Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CRIANÇA NO TEMPO
A CRIANÇA NO TEMPO

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

A CRIANÇA NO TEMPO / Ian McEwan

 

 

 

 

 

Três

No entanto, certos indícios sugerem que, quanto mais intimamente o pai se envolve no cuidado cotidiano de uma criança pequena, menos efetivo ele se torna como figura de autoridade. A criança que se sente amada por um pai capaz de equilibrar de forma adequada a afeição e o distanciamento estará mais preparada emocionalmente para as futuras separações, que formam uma parte inevitável de toda a evolução rumo à idade adulta.

Manual autorizado de puericultura,
Departamento Real de Imprensa

Após uma troca de cartões-postais com sua mulher, redigidos em linguagem neutra, Stephen partiu para visitá-la numa manhã de meados de junho. Fazia muitos meses que não a via. Ela voltara do retiro — um monastério que alugava quartos a pessoas com problemas — e, poucas semanas depois, se mudara do apartamento para um lugar que tinha comprado. Pela primeira vez, desde abril, o dia estava encoberto. Uma novidade, uma reafirmação de bom gosto, caminhar por toda parte na sombra fresca. Levava consigo as indicações que havia rabiscado. Como não queria examinar seus motivos muito de perto, concentrou-se no próprio percurso, que mostrou ter um formato agradável, afunilando-se consistentemente ao sair do alarido do centro de Londres rumo a um chalé no meio de uma plantação de pinheiros, a menos de sessenta quilômetros de distância. A cada etapa da viagem, encontrava menos gente. O metrô apinhado o levou à Victoria Station. De lá, o trem ribombou ao atravessar o rio sob o amplo céu branco. Percorreu todos os vagões, procurando o assento mais isolado. Uma minoria perturbadora da humanidade considerava as viagens, mesmo as curtas, uma ocasião para encontros agradáveis. Havia pessoas prontas a infligir intimidades aos demais passageiros. Tais viajantes tinham de ser evitados caso você pertencesse à maioria para quem uma viagem oferecia a oportunidade de desfrutar do silêncio, da reflexão, dos devaneios. As exigências eram simples: uma visão desimpedida da paisagem em mutação, por mais monótona que ela fosse; e a liberdade de não sentir o hálito dos outros passageiros, o calor de seus corpos, o cheiro dos sanduíches, o contato de pernas e braços.

Encontrou um compartimento vazio na primeira classe e fechou a porta com firmeza. Viajavam do passado para o presente. Passaram pelos quintais de casas geminadas vitorianas, cujos puxadinhos dos fundos mostravam de relance as cozinhas através de portas abertas; deixaram depois para trás casas conjugadas do período eduardiano e do pós-guerra; mais adiante, atravessaram os subúrbios, rumo ao sul e depois a leste, divisando pequenos conjuntos de casas novas e minúsculas com retalhos de campos bem batidos entre eles. O trem reduziu a marcha sobre um emaranhado de entroncamentos e parou com um grande estremecimento. No silêncio abrupto e expectante irradiado pelos trilhos, Stephen se deu conta de como estava impaciente para chegar. Haviam parado junto a um novo condomínio de casas conjugadas, simples e diminutas, em geral compradas como primeira residência. Caminhões basculantes ainda estavam em ação. Os jardins da frente não passavam de terra revolvida; nos fundos, fraldas balouçantes em suas árvores metálicas, diagramáticas, proclamavam a rendição a uma nova vida. Duas crianças, de mãos dadas, cambalearam ao passar por baixo das roupas a secar e acenaram para o trem.

Minutos antes de Stephen chegar ao seu destino, começou a chover. A estação, pouco mais que uma parada para gente que trabalhava na cidade, ficava no fim de um longo túnel de urtigas. Apesar da chuva, ele se demorou na passarela para pedestres observando o teto do seu trem, encimado por protuberâncias pretas, à medida que deslizava em meio a um frágil proscênio de sinais e, escorçado, desaparecia lentamente numa curva enquanto morria o matraquear das rodas. Com isso, fez-se um aveludado silêncio rural em que outros pequenos sons pareciam cortados com diamante e polidos: os passos enérgicos de um passageiro que se distanciava, complexos cantos de pássaros e simplórios assobios humanos. Permaneceu na passarela, extraindo um prazer infantil — ou juvenil — dos trilhos reluzentes que apontavam para um lado e para o outro em meio ao silêncio. Quando criança, ele havia ficado ao lado do pai numa ponte maior esperando um trem passar em baixo. Stephen observara as linhas que se distanciavam e perguntou por que se juntavam quando ficavam mais distantes. Seu pai o olhou, semicerrando as pálpebras, assumiu uma expressão de fingida seriedade, e depois contemplou um ponto longínquo onde a pergunta e a resposta convergiam. Ele sempre parecia estar com as antenas ligadas. Segurava a mão de Stephen, os dedos de ambos entrelaçados. Os do pai eram curtos e grossos, com cabelos espetados nas articulações. Nas brincadeiras, ele costumava formar uma tesoura com os dedos, apertando os de Stephen até ele dançar de agonia e deleite diante de um poder tão irresponsável. Seu pai afastou o olhar do horizonte para explicar que, como os trens ficavam cada vez menores ao se distanciar, os trilhos faziam o mesmo para se adaptar a eles. Caso contrário, haveria descarrilamentos. Pouco depois, um expresso sacudiu a ponte ao passar como uma bala sob seus pés. Stephen ficou então maravilhado com a relação entre as coisas, a esperteza do inanimado, a simetria profunda que conspirava para estreitar a bitola da estrada de ferro na medida exata da diminuição do trem: por mais rápido que ele seguisse, os trilhos estavam sempre prontos.

Postou-se do lado de fora da estação lendo as instruções de Julie. A chuva se transformara numa fina garoa e as palavras escritas ficaram borradas, quase ilegíveis. Ele tomou a estrada em direção à cidadezinha ao longo do que ela descrevera como o velho roteiro do ônibus. Passou por um hipermercado com um estacionamento enorme cheio de carros, atravessando a rodovia por uma ponte de concreto elegantemente curva. Depois de oitocentos metros, entrou numa estradinha pavimentada que cortava em linha reta a área florestal. Agora que estava verdadeiramente no campo, se sentiu alegre. Dos dois lados se erguiam linhas de coníferas com sua brilhante paralaxe à medida que cada fileira dava lugar à seguinte, efeito encantador que transmitia um falso senso de velocidade. Era uma floresta geométrica sem as complicações do mato rasteiro e dos cantos de pássaros.

A estrada irradiava uma luz branca sob a chuva. Sua simplicidade o agradava, teve vontade de correr. A oitocentos metros do começo da estrada havia uma clareira na plantação onde uma alta cerca de arame farpado se estendia em volta de um burro que meneava a cabeça. Era um animal cinzento que languidamente erguia a pesada cabeçorra, emitindo um bufo continuado. Havia outras clareiras a intervalos regulares. Numa delas, um caminhão-tanque recolhia combustível do depósito. O motorista estava na cabine, com os pés em cima do painel, bebendo uma lata de cerveja e lendo um jornal. Ele sorriu e levantou a mão quando Stephen passou, o que o alegrou ainda mais. Tinha esquecido de como as pessoas eram simpáticas no campo.

Tal como Julie prometera, a estradinha podia ser percorrida a pé em meia hora. A floresta de pinheiros cedeu lugar de repente a uma campina enorme com uma plantação de trigo. Stephen descansou, encostado ao portão de alumínio com cinco barras. A única indicação de que o campo amarelo, que lembrava um deserto, tinha fim era uma linha no horizonte, onde a plantação de pinheiros recomeçava. Talvez se tratasse de uma miragem. A planície era cortada precisamente em duas por uma trilha de acesso, uma continuação da estradinha pavimentada e igualmente reta. Ele se pôs a caminho e, em poucos minutos, encontrou satisfação na nova paisagem. Marchava através de um vazio. Toda a sensação de progresso, e portanto de tempo, havia desaparecido. As árvores à distância não ficaram mais próximas. Era uma paisagem obsessiva — só pensava em trigo. A falta de pressa e a ausência de qualquer senso real de destino lhe caíam bem.

Julie tinha retornado do monastério nas Chilterns depois de seis semanas. Stephen saiu de Eaton Square calculando o tempo certo para que os dois chegassem juntos ao apartamento. Cumprimentaram-se cautelosamente. Havia um quê da velha e fácil afeição. Ficaram lado a lado no centro da sala de visitas, os dedos se tocando. Como uma casa fenece rapidamente por falta de cuidado, e como isso ocorre de um modo indefinível! Não era a poeira, o ar parado, os jornais amarelecidos cedo demais, as plantas murchas nos vasos. Disseram tudo isso enquanto tiravam o pó, abriam janelas e carregavam coisas para as latas de lixo. Stephen concluiu que na verdade eles estavam falando do casamento. Por uma ou duas semanas andaram em círculos com todo o cuidado, às vezes gentis, outras vezes afetivos de um jeito genuíno, carinhoso, um dia até fizeram amor. Por algum tempo pareceu que em breve começariam a tocar nos assuntos que faziam de tudo para evitar.

Mas as coisas também podiam correr na direção contrária, e foi o que aconteceu. No entender de Stephen, o problema foi o desejo. Não precisavam se consolar mutuamente ou se aconselharem. A perda os havia posto em caminhos separados. Nada havia a ser compartilhado. Julie tinha emagrecido e cortado o cabelo bem curto. Lia textos místicos ou sagrados — São João da Cruz, os poemas mais longos de Blake, Lao Tsé. As anotações que fazia a lápis cobriam inteiramente as margens. Trabalhava seguidas horas numa partita de Bach. O arranhar das notas duplas, o frenesi em espiral ascendente das semicolcheias o alertavam para que se mantivesse à distância. Ele, por sua vez, foi dando os primeiros passos de uma convivência diária com o copo e recaiu nos livros da adolescência, lendo sobre homens solitários e livres, cujos problemas eram os do mundo. Hemingway, Chandler, Kerouac. Divertiu-se com a ideia de pegar um táxi para o aeroporto e escolher um destino, vagando com sua melancolia durante uns poucos meses.

Ficar junto exacerbou o senso de perda dos dois. Ao se sentarem para comer, a ausência de Kate era um dado que não podiam mencionar nem ignorar. Eram incapazes de oferecer ou receber consolo, por isso não havia o menor desejo. A tentativa isolada foi rotineira, falsa, deprimente para os dois. Mais tarde, Julie vestiu o penhoar e foi para a cozinha. Ele a ouviu chorar, sabendo que não podia ir até lá. Na verdade, ela não o receberia bem. Conseguiram se manter assim por cinco semanas. As únicas conversas sérias que tiveram ao longo desse período ocorreram lá pelo fim, quando começaram a examinar a ideia de ficarem distantes um do outro; não era um divórcio, claro, nem uma separação, porém um “tempo a sós”. Por isso, um corretor veio avaliar o apartamento. Tratava-se de um homem grandalhão, com um jeito bondoso e eficiente, que fez comentários atilados ao medir os cômodos e registrar as características originais.

Pediram, imploraram que ficasse para o chá. Enquanto ele tomava a segunda xícara, contaram sobre Kate, o supermercado, a polícia, o monastério, a dificuldade de voltar. Ele cravou os cotovelos na mesa da cozinha e descansou a cabeça nas mãos. Sacudiu-a solenemente o tempo todo. O que ouviu confirmou o que sempre temera. Quando acabaram, enxugou os lábios com um lenço. Depois, esticou os braços sobre a mesa e pegou as mãos de ambos. Ele segurava firme, com as mãos quentes e secas. Após um silêncio, disse que eles não deviam se acusar um ao outro. Por um instante se sentiram felizes, liberados.

Mas esse instante passou. Um corretor podia fazer mais por eles do que eles próprios. O que isso significava? Souberam depois que o homem tinha sido padre e perdera a fé. O apartamento foi avaliado, e Stephen deu a Julie um cheque equivalente a dois terços da quantia. Ela encontrou seu chalé e se mudou, levando os violinos, a cama de casal e um punhado de coisas. Recusou-se a instalar um telefone. Mantinham contato por meio de cartões ocasionais, se encontraram uma ou duas vezes em restaurantes do centro de Londres onde pouco foi dito. Se havia amor, estava enterrado a uma profundidade que não podiam alcançar.

A chuva se moveu através da vasta área em finas colunas de garoa na direção dele. Durante vinte minutos, o terreno vinha baixando imperceptivelmente até que as árvores longínquas desapareceram e o horizonte consistia apenas em trigo. Eram a curiosidade e o mal-estar que o haviam trazido a esta planície encharcada quando podia estar assistindo à prova masculina dos dez mil metros. Julie podia decidir se transformar, desenvolver intencionalmente uma compreensão diferente da vida e de seu lugar nela. Teria feito longas caminhadas entre os pinheiros simétricos, reavaliando seu passado, o passado dos dois, alterando prioridades, fazendo arranjos para um novo futuro; as botas de caminhada que tinha dado para ela num aniversário teriam percorrido com frequência aquela estradinha reta de concreto. Antes que ele pudesse desencavar os próprios sentimentos, e sem que testemunhasse tal processo, Julie poderia metamorfosear-se numa total estranha, alguém com quem Stephen não saberia como falar. Não queria ser deixado para trás, não queria perder seu lugar na história dela. Ela não era imune à confusão ou à irracionalidade, porém tinha um modo inviolavelmente útil de compreender e manifestar seus próprios pântanos segundo os termos de uma educação sentimental ou espiritual. Com ela, certezas anteriores não eram jogadas fora e sim reenquadradas, algo semelhante, de acordo com Thelma, à maneira como as revoluções científicas redefinem todo o conhecimento prévio em vez de o descartarem. O que ele frequentemente via nela como contraditório — “Mas não foi isso que você falou no ano passado!” —, ela argumentava ser um progresso — “Porque no ano passado eu ainda não tinha entendido!”. Ela não se limitava a habitar uma vida interior, e sim a comandava, a dirigia, o terreno à frente estava mapeado. O curso futuro não devia ser deixado às incertezas da sorte, àquilo que simplesmente podia lhe cair do céu. Por outro lado, ela não negava o papel do destino. A tarefa, a responsabilidade de cada um consistia em realizar seu destino.

Ele tinha considerado um aspecto de sua feminilidade essa fé na mutabilidade eterna, em se refazer à medida que a compreensão se aperfeiçoa ou a versão é alterada. Enquanto no passado ele havia acreditado — ou imaginou que devia acreditar — que os homens e as mulheres eram, à parte as óbvias diferenças físicas, essencialmente iguais, agora suspeitava que uma das muitas características distintivas dos sexos residia precisamente na atitude com relação à mudança. A partir de determinada idade, os homens ficavam imobilizados, tendiam a crer que, mesmo na adversidade, de algum modo estavam em sintonia com seus destinos. Eram o que pensavam ser. Apesar do que diziam, os homens acreditavam no que faziam, e seguiam em frente. Isso era uma fraqueza e uma força. Se estivessem saltando para fora de uma trincheira a fim de serem mortos aos milhares, ou operando as metralhadoras, ou dando os últimos retoques num ciclo de sinfonias, só raramente lhes ocorria, ou ocorria apenas a alguns poucos entre eles, que poderiam simplesmente estar fazendo outra coisa.

Para as mulheres, essa ideia era uma premissa. Um constante tormento ou consolo, não importa quão bem-sucedidas fossem aos seus olhos ou aos olhos dos outros. Também era uma fraqueza e uma força. A maternidade comprometida negava a realização profissional. Uma vida profissional em termos masculinos erodia os cuidados maternos. Tentar os dois significava correr o risco de morrer de cansaço. Difícil persistir quando a pessoa era incapaz de crer que estava totalmente imersa no que fazia, quando pensava que podia se ver, ou ver uma parte de sua personalidade, devotada a outra empreitada. Em consequência, elas não eram tão absorvidas por empregos e hierarquias, uniformes e medalhas. Em contraposição à fé que tinham os homens nas instituições que eles (e não as mulheres) haviam criado, elas privilegiavam algum outro princípio de identidade em que o ser superava o fazer. Muito tempo atrás os homens tinham notado algo de insubordinado nisso. As mulheres simplesmente cercavam o espaço que eles ansiavam por penetrar. A hostilidade masculina tinha despertado.

Por fim ele chegou aos pinheiros no outro lado. Passou por cima de um segundo portão de alumínio, entrando, como prometido em seu mapa, num caminho de concreto mais estreito, ladeado de arame farpado, que fazia uma curva na penumbra esverdeada. Mais tarde, Stephen tentou recordar-se do que tinha pensado ao caminhar os trezentos metros que separavam o portão de uma estrada secundária bem movimentada. Mas isso permaneceu inacessível, sem registro em sua memória. Talvez tivesse consciência das roupas molhadas, teria quem sabe pensado em como poderia secá-las ao chegar.

Assim, ele ficou ainda mais vulnerável ao que aconteceu quando saiu da plantação e examinou as redondezas. Ficou imóvel, mesmerizado. Soltou um suspiro breve mas profundo. A estrada fazia um ângulo reto e se afastava seguindo de perto a linha do caminho estreito. Alguns carros passaram, dando a impressão de não produzir nenhum som. Ele conhecia o lugar, conhecia intimamente, como se tivesse estado lá havia muito tempo. As árvores a seu redor estavam se revelando, crescendo, florindo. Uma visita feita no passado remoto não justificaria tal sensação, quase uma espécie de dor, de familiaridade, de chegar a um local que também o conhecia, e parecia, no silêncio que engolfou os carros em movimento, esperar por ele. O que lhe veio à mente foi um dia determinado, um dia cujo gosto era capaz de sentir. Lá estavam, exatamente como deviam estar, o ar pesado, com cheiro de verde, do início do verão, a chuvinha rala e tranquila, os pingos pesados que tombavam das folhas imaculadas do castanheiro-da-índia, a sensação de que as árvores estavam maiores e eram purificadas por uma garoa tão fina que substituía o ar. Foi precisamente num dia assim, ele sabia, que aquele lugar havia se tornado importante.

Permaneceu imóvel, temeroso de que qualquer movimento destruísse a imensidão do espaço, a calma monumental que sentia à sua volta, uma vaga nostalgia. Nunca estivera lá antes, não como criança, não como adulto. Mas essa certeza era conturbada pelo conhecimento de que o imaginara exatamente assim. E não se recordava nem um pouco de tê-lo imaginado. Contudo, sabia que, se descesse da borda gramada e olhasse para a esquerda, veria uma cabine telefônica e, defronte dela, um pub situado atrás de um estacionamento com chão de cascalho. Avançou rápido.

Só no meio da estrada viu o que ficava além da curva. O modo como o prédio compacto, de tijolos vermelhos, preencheu suas expectativas foi o que lhe deu o primeiro toque de medo. Estava acontecendo rápido demais. Como podia ter expectativas sem recordação? Estava a cem metros de distância, com uma vista de três quartos da fachada. O prédio bem cuidado tinha a aparência certa. Era uma simples estrutura retangular, do final da era vitoriana, com um teto inclinado de telhas vermelhas e uma edícula nos fundos que dava ao conjunto o formato da letra T. No quintal havia um trailer aposentado, pintado de branco no passado, que agora servia como depósito de vasos. Alguns panos de prato tinham sido postos para secar numa linha que cedia ao peso deles. Diante do pub e ao lado da varanda da frente havia um banco de madeira quebrado mas ainda utilizável.

Tudo estava exatamente de acordo. A familiaridade da cena zombava dele. Um alto poste branco, isolado, exibia um cartaz que anunciava, com um desenho e palavras, O Sino. O nome nada significava para ele. Ficou olhando por um bom tempo, tentado a ir embora, voltar outro dia e explorar mais de perto. Mas não estavam lhe oferecendo apenas um lugar, e sim um dia específico, aquele dia. Sentia o gosto da poeira do cascalho liberada pela chuva. Estava consciente de que as gotículas que tudo encharcavam haviam produzido a seu redor um campo diferente de árvores antes comuns — olmos, castanheiros, carvalhos, faias —, velhos gigantes que haviam perdido a batalha para as plantações comerciais, magníficas árvores cuja primazia na paisagem tinha sido restaurada, nuvens maciças de folhagens que se espalhavam sem obstáculos rumo aos North Downs.

Stephen permaneceu no acostamento de uma pequena rodovia em Kent, num dia úmido de meados de junho, tentando associar o local e o dia a uma recordação, a um sonho, a um filme, a alguma esquecida visita quando criança. Queria uma conexão capaz de suscitar um processo de explicação e de mitigar seu medo. Mas o chamamento do lugar, sua autoconsciência, a melancolia que provocava, sua relevância desligada, tudo isso tornou muito claro, antes mesmo que ele pudesse se dizer o motivo, que a vibração — foi nesta palavra que se fixou — daquele local específico tinha suas origens fora de sua própria existência.

Esperou por quinze minutos, começando então a caminhar vagarosamente na direção do Sino. Um movimento súbito poderia dissipar a delicada reconstituição de outro tempo. Controlou-se. Era difícil absorver o caos tumultuoso de tantas árvores decíduas estuantes de folhas, o modo como a garoa ampliava as samambaias até adquirirem um porte equatorial, transformando em raras espécies uma banal salsa ou urtiga. Se balançasse a cabeça com força, estaria de volta em meio aos disciplinados pinheiros. Manteve o olhar fixo no prédio à sua frente. Passava um pouco do meio-dia. O Sino estaria aberto para os primeiros fregueses do almoço, porém não havia ainda nenhum carro estacionado sobre o cascalho que pudesse diminuir a impressão de estar tudo correto, uma cópia exata do original.

Nenhum carro, mas, próximo ao banco de madeira na frente, duas bicicletas pretas de modelos antiquados. Uma era de mulher, ambas tinham cestas de vime para compras. O medo tornava seus passos mais leves, sua respiração mais curta. Poderia ter dado meia-volta. Julie o esperava. Precisava fazer algo acerca das roupas molhadas. Tinha de voltar logo para casa e trabalhar na lista de leituras do comitê. Diminuiu as passadas, mas não parou. Carros passaram bem próximos. Se pisasse na frente deles, não seria atingido. O dia em que ele agora se encontrava não era o dia em que acordara. Permanecia lúcido, decidido a avançar. Estava em outro tempo, porém não se sentia confuso. Era um sonhador que sabe que está sonhando e, embora receoso, permite que o sonho se desdobre por pura curiosidade.

Aproximou-se do prédio silencioso. Era um invasor. O lugar tinha a ver com ele mas também o excluía, havia uma delicada negociação em curso cujo desfecho ele poderia afetar negativamente. Estava atravessando agora a área coberta de cascalho, dando cada passo com cautela. De um canto do pub veio o som sincopado da chuva caindo dentro de um grande tonel. A dez metros de distância as janelas pareciam às escuras. O prédio dava a impressão de estar deserto, até que ele se deslocou e enxergou luzes fracas no interior. Tinha parado diante da pequena varanda. As bicicletas estavam encostadas à parede, protegidas da chuva pelo beiral. As rodas traseiras tocavam o braço do banco quebrado. A bicicleta do homem diretamente apoiada na parede do pub. A da mulher debruçada sobre a dele numa intimidade canhestra. As rodas dianteiras esparramadas, cada qual para um lado, os pedais desajeitadamente entrelaçados. Eram máquinas pretas e novas, com o nome do fabricante na coluna vertical em imaculadas letras góticas douradas. As cestas da frente eram de vime limpo. Os selins, largos e com bom molejo, irradiavam o delicado odor fecal do couro de qualidade. Os guidões exibiam punhos de borracha cor de marfim, com gotinhas pretas de chuva se acumulando sobre a parte cromada. Ele não tocou nas bicicletas. Houve um movimento lá dentro, um corpo passou diante da luz. Ele se pôs de um lado da janela, consciente de estar visível para pessoas que não podia ver.

Tinha parado de chover, mas o som da água era mais forte. Caía das calhas rachadas e cobertas de musgo no tonel, tamborilava nas folhas. Ele estava perto da parede do pub, com uma visão oblíqua do salão através da janela. Um homem carregava duas canecas de cerveja do bar para uma pequena mesa onde uma mulher jovem esperava sentada. Como a mesa estava localizada numa alcova, a luz das janelas recortava a silhueta do casal. O homem se acomodava, puxando serenamente as dobras da calça larga de flanela cinza antes de se sentar junto à mulher. Ocupavam um banco que se estendia pelos três lados da alcova. Não um reconhecimento e sim sua sombra, não um som familiar e sim uma breve ressonância, fizeram com que Stephen se apoiasse na parede seca. Sua visão pulsava em compasso com as batidas do coração. Se o casal olhasse de relance para cima e para a esquerda, na direção da janela junto à porta, talvez enxergasse um fantasma mais além do vidro manchado, imóvel pela tensão do reconhecimento impossível de ser expresso em palavras. Um rosto retesado de expectativa, como se um espírito, suspenso entre a existência e o nada, aguardasse uma decisão, um sinal para se aproximar ou para ir embora.

No entanto, os dois jovens estavam totalmente absortos. Ele bebeu a cerveja em largos goles, meio litro para si e um quarto para ela, conversando animadamente enquanto a bebida da moça permanecia intocada. Ela ouvia com ar solene, repuxando a manga do vestido estampado, ajustando com precisão inconsciente o bonito grampo que mantinha os cabelos lisos e bem penteados longe de seu rosto. As mãos se tocaram, eles trocaram sorrisos débeis mas decididos; depois as mãos se separaram e os dois falaram ao mesmo tempo. O assunto — pois claramente só havia um assunto — não tinha sido ainda resolvido.

Tanto quanto Stephen podia ver, não havia outros fregueses. O garçom, um homem corpulento e vagaroso, estava de costas para ele, mexendo em algo numa prateleira. O óbvio seria entrar, pedir um drinque e observar de perto. A ideia era pouco atraente. Stephen manteve a mão encostada à parede, que era quente e reconfortante ao toque. De repente, com a rapidez transformadora de uma catástrofe, tudo mudou. Suas pernas bambearam, sentiu um frio na barriga que foi descendo. Ele estava olhando no fundo dos olhos da mulher, e sabia de quem se tratava. Ela tinha desviado o olhar em sua direção. O homem falava, insistindo em determinado ponto, enquanto ela continuava a encarar Stephen. Seu rosto não acusou curiosidade ou choque; ela simplesmente devolvia o olhar dele enquanto ouvia o companheiro. Sacudiu a cabeça vagamente num gesto de concordância, desviou a vista para responder, voltou a mirar Stephen. Mas não podia vê-lo. Não havia nada que sugerisse ter registrado de algum modo sua presença. Não o ignorava, olhava através dele para as árvores do outro lado da estrada. Não estava vendo nada, e sim ouvindo. De forma absurda, ele levantou a mão e fez um gesto desajeitado, meio aceno, meio saudação. Não houve reação da parte da moça, que ele sabia, sem margem de dúvida, ser sua mãe. Ela não era capaz de vê-lo. Estava ouvindo o pai dele falar — como reconheceu o hábito que tinha de enfatizar algum ponto com a mão aberta! —, e não podia ver seu filho. Ele se sentiu invadido por um desalento frio e infantil, uma amarga sensação de exclusão e nostalgia.

Talvez estivesse chorando ao se afastar da janela, talvez soluçasse como um bebê que acorda no meio da noite; para um observador, pode ter parecido silencioso e resignado. O ar através do qual se movia era escuro e úmido, enquanto ele era leve, feito de nada. Não se viu andando de volta pela estrada. Desabou, caiu impotente pelo vácuo, foi varrido atônito através de curvas invisíveis, subiu acima das árvores, viu o horizonte abaixo dele mesmo enquanto era lançado através de sinuosos túneis de vegetação rasteira, calhas úmidas, frias e potentes. Seus olhos se alargaram e arredondaram, sem as pálpebras, clamando desesperadamente por sua inocência, os joelhos se ergueram até tocar no queixo, os dedos eram nadadeiras com escamas, as guelras marcavam o ritmo das braçadas urgentes, sem esperança, através do oceano salgado que engolfava as copas das árvores e se infiltrava entre as raízes; e, apesar de todo o choro e dos apelos que pensou virem dele, formou um único pensamento: não tinha para onde ir, nenhum momento podia incorporá-lo, não era esperado, nenhum destino ou horário podia ser anunciado; pois embora se movesse adiante violentamente, estava imóvel, circulava veloz em torno de um ponto fixo. E esse pensamento gerou uma tristeza que não lhe pertencia. Existia havia séculos, milênios. Passou voando por ele e incontáveis outros, como o vento que varre um campo de grama alta. Nada era dele. Não suas braçadas ou seu movimento, não os apelos e chamamentos, nem mesmo a tristeza, nada pertencia a nada.

Quando Stephen abriu os olhos, estava deitado numa cama, a cama de Julie, debaixo de um edredom, agarrando contra o peito uma bolsa de água quente já morna. Do outro lado do pequeno quarto, quase todo ocupado pela cama, via-se a porta aberta do banheiro de onde escapavam uma nuvem de fumaça, amarelada sob a luz elétrica, e o fragor da água correndo. Ele fechou os olhos. A cama tinha sido um presente de casamento de amigos com quem não se encontrava havia anos. Tentou lembrar seus nomes, mas tinham se evaporado. Nela, ou sobre ela, o casamento tivera início e, seis anos depois, havia terminado. Reconheceu um rangido musical ao mexer as pernas, sentiu o cheiro de Julie nos lençóis e travesseiros empilhados, o perfume dela e o aroma intenso de sabão da roupa de cama recém-lavada. Ali ele participara das mais longas e mais reveladoras conversas de sua vida, assim como, mais tarde, das mais desoladoras. Tivera ali as melhores experiências sexuais, e as noites de pior insônia. Havia lido mais ali do que em qualquer outro lugar — se lembrava de Anna Kariênina e Daniel Deronda numa semana em que ficara doente. Nunca tinha perdido a paciência tão completamente quanto ali, nem sido tão terno, protetor, consolador; nem, desde os primeiros anos de vida, recebido tanto carinho. Ali a filha fora concebida e parida. Naquele lado da cama. Embebidos no colchão havia os indícios de urina de suas visitas nas primeiras horas da manhã. Ela costumava se aninhar entre os dois, dormir um tempinho e depois acordá-los com sua tagarelice, sua insistência em que o dia começasse. Enquanto eles se aferravam aos últimos fragmentos de seus sonhos, ela exigia o impossível: histórias, poemas, canções, catecismos inventados, combate físico, cócegas. Eles haviam destruído ou dado quase todas as provas de sua existência, menos as fotos. Todas as melhores e piores coisas que tinham acontecido com ele haviam acontecido ali. Era seu lugar. Mais além de todas as considerações imediatas, tal como o fato de que seu casamento estava mais ou menos encerrado, havia seu direito de estar deitado ali, naquele instante, na sua cama de casado.

Quando voltou a abrir os olhos, Julie estava sentada na beira da cama, olhando para ele. O silêncio do quarto era cortado apenas pelo imperioso gotejar da torneira, que ecoava nas paredes de ladrilho do banheiro. Havia um traço contido de humor na tensão de seus lábios, bem cerrados para sufocar a tentação de dizer alguma coisa sardonicamente desagradável. Seus olhos claros e cinzentos executavam uma triangulação imprevisível, observando os olhos dele, do direito para o esquerdo, de volta ao direito, comparando-os, medindo a verdade pelas tênues diferenças que detectava, baixando depois a vista para a boca de Stephen a fim de avaliar a expressão ali refletida e fazer comparações adicionais. Stephen conseguiu se sentar e pegou a mão dela. Receptiva, embora fria ao toque.

Ele disse: “Me desculpe por criar essa amolação”.

Ela sorriu imediatamente. “Tudo bem.” Os lábios mais uma vez se comprimiram, intumescidos de novo com o esforço de suprimir um comentário cômico. Não fazia seu gênero perguntar à queima-roupa por que ele havia chegado a sua casa em estado de choque. Perguntas, a curiosidade comum, não eram parte de sua maneira de ser. Nunca insistia para que uma pergunta fosse respondida. Era capaz de perguntar uma vez, mas, não havendo resposta, aceitava o silêncio. Havia uma agradável profundidade em seu silêncio. Era difícil deixar de lhe dizer alguma coisa a fim de atraí-la para fora de seu estado de permanente autocomunhão, trazê-la mais para perto.

Ele disse: “É maravilhoso deitar de novo nesta cama”.

“Essa cama me deixa louca”, Julie rebateu. “Afunda no meio e range cada vez que a gente se mexe.”

Sem refletir, ele disse em tom ligeiro: “Então vou ficar com ela”, e Julie deu de ombros: “Se quiser, leva”.

Isso foi muito deprimente. As mãos se separaram, fez-se silêncio. Stephen queria retornar à intimidade em que acordara, se sentiu tentado a explicar tudo tão bem quanto podia. Mas não confiava em sua capacidade de fazer um relato longo, aquilo podia muito bem separá-los mais ainda. Livrou-se das cobertas com os pés, se inclinou para a frente e pousou as mãos sobre os ombros dela, apertando com firmeza, como se buscasse garantir que ela estava lá. Sentiu a fragilidade de seu corpo, embora através da blusa de algodão subisse um calor intenso e encantador. Ela estava cautelosa, porém o sorriso reprimido persistia.

“Vou explicar o que aconteceu”, ele disse, ainda fazendo pressão.

Soltou-a, e estava prestes a se levantar da cama quando ela lhe segurou o braço, falando com firmeza: “Não vai se levantar. Trouxe chá. E fiz um bolo”. Puxou as cobertas de volta sobre suas pernas, até a cintura, e se ergueu para ajeitá-lo na cama. Não queria que saísse da cama de casal. Pegou do chão uma bandeja e a pôs diante dele. “Só dessa vez”, ela disse, “pode parar de fingir que está tudo bem. Você é meu paciente.”

Cortou o bolo e serviu o chá. As xícaras eram de boa qualidade, porcelana fina. Dera-se ao trabalho de encontrar pires que pertenciam ao mesmo serviço dos pratos de sobremesa. Era, sem a menor dúvida, uma ocasião especial. Fizeram tim-tim com as xícaras e disseram “Saúde”. Quando ele perguntou que horas eram, ela respondeu: “Hora do banho”. Apontou para resquícios de lama seca no braço dele. Na meia-luz do quarto, os brancos de seus olhos brilharam repetidamente enquanto ela erguia a vista do prato para o rosto de Stephen, como se verificasse alguma recordação. Não o encarava de frente agora. Quando ele lhe sorria, Julie baixava os olhos. Usava brincos longos de cristal colorido. Suas mãos não paravam quietas, o que não era típico.

Difícil ficar de conversa fiada. Depois de algum tempo, Stephen disse: “Você está muito bonita”.

A resposta veio imediatamente em tom neutro: “Você também”. Ela sorriu e disse: “Agora…”, enquanto soltava um suspiro eficiente e recolhia as louças do chá. De pé junto à cabeceira, acariciou os cabelos de Stephen. Ele prendeu a respiração, o momento prendeu a respiração. Defrontaram-se com duas possibilidades, de igual peso, equilibradas num fulcro afiado. No instante em que se inclinassem na direção de uma delas, a outra, sem nunca deixar de existir, desapareceria irrevogavelmente. Ele poderia levantar-se da cama agora, lançando-lhe um sorriso carinhoso ao passar por ela a caminho do banho. Trancaria a porta atrás de si, garantindo sua independência e seu orgulho. Ela aguardaria no andar de baixo, e retomariam as conversas cuidadosas até que chegasse a hora de cruzar o campo a fim de pegar o trem. Ou seria possível arriscar algo, abrindo espaço para uma vida diferente em que a própria infelicidade dele poderia ser redobrada ou eliminada.

Diante dos caminhos que se bifurcavam, a hesitação de ambos foi breve e deliciosa. Caso naquele dia já não houvesse visto dois fantasmas e não tivesse esbarrado em eventos que se continham uns aos outros, com os tempos e lugares em que ocorreram, ele teria sido incapaz de escolher como então fez, sem deliberação e com uma premência que lhe pareceu tão sábia quanto devassa. Um Stephen fantasmagórico, que se desvanecia, saiu da cama, sorriu, atravessou o quarto e fechou a porta do banheiro — e inumeráveis eventos invisíveis foram postos em marcha. Ao tomar a mão de Julie e sentir o consentimento sinuoso de seu corpo comunicado através da extensão do braço, ao puxá-la para perto e beijá-la, ele não duvidou que aquilo que estava acontecendo, e que iria acontecer como consequência, não era separado do que tinha experimentado horas antes. Obscuramente, sentiu que uma linha de argumentação vinha sendo continuada. Aqui, entretanto, só havia prazer ao tomar a cabeça de Julie, aquela cabeça querida, entre suas mãos e lhe beijar os olhos, enquanto mais cedo, do lado de fora do Sino, sentira terror; mas os dois momentos estavam inegavelmente unidos, possuíam em comum a nostalgia inocente que provocavam, o desejo de pertencer.

Os padrões acolhedores e eróticos do casamento não são facilmente abandonados. Eles se puseram de joelhos no centro de cama, cara a cara, despindo um ao outro devagar.

“Você está tão magro”, disse Julie. “Assim vai desaparecer.” Ela passou as mãos por suas clavículas e desceu pelo esterno, percorrendo as saliências das costelas; depois, gratificada por havê-lo excitado, o pegou com as duas mãos e se curvou para voltar a tomar posse dele com um longo beijo.

Stephen também sentiu uma ternura de proprietário quando ela ficou nua. Registrou as mudanças, o ligeiro engrossamento da cintura, os grandes seios um pouquinho menores. Por viver sozinha, pensou ao fechar a boca em torno de um mamilo enquanto pressionava o rosto contra o outro seio. A novidade de ver e sentir um corpo nu bem conhecido foi tal que, por alguns minutos, ambos pouco mais fizeram do que se tocar a certa distância, dizendo: “Bom…” e “Aqui estamos de novo…”. Pairava no ar uma jocosidade descabida, uma hilaridade contida que ameaçava eliminar o desejo. Toda a frieza entre eles parecia agora um intrincado embuste, e se perguntaram como fora mantida por tanto tempo. Era comicamente simples: bastava tirar a roupa e olhar um para o outro para ficarem livres e assumirem os papéis nada complicados em que não podiam negar o entendimento mútuo. Eram agora seus velhos e sábios eus, e por isso não conseguiam parar de rir nervosamente.

Mais tarde, uma palavra pareceu repetir-se enquanto a fenda de longos lábios se abriu e fechou em volta dele, enquanto ele enchia o conhecido declive e curva para atingir um lugar profundo e familiar, uma palavra lisa e ressonante gerada pelo roçar de pele contra pele, uma palavra curta e banal… casa, estava em casa, fechado, seguro e portanto capaz de prover, uma casa que ele possuía e em que era possuído. Casa, por que estar em qualquer outro lugar? Não era um desperdício estar fazendo qualquer coisa diferente daquilo? O tempo estava redimido, o tempo voltava a ter propósito por ser o meio de realizar o desejo. As árvores lá fora chegaram mais perto, as urtigas acariciaram as pequenas vidraças, escurecendo o quarto que ondulava graças ao movimento da luz filtrada. Uma chuva mais forte soou no telhado, depois amainou. Julie chorava. Ele se perguntou, repetindo o que fizera muitas vezes antes, como alguma coisa tão simples podia ser permitida, como tinham autorização para desfrutar daquilo, como o mundo podia ter conhecido tal experiência e continuar a ser o que era. Não governos, ou empresas de publicidade, ou departamentos de pesquisa, mas a biologia, a existência, a própria matéria havia sonhado aquilo para seu prazer e perpetuidade, e isso era exatamente o que cumpria a cada um fazer, tudo desejava que você gostasse daquilo. Seus braços e pernas estavam se afastando aos poucos. Bem alto, onde o ar era límpido, ele ficou agarrado pelos dedos a uma borda da montanha, quinze metros acima do longo declive coberto de seixos. Suas mãos estavam se soltando. Então, com certeza, ele pensou enquanto caía de costas no estranho e estonteante vazio, ganhando velocidade ao descer a encosta irresponsavelmente íngreme, com certeza, bem lá no fundo o lugar é benevolente, gosta de nós, quer que gostemos dele, gosta de si próprio.

E então tudo era diferente. Apertaram-se na banheira estreita, a água já morna, levando o vinho que bebiam no gargalo. O desejo saciado trouxe uma veloz e intrépida clareza. Falaram e riram alto, sem maiores cuidados um com o outro. Julie contou uma longa história sobre a vida na cidadezinha próxima. Stephen fez a caricatura dos membros do comitê. Fizeram resumos grosseiros da vida que os amigos comuns iam levando. Mesmo enquanto a animada conversa seguia, sentiram certo embaraço por saber que nada existia na base daquela cordialidade, nenhuma razão para tomarem banho juntos. Havia uma indecisão que nenhum dos dois ousava explicitar. Conversavam livremente, mas a liberdade era lúgubre, sem fundamento. Logo suas vozes começaram a perder força, a tagarelice foi morrendo. A criança perdida estava de novo entre os dois. A criança que não tinham esperava por eles do lado de fora. Stephen sabia que iria partir dentro em pouco. A falta de jeito aumentou quando voltaram a se vestir. Não era fácil abandonar os hábitos da separação. Desconcertados, perdiam suas vozes. A velha e cuidadosa cortesia se restabelecia, e eles se sentiam inermes diante dela. Haviam se exposto com demasiada facilidade, depressa demais, tinham se mostrado vulneráveis.

No térreo, ele observou enquanto Julie se ajoelhava para estender uma toalha úmida diante do fogo fumacento da lareira. Devia haver algo carinhoso a dizer que não fosse nem frívolo nem o expusesse ainda mais. Mas só restava a conversa fiada. Só conseguia pensar em pegar na mão dela, e no entanto não o fez. Tinham exaurido as possibilidades, a tensão do toque, haviam chegado ao limite. Por ora, tudo estava neutralizado. Caso ainda se encontrassem juntos, poderiam apelar para outros recursos, ignorar-se por certo tempo, empreender alguma tarefa ou, de um modo qualquer, enfrentar a perda. Mas não havia nada. Um triste orgulho os obrigou a uma troca de palavras em torno de um último bule de chá. Ele viu de relance o tipo de vida que ela estava levando. Os pinheiros cresciam praticamente grudados na casa e, como as janelas eram pequenas, todos os cômodos permaneciam na sombra mesmo num dia ensolarado. Ela mantinha a lareira funcionando durante todo o verão para controlar a umidade. Num canto da sala havia uma mesa de cozinha, com o tampo limpíssimo, sobre a qual se viam cuidadosamente empilhados todos os seus cadernos, velas para ler durante a noite, potes de geleia com as ervas e raras flores silvestres que encontrava na borda das plantações. Outro pote continha lápis apontados. Os violinos estavam num canto, no chão, dentro dos estojos, sem que a estante para a partitura fosse visível. Ele a imaginou vagando pelos caminhos rurais de concreto, pensando, ou tentando não pensar, em Kate, e voltando para praticar no silêncio sibilante.

A qualquer momento ele partiria a fim de cruzar a campina mecanicamente dócil e retornar à sua própria cela de ermitão. Sentado diante dela, observando como se curvava sobre o chá e aquecia as mãos em torno da xícara, ele não sentiu a menor emoção. Podia começar a aprender a forma de se distanciar de sua mulher. As unhas dela estavam roídas, os cabelos não tinham sido lavados, o rosto parecia contraído. Podia aprender a não amá-la, desde que tivesse condições de vê-la de tempos em tempos e se recordasse de que ela era mortal, uma mulher com quase quarenta anos, dedicada à solidão, a fazer sentido de sua conturbada vida. Mais tarde, poderia ser torturado pela recordação de seus braços magros despontando por baixo da manga do suéter rasgado e encantadoramente largo demais, que ele reconheceu como sendo dele, e pela rouquidão da voz enquanto ela tentava controlar seus sentimentos.

Depois que ele se pôs de pé, uma despedida rapidíssima foi inevitável. Ela abriu a porta, houve um ligeiro aperto de mãos, e Stephen mal dera três passos no caminho quando ouviu a porta se fechar. Na portinhola, se voltou para dar uma última olhada. A casa podia ter sido desenhada por uma criança. Tinha formato de caixa, com a porta bem no centro, quatro janelinhas perto de cada canto e paredes cobertas com os mesmos tijolos vermelhos do Sino. Um caminho feito com os tijolos que sobraram fazia um S pouco acentuado entre o portão e a porta da frente. O chalé erguia-se numa clareira de uns quinze metros de largura. As árvores da plantação pressionavam por todos os lados. Por um momento ele pensou em regressar, mas não tinha ideia do que queria dizer.

E assim, por uma perversa cumplicidade no sofrimento, muitos meses se passaram antes que voltassem a se ver. Em seus melhores momentos, Stephen sentia que aquilo que havia ocorrido acontecera cedo demais: estavam despreparados. Nos piores, tinha raiva de si próprio por desfazer o que via como um progresso cuidadoso rumo à separação. Mais tarde, durante anos considerou um mistério sua insistência em não voltar para vê-la. Na época, argumentou da seguinte forma: Julie nunca o havia chamado. Ele próprio tivera a iniciativa daquela visita. Ela ficou bastante feliz em vê-lo, mas igualmente feliz quando o viu ir embora e pôde retomar sua solidão. Se o que tinha acontecido significava alguma coisa para ela, ela iria romper o silêncio. Se ele ficasse sem notícias, então só lhe restaria concluir que ela continuava querendo ficar sozinha.

Tinha parado de chover fazia tempo. Stephen atravessou a estrada perto do Sino com passos enérgicos, decidido a resistir a qualquer drama ou fenômeno adicional. Seguiu apressado pelo caminho de concreto na direção do grande campo. Tinha aceitado um convite para jantar com um casal em Londres conhecido pelas refeições rebuscadas que oferecia e por seu interessante círculo de amizades. Estava atrasado.

 

Quatro

Como o fizeram muitos antes de nós, devemos concluir que do amor e respeito pelo lar derivamos nossa mais profunda lealdade para com a nação.

Manual autorizado de puericultura,
Departamento Real de Imprensa

A manhã corria alta e fazia um calor impressionante enquanto o comitê ouvia novos depoimentos. No dia anterior, a temperatura tinha ultrapassado trinta e oito graus, inspirando uma exultação patriótica nos jornais populares. A opinião abalizada julgava que a temperatura era útil ao governo, esperando agora marcas ainda mais altas. Dez minutos após o início da sessão, a pedido de Canham um funcionário trouxe um ventilador e o ligou numa tomada próxima ao presidente, para quem foi deferencialmente apontado. Durante o fim de semana, os trabalhadores haviam soltado as janelas de guilhotina, que agora, escancaradas, deixavam entrar o zumbido do tráfego lento em Whitehall. Uma mosca, presa entre as chapas paralelas de vidro quente, batia as asas de forma intermitente: à medida que avançava a manhã, as pausas se tornaram mais longas. No topo da enorme mesa, úmida ao toque, papéis avulsos ondulavam preguiçosos graças a um tênue sopro de ar quente.

Ao longo de mais de uma hora Stephen vinha contemplando suas mãos no colo. Ultimamente, o cheiro e a sensação de sua pele naquele calor despertavam recordações de uma infância solitária em países quentes — de perspiração, do aroma doce e penetrante de manga, legumes ingleses fervendo na cozinha, temperos nas latas pintadas com figuras de dragões e palmeiras e mantidas na casinha do quintal pela empregada doméstica. Certa vez ele levantara uma tampa e inalara a essência de uma substância de flocos marrons. Quando entrou em casa e se postou na sala de visitas deserta, sob o vagaroso ventilador de teto, o gosto amargo e pútrido foi um segredo que se viu obrigado a guardar dos móveis encerados com lavanda da Royal Air Force.

Aquela era a Ásia dele: o cheiro masculino de cigarros e Flit, o mata-moscas; maciças poltronas com revestimentos florais, a do seu pai com o cinzeiro de latão preso por tiras de couro; em torno da poltrona de sua mãe, o perfume de sabonete rosa, o crochê que ela executava no calor pegajoso copiando modelos da revista Woman’s Realm; nas paredes, curiosas silhuetas de zinco pintado de preto representando palmeiras e poentes; a empregada bonita que, segundo se dizia, dormia ao pé de sua cama durante a noite, embora ele nunca a visse; as cobras-d’água que viviam entre os lençóis e eram repelidas com orações; a primeira sala de aula, onde o calor extraía a fragrância de cedro do lápis entre seus dedos; e o tigre debaixo das palmeiras, emblema de sua escola e da cerveja do pai.

Certa tarde úmida ele seguira sua mãe escada acima e se deitara ao lado dela na imensa colcha de algodão canelado, no lado do cinzeiro e junto ao despertador tiquetaqueante. Ela fez a extravagante proposta de que os dois dormissem em plena luz do dia, muito antes da hora normal. Deitado de costas, ele observou o ventilador.

“Feche os olhos, meu filho”, ela disse. “Feche os olhos.” Ele fechou e, quando acordou, muito tempo havia passado. Ela já tinha ido embora, podia ouvi-la no andar de baixo falando e bebendo chá com amigas. Ele ficou impressionado: o sono não acontecia simplesmente, era alguma coisa que as pessoas controlavam fechando os olhos. O que mais elas controlavam?

Gostava de ouvir a mãe e as amigas. A conversa era sobre coisas que davam errado, sobre pessoas dizendo e fazendo coisas erradas, sobre doenças e os erros cometidos pelos médicos. Ninguém falava com as crianças sobre coisas que iam mal. As louças do chá eram recolhidas e as mulheres se dispersavam antes que seu pai chegasse em casa. Ele usava shorts largos e havia manchas de suor na camisa cáqui. Tão logo entrava, procurava por Stephen e fingia ser um bicho-papão, caçando-o e rosnando: “Fi fo fum, sinto o cheiro do sangue de um inglês!”, fazendo-lhe cócegas e o atirando perigosamente para o alto. Depois que o sargento Lewis tinha acabado de tomar um banho de chuveiro e bebido uma cerveja feita com sangue de tigre, que Stephen tinha a permissão de servir, eles se sentavam para tomar chá e conversar mais sobre coisas que, interessantemente, estavam dando errado: um jovem oficial que não sabia o necessário; o engano cometido por outro sargento, ou como os políticos estavam aconselhando a RAF a fazer coisas erradas. Sua mãe então contava tudo que ouvira à tarde. Depois, Stephen tinha que ajudar a tirar a mesa enquanto a mãe lavava e o pai secava a louça.

Ocorreu a Stephen que, se ele pudesse controlar os acontecimentos da forma que sua mãe controlava o sono, ele faria de seus pais o Rei e a Rainha do mundo inteiro, e eles poderiam consertar todas as coisas que descreviam com tanta sabedoria. Seu pai não era mais forte que um bicho-papão? Nas competições do esquadrão, ele acelerava tanto as pernas que até parecia estar voando no salto triplo; carregava Stephen nas costas até a praia — onde, souberam depois, havia tubarões — e voltava da arrebentação com braçadas fortes, a cabeça e os ombros com um manto de algas, um tonitruante monstro marinho; os jovens oficiais lhe perguntavam o que deviam fazer, muito embora ele devesse chamá-los de senhor, enquanto seus comandados tinham horror de desagradá-lo, do mesmo jeito que Stephen e sua mãe.

E bem que ela era mais bonita que a Rainha da Inglaterra, com os dons adicionais de fazer vinte e um anos em todos os aniversários, de acertar na mosca com um rifle calibre .22 nas competições de tiro, de ouvir sons à noite que ninguém era capaz de ouvir, de saber quando ele estava tendo algum pesadelo porque sempre aparecia quando acordava no escuro. Eles frequentemente iam a uma festa especial no refeitório dos sargentos. Sua mãe usava longos vestidos de cetim, que ela mesma costurava. Seu pai usava o uniforme e sempre tomava uma cerveja antes de saírem. Às vezes dançavam na sala de visitas ao som das músicas transmitidas pelo Serviço de Rádio das Forças Armadas, uma valsa, um foxtrote ou um two-step, movendo-se com confiança no espaço entre os móveis, as costas retas e os pés girando com perfeição. Nessa hora pareciam o elegante casal de dançarinos que rodopiava em cima da caixa de joias de sua mãe ao tinido metálico de “Für Elise”, figuras de sonho cujas feições se dissolviam em borrões cor-de-rosa quando a gente chegava muito perto.

Os sonhos eram perigosos: teria sido apenas um pesadelo quando a travessa de purê de batatas do almoço passou rente à cabeça do seu pai e se espatifou na parede, quando mais tarde sua mãe chorou ao juntar os cacos no avental e limpar a parede com um pano úmido? Ele teria sonhado com as vozes que falavam alto à noite no andar de baixo, foi um pesadelo quando viu através da porta aberta da cozinha seu pai com uma faca de trinchar, quando ele encostou o rosto vermelho e raivoso no de Stephen e o chamou de filhinho da mamãe, ou pior, o levantou na frente de visitas, como se fosse um bebezinho, para embalá-lo nos braços e fazê-lo parar de chorar?

Talvez ele fosse mesmo um filhinho da mamãe. Alguns anos depois, ainda dormia na cama dela sempre que o pai, agora subtenente, estava fora em algum treinamento. Isso aconteceu quando foram transferidos para o Norte da África. Quando Stephen entrou para os escoteiros e precisou ganhar o distintivo em trabalhos manuais, sua mãe o ajudara a fazer uma mobília de brinquedo. Ela acabou fazendo tudo sozinha: um conjunto de sofá e duas poltronas azuis, um aparador feito com uma caixinha de fósforos, um abajur de pé, tudo arrumado dentro da caixa de sapatos que servia como sala de visitas. Stephen levou aquilo para a reunião semanal numa grande barraca da base com a certeza de que o trabalho da mãe era seu de direito.

Era uma bela e frágil insone que se preocupava em silêncio com todo mundo menos com ela; sua preocupação era uma forma sutil de posse, aparentemente inseparável do amor quando dirigida a ele. Ela o confrontava com um mundo perigoso de germes invisíveis e correntes de ar em certos cômodos que podiam causar pneumonia. Alertava-o contra os perigos de usar roupas pouco arejadas, de pular refeições, de não vestir um suéter à noite. Embora por uma questão de lealdade fosse obrigado a se submeter às suas pequenas censuras, aprendeu a zombar delas como o pai.

Porque Stephen também era um filhinho do papai. Durante a crise do Suez, todas as famílias se mudaram para os quartéis a fim de se proteger dos árabes da região. A sra. Lewis estava na Inglaterra visitando os parentes, e se seguiram excitantes semanas de ruptura das rotinas de escola e praia. Havia a novidade de deixar de ser o foco imediato da atenção dos pais, de viver em grandes tendas com os amigos que, na memória, eram todos meninos sardentos, de cabelos curtos e orelhas de abano como ele. Havia o cheiro de combustível dos caminhões na areia quente, os veículos militares que eram reproduções fiéis de seus brinquedos da marca Dinky, pedras limpas e caiadas ladeando cada caminho, arame farpado e ninhos de metralhadora cercados de sacos de areia. Acima de tudo, havia o oficial com responsabilidade direta sobre as famílias, seu pai, uma figura distante que ia de uma reunião para outra com uma pistola militar à cintura.

Quando aquilo acabou, houve outras excursões. Deixaram sua mãe em casa e, ao longo de estradas vazias, atravessaram o semideserto rumo ao campo de pouso do interior para verificar a velocidade máxima que o novo Morris Oxford preto era capaz de atingir. Saíam com um vidro de geleia para caçar escorpiões. Seu pai levantava uma pedra, e lá estava o inseto, amarelo e gordo, erguendo as pinças na direção deles num sinal de súplica. Ele usava o pé para encorajá-lo a entrar no vidro, Stephen com a tampa perfurada a postos. Os dois riam — Stephen sem jeito — quando sua mãe dizia que não conseguia dormir à noite por medo de que o escorpião escapasse e vagasse pela casa às escuras. Mais tarde, o inseto era entregue nas oficinas e preservado em formol.

A cada manhã, antes de ir para a escola, seu pai o levava ao banheiro, pegava dois dedos de Brylcreem no vidrinho e o aplicava com fanático vigor nos cabelos curtos de Stephen. Pegando firmemente o queixo do menino, com o pente de aço penteava os cabelos obedientes para baixo e repartia no meio, com precisão militar, deixando um sulco reto e cinzento. Uma hora depois a construção derretia sob o sol. Durante o verão de nove meses, eles passavam quase todas as tardes na praia, onde os oficiais e suas famílias ocupavam uma extremidade, e os demais, incluindo sargentos e subtenentes, a outra. Seu pai entrava na água até a altura do peito, contando devagar enquanto Stephen se mantinha ereto sem nenhum apoio sobre os ombros dele, até que o riso ou o creme de cabelo escorregadio sob seus pés o fizessem cair. A contagem era interrompida quando uma onda passava por cima da cabeça do pai, mas só por alguns instantes. O recorde era quarenta e três quando a brincadeira acabou, pouco antes de Stephen ir para o colégio interno.

O Norte da África foi um idílio de cinco anos. Vozes raivosas não frequentavam mais os seus sonhos. O tempo era dividido entre a escola, que terminava na hora do almoço, e a praia, onde encontrava os amigos, todos eles filhos dos colegas do pai, homens que tinham galgado as patentes. Era lá que sua mãe encontrava as amigas, mulheres dos mesmos homens. Assim como os dois o envolviam com um amor feroz e possessivo, a RAF fazia coisa igual com sua família, escolhendo e definindo amigos, diversões, médicos e dentistas, escolas e professores, a casa, os móveis, até mesmo os talheres e as roupas de cama. Quando Stephen passava a noite na casa de um amigo, dormia entre lençóis conhecidos. Era um mundo seguro e ordenado, hierárquico e protetor. As crianças precisavam conhecer seus lugares e se submeter, como os pais, às exigências e limitações da vida militar. Stephen e seus amigos — embora não as irmãs deles — eram encorajados a chamar de “senhor” os colegas dos pais, como os meninos americanos da base aérea. Eram ensinados a dar preferência às senhoras ao passar pelas portas. Mas eram generosamente paparicados, estimulados, quase obrigados a se divertir. Afinal, seus pais haviam crescido durante a Depressão, por isso agora não faltavam limonadas, sorvetes, omeletes de queijo e batatas fritas. Na varanda do clube de praia, os pais se sentavam à volta de mesas de tampo de metal cobertas de canecas de cerveja, maravilhando-se com as diferenças entre suas vidas no passado e agora, entre suas infâncias e as de seus filhos.

O primeiro semestre de Stephen no colégio interno foi uma nuvem de ritos complexos, brutalidades e barulho constante, mas ele não ficou particularmente triste. Era por demais silencioso e alerta para se tornar uma vítima dos outros. Na verdade, mal reparavam nele. Continuava, no fundo, um membro de seu pequeno grupo familiar, e atravessou os noventa e um dias até as férias de Natal decidido a sobreviver. Enfim de novo em casa, com a luz ofuscante e a janela do quarto dando para as tamareiras curvadas no céu azul-claro do inverno, ele retomou sem dificuldade seu lugar no triângulo. Só quando chegou a hora de voltar à Inglaterra, um dia depois do aniversário de doze anos, confrontado com a necessidade de começar a escalar outra montanha de dias, é que percebeu intensamente o que estava prestes a perder. Uma conta rápida demonstrou que, a partir de então, três quartos de sua vida seriam passados longe. De fato, tinha saído de casa. Seus pais devem ter feito o mesmo cálculo porque, ao atravessarem a vegetação baixa do deserto rumo à pista de pouso, a conversa foi artificialmente alegre, com planos para as próximas férias, entremeada de longos silêncios que não eram capazes de romper sem se repetirem.

No avião, uma velha senhora gentilmente permitiu que ele se sentasse à janela a fim de acenar para os pais. Podia vê-los melhor do que eles podiam vê-lo. Estavam a doze metros da ponta da asa, de braços dados onde o asfalto encontrava a areia. Sorriam e acenavam vigorosamente, baixavam os braços para descansar e voltavam a acenar. As hélices naquele lado do avião começaram a girar. Ele viu sua mãe virar de costas e enxugar os olhos. Seu pai pôs as mãos nos bolsos e voltou a retirá-las. Stephen tinha idade bastante para saber que um período de sua vida, um tempo de afinidades inequívocas, terminara. Apertou o rosto contra o vidro da janela e começou a chorar. O Brylcreem borrou todo o vidro. Quando tentou limpá-lo, seus pais interpretaram errado o movimento e voltaram a acenar. O avião se moveu, de repente eles não puderam mais ser vistos. Voltando-se para o interior da aeronave, ele confirmou suas piores suspeitas ao ver que a velha senhora o vinha observando e chorava também.

A presença de um estranho na sala, um homem macilento e ainda moço que aparentemente havia declinado a oferta de uma cadeira, despertou Stephen de devaneios desagradáveis. Já fazia meia hora que o homem estava falando. Curvado como um penitente, mantinha os dedos pálidos e meio azulados cruzados à frente do corpo. O queixo e a parte acima do lábio superior, apesar de bem barbeados, exibiam um tom escuro que lhe dava a aparência honesta e entristecida de um chimpanzé, fortalecida pelos grandes olhos castanhos e pelos tufos de cabelos pretos, tão densos quanto pelos púbicos, que eram visíveis através da fina camisa de náilon branca e brotavam irreverentemente entre os botões. Stephen teve a impressão de que ele não mexia as mãos ao falar para evitar expor a extensão incomum dos braços e o fato de que os cotovelos se situavam alguns centímetros antes do lugar onde deveriam estar. A voz tinha um timbre forçado de tenor, as palavras eram enunciadas com precisão e cuidado como se a linguagem, uma arma perigosa, houvesse sido adquirida só recentemente e pudesse explodir na cara do usuário. Aturdido pela introspecção, Stephen estava tão chocado com a fisionomia do sujeito que ainda não conseguira absorver o que ele dizia. Os demais membros do comitê permaneciam sentados em silêncio, pelo jeito atentos, os rostos cortesmente despidos de qualquer expressão. Rachael Murray e um dos professores universitários tomavam notas. Para melhor concentrar-se, lorde Parmenter havia cerrado os olhos e respirava devagar e compassadamente através do nariz.

Após registrar a aparência do homem, Stephen tomou consciência de certa agitação entre os membros do comitê, uma inquietação que não podia ser justificada pelo tédio e pelo calor. As cabeças se voltavam em sua direção. Olhos que encontravam os seus se afastavam, aqui e ali — Rachael Murray, Tessa Spankey — se via um sorriso reprimido. Até lorde Parmenter mudara de posição e inclinava a cabeça coriácea na direção de Stephen. Esperavam que ele falasse? Já tinham lhe pedido isso? Esforçou-se para fixar sua atenção volúvel e indisciplinada naquele discurso tenso e monótono, com sua nota de súplica: Mas certamente todos concordarão comigo que é assim. Viu-se olhando diretamente no fundo dos honestos olhos castanhos. Devia intervir? Agora? Sacudiu a cabeça de leve e deu um sorriso cauteloso a fim de indicar tanto a compreensão total quanto uma reticência razoável, astuta.

“Comprovou-se acima de qualquer dúvida” — e por favor, os olhos pareciam dizer, não questione isso — “que usamos apenas uma fração desse infinito recurso intelectual, emocional, intuitivo. Recentemente foi divulgado o caso de um jovem que obteve resultados excepcionais num curso universitário embora, como se descobriu, praticamente não tivesse cérebro, apenas uma fina camada de neocórtex revestindo o crânio. Está claro que vamos tocando em frente com muito pouco, e a consequência dessa falta de uso é que estamos divididos, profundamente afastados de nós próprios, da natureza e de seus incontáveis processos, de nosso universo. Membros do comitê, temos alimentado mal nossa capacidade de participação empática e mágica na criação, estamos ao mesmo tempo alienados e atrofiados pela abstração, afastados da apreensão profunda e imediata que é a principal característica de uma pessoa inteira, da ágil interpenetração entre o físico e o psíquico, de sua inseparabilidade fundamental.”

O homem que parecia um macaco fez uma pausa e passou os olhos brilhantes pelos ouvintes. Acariciou o lobo de uma orelha. “Se essas são as consequências cruéis, então qual é a causa, o que impede a mente em crescimento de atingir todo o seu potencial? Como vimos, o cérebro como órgão físico tem um padrão de desenvolvimento bastante definível. Assim como os dentes molares e as características sexuais secundárias surgem mais ou menos na mesma época da vida dos indivíduos, o cérebro igualmente tem surtos de crescimento que sem dúvida estão associados a ondas bem definidas no desenvolvimento e na capacidade mental. Ao forçar a alfabetização de uma criança entre os cinco e os sete anos, introduzimos um grau de abstração que esfacela a unidade da visão de mundo dessa criança, insere uma cunha fatal entre a palavra e a coisa que ela representa. Porque, como vimos, o cérebro humano nessa idade simplesmente não desenvolveu as competências lógicas superiores para lidar com facilidade e felicidade com o sistema fechado da linguagem escrita. A alfabetização não deveria ser ensinada a uma criança até que ela tivesse feito por conta própria, de acordo com a programação genética do crescimento do cérebro, a separação vital entre o eu e o mundo. Por esse motivo, senhor presidente, exorto a que as crianças não comecem a aprender a ler até os onze ou doze anos, quando seus cérebros e mentes sofrem um importante surto de crescimento que torna possível tal separação.”

Stephen empertigou-se, um antigo truque dos mamíferos, talvez para parecerem maiores. A expectativa era que ele se justificasse como autor de livros infantis, um esfacelador de pequenos mundos.

O orador voltara a cruzar as mãos, os nós dos dedos ficando bem brancos. “A dança e todos os tipos de movimento”, ele disse, “a exploração sensual do mundo, música — pois, muito surpreendentemente, os símbolos musicais não são abstrações e sim instruções precisas para a execução de movimentos físicos —, pintura, a descoberta pela manipulação de como as coisas funcionam, matemática, que é mais lógica do que abstrata, e todas as formas de divertimento inteligente — essas são as atividades adequadas e essenciais para as crianças menores, permitindo que suas mentes permaneçam em harmonia com as forças da criação, fluam em conjunto com essas forças. Obrigar à alfabetização nesse estágio, dissolver a mágica identificação entre a palavra e a coisa, e através disso entre o eu e o mundo, é gerar uma autoconsciência prematura, um duro isolamento que buscamos nos explicar sem maior reflexão como individualidade.

“Na verdade, senhor presidente, isso não é nada menos que a expulsão do éden, pois seus efeitos duram a vida toda. A alfabetização prematura cria adultos nos quais uma empatia inteligente e espontânea com o mundo natural, com seus semelhantes, com os processos sociais, é atrofiada; cria adultos para quem a apreensão da unidade da criação permanecerá um conceito difícil, fugidio, vagamente compreensível, se tanto, mediante o estudo de textos místicos. Ao passo que”, e neste ponto o estranho baixou a voz e pousou de novo o olhar em Stephen, “ao passo que essa apreensão é uma dádiva para nós na infância. Não devemos arrancá-la das crianças com a nossa educação ansiosa e competitiva, com nossos livros complexos e intrusivos.”

Lá para o fim desses comentários, houve sorrisos em volta da mesa. O comitê estava se divertindo com a presença do que decidira ser um porra-louca. Canham, responsável por avaliar as credenciais das pessoas que faziam apresentações, parecia desconfortável ao tomar notas num bloco. Um dos professores, não Morley, enxugava o nariz com um lenço de papel para esconder o riso. O coronel Jack Tackle cruzara os braços no peito e curvara a cabeça, vibrando ligeiramente. Esses sinais furtivos suscitaram a simpatia de Stephen pelo orador. Terminada a apresentação, ele dava a impressão de lamentar a recusa da cadeira. Ficou de pé na cabeceira da mesa, os braços pendendo junto ao corpo, aguardando ser questionado ou dispensado. Ele desconhecia o fato de que o governo não tencionava ter uma cidadania mágica. Seu olhar havia perdido o brilho de desafio, ele contemplava um ponto bem acima da cabeça do presidente. Stephen teve vontade de apertar a mão do sujeito. Apenas para ser do contra, queria apoiá-lo. Mas agora tinha seus próprios interesses para defender. Lorde Parmenter havia gargarejado seu sobrenome num tom de pergunta.

“Só um cínico”, disse Stephen, varrendo a sala com os olhos, “diria que não é desejável atingir a plenitude da forma que nos foi descrita, ou realizar o potencial que cada um de nós possui. A questão, certamente, são os meios.”

Fez uma pausa, torcendo para que mais coisas lhe viessem à cabeça, e recomeçou, sem saber muito bem o que iria dizer. “Não sou filósofo, mas me parece… que há alguns problemas a serem considerados.”

Voltou a parar, recomeçando rapidamente em meio a um suspiro de alívio. “O senhor poderia ter descrito a escrita do mesmo modo como acabou de descrever os símbolos musicais — nesse caso um conjunto de instruções sobre o que fazer com os lábios, a língua, a garganta e a voz. É só mais tarde que as crianças aprendem a ler caladas, a ler para si próprias. Mas não tenho certeza de que qualquer dessas descrições, das notações musicais e da escrita, seja correta. Ambas as atividades parecem muito abstratas. E talvez certo tipo de abstração seja precisamente aquilo em que somos bons desde os primeiros dias. Os problemas surgem quando tentamos refletir acerca do processo e defini-lo. Toda melodia tem uma espécie de significado. É difícil dizer qual, mas uma criança não tem dificuldade em compreendê-lo. Ler e escrever são atividades abstratas, mas apenas na medida em que a fala também é. Uma criança de dois anos que começa a falar frases inteiras está usando um conjunto fabulosamente complexo de regras gramaticais.

“Lembro que Kate, minha filha… mas não… a palavra escrita pode ser o próprio meio pelo qual o eu e o mundo se conectam, razão por que as melhores obras para crianças têm a qualidade da invisibilidade, elas te levam direto até as coisas a que dão nomes e, através de metáforas e imagens, são capazes de evocar sentimentos, cheiros, impressões para as quais não existem palavras. Uma criança de nove anos pode sentir isso intensamente. A palavra escrita é tanto uma parte daquilo que representa quanto a palavra falada — pense nos sortilégios escritos ao redor da tigela do feiticeiro, nas preces gravadas nos túmulos dos mortos, no impulso que move algumas pessoas a escrever obscenidades em locais públicos, enquanto outros precisam proibir livros que contêm obscenidades, no hábito de escrever Deus com D maiúsculo, na importância especial da assinatura escrita. Por que manter as crianças afastadas de tudo isso?”

Os olhos do homem de pé continuavam fixados nos de Stephen. Lorde Parmenter fechara outra vez os seus. Canham se erguera e conversava em murmúrios, através da porta aberta, com alguém no corredor.

“A palavra escrita é uma parte do mundo em que cada qual deseja dissolver seu eu infantil. Embora ela descreva o mundo, não é algo separado dele. Pense no prazer com que uma criança de cinco anos reconhece o nome das ruas, ou o abandono total de um garoto de dez anos ao ler um romance de aventuras. Não são as palavras que ele vê, ou a pontuação, ou as regras gramaticais: é o bote, a ilha, a figura suspeita detrás da palmeira.”

Ele piscou para repelir a imagem da filha, mais velha do que a conhecera, sentada na cama e absorta num romance. Ela virou uma página, franziu a testa, voltou atrás. Podia ter sido um livro que ele escrevera para ela. Tomou uma resolução, a imagem se esfumou, e ele continuou.

“A criança alfabetizada lê e ouve uma voz em sua cabeça. É algo imediato, íntimo, alimenta sua vida de fantasia, a liberta dos caprichos e inclinações dos adultos que podem ou não ter tempo de ler para ela.” Ele se encontrava na beira da cama de Kate, lendo para ela. Não estava certo sobre qual das duas imagens preferia. Não estava nem mesmo certo… na verdade talvez fosse uma coisa muito boa passar os primeiros onze anos da vida tocando acordeão, dançando, desmontando velhos relógios, ouvindo histórias. No final provavemente não faria nenhuma diferença uma coisa ou outra, nem havia como saber. Era aquele velho negócio de teorizar, tomar uma posição plantando a bandeira da identidade e da autoestima, e depois lutar com quem aparecesse até o amargo fim. Quando não havia nenhuma prova disponível, tudo se resumia à agilidade mental, à perseverança.

E não existia campo mais fértil para a especulação dogmaticamente travestida de fato do que os cuidados com as crianças. Ele tinha lido o material de apoio para os trabalhos do comitê, as passagens compiladas pelo departamento de Canham. Ao longo de três séculos, gerações de peritos, padres, moralistas, cientistas sociais, médicos — em sua maioria homens — vinham oferecendo catadupas de instruções e fatos constantemente cambiantes para benefício das mães. Ninguém duvidava da verdade absoluta das próprias opiniões, e cada geração sabia ter atingido o pináculo do bom senso e da percepção científica a que seus predecessores haviam meramente aspirado alcançar.

Ele tinha lido solenes pronunciamentos sobre a necessidade de prender os braços e pernas dos recém-nascidos a uma tábua de modo a evitar sua movimentação e ferimentos autoinfligidos; sobre os perigos da amamentação ou, em outros textos, a necessidade física e a superioridade moral de tal prática; sobre como o afeto ou o estímulo corrompem uma criança pequena; sobre a importância das lavagens intestinais, punições físicas rigorosas, banhos frios e, mais cedo ainda no século, de um suprimento constante de ar fresco, embora inconveniente; sobre a desejabilidade de intervalos cientificamente controlados entre as amamentações e, contrariamente, a amamentação feita sempre que o bebê revela fome; sobre os riscos de tirar da cama um bebê quando chora — porque isso o faz se sentir perigosamente poderoso — e de não o tirar quando chora — perigosamente impotente; sobre a importância das evacuações regulares, do treino no uso do penico aos três meses, da permanente atenção materna, dia e noite, o ano inteiro, assim como sobre a necessidade de babás e creches de vinte e quatro horas; sobre as graves consequências de respirar pela boca, de tirar meleca, de chupar o dedo e de não contar com a mãe, sobre não ter o parto feito por um especialista sob luz intensa, sobre não ter a coragem de parir em casa, na banheira, de deixar que o bebê seja circuncidado ou tenha as amígdalas removidas; e, mais tarde, a destruição desdenhosa de todas essas modas: como as crianças deviam ter a permissão de fazer o que bem quisessem a fim de que suas naturezas divinas pudessem florescer, e como nunca é cedo demais para dominar a vontade de uma criança; a demência e a cegueira causadas pela masturbação, e o prazer e alívio que a masturbação traz para uma criança em crescimento; como o sexo pode ser ensinado fazendo referência a girinos, cegonhas, fadinhas das flores e bolotas de carvalho, ou jamais mencionado, ou apenas discutido com uma franqueza sombria e dolorosa; o trauma sofrido pela criança que vê seus pais nus, o distúrbio crônico alimentado por suspeitas estranhas se a criança somente os vê vestidos; como dar uma boa vantagem para seu bebê de nove meses ensinando-lhe matemática.

Lá estava Stephen, um soldado raso naquele exército de peritos, afirmando, com toda a força de que dispunha, que a época adequada para as crianças serem alfabetizadas era entre cinco e sete anos. Por que acreditava nisso? Porque era uma prática havia muito estabelecida, porque seu sustento dependia de que crianças de dez anos lessem livros. Estava argumentando como um político, como um ministro do governo, com paixão, aparentemente sem nenhum interesse pessoal. O estranho ouvia, a cabeça cortesmente inclinada para o lado, as pontas dos dedos da mão direita tocando de leve no tampo da mesa.

“A criança que sabe ler”, disse Stephen, “tem poder e, por meio dele, adquire confiança.”

Enquanto falava, e enquanto uma voz complicadora lhe dizia que seu agnosticismo era apenas outro aspecto do ressequido estado emocional em que se enontrava, Canham passou rápido e sussurrou algo ao ouvido do presidente. Ao som do gargarejo, Stephen parou em meio a uma frase e se voltou para ver lorde Parmenter erguer um dedo sem grande energia. “O primeiro-ministro vai passar pelo corredor em menos de um minuto e deseja entrar para conhecer o comitê. Alguma objeção?”

Canham passou o peso do corpo de um pé para o outro, mantendo a mão esquerda sobre o nó da gravata. Deu alguns passos na sala como se fosse rearranjar os móveis, depois mudou de ideia e voltou para a porta. Por fim se ouviu um murmúrio de “nãos” ao longo da mesa. Claro que não havia objeções. Os membros do comitê estavam fazendo pequenos ajustes nas roupas, enfiando as camisas para dentro das calças, apalpando os cabelos, dando uma ajeitada na maquiagem. O coronel Tackle tornava a vestir o paletó de tweed.

Dois homens corpulentos de blazer azul entraram na sala, examinando o rosto dos presentes com um olhar neutro enquanto caminhavam na direção das janelas. Lá se postaram de costas para a sala, contemplando de cara amarrada alguns motoristas que não lhes deram a menor importância e continuaram a fumar. Trinta segundos se passaram antes que três homens com ar cansado e ternos amassados entrassem e cumprimentassem os membros do comitê. Imediatamente depois deles veio o primeiro-ministro, seguido de mais assistentes, alguns dos quais permaneceram à porta por não caberem na sala. Houve um princípio de movimento em torno da mesa, quando os membros fizeram menção de se levantar, interrompido por um aceno de mão de lorde Parmenter. Canham oferecia silenciosa e diligentemente uma cadeira, mas foi ignorado. O primeiro-ministro preferiu continuar de pé, tomando posição ao lado do presidente e, assim, usurpando habilmente seu poder.

Logo à sua frente, na extremidade oposta da mesa, estava o homem que se assemelhava a um macaco, com uma expressão de amistosa curiosidade. Para Canham, aquela atitude constituía uma violação do protocolo. Fazia sinais com a boca e com as mãos para o estranho, indicando que devia se afastar ou se sentar, mas foi mais uma vez ignorado. Lorde Parmenter iniciou as apresentações.

Stephen tinha ouvido dizer que, nos mais altos níveis do Serviço Civil, havia uma convenção de jamais revelar, pelo uso de pronomes pessoais ou outros meios, qualquer opinião com respeito ao gênero do primeiro-ministro. A convenção sem dúvida tivera origem em algum insulto, mas, no correr de muitos anos, passara a ser uma demonstração de respeito, além de significar um teste de habilidade verbal e uma prova de bom gosto. Teve a impressão de que lorde Parmenter estava obedecendo à norma tácita em seus impecáveis comentários de boas-vindas, nos quais rendeu homenagem ao fato de que o atual exame das práticas de puericultura por diversos comitês de peritos se devia inteiramente ao interesse pessoal que dedicava a essas matérias a eminente autoridade, à qual gerações de pais e crianças certamente seriam gratas.

Apresentou então cada membro, não vacilando sequer um instante ao recordar seus nomes, sobrenomes, títulos e experiência profissional. Ao ouvir cada nome, o primeiro-ministro se inclinava minimamente. Stephen, o último a ser apresentado, teve tempo de notar como Rachael Murray corou quando seu nome foi pronunciado. O coronel Jack Tackle assumiu uma posição de sentido na cadeira. Stephen descobriu que o estranho era o professor Brody, do Instituto do Desenvolvimento, e que a sra. Hermione Sleep era um membro ao qual ele já tinha sido apresentado, mas de que não se lembrava. O leque de tendões em torno do pescoço de Emma Carew, uma diretora de escola alegre e anoréxica, retesou-se como as varetas de um guarda-chuva quando seu nome foi lembrado e pronunciado em voz alta.

Todos os membros do comitê, por mais calejados que fossem, sentiram algum temor reverencial. Durante anos, Stephen o descrevera apenas com palavras cáusticas ou irreverentes, imputando-lhe as mais cínicas intenções, declarando em várias ocasiões seu sentimento de puro ódio. Mas a figura ali de pé, sem as luzes dos estúdios a iluminá-lo, desprovido da moldura de uma tela de televisão, não era uma instituição ou uma lenda, e guardava pouca semelhança com as caricaturas dos cartunistas políticos. Até o nariz era parecido com qualquer outro. Tratava-se de um homem bem-posto e encurvado de sessenta e cinco anos, com um rosto encovado e um olhar baço, uma presença mais cortês que autoritária, vulnerável de um modo desconcertante. Stephen sentiu vontade de se disfarçar. Seu impulso era o de se mostrar educado, agradar, proteger o primeiro-ministro de suas opiniões críticas. Afinal de contas, ele era o pai da pátria, o repositório de toda a fantasia coletiva. Por isso, quando chegou a hora de Parmenter anunciar seu nome, ele se viu inclinando a cabeça e até sorrindo com entusiasmo, como um cortesão numa peça de Shakespeare. Como último a ser apresentado, foi agraciado com uma pergunta:

“O senhor é o autor de livros infantis?”

Incapaz de falar, assentiu com a cabeça.

“Os netos do ministro das Relações Exteriores são leitores ávidos.”

Ele agradeceu antes de ter tempo de perceber que não recebera nenhum elogio. O primeiro-ministro fez algumas observações banais ao comitê, lembrando a importância da empreitada e a necessidade de que trabalhassem com afinco.

Os homens de blazer azul estavam se afastando das janelas, os assistentes e dois dos homens de ternos amassados se moviam na direção da porta, mantida bem aberta. Ouviram-se tosses e o arrastar dos pés daqueles que tinham esperado no corredor. O terceiro homem contornava as cadeiras trazendo uma mensagem para Stephen. O hálito do mensageiro cheirava a chocolate. “O primeiro-ministro gostaria de lhe dar uma palavra no corredor, se não se importa.”

Observado pelos colegas, Stephen seguiu o sujeito para fora da sala. A maior parte da comitiva se deslocava rumo à escada no fim do corredor. Os demais formaram um pequeno grupo a certa distância, aguardando. Um alto funcionário, que oferecia um documento para ser assinado, recebeu algumas instruções. Emitiu uma espécie de zumbido a cada instrução. Por fim, o documento foi assinado e ele se retirou. O comedor de chocolate empurrou Stephen para a frente. Não houve aperto de mãos ou palavras introdutórias.

“Entendo que o senhor é amigo íntimo de Charles Darke.”

Stephen respondeu: “É verdade”. Como suas palavras soaram secas demais, acrescentou: “Conheço Charles desde os tempos em que ele era editor”.

Tinham dado meia-volta e se moviam ao longo do corredor com passos de ruminantes. Os dois seguranças vinham logo atrás.

A pergunta seguinte demorou a sair. “E que notícias tem dele?”

“Mudou-se para o campo com a mulher. Venderam a casa.”

“Sei, sei. Mas ele teve um colapso nervoso, está doente?”

Stephen resistiu à vontade de se fazer importante contando do pouco que sabia. “A mulher dele me mandou um cartão convidando para visitá-los. Disse que estão felizes.”

“Foi a mulher quem o fez pedir demissão?”

Chegaram ao topo da escada e pararam, flanqueados pelos dois seguranças, contemplando os largos degraus de mármore.

Por um momento encarou o primeiro-ministro. Não sabia se a conversa era relevante ou trivial. Negou com um gesto de cabeça. “Charles passou muito tempo na vida pública.”

“Bastante. Ninguém desiste sem uma razão muito boa.”

No caminho de volta para a porta do comitê, o tom mudou. “Eu gostava do Charles Darke. Mais do que a maioria das pessoas imaginava. É um homem talentoso, e depositava muitas esperanças nele.” Diminuíram o passo porque estavam quase ao alcance dos ouvidos dos assistentes. “As informações pessoais chegam a mim muito insípidas, compreende o que estou dizendo?”

“Quer persuadi-lo a voltar?” Mas não cabia a Stephen fazer perguntas.

O primeiro-ministro ergueu uma mão pequena, num dos dedos havia um anel simples de ouro. Um assistente que aguardava se destacou do grupo. “Talvez, depois de sua visita, o senhor possa me dizer como o encontrou.” O assistente meteu a mão dentro de uma pasta de documentos e passou a Stephen um pequeno cartão.

Estava prestes a dizer que não poderia prometer muito, mas houve um sinal indicando que a entrevista havia chegado ao fim. Outro membro da comitiva estava ao lado do primeiro-ministro e abria uma agenda de compromissos, enquanto todos se dirigiam rapidamente à escada.

Stephen se sentou em meio ao silêncio geral. Só lorde Parmenter parecia genuinamente desinteressado, até mesmo algo irritado com a interrrupção. Aguardou até que Stephen se acomodasse, perguntando depois ao professor Brody se desejava falar de novo.

O indivíduo esquelético fez que sim com a cabeça e, mediante um movimento ágil e quase inconsciente dos dedos, enfiou para dentro da camisa alguns pelos negros que escapavam entre os botões, só depois cruzando as mãos à sua frente e anunciando que, se o comitê não se importasse, comentaria os pontos na ordem em que haviam sido levantados.

As restrições ao uso da água haviam reduzido a pó os jardins dos subúrbios de West London. Os intermináveis alfeneiros estavam marrons, quebradiços. As únicas flores que Stephen viu na longa caminhada da estação de metrô — a última da linha — foram gerânios sub-reptícios nas beiradas das janelas. Os pequenos quadrados de grama tinham se transformado em terra queimada, da qual até as folhas secas desapareceram. Um gozador plantara alguns cactos. Representações pastorais mais incisivas podiam ser vistas naqueles jardins que tinham sido cobertos de cimento pintado de verde. Os anõezinhos com casacos vermelhos e mangas arregaçadas que costumavam fazer girar os moinhos estavam imóveis, abobalhados pelo sol.

A rua onde seus pais moravam era reta e sem lojas, estendendo-se por dois quilômetros e meio como parte de um conjunto construído na década de 1930 e, no passado, desdenhado pelos que preferiam casas geminadas em estilo vitoriano, porém agora transformado em objeto de desejo pela migração dos centros urbanos. Eram residências acachapadas e mal-acabadas que, sob os telhados quentes, sonhavam com o mar alto porque havia uma vigia ao lado da porta principal, e as janelas do andar de cima, com molduras de metal, tentavam sugerir a ponte de um transatlântico. Ele caminhou devagar através do silêncio enevoado rumo ao número 763. Um losango de cocô de cachorro esfarelou-se sob seu pé. Perguntou-se, coisa que fazia a cada visita, como era possível haver tão pouca atividade numa rua com tantas casas grudadas — nenhuma criança jogando bola ou pulando amarelinha na calçada, ninguém desmontando uma caixa de mudanças, ninguém entrando ou saindo de alguma casa.

Vinte minutos depois estava sentado num pátio ensombreado com seu pai, tomando uma cerveja apanhada na geladeira e se sentindo bem à vontade. A ordem das ferramentas de jardim limpas e afiadas, nos seus devidos lugares, as lajes cor-de-rosa recentemente varridas e a vassoura pendurada no gancho correto da parede, a mangueira bem enrolada em seu suporte de metal, a proscrita torneira de latão reluzente — detalhes que o haviam oprimido quando adolescente agora limpavam a mente e a deixavam desimpedida para coisas mais essenciais. Dentro e fora de casa havia uma preocupação com os objetos, sua limpeza e disposição ordenada, que ele não mais considerava a exata antítese de tudo que era humano, criativo e fértil — palavras-chave em seus cadernos de adolescente furioso. De onde estavam sentados com suas cervejas, viam-se jardins igualmente bem cuidados, gramados marrons, cercas creosotadas, telhados cor de laranja e, contra um céu azul-escuro, apenas as duas pernas de uma torre de transmissão elétrica cujo corpo não era visível pois ficava acima da infeliz casa do vizinho.

As mentes estavam liberadas para conversar sobre o tempo.

“Meu filho”, disse o pai, inclinando-se com um arquejo em sua cadeira de armar para reencher o copo de cerveja de Stephen, “não me lembro de um verão mais quente que este em setenta e quatro anos. Faz calor mesmo. Na verdade, eu diria que está fazendo calor demais.”

Stephen disse que isso era melhor que úmido demais, e seu pai concordou.

“Prefiro isso mil vezes, não importa o que digam sobre os reservatórios ou sobre o que causa ao nosso gramado. Dá para a gente se sentar do lado de fora. Certo, na sombra, se for preciso, mas ainda assim ficamos do lado de fora, e não lá dentro. Aqueles verões úmidos que sua mãe e eu vivemos só vão prestar para doer os seus ossos, quando você chegar à nossa idade. Sou muito mais o calor.” Stephen estava prestes a falar, porém seu pai continuou, um pouco irritado. “O fato é que as pessoas nunca estão satisfeitas. Ou está quente demais, ou frio demais, ou úmido demais, ou seco demais. Uma merda, nunca estão satisfeitas. Não sabem o que querem. Comigo não. Nunca nos queixamos de um tempo como este lá atrás, hein? Na praia todos os dias, água perfeita, nadando.” E, tendo recuperado seu habitual bom humor, ergueu o copo e tomou um bom gole, enquanto marcava com o pé no chinelo um ritmo triunfante.

Ficaram sentados por alguns minutos num silêncio caseiro, descontraído. Da cozinha, onde sua mãe preparava um assado, vieram os sons tranquilizantes do forno sendo aberto e fechado, uma pesada colher tirando alguma coisa de uma panela. Mais tarde, graças à insistência de seu pai, ela se juntou a eles para beber seu xerez. Tirou o avental antes de se sentar e o dobrou com cuidado sobre o colo. As inúmeras ansiedades associadas ao preparo de uma refeição com três pratos animavam seu rosto. Mantinha a cabeça inclinada na direção da janela da cozinha, ouvindo como ia o cozimento dos legumes.

A conversa sobre o tempo foi retomada, dessa vez com referência aos efeitos sobre o jardim, seu amor especial.

“É uma vergonha total”, ela disse. “Tínhamos plantado tanta coisa, não foi? Ia ficar uma beleza.”

O pai de Stephen sacudia a cabeça. “Eu estava dizendo agora mesmo para o Stephen. É melhor do que ficar sentado lá dentro o dia inteiro vendo a chuva cair e acreditando que talvez fique melhor amanhã. E aí não fica.”

“Eu sei”, ela concordou. “Mas gosto de ver as coisas crescerem. Não gosto de ver elas morrerem.” Terminou o xerez e disse: “Quanto tempo mais vocês querem?”. O pai de Stephen olhou para o relógio. “Vamos tomar outra cerveja.”

“Então posso servir à uma e meia?”

Ele assentiu.

Franzindo a testa ao sentir a fisgada de dor quando se levantou da cadeira, ela disse: “Bom, desde que eu saiba o que estou fazendo”. Deu uma palmadinha no joelho do filho e caminhou apressada para dentro.

O pai a seguiu e retornou com duas latas de cerveja. O alto gemido que deu ao se sentar foi menos uma expressão de dor que uma forma de autozombaria. Apoiando as latas nos braços da cadeira, deixou-se cair e sorriu, fingindo por um instante estar exausto de tantos esforços. Depois que encheram os copos de novo, ele perguntou a Stephen sobre o comitê e ouviu pacientemente o relato das sessões.

A conversa de Stephen com o primeiro-ministro não o impressionou. “Estão atrás do que podem, meu filho. Já te disse antes, está perdendo tempo lá. O relatório já foi escrito em segredo e a coisa toda é mesmo um monte de porcaria. Na minha opinião, esses comitês são papo-furado, professor Fulano e lorde Sicrano! Tudo para fazer as pessoas acreditarem no relatório quando lerem, e a maioria dessa gente é tão babaca que vai acreditar no que lê. Lorde Sicrano emprestou seu nome a isso, então deve ser verdade! E quem é esse lorde? Alguém que disse as coisas certas a vida toda, não ofendeu ninguém e ganhou um dinheirinho. A palavra certa no ouvido certo, e está na lista dos melhores alunos, de repente é um deus, a palavra dele é lei. É um deus. Lorde Fulano disse isso, lorde Fulano acha aquilo. Esse é o problema com o país, muitas reverências e salamaleques, todo mundo curvando a cabeça para os lordes e os senhores, ninguém pensando por conta própria! Não; eu, se fosse você, caía fora. Está perdendo seu tempo lá. Aproveita para escrever um livro. Está na hora de fazer isso. Kate não vai voltar, Julie foi embora. É melhor você seguir em frente.”

O discurso não tinha sido planejado, e surpreendeu a ambos. Stephen sacudiu a cabeça, porém não sabia o que dizer. O sr. Lewis acomodou-se de novo na cadeira. Os dois homens ergueram os copos e beberam longamente.

Houve um ou dois minutos, pouco antes do almoço, em que Stephen ficou sozinho do lado de dentro. Seu pai tinha ido ajudar na cozinha. A sala se estendia da frente aos fundos da casa, com a mesa numa extremidade e o conjunto de sofá e duas poltronas na outra. Esta era a casa de seus pais, e a primeira que tinham mobiliado de acordo com seu gosto. Por todo lado havia objetos coletados nos muitos postos, coisas guardadas em caixas durante anos “até termos nossa casa” — uma expressão de que ele se recordava desde a mais tenra infância. O cinzeiro com as tiras de couro estava no lugar, assim como as silhuetas de palmeiras e os potes de latão do Norte da África. No aparador, a coleção de animais de cristal ou de vidro da mãe, belamente reproduzidos, pontiagudos e pesados. Ele equilibrou na palma da mão um camundongo com olhos feitos de contas e bigodes de náilon.

Sobre a mesa havia taças de vinho com longos pés esverdeados. Costumava pensar nessas taças como senhoras com luvas longas. Os jogos americanos tinham a insígnia da RAF, as colheres de café, os brasões de cidades que Stephen visitara — Vancouver, Ancara, Varsóvia. Estranho como todo o passado podia caber numa sala, removido do tempo e marcado por uma mistura de cheiros familiares que não tinham data — cera de lavanda, cigarros, sabonete perfumado, carne assada. Tais objetos, esse aroma particular… suas resoluções e a importância precisa das indagações estavam começando a lhe escapar. Ele tinha certas perguntas a fazer, alguns tópicos que desejava levantar, mas estava se sentindo confortavelmente aéreo com três copos de cerveja e também esfomeado, porque agora sua mãe passava pela abertura na parede que dava para a cozinha as tigelas de legumes cobertas, as quais deviam ser postas sobre rechôs; seu pai havia trazido uma garrafa de vinho, feito em casa em quatro semanas a partir de um kit especial, e enchia as taças até em cima, como era seu hábito; o primeiro prato tinha sido servido, cada fatia de melão com sua reluzente cereja. Ele se sentou, grato, e, quando seus pais também se acomodaram, os três ergueram as taças e a mãe disse: “Bem-vindo a casa, meu filho!”.

Ao ver os rostos dos pais, Stephen não reparava tanto nos efeitos da idade mas na devastação causada pelo desaparecimento de Kate. Ela agora era raramente mencionada, razão pela qual tanto se surpreendera vinte minutos antes. A perda da única neta tinha embranquecido os cabelos do pai em dois meses, enquanto os olhos da mãe se afundaram em meio às rugas. Os anos da aposentadoria haviam sido construídos em torno da neta, para quem aquela sala fora um paraíso de objetos proibidos. Ela podia passar meia hora sozinha, o queixo apoiado no aparador, costurando obscuros diálogos em que fazia as vozes da bicharada em chiados agudos. Exceto pelos sinais físicos, Stephen não flagrara o sofrimento de seus pais. Eles não desejavam deixar o fardo dele ainda mais pesado. Era típico daquilo que os unia o fato de nunca terem sido capazes de chorar juntos por Kate. Pronunciar seu nome, como o pai fizera, significava romper uma regra não escrita.

Só perto do fim da refeição Stephen fez um esforço e tocou na questão das bicicletas. Tinha uma recordação, disse, que não conseguia situar. Descreveu o assento de criança, o caminho rumo ao mar, o monte de seixos e o ruído trovejante do outro lado. Seu pai estava sacudindo a cabeça com ar desafiador, como costumava fazer quando confrontado com o passado irrecuperável. Mas a sra. Lewis foi rápida.

“Foi em Old Romney, no Kent. Passamos uma semana lá.” Tocou no antebraço do marido. “Não se lembra? Pedimos emprestadas de volta as bicicletas ao Stan. Umas velharias. Ficamos uma semana, e não houve um único dia em que não tivesse chovido.”

“Nunca estive em Old Romney em toda a minha vida”, disse o pai de Stephen, porém agora hesitante, esperando ser convencido.

“Alguma coisa a ver com um curso que você estava fazendo, e tivemos uma semana de folga. Ficamos num bed and breakfast, não lembro agora do nome, mas muito simpático, muito limpo.”

“Pediram emprestadas de volta as bicicletas”, disse Stephen.

“Isso mesmo. Tivemos elas durante anos, compramos quando eram novas e demos a seu tio Stan quando fomos para o exterior.”

Dessa vez o pai foi inequívoco. “Tivemos todo tipo de bicicletas, mas nunca uma nova. Não tínhamos dinheiro para comprar. Não naquela época.”

“Bom, pois te digo que compramos, pagando em mil prestações. Demos ao Stan e pedimos de volta para ir a Old Romney.”

A certeza dele com respeito às bicicletas fortaleceu sua resistência a Old Romney. “Nunca estive nesse lugar. Nem perto dele.”

A fim de ocultar sua irritação, a mãe de Stephen se levantou para pegar as travessas. Baixou a voz, furiosa: “Você esquece das coisas quando te convém”.

O sr. Lewis enchia as taças e lançou a Stephen um olhar cômico, como quem diz: Veja no que fui me meter.

O bom humor retornou facilmente durante o café, quando a conversa mudou para o enterro de um parente idoso no cemitério de Wimbledon na semana anterior. A mãe de Stephen contou a história, interrompendo-se para enxugar as lágrimas. Um menino ainda pequeno, bisneto do falecido, deixara cair um ursinho de pelúcia na cova durante a cerimônia, e ele lá ficou, de costas em cima do caixão, contemplando os presentes com um olhinho a menos. O garoto abriu um berreiro bem no meio da cantilena do padre. Ouviram-se risadinhas e olhares furibundos entre os familiares. Como ninguém queria descer para pegar o ursinho, ele foi enterrado junto com o morto.

“E deixando mais saudade”, acrescentou o pai de Stephen, que tinha ouvido a história mais de uma vez e abria um largo sorriso.

Quando os três começaram a lavar a louça, seguiram a velha rotina. Sua mãe começou na pia enquanto Stephen e o pai recolhiam as travessas e os pratos. Quando já havia bastante coisa para secar, Stephen foi para a cozinha ajudar. Seu pai passou um pano na mesa depois de tudo terminado, juntando-se a seguir aos dois para também secar a louça e guardá-la. A sra. Lewis sempre os expulsava da cozinha a fim de lavar e secar ela própria as panelas onde havia cozinhado os legumes e assado a carne. Toda a operação continha elementos de dança, ritual e manobra militar. Agora que seus próprios arranjos eram tão caóticos, Stephen encontrou alívio naquele processo, que antes o deixava desesperado. Durante a segunda etapa, quando seu pai passava energicamente cera na mesa, e Stephen estava sozinho com a mãe na cozinha, ele voltou a falar sobre as bicicletas. Onde tinham sido compradas?

Ela não ficou curiosa em relação ao motivo pelo qual Stephen desejava saber. Mantendo as mãos enluvadas sob a espuma, inclinou a cabeça e refletiu. “Antes de você nascer. Antes de nos casarmos, porque costumávamos sair para namorar andando de bicicleta. Eram umas belezas, pretas com letras douradas, pesavam uma tonelada.”

“Conhece um pub chamado O Sino, perto de Otford, no Kent?”

Ela negou com a cabeça. “É perto de Old Romney?”, perguntou, quando o sr. Lewis entrou na cozinha. Precisamente com o impulso a que tencionara resistir — o de garantir que a tarde corresse tranquilamente, não provocar discórdias, por menores que fossem —, Stephen achou melhor não fazer mais perguntas.

Depois que tudo foi lavado e guardado em seus devidos lugares, se sentaram e bateram papo até chegar a hora de ele partir para pegar o último trem. Reuniram-se para dizer adeus no degrau da porta, o ar quente lá fora. Uma tristeza bem conhecida se abateu sobre seus pais, as vozes mais baixas embora suas palavras fossem bastante alegres. Em parte, ele supunha, porque estava mais uma vez saindo de casa, como fizera tantas vezes em trinta anos, cada ocasião uma encenação não reconhecida da primeira; e, em parte, porque estava saindo sozinho, sem mulher ou filha, nora ou neta. Qualquer que fosse, a causa não seria manifestada. Como sempre, ficaram no caminho da frente acenando para o filho enquanto ele se afastava no lusco-fusco prateado, acenando, descansando os braços, voltando a acenar como tinham feito na pista de pouso deserta, até que uma ligeira curva na rua impediu que continuassem a vê-lo. Era como se quisessem confirmar com seus próprios olhos que ele não mudaria de ideia, não se viraria de repente e voltaria para casa.

 

 

                                                 CONTINUA