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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CRIANÇA NO TEMPO
A CRIANÇA NO TEMPO

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

A CRIANÇA NO TEMPO Ian McEwan

 

 

 

 

 

Seis

Aqueles que acham naturalmente difícil exercer autoridade sobre os filhos deveriam considerar com seriedade o uso sistemático de ameaças e prêmios. A promessa do chocolate em retribuição, digamos, ao bom comportamento na hora de dormir compensa, no cômputo geral, o pequeno estrago aos dentes, que, de toda forma, em breve serão substituídos pelos definitivos. No passado, se exigiu demasiado dos pais, que foram instados a inculcar o altruísmo em seus filhos a todo custo. Os incentivos, afinal de contas, formam a base de nossa estrutura econômica e, por necessidade, influenciam nossa moralidade; não há nenhuma razão pela qual uma criança bem-comportada não deva ter segundas intenções.

Manual autorizado de puericultura,
Departamento Real de Imprensa

As chuvas chegaram finalmente em setembro, trazidas por ventanias que deixaram quase todas as árvores nuas em menos de uma semana. As folhas entupiram os ralos, certas ruas se transformaram em canais navegáveis, casais de velhos foram retirados de apartamentos de porão por policiais calçando botas de cano alto. Houve um clima geral de crise e excitação, ao menos na televisão. Peritos em meteorologia eram chamados a explicar por que não havia outono, por que numa semana era verão e na outra já era inverno. Não faltavam teorias tranquilizadoras — a era do gelo que se aproximava, as geleiras derretendo, a camada de ozônio reduzida pelos clorofluorcarbonetos, o sol nos estertores da morte. De quartéis nas cidades que ninguém conhecia saíram soldados com pesadas bombas de sucção. Um helicóptero militar foi filmado salvando um menino de uma árvore cercada de água, e, nos noticiários, chefes de polícia e comandantes do Exército apontavam para mapas com suas varetas. O ministro do Interior, o antigo superior de Charles, foi visto visitando as áreas mais atingidas. Segundo a assessoria de imprensa do primeiro-ministro, ele estava acompanhando pessoalmente as providências. Os comentaristas mais responsáveis concordaram que o mau tempo estava sendo útil para o governo, porque, embora ninguém soubesse ainda como parar a chuva, a impressão era de que muitas coisas estavam sendo feitas. Choveu por cinquenta dias. Até que parou e a vida voltou ao normal. Já faltava pouco para o Natal.

As condições climáticas tiveram pouca influência sobre o torpor de Stephen. Acostumara-se a ver televisão de manhã e à tarde por causa dos Jogos Olímpicos. Um novo canal tinha sido criado, com o patrocínio do governo, especializado em jogos e entrevistas, anúncios e conversas com os telespectadores. Stephen, esparramado no sofá de pijama e com um grosso suéter, tendo à mão a garrafa de uísque, assistia aos programas de jogos com a paciência mesmerizada dos viciados. Num canto da sala, um balde de gelo colhia as gotas caídas do teto. Os apresentadores se pareciam tanto uns com os outros que Stephen passara a simpatizar com eles. Eram profissionais, homens dedicados, claramente seguindo instruções convencionais cujas limitações formais vez por outra eles apontavam com tiradas sarcásticas. E ele gostava dos casais docemente vulneráveis que eram recebidos no palco e nunca deixavam de se dar as mãos, as extravagantes fanfarras de clarins que poderiam acompanhar a aparição de um freezer, as assistentes seminuas com seus bravos sorrisos fixos.

As plateias, contudo, lhe provocavam surtos de delirante misantropia. Era o empenho canino em agradar o apresentador e serem agradadas por ele, sua disposição de aplaudir e dar vivas obedecendo a um comando, acenando com bandeiras de plástico que portavam o lema do programa; a facilidade com que o estado de espírito da turba era regulado, agora ela era incitada à exaltação, mais adiante faziam com que ficasse calma e séria; travessa, depois um pouco sentimental e nostálgica; constrangida, envergonhada por alguma bronca do anfitrião, depois mais uma vez alegre. Os rostos expostos às luzes dos estúdios eram de adultos, pais, trabalhadores, mas suas expressões eram as de crianças observando um mágico numa festa de aniversário. Os membros da plateia eram tomados pelo que parecia uma adoração religiosa quando o apresentador descia para caminhar entre eles, usando seus primeiros nomes, repreendendo, bajulando. Henry, ela te dá tudo que você pede? Para comer, é o que eu estou dizendo. Ela dá? Dá mesmo? Vamos, fala a verdade! Está recebendo tudo que quer? E lá estava Henry, um homem de cabelos brancos e óculos bifocais, que num terno melhor poderia ser confundido com um chefe de Estado, rindo nervosamente e olhando de modo significativo para a mulher, cobrindo depois o rosto com as mãos enquanto todos à volta gritavam e batiam palmas. Era surpresa o mundo ser liderado por débeis mentais com almas tão frágeis depositando votos na urna eleitoral, essa “gente do povo” — expressão muito usada pelos apresentadores —, essas crianças cujo maior desejo era que alguém lhes dissesse quando rir? Stephen inclinou a garrafa e tomou um gole, pronto para retirar o título de eleitor de todos eles. Mais que isso, queria puni-los, vê-los surrados para valer, não, torturados. Como ousavam ser crianças! Ele estava preparado para ouvir, homem tolerante e razoável que era, se alguém lhe explicasse para que serviam tais pessoas, e por que se deveria permitir que continuassem a viver.

Para Stephen, tais surtos — a pornografia de um democrata — eram tão agradavelmente degradantes como qualquer coisa de que pudesse se recordar. Atingiam o ápice pouco antes que decidisse lembrar que seus pais, juntamente com a irmã de sua mãe, Phyllida, o marido, Frank, e a filha já crescida, Tracy, certa vez tinham participado de uma dessas plateias de estúdio e tinham adorado a experiência. Cada um deles trouxe um medalhão com o perfil do apresentador, adornado por uma coroa de louros como um imperador, mostrando no verso um forte aperto de mãos em sinal de amizade.

Talvez este fosse o momento de se levantar e esvaziar a água acumulada no balde de gelo, preparar um sanduíche ou outro drinque na cozinha, quem sabe passar algum tempo olhando pela janela aberta a rua alagada lá embaixo. Ele tinha uma listinha de preocupações para mantê-lo ali, podendo retornar à televisão quando se cansasse de examiná-la. O longo recesso do comitê de Parmenter ainda se estenderia por quase um mês, e ele se aborreceu ao reconhecer que sentia falta das sessões semanais e da estrutura que elas propiciavam a seus pensamentos. Estava chateado por não ter sido procurado por Julie, e não poder tomar a decisão de escrever para ela sem ressentimento. Embora quisesse muito, não havia voltado a visitar os pais. Só pensava em Charles com irritação. Mais atraente que tudo isso era o aniversário de Kate. Na semana seguinte, onde quer que estivesse, ela faria seis anos.

Havia muitos dias ele pensava em ir a uma loja de brinquedos que ficava a dez minutos a pé do apartamento. A ideia era risível. Significava uma paródia do luto. A sentimentalidade intencional do gesto o fazia gemer. Seria um teatrinho, o fingimento de uma loucura que ele de fato não sentia. Mas o pensamento crescia. Poderia andar naquela direção, imaginar o que compraria. Era uma doideira, uma fraqueza, lhe causaria uma dor desnecessária. Mas o impulso continuou a crescer, e certa manhã, na loja onde comprava os jornais, pegou um rolo de papel de embalagem colorido e entregou no balcão antes de ter tempo de mudar de ideia. Comprar um brinquedo seria desfazer dois anos de adaptação, seria irracional, indulgente, autodestrutivo; e uma fraqueza, acima de tudo uma fraqueza. Fracos eram aqueles que não conseguiam manter a linha divisória entre o mundo como era e o mundo como queriam que fosse. Não seja fraco, ele se dizia, tente sobreviver. Jogue fora o papel, não se deixe levar pela fantasia, não vá por esse caminho. Pode ser que você não volte nunca mais. Não foi, mas não conseguia deixar de querer ir.

A solidão dera origem a pequenas superstições, uma tendência ao pensamento mágico. As superstições se associaram a rituais cotidianos, e, em meio ao silêncio constante que o envolvia, sua observância se tornara rigorosa. Ele sempre barbeava primeiro o lado esquerdo do rosto, nunca escovava os dentes antes de tapar de novo o tubo, dava a descarga com a mão esquerda embora isso fosse inconveniente, e ultimamente tomava grandes cuidados para colocar os dois pés no chão ao mesmo tempo ao se levantar da cama. O pensamento mágico encontrava jeitos de racionalizar a ida à loja de brinquedos.

Antes de tudo, seria um ato de fé na existência continuada de sua filha. Já que ela certamente não estaria comemorando aquela data, seria uma afirmação de sua vida anterior e da herança correta, da verdade sobre seu nascimento — ele já imaginara as mentiras que teriam lhe contado. A obediência a um culto secreto liberaria configurações de tempo e probabilidade de todo imprevisíveis, a mágica numérica dos aniversários seria acionada, acontecimentos que de outro modo jamais teriam vez seriam desencadeados. Comprar um presente demonstraria que ele ainda não tinha sido derrotado, que era capaz de fazer alguma coisa surpreendente, entusiasmada. Compraria o presente com alegria, e não com pesar, num espírito de extravagância amorosa. Ao levá-lo para casa e embrulhá-lo, estaria fazendo uma oferenda ao destino, ou um desafio: Olha, trouxe o presente, agora me traga a menina. Se a compra lhe causasse algum sofrimento, então se trataria de um sacrifício necessário. Como ele havia exaurido todas as possibilidades no plano material ao buscar pelas ruas, pôr anúncios nos jornais locais oferecendo generosas recompensas por qualquer informação, colando fotos ampliadas nos muros e nas paradas de ônibus, então só fazia sentido trabalhar no nível do simbólico e do numinoso, aliar-se às forças incognoscíveis que regiam as probabilidades, que distribuíam os átomos a fim de tornar sólidos os objetos, que estavam na base de todos os eventos físicos, em última instância de todos os destinos pessoais. E o que ele tinha a perder?

A loja de brinquedos ocupava parte de um armazém modernizado e se parecia com um supermercado. Três corredores espaçosos, fortemente iluminados, iam de uma extremidade à outra, havendo perto da porta uma fileira de caixas além de carrinhos e cestas. O chão era coberto por um tapete de borracha preta e elástica do qual emanava um cheiro estimulante e eficaz. Na parede uma placa com letras em tinta fluorescente que imitavam os garranchos de uma criança alertava que qualquer brinquedo quebrado teria de ser pago. Acima das lâmpadas com quebra-luzes em forma de cone, alto-falantes transmitiam música apropriada para crianças — um clarinete animado, um xilofone, um tambor. Era o dia do aniversário de Kate. Naquela manhã de segunda-feira em que chovia sem parar, não havia nenhum freguês na loja quando Stephen chegou. Na única caixa aberta, um homem ainda moço, com o cabelo cortado muito curto e um brinco preto, escrevia num caderno. Antes de passar pela catraca revestida de borracha, Stephen parou para tirar o casaco e sacudir o guarda-chuva.

O layout era simples. Os fundos da loja eram dominados pelo cáqui do uniforme de combate e da camuflagem de veículos, bem como pelos rebites prateados das naves espaciais fortemente armadas; a parte mais próxima à entrada, pelos tons pastel das roupas de bebê e o brilho das miniaturas de aparelhos domésticos. Com o casaco dobrado sobre o braço, Stephen circulou sem pressa por todo o estabelecimento, da carnificina para a faxina, e descobriu que os brinquedos mais interessantes ficavam no meio, onde a imitação dos adultos dava lugar à pura distração — um gorila de dar corda que subia pela parede de um arranha-céu para resgatar uma moeda, uma máquina para borrifar tinta, uma almofada que fazia barulho de peido, massa de modelar que reluzia e estalava quando manuseada, uma bola que quicava de modo imprevisível. Pôs cada um desses na mão de uma criança de seis anos que conhecia tão bem quanto a si próprio. Precisava testar as reações dela. Era uma menina reticente, ao menos na presença de estranhos, com as costas bem retas e uma franja preta. Era uma fantasista, uma sonhadora, amante de palavras que soavam esquisitas, autora de diários secretos, colecionadora de objetos inexplicáveis. Suas primeiras escolhas foram conservadoras: um conjunto de canetas coloridas e uma caixa de madeira com minúsculos animais de fazenda. Como ela preferia bichos de pelúcia a bonecas, Stephen pôs na cesta de metal um gato cinza que parecia bem real. Ela era piadista e gostava de pregar peças. Ele pegou a almofada e uma flor que espirrava água. Podia atormentar a mãe com essas coisas. Ele parou diante dos quebra-cabeças. Não era maluco, sabia o que era real. Sabia o que estava fazendo, sabia que ela tinha desaparecido. Havia refletido bastante sobre tudo aquilo, não estava enganado. Fazia tudo por ele mesmo, sem ilusões. Então continuou. Ela não tinha muita inclinação para o mundo abstrato e fechado dos enigmas. Sua inteligência se nutria do contato humano, das complexidades mais cálidas da fantasia e do faz de conta. Gostava de se fantasiar. Ele pegou um chapéu de feiticeira e, voltando atrás, trocou o gato cinza por um preto. Agora pensava ter encontrado seu tema. Apanhava rapidamente as coisas nas prateleiras: bolinhas mágicas que se transformavam em flores no contato com a água, um livro com sortilégios rimados e receitas para o caldeirão, um vidro de tinta invisível, um copo que fazia desaparecer a água derramada dentro dele, um prego que dava a impressão de ter atravessado a cabeça de quem o usava.

Sem perceber, ele se encaminhava para a seção de meninos. Não havia a menor dúvida de que ela era uma garotinha graciosa, mas muito incompetente com uma bola. Hora de aprender a fazer lançamentos. Pegou na prateleira um saquinho plástico com bolas de tênis. Passou os dedos por um bastão de críquete, bem-feitinho no tamanho adequado para uma criança, salgueiro legítimo. Será que isso estava muito fora dos padrões estabelecidos? Pegou de toda forma, era útil na praia. Agora tinha penetrado fundo no domínio dos meninos, passando por armas, facas, lança-chamas, raios letais e algemas de brinquedo, até que por fim, num reconhecimento instantâneo, deu de cara com o presente de Kate. Era um walkie-talkie de pilha, para duas pessoas, de ondas curtas e frequência modulada. Na embalagem, um menino e uma menina se comunicavam alegremente numa pequena cordilheira que parecia fazer parte da superfície lunar. Das antenas em suas mãos se projetavam arcos brancos com o formato de relâmpagos, uma representação das ondas de rádio e da excitação.

Apanhou um de uma pilha de mais ou menos cinquenta. Não cabia mais nada na cesta. Ao rumar para o caixa, sentiu de repente uma grande impaciência para chegar em casa com suas escolhas, espalhá-las no chão e relembrar a razão de cada uma. Seria ainda melhor se Julie tivesse podido fazer isso junto com ele, com suas próprias ideias, produzindo assim um conjunto mais rico de possibilidades, uma maior oferenda ao destino… Mas sabia o que era real, pensou, ao entregar uma quantia surpreendentemente alta. Sabia que Julie estava no úmido chalé com suas partitas, seus cadernos e lápis bem apontados, eliminando-o cuidadosamente de sua existência. Na pressa, esqueceu-se do guarda-chuva na entrada, porém seus impulsos audaciosos se confirmaram quando parou de chover enquanto atravessava o estacionamento vazio na frente da loja.

Em casa, desembrulhou o walkie-talkie por último. Ao colocar as pilhas, caiu em suas mãos um retângulo de papel. O alcance máximo do aparelho, ali se dizia, obedecia às normas governamentais. Colocou um dos aparelhos no chão, bem no final do longo corredor, perto da porta de entrada. Deu vários passos para trás, trouxe o outro aparelho à altura da boca e apertou o botão de transmissão. Tinha a intenção de dizer um, dois, três, mas, porque não havia ninguém lá para julgá-lo, porque sabia exatamente o que estava fazendo e não era maluco, começou a cantar “Parabéns pra você” numa voz rouca de barítono enquanto recuava ao longo do corredor. Da outra ponta chegou a representação simplificada de uma voz, baixinha, misturada a estalidos, com consoantes sem brilho e vogais abafadas. Na verdade, podia ser uma transmissão feita da lua. Mas funcionava, ia ser divertido. Quando ele se afastou mais que doze passos e chegou ao penúltimo verso da canção, a transmissão cessou. Deu um passo à frente, e ela foi retomada. Por isso, se postou ali, no limite do alcance, para cantar o último verso. Tratava-se de um aparelho que encorajava a proximidade. Adequava-se ao plano.

No começo da tarde, enquanto embrulhava os presentes, seu entusiasmo começou a declinar, ele sentiu a primeira pontada de inutilidade. Vinha assobiando e de súbito parou, um comprido prego manchado de sangue falso na mão. O sentido de tudo aquilo se esvaía rapidamente. Não queria deixar metade dos presentes desembrulhados. Seguiu em frente com menos cuidado. O rabo do gato preto ficou para fora do pacote e denunciou a presença do bicho. Foi buscar na cozinha uma nova garrafa de uísque e voltou à sala de visitas. Mais de quinze embrulhos malfeitos se espalhavam pelo chão. O que o desencorajou foi a quantidade. Pensara em um único presente, um item puramente simbólico com o qual protestaria contra a ausência dela, afirmaria sua jovialidade, chantagearia o destino. Agora aquela pilha zombava de sua imbecilidade. Era uma abundância patética. Amontoou os embrulhos sobre a mesa, encostando uns nos outros para parecerem em menor número.

Ele se viu em seu lugar habitual junto à janela aberta. A coisa lógica a fazer no aniversário de Kate era visitar Julie. Poderia aproveitar para passar pelo Sino, ver se acontecia alguma coisa. A fim de se manter ocupado, passou quinze minutos ao telefone verificando o horário dos trens, mudando de sapatos, trancando a porta que dava para a saída de emergência em caso de incêndio. Pôs um bloquinho e uma caneta no bolso do paletó. Voltou então para a janela. Tráfego, chuvinha ininterrupta, gente indo às compras esperando na zebra para atravessar, incrível que houvesse tanto movimento, tanto propósito o tempo todo. Ele próprio não tinha nenhum. Sabia que não iria. Sentiu que o ar escapava lentamente de seus pulmões, sem um som, o peito e a espinha dorsal se encolhendo. Quase três anos e ainda empacado, ainda aprisionado no escuro, envolto em sua perda, moldado por ela, intocado pelas correntes comuns de sentimento que se moviam bem acima dele e pertenciam apenas a outras pessoas. Relembrou a menina de três anos, seu toque elástico, como ela se ajustava de modo tão confortável ao corpo dele, a pureza solene de sua voz, o branco e o vermelho molhados de sua língua, lábios e dentes, a confiança incondicional. Estava se tornando mais difícil relembrar. Ela se desbotava, e durante todo aquele tempo o amor inútil que sentia por ela inchava, sobrecarregando-o, desfigurando-o como um bócio. Ele pensava: eu te quero. Te quero de volta. Quero que te tragam de volta agora. Não quero nada mais. Tudo que quero é querer que você volte. Tornou-se um ritual encantatório cujo ritmo se estreitou até se transformar numa palpitação, num sofrimento físico, até que tudo que acontecera antes passou a ser representado pela palavra “dói”. Encurvado na janela, com o copo vazio, Stephen deixou que seus pensamentos murchassem até se resumir àquela palavra.

Permaneceu imóvel, sem tomar consciência da passagem do tempo. Parou de chover por alguns minutos, caindo depois um aguaceiro. Finalmente ele ouviu, vindo de outro apartamento, um relógio dar as duas horas, fazendo-o lembrar-se de uma coisa que não queria perder. Afastou-se da janela, desviando a vista do monte de embrulhos sobre a mesa, e ligou a televisão. Por uma fração de segundo o som chegou antes da visão, o zumbido enérgico da voz familiar de um apresentador. Acomodou-se no sofá e pegou a garrafa.

Ao longo desse período de inércia, amigos que voltavam de viagens ao exterior durante o verão telefonavam para saber como Stephen ia e perguntar se ele queria almoçar ou jantar. De pé junto ao telefone, ainda de pijama, ele se forçava a falar em tom amistoso, dando a impressão de estar bem alerta, mas a resposta era firme. Começara um livro, uma coisa diferente de tudo o que tinha feito, estava trabalhando dia e noite e não queria perder o ritmo. Contou essa mentira umas seis vezes em quinze dias, tornando-a tão convincente que começou a desejar que fosse verdade. Perder-se numa cota diária de palavras datilografadas, passar as noites debaixo da lâmpada fazendo revisões em tinta preta, para no dia seguinte redatilografar e continuar a desfiar algo apenas sabido vagamente — ele era quase capaz de crer no que dizia ao transmitir suas desculpas pelo telefone. Sabia, porém, que não tinha a energia, o otimismo essencial que tornava possível o esforço de escrever. Quanto às ideias, a própria palavra o deixava exausto. Seus amigos se mostravam compreensivos e, o que o emocionava, excitados por vê-lo reagindo — e era nesse ponto que ele, se sentindo algo envergonhado com sua invenção, buscava encerrar a conversa tão rápido quanto podia. Isso, por sua vez, era interpretado como sua ânsia de voltar ao trabalho. Quando retornava ao sofá, a seu drinque e à televisão, ficava confuso por mais ou menos uma hora, incapaz de se concentrar.

Um telefonema, no entanto, foi diferente. Uma voz que pronunciava as palavras com cautela perguntou se falava com Stephen Lewis, e depois se apresentou por um longo título de que ele só conseguiu captar as palavras-chave: assistente do ministro, departamento, cerimonial. A cada três meses, explicou o assistente, o primeiro-ministro oferecia um almoço na residência oficial de Downing Street para poucas pessoas, não políticos, que se destacassem em suas áreas de atuação. Tais eventos eram informais e íntimos, não tendo ampla divulgação. O que era dito neles não podia ser reproduzido. Não se convidavam com frequência jornalistas. Os homens vestiam terno e gravata, nada extravagante. Não se aceitavam sapatos com ponteira de aço. Era permitido fumar depois do almoço, mas não antes. Os convidados, em número de apenas quatro em cada ocasião, deviam comparecer uma hora antes do início do almoço à recepção do gabinete do primeiro-ministro em Whitehall. Deviam se mostrar compreensivos e pacientes enquanto permitiam ser revistados dos pés à cabeça por dois representantes de seu sexo. Qualquer equipamento de gravação ou fotografia seria confiscado e destruído. Objetos pessoais, tais como tesourinhas e lixas de unha, pentes e canetas de metal, estojos de óculos e moedas, seriam confiscados e devolvidos mais tarde. Os convidados deveriam entregar na recepção duas fotografias coloridas recentes, tamanho passaporte, assinadas no verso. Uma delas seria usada no cartão plastificado de identificação para fins de segurança, que deveria ser exibido na lapela esquerda o tempo todo. A segunda, para fins burocráticos, não seria devolvida. Os almoços transcorriam em ambiente descontraído, não havendo uma agenda para as conversas, as quais costumavam abranger assuntos variados de interesse mútuo. Não obstante, os seguintes tópicos não deveriam ser suscitados, uma vez que já tinham sido tratados de forma bastante adequada pelo primeiro-ministro no Parlamento ou em diversos discursos e entrevistas: defesa, desemprego, religião, a conduta privada de qualquer ministro ou a data da próxima eleição geral. O almoço começaria à uma da tarde e terminaria dez minutos após ser servido o café.

O assistente fez uma pausa. Stephen vinha preparando sua desculpa, o trabalho que começara, o novo território que achava estar explorando, patati, patatá. Mas, à medida que proliferavam as restrições, seu interesse cresceu perversamente.

“Entendo que estou sendo convidado”, ele disse por fim.

“Bom, não é bem assim. Estou telefonando para sondar qual seria sua atitude se, e enfatizo o se, recebesse um convite.”

Stephen suspirou. Da sala de visitas vieram risadas e uma forte salva de palmas. Um jovem casal indefeso estava cada um em uma cabine, à prova de som, e revelando os caprichos sexuais do outro. Ele puxou o fio do telefone ao máximo, mas ainda na véspera mudara o aparelho de lugar e não pôde ver a tela.

O assistente do ministro não se emocionou com a hesitação de Stephen. Explicou, como se estivesse se dirigindo a uma criança: “O primeiro-ministro não gosta de receber recusas, e faz parte do meu trabalho me certificar de que isso nunca aconteça. Só são feitos convites às pessoas que provavelmente aceitarão. Esta nossa conversa agora, contudo, não deve ser vista como um convite. Eu gostaria simplesmente de conhecer sua atitude caso receba um convite.”

“Vou aceitar”, disse Stephen enquanto se esforçava para ver um pedaço da tela do umbral da porta. O casal saíra das cabines. O homem chorava, com as mãos cobrindo o rosto, e tentava sair do palco. Entretanto, o apresentador o segurava firmemente pelo cotovelo.

“Quer dizer que o senhor viria se fosse convidado.”

“Isso mesmo.”

“Sendo assim, pode ou não vir a receber um convite”, disse o assistente do ministro, desligando o telefone. Stephen correu para a sala de visitas.

Foi um prazer quando finalmente, em meados de outubro, chegou a hora de voltar a percorrer o trajeto barulhento até Whitehall, a gola virada para cima, o guarda-chuva carregado bem alto. Com o ar fresco e sem pó, as multidões da hora do rush andavam depressa, com determinação; tendo pulado uma estação, o ano chegava ao fim mais rápido do que nunca, e havia uma antecipação de novos começos. Stephen caminhou com passos fortes, pisando na sarjeta quando precisava ultrapassar alguém. Ter uma destinação, um lugar onde era esperado, um fiapo de identidade, tudo isso constituía um imenso alívio após um mês de programas variados na televisão e uísque. Mostrar seu crachá ao guarda taciturno e velho conhecido, circular pelo vestíbulo de mármore em meio a gente bem-vestida que se julgava importante, penetrar no interior do prédio sabendo, sem necessidade de refletir, quais escadas e corredores tomar, chegar à sala correta e conversar fiado com os colegas, tomar café no copinho de plástico com o emblema do ministério, comprado numa máquina situada no corredor que servia sopa de cebola pelo mesmo bocal — era para viver pequenas repetições como essas que as pessoas mantinham seus empregos, por mais tediosos que fossem, e Stephen precisou fazer um esforço para não se pôr a cantar.

Em vez disso, tilintou as chaves da casa no bolso. Lá estava Emma Carew, que ria de tudo que ele lhe dizia e cujos tendões do pescoço estavam prestes a se romper num acesso de jovialidade; e o coronel Tackle, que lhe deu um aperto de mão másculo e falou sobre o cultivo de tomates num verão sem chuvas. Hermione Sleep, que usava um lenço de seda na cabeça e ainda se lembrava de sua audiência com o primeiro-ministro, sondou a possibilidade de jantarem juntos. Recebeu um olhar inquisitivo de Rachael Murray, que se manteve no outro lado da sala, distante das conversinhas. Antes do recesso, eles tinham trocado os números de telefone ao final da última reunião, mas nenhum dos dois ligara. Em sua felicidade, Stephen lamentou isso e resolveu encontrar-se com ela. Junto às altas janelas, os três professores universitários e vários outros membros do comitê iniciavam um seminário à parte, com vozes animadas. Chegou então lorde Parmenter, vestindo um terno de tecido cinza listrado e trazendo uma rosa em miniatura na lapela. Como se reservasse um momento para alguma prece particular, parou à porta e baixou a cabeça, que estava reluzentemente bronzeada. Só depois gargarejou um cumprimento a todos.

Após certas formalidades preliminares, Canham limpou energicamente a garganta e leu em voz alta algumas minutas de proposta para o relatório final. Seguiram-se vinte minutos de expressões confusas e veladas de desacordo até que Parmenter interveio. Essas matérias poderiam ser discutidas mais tarde porque agora cabia colher depoimentos adicionais e não se devia deixar os convidados esperando. Por isso, o comitê ouviu os tediosos comentários de dois peritos, e Stephen se entregou mais uma vez ao prazer dos devaneios estruturados.

A desintegração dos casamentos tinha sido o tema de dezenas de romances que ele tinha lido nos últimos vinte anos, de filmes que já havia esquecido, de mexericos levianos, de discussão intensa entre amigos preocupados; ele tomara drinques com os protagonistas, ou segurara suas mãos enquanto ouvia, ou os abrigara em casa. Em certa ocasião, quando tinha pouco mais de vinte anos, se envolvera a ponto de invadir a casa do marido de sua amante e roubar, ou recuperar, a máquina de lavar roupa — um gesto insensato de devoção. Lera por alto longos artigos em revistas e jornais: o matrimônio era uma instituição moribunda porque mais pessoas se divorciavam atualmente do que no passado. Ou prosperava, porque mais pessoas se casavam do que antes; elas tinham expectativas mais ambiciosas, buscavam acertar. Agora que estava no mesmo barco, Stephen esperava, depois de tantas leituras, conversas e confissões, ser um perito como todos os demais. Mas era como se estivesse tentando escrever de novo um livro que já havia escrito. O terreno estava tão bem preparado, plantado com mitos e lugares-comuns, a tradição estabelecida com tamanha firmeza, que ele era tão incapaz de pensar com clareza sobre sua situação quanto um pintor medieval de inventar a perspectiva.

Por exemplo, fez para Julie longos e eloquentes discursos mentais, que revisava e incrementava ao longo dos meses com a vã ideia de expor uma verdade final, uma visão geral irrefutável que correspondesse a um veredicto, cuja clareza e força — caso Julie fosse exposta a elas — não deixariam de convencê-la de que sua compreensão da situação do casal e seu comportamento diante de tal situação eram profundamente errados. Ele talvez houvesse adquirido aquele hábito mental por ter passado inúmeras horas ouvindo os protestos das partes lesadas. Em qualquer outra área, aceitava com resignação o fato de que o modo como as pessoas entendiam as coisas tinha muito a ver com o que elas eram, como haviam sido moldadas, o que queriam. Truques de retórica não as fariam mudar.

Havia também papéis convencionais que ele podia adotar para ambos, muitos dos quais contraditórios, mutuamente excludentes. Por exemplo, em certos momentos pensava que o problema de Julie era a fraqueza — ela simplesmente não tinha a força de caráter necessária para enfrentar um período difícil com ele. Sendo assim, era mesmo melhor que tivesse ido embora. Ela havia sido testada, e fracassara. Mas isso não bastava: ele queria lhe dizer que ela era fraca; mais ainda, queria que ela soubesse, como ele sabia. De outro modo, Julie continuaria a se comportar como se fosse forte. Outras vezes, quando estava desanimado, pensava ser uma vítima inocente — não gostava de usar a palavra “fraco” neste caso. Ficava então desgostoso com a maneira como sua vida murchara até virar nada, enquanto a dela era tão prazerosamente autossuficiente. E isso porque ela o tinha usado, roubado dele. Ele havia saído à procura da filha enquanto ela ficava sentada em casa. Quando não conseguiu encontrá-la, Julie o culpara e fora embora, com a cabeça cheia de bobagens sobre o modo apropriado de chorar a perda de alguém. Modo apropriado! Quem era ela para estabelecer regras sobre isso? Caso ele houvesse encontrado Kate, então seus métodos nunca seriam questionados, apesar de que Julie sem dúvida acharia um jeito de reivindicar o crédito. Por causa da minha inação, ele a ouvia declarar, você foi obrigado a fazer um esforço maior.

Essa linha de raciocínio era vizinha de outra, bem preparada, que se baseava na malícia. Julie vinha aguardando uma desculpa para romper o casamento, sendo moralmente covarde demais para fazer isso a partir de suas próprias queixas. Usara o desaparecimento de Kate para executar seu próprio desaparecimento. Ou, numa versão mais elaborada, Julie queria vê-lo longe, Kate vivia com ela em segredo, o sequestro no supermercado tinha sido cuidadosa e cinicamente planejado, decerto com a ajuda de algum antigo amante dela. Ou de um novo amante. Embora não acreditasse em nada disso, tais pensamentos lhe davam um certo prazer autodestrutivo e sentimental, ajudavam a espicaçar a raiva que o fazia se lançar num dos discursos já repisados, num dos veredictos finais que, como se tornava de repente óbvio, precisavam de ajustes, palavras mais fortes, verdades mais duras.

Não podia se socorrer das lendas e da simbologia, da grande e envolvente tradição do fracasso matrimonial, porque, como muitos antes dele, Stephen considerava seu caso único. Suas dificuldades não vinham de dentro, como as de outras pessoas, não tinham origem em nada tão banal quanto o tédio sexual ou a pressão financeira. Tinha ocorrido uma intervenção maléfica e — retornava sempre a esse ponto — Julie tinha partido. Ele continuava lá, no mesmo apartamento de sempre, e Julie tinha ido embora.

Bem mais tarde, deu-se conta de que nunca pensava realmente em sua situação, uma vez que pensar implicava algo ativo e controlado; em vez disso, argumentos e imagens desfilavam diante dele, uma multidão zombadora, maliciosa, paranoide, contraditória, autocomiserativa. Ele não tinha clareza, distanciamento, nunca procurava uma rota de saída. Não havia propósito em suas mórbidas meditações. Ele era a vítima, não o progenitor de seus pensamentos. Eles o invadiam com maior eficácia quando lhes oferecia um drinque, quando estava cansado ou acordando de um sono profundo. Ocasionalmente o deixavam em paz por vários dias, mas, ao recomeçarem, se sentia envolvido demais para fazer uma simples pergunta: para que servia sua preocupação? Qualquer bêbado num bar poderia ter dito a Stephen que ele ainda estava apaixonado por sua mulher, mas ele era um pouquinho inteligente demais para isso, apaixonado demais pelos pensamentos.

Enquanto um homem com um bigode preto em escovinha explicava por que os livros infantis não deviam conter ilustrações, Stephen olhou para baixo e se desligou. Em algum nível, o desejo impulsionava seus pensamentos, mas raramente era um elemento consciente. Quando se recordava da última visita à casa de Julie, o que lhe vinha à mente era o sufocante desconforto lá pelo final, e a sensação de que tudo tinha sido exaurido. Ele não se demorava na intimidade e no prazer porque não combinavam com a malha autoprotetora de suas preocupações. No entanto, como se sentia mais feliz (ainda que superficialmente), como houvera um toque de tensão, um brevíssimo momento, na troca de olhares com Rachael Murray, estava agora mais disposto a deixar-se embalar pelas correntes suaves do desejo vago e do remorso. Ouviu a voz de Julie, não pronunciando palavras e frases, mas em abstrato — seu tom, que era grave, seus ritmos, a melodia em suas frases. Quando ela insistia em alguma coisa ou se empolgava, o registro vocal se tornava docemente mais agudo. Tentou fazer com que a voz lhe dissesse alguma coisa, mas nenhuma das palavras soou como vindo dela. Então ficou ainda mais íntima por não conter palavras, uma expressão mais pura de sua personalidade. A voz murmurava, ele a ouvia como se através de uma espessa parede. A inflexão não era nem amorosa nem agressiva. Tratava-se de Julie em seu estado de espírito especulativo, descrevendo um curso de ação que eles poderiam seguir, alguma coisa que seriam capazes de alcançar juntos. Umas férias, novas cores para determinado cômodo… ou um projeto mais ambicioso?

Esforçou-se para ouvi-la. Viu-a em sua pose característica, numa poltrona, um pé no chão, o outro joelho erguido para servir como apoio aos braços cruzados, que por sua vez sustentavam o queixo. Ela propunha uma empreitada difícil. Parecia excitada ao fazer as propostas, embora sua voz fosse controlada e segura. Agora ele a imaginava com as pernas dobradas sob o corpo, as mãos cruzadas no colo. Ela o olhava fixamente, silenciosa, com o ar satisfeito de quem guarda um segredo. Vestia uma calça de veludo cotelê com remendos e uma blusa larga com amplas mangas e muitas pregas. Parecia roliça e confortável. Stephen se recordava de quando ela estava grávida. Pensou em suas nádegas, a maciez de suas concavidades. Viu sua mão pousada ali, e então, inexplicavelmente, seus pensamentos deslizaram, e ele estava pensando sobre os dois irmãos dela, ambos médicos, obcecados por seus trabalhos e suas grandes famílias. Lembrou-se do pequeno exército de sobrinhos e sobrinhas, dos presentes que ele e Julie compravam para eles em cada Natal; viu então a mãe dela, mulher durona e de cabelos grisalhos, que trabalhava para uma instituição de caridade e mantinha um pequeno apartamento entupido de fotografias e recordações — velhos brinquedos, bonecas quebradas, coleções de pedras, selos, ovos e plumas; e, em grossos álbuns numerados ano a ano, um retrato de Julie com um arco prendendo os cabelos e um coelho de estimação num abraço apertado, Julie com um pé no ombro de cada irmão. E o pai de Julie, morto quando os filhos eram adolescentes, mantido vivo na mitologia da família e ainda chorado às vezes por Julie e sua mãe.

O inventário se alargou para abranger segmentos mais remotos da família de Julie: um tio arquiteto que tinha sido preso, as amigas dela, os ex-amantes (com um dos quais ele simpatizava), o trabalho, a família francesa que a adotara quando era adolescente e ainda a convidava para o lúgubre château que possuíam. E se estreitou para chegar ao sachê que ela mantinha na gaveta de suéteres, a seu gosto por lingeries exóticas e meias de lã com cores vivas, os calos nos calcanhares e a pedra-pomes que ela usava, a cicatriz em forma de disco de uma velha mordida de cachorro, o café tinha que ser sem açúcar, ela punha mel no chá, tinha aversão a beterraba, ova de peixe, cigarros e novelas radiofônicas… O triste era a inutilidade de todo aquele conhecimento. Ele se tornara especialista num assunto que não mais existia, suas habilidades tinham ficado ultrapassadas.

Olhou para Rachael Murray do outro lado da mesa. Com uma das mãos ela pinçava a testa entre o indicador e o polegar, com a outra tomava notas. Vez por outra afastava os cabelos da frente dos olhos com um movimento abrupto, irritadiço. Imaginou que era dirigido a ele o discurso empolado, típico dos editoriais de jornal quando denunciavam a decadência do país — uma cantilena vazia que ouvira durante toda sua vida como adulto. A nação ainda não tinha encontrado um novo papel no mundo, o desafio do futuro dependeria do domínio de novas formas de saber, as velhas aptidões precisavam ser substituídas por novas capacitações — a alternativa seria a perpétua redundância. Será que ele estava à altura de tal tarefa? Involuntariamente fez que não com cabeça.

Viu sua mão na coxa de Julie um segundo antes que ela se levantasse da cama e, nua, atravessasse o quarto. As tábuas do assoalho, sem tapete, estalaram. Fazia frio, o ar que saía de sua boca era visível quando ela abriu a gaveta e vestiu uma blusa. Estava ao pé da cama, olhando para ele enquanto meneava o corpo a fim de vestir a calcinha. Enfiou pela cabeça uma grossa saia de inverno e, ao amarrá-la na cintura, lhe lançou um pequeno sorriso e falou alguma coisa. Parecia importante.

Numa manhã amena, pouco antes do Natal, Stephen, de cueca, examinou a seleção de ternos no armário e, num espírito de desafio político, ou infantil, escolheu o mais usado e menos limpo. No paletó se viam fios pretos onde devia existir um botão, e havia um pequeno ponto queimado, um buraco preciso e com borda marrom, alguns centímetros acima do joelho. Pegou uma camisa branca que tinha uma mancha já desbotada de molho à bolonhesa em forma de foice, feita havia três anos. O casaco, que era caro e relativamente novo, reduzia o efeito, mas se livraria dele assim que chegasse. Sentou-se na cozinha tomando café e lendo o jornal até que a campainha da porta soou. Desceu e deu de cara com um motorista uniformizado, pálido e gorducho, que olhava em volta com repugnância.

“Mora aqui?”, o sujeito perguntou, incrédulo. Stephen não respondeu, e eles atravessaram a lama e contornaram as poças cheias de lixo até onde o carro estava estacionado, com as quatro rodas em cima da calçada e todas as luzes piscando. Era o mesmo modelo em péssimo estado que costumava buscar Charles em Eaton Square.

Em retaliação, Stephen falou por cima do teto para o motorista, entretido com a chave do carro: “Mas não é possível…”. Sentou-se no banco da frente. Por conta de seu pesado casaco e da gordura do sujeito, ficou bem apertado, os ombros dos dois se tocando.

O motorista respirou com dificuldade para alcançar a ignição. Seu tom agora era quase de desculpa. “É tudo alocado, sabe? Nada a ver comigo. Um dia é um Rolls-Royce, no outro um calhambeque como este.” O motor pegou e ele acrescentou: “Depende de quem a gente vai buscar, sabe?”.

Com um golpe de direção, entraram no fluxo do tráfego, que se movia um pouco mais rápido do que quem seguia a pé. Um jato de ar muito quente soprava contra a perna da calça de Stephen, liberando uma mistura de odores. No espaço exíguo, ele se inclinou para a frente e mexeu nos controles da ventilação, que estavam inteiramente soltos. “Esquece”, disse o motorista, sacudindo a cabeça. Abaixou a janela do seu lado. A essa altura o tráfego tinha parado e a temperatura do carro subia impiedosamente. Stephen grunhiu com o esforço de tirar o casaco enquanto o motorista iniciava uma explicação que envolvia pinos divididos, porcas de asa e bielas duplas, e quando conseguiu atirar o casaco por cima do ombro no banco de trás, já irritado e acalorado, o relato se alargara para incluir as deficiências na gestão da frota de veículos, as horas extras compulsórias, a vitimização de certos motoristas, como ele, que não falsificavam os talões de gasolina, não inflavam o total de horas trabalhadas nem vendiam para os jornais o que ouviam nos carros.

Stephen baixou todo o vidro e se debruçou para fora, com os dois cotovelos na beirada da janela.

O motorista seguia tranquilo com seu monólogo. “Pegue o caso do sr. Symes”, ele disse, batucando no volante com os indicadores esticados. O tráfego voltou a fluir. Passaram devagar pelo sinal e então, onde dois fluxos se juntavam, pararam outra vez. Estavam seguindo o trajeto matinal de Stephen para o Whitehall. Ele devia ter ido a pé. Avançaram um pouquinho e chegaram defronte à escola primária e ginasial do bairro. “Sabe quando é que ele saiu com um carro pela última vez? Dá um palpite.” Como metade de sua cabeça estava do lado de fora, a negativa de Stephen se perdeu, mas o gordo motorista pouco ligou. Era a hora do recreio do fim da manhã, o pátio estava abarrotado. Emparelharam com um jogo de futebol, uns vinte e cinco jogadores de cada lado. Meninos de sete e oito anos jogavam com violenta competência. Uma equipe avançava trocando passes no campo de asfalto, depois a outra; ao som de nomes e palavrões gritados com vozes agudas e imperativas, as bolas altas eram disputadas com vigor; os jogadores de meio de campo passavam a bola para os atacantes e voltavam para a defesa quando atacados. “1985. Foi a última vez. E sabe quem ele estava levando nesse dia? Porque essa é a questão.”

“Não”, disse Stephen no ar mais fresco. Na entrada, diante da qual haviam parado, havia um grupo de garotas com uma longa corda que, em compasso com um canto ritmado, girava em poderosos arcos acima da cabeça de duas delas, que dançavam com rápidos movimentos laterais, levantando os pés tão tarde e tão pouco quanto possível para escapar da corda que passava veloz sob elas. Às duas se juntou uma terceira e depois uma quarta, o canto se tornou mais insistente, e então a corda se enroscou e se ouviu um gemido de bem-humorada frustração. Entre esses dois grupos barulhentos, os jogadores de futebol e as puladoras de corda, se viam figuras solitárias, uma menina traçando uma linha com a ponta do sapato e, mais além, um menino ruivo com algo que se mexia dentro de um saco de papel pardo.

“O ministro das Relações Exteriores”, disse o motorista. “Ele mesmo. Nem era do nosso ministério. Symes foi emprestado. E o ministério deles tem quase tantos motoristas quanto o nosso.” Haviam parado bem em frente à entrada da escola. As crianças estavam discutindo, algo a ver com que dupla ia girar a corda, que foi arrancada das mãos de uma menina. Logo depois, sua parceira na outra ponta foi consolá-la. Tinham sido substituídas por garotas maiores. “Sabe para onde ele levou o ministro? Juro por Deus.” Stephen fez que não com a cabeça. “Para um bordel perto do aeroporto de Northolt. É um lugar que eles têm lá para os diplomatas.”

“É mesmo?” A corda voltara a girar, o canto começava. Uma fila impaciente se formara e a garota que era a primeira da fila foi empurrada para a frente. Tomou posição a uns cinquenta centímetros do ponto onde a corda batia no solo, sacudindo a cabeça no ritmo do canto e o reproduzindo com os pés. As meninas cantavam juntas, mas algumas eram desafinadas, e as fortes dissonâncias doíam no ouvido. Os acentos eram cruamente enfáticos nos tempos fortes. Papai, papai, tou doente, chama o doutor, já, já, já, já, já já! “Pode imaginar, né? Alguma coisa aconteceu. Em troca de um favor, talvez essa coisa que não foi mencionada, uma palavra para o gerente da frota, e Symes nunca mais soube o que era trabalhar. Ganhando o salário cheio. O resto da vida.”

Stephen observou a garota que esperava. Ela passava o dedo pela bainha da saia. Fez uma pequena finta e entrou, saltitando como um dançarino escocês, e a outra se aprontou. Doutor, doutor, vou morrer? Vai, meu bem, e eu também. Quantos pregos no meu caixão? Um, dois, três, um, dois, três… As duas se encaravam ao pular. Uma batia com as mãos nas mãos da outra, esquerda na direita, direita na direita, as duas ao mesmo tempo, depois esquerda na direita… A primeira garota tinha o rosto voltado para o outro lado. Ele observava a linha pouco nítida de seus ombros em movimento, a inclinação da cabeça, a pálida parte de trás dos joelhos. No momento em que a letra do canto recomeçou, as duas pularam mais alto, giraram no ar e aterrissaram de costas uma para a outra. O rosto da primeira foi obscurecido pelo grupo numeroso das garotas que cantavam e se aproximavam da corda. Ele se ergueu um pouco no assento, esforçando-se para ver. Na frente, os carros se moviam. Avançaram uns três metros antes de parar, e subitamente ele teve uma visão mais clara. Cinco meninas pulavam a corda, uma linha compacta que subia e descia na pulsação do canto. A primeira que tinha entrado era a mais próxima dele. A franja grossa subia e descia diante da testa branca, o queixo estava erguido, ela tinha uma aparência sonhadora. Ele estava olhando para sua filha. Sacudiu a cabeça, abriu a boca sem emitir nenhum som. Ela estava a vinte metros de distância, inconfundível. O motorista despertou dos devaneios sobre a injustiça e engatou a marcha.

Moviam-se de novo, pegando velocidade. Stephen virou o corpo a fim de olhar pela janela de trás. A corda se enroscara outra vez, as garotas iam de um lado para outro, difícil ver seus rostos. Perdera Kate de vista, depois a viu de relance quando ela se abaixou para apanhar algo no chão.

“Para o carro”, ele sussurrou, limpou a garganta e repetiu, mais alto: “Para o carro”.

Seguiam a cinquenta quilômetros por hora. À frente as luzes estavam verdes, e o sopro de ar mais frio no calor seco refrescava o motorista, gerando nele um otimismo enfático. “Mas não é tudo tão ruim. Na verdade, ninguém manda na gente. Cada um que trate de fazer o melhor que puder.” A escola já estava uns oitocentos metros atrás deles.

“Para o carro!”

“O que houve?”

“Trata de fazer o que eu estou mandando.”

“Com toda essa gente atrás de mim?”

Stephen deu um puxão no volante, e, quando o carro desviou para a esquerda, o motorista não teve alternativa senão frear forte. A menos de dez quilômetros por hora, rasparam toda a lateral de uma van estacionada. De trás vinha um coro de buzinas. “E essa agora”, gemeu o motorista, mas Stephen já estava na calçada e começava a correr.

Quando voltou à escola, o pátio estava deserto. Aquele ar de ter sido esvaziado dos corpos em algazarra apenas alguns minutos antes tornava a aridez mais completa, seus limites murados mais remotos. Um calor residual pairava sobre o asfalto. Os prédios da escola eram no estilo vitoriano tardio, com altas janelas e telhados muito inclinados em ângulos variados. Deles provinha não exatamente um som, e sim a emanação de crianças confinadas em salas de aula. Stephen postou-se na entrada, todos os sentidos aguçados. O próprio tempo tinha uma qualidade de coisa fechada, proibida; ele estava desfrutando de uma deliciosa transgressão, a importância especial que resultava do fato de estar fora da escola na hora errada. Do outro lado do pátio, um homem com um balde de zinco se aproximava, e, por isso, Stephen caminhou resolutamente na direção de uma porta vermelha e a abriu. Não tinha nenhum plano específico, embora fosse claro que, caso sua filha estivesse lá, seria bem fácil encontrá-la. Não sentiu nenhuma excitação naquele momento, apenas uma serena determinação.

Parou junto a uma mangueira de incêndio montada num suporte redondo de metal preso à parede de um corredor que terminava uns vinte metros adiante num conjunto de portas de vaivém. Lembrou-se de seus tempos de escola: o chão coberto de linóleo vermelho, as paredes com um revestimento envernizado de cor creme para facilitar a limpeza. Começou a caminhar lentamente pelo corredor. Iria fazer uma busca metódica em todo o prédio, considerando-o não como um colégio e sim como uma série de esconderijos. A primeira porta que dava para o corredor estava trancada, a segunda se abria para um depósito de vassouras, a terceira para uma sala com a caldeira que aquecia o prédio e na qual se via um serviço de chá sobre um caixote emborcado. Outras duas portas estavam trancadas mas, a essa altura, ele já chegara às portas de vaivém. Ao abri-las, olhou por cima do ombro e viu o homem com o balde entrar no corredor e se voltar para fechar à chave a porta vermelha. Stephen se apressou.

Tinha chegado a uma área de recepção bem iluminada para a qual convergiam dois outros corredores mais largos e sem portas de conexão. Havia prateleiras com vasos de plantas e desenhos de crianças nas paredes. Um cartaz anunciando “Pagamentos escolares e informações” estava pendurado acima de uma porta aberta. Lá dentro, alguém datilografava devagar. Sentiu o cheiro de café e cigarros, e ao passar, preferindo não ser visto, uma voz de homem exclamou: “Mas as lagartixas não estão extintas!”, ao que uma voz de mulher murmurou em tom tranquilizador: “Bom, quase”.

Stephen continuou ao longo de um dos corredores mais largos, atraído por um estrondo ritmado e ressonante. A seus pés, as placas de linóleo tinham sido gastas até deixar visível o concreto, criando uma fissura que se estendia à sua frente. Parou diante de uma porta em que havia uma janela semicircular de vidro reforçado com arame. Vendo através dela somente uma área com assoalho de madeira, abriu a porta e entrou num ginásio em cuja extremidade oposta trinta crianças faziam fila em silêncio para correr até um trampolim e saltar sobre um cavalo de pau. Postado em cima de um tapete de borracha para lhes dar apoio ao aterrissarem, havia um homem idoso e compacto, com os óculos presos ao pescoço por uma corrente de prata. Quando cada criança se projetava do trampolim, ele dizia: “Hup, hup, hup!”. Olhou sem interesse para Stephen, que tomou posição no final do tapete a fim de observar as crianças saltarem.

Passado pouco tempo, os rostos que subiam e desciam tinham ganhado o aspecto abstrato de pequenas luas, discos com um repertório de expressões dignas de uma história em quadrinhos: aterrorizados, indiferentes, resolutos. Só depois de ver metade da turma ele entendeu a forma ideal do exercício. A ideia era que as crianças aterrissassem no tapete com os pés juntos, mantendo-se totalmente imóveis e eretas por alguns segundos antes de correr para voltar à fila. Como nenhuma delas era capaz de fazer isso, o professor aparentemente se conformara com a melhor alternativa: cada criança se punha em posição de sentido, no estilo militar, depois de cambalear pelo tapete. Em nenhum momento o professor, que era uma espécie de diretor de circo, oferecia encorajamento ou instruções. Seus “hups” nunca variavam de tom. Não dava a impressão de planejar fazer qualquer outra coisa, pois não havia nenhum outro aparelho à vista. As crianças corriam diretamente do tapete para o fim da fila sem se falar ou tocar. Difícil imaginar que o processo terminaria. Stephen foi embora quando começou a ver rostos pela segunda vez. Em retrospecto, todo o tempo da busca na escola transcorreu tendo como pano de fundo a batida e o estrondo do trampolim, assim como o grito sistemático e lacônico do chefe do picadeiro.

Minutos depois ele estava no fundo de uma sala de aula repleta de alunos, observando uma professora com ar de matrona ao lado do quadro-negro, dando os últimos retoques num desenho de uma aldeia da Idade Média. As estradas convergiam para formar a praça central triangular, em volta da qual se agrupavam as choupanas primitivas. Havia um poço fora de proporção, e à distância, desenhada com certo cuidado, a mansão do senhor feudal. Com um zumbido baixo, as crianças pegaram os lápis de cor e iniciaram suas próprias versões. A professora fez sinal para que Stephen se sentasse numa carteira vazia no meio da sala, e foi de lá, todo apertado, que ele examinou os rostos inclinados sobre os desenhos.

A professora foi até ele e sussurrou exageradamente: “Que bom que o senhor resolveu participar. Se tiver alguma dúvida, basta levantar a mão e perguntar”. Solícita, desdobrou uma folha de papel diante dele e lhe passou um punhado de lápis. Stephen começou a desenhar sua aldeia. Lembrava-se daquela configuração de trinta anos antes. Como era talvez a quarta vez que desenhava uma aldeia da Idade Média, foi capaz de trabalhar depressa, dando à sua fileira de choupanas um grau de perspectiva que jamais haviam tido nas tentativas prévias, além de conseguir desenhar um poço na beira da praça que não ultrapassava a metade do tamanho da cabana mais próxima. A casa senhorial, que ele imaginava que devia ficar pelo menos a uns oitocentos metros de distância, deu mais trabalho, e ele começou a avançar mais lentamente, olhando para o quadro-negro e ali encontrando algumas úteis indicações arquiteturais. No entanto, só podia reproduzir tais elementos fora de escala, com o que seu desenho começou a adquirir as qualidades primitivistas de todas as tentativas anteriores.

Enquanto desenhava, olhou em volta. Por sorte, todas as alunas estavam de um lado da sala, embora só fossem visíveis os rostos daquelas sentadas atrás dele ou diretamente à sua esquerda. Ao se mexer para alargar o campo de visão, o pequeno assento de madeira deu um estalo nítido. Sem tirar os olhos do livro que lia, a professora disse, ameaçadora: “Alguém está ficando irrequieto”. Ele baixou a cabeça e recomeçou o desenho. A porta se abriu e o homem com o balde enfiou a cabeça para dentro, sorriu para a professora se desculpando, deu uma olhada pela sala e se foi. Havia três meninas de cabelos escuros à esquerda de Stephen. Era difícil vê-las porque mantinham o rosto muito perto dos desenhos. Ele virou o corpo a fim de vê-las melhor, tomando cuidado para não se mover rápido demais no assento. A mais próxima atentou para sua presença e, inclinando a cabeça, sorriu furtiva e lindamente apesar de estar mordendo o lápis. Houve um movimento na frente, o arrastar desagradável de uma cadeira. A professora falou para toda a turma.

“Não há necessidade de copiar do aluno ao lado. Está tudo lá no quadro-negro.”

Ela caminhou entre as carteiras com um ar de serena autoridade, parando para murmurar críticas ou incentivos. Ainda estava uns seis metros atrás de Stephen, mas a nuca dele registrou a aproximação dela. Ajeitou a folha de papel na carteira e tentou ver o desenho através dos olhos da professora. Será que ela se impressionaria com os detalhes do poço, o espaçamento artístico e irregular entre as choupanas, o cavalo inovador que pusera junto à mansão senhorial? Sentiu o perfume momentos antes de ela chegar a seu lado. Os dedos com as unhas pintadas pousaram por segundos na praça da aldeia e se foram, sem nenhum comentário. Conhecia aquele breve desapontamento. Aproveitou-se de que ela se afastava de costas para se levantar e examinar o rosto das meninas. Na verdade, agora havia uma descompressão geral, um remexer de jovens braços e pernas tolhidos, um sussurro que ganhava volume. A professora estava na extremidade oposta da sala, absorta no desenho de um dos garotos. Encorajado, Stephen correu para a frente. As meninas não se importaram com seu cuidadoso escrutínio. As conversas agora já se transformavam quase numa algazarra, beirando o nível de um coquetel, mas ninguém mais se levantara. A professora fingia não escutar o vozerio.

Então ela se empertigou e pronunciou com severidade a velha fórmula: “Eu dei permissão para alguém falar?”. O silêncio foi imediato, ressentido. Ninguém sabia responder àquela pergunta. Stephen permaneceu na frente, próximo à mesa da professora, verificando todos os rostos pela última vez.

Ela o olhou nos olhos e falou sem o menor toque de humor: “E por acaso eu disse que você podia sair da carteira?”.

Ouviram-se algumas risadinhas no fundo da sala. Aqueles foram momentos de intenso prazer, o tempo que Stephen levou para caminhar até a porta da sala, despedir-se da fantasia e parar de ser cúmplice da autoridade da professora simplesmente lhe dando as costas e andando devagar, confiante em sua imunidade — esse era o sonho de todo colegial, acalentado ao longo de muitas horas de tédio, por fim posto em prática com trinta anos de atraso.

À porta ele se voltou e disse educadamente: “Sinto muito se lhe causei algum transtorno”, saindo para o corredor.

Com um tropel estrondoso de sapatos na superfície dura, e a energia acumulada de uma avalanche, vinham em sua direção uma ou duas turmas de crianças que não ousavam correr mas não podiam limitar-se a andar. Chegavam aos saltos, aos trancos e barrancos, os rostos revelando a expectativa de algo prazeroso. De algum lugar onde não era visível, um homem gritou, furioso: “Andando, eu disse andando!”. Como uma torrente humana, vieram tropeçando, rolando, se acotovelando; e, ao chegarem onde se encontrava Stephen, que por suas próprias razões permaneceu firme no centro do corredor, se dividiam em duas colunas e convergiam às suas costas como se ele fosse um mero obstáculo físico, uma rocha, uma árvore, um adulto. Ele via cabeças que subiam e desciam, na maior parte pretas ou castanho-claras, chumaços de cabelo, feições fugazes, duplas que de forma quase inconsciente deixavam de se dar as mãos a fim de contorná-lo. Por causa dos esforços físicos, deles emanava um cheiro nada desagradável de coisa cozida. Cada criança conduzia seu próprio monólogo esganiçado, pois aparentemente ali não havia um único ouvinte. Por mais perto que passassem, Stephen não conseguia discernir na tagarelice uma só frase inteligível. Algumas crianças olhavam para cima, como alguém que estivesse passando debaixo de um arco de pequeno interesse arquitetônico, e às vezes reluzia no ar, mais brilhantes ainda em contraste com o opaco dos cabelos, um verde-claro, um castanho pintalgado, um azul leitoso. As cores das bolas de gude com que jogam, pensou Stephen. Teria ele incluído bolas de gude nos presentes que comprara? E, numa clara justificação desses impulsos loucos e confiantes, no momento mesmo em que a pergunta era formulada ele se viu diante dos olhos negros bem conhecidos sob a grossa franja. Pôs-se de joelhos para ficar no nível dela e, pousando ambas as mãos gentilmente em seus ombros, repetiu seu nome enquanto as crianças circulavam em torno deles formando uma parede densa e estranha que nunca ficava parada ou silenciosa.

Dentro do círculo era quente, úmido e um pouco escuro. Ele parecia estar cercado por uma nova espécie de animais inteligentes e inquisitivos. Não eram arredios; havia uma mão sobre seu ombro, alguém tocava em seus cabelos. Ouviu-os ofegantes, murmurando, sentiu o hálito deles quando perguntou: “Você sabe quem eu sou? Acha que já viu meu rosto antes?”.

O olhar da menina era atento, seus olhos examinavam o rosto dele com cautela. A voz, em contraste, era algo insolente, embora não hostil. “Não, nunca vi. De qualquer jeito, não me chamo Kate, meu nome é Ruth.”

Ele tentou pegar as mãos dela, mas o gesto era ousado demais. Ela as cruzou nas costas. “Você me conhecia muito bem”, ele disse tranquilamente, desejando que estivessem a sós. “Mas foi há três anos. Esqueceu, mas vai voltar.”

Ela estava fazendo força para lembrar, ou pelo menos fazendo de conta, desejosa de colaborar. “Você foi uma vez lá em casa e levou um cachorrão vermelho?”

Ele sacudiu a cabeça. Estudava o rosto de Kate, tentando determinar que tipo de vida ela levara. Não havia sinais de maus-tratos. O que era mais evidentemente novo era uma pinta acima da maçã do rosto esquerda. Os dentes estavam um pouco tortos, ela deveria estar usando aparelho, ele marcaria uma consulta com o dentista antes que fosse tarde demais. Havia muita coisa a ser feita. Por exemplo, será que essa escola pública mambembe era o lugar certo para ela? Estaria aprendendo a tocar violão como eles sempre tinham prometido? Kate estava refletindo e mordendo a unha do polegar. Na verdade, todas as suas unhas estavam roídas até o sabugo.

“Você é meu tio Pete?”, ela disse por fim. “Aquele que fraturou a coluna?”

Stephen queria berrar para que todas as crianças no corredor ouvissem: Sou seu pai, seu pai de verdade. Você é minha filha, é minha, vou levá-la para casa! No entanto, a situação era delicada, ele precisava manter o controle. Por isso, apenas murmurou: “Você esqueceu quem eu sou. Mas não faz mal”.

Fez bem. Houve uma comoção nas margens do grupo e, depois, uma cabeça de adulto, redonda e com ar irritadiço, se debruçou por cima da parede de crianças a fim de encará-lo na obscuridade.

“Posso ajudá-lo?” A suspeita quase sufocava as palavras.

“Não vai embora”, Stephen sussurrou baixinho. Kate concordou com a cabeça. Ela sempre gostara de segredos. Ele abriu caminho delicadamente entre as crianças na direção do professor, que havia recuado alguns passos. Ainda em seu estado de espírito enérgico e confiante, Stephen pensou em pegar o sujeito pelo cotovelo e afastá-lo ainda mais das crianças, mas o professor pôs as mãos nos quadris e se recusou a sair do lugar.

“O senhor é o pai ou o responsável por algum aluno daqui?”, perguntou com severidade. Era um homenzinho gorducho e musculoso que mantinha as costas retas para aproveitar ao máximo a pouca altura que tinha.

“Bom, é exatamente essa a questão, entende?”, começou Stephen, vacilando ao ouvir o vigor petulante de sua própria voz. Tentou de novo, e disse tudo de maneira bem simples. “Nossa filha foi roubada de nós, sequestrada, há quase três anos. E acho que a encontrei. Aquela menina lá que diz se chamar Ruth é minha filha. Claro que ela não me reconhece.”

O sujeito interrompeu com uma voz cansada, sem esperar que Stephen acabasse de falar. “Estamos saindo numa excursão da escola. Mas vou levá-lo ao diretor. Ele pode decidir. Isso realmente não é coisa para mim.”

Enquanto o resto das crianças foi esperar no pátio, o professor, Stephen e Kate voltaram pelo corredor até onde ficavam os vasos com plantas e os desenhos infantis. Ela manteve certa distância de Stephen. Talvez estivesse com medo de que ele tentasse agarrar sua mão de novo. Mas estava interessada, até mesmo excitada, e em certo momento, ao caminharem em silêncio, deu uns saltinhos, dando uma olhada para ver se ele havia reparado. Quando Stephen sorriu, ela afastou o rosto. Chegando diante da porta com o cartaz torto, o professor indicou que deveriam esperar. Antes de abrir a porta, expeliu ar dos pulmões, reduzindo sua altura em uns dois centímetros. Stephen pensou que poderia ter um tempinho a sós com a filha, e se voltou na direção dela, mas o professor voltou quase que imediatamente. Fazendo sinal com a cabeça para que entrassem, partiu às pressas pelo corredor sem responder aos agradecimentos de Stephen.

Uma parede inteira do gabinete consistia em uma placa de vidro, manchada de lama e gotas de chuva, através da qual o diretor podia ver parte do pátio e um pedaço do céu plúmbeo e turbulento. O efeito era uma luz intensa e desagradável, que negava o volume e as cores naturais dos objetos e fazia com que o diretor, um tipo magro, de porte militar, parecesse ter sido recortado de uma folha de papelão grosso. Contribuiu para essa impressão o fato de que ele não se mexeu quando Stephen e a menina entraram, nem piscou, falou ou fez qualquer coisa além de olhar para a outra extremidade da sala. Stephen estava prestes a se apresentar, porém Kate o deteve, pousando a mão em seu antebraço.

Esperaram uns vinte segundos até que a fisionomia do diretor se descontraísse e ele dissesse rapidamente: “Desculpe. Estava repassando algumas coisas. Agora…”.

Stephen apresentou-se e pediu desculpa por tomar o tempo precioso do diretor. Estava no meio de seu pequeno discurso quando se deu conta de que não desejava se explicar muito com Kate presente. Quando revelasse sua identidade, queria ser capaz de falar com liberdade e consolá-la sem ter por perto um estranho. Certamente seria um momento delicado. Interrompeu-se e perguntou se ela se importaria em esperar um ou dois minutos lá fora. Abriu a porta para que ela passasse e a viu acomodar-se numa cadeira do outro lado do corredor.

O diretor era rabugento. “Não entendo mesmo por que o senhor tinha de trazê-la aqui.”

Stephen explicou que estava se sentindo angustiado. “Mas pelo menos o senhor ficou conhecendo a menina de quem estou falando”, ele disse, repetindo o relato breve e simples que havia feito antes. O diretor levantou-se da cadeira, se pôs junto à janela e cruzou os braços. Era uma pessoa séria, de movimentos lentos, que parecia estar se recuperando de uma doença grave. Examinava com expressão crítica o terno de Stephen: o botão a menos, o buraco da queimadura, os sapatos sem graxa, a camisa manchada. Era um homem aferrado às aparências.

“Num supermercado, o senhor diz.” Fez a palavra soar com todo o peso do que era desonesto e civil. “Suponho que tenha comunicado o caso à polícia.”

Stephen evitou que a raiva transparecesse em sua voz ao relatar como a busca tinha sendo conduzida, como o assunto fora divulgado nos jornais e na televisão.

O diretor voltou para trás de sua mesa e, apoiado nos nós dos dedos, se inclinou para a frente. “Sr. Lewis”, ele disse, enfatizando o título para chamar a atenção para o fato de que Stephen não tinha nenhuma patente, “conheço Ruth Lyle desde que ela era um bebê. Mantenho um bom relacionamento com o pai dela, Jason Lyle, há muitos anos, fomos até sócios por algum tempo. Ele pertence a um grupo de homens de negócios importantes das vizinhanças que comprou esta escola das autoridades educacionais. Ele e sua mulher têm cinco filhos, e, posso assegurar-lhe, nenhum deles foi roubado.”

Stephen queria desesperadamente se sentar, mas era hora de ficar de pé. “Conheço minha filha. Aquela menina lá é a minha filha.”

Em resposta ao tom monocórdio de Stephen, a voz do diretor se amaciou. “Dois anos e meio é um longo tempo. O senhor sabe, as crianças mudam. Além disso, o senhor deve estar desejando que seja ela. Afinal de contas, a mente prega suas peças.”

Stephen estava sacudindo a cabeça. “Reconheceria ela em qualquer lugar. O nome dela é Kate.”

O diretor reassumiu a postura anterior. Ficou em posição de sentido, com uma das mãos pousada nas costas da cadeira, como se posasse para o tipo de retrato a ser pendurado no refeitório dos funcionários. Stephen notou com alívio as manchas de gordura na gravata do regimento. “Escute aqui, sr. Lewis. Ocorrem-me duas possibilidades: ou o senhor está cometendo um erro infeliz, ou é um desses jornalistas que querem criar problemas para a escola outra vez.”

Stephen olhou ao redor procurando alguma coisa para se apoiar. Caso estivesse sozinho, teria se deitado no chão por alguns minutos. Falou com um grau de razoabilidade que não sentia: “Não creio que será difícil esclarecer tudo isso. A polícia tem as impressões digitais dela, há os exames de sangue, cromossomos e coisas do gênero…”.

“Dois anos e meio, o senhor disse. Certo.” Estalou os dedos na direção da porta. “Vamos pedir que ela entre, por obséquio. Tenho mais coisas a fazer esta manhã.”

Stephen foi até a porta e a abriu. Ela continuava sentada onde a deixara, escrevendo com tinta verde nas costas da mão. Queria lhe falar e estabelecer algum tipo de vínculo antes de voltarem ao gabinete. Ele necessitava de algo para compensar a autoconfiança abrasiva do diretor. Ela se levantou e caminhou em sua direção. Seu débil desempenho diante da convicção do outro homem, a enormidade do que alegava e a falta de provas imediatas, o arrependimento por estar tão malvestido, tudo isso exercia um efeito físico, enfraquecendo-lhe as pernas, atingindo a própria superfície da retina, incluindo os cones e bastonetes, porque a menina que atravessava a área de recepção era mais alta, mais angulosa, em particular nos ombros, e com feições mais definidas. Ela o olhou de forma neutra. Lá estavam os mesmos olhos debaixo da franja, a mesma palidez. Ele se apegou a tais detalhes, concentrando-se tanto neles que foi incapaz de falar com ela. Estavam de volta no gabinete do diretor, a investigação continuava.

“Ruth”, disse o diretor. “Me diga o seu nome completo e idade.”

“Ruth Elspeth Lyle, tenho nove anos e meio.”

“Senhor.”

“Senhor.”

“E há quanto tempo está nesta escola?”

“Contando com a creche, desde os quatro anos, meu senhor.”

“Por quanto tempo, exatamente?”

“Cinco anos.”

“Senhor.”

“Senhor.”

Stephen sacudia a cabeça. Estava sendo traído. O jeito desembaraçado da menina, solícito demais, a vontade de agradar, começavam a irritá-lo. Ela não ocultava nada, não guardava o menor segredo. De onde se encontrava ele podia ver seu nariz de perfil, e era muito diferente, uma grave incorreção. Ela se afastava, o abandonava.

O diretor olhou mais além de Stephen para o outro lado da sala. “Sra. Briggs, por gentileza, abra o registro escolar de cinco anos atrás e me traga a seção da creche.”

Pela primeira vez Stephen viu que, às suas costas, havia uma pequena mesa num recesso e, ao lado dela, uma mulher com um vestido de tecido estampado de flores, coisa estranha num dia frio, que agora puxava uma gaveta num armário de aço. O diretor pegou a pasta e a abriu na frente de Stephen. Ele não olhou nem ouviu enquanto o diretor desdobrava uma folha com nomes datilografados e os percorria com o dedo. “Lyle, Ruth Elspeth, inscrita para o período de verão logo após fazer quatro anos…”

Stephen estava pensando sobre o espírito de Kate, como ele podia pairar bem alto acima de Londres, como talvez se assemelhasse a um tipo brilhantemente colorido de libélula, capaz de alcançar velocidades inimagináveis, e no entanto permanecendo de todo imóvel enquanto esperava para descer num pátio escolar ou numa esquina para habitar o corpo de alguma menina, impregná-lo com sua essência particular, demonstrando para ele sua continuada existência antes de seguir adiante, deixando atrás de si uma concha vazia, a anfitriã.

O diretor virava as páginas, acrescentando mais provas. A menina observava, imensamente satisfeita consigo mesma. As preocupações de Stephen se reduziram a questões práticas: dentro de quanto tempo poderia sair da escola, como tinha deixado seu casaco no carro, como havia faltado ao almoço do primeiro-ministro.

Minutos depois, ao sair do escritório, ouviu o diretor dizer bem alto à menina, sem dúvida para que Stephen escutasse, que ela devia informá-lo imediatamente se aquele sujeito voltasse a falar com ela. A garota assentiu com entusiasmo. Foi o homem com o balde de zinco que o conduziu para fora da escola. Stephen deu uma olhada para dentro do balde enquanto atravessavam o pátio. Estava vazio. “Por que o senhor carrega isso?”

O servente, que fazia Stephen passar pelo portão de entrada, sacudiu a cabeça e se forçou a dar um sorriso, sugerindo se tratar na verdade de uma pergunta muito idiota que ele certamente não se daria ao trabalho de responder.

Comportando-se alucinadamente durante o encontro que o preocupara sem cessar, Stephen sentiu que não tinha exorcizado sua obsessão, e sim a embotado. Estava começando a enfrentar a difícil realidade de que Kate não era mais uma presença viva, não era uma garota invisível a seu lado que ele conhecia intimamente; relembrando como Ruth Lyle se parecia e não se parecia com sua filha, compreendeu que havia muitos caminhos pelos quais Kate poderia ter seguido, inúmeras maneiras pelas quais poderia ter mudado em dois anos e meio — e que nada sabia sobre isso. Estivera louco, agora se sentia purificado.

Voltou para casa e dormiu até o começo da noite, um sono profundo e sem sonhos. Em seguida tratou de rearrumar o apartamento. Pôs o sofá de volta contra a parede e a televisão num canto obscuro. Tomou um longo banho. Depois, não resistiu à tentação de se servir um uísque duplo. Mas dessa vez o levou para a escrivaninha, que tinha ajeitado, e onde respondeu a várias cartas. Escreveu a Julie um cartão afetuoso em que nada exigia, dizendo que pensara nela no dia do aniversário de Kate e que ela devia entrar em contato se e quando achasse que era a hora certa. Pegou um caderno e rabiscou algumas ideias; encorajado, retirou a capa da máquina de escrever e datilografou durante duas horas. Tarde da noite, ficou deitado no escuro e tomou decisões complexas antes de sucumbir a um segundo sono tranquilo.

Na manhã seguinte, quando o telefone tocou, ouviu pacientemente o assistente do ministro, mas já resolvera o que fazer. O sujeito começou dizendo que lamentava que Stephen tivesse saltado do carro que fora buscá-lo. Stephen explicou que saíra à procura do que pensou ser sua filha havia muito desaparecida.

“Aliás, o motorista entregou meu casaco?”

“Não. Se tivesse deixado no carro, tenho certeza de que ele teria reportado.” Ninguém, pelo jeito, jamais tinha deixado de comparecer ao almoço sem dar uma boa desculpa. Era uma grosseria imperdoável, mas, por alguma razão extraordinária, com a qual o assistente deixou claro não estar de acordo, estava sendo oferecida a Stephen uma segunda oportunidade. Outro convite seria feito.

“Ah”, disse Stephen, “é uma pena. Não quero outro convite.”

O assistente do ministro mostrou-se afável em seu desprezo. “Que bobagem! Por que não?”

“Em primeiro lugar, porque estou ocupado. Comecei um novo livro, algo diferente…”

“Isso não o impede de almoçar.”

“Em segundo lugar, e não há nada de pessoal nisso, não concordo com o que o primeiro-ministro está fazendo com este país nos últimos anos. É uma porcaria, uma desgraça.”

“Então por que aceitou na primeira vez?”

“Eu também estava uma porcaria. Deprimido. Agora não estou mais.”

Houve uma pausa enquanto o assistente do ministro revia sua tática. Falou em tom pesaroso, como se lamentasse uma lei física irrefutável. “Sinto muito, sr. Lewis, não há muito que eu possa fazer. O primeiro-ministro insiste em vê-lo.”

“Ah, bom”, Stephen disse, “o senhor sabe onde eu moro”, e desligou o telefone.

Foi para a cozinha fazer café, e dez minutos depois, quando levava a xícara pelo corredor, o telefone voltou a tocar. Era um irritadiço assistente do ministro.

“A propósito, parece que perdemos seu endereço.”

Stephen disse onde morava, desligou e correu com o café para a escrivaninha.

 

Sete

Os especialistas em puericultura no período do pós-guerra ignoraram por razões sentimentais o fato de que as crianças são em essência egoístas, o que é muito razoável, uma vez que foram programadas para sobreviver.

Manual autorizado de puericultura,
Departamento Real de Imprensa

Durante os primeiros meses do ano seguinte, o comitê de Parmenter avançou lentamente rumo à minuta final do relatório. Onde havia diferenças insuperáveis, o desgaste, o cansaço e as redações vagas aplainavam o caminho. Úteis mudanças de posição ou o súbito abandono de opiniões excêntricas sem muita perda de prestígio foram facilitados pela sugestão de Canham de que só se reunissem duas vezes por mês, assim como por almoços agradáveis oferecidos a cada membro em separado por lorde Parmenter. Foi também sugerido ao comitê que, embora não fosse possível ser o primeiro dos subcomitês a submeter um relatório definitivo à Comissão, por mais que isso fosse desejável, também não era admissível ser o último.

Stephen deu sua contribuição. Defendeu o que lhe pareceu ser uma argumentação equilibrada, favorecendo, por um lado, certo grau de disciplina e o estabelecimento de determinadas regras básicas — escrever era um ato social, um instrumento de caráter público — e, por outro, a imaginação — a escrita enriquecia a vida privada, não se devia desencorajar idiossincrasias sacrificando o poder de fantasiar. Esse inofensivo argumento foi facilmente assimilável, ou ao menos sua primeira parte, razão pela qual ele não foi convidado a almoçar com o presidente. Na manhã em que Stephen se pronunciou, o comitê estava mais interessado em omitir todas as referências ao aprendizado do alfabeto e em evitar que um dos professores universitários lesse um ensaio tardio intitulado “A ascendência de classe e a gramática prescritiva”. Em meados de março, o relatório do subcomitê de Parmenter sobre a leitura e a escrita foi entregue à Comissão de Atenção à Primeira Infância. A maioria dos membros achou que havia cumprido sua missão ao produzir um documento que era judicioso no tom e autoritário na postura. O presidente foi elogiado na imprensa porque não foi necessário um relatório da minoria. Uma festa de despedida regada a xerez foi realizada num anexo remoto e raramente usado do prédio ministerial, onde o tapete com decorações florais ainda era enjoativamente vívido, ainda capaz de gerar um revigorante choque elétrico naqueles que tocavam as partes metálicas das portas e janelas.

Stephen chegou tarde ao evento e saiu cedo. Desde o Natal, as sessões do comitê tinham deixado de representar um refúgio de tempo organizado num caos de dias perdidos. As reuniões agora o aborreciam e ameaçavam sua frágil rotina de trabalho, estudo e exercícios físicos. Estava estudando árabe clássico com o sr. Cromarty, um professor universitário aposentado que vivia sozinho no andar de baixo. Quatro manhãs por semana ele descia para as lições no escritório frio e esparsamente mobiliado do sr. Cromarty, onde a única fonte de calor era uma lareira a gás cujas chamas fracas e amareladas pareciam exalar a fumaça narcótica aludida nos poemas que o velho traduzia para ele. Stephen não tinha interesse na língua propriamente dita ou em sua literatura. Caso o sr. Cromarty oferecesse grego ou tagalo, Stephen estaria igualmente satisfeito. A ideia era sair do torpor aprendendo algo difícil; queria regras e suas exceções, a austera absorção de aprender de cor.

Na realidade, ele se sentiu imediatamente encantado com o alfabeto. Comprou um vidro de tinta e uma pena especial para treinar a caligrafia. Dentro de um mês, ficou intrigado com a gramática, com sua orgulhosa dissimilaridade do inglês, a predominância estranha de verbos cujas formas, graças a toques mínimos, geravam sutis gradações de significado: lamentar (nadam) se transformava num companheiro de bebida (nadim); romã, em granada; velhice, em liberdade.

Seu professor tinha um jeito tranquilo e severo, dando a impressão de que ficaria genuinamente zangado caso o aluno chegasse tarde algum dia ou deixasse de fazer os trabalhos de casa. Durante as lições, o sr. Cromarty vestia um terno escuro e retirava do bolso do colete um relógio prateado ao qual dirigia suas observações finais. Seu apartamento tinha um ar de pobreza sombria e antiquada — assoalho nu, paredes amareladas com manchas de umidade, portas e rodapés pintados de marrom e descascando, um fumacento aquecedor a parafina no hall de entrada sob uma lâmpada sem anteparo. Não havia ornamentos, quadros ou poltronas, nenhum resquício de algum passado.

Todo o seu luxo eram os versos formais e sensuais que amava e que citava longamente, primeiro em árabe e depois num inglês com sotaque escocês, os olhos cerrados e a cabeça inclinada para trás como se estivesse relembrando outra vida. “Fina era sua cintura e ternamente carnudos os tornozelos, o ventre retesado e nada flácido.” O sr. Cromarty evitava Stephen na rua e desestimulava qualquer conversa fiada antes ou depois das aulas de uma hora. Stephen nunca soube qual era seu primeiro nome.

O outro novo compromisso de Stephen era tênis três vezes por semana numa quadra fechada. Tinha sido um jogador medíocre por mais de vinte anos, num lento declínio desde o final da adolescência, quando representara a escola sem se destacar. Durante a primeira hora recebia instruções do treinador, depois jogava durante outra hora com ele, um americano parrudo e careca que, após a primeira aula, lhe fizera um resumo franco das tarefas a serem enfrentadas. Seu forehand e seu backhand teriam de ser reconstruídos do zero. A movimentação dos pés também exigia reformulação total. O saque podia ser simplesmente esquecido por enquanto. No entanto, nenhuma dessas coisas clamava por uma atenção mais urgente do que a atitude de Stephen. Naquela hora estavam bem próximos, cada qual de um lado da rede. Ele não sabia bem que expressão adotar ao ouvir as calúnias impiedosas pronunciadas por um homem a quem estava pagando muito bem.

“O senhor é passivo. Está mentalmente debilitado. Espera que as coisas aconteçam, fica lá parado esperando que tudo dê certo no fim. Não aceita a responsabilidade pela bola, não faz cálculos ativos sobre o movimento seguinte. É inerte, sem espinha dorsal, semiadormecido, não gosta de si mesmo. Sua raquete tem que ser puxada para trás antes, o senhor precisa estar indo para a frente ao bater na bola, abaixando o corpo, extraindo prazer do movimento. Mas o senhor não está inteiro aqui. Até enquanto estou falando com o senhor, não está inteiro aqui. Acha que é bom demais para jogar tênis? Acorda!”

Além do árabe e do tênis, Stephen tinha seu trabalho e, nas horas vagas, lia indiscriminadamente tijolões, best-sellers internacionais, o tipo de livro cujo propósito efetivo era explicar como funcionava um submarino, uma orquestra, um hotel. Estava se sentindo capaz de conduzir uma vida social limitada à noite, mas fez questão de ater-se às amizades bem estabelecidas e não exigentes com outros homens. Antes do Natal, sua mãe adoecera seriamente. Ele a visitara com frequência, primeiro no hospital, depois em casa; e, mesmo não correndo risco de vida, ela estava demasiado fraca para manter qualquer conversa mais longa. Se não estava exatamente feliz durante esses meses, ele também não estava catatônico. Às vezes, tinha a impressão de que treinava para um evento desconhecido; esperava alguma mudança — não tinha ideia de que tipo — ou talvez até mesmo um cataclismo, e se mantinha atento para detectar os primeiros sinais, as primeiras e pequenas indicações de que sua vida estava prestes a ser transformada. Os longos livros que lia o faziam pensar em termos de fórmulas úteis, de marés mudando, novos ventos, sombras se dissipando. Não tinha dúvida, contudo, de que ainda se encontrava na zona de sombras: afinal de contas, pagava por seus contatos humanos semanais mais regulares.

As mudanças vieram, mas sem nenhum aviso, sem nenhum detalhe emergente capaz de prefigurar um esquema mais amplo. Em vez disso, houve uma série de desenvolvimentos repentinos e aparentemente não relacionados, o primeiro dos quais, uma surpresa certa noite, começou com dois toques na campainha. Ele terminara o jantar e se aprontava para copiar à mão um poema que leria para o sr. Cromarty na manhã seguinte. Tinha nevado um pouco o dia todo e, ao voltar do tênis, Stephen acendera a lareira, que agora exibia um fogo bem alto. Com as grossas cortinas de veludo fechadas, se serviu de um copinho de armanhaque — passara a tomar uma única dose de bebida por dia — enquanto o rádio transmitia baixinho uma imponente música orquestral. Já havia esboçado os caracteres a lápis e, ao secar a ponta dourada da pena com um pedaço de algodão, estava antegozando o desenho definitivo do primeiro deles, uma linha curva sob um triângulo de pontinhos. Quando a campainha tocou, estalou a língua em sinal de irritação e, levantando-se, repôs sem pressa a tampa do vidro de tinta. Perguntou-se então se, nos movimentos lentos, na exasperação com qualquer transtorno, ele não estava começando a se parecer com o próprio sr. Cromarty.

O que viu primeiro foi sangue, quase negro na fraca luz do patamar da escada, cobrindo por inteiro o rosto de um homem que segurava contra o peito um pacote de papel pardo. A origem do sangue não era evidente. Parecia ter escapado pelos poros, obliterando os traços faciais de modo tão completo que só as orelhas continuavam brancas. Gotas se formavam na ponta do queixo e caíam no pacote.

Quebrando o breve e traumático silêncio, o homem falou rapidamente com uma hesitação artificial: “Sinto muitíssimo incomodá-lo tão tarde da noite. Eu… eu deveria ter telefonado antes…”. A voz, que Stephen conhecia, não expressou dor alguma. O homem lhe estendia a mão manchada de sangue. “Harold Morley, o senhor sabe, do comitê.”

“Ah, sim”, disse Stephen, abrindo mais a porta e dando um passo para o lado. “É melhor entrar.” Só ao fechar a porta é que identificou Morley como o sujeito do alfabeto fonético, sobre o qual fora feita uma brevíssima menção afinal retirada da versão definitiva do relatório. Morley olhava para sua mão, tocando o queixo de leve e examinando a ponta dos dedos. “Tropecei na escada.”

Stephen o conduzia para o banheiro. “Não foi o primeiro.”

Morley se apoiou no umbral enquanto Stephen enchia a pia e arregaçava as mangas. “Sabe, acho que perdi os sentidos por alguns segundos.”

“Está com uma aparência horrorosa”, disse Stephen. “Deixa eu dar uma olhada.”

Morley falou em tom de dúvida. “Me lembro de cair e de me levantar, mas passou algum tempo entre uma coisa e outra, tenho certeza.”

Stephen derramou um líquido antisséptico na água. O cheiro intensificou a percepção de sua competência. Morley tirou a camisa. O corte, no alto da testa, tinha uns dois centímetros de comprimento e o sangue já estava coagulando. Enquanto Stephen passava uma esponja em sua cabeça e em seu rosto, Morley falava de modo desconexo com a cara virada para a água, que ia ficando cada vez mais vermelha, repetindo o relato da queda. Quando Stephen acabou, as costas estreitas e cheias de pintinhas do sujeito começaram a tremer. Ao se endireitar, ele perdeu imediatamente o equilíbrio. Stephen fez com que se sentasse na borda da banheira, lhe deu uma toalha e improvisou uma compressa. A essa altura, Morley estava tremendo muito. Stephen lhe entregou um suéter grosso, o embrulhou num cobertor e o fez sentar-se numa poltrona junto à lareira. Serviu uma xícara de café forte em que pôs meia dúzia de colheres de açúcar. Mas Morley não foi capaz de segurá-la. Stephen levou a xícara à boca dele, e ouviu seus dentes se chocarem contra a louça. Dez minutos depois Morley se acalmou e começou a elaborar uma desculpa. Stephen lhe disse que descansasse. Cinco minutos mais tarde seu visitante tinha caído no sono.

Stephen bebeu o armanhaque de um gole, encheu o copo de novo e ficou surpreso ao ver que era capaz de continuar a preparar a aula do dia seguinte. Vez por outra olhava de relance na direção de Morley. A compressa malfeita permanecia comicamente no topo de sua cabeça, fixa apenas pelo sangue coagulado. “Ela me mostra uma cintura mais delgada que a rédea de nariz de um camelo, e uma perna tão lisa quanto a haste umedecida de um papiro…” Examinou o trabalho terminado e teve vontade de saber se, além do sr. Cromarty, alguém conseguiria encontrar algum sentido nos diminutos círculos, traços e arabescos que flutuavam acima das linhas com seus ganchos repentinos e cruéis. Seriam eles talvez um código privado, um jogo intrincado criado pelo velho para fazer passar o tempo?

Após cochilar por quinze minutos, Harold Morley começou a se agitar. Subitamente, se sobressaltou na poltrona, o rosto tenso, com um ar acusatório. “Onde é que está?”, ele perguntou incisivamente; e então, numa mudança total, fechou os olhos e deu um tapa no rosto: “Ah, meu Deus! O táxi. Deixei no banco”.

Stephen foi até o banheiro e pegou no chão o pacote de papel pardo. Dali seguiu para a cozinha a fim de se servir de mais café. Ao retornar ao escritório, Morley recuperara a memória. Encontrava-se de pé junto à lareira examinando as ataduras ensanguentadas que retirara do ferimento. “Bela pancada”, ele disse, impressionado.

“Você pode precisar de pontos”, disse Stephen. “Realmente tinha que cuidar disso ainda esta noite.”

Entregou a Morley o pacote. Seu convidado olhava para a bandeja de bebidas. “Abra isso e dê uma olhada. Eu gostaria de tomar um uísque, se não se importa.”

Stephen serviu para os dois. Observado de perto por Morley, se sentou para examinar o livro que retirara do pacote manchado de sangue. A capa fina e despojada continha a palavra “Prova” e, abaixo, uma etiqueta branca colada em ângulo descuidado anunciava “Leitura restrita Código R-8. Exemplar no 5”. As primeiras páginas estavam em branco. Stephen chegou à introdução e leu: “Os especialistas em puericultura no período do pós-guerra ignoraram por razões sentimentais o fato de que as crianças são em essência egoístas, o que é muito razoável, uma vez que foram programadas para sobreviver”. Folheou o livro de trás para a frente e viu o título de alguns poucos capítulos — “A mente disciplinada”, “A superação da adolescência”, “Segurança na obediência”, “Meninos e meninas — vive la différence”, “Um bom tabefe poupa nove”. Neste último capítulo, ele leu: “Os que argumentam dogmaticamente contra todas as formas de punição corporal são obrigados a recomendar uma série de represálias psicológicas contra a criança — retirada de aprovação ou de privilégios, a humilhação de irem mais cedo para a cama, e assim por diante. Não há nada que sugira que essas formas mais demoradas de punição, que podem tomar um bom tempo de pais ocupados, causem menor prejuízo a longo prazo que um rápido piparote na orelha ou umas boas palmadas no traseiro. O bom senso sugere o contrário. Levante a mão uma vez e mostre que é para valer! É bem provável que nunca precisará levantá-la de novo”.

Morley aguardou, erguendo-se da poltrona em certo momento a fim de voltar a encher o copo. Stephen virou algumas páginas. Um desenho mostrava duas meninas brincando. Na legenda se lia: “Não há nada de errado com esse ferro de passar em miniatura. Deixe que as meninas afirmem sua feminilidade!”. Por fim Stephen repôs o livro no pacote e o jogou sobre a mesa. A Comissão ainda estava colhendo relatórios de seus catorze subcomitês, e não se esperava que completasse o trabalho antes de passados outros quatro meses. Seu único desejo era telefonar para o pai e congratulá-lo por sua perspicácia. Mas poderia fazer isso quando o visse mais tarde naquela semana.

Morley disse: “Preciso lhe dizer como chegou às minhas mãos”. Um funcionário de nível médio, cujo nome Morley desconhecia, lhe telefonara no trabalho e pedira que o encontrasse num café próximo frequentado por operários. O indivíduo ocupava algum cargo no setor de publicações do governo. Pertencia a uma longa tradição de funcionários civis desgostosos; a cada ano, dois ou três eram julgados por traição ou coisa parecida. Mas essa não era a principal razão para ele querer entregar o livro; na verdade, era porque podia sair impune. O escritório onde trabalhava tinha sido assaltado na noite anterior. Os ladrões se interessaram mais pelos equipamentos pesados, levando as máquinas de fazer café e sopa. O homem que procurara Morley tinha sido um dos primeiros a chegar na manhã seguinte. Enfiara o livro em sua pasta, informando que estava entre os itens dentro de um pequeno cofre que, sabe-se lá como, os ladrões haviam conseguido levar.

O livro tinha chegado ao departamento de imprensa do governo três meses antes, havendo agora dez exemplares encapados que circulavam entre membros de elite do Serviço Civil e três ou quatro ministros. Cada exemplar era monitorado com a atenção geralmente associada a documentos na área da defesa. Na realidade, somente por um lapso administrativo já esquecido aquele exemplar não estava dentro do cofre roubado. O funcionário disse a Morley que, a seu juízo, o governo tencionava publicar o livro um ou dois meses após a Comissão haver completado seu próprio relatório, declarando que o manual havia aproveitado o trabalho do grupo. Não estava claro por que exemplares de prova estavam circulando tão cedo.

“Talvez”, disse Morley, “o primeiro-ministro precisasse contar com o apoio de outros membros do gabinete por motivos políticos.”

Stephen disse: “Não entendo por que não podiam confiar que a Comissão iria produzir o tipo de livro que eles queriam. Designaram o presidente dela e de todos os subcomitês”.

“Não podiam ter certeza disso”, Morley respondeu. “Embora tenham tentado. Não podiam deixar que os peritos e celebridades reunidos para consumo da opinião pública chegassem exatamente ao livro que desejavam. Isso é assunto de gente grande.” Morley estava apalpando o corte com a ponta dos dedos. Fez uma careta. “Seja como for, mostra como estão levando a coisa a sério. Você já ouviu, sem dúvida, como a nação vai ser regenerada graças à reforma nos cuidados com as crianças.”

Ele disse que a cabeça estava começando a doer a cada palpitação, e que queria ir para casa. Explicou que viera a fim de discutirem o que fazer. Não podia falar com sua mulher porque ela também trabalhava para o Serviço Civil, na área de medicina, e não queria comprometê-la. “Ela dá um jeito na minha cabeça quando eu voltar.”

Uma vez que não podiam fazer mais do que criar um certo grau de embaraço, a decisão foi rápida. Concordaram que, após enviar uma cópia para algum jornal, Stephen deveria manter o livro em seu apartamento, eliminando o número de identificação para proteger o funcionário público. Ele chamou um táxi e, enquanto aguardavam, Morley falou sobre seus filhos. Tinha três meninos. Amá-los, ele disse, não era apenas uma delícia, mas também uma lição de vulnerabilidade. No auge da crise dos Jogos Olímpicos, ele e sua mulher tinham ficado acordados a noite toda, mudos de medo de que algo pudesse acontecer com os garotos, horrorizados com sua própria incapacidade de mantê-los a salvo de qualquer sofrimento. Ficaram deitados lado a lado, incapazes de expressar seus pensamentos, relutantes até em admitir que estavam acordados. Ao amanhecer, o mais novo tinha ido para a cama deles como de costume, e foi então que sua mulher começou a chorar, tão desesperadamente que por fim Morley levou o menino de volta para o quarto dele e os dois dormiram lá. Mais tarde, ela lhe disse que foi a confiança absoluta do menino que a abalara: ele acreditava que estava seguro debaixo das cobertas e agarrado à mãe — e, porque não estava, porque podia ser destruído em minutos, ela sentiu que o havia traído. Rememorando sua brutal indiferença naquela época, Stephen sacudiu a cabeça e nada disse.

Depois que Morley saiu, ele foi até o quarto desguarnecido da filha e acendeu a luz. Ainda havia um saco de lixo cheio de coisas dela sobre o colchão da cama de madeira. O quarto cheirava a mofo. Ajoelhou-se e virou a válvula do radiador. Continuou agachado por um momento, testando seus sentimentos. Não era a perda que confrontava agora, e sim um fato, como um muro alto. Mas inanimado, neutro. Um fato. Pronunciou a palavra em voz alta, como uma maldição. Voltando ao escritório, sentou-se na poltrona de Morley junto à lareira e refletiu sobre sua história. Viu os dois, homem e mulher, deitados de costas lado a lado como figuras de pedra num túmulo medieval. Guerra nuclear. De repente, infantilmente, ficou com medo de tirar a roupa e ir para a cama. O mundo fora daquele quarto, fora até de suas roupas, parecia amargo, de uma crueldade absurda. A tênue sanidade que estabelecera fora ameaçada. Tinha ficado imóvel durante vinte minutos e estava afundando. O silêncio aumentava em volume. Num grande esforço, se inclinou para a frente e atiçou o fogo. Limpou a garganta com força para ouvir sua própria voz. Quando as chamas envolveram o carvão novo, se acomodou na poltrona e, antes de cair no sono, prometeu a si próprio que não iria perder o controle. Sua aula era às dez da manhã e devia estar na quadra de tênis às três da tarde.

A mãe de Stephen começou a convalescença em fevereiro. Permitiam que saísse da cama à tarde, até o começo da noite. Quando o tempo ficasse mais quente, deixariam que caminhasse os quatrocentos metros até a agência de correios. Perdera sete quilos e quase toda a visão em um olho. Tricotar, ler ou ver televisão causavam dor no olho bom, por isso o rádio e as conversas eram agora seus maiores prazeres. Como muitas mulheres de sua geração, ela não gostava de mencionar nenhum desconforto. Quando precisava passar várias horas longe de casa em visita à irmã, que também estava doente, seu pai perguntava se Stephen podia vir fazer companhia à mãe. Ele aceitava com prazer. Gostava de ver os pais separadamente. Era mais fácil romper os padrões habituais, se sentia menos limitado em seu papel de filho. E havia a possibilidade de retomar a conversa que tinham começado na cozinha meio ano antes.

Surpreendeu-se ao ser recebido na porta da frente por ela, ao vê-la de novo com as roupas de todos os dias em vez da camisola do hospital de um cor-de-rosa vibrante. A perda de peso tornara a pele do rosto mais firme, dando-lhe uma aparência superficialmente mais jovem, efeito reforçado por um tapa-olho brejeiro. Depois que trocaram um breve abraço, e enquanto ele a cumprimentava pelo progresso e fazia uma desajeitada piada de pirata, ela o conduziu para a sala de visitas.

Pediu desculpas por um caos só visível para ela. Uma das razões por que estava ansiosa para recobrar as forças, ela disse, era sua vontade de começar a pôr a casa em ordem. Embora nem um só objeto parecesse fora do lugar, Stephen comentou que sem dúvida era um bom sinal ela se sentir assim. Mas, numa indicação de como se encontrava de fato enfraquecida, permitiu, após alguns protestos protocolares, que ele fizesse chá para os dois na sua cozinha. Mas deu instruções pelo buraco da parede e, quando ele não estava vendo, puxou as mesinhas de café e as arrumou de modo a receberem a bandeja e as xícaras. Na cozinha, Stephen esperou que a água fervesse e examinou o conteúdo de uma série de vidros de remédios. A intensidade iridescente dos vermelhos e amarelos sugeria uma tecnologia potente e uma profunda intervenção no organismo. Na parede a inovação era um cartaz de bom tamanho, na letra de seu pai, relacionando os telefones de emergência do médico e de algumas empresas privadas de ambulâncias.

A sra. Lewis serviu o chá, embora sua mão tremesse com o peso do bule. Fingiram não ver os respingos que molharam a bandeja. Conversaram sobre o tempo: a previsão era de que, antes dos primeiros sinais da primavera, teriam de suportar pesadas quedas de neve. A sra. Lewis esquivou-se agilmente das perguntas do filho sobre a visita mais recente do médico. Em vez disso, falaram da doença da tia de Stephen e se o sr. Lewis estaria seguro atravessando a parte oeste de Londres em transportes públicos. Debateram a conveniência de livros com letras grandes. Passados vinte minutos, Stephen começou a recear que sua mãe se cansasse antes que ele pudesse encaminhar a conversa na direção que desejava. Por isso, após a curta pausa seguinte, ele disse: “Lembra-se de que estava me contando sobre aquelas bicicletas novas?”.

Ela deu a impressão de estar esperando por isso. Sorriu imediatamente. “Seu pai tem suas próprias razões para querer esquecer delas.”

“Está me dizendo que ele fingiu ter esquecido?”

“É o treinamento da Força Aérea. Se está ruim ou não encaixa direito, joga fora.” Ela falava com afeição. Continuou: “O dia em que compramos aquelas bicicletas foi difícil, para nós dois. Ele gosta de pensar que tudo que aconteceu depois tinha que acontecer, que nunca houve outra escolha. Diz que não se lembra, por isso nunca conversamos sobre isso”. Embora seu tom fosse contemplativo e em nada acusatório, certa firmeza nas últimas palavras parecia estabelecer o pretexto para uma indiscrição. Ela também estava sendo intencionalmente obscura e um pouco dramática. Encostou-se na cadeira, a xícara uns dois centímetros acima do pires, esperando ser encorajada.

Stephen tomou cuidado para não parecer interessado; sabia que a lealdade dela poderia facilmente vir à tona graças ao sentimento de culpa. Deixou passar alguns segundos antes de dizer: “Afinal, suponho que quarenta anos seja muito tempo mesmo”.

Ela sacudiu a cabeça enfaticamente. “A memória não tem nada a ver com os anos. A gente lembra o que lembra. O momento em que vi seu pai pela primeira vez é tão claro para mim agora quanto sempre foi.” Stephen conhecia em parte o relato do primeiro encontro de seus pais. Mas tinha consciência de que aquilo que estava sendo oferecido a ele como prova da intemporalidade da memória era a entrada da mãe na história que ela queria contar.

Nos primeiros três anos após a guerra, a mãe de Stephen, Claire Temperly, trabalhou numa pequena loja de departamentos numa cidadezinha do Kent. O impacto social da guerra, em particular o desaparecimento de toda a classe dos empregados domésticos e, assim, do modo de vida das classes médias de bom nível econômico, ainda não se fizera sentir por completo. Por isso, a loja — uma espécie de Harrods local de dois andares — ainda conseguia manter algumas pretensões do período anterior à guerra.

“Não era o tipo de lugar em que mamãe ficaria à vontade fazendo compras. Ia se sentir deslocada.” Rapazes vestindo uniformes azul-marinho com alamares prateados e gorros com o emblema da loja aguardavam junto às portas giratórias a fim de levar as senhoras, sobre os tapetes cor de ameixa, até o departamento apropriado. Se as assistentes não estivessem disponíveis, as senhoras eram convidadas a esperar em poltronas confortáveis. Os rapazes tratavam as freguesas com grande cortesia e frequentemente tocavam nos bonés em sinal de respeito, mas nunca recebiam gorjetas.

As assistentes, todas moças, também usavam uniformes pelos quais eram pessoalmente responsáveis. Cada manhã, antes que a loja abrisse, se perfilavam para a inspeção do vestuário pela srta. Bart, a idosa chefe do departamento de pessoal. Ela prestava atenção especial aos laços brancos e engomados que “suas meninas” portavam nas costas. Garotas que não tinham nascido para isso precisavam aprender a pronúncia adequada, fortalecendo os músculos em volta dos lábios. Quando não estavam atendendo aos fregueses, tinham que ficar empertigadas atrás dos balcões de mogno, só se falando caso estritamente necessário; exigia-se que ostentassem uma expressão amigável e alerta, mas não “intrometida” — “o que significava não olhar para o freguês antes que ele olhasse para você. Levei uns dois meses para aprender isso”.

Claire tinha vinte e cinco anos e ainda estava na casa dos pais quando entrou para a loja. Era uma mescla estranha de timidez e independência. “Escapei de duas propostas de casamento, mas precisei que mamãe falasse por mim.” No entanto, parentes e amigos estavam começando a se preocupar com sua idade, dizendo-lhe que só lhe restavam mais um ou dois anos. Era bonita, com um jeito alegre, de passarinho. Não era a ambição, mas a energia nervosa e o receio de ser criticada que a faziam trabalhar com tamanho afinco. Até a srta. Bart, que todos temiam, passou a gostar dela por conta da pontualidade, dizendo que seus laços eram os mais limpos e mais perfeitos. Ela aprendeu a falar com o sotaque sofisticado das outras moças, sendo uma das poucas assistentes transferidas para um novo departamento a cada seis meses, “provavelmente porque os superiores estavam pensando em me promover”.

Foi por tal motivo que se viu no departamento de relógios, vinda da seção de armarinhos, onde a supervisora fora uma segunda mãe para ela e a fizera se sentir menos ansiosa pelo fato de não estar casada. Seu superior agora era o sr. Middlebrook, um homem alto e magro que intimidava tanto os subordinados como os fregueses por seu modo de falar brusco e sarcástico. Ele tinha na testa uma notável mancha de nascença vermelha, e a história entre as moças era que, “se você deixasse seu olhos pousarem na mancha por um segundo, estava despedida na hora”. O sr. Middlebrook não era insensato, porém era frio na relação com as assistentes e propenso a fazê-las parecer idiotas.

Raramente havia fregueses do sexo masculino na loja. Era um lugar tranquilo, perfumado, feminino. Vez por outra um velho cavalheiro poderia aparecer, qual um peixe fora d’água, à procura de um presente de aniversário para a esposa, ficando encantado quando alguma moça o tomava pela mão e fazia sugestões respeitáveis. E havia jovens casais, casados ou noivos, “preparando o ninho”, que se tornavam objeto dos mexericos das assistentes na meia hora que tinham para almoçar. Mas um sujeito ainda moço e sozinho na loja, em especial um homem bonito com um bigode preto e no elegante uniforme cinza-azul da RAF, era motivo de grande agitação. A notícia de sua chegada foi telegrafada através do andar térreo. As moças levantaram a vista dos balcões, alertas e amistosas. Seguido, e não precedido, por um rapaz, ele atravessou toda a serena extensão dos tapetes cor de ameixa a caminho do departamento de Claire, com o quepe sob um braço e um relógio sob o outro, pedindo para ver o sr. Middlebrook. Enquanto alguém foi buscá-lo em seu escritório, o homem descansou o relógio e o quepe lado a lado no tampo de vidro do balcão, relaxou o corpo com as mãos cruzadas nas costas e ficou olhando fixo para a frente. Era um homem forte, com as costas impressionantemente retas. Tinha uma fisionomia ossuda e austera, muito apreciada à época. Os cabelos negros e ondulados eram afixados graças à generosa aplicação de Brylcreem, e o bigode preto em miniatura tinha cera até as pequenas pontas. O relógio era um carrilhão num estojo de pau-rosa, daqueles que se põem no consolo da lareira. Claire estava a uns quatro metros de distância, tirando o pó dos mostruários, que era a coisa mais próxima de não fazer nada permitida pelo sr. Middlebrook. Sabendo que era impróprio iniciar um contato visual insubordinado, ela continuou entretida com os vidros dos carrilhões de pé, todos mostrando um homem de uniforme à espera. “Mas, você sabe, mesmo sem dar meia-volta, eu sentia alguma coisa como um calor vindo dele. Uma espécie de brilho.”

De nada ajudou o fato de que o sr. Middlebrook demorou a chegar e, quando por fim surgiu atrás do balcão e presumivelmente registrou a presença de um homem com alguma queixa, primeiro pegou um envelope pardo, tirou de dentro uma folha de papel, a abriu e escreveu uma lista de números, para então voltar a dobrar a folha, recolocá-la no envelope e repor tudo no lugar certo na prateleira. Só então encenou o drama pouco crível de notar um freguês necessitado de atenção. Esticando-se para aproveitar toda a sua altura e inclinando-se para a frente, com o peso apoiado nos dedos espraiados sobre o tampo de vidro, ele disse: “E qual seria o problema?”.

Durante todo esse tempo, o homem uniformizado não se movera nem olhara para o lojista até que ele fez a pergunta. Deu então meio passo à frente, pegou o quepe e o usou para indicar o relógio. Disse simplesmente: “Está quebrado. Outra vez”. A limpeza de Claire a fazia aproximar-se da cena.

O sr. Middlebrook foi enérgico. “Então não há nenhum problema, meu senhor. A garantia ainda é válida por sete meses.” Tinha a mão sobre o relógio e se preparava para recolhê-lo. Mas o outro homem esticou sua mão e a plantou firmemente sobre a do sr. Middlebrook, prendendo-a enquanto falava. Claire reparou nos dedos grossos daquela segunda mão e nos pelos negros e emaranhados em seus nós. O contato físico violava todas as regras tácitas que presidiam as confrontações com fregueses. O sr. Middlebrook enrijeceu. Como reagir significaria intensificar o contato, ele não teve outra opção senão ouvir as breves palavras do sujeito. “Adorei o jeito dele falar. Direto no assunto. Em nada grosseiro ou mal-educado, mas também sem lero-lero.”

Ele disse: “O senhor me falou que era um relógio confiável. Que valia cada centavo. Ou estava mentindo ou cometeu um erro. Não sou eu quem vai julgar. Quero meu dinheiro de volta agora”.

Nesse ponto, por fim, o sr. Middlebrook se viu num terreno familiar. “Sinto muito, mas não podemos autorizar o reembolso no caso de produtos comprados cinco meses atrás.”

Sentindo-se mais seguro graças à afirmação de uma diretriz da companhia, o sr. Middlebrook tentou libertar a mão. No entanto, a mão maior do sujeito agarrou seu pulso e começou a apertá-lo. Ele falou de novo, como se fosse a primeira vez: “Quero meu dinheiro de volta agora”. E então veio a surpresa. O homem se voltou na direção de Claire. “E qual é a sua opinião? Esta é a terceira vez que o relógio quebra.”

“Até que ele me perguntasse, eu não tinha uma opinião. Só estava olhando para ver o que ia acontecer. Mas, antes que eu conseguisse me conter, já fui respondendo com a maior audácia: ‘Acho que deve receber seu dinheiro de volta, meu senhor’.”

O homem fez sinal com a cabeça na direção da caixa registradora enquanto continuava a segurar firmemente o sr. Middlebrook. “Então vamos, moça. Sete libras, treze xelins e seis pence.” Claire abriu a caixa, iniciando assim toda uma vida de obediência doméstica. O sr. Middlebrook não fez nenhum esforço para impedi-la. Afinal de contas, estava escapando de uma situação desagradabilíssima sem ter de ceder. Douglas Lewis pegou o dinheiro, deu meia-volta e foi embora com passos rápidos, deixando o relógio quebrado no balcão.

“Vou sempre lembrar que os ponteiros marcavam quinze para as três.”

Claire foi despedida na hora do almoço, não pelo sr. Middlebrook, que estava no médico tendo o pulso enfaixado, mas pela srta. Bart, que desaprovou seu comportamento. A moça surpreendeu-se por encontrar o homem esperando por ela no momento em que pisou na calçada. Ele lhe pagou um almoço de primeira no Hotel George.

“Não tinha dúvida”, disse a sra. Lewis, estendendo o pires e a xícara para ser enchida de novo. “Ele era o genro dos sonhos. Quando foi lá em casa para um chá, fez tudo certo. Chegou no melhor uniforme, levou flores, disse coisas simpáticas sobre o jardim para o papai, deixou a mamãe feliz por comer três fatias do bolo. Depois disso, todo mundo passou a me tratar com respeito.”

Três meses depois, quando chegou a notícia de que Douglas seria mandado para o norte da Alemanha, eles ficaram noivos. Claire se sentiu um pouco desapontada ao descobrir, durante o almoço no Hotel George, que ele não era um piloto de caça. Nunca tinha nem estado num avião. Trabalhava na administração, um funcionário burocrático que chefiava todos os outros funcionários burocráticos. Agora ficou muito aliviada por saber que ele não faria nada mais perigoso na Alemanha do que buscar a cada semana os salários do esquadrão no banco. Ela foi até Harwich se despedir quando Douglas embarcou no navio, chorando no trem de volta para casa. Corresponderam-se com regularidade, às vezes todos os dias ao longo de várias semanas. Embora ele considerasse mais fácil descrever crateras de bombas em cidades devastadas e filas de comida do que seus sentimentos mais ternos, foi capaz de aprender algo com a noiva, e conseguiram desenvolver uma intimidade crescente através das cartas. Quando Douglas veio à Inglaterra no Natal, se sentiram um pouco envergonhados, tímidos até ao se darem as mãos, porque o romance postal, com suas declarações extravagantes, tinha se adiantado a eles. Mas logo depois do Natal já haviam recuperado o atraso e, viajando de trem para Worthing a fim de visitar os pais dele, Douglas murmurou um breve discurso, quase inaudível por conta do estrépito metálico das rodas, em que disse a Claire como estava apaixonado por ela.

Como as condições na Alemanha continuavam muito precárias para permitir que as esposas acompanhassem seus maridos militares, decidiram só se casar quando Douglas voltasse a servir no Reino Unido. Ele voltou de férias só na primavera, e assim mesmo apenas para um longo fim de semana. O tempo estava quente, e, como não havia onde pudessem ficar a sós dentro de casa, passavam os dias caminhando pelos North Downs, fazendo planos. Percorreram despreocupados as mesmas trilhas seguidas pelos peregrinos de Chaucer. O tranquilo Weald se abria diante deles, havia flores silvestres, cotovias, abundante solidão. Estavam delirantemente felizes, foi um fim de semana delirante — e pela repetição da palavra Stephen entendeu que sua mãe absolvia o casal de certa falta de cuidado. Sem dúvida, quando Douglas retornou para umas férias mais longas em julho, Claire tinha uma notícia de suma importância para lhe dar. Decidiu escolher a hora certa, esperar até que se encontrassem de volta nas colinas em meio às flores silvestres, depois de restabelecida a intimidade fácil e alegre.

Ao visualizar aquele momento, quase podia ouvir um fundo musical de cinema e ver o sol de pleno verão iluminar a cena — Douglas abobalhado de orgulho, suas feições suavizadas pela reverência e admiração, um novo tipo de ternura. “Mas não me ocorreu que estaria frio e ventando.” Pior ainda, Douglas parecia diferente. Estava nervoso, distraído, distante. Às vezes dava a impressão de estar entediado. Sempre que Claire perguntava se havia algo de errado, ele lhe tomava a mão e apertava ferozmente. Caso perguntasse com frequência, ficava irritado.

No final de sua visita anterior, tinham resolvido comprar bicicletas a fim de ficarem livres dos erráticos ônibus locais, e, como aquela era a primeira compra conjunta, a primeira aquisição para o pequeno império que estavam prestes a construir, pareceu apropriado comprar bicicletas novas. Como tinham feito a escolha previamente e dado uma entrada, no terceiro dia da licença de julho de Douglas partiram com um piquenique já pronto para pegar as bicicletas e enfrentar o mau tempo. Claire decidira dar a notícia naquele dia, apesar de estar chovendo e Douglas se mostrar mais silencioso que nunca. No entanto, ele se animou depois que montaram nas bicicletas e começou a cantar, coisa que jamais tinha feito na presença dela. Por isso, Claire aproveitou a oportunidade e revelou seu segredo enquanto desciam fazendo zigue-zagues pela movimentada High Street.

Foi difícil conversar. Só quando chegaram na estradinha rural e tinham desmontado para empurrar as pesadas bicicletas sobre uma passagem de nível e ao subir uma íngreme colina foram capazes de discutir o assunto. Nessa hora chovia muito e eles avançavam contra o vento. Era tudo muito diferente da cena imaginada por Claire, e muito injusto, pois não havia parecido improvável que o espírito do fim de semana delirante continuasse no verão. Douglas dava a impressão de estar perturbado. Há quanto tempo ela sabia? Como ficou sabendo? Como podia ter tanta certeza?

“Mas você não está entusiasmado?”, perguntou Claire, cujas lágrimas se perdiam na chuva. “Não está feliz?”

“Claro que estou”, disse Douglas rapidamente. “Só estou tentando ver as coisas direito. É tudo que estou fazendo.”

No topo da colina, quando a chuva rareou e o vento cessou de repente, Douglas secou o rosto com um lenço. “Isso tudo é meio repentino, você sabe.”

Claire concordou com a cabeça. Achou que merecia um pedido de desculpa, mas estava aborrecida demais.

“E significa que temos de mudar todos os nossos planos.”

Ela não tinha dado maior importância àquele detalhe. E o pequeno escândalo de uma criança nascida, digamos, seis meses depois de se casarem não seria nada comparado com a felicidade dos dois. Concordou com ar sombrio.

A estrada descia convidativamente em direção aos bosques, mas, como não lhes pareceu correto andar de bicicleta num momento tão sério, caminharam em silêncio com as mãos nos freios. Durante a descida, Claire começou a sentir que ia confrontar alguma coisa indizível, algo que não lhe ocorrera levar em conta. “Foi o silêncio dele. Como se eu pudesse sentir o gosto daquele silêncio, o gosto das coisas que não estava dizendo. Comecei a me sentir nauseada. Você sabe como um cheiro ruim afeta uma mulher grávida.”

De fato pararam enquanto Claire tinha ânsias de vômito junto à cerca viva. Douglas segurou sua bicicleta. Quando continuaram, ela se sentiu como se já tivesse ouvido os argumentos e sofrido uma triste derrota: Douglas estava entediado, lamentava o noivado, tinha outra mulher na Alemanha. Fosse o que fosse, não queria a criança. Era isso que estava em sua mente. Era o aborto — “e a palavra naqueles tempos tinha uma conotação muito diferente, muito má” —, a dificuldade de tocar no assunto, que vinha causando sua reticência.

A raiva estava clareando os pensamentos dela. Agora se sentia lúcida. Se ele não queria a criança, ela também não. O bebê dentro dela não era ainda uma entidade, não era alguma coisa a ser defendida a todo custo. Era ainda uma abstração, um aspecto do amor deles; se isso estava terminado, então o bebê também estava. Ela não se submeteria à ignomínia de ser mãe solteira a vida toda. Se Douglas não passava de um episódio fugaz, ela não queria ser lembrada de sua existência para todo o sempre. Tinha de ficar livre, tinha que mandar embora aquele idiota que a fizera perder tempo. Iria começar de novo.

Entraram no bosque onde a luz era de um verde aquoso e faias gigantescas pingavam calmamente sobre as folhas abertas das abundantes samambaias. Ela estava furiosa. Apertava os freios na sua fúria e tinha de empurrar ainda com mais força. Queria acabar logo, na beira do caminho, no chão de terra, sob aquela árvore, já, já. A dor não significaria nada, a purificaria, a justificaria. E então montaria em sua bicicleta, pedalando para valer. O vento e a chuva refrescariam seu rosto, a curariam. Não desmontaria nos trechos de subida. Iria tocar em frente, deixar para trás aquele homem fraco cujo silêncio fedia e a nauseava.

Sim, tinha tomado sua decisão, já era um fato. Quase coisa do passado. Mas, assim como no Natal a intimidade deles teve de recuperar o atraso com relação às cartas, agora eles ainda tinham que conversar, tocar no assunto difícil, examiná-lo mediante raciocínios tortuosos em que mentiras, falsas emoções e fingimentos resultariam na conclusão lógica que ela já havia aceitado. Teriam de passar por tudo isso antes que ela se libertasse. Sua impaciência era tão grande que queria gritar, queria pegar sua bicicleta idiota e jogá-la na estrada. Em vez disso, levou a mão à boca e mordeu com força o nó do dedo.

Continuaram a andar. Alguma intensificação no teor do silêncio de Claire fez Douglas tomar conhecimento do próprio silêncio. Passou o braço pelos ombros dela e perguntou se estava se sentindo melhor. Ela não respondeu. Ele se tornou solícito de um jeito culpado quando notou que ela tinha chorado. Pediu desculpa por sua vacilação. Era maravilhoso que ela estivesse grávida, motivo para comemoração. Lembrou-se de que havia um pub mais adiante. A hora exigia um copo de cerveja, eles poderiam escapar da chuvinha fina que os encharcava, acima de tudo poderiam sentar-se a uma mesa e pensar direito em tudo. Claire soube então que o processo começara porque, se fosse para a criança nascer, os raciocínios cuidadosos seriam menos apropriados que os sentimentos indulgentes. Concordou corajosamente e montou na bicicleta para ir à frente. Após dobrar à direita numa estrada um pouco mais larga, chegaram ao pub. Deixaram as bicicletas na varanda, fora da chuva. Não era nem meio-dia, foram os primeiros fregueses. O bar era úmido e lúgubre, Claire tiritou enquanto aguardava sentada que Douglas trouxesse as cervejas. Friccionou as pernas para que parassem de tremer — sentiu como se estivesse esperando uma cirurgia numa cama de hospital. Ressentiu-se da conversa alegre e inútil que seu ex-noivo mantinha com o proprietário. Será que ele não estava nem um pouquinho preocupado? Sua raiva voltou, e com ela a determinação. Os tremores cessaram. Não precisava fazer nada mais que bebericar a cerveja enquanto Douglas convencia os dois da única decisão correta. Ela o faria pagar em dinheiro vivo pela traição e, depois disso, nunca mais o veria.

Ele se sentou no assento do recesso com um pequeno suspiro do tipo “bom, cá estamos”. Ergueram os copos e disseram “Saúde”. Fez-se silêncio enquanto Claire batia ritmadamente com o pé no chão e Douglas passava os dedos pelos cabelos molhados mas ainda empapados de Brylcreem. Ele limpou a garganta e lhe contou sobre a última vez em que estivera no pub, menos de uma semana antes que a guerra fosse declarada. Outro tenso interlúdio, e então por fim ele começou. Era maravilhoso que ela estivesse grávida, inclusive porque sabiam agora com certeza que poderiam começar uma família a qualquer momento. Nós começamos uma família, Claire pensou, sem nada falar. Permaneceu sentada, rígida, tentando não ouvir com muita atenção. Se fosse capaz de simplesmente ficar calada, tudo terminaria tão logo obtivesse dele, movido pela culpa, o compromisso de pagar e fazer os arranjos necessários. Outros casais, Douglas estava dizendo, tentam meses a fio, anos a fio, às vezes sem sucesso. Era uma prova do amor deles, de como tudo estava certo, o fato de poderem ter um filho com tanta facilidade. Isso o fazia amá-la ainda mais, ele sentia uma confiança ilimitada nela e no futuro dos dois juntos. Claire nunca o ouvira falar tanto de uma vez só. Ele pegou sua mão e a apertou, e ela devolveu o aperto a fim de encorajá-lo. “Pensei comigo mesma: acaba logo, seu bobalhão. Quero voltar para casa.” Então ele falou sobre a dificuldade da posição em que se encontravam. Até agora nada tinha ouvido falar sobre um posto na Inglaterra, e na Alemanha só então estavam construindo as acomodações para casais. Seu constrangimento era menos visível quando ele deixava de lado as questões pessoais e falava sobre assuntos mais amplos. Comentou a falta de moradias na Inglaterra, a situação internacional, a ponte aérea para Berlim, a nova Guerra Fria, a bomba nuclear.

Havia muito ele terminara a cerveja, enquanto ela mal havia tocado na sua. Ela estava ficando impaciente, achou que devia fazer a conversa avançar. Interrompeu-o e disse: “Se está tentando dizer que acha que eu não devo ter a criança, vamos tratar…”.

Horrorizado, Douglas levantou as duas mãos para fazê-la parar. “Não estava dizendo isso, minha querida. Não estava dizendo nada disso. Só estou dizendo é que devemos levar tudo em conta, olhar todos os ângulos, e perguntarmos a nós mesmos se esta é realmente a melhor hora, e se é…”

Ela se arrependeu de ter feito aquele comentário. Ao assustá-lo, fez com que Douglas se afastasse do assunto e voltasse a dizer como ela era bonita, como seus sentimentos eram profundos. Se pudessem conversar agora sobre tudo, então, qualquer que fosse a decisão que tomassem, isso os fortaleceria no futuro. Seguiu essa linha, ampliando timidamente o “qualquer”, retornando aos poucos à posição anterior.

Foi durante essa fala que Claire, ainda apenas se contendo, ainda desatenta, olhou através do bar para a janela junto à porta. “Posso ver a coisa agora tão claramente quanto vejo você. Havia um rosto na janela, o rosto de uma criança, como se flutuasse ali. Ela olhava para dentro do pub. Tinha uma expressão assim de quem pede alguma coisa, e era muito branca, como uma aspirina. Olhava direto para mim. Pensando nisso estes anos todos, acho que era o filho do proprietário, ou um garoto qualquer das fazendas da região. Mas, naquele instante, fiquei convencida… simplesmente sabia que estava vendo meu filho. Se preferir, estava vendo você.”

Conforme Douglas falava sem parar e a criança continuava a olhar para dentro do pub, Claire sofria uma transformação. Que coisa mais extraordinária, pensar em destruir aquela criança somente porque sentiu ressentimento de seu noivo! O bebê, seu bebê, de repente era de carne e osso. Estava olhando firme para ela, dizendo que ela era dele. Tinha se tornado independente do que quer que viesse a acontecer entre aquele homem e ela própria. Pela primeira vez ela considerou a ideia de um indivíduo separado, de uma vida que ela tinha que defender com a sua. Não era uma abstração, não era o objeto de uma barganha. Estava na janela agora, um eu em si mesmo, implorando para existir, e estava dentro dela, se desenvolvendo intrincadamente, vivendo da pulsação do sangue dela. Não era uma gravidez que eles deviam discutir; era uma pessoa. Ela sentiu que estava apaixonada por aquele ser, fosse ele quem fosse. Uma história de amor tinha começado.

Então a criança se foi. Não a viu sair dali. Ela simplesmente se desfez. Voltou-se outra vez na direção de Douglas, que seguia com seu discurso tortuoso, e teve um sentimento benévolo de proteção com relação a ele. Lembrou-se de seu amor e da aventura que estavam começando juntos. Não era covardia ou duplicidade o que testemunhava naquele momento. Ali estava um homem recorrendo a todo o seu poder masculino de razão e de lógica, a todo o seu considerável conhecimento dos tópicos da atualidade, porque estava em pânico profundo. Como ele iria saber o que significava ter um filho? Não estava dentro dele, não era de modo algum parte dele, e no entanto pressentira, com acerto, que poderia mudar sua vida para sempre. Claro que devia estar em pânico. Como podia saber que não amaria a criança até que a visse, até que pudesse saber de quem se tratava? Douglas enumerava possibilidades de uma coisa ou outra com os dedos da mão esquerda, sem atinar com o fato de que seu destino estava sendo selado. Ela se recordava de como ele tinha sido notável na loja de departamentos, como tinha sido forte. Tinha sido um erro seu acreditar que ele ou qualquer outro homem podia ser forte em todas as circunstâncias. Ela dera a notícia num estado de espírito passivo, esperando que Douglas reagisse exatamente como ela, que se ocupasse da questão por ela. E então ficara emburrada, masoquista, com pena de si própria. Onde Douglas tinha sido fraco, ela se fizera ainda mais fraca. E, no entanto, a verdade é que se encontrava um passo à frente, pois já amava a criança, conhecia algo que Douglas não podia conhecer. Por isso, a responsabilidade era dela, aquela era a hora dela. Chegara o momento de decidir. Ia ter a criança, isso agora estava fora de questão, e ia ter aquele marido. Pôs a mão sobre o antebraço dele e o interrompeu pela segunda vez.

A sra. Lewis fechou os olhos e inclinou a cabeça para trás, encostando-a numa almofada. Continuaram sentados em silêncio na sala que escurecia. Sua respiração compassada sugeria o sono, mas por fim ela falou num murmúrio, sem abrir os olhos ou mover a cabeça. “Agora você me conte.” Sem hesitação ele começou sua história, omitindo todas as referências a Julie. Caminhava no campo, ele disse; e no final, após a experiência de cair através da vegetação rasteira, contou ter recobrado os sentidos à beira da estrada, a uns cem metros do pub. Quando descreveu as bicicletas, o que fez com grande cuidado, observou sua mãe de perto. Ela não demonstrou nenhuma reação, nem mesmo quando ele relembrou os gestos, as roupas, o prendedor de cabelo. Só falou depois que ele havia terminado, e se limitou a um breve suspiro: “Ah, bem…”. Não era necessário discutir nada. Após refletir por um minuto, ela se declarou cansada. Stephen ajudou-a a se levantar da cadeira e subir a escada. Disseram-se adeus no patamar. “Quase se combinam”, ela disse. “Quase.” Deu-lhe as costas e entrou no quarto, a mão roçando a parede como apoio.

Uma hora mais tarde seu pai chegou tão exausto que mal conseguia sustentar o peso do casaco ou curvar os braços para desabotoá-lo. Stephen lhe deu uma ajuda levando-o até a poltrona em que sua mãe se sentara. Só depois que recebeu uma cerveja e a bebericou calmamente por quinze minutos o sr. Lewis pôde contar sua provação. Todas as suas reservas tinham sido gastas num dia de espera ansiosa, conexões de ônibus fracassadas, empurrões de estranhos e a necessidade de depender de outras pessoas. Havia se chocado com a imundície dos logradouros públicos, a que ele não estava acostumado, e com a agressividade dos pedintes.

“A sujeira nas ruas, as mensagens indecentes nos muros, a pobreza, meu filho, tudo mudou em dez anos. Faz dez anos que visitei Pauline pela última vez. É outro país. Não tenho forças para isso, nem estômago.” Bebeu a cerveja. Stephen viu seu copo tremer. Imaginando que poderia animá-lo, contou como ele estava absolutamente certo o tempo todo, como o livro sobre a educação de crianças tinha sido escrito meses antes que a Comissão houvesse terminado de reunir o material. Mas o sr. Lewis se limitou a dar de ombros. Por que deveria ficar satisfeito? Levantou-se com as juntas estalando, recusando a ajuda de Stephen e anunciando que iria se deitar. No passado, o sr. Lewis nunca havia dispensado uma noite de cerveja e conversa com o filho, mas agora lhe deu um débil tapinha no ombro e subiu a escada, soltando pequenos arquejos impacientes no caminho. Não eram nem nove e meia quando Stephen, tendo recolhido a louça do chá e os copos de cerveja, apagou as luzes e saiu em silêncio da casa onde seus pais dormiam.

 


                                          CONTINUA