As nuvens começavam a cobrir a lua e o vento frio agitava a erva do ribazo.
- Despertar dentro de uma hora –murmurei ao trocar de posição, em um esforço por obter uma mínima postura cômoda no chão rochoso- . Ja! Nem o sonhe!
Levantei-lhe a cabeça para apoiá-la em meu regaço. Ele se queixou um pouco, mas não se moveu. Girei os ombros e me reclinei, procurando algum apoio contra a parede inclinada de nosso refúgio. face à advertência do Jamie, não parecia necessário vigiar à senhora Beardsley; depois de alimentar amavelmente o fogo, havia-se acurrucado entre as cabras. Como só era de carne e osso, estava esgotada pelos acontecimentos do dia e dormiu em seguida. Ouvi-a roncar apaciblemente ao outro lado da fogueira, entre os bufos de seus companheiros.
- E você, do que crie parecer? –acusei à pesada cabeça que descansava em meu regaço. De borracha vulcanizada?
Quase sem querer lhe acariciei o cabelo. Em sua boca se desenhou um sorriso de surpreendente doçura. De repente, desapareceu como tinha vindo. Fiquei observando-o, atônita. Não. Estava profundamente dormido; sua respiração era rouca, mas estável; as largas pestanas de duas cores descansavam contra as bochechas. Com muita suavidade voltei a lhe acariciar o cabelo.
Tal como esperava: o sorriso piscou como o toque de uma chama e voltou a desaparecer. Suspirou profundamente, dobrou o pescoço para colocar-se melhor e se relaxou por completo.
- OH, Jamie!, Por Deus –lhe sussurrei. As lágrimas me ardiam nos olhos.
Fazia anos que não o via sorrir assim em sonhos. Em realidade, desde aqueles primeiros dias de nosso matrimônio, no Lallybroch.
“ De pequeno o fazia sempre –me havia dito então sua irmã Jenny- . Acredito que o faz quando está feliz.”
Dobrei os dedos no cabelo denso e suave da nuca, apalpando a curva sólida do crânio, o couro cabeludo quente, a fina linha de uma antiga cicatriz.
- Eu também –sussurrei.
A senhora MacLeod e seus dois filhos se alojaram em casa da esposa do Evan Lindsay quando os irmãos MacLeod partiram com a tropa junto com o Geordie Chisholm e seus dois filhos maiores. A congestão da casa grande se viu grandemente aliviada, mas não o suficiente, conforme pensava Brianna, tendo em conta que ainda estava ali a senhora Chisholm.
O problema não era ela em si, a não ser seus cinco filhos menores, todos varões, a quem a senhora Bug chamava coletivamente “ fetos de Satanás” . Os gêmeos de três anos causavam esse efeito, sim, disse-se Brianna, olhando ao Jemmy com certo temor, enquanto se imaginava o futuro.
No momento não dava amostras de ser um possível bagunceiro; estava médio dormido no tapete do estudo do Jamie, onde Brianna se retirou com a vaga esperança de encontrar quinze minutos de alguma solidão para escrever. O respeito ao Jamie bastava para manter aos pequenos vadios fora dessa habitação.
Na mesa, à mão, tinha o tinteiro do Jamie: uma cabaça oca, bem tampada com uma bolota grande, a seu lado, um frasco de terracota com plumas de peru bem afiadas. A maternidade lhe tinha ensinado a Brianna a aproveitar os momentos de tranqüilidade que o azar lhe oferecia; aproveitou esse para abrir o pequeno jornal no que registrava as notas que considerava íntimas.
Ontem à noite sonhei que fazia sabão. Pessoalmente nunca tenho feito sabão, mas ontem estive esfregando o chão e, quando me deitei, ainda me cheiravam as mãos. É um aroma horrível, entre ácido e a cinzas, com um espantoso fedor a graxa de porco, como a algo que leva morto muito tempo.
Estava vertendo água em um hervidor de cinza para fazer lejía. À medida que ia vertendo se ia convertendo em lejía. Do hervidor se elevavam grandes nuvens de fumaça venenosa; essa fumaça era amarela.
Papai me trouxe uma grande terrina de sebo para mesclar com a lejía; dentro havia dedos de bebê. Então não recordo ter pensado que aquilo fora estranho.
Brianna tinha estado tratando de passar por cima uma série de ruídos estrondosos no piso de acima, como se várias pessoas estivessem saltando em uma cama. O alvoroço cessou bruscamente, e foi substituído por um grito penetrante, ao que seguiu a sua vez um ruído de carne contra carne, como de uma forte bofetada, e vários alaridos mais de tons diversos.
Bree fez uma careta e fechou os olhos com força. Um momento depois baixavam atronadoramente a escada. Ela olhou a jemmy, que se tinha despertado com um sobressalto, mas não parecia assustado (Céu Santo, estava-se habituando) e deixou a pluma para levantar-se com um suspiro.
O senhor Bug era o encarregado de atender a granja e o gado e repelir as ameaças físicas. O senhor Wemyss, de cortar lenha, conduzir aguay, em geral, manter em marcha o funcionamento da casa. Mas a gente era calado e o outro, tímido. Assim jamie lhe tinha deixado formalmente o mando a sua filha. portanto, ela era corte de apelações e juiz de todos os conflitos. Quer dizer, a senhora.
A senhora abriu de par em par a porta do estudo, fulminando à multidão com o olhar e todos começaram a gritar ao mesmo tempo.
- Índios selvagens!
- O precioso cabelo de meu bebê!
- Ela começou!
- Atrever-se a pegar a meu filho!
- Estávamos jogando aos cortadores de cabeleiras, senhora...!
- Eeeehhh!
- ... e estes pequenos fetos têm feito um grande buraco em meu leito de plumas!
- Pois olhe o que tem feito ela, essa velha maldita!
- Olhe o que têm feito eles!
Pois senhora, é só...
- Aaaahhhhhh!
Brianna saiu ao corredor e fechou de uma portada. Como era uma porta maciça, o estrondo sossegou momentaneamente o olboroto. Por outra parte Jemmy pôs-se a chorar, mas ela não fez conta.
Aspirou fundo, disposta a vadear na animação,, mas logo o pensou melhor. Não podia lutar com eles em grupo. Dividir para conquistar: não havia outra maneira.
- Estou escrevendo –declarou, olhando-os um a um com os olhos entreabridos- . Algo
importante.
A senhora Aberfeldy parecia impressionada. A Chisholm, ofendida; a Bug, atônita.
Ela se dirigiu uma a uma com um frio gesto da cabeça.
- Mais tarde falarei com cada uma de vocês, de acordo?
Abriu a puertay, depois de entrar, fechou-a muito brandamente contra as três caras atônitas. Logo apoiou as costas contra ela, com os olhos fechados, e deixou escapar o fôlego que continha.
Ao vê-la, Jemmy deixou de chorar para chupar o polegar.
- Espero que a senhora Chisholm não saiba nada de ervas –lhe sussurrou ela- . Seguro que sua avó tem venenos ali.
Agora Jemmy estava convexo de barriga para cima, com os pés em alto, mascando alegremente uma parte de bolacha que tinha encontrado vá uma ou seja onde. O jornal se cansado ao chão. Para ouvir que a senhora Chisholm saía da clínica, Bree se apressou a agarrar a pluma e um dos livros contáveis amontoados no escritório.
A porta se abriu quatro ou cinco centímetros. Houve um momento de silêncio, durante o qual ela inclinou a cabeça, franzindo o sobrecenho em um exagerado gesto de concentração, enquanto rabiscava com a pluma sem tinta na página que tinha ante si. A porta voltou a fechar-se.
- Zorra –disse ela, pelo baixo. Jemmy deixou ouvir um ruído interrogativo. Ela o olhou- . Não ouviste isso, entendido?
O pequeno emitiu uma exclamação de acordo, enquanto se metia os restos chupeteados da torrada na fossa nasal esquerda. Ela fez um gesto instintivo para tirar-lhe mas se conteve. Essa manhã não tinha paciência para mais conflitos. Pela tarde, tampouco.
Seu pai os teria posto a tuda em ordem em um segundo, mediante um exercício conjunto de encanto e autoridade masculina. A idéia lhe arranco um pequeno bufo de diversão. Vêem, diria a uma, e ela se acurrucaría a us pés, ronronando como Adso, o gato. Vê, diria a outra, e ela sairia para a cozinha para lhe assar um prato de pãozinhos de manteiga.
Pela centésima vez da partida dos homens, lamentou profundamente não havê-los acompanhado. Era fácil imaginar a mole de um cavalo movendo-se baixo ela, o ar limpo e frio nos pulmões e Roger, cavalgando para seu lado, com o sol arrancando reflexos a seu cabelo escuro, e a aventura invisível a que se enfrentariam juntos, algo mais adiante.
O sentia falta de com uma dor profunda e surda, como um moretón no osso. Quanto tempo podia durar sua ausência, se se chegava a produzir o combate? Apartou a idéia por não enfrentar-se a que seguia: se se combatia, existia alguma possibilidade de que ele voltasse doente, ferido... ou que não voltasse nunca mais.
- Não chegaremos a isso –disse com firmeza, em voz alta- . Retornarão dentro de uma ou duas semanas.
Uma rajada de chuva geada castigou a janela com um repico. Começava a fazer frio; para quando anoitecesse, estaria nevando. ateu-se o xale aos ombros, estremecida, e jogou uma olhada ao Jem para comprovar que estava bem abrigado. Tinha o fralda molhado; uma de suas meias lhe tinha cansado, deixando nu o piececito rosado. Mas ele parecia não precaver-se, absorto na canção que dedicava a seus dedos, enquanto os movia ociosamente por cima de sua cabeça.
Ela o olhou com ar dúbio, mas se o veí acontento. Além disso, o braseiro do rincão dava um pouco de calor, sim.
- Bem –disse. E suspirou. Tinha ao Jem; isso era tudo. O problema era encontrar a maneira de tratar com as Três Fúrias antes de que a voltassem louca ou se assassinassem mutuamente.
- Lógica –disse ao Jemmy, lhe apontando com a pluma- . Tem que haver uma solução lógica. É como esse problema no que tem que levar a borda oposta, em canoa, a um lobo, um cordeiro e uma alface. Deixa que o pense.
Jem tratava de meter o pé na boca cheia de miolos, em que pese a que parecia impossível.
- Deve te parecer com papai –lhe disse ela, tolerante.
Deixou a pluma em seu frasco para fechar o livro contável, mas se deteve, atraída pela escritura torcida das notas. Ao ver a letra do Jamie, caracteristicamente desordenada, ainda sentia uma leve emoção. Recordava a primeira vez que a tinha visto, em uma antiga escritura de
propriedade cuja tinta com o tempo se tornou de uma cor parda clara.
Esta tinta tinha sido parda em um começo, mas agora se obscureceu, a mescla de ferro e bílis alcançava seu típico tom negro azulado com a exposição ao ar, durante um ou dois dias.
Então viu que não se tratava de um livro contável, mas sim de um registro diário das atividades da granja.
16 de julho: Recebido do pastor Gottfried seis leitões desmamados, em troca de duas garrafas de vinho moscato e uma tocha. Guardados no estábulo até que cresçam e possam comer forragem por si só.
17 de julho: Pela tarde uma das colméias começou a enxamear e entrou no estábulo. Felizmente minha esposa recapturó o enxame e o alojou em uma manteigueira vazia. Diz que Ronni Sinclair deve lhe fazer outra.
18 de julho: Carta de minha tia, pedindo conselho sobre serraria do Grinder’ Creek. Respondi dizendo que irei inspecionar a situação antes de fim de mês. Carta enviada por meio do R.. Sinclair, que vai ao Cross Creek com uma carga de 22 tonéis, dos quais devo receber a metade de seu ganho como parte de pagamento de sua dívida por ferramentas de sapateiro. acordamos deduzir dessa quantidade o custo da manteigueira nova.
O fluxo de entradas era tranqüilizador, aprazível como os dias do verão que registravam. Bree sentiu que o nó de tensão começava a relaxar-se entre suas omoplatas; sua mente se afrouxava e estirava, disposta a procurar uma saída para suas dificuldades.
20 de julho: Cevada do semeado inferior alta até o joelho. Passada a meia-noite a vaca vermelha teve uma vitela sã. Tudo vai bem. Dia excelente.
21 de julho: Vou a casa dos Mueller. Intercambiei uma jarra de favo por bridas de couro em mal estado (mas se podem reparar). Retornei muito depois do obscurecer, por contemplar um bando de aves aquáticas que elevava vôo sobre o lago do Hollis’s Gap. Detive-me pescar e cobrei dez boas trutas. Tomamos seis no jantar; o resto servirá para o café da manhã.
22 de julho: Meu neto tem sarpullido, embora minha esposa declara que não tem importância. A cerda branca se tornou a escapar de seu curral para o bosque. Não sei se perseguir a ou expressar meus pêsames à desafortunada fera que a encontre. Seu caráter se parece com o de minha filha nestes momentos, depois de estar várias noites quase sem dormir...
Brianna se inclinou para a página, com o sobrecenho franzido.
...pelos gritos do infante, que segundo minha esposa tem cólicas, mas passarão. Confio em que tenha razão. Enquanto isso, instalei a Brianna e ao menino na cabana velha, para alívio dos que habitamos a casa, se não de minha pobre filha. A cerda branca devorou a quatro leitões da última ninhada antes de que pudesse impedir-lhe
- Condenado cretino! –exclamou ela. Conhecia bem à cerda em questão e a comparação não lhe resultava aduladora. Jemmy, alarmado por seu tom, deixou de arrulhar e deixou cair a torrada, trêmulos os lábios- . Não, não, está bem, tesouro. –Ela foi agarrar o e balançá-lo brandamente- . Chist, tudo está bem. Mami estava falando com o avô. Essa palavra tampouco a ouviste, de acordo? Shhh, shhhh...
Jemmy, já tranqüilizado, estirou-se desde seus braços para a bolacha descartada, com pequenos grunhidos de ansiedade. Ela se agachou para recolhê-lo, jogando ao objeto médio disolvido um olhar de asco. A casca, além de estar rançosa, tinha uma ligeira capa de algo que parecia
cabelo de gato.
- Aj! Não acredito que isto você goste. Ou sim?
Pelo visto , sim. Foi difícil persuadir o de que aceitasse em troca uma grande argola de touro (das que se usavam para conduzir aos machos pelo nariz, conforme recordou ela com certa ironia). Confirmada sua aceitação com uma breve dentada, o menino se colocou em seu regaço para chupetearla empecinadamente, com o que pôde reler a conclusão da nota ofensiva.
- Hummm...
tornou-se para trás, acomodando o peso do Jemmy para estar mais comoda. Ele já se mantenia erguido com facilidade, embora parecia incrível que esse macarrão de pescoço pudesse sustentar a cúpula redonda da cabeça. Bree jogou um olhar carrancudo ao registro contável.
- Tenho uma idéia –disse ao Jemmy- . Se traslado a nossa cabana a essa bru... digo, à senhora Chisholm, ela e seus pequenos mostruos deixarão de nos incomodar. Logo... hum... a senhora Aberfeldy e Ruthie poderiam hospedar-se com o Lizzie e seu pai, se levarmos ali a cama que está na habitação de seus avós. Os Bug recuperam sua intimidade e a senhora deixa de ser uma velha... né... E você e eu dormiremos na habitação dos avós, até que eles retornem.
Detestava a idéia de abandonar a cabana. Era seu lar, seu sítio, o de sua família. Ali podia entrar e fechar a porta, deixando atrás o furor da casa grande. Ali estavam todas suas coisas: o tear ao meio fazer, os pratos de estanho, a jarra de louça que tinha pintado... todos esses pequenos objetos com os que tinha convertido esse lugar em seu próprio lar.
Se a isso somava o sentimento de posse e paz, lhe abandoná-lo provocava uma incômoda sensação que tinha algo de supersticioso. A cabana era o lar que compartilhava com o Roger; ao abandoná-la, embora só fora temporalmente, parecia admitir que talvez ele não retornaria para seguir compartilhando-a.
Estreitou com mais força ao Jemmy, quem a ignorou concentrado em seu brinquedo, com os puñitos gordinhos jorrando baba ali onde agarravam a argola.
Não, não queria ceder sua cabana. Mas era uma solução lógica. A senhora Chisholm estaria de acordo? A cabana era uma construção muito mais tosca que a casa grande e carecia de suas comodidades.
Mesmo assim estava quase segura de que a mulher o aceitaria. Se existia alguém cujo lema fora: “ Melhor reinar no inferno que servir no paraísoSS, essa era ela. face às tribulações, sentiu vontades de rir.
depois de fechar o regidtro contável, tratou de voltar a colocá-lo sobre a pilha de onde o tinha pego, mas com uma só mão e estorvada por jemmy, não chegava. O livro se escorregou e caiu na mesa.
- Chifres –murmurou, estirando-se na cadeira para recolhê-lo. desprenderam-se várias folhas soltas, que ela voltou a introduzir com a mão livre, tão ordenadamente como pôde.
Uma delas era uma carta; ainda tinha os restos do lacre pegos, com a impressão de uma medial uma sorridente. Ela se deteve: era o selo de lorde John Grei. Devia ser a carte que ele tinha enviado em setembro, com a descrição de sua caçada de veados no Pântano Tenebroso; seu pai a tinha lido várias vezes a sua família, pois lorde John era um correspondente cheio de humor. A cecería em questão tinha estado infestada desse tipo de contratempos incômodos de suportar, mas pitorescos quando depois se relatam.
Sonriendo ao recordá-lo, desdobrou a carta com o polegar, desejosa de relê-la, só para descobrir que se encontrava ante um pouco muito diferente.
13 de outubro, Anno Domini 1770
Senhor James Fraser
Colina do Fraser, Carolina do Norte
Meu querido Jamie:
Esta manhã despertou o som da chuva que nos castiga há uma semana, e o suave cacarejo de vários frangos encarapitados na cabeceira de minha cama. depois de me levantar ante o fixo olhar de numerosos ojillos, fui averiguar a que se devia essa circunstância. Me informou que o rio tinha crescido tanto, sob o ímpeto das chuvas recentes, que tinha escavado tanto o desculpado como o galinheiro. O conteúdo deste último foi resgatado pelo William (meu filho, ao que auizá recordarão) e dois dos escravos, que resgataram com vassouras às aves desalojadas quando arrastava a corrente. Não saberia dizer de quem foi a idéia de alojar em meus aposentos às indefesas vítimas plumíferas, mas tenho certas suspeitas a respeito.
Depois de recorrer ao uso de meu bacinilla (eu gostaria que os frangos compartilhassem este adminículo, mas sua incontinência é alarmante), vesti-me e me aventurei a sair para ver o que se podia salvar. Do galinheiro ficam algumas pranchas e o teto, mas ai!, meu desculpado se converteu em propriedade do rei Netuno... ou quem quer seja a deidade menor que preside sobre um tributário tão modesto como nosso rio.
Não obstante, rogo-lhe não sofra preocupações por nós, pois a casa está a certa distância do rio, construída sobre uma elevação do terreno, o qual nos põe a salvo das inundações mais incômodas. (O desculpado tinha sido cavado junto à casa velha e ainda não tentamos levantar uma nova estrutura, mais conveniente; este pequeno desastre, ao nos oferecer a necessária desculpa para reconstruir, pode resultar uma bênção dissimulada.)
Brianna pôs os olhos em branco ante esse trocadilho, pró mesmo assim sorriu. Jemmy deixou cair a argola e imediatamente começou a pedi-la choramingando. Ela se inclinou para recolhê-la, mas se deteve, atraída sua atenção pelo começo do parágrafo seguinte.
Em sua carta menciona ao senhor Stephen Bonnet e pergunta se tiver notícias ou conhecimento dele. Conheci-o pessoalmente, como recordará, mas por desgraça não guardo lembrança algum do encontro, nem tão sequer para recordar seu aspecto. Não obstante, como sabe você, conservo em minha cabeça um pequeno buraco como singular aviso dessa ocasião. (Pode informar a sua senhora algema que estou bem curado, sem mais sintomas de desconforto que alguma dor de cabeça ocasional. Além disso, a placa de prata com a que se há talher a abertura está sujeita a esfriamentos súbitos quando o clima é frio, o qual tende a fazer que meu olho esquerdo lacrimeje e a provocar uma grande descarrega de mucos, mas isto não tem importância.)
Posto que compartilho, portanto, seu interesse pelo senhor Bonnet e seus movimentos, faz tempo venho fazendo averiguações entre meus conhecidos da costa, dado que as descrições de suas maquinações me fazem acreditar que é mais provável encontrar ao homem ali. Entretanto, posto que o rio é navegável até o mar, me ocorreu que os capitães do rio e os vadios da água que, de vez em quando, honram minha mesa poderiam me trazer, em algum momento, notícias do homem.
Não me agrada a obrigação de imformar que Bonnet ainda reside estre os viventes, mas tanto o dever como a amizade me impõem lhe comunicar os dados que obtive. São escassos; o miserável parece ter consciência de sua situação criminal, ao ponto de ter atuado com sutileza em seus movimentos até o presente.
Jemmy esperneava e chiava. Como em transe, Bree se agachou a recolher a argola, com os olhos ainda cravados na carta.
soube pouco dele, excetuando a informação de que em algum momento se retirou a França: boa notícia. Entretanto, faz duas semanas recebi a um hóspede, um tal capitão Liston (o de “ capitão” não é mais que um título de scortesía; o homem assegura servir à Marinha Real, mas eu apostaria um tonel de meu melhor tabaco [do que o envio uma amostra acompanhando esta missiva, e se não o recebesse lhe agradeceria que me fizesse saber isso, pois não confio de tudo no escravo através de quem o envio] a que nunca cheirou sequer a tinta de um contrato, muito menos o fedor dos quilhas), quem me proporcionou uma história mais recente –e extremamente desagradável- desse homem Bonnet.
Contou Liston que, encontrando-se em liberdade no porto do Charleston, encontrou-se com alguns companheiros de vil aspecto, quem o convidou a acompanhá-los une briga de galos, no pátio interior de um estabelecimento chamado Taça do Diabo. Entre a chusma havia um homem notável pela elegância de sua vestimenta e a liberdade com que gastava seu dinheiro; Liston ouviu que o chamavam Bonnet, e o proprietário lhe informou que esse Bpnnet tinha fama de contrabandista nas Ribeiras Exteriores, sendo apreciado entre os mercados das cidades costeiras da Carolina do Norte, embora muito menos entre as autoridades, que eram incapazes de ajustar contas com esse homem, devido a seu comércio e ao feito de que as cidades do Wilmington, Edenton e New Bern dependiam de seu tráfico.
Liston emprestou pouca atenção ao Bonnet (disse), até que surgiu uma briga sobre uma aposta. Houve intercâmbio de palavras acaloradas e só o derramamento de sangue teria podido salvar a honra. Os espectadores, sem reparos, começaram imediatamente a apostar sobre o resultado dessa luta humana, tal como o estavam fazendo sobre as aves de rixa.
Um dos combatentes era o tal Bonnet; o outro, um tal capitão Marsden, capitão do Exército a meia paga, a quem minha hóspede conhecia como bom espadachim. Este Marsden, considerando-se parte ofendida, amaldiçoou os olhos ao Bonnet e convidou à contrabandista a lhe dar satisfação no ato, oferecimento aceito imediatamente. As apostas se derrubaram marcadamente a favor do Marsden, pois sua reputação era muita, mas logo ficou em claro que tinha encontrado a seu igual ou superior no Bonnet. Em poucos momentos, este conseguiu desarmar a seu adversário e feri-lo tão gravemente na coxa que Marsden caiu de joelhos e se deu por vencido; indubitavelmente dadas as circunstâncias, não tinha opção.
Bonnet, sem aceitar a rendição, executou em troca um ato de tal cueldad que causou muito profundo impresion em quem o viu. Depois de comentar, com grande frieza, que não seriam seus próprios olhos os condenados, cruzou com a ponta de sua arma os olhos do vencido, retorcendo-a de maneira que não só deixou cego ao capitão: infligiu-lhe uma mutilação tal que o converteria em objeto de grande horror e compaixão de quem o visse.
Depois de deixar a seu adversário assim mutilado e desvanecido na areia ensangüentada do pátio, Bonnet limpou seu aço contra a camisa do Marsden, embainhou-o e partiu..., não sem antes apoderar-se da bolsa do capitão, que reclamou como pagamento de sua aposta original. Nenhum dos pressente teve guelra para impedir-lhe tendo ante eles tão convincente exemplo de sua destreza.
Relato-lhe esta história tanto para familiarizá-lo com o último paradeiro conhecido do Bonnet para lhe advertir de seu caráter e sua destreza. Sei que já está familiarizado com o primeiro, tacho e chamo a atenção sobre a última, pelo interesse que me merece seu bem-estar. Certamente, não espero que uma palavra de meu bem-intencionado conselho ache alojamento em seu peito, repleto como tem que estar de animadversos sentimentos para o homem, tacho e imploro que tenha em conta, quanto menos, a menção que tem feito Liston das vinculações do Bonnet.
Em ocasião de meu próprio encontro com o homem, este era um criminoso condenado; não acredito que após tenha emprestado à Coroa serviços que merecessem o perdão oficial. Se se atrever a exibir-se tão abertamente no Charleston, onde poucos anos atrás escapou à corda do verdugo, diria-se que não teme por sua segurança... e isto só pode significar que agora desfruta do amparo de amigos poderosos. Se busca destruir ao Bonnet, deve descobri-los e cuidar-se deles.
Continuarei minhas averiguações a respeito e lhe notificarei imediatamente qualquer novo detalhe. Enquanto isso, conserve-se bem e dedique de vez em quando algum pensamento a seu bordado e estremecido amigo da Virginia. Fico, senhor, com meus melhores desejos para com sua esposa, filha e família,
Seu seguro servidor, John William Grei
Plantação Monte Josiah, Virginia
Postcriptum: A sua petição pus à busca de um astrolábio, mas até agora não
soube que nada que se adeque a seus propósitos. Não obstante, este mês escreverei a Londres para que me mandem móveis diversos e será um prazer encarregar um ao Halliburton, da rua Green, cujos instrumentos são da melhor qualidade.
Com muita lentidão, Brianna voltou a sentar-se na cadeira. Logo lhe tampou as orelhas a seu filho com mãos suaves, mas firmes, e disse um palavrão muito mal lhe soem.
Reclinada contra o ribazo, com a cabeça do Jamie na saia, fiquei dormida. Tive sonhos lúgubres, como está acostumado a acontecer quando está incômoda e tem frio.
Despertei súbitamente; jazia em uma confusão de capotes e mantas, com os membros do Jamie pesadamente entrelaçados a meus; uma neve fina caía entre os pinheiros. Desorientada durante um momento, toquei ao Jaime, que se removeu, tossindo com força; seu ombro se estremeceu sob minha mão. Esse ruído devolveu aos fatos do dia anterior: Josiah e seu gêmeo, a granja dos Beardsley, os fantasmas da Fanny, o fedor dos excrementos e a gangrena, o aroma mais limpo da pólvora e a terra molhada. Os balidos das cabras ainda retumbavam desde meus sonhos.
Entre o sussurro da neve me chegou um grito débil. Incorporei-me abruptamente, jogando em um lado as mantas, em uma garoa de gelo em pó. Não era uma cabra.
Jamie, sobressaltado, rodou para sair de entre o matagal de capotes e mantas; ficou acuclillado, com o cabelo revolto; seus olhos voavam de um lado a outro, procurando a ameaça.
-O que acontece?- sussurrou, afônico. E alargou a mão para sua adaga embainhada, que tinha deixado no chão, a seu alcance. Eu levantei uma mão para impedir que se movesse.
-Não sei. Um ruído. Escuta!
Levantou a cabeça, alerta; vi que sua garganta se movia dolorosamente ao tragar. Eu não ouvia outra coisa que o faísco da neve, nem via mais que os pinheiros chorreantes. Mas Jamie ouvia algo…ou o via; sua cara trocou súbitamente.
-Ali-disse pela baixo, assinalando com a cabeça algo que estava detrás de mim.
Ao girar sobre meus joelhos me encontrei com algo que parecia um pequeno montão de trapos; estava a uns três metros, junto às cinzas da fogueira apagada. O pranto se ouviu outra vez, já inconfundível.
-Por todos os Santos do céu.- Quase sem consciência se ter falado, engatinhei para o vulto, recolhi-o velozmente e comecei a escavar entre as capas de roupa. Obviamente estava com vida, posto que eu o tinha ouvido gritar; mas jazia inerte, quase sem peso na curva de meu braço.
A diminuta cara e o crânio imberbe eram de uma cor branca azulada, com as facções fechadas e secas como a vagem de um fruto invernal. Ao apoiar a palma contra o nariz e a boca percebi um leve calor úmido contra a pele. Sobressaltada por meu contato, os lábios se abriram em um miado, em tanto os olhos oblíquos se apertavam, deixando fora esse mundo ameaçador.
-Deus bendito.- Jamie se fez o sinal da cruz brevemente. Sua voz era apenas mais que um sussurro fleumático; depois de um pigarro o tentou outra vez-. Onde está essa mulher?
Espantada pela aparição da criatura, eu não me tinha detido a pensar em seus orígenes; tampouco era um bom momento para fazê-lo. O bebê se contorsionó um pouco em seus envoltórios, mas as manecitas estavam geladas e tinha a pele azulada e purpúrea pelo frio.
-por agora deixa-a. Traz meu xale, quer, Jamie? O pobrecito está quase congelado.
Usei a mão livre para me desatar o sutiã; era um dos velhos, abertos pela parte dianteira, que eu usava por comodidade quando saíamos de viagem. Uma vez afrouxados o espartilho e a cinta da camisa, apertei à pequena criatura geada contra meus peitos nus, ainda quentes pelo sonho. Uma rajada me arrojou neve aguda contra a pele exposta do pescoço e os ombros. Atirei precipitadamente da camisa, cobrindo ao bebê, e encurvei os ombros, estremecida. Jamie me jogou o xale por cima; logo envolveu a ambos com os braços, nos estreitando com ferocidade, como para que o calor de seu próprio corpo entrasse pela força no menino.
Calor que era considerável: estava ardendo de febre.
-Santo Deus! Está bem?- Olhei-o; estava pálido e com os olhos avermelhados, mas bastante firme.
-Estou bem, sim. Onde está?- repetiu, com voz rouca-. A mulher.
Obviamente se tinha ido. As cabras estavam apertadas ao casaco do ribazo; vi aparecer os chifres do Hiram entre os lombos arrepiados de suas fêmeas. Seis pares de olhos amarelos nos observavam com interesse. Recordaram aos de meus sonhos.
O sítio onde se deitou a senhora Beardsley estava vazio; só ficavam um rastro de erva esmagada como testemunha de sua presença ali. Devia haver-se afastado um pouco para dar a luz, pois perto do fogo não ficavam rastros do nascimento.
-É dela?- perguntou Jamie. A congestão ainda era perceptível em sua voz, mas o som sibilante do peito se aliviou. Já era um alívio.
-Suponho que sim. De outro modo, de onde veio?
Repartia minha atenção entre o Jamie e o menino, que tinha começado a mover-se contra meu ventre, com pequenos movimentos de caranguejo, mas joguei um olhar ao redor de nosso improvisado acampamento. Os pinheiros se erguiam sob a neve lhe sussurrem, negros e silenciosos. Se Fanny Beardsley se entrou no bosque, não ficava na pinaza rastro alguma que delatasse seu passo.
-Não pode estar longe-disse-. Não se levou nenhum dos cavalos.
Gideon e Dona Cerdita seguiam juntos sob uma pícea, com as orelhas ceñudamente aplanadas pelo clima, rodeados pelas nuvens de vapor de seu fôlego. Ao nos ver levantados e em movimento, Gideon deu coices e relinchou, mostrando os grandes dentes amarelos em uma impaciente exigência de sustento.
-Sim, velho vadio, já vou.- Jamie deixou cair os braços e deu um passo atrás, passando-os nódulos pelo nariz-. Se queria se ir em segredo não podia levar um cavalo. O outro teria metida animação até despertar.- Depositou uma mão suave sobre o vulto escondido sob meu xale-. Tenho que ir lhes dar de comer. Está bem o menino, Sassenach?
-está-se descongelando, assegurei-lhe-. Mas deve ter fome.
O bebê começava a mover-se mais, retorcendo-se com movimentos frouxos, como uma lombriga geada; sua boca procurava às cegas. A sensação foi chocante por sua familiaridade: meu mamilo saltou por reflexo e no peito vibrou a eletricidade, enquanto a boquita procurava e se agarrava a ele. Lancei um pequeno chiado de surpresa; Jamie arqueou uma sobrancelha.
-Né… tem fome- assegurei, colocando-me isso
-Já o vejo Sassenach.- Jogou uma olhada às cabras, que começavam a remover-se entre grunhidos sonolentos-. Não é o único esfomeado. Um momento, por favor.
Da granja do Beardsley havíamos trazido grandes sacos com feno seco; Jamie abriu um e pulverizou comida para os cavalos e as cabras. Logo se agachou para desenredar um dos capotes de entre o montão de cobertores úmidos e me pôs isso nos ombros. Finalmente rebuscou na mochila uma taça de madeira, com a que se aproximou resolutamente às cabras.
O bebê estava mamando com força, com meu mamilo bem fundo em sua boca. Isso me tranqüilizou quanto à saúde do menino, mas a sensação era perturbadora.
-Não é que me incomode, me acredite- disse-lhe, tratando de nos distrair a ambos-. Mas me temo que não sou sua mãe, compreende? Sinto muito.
E onde diabos estava a mãe? Girei pouco a pouco, percorrendo a paisagem com mais atenção, mas não via rastro alguma da Fanny Beardsley, muito menos o motivo de seu desaparecimento… ou seu silêncio.
Que diabo podia ter acontecido? Era possível (e evidente) que a senhora Beardsley tivesse oculto um embaraço avançado baixo essa montanha de graxa e casaco, mas por que?
-por que não nos disse isso, é o que me pergunto- murmurei para a cabecita do bebê.
Se o responsável pelo desaparecimento da Fanny Beardsley tinha sido uma ou várias pessoas, por que tinham deixado ao bebê? Ou por que o haviam devolvido?
Respirei fundo e forte para limpar o nariz; logo girei a cabeça, aspirando o ar em diferentes direções. Um parto é muito sujo e eu estava familiarizada com seus fortes aromas. A criatura que tinha em meus braços emanava todos esses aromas, mas não se detectava rastro algum de sangue ou líquido amniótico no ventre gelado.
-Muito bem- disse em voz alta, balançando-o, já que começava a perder a quietude-. Afastou-se da fogueira para dar a luz. foi sozinha, ou alguém a obrigou. Mas se quem a levou caiu na conta de que estava a ponto de dar a luz, por que se incomodou em te trazer de volta em vez de te conservar, te matar ou, simplesmente, te abandonar para que morrera? OH, perdoa, não tinha intenção de te alterar. Cala, tesouro, cala…
O bebê, que começava a sair de seu sorvete estupor, tinha tido tempo de pensar o que outra coisa faltava em seu mundo. depois de abandonar meu peito, frustrado, retorcia-se e chorava com alentadora potência. Então retornou Jamie, com uma fumegante taça de leite de cabra e um lenço moderadamente limpo. depois de retorcê-lo até improvisar uma teta, inundou-o no leite e inseriu o tecido lhe gotejem na boca aberta do bebê. Os choros cessaram imediatamente; ambos suspiramos de alívio.
-Ah, assim está melhor, não? Seja, a bhalaich, seja – murmurava ele, deixando gotejar o leite.
Estudei aquela carita diminuta, ainda pálida e cerosa de graxa fetal; já não tinha a cor do giz; mamava com profunda concentração.
-Como pôde havê-lo abandonado?- perguntei-me em voz alta-. E por que?
Esse era o melhor argumento para explicar um seqüestro: o que outra coisa podia fazer que uma flamejante mãe abandonasse a seu filho? Por não falar de afastar-se a pé por um bosque às escuras, imediatamente depois de dar a luz, dolorida e torpe, com a carne ainda rasgada e sangrando… A só idéia me arrancou uma careta e meu ventre se esticou.
Jamie moveu a cabeça, atento a seu trabalho.
-Teria alguma razão, mas só Deus e os Santos têm que saber qual é. Mas não odiava ao menino; pôde havê-lo abandonado no bosque sem que ninguém se inteirasse.
Isso era certo; ela (ou alguma outra pessoa) tinha envolto ao bebê com cuidado, para logo deixá-lo tão perto do fogo como era possível. Queria que sobrevivesse… mas sem ela.
-Crie que se foi por própria vontade?
Ele assentiu.
-Aqui não estamos longe da Linha do Tratado. Puderam ser os índios, mas se alguém a levou, por que não nos capturaram também ?por que não mataram a todos?- perguntou, com lógica-. Além disso, os índios se teriam levado os cavalos. Não, acredito que se foi por seus próprios meios. por que o fez…
Moveu a cabeça e voltou a empapar o lenço.
Devíamos partir logo, antes de que a tormenta aumentasse. Mas não me parecia bem ir sem mais, sem tentar averiguar que sorte tinha deslocado Fanny Beardsley.
Toda a situação parecia irreal. Era como se a mulher tivesse desaparecido por arte de bruxaria, deixando em troca a esse pequeno substituto. Recordava-me extrañamente as lendas escocesas de meninos trocados, de bebês humanos substituídos por vergônteas de fadas. Mesmo assim não me ocorria para que queriam as fadas a Fanny Beardsley.
-E nos faltam muitos quilômetros antes de poder dormir- comentei ao Jamie com um suspiro.
-Né? Ah, não, falta só uma hora para chegar ao Brownsville- assegurou-me-. Dois, possivelmente- corrigiu, jogando uma olhada ao céu-. Agora que há luz sei onde estamos.
Outro súbito espasmo de tosse lhe sacudiu o corpo. Logo me entregou a taça e o lenço.
-Toma, Sassenach. Alimenta a esse pobre sgaogan enquanto eu atendo às bestas, sim?
Sgaogan. Um menino trocado. Assim que o halo estranho e sobrenatural daquilo também o tinha impressionado. A mulher assegurava que via fantasmas; era possível que algum deles tivesse vindo para levar-lhe Estremecida, estreitei ao bebê contra mim.
-Há alguma população próxima, além do Brownsville? Algum lugar aonde a senhora Beardsley pudesse ir?
Jamie negou com a cabeça; tinha uma ruga entre as sobrancelhas. A neve se fundia ao tocar sua pele acalorada e lhe corria pela cara como se fossem lágrimas.
-Nenhuma que eu saiba. Aceita bem o leite de cabra?
-Como um cabrito- assegurei-lhe, e pus-se a rir.
Embora desconcertado, ele também sorriu. Nesse momento necessitava humor.
-Assim chamamos os norte-americanos aos meninos… ou os chamaremos no futuro- expliquei-. Cabritos.
O sorriso se alargou.
-Sim? Então é por isso pelo que Brianna e Mackenzie chamam assim ao pequeno Jem. Eu pensava que era só uma brincadeira entre os dois.
Apressou-se a ordenhar às outras cabras, enquanto eu seguia alimentando ao menino com essa destilação, e trouxe um cubo cheio a transbordar de leite quente para nosso café da manhã.
O menino tinha deixado de mamar para urinar copiosamente: bom signo de saúde geral, mas nada conveniente nesses momentos, pois tanto suas roupas como o peitilho de meu sutiã ficaram empapados.
Jamie revolveu precipitadamente as mochilas, procurando fraldas e roupa seca. Por sorte Dona Cerdita carregava a alforja onde eu tinha panos e tiras de algodão para limpar e enfaixar. Agarrou um montão e se fez cargo do bebê, enquanto eu iniciava a incômoda e fria tarefa de me trocar a camisa e o sutiã sem me tirar a saia, a anágua e o capote.
-P-te ponha o manto- disse, entre o tagarelo de meus dentes-, se não q-quer morrer de pneumonia.
Ele sorriu, concentrado em seu trabalho, embora a ponta do nariz, muito vermelha, contrastava com sua cara pálida.
-Estou bem- grasnou. Logo pigarreou, impaciente, e repetiu com mais potencializa-: Bem.
de repente se deteve, abrindo muito os olhos pela surpresa.
-OH!, olhe- disse, mais fico-. É uma menina.
-Seriamente?- Ajoelhei a seu lado para olhar.
-Bastante feia- acrescentou, inspecionando-a com ar crítico-. Menos mal que terá uma dote decente.
-Não acredito que você fosse uma beleza quando nasceu- reprovei-. Não a limparam como é devido, pobrecita. Mas o que significa isso da dote?
Ele se encolheu de ombros, enquanto as compunha para pôr diestramente um pano dobrado sob o minúsculo traseiro sem mover o xale que cobria à menina.
-Seu pai morreu e sua mãe desapareceu. Não tem irmãos com quem compartilhar. E na casa não encontrei nenhum testamento que dissesse quem devia receber a propriedade do Beardsley. Fica uma boa granja e bastante mercadoria, por não falar das cabras.- Olhou com um sorriso ao Hiram e a sua família-. Suponho que todo isso tem que ser dela.
-Suponho que sim. Assim que a menina terá uma boa posição, verdade?
-OH!, bom- resignou-se ele. E trocou de posição para protegê-la melhor do vento.
A menina parecia sã, embora bastante pequena; até com o ventre volumoso pelo leite, não era maior que uma boneca. Essa era a primeira dificuldade: miúda como era e sem graxa que a isolasse, morreria de hipotermia em muito pouco tempo, a menos que pudéssemos mantê-la abrigada e alimentada.
-Não deixe que agarre frio.- Coloquei as mãos nas axilas para me esquentar isso antes de tocá-la.
-Não se preocupe, Sassenach. Só me falta lhe limpar o traserillo e… - Interrompeu-se, com a frente enrugada-. O que é isto, Sassenach? Uma lesão? É possível que essa estúpida a tenha deixado cair?
Aproximei-me para observar. Ele sustentava os pés do bebê com uma mão e um punhado de ataduras sujas na outra. Sobre as pequenas nádegas havia uma mancha azul escura, com aspecto de moretón.
Não era um moretón, mas sim explicava um pouco as coisas.
-Não está ferida. Assegurei-lhe, utilizando outro dos xales abandonados pela senhora Beardsley para proteger a cabecita imberbe-. É uma mancha mongólica.
-O que?
-Significa que a menina é negra- expliquei-. Africana, ao menos em parte.
Jamie piscou, sobressaltado; logo se inclinou para olhar debaixo do xale.
-Não, nada disso. É tão branca como você, Sassenach.
Era certo. A menina era tão branca que parecia não ter sangue.
-Os meninos negros não revistam ser negros quando nascem- expliquei-lhe-. Em realidade freqüentemente são muito claros. A pigmentação da pele começa a desenvolver-se algumas semanas depois. Mas com freqüência nascem com este leve amoratamiento da pele na base da coluna vertebral. chama-se mancha mongólica.
Ele se esfregou a cara com uma mão, piscando para desprender os flocos de neve que tratavam de posar-se o nas pestanas.
-Compreendo- murmurou-. Pois isso explica algo, não?
Em efeito. O defunto senhor Beardsley podia ter sido muitas coisas, mas não se podia dizer que fora negro. Essa criatura era filha de um negro. Fanny Beardsley sabia (ou temia) que a criatura a ponto de nascer desentupiria seu adultério; por isso tinha acreditado melhor abandoná-la e fugir antes de que se revelasse a verdade. Perguntei-me se esse misterioso pai tinha tido algo que ver com a sorte corrida pelo senhor Beardsley.
-Saberia ela com certeza que o pai era negro?- Jamie tocou o pequeno lábio inferior, que agora tinha um tintura rosado-. Ou talvez não chegou a ver a menina? depois de tudo, deve ter nascido na escuridão. Se ela tivesse visto que parecia branca, talvez teria preferido arriscar-se.
-Talvez. Mas não o fez. Quem pôde ser o pai?
Isolada como estava a granja dos Beardsley, não parecia que Fanny tivesse tido oportunidade de conhecer muitos homens, além de quão índios deviam comercializar. Perguntei-me se os bebês índios tinham manchas mongólicas.
Jamie jogou um triste olhar ao desolada paragem. Logo levantou a menina.
-Não sei, mas não acredito que seja difícil averiguá-lo, uma vez que tenhamos chegado ao Brownsville. Vamos, Sassenach.
Contra sua vontade, Jamie decidiu deixar ali as cabras, a fim de conseguir teto e sustento para a menina quanto antes.
-Aqui estarão bem durante um momento- disse, lhes pulverizando o resto do feno-. As fêmeas não abandonarão ao velho. E por agora você não te moverá daqui, verdade, a bhalaich?
Arranhou ao Hiram entre os chifres como despedida, e partimos, entre um coro de balidos de protesto, pois as cabras se habituaram a nossa companhia.
Bem agasalhada em meu grosso capote, com vários xales debaixo e a menina sujeita contra meu ventre em um tipóia improvisado, eu estava abrigada, face aos flocos que me roçavam a cara e se aderiam a minhas pestanas. Jamie tossia de vez em quando, mas em geral o via muito melhor que antes; a necessidade de atender a uma emergência havia devolvido a energia.
A menina parecia dormir, mas não se estava quieta; estirava-se e retorcia com os movimentos lânguidos do mundo aquático, não acostumada ainda à liberdade da vida fora do ventre materno.
-Parece como se estivesse grávida, Sassenach.
Olhei para trás. Jamie me observava com ar divertido sob a asa de seu chapéu, embora me pareceu ver algo mais em sua expressão: talvez certa nostalgia.
-Pois esta criatura me embaraça o bastante- repliquei, trocando ligeiramente de postura para permitir os movimentos de minha companheira.
A pressão desses pequenos joelhos, a cabeça e os cotovelos contra meu ventre era, na verdade, perturbadoramente parecida com as sensações do embaraço; pouco importava que estivesse fora e não dentro.
Como atraído pelo vulto coberto por meu manto, Jamie açulou ao Gideon para ficar a meu lado. O cavalo agitou a cabeça, desejoso de adiantar-se, mas Jamie o conteve com um suave “ Seja!” de recriminação e o animal cedeu, bufando vapor.
-se preocupa por ela?- perguntou Jamie, assinalando com a cabeça o bosque que nos rodeava.
Não fazia falta perguntar a quem se referia. Assenti. Onde estaria Fanny Beardsley? Só no bosque? Arrastando-se para morrer como uma besta ferida? Ou possivelmente rumo a algum refúgio imaginário, caminhando às cegas entre a folhagem geada e a neve talvez para a baía do Chesapeake e as lembranças do céu aberto, as largas águas e a felicidade?
Jamie se estirou para apoiar uma mão na minha, posta sobre a menina que dormia. Percebi o frio de seus dedos sem luvas através do tecido que nos separava.
-Ela escolheu, Sassenach- disse-. E nos confiou à pequena. Ocuparemo-nos de pô-la a salvo. É quanto podemos fazer por essa mulher.
Embora não podia girar a mão para estreitar a sua, assenti. Ele me apertou os dedos um momento e ficou atrás, enquanto eu olhava para nosso destino, piscando para me tirar das pestanas as gotas de neve fundida.
Quando Brownville apareceu a nossa vista, quase toda a preocupação que sentia pela Fanny Beardsley tinha desaparecido ante a que me causava sua filha. A criatura tinha despertado e chorava, me golpeando o fígado com punhos diminutos em busca de comida.
Jamie tinha cheia o cantil com leite de cabra, mas me pareceu melhor chegar a algum refugio antes de alimentar novamente a recém-nascida. Se havia ali uma mãe que pudesse lhe oferecer seu leite, isso seria o melhor; se não, terei que esquentar o leite de cabra; dado o frio que imperava, o leite frio podia baixar perigosamente a temperatura da menina.
Dona Cerdita soprou, exalando uma grande baforada de vapor, e de repente acelerou o passo. Conhecia o aroma da civilização… e de outros cavalos. Levantou a cabeça com um penetrante relincho e Gideon a imitou. Quando cessou o bulício pude ouvir as respostas alentadoras de vários cavalos na distância.
-Estão aqui!- exalei, em um vaporoso arranque de alívio-. A tropa. chegaram!
-Bom, era de esperar, Sassenach- replicou Jamie, enquanto afirmava a mão nas rédeas para evitar que Gideon se desmandasse-. Se o pequeno Roger não soubesse dar com uma aldeia no extremo de um caminho reta, sua inteligência seria tão duvidosa como sua vista.
Mas ele também sorria.
Depois de uma curva do caminho vi que Brownsville era uma verdadeira aldeia. Nossos cavalos avançaram a bom passo; tive que atirar com força das rédeas para que Dona Cerdita não trotasse, pois teria sacudido gravemente a minha passageira. Enquanto a obrigava a partir ao passo, embora resistia, uma silhueta se separou do pinheiro que lhe servia de refúgio e saiu ao caminho diante de nós, agitando a mão.
-Milord- saudou Fergus, enquanto Gideon se detinha a contra gosto-. Estão bem? Temia que tivessem tropeçado com alguma dificuldade.
-Och.- Jamie assinalou vagamente o vulto sob meu capote-. Em realidade não foi uma dificuldade, só…
Fergus observou o vulto com alguma estranheza.
-Quelle virilité, monsieur- disse ao Jamie, em tom de profundo respeito-. Minhas congratulações.- Meu marido lhe dedicou um olhar mordaz e a menina rompeu a chorar outra vez.
-Comecemos pelo mais importante- disse-. Há aqui alguma mulher que tenha um bebê? Esta criatura necessita leite. Imediatamente.
Fergus assentiu, com os olhos dilatados pela curiosidade.
-ouis, milady. Vi dois, pelo menos.
-Bem. me conduza até elas.
Ele agarrou a Dona Cerdita por uma brida e partiu rumo ao assentamento.
-O que passou?- perguntou-lhe Jamie, pigarreando.
Em minha preocupação pelo bebê não me tinha detido a pensar no que significava a presença do Fergus ali. Jamie tinha razão: se tinha saído ao caminho com esse tempo não era só porque lhe interessasse nosso bem-estar.
-Né… Parece que temos uma pequena dificuldade, milord.- Descritos os acontecimentos de na tarde anterior, concluiu com um gaélico encolhimento de ombros e um bufo-… de modo que monsieur Morton se refugiou entre os cavalos- disse, assinalando com a cabeça o estábulo improvisado-, enquanto outros desfrutam de l’hospitalité do Brownsville.
Jamie parecia algo carrancudo; sem dúvida calculava o que lhe custaria a hospitalité para mais de quarenta homens.
-Estraguem. Quer dizer, os Brown não sabem que Morton está ali?
Fergus negou com a cabeça.
-Mas por que está ali?- perguntei, depois de ter sossegado momentaneamente ao bebê com meu próprio peito-. Deveria ter fugido ao Granite Falls, agradecido de estar com vida.
-Não quer ir, milady. Diz que não pode prescindir do dinheiro.
Justo antes de nossa partida se soube que o governador oferecia quarenta xelins por cabeça, como incentivo para que se arrolassem na tropa. Era uma soma considerável, sobre tudo para um colono novo que se enfrentava a um mau inverno.
Jamie se passou lentamente uma mão pela cara. Era um dilema, sim; a companhia miliciana necessitava homens e provisões do Brownsville, mas Jamie não podia recrutar aos Brown, que imediatamente tratariam de assassinar ao Morton. Tampouco podia permitir o luxo de pagar de seu bolso ao fugitivo. Parecia sentir a tentação de assassiná-lo com suas próprias mãos, mas supus que não era uma alternativa razoável.
-Não lhe poderia persuadir para que se casasse com a moça?- sugeri delicadamente.
-Pensei-o- disse Fergus-. Infelizmente, monsieur Morton já tem uma esposa no Granite Falls.- Moveu a cabeça, que começava a parecer uma colina nevada.
-Mas os Brown, por que não foram detrás o Morton?- perguntou Jamie, que parecia seguir seu próprio curso de pensamentos-. Se um inimigo vier a sua terra e os teus estão contigo, não o deixa escapar: persegue-o até matá-lo.
Fergus assentiu; obviamente estava familiarizado com essa variedade de lógica escocesa.
-Acredito que essa era a intenção, mas o petit Roger os distraiu.
Percebi uma clara nota de diversão em sua voz. Jamie também.
-O que tem feito?- perguntou, cauteloso.
-lhes cantar-. O ar divertido se acentuou-. Aconteceu-se a maior parte da noite cantando e tocando seu tambor. Toda a aldeia veio a escutá-lo. Há seis homens em idade de arrolar-se na tropa e duas mulheres avec pulsei, milady, como já lhe hei dito.
Jamie tossiu, passou-se uma mão pelo nariz e disse:
-Bem. Ouça, a pequena deve comer e eu não posso me atrasar. Do contrário os Brown se precaverão de que Morton está aqui. vá dizer lhe que irei falar com ele assim que me seja possível.
Apontou o focinho de seu cavalo para o botequim, enquanto eu açulava a Dona Cerdita para que o seguisse.
-O que fará com os Brown?- perguntei.
-Deus!- murmurou Jamie, mais para seus adentros que para mim-. Como diabos quer que saiba?
E tossiu outra vez.
Nossa chegada com o bebê causou a sensação suficiente para distrair aos habitantes do Brownsville de seus assuntos privados, fossem cotidianos ou homicidas. Ao ver o Jamie, uma expressão de intenso alívio cruzou pela cara do Roger, embora foi imediatamente reprimida e substituída por uma branda atitude de segurança em si mesmo. Baixei a cabeça para dissimular um sorriso, enquanto olhava de soslaio ao Jamie, se por acaso tivesse notado essa rápida transformação. Ele evitou me olhar, sinal de que a tinha detectado.
-Bem feito- disse com ar indiferente. E saudou o Roger com uma palmada no ombro, antes de girar-se para receber as saudações dos outros homens e ser apresentado a nossos involuntários anfitriões.
Roger se limitou a assentir, como se não lhe desse importância, mas sua cara adquiriu um esplendor discreto, como se alguém tivesse aceso uma vela em seu interior.
A pequena senhorita Beardsley causou grande comoção; mandou-se chamar uma das mães lactantes, quem imediatamente pôs aos lhe uivem bebê ao peito, depois de me entregar em troca a seu próprio filho. Era um varão de três meses, de temperamento plácido; olhou-me com algum desconcerto, mas se limitou a dirigir para mim umas quantas borbulhas de saliva, sem que parecesse opor-se à situação.
Ato seguido houve alguma confusão, pois todos faziam perguntas e especulavam ao mesmo tempo. Mas Jamie pôs fim ao bulício relatando o acontecido na granja dos Beardsley, embora abreviado até o laconismo. Até a jovem de olhos irritados, a quem reconheci como a inamorata do Isaiah Morton, esqueceu sua dor para escutar, boquiaberta.
-Pobre pequeñuela- disse, observando a recém-nascida-. Assim, ao parecer, não tem pais.
A senhorita Brown arrojou um olhar carrancudo a seu próprio pai; possivelmente pensava que a orfandade tinha suas vantagens.
-O que será dela?- perguntou a senhora Brown, mais prática.
-Ocuparemo-nos de que receba uma boa atenção, querida. Daremo-lhe um lar seguro.- Seu marido lhe apoiou uma mão tranqüilizadora no braço, ao tempo que intercambiava um olhar com seu irmão.
Jamie também o viu; notei que contraía a boca para dizer algo, mas logo se encolheu ligeiramente de ombros e foi falar com o Henry Gallegher e Fergus; seus dois dedos rígidos golpeavam brandamente contra a perna.
A maior das senhoritas Brown se inclinou para mim, disposta a formular outra pergunta, mas o impediu uma súbita rajada de vento ártico que atravessou o grande salão, levantando as peles que cobriam as janelas e orvalhando o ambiente com uma perdigonada de gelo. A senhorita Brown lançou uma pequena exclamação e esqueceu sua curiosidade para correr a sujeitar as coberturas das janelas. Todo mundo abandonou o tema dos Beardsley e a imitou.
O senhor Richard Brown, embora um pouco carrancudo, concedeu-nos outra noite de alojamento. Os milicianos se repartiram entre as casas e os celeiros da aldeia para jantar.
Jamie foi em busca de nossas mantas e provisões; além disso se ocupou de alimentar e albergar aos cavalos. Presumivelmente aproveitaria a oportunidade para dialogar em privado com o Isaiah Morton, se este espreitava ainda na tempestade de neve.
Perguntei-me que pensaria fazer com esse Romeo de montanha, mas não tive muito tempo para refletir. Como começava a anoitecer, vi-me tragada pelo torvelinho de atividade que se desenvolvia em torno do lar, enquanto as mulheres se enfrentavam ao novo desafio de preparar o jantar para quarenta hóspedes inesperados.
Julieta (quer dizer, a jovem senhorita Brown) permanecia em um rincão, carrancuda e sem ajudar. Entretanto se ocupou da pequena Beardsley; a menina dormia já desde fazia momento, mas ela continuava balançando-a e arrulhando-a.
Hiram tinha frio e estava cansado e faminto; como não precisava impressionar a seu harém ausente, deixou-se arranhar a cabeça e as orelhas, e alimentar com fibras de feno. Permitiu-me que entrasse em seu curral para inspecionar o entalado. Eu também estava exausta e faminta, pois não tinha comido nada em todo o dia, salvo um pouco de leite de cabra ao amanhecer. Entre o aroma do guisado e a piscada de luzes e sombras na escuridão, sentia-me enjoada e algo imaterial, como se flutuasse ao meio metro do chão.
-É um velho bom, verdade?- murmurei
depois de passar a tarde em estreito contato com bebês, todos eles em diversos estádios de umidade e pranto, a companhia desse bode irascível me resultava sedativo.
-vai morrer?
Levantei a vista, surpreendida; tinha esquecido a jovem senhorita Brown, abandonada entre as sombras de um rincão. Agora estava de pé junto ao lar, com a menina dos Beardsley em braços, e um olhar carrancudo cravado no Hiram, que tratava de mordiscar o bordo de meu avental.
-Não- disse, enquanto lhe arrancava o tecido da boca-. Não acredito.
Como se chamava? Rebusquei em minha memória, comparando as caras e os nomes das apressadas apresentações. Alicia, isso era. Como não disse nada mais, para manter o diálogo assinalei a quão pequena ela tinha em braços.
-Como está a menina?
-Bem- disse, inquieta. Observou à cabra um segundo mais. de repente os olhos lhe encheram de lágrimas-. Eu preferiria estar morta- disse.
-De verá?- Isso me desconcertou-. Né… pois…
Esfreguei-me a cara com uma mão, tratando de reunir presença de ânimo para me enfrentar ao que acabava de ouvir. Onde estava essa besta que a moça tinha por mãe? Joguei uma olhada à porta, mas não vinha ninguém. Estávamos momentaneamente sozinhas: as mulheres ordenhavam às cabras ou preparavam o jantar; os homens atendiam aos animais.
Saí do curral do Hiram para lhe apoiar uma mão no braço.
-Escuta- disse-lhe em voz baixa-, Isaiah Morton não vale a pena. Sabia que está casado?
Ela abriu muito os olhos. Logo os entreabriu até quase fechá-los, em um súbito emanar de lágrimas. Não, obviamente não sabia.
As lágrimas corriam por suas bochechas até cair na cabeça do bebê. Estendi os braços e agarrei brandamente à criatura; logo, com a mão livre, conduzi-a para o banco.
-CO- como se há…? Quem…?- Gorgoteaba e sorvia pelo nariz, tratando de fazer perguntas e dominar-se, tudo de uma vez. Uma voz de homem gritou algo fora. Ela se secou freneticamente as bochechas com a manga.
-O que como sei? Morton o disse a um dos homens de meu marido. Sua mulher não sei quem é; só sei que vive no Granite Falls.
Dava uns tapinhas à minúsculas costas; a menina arrotou e voltou a relaxar-se, quente seu fôlego sob minha orelha. As mulheres a tinham lavado e lubrificado com azeite; cheirava quase como uma omelete recém feita. Eu mantinha um olho na porta e o outro na Alicia Brown, se por acaso houvesse outro ataque de histeria.
Ela soluçava. depois de um último soluço ficou em silêncio, com a vista cravada no chão.
-Eu desejaria estar morta- sussurrou outra vez, com tal desespero que fixei os olhos nela, sobressaltada. Estava encolhida, com o cabelo murcho sob a boina e os punhos cruzados protectoramente sobre o ventre.
-OH, Meu deus!- exclamei. Dada sua palidez, e as circunstâncias e o modo em que tratava à menina, não era difícil tirar conclusões-. Seus pais sabem?
Olhou-me, mas não se incomodou em perguntar como o tinha descoberto.
-Mamãe e minha tia sim.
Respirava pela boca, com sorbetones intermitentes.
-Me ocorreu que assim papai me permitiria me casar com ele.
Eu nunca tinha pensado que a extorsão fora uma base firme para o matrimônio, mas não parecia bom momento para dizê-lo.
-Hum- murmurei em troca-. E o senhor Morton, sabe?
Ela negou com a cabeça, desconsolada.
-Tem…? Sabe você se sua esposa tiver filhos?
-Não tenho nem idéia.- Agucei o ouvido. Percebia vozes de homem na distância, gastas pelo vento. Ela também. Apertou-me o braço com assombrosa força. Nos olhos pardos, com as pestanas arrepiadas, havia uma expressão de obrigação.
-Ontem à noite ouvi que o senhor MacKenzie conversava com os homens. Diziam que era curadora, senhora Fraser. A gente disse que era você mulher de conjuros. Quanto aos bebês, sabe como…?
-Vem alguém.- Separei-me dela, interrompendo-a antes de que pudesse terminar-. Ouça, agarra à menina. Tenho que… remover o guisado.
Pu-lhe à pequena nos braços, sem nenhuma cerimônia, e me levantei. Quando se abriu a porta, dando passo a uma rajada de vento e neve e a um numeroso grupo de homens, eu estava de pé ante o lar, com a colher na mão, os olhos fixos no caldeirão e minha mente borbulhando tão vigorosamente como seu conteúdo.
Embora ela não tivesse tido tempo para me pedir isso explicitamente, eu sabia o que estava a ponto de dizer. “ Mulher de conjuros” , tinha-me chamado. Queria que a ajudasse a desfazer-se da criatura, quase com certeza. Como?, perguntei-me. Que mulher podia pensar algo assim com um bebê palpitante nos braços, que ainda não levava um dia fora do ventre?
Era lógico que estivesse afligida e procurasse freneticamente a maneira de escapar. “ lhe demos um pouco de tempo para recuperar-se” , pensei, jogando uma olhada ao banco, onde as sombras a ocultavam. “ Deveria falar com sua mãe, com sua tia…”
Jamie apareceu súbitamente a meu lado, esfregando-as mãos avermelhadas sobre o fogo; a neve se fundia nas dobras de sua roupa. O via extremamente alegre, a pesar do resfriado, as complicações amorosas do Isaiah Morton e a tormenta.
-Como isso marcha, Sassenach?- perguntou com voz rouca.
E sem aguardar resposta, tirou-me a colher e, me rodeando com um braço duro e frio me levantou em velo para me dar um quente beijo, quanto mais surpreendente pela neve que cobria sua barba ao meio crescer.
Ao emergir um pouco aturdida desse estimulante abraço, caí na conta de que a atitude geral dos homens era igualmente jubilosa. Entre os uivos e os bramidos habituais dos homens que se sente eufóricos, ouviam-se palmadas nas costas, e ruído de botas e de casacos que se tiravam.
-O que acontece?- perguntei, surpreendida.
Para minha estupefação, no centro da reunião descobri ao Joseph Wemyss. Tinha a ponta do nariz avermelhado de frio e os homens lhe aplaudiam as costas para felicitá-lo, com o risco de jogá-lo no chão.
Jamie me dedicou um sorriso luminoso, brilhantes os dentes na congelada espessura da cara, e me pôs na mão uma folha de papel úmido, que ainda conservava fragmentos de lacre vermelho.
A tinta se correu ao molhar-se, mas pude ler o mais importante. Ao saber que o general Waddell estava em marcha, os reguladores tinham decidido que convinha dispersar-se. E por ordem do governados Tyron, a tropa devia retirar-se.
-OH, que bem!- exclamei.
E rodeei com os braços ao Jamie para lhe devolver o beijo, apesar da neve e o gelo.
Encantados com a notícia da retirada, os milicianos aproveitaram o mau tempo para celebrá-la. Os Brown, igualmente encantados por não ter que incorporar-se à tropa, somaram-se à celebração, a que contribuíram com três grandes tonéis da melhor cerveja da Thomasina e vinte e cinco litros de cidra alcoólica… na metade de seu preço.
Quando terminou o jantar, sentei-me na esquina de um banco, com a menina dos Beardsley nos braços, médio fundida pelo cansaço; só me mantinha vertical o fato de que não houvesse ainda um lugar onde deitar-se.
Alicia Brown não tinha tido mais oportunidades de falar comigo… e eu tampouco tive nenhuma de falar com sua mãe ou com sua tia. A moça, sentada junto ao curral do Hiram, alimentava-o metodicamente com cascas de pão restantes do jantar; na cara lhe tinham fixado umas linhas de sombria angústia.
A pedido geral, Roger cantava balidas francesas com voz suave e afinada. diante de mim, flutuava a cara de uma jovem, com as sobrancelhas arqueadas em um gesto de pergunta. Disse algo que se perdeu no falatório das vozes; logo alargou brandamente os braços para agarrar à menina.
Claro. chamava-se Jemima. Era a jovem mãe que se ofereceu a amamentá-la. Levantei-me para lhe deixar o sítio no banco e ela a pôs imediatamente ao peito.
Os milicianos, felizes ante a perspectiva da iminente volta a casa, beberam-se quase tudo o que era potável no Brownsville e se esforçavam por consumir o que ficava. Mas a festa já começava a dissolver-se; alguns homens se retiravam, cambaleando-se, a seus frios leitos em celeiros e estábulos; outros se enrolavam em mantas junto ao fogo, agradecidos.
Vi que Jamie jogava a cabeça para trás em um enorme bocejo. levantou-se, tratando de sacudir o estupor da comida e a cerveja; então me viu junto ao lar. Obviamente estava tão cansado como eu, se não igualmente enjoado, mas sua profunda satisfação era evidente na tranqüilidade com que desperezó seus largos membros.
-vou ver como estão os cavalos- disse-me, com a voz enrouquecida pela gripe e o excesso de bate-papo-. Quer dar um passeio à luz da lua, Sassenach?
Já não nevava e a lua brilhava através de uma bruma de nuvens que se foram desvanecendo. O ar congelava os pulmões; ainda frio e inquieto pelo fantasma da tormenta recente, ajudou-me a me limpar a cabeça.
Com o deleite infantil de ser primeira em marcar essa neve virginal, caminhava com cuidado, levantando bem os pés para deixar rastros nítidos; logo me voltava para as admirar.
-Eu gosto de te observar, Sassenach. Sobre tudo em sociedade. Quando ri, seus dentes têm um brilho encantador- disse-me Jamie carinhosamente.
-Adulador- respondi-lhe. Mas me sentia lisonjeada, sobre tudo considerando que levava vários dias sem me lavar sequer a cara.
Era uma neve seca, que se comprimia sob os pés com um leve rangido. A respiração do Jamie seguia sendo rouca e trabalhosa, mas tinha desaparecido o matraqueio do peito e tinha a pele fria.
-Amanhã teremos bom tempo- disse ele, levantando a vista à lua brumosa-. Vê o anel?
Era difícil não vê-lo: um imenso círculo de luz difusa que circundava a lua, cobrindo a totalidade do céu oriental. Através do resplendor se viam vagamente as estrelas. No curso de uma hora a noite seria luminosa e clara.
-Sim. Isso significa que manhã podemos ir a casa?
-Sim. Suponho que voltará a haver barro outra vez. nota-se a mudança no ar; agora faz frio, mas a neve se fundirá assim que quente o sol.
Talvez, mas no momento fazia bastante frio. O refúgio dos cavalos tinha sido reforçado com mais ramos de pinheiro e disco; parecia uma pequena colina desigual que se elevasse do chão, densamente coberta de neve. Mas já apareciam algumas mancha escuras, derretidas pelo fôlego dos cavalos que despediam volutas de vapor, apenas visíveis. Tudo estava em silêncio, com uma evidente sensação de dormitada felicidade.
-Se Morton estiver aqui, tem que estar cômodo- comentei.
-Não acredito. Assim que chegou Wemyss com a nota mandei ao Fergus a lhe dizer que a tropa tinha sido disolvida.
-Sim, mas se eu fosse Isaiah Morton, não sei se teria partido diretamente a casa em meio de uma cegadora tormenta de neve- disse, dúbia.
-Acredito que o teria feito, se tivesse a todos os Brown do Brownsville te buscando com uma arma.
Mas deteve seus passos e gritou um pouco para chamar o Isaiah, com voz rouca.
Como do improvisado estábulo não surgisse resposta alguma, voltou a me agarrar do braço para retornar à casa. A neve já não era virginal; tinha sido pisoteada e revolta por muitos pés, quando os milicianos se dispersaram para suas camas. Roger já não cantava, mas ainda se ouviam vozes dentro; não todo mundo estava disposto a retirar-se.
Sem muitas vontades de voltar imediatamente para essa atmosfera de fumaça e ruído, continuamos caminhando; rodeamos a casa e o estábulo, desfrutando da mútua cercania e do silêncio nevado. Ao retornar, vi que a porta do abrigo estava entreabrida e corredor ao vento. A mostrei ao Jamie.
Ele apareceu a cabeça dentro, para verificar que tudo estivesse em ordem; logo, em vez de fechar a porta, agarrou-me do braço para me arrastar ao interior do abrigo.
-antes de entrar, quero te fazer uma pergunta, Sassenach- disse.
Tinha deixado a porta completamente aberta, de modo que a luz da lua entrava em torrentes, iluminando os presuntos pendurados, os tonéis e as bolsas de tecido embreado que havia no abrigo. Embora dentro fazia frio, a ausência de vento me fez entrar em calor; joguei o capuz para trás.
-O que?- perguntei, com leve curiosidade.
-Quê-la, Sassenach?- perguntou ele, em voz baixa. Seu rosto era um ovalóide claro, esfumado pelas brumas de seu fôlego.
-A quem?- perguntei, sobressaltada.
Ele respondeu com um grunhido de diversão.
-À menina, é obvio.
É obvio.
-Se quero ficar com ela, diz?- perguntei, precavida-. Adotá-la?
A idéia não me tinha passado pela cabeça mas devia estar espreitando no subconsciente, pois a pergunta não me surpreendeu. Uma vez formulada, a idéia floresceu plenamente.
Tinha os peitos sensíveis da manhã, como se estivessem cheios; senti na memória o puxão exigente da pequena. Embora eu não pudesse amamentá-la, Brianna sim, ou Marsali. E se não, podia alimentar-se de leite de vaca ou de cabra.
de repente caí na conta de que me estava massageando brandamente um peito. Detive-me o momento, mas Jamie tinha visto o gesto e se aproximou para me abraçar. Reclinei a bochecha contra o tecido áspero e frio de sua camisa de caçador.
-Quê-la você?- perguntei, sem saber se temia sua resposta ou se a esperava com ansiedade.
Ele se encolheu de ombros.
-A casa é grande, Sassenach- disse-. Bastante grande.
Não era uma declaração ressonante; entretanto eu sabia que era um compromisso, por indiferente que soasse. Ele tinha recolhido ao Fergus em um bordel de Paris, três minutos depois de havê-lo conhecido. Se adotava à menina, trataria-a como a uma filha. Quanto a amá-la… Ninguém pode garantir o amor. Nem ele… nem eu.
Jamie tinha notado meu tom dúbio.
-Vi-te com a pequena, Sassenach. Sempre é muito tenra, mas ao verte com a menina sob seu manto… te recordei grávida do Faith.
Contive o fôlego. Surpreendeu-me ouvi-lo pronunciar assim o nome de nossa primogênita, como se nada. Estranha vez falávamos dela; sua morte tinha ficado tão longe no passado que às vezes me parecia irreal; entretanto, a ferida de sua perda nos tinha deixado a ambos os tremendas cicatrizes.
Entretanto, Faith não era irreal absolutamente.
Estava a meu lado cada vez que tocava a um bebê. E essa criatura, essa órfã sem nome, tão pequena e frágil, com a pele tão transparente que se viam com claridade os fios azuis das veias… Sim, os ecos do Faith eram potentes. Mesmo assim, esta não era minha filha. Mas podia sê-lo; isso era o que Jamie dizia.
Era acaso um presente para nós? Ou mas bem uma responsabilidade?
-Crie que deveríamos ficar a perguntei-lhe com cautela-. Quer dizer… o que poderia lhe passar se não?
Jamie soprou um pouco e deixou cair o braço para apoiar-se contra a parede da casa. Logo se limpou o nariz, com a cabeça inclinada para o vago murmúrio de vozes que penetrava pelas frestas entre os lenhos.
-Cuidarão-a bem, Sassenach. Receberá uma herança, Recorda?
Esse aspecto do assunto não me tinha ocorrido.
-Está seguro?- duvidei-. É certo que os Beardsley desapareceram, mas como é ilegítima…
Ele negou com a cabeça.
-Não. É legítima.
-Mas não pode ser! Embora ninguém saiba ainda, salvo você e eu, seu pai…
-Para a lei, seu pai foi Aaron Beardsley- informou-me-. Segundo as leis inglesas, o menino nascido durante o vínculo matrimonial é filho e herdeiro legal do marido, até se se tem a certeza de que a mãe cometeu adultério. E essa mulher disse que Beardsley se casou com ela, não?
Notei que estava muito seguro sobre esse aspecto da lei inglesa. E compreendi (a tempo, graças a Deus, antes de dizer nada) por que estava tão seguro.
William, seu filho varão. Tinha sido concebido na Inglaterra e, por isso todo mundo ali sabia (excetuando a lorde John Grei), era supostamente o nono conde do Ellesmere. Por isso Jamie dizia, o condado era legalmente dele, fora ou não filho do oitavo conde. “ A lei é muito estúpida” , pensei.
-Compreendo- disse lentamente-. Assim que a pequena sem nome herdará todas as posses do Beardsley, mesmo que tire o chapéu que não pode ser filha dela. É… reconfortante.
Ele olhou aos olhos durante um momento. Logo baixou a vista.
-Sim- disse em voz baixa-. Reconfortante.
Possivelmente houve em seu tom um sotaque de amargura, mas desapareceu com uma tosse e um pigarro.
-Já vê que não corre perigo de que a maltratem- disse, despreocupadamente-. A Corte dos Órfãos entregará a propriedade do Beardsley, com cabras e tudo, a quem quer que seja seu tutor, para ser usada em benefício dela.
-E de seus tutores- disse, recordando súbitamente o olhar que Richard Brown tinha intercambiado com seu irmão antes de dizer a sua esposa que a menina seria “ bem cuidada” . Me esfreguei o nariz, que se tinha intumescido na ponta.
-Assim que os Brown aceitariam encantados.
-OH, sim- afirmou-. Conheciam o Beardsley e sabem bem o que ela vale. Em realidade, apartar a deles seria delicado. Mas se a quer, Sassenach, terá-a. Prometo-lhe isso.
Toda aquela conversação me estava provocando uma sensação muito estranha, um pouco parecido ao pânico. Era como se uma mão invisível me estivesse empurrando para o bordo de um precipício. Ficava por ver se era um abismo perigoso ou, simplesmente, um lugar para apoiar o pé e ver um panorama mais amplo.
Vi na lembrança a suave cabeça do bebê e as orelhas, finas como papel de seda, pequenas e perfeitas como conchitas, suaves redemoinhos rosados que se esfumavam em azulados tinturas ultraterrenos. Por ganhar um pouco de tempo para organizar meus pensamentos, perguntei:
-por que disse que seria delicado apartar a dos Brown? Não têm nenhum direito sobre ela, verdade?
-Não, mas nenhum deles matou a seu pai.
-O que…? Ah.
Era uma armadilha que eu não tinha tido em conta: a possibilidade de que acusassem ao Jamie de matar ao Beardsley para apoderar-se da granja e os bens do comerciante, mediante a adoção da órfã. Traguei saliva; no fundo da garganta tinha um vago gosto a bílis.
-Mas ninguém sabe como morreu Aaron Beardsley, exceto nós- assinalei.
Jamie só tinha contado que o mercado tinha sofrido uma apoplexia, a conseqüência da qual morreu, omitindo que ele tinha sido o anjo liberador.
-Nós e a senhora Beardsley- disse, com uma leve ironia-. E se ela retornasse e me acusasse de assassinar a sua esposa? Negá-lo seria difícil. E eu teria a sua filha.
Não lhe perguntei que razões podia ter para fazer algo assim; por isso já tinha feito, era óbvio que Fanny Beardsley era capaz de algo.
-Não retornará- disse.
face às dúvidas que todo me inspirava, disso estava segura. Fanny Beardsley se foi para sempre.
-Até se o fizesse- prossegui, apartando minha visão da neve caindo em um bosque deserto e um vulto envolto junto à fogueira apagada-. Eu estive ali. Poderia declarar o que aconteceu.
-Se lhe permitissem isso- assinalou ele-. E não o farão. É uma mulher casada, Sassenach; não pode emprestar testemunho ante um tribunal, embora não fosse minha mulher.
Isso me deteve em seco. Ao viver em sítios tão apartados, estranha vez me tropeçava com a mais revoltante das injustiças legais da época, mas conhecia algumas. Jamie tinha razão. De fato, por estar casada, eu não tinha nenhum direito legal. E o irônico era que Fanny Beardsley sim os tinha, posto que era viúva. Ela poderia atestar ante um tribunal, se assim o desejava.
-meu deus!- disse com muito sentimento.
Jamie riu pelo baixo. Logo tossiu.
Lancei um bufo e uma satisfatória explosão de vapor branco. Nesses momentos me teria gostado de ser um dragão; teria sido um grande prazer lançar chamas e enxofre contra várias pessoas, começando pela Fanny Beardsley. Em troca suspirei; meu inofensivo fôlego branco se desvaneceu na penumbra do abrigo.
-Agora compreendo por que disse que seria delicado- murmurei.
-Mas não impossível.- Acariciou-me a bochecha com uma mão grande e fria. Seus olhos procuraram meus, escuros e apaixonados-. Se quiser a essa menina, Claire, receberei-a. Já enfrentaremos ao que sobrevenha.
Se eu a queria. Senti o peso leve da menina dormida contra meu peito. Tinha esquecido a embriaguez da maternidade; tinha afastado a lembrança da exaltação, o esgotamento, o pânico, o deleite. Mas a proximidade do Germain, Jemmy e Joan me recordavam isso vividamente.
-Uma última pergunta- disse. Agarrei-lhe a mão e entrelacei seus dedos com meus-. O pai da pequena não era branco. Que conseqüências poderia ter isso para ela?
Eu sabia quais seriam as conseqüências na cidade de Boston de 1960, mas estávamos em um sítio muito diferente; embora em alguns aspectos esta sociedade era mais rígida e oficialmente menos esclarecida, em outros era, extrañamente, muito mais tolerante.
Jamie refletiu atentamente; os dedos rígidos da mão direita marcavam um silencioso ritmo de contemplação em um barril de porco salgado.
-Acredito que não haverá problemas- disse ao fim-. Não é possível que a façam pulseira. Até se se pudesse provar que seu pai foi um escravo (e não há prova alguma) todo menino recebe a condição de sua mãe. O menino nascido de mulher livre é livre; o menino nascido de pulseira é escravo. E essa horrível mulher não era pulseira.
-Oficialmente não, ao menos- disse, pensando nas marcas da porta-. Mas além da escravidão?
Jamie se ergueu com um suspiro.
-Acredito que não, aqui não. É possível que nisso Charleston tivesse importância, sobre tudo se ela alternasse em sociedade. Mas em lugares apartados…
Encolheu-se de ombros. Em realidade, como se encontravam a tão pouca distância da Linha do Tratado havia muitos meninos mestiços. Não era nada estranho que os habitantes se casassem com mulheres cherokees. No campo, os meninos nascidos de relações entre brancos e negros eram menos freqüente, mas na costa também abundavam. Embora a maioria fossem escravos, ali estavam.
E a pequena senhorita Beardsley não alternaria em sociedade se é que a deixávamos com os Brown. Ali suas possíveis riquezas importariam muito mais que a cor de sua pele. Se vivia conosco talvez fora diferente, pois Jamie era um senhor e o seria sempre, quaisquer fossem seus ganhos.
-Essa não foi minha última pergunta- disse. Apoiei uma mão sobre a sua, fria contra minha bochecha-. A última é: por que me sugere isso?
-Né… pois me ocorreu…- Apartou a vista-. O que me disse quando retornamos a casa da congregação. Que poderia ter escolhido a esterilidade segura, mas não o fez por mim. Pensei…
Interrompeu-se outra vez para esfregar a ponte do nariz com um nódulo da mão livre. Logo aspirou fundo.
-Por mim- disse com firmeza, dirigindo-se ao ar como se fora um tribunal-. Não quero que tenha outro filho, Sassenach. Não me arriscaria a te perder- disse, com voz súbitamente rouca-. Nem por dez meninos. Tenho filhos, sobrinhos e netos. São suficientes.- Falava com suavidade, me olhando aos olhos-. Mas não tenho mais vida que você, Claire.
depois de tragar saliva audiblemente continuou, com os olhos fixos em meus.
-Entretanto… pensei que se desejava outro filho… talvez pudesse te dar um.
As lágrimas me empanaram os olhos. Fazia frio no abrigo e tínhamos os dedos rígidos. Girei minha mão na sua para estreitá-la com força. Enquanto ele falava minha mente imaginava possibilidades, dificuldades, bênções. Não precisava pensar mais, pois a decisão se tomou por si só. Uma criatura era uma tentação da carne e do espírito. Eu conhecia a bem-aventurança dessa ilimitada unidade, assim como a alegria agridoce de ver que essa unidade se esfumava segundo o filho tirava o chapéu a si mesmo e procurava distância.
Mas tinha cruzado alguma linha sutil. Já porque tinha nascido com alguma cota secreta incorporada a minha carne, já porque sentia que agora devia lealdade total a outra pessoa, soube. Como mãe gozava a ligeireza do esforço realizado, da honra satisfeita. Da missão cumprida.
Recostei a frente contra seu peito.
-Não. Disse-lhe brandamente ao tecido escuro que lhe cobria o coração-. Mas te amo, Jamie.
Passamos um momento abraçados, escutando o rumor de vozes através da parede que separava a casa do abrigo, mas calados e contentes com essa paz. Estávamos muito exaustos para fazer o esforço de entrar e não queríamos abandonar a tranqüilidade de nosso tosco refúgio.
-Logo terá que entrar- murmurei ao fim-. De outro modo cairemos aqui mesmo e pela manhã nos encontrassem com os presuntos.
Um vago zumbido de risada lhe correu pelo peito, mas antes de que pudesse responder uma sombra caiu sobre nós. Alguém estava de pé no vão da porta, bloqueando o claro de lua.
Jamie levantou bruscamente a cabeça e esticou as mãos contra meus ombros, mas logo deixou escapar o fôlego e afrouxou sua pressão; então pude dar um passo atrás e me voltar.
-Morton- disse meu marido, em tom de larga paciência-. No nome de Cristo, o que faz aqui?
Isaiah Morton não tinha pinta de audaz sedutor; claro que tudo é questão de gostos. Era algo mais baixo que eu, mas largo de ombros, com torso de tonel e pernas um pouco curvadas. Isso sim, tinha uns olhos muito bonitos e um bom arbusto de cabelo encaracolado, embora na penumbra do abrigo não pude distinguir sua cor. Calculei que teria uns vinte e dois anos.
-Meu coronel- disse em um sussurro-. Senhora.- Dedicou-me uma breve reverencia-. Não era minha intenção assustá-la, senhora. Mas ouvi a voz do coronel e me pareceu melhor aproveitar a oportunidade, por assim dizê-lo.
-Por assim dizê-lo- repetiu.
-Sim, senhor. Não sabia como fazer para que Ally saísse; estava rodeando a casa uma vez mais quando a escutei conversar com sua senhora.
Fez-me outra reverência, como por reflexo.
-Morton- repetiu Jamie brandamente, mas com um pouco de aço na voz-, por que não te foste? Não te disse Fergus que a tropa se desfeito?
-OH, sim que me disse isso, senhor.- Esta vez se inclinou ante o Jamie, algo nervoso-. Mas não podia partir sem ver o Ally, senhor.
Pigarreei. Meu marido, com um suspiro, fez-me um sinal afirmativa.
-Né… Temo que a senhorita Brown já sabe o de seu compromisso anterior- disse delicadamente.
-Né?- Isaiah pareceu não compreender. Jamie lançou uma exclamação irritada.
-Quer dizer: a moça se inteirou de que já tem esposa- disse, brusco-. E se seu pai não te mata de um balaço assim que te veja, é possível que ela lhe chave uma adaga no coração. E se nenhum dos dois tem êxito- prosseguiu, erguendo-se em toda sua ameaçadora estatura-, sinto-me inclinado a me ocupar disso eu mesmo, a emano poda. Que classe de homem se correia com uma moça e a deixa grávida, se não ter direito a lhe dar seu sobrenome?
Até com tão pouca luz foi evidente que Morton empalidecia.
-Grávida?
-Assim é- assegurei fríamente.
-Assim é- repetiu Jamie-. E agora, pequeno bígamo, será melhor que vá antes de que…
Interrompeu-se abruptamente, pois Isaiah tirou de debaixo do capote uma pistola. Ao estar tão perto, vi que estava carregada e martelada.
-Sinto-o muitíssimo, senhor- disse em tom de desculpa. E se umedeceu os lábios, nos olhando a ambos-. Não quereria lhe fazer nenhum dano, senhor, e muito menos a sua senhora. Mas verá, preciso ver o Ally.
Suas facções gordinhas se afirmaram um pouco, embora seus lábios pareciam inclinados a tremer. Mesmo assim apontava ao Jamie com decisão.
-Senhora- disse-me-, se fosse você tão amável, quereria entrar na casa e fazer que Ally saia? Nós… o coronel e eu esperaremos aqui.
Eu não tinha tido tempo de sentir medo. E ainda não o tinha, embora estava muda de estupefação. Jamie fechou os olhos um instante, como pedindo fortalece. Logo os abriu com um suspiro; seu fôlego foi uma nuvem branca no ar frio.
-Baixa isso, idiota- disse, quase com amabilidade-. Bem sabe que não vais disparar me. E eu também sei.
Isaiah apertou de uma vez os lábios e o dedo que apoiava no gatilho. Eu contive o fôlego. Jamie continuava olhando-o, com uma mescla de censura e piedade. Por fim o dedo se afrouxou e o canhão da pistola apontou para baixo, junto com os olhos do Isaiah.
-É que preciso ver o Ally, coronel- disse brandamente.
Aspirei fundo e olhei ao Jamie. depois de uma breve vacilação, ele assentiu.
-Está bem, Sassenach. Sei ardilosa, né?
Fiz um gesto afirmativo e me voltei para entrar subrepticiamente na casa, enquanto Jamie murmurava algo em gaélico a minhas costas; o sentido geral era que esse homem tinha perdido a cabeça. Eu não podia assegurar o contrário, embora também tinha percebido a força de sua petição. Mas se por acaso algum dos Brown descobria o encontro, o preço seria muito caro… e não seria Morton o único que o pagaria.
depois de cruzar o salão, pisando com cuidado entre os corpos tendidos, joguei uma olhada à cama posta contra a parede. Richard Brown e sua esposa dormiam profundamente nela.
Só havia um sítio onde Alicia Brown podia estar; abri tão silenciosamente como pude a porta que conduzia à escada do desvão. Ao parecer, um dos homens tratava de que Hiram bebesse da jarra, e o estava obtendo.
Em contraste com a habitação de abaixo, no desvão fazia bastante frio. Isto se devia a que o ventanuco estava aberto; tinha entrado um montão de neve, junto com um vento glacial. Vi a Alicia Brown debaixo da janela, tendida no pequeno montículo de neve, completamente nua.
Aproximei-me para olhá-la. Jazia de costas, rígida e com os braços cruzados contra o peito, tremendo. Tinha os olhos fechados, franzidos em feroz concentração. Obviamente, os ruídos de abaixo não lhe tinham permitido ouvir minhas pegadas.
-No nome de Deus, o que faz?- perguntei cortesmente.
Ela abriu os olhos com um pequeno chiado, que afogou com a mão. Logo se sentou abruptamente, com a vista cravada em mim.
-Sei de muitas maneiras originais de provocar o aborto- disse, enquanto agarrava um edredom para tornar-lhe sobre os ombros-, mas morrer congelada não serve.
-Se m-morro não terei que ab-abortar- disse, com certa lógica. Mesmo assim se ateu o edredom aos ombros, com um toco castanholas de dentes.
-Tampouco é o melhor meio de suicidarse, sem ânimo de criticar. De qualquer modo, deixa-o para outro momento. O senhor Morton está no abrigo e se nega a partir para menos que você baixe a falar com ele. Será melhor que te levante e ponha algo.
Ela abriu muito os olhos e ficou de pé; tinha os músculos tão rígidos do frio que se cambaleou torpemente. Se alguém reparava nela, ao vê-la só daria por sentado que ia a letrina. nos ver juntas, em troca, podia provocar algum comentário.
Já só no desvão às escuras, rodeei-me o capote para esperar junto ao ventanuco os minutos necessários antes de baixar também. Ouvi o suave golpe da porta ao fechar-se, mas desde esse ângulo não via a Alicia. A julgar pela maneira em que tinha respondido a minha convocatória, não tinha intenções de apunhalar ao Isaiah no coração, mas só Deus sabia o que pensavam fazer esses dois.
Movi-me abruptamente, arranco de minha abstração por um repentino movimento, ali abaixo. Silenciosas como renas em fuga, duas silhuetas na sombra corriam da mão através do campo nevado; os capotes os envolviam como nuvens. Vacilaram um momento junto ao refúgio dos cavalos; logo desapareceram no interior.
Inclinei-me sobre o batente, sem emprestar atenção aos cristais de neve em que apoiava as Palmas. No ar limpo me chegou claramente o ruído dos cavalos ao despertar: breves relinchos e tamborilar de cascos. O bulício de abaixo se feito mais leve; um claro e potente “ B-né-né” subiu pelas pranchas do chão, como se Hiram percebesse o desassossego dos cavalos.
Onde estava Jamie? Apareci, com o vento me inflando o capuz e arrojando uma garoa de gelo contra minha bochecha.
Ali estava: uma silhueta alta e escura que cruzava a neve para o refúgio; mas caminhava com lentidão, levantando nuvens de gelo em pó. Que…? Então caí na conta de que seguia os rastros dos amantes, as pisoteando deliberadamente para apagar toda pista que pudesse contar tudo com claridade a quem queria rastreá-los.
de repente apareceu um buraco no refúgio: uma parte da parede levantada com ramos caiu a terra. Nuvens de vapor rodaram pelo ar. Logo emergiu um cavalo carregado com dois cavaleiros; partiu para o oeste, urgido do passo ao trote, logo ao trote comprido. A neve não era profunda: apenas oito, dez centímetros. Os cascos do animal deixaram um nítido rastro escuro caminho abaixo.
Do refúgio saiu um relincho penetrante, seguido por outro. De abaixo me chegaram exclamações de alarme, ruídos de pegadas e golpes secos: os homens abandonavam suas mantas e agarravam suas armas. Jamie tinha desaparecido.
De imediata os cavalos saíram violentamente do refúgio, depois de derrubar a parede, pisoteando os ramos quedas. A bufos, relinchos, patadas e trancos, lançaram-se ao caminho em um caos de crinas ao ar e olhos exagerados. O último saltou do refúgio para unir-se aos fugitivos, agitando a cauda para apartar a vara que açoitava sua garupa.
Jamie arrojou longe essa vara e voltou para interior, justo no instante em que as portas da casa se abriam de par em par, vertendo sobre a cena uma pálida luz de ouro.
Aproveitei a comoção para baixar correndo, sem que ninguém me visse. Todo mundo estava fora, até a senhora Brown, com gorro de dormir e tudo. Hiram se bamboleava; quando passei baliu de uma forma ébria, com forte aroma de cerveja, úmidos e protuberantes de cordialidade os olhos amarelos.
Fora, na estrada, homens ao meio vestir corriam de um lado a outro e agitavam os braços. Em meio dessa multidão distingui ao Jamie, que era o que mais gesticulava. Entre as perguntas e os comentários nervosos, ouvi alguns fragmentos: “ … enfeitiçados” , “ … jaguar?” , “ … do demônio!” e coisas parecidas.
depois de algumas voltas e discussões incoerentes, decidiu-se por unanimidade que os cavalos retornariam por si só. Muitos deles estavam maneados e não poderiam chegar muito longe; além disso, a neve se desprendia das árvores em véus de gelo formado redemoinhos; fazia frio, o vento introduzia seus dedos gelados por qualquer abertura da roupa.
-Ficariam fora em uma noite assim?- inquiriu Roger, muito razoável.
Decidiu-se que ninguém em seu são julgamento o faria. E como os cavalos são, se não pessoas cordas, ao menos bestas sensatas, o grupo voltou para interior da casa, entre rezongos e estremecimentos, já perdido o calor do entusiasmo.
Entre os últimos estava Jamie, que se voltou para a casa e me viu de pé no alpendre. Tinha o cabelo solto e a luz que saía pela porta lhe iluminava como uma tocha. Buscou-me os olhos e pôs os seus em branco, com um imperceptível encolhimento de ombros.
Levei-me os dedos aos lábios frios para lhe enviar um pequeno beijo gelado.
O que teria feito você?- perguntou Brianna. E se girou com cuidado na estreita cama do senhor Wemyss, para apoiar o queixo no ombro do Roger, e estar mais cômoda.
-O que teria feito com respeito ao que?- Sem frio pela primeira vez em várias semanas, satisfeito depois de uma boa comida da senhora Bug e de ter alcançado por fim o nirvana depois de uma hora de intimidade com sua esposa, Roger se sentia gratamente dormitado e alheio a tudo.
-Com respeito ao Isaiah Morton e Alicia Brown.
Ele bocejou até quase desconjuntá-la mandíbula e se acomodou melhor; o colchão de barbas de milho sussurrou sonoramente. O que acabavam de fazer devia haver-se ouvido em toda a casa, mas em realidade não lhe importava. Em sua honra, Bree se tinha lavado o cabelo, que caía em ondas sobre seu peito, com um brilho sedoso a luz mortiça do lar. Ainda não tinha anoitecido, mas as persianas fechadas brindavam a agradável ilusão de estar dentro de uma pequena cova.
-Não sei. Quão mesmo seu pai, suponho. O que outra coisa se podia fazer? Seu cabelo cheira de maravilha.- Alisou um cacho com seu dedo para admirar o brilho.
-Obrigado. usei isso que prepara mamãe, com azeite de noz e malmequer. Mas o que me diz da pobre algema que Morton tinha no Granite Falls?
-O que posso te dizer dela? Jamie não podia obrigá-lo a reunir-se com ela… até caso que ela queria recebê-lo- acrescentou, com lógica-. Quanto à moça, Alicia, estava mais que disposta. Seu pai não podia apregoar que Morton ia fugir se com ela, a não ser que o quisesse morto. Se os Brown o tivessem descoberto ali, o teriam matado no ato para cravar sua pele na porta do celeiro.
Disse-o com segurança, pois recordava as pistolas com que o tinham recebido no Brownsville. afundou-se de novo no travesseiro.
-Acredito que, dadas as circunstâncias, o melhor foi brindar aos jovens amantes a oportunidade de ficar a salvo- disse-. E assim o fizeram.
Brianna suspirou, lhe arrepiando gratamente o pêlo do peito com seu fôlego. Logo levantou a cabeça olhando com interesse.
-O que acontece? Ainda tenho algo sujo?- Roger se tinha lavado, mas depressa, desejoso de comer e mais ainda de ir à cama.
-Não, mas eu gosto quando te põe a pele de galinha. Te arrepia todo o cabelo do peito. E os bicos da mamadeira, também.
Tocou ligeiramente com a unha um dos objetos em questão; para seu contente, outra quebra de onda de erizamiento cruzou o peito do Roger. Ele arqueou um poquito as costas e voltou a relaxar-se. Não: logo teria que baixar a atender as tarefas vespertinas; já tinha ouvido sair ao Jamie.
Era hora de trocar de tema. Aspirou fundo e levantou a cabeça do travesseiro, farejando com interesse o rico aroma que se filtrava da cozinha, entre as pranchas do chão.
-O que estão cozinhando?
-Ganso. Vários. Uma dúzia.
-Que manjar- disse, enquanto deslizava lentamente uma mão por suas costas; o fino pêlo dourado que a cobria era invisível, salvo quando as velas a iluminavam desde atrás, como nesse momento-. O que celebramos? Nossa volta?
Bree apartou a cabeça de seu peito e lhe cravou o que ele, em privado, denominava Um Olhar.
-O Natal- disse.
-O que?- Roger, atônito, tratou de calcular os dias, mas os acontecimentos dessas três semanas tinham apagado por completo seu calendário mental-. Quando?
-Amanhã, idiota- replicou ela, com exagerada paciência.
depois de lhe fazer algo impronunciablemente erótico a seu bico da mamadeira, incorporou-se com um sussurro de cobertores, deixando-o privado da bendita calidez e exposto às gélidas correntes de ar.
-Não viu ao entrar os ramos verdes que há abaixo? Lizzie e eu mandamos aos pequenos monstros dos Chisholm em busca de ramos de pinheiro; levamos três dias fazendo grinaldas.
As palavras soavam um pouco apagadas, pois se estava pondo a camisa mas lhe pareceu que o tom não era de aborrecimento, mas sim de incredulidade. Oxalá.
-Ao entrar só vi a ti.
Era verdade, e ao parecer o melhor era a franqueza, pois ela tirou a cabeça pelo pescoço da camisa e lhe cravou um olhar intenso, que se transformou em lento sorriso ao ver a evidente sinceridade estampadas em suas facções.
Aproximou-se da cama para rodeá-lo com seus braços, lhe envolvendo a cabeça em uma nuvem de malmequeres e um linho suave como a manteiga e… leite. Ah, claro. O menino teria que comer muito em breve. Resignado, apoiou os braços na curva desses quadris e descansou a cabeça entre seus peitos; esses breves momentos eram sua parca ração de tanta abundância.
-Perdoa- disse, afogando as palavras em seu calidez-. Tinha-o esquecido por completo. Deveria ter trazido algo para ti e para o Jem.
-Que por exemplo? Uma parte de pele do Isaiah Morton?
Entre risadas, endireitou-se para arrumar o cabelo. Tinha posto o bracelete que lhe tinha agradável outra Véspera de natal; ao levantar o braço, a luz do lar arrancou brilhos da prata.
-Sim. Para fazer com ele a coberta de um livro. Ou um par de botitas para o Jem.
O rodeio tinha sido larga; homens e animais desdenhavam o cansaço, desejosos de chegar a casa. Ele estava exausto; o melhor presente que poderiam lhe fazer seria voltar para a cama com ela, apertar-se a seu calor e deixar-se levar para as acolhedoras a Honduras do sonho profundo e as fantasias amorosas. Mas o dever o chamava. incorporou-se com uma piscada e um bocejo.
-Os gansos são então para o jantar de esta noite?- perguntou. Em algum lugar devia ter uma camisa limpa, mas, como os Chisholm ocupavam sua cabana, e Bree e Jem se alojaram provisoriamente no dormitório dos Wemyss, ele não sabia onde estavam suas coisas. De qualquer modo, não tinha sentido ficar algo limpo só para ir trabalhar ao estábulo e alimentar aos cavalos. barbearia-se e se trocaria antes de jantar.
-A senhora Bug está assando fora meio porco para a comida de amanhã. Ontem, eu cacei esses gansos e ela decidiu aproveitar e cozinhá-los também. Esperávamos que vós retornassem a tempo.
Ele a olhou ao detectar outra vez esse tom estranho em sua voz.
-Você não gosta do ganso?- perguntou-
Bree o olhou com expressão estranha.
-Nunca o provei. Ouça Roger…
-Sim?
-estive pensando… Queria te perguntar se sabia…
-Se souber o que?
Ele se movia com lentidão, ainda envolto em uma grata bruma de esgotamento e amor. Bree se tinha posto o vestido; já tinha o cabelo escovado e pulcramente recolhido em um grosso coque sobre a nuca; enquanto que só lhe tinha dado tempo a procurar suas meias três-quartos e suas calças. Sacudiu-os distraídamente e uma chuva de fragmentos de barro seco repicou no chão.
-Não faça isso! O que te passa?- Avermelhada por um súbito chateio, lhe arrebatou as calças e apareceu à janela para sacudi-los violentamente do batente. Logo os atirou e Roger teve que lançar-se para apanhá-los.
-Né! Que inseto te picou?
-Inseto? Suja-o tudo e me pergunta que inseto me picou?
-Perdoa, não me dava conta…
Ela grunhiu. Não foi um grunhido muito potente, mas sim ameaçador. Gravado por um reflexo masculino profundamente gravado, Roger colocou uma perna dentro das calças. Passasse o que acontecesse, preferia enfrentar-se a isso com a roupa posta. Os subiu a puxões, falando depressa.
-Ouça, lamento ter esquecido o Natal. É que… Tinha coisas importantes que atender; perdi a conta. Já o arrumarei. Possivelmente quando formos ao Cross Creek para as bodas de sua tia…
-Ao diabo com o Natal!
-O que- Ele se deteve, com as calças ao meio abotoar. O crepúsculo de inverno obscurecia a habitação, mas inclusive à luz das velas pôde ver a cor que acendia a cara da Brianna.
-Ao diabo com o Natal, ao diabo com o Cross Creek! E você, joder, vete também ao diabo!- Ela sublinhou isto último lhe arrojando uma saboneteira que passou zumbindo junto a sua orelha esquerda e se estrelou contra a parede de detrás.
-Espera um minuto, joder!
-E não seja desbocado!
-Mas se você…
-Você e suas “ coisas importantes” !- A mão do Bree se fechou sobre a bacia de porcelana. Roger se preparou para esquivá-la, mas ela o pensou melhor e baixou a mão-. Passei-me um mês inteiro aqui, colocada até as orelhas em roupa suja, fraldas cagados, mulheres gritonas e meninos horríveis, enquanto você fazia “ suas coisas importante” ! E agora chega talher de barro e me suja isso tudo sem te precaver sequer de quão limpo o tinha deixado! Tem idéia do que costa esfregar chãos de pinheiro te arrastando de mãos e joelhos? E com sabão de lejía!
Agitou as mãos é um gesto de acusação, mas ele não teve tempo de ver se estavam cobertas de chagas, podres até as bonecas ou simplesmente avermelhadas.
-E nem sequer pergunta por seu filho, que já aprendeu a engatinhar! Eu lhe queria ensinar isso mas você só pensava em ir à cama! E nem te incomodaste em te raspar antes!
Roger tinha a sensação de ter cansado entre os sinais de multiplicação de um enorme ventilador que girasse a grande velocidade. arranhou-se a curta barba com ar culpado.
-Eu… né… supus que quereria…
-E queria!- Ela descarregou o pé contra o chão, levantando uma pequena nuvem de pó, proveniente do barro seco desintegrado-. Isso não tem nada que ver contigo!
-De acordo.- Ele se agachou para recuperar a camisa, sem deixar de vigiá-la com um olho precavido-. De modo que… te zangaste porque não me precavi de que tinha esfregado o chão. É isso?
-Não!
-Não- repetiu ele. Aspirou fundo e o tentou outra vez-. Pois tem que ser porque me esqueci do Natal.
-Não!
-Zangaste-te porque quis te fazer o amor, em que pese a que você também queria fazê-lo?
-Nooo! por que não te cala?
Roger sentiu a forte tentação de acessar a essa petição, mas teimada necessidade de chegar ao fundo das coisas o obrigou a insistir.
-É que não compreendo por que…
-Já sei que não compreende! Aí está o problema!
Bree girou sobre seus pés descalços e foi revolver no arca posto junto à janela, entre grunhidos e bufos. Seu marido abriu a boca, fechou-a outra vez e ficou a camisa suja pela cabeça. sentia-se de uma vez irritado e culpado; má combinação. Terminou de vestir-se em um clima carregado de silêncio, enquanto analisava e rechaçava possíveis comentários e perguntas, dando-se conta de que todos podiam inflamar ainda mais a situação.
Ela tinha encontrado suas meias; depois de ficar as se ajustou as ligas com pequenos movimentos bruscos, e afundou os pés em um par de tamancos velhos.
Roger se aproximou dela por detrás, com lentidão, e lhe apoiou as mãos nos ombros. Como ela não se girou para lhe pisar um pé ou lhe cravar o joelho na entrepierna, arriscou-se a lhe dar um beijo ligeiro na nuca.
-foste dizer me algo sobre os gansos.
Bree aspirou fundo e deixou escapar o ar em um suspiro, apoiando-se ligeiramente nele. Sua cólera parecia haver desparecido tão de súbito como se apresentou, o qual causou no Roger uma desconcertada gratidão. Rodeou-lhe a cintura com os braços para estreitá-la contra si.
-Ontem- disse ela- a senhora Abernathy queimou as bolachas do café da manhã.
-Sim?
-A senhora Bug a acusou de estar muito embevecida com os laços de sua filha para emprestar atenção ao que fazia. E acrescentou que a quem lhe ocorria pôr amoras nas bolachas de manteiga.
-O que têm de mau as amoras nas bolachas de manteiga?
-Não tenho nem idéia, mas a senhora Bug diz que não se deve mesclar. Logo Billy Macleod caiu pela escada. E não podíamos encontrar a sua mãe. ficou-se entupida na letrina e …
-Como?
A senhora Macleod era baixa e bastante fornida, mas estava muito bem definida pela cara posterior: seu traseiro parecia um par de balas de canhão dentro de um saco. Era muito fácil imaginar o acidente em questão. Roger sentiu que a risada lhe borbulhava no peito e fez um viril esforço por sufocá-la, mas lhe brotou pelo nariz, em um doloroso bufo.
-Fazemos mal em rir. Lhe cravaram as lascas.- Apesar de se aborrecimento, Brianna também se estremecia contra ele, com a voz quebrada por tremores de regozijo.
-Santo céu. E logo?
-Billy chorava a gritos. Não tinha nada quebrado, mas sim um forte golpe na cabeça. A senhora Bug saiu da cozinha blandiendo a vassoura, convencida da nos atacavam os índios. A senhora Chisholm foi em busca da mãe do menino e começou a chiar da letrina e…, em meio de tudo, passam os gansos; então, a senhora Bug olhe para cima com os olhos saltados e grita: “ Gansos!” , em voz tão alta que todo mundo deixou de chiar. Logo correu em busca da escopeta de papai e me trouxe isso.
A narração a tinha acalmado um pouco. reclinou-se contra ele, com um bufo de risada.
-Eu estava tão furiosa que tinha vontades de matar a alguém. E os gansos eram um montão. Os ouvia grasnar por todo o céu.
Todo mundo correu a vê-los: os selvagens dos meninos Chisholm com dois de seus cães, médio selvagens também, brincavam de correr entre as árvores com exclamações e latidos de entusiasmo, em busca das presas quedas, enquanto Brianna disparava e voltava a carregar tão depressa como lhe era possível.
-Um dos cães cobrou um. Toby tratou de tirar-lhe e o cão lhe mordeu. E o menino corria por todo o pátio, gritando que lhe tinha arrancado o dedo. Estava talher de sangue, mas ninguém podia agarrá-lo para ver o que lhe passava. E mamãe ausente, e a senhora Chisholm abaixo, junto ao arroio, com os gêmeos…
Estava-se pondo tensa outra vez. Ele notou que voltava a subir a sangre à cabeça, lhe avermelhando o pescoço, e a estreitou pela cintura.
-Mas o cão lhe tinha arrancado o dedo ou não?
Brianna aspirou profundamente. Logo se voltou a olhá-lo; sua cara tinha perdido um pouco a cor.
-Não. Nem sequer estava ferido. O sangue pertencia ao ganso.
-Pois então o tem feito muito bem, não? A despensa enche, nem um dedo perdido… e a casa em pé.
Havia-o dito em brincadeira mas lhe surpreendeu que ela deixasse escapar um suspiro e parte de sua tensão.
-Sim- disse, com uma nota de inegável satisfação na voz-. Fiz-o bem. Estamos todos inteiros e bem alimentados. Com um mínimo derramamento de sangue.
-Bom, o que se diz sobre as omeletes e os ovos é certo, não?- Roger se inclinou para lhe dar um beijo, mas se lembrou da barba-. OH, perdoa. irei barbear me, quer?
-Não. Não te barbeie.- Ela se voltou para lhe passar a gema de um dedo pela mandíbula-. Em certo modo, eu gosto. Além disso pode deixá-lo para mais tarde, não?
-Posso, sim.
Então inclinou a cabeça para beijá-la com suavidade, mas profundamente. Com que isso era? Bree só queria lhe ouvir dizer que se desenvolvido bem, sem ajuda de ninguém. E na verdade o merecia. Ele estava seguro de que, durante sua ausência, não se tinha ficado sentada junto ao lar, arrulhando ao Jemmy, mas não imaginava os detalhes mais sangrentos.
Nesses momentos a pequena habitação resplandecia com uma suave luz dourada, que os tinha iluminado enquanto faziam o amor, lhe deixando lembranças de matizes vermelhos e marfileños do pêlo dourado que a cobria das sombras carmesins e purpúreas em seus lugares secretos, sua própria pele escura contra a palidez dela.
O estou acostumado a estava limpo (ou o tinha estado); as pranchas de pinheiro branco, bem esfregadas; nos rincões tinha colocado romeiro seco. Além disso, fazia a cama com lençóis limpa e tinha posto um edredom novo. Tudo para lhe dar a bem-vinda. E ele tinha entrado como uma tromba, transbordante de aventuras, esperando louvores pela façanha de retorna com vida, e sem ver nada de todo isso. Cego a tudo, em sua urgência de tê-la sob seu corpo e possui-la.
-Ouça- murmurou-lhe ao ouvido-, pode que seja bobo, mas te amo, sabe?
Ela suspirou profundamente, seus peitos puxaram contra o torso nu do Roger, mornos ainda através da camisa e o vestido. Eram firmes; estavam-se enchendo de leite, mas ainda não estavam duros.
-É bobo, sim- disse com franqueza-, mas eu também te amo. E me alegra que tenha retornado.
Ele a soltou, rendo. Em cima da janela havia um ramo de zimbro, carregada de bagos glaucas. Alargou a mão para arrancar uma ramita, beijou-a e a pôs no decote do vestido, entre os peitos, como objeto de paz… e a maneira de desculpa.
-Feliz Natal. me diga agora o que aconteceu esses gansos.
Ela apoiou uma mão contra a ramita de zimbro, com uma meia sorriso que despareció em seguida.
-OH… não tem importância. Só que…
Roger seguiu a direção de seus olhos e viu a folha de papel apoiada contra a parede, depois do lavamanos. Era um desenho ao lápis-carvão: gansos silvestres contra um céu de tormenta, batendo as asas com força sobre as árvores agitadas pelo vento. Pareceu-lhe estupendo; ao contemplá-lo teve a mesma sensação estranha que tinha experiente para ouvi-los grasnar: mescla de alegria e dor.
-Feliz Natal- disse Brianna brandamente, a suas costas. E lhe envolveu um braço com a mão.
-Obrigado. É… Que bem desenha, Bree.
Era certo. inclinou-se para beijá-la com paixão; precisava fazer algo para aliviar os desejos que enfeitiçavam esse papel.
-Olhe o outro.- Ela se apartou um pouco, sem lhe soltar o braço, e assinalou o lavamanos.
Roger não tinha visto que eram dois.
Ela desenhava muito bem, sim. Tanto que lhe congelou o sangue no coração. O segundo desenho também era um lápis-carvão: os mesmos brancos, negros e cinzas nus. No primeiro ela tinha derrubado a selvageria do céu: as ânsias e o valor, o esforço que resiste com fé no vazio do ar e a tormenta. Em este tinha visto quietude.
Era um ganso morto que pendurava pelas patas, com as asas média desdobradas, o pescoço lasso e o pico entreaberto, como se até na morte procurasse o vôo e a potente reclamação de seus companheiros. Suas linhas eram delicadas; os detalhes da plumagem, o pico e os olhos vácuos, deliciosos. Ele nunca tinha visto nada tão belo nem tão desolador.
-Desenhei-o ontem à noite- explicou ela, em voz baixa-. Todo mundo estava na cama, mas eu não podia dormir.
Tinha pego um castiçal para rondar, inquieta, pela casa cheia de gente. Por fim saiu ao escuro frio dos abrigos, em busca de solidão, já que não de repouso. No abrigo de defumar, à luz das brasas, chamou-lhe a atenção a beleza dos gansos pendurados, a nitidez da plumagem branca e negra contra o muro coberto de fuligem.
-Uma vez segura de que Jemmy dormia profundamente, voltei com minha caixa de desenho. Desenhei até que meus dedos estavam tão frios, que não podiam sujeitar o lápis-carvão. Esse é o melhor.- E assinalou o desenho com olhos ausentes.
Pela primeira vez Roger reparou em suas olheiras. Imaginou à luz de uma vela, completamente só em meio da noite, desenhando gansos mortos. ia abraçar a, mas ela se afastou para a janela, onde as venezianas começavam a golpear-se.
O degelo tinha cessado. Seguia-lhe um vento gelado que despia as árvores de suas últimas folhas e arrojava bolotas e castanhas contra o telhado com um repico de perdigonada. Ele se aproximou para fechar as venezianas e as assegurar contra o forte vento.
Bree se incorporou. ia passar a seu lado, mas ele a rodeou com os braços para detê-la. Estreitou-a contra si, para que não lhe visse a cara.
-Gansos- disse ao fim, com a voz médio apagada contra o cabelo da Brianna-. Quando eu era pequeno meus vizinhos criavam gansos. Grandes e brancos, os vadios. Eram seis; andavam sempre juntos, grasnando com o pico em alto. Aterrorizavam aos cães, aos meninos e a tudo o que passasse pela rua.
-E a ti?- O fôlego quente do Bree era um comichão contra sua clavícula.
-OH, sim, constantemente. Quando jogávamos na rua saíam grasnando para nos picar e nos castigar com as asas. Eu não podia sair ao pátio traseiro, a jogar com um amigo, se a senhora Graham não nos acompanhava para afugentar a esses cretinos com um pau de vassoura. Uma manhã, quando veio o leiteiro, os gansos estavam ainda no jardim dianteiro e o atacaram. Ele correu para seu carro; tanto chiados espantaram ao cavalo, que pisoteou a duas das aves, as deixando plainas como omeletes. Os meninos da rua estávamos encantados.
Ela ria contra seu ombro, médio escandalizada, mas também divertida.
-E logo o que aconteceu?
-A senhora Graham os levou dentro e os depenou. Comemos bolo do ganso durante uma semana- respondeu ele, divertido. Logo ergueu as costas para lhe sorrir-. Isso é tosse o que sei sobre os gansos: que são uns verdadeiros cretinos, mas que estão muito saborosos.
E se agachou para recolher do chão a jaqueta manchada de barro.
-Bom, agora deixa que ajude a seu pai com a tarefa. Logo quero ver como engatinha meu filho.
Toquei com o dedo a superfície branca e brilhante; logo a esfreguei entre meus dedos apreciando-a.
-Não há absolutamente nada mais gorduroso que a graxa de ganso- passei, enquanto me limpava os dedos no avental para agarrar uma colher grande.
-É o melhor para a massa de bolos- acrescentou a senhora Bug e ficou nas pontas dos pés para observar celosamente, enquanto eu dividia a suave matéria branca entre duas grandes vasilhas: uma para a cozinha, a outra para minha clínica.
-Para a festa do Hogmanay faremos um rico bolo de venado-acrescentou, entreabrindo os olhos para estudar a perspectiva-. Depois façam com caldo de pescado. E um pouco de corn crowdie, farinha de aveia com leite ou água quente. E de sobremesa, um grande bolo de passas com geléia e nata montada.
-Estupendo- murmurei. Meus próprios planos para a graxa de ganso incluíam um bálsamo de zarzaparrilla para queimaduras e abrasões, um ungüento mentolado para os narizes tampados e as congestões de peito, e outro suavizante e perfumado para as queimaduras dos fraldas… possivelmente uma infusão de alfazema com suco de malva.
Olhei para baixo, procurando o Jemmy; embora tinha aprendido a engatinhar poucos dias antes, já era capaz de alcançar uma velocidade assombrosa, especialmente quando ninguém o olhava. Estava tranqüilamente sentado no rincão, roendo apaixonadamente o cavalo de madeira que Jamie lhe tinha esculpido como presente de Natal.
Católicos como eram a grande maioria dos escoceses das Terras Altas (e nominalmente cristãos, todos eles), o Natal era um data religiosa mais que uma grande ocasião festiva.
Mas Hogmanay era outra coisa. Só Deus sabia que raízes pagãs tinha a celebração escocesa do Ano Novo, mas eu tinha meus motivos para preparar com antecipação uma boa quantidade de remédios: os mesmos motivos pelos que Jamie estava nesses momentos no manancial do uísque, identificando que tonéis estavam o bastante envelhecidos como para não envenenar a ninguém.
Uma vez retirada a graxa de ganso, no fundo do recipiente ficou uma boa quantidade de caldo escuro, formado redemoinhos com trocitos de pele e fios de carne. Vi que a senhora Bug o observava com visões de molho lhe dançando no cérebro.
-A metade- disse-lhe severamente, jogando mão de um frasco grande.
Ela, sem discutir, limitou-se a encolher-se de ombros e voltou para seu tamborete, resignada.
-O que pensa você fazer com isso?- perguntou-me com curiosidade, enquanto eu cobria o pescoço do frasco com um quadrado de musselina, a fim de filtrar o caldo-. É certo que a graxa é uma maravilha para ungüentos. E sem dúvidas o caldo é benéfico para o corpo debilitado pela gota ou por males de ventre. Mas se estraga.- Uma sobrancelha superficial se arqueou a modo de advertência, se por acaso eu não sabia-. Se se deixar um ou dois dias, fica azul de mofo.
-Bom, isso é o que espero- disse, jogando caldo no quadrado de musselina-. Acabo de pôr uma fogaça de pão a embolorar; quero ver se também aparece no caldo.
Vi que pela mente da mulher cruzavam todo tipo de perguntas e respostas; e todas apoiadas no medo que essa minha loucura pela comida podre, ao expandir-se, pudesse abranger toda a produção da cozinha. Seus olhos jogaram uma olhada ao bolo; logo voltaram para mim, carregados de suspeita.
Ao apartar a cara para dissimular um sorriso, vi que Adso, o gatinho, subiu-se ao banco, erguido sobre as pata traseiras e com as garras plantadas na mesa; seus grandes olhos verdes seguiam com fascinação os movimentos da chaleira.
-Ah, quer um pouco?
Agarrei um platito da prateleira e verti nele um escuro atoleiro de caldo, cheio de saborosos fragmentos de carne e glóbulos de graxa.
-Isto corresponde a minha metade- assegurei-lhe à senhora Bug. Mas ela moveu vigorosamente a cabeça.
-De maneira nenhuma, senhora Fraser- disse-me-. Esse pequeñín caçou aqui seis ratos nos dois últimos dias.- Sorriu afetuosamente ao Adso, que se tinha descido de um salto e estava lambendo o caldo a toda a velocidade que lhe permitia sua diminuta língua rosada-. Seu bichano pode comer tudo o que queira de meu lar.
-De verá? Estupendo. Também pode dever provar sorte com os que tenho na clínica.
Por então tínhamos uma praga de ratos, aos que o frio empurrava aos espaços interiores, onde brincavam de correr pelos zócalos depois do anoitecer. Até a pleno dia cruzavam súbitamente o chão ou saltavam dos armários abertos, provocando leves paradas cardíacas e ruptura de baixela.
-Mas não podemos criticar aos ratos- comentou a senhora Bug, me olhando fugazmente-. A fim de contas, vão aonde está a comida.
Quase todo o caldo tinha passado pela musselina, deixando uma grosa capa de restos flutuantes. Os rebañé para pô-los no platito do Adso, logo joguei outra chaleira de caldo.
-Sim que o fazem- disse sem me alterar-. E o sinto, mas o mofo é importante. É um remédio e…
-OH, sim, certamente!- apressou-se a assegurar-. Isso sei.
Em sua voz não havia sotaque de sarcasmo, coisa que me surpreendeu. Vacilava, mas ao fim afundou a mão no amplo bolso que pendurava depois da abertura de sua saia.
-Quando Arch e eu vivíamos no Auchterlonie havia um homem, um carline. chamava-se Johnnie Howlat. A gente lhe tinha medo, mas apesar de tudo ia a sua casa. Alguns, a pleno dia, para que os curasse com ervas e beberagens; outros, de noite, para comprar feitiços. Sabe você disso?
Eu sabia, sim, a que tipo de pessoa se referia. Alguns curandeiros das Terras Altas não se limitavam a preparar remédios (os “ filtros” que ela mencionava), mas sim também praticavam a magia menor: vendiam filtros de amor, poções para a fertilidade… e conjuros daninhos. Algo frio me correu pelas costas e despareció, deixando detrás de si uma vaga sensação de inquietação, como o rastro baboso de um caracol.
Traguei saliva; via em minha lembrança o pequeno molho de novelo espinhosas, tão cuidadosamente atadas com fio branco e negro, posto sob meu travesseiro por uma moça ciumenta, chamada Laoghaire, que o tinha comprado a certa bruxa: Geillis Duncan, bruxa como eu.
Aonde queria chegar a senhora Bug? Eu não estava muito segura do que significava a palavra carline, embora a relacionava com bruxos ou um pouco parecido. Ela me observava com ar pensativo, bastante apagada sua vivacidade normal.
-Era um homenzinho sujo, esse Johnnie Howlat. Não tinha mulher e sua cabana cheirava a coisas horríveis. Ele também.- estremeceu-se de repente, embora tinha o fogo a suas costas-. Às vezes o via no bosque ou nos brejos, pinçando na terra. Quando encontrava animais mortos trazia as peles, ossos, patas e dentes, para fazer seus feitiços.
-Que desagradável- murmurei, com a vista fixa no frasco, enquanto raspava novamente o pano e voltava a jogar caldo-. E ainda assim a gente ia consultá-lo?
-Não havia ninguém mais- replicou ela, simplesmente.
Levantei a vista. Seus olhos escuros seguiam fixos em meus, sem piscar; movia lentamente a mão, como se tocasse algo dentro do bolso.
-Ao princípio eu não sabia- continuou-, mas Johnny tinha musgo do cemitério, pó de ossos, sangue de galinha e esse tipo de coisas. Mas você- observava-me com ar pensativo, imaculado o lenço branco à luz do fogo-, você é uma pessoa limpa.
-Obrigado- disse, entre divertida e emocionada. Em boca da senhora Bug, esse era um grande completo.
-Salvo pelo pão bolorento- acrescentou, apertando um pouco os lábios-. E essa taleguilla de pagãos que tem no armário. Mas é certo, não? Você é feiticeira, como Johnny.
Vacilei, sem saber o que dizer. Na memória tinha a lembrança do Cranesmuir, tão vívido como não o tinha visto em muitos anos. Quão último desejava era que a senhora Bug divulgasse o rumor de que eu era uma carline; já havia quem me denominava “ mulher de conjuros” . Não temia que me acusassem de bruxa ante a lei; ali não, já não. Mas uma coisa era ter reputação de curandeira e outra, que a gente fosse para mim por essas outras coisas que ofereciam os feiticeiros.
-Não exatamente- disse, cautelosa-. Solo sei bastante sobre novelo. E de cirurgia. Mas em realidade não sei absolutamente nada de feitiços nem… encantamentos.
Ela assentiu com satisfação, como se eu tivesse confirmado suas suspeitas em vez das negar.
-Uma vez fui ver o. Ao Johnnie Howlat.
-Sim?- Sentei-me com o Jemmy nos joelhos-. Estava doente?
-Queria um filho.
Não soube o que dizer. Em silêncio, escutei a destilação do caldo que caía da musselina, enquanto ela jogava à frigideira o último resto e a levava a lar.
-Tive quatro abortos no curso de um ano- explicou, de costas a mim-. Quem me veja agora não acreditaria, mas por então era só pele e ossos, não tinha mais cor que o soro e minhas tetas se reduziram a nada.
Uma vez bem afirmada a frigideira entre as brasa, cobriu-a.
-De modo que agarrei o pouco dinheiro que tínhamos e fui a casa do Johnnie Howlat. Ele aceitou o dinheiro e encheu uma caçarola de água. Logo fez que sentasse a um lado da caçarola e ele ao outro; e assim passamos comprido tempo. Ele olhava a água; eu a ele. Ao cabo de um momento, agitou-se e se foi à parte traseira da cabana. Não pude ver que fazia, pois estava escuro, mas revolvia pinçava e dizia coisas pelo baixo; por fim me entregou um amuleto.
A senhora Bug se incorporou para aproximar-se de mim. Pôs uma mão na sedosa cabeça do Jemmy, com muita suavidade.
-Johnny me disse que isso me fecharia a boca do ventre e manteria ao bebê são e salvo dentro, até que chegasse o momento de nascer. Mas na água tinha visto uma coisa e devia me advertir. Se eu tinha um menino vivo, disse-me morreria meu marido. De modo que me daria o amuleto e a oração que o acompanhava. Era eu quem devia decidir. Não se podia atuar com mais justiça.
O dedo romo e desgastado seguiu a curva da bochecha infantil.
-Tive esse objeto no bolso durante um mês. Logo, guardei-o.
Alarguei uma mão para estreitar a sua. Não se ouvia outra coisa que o mordisco do bebê e o estalo dos ossos sobre as brasas. Ela permaneceu imóvel um momento; logo retirou a mão para colocá-la novamente no bolso. Extraiu um pequeno objeto que depositou na mesa, a meu lado.
-Nunca me decidi a atirá-lo- disse, contemplando-o serenamente-. depois de tudo, custou-me três peniques de prata. E é muito pequeno. Quando saímos de Escócia foi fácil trazê-lo comigo.
Era um trocito de pedra de cor rosa pálido, veteado de cinza; estava muito gasto. Estava esculpido grosseiramente e tinha forma de mulher grávida. Era pouco mais que um ventre enorme, de peitos e nádegas inchados, cujas pernas curtas se afiavam até perder-se. Tinha visto outras similares em distintos museus. Perguntei-me se Johnny Howlat a teria esculpido pessoalmente. Ou talvez a teria encontrado em suas buscas pelo bosque e os brejos, resto de um tempo muito mais antigo.
Toquei-o com delicadeza. Pouco importava o que tivesse feito Johnnie Howlat, o que tivesse visto em sua caçarola de água: tinha tido a astúcia de reconhecer o amor que unia ao Arch e a Murdina Bug. O que era mais fácil para uma mulher: abandonar a esperança de ter filhos, considerando que fazia um nobre sacrifício por seu amado algemo, ou sofrer a amargura e a culpa do fracasso constante? Johnnie Howlat poderia parecer um feiticeiro, mas realmente era um curador.
-Pois nada- disse a senhora Bug, como a quem já não lhe importa-, que possivelmente você encontre alguma moça a que possa lhe ser útil. Seria uma pena não lhe tirar proveito, não crie?
O ano terminou claro e frio, com uma lua pequena e brilhante que se elevou muito alta na abóbada cárdena do céu, banhando de luz os terrenos baixos e os caminhos da montanha. Era uma sorte, pois vinha gente desde todos os rincões da Colina (e alguns, desde mais longe ainda) para celebrar Hogmanay na Casa Grande.
Ombreia-os tinham espaçoso o estábulo novo e rastelado o chão para o baile. Sob a luz dos abajures, alimentadas com azeite de urso, dançavam-se jigas, reels, strathspeys e outras danças das quais eu ignorava o nome, mas que pareciam divertidas, acompanhadas pela música do lhe chiem violino do Evan Lindsay e a gritã flauta de madeira de seu irmão Murdo, compassados pelos batimentos do coração cardíacos que Kenny arrancava a seu bodhran.
Depois de uma ou duas horas de baile, começava a compreender por que a palavra reel se utilizava para indicar embriaguez; inclusive sem que se bebeu, a dança podia chegar a enjoar. Sob a influência do uísque, fazia que tudo o sangue da cabeça girasse como água em uma máquina de lavar roupa. Ao terminar uma delas, já cambaleante, fui apoiar me em um dos postes e fechei um olho, com a esperança de que cessassem as voltas em minha cabeça. Uma cotovelada em meu lado cego me fez abrir esse olho. Ali estava Jamie, com duas taças transbordantes de algo. Acalorada e sedenta como estava, só me importou que fora algo líquido. Felizmente era cidra, que bebi a grandes goles.
-Se a beber assim irá a rivalidade, Sassenach- disse ele, esvaziando a sua de maneira exatamente igual. Estava avermelhado e suarento de tanto dançar, mas seus olhos faiscavam ao me sorrir.
-Tolices!- disse. Com um pouco de cidra a modo de lastro, a habitação tinha deixado de girar e eu me sentia alegre, a pesar do calor-. Quantas pessoas crie que há aqui?
-Sessenta e oito, a última vez que contei- disse-me, enquanto se reclinava a meu lado, contemplando a multidão com expressão profundamente satisfeita-. Mas como entram e saem, não estou muito seguro. E não contei aos meninos- acrescentou.
Aos lados do estábulo, entre sombras, havia montões de feno fresco onde dormiam os meninos muito pequenos para manter-se acordados, envoltos e amontoados igual aos gatinhos. A piscada dos abajures arrancou um brilho de sedoso ouro avermelhado: Jemmy dormia profundamente em sua manta, felizmente arrulhado pelo bulício. Vi que Bree se separava do baile e lhe acariciava a bochecha. Roger, moreno e sorridente, alargou uma mão para ela, e Bree a aceitou rendo; ambos voltaram a perder-se no redemoinho.
A última ronda de danças chegou a seu fim e se produziu uma carreira geral fazia o tonel da cidra, presidido pelo senhor Wemyss, em um extremo do celeiro. Os bailarinos se apertaram como uma horda de vespas sedentas, de modo que de este só ficou à vista o cocuruto, quase branco o cabelo loiro ao fulgor dos abajures.
Procurei com o olhar ao Lizzie, para ver se estava desfrutando da festa. Evidentemente, sim: estava sentada em um montão de feno, rodeada por quatro ou cinco torpes adolescentes que se comportavam mais ou menos como os bailarinos ao redor da cidra.
-Quem é o grandalhão?- perguntei ao Jamie, assinalando o pequeno grupo-. Não sei quem é.
Ele o olhou, forçando a vista. Logo se tranqüilizou.
-Ah, é Jacob Schnell. veio de Salem com um amigo; acompanham aos Mueller.
-Vá!
Salem ficava longe, a mais de quarenta e cinco quilômetros. Perguntei-me se a única atração era a festa. Procurei o Tommy Mueller, a quem secretamente tinha escolhido como possível casal para o Lizzie, mas não o vi entre a multidão.
-Sabe algo desse Schnell?- perguntei, observando-o com ar crítico. Era um ou dois anos maior que os outros pretendentes do Lizzie, e bastante alto. Algo feio de facções, mas com cara de bom aspecto; de uma corpulência que anunciava o desenvolvimento de uma próspera pança na maturidade.
-Não o conheço pessoalmente, mas sim a seu tio. É uma família decente; acredito que o pai é sapateiro.
Ambos olhamos automaticamente os sapatos do jovem; não eram novos, mas sim de muito boa qualidade e com fivelas metálicas, grandes e quadradas, na moda alemã. O jovem Schnell parecia levar vantagem; aproximou-se muito ao Lizzie para lhe dizer algo; ela tinha os olhos cravados em sua cara, com uma leve enruga de concentração entre as sobrancelhas loiras, tratando de entender o que ele dizia. Quando compreendeu, suas facções se relaxaram em risadas.
-Não acredito.- Jamie sacudiu a cabeça, algo carrancudo-. Sua família é luterana; não permitirão que o jovem se casa com uma católica… e ao Joseph partiria o coração que sua filha se fora a viver tão longe.
Em realidade, o pai do Lizzie estava profundamente apegado a ela; depois de havê-la perdido uma vez, não estaria disposto a perder a de vista quando a desse em matrimônio. Mesmo assim, Joseph Wemyss faria quase algo por lhe assegurar uma vida feliz.
-Talvez se iria com ela.
Jamie se entristeceu ao pensá-lo, mas assentiu a contra gosto.
-Suponho que sim, mas seria uma pena perdê-lo. Bom, suponho que Arch Bug poderia…
Interromperam-no uns gritos:
-MAC Dubh! MAC Dubh!
-você venha, ao Sheumais ruaidh, lhe demonstre como se faz!- chamou Evan do outro extremo do celeiro, agitando o arco em gesto autoritário.
Produziu-se uma pausa no baile, para que os músicos tivessem uma pausa e pudessem beber algo; enquanto isso, alguns dos homens provavam sua habilidade para a dança das espadas, que só se pode executar com acompanhamento de gaitas de fole ou de um só tambor.
-MAC Dubh, MAC Dubh!- convidavam Kenny e Murdo, fazendo gestos.
Mas Jamie os rechaçou entre risadas.
-Não. Faz tanto tempo que não faço isso…
-MAC Dubh! MAC Dubh! MAC Dubh!- Kenny batia seu bodhran, cantando ao compasso, e o grupo que o rodeava fez outro tanto-. MAC Dubh! MAC Dubh! MAC Dubh!
Ele me dirigiu um breve olhar de súplica, mas Ronnie Sinclair e Bobby Sutherland já vinham para nós com ar decidido. Apartei-me um passo, entre risadas, e eles o agarraram pelos braços, sufocando seus protestos com vozes alegres, enquanto o empurravam para o centro da pista.
Entre aplausos e gritos de aprovação, depositaram-no em um espaço espaçoso, onde a palha tinha sido calcada na terra úmida, a fim de formar uma superfície dura. Ao ver que não havia opção, Jamie ergueu as costas e endireitou sua saia. depois de intercambiar um olhar comigo, pondo os olhos em branco em zombador gesto de resignação, começou a tirá-la jaqueta, o colete e as botas, enquanto Ronnie cruzava as duas espadas a seus pés.
Kenny Lindsay começou a tocar brandamente seu bodhran, com pausas entre toque e toque, criando um som de leve suspense. A multidão murmurava e se removia, espectador. Jamie, em camisa, saia e meias três-quartos, fez uma complexa reverência que repetiu quatro vezes, girando no sentido do sol, para cada um dos airts. Logo ocupou seu lugar, de pé sobre as espadas cruzadas, e elevou as mãos com os dedos rígidos por cima da cabeça.
A pouca distância estalou um aplauso. Brianna se levou dois dedos à boca para emitir um ensurdecedor assobio de aprovação, que provocou escandalizada surpresa entre quem a rodeava. Vi que Jamie a olhava com um leve sorriso; logo seus olhos procuraram outra minha vez. Em seus lábios perdurava o sorriso, mas em se expressão havia algo distinto, melancólico. O ritmo do bodhran se fez mais veloz.
A dança escocesa das espadas se podia executar por três motivos: por exibição e entretenimento, como ele estava a ponto de fazer; como competição e, como se tinha feito ao princípio, a maneira de presságio. Quando se dançava na véspera de uma batalha, a habilidade do bailarino anunciava o êxito ou o fracasso. Os jovens tinham dançado entre espadas cruzadas na noite prévia ao Prestonpans e Falkirk. Mas não antes do Culloden; na véspera desse combate final não houve fogueiras nem tempo para os bardos e as canções jaquetas. Não tinha importância; nnaquele tempo naquele tempo ninguém necessitava presságios.
Jamie fechou um momento os olhos e inclinou a cabeça. O ritmo do tambor se fez mais rápido.
Eu sabia por ele que a primeira vez que tinha dançado a dança da espada foi em competição; depois, em mais de uma ocasião, em vésperas de uma batalha: primeiro nas Terras Altas, logo na França. Os soldados veteranos lhe pediam que o fizesse, pois apreciavam sua habilidade como garantia de que sairiam vivos e vitoriosos. Posto que os Lindsay conheciam sua destreza, também devia ter dançado no Ardsmuir. Mas isso era no Velho Mundo e em sua antiga vida.
Sabia, sem necessidade de que Roger o dissesse, que os costumes antigos estavam trocando. Estávamos em um mundo novo; jamais se voltaria a dançar a dança das espadas com esse fim, procurando presságios e o favor dos antigos deuses da guerra e o sangue.
Abriu os olhos e endireitou bruscamente a cabeça. O tambor emitiu um súbito “ dunc!” , e um grito da multidão marcou o começo. Os pés do Jamie golpearam a terra calcada, ao norte e ao sul, para o este e o oeste, movendo-se depressa entre os aços. Golpeavam sem ruído, seguros no chão, e sua sombra dançava contra o muro de atrás, alta, com os largos braços levantados. Sua cara apontava ainda para mim, mas sem dúvida já não me via.
Dançava com toda a destreza do guerreiro que tinha sido e ainda era. Mas me pareceu que agora dançava só em altares da memória, para que seus espectadores não esquecessem. E o suor voava de sua frente com o esforço, e em seus olhos havia uma expressão de inexprimível lonjura.
A gente ainda o comentava quando nos reunimos na casa, justo antes de meia-noite.
A senhora Bug trouxe um cesto de maçãs e reuniu às moças solteiras em um rincão da cozinha. Entre muitas risitas e olhares furtivos para os meninos, cada uma cortou uma fruta, cuidando de que a pele formasse uma só peça. Logo as arrojavam para trás e se aproximavam para observar entre exclamações as letras que tinham formado cada parte de pele ao cair.
Como as exumações de maçã são normalmente circulares, abundavam os cs, os gs e as oes: boas notícias para o Charley Chisholm e o jovem Geordie Sutherland, e muitas discussões sobre se a Ou podia representar ao Angus Ou, pois Angus Og MacLeod era um moço sagaz e muito querido, enquanto que o único Owen era um ancião viúvo, que não passava do metro e meio de estatura e tinha um grande quisto sebáceo na cara.
Eu tinha subido para deitar ao Jemmy em seu berço, depravado e roncando; baixei a tempo para ver o Lizzie arrojar sua pele.
-C!- fizeram coro duas das meninas Guthrie, quase entrechocando as cabeças ao inclinar-se para olhar.
-Não, não, é uma j!
Convocou-se à senhora Bug, a perita residente, quem se agachou para observar a banda vermelha com a cabeça inclinada, como faz o petirrojo ao avaliar a uma lombriga.
-É uma j, sem lugar a dúvidas- opinou ao incorporar-se.
E o grupo, com um estalo de risadas, voltou-se para uníssono para o John Lowry, jovem granjeiro do Woolam’s Mill, quem as olhou totalmente desconcertado.
Um brilho vermelho me chamou a atenção para a porta que dava a corredor. Ali estava Brianna, me fazendo gestos. Corri a me reunir com ela.
-Roger está preparado para sair, mas não encontramos o sal. Na despensa não está- Tem-na em seu consultório?
-OH, sim, ali está!- exclamei, culpado-. Estive-a usando para secar raízes e esqueci devolvê-la a seu sítio.
Os convidados enchiam os alpendres e formavam uma fila no largo corredor, ulcerando até a cozinha e o estudo do Jamie, todos dedicados a conversar, beber e comer. Abri-me passo entre a multidão detrás da Brianna, intercambiando saudações e esquivando taças de cidra.
O consultório estava quase deserto; a gente tendia a evitá-lo, já fora por superstição, associações penosas ou simples cautela, e eu tinha deixado a habitação às escuras e o fogo apagado, para não animá-los a entrar. Nesse momento ardia ali uma só vela. Roger, única pessoa presente, pinçava entre as diversas coisas que eu tinha deixado na encimera.
Quando entramos levantou a vista com um sorriso, ainda um pouco sufocado pela dança.
Como Roger era, sem discussão, o mais alto e bonito dos morenos disponíveis, o tinha eleito como “ primeiro pé” ; quer dizer, seria o primeiro que cruzaria a soleira, não só da Casa Grande, mas também também dos lares dos arredores. Fergus e Marsali, assim como os outros que viviam perto, já tinham deslocado a suas casas, a fim de estar preparados para saudar seu “ primeiro pé” quando chegasse.
-Doze menos dez- declarou Brianna, aparecendo na consulta detrás de mim, com seu próprio capote no braço-. Acabo de consultar o relógio do senhor Guthrie.
-Há tempo de sobra. vais vir comigo?- Roger lhe sorriu ao ver o casaco.
-Está brincando? Faz anos que não saio depois de meia-noite.- Com idêntico sorriso, ela fez girar o capote ao redor de seus ombros-. Já tem tudo?
-Salvo o sal.- Roger assinalou o saco de lona que tinha deixado na encimera. O “ primeiro pé” devia chegar com presentes: um ovo, um feixe de lenha, um poquito de sal… e um pouco de uísque; todo isso garantiria que na casa não faltassem as coisas imprescindíveis durante o ano em florações.
-Bem. Onde pus…? meu Deus!- Ao abrir a porta do armário em busca do sal, encontrei-me com uma par de olhos cintilantes que me fulminaram da escuridão-. Que susto!- Apoiei uma mão contra meu peito para impedir que meu coração saísse de um salto. Logo agitei fracamente a outra para o Roger, que tinha dado um salto ante meu grito, preparado para me defender., Não lhes preocupem. É só o gato.
Adso se tinha refugiado ali, com os restos de um camundongo recém caçado como companhia. Grunhiu-me, mas o apartei com chateio. O saquito de sal estava debaixo de suas peludas patas. Fechei o armário, deixando ao gato a sós com seu festim, e entreguei o sal ao Roger. Ao agarrá-la, ele deixou o objeto que tinha na mão.
-Onde conseguiu esta mujercilla tão antiga?- perguntou, assinalando o objeto, enquanto guardava o sal no saco.
Ao olhar para a encimera vi que se referia à figurinha de pedra rosa.
-Deu-me isso a senhora Bug- respondi-. Diz que é um amuleto para a fertilidade. E certamente tem aspecto de sê-lo. É muito antiga, não crie?
Isso pensava eu e o interesse do Roger confirmava essa impressão. Ele assentiu com a cabeça, sem deixar de olhá-la.
-Muito. As que vi em museus datam de milênios atrás.
Seguiu os contornos bulbosos com um dedo reverente. Brianna se aproximou para ver. Eu, sem pensá-lo, detive-a agarrando a de um braço.
-O que - exclamou ela, girando a cabeça para me sorrir-. Não devo tocá-la? Tão efetiva é?
-Não, é obvio que não.
Apartei a mão, rendo, mas me sentia coibida. Ao mesmo tempo cobrei consciência de que, em realidade, preferia que ela não a tocasse. Foi um alívio ver que se limitava a inclinar-se para examiná-la, sem retirar a da encimera. Roger também a observava… melhor dizendo, tinha os olhos cravados na nuca da Brianna, com um estranho paixão. Era fácil imaginar que desejava que ela tocasse o objeto, com a mesma força que eu queria que não o fizesse.
“ Beauchamp- disse para meus adentros-, esta noite bebeste muito.” Ao mesmo tempo, levada por um impulso, agarrei a figura e me meti isso no bolso.
-Vamos! É hora de sair!- Já quebrado o estranho clima do momento, Brianna acudiu ao Roger.
-Tem razão. Vamos.
Ele jogou o saco ao ombro, sorriu-me e agarrou ao Bree do braço. Logo desapareceram; a porta se fechou detrás deles.
Apaguei a vela, disposta a segui-los, mas me detive. de repente sentia certa relutância a retornar ao caos da celebração. Sentia palpitar a casa inteira a meu redor e a luz entrava em torrentes por debaixo da porta, mas ali havia quietude. No meio do silêncio percebi o peso do pequeno ídolo em meu bolso, um vulto duro apertado contra minha perna.
E ali estava eu, na escuridão, alerta aos ruídos que fazia o gato ao mascar dentro do armário, ao poder da terra que se movia e agitava sob meus pés, enquanto o ano (ou algo) dispunha-se a trocar. A pouca distância havia uma buliçosa multidão, mas eu estava sozinha, enquanto aquele sentimento me percorria a pele e zumbia em meu sangue.
O curioso é que não me era estranho. Não se tratava de algo que viesse de fora de mim, mas sim de algo que eu já possuía e reconhecia embora não soubesse como chamá-lo. Mas a meia-noite se aproximava depressa. Ainda sentida saudades, abri a porta e saí à luz e ao clamor do corredor.
Um grito, ao outro lado do corredor, anunciou a chegada da hora mágica, segundo o relógio do senhor Guthrie; os homens saíram a trancos do estudo brincando entre si, com as caras espectadores voltas para a porta.
Não aconteceu nada. Acaso Roger teria decidido entrar pela porta de atrás, devido à multidão que havia na cozinha? Dava-me a volta para olhar para ali, mas não: na porta da cozinha se amontoavam muitas caras que me observavam espectadores.
Ainda não se tinham ouvido os golpes na porta. No corredor se produziu um pequeno revôo de inquietação e uma pausa nas conversações. Era um desses incômodos silêncios nos que ninguém quer falar por medo s ser bruscamente interrompido.
Por fim se ouviram pisadas no alpendre e um rápido tamborilar: uno-dos-tres. Jamie, como dono da casa, adiantou-se para abrir a porta e dar a bem-vinda ao “ primeiro pé” . Eu, que estava o bastante perto, vi sua expressão estupefata e me apressei a procurar o motivo.
No alpendre não vi o Roger e nem a Brianna, a não ser a duas silhuetas mais pequenas, fracas e esfarrapadas, mas definitivamente moréias. Os dois gêmeos Beardsley se adiantaram timidamente ante o gesto do Jamie.
-Feliz Ano Novo, senhor Fraser- disse Josiah, com um grasnido de rã. Logo se inclinou cortesmente ante mim, sem soltar o braço de seu irmão-. chegamos.
Em geral, todos estiveram de acordo em que dois morenos gêmeos eram um presságio muito afortunado, pois obviamente levariam o dobro de boa sorte que um solo “ primeiro pie” . Mesmo assim, Roger e Bree (que ao encontrar os gêmeos no pátio, vacilantes, tinham-nos enviado à porta) saíram para fazer o melhor papel possível nas outras casas da Colina. Bree foi severamente advertida de que não devia entrar em nenhuma casa antes de que Roger tivesse cruzado a soleira.
Bom augúrio ou não, a aparição dos Beardsley provocou muitos comentários. Todo mundo estava informado do falecimento do Aaron Beardsley (a versão oficial, quer dizer, que tinha morrido de apoplexia) e do misterioso desaparecimento de sua mulher, mas o advento dos gêmeos fez que tudo fora desenterrado e discutido outra vez. Ninguém se explicava o que terão estado fazendo os moços entre a expedição miliciana e o Ano Novo. Josiah só disse, com seu rouco grasnido, “ estivemos vagando” ; seu irmão Keziah não disse absolutamente nada, com o qual todo mundo se viu obrigado a falar do comerciante e sua esposa até que o esgotamento provocou uma mudança de tema.
Os Beardsley ficaram imediatamente sob a custódia da senhora Bug que os levou a cozinha para que se lavassem, comessem e entrassem em calor.
Encontrei ao Jamie em seu estudo, reclinado na cadeira; tinha os olhos fechados e uma espécie de desenho na mesa, frente a ele. Não dormia. Para ouvir minhas pegadas abriu os olhos.
-Feliz Ano Novo- disse pelo baixo. E me inclinei para lhe dar um beijo.
-Feliz Ano Novo a ti também, a nighean donn.- Estava morno e cheirava um pouco a cerveja e a suor seco.
-Ainda quer sair?- perguntei-lhe, jogando uma olhada à janela. A lua se pôs muito antes e as estrelas ardiam no céu, pálidas e frite. O pátio estava negro e lúgubre.
-Não- disse francamente, enquanto se passava uma mão pela cara-. Quero me deitar.- Bocejou, tratando de alisar o cabelo. Logo acrescentou, generosamente-: Mas quero que você também venha.
-Nada eu gostaria mais. O que é isso?
Aproximei-me por detrás dele para observar o desenho; parecia uma espécie de plano, com cálculos matemáticos rabiscados nos márgenes. Ele se incorporou, algo mais espaçoso.
-Bom… é um presente do Roger para a Brianna, pelo Hogmanay.
-vai construir uma casa para ela? Mas se…
-Para ela não.- Olhou-me com um sorriso-. Para os Chisholm.
Roger, com uma astúcia digna do mesmo Jamie, tinha indagado entre os habitantes da Colina até obter um acordo entre o Ronnie Sinclair e Geordie Chisholm.
-E enquanto isso, Roger e Bree recuperarão sua cabana, Lizzie e seu pai não terão que dormir no consultório e tudo será mel sobre folhinhas?- perguntei, encantada-. Que acerto tão estupendo! O plano é tua obra?
-Sim. Geordie não é bom carpinteiro; não quero que a construção se derrube sobre ele.
depois de analisar os desenhos com os olhos entreabridos, agarrou uma pluma do frasco, abriu o tinteiro e corrigiu uma cifra.
-Preparado- disse, deixando cair a pluma-. Com isto bastará. O pequeno Roger quer acostumar-lhe ao Bree esta noite, quando voltarem; prometi-lhe deixá-lo à vista.
-Ela estará encantada.- Apoiei-me no respaldo da cadeira para lhe massagear os ombros. Ele se inclinou para trás, quente o peso de sua nuca contra meu ventre, e fechou os olhos com um suspiro de prazer.
-Dói-te a cabeça?- perguntei pelo baixo, detectando a ruga vertical entre os olhos.
-um pouco. OH, sim, que maravilha!
Eu tinha elevado as mãos para lhe massagear brandamente as têmporas. A casa estava em silêncio, embora ainda me chegava um rumor de vozes na cozinha. Mais à frente, o som agudo e doce do violino do Evan flutuava no ar frio.
-Minha donzela de cabelo castanho- suspirei, cheia de lembranças-. eu adoro essa canção.
E soltei a cinta que sujeitava sua trança; desfiz-a entre os dedos, desfrutando de sua morna suavidade.
-É estranho que não tenha ouvido para a música- comentei por distrai-lo, enquanto penteava os arcos avermelhados de suas sobrancelhas, pressionando o bordo das conchas-. Não sei por que, mas a aptidão para as matemática está acostumada vir acompanhada do talento para a música. Bree tem ambas as coisas.
-Eu também, antes- disse ele, distraído.
-Você também o que?
-Tinha ambas as coisas.- inclinou-se para diante para estirar o pescoço, com os cotovelos apoiados na mesa-. Humm, Santo Céu. Por favor, sim.
-De verá?- Massageei-lhe o pescoço e os ombros, esfregando os músculos duros sob o pano-. vais dizer me que antes sabia cantar?
Era uma piada familiar: Jamie tinha boa voz para falar, mas seu ouvido era tão errático que qualquer canção, entoada por ele, dormia aos bebês por atordoamento, não porque os arrulhasse.
-Bom, possivelmente nem tanto.- Percebi o sorriso em sua voz, apagada pelo cabelo que lhe cobria a cara-. Mas podia distinguir uma melodia de outra e reconhecer se estava bem ou mau cantada. Agora é só ruído ou chiados.- E se encolheu de ombros, descartando o tema.
-O que aconteceu? E quando?
-Pois foi entes de te conhecer, Sassenach. Muito pouco antes, em realidade.- Elevou uma mão, buscando-a nuca-. Recorda que tinha estado na França? Enquanto retornava, com o Dougal MacKenzie e seus homens, apareceu Murtagh, vagando pelas Terras Altas com sua camisa…
Falava com ligeireza, mas meus dedos tinham achado a antiga cicatriz sob o cabelo. Não era a não ser um fio; a cicatriz se reduziu até ficar da grossura de um cabelo. Mas tinha sido uma ferida de vinte centímetros, aberta com uma tocha, e esteve a ponto de matá-lo. Passou quatro meses em uma abadia francesa, ao bordo da morte, e durante vários anos sofreu terríveis dores de cabeça.
-Foi por isso? Diz que, depois de receber essa ferida, já não voltou a perceber a música?
Ele encolheu brevemente os ombros.
-Não percebo mais música que o bater dos tambores- disse simplesmente-. Ainda fica o ritmo, mas a melodia há desparecido.
Minhas mãos se detiveram em seus ombros. Ele se voltou a me olhar com um sorriso, como se tratasse de tomá-lo a brincadeira.
-Não se preocupe, Sassenach. Não é nada. Antes tampouco cantava bem. E Dougal não me matou, depois de tudo.
-Dougal? Crie que foi ele?
Surpreendeu-me a certeza de sua voz. Então eu tinha pensado que podia ter sido seu tio o que lançasse esse ataque homicida contra ele e que, surpreso por seus próprios homens antes de poder concluir sua obra, tinha fingido que acabava de encontrar o ferido. Mas não tinha provas para afirmá-lo.
-OH, sim. Ele também parecia surpreso, mas logo trocou de expressão-. OH, sim- repetiu com mais lentidão-. Não me tinha dado conta… Não entendeu o que disse ao morrer, verdade? Quero dizer Dougal.
Minhas mãos ainda descansavam em seus ombros; senti que o percorria um estremecimento involuntário, que se estendeu por meus braços, me arrepiando o pêlo até a nuca.
Voltei a ver o desvão da Casa Culloden, com tanta claridade como se a cena se desenvolvesse ante mim. Móveis desprezados, objetos tombados na luta… e no chão, encolhido a meus pés, Jamie lutava com o Dougal, que corcoveava e resistia, com um borbulho de sangue e ar na ferida que a adaga de seu sobrinho lhe tinha aberto no pescoço. Sua cara mudada pela perda do sangue vital, os olhos negros e ferozes, cravados no Jamie, enquanto sua boca se movia em gaélico silencio, dizendo… algo. E Jamie, tão pálido como Dougal, olhava fixamente os lábios do moribundo para ler essa última mensagem.
-O que disse?
Ele apartou a cara, enquanto eu subia os polegares sob seu cabelo em busca dessa velha cicatriz.
“ Embora seja filho de minha irmã… oxalá te tivesse matado aquele dia, na montanha. Do começo soube que seria você ou eu.”
Disse-o em voz baixa e serena. A mesma falta de emoção dessas palavras fez que o calafrio voltasse a passar, esta vez de mim a ele. É estudo estava em silêncio.
-Por isso disse que tinha feito as pazes com o Dougal- murmurei.
-Sim.- Reclinado na cadeira, elevou as mãos para me rodear calidamente as bonecas-. Ele tinha razão, sabe? Era ele ou eu. E assim teria sido, de um modo ou outro.
Com um suspiro, uma pequena carga de culpa se desprendeu de meu ser. Como Jamie tinha matado ao Dougal por me defender, eu sempre tinha pensado que essa morte pesava sobre mim. Mas ele tinha razão: havia muito entre eles; se esse conflito final não tivesse surto então, na véspera do Culloden, teria sido em outro momento.
Jamie me estreitou as bonecas e girou na cadeira, sem me soltar.
-Deixemos aos mortos com os mortos, Sassenach- murmurei-. O passado se foi; o futuro ainda não chegou. E aqui estamos juntos, você e eu.
A casa estava em silêncio; era a oportunidade perfeita para realizar meus experimentos. Preparei uma bandeja com uma taça e uma bule, nata e açúcar, que levei comigo à consulta, junto com as amostras, e enquanto o chá repousava, agarrei um par de frasquitos do armário e saí da casa.
O dia era glacial, mas belo, com um céu pálido que prometia melhores temperaturas para quando avançasse a manhã. Nesse momento o frio era tal que me alegrei de ter posto meu xale. Na artesa dos cavalos a água tinha uma capa de frágil gelo, mas não estaria tão geada como para que os micróbios se morreram. Os largos fios de algas que recubrían as pranchas da artesa se moveram lentamente sob a água quando parti a fina capa de gelo e raspei o bordo viscoso com um de meus frascos.
Recolhi mais amostras de líquido da vertente e do atoleiro estagnado perto da letrina. Logo voltei apressadamente para a casa, para fazer minhas provas com boa luz.
O microscópio seguia junto à janela, onde eu o tinha instalado no dia anterior. Bastaram uns poucos segundos para depositar umas gotas nas platinas que tinha preparadas; logo me inclinei para olhar pelo ocular, arrebatada pela espera.
O ovóide de luz se avultou, diminuiu, desapareceu por completo. Fiz girar a porca com tanta lentidão como pude Y... ali estava! Estabilizado o espelho, a luz resolveu em um círculo perfeito, janela ao outro mundo.
Encantada, contemplei o furioso bater de cílios de um paramecio, que perseguia empecinadamente a uma presa invisível. Logo, um silencioso movimento do campo visual, enquanto a gota de água variava em suas microscópicas marés. Aguardei um momento mais, com a esperança de identificar a uma dessas velozes e elegantes euglenas, ou possivelmente alguma hidra. Mas não tive sorte: só misteriosos fragmentos verdinegros, manchas de refugos celulares e células de algas arrebentadas.
Movi a platina de um lado a outro sem achar nada de interesse. Não importava: tinha muitas outras coisas que observar. depois de esclarecer o retângulo de vidro com álcool, deixei-o secar. Logo inundei uma varinha de vidro em um dos pequenos copos de precipitação alienados ante o microscópio e deixei cair uma gota de líquido no portaobjetos limpo.
Tinha tido que provar várias vezes antes de poder armar corretamente o microscópio. Não se parecia muito à versão moderna, sobre tudo se se dividia em partes para guardá-lo na atrativa caixa do doutor Rawling. Mesmo assim as lentes eram identificáveis; com elas como ponto de partida, tinha conseguido ajustar à base as peças ópticas sem maior dificuldade. O mais difícil foi obter suficiente luz. Foi muito emocionante obter que funcionasse.
- O que faz, Sassenach? – perguntou-me Jamie da soleira da porta, com uma torrada na mão.
- Vejo coisas - respondi, ajustando o foco.
- Sim? Que tipo de coisas? – Entrou com um sorriso -. Espero que não sejam fantasmas. Já estou farto de esses.
- Vêem olhar – lhe ofereci, me apartando do microscópio.
Um pouco intrigado, inclinou-se para o ocular, fechando o outro olho em um gesto de concentração. Entortou os olhos um momento. Logo lançou uma exclamação de tráfico surpresa.
- Vejo-as! Pequenas coisas com cauda que nadam por toda parte!
Ergueu as costas com um sorriso encantado. Em seguida voltou a inclinar-se. Experimentei uma cálida sensação de orgulho ante meu novo brinquedo.
- Não é uma maravilha?
- Uma maravilha, sim – confirmou ele, absorto -. Olhe como se esforçam esses pequeñajos, puxando e retorcendo uns contra outros. E quantos há!
Observou uns segundos mais, entre exclamações. Logo moveu a cabeça, assombrado.
- Nunca tinha visto nada igual, Sassenach. Você me tinha falado dos gérmenes, sim, mas na vida pensei que fossem assim! Me imaginava com dientecitos, e não têm. E nunca pensei que teriam esses rabos tão bonitos nem que nadariam tão apertados.
- Bom, alguns microorganismos são assim – comentei, enquanto jogava uma olhada pelo ocular-. Não obstante, estas bestezuelas não são gérmenes, a não ser espermatozóides.
- O que? – Pôs cara de não compreender.
- Espermatozóides – repeti, paciente-. Células reprodutivas masculinas. Das que servem para fazer bebês, entende?
Pareceu-me que ia sufocar se. Ficou boquiaberto, com um atrativo matiz rosado no semblante.
- Semente? – grasnou.
- Pois... sim.
Observei-o atentamente enquanto vertia o chá fumegante em um copo de precipitação limpo. O dava como tônico, mas não lhe emprestou atenção. Mantinha a vista fixa no microscópio, como se algo pudesse saltar por ali e ficar retorcendo-se no chão, a nossos pés.
- Espermatozóides – murmurou para seus adentros -. Espermatozóides. – Agitou vigorosamente a cabeça e se voltou para mim, como se lhe tivesse ocorrido algo espantoso-. De quem são?
Seu tom expressava a mais sinistra suspicacia.
- Pois... teus, é obvio. – Pigarreei, um pouco sobressaltada -. De quem foram ser se não?
Como por reflexo, ele colocou uma mão entre as pernas para agarrar-se protectoramente.
- Como diabos os conseguiu?
- Como crie? – pronunciei, bastante fria -. Esta manhã, ao despertar, tinha-os em custódia.
Ele afrouxou a mão, mas um intenso rubor de mortificação lhe tingia as bochechas de escuro carmesim. bebeu-se de um gole de chá, apesar do quente que estava.
- Compreendo. – E tossiu.
Houve um instante de profundo silêncio.
- Não ... né... ignorava que pudessem manter-se com vida – disse ao fim - . Né... fora, quero dizer.
- Pois não podem se é que os deixa secar em uma mancha do lençol – lhe expliquei com ligeireza -. Mas se impedir que se sequem – assinalei o pequeno copo abafado, com uma pequena quantidade de fluido blancuzco -, resistem umas quantas horas. E no hábitat adequado sobrevivem até uma semana depois de... né... ser liberados.
- No hábitat adequado – repetiu ele, pensativo -. Refere-te A...
- Em efeito – confirmei, com certa aspereza.
- Hum. – Nesse momento se lembrou da torrada que ainda tinha na mão e lhe deu uma dentada. Mastigava com ar meditativo -. A gente sabe isto? Agora, quero dizer.
- Se souber o que? Como são os espermatozóides? Sim, quase com segurança. O microscópio existe há mais de cem anos. E quando tem um microscópio em funcionamento, o primeiro que faz é observar tudo o que tem ao alcance de sua mão. Considerando que o inventor do microscópio foi um homem, eu diria que... Não te parece?
Ele me olhou e mastigou com decisão outro bocado.
- Eu não diria exatamente “ ao alcance da mão” , Sassenach – disse, com a boca enche-. Mas entendo o que quer dizer.
Como atraído por uma força irresistível, foi olhar outra vez pelo microscópio.
- Parecem muito enérgicos – aventurou, depois de uma breve inspeção.
- Pois assim devem ser – assegurei, contendo um sorriso ante o envergonhado orgulho que lhe produziam as proezas de suas gametas-. depois de tudo, o trajeto é largo. E ao final os espera um terrível combate. Só a gente obtém a honra, sabe?
Levantou a vista, sem compreender. Então caí na conta de que não sabia. Em Paris tinha estudada matemática, idiomas e filosofia grega e latina, mas não medicina. E embora os cientistas da época já conheciam espermatozóide como entidade individual, antes que como substância homogênea, me ocorreu que provavelmente não tinham a menor ideia de como se comportava.
- Dê onde acreditava que vinham os bebês? – inquiri, depois de lhe informar a respeito de óvulos, espermatozóides, zigotos e coisas parecidas, todo o qual o deixou obviamente vesgo.
Olhou-me com bastante frieza.
- Eu, granjeiro de toda a vida? Sei exatamente de onde vêm – me informou-. O que não sabia era... né... que havia tanto animação. Acreditava que... pois... que o homem plantava sua semente no ventre da mulher e que ali... pois... crescia. Como qualquer semente. Nabos, milho, melões e coisas assim. Ignorava que nadassem como girinos.
-Compreendo. – Esfreguei-me o nariz com um dedo, tratando de não rir-. Desde aí essa classificação agrícola das mulheres entre férteis ou estéreis.
- Hum. – Desprezou isso com um gesto. Ainda olhava, carrancudo, a platina lhe bulam-. Uma semana, há dito. portanto realmente sim é possível que o pequeno seja filho do Astuto.
A essa hora tão temprana demorei como segundo meio em saltar da teoria às aplicações práticas.
- Ah, refere ao Jemmy? Sim, é muito possível que seja filho do Roger. – Ele e Bonnet tinham tido contato sexual com a Brianna com dois dias de diferença -. É o que te disse. E também a ela.
Ele assentiu com ar distraído. Logo se meteu o resto da torrada na boca. Enquanto mastigava se inclinou para olhar outra vez.
- me diga, são distintos? os de um homem se podem distinguir dos de outro?
- Né... pelo aspecto não. – Agarrei minha taça para beber um sorvo de chá, desfrutando de seu delicado perfume. – Mas sim que são diferentes; cada um é portador das características que cada homem passa a sua prole.
Não era prudente passar dali; já o tinha confundido muito ao lhe descrever a fertilização; lhe explicar o que eram gens e os cromossomos, podia ser excessivo.
- Mas as diferenças nem sequer se vêem com o microscópio.
Ele tragou seu bocado com um grunhido e endireitou as costas.
- E para que está olhando?
- Por curiosidade. – Assinalei a série de frascos e copos de precipitação alinhados na encimera. – Queria ver que resolução tinha o microscópio, que tipo de coisas se podiam ver com ele.
- Se? E agora o que? Quer dizer, para que o quer?
- Pois para diagnosticar com mais precisão. Se coxo uma amostra dos excrementos de uma pessoa, por exemplo, e vejo que tem parasitas intestinais, saberei melhor que remédio lhe dar.
- Sim, tem sentido. Bem, segue com o teu.
Deu-me um beijo fugaz e partiu para a porta, mas se voltou antes de sair.
- Ouça, os... hum.. espermatozóides – disse, com certo sobressalto.
- Sim?
- Não pode levá-los fora e lhes dar sepultura decente ou algo assim?
Escondi um sorriso em minha taça de chá.
Cuidarei-os bem – lhe prometi -. como sempre.
Ali estavam. Caules escuros, terminados em esporos em forma de bastoncillos, densos contra o fundo claro do campo visual do microscópio. Confirmação.
- Tenho-os.
Ergui-me para me esfregar lentamente a cintura, enquanto observava meus preparados. Junto ao microscópio havia três platinas, cada uma com uma mancha escura no centro e um código escrito na esquina, com um trocito de cera. Eram amostras de mofo, tiradas de pão de milho úmido, bolachas passadas e a casca de um bolo que sobrou do Hogmanay. Com diferença, o melhor cultivo era o do trocito de casca, por efeito da graxa de ganso, sem dúvida.
Das diferentes prova que tinha realizado, estas três eram as que continham maior proporção do Penicillium... ou do que parecia sê-lo. No pão molhado brotavam quantidade de mofos, além de várias cepas diferentes de penicillium, mas as amostras escolhidas por mim continham o mais parecido às ilustrações de esporofitos que mostravam meus livros de texto de anos atrás, da outra vida.
Só terei que confiar em que não me falhasse a memória... e que as cepas de mofo ali pressente figurassem entre aquelas que produziam maior quantidade de penicilina; que eu não tivesse introduzido inadvertidamente alguma bactéria virulenta na mescla e que... Cabia esperar muitas coisas, mas chega um momento em que se abandona a esperança pela fé e se confia no destino antes que na caridade.
Na encimera se alinhavam várias terrinas de caldo, cada um talher com uma parte de musselina para evitar que algo caísse dentro. Alguns dos cultivos tinham prosperado; outros não. Um par de terrinas apresentavam grumos peludos de cor verde escura, que flutuavam sob a superfície como sinistras bestas marinhas. Havia alguns intrusos: musgo, bactérias ou talvez uma colônia de algas, mas o precioso Penicillium brilhava por sua ausência.
Alguns dos meninos tinha derrubado uma terrina; Adso derrubou outro, enlouquecido pelo aroma de caldo de ganso, e lambeu o conteúdo, com mofo e tudo, dando amostras de desfrutá-lo. Obviamente, em esse não havia nada tóxico. Joguei uma olhada ao gatinho, que dormitava no chão, acurrucado em um atoleiro de sol; era a imagem viva de um sonolento bem-estar.
Não obstante, três das terrinas restantes apresentavam na superfície um esponjoso veludo azul. Ao examinar uma amostra de um deles, confirmei que tinha obtido o que procurava. O mofo, por si mesmo, não era um antibiótico, mas sim a substância clara que segregava, como amparo contra o ataque das bactérias. Essa substância era a penicilina, e era o que eu desejava.
Assim o tinha explicado ao Jamie, que me observava de um tamborete, enquanto eu filtrava o caldo de outro cultivo em uma parte de gaze.
- Assim aí tem caldo mijado pelo mofo, não é assim?
- Se insistir em expressar o desse modo, sim. – Olhei-o severamente. Logo recolhi a solução filtrada para distribui-la em vários botes de barro.
Ele insistiu, satisfeito por havê-lo interpretado bem.
- E os pise em do mofo são o que curam a enfermidade, não? É razoável.
- Parece-te?
- Se usar outros tipos de mijadas como remédio, por que não? – disse-me assinalando o grande registro negro, que eu tinha deixado aberto na encimera detrás apontar a última série de experimentos. Ele se tinha entretido lendo algumas das páginas anteriores, escritas pelo doutor Daniel Rawlings, antigo proprietário do livro.
- É possível que Daniel Rawlings as usasse. Eu não. – Como tinha as mãos ocupadas, mostrei a página aberta com o queixo-. Para que as usava?
- “ Electuario para o tratamento do escorbuto” - leu, seguindo com o dedo as pulcras linhas do Rawlings -. “ Duas cabeças de alho trituradas com seis rabanetes picantes, ao que se adiciona Bálsamo do Peru e dez gotas de mirra, composto este que se mescla com as águas de um menino varão, para ser convenientemente bebido. “
- Salvo pelo último, parece um condimento bastante exótico – comentei, divertida-. Com que ira melhor? Lebre escabechada? Guisado de vitela?
- Não, a vitela tem um sabor muito suave para combiná-la com o rabanete picante. Panela de cordeiro, possivelmente – replicou -. O cordeiro suporta algo. – Sua língua percorreu distraídamente o lábio superior-. por que de um menino varão, Sassenach? encontrei a menção em outras receitas. No Aristóteles e também em outros filósofos antigos.
Comecei a limpar minhas platinas.
- É mais fácil de recolher a urina de um menino varão que a de uma menina; bastaria-te provando uma vez. Embora pareça mentira, a urina dos bebês varões é muito limpa, sem que chegue a ser completamente estéril. Possivelmente os antigos filósofos notaram que obtinham melhores resultados quando a incluíam em suas fórmulas, porque era mais limpa que a água potável que se recolhia dos aquedutos públicos, poços artesianos e sítios similares.
- Quando diz estéril não te refere a que não possa reproduzir-se, mas sim não contém gérmenes, verdade? – Jogou uma olhada receosa ao microscópio.
- Sim. Quer dizer... os gérmenes não podem reproduzir-se porque não há nenhum.
Uma vez limpa a mesa de trabalho, excetuando o microscópio e as terrinas de caldo de penicilina (ao menos, era de esperar que isso contiveram), iniciei os preparativos para a operação: baixei meu pequeno estojo de instrumentos cirúrgicos e extraí do armário uma grande garrafa de álcool de cereais.
O entreguei ao Jamie, junto com o pequeno aquecedor que me tinha fabricado: uma garrafa de prova vazia, por cuja cortiça passava uma mecha de linho retorcido e encerado.
- me encha isto, quer? Onde estão os meninos?
- Na cozinha, embebedando-se. – Verteu cuidadosamente o álcool, franzindo as sobrancelhas em um gesto de concentração. - Com que a urina das meninas não é poda? Ou só mais difícil de obter?
- Não, em realidade não é tão limpa como a dos varões.
Sobre um pano limpo estendido na encimera distribuí dois bisturis, um par de fórceps de extremo comprido e vários cauterios pequenos. Rebusquei no armário até desenterrar um punhado de plugues de algodão. Embora o pano de algodão era terrivelmente custoso, tinha tido a sorte de que a esposa do Facquard Campbell me trocará um saco de flocos crudos por um frasco de mel.
- poderia-se dizer que o... hum... o caminho para o exterior não é tão direto, de modo que a urina tende a recolher bactérias e refugos de entre as dobras da pele. – Olhei-o por cima de meu ombro, sorridente. – Mas isso não o autoriza a considerar-se superiores.
- Nem me sonhá-lo assegurou. - Já está preparada, Sassenach?
- Se. Vá a por eles. Ah, e traz a bacia!
Quando saiu me voltei para a janela que dava a Levante. Durante a véspera tinha nevado intensamente, mas agora tínhamos um bom dia, luminoso e frio. Não podia pedir nada melhor: necessitava toda a luz possível. Não era uma operação difícil; já a tinha praticado várias vezes, mas nunca em alguém que estivesse bem sentado e consciente. Isso sempre trocava as coisas.
Além disso levava vários anos sem fazê-lo. Fechei os olhos para recordar, visualizando os passos a seguir; os músculos de minha mão se contraíam apenas, como eco de meus pensamentos, antecipando-se aos movimentos que deveria fazer.
- Que Deus me ajude – sussurrei, enquanto me fazia o sinal da cruz.
Pisadas em inseguras, risitas nervosas e a voz grave do Jamie no corredor. Voltei-me para saudar meus pacientes com um sorriso.
Um mês de boa alimentação, roupa poda e camas quentes tinham melhorado enormemente aos Beardsley, tanto em saúde como em aspecto. Ainda eram miúdos, fracotes e algo patizambos, mas os ocos da cara lhes tinham recheado um pouco, o cabelo escuro era mais suave e seus olhos tinham perdido em parte a expressão de acossada desconfiança.
Em realidade, ambos os pares de olhos escuros estavam nesses momentos algo frágeis. Lizzie teve que sujeitar ao Keziah por um braço para que não tropeçasse com um tamborete. Jamie, que tinha ao Josiah bem obstinado pelo ombro, guiou-o para mim. Logo baixou o molde para pudins que trazia sob o braço.
- Está bem? – Olhei-o ao fundo dos olhos, com um sorriso reconfortante, e a apertei o braço.
Ele tragou saliva com dificuldade. O sorriso com que me respondeu era horripilante; não estava tão ébrio como para não sentir medo. Fiz que se sentasse, sem parar de falar para tranqüilizá-lo; depois de lhe rodear o pescoço com uma toalha, deposite a bacia sobre seus joelhos. Oxalá não a deixasse cair; era de porcelana e quão única servia para fazer pudins. Para minha surpresa, Lizzie lhe aproximou por detrás e lhe pôs as mãos nos ombros.
- Quer ficar, Lizzie? – perguntei, dúbia. – Acredito que podemos nos arrumar perfeitamente.
Jamie estava acostumado ao sangue e a todo tipo de açougues, mas Lizzie não devia ter visto nada, além das enfermidades típicas e um ou dois partos.
- OH, não, senhora. Ficarei. – Ela também tragou saliva, mas afirmou com valentia a pequena mandíbula. – Prometi ao Jo e ao Kezzie que os acompanharia desde o começo até o fim.
Olhei ao Jamie; ele se encolheu imperceptivelmente de ombros.
- Pois adiante.
Enchi duas taças com o caldo que continha penicilina e lhe dava uma a cada gêmeo, para que o bebessem. Era provável que os ácidos estomacais rebatessem a maior parte da penicilina, mas eu esperava que matasse as bactérias da garganta. depois da operação outra dose sobre a superfície em carne viva poderia evitar a infecção.
Não havia maneira de saber exatamente quanta penicilina havia no caldo; é possível que lhes tivesse dado dose enormes ou possivelmente fossem muito pequenas para causar algum efeito. Pelo menos estava razoavelmente segura de que a droga do caldo estava ativa.
Não havia médios para estabilizar o antibiótico nem para saber quanto tempo duraria suas propriedades, mas como estava fresco, a solução tinha que atuar. E era possível que o resto do caldo fora útil durante alguns dias mais.
Prepararia mais cultivos assim que tivesse terminado a operação; com um pouco de sorte poderia administrar a medicação aos gêmeos com regularidade durante três ou quatro dias. E se a fortuna nos acompanhava, desse modo evitaria qualquer infecção.
- Ah, com que isso se pode beber, né? – Jamie me estava observando por cima do Josiah.
Uns anos antes eu lhe tinha injetado penicilina por causa de uma ferida de bala; obviamente, agora pensava que o tinha feito por puro sadismo. Sustentei seu olhar.
- pode-se, mas a penicilina injetável é muito mais efetiva, sobre tudo em casos de infecção declarada. Neste momento não tenho como injetá-la. E não a estou aplicando para curar uma infecção, a não ser para evitar a possibilidade. E agora, se já estivermos preparados...
Espera que Jamie sujeitasse a meu paciente, mas tanto Lizzie como Josiah insistiram em que não seria necessário. O moço se manteria imóvel, passasse o que acontecesse. Lizzie seguia lhe estreitando os ombros, até mais pálida que ele, com os nódulos recortados em branco.
- Preparado? – perguntei
O depresor de língua, feito com uma parte de madeira de fresno, lhe impedia de falar, mas emitiu um grunhido que interpretei como assentimento.
Teria que ser rápida e fui. Se os preparativos tinham requerido horas inteiras, a operação só levou um minuto. Sujeitei com os fórceps uma amídala vermelha e esponjosa, estirei-a para mim e realizei vários cortes rápidos, separando diestramente as capas de malha. Da boca do menino surgia um fio de sangue que corria por sua mandíbula, mas não era nada sério.
Retirei o grumo de carne e, depois de jogá-lo na bacia, sujeite a outra amídala, com a que repeti o processo; o fato de trabalhar com a mão inclinada para trás me atrasou muito pouco.
Todo aquilo não durou mais de trinta segundos por cada lado. Quando retirei os instrumentos da boca do Josiah, ele me olhou com os olhos dilatados, atônito. Logo tossiu e se inclinou para diante para arrojar outra pequena parte de carne à bacia, acompanhado por certa quantidade de sangue muito vermelho.
O assim pelo nariz para lhe jogar a cabeça atrás. depois de lhe encher a boca de algodão a fim de que absorvesse o sangue e me permitisse ver, agarrei um pequeno cauterio e o apliquei aos copos sangüíneos maiores; os mais pequenos se fechariam por si só.
Os olhos lhe lacrimejavam ferozmente e suas mãos aferravam a bacia com rigidez mortal, mas não se moveu, nem emitido queixa alguma. Era o que eu esperava, depois de havê-lo visto quando Jamie lhe tirou a marca do polegar. Lizzie seguia lhe estreitando os ombros, com os olhos bem fechados. Ao lhe tocar Jamie o cotovelo, abriu-os súbitamente.
- Já esta, a muirninn. terminou. leve-lhe isso e faz que se deite, né?
Mas Josiah se negou. Tão mudo como seu irmão, sacudiu violentamente a cabeça e ocupou um tamborete. Ali ficou, embora pálido e cambaleante. Com os dentes delineados em sangue, dedicou a seu irmão um horrendo sorriso.
Lizzie rondava entre os dois gêmeos, vacilando entre um e outro. Jo lhe assinalou com firmeza ao Keziah, que tinha ocupado o tamborete dos pacientes. Exteriormente demonstrava fortaleza, com o queixo erguido. Lhe deu uns tapinhas à cabeça e foi estreitar os ombros do Keziah. O se voltou a olhá-la, com um sorriso de notável doçura, e lhe beijou a mão. Logo fechou os olhos e abriu a boca; parecia um pintinho pedindo vermes.
Essa operação foi algo mais complicada, pois suas amídalas e adenoides estavam muito engrossadas e danificadas pela infecção crônica. Saiu muito sangue; tanto a toalha como meu avental ficaram completamente manchados antes de que eu terminasse. depois de lhe cauterizar as feridas observei atentamente a meu paciente, que estava tão branco como a neve e com os olhos frágeis.
- Encontra-te bem? – perguntei-lhe.
Não podia me ouvir, mas minha expressão preocupada foi bastante clara. Torceu a boca no que pareceu um galhardo esforço por sorrir. Quis assentir com a cabeça, mas pôs os olhos em branco e se deslizou do tamborete a meus pés, com grande estrondo. Jamie apanhou a bacia no ar com bastante destreza.
Pensei que Lizzie também se deprimiria, pois havia sangue por toda parte. Na verdade se cambaleou um poquito, mas obedeceu minha ordem de sentar-se junto ao Josiah. Lhe estreito a mão com firmeza, enquanto Jamie e eu recolhíamos os fragmentos.
Jamie elevou ao Keziah, laço e ensangüentado como a vítima de um homicídio. Seu irmão se levantou, fixos os olhos ansiosos no corpo inconsciente de seu irmão.
- Tudo sairá bem – assegurou Jamie, em tom de absoluta confiança.- Como te hei dito, minha mulher é uma grande curadora.
E todos se voltaram a me olhar com um sorriso; Jamie, Lizzie e Josiah. Tive a impressão de que correspondia agradecer com uma reverência, mas me contente sorrindo também.
- Tudo sairá bem, sim – disse, imitando ao Jamie. – Agora vão descansar.
A pequena procissão abandonou o consultório de uma maneira mais silenciosa que a sua chegada, enquanto eu guardava meus instrumentos e limpava tudo.
Sentia-me muito feliz, iluminada pela serena satisfação que acompanha a um trabalho obtido. Levava muito tempo sem fazer algo assim; as exigências e limitações do século XVIII impediam qualquer operação cirúrgica, salvo aquelas que se praticavam em casos de emergência. Ao não contar com anestesia nem antibióticos, a cirurgia era muito difícil e perigosa.
Mas agora tinha ao menos penicilina. E tudo sairia bem, sim, disse-me, cantarolando para meus adentros enquanto apagava a chama do aquecedor. Tinha-o percebido na carne dos moços, ao tocá-los enquanto operava. Nenhum germe os ameaçaria, nenhuma infecção deveria arruinar o esmero de meu trabalho. Na prática da medicina, a sorte sempre contava, mas esse dia as probabilidades estavam de minha parte.
- Tudo sairá bem – repeti para o Adso, que lambia concentrado uma das terrinas vazias -. E tudo sairá bem. E todo tipo de coisas sairá bem.
O grande registro negro seguia aberto na encimera, ali onde Jamie o tinha deixado. Procurei as últimas páginas, onde tinha pontudo o desenvolvimento de meu experimento, e agarrei a pluma. depois do jantar descreveria os detalhes da operação. No momento... Fiz uma pausa. Logo escrevi ao pé da página: “ Eureca!”
Em meados de fevereiro Fergus fez sua viagem bimensal ao Cross Creek, de onde retornou com sal, agulhas, anil, outros elementos imprescindíveis e uma bolsa cheia de correspondência. Chegou no meio da tarde, tão desejoso de reencontrar-se com o Marsali que apenas ficou o suficiente para beber um tigela de cerveja antes de ir-se. Brianna e eu ficamos classificando os pacotes e nos regozijando ante tanta riqueza.
Havia um montão de periódicos publicados no Wilmington e New Bern; também uns quantos da Filadelfia e Boston, que os amigos do norte enviavam a Yocasta Cameron e ela nos reenviava depois. Folheei-os; o mais recente datava de três meses atrás, mas não importava, nesse lugar, onde o material de leitura era literalmente mais escasso que o ouro, os periódicos eram como novelas.
Yocasta tinha enviado também, para a Brianna, dois números do livro Brigham para a dama, uma publicação periódica com desenhos da moda elegante de Londres e artigos de interesse para as mulheres que tivessem esses gostos.
- “ Como limpar o encaixe de ouro” - leu Brianna ao azar, com uma sobrancelha arqueada-. Isso é algo que todo mundo deveria saber, sem duvidá-lo.
- Olhe as páginas de atrás – lhe aconselhei-. Ali é onde publicam os artigos sobre como evitar o contágio de gonorréia e o que fazer com as hemorroides de seu marido.
A outra sobrancelha subiu também; parecia-se com o Jamie quando lhe apresentava alguma proposta extremamente questionável.
- Se meu marido me contagiasse a gonorréia, teria que ocupar-se de seus hemorroides por si só. – Passou umas quantas páginas, arqueando as sobrancelhas cada vez mais -. “ Incentivo para Vênus. Uma lista de remédios infalíveis para a fadiga do membro viril. “
Apareci em olhar por cima de seu homem, arqueadas minhas próprias sobrancelhas.
- Por certo, onde está Jemmy?
- Dormindo... ao menos isso acredito. – Jogou um olhar suspicaz ao teto. Como não se ouvisse nenhum ruído funesto, continuou lendo.
Voltei para a correspondência, deixando que continuasse com seu fascinante estudo.
Havia um pacote dirigido ao Jamie que parecia ser um livro; enviava-o uma livraria da Filadelfia, mas levava o selo de lorde John Grei: uma mancha de cera azul, caprichosamente marcada com uma medialuna sorridente e uma só estrela. A metade de nossa biblioteca provinha do John Grei, quem assegurava que nos enviava isso para sua própria satisfação, pois além do Jamie, não conhecia nas colônias a outra pessoa capaz de manter uma discussão decente sobre literatura.
Também havia várias cartas dirigidas a ele; inspecionei-as uma a uma, com a esperança de ver a característica letra bicuda de sua irmã, mas não houve sorte. Uma era do Ian, que nos escrevia fielmente uma vez ao mês. Do Jenny, nada; não tínhamos tido notícias dela nos seis últimos meses, desde que Jamie lhe escrevesse, relutante, para lhe informar do destino de seu filho menor.
- Como é, Jenny Murray – murmurei pelo baixo-. Perdoa-o e acabemos de uma vez!
- Hum? – Brianna tinha deixado o periódico para examinar uma carta quadrada, com o sobrecenho enrugado.
- Nada, nada. O que tem aí? – Deixei as que eu tinha estado classificando para me aproximar de ver.
- É do tenente hayes, Para que terá escrito?
Uma pequena descarga de adrenalina me esticou o estômago. Deveu notar-se em minha despreparada cara, pois Brianna deixou a carta para me olhar, franzindo as sobrancelhas.
- O que aconteceres? – inquiriu.
- Nada.
Mas já era muito tarde. Ela me olhava com um punho parecido no quadril e uma sobrancelha arqueada.
- Que mal memore, mamãe! – disse, tolerante. E sem vacilação alguma, rompeu o selo.
- Está dirigida a seu pai – assinale, embora meu protesto carecia de força.
- Sim. A outra também – replico ela, com a cabeça inclinada sobre a folha.
- Qual? – Mas minta lhe perguntava, aproximei-me de ler junto a ela.
Tenente Archibald Hayes
Postmouth, Virginia
Senhor James Fraser
Colina de Frase, Carolina do Norte
18 de janeiro de 1771
Senhor:
Escrevo-lhe para lhe informar que à presente estamos no Portsmouth, onde provavelmente deveremos permanecer até a primavera. Se conhecer você a algum capitão de mar que esteja disposto a brindar passagem ao Perth para quarenta homens, com a promessa de ser recompensado pelo Exército, uma vez que cheguemos a porto, muito lhe agradeceria que me fizesse saber isso a sua mais breve comodidade.
Enquanto isso, aplicamos a diversos trabalhos, a fim de poder nos manter durante os meses de inverno. Vários de meus homens conseguiram emprego na reparação de navios, que aqui é abundante. Por minha parte, desempenho-me como cozinheiro em um botequim local, mas procuro tempo para visitar regularmente a meus homens, nos diferentes alojamentos nos que estão distribuídos, com o propósito de me inteirar de seu estado.
Faz duas noites visitei uma dessas pensões. No curso da conversação um dos homens (o recruta Ogilvie, a quem você recordará) repetiu-me uma conversação que tinha ouvido casualmente no estaleiro. Como se referia a certo Stephen Bonnet, em quem está você interessado, segundo lembrança, transmito-lhe aqui o que soube a respeito. Conforme os informe, Bonnet parece ser contrabandista, ocupação nada estranha nesta zona. Entretanto, parece traficar com mercadoria de maior qualidade e em maior quantidade que as habituais. Como conseqüência, a natureza de suas vinculações também parece ser fora do corrente. Isto implica que certos depósitos da costa da Carolina contêm periodicamente mercadorias de características que, pelo general, não se encontram ali, e que essas visitas coincidem com os avistamientos do Stephen Bonnet nos botequins e casas de jogo clandestino próximos.
O recruta Ogilvie guarda pouca memória dos nomes especificamente ouvidos, pois não tinha conhecimento de que se tivesse interesse no Bonnet; se me mencionou o assunto foi só como informação curiosa. Um dos homens mencionado era “ Butler” , conforme diz, mas não pode assegurar que esse sobrenome tivesse alguma relação com o Bonnet. Outro nome era “ Karen” , mas o recruta não sabe se corresponder a uma mulher ou a um navio.
O depósito que, segundo ele supõe, é o que se mencionou na conversação de referência (embora admita francamente não estar seguro disso) encontra-se por acaso a não muita distância do estaleiro. Quando ele me teve informado desses conhecimentos, ocupei-me de passar frente a esse edifício e fazer averiguações quanto a seus donos. O edifício é propriedade conjunta de dois sócios: um tal Ronald Priestly e um tal Phillip Wylie. No momento não possuo infamación alguma concernente a um ou outro, mas continuarei investigando segundo me permita isso o tempo de que disponho.
Tendo descoberto o mencionado, fiz um esforço por cercar conversação sobre o Bonnet nos botequins locais, pró com pouco êxito. diria-se que o nome é conhecido, mas que poucos desejam falar dele.
Seu muito seguro servidor, Archibald Hayes,
Tenente do 67º Regimento das Terras Altas
Ainda nos envolviam os ruídos normais da casa, mas Bree e eu parecíamos nos encontrar em uma pequena borbulha de silêncio, onde o tempo se deteve abruptamente.
Resistia a deixar a carta, pois isso faria que o tempo voltasse a correr. E então deveríamos fazer algo. Mas de uma vez não desejava só deixá-la, a não ser arojarla ao fogo e fingir que nenhuma das duas a tinha visto.
Nesse momento Jemmy rompeu a chorar no piso alto; Brianna reagiu com um coice e foi para a porta. Tudo voltou para seu leito normal.
Deixei a carta no escritório, separada das outras, e continuei classificando o resto da correspondência, para que Jamie a atendesse depois, empilhei pulcramente os periódicos e as publicações e desatei o pacote. Tal como eu supunha, era um livro: A expedição do Humphrey Clinker, do Tobías Smollett. Enrole a corda para me guardar isso no bolso. Durante todo esse tempo, no fundo de minha mente ressonava um pequeno “ Agora-o que, agora-o que!” , como um metrônomo.
Brianna retornou trazendo para o Jemmy, que estava avermelhado e com as marcas da sesta na cara; obviamente, seu estado de ânimo era o de quem acordada do sonho a uma aturdida irritação pelas molestas exigências da vida consciente. Sabia como se sentia.
Bree tomou assento e se abriu a camisa para lhe dar de mamar. Os prantos cessaram como por arte de magia. Experimentei um momento de intensa melancolia por não ser capaz de fazer por ela um pouco igualmente efetivo. A via pálida, mas inteira.
Terei que dizer algo.
- Sinto muito, querida – disse-. Tratei de impedir-lhe refiro ao Jamie. Sei que ele não queria que se inteirasse; não queria preocupar-se.
- Não importa. Já sabia.
Com uma só mão, retirou um dos livros de contabilidade da pilha que Jamie tinha sobre o escritório e o sacudiu pelo lombo para fazer cair uma carta dobrada.
- Olhe isso. Encontrei-a enquanto viajavam com a tropa.
Ao ler o relato que lorde John fazia do duelo entre o Bonnet e o capitão Marsden senti algo frio debaixo do esterno. Embora não me fazia iluda sobre o caráter do Bonnet, ignorava que fora tão hábil. Sempre preferi que os criminosos perigosos sejam ineptos.
- Pensei que era a resposta e lorde John a uma pergunta casual de papai, mas vejo que não. O que opina você? – pergunto Bree. Olhei-a com atenção.
- O que opina você? – A meu modo de ver, a pessoa mais importante em todo aquilo era Brianna.
- Sobre o que? – Ela apartou os olhos de meus para a carta, logo para a cabeça do menino.
- Pois... sobre o preço do chá na China, para começar – exclamei, com certa irritação -. Mas passemos agora ao tema do Stephen Bonnet, se não te incomodar.
Resultava estranho pronunciar esse nomeie em voz alta; todos o tínhamos evitado durante meses, por acordo tácito. Ela se mordeu o lábio inferior. Manteve a vista cravada no chão um instante. Depois moveu muito levemente a cabeça.
- Não quero ouvir falar desse homem. Nem pensar nele – disse, sem alterar-se -. E se voltasse a vê-lo, poderia... poderia... – estremeceu-se violentamente. Logo levantou os olhos para mim, com brusca ferocidade, exclamando -: O que lhe passa? como pôde fazer isto?
E descarregou o punho contra sua coxa. Jemmy, sobressaltado, soltou o peito e começou a chorar.
- Refere a seu pai, não ao Bonnet.
Ela assentiu, estreitando novamente ao Jemmy contra o peito, mas o menino tinha percebido sua agitação e se retorcia. Inclinei-me para agarrá-lo e me apoiei isso contra o ombro, consolando-o com tapinhas nas costas. As mãos do Bree, já vazias, cravaram-se em seus joelhos e enrugaram o tecido da saia.
- por que não deixa ao Bonnet em paz? – Teve que elevar a voz para fazer-se ouvir por cima do pranto do bebê. Os ossos de sua cara pareciam ter trocado de posição, pelo tensa que estava a pele sobre eles.
- Porque é homem... e, além disso, escocês das Terras Altas – disse -. Em seu vocabulário não figura a expressão “ Vive e deixa viver” .
O leite gotejava do mamilo à camisa. Ela se cobriu o peito com uma mão e pressionou para detê-la.
- Mas o que pensa fazer se o encontra?
- Quando o encontrar – corrigi a contra gosto -. Muito me temo que não deixará de buscá-lo. Quanto ao que fará então... pois bem... suponho que o matará.
Dito desse modo adquiria um tom despreocupado, mas na verdade não havia outra maneira de expressá-lo.
- Tratará de matá-lo, quererá dizer. – Ela olhou a carta de lorde John e tragou saliva -.E se ele...?
- Seu pai tem muita experiência quanto a matar – disse tristemente -. Para falar a verdade, é muito destro nisso... embora faz tempo que não o faz.
Isso não pareceu tranqüilizá-la muito. Tampouco a mim.
- América é tão grande... – murmurou, movendo a cabeça -. por que não se comprido, simplesmente?
Excelente pergunta. Jemmy soprava, esfregando furiosamente a cara contra meu ombro, mas tinha deixado de gritar.
- Eu tinha a esperança de que Stephen Bonnet tivesse o bom tino de ir fazer contrabando na China ou nas Índias Ocidentais. Mas suponho que tem vinculações aqui e não quis as abandonar. – encolhi-me de ombros.
Brianna alargou os braços para o menino, que seguia retorcendo-se como uma enguia.
- depois de tudo, ele não sabe que lhe seguem a pista Sherlock Fraser e seu companheiro lorde John Watson.
Foi um bom intento, mas lhe tremiam os lábios ao dizê-lo e voltou a morder-lhe Embora me doía lhe causar mais preocupações, já não tinha sentido evitar o tema.
- Não, mas é muito provável que se inteire logo – disse, a contra gosto -. Lorde John é muito discreto, mas o recruta Ogilvie não. Se Jamie contínua fazendo perguntas (e muito me temo que assim será) não passará muito tempo sem que todo mundo saiba de seu interesse.
Ignorava se Jamie queria descobrir logo ao Bonnet e agarrá-lo despreparado... ou se seu plano consistia em provocar, mediante suas perguntas, que o homem saísse a cara descoberta. Possivelmente tinha a intenção de chamar deliberadamente a atenção do Bonnet para que ele viesse a nós. Essa última possibilidade me afrouxou os joelhos; tive que me sentar pesadamente no tamborete.
Brianna aspirou fundo, lentamente, e exalou o ar pelo nariz; logo ficou o bebê ao peito.
- Roger sabe? Está a par desta... desta maldita vingança?
- Acredito que não – respondi -. Em realidade, estou segura. Do contrário lhe haveria isso dito, verdade?
Sua expressão se abrandou um pouco, embora em seus olhos ficava uma sombra de dúvida.
- Detesto pensar que poderia me ocultar algo assim. Ao fim e ao cabo – acusou com voz mais seca -, você me ocultou isso.
Apertei os lábios ao receber o aguijonazo.
- Disse que não queria pensar no Stephen Bonnet – observei, apartando a vista das turbulentas emoções que se refletiam em sua cara -. É natural. Eu... não queríamos te obrigar a recordá-lo.
Com certa sensação de coisa inevitável, caí na conta de que me estava deixando arrastar pelo torvelinho das intenções do Jamie, sem consentimento por minha parte. Ergui-me no tamborete para lhe cravar um olhar enérgico.
- Ouça, tampouco me parece boa idéia procurar o Bonnet, fiz quanto pude para dissuadir a seu pai. Mais ainda – acrescentei melancolicamente-, acreditava havê-lo conseguido. Ao parecer, não é assim.
Uma expressão decidida endurecia a boca da Brianna. acomodou-se melhor na cadeira.
- Pois eu o dissuadirei, sim – assegurou.
Joguei-lhe um olhar reflexivo. Se existia alguém com tanta teima e tanta fortaleza para desviar ao Jamie do caminho eleito, essa era sua filha. Mesmo assim não havia nenhuma segurança.
- Pode tentá-lo – disse, com certa dúvida.
- Não tenho direito? – Desaparecido o horror inicial, suas facções estavam novamente sob controle, frite e duras -. Não sou eu quem devo dizer se quiser... o que quero?
- Sim – reconheci. Pelo general, todo pai tende a pensar que ele também tem direito. E também os maridos. Mas possivelmente fora preferível não dizer nada.
Entre nós se fez um silêncio momentâneo, quebrado só pelos ruídos do Jemmy e os grasnidos dos corvos. Quase por impulso formulei a pergunta que me aflorava na mente.
- O que é o que quer, Brianna? Quer que Stephen Bonnet mora?
Ela me olhou; logo desviou os olhos para a janela, enquanto dava tapinhas nas costas do Jem. Não piscava. Por fim fechou brevemente os olhos e, ao abri-los, olhou-me de frente.
- Não posso – disse, em voz baixa -. Temo que, se permitir que essa ideia entre em minha mente... já não poderei pensar em nada mais, de tanto como o desejo. E por nada do mundo permitirei que... ele... arruíne-me a vida desse modo.
- Sim – continuou, com voz muito fica -. Quero que mora. Mas ainda mais quero a papai e ao Roger vivos.
Tal como se tinha acordado na congregação, Roger foi cantar à bodas do sobrinho do Joel MacLeod e retornou a casa com um novo tesouro, ansioso por registrá-lo em papel antes de que pudesse escapar
depois de tirá-las botas cheias de barro na cozinha e aceitar da senhora Bug uma taça de chá e um bolo de uvas passas, subiu diretamente ao estudo. Ali estava Jamie, escrevendo cartas. Saudou-o com um murmúrio distraído, mas imediatamente voltou para sua composição com uma ruga entre as densas sobrancelhas, tida cãibras e torpe a mão que sustentava a pluma.
No estudo havia uma pequena livraria de três prateleiras, que continha toda a biblioteca da Colina. As obras sérias ocupavam a prateleira superiora, a prateleira do meio estava dedicado a leituras mais ligeiras, enquanto que a última prateleira continha um exemplar do Dicionário do Dr. Sam Johnson, os registros do Jamie, vários cadernos de desenho da Brianna e um volume magro, encadernado em pele de carneiro, no que Roger registrava a letra das canções e poemas desconhecidos que aprendia em ceilidhs e à beira dos lares.
Ocupou um tamborete ao outro lado da mesa que Jamie utilizava como escritório e cortou uma pluma nova para o trabalho, com muito cuidado; queria que esses registros fossem bem legíveis. Não sabia exatamente para que podia servir essa coleção, mas tinha a avaliação instintiva do erudito gravado pela palavra escrita. Embora só fora para seu próprio uso e prazer, gostava de pensar que também podia deixar algo à posteridade; por isso se tomava a moléstia de escrever com claridade e documentar as circunstâncias nas que tinha adquirido cada canção.
Quando terminou, um quarto de hora depois, com a cabeça gratamente vazia, se desperezó para aliviar a dor dos ombros. Enquanto esperava a que a tinta se secasse para guardar o livro, retirou da última prateleira um dos cadernos da Brianna.
A ela, não lhe incomodaria que o visse; havia-lhe dito que podia fazê-lo quando quisesse. Mas ao mesmo tempo só lhe ensinava aqueles desenhos com os que estava agradada ou os que fazia especialmente para ele.
Passou as páginas do caderno, com essa mescla de curiosidade e respeito que se experimenta ao espiar nos mistérios, desejoso de captar pequenas visões de sua mente.
Em esse havia muitos esboços do bebê. deteve-se observar um, apanhado pela lembrança. Mostrava ao Jemmy dormido, de costas ao observador, com o corpo curvado em uma vírgula. A seu lado esta Adso, o gato, acurrucado de maneira similar, com o queixo apoiado no pé gordinho do Jemmy; seus olhos, ranhuras de comatosa bem-aventurança. Ele recordava essa cena.
Brianna desenhava ao Jemmy com freqüência (em realidade, quase todos os dias), mas estranha vez de frente.
- É que os bebês não têm cara – lhe havia dito, observando criticamente a sua vergôntea, que roía com empecinamiento uma correia de couro.
- Que não? E o que é isso que têm no centro da cabeça? – Lhe sorriu do chão, onde estava tendido com o menino e o gato, o qual facilitou que Brianna o olhasse com o nariz em alto.
- Estritamente falando, digo. Certamente que têm cara, mas todos são parecidos.
- Sábio é o pai que conhece seu filho, não? – brincou ele. Mas se arrependeu imediatamente ao ver a sombra que nublava os olhos do Bree. Passou com a celeridade de uma nuvem no verão, mas mesmo assim tinha existido. Ela afinou o lápis-carvão com a folha de seu canivete.
- Do ponto de vista plástico, não – explicou -. Não têm ossos visíveis. E são os ossos os que se utilizam para dar forma à cara; sem ossos não há muito que ver ali.
Com ossos ou sem eles, tênia uma notável habilidade para captar os matizes de expressão. Roger sorriu ante um esboço: a cara do Jemmy tinha a expressão fechada e inconfundível de quem está concentrado na produção de um fralda realmente espantoso.
além dos apontamentos do Jemmy havia várias páginas que pareciam diagramas de engenharia. Como esses não lhe interessavam muito, guardou o caderno e tirou outro. Notou em seguida que não eram apontamentos. As páginas estavam cobertas com a escritura pulcra e angulosa da Brianna. Ele passou as páginas com curiosidade; não era um jornal propriamente dito, a não ser um registro de seus sonhos.
Ontem à noite sonhei que me barbeava as pernas.
Roger sorriu ante a intrascendencia do comentário, mas ao imaginá-las pantorrilhas da Brianna, largas e brilhantes, continuou lendo.
Usava a navalha de papai e sua nata de barbear; pensava que ele protestaria ao descobri-lo, mas isso não me preocupava. A nata de barbear vinha em uma lata branca com letras vermelhas, que dizia Old Spice na etiqueta. Não sei se existiu alguma vez uma nata de barbear assim, mas papai sempre cheirava ao Old Spice já defumo de cigarro. Ele não fumava, mas a gente com a que trabalhava sim, e suas jaquetas sempre cheiravam como o salão depois de uma festa.
Roger se encheu os pulmões, consciente pela metade dos aromas que recordava; pão recém assado, chá, cera para móveis e amônia. Ninguém fumava nas decorosas reuniões que se celebravam no salão da casa solariega; entretanto, as jaquetas de seu pai também cheiravam a fumaça. Passou a página, com inexprimível culpabilidade por essa intromissão, mas sem poder resistir ao impulso de penetrar na intimidade de seus sonhos, de conhecer as imagens que enchiam sua mente dormida.
As notas não tinham data, mas todas começavam com as mesmas palavras: “ Ontem à noite sonhei...”
Ontem à noite sonhei que chovia. Não é estranho, pois na realidade estava chovendo não amainou em dois dias. Essa manhã, quando foi asa letrina, tive que saltar por cima de um enorme atoleiro formado junto à porta e me afundei até os tornozelos no sítio brando que está junto às amoras.
Ontem à noite nos deitamos com a chuva castigando o telhado. Que grato era acurrucarse junto ao Roger, estar abrigada na cama depois de um dia úmido e gelado! Pela chaminé entravam gotas de chuva que vaiavam no fogo. Contamo-nos anedotas de nossa juventude; possivelmente dali surgiu o sonho, de ter pensado no passado.
Não há muito que contar, salvo que eu olhava por uma janela de Boston; via passar os carros, que levantavam grandes cortina de água, e ouvia o sussurro de suas cobertas na rua molhada. Quando despertei ainda ouvia esse ruído com tanta claridade que fui olhar pela venda; quase esperava me encontrar com uma rua transitada, cheia de carros que sussurrassem na chuva. Foi uma surpresa ver piceas, castanhos, ervas silvestres e trepadeiras, e não ouvir mais que o suave repico das gotas que ricocheteavam e se estremeciam nas folhas.
Tudo estava tão verde, tão viçoso e crescido, que parecia uma selva ou um planeta estranho, algum lugar que eu não conhecia, no que nada podia reconhecer, embora o vejo todos os dias.
Passei-me o dia ouvindo o secreto sussurro das cobertas na chuva, algo por detrás de mim.
Culpado, mas fascinado, Roger voltou a página.
Ontem à noite sonhei que conduzia meu carro. Era meu Mustang azul. Ia depressa por uma rota lhe serpenteiem, através das montanhas; destas. Nunca conduzi por estas montanhas, embora sim pelas de Nova Iorque. Mas sabia que estava aqui na Colina.
Foi tão real! Ainda sinto o cabelo agitado pelo vento, o volante em minhas mãos, a vibração do motor e o rumor das rodas contra o pavimento. Mas essa sensação, assim como o carro, é impossível. Já não pode passar em nenhuma parte, salvo em minha cabeça. Não obstante está ali, incrustada nas células de minha memória, tão real como a letrina ali fora.
De qualquer modo, essa parte ( a de conduzir) provém de uma lembrança conhecida. Mas o que tem que os sonhos, igualmente vividos e reais, de coisas que não conheço em meu eu acordado? Acaso alguns sonhos são lembranças de coisas que ainda não aconteceram?
Ontem à noite sonhei que fazia o amor com o Roger.
Tinha estado a ponto de fechar o livro, pois essa intromissão o havia sentir-se culpado. Naquele momento, o sentimento de culpa seguia presente, e era muito, mas não o suficiente para conter sua crescente curiosidade. Jogou uma olhada nervosa à porta, mas a casa parecia tranqüila; as mulheres transportavam na cozinha e não se via ninguém perto do estudo.
Ontem à noite sonhei que fazia o amor com o Roger.
Foi estupendo. Por uma vez não pensava, não era como se observasse desde fora, como sempre me passava. De fato, durante muito tempo não tive sequer consciência de meu mesma. Só existia essa... essa coisa excitante, selvagem. Eu era parte dela e Roger também, mas não havia ele ou eu: somente nós.
O curioso é que era Roger, mas ao pensar nele eu não lhe dava esse nome. Era como se tivesse outro, um nome secreto, o verdadeiro. E eu o conhecia.
(Sempre pensei que todos temos esse tipo de nome, algo que não é uma palavra. Eu sei quem sou eu. E quem quer que seja, não se chama “ Brianna” . Sou eu, simplesmente. “ Eu” funciona bem como substituto do que quero dizer, mas como escreve o nome secreto de outra pessoa?)
O fato é que conhecia o verdadeiro nome do Roger; ao parecer, por isso o nosso funcionava. E funcionava de verdade. Não o pensei, não me interessou. Tão somente ao final me disse. “ Né, está acontecendo!”
Então aconteceu; tudo se dissolveu, tremendo e palpitando...
Ali tinha tachado o resto da linha; na margem havia uma pequena nota cruzada que dizia:
depois de todo nenhum dos autores que tenho lido pôde tampouco descrevê-lo!
em que pese a sua assombrada fascinação, Roger riu em voz alta. conteve-se imediatamente e jogou um olhar pressuroso a seu redor, para ver se ainda estava sozinho. Na cozinha se ouviam ruídos, mas nenhum no corredor. Seus olhos voltaram para a página como limagens de ferro a um ímã.
No sonho tinha os olhos fechados e esta tendida ali, ainda percorrida por pequenas descargas elétricas. Ao abrir os olhos vi que quem estava dentro de mim era Stephen Bonnet.
Foi uma impressão tão forte que despertou. Pensei que tinha gritado, pois tinha a garganta irritada, mas não era possível; Roger e o menino dormiam profundamente. Sentia-me acalorada até o ponto de suar, mas também tinha fritou e o coração me palpitava com força. Passou muito tempo antes de que todo se tranqüilizasse o suficiente para voltar a conciliar o sonho. Os pássaros cantavam.
Em realidade foi isso o que me permitiu que dormisse outra vez: os pássaros. Papai (agora que o penso também meu outro pai) disse-me que os arrendajos e os corvos lançam gritos de alarme quando alguém se aproxima, mas as aves cantoras deixam de cantar. portanto, se estiver em um bosque deve estar alerta a isso. Com tanto bulício como havia nas árvores que rodeiam a casa, compreendi que estava a salvo, que ali não havia ninguém.
Ao pé da página havia um pequeno espaço em branco. Roger passou página, com as Palmas suarentas e o pulsar do coração forte em seus ouvidos. A anotação se reatava na parte de acima. Até então a escritura tinha sido fluída, quase precipitada, com as letras aplanadas ao correr através da página. Ali estava formadas com mais esmero, redondas e erguidas, como se tivesse passado o primeiro impacto da experiência e ela voltasse a refletir, com teimada cautela.
Tratei de esquecê-lo, mas não resultou. Aquilo insistia em voltar para minha mente. Por fim saí a sós para trabalhar no abrigo das ervas. Quando vou ali, mamãe se ocupa do Jemmy, para que não estorve isso me assegurava que estaria a sós. Sentei-me em meio de todos esses ramalhetes pendurados, com os olhos fechados, e tratei de recordar todos os detalhes. Dos diferentes momentos, pensava: “ Isso está bem” ou “ Isso é tão somente um sonho” Porque Stephen Bonnet me assustava; sentia-me chateada ao pensar no final, mas em realidade queria recordar como era. O que sentia e como o fiz. Assim talvez possa repeti-lo com o Roger.
Mas ainda tenho esta sensação de que não poderei, a não ser que recorde o nome secreto do Roger.
Ali termina a anotação. Os sonhos continuavam na página seguinte, mas Roger não leu mais. depois de fechar o livro com muito cuidado, voltou a pô-lo na prateleira, detrás dos outros. Passou um momento de pé frente à janela, esfregando inconscientemente as mãos suarentas contra as costuras de suas calças.
Crie que compartilharão o leito?
Jamie não tinha elevado a voz, mas tampouco fez nenhum esforço por baixá-la. Por sorte estávamos em um extremo da terraço, onde o casal nupcial não podia nos ouvir. Não obstante, várias cabeças se voltaram para nós.
Ninian Bell Hamilton nos olhava. Dediquei-lhe um sorriso ao ancião escocês, agitando meu leque fechado a modo de saudação, enquanto dava a meu marido uma cotovelada nas costelas.
- Bonita coisa para que um sobrinho respeitoso pense de sua tia! – disse-lhe pelo baixo.
Ele ficou fora de meu alcance e arqueou uma sobrancelha.
- O que tem que ver o respeito com isto? Já estarão casados. E os dois cumpriram de sobra a maioria de idade – acrescentou, com um grande sorriso dirigido ao Ninian, que se havia posto vermelho por tentar sufocar a risada. Eu ignorava a idade do Duncan Innes, mas lhe calculava uns cinqüenta e cinco anos. Quanto a Yocasta, a tia do Jamie, devia lhe levar pelo menos dez.
por cima das cabeças da multidão podia ver a cabeça da Yocasta, que aceitava graciosamente as saudações de amigos e vizinhos ao outro lado da terraço. Era uma mulher alta, e levava um vestido de lã de cor avermelhada; com uma elegante touca de encaixe branco a modo de coroa sobre a proeminente estrutura óssea dos Mackenzie, flanqueavam-na enormes floreiros de pedra com varas de ouro seca; Ulises, o mordomo negro, montava guarda junto a seu ombro, muito digno com sua peruca e seu librea verde. Era, inegavelmente, reina-a da Plantação River Run. Pu-me nas pontas dos pés, procurando a seu consorte.
Até que Duncan era algo mais baixo que Yocasta, também teria que ser visível de ali. Eu o tinha visto antes, vestido com os ornamentos das Terras Altas; seu aspecto era deslumbrante, embora muito tímido. Estirei o pescoço, me aferrando do braço do Jamie para não perder o equilíbrio. Ele me sujeitou pelo cotovelo.
- Que buscas, Sassenach?
- Ao Duncan. Não deveria estar com sua tia?
A simples vista, nade teria adivinhado que Yocasta era cega, que os grandes floreiros serviam para orientá-la e que Ulises estava ali para lhe sussurrar ao ouvido o nome de quem se aproximava. Vi que sua mão esquerda subia a tocar o ar vazio e se retirava. Não obstante sua cara não se alterou; saudou o juiz Henderson, com um sorriso e lhe disse algo.
- Pode ter fugido antes da noite de bodas? – sugeriu Ninian, levantando o queixo e as sobrancelhas em um esforço por olhar sobre a multidão, sem levantar-se-. A mim, em seu lugar, a perspectiva me poria algo nervoso. Sua tia é simpática, Fraser, mas se queria poderia lhe congelar os cojones ao rei do Japão.
Jamie contraiu a boca.
- Duncan poderia estar em apuros, por qualquer motivo – comentou -. Esta manhã foi quatro vezes ao desculpado.
Ante isso fui eu quem arqueou as sobrancelhas. Duncan padecia de constipação crônica. De fato eu havia lhe trazido um pacote de folhas de sena e raízes de cafeto, face aos grosseiros comentários do Jamie sobre o que se devia dar de presente nas bodas. O noivo devia estar mais nervoso do que eu pensava.
- Não acredito que suponha nenhuma surpresa para minha tia, que já teve três maridos – disse Jamie, respondendo a um murmúrio do Hamilton -. Para o Duncan, em troca, será a primeira vez. Isto assusta a qualquer. Recordo minha própria noite de bodas...
Olhou-me com um grande sorriso. Eu senti que o calor subia às bochechas. Eu também a recordava... muito vividamente.
- Não crie que faz muito calor aqui? – Desdobrei meu leque em um arco de encaixe cor marfim para agitá-lo contra minhas bochechas.
- Seriamente? – se estranho ele, sempre sorridente -. Não me tinha precavido.
- Duncan sim – interveio Ninian. E franziu os lábios enrugados para conter a risada -. A última vez que o vi suava como um pudim cozido ao vapor.
Aquele dia de março era claro e luminoso; pela casa, a terraço, o prado e o jardim pululavam os convidados à bodas, luzindo seus ornamentos como mariposas fora de temporada. As núpcias da Yocasta seriam o acontecimento social do ano, no que à sociedade de Cape Fear concernia. Calculei não menos de duzentos convidados, que provinham de sítios tão distantes como Halifax e Edenton.
Ninian baixou a voz para dizer algo ao Jamie, em gaélico, ao tempo que me olhava de esguelha. Meu marido respondeu com um comentário de elegante fraseología, mas contido extremamente grosseiro, e me sustentou meigamente o olhar, enquanto o cavalheiro maior se afogava de risada.
Em realidade, naquela época eu entendia o gaélico bastante bem, mas há ocasiões em que mais vale a discrição que o valor. Estendi meu leque para dissimular minha expressão. Em realidade se requeria alguma pratica para conquistar a elegância do leque, mas resultava uma ferramenta social muito útil para quem, como eu, padecia a maldição de uma cara transparente. Não obstante, até os leques têm seus limite.
Voltei as costas a essa conversação, que ameaçava degenerando ainda mais, e inspecionei os arredores em busca do noivo ausente. Possivelmente Duncan estivesse realmente doente, e não só dos nervos. Nesse caso devia lhe jogar uma olhada.
- Fedra! Viu esta manhã ao senhor Innes?
A criada da Yocasta, que passava voando carregada de toalhas, deteve-se abruptamente.
- Não o vi do café da manhã, senhora – respondeu, movendo a cabeça, pulcramente coberta por uma touca.
- Que aspecto tinha? Comeu bem?
- Não, senhora, nem um bocado. – Fedra enrugou a suave frente, pois estava afeiçoada com o Duncan. – A cozinheira tratou de tentá-lo com um rico ovo revolto, mas ele se limitou a mover a cabeça. Estava muito pálido. Isso sim bebeu uma taça de ponche de rum – acrescentou, como se a idéia a animasse um pouco.
- Sim isso lhe assentará o estômago – comentou Ninian, que o tinha ouvido. – Não se preocupe, senhora Claire; Duncan estará bem. – Fez-me uma reverência e continuou para as mesas instaladas baixo os mastreie.
Brianna, radiante com seu vestido azul, como o céu primaveril, estava de pé junto a uma das estátuas de mármore que adornavam o prado, com o Jemmy sobre o quadril, enfrascada em sua conversação com o Gerald Forbes, o advogado. Ela também levava um leque, mas lhe estava dando um uso melhor que o habitual: Jemmy se tinha dado procuração dele e mascava a manga de marfim, com uma expressão de concentração na carita corada.
Claro que Brianna não necessitava tanto como eu dominar a técnica do leque, pois tinha herdado do Jamie a habilidade de esconder todos seus pensamentos depois de uma máscara de grata doçura. Nesse momento a levava posta; isso me deu uma idéia da opinião que lhe merecia o senhor Forbes. E Roger, onde estaria? Algo mais cedo o tinha visto com ela.
Quando quis perguntar ao Jamie o que opinava sobre essa epidemia de maridos desaparecidos, descobri que ele se contagiou. Jamie tinha desaparecido entre a multidão. Girei devagar, buscando-o com a vista pela terraço e os prados mas não havia sinais dele entre a multidão. Como o fulgor do sol me fazia entreabrir os olhos, usei uma mão a modo de viseira.
depois de tudo, meu marido não era dos que passam desapercebidos. Como todo escocês com sangue de gigantes vikingos nas veias, era tão alto que sua cabeça e seus ombros apareciam por cima da maioria; seu cabelo captava o sol como bronze gentil. Se por acaso fora pouco, esse dia se pôs seus melhores ornamentos: uma manta de tartán negro e carmesim, a jaqueta e o colete cinzas e os meias três-quartos mais vistosos que jamais levassem as pantorrilhas de um escocês. Deveria destacar como uma mancha de sangue sobre um algodão limpo.
Não o via, mas divisei uma cara familiar. Desci da terraço para me abrir passo entre os grupos de convidados.
- Senhor MacLenan!
Ele se voltou para mim com expressão de surpresa, mas imediatamente sorriu cordialmente.
- Senhora Fraser!
-Que prazer vê-lo! – dava-lhe a mão -. Como está você’
Lhe via muito melhor que a última vez; limpo e arrumado, com traje escuro e um chapéu singelo. Mesmo assim tinha as bochechas afundadas e uma sombra detrás dos olhos, que nem sequer desapareceu com o sorriso.
- Pois... bastante bem, senhora. Bastante bem.
- Não está...? onde vive agora? – Era mais delicado que perguntar: Como é que não está no cárcere? Como não era tolo, respondeu às duas perguntas.
- É que seu marido teve a amabilidade de escrever ao senhor Ninian – assinalou com a cabeça a magra figura do Hamilton, que estava encetado em uma acalorada discussão – e lhe explicou minhas dificuldades. Este cavalheiro é grande amigo da Regulação.... e também do juiz Henderson.
Moveu a cabeça, com os lábios cavados em um gesto de desconcerto.
- Não saberia dizer como foi, mas o senhor Ninian foi recolher me ao cárcere e me levou a sua própria casa. E ali estou na atualidade. foi muito bondoso. – Falava com evidente sinceridade, mas também com certa abstração. Logo ficou em silêncio.
Eu continue passeando pelo prado e intercambiando saudações com os conhecidos por cima de meu leque. Alegrava-me ter visto novamente ao Abel e comprovar que estava bem, ao menos fisicamente, mas não podia negar que me provocava certo calafrio. Tinha a sensação de que pouco lhe importava onde residisse seu corpo: seu coração tinha ficado na tumba de sua esposa.
Perguntei-me para que teria o trazido Ninian. As bodas lhe fariam recordar a sua, como a todo mundo.
Embora o sol se elevou o suficiente para enfraquecer o ar, estremeci-me. O pesar do MacLenan me recordava muito aos dias posteriores ao Culloden, quando eu tinha retornado a meu próprio tempo, convencida de que Jamie tinha morrido. Conhecia muito bem essa inércia do coração, a sensação de caminhar como sonâmbulo através dos dias, o jazer na noite sem descanso, com os olhos abertos, em um vazio que não era a paz.
A voz da Yocasta flutuou da terraço, chamando o Ulises. Tinha perdido a três maridos e agora estava a ponto de tomar um quarto. Por cega que fora, em seus olhos não havia inércia. Significava isso que nenhum de seus maridos lhe tinham interessado muito? Ou só que era uma mulher muito forte, capaz de sobrepor uma e outra vez?
Eu também o tinha feito uma vez... pela Brianna. Mas Yocasta não tinha filhos, ao menos agora. Acaso os tinha tido em outros tempos? Tinha afastado a dor de um coração destroçado para viver por um filho?
Sacudi-me, tratando de dissipar esses pensamentos melancólicos. depois de tudo, a ocasião e o dia eram para celebrar. Os discos do bosquecillo estavam em flor; mirlos e cardeais em zelo revoavam entre eles como papel picado, enlouquecidos pelo cortejo.
- Pois claro!- dizia uma mulher com tom de autoridade. - mas se compartilharem a casa há meses!
- Sim, é certo – confirmou uma de suas companheiras, com ar de dúvida. – Per ninguém o diria ao vê-los. Mulher, se apenas se olharem! Quero dizer... Claro que ela não pode olhá-lo, cega como esta, mas qualquer diria...
Os pássaros não eram os únicos, pensei, divertida. Em toda a reunião reinava um efeito de seiva em ascensão. Na terraço se viam grupos de moças que fofocavam como galinhas, enquanto os homens se passeavam com ar de indiferença frente a elas, vistosos como perus reais com suas roupas de festa. Não seria surpreendente que dessa celebração resultassem uns quantos compromissos.. e mais de um embaraço. Havia sexo no ar; percebia-se sob as embriagadoras fragrâncias das flores primaveris e a comida.
Estava livre de melancolias, mas ainda sentia a forte necessidade de encontrar ao Jamie.
Percorri todo o prado, por um lado e pelo outro, sem ver sinais dele entre a casona e o mole, onde os escravos com librea ainda recebiam aos últimos convidados, que chegavam pelo rio. Entre os que ainda faltavam (e levava muito atraso, por certo) encontrava-se o sacerdote que devia celebrar as bodas.
O pai LeClerc era jesuíta; viajava desde Nova Orleans a uma missão próxima ao Quebec quando Yocasta o seduziu com uma substanciosa doação à Companhia do Jesus, apartando-o do estrito atalho do dever. Embora o dinheiro não comprasse a felicidade, era um artigo bastante útil.
Ao jogar uma olhada em direção oposta, fiquei petrificada. Ronnie Campbell, a um lado, fez-me uma reverência; elevei meu leque a modo de resposta, mas estava muito distraída para lhe falar. Embora não tinha encontrado ao Jamie, acabava de ver o provável motivo de seu abrupto desaparecimento. Farquard Campbell, o pai do Ronnie, subia pelo prado do embarcadero, acompanhado por um cavalheiro que vestia as cores vermelha e cervo do exército de sua majestade; seu segundo companheiro luzia o uniforme da marinha: era o tenente Wolff.
Vê-lo foi uma desagradável surpresa. O tenente Wolff não era meu personagem favorito. Em realidade, não era querido por ninguém que o conhecesse.
Farquard Campbell me tinha visto e vinha para mim entre a multidão, com as forças armadas a reboque. Levantei meu leque e realizei os ajustes faciais necessários para uma conversação cortês.
O outro militar lhe jogou uma olhada, mas seguiu responsavelmente detrás do Farquard. Eu estava segura de não conhecê-lo. Da partida do último regimento escocês, durante o outono, era estranho ver uma jaqueta vermelha na colônia. Quem podia ser este?
Uma vez fixas as facções no que pretendia ser um simpático sorriso, inundei-me em uma reverência formal, estendendo minhas saias bordadas para as luzir melhor.
- Senhor Campbell... – Olhei com dissimulo detrás dele, mas felizmente o tenente Wolff tinha desaparecido em busca de sustento alcoólico.
- A seu serviço, senhora Fraser.- Farquard respondeu dobrando graciosamente os joelhos.
Ele também olhou sobre meu ombro, com leve gesto de intriga.
- Pareceu-me ver... Acreditava ter visto seu marido junto a você.
- OH, pois... acredito que terá ... que se ausentou. – Desviei delicadamente o leque para as árvores, onde se levantavam as letrinas, separadas da casa a uma distância prudente e por um biombo de pequenos pinheiros brancos.
- Ah, compreendo, sim – pigarreou Campbell. Logo indicou ao homem que o acompanhava. –Senhora Fraser, me permita lhe apresentar ao maior Donald MacDonald.
Era um cavalheiro de nariz aquilino, pelo resto bastante arrumado, de uns trinta e oito anos.
- A seu serviço, senhora. – MacDonald se inclinou com muita elegância. - Posso lhe expressar o bem que lhe sinta essa cor?
- Pode - disse, me relaxando um pouco. – Obrigado.
- O major acaba de chegar ao Cross Creek. Assegurei-lhe que esta seria a melhor oportunidade para estabelecer relação com seus compatriotas e familiarizar-se com a zona. – Farquard assinalou a terraço com um gesto, que abrangia a um Quem é Quem da sociedade escocesa residente em Cape Fear.
- E por certo – disse o major, muito cortês-, não ouvi tantos sobrenomes escoceses desde minha última viagem ao Edimburgo. O senhor Campbell me há dito que seu marido é sobrinho da senhora Camero... ou a senhora Innes, deveria dizer.
- Se. A apresentaram já? – Olhei para o outro lado da terraço. Ainda não havia sinais do Duncan, muito menos do Roger ou Jamie. Demônio! Onde estavam todos Reunidos na letrina para uma conferência cúpula?
- Não, mas estou desejoso de lhe apresentar meus cumpridos. O defunto senhor Cameron era meio parente de meu pai, Robert MacDonald, do Stornoway. – Inclinou respetuosamente a peruca em direção à pequena construção de mármore branco que se levantava um extremo: o mausoléu que albergava os restos do Hector Cameron. – por acaso, seu marido têm alguma vinculação com os Fraser do Lovat?
Grunhi para meus adentros ao reconhecer a telaraña escocesa que estava tecendo e mantive um olho alerta durante todo o interrogatório, mas Jamie se evaporou.
Farquard Campbell, que não era mau jogador, por certo, parecia estar desfrutando com essa partida verbal; seus olhos brunos foram do major a mim, com expressão divertida. A diversão se converteu em surpresa ao terminar eu uma análise bastante confusa da linhagem do Jamie por via paterna, em resposta ao perito catecismo do major.
- O que o avô de seu marido era Simon, lorde Lovat? – exclamou. - A Velha Raposa?
Tinha elevado a voz com certa incredulidade.
- Pois... se – confirmei, algo intranqüila. – Supus que você saberia.
- Homem! – disse Farquard. Sabia, sim, que Jamie era jacobita perdoado, mas ao parecer Yocasta não tinha mencionado sua estreita vinculação com a Velha Raposa, executado como traidor por seu papel na sublevação do Estuardo. Nessa ocasião, a maioria dos Campbell tinham combatido pelo bando do governo.
- Se – disse MacDonald, sem emprestar atenção à reação do Campbell, com o sobrecenho um pouco franzido pela concentração. – Tenho a honra de conhecer um pouco ao atual lorde Lovat. Entendo que o título lhe foi devolvido, verdade?
E se dirigiu ao Campbell:
- Refiro ao Simon o Jovem, que armou um regimento para lutar contra os franceses em... o ano cinqüenta e oito? Não: no cinqüenta e sete, sim. Homem galhardo e excelente soldado. E deveria ser o sobrinho de seu marido? Não; seu tio.
- Meio tio – esclareci. O velho Simon se casou três vezes e não ocultava a seus bastardos, entre os quais se contava o pai do Jamie. Mas não havia necessidade de assinalá-lo.
MacDonald assentiu, com a cara iluminada pela satisfação de ter tudo em ordem. a do Farquard se relaxou um pouco ao saber que a reputação familiar estava tão reabilitada.
- Papista, certamente – acrescentou MacDonald -, mas excelente soldado, apesar disso.
- E falando de soldados - interrompeu-o Campbell-, sabe você...?
Lancei um suspiro de alívio que fez ranger as ataduras de meu espartilho, pois o cavalheiro guiou brandamente à major à análise de algum acontecimento militar passado. Ao parecer MacDonald não estava em ativo, a não ser retirado e percebendo a metade do pagamento, como tantos outros. A menos que a Coroa requeresse de seus serviços, estava em liberdade de farejar pelas colônias em busca de ocupação. A paz era dura para os militares de carreira.
Farquard Campbell levava algum tempo falando sem que eu tivesse a menor ideia do que havia dito. Ao ver meu desconcerto sorriu com certa ironia.
- Devo ir apresentar meus respeitos a outras pessoas, senhora Fraser – disse. – Se me permitir isso, deixarei-a na excelente companhia do major.
O major, assim abandonado a minha presença, procurou algum tema de conversação adequado e caiu na pergunta mais comum entre as pessoas que acabam de conhecer-se.
- Você e seu marido, levam muito tempo na colônia, senhora?
- Não muito – respondi, bastante cautelosa -. Uns três anos. Em um lugar chamada Colina do Fraser.
- Ah, sim, ouvi-o mencionar.
Um músculo se contraiu em sua boca; perguntei-me, intranqüila, o que lhe teriam comentado. O alambique do Jamie era um segredo a vozes nos territórios apartados e entre os colonos escoceses de Cape Fear(mais ainda, diante de nós, junto aos estábulos, havia vários tonéis de uísque sem envelhecer que constituíam o presente de bodas do Jamie), mas eu confiava em que não o fora tanto como para que um militar recém-chegado já tivesse sabido dele.
- me diga, senhora Fraser... – depois de uma breve vacilação se lançou de cabeça. - Há muita atividade dos reguladores em sua zona?
- OH... né... não, não muita.
Desviei um olhar, cautelosa para o mausoléu do Hector Cameron, onde Hermon Husband, com o traje cinza escuro dos quaisquer, destacava-se como um borrão contra o puro mármore branco.
- Agrada-me sabê-lo, senhora – disse MacDonald -. Estão vocês bem informados nesse lugar tão remoto?
- Não muito. Né... bonito dia verdade? Este ano tivemos muita sorte com o clima. teve você uma viagem cômoda? Vir desde o Charleston neste momento do ano... o barro...
- É claro que sim, senhora, sofremos algumas pequenas dificuldades, mas não mais que...
- Enquanto falava, o major me avaliava abertamente, apreciando o corte e a qualidade de meu vestido, as pérolas que levava no pescoço e nas orelhas (emprestadas pela Yocasta) e os anéis de meus dedos. Eu conhecia esse tipo de olhares; não havia nela rastro algum de libertinagem nem de sedução. Simplesmente, estava julgando minha posição social, assim como a prosperidade e influência de meu marido.
Isso não me ofendeu. depois de todo eu estava fazendo o mesmo com ele.
- me diga, senhora Fraser... – começou o major.
- Não me insulta só , senhor, a não ser a todos os homens honoráveis aqui pressente!
A voz aguda do Ninian Bell Hamilton ressonou em uma pausa da conversação geral. Todas as cabeças do prado giraram para ele.
Estava frente a frente com o Robert Barlow, homem ao que me tinham apresentado um momento antes.
- Reguladores, chama-os você? Bagunceiros e presidiários! E você sugere que essa chusma tem sentido da honra?
- Não o sugiro! Afirmo-o como realidade, e como tal o defenderei!
O ancião cavalheiro, muito erguido, meço em busca de sua espada. Felizmente não ia armado, assim que lhe atirou um chute no traseiro. Pego por surpresa, Barlow perdeu o equilíbrio e caiu a quatro patas.
Eu procurava freneticamente ao Jamie... ou ao Roger... ou ao Duncan. Condenados homens! Onde se tinham metido?
Buchannan, um dos genros do Hamilton, avançava decididamente por entre a multidão, já com intenção de apartar a seu sogro do Barlow, já para assisti-lo em seu intento de assassinar ao homem.
- OH! Demônios – murmurei. – me sustente isto. – depois de plantar meu leque em mãos do maior MacDonald, recolhi minhas saias, dispostas a vadear no alvoroço assim que decidisse a quem golpearia primeiro (e onde) para obter o maior efeito.
- Quer você que os detenha?
O major, que desfrutava de do espetáculo, pareceu decepcionado ante a perspectiva, mas também resignado a cumprir com seu dever. Ante meu surpreso gesto de afirmação, desencapou a pistola, apontou-a ao céu e disparou ao ar.
O estalo foi o bastante ruidoso para sossegar momentaneamente a todos. Os combatentes ficaram petrificados. Em meio dessa pausa, Hermon Husband se abriu passo para o lugar da cena.
- Amigo Ninian – disse cordialmente -, amigo Buchannan, me permitam.
Asío ao ancião escocês por ambos os braços para levantá-lo em velo, separando o do Barlow. Logo cravou no James Hunter um olhar de advertência. O homem emitiu um audível “ Hum” , mas se retirou alguns passos.
- Seu leque, senhora Fraser...
Arranco de minha avaliação do conflito, descobri que o maior MacDonald me oferecia isso cortesmente, muito agradado consigo mesmo.
- Obrigado. – Olhei-o com certo respeito. – me diga maior, sempre leva consigo uma pistola carregada?
- foi um descuido, senhora – respondeu meigamente -, mas possivelmente afortunado, verdade? Senhora Fraser, quem é esse indivíduo mau barbeado? Parece homem de guelra, em que pese a suas maneiras deficientes, é possível que agora ele seja quem se atei a golpes?
Dava-me a volta. Hermon Husband estava frente a frente com o Barlow.
- Hermond Husband é qualquer – expliquei, em tom de leve recriminação. – Não , ele não recorrerá à violência. Só às palavras.
Muitíssimas palavras. Barlow tratava de interpor suas próprias opiniões, mas Husband, sem lhe emprestar atenção, emprestava seus argumentos com tanto entusiasmo que das comissuras de sua boca voavam gotas de saliva.
- Sobre o que discutem? – perguntou MacDonald, que presenciava o intercâmbio com interesse. - Sobre religião?
Eu não estava muito disposta a examinar em detalhe a retórica da Regulação, mas fiz o possível por brindar ao MacDonald uma superficial vista geral da situação.
- ... e portanto, o governador Tryon se viu obrigado a organizar a tropa para combater aos reguladores, mas eles se retiraram – concluí. – Ainda assim, não abandonaram suas exigências.
- Compreendo – disse MacDonald, interessado.- Farquard Campbell me falou desse movimento subversivo. Diz você que o governador ordenou uma tropa e poderia fazê-lo outra vez. Quem dirige suas tropas, senhora?
- Hum... acredito que o general Waddell, Hugh Waddell, está à frente de várias, companhias. Mas o corpo principal estava ao mando do governador em pessoa, que foi militar.
- Seriamente? – O major parecia muito interessado; em vez de embainhar a pistola, acariciava-a distraídamente -. Campbell me disse que seu marido recebeu uma grande extensão de terras em território despovoado. Por acaso, é íntimo do governador?
- Eu não diria tanto- respondi secamente. – Mas sim que conhece governador.
O rumo que tinha tomado a conversação me inquietava um pouco. Em términos estritos, era ilegal que os católicos recebessem da Coroa terras nas colônias. Eu ignorava se o maior MacDonald estava informado disso, mas obviamente devia imaginar que Jamie era católico, jogo de dados seus antecedentes familiares.
- você crie que seu marido poderia me apresentar, estimada senhora?– os pálidos olhos azuis brilhavam de especulação; súbitamente compreendi o que é o que tentava.
- Poderia ser – respondi, precavida. Não via motivos pelos que Jamie pudesse opor-se a lhe dar uma carta de apresentação para o Tryon. E na verdade eu estava em dívida com esse homem por ter evitado uma rixa a grande escala. – Terá você que discuti-lo com meu marido, mas será um prazer lhe falar por você.
- estarei-lhe eternamente agradecido, senhora. – depois de embainhar a pistola se inclinou para minha mão. Ao erguer as costas jogou uma olhada por cima de meu ombro. – Com sua permissão, senhora Fraser, já devo me retirar, mas confio conhecer muito em breve a seu marido.
O major se afastou para a terraço. Ao me voltar, vi que Hermon Husband se aproximava de grandes passos para mim, seguido pelo Hunter e alguns outros.
- Senhora Fraser, venho a lhe pedir que você expresse à senhora Innes meus bons augúrios e minhas desculpas, por favor – disse sem preâmbulo.- Devo me retirar.
- OH!, tão logo se vai? – vacilei.
- Será melhor assim. Yocasta Cameron foi uma grande amiga para mim e para meus. Estaria pagando mal sua bondade se trouxesse a discórdia às celebrações de suas bodas. Não quero fazê-lo... e de uma vez a consciência não me permite guardar silêncio quando ouço opiniões tão perniciosas como as que se expressaram aqui.
Jogou ao grupo do Barlow um olhar de frio desprezo, que foi enfrentada de igual modo.
- Além disso – acrescentou, voltando as costas aos barlowistas-, há assuntos que requerem nossa atenção. – Vacilou obviamente, como se estivesse a ponto de me dizer algo mais, mas decidiu não fazê-lo. - O dirá você?
- Certamente, senhor Husband. E me crie que o sinto.
Dedicou-me um vago sorriso, tinta de melancolia, e moveu a cabeça sem dizer mais. Mas enquanto ele se afastava, seguido por seus companheiros, James Hunter se deteve me dizer em voz baixa:
- Os reguladores se estão congregando. Há um acampamento grande perto do Salisbury – disse-. Talvez convenha que seu marido saiba.
Saudou-me tocando a asa de seu chapéu e, sem aguardar resposta, afastou-se a grandes passos.
Do bordo da terraço podia observar toda a festa, que fluía em uma corrente de festividade da casa até o rio; seus redemoinhos eram evidentes para o olho entendido.
Enquanto observava, vinham a minha mente pensamentos sobre o que ali estava acontecendo.
- Homem, a senhora Fraser! – uma voz ligeira interrompeu meus pensamentos. Phillip Wylie estava junto a meu cotovelo.- O que está você pensando, querida minha? A vê indiscutivelmente... feral. – Falava em voz baixa; tinha-me pego a mão e despia seus dentes em um sorriso sugestivo.
- Não sou querida sua – lhe disse com certa acritud, retirando bruscamente a mão. – Quanto ao de feral, surpreende-me que ninguém lhe tenha mordido ainda no traseiro.
- OH!, não perco a esperança – me assegurou, faiscantes os olhos. E enquanto me fazia uma reverência conseguiu apoderar-se novamente de minha mão. - Posso aspirar à honra de dançar com você mais tarde, senhora Fraser?
- É obvio que não – respondi, atirando de minha mão -. Me solte.
- Seus desejos são ordens para mim. – soltou-me mas sem antes me plantar um beijo no dorso da mão. Contive o impulso de me limpar o sítio úmido na saia.
- Vete, menino – Agitei o leque para ele. – Fora, fora.
Phillip Wylie era um petimetre. Até então o tinha visto duas vezes, em ambas as ocasiões muito polido: calças de cetim, meias de seda e todos os jaezes que revistam ir com eles, incluídos a peruca e a cara empoeirada e um pequeno lunar em forma de medialuna negra, garbosamente pego junto a um olho.
Mas agora a podridão se estendeu. A peruca empoeirada era malva e o colete de cetim estava bordado com .... pisquei. Sim: eram leões e unicórnios de fios de ouro e prata. As calças de cetim o rodeavam como uma luva bifurcada: a medialuna tinha cedido passo a uma estrela na comissura da boca. O senhor Wylie se converteu em um macarrão... com queijo.
- OH!, não tenho intenções de abandoná-la senhora Fraser- assegurou-me. – estive-a procurando por toda parte.
- Pois já me encontrou – disse, enquanto observava sua jaqueta de veludo rosa intenso.
- Ah!, este ano me sorriu a Fortuna. O tráfico com a Inglaterra está bastante recuperado, graças aos deuses, e eu tive minha parte nele, além de outras coisas. Deveria você me acompanhar para ver...
Nesse momento me resgatou a súbita aparição do Adlai Osborn, um endinheirado mercado de costa acima, quem lhe deu um tapinha no ombro. Aproveitando a distração, levantei meu leque e me escorri por um oco entre a multidão.
Um tigela fumegante de vinho especiado, posto sob meu nariz como convite, monopolizou minha atenção.
- você beba um pouco, senhora Fraser. – Era Lloyd Stanhope, com bonachona amabilidade. – Não lhe convém agarrar frio, querida senhora.
Não havia perigo, pois o dia era cada vez mais temperado, mas aceitei a taça, desfrutando do aroma a canela e mel que dele brotava.
Inclinei-me para um lado procurando o Jamie, mas não estava à vista. Um grupo de cavalheiros discutia os méritos comerciais do tabaco enquanto três jovencitas observavam através de seus leques, entre rubores e risitas agudas.
- ... inigualável – dizia Phillip Wylie a alguém. Os redemoinhos da conversação haviam o trazido de novo a meu lado. - Absolutamente inigualável! Pérolas negras, as chama. Nunca viu você nada igual, o asseguro. – Jogou uma olhada a seu redor, à lombriga alargou uma mão para me tocar o cotovelo. – Tenho entendido que você aconteceu algum tempo na França, senhora Fraser. Talvez as viu lá?
- Pérolas negras? – disse, me esforçando por apanhar os fios da conversação. – Pois sim, umas quantas. Lembrança que o arcebispo do Ruan tinha um pequeno pajem mouro que levava uma muito grande na orelha.
Stanhope ficou ridiculamente boquiaberto. Wylie me olhou por uma fração de segundo logo lançou uma gargalhada tão potente que os do tabaco e as jovencitas se interromperam em seco para nos olhar.
- Acabará por me matar, minha querida senhora - ofegou Wylie, enquanto Stanhope proferia sufocados bufos de regozijo.
Seu amigo extraiu um lenço de encaixe para tocar-se delicadamente as comissuras dos olhos, para não arruinar o pó com lágrimas de alegria.
- Na verdade, senhora Fraser, não viu meus tesouros? – agarrou-me pelo cotovelo para me propulsar fora da multidão, com assombrosa habilidade. – Venha, me permita que os mostre.
Guiou-me habilmente entre a multidão, além da casa, onde um atalho de pedras conduzia aos estábulos.
Eram cinco: duas éguas, um par de potros de dois anos e um semental. Os cinco eram negros como o carvão; sua pelagem refulgia sob o pálido sol da primavera, até lanzudos como estavam pelo cabelo do inverno.
- São deles? – perguntei-lhe sem olhá-lo, por não apartar os olhos dessa encantadora visão. Como os conseguiu?
- São meus, sim – disse, varridas pelo simples orgulho as afetações de costume. – São frisones. A mais antiga das raças; sua linhagem se remonta a vários séculos. Quanto a como os obtive... – inclinou-se sobre a perto, com a mão estendida, e agitou os dedos para os cavalos em um gesto de convite. – Os pirralho há vários anos. estes traje por convite da senhora Cameron. Quer comprar uma de minhas éguas e sugeriu que um ou dois de seus vizinhos também podiam estar interessados.
- Ah, estava aqui, Sassenach. – A voz do Jamie soou súbitamente em meu ouvido. – Estive-te procurando.
- De verá? – voltei as costas ao curral. – E você, onde estiveste?
- OH!, aqui e lá – respondeu, sem que meu tom acusador o perturbasse. – Esplêndido cavalo, senhor Wylie, de verdade.
Saudou-o com uma inclinação de cabeça e me conduziu do braço para o prado antes de que o outro pudesse murmurar: “ A seu serviço, senhor” .
- O que faz aqui com o pequeno Phillip Wylie?- perguntou.
- Ver os cavalos – respondi, com uma mão contra o estômago, com a esperança de sossegar os ruídos ocasionados pela aparição da comida. - E você?
- Procurando o Duncan. – Guiou-me para sortear um atoleiro. – Não estava na letrina; tampouco na ferraria, nem nos estábulos ou as cozinhas. Agarrei um cavalo e cavalguei até os depósitos de tabaco, mas ali não havia rastro dele.
- Pode que o tenente Wolff o tenha assassinado – sugeri. – O rival desdenhado e todo isso.
- Wolff? – deteve-se com um gesto consternado. - Esse escupitajo está aqui?
- Em carne e osso- assegurei, assinalando o prado com o leque.
Wolff tinha ocupado um posto junto à mesa do refrigério; sua silhueta baixa e fornida, com o uniforme azul e branco, resultava inconfundível.
- É possível que sua tia o haja convidado?
- Acredito que sim – respondeu, carrancudo mas resignado. – Suponho que não resistiu a tentação de esfregar-lhe nos narizes.
- É o que pensei. Faz só meia hora que chegou, mas se continua bebendo desse modo, quando se celebrar a cerimônia estará inconsciente.
Jamie descartou à tenente com um gesto depreciativo.
- Pois como se se conserva em álcool, se assim o quiser, enquanto não abra a boca mais que para beber. Mas onde se escondeu Duncan?
- E se se tivesse arrojado à água? – Disse-o em brincadeira, mas mesmo assim joguei um olhar ao rio. Um bote vinha para o embarcadero, com o remador de pé na proa para arrojar a amarra ao escravo que o esperava. – Olhe: é por fim o sacerdote?
tratava-se de uma figura baixa e gordinha; com a batina negra recolhimento por cima dos joelhos peludos, subiu ignominiosamente ao mole, ajudado por um empurrão do barqueiro. Ulises já corria a saudá-lo.
- Bem – disse Jamie, em tom satisfeito. – Já temos um sacerdote e uma noiva. Dois de três; é um progresso.
- Ali está! – exclamei, me movendo tão súbitamente que pisei ao Jamie na ponta do pé. - OH!, perdoa.
- Não importa – me assegurou. Tinha seguido a direção de meu olhar e agora se erguia decididamente. – Irei a por ele. Sobe à casa, Sassenach, e não perca de vista a minha tia nem ao padre. Que não escapem até que as bodas se celebrou.
Jamie desceu pelo prado para os salgueiros, respondendo distraídamente às saudações de amigos e conhecidos. Em realidade, pensava menos nas iminentes núpcias do Duncan que em sua própria esposa.
Tinha consciência de que tinha sido bento com uma bela mulher, até em roupa de andar por casa. Deus Santo! Só de pensar em corpos sob as matas, sua mente lhe tinha devotado uma indecente visão do Claire com os peitos aparecendo pelo vestido; as folhas murchas e a erva seca tinham as mesmas cores que suas saias enrugadas e o pêlo encaracolado de seu... Afogou bruscamente o pensamento para dedicar uma reverência cordial à anciã senhora Alderdyce, a mãe do juiz.
- Um servidor, senhora.
- bom dia você tenha, jovem, bom dia. – a dama inclinou magistralmente a cabeça sem deter seu caminho, apoiada no braço de sua companheira, uma jovem sofrida e paciente, que respondeu à saudação do Jamie com um vago sorriso.
- Amo Jamie?
Uma das criadas rondava a seu lado com uma bandeja cheia de taças. Ele agarrou uma; depois de agradecer-lhe com um sorriso, bebeu a metade de seu conteúdo de um só gole.
Não podia evitá-lo: devia voltar em busca do Claire. O que o tinha assim era havê-la visto com seu vestido novo. Levava meses sem vê-la embelezada como corresponde a uma dama, com a cintura estreita envolta em seda e os peitos brancos, redondos e doces como pêras de inverno, aparecidos em um bom decote. de repente parecia uma mulher distinta, intimamente familiar, mas também estimulante pelo estranha.
Desde dia em que lhe tinha mostrado os espermatozóides, tinha incômoda consciência da acumulação que, de vez em quando, padecia nos testículo, impressão que se fortalecia em situações como esta. Sabia muito bem que não havia perigo de ruptura ou explosão, mas não podia a não ser pensar em todos os trancos que se estavam produzindo ali dentro.
Queria ver o Duncan bem casado; logo o homem teria que ocupar-se de seus próprios assuntos. Assim que caísse a noite... e se não encontrava melhor lugar que os matagais, nos matagais seria. Apartou um ramo de salgueiro e se agachou para passar.
- Duncan – começou.
Mas se interrompeu; o redemoinho de pensamentos carnais desapareceu como água por um ralo. A jaqueta escarlate não pertencia ao Duncan Innes, a não ser a um desconhecido que girou em redondo, tão surpreso como ele. Luzia o uniforme do exército de sua majestade.
Na cara do homem se apagou a expressão de sobressalto, quase tão rápido como a de surpresa do Jamie. Devia ser MacDonald, o militar que Farquard Campbell lhe tinha mencionado. Ao parecer Farquard também tinha dado à major sua descrição, pois era evidente que o homem o identificava.
- O coronel Fraser, presumo...
- Maior MacDonald, - disse ele a sua vez, com uma inclinação de cabeça em que se mesclavam a cortesia e a cautela. – Um servidor, senhor.
O outro se inclinou, puntilloso.
- Posso lhe roubar um minuto de seu tempo, coronel? – Olhava por cima do ombro do Jamie. - Em privado?
Jamie notou que pronunciava seu cargo de miliciano com azeda diversão, mas assentiu brevemente dirigindo-se a casona. Como esse lugar lhe parecesse o melhor para evitar interrupções, Jamie conduziu à major pelo atalho de pedras que conduzia para os estábulos.
- Viu você os cavalos do Wylie?– perguntou o militar, enquanto rodeavam a casa; procuraria uma conversação qualquer até que estivessem fora do alcance de ouvidos alheios.
- Sim. O semental é um magnífico animal, verdade? – Por ato reflito os olhos do Jamie se desviaram para o cercado. Lucas mordiscava a erva junto à artesa, enquanto as duas éguas se olisqueaban amigavelmente perto do estábulo, lustrosos os largos lombos sob o sol pálido.
- Sim? Talvez. – o major olhou para lá com um olho médio fechado em dúbio acordo. – Parecem fortes. Bom peito. Mas todo esse cabelo... não serviriam para a cavalaria. Embora suponha que, bem barbeados e vestidos...
Jamie conteve o impulso de lhe perguntar se as mulheres também gostava de barbeadas.
- Há algum assunto que lhe preocupe, maior? – perguntou, mais abruptamente do que tinha calculado.
- Não é exatamente minha preocupação – replico afablemente MacDonald. – Me há dito que lhe interessa o paradeiro de uma pessoa chamada Stephen Bonnet. Estou bem informado, senhor?
- Eu... sim. Sabe você onde está?
- Infelizmente, não. – O maior arqueamento uma sobrancelha ao ver sua reação. – Mas sei onde esteve. Má pessoa, o tal Stephen, por isso parece – inquiriu, com ar algo jocoso.
- poderia-se expressar assim. matou a vários homens, e me roubou... e violou a minha filha- enumerou Jamie sem rodeios.
O major aspirou fundo, com a cara escurecida por uma súbita compreensão.
- Ah, compreendo.
Levantou apenas a mão, para tocá-lo no braço, mas a deixou cair a um lado. Deu uns passos mais, com a frente enrugada em um gesto de concentração.
- Compreendo – repetiu. De sua voz tinha desaparecido qualquer rastro de diversão. – Não sabia... Compreendo sim.
E voltou a cair no silêncio; seus passos se fizeram mais lentos ao aproximar-se do cercado dos cavalos.
- Suponho que pensa me dizer o que sabe desse homem- disse Jamie, cortês.
MacDonald pareceu reconhecer que, quaisquer fossem suas intenções, a de seu interlocutor era inteirar-se do que ele soubesse, seja por meio do diálogo, seja por métodos mais diretos.
- Não o conheço pessoalmente- disse com suavidade. – O que sei é o que escutei durante uma reunião social em New Bern, o mês passado.
Foi uma tarde durante uma partida do Whist organizada pelo David Howell, armador endinheirado e membro do Conselho Real do governado. A seleta reunião se iniciou com um jantar excelente; logo passaram aos naipes já à conversação, bem marinhada com ponche de rum e brandy.
Ao avançar a noite, com a fumaça dos cigarros já denso no ar, a conversação se tornou mais franco; fizeram-se referências jocosas a recente fortuna de certo senhor Butler, com muitas especulações semiveladas quanto à fonte dessas riquezas. A um cavalheiro lhe ouviu dizer com inveja: “ Se a gente pudesse ter a um Stephen Bonnet no bolso ... “ Imediatamente foi sossegado pela cotovelada de um amigo cuja discrição não estava tão disolvida pelo rum.
- O senhor Butler estava entre os pressente? – perguntou Jamie, com aspereza. O nome não lhe era familiar, mas se os membros do Conselho Real conheciam... Na colônia, os círculos dos capitalistas eram reduzidos; sua tia ou Farquard Campbell podiam conhecer algum deles.
- Não, não estava ali.
Tinham chegado ao cercado. MacDonald apoiou os braços cruzados no corrimão, fixos os olhos no semental.
- Conforme acredito, residem no Edenton.
Igual a Phillip Wylie. Lucas, o semental, aproximou-se deles, dilatando com curiosidade as negras fossas nasais.
Edenton estava sobre o Estreito do Albemarle, de fácil acesso para os navios. O mais provável era que Bonnet tivesse retomado seu ofício de marinho... e também o de pirata e contrabandista.
- Você disse que Bonnet era má pessoa- comentou. - por que?
- Joga whist, coronel Fraser? – MacDonald lhe jogou um olhar inquisitivo. – Particularmente, o recomendo. Compartilha algumas qualidades com o xadrez quanto a descobrir a mente do adversário. E tem uma grande vantagem: que se pode jogar contra mais pessoas. – As linhas marcadas de sua cara se relaxaram em um momentâneo sorriso. – Outra vantagem, até maior, é que com ele te pode ganhar a vida, coisa que estranha vez acontece com o xadrez.
- Estou familiarizado com o jogo, senhor – replicou Jamie, com soma secura.
MacDonald era oficial, sem regimento nem tarefas ativas pelo que só recebia a metade do pagamento. Não era absolutamente estranho que esses homens completassem seu magro salário compilando dados que pudessem se vende ou permutar. No momento não tinha posto preço, mas isso não significava que não reclamasse mais adiante o pagamento da dívida. Jamie reconheceu a situação com um breve cabaçada. O major assentiu a sua vez satisfeito. Ao seu devido tempo lhe diria o que desejava.
- Pois bem, senhor: como suporão, senti curiosidade por averiguar quem era é Bonnet. E se na verdade era um ovo de ouro, que gansa o tinha posto.
Mas seus companheiros de jogo tinham recuperado a cautela. Não pôde saber nada mais do misterioso Bonnet. Salvo o efeito que causava em quem o conhecia.
- Conhece você o velho dito de que é tão revelador o que o homem diz como o que cala? Ou a maneira de dizê-lo? – continuou sem aguardar resposta. – Fomos oito jogadores. Três especulavam livremente, mas notei que sabiam tão pouco do senhor Bonnet como eu mesmo. Outros dois não pareciam interessados. Mas os dois restantes... – moveu a cabeça. – Estavam muito calados, senhor. Como se não queriam memorar ao diabo por medo de que aparecesse.
Seus olhos refulgiam de especulações.
- Conhece você pessoalmente a esse homem?
- Sim. Quais eram os dois cavalheiros que lhe conheciam?
- Walter Priestly e Hosea Wright – respondeu imediatamente o major. – Ambos, muito amigos do governador.
- Mercados?
- Entre outras coisas. Ambos têm depósitos: Wright, no Edenton e Plymouth; Priestly, no Charleston, Savannah, Wilmington e Edenton. Priestly tem também interesse comerciais em Boston – acrescentou MacDonald, como se acabasse de recordá-lo, - embora não sei bem no que consistem. Ah... e Wright é banqueiro.
Jamie assentiu. Caminhava com as mãos cruzadas sob as abas da jaqueta; ninguém podia ver a força com que apertava os dedos.
- Acredito ter ouvido falar do senhor Wright – disse. –Phillip Wylie mencionou que um cavalheiro assim chamado possui uma plantação perto da sua.
MacDonald assentiu. O extremo do nariz lhe tinha posto muito vermelho e em suas bochechas se destacavam pequenos copos sangüíneos quebrados, lembranças de anos passados em campanha.
- Sim, tem que ser Quatro Chaminés. – Olhou de soslaio ao Jamie, pinçando-se com a língua em um molar. - Pensa você matá-lo?
- Por supostos que não- replicou Jamie sem alterar-se. - A um homem com tantos contatos nas altas esferas?
O major o olhou com aspereza; logo soprou.
- Sim, claro.
Durante alguns instantes continuaram caminhando sem falar, cada um ocupado em seus pensamentos... e cada um consciente dos de seu companheiro.
A notícia dos contatos do Bonnet tinha dobro fio; por um lado agora seria mais fácil encontrar ao homem. Por outro, essas vinculações complicariam bastante as coisas quando chegasse o momento de matá-lo. Aquilo não deteria o Jamie ( e o major o percebia com claridade), mas sem dúvida era algo que levava a refletir.
No momento não havia maneira de sossegar ao MacDonald. Jamie não tinha médios para suborná-lo. E de qualquer modo era pobre recurso, pois o homem que se deixa compara uma vez está sempre à venda. Dada a vida que levava, o major devia ter seus pontos débeis, mas haveria tempo para descobri-los? Essa idéia o levou a outra.
- Como soube você que eu procurava notícias do Stephen Bonnet? – perguntou bruscamente.
O militar se encolheu de ombros. Logo acomodou melhor o chapéu e a peruca.
- Soube-o por cinco ou seis fontes distintas, senhor, tanto em botequins como nas cortes dos magistrados. Temo-me que seu interesse é muito conhecido. – E acrescentou delicadamente, com um olhar de soslaio: - Embora não seu motivo.
Jamie lançou um fundo grunhido. Se em toda a costa se sabia que ele procurava o Bonnet... Bonnet também saberia. Isso podia ser ou não mau. Se Brianna se inteirava.... Logo que começava a analisar as possibilidades quando MacDonald voltou a falar.
- Sua filha... tem que ser a senhora MacKenzie, verdade?
- Importa isso?
Havia-o dito com frieza. O major esticou os lábios um momento.
- Não certamente. Só que... conversei um momento com a senhora Mackenzie e me pareceu muito... encantadora. A idéia de que...
Pigarreou. Logo se deteve para girar para o Jamie.
- Eu também tenho uma filha – disse de repente.
- Sim? – Jamie ignorava que MacDonald estivesse casado. Certamente não o estava. - Em Escócia?
- Na Inglaterra. Sua mãe é inglesa.
O frio tinha pintado nervuras de cor em sua bochecha curtida.
- Também conversei com sua esposa – comentou MacDonald.- Uma mulher encantadora e muito amável. É você um homem afortunado, senhor.
- Inclino-me a pensar que sim – respondeu Jamie.
O militar tossiu delicadamente.
- A senhora Fraser teve a amabilidade de sugerir que você poderia, possivelmente, me proporcionar uma carta de apresentação dirigida a sua excelência, o governador. À luz da recente ameaça de conflito, pensou que talvez um homem de minha experiência poderia oferecer algo assim que A..., você compreende...
Compreendia perfeitamente. E embora duvidava que Claire tivesse sugerido semelhante coisa, era um alívio inteirar-se de que o preço era tão barato.
- Farei-o imediatamente – assegurou. – me busque esta tarde, depois das bodas, e a entregarei.
MacDonald inclinou a cabeça, gratificado.
Quando chegaram ao atalho que conduzia às letrinas, o major se despediu com uma mão em alto. Ao afastar-se, passou junto ao Duncan Innes, que vinha em direção contrária, ojeroso e pálido como se tivesse as vísceras atadas.
- Encontra-te bem, Duncan? – perguntou Jamie, observando a seu amigo com certa preocupação. face ao afresco do dia, em sua frente brilhava um filme de suor, e suas bochechas estavam pálidas.
- Não – foi a resposta. – Não, sinto-me... Preciso falar contigo, MacDubh.
- É obvio, a charaid. – Alarmado pelo aspecto do Duncan, agarrou-o do braço para lhe emprestar apóio. - quer que procure a minha esposa? Necessita um gole?
- Não, MacDubh. É a ti a quem necessito. Um conselho, se tivesse a bondade.
- Claro, homem, claro. – Já mais curioso que alarmado, Jamie soltou o braço a seu amigo. – me diga do que se trata.
- De... da noite de bodas – resmungou Duncan. – Eu... quer dizer... tenho...
Ao ver que alguém saía ao atalho diante deles, rumo às letrinas, interrompeu-se abruptamente.
- por aqui. – Jamie o guiou para o pomar, onde estariam a salvo entre os protetores muros de tijolo. “ a noite de bodas?” , pensou, a um tempo tranqüilizado e cheio de curiosidade. Sabia que Duncan nunca tinha tido esposa. E no Ardsmuir não falava de mulheres, como os outros. Por então ele o tinha atribuído ao pudor, mas possivelmente... Não: Duncan tinha mais de cinqüenta anos. Sem dúvida lhe teria apresentado a oportunidade.
Só ficavam duas possibilidades: preferências estranhas ou enfermidade sexual. E ele podia jurar que ao Duncan não gostava dos varões. Seria algo embaraçoso, mas Claire poderia curá-lo, sem lugar a dúvidas. Mas oxalá não fora a praga francesa; essa sim que era cruel.
- Aqui, a charaid – disse, conduzindo ao Duncan ao maciço das cebolas. – Aqui ninguém nos incomodará. me diga agora, que problema tem?
O pai LeClerk não falava inglês, excetuando um jubiloso” Tally-ho!” , que usava alternativamente como saudação, como interjeição de assombro ou para expressar aprovação. Como Yocasta ainda estava em seu toilette, fui eu quem o apresentou ao Ulises. Logo o acompanhei ao salão principal, fiz que lhe servissem um bom refrigério e o sentei a conversar com os Sherston, estes eram protestantes e estavam assustados pela presença do jesuíta, mas tão desejosos de exibir seu francês que passaram por cima a desafortunada profissão do padre.
Depois dessa delicada manobra social, desculpei-me para sair a terraço, a fim de ver se Jamie tinha conseguido capturar ao Duncan. Nenhum dos duas estava à vista, mas Brianna vinha pelo prado, com o Jemmy em braços.
Acabava de ouvir as badaladas do relógio do salão, que davam o meio-dia. Era de esperar que Jamie tivesse ao Duncan bem sujeito. Talvez fora melhor encerá-lo para evitar que voltasse a desaparecer.
- Conhece os Sherston? – perguntou Brianna.
- Sim – foi minha precavida resposta. - Porquê O que têm feito?
Ela arqueou uma sobrancelha.
- Pediram-me que pinte o retrato da senhora Sherston. É um encargo. Ao parecer tia Yocasta lhes falou maravilhas de mim e lhes mostrou algumas costure que fiz a primavera passada, quando estive aqui. Agora querem um retrato.
- Seriamente? OH!, querida, que estupendo.
- Seria estupendo se tivessem dinheiro – observou ela, prática. - O que opina?
Eram uma boa pergunta. As roupas finas não sempre refletem o valor real. Eu não conhecia bem aos Sherston; não eram do Cross Creek, mas sim do Hillsborough.
- Bom, são bastante vulgares – disse, vacilando, - e terrivelmente esnobes, mas acredito que ele tem dinheiro. Se não me equivocar, é dono de uma cervejaria. por que não pergunta a Yocasta? Ela tem que saber.
- Bs-tante vul-gares – repetiu ela com um grande sorriso, imitando meu acento britânico. - quem é a esnobe?
- Eu não – me defendi com dignidade; - só observo atentamente os matizes sociais. Viu a seu pai ou ao Duncan?
- Ao Duncan não, mas papai está abaixo, junto às árvores, com o senhor Campbell.
E assinalou o lugar para me ajudar. O cabelo do Jamie e seu tartán carmesim refulgiam ferozmente ao pé do prado. Mas não havia sinais da jaqueta escarlate do Duncan.
- Que o diabo se leve a esse homem – murmurei. - Onde se colocou?
- Na letrina, e tem cansado dentro – sugeriu Bree.
Ajustei-me o xale e fui reunir me com o Jamie. Ali se estava servindo um almoço ao ar livre, para comodidade dos convidados; ao passar junto à mesa de refrigério agarrei uma bolacha e uma fatia de presunto, com os que improvisei um sanduíche para acalmar minhas próprias pontadas de fome.
Ao parecer, Jamie acabava de dizer algo gracioso, pois Campbell emitiu esse ruído grave e lhe chiem que nele passava por risada, enquanto me saudava com uma inclinação de cabeça.
- Deixarei-o para que se você ocupe de seus assuntos – disse ao Jamie, recuperada a compostura. – Mas pode me chamar quando me necessitar. – Com uma mão a modo de viseira, olhou para a terraço. – Ah, retorna o filho pródigo. Em xelins ou em garrafas do Brandy?
Duncan cruzava a terraço, saudando com tímidos sorrisos a quem expressava seus bons desejos. Devo ter posto cara de estranheza, pois o senhor Campbell me fez uma reverência e grasnou, com ar divertido:
- Fiz uma pequena aposta com seu marido, senhora.
- Cinco a um pelo Duncan, esta noite – explicou Jamie. – Que ele e minha tia compartilharão a cama.
- Santo céu – exclamei, bastante chateada. - É que ninguém aqui falará de outra coisa? Todos vós teneís a mente como um esgoto.
Campbell, rendo, apartou-se para atender as urgências de um de seus netos pequenos.
- Não me diga que você não te estiveste perguntando o mesmo. – Jamie me deu uma suave cotovelada.
- É obvio que não – respondi, escandalizada. Era certo, mas só porque já sabia.
- OH!, é obvio- repetiu ele, torcendo a boca. - Mas se te vê a luxúria na cara, como os bigodes ao gato!
- O que quer dizer com isso? – interpelei.
Se por acaso fora certo, desdobrei o leque para me cobrir a parte inferior da cara, enquanto piscava sobre o encaixe, fingindo inocência. Ele emitiu uma interjeição de brincadeira, muito escocesa. depois de olhar a seu redor, inclinou-se para me sussurrar ao ouvido:
- Quero dizer que é assim como miras quando quer que vá a sua cama. – O quente fôlego me agitou o cabelo da têmpora. - É assim?
Meu marido se esfregou o nariz, me observando com intensa especulação; seu olhar azul se atrasou no decote de meu vestido novo. Eu fiz bater as asas delicadamente o leque sobre a zona.
- Né... poderíamos... – Avaliou os arredores, estudando as perspectivas de intimidade, mas sua vista voltou ineludiblemente ao leque, como se fora um ímã.
- Não, não podemos – lhe informei, enquanto dedicava uma sorridente saudação às anciãs senhoritas MacNeil, que passaram tranqüilamente atrás dele. – Todos os rincões da casa estão cheios de gente. Os celeiros, estábulos e abrigos, também. E se tiver pensado em uma rendez-vous sob as matas do ribazo, esquece-o. Este vestido há flanco uma fortuna.
Uma fortuna em uísque ilegal, mas fortuna ao fim e ao cabo.
- Sei perfeitamente.
Percorreu-me lentamente com os olhos, da cabeleira recolhimento até as ponteiras dos sapatos novos. O vestido era de seda ambarina, com folhas de seda parda e dourada bordadas no sutiã e na prega. E a meu parecer, sentava-me como uma luva.
- Mas vale a pena – adicionou brandamente. E se inclinou para me beijar. Uma brisa geada agitou os ramos do carvalho que nos cobria. Aproximei-me mais a ele, procurando seu calor.
- meu deus! – disse, apoiando a frente nas dobras de sua camisa para inalar seu aroma de homem, misturado com o amido – se sua tia e Duncan não necessitam a cama possivelmente...
- Ah!, assim que você também o pensaste.
- Não, absolutamente. Por outra parte, o que te importa?
- Não me importa, é verdade – disse, impertérrito. – Mas esta manhã, quatro homens me pediram opinião: se o fariam... ou se já o tinham feito. O qual é todo um completo para minha tia, não?
Era verdade. Yocasta MacKenzie devia estar bem entrada na sexta década, mas a idéia de que compartilhasse o leito com um homem não resultava absolutamente inconcebível. Eu conhecia muitas que tinham abandonado com gosto a vida sexual, logo que o fim da idade fértil o fez possível. Yocasta não era dessas. E ao mesmo tempo...
- Não o têm feito- informei. – Soube ontem, pela Fedra.
- Sei. Duncan acaba de me dizer isso
- De verá? – Isso me surpreendeu o bastante.
- Queria te perguntar algo, Sassenach- disse, olhando por cima do ombro para assegurar-se de que ninguém nos escutasse. - Pode procurar uma ocasião para falar a sós com minha tia?
- Neste manicômio? – Joguei uma olhada a terraço; um enxame de convidados rodeava ao Duncan. – Suponho que poderia pilhá-la em sua habitação, antes de que baixe para a cerimônia. subiu a descansar.
Não me teria ido mal me deitar também; doíam-me as pernas detrás passar horas inteiras de pé; além disso, os sapatos novos eram algo estreitos.
- Perfeito. – Saudou amavelmente a um conhecido que se aproximava, mas logo lhe voltou as costas para evitar interrupções.
- De acordo – disse. - por que?
- Pois... trata-se do Duncan. – Parecia de uma vez divertido e um pouco preocupado. – Há uma pequena dificuldade e ele não se atreve a tocar o tema com ela.
- Não me diga nada – adivinhei. – Esteve casado e acreditava que sua primeira esposa tinha morrido, mas acaba de vê-la aqui, comendo encurtidos.
- Não é tão grave – assegurou ele, sorridente. – E possivelmente não seja tão problemático como Duncan teme. Mas está muito preocupado e não se decide a falar com minha tia; lhe intimida um pouco, sabe?
- Entendo-o, mas o que é o que lhe tem tão preocupado?
- Bom – respondeu, ele, com lentidão - , te ocorreu te perguntar por que alguma vez se casou?
- Não. Só supus que a sublevação... OH, Deus mijo!... – interrompi-me. – Não me diga... Santo céu... gosta dos homens?
Tinha levantado involuntariamente a voz.
- Não! – exclamou ele, escandalizado. - Ia eu a permitir que minha tia se casasse com um sodomita?
- Pois não tinha por que sabê-lo – observei, divertida.
- me acredite que saberia – assegurou, carrancudo. – Vêem aqui.
Levantou um ramo pendente para que eu passasse e ao chegar a um pequeno espaço aberto entre os troncos, repetiu:
- Não. Que mente mais suja tem, Sassenach! Nada disso. – Jogou uma olhada atrás, mas estávamos a boa distância do prado e razoavelmente ocultos à vista. – Mas é... incapaz.
Escolheu ligeiramente um ombro, como se a idéia o incomodasse profundamente.
- O que? Impotente? – senti que me abria a boca e a fechei.
- Sim. Durante sua juventude esteve comprometido, mas sofreu um horrível acidente: um cavalo de tiro o derrubou na rua e o chutou no escroto. – Pareceu a ponto de tocar-se a modo de comprovação, mas se conteve. – curou-se, mas... já não era apto para os ritos nupciais, de modo que liberou a jovem de seu compromisso e ela se casou com outro.
- Pobre homem! – exclamei, com solidariedade. - Sempre teve má sorte!
- Mas está vivo – comentou Jamie. - Muitos outros morreram. Além disso – assinalou a extensão do River Run- , não acredito que, em sua situação atual, possa falar de má sorte. Excetuando essa pequena dificuldade, claro está.
Com a frente enrugada, repassei as possibilidades médicas. Se o acidente tivesse provocado um grave dano vascular, não havia muito que se pudesse fazer; eu não estava preparada para uma boa cirurgia reconstructiva. Mas se era só um coágulo...
- Diz que aconteceu quando era jovem? Hum, vai ser difícil, depois de tanto tempo. Mas posso jogar uma olhada e ver se...
Jamie me olhou com incredulidade.
- Uma olhada? Sassenach! Esse homem se muda quando lhe pergunta pela saúde de seus intestinos. Quase morreu que vergonha ao me contar isto. Se te entremeter em suas intimidades lhe dará uma apoplexia.
Irritada, coloquei depois de uma orelha a mecha de cabelo que tinha liberado uma ramilla de carvalho.
- Mas que esperas de mim? O que o cure com encantamentos?
- Não, é obvio – replicou, algo impaciente. – Não quero que faça nada pelo Duncan. Só que fale com minha tia.
- Mas... quer me dizer que ela não sabe? Estão comprometidos há meses! E conviveram a maior parte deste tempo!
- Pois ele não pensou que minha tia o quisesse por sua beleza viril, verdade? – observou Jamie. – Só parecia questão de negócios e conveniência. Como proprietário do River Run, ele poderia dirigir coisas que como capataz estava fora de seu alcance. Mesmo assim não teria acessado, mas ela o persuadiu.
- E não lhe ocorreu mencionar esse... impedimento?
- Pensou-o, sim. Mas minha tia não dava amostras de pensar no matrimônio mas sim como uma questão de negócios. Ela não mencionou o fato e ele era muito tímido para fazê-lo. De modo que não surgiu nunca.
- E suponho que agora surgiu. O que aconteceu? Acaso esta manhã sua tia lhe colocou uma mão sob a saia? Fez algum comentário soez sobre a noite de bodas?
- Ele não me há isso dito – replicou, seco. – Mas só esta manhã, quando começou para ouvir as brincadeiras dos convidados, lhe ocorreu que possivelmente minha tia esperava... pois... – Encolheu um ombro e o deixou cair. – Não sabia o que fazer. E escutando a todos entrou o pânico.
- Compreendo. – Passei-me um nódulo pelo lábio superior, pensativa. – Pobre Duncan, não é de sentir saudades que esteja tão nervoso.
- Sim. – Jamie endireitou as costas com o ar de quem resolveu algo. – Pois bem, se tiver a bondade de falar com a Yocasta e esclarecer coisas...
- Eu? Quer que eu o diga?
- Olhe, não acredito que lhe importe muito – disse, zombador. – depois de tudo, a sua idade não acredito que...
- A sua idade? – bufei. – A última vez que se soube de seu avô Simon, já setuagenário avançado, ainda estava fazendo das suas.
- Mas minha tia é mulher – observou ele, bastante austero, - se por acaso não te precaveste.
- E você crie que isso troca as coisas?
- Você não?
- Pois sim, troca-as. – Reclinei-me contra uma árvore, com os braços cruzados sob o busto, e o olhei com as pestanas entreabridas. – Quando eu tenha cento um anos e você, noventa e seis, convidarei a meu leito... e então veremos quem se comporta à altura das circunstâncias, de acordo?
Observou-me com um brilho no azul escuro de seus olhos.
- Estou pensando te fazer o amor aqui mesmo, Sassenach – disse. – Como pagamento a conta, né?
- E eu estou pensando tomar a palavra – repliquei. Entretanto... Joguei uma olhada para a casa, que se via perfeitamente através dos ramos. As árvores começavam a brotar, mas aquelas ramillas tenras não eram absolutamente camuflagem suficiente. Girei no momento em que as mãos do Jamie descendiam para a curva de meus quadris.
A partir de então os fatos são algo confusos; as impressões predominantes são um apressado sussurro de tecidos, o aroma penetrante da erva pisoteada e o ranger das folhas murchas sob os pés.
Poucos segundos depois abri repentinamente os olhos.
- Não te detenha! – disse , incrédula. - Agora não, pelo amor de Deus!
Ele deu um passo atrás, com um grande sorriso malicioso, e deixou cair o bordo de sua saia. O esforço lhe tinha avermelhado a cara com um tom de bronze avermelhado; seu peito subia e baixava contra os volantes da camisa. passou-se a manga pela frente.
- Darei-te o resto quando tiver noventa e seis anos, sim?
- Não viverá até então! Vêem aqui!
- Falará com minha tia?
- Que suja extorsão! – ofeguei, gesticulando as dobras de sua saia. – Pagará-me isso, juro-lhe isso.
- Sem dúvida. claro que sim.
Rodeou-me a cintura com um braço para me elevar em velo. Logo se girou para ficar de costas à casa, me ocultando com seu corpo. Seus largos dedos recolheram diestramente a saia de meu vestido e as duas anáguas; logo com mas destreza ainda, deslizaram-se entre minhas pernas nuas.
- Cala – murmurou a meu ouvido, - se não querer que a gente se inteire.
Com a curva de minha orelha entre os dentes, pôs mãos à obra como bom trabalhador, sem emprestar atenção a minhas resistências intermitentes... e bastante débeis, é preciso admiti-lo.
Eu estava mais que lista e ele sabia o que estava fazendo. Não fez falta muito tempo. Cravei-lhe os dedos no braço, duro como o ferro contra minha cintura; durante um momento de vertiginosa infinitud me arqueei para trás e logo me derrubei contra ele, me retorcendo como a lombriga no anzol. Jamie sufocou uma risada grave e me soltou a orelha.
levantou-se uma brisa fria que me agitava as dobras da saia. Do prado chegavam, no ar da primavera, aromas de fumaça e a comida, junto com o rumor das conversações e as risadas. Eu o ouvia apagado sob o tamborilar lento e forte de meu coração.
- Agora que o penso – comentou Jamie, me soltando, - Duncan conserva uma mão útil. – depositou-me brandamente sobre meus pés, sem me soltar o cotovelo, se por acaso me afrouxavam os joelhos. – Pode mencionar-lhe a minha tia, se for necessário.
Roger MacKenzie caminhava através da multidão; aqui e lá saudava algum conhecido, mas continuava avançando sem deter-se, para evitar qualquer intento de diálogo. Não estava de humor para conversar.
Brianna se tinha ausentado para amamentar ao menino; embora a sentia falta de, no momento preferia que estivesse fora da vista. Não gostava absolutamente de quão olhadas estava atraindo. Ao mesmo tempo se sentia muito orgulhoso de sua mulher. Estava preciosa com seu vestido novo; ao olhá-la experimentava um grato sentido de posse.
O fraco gemido de um violino, que provinha da casa, fez que erguesse as orelhas. Tinha que haver música para a festa, certamente. E, com sorte, umas quantas canções desconhecidas para ele.
Girou para a casa. Não havia trazido caderneta, mas sem dúvida Ulises teria algo para lhe dar.
Embora o violino tinha calado, ouviam-se sons de cordas e emplastros, alguém estava provando e afinando instrumentos no salão grande. Nesse momento só havia uns quantos convidados que conversavam com ar indiferente.
Roger passou junto ao Ulises; de pé frente ao lar, com peruca e imaculada librea verde, fiscalizava a duas criadas que preparavam uma gigantesca tina de ponche de rum. Seus olhos se desviaram automaticamente à porta; depois de registrar a presença e a identidade do Roger, voltaram para o seu.
Os músicos se agruparam no outro extremo da habitação, de onde jogavam olhadas sedentas ao lar, enquanto preparavam seus instrumentos. Ele se deteve junto ao violinista.
- O que ides interpretar hoje?- perguntou, sorridente- . “Ewie wi’the Crooked Horn”, talvez, ou “Shawn Bwee”?
- OH!, Senhor, nada rebuscado.- O diretor, um irlandês com aspecto de grilo, cujos olhos brilhantes contrastavam com suas costas encurvada, assinalou com um gesto de cordial desdém a seu matizado conjunto de músicos- .Estes não sabem mais que jigas e reels. De qualquer modo, é o que a gente quererá dançar –acrescentou, com ar prático- . depois de tudo, aqui não estamos nos grandes salões do Dublín, nem sequer no Edenton. Um bom violinista pode mantê-los contentes.
- E esse é você, suponho? –perguntou Roger com um sorriso.
- Esse sou eu– confirmou o cavalheiro, com uma elegante reverencia- . Seamus Hanlon, senhor. A seu serviço.
- É uma honra. Roger MacKenzie, da Colina do Fraser. –inclinou-se a sua vez, desfrutando dessa formalidade antiquada.
Hanlon o observou com sagacidade, apreciando a amplitude de seu peito.
- E que voz! Sem dúvida você é cantante, senhor MacKenzie.
Uma vibração enfermo interrompeu a resposta do Roger. Ao girar em redondo viu o chelista inflado sobre seu instrumento, como uma galinha com um pintinho muito grande, para proteger o de um dano maior contra o cavalheiro que, pelo visto, tinha-o chutado despreocupadamente ao passar.
- você tenha cuidado, homem! –exclamou o chelista- . Torpe bêbado!
- Né? –O intruso, homem corpulento que vestia o uniforme naval, olhou-o amenazadoramente- . Como shhe atreve... atreve-se... a hab...blarme ashí...
Tinha a cara anormalmente avermelhada e se bamboleava um pouco. Roger percebeu os vapores alcoólicos a dois metros de distância.
O oficial assinalou ao músico com um dedo, como se estivesse a ponto de falar.
- Cuidado, senhor Ou’Reilly –advertiu secamente Seamus Hanlon ao chelista- . Se estivéssemos perto do mar, haveria uma ronda de gancho esperando que você saísse. Tal como estão as coisas, não seria estranho que esse homem o ataque com algum passador.
Ou’Reilly cuspiu eloqüentemente ao chão.
- Conheço-o –disse, depreciativo- . Chama-se Wolf, “Lobo”, mas não é mais que um cão de má morte. Está mais bêbado que uma Cuba. dentro de uma hora já não se lembrará de mim.
Hanlon, caviloso, contemplou com os olhos entreabridos a porta pela que o tenente tinha desaparecido.
- Pode ser –reconheceu- . Mas eu também o conheço. E acredito que sua mente pode estar mais lúcida do que sua conduta dá a entender.
Refletiu durante um instante, golpeando-a palma da mão com o arco do violino. Logo se voltou para o Roger.
- Da Colina do Fraser, há dito você? É acaso parente da senhora Cameron? Da senhora Innes, deveria dizer –se corrigiu.
- Estou casado com a filha do Jaime Fraser –explicou Roger, paciente. Tinha descoberto que era a descrição mais eficaz, pois todo o condado parecia saber quem era Jaime Fraser. Desse modo evitava mais pergunta sobre seus próprios vínculos familiares.
- Diabo! –exclamou Seamus, visivelmente impressionado- . Vamos! Hum!
- E o que está fazendo aqui essa esponja? –inquiriu o chelista, ainda furioso, enquanto dava a seu instrumento uns golpecitos tranqüilizadores- . Todo mundo sabe que tinha intenções de casar-se com a senhora Cameron para ficar com o River Run. Que descaramento, mostrar-se hoje por aqui!
- Talvez veio para demonstrar que não guarda rancores –sugeriu Roger- . Um gesto cortês. Que ganhou o melhor e todo isso, não?
Ante isso os músicos emitiram uma mescla de risitas burlonas e bufidos de hilaridade.
- Talvez –disse o flautista, movendo a cabeça- . Mas se você for amigo do Duncan Innes, lhe diga que durante o baile cuide suas costas.
- Sim, diga o repetiu Seamus Hanlon- . Você vá, jovem, e fale com ele. Mas retorne, por favor.
E chamou com um dedo ao lacaio que estava à espera. depois de agarrar uma taça da bandeja que lhe oferecia, elevou-a a maneira de saudação, sonriendo ao Roger.
- Pode que você possa me ensinar uma ou duas canções novas.
Sentada na poltrona de pele, frente ao lar, Brianna dava o peito ao Jemmy, enquanto sua tia avó se preparava para as bodas.
- O que lhe parece? –perguntou Fedra, lhe afundando penteie de prata em um pequeno pote de pomada- . Penteio-a para cima, com os cachos no cocuruto? –Sua voz soava esperançada, mas cautelosa. Não ocultava sua desaprovação pelo fato de que sua ama se negasse a usar peruca; se o permitia, esmeraria-se em criar um efeito similar com o cabelo natural da Yocasta.
- Tolices –disse a anciã- . Isto não é Edimburgo, filha, muito menos Londres. –respaldou-se no assento, com a cara em alto e os olhos fechados, desfrutando de do sol primaveril, que entrava em torrentes pelos cristais, fazia faiscar o pente de prata e convertia em sombras as mãos da pulseira, contra o nimbo de lustroso cabelo branco.
- Pode ser, mas tampouco é o Caribe selvagem, nem os páramos –contra-atacou Fedra- . Você é a senhora; é suas bodas e todo mundo a olhará. Quer me morrer de calor, com o cabelo solto sobre os ombros como as índias, para que todos criam que não conheço meu ofício?
- OH!, Deus não o permita. –A larga boca da Yocasta se contraiu com irritável humor- . Me penteie com simplicidade, por favor: para trás e recolhido com pentes de prender cabelos. Possivelmente minha sobrinha te permita exibir sua habilidade em seus cachos.
Fedra jogou um olhar penetrante a Brianna, quem se limitou a negar com a cabeça, sorridente.
Brianna olhou com inveja o tamanho do grande leito da Yocasta. Entre as exigências da viagem, Jemmy e a aglomeração do River Run, levava mais de uma semana sem dormir com o Roger. E dificilmente pudesse fazê-lo antes de retornar à Colina.
Em realidade, dormir com ele não era o que mais lhe interessava, por agradável que fora. Os estirões do bebê em seu peito despertavam necessidades não maternais em outros sítios, cuja satisfação requeria do Roger e de alguma intimidade. A noite anterior tinham iniciado algo promissor na despensa, mas os interrompeu um dos escravos ao entrar em busca de queijo. No estábulo, possivelmente... Estendeu as pernas, curvando os dedos, e se perguntou se as moços de quadra dormiriam ali ou não.
- Está bem, porei-me os brilhantes, mas só para te agradar, a negam.
A voz humorística da Yocasta a arrancou de uma tentadora visão: um pesebre cheio de palha e o corpo nu do Roger, entrevido na penumbra.
- Com isso basta, com isso basta. –A anciã ficou de pé, afugentando a Fedra, que abandonou a habitação. Tamborilava com os dedos contra o penteadeira, enrugado o sobrecenho, obviamente concentrada nos detalhes que devia atender. de repente se pressionou a frente com dois dedos, por cima dos olhos.
- Dói-te a cabeça, tia? –perguntou Brianna.
Yocasta baixou a mão e se voltou para ela com um sorriso irônico.
- OH!, não é nada. Cada vez que troca o tempo me alvoroça a cabeça.
face ao sorriso, a moça viu as rugas de dor que apareciam nas dobras dos olhos.
- Jem está a ponto de terminar. Irei a por mamãe, quer? Ela pode te preparar uma infusão.
Sua tia descartou o oferecimento com um gesto da mão, desprezando a dor com óbvio esforço.
- Não é necessário, a muirninn. Não é tão grave. –E se esfregou as têmporas cuidando de não arruinar o penteado. O gesto desmentia suas palavras.
Jemmy se desprendeu com um leitoso “pop!” e deixou cair a cabeça para trás, com a diminuta orelha enrugada e de cor carmesim; o oco do braço onde tinha descansado ficou quente e suarento.
- Está cheio, verdade? –Yocasta sorriu, voltando para eles os olhos cegos.
- Como um tambor –lhe assegurou Brianna. Para assegurarlhe deu uns tapinhas nas costas, mas não se ouviu mais que o suave suspiro do sonho. Então se levantou, limpou-lhe o leite do queixo e o deitou de barriga para baixo no berço improvisado: uma gaveta do chiffonier da Yocasta, posto no chão e bem acolchoado com travesseiros e edredons.
- Quer que chame a Fedra para que te ajude a te vestir, moça?
- Não faz falta: posso me arrumar sozinha... se me ajudar com os cordões.
- Suponho que posso. Ouça, o menino não está muito perto do fogo? Olhe que podem saltar faíscas.
Brianna se contorsionó dentro do espartilho, recolhendo os peitos nos ocos festoneados que os sustentavam; logo ficou o vestido por acima.
- Não, não está muito perto do fogo –disse, paciente, mas o apartou um pouco do lar, no caso de.
- Obrigado por seguir a corrente a esta velha –disse Yocasta, em tom seco, para ouvir o roce da madeira.
- De nada, tia. –Brianna deixou traslucir na voz o afeto e a desculpa. Apoiou uma mão no ombro de sua tia avó e Yocasta a cobriu com a sua, estreitando-lhe com suavidade.
- Não é porque cria que descuida ao menino –disse- , mas quando viveste tanto como eu também é mais cautelosa, filha. Vi as coisas terríveis que lhe podem acontecer até bebê, sabe? –acrescentou com mais suavidade- . E preferiria me queimar viva eu mesma antes que nosso pequeñín sofresse nenhum dano.
Suas mãos percorreram ligeiramente as costas da moça, procurando as ataduras sem dificuldade.
- Vejo que recuperaste a silhueta –disse com aprovação, ao roçar a cintura- . O que é isto? Tecido em relevo? De que cor é?
- Azul anil escuro. Com folhas de videira e pámpanos em algodão grosso, em contraste com o azul claro da lã. –Guiou os dedos da Yocasta pelas vinhas que cobriam cada baleia do sutiã, do decote até a V da cintura, que descendia marcadamente por diante para destacar a esbelta silhueta que sua tia acabava de ponderar.
Aspirou fundo ao atê-los cordões; seu olhar voou do espelho a cabecita de seu filho, pequena e redonda como um melão cantalupo e comovedora em sua perfeição. Não era a primeira vez que se perguntava que vida teria levado Yocasta. Devia ter tido filhos (ao menos isso pensava Jaime), mas nunca falava deles e a moça não se atrevia a perguntar. Possivelmente os tivesse perdido durante a infância, como tantas. Sentiu um nó no peito ao pensá-lo.
- Não se preocupe –disse sua tia. Seu semblante, refletido no espelho, adotou um decidido otimismo- . Seu pequeno nasceu para grandes costure. Não sofrerá nenhum dano, estou segura.
E se deu a volta, fazendo ranger a seda verde da bata sobre as anáguas. Bree se surpreendeu uma vez mais ante essa faculdade de adivinhar os sentimentos alheios, até sem ver as caras.
- Fedra! –chamou Yocasta- . Fedra! me traga o estojo... o negro.
A pulseira estava perto, como sempre. Um breve sussurro nas gavetas do armário e trouxe o estojo negro. Yocasta se sentou com ele ante seu secreter.
Era uma caixa estreita, velha e gasta, recubierta de couro e sem mais adornos que o fechamento de prata. A anciã guardava suas melhores jóias em um joalheiro muito mais grandioso, de madrea de cedro, com o interior recubierto de veludo. O que teria em esse?
aproximou-se de sua tia, que acabava de levantar a coberta. Dentro havia uma varinha de madeira torneada, da grossura de um dedo, com três anéis: uma simples banda de ouro, com um berilo engastado; outro com uma esmeralda grande, e o último com três diamantes rodeados de pedras mais pequenas, que captavam a luz e a refletiam em arco íris, fazendo-os dançar contra os muros e as vigas.
- Que preciosidade de anel! –exclamou Bree, involuntariamente.
- o de diamantes? É que Hector Cameron era rico, sim –comentou Yocasta, tocando distraídamente o anel maior. Seus largos dedos sem adornos rebuscaram diestramente entre as bagatelas amontoadas na caixa, junto aos anéis, até encontrar algo pequeno e opaco que entregou a Brianna.
Era um pequeno broche de metal em forma de coração, um pouco brunido, com um trabalho de bordado.
- É um amuleto deasil, a muirninn –explicou a anciã, com um gesto de satisfação- . Engancha-o nas saias do menino, do reverso.
- Um amuleto? –Brianna olhou ao Jemmy- . Que classe de amuleto?
- Contra as fadas. Que o pequeno o leve sempre grampeado a seu avental (sempre dado a volta, recorda), e nada proveniente do Povo Antigo poderá lhe fazer danifico.
A Brianna lhe pôs a pele de galinha dos antebraços ante o tom objetivo daquela voz.
- Sua mãe lhe deveria haver isso dito –prosseguiu Yocasta, com um sotaque de recriminação- . Claro que é uma Sassenach. E a seu pai não lhe ocorreria. Os homens não pensam nessas coisas –acrescentou, com certa amargura- . À mulher corresponde cuidar dos pequenos e proteger os de todo mal.
inclinou-se para o cesto da isca e, depois de procurar provas, extraiu uma larga ramilla de pinheiro, com a casca ainda aderida.
- Toma isto –ordenou- . Acende um extremo no lar e caminha três vezes ao redor do menino. Na direção do sol!
Brianna, intrigada, agarrou a varinha e a aproximou do fogo. Logo fez o que lhe indicava, cuidando de sustentar a varinha acesa longe do berço improvisado e de suas próprias saias. Yocasta golpeava ritmicamente o chão com o pé, cantando em voz baixa. Falava em gaélico, mas lentamente, de modo que a moça pôde reconhecer a maior parte das palavras.
Que a sabedoria da serpente seja tua,
que a sabedoria do corvo seja tua,
e a sabedoria da águia valente.
Que a voz do cisne seja tua,
que a voz do mel seja tua,
e a voz do Filho das estrelas.
Que o amparo da fada seja tua,
que o amparo dos elfos seja tua,
que o amparo do cão avermelhado seja tua.
Que a riqueza do mar seja tua,
que a riqueza da terra seja tua,
e a riqueza do Pai do Céu.
Que cada dia seja alegre para ti,
que não haja dias maus para ti,
uma vida gozosa e satisfeita.
Yocasta fez uma pausa, com uma ruga na frente, como alerta para perceber qualquer resposta do país das fadas. Claramente satisfeita, assinalou o lar.
- isso arroja ao fogo. Assim o menino estará protegido contra as queimaduras.
Brianna obedeceu. Fascinava-a descobrir que nada disso lhe parecia ridículo. Era estranho, mas muito satisfatório, pensar que desse modo protegia ao Jem de todo dano, até contra as fadas, nas que pessoalmente não acreditava. Ao menos, não tinha acreditado nelas antes de todo isso.
De abaixo lhe chegou um fio de música, o chiado de um violino e uma voz grave e amadurecida. Embora não chegava a distinguir as palavras, reconheceu o som.
Yocasta inclinou a cabeça para escutar, sorridente.
- Tem boa voz, seu marido.
Brianna também escutava. Percebeu muito fracamente o familiar ir e vir de “Meu amor está na América”. “Sempre canto para ti.” Os peitos brandos, já vazios de leite, arderam-lhe um pouco ante a lembrança.
- Tem bom ouvido, tia –comentou, apartando o pensamento com um sorriso.
- Está satisfeita com seu matrimônio? –perguntou Yocasta abruptamente- . Leva-te bem com o moço?
- Sim - respondeu ela, um pouco sobressaltada- . Muito bem, sim.
- Me alegro. –Sua tia avó escutava, imóvel e com a cabeça inclinada a um lado- . Me alegro, sim –repetiu em voz baixa.
Levada por um impulso, Brianna lhe apoiou uma mão na cintura.
- E você, tia? –perguntou- . É... está satisfeita?
“Feliz” não parecia ser a palavra adequada, tendo à vista essa fileira de anéis no estojo. Tampouco podia falar de “levar-se bem”, se recordava ao Duncan, tímido e emudecido a noite anterior, nervoso e decomposto essa manhã.
- Satisfeita? –disse Yocasta, desconcertada- . Ah, de me casar! –Para alívio da Brianna, sua tia pôs-se a rir; as linhas de sua cara se elevaram em sincera diversão- . Pois sim, certamente! Mas se for a primeira vez que trocarei de apelido em cinqüenta anos!
Com um pequeno bufido de diversão, a anciã se voltou para a janela e apoiou a palma contra o cristal.
- O dia é perfeito, moça –acrescentou- . por que não te põe o manto e sai a tomar um pouco de ire em companhia?
Estava no certo; o rio distante refulgia como prata entre um encaixe de ramos verdes. O ar interior, tão morno momentos antes, parecia agora súbitamente rançoso e gelado.
- Acredito que sim. –Brianna olhou para o berço- . Tenho que chamar a Fedra para que cuide do menino?
Yocasta o descartou com um gesto da mão.
- Anda, vete, vete. Eu cuidarei do pequeñín. Não penso descer em um momento.
- Obrigado, tia.
Bree lhe deu um beijo na bochecha e se dispôs a sair. Logo, olhando a sua tia, deu um passo atrás, para o lar, e apartou discretamente o berço do fogo.
O ar fresco de fora cheirava a erva nova e a fumaça de andaime. Sentiu desejos de saltar pelos atalhos de pedra, com o sangue cantando nas veias. Da casa lhe chegavam compases de música e a voz do Roger. Daria um passeio rápido e logo entraria; talvez então Roger estivesse disposto a dar um descanso Y...
- Brianna!
Ouviu seu nome vaiado do pomar. Ao voltar-se, sobressaltada, descobriu a cabeça de seu pai, aparecida por uma esquina do muro, como um caracol avermelhado. Chamou-a com um gesto e desapareceu.
Ela jogou uma olhada sobre seu ombro, para assegurar-se de que ninguém a observasse, e entrou apressadamente. Seu pai estava agachado entre as cenouras recém brotadas, junto a uma criada negra que jazia escancarada em um montão de esterco, com a touca sobre a cara.
- Que demônios...? –começou ela. Logo captou uma penetrante baforada de álcool entre os aromas das novelo e o esterco esquentado pelo sol- . Ah.
E ficou em cuclillas junto a seu pai, com as saias avultadas sobre o atalho.
- Foi minha culpa –explicou ele- , ao menos em parte. Deixei uma taça médio vazia sob os salgueiros. –Assinalava uma taça para ponche, atirada no caminho, com uma gota de líquido pegajoso ainda aderida ao bordo- . Ela deve havê-la encontrado.
Bree levantou o volante da touca com um dedo cauteloso. Era Betty, uma das maiores; tinha os lábios frouxos e a mandíbula queda em um estupor alcoólico.
- Sim, não foi sua primeira meia taça –confirmou Jaime, ao vê-la- . Deve ter estado como uma Cuba. Não sei como pôde caminhar até aqui da casa, nessas condições.
- O que bebia? Ponche de rum? –perguntou Brianna.
- Brandy.
- Nesse caso ou foi você quem a empurrou ao outro lado.
Mostrou-lhe a taça, inclinando-a para que ele pudesse ver os sedimentos escuros do fundo. O ponche da Yocasta não se preparava só com rum, açúcar e manteiga, segundo o costume, mas também com passas de Corinto, e se terminava de especiar com um ferro quente. O resultado não era só uma mescla de cor parda escura, mas sim deixava um denso sedimento, composto de pequenos grãos de fuligem, provenientes do ferro, e restos chamuscados das passas.
Jaime agarrou a taça, carrancudo, e meteu nela o nariz para aspirar profundamente. Logo afundou um dedo no líquido e o levou a boca.
- O que é? –perguntou ela, ao ver sua mudança de expressão.
- Ponche. –Mas repassou várias vezes os dentes com a língua, para limpá-los- . Com láudano, conforme acredito.
- Láudano! Está seguro?
- Não –reconheceu ele, francamente- . Mas se isto não contém algo além das passas de Corinto, eu sou holandês.
- Acredito-te –disse, limpando-a ponta do nariz com o dorso da mão- . vou procurar a mamãe?
Jaime se agachou junto à mulher para examiná-la com atenção. depois de apalpar uma mão laça e escutar a respiração, moveu a cabeça.
- Não sei se está drogada ou só ébria, mas não parece moribunda.
- O que faremos com ela? Não podemos deixá-la tendida aqui.
- Não, é obvio.
Com muita suavidade, Jaime elevou à mulher. Um sapato gasto caiu ao caminho. Brianna o recolheu.
- Sabe onde dorme? –perguntou seu pai, manobrando cuidadosamente com sua carga estentórea para rodear um maciço de pepinos.
- Trabalha na casa; deve dormir na água-furtada.
Ele sacudiu a cabeça para tirar uma mecha de cabelo vermelho que o vento lhe tinha metido na boca.
- Pois bem, rodearemos os estábulos e trataremos de subir pela escada posterior sem que nos vejam. Vê diante, filha, e me faça um gesto quando o caminho esteja livre.
Quando se voltava para fazer o sinal a seu pai divisou ao mesmo senhor Wylie, que entrava nos estábulos acompanhando a uma dama. Um brilho de seda dourada... Um momento! Era sua mãe! Por um instante, Claire voltou sua cara pálida para ela, mas estava atenta ao que seu acompanhante dizia e não reparou na presença de sua filha.
Bree vacilou. Teria querido chamar a sua mãe, mas não podia fazê-lo sem chamar a atenção. Ao menos sabia onde encontrá-la. Uma vez que Betty estivesse a salvo em sua cama, poderia ir pedir lhe ajuda.
Depois de uns momentos de alarme e livrar-se por pouco de ser vistos, conseguiram subir a Betty até o comprido apartamento de cobertura que compartilhava com as outras pulseiras da casa. Jaime, ofegante, deixou-a cair sem cerimônias em um dos camastros.
- Bom –disse, algo resmungão- . Já está a salvo. Se disser a algumas das outras pulseiras que se há sentido indisposta, suponho que o assunto não chegará a maiores.
- Obrigado, papai. –Ela se aproximou para lhe dar um beijo na bochecha- . É muito doce.
- OH!, sim –exclamou ele, resignado- . Tenho os ossos cheios de mel. –Mesmo assim não parecia aborrecido- . trouxeste esse sapato?
Tirou-lhe o outro e os pôs juntos, sob a cama. Logo cobriu com a tosca manta de lã os pés da mulher, embainhados em sujas meias brancas. Brianna verificou seu estado; até onde podia julgar, tudo estava bem; a mulher ainda roncava com uma regularidade tranqüilizadora. Enquanto se afastavam nas pontas dos pés para a escada posterior, deu ao Jaime a taça de prata.
- Toma. Sabia que esta é uma das taças do Duncan?
- Não. –Ele arqueou uma sobrancelha- . Como que é do Duncan?
- Tia Yocasta encarregou um jogo de seis taças, como presente de bodas. Ensinou-me isso ontem. Olhe. –Fez girar a taça na mão para lhe mostrar o monograma gravado- . O I do Innes, com um pequeno peixe que nada ao redor da letra; note no belo detalhe das escamas. É-te útil sabê-lo? –perguntou, ao ver que seu pai enrugava a frente, interessado.
- Possivelmente. –Ele tirou um lenço limpo para envolver o recipiente com cuidado e o guardou no bolso da jaqueta- . irei averiguar. Enquanto isso, pode procurar o Roger MAC?
- É obvio. Para que?
- Pois me ocorreu que se Betty bebeu parte do ponche e ficou tendida como um pescado na encimera, eu gostaria de encontrar ao que bebeu a primeira parte e ver se estiver no mesmo estado. Se o ponche estava drogado, é possível que estivesse destinado a outra pessoa, verdade? Você e Roger MAC poderiam procurar discretamente entre os arbustos, se por acaso houvesse algum corpo tendido.
Em sua pressa por levasse a Betty acima, ela não o tinha pensado.
- De acordo. Mas antes deveria procurar a Fedra ou ao Ulises para lhes dizer que Betty está indisposta.
- Sim. Se falas com a Fedra, poderia averiguar se a mulher consome ópio, além de beber, Embora me parece improvável –acrescentou com secura.
- Também a mim –repôs ela, no mesmo tom.
Compreendia por que. Podia dar o caso de que o ponche não estivesse drogado e que Betty tivesse tomado láudano por si mesmo, deliberadamente. Ela sabia que Yocasta tinha um pouco na despensa. Mas se o tinha consumido, era só por divertir-se ou porque tinha intenção de suicidarse?
Era muito mais provável que Betty fora alcoólica, simplesmente, do tipo que bebe algo vagamente etílica; assim o sugeria o aroma de sua roupa. Mas nesse caso, por que arriscar-se a roubar láudano em meio de uma festa que assegurava bebidas em abundância?
A contra gosto, chegou à mesma conclusão que devia ter tirado seu pai: Betty tinha ingerido o láudano (se disso se tratava) por acidente. E nesse caso... para quem era a taça da que tinha bebido?
Jaime se voltou, franzindo os lábios em sinal de silêncio, e lhe indicou por gestos que não havia mouros na costa. Ela o seguiu a passo rápido. Quando chegaram ao caminho, sem ter sido vistos, deixou escapar um suspiro de alívio.
- O que fazia ali, papai? –perguntou.
Seu pai pôs cara de não entender.
- No pomar –explicou Brianna- . Como é que encontrou a Betty?
- Ah! –Ele a agarrou do braço para afastar a da casa. Partiram tranqüilamente para o curral, como dois inocentes convidados que queriam contemplar os cavalos- . Acabava de trocar umas palavras com sua mãe no bosquecillo. Retornei atravessando o pomar. E ali estava a mulher, tendida de costas no montão de esterco.
- Esse é um detalhe que terá que tomar em conta, não te parece? deitou-se no pomar a propósito ou foi só por acidente que a encontrei ali?
Jaime moveu a cabeça.
- Não sei. Mas assim que Betty esteja sóbria quero falar com ela. Sabe onde está sua mãe agora?
- Sim, com o Phillip Wylie. Acredito que foram aos estábulos.
Seu pai dilatou um pouco as fossas nasais para ouvir esse nome; ela conteve um sorriso.
- Irei a por ela –disse Jaime- . Enquanto isso, você vê em busca de seu marido. E algo mais, moça... Que ninguém se inteire do que faz, né?
Ela assentiu com um gesto. Então Jaime girou sobre seus talões e se dirigiu para os estábulos, tamborilando brandamente a jaqueta com os dedos da mão direita, como estava acostumado a fazê-lo quando estava muito pensativo.
O vento frio se filtrou sob as saias e as anáguas do Bree, as cavando, e lhe provocou um calafrio. Entendia bem o que seu pai tinha querido sugerir.
Se não era um intento de suicídio nem um acidente, podia tratar-se de um intento de assassinato. Mas de quem?
Depois de nosso interlúdio, Jaime me deu um comprido beijo e se afastou ruidosamente entre a maleza, em busca do Ninian Bell Hamilton, decidido a averiguar o que pensavam fazer os reguladores no acampamento que Hunter tinha mencionado. Deixei passar uns momentos em altares da decência e saí também, mas me detive no bordo do bosquecillo antes de aparecer à vista do público, para me assegurar de apresentar um aspecto decoroso.
Quando estava a ponto de sair de detrás das árvores me ocorreu revisar a parte posterior de minha saia, se por acaso houvesse ali mancha ou trocitos de casca. Quando estirava o pescoço para olhar para trás, choquei de frente com o Phillip Wylie.
- Senhora Fraser! - Agarrou-me pelos ombros para evitar que caísse de costas- . Está você bem, querida minha?
- Sim, é obvio. - Minhas bochechas ardiam com legítima justificação. Dava um passo atrás para me sacudir. por que tropeçava sempre com o Phillip Wylie? Acaso essa pequena peste me estava seguindo?- . você desculpe, por favor.
- Nada, nada - disse ele, cordialmente- . foi minha culpa. Sou muito torpe. Posso lhe trazer algo que lhe restaure o ânimo, querida minha? Um copo de cidra? Veio? Ponche de rum? Licor de maçãs? O... Não: brandy. Isso, me permita lhe trazer um pouco de brandy para repor do susto.
- Não, nada, obrigado! - Não pude menos que rir do absurdo. Ele sorriu de brinca a orelha; obviamente se considerava muito engenhoso.
- Bom, se já estiver reposta, querida senhora, deve me acompanhar. Insisto.
Tinha apanhado minha mão no oco de seu cotovelo e me rebocava decidido em direção aos estábulos, em que pese a meus protestos.
- Não levará mais que um momento - assegurou-me- . Passei-me o dia desejoso de lhe mostrar minha surpresa. Ficará você absolutamente encantada, o asseguro.
Rendi-me fracamente. Parecia mais fácil ir ver novamente esses benditos cavalos que discutir com ele.
- Esse potro tem muito bom caráter - comentei com aprovação, comparando mentalmente os bons maneiras do Lucas com a rapace personalidade do Gideon. Como Jaime ainda não tinha tido tempo de castrá-lo, durante a viagem ao River Run o cavalo tinha mordido a quase todo mundo, animais e humanos por igual.
- É característico da raça –explicou Wylie, abrindo a porta dos estábulos- . São cavalos muito amistosos, embora seu caráter gentil não os priva de inteligência, o asseguro. por aqui, senhora Fraser.
Em contraste com o exterior fulgurante, no estábulo a escuridão era total, tanta que tropecei com um tijolo saliente do chão e caí para diante, com uma exclamação de sobressalto. O senhor Wylie me sujeitou por um braço.
- Está você bem, senhora Fraser? - perguntou, enquanto me ajudava a me endireitar.
- Sim - assegurei, um pouco sufocada. Em realidade me tinha torcido o tornozelo e me doía a ponta do pé; esses sapatos novos eram encantadores, mas ainda não estava habituada a eles- . Me permita esperar um momento, até que minha vista se adapte.
Ele esperou, mas sem me soltar o braço. Sujeitava solidamente minha mão no oco do cotovelo, para me brindar mais apóio.
- Recline-se contra mim - disse simplesmente.
Fiz-o. Por um instante permanecemos quietos; eu, com o pé dolorido em alto, como uma garça, à espera de que os dedos deixassem de palpitar. Por uma vez o senhor Wylie parecia falto de ocorrências e saídas, possivelmente pelo aprazível da atmosfera.
- Aqui se está como dentro de um ventre, verdade? - comentei- . É tão quente e escuro... Quase me parece sentir o batimento do coração do coração.
Wylie riu pelo baixo.
- É o meu - disse. E se tocou o colete; sua mão foi uma sombra escura contra o cetim claro.
Meus olhos se adaptavam rapidamente à escuridão, mas ainda assim o lugar era muito penumbroso. A silhueta esbelta de um gato se deslizou junto a nós fazendo que baixasse o pé dolorido. Ainda não suportava o peso, mas ao menos podia apoiá-lo.
- Pode sustentar-se sem apoio um momento? - perguntou ele.
Sem esperar resposta, apartou-se para acender um abajur, a pouca distância. Então Wylie voltou a me agarrar do braço com a mão livre para me conduzir para o extremo oposto do estábulo.
Estavam no último pesebre. Phillip elevou o abajur, ao tempo que se voltava para me sorrir. A luz brilhou sobre uma pelagem que reluzia e ondulava como água a meia-noite, e se refletiu nos grandes olhos pardos da égua.
- OH, que beleza! - comentei. E logo, elevando um pouco a voz- : OH!
Uma cria aparecia por detrás de sua garupa, toda ela patas largas e joelhos avultados; a pequena garupa e as paletas inclinadas eram ecos arredondados da perfeição muscular de sua mãe. A cria piscou uma só vez, deslumbrada pela luz; logo se apressou a refugiar-se depois do corpo de sua mãe. Um momento depois apareceu cautelosamente o focinho. Seguiu um ojazo lhe pisquem... e o focinho desapareceu, só para reaparecer quase imediatamente, algo mais longe.
- Pois você olhe a essa pequena coquete! - exclamei, encantada.
Wylie riu.
- É coquete, sim - disse, com a voz cheia de orgulho- Não são magníficas?
- Sim que o são - confirmei, pensativa- . Mas não estou segura de que essa seja a palavra correta. Magnífico é o que se diria de um semental ou um cavalo de guerra. Estas são... são doces!
- Doces? - sentiu saudades ele, com um bufo de risada- . Doces!
- É obvio. Encantadoras. Deliciosas. De bom caráter.
- São todo isso, sim - confirmou ele- . E belas, além disso.
Não olhava aos cavalo, a não ser a mim, com um vago sorriso.
- Sim - murmurei, embora experimentava uma escura pontada de inquietação- . São muito belas.
Wylie estava muito perto; dava um passo a um lado e lhe voltei as costas, com o pretexto de observar aos cavalos. A cria hociqueó a úbere cheia de sua mãe, agitando a cauda com entusiasmo.
- Como se chamam? - perguntei.
Wylie se aproximou da barra do pesebre com ar de indiferença, mas as compôs para que seu braço me roçasse a manga ao pendurar a lanterna de um gancho instalado no muro.
- A égua é Tessa - disse- . E você já viu ao Lucas, o semental. Quanto a potra... - Agarrou-me da mão, sorridente- . Pensava chamá-la-a Belle Claire.
Por um segundo não me movi, estupefata ante a expressão que via em sua cara.
- O que? - disse, atônita. Devia estar equivocada. Tratei de retirar a mão, mas tinha vacilado por um segundo de mais. Seus dedos espremeram meus. Não teria intenções de...?
Sim.
- Encantadora - disse brandamente, aproximando-se- . Deliciosa. De bom caráter. Y... bela.
Beijou-me. Estava tão desconcertada que por um momento não me movi. Seu beijo foi breve e casto, branda a boca. Mas o que importava era o fato de que se atreveu.
- Senhor Wylie! - exclamei. Retrocedi precipitadamente um passo, mas me deteve o corrimão.
- Senhora Fraser - disse ele com voz fica, avançando a sua vez um passo- . Querida minha.
- Eu não sou seu ...
E me beijou outra vez. Já sem nenhum rastro algum de castidade. Ainda horrorizada, mas já livre de estupefação, empurrei-o com força. Ele se cambaleou e teve que me soltar a mão, mas se recuperou instantaneamente e me sujeitou por um braço, me deslizando a outra mão por detrás.
- Coquete - sussurrou. E baixou a cara para a minha.
Dava-lhe um chute. Por desgraça o fiz com o pé dolorido, o qual privou ao golpe de força.
- Basta! - vaiei- . Basta já!
- Enlouquece-me - sussurrou ele, me estreitando contra seu peito. E tentou me afundar a língua na orelha.
Eu pensava que tinha enlouquecido, mas rechaçava qualquer responsabilidade por esse estado. Consegui aferrá-lo pelo pescoço, mas esse maldito corbatón me interpôs; tratei de introduzir os dedos. Ele deu um coice para o flanco e me sujeitou a mão.
- Por favor - disse- , quero...
- Importa-me um rabanete o que você queira! - espetei-lhe–, Me solte imediatamente, maior... - procurei às cegas algum insulto adequado- cachorrinho!
Para minha surpresa, deteve-se em seco. Não podia empalidecer, pois já tinha a cara coberta de pós de arroz (seu sabor me tinha ficado nos lábios). Mas apertou a boca com expressão... doída.
- É isso o que pensa de mim? - perguntou em voz baixa.
- Pois sim, diabos! O que outra coisa posso pensar? perdeu você a cabeça, que se comporta desta maneira tão... desprezível? Que inseto lhe picou?
- Desprezível? - Parecia atônito para ouvir qualificar desse modo suas insinuações- . Mas se eu... quer dizer, você... Supus que... não lhe desgostaria...
- Não é possível - disse, com toda firmeza- . Não é possível que você tenha concebido uma idéia desse tipo. Nunca lhe dei o menor motivo para pensar algo assim!
Intencionadamente não, certamente. Mas me ocorreu a inquietante ideia de que talvez tínhamos distintas percepções de minha conduta.
- Que não? Sua cara ia trocando, nublando-se de cólera- . Me permita você que difira, senhora!
Com certa apreensão, caí na conta de que a paquera, no plano social do Phillip, dissimulava-se com um ar de brincadeira. O que lhe havia dito, Por Deus? Recordava difusamente ter analisado, com ele e seu amigo Stanhope, a Lei do Selo. Impostos, sim, e talvez cavalos... Teria sido suficiente para inflamar esse mal-entendido?
- “Seus olhos são como os lagos de peixes do Heshbon” - recitou, em voz baixa e azeda- . Não recorda você a noite em que o disse? O salmo do Salomón lhe parece “uma conversação cortês”?
- Céu Santo!... - Contra minha vontade, começava a me sentir algo culpado; na festa da Yocasta tínhamos mantido um breve diálogo desse tipo. E ele o recordava? O salmo do Salomón era bastante forte; possivelmente a simples referência... Mas me sacudi mentalmente e ergui as costas.
- Tolices - declarei- . Você o disse a modo de brincadeira provocadora e eu me limitei a lhe responder no mesmo tom. E agora devo...
- veio aqui comigo. A sós.
E deu um passo mais para mim, com decisão nos olhos. estava-se convencendo a si mesmo, esse petimetre teimado!
- Senhor Wylie - disse com firmeza, me apartando para um lado- , lamento profundamente que você tenha interpretado mal a situação, mas sou muito feliz com meu marido e você não me inspira nenhum interesse romântico. E agora, se me desculpar...
Passei esquivando-o e saí precipitadamente do estábulo, tão deprecia como os sapatos me permitiam isso. Cheguei às portas sem que me incomodasse, com o coração acelerado.
No contratempo recente só me tinha solto uma mecha de cabelos. Sujeitei-o com cuidado e sacudi algumas fibras de palha aderidas a minhas saias. Felizmente não me tinha esmigalhado a roupa; uma vez assegurado o lenço, voltava a ficar decente.
- Está bem, Sassenach?
Saltei como um salmão no anzol e meu coração fez outro tanto. Girei em redondo, com a adrenalina me percorrendo o peito como uma corrente elétrica. Ali estava Jaime, de pé a meu lado, me observando com uma leve enruga no sobrecenho.
- O que estiveste fazendo, Sassenach?
Ainda tinha o coração na garganta, me sufocando, mas me obriguei a pronunciar umas quantas palavras, com a esperança de que soassem despreocupadas.
- Nada. Quer dizer, devi ver aos cavalos. Ao cavalo. À égua. teve um potro.
- Sim, já sei - disse. Observava-me com ar estranho.
- Encontrou ao Ninian? O que te há dito? - Acomodei-me o cabelo na nuca, aproveitando a oportunidade para evitar seu olhar.
- Diz que é certo, embora nunca o duvidei. Há mais de um milhar de homens acampados perto do Salisbury. E todos os dias lhes somam mais, há dito. O velho estúpido está muito agradado!
Franziu o sobrecenho, tamborilando com os dois dedos rígidos contra a perna. Compreendi que estava muito preocupado. Se se convocava novamente à tropa, só ficariam as mulheres para ocupar-se da semeia.
- Os homens desse acampamento, abandonaram suas terras?
Salisbury também estava ao pé da montanha. Era inconcebível que um agricultor abandonasse sua terra a essa altura do ano só para protestar contra o governo, por muito irritado que estivesse.
- Abandonaram-nas ou as perderam - disse ele brevemente. Seu cenho se acentuou ao me olhar- . falaste com minha tia?
- Né... não - reconheci, me sentindo culpado- . Ainda não. Ia A... Mas há dito que havia outro problema. Que mais aconteceu?
Emitiu o ruído de uma bule ao ferver, o qual expressava nele uma estranha impaciência.
- Cristo, quase o tinha esquecido! Acredito que envenenaram a uma das pulseiras.
- O que? A quem? Como? - Deixei cair as mãos para olhá-lo com fixidez- . por que não me há isso dito?
- Mas se acabar de lhe dizer isso Não se preocupe; não corre perigo. Só está bêbada perdida. - Encolheu os ombros, irritado- O único inconveniente é que possivelmente não era a ela a quem queriam envenenar. Fiz que Roger MAC e Brianna saíssem a jogar uma olhada. Não vieram a me informar de nenhum cadáver, talvez me equivoque.
- Talvez? - Esfreguei-me a ponte do nariz, distraída de minhas preocupações por essa novidade- . É certo que o álcool é um veneno, embora ninguém pareça entendê-lo, mas existe uma diferença entre embriagar-se e ser envenenado intencionadamente. O que significa...?
- Sassenach - interrompeu-me.
- O que?
- No nome de Deus, o que estiveste fazendo? - estalou.
Olhei-o com desconcerto. Enquanto discutíamos tinha avermelhado progressivamente, mas eu o atribuí à frustração e a seus temores pelo do Ninian e os reguladores. Ao ver o perigoso brilho azul de seus olhos caí na conta de que em sua atitude havia algo mais pessoal. Inclinei a cabeça a um lado para olhá-lo com desconfiança.
- por que o pergunta?
Apertou os lábios sem responder. Em troca estendeu um índice para tocar, muito delicadamente, a comissura de minha boca. Logo me mostrou a gema, com um pequeno objeto negro aderido: o lunar em forma de estrelas do Phillip Wylie.
- Ah... - Senti um claro zumbido nos ouvidos- . Isso. Pois...
Sentia-me enjoada. Ante meus olhos dançavam pequenas manchas, todas em forma de estrela negra.
- Sim, isso - espetou-me ele- . Por Deus, mulher! Como se não bastassem os problemas do Duncan e as diabruras do Ninian... E por que não me disse que havia renhido com o Barlow?
- Não acredito que isso fora exatamente uma rixa - expliquei, me esforçando por recuperar a serenidade- . Além disso, o maior MacDonald lhe pôs fim, já que a ti não te encontrava por nenhuma parte. E se quiser que se lhe relatório de tudo, o major quer...
- Já sei o que quer. - Descartou ao MacDonald com um seco gesto da mão- . Estou até os narizes de maiores, reguladores e faxineiras bêbadas. E você, te beijocando com esse petimetre no estábulo!
Como sentia subir o sangue detrás dos olhos, apertei os punhos para me dominar e não esbofeteá-lo.
- Não estava “me beijocando” com ele absolutamente, e você sabe! Esse pequeno estúpido me insinuou, mas isso foi tudo.
- O que te insinuou? Quer dizer que te fez o amor? Isso é evidente!
- Nada disso!
- Não? Acaso lhe pediste que te emprestasse este lunar para que te trouxesse sorte?
Moveu o dedo sob meu nariz; eu o separei de um tapa. Muito tarde, recordei que “fazer o amor” não significava fornicar, a não ser enredar-se em uma paquera amorosa.
- Quero dizer - esclareci entre dentes- que me beijou. Provavelmente por brincar. Mas se poderia ser sua mãe!
- Até sua avó - assinalou ele, de maneira brutal- . De maneira que te beijo. E por que diabos o incitou, Sassenach?
Fiquei boquiaberta de indignação. Era tão insultante que me considerasse a avó do Phillip Wylie quanto me acusasse de havê-lo incitado.
- O que o incitei? Condenado idiota! Sabe perfeitamente que não o incitei!
- Sua própria filha te viu entrar ali com ele. Não tem vergonha? Com tudo o que tenho que me enfrentar aqui, quer que me veja obrigado a desafiá-lo a duelo?
Senti algum remorso ao pensar na Brianna, e outro major ainda pela possibilidade de que Jaime desafiasse ao Wylie. Mas desprezei ambas as idéias.
- Minha filha não é tola nem fofoqueira - disse, com imensa dignidade- . Ela não pensaria mal se eu fosse ver um cavalo. E por que teria ninguém que pensar mau?
Ele exalou um comprido suspiro, com os lábios cavados. Seu olhar era fulminante.
- por que? Pois possivelmente porque todo mundo te viu paquerar com ele no prado. Porque o viram te seguir como um cão depois de uma fêmea em zelo.
Deveu notar que minha expressão se alterava perigosamente, pois tossiu um pouco antes de continuar:
- mais de uma pessoa acreditou necessário me comentar isso Crie que eu gosto de ser o bobo de todos, Sassenach?
- Mas... mas... - Afogava-me a fúria. Teria querido lhe pegar, mas vi que algumas cabeças se voltavam para nós com interesse- . Cadela em zelo? Como te atreve a me dizer algo assim? Cretino infame!
Teve a decência de mostrar-se um pouco envergonhado, embora seguia jogando faíscas.
- De acordo, não devi dizê-lo assim. Não era minha intenção... Mas o certo é que o acompanhou, Sassenach. Como se eu não tivesse suficientes problemas, minha própria esposa... E se tivesse ido falar com minha tia, como te pedi, não teria acontecido nada disto. Vê o que tem feito agora?
Eu tinha trocado de ideia com respeito à conveniência do duelo. Queria que Jaime e Phillip Wylie se matassem mutuamente, quanto antes, em público e com o máximo derramamento de sangue. Tampouco me importava que nos olhassem. Fiz um sério intento de castrá-lo a emano poda, mas ele me aferrou pelas bonecas.
- Por Deus! A gente nos olhe, Sassenach!
- Me... importa... um... rabanete! - vaiei, lutando por me liberar- . Me solte, que já lhes darei algo para olhar!
Não tinha afastado os olhos de sua cara, mas tinha consciência de muitas outras que se voltavam para nós do prado. Ele também.
- Pois bem, que olhem - disse.
Envolveu-me em seus braços para me estreitar com força e me beijou. Como não podia me liberar, deixei de lutar e me pus rígida, furiosa. À distância se ouviram risadas e soezes exclamações de fôlego. Ninian Hamilton gritou algo em gaélico que me alegrei de não entender.
Por fim apartou seus lábios de meus, sem me soltar, e inclinou lentamente a cabeça; sua bochecha se apoiou contra a minha, fresca e firme.
- Sinto muito - disse em voz baixa. Seu fôlego me fez cócegas na orelha- . Não quis te insultar. Seriamente. Quer que o mate e logo me suicide?
Relaxei-me um pouco. Tinha os quadris solidamente apertados a ele e, com apenas cinco capas de tecido, ali, o efeito era reconfortante.
- Hum, ainda não. - Sentia-me enjoada pela corrente de adrenalina. Aspirei fundo para me tranqüilizar.
- vá jogar uma olhada a Betty, a faxineira, e oxalá possa lhe fazer dizer algo sensato z-disse, olhando o sol, que pendia por sobre as taças dos salgueiros que bordeaban o rio- . Mas de faz tarde. Será melhor que suba a falar primeiro com minha tia, se quisermos que haja bodas às quatro.
Aspirei fundo, tratando de me serenar. Ainda chapinhavam em mim muitas emoções inexpresadas, mas obviamente havia muito que fazer.
- Bem - disse- . irei falar com a Yocasta e logo jogarei uma olhada a Betty. Quanto ao Phillip Wylie...
- Quanto ao Phillip Wylie - interrompeu-me- , não volte a pensar nele, Sassenach. - A seus olhos apareceu certo paixão interior - Mais tarde me ocuparei dele.
44
Parte pudendas
Deixei ao Jaime no vestíbulo e subi ao quarto da Yocasta, saudando os amigos e conhecidos com que me cruzava. Estava desconcertada, irritada... e divertida a meu pesar. Dos dezesseis anos não tinha dedicado tanto tempo à assombrada contemplação do pênis, e ali estava agora, preocupada com três.
Deduzi que Duncan estava mais ou menos intacto. O mais provável era que sua impotência tivesse orígenes psicológicos; possivelmente alguma experiência prematura tinha convencido ao Duncan de que essa parte de sua vida estava terminada.
Bati na porta da Yocasta e entrei.
Ali estava o pai LeClerc, sentado ante uma pequena mesa do rincão, liquidando uma variedade de comestíveis; na mesa havia também duas garrafas de vinho, uma das quais estava já vazia. O sacerdote levantou a vista para mim com um sorriso gordurento.
- Tally- ho, Madame! –saudou alegremente, blandiendo uma pata de peru- . Tally- ho, tally- ho!
Por contraste, bonjour parecia quase repressivo, de modo que me contentei com uma reverência e um breve Cheerio!
Toquei a Yocasta no cotovelo e lhe perguntei se podíamos nos instalar no assento da janela, pois tinha que discutir com ela algo importante. Pareceu surpreender-se, mas aceitou. depois de desculpar-se com uma reverência ante o pai LeClerc, veio a sentar-se a meu lado.
- Sim, sobrinha? –perguntou- . O que é o que acontece?
- Pois é que –disse, aspirando fundo- tenho que te falar do Duncan. Verá...
Ficou atônita assim que comecei a falar, mas notei algo mais em sua atitude. Algo que parecia... alívio, pensei com surpresa. Em sua atitude havia preocupação, mas não parecia muito inquieta. Em realidade, sua expressão ia passando da surpresa ao contente de quem descobre uma explicação para algo que lhe afligia.
Talvez a tinha surpreso e até inquietado um pouco não despertar no Duncan nenhuma amostra de interesse físico.
Agora sabia por que. Aspirou fundo e moveu lentamente a cabeça.
- meu deus!, pobre homem –disse- . Sofrer semelhante coisa e chegar a aceitá-lo, só para ver-se repentinamente obrigado a preocupar-se de novo por isso. por que o passado não nos deixa viver tranqüilos?
Baixou a vista, piscando; comoveu-me ver que tinha os olhos úmidos.
de repente apareceu a seu lado o pai LeClrec.
- Algum problema? –disse-me em francês- . Monsieur Duncan sofreu alguma ferida?
Yocasta não sabia de francês mais que Comment ça vai?, mas entendeu claramente o tom da pergunta e reconheceu o nome de seu prometido.
- Não o diga –me pediu.
- Não, não –a tranqüilizei. Logo olhei ao padre, movendo os dedos em sinal de que não tinha que o que preocupar-se- . Não, non. C’est rien. Não é nada.
Jogou-me um olhar dúbio, franzindo o sobrecenho. Logo, a Yocasta.
- Uma dificuldade no leito marital? –perguntou sem rodeios, em francês.
Minha cara deveu expressar consternação, pois fez um gesto discreto para baixo, contra o peitilho de seu hábito.
- ouvi a palavra “escroto”, Madame, e não acredito que você falasse de animais.
- Merde –disse pelo baixo.
Yocasta, que tinha levantado bruscamente a cabeça para ouvir a palavra “escroto”, voltou-se para mim. Tranqüilizei-a com uns tapinhas na mão, tratando de resolver o que faria.
- Temo que adivinhou que o que se bolo, em geral - desculpei-me ante minha tia- . Será melhor que o explique.
Ela se mordeu o lábio inferior, mas não pôs objeções. Expliquei-lhe o caso ao sacerdote, tão brevemente como pude.
- Oui, merde, Madame - disse- . Quelle tragédie! - fez o sinal da cruz se brevemente com o crucifixo; logo, tomou assento junto à Yocasta- . Por favor, Madame, lhe pergunte qual é seu desejo.
- Seu desejo?
- Oui. Deseja ainda casar-se com o Monsieur Duncan, até sabendo isto? Verá você, senhora: segundo as leis da Santa Mãe Igreja, esse impedimento é um obstáculo para a consumação do matrimônio. Ao conhecer estas condições, eu não deveria administrar o sacramento. Não obstante... Não obstante, o propósito dessa proibição é que o matrimônio seja uma união frutífera, se Deus assim o quiser. Neste caso não é possível que Deus assim o queira. portanto...
Quando traduzi a pergunta a Yocasta, sua cara empalideceu e se apoiou um pouco no respaldo do assento. Apenas um momento depois, deixou escapasse um profundo suspiro.
- Bom, graças a Deus tive a sorte de contar com um jesuíta - disse secamente- . Qualquer deles poderia argumentar até persuadir à Batata de que se tirasse os calções. Nem pensar de algo tão nimio como conhecer as intenções do Senhor. Sim. lhe diga que ainda desejo me casar.
Transmiti isso ao pai LeClerc, quem franziu algo o sobrecenho, examinando a Yocasta com muita atenção. O sacerdote pigarreou antes de falar. dirigia-se para mim, mas com a vista fixa nela.
- Por favor, Madame, lhe diga isto. Embora é certo que a base para esta lei da Igreja é a procriação, o verdadeiro matrimônio entre homem e mulher, esta... união da carne, é importante por si mesmo. A linguagem do rito... “os duas serão uma só carne”, diz. E há razões para isso. É muito o que acontece entre duas pessoas que compartilham um leito e se gozam mutuamente. O matrimônio não se reduz a isso, mas na verdade importa.
Eu devi pôr cara de surpresa, pois sorriu apenas.
- Não sempre fui sacerdote, Madame - disse- . Em outros tempos estive casado. Sei o que significa renunciar para sempre a essa parte... carnal... da vida.
Assenti com a cabeça e, depois de tomar fôlego, traduzi o que havia dito. Yocasta escutou até o final, mas estava decidida.
- lhe diga que lhe agradeço o conselho - disse, com um imperceptível toque de irritação- . Eu também estive casada anteriormente, mais de uma vez. E com sua ajuda voltarei a me casar. Hoje.
Traduzi, mas ele já tinha compreendido, pela postura da Yocasta e seu tom de voz. Por um momento esfregou as contas entre os dedos. Logo assentiu.
- Oui, Madame - disse. E lhe estreitou a mão em um suave gesto de fôlego- . Tally-ho, Madame!
Bem: isso parecia, pensei, enquanto subia a escada para o apartamento de cobertura. Na lista de assuntos urgentes seguia a pulseira Betty: teria sido realmente drogada? Jaime a tinha descoberto no pomar duas horas antes, mas talvez houvesse ainda sintomas visíveis.
A porta do dormitório das pulseiras estava entreabrida; ao abri-la, encontrei-me com o Ulises, cruzado de braços ante a cabeceira de um camastro. A seu lado, vi um homem miúdo e pulcro, de jaqueta e volumosa peruca, com um pequeno objeto na mão.
antes de que eu pudesse falar, apertou esse objeto contra o braço frouxo da criada e se ouviu um estalo seco. Uma vez retirado, ficou um retângulo de sangue contra a pele parda da criada. As gotas caíram na terrina que tinha sob o cotovelo.
- Um escarificador - explicou o homem ao Ulises- . Um grande adiantamento com respeito às lancetas e as navalhas. Comprei-o na Filadelfia.
- Não duvido que a senhora Cameron lhe estará muito agradecida por sua amável condescendência, doutor Fentiman - murmurou o mordomo.
Fentiman. Com que essa era a autoridade médica do Cross Creek. Para ouvir meu pigarro, Ulises levantou a cabeça, alerta.
- Senhora Fraser - disse, com uma reverência- . O doutor Fentiman acaba de...
- A senhora Fraser? - O médico me olhou com a mesma suspicacia com que eu o observava, mas se impuseram os bons maneiras e me fez uma reverência.
- A seu serviço, senhora.
Percebi aroma de genebra em seu fôlego e a vi nos capilares quebrados do nariz e as bochechas.
- Encantada. - Dava-lhe a mão a beijar.
- Sua bondade é elogiable, senhora Fraser - opinou o médico- . Mas não há necessidade de que se incomode. A senhora Cameron é uma velha e apreciada amiga; atender a sua pulseira é um prazer para mim - e sorriu benignamente.
A respiração da pulseira era profunda e estertórea, bastante regular. Morria por tomar o pulso. Inalei profundamente, tratando de não chamar a atenção.
Reconheci facilmente os miasmas alcoólicos que haviam descrito Jaime e Brianna, mas não teria podido dizer quanto delas provinha da Betty e quanto do Fentiman. Se na mescla havia láudano, teria que me aproximar mais para detectá-lo e fazê-lo deprecia, antes de que os voláteis óleos aromáticos se desvanecessem por completo.
- Que amável é você, doutor - disse, com um sorriso cínico- . Não duvido que a tia de meu marido lhe estará muito agradecida por seus esforços. Mas um cavalheiro como você... tem que ter coisas muito mais importantes que requeiram sua atenção. Acredito que Ulises e eu podemos nos ocupar de atender à pulseira. Seus companheiros devem jogar o de menos, doutor.
Para minha surpresa, o médico não sucumbiu imediatamente a essas adulações. Soltou-me a mão, com um sorriso tão falsa como a minha.
- Absolutamente, querida minha. Asseguro-lhe que aqui não se requer atenção alguma, é um simples caso de abuso. Administrei-lhe um emético; assim que surta efeito será possível deixá-la aqui sem perigo. Retorna você a seus prazeres, minha senhora; não há necessidade de que se arrisque a sujar tão bonito vestido.
antes de que eu pudesse replicar, da cama nos chegou um forte ruído de arcadas. O doutor Fentiman girou imediatamente, agarrando a bacinilla de debaixo da cama. O vômito fedia a uma mescla de rum e brandy, mas me pareceu perceber também o fantasma do ópio.
- Que classe de emético utilizou? - perguntei, me inclinando para a mulher para lhe abrir um olho com o polegar. A íris olhava para cima, pardo e frágil, com a pupila reduzida a um ponto. Definitivamente: ópio.
- Senhora Fraser! - O médico me fulminou com um olhar de irritação- . Sirva-se retirar-se, por favor, e não entremeter-se! Estou extremamente ocupado e não tenho tempo para suas fantasias. Você, senhor, leve-lhe
depois de agitar uma mão ante o Ulises, girou para a cama.
- Mas... maior...! - Ao ver que Ulises dava um passo inseguro para mim, calei o epíteto.
Furiosa, abandonei a habitação. Jaime me estava esperando ao pé da escada. À lombriga tomou imediatamente do braço para me conduzir ao pátio.
- Esse... esse... - Faltavam-me palavras.
- Verme oficioso? - sugeriu, para ajudar.
- Sim! Escutaste-o? Que descaramento o desse açougueiro, esse insignificante... escupitajo! Que não tem tempo para minhas fantasias! Como se atreve?
- Quer que subida e o apunhale? - perguntou, com a mão na adaga- . Posso estripá-lo, se quiser... ou só lhe romper a cara.
- Pois... não. - Dominei minha cólera com certa dificuldade- . Não acredito que deva fazer isso.
Pareceu-me ouvir o eco de uma conversação similar, referida ao Phillip Wylie. Jaime também o notou, pois curvou a boca com ironia.
- Diabos - disse, tristemente.
- Sim. - A contra gosto retirou a mão da adaga- . Parece que hoje não me permite derramar sangue, né?
- Você gostaria?
- Muitíssimo - assegurou- . E a ti também, por isso vejo.
Não podia discutir, pois me teria encantado estripar ao doutor Fentiman.
- Podem seus métodos matar a essa mulher? - perguntou-me Jaime.
- Em princípio não. Ah!, quanto ao do láudano, acredito que tinha razão.
Jaime assentiu, cavando pensativamente os lábios.
- Pois bem: o importante é falar com a Betty, uma vez que esteja em condições de expressar-se coherentemente. Não acredito que Fentiman vele junto à cama de uma pulseira doente, ou sim?
- Não - admiti a contra gosto- . Até onde se vê, ela não corre perigo. Terei que vigiá-la, mas só se por acaso vomita e se afoga enquanto dorme. E duvido que ele fique a fazer isso, se é que lhe ocorre.
- Bem. - Jaime refletiu um momento; a brisa lhe levantava o cabelo do cocuruto- . pedi a Brianna e ao Roger que comprovem se algum convidado está roncando por algum rincão. Eu irei ver nas dependências dos escravos. Poderá te escapulir até o apartamento de cobertura quando se for Fentiman e falar com a Betty assim que desperte?
- Suponho que sim. - De qualquer modo pensava subir para me assegurar de que a mulher estava bem- . Mas não te demore muito. Já estão quase preparados para a cerimônia.
Olhamo-nos durante um instante.
E com uma reverência, girou sobre seus talões para cumprir com sua tarefa.
Para alívio do Jamie, as bodas se realizou sem dificuldades. A cerimônia foi em francês e se celebrou no saloncito privado da Yocasta, no piso de acima; além dos noivos e o sacerdote, estavam pressentem ele e Claire como testemunhas, Brianna e seu jovem marido, e Jemmy, que dormiu durante a cerimônia.
Duncan estava pálido, mas inteiro, e a tia do Jaime pronunciou seus votos com voz firme. Brianna, que se tinha casado recentemente, contemplava-o espremendo o braço de seu marido, em tanto Roger MAC a olhava com olhos tenros. Jaime também se comoveu; enquanto o sacerdote entoava a bênção, ele se levou os dedos do Claire aos lábios para roçá-los com um beijo breve.
Concluídas as formalidades e assinados os contratos, todos baixaram para reunir-se com os convidados ante um opíparo banquete de bodas.
Jaime agarrou uma taça de vinho e se reclinou contra o muro sob a terraço, sentindo que suas costas descarregava as tensões do dia. Um problema menos.
Betty permanecia inconsciente, mas fora de perigo. E como não tinha aparecido nenhum outro envenenamento, era provável que tivesse ingerido a droga ela mesma.
O que em realidade queria Jaime era estar com sua esposa. Desejava-a a morrer.
Ela se encontrava no extremo da terraço. Lhe contraíram os dedos: assim que estivesse com ela a sós lhe recolheria a juba para cima com as mãos, só pelo prazer de deixá-la cair outra vez por suas costas.
Ela ria por algo que Lloyd Stanhope acabava de lhe dizer. Tinha uma taça na mão e estava ruborizada pelo vinho; ao vê-la sentiu uma pontada de desejo.
Deitar-se com ela podia ser algo, desde ternura até orgia, mas possui-la quando estava algo ébria era sempre deleite especial. Então se preocupava menos dele, abandonada e alheia a tudo o que não fora seu próprio prazer; arranhava-lhe, mordia-lhe… e lhe implorava que fizesse o mesmo com ela. lhe encantava essa sensação de poder, a eleição entre unir-se a ela imediatamente, com luxúria selvagem, ou conter-se por um tempo para dirigi-la a seu desejo.
Viu-a utilizar com efetividade o leque: aparecia os olhos pelo bordo e se fingia espantada por algo que esse sodomita do Forbes havia dito. Misericórdia? Não, não a teria.
A aparição do George Lyon interrompeu seus pensamentos. O tinham apresentado, mas sabia pouco desse homem elegante e presunçoso.
- Senhor Fraser, permite-me uma palavra?
- Para servi-lo, senhor.
voltou-se para deixar a taça; esse ligeiro movimento foi suficiente para ajustar-se discretamente a manta.
- Caminhamos um pouco, senhor Lyon? –sugeriu. Se queria tratar algum assunto íntimo, era melhor não fazê-lo ali, onde podia interrompê-los algum convidado.
Caminharam lentamente até o extremo da terraço, intercambiando frases comuns entre si e cortesias com outros hóspedes, até chegar ao pátio, onde vacilaram um instante.
- Falaram-me muito de você, senhor Fraser –começou seu companheiro, enquanto partiam para a alta torre do relógio que coroava os estábulos.
- Seriamente, senhor? Confio que não tudo fora desfavorável.
Ele também tinha ouvido algumas costure sobre o Lyon; comercializava com algo que a gente queria comprar ou vender… e não era escrupuloso quanto à origem de sua mercadoria.
Lyon se pôs-se a rir.
- É obvio que não, senhor Fraser. Além do ligeiro impedimento de seus vínculos familiares, não ouvi mais que calorosos elogios, tanto sobre seu caráter como seus lucros.
“ A Dhia” , pensou Jamie. Extorsão e adulação, tudo na primeira frase.
- Chisholm, McGillivray, Lindsay… - repetiu o homem, pensativo- .. Assim que a maioria de seus homens são escoceses das Terras Altas, não, senhor Fraser? Filhos de colonos? Ou possivelmente militares retirados como você?
- OH!, duvido que um militar se retire jamais de tudo, senhor –comentou Jamie- . Quem viveu sobre as armas fica marcado de por vida. Até ouvi comentar que os velhos soldados não morrem: só se esfumam.
Lyon riu com exagero, declarando que era um bom epigrama.
- Agrada-me lhe ouvir expressar esses sentimentos, senhor Fraser. Sua majestade sempre confiou na reciedumbre dos escoceses. Acaso você ou algum de seus vizinhos serve no regimento de sua primo?
Agora Lyon perguntava se Jaime não tinha tratado também de estabelecer seus créditos como leal soldado da Coroa arrolando-se em algum dos regimentos escoceses. A estupidez desse homem era incrível.
- Pois não. Infelizmente, não poderia emprestar esse serviço –respondeu ele- . Certa incapacidade provocada por uma campanha anterior, compreende você? –a pequena incapacidade de ter sido prisioneiro da Coroa durante vários anos, mas não mencionou essa parte.
Por então tinham chegado ao cercado e estavam comodamente apoiados na cerca.
- Que cavalos estranhos, verdade? –Jamie, que os observava com fascinação, interrompeu a disquisición do Lyon.
- Sim, é uma raça muito antiga –disse Lyon- . Tinha-os visto antes… na Holanda.
- Na Holanda. viajou você muito?
- Nem tanto, mas estive lá alguns anos e a casualidade quis que conhecesse um parente dele. Um mercado de vinhos, chamado Jared Fraser?
Jaime sentiu uma descarga de surpresa, a que seguiu uma cálida sensação de prazer ante a lembrança de sua primo.
- Seriamente? Sim, Jared é primo de meu pai. Confio em que você o encontrasse bem.
- Muito bem, sim.
Lyon se aproximou um pouco, e Jaime compreendeu que ia entrar em matéria. Esvaziou sua taça e a deixou, disposto a escutar.
- Tenho entendido que sua família tem também certo… talento para os licores, senhor Fraser.
- Afeição, talvez sim, senhor. Quanto a talento, não saberia lhe dizer.
- Não? Pois já vejo que você é muito modesto. Seu uísque é célebre por sua qualidade.
- Adula-me você. –Agora sabia o que se morava. Não seria a primeira vez que alguém lhe sugeria uma associação: que ele proporcionasse o uísque e seus sócios se encarregariam de distribui-lo no Cross Creek, no Wilmington e até no Charleston.
Ao parecer, Lyon tinha planos mais grandiosos. O mais envelhecido iria por navios águas acima, até Boston e Filadelfia, sugeriu. O afresco, em troca, podia ir às aldeias cherokees, ao outro lado da Linha do Tratado, em troca de couros e peles. Ele tinha sócios que lhe proporcionariam…
Jamie escutava com crescente desaprovação. Por fim o interrompeu.
- Sim. Agradeço seu interesse, senhor, mas temo que minha produção não alcança para o que você sugere. Produzo uísque só para consumo familiar, e uns poucos tonéis mais para a troca local. Nada mais.
Lyon grunhiu amigavelmente.
- Mas com seus conhecimentos e sua habilidade, senhor Fraser, você poderia incrementar sua produção. Se for questão de materiais… Posso falar com os cavalheiros que atuariam como sócios na empresa e…
- Não, senhor. Temo-me que não. Se me desculpar.
Fez-lhe uma abrupta reverência e girou sobre seus talões para retornar a terraço. Devia perguntar ao Farquard Campbell quem era esse homem. Se alguma vez se dedicava a esse comércio, faria-o pessoalmente, possivelmente com a ajuda do Fergus ou Roger MAC, talvez o velho Arch Bug e Joe Gemem… mas ninguém mais.
Voltou para grandes passos a terraço, pensativo, mas a aparição de sua esposa lhe apagou por completo o uísque da cabeça.
Claire se tinha separado do Stanhope e seus amigos; estava de pé ante a mesa do refrigério, observando os aprimoramentos exibidos. Jaime viu que Gerald Forbes a observava com olhos acesos de especulação; imediatamente, interpôs-se entre sua esposa e o advogado. Sentiu que os olhos do homem se chocavam com suas costas e sorriu para seus adentros. “ Esta é minha, velho” , disse-se
- Não sabe por onde começar, Sassenach? –Agarrou a taça vazia do Claire, enquanto aproveitava o movimento para aproximar-se contra suas costas.
Ela se apoiou contra ele, rendo, e se reclinou contra seu braço. Cheirava a pós de arroz e a pele quente, junto com o perfume dos pimpolhos de rosa que lhe adornavam o cabelo.
- Toma, Sassenach. –Depositou a taça vazia em uma bandeja que passava e a substituiu por outra enche.
OH!, não posso…- Começou ela, mas Jamie, para sossegá-la, agarrou outra taça e a elevou para ela, como em um brinde. As bochechas do Claire avermelharam.
- Pela beleza –disse ele, com um suave sorriso.
Sentia-me estupendamente, e não todo se devia ao vinho, embora era muito bom. Mas bem era a ausência de tensões, depois de todos os conflitos desse dia.
A aparição do Jamie foi algo prematura para meu programa, posto que eu ainda não tinha comido nada, mas não me opunha a reajustar minhas prioridades.
- Pela beleza –disse brandamente, e bebeu, sem apartar os olhos de mim.
- Pela intimidade –respondi, levantando minha própria taça.
Elevei lentamente as mãos para me tirar o encaixe ornamentado do cabelo e meus cachos caíram soltos por minhas costas. Ouvi que alguém afogava uma exclamação escandalizada. Jamie tinha os olhos cravados em mim como os de um falcão no coelho. Sustentei-lhe o olhar e bebi, tragando com lentidão.
Nesse momento, uma voz falou detrás dele, dos grandes ventanales iluminados pelas velas.
- Senhor Fraser.
Ambos demos um coice. Ao ver a figura recortada no vão da porta, Jamie afrouxou o corpo e deu um passo atrás, torcendo a boca em uma careta de ironia.
Phillip Wylie saiu para a luz das tochas. Seu enrojecimiento era tal que se via apesar dos pós.
- Meu amigo Stanhope tem proposto que esta noite organizemos uma ou duas mesas de whist –disse- . Quer jogar, senhor Fraser?
Jamie lhe cravou um olhar largo e frio, o pulso palpitava a um lado de seu pescoço, mas sua voz soou serena.
- Ao whist?
- Sim. –Wylie sorriu esmerando-se em não me olhar- . Hão-me dito que você tem boa mão para as cartas, senhor. Claro que nossas apostas são bastante elevadas. Talvez não considere…
- Será um prazer –replicou Jamie. Seu tom deixava perfeitamente em claro que o único prazer verdadeiro teria sido lhe fazer tragar os dentes.
- Ah!, estupendo. Espero… com ânsias a ocasião.
- A suas ordens, senhor. –Jamie se inclinou abruptamente. Logo deu meia volta e me agarrou do cotovelo para nos afastar da terraço.
Acompanhei-o em silêncio até que estivemos o bastante longe para que ninguém nos ouvisse.
- perdeste a cabeça? –perguntei cortesmente.
- Posso permitir que esse petimetre pisoteie minha honra e logo me insulte à cara? –Girou para mim, jogando faíscas pelos olhos.
- Não acredito que haja… - comecei, mas me interrompi. Era evidente que, se a intenção do Wylie não era insultá-lo diretamente, ao menos queria desafiá-lo. E para um escocês ambas as coisas eram quase o mesmo.
- Mas não tem por que aceitar!
- É obvio que sim –disse, rígido- . Tenho orgulho.
- Sim, e Phillip Wylie sabe perfeitamente! O orgulho precede à queda. Alguma vez o ouviste dizer?
- Não tenho a menor intenção de cair –assegurou- . Dá-me seu anel de ouro?
- O que…? Meu anel?
Meus dedos foram involuntariamente à mão esquerda, à aliança do Frank. Ele me observava com atenção, os olhos fixos em meus.
- Necessito algo com o que apostar –explicou em voz baixa.
- Ao demônio! –Voltei-lhe as costas, olhando para o prado.
- Não o perderei –disse Jamie, detrás de mim. Apoiou-me uma mão no ombro- . E se o perdesse… o resgataria. Sei que o aprecia.
Torci o ombro para me sacudir sua mão e me afastei alguns passos. Ele não disse nada nem me tocou; limitava-se a esperar.
- o de oro –disse por fim, inexpressiva- . o de prata não?
Seu anel, esse não. Sua marca de propriedade, essa não.
- o de oro vale mais –explicou ele E acrescentou- : Em dinheiro.
- Isso sei.
Girei-me para me enfrentar a ele. As chamas das tochas, batendo as asas no vento, arrojavam uma luz móvel contra suas facções; assim era mais difícil ler nelas.
- Não seria melhor que te desse os dois? –Tinha as mãos frite e escorregadias de suor. O anel de ouro se desprendeu com facilidade; o de prata estava mais ajustado, mas o retorci até fazer que acontecesse o nódulo. Agarrei-lhe a mão para deixar cair nela os dois anéis, com um tinido.
Logo dava meia volta e me afastei.
Roger saiu do salão a terraço, serpenteando entre a multidão que se aglomerava em torno das mesas. Estava acalorado e suarento, o ar da noite foi como uma palmada refrescante. deteve-se no extremo da terraço, onde poderia desabotoar o colete sem chamar a atenção.
Ali estava Bree: saía da sala, voltando-se pela metade para dizer algo à mulher que levava detrás. Imediatamente o viu e lhe acendeu a cara.
- Por fim! Apenas te vi em todo o dia. Mas te escutava de vez em quando –acrescentou ela, assinalando com a cabeça as portas abertas do salão.
- Sim? E cantei bem? –perguntou ele como sem lhe dar importância.
Ela sorriu e lhe golpeou o peito com o leque fechado, imitando o gesto de uma consumada coquete… costure que não era.
- OH!, senhora MacKenzie –disse, em tom agudo e nasal- , que voz tão divina tem seu marido! Se eu tivesse sua sorte, tenha a segurança de que me passaria horas inteiras me embriagando com sua melodia…
Entre risadas, ele reconheceu à senhorita Martin, a dama de companhia da anciã senhorita Bledsoe.
- Sabe perfeitamente que canta bem –disse Brianna- . Não faz falta que eu lhe diga isso.
- Talvez não –admitiu ele- . Mas isso não significa que eu não goste de ouvi-lo.
- Seriamente? Não é suficiente com a adulação das multidões?
Roger não soube o que responder e optou por agarrar a da mão.
Brianna pediu a um dos escravos que lhe trouxesse uma garrafa de vinho e duas taças.
- Encontrou a algum convidado desvanecido entre os arbustos? –perguntou ela. depois de tragá-lo esclareceu- : Esta tarde, quando papai te pediu que saísse a investigar.
Ele lançou um breve bufido.
- Sabe no que se diferencia umas bodas escocesa de um velório escocês?
- Não, no que?
- No velório há um bêbado menos.
Ela se ponho-se a rir.
- Não –respondeu ele, enquanto a guiava diestramente para a direita do embarcadero, onde estavam os salgueiros- . Agora se vêem uns quantos pés aparecendo entre as matas, mas esta tarde ainda não tinham tido tempo de ficar patas acima.
- Você sim que domina a linguagem –comentou ela, apreciativa- . Eu fui falar com os escravos; todos pressente e em sua maioria, sóbrios. Um par de mulheres admitiram que Betty bebe nas festas.
- O qual é pouco dizer, a julgar pelos comentários de seu pai. Disse que estava como uma Cuba. E me parece que não se referia só à bebedeira.
- Hum… Mamãe disse que mais tarde já parecia estar bem, apesar de que o doutor Fentiman insistiu em sangrá-la. Esse médico me dá calafrios. Parece um duende ou algo assim. E tem as mãos mais frite e úmidas que eu haja meio doido em minha vida.
- Ainda não tive o prazer –disse Roger, divertido- . Vêem.
Apartou o véu pendente dos ramos de salgueiro, e Brianna procurou o banco de pedra a provas para deixar a bandeja.
Roger fechou os olhos com força e contou até trinta. Ao abri-los pôde distinguir a silhueta do Bree, e a linha horizontal do banco. Ali pôs as taças e serviu o vinho, fazendo tilintar o pescoço da garrafa contra as taças.
Logo alargou uma mão e a deslizou pelo braço do Bree, até que localizou a dela e pôde lhe entregar sem perigo a taça enche.
- Pela beleza –disse, elevando a sua.
- Pela intimidade –brindou ela. E bebeu. Ao cabo de um momento murmurou, sonhadora- : Ah, que rico…! Fazia tanto tempo que não provava vinho… Um ano? Não: quase dois. Desde antes de que nascesse Jemmy. Em realidade, desde… - Interrompeu-se abruptamente; logo continuou com mais lentidão- : Desde nossa primeira noite de bodas. No Wilmigton, recorda?
- Sim, lembrança.
Não era estranho que Bree recordasse agora aquela noite. Tinha começado assim, sob os ramos de um enorme castanho. A situação atual se parecia estranha e conmovedoramente a aquela: a escuridão, o segredo, o aroma da folhagem e a água próxima.
Mas aquela tinha sido uma noite calorosa, tão densa e úmida que a carne se fundia contra a carne. Agora o frio o fazia desejar o calor do Bree.
- Crie que dormirão juntos? –perguntou Brianna. Parecia um pouco sufocada, talvez por efeito do vinho.
- Quais? Ah, Yocasta e Duncan? por que não, se se casaram?
Roger esvaziou sua taça e a deixou com um tinido do cristal contra a pedra.
- foi umas belas bodas, verdade? –Ela se deixou tirar a taça sem resistência- . Tranqüila, mas muito bela.
- Muito bela, sim. –Beijou-a com suavidade, estreitando-a contra si, enquanto apalpava a atadura do vestido à costas, entrecruzada sob o fino xale de ponto.
- Não trouxe meu… quer dizer… - Ela se apartou um pouco, dúbia.
- Mas tomaste as sementes, não?
- Sim.
Mas ainda parecia duvidar. Ele chiou os dentes e a sujeitou melhor, para impedir que fugisse.
- Não importa –sussurrou, deslizando a boca por seu pescoço, até o pendente onde se unia com o músculo do ombro- . Não necessitamos… quer dizer… não vou deixar que…
O decote do vestido era profundo debaixo do lenço, como o indicava a moda; mais profundo ainda com os cordões desatados. Roger sentiu o peito brando e pesado no oco de sua mão, grande e redondo o mamilo, e se deixou levar pelo impulso de aproximar a boca.
Ela ficou rígida; logo se relaxou com um suspiro estranho. Roger sentiu na língua um sabor quente e doce; logo, um estranho palpitar e um jorro de… Tragou por reflexo, horrorizado… Horrorizado e excitadísimo. Tinha-o feito sem pensar, sem intenção… Mas lhe sujeitou a cabeça com força.
Isso lhe deu valor para continuar; empurrou-a brandamente para trás, deitando-a no bordo do banco para poder ajoelhar-se ante ela. Lhe tinha ocorrido uma súbita idéia, provocada pela lembrança daquela anotação no caderno dos sonhos.
- Não se preocupe –lhe sussurrou- . Não …arriscaremos a nada. Deixa que o faça… só por ti.
Ainda vacilando, lhe permitiu deslizar as mãos sob sua saia, subir pela curva sedosa da pantorrilha, embainhada na média, e a coxa nua, sob a curva aplanada das nádegas. Uma das canções do Seamus descrevia as façanhas de certo cavalheiro “ nos campos de batalha de Vênus” . As palavras se deslizaram por sua cabeça, e decidiu desempenhar-se com honra nessa palestra.
Embora ela não soubesse descrevê-lo, ele o faria conhecer. Bree se estremeceu entre suas mãos.
- Senhorita Bree?
Os dois deram um coice. Roger sentia o trovejar do sangue nos ouvidos…e nos testículo.
- Sim, o que acontece? É você, Fedra? O que acontece? É pelo Jemmy?
- Sim, senhora. –A voz da Fedra vinha do salgueiro mais próximo à casa- . O pobre menino despertou acalorado e inquieto; não quis o mingau nem o leite. E agora começou a tossir muito. Teresa queria que procurássemos o doutor Fentiman, mas lhe hei dito…
- O doutor Fentiman!
Brianna pôs-se a correr para a casa, seguida pela pulseira.
Roger ficou de pé e esperou um momento, com a mão contra os botões da braguilha. A tentação era forte; só demoraria um minuto. Possivelmente menos, nesse estado. Mas não: Bree podia necessitá-lo para que se entendesse com o Fentiman. A só idéia de que o doutor utilizasse seus sanguinários instrumentos na carne branda do Jemmy bastou para que se lançasse de cabeça entre os salgueiros, detrás das duas mulheres. Os campos de batalha de Vênus teriam que esperar.
Encontrou ao Bree com o Jemmy no boudoir da Yocasta, centro de um pequeno grupo de mulheres, que pareceram escandalizadas ao vê-lo aparecer. Apesar de tudo, abriu-se passo entre elas até reunir-se com a Brianna.
O pequeno tinha mau aspecto, sim. Roger sentiu um nó de medo na boca do estômago. Virgem Santa!, Como podia ter ocorrido algo assim em tão pouco tempo? Na festa, tinha estado tão buliçoso e simpático como de costume, mas agora jazia contra o ombro da Brianna, com as bochechas acesas e os olhos pesados, choramingando um pouco; de seu nariz brotava um fio de muco claro.
- Como vai?–Tocou-lhe uma bochecha com a mão. Por Deus, ardia!
- Doente –foi a seca resposta.
Jemmy começou a tossir; era um ruído espantoso: forte, mas médio sufocado. O sangue se amontoou na carita já vermelha; os olhos azuis, redondos, dilataram-se no esforço de tomar fôlego entre um espasmo e outro.
- Maldição! –murmurou Roger- . O que fazemos?
- Água fria –disse com autoridade uma das mulheres- . Inundem por completo em um banheiro de água fria. E que bebe também.
- Você, moça, vê em busca do doutor Fentiman –disse a Fedra uma das mulheres- . Não me ouviste?
- Não! Ele não, não! –gritou Brianna e a seguir se dirigiu ao Roger- : Procura mamãe. Logo!
Roger baixou como uma tromba ao vestíbulo, onde se encontrou com o Claire, que vinha apressadamente para ele. Alguém o havia dito.
- Jemmy? –perguntou ela.
Ante seu mudo gesto afirmativo, subiu a escada em um segundo, seguida pelos olhares atônitos da gente que enchia o vestíbulo. Roger a alcançou acima, no corredor, a tempo para lhe abrir a porta, e se manteve atrás para não estorvar, maravilhado. Assim que Claire entrou na habitação, a atmosfera de preocupação lhe confinem com o pânico troco imediatamente. Embora a aflição perdurava, as mulheres se retiraram a seu passo sem vacilar, murmurando entre si. Claire se aproximou diretamente ao Jemmy e ao Bree, sem emprestar atenção a ninguém mais.
- Olá, tesouro. O que acontece? Encontramo-nos muito mal?
Enquanto falava em murmúrios com o bebê, desviou-lhe a cabeça a um lado e a outro, apalpando sob as bochechas gordinhas e detrás das orelhas.
- Pobrecito… Não importa, tesouro. Mamãe está aqui, a avó está aqui e todo se arrumará… Quanto tempo leva assim? bebeu algo? Sim, querido, sim… Traga com dificuldade?
Claire agarrou uma folha do grosso papel da Yocasta. Enrolou-a para formar um tubo, que usou para auscultar atentamente as costas e o peito do Jemmy.
- Sim, claro que é cruz –disse distraídamente, em resposta ao diagnóstico interrogante que oferecia uma das mulheres- . Mas isso é só tosse e dificuldade para respirar. O cruz pode apresentar-se sozinho, por assim dizê-lo, ou como sintoma cedo de outras enfermidades.
- Por exemplo? –Bree estreitava ao Jemmy com força.
- Pois… - Claire parecia escutar atentamente o que acontecia dentro do Jemmy, que tinha deixado de tossir e jazia contra o ombro de sua mãe, exausto, respirando com ofegos- . Hum… resfriado comum, gripe, asma, difteria… mas não é isso –acrescentou depressa, ao ver a cara da Brianna.
- Está segura?
- Sim –replicou Claire com firmeza- . Não acredito que seja difteria. Além disso, não houve casos por aqui. E como ainda lhe dá o peito, tem a imunidade…
interrompeu-se abruptamente, notando que as mulheres a olhavam. Logo tossiu deliberadamente, para incitar ao Jemmy com o exemplo. O menino gemeu um poquito e voltou a tossir. Roger sentia uma rocha em seu próprio peito.
- Não é grave –assegurou Claire ao incorporar-se- . Mas é preciso começar já a tratá-lo. Baixemo-lo à cozinha. Fedra, pode me trazer um par de edredons velhos, por favor?
E se dirigiu para a porta, afugentando às mulheres a seu passo.
Guiado por um impulso, Roger alargou os braços para o bebê. Depois de um instante de vacilação, Brianna permitiu que o agarrasse. Jemmy não resistiu; pendia lasso e pesado, em terrível contraste com sua normal elasticidade de borracha. Sua bochecha queimava através da camisa. Baixou a escada com ele em braços e Bree a seu lado.
- Tem alguma infecção no ouvido, tesouro? –Claire lhe soprou em um ouvido; logo, em outro. O bebê piscou, entre roucas tosses, e se passou uma mão gordinha pela cara, mas sem amostras de dor.
Guiados pelas indicações do Claire, os escravos transportavam em um rincão da cozinha; trouxeram água fervendo e com os edredons unidos com alfinetes formaram uma loja.
Então, Brianna se meteu sob o edredom e alargou os braços para que entregassem ao Jemmy. Claire, que tinha mandado a uma pulseira a procurar sua caixa de remédios, revolveu nela até encontrar uma redoma cheia de um azeite amarelo e um frasco de cristais brancos.
antes de que pudesse fazer nada com eles, Joshua, uma das moços de quadra, baixou ruidosamente a escada, médio sufocado pela pressa.
- Senhora Claire! Senhora Claire!
Ao parecer, enquanto alguns cavalheiros disparavam suas pistolas em celebração do feliz acontecimento, um deles tinha sofrido certo percalço, embora Josh não sabia exatamente do que se tratava.
- Não está ferido gravemente –assegurou- , mas sangra muito. E o doutor Fentiman… possivelmente não esteja tão firme como conviria. Viria você, senhora?
- É obvio.
Em um abrir e fechar de olhos, ela pôs o frasco e a redoma em mãos do Roger.
- Tenho que ir. Agarra isto. Ponha um pouco na água quente; que respire o vapor até que deixe de tossir.
Rápida e pulcra, recolheu sua caixa e, depois de entregar-lhe ao Josh, desapareceu pela escada antes de que Roger pudesse lhe perguntar nada.
- Onde está mamãe? foi-se? –perguntou Bree.
- Sim. Há uma emergência. Mas tudo sairá bem –assegurou Roger- . Deu-me o que devemos jogar na água. Disse que lhe façamos respirar o vapor até que a tosse cesse.
sentou-se no chão, junto à bacia. A escuridão não era total ali abaixo. Quando seus olhos se habituaram pôde ver o bastante. Bree parecia preocupada mas não tão aterrada como antes. Ele também se sentia melhor; ao menos sabia o que devia fazer. E Claire não parecia tão preocupada como para não separar-se de seu neto.
A redoma continha azeite de pinheiro, penetrante e perfumado de resinas. Não sabia quanto usar, mas jogou à água uma quantidade generosa. Enquanto o fazia sentiu saudades da instintiva familiaridade do gesto.
- Ah! Assim era isso –disse de repente.
- O que?
- Isto. –Assinalou com aquele gesto abrigado santuário, que se enchia rapidamente de um vapor perfumado- . Lembrança ter estado em minha cama com uma manta na cabeça. Minha mãe pôs isto em água quente; cheirava igual. Por isso me pareceu familiar.
- Ah…! –A idéia pareceu tranqüilizar ao Bree- . Você também teve croup quando foi pequeno?
- Suponho que sim. Não recordo nada. Somente o aroma.
A essas alturas o vapor tinha cheio a pequena loja, úmido e penetrante. Ele se encheu os pulmões. Logo deu uns tapinhas à perna da Brianna.
- Não se preocupe. Com isto se curará.
Roger tinha deixado cair a cortiça da cânfora. Buscou-o provas no chão e tampou com firmeza o frasco.
- Eu gostaria de saber o que tem feito sua mãe com os anéis –comentou por procurar algum tema de conversação que rompesse esse úmido silêncio.
- por que? –perguntou Brianna.
- Quando me entregou estas coisas não os deixava postos. –Tinham-lhe chamado a atenção, pois nunca a tinha visto sem esses anéis de ouro e prata.
- Está seguro? Nunca os tira, salvo para fazer algo muito horrível. –Bree deixou escapar uma risita nervosa, inesperada- . A última vez foi quando Jem deixou cair seu “ bobi” na bacinilla.
Roger riu, divertido. “ Bobi” se referia a qualquer objeto pequeno, mas assim chamavam agora à argola que ao Jem gostava de mascar. Era seu brinquedo favorito e não podia deitar-se sem ele.
- BA BA? –Jem levantou a cabeça, com os olhos entrecerrados. Ainda respirava com dificuldade, mas começava a demonstrar interesse por algo que não fora seu desconforto- . BA BA!
A escura intimidade da loja fez que Roger recordasse algo: havia ali a mesma sensação de paz e retiro que no banco dos salgueiros, embora fizesse muito mais calor. O algodão de sua camisa tinha perdido rigidez; sentia o fio de suor que lhe corria pelas costas, da nuca.
- Ouça –disse ao Bree- , não quer subir a te tirar o vestido novo? Aqui te danificará.
- Pois… - Ela se mordeu o lábio- . Não, não importa. Ficarei.
Roger se incorporou, médio agachado sob os edredons, e levantou o Jem, que tossia e gotejava em seu regaço.
- Vê –disse com firmeza- . Pode recolher seu b… já sabe o que. E não se preocupe. É óbvio que o vapor está sortindo efeito. Logo estará bem.
Ao fim ela consentiu. Roger ocupou o tamborete, com o Jemmy acurrucado no oco de seu braço. A pressão do assento lhe fez tomar consciência de certa congestão residual, originada no encontro sob os salgueiros. Trocou um pouco de posição para aliviar o desconforto.
- Bom, o dano é passageiro –murmurou a jemmy- . Qualquer moça lhe dirá isso.
Jemmy soprou e disse algo ininteligível, que começava com “ o BA…?” . Logo voltou a tossir, mas por pouco tempo. Ele acariciou a bochecha, que parecia algo menos afiebrada. Mas não era fácil apreciá-lo, com tanto calor como fazia ali.
- BA BA? –perguntou uma vocecita de rã contra seu peito.
- Sim, já vem. Cala, cala.
- BA…
- Era ru-Bia, como um ha-dá…
- BA…!
- E calça-ba cento e dez! –Roger levantou abruptamente a voz, com o que provocou um sobressaltado silêncio, tão dentro como fora da loja, na cozinha. depois de um pigarro, retomou um tom de arrulho- . OH minha ama-da, OH minha ama-da, OH minha ama-da Clementine…
A canção parecia sortir efeito. Jemmy tinha posto as pálpebras a meia haste. Começou a chupar o polegar, mas não podia respirar pelo nariz. Roger apartou brandamente o dedo e lhe reteve o punho. Estava molhado e pegajoso; era muito pequeno, mas lhe percebia tranquilizadoramente forte.
- golpeou-se… com uma asti-lla…
As pálpebras bateram as asas ligeiramente; logo abandonaram a luta. Jemmy suspirou, já completamente lasso. O calor emanava de sua pele em feitas ondas. Tinha diminutas gotas de umidade nas pestanas: lágrimas, suor, vapor ou as três coisas de uma vez.
- … e perdi a meu Clementine. OH minha amada, OH minha amada…
enxugou-se a cara outra vez. Logo beijou aquele arbusto suave de cabelo úmido. “ Obrigado” , pensou com sinceridade, dirigindo-se a todos, de Deus para baixo.
- OH minha ama-da Clementine.
Quando cheguei a minha cama, depois de examinar por última vez a todos meus pacientes, já era muito tarde. No primeiro patamar me detive olhar ao outro lado do corredor, onde Yocasta tinha suas habitações. Ali tudo era silêncio; as brincadeiras pesadas tinham terminado. Emprestei atenção, mas na escuridão não se ouvia mais que a forte respiração do Ulises, e continuei me arrastando para cima, com os joelhos e as costas doloridas, sentindo falta de minha própria cama… e a compreensão de meu marido.
No segundo patamar, uma janela aberta deixava ouvir gritos longínquos, risadas e algum disparo recreativo, gasto pelo vento da noite.
Com tantos hóspedes na casa, quão únicos gozavam o luxo de uma quarto privada eram os recém casados; outros nos tínhamos apinhado de qualquer modo nas habitações disponíveis. Avancei nas pontas dos pés entre aqueles corpos para ocupar meu espaço, ao pé de uma das grandes camas.
A pesar do arrulho hipnótico de tantos seres dormidos a mim ao redor, permanecia rígida e dolorida, contemplando os dedos de meus pés, que se recortavam contra a luz moribunda do lar.
Betty tinha passado do estupor a um sonho que parecia profundo e normal. Pela manhã, quando despertasse, poderíamos averiguar quem lhe tinha dado a taça… e, possivelmente, o que havia nela. Oxalá Jemmy também pudesse dormir plácidamente. Mas o que em realidade me preocupava era Jamie
Não lhe tinha visto entre os que jogavam às cartas nem entre os que conversavam. Tampouco tinha visto o Phillip Wylie na planta baixa da casa.
Esse não era o tipo de gente nem o estilo do Jamie, mas foi imaginar o entre eles o que me encolheu os pés de frio.
“ Não cometerá nenhuma estupidez” , disse-me enquanto me punha de lado para recolher os joelhos tanto como era possível nesse lotado espaço. Não as faria, é verdade, mas sua definição de estupidez não sempre coincidia com a minha.
Os hóspedes varões estavam alojados nos edifícios exteriores ou nos vestíbulos. Ao passar, havia visto anônimos adormecidos no chão, envoltos em seus capotes e roncando sonoramente junto ao fogo. Não procurei entre eles, mas Jamie devia estar ali; ao fim e ao cabo, sua jornada tinha sido tão larga como a minha.
Mas não era habitual que se retirasse sem vir a me dar as boa noite, quaisquer que fossem as circunstâncias. Claro que estava irritado comigo, e nossa rixa não estava resolvida, a não ser inflamada pelo convite dessa besta. Phillip Wylie. Fechei as mãos, esfregando com os polegares a leve calosidade que marcava o sítio onde normalmente estavam os anéis. Condenados escoceses!
Jemima Hatfield se removeu e murmurou a meu lado, perturbada por meu desassossego. Voltei a me tender de lado, a vista perdida no pé de carvalho da cama.
Sim, ele seguia zangado pelos atrevimentos do Phillip Wylie. E eu também o teria estado, de não ser pelo cansaço. Como se atrevia…? Em realidade, não merecia a pena irritar-se, ao menos não no momento. Embora não era normal que Jamie me evitasse, zangado ou não.
O cansaço me venceu, fiquei dormida e comecei a sonhar.
Em meu sonho havia cavalos: lustrosos frisones negros, de crinas flutuantes que ondulavam ao vento, enquanto os semeia corriam a meu lado. Via minhas próprias patas, estendidas para o salto; eu era uma égua branca. O estou acostumado a passava em um borrão verde sob meus cascos, até que me detive esperá-lo: um semental de peito amplo que me aproximou, quente e úmido seu fôlego contra meu pescoço. Fechou os dentes brancos contra minha nuca…
- Sou o Rei da Irlanda –disse.
Despertei lentamente, vibrando de pés a cabeça, e descobri que alguém me acariciava a planta desses mesmos pés.
Como seguia desconcertada pelas imagens de meus sonhos, não me alarmei; simplesmente, curvei os dedos e flexionei o tornozelo, desfrutando de do delicado polegar que avançava pelo arco
e subia pelo oco do tornozelo. de repente, com uma pequena sacudida, despertei por
completo.
Quem quer que fosse percebeu minha volta à consciência, pois o contato se deteve momentaneamente. Retornou com mais firmeza; uma mão grande e morna executou com o polegar uma massagem contra a base dos dedos.
Por então eu estava acordada e um pouco sobressaltada, mas sem medo. Movi o pé, para desprender essa mão, mas os dedos me estreitaram isso ligeiramente a modo de resposta. Logo sua companheira me beliscou brandamente o dedo gordo.
O contato continuou pela planta do pé, me fazendo cócegas. Sacudi-me involuntariamente, contendo uma risita.
Aqueles dedos seguiram a curva da pantorrilha e procuraram refúgio na branda cara posterior do joelho. Ali tocaram um ritmo veloz contra a pele em tanto eu me contorsionaba de agitação. fizeram-se mais lentos até deter-se com firmeza na artéria onde a pele era tão fina que as veias se desenhavam em azul; percebi a corrente de sangue que passava por ali.
Ele trocou de posição, com um suspiro; logo uma mão me rodeou a redondez da coxa e se deslizou pouco a pouco para cima. A outra a seguiu, pressionando inexoravelmente para me separar as pernas.
O coração me palpitava nos ouvidos; sentia os peitos inchados e os mamilos possantes contra a musselina da camisa. Aspirei fundo… e percebi aroma de pós de arroz.
Meu coração se deteve por um momento, pois a idéia cobrou existência em minha mente: e se não era Jamie?
Permaneci muito quieta, tratando de não respirar, concentrada nessas mãos, que estavam fazendo algo delicado e indescritível. Eram mãos grandes; senti que os nódulos pressionavam contra a suave carne interior da coxa. Mas Phillip Wylie também tinha as mãos grandes, muito para sua estatura. Tinha-o visto recolher um punhado de aveia para o Lucas, seu semental, e o focinho do cavalo cabia na palma.
Calos: essas mãos vagabundas (OH, bom Deus!) estavam calejadas. Mas também as do Wylie; sua Palmas de cavaleiro eram tão duras como as do Jamie.
Tinha que ser Jamie. Levantei um pouco a cabeça, para espiar na escuridão. É obvio que era Jamie! Nesse momento uma das mãos fez algo que me sobressaltou. Sacudi os membros com um grito afogado e meu cotovelo se cravou contra as costelas de minha vizinha, quem se incorporou imediatamente, com uma forte exclamação. As mãos se retiraram abruptamente, me espremendo os tornozelos em uma apressada despedida.
Alguém engatinhava pelo chão. Logo, um brilho de luz mortiça e uma rajada fria que entrou do corredor: a porta se aberto para voltar a fechar-se imediatamente.
- O que…? –murmurou Jemima a meu lado, em aturdida estupefação- . Quem anda?
Ao não receber resposta, murmurou algo e voltou a dormir. Eu não.
Passei comprido tempo insone, escutando os roncos e sussurros de minhas companheiras, e o palpitar de meu coração. Quando Jemima Hatfield se tombou inconscientemente contra mim, atirei-lhe uma cotovelada nas costelas.
- Juf? –murmurou ela, sobressaltada. E se incorporou pela metade, piscando, antes de afundar-se.
Eu não sabia o que sentir. Por uma parte estava excitada; contra minha vontade, mas definitivamente excitada. Quem quer que tivesse sido meu visitante noturno, sabia o que fazer com um corpo feminino.
Isso argumentava a favor do Jamie. Mesmo assim, eu não sabia que grau de experiência tinha Wylie nas artes do amor; No estábulo o tinha rechaçado sem lhe dar oportunidade de demonstrar suas habilidades nesse sentido.
Mas meu visitante de meia-noite não tinha aplicado nenhuma carícia que eu pudesse identificar como o repertório do Jamie. Se tivesse usado a boca, em troca… Não sabia se me sentir divertida ou indignada, seduzida ou violada. Mas estava enojadísima disso, estava segura.
- Uf! –disse Jemima. Ao parecer eu não era a única prejudicada por minhas emoções.
- Hum? –murmurei, fingindo estar semidormida- . Glrgl. Bzg.
Na mescla havia também um sotaque de culpa. Se eu tivesse tido a segurança de que tinha sido Jamie, me teria zangado?
O pior era que não podia fazer absolutamente nada por averiguar quem tinha sido. Não podia perguntar ao Jamie se tinha vindo a me acariciar na escuridão, pois, se não tinha sido ele, assassinaria ao Phillip Wylie com suas próprias mãos.
Por fim abandonei a cama e me aproximei da porta. Com grande sigilo, abri-a para jogar um olhar ao corredor e caminhei em silencio até a escada posterior, com intenção de sair a tomar ar.
No batente da escada me detive em seco. Ao pé dos degraus havia um homem: uma silhueta alta e negra contra os cristais dos ventanales. Eu não acreditava ter feito nenhum ruído, mas ele se voltou, levantou a cara para mim. Reconheci imediatamente ao Jamie.
- Baixa –disse com voz fica.
Joguei um olhar vacilante detrás de mim. Do quarto que acabava de abandonar surgia uma confusão de roncos, mas ninguém se movia.
Voltei a olhá-lo. Ele não disse nada mais, mas levantou dois dedos em gesto de chamada. Seu aroma de fumaça e uísque enchia o oco da escada.
O sangue me palpitava nos ouvidos… e em outro sítio. Sentia-me avermelhada, com o cabelo úmido pego às têmporas e ao pescoço; o ar frio se metia sob minha camisa, tocando o filme viscoso entre as coxas.
Descendi tratando de que os degraus não rangessem sob meus pés e me detive antes de baixar o último degrau. Graças a Deus, não tinha sangue na roupa.
Não era a primeira vez que via ébrio ao Jamie, mas esta vez havia algo muito diferente. mantinha-se sólido como uma rocha, com as pernas separadas, delatando sua estado só por certa deliberação na maneira de mover-se.
- O que…? –sussurrei.
- Vêem aqui. –Sua voz soava grave, rouca, de insônia e de uísque.
Não tive tempo de responder nem de obedecer. Ele me agarrou do braço para me baixar do último degrau e me estreitou contra si para me beijar. Foi um beijo desconcertante, como se sua boca conhecesse a minha muito bem e pudesse me obrigar ao prazer, sem parar-se a pensar em meus desejos. Liberei minha boca o tempo suficiente para lhe ofegar ao ouvido:
- Aqui não!
Jamie levantou a cabeça, piscando como se despertasse de um pesadelo, com os olhos dilatados e cegos. Logo fez um gesto afirmativo, e se levantou, atirando de mim ao mesmo tempo.
junto à porta pendiam os capotes das criadas. depois de me envolver em um, elevou-me em velo e atravessou a porta a golpes de ombro. Ao chegar ao atalho me deixou no chão; um momento depois avançávamos juntos por uma paisagem de sombras e vento, ainda entrelaçados, a tropeções, lutando.
Os estábulos. Golpeou a porta e me arrastou consigo para a morna escuridão. Já dentro, empurrou-me com força contra a parede.
- Se não te possuir agora vou morrer –disse, sem fôlego, e sua boca procurou outra vez a minha. de repente se apartou. Cambaleei-me e tive que apoiar as mãos contra os tijolos do muro para não perder o equilíbrio.
- Estende as mãos –disse.
- O que?
- As mãos. as estenda.
Obedeci, totalmente desconcertada, e ele tomou a esquerda. Uma cálida pressão; a débil luz que penetrava pela porta brilhou sobre meu anel de ouro. Logo me cogó a direita para me pôr o de prata. A seguir me mordeu os nódulos com força. Um momento depois se emano estava em meu peito e o ar frio me roçava as coxas; senti o arranhão dos tijolos contra o traseiro nu.
- Olhe. –Seu fôlego me queimou o ouvido- . Olhe para baixo. Observa como te possuo. Olhe, maldita!
Apertou-me a nuca com uma mão, me inclinando a cabeça para que observasse na penumbra como me possuía. Arqueei as costas e logo me derrubei, mordendo a ombreira de sua jaqueta para não fazer ruído. Senti sua boca contra meu pescoço. Aferrei-me com força, enquanto ele se estremecia contra mim.
Enredados entre a palha, contemplamos a luz do dia que se filtrava pela porta entreabrida do estábulo. Ainda me retumbava o coração nos ouvidos e meu sangue fazia cócegas nas têmporas, as coxas e os dedos. Mas de algum modo me sentia alheia a essas sensações, como se as estivesse experimentando outra pessoa. Estava como fora da realidade… e um pouco escandalizada.
O ritmo de sua respiração pareceu cortar-se durante um segundo, mas não se moveu. Duas exalações, três… e logo a vaga pressão de um dedo contra minha coluna.
- Assim ganhou –disse à costas do Jamie. Minha voz soava estranha, como se levasse muito tempo sem usá-la.
- Tal como te prometi –respondeu com suavidade, inclinando a cabeça para colocar as dobras da manta.
Levantei-me, um pouco enjoada, e procurei apoio no muro para sacudir a areia e a palha de meus pés. O contato dos toscos tijolos contra minhas costas era uma vívida lembrança; estendi os dedos contra eles, tratando de resistir a investida das sensações recordadas.
- Está bem, Sassenach? –Ao perceber meus movimentos girou bruscamente a cabeça para me olhar.
- Sim. Sim. Bem. Só que… Estou bem. E você?
O via pálido e desalinhado, com a barba enchente, gasto pelas tensões e com negras olheiras provocadas por uma larga noite de insônia.
- Eu… - Tragou saliva audiblemente. Logo ficou de pé ante mim- . Não me odeia? –perguntou abruptamente.
Pilhada por surpresa, pus-se a rir.
- Não. Parece-te que há motivos?
Ele torceu um pouco a boca e a esfregou com os nódulos.
- Possivelmente, mas me alegra que não os veja.
Agarrou-me as mãos para acariciar com o polegar o desenho entrelaçado do anel de prata. Tinha as mãos frite.
- por que poderia te odiar? Pelos anéis?
Em realidade me teria enfurecido se ele tivesse perdido qualquer dos dois, mas como não era assim…
- Pois poderíamos começar por isso –disse, cortante- . Fazia tempo que não me deixava levar por meu orgulho, mas não pude me conter. Esse pequeno Phillip Wylie pavoneando-se a nosso redor, te olhando os peitos com ar ufano e…
- Isso fazia? –Não me tinha precavido.
- Isso fazia. –Jamie voltou a irritar-se ao recordá-lo. Logo retomou o catálogo de seus próprios pecados- . Mas também leste de te haver miserável até aqui em camisa, para te montar como uma besta faminta…
Roçou-me o pescoço, onde ainda sentia a ardência de uma dentada.
- Pois na verdade essa parte me gostou.
- Seriamente? –piscou, com surpresa.
- Sim. Embora tema que tenho moretones no traseiro.
- OH!... –Baixou a vista, envergonhado- . Sinto muito. Quando terminei a partida de whist não podia pensar em outra coisa que em ir a por ti, Sassenach. Subi e baixei essa escada dez ou doze vezes. Chegava até sua porta e retrocedia.
- De verdade? –Agradou-me ouvir isso, pois aumentava as possibilidades de que ele tivesse sido meu visitante noturno.
- Tratava de que viesse para mim, suponho. Pensei que a força de meu desejo podia despertar. E então veio… - Interrompeu-se. Seus olhos se haviam posto suaves e escuros- . Cristo, que bela estava ali, no alto da escada, com a cabeleira solta e a sombra de seu corpo recortada contra a luz! –Moveu lentamente a cabeça- . Pensei que morreria se não te possuía.
Acariciei-lhe a cara; sua barba foi um suave ouriço contra minha palma.
- Não podia permitir que morrera –sussurrei, lhe pondo uma mecha de cabelo detrás da orelha.
Baixei a mão e Jamie se inclinou para recolher sua jaqueta, médio sepultada na palha. agachou-se sem perder o equilíbrio, mas o vi fazer uma careta de dor quando o sangue lhe chegou súbitamente à cabeça.
- Bebeu muito ontem à noite? –perguntei ao reconhecer os sintomas.
Ele se incorporou com um pequeno grunhido de diversão.
- Jarras, sim –foi sua melancólica resposta- . Nota-se?
Uma pessoa, muito menos experimentada que eu o teria detectado a oitocentos metros; até sem os sinais mais óbvias de sua intoxicação recente, seu aroma era o de uma destilaria.
- Pelo visto não te impediu de jogar bem às cartas –comentei, com tato- . Ou acaso Phillip Wylie estava tão afetado como você?
Pareceu surpreso e um pouco afrontado.
- Crie-me capaz de me embebedar enquanto jogo? depois de ter apostado seus anéis? Não, isso foi depois. MacDonald trouxe uma garrafa de champanha e outra de uísque paraque celebrássemos nossos lucros.
- MacDonald? Donald MacDonald jogava contigo? Lucros, há dito? –Na tensão do momento só parecia importante que tivesse conservado meus anéis, mas essas jóias eram só sua aposta- . O que ganhou no Phillip Wylie? –perguntei, rendo- . Os botões bordados da jaqueta? As fivelas de prata de seus sapatos?
- Pois não –disse- . Seu cavalo.
Pô-me sua jaqueta sobre os ombros e me conduziu pelo corredor principal do estábulo. Joshua tinha entrado silenciosamente pela outra porta e estava trabalhando no extremo oposto. Parecia tão cansado como eu; tinha os olhos inchados e avermelhados.
- Como vai? –perguntou Jamie, assinalando o pesebre com o queixo.
Josh se animou um pouco ante a pergunta.
- OH!, muito bem –assegurou- . É um bom moço, o cavalo do senhor Wylie.
- É obvio que sim –coincidiu Jamie- . Só que agora é meu.
- De quem? –Josh ficou boquiaberto e com os olhos saltados.
- Meu. –Jamie se aproximou do corrimão para arranhar as orelhas do grande semental- .Seja –murmurou ao animal- . Ciamar a tha thu, a ghille mhoir?
Contemplei ao cavalo, que levantou a cabeça para nos dirigir um olhar simpático e se separando da cara o véu de suas crinas, voltou a concentrar-se em seu café da manhã.
- Um animal encantador, verdade? –Jamie admirava ao Lucas com ar de longínqua especulação.
- pois sim, mas… - Minha própria admiração estava tinta de consternação. face à irritação que Wylie me inspirava, senti pena ao pensar no que devia afetá-lo-a perda de seu magnifico frisón.
- Mas o que, sassenach?
- Pois… - Procurei torpemente as palavras. Nessas circunstâncias, não podia expressar compaixão pelo Phillip Wylie- . Pois… o que pensa fazer com ele?
- Não penso ficar o assegurou meu marido- . eu adoraria, mas tem razão: não serve para a Colina. Penso vendê-lo.
- Ah!, bem. –Sabê-lo era um alívio. Wylie quereria comprar novamente ao Lucas, qualquer que fosse o preço. A idéia me reconfortou. E o dinheiro não nos viria mau.
Enquanto conversávamos, Joshua se tinha afastado. Nesse momento reapareceu com um saco de cereais ao ombro. Parecia alerta e um pouco alarmado.
- Senhora Claire? –disse- . Com sua permissão, senhora, acabo de me encontrar com a Teresa; diz que a Betty acontece algo mau. Pareceu-me que devia dizer-lhe
O apartamento de cobertura parecia a cena de um crime brutal. Betty se debatia no chão, junto à cama, tombada com os joelhos recolhidos e os punhos cravados no abdômen; a musselina de sua camisa estava rasgada e empapada em sangue. Fentiman, também no chão, lutava com seu corpo espasmódico, quase tão ensangüentado como ela.
Antes que eu pudesse chegar, Betty deixou escapar uma tosse gorgoteante, expulsando mais sangre pela boca e o nariz. Logo se curvou para diante, arqueou-se para trás, voltou a dobrar-se… e ficou lassa.
Fentiman estava ajoelhado atrás dela, pálido e sem peruca. O lugar fedia a sangue, sedimentos e bílis; ele mesmo estava talher de todas essas substâncias. Levantou a vista para mim, sem dar sinais de me reconhecer, com os olhos dilatados e aturdidos pelo shock.
- Doutor Fentiman. –Falei em voz baixa- . Fez você quanto pôde –disse, lhe estreitando o ombro- . Não é culpa dela.
Acontecido-o no dia anterior não tinha importância. Ele era um colega e eu lhe devia a absolvição, se estava em meu poder dar-lhe
Ele se passou a língua pelos lábios secos e assentiu com a cabeça. Logo depositou brandamente o cadáver no chão. Um grave gemido me obrigou a girar, sem lhe soltar o braço. Em um rincão da habitação se amontoavam várias pulseiras, mudadas e com as mãos batendo as asas de inquietação contra a musselina de suas camisas. Na escada se ouviam vozes masculinas, apagadas e nervosas. Reconheci a do Jamie, grave e serena.
- Gussie? –disse o primeiro nome que me veio à memória.
A pulseira se adiantou; era uma jamaicana pálida e miúda, com um turbante de calicó azul.
- Sim, senhora? –Olhava aos olhos, evitando o corpo tendido no chão.
- vou levar a doutor Fentiman abaixo. Farei que alguns dos homens subam para… ocupar-se da Betty. Isto…
Assinalei a sujeira que cobria o chão. Ela assentiu; ainda estava impressionada, mas era um alívio ter algo que fazer.
- Esta Betty, mamãe dessa moça, Fedra –explicou Gussie, e tragou saliva- . Alguém… posso ir, senhora? Posso ir e dizer?
- Por favor. –Dava um passo atrás, lhe indicando por gestos que baixasse. Ela caminhou nas pontas dos pés junto ao cadáver e logo fugiu para a porta.
O doutor Fentiman começava a emergir do shock. Vi que seu instrumental, cansado na resistência, estava semeado por toda parte, em um esparramo de metal e cristais quebrados.
Mas antes de que pudesse recolhê-lo-se ouviu uma breve comoção na escada. Duncan entrou no quarto, com o Jamie lhe pisando os talões. Notei com algum interesse que ainda levava suas roupas de noivo, embora sem jaqueta nem colete. teria se deitado sequer?
Saudou-me com a cabeça, mas seus olhos foram imediatamente para a Betty. Piscou várias vezes, e logo aspirou fundo. Finalmente recolheu um edredom para cobri-la com suavidade.
- me ajude com ela, MAC Dubh –disse.
Ao ver o que se propunha, Jamie elevou em braços a difunta. Seu companheiro se voltou para as mulheres.
- Não se preocupem –assegurou em voz baixa- . Eu me ocuparei dela.
Em sua voz havia uma estranha nota de autoridade. Compreendi que, apesar de sua natural modéstia, tinha aceito que era o amo.
Ao ver que Fentiman ia recolher um dos frascos, disse-lhe:
- Deixe. As mulheres se ocuparão disto. –E sem esperar resposta, colhi-o com firmeza pelo cotovelo para conduzi-lo escada abaixo.
Assim Betty era a mãe (ou tinha sido) da Fedra. A ela eu não a conhecia bem, mas a Fedra sim. A dor que senti pela moça me atou a garganta. De qualquer modo, nesses momentos não podia auxiliá-la; em troca ao doutor sim.
Mudo de espanto, seguiu-me sem resistência. Junto ao rio havia um banco de pedra, médio escondido sob um salgueiro chorão. Dificilmente haveria alguém ali a essas horas da manhã.
Não havia ninguém, mas sim duas taças de vinho, manchadas de vermelho, abandonados restos dos festejos. Perguntei-me por um momento se ali tinha tido lugar alguma entrevista romântica. Apartei a inoportuna pergunta junto com as taças e tomei assento, convidando ao doutor Fentiman com um gesto.
- sente-se melhor?
- Sim. Obrigado, senhora Fraser.
- Foi um verdadeiro golpe, não? –sugeri, empregando minhas melhores maneiras de cabeceira.
- Um verdadeiro golpe, sim –murmurou fechando os olhos- . Não devi…
- Você foi muito amável ao acudir imediatamente –disse ao fim- . Vejo que o tiraram que a cama. A piora foi súbito?
- Sim. Ontem à noite, depois de sangrá-la, teria jurado que essa mulher se recuperaria. O mordomo despertou justo antes do amanhecer. Quando subi, ela se queixava outra vez de dores no abdômen. Voltei a sangrá-la e lhe administrei um clíster, mas de nada serve.
- Um clíster? - . Eram enemas, remédio muito popular nessa época.
- Tintura de nicotiana –explicou- . Segundo minha experiência, surge muito bom efeito em casos de dispepsia.
Respondi com um murmúrio, sem me comprometer. A nicotiana era tabaco. Em solução forte, administrada por via retal, podia curar muito em breve um caso de parasitas intestinais, mas dificilmente faria algo pela indigestão. Mesmo assim, tampouco podia provocar uma hemorragia como aquela.
- Que extraordinária quantidade de sangue –comentei- . Nunca tinha visto nada parecido. –Inclinei-me para ele para lhe apoiar uma mão consoladora no braço- . Sei que você fez tudo o que se podia fazer –continuei- . Ontem à noite, quando você a viu, não sangrava pela boca, verdade?
Ele sacudiu a cabeça, curvado dentro do capote.
- Não. Mesmo assim me sinto culpado, seriamente.
- Assim são as coisas –comentei, melancólica- . Sempre fica a sensação de que se deveria ter feito algo mais.
Ele captou o profundo sentimento de minha voz e se voltou para mim, surpreso. Sua tensão cedeu um pouco e as manchas vermelhas de suas bochechas começaram a atenuar-se.
- É você… muito pormenorizada, senhora Fraser.
Sorri-lhe sem responder. Embora fora um médico ruim arrogante e colérico, tinha acudido, disposto a lutar por seu paciente com a melhor vontade. A meu modo de ver, isso o convertia em merecedor de solidariedade.
Passado um momento me cobriu uma mão com a sua. O aroma de sangre médio seca de suas roupas me fazia ver outra vez a cena do apartamento de cobertura. De que diabo tinha morrido essa mulher?
Fiz-lhe perguntas diplomáticas a fim de lhe extrair os detalhes que tivesse podido observar, mas não serve de nada, pois aquilo tinha acontecido a hora muito temprana, com a estadia às escuras.
- Confio que a senhora Cameron… quer dizer, a senhora Innes… não pense que traí sua hospitalidade –disse, intranqüilo.
O doutor Fentiman considerava a possibilidade de que Yocasta o culpasse por não ter evitado a morte de sua pulseira e tratasse de cobrar uma compensação.
- Ela compreenderá que você tem feito todo o possível –assegurei- . Eu o direi, se você quiser.
- Minha querida senhora. –O médico, agradecido, espremeu-me a mão- . É você tão amável como encantadora.
- Parece-lhe, doutor?
Uma voz masculina tinha falado fríamente detrás de mim. Ali estava Phillip Wylie, com uma expressão muito sardônica na cara.
- Não é “ amável” a palavra que me vem à mente, para falar a verdade. “ Lasciva” , possivelmente. “ Caprichosa” , certamente. Mas “ encantadora” , isso sim, reconheço-o.
Seus olhos me percorreram de pés a cabeça, com uma insolência absolutamente reprochable. Levantei-me, me rodeando a bata com grande dignidade.
- está-se ultrapassando, senhor Wylie –disse, com toda frieza possível.
Ele riu, mas não como se aquilo lhe parecesse divertido.
- O que eu me ultrapasso? Não esqueceu você algum detalhe, senhora Fraser? O vestido, por exemplo? Não teme agarrar frio com essa vestimenta? Ou possivelmente os abraços do doutor são casaco suficiente?
Fentiman, tão espantado como eu pela aparição do Wylie, pôs-se de pé para interpor-se entre os dois, vermelho de fúria.
- Como se atreve, senhor! Como tem o atrevimento de apostrofar desse modo a uma dama! Se eu estivesse armado, senhor, exigiria-lhe satisfação neste mesmo instante, posso jurá-lo!
Ao ver o sangue que manchava as pernas e as calças do doutor Fentiman, o gesto carrancudo e irritado do Wylie perdeu certeza.
- Eu… aconteceu algo, senhor?
- Nada que seja de sua incumbência, o asseguro. –O médico se ergueu e me ofereceu o braço com um gesto grandioso- . Você venha, senhora Fraser. Não tem por que ver-se exposta aos sarcasmos insultantes deste cachorrinho. me permita acompanhá-la até onde a espera seu marido.
Ao olhar por cima de meu ombro vi que Wylie seguia com a vista cravada em nós, e levantei a mão em um pequeno gesto de despedida. A luz chispou em meu anel de ouro. Notei que ele ficava ainda mais rígido.
- Oxalá cheguemos a tempo para o café da manhã –disse o doutor Fentiman, alegremente- . Acredito que recuperei o apetite.
Os convidados começaram a partir depois do café da manhã. Yocasta e Duncan, despediam-nos da terraço, enquanto a fila de carruagens e carretas descendia lentamente pelo meio-fio.
- Parece cansada, mamãe. –Ao Bree também lhe notava a fadiga; ela e Roger se deitaram muito tarde.
- Não me explico por que –Lhe respondi, contendo um bocejo- . Como amanheceu Jemmy?
- Resfriado, mas sem febre. comeu um pouco de porridge e…
Escutei-a assentindo automaticamente com a cabeça. Logo a acompanhei para examinar a jemmy, que alvoroçava alegremente, face aos mucos. O menino estava aos cuidados do Gussie; a moça tinha o mesmo semblante pálido e ojeroso que todos os pressente, mas me pareceu que seu ar de mudo sofrimento se devia mais à tensão emocional que à ressaca.
Ao voltar para a casa com o doutor Fentiman, depois de pô-lo em mãos do Ulises para que o alimentasse e limpasse, tinha ido diretamente em busca da Fedra, sem me deter mais que para me lavar e me trocar de roupa, por não me apresentar diante dela manchada com o sangue de sua mãe.
Encontrei-a na despensa, aturdida pelo shock; estava sentada no tamborete que Ulises usava para lustrar a prata, com uma grande monopoliza de brandy intacta a seu lado. Acompanhava-a Teresa, outra das pulseiras; à lombriga soltou um breve suspiro de alívio e se aproximou de me saudar.
- Não está muito bem –murmurou, movendo a cabeça- . Não há dito uma palavra, não verteu uma lágrima.
A tez da Fedra tinha empalidecido, e seu olhar estava fixo na parede nua, que havia mais à frente do vão da porta.
- Sinto-o muito –lhe disse em voz baixa, ao tempo que apoiava uma mão em seu ombro- . O doutor Fentiman a atendeu e fez tudo o que pôde.
Não houve resposta. Respirava, mas isso era tudo.
Mordi-me a cara interior do lábio, em busca de algo ou alguém que pudesse consolá-la.
- O padre –me ocorreu súbitamente- . Você gostaria que o pai LeClerc… benzera o corpo de sua mãe?
Um leve estremecimento percorreu o ombro sob minha mão. A bela cara imóvel girou para mim os olhos opacos.
- Do que servirá? –sussurrou.
- Pois… bom… - Procurei às cegas uma resposta, mas ela já havia tornado a fixar a vista em uma mancha da mesa.
Ao final, dava-lhe uma pequena dose de láudano para que dormisse e indiquei a Teresa que a deitasse no cama de armar onde dormia normalmente, no vestidor da Yocasta.
Abri a porta do vestidor para ver como estava, e me tranqüilizou ouvir sua respiração lenta e profunda. Bree, que me tinha seguido, olhou por cima de meu ombro, e lhe indiquei com um gesto que tudo estava bem.
Brianna se deteve ante a porta do boudoir e girou súbitamente para mim para me abraçar com ferocidade. Na habitação iluminada, Jemmy a sentiu falta de e começou a chiar.
- Mamãe! MA! Ma-má!
Esgotada, dirigi-me para a escada que levava a segundo piso. O dormitório estava deserto, com os colchões ao ar e o lar limpo; as janelas tinham sido abertas para ventilar a habitação. O ambiente estava frio, mas em paz. Meu manto seguia pendurado no guarda-roupa. Deitei-me sobre a capa do colchão, coberta com o manto, e dormi imediatamente.
Despertei justo antes do ocaso, faminta e aliviada porque o aroma de sangue e flores tinha dado passo ao aroma do sabão e linho esquentado pelo corpo.
De repente, Jamie abriu a porta e me sorriu. Estava barbeado e penteado, com roupa limpa e claros os olhos; parecia ter apagado qualquer rastro da noite anterior.
- Por fim acordada. dormiste bem, Sassenach?
- Como os mortos –respondi, e ao dizê-lo senti um tombo em meu interior. Ele o viu refletido em minha cara e vinho a sentar-se a meu lado.
- O que acontece? tiveste algum mau sonho, Sassenach?
- Não acredito –respondi. Entretanto, minha mente parecia ter seguido funcionando nas sombras da inconsciência, tomando notas e extraindo deduções.
- Essa mulher, Betty… Já a sepultaram?
- Não. Lavaram o corpo e o puseram em um dos abrigos. Yocasta preferiu deixar o enterro para amanhã, por não afligir aos convidados. Alguns ficarão uma noite mais. –Observou-me com o sobrecenho franzido- . por que?
- Há algo mau. Refiro a sua morte.
- Mau… em que sentido? –Arqueou uma sobrancelha- . Foi uma morte horrível, sem dúvida, mas não refere a isso, verdade?
- Não. Acredito que alguém a matou.
- Quem? –perguntou ao fim- . Está segura, Sassenach?
- Não tenho nem idéia. E não posso estar do todo segura, mas… - Vacilei. Ele me estreitou uma mão, para me respirar- . Vi morrer a muchísima gente e por todo tipo de causas. Não posso expressar em palavras do que se trata, mas sei… acredito… que há algo mau –concluí, sem muita convicção.
- Compreendo –disse ele, pelo baixo- . Mas não tem maneira de assegurá-lo, verdade?
- Há uma maneira –disse.
O lugar onde tinham posto o cadáver estava muito longe da casa; era um pequeno abrigo para ferramentas, edificado junto ao pomar. Jamie me apoiou uma mão nas costas.
- Está bem, Sassenach? –sussurrou.
- Sim. –Agarrei-me de sua mão livre para me reconfortar.
Embora exteriormente Jamie parecesse tão inteiro como sempre tampouco estava tranqüilo. Por ser celta e católico, acreditava firmemente em um mundo invisível que se estendia além da dissolução do corpo. Nisso estava implícita a crença nos tannasgreach (os espíritos) e não desejava encontrar-se com eles. Não obstante, posto que eu estava decidida, ele se enfrentaria por mim com o outro mundo; estreitou-me a mão com força, sem soltá-la, e respondi de igual modo, agradecida por sua presença.
- Uma coisa é ver morrer a um homem golpes de tocha no campo de batalha –me havia dito antes, enquanto discutíamos- . Isso é parte da guerra, algo honorável, por cruel que pareça. Mas agarrar uma faca e trinchar a sangue frio a uma pobre inocente como essa… - Olhou-me com os olhos sombrios, afligidos- . Está segura de que é necessário, Claire?
- Estou segura –havia dito eu, inspecionando o conteúdo do saco. Um grande cilindro de ataduras de algodão para absorver os fluidos, frascos pequenos para amostras de órgãos, o maior de meus serrotes para osso, um par de escalpelos… A coleção era sinistra, em realidade. Envolvi as grandes tesouras em uma toalha, e as pus na bolsa. Logo medi cuidadosamente minhas palavras.
- Olhe –disse ao fim, olhando-o aos olhos- . Aqui há algo mau, estou segura. E se alguém assassinou a Betty, temos a obrigação de averiguar o que aconteceu. Se alguém te assassinasse, não quereria que se fizesse todo o possível para demonstrá-lo? para… te vingar?
Calou durante um comprido instante; olhava-me com os olhos entreabridos, pensativo. Logo se relaxou.
- Sim, é certo –disse, e começou a envolver o serrote com tecido.
Não havia tornado a protestar nem a me perguntar se estava segura. limitou-se a dizer, com firmeza, que se eu estava decidida ele me acompanharia. Isso foi tudo.
- Não tem por que fazê-lo, Claire. –Jamie me apertou a mão- . Não por isso pensarei que é covarde.
- Mas eu sim –disse. Ele assentiu com a cabeça. Não havia mais que discutir; soltou-me a mão e se adiantou para abrir o portão.
Olhei a meu redor; logo, de novo à casa. Apesar de ser tão tarde ainda ardiam as velas no salão posterior, onde se prolongava uma partida de naipes. Os pisos superiores estavam às escuras, salvo a janela de yocasta.
- Sua tia vela até tarde –sussurrei ao Jamie.
Ele se voltou a olhar.
- Não, é Duncan –corrigiu- . Minha tia não necessita luz.
- Pode que lhe esteja lendo na cama –sugeri, tratando de aliviar a solenidade de nossa missão.
Jamie respondeu com um pequeno bufido zombador, e o opressivo da atmosfera se aliviou um pouco. Elevou o fecho e empurrou o portão, deixando ver detrás um quadro completamente negro. Quando atravessei a soleira, senti-me como Perséfone ao entrar no inferno. Jamie entreabriu a porta e me entregou o abajur.
Foi quase um alívio entrar ali, onde o ar estava imóvel. Tinham posto a difunta em uma tabela sobre dois cavaletes, já lavada e envolta em um sudário de musselina. A seu lado vi uma pequena fogaça de pão e uma taça de brandy; sobre o sudário, em cima do coração, um ramalhete de ervas secas, pulcramente atadas. Ao as ver Jamie se fez o sinal da cruz, me olhando com ar quase acusador.
- É má sorte tocar coisas de uma tumba.
- Só se as rouba –lhe assegurei em voz baixa, mas eu também me fiz o sinal da cruz antes de agarrar os objetos para pô-los em um rincão do abrigo- . Quando acabar os colocarei em seu sítio.
Com um de meus escalpelos, cortei cuidadosamente a costura do sudário. Havia trazido uma agulha forte e fio encerado para costurar a cavidade do corpo; com um pouco de sorte poderia reparar também o sudário, de modo que ninguém se precavesse do que tinha feito.
A cara estava quase irreconhecível; as bochechas redondas tinham ficado frouxas e afundadas; o suave brilho da negra pele estava reduzido a um cinza cinzento; os lábios e as orelhas tinham um tintura lívido. Isso me facilitou as coisas; obviamente, isso era só uma casca, não a mulher que eu tinha conhecido.
Jamie se limitou a sustentar o abajur em alto, para que eu pudesse trabalhar. A luz projetava sua sombra contra o muro do abrigo, gigantesca e fantasmagórica. Apartei a vista dela para concentrá-la em meu trabalho.
- Não tem por que olhar, Jamie –assinalei, enquanto me apartava um momento para me secar a frente com a boneca- . Na parede há um prego. Se quer sair um momento, pendura o abajur ali.
- Estou bem, Sassenach. O que é isso? –inclinou-se para diante, assinalando com cautela. Sua expressão intranqüila tinha cedido passo a outra de interesse.
- A traquéia e os brônquios –expliquei, seguindo com o dedo os grácis anéis de cartilagem- , e uma parte de pulmão. Se se sentir bem, pode aproximar um pouco a luz?
E procedi a cortar o lóbulo superior do pulmão direito.
- me dê um pouco mais de algodão, quer?
Alguma mancha de sangue no sudário não preocuparia a ninguém, pelo espetacular que tinha sido seu falecimento, mas não queria despertar tanta suspeita como para que alguém olhasse dentro.
Ao me inclinar para agarrar o algodão apoiei uma mão em um flanco do cadáver, e o corpo emitiu uma queixa. Jamie deu um salto atrás, sobressaltado. Eu também tinha dado um coice, mas me repus imediatamente.
- Não é nada –disse, embora tinha o coração acelerado e o suor da cara me tinha esfriado súbitamente- . Só um pouco de gás apanhado. Os cadáveres revistam emitir ruídos estranhos.
- Sim. –Jamie tragou saliva- . Sim, vi-o freqüentemente. Mas te agarra por surpresa, verdade? –Sorriu pela metade, com a frente coberta por uma pátina de suor.
Como não dispunha de luvas, tinha as mãos ensangüentadas até a boneca; os órgãos e as membranas apresentavam uma desagradável viscosidade, produto da decomposição. Pus uma mão sob o coração para levantá-lo para a luz, procurando manchas na superfície ou rupturas visíveis nos grandes copos.
Continuando, desprendi o esôfago e o cortei ao longo. Logo dava a volta à malha. No extremo inferior se notava um pouco de irritação e um pouco de sangue, mas não havia sinais de ruptura nem de hemorragia. Inclinei-me para olhar dentro da cavidade faríngea, mas não havia luz suficiente para ver grande coisa. Então, dirigi meus exames para o outro extremo: deslizei uma mão sob o estômago para retirá-lo.
Imediatamente se agudizó a sensação de maldade que tinha experiente de um princípio. Se havia algo mau ali, esse era o lugar onde haveria mais possibilidades de achar as evidências.
No estômago não haveria comida; depois de tanto vômito, isso não era estranho. Não obstante, quando cortei a grosa parede muscular surgiu um penetrante aroma de ipecacuana, que se impôs ao fedor do cadáver.
- O que? –Ante minha exclamação Jamie se inclinou para diante, carrancudo.
- Ipecacuana. Esse médico ruim a medicou com ipecacuana… e o fez não faz muito! Cheira-a?
Embora com uma careta de asco, aspirou cautelosamente e assentiu.
- não é o que corresponde fazer quando há espasmos no estômago? Você deu ao Beckie MacLeod quando bebeu de seu líquido azul.
- É certo. –Beckie, de cinco anos, tinha bebido meio frasco de uma cocção que eu tinha preparado para envenenar ratos- . Mas o fiz imediatamente. Dar-lhe depois, quando o veneno ou o irritante já saiu que estômago, não tem sentido.
Podia Fentiman saber isso, com os conhecimentos médicos de sua época? Provavelmente havia tornado a medicá-la com ipecacuana porque não lhe ocorria outra coisa. Voltei para a grosa parede do estômago. Essa era a fonte da hemorragia, sim: a parede interior estava áspera e de cor vermelha escura, como carne picada. Havia ali uma pequena quantidade de líquido: linfa clara, que começava a separar-se do sangue coagulado.
- Crie que pôde ser a ipecacuana o que a matou?
- Agora não estou segura –murmurei, pinçando com cuidado.
Se Fentiman lhe tinha dado a Betty uma forte dose de ipecacuana, os vômitos violentos podiam ter causado uma ruptura interna, com a conseguinte hemorragia; mas não aparecia nenhuma evidência disso. Utilizei o escalpelo para abrir o estômago um pouco mais, apartar os borde e abrir o duodeno.
- Pode me dar um desses frascos vazios? E a garrafa de lavagem, por favor.
Jamie pendurou o abajur do prego e se ajoelhou para rebuscar em minha bolsa, enquanto eu pinçava no estômago. Nas retiradas havia material granuloso que formava um resíduo pálido. Ao raspá-lo, descobri que se desprendia com facilidade, me deixando uma massa densa e arenosa na ponta dos dedos. Eu não sabia que era, mas no fundo de minha mente se ia formando uma suspeita desagradável. Tinha que lavar o estômago, recolher esse resíduo e levá-lo a casa, onde poderia examiná-lo, quando chegasse a manhã. Se era o que eu pensava…
Sem prévio aviso, a porta do abrigo se abriu de par em par e pude ver a cara do Phillip Wylie, pálido e espantado, no marco da porta.
Olhou-me, boquiaberto, e tragou saliva; o ruído me chegou com claridade. depois de percorrer a cena com a vista, seus olhos voltaram para minha cara convertidos em largos lagos de horror.
Eu também estava horrorizada. O que aconteceria se ele alvoroçava? Seria um escândalo terrível, embora eu pudesse explicar o que estava fazendo. E se não podia… Em uma ocasião tinha estado a ponto de que me queimassem por bruxaria; com uma bastava.
depois de tragar saliva, disse o primeiro que me veio à mente.
- boa noite.
passou-se a língua pelos lábios. Não se tinha posto seus pós de arroz, mas estava tão pálido como um recorte de musselina.
- Senhora… Fraser –disse- . Eu… né… o que é o que faz?
Em minha opinião, isso devia ser bastante óbvio; presumivelmente, sua pergunta se referia aos motivos pelos que o fazia. E eu não tinha intenções de aprofundar no tema.
- Isso não é de sua incumbência –disse secamente, recuperando um pouco o valor- . O que faz você aqui a estas horas da noite?
Pelo visto era uma boa pergunta; sua cara passou do horror à cautela. Sua cabeça se moveu como se queria olhar por cima do ombro, mas deteve o movimento antes de completá-lo. Mesmo assim, meus olhos seguiram a direção do gesto. detrás dele havia um homem alto, que agora se adiantava, pálido o rosto, sardônicos os olhos verdes. Stephen Bonnet.
- Por todos os Santos do inferno! –exclamei.
Jamie saiu de debaixo da mesa como uma cobra ao ataque, Phillip Wylie se separou da porta com um grito e o abajur caiu ao chão. Houve um forte aroma de azeite e brandy derramados, um suave vaio de chama ao acender-se, e o sudário cansado a meus pés começou a arder.
Jamie tinha desaparecido; fora se ouviam gritos e um ruído de pés que corriam sobre o pavimento. Pisoteei o tecido em chamas, com intenção de apagá-la.
Logo o pensei melhor. Tinha que sair dali. Recolhi minha bolsa e fugi na noite, com as mãos vermelhas e o punho ainda apertado em torno da evidência. Não sabia que acontecia nem o que poderia acontecer a seguir, mas tinha a certeza de não me haver equivocado. Betty tinha sido assassinada.
Ninguém tinha saído ainda da casa principal, mas os gritos e as chamas não demorariam para chamar a atenção. O aroma de queimado era forte; sem dúvida pensavam que o estábulo ardia ou estava a ponto de incendiar-se.
e se resgatavam do abrigo o profanado cadáver da Betty? Não saberiam quem era o responsável, mas o descobrimento causaria uma terrível indignação, com os conseqüentes rumores e histeria pública.
detrás de mim estalou um gemido agudo; devido ao sobressalto, golpeei-me o cotovelo contra as pedras. Fedra tinha cruzado o portão, seguida pelo Gussie e outra pulseira. Corria através do pomar, gritando “ Mamãe” , enquanto sua camisa branca refletia a luz das chamas que já abriam buracos no teto do abrigo.
Invadiu-me uma horrível sensação de culpa. Sua voz, tão parecida com a do Bree, fez que imaginasse o que haveria sentido minha filha se tivesse sido meu corpo o que se queimava no abrigo. Mas Fedra teria podido sentir coisas piores se eu não tivesse provocado o incêndio. Apesar dos nervos, procurei a bolsa que tinha deixado cair a meus pés.
Revolvi no saco até encontrar um frasco abafado, que normalmente usava para guardar sanguessugas, e a pequena garrafa de lavagem, com álcool diluído em água. Não via nada, mas senti que o sangue se quebrava, desprendendo-se em escamas, ao abrir os dedos duros para depositar cautelosamente no jarro o conteúdo de minha mão. Os dedos me tremiam tanto que não podia sujeitar a cortiça da garrafa; por fim o arranquei com os dentes e verti o álcool sobre a palma aberta, de modo que os restos desse resíduo granuloso caíssem ao recipiente.
Por então o alarme tinha chegado à casa; ouviam-se vozes que provinham dali. O que acontecia? onde estava Jamie? e Bonnet e Phillip Wylie? Meu marido não tinha mais arma que uma garrafa de água bendita, e os outros? Ao menos não se ouviram disparos… mas as adagas não fazem ruído.
Havia gente que corria de um lado a outro do pomar, sombras fugazes ao longo dos caminhos, a poucos passos de meu esconderijo. de repente uma das figuras gritou e recebeu a resposta de outra. Zumbiam-me os ouvidos.
“ Não seja idiota –me disse- . Está ao bordo do desmaio. Sente-se!”
Uma vez reposta, saí ao atalho escuro com a bolsa na mão. A primeira pessoa a que vi foi ao maior MacDonald; de pé no caminho, contemplava o incêndio do abrigo. Aferrei-o por um braço, lhe provocando um sobressalto.
- O que acontece? –disse-lhe, sem me incomodar em pedir desculpas.
- Onde está seu marido? –perguntou ele simultaneamente, procurando o Jamie com a vista.
- Não sei. –Infelizmente, era muito certo- . Eu também o estou procurando.
- Senhora Fraser! Está você bem, querida? –Lloyd Stanhope surgiu junto a mim.
- Ouvi que gritavam “ Fogo!” e pensei que podia haver algum ferido –expliquei com serenidade, mostrando a bolsa- . trouxe minha equipe médica. Sabe você se todos estiverem bem?
- Até onde posso… - começou MacDonald, mas imediatamente salto para trás, alarmado, me arrastando por um braço. A coberta cedeu com um ruído profundo e as faíscas se elevaram a grande altura para cair logo entre a multidão reunida no pomar.
Todo mundo retrocedeu entre gritos afogados. Logo se fez uma dessas pausas breves e inexplicáveis, em que todos os membros de uma multidão ficavam mudos ao mesmo tempo. O abrigo ainda ardia, com um ruído de papel enrugado, mas por cima dele se ouvia uma voz que gritava ao longe. Era uma voz de mulher, aguda e quebrada, mas potente e plena de fúria.
- A senhora Cameron! –exclamou Stanhope.
Mas o major já ia para a casa a tudo correr.
Encontramos a Yocasta no assento junto a sua janela; estava em camisola, maça de pés e mãos com tiras de lençol e completamente escarlate de ira. Duncan Innes, sem outra roupa que a camisa de dormir, jazia de bruces no chão, perto do lar.
Corri a me ajoelhar a seu lado para procurar o pulso.
- morreu? –O major olhava por cima de meu ombro, com mais curiosidade que simpatia.
- Não. Tire toda esta gente daqui, por favor.
A quarto estava lotada de hóspedes e serventes, que rodeavam a Yocasta entre especulações, comentários e protestos. O major piscou ante o peremptório de meu tom, mas não perdeu tempo em discutir a situação.
Meu exame superficial do Duncan só revelou um grande galo detrás de uma orelha. Ao parecer o tinham golpeado com um candelabro de prata, que jazia a seu lado no chão. Tinha muito má cor, mas seu pulso era firme e sua respiração, rítmica.
Yocasta foi muito mais efetiva. Uma vez liberada de suas ataduras, cruzou a tropicões a habitação, dividindo a multidão como se fora o Mar Vermelho.
- Duncan! Onde está meu marido? –inquiriu, girando a cabeça de lado a lado, ferozes os olhos cegos. A gente se apartava ante ela; em poucos segundos esteve a meu lado.
- Quem está aqui? –sua mão descreveu um arco ante ela em busca de orientação.
- Sou eu… Claire. –Agarrei-lhe a mão para guiá-la até mim. Seus dedos estavam gelados e tremiam; as ligaduras lhe tinham deixado profundas marcas vermelhas nas bonecas- . Não se preocupe; acredito que Duncan está bem.
Estendeu uma mão para comprová-lo por si mesmo; eu lhe guiei os dedos até o pescoço e os apoiei na veia grande que via palpitar a um flanco. Ela se inclinou para diante, com uma pequena exclamação, e apalpou suas facções com ternura.
- Golpearam-no. Está ferido gravemente?
- Acredito que não –lhe assegurei- . Só tem um galo na cabeça.
- Está segura? Cheiro a sangue.
Foi uma desagradável surpresa descobrir que ainda ficavam bordem de sangre seca nas unhas, restos da autópsia improvisada.
- Acredito que sou eu –murmurei discretamente- ; a regra.
Na porta se produziu um pequeno revôo. Ao me voltar descobri, com intenso alívio, que era Jamie. Sua expressão se endureceu ao ver o Duncan. Fincou um joelho meu lado.
- Está bem –disse, sem lhe dar tempo a perguntar- . Alguém lhe golpeou na cabeça e atou a sua tia.
- Sim? Quem? –Depois de jogar uma olhada a Yocasta, apoiou uma mão no peito do Duncan, para assegurar-se de que de verdade respirava.
- Não tenho a mais remota idéia –respondi secamente- . Do contrário já teria mandado aos homens atrás desses criminais.
- ninguém viu a esses vadios? –perguntou Yocasta.
- Acredito que não, tia –respondeu Jamie, com calma- . Com semelhante hervidero na casa ninguém sabe o que procurar.
O que tinha querido dizer? Acaso Bonnet tinha escapado? Pois sem dúvida era ele quem tinha invadido a quarto da Yocasta; era impossível que houvesse vários criminosos em operação ao mesmo tempo, em um lugar como aquele.
Jamie moveu apenas a cabeça. Ao ver o sangue sob minhas unhas, arqueou uma sobrancelha. tinha descoberto algo, tinha já a certeza? Assenti com a cabeça, percorrida por um ligeiro calafrio. “ Assassinada” , modulei com os lábios.
O major fechou a porta com firmeza e se aproximou de nós.
- Levamo-lo a cama?
Duncan começava a mover-se; tossia um pouco, mas felizmente não vomitou. Jamie e o maior MacDonald o levantaram, e o tenderam na grande cama de dossel.
- Está reposta, tia? –perguntou Jamie.
Ela elevou uma sobrancelha em sardônica resposta.
- Com uma taça estarei melhor –disse, aceitando a taça que Ulises lhe punha nas mãos- . Mas sim, sobrinho, estou bastante bem. Duncan…?
Eu estava sentada na cama, junto a ele, com sua boneca entre os dedos. Senti-o subir para a superfície da consciência; suas pálpebras se estremeceram e esticou um pouco os dedos contra minha palma.
- Está reagindo –lhe assegurei.
- lhe dê brandy, Ulises –ordenou Yocasta.
- Ainda não –disse eu- . Engasgaria-se.
- Sente-se em condições de nos contar o que aconteceu, tia? –perguntou Jamie, com certa dureza na voz- . ou devemos esperar a que o faça Duncan?
Yocasta fechou um instante os olhos, suspirando. Tinha a habilidade de todos os MacKenzie para ocultar o que pensava, mas neste caso era evidente que pensava a toda velocidade. A ponta de sua língua foi tocar um ponto irritado na comissura da boca. Então compreendi que deviam havê-la amordaçado.
Fora se ouviam murmúrios no corredor; não todos os hóspedes se dispersaram. Captei frases apagadas:” … completamente queimado, não ficaram a não ser os ossos” , “ …roubado? Não sei…” , “ …revisar os estábulos” , “ Sim, consumido por completo…” . Percorrida por um intenso calafrio, apertei com força a mão do Duncan, lutando contra um pânico que não compreendia. Minha expressão deveu ser estranha, pois Bree disse, suave:
- Mamãe? –Olhava-me com a frente enrugada de preocupação.
Jamie apoiou em meus ombros as mãos grandes e quentes. O maior MacDonald me olhou com curiosidade, mas imediatamente desviou a atenção para a Yocasta, que girou a cabeça nessa direção.
- O maior MacDonald, verdade?
- Para servi-la, senhora. –O homem lhe fez automaticamente uma reverência, esquecendo que ela não podia vê-lo.
- Agradeço-lhe seus amáveis serviços, maior. Meu marido e eu estamos em dívida com você.
MacDonald respondeu com um murmúrio cortês.
- Não, não –insistiu ela, erguendo as costas- . Tomou-se você muitas moléstias por nós. Não devemos abusar mais de sua amabilidade. Ulises, acompanha à major ao salão e te ocupe de lhe servir um bom refrigério.
O mordomo se inclinou e conduziu à major para a porta.
Meu pânico começava a desaparecer e pude centrar a atenção em meu paciente, que já tinha aberto os olhos, e olhava ao Jamie.
- MAC Dubh,o que aconteceu?
Jamie retirou uma mão de meu ombro para lhe estreitar o braço.
- Não se preocupe, a charaid. –Desviou um olhar significativo para a Yocasta- . Sua esposa vai contar nos o que foi o que aconteceu. Verdade, tia?
Yocasta franziu os lábios, mas logo suspirou, resignada à ingrata e necessária confidência.
- não há ninguém aqui que não seja da família?
Quando lhe asseguramos que assim era, começou.
Tinha despedido de sua donzela e estava a ponto de retirar-se, disse, quando a porta que dava ao corredor se abriu súbitamente, dando passo a dois homens, conforme lhe pareceu.
- Estou segura de que havia mais de um. Ouvi os passos e a respiração –disse, franzindo o sobrecenho para concentrar-se- . Possivelmente fossem três, mas não acredito. Só falava um. O outro devia ser alguém a quem conheço pois se manteve a distância, como se temesse que eu pudesse reconhecê-lo.
O homem que falava lhe era desconhecido. Ela estava segura de não ter ouvido antes aquela voz.
- Era irlandês –disse. A mão do Jamie se esticou contra meu ombro- . Expressava-se bem, mas não era um cavalheiro.
- Não, é claro que sim –murmurou Jamie.
Bree tinha dado um ligeiro coice ante a palavra “ irlandês” , embora só havia uma pequena ruga de concentração em sua frente.
- O homem era cortês, mas direto em suas exigências. Queria o ouro.
- Ouro? –foi Duncan quem falou, mas a pergunta era evidente em todas as caras- . Que ouro? Não há oro na casa, além de umas quantas libras esterlinas e algum dinheiro da Proclamação.
Yocasta apertou os lábios, mas já não havia remédio.
- O ouro do francês –disse abruptamente.
- O que? –Duncan, atônito, tocou-se o galo que tinha detrás da orelha, como se acreditasse que lhe tinha afetado ao ouvido.
- O ouro do francês –repetiu Yocasta, irritada- . que enviaram justo antes do Culloden.
- antes de… - começou Bree, com os olhos dilatados. Mas Jamie a interrompeu.
- O ouro do Luis –disse- . A isso refere, tia? O ouro dos Estuardo?
Yocasta deixou escapar um risada breve, sem nenhuma fumaças.
- Alguma vez foi.
E mandou ao Bree a procurar o estojo que no dia anterior lhe tinha mostrado. Quando retornou, depositou-o em seu regaço. Yocasta esvaziou sua taça, deixou-a com um golpe seco e abriu o estojo. Dentro surgiu um brilho de ouro e diamantes. Ela retirou uma varinha de madeira com três anéis.
- Faz tempo tinha três filhas –começou- . Três mulheres. Clementina, Seonag e Morna. –Tocou um dos anéis: uma banda larga com três grandes diamantes- . Isto era para minhas meninas. Hector me deu isso ao nascer Morna, que era dela. Morna… sabem que significa “ amada” ?
Estendeu a outra mão, procurando provas, e tocou a bochecha do Bree, que a encerrou entre as suas.
- De cada um de meus matrimônios sobreviveu uma menina. –Os dedos da Yocasta tocavam delicadamente os anéis- . Clementina era filha do John Cameron, com quem me casei quando eu era pouco mais que uma criatura. Iluminei-a aos dezesseis anos. Seonag era filha do Hugh, o Negro: moréia como seu pai, mas com os olhos de meu irmão Colum. E logo Morna, a menor. Quando morreu tinha apenas dezesseis anos.
Sua expressão era triste, mas a linha de sua boca se suavizou ao pronunciar os nomes de suas três filhas desaparecidas.
- Este me deu isso Hector Cameron –disse Yocasta tocando a banda dos três diamantes- . E ele as matou a todas. Matou-as pelo ouro do francês.
A horrível surpresa me deixou sem fôlego, com um oco no estômago. Senti que Jamie ficava muito quieto a minhas costas; dilataram-se os olhos avermelhados do Duncan. Brianna, sem trocar de expressão, fechou os olhos durante um momento, mas reteve aquela mão larga e ossuda.
- O que foi delas, tia? –perguntou, sem elevar a voz- . Me conte.
Para minha surpresa, quando voltou a falar não se dirigiu a Brianna, a não ser ao Jamie.
- Você sabe o do ouro, verdade, a mhic mo pheathar? –disse.
- ouvi falar disso –respondeu com calma; depois se sentou a meu lado, mais perto de sua tia- . É um rumor que circulava pelas Terras Altas desde o do Culloden. dizia-se que Luis enviaria ouro para ajudar a sua primo naquela luta. Depois disseram que o ouro tinha chegado, mas ninguém o viu.
- Eu o vi. –A larga boca da Yocasta, tão parecida com a de seu sobrinho, alargou-se ainda mais- . Eu o vi, Trinta mil libras em lingotes de ouro. Eu estava com eles a noite em que o desembarcaram a remo do navio francês. Vinha em seis cofres, tão pesados que o bote só podia trazer os de dois em dois; do contrário se teria fundo. Cada cofre tinha a flor de lis esculpida na coberta; cada um estava fechado com bandas de ferro e um cadeado; cada cadeado, selado com lacre vermelho, e o lacre luzia o selo do anel do rei Luis: a flor de lis.
Essas palavras fizeram correr um suspiro coletivo de sobressaltado respeito. Yocasta assentiu lentamente.
- Onde o desembarcaram, tia? –perguntou Jamie pelo baixo.
Ela movia a cabeça com lentidão, como assentindo para si mesmo, com os olhos cravados na cena que a lembrança lhe pintava.
- No Innismaraich. Uma pequena ilha frente a Coigach.
Olhei ao Jamie aos olhos: Innismaraich significava “ Ilha do Povo de Mar” ; quer dizer, a ilha das focas. Conhecíamo-la.
- Ali estavam os três homens aos que lhes confiou –disse Yocasta- . Um deles era Hector; outro meu irmão Dougal; o terceiro estava mascarado. Os três tinham máscara, mas eu conhecia o Hector e ao Dougal. Ao terceiro homem não o conhecia e nenhum deles pronunciou seu nome. Não obstante reconheci a seu servente; chamava-se Duncan Kerr.
Jamie se tinha posto algo rígido para ouvir o nome do Dougal; ante o do Duncan Kerr ficou petrificado.
- Havia também serventes? –perguntou.
- Dois –confirmou sua tia, com um sorriso amargo- . O mascarado trouxe para o Duncan Kerr, como hei dito; meu irmão dougal, a um homem do Leoch. Eu o conhecia de vista, mas não por seu nome. Hector contava comigo para que o ajudasse. Eu era uma mulher forte, como você, a leannan –acrescentou brandamente, estreitando a mão da Brianna- . Era forte e Hector confiava em mim como em ninguém. Eu também confiava nele…, por então.
O fantasma de um sorriso tocou de melancolia os lábios do Jamie. Olhou primeiro a Brianna e logo, de novo, a mim.
- Foi em março –disse Yocasta- . Uma noite glacial, mas clara como o gelo. De pé no escarpado, contemplei o mar e o atalho que a lua tendia sobre a água, como de ouro. A nave chegou navegando por esse caminho de ouro, como um rei a sua coroação, e pensei que era um sinal.
Girou a cabeça para o Jamie, torcendo abruptamente a boca.
- Na verdade me pareceu ouvir que ele ria –disse- . Brian, o negro. que me separou de minha irmã. Não teria sido estranho nele. Mas não estava ali.
Eu observava ao Jamie. Não se movia, mas o cabelo avermelhado de seus antebraços se arrepiou.
- Ignorava que tivesse conhecido a meu pai –disse, com voz algo dura- . Mas deixemos isso por agora, tia. Diz que foi em março.
Ela assentiu.
- Muito tarde. Deveu chegar dois meses antes, disse Hector. Houve atrasos…
Em realidade muitos atrasos. Em janeiro, depois da vitória do Falkirk, essa mostra do respaldo da França poderia ter sido decisiva. Mas em março o exército das Terras Altas se retirava para o norte, rechaçada no Derby sua invasão a Inglaterra. Os homens do Carlos Estuardo partiam para sua destruição ao Culloden.
Com os cofres em terra e a salvo, os novos custódios do ouro conferenciaram para decidir o que se faria com o tesouro. O exército estava em movimento e Estuardo com ele. Edimburgo tinha voltado para mãos dos ingleses. Não havia lugar seguro aonde levá-lo, mãos confiáveis nas que o pudesse entregar.
- Eles não confiavam em Ou’Sullivan nem nos outros que rodeavam ao príncipe –explicou Yocasta- . Irlandeses, italianos… Dougal disse que não se tomou tantas moléstias só para que o ouro fora roubado ou dilapidado por estrangeiros. Quer dizer: não queria perder o mérito de havê-lo obtido.
Por fim se dividiu o ouro; cada homem agarrou dois dos cofres e fez um juramento de sangue: guardar o segredo e conservar o tesouro com fidelidade em nome de seu monarca legítimo, o rei Jacobo.
- Também tomaram juramento aos dois serventes –disse Yocasta- . Fizeram-lhes um corte; à luz das velas, as gotas de sangue eram mais vermelhos que o lacre dos cofres.
Os conspiradores, nervosos pela posse de tanta riqueza, partiram antes do amanhecer, com os cofres envoltos em mantas e farrapos.
- Quando baixávamos o último dos cofres, chegaram um par de viajantes. Foi isso o que salvou a vida ao hospedeiro, pois era um lugar solitário e a era a única testemunha de nossa presença ali. Acredito que Dougal e Hector não teriam pensado assim; mas o terceiro homem se propunha eliminá-lo; li-o em seus olhos, na posição de seu corpo enquanto esperava, ao pé da escada, com a mão na adaga. Ele viu que eu o observava e me sorriu sob a máscara.
- alguma vez se tirou a máscara? –inquiriu Jamie.
Yocasta negou com a cabeça.
- Não. de vez em quando, ao recordar aquela noite, perguntava-me se o reconheceria em caso de vê-lo novamente. Parecia-me que sim; era moreno e magro, mas forte como uma faca. Se visse outra vez esses olhos, sem dúvida. Mas agora… Não sei se poderia reconhecê-lo só pela voz.
- Mas está segura de que não era irlandês? –Duncan escutava absorto, incorporado sobre um cotovelo.
- Ah! Não, a dhuine. Por sua maneira de falar era escocês. Um cavalheiro das Terras Altas.
Jamie e seu amigo intercambiaram um olhar.
- um dos MacKenzie ou dos Cameron? –sugeriu Duncan, em voz fica.
- Ou um dos Grant, possivelmente –disse Jamie.
Eu entendi essas especulações. Entre os clãs das Terras Altas existia uma muito complexo série de associações e inimizades; eram muitos os que não teriam podido cooperar em uma empresa tão importante e secreta.
Os conspiradores se separaram, cada qual por seu caminho, com um terço do ouro do francês. Yocasta ignorava o que tinham feito com seus cofres Dougal e o desconhecido. Hector Cameron colocou os sua em um fossa aberto no chão de seu dormitório.
Sua intenção era deixá-lo ali até que o príncipe tivesse chegado a algum lugar seguro, onde pudesse receber o ouro e utilizá-lo para obter seus objetivos. Mas Carlos Estuardo já estava em fuga e durante muitos meses não acharia sítio onde descansar. E então se produziu o desastre.
- Hector abandonou a casa, o ouro e a mim para incorporar-se ao exército do príncipe. Retornou em dezessete de abril, ao ficar o sol. Ordenou-me que recolhesse as coisas de valor que tivesse à mão. A causa estava perdida, disse; devíamos fugir ou morrer com os Estuardo, mas Cameron era o bastante ardiloso para não levar em sua fuga os dois cofres do ouro francês.
- Retirou três barras de um cofre e me entregou isso para que os escondesse sob o assento do carro, enquanto ele e o palafrenero levavam o resto aos bosques; não vi onde os enterraram.
Em 18 de abril, a meio-dia, Hector Cameron subiu a sua carruagem com sua esposa, o palafrenero, sua filha Morna e três barras de ouro, e partiu a toda velocidade para o sul, rumo ao Edimburgo.
- Seonag estava casada com o Mestre do Garth, que tinha apoiado aos Estuardo: mataram-no no Culloden, embora então não sabíamos. Clementina já tinha enviuvado e vivia no Rovo, com sua irmã. Eu sabia aonde nos dirigíamos, mas ignorava que tivesse tudo tão disposto.
Os Cameron foram descobertos dois dias depois, perto do Ochtertyre.
- desprendeu-se uma roda da carruagem –disse Yocasta, com um suspiro- . Ainda a vejo girar sozinha caminho abaixo. quebrado-se o eixo. Não tivemos mais remedeio que acampar junto à estrada, enquanto Hector e a moço de quadra se apressavam a arrumá-lo.
As reparações requereram a maior parte do dia. O nervosismo do Hector piorou durante a tarefa e se contagiou ao resto do grupo.
- Por então eu ignorava o que tinha visto no Culloden –disse Yocasta- . Ele sabia que, se os ingleses o apanhavam tudo teria terminado. Se não o matavam no ato o enforcariam por traidor.
“ Quando puderam colocar novamente a roda no carro já começava a anoitecer; era primavera e obscurecia cedo. Quando chegávamos ao alto da colina, dois homens armados de mosquetes saíram à estrada de entre as sombras, diante de nós.
Eram soldados ingleses, homens do Cumberland. Ao vê-los, Hector se afundou em um rincão da carruagem, com a cabeça inclinada e coberta com um xale, fingindo ser uma velha profundamente dormida. Atenta às instruções que ele sussurrava, Yocasta apareceu pelo guichê, disposta a desempenhar o papel de dama respeitável que viajava com sua mãe e sua filha.
Os soldados não lhe deram tempo a pronunciar seu discurso. Um deles abriu violentamente a portinhola e a baixou a puxões. Morna, espavorida, saltou atrás dela e tentou apartá-la do soldado. Outro homem aferrou à menina e a arrastou para trás, interpondo-se entre a Yocasta e a carruagem.
- Em um minuto mais “ a avó” teria estado também em terra; então descobririam o ouro e tudo teria terminado para nós.
Um pistoletazo os surpreendeu a todos. Hector, aparecido na portinhola aberta, tinha disparado contra o soldado que sujeitava a Morna. Mas a luz do crepúsculo era escassa; possivelmente os cavalos se moveram, meneando a carruagem. O fato é que o disparo alcançou a Morna na cabeça.
- Corri para ela –disse Yocasta, com voz rouca- . Corri para ela, mas Hector desceu de um salto e me deteve. Os soldados estavam abobalhados. Ele me arrastou para o carro e gritou à moço de quadra: “ Adiante, adiante!”
umedeceu-se os lábios com a língua e tragou saliva.
- “ morreu” , disse-me, uma e outra vez. “ morreu, não pode fazer nada. “ E me sujeitou com força para impedir que, arrojasse-me da carruagem.
“ Assim Hector salvou sua própria vida… e a minha, por isso valesse então –continuou, ainda remota- . E o ouro, certamente.
Seus dedos procuraram novamente o anel e o fizeram girar lentamente em sua varinha; as pedras cintilaram sob a luz do abajur.
- Certamente –murmurou Jamie.
Yocasta apartou os anéis e se levantou; a seguir se ajoelhou no assento junto à janela e apartou as cortinas. Pressionou as mãos contra o cristal sorvete da noite; uma branca bruma se estendeu em volto de seus dedos, como chama fria.
- Hector comprou esta plantação com o ouro que trouxemos –disse- . A terra, o moinho, os escravos. Se tiver que lhe fazer justiça –seu tom sugeria que não era essa sua inclinação- o que vale agora se deve em grande parte para seu próprio trabalho. Mas a comprou com esse ouro.
- e seu juramento? –perguntou Jamie, pelo baixo.
- Seu juramento? –Ela lançou uma risada breve- . Hector era prático. Os Estuardo estavam acabados. Para que necessitavam o ouro, lá na Itália?
- Prático –repeti.
- Prático, sim –assentiu- . Minhas filhas tinham morrido e ele não encontrava motivos para esbanjar lágrimas nelas. Jamais as mencionou; tampouco me permitia falar delas. Tinha sido homem endinheirado e voltaria a sê-lo. Não lhe teria sido tão fácil, se alguém o tivesse sabido. –Lançou um forte suspiro, carregado de ira contida- . Atreveria-me a dizer que, neste país, ninguém sabe que uma vez fui mãe.
- Ainda o é –assinalou Brianna, brandamente- . Isso sei.
Seus olhos azuis procuraram meus, escuros de compreensão. Senti a ardência das lágrimas detrás do sorriso com a que lhe respondi. Sim, ela sabia e eu também. E Yocasta; as linhas de sua cara se relaxaram, a nostalgia substituiu à fúria e à lembrança do desespero. aproximou-se lentamente a Brianna e lhe pôs a mão livre na cabeça. Logo os dedos largos e sensíveis se deslizaram para baixo, sondando os maçãs do rosto fortes, os lábios largos e largos e o nariz reta.
- Sim, a leannan –disse com suavidade- . Você sabe o que quero dizer. Compreende agora por que quero que tudo isto seja teu… ou de alguém de seu sangue?
Jamie interveio com uma posecilla antes de que Bree pudesse responder.
- Sim –disse, em tom prático- . E isso é o que lhe contou ao irlandês ontem à noite? Não tudo, sem dúvida, mas lhe há dito que não tem o ouro aqui?
Yocasta deixou cair as mãos e se voltou para ele.
- Sim. Disse-lhe que os cofres seguiam enterrados no bosque, lá em Escócia. Que fora a desenterrá-los e ficasse, se queria.
- e não aceitou sua palavra?
- Não era cavalheiro –repetiu- . Não sei como poderiam ter resultado as coisas; sempre tenho uma pequena adaga sob o travesseiro. Não teria tolerado que me pusesse impunemente as mãos em cima. Mas antes de que pudesse agarrar a adaga ouvi passos no vestidor.
Assinalou com um gesto a porta próxima ao lar; detrás estava seu vestidor, que unia seu dormitório com o que antes era do Hector Cameron e agora, presumivelmente, do Duncan.
Os intrusos também tinham ouvido os passos; o irlandês vaiou algo a seu amigo; logo se separou da Yocasta para o lar. Então o outro personagem se aproximou dela por detrás e lhe tampou a boca com uma mão.
- Só posso lhes dizer que o homem usava uma boina bem encasquetada e emprestava a licor, como se o tivesse vertido em cima em vez de bebê-lo. –Fez uma pequena careta de asco.
A porta se aberto, dando passo ao Duncan. Ao parecer, o irlandês saltou desde atrás da porta e o golpeou na cabeça.
- Não recordo nada –disse ele, melancólico- . Vim a lhe dar as boa noite a señ… a minha esposa. Lembrança que pus a mão no pomo da porta. Um momento depois estava tendido ali, com a cabeça partida. depois de tocar com cuidado o galo, olhou a Yocasta com ar preocupado- . Está bem, mo chridhe? Esses bodes não lhe maltrataram?
- Claro que estou bem –disse, procurando provas até encontrar a mão do Duncan- . Excetuando a inquietação de me acreditar viúva pela quarta vez. Logo o irlandês se aproximou de mim e a besta que me sujeitava me soltou.
O irlandês lhe tinha informado que não acreditava nem por um momento que o ouro tivesse ficado em Escócia. Tinha a segurança de que estava no River Run e, embora não se teria atrevido a maltratar a uma dama, não experimentava as mesmas inibições com respeito a seu marido.
- Disse que, se eu não lhes dizia onde estava, ele e seu companheiro começariam a cortar ao Duncan em trocitos, começando pelos dedos do pé para avançar para os ovos –disse Yocasta sem rodeios.
Duncan não tinha muito sangue na cara, mas a pouca que ali havia desapareceu para ouvir isso. Jamie apartou a vista dele, pigarreando.
- E você o creíste, suponho.
- Tinha uma boa faca; passou-me isso pela palma da mão, para me demonstrar que falava a sério.
- Pois bem, e logo…
- E logo os disse que o ouro estava enterrado sob o abrigo do pomar. –A seu rosto voltou brevemente a expressão satisfeita- . Pensei que ao encontrar o cadáver se desconcentrarían um pouco. Para quando tivessem reunido valor para cavar, eu podia ter achado uma maneira de escapar ou de dar o alarme… e assim foi.
depois de atá-la e amordaçá-la apressadamente, os homens saíram rumo ao abrigo, com a ameaça de retornar para reatar as operações se descobriam que tinha mentido. Mas não se esmeraram muito com a mordaça; ela não demorou para arrancar-lhe e gritar pedindo auxílio.
- Suponho que, ao ver o cadáver, a impressão lhes fez atirar o abajur, com o que incendiaram o abrigo. –Assentiu com lúgubre satisfação- . Pouco aprecio a pagar. Só lamento que não se queimaram também.
- Não crie que tenham podido iniciar o incêndio a propósito? –sugeriu Duncan- . para cobrir os sinais da escavação?
Yocasta descartou a idéia com um encolhimento de ombros.
- Com que fim? Ali não havia nada que pudessem encontrar, embora cavassem até a China.
Ao parecer, não havia nada mais que dizer ou fazer. Ulises entrou trazendo outro candelabro e uma bandeja com brandy e várias taças. O maior MacDonald reapareceu para informar que não tinham achado rastros dos malfeitores. depois de examinar ao Duncan e a Yocasta, deixei-os com o Bree e Ulises para que os deitassem.
Jamie e eu descendemos em silêncio. Ao pé da escada me voltei para ele. Estava pálido e gasto pela fadiga.
- Retornarão, verdade? –disse-lhe em voz baixa.
Ele assentiu com a cabeça. Logo me agarrou pelo cotovelo para me conduzir para a escada da cozinha.
Nessa época do ano ainda se utilizava a cozinha do porão. Jamie se deteve para um cortês diálogo com a cozinheira; com o que conseguiu, não só um bolo recém assado, mas também também uma grande jarra de café fumegante. Assim que se teve despedido, arrancou-me do tamborete no que eu me tinha deixado cair, e partimos outra vez, no vento frio da noite moribunda.
Caminhávamos serenamente, emano à mão, e às lembranças do dia anterior se sobrepunham os inquietantes aromas do sangue e o incêndio. Com cada passo, sentia-me como se estivesse a ponto de empurrar as portas de vaivém de algum hospital; logo me envolveriam o zumbir das luzes fluorescentes e o discreto aroma de remédio e cera para chãos.
- Falta de sonho –murmurei para meus adentros.
- Já haverá tempo para dormir, Sassenach –disse Jamie- . Antes temos uma ou duas coisas que fazer. –Trocou de mão o bolo envolto para me agarrar pelo cotovelo e impedir que a fadiga me fizesse cair de bruces.
Eu só tinha querido dizer que era a falta de sonho a que me causava a sensação de estar novamente em um hospital. Durante muitos anos, em minhas funções de interna, residente e mãe, tinha trabalhado longamente sem dormir; assim se aprende a funcionar bem pese ao cansaço absoluto.
A sensação de lúcido desapego me acompanhou mesmo que nos desviamos para os estábulos. Ele havia dito que tínhamos algo que fazer. Não acreditava que tivesse intenções de repetir as façanhas do dia anterior. Mas se pensava em um tipo de orgia mais tranqüila, com café e bolo, resultava estranho celebrá-la no estábulo e não na sala.
A porta lateral estava sem tranca; os aromas quentes do feno e os animais dormidos saíram ao encontro.
- Quem é? –disse uma voz fica e grave, das sombras interiores. Roger. Claro: não lhe tinha visto entre os que invadiram o quarto da Yocasta.
- Fraser –respondeu Jamie, também em voz baixa. depois de me fazer entrar consigo, fechou a porta.
A silhueta do Roger, que estava envolto em um capote, recortava-se contra o resplendor de um abajur, para o final da fila de pesebres.
- Como está, ao Smeóraich? –Jamie entregou a jarra de café. Roger afundou uma pistola na cintura das calças e a agarrou. Sem comentários, retirou a cortiça e bebeu.
- OH, Deus! –disse com um suspiro- . Isto é o melhor que provei em vários meses.
- Não de tudo. –Um pouco divertido, Jamie agarrou a jarra para lhe entregar o bolo envolto- . Como está esse?
- Ao princípio colocou bastante bulha, mas há um momento se aquietou. Talvez se tenha dormido. –Roger assinalou o pesebre com a cabeça. Jamie desprendeu o abajur de seu gancho e a sustentou em alto por cima do portão trancado. Por debaixo de seu braço vi uma silhueta acurrucada e médio escondida na palha, no fundo do pesebre.
- Senhor Wylie? –chamou Jamie, sempre em voz baixa- . Dorme você?
A silhueta se agitou entre sussurros de feno.
- Não, senhor –foi a resposta, fríamente amarga. A silhueta se desdobrou lentamente e Phillip Wylie ficou de pé, sacudindo-a palha da roupa.
Realmente eu o tinha visto em melhores momentos. Era evidente que tinha recebido um golpe no nariz, pois tinha um sulco de sangue seca no lábio superior e uma mancha pardusca no colete de seda bordada.
em que pese a isso, sua atitude se mantinha incólume em uma indignação glacial.
- Terá que responder por isso, Fraser! Por Deus que sim!
- Com muito prazer, senhor –respondeu Jamie, impertérrito- . Mas não antes de obter algumas respostas de você. –Tirou o fecho ao pesebre e abriu- . Saia, senhor Wylie.
O homem saiu com a cabeça em alto. Passou a um palmo de mim, com o olhar fixo para diante, fingindo não lombriga.
Aceitou rigidamente a jarra de café que lhe ofereceram, mas uns quantos sorvos pareceram lhe devolver notavelmente a compostura.
- O agradeço, senhor. –Devolveu a jarra com uma reverência- . Bom, posso perguntar quais são os motivos desta inqualificável conduta?
- Pode, senhor –respondeu Jamie, erguendo-se a sua vez- . Quero descobrir no que consiste sua associação com certo Stephen Bonnet e o que sabe você de seu atual paradeiro.
A cara do Wylie ficou quase comicamente em branco.
- Quem?
- Stephen Bonnet.
Wylie cravou no Jamie um olhar fulminante, com as sobrancelhas escuras muito franzidas.
- Não conheço nenhum cavalheiro com esse nome, senhor Faser; portanto, não tenho idéia alguma de seus movimentos. Até se o tivesse, duvido muito que me sentisse obrigado a lhe informar.
- Não? –Jamie bebeu um sorvo de café, pensativo; logo me entregou a jarra- . O que me diz você das obrigações de um convidado para com seu anfitrião, senhor Wylie?
As sobrancelhas escuras se elevaram em um gesto de estupefação.
- A que se refere, senhor?
- Vejo que você não está informado, senhor, de que ontem à noite a senhora Innes e seu marido sofreram um ataque e um intento de roubo.
Wylie ficou boquiaberto. A menos que fora muito bom ator, sua surpresa era autêntica.
- Não sabia. Quem…? –O desconcerto desapareceu e deu passo à ira- . Você acredita que eu estive envolto nesta… esta…?
- Desprezível empresa? –sugeriu Roger, que parecia divertir-se- . Sim, acredito que sim. um pouco de bolo para acompanhar o café, senhor?
E lhe alargou uma parte. Wylie o olhou fixamente um momento; logo se levantou de um salto e o fez cair de um golpe.
- Maior canalha! –Girou para o Jaime com os punhos apertados- . Atreve-se a insinuar que sou um ladrão?
Jamie se tornou um pouco para trás, com o queixo em alto.
- Em efeito –disse serenamente- . Você tratou de me roubar a minha esposa ante meus próprios narizes. portanto, que escrúpulo poderia ter para com os bens de minha tia?
A cara do Wylie se ruborizou, e a seguir se lançou contra Jamie. Os dois rodaram com um revoou de braços e pernas. Roger se lançou para a refrega, mas eu o sujeitei pelo capote.
Jamie tinha a seu favor a habilidade e a corpulência, mas Wylie não era noviço na arte dos punhos; além disso, impulsionava-o uma ira desatada.
Ferozmente irritada contra os dois, adiantei-me um passo e verti sobre eles o conteúdo da jarra.
- Já estou farta disto!
- Pois eu não! –exclamou Wylie, acalorado- . Ele me insultou em minha honra! Exijo…!
- OH, ao diabo com sua maldita honra! E com o teu também! –bramei.
Jaime se contentou com um ressonante bufido. Empurrei com o pé um dos tamboretes cansados, com a vista ainda cravada nele.
- Sente-se!
Ele levantou o banquinho e se sentou com imensa dignidade.
Wylie não parecia tão disposto a me emprestar atenção e continuava com os comentários sobre sua honra. Atirei-lhe um chute na tíbia. Esta vez calçava botas fortes. Ele lançou um chiado e saltou sobre o outro pé, sujeitando-a pantorrilha afetada.
- Não convém chateá-la quando está irritada –disse Jamie a seu competidor, me jogando um olhar cauteloso- . É perigosa, sabe você?
Wylie me olhou, muito carrancudo, fez um esforço por tragá-lo que estava a ponto de dizer e se sentou lentamente no outro banquinho.
- Eu gostaria de saber o que acontece aqui, por favor –disse, com deliciosa cortesia.
- Pois eu opino o mesmo, senhor –disse Jamie.
- Roubo, assassinato e só o céu sabe que mais –enumerei com firmeza- . E queremos chegar ao fundo do assunto.
- Assassinato? - repetiram Roger e Wylie ao mesmo tempo. Ambos pareciam sobressaltados.
- Quem foi assassinado? –inquiriu o prisioneiro, nos olhando alternativamente ao Jamie e a mim.
- Uma pulseira –informou Jamie- . Minha esposa suspeitou que havia doo em sua morte. Precisávamos descobrir a verdade. Esse foi o motivo de nossa presença no abrigo, ontem à noite.
- Presença. –Ante a lembrança do que me tinha visto fazer no abrigo pareceu chateado- . Sim… compreendo. –E me olhou pela extremidade do olho.
- Com que a mataram? –Roger entrou no círculo de luz e se sentou no cubo investido, a meus pés- . O que a matou?
- Alguém lhe deu de comer cristal moído –respondi- . Encontrei uma boa quantidade em seu estômago.
Enquanto o dizia, emprestei muita atenção ao Philip Wylie, mas sua cara tinha a mesma expressão estupefata que Jamie e Roger.
- Cristal. –Jamie foi o primeiro em recuperar-se- . Quanto demora algo assim em matar, Sassenach?
Esfreguei-me o sobrecenho com dois dedos. O atordoamento da hora temprana foram dando passo a uma palpitante dor de cabeça.
- Não sei. Chega ao estômago em poucos minutos, mas poderia demorar bastante em provocar uma grande hemorragia. E se algo dificultasse os processos digestivos (a bebida, por exemplo), poderia demorar ainda mais. Também se ela tivesse comido em quantidade ao ingerir o cristal.
- É a mulher que você e Bree encontraram no pomar? –Roger se voltou para o Jamie.
- Sim. –Ele manteve os olhos fixos em mim- . Estava inconsciente por efeitos da bebida. Mais tarde, quando a viu, Sassenach, havia já sinais disso?
Neguei com a cabeça.
- Talvez o cristal já estava fazendo efeito, mas ela estava inconsciente. Uma coisa: Fentiman disse que se despertou em metade da noite, queixando de sofrer retortijones. É seguro que por então já estava afetada. Mas não posso dizer com certeza se lhe subministrou o cristal moído antes de que você e Bree a encontrassem ou se despertou de seu estupor ao anoitecer e alguém o deu então.
- Mas por que? Quem podia lhe desejar a morte? –perguntou Jamie.
- É uma boa pergunta –assentiu Wylie- . Entretanto, posso lhes assegurar que to não fui.
Jamie o estudou longamente.
- Pode ser, sim –disse- . Mas se não… A que foi você ontem à noite ao abrigo? O que podia levá-lo ali, como não fora contemplar o rosto de sua vítima?
- Minha vítima! –Wylie ficou rígido de ira renovada- . Não era eu o que estava no abrigo, ensangüentado até os cotovelos com as vísceras dessa mulher e lhe arrancando trocitos! –Girou a cabeça para mim- . Minha vítima! Profanar um cadáver é um crime capital, senhora Fraser. E me chegaram rumores… OH, sim que me chegaram rumores sobre você! Eu digo que foi você quem matou à mulher, a fim de obter…
Suas palavras terminaram em um gorgoteo, pois Jamie aferrou o peitilho de sua camisa e a retorceu em torno do pescoço. Logo o golpeou com força no estômago. O jovem se dobrou em dois, tossindo e vomitando.
- Estou seguro de que não pensa fazer acusações tão infundadas contra minha esposa, verdade… senhor? –disse Jamie ao Wylie, com excessiva cortesia.
Não me surpreendeu que Phillip negasse com a cabeça; pelo visto, ainda não tinha recuperado a fala.
- Bem –disse, apartando para trás uma mecha de cabelo- . Se todo isso está acordado… Onde estávamos?
- No assassinato da Betty –apontou Roger- . Não sabemos quem, não sabemos quando e não sabemos por que. Não obstante, como base para a discussão, sugeriria partir do suposto de que nenhum dos pressente teve nada que ver com isso.
- Muito bem. –Jamie desprezou o assassinato com um gesto brusco, enquanto se sentava- . O que tem que o Stephen Bonnet?
O semblante do Roger se escureceu para ouvir isso.
- Sim, o que tem que ele? Está envolto neste assunto?
- Possivelmente no assassinato não, mas ontem à noite minha tia e seu marido foram atacados em seu quarto por dois vilãos, um dos quais era irlandês.
- Repito –disse Wylie fríamente- que não conheço nenhum cavalheiro com esse nome, seja irlandês ou hotentote.
- Stephen Bonnet não é um cavalheiro –disse Roger. As palavras eram muitos suaves, mas seu tom fez que Wylie levantasse a vista para ele.
- Não conheço esse homem –disse com firmeza. Provou a tragar saliva e, como lhe resultasse suportável, respirou mais fundo- . por que supõem vocês que esse tal Bonnet é o irlandês que cometeu essa tropelia contra o matrimônio Innes? Acaso deixou seu cartão de visita?
Surpreendi-me mesma com uma gargalhada. Jamie me jogou uma olhada e logo se voltou para o Wylie.
- Não –disse- . Eu sim conheço um pouco ao Stepjen Bonnet, que é um traidor, degenerado e ladrão. E o homem estava com você, senhor, quando encontrou a minha esposa e a mim no abrigo.
- Sim –confirmei- . Eu também o vi, de pé detrás de você. E que fazia você ali, a fim de contas? –de repente me tinha ocorrido a pergunta.
Os olhos do prisioneiro se alargaram ante a acusação do Jamie.
- Não o conheço –repetiu em voz baixa- . Tive a sensação de que me seguiam, mas ao olhar para trás não vi ninguém, de modo que não emprestei muita atenção. Quando vi… o que havia no abrigo… fiquei tão impressionado que só pude atender ao que tinha ante meus olhos.
Era perfeitamente compreensível. Wylie encolheu os ombros e os deixou cair.
- Se na verdade esse tal Bonnet me seguia, terei que considerar sua palavra, senhor. Mas lhes asseguro que não estava ali em minha companhia nem com meu conhecimento.
- Logo virão as moços de quadra. –Jamie aspirou fundo, encolhendo pela metade os ombros. Logo olhou ao Wylie- . Pois bem, senhor. Aceito sua palavra de cavalheiro
- Seriamente? Adula-me você.
- Mesmo assim –continuou Jamie, desdenhando deliberadamente o sarcasmo- , eu gostaria de saber a que ia você a esse abrigo ontem à noite.
Wylie se tinha levantado pela metade. Ante essa pergunta voltou a sentar-se com lentidão e piscou uma ou duas vezes, como se pensasse. Por fim suspirou.
- Fui a pelo Lucas –disse simplesmente- . Eu estava ali a noite em que nasceu. Criei-o, ensinei-lhe a tolerar a cadeira, adestrei-o. –Tragou saliva uma vez; detestei o estremecimento dos volantes que lhe adornavam o pescoço- . Vim ao estábulo para passar alguns instantes a sós com ele… para me despedir.
Pela primeira vez a cara do Jamie perdeu a sombra de desgosto que exibia ao olhá-lo.
- Compreendo, sim –disse em voz baixa- . E logo?
Wylie endireitou as costas.
- Ao sair do estábulo me pareceu ouvir vozes perto do muro do pomar. E quando me aproximei para ver o que acontecia vi luz no abrigo. Abri a porta. E você sabe melhor que eu o que aconteceu logo, senhor Fraser.
Jamie se esfregou a cara com força. Logo assentiu energicamente.
- Sei, sim. Lancei-me detrás o Bonnet e você me interpôs.
- Você me atacou –corrigiu Wylie, frio, enquanto se acomodava a jaqueta destroçada- . Eu me defendi. E estava em meu direito de fazê-lo. Logo você e seu genro me sujeitaram, trouxeram-me pela força aqui e me retiveram cativo durante a metade da noite.
Roger pigarreou. Jamie também, embora sua intenção era mais azeda.
- Pois sim –disse- , não discutiremos isso. –Com um suspiro, despediu-se de seu prisioneiro com um gesto- . Sabe você por ventura em que direção fugiu Bonnet?
- OH, sim!, embora por então ignorava seu nome, claro. Suponho que a estas horas estará completamente fora de seu alcance. –Havia uma nota estranha em sua voz, um pouco parecido à satisfação. Jamie girou bruscamente.
- O que quer você dizer?
- Lucas. –Wylie assinalou com a cabeça o penumbroso corredor do estábulo- . Seu pesebre é o último. Conheço bem sua voz e o ruído de seus movimentos. Esta manhã não o ouvi. Bonnet, se dele se tratava, fugiu para os estábulos.
antes de que ele tivesse terminado de falar, Jamie tinha o abajur na mão e partia a grandes passos pelo corredor.
A luz amarela se derrubava sobre a palha vazia.
Guardamos silêncio durante um comprido instante. Logo Phillip Wylie se estirou com um suspiro.
- Se já não for meu, senhor Fraser, tampouco será dele. –Seus olhos se posaram logo em mim com escura ironia- . Mas lhe desejo que desfrute de sua esposa.
afastou-se com as meias quedas e os saltos vermelhos piscando os olhos à luz do amanhecer.
Fora rompia o alvorada, serena e encantadora. Só o rio parecia mover-se; a luz arrancava brilhos de prata a seu corrente, além das árvores.
Roger se foi para a casa, bocejando, mas Jamie e eu nos demoramos junto a cercado. Em poucos minutos a gente começaria a despertar; haveria mais perguntas, especulações, bate-papo. No momento, nenhum dos dois queria mais conversação.
Por fim. Jamie me rodeou os ombros com um braço e, com ar decidido, voltou as costas à casa.
- Não compreendo por que não pensei neste sítio quando procurava um lugar íntimo –disse.
Estávamos no abrigo das carruagens. Entre as sombras, vi uma carreta e o faetón da Yocasta, um veículo descoberto que parecia um grande trenó sobre duas rodas. Jamie me elevou pela cintura para me depositar dentro e subiu detrás de mim. Sobre as almofadas havia uma manta de búfalo que estendeu no fundo do faetón. Ali havia espaço suficiente para duas pessoas acurrucadas, sempre que não lhes incomodasse estar muito juntas.
- Vêem, Sassenach –disse, deixando cair de joelhos- . O que venha depois… pode esperar.
Eu estava completamente de acordo. Embora na soleira da inconsciência, não pude menos que perguntar, dormitada:
- Sua tia… a crie? O que contou do ouro e todo isso?
- Certamente que sim –murmurou a meu ouvido- . Ao menos até onde posso comprovar o que há dito.
Quando finalmente a sede e a fome nos obrigaram a abandonar nosso refúgio, passamos frente ao pátio dos escravos, que desviaram prudentemente a vista, ainda ocupados em retirar os restos da festa. No extremo do prado vi a Fedra, que vinha do mausoléu com os braços carregados de pratos e taças abandonados entre as matas.
Ao nos ver se deteve, dizendo:
- OH!, a senhorita Eu o busca, amo Jamie. –Falava sem expressão, como se as palavras tivessem pouco sentido para ela.
- Ah, sim? –Jamie se esfregou a cara com uma mão- . Bem, subirei a vê-la.
Ela se dava a volta já para afastar-se quando Jamie lhe tocou um ombro.
- Lamento sua perda, moça –disse em voz baixa.
Os olhos da Fedra se encheram de lágrimas, mas não disse nada. Ainda um pouco desorientada, ouvi que Jamie dizia algo.
- … ir lavar te e descansar um pouco, Sassenach?
- O que? OH, não! Irei contigo.
de repente ansiava acabar com tudo esse assunto e voltar para casa. Já tinha tido suficiente vida social por uma temporada.
Encontramos a Yocasta, ao Duncan, ao Roger e a Brianna reunidos na sala da Yocasta, devorando um café da manhã tardio, mas substancioso. Brianna dirigiu um olhar penetrante à roupa arruinada do Jamie, mas continuou sorvendo seu chá sem dizer nada. Ela e Yocasta estavam em bata; Roger e Duncan, embora vestidos, pareciam gastos e sujos. Nenhum dos dois se barbeou; Duncan tinha um grande moretón azul no flanco da cara, ali onde se golpeou com a pedra do lar; pelo resto os via bem.
Por fim, saciados e um pouco mais repostos, respaldamo-nos nos assentos e, com toda firmeza, declarei iniciada a sessão.
- Tudo isto começa com a Betty, não lhes parece?
- Pode que sim, pode que não, mas suponho que é um ponto de partida tão útil como qualquer outro, Sassenach –respondeu ele.
Brianna terminou de lubrificar de manteiga uma fina torrada.
- Continue, Miss Marple –me disse com ar divertido, antes de dar a dentada.
- Bem. Vejamos: quando vi a Betty me pareceu que estava drogada, mas como o doutor Fentiman me impediu de examiná-la, não pude me assegurar. Mesmo assim, estamos seguros de que bebeu ponche com alguma droga, verdade?
- Sim –disse Jamie- . Na taça percebi o sabor de algo que não era licor.
- E eu interroguei às pulseiras da casa depois de falar com papai- acrescentou Brianna- . Duas das mulheres admitiram que Betty bebia os restos das taças, mas ambas asseguraram que só estava achispada quando ajudou a servir o ponche de rum na sala.
- E nesses momentos eu estava ali, com o Seamus Hanlon e seus músicos- confirmou Roger, estreitando o joelho do Bree- . Vi que Ulises preparava pessoalmente o ponche. Era o primeiro que preparava esse dia, Ulises?
Todas as cabeças giraram para o mordomo, que permanecia depois da cadeira da Yocasta, inescrutável. Sua pulcra peruca e seu librea engomada eram uma recriminação silenciosa ao ar generalizado de desalinho e esgotamento.
- Não, o segundo –especificou- . O primeiro se bebeu no café da manhã. –A casa e os serventes estavam a seu cargo; era óbvio que os acontecimentos recentes lhe desejavam muito uma mortificante recriminação pessoal.
- Bem. –Roger se esfregou a barba enchente- . Por minha parte, não reparei na Betty, mas se ela tivesse estado bêbada nesses momentos, eu não teria deixado de me precaver. E tampouco Ulises, suponho.
Olhou por cima do ombro em busca de confirmação e o mordomo assentiu a contra gosto.
- O tenente Wolff sim estava bêbado –continuou- . Todo mundo comentou que era muito cedo para que estivesse nesse estado.
Yocasta soltou uma exclamação grosseira, e Duncan baixou a cabeça para dissimular um sorriso. Jamie resumiu:
- O facho é que a segunda ronda de ponche se serve justo depois do meio-dia. Apenas uma hora mais tarde encontrei a essa mulher tendida de costas no esterco, emprestando a bebida e com uma taça de ponche a seu lado. Não digo que seja impossível, mas terei que apressar-se muito para embriagar-se desse modo em tão pouco tempo, sobre tudo bebendo só restos.
- É de supor, pois, que em realidade estava drogada –disse- . A substância mais provável seria o láudano. Havia láudano na casa?
Yocasta compreendeu que a pergunta lhe estava dirigida a ela e se ergueu na cadeira. Parecia muito reposta do acontecido a noite anterior.
- OH, sim!, mas isso não significa nada –objetou- . Qualquer pôde ter trazido um pouco; não é tão difícil de obter, se se pode pagar. Sei de duas mulheres, entre os convidados pressente, que o consomem com regularidade. Atreveria-me a dizer que elas deveram trazer um pouco.
Me teria encantado saber quais eram essas viciadas no ópio e como sabia Yocasta, mas descartei esse ponto para passar ao seguinte.
- Então, qualquer que fosse a procedência do láudano, ao parecer acabou dentro da Betty. –Voltei-me para o Jamie- . Disse que, quando a encontrou assim, te ocorreu que podia ter bebido uma droga ou um veneno destinado a outra pessoa.
- Sim, pois não sei por que alguém quereria indispor a uma pulseira.
- Não sei por que, mas alguém a matou –interrompeu Brianna- . Não vejo como pôde ingerir cristal moído que ia destinado a outra pessoa.
- Não me coloque pressa! Estou tratando de ser lógica. –Dirigi um olhar carrancudo ao Bree, quem fez um ruído tão grosseiro como o da Yocasta- . Não, não acredito que pudesse ingeri-lo por acidente, mas não sei quando tomaria. Quase com segurança, foi depois de que Fentiman a examinasse pela primeira vez.
Se Betty tivesse ingerido e cristal antes, os eméticos e purgantes do Fentiman lhe teriam provocado uma grande hemorragia, como em realidade aconteceu quando ele voltou a atender suas moléstias internas, para o amanhecer.
- Acredito que tem razão –disse a Brianna- , mas só por ser ordenada; quando saiu a percorrer os jardins, Roger, encontrou a algum convidado que parecesse dorgado?
Ele negou com a cabeça, carrancudo, como se o sol o incomodasse. Possivelmente lhe doía a cabeça.
- Não –disse- . Havia uns vinte indivíduos que começavam a cambalear-se um pouco, mas todos pareciam legitimamente ébrios.
- E o tenente Wolff? –perguntou Duncan, para surpresa de todos. Ao ver que todos o olhávamos, ruborizou-se. Mas insistiu- :A smeòraich disse que o homem estava completamente bêbado quando passou pela sala. Pôde beber a metade do láudano ou o que fora e dar o resto à pulseira?
- Não sei –observei- . Pelo menos é possível. Viu alguém à tenente, já mais avançado o dia?
- Sim –disse Ulises, fazendo que todos girassem outra vez para ele- . Entrou na casa durante o jantar e me pediu que lhe conseguisse imediatamente uma barco. foi pela água, ainda muito ébrio, mas lúcido.
- Não esquecem algo? –Yocasta tinha seguido os argumentos com atenção. Inclinada para diante, estirou a mão para a mesa, tocando até localizar o que procurava: uma pequena taça de prata- . Você, sobrinho, mostrou-me a taça da que Betty bebeu –disse ao Jamie, mostrando-lhe Era como esta, verdade?
tratava-se de uma flamejante peça de praça esterlina. O desenho gravado era apenas visível. I maiúsculo e o pececillo que nadava em torno dela quase se perdiam no brilho do metal.
- Sim, era como essa, tia –confirmou Jamie- . Brianna diz que é parte de um jogo.
- Sim. O dei de presente ao Duncan a manhã de nossas bodas. –Ela deixou a taça, mas manteve os largos dedos cruzados acima- . Ele e eu usamos duas delas durante o café da manhã, mas as outras quatro ficaram aqui acima. –Moveu a mão para trás, assinalando o pequeno aparador instalado contra a parede. Contei: as seis taças de prata estavam nesse momento na mesa, cheias do oporto que Yocasta preferia para o café da manhã. Mas não havia maneira de saber qual delas tinha contido o licor drogado. Ela perguntou:
- O dia das bodas, Ulises, levou alguma destas taças ao salão?
- Não, senhora. –O mordomo pareceu horrorizar-se ante a sugestão- . Certamente que não.
Ela girou os olhos cegos para o Jamie; logo para mim.
- Já vêem –disse simplesmente- . Era a taça do Duncan.
Seu marido pareceu sobressaltar-se; logo ficou intranqüilo ao compreender as implicações do que ela havia dito.
- Não. –Moveu a cabeça- . Não pode ser.
- Alguém te ofereceu uma taça esse dia, a cariem? –perguntou Jamie, inclinando-se atentamente.
Todo mundo! É obvio. Ao fim e ao cabo era o noivo. Mas o transtorno digestivo ocasionado pelos nervos lhe tinha impedido de aceitar esses oferecimentos. Tampouco recordava se alguma dessas taças que lhe serviram era de prata.
- Estava distraído, MAC dubh; não me teria precavido se alguém me tivesse devotado uma serpente viva.
Ulises agarrou um guardanapo da bandeja para oferecer-lhe sem chamar a atenção. Duncan a aceitou às cegas e se enxugou a cara.
- Acreditam vocês que alguém tratava de fazer mal ao Duncan? –O tom estupefato do Roger podia não ser estritamente adulador, mas ele pareceu não tomá-lo a mau.
- Mas por que? –disse desconcertado- . Quem pode me odiar?
Jamie riu pelo baixo; a tensão se afrouxou um pouco em volto da mesa. Era certo: embora Duncan era inteligente e hábil, seu caráter modesto fazia impossível que tivesse ofendido a ninguém; muito menos podia ter provocado esse frenesi homicida.
- Bom, a cariem –Observou meu marido, com tato- , poderia não ser pessoal, compreende? –E me olhou com uma careta irônica.
mais de uma vez tinham atentado contra ele, por motivos que não se relacionavam com o que ele tivesse feito, a não ser com o que era. Certamente, ocasionalmente também tinham tratado de matá-lo por coisas que tinha feito.
Yocasta parecia estar pensando o mesmo.
- Por certo –disse- . estive refletindo. Recorda, sobrinho, o que aconteceu na Congregação?
Jamie, com uma sobrancelha arqueada, levantou sua taça de chá.
- Ali aconteceram muitas coisas, tia. Mas suponho que refere ao que aconteceu o pai Kenneth.
- Sim. –Ela levantou de maneira automática uma mão e Ulises pôs nela outra taça enche- . Não me contou que Lillywhite havia dito algo com respeito a impedir que o sacerdote celebrasse cerimônias?
- Em efeito. Crie que se referia a suas bodas com o Duncan? O que essa era a cerimônia que devia impedir?
- Espera um momento –disse- . Diz que alguém queria impedir as bodas de sua tia com o Duncan? E depois de obter seu propósito na Congregação, não lhe ocorreu outra maneira de impedi-lo agora, pelo qual tentou matar ao Duncan? –Minha voz refletia estupefação.
- Não sou eu o que o diz –esclareceu Jamie, observando a Yocasta com interesse- , mas é o que sugere minha tia.
- Assim é –confirmou ela, serena. depois de acabar seu chá, deixou a taça com um suspiro- . Não quero me dar ares, sobrinho, mas o fato é que fui cortejada por uns quantos, desde que Hector morreu. River Run é um imóvel rico e eu, uma anciã.
Houve um instante de silêncio enquanto o assimilávamos. A cara do Duncan refletiu inquietação e horror.
- Mas… gaguejou- , mas se foi assim, MAC Dubh, por que esperar?
- Esperar?
- Sim. –Olhou em volto da mesa, procurando quem o entendesse- . Olhe, se alguém quis impedir as bodas na Congregação, tudo está bem. Mas após aconteceram quatro meses e ninguém levantou uma mão contra mim. Quase sempre cavalgo sozinho; teria sido muito fácil me tender uma emboscada no caminho e me pôr uma bala na cabeça.
- por que esperar quase até o momento das bodas e em presença de centenares de pessoas, diz. Pois sim, tem razão, Duncan –admitiu Jamie.
Roger tinha escutado todo isso com os cotovelos apoiados nos joelhos e o queixo nas mãos. Para ouvir isso se ergueu.
- Me ocorre um motivo –disse- . O sacerdote.
Todo mundo o olhou com as sobrancelhas arqueadas.
- O sacerdote estava aqui –explicou- . Se tudo isto foi pelo River Run, não se trata só de tirar ao Duncan de no meio. depois de matá-lo, nosso assassino estaria como ao começo: Yocasta não se casou com o Duncan, mas tampouco ele. Mas se todo esta preparado para celebrar uma cerimônia privada, com o sacerdote aqui… resulta simples. Mata ao Duncan, de um modo que possa passar por suicídio ou acidente; logo invade as habitações da Yocasta e obriga ao padre a consagrar o matrimônio a ponta de pistola. Como os serventes e os convidados estão pendentes do Duncan, ninguém intervém nem se opõe. O leito está à mão… Assinalou a grande cama de dossel, visível pela porta que comunicava com a quarto- . Leva a Yocasta ali e consuma o matrimônio pela força. E o indivíduo já é seu tio.
- Chegado a esse ponto viu que Yocasta tinha ficado boquiaberta e Duncan, estupefato; só então caiu na conta de que essa não era só uma interessante proposição acadêmica.
- Né… quero dizer –pigarreou- . Há quem o tem feito.
Jamie também pigarreou. Era certo. Seu próprio avô, homem de más intenções, tinha iniciado sua ascensão na sociedade ao desposar pela força (e possuir imediatamente) à anciã lady Lovat, rica e viúva.
- O que? –Brianna olhou ao Roger, obviamente horrorizada- . Mas que coisa tão…! Não poderiam sair-se com a sua!
- Não vejo a dificuldade –observei, me sacudindo os miolos do peito- . Obviamente esta operação não foi realizada por um só homem. Quem quer que seja o aspirante a noivo… vocês Recordem que não sabemos se existir, mas suponhamos que sim. Quem quer que seja, se existir, tem cúmplices, sem dúvida. Randall Lillywhite, para começar.
- Que não estava aqui –me recordou Jamie.
- Hum, isso é certo –admiti- . Mesmo assim, o princípio é válido.
- Sim –insistiu Roger- . E se ele existir, o principal suspeito é o tenente Wolff, não? Todo mundo sabe que tentou mais de uma vez casar-se com a Yocasta. E ele sim que estava aqui.
- Mas bêbado como uma Cuba –acrescentou Jamie, duvidando- . Ou não. Como já disse, ao Seamus e a seus moços surpreendeu que alguém pudesse estar tão ébrio a hora tão temprana. E se tivesse sido uma patranha? Se fingia estar bêbado perdido, ninguém lhe emprestaria atenção nem o consideraria suspeito mais tarde; enquanto isso, ele podia envenenar uma taça de ponche, entregar-lhe a Betty com instruções de oferecê-la ao Duncan, escapulir-se e rondar por aí, preparado para correr escada acima assim que se soubesse que Duncan se derrubou. Talvez Betty ofereceu a taça, Duncan a rechaçou e… Ali estava a mulher, com uma taça cheia de ponche de rum na mão. –encolheu-se de ombros- . Quem poderia lhe reprovar que se fora ao pomar para desfrutá-la?
Yocasta e Ulises bufaram simultaneamente, deixando bastante em claro o que pensavam do reprochable dessa ação. depois de um breve pigarro, Roger continuou com sua análise.
- Bem, de acordo. Mas a dose não matou a Betty, já fora porque o assassino calculou mau ou… - lhe ocorreu outra idéia brilhante- . Possivelmente sua intenção era deixá-lo inconsciente e logo jogá-lo no rio. Isso teria sido até melhor. Não sabe nadar, verdade? –perguntou, voltando-se para ele.
Duncan moveu a cabeça, como aturdido, e levantou mecanicamente sua única mão para massagear o coto do braço ausente.
- Sim. Uma bonita morte no rio teria passado por acidente, sem problemas. –Roger se esfregou as mãos, muito agradado- . Mas tudo saiu mau, porque não foi Duncan quem bebeu o ponche com a droga, a não ser a criada. E por isso a mataram.
- por que? –Yocasta parecia tão aturdida como seu flamejante marido.
- Porque ela podia identificar ao homem que lhe tinha dado a taça –interveio Jamie, pensativo e ajeitado em sua cadeira- . E o teria feito assim que alguém a interrogasse. Isso tem sentido, sim. Certamente, o assassino não podia desfazer-se dela por meios violentos; corria o risco de que o vissem o subir ou descer do apartamento de cobertura.
Roger fez um gesto de aprovação ante seu rápido entendimento.
- Fica por resolver o problema de como lhe subministrou o cristal moído. Ulises, sabe se a Betty deram algo de comer ou de beber? –perguntei.
- O doutor Fentiman ordenou que lhe dessem um syllabub –disse Ulises lentamente- e um pouco de porridge, se estava o bastante acordada para tragar. Eu preparei o syllabub e o enviei por meio do Mariah. Quanto ao porridge, o encarreguei à cozinheira, mas não sei se Betty o comeu nem quem pôde levá-lo.
- Hum… - Yocasta frució os lábios- . Bastaria com um momento, não? Distrai à moça, joga o cristal…
- Ou possivelmente alguém subiu ao apartamento de cobertura com o pretexto de ver como estava e lhe deu algo para beber, com o cristal dentro –sugeri- . Um syllabub era o veículo perfeito. Alguém pôde perfeitamente subir sem que o vissem.
- Muito bem, inspetor Lestrade –disse Brianna ao Roger, sotto voce- . Mas não há provas, verdade?
- É certo –disse Yocasta- . Não há provas. Recorda que Betty te oferecesse uma taça de ponche, a dhuine?
Duncan se mascou furiosamente o bigode, concentrando-se, mas logo sacudiu a cabeça.
- É possível… a bhean. Mas é possível que não.
- Pois bem…
Todo mundo guardou silêncio um momento, enquanto Ulises caminhava silenciosamente ao redor da mesa, retirando as coisas. Por fim Jamie lançou um profundo suspiro e se incorporou.
- Bom: hei aqui o que aconteceu ontem à noite. Todos estamos de acordo em que o irlandês que entrou em seu quarto, tia, era Stephen Bonnet?
A Brianna tremeu a mão e sua taça de chá caiu sobre a mesa.
- Quem? –perguntou com voz rouca- . Stephen Bonnet… aqui?
- Sim –confirmou Jamie, relutante- . Vi-o.
- E foi ele quem veio a pelo ouro… ou um deles? –Brianna agarrou uma das taças de oporto para bebê-la como se fora água. Ulises, embora piscando, apressou-se a enchê-la com o vinho do botellón.
- Isso parecia. –Roger alargou a mão para um pão-doce, evitando cautelosamente os olhos da Brianna.
- Como pôde descobrir o do ouro, tia? –Jamie se respaldou em sua cadeira, com os olhos entrecerrados para concentrar-se.
Yocasta lançou um bufo e alargou a mão. Ulises, acostumado a suas necessidades, pôs nela uma torrada com manteiga.
- Um deles deveu dizer-lhe a alguém: Hector Cameron, meu irmão Dougal ou o terceiro homem. E apostaria a que não foram Hector nem Dougal. Mas há algo que posso lhes dizer. O segundo homem que entrou em minha habitação, que emprestava a bebida. Disse que não falou, verdade? Pois parece bastante óbvio: era alguém que eu conheço, cuja voz teria podido reconhecer.
- O tenente Wolff? –sugeriu Roger.
Jamie assentiu; entre suas sobrancelhas se formou uma ruga.
- Que melhor que a Marinha para achar a um pirata quando o necessita?
- E quem necessita de um pirata? –murmurou Brianna. O oporto lhe havia devolvido a compostura, mas ainda estava pálida.
- Sim –disse Jamie, sem lhe emprestar atenção- . Não é pouca empresa, dez mil libras em ouro. requereria-se mais de um homem para carregar com semelhante soma. Luis da França e Carlos Estuardo sabiam; por isso enviaram a seis indivíduos para que carregassem com os trinta mil.
Se alguém se inteirou de sua existência, não era estranho que tivesse contratado a ajuda do Stephen Bonnet, que não só tinha os meios para transportar o ouro, mas também também contatos para vendê-lo.
- O tenente partiu em um bote durante o jantar –disse lentamente- . Suponhamos que foi águas abaixo para encontrar-se com o Bonnet. Logo voltaram juntos e aguardaram a oportunidade para entrar na casa e tentaram aterrorizar a Yocasta, a fim de que lhes dissesse onde estava o ouro.
Jamie assentiu.
- Poderia ser. Sim. Faz anos que o tenente faz negócios aqui. É possível, tia, que visse algo e suspeitasse que esse ouro estava aqui? Disse que Hector tinha três barras; fica algo disso?
Yocasta apertou os lábios, mas depois de um momento assentiu a contra gosto.
- teimava em ter uma parte em seu escritório como pisapapeles. Sim, Wolff pôde havê-lo visto, mas como pôde saber o que era?
- Pode que no momento não soubesse –sugeriu Brianna- , mas mais tarde soube o do ouro francês e somou dois mais dois.
Ante isso houve um murmúrio de assentimento. Como teoria funcionava bem; o que eu não via era a maneira de prová-lo, e assim o disse. Jamie se encolheu de ombros.
- Não acredito que o importante seja prová-lo, a não ser saber o que pode acontecer agora. –E olhou diretamente ao Duncan- . Retornarão, a cariem –disse serenamente- . Sabe, verdade?
- Sei, sim. –Duncan parecia desventurado, mas decidido, e alargou uma mão para agarrar a da Yocasta; era o primeiro gesto desse tipo que eu o via fazer- . Encontrarão-nos preparados, MAC Dubh.
Jamie assentiu lentamente.
- Devo partir, Duncan. Semeia-a não pode esperar. Mas porei sobre aviso a todos meus conhecidos para que vigiem à tenente Wolff.
Yocasta guardava silêncio, imóvel sua mão na do Duncan, mas para ouvir isso ergueu as costas.
- E o irlandês? –perguntou. Com a outra mão se esfregava brandamente o joelho, pressionando-a com o canto da mão.
Jamie intercambiou um olhar com o Duncan; logo, outra comigo.
- Retornará –disse, com voz carregada de sombria certeza.
Eu estava olhando a Brianna quando o disse. Seu rosto permaneceu sereno, mas vi o medo que se movia em seus olhos. Stephen Bonnet (pensei-o com um tombo no coração) já tinha retornado.
Ao dia seguinte partimos para as montanhas. Quando logo que tínhamos percorrido uns oito quilômetros, ouvi ruído de cascos no caminho, detrás de nós. Era o maior MacDonald; o deleite que expressava seu rosto me disse tudo o que precisava saber.
- Por todos os diabos! –exclamei.
A nota trazia o selo do Tryon.
- Esta manhã estive no Greenoaks –explicou o major, enquanto Jamie rompia o selo- . Posto que vinha para aqui, ofereci-me para trazê-lo.
Já conhecia o conteúdo da nota. Farquard Cambell devia havê-la aberto.
Observei a expressão do Jaime enquanto lia; não trocou. Ao terminar de me lê-la entregou a nota.
19 de março de 1771
Aos oficiais Comandantes da Tropa
Senhores:
No dia de ontem determinei, com o consentimento do Conselho de sua majestade, partir com um corpo de regimentos milicianos para os assentamentos dos insurgentes, a fim de reduzi-los à obediência, pois com seus atos e declarações rebeldes desafiaram ao governo e interrompido o curso da justicia,obstruyendo , desordenando e fechando as Cortes da lei. Posto que alguns de seus regimentos podem desempenhar uma parte na honra de emprestar ao país este importante serviço, requeiro-lhes que vocês escolham a trinta homens, que se incorporarão ao Corpo de minhas forças nesta empresa.
Não existe intenção de mobilizar estas tropas antes do vigésimo dia do próximo mês, antes do qual lhes informará da data em que devem reunir a seus homens, o tempo da marcha e o caminho a seguir.
recomenda-se como dever cristão, que incumbe a todos os plantadores que permaneçam em seus lares, que cuidem e auxiliem às famílias daqueles homens que emprestarão este serviço, a fim de que nem suas famílias nem suas plantações se prejudiquem enquanto eles estão aplicados a um serviço que concerne ao interesse de todos.
Para os gastos ordenados nesta expedição estenderei garantias impressas à ordem dos portadores, garantia que se tornarão negociáveis até que o tesouro possa as pagar com os recursos contingentes, em caso de que não haja no tesouro dinheiro suficiente para responder aos serviços necessários desta expedição.
Seu seguro servidor, William Tryon
Saberiam já Hermon Husband e James Hunter, quando abandonaram River Run? Supus que sim. E o major, certamente, ia agora a New Bern para oferecer seus serviços ao governador.
- Por todos os diabos –amaldiçoei com ênfase.
O maior MacDonald piscou, e Jamie me jogou uma olhada.
- Bom –disse- . Fica quase um mês. Justo o tempo que necessito para semear a cevada.
...e combater contra eles,
dizendo que tinham suficientes homens
para matá-los, ¨podemos matá-los!¨
Declaração do Waightstill Avery, testemunha
Carolina do Norte
Comando do Mecklenburg
Waightstill Avery testemunhou e disse que, nos dia seis de março, ao redor das nove ou dez da manhã, o declarante se encontrava na atual residência de certo Hudgins, quem vive no extremo inferior da Ilha Larga.
E que o declarante viu trinta ou quarenta dessas pessoas que se autodenominan ¨reguladores¨, e que foi então detido e feito prisioneiro por um deles (quem disse chamar-se John Mc Quiston) no nome de todos eles. E que pouco depois um tal James Graham (ou Grimes) falou com declarante com estas palavras: ¨Você é agora prisioneiro e não deve ir a lugar algum sem alguém que o vigie¨, ao qual acrescentou imediatamente que ¨Enquanto não se além de seu vigilante não sofrerá dano algum¨.
Este declarante foi logo conduzido, sob a custódia de dois homens, até o acampamento regular (conforme o denominaram) distante uma milha, aonde horas depois acudiram muitas mais pessoas da mesma denominação e outras, cuja totalidade este declarante supõe e calcula em duzentos e trinta indivíduos.
Que por eles mesmos o declarante conheceu os nomes de cinco de seus capitães ou líderes, por então pressente, ou seja: Thomas Hamilton e outro do mesmo sobrenome, James Hunter, Joshua Teague, certo Gillespie e o mencionaod James Grimes (ou Graham). Que o declarante ouviu muitos daqueles cujos nomes desconhece pronunciar-se em términos oprobiosos contra o governador, os juizes da Corte Superior, contra a Casa de Assembléia e outro altos funcionários. Enquanto a multidão circundante pronunciava palavras ainda mais oprobiosas, o mencionado Thomas Hamilton se ergueu no centro e pronunciou frases do seguinte tenor, enquanto a multidão assentia e afirmava a verdade do dito:
¨Que direito tem Maurice Moore a ser juiz, ele não é juiz, não foi renomado pelo rei, como tampouco Henderson, nenhum deles tem corte. A Assembléia tem feito uma lei de desmandos, e a gente está mais enfurecida que nunca, foi o melhor que se pôde fazer pelo país, pois agora nos veremos obrigados a matar a todos os escrivães e advogados, e os mataremos e que me leve o diabo se não os executa. Se não tivessem feito essa lei poderíamos ter deixado a alguns com vida. Uma lei de desmandos! Nunca houve semelhante lei na Inglaterra nem em país algum salvo a França, trouxeram-na da França e trarão também a Inquisição.¨
Muitos deles diziam que o governador era amigo dos advogados e que a Assembléia tinha arruinado aos reguladores a fazer leis por dinheiro. Encerraram ao Husband no cárcere, para que não pudesse ver seus pícaros procedimentos, e logo o governador e a Assembléia fizeram as leis que os advogados queriam. O governador é amigo dos advogados, os advogados o dirigem tudo, nomeiam a juizes de paz débeis e ignorantes para seu próprio benefício.
Não deveria ter advogados na província, diziam entre maldições. Fanning foi proscrito em vinte e dois de março e qualquer regular que o visse a partir de então devia matá-lo antes de retornar, se o encontravam no Salisbury. Alguns desejavam encontrar ao juiz Moore do Salisbury, para açoitá-lo, e outros, para matá-lo. Certo Robert Thomson disse que Maurice Moore era perjuro e lhe aplicou nomes aprobiosos, como bandido, vadio, vilão, canalha, etcétera, e os outros assentiam.
Quando chegou a notícias de que o capitão Rutherford, à cabeça de sua companhia, desfilava pelas ruas do Salisbury, este declarante ouviu que vários deles insistiam pertinazmente para que todo o corpo de reguladores ali presente partisse ao Salisbury com suas armas e combater contra eles, dizendo que tinham homens suficientes para matá-los, ¨Podemos matá-los, já ensinaremos a não opor-se a nós¨.
Disposta juramento e assina o antecedente, o oitavo dia de março de 1771, ante mim que dou fé.
(Assinado) Waightstill Avery
(Testemunha) William Harris, Juiz de Paz
Do William Tryon ao general Thomas Gage, Carolina do Norte
New Bern, 19 de março de 1771
Senhor:
No dia de ontem, o Conselho de sua majestade desta província decidiu recrutar um corpo de forças entre os regimentos e companhias de milicianos, a fim de partir para os assentamentos de insurgentes, quem por seus atos e declarações de rebeldia desafiaram a este governo.
Posto que neste país temos poucas máquinas e implementos militares, devo requerer sua ajuda para me procurar os artigos (cañon, projéteis, estandartes, tambores, etcétera) enumerados abaixo.
Minha intenção é iniciar a marcha nesta cidade, ao redor do dia vinte do mês próximo, e reunir à tropa enquanto parta através dos condados, Descida recrutar a mil e quinhentos homens, embora pelo espírito que agora se manifesta a favor do governo, esse número poderia incrementar-se notavelmente.
Fico a suas ordens, com grande respeito e estima.
Seu seguro servidor.
William Tryon
E agora me deito a dormir...
Colina do Fraser
15 de abril de 1771
Roger, tendido na cama, escutava o zumbido de um mosquito que tinha conseguido passar entre o couro que cobria a janela da cabana. O berço do Jem estava coberta por um tul de gaze, mas ele e Brianna careciam desse amparo. O mosquito parecia circular por cima da cama; ocasionalmente descendia em picado para provocá-lo com diminutas canções junto a seu ouvido, antes de remontar-se outra vez na escuridão.
Tinha passado todo o dia ajudando a preparar a Colina para a partida dos homens; cada vez que fechava os olhos, detrás de suas pálpebras passavam imagens fragmentadas da tarefa.
Corria abril, com bastante calor, e o pomar do Claire estava transbordante de brotos. ¨Quem faz um jardim trabalho com Deus¨. Essas palavras estavam escritas em um velho relógio de sol, na casa solariega do Inverness onde tinha crescido. Irônico, se se tinha em conta que o reverendo não tinha tempo nem talento para a jardinagem; aquilo era uma selva de grama sem cortar e vetustos roseiras asilvestrados. Mentalmente deu as boa noite à sombra do reverendo.
¨boa noite, papai. Que Deus te benza.¨
Muito tempo atrás tinha perdido o hábito de dar assim as boa noite a uma breve lista de parentes e amigos, ressaca de uma infância em que as orações noturnas terminavam com a habitual contagem: ¨Deus benza a abuelita, ao avô Guy que está no Céu, e a meu grande amigo Peter; e ao Lillian, a cadela, e ao gato do lojista...¨
Llevava anos sem fazê-lo, mas a lembrança da paz que lhe brindava esse pequeno rito o induziu a redigir uma lista nova. Parecia melhor que contar ovelhas. E mais que dormir desejava aquela paz que recordava.
¨boa noite, pequeñín –pensou, girando a cabeça para o berço- Deus te benza.¨ E a Brianna.
Girou a cabeça para outro lado e abriu os olhos para ver o ovalóide escuro de sua cara dormida no travesseiro. Tratando de não fazer ruído, tendeu-se sobre o flanco para observá-la. A habitação estava tão escura que só podia ver as tênues marca dos lábios e as sobrancelhas.
Com o suave calor de sua respiração na cara, perguntou-se o que estaria sonhando Brianna nesses momentos.
Ela e o menino também partiriam pela manhã; a bagagem de ambos estava preparado, junto a seu próprio hatillo, junto à porta. O senhor Wemyss os levaria de carro ao Hillsborough estava em pleno centro do território dos reguladores, e ele tinha dúvidas quanto a essa viagem. Mas Brianna tinha desdenhado a idéia de que ela ou Jem pudessem estar em perigo. Provavelmente estava no certo; entretanto, ele tinha a suspeita de que, até com perigo, teria atuado igual.
Ela cantarolava para seus adentros; Loch Lomond, nada menos. ¨OH!, vê pelo caminho alto, que eu irei pelo baixo, e chegarei ao Loch Lomond antes que você...¨
-Ouviste-me? –perguntou-lhe Roger, sujeitando-a por um braço, enquanto ela dobrava o último vestido do Jemmy.
-Se querído –murmurou Bree, pestanejando com zombadora submissão. Isso o irritou ao ponto de agarrá-la pela boneca para olhar a de frente.
-Falo a sério –disse. Olhou-a aos olhos e lhe apertou a boneca com mais força. de repente imaginou seus ossos sob a pele: maçãs do rosto largos e altos, crânio curvo e largos dentes brancos; era muito fácil imaginar esses dentes expostos até a raiz em um rictus ósseo permanente.
Então a tinha estreitado contra si com súbita violência, para beijá-la com tanta força que sentiu seus dentes contra os próprios, sem lhe importar que algum dos dois pudesse sair machucado.
Bree levava posta a regata; ele não se incomodou em tirar-lhe simplesmente a arrojou de costas na cama e recolheu o objeto por cima de suas coxas. Ela elevou as mãos, mas Roger não se deixou tocar; começou por lhe imobilizar os braços, logo a afundou no colchão com o peso de seu corpo para procurar consolo na magra capa de carne que separava seus ossos dos próprios.
Fizeram-no em silêncio, conscientes pela metade de que o menino dormia a pouca distância. Não obstante, em algum momento o corpo da Brianna tinha respondido, de uma maneira profunda e surpreendente, que ia além das palavras.
-Digo-o a sério –tinha repetido momentos depois, em voz baixa, falando com o matagal de cabelos vermelhos.
-Sei –disse ela-. Eu também o digo a sério.
-Era isso o que queria? –Sussurrou-o muito fico para não despertá-la. O calor de seu corpo atravessava as mantas; estava profundamente dormida.
Se isso era o que desejava, o que era, exatamente? Tinha respondido à brutalidade de sua posse? Ou acaso tinha respondido à força do que se escondia detrás, a sua necessidade de mantê-la a salvo?
E se era a brutalidade... Apertou um punho ao pensar no Stephen Bonnet. Nunca lhe tinha contado o acontecido entre ela e Bonnet. Perguntar o era inconcebível, e mais ainda suspeitar que algo nesse encontro pudesse havê-la excitado. Não obstante, ela se excitava visivelmente nas estranhas ocasiões em que lago o impulsionava a possui-la abruptamente.
Estava muito tenso outra vez. O mosquito passou zumbindo e lhe atirou um tapa... muito tarde. Incapaz de estar-se quieto, levantou-se silenciosamente para fazer uma rápida série de flexões, a fim de relaxar os músculos.
Por fim se levantou, com os músculos trêmulos de passageiro esgotamento, e se aproximou da janela para desencravar o couro. Assim, nu, deixou que o ar úmido da noite corresse sobre ele.
Em um lateral da casa grande, no lado oposto do claro, brilhava uma luz mais potente. Um abajur; duas silhuetas caminhavam juntas; uma, alta; a outra, mais miúda. O homem disse algo em um rumor interrogativo; reconheceu a voz do Jaime, mas não chegou a distinguir as palavras.
-Não –respondeu a do Claire, mais ligeira e clara ao aproximar-se- Suja que estou depois de plantar? vou lavar me antes de entrar. Você vá deitar te.
A silhueta maior vacilou por um momento; logo lhe entregou o abajur. Roger viu a cara do Claire um momento, sorridente e volta para cima. Jaime se inclinou para beijá-la e logo retrocedeu.
-Date pressa, pois –disse. Roger percebeu o correspondente sorriso em sua voz- .Não durmo bem se não tiver a meu lado, Sassenach.
-Pensa dormir em seguida? –Ela fez uma pausa, com um sotaque de brincadeira provocadora na voz.
-Não, em seguida não. –A figura do Jaime se fundiu nas sombras, mas a brisa levou sua voz para a cabana- .Mas tampouco posso fazer nada se não tiver a meu lado, não?
Claire riu brandamente.
-Começa sem mim –disse, girando para o poço -. Já te alcançarei.
Roger aguardou junto à janela até vê-la retornar, balançando o abajur ao caminhar depressa. Ela entrou.
Roger olhou para o bosque; sua pele já estava fresca e o cabelo do peito lhe arrepiou. Ao esfregá-lo, distraído, tocou o sítio dolorido da dentada. Era uma marca escura à luz da lua; seguiria ali quando chegasse a manhã?
Depois, voltou para a cama. Ao passar junto ao berço se deteve para aproximar uma mão, procurando a respiração do bebê através do tul, morna e tranqüilizadora contra sua pele.
Jem se tinha destampado; Roger levantou o tul para agasalhá-lo a provas e lhe rodeou as mantas com firmeza. Havia algo brando... sim, o boneco de trapo; o bebê o tinha apertado contra o peito. Roger lhe pôs a mão nas costas durante um instante, para sentir o sedativo ir e vir de sua respiração.
-boa noite, pequeñín –sussurrou por fim, tocando o pequeno e brando traseiro -. Deus te benza e te proteja.
Despertei ao amanhecer. Tínhamos chegado ao acampamento a noite anterior, depois de uma viagem montanha abaixo e através do vale, até chegar ao sítio de reunião: a plantação do coronel Bryan. Fizemo-lo a tempo; Tryon ainda não tinha chegado com suas tropas desde New Bern, nem tampouco os destacamentos do Craven e Carteret, que trariam consigo as peças de artilharia e os canhões giratórios. esperava-se que Tryon e suas tropas chegassem esse dia.
A senhora Bryan me tinha proposto que me alojasse em sua casa, junto com outras algemas que tinham acompanhado aos oficiais, mas Jaime insistia em dormir no campo, com seus homens, e eu preferi dormir com ele.
Olhei de soslaio, cuidando de não me mover se por acaso ainda dormia. Não era assim, mas estava muito quieto, completamente depravado. Só tinha levantado a mão direita e parecia examiná-la com atenção: era uma mão calejada e maltratada pelo trabalho. A pele estava muito bronzeada e curtida, e coberta de cabelo dourado. Eu lhe encontrava uma beleza notável.
-feliz aniversário –disse em voz baixa- Está fazendo inventário?
-Sim, algo assim. Mas suponho que me faltam algumas horas. Nasci às seis e meia. Só na hora do jantar terei vivido meio século inteiro.
-OH!, não acredito que me vá desprender nada –respondeu, pensativo-. Quanto ao funcionamento... pois bem...
-Tudo parece estar em perfeita ordem –lhe assegurei.
-Bem –disse ele- Como soube o que estava fazendo... inventário?
-Eu o faço sempre, em todos meus aniversários... Mas bem é um olhar para trás, para refletir sobre o ano que acaba de passar. Suponho que todos o fazemos, só para ver se formos a mesma pessoa que no dia anterior.
-Eu estou razoavelmente seguro de me sê-lo assegurou-. Não vejo mudanças notáveis. E você?
Levantei a cabeça para observá-lo cuidadosamente. Em realidade, era bastante difícil avaliá-lo com objetividade; estava de uma vez tão habituada a suas facções e tão afeiçoada com elas que tendia a reparar nos detalhes queridos. Também respondia ao menor mudança em sua expressão. Mas na verdade não o examinava como a um tudo integrado.
-Não –disse ao fim, apoiando de novo o queixo com um suspiro satisfeito-. Segue sendo você.
Grunhiu com ar divertido, mas não se moveu. Um dos cozinheiros passou a pouca distância, a tombos e amaldiçoando ao tropeçar com algo. O acampamento ainda se estava organizando; algumas das companhias eram pulcras e organizadas. Muitas outras não; havia lojas torcidas e peças de equipe pulverizadas pela pradaria, em uma mixórdia quase militar.
-Crie que o governador possa fazer algo com estas tropas? –perguntei, dúbia.
-OH!, sim. Tryon é militar e sabe o que deve fazer... pelo menos para começar. Não é muito difícil fazer que os homens partam em fila e escavem letrinas, sabe? Fazer que combatam é outra coisa.
-E poderá fazê-lo?
-Pode que sim, pode que não. A questão é: será necessário?
Essa era a questão, sim. Os reguladores tinham dez mil homens, que partiam em bloco para New Bern. O general Gage se embarcou em Nova Iorque com um regimento de oficiais para submeter à colônia. A tropa do condado do Orange, elevada em rebelião, tinha matado a seus oficiais. Entre os homens do condado do Wake, a metade tinha desertado. Hermon Husband, prisioneiro a bordo de um navio, ia rumo a Londres para responder às acusações de traição. Hillsborough estava em poder dos reguladores, que se preparavam para incendiar a cidade e passar ao Edmund Fanning e a todos seus associados pelas armas.
- Alguma vez pensa...? –começou Jaime, mas não acabou.
- Se pensar no que?
- Bom, me ocorreu que já vivi mais tempo que meu pai. E isso é algo que não esperava. É que... bom, resulta-me estranho. Perguntava-me se você também pensava nisso.
- Sim. Estava acostumado a fazê-lo quando era mais jovem.
- Eu imaginava como seria ter trinta anos, quarenta, mas agora o que?
- Inventa-te. Olha a outras pessoas. Prova-te outras vidas para ver como lhe sintam. Agarra o que pode usar e buscas dentro de ti mesmo o que não pode achar em outra parte. E sempre te pergunta se o está fazendo bem.
- Sim, isso é –repetiu muito baixo.
O acampamento começava a entrar em atividade, entre ruídos metálicos, golpes secos e o rouco som de vozes dormitadas.
- Esta é uma manhã que meu pai nunca viu –disse Jaime, em voz baixa-. O mundo e cada dia vivido nele é um presente, mo chridhe, sem que importe o que traga o manhã.
¨Jornal da expedição contra os insurgentes¨
Escrito pelo William Tryor, governador
Quinta-feira, 2 de maio
Os destacamentos do Craven e Carteret partiram de New Bern com os dois canhões de campanha, seis canhões giratórios montados sobre cureñas, dezesseis carretas e quatro carros, todos carregados de bagagem, munições e as provisões necessárias para os diversos destacamentos que se incorporariam a eles no trajeto ao domicílio do coronel Bryan em 1 de maio. Hoje se uniram as tropas dos dois distritos.
Sexta-feira, 3 de maio, Union Camp
Às 12 em ponto, o governador passou revista aos destacamentos na pradaria do Smiths Ferry, sobre a borda ocidental do rio Neuse.
Sábado, 4 de maio
A totalidade partiu até o Johnston Court House. Nove milhas.
Domingo, 5 de maio
Parte até a casa do maior Theophilus Hunter, no condado do Wake. Treze milhas.
Segunda-feira, 6 de maio
O exército se deteve e o governador passou revista ao regimento do Wake em uma reunião geral. O senhor Hinton, coronel do regimento, informou ao governador que só tinha vinte e dois homens na companhia que lhe tinha ordenado recrutar, devido ao descontentamento imperante entre os habitantes do condado.
O governador observou um descontente general no regimento do Wake ao passar frente à primeira fila do batalhão, vendo que não mais de um homem de cada cinco tinham armas, e posto que, ante sua convocatória a oferecer-se como voluntários para o serviço, negavam-se a obedecer, ordenou que o exército rodeasse ao batalhão; efetuado isto, ordenou que três de seus coronéis recrutassem a quarenta dos homens mais arrumados e ativos, manobra que causou não pouco pânico no regimento, que à maturação consistia em quatrocentos homens.
Durante o recrutamento, os oficiais do exército atuaram para persuadir aos homens de que se arrolassem; em menos de duas horas elevaram a companhia do Wake a cinqüenta homens. Ao chegar a noite o regimento do Wake foi despedido, muito envergonhado tanto de sua desgraça como de sua própria conduta, que o tinha ocasionado. O exército retornou ao acampamento.
Quarta-feira, 8 de maio
O destacamento do coronel Hinton foi deixado atrás, com vistas a impedir que os descontentamentos desse condado formem um corpo que se uma aos reguladores dos condados adjacentes.
Essa manhã um destacamento partiu à moradia do Turner Tomlinson, notório regulador, e o trouxe prisioneiro ao acampamento, onde foi celosamente encerrado, Confessou ser regulador, mas não fez revelações.
O exército partiu e acampou perto do Booth, em New Hope Creek.
Sexta-feira, 10 de maio
Fizemos alto e ordenamos que as carretas fossem reabastecidas, os cavalos ferrados e reparado tudo o que fizesse falta. passou-se revista no Hillsborough a dois compañias da tropa do Orange.
Esta tarde se fugiu o prisioneiro Tomlinson. Os destacamentos enviados atrás dele não tiveram êxito.
Domingo, 12 de maio
Partimos e vadeamos o rio Haw para acampar na ribeira oeste. esperava-se que os reguladores se opor ao passo dos realistas por esse rio, tal como era sua intenção, mas ao não suspeitar que o exército sairia do Hillsborough antes da segunda-feira, este súbito movimento do exército os derrotou nessa parte de seu plano.
Hoje recebemos informe que o general Waddell foi obrigado pelos reguladores a cruzar novamente o rio Yadkin com as tropas a seu mando.
Ofício Divino, com Sermão, celebrado pelo reverendo senhor McCartny, Texto: ¨Se não ter espada, vende seu objeto e compra uma.¨
No dia de hoje vinte cavalheiros voluntários se incorporaram ao exercito, principalmente nos condados do Granville e Bute. conformou-se com eles uma tropa de cavalaria ligeira, ao mando do maior MacDonald. Partida-las dos flancos capturaram a um regulador, tendido em emboscada com sua arma. O delegado retirou de sua casa parte de um tonel de rum, posto ali para uso dos reguladores. Também alguns porcos que deviam ser atribuídos a sua família.
Segunda-feira, 13 de maio
Parte até Ou´Neal. Às doze em ponto chegou um cavaleiro enviado pelo general Waddell com uma mensagem verbal, pois não se atreveu a trazer uma carta por medo a ser interceptado. A mensagem informava que, na quinta-feira 9 de noite, os reguladores rodearam seu acampamento em um números de dois mil e, da maneira mais atrevida e insolente, requereram que o general se retirasse com suas tropas ao outro lado do rio Yadkin, que estava a duas milhas de distância. Ele recusou obedecer, informando que o governador lhe tinha dado ordens de avançar. Ante isso aumentou a insolência dos reguladores, que tentaram intimidar a seus homens com muitos gritos índios.
O general, vendo que seus homens não passavam de trezentos, que não estavam dispostos a combater, e que muitos de seus sentinelas se passavam aos reguladores, viu-se obrigado a cumprir com o pedido; pela manhã cedo voltou a cruzar o rio Yadkin, com seu canhão e sua bagagem. Os reguladores acordaram dispersar-se e retornar a seus domicílios.
Imediatamente se celebrou um conselho de guerra para deliberar sobre a informação gasta pelo cavaleiro: compunham-no o Honorável John Rutherford, Lewis DeRosset, Robert Palmer e Sam Cornell, do Conselho de sua majestade, e os coronéis e oficiais de campo do exército. Ali resolveu que o exército devia trocar seu rumo, partir da moradia do capitão Holt pela rota que conduz do Hillsborough ao Salisbury, cruzar os rios Alamance, o pequeno e o grande, com toda a prontidão possível, e partir sem perda de tempo a reunir-se com o general Waddell. Por ende o exército ficou em marcha e, antes de obscurecer, acampou na borda esquerda do pequeno Alamance. ordenou-se que um forte destacamento se adiantasse para apoderar-se dos ribazos ocidentais do Grande Alamance, a fim de impedir que partidas inimizades ocupassem esse importante posto.
Este entardecer recebemos informação de que os reguladores enviavam exploradores a todos seus assentamentos para congregar-se na Sandy Creek, perto do domicílio do Hunter.
Partimos e nos unimos ao destacamento em ribeira oeste do Grande Alamance, onde foi escolhido um bom sítio para acampar. Ali o exército fez alto até que pudessem se traz mais provisões desde o Hillsborough, para cujo fim se esvaziaram várias carretas que foram enviadas do acampamento para sHillsborough.
Tendo chegado este entardecer a informação de que os rebeldes pensam atacar o acampamento durante a noite, fizeram-se os necessários preparativos para um combate. ordenou-se a um terço do exército permanecer sob as armas toda a noite; ao resto, deitar-se com elas à mão. Não se deu aviso de alarme.
Terça-feira, 14 de maio
Fizemos alto e se ordenou aos homens não sair do acampamento.
O exército esteve em armas toda a noite, como ontem. Não houve alarme.
Quarta-feira, 15 de maio
ao redor das seis da tarde, o governador recebeu uma carta dos insurgentes, que apresentou ao conselho de guerra, onde se determinou que o exército devia encontrar-se com os rebeldes a primeira hora da manhã seguinte que o governador lhes enviaria uma carta lhes oferecendo as condições e, em caso de negativa, atacaria-se.
Os homens passaram a noite em armas. Não se deu o alarme, embora os rebeldes se encontram a cinco milhas do acampamento.
Do ¨Livro do Sonhos¨
Hillsborough, 15 de maio
¨Ontem à noite dormi cedo e despertei antes do amanhecer, dentro de uma nuvem cinza. Durante todo o dia me hei sentido como se caminhasse dentro da bruma; falam-me e não ouço; vejo que as bocas se movem e assento, sorrio e logo vou. O ar está quente e muito úmido; tudo cheira a metal quente. Dói-me a cabeça e a cozinheira está fazendo muito ruído com as caçarolas.
¨Hei pasadotodo o dia tratando de recordar o que sonhei, mas não posso. Só cinza e uma sensação de medo. Nunca estive perto de uma batalha, mas tenho a sensação de que o que sonho é fumaça de canhões.¨
Jaime retornou do conselho de guerra bem passada a hora do almoço e informou brevemente aos homens quais eram as intenções do Tryon. A reação geral foi de aprovação, que não de franco entusiasmo.
-Melhor nos mover agora –disse Ewald Mueller- . Se esperarmos mais, criamos musgo.
Essa opinião foi recebida com risadas e gestos de assentimento. O humor da companhia se animou notavelmente ante a perspectiva de entrar em ação pela manhã.
Jaime fez um rápido percurso de inspeção, respondendo perguntas e acalmando inquietações; logo veio a reunir-se comigo ante nossa pequena fogueira. Observei-os com atenção; face às tensões da situação imediata, havia nele um ar de satisfação contida que despertou imediatamente minhas suspeitas.
- O que tem feito? –perguntei-lhe, enquanto entregava uma grande parte de pão e uma tigela de guisado.
-retive ao Cornell por um bom momento depois do conselho, para lhe perguntar pelo Stephen Bonnet. –Arrancou uma parte de pão com os dentes e o tragou sem logo que mastigá-lo- Cristo, estou faminto! Não comi nada em todo o dia; passei-o me arrastando entre os espinheiros, como as serpentes.
- Não acredito que Samuel Cornell estivesse arrastando-se entre os espinheiros.
- Não, isso foi depois. Estivemos procurando as linhas dos rebeldes –explicou- . Não estão muito longe, sabe? Embora falar de linhas é lhes conceder o benefício de uma considerável duvida. Não tinha visto chusma como essa desde aquela vez na França, quando tomamos uma aldeia onde se alojavam uma banda de contrabandistas de vinho. A metade deles estavam com prostitutas, e todos bêbados; para prendê-los foi preciso levantá-los do chão. Estes não são muito melhores, por isso pude ver, embora não há tantas rameiras –acrescentou para ser justo.
- averiguaste algo sobre o Bonnet?
Ele assentiu.
- Cornell não o conhece pessoalmente, mas ouviu comentários. Parece que o tio trabalha ao redor dos Bancos Exteriores por um tempo e logo desaparece durante três ou quatro meses. Reaparece um dia qualquer, nos botequins do Edenton ou Roanoke, com os bolsos repletos de ouro.
- Isso significa que traz mercadorias da Europa e as vende. –Três ou quatro meses era o tempo que demorava um navio em chegar a Inglaterra e retornar- Contrabando?
Jaime assentiu com a cabeça.
- É o que Cornell pensa. E a que não sabe onde desembarca a mercadoria? No mole do Wylie. Ao menos assim se rumorea.
- O que? Quer dizer que Phillip Wylie está associado com ele? –Foi uma inquietante surpresa escutar isso. Mas Jaime moveu a cabeça.
- Não poderia assegurá-lo. Mas o mole está junto à plantação do Phillip Wylie, sem dúvida alguma. E esse afemine estava com o Bonnet a noite em que veio ao River Run, embora depois o tenha negado –acrescentou. Logo agitou uma mão, descartando momentaneamente ao Phillip Wylie- .Mas Cornell diz que Bonnet tornou a desaparecer; este último mês não o viu, de modo que minha tia e Duncan parecem estar a salvo, no momento. Uma preocupação menos para mim... e me alegro; já tenho suficientes. –Disse-o sem ironia, percorrendo com o olhar o acampamento que nos rodeava- .Hermon Husband está aqui –acrescentou.
Apartei a vista da tigela que estava enchendo de guisado.
- falaste com ele?
-Não pude me aproximar. Está com os reguladores, recorda? Vi-o de longe; eu estava em uma pequena colina, olhando através do arroio. Estava rodeada de uma grande massa de homens, mas sua vestimenta é inconfundível.
- O que fará? –Entreguei-lhe a tigela enche- . Não acredito que combata... nem que lhes permita combater.
Inclinava-me por considerar que a presença do Husband era um sinal de esperança. Ele era o mais parecido a um líder que havia entre os reguladores; estava segura de que o escutariam.
Jaime, em troca, parecia preocupado.
- Não sei, Sassenach. Não acredito que empunhe pessoalmente as armas, não, mas quanto a outros...
Deixou a frase sem terminar enquanto refletia. Logo sua cara expressou uma repentina decisão. Devolveu-me a tigela e, girando sobre seus talões, cruzou o acampamento. Vi-o tocar ao Roger no ombro e levá-lo à parte. Ambos conversaram alguns momentos; logo Jaime extraiu de sua jaqueta algo branco e o entregou. Roger o olhou um momento. Logo fez um gesto afirmativo e o escondeu sob sua própria jaqueta.
Jaime o deixou com uma palmada no ombro e voltou a cruzar o acampamento, embora se deteve trocar um par de comentários risonhos e grosseiros com os irmãos Lindsay. Retornou aliviado e sorridente.
- indiquei ao Roger MAC que vá em busca do Husband a primeira hora da manhã –explicou, atacando a tigela de guisado com renovado apetite- .Pedi-lhe que o traga, se puder, para que fale com o Tryon cara a cara. Se ele não consegue convencer ao Tryon (e não acredito que possa), talvez este possa convencê-lo a ele de que a coisa vai a sério. Se Hermon vir que haverá derramamento de sangue, talvez possa convencer a seus homens de que deponham as armas.
- De verdade o crie?
- Não sei –disse simplesmente- .Mas nada se perde provando, não é certo?
Fiz um gesto afirmativo e me inclinei para jogar mais troncos no fogo. Essa noite ninguém se deitaria cedo.
Às gente agora elevadas em armas,
Que se autodenominan reguladores:
Em resposta a sua petição, devo lhes informar de que sempre estive atento aos verdadeiros interesses deste país e ao de todos os indivíduos que nele residem. Lamento a fatal necessidade a que agora me obrigaram, ao retirar-se da misericórdia da Coroa e das leis, de lhes requerer que deponham as armas, entreguem aos cabeças proscritos e se submetam às leis de seu país, e logo confiem na indulgência e a compaixão do governo. Ao aceitar estes términos no curso de uma hora a partir da entrega deste despacho, evitarão um derramamento de sangue, pois neste momento se encontram vocês em estado de guerra e rebelião contra seu rei, seu país e suas leis.
Quando despertei, Jamie se tinha ido; sua manta estava dobrada a meu lado e Gideon não estava sob o carvalho ao que Jamie o tinha pacote a noite anterior.
- O coronel foi a reunir-se com o conselho de guerra do governador –me disse Kenny Lindsay, com um enorme bocejo- . Chá ou café, senhora?
- Chá, por favor.
Talvez era o curso dos acontecimentos atuais os que me faziam pensar na festa do Chá de Boston. Não recordava quando devia ter lugar essa revolta e os fatos subseqüentes, mas tinha a escura sensação de que convinha aproveitar qualquer oportunidade de tomar chá enquanto ainda pudesse consegui-lo, com a esperança de saturar minhas malhas.
Reposta com o chá, agarrei um par de cântaros e me encaminhei para o arroio. Esperava que não fizesse falta, mas não estaria de mais ter água fervida à mão, no caso de.
Quando voltei para acampamento o encontrei já acordado e com todos os homens em estado de alerta, embora com os olhos avermelhados. Entretanto não parecia haver preparativos para uma batalha imediata; só a volta do Jamie despertou um movimento de interesse geral. Gideon serpenteou entre as fogueiras com surpreendente delicadeza.
- Como estão as coisas, MAC Dubh? –perguntou Kenny, levantando-se para saudá-lo- . Alguma novidade?
Ele negou com a cabeça. Vestia com esmero próximo à severidade: o cabelo recolhido para trás, adaga e pistolas à cintura, espada ao flanco. Preparado para a batalha; ao me pensá-lo correu um calafrio pela coluna.
- O governador enviou sua carta aos reguladores. Quatro delegados levaram uma cópia cada um. Devem lê-la a cada grupo com que se cruzem. É preciso esperar e ver o que acontece.
Segui seu olhar por volta da terceira fogueira. Roger devia ter partido com a primeira luz, antes de que o acampamento despertasse.
Depois de esvaziar os cubos no hervidor, recolhi-os para fazer outra viagem ao arroio, mas Gideon ergueu as orelhas e levantou súbitamente o testuz, com um forte relincho. Imediatamente Jamie o taloneó para pô-lo diante de mim e baixou a mão à espada. O enorme peito e a cruz do cavalo me bloqueavam a vista, me impedindo de ver quem vinha, mas notei que a mão do Jamie se relaxava no punho da espada. Devia ser um amigo.
Para ouvir a saudação de uma voz familiar, olhei por debaixo dos beiçudos do Gideon: o governador Tryon vinha cruzando a pequena pradaria, acompanhado por dois ajudantes de campo. depois de deter seu cavalo, saudou o Jamie tocando o chapéu. À lombriga à sombra do Gideon, o tirou em um gesto de cortesia, inclinando-se na cadeira.
- A suas ordens, senhora Fraser. –Jogou uma olhada aos cubos que eu carregava e se voltou por volta de um dos ajudantes- . Senhor Vickers, você tenha a amabilidade de ajudar à senhora Fraser.
Muito agradecida, entreguei os cubos ao senhor Vickers, mas em vez de ir com ele me limitei a lhe indicar aonde devia levá-los. Tryon me olhou com uma sobrancelha arqueada, mas eu respondi com um suave sorriso e me mantive em meus treze. Não me moveria dali.
Teve a inteligência de entendê-lo e, em vez de pôr objeções a minha presença, me soslayó.
- Suas tropas estão em ordem, coronel Fraser?
- Sim, senhor.
O governador arqueou as duas sobrancelhas, com visível cepticismo.
- Convoque-os, senhor. Quero inspecionar sua preparação.
Jamie fez uma pausa para agarrar as rédeas. Logo avaliou a arreios do Tryon, entreabrindo os olhos contra o sol nascente.
- Bom cavalo o seu, senhor. É tranqüilo?
- É obvio. –O governador franziu o sobrecenho- . por que?
Jamie jogou a cabeça para trás para emitir um te ululem grito das montanhas escocesas, daqueles que devem ouvir-se grande distancia. O cavalo do Tryon atirou das rédeas e pôs os olhos em branco. Da maleza brotaram milicianos chiando como demônios; uma negra nuvem de corvos estalou nas árvores, elevando bulliciosamente o vôo, como se fossem a baforada de fumaça de um canhão. O cavalo se elevou de mãos, desmontando ao Tryon, que ficou atirado na erva, e fugiu através da pradaria.
Dava vários passos para trás para me pôr fora do passo.
O governador se incorporou, purpúreo e ofegante, só para descobrir que era o centro de um arco de sorridentes milicianos que lhe apontavam com suas armas. Ele cravou um olhar flamígera no canhão do rifle que tinha ante a cara e o apartou com uma mão, fazendo ruídos de esquilo zangado. Jamie pigarreou de uma maneira muito significativa, com o que os homens se esfumaram silenciosamente pelo bosquecillo.
O senhor Vickers reapareceu saindo do bosque, com cara de sobressalto e um cubo de água em cada mão.
- O que aconteceu? –ia aproximar se do Tyron, mas eu o detive com uma mão. Era melhor dar ao governador um momento para recuperar tanto seu fôlego como sua dignidade.
- Nada importante –disse, recuperando meus cântaros antes de que pudesse derrubá-los- . Né… sabe quantos milicianos congregou aqui?
- Mil e sessenta e oito, senhora –disse, completamente sentido saudades- . Sem contar as tropas do general Waddell, é obvio. Mas o que?
- E têm canhões?
- OH!, sim vários, senhora. Temos dois destacamentos com artilharia. Dois de seis, dez canhões giratórios e dois morteiros de oito libras.
- Ao outro lado do arroio há dois mil homens, senhor, mas estão quase desarmados. Muitos não têm mais que uma faca. –A voz do Jamie chegou de detrás, atraindo a atenção do Vickers.
- Isso me hão dito, senhor Fraser –disse Tryon secamente- , embora me agrada saber que sua informação corrobora a minha. Senhor Vickers, você terá a bondade de ir em busca de meu cavalo?
- Suponho que seus agentes também lhe hão dito que os reguladores não têm nenhum líder real.
- Pelo contrário, senhor Fraser. Tenho a impressão de que Hermon Husband é e foi durante bastante tempo um dos principais agitadores deste movimento. Outro nome que vi freqüentemente é o do James Hunter, assinando cartas de protesto e as intermináveis solicite que chegam a New Bern. E há outros: Hamilton, Gillespie…
- Em algumas circunstâncias, senhor, estaria disposto a discutir com você se a pluma for mais capitalista que a espada…, mas não ao bordo de um campo de batalha, como estamos agora. A audácia na redação de panfletos não faz a um homem apto para dirigir tropas. E Husband é qualquer.
- Isso me hão dito –conveio Tryon. Assinalou para o arroio distante, com uma sobrancelha elevada em desafio- . Entretanto está aqui.
- Está aqui –confirmou Jamie.
Fez uma pausa, avaliando o humor do Tryon antes de continuar. O governador estava muito tenso, mas a batalha não era ainda iminente e sua tensão estava bem controlada. Ainda podia escutar.
Esse homem comeu em minha casa, senhor –disse Jamie, com cautela- . E eu comi na sua. Nunca ocultou suas opiniões nem seu caráter. Se estiver hoje aqui, não duvido que veio com a mente atormentada.
Respirou fundo. Estava pisando terreno perigoso.
- Fiz que um de meus homens cruzasse o arroio em busca do Husband, senhor, para lhe rogar que se entreviu comigo. Possivelmente possa persuadi-lo para que se use seu considerável influencia sobre esses homens, esses cidadãos –assinalou brevemente o arroio e os invisíveis seguidores que acampavam mais à frente- , lhes fazendo abandonar esse desastroso curso de ação, que só pode acabar em tragédia.
Olhou ao Tryon diretamente aos olhos.
- Posso lhe pedir, senhor… posso lhe rogar…? Se Husband viesse, falaria você mesmo com ele?
Tryon guardou silêncio, sem conscientiza de estar dando voltas e voltas ao poeirento tricornio entre as mãos.
- São cidadãos desta colônia –disse ao fim, movendo a cabeça em direção ao arroio- . Lamentaria que sofressem algum dano. Seus queixa não carecem de fundamento; reconheci-o assim, publicamente!, e tomei medidas para que os indenize.
Jogou uma olhada ao Jamie, para ver se aceitava essa asseveração. Ele esperou em silêncio. Tryon aspirou fundo e se golpeou uma coxa com o chapéu.
- Não obstante, sou governador desta colônia. Não posso permitir que se perturbe a paz, que se desobedeça a lei, que os desmandos e o derramamento de sangue fiquem impunes. –Olhou-me com tristeza- . E não o farei.
Logo sua atenção voltou para o Jamie.
- Acredito que não virá, senhor. Eles fixaram seu curso e eu o meu. Mesmo assim… - Vacilou por um momento, mas logo moveu a cabeça, decidido- . Não, se realmente vier, você raciocine com ele, por favor. Se acessar a conseguir que seus homens retornem pacificamente a casa, só então me traga isso para que acordemos as condições. Mas não posso procurar essa possibilidade.
Jamie sustentou o olhar ao governador um momento. Logo aceitou o inevitável.
- Quanto tempo? –perguntou em voz baixa.
Tryon jogou uma olhada ao sol; faltava muito pouco para a meia amanhã. Roger tinha partido duas horas antes. Quanto podia demorar para encontrar ao Hermon Husband e retornar?
- As companhias estão preparadas para o combate –opinou Tryon. E jogou um olhar ao bosquecillo, com uma leve contração na boca. Logo cravou um olhar carrancudo ao Jamie- . Não falta muito. Esteja preparado, senhor Fraser.
E ficando o chapéu, agarrou as rédeas e montou seu cavalo. afastou-se sem olhar atrás, seguido por seus ajudantes.
Suspeitos
Artículo12: Nenhum oficial nem soldado poderá ir além dos limites do acampamento que estejam dentro da distância do grande guarda.
Artículo63: Os oficiais ao mando devem interrogar a todas aquelas pessoas que lhes pareçam suspeitas; e aqueles que não possam dar uma explicação convincente de sua presença serão confinados, logo depois do qual apresentará um relatório ao Quartel Geral.
“ Deveres e regras do acampamento” :
Ordens dadas por sua excelência o governador Tryon
Aos provincianos da Carolina do Norte
Roger se tocou o bolso das calças, onde tinha guardado a insígnia que o identificava como miliciano: um botão de quatro centímetros de diâmetro, com o bordo perfurado e estampada com um tosco “ CF” , que significava “ Companhia do Fraser” ; costuradas na jaqueta ou no chapéu, essas insígnias, assim como os distintivos de pano, eram o único uniforme para a maior parte da infantaria do governador e o único meio de distinguir a um miliciano de um regular.
- E como sabe um contra quem deve disparar? –tinha perguntado ironicamente dois dias antes, quando Jamie lhe entregou aquilo- . Se te aproximar o suficiente para ver a insígnia antes de disparar, não disparará primeiro o outro tio?
Por minha parte não esperaria –disse Jamie- . Se alguém correr para ti com um revólver, dispara e roga que tudo saia bem. Cada companhia seguirá seu próprio caminho, de modo que não é provável que veja nenhum outro miliciano, pelo menos ao princípio. Se alguém vier para nós, provavelmente será o inimigo.
Logo curvou um pouco para cima a boca, assinalando com um gesto a todos os homens que os rodeavam, ocupados com o jantar.
- Conhece bem a todos loas que estão aqui? Não díspares contra nenhum deles e irá bem, de acordo?
Com um sorriso melancólico, Roger descendeu cuidadosamente por uma costa coberta de diminutas novelo com flores amarelas. Na intimidade havia resolvido não disparar contra ninguém, quaisquer que fossem as circunstâncias ou a possibilidade de dar no branco. Tinha escutado suficientes relatos de reguladores: Abel MacLennan, Hermon Husband. Até tendo em conta o estilo naturalmente hiperbólico do Husband, seus panfletos ardiam com ineludible sentido de justiça. Como ia Roger a matar ou mutilar a um homem só por protestar contra uns abusos e uma corrupção tão flagrantes que deviam ofender a qualquer pessoa justa?
Para ouvir vozes se deteve um momento; logo se escondeu sem fazer ruído depois do tronco de um álamo grande. Um momento depois apareceram três homens, conversando entre si com ar despreocupado. Os três levavam armas e caixas de munições, mas não davam a impressão de ser carrancudos soldados em vésperas de uma batalha, a não ser três amigos que tivessem saído a caçar coelhos.
Enquanto Roger observava desde seu esconderijo, um homem se deteve com a mão em alto; seus camaradas ficaram rígidos como cães de caça, com o nariz apontado para um grupo de árvores, a uns sessenta metros de distância.
Até sabendo que havia algo ali, Roger demorou um momento em distinguir ao pequeno veado, muito quieto contra um grupo de árvores jovens; o véu de luz salpicada que penetrava por entre as folhas primaveris o dissimulava quase completamente à vista.
O primeiro homem desprendeu sigilosamente a arma do ombro e jogou mão de um cartucho, mas um de seus companheiros o deteve lhe pondo uma mão no braço.
- Espera, Abram –disse, em voz baixa mas clara- . Não te convém disparar tão perto do arroio. Já ouviste o que disse o coronel: os reguladores estão reunidos na ribeira, perto desse ponto. –Assinalou com a cabeça o denso bosquecillo de alisos e salgueiros que marcava o bordo do arroio invisível, a cem metros escassos- . Não vás provocar os justamente agora.
Abram assentiu a contra gosto e voltou a pendurar o rifle do ombro.
- Sim, suponho que sim. Criem que será hoje?
- Não vejo como. –O terceiro homem tirou da manga um lenço amarelo para enxugá-la cara; o clima era caloroso e úmido- . Tryon tem os canhões instalados do amanhecer; o tio não vai permitir que ninguém lhe salte em cima. Poderia esperar aos homens do Waddell, mas talvez pense que não os necessita.
Abram soprou com leve desprezo.
- Para esmagar a essa chusma? Viu-os? Em minha vida vi piores soldados.
O homem do lenço sorriu cinicamente.
- Bom, mesmo assim, Abie, viu a esses milicianos de terra adentro? Isso sim que é chusma. E falando dos reguladores, são muitos, chusma ou não. Dois a um, diz o capitão Neale.
Abram grunhiu, jogando um último olhar ao bosque e ao arroio.
- Chusma –repetiu, mais crédulo. E lhes voltou as costas- . Vai!, vamos jogar uma olhada mais acima.
Os caçadores estavam no mesmo bando que ele; não levavam distintivo, mas sim as insígnias de miliciano no peito e no chapéu, brilhos chapeados sob o sol da manhã. Mesmo assim Roger se manteve à sombra até que os homens tiveram desaparecido. Estava razoavelmente seguro de que Jamie o tinha enviado a essa missão sem mais autoridade que a sua; era melhor que não lhe pedissem explicações.
A atitude dos milicianos para com a Regulação era, no melhor dos casos, desdenhosa. No pior (entre os oficiais superiores) de fria vingança.
- Esmaguemos os de uma vez por todas –havia dito Caswell a noite anterior, enquanto tomava seu café junto ao fogo. Era dono de uma plantação na parte oriental da colônia e não simpatizava absolutamente com as queixa dos reguladores.
Roger voltou a dar uma palmada a seu bolso, pensativo. Não, era melhor deixar a insígnia ali. Se o detinham poderia mostrá-la. E não acreditava que ninguém lhe disparasse pelas costas sem lhe dar ao menos um grito de advertência.
Com a aprovação do Jamie tinha deixado seu mosquete no acampamento, não trazia mais arma que a faca, elemento normal para qualquer homem. Pelo resto, toda sua equipe era um grande lenço branco, dobrado dentro de sua jaqueta.
- Se alguém te ameaçar, seja onde for, agita-o e grita “ Trégua!” - tinha-lhe indicado Jamie- . Logo lhes diga que vão me buscar. E não diga nada mais até que eu chegue. Se ninguém lhe impedir isso, ponha sob o amparo do Husband e traz-o contigo.
Ao imaginar-se trazendo para o Hermon Husband do outro lado do arroio, com o lenço ondulando por cima de sua cabeça no extremo de um pau, como se fora um guia turístico no aeroporto, sentiu desejos de uivar de risada. Mas Jamie não tinha sorrido sequer, de modo que ele aceitou o tecido com ar solene e o guardou cuidadosamente. Jogou uma olhada entre as folhas que penduravam, mas o arroio passava faiscando ao sol, sem mais ruído que o sussurro da água contra a pedra e a argila. Não havia ninguém à vista e o rumor da água afogava qualquer ruído que pudesse provir desde além das árvores, ao outro lado. Embora os milicianos não lhe disparassem pelas costas, não estava tão seguro de que os reguladores não fuerana lhe disparar de frente, em caso de vê-lo cruzar do lado do governo.
Mesmo assim não podia passar o dia escondido entre as árvores. Saiu ao ribazo e caminhou águas abaixo, para o ponto que tinham indicado os caçadores, tratando de distinguir entre as árvores qualquer sinal de vida. Perto desse ponto, o cruzamento era melhor: pouca profundidade e fundo rochoso. Mesmo assim, se os reguladores estavam “ congregados” nas cercanias, guardavam absoluto silêncio.
Teria sido difícil imaginar uma cena mais aprazível; entretanto o coração o martilleó súbitamente nos ouvidos. Voltava a experimentar essa estranha sensação de que havia alguém muito perto. Olhou em todas direções, mas nada se movia, salvo a corrente da água e as folhas dos salgueiros.
- É você, papai? –disse pelo baixo. E imediatamente se sentiu tolo. Mesmo assim, a sensação de que havia alguém ali seguia presente, embora era uma sensação positiva.
Por fim, com um encolhimento de ombros, agachou-se para tirá-los sapatos e as médias. Sem dúvida era pelas circunstâncias. Claro que ninguém podia comparar o fato de vadear um arroio em busaca de um qualquer bagunceiro com o de pilotar um Spitfire através do Canal para bombardear a Alemanha. Mas toda missão é uma missão, disse-se.
Voltou a olhar a seu redor, mas só havia girinos que se retorciam no fundo. Com um sorriso um pouco torcido, colocou o pé na água, com o que os girinos fugiram freneticamente.
- Aqui estamos –disse a um pato silvestre.
Não se ouvia nada entre as árvores de um lado ou do outro, nada, salvo o alegre bulício dos pássaros. Só quando se sentou em uma rocha morna pelo sol para secá-los pés e voltar a calçar-se, só então ouviu por fim alguma sinal de que essa borda estivesse povoada por seres humanos.
- Anda e me diga o que quer, bombom.
- Não sei, preciosa. Quanto me custará?
- Oohh, mas escuta-o! Verdade que não é momento para contar os peniques?
- Não se preocupem, senhoras. Se for necessário faremos uma coleta.
- Ah, com que assim o fazem vocês? Pois seja, senhor, mas tenham em conta que, nesta paróquia, a coleta vai antes dos cânticos.
Ao escutar esta amistosa negociação, Roger deduziu que as vozes em questão pertenciam a três homens e a duas mulheres, e todos pareciam seguros de que, quaisquer que fossem os acertos financeiros, três penetrariam em duas sem dificuldades nem conseqüências molestas.
Recolheu seus sapatos e se escabulló silenciosamente, deixando aos invisíveis sentinelas (se acaso o eram) dedicados a seus cálculos. Pelo visto, o exército da Regulação não estava tão organizado como as tropas do governo.
O qual era pouco dizer, conforme pensou algo depois. Como não sabia com certeza onde estava o corpo principal do exército, tinha percorrido uns quatrocentos metros pelo ribazo, sem ver nem ouvir ninguém, salvo às duas prostitutas e a seus clientes. Com a crescente sensação de estar fora da realidade, cruzou sem rumo pequenos pinares e bordeó pradarias cobertas de ervas, sem mais companhia que os pássaros em pleno cortejo e pequenas mariposas alaranjadas e amarelas.
- Esta é maneira de liberar uma guerra? –murmurou, enquanto se abria passo entre matas de amora.
de repente, ao rodear um meandro do arroio, viu os reguladores propriamente ditos: um grupo de mulheres que lavavam a roupa na corrente, junto a um montão de rochas.
Voltou a esconder-se na maleza antes de que o vissem e se separou do arroio, já com mais ânimo. Se havia mulheres ali, os homens não deviam estar longe.
Assim era. uns quantos metros mais à frente ouviu os ruídos de um acampamento: vozes despreocupadas, risadas, ressonar de colheres e caçarolas, o golpe seco da tocha ao partir lenha. Ao rodear um arbusto de espinillo esteve a ponto de ser derrubado por uma panda de jovens que passaram correndo, entre gritos e chiados.
Passaram junto ao Roger sem olhá-lo duas vezes; ele continuou a marcha, já sem tanta cautela. Ninguém lhe deu o alto; não havia sentinelas. Na verdade, as caras desconhecidas não pareciam ser ali novidade nem ameaça. Alguns o olharam sem lhe dar importância e continuaram com suas conversações, sem ver nada estranho em sua aparição.
- Procuro o Hermon Husband –disse sem rodeios a um homem que assava um esquilo nas chamas de uma fogueira. Por um momento o interpelado pareceu não entender- . O qualquer.
- Ah!, sim. –As facções do homem se esclareceram- . Está por ali… nessa direção, acredito.
“ por ali” resultou ser um bom trecho. Roger atravessou outros três acampamentos dispersos antes de chegar ao que parecia ser o corpo principal do exército… se lhe podia dignificar com esse término. O ambiente parecia cada vez mais sério. Mesmo assim, aquilo estava muito longe de ser o quartel geral de um comando estratégico.
Aqui a situação era muito diferente que nas ordenadas forças da tropa, mas ainda menos preparada para hostilidades imediatas. Não obstante, ao avançar um pouco mais, perguntando o caminho ante cada fogueira pela que acontecia, começou a perceber algo diferente na atmosfera: uma urgência crescente, quase desesperada. Os jogos bruscos dos acampamentos mais afastados tinham desaparecido; ali os homens discutiam em grupos fechados, com as cabeças juntas, ou permaneciam a sós, carrancudos, carregando as armas e afiando as facas.
Conforme se aproximava, o nome do Hermon Husband era reconhecido por todos e os índices assinalavam o rumo com mais segurança. Seu sobrenome parecia quase um ímã que o atraía mais e mais ao centro de uma massa cada vez mais densa; compunham-na homens e moços, todos armados. O ruído ia em aumento; as vozes lhe golpeavam os ouvidos como martelos na forja.
Por fim encontrou ao Husband; estava de pé em uma pedra, como um grande lobo cinza encurralado, rodeado por trinta ou quarenta homens que clamavam em furiosa agitação. Abundavam as cotoveladas e os pisões, sem considerar a quem foram dirigidos. Obviamente exigiam uma resposta, mas lhes era impossível fazer uma pausa para escutá-la.
Husband, em mangas de camisa e vermelha a cara, falava com gritos com um ou dois dos que estavam mais perto, mas Roger não pôde ouvir uma palavra por cima do bulício generalizado. abriu-se passo através dos círculos exteriores, mas o apertado da multidão o deteve perto do centro. Ao menos ali pôde distinguir umas quantas palavras.
- É preciso! Bem sabe, Hermon, que não há opção! –gritou um homem mirrado, de chapéu maltratado.
- Sempre há opção! –uivou Husband a sua vez- . chegou o momento de escolher! E Deus nos diz que o façamos com prudência!
- Sim, com os canhões apontados contra nós?
- Não, não, terá que avançar. Terá que avançar ou tudo estará perdido!
- Perdido? até agora o perdemos tudo! Devemos…
- O governador nos deixou sem alternativa. É preciso…
- É preciso…
- É preciso!
As palavras soltas se perdiam em um rugido geral de ira e frustração. Ao ver que nada obteria se aguardava ter público, Roger se abriu aconteço implacavelmente entre dois granjeiros e sujeitou ao Husband pela manga da camisa.
- Senhor Husband, devo falar com você! –gritou-lhe ao ouvido.
O qualquer o olhou com olhos frágeis. Fez gesto de livrar-se, mas logo piscou ao reconhecê-lo. Sua cara quadrada estava vermelha por cima da barba enchente; o cabelo áspero e cinza, sem atar, arrepiava-se como puas de puercoespín. Sacudiu a cabeça com os olhos fechados; ao abri-los olhou ao Roger como se tratasse inutilmente de dissipar uma visão impossível.
Aferrou ao Roger por um braço e, com um gesto feroz para a multidão, desceu de um salto de sua pedra para procurar refúgio em uma maltratada cabana que se incitava, como ébria, à sombra de alguns arces. Roger foi atrás dele, depois de arrojar um olhar fulminante aos mais próximos, a fim de desalentar a perseguição.
Mesmo assim uns quantos os seguiram, com muito agitar de braços e gritos acalorados, mas Roger lhes fechou a porta na cara e jogou o ferrolho; logo apoiou as costas contra a porta, para maior segurança. Husband se deteve no centro, ofegante; logo agarrou uma chaleira para beber a grandes goles a água de um cubo posto no lar; era o único objeto que ainda ficava na cabana.
- O que lhes traz por aqui, amigo MacKenzie? –perguntou com característica suavidade- . Acaso vêm a lhes unir à causa da Regulação?
- Não, claro que não- assegurou-lhe Roger. Jogou um olhar cauteloso à janela, temendo que a multidão tentasse entrar por ali, mas não se ouviam ruídos de ataque imediato contra o edifício, embora fora o rumor de vozes continuava com a discussão- . vim a lhe perguntar se estaria disposto a cruzar o arroio comigo para falar com o Jamie Fraser. Sob bandeira de trégua, sua segurança estaria garantida.
Husband também jogou uma olhada à janela.
- Temo que o tempo de falar já passou- disse, com uma irônica torção de lábios.
Roger era da mesma opinião, mas insistiu, decidido a cumprir com seu encargo.
- No que ao governador concerne, não é assim. Não tem nenhum desejo de massacrar a seus próprios cidadãos; se se pudesse persuadir à multidão de que se dispersasse pacificamente…
- Parece-lhes uma perspectiva provável? –Husband assinalou a janela com um gesto cínico.
- Não –reconheceu Roger- . Mesmo assim, se você viesse… se eles vissem que existe alguma possibilidade de…
- Se houvesse uma possibilidade de reconciliação e indenização, teriam devido oferecê-la muito antes –ou interrompeu Husband- . Assim demonstra o governador sua sinceridade? Vem com tropas e canhões para enviar uma carta que…?
- De indenização não –disse o jovem sem rodeios- . Refiro-me à possibilidade de salvar a vida a esta gente.
- chegamos a isso? –perguntou em voz baixa, olhando o de frente.
Roger aspirou fundo e fez um gesto afirmativo.
- Não há muito tempo. O senhor Fraser me encomendou lhe dizer, se não ir você a falar pessoalmente com ele, que há duas companhias de artilheiros desdobradas contra vocês e oito mil milicianos, todos bem armados. Tudo está preparado. E o governador não esperará muito tempo; no máximo até o próximo amanhecer.
- Aqui há uns dois mil homens da Regulação –disse Husband, como para seus adentros- . Dois mil! Não acredita que ver tantos lhe faria trocar de opinião? O que tanta gente abandone o lar para ir em protesto…?
- O governador opina que se elevaram em rebelião e, portanto, esteve que guerra –interrompeu Roger. Jogou uma olhada à janela, onde o pergaminho azeitado pendia em farrapos- . E depois de havê-los visto, reconheço que sua opinião tem bases razoáveis.
- Não é rebelião –assegurou Husband, teimoso. E tirou do bolso uma gasta cinta de seda negra para atar o cabelo para trás, com as costas muita erguida- . Mas nossas queixa legítimas foram deixadas de lado por completo! Não temos mais opção que ir em massa a apresentar nossas demandas ante o senhor Tryon, para lhe fazer ver a justiça de nossas objeções.
- Faz um momento me pareceu ouvi-lo falar de alternativas –assinalou o jovem, seco- . E se tiver chegado o momento de escolher, como disse você, parece-me que a maior parte dos reguladores escolheram a violência, a julgar pelos comentários que escutei ao vir.
- Possivelmente –disse Husband, relutante- . Não obstante não somos… não são um exército vingador nenhuma turfa…
- Têm algum líder designado, alguém que possa falar oficialmente por eles? –Roger voltou a interrompê-lo, impaciente por transmitir sua mensagem e afastar-se dali- . Você mesmo? O senhor Hunter, possivelmente?
- Em realidade não têm nenhum líder –disse Husband depois de uma larga pausa- . Jim Hunter é bastante audaz, mas não tem dotes de mando. Perguntei-lhe; diz que cada homem deve atuar por si mesmo.
- Você tem esse dom. Pode liderá-los.
Husband pareceu escandalizar-se.
- Eu não.
- Mas se os guiou até aqui…
- Eles acudiram! Não pedi a ninguém que…
- Você está aqui. Eles o seguiram. Você falou com eles e o escutaram. Vieram seguindo-o. Escutarão-o, sem dúvida.
Fora da cabana o ruído ia em aumento; a multidão se impacientava. Se não era ainda uma turfa, estava muito perto. E o que fariam se descobriam quem era o que estava ali e a que tinha vindo?
Husband o observou um instante; logo lhe agarrou as duas mãos.
- Rezemos juntos, amigo –disse em voz baixa.
- Mas eu…
- Não faz falta que você diga nada. Sei que é papista, mas não temos por costume rezar em voz alta. Basta com que permaneça em silêncio e peça, no fundo de seu coração, que descenda a sabedoria… não só sobre mim, mas também sobre todos os pressente.
Roger se mordeu a língua para não corrigi-lo; nesse momento sua própria filiação religiosa não tinha importância, embora sim a do Husband, pelo visto. limitou-se a conter a impaciência e estreitou as mãos do qualquer, lhe oferecendo o apoio que estava a seu alcance.
Husband estava imóvel, com a cabeça um pouco inclinada. Um punho esmurrou a débil porta da cabana.
- Hermon! Está bem?
- Sal, Hermon! Não há tempo para isto! Caldwell já retornou que ver o governador…
- Uma hora, Hermon! Deu-nos só uma hora!
Derrubariam a porta, sem dúvida. Mas não: os golpes diminuíram até reduzir-se a toques impaciente; logo, a algum murro isolado. O palpitar do coração do Roger se foi acalmando gradualmente até reduzir-se a um ritmo sereno e parecido; a ansiedade se esfumava em seu sangue.
Fechou os olhos em um intento de fixar seus pensamentos, tal como Husband lhe tinha pedido. Procurou provas em sua mente alguma oração adequada, mas só lhe vinham à memória fragmentos confusos do Livro de Culto Comum.
“ nos socorra, OH, Senhor!...”
“ nos escute…”
“ nos ajude, OH, Senhor!” , sussurrou a voz de seu pai… seu outro pai, o reverendo, que falava no fundo de sua mente. “ nos ajude, OH, Senhor!, a recordar com quanta freqüência obramos mau, não por falta de amor, mas sim por falta de reflexão, e quão engenhosas som as armadilhas que nos fazem tropeçar.”
Cada palavra passou por sua mente, fugaz como a folha em chamas que se eleva no vento da fogueira, para desaparecer feita cinzas antes de que ele pudesse agarrá-la. Por fim renunciou; limitou-se a estreitar as mãos do Husband, atento a sua respiração, que era uma nota grave e áspera.
“ Por favor” , pensou em silêncio, sem saber o que pedia. Também essas palavras se evaporaram sem deixar nada.
Nada aconteceu. Fora ainda se ouviam vozes, mas não pareciam ter mais importância que a reclamação dos pássaros. O ar da habitação estava em calma, mas fresco e vivaz, como se pelos rincões circulasse uma corrente sem chegar a tocar o centro, onde estavam eles. Roger sentiu que sua própria respiração se tranqüilizava e seu coração se fazia ainda mais lento.
Não recordava ter aberto os olhos, mas os deixava abertos. Ao baixar a vista reparou em suas próprias mãos, que ainda estreitavam as do Husband, mais pequenas. Invadiu-o um respeito sobressaltado ao apreciar a beleza de seus próprios dedos, os ossos curvados da boneca e os nódulos, o encanto de uma fina cicatriz vermelha que cruzava a articulação do polegar.
Husband deixou escapar o fôlego em um fundo suspiro e retirou as mãos. Roger se sentiu momentaneamente abandonado, mas logo a paz do ambiente voltou a posar-se nele.
- O agradeço, amigo Roger –disse o qualquer, em voz baixa- . Não esperava receber tal graça, mas bem-vinda seja.
Ele assentiu sem dizer nada. Viu que Husband desprendia sua jaqueta e a punha; em sua cara se viam agora linhas de serena decisão. Sem vacilar, o qualquer tirou o ferrolho da porta e abriu.
A multidão reunida fora retrocedeu; a expressão de surpresa cedeu aconteço imediatamente à ansiedade e a irritação. O qualquer, sem emprestar atenção à tempestade de perguntas e exortações, partiu diretamente até um cavalo amarrado a um arvorezinha, detrás da cabana; desatou-o e subiu à cadeira. Só então olhou de acima a seus companheiros da Regulação.
- vocês voltem para casa! –disse em voz alta- . Devemos abandonar este sítio; que cada homem retorne a seu lar.
Este anúncio foi recebido com um atônito silêncio; logo houve exclamações de indignação e desconcerto.
- Que lar? –inquiriu um jovem, de escassa barba avermelhada- . Possivelmente você tenha lar aonde voltar! Eu não!
Husband permanecia sólido na cadeira, sem deixar-se comover pela gritaria.
- Voltem para casa! –gritou outra vez- . Os precatório. Aqui não fica nada, salvo a violência.
- Sim, e bem que a faremos! –uivou um homem corpulento, mostrando o mosquete em alto entre um coro de vítores.
Roger tinha seguido ao Husband, ignorado pela maioria dos reguladores. deteve-se certa distância, enquanto o qualquer se afastava com lentidão, inclinando-se da arreios para responder com gritos e gestos aos homens que corriam a seu lado. Alguém o aferrou pela manga; ele atirou das rédeas e se inclinou para escutar um discurso obviamente apaixonado. Mas ao fim ergueu as costas, sacudiu a cabeça e se plantou o chapéu.
- Não posso ficar e permitir que se derrame sangue por minha presença. Se permanecerem aqui, amigos, haverá homicídio. Partam! Ainda podem partir. Imploro-lhes que o façam!
Já não gritava, mas o bulício se acalmou o suficiente como para que sua voz corresse. Ao levantar a cara, enrugada pela preocupação, viu o Roger de pé à sombra de um disco. A serenidade da paz o tinha abandonado, mas em seus olhos perdurava a decisão.
- Vou! –anunciou- . O rogo! Retornem todos a casa!
Com súbita determinação, voltou garupas e pôs a seu cavalo ao trote. uns quantos homens correram atrás dele, mas logo se detiveram, desconcertados e ressentidos, murmurando entre si e movendo a cabeça com ar de confusão.
O ruído voltou a crescer; todos discutiam ao mesmo tempo, insistindo e negando. Roger se afastou discretamente para o bosquecillo de arces. O mais prudente seria empreender a volta quanto antes, agora que Husband tinha partido.
Uma mão o aferrou por um ombro, obrigando-o a girar.
- Quem diabos é você? O que há dito ao Hermon para que se fora?
Era um tio carrancudo, de puído colete de pele, com os punhos apertados.
- Disse-lhe que o governador não quer que ninguém sofra dano, se se pode evitar –respondeu Roger, tratando de que seu tom fora apaziguador.
- Envia-te o governador? –perguntou um homem de barba negra, olhando com cepticismo sua roupa singela- . vieste a oferecer umas condições diferentes das do Caldwell?
- Não. –Roger ainda estava sob o efeito de seu encontro com o qualquer; sentia-se protegido das correntes de cólera e histeria incipiente que se formavam redemoinhos em torno da cabana, mas essa paz se ia esfumando com celeridade. A seus interrogadores se somaram outros, atraídos pela confrontação- . Não –repetiu, em voz mais alta- . vim para lhe advertir ao Husband… e a todos vós. O governador quer…
Interrompeu-o um coro de gritos grosseiros: o que Tryon quisesse não tinha nenhum interesse para os pressente. Então se encolheu de ombros e deu um passo atrás.
- Façam o que lhes pareça, então- disse, com toda a serenidade possível- . O senhor Husband lhes deu o melhor dos conselhos. E eu o apóio.
Girou para afastar-se, mas um par de mãos descenderam sobre seus ombros, obrigando-o uma vez mais a enfrentar-se ao círculo de interrogadores.
- Espera um momento, tio –disse o homem do colete de couro- . falaste com o Tryon, verdade?
- Não –admitiu Roger- . Enviou-me… - Devia utilizar o nome do Jamie Fraser? Não: igual podia lhe economizar problemas como provocar-lhe vim a pedir ao Hermon Husband que cruzasse o arroio comigo para que visse com seus próprios olhos qual é a situação. Ele preferiu aceitar meu relatório da situação. Já viram vocês qual foi sua reação.
- Isso o diz você! –Um homem fornido, de costeletas avermelhadas, elevou o teimoso queixo- . E por que terá que aceitar seu relatório da situação?
A calma que Roger trazia da cabana não o tinha abandonado de tudo; recolheu os restos para falar com serenidade.
- Não posso obrigá-lo a escutar, senhor. Mas quem tenha ouvidos, escutem isto.
Olhou-os à cara, um a um. Embora a contra gosto, deixaram de alvoroçar, até que ele se viu no centro de um círculo que lhe emprestava relutante atenção.
- As tropas do governador estão listas e bem armadas. –Sua voz soava estranha, serena mas um pouco apagada, como se fora outro o que falasse com certa distância- . Não vi pessoalmente ao governador, mas me há dito quais são seus propósitos: não quer que se derrame sangue, mas está decidido a levar a cabo as ações que considere necessárias para dispersar esta assembléia. Não obstante, se retornarem pacificamente a seus lares, está disposto a mostrar-se clemente.
fez-se um momento de silêncio. Rompeu-o um pigarro. Um escupitajo de muco, com nervuras pardas de tabaco, aterrissou no barro, junto à bota do Roger.
- Isso vai para o governador e sua clemência –disse o do escupitajo, conciso.
- E isto vai para ti, estúpido! –acrescentou um de seus companheiros, lançando um bofetão ao Roger.
Ele esquivou o golpe e baixou o ombro para carregar contra o atacante, que se cambaleou, perdendo terreno. Mas atrás havia mais deles. Roger se deteve, com os punhos apertados, preparado para defender-se se era necessário.
- Não lhe façam mal, moços –ordenou o homem do colete de couro- . Ao menos por agora. –aproximou-se do jovem, sem ficar ao alcance de seus punhos, e o observou com desconfiança- . Tenha visto ou não a cara do Tryon, suponho que viu suas tropas, verdade?
- Em efeito. –O coração do Roger pulsava depressa e o sangue lhe cantava nas têmporas.
- Sabe quantos homens tem Tryon?
- Algo mais de mil –respondeu, observando com atenção a cara do homem. Não houve surpresa: já sabia- . Mas são milicianos adestrados e têm artilharia. É verdade que vocês não têm nada disso, senhor?
- Pensa o que queira –respondeu secamente- . Mas pode lhe dizer ao Tryon que lhe dobramos em número. Além disso, adestrados ou não –sua boca se torceu com ironia- , todos estamos armados, cada homem com seu mosquete.
Inclinou a cabeça para trás, com os olhos entronizados, para avaliar a luz.
- Uma hora, não? –perguntou, um pouco mais suave- . Acredito que será antes. –E olhou ao Roger aos olhos- . Volte a cruzar o arroio, senhor. lhe diga ao governador Tryon que temos intenção de lhe dizer o nosso e nos sair com a nossa. Se ele nos escutar e acessa a nossas exigências, bem. Se não…
Tocou a culatra da pistola que levava a cintura. Em sua cara se assentaram linhas sombrias.
Roger percorreu com a vista o círculo de caras silenciosas. Algumas expressavam incerteza, mas em sua maioria estavam sombrias ou desafiantes. Sem dizer uma palavra girou para afastar-se.
Artigo nº 28: Os cirurgiões devem levar um livro no que registrarão a todos os homens que se submetam a sua atenção, incluindo seu nome, a companhia a que pertencem, a data em que entram em seu cuidado e a data em que lhe dão o alta.
Estremeci-me ao sentir que uma brisa fria me tocava a bochecha, embora o dia era muito quente. Tive a absurda idéia de que era o roce de uma asa, como se o Anjo da Morte tivesse passado silenciosamente a meu lado, atento a sua lúgubre tarefa.
- Tolices –disse em voz alta. Evan Lindsay me ouviu; vi-o girar momentaneamente a cabeça, mas imediatamente apartou o olhar. Como todos, vigiava o este.
Ainda não tinha chegado nenhum mensageiro, mas viria. Eu não o duvidava. Algo tinha acontecido em algum lugar.
Todo mundo esperava, imóvel em seu sítio. Levada por uma entristecedora necessitem de me mover, girei abruptamente; minhas mãos se flexionaram como pedindo fazer algo. A água estava fervida e lista, coberta com uma parte de linho limpo. Tinha posto a caixa de remédios sobre um toco; retirei a coberta para revisar outra vez seu conteúdo, embora segura de que tudo estava em ordem.
Toquei um a um os frascos cintilantes; seus nomes eram uma sedativo letanía.
Atropina, beladona, láudano, paregórico, azeite de lavanda, azeite de zimbro, hortelã… E a garrafa parda, de forma achaparrada, que continha o álcool. Tinha um barril pequeno cheio na carreta.
Um movimento atraiu minha atenção; era Jamie; caminhava tranqüilamente sob as árvores, inclinando-se aqui para dizer uma palavra ao ouvido de alguém, tocava mais à frente um ombro, como um mago que desse vida às estátuas.
Permaneci imóvel, por não distrai-lo, face ao muito que desejava atrair sua atenção. Ele se movia com facilidade, brincando despreocupadamente; entretanto eu podia perceber sua tensão.
A pouca distância soou um ruído de cascos e o estrépito de uns cavalos que avançavam pela maleza. Todo mundo se deu a volta, espectador e com os mosquetes na mão. Uma exclamação afogada e um murmúrio geral saudaram o primeiro cavaleiro que surgiu à vista, agachando a cabeça vermelha sob os ramos dos arces.
- Cristo! –disse Jamie- . Que diabos faz esta aqui?
As risadas dos homens que a conheciam romperam a tensão como gretas no gelo, Jamie relaxou um pouco os ombros, mas saiu a seu encontro com expressão bastante carrancuda.
Quando Brianna desmontou a seu lado, eu também estava ali.
- O que…? –comecei.
Mas Jamie já estava cara a cara com sua filha, os olhos entreabridos, a mão em seu braço, falando em voz baixa, em uma veloz corrente de gaélico.
Brianna lhe replicou algo que não entendi, também em gaélico, e ele se tornou para trás. Ela moveu secamente a cabeça, como satisfeita com o impacto de sua declaração, e girou sobre seus talões. Então, à lombriga, um largo sorriso lhe transformou a cara.
- Mamãe! –Abraçou-me.
- Olá, querida. De onde vem? –depois de lhe dar um beijo na bochecha dava um passo atrás; apesar de todo me alegrava vê-la.
- Do Hillsborough –respondeu- . Ontem à noite, alguém que foi jantar a casa dos Sherston disse que a tropa estava acampada aqui. Por esse vim. Traje algo de comer –assinalou as avultadas alforjas de seu cavalo- e algumas ervas do pomar dos Sherston; me ocorreu que podiam te ser úteis.
- Né? OH!, sim. Que bem! –Sentia a presença carrancuda do Jamie a minhas costas, mas não me voltei a olhá-lo- . Eeh… não é que não me alegre de verte, querida, mas é possível que aqui se livre uma batalha dentro de muito pouco e…
- Já sei. –Ainda estava muita sufocada e sua cor se acentuou para me ouvir. Levantou um pouco a voz- . Não importa. Não vim a combater. Nesse caso me teria posta calças de montar.
Jogou uma olhada por cima de meu ombro; detrás de mim se ouviu um forte bufido, seguido por algumas risadas afogadas dos irmãos Lindsay. Ela baixou a cabeça para dissimular um sorriso; eu não pude menos que sorrir também.
- Ficarei contigo –disse em voz mais baixa- . Se houver depois feridos que atender, posso ajudar.
Vacilei, mas não podia negar que, se se chegava ao enfrentamento, teria feridos que atender e um par de mãos mais seria muito útil. Brianna não era enfermeira, mas sabia de gérmenes e antisepsia, coisa muito mais útil, em certo modo, que os conhecimentos de anatomia e fisiologia.
Ela tinha erguido as costas para procurar entre os homens que esperavam à sombra dos arces.
- Onde está Roger? –perguntou em voz baixa, mas serena.
- Está bem –lhe assegurei, com a esperança de que fora verdade- . Esta manhã Jamie lhe mandou cruzar o arroio com uma bandeira de trégua, para trazer para o Hermon Husband a falar com o governador.
- E ainda está lá? –Tinha subido involuntariamente a voz, mas voltou a baixá-la, controlando-se- . Com o inimigo? Se se pode chamar assim.
- Retornará. –Jamie apareceu junto a mim; olhava a sua filha sem muita alegria, mas obviamente resignado a sua presença- . Não se preocupe, moça. Sob a bandeira branca ninguém lhe fará nada.
- Do que lhe servirá a bandeira se trégua se ainda estiver ali quando começarem os disparos?
Retornará –repetiu ele, embora em tom mais suave. Logo lhe tocou a cara e alisou uma mecha de cabelos- . Prometo-lhe isso, moça. Não lhe acontecerá nada.
Bree pareceu encontrar algo tranqüilizador na cara de seu pai, pois sua expressão apreensiva se aliviou um pouco. Assentiu com a cabeça, em muda aceitação. depois de lhe dar um beijo na frente, Jamie se voltou para falar com o Rob Byrnes.
Por um momento ela o seguiu com a vista; logo desatou os cordões de seu chapéu e vinho a sentar-se a meu lado, em uma pedra.
- Há algo que possa fazer agora? –perguntou, assinalando com a cabeça minha caixa de remédios- . Quer que te traga algo?
Neguei com a cabeça.
- Não, tenho todo o necessário. Não há mais que esperar. –Fiz uma careta- . É o pior.
Ela respondeu com um relutante murmúrio de assentimento e fez um esforço por relaxar-se. Logo avaliou a equipe preparada, com uma ruga entre as sobrancelhas: fogo aceso, água fervendo, mesa dobradiça, a caixa grande com o instrumental e um pacote mais pequeno, que continha minha equipe de emergências.
- O que há aí? –perguntou, tocando o saco de lona com a ponteira da bota.
- Álcool e ataduras, um escalpelo, fórceps, serrote de amputação, torniquetes. Se se puder me trarão os feridos até aqui ou a outro dos cirurgiões. Mas se devo atender a algum no campo… a alguém que esteja muito mal para caminhar ou ser transladado, posso agarrar isto e ir imediatamente.
Notei que passeava o olhar pelo claro, posando-a aqui em um homem, lá em outro. Adivinhei o que estava pensando: como era possível? Como podia uma ver um grupo tão compacto e ordenado, uma cabeça inclinada para escutar ao amigo, um braço estendido para o cantil, sorrisos e sobrecenhos enrugados, olhos luminosos e músculos tensos… e logo visualizar a ruptura, a abrasão, a fratura… e a morte.
De repente, ouviu-se o ruído de um cavalo que se aproximava a toda pressa. Quando o mensageiro apareceu, eu já estava de pé, como o resto do acampamento. Era um dos jovens ajudantes do Tryon, pálido pelo nervosismo contido.
- Estejam em alerta –disse, médio desprendendo-se da cadeira, sem fôlego.
- E o que você crie que estivemos fazendo do amanhecer? –inquiriu Jamie, impaciente- . Por todos os Santos, homem, o que acontece?
Muito pouco, ao parecer, mas esse pouco era importante. Um ministro dos reguladores tinha ido parlamentar com o governador.
- Um ministro? –interrompeu Jamie- . Um qualquer?
- Não sei, senhor –disse o ajudante, vexado pela interrupção- . Mas os quaisquer não tem claro; isso sabe qualquer. Não: era um ministro chamado Caldwell, o reverendo David Caldwell.
Qualquer que fosse sua filiação religiosa, Tryon não se deixou comover pela súplica do embaixador. Não podia nem queria tratar com o povo, e não havia mais que dizer. Se os reguladores se dispersavam, ele prometia estudar qualquer queixa justa que o fora apresentada da maneira correta. Mas deviam dispersar-se no curso de uma hora.
- Não poderia nem quereria em uma gaveta –cantarolei pelo baixo, médio desequilibrada pela espera- . Não poderia nem quereria com um leão.
Jamie se tinha tirado o chapéu e o sol brilhava em seu cabelo avermelhado. Bree soltou uma risita contida, tanto por estranheza como por diversão.
- Não poderia nem quereria com o povo –adicionou a sua vez- . Não poderia nem quereria… fazer o macho?
- Pode, sim –disse, sotto voce- . E muito me temo que o fará.
Pela centésima vez na manhã joguei uma olhada para o grupo de salgueiros pelo que Roger tinha desaparecido, rumo a sua missão.
- Uma hora –repetiu Jamie, como resposta à mensagem do ajudante. E olhou na mesma direção- . Quanto fica para isso?
- Meia hora, possivelmente. –O moço pareceu de repente muito mais jovem do que era. Tragou saliva e ficou o chapéu- . Devo partir, senhor. você esteja atento ao canhão. Boa sorte!
- O mesmo a você, senhor.
Como se tivesse sido um sinal, o acampamento saltou em um torvelinho de atividade, até antes de que o ajudante tivesse desaparecido entre as árvores. voltaram-se a revisar armas que já estavam cevadas e carregadas, soltaram-se fivelas para as voltar para prender, poliram-se as insígnias; alguns sacudiam o pó dos chapéus e lhes prendiam os distintivos, ajustavam-se os meias três-quartos e as ligas, sacudiam os cantis enche, para assegurar-se de que seu conteúdo não se evaporou na última meia hora.
Era contagioso. Descobri-me deslizando os dedos pelas fileiras de frascos, uma vez mais; os nomes que murmurava se rabiscavam em minha mente, como se fossem as palavras de alguém que rezasse o rosário, perdendo o sentido no ardor do petição: “ Romero, atropina, lavanda, azeite de prego…”
Bree se destacava por sua imobilidade em meio de tanto alvoroço. Sentada em sua pedra, sem mais movimento que o de suas saias agitadas por alguma brisa, mantinha a vista fixa nas árvores longínquas. Ouvi que dizia algo pelo baixo.
- O que há dito? –perguntei, me voltando.
- Que não figura nos livros. –Apontou com o queixo para o campo, as árvores, os homens que nos rodeavam- . Não figura nos livros de história. Tenho lido o da massacre de Boston. Li-o lá, nos livros, e aqui, no periódico. Mas nunca soube disto lá. Não tenho lido uma só palavra sobre o governador Tryon, Carolina do Norte ou um lugar chamado Alamance. De modo que não acontecerá nada. –Falava com ferocidade, aplicando toda sua vontade- . Se aqui houve uma grande batalha, alguém deveria ter escrito sobre ela. Ninguém o fez, de modo que não acontecerá nada. Nada!
- Oxalá tenha razão –disse. E me aliviou em parte o frio das costas. Talvez era certo. Pelo menos não seria uma batalha importante. Faltavam apenas quatro anos para que estalasse a Revolução; até as pequenas escaramuças que precederam ao conflito eram bem conhecidas.
A massacre de Boston se produziu pouco mais de um ano antes: um combate guia de ruas, o choque de uma turfa com um pelotão de soldados nervosos. Insultos a gritos, algumas pedradas; um disparo não autorizado, uma descarga provocada pelo pânico e cinco homens mortos. Um dos periódicos de Boston informou da notícia, acompanhada por um apaixonado editorial; eu o tinha visto no salão da Yocasta; um de seus amigos lhe tinha enviado um exemplar.
E duzentos anos depois, esse breve incidente seria imortalizado nos textos escolar, como evidência do crescente descontente dos colonos. Joguei uma olhada aos homens que nos rodeavam, dispostos a brigar. Se ali, livrava-se uma grande batalha, se um governador real sufocava o que era, em essência, uma rebelião de contribuintes, sem dúvida teria valido a pena registrá-lo!
Mesmo assim, era pura teoria. E eu tinha incômoda consciência de que nem a guerra nem os livros de história tomavam muito em conta o que teria devido ocorrer.
Jamie estava de pé junto ao Gideon. Tinha-o pacote a uma árvore, pois entraria em combate a pé, com seus homens. Vi-o retirar as pistolas da alforja, guardar na taleguilla de seu cinturão as munições de reserva. Tinha a cabeça inclinada, absorto nos detalhes da tarefa.
de repente experimentei um impulso horrível e repentino. Precisava tocá-lo, lhe dizer algo. Tratei de me persuadir de que Bree tinha razão; não era nada; provavelmente não haveria um só disparo. Entretanto havia três mil homens armados nos ribazos do Alamance, e entre eles zumbia a idéia do derramamento de sangue.
Deixei a Brianna sentada em sua rocha, fixos os olhos no bosque, e corri para ele.
- Jamie –disse, lhe pondo uma mão no braço. Ele apoiou uma mão sobre a minha.
- A nighean donn –disse, com um pequeno sorriso- . vieste a me desejar sorte?
- Não podia deixar ir dizer… algo. Suponho que bastará com “ Boa sorte” . –Vacilei; as palavras me entupiam na garganta, pela súbita urgência de dizer muito mais do que o tempo permitia. Ao final disse só as coisas importantes- : Jamie… te amo. te cuide!
Ele dizia que não recordava o do Culloden. Perguntei-me se a amnésia se estendia às horas prévias à batalha, a nossa despedida. Ao olhá-lo aos olhos soube que não era assim.
- Com “ Boa sorte” basta –disse- . “ Amo-te” é muito melhor.
Logo levantou a mão para me tocar o cabelo e a cara, me olhando aos olhos para reter minha imagem desse momento, no caso de fora a última.
- Talvez chegue um dia em que você e eu nos separemos outra vez –disse pelo baixo. Seus dedos me roçaram os lábios, ligeiros como o roce de uma folha ao cair. Sorria apenas- . Mas não será hoje.
Roger se afastou devagar do acampamento dos reguladores. Gritaram-lhe uns quantos insultos e ameaças sem muita convicção, mas quando se encontrou entre as árvores a multidão já tinha perdido interesse nele, encetada novamente em sua agitada controvérsia.
logo que esteve fora da vista se deteve. Tinha a respiração agitada e se sentia enjoado. No centro desse círculo de caras hostis não havia sentido nada, absolutamente nada. Agora, longe e a salvo, tremiam-lhe os músculos das pernas e lhe doíam os punhos de tanto apertá-los. Desdobrou os dedos rígidos, flexionou-os e tratou de dominar sua respiração.
Talvez depois de todo aquilo não era tão distinto ao vôo noturno sobre o Canal e os canhões anti-aéreos.
A seu redor, soprava uma leve brisa, que lhe separou do pescoço o cabelo úmido, com um fôlego de bem-vindo frescor. Tinha completamente empapada a camisa e a jaqueta; o gravata-borboleta molhado parecia estar a ponto de estrangulá-lo. tirou-se a jaqueta e atirou da gravata com dedos trêmulos. Logo, com os olhos fechados e o objeto pendurando da mão, respirou a grandes baforadas, até que cedeu a sensação de náusea.
Convocou a sua mente a última imagem da Brianna, no vão da porta, com jemmy nos braços. Viu suas pestanas, molhadas de lágrimas, e os olhos redondos e solenes do bebê, e percebeu um grave eco da sensação que tinha experiente na cabana, com o Husband: uma visão de beleza, uma convicção de gozo que serenava a mente e aliviava a alma. Retornaria com eles; era o único que importava.
Ao cabo de um momento abriu os olhos, recolheu sua jaqueta e ficou em marcha; enquanto avançava lentamente para o arroio começou a sentir-se mais sereno no fisico, já que não no mental.
Não ia acompanhado do Husband, mas tinha obtido o que o mesmo Jamie tivesse podido fazer. Era possível que a turfa (não eram um exército, face ao que Tryon pensasse deles) desmembrasse-se e voltasse para casa, privado agora até da escassa liderança que Husband tinha representado. Oxalá.
Mas talvez não se dispersassem. Dessa turfa ardente podia surgir outro homem apto para tomar o mando. de repente recordou uma frase ouvida no alvoroço, frente à cabana. “ vieste a oferecer umas condições diferentes das do Caldwell?” Isso lhe tinha perguntado o homem da barba negra. E momento antes, enquanto rezava com o Husband, tinha ouvido vagamente que alguém gritava: “ Não há tempo para isto! Caldwell já retornou que ver o governador…” > E outra voz, em tom desesperado: “ Uma hora, Hermon! Deu-nos só uma hora!
- Homem, claro! –disse em voz alta. David Caldwell, o ministro presbiteriano que o tinha casado. Devia ser ele. Pelo visto, o homem tinha ido falar com o Tryon em nome dos reguladores… e retornou rechaçado, com uma advertência.
Uma hora, não mais. Uma hora para dispersar-se, para retirar-se pacificamente? Ou uma hora para responder a algum ultimato?
Levantou a vista. O sol estava quase no cenit; era logo que passado o meio-dia. depois de ficá-la jaqueta guardou o corbatón no bolso, junto à bandeira de trégua que não tinha utilizado. Qualquer que fosse o significado dessa hora de trégua, tinha que ficar em marcha.
O dia continuava espaçoso e caloroso; o aroma da erva e a folhagem vibrava de seiva em ascensão. Mas agora a sensação depressa e a lembrança dos reguladores, zumbindo como vespas, lhe impediam de apreciar as belezas naturais. Mesmo assim, algum rastro de paz perdurava nele enquanto apertava o passo para o arroio, um vago eco do que tinha experiente na cabana.
Essa estranha sensação de respeito sobressaltado seguia acompanhando-o, oculto mas acessível, como uma pedra polida no bolso. Fez-a girar na mente, sem emprestar muita atenção às sarças e os matagais que atravessava em seu caminho.
Um ramo pendente lhe roçou a cara; alargou uma mão para apartá-la, um pouco surpreso pelo fresco brilho das folhas, a estranha delicadeza de seus borde, trincados como facas, mas leves como o papel. Era um eco leve, mas perceptível, pelo que tinha visto antes, essa penetrante beleza. de repente se perguntou se Claire a veria. Percebia o toque da beleza nos corpos que tinha sob as mãos? Era possivelmente a causa de que fora curadora, o que lhe permitia curar?
Husband tinha compartilhado sua percepção, sem dúvida. E isso o tinha confirmado em seus princípios de qualquer. Por isso abandonou o campo, impossibilitado de exercer a violência ou de tolerá-la.
E seus próprios princípios? Não pareciam ter sofrida mudanças; se antes não tinha intenções de disparar contra ninguém, menos as teria agora.
“ E os princípios do Jamie Fraser?” , disse-se. Freqüentemente, levado por sua simpatia pessoal e pela curiosidade do historiador, perguntava-se o que movia ao Fraser. Com respeito a este conflito, Roger tinha tomado sua própria decisão… ou possivelmente a decisão se tomou sozinha. Não podia, a consciência, fazer mal a ninguém, embora em caso de necessidade se acreditava capaz de defender sua própria vida. Mas Jamie…
Estava seguro de que simpatizava com os reguladores. Também parecia provável que seu sogro não tivesse nenhum sentido de lealdade pessoal com a Coroa, com juramento ou sem ele. Não, à Coroa não, mas possivelmente ao William Tryon?
Tampouco ali havia lealdade pessoal, mas sim uma obrigação, decididamente. Tryon o tinha convocado e Jamie Fraser acudia. Dadas as condições imperantes, não tinha muita alternativa. Mas uma vez ali, combateria?
E como não fazê-lo? Devia ficar à cabeça de seus homens e, se se chegava ao combate, então teria que combater, quaisquer que fossem seus sentimentos pessoais sobre o tema.
Tratou de imaginar-se pontudo e disparando um mosquete contra um homem contra quem não tinha nada. Era compreensível que Jamie tivesse tratado de obter a ajuda do Husband para acabar com o conflito antes de que começasse.
Mesmo assim, Clareie lhe havia dito uma vez que, em sua juventude, Jamie tinha combatido na França como mercenário. Presumivelmente, nnaquele tempo naquele tempo teria matado a homens contra quem não tinha nada. Como…?
Ao abrir-se passo entre os salgueiros ouviu as vozes antes de ver ninguém. Um grupo de mulheres, das que acompanham a todo exército, trabalhavam ao outro lado do arroio. Passeou entre elas um olhar indiferente, mas de repente deu um coice, surpreso Por que? O que era?
Ali. Não teria podido dizer como identificou; não havia nela nada que a distinguisse. Entretanto sobressaía entre as demais como se alguém tivesse remarcado seus contornos em tinta negra, para destacá-la contra o fundo do arroio e a folhagem tenra.
- Morag –sussurrou. E seu coração pulsou com mais força, com um pequeno estremecimento de gozo. Ela vivia.
Saiu dos salgueiros antes de que lhe ocorresse perguntar-se que fazia e por que o fazia. Por então já era muito tarde: estava no ribazo, caminhando abertamente para elas.
Várias das mulheres lhe jogaram uma olhada; algumas ficaram imóveis, vigilantes. Mas ia sozinho e estava desarmado. Elas eram mais de vinte e seus homens estavam perto.
Ela ficou muito quieta, inundada na água até os joelhos, com as saias recolhidas. Tinha-o identificado, obviamente, mas não dava sinais de conhecê-lo.
As outras mulheres retrocederam um pouco, desconfiadas. Ela se ergueu entre as libélulas, com um vestido molhado entre as mãos; algumas mechas de cabelo castanho apareciam de sua touca. Roger saiu da água e se ergueu ante ela, molhado até os joelhos.
- Senhora MacKenzie –saudou em voz baixa- . Me alegro de encontrá-la.
- Senhor MacKenzie –disse a sua vez, com uma pequena inclinação de cabeça.
A mente do Roger seguia a toda marcha, perguntando-se o que fazer. Devia adverti-la, mas como? Não podia fazê-lo diante de todas essas mulheres.
Por um momento se sentiu indefeso e torpe; logo, inspirado, agachou-se para recolher uma braçada de roupa lhe jorrem que se formava redemoinhos na água, junto às pernas da mulher, e subiu ao ribazo. Morag o seguiu com repentina pressa.
- O que faz? –acusou- . Ouça, me devolva essa roupa!
Roger levou a roupa molhada para as árvores; logo a deixou cair em um arbusto, com cuidado de que não tocasse o pó. Morag vinha lhe pisando os talões, avermelhada de indignação.
- Como lhe ocorre? Olhe que roubar roupa! –acusou, acalorada- . Me devolva isso!
- Não a roubei –lhe assegurou ele- . Só queria falar com você a sós um momento.
- Sim? –Ela o olhou com suspicacia- . Do que?
- Quero saber se estiver bem. e seu filho… Jemmy? –Pronunciar esse nome lhe provocou um estranho calafrio; por uma fração de segundo viu a imagem da Brianna no vão da porta, com seu filho nos braços, superpuesta à lembrança do Morag com seu bebê, na penumbra da adega, disposta a matar ou morrer por conservá-lo.
- Ah –murmurou ela. A desconfiança desapareceu em parte, substituída por um relutante reconhecimento de seu direito a perguntar- . Estamos bem… os dois. E também meu marido –acrescentou intencionadamente.
- Alegra-me sabê-lo –assegurou ele- . Alegra-me muito. –Procurou algo mais que dizer; sentia-se incômodo- . Eu… às vezes a lembrança; perguntava-me se… se tudo estava bem. E agora, ao vê-la… bom, me ocorreu perguntar. Nada mais.
- OH!, sim. Compreendo, sim. Pois muito obrigado, senhor MacKenzie. –Disse-o olhando-o diretamente aos olhos, sérios os seus- . Sei o que você fez por nós. Não o esquecerei; todas as noites o menciono em minhas orações.
- OH!... –Roger teve a sensação de que um peso leve o tinha golpeado no peito- . Né… obrigado.
perguntou-se mais de uma vez se ela o recordaria. Se recordava o beijo que lhe tinha dado naquela adega, procurando a faísca de seu calidez como escudo contra o frio da solidão. Pigarreou, ruborizado pela lembrança.
- Vive perto daqui?
Ela sacudiu a cabeça; algum pensamento, alguma lembrança lhe fez apertar os lábios.
- Antes sim, mas… Não vem ao caso. –Súbitamente lhe voltou as costas para retirar a roupa molhada do arbusto; sacudia objeto por gosta muito antes de pregá-la- . Agradeço-lhe seu interesse, senhor MacKenzie.
Obviamente, dava por terminada a conversação. Ele se secou as mãos nas calças e trocou de posição. Não queria afastar-se. Devia lhe dizer… mas detrás havê-la reencontrado sentia uma estranha relutância a separar-se dela detrás havê-la posto sobreaviso; borbulhava de curiosidade. Curiosidade e uma peculiar sensação de vínculo.
Possivelmente não fora tão peculiar; essa mujercita moréia era de sua família, a única pessoa de seu próprio sangue que tinha encontrado depois da morte de seus pais. E ao mesmo tempo era muito peculiar, sim; compreendeu-o até enquanto alargava a mão para curvá-la em volto do braço do Morag. depois de tudo, ela era sua antepassada direta, uma avó de várias gerações atrás.
A mulher ficou rígida e tratou de largar-se, mas ele a reteve. Embora tinha a pele fria pela água, Roger sentiu o palpitar de seu pulso sob os dedos.
- Espere –disse- . Por favor. Um momento. Eu… devo lhe dizer… algumas costure.
- Não, nada disso. Preferiria que não me dissesse nada. –Ela atirou com mais força e se liberou.
- Seu marido, onde está? –O cérebro do Roger começava a relacionar tardiamente algumas ideia. Se ela não vivia perto, era o que ele tinha pensado ao vê-la: uma das mulheres que acompanhavam aos exércitos. Mas teria apostado a vida a que não era prostituta; portanto seguia a seu marido, e isso significava que…
- Está muito perto! –Ela retrocedeu um passo.
Roger se interpôs entre ela e o arbusto com a penetrada; para recuperar suas anáguas e suas meias teria que acontecer seu lado. de repente caiu na conta de que Morag lhe tinha um pouco de medo; então girou precipitadamente para arrebatar algumas objetos ao azar.
- Perdoe. Sua penetrada… Aqui tem.
Ela as agarrou como por reflexo. Algo caiu ao chão: um vestido de bebê. Ambos se agacharam para recolhê-lo e chocaram as frentes com um golpe sólido.
- OH! OH! Pela María e Santa Bride! –Morag se esfregou a cabeça, sem soltar os objetos molhados que estreitava contra o seio, com uma só mão.
- Cristo! Está você bem? Morag… senhora MacKenzie… está bem? Sinto-o muito! –Roger a tocou no ombro, olhando-a com olhos lagrimeantes de dor. agachou-se para recolher o pequeno vestido que tinha cansado entre ambos e fez um vão esforço por lhe limpar as manchas de barro.
- Estou bem, sim. –depois de enxugá-los olhos e sorver pelo nariz, tocou apenas o ponto dolorido da frente- . Tenho a cabeça dura, como dizia minha mãe. E você? Está bem?
- Bem, sim. –Roger também se tocou a frente. de repente cobrava consciência de que a curva do osso sob sua mão se repetia com exatidão na cara que tinha ante si. a dela era mais pequena, mais ligeira… mas a mesma- . Eu também tenho a cabeça dura. –Sorriu-lhe de brinca a orelha, ridiculamente feliz- . É coisa de família.
E lhe entregou o objeto manchado de barro.
- Sinto-o muito –se desculpou outra vez, não só pelo vestido sujo- . Seu marido. Perguntei-lhe por ele porque… está com os reguladores, verdade?
- É obvio. Você não?
- Não –respondeu- . vim com a tropa. –Assinalou com uma mão a fumaça do acampamento do Tryon, a boa distância.
Os olhos do Morag voltaram a expressar cautela, mas não medo. Ele estava sozinho.
- Isso é o que desejava lhe dizer –explicou ele- . lhes advertir, a você e a seu marido. Esta vez o governador vai a sério; trouxe tropas organizadas e canhões. Muitas tropas, todas armadas.
inclinou-se para ela para lhe entregar o resto das meias molhadas. Ela alargou uma mão, mas manteve os olhos cravados nos dele, à espera.
- Está decidido a esmagar esta rebelião por qualquer meio. deu ordens de matar, se houvesse resistência. Compreende você? Diga-lhe a seu marido. Devem partir ambos antes de… antes de que aconteça nada.
Ela empalideceu; sua mão foi cobrir o ventre como por reflexo. A água da roupa tinha empapado o vestido de musselina; agora se notava o pequeno abultamiento escondido ali, redondo e suave como um melão sob o tecido úmido. Roger recebeu a descarga desse medo, como se as meias molhadas conduzissem a eletricidade.
“ Antes sim” , tinha respondido ela a sua pergunta de se viviam perto. Talvez só queria dizer que se mudaram a outro lugar, mas… Entre sua penetrada havia roupa de bebê, tinha a seu filho com ela. Seu marido devia estar nesse hervidero de homens.
Um homem só podia agarrar sua pistola e unir-se a uma turfa, sem mais motivos que o aborrecimento ou uma bebedeira; um homem casado e com um filho não o faria. Isso indicava um descontentamento grave, um problema sério. E se tinha levado a sua esposa e a seu filho à guerra era porque não tinha um lugar seguro onde deixá-los.
Provavelmente Morag e seu marido se ficaram sem lar; seu medo era perfeitamente compreensível. Se matavam ou mutilavam a seu marido, como faria ela para manter ao Jemmy e ao bebê que tinha em seu ventre? Não tinha ali família que pudesse ajudá-la.
Em realidade, tinha família, só que o ignorava. Lhe aferrou a mão para atrai-la para si, afligido pela necessidade de protegê-los, a ela e a seus filhos. Uma vez os tinha salvado; podia fazê-lo novamente.
- Morag –disse- . Me escute. Se algo lhe acontecesse, o que fosse, vá para mim. Se necessitar algo, algo. Eu cuidarei de você.
Ela não fez esforço algum por largar-se. Roger sentiu o irresistível impulso de criar algum contato físico entre ambos, esta vez tanto por ela como por si mesmo. inclinou-se para diante para beijá-la com muita suavidade.
Logo abriu os olhos e levantou a cabeça. tirou o chapéu olhando por cima de seu ombro, para a cara incrédula de seu tatarabuelo.
- Com exceção de se de minha mulher.
William Buccleigh MacKenzie saiu dos arbustos com uma expressão sinistra na cara. Era alto e muito largo de ombros. Qualquer outro detalhe pessoal parecia carecer de importância, considerando que também tinha uma faca. Ainda estava embainhado, mas a mão do homem descansava sobre o punho de uma maneira muito significativa.
- Não quis lhe faltar ao respeito –disse, erguendo lentamente as costas. Qualquer movimento brusco parecia imprudente- . Ofereço-lhe minhas desculpas.
- Não? E que diabos quis fazer, pois? –MacKenzie apoiou uma mão possessiva no ombro de sua mulher, fulminando ao Roger com o olhar.
- Conheci sua esposa… e também a você… faz um ou dois anos, a bordo do Gloriana. Ao reconhecê-lame ocorreu perguntar como estava a família. Isso é tudo.
- Não queria me fazer danifico, William. –Morag tocou a mão de seu marido e a dolorosa pressão afrouxou- . O que diz é certo. Não o reconhece? É o que me encontrou com o Jemmy na adega, quando nos escondemos ali; trouxe-nos água e comida.
- Você me pediu que cuidasse deles –adicionou Roger, intencionadamente- . Durante a briga, aquela noite em que os marinheiros jogaram nos doentes ao mar.
- Sim? –As facções do MacKenzie se relaxaram um pouco- . Com que era você? Na escuridão não lhe vi a cara.
- Eu tampouco vi a sua.
Agora a via com claridade; face ao incômodo das circunstâncias, não pôde menos que estudá-la com interesse. De modo que esse era o filho não reconhecido do Dougal MacKenzie, antigo chefe de guerra dos MacKenzie do Leoch. Lhe notava. Sua cara era uma versão mais robusta, mais quadrada, mais loira, mas ao olhar melhor Roger identificou sem dificuldade os maçãs do rosto largos, a frente larga que Jamie Fraser tinha herdado do clã materno. Isso e a estatura: William superava o metro oitenta.
O homem se girou um pouco para ouvir um ruído na espessura. Dois homens saíram das matas, cautelosos e sujos pela vida na intempérie. Um deles trazia um mosquete; o outro só um tosco pau, feito com um ramo queda.
- Quem é, Buck? –perguntou o do mosquete, observando ao Roger com alguma desconfiança.
- Isso é o que quero averiguar. –O momentâneo abrandamento tinha desaparecido, deixando um gesto carrancudo na cara do MacKenzie. Apartou a sua esposa com um leve empurrão- . Vê com as outras mulheres, Morag. Eu me ocuparei deste tio.
- Mas William… - Ela os olhou a ambos- . Mas se não ter feito nada…
- Parece-te que não é nada, tomar-se atrevimentos contigo à vista de todos, como se fosse uma qualquer? –William lhe cravou um olhar sombrio.
- Eu… não, quero dizer.. isso foi… ele foi bondoso conosco, não deveríamos…
- Vete, hei dito!
Morag abriu a boca para protestar, mas se encolheu de medo ao lhe ver faz um súbito movimento para ela, com o punho apertado. Sem um instante de decisão consciente, Roger elevou o punho da cintura e o estrelou contra a mandíbula do MacKenzie.
William, pego por surpresa, cambaleou-se e caiu de joelhos, movendo a cabeça como boi desnucado. O grito afogado do Morag se perdeu entre as exclamações dos outros homens. antes de que pudesse enfrentar-se a eles, Roger ouviu um ruído detrás dele: era o frio estalo de uma pistola martelada.
Houve um breve “ pst!” de pólvora acesa; logo a arma se disparou com um rugido e uma baforada de fumaça negra. Todos deram um coice e se cambalearam pelo ruído. Roger se encontrou lutando confusamente com um dos outros; ambos tossiam, médio ensurdecidos. Enquanto se largava de seu atacante viu que Morag, de joelhos entre as folhas, limpava a cara a seu marido com um objeto molhado. William a apartou com rudeza e se levantou para jogar-se para o Roger, com os olhos saltados e a cara arroxeada de fúria.
Roger girou sobre seus talões, escorregando entre as folhas, e se desprendeu do homem do mosquete para refugiar-se entre as matas. Um momento depois cruzava a espessura, rompendo ramos, arranhando-a cara e os braços. detrás dele se ouviam fortes estalos e uma respiração ofegante. Uma mão de ferro o sujeitou pelo ombro.
Agarrou essa mão e a retorceu com força. ouviu-se um rangido de articulação e osso. O dono daquela mão se apartou com um chiado, enquanto Roger se jogava de cabeça por uma abertura entre a maleza.
Caiu sobre um ombro, meio acurrucado, e rodou sobre si; depois de romper um pequeno arbusto, deslizou-se como por um tobogã por um íngreme ribazo de argila, até cair à água com um chapinho.
esforçou-se por afirmar os pés, entre tosses e tapas, sacudindo o cabelo e a água dos olhos, só para ver o William MacKenzie de pé no alto do ribazo. Ao ver seu inimigo em tanta desvantagem, ele também se lançou com um grito.
Um pouco parecido a uma bala de canhão se estrelou contra o peito do Roger e o fez cair novamente à água. Não podia respirar, não via nada, mas lutou contra o enredo de roupas, membros e barro revolto, tratando inutilmente de fazer pé; os pulmões lhe estalavam por falta de ar.
Apareceu a cabeça por cima da superfície, boqueando como um peixe para tragar ar. Ouviu o assobio de seu próprio fôlego e também o do MacKenzie. O outro se apartou e fez pé algo mais à frente, ofegando como uma locomotiva. Roger se agachou, palpitante, com as mãos apoiadas nas coxas e os braços trêmulos pelo esforço. Logo se endireitou, apartando o cabelo molhado que lhe pegava à cara.
- Olhe –comentou, ofegando.
Não disse mais, pois MacKenzie, que ainda respirava também com dificuldade, avançava para ele com a água à cintura. Tardiamente, Roger recordou algo mais. Esse homem era filho do Dougal MacKenzie. Mas também o filho do Geillis Duncan, a bruxa.
Em algum lugar, além dos salgueiros, ouviu-se um forte estrondo. A batalha tinha começado.
Depois, o governador enviou sua carta ao capitão Malcom, um de seus ajudantes, e ao delegado do Orange; nela requeria a quão rebeldes depuseram as armas, entregassem a seus cabeças e demais. O capitão Malcom e o delegado retornaram ao redor das dez e meia, com a informação de que o delegado lhes tinha lido a carta quatro vezes a diferentes divisões de rebeldes, quem rechaçou com desdém os términos oferecidos, dizendo que não queriam tempo para as analisar; e com clamores rebeldes chamaram à batalha.
Estejam alertas se por acaso vêem o MacKenzie. –Jamie tocou ao Geordie Chisholm no ombro. O outro girou a cabeça, aceitando a mensagem com um ligeiro gesto.
Avançou para o primeiro posto apartando a maleza com tanta violência como se fora um inimigo. Se estavam alerta veriam o MacKenzie a tempo e não lhe disparariam por engano. Ao menos isso se disse, sabendo perfeitamente que em meio dos inimigos e no calor da batalha, uma dispara ante algo que se mova.
Logo, para seu alívio, não houve mais tempo para pensar, pois saíram a campo aberto e os homens se disseminaram correndo, agachados e serpenteando pela erva, em grupos de três e quatro, como ele lhes tinha ensinado: tinha que haver um soldado com experiência em cada grupo. Em algum lugar, detrás deles, o primeiro cañonazo surgiu como um trovão em um céu ensolarado.
Então viu os primeiros reguladores; um grupo vinha pela direita, correndo ao campo raso. Ainda não tinham visto seus homens.
antes de que os divisassem, ele uivou:” Casteal an DUIN!” E carregou contra eles com o mosquete em alto, como sinal para os que o seguiam. O ar se partiu em alaridos. Os reguladores, agarrados por surpresa, detiveram-se amontoados, gesticulando as armas e incomodando-se entre eles.
- Thugham! Thugham! –A mim, a mim. Já estava o bastante perto. Cravou um joelho em terra, agachou-se sobre o mosquete, apontou e disparou sobre a cabeça dos homens apinhados.
detrás dele se ouviu o grunhido de seus homens que assumiam a formação de fogo, o estalo do pederneira e, por fim, o ruído ensurdecedor da descarga. Um ou dois dos reguladores se agacharam para responder ao fogo. Os outros correram em busca de refúgio, para uma pequena elevação coberta de erva.
- A draigha! Esquerda! Nach links! lhes cortem o passo! –ouviu-se gritar a si mesmo. Mas o tinha feito sem pensá-lo; já ia correndo.
O pequeno grupo de reguladores se desfez; uns quantos correram para o arroio; os outros, juntos como ovelhas, galopavam para o amparo da elevação. Chegaram a tempo e desapareceram depois da curva da colina. Jamie chamou a suas tropas com um assobio, capaz de ouvir-se sobre o trovejar dos canhões. Já se ouviam disparos de mosquete à esquerda. Partiu nessa direção crédulo em que os outros o seguiriam.
Foi um engano; ali a terra era pantanosa; estava cheia de fossas lamacentos e barro aderente. Lançou um grito e agitou o braço, lhes indicando retroceder para o sítio mais alto. Que o inimigo viesse para eles cruzando o pântano, se é que podia.
O terreno alto estava talher de densas malezas, mas pelo menos estava seco. Ele agitou a mão bem aberta para que os homens se disseminassem para refugiar-se.
Avançou lentamente para poente, alerta. Ali o matagal se compunha de zumaque e escaramujo, matagais de sarças que chegavam até a cintura e grupos de pinheiros que se elevavam por cima da cabeça. A visibilidade era escassa, mas poderia ouvir qualquer que se aproximasse muito antes de vê-lo… ou de ser visto.
Nenhum de seus homens estava à vista. Já refugiado em um grupo de discos, emitiu uma reclamação aguda, como o da codorna. Outros gritos similares surgiram desde atrás; nenhum de diante. Bem: agora cada um sabia, mais ou menos, onde estavam outros. Avançou com cautela, abrindo-se passo entre a maleza.
Ao sentir um tamborilar de pegadas se apertou contra os ramos de um disco, com os leques de escuras agulhas balançando-se sobre ele e o mosquete preparado para apontar por uma abertura das matas. Quem quer que fosse vinha depressa. Entre o ranger de ramillas pisadas e o ruído de uma respiração dificultosa, um jovem surgiu entre o matagal, ofegante. Não tinha pistola, mas em sua mão cintilava uma faca de esfolar.
Nada mais veracreditou conhecer esse moço. antes de que seu dedo pudesse relaxar-se contra o gatilho, sua memória pôs nome a essa cara.
- Hugh! –exclamou, em voz baixa mas penetrante- . Hugh Fowles!
O jovem deixou escapar um chiado de sobressalto e se deu a volta. Ao ver o Jamie com sua pistola, entre a cortina de agulhas, ficou petrificado como um coelho.
Uma determinação movida pelo pânico se refletiu em sua cara: imediatamente se lançou para o Jamie, gritando. Fraser, sobressaltado, teve apenas tempo de levantar o mosquete para deter a adaga com seu canhão, empurrando-o para cima e para trás; a folha escorregou no canhão com um chiado metálico e lhe roçou os nódulos. Quando o jovem Hugh levantou o braço para apunhalá-lo, lhe atirou um chute no joelho e se apartou, e o moço, perdido o equilíbrio, caiu para um lado; a faca saiu disparado, dando voltas no ar.
Jamie chutou outra vez ao moço fazendo-o cair. A faca ficou parecido no chão.
- Quer te estar aquieto? –disse, bastante irritado- . É que não me reconhece?
Não teria podido dizer se Fowles o reconhecia ou não, nem sequer se o tinha escutado. Com a cara branca e os olhos fixos, debatia-se em um ataque de pânico, ofegante, tratando de levantar-se e de liberar sua faca ao mesmo tempo.
- por que não…? –começou Jamie. Imediatamente deu um coice, pois Fowles tinha renunciado à faca e se lançava para diante com um grunhido de esforço.
O peso do moço o arrojou para trás. Suas mãos o arranharam em busca do pescoço. Ele deixou cair o mosquete, pôs o ombro contra a mão do menino e o deteve com um brutal murro no ventre. Hugh Fowles se derrubou feito uma bola no chão, retorcendo-se como uma centopéia ferida.
Mais ruído de pegadas que corriam. Logo que teve tempo de levantar o mosquete antes de que as matas se abrissem uma vez mais. Era Joe Hobson, o sogro do Fowles, com o mosquete preparado.
- Detenha! –Jamie, escondido depois da arma, apontou a boca para o peito do homem.
- O que lhe tem feito? –Seus olhos foram do Jamie ao genro e voltaram.
- Nada definitivo. Baixa a arma, quer?
Hobson não se moveu. Estava sujo e com a barba enchente, mas seu olhar era vivaz e alerta.
- Não quero te fazer danifico. Baixa isso!
- Não nos deixaremos capturar –disse Hobson.
- Já estão capturados, estúpido. Mas não se preocupe, que nem você nem o moço sofrerão dano algum. está-se mais seguro no cárcere que aqui, homem!
Um estrondo sibilante confirmou essa afirmação: algo voou por entre as árvores, um par de metros mais acima, rompendo os ramos a seu passo. “ Bala de cadeia” , pensou Jamie automaticamente, enquanto se agachava por reflexo, com as vísceras crispadas.
Hobson deu um coice de terror e girou o canhão de seu mosquete para o Jamie. Imediatamente saltou outra vez, com os olhos dilatados pela surpresa: uma mancha vermelha floresceu lentamente em seu peito. Ele se olhou com ar desconcertado; o canhão de sua pistola descendeu como caule murcho. Logo deixou cair a arma, sentou-se bruscamente e, apoiando as costas contra uma árvore cansada, morreu.
Jamie girou sobre seus talões, ainda agachado. Geordie Chisholm estava atrás dele, com a cara médio enegrecida pela fumaça de seu disparo.
ouviu-se novamente o trovejar da artilharia e um segundo projétil atravessou a ramagem, até cair a pouca distancia com um golpe seco, que Jamie percebeu através das reveste. Então se arrojou de barriga para baixo para arrastar-se para o Hugh Fowles, que se tinha incorporado sobre mãos e joelhos e estava vomitando.
Ele o aferrou do braço e atirou com força, sem emprestar atenção ao atoleiro de vômito.
- Vêem! –Agarrado pela cintura e um ombro, arrastou-o para o refúgio do bosquecillo- . Geordie! Geordie, me ajude!
Ali estava Chisholm. Entre ambos puseram ao Fowles de pé e, médio em velo, médio a rastros, levaram-no com eles, tropeçando em sua carreira.
À esquerda alguém surgiu entre os arbustos. Jamie levava a arma na mão esquerda; elevou-a por reflexo e disparou. Cruzou a tropicões sua própria fumaça, enquanto o homem contra quem tinha disparado punha-se a correr sem tino, chocando-se com as árvores.
Fowles já podia manter-se em pé; Jamie lhe soltou o braço, deixando que Geordie carregasse com ele, e cravou um joelho em terra. Procurou às cegas a pólvora e o projétil, rasgou o cartucho com os dentes e a verteu dentro, introduziu a carga a fundo, encheu a cazoleta, verificou o pederneira… Ao levantar o canhão mostrou os dentes, consciente pela metade do que fazia. Três homens se aproximavam para eles. Apontou ao primeiro. Com um último resto de consciência, disparou por cima de suas cabeças e o mosquete recuou em suas mãos. Os homens se detiveram; ele baixou a arma, desenvainó a adaga e carregou contra eles, entre uivos.
As palavras lhe queimavam a garganta, já irritada pela fumaça.
- Corram!
viu-se como de longe. E pensou que estava fazendo quão mesmo com o Hugh Fowles. E lhe tinha parecido uma estupidez.
- Corram!
Os homens se dispersaram como perdizes em vôo. Como teria podido fazer um lobo, ele se lançou depois do mais lento. O homem ao que perseguia olhou para trás e, com um alarido de terror, chocou-se contra uma árvore. Jamie se jogou sobre sua presa; ao aterrissar contra suas costas sentiu o rangido elástico das costelas sob seus joelhos. Agarrou-o dos cabelos e atirou para lhe levantar a cabeça. Teve que conter-se para não cortar o pescoço nu que tinha ante si, estirado e indefeso. Podia sentir o impacto da folha na carne, o calor do sangue ao brotar. E o desejava.
Tragou o ar a grandes baforadas, ofegante. Com muita lentidão apartou a faca do pulso acelerado.
- É meu prisioneiro –disse.
O homem o olhou sem compreender. Chorava; as lágrimas riscavam sulcos no pó de sua cara. Tentou falar entre soluços, mas nessa posição não podia agarrar fôlego para formar as palavras. Jamie caiu na conta de que tinha falado em gaélico: o homem não compreendia.
Afrouxou lentamente o punho e se obrigou a lhe soltar a cabeça. Procurou provas as palavras inglesas, sepultadas sob a sede de sangue que palpitava em seu cérebro.
- É… meu… prisioneiro –balbuciou por fim, ofegando entre uma palavra e outra.
- Sim, sim! Como quero, mas não me mate, por favor, não me mate. –O homem se acurrucaba debaixo dele.
apartou-se lentamente de seu prisioneiro para ajoelhar-se junto ao corpo tendido. de repente sentiu uma ternura para esse homem. Alargou a mão para tocá-lo, mas ao sentimento lhe seguiu uma sensação de horror, igualmente repentina, que desapareceu com a mesma prontidão.
- te levante. –Tremiam-lhe as mãos. Teve que fazer três intentos para embainhar a adaga.
- Ciamar a tha thu, MAC Dubh? –Ronnie Sinclair estava a seu lado e lhe perguntava se estava bem.
Assentiu com a cabeça e deu um passo atrás, enquanto Sinclair ajudava ao homem a levantar-se e o obrigava a que desse a volta a sua jaqueta. Os outros foram chegando: Geordie, os Lindsay, Gallegher se amontoavam em torno dele, como limagens de ferro atraídas por uma parte de ímã.
Os outros também tinham feito prisioneiros: seis em total. Entre eles estava Fowles, pálido e miserável.
Jamie já sentia a mente limpa, embora seu corpo seguisse lasso e pesado.
- Pergunta se tiverem visto o MacKenzie –disse ao Kenny Lindsay em gaélico, fazendo um pequeno gesto aos prisioneiros.
Entre os que conheciam o Roger MacKenzie, ninguém o tinha visto. Jamie fez um gesto afirmativo e se limpou com a manga os restos de suor.
- Haja ou não retornado são e salvo, o que vós tinham que fazer, têm-no feito muito bem, moços. Agora, vamos.
Aquela mesma noite enterraram aos mortos com honras militares. Três proscritos capturados na batalha foram enforcados diante do exército. Isso brindou grande satisfação aos homens e, nesse momento, foi um sacrifício necessário para apaziguar as falações das tropas, quem solicitava que se fizesse imediatamente justiça pública contra alguns proscritos agarrados durante a ação, pela que se arriscaram a tantos perigos e sofrido tanta perda de vidas e sangue.
Roger atirou com força da soga que lhe rodeava as bonecas, mas só pôde afundar um pouco mais na pele esse tosco esparto. Sentia o ardor da pele raspada e uma umidade que podia ser sangue, mas tinha as mãos tão intumescidas que não estava seguro.
Estava tendido onde Buccleigh e seus amigos o tinham arrojado depois de atar o de pés e mãos, à sombra de um tronco cansado e empapado pela água do rio. Tinham-no amordaçado com a bandeira de trégua tão pega à garganta que quase o afogava, e seu próprio corbatón em torno da boca.
A pouca distância ainda se ouviam disparos; já não eram descargas, a não ser uns quantos estalos desiguais. O ar emprestava a fumaça de pólvora; de vez em quando algo chegava assobiando entre as árvores, como um falatório sem sentido, com um tremendo rasgar de ramos e folhas. Bale em cadeia? Balas de canhão?
Uma delas tinha cansado um momento antes no ribazo, onde se afundou com uma pequena explosão de barro, interrompendo momentaneamente a briga. Um dos amigos do Buccleigh lançou um grito e pôs-se a correr, chapinhando, para o amparo das árvores; o outro, em troca, seguiu dando golpes e tapas, sem emprestar atenção aos disparos e os gritos, até que ele e Buccleigh conseguiram lhe afundar a cabeça sob a água e sujeitá-lo ali.
Por fim conseguiu incorporar-se sobre os joelhos, dobrado como um verme, mas sem atrever-se a levantar a cabeça, por medo de que a voasse algum disparo. Esfregou a cara com força contra a casca do tronco que estava médio desprendida, em um intento de arrancar a banda de tecido atado em torno de sua cabeça. Deu resultado. entupiu-se no coto de um ramo e, ao dar um puxão para cima, pôde baixar o corbatón por debaixo de seu queixo. Entre grunhidos de esforço, empurrou o lenço para fora, enganchou-o no mesmo ramo e retrocedeu; o trapo molhado saiu de sua garganta, como se fora um tragasables mas ao reverso.
Ao fim podia respirar. E agora? Os disparos continuavam. A sua esquerda ouviu o ruído de vários homens que se abriam passo entre as matas, sem que os obstáculos os detiveram.
Vários pés corriam para ele; agachou-se do tronco, bem a tempo para evitar que o esmagasse um corpo que passou catapultado sobre ele. Seu novo companheiro engatinhou até apertar-se contra o lenho; só então reparou em sua presença.
- Você! –Era Barba Negra, do acampamento do Husband. Aferrou-o pelo peitilho da camisa para aproximar-lhe Tudo isto é tua culpa! Bode!
- Solta, louco!
Só então o tipo notou que ele estava pacote e o soltou, estupefato. Roger, perdido o equilíbrio, caiu de lado e se raspou dolorosamente a cara contra a casca do tronco. Os olhos de Barba Negra, exagerados de assombro, entreabriram-se gozosamente.
- Homem, com que lhe capturaram! Pois sim que estamos de sorte! Quem te prendeu, idiota?
- É meu. –Uma voz grave, de acento escocês, anunciou a volta do William Buccleigh MacKenzie- . Como é isso de que tudo é culpa dele? A que te refere?
- A isto! –Barba Negra estirou um braço para assinalar os arredores e a batalha moribunda.
- Este condenado pico de ouro veio esta manhã ao acampamento e se levou ao Hermon Husband para lhe falar em privado. Não sei que diabos lhe disse, mas, quando acabou, Husband montou a cavalo, disse a todos que voltássemos para casa e partiu!
Barba Negra cravou no Roger um olhar fulminante e, jogando a mão atrás, esbofeteou-o com força.
- O que lhe disse, bode?
Sem guardar resposta se voltou para o Buccleigh, que os olhava a ambos com profundo interesse.
- Se Hermon se ficou conosco talvez teríamos podido resistir –clamou- . Mas que se fora desse modo nos escavou o chão sob os pés. Ninguém sabia o que fazer. E quando menos o esperava, tryon nos grita que nos rendamos. Não era algo que se pudesse fazer, certamente, mas tampouco estávamos o que se diz preparados para combater…
Ao dizer isso, vendo que Roger o observava, lhe apagou a voz ao recordar que esse homem o tinha visto fugir apavorado.
Ao outro lado do tronco se fez o silêncio; os disparos tinham cessado. Roger caiu na conta de que a batalha estava terminada e completamente perdida. O mais provável era que os milicianos invadissem muito em breve esse lugar.
- O que disse ao Husband é o que lhes digo a vós –manifestou- . O governador está decidido a esmagar esta rebelião e, por isso se vê, acaba de fazê-lo. Se lhes interessa salvar o pele… - Barba Negra, com um uivo de ira, agarrou-o pelos ombros e tentou estelar o a cabeça contra o tronco. Roger se retorceu como uma enguia, tornando-se para trás, com o que conseguiu largar-se; logo o golpeou com a frente em pleno nariz. Sentiu um satisfatório rangido de osso e cartilagem e o calor úmido do sangue contra a cara.
Era a primeira vez que aplicava a alguém “ o beijo do Glasgow” , mas ao parecer surgia espontaneamente. O impacto lhe tinha deixado a boneca dolorida, mas já não importava. Só desejava que Buccleigh se aproximasse o suficiente para lhe fazer o mesmo.
O outro o olhou com uma mescla de diversão e cauteloso respeito.
- Ah, com que é homem de talento, né? Traidor, ladrão de algemas e, além disso, grande lutador, tudo no mesmo pacote, não?
Barba Negra se levantou, afogando-se no sangue do nariz rota, mas Roger não lhe emprestou atenção. Já lhe tinha espaçoso a vista e não a separava do Buccleigh; sabia qual desses dois representava a pior ameaça.
- O homem que está seguro de sua esposa não teme que algum outro a roube –disse, logo que moderada a ira pela cautela- . Eu estou seguro de minha esposa e não necessito a tua, amadain.
Buccleigh estava bronzeado pelo sol e muito avermelhado pela luta, mas a suas bochechas subiu um vermelho mais escuro. Mesmo assim manteve a compostura.
- Ah!, está casado –disse, com um pequeno sorriso- . Bastante feia tem que ser sua esposa para que devas fareje a minha. Ou acaso te jogou que sua cama porque não sabia servi-la decentemente?
A pressão da corda nas bonecas recordou ao Roger que não estava em situação de intercambiar palavras fortes.
- A menos que queira deixar viúva a essa tua esposa, é hora de que vá, não? –disse. Apontou com a cabeça para o lado oposto do tronco onde ao breve silêncio seguia um rumor de vozes distantes.
- A batalha terminou e sua causa está perdida. Não sei se pensam tomar prisioneiros…
- tomaram a vários. –Buccleigh o olhou franzindo o sobrecenho obviamente indeciso.
- é melhor que vá enquanto possa –sugeriu- . Sua esposa estará preocupada.
Mencionar outra vez ao Morag foi um engano. A cara do Buccleigh se obscureceu ainda mais, mas antes de que pudesse dizer nada o interrompeu a aparição da nomeada em pessoa, em companhia do homem que, momento antes tinha ajudado a amarrá-lo.
- Will! OH, Willie, está a salvo, graças a deus! Tem alguma ferida? –estava pálida e preocupada; trazia em braços a um menino pequeno.
- não se preocupe, Morag –respondeu buccleigh, resmungão- . Não sofri nenhum dano.
Deu-lhe umas palmadas afetuosas na mão e um tímido beijo na frente. Seu companheiro, sem emprestar atenção a esse tenro reencontro, açulou ao Roger com a ponteira da bota, muito interessado.
- O que faremos com isto, Buck?
Buccleigh apartou momentaneamente a atenção de sua esposa. Morag, ao ver o Roger no chão, sufocou um grito e se levou uma mão à boca.
- O que tem feito, Willie? –exclamou- . Solta-o, pela Santa Bride!
- Nada disso. É um sujo traidor. –Buccleigh apertou os lábios em uma linha carrancuda, obviamente aborrecido pelo fato de que sua esposa se fixasse no prisioneiro.
- Não, não pode ser! –Com o menino apertado contra o seio, Morag se inclinou para observar ao Roger. Ao ver o estado de suas mãos se voltou para seu marido com uma exclamação indignada- . Hill! Como pudeste tratar assim a este homem, depois do que fez por sua esposa e por seu filho?
- te largue, Morag –disse, expressando os desejos do Roger em uma linguagem menos galante- . Nem você nem o menino têm nada que fazer aqui. leve-lhe isso
Por então Barba Negra se recuperou um pouco. De pé junto ao William, olhava ao Roger com gesto carrancudo, sem soltar o nariz torcida.
- lhe cortemos o pescoço e acabemos de uma vez. –Sublinhou sua opinião com um chute às costelas do Roger.
Morag deu um grito feroz e chutou ao agressor na tíbia.
- Deixe-o em paz!
Barba Negra, pego por surpresa, retrocedeu com um alarido. O outro companheiro do Buccleigh parecia encontrar todo isso mais que divertido, mas sufocou sua hilaridade ao ver que o ciumento voltava para ele um olhar horrível.
Morag estava de joelhos, com uma pequena adaga entre as mãos, tratando de cortar as ataduras do Roger com uma só mão. Por muito que ele agradecesse sua intenção, teria sido melhor que não tentasse ajudá-lo. O marido a agarrou por um braço para levantar a de um puxão. O pequeno, sobressaltado, rompeu em chiados.
- Deixa-o, Morag! –bramou Buccleigh- . Vete, vete já!
- Vete, sim! –interveio Barba Negra, jogando faíscas- . Ninguém te pediu ajuda, pequena entremetida!
- Que modo é esse de lhe falar com minha esposa! –Buccleigh girou sobre seus talões e lhe atirou um rápido golpe no estômago.
O homem caiu sentado, abrindo e fechando comicamente a boca. Roger sentiu certa pena por Barba Negra; ao parecer, não tinha mais sorte que ele mesmo com os dois MacKenzie.
O outro homem, que observava a cena com fascinação, aproveitou a oportunidade para intervir, enquanto Morag tratava de acalmar o pranto de seu bebê.
- Não sei o que pensa fazer, Buck, mas será melhor que o façamos e nos larguemos de uma vez. –Assinalou o arroio, intranqüilo. A julgar pelo rumor de vozes, dali vinham vários homens. Os ouvia falar com firmeza; por ende, não podiam ser reguladores em fuga. Milicianos em busca de prisioneiros? Essa era a sincera esperança do Roger.
- Sim. –Buccleigh jogou uma olhada nessa direção e pôs uma mão no ombro de sua mulher.
- Vete, Morag. Não quero que corra perigo.
Ao perceber o sotaque de súplica em sua voz ela abrandou a expressão.
- Irei. Mas você, William Buccleigh, jurará-me não tocar nem um cabelo a este homem.
William se exagerou um pouco e apertou os punhos, mas Morag se manteve em seus treze, miúda e feroz.
- Jura-o! –disse- . Pois pela Santa Bride que não compartilharei o leito de um assassino!
Em óbvio conflito, Buccleigh olhou ao carrancudo Barba Negra; logo a seu outro amigo. O grupo de milicianos se estava aproximando. Por fim olhou a sua esposa à cara.
- Está bem, Morag –grunhiu. Logo lhe deu um pequeno tranco- . Agora vete!
- Não. –Lhe agarrou a mão. O pequeno Jemmy, superado o susto, havia-se acurrucado contra o ombro de sua mãe. Morag apoiou em seu cabecita a mão de seu pai- . Jura-o sobre a cabeça de seu filho, Will: que não fará mal a este homem nem ordenará que o matem.
Por um momento Buccleigh ficou rígido e o sangue voltou a amontoar-se em sua cara. depois de um momento de tensão fez um só gesto afirmativo.
- juro-o –disse em voz baixa. E deixou cair a mão.
Morag, tranqüilizada, afastou-se depressa.
Roger deixou escapar o fôlego que continha. William o olhava, com os verdes olhos entreabridos em reflexão, alheio a crescente agitação de seu amigo.
- Vamos, Buck! Não há tempo que perder. Dizem que Tryon pensava enforcar aos prisioneiros. E não tenho nenhum interesse em cair!
- De verdade? –murmurou Buccleigh, olhando a seu cativo aos olhos.
Por um momento Roger acreditou ver algo familiar nessas profundidades. Pelas costas lhe correu um calafrio de inquietação.
- Tem razão –disse ao William, assinalando ao outro com a cabeça- . Vete. Não te denunciarei… por respeito a sua esposa.
Buccleigh franziu um pouco os lábios, pensativo.
- não –disse ao fim- , não acredito que me denuncie. –agachou-se para recolher a suja e molhada ex-bandeira de parlamento- . Vete, Johnny. Cuida do Morag. Vemo-nos logo.
- Mas Buck…
- Vete! Não corro perigo. –Com um vago sorriso, sem apartar os olhos do Roger, Buccleigh afundou a mão na taleguilla e extraiu um trocito de metal prateado, opaco. Com um pequeno coice, Roger reconheceu sua própria insígnia militar, com as toscas FC gravadas no disco de estanho.
William a fez saltar na mão.
- Tenho uma idéia com respeito a este mútuo amigo –disse a Barba Negra, que de repente renovava seu interesse pelos procedimentos- . Acompanha-me?
Barba Negra olhou ao Roger; logo, ao MacKenzie. Um lento sorriso começou a crescer sob seu nariz bulboso e avermelhado. Nas costas do Roger, o calafrio de intranqüilidade se transformou súbitamente em uma verdadeira descarga de medo.
- Socorro! –bramou- . Socorro, tropa! Auxílio!
Rodou e se retorceu, tratando de evitá-los, mas Barba Negra o agarrou pelos ombros, atirando dele para trás. detrás das árvores se ouviram vozes e um ruído de pés que punham-se a correr.
- Não, senhor –disse William Buccleigh, ajoelhado frente a ele. Sujeitou a mandíbula do Roger com mão de ferro, estrangulando seus chiados, e lhe espremeu as bochechas para obrigá-lo a abrir a boca- . Não acredito que você fale, por certo.
Com um ligeiro sorriso, voltou a colocar o trapo empapado pela garganta do Roger e ou sujeitou com o corbatón destroçado.
Logo se incorporou, com a insígnia de miliciano bem sujeita entre os dedos. Quando as matas se abriram, ele se voltou por volta dos recém chegados com um braço elevado em cordial saúdo.
Sendo já as duas e meia, dispersado por completo o inimigo e com o exército a cinco milhas do acampamento, considerou-se prudente retornar a ele sem perda de tempo. ordenou-se que levassem carretas vazias para carregar aos mortos e feridos de seu bando, e inclusive a vários feridos rebeldes, quem reconheceu que, se tivessem ganho a batalha, não teriam dado quartel a não ser a quem se tivesse unido aos reguladores. Até a estes lhes brindou boa atenção e lhes enfaixaram as feridas.
“ Jornal da expedição contra os insurgentes” , W. Tryon
Uma bala de mosquete lhe tinha destroçado o cotovelo ao David Wingate. Abri a articulação com uma incisão semicircular na cara exterior, pela que extraí a bala deformada e várias lascas de osso; mas a cartilagem estava muita prejudicada e os tendões do bíceps, cortados por completo; tinha à vista o brilho prateado de um extremo, bem escondido na carne escura do músculo.
Mordi-me o lábio inferior, estudando as possibilidades. Se deixava as coisas como estavam, o braço ficaria definitivamente inutilizado. Se conseguia ligar o tendão talhado e alinhar os extremos da articulação, talvez recuperasse parte do movimento.
Passeei a vista pelo acampamento, que agora parecia um estacionamento de ambulâncias, semeado de corpos, equipes e vendagens ensangüentadas. A maioria desses corpos se moviam, graças a Deus, embora só fora para amaldiçoar ou queixar-se. Um dos homens, gasto por seus amigos, tinha chegado morto; jazia à sombra de uma árvore, envolto em sua manta.
Em geral, quão feridas eu tinha visto eram leves, embora havia dois homens com o corpo atravessado pelos tiros. Por eles não podia fazer nada, salvo mantê-los abrigados e esperar o melhor.
Jamie não estava. depois de trazer para seus homens de volta, foi com lindsay para lhe entregar os prisioneiros ao governador… e perguntar no trajeto se havia notícias do Roger.
Os homens seguiam chegando, em grupos de um ou dois, e Bree os olhava com o coração nos olhos. Se alguém me necessitava, ela me chamaria. Decidi que tinha tempo para tentá-lo. Havia pouco que perder, além do maior sofrimento para o senhor Wingate. Perguntaria-lhe se estava disposto.
Embora suarento e pálido como a cera, mantinha-se erguido. Autorizou-me com um gesto da cabeça. Quando voltei a lhe dar a garrafa de uísque, a levou a boca com a mão livre como se contivera o elixir da vida. Chamei um homem para que lhe mantivera o braço imóvel enquanto eu operava e cortei velozmente a pele por cima da articulação do cotovelo, em forma de T investida, para deixar ao descoberto a parte inferior do bíceps, fazendo-o mais acessível. Logo pincei com o mais comprido de meus fórceps até que apareceu o robusto fio chapeado do tendão talhado e atirei dele quanto pude; quando encontrei um sítio onde aplicar a sutura, dediquei-me ao delicado trabalho de reunir os extremos cortados.
Então perdi contato com quanto me rodeava, concentrada toda minha atenção na tarefa. Tinha uma boa agulha de cirurgia e suturas de seda fervida; os pontos surgiram pequenos e pulcros: um nítido ziguezague negro que sujeitava com firmeza a malha escorregadia e brilhante. Por fim a pior parte ficou terminada e o tempo voltou a avançar. Foi possível dizer umas palavras reconfortantes ao David, que tinha suportado todo aquilo com galhardia; quando lhe disse que tinha terminado, ele fez um débil intento de sorrir, embora tinha os dentes apertados e as bochechas molhadas de lágrimas. Quando lhe lavei as feridas com álcool diluído uivou, como todos; não podiam evitá-lo, pobrecitos. Mas logo caiu para trás, tremendo, enquanto eu suturava as incisões e lhe enfaixava as feridas.
Mas isso não requeria grande habilidade nem atenção; gradualmente cobrei consciência de que alguns homens, detrás de mim, analisavam a batalha recente, cheios de elogios para com o governador Tryon.
- Você o viu? –perguntava um deles, com inquietação- . É verdade que hizó o que dizem?
- Que me arranquem as tripas e as fritem para o café da manhã se não ser certo –replicou seu companheiro, sentencioso- . Vi-o com meus próprios olhos, sim. aproximou-se de cavalo até uns cem metros desses porcos e lhes ordenou, cara a cara, que se rendessem. Durante um minuto não houve resposta; eles meio se olhavam entre si, para ver quem falava. Por fim alguém grita que nem pensar, que não vão render se. Então o governador, carrancudo para assustar a uma tormenta, faz que seu cavalo se eleve de mãos e levanta sua espada, e logo a baixa com um grito: “ Fogo contra eles!”
- E dispararam vocês ao momento?
- Não –interveio outra voz, mais educada e em tom bastante seco- . Parece-te mau? Uma coisa é cobrar quarenta xelins por te unir à tropa; outra muito distinta disparar a sangue frio contra seus próprios conhecidos. Olhei ao outro lado e a quem vejo ali? À primo de minha esposa, sonriéndome de orelha a orelha! Olhe, não digo que esse vadio seja nosso parente favorito, mas posso ir a casa e lhe dizer a meu Rally que acabo de furar a sua primo Millard?
- Preferível isso a que o primo Millard faça o mesmo contigo –disse a primeira voz, com um sorriso audível. O terceiro homem riu.
- É verdade –reconheceu- . Mas não esperamos a que as coisas chegassem a isso. Ao ver que seus homens vacilavam, o governador ficou vermelho como o muco do peru. levantou-se sobre os estribos com a espada em alto e bramou, nos olhando a todos: “ Disparem, bodes! Disparem contra eles ou contra mim!”
O narrador pôs tanto entusiasmo em sua representação que arrancou um murmúrio de admiração entre quem o escutava.
- Esse sim que é um soldado! –disse uma voz, seguida por um rumor geral de acordo.
- então disparamos –disse o narrador, com leve encolhimento de ombros perceptível na voz- . Uma vez que começamos, não fez falta muito tempo. O primo Millard é muito veloz correndo, por isso pudemos ver. O cretino escapou.
Ante isso houve mais risadas. Sorri ao David e lhe dava umas palmadas no ombro. Ele também escutava; a conversação o distraía.
- Não, senhor –assegurou outro- . Acredito que Tryon quer assegurá-la vitória. Dizem que vai enforcar aos líderes da Regulação no campo de batalha.
- O que? –Para ouvir isso girei em redondo, com as ataduras ainda na mão.
Os homens me olharam com uma piscada de surpresa.
- Sim, senhora –disse um deles, atirando com estupidez a asa do chapéu- . Disse-me isso um tio da brigada do Lillington, que ia desfrutar de do espetáculo.
- Desfrutar –murmurou outro dos homens, fazendo o sinal da cruz-se.
- Será uma pena que enforquem ao qualquer –opinou outro, sombrio- . O velho Husband é um demônio imprimindo panfletos, mas não é um criminoso, nem tampouco James Hunter ou Ninian Hamilton.
Voltei para meu trabalho, em um intenso esforço por apagar a imagem do que, nesse momento, estaria acontecendo no campo de batalha.
Provavelmente o governador pensasse que se requeria um gesto drástico para selar sua vitória, intimidar aos superviventes e esmagar de uma vez para sempre a mecha, por comprido tempo ardente, desse movimento perigoso.
Houve uma comoção e um ruído de cascos. Levantei a vista. junto a mim, Bree elevou bruscamente a cabeça, com o corpo tenso… era Jamie quem retornava, com o Murdo Lindsay à garupa. Os dois desmontaram. Enquanto Murdo se ocupava do Gideon, ele me aproximou imediatamente.
Pela expressão preocupada de sua cara compreendi que não tinha notícias do Roger; ele me jogou uma olhada e viu na minha a resposta a sua própria pergunta. Seus ombros se encurvaram um pouco, desalentados, mas logo voltaram a quadrar-se.
- irei revisar o campo de batalha –disse em voz baixa- . Já tenho feito circular a voz entre todas as companhias. Se o levarem a algum outro acampamento, alguém virá a nos dar aviso.
- Vou contigo. –Brianna se tirou o avental sujo e o reduziu a uma bola.
Jamie assentiu.
- Sim, moça, é obvio. Mas aguarda um momento. Trarei para o Josh para que ajude a sua mãe.
- Irei a preparar os cavalos.
Segui-a com a vista enquanto se afastava cruzando o claro, recolhendo-as saias com dedos tensos. E senti que o contrapeso do medo se desprendia. Caiu como uma pedra em meu estômago.
Roger despertou lentamente. Não tinha idéia de onde estava nem de como tinha chegado ali, mas havia vozes, muitíssimas vozes. Percebia a juntura em que sua cabeça ia estalar pela pressão: uma banda ardente no batente de seu crânio.
Um defeito de sua vista o privava de perspectiva e o fazia ver as coisas em fragmentos: um cacho longínquo de cabeças que flutuavam como um molho de globos, um braço ondulante com um estandarte carmesim, como se o tivessem amputado de seu corpo. Vários pares de pernas que deviam estar perto… Estava acaso sentado no chão? Em efeito. Uma mosca passou zumbindo junto a sua orelha e aterrissou em seu lábio superior. Por reflito ele tentou lhe dar um tapa; só então caiu na conta de que estava acordado… e ainda pacote.
..Piscou com força e aspirou profundamente, tratando de aferrar-se a algum fio de realidade, de voltar em si. “ Enfoca –pensou- . Sujeita lhe.” Pôde captar uma palavra aqui e lá; prendeu-as com alfinetes para analisar seu significado.
- Exemplo.
- Governador.
- Corda.
- Mijar.
- Reguladores.
- Guisado.
- Enforcar.
- Hillsborough.
- Água.
“ Água.” Essa tinha sentido. Ele sabia o que era a água. Queria água. Necessitava-a. Tinha a garganta seca, como se tivesse a boca cheia de… Em realidade estava cheia de algo; em um intento inconsciente de tragar, moveu a língua e lhe provocou uma arcada.
- Governador.
A palavra repetida justo em cima dele fez que levantasse a vista. Fixou a visão flutuante em uma cara. Magra, moréia, carrancuda de paixão.
- Está você seguro? –disse a cara. E ele se perguntou difusamente: “ Seguro do que?” Ele não estava seguro de nada, salvo de sentir-se muito mal.
- Sim senhor –disse outra voz. E outra cara nadou até ficar à vista junto à primeira. Essa lhe pareceu conhecida; a bordeaba uma densa barba negra- . Vi-o no acampamento do Hermon Husband, falando com ele. Pergunte entre os prisioneiros, senhor. Já verá que o confirmam.
A primeira cabeça assentiu, girou a um lado e acima, para dirigir-se a alguém mais alto. Os olhos do Roger subiram, procurando. Então se sacudiu com uma exclamação afogada ao ver os olhos verdes que o olhavam de acima, indiferentes.
- É James MacQuiston –disse o homem de olhos verdes, com um gesto de confirmação- . Do Hudgin’s Ferry.
- Viram-no na batalha?
A imagem do primeiro homem já era bem clara: um tio de aspecto militar, de uns trinta e oito anos, vestido de uniforme. E outra coisa começava a esclarecer-se… James MacQuiston. Ele tinha ouvido nomear ao MacQuiston… O que…?
- Matou a um homem de minha companhia –disse Olhos Verdes, com voz rouca de ira- . Disparou-lhe a sangue frio quando jazia em terra, ferido.
O governador… Esse devia ser o governador… Tryon! Esse era seu nome! O governador assentiu, com uma ruga profundamente gravada em sua frente.
- Levem-no também, pois –disse, lhes voltando as costas- . por agora bastará com três.
Umas mãos aferraram ao Roger pelos ombros até pôr o de pé. tirou o chapéu caminhando pela metade, sustentado por dois homens vestidos de uniforme. Puxou contra eles, tratando de girar em busca de Olhos Verdes… Chifres! Como se chamava esse homem? Mas o obrigaram a partir, a tropicões, rumo a uma pequena elevação coroada por um imenso carvalho branco.
Muito homens rodeava essa elevação, mas se retiraram para abrir passo ao Roger e a seus guardiães.
“ MacQuiston” , pensou, com o nome súbitamente claro na memória. Era um líder secundário da Regulação, um bagunceiro do Hudgin’s Ferry.
por que diabos Olhos Verdes…? Buccleigh! Era Buccleigh. Ao alívio de recordar o nome seguiu imediatamente o espanto de compreender que Buccleigh o tinha feito passar pelo MacQuiston. por que…?
Não teve tempo sequer de formulá-la pergunta. As últimas filas se abriram ante ele. Então viu os cavalos debaixo da árvore e os nós corrediços que pendiam de seus ramos, sobre as cadeiras vazias.
Sujeitaram aos cavalos pela cabeça enquanto montavam aos homens. Sentiu o roce das folhas nas bochechas e as ramitas que lhe enredavam no cabelo; por instinto agachou a cabeça para proteger os olhos.
Ao outro lado do claro viu uma silhueta de mulher, médio escondida entre a multidão, com a inconfundível curva de um menino no braço.
jogou-se em um lado, com as costas arqueada, e sentiu que se escorregava. Não tinha mãos com que proteger-se. Outras mãos o sujeitaram e o devolveram a seu sítio; uma delas o golpeou com força na cara. Ele sacudiu a cabeça, com os olhos aquosos. Através do borrão de lágrimas viu que a mulher entregava sua carga a alguém e, com as saias recolhidas, punha-se a correr.
Ao outro lado do claro a criatura começava a chiar por sua mãe. A multidão tinha ficado em silêncio e os gritos do bebê se ouviam com força. O soldado moreno, montado em seu cavalo, sustentava a espada em alto. Pareceu dizer algo, mas Roger não ouviu nada: o sangue lhe rugia nos ouvidos.
Os ossos de suas mãos emitiram um estalo seco; uma linha de calor líquido lhe correu com o passar do braço: um músculo esmigalhado. A espada descendeu com um dê-lhe o de sol contra a folha. As nádegas do Roger se deslizaram por cima da garupa do animal e suas pernas ficaram pendurando, indefesas. Um puxão dilacerador…
E girava, sufocando-se, lutando por respirar. Seus dedos arranharam a corda afundada na carne. Por fim tinha as mãos livres, mas já era muito tarde: não havia sensação nelas, não podia as dirigir.
Ficou balançando-se e esperneando. De entre a multidão surgiu um longínquo rumor. Chutou, corcoveou, procurando com os pés no ar vazio, rasgando o pescoço. Esticou o peito, arqueou as costas. Só via negrume e pequenos relâmpagos que piscavam nas comissuras de seus olhos.
Então o teimoso impulso o abandonou. Sentiu que seu corpo se estirava, frouxo, procurando a terra, abraçado por um vento frio.
Jamie e Bree estavam quase preparados para partir. Vários dos homens se ofereceram a formar parte da partida de busca, até fatigados e sujos de fumaça como estavam. Bree se mordeu o lábio e aceitou com gratidão.
“ O pequeno Josh” estava um pouco intimidado por seu novo posto de assistente de cirurgia; mas a fim de contas era moço de quadra e, como tal, estava habituado a atender a cavalos doentes.
Enquanto me lavava as mãos para saturar um corte no couro cabeludo, detectei certo distúrbio no bordo da pradaria, a minhas costas. Jamie também girou a cabeça. Imediatamente cruzou apressadamente o claro, com as sobrancelhas arqueadas.
- O que acontece? –perguntei.
Uma jovem vinha para nós, em um estado lamentável e trotando com uma feia claudicação. Embora era miúda e tinha perdido um sapato, ainda corria apoiada no Murdo Lindsay, que parecia discutir com ela em plena marcha.
- Fraser –a ouvi ofegar- . Fraser!
Soltou ao Murdo para abrir-se passo entre os homens que esperavam; ao passar seus olhos foram percorrendo as caras.
- James… Fraser… Preciso… É você? –Ofegava, sem fôlego.
Jamie se adiantou para agarrá-la por um braço.
- Eu sou Jamie Fraser, moça. Busca-me ?
Ela assentiu com a cabeça; não tinha fôlego para falar. Agitou os braços, assinalando o arroio com gestos desmesurados.
- Ro… er –pronunciou- . Roger. MacKen… zie.
antes de que a última sílaba brotasse de sua boca, Brianna estava a seu lado.
- Onde está? Está ferido? –Aferrou-a por um braço.
A garota sacudiu afirmativamente a cabeça.
- Ahorc… O… estão… enforcando! O gober… nador!
Bree a soltou para correr para os cavalos. Jamie já estava ali. agachou-se sem dizer uma palavra, com as mãos cruzadas formando um estribo. Brianna pôs ali o pé e se jogou na arreios. antes de que Jamie tivesse chegado a seu cavalo, ela já estava em marcha. Mesmo assim Gideon alcançou à égua em segundos e ambas as monturas desapareceram entre os salgueiros.
Deixei a agulha e a sutura nas mãos sobressaltadas do Josh, agarrei o saco com minha equipe de emergência e corri para meu próprio cavalo.
Alcancei-os momentos depois. Como não sabíamos exatamente onde tinha Tryon seu tribunal de guerra, perdemos um tempo valioso, pois Jamie se viu obrigado a deter-se várias vezes para pedir indicações. Estas eram sempre confusas e contraditórias.
Caía a tarde. Estávamos rodeados por nuvens de pequenos mosquitos, mas Jamie não fazia nada por apartá-los. Tinha os ombros rígidos como pedra, dispostos a suportar a carga.
Tanto isso como meus próprios temores me disseram que Roger devia ter morrido.
O terreno se abriu, aplanado em uma larga pradaria. Jamie açulou ao Gideon para pô-lo ao galope e os outros cavalos o seguiram. Nossas sombras voavam como morcegos pela erva; o ruído de nossos cascos se perdia entre as vozes da multidão que enchia o campo.
Em uma elevação, no lado oposto da pradaria, elevava-se um enorme carvalho branco. Meu cavalo trocou súbitamente de direção, esquivando a um grupo de homens. Então as vi: três figuras esquemáticas que se balançavam, quebradas, na densa sombra da árvore.
Foi um mau enforcamento. A falta de tropas oficiais, Tryon não contava com a horrível e necessária habilidade de um verdugo. Fazia montar a cavalo aos três condenados, com as cordas passadas pelos ramos da árvore; a um sinal se retiraram os cavalos para deixá-los pendurando.
Um deles tinha tido a sorte de morrer por fratura de pescoço. Vi o ângulo marcado da cabeça, a flacidez dos membros amarrados. Não era Roger.
Os outros se estrangularam lentamente. Tinham utilizado a corda que tinham à mão; era nova, sem estirar. Roger era mais alto que os outros e as pontas de seus pés tocavam o pó. Tinha conseguido soltá-las mãos e colocar os dedos sob a corda. Por um momento não pude lhe olhar a cara. Em troca desviei a vista para a da Brianna: estava mudada, totalmente imóvel, fixo cada osso, cada tendão, como na morte.
a do Jamie estava igual, mas se os olhos da Brianna tinham ficado aturdidos pela impressão, os do Jamie ardiam como buracos queimados no crânio. deteve-se um momento ante o Roger, logo se fez o sinal da cruz e disse algo em gaélico, em voz muito baixa.
- Eu o sustentarei –disse, entregando sua adaga a Brianna, sem olhá-la- . Você curta a corda, moça.
Deu um passo adiante para sujeitar o cadáver pelo meio e o levantou um pouco, para subtrair pressão a soga.
Roger gemeu. Jamie ficou paralisado, com os braços fechados em torno dele. Seus olhos voaram para mim, dilatados pelo espanto. Foi um som muito leve. Só a reação do Jamie me convenceu de que na verdade o tinha percebido. E também Brianna. Deu um salto para a corda e a cortou em silencioso frenesi.
No momento em que o corpo caía, lancei-me adiante para lhe sujeitar a cabeça entre as mãos, enquanto Jamie o baixava a terra. Estava frio, mas firme. Assim devia ser se estava vivo.
- Uma tabela –disse sem fôlego- . Uma tabela, uma porta, algo sobre o qual colocá-lo. Não devemos lhe mover o pescoço; pode o ter partido.
Jamie ficou em marcha; partiu com movimentos rígidos, mas foi apertando o passo mais e mais, enquanto deixava atrás aos grupos de familiares enfermos e aos curiosos.
Roger não parecia respirar; não havia movimentos visíveis no peito, nos lábios nem nas fossas nasais. Procurei inutilmente o pulso na boneca livre; teria sido inútil pinçar na massa torcida do pescoço. Por fim achei um pulso abdominal que pulsava fracamente, justo debaixo do esterno.
O nó corrediço estava profundamente fundo na carne; procurei freneticamente o canivete que levava no bolso. A soga era nova, de esparto cru. As fibras peludas estavam manchadas pelo sangue seca. Examinei-o vagamente, naquela remota parte de meu cérebro que ainda tinha tempo para coisas tais enquanto minhas mãos trabalhavam. As sogas novas se estiram. Os verdugos profissionais usam as suas, já estiradas e azeitadas. O esparto cru me cravou dolorosamente os dedos ao atirar e cortar.
Saltou o último fio; atirei para retirar a soga. Não me atrevia a mover a cabeça; se havia fratura nas vértebras cervicais, corria perigo de matá-lo ou deixá-lo incapacitado.
Sujeitei a mandíbula e tratei de lhe colocar os dedos na boca para liberar a de mucos e obstruções. De nada serve. A língua torcida não tinha saído, mas estorvava. Mesmo assim, o ar requer menos espaço que os dedos. Apertei-lhe o nariz com força, aspirei duas ou três vezes tão fundo como pude e logo soprei, com a boca pega à sua.
O peito não se movia. Aspirei fundo e voltei para sopro, com a mão livre contra seu peito. Nada. Soprei outra vez. Nenhum movimento. Outra vez. Algo, mas não o suficiente. Outro sopro. O ar escapava pelos borde de minha boca. Soprei. Era como tentar inflar uma pedra. Soprei outra vez.
Vozes confusas por cima de minha cabeça. Brianna, que gritava. Jamie, junto a meu cotovelo.
- Aqui está a tabela –disse com calma- . O que devemos fazer?
- Agarra-o pelos quadris. Bree, você pelos ombros. Levantem quando eu lhes diga isso, não antes.
Movemo-lo depressa; minhas mãos sustentavam a cabeça como se fora o Santo Grial. Arranquei-me a anágua para enrolá-la, a fim de que servisse de apóio a seu pescoço. Ao movê-lo não tinha percebido nenhum rangido, mas necessitava toda a sorte disponível para outras coisas. Por teima ou puro milagre, não tinha morrido. Mas tinha passado perto de uma hora suspenso pelo pescoço; a tumefação das malhas da garganta obteria em muito pouco tempo o que a corda não tinha podido fazer.
Ignorava se dispunha de uns poucos minutos ou de uma hora, mas o processo era inevitável e só havia uma coisa que se pudesse fazer. Por essa massa de malhas esmagadas e maltratados só passavam umas quantas moléculas de ar; um pouco mais de tumefação o fecharia de tudo. Se pela boca ou o nariz não chegava ar aos pulmões, era urgente proporcionar outro canal.
Voltei-me em busca do Jamie, mas foi Brianna quem se ajoelhou a meu lado.
Uma traqueotomía? Era rápida e não requeria grande habilidade, mas resultaria difícil mantê-la aberta… e talvez não fora suficiente para aliviar a obstrução. Tinha uma mão no esterno do Roger, com o suave pulsar do coração seguro sob os dedos. Era bastante firme… possivelmente.
- Bem –disse a Brianna, tratando de me mostrar serena- . Necessitarei um pouco de ajuda.
- Sim –respondeu… e graças a Deus, ela sim parecia serena- . O que devo fazer?
Em essência não era nada difícil: Simplesmente, sustentar a cabeça do Roger bem para trás e sujeitá-la com firmeza enquanto eu lhe cortava o penetro. ajoelhou-se junto à cabeça de seu marido e fez o que eu lhe indicava. Tomei um momento, com as mãos em seu pescoço e os olhos fechados, para procurar o fraco palpitar da artéria e a massa da tireóide, um pouco mais suave. Oprimi para cima: movia-se, sim. Massageei o istmo da tireóide para tirar a de no meio, empurrando-a com força para a cabeça, e com a outra mão pressionei a folha do escalpelo contra a quarta cartilagem traqueal.
Ali tinha forma de Ou; detrás dele estava o esôfago, brando e vulnerável; não devia aprofundar muito. Senti que a pele e a fascia se separavam, fibrosas, resistentes; logo, um suave estalo ao entrar a folha. produziu-se um súbito gorgoteo e um assobio úmido: o ruído do ar aspirado através do sangue. O peito do Roger se moveu. Só então me dava conta de que ainda tinha os olhos fechados.
Abriu os olhos. Não pôde reconhecer o que estava olhando e se esforçou por entender. Palpitava-lhe a cabeça; também tinha outras dez ou doze pulsações menores, cada uma delas um fulgurante estalo de dor. Voltou a fechar os olhos, procurando o consolo da escuridão. Recordava difusamente um esforço terrível, os músculos das costelas rasgados pela luta em procura de ar. Em algum lugar de sua memória havia água, água que lhe enchia o nariz e inflava os vazios de sua roupa… Se estaria afogando? A idéia disparou uma chispada de alarme por sua mente.
Deu um coice e agitou os braços, tratando de chegar à superfície. A dor lhe atravessou o peito até lhe queimar a garganta; tratou de tossir e não pôde, tratou de aspirar e não achou ar. Golpeou contra algo duro…
Algo o sujeitou para mantê-lo quieto. Sobre ele apareceu uma cara. Brianna? O nome flutuou em sua mente como um globo de forte cor. Então seus olhos se centraram um pouco, trazendo para a vista uma cara mais dura, mais feroz. Jamie. O nome flutuava diante dele, mas de algum modo o tranqüilizava.
Pressão, calidez… Uma mão lhe estreitava o braço; outra o ombro. Com força. Piscou, com a vista nublada; gradualmente se foi esclarecendo. Não sentia movimento algum de ire na boca nem no nariz; tinha a garganta fechada e ainda lhe ardia o peito, mas respirava; os músculos das costelas lhe doíam sordamente ao mover-se. Não se tinha afogado, não; doía muito.
- Está vivo –disse Jamie- . Está vivo. Está inteiro. Tudo está bem.
Examinou as palavras com uma sensação de desapego, lhe dando voltas na mente.
“ Está vivo. Está inteiro. Tudo está bem.”
Invadiu-lhe uma vaga sensação de consolo. Ao parecer, isso era tudo o que precisava saber no momento. Qualquer outra coisa podia esperar.
- Senhora Claire? - Era Robin MacGillivray, que rondava a entrada da loja. Ao vê-lo, Claire se levantou imediatamente.
–Lá vou. - Já estava de pé, com a equipe na mão e em marcha para a porta, antes de que Brianna tivesse podido falar.
–Mamãe!
Não foi mais que um sussurro, mas o tom de pânico fez que Claire se voltasse como se tivesse pisado em uma placa giratória. Os olhos ambarinos se fixaram no Bree um momento; logo se desviaram para o Roger e retornaram a sua filha.
–Vigia sua respiração –disse–. Mantén o tubo limpo. lhe dê aguamiel, se estiver consciente e pode tragar um pouco. E toca-o. Não pode girar a cabeça para verte; precisa saber que está aqui.
–Mas… –Brianna se interrompeu, com a boca muito seca para falar.
–Precisam-me –aduziu Claire, com muita suavidade. Girou com um sussurro de saias para o Robin e desapareceu no crepúsculo.
–E eu não? –Os lábios da Brianna se moveram, mas não soube se tinha falado em voz alta ou não. Não importava; Claire se tinha ido. Estava sozinha.
sentiu-se enjoada; então caiu na conta de que estava contendo o fôlego. Deixou escapar o ar e voltou a aspirar, profunda, lentamente. disse-se, com firmeza, que sua mãe não se teria ido se houvesse perigo imediato ou se ficasse algum recurso médico por lhe aplicar. Haveria algo que ela mesma pudesse fazer?
“Toca-o. lhe fale. lhe faça saber que está com ele”. Isso lhe havia dito Claire durante os desagradáveis momentos que seguiram a essa traqueotomía improvisada.
Brianna retornou junto ao Roger, procurando em vão algum lugar onde pudesse tocá-lo sem perigo. Tinha as mãos inchadas como luvas infladas, arroxeadas e manchadas de púrpura e vermelho, quase negros os dedos esmagados; as marcas da corda eram em suas mãos tão profundas que a horrorizavam, como se pudesse ver a brancura do osso. Pareciam irreais, como uma maquiagem má para um filme de terror.
Por grotescas que parecessem, piores eram as da cara, também arroxeada e tumefacta, com um horrendo colarinho de sanguessugas aderidas sob a mandíbula; mas ali a deformidade era mais sutil, como se algum sinistro desconhecido fingisse ser Roger.
Também suas mãos estavam pródigamente decoradas com isso parasitas. Todas as sanguessugas da zona deviam estar aderidas a ele. Por ordem do Claire, Josh tinha deslocado a pedir emprestadas as dos outros cirurgiões; logo ele e os dois moços Findlay baixaram a toda pressa a chapinhar pelos ribazos do arroio, à busca de mais.
“Vigia sua respiração.” Isso era algo que podia fazer. Apoiou-lhe uma mão leve sobre o coração, tão aliviada de encontrá-lo quente ao tato que lançou um grande suspiro. Sua respiração era tão superficial que ela retirou a mão, como se a pressão de sua palma contra o peito bastasse para detê-la. Mas estava respirando, sim; ouvia-se o tênue assobio do ar através do tubo inserido em sua garganta. Claire tinha confiscado a pipa do senhor Caswell, importada da Inglaterra; o canhão de marfim foi implacavelmente partido e lavado com álcool; ainda tinha manchas de alcatrão, mas parecia funcionar bem.
Na mão direita, dois dos dedos estavam fraturados e todas as unhas, ensangüentadas, rotas ou arrancos. Seu estado parecia tão precário que não se atrevia a tocá-lo, como se o sobressalto pudesse empurrá-lo através de algum limite invisível entre a vida e a morte. Mesmo assim compreendia a intenção de sua mãe; esse mesmo contato podia retê-lo, impedir que cruzasse esse limite e se perdesse na escuridão.
Espremeu-lhe a coxa com firmeza, tranqüilizado pelo contato sólido do comprido músculo sob a manta que lhe cobria a parte inferior do corpo. Ele deixou escapar uma pequena exclamação, ficou tenso e voltou a relaxar-se.
–Ouve-me? –perguntou ela, com voz muito fica, inclinando-se para diante–. Aqui estou, Roger. Sou eu, Bree. Não se preocupe, não está sozinho.
Sua própria voz lhe soava estranha; muito alta, rígida, torpe.
Acariciou-lhe o braço, o estreitou um poquito. Como se percebesse o contato, ele entreabriu um olho. Bree acreditou ver, como uma faísca em suas profundidades, a consciência de que ela estava a seu lado.
–Emparelhe uma versão masculina de Medusa.
Havia dito o primeiro que lhe veio à mente. Uma sobrancelha escura se elevou apenas.
–Pelas sanguessugas –explicou ela. Tocou uma das que tinha no pescoço e o parasita se contraiu perezosamente, já médio enche–. Uma barba de serpentes. Incomodam-lhe?
Imediatamente recordou o que lhe havia dito sua mãe. Mas ele moveu os lábios, formando com óbvio esforço um silente “não”.
–Não fale. –Bree jogou uma olhada à outra cama, um pouco coibida, mas o ferido que a ocupava estava quieto, com os olhos fechados. Então se inclinou para dar um rápido beijo ao Roger. Foi apenas um roce de lábios. Ele contraiu a boca, como se queria sorrir.
Brianna teria querido lhe gritar: “O que aconteceu? Que demônios fez?” Mas ele não podia responder.
de repente a sobressaltou a fúria. Não gritou, atenta ao ir e vir da gente, mas o aferrou por um ombro, que parecia estar razoavelmente ileso.
–Por todos os Santos do Céu, como fez isto? –sussurrou-lhe ao ouvido.
Roger moveu lentamente os olhos para fixá-los nela e fez uma pequena careta, que Bree não soube interpretar. Logo o ombro começou a vibrar sob sua mão. Observou-o alguns segundos, completamente perplexa. Logo caiu na conta de que ele se estava rendo. Ria!
Gerald Forbes era um advogado de êxito, e normalmente o parecia. Até com sua equipe de campanha e a fuligem da pólvora lhe manchando a cara, conservava um ar de sólida segurança que ia muito bem como capitão de tropa. Embora esse aspecto não o tinha abandonado, lhe via intranqüilo; de pé à entrada da loja, enrolava e estirava a asa do chapéu.
Ao princípio supus que era só o desassossego que afeta a tantos em presença da enfermidade, ou possivelmente desgosto pelas circunstâncias que tinha sofrido Roger. Mas evidentemente se tratava de outra coisa; logo que saudou com um gesto a Brianna, que estava sentada junto à cama de seu marido.
–Minha solidariedade em sua desgraça, senhora –disse. Logo se voltou imediatamente para o Jamie–. Senhor Fraser, permite-me uma palavra? Você também, senhora –acrescentou, inclinando-se gravemente para mim.
Na loja do Forbes, Isaiah Morton jazia de flanco, mortalmente pálido e suado. Ainda respirava, mas devagar e com um horrível ruído como a gargarejos. Não estava consciente, o qual era uma pequena vantagem. depois de efetuar um superficial exame, sentei-me sobre os talões, me limpando o suor da cara com a prega do avental.
–Um disparo lhe atravessou o pulmon –disse.
Os dois homens assentiram, como se já soubessem.
–Dispararam-lhe pelas costas –acrescentou Jamie, em tom sombrio. E jogou uma olhada ao Forbes, que assentiu sem apartar a vista do ferido.
–Não –disse em voz baixa, em resposta a uma pergunta não formulada–. Não atuou como um covarde. E a avançada foi poda; não havia outras companhias detrás de nós.
–Nem reguladores? Franco-atiradores? Tampouco emboscadas? –perguntou Jamie.
Mas Forbes negou com a cabeça antes de que tivesse terminado com essas perguntas.
–Perseguimos a vários reguladores até o arroio, mas ali nos detivemos e os deixamos escapar. –Forbes seguia enrolando e desenrolando mecanicamente a asa do chapéu, uma e outra vez–. Não tive estômago para matá-los.
Jamie assentiu em silêncio.
–Dispararam-lhe duas vezes pelas costas –esclareci. A segunda bala só lhe tinha roçado o braço, mas a direção do sulco estava bem à vista.
Jamie fechou os olhos por um instante e voltou a abri-los.
–Os Browm –disse Jamie, com resignação.
Gerald Forbes levantou a vista, surpreso.
–Brown? Isso foi o que ele disse.
–Falou?–. Meu marido se sentou em cuclillas junto ao ferido.
–Foi quando o trouxeram. –Forbes se ajoelhou junto ao Jamie, deixando por fim o maltratado chapéu–. Perguntou por você, Fraser. E logo disse: “Avisem ao Ally. Avisem ao Ally Brown.” Disse-o várias vezes, antes de…
Assinalou com um gesto mudo ao Morton, cujos olhos semicerrados mostravam os olhos em branco da agonia.
–Seriamente crie que foram eles? –perguntei, também em voz baixa. O pulso dava tombos e se estremecia sob meu polegar, lutando.
–Fiz mal em deixá-los escapar –disse para seus adentros. referia-se ao Morton e a Alicia Brown.
–Não teria podido detê-los. –Quis tocá-lo com a mão livre para reconfortá-lo, mas não pude, pois estava pega ao pulso do Morton.
Gerald Forbes me olhava, intrigado.
–O senhor Morton… se fugiu com a filha de um homem chamado Brown expliquei delicadamente–. E os Brown não ficaram conforme.
–OH!, compreendo. –Forbes baixou a vista para o ferido–. Os Brown… Sabe você a que companhia pertencem, Fraser?
–À minha –respondeu Jamie–. Quer dizer, pertenciam. Desde que terminou a batalha não tornei a vê-los. –voltou-se para mim–. Se pode fazer algo por ele, Sassenach?
–Não. Pensei que se iria em momentos, mas ainda resiste. A bala não deve haver meio doido nenhuma artéria principal. Mesmo assim…
Jamie suspirou profundamente.
–Bem. Ficará com ele até que…?
–Sim, certamente. Pode voltar para nossa loja e ver se ali tudo está sob controle? Se Roger… enfim… se alguém me necessitar, vêem por mim.
Ele assentiu uma vez mais e se foi. Gerald Forbes se aproximou para apoiar uma mão no ombro do Morton.
–Sua esposa… me encarregarei de que receba ajuda. O dirá você, se reagir?
–Sim, é obvio –repeti. Mas minha vacilação fez que ele levantasse a vista, arqueando as sobrancelhas.
–É que… hum… ele tem duas algemas –expliquei–. Quando se fugiu com a Alicia Brown já estava casado. Desde aí as dificuldades com a família da moça.
–Compreendo –disse, piscando–. E a… né… a primeira senhora Morton, ‚sabe você como se chama?
–Não, temo-me que…
–Jessie.
A palavra foi pouco mais que um suspiro, mas bem poderia ter sido um disparo, pelo efeito que teve na conversação.
–O que? –Devo ter apertado a boneca do Morton, pois ele fez uma leve careta.
–Jessie –suspirou outra vez– Jeze… bel. Jesie Hatfield. Água?
–Ag…!OH, sim! –Soltei-lhe a boneca para agarrar imediatamente a jarra de água.
–Jezebel Hatfield e Alicia Brown –disse Forbes cuidadosamente, como se apontasse os nomes em sua ordenada memore de advogado–. Correto? E onde vivem essas mulheres?
–Jessie… no Granite Falls. Ally está… no Greenboro.
Logo que respirava, ofegando entre uma palavra e outra. Mesmo assim não percebi gorgoteo de sangue em sua garganta; tampouco emanava pela boca ou o nariz. Ainda se ouvia o som do ar que entrava pela ferida das costas; em uma súbita inspiração, movi-o um pouco para diante e atirei da camisa destroçada para cima.
–Senhor Forbes, você tem uma folha de papel?
–Né… sim… Quer dizer… –De forma automática, Forbes tinha fundo a mão na jaqueta para tirar uma folha dobrada. A arrebatei e, depois de desdobrá-la, verti água sobre ela e a peguei contra o pequeno buraco aberto sob o omoplata. A tinta, mesclada com sangue, correu em pequenos fios escuros sobre a pele amarelada, mas o ruído de sucção cessou abruptamente.
Na mão com que sustentava o papel percebi o pulsar do coração. Ainda era débil, mas mais firme. Sim, era mais firme.
–Que me crucifiquem –disse, lhe inclinando para olhá-lo à cara–. Não vais morrer, verdade?
-Não, senhora –disse. Ainda respirava em curtos ofegos, mas mais fundo–. Ally. O bebê… mês próximo. Disse-lhe… que estaria… ali.
–Faremos o possível para que assim seja –lhe assegurei. Logo levantei a vista para o advogado–. Senhor Forbes, seria melhor levar a senhor Morton a minha loja. você pode trazer para um par de homens para que o transladem?
–OH! É obvio, senhora Fraser. Imediatamente.
Mas demorou para ficar em movimento. Vi que desviava a vista para a folha de papel molhado pega à costas do Morton. A obesrvé. Só pude ler umas quantas palavras imprecisas entre meus dedos, mas bastaram para me indicar que Jamie estava equivocado ao referir-se ao Forbes como sodomita. “Minha adorada Valência”, começava a carta. Eu só sabia de uma mulher chamada Valência em toda a zona do Cross Creek; em realidade, em toda a Carolina do Norte. E essa era a esposa do Farquard Campbell.
–Lamento muitíssimo o que aconteceu com seu papel –lhe disse. Sem deixar de lhe sustentar o olhar, esfreguei cuidadosamente a palma da mão sobre a folha, com o que todas as palavras escritas nela se converteram em um borrão de sangue e tinta–. Temo que está totalmente arruinado.
Ele aspirou profundamente e se plantou o chapéu na cabeça.
–Não tem importância, senhora Fraser. Nenhuma importância. irei trazer alguns homens.
A noite trouxe alívio contra o calor e as moscas. De todos meus pacientes só ficavam Isaiah Morton e Roger; os outros feridos graves tinham sido reclamados pelos cirurgiões de suas próprias companhias ou transladados à loja do governador, que os faria atender por seu médico pessoal. Os feridos leves haviam tornado com seus compañeros,para exibir suas cicatrizes ou acalmar os dores com cerveja.
Para ouvir um bater de tambores na distância, fiquei inmovil, escutando. Tocavam uma cadência solene, que se interrompeu abruptamente. Houve um momento de silêncio; logo, o trovejar de um canhão.
Os irmão Lindsay estavam perto; eles também tinham levantado a vista para ouvir os tambores.
–O que é isso? –perguntei-lhes, elevando a voz–. O que acontece?
–Trazem para os mortos, senhora Fraser –explicou Evan–. Não se preocupe. –Honras militares para os mortos em combate. Perguntei-me se enterrariam no mesmo lugar aos dis líderes enforcados ou se lhes atribuiria uma tumba à parte, menos honorável, no caso de que os parentes não os reclamassem. Tryon não era dos que deixam sequer a um inimigo para festim das moscas.
Ao tocar ao Isaiah Morton percebia o ardor da bala alojada em seu pulmão, mas também o ardor, ainda mais forte, de sua feroz vontade de viver apesar dela. Quando tocava ao Roger percebia é mesmo calor… mas era uma faísca débil. Enquanto escutava o assobio de sua respiração, imaginava lenha queimada, com diminutas brasas ainda acesas, mas trêmulo e ao bordo da extinção abrupta.
“Isca”, pensei absurdamente. Isso é o que faz quando o fogo ameaça apagar-se. Sopra sobre a faísca, mas também necessita isca, algo onde a faísca possa prender, algo que a alimente para que cresça.
Um ranger de rodas me arrancou da contemplação de um juncal. Era uma carreta pequena, atirada por um só cavalo e com um só condutor.
–Senhora Fraser? É você?
Demorei um momento em reconhecer a voz.
–Senhor MacLellan? –perguntei, estupefata.
Ele se deteve meu lado e se tocou o chapéu com a mão.
–O que faz você aqui? –perguntei em voz baixa, embora não havia ninguém que pudesse me ouvir.
-Vim em busca do Joe –respondeu, assinalando com um leve movimento de cabeça para a parte traseira do carro.
Não deveria me haver surpreso, depois de ter acontecido o dia vendo morte e destruição. Além disso, minha relação com o Joe Hobson era muito superficial. Mas ignorava que tivesse morrido; me arrepiou a pele dos antebraços.
Sem dizer mais, caminhei para a parte posterior da carreta. Senti a pequena sacudida e a vibração da madeira: Abel tinha posto o freio e descia para reunir-se comigo.
O corpo não estava amortalhado, embora alguém lhe havia talher a cara com um lenço grande, não de tudo sujo.
–Esteve você no combate? –perguntei ao Abel, sem olhá-lo. Devia ter acompanhado aos reguladores, mas não cheirava a pólvora.
–Não –disse brandamente por detrás de meu ombro–. Não tinha intenção de brigar. Vim com o Joe Hobson, o senhor Hamilton e os outros, mas quando se morava o combate me afastei. Caminhei até o moinho, ao outro lado da cidade. E ao ficar o sol, como não havia sinais do Joe… retornei –concluiu simplesmente.
–E agora? –perguntei–. Quer que lhe ajudemos a enterrá-lo? Meu marido…
–OH, não! –interrompeu–. O levarei a casa, senhora Fraser. Mesmo assim lhe agradeço a amabilidade. Mas se pudesse me dar um pouco de água… ou um pouco de comida para a viagem…
–É obvio. Esper, que vou procurar provisões.
Enquanto retornava depressa à loja calculei a distância entre o Alamance e Drunkard´s Spring. Quatro dias, cinco, seis? E o sol tão ardente, e as moscas… Mas como sabia o que é um escocês quando toma uma decisão, fui discutir.
Detive-me um momento para examinar aos dois homens; os dois respiravam. Tinha substituído o papel molhado que cobria a ferida do Morton por uma parte de linho azeitado, pego nos borde com mel, que constitui um excelente selo.
Brianna seguia junto ao Roger. Havia trazido um pente de madeira e lhe estava penteando o cabelo revolto; retirava com suavidade os abrojos e as ramillas, desfazia os enredos, tudo com lenta paciência. Enquanto isso cantarolava algo pelo baixo: “Frère Jacques, Frère Jacques…”
O nó que tinha na garganta me impediu de falar. Corri fora outra vez, com o pacote sob o braço. Uma figura saiu da escuridão frente a mim e estivemos a ponto de chocar. Detive-me em seco, com o pacote apertado contra meu ombro, e lancei uma exclamação afogada.
–você perdoe, senhora Fraser. Supus que me tinha visto.
Era o governador. Deu outro passo para a luz que emanava da loja.
–Seu genro –disse, olhando para a loja–. Está…?
–Está com vida –disse uma voz baixa e grave, detrás dele.
Tryon girou em redondo com uma exclamação sufocada. Eu levantei bruscamente a cabeça. Uma sombra se moveu e tomou forma. Era Jamie, que saía lentamente da noite.
–Senhor Fraser. –O governador, embora sobressaltado, afirmou a mandíbula e apertou os punhos nos flancos–. vim a apresentar minhas desculpas pelo dano feito a seu genro. Foi um engano extremamente lamentável.
–Extremamente lamentável –repetiu Jamie, com entonação algo irônica–. E lhe incomodaria me dizer, senhor, como se produziu esse… engano?
Deu um passo adiante e Tryon, automaticamente, retrocedeu a mesma distância. Notei que se acalorava e que apertava os dentes.
–Foi um equívoco –disse entre dentes–. Lhe identificou erroneamente como líder proscrito da Regulação.
–Quem o identificou? –A voz do Jamie soava cortês.
Nas bochechas do governador apareceram umas pequenas manchas acesas.
–Não sei. Várias pessoas. Eu não tinha motivos para duvidar da identificação.
–Já vejo. E Roger MacKenzie não disse nada em sua própria defesa? Não revelou quem era?
Os dentes do Tryon se cravaram brevemente no lábio superior.
–Né… não.
–Porque estava pacote e amordaçado, homem! –intervim–. Não lhe permitiu falar, verdade, maior… né…?
A luz da loja se refletiu no medalhão do Tryon, uma medialuna de prata que pendia de sua garganta. A mão do Jamie se elevou tão lentamente que Tryon não percebeu ameaça alguma. Com toda suavidade, fixou-se em volto do pescoço do governador, justo por cima do medalhão.
–nos deixe sozinhos, Claire –disse. Sua voz não parecia muito ameaçador, a não ser fleumática. Nos olhos do Tryon se acendeu um relâmpago de pânico. Deu um coice para trás e o medalhão cintilou.
–Não se atreva a me pôr as mãos em cima, senhor! –O pánicocedió imediatamente, substituído por fúria.
–OH!, claro que sim. Igual a você pôs as mãos em cima de meu filho.
–Foi um engano! E vim para retificá-lo até onde me seja possível. –Tryon não cedia terreno, dente apertados e olhar fulminante.
Jamie lançou uma exclamação depreciativa.
–Um engano. Simplesmente isso é para você que um homem inocente perca a vida? Você mata e mutila por ganhar glória, sem que lhe importe a destruição que deixa atrás; só lhe interessa ampliar as crônicas de suas façanhas. Como anotará isto nos despachos que envie a Inglaterra, senhor? Dirá que apontou os canhões contra seus próprios cidadãos, quem não tinha mais arma que paus e facas? Ou dirá que sufocou a rebelião e preservou a ordem? Dirá que, em sua pressa por vingar-se, matou a um homem inocente? Dirá que cometeu “um engano”? Ou que castigou a maldade e exerceu justiça em nome do rei?
Tryon dominou o gênio, embora trêmulo e com os dentes apertados. antes de falar aspirou profundamente pelo nariz.
–Senhor Fraser: direi-lhe algo que só uns poucos sabem. Ainda não é de conhecimento público. Nomearam-me governador da colônia de Nova Iorque. A nomeação chegou faz mais de um mês. Em julho partirei para me fazer carrego do novo posto. Em meu lugar se nomeou ao Josiah Martin. –Olhou a ambos–. Já vêem vocês: não tinha nada que ganhar nem que perder com tudo isto. Não precisava glorificar minhas façanhas, como você há dito. Fiz o que tenho feito por cumprir com meu dever. Não quis deixar esta colônia em estado de desordem e rebelião.
Aspirou profundamente e deu um passo atrás, obrigando-se a abrir os punhos que mantinha apertados.
–Você tem experiência em questões de guerra e de dever, senhor Fraser. E se for honesto, reconhecerá que freqüentemente se cometem enganos em ambos os planos. Não pode ser de outra maneira.
Sustentava o olhar do Jamie. Ambos guardaram silêncio. O pranto distante de um bebê me apartou-se essa confrontação. Voltei-me bruscamente. Nesse momento Brianna saiu da loja, detrás de mim, com uma revoada de saias agitadas.
–Jem –disse–.!Esse é Jemmy!
Era ele. Do outro lado do acampamento se aproximava um barulho de vozes, que resolveram na silhueta redonda e cheia de volantes do Phoebe Sherston; parecia assustada, mas decidida. Seguiam-na dois escravos: um homem que carregava duas enormes cestas e uma mulher, em cujos braços se retorcia um vulto que armava um terrível alvoroço.
Brianna foi para o vulto e Jemmy emergiu de entre as mantas. Mãe e filho desapareceram entre as sombras das árvores. Seguiu uma pequena confusão, enquanto a senhora Sherston explicava desarticuladamente à multidão de curiosos que se afligiu tanto… para ouvir os informe de batalha, tão terrível… e pensou que possivelmente… e então… e como o menino não deixava de chiar…
Jamie e o governador, arrancados de seu enfrentamento cara a cara, também se tinham retirado para as árvores. Tinha-os à vista: duas sombras rígidas; uma alta e a outra mais baixa, de pé, muito juntas. Mas esse tete-À-tete tinha perdido o elemento de perigo; notei que Jamie inclinava a cabeça para seu interlocutor, atento.
–… trouxe comida –me estava dizendo Phoebe Sherston–. Pão fresco, manteiga, um pouco de geléia de framboesas, frango frio e…
–Comida! –exclamei, recordando abruptamente o pacote que levava sob o braço–você Perdoe!
E me escapuli com um brilhante sorriso, deixando-a boquiaberta diante da loja.
Abel MacLennan aguardava pacientemente ali onde eu o tinha deixado. Descartou minhas desculpas com um gesto e me deu as obrigado pela comida e a jarra de cerveja.
–Há algo mais que…? –mas me interrompi. Que mais podia fazer por ele?
Entretanto, ao parecer havia algo.
–O jovem Hugh Fowles –disse–. Dizem que o fizeram prisioneiro. você crie que… seu marido poderia falar por ele? Tal como o fez por mim?
–Suponho que sim. O direi… Senhor MacLennan –disse, movida por um impulso–, aonde irá você? depois de ter levado ao Joe Hobson a sua casa, claro.
–Pois –disse–, não penso ir a nenhuma parte. Lá estão as mulheres, não? Com o Joe morto e Hugh prisioneiro, já não há um homem com elas. Ficarei.
Logo me fez uma reverência e ficou o chapéu. Estreitei-lhe a mão, o qual foi uma surpresa para ele. Logo subiu à carreta, estalou a língua para açular ao cavalo e elevou uma mão em gere de despedida que eu imitei.
Quando retornei à loja, as coisas estavam mais ou menos tranqüilas. O governador e a senhora Sherston se foram; também os escravos. Isaiah Morton dormia, gemendo de vez em quando, mas sem febre. Roger jazia imóvel como uma figura sepulcral, negras de moretones a cara e as manos;el débil assobio do tubo por onde respirava era um contraponto da canção com que Brianna balançava ao Jemmy.
O garotinho tinha a cara lassa e a boquita aberta no absoluto abandono do sonho. Com súbita inspiração alarguei os braços; Bree, embora surpreendida, permitiu-me agarrá-lo. Com muito cuidado pus o cuerpecito frouxo e pesado contra o peito do Roger. Bree fez um pequeno movimento, para sujeitar ao bebê e impedir que se escorregasse, mas Roger levantou um braço, rígido e lento, e o cruzou sobre o menino dormido.
“Isca”, pensei, satisfeita.
Acampamento do Grande Alamance
Sexta-feira, 17 de maio de 1771
Gesto: Granville
Contra-senha: Oxford
O governador, impressionado com o mais afetuoso sentido de gratidão, agradece tanto aos oficiais como aos soldados do exército o vigorosos e generoso apoio que lhe emprestaram ontem na batalha perto do Alamance. A seu valor e firme conduta se deveu, sob a Providência de Deus Todo-poderoso, assinalada-a vitória obtida sobre os obstinados e caprichosos rebeldes. Sua excelência se conduele com os leais pelos bravos homens que caíram e sofreram na ação, mas ao refletir que o destino da Constituição dependia do êxito da jornada, e os importantes serviços assim emprestados a seu rei e a ou país, considera que esta perda (até se à presente causa aflição a seus parentes e amigos) é um monumento de perdurável glorifica e honra para eles e suas famílias.
Os defuntos serão sepultados às cinco desta tarde, frente ao parque de artilharia. O ofício fúnebre se celebrará com honras militares aos mortos. depois da cerimônia haverá orações e ação de obrigado pela assinalada vitória que a Divina Providência quis outorgar ontem ao exército contra os insurgentes.
A senhora Sherston, com inesperada generosidade, ofereceu-nos sua hospitalidade. Instalei-me em seu grande casa do Hillsborough com a Brianna, Jemmy e meus dois pacientes; Jamie dividia seu tempo entre o Hillsborough e o acampamento dos milicianos, que se manteria no Alamance Creek até que Tryon estivesse convencido de que a Regulação estava definitivamente esmagada.
Era incapaz de alcançar com os fórceps a bala alojada no pulmão do Morton, mas não parecia lhe incomodar muito e a ferida começava a fechar de modo satisfatório.
Embora não tinha nenhuma certeza sobre a eficácia de minha pequena provisão de penicilina, parecia dar resultado; a ferida estava um pouco avermelhada e drenava um pouco, mas não havia infecção e a febre era muito pouca. além da penicilina, a presença repentina da Alicia Brown, muito avultada em seu embaraço, poucos dias depois da batalha supôs um muito importante impulso para a recuperação do Morton.
Roger era outra questão. Dormia muito, e isso teria devido ser bom sinal. Mas seu sonho, embora pesado, não era tranqüilo; havia nele algo inquietante, como se procurasse a inconsciência com um desejo feroz e, uma vez alcançada, aferrasse-se a ela com teima; isso me preocupava mais do que estava disposta a admitir.
Brianna, que tinha seu próprio tipo de empecinamiento, era a encarregada de despertá-lo cada poucas horas, para alimentá-lo e limpar o tubo da incisão. Durante esses procedimentos ele cravava a vista na distância medeia, olhando sombríamente um nada, e apenas se dava por informado dos comentários que lhe dirigiam.
Uma vez terminada a padre, fechava novamente os olhos e se recostava contra o travesseiro, com as mãos enfaixadas sobre o peito, como uma figura sepulcral, sem deixar ouvir mais sons que o suave assobiar do tubo inserido em seu pescoço.
Dois dias depois da batalha do Alamance, Jamie chegou a casa dos Sherston justo antes de jantar.
–Hoje mantive uma pequena conversação com o governador –disse–. Estava muito ocupado e não queria pensar no que aconteceu depois da batalha, mas eu não estava disposto a deixar as coisas assim.
–Não, acredito que fora um grande competidor –murmurei–. William Tryon nem sequer é escocês, muito menos um Fraser.
–Pois não. –Se desperezó com fruição–. Cristo, estou morto de fome! Há algo de comer?
–Presunto assado e bolo de batata-doce –lhe disse–. E o que disse o governador uma vez devidamente intimidado?
–OH!, várias coisas. Para começar, insisti em que me informasse em que circunstâncias capturaram ao Roger MAC: quem o entregou e o que disse. Quero chegar ao fundo disto.
–Recordou algo quando lhe pressionou?
–Sim, algo mais. Tryon diz que quem levou cativo ao Roger MAC foram três homens; um deles tinha a insígnia da companhia Fraser; ele supôs que era um de meus, certamente. Assim diz –acrescentou com ironia.
–Sem dúvida era a insígnia do Roger –disse–. O resto de sua companhia retornou contigo. Todos, menos os Brown, e não podem ter sido eles.
Ele assentiu, desprezando a conclusão com um breve gesto.
–Sim, mas por que? Ele diz que Roger MAC estava pacote e amordaçado. Uma maneira nada honorável de tratar a um prisioneiro de guerra, fiz-lhe notar.
–E o que respondeu?
–Disse que isto não era guerra, a não ser insurreição, e que estava justificado tomar medidas sumárias. Mas capturar e enforcar a um homem sem lhe permitir dizer uma palavra em sua defesa… SE Roger MAC tivesse morrido pendurado dessa corda, Claire, juro-te que Tryon já estaria com o pescoço quebrado e comido pelos corvos.
–Não morreu nem morrerá. –Ao menos isso esperava eu, mas o disse com toda a firmeza possível.
–Pois bem. Disse que o homem identificou ao Roger MAC como James MacQuiston, um dos cabeças da Regulação. estive perguntando por esse MacQuiston –acrescentou. Enquanto falava se acalmou um pouco–. Te surpreenderia saber, Sassenach, que ninguém viu pessoalmente a esse homem?
Surpreenderia-me e o disse. Ele assentiu; o rubor ia abandonando suas bochechas.
–A mim também, mas assim é. Suas palavras aparecem publicadas nos velhos periódicos, à vista de todos, mas ninguém o viu nunca. Nem o velho Ninian, nem Hermon Husband… nenhum dos reguladores com os que pude falar, embora agora quase todos se escondem, claro –acrescentou–. Até localizei ao impressor que publicou um dos discursos do MacQuiston. Diz que o original foi deixado uma manhã na soleira, com uma fôrma de queijo e dois certificados de dinheiro da proclamação para pagar a impressão.
–Pois isso sim que é interessante –disse–. De modo que “James MacQuiston” bem pode ser um nome suposto.
–É muito provável.
Ao analisar as implicações dessa idéia, súbitamente me ocorreu uma possibilidade.
–Crie que o homem que identificou assim ao Roger possa ter sido o mesmo MacQuiston?
Jamie arqueou as sobrancelhas e fez um lento gesto afirmativo.
–E para proteger quis fazer que enforcassem ao Roger MAC em seu lugar? Ter morrido é um excelente amparo contra a detenção. Sim, é uma boa idéia… embora um pouco perversa –acrescentou juiciosamente.
–0h!, só um pouco.
Parecia menos furioso com o perverso e fictício MacQuiston que com o governador; claro que sobre a atuação do Tryon não havia dúvidas.
–Recordava o governador como eram esses homens que levaram ao Roger? –perguntei.
–Só de um. que tinha a insígnia. Foi o que mais falou. Diz que era um tipo loiro, muito alto e fornido. Pareceu-lhe que tinha os olhos verdes. Não reparou muito em seu aspecto, certamente, pois nesse momento tinha a mente muito ocupada. Mas ao menos recordava isso.
–Por todos os Santos do céu! –exclamei. Tinha tido uma idéia súbita–. Alto, loiro e de olhos verdes. Crie que pode ter sido Stephen Bonnet?
–Jesus! –exclamou ele–. Não me tinha ocorrido.
Tampouco a mim. O que sabia do Bonnet não parecia coincidir com a imagem dos reguladores, quase sempre homens pobres e se desesperados como Joe Hobson, Hugh Fowles e Abel MacLennan. Uns poucos eram idealistas indignados, como Husband e Hamilton. Stephen Bonnet podia ter sido, alguma vez, pobre e desesperado, mas eu tinha a razoável certeza de que não lhe teria ocorrido procurar compensação do governo por meio do protesto. Pela força sim. Matar a um juiz ou a um delegado para vingar alguma injustiça, muito possivelmente. Mas… Não, era ridículo. Se de algo estava segura com respeito ao Stephen Bonnet era de que o homem não pagava impostos.
–Não. –Jamie moveu a cabeça; ao parecer tinha chegado à mesma conclusão–. Neste assunto não há dinheiro que ganhar. Até o Tryon teve que solicitar recursos ao conde Hillsborough para costear sua tropa. E os reguladores… –Desprezou com um gesto a idéia de que eles pagassem a alguém por nada–. Embora não sei muito do Stephen Bonnet, acredito que só iria à batalha se lhe oferecessem ouro.
–Certo. Não parece possível que Bonnet pudesse ser James MacQuiston, verdade?
Pela primeira vez ele relaxou a cara, rendo.
–Não, Sassenach. Disso sim estou seguro. Stephen Bonnet não sabe ler nem escrever, além de seu nome.
–Como sabe?
–Disse-me isso Samuel Cornell. Não conhece pessoalmente ao Bonnet, mas diz que certa vez Walter Priestly veio a lhe pedir um empréstimo de dinheiro, com urgência. Isso sentiu saudades, pois o homem tem fortuna, mas Priestly lhe explicou que tinha um embarque ao chegar e devia pagá-lo em ouro; conforme disse, que o trazia não aceitava recibos de mercadoria em déposito, dinheiro da proclamação nem letras de mudança. Para ele só servia o ouro.
–Sim, isso soa ao Bonnet. E falando de ouro… É possível que Bonnet estivesse no Alamance por acaso? Caminho do River Run, talvez?
Ele refletiu um momento, mas finalmente negou com a cabeça.
–Não foi uma batalha importante, Sassenach, dessas em que pode verte envolto e miserável sem te dar conta. Os exércitos estiveram frente a frente durante mais de dois dias; as linhas de sentinelas tinham mais buracos que uma rede de pesca; qualquer poderia ter abandonado o lugar ou dado um rodeio para evitá-lo. E Alamance não está perto do River Run. Não: quem quer que tenha sido o que quis matar ao Roger, estava ali por conta própria.
Depois do jantar subi com o Jamie para ver como estava Roger. Jamie esperou a que eu avaliasse seu pulso e sua respiração. Logo, a meu sinal, sentou-se junto à cama.
–Sabe quem eram os homens que lhe denunciaram? –perguntou sem preâmbulos.
Roger assentiu com lentidão e mostrou um dedo em alto.
–Um deles. Quantos eram?
Três dedos. Concordava com as lembranças do Tryon.
–Eram reguladores?
Um gesto afirmativo. Jamie me olhou. Logo, outra vez ao Roger.
–Não era Stephen Bonnet?
Ele se incorporou bruscamente, boquiaberto, e deu um tapa ao tubo em um vão intento por falar. Logo sacudiu violentamente a cabeça.
Eu o aferrei pelo ombro e sujeitei o tubo, que a violência de seus movimentos havia medeio tirado da incisão. Roger pareceu não dar-se conta; seus olhos estavam cravados nos do Jamie e sua boca se movia com urgência, formulando mudas perguntas.
–Não, não. SE não o viu é porque não esteve ali. –Jamie o colheu com firmeza pelo outro ombro para me ajudar a deitá-lo–. É que Tryon há dito que te traiu um homem alto e loiro, provavelmente de olhos verdes. Pensamos que possivelmente…
Ante isso Roger se relaxou. Negou outra vez com a cabeça e Jamie insistiu:
–Mas conhece homem. Tinha-o visto antes?
Ele apartou o olhar, fez um gesto afirmativo e se encolheu de ombros. Parecia de uma vez irritado e indefeso. Ao notar que sua respiração se acelerava, sibilante no tubo de âmbar, pigarreei significativamente, com o sobrecenho franzido. Roger estava fora de perigo, no momento, mas isso não significava que estivesse bem.
Jamie não me emprestou atenção. antes de subir, tinha pego a caixa de desenho do Bree. Pô-la no regaço do Roger, com uma folha de papel em cima, e lhe ofereceu um dos lápis-carvões.
–Quer provar outra vez?
Tinha tratado várias vezes de que Roger se comunicasse por escrito, mas suas mãos estavam muito torcidas para sujeitar uma pluma. Ele apertou os lábios um momento, mas fechou torpemente a mão em torno do lápis-carvão.
Enrugou a frente, para concentrar-se, e começou a rabiscar algo lentamente. Jamie o observava com atenção, sustentando o papel com as duas mãos para que não se escorregasse.
A barra de carvão se partiu em dois e seus fragmentos caíram ao chão. Enquanto eu ia recolher os, Jamie se inclinou sobre a folha manchada. Havia uma escancarada W, logo uma M, um espaço e um torpe MAC.
–William? –Olhou ao Roger, pedindo verificação. Nos maçãs do rosto do doente brilhava o suor, mas assentiu muito brevemente.
–William MAC –disse, espiando sobre o ombro do Jamie–. Foi um escocês…. ou ao menos alguém de sobrenome escocês?
Roger apertou um punho e se golpeou o peito, uma e outra vez, modulando uma palavra com os lábios. Por uma vez fui mais rápida que Jamie.
–MacKenzie? –perguntei.
Minha recompensa foi um veloz brilho de olhos verdes e um gesto afirmativo.
–MacKenzie. William MacKenzie. –Jamie, com o sobrecenho enrugado, revisava obviamente sua lista mental de nomes e caras, mas nenhuma coincidia.
Eu observava ao Roger. Sua cara também começava a parecer mais normal. Pareceu-me ver algo estranho em sua expressão. Em seus olhos li dor física, impotência e frustração por sua incapacidade de revelar ao Jamie o que desejava saber, mas também algo mais. Ira, sem dúvida, e também um pouco parecido ao desconcerto.
–Conhece algum William MacKenzie? –perguntei ao Jamie.
–Sim, a quatro ou cinco. Em Escócia. Aqui, nenhum. E tampouco…
À palavra “Escócia” Roger levantou abruptamente uma mão. Jamie se interrompeu, atento à cara do Roger como um cão pointer.
–Escócia –repetiu–. Algo sobre Escócia? O homem é imigrante novo?
Roger sacudiu violentamente a cabeça, mas imediatamente se deteve com uma careta de dor. Durante um momento, fechou os olhos com força; ao abri-los alargou uma mão insistente para as partes de lápis-carvão que eu tinha na mão.
Teve que tentá-lo várias vezes; ao terminar jazia contra o travesseiro, exausto. O resultado de seu esforço era impreciso e escancarado, mas li o nome com claridade.
“Dougal”, dizia. A expressão interessada do Jamie se agudizó até converter-se em um pouco parecido à cautela.
–Dougal –repetiu cuidadosamente. Também conhecia vários Dougal, alguns dos quais residiam na Carolina do Norte–. Dougal Chisholm? Dougal Ou´Neill?
Roger moveu a cabeça; o tubo assobiou com sua exalação. Logo levantou a mão para assinalar enfaticamente ao Jamie com os dedos entalados. Como a única resposta fora um olhar de incompreensão, procurou provas a parte de lápis-carvão, mas este rodou pela caixa de desenho até cair ao chão.
Tinha os dedos sujos de pó de carvão. Com uma careta de dor, apertou a gema do anular contra a página e, mediante o recurso de utilizar todos os dedos por turnos, produziu um fantasmal gancho de ferro, que disparou uma pequena descarga elétrica da base de minha coluna.
“Geillie”, dizia.
Jamie olhou esse nome um momento. Logo se fez o sinal da cruz, estremecido.
–O filho que Dougal teve com o Geillis Duncan –disse Jamie, girando para ele com a incredulidade escrita na cara–. Acredito que o chamaram Willian. Refere a ele? Está seguro?
Um breve assentimento. Roger fechou os olhos. Quando voltou a abri-los, um dedo entalado se elevou, vacilante, para assinalar seu próprio olho: um verde claro e intenso, da cor do musgo.
A revelação da identidade do William Buccleigh MacKenzie não alterou o desejo do Jamie por achar a esse homem, mas sim sua intenção de matá-lo assim que o achasse.
Brianna, chamada a meu quarto para uma consulta, entrou com seu avental de pintura, trazendo um forte aroma de terebintina e azeite de linho.
–Sim –disse–. ouvi falar dele. William Buccleigh MacKenzie. O menino trocado.
–O que? –As sobrancelhas do Jamie subiram para a linha do cabelo.
–Assim o chamava eu –disse–. Quando vi a árvore genealógica do Roger e caí na conta de quem devia ser William Buccleigh MacKenzie. Dougal entregou o menino ao William e Sarah MacKenzie, recorda? E eles lhe puseram o nome do filho que tinham perdido dois meses antes.
–Roger mencionou que tinha visto o William MacKenzie e a sua esposa a bordo do Gloriana, na viagem entre Escócia e Carolina do Norte –explicou Bree–. Mas demorou para compreender quem era e não teve oportunidade de falar com ele. De modo que esse William está aqui. Mas por que diabo quis matar ao Roger… e por que dessa maneira?
–É o filho de uma bruxa –especificou Jamie, como se com isso bastasse.
–Também me acreditavam bruxa –lhe recordei com certa aspereza.
Isso provocou um olhar de soslaio e uma curva de sua boca.
–É certo –disse–. Pois bem, suponho que será necessário esperar enquanto investigo. E saber o nome é útil. Mandarei reflexo ao Duncan e ao Farquard. Mas o que farei quando o encontrar? Embora seja filho de uma bruxa, não posso matar a alguém de meu próprio sangue. depois do Dougal… –Se conteve a tempo e dissimulou com uma tosse–. Quero dizer, depois de tudo, é o filho do Dougal. minha primo…
Compreendi o que tinha querido dizer. Quatro pessoas sabiam o acontecido aquela noite, no apartamento de cobertura do Culloden House, em vésperas daquela longínqua batalha. Uma delas tinha morrido; outra desapareceu no tumulto da Sublevação e era muito provável que também tivesse morrido. Só ficava eu como testemunha do sangue do Dougal e a mão que a tinha derramado. Pouco importava que crímenes tivesse cometido William Buccleigh MacKenzie, a memória de seu pai impediria que Jamie o matasse.
–Pensava matá-lo? antes de averiguar quem era?
–Roger MAC é seu marido, filho varão de minha casa –disse, muito sério–. Devo vingá-lo, é obvio.
–Bem –disse–. Quando achar ao William Buccleigh MacKenzie, quero me inteirar.
Brianna estendeu um emplastro de betume de pintura verde e o mesclou ao grande manchón cinza claro que tinha criado. Logo vacilou um momento, inclinando a paleta por volta de um e outro lado à luz da janela, para apreciar a cor formada, e acrescentou um toque de cobalto ao outro lado do manchón, produzindo uma variedade de tons sutis que foram do cinza azulado ao esverdeado, tão tênues que se requeria os olhos de um entendido para distingui-los do branco.
Com um dos pincéis curtos e grossos, aplicou isso cinzas ao tecido, trabalhando a curva da mandíbula com diminutas pinceladas superpuestas. Sim, assim estava bem: pálido como a porcelana, mas com uma sombra vívida debaixo… um pouco de uma vez delicado e terrestre.
Pintava com uma profunda concentração que a isolava de quanto a rodeava, absorta na dobro visão do artista, comparando a imagem em evolução com a que tinha inmutablemente gravada na memória. Não porque tivesse sido a primeira vez que via um morto. Seu pai, Frank, tinha sido velado com o ataúde aberto. E também tinha ido aos velórios de velhos amigos da família. Mas as cores que aplicavam os artistas embalsamadores eram toscos, quase brutais em comparação com os de um cadáver fresco. O contraste a tinha deixado estupefata.
Do corredor lhe chegaram vozes desconhecidas, mas se dirigiam ao salão. Já tranqüila, agarrou novamente o pincel grosso.
Invocou novamente sua imagem mental: o morto no Alamance sob a árvore, perto do improvisado hospital de campanha de sua mãe. Não lhe tinha ocorrido perguntar pelo nome do defunto. Acaso era falta de sensibilidade? Provavelmente; o fato era que toda sua sensibilidade tinha estado, por então, dedicada a outra coisa… e ainda era assim. Não obstante, fechou os olhos para rezar uma rápida oração pela alma de seu involuntário modelo.
Ao abrir os olhos viu que a luz se perdia. Então rasqueteó a paleta e começou a limpar os pincéis; lentamente, a contra gosto, saía de seu trabalho para retornar ao mundo.
Ao Jem já teriam dado o jantar e seu banho, mas se negava a deitar-se se ela não o amamentava e o balançava até dormi-lo. Daria-lhe de mamar, deitaria-o e logo iria à cozinha a por seu jantar atrasado. Não tinha comido com os outros para aproveitar a luz vespertina. Depois subiria para ver o Roger.
Nesse momento Phoebe Sherston apareceu a touca pela porta.
–Ah, querida, estava aqui! Não baixaria um momento ao salão? O matrimônio Wilbur morre por te conhecer.
–Né… pois sim, é obvio –disse Brianna, com toda a gentileza que pôde. Logo assinalou com um gesto o avental manchado de pintura–. me Dê um momento para me trocar.
Obviamente, a senhora Sherston queria exibir a seu dócil artista com disfarce e tudo.
–Não, não te incomode por isso. Esta reunião é muito singela. A ninguém importará.
–Bem, mas necessito um minuto para deitar ao Jem.
A proprietária da casa fez uma careta com a boca; não entendia por que suas pulseiras não podiam fazer-se carrego desse menino. Mas Brianna já lhe tinha expresso sua opinião a respeito e teve a prudência de não insistir.
Brianna encontrou a seus pais no salão, com os Wilbur, que resultaram ser um amável casal entrada em anos. Ao aparecer ela fizeram os devidos dramalhões, insistiram cortesmente em ver o retrato; expressaram profunda admiração tanto pelo tema como pela pintora e, em geral, comportaram-se com tanta amabilidade que ela se foi tranqüilizando.
Quando estava a ponto de desculpar-se, o senhor Wilbur aproveitou uma pausa na conversação para voltar-se para ela com um sorriso benévolo.
–Tenho entendido que corresponde felicitá-la por sua boa sorte, senhora MacKenzie.
–Né? Ah… obrigado –disse ela, sem saber por que a felicitavam. Olhou a sua mãe, procurando alguma pista.
Claire fez uma pequena careta e se voltou para o Jamie. Ele tossiu.
–O governador Tryon outorgou a seu marido cinco mil acres de terra –disse em tom sereno, quase desanimado.
–De verdade? –Bree ficou momentaneamente desconcertada–. O que…? por que?
–Como compensação –disse sua mãe, seca, olhando a seu marido.
Então Brianna compreendeu: ninguém cometeria a estupidez de mencionar abertamente o enforcamento acidental do Roger, mas era um episódio muito sensacional como para não ter circulado por toda a sociedade do Hillsborough. de repente caiu na conta de que talvez não fora por pura amabilidade que a senhora Sherston tinha convidado a seus pais e ao Roger. A notoriedade de ter como hóspede ao próprio enforcado concentraria a atenção do Hillsborough nos Sherston, de uma maneira muito lhe gratifiquem. Era até melhor que fazer-se pintar um retrato nada convencional.
–Confio que seu marido esteja muito melhor, querida. –A senhora Wilbur, com muito tato, cobriu o buraco na conversação–. Nos causar pena muito saber o de suas lesões.
–Sim, está muito melhor, obrigado –disse ela, com o sorriso mais breve que a cortesia autorizava. Logo se voltou novamente para seu pai–. Sabe Roger? O da outorga de terras?
Ele apartou a vista, pigarreando.
–Não. Supus que quereria dizer-lhe você.
A primeira reação da moça foi de gratidão: teria algo para lhe dizer a seu marido. Era muito incômodo, isso de falar com alguém que não podia te responder. Ela passava todo o dia acumulando temas de conversação, pequenas idéias ou acontecimentos que pudesse converter em relatos quando o visse. Mas a provisão de contos se acabava muito logo e a deixava sentada junto ao leito, à busca de temas inócuos.
Sua segunda reação foi chateio. Não podia seu pai dizer-lhe em privado, em vez de expor os assuntos familiares ante completos desconhecidos? Logo captou o sutil intercâmbio de olhares entre seus pais; então caiu na conta de que Claire acabava de fazer essa mesma pergunta ao Jamie, embora em silêncio, e ele tinha respondido com um muito breve desvio da vista para o senhor Wilbur e a proprietária da casa, antes de baixar as largas pestanas avermelhadas.
“É melhor dizer a verdade ante testemunhas respeitáveis –dizia sua expressão–, antes de que as intrigas se disseminem por conta própria.”
Não lhe importava muito sua própria reputação, mas conhecia as realidades sociais o bastante bem para compreender que um escândalo podia prejudicar muito a seu pai. Por exemplo: se começava a rondar por aí um falso relatório que, em realidade, Roger tinha sido um dos cabeças da Regulação, a lealdade do mesmo Jamie cairia sob suspeita.
Seu pai ocupava uma posição proeminente, mas não tão segura para resistir os efeitos corrosivos do rumor e a suspeita. Ela e Roger o tinham discutido mais de uma vez na intimidade; as linhas de fratura já estavam ali, bastante óbvias para quem soubesse o que se morava; as tensões que se aprofundariam até abrir o abismo e separar da Inglaterra às colônias.
SE a tensão crescia muito às pressas ou se tornava muito grande, se os fios entre a Colina do Fraser e o resto da colônia se desgastavam muito… podiam romper-se; os extremos pegajosos se fechariam em um grosso casulo em volto de sua família, deixando-os suspensos por um fio, sós e presa daqueles que lhes chupariam o sangue.
“Esta noite está morbosa”, disse-se, agriamente divertida ante as imagens escolhidas por sua mente. Provavelmente era o efeito de pintar a morte.
Nem os Wilbur nem os Sherston pareceram reparar em seu estado de ânimo. Sua mãe, em troca, jogou-lhe um olhar largo e reflexivo, embora não disse nada. depois de intercambiar com os visitantes algumas frases gentis, Bree se desculpou.
No quarto do Roger havia luz. Brianna foi para ali, esquecendo a comida ante um apetite maior por seu contato.
Uma pulseira cabeceava no rincão, com as mãos frouxas no regaço, sobre o trabalho de ponto. Ao abri-la porta deu um coice e piscou com ar culpado.
Imediatamente Bree olhou para a cama, mas tudo estava bem: aí estava o vaio da respiração do Roger. Despediu-se da mulher com um gesto. Roger jazia de costas, com os olhos fechados e o lençol bem estirado sobre os ângulos marcados de seu corpo. “Está muito magro –se disse ela–. Como pôde emagrecer tanto em tão pouco tempo?” Embora não podia tragar mais que umas quantas colheradas de sopa e o caldo de penicilina que preparava Claire, não era possível que se consumisse tanto em só dois ou três dias.
Logo caiu na conta de que devia ter emagrecido antes, pelas tensões da campanha; também seus pais tinham perdido peso. O horrível inchaço de suas facções tinha dissimulado o proeminente de seus ossos.
Aspirou fundo ao precaver-se de que a janela desse quarto também estava fechada; o suor lhe corria pela parte baixa das costas, escorrendo-se desagradablemente pela fenda entre as nádegas.
O ruído do marco corrediço despertou ao Roger, que girou a cabeça no travesseiro. Ao vê-la sorriu apenas.
–Como está? –perguntou ela em voz baixa.
Ele encolheu um pouco um ombro, mas modulou com os lábios um silente “Bem”.
–Faz um calor espantoso, verdade?
Bree assinalou a janela; o ar que entrava era quente, mas ao menos se movia. Com um gesto afirmativo, ele se atirou do pescoço da camisa com uma mão enfaixada. Ela captou a insinuação e o desatou para abrir-lhe até onde pôde, lhe expondo o peito à brisa.
Na mesinha havia uma tigela coberta com um caldo de carne frio, condimentado com penicilina; a um lado, uma taça de chá adoçado com mel. Agarrou a colher e fez gesto inquisitivo. Ele fez uma leve careta, mas assinalou o caldo. Bree se sentou no tamborete, com a tigela na mão.
Embora devia estar atenta a sua boca para guiar a colher, sentiu que seus olhos a observavam. Teria querido olhá-los, mas quase tinha medo do que podia encontrar nessas a Honduras verdes: seria o Roger que ela conhecia ou o desconhecido silencioso, o enforcado?
–Ah!, quase o esquecia. –interrompeu-se em meio de uma descrição dos Wilbur. Não o tinha esquecido, mas tampouco queria lhe soltar a notícia sem razão–. Esta tarde papai falou com o governador. Tryon te outorgará umas terras. Cinco mil acres.
Enquanto o dizia captou o absurdo daquilo: cinco mil acres de páramo em troca de uma vida quase destruída.
Ele franziu o sobrecenho, em algo que parecia desconcerto; logo moveu a cabeça e se recostou novamente contra o travesseiro, com os olhos fechados. Levantou as mãos e as deixou cair, como se aquilo fora muito para pensá-lo. Talvez tinha razão.
Bree o contemplou em silencio durante um momento, mas ele já não voltou a abrir os olhos. Havia profundas rugas ali onde se uniam as sobrancelhas. Movida pela necessidade de tocá-lo, de franquear essa barreira de silêncio, riscou a sombra do cardeal que obscurecia o maçã do rosto, roçando apenas a pele.
Roger abriu os olhos e os fixou em sua cara, impassível a expressão. Bree, consciente de sua expressão preocupada, esforçou-se por sorrir.
–Não parece morto –disse.
Isso rompeu a fachada impassível; as sobrancelhas se curvaram para cima e aos olhos apareceu uma tênue faísca de humor.
–Roger…. –A falta de palavras se moveu para ele, impulsiva. Ele ficou algo rígido, encolhendo instintivamente os ombros para proteger o frágil tubo da garganta. Bree lhe rodeou os ombros com um braço; pôs muita cautela, mas necessitava desesperadamente Te senti-lo amo –sussurrou. E lhe estreitou o braço, insistindo-o a lhe acreditar.
Beijou-o. Seus lábios estavam quentes e secos; apesar da familiaridade, experimentou certa impressão. Não havia ar que se movesse contra a bochecha, nem fôlego quente que a tocasse. Era como beijar uma máscara. Desde profundidades secretas dos pulmões, uma corrente úmida vaiava no tubo de âmbar e roçava o pescoço do Bree, como a exalação de uma caverna. Lhe arrepiou a pele dos braços. Deu um passo atrás, com a esperança de que nem a impressão nem o rechaço de lhe refletissem no rosto.
Ele tinha fechado os olhos com força e tinha os dentes apertados; a sombra se movia em sua mandíbula.
–Que… descanse –conseguiu dizer, com voz trêmula–. Até… até manhã.
Passaram dez dias antes de que o retrato do Penelope Sherston ficasse terminado a seu gosto. Para então, tanto Isaiah Morton como Roger estavam a bastante reposições para viajar. Dado o iminente naciemiento da vergôntea Morton e o perigo que corria seu pai se se aproximava do Granite Falls ou ao Brownsville, Jamie fez acertos para que ele e Alicia se alojassem em casa do cervezero dos Sherston; Isaiah lhe serviria de carreteiro assim que sua saúde o permitisse.
Morton tinha revivido espetacularmente com a chegada da Alicia; no curso de uma semana, pôde baixar a escada e sentar-se na cozinha, a contemplar como cão devoto enquanto ela trabalhava. Caminho à cama se deteve para fazer algum comentário sobre o retrato da senhora Sherston.
–Verdade que é igual a ela? Basta ver esse quadro para saber quem é.
Posto que a senhora Sherston tinha querido que a pintassem no papel do Salomé, ou não estava muito segura de que isso fora um completo, mas ela se ruborizou coquetamente e o agradeceu.
Em realidade Bree fazia um trabalho estupendo; retratou-a com realismo, embora favorecendo-a. O único aspecto em que tinha cedido à tentação era um detalhe sem importância: a cabeça atalho do Juan o Batista tinha um notável parecido com as facções taciturnas do governador Tryon. Mas com tanto sangue era difícil que alguém se precavesse.
Estávamos preparados para retornar a casa e todos refletíamos um inquieto entusiasmo e alívio. Todos, salvo Roger.
O jovem estava indiscutivelmente melhor, em términos puramente físicos. Voltava a mover as mãos, com exceção dos dedos fraturados, e o moretón da cara e o corpo tinha desaparecido quase completamente. O melhor de tudo era que a tumefação da garganta tinha cedido ao ponto de lhe permitir respirar pela boca e o nariz. Pude lhe retirar o tubo do pescoço e suturar a incisão.
Em términos psicológicos, eu não estava muito segura de sua recuperação. depois de lhe suturar o pescoço o ajudei a incorporar-se, limpei-lhe a cara e lhe dava um pouco de água mesclada com brandy, para que fizesse de reconstituinte. depois de observá-lo atentamente enquanto bebia, apoiei os dedos em seu pescoço, apalpando com cuidado, e lhe pedi que tragasse outra vez. Avaliei com os olhos fechados o movimento da laringe, os anéis da traquéia e o grau de dano sofrido.
Ao abrir os olhos me encontrei com os seus a cinco centímetros, ainda muito abertos. Neles havia uma pergunta fria e nua como um témpano.
–Não sei– repeti, apartando lentamente os dedos–. Quer… provar?
Ele negou com a cabeça e se levantou para aproximar-se da janela, de costas a mim, com os braços apoiados no marco. Um vago, inquieta lembrança se agitou em minha mente.
Aquilo não tinha acontecido a pleno dia a não ser em uma noite de lua, em Paris. Ao despertar do sonho tinha visto o Jamie de pé e nu, emoldurado pela janela; as cicatrizes de suas costas eram prata pálida e seu corpo reluzia de suor frio. Roger também estava suando, embora pelo calor; a camisa lhe pegava ao corpo. E suas linhas eram as mesmas: o aspecto de um homem que se tensa para enfrentar-se ao medo, que escolheu confrontar sozinho a seus demônios.
Da rua subiam algumas vozes; era Jamie, que retornava do acampamento com o Jemmy sentado ante ele, na arreios. Tinha tomado o costume de levar a menino consigo em suas saídas diárias, para que sua mãe pudesse trabalhar sem distrações.
Bree saiu para agarrar ao menino e sua voz subiu flutuando, entre risadas. Roger parecia esculpido em madeira. lhe chamá-los era impossível, mas poderia ter golpeado o marco da janela ou fazer algum ruído para saudá-los com a mão. Mas não se moveu.
depois de um momento me levantei para sair sem fazer ruído, com um nó na garganta.
Quando Bree se levou ao Jemmy para lhe dar um banho, Jamie me contou que Tryon tinha liberado a quase todos os homens capturados durante a batalha.
–Entre eles, ao Hugh Fowles. –Deixou a um lado a jaqueta e se afrouxou o pescoço da camisa, com a cara levantada para a brisa da janela–. Eu pedi por ele… e Tryon me escutou.
–Era o menos que podia fazer –lhe disse, irritada.
Ele fez um ruído grave do fundo da garganta. Fez-me pensar no Roger, cuja laringe já não era capaz dessa peculiar expressão escocesa. A aflição deveu notar-se em minha cara, pois Jamie me tocou um braço, arqueando as sobrancelhas.
–suturei o pescoço do Roger –disse–. Já pode respirar… mas não sei se poderá falar outra vez.
Jamie fez outro de seus ruídos, esse profundo e colérico.
–Também falei com o Tryon sobre o que prometeu para o Roger MAC. Deu-me o documento da cessão de terras: cinco mil acres contigüos a meus. Seu último ato oficial como governador… virtualmente.
–O que quer dizer com isso?
–Disse que liberou a quase todos os prisioneiros? –separou-se de mim, inquieto–. A todos, menos a doze, cabeças proscritos da Regulação aos que retém no cárcere. Ao menos, isso diz. –A ironia de sua voz era tão densa como o ar poeirento–. vai apresentá-los a julgamento dentro de um mês, com cargos de rebelião.
–E se os declaram culpados…
–Ao menos eles poderão falar antes de que os enforquem.
deteve-se diante do retrato, com o sobrecenho franzido. Mas não soube se o via.
–Não ficarei presenciando isso. Hei- dito ao Tryon que devemos partir para nos ocupar de nossas colheitas e dos animais. me apoiando nessa base, deu que baixa à companhia de milicianos.
–Quando partiremos?
–Amanhã. –Tinha emprestado atenção ao retrato, sim: assinalou com sombria aprovação à cabeça boquiaberta na bandeja–. Só há um motivo para atrasar-se e acredito que agora não tem muito sentido.
–Qual?
–O filho do Dougal –respondeu, dando as costas ao retrato–. Nestes dez dias procurei ao Willliam Buccleigh MacKenzie de ponta a ponta do condado. achei a alguns que o conheceram, mas ninguém o viu desde o Alamance. Há quem diz que abandonou definitivamente a colônia. São muitos os reguladores que fugiram. Husband, conforme dizem, levou-se a sua família a Maryland. Mas quanto ao William MacKenzie, desapareceu como uma serpente na guarida de um rato. E sua família com ele.
Nossa viagem de volta à Colina do Fraser foi muito mais rápido que o trajeto ao Alamance, em que pese a ir sempre custa acima. A companhia de milicianos se desfeito nada mais receber a baixa do governador; seus membros se dispersavam depressa para retornar a suas casas e a seus campos.
Por isso nosso grupo era muito mais reduzido: apenas duas carretas. Alguns homens que viviam perto da Colina decidiram viajar conosco: os dois moços Findlay, por exemplo, posto que no trajeto passaríamos frente à casa do sua mãe.
Joguei uma olhada dissimulada aos irmãos, que estavam ajudando a descarregar a carreta para instalar o acampamento noturno. Bons moços, embora calados. Respeitavam ao Jamie e pareciam lhe ter um respeito quase religioso, mas durante essa breve campanha tinham formado uma peculiar aliança com o Roger. Essa estranha fidelidade continuou inclusive ao debandá-la companhia.
Os dois tinham ido ao Hillsborough para visitá-lo. Levavam-lhe três maçãs tempranas, verdes e disformes, obviamente roubadas de alguma pomar alheio. Ele as tinha agradecido com um largo sorriso; antes de que eu pudesse impedir-lhe agarrou uma e lhe deu uma heróica dentada. Levava uma semana sem tragar mais que sopa; esteve a ponto de morrer engasgado, mas a tragou, asfixiado e ofegante. E os três sorriram de brinca a orelha, olhando-se sem dizer nada, com lágrimas nos olhos.
Durante a viagem, os Findlay estavam acostumados a estar perto do Roger, sempre vigilantes e preparados para saltar em sua ajuda quando as feridas das mãos lhe impediam de fazer algo. Jamie me tinha falado do Iain Mhor, o tio dos moços; obviamente, tinham muita experiência quanto a adivinhar as necessidades não expressas.
Roger se tinha recuperado com celeridade, posto que era jovem e forte; além disso, as fraturas não eram graves. Mas duas semanas era pouco para que os ossos quebrados se soldassem; eu teria preferido mantê-lo enfaixado por uma semana mais. Entretanto, como era óbvio que a restrição o irritava, o dia antes da partida lhe tinha tirado os entalados dos dedos, contra meu parecer e lhe advertindo que devia cuidar-se muito.
–|Ni te ocorra! –disse-lhe, ao ver que ia retirar da carreta um pesado saco de provisões.
Ele me olhou com uma sobrancelha em alto; logo se encolheu tranqüilamente de ombros e deu um passo atrás, para que Hugh Findlay carregasse com o saco. Assinalou as pedras que Iain Findlay trazia para rodear a fogueira; logo, ao bosque próximo. Podia recolher lenha?
–É obvio que não –respondi com firmeza.
Ele fez o sinal de beber e arqueou as sobrancelhas. Ir a por água?
–Não. Bastaria com que te escorregasse um cântaro e…
–Pode escrever, Sassenach? –perguntou Jamie, que se tinha detido junto à carreta e observava a cena.
–Escrever? Escrever o que? –perguntei, surpreendida.
Mas ele já tinha passado junto a mim para revolver em busca de seu maltratado portátil.
–Cartas de amor? –sugeriu, com um grande sorriso–. Ou sonetos, possivelmente? –Arrojou- o escritório dobradiça ao Roger, que o recebeu limpamente nos braços, apesar de meu chiado de protesto. Mas talvez, antes de compor um poema épico em honra ao William Tryon, possa me relatar como...
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