ele se chama - explicou.

      - Chamaste-lhe Drainy Roper. Roper... foi o que o missionário disse antes do pai correr com ele - afirmou Clover.

      - Esse é o nosso nome - interveio Veryl.

      - Cala a boca! - gritou Alice.

      Drainy tirou os pés de dentro do lago e disse que sim, que Roper era o nome deles. O missionário tinha razão e eram da sua Igreja. - Se ele aqui estivesse - prosseguiu - podia tratar do baptismo. - Se te chamas Roper, então por que é que te chamam Maywit? perguntou Jerry.

      - Têm dois nomes - explicou April.

      - Só temos um nome - continuou Drainy -, e não é Maywit.

      - Então, de onde veio esse Maywit? - perguntei.

      - Foi o teu pai que nos chamou assim e o meu pai concordou ­disse Alice.

      - Mas se não era o vosso nome, por que é que concordaram?

      - Porque ele teve medo.

      - Do teu pai - esclareceu Drainy.

      - Vocês são parvos! - afirmou Clover.

      - O vosso pai sabe fazer magia.

      - O que ele faz não é magia... é ciência.

      - A ciência ainda é pior - declarou Alice.

      Não quiseram acreditar-me e tive muita pena por o pai os ter feito mudar de nome.

      - Por vezes também eu tenho medo dele - concordei.

      Jerry e as gémeas riram-se de mim por eu ter dito aquilo, mas não sabiam o que eu sabia. Clover afirmou que o pai era bom e que não se devia ter medo dele. Podia fazer uma fortuna como inventor, acrescentou Jerry.

      - Então, por que é que não é rico? - inquiriu Alice.

      - Porque queria vir para aqui - disse-lhe -, para construir uma cidade na selva. Mais do que uma cidade.

      Os Maywit não ficaram convencidos e quando lhes expliquei que o pai dissera que haveria uma guerra nos Estados Unidos, limitaram-se a rir. Isso deixou-me abalado e sem saber o que dizer, pois que outro motivo poderia alguém ter para abandonar os Estados Unidos para ir suar as estopinhas na selva? Mas eu sabia outras coisas. Vira o interior do «Menino Gordo». Agora, cada vez que pensava no pai, aquela imagem regressava-me à mente, via os tanques suspensos, a selvajaria dos tubos de ferro retorcidos, tubos que pareciam um cérebro dentro de uma caixa, e todas aquelas pequenas articulações... Fora como estar no interior da casa de alguém para, depois de a estudar, ficar a conhecer melhor essa pessoa. Eu compreendia as pessoas por aquilo que elas faziam e no «Menino Gordo» vira a mente do pai, uma versão dela, enigmática, oblíqua e enorme, que me assustara.

      Foi por causa daquilo, de estarmos a falar do pai em sussurros, que desistimos do baptismo e fomos apanhar formigas. Colocávamos as for­migas a flutuar na superfície da água e ficávamos a vê-las lutar para se manterem ao de cima.

      Naquele dia, quando saímos d'«O Acre» e voltámos para Jerónimo, vimos o Little Haddy atracado. Alguns homens transportavam compridas garrafas de gás em direcção ao «Menino Gordo», enquanto outros rolavam bidões de aço por cima de troncos, que lhes serviam de carris.

      A «Pequerrucha» soltou um grito quando viu o pai. Este encontrava-se no exterior do «Menino Gordo» accionando uma bomba manual e des­pejando um dos bidões para dentro de um tubo. O que a assustara fora a máscara, uma máscara de gás que o protegia mas lhe dava um focinho e uns enormes olhos de insecto, muito salientes. No bidão via-se desenhada uma caveira e um par de tíbias.

      - Ele usa sempre aquilo quando trabalha com venenos - expliquei.

      A palavra «venenos» provocou nos garotos Maywit um efeito ainda pior do que a máscara diabólica e fê-los correr direitos a casa, com os dedos na boca.

      O pai necessitara de dez dias para transportar o amoníaco e o hidrogénio de Trujillo para Jerónimo. A mãe contou-nos a história das suas aventuras. Ameaças na cidade. Pessoas bisbilhoteiras. Soldados hon­durenhos a acusarem-no de andar a fazer contrabando de explosivos. Discussões. Quase que andara a lutar ao murro. «Quantas elevações consegue fazer?» Problemas com os abutres. Muitas dificuldades no rio, pouco profundo nalguns sítios. Raspadelas no fundo do barco e perse­guições por zambus pouco amigáveis. Mais abutres. Uma viagem lenta e perigosa. Tinham chegado a Jerónimo com a quilha a raspar no fundo do rio.

      Só havia quatro máscaras antigas, para o pai, Haddy, Harkins e F. Lungley. Por causa do perigo dos fumos não nos permitiu aproximar do «Menino Gordo» até ter completado a transferência do amoníaco e do hidrogénio e de ter selado os tubos. O pai trabalhou toda a noite sem lanternas nem fogueiras. A lua cheia dava à clareira um tom rosado e leitoso, como o da madrepérola, enquanto o «Menino Gordo» parecia um bloco de mármore escuro, um monumento ou túmulo, no meio da selva.

      Os quatro homens mascarados entravam e saíam do «Menino Gordo» e tudo o que ouvimos foi o tinir dos bidóes de aço e das garrafas de gás, e o pai a exclamar «Atenção» ou «Cuidado» e «Mexam-se», bem como o grito dos macacos uivadores a que chamavam babuínos.

      De manhã o pai estava muito excitado. Se alguma coisa tivesse corrido mal, declarou, teríamos ido pelo ar com metade do vale... e provavelmente acabaríamos por cair em Hatfield, desfeitos em bocadinhos.

      - Acabei de passar as mais perigosas doze horas da minha vida - disse.

      - Está-me cá a parecer que também foi perigoso para nós... – comentou a mãe.

      - Pois foi, mas vocês não tinham consciência do perigo, portanto, dormiram numa santa ignorância.

      - Olha que bonito! - exclamou a mãe, virando-lhe as costas.

      - Aqui, sou a única pessoa que sabe até que ponto aqueles produtos são letais.    Tomei toda a responsabilidade. Tive medo? Não senhor!

      - Podíamos ter morrido todos!

      - Nem sequer davas por nada. Posso garantir-te isso. Teriam todos sido atomizados, com um sorriso no rosto.

      - Muito obrigada! - retorquiu a mãe.

      - Não te preocupes, já está tudo selado. Na verdade, esta tarde irei pô-lo a trabalhar. - O pai viu-me à escuta à porta. - Deixa-te de sorrisos, Charlie, e espalha a notícia. Quero que toda a gente aqui esteja, para verem como é.

 

      - É por isto que aqui estou - disse o pai depois do almoço. - Foi por causa disto que para aqui vim.

      Estava de pé em frente à fornalha do «Menino Gordo», segurando numa mão-cheia de fósforos. O Sr. Haddy encontrava-se junto dele e os Maywit mantinham-se perto, com os garotos ostentando rostos acin­zentados. Clover e April estavam acocoradas no chão com os zambus, Harkins e Peaselee tinham-se sentado em barris, e a Sr. a Kennywick na cadeira de braços que arrastara para ali desde Swampmouth. Havia mais alguns estranhos a espreitar do outro lado do feijoal.

      - Aposto que ainda não sabem para que serve isto - afirmou o pai.

      - Para cozinhar - respondeu o Sr. Haddy, espetando os dentes para fora.

      - Não adivinhou. Viu o Langley e o Dixon a porem aqueles tabuleiros com água na prateleira que está dentro deste monstro. Agora vamos acender um lume com este fosforozito...

      - Motor a vapor! Caldeiras de água a ferver! - continuou o Sr. Haddy tomando ares de palhaço para os nervosos assistentes.

      - Ora, cale-se! Mas deixe-se ficar, pois não irá acreditar no que os seus olhos vão ver!

      Chamou a «Pequerrucha» e disse-lhe que, como ela era a mais nova, deveria ser a primeira a acender o fogo.

      - Quando nós todos já tivermos morrido, «Pequerrucha», ainda tu cá andarás. Poderás contar aos teus netos que participaste neste histórico dia. Podes dizer-lhes que acendeste o fogo.

      O pai acendeu um fósforo no traseiro das calças e mostrou-lhe onde o colocar. Havia alguns gravetos dentro da fornalha. A «Pequerrucha» chegou-lhes o fósforo e eles incendiaram-se.

      Os zambus taparam as orelhas, mas Kennwick soprou o ar que tinha nas bochechas e o Sr. Maywit disse: «Não faz mal.» Não se ouviu um som durante vários minutos, apenas o estralejar do fogo. As aves e os insectos de Jerónimo permaneciam em silêncio. As pessoas sustinham a respiração e ficaram de rosto reluzente por causa da espera.

      Ouviu-se um simples ruído dentro do «Menino Gordo», um som que se parecia com o de uma bolha a rebentar dentro de um líquido, e todos nós nos movemos, afastando-nos do fogo para o sítio onde se ouvira o som, mais ou menos a meio do «Menino Gordo». Agora até conseguíamos ouvir as respirações uns dos outros.

      - Chiu! - fez o Sr. Haddy, lambendo os lábios.

      - Esperem um bocado - disse o pai.

      Ouviram-se mais bolhas, o tremelicar de canos, o estalar de depósitos a encher. Havia como que um sentido de libertação dentro da barriga do «Menino Gordo», libertação anunciada por ruídos abafados. O chão vibrava por debaixo dos nossos pés. Líquidos deslocavam-se, ainda a subir, depois houve como que um impulso final que fez diminuir as vibrações e todo o conjunto pareceu agitar-se. A selva à nossa volta soltou um murmúrio ao mesmo ritmo, que era como que o pulsar de uma veia na nossa cabeça durante o desenrolar de um poderoso movimento intestinal.

      - Há uma coisa estranha a sair da chaminé - declarou o Sr. Maywit.

      - Fumo - respondeu o pai.

      - Já não lhe dói a barriga - sussurrou Drainy.

      - Isto ainda vai demorar um bocado - explicou o pai. - Instalem-se confortavelmente. Sentem-se onde estão e deixem a vossa mente vaguear. Não pensem em guerras nem em loucuras.

      - É isso mesmo o que eu penso que isto é - afirmou Ma Kennywick. O Sr. Maywit pousou os olhos de galinha no pai e perguntou:

      - Podemos rezar?

      - Se sentirem essa necessidade, pois por que não? Na verdade gostaria que não o fizessem, porque senão depois vão considerar isto como um milagre... e não o é. É apenas uma grande ampliação da termodinâmica...

      No entanto, eu conseguia ver, tanto pelos seus rostos como pelas posições, que estavam a rezar. Sentavam-se de uma maneira compacta, com os pescoços enfiados para dentro, tal como pássaros à chuva.

      De tempos a tempos o pai avivava o fogo. No entanto, não era preciso deitar-lhe muito combustível, era uma fogueira pequena e depois de o «Menino Gordo» começar a assobiar e a sussurrar, o pai manteve o fogo sempre baixo.

      - É aqui que tudo acontece - declarou o pai. - Este é o centro do mundo! Não precisam de ir a lado nenhum... estão onde é preciso estar!

      Passou-se meia hora deste modo e então o pai deixou de falar e subiu os degraus da escada. Leu o termómetro saliente e pareceu satisfeito. Mais quinze minutos, declarou, e depois de esse tempo passar voltou a subir a escada e gatinhou pela entrada.

      - Espero que não tenhamos de lá ir para o puxar cá para fora disse o Sr. Haddy.

      Algumas pessoas soltaram silvos e o Sr. Haddy e os outros olharam para a mãe.

      - Allie sabe o que está a fazer - afirmou. - Ali vem ele!

      O pai tinha a cabeça de fora na entrada. Fez uma careta mas era difícil dizer de que espécie, porque estava lá muito em cima. Acenou com a mão. Segurava numa bola branca, parecia um monte de algodão em bruto.

      - Que tem o pai ali?

      - Vocês nunca tinham visto uma bola de neve? - gritava o pai. Atirou a bola para baixo, onde se esmagou nas ervas, mais branca do que as penas de uma garça.

      Corremos para lhe tocar... e quando lhe tocámos e sentimos a mor­dedura dos seus cristais, começou a desaparecer. Mas nessa altura, em triunfo, o pai descia transportando blocos de gelo.

 

      Nesta parte do rio, a mais estreita e menos profunda que eu já vira - e eram trinta quilómetros daquilo antes de as montanhas e a selva o transformarem num fio de água -, as pessoas caíam de joelhos nas margens, acenavam-nos e rezavam. Agora já todos sabiam quem nós éramos e o que transportávamos. As notícias a respeito do «Menino Gordo» haviam-se espalhado por todo o vale do rio.

      - Alguém quer uma bebida? - gritava o pai para aquelas pessoas da margem, que nos tomavam por missionários. O Sr. Haddy pensava que aquela pergunta era muito divertida e chiava cada vez que o pai o fazia. Por isso, mais tarde, mesmo nas partes desabitadas do rio, o pai apercebia-se do olhar do Sr. Haddy e gritava: - Alguém quer uma bebida? - fazendo o homem rir-se.

      Porém, o facto de as pessoas se ajoelharem e darem sinais de respeito acabou por deixar o pai mal-disposto.

      - Os idiotas pensam que eu vim aqui para lhes impingir Bíblias!

      Éramos cinco, a bordo do barco. Além do pai, do Sr. Haddy e eu, iam também Clover e Francis Lungley. O barco não era o Little Haddy. A nossa nova embarcação, construída nas semanas depois de o «Menino Gordo» começar a produzir gelo, era uma adaptação de uma canoa escavada, de proa afilada, muito larga e de fundo quase chato. Era propulsionada por um mecanismo de pedais que fazia funcionar uma roda de pás à popa, mais ou menos como as «gaivotas» que existiam no Jardim Público de Boston. Por causa da sua forma e da carga, o pai chamava-lhe «gelocípede».

      Excepto quanto aos pedais, rodas dentadas e parte da corrente (que eram da bicicleta do Sr. Harkin - «Dei-lhe cabo da Raleigh!»), o resto do mecanismo do gelocípede fora fabricado na forja de Jerónimo, enquanto algumas pequenas peças haviam sido feitas pelos dentes de Drainy Maywit. «Aquele rapaz é um micrómetro humano!» A meio, o pai construíra uma caixa para guardar o gelo. Havia dois assentos à frente e outros dois lado a lado, junto da popa, em frente do poço dos pedais, a que o pai chamava «Poço dos Desejos» porque quem quer que estivesse a pedalar, desejava encontrar-se noutro sítio qualquer. Subíamos o rio com Francis a accionar os pedais. Era um barco perfeito para o curso superior do rio. O pai afirmava que era tão flutuante que até podíamos atravessar terrenos com ele, desde que existissem umas gotas de orvalho na relva.

      - Esta gente nunca viu uma lancha como esta - disse o Sr. Haddy.

      - Deve estar a brincar - respondeu o pai - Já viram tudo. É fácil viajar pelos rios, são como auto-estradas. Os missionários têm andado para baixo e para cima, em canoas, há anos. Francamente, não considero isto um grande feito.

      - Pois digo-lhe uma coisa - afirmou o Sr. Haddy, que gritava da proa, onde se encontrava sentado atrás de Clover -, gelo é uma coisa que os missionários não trazem!

      - É apenas uma conjectura...

      Francis Lungley riu-se da palavra.

      - Mas já aqui estiveram.

      O Sr. Haddy encolheu os ombros. Usava uma das camisas feitas pela mãe com sacos de farinha La Rosa. Nas costas dizia: «Enriquecida com vitaminas».

      - Quero penetrar num local onde os missionários nunca tenham estado - declarou o pai.

      Havia borboletas azuis deslizando apressadas para os ramos dos fetos suspensos sobre o rio, assustadas pelo barulho que provocávamos. O bater e o chapinhar da roda de pás, operada a pedais, soavam como uma máquina de lavar agitando as roupas na espuma. Conseguia reco­nhecer algumas das aves que via nas árvores, gaios e pica-paus de bico de marfim, catatuas e outras, e conhecia os gritos de algumas das que se encontravam escondidas, o súbito som de trombeta do pequeno pava, os gritos da codorniz, os estrondos do mutum. Eram as mesmas aves que viviam perto do nosso acampamento n'«O Acre», o nosso esconderijo secreto ainda desconhecido do pai e dos seus trabalhos, bem como das suas palavrosas ambições.

      - Quero levar um carregamento de gelo ao mais quente, ao mais oculto e ao mais desagradável recanto das Honduras, um local onde rezem pela água e nunca tenham visto gelo, onde nunca tenham ouvido falar em latas, quanto mais em aerossóis.

      - Mas Seville é assim - disse Francis Lungley, agitando a cabeça para baixo e para cima, enquanto pedalava. Também usava uma camisa La Rosa. A sua dizia «Molino Harinero» e «45,36 Kgs Netos». - De verdade, Seville é lixo.

      Andava a prometer Seville desde que o pai pedira que lhe indicassem o lugar mais pobre que fosse possível imaginar. Isso provocara uma das primeiras discussões em Jerónimo. O Sr. Haddy, o Sr. Harkins e o Sr. Peaselee queriam levar o gelo rio abaixo, para Santa Rosa ou Trujillo. O pai perguntara: «Para que serve isso?», e dissera que os grandes navios atracavam nesses portos e que essas cidades tinham mais electri­cidade do que a de que necessitavam.

      - Vocês só querem é impressionar os vossos amigos. Não, vamos subir o rio.

      Fora então que Francis Lungley dissera que estivera uma vez em Seville, o local mais longínquo a que era possível chegar pelo rio. O Sr. Haddy e os outros declararam que não iriam a um lugar malcheiroso e cheio de caca de morcegos, onde as pessoas não respeitavam nada e provavelmente tinham caudas. Porém, o pai ficou interessado. Francis disse que quase morrera nessa terra duas vezes, a primeira de medo e a segunda de fome. Era uma povoação a cair de podre, onde as pessoas comiam terra e se pareciam com macacos, ou eram, pelo menos, tão feias como macacos. Tinham cabelo de rato e andavam quase todos nus. Nem sequer eram cristãos.

      - Parece mesmo o sítio que me interessa - disse o pai.

      Então o Sr. Haddy concordara e dissera que os pagãos eram os melhores pescadores e os melhores remadores e concluíra:

      - Esses rapazes sabem o que é trabalho, é verdade.

      No entanto, quando começámos a chapinhar rio acima (macacos à direita, juparás à esquerda), o pai afirmou:

      - Custa-me a crer que nunca lá tenha estado nenhum missionário, para lhes comprar as almas com twinkies e queijo em aerossóis. - Ficou a olhar para um macaco num ramo: - Barras de chocolate. - Seguimos em frente. Olhou para trás, para o macaco: - Pepsi. - A seguir virou-se para os juparás: - Cigarros mentolados. - Atirou a ponta do charuto para o rio. - Faz-lhes crescer água na boca, não é?

      - Verá como é Seville, pai - disse Francis, pedalando com mais força, com a camisa La Rosa já negra de suor.

      - Quero ver uma porcaria de uma povoação que nem sequer tenha nome, onde andem à chapada aos mosquitos e a beber wabool rançoso há mais de dois mil anos. - O pai apontou para as montanhas. - Para lá daqueles obstáculos, onde tudo é um inferno e onde estão a ser assados vivos.

      - Foi pena não regressarmos à lagoa Brewer - disse o Sr. Haddy. - Algumas das suas aldeias são miseráveis.

 

      Tínhamos partido ainda antes da madrugada, tão cedo que os mosquitos nocturnos ainda se encontravam em actividade e ainda nos morderam. Cerca do meio-dia, e apesar de havermos percorrido muitos quilómetros, continuávamos muito longe das montanhas de Olancho, que assinalavam Seville e o fim do rio. Atracámos à margem para o almoço, mas esta, escondida sob matagais de arbustos de leque e metros de lianas, tinha uma vegetação tão densa que não nos foi possível sair do barco.

      A mãe preparara-nos um cesto de frutas, pão de mandioca, tomates frescos e uma bebida de Jerónimo a que o pai chamava «sumo da selva», feita de goiabas e mangas. Clover declarou que o sumo não estava suficientemente frio.

      - Está bem fresco - afirmou o pai. - Escutem, ninguém mexe naquele gelo!

      Verificou a caixa do barco para se certificar de que o gelo se aguentava. Seguia envolvido em folhas de bananeira e a caixa era forrada com borracha que havíamos extraído das árvores. No fim de contas, não nos fizera galochas.

      - É natural que se perca um bocado - disse. - Por vazamento. Por desperdício natural. Por fricção... - o pai batia-lhe com as mãos - ... devido à excessiva agitação. Não é assim, Francis?

      Francis Lungley descascava uma banana. Fazia-o com as pontas dos dedos, com gestos delicados, como quem abre um presente.

      - O que quero é saber que tal vamos, Francis.

      A aldeia de Seville ainda era longe, explicou Francis. Não sabia exactamente quanto faltava para lá chegar. Contorceu o rosto quando o pai lhe perguntou quantos quilómetros faltavam.

      - Quantos homens remavam a canoa quando cá estiveste?

      - Não foi de canoa - disse Francis. - Foi a pé. - Mostrou os pés de pele estalada.    Tinha os tornozelos oleosos por vir a pedalar.

      - Agora é que ele o diz! - explodiu o pai. – A pé! Podemos lá chegar só amanhã!

      Arrancou a corda da popa do ramo, a que estava presa, e declarou que terminara o intervalo para o almoço.

      - Se quiseres ficar aqui, podes fazê-lo - disse-me. - Não quero perder tempo à espera que enchas a barriga.

      Meti no bolso a sandes que acabara de fazer e partimos. Pouco depois, incitados pelos gritos do pai, avançávamos como se fôssemos num barco a motor.

      - Por que é que estás com essa cara? - perguntou-me.

      - Queria apanhar algumas daquelas papaias que havia lá atrás - ­respondi-lhe.

      - Estás com visões - retorquiu. - Aqui não há papaias.

      Havia, sim... pequenas papaias bravas. Nós comíamo-las n'«O Acre».

      Alice Maywit identificara-as, fora o zambu John que lhes falara delas. Descascávamo-las, esmagávamo-las com sal e plantávamos as sementes. Olhei para Francis mas este tinha os olhos postos no pai.

      - Não são peras de verdade - disse Francis. - São do mato...

      - Se temos tantas autoridades a bordo, por que é que não avançamos mais depressa?

      Nenhum rio segue a direito. Dão imensas voltas, andam de través e por vezes fazem-nos andar para trás, com a proa do barco virada na direcção oposta à que seguíamos momentos antes. Viajar pelo rio é andar sempre às voltas e nunca mais lá chegar. O Sol muda constantemente de posição, da proa para estibordo, onde se conserva durante um bocado até que uma súbita curva do rio o leva para bombordo. Pouco depois vemo-lo à popa. Sabemos que estamos a andar para a frente, mas já não temos o sol na cara, agora aquece-nos a parte de trás da cabeça. Alguns minutos depois temo-lo de novo à frente... e a seguir a estibordo. Mais um bocado e dança a toda a volta do barco e não podemos navegar por ele. Tudo o que nos indica é a passagem do tempo. Para a navegação costeira o Sol é um bom guia, mas ali só servia para nos confundir.

      Na selva, todos os rios são um labirinto, e este era mais labiríntico que a maioria... era algo que só podia ser navegado por uma pequena piroga ou por um engenhoso barco como o nosso. O pior não era parecer andarmos para trás mas sim o ficarmos com a ideia de que não íamos para lado nenhum. Chegávamos a uma margem cheia de lírios-d'água, jacintos e folhas verdes e contorcidas e avistávamos uma faixa de água. Virávamos e seguíamos por aí. Passada meia hora, quando os jacintos se tornavam mais espessos, os ramos das margens se agitavam de encontro ao barco, nos batiam na cara e punham de lado o boné de basebol do pai, compreendíamos que havíamos seguido pelo caminho errado. Ou nos encontrávamos num pântano tão cheio de plantas e tão sólido como a terra, ou numa lagoa rodeada por árvores negras, ou batíamos de encontro a troncos. Então, era preciso voltar para trás e abrir caminho através das flores e ramos espessos que antes pensávamos ser a margem. Quando passávamos essas barreiras, viajávamos pelo que aparentava ser um novo rio ou um afluente, umas vezes estreito, outras largo como um lago e sem aberturas. Por isso o Sol dava voltas e mais voltas, o pai praguejava e perguntava por que é que tínhamos de andar cinquenta quilómetros no rio, para avançar cinco quilómetros em terra?

      Fazia um mapa do rio à medida que avançávamos, marcando as zonas menos profundas, as curvas e falsas voltas, os pântanos e lagoas, todos os enganos do seu curso irregular. Era mais do que uma forma complicada... era um montão de nós, retorcidos como minhocas no Inverno e que não fazia qualquer sentido. Até o pai, que gostava de coisas complicadas, dizia que se tratava de um labirinto assim-assim e afirmava que se tivesse uma draga e uma barca cheia de dinamite lhe acabaria com todas aquelas curvas e o faria correr a direito, para que pudéssemos ver a luz do dia a banhá-lo de uma ponta à outra.

      Era este o tema da sua conversa. Quando enfiámos num pântano, levados pela tentação das águas abertas, o pai dizia: «Terei de fazer qualquer coisa a esse respeito...» Quando apareciam ilhas: «Afundo-as logo que tiver essa oportunidade.» Lagos: «Abre-se aqui um canal e encaminha-se à água... tudo o que é necessário é dinamite e mãos cheias de boa vontade.»

      O pai seguia agora à proa com Clover, enquanto o Sr. Haddy fazia o seu turno nos pedais.

      - Limpar todas estas obstruções... fazer uma qualquer espécie de draga que corte as raízes a estes sargaços e os liberte. Pôr toda esta confusão em ordem. É tão americano, não é o que todos vocês estão a pensar? O homem que quer fazer alterações permanentes nesta pacífica selva! No entanto, não disse que traria para aqui venenos e muito menos falei em transformar o rio numa rota comercial! Ah, mas como eu gostava de me atirar a isto! - exclamou, fazendo uma careta para a confusão do rio. - Deixa-me furioso!

      Estava a ficar com a cara cada vez mais vermelha e, como era alto, parecia numa posição incómoda, agachado na proa afilada do estreito barco. Mantinha as mãos nas ancas e balançava como alguém a guiar uma bicicleta sem se servir das mãos. De vez em quando espreitava o gelo e dizia:

      - Pelo menos o gelo está a aguentar-se, o que já não se pode dizer a respeito da tripulação. Pedale, senhor Haddy! Deixe lá de apanhar caranguejos! Também anda à procura de papaias?

      Passámos por um semicírculo de cabanas. Francis Lungley chamou-lhes uma aldeia.

      - Vejo sinais de corrupção - declarou o pai. - Estou a ver uma lata! - Noutro grupo de cabanas, junto à margem do rio, afirmou: ­Olha para aquilo, tudo cheio de sacos de plástico.

      Havia apenas mais uma aldeia, se é que se lhe podia chamar aldeia, pois eram apenas algumas cabanas quase sem paredes e um grupo de bananeiras. O pai mostrou-se esperançoso. Vimos dois homens sentados na beira do rio, batendo nos seixos submersos com grandes pedregulhos. Francis Lungley disse que estavam à pesca, esmagando as criaturas que se encontravam por debaixo dos seixos. Viravam-nos depois de lhes terem batido e tiravam de lá enguias esborrachadas, rãs e girinos.

      - Então devemos estar a chegar - declarou o pai.

      De súbito, Francis deu uma palmada na cabeça.

      - Tinha-me esquecido! Aquilo são árvores de mogno! - Sorriu para as árvores como se esperasse que elas lhe devolvessem o sorriso. ­É aqui perto.

      - Não as cortaram - disse o pai, muito satisfeito. - Não têm com que as cortar. Ferramentas primitivas. Não precisam das árvores para nada. Deixam-se ficar sentados a vê-las crescer. É muito bom sinal.

      Ali havia ervas a sair da água e troncos de árvores cortados no meio de charcos. Maciços de espinafres flutuavam no meio e as lianas eram negras e pendentes, como cabos de alta tensão quebrados por uma tempestade. À nossa volta tudo eram destroços verdes que podiam ser a confusão deixada por uma inundação. Seguimos pelo que devia ser o rio, de onde saíam erupções de folhas. A terra fumegava, com buracos cheios de uma água espumosa. Tudo lama e mosquitos... e era difícil de dizer onde acabava o rio e começava a terra. Não existia uma margem definida, e se não fossem as árvores altas por detrás daquilo tudo, penso que teríamos feito meia volta e voltado para trás, pois de certeza não se poderia avançar mais. Muitas das árvores mais pequenas ­estavam mortas, e nas mais mortas de todas havia umas formas castanhas estremecendo por debaixo dos ramos.

      - Morcegos - disse o Sr. Haddy. - São morcegos. - Repetiu para Clover a sua história sobre os morcegos sugadores de sangue, mas esta respondeu-lhe:

      - Não me consegue assustar.

      Observando alguns arbustos avistei rostos humanos. Eram redondos e permaneciam completamente imóveis. Não me assustei, até me lembrar que deviam ter ali permanecido durante todo o tempo, a ver-nos abrir caminho com o barco por entre os espinafres e as ervas.

      - Tenho uma pequena surpresa para vocês - disse o pai, quando os viu. Ao ouvirem aquela voz e quando estávamos ainda a olhar para eles, os rostos desapareceram. Não se moveram, desapareceram. Num momento estavam a observar-nos e no momento seguinte tinham desaparecido. Haviam-se transformado em folhas, mas nem as folhas se tinham agitado. - Foram almoçar - disse o pai. - Tragam as pranchas, vamos atrás deles. Tu primeiro, Charlie.

      - Porquê eu? - perguntei, mas sabia que não o devia ter feito. - Porque és o mais corajoso de todos nós, filho.

      Aquilo não era verdade, mas os riscos que o pai me obrigava a correr eram a sua maneira de me mostrar que não existiam riscos. A rocha de Baltimore, o pendural do Unicorn e a escalada pelo interior do «Menino Gordo» haviam sido uma espécie de treino para uma ocasião como esta. O pai queria que eu fosse forte. Sempre soubera que me andara a preparar para o pior, para aquele caminhar em bicos de pés por cima das pranchas colocadas sobre o pântano de espinafres, desviando­-me dos charcos de água espumosa e dos caules das videiras bravas.

      - Bate com os pés, Charlie.

      Bati com os pés e uma cobra, pendurada com seis voltas em torno de um ramo baixo, desenrolou-se, caiu na água e afastou-se a nadar.

      A partir daí bati com os pés nas pranchas sempre que tive oportunidade de o fazer, e um pouco mais adiante uma víbora, pequena e gorda, surpreendida pelas pancadas, enfiou-se no buraco de um tronco até só se lhe ver a ponta cinzenta da cauda.

      - Nunca se sabe, a respeito desta gente - dizia o pai. - Podem ser mascadores...

      Avançámos assim cerca de trinta metros, transportando a última prancha para a frente e repetindo o processo de modo a conseguirmos uma passarela sobre a lama. Era difícil de acreditar que estivera ali gente de pé no pântano. Como é que haviam conseguido desaparecer sem sequer chapinharem na lama?

      Atingimos uns arbustos que pareciam uma vedação e ultrapassámo-los até onde as árvores eram mais altas e possuíam troncos que pareciam espessas saias com folhos. Aves que se assemelhavam a papagaios e outras tão pequenas, que podiam ser insectos, gritavam em volta das nossas cabeças. Por cima das copas das árvores de mogno havia aves maiores, empoleiradas ou efectuando sombrios voos, como se fossem perus voadores. As suas asas provocavam sons como o de vassouras a esfregarem-se lentamente de encontro às copas. Podiam ser mutuns - ouvi-lhe os sons de contrabaixo -, mas o pai disse que eram abutres e que queria torcer-lhes os pescoços magrizelas.

      - Seville - declarou Francis, apontando para uma abertura alguns metros à nossa frente... Mais selva, excepto que era escura onde nos encontrávamos e ensolarada no local para onde ele apontava. Mosquitos e moscas descreviam espirais sob a luz e brilhavam de vez em quando.

      - Não me parece que vá gostar deste lugar - disse o Sr. Haddy. - Que espécie de casas são aquelas, pai? - perguntou Clover.

      - As casas dos seus habitantes, claro...

      Nunca admitia não saber qualquer coisa, mas aquelas casas não eram fáceis de explicar. Eram pequenos tufos salientes, feitos das mesmas ervas espinhosas que tínhamos atravessado por cima das pranchas. Uma estrutura de ramos frágeis equilibrava os molhos de ervas mortas amon­toadas no cimo. Não eram cabanas... eram mais como colmeias que precisavam de cortar o cabelo.

      - Se calhar é ali que guardam os animais, querida - disse o pai. - Aqui não há animais - afirmou Francis. - Nunca vi nenhum.

      - Então, melhor ainda - prosseguiu o pai. - Se vivem mesmo naquelas coisas, isso quer dizer que chegámos ao local certo.

      O Sr. Haddy soltou uns risinhos e virou-se para mim:

      - Os lugares certos para o pai são sempre os lugares errados para mim. O pai olhava muito contente para a aldeia miserável.

      No entanto, apenas as cabanas eram miseráveis. Aquela selva, o princípio da floresta de altitude, era alta e ordenada, pois cada árvore encontrara espaço para crescer isolada. As árvores estavam dispostas de várias maneiras, de acordo com a sua esbelteza ou com as folhas, as de folhas grandes junto ao chão, as altas e de folhas pequenas erguendo-se a grande altura e os fetos no meio. Sempre imaginara a selva como uma sufocante confusão, toda misturada como o esparguete, cruzando-se, entrecruzando-se, numa massa de peludas cordas verdes e raízes, uma diabólica salada que nos picava a cara e envolvia de rebentos.

      Não obstante, a selva ali era como uma igreja, com pilares, leques e flores suspensas e apenas uns vagos indícios da existência de um céu branco por cima do abobadado tecto de ramos. Não tinha nada de asfixiante e, apesar de estar cheia do barulho dos pássaros, era imóvel, não havia vento, nem sequer uma brisa nas sombras verdes e húmidas nem nos troncos de um castanho-azulado. Não havia confusão, era apenas uma floresta de linhas verticais, enormemente paciente e protectora. Era como estar dentro de casa com um belo telhado por cima. A sua disposição ordenada e dimensões faziam com que as pequenas cabanas que se encontravam por debaixo dela parecessem ainda mais atarracadas.

A aldeia - se era uma aldeia - estava deserta. Com a ausência das pessoas parecia-se com um acampamento improvisado, onde uns quantos viajantes - demasiado preguiçosos ou doentes para construírem abrigos decentes - haviam amontoado uns arbustos, acendido um fogo perto de uma rocha e passado uma noite desconfortável antes de partir outra vez para irem morrer a qualquer lado. O único sinal de vida era um cachorro doente que ladrava para nós por detrás de um monte de lixo, cascas de frutos e...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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