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A CRIANÇA NO TEMPO / Ian McEwan
Cinco
Não foi sempre que uma minoria substancial, composta dos membros mais frágeis da sociedade, usou roupas especiais, esteve livre da rotina do trabalho e de muitas limitações a seu comportamento e pôde devotar às brincadeiras a maior parte do tempo. Cumpre lembrar que a infância não é uma ocorrência natural. Houve épocas em que as crianças eram tratadas como pequenos adultos. A infância é uma invenção, uma criação social, que a sociedade tornou possível à medida que cresceu em sofisticação e adquiriu maiores recursos. Acima de tudo, a infância é um privilégio. Não se deve permitir que, ao ficar mais velha, a criança esqueça que seus pais, como corporificação da sociedade, são aqueles que lhe concedem tal privilégio, e o fazem às suas custas.
Manual autorizado de puericultura,
Departamento Real de Imprensa
Stephen dirigia um carro alugado numa estrada secundária deserta, rumando para leste na direção da parte central de Suffolk. O teto solar estava totalmente aberto. Cansado de procurar música tolerável no rádio, se contentara com o som do ar quente entrando veloz, além da novidade de estar guiando um carro pela primeira vez em mais de um ano. Um cartão-postal que escrevera para Julie se encontrava no bolso de trás da calça. Ela parecia querer ficar sozinha. Não se decidia a pô-lo no correio. O sol ia alto às suas costas, proporcionando uma visibilidade luminosa. A estrada era ladeada por valas de irrigação feitas de concreto, fazendo amplas curvas através de quilômetros em meio às plantações de coníferas que se erguiam mais além de uma larga faixa de tocos de árvores e plantas ressequidas. Dormira bem na noite anterior, recordou-se mais tarde. Estava relaxado, embora razoavelmente alerta. Mantinha a velocidade entre cento e dez e cento e vinte, baixando um pouco quando se aproximou de uma grande carreta cor-de-rosa.
No que se seguiu, a rapidez dos acontecimentos foi facilitada pela desaceleração do tempo. Preparava-se para ultrapassar quando algo ocorreu — não viu exatamente o quê — na área das rodas da carreta, um hiato, uma nuvem de pó, e então uma coisa preta e longa voou como uma cobra em sua direção de uma distância de uns trinta metros. Bateu no para-brisa, grudou-se nele por um momento e desapareceu antes que ele pudesse compreender do que se tratava. E então — ou isso aconteceu no mesmo instante? — a traseira da carreta fez uma série de movimentos complicados, saltos e bamboleios, mudando de direção em meio a uma chuva de centelhas, brilhantes até mesmo sob a luz do sol. Algo curvo e metálico se deslocou rapidamente para um lado. Até então Stephen só tivera tempo de mover o pé na direção do freio, tempo de notar um cadeado balançando na ponta de uma lingueta solta e um “Me lave” rabiscado na porta enlameada. Houve um rinchar de metal arranhado e novas centelhas, suficientemente densas para formarem uma chama branca que pareceu impelir a traseira da carreta para cima. Ele aplicava a primeira pressão no pedal de freio quando viu as rodas empoeiradas girando, a massa coberta de óleo do diferencial, o eixo, e agora, na altura dos seus olhos, a base da caixa de marchas. Emborcado, o veículo quicou no bico do capô uma vez, talvez duas, e então, preguiçosamente, hesitantemente, iniciou uma cambalhota completa, mostrando a Stephen a grade do radiador de cabeça para baixo e o brilho do para-brisa ao rumar para o chão; ouviu-se um grande estrondo quando o teto bateu na estrada, subiu de novo e seguiu adiante numa cama de fogo. Mais à frente, o caminhão girou, bloqueando a estrada, tombou de lado e parou abruptamente, enquanto Stephen, distante dele menos de trinta metros, se aproximava a uma velocidade que, com grande afastamento emocional, estimou ser de uns setenta quilômetros por hora.
Naquele instante, graças à desaceleração do tempo, lhe veio a sensação de um novo começo. Ele tinha penetrado num período muito posterior em que todos os termos e condições haviam sido alterados. Ali estavam as novas regras, e sentiu uma espécie de pasmo, como se estivesse andando sozinho numa vasta cidade de um planeta recém-descoberto. Havia espaço também para um pequeno desgosto, uma genuína saudade dos velhos tempos em que era possível desfrutar do espetáculo de ver um caminhão rodopiar de modo tão espalhafatoso diante de uma testemunha impassível. Agora era um tempo mais exigente em matéria de esforço e de concentração. Ele apontava o carro para uma abertura de um metro e oitenta entre um sinal de estrada e o para-choque da carreta imóvel. Tinha retirado o pé do pedal do freio, raciocinando — e era como se acabasse de concluir uma monografia sobre o assunto — que aquilo estava puxando o carro para um lado, interferindo na sua pontaria. Em vez disso, reduzia a marcha e segurava o volante com as duas mãos de modo firme, mas não exagerado, pronto para erguê-las a fim de proteger a cabeça caso errasse. Transmitiu mensagens ou, melhor dizendo, mensagens fluíram dele para Julie e Kate, nada mais distinto que pulsações de alarme e de amor. Havia outros para quem caberia enviá-las, ele sabia, mas o tempo era curto, menos que meio segundo, e felizmente seus nomes não lhe vieram à mente para confundi-lo. Ao engatar a segunda marcha, o pequeno carro soltou um urro de protesto, mas era claro que ele não devia refletir muito, que precisava confiar num pensamento descontraído e desconectado, que cumpria imaginar-se passando pela abertura. Ao som dessa palavra, que deve ter pronunciado em voz alta, houve um forte som de metal e vidro sendo esmagados, e ele se viu do outro lado, parando, com a maçaneta da porta e o espelho lateral largados na estrada quinze metros atrás.
Antes do alívio, antes do choque, lhe veio a intensa esperança de que o motorista da carreta houvesse testemunhado sua proeza de direção. Stephen ficou sentado, imóvel, segurando ainda o volante, observando-se pelos olhos do homem no veículo que vinha atrás. Se não o motorista, qualquer um que estivesse por ali, talvez um fazendeiro, alguém que entendesse de dirigir e fosse capaz de apreciar totalmente sua façanha. Queria uma salva de palmas, queria um passageiro no banco da frente se voltando agora para ele com os olhos brilhando. Na verdade, queria Julie. Começou a rir e gritar: “Viu isso? Viu isso?”. E depois: “Você conseguiu! Você conseguiu!”. A experiência toda não durara mais de cinco segundos. Julie teria gostado do que aconteceu com o tempo, como a duração se conformou à intensidade do evento. Estariam falando sobre isso agora, excitados por estarem vivos, curiosos para compreenderem o que aquilo devia significar, que importância teria para o futuro dos dois. Riu de novo, mais alto, e soltou um grito de guerra. Estariam se beijando, pegando uma das garrafas de champanhe do banco de trás, começando a tirar a roupa um do outro, comemorando, em meio à poeira que baixava, o fato de haverem sobrevivido. Que experiência fantástica! Cobriu o rosto com as mãos e chorou um pouco, descontrolado. Assoou o nariz com força numa flanela amarela, fornecida pela locadora de veículos, e desceu do carro.
Para estar observando Stephen, o motorista precisaria ter cortado um buraco no teto da cabine. Stephen não sabia disso ao caminhar pela estrada na direção do caminhão. A frente estava tão violentamente amassada e rasgada que no começo foi difícil decidir para onde ela estaria voltada se continuasse inteira. Sempre cuidadoso, chutou para o acostamento a maçaneta e o espelho lateral destruídos. O ar à frente estava distorcido pelos vapores que escapavam do diesel. Estilhaços de vidro faziam um som desagradável ao serem triturados sob seus pés. Ocorreu-lhe que o motorista podia estar morto. Aproximou-se da cabine com cautela, tentando localizar a porta ou outra abertura qualquer. Mas a estrutura se dobrara, parecia um punho cerrado ou uma boca banguela bem fechada. Pisou nos ferros retorcidos e levantou o corpo até que seu rosto atingiu o nível do para-brisas. O vidro se esmigalhara, transformando-se numa superfície leitosa, opaca. Subindo mais, descobriu uma janela lateral, porém só viu o forro do teto da cabine pressionado contra o vidro. A estrada era tão limpa que ele teve de saltar por cima da vala de irrigação e procurar em meio à folhagem para achar uma pedra grande. Voltou com ela e bateu nos destroços.
Limpou a garganta e gritou, absurdamente, em meio ao silêncio: “Ei, pode me ouvir?”. E ainda mais alto: “Alô!”. Ouviu algo se mexer no fundo da cabine, seguido de curto silêncio; depois, uma voz de homem bem próxima pronunciou duas palavras abafadas. Era uma acústica amortecida, um murmúrio em um cômodo atulhado de mobília. Gritou outra vez, mas logo se deteve. Tinha gritado enquanto a voz repetia aquelas palavras. Dessa vez esperou vários segundos, varrendo com os olhos a montanha de cromo e metal à procura de uma fenda. Quando voltou a gritar, a voz respondeu duas palavras curtas. Estou aqui? Me ajuda? Contornou a cabine, tentando controlar a agitação em sua própria voz. “Não entendo o que você está dizendo. Estou tentando te encontrar.”
Voltou à posição original. Houve uma pausa na qual, segundo Stephen imaginou, o sujeito reunia suas forças.
Ouviu um forte sorvo de ar e uma voz que dizia: “Olha pra baixo”.
Havia uma cabeça aos pés de Stephen. Projetava-se de uma fenda vertical no aço. Havia também um braço nu, enfiado debaixo da cabeça, apertando o rosto e tapando parcialmente a boca. Stephen ajoelhou-se. Não tinha qualquer pudor em tocar na cabeça do estranho. Os cabelos eram castanho-escuros e abundantes. No topo existia uma pequena área de calvície, do tamanho de uma moeda grande. O rosto estava encostado no asfalto, mas Stephen podia ver que pelo menos um dos olhos se encontrava fechado.
A fenda na verdade era o espaço entre duas seções amassadas de placas de metal. Dava para ver a parte de cima dos ombros do homem na semiobscuridade, o xadrez vermelho e preto da camisa de trabalho. Bateu de leve em seu rosto, e os olhos se abriram.
“Está sentindo alguma dor?”, Stephen perguntou. “Pode esperar enquanto eu busco ajuda?” O sujeito tentava falar, mas o antebraço preso sob a mandíbula dificultava a pronúncia das palavras. Stephen ergueu a cabeça com as duas mãos e usou o pé para empurrar o braço, libertando-o.
O homem grunhiu e cerrou os olhos. Quando os abriu, disse: “Você tem aí papel e lápis, companheiro? Quero que tome nota duma coisa pra mim”. Sotaque de Londres, voz grave e amigável.
Stephen tinha um caderno de notas e um lápis no bolso, mas não os pegou. “Precisamos tirar você daqui. Pode estar perdendo sangue. Tem combustível por toda parte.”
O sujeito respondeu de forma razoável. “Acho que não vou escapar dessa. Me faz um favor e anota umas mensagens. Depois, se você me salvar, não fez mal em anotar, não é mesmo?” Stephen era tão atencioso em matéria de mensagens finais como qualquer outra pessoa.
“Esta é para a Jane Field, Tebbit House, número dois três um seis, Anzio Road, South West Nine.”
“Não é longe de onde eu moro.”
“Querida Jane, eu te amo…” Fechou os olhos e refletiu. “Vi você num sonho que tive na noite passada. Eu ia mesmo voltar. Sabe disso, não sabe? Tinha certeza de que alguma coisa assim ia acontecer. Sempre teu, Joey. Ah, sim, e põe: todo o meu amor para as crianças. A próxima é para Pete Tapp, trezentos e nove, Brixton Road, South West Two. Caro Pete, Bom, meu velho amigo, aconteceu primeiro comigo. Não vou poder te encontrar no sábado. Põe aí, você sabe, uns dois pontos de exclamação. Ainda te devo cem pratas. Pega com a Jane. Quero que você fique com a Bessie. É uma lata inteira por dia, lá pelas seis, misturada com uns biscoitos e um copo de leite. Nada de chocolate. Valeu, Joe. Ah, sim, e põe na primeira um P.S.: Devo ao Pete cem libras.”
Stephen virou a página do caderno de notas e esperou.
O homem olhava para a superfície da estrada. Por fim disse, como quem sonha: “Esta é para o sr. Corner, aos cuidados da Stockwell Manor School, South West Nine. Prezado sr. Corner, não suponho que se lembre de mim. Saí faz uns catorze anos. O senhor me botou para fora da sua classe e disse que eu nunca ia ser ninguém. Bom, agora tenho meu negócio, com minha própria carreta quase toda paga, uma Fahrschnell cor-de-rosa, de vinte toneladas. Penso com frequência no que me disse e quero que saiba. Atenciosamente, Joseph Fergusson, vinte e oito anos de idade. A próxima é para Wendy McGuire, treze, Fox’s Road, Ipswich. Querida…”.
Stephen fechou o caderno e se pôs de pé. “Chega”, disse em voz alta enquanto caminhava rapidamente para o carro. Abriu a mala e remexeu irritado lá dentro até achar o macaco, mantido num lugar pouco visível por um dispositivo magnético.
“Vou te dizer”, o sujeito falou quando Stephen retornou e tentou enfiar o macaco de lado na fenda, “não sinto nada do pescoço para baixo. Não quero ver como está.”
Parecia não haver onde fixar o macaco nas bordas amassadas da fenda. No entanto, a perspectiva de tomar mais ditados motivou Stephen, e, por fim, tendo ajeitado o aparelho, começou a girar a manivela.
Ele estava ajoelhado no chão com a cabeça entre os joelhos. O homem descansava o rosto no asfalto. O macaco, posto de banda, estava posicionado uns quarenta e cinco centímetros acima de seu pescoço. Quando entrou em ação, a parte de baixo começou a afastar a placa de metal, abrindo a fenda aos pouquinhos a cada volta da manivela. A parte de cima estava encostada em alguma coisa firme demais para ser movida, o que proporcionava uma pegada útil. Quando a fenda se abriu uns oito ou dez centímetros, Stephen pôde recolocar o macaco, agora verticalmente, com a base próxima à garganta do sujeito. Com um rangido penetrante, como o de uma unha arranhando a lousa, uma seção rasgada da lataria começou a ser erguida. Moveu-se vinte centímetros antes de esbarrar de novo em algo pesado. Stephen olhou para o espaço às escuras onde o corpo do homem estava encolhido. Não havia sangue ou qualquer indício de ferimento. Com cuidado para não deslocar o macaco, pegou com uma das mãos o ombro do sujeito e com a outra sustentou seu rosto. Ao puxar, o homem gemeu.
“Você vai ter que ajudar”, disse Stephen. “Levanta a cabeça para que eu possa enfiar a mão debaixo do seu queixo.” Dessa vez, houve algum movimento, quase uns três centímetros. Repetindo isso várias vezes, o homem foi capaz de libertar o braço para levantar o corpo, permitindo que Stephen o pegasse pelas duas axilas e o arrastasse para fora.
O motorista da carreta massageava o pulso enquanto caminhavam em direção ao carro. “Acho que está quebrado”, disse com tristeza. “Tinha que disputar um torneio de sinuca no sábado.”
Stephen, que agora tremia e sentia as pernas bambas, decidiu que o sujeito estava em estado de choque. Ajudou-o a sentar-se no banco do passageiro, cobrindo-o com um tapete. Mas, como a porta do motorista não abria sem a maçaneta, Stephen precisou tirar o sujeito do banco para entrar e se ajeitar atrás do volante. Enfim acomodados, ficaram sentados por uns dois minutos. Os rituais de enfiar a chave na ignição, de sacudir a alavanca de mudança e de agarrar o volante acalmaram Stephen. Contemplou o indivíduo, que olhava fixamente através do para-brisa, e tremeu.
“Olha, Joe, é um milagre que você esteja vivo.”
Joe passou a língua pelos lábios e disse: “Estou com sede”.
Stephen pegou a garrafa no banco de trás. “Só tenho champanhe.” A rolha ricocheteou no painel e bateu com força na orelha de Joe. Ele sorriu ao pegar a garrafa. Bebeu direto da boca espumante, fechando os olhos. Passaram a garrafa de mão em mão, sem trocar uma só palavra até a esvaziarem. Depois Joe arrotou e perguntou como Stephen se chamava. “Você foi brilhante, Stephen. Brilhante pra caralho. Eu nunca ia pensar no macaco.” Olhou para o pulso e disse, surpreso: “Estou vivo. E nem fiquei aleijado”.
Riram, e Stephen contou empolgado a história da abertura de um metro e oitenta pela qual tinha passado, como o tempo desacelerou, como o sinal de estrada arrancou a maçaneta e o espelho lateral. “Brillhante”, Joe murmurou diversas vezes, e “Brilhante pra caralho” quando Stephen pegou a segunda garrafa de champanhe. Trataram de reconstituir o acidente de seus diferentes pontos de vista. Joe disse que sentiu como se um gigante houvesse apanhado seu caminhão e o jogado para o alto. Lembrava-se da superfície da estrada vindo em sua direção, depois de ver de relance e de cabeça para baixo o carro que vinha atrás, até que tudo começou a se dobrar em volta dele. Foi um milagre, continuaram a dizer, uma porra dum milagre. Lá pelo fim da segunda garrafa, deram vivas e berraram por farra e, na falta de coisa melhor, cantaram “Ele é um bom camarada”, cada qual apontando para o outro na palavra “ele”.
Ao pegarem a estrada, Stephen se lembrou do macaco e resolveu deixá-lo onde estava. Rumaram para a cidadezinha mais próxima e debateram se Joe devia ser levado primeiro a um hospital ou à delegacia de polícia. Ele insistiu na segunda opção. “Quero tudo bem certinho pro cara do seguro.”
Seguiam a mais de cento e quarenta quilômetros por hora quando Stephen, lembrando-se de que estava quase bêbado, diminuiu a velocidade. Joe ficou em silêncio por algum tempo, murmurando apenas ao chegarem nas cercanias da cidadezinha: “Eu conheci uma garota legal que vive aqui perto”. Chegando ao centro, procuravam uma delegacia quando ele perguntou: “Por quanto tempo eu fiquei lá? Duas horas? Três?”.
“Dez minutos. Ou menos.”
Joe ainda estava resmungando como isso era incrível no momento em que Stephen encontrou a delegacia e parou. “O que você acha dessa coisa do tempo?”, perguntou.
Joe observou através de sua janela três policiais armados que entravam num carro-patrulha. “Sei lá. Fiquei em cana quase dois anos. Nada pra fazer, nada acontecendo, todo dia a mesma merda. E sabe duma coisa? Passou num relâmpago, minha sentença. Acabou antes que eu soubesse que estava lá. Por isso faz sentido. Se acontece um monte de coisas bem depressa, vai parecer que levou um tempão.”
Desceram do carro e ficaram na calçada. A comemoração terminava.
“Você está vivo”, disse Stephen talvez pela décima vez naquela última hora. “O que acha que isso significa? Que diferença faz?”
Joe vinha pensando, a resposta estava pronta. “Significa que vou voltar para Jane e as crianças e dar um pontapé na bunda da Wendy McGuire. Significa que vou comprar duas carretas de segunda mão com o dinheiro do seguro.”
Relembrando assim o importante assunto a tratar, deu meia-volta e caminhou em direção à delegacia, ainda muito atordoado, supôs Stephen, para pensar nas formalidades de agradecimento e despedida. Quando Joe deu um passo para o lado a fim de deixar duas policiais passarem, antes de desaparecer pelas portas de vaivém, Stephen se lembrou das mensagens no caderno e se sentiu tolhido por elas. Rasgou as páginas e então, tirando o cartão-postal do bolso de trás da calça, se curvou sobre o ralo e jogou tudo no esgoto.
Talvez a influência do ministro houvesse mantido as plantações de pinheiros e a maquinaria que erradicava as sebes longe das vizinhanças de Ogbourne St Felix. O bosque de duzentos hectares, existente desde os tempos dos normandos e registrado no catálogo de propriedades rurais desde o século XI, ficava numa região visitada pelos fotógrafos comerciais e cineastas por ser geralmente aceita como uma representação típica do campo inglês. O bosque pertencia nominalmente a uma instituição de caridade, na prática inoperante. Na verdade quem estava em posse dele era o proprietário da única residência existente no terreno, obrigado a pagar por sua manutenção. Um conjunto de três choupanas de lenhadores tinha sido demolido para formar a casa, situada numa pequena clareira no sul do bosque. A ela se chegava por uma estrada secundária e, depois, por um caminho esburacado, flanqueado de sorveiras-bravas e limeiras. Só o visitante experimentado sabia que uma área de vegetação rasteira mais densa era a sebe selvagem dos Darke, e que no verão era necessário procurar com afinco, num emaranhado de arbustos, a portinhola que se abria para um túnel verde, pelo qual se chegava ao arco feito de rosas que marcava a entrada do jardim de Thelma.
Stephen havia parado na cidadezinha próxima para repor o estoque de champanhe. Vinha sentindo as pernas e os braços pesados ao atravessar com sua compra uma pequena praça a caminho do principal hotel da localidade. Queria lavar-se e tomar um uísque duplo. Não estava preparado para o grupo de mendigos reunido perto da entrada. Pareciam menos acabados que os tipos comuns em Londres, mais saudáveis, mais confiantes. Ouviu risos ao se aproximar, e um homem musculoso, vestindo um colete de tecido em forma de rede, cuspiu na calçada e esfregou as mãos. Pelo jeito, nenhuma das normas usuais se aplicava ali. Segundo a lei, os pedintes nem podiam trabalhar em pares. Supostamente, deviam estar em movimento o tempo todo, percorrendo certas vias autorizadas. Sem dúvida não era permitido que se amontoassem em entradas como aquela, esperando para incomodar o público. Ali, nem os distintivos eram usados de modo correto. Estavam amarrados em antebraços bronzeados e vigorosos, ou costurados nas coloridas faixas de cabelo de algumas garotas. Um gigante usava o distintivo como tapa-olho. Um jovem, com a cabeça raspada e cheia de tatuagens, havia prendido o seu a um brinco.
Chegando mais perto, Stephen se deu conta de sua sacola com as garrafas tilintando, e da forma provocante com que o invólucro dourado das rolhas reluzia ao sol. Todos agora o observavam, impossível recuar. Culpa do governo e de sua legislação odiosa, ele pensou. Fosse como fosse, tal situação não seria tolerada nem um momento em Londres, e ele esperava que aparecesse algum policial. Diminuíra o passo, mas logo se viu no meio do grupo. Olhou fixo para a frente, sem encarar ninguém. Ouviu alguém dizer: “E então, que tal uma notinha de dez?”, porém seguiu adiante. Viu de relance um livro de bolso com poemas de Shelley na mão de uma garota. Tocaram em sua sacola, e ele a puxou rudemente para perto do corpo. Outra voz parodiou um sotaque refinado: “Hã, Bollinger. Que ideia maravilhosa!”. Ouviram-se risadas enquanto ele abria caminho em meio ao cheiro acre de suor e ao aroma de patchuli.
Era essa pequena confrontação, e não o acidente na estrada, que o preocupava quando entrou no sacolejante caminho dos Darke. Sentiu-se culpado de traição. Lá estava um homem pálido, vestindo uma camisa branca de seda e carregando garrafas de champanhe; lá estavam os ciganos na entrada. Durante anos, ele se convencera de que, no fundo do coração, pertencia à legião dos desenraizados, de que ter dinheiro era um feliz acidente, de que podia voltar às estradas a qualquer hora com suas coisas numa mochila. Mas o tempo o fixara em seu lugar. Tornara-se um daqueles que procuram por um policial ao ver um bando de pobres molambentos. Encontrava-se agora do outro lado. Se não, por que tinha tentado fingir que eles não estavam lá? Por que não admitir que eram mais numerosos, olhá-los nos olhos como podia fazer no passado, e entregar um pouco do dinheiro que lhe tinha caído na mão por acidente? Havia estacionado o carro e seguia por uma trilha coberta de ervas na direção da portinhola. O patchuli tinha mexido com ele. Era o perfume de uma garota sonhadoramente autodestrutiva que conhecera em Kandahar, dos caóticos apartamentos de ocupação coletiva em West London, de um concerto ao ar livre em Montana. Tinha sido chacoalhado pelo clichê do tempo irreversível. Houve época em que sentira o corpo leve. Costumava pensar que sua vida era uma aventura sem limitações, costumava dar as coisas, divertia-se quando algo inesperado acontecia, quando as coincidências benevolentes o impulsionavam adiante. Quando tudo aquilo acabara? Quando, por exemplo, tinha começado a pensar que as coisas que possuía eram de fato suas, inalienavelmente suas? Não foi capaz de lembrar.
Parou no lúgubre túnel de arbustos de verão e, descansando a maleta de viagem e as garrafas de champanhe, se preparou para encontrar os amigos. As mãos brancas brilhavam na obscuridade. Cobriu os olhos com elas. Estava doentiamente entupido com seu passado recente, tal qual um homem gripado. Se ao menos pudesse viver no presente, seria capaz de respirar sem dificuldade. Mas não gosto do presente, ele pensou, pegando suas coisas. Ao endireitar o corpo, viu, recortada contra a luz do céu, uma silhueta emoldurada pelo arco de rosas. Thelma o observava.
“Há quanto tempo você está escondido aqui?”, ela perguntou ao se beijarem.
Não conseguiu soar despreocupado ao responder: “Há anos”. Em compensação, lhe mostrou as garrafas, que já estavam frias, e sugeriu abrir uma imediatamente — a última coisa que tinha vontade de fazer.
Thelma o levou na direção da casa. A porta e todas as janelas estavam abertas a fim de receber o sol da tarde. Entraram por uma pequena sala de jantar cujo chão de pedra irradiava uma sensação de água fresca. Thelma saiu à procura das taças corretas. Nas estantes, posando em seus habitats, havia pássaros empalhados dentro de redomas de vidro. Uma coruja amarelo-castanho tinha as garras enfiadas num camundongo também empalhado. Num tanque quadrado, uma lontra cerrava as mandíbulas em torno de um peixe em decomposição. Stephen pousou os cotovelos numa mesa redonda e instável, animando-se. Ao lado de seu braço havia uma garrafa de borgonha com a rolha recém-tirada. O aroma da carne assada e do alho misturou-se com o da madressilva que se esparramava pelo peitoril da janela às suas costas. Na cozinha, Thelma enchia um balde de gelo, do jardim vinha uma cacofonia de cantos de pássaros.
Sentaram-se debaixo de uma pereira, em torno de uma mesa de metal enferrujado que tinha sido colocada sobre uma área de grama não cortada e era cercada de enormes papoulas, bocas-de-leão e o que Stephen pensou serem tremoços até que ouviu Thelma chamá-los de delfínios.
Ela pôs duas taças junto ao balde e serviu. “Charles está lá pelo mato. Você vai ter que encontrá-lo depois.”
Stephen estremeceu devido à acidez da bebida e pensou no vinho tinto que ficara lá dentro. Outra dose de uísque também ia cair bem. Como havia coisas demais para conversarem, falaram sobre o jardim. Ou melhor, Thelma explicou e Stephen balançou a cabeça com uma expressão inteligente. Só quando ele apontou para uma massa de centáureas e perguntou o que elas eram Thelma percebeu a verdadeira extensão da ignorância dele. Contou-lhe como as bordas do jardim tinham sido planejadas de modo a se mesclarem à vegetação selvagem do bosque, com o que não existiria nenhuma barreira visível entre os dois; e como vinha cultivando flores silvestres a fim de obter as sementes que tencionava preservar para o que chamou de pool genético.
“Até as prímulas praticamente desapareceram. Depois se vão os ranúncios.”
“Tudo está piorando”, disse Stephen. “Será que nada está ficando melhor?”
“Você é quem está circulando aí pelo mundo. Me diga.”
Ele refletiu seriamente. “Estão plantando coníferas em todo o Sussex. Em menos de vinte anos vamos ser autossuficientes em madeira.”
Ergueram um brinde, e então Stephen perguntou sobre o livro. Evitavam falar de Charles. O trabalho estava indo bem, disse Thelma; um quarto do livro já tinha sido escrito, e outro encomendado. Ela perguntou sobre as novidades do comitê, levando Stephen a relatar a conversa com o primeiro-ministro.
Thelma não revelou a menor surpresa. “Sem dúvida Charles era bem querido por ele. Coisa mantida em segredo, embora eu nunca tivesse sabido por quê. Talvez para evitar ciúmes. Também havia um toque de carinho e desejo.”
“Desejo?” Era voz corrente que o primeiro-ministro era isento disso.
“Coisas mais estranhas acontecem. Na política, Charles podia ser considerado um rapaz, um garoto.”
“Foi por isso que você o quis aqui?”
Thelma negou com a cabeça. “Não vou dizer nada até que você o veja.”
“Mas ele está feliz?”
“Trate de ver você mesmo. Siga a trilha atrás da cozinha. Chegando no caminho principal, vire à esquerda. Vai dar de cara com ele mais cedo ou mais tarde.”
Vinte minutos depois ele partiu. Havia um largo caminho gramado ladeando o perímetro do bosque e formando um oval irregular que, segundo Thelma, podia ser percorrido em uma hora. Em certos trechos era possível divisar, num dos lados, os campos abertos através das árvores. Em outros, o caminho penetrava mais fundo no bosque e se estreitava até quase virar uma trilha. Esses pontos eram mais escuros, e neles a grama dava lugar a uma erva em que Stephen relutava pisar porque as folhas esmigalhadas emitiam um estalido desagradável. Na última vez em que andara por aquele bosque, com Charles ainda ministro, tudo era esquelético e puro. As mudanças sazonais eram suficientemente lentas para que as transformações continuassem a ser uma surpresa. Porque não parecia ser o mesmo lugar. A seca não penetrara até ali. Sua ignorância do nome das árvores e plantas só contribuía para aumentar a impressão de profusão. O bosque havia explodido, estava engolfado num tamanho caos de vegetação que corria o risco de ser sufocado pela abundância.
Onde o caminho e um riacho se cruzavam, um pedaço de pedra, vestígio de velho muro, abrigava uma Amazônia em miniatura, uma floresta de musgo, liquens fluorescentes e árvores microscópicas. Acima, havia cipós, grossos como cordas, filtrando a luz. No chão, gigantescos repolhos e ruibarbos, folhas de palmeira, talos de capim curvados ao peso das pontas. Num local aberto, uma extravagante exibição de flores roxas. Noutro, mais sombrio, um bafejo de alho, um lembrete do jantar.
O lugar precisava de uma criança, Stephen pensou, sucumbindo ao inevitável. Kate não teria consciência do carro a oitocentos metros de distância, nem do perímetro do bosque e tudo que existia mais além, estradas, opiniões, o governo. O bosque, aquela aranha girando no seu fio e o besouro movendo-se pesadamente acima das folhas de capim seriam tudo, o momento seria tudo. Ele necessitava de sua boa influência, suas lições de como festejar o específico; como preencher o presente e ser por ele preenchido até aquele ponto em que a identidade se desvanecia por completo. Uma parte dele estava sempre em outro lugar, ele nunca prestava atenção total, nunca era cem por cento sério. Não era essa a ideia de Nietzsche sobre a verdadeira maturidade, atingir a seriedade de uma criança ao brincar?
Certa vez ele e Julie tinham levado Kate a Cornwall. Foi um passeio curto para comemorar o primeiro concerto público do quarteto de cordas. Chegava-se à praia por uma trilha de mais de três quilômetros. No fim da tarde, começaram a construir um castelo de areia próximo à beira do mar. Kate, excitada, estava naquela idade em que tudo tinha que ser exatamente como devia ser. Os muros tinham de ser retangulares e com janelas, as conchas deviam ser inseridas em intervalos regulares e a área dentro do castelo tornada confortável com algas secas. Stephen e Julie haviam resolvido divertir a filha até a hora de irem embora. Já tinham nadado e comido o piquenique. Mas logo, e sem entender bem o que estava acontecendo, foram absorvidos, contagiados pela urgência da menina, trabalhando sem ter consciência do tempo exceto pela iminência da maré. Os três agiam numa harmonia barulhenta, compartilhando o balde e duas pás, impiedosamente dando ordens uns aos outros, aplaudindo ou desdenhando cada concha ou formato de janela que o outro escolhia, correndo — jamais andando — para buscar novos materiais na beira da praia.
Quando estava tudo completo e haviam caminhado diversas vezes em volta da obra, se apertaram dentro dos muros para esperar pela maré. Kate estava convencida de que o castelo tinha sido tão bem construído que resistiria ao mar. Stephen e Julie deram apoio à ideia, caçoando da água enquanto ela apenas lambia os lados e vaiando quando sugou um pedaço do muro. Enquanto aguardavam a demolição final, Kate, apertada entre os dois, suplicou para permanecer no castelo. Queria que fizessem dele a nova casa. Abandonariam a vida em Londres, morariam para sempre na praia, fazendo aquela brincadeira. E foi então que os adultos romperam o encantamento e, consultando de relance os relógios, começaram a falar no jantar e em seus muitos outros compromissos. Comentaram com Kate que todos precisavam pegar os pijamas e as escovas de dente. Como ela achou a ideia deliciosa e sensata, deixou-se levar de volta ao longo da trilha até o carro. Durante vários dias, até que o assunto foi esquecido, quis saber quando retornariam para a nova vida no castelo de areia. Ela tinha falado sério. Stephen refletiu que, se conseguisse fazer tudo com a intensidade e a entrega com que naquele dia ajudara Kate a construir seu castelo, seria um homem feliz, com poderes extraordinários.
Alcançou um ponto onde a trilha fazia um ângulo reto em direção ao centro do bosque, iniciando uma descida gradual. Os galhos das árvores se uniam sobre o caminho, formando um dossel através do qual o sol da tarde projetava sombras alaranjadas na grama escurecida. Onde a trilha voltava a ficar nivelada havia um carvalho morto, nada mais que um pilar de madeira podre. Stephen estava a dez metros dessa árvore quando um garoto saiu de trás dela e parou para encará-lo. Stephen parou também. As manchas irregulares de luz se moviam quando o vento soprava. Dali não podia ver muito bem, mas ele sabia que se tratava do mesmo tipo de menino que costumava fasciná-lo e aterrorizá-lo na escola. O rosto era pálido e emoldurado pelos cabelos cor de areia. O olhar era confiante demais, atrevido de um modo bem conhecido. Tinha uma aparência antiquada — camisa de flanela cinza com as mangas arregaçadas e as abas soltas, shorts largos e cinzentos sustentados por um cinto de elástico listrado com um fecho prateado em forma de cobra, os bolsos cheios com um cabo saindo para fora, joelhos arranhados e ainda com casca em algumas feridas. Stephen recordou-se das fotos de meninos sendo evacuados durante a Segunda Guerra Mundial, ao lado dos professores na plataforma de uma estação de trem londrina.
“Oi”, disse Stephen em tom simpático ao avançar. “O que é que você está fazendo aqui?”
O garoto se apoiou na árvore enquanto erguia uma perna e coçava a outra acima do tornozelo com a ponta do sapato muito gasto. “Sei lá. Só esperando.”
“Esperando o quê?”
“Você, seu idiota.”
“Charles!” Quando cobriu a distância que os separava e estendeu a mão, Stephen não tinha certeza de que ela seria tomada. Mas foi, e então Charles passou o braço por trás do pescoço de Stephen e o abraçou. Ele sentiu o cheiro de alcaçuz e, mais no fundo, de terra úmida.
Charles afastou-se de um salto e atravessou a trilha. “Quer ver meu refúgio?”, se limitou a dizer, andando na frente por um caminho que descia entre altas samambaias. Stephen o seguiu de perto, com a atenção fixada no estilingue que escapava do bolso do amigo. A lingueta de couro pendia perigosamente das tiras de borracha. Cruzaram uma clareira onde crescia milho silvestre entre os tocos, entrando de novo no bosque onde todas as árvores eram gigantes maduros. Iam rápido, e, ocasionalmente, Stephen dava uma corridinha para alcançá-lo. Charles falava em frases ofegantes, desconexas, sem voltar a cabeça para trás. Stephen não entendeu tudo que dizia. Charles parecia estar falando sozinho.
‘“É realmente bom… passei o verão todo construindo… eu mesmo… meu refúgio…”
Stephen teve tempo de ver que o amigo não havia realmente encolhido, como lhe pareceu de início. Estava mais magro e mais ágil em seus movimentos. Os cabelos crescidos na frente faziam uma franjinha, e tinham sido cortados curtos atrás das orelhas. O jeito desinibido, a fala rápida e o olhar direto, o caminhar descuidado e impulsivo, a maneira como os pés e os cotovelos se moveram quando ele girou o corpo para enveredar por um caminho ainda mais estreito, o abandono do ritual e das formalidades dos cumprimentos entre adultos eram o que sugeria se tratar de um menino de dez anos.
Haviam chegado a outra clareira, menor, em cujo centro se erguia uma árvore extremamente grossa.
Charles remexeu na grama e pegou uma pedra. “Está vendo isso? Está vendo isso?” Não continuou antes que Stephen respondesse que sim. “Foi o que eu usei para fincar esses troços.” Apontou para um prego de quinze centímetros enfiado na árvore sessenta centímetros acima do solo, e depois para outro, sessenta centímetros acima do primeiro. Havia mais ou menos uns doze, que formavam uma linha curva no tronco até alcançar o primeiro galho, a nove metros de altura. Puxou Stephen pelo cotovelo para uma área ao pé da árvore onde a grama estava gasta. “Lá em cima!”, ele gritou: “Olha, olha!”. Stephen dobrou a cabeça para trás mas não viu nada além de uma estonteante massa de galhos que se dividiam e subdividiam. O topo da árvore não era visível. “Não, não”, disse Charles. Pegou a cabeça de Stephen com ambas as mãos e a dobrou ainda mais. Em meio aos galhos mais altos havia uma mancha preta.
“O que é aquilo?”, Stephen perguntou. “Um ninho?”
Era a coisa certa a perguntar. Charles deu um pulo. “Não é um ninho, idiota. É o meu refúgio. Um lugar só meu!”
“Incrível”, disse Stephen.
Charles empurrou o estilingue para o fundo do bolso. “Está pronto?”
Pôs o pé esquerdo no primeiro prego, ergueu o pé direito até o segundo e ficou parado, a mão esquerda segurando o terceiro prego, a direita gesticulando energicamente para Stephen.
“É fácil. É só fazer o que eu faço.”
Stephen passou a mão pela casca do tronco. Não se mexeu. “Que… que espécie de árvore é essa, você sabe?”
“Claro que é uma faia. Não sabia? É enorme, acho que tem uns cinquenta metros de altura.” Começou a subir até ficar uns três metros acima do solo, e então olhou para baixo. “Faz tempo que eu ando querendo te mostrar.” Ele, que já tinha sido homem de negócios e político, agora era um pré-púbere bem-sucedido.
Stephen testou seu peso no primeiro prego. Queria perguntar ao amigo o que tinha acontecido com ele, mas Charles estava por demais imerso em sua nova personalidade, a léguas de distância de qualquer aparência de fingimento ou consciência do absurdo da transformação. Stephen não tinha certeza de como abordar o assunto. Talvez Charles estivesse num estágio avançado de psicose, e nesse caso seria necessário cuidado para lidar com ele. Por outro lado, Stephen não podia deixar de ser afetado pela excitação, o desafio no ar, a importância que seu velho amigo parecia atribuir àquele momento. Não queria dar a impressão de ser um chato. Nunca fora muito bom em matéria de trepar em árvores, mas também nunca tinha tentado para valer. Ergueu o corpo e se viu com os dois pés no segundo prego. Nenhum problema, mas, olhando para baixo, ficou alarmado ao ver que já estava bem alto.
“Não sei se isso é para mim”, começou a dizer, porém Charles, que a essa altura estava de pé em cima do primeiro galho, com as mãos enfiadas nos bolsos, ditava instruções: “Pega o prego logo acima da sua cabeça, levanta o pé e pega o prego seguinte com a outra mão…”.
Stephen deslizou a mão para cima até achar o prego. Um metro e meio não significava um grande tombo, mas as pessoas quebravam o pescoço caindo até de uma cadeira.
Minutos depois estava deitado de barriga para baixo no primeiro galho. Como era quase tão sólido quanto o chão, apertou o corpo contra ele. A poucos centímetros de distância, um piolho de madeira se desincumbia de seus afazeres. Aquele era o refúgio dele. Charles tentava lhe mostrar a rota, mas Stephen não ousava olhar para cima nem desejava olhar para baixo. Mantinha os olhos no piolho. “Acho que vou devagarinho”, foi tudo que conseguiu dizer. Charles lhe ofereceu uma bala e, jogando outra para o alto, a apanhou com a boca, continuando depois a subir.
O difícil agora era abrir mão do galho para se pôr de pé. Apoiou-se no tronco enquanto endireitava o corpo. A próxima tarefa consistia em levantar uma perna o suficiente para colocar o pé na forquilha do ramo mais acima. Mas depois tudo ficou mais fácil. Tantos galhos se projetavam do tronco que era como subir uma escada em caracol. Bastava ir com cuidado e não olhar para baixo. Passaram-se quinze minutos prazerosos. Aquilo era algo que ele podia fazer, algo que ficara faltando em sua infância — e agora entendia perfeitamente por que para outros garotos era tão importante. Parou para descansar e contemplou o horizonte. Estava bem acima das copas das árvores. Ao longe via o campanário de uma igreja e mais perto, talvez a um quilômetro e meio de distância, parte do telhado vermelho da casa dos Darke. Agarrou mais firme o tronco e olhou para baixo. Sentiu um frio no estômago, mas nada demais. Tinha visto o chão através de um espaço em forma de arco entre as folhagens, e não entrara em pânico. Encorajado, respirou fundo, segurou ainda mais firme e dobrou a cabeça para trás. Esperava ver não muito longe a base da casinha suspensa. Seu campo de visão girou em torno de um ponto central, algo quente e frio desceu do seu estômago para os intestinos. Encostou o rosto no tronco e fechou os olhos. Não, isso também não adiantava. Abriu-os e se concentrou na casca da árvore. Ele vira — e não tinha coragem de relembrar a imagem — a mesma bifurcação infinita e vertiginosa de galhos que tinha visto do chão, e muito acima só o brilho do joelho nu de Charles, além de outras folhas e ramos que se perdiam na obscuridade, sem sinal da plataforma.
Passou um minuto se acalmando. Decidiu que o melhor era descer. Queria agradar o amigo, mas, afinal, era inútil arriscar a vida. Aqui estava outro problema. Para encontrar o apoio inferior, precisava olhar para baixo — e não se atrevia a fazer isso. “Ah, meu Deus”, sussurrou para a árvore. “O que é que eu faço?” Não fez nada. Esforçou-se por ouvir algum som reconfortante vindo do chão. Até o canto de um pássaro serviria. Mas lá em cima não havia nada, nem mesmo o vento. Ocorreu-lhe subitamente que ele estava absorto por inteiro no momento. Se permitisse que outro pensamento o distraísse, simplesmente cairia da árvore. Então pensou: não quero mais fazer isso. Quero fazer outra coisa. Me tire daqui, faça isso parar.
Ouviu um som acima dele, porém não olhou. Charles tinha descido para buscá-lo. “Vem, Stephen”, ele disse, “a vista é melhor ainda lá de cima.”
Stephen respondeu com comedimento, temeroso de que a força de suas palavras pudesse empurrá-lo para fora da árvore. “Empaquei”, ele disse com os dentes quase tocando na casca.
“Ah, meu Deus”, disse Charles aparecendo a seu lado. “Você está empapado de suor.”
“Não se mexa tão depressa”, Stephen sussurrou.
“Esta árvore é perfeitamente segura. Já subi e desci dezenas de vezes, carregando tábuas e outras coisas, até duas cadeiras.”
Stephen cambaleou e Charles pegou seu braço. O cheiro de alcaçuz não lhe trouxe maior tranquilidade.
“Olha, vê esse galho? Põe a mão aqui e se levanta até poder mover o pé, depois se apoia no joelho e vai para aquele lugar ali…” As instruções continuaram. Stephen sabia que não podia fazer nada a não ser obedecer rigorosamente. Inútil dizer que queria descer: qualquer discussão significaria seu fim. Precisava confiar. Por isso, foi se arrastando para cima, pondo as mãos e os pés exatamente onde indicado, forçando a atenção para detectar qualquer ambiguidade perigosa. Às vezes interrompia: “Charles, você falou que é a minha mão esquerda ou direita?”.
“A direita, idiota!”
Não desviou a vista dos pontos de contato das mãos e dos pés. Nunca tinha certeza de onde Charles estava, e não queria olhar em volta. Uma voz sem corpo, acima de sua cabeça, comunicava com desdém o que devia fazer: “Ah, meu Deus! A mão não, seu tonto, o pé!”.
Durante a subida, houve vezes em que Stephen pensou: não vou fazer isso para sempre. Algum dia estarei fazendo outra coisa. Mas não estava de todo certo. Sabia que, por ora, tudo que tinha de fazer era subir e deixar que as circunstâncias cuidassem delas próprias. Algum dia, ele poderia, ou não, retornar à vida de antes. Havia outra coisa, tão horrível e grande que ele não era capaz de compreender. Passou afinal por um buraco circular e se viu numa plataforma instável de madeira. Com pouco mais de um metro quadrado e nenhum anteparo nos lados. De início, ele só pôde ficar deitado de barriga para baixo, sufocando o choro que crescia na garganta.
“Bom, o que é que você acha?”, Charles ficou perguntando, e também: “Quer uma limonada?”.
Quando se recuperou, Stephen levantou a cabeça lentamente de modo a não sacudir a plataforma e arrancá-la da árvore. Olhou ao redor, mantendo as palmas das mãos em contato com as tábuas. Todo o bosque se abria abaixo deles, e mais além, a oito quilômetros de distância, se via a cidadezinha onde havia parado em meio aos campos cultivados. Na direção do oeste, o sol se punha de forma esplendorosa, o redemoinho de cores enfeitado pela poeira que se levantava do vale do Tâmisa a mais de cem quilômetros de distância. Charles estava esparramado numa cadeira de cozinha, observando com orgulho enquanto Stephen absorvia a paisagem. A garrafa de limonada, que Charles balançava presa entre o indicador e o polegar, estava quase vazia. A seu lado havia um caixote cor de laranja, e sobre ele um binóculo, uma vela no castiçal e uma caixa de fósforos. Dentro do caixote, diversos livros: dois para a identificação de pássaros, várias aventuras juvenis, algumas da série William Brown e, Stephen notou sem grande prazer, seu primeiro romance. Charles apontou para uma segunda cadeira, mas Stephen não quis elevar mais o corpo. Em vez disso, se acomodou de modo mais confortável, afastando-se do buraco através do qual tinham chegado à plataforma.
Como seu amigo o olhava com ar de quem espera uma reação, Stephen disse por fim: “É ótimo. Parabéns!”. Charles passou a garrafa e Stephen, que estava preparado para se mostrar um convidado agradável, tomou um grande gole. Sua boca se encheu de um líquido salgado e insípido, lembrando o gosto de sangue, só que mais frio e grosso. O bom senso lhe disse que devia cuspir. No entanto, forçou-se a engolir, pois havia notado uma tábua solta perto do pé.
Charles tomou o resto. “Fui eu mesmo que fiz”, ele disse, guardando a garrafa entre os livros. “Quer saber o que tem dentro?”
O pensamento que intimidara Stephen na subida voltou agora. Era a ideia da descida. “Me diga”, ele falou rapidamente, o tom mais agudo devido à náusea e ao medo, “por que você está se comportando como um menino? O que está fazendo aqui em cima?”
Charles continuou curvado sobre o caixote cor de laranja por um momento, talvez rearrumando os livros. Stephen não podia ver direito. Será que tinha dito justamente a coisa errada? Como dependia da ajuda de Charles, era importante não dizer nada que o ofendesse, pelo menos até que estivessem de volta lá embaixo. Charles veio e se ajoelhou ao lado dele. Estava sorrindo.
“Quer ver o que eu tenho nos bolsos?” A atiradeira foi a primeira a ser retirada. Empurrou-a para as mãos de Stephen. “É de nogueira. A melhor madeira.” Seguiram-se uma lente de aumento, uma vértebra de carneiro e um canivete com uns dez acessórios. Enquanto Charles abria cada um deles e explicava para que serviam, Stephen observou o amigo com grande atenção, buscando algum indício de humor ou autoconsciência, qualquer vestígio do adulto. Mas a voz era sem inflexões, o rosto concentrado em cada detalhe. Havia balas de hortelã de estilo antiquado grudadas no fundo de um saco de papel, uma concha de caracol avantajada, uma salamandra seca, bolas de gude. A que Charles pôs na mão de Stephen era grande e de cor leitosa.
Para mostrar interesse, Stephen perguntou: “Onde você arranjou isso?”.
A resposta foi rápida e desafiadora: “Eu ganhei numa disputa” — e ele não quis perguntar onde. Havia uma bilha, um compasso de brinquedo, um pedaço de corda e dois cartuchos vazios, um anzol enfiado numa rolha, uma pena e duas pedrinhas ovais.
Contemplando aquelas coisas espalhadas sobre as tábuas, inseguro acerca do que dizer, Stephen ficou impressionado com o que parecia ser o resultado de uma pesquisa muito exaustiva. Era como se seu amigo houvesse vasculhado bibliotecas, consultado zelosamente as autoridades apropriadas a fim de descobrir o que era provável que determinado tipo de menino tivesse nos bolsos. Era correto demais para ser convincente, não suficientemente idiossincrático, talvez mesmo um engodo. Por um instante, o constrangimento superou a vertigem.
Além disso, que garoto se ofereceria para esvaziar os bolsos? Stephen olhou de relance para o poente. O espetáculo se empanava, a luz caía. As folhas nos poucos galhos acima de suas cabeças se agitaram. Ele não sabia o que dizer. Não estava mais disposto a ser indulgente com o menino de quarenta e nove anos, mas também não ousava perturbá-lo. Por fim disse: “Você está feliz, Charles?”.
Charles estava enfiando suas coisas de novo nos bolsos, mais ou menos na ordem em que haviam sido expostas. Terminou, se levantou rapidamente e fez um gesto largo com o braço. Stephen se encolheu de medo, tentando estabilizar as tábuas com as mãos. “Olha! É fantástico. Você não compreende, é fantástico!”
“Está falando da vista?”
“Não, idiota. Olha…” Tinha tirado o estilingue do bolso e ajeitava uma pedrinha na lingueta. “Presta atenção.” Ficou de frente para o pôr do sol e puxou a lingueta para trás da cabeça até que as tiras de borracha estivessem esticadas a uma distância de dois braços. Ficou assim vários segundos, possivelmente para fazer pose. O ar em torno deles se adensou, Stephen sentiu dificuldade em respirar. Então, com o som da pancada da borracha na madeira e um zunido agudo, a pedrinha alçou voo da plataforma e ganhou altura ao se afastar, por um momento uma forma negra e definida contra o céu vermelho. Mesmo antes de começar a cair, já sumira de vista. Stephen imaginou que houvesse ultrapassado o bosque e caído no primeiro campo, a uns quatrocentos metros dali.
“Bom tiro”, disse entusiasticamente. Perguntou-se se devia mencionar que estava escurecendo.
Charles tinha as mãos na cintura e olhava ainda na direção da trajetória da pedra quando lhes chegou, através das árvores, o som tênue de um sininho de mão. “Jantar”, ele disse, dirigindo-se ao buraco e descendo. Quando voltou a falar, apenas sua cabeça surgia acima do chão da plataforma. Difícil dizer se a falta de articulação verbal era um árduo fingimento ou agora simplesmente um hábito. “Bom, é que… olha, é só relaxar.”
De tão preocupado que estava, de tão nauseado pelo medo ao se arrastar de joelhos na direção do buraco, Stephen imaginou que o amigo se referia à técnica da atiradeira. Chegou à borda e lá se acocorou, infeliz. As mãos tremiam, a limonada subia à garganta. Charles desceu mais um metro e parou. Estava se torcendo de rir. Finalmente se controlou, enxugou os olhos, deu uma olhada na direção de Stephen e voltou a rir. “Agora, trata de fazer exatamente o que eu disser, senão vai morrer!”
No final de um dia em que estivera a ponto de arrebentar um carro, ver um homem morto por esmagamento, ser atacado por mendigos e cair de uma árvore, Stephen sentiu a necessidade de um banho quente. Thelma disse que precisava ler alguma coisa e não se importava em atrasar a refeição. Ele se refestelou numa comprida banheira vitoriana que tinha sido encaixada sob o teto inclinado do banheiro de hóspedes. Estava vazio de especulações e recordações. Pensou apenas nas ondinhas que corriam na superfície da água e eram geradas pelas batidas de seu coração. Os joelhos se erguiam à frente como promontórios em meio à névoa marinha. As pontas dos dedos se franziram. Fechou os olhos e quase cochilou, agitando-se vez por outra para ligar a torneira de água quente com o pé.
Quando por fim apareceu no andar de baixo, Thelma lia uma revista de física. Seus cotovelos estavam fincados na mesa de jantar, onde só tinham sido postos dois lugares. A porta e as janelas permaneciam abertas, embora do lado de fora agora estivesse bem escuro e se ouvisse o estridular dos grilos. Ao pegar a comida na cozinha, ela explicou que Charles já jantara e tinha ido deitar-se, pois normalmente dormia às nove. “Ficou até mais tarde por sua causa.”
Isso deveria ter dado a deixa para que Stephen fizesse uma série de perguntas, e conversassem acerca da regressão de Charles. No entanto, ele ficou feliz porque Thelma lhe passou a faca de trinchar e pediu que cortasse o pernil de carneiro. Falaram sobre a melhor maneira de cozinhar aquele tipo de carne. Thelma estava de bom humor. Semanas de ar do campo, longas tardes cuidando do jardim e a oportunidade de trabalhar no que desejava a haviam tornado eufórica. Seus pés descalços faziam um ruído gostoso ao se arrastar no chão de pedra quando ela se movimentava entre a cozinha e a sala de jantar, trazendo a salada, batatas, vidrinhos de vinagre e de azeite. Usava uma camisa de homem sem gola enfiada numa saia larga. Em volta do pescoço exibia uma série de contas de madeira pintada que poderiam ter sido compradas numa loja de brinquedos. Ainda conservava, em cima da nuca, o coque bem apertado das físicas. Havia um quê do velho espírito de conspiração que os unia. Era bom viver num local remoto do campo e ser visitado por um amigo. Mais que isso, os dois se sentiam tocados, liberados pelo comportamento de Charles. Thelma não precisava mais viver sozinha com o segredo. Encheu os copos com o borgonha. Um espírito de generosidade impetuosa pairava no ar, e, enquanto tomava um bom gole do vinho, que estava quente por ter ficado ao ar livre tanto tempo, Stephen lamentou suas atitudes desconfiadas. Se ao menos soubesse o que queria, o que queria ser, estaria livre para seguir adiante.
Quinze minutos depois de iniciada a refeição, cumprindo uma resolução que tomara muitas semanas antes, Stephen descreveu sua experiência na área rural de Kent. Lá pelo fim do relato, falou que retomara consciência numa poltrona junto à lareira no chalé de Julie. Thelma tinha ficado irritada com a separação, dizia que queria pegar a cabeça dos dois e bater uma contra a outra. Ele não desejava incitá-la com a descrição de uma intimidade temporária, irresponsável. Fora isso, foi fiel nos detalhes, a sensação de que um outro dia se intrometera, a familiaridade do lugar, as bicicletas juntas e encostadas do lado de fora do pub — explicando longamente que eram equipamentos antiquados —, o reconhecimento do jovem casal à mesa, os gestos bem conhecidos do pai, o modo como sua mãe tinha olhado na direção dele sem vê-lo e a impressão de que, ao voltar para a estrada, fora tragado por uma espécie de calha onde seu corpo rodopiava incontrolavelmente.
Thelma comeu sem parar enquanto ouvia e, quando ele se calou, terminou de limpar o prato para só então perguntar o que havia acontecido antes e depois da experiência, o que estava em sua mente. Stephen descreveu a viagem de trem, que relembrou com dificuldade, e disse que achava que tinha pensado no comitê. E depois? Mas o que tinha acontecido não era da conta de Thelma. Haviam conversado sobre banalidades, tomado dois bules de chá e comido o bolo feito por Julie. Depois, ele caminhara de volta para a estação, pegara o trem para casa e jantara com amigos.
“E como você interpreta tudo isso?”, Thelma perguntou, servindo mais vinho.
Ele deu de ombros, dizendo que ficara sabendo que algum dia seus pais tinham possuído bicicletas novas.
“Eles se lembram do pub?”
“Mamãe não. Papai nem se lembra das bicicletas.”
“Você não descreveu a coisa para eles.”
“Não. Não quis. Era como se eu estivesse espiando uma conversa importante.”
“Talvez estivessem falando sobre você.”
“Talvez.”
“Mas você não me disse como interpretou tudo”, disse Thelma.
“Não sei. Obviamente é alguma coisa relacionada com o tempo, com ver alguma coisa fora do tempo. E, já que você tem todas essas teorias…”
Ela bateu palmas. “Você vai ao campo e tem uma visão, uma alucinação ou coisa que o valha. E faz o quê? Claro, consulta uma especialista! Nada menos que uma cientista. Vem de chapéu na mão para o oráculo que tranquilamente despreza. Por que não vai perguntar a um modernista?”
Mas Stephen estava acostumado. “Pare com isso, Thelma. Admita que está morrendo de vontade de fazer uma palestra. Você sente falta de seus alunos, até dos imbecis. Vamos ouvir. Qual o estado da arte em matéria de tempo?”
Apesar de seu bom humor, Thelma não parecia ansiosa para dar a lição de costume. Quem sabe suspeitasse da preguiça mental dele, quem sabe poupasse as ideias para o livro. No começo, pelo menos, seu tom era desdenhoso e ela falava rapidamente. Só depois é que esquentou.
“Atualmente há um supermercado de teorias. Pode escolher a que quiser. Foram todas explicadas para os leigos em livros do tipo ‘imagine só’. De acordo com uma delas, a cada fração infinitesimal de segundo o mundo se divide num número infinito de possíveis versões, que se bifurcam e proliferam de forma constante, com a consciência escolhendo cuidadosamente seu caminho a fim de criar a ilusão de uma realidade estável.”
“Essa você já me contou”, disse Stephen. “Penso muito nela.”
“Na minha opinião, daria no mesmo escolher um velho barbudo no céu. E há físicos que consideram conveniente descrever o tempo como uma espécie de substância, uma eflorescência de partículas não detectáveis. Existem dezenas de outras teorias, todas igualmente absurdas. Elas tentam esticar algumas ruguinhas num pedaço da teoria quântica. A matemática é bem razoável de uma forma algo localizada, mas o resto, a teorização ampla, é o mesmo que assoviar no escuro. O que resulta é deselegante e perverso. Mas, seja o tempo o que for, a versão cotidiana e ditada pelo bom senso de que ele é linear, regular, absoluto, marchando da esquerda para a direita, do passado para o presente e daí para o futuro, ou é um disparate ou uma pequena fração da verdade. Sabemos disso por nossa própria experiência. Uma hora pode parecer cinco minutos ou uma semana. O tempo é variável. Sabemos disso também por Einstein, que ainda é nosso sustentáculo nessa área. Na teoria da relatividade, o tempo depende da velocidade do observador. O que são fenômenos simultâneos para uma pessoa pode aparecer em sequência para outra. Não existe um ‘agora’ absoluto, geralmente reconhecido — mas você já sabe disso tudo.”
“Fica mais claro a cada explicação.”
“Em corpos densos com campos gravitacionais colossais, os buracos negros, o tempo pode parar de todo. A breve aparição de certas partículas numa câmara de nuvens só pode ser explicada pelo movimento reverso do tempo. Na teoria do Big Bang, considera-se que o tempo foi criado no mesmo momento em que a matéria, sendo inseparável dela. E isso é parte do problema: para considerar o tempo como uma entidade, temos de separá-lo à força do espaço e da matéria, temos de distorcê-lo para poder enxergá-lo. Já ouvi o argumento de que a própria forma pela qual nossos cérebros são construídos limita a compreensão que temos do tempo, assim como limita nossas percepções a apenas três dimensões. Isso me soa como um materialismo bem débil. E também pessimista. Mas temos de nos agarrar aos modelos — tempo como um líquido, tempo como um complexo envelope com pontos de contato entre todos os momentos.”
Stephen lembrava-se do sexto ano:
“Tempo presente e tempo passado
São ambos talvez o presente no tempo futuro,
E o tempo futuro contido no tempo passado.”
“Veja você, seus modernistas afinal têm alguma utilidade. Não posso ajudá-lo com sua alucinação, Stephen. A física certamente não pode. Ainda é um terreno dividido. Os dois pilares são as teorias da relatividade e do quantum. Uma descreve um mundo causal e contínuo, a outra, um mundo não causal e descontínuo. É possível reconciliá-las? Einstein fracassou com sua teoria do campo unificado. Me alio aos otimistas, como meu colega David Bohm, que prevê uma ordem teórica superior.”
Foi então que Thelma se entusiasmou e Stephen começou a entender menos. A perspectiva era como sempre tantalizante: um relato lúcido do que as melhores cabeças da atualidade estavam pensando acerca das questões fugidias e cotidianas relativas ao tempo, o que estavam demonstrando nos laboratórios e gigantescos aceleradores de partículas. Era uma promessa de paradoxos intrigantes, de intuições pessoais confirmadas e tornadas oficiais. O que frustrava a promessa era a pura dificuldade, a indignidade de esbarrar nas limitações de seu alcance intelectual.
No início ela se mostrou paciente, e Stephen se esforçou bastante. Aos poucos, Thelma começou a deixá-lo para trás e a falar da função de Green, das álgebras cliffordiana e fermiônica, de matrizes e quaterniões. Em breve abandonou qualquer simulacro de comunicação. Estava se dirigindo a um colega, a uma alma irmã que não existia. Seus olhos se afastaram dos dele e se fixaram num ponto algumas dezenas de centímetros à esquerda, suas palavras transformadas numa torrente impossível de ser interrompida. Falava para si mesma, estava possuída. Comentou as funções eigen e os operadores hermitianos, movimento browniano, potencial de quantum, equação de Poisson e a desigualdade de Schwarz. Teria percorrido o mesmo caminho com Charles? Ele a olhou alarmado, sem saber se devia esticar o braço e tocá-la, tentando trazê-la de volta. Mas raciocinou que ela precisava botar para fora, contar a história dos férmions, desordem e fluxo. Na verdade, Thelma voltou depois de quinze minutos, parecendo tomar consciência de novo de sua presença. A voz dela perdeu a intensidade monótona, e em breve ela lidava outra vez com generalidades que Stephen era capaz de compreender.
Queria que ele compartilhasse de sua excitação ao prever que, dentro de cinquenta ou cem anos, até menos, surgiria uma teoria, ou um conjunto de teorias, das quais as da relatividade e do quantum seriam casos-limite, especiais. A nova teoria iria se referir a uma ordem superior de realidade, um domínio mais elevado, o domínio de tudo que existe, um todo indivisível em que a matéria, o espaço, o tempo e mesmo a consciência seriam corporificações complexamente relacionadas, intrusões que compõem a realidade entendida por nós. Não era de todo fantasioso imaginar que, algum dia, haveria descrições matemáticas e físicas do tipo de experiência que Stephen relatara. Espécies diferentes de tempo, não apenas o tempo linear e sequencial do bom senso, poderiam ser projetadas através da consciência do plano superior do qual a própria consciência seria uma função, um caso-limite que, por sua vez, seria inseparável da matéria que era seu objeto, do espaço onde ocorria…”
Thelma estava servindo o resto do vinho na taça de Stephen. Quando a ciência pudesse começar a abandonar as ilusões da objetividade, encarando com seriedade a indivisibilidade do universo, e encontrasse uma linguagem matemática apropriada para tal, e quando pudesse começar a levar em conta a experiência subjetiva, então o menininho esperto estaria a caminho de se tornar uma sábia mulher.
“Pense em quão humanizados e acessíveis seriam os cientistas se pudessem participar das conversas realmente importantes sobre o tempo, e sem pensar que tinham a palavra final — a experiência dos místicos de estar fora do tempo, o desdobrar caótico do tempo nos sonhos, o momento cristão de realização e redenção, a aniquilação do tempo no sono profundo, os esquemas temporais complexos dos romancistas, poetas, sonhadores, o tempo infinito e inalterado da infância.”
Ele sabia que estava ouvindo parte do livro dela. “O tempo lento do pânico”, ele acrescentou à lista, contando depois a história da quase colisão com o caminhão e de como libertara o motorista. A partir desse ponto a conversa seguiu sem grande entusiasmo, dando voltas sinuosas, e só no final da noite Thelma retornou à alucinação de Stephen, como então concordaram em chamá-la.
“Você tem que me desculpar pela lenga-lenga. É o que acontece quando a gente vive sozinha no campo, na companhia de ideias e nada mais. Você não precisa da física para explicar o que aconteceu com você. Niels Bohr provavelmente tinha razão o tempo todo quando disse que os cientistas não deviam ter nada a ver com a realidade. O negócio deles é construir modelos que expliquem suas observações.”
Ela circulava pela sala apagando as lâmpadas, fechando as janelas. Stephen a observou com cuidado. A palavra “sozinha” levou um tempão para desvanecer. As luzes mais fortes e desagradáveis do teto foram acesas. Ela parecia cansada e um pouco encurvada.
“Mas todos nós não fazemos isso?”, disse Stephen enquanto subiam a escada. “A realidade não é isso mesmo?”
Ela o beijou de leve, os lábios secos tocando sua face. Sentiu o calor de seu rosto. Ela lhe deu as costas e caminhou pelo corredor de tábuas rangentes até um quarto que, conforme Stephen notou ao se demorar em sua porta, não era o mesmo do marido.
Ele dormiu até tarde na manhã seguinte e acordou com o alarido dos pássaros, a que não estava acostumado. Continuou deitado por meia hora e decidiu voltar a Londres. Passados dois anos e meio, ainda não se sentia à vontade para ficar longe quando Kate, ou alguém que soubesse onde ela estava, podia ir ao apartamento. E nem lhe agradava a perspectiva de aguentar um dia no mato com Charles. Muita coisa havia acontecido num só dia. Queria agora se ver no sofá, em frente à televisão e cercado pela bagunça habitual.
Ele desceu e saiu para a claridade do jardim. Thelma, sentada à sombra, lia um livro. Charles saíra cedo para o bosque e ele o veria lá, perto da casa da árvore. Quando explicou seus planos, ela não tentou pressioná-lo a ficar. Tomaram uma xícara de café e depois Thelma caminhou à sua frente pelo túnel verde, admirando durante um minuto a maçaneta da porta e o espelho lateral arrancados. Stephen abriu a porta do passageiro, mas não entrou. Ao redor, nas urtigas, se ouvia o zumbido irritado dos insetos.
Thelma dera a volta para o lado do motorista. Sorriu diante do teto que resplandecia ao sol. “Tudo bem, pode dizer: ele está completamente doido.”
“Bom, você é quem tem de me dizer.”
“Você sabe, seria pior se tivéssemos ficado. Não é exatamente uma coisa repentina. Já vem vindo há anos. Por que você acha que ele ficou tão apaixonado por seu primeiro livro?” Stephen deu de ombros. Vestia um terno de linho recém-lavado e uma camisa branca limpa. As chaves do carro estavam em sua mão, a carteira aconchegada no bolso de dentro — o equipamento de um adulto. A perspectiva da viagem solitária lhe agradava. O que à noite tinha parecido audacioso e liberador nas fantasias de Charles agora parecia simplesmente tolo, algo de que ele devia logo se livrar. A pulseira de metal do relógio de Stephen repuxava os pelos de seu pulso. Deu uma ajeitada na pulseira e começou a entrar no carro.
Ela ergueu o indicador em sinal de alerta: “Agora não vai ficar cheio de nove horas comigo”.
Ele se acomodou no assento e pôs a chave na ignição.
Thelma falou através da janela aberta: “Ele está feliz”.
“Isso eu percebi. E você?”
“Estou trabalhando.”
“E completamente só.” Thelma franziu os lábios e afastou a vista. Stephen estava aborrecido com seus amigos. Eles sempre tinham conseguido ser ao mesmo tempo excitantes e firmemente enraizados. Agora pareciam estar metendo os pés pelas mãos. Thelma esticou a mão para dentro do carro e tocou no braço dele. “Stephen, pega leve…”
Ele concordou energicamente com a cabeça e deu a partida no carro.