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A DAMA DE MONSOREAU Vol.I / Alexandre Dumas
A DAMA DE MONSOREAU Vol.I / Alexandre Dumas

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A DAMA DE MONSOREAU

Volume I

Primeira Parte

 

         AS BODAS DE SAINT LUC

No domingo de Carnaval do ano de 1578, ao terminar a festa popular, quando já ia diminuindo gradualmente nas ruas a alegre vozearia própria daquele dia, principiava uma função esplêndida no magnífico palácio que acabava de mandar construir do outro lado do Sena, e quase em frente do Louvre, a nobre família de Montmorency, que, pelo seu parentesco com a casa real, ombreava com as dos príncipes. Aquela função particular, que assim sucedia à festa pública, era destinada a celebrar as bodas de Francisco d'pinay de Saint-Luc, íntimo amigo do rei Henrique III, e seu valido mais querido, com Joana de Cossé-Brissac, filha do marechal de França do mesmo nome.

O banquete de núpcias havia tido lugar no Louvre, e o rei, que a muito custo consentira no casamento, tinha aparecido no festim com semblante severo, pouco adequado às circunstâncias. O seu traje também estava em harmonia com o seu parecer taciturno; vestia aquele fato cor de castanha com que Clouet o representou presidindo às bodas de Joyeuse; e aquela espécie de espectro real, majestosamente sério, tinha gelado de susto a todos, especialmente a noiva, para quem olhava de revés sempre que dirigia a vista para o lado dela.

Contudo, aquela sombria atitude do rei, no meio da alegria da festa, parecia não causar admiração a ninguém; porque a motivava um daqueles segredos do paço em que todos evitam cuidadosamente tocar por se parecerem com os recifes à flor da água, em que se despedaça in falivelmente o navio que for dar sobre eles.

Logo que findou o jantar, o rei levantou-se arrebatadamente, e os convidados não tiveram remédio senão seguirem-Lhe o exemplo, apesar do desejo que muitos deles tinham de ficar ainda por mais tempo à mesa. Saint-Luc é que, depois de ter fitado com amor a mulher como que para cobrar ânimo nos seus olhos, chegou-se ao rei e disse-lhe:

- Real Senhor, Vossa Majestade far-me-á a honra de aceitar o sarau que desejo dar-lhe esta noite no Palácio de Montmorency?

Henrique III voltou-se com gesto enfadado e pesaroso ao mesmo tempo; mas como Saint-Luc, curvado ante ele, continuava a suplicar com voz meiga e modo insinuante:

- Bem - respondeu o rei -, lá iremos, se bem que não nos merece por certo tamanha prova de amizade.

Então a Menina de Brissac, agora Sr. de Saint-Luc, agradeceu respeitosamente ao rei. Porém Henrique III virou as costas sem responder a esses agradecimentos.

- Que motivo teve el-rei para estar tão enfadado com o senhor? - perguntou a noiva ao marido.

- Minha querida amiga - respondeu Saint-Luc -, contar-lhe-ei tudo daqui a dias, quando tiver passado a el-rei este grande enfado.

- E julga que Lhe passará? - perguntou Joana.

- Não terá outro remédio - respondeu o mancebo.

A Menina de Brissac ainda não era suficientemente Sr. de Saint-Luc para poder insistir; e por isso não teve remédio senão esperar melhor ocasião para satisfazer a curiosidade; mas logo foi formando tenção de escolher, para impor as suas condições, o momento em que Saint-Luc não tivesse remédio senão aceitá-las.

Estavam pois à espera de Henrique III no Palácio de Montmorency, na ocasião que principia a história que vamos contar aos nossos leitores. Já tinham dado onze horas e o rei ainda não chegara.

Saint-Luc tinha convidado para o baile todos os amigos do rei e os seus; os convites compreendiam os príncipes e os amigos dos príncipes, especialmente os do duque de Alençon, que tomara o título de duque de Anju pela elevação de Henrique III ao trono; porém o duque de Anju não tinha assistido ao banquete do Louvre, e parecia que também não iria à festa do Palácio de Montmorency.

Quanto ao rei e à rainha de Navarra, esses tinham-se retirado para o Béarn, e de lá faziam oposição aberta, à frente dos huguenotes.

O duque de Anju, conforme o seu costume, também estava na oposição; mas era uma oposição surda e tenebrosa, tendo sempre o cuidado de se conservar por detrás da cortina, ao passo que empurrava para a frente aqueles dos seus amigos que o exemplo do que sucedera com La Mole e Cocunás, que tiveram uma morte horrível, ainda não havia curado.

É escusado dizer que os fidalgos seus partidários não viviam em boa harmonia com os do rei, resultando daí haver, duas ou três vezes por mês, rixas nas quais muito raramente não ficava algum dos combatentes ou morto ou gravemente ferido.

A rainha Catarina chegara ao cúmulo dos seus desejos. O filho que muito amava havia conseguido sentar-se naquele trono que ela tanto cobiçava para ele, ou, para melhor dizer, para si. E ia reinando em nome dele, fingindo sempre que estava deixada deste mundo e que só curava da salvação da sua alma.

Saint-Luc, a quem já ia dando cuidado não ver chegar nenhuma das pessoas reais, procurava contudo tranquilizar o ânimo do sogro, já sobremodo apreensivo com tão ameaçadora ausência. Este, convencido, como todos, da muita amizade que o rei Henrique tinha por Saint-Luc, entendera conveniente aparentar-se com esse homem de grande valimento, e via agora que o noivo da filha estava pelo contrário caído no desagrado.

Saint-Luc buscava por mil modos inspirar- lhe uma confiìança que ele próprio não tinha; e os seus amigos Maugiron, Schomberg e Quélus, ricamente vestidos, empertigados dentro dos seus esplêndidos gibões e adornados de enormes cabeções de canudos, que pareciam pratos sustentando cabeças, como no festim de Herodes, ainda Lhe aumentavam as angústias com as suas lamentações irónicas.

- Ah, meu Deus, meu pobre amigo! - dizia Quélus - Parece-me realmente que desta feita estás perdido. El-rei está enfadado contigo por não teres feito caso dos seus conselhos, e o Sr. de Anju zangou-se por Lhe teres escarnecido do nariz.

- Nada! - respondeu Saint-Luc - O rei não chegou ainda porque foi naturalmente fazer a súa romaria ao convento dos frades Mínimos do bosque de Vincenas, e o duque de Anju não aparece porque anda namorado de alguma mulher que eu deixei de convidar.

- Deixa-te de histórias! - disse Maugiron - não viste a cara com que estava el-rei ao jantar? Achaste-lhe porventura a fisionomia paternal dum homem disposto a empunhar o bordão para empreender uma romaria? E pelo que respeita ao duque de Anju, julgas que a sua ausência pessoal, motivada pela causa que disseste, poderia obstar a que os seus aderentes aqui se apresentassem? E diz-me se vês um único deles. Olha bem: é eclipse total; nem sequer o escalda-favais do Bussy.

- Sabem que mais meus Senhores? - dizia o duque de Brissac abanando a cabeça com desesperação - Parece-me que caímos completamente no desagrado. Meu Deus! Qual seria a ofensa que Fez a Sua Majestade a nossa casa, que sempre foi tão afecta à monarquia?.

E dizendo estas palavras o velho cortesão erguia pesaroso os braços para o Céu. Maugiron e os seus companheiros olhavam para Saint-Luc dando grandes gargalhadas, as quais, longe de animarem o marechal, ainda mais o desesperavam.

A noiva, pensativa e triste, a si própria perguntava, como o pai, o que teria feito Saint-Luc para cair no desagrado do rei.

Quanto a Saint-Luc, esse bem sabia a causa do enfado do rei, e por isso mesmo era de todos o que estava mais receoso.

Mas, de repente, por uma das portas que davam entrada para a sala, anunciaram a chegada do rei.

- Ah! - exclamou o marechal radiante de alegria - Agora já não receio coisa alguma; e para que a minha satisfação seja completa, só me falta ouvir anunciar a entrada do duque de Anju.

- E eu - murmurou Saint-Luc - ainda temo mais a presença do que a ausência de el-rei, porque ele não vem cá senão para me pregar alguma má peça; assim como o duque de Anju não aparece porque também me quer fazer alguma partida.

Mas apesar de tão tristes reflexões, não deixou de correr ao encontro do rei, o qual tinha largado finalmente o sombrio traje cor de castanha e se apresentava agora resplandecente de cetim, plumas e pedras preciosas.

No mesmo instante, porém, que a uma das portas assomava o rei Henrique III, um outro rei Henrique III, exactamente semelhante ao primeiro, vestido, calçado, penteado e enfeitado da mesma maneira, aparecia pela porta fronteira. De forma que os cortesãos, que a princípio se tinham dirigido ao encontro do primeiro, pararam como a água à roda dos pilares duma ponte, e refluíram num redemoinho do primeiro para o segundo rei.

Henrique III reparou no movimento, e, não vendo adiante de si senão bocas abertas, olhos espantados e corpos que faziam meia volta à direita, exclamou:

- Então que é isso, Senhores, que foi que sucedeu?

A resposta foi uma imensa gargalhada.

O rei, que não era de génio mui paciente, e que naquele momento especialmente estava pouco disposto para ter paciência, já começava a encrespar as sobrancelhas, quando Saint-Luc, aproximando-se dele, Lhe disse:

- Real Senhor, é Chicot, o seu bobo, que se vestiu exactamente como Vossa Majestade, e está dando a mão a beijar às senhoras.

Henrique III desatou a rir. Chicot tinha na corte do último rei dos Valois uma liberdade igual à que tinha tido Triboulet, trinta anos antes, na corte de Francisco I, e à que estava destinado a ter, dali a quarenta anos, Langely na corte de Luís XIII.

Porque Chicot não era um truão ordinário. Antes de se chamar Chicot simplesmente, chamava-se de Cicot. Era um fidalgo bretão, que, tendo sido máltratado pelo Sr. de Maiena, se refugiara junto de Henrique III, e que pagava com verdades às vezes bem cruéis a protecção que lhe concedera o sucessor de Carlos IX.

- Eh lá, mestre Chicot - disse Henrique - dois reis aqui são de mais.

- Pois, nesse caso, deixa-me representar o meu papel de rei à minha vontade, e tu representa o papel do duque de Anju como melhor te aprouver; pode ser que te tomem por ele, e que te digam coisas que te dêem a conhecer, não o que ele pensa, mas o que ele faz.

- Com efeito - disse o rei olhando com enfado em redor de si -, meu irmão de Anju não veio.

- Mais uma razão para tu fazeres as suas vezes. Está dito: eu sou Henrique, tu és Francisco. Eu vou ocupar o trono, e tu vais dançar; eu farei em teu lugar todas as momices duma testa coroada, e tu, pobre rei, durante esse tempo, procurarás divertir- te um pouco.

Os olhos do rei fitaram-se em Saint-Luc.

- Tens razão, Chicot, vou dançar.

Decididamente, pensou Brissac, enganei-me julgando o rei indisposto connosco. Vê-se, pelo contrário, que está de muito bom humor. "

E começou a correr para a direita e para a esquerda, dando os parabéns a todos, e a si especialmente, por ter casado a filha com um homem que gozava de tamanho valimento junto do rei.

Saint-Luc, entretanto, tinha voltado para o pé da esposa. A Menína de Brissac não era nenhuma formosura, porém tinha lindos olhos pretos, dentes muito brancos, e alvíssima cute; e a reunião destes dotes formava um todo muito agradável.

- Senhor - disse ela para o marido, mostrando-se sempre preocupada com o mesmo pensamento -, por que motivo me diziam que eu tinha desagradado a el-rei? Ainda não deixou de se sorrir para mim desde que aqui entrou.

- Não foi isso o que me disse quando voltámos do jantar, querida Joana; vinha com tanto receio do modo por que ele tinha olhado para si!.

- Sua Majestade estaria de mau humor - respondeu a noiva -; mas agora.

- Agora ainda o caso é mais sério - disse Saint-Luc -; el-rei está rindo com os beiços cerrados. Antes queria que ele me mostrasse os dentes. Minha querida Joaninha, el-rei está-nos preparando alguma traição. Oh, peço-te que não me olhes com tanta ternura, vira as costas para mim! Ainda bem que Maugiron se aproxima; não o deixes afastar, toma-lhe o braço, mostra-te amável para com ele.

- Sempre Lhe digo - respondeu Joana rindo- se - que acho essa recomendação muito curiosa e se a seguisse à risca, poder-se-ia o público persuadir.

- Ah! - exclamou Saint-Luc suspirando - quem me dera que assim sucedesse! E deixando a mulher, que ficara espantada com o que acabava de ouvir, foi cumprimentar Chicot, o qual continuava a desempenhar o papel de rei com a mais cómica gravidade.

Henrique, entretanto, aproveitando a liberdade que Lhe deixava a sua abdicação momentânea, estava dançando, mas sem perder Saint-Luc de vista.

Umas vezes chamava-o para Lhe fazer alguma observação, que, ou fosse engraçada ou não, logo provocava uma estrepitosa gargalhada de Saint-Luc. Outras vezes era para lhe oferecer amêndoas e confeitos da sua própria caixa, e que Saint-Luc achava deliciosos. Finalmente, se por acaso Saint-Luc desaparecia um instante da sala onde estava o rei, para ir cumprimentar os convidados que estavam nas outras salas, logo o mandava chamar por algum dos seus pajens ou dos seus oFiciais, e Saint-Luc não tinha remédio senão voltar com semblante risonho para o lado do amo, que só parecia satisfeito quando o via.

De repente, um alarido tamanho que sobressaía ao tumulto da Função, chegou aos ouvidos de Henrique.

- Ah, ah! - disse ele - Parece-me aquela a voz de Chicot. Ouves, Saint-Luc? El-rei está a ralhar.

- Sim, meu Senhor - respondeu Saint-Luc - parece-me que está repreendendo alguém.

- Vai ver o que sucedeu - disse o rei -, e volta a dizer-mo. Saint-Luc afastou-se.

Ouvia-se com efeito Chicot gritando com voz fanhosa como fazia o rei em certas ocasiões:

- E contudo, tenho promulgado leis sumptuárias. Porém, se as que existem não são ainda suficientes, hei-de decretar mais: hei-de promulgar tantas até que alguma há-de surtir seu efeito; se não forem boas, hão-de ser numerosas pelo menos. Pelos chifres de Belzebu (meu primo)! seis pajens, Sr. de Bussy, é muito!

E Chicot, enchendo as bochechas, todo empertigado e de mão na ilharga, imitava o rei com a maior exactidão.

- Que está ele dizendo a respeito de Bussy? - perguntou o rei franzindo a testa. Saint-Luc, que a este tempo voltava, ia para responder ao rei, quando a multidão, abrindo para os lados, deixou ver seis pajens vestidos de brocado de oiro, com colares ao pescoço, dos quais lhes pendiam sobre o peito as armas do seu senhor em escudos enfeitados de pedrarias. Atrás deles vinha um rapaz, galante e altivo, caminhando de cabeça erguida, com o olhar insolente e gesto desdenhoso, e cujo simples fato de veludo preto formava notável contraste com o rico vestuário dos pajens.

- É Bussy! - diziam todos - Bussy de Amboise!

E todos corriam a admirar o mancebo que dava lugar àquele rebuliço, e abriam-lhe caminho para passar.

Maugiron, Schomberg e Quélus tinham ido colocar-se ao lado do rei como para o defenderem.

- É célebre! - disse o primeiro dos três, aludindo à presença inesperada de Bussy e à ausência do duque de Alençon, a cujo serviço estava Bussy - É célebre! Vem o criado e não aparece o amo!

- Isso não quer dizer nada - respondeu Quélus -; como adiante do criado vinham os criados do criado, talvez que o amo venha atrás do amo dos primeiros criados.

- Ora diz-me, Saint-Luc - perguntou Schomberg, que era o mais novo dos favoritos do rei Henrique, e também o mais valente -, não te parece que o Sr. de Bussy mostra pouca consideração por ti? Olha para aquele gibão preto; será traje próprio para vir a uma boda?

- Não - replicou Quélus -, é fato de enterro.

- Que pena não ser do enterro dele - murmurou Henrique -, e o luto pela sua própria morte!

- Pelo que vou vendo, Saint-Luc - disse Maugiron -, o Senhor Duque de Anju não acompanha Bussy. Dar-se-á o caso que também estejas no desagrado desse senhor?

O também feriu Saint-Luc no coração.

- Por que motivo havia ele de acompanhar Bussy? - replicou Quélus. - Não se recordam já que quando Sua Majestade fez a honra de Lhe mandar perguntar se queria entrar para o serviço da sua casa, o Sr. de Bussy respondeu que, sendo descendente dos príncipes de Clermont, não Lhe convinha entrar para o serviço de pessoa alguma, e que se contentava com pertencer a si mesmo, certo como estava de que não havia príncipe no mundo que o pudesse igualar?.

O rei franziu a testa e mordeu o bigode.

- Contudo, apesar disso que estás dizendo, Quélus - tornou Maugiron -, ele está ao serviço do Senhor Duque de Anju.

- Nesse caso - respondeu fleumaticamente Quélus - devemos supor que o Senhor Duque de Anju é muito mais poderoso que o nosso rei.

Esta observação era a mais pungente que se podia fazer na presença de Henrique, o qual sempre detestara fraternalmente o duque de Anju.

E por isso, se bem que não respondesse, mudou de cor.

- Bem, bem, meus Senhores - disse Saint- Luc com hesitação -, tenham mais alguma caridade para com os meus convidados; lembrem-se que é a noite da minha boda.

Estas palavras de Saint-Luc encaminharam provavelmente o pensamento de Henrique para outras ideias.

- Sim - disse ele -, lembremo-nos que é a noite da boda de Saint-Luc, meus Senhores. E proferiu estas palavras retorcendo o bigode, com certo ar de astúcia que não escapou ao pobre noivo.

- Digam-me cá - exclamou Schomberg -: Bussy está porventura aparentado com os Brissac?

- Porque fazes essa pergunta? - disse Maugiron.

- Porque vejo Saint-Luc tomar partido por ele. E não sendo fácil tarefa defender-se cada um a si, neste tempo em que vivemos, quem quererá expor-se a defender os mais, a não ser algum parente ou amigo?

- Meus Senhores - disse Saint-Luc -, o Sr. de Bussy não é meu parente, nem meu amigo, mas está em minha casa.

O rei dirigiu um olhar furioso para Saint-Luc.

- E demais - acudiu logo este, aterrado pelo olhar do rei -, eu não me encarrego de o defender.

Bussy tinha-se aproximado solenemente, sempre precedido pelos seus pajens, e ia para cumprimentar o rei, quando Chicot, ofendido por ver que lhe faltavam ao respeito, exclamou:

- Eh Eh lá. Buss Bus de Amboise, Luís de Clermont, conde de Buss! é preciso dizer todos os teus nomes para que vejas que é contigo que eu estou falando?. não vês aqui o verdadeiro Henrique? Não diferencias o rei do bobo? Esse para quem te diriges é Chicot, é o meu bobo, o meu truão, encarregado de me divertir com as suas asneiras.

Bussy foi andando sem fazer caso, e, chegando ao pé de Henrique, ia para se inclinar ante ele, quando o rei Lhe disse:

- Não ouviu, Sr. de Bussy? Estão-no chamando.

E no meio das gargalhadas dos seus favoritos, o rei deu as costas ao jovem coronel. Bussy corou de raiva; mas, logo reprimido o seu primeiro movimento, fingiu que obedecia seriamente à observação do rei, e sem dar a conhecer que tinha ouvido as gargalhadas de Quélus, de Schomberg e de Maugiron, ou notado os seus gestos insolentes, voltou-se para Chicot.

- Ah, meu Senhor, perdoe-me - disse ele -; há reis que por tal modo se assemelham aos bobos, que espero me desculpará de ter tomado o seu bobo por el-rei.

- Hem! - murmurou Henrique, virando-se de repente. - Que diz ele!

- Nada, meu Senhor - acudiu Saint-Luc, o qual parecia ter recebido do Céu, para aquela noite, a missão de pacificador -; nada que mereça atenção.

- A sua desculpa é inadmissível, Bussy - disse Chicot, pondo-se nos bicos dos pés como fazia o rei quando procurava assumir um ar mais majestoso.

- Peço-Lhe novamente perdão, meu Senhor - replicou Bussy -; estava com a imaginação preocupada.

- Com os seus pajens, Senhor? - atalhou Chicot encolerizado. - Está fazendo demasiada despesa com pajens, e, cos demónios, vai invadindo as nossas prerrogativas!

- Como assim! - disse Bussy, que logo percebeu que, prestando-se a altercar com o bobo, quem ficava com o ridículo era o rei. - Suplico a Vossa Majestade que se explique, e se efectivamente fiz mal, prometo confessá-lo com toda a humildade.

- Pois se vi aqueles tratantes de brocado de oiro. - disse Chicot apontando para os pajens -, ao passo que o senhor, um fidalgo, um coronel, um Clermont, quase um príncipe, enfim, está simplesmente vestido de veludo preto!

- Meu Senhor - respondeu Bussy, virando-se para os favoritos do rei -, é que quando se vive numa época em que os tratantes andam vestidos como príncipes, parece acertado que os príncipes, para se diferençarem deles, se vistam com os trajes que deveriam usar os tratantes.

E ao dizer estas palavras, pagou na mesma moeda aos galantes mancebos, resplandecentes de enfeites, o insolente sorriso com que eles o tinham mimoseado havia um instante.

Henrique olhou para os validos, a quem o furor fizera empalidecer, e que pareciam esperar unicamente uma palavra do seu senhor para se atirarem a Bussy. Quélus, de todos o mais irritado contra aquele fidalgo, com quem já teria brigado se não fora expressamente proibido pelo rei, tinha a mão sobre os copos da espada.

- Isso que diz entende-se comigo ou com os meus? - exclamou Chicot, o qual, tendo ocupado o lugar do rei, respondia o que Henrique deveria ter respondido.

E o bobo tomou, ao proferir esta pergunta, uma atitude de ferrabrás tão exagerada, que metade da assembleia desatou a rir. A outra metade não se riu, por uma razão muito simples: a metade que se ria, ria-se da outra metade.

Entretanto, três dos amigos de Bussy receando que houvesse algum conflito, tinham vindo colocar-se-lhe ao lado. Eram Carlos Balzac de Entragues, a quem geralmente chamavam Antraguet, Francisco de Audie, visconde de Ribeirac, e Livarot.

Saint-Luc, logo que viu estes preliminares de hostilidades, conheceu que Bussy tinha vindo de ordem do irmão do rei para provocar alguma cena escandalosa, ou desafiar alguém. Uma tal certeza ainda mais Lhe aumentou o receio com que estava, porque se sentia exposto às consequências do ódio inveterado de dois inimigos poderosos que escolhiam a sua casa para campo de batalha.

Correu para Quélus, que parecia o mais enfurecido de todos, e pondo-Lhe a mão sobre os copos da espada:

- Em nome do Céu, meu amigo! - disse-lhe ele. - Reprime o teu furor, e esperemos.

- Isso é bom de dizer! Reprime tu também o teu Furor! - exclamou Quélus. - A insolência que aquele malcriado proferiu é um insulto tanto para ti como para mim: quem ofende um de nós, ofende a todos nós, e fere a el-rei.

- Quélus, Quélus! - replicou Saint-Luc. - Lembra-te do duque de Anju, que está por detrás de Bussy, e que nós devemos recear por isso mesmo que está invisível. Não te persuades, por certo, que me mete medo o criado; quem eu temo é o amo.

- E que receio devem ter os que servem el- rei de França? - exclamou Quélus. - El-rei há-de defender-nos, se expusermos a vida por ele.

- Ah, tu não; mas eu!. - disse Saint- Luc com tristeza.

- Isso é verdade! - replicou Quélus. - Mas também para que demónio te lembraste tu de casar, sabendo o ciúme que el-rei tem dos seus favoritos!

Ora - disse Saint-Luc consigo - cada qual trata de si; há coisas que não devemos esquecer; eu desejo viver sossegado, ao menos durante os primeiros quinze dias do meu casamento, portanto convém-me captar a amizade do Sr. de Anju. "

E fazendo estas reflexões, deixou Quélus e foi ao encontro de Bussy.

Bussy, depois da insolente resposta que dera a Chicot, tinha erguido a cabeça e corria a vista por toda a sala, à espera de ouvir algum atrevimento em troca do que ele havia proferido. Porém todos os olhos se tinham desviado dele, todas as bocas se conservaram caladas. Uns porque tinham receio de aprovar na presença do rei, outros porque não queriam desaprovar diante de Bussy.

Este último, vendo chegar Saint-Luc, pensou ter encontrado finalmente o que procurava.

- Senhor - perguntou Bussy -, é porventura às palavras que acabo de proferir que devo atribuir a honra que julgo me quer fazer de conversar em particular comigo?

- Às palavras que acaba de proferir? - perguntou Saint-Luc com ar risonho. - Que disse pois? Eu nada ouvi. Venho simplesmente cumprimentá- lo, e agradecer-lhe ao mesmo tempo a honra que me faz vindo a minha casa.

Bussy era um homem superior em tudo; valente até à temeridade, mas ao mesmo tempo instruído, espirituoso e com as maneiras da boa sociedade. Sabia que Saint-Luc era brioso, e logo compreendeu que o dever de dono da casa era nele superior, naquele momento, a qualquer outra consideração. A outro que não fosse Saint-Luc teria Bussy repetido a sua frase provocadora; assim, limitou-se a cumprimentá-lo, dirigindo-Lhe algumas palavras agradáveis em resposta às que ele lhe dissera.

- Oh! oh! - disse Henrique quando viu Saint-Luc falando com Bussy. - Parece-me que o meu galo foi dizer ao papão que não tem medo dele. Fez bem, mas não quero que me matem. Vá ter com ele, Quélus. Não! Quélus não, que é demasiado irascível. Vá, Maugiron.

Maugiron abalou de corrida; mas Saint-Luc, que o percebeu, não o deixou chegar ao pé de Bussy, e, voltando para junto do rei, trouxe consigo Maugiron.

- O que foste tu dizer àquele presumido de Bussy? - perguntou o rei.

- Eu, meu Senhor?

- Sim, tu.

- Fui dar-lhe as boas-noites - respondeu Saint-Luc.

- Ah sim! E mais nada? - disse o rei com ar agastado.

Saint-Luc percebeu que tinha feito asneira.

- Dei-Lhe as boas-noites - prosseguiu ele -, e disse-lhe ao mesmo tempo que tencionava ter a honra de Lhe dar os bons-dias amanhã pela manhã.

- Oh! oh! - disse Henrique - lá me queria parecer. Cabeça quente!

- Porém, rogo a Vossa Majestade que se sirva guardar segredo.

- Oh, deixa estar - tornou Henrique -, não me oponho ao teu desejo. E até digo mais: se me pudesses livrar dele.

Os favoritos lançaram de relance uns para os outros um olhar, que Henrique III fingiu não ter percebido.

- Porque, na realidade - continuou o rei -, o patife é sempre duma tal insolência.

- Isso é verdade - disse Saint-Luc. - Mas pode Vossa Majestade ter a certeza que mais dia menos dia há-de encontrar quem o ensine.

- Não sei! - disse o rei abanando a cabeça. - Ele joga bem a espada. Que pena não encontrar um cão danado que o morda! Era a melhor maneira por que nos poderíamos ver livres dele.

E dizendo isto olhou de revés para Bussy, o qual, acompanhado dos seus três amigos, passeava pela sala, dando encontrões e escarnecendo de todas aquelas pessoas que sabia serem inimigas do duque de Anju, e por consequência amigos do rei.

- Cos demónios! - exclamou Chicot - não trate com tão pouca consideração os meus donzéis, Sr. de Bussy; olhe que eu, apesar de ser rei, sou tão capaz de puxar pela espada como se fosse apenas um bobo.

- Ah, que velhaco! - murmurou Henrique.

- Meu Senhor - disse Maugiron -, se Chicot não se deixar de semelhantes gracejos, hei-de castigá-lo.

- Não te roces muito por ele, Maugiren; Chicot é fidalgo, e não brinca quando se trata de pontos de honra, Além de que, não é ele quem merece castigo neste caso, porque não foi ele quem mostrou mais insolência.

O remoque desta vez era bem claro. Quélus fez sinal a d'Épernon, que, distraído, não tinha tomado parte em nada do que se acabava de passar.

- Meus Senhores - disse Quélus, levando-os consigo -, vamos a conselho; tu, Saint-Luc, vai conversar com el-rei, e acaba de fazer as pazes com ele; parece-me que já tens meio caminho andado.

Saint-Luc aproveitou o conselho, e aproximou-se de el-rei, que estava altercando com Chicot.

Quélus, entretanto, foi levando os seus amigos para o vão duma janela.

- Vamos lá - perguntou d'Épernon -, que tens a dizer? Eu estava-me divertindo a namorar a mulher de Joyeuse, e desde já te declaro que se a tua história não for muito interessante, não te perdoo a interrupção.

- Quero preveni-los, meus Senhores - respondeu Quélus -, que logo que finde o baile tenciono partir imediatamente para a caça.

- Bom - disse d'O -, de que natureza é a caçada?

- É uma caçada ao porco-montês.

- Que mania é essa de te ires expor, com o frio que faz, a ficares com as tripas ao ar em alguma mata?

- Não importa, hei-de ir.

- Sozinho?

- Nada, vou com Maugiren e Schomberg. Vamos caçar por conta de el-rei.

- Ah, sim, já percebo - disseram a um tempo Schomberg e Maugiron.

- El-rei deseja que lhe apresentem amanhã à mesa uma cabeça de javali.

- Enfeitada com um colarinho voltado para baixo, à italiana - disse Maugiren, aludindo ao simples colarinho virado que Bussy trazia, para fazer contraste com os cabeções de canudos dos favoritos.

- Muito bem! - acudiu d'Épernon - Nesse caso também eu os acompanho.

- De que se trata? - perguntou d'O; - eu ainda não percebi nada.

- Pois bem, procura em redor de ti, meu menino.

- Pois sim, já olhei.

- Não viste ninguém que já fizesse escárnio de ti na tua cara?

- Foi Bussy, se não me engano.

- Ora diz-me: não te parece que el-rei havia de gostar da cabeça daquele javali?

- Pensas que el-rei. - disse d'O.

- Foi ele quem pediu - respondeu Quélus.

- Pois então faça-se-lhe a vontade! Vamos para a caça; mas. a caçada há-de ser de montaria, ou de espera?

- De espera, que é mais seguro.

Bussy reparou na conferência; e julgando logo que o caso era com ele, aproximou-se Fazendo chacota com os seus amigos.

- Olha, Antraguet, olha, Ribeirac - disse ele -, que lindo grupo estão formando! Que quadro tão encantador! Parecem Curíalo e Niso, Dámon e Pítio, Castor e. Mas onde estará Pólux?

- Pólux casou-se - disse Antraguet -, de forma que temos Castor desemparelhado.

- Que estarão fazendo ali? - perguntou Bussy olhando para eles com insolência.

- Aposto - disse Ribeirac - que é alguma conspiração para inventarem nova goma para camisas.

- Não, meus Senhores - disse Quélus sorrindo- se -, estamos tratando duma caçada.

- Deveras, Sr. Cupido? - disse Bussy. - Pois anima-se a ir à caça com o frio que está? Olhe que pode fazer-lhe frieiras.

- Não há dúvida! - respondeu Maugiron, com igual polidez. - Temos luvas muito bem forradas e gibões estofados.

- Ah, então já o caso muda de figura - disse Bussy -; e está para breve a caçada?

- Pode ser que tenha lugar esta noite mesmo - replicou Schomberg.

- Não há aqui nenhum pode ser; há-de ser com certeza esta noite - acudiu Maugiron.

- Vou já avisar el-rei - disse Bussy -; o que diria Sua Majestade se amanhã pela manhã se Lhe apresentassem os seus íntimos amigos encatarroados?

- Não é preciso que tenha o incómodo de avisar Sua Majestade - disse Quélus - el-rei já sabe que vamos à caça.

- Das cotovias? - perguntou Bussy com ar sobremaneira insolente.

- Não senhor - respondeu Quélus - vamos a uma caçada ao porco-montês. Precisamos alcançar a todo o custo uma cabeça de javali.

- E a fera?. - perguntou Antraguet.

- Está desencovada - disse Schomberg.

- Mas ainda assim é necessário conhecer-lhe o rasto - observou Livarot.

- Havemos de tratar de nos orientar - disse d'O. - Quer acompanhar-nos, Sr. de Bussy?

- Não posso - respondeu este continuando a conversa no mesmo tom: Creiam que me não é possível. Tenho de comparecer amanhã no palácio do Senhor Duque de Anju para assistir à recepção de Sr. de Monsoreau, a quem Sua Alteza, como sabem, concedeu o lugar de monteiro-mor.

- E esta noite? - perguntou Quélus.

- Esta noite também não posso; tenho um prazo dado com uma dama numa casa misteriosa de arrabalde de Santo António.

- Ah! ah! - exclamou d'Épernon. - Dar-se-ia o caso que a rainha Margarida viesse a Paris incógnita, Sr. de Bussy? Porque já sabemos que ficou com a herança de La Mole.

- É verdade, mas há já algum tempo que renunciei à herança, e agora é de outra pessoa que se trata.

- E essa pessoa espera-o na rua do arrabalde de Santo António? - perguntou d'O.

- Exactamente; e quero aproveitar a ocasião para pedir um conselho ao Sr. de Quélus.

- Diga. Se bem que não seja letrado, tenho a presunção de dar sempre bons conselhos aos meus amigos.

- Dizem-me que as ruas de Paris estão bastante perigosas; o arrabalde de Santo António é um bairro muito só. Qual é o caminho que na sua opinião deverei seguir?

- Eu sei lá. - replicou Quélus -, porém, como o barqueiro do Louvre há-de provavelmente estar de pé toda a noite para nós, eu, no seu caso, tomaria o barco de passagem do Prado dos Estudantes, desembarcava junto da torre que fica na esquina, seguia pelo cais até ao Grande-Châtelet, e pela Rua da Tixeranderie seguia para o arrabalde de Santo António. Quando tiver chegado ao fim da Rua de Santo António, se passar o Palácio das Tournelles sem que Lhe suceda mal algum, é provável que chegue são e salvo à casa misteriosa de que há pouco falou.

- Muito obrigado pelo itinerário que me deu, Sr. de Quélus - disse Bussy. - Disse, se bem me recordo: o barco de passagem do Prado dos Estudantes, a torre da esquina, o cais até ao Grande-Châtelet, a Rua de Tixeranderie, e a Rua de Santo António. Fique certo que por acaso algum me desviarei dele.

E cortejando os cinco amigos, retirou-se, dizendo em voz alta para Balzac d'Entraguet:

- Está visto, Antraguet, que não consigo fazer sair esta gente à espera; vamo-nos embora.

Livarot e Ribeirac desataram a rir e acompanharam Bussy e d'Entraguet, que se afastaram; mas não sem olhar para trás umas poucas de vezes.

Os favoritos conservaram-se impassíveis; pareciam resolvidos a não entenderem coisa alguma.

Quando Bussy ia já saindo da última sala, onde estava a Sr. de Saint-Luc, que não tirava os olhos do marido, este fez-lhe sinal, indicando-Lhe o valido do duque de Anju, que se retirava. Joana, com aquela perspicácia que parece ser privilégio das mulheres, logo entendeu o que ele pretendia, e dirigindo-se para o fidalgo, tolheu-lhe o passo.

- Oh, Sr. de Bussy! - disse ela. - Todos me têm gabado imenso um soneto que o senhor fez.

- Contra el-rei, minha Senhora? - perguntou Bussy.

- Não; é um elogio à rainha. Peço-Lhe que mo recite.

- Com todo o gosto, minha Senhora - disse Bussy oferecendo o braço à Sr. de Saint- Luc. E começou a recitar-lhe o soneto.

Entretanto, Saint-Luc chegou-se disfarçadamente para o grupo, e ouviu dizer a Quélus:

- Com semelhantes dados não nos há-de custar a seguir o rasto do animal; ora pois, há-de ser à esquina do Palácio das Tournelles, junto às Portas de Santo António, em frente do Palácio de Saint-Pol.

- E cada um de nós acompanhado dum lacaio? - perguntou d'Épernon.

- Não, Nogaret, não - disse Quélus -; é melhor irmos sós, guardando para nós o nosso segredo: tratemos nós mesmos de levar a empresa a cabo. Eu tenho-Lhe ódio; mas havia de me pesar que nele pusesse mãos um lacaio; é um cavalheiro às direitas.

- E devemos sair daqui os seis juntos? - perguntou Maugiron.

- Os cinco, e não os seis - disse Saint- Luc.

- Ah, é verdade, esquecia-me que estás casado. Ainda te considerávamos rapaz solteiro!

- disse Schomberg.

- E com efeito - replicou d'O -, não é muito que o pobre Saint-Luc fique com a mu lhér na primeira noite de casado.

- Estão enganados, meus amigos - disse Saint-Luc -, não é por causa da minha mulher que deixo de ir (apesar que ela merecia por certo que eu fizesse esse sacrifício): é por causa de el-rei.

- Como? Por causa de el-rei?

- Sim; Sua Majestade quer que eu o acompanhe ao Louvre.

Os mancebos olharam para ele com um sorriso cuja significação Saint-Luc procurou debalde interpretar.

- Então que queres? - disse Quélus. - El-rei tem-te tanta amizade que não pode passar sem ti.

- E demais, nós não carecemos do auxílio de Saint-Luc - disse Schomberg. - Deixemo-lo ao rei e à sua dama.

- Não sei! A fera é brava - observou d'Éprrnon.

- Histórias! - disse Quélus. - Ponham-me cara a cara com ela, dêem-me um chuço, que o mais fica por minha conta.

Nisto ouviu-se a voz de Henrique, que chamava por Saint-Luc.

- Meus caros Senhores - disse ele -, bem ouvem que el-rei me está a chamar; adeus; muito estimarei que a vossa eaçada desta noite tenha bom êxito.

E deixou-os imediatamente. Mas, em vez de ir ter com o rei, foi-se cosendo com a parede, encobrindo-se com os espectadores e com os que ainda dançavam, até chegar à porta que Bussy já ia para transpor, apesar dos esforços que a noiva fazia para o deter.

- Muito boa noite, Sr. de Saint-Luc - disse o jovem cavalheiro. - Parece-me que está sobressaltado! Dar-se-á o caso que também o convidassem para a grande caçada que está para ter lugar?. Se a ela for, dará uma prova de valentia, mas não por certo de amor por sua esposa.

- Não senhor - respondeu Saint-Luc -; estava sobressaltado porque andava em sua procura.

- Ah! deveras?

É porque receava que já tivesse saído. Minha querida Joana - continuou ele -, diga a seu pai que procure demorar el-rei; preciso dizer duas palavras em particular ao Sr. de Bussy.

Joana afastou-se prontamente; não percebia nada do que se estava passando, mas conhecia que era negócio sério.

- Que pretende dizer-me, Sr. de Saint-Luc? - perguntou Bussy.

- Queria dizer-Lhe, Sr. de Bussy - respondeu Saint-Luc -, que se tencionasse ir tratar de algum negócio esta noite, seria conveniente deixá-lo para amanhã, por isso que as ruas de Paris são perigosas; e que, se porventura o negócio que tem a tratar é na proximidade da Bas tilha, seria bom que evitasse passar pela frente do Palácio das Tournelles, porque há ali um recanto onde podem esconder-se uns poucos de homens. É quanto tinha a dizer-Lhe, Sr. de Bussy. Deus me livre de pensar que um homem como o senhor possa ter medo. Contudo, reflicta no que acabo de lhe dizer.

Ouviu-se a este tempo a voz de Chicot bradando:

- Saint-Luc, meu queridinho Saint-Luc, não te escondas de mim! Bem vês que estou Á tua espera para regressar ao Louvre.

- Eis-me aqui, meu Senhor - respondeu Saint-Luc correndo na direcção da voz de Chicot. Ao lado do bobo estava Henrique III, a quem um pajem apresentava uma pesada capa forrada de arminhos, enquanto outro lhe entregava umas imensas luvas que chegavam até ao cotovelo, e um terceiro lhe oferecia uma máscara de veludo forrada de cetim.

- Meus Senhores - disse Saint-Luc, dirigindo-se ao mesmo tempo aos dois Henriques

- , conceder-me-ão a honra de os alumiar até às vossas liteiras?

- Nada - disse Henrique -; Chicot vai para o seu destino, e eu para o meu. Os meus amigos são um rancho de vadios que me deixam voltar só para o Louvre, para irem provavelmente jogar ao Entrudo. Tinha contado com eles, e agora abandonaram-me; ora bem vês que não podes deixar-me ir sozinho. Tu és um homem sério e casado; deves ir levar-me à rainha. Vem pois, meu amigo, vem. Olá! Tragam um cavalo para o Sr. de Saint-Luc. - Não, é escusado - prosseguiu ele desdizendo-se -, a minha liteira é bastante larga; cabem muito bem duas pessoas.

Joana de Brissac, a quem não tinha escapado uma palavra desta conversa, queria falar, dizer alguma coisa ao marido e avisar o pai de que o rei Lhe roubava Saint-Luc; porém este, levando o dedo à boca, fez-lhe sinal que se calasse e tivesse prudência.

Cautela! - disse ele consigo. - Não escandalizemos Henrique de Valois, agora que entrei na intimidade de Francisco de Anju. " - Meu Senhor - continuou ele em voz alta

- , eis-me aqui pronto. É tal a minha dedicação à pessoa de Vossa Majestade, que sou capaz de segui-lo até ao fim do mundo, se mo determinar.

Seguiu-se um grande rebuliço, acompanhado de grandes genuflexões, e depois um silêncio profundo para ouvir a despedida de el-rei à Sr. de Brissac e a seu pai, que foi repleta de expressões encantadoras.

Acabada a despedida, sentiu-se o tropear dos cavalos no pátio e viu-se o clarão dos archotes, que reflectiam nos vidros a sua luz avermelhada. Até que, finalmente, todos os aduladores da realeza e todos os convidados da boda, rindo e tiritando com frio, desapareceram envolvidos na escuridão e neblina da noite.

Joana, tendo ficado só com as aias, recolheu-se aos seus aposentos, e foi ajoelhar diante da imagem duma santa a que tinha grande devoção. Depois mandou que a deixassem só, e que tivessem a ceia pronta para quando o marido voltasse.

O Sr. de Brissac fez mais: ordenou a seis guardas que fossem esperar pelo genro à porta do Louvre, para lhe servirem de escolta na volta. Mas, ao cabo de estarem duas horas à espera, os guardas mandaram um dos companheiros prevenir o marechal de que todas as portas do Louvre estavam fechadas, e que o capitão da guarda, antes de mandar fechar a última, tinha dito:

- Escusam de estar aqui à espera; mais ninguém sai do Louvre esta noite. Sua Majestade já se recolheu, e todos estão deitados.

O marechal tinha ido levar esta notícia à Filha, a qual lhe declarou que estava com demasiado cuidado no marido para poder dormir e que tencionava ficar de pé até ele vir.

 

         EM QUE SE MOSTRA QUE NEM SEMPRE QUEM ABRE A PORTA ENTRA POR ELA

A Porta de Santo António era uma espécie de arco de cantaria quase semelhante às portas actuais de S. Dinis e S. Martinho. A única diferença consistia em que o lado esquerdo do arco pegava com os edifícios adjacentes da Bastilha, de maneira que a porta formava parte daquela fortaleza.

O espaço que havia do lado direito, entre a porta e o Palácio da Bretanha, era grande, sombrio e lamacento; era porém um lugar pouco transitado de dia, e tornava-se inteiramente solitário logo que anoitecia, porque os transeuntes nocturnos procuravam um caminho mais próximo à fortaleza, a fim de se colocarem de alguma forma, naquele tempo em que as ruas eram infestadas de salteadores e as rondas nocturnas quase desconhecidas, debaixo da protecção da sentinela da torre, a qual, se bem que não pudesse acudir-lhes, podia contudo, gritando, chamar auxílio, ou afugentar os malfeitores.

As noites de Inverno, como bem fácil é de supor, ainda tornavam os caminhantes mais acautelados do que as noites de Verão.

A noite em que tinham lugar os acontecimentos que acabámos de narrar, e os que adiante seguem, estava tão fria, tão escura e tão anuviada, que ninguém teria podido avistar, por detrás das ameias da fortaleza real, a sentinela protectora, a qual por certo também não poderia distinguir os vultos que atravessavam o largo.

Adiante da Porta de Santo António, para a parte interior da cidade, não havia casas; havia apenas uns muros muito altos. Estes muros eram, à direita, os da Igreja de S. Paulo; à esquerda, os do Palácio de Tournelles. Era na extremidade deste palácio, do lado da Rua de Santa Catarina, que havia o recanto em que Saint-Luc tinha falado a Bussy.

Seguia-se um quarteirão de casas que ficava entre a Rua de Jouy e a Rua Larga de Santo António, à qual ficavam fronteiras, naquela época, a Rua das Billettes e a Igreja de Santa Catarina.

Nesta porção do antigo Paris que acabámos de descrever não havia sequer um único candeeiro. Nas noites em que a Lua se encarregava da iluminação da cidade, via-se a sombra majestosa e imóvel da agigantada Bastilha, que destacava em escuro sobre o azul do céu estrelado. Nas noites escuras, porém, só se via no lugar que ela ocupava uma escuridão mais densa, no meio da qual fulgurava de espaço a espaço a luz de alguma janela.

Durante aquela noite, que tinha começado com uma fortíssíma geada e estava destinada a acabar por uma copiosa chuva de neve, nem vivalma pisava o chão gelado daquela espécie de estrada, que atravessava da rua para o arrabalde, e que, segundo já dissemos, servia ao trânsito dos indivíduos cautelosos que por ali passavam fora de horas. Mas quem fosse dotado de boa vista teria observado que no tal recanto do Palácio das Tournelles estava um grupo de sombras pretas, as quais, pelos seus movimentos, bem mostravam pertencer a entes humanos que muito se esforçavam por conservar o calor natural de que os ia privando, de minuto a minuto, a imobilidade a que pareciam ter-se sujeitado voluntariamente na expectativa de algum acontecimento.

A sentinela da torre, que, por causa da escuridão, nada podia ver para o largo, também por certo não podia ouvir a conversa das tais sombras, tão baixo elas falavam. Todavia o assunto da conversação não era destituído de interesse.

- Aquele danado Bussy tinha razão - dizia uma das sombras -; está uma noite tal qual como as de Varsóvia, quando o rei Henrique era rei da Polónia; se isto assim continuar, ficamos com frieiras, como ele nos vaticinou.

- Ora vamos, Maugiron! Pareces uma mulher com as tuas lamentações! - respondeu outra sombra. - Verdade é que não está calor; mas puxa o capote para a cara e mete as mãos nos bolsos, que já não sentes frio.

- Isso é bom de dizer, Schomberg; bem se vê que és alemão - disse uma terceira sombra. - Eu declaro que tenho os beiços em sangue e as guias do bigode transformadas em pedaços de gelo.

- Eu não sinto as mãos - disse uma quarta voz. - Palavra que estava capaz de apostar que já as não tenho.

- Por que não trouxeste o regalo da tua mamã, meu pobre Quélus? - respondeu Schomberg. - Estou certo de que a boa senhora to emprestaria com todo o gosto, especialmente se lhe contasses que era para a livrares do seu querido Bussy, de quem ele gosta quase tanto como se pode gostar da peste.

- Tenham paciência, meus Senhores - disse uma quinta voz. - Não tarda que se queixem de muito calor.

- Deus te oiça, d'Épernon! - exclamou Maugirom batendo com os pés no chão para os aquecer.

- Não fui eu que falei - replicou d'Épernon -, foi d'O. Eu estou calado com receio de que se me gelem as palavras.

- Que dizias tu? - perguntou Quélus a Maugiron.

- Dizia d'O - respondeu Maugirom - que não tarda que nos queixemos de muito calor, e eu respondi-lhe: Deus te oiça!

- Pois bem! Parece-me que ouviu, porque estou divisando além um vulto que vem caminhando para a Rua de S. Paulo.

- É engano. Não pode ser ele.

- E porquê?

- Porque nos indicou um outro itinerário.

- Sim, e seria muito para admirar que ele, desconfiado de alguma coisa, mudasse de caminho!.

- Vocês não conhecem Bussy; quando ele disser que tenciona passar por um sítio, há-de passar, ainda que tenha a certeza que Lhe sai o Diabo ao encontro.

- Contudo - respondeu Quélus -, não há dúvida de que se vêm aproximando dois homens.

- É verdade, com efeito - repetiram duas ou três vozes, conhecendo que era exacta a asserção.

- Nesse caso, vamos a eles! - disse Schomberg.

- Esperem - disse d'Épernon - não vamos nós matar dois pacíficos burgueses, ou duas honradas parteiras. Olhem, lá param.

E efectivamente as duas pessoas que atraíam a atenção dos cinco companheiros da emboscada tinham parado, como perplexas, indecisas, ao chegarem à extremidade da Rua de S. Paulo que dá para a Rua de Santo António.

- Oh, oh! - disse Quélus - acaso nos veriam eles?

- Não pode ser! A muito custo nos vemos nós uns aos outros.

- Tens razão - replicou Quélus. - Olha! Lá voltam para a esquerda! Param em frente duma casa; procuram uma porta.

- É verdade.

- Parece que querem entrar - disse Schomberg. - Então? O que dizem? Deixamo-los escapar?.

- Mas não é ele, porque ele vai para o arrabalde de Santo António, e os dois indivíduos que desembocaram da Rua de S. Paulo vieram pela rua abaixo - respondeu Maugiron.

- E que certeza tens de que a raposa não trocasse a indicação do caminho, ou fosse por acaso e sem querer, ou por maldade e de caso pensado?

- Podia muito bem ser que assim acontecesse - disse Quélus.

Esta reflexão fez pular o grupo dos cinco fidalgos como se fora uma matilha de cães esfaimados. Saíram do esconderijo e correram de espadas desembainhadas para os dois indivíduos que estavam parados defronte da porta.

Um dos dois homens acabava justamente de introduzir uma chave na fechadura; a porta tinha cedido e começava a abrir-se, quando a bulha dos passos dos agressores fez erguer a cabeça aos dois transeuntes misteriosos.

- O que é aquilo? - perguntou o mais baixo, voltando-se para o companheiro. - O caso será connosco, porventura, d'Aurilly?

- Ah, meu Senhor! - respondeu o que acabava de abrir a porta - parece que é, efectivamente. Quer dar-se a conhecer, ou conservar-se incógnito?

- São homens armados, é uma espera!

- Isto é obra de ciúmes. Bem tinha eu dito a Vossa Alteza que a senhora era tão formosa que por força havia de ter amantes.

- Entremos depressa, d'Aurilly! É mais fácil sustentar um cerco estando dentro do que fora da porta.

- Sim, meu Senhor, mas é quando dentro da praça não há inimigos. E quem nos diz. Não teve tempo de acabar: os cinco amigos tinham atravessado aquela distância de cem passos com a rapidez dum raio.

Quélus e Maugiron, que tinham vindo encostados à parede, colocaram-se entre a porta e os sujeitos que pretendiam entrar, para lhes cortar a retirada, enquanto que Schomberg, d'O e d'Epernon se dispunham a atacá- los de frente.

- Morra! morra! - bradou Quélus, que era sempre o mais enfurecido dos cinco. De repente, o indivíduo a quem o companheiro tinha tratado por Alteza quando lhe perguntou se queria conservar-se incógnito, voltou-se para Quélus, deu um passo, e cruzando os braços com arrogância:

- Parece-me que disse Morra! dirigindo-se a um príncipe francês, Sr. de Quélus!.

- disse ele com voz surda e olhar sinistro.

Quélus recuou, com os olhos espantados, as pernas a tremerem-lhe e as mãos pendentes.

- Sua Alteza o Senhor Duque de Anju! - exclamou ele.

- O Senhor Duque de Anju! - repetiram os outros.

- Então! - replicou o príncipe com gesto terrível. - Porque não continuam a gritar Morra! morra! meus Fidalgos?.

- Meu Senhor - balbuciou d'Épernon -, era uma brincadeira; perdoe-nos.

- Meu Senhor - acrescentou d'O -, não podíamos adivinhar que havíamos de encontrar Vossa Alteza neste bairro tão solitário.

- Uma brincadeira? - replicou o príncipe, sem se dignar responder a d'O. - São muito célebres as vossas brincadeiras, Sr. d'Épernom! Ora digam-me: visto que o caso não era comigo, quem é a pessoa que ameaçavam com essa vossa brincadeira?

- Meu Senhor-respondeu Schomberg respeitosamente -, vimos sair Saint-Luc do Palácio de Montmorency e encaminhar-se para este sítio e Moveu-nos a curiosidade de indagar qual era o motivo que assim obrigava um marido a abandonar a mulher na noite do casamento.

A desculpa era muito plausível, porque, segundo todas as probabilidades, o duque de Anju havia de saber no dia seguinte que Saint-Luc não tinha passado a noite no Palácio de Mont morency, e assim ficava confirmada a asserção de Schomberg.

- O Sr. de Saint-Luc? Confunde-me com o Sr. de Saint-Luc?

- Sim, meu Senhor - responderam ao mesmo tempo os cinco companheiros.

- E desde quando é que assim nos parecemos um com o outro? - disse o duque de Anju; - o Sr. de Saint Luc é mais alto do que eu meio palmo!

- É verdade, meu Senhor - disse Quélus porém é exactamente da altura do Sr. d'Aurilly, que tem a honra de acompanhar Vossa Alteza.

- E demais, a noite está escura, meu Senhor. - replicou Maugiron.

- E como vimos um homem a meter uma chave numa porta, pensávamos que era dos dois o de mais consideração - murmurou d'O.

- Finalmente - disse Quélus -, Vossa Alteza não pode supor, decerto, que tivéssemos nem por sonhos a ideia de o hostilizar, nem mesmo de estorvar os seus passatempos.

O príncipe, durante toda a conversação, e enquanto ia ouvindo as respostas mais ou menos lógicas que a surpresa e o medo sugeriam aos cinco amigos, tinha-se afastado do limiar da porta por uma hábil manobra estratégica, sempre seguido passo a passo por d'Aurilly, seu tocador de alaúde e companheiro usual das suas excursões nocturnas, e já se achava a uma tal distância da porta, que, assim conFundida com as mais, não era possível conhecê-la.

- Meus passatempos? - disse ele asperamente - e com que fundamento imaginam que eu venho aqui em procura de algum passatempo?

- Ah, meu Senhor! Em todo o caso, e seja qual for o motivo por que aqui veio - respondeu Quélus -, perdoe-nos! vamos retirar-nos.

- Está bem. Adeus, meus Senhores.

- Senhor Duque - acrescentou d'Épernon -; Vossa Alteza pode conFiar na nossa bem conhecida discrição.

O duque de Anju, que já tinha dado um passo para se retirar, parou, e carregando as sobrancelhas, disse:

- Discrição, Sr. de Nogaret? E quem é que Lhe pede que seja discreto!

- Meu Senhor, pensámos que Vossa Alteza, só, a esta hora, e acompanhado do seu confidente.

- Pois estão enganados. Eu Lhes digo o que devem pensar e o que eu quero que pensem. Os cinco fidalgos prestaram a sua respeitosa atenção.

- Eu ia - continuou o duque de Anju, falando devagar como para imprimir bem todas as suas palavras na memória dos ouvintes - consultar o judeu Manassés, que sabe ler o futuro no vidro e no pó do café. O tal judeu mora, como sabem, na Rua da Tournelle. Aurilly avistou-os, e julgou que era alguma ronda da justiça. E por isso - prosseguiu o príncipe com uma espécie de jovialidade temível para quem lhe conhecesse bem o génio -, com o receio próprio de gente que vai consultar um feiticeiro, íamo-nos cosendo com as paredes e escondendo-nos nos vãos das portas, para nos ocultarmos, se possível fosse, às vossas visitas investigadoras.

O príncipe tinha chegado insensivelmente à boca da Rua de S. Paulo, e estava já em distância de poder ser ouvido pelas sentinelas da Bastilha, no caso de algum ataque, que ele com toda a razão receava, apesar das desculpas e demonstrações de respeito dos favoritos de Henrique III, por isso que muito bem sabia quanto este o odiava.

- E agora, que já sabem o que devem pensar, e especialmente o que devem dizer - replicou o príncipe -, adeus, meus Senhores, boa noite. É inútil preveni-los de que não quero ser seguido.

Todos eles se inclinaram e despediram do príncipe, que se voltou umas poucas de vezes para os seguir com a vista, ao passo que ia caminhando para o lado oposto.

- Meu Senhor - disse d'Aurilly -, afirmo a Vossa Alteza que aquela gente não estava ali para boa coisa. É quase meia-noite; estamos, como eles disseram, num bairro solitário; voltemos depressa ao palácio, meu Senhor, voltemos.

- Nada - disse o príncipe detendo-o -; aproveitemos, pelo contrário, a partida deles.

- Vossa Alteza está enganado - disse d'Aurilly. - Eles não se foram embora; voltaram, como Vossa Alteza pode ver, para o esconderijo onde estavam metidos; não os vê daqui, meu Senhor, naquele recanto, à esquina do Palácio das Tournelles?.

O príncipe olhou; d'Aurilly tinha dito a verdade.

Os cinco fidalgos haviam regressado para a mesma posição, e era bem evidente que projectavam alguma empresa, que a chegada do príncipe tinha interrompido; também podia muito bem ser que se tivessem escondido naquele sítio para espreitarem o príncipe e o seu companheiro, e afirmarem-se se eles iam efectivamente a casa do judeu Manassés.

- Então, meu Senhor? - perguntou d'Aurilly - que fazemos? Estou por tudo quanto Vossa Alteza me ordenar, mas parece-me que não será prudente conservarmo-nos aqui.

- Contudo - disse o príncipe -, contraria-me bastante ter de deixar o negócio em meio.

- É verdade, meu Senhor; mas não nos faltará tempo para o concluir. Já tive a honra de dizer a Vossa Alteza que tinha procurado obter informações. A casa está alugada por um ano. Sabemos que a senhora mora no primeiro andar; temos a aia do nosso partido, e possuímos uma chave que serve na porta. Com todas estas circunstâncias a nosso favor, podemos esperar.

- Estás certo de ter aberto a porta?

- Certíssimo; abri-a com a terceira chave que meti na fechadura.

- E diz-me: tornaste a fechá-la?

- O quê? A porta?

- Sim.

- Tornei, sim, meu Senhor.

Apesar da afoiteza com que d'Aurilly proferiu esta asserção, é-nos forçoso dizer que ele não estava tão certo de ter fechado a porta como de a ter aberto.

Contudo, a impavidez com que respondeu não consentiu ao príncipe que duvidasse, nem de uma nem de outra coisa.

- Mas - disse o duque - é que não se me dava de verificar eu mesmo.

- O que eles estarão ali fazendo, meu Senhor? Posso eu dizê-lo a Vossa Alteza sem receio de me enganar; estão reunidos para alguma cilada: Afastemo-nos daqui. Vossa Alteza tem inimigos; quem sabe a que poderiam atrever-se?.

- Pois bem! Vamo-nos embora; havemos porém de voltar.

- Mas não há-de ser esta noite. Peço a Vossa Alteza que atenda às minhas ponderações: talvez eu exagere o perigo; mas parece-me que não se me deve levar a mal tanto susto, estando na companhia do primeiro príncipe de sangue. do herdeiro da coroa que tanta gente tem empenho em que não herde.

Estas últimas palavras fizeram tal impressão no duque, que logo se resolveu à retirada; mas não foi sem rogar pragas aos cinco fidalgos que se Lhe tinham vindo atravessar na frente, e a quem lá consigo prometeu que lhe haviam de pagar com usura, em tempo competente, o transtorno que acabavam de Lhe causar.

- Vamos! - disse ele. - Voltemos ao palácio; lá encontraremos Bussy, que já deve ter vindo daquela maldita boda; lá terá arranjado algum desafio, e terá morto, ou matará amanhã, algum daqueles meninos de alcova; e isso servir-me-á de consolação.

- Tem razão, meu Senhor - disse d'Aurilly. - Ponhamos a nossa esperança em Bussy. É também o meu desejo; e a esse respeito, tenho nele, como Vossa Alteza, a maior confiança.

E foram-se.

Ainda não tinham voltado a esquina da Rua de Jouy, quando os cinco companheiros da emboscada viram apontar, na altura da Rua do Tizon, um cavaleiro embuçado num comprido capote.

As patas do cavalo ressoavam ao longe sobre o chão quase petrificado, e um pálido raio de Lua, lutando com a cerração da noite, e tentando um último esforço para romper pelo véu anuviado e por aquela atmosfera carregada de neve, prateava com seu reflexo a pluma branca que lhe adornava o gorro. Caminhava com cautela, e vinha sopeando o cavalo, que assim constrangido a andar a passo, espumava apesar do frio.

- Desta feita - disse Quélus - é ele.

- É impossível! - disse Maugiron.

- Porquê?

- Porque vem só, e nós deixámo-lo com Livarot, d'Entraguet e Ribeirac, os quais decerto não consentiriam que ele se aventurasse assim sozinho.

- E contudo é ele, não há duvida - disse d'Épernon. - Olha! Não ouviste a sua maneira de escarrar, e não vês a sua atitude insolente? É ele, e vem só.

- Então - disse d'O - é um laço que nos armou.

- Em todo o caso, seja laço ou não - disse Schomberg -, é ele; e como é ele: Mãos às espadas! às espadas!

Era efectivamente Bussy que vinha caminhando sossegadamente pela Rua de Santo António, e seguindo com pontualidade o itinerário que lhe havia marcado Quélus; tinha sido avisado, como vimos, por Saint-Luc, e apesar do abalo muito natural que aquelas palavras lhe haviam causado, tinha resistido aos rogos dos seus três amigos, despedindo-se deles à porta do Palácio de Montmorency.

Esta era uma das bravatas de que muito gostava o valente Bussy, o qual dizia de si mesmo: Eu não sou senão um simples cavaleiro; mas tenho dentro do peito um coração de imperador, e quando leio nas Vidas de Plutarco as proezas dos Romanos antigos, sinto que sou capaz de imitar todas as acções praticadas pelos heróis da Antiguidade.

E demais, Bussy tinha pensado que o aviso de Saint-Luc, que ele não tinha em conta de seu amigo, e que na realidade só lhe havia mostrado tanto interesse em consequência da situação crítica em que se achava colocado, era com o único fim de o obrigar a acautelar-se de modo que se tornasse ridículo aos olhos dos seus inimigos, dado o caso de ter inimigos que estivessem efectivamente à sua espera.

Ora Bussy receava muito mais expor-se a fazer um papel ridículo, do que afrontar um perigo qualquer. Era tal a reputação de valentia de que gozava, mesmo para com os seus inimigos, que, para a sustentar devidamente, nunca recuava diante das mais temerárias empresas.

Para seguir pois à risca os seus modelos de Plutarco, tinha despedido os três companheiros, privando-se assim duma escolta capaz de infundir respeito a um esquadrão inteiro.

Vinha portanto sozinho, embuçado no capote, sem outras armas além da espada e do punhal, e dirigia-se para uma casa onde o esperava, não uma namorada, como todos julgariam mas sim uma carta, que Lhe mandava todos os meses, em dia certo, a rainha de Navarra, como recordação das relações que entre ambos tinham existido, e que o valoroso cavaleiro, para não comprometer pessoa alguma, ia buscar ele mesmo a casa do portador, cumprindo assim a promessa que fizera à sua bela rainha Margarida, e a que ainda não havia faltado uma única vez.

Já tinha percorrido impunemente o espaço que medeia entre a Rua dos Agostinhos e a Rua de Santo António, quando, ao chegar à altura da Rua de Santa Catarina, a sua vista activa e penetrante lobrigou no meio da escuridão, e encostados ao muro, vultos de homens, que o duque de Anju, que não estava prevenido, não tinha avistado. Além de que, o coração do homem que deveras é valente, sente, quando se vai aproximando de qualquer perigo que prevê uma exaltação tal, que faz chegar à maior perfeição a agudeza dos sentidos e do pensamento.

Bussy contou as sombras que destacavam no escuro sobre a parede pardacenta. Três, quatro, cinco, disse ele consigo, sem contar os lacaios, que estão provavelmente escondidos em algum outro recanto, e que hão-de acudir ao primeiro chamamento dos amos. Pelo que vejo, dão-me bastante consideração. Cos demónios! sempre é árdua tarefa para um homem só. Bem! O honrado Saint-Luc não me enganou, e ainda que ele seja o primeiro que eu enfie na refrega, sempre lhe hei-de dizer: - Obrigado pelo aviso, meu amigo! "

Apesar destas reflexões, ia caminhando para diante; apenas desembaraçou o braço direito, mas sem o desenvolver do capote que desacolchetou sem fazer movimento aparente.

Foi então que Schomberg bradou Mãos às espadas! e os quatro companheiros, repetindo o grito, saltaram ao encontro de Bussy.

- O que é isso, Senhores? - disse Bussy com todo o sossego - então querem matar o pobre Bussy? Visto isso, tratam-no como uma fera, e é ele o famoso javali que tencionavam caçar! Pois bem meus Senhores, guardem- se dele, que o javali há-de descoser a pele de alguns, sou eu quem Lho juro, e bem sabem que não costumo faltar à minha palavra.

- Veremos! - respondeu Shomberg. - Entretanto, sempre direi que és muito malcriado, Sr. Bussy d'Amboise, por nos estares falando assim a cavalo quando todos nós estamos de pé.

E ao proferir estas palavras, o braço do mancebo, revestido de cetim branco, saiu fora do capote e fulgurou como um relâmpago ao clarão prateado da Lua, sem que Bussy pudesse atinar com a causa daquele gesto, que ele tomou por um simples movimento de ameaça.

Bussy dispôs-se logo a responder-Lhe na forma do seu costume, mas quando ia para cravar as esporas na barriga do cavalo, sentiu que o animal fraquejava e ia-se abaixo.

Schomberg, com a destreza que lhe era própria, e de que já por vezes tinha dado sobejas provas nas numerosas rixas em que tinha tomado parte apesar da sua juventude, havia arremessado uma espécie de navalha cuja Folha era mais pesada do que o cabo, e o ferro, cravando-se numa das pernas do cavalo, ficara entalado na ferida como uma machadinha num ramo de árvore.

O animal deu um rugido surdo, e caiu de joelhos a tremer.

Bussy, sempre pronto para o que desse e viesse, pôs-se logo a pé e com a espada na mão.

Ah malvado - exclamou ele. - Era o meu cavalo favorito, hás-de pagar-me o que...

Entretanto Schomherg aproximou-se, impelido pelo furor, e calculando mal o alcance da

espada que Bussy segurava com o braço unido ao corpo, como se calcula erradamente a distância a que podem chegar os dentes duma cobra enroscada: o braço e a espada estenderam-se, e rasgaram-lhe a coxa.

Shomberg deu um grito.

- Então! - disse Bussy - não lhes parece que tenho palavra?. Aí está já um com a pele descosida. Deves ver, Schomberg, que andaste mal no que fizeste; era melhor que tivesses ferido o braço de Bussy do que a perna do cavalo!

E num abrir e fechar de olhos, enquanto Schomberg apertava a coxa com o lenço, Bussy apresentou a ponta da comprida espada ao rosto e ao peito dos outros quatro agressores, e isto sempre calado, porque Bussy julgava que gritar para que lhe acudissem era o mesmo que confessar que precisava de auxílio, coisa que ele nunca faria; limitou-se pois a tirar o capote dos ombros, enrolando-o no braço esquerdo para Lhe servir de escudo, e recuou, não para fugir, mas para se encostar à parede, a fim de não ser acometido pela retaguarda, porém dando sempre dez estocadas por minuto, e sentindo de vez enquando aquela resistência mole que dá a conhecer que o ferro entrou pela carne. Numa das vezes escorregou, e olhou maquinalmente para o chão. Foi quanto bastou para Quélus lhe atirar uma estocada que o feriu num lado.

- Ferido! - gritou Quélus.

- Sim, mas foi no gibão - respondeu Bussy, que não queria confessar a ferida -; a estocada foi dada a medo.

E arremetendo para Quélus, enlaçou-lhe tão destramente a espada, que a fez saltar à distância de dez passos. Porém não pôde concluir o seu triunfo, porque ao mesmo tempo O, d'Épernon e Maugiron atacaram-no com furor.

Schomberg já tinha ligado a ferida, Quélus tinha apanhado a espada, portanto Bussy logo viu que ia ser cercado, que apenas lhe restava um minuto para se encostar novamente à parede, e que, se o não tratasse de conseguir quanto antes, estava perdido.

Bussy deu pois um pulo para trás, Ficando assim à distância de três passos dos agressores; as quatro espadas procuraram alcançá-lo, mas já era tarde, porque Bussy, com outro salto que dera, tinha conseguido encostar-se à parede. Ali parou, e, forte como um Aquiles ou um Rolando, riu-se da tempestade de estocadas e cutiladas que lhe choviam sobre a cabeça e Lhe retiniam de roda do corpo.

De repente sentiu a testa húmida de suor e a vista turvar-se-Lhe.

Tinha esquecido que estava ferido, e aqueles sintomas de desmaio vinham-lho recordar.

- Ah! já fraquejas!. - exclamou Quélus, amiudando os golpes.

- Olha! - disse Bussy - Vê como te enganas.

E bateu-lhe na cabeça com os copos da espada. Quélus caiu redondamente no chão com o choque daquele soco de ferro.

E logo Bussy, exaltando-se, enfurecido como o javali que, depois de corrido pelos cães, se virara contra eles, deu um grito terrível, e avançou; d'O e d'Épernon recuaram.

Maugiron tinha ajudado Quélus a levantar- se e estava-o amparando.

Bussy partiu com os pés a espada deste último e acutilou Épernon num braço. Durante um instante esteve a vitória a favor de Bussy; mas Quélus tornou a si; Schomberg, apesar de ferido, entrou novamente em cena; e as quatro espadas brilharam outra vez.

Bussy júlgou-se segunda vez perdido. Reuniu toda a sua força para efectuar a retirada, e foi recuando passo a passo para chegar à parede.

O suor frio que sentia na testa, o zunido dos ouvidos, a nuvem que tinha diante dos olhos, tudo Lhe dava a conhecer que estava exaurido de forças.

A espada já não seguia a direcção que Lhe dava o pensamento perturbado.

Bussy procurou a parede com a mão esquerda, achou-a, mas com grande admiração sua, a parede recuou. Era uma porta mal fechada.

Bussy então tomou novo alento e concentrou todas as suas forças para aquele derradeiro momento. Durante um segundo manejou a espada com tanta rapidez e deu botes tão violentos, que as espadas dos seus agressores ou se abaixaram ou se afastaram dele. Aproveitou então a ocasião para se meter dentro da porta, e, voltando-se logo que entrou, empurrou-a com um forte encontrão.

A lingueta da fechadura ressaltou na chapa-testa.

Estava tudo acabado; Bussy achava-se livre de perigo, e estava vencedor, visto ter escapado a salvo.

Então, não cabendo em si de contentamento, esteve examinando pelas grades do postigo os rostos pálidos dos seus inimigos. Ouviu as cutiladas que eles atiravam debalde à porta, e depois gritos de raiva e vozearia furiosa. Até que, por fim, lhe pareceu, de repente, que lhe faltava o chão debaixo dos pés e que a parede oscilava; deu três passos para a frente e achou-se num pátio, girou sobre si mesmo e foi cair sobre os degraus duma escada.

Depois nada mais sentiu; julgou ter caído no silêncio e escuridão do sepulcro.

 

         QUANTO CUSTA DIFERENÇAR, ÀS VEZES, UM SONHO DA REALIDADE

Bussy antes de cair, tinha tido tempo de entalar o lenço por baixo da camisa e de lhe apertar por cima o cinturão da espada, formando assim uma espécie de ligadura à ferida, de onde o sangue Lhe corria com abundância e a escaldar; mas quando conseguiu vedá-lo por esta forma, já tinha perdido bastante para Lhe causar o desmaio, a que não pôde resistir.

Porém, ou fosse porque naquele cérebro, excitado pela cólera e pelo sofrimento, ainda persistisse a vida debaixo da aparência dum desmaio, ou porque o desmaio tivesse cessado para dar lugar a uma febre, a que depois sucedesse um segundo desmaio, eis o que Bussy viu, ou julgou ver, durante aquele instante de crepúsculo, assim colocado entre as sombras de duas noites.

Estava num quarto guarnecido com móveis de madeira esculpida, as paredes cobertas de panos de Arrás com figuras, e o tecto pintado.

As Figuras das paredes, postas em todas as atitudes possíveis, umas com flores nas mãos, outras com lanças, pareciam mover-se todas e irem subindo para o tecto por caminhos mis teriosos. Entre as duas janelas estava colocado um retrato de mulher, resplandecente de luz; porém a Bussy figurava-se que a moldura do retrato não era outra coisa senão as ombreiras duma porta.

Bussy, imóvel, pregado à cama, como se ali o houvera fixado um poder superior privado de todos os movimentos e tendo perdido todas as faculdades, excepto a de ver, olhava para todas aquelas figuras com a vista embaciada, admirando o riso desenxabido das que levavam ramalhetes, e a raiva grotesca das que brandiam, espadas. Teria ele visto já aquelas personagens, ou seria a primeira vez que as via? Era uma dúvida que a perturbação em que tinha a cabeça Lhe não deixava resolver.

De repente, a mulher do retrato saiu da moldura, e uma criatura encantadora trajando um vestido comprido de lã branca, como os que usam os anjos, com o cabelo caído sobre os ombros, olhos pretos como azeviche, e uma pele tão mimosa que lhe parecia ver circular por entre ela o sangue que a tingia de cor-de-rosa, caminhou para ele.

A mulher era tão admiravelmente formosa, e os seus braços estendidos para ele tinham tal poder de atracção, que Bussy fez um esforço violento para ir deitar-se-Lhe aos pés. Mas parecia estar preso à cama, como o cadáver está ao túmulo, enquanto que a alma imaterial, desprezando a terra, vai subindo ao céu.

Examinou então o leito em que estava deitado, e pareceu-Lhe que era um daqueles leitos magníficos lavrados no reinado de Francisco I, e do qual pendiam cortinas de damasco branco tecido com oiro.

Bussy, logo que avistou a mulher que descrevemos, deixou de prestar atenção às Figuras da parede e do tecto.

A mulher do retrato era tudo para ele, e procurava ver tal era o vácuo que ela havia deixado na moldura. Porém uma nuvem que os seus olhos não conseguiam penetrar pairava diante do quadro e encobria-lho à vista; volveu então os olhos para aquela figura misteriosa, e con centrando o olhar em tão maravilhosa aparição, começou a dirigir-Lhe um daqueles cumprimentos em verso que ele fazia com facilidade.

Mas a mulher desapareceu subitamente: entre ela e Bussy tinha-se interposto um corpo opaco; o corpo tinha o andar pesado, e apalpava o ar com as mãos como faz a vítima no jogo da cabra-cega.

Bussy sentiu-se tomado de tal furor contra tão importuna visita, que, se se tivesse podido mover, decerto tê-la-ia espancado; devemos mesmo fazer-lhe justiça de dizer que o tentou, mas não Lhe foi possível.

Enquanto ele procurava debalde erguer-se da cama, a que parecia ligado, o recém-chegado falou.

- Então? - perguntou - ainda não chegámos?

- Sim, mestre - respondeu uma voz tão suave que fez estremecer todas as fibras do coração de Bussy -; e agora pode tirar a venda.

Bussy procurou verificar se a mulher de voz suave era a mesma do retrato, mas foi inútil a sua tentativa. Só viu diante de si um rosto de homem moço e agradável, que acabava de destapar os olhos conforme a licença que lhe fora dada, e corria a vista com espanto pelo quarto.

O diabo leve este homem! " pensou Bussy.

E quis dar uma forma a este pensamento por meio de gestos ou palavras, mas não conseguiu nem uma nem outra coisa.

- Ah! já percebo agora - disse o mancebo, chegando-se à cama. - Está ferido, não é verdade, meu caro Senhor? Vejamos, vamos tratar de si, pensar a ferida. Bussy quis responder; mas conheceu que lhe era inteiramente impossível. Sentiu um peso sobre os olhos e umas picadas nas extremidades dos dedos, como se neles lhe tivessem cravado milhares de alfinetes.

- A ferida será mortal? - perguntou com um tal acento de dolorosa compaixão, que fez arrasar de lágrimas os olhos de Bussy, a mesma voz tão suave que já tinha falado, e que o ferido conheceu ser a senhora da retrato.

- Ainda não sei; mas já lho digo - replicou o mancebo. - Entretanto, o que é certo é estar ele muitíssimo fraco.

Foi tudo quanto Bussy pôde perceber; pareceu-lhe também que ouvia o roçar dum vestido que se afastava. Depois, julgou sentir que alguma coisa semelhante a um ferro em brasa Lhe atravessava a ilharga, e acabou por perder os sentidos.

Posteriormente nunca Bussy pôde calcular qual tinha sido o tempo que havia durado aquele desmaio.

Quando acordou desse sono sentiu que um vento frio Lhe açoitava o rosto e vozes roufenhas lhe feriam os ouvidos; abriu os olhos para ver se eram as figuras do pano de Arrás que estavam à bulha com as da tecto, e esperando achar ainda diante de si o retrato de que tanto gostara. Mas não viu nem panos de Arrás nem tecto. E quanto ao retrato, esse tinha desaparecido completamente. Viu um homem vestido de cinzento com um avental branco arregaçado até à cintura e manchado de sangue; ao lado direito, um frade agostinho da Rua do Templo, que lhe amparava a cabeça; e ajoelhada, na sua frente, uma velha resmungando uma reza.

A vista incerta de Bussy em breve se Fitou num muro que tinha diante de si, e foi correndo os olhos até ao seu ponto mais elevado para lhe medir a altura; reconheceu então o Templo, que era naquela época um castelo flanqueado de muralhas e de torres, e por cima do Templo viu o céu branco e frio, já levemente dourado pelo nascer do Sol.

Bussy achava-se pura e simplesmente na rua, ou, para melhor dizer, à borda dum fosso, e o fosso era o do Templo.

- O!h! obrigado, boa gente - disse ele -, pelo incómodo que tiveram em me trazer para aqui. Precisava respirar o ar livre. Mas bastava que tivessem aberto as janelas, e eu estaria muito mais comodamente naquele leito guarnecido de damasco branco e oiro, do que sobre a terra húmida. Não importa; aqui acharão no meu bolso, se é que não se pagaram já por vossas mãos, como é provável, e teria sido prudente, uns vinte escudos de oiro; tirem-nos, meus amigos, e guardem- nos, que eu lhos dou.

- Porém, meu fidalgo - respondeu o carniceiro -, nós não tivemos o incómodo de o trazer para aqui; já aqui estava muito bem estendido. Demos consigo quando passámos esta manhã ao romper do dia.

- Ah! deveras? - disse Bussy - e o médico também aqui estava?

Os circunstantes olharam uns para os outros.

- É ainda um resto de delírio - disse o frade agostinho, abanando a cabeça. E logo, voltando-se para Bussy: - Meu filho - disse-lhe ele -, parece-me que não faria mal se se confessasse.

Bussy olhou para o monge com espanto.

- Não estava consigo médico algum, meu pobre rapaz - disse a velha. - O senhor estava aqui sozinho, abandonado e frio como um cadáver. Olhe: caiu alguma neve esta noite, e no lugar onde estava estendido vê-se o escuro da terra.

Bussy olhou, mas foi para a ilharga, onde sentia uma dor; recordou-se então de ter levado uma estocada, meteu a mão por dentro do gibão, e achou o lenço no mesmo sítio, apertado sobre a ferida pelo cinturão da espada.

- É coisa célebre! - disse ele.

Os três assistentes, aproveitando-se da licença que ele lhes dera, já estavam tratando de repartir entre si o conteúdo da bolsa, acompanhando este acto com imensas lamentações a respeito do desastre que lhe sucedera.

- Ora bem - disse ele, quando viu que estavam feitas as partilhas -; agora, meus amigos, levem-me para o meu palácio.

- Ah! Decerto, decerto, pobre rapaz - disse a velha -, o cortador tem bastante força, e além disso tem um cavalo em que o senhor poderá montar.

- É verdade? - perguntou Bussy.

- É verdade sem tirar nem pôr - disse o carniceiro e tanto eu como o meu cavalo estamos à sua disposição meu fidalgo.

- Contudo, meu filho - disse o frade -, enquanto o cortador vai buscar o cavalo, sempre seria bom que se confessasse.

- Por minha vida! - replicou Bussy, erguendo-se até ao ponto de Ficar sentado - tenho toda a esperança de que ainda não é chegada a ocasião. E portanto, meu reverendo, vamos ao que mais urge. Estou com muito frio, e desejo voltar quanto antes para o meu palácio a fim de me aquecer.

- E como se chama o seu palácio?

- É o Palácio de Bussy.

- Como! - exclamaram os circunstantes. - Vai para o Palácio de Bussy?

- Sim; que admiração é essa?

- Então está ao serviço do Sr. de Bussy?

- Sou eu mesmo o Sr. de Bussy.

- Bussy? - exclamaram todos - o Sr. de Bussy, o valente Bussy, o flagelo dos favoritos do rei?. Viva Bussy!

E o jovem cavaleiro foi levado às costas dos seus auditores, que o conduziram em triunfo para o palácio, enquanto o monge se retirava dali contando o quinhão que lhe coubera dos vinte escudos de oiro, abanando a cabeça e rosnando:

Se é na realidade o espadachim de Bussy, já não me admira que não se quisesse confessar. " Bussy, logo que chegou ao palácio, mandou chamar o médico que costumava tratá-lo, e este achou que a ferida não era grave.

- Diga-me - perguntou Bussy -, esta ferida já foi curada?

- Eu sei lá! - respondeu o doutor. - Não quero afirmá-lo, se bem que parece muito fresca.

- E - disse Bussy - parece-Lhe que, apesar de não ter gravidade, me poderia ter feito delirar?

- Decerto.

Cos demónios! pensou Bussy; então aqueles panos de Arrás com as figuras que seguravam ramalhetes, as lanças, o tecto ornado de pinturas, o leito esculpido e armado de damasco branco e oiro, o retrato entre as duas janelas, aquela encantadora mulher loura com os olhos pretos, o médico que jogava a cabra-cega. tudo aquilo seria efeito de delírio?. e só o meu conflito com os favoritos é que seria verdadeiro? Onde foi que eu briguei com eles? Ah! Agora me lembra. Foi ao pé do Largo da Bastilha, para o lado da Rua de S. Paulo. Encostei- me a uma parede, a parede era uma porta, a porta abriu-se. felizmente. Fechei-a a muito custo, e achei-me num corredor. Depois não me recordo do que se passou até que tornei a mim. Mas eu tornei a mim, ou sonhei tudo aquilo? Essa é agora a minha dúvida. Ah! E o meu cavalo. é verdade, o meu cavalo foi provavelmente encontrado morto no largo.

- Doutor, peço-lhe que chame alguém.

O doutor chamou um criado.

Bussy indagou, e soube que o animal, apesar de aleijado e de ter perdido muito sangue, se arrastara até à porta do palácio, e que ali tinham dado com ele a relinchar quando amanhecera. Foi quanto bastou para encher de consternação todos em casa; os criados de Bussy que morriam pelo amo, tinham saído logo à sua procura, e a maior parte deles ainda não tinha voltado.

Visto isso, disse Bussy, não há senão o retrato, que ainda Fica sendo um sonho para mim, e não pode haver dúvida que foi sonho. Como é possível que um retrato saia da sua moldura para vir conversar com um médico que está com os olhos vendados? Sou eu que estou louco. E contudo. quando me lembra quanto aquele retrato era encantador!. Tinha.

Bussy começou a recordar-se circunstanciadamente do retrato, e à medida que todas as perfeições dele se lhe apresentavam à memória, um tremor voluptuoso, semelhante ao estremecimento do amor que aquece e faz palpitar o coração, correu-lhe como um veludo pelo peito escandecido.

Dar-se-ia o caso que eu sonhasse tudo aquilo? exclamou Bussy, enquanto o doutor lhe punha os apôsitos sobre a ferida. Por minha fé! É impossível; não pode haver sonhos assim. Ora vamos cá recapitular.

E Bussy tornou a repetir pela centésima vez:

Eu estava no baile; Saint-Luc avisou-me que me queriam fazer uma espera para os lados da Bastilha. Antraguet, Ribeirac e Livarat estavam comigo. Mandei-os embora. Meti-me a caminho pelo cais, Grande-Châtelet, etc. etc. Quando cheguei ao Palácio das Tournelles avistei os indivíduos que me esperavam. Atiraram-se a mim e estropiaram-me o cavalo. Batemo-nos encarniçadamente. Entrei num corredor; desmaiei, e depois. Ah! cá está: é este depois que me mata; houve uma febre, um delírio, um sonho, em seguimento ao tal depois. E finalmente, continuou ele com um suspiro, achei-me sobre a escarpa dos fossos do Templo, onde um frade agostinho me queria confessar. Não descanso enquanto não examinar este negócio bem a fundo, tornou Bussy depois dum instante de silêncio, durante o qual procurou interrogar a memória. Diga-me, doutor: ser-me-á necessário estar também em casa outros quinze dias por causa desta arranhadela, como aconteceu quando tive a última?

- É conforme. Vejamos: custa-lhe a andar? - perguntou o cirurgião.

- A mim? Pelo contrário - respondeu Bussy -, está-me parecendo que tenho azougue nas pernas.

- Dê uma volta pelo quarto.

Bussy saltou da cama a baixo, e mostrou que era verídica a sua asserção, dando prontamente uma volta pelo quarto.

- Está bom - disse o médico pode sair, contanto que não monte a cavalo e que não ande dez léguas a pé no primeiro dia.

- Ora ainda bem - exclamou Bussy - é um médico como eu gosto! E contudo, ainda estou certo de que fui curado por outro esta noite. Não há dúvida que o vi; tenho as feições dele gravadas na lembrança, e se um dia o tornar a encontrar, juro-lhe que o hei-de conhecer.

- Meu caro Senhor - disse o médico -, dou-Lhe de conselho que não intente semelhante averiguação: seria tempo baldado; sempre depois duma ferida de espada se é acometido de febre; bem devia saber isto que Lhe estou dizendo, visto ser esta a duodécima estocada que já levou.

- Oh, meu Deus! - gritou de repente Bussy, a quem uma ideia nova ocorrera, pois só pensava nos mistérios da noite - acaso começaria o meu sonho da parte de fora da porta, em lugar de começar da parte de dentro?. Não existiria porventura o corredor e a escada assim como não existiria o leito armado de damasco branco e ouro? E o retrato?. Acaso os malvados que me agrediram, julgando terem-me morto, me meteriam simplesmente até aos fossos do templo, para furtar as voltas a algum espectador da cena? Se assim foi, então sonhei certamente o que se seguiu. Pelo Santo Nome de Deus! Se é verdade esta suposição, se foram eles a causa deste sonho que me inquieta, devora e mata, juro que hei-de dar cabo de todos eles!

- Meu caro Senhor - disse o médico -, se deseja sarar quanto antes, será bom que não se agite tanto.

- Excepto, contudo, o bom Saint-Luc - prosseguiu Bussy, sem dar atenção ao que o médico dizia. - Esse está noutro caso! Portou-se como amigo. E também há-de ser a ele a minha primeira visita.

- Porém não saia antes das cinco horas da tarde - disse o médico.

- Obedecerei - disse Bussy -; se bem que possa certificar-Lhe que é mais fácil eu piorar estando aqui muito quieto e sozinho, do que saindo à rua para visitar os meus amigos.

- Isso também pode ser - respondeu o médico -; o senhor é, em todo o sentido, um doente muito extraordinário; faça portanto o que Lhe aprouver. Só lhe farei uma única recomendação: evite levar outra estocada enquanto essa não tiver sarado.

Bussy prometeu ao médico que havia de tratar de seguir à risca a sua recomendação, e, depois de se ter vestido, mandou aprontar a liteira e ordenou que o conduzissem ao Palácio de Montmorency.

 

         POR QUE FORMA A MENINA DE BRISSAC, OU POR OUTRA A SR. DE SAINT LUC, TINHA PASSADO A NOITE DA SUA BODA

Luís de Clermont, mais geralmente conhecido pelo nome de Bussy de Amboise, e que foi classiFicado por Brancôme, seu primo, como um dos mais distintos cabos-de-guerra do século xv, apesar de ter falecido na idade de trinta anos apenas, era um guapo cavaleiro e um fidalgo às direitas.

Nunca homem algum tinha tido conquistas mais gloriosas.

Reis e príncipes tinham procurado a sua amizade. Rainhas e princesas tinham-lhe dirigido os mais ternos sorrisos.

Bussy tinha sido o sucessor de La Mole no coração de Margarida de Navarra; e a apaixonada rainha, carecendo provavelmente de quem a consolasse, depois da morte do favorito cuja história noutro lugar escrevemos, tinha praticado tanta loucura por amor do galante e valente Bussy de Amboise, que chegou a irritar Henrique, seu marido, o qual em geral não fazia caso de tais bagatelas; e o duque Francisco nunca ceria perdoado ao amante de sua irmã se o amor que ela tinha por Bussy não houvera atraído este ao seu partido. Ainda desta vez o duque sacrificava o amor à ambição surda e falta de resolução que durante todo o curso da sua existência Lhe acarretou tanto desgosto com tão pouco resultado.

Contudo, apesar de ser tão bem sucedido na guerra, na ambição e no galanteio, Bussy tinha sempre conservado uma alma inacessível a qualquer fraqueza humana; e assim como nunca tinha conhecido o que era medo, também tinha chegado à época em que o apresentamos aos nossos leitores sem saber o que era o amor. Aquele coração de imperador que Lhe palpitava no peito, como ele costumava dizer, estava virgem e puro, semelhante ao diamante em que ainda não tocou a mão do lapidário, e que está tal qual saiu da mina onde o geraram os raios do Sol. E por isso também não tinha lugar no coração para os pensamentos que teriam feito dele um verdadeiro imperador. Julgava-se merecedor duma coroa, e valia mais do que a coroa que lhe servia de ponto de comparação.

Henrique III tinha-lhe mandado oferecer a sua amizade, e Bussy tinha-a rejeitado, alegando que os reis tratam os amigos como criados, e às vezes pior ainda; que por consequência não lhe convinha aceitar semelhante oferecimento.

Henrique III tinha fechado os olhos a um tal insulto, que Bussy ainda agravara escoLhendo o duque Francisco para seu senhor. Devemos porém observar que o duque Francisco era senhor de Bussy da mesma forma que o domador de feras é senhor do leão, a quem acaricia e sustenta com receio que o leão o devore.

Bussy era o instrumento que Francisco empregava para sustentar as suas contendas particulares.

Ele conhecia perfeitamente a sua posição, mas o papel que o obrigavam a representar convinha-Lhe.

A sua teoria era pelo gosto da divisa dos Rohans, que diziam: Rei não sou, príncipe não quero ser! Sou Rohan.

Bussy dizia consigo: Não posso ser rei de França, mas o Senhor Duque de Anju pode e quer sê-lo, e eu hei-de ser o rei do Senhor Duque de Anju.

E de facto assim era.

Os criados de Saint-Luc, logo que viram aparecer à porta o temível Bussy, correram a avisar o Sr. de Brissac.

- O Sr. de Saint-Luc está em casa? - perguntou Bussy, deitando a cabeça fora das cortinas da liteira.

- Não senhor - respondeu o guarda-portão.

- Onde o poderei encontrar?

- Não sei, meu Senhor - respondeu o criado. - Estão todos em casa com muito cuidado; o Sr. de Saint-Luc desde ontem que não aparece.

- Deveras? - disse Bussy com admiração.

- Tal qual como tenho a honra de lho dizer.

- E a Sr. a de Saint-Luc?

- Oh! a Sr. de Saint-Luc, essa sim.

- Está em casa?

- Está.

- Mande pois dizer à Sr. de Saint-Luc que eu muito estimaria que ela me concedesse licença para Lhe fazer os meus cumprimentos.

Daí a cinco minutos voltou o criado a dizer que a Sr. de Saint-Luc recebia com todo o gosto a visita do Sr. de Bussy.

Bussy apeou-se, e subiu a escada. Joana tinha vindo ao encontro do mancebo até ao meio da sala do dossel. Estava muito pálida, e o seu cabelo preto como a asa dum corvo dava-lhe à palidez do rosto a cor do marfim amarelado; tinha os olhos vermelhos em consequência da dolorosa insónia que havia sofrido, e nas suas faces ainda se divisavam os sulcos prateados de lágrimas recentes.

Bussy sorriu quando notou quanto ela estava desmaiada, e já ia preparando o cumprimento do estilo motivado pelas olheiras que apresentava; mas logo que percebeu aqueles sintomas de verdadeiro sofrimento, parou no princípio do seu improviso.

- Bem-vindo seja, Sr. de Bussy - disse a Sr. a de Saint-Luc -, apesar do susto que me causa a sua presença aqui.

- Que pretende dizer, minha Senhora? - perguntou Bussy. - E como pode a minha presença ser precursora duma desgraça para si?

- Ah! Confesse-me a verdade: encontrou-se esta noite com o Sr. de Saint-Luc?

- Eu, com o Sr. de Saint-Luc? - repetiu Bussy admirado.

- Sim. Ele afastou-me de si para lhe poder falar. O senhor é servidor do duque de Anju, e ele de el-rei. Tiveram alguma desavença? Não me oculte coisa alguma, Sr. de Bussy, rogo-Lhe! Facilmente pode avaliar o desassossego em que tenho o espírito. Bem sei que ele saiu daqui com el- rei; mas podia ir ter consigo, confesse a verdade. O que sucedeu ao Sr. de Saint-Luc?

- Minha Senhora - disse Bussy -, estou espantado com o que acabo de ouvir. Esperava que me perguntasse notícias da minha ferida, e parece que pretende acusar-me!.

- O Sr. de Saint-Luc feriu-o? Bateu-se com o senhor? - exclamou Joana. - Ah, bem vê.

- Não, minha Senhora, não se bateu, comigo pelo menos, o meu caro Saint-Luc; e graças a Deus, não foi a mão dele que me feriu! Até direi mais: fez quanto estava ao seu alcance para que não me sucedesse mal. E demais, ele não Lhe contou já que somos agora tão amigos como Dámon e Pítio?.

- Ele? Como poderia ele dizer-mo, se não o tornei a ver?

- Não o tornou a ver? Então sempre é verdade o que me disse o seu guarda-portão?

- Que Lhe disse ele?

- Que o Sr. de Saint-Luc não tinha voltado a casa desde ontem à noite às onze horas. Nunca mais viu seu marido desde ontem à noite às onze horas?

- Infelizmente, não!

- Mas onde estará ele?

- Isso pergunto eu!

- Oh! Conte-me toda essa história, minha Senhora - disse Bussy, que já ia desconfiando do que tinha sucedido -; há-de ser muito divertida.

A pobre senhora olhou para Bussy com pasmo.

- Não é isso que eu queria dizer. - acudiu Bussy - há-de ser muito triste. Não faça caso, perdi muito sangue, de forma que não estou bem senhor de todas as minhas faculdades. Conte-me essa deplorável história, minha Senhora, conte! fale.

Joana, em seguida, narrou-lhe quanto sabia; isto é, a ordem que Henrique III tinha dado a Saint-Luc de o acompanhar, e a resposta dos guardas por ocasião de fecharem as portas do Louvre, donde, com efeito, ninguém mais tinha saído.

- Ah! muito bem - disse Bussy -; já percebo.

- Como? Já percebe? - perguntou Joana.

- Sim: Sua Majestade levou consigo Saint- Luc para o Louvre, e, depois de lá entrar, Saint-Luc não pôde tornar a sair.

- E por que motivo não pode Saint-Luc tornar a sair?

- Ah, isso agora. - respondeu Bussy com hesitação - é um segredo de Estado que eu não lhe posso dizer.

- Contudo - disse a noiva -, eu já fui ao Louvre, e meu pai também.

- E depois?

- Os guardas responderam-nos que não sabiam o que nós queríamos dizer, e que o Sr. de Saint-Luc já devia ter voltado para casa.

- É mais uma razão para supor que o Sr. de Saint-Luc está no Louvre - disse Bussy.

- Julga que está?

- Tenho toda a certeza, e se deseja afirmar-se também.

- Como?

- Indo lá em pessoa.

- E poderá ser?

- Decerto.

- Mas assim que eu me apresentar à porta do palácio, hão-de despedir-me, como já fizeram, e com as mesmas palavras que já me disseram; e, a dizer a verdade, se ele lá estivesse, porque haviam de proibir-me que lhe falasse?

- Torno a dizer-Lhe: quer entrar no Louvre?

- Para quê?

- Para ver Saint-Luc.

- E se ele lá não está?.

- E eu digo-Lhe que está.

- É coisa célebre!

- Não, são coisas de el-rei.

- Mas, consentir-Lhe-ão que entre no Louvre?

- Sem dúvida que sim. Eu não sou a esposa de Saint-Luc.

- Confunde-me as ideias.

- Deixe lá, venha daí.

- Como se entende este convite? Acaba de me dizer que a esposa de Saint-Luc não pode entrar no Louvre, e quer lá levar-me consigo?

- Nada disso, minha Senhora; não é a esposa de Saint-Luc que eu lá quero levar. Uma mulher! Era o que faltava!.

- Então está zombando de mim. e acho esse divertimento muito cruel, pois bem vê como estou triste.

- Por forma alguma, minha querida Senhora! Ouça-me: tem vinte anos, é alta, tem olhos pretos e corpo esbelto: é muito parecida com o mais novo dos meus pajens, aquele rapazito bonito que todos acharam galante ontem à noite, vestido de brocado de ouro. Já percebe?.

- Ah! Isso seria uma loucura, Sr. de Bussy! - exclamou Joana corando.

- Reflicta. Não sei de outro meio, a não ser este que lhe proponho. É, dizer sim ou não. Quer ver o seu Saint-Luc? Diga-me.

- Oh, era capaz de dar quanto possuo para o ver!

- Pois bem! Prometo-lhe que o há-de ver sem dar coisa alguma.

- Sim, mas.

- Oh, já Lhe disse como havia de ser.

- Muito bem, Sr. de Bussy! estou por tudo quanto determinar; far-me-á o favor de prevenir o rapazito que me há-de emprestar o fato, e lá mandarei uma das minhas criadas buscá-lo.

- Não é preciso; volto a casa para escolher um dos fatos novos que mandei fazer àqueles velhaquetes para o próximo baile da rainha-mãe. Mandar-Lhe-ei o que me parecer mais apropriado à sua estatura; depois irá ter ao sítio que ajustarmos, esta noite (na Rua de Santo Honorato, à esquina da Rua das Prouvelles, por exemplo), e de lá.

- E de lá...

- Então, de lá seguiremos para o Louvre juntos.

Joana desatou a rir e estendeu a mão a Bussy.

- Perdoe-me as minhas desconfianças - disse ela.

- Com todo o gosto. Proporciona-me a ocasião de pregar a uma pessoa minha conhecida uma peça que há-de fazer rir a Europa toda. Sou eu quem ainda lhe fica em agradecimento.

E despedindo-se da noiva, voltou a casa, a fim de aprontar tudo quanto era necessário para a aparatosa mascarada.

Logo que anoiteceu e deu a hora aprazada, Bussy encontrou-se com a Sr. de Saint-Luc junto à Barreira dos Sargentos. Se a noiva não viesse vestida com a farda do seu pajem, Bussy decerto não a teria conhecido. Estava linda assim disfarçada. Ambos, depois de trocarem algumas palavras, tomaram o caminho do Louvre.

Quando chegaram à extremidade da Rua dos Fossos de Saint-Germain- d'Auxerrois, encontraram uma grande comitiva de gente que tomava toda a largura da rua e lhes tolhia o passo.

Joana assustou-se. Bussy conheceu, à luz dos archotes e pelo brilhar dos arcabuzes, que era o duque de Anju, o qual, independentemente destas circunstâncias, era bem fácil de conhecer ao longe pelo cavalo malhado em que montava, e pelo capote de veludo branco que sempre usava.

- Ah! - disse Bussy voltando-se para Joana. - Estava sem saber, meu lindo pajem, como havia de entrar no Louvre? Pois bem, sossegue agora, que vai ter uma entrada triunfal. Eh! meu Senhor! - bradou Bussy ao duque de Anju, com toda a força da sua voz.

O grito atravessou o espaço, e, apesar do tropear dos cavalos e do sussurro das vozes, chegou aos ouvidos do príncipe.

O príncipe virou a cabeça.

- És tu, Bussy? - exclamou ele com alegria; - julgava-te mortalmente ferido, e dirigia-me à tua casa da Rua de Grenelle.

- Pois, meu Senhor - disse Bussy, sem agradecer ao príncipe aquela prova de atenção - , se não morri não foi por falta de bons desejos de muita gente. Na verdade, Vossa Alteza sempre me mete em boas embrechadas, e abandona-me em bonitas posições! Ontem aquele baile de Saint-Luc era um verdadeiro covil de salteadores. Era eu o único dos seus partidários que lá estava, e por minha fé Lhe digo que por pouco não me tiraram quanto sangue tinha nas veias!

- Por Deus, Bussy! Há-de custar-lhes caro o teu sangue, hão-de pagar-mo gota por gota!

- Sim, Vossa Alteza diz isso agora - replicou Bussy com a sua costumada liberdade -, e daqui a pouco, se encontrar algum deles, mostrar-Lhe-á cara de riso. Ainda se Vossa Alteza, quando se ri, deixasse ver os dentes. mas não abre nunca os beiços!

- Pois bem! - respondeu o príncipe. - Vem comigo ao Louvre, e verás.

- O que hei-de eu ver, meu Senhor?

- Hás-de ver o que eu vou dizer a meu irmão.

- Olhe, meu Senhor, eu não quero ir ao Louvre se é para sofrer alguma desfeita. Isso é bom para príncipes de sangue e para os favoritos de el-rei.

- Deixa estar, que eu tomei o caso a sério.

- E promete-me que a satisfação há-de ser como eu desejo?

- Prometo-te que hás-de Ficar contente. Parece-me que ainda hesitas.

- É porque conheço muito bem o génio de Vossa Alteza.

- Vem, que to digo eu. É negócio que há- de dar que falar.

- Eis aí o seu negócio arranjado - disse Bussy ao ouvido da condessa. - Vai ter lugar uma estralada temível entre os dois ternos irmãos, que morrem um pelo outro, e nesse comenos aproveitará a ocasião para ir ter com o seu Saint-Luc.

- Então que dizes? - perguntou o duque. - Estás resolvido, ou será preciso que eu empenhe a minha palavra de príncipe?

- Oh, não! - disse Bussy - Poder-me-ia acarretar alguma desgraça. Vamos lá; dê por onde der, sigo Vossa Alteza; e se alguém me insultar, saber-me-ei defender.

E dizendo isto, Bussy foi colocar-se no lugar que lhe pertencia ao lado do príncipe, enquanto que o novo pajem foi seguindo logo atrás do amo.

- Não, não - disse o príncipe, respondendo à ameaça de Bussy -, não quero que tenhas esse incómodo, meu valente cavaleiro. A vingança fica por minha conta. Ouve - acrescentou ele devagarinho -: já sei quem foram os indivíduos que te quiseram assassinar.

- Sim! - exclamou Bussy - Pois Vossa Alteza fez favor de se informar?

- Vi-os até.

- Como? - perguntou Bussy admirado.

- Num sítio onde eu também tinha que fazer, ao pé da Porta de Santo António; saíram-me ao encontro, e por pouco não me mataram em teu lugar. Ah! Mal pensava eu que era de ti que os malvados estavam à espera, porque se eu soubesse!.

- Então? Se soubesse.

- Levavas contigo este pajem novo? - perguntou o príncipe, deixando a ameaça em meio.

- Não, meu Senhor - disse Bussy - ia só; e Vossa Alteza?

- Eu ia com Aurilly. Mas por que ias tu só?

- Porque desejo conservar a alcunha de Valente Bussy, que eles me puseram.

- E feriram-te? - perguntou o príncipe com rapidez, para Fingir que não tinha percebido o remoque.

- Não quero dar-Lhes a satisfação de o confessar - respondeu Bussy -; mas dir-lhe-ei em segredo que levei uma estocada mestra numa ilharga.

- Ah! que malvados! - exclamou o príncipe; - bem me dizia Aurilly que eles estavam ali com más intenções.

- Pois então - perguntou Bussy - Vossa Alteza viu a espera? Vossa Alteza estava com Aurilly, que maneja a espada quase tão bem como o alaúde; ele disse a Vossa Alteza que aqueles homens estavam ali com más intenções, e, sendo dois, quando eles eram cinco, não ficaram à espreita para dar auxílio à pessoa que eles agredissem?

- Então que queres tu? Eu não sabia para quem era a espera.

- Com mil diabos! Logo que Vossa Alteza viu que os da espera eram amigos de el-rei Henrique III, devia concluir que a vítima havia de ser algum amigo seu. Ora, como eu sou, a bem dizer, o único homem que tem o arrojo de se confessar seu amigo, claro estava que o caso era comigo.

- Sim, pode ser que tenhas razão, meu caro Bussy - disse Francisco -; porém nada disso me acorreu.

- Enfim!. - suspirou Bussy, como quem não achava outra palavra para exprimir o que pensava a respeito do seu senhor.

Chegaram ao Louvre.

O capitão da guarda e os porteiros vieram receber o duque de Anju.

Havia ordens severas para não deixar entrar pessoa alguma. Mas tais ordens não eram extensivas, como bem se pode supor, à primeira pessoa do reino depois de el-rei.

O príncipe internou-se portanto com toda a sua comitiva por baixo da arcada da ponte levadiça.

- Meu Senhor - disse Bussy ao entrar no pátio principal -, vá fazer o seu espalhafato, e lembre-se que me prometeu que havia de ser solene. Eu deixo-o para ir falar com uma pessoa da minha amizade.

- Tu abandonas-me, Bussy? - disse com alguma inquietação o príncipe, que tinha contado com a sua presença.

- Assim é preciso; mas não Lhe dê cuidado: quando a questão tiver chegado ao seu auge, ver-me-á aparecer. Grite, meu Senhor, grite muito, para que eu o possa ouvir. Porque desde já o previno que se não ouvir gritar não acudo.

E logo, aproveitando a ocasião em que o duque entrava para a sala, tomou furtivamente, acompanhado de Joana, a direcção dos quartos.

Bussy conhecia o interior do Louvre como o do seu próprio palácio. Tomou por uma escada particular, meteu-se por dois ou três corredores solitários, e chegou a uma espécie de antessala.

- Espere aqui por mim - disse ele para Joana.

- Oh, meu Deus! Deixa-me aqui sozinha? - disse a noiva.

- É indispensável; vou explorar o caminho, para lhe proteger a entrada.

 

         DE QUE MANEIRA A MENINA DE BRISSAC, OU POR OUTRA A SR. DE SAINT-LUC, PASSOU A SEGUNDA NOITE DO SEU NOIVADO

Bussy foi direito à sala das armas, de que tanto gostava o rei Carlos IX, e que, por uma nova distribuição, tinha sido transformada em quarto de cama de Henrique III, que a tinha mandado arranjar para seu uso.

Carlos IX, rei caçador, ferreiro e poeta, tinha reunido naquele quarto trompas de caça, arcabuzes, manuscritos, livros e estojos de instrumentos.

Henrique III tinha mandado armar dois leitos guarnecidos de veludo e cetim, e os ornatos do aposento constavam de pinturas muito licenciosas, de relíquias, de escapulários benzidos pelo papa, de almofadinhas de cheiro vindas do Oriente, e duma colecção das mais lindas espadas de esgrima.

Bussy sabia que Henrique não estava decerto no quarto, visto o irmão ter-lhe mandado pedir uma audiência no seu gabinete; mas também sabia que próximo ao quarto de el-rei ficava o da ama de Carlos IX, que tinha sido destinado por Henrique para os seus favoritos. E como Henrique III era um príncipe muito volúvel nas suas amizades, o aposento tinha sido ocupado sucessivamente por Maugiron, d'O, d'Épernon, Kélus e Schomberg; e naquela ocasião, segundo desconfiava Bussy, devia necessariamente ali estar Saint-Luc, por quem o rei, como já vimos, tinha sentido de repente um tal ataque de ternura, que o roubara à esposa.

É que Henrique III, cuja organização singular o tornava ao mesmo tempo inútil e profundo, medroso e valente, sempre aborrecido, sempre inquieto, sempre meditabundo, carecia de contínua distracção: de dia queria bulha, jogos, exercícios, peloticas, mascaradas e intrigas; à noite, luz, tagarelices, rezas ou devassidões. Pode-se dizer que Henrique III é quase a única personagem deste género que se encontra na história do mundo moderno.

Henrique III, em tudo semelhante aos hermafroditas da Antiguidade, estava decerto destinado a ver a luz do dia em alguma cidade do Oriente, e a viver no meio de escravos, de eunucos, de filósofos e de sofistas; e o seu reinado devia assinalar uma era particular de moleza, de depravação e extravagâncias, entre os reinados de Nero e de Heliogábalo.

Ora Bussy, desconfiado de que Saint-Luc estava no quarto da ama, foi bater à porta da antessala que dava serventia para os dois aposentos.

O capitão da guarda real veio abrir.

- O Sr. de Bussy? - exclamou o oficial com espanto.

- Sim, eu mesmo, meu caro Sr. de Nancey - respondeu Bussy. - El-rei deseja falar ao Sr. de Saint-Luc.

- Muito bem - respondeu o capitão. - Vão avisar o Sr. de Saint-Luc que el-rei Lhe quer falar.

Bussy piscou o olho para o pajem pela greta da porta.

E depois, voltando-se para o Sr. de Nancey:

- Então em que se ocupa o pobre Saint-Luc? - perguntou Bussy.

- Está jogando com Chicot, à espera de el-rei, que foi agora mesmo dar audiência ao Senhor Duque de Anju.

- Dá-me licença que eu diga ao meu pajem que espere aqui por mim? - disse Bussy para o capitão da guarda real.

- Com todo o gosto - respondeu este.

- Entra, João - disse Bussy para a noiva.

E designou-Lhe com o dedo o vão duma janela, onde ela se foi refugiar. Apenas ela se encafuara, entrou Saint-Luc. O Sr. de Nancey, por delicadeza, afastou-se para não ouvir a conversa.

- Que mais quer el-rei? - perguntou Saint-Luc, com voz desabrida e parecer carrancudo.

- Ah! é o Sr. de Bussy.

- Em pessoa, meu querido Saint-Luc. E primeiro que tudo.

Falou mais baixo.

- Primeiro que tudo, agradeço-Lhe o favor que me fez.

- Ah! - disse Saint-Luc - não havia coisa mais natural; repugnava-me ver que queriam assassinar um valente cavaleiro. Pensei que o tivessem morto.

- Não, mas pouco faltou; e pouco, num caso destes, sempre é uma coisa enorme.

- Como assim?

- É porque Sempre levei uma bonita estocada, que paguei com usura, segundo creio, a Schomberg e a d'Epernon. Quanto a Quélus, esse que agradeça aos casos do seu crânio. É o mais rijo que encontrei na minha vida.

- Ah, conte-me toda essa aventura; servirá para me distrair - disse Saint-Luc com um descomedido abrimento de boca.

- Não tenho tempo para isso agora, meu caro Saint-Luc. Vim aqui para outro fim. Pelo que vejo está muito aborrecido.

- Como um rei não pode estar mais.

- Pois bem! Venho aqui para o distrair. Um serviço paga-se com outro.

- Tem razão, e o obséquio que me faz não é inferior ao que de mim recebeu. Também se morre de aborrecimento como se morre duma estocada; leva mais tempo, mas é morte mais certa.

- Pobre conde! - disse Bussy. - Bem me parecia a mim que estava aqui preso.

- Preso, e muito preso. El-rei afirma que a minha conversação lhe é indispensável para se distrair. El-rei tem imensa bondade, porque desde ontem Lhe tenho feito mais caretas do que o seu saguim, e tenho-lhe dito mais brutalidades do que o seu bobo.

- Pois então vejamos. Não será possível que eu lhe preste algum serviço, como há pouco lhe oferecia?

- É possível, sim - disse Saint-Luc -; desejava que fosse a minha casa, ou, para melhor dizer, a casa do marechal de Brissac, para tranquilizar a minha pobre mulher, que há-de estar com muito cuidado, e que decerto há-de ter estranhado muito o meu procedimento.

- Que lhe hei-de eu dizer?

- Conte-lhe o que viu; isto é, que estou preso; e que há ordem nas portas para não me deixarem sair; el-rei, desde ontem, não faz senão falar-me em amizade, como Cícero, que tanto escreveu sobre o assunto, e em virtude, como Sócrates, que também a praticou.

- E que respostas lhe dá? - perguntou Bussy, rindo-se.

- Respondo-lhe que, a respeito de amizade, sou um ingrato, e a respeito da virtude, um perverso; mas não obstante isso vai teimando, e repete-me a suspirar: Ah, Saint-Luc! A amizade não passa duma quimera! Ah, Saint-Luc! A virtude não é senão uma palavra vã! " E depois de mo dizer em francês, diz-mo em latim e repete-mo em grego.

O pajem, em que Saint-Luc ainda não tinha reparado, deu uma gargalhada a estas palavras.

- Então que quer, meu caro amigo? Pensa que assim o enternece. é isso unicamente quanto posso fazer em seu serviço?

- É infelizmente; eu pelo menos assim o creio.

- Bom, nesse caso já cumpri o seu desejo.

- Como?

- Logo desconfiei de tudo isso que lhe sucedeu, e tudo contei a sua esposa.

- E ela o que disse?

- Não quis acreditar-me a princípio. Mas - prosseguiu Bussy, olhando a furto para o vão da janela - estou persuadido de que há-de estar convencida. Peça-me pois outra coisa, alguma empresa muito difícil, ou mesmo impossível, para eu ter o gosto de a levar a cabo.

- Pois então, meu querido Bussy, trate de pedir emprestado por alguns instantes o hipogrifo do gentil cavaleiro Astolfo, e aproxime-se a cavalo nele duma das janelas do meu quarto; eu montarei à garupa, e levar-me-á a minha mulher. Ficará depois habilitado, se quiser, a ir viajar até à Lua.

- Meu caro amigo - respondeu Bussy -, ainda há outro meio mais simples: é levar o hipogrifo a sua esposa, e vir ela visitá-lo.

- Aqui?

- Sim, aqui.

- Ao Louvre?

- Ao Louvre mesmo. Diga-me: não Lhe parece que havia de ter mais graça?

- Oh, decerto! Isso não padece dúvida.

- E logo lhe passava o aborrecimento?

- Juro-lhe que sim.

- Porque, segundo me disse, está muito enfastiado.

- Pergunte-o a Chicot. Tomei-Lhe tal ódio desde esta manhã, que já Lhe ofereci três estocadas. O desavergonhado zangou-se tanto, que qualquer outro teria desatado às gargalhadas. Pois eu, nem pestanejei. Mas parece-me que, se isto continuar, passo a matá- lo para me distrair, ou obrigo-o a matar-me.

- Tome sentido, não brinque com ele; sabe muito bem que Chicot é bom jogador de espada. Lembre-se de que um esquife ainda é menos divertido que uma prisão.

- Não sei qual dos dois seja preferível.

- Ora vamos! - disse Bussy, rindo; - quer que lhe deixe o meu pajem?

- A mim?

- Sim; é um rapaz de muita habilidade.

- Obrigado - respondeu Saint-Luc -, detesto os pajens. El-rei deu-me licença para mandar vir para aqui o que mais me agradasse dos meus, e eu não aceitei. Ofereça-o a el-rei, que está organizando o pessoal da sua casa. Eu protesto que logo que sair daqui hei-de pôr em prática aquilo que se fez em Chenonceaux, na ocasião do banquete: não hei-de ter para me servir senão mulheres.

- Histórias! - disse Bussy, teimando. - Experimente sempre.

- Bussy - replicou Saint-Luc com enfado -, não parece bem estar zombando assim

comigo.

- Aceite o que lhe ofereço.

- Não aceito.

- Se eu Lhe estou dizendo que há-de gostar dele!.

- Não, não! cem vezes não!

- Eh, pajem, vem aqui.

- Esta só pelo demónio!. - exclamou Saint-Luc. O pajem deixou a janela e aproximou-se ruborizado.

- Oh!. oh! - murmurou Saint-Luc, pasmado de ver Joana com a libré de Bussy.

- Então? - perguntou Bussy. - Ainda instará para que o mande embora?.

- Não, por Deus, não! - exclamou Saint-Luc. - Ah, Bussy! Fico-Lhe devedor duma amizade eterna!

- Cuidado, Saint-Luc; não nos ouvem, mas estão olhando para nós.

- É verdade - respondeu este.

E depois de ter dado dois passos ao encontro da mulher, recuou três.

Com efeito, o Sr. de Nancey, a quem havia causado admiração a pantomina demasiado expressiva de Saint-Luc, já ia começando a escutar a conversa, quando um grande motim, que soou na sala do conselho, o tirou da sua preocupação.

- Ah! meu Deus! - exclamou o Sr. de Nancey - Parece-me que lá está el-rei altercando com alguém.

- É verdade que assim parece - replicou Bussy, fingindo assustar-se -; será porventura com o duque de Anju, em cuja companhia eu vim?

O capitão da guarda real pôs a espada à cinta e abalou na direcção da galeria, onde, efectivamente, a bulha de uma acalorada discussão atroava as abóbadas e as paredes.

- Então não Lhe parece que arranjei muito bem as coisas? - disse Bussy voltando-se para Saint-Luc.

- O que sucedeu então? - perguntou este.

- Sucedeu que o Senhor Duque de Anju e el-rei estão neste instante à unhada um ao outro; e como a cena deve ser lindíssima, vou para lá sem demora, para que não me escape o menor incidente. E o senhor aproveite a ocasião do barulho, não para fugir, porque el-rei mandá-lo-ia logo procurar, mas para esconder em lugar seguro este galante pajem que aqui lhe deixo; será possível?

- É, sim! E ainda que não fosse, algum jeito se lhe havia de dar; mas, felizmente, finjo-me doente, e não saio do quarto.

- Nesse caso. adeus, Saint-Luc; minha Senhora, peço-lhe que se lembre de mim nas suas orações.

E Bussy, contentíssimo por ter pregado aquela peça a Henrique III, saiu da antessala, e foi para a galeria, onde o rei, vermelho de raiva, afirmava ao duque de Anju, pálido de furor, que na cena da noite precedente o provocador tinha sido Bussy.

- Eu assevero-lhe, Senhor - gritava o duque de Anju -, que d'Épernon, Schomberg, d'O, Maugiron e Quélus o esperavam junto do Palácio das Tournelles.

- Quem Lho disse?

- Vi-os eu mesmo, Senhor, com os meus olhos.

- Conheceu quem eles eram apesar da escuridão, não é verdade? Porque a noite estava escura como uma...

- Também lhe direi que não foi pelos rostos que os conheci.

- Então por onde foi? Pelos ombros?.

- Não senhor; pelas vozes.

- Falaram-lhe, foi?

- Fizeram ainda mais: pensaram que era Bussy, e atacaram-me.

- Ao senhor?

- Sim, a mim.

- E que negócio o levava à Porta de Santo António?

- Não é da sua conta!

- Quero sabê-lo. Estou hoje muito curioso.

- Ia a casa de Manassés.

- A casa de Manassés? Dum judeu?

- E o senhor não vai às vezes a casa de Rugieri, que é um nigromante?...

- Eu vou onde me apraz, sou rei.

- Isso não é resposta.

- E demais, como já disse, o provocador foi Bussy.

- Bussy?

- Sim.

- Onde?

- No baile de Saint-Luc.

- Pois Bussy desafiou cinco homens? Essa não engulo eu! Bussy é valente, mas ainda não endoideceu.

- E se eu lhe disser que presenciei o desafio?... E tanto se prova que ele era capaz de desafiar cinco homens, apesar de tudo quanto diz, que brigou efectivamente com eles, ferindo Schomberg numa coxa, d'Épernon num braço, e amolgando a cabeça de Quélus.

- Sim! deveras?... - disse o duque. - Isso não me tinha ele contado. Hei- de dar-Lhe os parabéns.

- E eu - disse o rei - não hei-de dar os parabéns a pessoa alguma, mas hei-de infligir um castigo exemplar ao tal mata-mouros.

- Pois eu - respondeu o duque -, a quem os seus amigos insultam, atacando não somente Bussy, mas a mim também, quero saber se sou ou não seu irmão, e se existe em França à excepção de Vossa Majestade, um homem que se atreva a olhar para mim cara a cara, sem

que o respeito ou o temor o obrigue a baixar os olhos.

Nesta ocasião, Bussy, atraído pela gritaria dos dois irmãos, apareceu à porta, elegantemente

vestido com um fato de cetim verde-salsa, enfeitado de laços cor-de-rosa.

- Meu Senhor - disse ele, indo inclinar-se diante de Henrique III - permita que Lhe apresente os meus muito humildes respeitos.

- Ainda bem! Ei-lo aqui - disse Henrique.

- Vossa Majestade, segundo vejo, fazia-me a honra de se ocupar de mim... - disse Bussy.

- Sim - respondeu o rei -; e estimo muito vê-lo, porque, apesar do que me disseram o seu parecer está inculcando perfeita saúde...

- Meu Senhor, as sangrias refrescam o parecer - disse Bussy -, e eis o motivo por que devo necessariamente ter hoje o parecer muito fresco.

- Pois bem: se o atacaram e feriram, queixe-se, Sr. de Bussy, que eu farei justiça.

- Dê-me licença que Lhe diga, meu Senhor - replicou Bussy -, que nem me atacaram nem me feriram, e que eu não me queixo de pessoa alguma.

Henrique ficou atónito e olhou para o duque de Anju.

- Então que história foi a que me contou? - perguntou ele.

- Eu disse que Bussy levou uma estocada que Lhe atravessou a ilharga.

- É verdade, Bussy? - perguntou o rei.

- Visto que o irmão de Vossa Majestade assim o afirma - disse Bussy - deve ser verdade; um príncipe de sangue nunca pode mentir.

- E então não se queixa, tendo levado uma estocada na ilharga? - disse o rei.

- Eu só me queixaria, meu Senhor, se, para obstar a que me vingasse por minhas mãos me cortassem a mão direita; e ainda assim - prosseguiu o indómito duelista -, havia de fazer a diligência por me vingar com a esquerda.

- Insolente! - murmurou Henrique.

- Senhor - disse o duque de Anju -, falou há pouco em justiça. Pois bem, faça justiça; é isso mesmo que pretendemos. Mande tirar uma devassa, nomeie os juízes, e determine-lhes que tratem de averiguar quem eram os autores da cilada e quem tinha ordenado o assassínio.

Henrique corou.

- Não - respondeu ele -; prefiro ficar ignorando ainda desta vez quem são os culpados, e compreender todos num perdão geral. Antes quero que estes inimigos tão encarniçados façam as pazes; e tenho pena que Schomberg e d'Épernon não possam sair de casa por causa das Feridas. Ora diga-me, Senhor Duque de Anju, qual era, na sua opinião, o mais enfurecido de todos os meus amigos? Há-de ser-Lhe fácil indicar-mo, visto que os encontrou.

- Senhor - replicou o duque de Anju -, era Quélus.

- Não há dúvida que assim era - disse Quélus -, não o nego, e Sua Alteza observou muito bem.

- Pois nesse caso - disse Henrique -, o Sr. de Bussy e o Sr. de Quélus hão-de Fazer as pazes em nome de todos.

- Oh! oh! - exclamou Quélus. - O que quer isso dizer, Senhor?

- Quer dizer que se hão-de abraçar, neste mesmo instante, aqui, na minha presença. Quélus franziu a testa.

- Então, signor? - disse Bussy voltando-se para onde estava Quélus e imitando os gestos italianos dos arlequins - não quer conceder-me esse favor?.

A Facécia foi tão inesperada, e Bussy fez uma cara tão cómica, que o próprio rei desatou a rir.

Em seguida, chegando-se a Quélus:

- Andantepresto cavalier- disse ele -, el-rei assim o determinou.

E deitou-Lhe os dois braços ao pescoço.

- Este abraço não nos obriga a ficarmos amigos um do outro, não é assim? - disse Quélus baixinho para Bussy.

- Fique descansado - respondeu Bussy no mesmo tom de voz. - Havemos de nos tornar a encontrar mais dia menos dia.

Quélus, com a cara muito vermelha e o cabelo desgadelhado, recuou cheio de cólera.

Henrique ficou de parecer carregado, e Bussy, continuando a fazer de arlequim, deu uma pirueta e saiu da sala do conselho.

Acabava de adquirir um inimigo mortal; por causa daquele abraço grotesco.

 

         QUAIS ERAM AS CERIMONIAS QUE TINHAM LUGAR QUANDO SE RECOLHIA O REI HENRIQUE III

Depois da cena que descrevemos, começada em tragédia e acabada em comédia, e de que logo se espalhou a notícia fora do Louvre, o rei, ainda sobremaneira agastado, seguiu para os seus aposentos, acompanhado de Chicot.

- Não tenho vontade de comer - disse o rei ao entrar da porta.

- Pode ser que assim seja - disse Chicot -, porém eu estou com fome, e não se me dava de ocupar os queixos.

O rei fez que não tinha ouvido.

Desacolchetou o manto e pô-lo em cima da cama, tirou o gorro, que trazia pregado ao cabelo com alfinetes pretos compridos, e atirou-se para cima duma cadeira; feito isto, encaminhou-se para o corredor que ia ter ao quarto de Saint-Luc, o qual era separado de seu por um tabique unicamente:

- Espera aqui por mim, bobo - disse ele -, que eu já volto.

- Oh! Não tenhas pressa, meu filho - disse Chicot -, não tenhas pressa; até desejo mesmo - prosseguiu ele, escutando o som das passadas de Henrique afastando-se - que me dês tempo a preparar-te uma surpresa.

E logo que deixou de ouvir o rumor das passadas:

- Eh! Chegue cá! - gritou ele, abrindo a porta da antessala.

Apresentou-se um criado.

- El-rei mudou de parecer - disse ele -, quer cear; traga uma ceia muito delicada para Sua Majestade e Saint-Luc. Sua Majestade recomenda especialmente que haja todo o cuidado na escolha do vinho. Vá depressa.

O criado virou costas e foi de corrida executar as ordens de Chicot, que ele julgou serem dadas pelo rei.

Quanto a Henrique, tinha ido, como já dissemos, para o quarto de Saint-Luc, o qual, avisado da visita de Sua Majestade, se metera na cama e estava ouvindo as rezas que lia junto dele um criado velho, que, tendo-o acompanhado na sua vinda para o Louvre, ali ficara preso juntamente com ele.

O pajem que lhe trouxera Bussy dormia a sono solto, com a cabeça encostada às mãos, numa cadeira de braços dourada colocada a um canto.

O rei avistou todos estes pormenores logo ao primeiro relance.

- Que rapaz é aquele? - perguntou ele a Saint-Luc.

- Vossa Majestade, quando exigiu que eu ficasse, não me deu licença para mandar vir um pajem?

- Não há dúvida - respondeu Henrique III.

- Pois bem, aproveitei-me da licença!

- Ah!.

- Vossa Majestade estará arrependido de me ter concedido esta distracção? – perguntou Saint-Luc.

- Não, meu Filho, não; distrai-te! Pelo contrário Então, estás melhor?

- Meu Senhor - disse Saint-Luc -, estou com muita febre.

- Com efeito - disse o rei -, tens a cara muito afogueada, meu Filho. Dá cá o pulso! bem sabes que eu também entendo de medicina.

Saint-Luc estendeu-lhe a mão com um gesto de enfado muito visível.

- Olé! - disse o rei. - Está intermitente e agitado.

- Oh, meu Senhor, - replicou Saint-Luc -, é que na realidade estou muito doente.

- Deixa estar - disse Henrique -, hás-de ser tratado pelo meu próprio médico.

- Muito obrigado, meu Senhor.

- E eu mesmo ficarei de guarda a ti.

- Isso, meu Senhor, nunca hei-de consentir...

- Vou mandar fazer uma cama para mim, aqui no teu quarto, Saint- Luc. Havemos de

levar toda a noite a conversar. Tenho imensas coisas a dizer-te.

- Ah! - exclamou Saint-Luc com desesperação. - Diz que é médico, que é meu amigo e não me quer deixar dormir!... Sempre lhe digo, doutor, que é muito célebre o método que usa para curar os seus doentes! Cos demónios, meu Senhor! é na verdade extraordinária a maneira por que mostra estimar os seus amigos!

- Pois diz-me: queres ficar sozinho, assim doente?.

- Fica comigo o meu pajem João.

- Mas está a dormir...

- Assim é que eu gosto da gente que fica tomando sentido em mim; ao menos enquanto dormem não obstam a que eu durma também.

- Consente ao menos que eu te fique fazendo companhia juntamente com ele. Prometo que não hei-de falar senão quando acordares.

- Meu Senhor, eu, quando acordo, sou insuportável, e só quem está muito acostumado a viver comigo é que pode desculpar todos os disparates que digo e faço enquanto não desperto de todo.

- Visto isso, não teimo; mas vem tu ao menos acompanhar-me enquanto me deito.

- E depois consentirá que eu venha deitar-me?

- Consinto sim.

- Então lá vou. Mas desde já advirto Vossa Majestade que há-de ter em mim um bem triste coctesão. Estou mesmo a cair com sono.

- Dou-te licença para bocejares quantas vezes tiveres vontade.

- Não pode haver igual tirania! - disse Saint-Luc; - de que Lhe servem os outros seus amigos?

- Ah, sim!... estão frescos, na verdade! Não sabes que Bussy os deixou feridos? Schomberg tem uma coxa aberta, d'Épernon tem o pulso golpeado como uma manga espanhola. Quélus ainda tem a cabeça atordoada da pancada que levou ontem com os copos da espada, e do abraço que hoje recebeu. Restam-me unicamente d'O, que me causa um tédio mortal, e Mauron, que está amuado comigo. Vamos lá, acorda aquele patife do teu pajem, e manda que te traga um roupão.

- Senhor, se Vossa Majestade quisesse ter a bondade de me deixar só...

- Para quê?

- O respeito.

- Eu não reparo.

- Senhor, daqui a cinco minutos estarei na câmara de Vossa Majestade.

- Bem. seja daqui a cinco minutos; mas toma sentido que não te dou mais que cinco minutos; e durante esse tempo, Saint-Luc, vê se te ocorre alguma história divertida para rirmos ambos um pouco.

E proferidas estas palavras, o rei, que só tinha conseguido metade do que queria, saiu imediatamente, satisfeito.

Ainda bem ele não tinha fechado a porta, acordou de sobressalto o pajem e foi num pulo escutar ao reposteiro.

- Ah, Saint-Luc - disse o pajem logo que deixou de ouvir a bulha dos passos -, vais deixar-me outra vez! Meu Deus, que suplício este! Eu morro de susto aqui. Se por acaso descobrissem!.

- Minha querida Joana - disse Saint-Luc, designando o criado velho. - Gaspar fica aqui para te proteger.

- Parece-me que seria melhor que me fosse embora - disse ela corando.

- Se assim o exiges positivamente, Joana - disse Saint-Luc com tristeza -, mandar-te- ei acompanhar até ao Palácio de Montmorency, porque a proibição de sair daqui entende-se só comigo. Porém, se quisesses ser tão boa quanto és formosa, se tivesses no coração algum amor pelo pobre Saint-Luc, esperarias por ele aqui um instante. Eu vou disposto a ter tantas dores de cabeça e de entranhas, e tantos ataques de nervos, que el-rei não há-de querer por certo junto de si uma companhia tão sensaborona, e mandar-me-á logo deitar.

Joana baixou os olhos.

- Vai pois - disse ela -, aqui esperarei; mas agora digo eu como el-rei: não te demores muito.

- Joana, minha querida Joana, és um anjo! - disse Saint-Luc. - Confia em mim, que hei-de voltar quanto antes para a tua companhia. Demais a mais, ocorreu-me agora uma ideia; vou discuti-la no pensamento, e quando voltar dir-te-ei o resultado.

- Uma ideia de que. poderá resultar a tua liberdade?.

- Assim o espero.

- Então vai.

- Gaspar - disse Saint-Luc -, não deixes entrar pessoa alguma. Daqui a um quarto de hora, fecha a porta à chave, e leva-ma a chave aos aposentos de el-rei. Depois irás dizer a casa que não estejam com cuidado na Senhora Condessa, e só amanhã voltarás.

A noiva corou quando ouviu dar estas ordens, que Gaspar, sorrindo-se, prometeu executar.

Saint-Luc pegou na mão da mulher, beijou-a com ternura, e partiu, correndo, para o quarto de Henrique, que já ia perdendo a paciência.

Joana, tendo ficado sozinha e a tremer embrulhou-se nas dobras das amplíssimas cortinas do leito, e começou a meditar, procurando também ver se lhe ocorria alguma ideia para sair triunfante da posição tão singular em que se achava colocada.

Quando Saint-Luc entrou no aposento do rei logo Lhe atacou o olfacto o cheiro activo e voluptuóso de que estava impregnada a atmosfera. Os pés do rei descansavam efectivamente sobre uma multidão de flores espalhadas pelo chão e às quais tinham arrancado as hastes com receio de que magoassem a pele delicada de Sua Majestade; as rosas, jasmins, violetas e cravos, ali reunidos apesar do rigor da estação, formavam uma odorífera e macia alcatifa aos pés de Henrique III.

A mobília do quarto, cujo tecto havia sido rebaixado e adornado de primorosas pinturas constava, como já dissemos, de dois leitos, um deles tamanho gigante que, apesar de ter a cabeceira encostada à parede, tomava quase uma terça parte do quarto.

O leito maior tinha uma armação de seda tecida com ouro, a qual representava as figuras da história mitológica de Cénio ou Cénis, que ora era homem ora, era mulher, metamorfose esta que não se efectuava, como bem se pode presumir, senão a poder dos mais extravagantes esforços da imaginação do desenhador.

O guarda-pó do leito era dum tecido de prata ornado de palhetas de ouro e de figuras de seda; e umas armas reais, ricamente bordadas, estavam pregadas na frente do dossel.

Os cortinados das janelas eram de fazenda igual à da armação do leito, bem como as cadeiras e os sofás. Do centro do tecto pendia, segura a uma corrente de ouro, uma lâmpada de prata dourada, na qual ardia um azeite que exalava um perfume delicioso.

Ao lado direito da cama, uma estátua de ouro, Figurando um sátiro, servia de base a um candelabro, no qual ardiam quatro velas de cera cor- de-rosa, e também perfumadas.

As velas, da grossura de tochas, davam uma porção tal de luz, que, juntamente com a da lâmpada, era quanto bastava para alumiar perfeitamente o quarto.

O rei, com os pés descalços postos sobre as flores de que se achava alastrado o sobrado, estava sentado numa cadeira de espaldar de ébano cem incrustações de ouro; tinha no colo sete ou oito cães guedelhudos, muito novinhos, que lhe titilavam agradavelmente as mãos lambendo-as.

Dois criados estavam junto dele, ocupados em Lhe apertar o encrespado cabelo, que ele usava levantado como as mulheres, e em Lhe pentear o retorcido bigode e a mal semeada barba.

Um terceiro estendia pelo rosto do príncipe uma camada duma pomada cor-de-rosa que deitava um cheiro particular e muito agradável.

Henrique estava com os olhos fechados e sofria todas aquelas operações tão sério e com tanta gravidade como se fora a divindade dum pagode da Índia.

- Saint-Luc! - dizia ele - onde está Saint-Luc?

Saint-Luc entrou.

Chicot pegou-Lhe pela mão e trouxe-o à presença do rei.

- Aqui está - disse ele para Henrique -, eis o teu amigo Saint-Luc; vê se lhe ordenas que se besunte também com a tua pomada, porque se não tomares essa medida indispensável, há-de suceder de duas uma: ou ele há- de achar que tu cheiras demasiadamente bem, ou tu hás-de julgar que ele fede muito. Vamos lá! Venham também para mim a pomada e os pentes!

- exclamou ele, estirando-se numa poltrona defronte do rei; - eu também sou gente.

- Chicot, Chicot! - gritou Henrique - a tua pele está muito ressequida, havia de absorver muita pomada; esta apenas chega para mim; e o teu cabelo é tão rijo, que me daria logo cabo de todos os pentes.

- A minha pele ressequiu-se com o sol que apanhei nas campanhas que fiz por tua causa, príncipe ingrato; e se tenho o cabelo tão rijo, é porque os desgostos que me dás me conservam continuamente eriçado, Mas visto que me negas uma pouca da tua pomada para as minhas faces, a fim de amaciar o exterior da minha pessoa, deixa estar, meu filho, que eu te direi.

Henrique encolheu os ombros, como quem estava pouco disposto a achar graça às baboseiras do bobo.

- Cala-te! - disse ele. - Basta de disparates.

E depois, voltando-se para Saint-Luc:

- Então, meu filho - disse ele -, como vai a cabeça?

Saint-Luc levou a mão à testa e deu um gemido.

- Saberás - prosseguiu Henrique - que falei a Bussy d'Amboise. Ai!. toma sentido - disse ele para o cabeleireiro -, estás a queimar-me!

O cabeleireiro pôs-se de joelhos.

- Falou a Bussy d'Amboise, meu Senhor? - perguntou Saint-Luc estremecendo.

- É verdade - respondeu o rei -; e hás-de acreditar que aqueles toleirões o atacaram sendo eles cinco contra um, e que não o aviaram?. Hei-de mandá-los rodar vivos. Olha se tu lá estivesses, Saint-Luc, que te parece?.

- Meu Senhor - respondeu o mancebo -, é muito provável que não fosse mais bem sucedido de que os meus companheiros.

- Pois não! O que estás tu dizendo? Aposto dez mil escudos em como tu tocas dez vezes com o florete em Bussy por cada seis que ele te tocar. Tu ainda jogas bem a espada, meu filho?

- Parece-me que sim, meu Senhor.

- E exercitas-te com frequência?

- Quase todos os dias, quando estou de saúde. Mas quando estou assim doente não presto para nada.

- Quantas vezes me tocavas tu em mim?

- Parece-me, meu Senhor, que éramos quase de força igual.

- Sim, porém eu jogo melhor do que Bussy. Com todos os demónios! - disse Henrique para o barbeiro. - Estás a arrancar-me o bigode!

O barbeiro ajoelhou.

- Meu Senhor - disse Saint-Luc -, peço-lhe que me ensine algum remédio para curar o desfalecimento que sinto.

- É preciso comeres - disse o rei.

- Oh! Parece-me que está enganado, meu Senhor.

- Não estou, por certo.

- Tens razão, Valois - disse Chicot e eu, como me sinto muito desfalecido, ou muito esfomeado (não sei com exactidão qual das duas coisas é), adopto o teu receituário.

E em seguida ouviu-se um rumor singular, semelhante ao que resulta de movimento muito apressado dos queixos dum macaco.

O rei voltou-se, e viu que era Chicot, o qual, depois de ter engolido sozinho a ceia para duas pessoas que pedira em nome do rei, fazia toda aquela bulha com as mandíbulas para; melhor saborear o conteúdo de uma chávena de porcelana do Japão.

- Então que é isso! - disse Henrique. - Que diabo estás aí a fazer, Chicot?

- Estou refrescando o meu interior com esta nata - respondeu Chicot -, já que me proibes que amacie o meu exterior com a tua bela pomada.

- Ah, maroto! - exclamou o rei, virando a cabeça tão repentinamente que Lhe entrou pela boca o dedo do criado, cheio de pomada.

- Come, meu filho - disse Chicot muito sério. - Eu não sou tão tirânico como tu; dou- te licença que uses de pomadas por dentro ou por fora, como mais te agradar.

- Olha que me engasgas! - disse Henrique para o criado que lhe estava aplicando a pomada.

O criado ajoelhou, como tinha ajoelhado o cabeleireiro.

- Vão já chamar o capitão da guarda real! - exclamou Henrique. - Vão já sem demora!

- Para que mandas tu buscar o capitão da guarda real? - perguntou Chicot, limpando o dedo no interior da chávena de porcelana e correndo-o depois pelos beiços.

- Para que enfie a espada pelo corpo de Chicot, e para que o mande assar, apesar de estar tão magro, para servir de ceia aos meus cães.

Chicot ergueu-se, e pondo o chapéu à banda:

- Era o que me faltava ver! - exclamou ele. - Dares carne de Chicot aos teus cães!

Pois bem! Que venha para cá o capitão da tua guarda real, e então veremos.

Chicot, dizendo isto, puxou da comprida espada, e começou a esgrimi-la tão burlescamente contra o cabeleireiro, o barbeiro e o criado, que o rei não pôde conter o riso.

- Mas estou com fome - disse o rei com voz queixosa -, e este malvado engoliu a ceia toda.

- Tu não sabes o que queres, Henrique - disse Chicot: Convidei-te a vires cear, e não aceitaste. Em todo o caso, ainda aí tens um pouco de caldo. Eu já não tenho fome, e vou-me deitar.

Durante este tempo o velho Gaspar tinha vindo trazer a chave ao amo.

- Eu também vou - disse Saint-Luc -; porque se me conservar aqui por mais tempo, serei obrigado a faltar ao respeito devido ao meu rei, caindo na sua presença com algum ataque de nervos. Estou com calafrios.

- Toma lá, Saint-Luc - disse o rei, apresentando ao mancebo as mãos cheias de cãezinhos -; leva-os, leva-os.

- Para quê? - perguntou Saint-Luc.

- Para os deitares na cama contigo; pegar-se-lhes-á a tua moléstia, e ficarás livre dela.

- Muito obrigado, meu Senhor - disse Saint-Luc, tornando a deitar os cães no cesto em que estavam -, não tenho fé na sua receita.

- Hei-de ir visitar-te esta noite, Saint- Luc - disse o rei.

- Oh! Peço-lhe que não faça tal, Senhor - disse Saint-Luc -, poder-me-ia causar algum sobressalto, e fazer-me ter um ataque epiléptico.

Dizendo isto, cortejou o rei, e saiu do quarto, perseguido pelos gestos de amizade que Lhe prodigalizou Henrique enquanto o pôde avistar.

Chicot já tinha desaparecido.

As duas ou três pessoas mais que também estavam presentes ao recolher do rei, saíram igualmente.

Só ficaram com o rei os criados, os quais Lhe cobriram o rosto com uma máscara de pano de linho Fino untada com uma espécie de banha de cheiro.

A máscara tinha buracos para a boca, para os olhos e para o nariz, e era segura à testa e às orelhas por um barrete de seda preta.

Depois enfiaram os braços do rei num jaleco de cetim cor-de-rosa, forrado de seda e estofado com todo o esmero; e apresentaram-Lhe um par de luvas de pelica tão macia que pareciam feitas de malha.

As luvas chegavam-Lhe ao cotovelo, e eram untadas pela parte de dentro com um óleo de cheiro, que Lhes dava aquela elasticidade cuja causa se teria procurado debalde pela parte exterior.

Findos que foram estes mistérios de real toucador, deram a beber ao rei um caldo de sustância numa taça de ouro; porém, antes de o levar à boca, vazou metade para outra taça, igual à que tinha na mão, e mandou que a levassem a Saint-Luc, e que Lhe dessem as boas-noites em seu nome.

Chegou então a vez de Deus, de quem o rei naquela noite fez pouco caso, provavelmente por causa da preocupação em que tinha o espírito.

Henrique recitou apenas uma única oração, sem tocar no seu rosário bento; depois mandou abrir a cama, que tinha sido aquecida com fumo de coentro, de benjoim e de canela.

Henrique deitou-se, ordenando que levassem dali as flores, cujo aroma já ia corrompendo a atmosfera do quarto.

Abriram-se as janelas durante alguns segundos para renovar o ar um tanto viciado do quarto.

Depois acenderam no fogão de mármore uma grande porção de vides, que arderam com a rapidez dum meteoro, mas que duraram o tempo bastante para aquecer agradavelmente o aposento.

Concluído isto, fechou o criado tudo, cortinas e reposteiros, e abriu a porta ao cão favorito do rei, chamado Narciso.

O animal deu um pulo para cima da cama do rei, espojou-se, deu umas poucas de voltas, e depois foi-se-lhe deitar atravessado sobre os pés.

Finalmente, apagaram as velas cor-de-rosa que ainda ardiam nas mãos do sátiro de ouro, diminuiram a luz da lamparina, e depois de mudarem a torcida por outra menos grossa, o criado encarregado destes últimos arranjos saiu também nos bicos dos pés.

O rei de França, mais descansado, mais indolente e mais esquecido do que os monges que povoavam as ricas abadias do seu reino, nem sequer já se lembrava que a França existia.

Estava dormindo.

Dali a meia hora, os homens que estavam de guarda nas galerias, e que dos seus diferentes postos avistavam as janelas do quarto de Henrique, perceberam, apesar das cortinas, que se tinha apagado de todo a lâmpada do aposento real, ficando a sua luz avermelhada substituída nos vidros pelos raios prateados de luar. Pensaram por consequência que Sua Majestade estava completamente entregue ao sono.

Naquele momento tinham cessado todos os rumores tanto dentro como fora do palácio, e o gatinho mais pequeno não teriá conseguido atravessar os sombrios corredores do Louvre sem ser pressentido.

 

         POR QUE MANEIRA O REI HENRIQUE III APARECEU CONVERTIDO DE UM DIA PARA O OUTRO, SEM QUE NINGUÉM SOUBESSE A CAUSA DE SEMELHANTE CONVERSÃO

Assim decorreram duas horas.

De repente ouviu-se um grito terrível.

O grito saíra do quarto do rei.

Entretanto a lamparina conservava-se apagada, o silêncio era o mesmo, e nenhum ruído se sentia, salvo aquele grito extraordinário do rei.

Porque era com efeito o rei que tinha chamado.

Dali a pouco percebeu-se a bulha de trastes caindo no chão, de louça que se fazia em pedaços, de passadas como de um homem doido correndo pelo quarto; e depois os mesmos gritos, outra vez acompanhados dos latidos dum cão. Imediatamente brilharam luzes e fulguraram espadas nas galerias, e o andar pesado dos guardas, ainda mal despertos, fez tremer os pilares maciços.

- Às armas! - gritaram todos. - Às armas, el-rei chamou, acudamos a el-rei! E no mesmo instante, rivalizando de zelo, o capitão da guarda real, o coronel dos suíços, os familiares do palácio e os arcabuzeiros de serviço, entraram de tropel no quarto do rei, que logo Ficou inundado de luz; mais de vinte archotes alumiavam a cena.

Henrique, que o vestuário nocturno que usava tornava grotesco e medonho ao mesmo tempo, estava pálido, com o cabelo eriçado e os olhos espantados, junto a uma poltrona caída e cercado de chávenas partidas; defronte dele via-se a cama desmanchada, cujos lençóis estavam caídos no chão.

Tinha a mão direita estendida, e tremendo como uma folha agitada pelo vento. A esquerda agarrava com força o punho da espada, de que havia lançado mão maquinalmente. O cão, como que partilhando da agitação em que via o dono, olhava para ele em atitude de arremeter, e uivava.

O rei parecia ter perdido a fala com a força do susto, e as pessoas presentes, não se atrevendo a dirigir-lhe a palavra, olhavam umas para as outras, esperando, com terrível ansiedade, que ele rompesse o silêncio.

Apareceu então meio vestida, mas embrulhada num comprido capote, a jovem rainha Luísa de Lorena, loira e meiga criatura que levou na Terra a vida duma santa, e que despertou aos gritos do marido.

- Senhor - perguntou ela, ainda mais trémula do que todas as pessoas presentes

que foi que Lhe sucedeu, meu Deus! Ouvi os seus gritos e logo acudi.

- Não... não... não foi nada... - disse o rei sem mover os olhos. com os quais parecia

procurar no ar uma forma indefinida e invisível para todos menos para ele.

- Porém Vossa Majestade chamou... - replicou a rainha; - Vossa Majestade estará incomodado?

O terror que tão visivelmente denotavam as feições de Henrique ia- se comunicando gradualmente a todas as pessoas presentes. Recuavam, aproximavam- se, examinavam com a vista a pessoa do rei, para indagarem se estava ferido, se tinha sido assombrado por algum raio ou mordido por algum bicho venenoso.

- Oh! Senhor! - exclamou a rainha - Senhor, em nome do Céu! Tire- nos da aflição

em que estamos. Quer que mande chamar um médico?

- Um médico? - repetiu Henrique com o mesmo tom sinistro. - Não, o meu padecimento não é do corpo... é na alma, no espírito. Não... não, nada de médico... um confessor!

O lharam todos uns para os outros, examinaram as portas, as cortinas, o sobrado, o tecto.

Em parte alguma tinham Ficado vestígios do objecto invisível que tanto assustara o rei.

A curiosidade dos circunstantes ia aumentando por verem que o mistério se complicava; o rei pedia agora um confessor.

A ordem do rei teve imediatamente execução: um correio montou logo a cavalo, e saiu cuspindo fogo do pátio do Louvre.

Dali a cinco minutos, o superior do Convento dos Jesuítas, que tinha sido acordado, e arrebatado, por assim dizer, da cama, apresentou-se no quarto do rei.

E Com a chegada do confessor, cessou o tumulto e restabeleceu-se o silêncio; interrogavam-se todos, formavam conjecturas, procuravam adivinhar; mas todos estavam com medo...

O rei retirara-se para se confessar.

- No dia seguinte, logo de madrugada, o rei, que se tinha levantado quando todos ainda dormiam, ordenou que continuassem a conservar fechada a porta do Louvre, a qual apenas se tinha aberto para dar entrada ao confessor.

Depois mandou chamar o tesoureiro, o cirieiro e o mestre-de- cerimónias.

Pegou num livro de missa com encadernação preta, e começou a rezar, interrompendo-se de vez em quando para recortar imagens de santos; e de repente ordenou que fossem chamar todos os seus amigos.

Apenas ele deu esta ordem foram logo ao quarto de Saint-Luc, mas Saint-Luc tinha piorado consideravelmente.

Estava desfalecido e parecia cansado de sofrer. A sua doença tinha-se tornado prostração; e era tal o sono letárgico que dele se havia apoderado, que de todos os habitantes do palácio fora o único que nada ouvira da cena da noite, apesar de que estava só separado do rei por uma simples parede muito delgada.

Pediu, por consequência, que o deixassem ficar na cama, e prometeu recitar todas as orações que o rei determinasse.

Henrique, quando Lhe deram esta notícia tão lastimosa, benzeu-se, e mandou buscar o boticário.

E em seguida, recomendando que trouxessem para o Louvre todas as disciplinas dos Agostinhos, passou, vestido de preto, pela frente de Schomberg, ainda coxo, de Épernon, com o braço ao peito, de Quélus, ainda atordoado, e de Maugiron e d'O, que vinha a tremer. Distribuiu-lhes as disciplinas ao passar por eles, e ordenou-Lhes que começassem logo a açoitar-se com quanta força tivessem.

D'Épernon observou-lhe que, tendo o braço direito ao peito, devia ser exceptuado de tomar parte na cerimónia, visto não poder bater nos que Lhe batessem, e que este impedimento iria desafnar a escala da flagelação.

Henrique III respondeu-lhe que não importava, e que a sua penitência ainda se tornaria dessa maneira mais meritória aos olhos de Deus.

O próprio rei começou por dar o exemplo. Tirou o gibão, a véstia e a camisa, e açoitou-se como um mártir.

Chicot quis rir e caçoar na forma do seu costume, porém o olhar terrível do rei deu-lhe a conhecer que a ocasião não era própria; pegou então numas disciplinas, mas, em lugar de bater em si, entrou a dar nos indivíduos que Lhe ficavam ao alcance do braço; e quando não encontrava um corpo em que pudesse bater, dava cabo da pintura das colunas e dos alizares.

Este burburinho todo foi serenando pouco a pouco o semblante do rei, conquanto o espírito se Lhe conservasse fortemente preocupado.

De repente saiu do quarto, determinando que esperassem por ele. Logo que voltou costas cessaram as penitências como por encanto.

Somente Chicot continuou a bater em d'O, que ele não podia ver. D'O ia-lhe pagando na mesma moeda. Era um duelo à chicotada.

Henrique foi ao quarto da rainha. Deu-Lhe de presente um colar de pérolas do valor de vinte e cinco mil escudos, beijou-a nas duas faces, coisa que não fazia havia mais dum ano, e rogou-lhe que pusesse de parte os seus adornos reais e se vestisse com um saco de penitente. Luísa de Lorena, sempre meiga e obediente, consentiu logo em fazer o que lhe pedia o marido; não pôde, contudo, deixar de lhe perguntar por que motivo exigia, na ocasião em que lhe dava um colar de pérolas, que ela se vestisse de penitente.

- É pelos meus pecados - respondeu Henrique.

Esta resposta satisfez a rainha, porque ela sabia, melhor do que ninguém, qual era a soma enorme de pecados pelos quais o marido precisava de fazer penitência. Passou portanto a vestir-se conforme o desejo de Henrique, e este voltou para o seu aposento a esperar por ela. Logo que o rei entrou, tornou a começar a flagelação.

D'O e Chicot, que não tinham cessado um instante de bater um no outro, já estavam com as costas em sangue.

O rei deu-lhes os parabéns, e disse-lhes que eram eles os seus verdadeiros e únicos amigos. Ao cabo de dez minutos chegou a rainha, vestida de penitente. Distribuiram-se imediatamente tochas a toda a corte, e, apesar do tempo horroroso que estava, por causa da geada e da neve que tinha caído, os guapos cortesãos, as formosas senhoras e a boa gente de Paris, devotos da Nossa Senhora, foram caminhando descalços para Montmartre, tremendo com frio a princípio, mas em breve aquecidos pelos açoites que Chicot distribuía com furor a todos aqueles que tinham a desdita de ficar ao alcance das suas disciplinas.

D'O tinha-se dado por vencido, indo tomar lugar no fim da procissão, à distância de cinquenta passos de Chicot.

Às quatro horas da tarde estava concluído o lúgubre passeio; os conventos tinham recebido riquíssimas esmolas, a gente da corte tinha toda os pés inchados e as costas feridas, a rainha tinha-se mostrado ao público vestida com uma camisola enorme de fazenda grosseira, e com um rosário de caveiras.

Tinha havido lágrimas, gritos, preces, incenso e cânticos.

Já se vê que o dia havia sido bem empregado.

E, com efeito, todos tinham arrostado o frio e os açoites para agradar ao rei; mas ninguém ainda tinha podido adivinhar por que motivo aquele mesmo príncipe que dançara com tanto gosto na antevéspera se macerava daquele modo no dia imediato.

Os huguenotes, os partidários da Liga e os devassos tinham escarnecido da procissão de flagelantes, dizendo com a malvadez própria dessa gente, que a última procissão fora mais brilhante e mais fervorosa. Mas não era verdade.

Henrique voltou em jejum, com os ombros cheios de nódoas azuis e vermelhas; não se tinha tirado de ao pé da rainha durante todo o dia, e tinha aproveitado todos os instantes de descanso, e as estações nas capelas, para lhe prometer novos donativos, e formar planos de romarias com ela.

Quanto a Chicot, esse, já cansado de dar chicotadas, e esfaimado em consequência daquele exercício, para ele tão desusado, a que o rei o condenara, tinha saído da procissão sorrateiramente logo adiante da porta de Montmartre, e, acompanhado de mais alguns ateus como ele, entrara para a horta duma taberna de grande fama, onde foi comer um pato bravo, morto nas lagoas da Grange-Batelière, e beber uma boa garrafa de vinho.

E depois, na volta da procissão, tornou para o seu lugar, e veio até ao Louvre açoitando com dobrada energia os penitentes e as penitentes, e distribuindo, como ele próprio dizia, as suas indulgências plenárias.

Quando anoiteceu já o rei estava cansado de ter jejuado, de ter andado descalço, e de se ter açoitado com tanto furor.

Pediu ceia de peixe, mandou que lhe banhassem os ombros, que acendessem o fogão do quarto, e foi visitar Saint-Luc, a quem achou satisfeito e risonho.

O rei estava mudado desde a véspera; tinha concentrado todas as suas ideias na fragilidade das coisas humanas, na penitência e na morte.

- Ah! - disse ele com a expressão dum homem já aborrecido da vida. - Muito bem faz Deus em nos tornar a existência tão amarga.

- Porquê, meu Senhor? - perguntou Saint-Luc.

- Porque o homem cansado do mundo, em vez de recear a morte, deseja-a.

Peço perdão, Senhor - disse Saint-Luc - fale por sua conta unicamente, eu declaro que não desejo morrer.

- Ouve, Saint-Luc - disse o rei abanando a cabeça -: o que tu devias fazer era seguir os meus conselhos, ou, para melhor dizer, o meu exemplo.

- Com todo o gosto, meu Senhor, se o exemplo me agradar.

- Queres que abandonemos, eu a minha coroa, tu a tua mulher, e que nos retiremos para um convento? Eu tenho dispensas do Santo Padre; podemos professar amanhã mesmo.

Chamar-me-ei Frei Henrique...

- Perdoe, meu Senhor, perdoe: Vossa Majestade dá pouco valor à sua coroa porque já a possui há muito tempo; porém eu tenho muito apego à minha mulher, que ainda não conheço bem. Em vista do que, rejeito a proposta.

- Oh! oh! - disse Henrique. - Parece-me que estás muito melhor.

- Muitíssimo melhor, meu Senhor; sinto o espírito sossegado e o coração alegre. Tenho a alma disposta duma maneira incrível para a felicidade e para o prazer.

Pobre Saint-Luc! - disse o rei juntando as mãos.

- Devia ter-me feito essa proposta ontem à noite, meu Senhor. Oh! Ontem estava eu rabugento, insípido e doente. Facilmente teria anuído a deitar-me a um poço ou a entrar para um convento. Porém hoje já o caso muda de figura; passei uma noite muito boa e um dia ainda melhor. Cos demónios! Viva a alegria! Viva o prazer!

- Praguejaste, Saint-Luc!... - disse o rei.

- Praguejei, meu Senhor? Pode ser, mas parece-me que também Vossa Majestade praguejava às vezes.

- Praguejava, sim, Saint-Luc, porém nunca mais hei-de praguejar.

- Eu não me atrevo a dizer outro tanto. Prometo fazê-lo as menos vezes que puder; não quero comprometer-me mais. Além de que, Deus é bom e tem misericórdia dos nossos pecados, quando os nossos pecados têm origem na fraqueza humana.

- Julgas pois que Deus me perdoará?

- Oh! Eu não me reFiro a Vossa Majestade; trato deste seu criado. Vossa Majestade tem pecado... como rei... enquanto que eu tenho pecado como simples particular; tenho toda a esperança, pois, que quando chegar o dia do juízo, o omnipotente há-de ter dois pesos e duas balanças.

O rei suspirou, resmungou um Confiteor, e bateu no peito quando chegou ao mea culpa.

- Saint-Luc - disse ele quando acabou -, queres passar a noite no meu quarto?

- Conforme - respondeu Saint-Luc -; que havemos nós de fazer no quarto de Vossa Majestade?

- Acenderemos todas as luzes, eu deitar-me-ei, e tu ler-me-ás as ladainhas.

- Muito obrigado, meu Senhor.

- Não queres?

- Deus me livre!

- Abandonas-me, Saint-Luc, abandonas-me?

- Não, pelo contrário, prometo não o deixar.

- Sim, deveras?

- Se quiser.

- Quero, por certo.

- Mas há-de ser com uma condição sine qua non.

- Qual é?

- É que Vossa Majestade há-de mandar pôr as mesas para a ceia, e ordenar que venham músicos e mulheres para acabarmos a Função a dançar.

- Saint-Luc! Saint-Luc!... - exclamou o rei, possuído do maior terror.

- Então que quer que eu diga?... - respondeu Saint-Luc. - Estou muito folgazão.

Consente, meu Senhor?

Henrique não respondeu. O seu espírito, às vezes tão vivo e tão jovial, ia- se tornando cada vez mais sombrio, e parecia lutar com um pensamento oculto, que Lhe pesava como poderia pesar um pedaço de chumbo preso ao pé dum pássaro, que debalde procuraria abrir as

asas para voar.

- Saint-Luc - perguntou Finalmente o rei com voz fúnebre -, já sonhaste alguma vez?

- Muitas vezes, meu Senhor.

- E acreditas em sonhos?

- Assim deve ser.

- Por que motivo?

- Porque os sonhos consolam da Falta da realidade. Ainda esta noite tive um sonho encantador.

- Que foi?

- Sonhei que minha mulher...

- Ainda pensas em tua mulher, Saint-Luc?

- Mais do que nunca.

- Ah! - exclamou o rei, suspirando e levantando os olhos para o Céu.

- Sonhei - prosseguiu Saint-Luc - que minha mulher, conservando sempre o seu rosto encantador (porque minha mulher é muito bonita)...

- Infelizmente assim é - disse o rei. - Também Eva era bonita, desgraçado, e foi ela quem nos perdeu a todos!

- Ah, disso é que procede o rancor que Vossa Majestade tem às mulheres?... Mas tornemos ao meu sonho, Senhor.

- Eu também tive um sonho... - disse o rei.

- A minha mulher, pois, conservando sempre o seu engraçado rosto, tinha tomado as asas e o corpo dum pássaro, e logo, desafiando grades e ferrolhos, tinha voado por cima dos muros do Louvre, para vir bater nos vidros da minha janela, tem um gritozinho muito lindo, que eu percebi, e que dizia assim: Abre, Saint-Luc, abre, meu maridinho.

- E tu abriste? - perguntou o rei quase desesperado.

- Pudera não! - exclamou Saint-Luc. - Abri imediatamente a janela.

- Mundano!...

- Serei mundano talvez, meu Senhor.

- E acordaste então?

- Não, meu Senhor, não quis acordar; o sonho era demasiadamente agradável. - E continuaste a sonhar?

- Enquanto pude, meu Senhor.

- E esperas tornar a sonhar esta noite?...

- Espero, com licença de Vossa Majestade; e eis o motivo por que não aceitu o honroso convite que acaba de me fazer para lhe ir ler as ladainhas. Se tenho de ficar acordado, quero ter ao menos algum divertimento equivalente ao meu sonho. Portanto, se Vossa Majestade quiser, conforme lhe pedi, mandar aprontar uma ceia, e dizer que vão buscar músicos...

- Basta, Saint-Luc, basta! - disse o rei levantando-se. - Perdes-te a ti, e és capaz de me perder a mim também, se aqui me demorar por mais tempo. Adeus Saint-Luc; espero em Deus que te há-de enviar, em lugar do teu sonho tentador, algum sonho salutífero, que te induza a partilhares amanhã das minhas penitências, para nos salvarmos conjuntamente.

- Duvido, meu Senhor; e estou mesmo tão certo de que tal não há-de suceder, que se pudesse dar um conselho a Vossa Majestade, dir-lhe-ia que mandasse pôr fora do Louvre esta noite mesmo o dissoluto Saint-Luc, que está inteiramente resolvido a morrer impenitente.

- Não - replicou Henrique -, não; ainda espero que daqui até amanhã ele há-de ser tocado da divina graça, como eu próprio fui. Boa noite, Saint-Luc; vou orar a Deus por ti.

- Boa noite, meu Senhor; vou sonhar por Vossa Majestade.

E Saint-Luc entoou a primeira copla duma cantiga bastante fresca, que Henrique III costumava cantar quando estava de bom humor, apressando assim a retirada do rei, que fechou a porta e voltou para a sua câmara, resmungando:

Senhor Deus! A Vossa ira é justa e legítima, porque o mundo vai de mal para pior!

 

             COMO FOI QUE O REI TEVE MEDO DE TER TIDO MEDO E CHICOT TEVE MEDO DE TER MEDO

O rei quando saiu do quarto de Saint-Luc, encontrou toda a corte, conforme havia determinado, reunida na galeria principal.

Distribuiu então algumas mercês aos seus amigos, mandou para a província d'O, d'Épernon e Schomberg, ameaçou Maugiren e Quélus de os mandar processar se tornassem a brigar com Bussy, deu a este a mão a beijar, e conservou seu irmão Francisco por algum tempo abraçado contra o peito.

Quanto à rainha, prodigalizou-lhe tantas demonstrações de amizade e fez-Lhe tais elogios, que os circunstantes ficaram agourando favoravelmente da probabilidade de haver sucessão à coroa de França.

Entretanto, a hora a que o rei costumava recolher-se ia-se aproximando, e facilmente se conhecia que procurava demorar o mais possível aquele momento; finalmente, deram as dez horas no relógio do Louvre, e Henrique começou a lançar os olhos em roda de si; parecia que procurava escolher qual dos seus amigos havía de ser incumbido de exercer as funções de leitor, que Saint-Luc recusara.

Chicot não tirava os olhos do rei.

- É célebre! - disse ele com o costumado atrevimento. - Parece que estás olhando para mim com ternura esta noite, Henrique. Dar-se-á o caso que queiras dispor de alguma abadia de dez mil libras de renda?. Safa! Que famoso prior que eu havia de ser! Dá cá, filho, dá cá.

- Vem comigo, Chicot - disse o rei. - Boa noite, meus Senhores, vou-me deitar. Chicot voltou-se para os cortesãos, retorceu o bigode, e, com gesto travesso e gracioso, repetiu, volvendo os olhos com ternura e imitando a voz de Henrique:

- Boa noite, meus Senhores, boa noite; vamo-nos deitar.

Os cortesãos morderam os beiços e o rei corou.

- Olá, meu barbeiro - bradou Chicot -, meu cabeleireiro, meu criado de quarto venham, e não esqueçam a banha.

- Não - disse o rei -, nada disso é preciso esta noite; vai começar a Quaresma, e estou fazendo penitência.

- Pois eu tenho saudades da banha - disse Chicot.

O rei e o bobo entraram para o quarto que nós já conhecemos.

- Ora diz-me, Henrique - perguntou Chicot -: então sou eu agora o favorito? Sou o indispensável? Achas-me pois muito galante, mais galante do que o cupido de Quélus?

- Cala-te, bobo - disse o rei. - E os senhores do toucador, saiam.

Os criados obedeceram, e a porta fechou-se. Henrique e Chicot ficaram sós. Chicot olhava para Henrique como espantado.

- Para que os mandas embora? - perguntou o bobo. - Ainda não nos aplicaram a banha. Tencionas porventura untar-me com a tua mão real? Sim, seria uma penitência como outra qualquer.

Henrique não respondeu.

Toda a gente tinha saído da câmara, e os dois reis, o bobo e o que o não era, estavam olhando um para o outro.

- Oremos - disse Henrique.

- Muito obrigado - exclamou Chicot -; não gosto do divertimento. Se foi para isso que me ordenaste que viesse para aqui, antes quero voltar para a péssima companhia em que estava. Adeus, meu Filho; boa noite.

- Fica - disse o rei.

- Oh! oh! - disse Chicot, endireitando-se. - Isto vai degenerando em tirania. És um déspota, um fálaris, um dionísio. Já estou enfastiado de estar aqui; obrigaste-me a andar todo o dia às chicotadas aos meus amigos, e, pelo jeito que vou vendo, parece-me que não tarda que tornemos a começar. Dou-te de conselho que não tornemos, Henrique. Nós aqui dentro somos só dois, e quando a brincadeira é entre dois, poucas chicotadas ficam pelo ar.

- Cala-te, miserável tagarela - disse o rei -, e trata de arrepender-te.

Bom! lá começamos... Arrepender-me, eu? E de que queres tu que eu me arrependa?...

de ter sido bobo dum frade?... Arrependo-me; mea culpa. Foi minha a culpa, pequei muito!

- Basta de sacrilégio, desgraçado! Basta de sacrilégio! - disse o rei.

- Ora esta - disse Chicot -, antes queria que me fechassem numa jaula de leões ou de macacos, do que na câmara dum rei maníaco. Adeus, vou-me embora!

O rei tirou a chave da porta.

- Henrique - disse Chicot -, olha que estás com cara sinistra, e desde já te previno de que se não me deixas sair, chamo, grito, arrombo a porta, ou parto os vidros da janela. Que tal está! Que tal está!...

- Chicote - disse o rei em tom melancólico. - Chicot, meu amigo! Abusas da minha tristeza...

- Ah! já percebo... - disse Chicot - tens medo de ficar só. Os tiranos são todos assim.

Pois manda construir doze câmaras, como tinha Dionísio, ou doze palácios, como Tibério.

Entretanto, pega lá a minha espada, e deixa-me ir levar a bainha para o meu quarto, sim?

À palavra medo, os olhos de Henrique relampejaram; e em seguida ergueu-se com extraordinária agitação e começou a passear pelo quarto.

Henrique estava de tal maneira fora de si, e com o semblante tão pálido, que Chicot principiou a recear não estivesse o rei seriamente doente; e depois de ter olhado para ele com susto, enquanto dava três ou quatro voltas pelo quarto, disse- lhe:

- Vamos lá, meu filho, que tens tu? Conta os teus desgostos ao teu amigo Chicot.

O rei parou diante do bobo e, olhando para ele, disse-lhe:

- Sim, tu és meu amigo, o meu único amigo.

- Está vaga a Abadia de Valencey - disse Chicote.

- Ouve, Chicot - disse Henrique -: prometes guardar segredo?

- Também está vaga a de Pithiviers, onde se fazem muito boas empadinhas de tordos.

- Apesar das tuas chocarrices - prosseguiu o rei -, tu és homem de brio.

- Pois então não me dês uma abadia, dá-me um regimento.

- És mesmo homem de bom conselho.

- Nesse caso, não me dês o regimento, Faz- me conselheiro. Ah, não; reflectindo melhor, antes quero um regimento ou uma abadia. Não quero ser conselheiro; ver-me-ia obrigado a conformar-me sempre com o parecer do rei.

- Cala-te, cala-te, Chicot; vai-se aproximando a hora terrível!

- Ah! Torna outra vez a mesma mania: - disse Chicot.

- Não tarda que vejas, não tarda que ouças.

- Ver o quê? Ouvir o quê?

- Espera, e então saberás; espera.

- Não, não estou resolvido a esperar; não me dirás qual foi o cão danado que mordeu o teu pai e a tua mãe, na noite em que tiveram a fatal lembrança de te gerarem?

- Chicot, tu és valente?

- Prezo-me de o ser; mas nunca exponho a minha valentia a semelhantes provas! Quando o rei de França e da Polónia grita de noite por forma tal que amotina todo o Louvre, eu, ente mesquinho, de que posso servir no teu quarto? Adeus, Henrique; chama o capitão da guarda real, os suíços, os porteiros, e deixa-me pôr ao fresco: não quero arrostar um perigo invisível e que não conheço!

- Ordeno-te que fiques! - disse o rei com tom de autoridade.

- Ora aqui está, por minha fé! Um amo bem engraçado, que quer ter poder sobre o medo; pois eu estou com medo. Digo- te que tenho medo. Acudam! Ah, foge!

E Chicot, provavelmente para ficar sobranceiro ao perigo, trepou para cima duma mesa.

- Sai daí, maroto - disse o rei -; vou contar-te tudo, já que assim é preciso para estares calado.

- Ah! ah! - disse Chicot, esfregando as mãos, descendo com cautela de cima da mesa, e puxando pela enorme espada; - agora, que estou prevenido, não há-de haver novidade; conta, conta, meu filho. Segundo creio, foi algum crocodilo, hem? Deixa estar, que a folha é boa; sirvo-me dela todas as semanas para cortar as unhas, e as minhas unhas são bem duras, Dizias, pois, Henrique, que era um crocodilo.

E Chicot enterrou-se numa grande poltrona, colocando a espada desembainhada entre us joelhos e enlaçando a folha com as pernas, como as serpentes, símbolos de paz, enlaçam o caduceu de Mercúrio.

- A noite passada - disse Henrique -, estava eu dormindo.

- E eu também. - disse Chicot.

- De repente, correu-me um sopro pelo rosto.

- Era o bicho que estava com fome - disse Chicot -, e vinha lamber a banha que tinhas no rosto.

- Acordei, e senti que se me eriçava a barba com o susto, apesar de comprimida pela máscara.

- Ah! Que arrepios tão deliciosos que me estás causando - disse Chicot, enroscando-se na poltrona e encostando o queixo aos copos da espada.

- Então. - prosseguiu o rei, com uma voz tão débil e tão trémula que o som das palavras mal chegou aos ouvidos de Chicot - então ressoou uma voz pelo quarto, com uma vibração tão dolorosa que me abalou o cérebro.

- Era a voz do crocodilo, bem sei. Li nas viagens de Marco Polo que o crocodilo tem uma voz terrível, imitando os gritos das crianças. Mas descansa, meu filho: se ele vier esta noite matá-lo-emos.

- Ouve o que te digo.

- Ouço, sim, meu Senhor - respondeu Chicot, estendendo-se como uma mola partida.

- ; estou imóvel como um cepo, e mudo como um peixe, para melhor te ouvir.

Henrique continuou, com voz ainda mais sombria e lúgubre:

- Miserável pecador! disse a voz...

- Que tal - interrompeu Chicot - pois a voz falava? Então não eca um crocodilo...

- Miserável pecador! disse a voz, eu sou a voz de Deus, teu senhor.

Chicot deu um pulo e ficou encruzado sobre a poltrona.

- A voz de Deus? - repetiu ele.

- Ah, Chicot! - respondeu Henrique. - uma voz medonha!

- E que tal é o metal dela? - perguntou Chicot. - Parece-se, como diz a Sagrada Escritura, com o som duma trombeta?

- Estás aí? ouves-me? continuou a voz; ouves-me, pecador endurecido? Estás resolvido a perseverar nas tuas iniquidades?

- Ah! sim, - disse Chicot - está-me parecendo que a voz de Deus se assemelha muito à do teu povo.

- Depois - replicou o rei - seguiram-se mil outras arguições, que, juro-te, Chicot sobremaneira me penalizaram.

- Mas vai dizendo - tornou Chicote -, continua, meu filho; conta- me, conta-me o que dizia a voz, para que eu saiba se Deus estava bem informado.

- Ímpio! - exclamou o rei - se duvidas do que te digo, mando-te castigar.

- Eu - respondeu Chicot - não duvido de tal; somente me admiro de ter Deus esperado até agora para te repreender. Tornou-Se, pelo que vejo, muito paciente, do dilúvio para cá. De sorte que, meu filho - prosseguiu Chicot -, tiveste um medo imenso...

- Não tenhas dúvida - respondeu Henrique.

- E o caso não era para menos.

- Corria-me o suor pela testa, e sentia a medula dos ossos gelada.

- Como sucedeu a Jeremias; é muito natural; dou-te porém a minha palavra de cavalheiro

que no teu lugar não sei o que teria feito. E foi então que chamaste.

- Foi.

- E acudiram-te logo?

- Logo.

- E procuraram por toda a parte?

- Por toda a parte.

- Nada de Deus...

- Tinha desaparecido tudo.

- É caso realmente medonho.

- Tão medonho, que mandei chamar o meu confessor.

- Ah, bem; ele veio sem demora?

- No mesmo instante.

- Vamos lá. Sê franco, meu filho; fala verdade, ao menos uma vez sem exemplo. Que ideia formou o teu confessor de tal revelação?

- Tremeu ao ouvir-me.

Não duvido.

- Benzeu-se; e aconselhou-me que me arrependesse, conforme Deus me ordenava.

- Muito bem; sempre é bom a gente arrepender-se. Mas o que disse ele da visão, ou antes, da audição?

- Que era um milagre da Providência, e que seria bom tratar da salvação do Estado.

E por isso, logo esta manhã...

- O que fizeste tu esta manhã, meu filho?

- Dei aos jesuítas seis mil libras.

- Muito bem.

- E retalhei com as disciplinas a minha pele e a dos meus favoritos, e mais fidalgos da minha corte.

- Perfeitamente! E depois?

- Depois quê? Qual é o teu parecer a respeito de tudo isto, Chicot? Deixa-te de zombarias, fala sério e como amigo.

- Ah, meu Senhor! - respondeu Chicot com seriedade. - Estou persuadido de que foi pesadelo que Vossa Majestade teve; não pense mais nele.

- Sonho? - disse Henrique, abanando a cabeça. - Não, isso não; afirmo-te, Chicot, que eu estava bem acordado.

- Estavas a dormir, Henrique.

- Tanto não dormia que estava com os olhos muito abertos.

- Eu é assim que costumo dormir.

- Sim, porém eu via com os olhos; e quando na realidade se dorme, não se vê.

- E o que vias tu?

- Via o luar que penetrava pelos vidros da janela e fazia brilhar com o seu reflexo baço a ametista do punho da minha espada, que estava encostada a essa poltrona onde agora te sentaste, Chicot.

- E que era feito da lâmpada?

- Tinha-se apagado.

- Foi sonho, meu querido filho, foi sonho.

- Porque não hás-de tu acreditar, Chicot? Não é sabido que Deus fala aos reis quando quer efectuar alguma grande mudança sobre a Terra?

- Fala, sim, é verdade - disse Chicote -; mas é tão baixo que eles nunca o ouvem.

- Mas qual é a razão por que te mostras tão incrédulo?

- É porque não me capacito que ouvisses o que dizes.

- Mas agora já percebes o motivo por que te ordenei que ficasses? - disse o rei.

- Pudera! - respondeu Chicot.

- É para que tu mesmo ouças o que a voz disser.

- E para que as pessoas a quem eu disser o que ouvir julguem que é alguma chocarrice; Chicot é um ente tão nulo, tão abjecto e tão louco, que ninguém há-de acreditar no que ele for contar. Não tiveste má ideia, meu Filho.

- Porque não hás-de persuadir-te, antes, meu amigo - disse o rei -, que é um segredo que eu confio à tua reconhecida fidelidade?

- Ah! Não faltes à verdade, Henrique, porque, se a voz vier logo, repreender-te-á por ter mentido, e bem te bastam já as tuas iniquidades. Mas, não importa, aceito o encargo. Não se me dá de ouvir a voz de Deus, pode ser que também tenha alguma coisa para me dizer.

- Pois bem! Que havemos de fazer?

- Começa por te deitar meu filho.

- Mas se, pelo contrário.

- Nada de reflexões.

- Contudo.

- Acaso pensas tu que a voz de Deus deixará de Falar por estares de pé? A diferença que há de um rei aos demais homens está só na altura da coroa; e quando não a tem na cabeça, no que te digo, Henrique, o rei é da mesma estatura que eles, e às vezes mais pequeno ainda.

- Está bem - disse o rei -; e tu ficas?

- Fico.

- Muito bem! Vou-me deitar.

- Bom!

- E tu, não te deitas?

- Nessa não caio eu.

- O que farei - disse o rei - é tirar unicamente o gibão.

- Faz o que entenderes.

- E fico com os calções.

- Acho a lembrança muito acertada.

- E tu?

- Eu fico onde estou.

- Mas não hás-de pegar no sono.

- Ah! Lá isso é que não posso prometer; o sono, meu Filho, é como o medo: uma coisa independente da vontade de cada um.

- Ao menos hás-de fazer a diligência por te conservares acordado.

- Deixa estar; hei-de dar beliscões em mim de vez em quando; e demais, a voz há-de despertar-me.

- Não caçoes com a voz - disse Henrique, que já tinha uma perna dentro da cama e a tirou para fora.

- Ora vamos lá! - disse Chicot. - Será preciso que eu te vá deitar? O rei suspirou, depois de ter perscrutado com a vista todos os cantos e recantos do quarto, e enfiou-se na cama a tremer.

- Agora eu! - disse Chicot.

E estendendo-se na poltrona, e entalando de roda de si almofadinhas e travesseiros, disse:

- Que tal se acha Vossa Majestade, meu Senhor?

- Sofrivelmente - respondeu o rei -; e tu?

- Muitíssimo bem; boa noite, Henrique.

- Boa noite, Chicot; mas vê lá, não durmas.

- Deus me livre de tal! - disse Chicot, com um abrimento de boca capaz de lhe desmanchar o queixo.

E ambos fecharam os olhos, o rei para fingir que dormia, e Chicot para na realidade dormir.

 

        COMO SUCEDEU ENGANAR-SE A VOZ DO SENHOR A FALAR COM CHICOT PENSANDO QUE FALAVA COM O REI

O rei e Chicot conservaram-se imóveis e calados durante o espaço de dez minutos, pouco mais ou menos. De repente o rei ergueu-se sobressaltado, e sentou-se na cama.

O movimento que fez despertou Chicot, que já estava entregue à doce sonolência precursora do sono.

Ambos olharam espantados um para o outro.

- Que é? - perguntou Chicot em voz baixa.

- O sopro - respondeu o rei ainda mais baixo -, é o sopro!

No mesmo instante apagou-se uma das velas do candelabro que o sátiro de ouro segurava; depois uma segunda, ainda uma terceira, e finalmente a última.

- Oh! oh! - disse Chicot - que valente sopro! Chicot ainda não tinha proferido a última sílaba destas palavras, quando a lâmpada também se apagou, ficando a câmara apenas alumiada com o clarão do lume que estava quase a expirar no fogão.

- Cuidado, não partas a cabeça! - disse Chicote, pondo-se de pé.

- A voz vai falar - disse o rei, ajoelhando na cama -; a voz vai falar.

- Pois então escuta o que ela vai dizer - replicou Chicote.

E com efeito ouviu-se uma voz rouca, e por intervalos sibilante, que soava entre a parede e a cama, e dizia:

- Pecador endurecido, estás aí?

- Sim, sim, meu Deus - respondeu Henrique a bater o queixo.

- Oh, oh! - disse Chicot. - Que voz tão encantadora para ser do Céu! Mas não im porta, sempre é medonha.

- Ouves-me? - perguntou a voz.

- Sim, meu Deus - balbuciou Henrique -, e estou escutando, curvado diante da vossa ira.

- Pensas porventura que me obedeceste - prosseguiu a voz -, com as momices aparentes que hoje fizeste, sem que no íntimo do teu coração sentisses compungimento algum?.

- Muito bem dito! - exclamou Chicot - Oh, agora deu no vinte! O rei estava a tremer e de mãos postas; Chicot chegou-se a ele.

- Então! - murmurou Henrique. - Então! Acreditas agora?.

- Espera - disse Chicot.

- Que queres tu?

- Caluda! Ouve: sai devagarinho para fora da cama, e deixa-me lá meter em teu lugar.

- Para quê?

- A fim de que a vingança do Senhor recaia primeiro sobre mim.

- Pensas que Ele assim me poupará?

- Façamos sempre a experiência.

E, insistindo afectuosamente, empurrou com brandura o rei para fora da cama, e encaixou-se no seu lugar.

- Agora, Henrique - disse ele -, vai sentar-te na poltrona onde eu estava, e deixa o caso por minha conta.

- Tu não me respondes - tornou a voz -, é uma prova de que os teus pecados te endurecem o coração.

- Oh! perdoai-me, perdoai-me, Senhor! - disse Chicot, falando fanhoso como o rei.

E em seguida, debruçando-se para Henrique:

- É coisa célebre - disse ele; - o que te parece, meu filho, Deus não conhece Chicot...

- É verdade! - exclamou Henrique. - Que quer isto dizer?

- Espera, espera, que se te admiras, ainda verás mais!

- Desgraçado! - disse a voz.

- Sim, meu Deus, sim - respondeu Chicot -, sou um pecador endurecido, um grande pecador.

- Então confessa os teus crimes, e arrepende-te.

- Confesso - disse Chicot - que me portei como um grande traidor para com meu primo de Condé, de quem seduzi a esposa; mas estou arrependido.

- Que estás tu aí a dizer? - murmurou o rei. - Cala-te já! É uma coisa em que ninguém fala há muito tempo.

- Ah! deveras? - disse Chicot; - trataremos de outro assunto.

- Fala! - disse a voz.

- Confesso - prosseguiu o fingido Henrique - que me portei como um grande ladrão para com os Polacos, que me tinham eleito para seu rei, e a quem abandonei uma noite trazendo comigo todos os diamantes da coroa; mas estou também arrependido.

- Ah, biltre - disse Henrique -, para que Lhe estás recordando isso? Já estava esquecido.

- É preciso que eu continue a enganá-lo - replicou Chicot. - Deixa-o comigo.

- Fala! - disse a voz.

- Confesso - disse Chicot - que tirei o trono de França a meu irmão de Alençon a quem por direito pertencia, visto tê-lo eu renunciado formalmente quando aceitei o trono da Polónia; mas estou igualmente arrependido.

- Maroto! - exclamou o rei.

Isso ainda não é tudo - replicou a voz.

- Confesso que combinei com a minha terna mãe Catarina de Médicis para expulsar de França o meu cunhado rei de Navarra, depois de ter dado cabo de todos os seus amigos e minha irmã, a rainha Margarida, depois de ter aniquilado todos os seus amantes; de tudo arrependo sinceramente.

Ah, grande patife! - murmurou o rei, apertando os dentes de raiva.

- Meu Senhor, é preciso não ofendermos a Deus, procurando ocultar- Lhe o que ele sabe tão bem como nós.

- Não se trata agora de política - prosseguiu a voz.

- Ah, já entendo! - replicou Chicot em tom lastimoso. -Trata-se dos meus costumes! é assim?

- Ora ainda bem! - disse a voz.

- É verdade, meu Deus! - continuou Chicot, falando como se fora o rei. - Sou muito efeminado, muito mandrião, muito dado à moleza, muito vicioso e muito hipócrita.

- É verdade - respondeu a voz com som cavernoso.

- Tenho desprezado as mulheres, e a minha especialmente, que é digna de todo o respeito.

- O homem deve amar a sua mulher comu a si próprio, e preferi-la a tudo - disse a voz enfurecida.

- Ah! - exclamou Chicot, fingindo-se desesperado. - Muito tenho então pecado.

- E tens feito pecar os mais com o exemplo que dás.

- Isso é verdade, é muito verdade.

- Por pouco não causaste a condenação eterna do pobre Saint-Luc.

- Deveras? - disse Chicot. - E estais bem certo, meu Deus, que realmente não lhe causei já a eterna condenação?

- Não; mas pode muito bem suceder-Lhe essa desgraça, e a ti também, se amanhã pela manhã, o mais tardar, não o restituíres à sua família.

- Ah! ah! - disse Chicot para o rei. - A voz, pelo que vejo, é amiga da família de Cossé.

- E se não o fizeres duque e à mulher duquesa - continuou a voz - para a indemnizares da sua viuvez antecipada.

- E se eu não obedecer? - respondeu Chicot, mostrando na inflexão da voz que estava inclinado a resistir.

- Se não obedeceres - replicou a voz, engrossando duma maneira terrível -, hás-de ser Fervido durante toda a eternidade na imensa caldeira onde fervem à tua espera Sardanapalo, Nabucodonosor, e o marechal de Retz.

Henrique III soltou um ai!. O medo com que estava tornou-se mais pungente ainda ao ouvir semelhante ameaça.

- Esse pouco! - disse Chicot. - Não observas, Henrique, quanto o Céu se interessa pelo Sr. de Saint-Luc? Dir-se-ia, ou os diabos me levem, que Deus é seu amigo íntimo!

Porém Henrique não ouvia as chocarrices de Chicote, ou, se as ouvia, não podiam elas tranquilizá-lo.

- Estou perdido! - dizia ele como desvairado. - Estou perdido! Esta voz lá de cima há-de ser a causa da minha morte.

- Voz lá de cima? - replicou Chicot. - Oh, desta vez estás enganado. O muito que será é voz daqui do lado.

- Como? Voz daqui do lado? - perguntou Henrique.

- Decerto! Então não ouves, meu filho, que a voz sai desta parede? Henrique, olha que Deus está morando no Louvre. Provavelmente passa por França para descer ao Inferno, a exemplo do imperador Carlos V!

- Ateu! Blasfemador!

- É uma honra muito grande que Ele te fez, Henrique. E portanto dou-te os parabéns. Contudo, confessar-te-ei que acho que recebes com bastante frieza tamanho obséquio. Pois Deus está no Louvre, um simples tabique O separa de ti, e tu não vais fazer-Lhe uma visita? Ora vamos, Valois, estou a desconhecer-te! Pareces-me pouco cortês.

Naquele momento um resto de acha que ainda existia no fogão levantou uma labareda e, projectando o clarão no quarto, alumiou o rosto de Chicot.

A fisionomia do bobo apresentava uma tal expressão de alegria e de mofa, que o rei Ficou admirado.

- Pois quê, - disse ele - ainda tens ânimo de zombar? Atreves-te.

- Atrevo, sim senhor - replicou Chicot -; e não tarda que tu não te atrevas também, ou os diabos me levem! Peço-te que discorras, meu filho, e que faças o que te digo.

- Queres que vá examinar.

- Se Deus está efectivamente no quarto que fica ao lado deste?

- Mas se a voz torna a falar?.

- Então não fico eu aqui para Lhe responder? Até convém que eu continue a falar em teu nome, para que a voz, que me toma por ti, se capacite que ainda aqui estás; porque a tal voz divina sempre é muito crédula, e parece que não conhece as pessoas com quem trata. Há um bom quarto de hora que aqui estou zurrando, e ainda não me conheceu! Olha que sempre é uma vergonha para uma inteligência superior.

Henrique franziu a testa. Chicot tanta coisa Lhe tinha dito, que afinal conseguira abalar-lhe a incrível credulidade.

- Parece-me que tens razão, Chicot; e não se me dava.

- Pois vai, anda! - disse Chicot, empurrando-o.

Henrique abriu devagarinho a porta do corredor que dava comunicação para o quarto vizinho, que era, como já dissemos, o antigo aposento da ama de Carlos IX, e onde dormia actualmente Saint-Luc. Mas, ainda bem não tinha dado quatro passos no corredor, ouviu a voz renovando as suas exprobrações. Chicot respondia-Lhe com os mais sentidos lamentos.

- Sim - dizia a voz -, és inconstante como uma mulher, mole como um sibarita, corrupto como um pagão.

- Ai! - choramingava Chicot. - Ai, ai! É porventura culpa minha, oh, meu Deus, se Vós me fizestes a cute tão mimosa, as mãos tão brancas, o nariz tão bonito, e o espírito tão volúvel? Mas acabou-se, meu Deus! De hoje em diante nunca mais hei-de vestir senão camisas de burel. Hei-de enterrar-me em estrume como Job, e hei-de comer bosta de vaca da Ezequiel.

Entretanto Henrique continuava a caminhar pelo corredor, observando com admiração do que à medida que diminuía a voz de Chicot, aumentava o som da voz do seu interlocutor a qual parecia sair efectivamente do quarto de Saint-Luc.

Mas Henrique ia para bater à porta, quando reparou num raio de luz que saía pela chapa cinzelada da fechadura.

Abaixou a cara ao nível do buraco, e espreitou.

De repente, Henrique, que estava muito pálido, tornou-se vermelho de cólera e esfregou os olhos para melhor ver uma cena que ainda lhe parecia impossível.

Santo nome de Deus! murmurou ele, pois é possível que tivessem o atrevimento de zombar de mim por uma tal forma?"

E com efeito, eis o que ele estava vendo pelo buraco da fechadura. A um canto do quarto, no, Saint-Luc, vestido apenas com umas ceroulas de seda e um roupão, assoprava por um porta-voz as palavras ameaçadoras que o rei tomara por palavras divinas, e junto dele, encostando-se-lhe ao ombro, estava uma rapariga em saias brancas e diáfanas, que lhe tirava de vez em quando o porta-voz das mãos, e, fazendo a voz grossa, assoprava por ele todas as extravagâncias Pois que lhe nasciam nos olhos maliciosos, e deles Lhe passavam sem demora nos lábios escarnecedores. Cada vez que largavam o porta-voz desatavam em gargalhadas sem fim, por isso que Chicot se lamentava e chorava, imitando com tanta perfeição a voz fanhosa do rei, que a este parecia que se estava ouvindo lamentar e chorar a si próprio no corredor.

aJoana de Cossé no quarto de Saint-Luc! Um buraco na parede! Fazerem-me semelhante mangação!. disse entre dentes Henrique com furor. Oh! que miseráveis! há-de-lhes custar cara a graça!

E ao ouvir uma frase ainda mais insultante do que as outras, que a Sr. a de Saint-Luc soprou pelo porta-voz, Henrique recuou alguns passos, e com um pontapé muito varonil para um homem efeminado, arrombou a porta, cujos gonzos e fechadura saltaram fora.

Joana, meia despida, deu um grito agudo e correu a esconder-se com as cortinas da cama, nas quais se embrulhou tapando o rosto.

Saint-Luc, ainda com o porta-voz na mão e pálido de susto, lançou-se de joelhos aos pés do rei, que estava fulo de raiva.

- Ah! - bradava Chicot de dentro da câmara real. - misericórdia! Valha-me a Virgem Maria e todos os santos... Desfaleço, morro!.

Porém no quarto próximo ainda nenhum dos actores da cena burlesca que acabámos de narrar tinha tido ânimo para falar, tão repentina havia sido a mudança da situação de jocosa para dramática.

Henrique rompeu o silêncio com uma palavra, e a imobilidade com um gesto.

- Sai daqui! - disse ele, estendendo o braço.

E, cedendo a um movimento de raiva impróprio dum rei, arrancou o porta-voz das mãos de Saint-Luc e levantou-o como para lhe bater com ele.

Porém Saint-Luc pôs-se logo de pé, como se houvesse sido impelido por uma mola de aço.

- Senhor - disse ele -, não tem direito a bater-me senão na cabeça, lembre-se que sou fidalgo.

Henrique atirou o porta-voz ao chão com violência. Apanhou-o Chicot, o qual, tendo ouvido arrombar a porta e julgando que não seria fora de propósito a presença dum medianeiro, tinha acudido imediatamente.

Deixou Henrique e Saint-Luc a contas um com o outro, e correndo em direitura às cortinas, onde percebeu que estava um vulto, tirou para fora a pobre rapariga toda trémula.

- Então não querem ver! - disse ele. - Aqui temos Adão e Eva depois do pecado! E tu queres expulsá-los, Henrique?. - perguntou ele, interrogando o rei com os olhos.

- Quero, sim - respondeu Henrique.

- Pois espera lá, que eu vou fazer de anjo exterminador.

E colocando-se entre o rei e Saint-Luc, estendeu o porta-voz, à maneira de espada chamejante, sobre as cabeças dos dois criminosos, e disse-lhes:

- Este lugar é o meu paraíso, que perdestes pela vossa desobediência. Proíbo-vos que nele torneis a entrar.

Em seguida, chegando a boca ao ouvido de Saint-Luc, que tinha lançado o braço à roda da cintura da esposa para a proteger, se fosse preciso, contra o ressentimento do rei:

- Se acaso possuis um bom cavalo - disse ele -, rebenta-o; mas trata de andar vinte léguas de hoje até amanhã.

 

         COMO BUSSY SE PÔS A PROCURA DO SEU SONHO CADA VEZ MAIS CONVENCIDO DE QUE TINHA SIDO UMA REALIDADE

Bussy tinha saído do Louvre com o duque de Anju; ambos iam pensativos: o duque porque temia as consequências do acto de resolução que Bussy de alguma forma o obrigara a praticar; e Bussy, porque tinha o espírito fortemente preocupado pelos acontecimentos da noite precedente.

Enfim, dizia ele consigo ao voltar para casa depois de ter dado os parabéns ao duque de Anju pela energia que havia mostrado, não há dúvida nenhuma de que fui atacado, que me bati, que fui ferido, pois bem sinto aqui no lado direito a dor que ainda me está causando a ferida. Ora, enquanto eu estava brigando com eles, via, como acolá estou vendo a cruz dos Petits-Champs, via, digo, o muro do Palácio das Tournelles e as ameias das torres da Bastilha.

e Foi no Largo da Bastilha, um pouco adiante do Palácio das Tournelles, entre a Rua de Santa Catarina e a Rua de S. Paulo, que me atacaram, indo para o arrabalde de Santo António bustele a carta da rainha de Navarra. Foi ali pois que me atacaram, ao pé duma porta que tinha um postigo, pelo qual, depois de ter fechado a porta, estive olhando para Quélus, que estava com as faces desmaiadas e os olhos muito ardentes. Estava num corredor; no fim do corredor havia uma escada. Senti o primeiro degrau da escada quando nele tropecei. Em seguida desmaiei. Então começou o meu sonho. Depois achei-me exposto a um ar muito frio, e deitado na borda do fosso do Templo, entre um Frade agostinho, um carniceiro e uma velha... Porque será que os outros meus sonhos se me apagam tão depressa e tão completamente da memória, enquanto este se me vai imprimindo cada vez mais na lembrança? Ah! disse Bussy, eis o mistério que não posso compreender.

E, dizendo isto, parou à porta do palácio, onde tinha chegado naquele momento, e, encostando-se à parede, fechou os olhos.

HApre! disse ele, não é possível que um sonho deixe semelhante impressão no espírito! Parece-me que ainda estou vendo o quarto com a tapeçaria de figuras, o tecto estucado com leito de madeira de carvalho esculpida, com as cortinas de damasco branco e franjas de ouro. Ainda estou vendo o retrato e a mulher loura; do que não estou certo é se a mulher e o retrato são ou não duas coisas distintas. Finalmente, ainda tenho presente a Fisionomia agradável e jovial do médico que trouxeram com os olhos vendados até ao pé do leito onde eu estava. Parece-me que estes indícios todos são de sobejo. Recapitulemos: a tapeçaria, o tecto o leito esculpido, as cortinas de damasco branco e franjas de ouro; um retrato e uma mulher. Vamos lá! preciso que eu procure onde vi tudo isto, e se não for o maior dos estúpidos, hei-de atinar. Mas primeiro, prosseguiu Bussy, para encetar o negócio convenientemente, vamos tomar um veículo próprio para andar correndo as ruas de noite, e depois para a Bastilha!

Em consequência desta resolução, bem pouco própria dum homem que, tendo escapado por um triz de ser assassinado na véspera, ia no dia imediato, e quase à mesma hora, explorar o mesmo sítio, Bussy subiu aos seus aposentos, mandou apertar a ligadura na ferida por um criado que entendia de cirurgia e que ele conservava ao seu serviço para o que desse e viesse, calçou umas botas que lhe chegavam até ao joelho, tomou a sua melhor espada embrulhou-se no capote, meteu-se na liteira, mandou parar no 6 da Rua do Rei da Sicília, apeou-se, disse aos criados que esperassem por ele, e, metendo- se pela Rua Direita de Santo António, encaminhou-se para o Largo da Bastilha.

Eram nove horas da noite, pouco mais ou menos. Os sinos já tinham dado o sinal de recoLher. Paris estava deserta.

Durante o dia o Sol tinha aparecido por alguns instantes, e o calor da atmosfera, derretendo o gelo, tornara o Largo da Bastilha num terreno semeado de tantos lagos e precipícios, quantos eram os charcos de água gelada e lameiros que nele havia, e que circundavam como um cais no caminho trilhado que já descrevemos.

Bussy tratou de se orientar; procurou o sitio onde o cavalo se Lhe fora abaixo, e pareceu-lhe que o tinha achado; fez os mesmos movimentos de retirada e de ataque que se lembrava de ter feito na véspera; recuou até à parede e examinou as portas uma a uma para ver se dava com o recanto a que se encostara e com o postigo por onde estivera olhando para Quélus.

Mas todas as portas tinham um vão, e quase todas um postigo; todas as entradas, com pequenas excepções, eram por corredores com porta fechada fatalidade esta que não causará admiração, quando se reflectir que nas casas dos burgueses daquela época não havia guarda-portões.

Por Deus! disse consigo Bussy, profundamente despeitado, ainda que me seja necessário bater a cada uma destas portas e interrogar todos os inquilinos; ainda que tenha de gastar mil cruzados para obrigar a falar os criados e as velhas, hei-de saber o que pretendo. As casas serão umas cinquenta; a dez por noite, venho a perder cinco noites; mas hei-de esperar que melhore o tempo.

Bussy acabava este monólogo, quando avistou uma luzinha, trémula e baça, que se aproximava reflectida pela água das poças, como a lanterna dum barco que navega.

A luz encaminhava-se para ele devagar e com andamento desigual, parando de quando em quando, obliquando umas vezes à esquerda outras à direita, e outras vezes tropeçando de repente, e dançando como um fogo-fátuo; depois tornava a andar com sossego, e passados instantes divagava novamente.

Está visto, disse Bussy, que o Largo da Bastilha é um sítio muito célebre; mas não importa: esperemos.

E Bussy, para esperar mais comodamente, embuçou-se no capote e ocultou-se no vão duma porta. A noite estava tão escura que não era possível ver à distância de três passos.

A lanterna continuava a aproximar-se, fazendo as mais extravagantes evoluções. Porém, como Bussy não era supersticioso, logo se convenceu de que a luz que via não era nenhum meteoro daqueles que tanto susto causavam aos viajantes na Idade Média, mas simplesmente uma luz, que uma mão pertencente a um corpo qualquer segurava.

Efectivamente, depois de alguns segundos de espera, viu que era justa a sua conjectura. Bussy avistou, à distância de trinta passos pouco mais ou menos, um vulto negro, comprido e delgado como um poste, o qual foi tomando gradualmente os contornos dum ente vivo, segurando a lanterna com a mão esquerda, que ora estendia para a frente, ora para o lado, e de vez em quando deixava-a pender junto ao corpo.

O tal ente vivo figurava pertencer, naquela ocasião, à honrosa confraria dos bêbados, porque só à embriaguez se poderiam atribuir os extraordinários rodeios que fazia, e a espécie de filosofia com que tropeçava nos buracos lamacentos e patinhava nas poças de água.

Duma das vezes até lhe sucedeu escorregar numa camada de gelo mal derretido, e uma bulha surda, acompanhada dum movimento involuntário da lanterna, que parecia precipitar-se de alto a baixo, deu a conhecer a Bussy que o passeante nocturno, pouco firme sobre os dois pés, tinha procurado um centro de gravidade mais sólido.

Bussy sentiu-se desde logo possuído daquela espécie de respeito com que todo o homem de coração bem formado olha para um bêbado que se demorou na rua até fora de horas, e já se adiantava para prestar auxílio ao tal sectário de Baco, quando viu que a lanterna se tornava a erguer com uma rapidez que inculcava que a pessoa que tão mau uso fazia dela ainda conservava uma firmeza muito maior do que aquela que na aparência mostrava.

Está bom, murmurou Bussy, temos mais outra aventura, segundo creio! " E como a lanterna tornava a andar e parecia caminhar directamente para onde ele estava, procurou ocultar-se o mais que pôde para dentro do vão da porta.

A lanterna deu ainda uns dez passos, e então Bussy à luz que ela projectava, observou uma coisa extraordinária: é que o homem que trazia a lanterna vinha com os olhos vendados.

Cos demónios! disse ele, que ideia singular, jogar a cabra-cega com uma lanterna na mão, com o tempo que está e num terreno como este! Estarei eu outra vez a sonhar. "

Bussy continuou a observar o caso, e o homem dos olhos vendados deu mais uns cinco ou seis passos.

Deus me perdoe, disse Bussy, mas parece-me que o sujeito vem a falar só. Nesse caso não é nem bêbado nem doido; é algum matemático que procura a solução dum problema.

Esta última reflexão fora seguida ao observador por algumas palavras que o homem da lanterna pronunciara, e que Bussy tinha ouvido.

- Quatrocentos e oitenta e oito, quatrocentos e oitenta e nove. - murmurava o homem da lanterna -, deve ser muito perto daqui.

E dizendo isto, a misteriosa personagem levantou a venda com a mão direita, e achando-se em frente duma casa, aproximou-se da porta. Chegado ao pé dela, examinou-a com atenção.

- Não - disse ele -, não é aqui.

Depois tornou a abaixar a venda, e pôs-se outra vez a andar, prosseguindo no seu cálculo.

- Quatrocentos e noventa e um, quatrocentos e noventa e dois, quatrocentos e noventa e três, quatrocentos e noventa e quatro. deve estar a ferver - disse ele.

Tornou a levantar a venda; e, aproximando-se da porta contígua àquela em que Bussy estava oculto, examinou-a com a mesma atenção com que tinha examinado a primeira.

- Bem podia ser esta - disse ele -, mas não me cheira; o diabo das portas são todas parecidas!

Aquela mesma reflexão já eu fiz, disse Bussy lá consigo; parece-me que o matemático merece alguma consideração.

O matemático tornou a baixar a venda e continuou no seu caminho - Quatrocentos e noventa e cinco, quatrocentos e noventa e seis, quatrocentos e noventa e sete, quatrocentos e noventa e oito, quatrocentos e noventa e nove. Se houver alguma porta na minha frente - disse o pesquisador -, deve ser essa.

Com efeito, havia ali mesmo uma porta, e essa porta era aquela em que Bussy se tinha ocultado; resultou daí que quando o presumido matemático levantou a venda, ele e Bussy viram-se em face um do outro.

- Que é isso? - disse Bussy.

- Oh! - exclamou o homem da lanterna, recuando um passo.

- Então? - disse Bussy.

- Não é possível! - exclamou o desconhecido.

- Sim, realmente é extraordinário. O senhor não é o médico...

- E o senhor não é o fidalgo.

- Exactamente.

- Meu Deus! Que felicidade!

- Sim, o médico - continuou Bussy - que ontem à noite pensou um cavaleiro que recebeu uma cutilada no lado.

- Direito.

- Isso mesmo; reconheci-o imediatamente; é então o senhor que tem uma mão muito macia e muito leve, e também muito hábil?

- Oh! Não esperava encontrá-lo aqui.

- Que andava o senhor procurando?

- A casa.

- Ah! - exclamou Bussy. - Com que então procurava a casa?.

- Sim senhor.

- Pois não a conhece?

- Como quer que eu a conheça - respondeu o médico -, se me trouxeram com os olhos vendados.

- Ah! Trouxeram-no com os olhos vendados.

- Exactamente.

- Mas então sempre veio realmente a esta casa?.

- A esta, ou a alguma das que ficam próximas; não posso dizer qual, porque ainda a estou procurando.

- Bem - disse Bussy -, então não foi sonho!

- Como, não foi sonho?

- Eu lhe digo, meu caro amigo: é que eu julgava que toda essa aventura, excepto a cutilada, já se sabe, tinha sido um sonho.

- Pois olhe, meu caro Senhor - disse o médico -, isso é que me não causa admiração nenhuma.

- Por que motivo?

- É que eu desconfiava que havia algum mistério.

- Há, sim, meu amigo, e é um mistério que eu quero penetrar; há-de ajudar-me, não é verdade?

- Com todo o gosto.

- Bem; mas primeiro que tudo, duas palavras.

- Diga.

- Como se chama?

- Senhor - respondeu o médico, que era um rapaz ainda muito novo -, não me quero ver rogado. Bem sei que segundo o estilo hoje em moda, para responder a uma semelhante pergunta, deveria tomar uma atitude bélica, e dizer-lhe com a mão na ilharga: E o senhor, que a nome tem? Porém vejo que traz uma espada muito comprida, e eu apenas trago a minha lancetta. O senhor tem a aparência dum honrado cavaleiro, e eu devo-Lhe parecer um qualquer-coisa, assim molhado como estou e salpicado de lama até à cabeça. Em vista do que, estou resolvido a responder francamente à sua pergunta: chamo-me Rémy le Haudouin.

- Muito bem, e mil vezes obrigado. Eu sou o conde Luís de Clermont, senhor de Bussy.

- Bussy de Amboise? Bussy, o herói? - exclamou o doutor com visível alegria. - Pois quê? O senhor é o famoso Bussy, o coronel que. a quem. Oh!

- Sou eu mesmo, Senhor Doutor - respondeu o fidalgo com modéstia. - E agora, que ambos sabemos com quem estamos falando, satisfaça-me por favor a curiosidade, apesar de estar tão molhado e tão salpicado de lama.

- O caso é que - disse o mancebo olhando para os calções manchados de lama -, a exemplo de Epaminondas, o Tebano, há- de-me ser preciso estar em casa três dias, pois não tenho senão um par de calções e um único gibão. Mas perdão; parece-me que me estava fazendo a honra de me interrogar.

- Sim senhor, queria perguntar-Lhe como foi que veio a esta casa.

- É uma história muito simples e muito complicada ao mesmo tempo; vai ajuizar - disse o mancebo.

- Vejamos.

- Perdão, Senhor Conde, estou tão impressionado, que me esquecia tratá-lo pelo seu título.

- Isso não vem ao caso, continue.

- Senhor Conde, eis o que me sucedeu: Eu moro na Rua de Beautreillis, à distância de quinhentos e dois passos daqui. Sou um simples aprendiz de cirurgia, mas posso assegurar-lhe que tenho alguma destreza.

- Eu que o diga - respondeu Bussy.

- E tenho estudado muito - prosseguiu o mancebo -; mas não tenho clientes. Chamo-me, como já lhe disse, Rémy le Haudouin, porque nasci em Nanteuil-le-Haudouin. Aconteceu, haverá sete ou oito dias, darem uma facada num homem, por detrás do Arsenal; fui eu quem o tratou: cosi-Lhe a pele da barriga, tendo previamente recolhido com toda a delicadeza para dentro da pele os intestinos, que já iam saindo. Esta cura granjeou-me na vizinhança uma certa reputação, e a ela atribuo a felicidade que tive de ser acordado ontem de noite por uma voz meiga.

- Era voz de mulher? - exclamou Bussy.

- Sim; porém note, cavalheiro, que apesar de eu ser muito rústico, estou certo de que era voz de criada. Tenho voto na matéria, porque tenho ouvido mais vozes de criadas do que de amas.

- E depois que fez?

- Levantei-me e fui abrir a porta; mas apenas cheguei ao patamar, duas mãozinhas que não eram muito macias, mas que também não me pareceram muito ásperas, ataram-me um lenço sobre os olhos.

- Sem dizer coisa alguma? - perguntou Bussy.

- Dizendo-me: Venha; não procure ver por onde vai; seja discreto; eis aqui a sua recompensa.

- E a recompensa era?.

- Uma bolsa contendo peças de oiro de dez libras, que ela me meteu na mão.

- Ah, ah! E o senhor que respondeu?

- Que estava pronto a acompanhar a minha formosa condutora. Eu não sabia se ela era formosa ou não, mas pensei que o epíteto, ainda que fosse algum tanto exagerado, não fazia mal ao caso.

- E acompanhou-a sem fazer observação alguma, sem exigir garantias?

- Tenho lido muitas vezes nos meus livros histórias semelhantes a esta, e tenho observado que o resultado é sempre agradável para o médico. Acompanhei-a, pois, como tenho a honra de Lhe dizer; conduziu-me por um caminho áspero; o chão estava como que gelado; e fui contando quatrocentos, quatrocentos e cinquenta, quinhentos, e finalmente, quinhentos e dois passos.

- Muito bem - disse Bussy -; era medida de prudência; então esta é que deve ser a porta?

- Se não for esta, não pode ser muito longe dela, pelo menos; porque desta vez contei até quatrocentos e noventa e nove, se a ladina da rapariga que me acompanhava não me fez dar algum rodeio, como suspeito.

- Bem; mas supondo que Lhe ocorresse essa lembrança - disse Bussy -, é impossível que não Lhe escapasse algum indício, que não proferisse algum nome.

- Nada.

- Mas o senhor não fez nenhuma observação?

- Observei tudo quanto se pode observar com dedos acostumados a substituirem às vezes os olhos; era uma porta com pregos de cabeça grande, passada a porta um corredor; no fim do corredor, uma escada.

- Da parte esquerda?

- Isso mesmo. Até contei os degraus.

- Quantos eram?

- Doze.

- E logo à entrada para a casa?

- Sim senhor; e pareceu-me que havia outro corredor, porque abriram três portas.

- Muito bem.

- Depois ouvi uma voz. Ah! Essa sim, era voz de ama, suave e delicada.

- Sim, sim, era a dela.

- Bom, seria a dela.

- Estou certo que era.

- Essa certeza já adianta alguma coisa. Depois conduziram-me ao quarto onde o senhor estava deitado, e disseram-me que destapasse os olhos.

- Isso mesmo.

- Então foi que o vi.

- Onde estava eu?

- Deitado num leito.

- Era um leito guarnecido de damasco com flores de ouro?

- Exactamente.

- Num quarto ornado de tapeçarias?

- Sem tirar nem pôr.

- Com figuras pintadas no tecto?

- Sim senhor; e além disso, entre as duas janelas.

- Um retrato?

- Admirável.

- Figurando uma mulher de dezoito a vinte anos?

- Sim senhor.

- Loira?

- Exactamente.

- Linda como um anjo?

- Ainda mais linda.

- Bravíssimo! E depois que fez?

- Curei-lhe a ferida.

- E creia que muito bem.

- Foi o melhor que pude.

- Perfeitamente, meu caro Senhor, perfeitamente; porque esta manhã já a chaga estava quase sarada e apresentando uma cor muito rosada.

- É devido à virtude dum bálsamo que eu compus, e que julgo muito eficaz; porque já muitas vezes, não tendo em quem fazer experiências, tenho-me ferido em diferentes lugares da minha própria pele, e dentro de dois ou três dias logo as feridas saram com o meu remédio.

- Meu querido Sr. Rémy - exclamou Bussy -, estou simpatizando imenso consigo. Mas depois? Vamos, diga.

- Depois, o senhor tornou a desmaiar. A voz pediu-me que Lhe desse a minha opinião a respeito do seu estado.

- De onde Lhe falava ela?

- Do quarto imediato.

- De forma que não viu essa senhora?

- Não a pude lobrigar.

- Respondeu-Lhe.

- Que a ferida não era perigosa, e que dentro de vinte e quatro horas estaria pronto.

- Ela Ficou contente?

- Contentíssima, porque logo exclamou: Que felicidade, meu Deus!

- Pois ela disse que felicidade"? Meu caro Sr. Rémy, encarrego-me da sua fortuna. Mas depois?

- Depois, tudo estava acabado; visto o senhor estar curado, eu não tinha mais nada que fazer ali; a voz então disse-me: Sr. Rémy.

- Ela sabia o seu nome?

- Sabia, provavelmente em consequência do caso da facada que já lhe contei.

- É verdade; ela disse-lhe pois: Sr. Rémy. porte-se como homem honrado até ao fim; não comprometa uma pobre mulher que procedeu por um excesso de humanidade; torne a pôr a venda nos olhos, sem fraude, e consinta que o conduzam até sua casa.

- Prometeu-Lhe?

- Dei a minha palavra.

- E cumpriu?

- Bem vê que sim - respondeu ingenuamente o mancebo -; por isso ando agora procurando a porta.

- Está bom - disse Bussy -, portou-se como homem de bem; e apesar da desesperação que isso me causa, não posso deixar de Lhe dizer: toque, Sr. Rémy!

E Bussy, cheio de entusiasmo, estendeu a mão ao doutor.

- Senhor. - disse Rémy, hesitando.

- Dê-me a sua mão, dê-me a sua mão, que o seu comportamento foi o de um cavalheiro.

- Senhor - disse Rémy -, será para mim uma glória eterna ter apertado a mão do valente Bussy de Amboise; entretanto, conservo um escrúpulo.

- Qual é?

- Havia dentro da bolsa dez peças de ouro.

- E então?

- Era muito para um homem que apenas exige cinco soldos pelas suas visitas, quando não as faz de graça; e eu procurava a casa.

- Para restituir a bolsa?

- Justamente.

- Meu caro Sr. Rémy, isso é levar muito longe a delicadeza e o escrúpulo; ganhou esse dinheiro honradamente, e sem questão pertence-lhe.

- Julga isso? - perguntou Rémy, muito satisfeito interiormente.

- Assim Lhe afianço; porém, sempre lhe direi que não era essa senhora quem devia pagar-Lhe, porque eu não a conheço, nem ela me conhece a mim.

- Bem vê que isso é mais uma razão.

- Quero dizer, unicamente, que eu também contraí uma dívida para com o senhor. - O senhor, uma dívida para comigo?.

- Sim senhor, e hei-de solvê-la. Que faz em Paris? Vejamos. diga-me. Faça-me seu conFidente, meu querido Sr. Rémy.

- O que faço em Paris? Nada, Senhor Conde; mas poderia fazer alguma coisa se tivesse clientes. - Pois bem! Isto vai às mil maravilhas; vou dar-Lhe já um cliente. Quer-me a mim? Olhe que sou um óptimo freguês. Não se passa, a bem dizer, um único dia que eu não deteriore mais, ou que alguém não destrua em mim, a obra mais perfeita do Criador, Vamos lá. Quer incumbir-se do conserto dos rasgões que Fizerem na minha pele e dos buracos que eu fizer na pele dos outros?

- Ah! Senhor Conde - disse Rémy -, não tenho suFiciente merecimento.

- Bem pelo contrário, o senhor é exactamente o homem de que eu preciso, ou os diabos me levem! Tem a mão leve como se fora mão de mulher, e, além disso, o célebre bálsamo de Ferragus.

- Senhor Conde.

- Virá morar para minha cása; terá um quarto e criados para o servirem; aceite, senão, creia-me, terei grande pesar. E demais a mais, ainda não concluiu a sua obra; há-de ser preciso aplicar-me segundo apósito à ferida, meu caro Sr, Rémy.

- Senhor Conde - respondeu o jovem doutor -, é tal o meu contentamento, que não sei como Lhe hei-de mostrar a alegria que sinto, Poderei agora trabalhar, hei-de ter muitos clientes! - Isso não; se eu Lhe estou dizendo que o quero só para mim. e para os meus amigos bem entendido. E agora, diga-me: não se lembra de mais alguma coisa?

- Não senhor.

- Pois bem! Ajude-me então a memória, se Lhe é possível.

- Como?

Vejamos. o senhor, que é um homem a quem nada escapa, que teve a pachorra de contar os passos que deu, que apalpa as paredes e observa as diferenças das vozes, não me dirá como Foi que, depois da minha ferida curada, me transportaram desta casa para a borda do posso do Templo?

- Ao senhor?

- Sim. a mim. também ajudou a levar-me?

- Não senhor! Bem pelo contrário, ter-me-ia oposto se me tivessem consultado. O frio da noite podia ser-lhe muito nocivo.

- Nesse caso, já não sei que deva pensar - disse Bussy. - Não quer ajudar-me um pouco nas minhas pesquisas?

- Senhor Conde, estou por tudo que quiser; mas receio muito que seja trabalho baldado; todas estas casas se parecem umas com as outras.

- Pois então - disse Bussy -, havemos de examinar isto de dia.

- Pois sim, mas de dia seremos vistos.

- Então é preciso procurarmos informações.

- Havemos de nos informar, Senhor Conde.

- E havemos de conseguir o nosso fim. Acredite no que Lhe digo, Rémy; somos dois agora com o mesmo desejo, e temos uma realidade, o que já é muito.

 

         QUE QUALIDADE DE HOMEM ERA O SENHOR MONTEIRO MOR BRYAN DE MONSOREAU

Bussy não cabia em si de contentamento, desde que adquirira a certeza de que a mulher que vira em sonhos era uma realidade, e que lhe tinha ministrado efectivamente a generosa hospitalidade de que ele conservava no fundo do coração uma vaga lembrança.

E por isso não quis separar-se do doutor que acabava de tomar para seu médico particular. Rémy subiu com ele para a liteira. Bussy receava, perdendo-o de vista um único instante, que lhe desaparecesse como uma visão; tencionava pois trazê-lo para o seu palácio, fechá-lo à chave durante aquela noite, e no dia seguinte deliberar se devia dar-Lhe a liberdade.

Durante o trajecto continuou com as suas indagações; porém as respostas não saíam do círculo bastante limitado que há pouco indicámos. Rémy le Haudouin pouco adiantava ao que Bussy já sabia; a única diferença era que, não tendo ele desmaiado, tinha a certeza de não ter sonhado.

Porém, para um homem que vai começando a apaixonar-se por uma mulher, e era esse o caso de Bussy, é uma grande fortuna ter alguém com quem possa falar da pessoa a quem se ama. Rémy não tinha visto a tal senhora; mas essa circunstância ainda lhe dava mais valor aos olhos de Bussy, porque Lhe permitia poder descrever-lhe quanto era superior em tudo ao retrato.

Bussy estava muito disposto a levar a noite toda a conversar a respeito da dama incógnita; porém Rémy começou a exercer as suas funções de doutor, exigindo que o ferido dormisse, ou pelo menos se deitasse; o cansaço e a dor também aconselhavam o mesmo ao galante mancebo e estes três poderes juntos conseguiram resolvê-lo a ir para o leito.

Contudo, Bussy não quis recolher-se sem ter previamente dado posse ao novo hóspede de três quartos que tinham sido outrora a sua habitação de rapaz, e formavam parte do terceiro andar do Palácio de Bussy; e logo que teve a certeza de que o médico que se mostrava satisfeito com a sua nova residência e com a fortuna que a Providência lhe, deparara, não procuraria fugir clandestinamente do palácio, voltou para o esplêndido quarto que ocupava no primeiro andar.

No dia seguinte, quando acordou, deu com Rémy em pé junto do leito. O mancebo tinha passado a noite sem poder acreditar em tanta felicidade que lhe caíra do Céu e estava esperando que Bussy acordasse para ter a certeza de que também não tinha sonhado.

- Bons dias! - disse Rémy - como se sente?

- Perfeitamente, meu caro Esculápio; e o senhor, está satisfeito?

- Tão satisfeito, meu excelente protector, que não trocaria por certo a minha sorte pela de el-rei Henrique III, apesar de ele estar em tão bom caminho de ir para o Céu depois do que ontem praticou. Mas não se trata agora disso, vamos ver a ferida.

- Veja lá.

E Bussy voltou-se de lado, para que o médico Lhe pudesse levantar os apósitos.

Não havia novidade; os bordos da ferida estavam cor-de-rosa e iam unindo. Bussy, sentindo-se feliz, dormira bem, e tendo o sono e a felicidade ajudado à cura pouco restava que fazer ao médico. - Então? - perguntou Bussy - que me diz a isto, Senhor Professor?

- Digo que não me atrevo a confessar-Lhe que está quase bom, com receio de que me não torne a mandar para a minha Rua Beautreillis, a quinhentos e dois passos da célebre casa.

- Com a qual havemos de dar, não é assim, Rémy?

- Que dúvida!

- Mas ias tu dizendo, meu Filho?... - disse Bussy.

- Perdão, meu Senhor! - exclamou Rémy com os olhos arrasados de lágrimas – mas parece-me que me tratou por tu...

- Rémy, eu costumo tratar por tu as pessoas de quem sou amigo. Não gostas que te trate por tu?

- Pelo contrário - exclamou o mancebo, agarrando na mão de Bussy e procurando beijá-la -, pelo contrário! receava não ter ouvido bem. Oh! O senhor quer que eu endoideça de alegria?...

- Não, meu amigo; quero unicamente que também me tenhas alguma amizade, que te consideres aqui como em tua casa, e que me dês licença para ir assistir hoje, enquanto tratas da tua mudança, ao acto de posse do monteiro-mor da corte.

- Ah! - disse Rémy - Quer já começar a fazer extravagâncias.

- Não tenhas receio, prometo-te que hei-de ter muito juízo.

- Mas sempre Lhe há-de ser preciso montar a cavalo.

- Isso é indispensável.

- E tem acaso algum cavalo muito manso e de boa andadura?

- Tenho quatro à escolha.

- Pois bem! Mande aparelhar hoje para si aquele que escolheria para emprestar à senhora do retrato; sabe a quem me refiro, não sabe?

- Ah! Ainda me perguntas se sei! Olha, Rémy, acabaste agora de assenhorear-te do meu coração para sempre; estava receando imenso que me proibisses de ir à tal caçada, ou, para melhor dizer, ao tal simulacro de caçada, porque hão-de concorrer a ela as senhoras da corte e grande número de mulheres da capital. Ora, meu caro Rémy já se vê que a senhora do retrato ou há-de pertencer à corte, ou há-de estar no número dos espectadores da cidade. Não pode ser uma simples burguesa; aquelas tapeçarias, aqueles esmaltes tão finos, o tecto estucado, o leito de damasco e ouro, e, finalmente, todos aqueles objectos de luxo e de tão bom gosto dão a conhecer que é senhora de distinção, ou pelo, menos muito rica; se eu a encontrasse na caçada!... Como era feliz!

- Tudo é possível - respondeu filosoficamente Haudouin.

- Menos o tornarmos a dar com a casa - disse Bussy com um profundo suspiro.

- E entrarmos dentro, quando tivermos acertado com ela - acrescentou Rémy.

Oh! Essa dificuldade nunca me ocorre senão quando já estou da parte de dentro - disse Bussy -; e além disso, quando chegarmos a esse ponto - prosseguiu ele -, tenho um meio infalível.

- Qual é?

- É procurar que me dêem outra estocada.

- Bem - disse Rémy -, em vista dessa lembrança, devo esperar que me conservará por muito tempo na sua companhia.

- Fica descansado - disse Bussy -, parece- me que já te conheço há vinte anos; e, pela minha fé de cavalheiro já não posso passar sem ti!

No rosto agradável, do jovem praticante brilhou a expressão duma indizível alegria.

- Vamos lá -, replicou ele -, é negócio tratado; vai à caçada em procura da senhora, e eu volto à Rua Beautreillis em procura da casa.

- Tinha que ver - disse Bussy -, se cada um de nós voltasse com a sua descoberta. E ditas estas palavras, Bussy e Haudouin separaram-se, mais como dois amigos do que como amo e criado.

Tinha-se determinado, com efeito, uma grande caçada no bosque de Vincenas para solenizar o acto de posse do Sr. de Bryan de Monsoreau, que tinha sido nomeado para o cargo de monteiro-mor havia algumas semanas.

A procissão da véspera e a austera penitência do rei, para quem a Quaresma tinha começado na Terça-Feira Gorda, fizeram com que muitas pessoas julgassem que ele não assistiria em pessoa à caçada; porque quando o rei se entregava aos seus acessos de devoção passava às vezes semanas inteiras sem sair do Louvre, quando não levava o rigorismo a ponto de entrar em algum convento; porém, pelas nove horas da manhã, soube-se, com grande admiração de toda a corte, que o rei tinha ido para o Castelo de Vincenas com tenção de acompanhar o irmão, o Senhor Duque de Anju, e toda a corte, à caça dos gamos.

O ponto de reunião era na Encruzilhada do Rei S. Luís. Era assim que chamavam naquela época a um largo onde existia, segundo diz a tradição, o célebre carvalho debaixo do qual se sentava o rei-mártir para administrar a justiça. Estavam pois todos reunidos às nove horas, quando o novo oficial da casa real, assunto de curiosidade de todos, por isso que poucas pessoas o conheciam na corte, apareceu, montado num magnífico cavalo preto.

Todas as vistas se dirigiram para ele.

Era um homem de trinta e cinco anos, pouco mais ou menos, e de elevada estatura. o seu rosto bexigoso, ao qual assomavam, de vez em quando, malhas fugitivas de cor avermelhada, conforme as impressões que sentia, desagradava à primeira vista, e obrigava os olhos a contemplá-lo com mais atenção, circunstância esta que poucas vezes redunda em favor do indivíduo que passa pelo exame.

E, na verdade, as simpatias nascem geralmente do primeiro aspecto; um olhar franco e sorriso leal dispõem logo à benevolência.

O Sr. de Monsoreau, com o seu sobretudo de pano verde agaloado de prata, boldrié de prata com as armas reais bordadas num escudo, gorro ornado duma comprida pluma, brandindo na mão esquerda uma lança curta, e na direita o bastão destinado ao rei, podia parecer talvez um fidalgo temível, mas não era por certo um galante cavaleiro.

- Apre! Que feia carantonha nos trouxe do seu ducado, meu Senhor - disse Bussy para o duque de Anju -; fidalgos destes é que Vossa Alteza manda buscar à província para serem seus validos? Diabos me levem se alguém fosse capaz de encontrar outro semelhante em Paris, apesar de ser a cidade tão extensa e não haver por cá falta de gente disforme. Disseram-me, mas devo confessar a Vossa Alteza que não quis acreditar, que foi o Senhor Duque o empenho para que el-rei o nomeasse monteiro-mor.

- O Sr: de Monsoreau tem-me servido bem - respondeu o duque de Anju laconicamente -; por isso o recompensei.

- Muito bem, meu Senhor; a gratidão é uma virtude que muito honra os príncipes, por isso mesmo que é neles bem rara; mas essa não é agora a questão; parece-me que também eu o tenho servido fielmente, e peço-lhe que acredite que o uniforme de monteiro- mor me havia de ficar muito melhor do que àquele fantasma agigantado. E tem a barba ruiva, demais a mais! Ainda não tinha reparado em mais essa formosura!

- Nunca ouvi dizer - respondeu o duque de Anju - que fosse necessário ser um modelo de Apoio, para exercer os empregos da casa real.

- Nunca tal ouviu dizer, meu Senhor? - replicou Bussy com o maior sangue-frio - pois admira-me.

- Eu avalio o coração e não o rosto - respondeu o príncipe -; os serviços prestados e não os prometidos.

- Vossa Alteza há-de dizer que eu sou muito curioso - tornou Bussy -, porém confesso que, por mais que escogite, não posso atinar com a natureza do serviço que este Monsoreau Lhe pôde prestar.

- Ah! Bussy - respondeu o duque com enfado -, disseste bem; és muito curioso, demasiadamente curioso.

- Assim é que são todos os príncipes! - exclamou Bussy com a liberdade do costume.

- Estão continuamente a perguntar, e é preciso responder-lhes a tudo; mas se por acaso se lhes dirige uma única pergunta, não respondem.

- É verdade - disse o duque de Anju -; mas sabes o que hás-de fazer se desejas informar-te melhor?

- Não sei.

- Vai perguntar ao próprio Sr. de Monsoreau.

- É verdade - disse Bussy -, Vossa Alteza tem razão; com ele, ao menos, como é meu igual, sempre me ficará um recurso, se não me responder.

- Qual é?

- Dizer-Lhe que é muito insolente.

E voltando as costas ao príncipe sem mais reflexões, depois desta resposta, encaminhou-se, na presença dos seus amigos, e de chapéu na mão, para o Sr. de Monsoreau, o qual, parado a cavalo no meio do círculo, e tornado alvo de todos os olhos que sobre ele convergiam, esperava com admirável sangue-frio que o rei viesse livrá-lo do peso de todas aquelas vistas. Quando viu aproximar-se Bussy de cara risonha e chapéu na mão, amenizou um pouco - o semblante.

- Peço-lhe perdão, Sr. de Monsoreau - disse Bussy -, mas vejo-o aqui muito só. Dar-se-á o caso que o valimento de que presentemente goza lhe criasse já tantos inimigos quantos

eram talvez os amigos que tinha antes de ser nomeado monteiro-mor?

- Por minha fé, Senhor Conde - respondeu o senhor de Monsoreau -, não iria afirmá-lo, mas aposto que assim é. Porém, ser-me-á lícito saber a que motivo devo a honra que me Faz vindo assim perturbar a minha solidão?

- Não há outro - respondeu denodadamente Bussy - senão a grande admiração que o duque de Anju me soube inspirar pelo senhor.

- Como assim?

Contando-me as suas façanhas, e especialmente a última, em remuneração da qual foi nomeado monteiro-mor.

O Sr. de Monsoreau enfiou de tal maneira, que as pintas das bexigas que lhe matizavam o rosto tornaram-se-Lhe outros tantos pontos negros sobre a pele amarelada; e ao mesmo tempo

encarou Bussy com um modo que parecia pressagiar uma tempestade violenta. Bussy conheceu que tinha errado o caminho; mas não era ele homem que recuasse; bem pelo

contrário, era daqueles que costumam remediar uma indiscrição com uma insolência. - Diz, Senhor Conde - respondeu o monteiro-mor -, que Sua Alteza lhe contou a minha última façanha?

- Sim senhor - disse Bussy -, com todos os pormenores; e confesso que me despertou o desejo de ouvir essa narração da sua própria boca.

O Sr. de Monsoreau apertou convulsivamente a haste da lança, como quem desejava virar essa arma contra Bussy.

- Digo-Lhe, na verdade, Senhor - respondeu ele -, que estava disposto a retribuir o seu obséquio anuindo ao pedido que me faz; mas infelizmente chega el-rei, e não tenho tempo para o fazer; porém, se quiser, Ficará para mais tarde.

E com efeito o rei, montado no seu cavalo favorito, que era um bonito ginete espanhol de cor baia, vinha galopando com rapidez do castelo para a encruzilhada.

Bussy, descrevendo um meio círculo com a vista, deu com os olhos nos do duque de Anju; o príncipe sorria de modo bem pouco satisfatório.

Amo e criado, pensou Bussy, ambos fazem uma careta muito feia quando riem; que será então quando choram...

O rei gostava de fisionomias bonitas e agradáveis; não ficou portanto muito satisfeito com a do Sr. Monsoreau, que já tinha visto uma vez, e com quem não engraçou mais da segunda do que tinha engraçado da primeira. Contudo, aceitou com agrado o bastão que este Lhe apresentou, ajoelhando segundo o estilo.

Logo que o rei recebeu o bastão, os moços da coutada anunciaram que o gamo estava desencovado, e começou a caçada.

Bussy foi colocar-se no flanco do cortejo, de maneira que via desfilar todos pela sua frente; não passava senhora alguma que ele não examinasse se seria o original do retrato, mas foi debalde; estavam presentes mulheres muito bonitas, muito belas e muito sedutoras, naquela caçada em que se estreava o monteiro-mor; porém não estava entre elas a encantadora criatura que ele procurava.

Viu-se, pois, reduzido a gozar da conversação e da companhia dos seus amigos do costume. Antraguet, sempre alegre e falador, foi quem o distraiu do aborrecimento em que estava.

- Temos um monteiro-mor que mete medo - disse ele a Bussy -; não achas?

- Acho-o horrendo; e que família de bichos que há-de ser, se as pessoas que têm a honra de Lhe pertencerem, se parecem com ele! Mostra-me lá a mulher!

- O monteiro-mor ainda está para casar, meu caro amigo - respondeu Antraguet.

- E como sabes tu isso?

- Disse-mo a Sr. de Veudron, que o acha muito galante, e não se Lhe dava de fazer dele o seu quarto marido, como Lucrécia Bórgia com o conde de Este. Olha como ela vai metendo o cavalo baio a galope atrás do cavalo preto do Sr. Monsoreau.

- E que terras possui? - perguntou Bussy.

- Uma infinidade de terras.

- Situadas.

- No ducado de Anju.

- É por consequência muito rico?

- Assim dizem, mas não sei com certeza; tenho ouvido que a sua fidalguia é muito moderna.

- E quem é amante do fidalgote?

- Não tem amante: o estimável cavaleiro timbra em ser singular em tudo. Mas agora reparo que o Senhor Duque de Anju te está chamando por acenos; vamos depressa.

- Deixa-o chamar! O Senhor Duque de Anju que espere se quiser. Aquele homem despertou a minha curiosidade. Acho-o singular. Não sei por que me está parecendo que hei-de vir a ter alguma pendência com ele; é destas ideias que ocorrem às vezes, como sabes, quando sucede ver-se um individuo pela primeira vez. E daí. aquele nome, Monsoreau.

- Monte de rato - replicou Antraguet -, é esta a etimologia; foi o padre-mestre lá de casa que ma ensinou esta manhã: Mons Soricis.

- Já não quero saber mais nada - replicou Bussy

- Ah! Mas espera lá. - exclamou de repente Antraguet.

- Que é?

- Livarot conhece isso muito bem.

- Isso quê?

- O Mons Soricis. As terras dum confinam com as do outro.

- Pois vamos já saber isso sem demora. Olá! Livarot!

Livarot aproximou-se.

- Anda depressa, Livarot; vem cá.

- Que me querem? - perguntou o mancebo.

- Queremos informações a respeito de Monsoreau.

- Com todo o gosto.

- Levará muito tempo?

- Não, serei breve. Direi em três palavras o que sei e o que penso a seu respeito. Tenho medo dele!

- Bom! E agora, que já nos disseste o que pensas, diz-nos o que sabes dele.

- Ouve!. Voltava eu uma noite.

- A história começa duma maneira medonha - disse Antraguet.

- Não queres que conclua?

- Vamos lá.

- Voltava eu uma noite de casa do meu tio d'Entragues, e ia atravessando o bosque de Méridor, há-de haver seis meses pouco mais ou menos, quando de repente ouvi um grito espantoso, e vi passar entre as sarças um cavalo branco que ia fugindo sem cavaleiro; deitei a correr, e na extremidade duma comprida alameda, que as primeiras sombras da noite tornavam ainda mais escura, avistei um homem montado num cavalo preto; não corria, voava. Ouvi então novamente o mesmo grito, e divisei sobre o arção da sela uma mulher, cuja boca ele tapava com a mão. Eu tinha comigo o meu arcabuz de caça; sabes que não tenho má pontaria. Pu- lo à cara, e por minha fé que o teria morto, se no momento em que dava ao gatilho não se tivesse apagado o morrão.

- Muito bem! - interrompeu Bussy - e depois?

- Depois, perguntei a um homem que estava cortando lenha quem era aquele senhor do cavalo preto que assim roubava mulheres; respondeu-me que era o Sr. de Monsoreau.

- Então que dizes, Bussy?. - atalhou Antraguet. - Parece-me que roubar mulheres não é coisa que fique mal a ninguém!

- É verdade - replicou Bussy -; mas ao menos deixa-se-Lhes a faculdade de gritarem.

- E quem era a mulher? - perguntou Antraguet.

- Aí é que está o mistério, nunca se soube.

- Está bem! - disse Bussy - Vejo que é um homem notável, e vou simpatizando com ele.

- Tão notável - disse Livarot - que tem péssima reputação.

- E além desse facto que referiste, consta mais alguma coisa a seu respeito?

- Nada; nem se sabe que ele Fizesse nunca mal a pessoa alguma; até dizem que trata bem agente dos seus domínios; mas isso não obsta a que no distrito que até hoje tem tido a ventura de o possuir, tenham medo dele como se fora o Diabo. Além de tudo isto, é um caçador, não perante Deus, talvez, mas perante Satanás, e nunca el-rei teve um monteiro-mor tão bom. Há-de desempenhar o emprego muito melhor do que Saint-Luc, para quem estava destinado, e que ficou sem ele por influência do Senhor Duque de Anju.

- Não sei se sabes que o duque de Anju ainda continua a fazer-te acenos. - disse Antraguet.

- Bom, não faças caso; sabes tu o que por aí se diz a respeito de Saint-Luc?

- Não; o rei ainda o conservará engaiolado? - perguntou Livarot, rindo-se.

- Decerto, visto que não está aqui - respondeu Antraguet.

- Não há tal, meu caro; partiu esta noite, à uma hora, para ir fazer uma digressão pelas terras que a mulher Lhe trouxe em dote.

- Foi desterrado?

- Assim parece.

- Saint-Luc desterrado? É impossível!

- É certíssimo, meu caro amigo.

- Como soubeste tu isso?

- Foi o marechal de Brissac mesmo quem mo contou esta manhã.

- Ah! Essa é muito nova e muito célebre; sabes que esse acontecimento há-de fazer mal ao Monsoreau.

- Bem sei! - exclamou Bussy.

- Mas que sabes tu?

- Já adivinhei o que foi.

- O que foi então que adivinhaste?

- Qual foi o serviço que ele prestou ao Senhor Duque de Anju.

- Quem? Saint-Luc?

- Não, o Monsoreau.

- Deveras?

- Sim, os diabos me levem se não foi o que penso! Vê-lo-ás já; vem comigo. E Bussy, acompanhado de Livarot e de Antraguet, meteu o cavalo a galope para alcançar o duque de Anju, o qual, já cansado de lhe acenar, ia caminhando para a frente a alguma distância.

- Ah! meu Senhor - exclamou Bussy, quando chegou ao pé do príncipe -, que homem impagável que é aquele Sr. de Monsoreau!

- Ah! Deveras? - incrível!

- Então conversaste muito com ele? - perguntou o príncipe a rir.

- Decerto, e achei-o demais a mais muito instruído.

- E perguntaste-lhe que tinha ele feito por mim?

- Sem dúvida, foi unicamente para esse fim que me dirigi a ele.

- E ele respondeu-te? - perguntou o duque, mostrando-se ainda mais alegre.

- No mesmo instante, e com tal urbanidade que muito me penhorou.

- E que te disse? Vamos, conta-me lá isso, meu valente escaldafavais - acrescentou o príncipe.

- Confessou-me ingenuamente, meu Senhor, que era fornecedor de Vossa Alteza.

- Fornecedor de caça?

- Nada; de mulheres.

- Que história é essa? - disse o duque carregando logo o semblante; - que significa essa brincadeira, Bussy?

- Quer dizer, meu Senhor, que ele rouba mulheres para Vossa Alteza, e foge com elas levando-as sobre o arção da sela daquele imenso cavalo preto; e como elas, coitadas, gritam por não saberem provavelmente a honra a que estão destinadas, tapa-lhes a boca com a mão para se calarem.

O duque encrespou as sobrancelhas, crispou os punhos com raiva, tornando-se fulo ao mesmo tempo, e meteu o cavalo a tal galope, que Bussy e os seus companheiros Ficaram para trás.

- Ah! Ah! - disse Antraguet. - Parece-me que o gracejo teve seu chiste.

- Tanto chiste - respondeu Livarot - que segundo me parece nem toda a gente o tomou como gracejo.

- Cos demónios! - disse Bussy - está-me parecendo que atirei a matar ao pobre duque! Dali a um instante, ouviu-se a voz do duque de Anju, gritando:

- Olá! Bussy, onde estás tu? Anda para aqui!

- Aqui estou, meu Senhor - respondeu Bussy adiantando-se.

Deu com o príncipe rindo às gargalhadas.

- Ora esta - disse ele -, parece-me que Vossa Alteza está achando graça ao que eu Lhe disse!

- Não, Bussy não é do que tu me disseste que me estou a rir.

- Pois sinto muito; antes queria que assim fosse, para ter tido a glória de fazer rir um príncipe que nunca ri.

- Estou a rir, meu pobre Bussy, por ver como vieste dizer-me uma mentira para apanhares uma verdade.

- Não! Os diabos me levem, meu Senhor, se lhe não disse a verdade.

- Muito bem. Então enquanto ninguém nos ouve, conta-me a tua história; onde foste tu buscar aquilo que me disseste?

- Aos bosques de Méridor, meu Senhor.

O duque tornou a enfiar, mas não respondeu coisa alguma.

Não há dúvida nenhuma, disse Bussy consigo, que o duque não é estranho à história do rapto da dona do cavalinho branco.

- Diga-me Vossa Alteza - prosseguiu Bussy em voz alta e rindo por ver que o duque já não ria - de que natureza são os serviços que mais lhe agradam, e tenha a certeza que lhos prestarei, ainda que seja necessário entrar em concorrência com o Sr. de Monsoreau.

- Pois sim, Bussy podes prestar-me um serviço - disse o duque -, e eu te explico qual é.

O duque puxou Bussy de parte.

- Ouve - disse ele -: encontrei por acaso na igreja uma mulher encantadora; como algumas feições do seu rosto, que levava tapado com um véu, me trouxeram à lembrança uma outra mulher de quem muito gostei, segui-a quando saiu, e fiquei sabendo onde ela mora.

Já seduzi a criada e tenho uma chave da casa.

- Muito bem! Até aí, meu Senhor, parece-me que é negócio muito corrente.

- Espera lá. Dizem-me que é honesta, apesar de ser solteira, moça e bonita.

- Ah, meu Senhor, passamos agora para a parte Fantástica!

- Ouve-me: tu és valente e és meu amigo, segundo dizes?

- Conforme os dias.

- Para seres valente?

- Não, para ser seu amigo.

- Bem. E hoje é dia de seres meu amigo?

- Para servir a Vossa Alteza, farei com que seja. Vamos adiante.

- Pois bem! Trata-se de fazer, para me servir, aquilo que ninguém faz senão em próprio

favor.

- Ah! ah! - exclamou Bussy. - Vossa Alteza quererá porventura que eu vá namorar sua amante, para saber se ela é na realidade tão honesta como formosa? Estou pronto.

- Não é isso. Trata-se de indagar se ela tem alguém.

- Ah, explique-se, meu Senhor, porque já não percebo!

- Queria que te escondesses nas proximidades da casa e me soubesses quem é o homem que para lá entra.

- Então vai lá um homem?

- Desconfio que sim.

- Amante, ou marido?

- Alguém que me causa grande ciúme.

- Melhor para o caso.

- Melhor porquê?

- Essa circunstância aumenta as probabilidades em seu favor.

- Muito obrigado! Entretanto, eu desejava muito saber quem é o tal homem.

- E quer que eu tome sobre mim essa incumbência?

- Sim; e se anuires a prestar-me esse serviço...

- Far-me-á nomear monteiro-mor também, quando o lugar estiver vago?

- Confesso-te, Bussy, que não hesitaria em te dar essa promessa, visto que nunca te fiz mercê alguma.

- Só agora é que Vossa Alteza reparou em tal?.

- Já há muito tempo que o digo a mim mesmo.

- Sim, mas muito baixinho, como os príncipes costumam dizer coisas dessa natureza.

- Mas então?

- O quê, meu Senhor?

- Concordas?

- A ir espreitar o que faz a tal senhora?

- Sim.

- Confessar-lhe-ei, meu Senhor, que a missão não é muito lisonjeira, e antes quisera que me empregasse em alguma outra coisa.

- Ofereceste-te para me prestares um serviço, Bussy e já estás arrependido?

- Pudera não! Vossa Alteza convida-me para fazer de espião.

- Não há tal! É para fazeres de amigo; e demais, não penses que te convido para um serviço insigniFicante; pode ser que te vejas obrigado a puxar da espada.

Bussy abanou a cabeça.

- Meu Senhor - disse ele -, há coisas que ninguém pode fazer bem em lugar de outro; e que devem ser feitas pelo próprio interessado, ainda mesmo que seja príncipe.

- Visto isso, negas-me o que te peço?

- É verdade, meu Senhor.

O duque franziu a testa.

- Seguirei o teu conselho - disse ele -; irei eu próprio; e se tiver algum encontro em que fique ferido, ou venha a morrer direi que tinha pedido ao meu amigo Bussy que se incumbisse de dar ou de levar a estocada que me estava destinada, e que pela primeira vez na sua vida se lembrou de ter prudência.

- Meu Senhor - respondeu Bussy -, dissestes- me outro dia à noite: Bussy, eu odeio todos aqueles meninos da câmara de el-rei, que não deixam escapar ocasião alguma de nos escarnecerem e de nos insultarem; não seria mau que fosses às bodas de Saint-Luc para teres alguma pendência, e dar cabo deles! Vossa Alteza sabe que fui; eles eram cinco; eu estava só; desafiei-os; eles fizeram-me uma espera, atacaram-me todos juntos, mataram-me o cavalo, e contudo eu feri dois, e deixei o terceiro atordoado. Hoje convida-me para que faça mal a uma mulher. Peço a Vossa Alteza que me desculpe, mas serviços desta natureza não pode um príncipe exigi-los de nenhum homem de brio, e por isso mesmo recuso.

Ainda Bem - disse o duque -, irei fazer a minha sentinela sozinho ou com Aurilly como já da outra vez.

- Peço perdão - atalhou Bussy, sentindo um véu que Lhe obscurecia o espírito.

- Que é?

- Vossa Alteza estava fazendo a sua sentinela outro dia quando viu os favoritos de el-rei à minha espera?

- Estava, sim.

- A sua linda incógnita - perguntou Bussy - assiste por consequência ao pé da Bastilha?

- Mora defronte da Rua de Santa Catarina.

- Deveras?

- É um bairro onde se pode ser assassinado sem que pessoa alguma acuda, tu bem o sabes por experiência própria.

- Vossa Alteza tornou a ir observar depois daquela noite?

- Fui ontem.

- E Vossa Alteza viu.

- Um homem que andou dando busca aos cantos todos do largo, provavelmente para ver se alguém o espreitava, e que, tendo-me lobrigado naturalmente, teimou em se conservar arrumado à porta da tal casa.

- E o homem estava completamente só, meu Senhor? - perguntou Bussy.

- Estava, e assim se conservou durante meia hora, pouco mais ou menos.

- E passada essa meia hora?

- Veio ter com ele outro homem, que trazia uma lanterna na mão.

- Ah!. Ah! - exclamou Bussy.

- Então, o homem de capote. - prosseguiu o príncipe.

- O primeiro tinha capote? - interrompeu Bussy.

- Sim. Então, o homem do capote e o homem da lanterna começaram a conversar um com o outro, e como pareciam resolvidos a ficarem ali toda a noite, retirei-me.

- Aborrecido já deste segundo transtorno?

- Confesso-te que sim. De forma que antes de me introduzir na casa em questão, que pode muito bem ser algum matadouro.

- Não se lhe dava que lá matassem primeiro algum amigo seu.

- Não há tal. era porque o meu amigo, não sendo príncipe, não tendo os inimigos que eu tenho, e estando afeito a aventuras desta natureza, poderia conhecer se haveria na realidade algum perigo, e avisar-me.

- Eu, no seu caso, meu Senhor - disse Bussy -, abandonaria a tal mulher.

- Nunca! -Porquê?

- Porque é muito formosa.

- Disse-me contudo que não pôde vê-la bem.

- Apesar disso, sempre pude observar que tem um lindo cabelo louro.

- Ah!

- E olhos magníficos.

- A!

- Uma cor de pele muito mimosa, e figura admirável.

- Bem vês que não é fácil encontrar uma mulher tão perfeita.

- Sim, meu Senhor, percebo muito bem; e até me vou sentindo disposto a servi-lo. O duque olhou de revés para Bussy.

- Palavra de honra - disse este.

- Zombas?.

- Não; e para o provar, direi a Vossa Alteza que se quiser dar-me as suas instruções e ensinar-me onde fica a casa, irei pôr-me de vigia esta noite mesmo.

- Mudaste pois de modo de pensar?

- Meu Senhor, o nosso Santo Padre Gregório XIII é a única pessoa que tem o privilégio da infalibilidade; mas diga- me o que hei-de fazer?

- Hás-de esconder-te a distância da porta que eu te ensinar, e se vires entrar algum homem, hás-de ir atrás dele, para saber quem é.

- Sim; mas se ele, depois de entrar, torna a fechar a porta.

- Eu já te disse que tenho uma chave.

- Ah! É verdade; agora só me resta um receio, e é de ir atrás de algum outro homem, caso a chave sirva em outra porta.

- Não poderás enganar-te; a porta dá para um corredor; no fim do corredor, à esquerda, há uma escada; sobes doze degraus, e achas-te noutro corredor.

- Como sabe Vossa Alteza tudo isso, se nunca entrou na tal casa?

- Não te disse já que a aia estava comprada por mim? Foi ela quem me explicou tudo.

- Quanto é agradável ser príncipe! Acha-se sempre a comida feita. A mim ter-me-ia sido preciso ir em pessoa reconhecer a casa, explorar o corredor, contar os degraus, e apalpar as portas. Era empresa que me havia de tomar por força tempo inFinito, e assim mesmo, quem sabe se conseguiria levá-la a cabo.

- Visto o que disseste, consentes?

- Como poderia eu negar-me a fazer o que Vossa Alteza pede? Só exijo que venha comigo para me ensinar qual é a porta.

- É escusado; quando recolhermos da caçada, daremos a volta pela porta de Santo António, e então mostrar-ta-ei.

- Muito bem, meu Senhor; e que hei-de eu fazer ao homem, se ele aparecer?

- Nada, basta que o sigas até saberes quem ele é.

- É caso muito delicado; e se, por exemplo, o homem levar a discrição a ponto de parar no meio do caminho, atalhando assim as minhas investigações?

- Deixo à tua escolha a maneira de prosseguires na aventura.

- Então autoriza-me Vossa Alteza a proceder como se o negócio fosse meu?

- Em tudo.

- Assim farei, meu Senhor.

- Não digas palavra a este respeito aos fidalgos da minha casa.

- Prometo calar-me, à fé de cavalheiro!

- Não leves pessoa alguma contigo para esta exploração.

- Hei-de ir só, eu Lho juro.

- Muito bem! está tudo convencionado; voltamos pela Bastilha... ensino-te a porta... vens a minha casa. dou-te a chave. e esta noite.

- Vou fazer as vezes de Vossa Alteza, está dito.

Depois desta conferência, o príncipe e Bussy tornaram a juntar-se aos caçadores, que o Sr. de Monsoreau ia dirigindo com toda a perícia.

O rei Ficoú encantado do modo por que ele tinha calculado as distâncias para o descanso e estabelecido as mudas. O veado, depois de ter sido corrido durante duas horas, depois de ter girado num círculo de vinte e tantos quilómetros, de ter sido avistado mais de vinte vezes, veio afinal morrer no sítio onde fora desencovado.

O Sr. de Monsoreau recebeu parabéns do rei e do duque de Anju.

- Meu Senhor - disse ele para o duque -, dou-me por muito feliz de ter merecido a aprovação de Vossa Alteza, a quem devo a nomeação para este cargo.

- E saberá, Senhor - respondeu o duque -, que para continuar a merecê-la é necessário que parta esta noite para Fontainebleau; el-rei quer lá ir caçar depois de amanhã e nos dias seguintes; e um dia não é muito para poder tomar conhecimento da tapada.

- Bem sei, meu Senhor - replicou Monsoreau -, e o meu trem já está pronto. Hei-de partir esta noite.

- Ora aí tem, Sr. de Monsoreau! - disse Bussy - de hoje em diante nunca mais terá descanso. Quis ser monteiro-mor, e conseguiu um dos precalços do lugar que exerce, que é ter menos cinquenta noites para dormir na sua cama do que têm os demais homens; e ainda felizmente não é casado, meu caro amigo.

Bussy ria ao proferir estas palavras; o duque lançou ao monteiro-mor um olhar penetrante; e depois, voltando-se para o outro lado, foi cumprimentar o rei pelas melhoras que parecia experimentar em sua saúde desde o dia antecedente.

Quanto a Monsoreau, esse, ao ouvir o gracejo de Bussy, tornou-se outra vez daquela cor fula que tão sinistro aspecto lhe dava à fisionomia.

 

         POR QUE MANEIRA BUSSY ENCONTROU AO MESMO TEMPO O RETRATO E O ORIGINAL

A caçada acabou perto das quatro horas da tarde e às cinco horas, como se o rei tivesse adivinhado os desejos do duque de Anju, a corte toda voltava para Paris pelo arrabalde de Santo António.

O Sr. de Monsoreau, pretextando ter de partir imediatamente, tinha-se despedido, dos príncipes, e dirigia-se com o seu trem para a banda de Fontainebleau.

Ao passar em frente da Bastilha, o rei chamou a atenção dos seus amigos para a arrogante e sombria aparência da fortaleza: era um meio indirecto de Lhes recordar a sorte que os esperava se, depois de terem sido seus amigos, se tornassem por acaso seus inimigos.

Muitos deles deram fé do remoque e as suas atenções para com o rei aumentaram logo na proporção do medo.

Ao mesmo tempo, o duque de Anju dizia a meia voz para Bussy, o qual ia cavalgando a seu lado:

- Olha bem, Bussy: repara à direita, naquela casa de madeira que tem na frente um nicho com uma imagem de Nossa Senhora; segue com a vista aquela mesma linha, e conta mais quatro casas, além da que tem o nicho.

- Muito bem - disse Bussy.

- É a quinta - disse o duque -, a que fica mesmo em frente da Rua de Santa Catarina.

- Bem vejo, meu Senhor; olhe como ao som das nossas trombetas que anunciam a chegada de el-rei, se vão todas as janelas enchendo de espectadores.

- À excepção contudo das da casa que eu te indiquei - disse o duque -, porque essas conservam-se fechadas.

- Porém lá ergueram uma ponta da cortina - disse Bussy, custando-lhe a comprimir o arfar do peito.

- Mas não é possível divisar coisa alguma. Oh! A tal senhora está bem guardada, ou guarda-se muito bem. Seja como for, esta é a casa; lá no palácio te darei a chave.

Bussy procurou Fazer penetrar a vista pela abertura da cortina; mas se bem que não tirou de lá os olhos enquanto passou, nada pôde ver.

Quando chegaram ao Palácio de Anju, o duque deu efectivamente a Bussy a chave da casa indicada, recomendando-lhe novamente que vigiasse com toda a atenção. Bussy prometeu tudo quanto o duque quis, e voltou para sua casa.

- Então que novidades temos? - disse ele para Rémy.

- Essa pergunta estava eu para dirigir-Lhe, meu Senhor.

- Não descobriste nada?

- A casa é tão inacessível de dia como de noite. Ainda hesito entre cinco ou seis casas que pegam umas com as outras.

- Pois se assim é - disse Bussy -, parece-me que fui mais feliz do que tu, meu caro Haudouin.

- Como pode isso ser, meu Senhor? também andou procurando?

- Não. Passei unicamente pela rua.

- E conheceu a porta?

- A Providência, meu querido amigo, conduz- nos às vezes aos nossos Fins por caminhos ocultos e por meio de combinações misteriosas.

- Está, pois, certo?

- Não direi que estou certo, mas tenho alguma esperança.

- E quando saberei eu se teve a ventura de encontrar o que buscava?

- Amanhã.

- Entretanto não precisa de mim?

- Para nada, meu caro Rémy.

- Não quer que o acompanhe?

- É impossível.

- Tenha prudência, meu Senhor.

- Ah - disse Bussy rindo -, essa recomendação é escusada; todos sabem quanto eu sou prudente.

Bussy jantou com o apetite próprio dum homem que não sabe onde nem por que forma há-de cear; e quando deram oito horas escolheu a sua melhor espada, meteu no cinto um par de pistolas, apesar do decreto que o rei acabava de promulgar proibindo-as, e fez-se conduzir, na liteira, até à extremidade da Rua de S. Paulo.

Chegado que foi ali, procurou a casa que tinha o nicho com a Virgem, contou as quatro casas imediatas, certificou-se bem que a quinta era com efeito a que lhe fora designada, e embuçando-se no seu capote, que era de cor escura, foi coser-se com a esquina da Rua de Santa Catarina, firmemente resolvido a esperar por espaço de duas horas, e se ninguém aparecesse, trabalhar por sua própria conta. Estavam dando as nove horas em S. Paulo ao tempo que Bussy tomava a sua posição.

Teriam apenas decorrido dez minutos, quando, apesar da escuridão, viu que se iam aproximando dois cavaleiros pela Porta da Bastilha. Chegados à altura do Palácio das Tournelles, pararam. Um deles apeou-se, entregou a rédea ao segundo, que era provavelmente algum criado, e depois de o ter visto tomar o mesmo caminho por onde tinham vindo, e de ter perdido de vista o criado e os dois cavalos, no meio da escuridão, dirigiu-se para a casa que Bussy estava encarregado de vigiar.

O desconhecido, quando chegou a distância de alguns passos da casa, descreveu um grande círculo, como para examinar os arredores com a vista; e, julgando naturalmente que ninguém o observava, aproximou-se da porta e desapareceu.

Bussy ouviu a bulha que fez a porta fechando- se depois de ele entrar. Esperou um instante, com receio de que tivesse ficado o misterioso personagem de atalaia por dentro do postigo.

Mas depois de deixar passar alguns segundos, saiu do seu canto, atravessou a rua, abriu a porta e fechou-a sem bulha. Voltou-se então, e viu que o postigo lhe ficava à altura da cara, e que, segundo todas as probabilidades, era aquele o mesmo por onde tinha estado a olhar para Quélus.

Mas isto não era tudo, e Bussy não tinha vindo ali para Ficar na loja. Foi andando em frente devagarinho apalpando a parede dos dois lados do corredor, e no Fim deste, à esquerda, achou o primeiro degrau duma escada.

Ali parou, por dois motivos: primeiro, porque lhe iam fraquejando as pernas, em consequência da comoção que sentia; e em segundo lugar, porque ouviu uma voz que dizia:

- Gertrudes, vá prevenir sua ama que sou eu e quero impreterivelmente falar-lhe. Esta ordem era dada em tom demasiado imperioso para admitir réplica; passado um instante, Bussy ouviu a voz duma aia que respondia:

- Queira entrar para a sala, que a senhora não se demorará a vir recebê-lo. Depois ouviu outra vez o ruído duma porta que se fechava.

Bussy recordou-se então dos doze degraus que Rémy contara; contou também doze degraus, e achou-se no patamar.

Lembrou-se do corredor e das três portas, e deu alguns passos, reprimindo a respiração e apalpando com as mãos para a frente. Encontrou uma primeira porta, era aquela por onde o desconhecido tinha entrado; passou adiante, achou uma segunda porta; procurou, sentiu uma chave, e, arrepiando-se desde os pés até à cabeça, deu-Lhe uma volta e empurrou a porta.

O quarto para onde Bussy entrou estava completamente às escuras, excepto um canto, que recebia por uma porta lateral um reflexo das luzes da sala.

O reflexo dava sobre uma janela, ornada de duas cortinas de tapeçaria que fizeram estremecer novamente de alegria o coração do mancebo.

Os seus olhos dirigiram-se para a parte do tecto que a mesma claridade alumiava, e logo conheceu o tecto com Figuras mitológicas que tanto Lhe tinha dado que cismar; estendeu as mãos, e encontrou também o leito esculpido.

Já não havia que duvidar; estava naquele mesmo quarto onde tinha acordado na noite em que levara a estocada que Lhe valera a hospitalidade.

Não foi sem tornar a estremecer que Bussy apalpou o leito e respirou aquele aroma delicioso que sempre dimana da cama duma mulher moça e formosa.

Bussy embrulhou-se nas cortinas do leito e escutou.

Ouvia-se no quarto imediato o som das passadas do desconhecido; de vez em quando parava, resmungando por entre os dentes:

- Ela virá ou não?

Em seguida a uma destas interpelações, abriu-se na sala uma porta que parecia paralela i que já estava meia aberta. Conheceu-se o contacto dum pé delicado sobre a alcatifa, o ranger dum vestido de seda chegou aos ouvidos de Bussy, e o mancebo ouviu uma voz de mulher, assustada e desdenhosa ao mesmo tempo, que dizia:

- Aqui estou, Senhor; que mais pretende de mim?

Oh! oh! pensou Bussy, escondendo-se com a cortina, se o homem que está presente é o amante, dou os parabéns ao marido. "

- Minha Senhora - disse o homem que tão friamente era recebido -, tenho a honra de preveni-la que, sendo obrigado a partir amanhã pela manhã para Fontainebleau, quis passar esta noite consigo.

- Traz-me notícias de meu pai? - perguntou a mesma voz feminina.

- Ouça-me, minha Senhora.

- Sabe muito bem, Senhor, o que ontem se convencionou quando eu consenti em ser sua esposa, e é que, primeiro que tudo, ou meu pai há-de vir a Paris, ou hei-de eu ir ter com ele.

- Minha Senhora dou-lhe a minha palavra de honra que, logo que eu regressar de Fontainebleau, havemos de partir; mas, entretanto.

- Oh! Senhor, não tenha o incómodo de fechar essa porta, é inútil; estou resolvida a não passar uma única noite consigo debaixo do mesmo tecto, enquanto não tiver notícias de meu pai.

Em seguida, a mulher que acabava de falar com tanta firmeza, tocou um apito de prata que produziu um som agudo e prolongado.

Era a maneira por que se chamavam os criados naquela época, em que as campainhas ainda não tinham sido inventadas.

No mesmo instante tornou a abrir-se a porta por onde tinha entrado Bussy, e por ela apareceu a aia da dama; era uma rapariga do ducado de Anju, alta e reforçada, que parecia ter estado à escuta e acudiu logo ao primeiro chamamento da ama.

Abriu a porta para trás, e entrou na sala.

A luz deu então em cheio no quarto onde estava Bussy, e este pôde ver entre as duas janelas o retrato seu conhecido.

- Gertrudes - disse a dama -, não se deite, e conserve-se sempre em sítio onde ouça a minha voz.

A aia voltou, sem responder palavra, pelo mesmo caminho por onde tinha vindo deixando a porta da sala aberta de par em par, e por consequência o célebre retrato completamente alumiado.

Bussy já não podia duvidar: o retrato era o mesmo que ele tinha visto. Aproximou-se pé ante pé para espreitar pelo intervalo que deixavam os gonzos entre a porta e a parede; mas apesar de toda a sua cautela, o sobrado deu um estalo na ocasião em que ele aplicava os olhos à greta da porta.

Ao ouvir o ruido, a dama voltou-se; era o original do retrato, a fada do sonho de Bussy. O homem, se bem que nada tivesse ouvido, voltou também o rosto por ver que ela se voltava.

Era o Sr. de Monsoreau.

Ah! disse Bussy consigo, o cavalinho branco. a mulher roubada. Vou ouvir provavelmente alguma história terrível.

E limpou o rosto, que espontaneamente se Lhe humedecera de suor.

Bussy, como já dissemos, do lugar onde estava, via-os a ambos; ela de pé, pálida e desdenhosa; ele sentado, não pálido, mas lívido, agitando o pé com impaciência e mordendo a mão.

- Minha Senhora - disse afinal o Sr. de Monsoreau -, deixe-se de continuar a representar por mais tempo para comigo esse papel de mulher perseguida e vítima dum tirano; está em Paris, na minha casa; demais a mais é agora condessa de Monsoreau, isto é, minha mulher.

- Se sou sua mulher, por que motivo recusa levar-me a ver meu pai? Por que razão continua a esconder-me aos olhos do mundo?

- Já lhe não lembra o duque de Anju, minha Senhora?

- Afirmou-me que, logo que eu fosse sua esposa, nada tinha a recear dele.

- Isto é.

- O senhor assim mo afirmou.

- Mas ainda assim, minha Senhora, é preciso que eu tome algumas medidas para se acautelar.

- Pois bem! Senhor, tome essas medidas, e volte a visitar-me depois delas tomadas.

- Diana - disse o conde, que visivelmente se ia encolerizando -, Diana! Não trate de brincadeira o laço sagrado do matrimónio. É um conselho que lhe dou.

- Faça, Senhor, com que eu não desconfie do marido, e então respeitarei o matrimónio.

- Parecia-me contudo ter jus a toda a sua confiança pela maneira por que me tenho portado para consigo.

- Penso, Senhor, que em todo este negócio não foi o meu interesse só quem o guiou, ou, se assim foi, o acaso também Lhe serviu muito bem.

- Oh! Isto não se pode sofrer! - exclamou o conde. - Estou em minha casa, é minha mulher, e ainda que o Inferno venha em seu auxílio, há-de pertencer-me esta noite mesmo.

Bussy levou a mão ao punho da espada, e deu um passo para a frente; porém Diana não lhe deixou o tempo preciso para aparecer.

- Olhe - disse ela puxando dum punhal que tinha à cinta -, assim é que eu lhe respondo.

E dando um pulo para o quarto onde estava Bussy, empurrou a porta, correu os dois ferroLhos, e enquanto Monsoreau vociferava, ameaçando-a e batendo socos nas tábuas:

- Tome sentido, que se tirar uma lasca que seja à madeira desta porta - disse Diana - , bem me conhece o génio, Senhor, encontrar-me-á morta à entrada.

- E fique certa, minha Senhora - disse Bussy deitando os braços à roda da cintura de Diana -, que haveria quem a vingasse.

Diana esteve quase dando um grito; mas logo compreendeu que o único perigo que a ameaçava era o que provinha do marido. Conservou-se pois na defensiva, mas calada, trémula e imóvel.

O Sr. de Monsoreau bateu o pé no chão com violência; e depois, convencido provavelmente de que Diana poria em execução a sua ameaça, saiu da sala atirando com a porta. Logo depois ouviu-se o som das passadas pelo corredor fora e pela escada abaixo.

- Mas, Senhor - disse então Diana soltando-se dos braços de Bussy e dando um passo para trás -, não me dirá quem é, e como veio aqui ter?

- Minha Senhora - disse Bussy abrindo a porta e ajoelhando diante de Diana -, sou o homem a quem salvou a vida. Como poderia persuadir-se que eu tivesse entrado em sua casa com más intenções, ou que pretendesse atentar contra a sua honra?

Diana conheceu o mancebo, graças à claridade da luz que lhe dava no rosto.

- Oh! O senhor aqui? - exclamou ela unindo as mãos. - Estava aqui, ouviu tudo!

- Não há dúvida, minha Senhora.

- Porém, quem é o senhor? O seu nome, Senhor?

- Minha Senhora, eu chamo-me Luís de Clermont, conde de Bussy.

- Bussy, é o valente Bussy? - exclamou ingenuamente Diana, a qual mal pensava na alegria que aquela exclamação difundia no coração do mancebo. - Ah! Gertrudes - prosseguiu ela dirigindo-se para a aia, que neste comenos entrara espavorida por ouvir que a ama estava falando com alguém -, Gertrudes! já não receio coisa alguma, porque deste momento em diante entrego a minha honra à salvaguarda do cavaleiro mais nobre e mais leal de toda a França.

E logo, estendendo a mão a Bussy:

- Levante-se, Senhor - disse ela -; já sei quem é; preciso agora dizer-lhe quem sou.

 

           QUEM ERA DIANA DE MERIDOR

Bussy ergueu-se, parecendo-lhe ainda impossível tanta ventura, e foi com Diana para a sala de onde acabava de sair o Sr. de Monsoreau.

Contemplava Diana com surpresa e admiração; nunca se persuadira que a mulher que procurava pudesse comparar-se com a que tinha sonhado, e via que a realidade ia muito além daquilo que ele havia tomado por uma fantasia da sua imaginação.

Diana tinha dezoito ou dezanove anos, isto é, tinha todo aquele viço da mocidade e da formosura que tinge as flores do mais puro colorido e dá às frutas o mais lindo aveludado; a expressão do olhar de Bussy bem dava a conhecer a impressão que nele produzia a vista de tanta beleza. Diana percebia que ele a estava contemplando e não tinha força para o obrigar a sair daquele êxtase.

Até que por fim julgou conveniente quebrar um silêncio demasiado significativo.

- Senhor - disse ela -, respondeu à primeira das minhas perguntas, mas não à segunda; perguntei-lhe quem era, e disse-mo; porém também Lhe perguntei como veio aqui dar, e a essa pergunta nada respondeu.

- Minha Senhora - replicou Bussy -, pelas palavras que ouvi da sua conversação com o Sr. de Monsoreau, entendi que o motivo por que aqui me acho cem naturalmente alguma ligação com a narração que fez favor de me prometer. Não me disse ainda há pouco que era preciso que eu soubesse quem era?

- Oh! sim, conde, vou contar-Lhe tudo - respondeu Diana -, o seu nome foi quanto bastou para me inspirar ilimitada confiança, porque sempre o tenho ouvido repetir como o dum homem de valor, de cuja lealdade e honradez tudo se pode confiar.

Bussy inclinou-se.

- Pelas poucas palavras que ouviu - disse Diana -, pôde talvez perceber que sou filha do barão de Méridor, isto é, a única herdeira duma das casas mais nobres e mais antigas de Anju.

- Houve - disse Bussy - um barão de Méridor que, tendo escapado da batalha de Pavia, foi entregar a sua espada aos Espanhóis quando lhe constou que o rei tinha sido feito prisioneiro, e que, tendo pedido como único favor que o deixassem acompanhar Francisco I até Madrid, se conservou junto dele durante o seu cativeiro, e só o deixou para vir a França tratar do seu resgate.

- É esse meu pai, Senhor; e se alguma vez entrar na sala de dossel do Castelo de Méridor, lá verá o retrato do rei Francisco I, pintado por Leonardo da Vinci, que lhe foi dado como lembrança de tanta dedicação.

- Ah! - disse Bussy - naquele tempo os príncipes sabiam galardoar as pessoas que os serviam.

- Meu pai casou-se quando regressou de Espanha. Os dois primeiros Filhos que teve foram varões, e ambos morreram. O barão de Méridor, que assim perdia a esperança de ver perpetuar o seu nome, teve um grande desgosto com a morte dos filhos. Dali a pouco tempo morreu o rei também, e o pesar que sentiu o barão tocou a meta do desespero; abandonou a corte passados alguns anos e foi encerrar-se com a esposa no Castelo de Méridor. Foi lá que eu nasci, como por milagre, dez anos depois da morte de meus irmãos queridos.

Todo o amor do barão se concentrou então na filha da sua velhice; a sua afeição por mim era mais do que ternura, era idolatria. Três anos depois de eu nascer, morreu minha mãe; foi este acontecimento um novo motivo de dor para o barão.

Porém eu, muito criança ainda para poder avaliar a perda que sofria, não deixava de me sorrir para ele, e os meus sorrisos consolaram-no da morte de minha mãe.

Fui crescendo e desenvolvendo-me debaixo das suas vistas. Assim como eu era tudo para ele, também ele, pobre pai, era tudo para mim. Cheguei aos dezasseis anos sem outros cuidados senão os que me davam as minhas ovelhas, os meus pavões, os meus cisnes e as minhas rolas, sem me lembrar que a vida que levava havia de ter um termo, e sem desejar que esse termo chegasse.

O Castelo de Méridor está cercado de frondosas matas pertencentes ao Senhor Duque de Anju, povoadas de gamos, cabritos-monteses e veados, que naquele tempo ninguém perseguia e se tinham tornado familiares em consequência do descanso em que os deixavam; todos estes animais eram, mais ou menos, meus conhecidos; alguns deles estavam tão acostumados ao som da minha voz, que vinham ao meu chamamento; uma corça, entre outros, que era minha protegida e favorita, Dafne - pobre Dafne! -, vinha até comer na minha mão.

Uma Primavera, estive um mês sem a ver; pensei tê-la perdido para sempre e já tinha chorado a sua morte como se fora a duma amiga, quando de repente me tornou a aparecer, acompanhada de duas crias; os filhos tiveram a princípio medo de mim, mas quando viram que a mãe me fazia festas, perceberam que nada tinham que recear e vieram fazer-me festas também.

Por aquele tempo espalhou-se a notícia de que o Senhor Duque de Anju tinha nomeado um vice-governador para a capital da província. Poucos dias depois soube-se que o vice-governador tinha chegado e que se chamava conde de Monsoreau.

Porque seria que este nome me fez estremecer o coração quando o ouvi proferir? Não acho outra explicação à sensação dolorosa que então experimentei senão que era um pressentimento.

Passaram-se oito dias. Falava-se muito e por diversos modos em todo o distrito a respeito do Sr. de Monsoreau.

Uma manhã ressoou pelos bosques o som das trompas de caça e os latidos dos cães; corri a cancela de grades que deitava para a tapada e cheguei exactamente na ocasião em que passava, com a rapidez dum relâmpago, Dafne perseguida por uma grande matilha; ia acompanhada dos dois corços.

Um instante depois, passou. semelhante a uma visão, um homem montado num cavalo preto que parecia ter asas; era o Sr. de Monsoreau.

Soltei um grito, pedi misericórdia para a minha pobre favorita, mas ele ou não ouviu a minha voz ou não lhe prestou a devida atenção, por ir Com o sentido na caça.

Então, sem me lembrar do susto que havia de ter meu pai se desse pela minha falta, abalei na direcção que tinham tomado os caçadores; esperava encontrar o conde ou alguém da caça na comitiva, e rogar-Lhes que não continuassem perseguindo a pobre corça, o que me dilacerava o coração.

Andei meia légua, sempre correndo, sem saber onde ia; já tinha perdido de vista havia muito tempo a corça, a matilha e os caçadores.

Em breve deixei de ouvir os latidos; caí ao pé de uma árvore e comecei a chorar. Haveria um quarto de hora, pouco mais ou menos, que ali estava, quando me pareceu que ouvia ao longe a bulha da caçada. Não me enganava; o alarido ia-se aproximando de momento para momento; um instante mesmo soou a tão pequena distância que imediatamente calculei que os caçadores haviam de passar ao alcance da minha vista. Levantei-me logo e corri para a banda de onde vinham os sons.

Com efeito, vi passar numa clareira a pobre Dafne a arquejar; já não a acompanhava senão um corço; o outro tinha sucumbido ao cansaço, e provavelmente tinha sido feito em pedaços pelos cães.

Ela mesma já ia visivelmente cansada; a distância que levava da matilha era menor do que da primeira vez; a sua corrida tinha-se tornado em pulos amiudados, e quando passou por diante de mim bramiu com tristeza.

Debalde tentei, como da primeira vez, fazer-me ouvir. O Sr. de Monsoreau só via o animal que ia perseguindo; passou com maior rapidez ainda do que quando primeiramente o avistara; ia embocando a trompa e tocando com furor.

Logo atrás dele, três ou quatro moços da coutada iam animando os cães com as trompas e com a voz. Aquele redemoinho de latidos, de clangor de trompas e de gritos, passou como uma tempestade, desapareceu na densidade da mata e morreu na distância.

Eu fiquei desesperada; lembrava-me que se estivesse apenas uns cinquenta passos mais adiante, à borda da clareira que ele atravessara, ter-me-ia visto, e, atendendo aos meus rogos, pouparia o pobre animal.

Esta lembrança reanimou-se; podia ser que os caçadores passassem outra vez à minha vista. Fui seguindo um caminho guarnecido de arvoredo copado que ia dar ao Castelo de Beaugé. Este castelo, pertencente ao Senhor Duque de Anju, fica à distância de três léguas, pouco mais ou menos, do castelo de meu pai. Avistei-o ao cabo dum instante, e foi então unicamente que me ocorreu que tinha andado três léguas a pé, e que estava só e muito longe do Castelo de Méridor.

Confesso que se apoderou de mim um terror vago, e que só então reflecti na imprudência do passo desassisado que dera. Segui a margem da lagoa, porque tencionava pedir ao jardineiro, honrado homem que por vezes me tinha oferecido magníficos ramalhetes em ocasiões de eu ali ir com meu pai; tencionava, digo, pedir ao jardineiro que me acompanhasse a casa, quando de repente ouvi novamente o alarido da montaria. Fiquei imóvel e apliquei o ouvido. A bulha ia aumentando. Esqueci tudo. Quase no mesmo instante, do lado oposto da lagoa, apareceu a corça saindo do bosque; porém os cães vinham-na perseguindo com tanto afinco, que já estavam quase a agarrá-la. Vinha só, o segundo filho também já havia sucumbido; a vista da água pareceu dar-Lhe novas forças; dilatou as ventas para aspirar a frescura e atirou-se à lagoa, como querendo vir ter comigo.

Nadou a princípio com rapidez. e parecia ter recobrado toda a sua energia. Eu olhava para ela, com os olhos arrasados de lágrimas, os braços estendidos e arquejando quase tanto como ela; porém as forças foram-lhe diminuindo insensivelmente, enquanto os cães, pelo contrário, pareciam ter cobrado novo alento. Não tardou em ser alcançada pelos cães que vinham na dianteira dos mais, e logo deixou de avançar, pois tinha sido filada por eles. Naquele momento apareceu o Sr. de Monsoreau à entrada do bosque; correu à margem da lagoa e saltou abaixo do cavalo. Reuni então toda a minha força para gritar: Misericórdia! " de mãos postas. Pareceu-me que ele me tinha visto, e tornei a gritar com mais força ainda do que da primeira vez. Ele ouviu- me, porque levantou a cabeça, e vi que se dirigia para um bote, que desamarrou, e no qual remou com velocidade na direcção do animal, que ainda lutava no meio de toda a matilha, que já o havia cercado. Persuadia-me que o Sr. de Monsoreau, comovido pela minha voz e pelos meus gestos suplicantes, acudia com tanta pressa para livrar a corça; mas de repente, quando já estava ao pé de Dafne, vi que desembainhava a faca de mato; um raio de Sol que nela reflectiu fulgurou como um relâmpago; mas logo desapareceu. Dei um grito; a folha tinha penetrado no pescoço do pobre animal. Saiu da ferida um jorro de sangue, que tingiu de vermelho a água da lagoa. A corça deu um bramido mortal e lamentável, bateu com os pés na água, ergueu-se quase a pino, e tornou a cair já morta. Soltei um grito quase tão sentido como o dela e caí desmaiada à beira da lagoa. Quando tornei a mim, estava deitada num quarto do Castelo de Beaugé, e meu pai, a quem tinham mandado chamar, chorava à cabeceira da cama.

Como o meu incómodo não passava duma crise nervosa, causada provavelmente pela excitação da corrida, logo no dia imediato pude voltar para Méridor. Contudo não saí do quarto durante três ou quatro dias.

Ao quarto dia, disse-me meu pai que durante todo o tempo em que eu tinha estado doente, o Sr. de Monsoreau, que me vira na ocasião em que me levavam em braços desmaiada, viera saber notícias minhas; tinha sentido grande pesar quando soube que havia sido ele a causa involuntária do que me sucedera, e pedira licença para me apresentar as suas desculpas, dizendo que só Ficaria sossegado quando ouvisse da minha própria boca que lhe perdoava.

Fora ridículo recusar-me a receber-lhe a visita; cedi, pois. apesar da minha repugnância. No dia seguinte apresentou-se em nossa casa; eu já tinha avaliado quanto era ridícula a minha posição; a caça é um divertimento a que muitas vezes concorrem mulheres também; fui eu, pois, que de alguma maneira procurei desculpar-me de haver mostrado tamanha aflição por uma coisa tão insignificante, e atribui o meu sentimento à afeição que tinha pela pobre Dafne.

O conde então mostrou-se desesperado pelo que havia sucedido, e jurou-me mais de vinte vezes pela sua honra que se houvesse podido adivinhar que eu me interessava pela sua vítima, teria tido o maior prazer em a poupar; contudo, apesar de todos os seus protestos, não me convenceu, e saiu sem ter podido destruir no meu coração a impressão dolorosa que nele produzira.

Quando ia para sair, pediu o conde a meu pai licença para voltar a nossa casa. Ele tinha nascido em Espanha e fora educado em Madrid; e o barão estimava ter com quem conversar acerca dum país onde vivera tanto tempo.

Demais a mais, o conde era de boa família, e, segundo se dizia, pertencia ao Senhor Duque de Anju; meu pai não tinha motivo algum para lhe negar o que pedia, e por consequência anuiu.

Daquele momento em diante acabou-se para mim, não direi a felicidade, mas o sossego de espírito. Não tardou que eu percebesse a impressão que produzira no conde. Vinha ver-nos, a princípio uma vez por semana, depois passou a vir duas vezes, e Finalmente, todos os dias. O conde tinha agradado a meu pai, a quem tratava com a maior atenção. Eu via quanto o barão estimava conversar com ele, pois na realidade era muito instruído. Não me atrevia aqueixar-me. e de que havia de queixar-me? O conde tratava-me com tanto afecto como se eu fora sua namorada, e com tanto respeito como se fora sua irmã.

Uma manhã, entrou meu pai no meu quarto com um modo mais sério do que tinha por costume, e contudo a sua seriedade era misturada de alegria.

- Minha filha - disse ele -, tens-me por vezes asseverado que a tua maior ventura seria nunca te separares de mim, não é verdade?

- Oh! meu pai - exclamei eu -, muito bem sabe que é esse o meu desejo.

- Pois bem! minha Diana - prosseguiu ele, abaixando-se para me beijar na testa -, de ti unicamente é que depende ver realizado esse teu desejo.

Logo desconfiei do que meu pai me ia dizer, e enfiei por tal forma que ele deteve-se antes de ter chegado os lábios à minha testa.

- Diana! Minha filha! - exclamou ele. - Oh! meu Deus, que tens tu! - É o Sr. de Monsoreau, não é verdade? - balbuciei eu.

- E então?. - perguntou ele muito admirado.

- Oh! Nunca, meu pai; se tem alguma compaixão de sua filha, nunca! - Diana, meu amor - disse ele -, bem sabes que a amizade que te tenho chega a ser idolatria; dou-te oito dias para reflectires; e se ao cabo de oito dias.

- Oh! não, não! - exclamei eu - é escusado; nem oito dias, nem vinte e quatro horas, nem um minuto. Não, não, oh, não!

E desatei a chorar.

Meu pai adorava-me; nunca me tinha visto chorar; agarrou-me em seus braços e procurou tranquilizar-me; deu-me a sua palavra de cavalheiro que nunca mais me Falaria em semelhante casamento.

Passou-se efectivamente um mês sem que eu tornasse a ver o Sr. de Monsoreau nem ouvisse falar dele. Um dia pela manhã recebemos, meu pai e eu, um convite para assistirmos a uma grande função que o Sr. de Monsoreau tencionava dar ao irmão de el-rei, por ocasião de ele vir visitar a província de que tinha o título.

A função devia ter lugar nos Paços do Concelho da cidade de Angers. Juntamente com a carta vinha um convite pessoal do príncipe, o qual mandava dizer a meu pai que se recordava de o ter encontrado em outro tempo na corte de el-rei Henrique, e que estimaria muito torná-lo a ver.

A minha primeira lembrança Foi pedir a meu pai que não aceitasse e decerto teria teimado neste sentido, se o convite fosse unicamente em nome do Sr. de Monsoreau; mas o convite era Feito de meias com o príncipe, e meu pai receou muito ofender Sua Alteza com uma recusa.

Fomos pois à tal função. O Sr. de Monsoreau recebeu-nos como se nada tivesse havido entre nós; não mostrou para comigo nem indiferença, nem aFectação. tratou-me como a todas as demais senhoras, e tive a felicidade de não lhe merecer nenhuma distinção, nem para bem nem para mal.

Já não sucedeu o mesmo com o duque de Anju. Assim que me viu, fitou os olhos em mim e nunca mais me perdeu de vista.

Incomodava-me o peso daquele olhar, e, sem dizer a meu pai qual era o motivo por que desejava retirar-me do baile, insisti com ele por tal forma que fomos nós dos primeiros a sair.

Passados três dias, veio o Sr. de Monsoreau a Méridor; avistei-o de longe na alameda do castelo, e retirei-me para o meu quarto.

Receava que meu pai me mandasse chamar; mas não se lembrou de tal. Dali a meia hora, vi sair o Sr. de Monsoreau, sem que pessoa alguma me tivesse vindo prevenir da sua visita. Até houve mais: nem meu pai me falou em semelhante coisa; porém, quis-me parecer que se havia tornado mais taciturno do que o costume depois daquela visita do vice-governador.

Decorreram mais alguns dias. Uma manhã, voltava eu de passeio, quando me vieram dizer que o Sr. de Monsoreau estava com meu pai.

O barão tinha perguntado por mim duas ou três vezes, mostrando-se inquieto pela minha demora e indagando onde eu teria ido. Tinha dado ordem que o avisassem logo que eu chegasse.

Com efeito, apenas tinha entrado no meu quarto, apareceu logo meu pai. - Minha filha - disse-me ele -, um motivo de que não precisas saber a causa obriga-me a separar-me de ti durante alguns dias; não me perguntes coisa alguma; lembra-te unicamente que deve ser muito urgente o motivo que pôde resolver-me a estar uma semana, quinze dias, ou um mês, talvez, sem te ver.

Arrepiei-me toda, se bem que não podia adivinhar qual seria o perigo a que estava exposta. Porém não agourava nada de bom daquelas duas visitas do Sr. de Monsoreau.

- E para onde hei-de ir, meu querido pai? - perguntei eu.

- Para o Castelo de Lude, para casa de minha irmã, onde te conservarás oculta às vistas de todos. Estão tomadas as providências necessárias para lá chegares de noite.

- Não me acompanha?

- Não; preciso ficar aqui para não causar desconfianças; nem mesmo os criados da casa sabem para onde tu vais.

- Mas então quem me há-de conduzir?

- Dois homens da minha confiança.

- Oh, meu Deus! Meu pai!

O barão abraçou-me.

- Minha Filha - disse ele -, assim é preciso.

Eu conhecia tão bem quanto meu pai me estimava, que não me atrevi a insistir com ele para ficar, nem Lhe pedi mais explicações: somente convencionámos que uma rapariga chamada Gertrudes, filha da minha ama, me acompanharia.

Meu pai retirou-se, dizendo que tratasse de me aprontar.

Às oito horas da noite voltou para me levar; era no Inverno, as noites eram compridas e escuras e fazia frio.

Eu estava pronta, conforme ele me havia recomendado; descemos a escada sem fazer bulha, atravessámos o jardim; abriu ele mesmo uma portinha que dava para a mata, e ali achámos uma liteira aparelhada e dois homens. Meu pai esteve falando com eles por algum tempo, para lhes recomendar, segundo me pareceu, que tivessem muito cuidado em mim; em seguida subi para a liteira, e Gertrudes sentou-se a meu lado. O barão abraçou-me por despedida, e pusemo-nos a caminho.

Eu não podia imaginar qual seria o perigo de que estava ameaçada, e que assim me obrigava a deixar o Castelo de Méridor.

Perguntei a Gertrudes, porém ela sabia tanto como eu. Não me atrevia a indagar dos meus guias, porque não os conhecia.

Íamos pois caminhando em silêncio por atalhos desviados da estrada, quando, depois de duas horas de jornada, pouco mais ou menos, na ocasião em que, apesar dos meus receios, ia adormecendo com o movimento igual e monótono da liteira, acordei com uma sacudidela que me deu Gertrudes, agarrando-me o braço, e conheci que a liteira parava.

- Oh! Menina - disse a pobre rapariga -, o que será que nos sucedeu?. Deitei a cabeça fora do postigo: estávamos cercadas por seis homens a cavalo e com máscaras na cara; os nossos condutores, que tinham querido defender-se, estavam desarmados e agarrados.

Eu estava de tal modo assustada que nem força tinha para bradar por auxílio; e demais, quem teria acudido aos nossos gritos?

Um homem, que figurava de chefe dos mascarados, chegou-se à portinhola. - Sossegue, Menina - disse ele -, que ninguém Lhe há-de fazer mal; mas é preciso que nos acompanhe.

- Para onde? - perguntei eu.

- Para um sítio onde, bem longe de ter que recear, há-de ser tratada como uma rainha. Esta promessa assustou-me ainda mais do que se fora uma ameaça.

- Oh! meu pai! meu pai! - murmurei eu.

- Ouça-me, Menina - disse-me Gertrudes em voz baixa -, eu conheço estas cercanias, sou-lhe muito afeiçoada, e tenho bastante robustez; será muita infelicidade nossa se não conseguirmos fugir-lhes.

Esta consolação que me dava a pobre criada estava bem longe de me tranquilizar. Contudo, é tão agradável em tais lances sentir que se pode contar com algum sincero apoio, que me reanimei um pouco.

- Façam de nós o que quiserem, Senhores - respondi eu -; somos duas pobres mulheres e não podemos defender-nos.

Um dos homens apeou-se, tomou o lugar do nosso condutor e mudou a direcção da liteira.

Bussy, como bem se pode imaginar, prestava a maior atenção à narração de Diana; existe sempre nas primeiras impressões duma grande paixão um sentimento quase religioso pela pessoa a quem se começa a amar; a mulher que o coração acaba de escolher acha- se elevada, por essa mesma escolha, acima das outras mulheres, engrandece-se, purifica-se, diviniza-se; cada um de seus gestos é um favor que ela concede, cada uma de suas palavras uma mercê que ela faz; se encara com o amante alegra-o; se lhe sorri, fá-lo extasiar.

O mancebo, portanto, tinha deixado contar à bela narradora toda a história da sua vida sem se atrever a fazer reflexão alguma e sem a menor ideia de a interromper; todos os pormenores daquela vida, que ele considerava colocada debaixo da sua protecção, tinham para ele imenso valor, e por isso escutava as palavras de Diana calado e arquejante, como se a sua existência dependesse de cada uma dessas palavras.

E como a dama, não podendo resístir provavelmente à comoção que lhe causava a reunião das recordações do passado e do presente, tinha parado um instante, Bussy, receando ver interrompida uma confidência em que tomava tanto interesse, exclamou de mãos postas:

- Oh! Continue, minha Senhora, continue.

Diana não podia equivocar-se a respeito da simpatia que ele lhe inspirava; a voz, o gesto e a expressão da fisionomia do mancebo estavam em harmonia com a súplica que se continha nas suas palavras. Diana sorriu com tristeza e prosseguiu assim:

- Caminhámos durante três horas, pouco mais ou menos: depois a liteira parou. Ouvi ranger os fechos duma porta; trocaram-se algumas palavras; a liteira continuou a andar, e senti que rodava sobre um terreno sonoro, que se me figurou ser uma ponte levadiça.

Não me enganava; deitei a cabeça fora do postigo, e vi que estávamos no pátio dum castelo.

Que castelo seria? Nem Gertrudes nem eu podíamos coligir. Por umas poucas de vezes, durante a jornada, tínhamos visto uma mata que parecia não ter fim.

Verdade seja que nos ocorreu a ambas que os nossos condutores, para melhor nos iludirem acerca do lugar onde nos achávamos, nos tinham feito dar, de propósito, rodeios inúteis por dentro da mata.

Abriu-se a portinhola da liteira, e o mesmo homem que já nos tinha falado convidou-nos a apear-nos.

Obedecemos sem dizer palavra. Dois homens que pareciam criados do castelo tinham vindo receber-nos à porta com castiçais. Conforme a terrível promessa que me fora feita, o nosso cativeiro era acompanhado das maiores atenções. Seguimos os homens que levavam os castiçais; encaminharam-nos para um quarto de cama ricamente mobilado, e cujos ornatos pareciam datar da época mais brilhante em elegância e estilo, que foi o reinado de Francisco I.

 

Numa mesa, posta com sumptuosidade, esperava-nos uma refeição. - Está em sua casa, minha Senhora - disse-me o homem que já por duas vezes nos dirigira a palavra -; e como há-de carecer provavelmente do serviço duma aia, a sua não a deixará; o quarto dela é contíguo ao seu.

Gertrudes e eu olhámos com alegria uma para a outra.

- Todas as vezes que quiser chamar - continuou o homem mascarado -, bastará dar uma pancada com a aldraba desta porta, e um criado, que há-de estar constantemente na sala de espera, virá logo receber as suas ordens.

Tanta atenção aparente indicava que estávamos com sentinela à vista.

O homem mascarado cortejou e saiu; ouvimos que dava duas voltas à chave. Ficámos pois sós, Gertrudes e eu.

Permanecemos por um instante imóveis, olhando uma para a outra à claridade dos dois candelabros que alumiavam a mesa onde estava posta a ceia. Gertrudes ia para abrir a boca; fiz-Lhe sinal com o dedo que se calasse; podia ser que nos estivessem espreitando. A porta do quarto que nos tinham dito ser destinado para Gertrudes estava aberta; ocorreu-nos a ambas ao mesmo tempo a ideia de o examinar; ela pegou num dos candelabros, e para lá nos encaminhámos ambas nos bicos dos pés.

Era um gabinete grande, que tinha sido quarto de toucador e fazia parte do quarto de cama. Tinha uma porta paralela à porta do outro quarto por onde tínhamos entrado; esta segunda porta tinha, assim como a outra, uma aldraba pequena de latão lavrado, que descansava num prego do mesmo metal.

O lavor das aldrabas e dos pregos era tão primoroso, que pareciam cinzelados por Ben venuto Cellini.

Era evidente que as duas portas davam para a mesma antessala. Gertrudes chegou a luz à fechadura: tinha duas voltas de chave.

Estávamos presas.

Parece incrível que quando duas pessoas, ainda mesmo de condição diferente, se acham colocadas na mesma situação e expostas ao mesmo perigo, parece incrível, digo, como lhes ocorrem a ambas pensamentos análogos, e a facilidade com que dispensam qualquer esclarecimento intermediário e palavras inúteis.

Gertrudes aproximou-se de mim.

- A menina reparou - disse ela baixinho - que apenas subimos cinco degraus para virmos do pátio para aqui?

- É verdade - respondi eu.

- Estamos pois no andar térreo?

- Não há dúvida.

- De forma que. - prosseguiu ela ainda mais baixo e indicando-me com os olhos as portas das janelas - de forma que.

- Se estas janelas não tivessem grades. - interrompi eu.

- Sim, e se a menina tivesse ânimo.

- Ânimo! - exclamei eu - Oh, deixa estar que não me há-de faltar, minha filha. Desta vez foi Gertrudes quem levou o dedo à boca em sinal de silêncio.

- Sim, sim, bem percebo - disse-lhe.

Gertrudes fez-me sinal que ficasse onde estava, e foi tornar a pôr o candelabro sobre a mesa do quarto de cama.

HEu já tinha percebido a sua tenção, e cheguei-me à janela, procurando os fechos às apalpadelas. Achei-os, ou para melhor dizer, achou-os Gertrudes, que tinha voltado imediatamente para ao pé de mim. Abrimos a janela.

 

Soltei logo uma exclamação de alegria; não tinha grades.

Porém Gertrudes já tinha descoberto a causa de tamanho descuido dos nossos guardas: as janelas deitavam para um grande lago que chegava até ao pé das paredes do castelo; aqueles dez pés de água guardavam-nos muito melhor por certo do que nos teriam guardado as grades das janelas.

Mas quando, depois de examinar o lago, corri a vista pelas margens, logo conheci uma paisagem com a qual os meus olhos estavam familiarizados; estávamos presas no Castelo de Beaugé, onde, como já Lhe disse, tinha vindo algumas vezes com meu pai, e onde me tinham recolhido, havia um mês, no dia em que morrera a minha pobre Dafne.

O Castelo de Beaugé pertencia ao Senhor Duque de Anju.

Foi então que o meu espírito, iluminado como pelo clarão dum raio, compreendeu todo o horror da minha situação.

Tornámos a fechar a janela. Deitei-me vestida para cima da cama; Gertrudes sentou-se numa cadeira de braços, e dormiu aos meus pés.

Por mais de vinte vezes durante a noite acordei sobressaltada e a tremer de susto; porém, a não ser a situação em que me achava, nada havia que pudesse justificar semelhante terror; não apareciam indícios de intenções hostis contra mim; todos dormiam, pelo contrário, ou pareciam dormir, no castelo, e nenhuma bulha interrompia o silêncio da noite, a não ser os gritos das aves aquáticas.

Amanheceu enfim; a luz do dia, ao passo que me apresentava a paisagem sem a aparência medonha que lhe dava a escuridão, confirmou-me os meus receios da véspera: era impossível Fugirmos sem auxílio exterior; e como poderíamos nós alcançar semelhante auxílio?

Pela volta das nove horas, bateram-nos à porta; passei para o quarto de Gertrudes, dizendo-Lhe que mandasse entrar.

Os indivíduos que entraram, e que eu via pela greta da porta do gabinete, eram os mesmos criados da véspera; vinham tirar a ceia, em que não tínhamos tocado, e trazer-nos o almoço.

Gertrudes fez-Lhes algumas perguntas, mas eles saíram sem Lhe responderem. Voltei então para o meu quarto; a minha vinda para o Castelo de Beaugé e o respeito fingido com que nos tratavam, logo me deu a conhecer quem era o autor do meu rapto. O Senhor Duque de Anju tinha-me visto na função que Lhe dera o Sr. de Monsereau, e enamorara-se de mim; meu pai, que fora avisado, pretendeu subtrair-me às perseguições a que ia achar-me exposta, e tinha-me mandado sair de Méridor; mas, ou porque fosse atraiçoado por algum criado inFiel, ou porque ocorresse alguma fatalidade inexplicável, toda a sua cautela havia sido baldada, e eu achava-me em poder do homem de quem ele procurava livrar-me.

Persisti nesta ideia, que era a única verosímil, e na realidade a única verdadeira. A pedido de Gertrudes, bebi uma chávena de leite e comi um bocado de pão. Passámos a manhã a formar planos para fugirmos, mas todos eles impossíveis. E contudo, a cem passos de nós, amarrado ao pé dum canavial, víamos um bote guarnecido de remos! Se o bote estivesse em sítio onde Lhe pudéssemos chegar, decerto que as minhas forças, aumentadas pelo terror, e juntas às de Gertrudes, teriam sido suficientes para nos livrarmos daquele cativeiro.

Durante toda a manhã ninguém nos incomodou. Vieram-nos trazer o jantar da mesma maneira que nos tinham trazido o almoço; eu estava caindo com fraqueza. Sentei-me à mesa, e foi Gertrudes quem me serviu; porque os nossos guardas, assim que punham a comida na mesa, retiravam-se. Mas de repente, quando parti o pão, descobri um bilhetinho.

Abri-o apressadamente; apenas continha estas palavras:

Um amigo vela por si. Amanhã terá notícias dele e de seu pai.

Facilmente avaliará qual foi a minha alegria: palpitava-me o coração que parecia que me saltava fora do peito. Moscrei e bilhete a Gertrudes. Passámos o resto do dia animadas pela esperança.

A segunda noite passou-se tão sossegadamente como a primeira; pela manhã trouxeram o almoço, que eu esperava com impaciência, porque estava convencida que havia de encontrar no pão outro bilhete. Não me enganei; o bilhete era assim concebido:

A pessoa que a roubou há-de chegar ao Castelo de Beaugé esta noite às dez horas; porém o amigo que vela por si há-de estar por baixo das suasjanelas às nove, com uma carta de seu pai, ordenando-lhe que tenha nele a confiança que sem isso talvez não lhe concedesse.

Queime este bilhete.

Li primeira e segunda vez o bilhete, depois lancei-o ao fogo conforme me recomendavam. A letra era-me inteiramente desconhecida, e confesso que não podia imaginar quem mo dirigia.

Gertrudes e eu perdemo-nos em conjecturas; pusemo-nos à janela um sem-número de vezes durante a manhã para ver se avistávamos alguém pelas margens do lago ou no interior da mata; estava tudo solitário.

Uma hora depois do jantar, bateram à porta; era a primeira vez que sucedia quererem entrar no nosso quarto fora das horas da comida; como não tínhamos meio algum de nos fecharmos por dentro, não houve remédio senão mandar entrar.

Era o mesmo homem que nos tinha Falado à portinhola da liteira e no pátio do castelo. Não pude conhecê-lo pelo rosto, porque tinha uma máscara quando nos falou. Mas apenas abriu a boca, conheci-o logo pela voz.

Apresentou-me uma carta.

- Quem é que a manda, Senhor? - perguntei eu.

- Queira a menina ter o incómodo de ler - respondeu ele -, e logo verá. - Eu não quero ler essa carta sem saber primeiro quem ma dirige.

- A menina pode fazer o que lhe aprouver. Determinaram-me que lhe entregasse esta carta; aqui a deposito a seus pés; se mudar de tenção, dignar-se-á apanhá-la.

E, com efeito, o tal criado, que era uma espécie de escudeiro, pôs a carta sobre o banquinho em que eu descansava os pés, e saiu.

- Que hei-de fazer? - perguntei eu a Gertrudes.

- Se me atrevesse a dar um conselho à menina, dir-Lhe-ia que lesse a carta. Pode ser que nos traga a notícia de algum perigo, do qual possamos livrar-nos depois de avisados por ela.

Este conselho pareceu-me tão razoável, que mudei logo de opinião e abri a carta.

Diana, quando chegou a este ponto, interrompeu a sua narração, levantou-se, abriu uma papeleira, e tirou um bilhete de dentro duma carteira de seda.

Bussy lançou rapidamente os olhos para o sobrescrito, que dizia:

Para aformosa Diana de Méridor

E depois, olhando para a dama:

- Este envelope - disse ele - é do próprio punho do duque de Anju.

- Ah! - respondeu ela suspirando. - Então não me enganou ele. E como Bussy hesitasse em abrir a carta:

- Leia - disse ela -; o acaso fê-lo sabedor de tanta particularidade da minha vida, que não tenho que guardar segredos para com o senhor.

Bussy obedeceu, e leu:

Um infeliz príncipe, ferido no coração por sua divina beleza, há-de vir esta noite às dez horas pedir-lhe desculpa do seu comportamento para com a senhora, a que deu lugar unicamente o amor que lhe inspirou.

Francisco.

- Visto isso, esta carta é escrita na realidade pelo duque de Anju? - perguntou Diana.

- Infelizmente, assim é! - respondeu Bussy. - É a sua letra e a sua assinatura. Diana suspirou.

- Dar-se-á o caso de que ele seja menos criminoso do que eu supunha? - murmurou ela.

- Quem, o príncipe? - perguntou Bussy.

- Não, ele, o conde de Monsoreau.

Foi então Bussy quem suspirou também.

- Continue, minha Senhora - disse ele -, e então julgaremos o príncipe e o conde.

- Essa carta, de cuja autenticidade não tinha naquela ocasião motivo para desconfiar, por isso que vinha confirmar o meu receio, indicava-me, como Gertrudes tinha vaticinado, qual era o perigo a que estava exposta, e tornava muito mais valiosa a intervenção do amigo incógnito que se oferecia para me socorrer em nome de meu pai. Pus, por consequência, toda a minha esperança naquele homem.

Recomeçaram as nossas investigações; Gertrudes e eu voltámos para a janela, e não tirámos os olhos do lago e da porção da mata que ficava fronteira aos nossos quartos. Porém, em toda a extensão que podíamos alcançar com a vista, não divisámos nada capaz de alimentar as nossas esperanças.

Anoiteceu por fim; mas como estávamos então no mês de Janeiro, ainda era cedo; ainda tinham que decorrer quatro ou cinco horas primeiro que chegasse o momento decisivo; esperámos ansiosamente.

Era uma daquelas lindas noites de geada que há no Inverno, durante as quais, se não fosse o frio, parece que se está no fim da Primavera ou no princípio do Outono: brilhava o céu matizado de mil estrelas, e num canto do firmamento, a Lua, semelhante a um crescente, alumiava a paisagem com seus raios prateados; abrimos a janela do quarto de Gertrudes, a qual, em todo o caso, devia estar vigiada com menos rigor do que as do meu.

Pelas sete horas da noite, uma névoa muito subtil começou a cobrir a superfície do lago, mas, como se fora um véu de cassa transparente, não nos tirava a vista, eu, para melhor dizer, os nossos olhos, acostumando-se gradualmente à escuridão, conseguiram ver através da névoa.

Como não tínhamos meio algum de medir o tempo, ter-nos-ia sido impossível dizer que horas eram, quando nos pareceu, apesar da escuridão, que víamos mexer umas sombras à entrada da mata. Eram uns vultos que pareciam aproximar-se com cautela, encobrindo- se com as árvores para não serem vistos. Pode ser que acabássemos por nos persuadir que as sombras que víamos não passavam duma ilusão dos nossos olhos já cansados, se não nos viesse ferir os ouvidos o relinchar dum cavalo.

- São os nossos amigos - murmurou Gertrudes.

- Ou o príncipe - respondi eu.

- Nada! O príncipe não pode ser - disse ela -; se fosse o príncipe não se escondia. Esta reflexão tão simples desvaneceu as minhas suspeitas e tranquilizou-me. Continuámos a prestar a maior atenção.

Adiantou-se um homem sozinho; pareceu-me que de um grupo de mais homens, que tinha ficado escondido debaixo das árvores.

O homem em questão foi direito ao bote, soltou-o da estaca a que estava amarrado, meteu-se nele; e logo o bote, deslizando sobre a água, avançou em silêncio para onde estávamos.

À medida que ele se aproximava, redobrava eu de esforços para penetrar com a vista as trevas que me cercavam.

Pareceu-me diferençar a princípio a elevada estatura, as feições sombrias e fortemente caracterizadas do conde de Monsoreau; Finalmente, quando chegou a distância de dez passos de nós, já eu não tinha dúvida alguma que era ele.

Fiquei logo receando quase tanto o auxílio como o perigo.

Conservei-me calada e imóvel, encostada ao canto da janela, de modo que ele não me podia ver. Quando chegou junto do muro, prendeu o bote a uma argola e vi-Lhe aparecer a cabeça na altura do parapeito da janela.

Não pude reprimir um grito.

- Ah, perdão - disse o conde de Monsoreau -, julgava que estava à minha espera!. - Esperava alguém, é verdade - respondi eu -; mas não sabia que era o senhor. O conde sorriu-se com tristeza.

- Quem havia de proteger a honra de Diana de Méridor, a não ser eu e seu pai?. - Disse, Senhor, na carta que me escreveu, que vinha em nome de meu pai. - Sim, minha Senhora; e como logo antevi que desconfiaria da missão de que me encarreguei, trago-lhe um bilhete do barão.

E o conde, dizendo isto, ofereceu-me um papel.

Não tínhamos acendido a luz de propósito para que a escuridão favorecesse qualquer passo que tivéssemos a dar. Fui ao meu quarto, ajoelhei ao pé do fogão, e à claridade do lume pude ler:

Minha querida Diana, o Senhor Conde de Monsoreau é a única pessoa que pode livrar-te do perigo a que estás exposta, e esse perigo é imenso. Deposita pois inteira confiança nele, e olha-o como o melhor amigo que o Céu nos podia deparar nesta ocasião.

Ele mesmo te dirá mais tarde o que eu desejava de todo o coração que tu fizesses para pagar a divida que vamos contrair para com ele.

Teu pai, que te roga que o acredites e que tenhas dó dele e de ti: Barão de Méridor

Eu não tinha motivo nenhum para odiar o senhor de Monsoreau; a aversão que ele me inspirava era causada mais pelo instinto do que pela razão. A única culpa de que podia argui-lo era a morte da minha corça, e esse era um crime bem insignificante num caçador.

Tornei pois para a janela.

Então, que me diz? - perguntou ele.

- Li a carta de meu pai; ele manda-me dizer que o senhor está pronto a levar-me daqui para fora; mas não me diz para onde tenciona levar-me.

- Levo-a para um sítio onde o barão está à sua espera, minha Senhora.

- Onde é que ele me espera?

- No Castelo de Méridor.

- Nesse caso, vou tornar a ver meu pai?

- Daqui a duas horas.

Oh! Senhor, se isso que diz for verdade...

Detive-me aqui; o conde esperava visivelmente o fim da minha frase.

- Pode contar com toda a minha gratidão - prossegui com voz trémula e sumida, porque bem imaginava o que ele esperava da gratidão que eu não tinha ânimo para lhe exprimir.

- Visto isso, minha Senhora - disse o conde -, está pronta a acompanhar-me?

Olhei para Gertrudes com alguma inquietação; bem se lhe conhecia nos olhos que aquele rosto sombrio do conde não Lhe inspirava mais confiança a ela do que a mim.

- Reflicta que cada minuto que vai fugindo é para a senhora uma perda muito mais séria do que pode imaginar - disse ele. - Eu vim meia hora mais tarde do que tinha dito; daqui a um instante vão dar as dez. e não teve aviso que o príncipe havia de chegar ao Castelo de Beau é às dez horas?

- verdade, infelizmente! - respondi eu.

- Pois logo que o príncipe aqui esteja, já não posso fazer mais nada em seu favor, senão arriscar inutilmente a minha vida, que neste momento estou arriscando com a certeza de poder salvá-la.

- Mas porque não veio meu pai?

- Julga acaso que seu pai não está sendo vigiado? Julga que ele possa dar um único passo sem que se saiba onde vai?

- Porém o senhor. - perguntei eu.

- Comigo muda o caso de figura; eu sou amigo e confidente do príncipe. - Porém, Senhor - exclamei eu -, se é amigo e confidente do príncipe, então. - Então, estou-o atraiçoando por sua causa; sim, é isso mesmo. E por isso Lhe dizia ainda há pouco que estou arriscando a minha vida para proteger a sua honra.

Havia um tal acento de convicção na resposta do conde, e estava tão visivelmente em harmonia com a verdade, que, se bem que eu ainda sentisse alguma repugnância em me entregar a ele, não encontrava palavras para Lhe exprimir as minhas dúvidas.

- Estou esperando - disse o conde.

Olhei para Gertrudes, que estava tão indecisa como eu.

- Se ainda duvida - disse o Sr. de Monsoreau -, olhe para a parte de além. E, dizendo isto, apontou para um grupo de gente a cavalo que vinha caminhando na direcção do castelo, pela margem do lago oposta àquela por onde ele mesmo tinha vindo.

- Que homens são aqueles? - perguntei eu.

- É o duque de Anju e a sua comitiva - respondeu o conde.

- Menina, Menina! - disse Gertrudes. - Não percamos tempo.

- Já temos perdido demasiado - disse o conde -; em nome do Céu, peço-Lhe que se resolva.

Caí sobre uma cadeira, faltavam-me as forças.

- Oh! meu Deus! Meu Deus! Que hei-de fazer! - murmurei eu.

- Escute - disse o conde -, não ouviu bater à porta?.

Ouviam-se efectivamente argoladas à porta, a que estavam batendo dois homens que tínhamos visto apartarem-se do grupo para Lhe tomarem a dianteira.

- Daqui a cinco minutos - disse o conde - já será tarde.

Quis levantar-me, tremiam-me as pernas.

- Acode-me, Gertrudes! - balbuciei eu. - Acode-me!

- Menina - disse a pobre rapariga -, não ouve abrir a porta! Não ouve as patadas dos cavalos no pátio!

- Sim! sim! - respondi eu fazendo um esforço. - Mas faltam-me as forças. - Oh - disse ela -, não seja essa a dúvida!

E agarrou em mim ao colo, levantou-me como se fora uma criança, e entregou-me nos braços do conde.

Quando senti o contacto daquele homem, estremeci involuntariamente por tal forma, que por pouco não lhe escapei das mãos e não fui cair à água.

Porém ele apertou-me de encontro ao peito e sentou-me no bote. Gertrudes tinha saltado da janela sem que fosse preciso ajudá-la.

Reparei então no meu véu, que se havia despregado e caíra no lago.

Pareceu-me que era um indício que ficava do caminho que tínhamos tomado. - O meu véu! O meu véu! - disse eu para o conde. - Trate de apanhar o meu véu! O conde lançou a vista para o objecto que eu mostrava com o dedo. - Não - disse ele -, é melhor deixá-lo ficar.

E agarrando nos remos, deu um impulso tão violento ao bote, que dentro em pouco chegámos à margem oposta do lago.

Naquele mesmo instante vimos brilhar as janelas do meu quarto: eram os criados que entravam com luzes.

- Então, enganei-a?. - disse o Sr. de Monsoreau. - E não Lhe parece que já era tempo de fugir?.

- Oh! sim, sim, Senhor - repliquei eu -; é na realidade o meu salvador. Entretanto as luzes corriam duma parte para a outra; ora apareciam no meu quarto, ora no de Gertrudes. Ouvimos proferir gritos; entrou um homem a quem todos abriram caminho. O recém-chegado debruçou- se da janela que tinha ficado aberta, avistou o véu, que ainda estava ao de cima da água, e deu um grito.

- Vê agora que foi acertada a lembrança que tive de deixar ficar o véu? - disse o conde; - o príncipe há-de julgar que se afogou no lago para lhe escapar; e enquanto ele manda proceder às buscas, fugiremos nós.

Foi então que tremi deveras, com medo das tenebrosas combinações daquele espírito, que de antemão tinha contado com a eficácia de semelhante meio para iludir as pesquisas.

Naquele momento tocava o bote em terra.

 

         CONTINUAÇÃO DA HISTÓRIA DE DIANA DE MERIDOR - O CONVENIO

Houve outro instante de silêncio.

Diana, a quem a recordação do perigo de que escapara causava quase tanta impressão como lhe tinha causado o mesmo perigo, sentia que Lhe faltava a voz.

Bussy estava-a ouvindo com todas as faculdades da sua alma, e no coração jurava ódio eterno aos seus inimigos, quaisquer que eles fossem.

Finalmente, depois de ter cheirado um frasco que tirou da algibeira, Diana prosseguiu assim:

- Apenas saltámos em terra, vieram ter connosco sete ou oito homens. Eram os criados do conde, entre os quais julguei conhecer os dois indivíduos que me acompanhavam na liteira quando foi atacada pelos mascarados que me conduziram para o Castelo de Beaugé. Um estribeiro tinha dois cavalos seguros pelas rédeas: um deles era o cavalo preto do conde; o outro era um cavalinho branco destinado para mim. O conde ajudou-me a montar, e logo que cavalguei, montou ele no seu cavalo. Puseram Gertrudes à garupa no cavalo dum dos criados do conde.

Apenas concluídas estas disposições, partimos a galope.

Eu tinha notado que o conde levava o meu cavalinho pela rédea, e observei-lhe que sabia segurar-me e era escusada semelhante cautela; mas ele respondeu-me que o meu cavalo era medroso, podia espantar-se e fugir de junto dele.

Haveria dez minutos que galopávamos, quando ouvi a voz de Gertrudes chamando por mim. Voltei-me, e vi que o nosso rancho se havia desdobrado: quatro dos homens tinham tomado por um caminho diverso e levavam Gertrudes consigo na direcção da mata, enquanto que o conde de Monsoreau e os outros quatro me acompanhavam a mim.

- Senhor! - exclamei eu. - Por que razão não vem Gertrudes connosco? - É indispensável que nos separemos - respondeu o conde -, para deixarmos dois rastos se formos perseguidos; é preciso que haja notícias por dois sítios diversos duma mulher roubada por um bando de homens a cavalo. Assim teremos alguma probabilidade de iludir o Senhor Duque de Anju e fazer com que ele persiga a sua aia em vez de a perseguir a si.

Esta resposta, apesar de especiosa, não me satisfez; mas que podia eu dizer? Que Lhe havia de Fazer? Suspirei, e Fui esperando.

Entretanto, a estrada que o conde seguia era na verdade a que ia dar ao Castelo de méridor.

vista da velocidade com que caminhávamos, não podíamos levar mais dum quarto de hora para chegar ao castelo; mas, de repente, quando entrámos numa encruzilhada que eu muito bem conhecia, o conde, em lugar de continuar a seguir o caminho da casa de meu pai, inclinou à esquerda e tomou por uma estrada que dela me afastava visivelmente.

Gritei logo, e, apesar da rapidez do galope do meu cavalo, já tinha a mão sobre o arção do selim para saltar a terra, quando o conde, que vigiava naturalmente os meus movimentos, debruçou-se para mim, lançou- me o braço à cintura, e, tirando-me de cima do cavalo, colocou-me sobre o arção do seu. O cavalinho branco, assim que se viu solto, fugiu a relinchar para o interior da mata.

Esta acção do conde foi executada com tanta rapidez que apenas tive tempo para soltar um grito.

O Sr. de Monsoreau tapou-me logo a boca com a mão.

- Minha Senhora - disse-me ele -, juro-Lhe pela minha honra que tudo quanto faço é por ordem expressa de seu pai, e mostrar-lhe-ei uma prova do que digo no primeiro sítio onde pararmos para descansar; se a prova que Lhe apresentar não for suFiciente, ou se ainda tiver alguma dúvida, prometo-lhe, também pela minha honra, que a deixarei em liberdade. - Porém, Senhor, disse-me que me levava para casa de meu pai!. - exclamei eu, repelindo-Lhe a mão e deitando a cabeça para trás.

- É verdade, assim Lho afirmei, porque vi que hesitava em me acompanhar, e se durasse mais um instante uma tal hesitação estávamos perdidos, ele, a menina e eu, como muito bem viu. Ora vamos lá, diga-me - continuou o conde, parando o cavalo -: quer ser causa da morte do barão?. Quer ficar perdida sem remédio? Se assim é, profira uma única palavra, e levá-la- ei imediatamente para o Castelo de Méridor.

- Disse-me que me havia de provar em como tudo isto era por ordem de meu pai. - Eis a prova que lhe prometi - disse o conde -; tome esta carta, e leia-a na primeira casa em que nos apearmos. Se, depois de a ler, ainda quiser regressar para o castelo, repito-lhe, pela minha honra, que ficará em liberdade para assim o fazer. Porém, se tem ainda algum respeito às ordens do barão, estou bem certo que não voltará.

- Está bem, Senhor, vamos para diante, procuremos chegar quanto antes ao sítio onde havemos de apear-nos, porque estou com pressa de saber se fala verdade. - Lembre-se que me acompanha por sua livre vontade.

- Sim, se acaso se pode considerar em plena liberdade uma pobre rapariga colocada numa situação em que vê, por um lado, a morte de seu pai e a própria desonra, e, pelo outro, necessidade de se fiar na palavra dum homem que apenas conhece muito de relance; mas não importa, Senhor: sigo-o por minha livre vontade; e para que se certifique que assim é, peço-lhe que me mande dar um cavalo.

O conde acenou a um dos criados para que se apeasse. Eu saltei abaixo do cavalo dele, e dali a um instante estava outra vez a cavalo a seu lado.

O cavalinho não pode ter ido para longe - disse ele para o homem que tinha ficado a pé procura-o pela mata e chama-o; ele acode logo como se fora um cão, ao nome ou ao apito. Virás ter connosco ao lugar da Châtre.

Arrepiei-me sem querer. A aldeia da Châtre ficava já a dez léguas do Castelo de Méridor, estrada de Paris.

Senhor - disse-lhe eu -, acompanhá-lo-ei; mas quando chegarmos a Châtre, trataremos das condições.

- Ou por outra, dar-me-à as suas ordens, minha Senhora - respondeu o conde. Tanta obediência aparente não me tranquilizava muito; contudo, como eu não tinha escolha dos meios, e aquele que então se me apresentava para fugir ao duque de Anju era o único de que podia lançar mão, continuei a acompanhar o conde em silêncio. Ao romper da manhã, chegámos a Châtre. Mas em vez de entrar na aldeia, quando já estávamos a seis passos dos primeiros jardins, tomámos para o interior das terras, e encaminhámo-nos para uma casa isolada.

Parei o cavalo.

- Onde vamos nós? - perguntei eu.

- Ouça-me, minha Senhora - disse o conde -, já tenho notado a extrema clareza do seu espírito, e é a ele que me dirijo. Como é que, procurando nós ocultar-nos às pesquisas da pessoa mais poderosa de França depois do rei, como é, digo, que havíamos de apear-nos numa hospedaria aberta a todos, e no centro duma aldeia onde qualquer dos aldeões que nos visse nos iria denunciar? Pode-se comprar um homem, mas não é possível comprar uma aldeia inteira!

Havia nas respostas do conde uma tal lógica, ou pelo menos uma especiosidade, que me aterrava.

- Está bem - disse eu. - Vamos lá.

E prosseguimos no caminho.

Já estavam à nossa espera; a gente da casa tinha sido avisada por um homem da nossa escolta que para esse Fim nos havia tomado a dianteira, sem que eu em tal tivesse reparado. Tinham acendido o fogão dum quarto bastante decente, e estava pronta uma cama.

- Eis o seu quarto, minha Senhora - disse-me o conde -; eu fico esperando as suas ordens.

Cortejou e saiu, deixando-me só.

O meu primeiro cuidado foi chegar-me ao candeeiro, e tirar do seio a carta de meu pai... Ela aqui está, Sr. de Bussy: seja meu juiz, leia.

Bussy pegou na carta e leu:

Minha Diana muito querida. Se, como eu espero, anuiste ao meu pedido e acompanhaste o conde de Monsoreau, já ele te disse provavelmente que tiveste a desgraça de agradar ao duque de Anju, e que foi este príncipe quem te mandou roubar e conduzir para o Castelo de Beaujé. Por tal acto de violência podes tu ajuizar do que será capaz o duque, e qual é a desgraça que te espera. Pois bem! Para escapares à desonra, que decerto me mataria a mim de desgosto, tens um meio à tua disposição: casa com o nosso honrado amigo; logo que fores condessa de Monsoreau, poderá o conde proteger-te como sua mulher e jurou-me que te havia de defender por todos os meios ao seu alcance. Éportanto o meu desejo, querida filha, que se realize quanto antes o teu casamento, e como espero que tu cumprirás esta minha vontade, desde já te deito a minha bênção paternal, rogando a Deus que Se digne conceder-te todos os tesouros de felicidade que costuma reservar para corações semelhantes ao teu.

Teu pai, que não manda, mas sim pede: Barão de Méridor.

- Infelizmente - disse Bussy -, se esta carta foi escrita por seu pai, minha Senhora, a ordem era terminante.

- É escrita por meu pai, não há dúvida alguma; contudo, li-a por três vezes antes de tomar uma resolução. Finalmente, chamei o conde.

Entrou logo; o que me deu a conhecer que estava esperando à porta. Eu tinha a carta na mão.

- Então - disse ele -, já leu? Sim senhor - respondi eu.

- Ainda duvidará do meu afecto e do meu respeito pela senhora? - Se ainda duvidasse - respondi eu -, bastava esta carta para me obrigar a ter fé no Senhor Conde. Agora vejamos, Senhor: supondo que eu esteja na disposição de seguir os conselhos de meu pai, o que tenciona fazer?

- Tenciono levá-la para Paris, minha Senhora, por ser lá que mais facilmente poderei ocultá-la.

- E meu pai?

- Em qualquer parte em que a senhora estiver, logo que não haja receio de comprometimento algum, o barão virá ter connosco.

- Muito bem, Senhor Conde, estou pronta a aceitar a sua protecção com as condições que me impõe.

- Não imponho coisa alguma, minha Senhora - respondeu o conde -; ofereço-lhe um meio para se salvar, e nada mais.

- Pois bem! Emendarei o meu dito, e servindo-me das suas expressões, direi: estou pronta a aceitar o meio que me oferece para escapar à perseguição de que sou vítima, mas com três condições.

- Fale, minha Senhora.

- A primeira é que Gertrudes me há-de ser restituída.

- Está ali fora - disse o conde.

- A segunda é que havemos de fazer a jornada daqui até Paris separados um do outro. - Tencionava propor-Lhe isso mesmo para tranquilizar a sua susceptibilidade. - E a terceira é que o nosso casamento, salvo algum caso urgente, e que eu reconheça como tal, não há-de ter lugar senão em presença de meu pai.

- É esse o meu desejo mais ardente, porque quero que a bênção dele chame sobre as nossas cabeças a bênção do Céu.

Fiquei espantada. Esperava encontrar no conde alguma oposição a esta tríplice expressão da minha vontade, e via que, pelo contrário, ele abundava no meu sentido.

- Agora minha Senhora - disse o Sr. de Monsoreau -, quer permitir-me que lhe dê alguns conselhos?

- Estou ouvindo, Senhor.

- O primeiro é que não ande de noite.

- Tenho essa tenção.

- O segundo é que deixe a meu cargo a escolha das casas em que há-de descansar, e da estrada que há-de seguir; todas as minhas disposições serão tendentes ao único fim que tenho em vista, que é livrá-la do duque de Anju.

- Se na verdade me estima como diz, Senhor, temos nisso igual interesse; e por consequência não tenho objecção alguma a fazer a essa proposta.

- O terceiro, finalmente, é que aceite, quando chegar a Paris, a habitação que eu lhe tiver mandado aprontar, ainda que a casa Lhe pareça muito simples e o bairro muito solitário.

- O meu desejo, Senhor, é viver recolhida; e quanto mais simples for a casa e mais soli tário for o bairro, melhor me poderei ocultar.

- Visto isso, estamos perfeitamente concordes, minha Senhora, e só me resta, para me conformar em tudo com o plano que delineou, apresentar-lhe os meus respeitosos cumprimentos, mandar para aqui a sua aia, e ir explorar a estrada que tem a seguir.

- Só tenho a dizer-lhe, Senhor Conde - respondi eu -, que sou cumpridora da minha palavra, como espero que o senhor seja da sua; cumpra pois todas as suas promessas, que eu cumprirei as minhas.

- Nada mais exijo - disse o conde -; e essa afirmação dá-me a certeza de que em breve hei-de ser o mais feliz dos homens.

Dizendo estas palavras, fez um cumprimento e retirou-se.

Dali a cinco minutos entrou Gertrudes.

A pobre rapariga ficou contentíssima por me tornar a ver, pois persuadira-se que nos tinham separado para sempre. Contei-Lhe tudo quanto acabava de ter lugar, pois carecia de alguém que estivesse ao facto dos meus projectos, para executar os meus menores desejos: entender-me quando eu lhe dissesse meia palavra, e, quando fosse preciso, obedecer-me a um sinal ou a um gesto. Admirava-me a facilidade que tinha encontrado no Sr. de Monsoreau e receava, portanto, que houvesse alguma inFracção ao nosso convénio.

Acabava eu de falar, quando ouvimos a bulha dum cavalo que se afastava. Corri à janela e vi que o conde voltava a galope pela estrada por onde tínhamos vindo. Porque seguiria ele aquele caminho em lugar de andar para a frente? Era o que eu não podia entender.

Entretanto, tinha cumprido o primeiro artigo do convénio, restituindo-me Gertrudes; cumpria o segundo, separando-se de mim; não havia razão de queixa. E demais, qualquer que fosse o sítio para onde ele se dirigia, aquela partida do conde tranquilizava-me.

Passámos todo o dia naquela casa, cuja dona nos serviu de criada; mas logo que anoiteceu, o indivíduo que figurava de chefe da nossa escolta entrou no meu quarto a pedir as minhas ordens. Como o perigo me parecia tanto maior quanto mais perto estivesse do Castelo de Beaugé, respondi-lhe que estava pronta; dali a cinco minutos voltou a dizer-me que só esperava por mim. Achei à porta o meu cavalinho branco; tinha vindo ter com o criado logo que o chamou, conforme Lhe dissera o conde de Monsoreau.

Andámos toda a noite, e parámos, como na véspera, ao romper do dia. Calculei que devíamos ter caminhado umas quinze léguas, pouco mais ou menos; o Sr. de Monsoreau tinha dado todas as providências necessárias para que eu não sofresse nem cansaço nem frio.

O cavalinho que ele escolhera para mim tinha uma andadura muito cómoda, e ao sair de casa tinham-me deitado sobre os ombros um belo capote todo forrado de peles.

A segunda paragem foi exactamente como a primeira, e todas as minhas marchas nocturnas iguais a esta última: sempre as mesmas atenções e o mesmo respeito, por toda a parte os mesmos cuidados; era evidente que adiante de nós ia alguém incumbido de mandar aprontar as pousadas. Seria acaso o conde? Nunca o pude saber, porque ele, cumprindo aquela condição do nosso convénio com a mesma pontualidade com que executava as mais, nem uma única vez apareceu à minha vista durante a jornada.

- Pela volta da tarde do sétimo dia, avistei, do alto dum outeiro, um grande montão de casas. Era Paris.

Demorámo-nos à espera da noite, e, logo que escureceu, pusemo-nos novamente a caminho; dali a pouco entrámos por uma porta além da qual o primeiro objecto que me deu na vista foi um edifício imenso, que, pela elevação dos muros, me pareceu ser um convento; depois atravessámos duas vezes o rio. Tomámos à direita, e, tendo andado mais dez minutos encontrámo-nos no Largo da Bastilha. Então um homem que parecia estar à nossa espera saiu duma porta, e chegando-se ao chefe da escolta, disse:

- É aqui.

O chefe da escolta virou-se para mim.

Ouviu, minha Senhora? Chegámos ao nosso destino.

saltando abaixo do cavalo, ofereceu-me a mão para eu me apear, como sempre tinha praticado pelo caminho, todas as vezes que parávamos.

HA porta estava aberta, e um candeeiro, posto sobre os degraus alumiava a escada.

- Minha Senhora - disse o chefe da escolta -, está aqui em sua casa; no limiar desta porta acaba a missão que se nos deu de a acompanharmos; poder-me-ei lisonjear de termos cumprido o nosso dever, eu e a minha gente, conForme os seus desejos, e com o respeito que tanto se nos recomendou?

 

- Sim senhor - disse eu -, e só me resta agradecer-Lhe. Agradeça também em meu nome a essa boa gente que me acompanhou. Eu bem quisera poder-lhes dar alguma remuneração mais eficaz; porém nada possuo.

- Não lhe dê isso cuidado, minha Senhora - respondeu o homem a quem eu dava esta desculpa -; já todos foram pagos com generosidade.

E tornando a montar a cavalo, depois de me ter cortejado:

- Venham comigo vocês - disse ele para os mais -, e tratem de se esquecer desta porta por forma tal que nenhum se lembre amanhã que ela existe.

Ditas estas palavras, o rancho abalou a todo o galope e internou-se pela Rua de Santo António.

O primeiro cuidado de Gertrudes foi fechar a porta, e pelo postigo é que os vimos afastar i Depois encaminhámo-nos para a escada onde estava o candeeiro; Gertrudes pegou nele e foi andando adiante de mim.

Subimos os degraus e achámo-nos num corredor; deitavam para ele três portas, que estavam abertas.

Entrámos pela do centro, e viemos dar a esta sala onde agora estamos. Estava guarnecida de luzes tal qual como neste momento se acha.

Abri aquela porta e vi que era um gabinete de toucador; depois aqueloutra, que era a do meu quarto de cama, e, com grande admiração minha, avistei o meu retrato logo que entrei.

Conheci que era o mesmo que estava no quarto de meu pai em Méridor; o conde tinha-o pedido provavelmente ao barão e conseguido dele que Lho desse. Estremeci quando vi mais esta prova de que meu pai me considerava já como legítima

mulher do Sr. de Monsoreau.

Passámos revista à habitação toda: estava solitária, mas não faltava coisa alguma; havia lume aceso em todos os fogões, e, na casa de jantar, estava à minha espera a mesa já posta.

Fui logo examinar a mesa; não havia senão um talher; fiquei mais descansada. - Então, Menina? - disse Gertrudes - bem vê que o conde cumpre o que prometeu.

- Desgraçadamente assim é! - respondi eu com um suspiro. - Antes quisera que ele tivesse faltado a alguma das suas promessas, para assim me desligar da palavra que lhe dei.

Ceei; quando acabei, tornámos a passar revista a toda a casa, e não encontrámos fôlego vivo; não havia dúvida que era nossa unicamente.

Gertrudes dormiu no meu quarto.

No dia seguinte saiu para se orientar. Foi então unicamente que soube por ela que estávamos no fim da Rua de Santo António, defronte do Palácio das Tournelles, e que a fortaleza que avistava ao meu lado direito era a Bastilha.

Devo confessar-Lhe que estas informações não me adiantavam muito. Eu nada sabia de Paris, onde nunca tinha vindo.

Passou-se o dia sem novidade; à noite, quando acabava de me sentar à mesa para cear, bateram à nossa porta.

Gertrudes e eu olhámos uma para a outra.

Bateram segunda vez.

- Vai ver quem é - disse-lhe eu.

- E se for o conde? - perguntou ela, vendo que eu estava enfiada. - Se for o conde - respondi fazendo um esforço violento -, abre-lhe a porta, Gertrudes; ele cumpriu fielmente o que prometeu; há-de ver que eu, assim como ele, só tenho uma palavra.

Passado um instante, tornou Gertrudes a aparecer. - É o Senhor Conde, minha Senhora - disse ela.

 

- Diz-lhe que entre - respondi eu.

- Gertrudes abriu caminho ao conde, que logo me apareceu à entrada da porta.

- Então, minha Senhora - perguntou ele -, parece-lhe que executei fielmente o nosso convénio?

- Sim senhor - respondi eu -, e agradeço-lhe.

- Visto isso, está disposta a receber-me em sua casa? - acrescentou ele, com um sorriso

de que não pôde dissimular a ironia.

- Entre, Senhor.

O conde aproximou-se e ficou de pé. Fiz-lhe sinal que se sentasse.

- Traz-me alguma notícia, Senhor Conde? - perguntei eu.

- De onde, e de quem, minha Senhora?

- De meu pai e de Méridor, primeiro que tudo.

- Não voltei ao Castelo de Méridor, nem tornei a ver o barão.

- Então de Beaugé e do duque de Anju.

- Isso agora é outra coisa; fui a Beaugé e falei com o duque...

- Em que disposição o achou?

- Querendo ainda duvidar.

- De quê?

- Da sua morte.

- Mas afirmou-lhe que era verdade.

- Fiz quanto pude para o convencer.

- E onde pára o duque?- Regressou a Paris ontem à noite.

- Por que motivo voltou ele tão apressadamente?

- Provavelmente porque não gostou de ficar por mais tempo num sítio onde a consciência o acusava de ter feito uma morte.

- Já esteve com ele depois que chegou a Paris?

- Deixei-o há pouco.

- Falou-Lhe em mim?

- Não lhe dei lugar a isso.

- Qual foi o assunto da conversação?

- Tratou-se duma promessa que ele me fez e que eu lhe pedi que cumprisse.

- O que é?

- Comprometeu-se a fazer-me nomear para o cargo de monteiro- mor, em paga dos serviços que lhe tenho prestado.

- é verdade - disse eu sorrindo com tristeza, porque me lembrou a morte da minha

pobre Dafne -; é um caçador temível, e, como tal, tem direito ao lugar que pretende.

- Não é por ser bom caçador que ele me é dado, minha Senhora, é por ser criado do príncipe; não hei-de consegui-lo por ter direito a ele, mas sim porque o Senhor Duque de Anju não se há-de atrever a mostrar-se ingrato para comigo.

Havia em todas estas respostas, apesar do modo respeitoso com que eram proferidas alguma coisa que me assustava; era a expressão duma vontade implacável.

Fiquei um instante calada.

- Ser-me-á permitido escrever a meu pai? - perguntei eu.

Decerto; mas lembre-se que as suas cartas podem ser interceptadas.

- É-me proibido sair?

- Nada lhe é proibido, minha Senhora; contudo observar-lhe-ei que pode alguém segui-la na rua.

- Mas não poderei ao menos ir ouvir missa aos domingos?...

- Acho que seria muito mais acertado, para sua segurança, que não a ouvisse; mas se deseja muito ir à missa, limite-se ao menos a ouvi-la na Igreja de Santa Catarina... olhe que isto não passa dum conselho que lhe dou.

- E onde fica essa igreja?

- Em frente da sua casa, do outro lado da rua.

- Obrigada, Senhor Conde.

Houve aqui novo silêncio.

- Quando tornarei a vê-lo, Senhor Conde?

- Não sei ainda se me concederá licença para aqui voltar...

- Carece porventura de licença minha?

- Por certo. Sou por enquanto uma pessoa estranha para a Senhora.

- Não tem uma chave desta casa?

- A seu marido, unicamente, é que pode competir semelhante privilégio...

- Senhor - respondi eu, ainda mais assustada por aquelas respostas tão extraordinárias, do que se ele me tivesse falado em tom imperioso. - pode voltar aqui quando quiser, ou quando tiver a comunicar-me alguma coisa que Lhe pareça urgente.

- Muito obrigado, minha Senhora; usarei da licença, mas não abusarei... E para prova do que digo, peço-lhe que aceite os meus cumprimentos.

O conde, a estas palavras, levantou-se.

- Deixa-me já? - perguntei eu, cada vez mais admirada por ver um procedimento que estava bem longe de esperar.

- Minha Senhora - respondeu o conde -, sei que não gosta de mim, e não quero abusar da situação em que se acha, e que de alguma forma a obriga a utilizar-se da minha protecção. Não quero tornar-me importuno demorando-me por muito tempo ao seu lado, pois espero que, pouco a pouco se irá habituando à minha presença, a fim de que o sacrifício lhe não pareça tão penoso quando chegar o momento de ser minha mulher.

- Senhor - disse eu, levantando-me também -, conheço toda a delicadeza do seu proceder. e apesar de serem algum tanto desabridas as suas palavras, sei apreciar as suas intenções. Tem razão, e quero falar-Lhe com a mesma franqueza de que usou. Tinha contra o Senhor algumas prevenções, que o tempo há-de ir desvanecendo, segundo espero.

- Permita-me, minha Senhora, que conserve essa esperança e que possa viver na expectativa de momento tão feliz.

E depois de me ter cortejado com tanto respeito como se fora o mais humilde dos meus criados, fez sinal a Gertrudes, diante de quem tinha tido lugar toda esta conversa, que o

devia alumiar, e saiu.

 

         CONTINUAÇÃO DA HISTÓRIA DE DIANA DE MÉRIDOR

- Realmente, vejo que o conde é um homem bem célebre - disse Bussy.

- Oh, sim, muito célebre, na verdade! Porque o seu amor para comigo mostrava-se com toda a aparência do ódio. Gertrudes, ao voltar, veio achar-me mais triste e mais assustada do que nunca.

Procurou tranquilizar-me, porém bem se conhecia que a pobre rapariga estava com tanto medo como eu. Aquele respeito glacial, aquela obediência irónica, aquela paixão reprimida, e que vibrava como uma nota estridente em cada uma das suas palavras, eram muito mais para temer do que teria sido uma ordem claramente formulada, e que eu pudesse combater.

O dia imediato era um domingo: desde que me entendia, nunca tinha deixado de ir assistir aos ofícios divinos. Ouvi os sinos da Igreja de Santa Catarina que pareciam chamar por mim. Vi que toda a gente se encaminhava para a casa de Deus, deitei um véu muito espesso pela cabeça, e, acompanhada por Gertrudes, uni-me à multidão dos fiéis que concorria ao chamamento dos sinos.

Procurei o canto mais escuro, e Fui ajoelhar ao pé da parede. Gertrudes colocou-se, como uma sentinela, entre os circunstantes e eu. Daquela vez foi inútil semelhante cautela; não me pareceu que pessoa alguma reparasse em nós.

Dois dias depois apareceu o conde, e disse-me que tinha sido nomeado monteiro-mor. Em virtude da influência do Senhor Duque de Anju, tinha ele alcançado aquele cargo, que já estava quase prometido a um dos validos de el-rei, chamado Saint-Luc. Era um triunfo que ele nem se atrevia a esperar. "

- Não há dúvida - disse Bussy -, e a todos causou admiração.

- Vinha dar-me esta notícia, esperando que a sua nova dignidade influiria em mim para consentir no casamento; contudo, nada pedia, nem instava; tinha toda a esperança na minha promessa e na força dos acontecimentos.

Eu, pelo que me dizia respeito, ia começando a esperar, visto o duque de Anju estar persuadido da minha morte, que deixava de existir o perigo de que fora ameaçada, e ficava desobrigada para com o conde.

Passaram-se mais sete dias, sem outra novidade além de duas visitas do conde. As suas maneiras, nestas visitas, foram como nas precedentes, frias e respeitosas; mas já lhe expliquei o medo que eu tinha de tanta frieza e respeito.

No domingo seguinte, fui à igreja, como da primeira vez, e tomei o mesmo lugar em que estivera havia oito dias. Quem julga nada ter que recear, torna-se às vezes imprudente: no meio das minhas rezas, caiu-me o véu para o ombro... Eu estava na casa de Deus, só pensava em Deus.

Orava com fervor por meu pai, quando de repente senti que Gertrudes me tocava no cotovelo; foi-Lhe necessário segundo toque para me fazer sair da espécie de êxtase religioso a que estava entregue.

Ergui a cabeça, olhei maquinalmente em volta de mim, e vi, com o maior terror, o duque de Anju encostado a uma coluna e devorando-me com a vista.

Um homem, que mais parecia um confidente do que um criado, estava ao lado dele.

- Era Aurilly, seu tocador de alaúde - disse Bussy.

- Com efeito - respondeu Diana -, parece-me que foi esse o nome que Gertrudes me disse dali a dias.

- Continue, minha Senhora - disse Bussy -, continue por favor, já vou começando a perceber tudo.

- Puxei rapidamente o véu para a cara, mas já era tarde; tinha-me visto; e se bem que não me conhecesse, contudo a minha semelhança com aquela outra mulher de quem ele gostava e que julgava morta, causara-lhe uma impressão profunda.

Não podendo sofrer o peso daquele olhar que me incomodava, levantei-me para sair da igreja; mas quando cheguei à porta tornei a dar com ele; tinha molhado os dedos na pia da água benta e apresentava-mos respeitosamente.

Fingi não ter reparado, e passei sem aceitar a água que ele me oferecia.

Porém mesmo sem voltar o rosto, percebi que nos seguiam; se eu conhecesse as ruas de Paris, teria diligenciado enganar o duque acerca da minha morada; mas eu nunca tinha andado na capital senão a distância que mediava entre a casa em que habitava e a igreja; não conhecia pessoa alguma a quem pudesse pedir agasalho durante um quarto de hora que fosse; não tinha uma única amiga, apenas me restava um defensor que eu temia mais do que um inimigo. "

- Oh! meu Deus! - murmurou Bussy - porque não quis o Céu, a Providência ou o acaso que eu a encontrasse mais cedo?

Diana agradeceu ao mancebo com os olhos.

- Mas perdoe-me - replicou Bussy -; interrompo-a continuamente, apesar da muita curiosidade com que a estou escutando. Prossiga, eu rogo-lhe.

- Naquela mesma noite, veio ver-me o Sr. de Monsoreau. Eu não sabia se devia falarno que me tinha sucedido, mas foi ele quem pôs termo à minha hesitação.

- Perguntou-me - disse ele - se Lhe era proibido ir à missa, e eu respondi-Lhe que era inteiramente senhora das suas acções, mas que o melhor seria não sair. Não quis dar-me crédito, e saiu esta manhã para ir assistir aos ofícios divinos na igreja de Santa Catarina. O príncipe também lá estava, por acaso, ou, para melhor dizer, por fatalidade, e viu-a.

- verdade, Senhor, e eu ainda hesitava em comunicar-Lhe essa circunstância, porque não sabia se o príncipe me havia conhecido por quem realmente sou, ou se apenas tinha notado a minha semelhança com outra pessoa.

- Deu-lhe logo na vista; a sua semelhança com a mulher de quem ele ainda consagra tanta saudade pareceu-lhe extraordinária: seguiu-a e tirou informações; porém nada adiantou, porque ninguém sabe coisa alguma a seu respeito.

- Meu Deus - exclamei eu -, o que julga que fará agora, Senhor?

- O duque tem um génio taciturno e perseverante - disse o Sr. de Monsoreau.

- Oh! Ainda espero que ele há-de esquecer-se de mim.

- Não penso assim; quem uma vez a viu, não pode esquecer-se da senhora. Também fiz quanto pude para me esquecer, e nunca o consegui.

Foi naquele momento que vi brilhar pela primeira vez nos olhos do Sr. de Monsoreau o fogo da paixão.

Causou-me maior terror a chama que acabava de abrasar aquele coração, que eu julgava morto, do que me havia causado pela manhã a vista do príncipe.

Fiquei calada.

- Que tenciona fazer? - perguntou-me o conde.

- Diga-me, Senhor, eu não poderia mudar de casa, de bairro, de rua? Ir residir para a outra extremidade de Paris? Ou, melhor ainda, voltar para o Anju?

- Tudo isso seria inútil - disse o Sr. de Monsoreau abanando a cabeça -; o Senhor Duque de Anju tem um faro muito fino, já deu com o seu rasto. Agora, qualquer que seja o lugar para onde for, há-de segui-la até a descobrir.

- Oh, meu Deus, assusta-me, na realidade!

- Não pretendo assustá-la; digo-Lhe a verdade e nada mais.

- Nesse caso toca-me a mim dirigir-lhe a mesma pergunta que há pouco me fez. O que tenciona fazer, Senhor?

- Eu, infelizmente, tenho poucos recursos de imaginação - disse o conde de Monsoreau com ironia. - Tinha descoberto um meio; não lhe agradou; não insto para que o adopte, mas não me ordene que procure outro.

- Porém - repliquei eu - o perigo não é talvez tão iminente como pensa.

- Com o tempo verá, minha Senhora - disse o conde levantando- se. - Em todo o caso ainda lhe repito que a esposa do conde de Monsoreau nada terá que recear do príncipe, visto que pelo cargo para que foi nomeado só depende de el-rei, o qual, decerto, me há-de proteger a mim e a minha mulher.

A minha resposta foi um suspiro. O que o conde acabava de dizer não admitia contestação. O Sr. de Monsoreau esperou um instante, como para me dar tempo a responder-lhe; mas não tive ânimo. Estava de pé, pronto a sair.

Sorriu-se amargamente, cortejou-me e saiu.

Quis-me parecer que Lhe ouvira alguma imprecação ao descer a escada.

Chamei Gertrudes.

Gertrudes tinha por costume ficar no gabinete ou no quarto de cama quando o conde vinha visitar-me: apareceu logo.

Eu estava à janela, embrulhada nas cortinas de maneira tal, que, sem ser vista, podia ver o que se passava na rua.

O conde saiu e afastou-se.

Conservámo-nos por espaço de uma hora, pouco mais ou menos, a examinar o que ia pela rua. Mas ninguém apareceu.

Passou-se a noite sem que houvesse novidade alguma.

No dia seguinte, Gertrudes, quando saiu, encontrou um mancebo que ela reconheceu logo ser o mesmo que na véspera estava com o príncipe; dirigiu- se a ela para lhe falar, porém foi debalde que procurou interrogá-la, porque a nenhuma das perguntas que ele fez ela respondeu.

Até que por fim desistiu, e deixou-a.

Este encontro assustou-me sobremaneira; era o começo duma investigação que decerto teria de ir mais longe. Receei que o Sr. de Monsoreau não viesse de tarde e que se fizesse alguma tentativa contra mim durante a noite; mandei-Lhe recado, e veio logo visitar-me.

eu HContei-Lhe tudo, e dei-lhe os sinais do mancebo conforme Gertrudes mos tinha dado.

- Era Aurilly - disse ele -; que Lhe respondeu Gertrudes?

- Gertrudes não Lhe respondeu coisa alguma.

O Sr. de Monsoreau reflectiu um instante.

- Pois fez mal - disse ele.

- Como assim?

- Sim, é preciso ganharmos tempo.

- Ganharmos tempo?

- É verdade, porque hoje ainda eu dependo do duque de Anju; porém, daqui a quinze

dias, ou oito, talvez, é o duque de Anju que há-de depender de mim. É necessário portanto enganá-lo, para que ele espere.

- Valha-me Deus!

- Não há dúvida, qualquer esperança que se lhe dê fará com que ele tenha paciência; enquanto que uma recusa positiva o obrigará a tomar alguma resolução desesperada.

- Senhor, escreva a meu pai - exclamei eu -; meu pai virá a Paris e irá lançar-se aos pés de el-rei, que há-de ter dó dum velho pobre.

- Isso será conforme a disposição de espírito em que estiver el- rei, e conforme lhe Fizer conta, para a sua política, mostrar-se amigo ou inimigo do Senhor Duque de Anju na ocasião em que seu pai lhe falar. Demais, são precisos seis dias para que a carta chegue às mãos de seu pai, e a ele ser-Lhe-ão precisos outros seis para fazer a jornada. No espaço desses doze dias já o Senhor Duque de Anju terá ido às do cabo, se não contrariarmos os seus desígnios.

- Mas por que forma, não me dirá?

O Sr. de Monsoreau não respondeu. Percebi o seu pensamento e baixei os olhos.

- Senhor - disse eu depois dum instante de silêncio -, dê as suas ordens a Gertrudes; ela seguirá em tudo as suas instruções.

Um imperceptível sorriso assomou aos lábios do Sr. de Monsoreau, quando me ouviu reclamar pela primeira vez a sua protecção.

Falou alguns instantes com Gertrudes.

- Minha Senhora - disse ele -, poderia acontecer que alguém me visse sair de sua casa; daqui até anoitecer de todo apenas faltam duas horas; dá-me licença que eu passe esse tempo na sua sala?

O Sr. de Monsoreau quase que tinha direito a exigir aquilo que se limitava a pedir; fiz-lhe sinal que se sentasse.

Foi então que pude avaliar o poder que o conde tinha sobre si mesmo; superou logo o constrangimento que necessariamente resultava da nossa situação recíproca, e a sua conversação tornou-se variada e interessante, apesar daquela espécie de aspereza que já indiquei. O conde tinha viajado muito, tinha visto muita coisa, tinha pensado muito, e ao cabo de duas horas já não me admirava que um homem tão singular tivesse podido captar a amizade de meu pai.

Bussy suspirou.

Logo que anoiteceu, o conde, sem insistir, sem exigir coisa alguma, e mostrando-se satisfeito com o que havia alcançado, levantou-se e saiu.

Depois de ele nos deixar, voltámos, Gertrudes e eu, para o nosso observatório.

Desta vez vimos distintamente dois homens que andavam examinando a casa.

Aproximaram-se da porta umas poucas de vezes: as luzes interiores estavam apagadas, não podiam desta maneira ver-nos.

Por volta das onze horas foram-se embora.

No dia imediato, Gertrudes, quando saiu, tornou a encontrar o mesmo mancebo no mesmo sítio; veio ter com ela outra vez e interrogou-a como tinha feito na véspera. Gertrudes então mostrou-se menos ríspida e respondeu-lhe algumas palavras.

No dia seguinte, Gertrudes deu-Lhe mais conversa; disse-lhe que eu era viúva dum conselheiro, e que, tendo Ficado com poucos meios, vivia muito recolhida; ele quis insistir para saber mais alguns pormenores, mas não teve remédio senão contentar-se, por então, com aquelas informações.

No dia que a este se seguiu, Aurilly mostrou alguma dúvida acerca da veracidade da história da véspera: falou em Anju, Beaugé, e até chegou a proferir o nome de Méridor.

e Gertrudes respondeu-lhe que todos esses nomes lhe eram completamente desconhecidos.

Confessou-lhe então o mancebo que era criado do duque de Anju; que o duque me tinha visto e estava enamorado de mim; e depois, em seguida a esta confissão, fez-Lhe oferecimentos magníficos, para ela e para mim; para ela, se anuísse a falar-me em favor do príncipe; para mim, se consentisse em recebê-lo.

O Sr. de Monsoreau vinha todas as noites, e eu sempre lhe contava os termos em que se achava o negócio. Fazia-me companhia das oito horas até à meia- noite, e era bem evidente que andava com o espírito muito desassossegado.

No sábado à noite apareceu-me mais pálido e inquieto que do costume.

- Ouça-me - disse ele -, é preciso prometer tudo o que quiserem.

- E porquê? - exclamei eu.

- Porque o Senhor Duque de Anju está resolvido a pôr todos os meios em prática para aqui entrar, e como, presentemente, anda de bem com el-rei, não podemos recorrer à protecção deste.

- Porém, daqui até quarta-feira, deve porventura ter lugar algum acontecimento em vosso favor?

- Pode ser. Estou esperando de dia para dia que se dê a circunstância em que lhe falei e que deve colocar o príncipe na minha dependência. Ando trabalhando com toda a eficácia para que se apresente a conjuntura que desejo. Amanhã não poderei vê-la, tenho de ir a Monsoreau.

- É-Lhe indispensável ir? - respondi eu com susto e alegria ao mesmo tempo.

- Sim; é preciso que ali vá para apressar a circunstância em questão.

- E se na terça-feira ainda estivermos na mesma situação, que havemos então de fazer?

- Que quer que eu faça contra um príncipe, minha Senhora, não tendo direito algum para protegê-la... Terei de me resignar à minha infeliz sorte.

Oh, meu pai! Meu pai! - exclamei eu.

O conde olhou para mim atentamente.

- Sempre me tem muita aversão, não é verdade? - disse ele.

- Oh! Senhor!.

- Quais são os defeitos que me acha?

- Oh! Afirmo-Lhe que nenhuns.

- Não me tenho mostrado porventura fiel como um amigo e respeitoso como um irmão?

Tem-se realmente comportado em tudo como um homem de bem.

- Está lembrada do que me prometeu?

- Estou.

- E eu já Lhe falei em semelhante coisa?

- Não senhor.

- E, contudo, hoje, que está chegada a ponto tal que forçosamente há-de escolher uma posição honrosa ou uma posição vergonhosa, parece-Lhe preferível ser amante do duque de Anju a ser mulher do conde de Monsoreau?...

- Eu não disse isso, Senhor.

- Pois então decida-se quanto antes.

- Estou decidida.

- A ser condessa de Monsoreau?

- Antes do que amante do duque de Anju.

- Antes do que amante do duque de Anju: a alternativa não deixa de ser lisonjeira para mim.

Calei-me.

- Não importa - disse o conde -, ouviu? Gertrudes que vá ganhando tempo até terça-feira, então veremos o que se há-de fazer.

No dia seguinte, Gertrudes saiu conforme tinha por costume, mas não viu Aurilly. Deu-nos mais cuidado a sua desaparição do que nos teria dado a sua presença. Gertrudes tornou a sair sem necessidade alguma, só para ver se o encontrava, mas não o viu. Saiu ainda terceira vez, mas sempre com o mesmo resultado.

Mandei Gertrudes a casa do Sr. de Monsoreau: tinha saído, e não sabiam onde poderia ser encontrado.

Estávamos sós e abandonadas; sentimos a falta que nos fazia um protector; reflecti então pela primeira vez na minha injustiça para com o conde.

- Oh, minha Senhora - exclamou Bussy -, não se apresse tanto em condoer-se daquele homem: há o quer que seja no comportamento dele para com a senhora, que nós ainda não sabemos, mas que havemos de descobrir.

- Veio a noite, acompanhada de novos sustos; eu estava resolvida a tudo, menos a cair nas mãos do duque de Anju. Tinha-me armado com este punhal, e fazia tenção de o cravar em mim à vista do príncipe, logo que ele ou a sua gente procurassem agarrar-me. Trancámos por dentro as portas dos quartos.

A porta da rua, por um desleixo incrível, não tinha ferrolhos por dentro. Escondemos o candeeiro e fomos para o nosso observatório.

Esteve tudo sossegado até às onze horas da noite; então desembocaram cinco homens da Rua de Santo António, estiveram deliberando um instante, e depois foram-se emboscar no canto do Palácio das Tournelles.

Começámos logo a tremer; era para nós provavelmente que aqueles homens ali estavam. Entretanto não se mexiam do esconderijo; e assim decorreu um quarto de hora, no fim do qual vimos apontar outros dois vultos à esquina da Rua de S. Paulo.

A Lua, que naquela ocasião apareceu por entre as nuvens, deu lugar a Gertrudes poder conhecer que um dos dois homens era Aurilly.

- Ai de nós! Menina, são eles - murmurou a pobre rapariga.

- Não há dúvida - respondi eu, arrepiando- me com medo -, e os outros cinco estão acolá escondidos para os coadjuvar.

- Contudo, hão-de ter que arrombar a porta primeiro - disse Gertrudes -, e é natural que os vizinhos acudam quando ouvirem bulha.

- Como queres tu que os vizinhos acudam? Não nos conhecem; e pensas que estarão dispostos a arriscar as vidas para nos defender? Ah! Minha Gertrudes, não temos na realidade outro defensor senão o conde.

- Pois se assim é, por que motivo persiste em não querer ser condessa? Dei um suspiro.

Durante este tempo, os dois homens que tinham aparecido à esquina da Rua de S. Paulo não tinham caminhado cosidos com a parede, e estavam debaixo das nossas janelas.

Abrimos a vidraça devagarinho.

- Estás certo de que é aqui? - perguntou uma voz.

- Sim, meu Senhor, certíssimo. E a quinta casa contando da Rua de S. Paulo.

- E pensas que a chave servirá?

- Tomei o molde da fechadura.

Agarrei no braço de Gertrudes e apertei-o com quanta força tinha.

- E quando estivermos dentro?

- Logo que tivermos entrado, o mais fica por minha conta. A criada há-de abrir-nos a porta. Vossa Alteza tem consigo uma chave de ouro muito mais eficaz do que esta.

- Pois então abre lá.

Ouvimos ranger a chave na fechadura. Mas de repente, os homens que estavam escondidos no canto do palácio saltaram para o meio da rua, e correram para o príncipe e para AurÉly, gritando: Morra! Morra!

Eu estava espantada do que via; contudo parecia não haver dúvida alguma que era em nosso auxílio que vinha aquela gente tão inesperadamente. Pus-me de joelhos e dei graças A Deus.

Porém, apenas o príncipe se descobriu, apenas disse o nome, todas as vozes se calaram. as espadas voltaram para as bainhas, e cada um dos agressores deu um passo à retaguarda. "

- Sim, sim - disse Bussy -; a espera não era para o príncipe, era para mim.

- Em todo o caso - prosseguiu Diana -, aquele ataque afugentou o príncipe. Vimo-lo voltar para a Rua de Jouy, enquanto que os cinco homens da emboscada voltavam para o lugar onde estavam, ao canto do Palácio das Tournelles.

Era evidente que naquela noite, pelo menos, já não tínhamos que recear perigo algum; não era por minha causa que ali estavam escondidos os cinco indivíduos.

Mas nós estávamos tão sobressaltadas e com tamanho susto, que nos conservámos a pé.

Deixámo-nos estar encostadas à janela, à espera do acontecimento que o nosso instinto dizia estar próximo a ter lugar.

- Não esperámos muito tempo. Apareceu um homem a cavalo, que vinha seguindo pelo outro lado da Rua de Santo António.

Era provavelmente a pessoa de quem estavam à espera os cinco homens emboscados porque, logo que o avistaram, gritaram: Mãos às espadas! e correram todos para ele.

Escusado é dizer-lhe o que teve lugar com o tal cavalheiro - disse Diana -, visto que era o senhor.

- Pelo contrário, minha Senhora - disse Bussy, o qual esperava que a história da dama lhe divulgaria o segredo do seu coração -, pelo contrário: eu nada sei além da briga, porque depois de ter lutado com eles todos desmaiei.

- Facilmente avaliará - prosseguiu Diana, corando levemente - o interesse que tomámos numa luta tão desigual, e sustentada, apesar disso, com tanto valor. Cada episódio da contenda arrancava-nos um grito, um estremecimento ou uma oração a Deus. Vimos fraquejar o seu cavalo e ir-se abaixo. Julgámos que estava perdido; mas enganámo-nos, o valente Bussy mostrou merecer a reputação que tem. Ficou de pé e continuou sem interrupção a acutilar os seus inimigos; até que, por fim, cercado e ameaçado por todos os lados, retirou-se como o leão, com o rosto sempre voltado para os inimigos, e veio encostar-se à nossa porta; foi então que nos ocorreu a mesma ideia, a Gertrudes e a mim, que era descermos a abrir-Lhe a porta; ela olhou para mim: Sim", disse-Lhe eu; e ambas corremos à escada. Porém, como já Lhe disse, tinhamo-nos trancado por dentro, de sorte que levámos algum tempo primeiro que conseguíssemos arredar os trastes que obstruíam a passagem; e no momento em que chegámos ao patamar, ouvimos que se fechava a porta da rua.

Ficámos imóveis ambas. Quem seria que tinha entrado e como conseguira entrar?

Encostei-me a Gertrudes, e conservámo-nos caladas e à espera.

Em breve ouvimos passadas no corredor; era alguém que vinha andando para a escada.

apareceu um homem a cambalear, estendeu os braços, e caiu sobre os primeiros degraus com um gemido.

Era evidente que aquele homem se tinha livrado dos seus inimigos fechando entre si e eles a porta que o duque de Anju em tão boa hora deixara aberta, e que tinha caído no princípio da escada por se achar talvez mortalmente ferido.

Fosse como fosse, nada havia que recear, e era ele, pelo contrário, que muito carecia dos nossos socorros.

- Dá cá a luz! - disse eu para Gertrudes, que partiu a correr e voltou com o candeeiro.

Não nos tinhamos enganado: estava desmaiado. Logo conhecemos que era o valente cavalheiro que tão denodadamente se tinha defendido dos cinco agressores, e, sem hesitar, resolvemos socorrê-lo.

Num abrir e fechar de olhos, trouxemo-lo para o meu quarto e deitámo-lo em cima da minha cama.

Continuava a estar desmaiado; era de toda a urgência chamar um cirurgião. Gertrudes lembrou-se de ter ouvido contar um caso duma cura milagrosa feita havia alguns dias por um jovem doutor da Rua... da Rua Beautreillis. Sabia onde ele morava; ofereceu-se para o ir buscar.

- Porém - observei eu - o rapaz poderá atraiçoar-nos...

- Fique descansada - disse ela -, que eu tudo acautelarei.

Gertrudes é uma rapariga forte e prudente ao mesmo tempo - prosseguiu Diana - Fiei-me pois inteiramente nela. Levou consigo dinheiro, a chave do trinco.

e eu fiquei sozinha ao seu lado... e orando a Deus pelo senhor.

- Infelizmente, minha Senhora - disse Bussy -, eu não me achava em estado de apreciar tamanha felicidade.

- Dali a um quarto de hora, voltou Gertrudes; trazia consigo o doutor, um rapaz ainda muito novo, que tendo consentido em tudo quanto ela exigira, vinha com os olhos vendados.

Conservei-me na sala enquanto ela o levava para o quarto. Logo que passou a porta demos-lhe licença para que se desvendasse. - Sim - disse Bussy -, foi nesse momento que tornei a mim, e que os meus olhos fitando-se no seu retrato, fizeram com que eu julgasse que a via entrar.

- Entrei, efectivamente; pôde mais em mim o cuidado com que estava do que a prudência; fiz algumas perguntas ao doutor; ele examinou-Lhe a ferida, asseverou-me que não era perigosa, e então fiquei mais descansada.

- Tudo isto tinha ficado presente no meu espírito - disse Bussy -, mas pela maneira por que se conserva a lembrança dum sonho; e contudo, sentia, aqui - prosseguiu o mancebo levando a mão ao coração - alguma coisa que me dizia que eu não tinha sonhado.

- O cirurgião, quando acabou de curar-Lhe a ferida, tirou da algibeira um frasquinho cheio dum licor avermelhado, de que lhe deitou umas gotas sobre os lábios. Era, segundo me disse um elixir próprio para o fazer adormecer e para debelar a febre.

E com efeito, passado um instante, depois de ter engolido o tal líquido, tornou a fechar Os olhos e caiu novamente no estado de insensibilidade de que tinha saído havia um momento.

Assustei-me, mas o doutor tranquilizou-me. Era bom sinal, disse-me ele, e convinha deixá-lo dormir.

Gertrudes tornou a tapar-Lhe os olhos com um lenço, e foi acompanhá-lo até à porta de casa na Rua Beautreillis.

Julgou, contudo, perceber que ele ia contando os passos. - verdade, minha Senhora - disse Bussy -; contou-os efectivamente.

- Esta suposição assustou-nos. Aquele homem podia atraiçoar- nos. Resolvemos fazer desaparecer todos os vestígios da hospitalidade que Lhe tínhamos dado; porém, o mais essensial era fazê-lo desaparecer, ao senhor.

Revesti-me de todo o meu ânimo; eram duas horas da madrugada. estavam as ruas solitárias. Gertrudes comprometeu-se a levantá-lo de onde estava, e conseguiu-o; eu ajudei-a e fomos levá-lo até a escarpa dos fossos do Templo. Lá o deixámos. e voltámos. ainda espantadas do atrevimento com que nós, fracas mulheres, tínhamos atravessado as ruas sozinhas a uma hora em que os homens mesmo sempre saíam acompanhados.

Protegia-nos Deus, pois não encontrámos vivalma e chegámos a casa sem sermos vistas.

Quando entrei em casa sucumbi ao peso da comoção que havia sofrido, e desmaiei."

- Oh, minha Senhora! Minha Senhora - disse Bussy unindo as mãos -, como poderei testemunhar-Lhe a minha gratidão pelo que fez em meu favor?

Houve um instante de silêncio durante o qual Bussy não tirou os olhos de Diana. Esta estava com o cotovelo encostado a uma mesa, e reclinou o rosto na mão.

No meio deste silêncio, deram horas na torre da Igreja de Santa Catarina.

- Duas horas! - disse Diana estremecendo. - Duas horas, e ainda aqui está!

- Oh, minha Senhora - disse Bussy com voz suplicante -, não me mande embora antes de me ter dito tudo. Não exija que eu me retire sem que saiba primeiro por que forma poderei servi-la. Suponha que Deus lhe concedeu um irmão, e diga a esse irmão o que dele espera sua irmã.

- Infelizmente! - respondeu ela - em nada já me pode servir, é muito tarde.

- O que Lhe sucedeu no dia imediato? - perguntou Bussy. - O que fez durante todo aquele dia que eu levei a pensar em si, sem ter contudo a certeza de que não era um sonho do delírio, uma visão da minha febre?

- Durante esse dia - replicou Diana -, Gertrudes saiu e encontrou Aurilly, que insistiu mais do que nunca; não lhe disse palavra a respeito dos acontecimentos da véspera, mas ele pediu uma entrevista em nome de seu amo.

Gertrudes mostrou-se disposta a consentir, porém exigiu que esperassem até quarta- feira seguinte, isto é, até hoje, para lhe dar tempo a resolver-me.

Aurilly prometeu que seu amo esperaria até então, ainda que muito lhe havia de custar. Tínhamos, por consequência, três dias por nossos.

O Sr. de Monsoreau apareceu à noite.

Contámos-lhe tudo, menos o que Lhe dizia respeito. Dissemos-Lhe que o duque, na véspera, tinha aberto a porta com uma chave falsa; mas que na ocasião em que ia para entrar tinha sido acometido por cinco homens, entre os quais vinham os Srs. d'Epernon e de Quélus. Eu tinha ouvido proferir estes dois nomes, e por isso lhos repeti também. - Sim, sim - disse o conde -, já ouvi contar isso; então ele possui uma chave falsa? Eu já desconfiava que assim era.

- Não seria possível mudar a fechadura? - perguntei eu.

- E ele manda também fazer outra chave que sirva - disse o conde. - E se lhe mandássemos pôr ferrolhos?

- Traz dez homens consigo. e manda logo arrombar a porta.

- Mas, e aquele acontecimento que devia dar-lhe, segundo me disse, tamanho poder sobre o duque?.

- Está diferido, indefinidamente talvez.

Fiquei, sem poder dar palavra e com a testa húmida de suor; não via outro meio para escapar ao duque de Anju senão casar com o conde.

- Senhor - disse-lhe eu -, o duque comprometeu-se, por intervenção do seu confi dente, a esperar até quarta-feira à noite; e eu peço-lhe que espere até terça-feira.

- Muito bem, minha Senhora - disse o conde -; na terça-feira à noite, a esta mesma hora. aqui estarei.

E sem dizer mais palavra, levantou-se e saiu.

Fui à janela para o seguir com a vista; mas em vez de se ir embora. foi esconder-se no recanto escuro do Palácio das Tournaíles, resolvido, parecia a vigiar-me a casa toda a noite.

Cada uma das provas de afecto que me dava aquele homem era uma nova punhalada que me varava o coração.

Os dois dias passaram-se com a rapidez dum instante; ninguém veio perturbar-me a solidão. Nunca poderei descrever-Lhe quanto sofri durante aqueles dois dias, que tão breve decorreram.

Quando chegou a noite do segundo dia, estava positivamente aterrada; parecia-me que ia perdendo gradualmente todo o sentimento da existência.

Estava fria, muda e insensível na aparência como uma estátua; só o coração ainda palpitava. O resto do corpo parecia-me ter deixado de viver.

Gertrudes estava à janela. Eu conservava-me sentada aqui onde agora estou, e corria de vez em quando o lenço pela testa para limpar o suor que a humedecia.

De repente, Gertrudes estendeu a mão para mim; porém aquele gesto que noutra qualquer ocasião me teria feito pular do meu lugar, não pôde despertar-me da minha impassibilidade.

- Minha Senhora! - disse ela.

- Que é? - perguntei eu.

- São quatro homens. vejo quatro homens. Vêm andando para este lado. abrem a porta. entram!

- Pois deixa-os entrar - respondi eu sem me mover.

- Mas aqueles quatro homens são provavelmente o duque de Anju, Aurilly e dois criados.

A minha resposta foi puxar pelo punhal e pô-lo sobre a mesa ao pé de mim. - Oh! espere que eu vá ver quem são, pelo menos! - exclamou Gertrudes correndo para a porta.

- Pois vai - respondi eu.

Ao cabo dum instante Gertrudes voltou.

- Menina - disse ela -, é o Senhor Conde.

Escondi o punhal no seio sem proferir uma única palavra, e voltei-me para receber o conde.

Assustou-se provavelmente vendo a minha palidez.

- Será verdade o que me disse Gertrudes - exclamou ele -, que julgou que eu era o duque, e que, se fora o duque, ter-se-ia morto?.

Era a primeira vez que eu o via assim comovido; seria deveras, ou era Fingimento? - Gertrudes fez mal em lhe contar semelhante coisa, Senhor - respondi eu -; como não é o duque, estou satisfeita.

Seguiu-se um instante de silêncio.

- Sabe que não vim só? - disse o conde.

- Gertrudes viu quatro vultos. - E presume quem eles sejam?

- Penso que um deles há-de ser o padre, e os outros dois os padrinhos.

- Visto isso, está pronta a ser minha mulher?

- Não foi esse o nosso ajuste? Contudo, eu recordo-me bem das condições do nosso convénio: concordámos que, salvo algum caso urgente, por mim reconhecido como tal, só me receberia na presença de meu pai.

- Também me lembro perfeitamente dessa condição, minha Senhora; e julga, não é assim, que se dá actualmente esse tal caso urgente?

- Não há dúvida, assim o julgo.

- E então?

- Então, estou resolvida a casar com o Senhor Conde. Porém, tome sentido no que vou dizer-Lhe, Senhor: olhe que não hei-de pertencer- lhe verdadeiramente como sua mulher enqanto não tornar a ver meu pai.

O conde franziu a testa e mordeu os lábios.

- Minha Senhora - disse ele -, eu não quero violentá-la por maneira alguma; deu-me a sua palavra, mas eu restituo-Lha; pode considerar-se desobrigada para comigo; contudo.

Chegou à janela, e esteve a espreitar para a rua.

- Contudo - disse ele -, venha ver.

HLevantei-me de onde estava, movida por certa atracção poderosa que nos induz a afirmar-nos de alguma desgraça iminente, e avistei, por baixo da janela, um homem embuçado num capote, que parecia procurar meio de se introduzir na minha casa.

- Oh, meu Deus - gritou Bussy -, e diz que isso foi ontem?

- Sim, conde, ontem, por volta das nove horas da noite.

- Continue - disse Bussy.

- Passado um instante veio outro homem ter com o primeiro; este segundo trazia uma lanterna na mão.

- Quem pensa que sejam aqueles dois homens? - perguntou-me o Sr. de Monsoreau. - Creio que há-de ser o duque com o seu confidente - respondi eu. Bussy deu um suspiro.

- Pois agora - prosseguiu o conde - dê-me as suas ordens: quer que me retire? HHesitei um instante; sim, apesar da carta de meu pai, apesar da minha palavra dada, apesar do perigo bem patente, palpável e ameaçador, sim, ainda hesitei; e se aqueles dois homens ali não estivessem.

- Oh, que desgraçado que eu sou! - exclamou Bussy. - O homem embuçado era eu, e o que trazia a lanterna era Rémy le Haudouin, o doutor que tinha mandado chamar para mim.

- Era o senhor? - exclamou Diana estupeFacta. - Oh, quem adivinhasse!.

- Sim, era eu; porque cada vez mais convencido que o meu sonho tinha sido uma realidade, andava em procura da casa onde me tinha recolhido, do quarto para que tinha sido levado, e da mulher, ou, para melhor dizer, do anjo que me aparecera. Oh, bem disse eu há pouco que era um desgraçado!

E Bussy ficou como esmagado pelo peso daquela fatalidade, que se tinha servido dele para obrigar Diana a desposar o conde.

- Com que então - replicou ele ao cabo dum instante - é sua mulher?

- Desde ontem - respondeu Diana.

E houve em seguida novo silêncio, apenas interrompido pela respiração arquejante dos dois interessantes interlocutores.

- Porém - perguntou Diana repentinamente -, como foi que entrou nesta casa? Não me dirá, Senhor, como chegou até aqui?

Bussy mostrou-lhe a chave sem dizer uma palavra.

- Uma chave? - gritou Diana; - como está essa chave em seu poder! Quem lha deu!

- Já se não lembra que Gertrudes prometeu ao príncipe que o havia de introduzir aqui esta noite? O príncipe tinha-nos visto, a mim e ao Sr. de Monsoreau, por estas imediações, assim como eu e o Sr. de Monsoreau o tínhamos visto a ele; teve medo de alguma cilada, e mandou-me em seu lugar.

- E aceitou semelhante missão? - disse Diana em tom repreensivo.

- Era o único meio de que podia lançar mão para a ver. Será porventura tão injusta que me queira mal por ter vindo aqui buscar a maior felicidade e o maior pesar da minha vida?

- Sim, quero-lhe mal por isso - disse Diana -, porque melhor fora que não tivesse tornado a ver-me, e que, não me vendo, se esquecesse de mim.

- Não, minha Senhora - replicou Bussy -, está enganada. Foi Deus, pelo contrário, quem me conduziu junto da senhora, para conseguir deslindar esta trama de que está sendo vítima. Ouça-me: desde o primeiro instante em que a vi, dediquei-Lhe a minha vida. A missão de que voluntariamente me incumbi vai principiar desde já. Pediu notícias de seu querido pai.

- Oh, sim - exclamou Diana -, porque. na realidade, não sei o que é feito dele.

- Pois bem - disse Bussy -: encarrego-me eu de lhas trazer; só Lhe peço que pense algumas vezes em quem, de hoje em diante, passa a viver só pela senhora e para a senhora.

- Porém. essa chave? - disse Diana com muitíssimo receio.

- A chave - disse Bussy -, aqui lha restituo, porque só a queria sendo-me dada pela senhora; contudo. Juro-Lhe pela minha honra de cavalheiro, que nunca irmã alguma confi a chave do seu quarto a irmão mais extremoso e mais respeitoso do que eu hei-de ser.

- Confio na palavra do valente Bussy - disse Diana -; aqui a tem, Senhor. E restituiu a chave ao mancebo.

- Minha Senhora - disse Bussy -, dentro de quinze dias havemos de saber com certeza quem é o Sr. de Monsoreau.

E dizendo isto, Bussy cumprimentou Diana com respeito, mas com amor e tristeza ao mesmo tempo, e retirou-se imediatamente.

Diana virou a cabeça para a porta a fim de ouvir o som das passadas do mancebo afastando-se, e muito depois de haver já cessado aquele som ainda ela escutava, com o coração a palpitar-Lhe e os olhos arrasados de lágrimas.

 

         DE QUE MANEIRA COSTUMAVA VIAJAR O REI HENRIQUE III E QUANTO TEMPO GASTAVA PARA IR DE PARIS A FONTAINEBLEAU

O dia que despertou quatro ou cinco horas depois dos acontecimentos que acabámos de narrar, presenciou, ao pálido clarão do Sol que prateava as extremidades duma nuvem avermelhada, a partida do rei Henrique III para Fontainebleau, onde, como já dissemos, se tinha projectado uma grande montaria daí a dois dias.

Aquela partida, assim como todos os actos da vida desse príncipe tão singular, cujo reinado nos incumbimos de esboçar, tomava as proporções dum acontecimento notável pela bulha e rebuliço que ocasionava.

Pelas oito horas da manhã começou a sair pela porta principal do Louvre, situada entre a Torre da Esquina e a Rua de L'Ascruce, e a desfilar pelo cais, uma multidão de oficiais da corte real, montados em bons cavalos e embuçados em capotes guarnecidos de peles; após estes, um número infinito de pajens; depois, uma chusma de criados; e, por fim, uma companhia da guarda dos suíços, precedendo imediatamente a liteira do rei.

Esta liteira, puxada por oito mulas ricamente ajaezadas, merece particular menção.

Era uma máquina formando um quadrilátero e posta sobre quatro rodas; por dentro era estofada e guarnecida de almofadas, e por Fora era ornada de cortinas de brocado; teria de comprimento quinze pés e oito de largura.

Nos sítios onde o caminho era ruim, ou nas subidas muito escabrosas, substituíam as mulas um número infinito de bois, cujo passo pachorrento não aumentava, é verdade, a rapidez da locomoção, mas dava a certeza de que a máquina havia de chegar ao seu destino três horas mais tarde.

Esta caixa encerrava o rei Henrique III e toda a sua comitiva, à excepção da rainha de Vaudemont, a qual, forçoso é dizê-lo, tomava tão raras vezes parte na corte de seu marido, a não ser nas romarias e procissões, que não merece a pena falar dela. Ponhamos pois de parte a pobre rainha, e vejamos de quem se compunha a corte do rei Henrique.

Constava do rei Henrique III, em primeiro lugar, do seu médico, Marcos Miron, do capelão, de quem a história não conservou o nome, do seu bobo Chicot, que já é nosso conhecido, dos cinco mancebos favoritos, que naquela ocasião eram Quélus, Schomberg, d'Épernon, d'O, e Maugiron, dum par de galgos. que olhavam com enormes abrimentos de olhos para toda aquela gente, sentada, deitada, de pé, ajoelhada e encostada, e, Finalmente, um cestinho cheio de cãezinhos ingleses, que o rei levava ora sobre os joelhos, ora suspensos ao pescoço por uma corrente ou por uma fita.

De tempos a tempos sacavam duma espécie de nicho, construído expressamente, uma cadela que dava de mamar aos cãezinhos do cesto, para quem olhavam em ar de protecção, e encostando os focinhos agudos ao rosário de caveiras que pendia do lado esquerdo do rei, os dois galgos de que já falámos, os quais. certos da estima particular em que eram tidos, não se incomodavam em ter ciúmes dos pequenos.

Do tecto da liteira pendia uma gaiola de arame dourado, contendo alguns casais de lindas rolas brancas de neve com coleiras pretas.

Quando por acaso alguma mulher formava parte do régio acompanhamento, a colecção de bichos era então aumentada com dois ou três macacos da espécie dos saguins, por isso que os macaquinhos eram os animais favoritos das elegantes da corte do último dos Valois.

Uma Nossa Senhora de Chartres, que tinha sido esculpida em mármore por João Goujon para o rei Henrique II, estava colocada de pé no fundo da liteira, dentro dum nicho dourado, e parecia olhar para o Menino que tinha nos braços como admirada do que via.

Todos os folhetos que naquela época se publicavam, e não eram poucos, e todos os poetas satíricos. de que também havia bom número, tomavam frequentemente à sua conta a liteira que acabámos de descrever, e chamavam-lhe a Arca de Noé.

O rei ia sentado no fundo da liteira, mesmo por baixo do nicho da Nossa Senhora; a seus pés estavam Quélus e Maugiron, ocupavam-se a entrançar fitas, que era um dos divertimentos mais sérios dos rapazes daquele tempo, tendo alguns conseguido formar, por meio duma combinação até então desconhecida e que nunca se tornou a descobrir, tranças de doze pés; Schomberg, sentado a um canto, trabalhava num bordado representando as armas da sua casa; no canto oposto conversavam o capelão e o doutor; d'O e d'Épernon entretinham-se a olhar pelos postigos, e como iam com sono, por terem sido acordados muito cedo, bocejavam como os galgos; finalmente, Chicot, sentado a uma das portinholas com as pernas pendentes para fora da liteira, a fim de se conservar sempre pronto a apear-se ou a subir para ela, conforme Lhe pedia a fantasia, ia entoando cânticos, recitando quadras, ou fazendo anagramas, segundo a moda do tempo, e achava sempre, no nome de cada um dos cortesãos, ou fosse em francès, ou em latim, alguma personalidade muito desagradável para o indivíduo de quem assim estropiava o nome.

Quando iam chegando à Praça de Châtelet Chicot começou a entoar um cântico.

O capelão, que estava conversando com o médico Miron, como já dissemos, voltou o rosto e encrespou as sobrancelhas - Chicot, meu amigo - disse Sua Majestade -, vê lá o que fazes; corta na pele dos meus favoritos, diz mal da minha majestade, diz mesmo o que quiseres de Deus, porque Deus é misericordioso, mas não te malquistes com a Igreja.

- Agradeço-te a advertência, meu filho - disse Chicot -; eu não tinha reparado no nosso benemérito capelão, que está acolá ao canto a falar ao doutor a respeito do último defunto que este Lhe mandou para enterrar, e queixando-se que era o terceiro no mesmo dia, e sempre às horas da comida, o que muito o incomoda. Nada de cânticos, dizes bem; é coisa já cediça. Vou cantar-te uma cantiga novinha em folha.

- Sobre que ária? - perguntou o rei.

- É sempre a mesma - disse Chicot, e começou a cantar esganiçando-se com toda a força:

El-rei nosso senhor deve cem milhões.

- Devo muito mais do que isso - interrompeu Henrique -; o teu cancioneiro está mal informado, Chicot.

Chicot não fez caso, e continuou a berrar a primeira copla duma cantiga em que o autor censurava as prodigalidades do rei, as vexações que sofriam os povos para pagar as dívidas e sustentar o luxo dos favoritos do rei.

- Muito bem - disse Quélus continuando a entrançar as suas fitas -, tens uma linda voz, Chicot; anda, meu amigo, canta-nos a segunda copla.

- Olha cá, Valois - disse Chicot sem responder a Quélus -, proibe aos teus amigos que me chamem seu amigo; é uma humilhação que não estou para sofrer.

- Fala em verso, Chicot - respondeu o rei -; a tua prosa não presta para nada.

- Aí vai - disse Chicote.

E entoou a segunda copla, em que se descrevia a indecência do vestuário dos favoritos, os quais, dizia a cantiga, tinham levado a peralvilhice a tal ponto que já Lhes não servia para as camisas a goma que todos usavam, e tinham enfeitado a goma de arroz.

- Bravo - disse o rei -, não foste tu, d'O, que inventaste a goma de arroz?

- Não, meu Senhor - disse Chicot -, foi o Sr. de Saint-Mégrin, que morreu o ano passado às mãos do Sr. de Maiena; não tire essa glória ao pobre defunto; a invenção da goma e a peça que ele pregou ao Sr. de Guisa, são os dois únicos actos da sua vida que poderão Fazê-lo conhecido da posteridade; se Lhe tirar a goma, ficará a meio caminho.

E sem reparar na impressão de tristeza que esta lembrança havia causado ao rei, Chicot, prosseguiu:

Usem o pêlo tosqueado a compasso.

- Já se sabe que é dos favoritos que se trata - interrompeu Chicot.

- Sim, sim; vamos adiante - disse Schomberg.

e Chicot continuou descrevendo a maneira por que usavam o cabelo, que era, dizia a cantiga, comprido das orelhas para diante, e curto por detrás.

- A tua cantiga é já velha - disse d'Épernon.

- Velha? Ainda ontem apareceu!

- Sim? Pois de ontem para hoje mudou a moda; olha.

E d'Épernon tirou o barretinho, para mostrar a Chicot o cabelo de diante quase tão curto como o detrás.

- Oh! que feia cabeça! - disse Chicote.

E concluiu a copla, que rematava numa censura aos barretinhos que traziam e ao modo por que os punham na cabeça.

- Suprimo o resto da cantiga - disse Chicot -, porque é demasiado imoral.

- Bravo! - disse Henrique - e se meu irmão aqui estivesse, havia de Ficar-te muito agradecido, Chicote.

- A quem chamas tu teu irmão, meu filho? - disse Chicote. - É porventura a José Fouisa lon, abade de Santa Genoveva, em cujo convento dizem por aí que tencionas professar?

Não é isso - respondeu Henrique, que costumava prestar-se a todos os gracejos de Chicot.

- Falo de meu irmão Francisco.

- Ah, sim, tens razão; mas esse não é teu irmão por Deus, é teu irmão pelo Diabo. Bem sei! Bem sei! Queres falar de Francisco, príncipe de França pela graça de Deus, duque de Brabante, de Lauthier, de Luxemburgo, de Gueldre, de Alençon, de Anju, de Touraine, de Berry de Evreus, e de Châceau-Thierry; conde de Flandres, de Holanda, de Zelândia, de Zutphen de Maine, de Perche, de Nantes, Meulan, e Beaufort; marquês do Santo Império; senhor de Malines; defensor da liberdade belga, a quem a natureza mimoseou com um nariz de que as bexigas fizeram dois, não é assim?

Os favoritos desataram a rir, porque o duque de Anju era seu inimigo pessoal, e a caçoada ao nariz do príncipe fez- lhes esquecer momentaneamente as coplas com que Chicot acabava de os obsequiar.

Quanto ao rei, esse, como até ali apenas Lhe tinham chegado alguns salpicos daquele dilúvio de epigramas, ria mais do que todos, não poupando ninguém, dando açúcar e pastéis aos galgos, e arranchando a dizer mal do irmão e dos validos.

De repente Chicot exclamou:

- Oh, isso não é político, Henrique; direi mais, Henrique: isso é audácia e imprudência.

- O quê? - perguntou o rei.

- Não, à fé de Chicot, são coisas que não deverias confessar!

- Quais coisas? - disse Henrique espantado.

- O que tu dizes de ti próprio, quando assinas o teu nome; ah, Henriquinho, ah, meu filho!.

- Guarde-se dele, meu Senhor - disse Quélus, que desconfiava de alguma maldade, vendo o ar hipócrita de Chicot.

- Que diabo queres tu dizer, bobo? - perguntou o rei com enfado.

- Ora diz-me: como assinas tu o teu nome?

- Que tal está a pergunta!. Assino. Henrique de Valois.

- Bom, reparem, Senhores - disse Chicot -, que não fui eu que o obriguei a dizer isto; ora vejam lá agora as palavras que vou achar nestas letras.

E Chicot, deslocando as letras do nome do rei, fez das palavras Henrique de Valois (Henri de Valois), um anagrama que dizia - Torpe Herodes (Vilain Herodes).

- Torpe Herodes! - exclamou o rei.

- Exactamente - disse Chicot -; eis aí o que tu assinas todos os dias, meu filho. E Chicot escondeu o rosto dando mostras de pudibundo horror.

- Chicot - disse o rei -, estás fazendo jus a uma carga de pau.

- Diz-me cá, meu filho, onde é que se cortam os paus que servem para bater em cavalheiros? Será acaso na Polónia?

- Parece-me, contudo - disse Quélus -, que o Sr. de Maiena não fez muita cerimónia contigo no dia em que se lembrou de te mandar sacudir as costas, meu pobre Chicot, por te ter encontrado com a sua amante.

- É uma conta que ainda está por liquidar. Fique descansado, Sr Cupido, que a dívida está aqui em aberto.

E Chicot, ao dizer estas palavras, levou a mão à testa; prova evidente de que já naquele tempo era tida a cabeça como sede da memória.

- Entretanto, Sr. Chicot, excedeu os limites para comigo - disse Henrique.

- Eu - replicou Chicot - disse o que realmente é, nada mais; mas assim é que são os reis: se os avisam, logo se enfadam.

- Não é feia a genealogia! - disse Henrique.

- Não a rejeites, meu filho - respondeu Chicot -; é muito boa para um rei que precisa dos judeus duas ou três vezes por mês. - Está dito que este maroto nunca há-de ficar sem resposta. Calem-se, Senhores, é o único meio de pôr termo a tanta baboseira.

Reinou logo profundo silêncio. Chicot, atento ao caminho que a liteira seguia, não parecia disposto a quebrar o silêncio, que já durava havia alguns minutos, mas, ao chegar à esq e na da Rua das Nogueiras, para lá da Praça Maubert, saltou de repente abaixo da liteira; rompeu por entre os guardas e foi ajoelhar em frente duma casa de aparência decente, com varanda de madeira entalhada sustentada por travezinhas pintadas.

- Olá, idólatra - bradou o rei -, se queres ajoelhar, ajoelha ao menos em frente do cruzeiro que está no meio da Rua de Santa Genoveva, e não na frente dessa casa; encerra porventura alguma igreja? Ou parece-te que é algum altar de estação do Sacramento?

Porém Chicot não respondia; tinha-se posto de joelhos sobre a calçada, e dizia em voz alta a seguinte reza, que o rei ouvia distintamente:

Deus de bondade! Deus justo! Eis aqui, que muito bem a conheço, e toda a vida me há-de lembrar, eis aqui a casa onde Chicot sofreu martírio; é verdade que não foi por Vós, meu Deus, mas sim por uma das Vossas criaturas. Chicot nunca Vos pediu que sucedesse mal algum ao Sr. de Maiena, autor da tortura que sofreu, nem a mestre Nicolau David, instrumento do seu suplício. Não, Senhor: Chicot tem esperado, porque tem muita paciência, apesar de não ser eterno, e já lá vão seis anos, dos quais um bissexto, durante os quais Chicot tem acumulado os juros da continha que está em aberto entre ele e os Srs. de Maiena e Nicolau David; ora, a dez por cento, que é o juro da lei, visto ser o que paga el-rei pelos seus empréstimos, no espaço de sete anos os juros acumulados duplicam o capital. Fazei pois, Deus grande! Deus justo! Que a paciência de Chicot dure mais um ano ainda, a Fim de que os cinquenta açoites que Chicot levou nesta casa, por ordem daquele assassino príncipe loreno, e por mão daquele espadachim advogado normando, os quais sacaram do corpo de Chicot meio litro de sangue, fiquem valendo um litro de sangue e cem açoites para cada um deles; de forma tal, que o Sr. de Maiena, com toda a sua gordura, e Nicolau David, com todo o seu comprimento, não tenham sangue nem pele que chegue para pagarem a sua dívida a Chicot, e que se vejam na necessidade de lhe fazerem bancarrota de quinze por cento, expirando ao levarem a octogésima ou a octogésima quinta paulada.

Em nome do Pai, do Filho, e do Espírito Santo. Amén! "

- Amén! - disse o rei.

Chicot beijou o chão, e com grande pasmo dos espectadores, que nada percebiam daquela cena, voltou para o seu lugar na liteira.

- Ora conta-me, mestre Chicot - disse o rei -, a que propósito te lembrou tão longa e singular ladainha? Para que bateste tantas vezes no peito? Qual é o fim de tanta momice em frente duma casa de tão profana aparência?

- Senhor - respondeu ele -, como Chicot se assemelha à raposa, Chicot vem farejar as pedras sobre que derramou o seu sangue, até que chegue um dia a ocasião de poder esmagar de encontro às mesmas pedras as cabeças dos que Lho fizeram derramar.

- Meu Senhor! - exclamou Quélus. - Chicot proferiu na sua reza, como Vossa Majestade bem ouviu, o nome do duque de Maiena; aposto pois que a reza tem sua relação com

as pauladas de que há pouco falámos.

- Aposte, Sr. Diogo Lévis, conde de Quélus - disse Chicot aposte, que há-de ganhar.

- Aquilo é verdade?... - perguntou o rei.

- É, sim, meu Senhor - atalhou Chicot -; nesta casa morava a amante de Chicot. Encantadora criatura... numa palavra, uma senhora. Uma noite que ele vinha visitá-la, certo

príncipe que dela tinha ciúmes, mandou agarrar Chicot e desancá- lo por tal maneira, que

Chicot, para escapar com mais brevidade, saiu pela janela e saltou daquela varandinha para

a rua. Ora, como Chicot não morreu naquela ocasião por um milagre, cada vez que passa em frente da tal casa, ajoelha e reza; e reza agradecendo a Deus nas suas orações a mercê que lhe fez de o livrar daquele perigo.

- Ah, pobre Chicot! E Vossa Majestade a repreendê-lo!

Parece-me contudo que este seu procedimento é dum bom cristão.

- Levaste pois uma boa sova, meu pobre Chicot?

- Não foi má, meu Senhor; porém ainda foi pouco para o meu desejo.

- Como assim?

- verdade, não se me dava de ter levado alguma estocada - Pelos teus pecados?

- Não, pelos do Sr. de Maiena.

- Ah! Já percebo; tencionas restituir a César.

- A César, não; não confundamos, meu Senhor. César é o general insigne, o valente guerreiro, é o irmão mais velho, o que pretende ser rei de França; não, esse está em conta corrente com Henrique de Valois; e como a conta dele é contigo, meu filho, paga tu as tuas dívidas, Henrique, que eu pagarei as minhas.

Henrique não gostava que lhe falassem no seu primo de Guisa; ficou pois muito sério quandu ouviu a resposta de Chicot, e assim se conservou até ao pé da Bicêtre, onde chegaram sem que se tivesse renovado a conversação.

Tinham gasto três horas para andar o caminho do Louvre à Bicêcre. Os optimistas calculavam que no dia seguinte à noite teriam chegado a Fontainebleau, enquanto os pessimistas queriam apostar que só chegariam no outro dia pela manhã.

Chicot asseverava que não haviam de chegar nunca.

A caravana, logo que saiu de Paris, começou a mover-se mais desembaraçadamente; a manhã estava agradável; o Sol tinha conseguido romper finalmente o véu de nuvens que o encobria, a amenidade da atmosfera era tal que parecia um lindo dia do mês de Outubro.

Eram três horas da tarde quando o acompanhamento chegou ao princípio da tapada de Juvisy. Daquele lugar já se avistava a ponte construída sobre o rio Orge e a grande hospedaria, de onde saíam, impelidos pelo vento fresco da tarde, os aromas dos guisados e os clamores alegres da sala pública.

Chicot aspirou sofregamente as emanações culinárias. Debruçou-se fora da liteira, e viu de longe, à porta da hospedaria, um grupo de homens embuçados nos capotes.

No centro do grupo estava um individuo baixo e gordo, com um chapéu desabado que lhe escondia completamente o rosto.

Os tais homens recolheram-se apressadamente logo que avistaram a comitiva. Porém o homem baixo e gordo já tinha dado na vista de Chicot. Por isso, no mesmo instante em que entrava para dentro de casa, o nosso gascão saltou abaixo da liteira real, e pedindo o seu cavalo a um pajem que o levava à mão, escondeu-se com a esquina da parede e deixou afastar a caravana, que foi continuando o seu caminho para Essonnes, onde o rei tencionava ficar aquela noite; Chicot conservou-se ali até ver desaparecer os últimos cavaleiros e quando já nem se ouvia o som do rodar da liteira, saiu do seu esconderijo, deu a volta por detrás do castelo, e apresentou-se à porta da hospedaria como se viesse de Fontainebleau.

Quando chegou em frente das janelas espreitou de relance pelos vidros, e viu com satis fação que os homens que se tinham avistado de longe ainda lá se conservavam, e juntamente com eles o indivíduo baixo e gordo, para quem parecia olhar com particular atenção. Entretanto, como Chicote tinha provavelmente os seus motivos para desejar que o sujeito o não visse, em vez de entrar para a sala onde ele estava, pediu uma garrafa de vinho e foi sentar-se para o quarto fronteiro, colocando-se de maneira que ninguém podia sair sem ele ver.

Chicot escolheu com prudência um canto escuro, de onde podia ver parte do imenso fogão que havia no quarto imediato. Em frente do fogão, sentado num banco, estava o homem baixo e gordo, o qual, julgando provavelmente que não estava ali exposto a investigação alguma, consentia que lhe desse em cheio no rosto o clarão da fogueira de vides que ardia na lareira.

Vejo que não me enganei, disse Chicot consigo; dir-se-ia que me deu o faro do regresso deste homem, e que por isso fui fazer a minha oração esta manhã em frente da casa da Rua das Nogueiras. Mas para que volta ele assim às escondidas para a boa capital do nosso amigo Herodes? Porque se esconde quando ele passa? Ah! Pilatos! Pilatos! Dar-se-á o caso que Deus não me conceda o ano que Lhe pedi, e que me obrigue a pagar-te mais cedo do que eu queria?... "

Chicot ficou contentíssimo quando percebeu que do sitio onde se achava podia não somente ver, mas até, por um daqueles efeitos extraordinários de acústica que o acaso às vezes - depara ouvir. Logo que fez esta observação, começou a aplicar o ouvido com a mesma atenção - com que até ali tinha aplicado a vista.

- Senhores - disse o homem baixo e gordo para os companheiros -, penso que é tempo de nos pormos a caminho; já lá vão há muito os últimos criados do acompanhamento do rei, e creio que não há que recear perigo algum na estrada a esta hora.

- Nenhum, meu Senhor - respondeu uma voz que fez estremecer Chicot, e que saía dum corpo a que ele até ali não havia prestado atenção alguma, por isso que estava absorto na contemplação da principal personagem.

O sujeito que respondera daquele modo tinha tanto de comprido quanto o indivíduo a quem ele dava o tratamento de meu Senhor tinha de curto; era tão pálido quanto o outro era vermelho, e tão servil quanto o companheiro era arrogante.

Ah! mestre Nicolau, disse Chicot rindo com os seus botões, Está bom. Será muita infelicidade se desta feita nos separarmos sem termos primeiro uma conferência. e Chicot, em seguida, acabou de despejar o copo e pagou ao estalajadeiro, a fim de estar pronto a partir quando Lhe parecésse conveniente.

A lembrança tinha sido acertada, porque as sete pessoas que lhe haviam atraído a atenção pagaram também, ou, para melhor dizer, o homem baixo e gordo pagou por si e pelos companheiros, e todos eles, montando nos cavalos que Lhes trouxeram os moços, tomaram pela estrada de Paris, e em breve desapareceram envolvidos nas primeiras sombras da noite. Bom, disse Chicot, ele vai para Paris; então também eu para lá volto. E Chicot, montando também a cavalo, foi-os seguindo de longe, sem perder um instante de vista os capotes cinzentos em que eles iam embuçados; e quando alguma vez os deixava de ver por prudência, conservava-se sempre à distância de poder ouvir as passadas dos cavalos. Quando A cavalgada deixou a estrada real em Fromenteau, cortou pelas terras até Choisy, e depois atravessando o Sena na Ponte de Charenton, entrou em Paris pela Porta de Santo António. a e foi perder-se, como um enxame de abelhas, para dentro do portão do Palácio de Guisa, - que parecia estar unicamente à espera deles para se fechar.

Bem, disse Chicot, indo pôr-se de atalaia à esquina da Rua dos Quatro Filhos, o negócio não é só com o Maiena, entra também o Guisa. Até aqui só era curioso, mas agora vai tornar-se interessante. Esperemos.

E Chicot esperou, com efeito por espaço de mais de uma hora, apesar da fome e do frio que já começavam a apoquentá-lo.

Finalmente tornou-se a abrir o portão; mas em lugar de cavaleiros embuçados em capotes, apareceram sete monges de Santa Genoveva, com os capuzes caídos para as caras e enormes contas nas mãos.

Oh! exclamou Chicot, que desfecho tão inesperado! Pois o Palácio de Guisa está tão repleto de santidade que os sacripantas que para lá entram transformam-se em ovelhas do Senhor só pelo simples facto de transporem o limiar da porta? Isto vai sendo cada vez mais interessante! E Chicot foi seguindo os frades, como tinha seguido os cavaleiros, plenamente convencido de que os hábitos ocultavam os mesmos corpos que antes cobriam os capotes.

Os monges vieram passar o Sena na Ponte de Nossa Senhora, atravessaram a Cidade Velha, entraram pela Ponte Pequena, tomaram pela Praça Maubert, e subiram a Rua de Santa Genoveva.

Apre! disse Chicot, depois de ter tirado o chapéu quando passou pela casa da Rua das Nogueiras onde pela manhã tinha recitado a sua oração. Que é isto? Tornamos, porventura, para Fontainebleau? Se assim é, não tomamos pelo caminho mais breve. Mas não: enganei-me, não havemos de ir tão longe. "

E, com efeito, os frades tinham-se encaminhado para a portaria do Convento de Santa Genoveva, e iam entrando para dentro do pórtico, em cujo interior se divisava um outro monge da mesma ordem, ocupado em examinar com a mais escrupulosa atenção as mãos dos indivíduos que iam entrando.

Que tal!. pensou Chicot; já se vê que só quem trouxer as mãos bem limpas é que pode entrar na abadia esta noite. Decididamente, aqui há grande novidade.

Depois desta reflexão, Chicot, ainda a cismar no que havia de fazer para não perder de vista os indivíduos que tinha seguido, olhou em redor de si, e viu, com grande espanto, que por todas as ruas que convergiam à abadia vinham apontando capuzes de frades, uns sós, outros caminhando dois a dois, mas todos eles na direcção do convento.

Então que é isto? disse Chicot, haverá hoje aqui algum capitulo geral para que foi convocada toda a fradaria de França?. Pela minha fé de cavalheiro é esta a primeira vez que sinto tentações de assistir a um capítulo; e confesso que estou fortemente tentado. "

Os frades continuavam a dirigir-se para o pórtico; mostravam as mãos, ou algum sinal que levavam nas mãos, e entravam.

Eu bem quisera entrar com eles, pensou Chicote; mas para entrar com eles, faltam-me duas coisas muito essenciais: em primeiro lugar, o hábito respeitável de que vão revestidos, pois ainda não avistei secular algum entre tão santos varões; e em segundo lugar, o objecto que eles mostram ao irmão porteiro; porque não há dúvida que mostram alguma coisa. Ah! Frei renflot, se eu aqui te apanhasse à mão, meu bom amigo!.

Esta exclamação de Chicot era devida à lembrança dum dos monges mais veneráveis da Ordem de Santa Genoveva, companheiro usual das patuscadas de Chicot, quando este por acaso deixava de comer no Louvre; era o mesmo com que o nosso gascão, no dia da procissão de penitência, se tinha safado para uma bodega ao pé da Porta Moncmartre, onde foi comer um pato bravo e beber vinho fervido com especiarias.

Os frades, entretanto, continuavam a afluir em tamanho número, que parecia que metade da população de Paris tinha professado, e o irmão porteiro, sem descansar, ia-os examinando a todos com o mesmo escrúpulo.

Vamos lá, disse Chicot consigo, aqui há forçosamente alguma novidade esta noite. Levemos a curiosidade até ao fim, São sete horas e meia, já acabou o peditório para o convento. Hei-de encontrar Frei Gorenfrot na casa de pasto da Cornucópia, são horas de ele estar a cear.

Chicot deixou a legião de frades continuar com as suas constantes evoluções nas imediações da abadia e desaparecer para dentro do pórtico; e metendo o cavalo a galope, foi-se a caminho da Rua Direita de S. Tiago, onde, em frente do Claustro de S. Bento, existia, florescente e muito frequentada por estudantes e frades dados à boa vida, a casa de pasto da Cornucópia.

Chicot era conhecido na casa, não como freguês, mas como um hóspede misterioso que vinha de vez em quando deixar um escudo de ouro e parte do seu juízo no estabelecimento de mestre Cláudio Bonhomet, que assim se chamava o dispensador dos dons de Ceres e Baco, que espalhava sem cessar o famoso emblema mitológico da casa.

 

         ONDE O LEITOR TERÁ O GOSTO DE TRAVAR CONHECIMENTO COM O FRADE DE QUEM JÁ SE FALOU DUAS VEZES NO DECURSO DESTA HISTÓRIA

Ao dia tão formoso que tinha estado, havia sucedido uma linda noite; porém fazia muito mais frio do que tinha feito durante o dia. Era uma daquelas bonitas geadas do princípio da Primavera que fazem com que se dê dobrado valor à cor avermelhada das vidraças duma casa de pasto.

Chicote entrou primeiro na sala geral, lançou a vista por todos os cantos e recantos, e, não vendo entre os hóspedes de mestre Cláudio o indivíduo que procurava, entrou familiarmente na cozinha.

O dono do estabelecimento estava ocupado em ler à família um livro de devoção, enquanto o azeite que se continha numa imensa frigideira posta ao lume ia adquirindo o grau de calor necessário para admitir a introdução duma quantidade de pescadinhas já enfarinhadas. Mestre Bonhomet ergueu a cabeça à entrada de Chicot.

- Ah, é o senhor - disse ele fechando o livro. - Boa noite, e bom apetite!

- Agradeço-lhe os dois desejos, se bem que um deles redunda tanto em seu como em meu proveito; não sei ainda que tal será a vontade.

- Como? Pois isso ainda entra em dúvida?

- É verdade; sabe muitu bem que não gosto de comer sozinho.

- Se for preciso - disse Bonhomet tirando o boné -, cearei com o senhor.

- Muito obrigado, meu caro patrão, bem sei que é um excelente comensal; porém venho aqui à procura dum amigo.

- De Frei Gorenflot - perguntou Bonhomet.

- Exactamente - respondeu Chicot -; ele já começaria a cear?

- Ainda não, mas é preciso aviar-se quanto antes, se quer que ele lhe faça companhia.

- Aviar-me?

- Sim, porque daqui a cinco minutos já terá acabado.

- Frei Gorenflor ainda não começou a cear, e diz que acabará dentro de cinco minutos? E Chicot, dizendo isto, abanou a cabeça, gesto que em todos os países do mundo significa incredulidade.

- Note, Senhor - disse mestre Cláudio -, que hoje é quarta-feira e que estamos na Quaresma.

- Que é isso?. - perguntou Chicot, com um modo que não depunha muito a favor das ideias religiosas de Gorenflot.

- Pois é verdade! - replicou Cláudio, com um gesto que queria dizer: Estou como o senhor, também não entendo, mas é assim mesmo.

- Há forçosamente algum transtorno na máquina sublunar - replicou Chicot - cinco minutos somente para a ceia de Gorenflot!. É fado meu presenciar hoje coisas extraordinárias.

E Chicot, à semelhança dum viajante que pisa pela primeira vez uma terra desconhecida deu alguns passos com cautela na direcção duma espécie de gabinete reservado, que tinha

uma porta de vidraça tapada com uma cortina de lã de xadrez encarnado e branco.

Chicot abriu a porta, e viu, sentado no fundo do gabinete e alumiado por uma vela não espevitada, o estimável monge ocupado em mexer descuidosamente uma pequena dose de espinafres cozidos em água e sal que tinha no prato, e que procurava tornar mais gostosa misturando-Lhe algum queijo ralado.

Enquanto o respeitável frade procede a tal mistura com uma carranca que bem dá a conhecer o nenhum resultado que esperava tirar de tão triste combinação, vamos tratar de o apresentar aos nossos leitores debaixo dum aspecto que os há-de indemnizar de terem tardado tanto a conhecê-lo.

Frei GorenElot, que era aquele frade agostinho que encontrámos junto de Bussy à borda do fosso do Templo, na manhã seguinte à emboscada que lhe fizeram os favoritos do rei, teria de idade trinta e oito anos, e de altura umas cinquenta polegadas. A pouca elevação da estatura achava-se compensada, no dizer do frade, pela admirável harmonia das proporções; porque o que lhe faltava em altura sobejava-lhe em largura, sendo de três pés o diâmetro que tinha dum ombro ao outro, o que equivale, como todos sabem, a nove pés de circunferência.

Do centro das gigantescas omoplatas saía-lhe um pescoço avantajado, sulcado em todo o sentido por uns músculos da grossura de polegada e salientes como cordas. Mas infelizmente o pescoço também estava em proporção com o resto, ou por outra era curto e grosso, configuração esta que tornava iminente uma apoplexia logo que Frei Gorenflot sofresse alguma comoção um pouco forte.

Porém Frei Gorenflot, cônscio deste defeito e do perigo que dele Lhe poderia resultar, nunca se comovia por motivo algum; diremos mais, em abono da verdade, que era muito raro vê-lo tão melancólico como estava na ocasião em que Chicot entrou no gabinete.

- Olá, amigo, que está aí a fazer! - exclamou o nosso gascão, olhando alternadamente para as ervas, para Gorenflot, para o morrão da vela, e para certo pichel cheio até à bordade água apenas tingida com algumas gotas de vinho.

- Bem vê, meu irmão, que estou a cear - respondeu Gorenflot fazendo vibrar uma voz tão sonora como o sino grande da sua abadia.

- E chama a isso ceia, Gorenflot? Ervas, está a brincar! - exclamou Chicote.

- Estamos hoje numa das primeiras quartas-feiras da Quaresma; tratemos da nossa salvação - respondeu Gorenflot falando fanhoso e levantando os olhos para o Céu.

Chicot ficou estupefacto. A sua admiração bem dava a conhecer que ele já por mais duma vez tinha visto Gorenflot glorificar duma maneira diferente o santo tempo da Quaresma em que estavam entrados.

- A nossa salvação? - repetiu ele. - E que diabo de relações têm a água e as ervas com a nossa salvação?

- Às quartas e sextas-feiras são os dias em que a Igreja proíbe que se coma carne – disse Gorenflot.

- Visto isso, a que horas almoçou?

- Eu não almocei, meu irmão - respondeu o frade, falando ainda mais fanhoso.

- Ah, se começamos a falar fanhoso - disse Chicot -, eu sou capaz de desbancar todos os frades deste mundo. Pois então, se não almoçou - disse Chicot falando fanhoso dum modo despropositado -, o que fez esta manhã, meu irmão?

- Estive a compor um discurso - replicou Gorenflot, erguendo a cabeça com altivez.

- Ora essa!. Um discurso. e para quê?

- Para o recitar esta noite no convento.

- Toma - pensou Chicot -, um discurso para esta noite; é célebre!

- E é preciso que eu trate de voltar para o convento quanto antes - acrescentou Gorenflot, levando à boca a primeira garfada de espinafres com queijo -, porque o meu auditório há-de estar impaciente.

Chicot recordou-se do número inFinito de frades que tinha visto entrar para a abadia, e, pensando que o Sr. de Maiena, segundo todas as probabilidades, também lá havia de estar, ficou a cismar como era que Gorenflot, que até àquele dia somente se tinha tornado notável por qualidades que nenhuma relação tinham com a eloquência, havia sido escolhido pelo seu superior José Foulon, então abade de Santa Genoveva, para pregar perante o príncipe loreno e uma assembleia tão numerosa.

- Está bom - disse ele -; e a que horas há-de pregar?

- Das nove às nove e meia, meu irmão.

- Bem. São nove menos um quarto. Há-de conceder-me pelo menos cinco minutos. Cos demónios! há mais de oito dias que não se oferece ocasião de comermos juntos!.

- A culpa não é nossa - disse Gorenflot -, e por isso não havemos de deixar de ser amigos, meu caríssimo irmão; os deveres do seu cargo prendem-no ao lado do nosso grande Henrique III, a quem Deus guarde; os da minha condição obrigam-me a andar no peditório, e tenho de assistir às rezas; por consequência, não é para admirar que vivamos separados.

- Não há dúvida; mas, com a breca! - disse Chicot - é mais um motivo para nos alegrarmos quando nos encontramos, meu amigo.

- E acredite que me alegro imenso - disse Gorenflot com semblante muito lastimoso - ; mas apesar de tudo sou obrigado a deixá-lo.

- Acabe ao menos de comer essas ervas - disse Chicot, pondo-lhe a mão no ombro e obrigando-o a retomar o seu lugar.

Gorenflot olhou para os espinaFres e suspirou; depois volveu os olhos para a água com vinho, e virou a cara para a banda.

Chicot percebeu que era chegada a ocasião de começar o ataque.

- Está lembrado - disse ele - daquele jantarinho em que há pouco Lhe falei, bem, ao pé da Porta de Montmartre, onde nos alapardámos enquanto o nosso grande rei Henrique II se açoitava e açoitava os mais, e comemos um pato bravo das lagoas da Grange-Batelière com molho de caranguejos, e bebemos dum certo vinho de Borgonha. como se chamava o vinho? Se não me engano foi o senhor que descobriu o vinho.

- Era um vinho da minha cerra - disse Gorenflot -, da Romanée.

- Sim, sim, agora me lembro; foi o leite que mamou quando veio a este mundo, digno filho de Noé.

Gorenflot sorriu com tristeza e lambeu os beiços.

- Que ideia forma daquele vinho tão bom? - perguntou Chicot.

- Não era mau - respondeu o frade -; porém ainda o há melhor.

- tal qual o que outro dia me afirmava o nosso patrão, Cláudio Bonhomet, que se gaba de ter na adega cinquenta garrafas do mesmo vinho, mas de tão superior qualidade, que o da porta de Montmartre, comparado com este, não passa duma zurrapa.

- E falou-lhe a verdade - disse Gorenflot.

- Como? Pois é verdade o que ele me disse - replicou Chicot - e está aqui bebendo esta detestável água com vinho, quando tem à mão tão boa pinga? Fora com esta porcaria!

E Chicot, agarrando no pichel, entornou-o pela casa.

- Tudo se quer a seu tempo, meu irmão - disse Gorenflot. - O vinho é muito bom quando depois de o beber nada nos resta a fazer senão glorificarmos Deus que o criou. Mas para quem tem que recitar um discurso, é preferível a água; não direi para o paladar, mas para a ocasião: facunda est agua.

- Histórias! - disse Chicot. - Magisfacundum est vinum. e se quer uma prova do que lhe digo, é que eu também tenho que recitar um discurso, e como tenho fé na minha receita, vou pedir uma garrafa do tal vinho da Romanée; e diga-me, Gorenflot, que lhe parece que mande vir para fazer boca?

- Não queira destas ervas - disse o frade -, não pode haver coisa pior.

- Com efeito - disse Chicot, pegando no prato de Gorenflot e levando-o ao nariz - , nojenta coisa!

E desta vez, abrindo uma janelinha, atirou à rua o prato e as ervas. Depois, voltando-se, gritou:

- Mestre Cláudio -, disse Chicot - traga-me duas garrafas daquele vinho da Romanée que tanto gaba.

- Duas garrafas? - disse Gorenflot. - Para quê? eu não bebo.

- Se bebesse, mandava vir quatro ou seis garrafas, e ainda seria pouco - disse Chicot.

- Mas quando bebo só, bebo pouco, e bastar-me- ão duas garrafas.

- Com efeito - disse Gorenflot -, duas garrafas não é muito; e se a comida for de magro, o seu confessor não poderá repreendê-lo.

- Decerto - exclamou Chicot -; pois eu havia de comer carne numa quarta- feira de Quaresma?. Era o que me faltava!

E indo ao armário onde estava guardada a comida, enquanto mestre Bonhomet ia buscar à adega as duas garrafas que lhe pedira, tirou para fora uma bela galinha cevada.

- Que está a fazer aí, meu irmão? - disse Gorenflot seguindo com involuntário interesse os movimentos do gascão. - Que está a fazer aí?

- Não vê? Estou a tomar posse desta carpa, com receio de que venha outro lançar-Lhe a mão. Nas quartas-feiras de Quaresma costuma haver grande concorrência para apanhar desta casta de comestíveis.

- Uma carpa? - disse Gorenflot com admiração.

- Sim, uma carpa - replicou Chicot, chegando-Lhe à cara a apetitosa ave.

- E desde quando é que as carpas têm bico? - perguntou o frade.

- Bico? - exclamou o gascão - onde está o bico?. Eu só vejo uma cabeça de peixe.

- E asas? - continuou o monge.

- São barbatanas.

- E penas?

- São escamas; está bêbado, meu rico Gorenflot.

- Bêbado? - gritou Gorenflot. - Bêbado? Que falso testemunho! Eu, que só comi espinafres e apenas bebi água com vinho!

- Pois então, são os espinafres que lhe estão pesando no estômago, e é a água que lhe subiu à cabeça.

- Ora ainda bem que aí vem o patrão - disse Gorenflot ele que decida.

- O quê?

- Se isso é uma carpa ou uma galinha.

- Pois sim. Mas deixe primeiro que ele abra as garrafas. Estou com empenho de verificar o vinho. Saque essas rolhas, mestre Cláudio.

Mestre Cláudio abriu uma das garrafas e vazou meio copo a Chicot. Chicot engoliu o vinho e deu um grande estalo com a língua.

- Ah! - disse ele. - Sou mau provador, e confesso que a minha língua tem péssima memória; não posso dizer se é pior ou melhor do que o da Porta de Montmartre. Nem estou certo se é da mesma qualidade.

Os olhos de Gorenflot brilhavam ao contemplar a gota de vinho que tinha ficado no fundo do copo de Chicote.

- Aqui está, meu irmão - disse Chicot vazando no copo do frade um dedal de vinho -; a sua obrigação neste mundo é ser útil ao seu próximo; guie-me nesta prova. Gorenflot pegou no copo, levou-o aos beiços, e saboreou vagarosamente a gota de vinho que ele continha.

- É da mesma lavra, com toda a certeza - disse ele -, mas.

- Mas o quê?. - replicou Chicot.

- Mas era tão pouco - tornou o frade -, que não fiquei habilitado a dizer se é pior oumelhor.

- Desejo contudo que me dê a esse respeito a sua opinião - disse Chicot. - Não quero que me empurrem gato por lebre; e se não tivesse que recitar um discurso, meu irmão, pedir-Lhe-ia que tornasse a provar este vinho.

- Fá-lo-ei, para o obsequiar - disse o frade.

- Ainda bem! - disse Chicot.

E encheu o copo do monge até meio.

Gorenflot levou o copo à boca como da primeira vez, e saboreou o vinho com o mesmo escrúpulo.

- É melhor - disse ele -, é melhor, afirmo-lho eu. - Pois sim! Está mancomunado com o nosso patrão.

- Um bom bebedor - disse Gorenflot - deve conhecer ao primeiro trago a naturalidade do vinho, ao segundo a qualidade, e ao terceiro os anos que tem.

- Oh, quem me dera saber os anos que tem este vinho! - exclamou Chicot. - É coisa muito fácil - replicou Gorenflot, apresentando o copo -; vaze aqui uma pinga, que eu já lho digo.

Chicot encheu o copo até três quartas partes; o frade engoliu o vinho com todo o vagar, mas duma só vez.

- É do ano de 1561- disse ele pondo o copo sobre a mesa.

- Viva, que adivinhou - gritou Cláudio Bonhomet -; é de 1561, não há dúvida. - Frei Gorenflot - disse o gascão tirando o chapéu -, tem sido beatificada em Roma gente que o não merecia tanto como o senhor.

- Tudo vai do costume, meu irmão - respondeu Gorenflot com modéstia.

- Também é preciso que haja alguma disposição - disse Chicot. - O costume só, não basta, e para prova aqui estou eu, que me posso gabar de ter bebido muito vinho, e não soube conhecer a idade deste. Então que é isso? Que está a fazer?

- Levanto-me, como vê.

- Para quê?

- Para ir para a reunião.

- Sem provar primeiro um bocado da minha carpa?

- Ah! é verdade - disse Gorenflot -; parece-me, meu estimável irmão, que ainda entende menos de comida que de bebida. Mestre Bonhomet, que bicho é este?

E Frei Gorenflot apontou para o objecto da discussão.

O estalajadeiro olhou com admiração.

- Sim - replicou Chicot -, está a perguntar- Lhe que casta de bicho é este.

- Ora essa! - disse Cláudio. - É uma galinha cevada.

- Uma galinha!. - exclamou Chicot com ar consternado.

- E bem gordinha que ela está - prosseguiu mestre Cláudio.

- E então?. - disse Gorenflot com modo triunfante.

- Está bom - disse Chicot -, vejo que me enganei. Porém, como estou com grande empenho de comer esta galinha, sem contudo querer pecar, peço-lhe, meu irmão, em nome dos nossos sentimentos recíprocos, que lance sobre ela algumas gotas de água e que a baptize carpa.

- Ah! ah! - disse Gorenflot.

- Sim - prosseguiu o gascão sem o que, arriscar-me-ia talvez a cometer um pecado mortal.

- Assim Farei! - replicou Gorenflot, o qual, sendo de seu natural excelence companheiro, já se ia animando em resultado das três provas de vinho. - Mas não vejo aqui água.

- Diz não sei que livro - respondeu Chicot -: Em caso de necessidade, servir-te-ás do que encontrares à mão. " E num caso destes a intenção é tudo; baptize-a com vinho meu irmão; baptize-a com vinho; pode ser que o animal não fique muito católico, mas não há-de ficar pior do que está, por certo.

E Chicot encheu até à borda o copo do frade: estava despejada a primeira garrafa.

- Em nome de Baco, de Momo e de Como, trindade do grande S. Pantagruel - disse Gorenflot -, eu te baptizo, carpa.

E molhando as cabeças dos dedos no vinho, salpicou o animal.

- Agora - disse o gascão, tocando com o copo no do frade - bebamos à saúde da neófita; assim ela seja assada em termos, e possa a habilidade que mestre Cláudio Bonhomet vai desenvolver para aperfeiçoá-la, aumentar ainda os dotes que Lhe prodigalizou a natureza!

- Vá lá, à saúde da carpa - disse Gorenflot, interrompendo uma enorme gargalhada para engolir o copo de vinho de Borgonha que Chicot Lhe vazara. - Para que viva, cos demónios! Sempre é muito bom este vinho!

- Mestre Cláudio - disse Chicot -, vá já sem demora assar-me esta carpa no espeto; enquanto a estiver assando humedecê-la-á com um molho composto de manteiga fresca, toucinho, pimenta e cebolinhas; depois, quando ela começar a corar, deite duas torradas na pingadeira, e quando estiver pronta, traga-ma bem quentinha.

Gorenflot não dizia palavra, mas ia aprovando com os olhos e com uma leve oscilação de cabeça, que indicava completa adesão.

- Agora - disse Chicot, quando viu que tinham sido executadas as suas instruções -, sardinhas de conserva, mestre Bonhomet, e atum. Estamos na Quaresma, como disse há pouco o Rev. o Frei Gorenflot, e quero que o jantar seja todo de magro. É verdade: traga também mais duas garrafas daquele excelente vinho da Ramanée, de 1561.

O aroma que exalava a galinha no espeto foi-se espalhando gradualmente pelo quarto e atacando insensivelmente o olfacto do frade. Cresceu-lhe a água na boca, brilharam-Lhe os olhos; porém ainda se conteve, e até chegou a fazer um movimento como para se levantar.

- Visto isso - disse Chicot -, abandona-me na ocasião em que vai começar o combate?.

- Assim é preciso, meu irmão - disse Gorenflot, erguendo os olhos para o Céu, como para dar a conhecer a Deus a magnitude do sacriFício que fazia.

- Sempre lhe digo que é grande imprudência ir recitar um discurso estando em jejum.

- Porquê? - balbuciou o monge.

- Porque lhe faltará o alento, meu irmão. Galiano assim o disse: Pulmo hominisfacile

deficit. (O pulmão do homem é fraco e cansa facilmente).

- Infelizmente assim é - disse Gorenflot -, e eu sei isso por experiência; se eu tivesse

melhores pulmões, teria sido um poço de eloquência.

- Já vê pois que não o quero enganar - disse Chicot.

- O que me vale - replicou Gorenflot, deixando-se cair para trás na cadeira - é que tenho muito zelo e vontade.

- Sim, mas o zelo só, não é suficiente; eu, no seu caso, provava destas sardinhas e bebia mais uma pinga deste néctar.

- Uma única sardinha - disse Gorenflot -, e só um copo.

Chicot pôs uma sardinha no prato do monge e chegou-Lhe a segunda garraFa.

O frade comeu a sardinha e bebeu um copo de vinho.

- Então? - perguntou Chicot, que apesar de instigar o frade a comer e a beber, não o imitava. - Então?...

- Com efeito - respondeu Gorenflot -, já não me sinto tão Fraco.

- Cos diabos! - disse Chicot. - Quando se tem de proferir um discurso, não basta sentir-se a gente menos fraco, é preciso fortalecer o estômago; eu, se estivesse no seu lugar, continuou o gascão -, comia as barbatanas desta carpa; e mesmo porque, se não comer mais alguma coisa, vai a cheirar a vinho. Merum soório male olet.

- Oh, cos demónios! - disse Gorenflot. - Tem razão! Nem tal me lembrava e como naquele momento acabavam de pôr a galinha na mesa, Chicot trinchou uma das pernas, que tinha baptizado de barbatanas, e apresentou-a ao frade, que a devorou até ao osso.

- Santo nome de Cristo! - exclamou Gorenflot. - Que peixe tão gostoso!

Chicot trinchou a outra barbatana e pô-la no prato do Frade, tirando a rolha à terceira garrafa.

O apetite de Gorenflot achava-se por tal forma despertado, que nem ele mesmo já podia ter mão em si; comeu a outra asa, tornou a galinha num esqueleto, e, chamando Bonhomet:

- Mestre Cláudio - disse ele -, estou com muita Fome; não me falou numa certa fritada de ovos com presunto?

- Não há dúvida - disse Chicot -, e até já se está aprontando. Não é assim, Bonhomet?

Sim senhor - replicou o estalajadeiro, que nunca desmentia os fregueses quando as asserções destes eram tendentes a um aumento de consumo, e por consequência de despesa.

- Pois bem! Traga-nos a fritada, mestre - disse o monge -; traga-a quanto antes.

- Não há-de tardar cinco minutos - respondeu o estalajadeiro, indo à pressa aprontar o que Lhe pediam, em cumprimento dum sinal que Chicot Lhe fizera.

- Ah! - suspirou Gorenflot batendo na mesa com o punho fechado. - Já estou melhor.

- Bem Lhe dizia eu - acrescentou Chicot.

- E se a fritada aqui estivésse, engolia-a duma vez... como bebo este vinho dum trago.

E o frade, com os olhos resplandecentes de gulodice, despejou uma quarta parte da terceira garrafa.

- Pelo que vou vendo - disse Chicot -, estava doente!

- Estava tolo, meu amigo - disse Gorenflot -; o maldito discurso tinha-me transtornado o juízo; há três dias que não penso noutra coisa.

- Devia ser coisa magníFica? - perguntou Chicot.

- Esplêndida! - replicou o frade.

- Recite-me algum trecho dele, enquanto não chega a Fritada.

- Pois sim! - disse Gorenflot. - Já viste pregar sermões à mesa, meu doido? Só se for na corte de el-rei teu amo!

- Tenho ouvido recitar lindos discursos na corte de el-rei Henrique, que Deus guarde!

- disse Chicot, levando a mão ao chapéu.

- De que tratam esses discursos? - perguntou Gorenflot.

- Da virtude - respondeu Chicot.

- Ah!. Que graça!. - exclamou o frade, encostando-se para trás na cadeira - o teu rei Henrique III sempre é um sujeito muito virtuoso!

- Não sei se é virtuoso ou não - replicou Chicot -, o que sei é que nunca presenciei na companhia dele coisa alguma que me fizesse corar.

- Isso creio eu sem dificuldade - disse o religioso -; já lá vai o tempo em que tu coravas, meu frascário!

- Oh - exclamou Chicot - frascário, eu, que sou a abstinência em pessoa, a continência em carne e osso? Eu, que acompanho todas as procissões, e observo todos os jejuns?

- Sim, do teu Sardana, do teu Nabucodonosor, do teu Herodes, Procissões interesseiras, jejuns de cálculo. Felizmente que já todos vão conhecendo a peça que é o teu Henrique III, que o Diabo leve!

E Gorenflot, em lugar do discurso que o gascão lhe pedira, começou a cantar em altas vozes uns versos em que descompunha o rei.

- Bravo! - gritou Chicot. - Bravo! E logo acrescentou, falando consigo:

Bem vai o negócio: ele que canta, não tarda também que fale."

Naquele instante apareceu mestre Bonhomet, trazendo numa das mãos a famosa fritada e na outra mais duas garrafas.

- Alnda, anda depressa! - bradou o frade arregalando os olhos, e abrindo tanto a boca a rir que se lhe viram os seus trinta e dois dentes.

- Sempre será bom que o amigo se lembre - disse Chicote - que tem que recitar um discurso...

- O discurso está aqui - respondeu o frade batendo na testa, pela qual se ia espalhando a vermelhidão das faces.

- Às nove horas e meia - prosseguiu Chicot.

- Menti-Lhe a respeito da hora - disse o frade -; omnis homo mendax, confireor.

- Então a que horas havia de ser, na realidade?

- Às dez.

- Às dez horas? Eu julgava que as portas do convento fechavam às nove.

- Deixá-las fechar - disse Gorenflot, examinando à luz da vela a cor de rubi do vinho que tinha no copo -, deixá-las fechar: cá tenho a chave.

- A chave do convento? - bradou Chicot. - Pois tem a chave do convento?

- Aqui, na minha algibeira - disse Gorenflot batendo no hábito -, aqui.

- É impossível! - replicou Chicot. - Eu estou ao facto das regras monásticas: já estive recluso por castigo em três conventos. Nunca se entregam as chaves a um simples Frade!

- Pois ela aqui está - disse Gorenflot, encostando-se para trás e mostrando com exaltação uma moeda ao seu amigo Chicot.

- O que é isso? Dinheiro?. - perguntou Chicot. - Ah! Já percebo. Unta as mãos ao irmão porteiro para o recolher à hora que lhe faz conta, desgraçado pecador!

Gorenflot escancarou a boca até às orelhas com o sorriso gracioso e satisfeito próprio dum homem que está embriagado.

- Sufcit - resmungou ele.

E dispunha-se a meter a moeda na algibeira.

- Espere, espere um instante! - disse Chicot. - Que dinheiro tão célebre!.

- Com a efígie do herege - acrescentou Gorenflot. - E por isso tem este buraco no lugar do coração.

- É verdade - disse Chicote -; é com efeito uma moeda com o cunho do rei de Béarn, e tem na realidade um furozinho.

- Uma punhalada - disse Chicot -; quer dizer: morte ao herege. O indivíduo que matar o herege fica beatiFicado pur esse simples facto; e eu desde já Lhe cedo a parte que me possa caber na bem-aventurança.

Ah, ah! pensou Chicot, já vou descurtinar o mistério; mas este malvado ainda não está bêbado de todo.

E tornou a encher o copo do frade.

- Sim - disse o gascão -, morte ao herege e viva, viva a missa!

- Viva a missa! - gritou Gorenflot, sorvendo o vinho dum só trago. - Viva a missa! Chicot, quando viu a moeda no centro da imensa palma da mão do seu companheiro, lembrou-se da revista que o irmão porteiro passava às mãos de todos os frades que ele vira afluir à abadia, e por isso, dirigindo-se ao religioso, disse-Lhe:

- Sim, já percebo tudo; mostra essa moeda ao irmão porteiro à entrada, e depois.

- E entro - disse Gorenflot.

- Sem dificuldade alguma?

- Da mesma forma que este copo de vinho entra no meu estômago. E o monge absorveu mais outra dose do precioso licor.

- Safa! - exclamou Chicot. - Se a comparação é exacta, há-de entrar por certo sem dificuldade.

- E demais a mais. - balbuciou Gorenflot caindo de bêbado. - E demais a mais, para Frei Gorenflot abrem-se de par em par as duas meias portas.

- E recita o seu discurso?

- E recito o meu discurso - disse o frade. - Eis como a coisa há-de ser: Chego. ouves, Chicot? Chego. ouves bem?.

- Boa dúvida! Ouço sim; todo eu sou ouvidos, podes falar.

- Chego, pois, como ia dizendo. A reunião é numerosa e escolhida. compõe-se de barões, de condes, de duques.

- E mesmo de príncipes.

- E mesmo de príncipes - repetiu o frade disseste muito bem! Até príncipes lá hão-de estar. Apresento-me com toda a humildade no grémio dos Fiéis da União.

- Os Fiéis da União?. - repetiu Chicot. - Que casta de fidelidade é essa?

- Apresento-me no grémio dos Fiéis da União. chamam por Frei Gorenflot, e eu adianto-me.

A estas palavras, o monge ergueu-se.

- É assim mesmo - disse Chicot -, adianta-se.

- E adianto-me - replicou Gorenflot, procurando acompanhar as palavras com a execução; porém, mal deu um passo, tropeçou no pé da mesa e caiu no chão.

- Bravo! - disse Chicot, ajudando-o a levantar e sentando-o na cadeira. - Chegue à frente, cumprimente o auditório, e diga.

- Nada! Eu não digo coisa alguma, os amigos é que hão-de dizer.

- E que hão-de os amigos dizer?

- Os amigos hão-de bradar: Frei Gorenflot! O discurso de Frei Gorenflot! " Hem?. que lindo nome que eu tenho para figurar na lista dus partidários da Liga: Frei Gorenflot!

E o frade repetiu o seu próprio nome com toda a pausa para lhe admirar a harmonia.

- É lindo, com efeito - replicou Chicot. - Mas qual será a verdade que vai surgir da bebedeira desta paleta?

- Então começo eu.

E o monge ergueu-se, fechando os olhos, porque a luz o deslumbrava, e encostou-se à parede, porque estava ébrio de todo.

- Começa. - disse Chicot, segurando-o de encontro à parede da mesma forma que os palhaços costumam segurar os arlequins.

- Começo, dizendo: Meus irmãos, que dia tão glorioso este para a fé! Chicot percebeu que não era possível sacar mais coisa alguma do frade além deste exórdio; e por isso deixou de o amparar.

Frei Gorenflot, que só conservava o equilíbrio em virtude do apoio que lhe oferecia a mão de Chicot, logo que esse apoio Lhe faltou, resvalou pela parede abaixo como uma tábua mal firmada, e foi bater com os pés de encontro à mesa, da qual caíram, em consequência do choque, algumas garrafas vazias.

- Amén! - disse Chicot.

Um ronco semelhante a um trovão fez vibrar quase imediatamente os vidros da janela do gabinete.

- Bom - disse Chicot -, as pernas da galinha já vão produzindo o seu efeito. O nosso amigo não acorda por certo estas doze horas mais chegadas; posso despi-lo sem inconveniente algum.

E logo, por julgar provavelmente que não tinha tempo a perder, Chicot desatou os cordões do hábito do frade, desenfiou-lhe os braços das mangas, e, voltando Gorenflot como se fora um saco de nozes, enrolou-o na toalha, atou-lhe um guardanapo na cabeça, e, escondendo o hábito debaixo do capote, entrou na cozinha.

- Mestre Bonhomet - disse ele, dando ao estalajadeiro uma peça de ouro -, aqui tem para pagar a nossa ceia; aqui está mais, para a ceia do meu cavalo, que muito Lhe recomendo, e mais isto, para que ninguém acorde o estimável Frei Gorenflot, que está dormindo como um bem-aventurado.

- Muito bem! - disse o estalajadeiro, convencido pelos argumentos sonantes que acom panhavam as três recomendações. - Muito bem! Vá descansado, Sr. Chicot.

Chicot, fiado na palavra do estalajadeiro, saiu imediatamente e em quatro pernadas chegou à esquina da Rua de Santo Estêvão; parou ali, fechou cuidadosamente na mão direita

a moeda com a efígie do rei de Béarn, vestiu o hábito do monge, e, às dez horas menos um quarto, foi, se bem que batendo-lhe um tanto o coração, apresentar-se também ao postigo da Abadia de Santa Genoveva.

 

         COMO SUCEDEU QUE CHICOT, DEPOIS DE TER ENTRADO PARA A ABADiA DE SANTA GENOVEVA, VEIO A CONHECER QUE ERA MAIS FÁCIL A ENTRADA DO QUE A SAÍDA

Chicot, ao vestir o hábito do frade, tinha tido a cautela de aumentar o volume do corpo pela engenhosa disposição do capote e demais fato; tinha a mesma cor de barba que Gorenflot, e, se bem que este fosse oriundo das margens do Bona e ele das do Carona, tinha-se divertido tantas vezes a arremedar a voz do religioso, que a imitava a ponto de iludir quem o ouvisse.

Ora já se sabe que a barba e a voz são as únicas coisas que saem da profundidade dum capuz de monge.

A porta já estava para se fechar quando Chicot chegou, e o irmão porteiro só esperava que entrassem dois frades que se tinham apresentado adiante do gascão.

Este exibiu o Bearnês furado no sítio do coração, e foi logo admitido sem diFiculdade. Foi seguindo os dois que o precediam, e penetrou com eles na capela do convento, que era sua conhecida, porque muitas vezes lá tinha acompanhado o rei, o qual sempre protegera muito particularmente a Abadia de Santa Genoveva.

A capela era de construção romana, isto é, datava do undécimo ou duodécimo século, e, como em todas as capelas daquela época, havia por baixo do coro uma igreja subterrânea.

O coro ficava por consequência sete ou oito pés mais elevado do que a nave da capela, e subia-se para ele por duas escadas laterais, enquanto que uma porta de grades colocada entre as duas escadas dava serventia da nave para o subterrâneo, para onde, depois de aberta a porta, se desciam tantos degraus quantos eram os das escadas do tal coro.

Naquele coro, que assim ficava sobranceiro a toda a igreja, e de cada lado do altar, que era adornado com um painel de Santa Genoveva, que se dizia ser do mestre Russo, estavam as estátuas de Clodoveu e de Clotilde.

A capela era alumiada apenas por três lâmpadas, uma suspensa no centro do coro, as outras duas dispostas em distâncias iguais na nave.

Esta escassez de luz dava maior solenidade à igreja, duplicando-Lhe as proporções, por isso que a imaginação podia estender até ao infinito a parte que Ficava perdida na sombra.

Chicot, para exercitar os olhos e acostumá-los à escuridão, divertiu-se a contar os frades.

Estavam cento e vinte na nave e doze no coro, ao todo cento e trinta e dois. Os doze frades do coro estavam alinhados numa fileira em frente do altar, e figuravam um cordão de sentinelas destinadas a defender o tabernáculo.

153

Chicot viu com satisfação que não era ele o último que entrava para a assembleia dos indivíduos a quem Frei Gorenflot chamava os fiéis da União.

Atrás dele entraram mais três frades, cobertos de amplíssimos hábitos cinzentos, os quais foram colocar-se adiante daquela fileira que há pouco comparámos a um cordão de sentinelas.

Um fradinho em quem Chicot até ali não tinha reparado, e que era provavelmente algum menino de coro do convento, deu volta à capela para veriFicar se estavam todos nos seus lugares; e, depois de acabada a inspecção, foi falar com um dos três frades ultimamente chegados, e que se achavam no meio.

- Estamos aqui presentes cento e trinta e seis - disse o frade com voz sonora -; é a conta de Deus.

Os cento e vinte frades que estavam ajoelhados na nave ergueram-se imediatamente e tomaram assento nas cadeiras ou nos bancos que havia na igreja.

Logo em seguida um grande ruído de gonzos e de ferrolhos deu a conhecer que se estavam fechando as portas maciças do convento.

Chicot, apesar de valente, não deixou de estremecer quando ouviu ranger as fechaduras. Para recuperar a necessária serenidade de ânimo, foi sentar-se à sombra do púlpito, de onde podia ver muito à sua vontade os três monges que pareciam os personagens principais da reunião.

Estavam sentados em cadeiras de braços, e pareciam três juízes.

Atrás deles conservavam-se de pé os doze frades do coro.

Assim que acabou a bulha ocasionada pelo fechar das portas e pela mudança de atitude dos membros da assembleia, ouviram- se três toques de campainha.

Era provavelmente o sinal de silêncio, porque à terceira badalada cessou todo o rumor.

- Irmão Monsoreau - disse o mesmo frade que já tinha falado -, que notícias traz à União relativamente à província de Anju?

Duas coisas despertaram a curiosidade de Chicot.

A primeira, era aquela voz tão imperiosa, que mais parecia destinada para sair da viseira dum capacete num campo de batalha, do que do capuz dum frade dentro duma igreja.

A segunda, era aquele nome de Monsoreau, conhecido havia apenas alguns dias na corte, onde, como dissemos, causara sensação.

Um frade de elevada estatura, e cujo hábito mal disfarçava as formas angulosas do corpo que encobria, atravessou parte da assembleia, e, com passo Firme e ousado, subiu ao púlpito. Chicot procurou ver-lhe o rosto.

Era inteiramente impossível.

Bom, disse ele, se eu não lhes posso ver a cara, também eles não poderão ver-ma a mim.

- Meus irmãos - disse então uma voz que Chicot logo conheceu ser a do monteiro-mor -, as notícias que recebi do Anju não são satisfatórias; não porque lá não tenhamos simpatias, mas porque falta quem nos represente. A propagação da União naquela província tinha sido confiada ao barão de Méridor; porém este ancião, profundamente magoado pela recente morte da Filha, tem-se descuidado dos interesses da Santa Liga, e enquanto não se consolar da perda que sofreu, não podemos contar com ele. Pelo que me diz respeito, trouxe a adesão de mais três indivíduos à nossa associação, e, conforme o regulamento, depositei os nomes dos candidatos na urna. O conselho julgará se os três irmãos que proponho, e por quem respondo como se fora eu mesmo, devem ou não ser admitidos a formar parte da Santa União.

Um murmúrio de aprovação correu pelas fileiras dos frades, e ainda durou depois de o irmão Monsoreau ter voltado para o seu lugar.

- Irmão La Hurière - replicou o mesmo frade, que parecia incumbido de fazer a chamada dos fiéis conforme lhe lembrava a fantasia -, diga- nos o que tem feito na cidade de Paris.

Outro homem de capuz caído para a cara apareceu no púlpito que o senhor de Monsoreau acabava de deixar vago.

- Meus irmãos - disse ele -, todos conhecem a minha devoção pela fé católica, de que dei sobejas provas durante o glorioso dia em que ela triunfou. Sim, meus irmãos, desde aquela época, com ufania o digo, sempre fui um dos Fiéis do nosso grande Henrique de Guisa, e foi da própria boca do Sr. de Besme - que Deus abençoe! - que recebi as ordens que ele se dignou dar-me, e que eu segui tanto à risca que até quis matar os meus próprios hóspedes. Ora pois, a minha dedicação a tão santa causa fez com que eu fosse escolhido para regedor do meu bairro, e atrevo-me a dizer que foi uma circunstância muito feliz para a Religião. Fiquei habilitado a conhecer todos os hereges do Bairro de Saint- Germain-l'Auxerrois, onde continuo a administrar, na Rua da Árvore Seca, a hospedaria Estrela Brilhante que está sempre às vossas ordens, meus irmãos; e, depois de os conhecer, pude designá-los aos nossos amigos. Confesso que já não estou sequioso do sangue dos huguenotes como outrora, mas não desconheço qual é o verdadeiro intuito da Santa União, que estamos tratando de criar.

Ouçamos, disse Chicot consigo; este La Hurière, se bem me lembro, era um famoso matador de hereges, e deve saber muita coisa curiosa acerca da Liga, se acaso, entre esta gente, a confiança é na proporção do merecimento.

- Fale, fale - disseram várias vozes.

La Hurière, a quem se oferecia um ensejo para patentear os seus talentos oratórios, que raras vezes tinha ocasião de desenvolver, meditou um instante, tossiu, e começou assim:

- Se não me engano, meus irmãos, a extinção das heresias particulares não é o único fim que temos em vista. É preciso que os Franceses tenham a certeza de que nunca hão-de encontrar hereges entre os príncipes chamados pelo destino a regê-los. Ora bem, meus irmãos: qual é a conjuntura em que nos achamos? Francisco II, que tanta garantia oferecia do seu zelo pela fé, morreu sem filhos; Carlos IX, que ostentava igual zelo, também morreu sem deixar filhos. El-rei Henrique III, de quem não me compete a mim investigar as crenças nem qualificar as acções, também morrerá provavelmente sem deixar posteridade; fica pois o duque de Anju, o qual não somente também não tem filhos, como ainda me parece muito frouxo relativamente à Santa Liga.

Aqui foi o orador interrompido por muitas vozes, entre as quais se ouviu a do monteiro-mor.

- Porque é ele frouxo? - disse a voz. - E qual é o motivo por que faz essa acusação ao príncipe?

- Digo que é frouxo porque ainda não deu a sua adesão à Liga, se bem que o ilustre irmão que acaba de me interpelar a prometeu positivamente em nome dele.

- Quem lhe disse que ele ainda não aderiu? - respondeu a voz. - Não se Lhe declarou há pouco que mais alguns indivíduos aderiram à nossa causa?. Parece-me que não tem direito a acusar pessoa alguma enquanto não se abrir a urna.

- É verdade - replicou La Hurière esperarei pois para então; porém, depois do duque de Anju, que é mortal como nós e não tem filhos - e notem que os membros desta família real morrem todos moços -, para quem reverte a coroa? Para o huguenote mais feroz de todo o mundo, um renegado, um relapso, um Nabucodonosor!

Neste ponto tornou a ser interrompido La Hurière, não por murmúrios, mas por aplausos frenéticos.

- Para Henrique de Béarn, Finalmente, contra o qual é especialmente criada esta associação; para Henrique de Béarn, que muitas vezes nos persuadimos que está em Pau ou em Tarbes tratando dos seus amores, e há quem o veja nas ruas de Paris.

- Em Paris? - exclamaram várias vozes. - Em Paris? É impossível!

- Pois aqui veio! - gritou La Hurière. - Estava cá na noite em que foi assassinada

a Sr. a de Sauve; e talvez ainda esteja neste momento.

- Morra o Bearnês! - bradaram diversas vozes.

- Morra, sim! - exclamou La Hurière -; se por acaso vier hospedar- se na Estrela Brilhante fica por minha conta; mas não há-de vir. Não se colhe uma raposa duas vezes no mesmo

laço. Há-de ir morar para casa de algum amigo; porque ele tem amigos, apesar de ser herege.

Pois é preciso diminuir o número desses amigos ou fazer pelo menos com que sejam conhecidos. A nossa União é santa, a nossa Liga é leal, consagrada, abençoada e promovida pelo

Santo Padre Gregório III. Peço portanto que esta associação deixe o mistério, que se entreguem

listas aos regedores dos bairros, a fim de que estes vão por todas as casas convidar os cidadãos

a assinarem. Todos os que assinarem serão nossos amigos, os que não quiserem assinar Ficarão

tidos como inimigos; e se acaso se oferecer uma oportunidade para um segundo S. Bartolomeu, o que a nós, verdadeiros fiéis, nos vai parecendo muito urgente, faremos outra vez

O que já fizemos da primeira: pouparemos a Deus o trabalho de estremar os bons dos maus.

Uma trovoada de aplausos cobriu esta peroração; e quando já iam acalmando as aclamações, ouviu-se novamente a voz do frade que tinha falado por várias vezes, e que disse:

- A proposta do irmão La Hurière, a quem a Santa União agradece o seu zelo, há-de ser tomada em consideração, e sobre ela deliberará o Supremo Conselho.

Redobraram os aplausos. La Hurière inclinou-se umas poucas de vezes para agradecer à assembleia, e descendo os degraus do púlpito, voltou para o seu lugar, curvado ao peso do triunfo.

Ah! ah! disse Chicot, já vou começando a entender o negócio. Há menos confiança no meu Filho Henrique, relativamente à fé católica, do que havia em seu irmão Carlos IX, e do que há actualmente nos Srs. de Guisa. É provável que assim seja, visto que o Maiena anda metido nesta intriga. Os Srs. de Guisa querem formar no Estado uma sociedadezinha à parte de que só eles sejam os cabeças; o grande Henrique, que é general, capitaneará o exército; O gordo Maiena ficará à testa dos burgueses; o ilustre Cardeal presidirá a Igreja; e um dia pela manhã, o meu filho Henrique conhecerá que só Lhe resta o rosário, com o qual Lhe pedirão que faça favor de se recolher a um mosteiro. A coisa está perfeitamente calculada! Ah! É verdade... mas ainda nos resta o duque de Anju. Que diabo farão eles do duque de Anju?

- Frei Gorenflot! - gritou a voz do frade que tinha chamado o monteiro-mor e La Hurière.

Ou fosse por estar preocupado com as reflexões que acabámos de transmitir aos nossos leitores, ou por não se ter acostumado ainda a dar pelo nome que tinha tomado com o hábito do irmão do peditório, Chicot não respondeu.

- Frei Gorenflot! - repetiu a voz do menino do coro com um som tão claro e agudo que Chicot estremeceu.

Oh! oh! murmurou ele, parece uma voz de mulher que está chamando por frei Gorenflot!... Dar-se-á o caso que nesta honrada assembleia se achem confundidos não somente as categorias, mas os sexos também?

- Frei Gorenflot! - repetiu a mesma voz feminina. - Não está aqui presente?

Ah! já me ia esquecendo, disse Chicot consigo: Frei Gorenflot sou eu; vamos lá.

E logo em vóz alta:

- Estou, estou - disse ele, falando fanhoso como o frade -, eis-me aqui. Estava entregue a profunda meditação sobre o discurso do irmão La Hurière, e por isso não reparei quando me chamou.

Os murmúrios de aprovação que novamente ressoaram com referência ao discurso de la Hurière, cujas palavras ainda vibravam em todos os corações, deram tempo a Chicot para se preparar.

Chicot, dirão os nossos leitores, podia não responder quando chamaram pelo nome de Gorenflot, visto que ninguém erguia o capuz. Mas, se bem se lembrarem, as pessoas presentes à reunião tinham sido contadas e eram conhecidas; portanto, se passassem revista às caras, revista a que aliás teria dado lugar a ausência dum homem que julgavam presente, ter-se-ia descoberto a fraude, e tornava-se muito grave a posição de Chicot.

Chicot, por conseguinte, não hesitou um instante. Levantou-se curvando o corpo e imitando o andar pesado do frade, subiu os degraus do púlpito, e enquanto os ia subindo, puxou o capuz o mais que pôde para os olhos.

- Meus irmãos - disse ele, arremedando com a maior exactidão a voz do monge -, eu sou irmão do peditório neste convento, e, como sabem, este cargo dá-me direito a entrar - nas casas de toda a gente. Uso portanto de semelhante direito para maior glória do Senhor. Meus irmãos - prosseguiu ele, lembrando-se do exôrdio de Gorenflot, tão inopinadamente interrompido pelo sono, que àquela hora, em consequência do liquido por ele absorvido, ainda estava senhor absoluto do verdadeiro Gorenflot -, é um dia glorioso para a Fé este que aqui nos reúne! Falemos com franqueza, meus irmãos, já que estamos na casa do Senhor. O que é o reino de França? Um corpo. Santo Agostinho disse assim: Omnis civitas corpus i est. - Toda a cidade é um corpo.

Qual é a condição necessária para a conservação dum corpo? Saúde perfeita. Por que maneira se conserva a saúde dum corpo? Sangrando-o com prudência, quando nele há excesso de força. Ora, é evidente que os inimigos da religião católica são muito fortes, visto que tanto nos receamos deles; é indispensável, por consequência, sangrar segunda vez esse corpo a que chamamos sociedade; é isto o que todos os dias me estão repetindo os fiéis que me dão para o convento ovos, presuntos e dinheiro.

Esta primeira parte do discurso de Chicot causou grande impressão no auditório. Chicot deixou passar o murmúrio de aprovação que as suas palavras tinham excitado, e depois continuou:

Alegar-me-ão talvez que a Igreja aborrece o derramamento de sangue: Ecclesia aóborret r- a sanguine - prosseguiu ele. - Atendam porém a uma coisa: o teólogo não nos diz qual é o sangue que tamanho horror causa à Igreja, e eu aposto um boi contra um ovo que não foi, em todo o caso, ao sangue dos hereges que ele quis aludir. E com efeito: Fons malus corf ruptorum sanguis hereticorum autempessimus! E ainda há outro argumento, meus irmãos:

a Igreja, disse eu! Porém nós não somos a Igreja somente. Estou bem certo que o irmão Monsoreau, que há pouco falou com tanta eloquência, traz o seu terçado de monteiro-mor à cinta.

O irmão La Hurlêre sabe manejar o espeto com toda a destreza: Ueru agrest, lethiferum tamen do instrumentum. Eu mesmo, que aqui vos estou falando, meus irmãos, eu, Jacques Nepomuceno Gorenflot, já andei com o mosquete ao ombro na Champanha, e ajudei a queimar os huguenotes. Dava- me por satisfeito com tamanha honra, e julgava ter ganho um lugar no Paraíso. Mas de repente houve quem fizesse nascer escrúpulos na minha consciência: as huguenotas, antes de serem queimadas, tinham sido um tanto estupradas. Esta circunstância tirava todo o merecimento à bela acção que tínhamos praticado; o meu confessor, pelo menos, assim o esperava. Por isso tratei logo de entrar para um convento, e para me lavar da nódoa adquirida no contacto com as hereges, fiz imediatamente voto de passar o resto dos meus dias em abstinência e de nunca mais ter relações senão com católicas puras. " Esta segunda parte do discurso do orador não foi menos bem recebida do que tinha sido a primeira, e todos ficaram admirando os meios de que se tinha servido o Senhor para conseguir a conversão de Frei Gorenflot.

Ouviram-se alguns aplausos juntamente com um murmúrio de aprovação.

Chicot cumprimentou a assembleia com alguma modéstia.

Resta-nos - prosseguiu Chicot - falar dos chefes que elegemos. e a respeito dos quais me parece a mim, pobre frade indigno, que alguma coisa se deve dizer. É por certo muito bonito, e sobretudo muito prudente, entrar de noite num convento, a coberto duma samarra de frade, para ouvir pregar Frei Gorenflot; mas quer-me parecer que não é a isso que deve limitar-se o dever dos nossos mandatários. Tanta prudência causa riso aos malvados huguenotes, os quais, não se pode negar, são levados do demónio quando se trata de estocadas. Peço portanto que adoptemos um sistema mais próprio de gente briosa como nós somos, ou, mais claro, como queremos parecer. O que desejamos nós? A extinção da heresia. Pois bem!

Não sei porque se não há-de apregoar alto e bom som este nosso desejo. Porque não havemos de atravessar as ruas de Paris formados numa santa procissão, mostrando a todos o nosso garbo e o brilho das nossas partasanas, em vez de caminharmos como ratoneiros nocturnos espreitando pelas encruzilhadas se aparece a guarda? Mas, dirão, quem há-de ser o homem que há-de dar-nos o exemplo? Quem? Pois serei eu, Jacques Nepomuceno Gorenflot, eu frade indigno da Ordem de Santa Genoveva, humilde e pobre irmão do peditório deste convento; serei eu quem, de couraça sobre o peito, celada na cabeça e mosquete ao ombro, me apresentarei para marchar, se for preciso, à frente dos verdadeiros católicos que quiserem seguir-me, e isto para fazer corar de pejo os chefes que se escondem, como se defender a Igreja fosse algum acto vergonhoso."

A peroração de Chicot, que correspondia aos sentimentos de muitos dos membros da Liga, os quais não viam que houvesse necessidade alguma de seguirem, para alcançarem o seu fim, outra vereda que não fosse a que se tinha aberto, havia seis anos, no dia de S. Bartolomeu e estavam por consequência desesperados com as demoras dos chefes, acendeu o fogo sagrado no coração de todos, e, à excepção de três capuzes, que se conservaram calados, a assembleia

entrou a gritar como um só homem:

- Disse muito bem o valente Frei Gorenflot! A procissão! A procissão!

O entusiasmo excitado pelo discurso do gascão tinha chegado ao seu auge por ser a primeira vez que o zelo do estimável monge se mostrava debaixo de semelhante aspecto.

Até ali os seus amigos mais íntimos tinham-no sempre considerado como zeloso partidário da causa, mas sem que o seu ardor o induzisse nunca a ultrapassar os limites da prudência.

Porém, agora, Frei Gorenflot saía de repente daquele estado duvidoso em que se tinha conservado, e aparecia armado de ponto em branco e pronto a entrar na lide; era uma grande reabilitação, e alguns, arrebatados de admiração por tão inesperado sucesso, chegavam a antepor Frei Gorenflot, pregador da primeira procissão, a Pedro o Eremita, pregador da primeira cruzada.

Infelizmente, ou felizmente para o autor de semelhante exaltação não entrava no plano dos chefes deixá-la ir por diante. Um dos três frades que tinham ficado calados falou ao ouvido do menino de coro, e a voz flauteada do rapazito ressoou logo pelas abóbadas, gritando por três vezes:

- Meus irmãos, são horas de nos retirarmos, está levantada a sessão.

Os frades ergueram-se com um sussurro geral, e depois de convencionarem uns com os outros que na próxima sessão haviam de pedir unanimemente que se efectuasse a procissão proposta pelo valente Gorenfloc, foram-se encaminhando vagarosamente para a porta.

Muitos deles tinham-se aproximado do púlpito para se congratularem com o irmão do peditório quando ele descesse daquela tribuna onde tanto havia brilhado. Mas Chicot, tendo

reflectido que as pessoas que o ouvissem falar de perto poderiam conhecê-lo pela voz na qual sempre se percebia um tal ou qual acento da Gasconha que ele nunca tinha conseguido extirpar; e que, se o vissem de pé, poderia causar admiração a altura do seu corpo, que na linha vertical apresentava boas seis ou oito polegadas mais que a de Gorenflot, sendo certo que este, se bem que muito tivesse crescido no espírito do seu auditório, era somente no sentido moral e não no físico; Chicot, pois, pôs-se de joelhos, e parecia qual outro Samuel absorto numa conferência com o Todo-Poderoso.

Respeitaram portanto o seu êxtase, e todos se dirigiram para a porta com uma agitação que muito divertia Chicot, que os estava observando pelos buracos do capuz.

Contudo, o Fim para que Chicot ali viera tinha-Lhe falhado.

O motivo por que ele abandonara o rei Henrique III sem lhe pedir licença, era por ter visto o duque de Maiena. O motivo por que ele voltara para Paris, era por ter visto Nicolau David. Chicot, como já dissemos, tinha compreendido duas pessoas no seu voto de vingança; mas a sua posição social não era tal que o habilitasse a arrostar com um príncipe da casa de Lorena, ou, para o conseguir com impunidade, tinha de esperar muito tempo, e com muita paciência, que se apresentasse uma ocasião.

Porém, a respeito de Nicolau David, mudava o caso de figura; este era apenas um simples letrado normando, matreiro e astuto, que tinha sido soldado antes de ser letrado, e mestre de esgrima enquanto tinha sido soldado.

Mas Chicot, sem ser mestre de esgrima, tinha presunção de jogar bem a espada; a grande questão para ele era, pois, alcançar o seu inimigo, e logo que isto conseguisse, Chicot, como os cavalheiros da Antiguidade, entregava a vida à salvaguarda do seu direito e da sua espada.

Chicot, portanto, observava os frades todos à medida que iam saindo, para ver se Lhe era possível conhecer por baixo daqueles hábitos e capuzes o corpo comprido e delgado de mestre Nicolau, quando percebeu de repente que os frades à saída, passavam por um exame igual ao que tinham sofrido à entrada, e que, puxando todos eles por uma senha que levavam nas algibeiras, só obtinham a autorização depois de o irmão porteiro a ter examinado. Chicot julgou primeiro que se tinha enganado e esteve um instante em dúvida; mas a sua dúvida em breve se converteu numa certeza que lhe alagou de suor frio as raízes dos cabelos.

Frei Gorenflot tinha-Lhe dito qual era o sinal que servia para entrar, mas não se tinha lembrado de lhe dizer qual era a senha para sair.

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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