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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A DAMA DE MONSOREAU Vol.II - P.2 / Alexandre Dumas
A DAMA DE MONSOREAU Vol.II - P.2 / Alexandre Dumas

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A DAMA DE MONSOREAU

Volume II

Segunda Parte

 

         GRAVES CONSEQUÊNCIAS DE ACONTECIMENTOS INSIGNIFICANTES

Catarina tinha tido visível desvantagem naquela primeira parte da conferência. Um revés daquela importância era tão pouco previsto e tão desusado, que ela já entrava em dúvida se o Filho estaria na realidade tão resolvido a recusar como parecia, quando um acontecimento muito insignificante veio de repente mudar a face do negócio.

Já tem sucedido que uma batalha quase perdida tem sido ganha por uma mudança de vento e vice-versa: Marengo e Waterloo são um exemplo desta asserção.

Um grão de areia basta para estorvar o andamento da máquina mais perfeita.

Bussy estava, como já vimos, num corredor particular que dava para a alcova do Senhor Duque de Anju, e colocado de modo que só o príncipe podia vê-lo; daquele esconderijo metia ele a cabeça por uma greta da tapeçaria nos momentos que lhe pareciam mais críticos para

a sua causa.

A sua causa, como é fácil de perceber, era a guerra a todo o pano; precisava conservar-se no Anju enquanto o Sr. de Monsoreau lá estivesse, vigiar assim o marido e visitar a mulher. "

Esta política em extremo simples complicava contudo no maior grau toda a políttica da França; assim resultavam graves consequências dum acontecimento de pouca monta.

Era este o motivo por que Bussy procurava, por meio de todos os gestos e acenos ao seu alcance, tornar o amo muito renitente.

O duque, que tinha medo de Bussy, fazia-lhe a vontade, e já vimos uma amostra da sua pertinácia.

Catarina tinha, por conseguinte, sido derrotada em todos os pontos, e só tratava de descobrir o modo de fazer uma retirada airosa, quando um sucesso quase tão inesperado como a teima do Senhor Duque de Anju veio em seu auxílio.

De repente, no momento mais interessante da conversação da mãe com o filho, e quando o Senhor Duque já ia oferecendo maior resistência, Bussy, sentiu que alguém Lhe puxava pela ponta da capa.

Como não queria perder sequèr uma única palavra da conferência, levou a mão, sem se voltar, ao sítio por onde se sentia agarrado, e encontrou uma mão; logo depois da mão achou um braço, após o braço um ombro, e finalmente, em seguida ao ombro um homem.

Vendo então que o caso era digno de atenção, voltou-se.

O homem era Rémy.

Bussy quis falar, porém Rémy levou o dedo à boca, e conduziu o amo ao quarto imediato.

- Que novidade temos, Rémy - perguntou o conde com impaciência -, e por que motivo vens estorvar-me em semelhante ocasião?

- É uma carta - disse Rémy em voz baixa.

- Ora que te leve o diabo! E por causa duma carta vieste interromper-me na conversação tão importante que estava tendo com o Senhor Duque de Anju!.

Rémy não fez caso da repreensão.

- Nem todas as cartas se parecem - disse ele.

- Não há dúvida - pensou Bussy -; de onde vem esta?

- De Méridor.

- Oh - exclamou vivamente Bussy

- , de Méridor! Obrigado, meu bom Rémy, obrigado!

- Visto isso, sempre fiz bem.

- Fizeste, sim! Onde está a carta?

- Ah, eis o motivo por que eu logo desconfiei que o negócio era muito importante: o portador quer entregá-la em mão própria.

- Tem razão. E está ai?

- Está.

- Trá-lo à minha presença.

Rémy abriu uma porta e acenou a um indivíduo que parecia um moço de estrebaria, para que se aproximasse.

- Aqui está o Sr. de Bussy - disse ele apontando para o conde.

- Dá cá; eu sou a pessoa a quem procuras - disse Bussy

E meteu-Lhe uma peça de ouro na mão.

- Oh, eu bem o conheço, Senhor - disse o criado entregando-lhe a carta.

- E foi ela quem ta deu?

- Não senhor, não foi ela, foi ele.

- Ele, quem! - perguntou logo Bussy olhando para a letra.

- O Sr. de Saint-Luc.

- Ah. ah!

Bussy havia mudado de cor, porque à palavra ele julgara que se tratava do marido e não da mulher, e o Sr. de Monsoreau tinha o privilégio de fazer desmaiar Bussy sempre que este se lembrava dele.

Bussy voltou costas para ler e ocultar durante a leitura a emoção que sempre receia paten tear todo o indivíduo que recebe uma carta importante, quando não é César Bórgia, Maquiavel, Catarina de Médicis, ou o Diabo.

O pobre Bussy tinha feito bem em se voltar, pois apenas acabou de correr os olhos pela carta, subiu-lhe o sangue à cabeça e começaram-Lhe as fontes a latejar; de forma que, de pálido que estava, tornou-se vermelho, ficou um instante atordoado, e, sentindo que ia cair, teve de atirar consigo a uma cadeira de braços que estava ao pé da janela.

- Vai-te já - disse Rémy para o criado, espantado por ver o efeito que havia produzido a carta que tinha trazido.

E empurrou-o para fora pelos ombros.

O criado deitou logo a correr; via que tinha sido portador de más novas, e receava que lhe fizessem restituir a peça de ouro.

Rémy tornou para junto do conde, e sacudindo-o pelo braço:

- Por Deus - exclamou ele -, responda-me já no mesmo instante, Senhor Conde, ou, por Santo Esculápio, sangro-o imediatamente nos braços e nos pés!

Bussy levantou-se; já não estava vermelho nem atordoado, estava com um parecer sombrio.

- Vê - disse ele - o que fez Saint-Luc para me servir.

E passou a carta às mãos de Rémy.

Rémy leu com avidez.

- E então?. - disse ele - parece-me tudo isto muito bonito, e o Sr. de Saint-Luc é um homem de bem. Vivam os homens de talento que mandam uma alma para o Purgatório com tanta limpeza! Vai logo à primeira!

- É incrível! - balbuciou Bussy.

- É, por certo, incrível; mas isso nada faz ao caso. Eis a nossa posição inteiramente mudada. Daqui a nove meses hei-de ter uma cliente chamada condessa de Bussy Não tenha receio a respeito de partos, sou tão hábil como Ambrósio Paré.

- Sim - replicou Bussy -, há-de ser minha mulher, não tenhas a menor dúvida.

- Parece-me - retorquiu Rémy - que já Lhe não falta muito, e era mais sua esposa que do marido.

- O Monsoreau morto!.

- Morto - repetiu Le Haudouin -; é o que aqui está escrito.

- Oh, ainda me está parecendo um sonho, Rémy! Pois quê? Nunca mais hei-de ver aquela espécie de espectro, sempre pronto a atravessar-se entre mim e a felicidade da minha vida? Rémy, aqui há engano!

- Não há o menor engano. Torne a ler; caiu sobre uma moita de papoilas, veja, e tão desastradamente que logo morreu! Eu já tinha observado que era muito perigoso cair sobre moitas de papoilas; mas pensava que tais quedas só eram perigosas para mulheres.

- Mas nesse caso. - disse Bussy sem dar atenção às facécias de Rémy e seguindo unicamente os desvarios do seu próprio pensamento - mas nesse caso, Diana não pode ficar em Méridor. Não quero que fique! É preciso que vá para algum outro sítio, para alguma parte onde possa esquecer o que lá se passou.

- Sou de opinião que deve ir para Paris - disse Le Haudouin -; em Paris tudo esquece.

- Tens razão, voltará para a casinha da Rua das Tournelles, e lá passaremos escondidos do mundo os dez meses de viuvez, se é que a felicidade pode esconder-se, e o casamento não será para nós senão a continuação da ventura que já gozamos.

- É verdade - disse Rémy -; mas para irmos para Paris.

- Que queres dizer?

- É-nos indispensável uma coisa.

- Que é?

- Que haja paz no Anju.

- É verdade - exclamou Bussy -, é verdade! Oh, meu Deus, que de tempo que aqui tenho estado inutilmente!

- Isso quer dizer que vai montar a cavalo e partir para Méridor?

- Eu não, mas tu; eu não posso tirar-me daqui; e demais, nesta ocasião não parecia muito bem apresentar-me lá.

- Como hei-de eu vê-la? Deverei ir ao castelo?

- Não, vai primeiro à mata velha; pode ser que ande por lá passeando à minha espera; depois, se não a vires, vai então ao castelo.

- Que lhe hei-de dizer?

- Que estou quase louco.

E apertando a mão do mancebo, no qual já por experiência confiava tanto como em si próprio, voltou a correr para o seu lugar no corredor secreto, à entrada da câmara do duque detrás da tapeçaria.

Catarina, durante a ausência de Bussy, procurava recuperar o terreno que a sua presença tinha feito perder.

- Meu filho - tinha ela dito -, julgava que nunca uma mãe poderia deixar de estar de acordo com seu filho.

- Entretanto, minha mãe, dá-se esse caso às vezes, como está vendo - respondeu o duque de Anju.

- Nunca, quando ela quer.

- Minha Senhora, quer dizer quando eles querem - replicou o duque, o qual, muito satisfeito por ter proferido uma palavra tão arrogante, procurou com os olhos Bussy para obter dele em recompensa um sinal de aprovação.

- Mas eu quero! - exclamou Catarina. - Ouviste, Francisco? Quero! E a expressão da voz formava contraste com as palavras, porque as palavras eram imperiosas, e a voz era quaSe suplicante.

- Quer? - replicou o duque de Anju sorrindo- se.

- Quero, sim - prosseguiu Catarina -; e não hesitarei diante de sacrifício algum para o conseguir.

- Ah, ah! - disse Francisco. - Com o demónio!

- Sim, sim meu querido filho; diz-me: que exiges? Que queres? Fala! Ordena!

- Oh, minha mãe! - exclamou Francisco desgostoso de ter alcançado uma vitória tão completa e que não lhe deixava a faculdade de mostrar os rigores dum vencedor.

- Ouve-me, filho - disse Catarina com voz em extremo meiga não queres por certo que o reino nade em sangue, não é assim? Tu não és nem mau francês, nem mau irmão...

- Meu irmão ofendeu-me, minha Senhora, e eu nada lhe devo já, nem como meu irmão nem como rei.

- Mas, Francisco, sou eu que te peço! E de mim não tens motivo de queixa.

- Tenho também, porque a senhora abandonou- me! - replicou o duque, julgando que Bussy estava no mesmo sítio continuando a ouvir tudo.

- Ah, queres que eu morra? - disse Catarina com voz sombria. - Pois bem, Faça-se a tua vontade; morrerei, como deve morrer toda a mulher que vê os filhos em guerra uns com os outros.

É escusado dizer que Catarina não tinha o menor desejo de morrer.

- Oh, não me diga isso, minha Senhora, que me dilacera o coração! - exclamou Francisco, que aliás não sentia incómodo algum no coração.

Catarina desatou a chorar.

O duque pegou-lhe nas mãos e procurou tranquilizá-la, olhando sempre com alguma inquietação para o fundo da câmara.

- Mas que pretendes tu? - disse ela. - Formula as tuas exigências, ao menos, para que possamos tomar alguma deliberação.

- E a senhora que quer de mim? Vamos, minha mãe - disse Francisco -, fale, que eu a ouvirei com toda a atenção.

- Desejo que regresses a Paris, meu Filho, desejo que voltes à corte de el-rei teu irmão, que te está estendendo os braços.

- Ah, minha Senhora, eu não me iludo: quem me estende os braços não é ele, é a ponte levadiça da Bastilha.

- Não; regressa, regressa, e, pela minha honra, pelo meu amor de mãe, pelo sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo (Catarina benzeu-se), te prometo que hás-de ser recebido por el-rei como se fosses o rei, e ele o duque de Anju.

O duque não tirava os olhos do lugar em que estava Bussy.

- Aceita - prosseguiu Catarina -, aceita, meu filho; queres aumento de dotação? Diz. Queres ter guarda própria?

- Seu filho já me deu uma guarda, minha Senhora, muito honrosa até, pois tinha escolhido para esse fim os seus quatro favoritos.

- Ora vamos, não me respondas assim; há-de dar-te uma guarda de homens por ti mesmo escolhidos, nomear-se-á um capitão para a comandar; e se quiseres o capitão será o senhor de Bussy.

O duque de Anju, abalado por este último oferecimento, que lhe parecia dever agradar a Bussy, olhou novamente para o lado do corredor secreto onde esperava ver dois olhos chamejantes e uns dentes brancos a rangerem na penumbra. Mas, com grande pasmo seu, viu, pelo contrário, Bussy muito risonho, alegre e aplaudindo com repetidos acenos de cabeça.

Que quer isto dizer? perguntou ele a si próprio; então Bussy não queria guerra senão para ser capitão da minha guarda? Visto isso - disse ele em voz alta, como interrogando-se a si mesmo -, devo aceitar?

Sim, sim, sim! disse Bussy com as mãos, com os ombros, com a cabeça.

- Devo pois - prosseguiu o duque - deixar o Anju e voltar para Paris? Sim, sim, sim! tornou Bussy com um furor aprovativo que ia sempre em aumento. - Sem dúvida alguma, meu querido filho - disse Catarina -, e não sei que inconveniente possa ter o teu regresso a Paris.

À fé de quem sou, disse consigo o duque, que não percebo a razão desta mudança. Tínhamos convencionado que eu havia de recusar tudo, e agora é ele quem me aconselha a que faça as pazes!

- Então - perguntou Catarina com ansiedade - que me responde?

- Minha mãe, reflectirei no que me disse - respondeu o duque, que queria indagar pre viamente de Bussy o motivo daquela contradição -, e amanhã.

Há-de ceder, pensou Catarina. Está bom, ganhei a batalha.

Afinal de contas, disse consigo o duque, pode ser que Bussy tenha razão. A mãe e o Filho separaram-se depois de se terem abraçado.

 

         DE COMO O SR. DE MONSOREAU ABRIU, FECHOU E TORNOU A ABRIR OS OLHOS, DANDO ASSIM UMA PROVA EVIDENTE DE QUE NÃO TINHA MORRIDO DE TODO

Um amigo verdadeiro é bem apreciável, por isso é coisa muito rara. Era o que Rémy ia dizendo com os seus botões enquanto corria pelos campos fora montado num dos melhores cavalos do príncipe.

De boamente teria escolhido Rolando, mas como o Sr. de Monsoreau se Lhe antecipara, não tivera remédio senão escolher outro, que afinal era um bom corredor.

Eu sou muito amigo do Sr. de Bussy, dizia Le Haudouin; e o Sr. de Bussy, se me não engano, também é muito meu amigo! Eis o motivo por que estou hoje tão contente, gozo da felicidade dele e da minha. "

E depois acrescentava, respirando longamente:

Parece-me, na verdade, que já me não cabe tanta ventura no coração. Ora vamos, prosseguiu ele, interrogando-se, como há-de ser o cumprimento que eu hei-de fazer a Diana? Se ela estiver muito séria, cerimoniosa e fúnebre, faço-lhe uma cortesia sem dizer palavra, e levo a mão ao coração; se estiver com parecer risonho, faço piruetas, bato e executo um minuete sozinho. Quanto ao Sr. de Saint-Luc, a esse, se ainda estiver no castelo, do que muito duvido, dar-Lhe-ei vivas e agradecimentos em latim. Estou persuadido de que não há-de estar muito fúnebre. Ah, eis-me quase chegado. "

E com eFeito, o cavalo, depois de ter cortado à esquerda, e daí à direita; depois de ter seguido a vereda do costume e de ter atravessado a mata e o bosque, tinha entrado no atalho que ia ter ao muro.

Oh! que lindas papoilas! exclamou Rémy; fazem-me lembrar o nosso monteiro-mor; a moita delas onde caiu o pobre homem não era por certo mais farta do que esta!

Rémy ia-se aproximando do muro.

De repente o cavalo estacou, abrindo as ventas e fitando os olhos. Rémy, que ia correndo a trote largo e não esperava aquela parada súbita, esteve quase saltando pelas orelhas do Mitrilotes.

Era este o nome do cavalo que ele tinha escolhido em lugar do Rolando. Rémy, que se havia tornado destemido com a continuação de andar a cavalo, chegou logo ambas as esporas ao animal; mas Mitridates não se mexeu; tinham-Lhe dado provavelmente o nome em consequência de se parecer pelo seu génio teimoso com aquele rei da Anciguidade. Rémy, admirado, dirigiu os olhos para o chão para procurar o obstáculo que detinha o cavalo; mas só viu uma grande poça de sangue, que a terra e as flores iam bebendo gradualmente, e que apresentava à superfície uma espécie de espuma cor-de- rosa.

Seria este, acaso, o sítio - pensou ele, onde o Sr. de Saint-Luc enFiou o Sr. de Monsoreau? Rémy levantou os olhos do chão, procurou em roda de si, e viu, à distância de dez passos, à sombra dum grupo de árvores, duas pernas inteiriçadas, e um corpo, que parecia ainda mais

inteiriçado do que as pernas.

As pernas estavam estendidas e o corpo encostado a um tronco de árvore.

Acolá está o Monsoreau! disse Rémy. Hic obiit Nemrod Está bom; não é mau sinal para nós deixar a viúva ver-te assim exposto aos corvos e aos abutres, e já vejo que a oração fúnebre há-de constar de piruetas e de minuetes. "

E Rémy, tendo-se apeado, deu alguns passos na direcção do corpo do conde. É célebre! disse ele, está morto aqui, completamente morto, e contudo o sangue está além. Ali! Aqui está o rasto. Foi ele talvez que se arrastou até este sítio, e também pode ser que o Sr. de Saint- Luc, que é muito caritativo, o encostasse a este tronco de árvore para que o sangue não lhe subisse à cabeça. Sim, não foi outra coisa; e está, por minha fé, realmente morto, embora tenha os olhos abertos e nem um trejeito nas feições; está positivamente morto; não há que ver lá vai uma. duas!.

Rémy, dizendo isto, fez acção de atirar uma estocada.

Porém, de repente, recuou espantado e de boca aberta; os olhos que ele tinha visto abertos tinham-se fechado, e a palidez do rosto do defunto havia-se tornado ainda mais lívida. Rémy fez-se quase tão branco como o Sr. de Monsoreau; mas como era médico, e como tal, sofrivelmente materialista, resmungou coçando a ponta do nariz:

Credere portentis mediocre. Ele que fechou os olhos é porque não está morto. " E como, apesar do seu materialismo, era muito desagradável aquela posição, e as articulações dos joelhos se lhe dobravam involuntariamente, sentou-se, ou, para melhor dizer, deixou-se escorregar até ao pé da árvore, e achou-se cara a cara com o cadáver.

Não me lembra já, disse ele consigo, onde li que, depois da morte, aparecem certos fenómenos que são o resultado do aluimento da matéria, isto é, um princípio de corrupção. Demónio de homem! Ainda mesmo depois de morto quer incomodar-nos; não sei para quê! Sim, não há dúvida; não somente fechou de todo os olhos, mas a palidez também aumentou; color albus, chroma chloron, como diz Galiano; color alóus, como diz Cícero, que era um grande orador; e demais há um meio muito bom para eu saber com certeza se ele está morto ou se o não está, é enterrar-Lhe um palmo da minha espada na barriga! Se não mexer, é sinal que está morto deveras. "

Rémy dispunha-se a tentar tão caridosa experiência, e até já ia levando a mão ao estoque, quando os olhos de Monsoreau se tornaram a abrir.

Este movimento produziu um efeito contrário ao que havia ocasionado o primeiro; Rémy levantou-se como se fora movido por uma mola, e a testa humedeceu-se-lhe de suor frio.

Desta vez os olhos do morto conservaram-se arregalados.

Não está morto! murmurou Rémy, não está morto! Ora esta! Eis-me colocado numa bonita posição.

Ocorreu então naturalmente uma ideia ao mancebo.

" É verdade que está vivo, disse ele, mas se eu o matar ficará realmente morto. E olhava para Monsoreau, o qual o encarava também com tal expressão de terror, que parecia que lhe estava lendo no pensamento.

Fora! exclamou de repente Rémy, que lembrança tão infame! Juro por Deus que, se ele aqui estivesse de pé e brandindo a espada, eu era capaz de o matar com a maior satisfação. Mas assim como agora está, sem forças, e quase morto, seria mais do que um crime, seria uma vileza.

- Socorram-me! - murmurou o Sr. de Monsoreau. - Socorram-me, que eu morro! Cos demónios! disse Rémy, a situação é bastante crítica. Eu sou médico, e por consequência tenho obrigação de mitigar os sofrimentos dos meus semelhantes. Verdade seja que o Monsoreau é tão feio, que estou quase no meu direito de dizer que não é meu semelhante, porém é da mesma espécie, genus homo. Vamos lá, esqueçamos que me chamo Le Haudouin, e que sou amigo do Sr. de Bussy e tratemos de cumprir o dever de médico. "

- Socorram-me! - repetiu o ferido.

- Aqui estou - respondeu Rémy.

- Vá buscar-me um médico.

- O médico está na sua presença, e pode ser que lhe dispense de recorrer ao padre.

- Sr. Le Haudouin! - exclamou o Sr. de Monsoreau conhecendo que era Rémy - Por que acaso está aqui?

O Sr. de Monsoreau, como se vê, não desmentia o seu carácter; ainda mesmo naquele momento de agonia desconfiava e interrogava.

Rémy percebeu logo o motivo daquela pergunta. Não havia caminho trilhado pelo interior do bosque, e ninguém ali vinha, por conseguinte, sem algum fim. A interrogação era, portanto, muito natural.

- Como veio aqui ter? - tornou a perguntar Monsoreau, a quem as suspeitas davam força.

- Foi - respondeu Le Haudoin - porque encontrei o Sr. de Saint- Luc uma légua distante daqui.

- Ah, o meu assassino - balbuciou Monsoreau empalidecendo de cólera e de dor ao mesmo tempo.

- E quando me avistou, disse-me: Rémy, vá já ao bosque de Méridor, e, no sítio a que chamam a mata velha, encontrará um homem morto.

- Morto! - repetiu Monsoreau.

- Ele assim julgava - disse Rémy -, não se Lhe pode querer mal por isso; então, vim, vi, e. está vencido.

- E agora, diga-me com franqueza, Sr. Le Haudouin; não tenha receio, que está falando com um homem; diga-me: a ferida é mortal?

- Como quer que Lho diga? - replicou Rémy. - Deixe-me examinar primeiro. Já dissemos que a consciência do médico tinha podido mais que a afeição do amigo. Rémy chegou-se pois a Monsoreau, e, com todas as cautelas do costume, despiu-lhe a capa, o gibão e a camisa também.

A espada tinha penetrado por baixo do peito direito, entre a sexta e a sétima costela.

- Hum. - disse Rémy. - Dói-Lhe muito?

- No peito não tenho dor, é nas costas.

- Ah, vejamos - disse Rémy -. E em que sítio das costas é que Lhe dói?

- Por baixo da omoplata.

- O ferro foi de encontro a algum osso - disse Rémy -, daí provém a dor. E dizendo isto, examinou a parte que o conde Lhe indicava como mais magoada.

- Não - exclamou ele -, não: enganei-me; o ferro não foi de encontro a coisa alguma, saiu como entrou. Safa, que linda estocada, Senhor Conde! É um gosto tratar as pessoas feridas pelo Sr. de Saint-Luc; está furado de lado a lado, meu caro Senhor.

Monsoreau desmaiou; mas Rémy não fez caso nenhum deste delíquio. Ah! aí está, é isso mesmo: uma síncope e o pulso fraco; assim deve ser. (Apalpou-lhe as mãos e as pernas): ausência do som respiratório. (Bateu-Lhe brandamente na arca do peito): surdez som. Esta só pelo Diabo! Pode muito bem haver prorrogação da época da viuvez de Diana!

Naquele momento apareceu uma espécie de escuma avermelhada nos beiços do ferido. Rémy tirou prontamente do bolso um estojo, e escolheu uma lanceta; depois rasgou uma tira da camisa do ferido e comprimiu-lhe o braço.

Vamos a ver, disse ele: se o sangue correr, talvez não fique viúva a Sr. a Diana.

O sangue, depois de ter, por assim dizer, hesitado um instante, acabava com efeito de esguichar da veia; e quase no mesmo instante em que começava a correr, o doente respirou e abriu os olhos.

- Ah! - balbuciou ele. - Cheguei a persuadir-me que estava tudo acabado para mim.

- Ainda não, meu caro Senhor, ainda não; e pode ser mesmo.

- Que eu escape desta?

- Sim senhor; tratemos em primeiro lugar de fechar a ferida. Espere, não faça movimento algum. A natureza, neste momento, está-lhe acudindo por dentro como eu lhe estou acudindo por fora. Eu estou-Lhe pondo apósitos, e ela está coalhando o sangue. Eu fiz correr o sangue, e ela fá-lo parar. Ah, meu querido Senhor, a natureza é, um hábil cirurgião. Ora deixe que lhe

limpe os beiços.

Rémy enxugou os beiços do conde com o lenço.

- Logo depois de ferido - disse o conde - deitei sangue pela boca às golfadas.

- E agora, vê? - replicou Rémy. - Já a hemorragia parou. Bom, o negócio vai muito bem, infelizmente.

- Como assim? Infelizmente?

- Vai muito bem para o senhor por certo; mas é uma infelicidade, e eu bem sei por que digo. Meu caro Sr. de Monsoreau, receio muito ter a fortuna de curá-lo.

- Receia, porquê?

- Sim, eu cá me entendo.

- Julga pois que eu hei-de escapar?

- Por mal dos meus pecados.

- É um doutor muito extraordinário, Sr. Rémy!

- Que tem com isso? Contanto que eu o cure!. Agora, vejamos. Rémy acabava de tapar a sangria; levantou-se.

- Então que é isso, abandona-me? - exclamou o conde.

- Ah, está falando muito, meu caro Senhor, e isso não é bom. Isto em mim é asneira: era melhor dar-lhe de conselho que gritasse.

- Não o entendo.

- Felizmente. Agora, que a ferida está ligada.

- E então?

- Vou buscar auxílio.

- E que devo fazer durante a sua ausência?

- Conserve-se muito quieto, não se mexa, respire muito devagarinho, trate de não tossir, para que não caia o sangue que vai coalhando no orifício da ferida, Qual será a habitação mais próxima deste sítio?

- O Castelo de Mérídor.

- Por onde se vai para lá? - perguntou Rémy fingindo ignorar o caminho.

- Salte aquele muro, e achá-lo-á dentro da tapada; ou, quando não, rodeie a cerca, e irá ter à porta do castelo.

- Muito bem, vou já correndo.

- Muito obrigado, homem generoso! - exclamou Monsoreau.

Se tu soubesses, com efeito, a que ponto levei a generosidade para contigo, balbuciou Rémy, muito mais me agradecerias.

E tornando a montar a cavalo, meteu a galope na direcção que o conde Lhe indicara.

Dali a cinco minutos chegou ao castelo, cujos habitantes, buliçosos como um bando de formigas de quem se destruiu a toca, andavam dando busca a todos os cantos da tapada, sem poderem encontrar o sítio onde jazia o corpo de seu amo; porque Saint-Luc, para ganhar tempo, lho tinha ensinado errado.

Rémy caiu como um meteoro no meio deles, e levou-os todos atrás de si. Mostrava tamanho ardor nas suas recomendações, que a Sr. de Monsoreau não pôde deixar de olhar para ele muito admirada.

Um pensamento muito secreto e muito recôndito se lhe apresentou à imaginação, e manchou por alguns instantes a pureza angélica daquela alma.

Ah! eu pensava que ele era amigo do Sr. de Bussy! murmurou ela, enquanto Rémy saiu levando consigo maca, Fios, água fresca, e todos os mais objectos necessários para o curativo.

Nem o próprio Esculápio teria feito maior diligência com as suas asas de divindade.

 

         COMO SUCEDEU QUE O DUQUE DE ANJU, INDO A MÉRIDOR DAR OS PÊSAMES À SR. DE MONSOREAU PELA MORTE DO MARIDO, ENCONTROU O SR. DE MONSOREAU, QUE LHE RECEBEU A VISITA

Logo que terminou a conferência do duque de Anju com sua mãe, foi o príncipe ter com Bussy para saber o motivo daquela mudança tão inesperada que nele se tinha operado.

Bussy, fechado no seu quarto, lia pela segunda vez a carta de Saint-Luc, cada regra da qual Lhe causava o maior prazer.

Catarina tinha-se recolhido à sua câmara, onde havia mandado chamar os criados para dar as ordens para a partida, que ela julgava teria lugar no dia seguinte, ou logo no outro o mais tardar.

Bussy recebeu o príncipe com parecer muito risonho.

- Então que é isto, meu Senhor? - disse ele - Vossa Alteza quis ter o incómodo de vir procurar-me?

- Sim - replicou o duque -, venho aqui pedir-te uma explicação.

- A mim?

- A ti mesmo.

- Estou ouvindo, meu Senhor.

- Pois tu recomendas-me -, disse o duque - que esteja em guarda contra as sugestões de minha mãe e que sustente a luta com valor; eu obedeço, e quando me acho próximo a alcançar a vitória, quando todos os golpes já têm resvalado sem me fazerem mossa, chegas e dizes-me Ponha de parte a sua couraça, tire-a, meu Senhor"?

- Todas aquelas recomendações lhe tinha eu feito, meu Senhor, porque não sabia qual era o fim com que vinha aqui Sua Majestade. Porém agora, vendo que ela veio para maior glória e maior fortuna de Vossa Alteza...

- Para minha maior glória e maior fortuna? - exclamou o duque. - Como entendes tu isso?

- Sem dúvida alguma - replicou Bussy -; o que desejava Vossa Alteza? Triunfar dos seus inimigos, não é assim? Pois eu não me persuado como aFirmam algumas pessoas, que lhe lembre ser rei de França.

O duque olhou sorrateiramente para Bussy.

- Haverá talvez quem lhe dê esse conselho, meu Senhor - disse o mancebo -, mas peço-lhe que acredite que esses que o induzirem a semelhante tentativa são os seus maiores inimigos; e se forem muito teimosos, se não tiver meio de se livrar deles, envie-os para mim que eu os convencerei de que estão enganados.

O duque fez uma careta.

- E demais - prosseguiu Bussy -, examine-se, meu Senhor, sonde os seus rins, como diz a Bíblia; tem porventura à sua disposição cem mil homens, dez milhões de libras, alianças estrangeiras, e, finalmente, quer levantar-se contra o seu legítimo soberano?.

- O meu soberano não me pediu licença para me perseguir - retorquiu o duque.

- Ah, se é assim que encara a questão, tem razão, declare as suas intenções, faça-se coroar, e tome o título de rei de França; não duvide de que muito hei-de estimar os seus aumentos, pois com eles mais elevada se tornará a minha posição.

- Quem te diz que eu quero ser rei de França? - replicou o duque desabridamente. Estás aí discutindo uma questão que ainda não dei a resolver a pessoa alguma nem a mim próprio.

- Então está dito tudo, meu Senhor, e já entre nós não pode haver discussão, visto que estamos concordes no ponto principal.

- Estamos concordes?

- Assim me quer parecer, pelo menos. Faça com que Lhe concedam uma companhia de guardas, são quinhentas mil libras, Peça, antes de assinada a paz, que se dê um subsídio ao Anju como indemnização das despezas de guerra. Se lho entregarem, guardá- lo-á; não ficará por isso comprometido. Assim alcançaremos homens, dinheiro e poder; e depois. só Deus sabe até onde iremos!

- Sim, mas se eu voltar para Paris, e eles me puderem colher às mãos, hão-de zombar de mim, não achas? - disse o duque.

- Ora essa, meu Senhor, que lembrança tão disparatada! Zombarem de si!. Não ouviu os oferecimentos que Lhe fez Sua Majestade a rainha-mãe?

- Ofereceu-me muita coisa.

- Percebo; parece-lhe demasiado?

- É verdade.

- Mas ofereceu-lhe, além de tudo o mais, uma companhia de guardas, ainda mesmo que fosse comandada pelo Sr. de Bussy.

- Não há dúvida que ofereceu.

- Pois bem, aceite; sou eu que lho digo; nomeie Bussy capitão, Antraguet e Livarot tenentes, e Ribeirac alferes. Deixe que nós os quatro organizemos a tal companhia como nos parecer; e depois verá, quando sair acompanhado de semelhante escolta, se alguém se atreve a zombar do Senhor Duque, ou a não lhe tirar o chapéu quando passar, ainda mesmo que seja el-rei.

- Parece-me que tens razão, Bussy - disse o duque -, hei-de pensar no caso.

- Pense, pois, meu Senhor.

- Hei-de pensar. Mas diz-me: que estavas tu lendo tão atentamente quando aqui entrei?

- Ah, perdão, já me esquecia: era uma carta.

- Uma carta?

- Cujo conteúdo ainda Lhe interessa mais do que a mim; onde demónio tinha eu a cabeça que não lha mostrei logo que cheguei!.

- Visto isso é alguma notícia importante.

- É sim; e direi mais: é uma notícia bem triste: morreu o Sr. de Monsoreau.

- Que dizes! - exclamou o duque com um movimento tal de surpresa, que Bussy, que não tirava os olhos do príncipe, julgou descobrir nele a expressão da maior alegria.

- Morreu, meu Senhor.

- Pois morreu o Sr. de Monsoreau?

- É verdade. Mas não sei por que motivo se admira Vossa Alteza, não somos porventura todos mortais?

- Somos; mas não se morre assim sem mais nem menos.

- É conforme. Quando se é morto por alguém...

- Então ele foi morto?

- Dizem que sim...

- Por quem?

- Por Saint-Luc, com quem teve uma grande desavença.

- Ah, o meu querido Saint-Luc! - exclamou o príncipe.

- Muito bem - disse Bussy -, não sabia que contava entre os seus amigos esse querido Saint-Luc!

- Basta ele ser amigo de meu irmão - replicou o duque -; desde o momento em que nos reconciliámos, devo considerar os amigos de meu irmão meus amigos também.

- Ah, ainda bem, meu Senhor, e muito folgo de o ver em tão boa disposição.

- E estás certo disso que dizes?

- Tão certo quanto humanamente é possível. Eis aqui o bilhete de Saint-Luc que me participa o acontecimento, e como sou tão incrédulo como Senhor Duque, e ainda duvidava, mandei o meu médico Rémy para averiguar o caso e dar os pêsames em meu nome ao velho barão.

- Morto! Monsoreau morto! - repetiu o duque de Anju. - Morto a sós!

Estas palavras escaparam-lhe como Lhe tinha escapado o aguerido Saint-Luc. Eram duma ingenuidade incrível.

- Não morreu a sós - disse Bussy -, pois estava presente Saint- Luc, que Foi quem o matou.

- Oh, eu bem sei o que quero dizer - replicou o duque.

- Dar-se-ia o caso que Vossa Alteza tivesse incumbido alguma outra pessoa de o matar?

- perguntou Bussy.

- Eu não, por certo! E tu?

- Oh, meu Senhor, eu, como não sou príncipe, não incumbo a outrem negócios de semelhante natureza, sou obrigado a tratar deles em pessoa.

- Ah, Monsoreau, Monsoreau! - disse o príncipe com o seu terrível sorriso.

- Está-me parecendo que Vossa alteza não era muito afeiçoado ao pobre conde...

- Não há tal; eras tu, pelo contrário, que não gostavas dele.

- Não é muito para admirar que eu não gostasse dele - disse Bussy corando involuntariamente. - Por sua causa sofri um dia uma grande desfeita de Vossa Alteza!

- E ainda te lembras disso?

- Oh, bem vê que não, meu Senhor; mas o Senhor Duque, de quem ele era o fiel servidor o amigo, a alma danada...

- Bom, bom - disse o príncipe, interrompendo a conversa, que já ia tomando uma direcção que lhe não agradava -, manda aparelhar os cavalos, Bussy.

- Aparelhar os cavalos? Para quê?

- Para irmos a Méridor; quero dar pessoalmente os pêsames a Diana. E demais, esta visita já estava projectada há muito tempo. e não sei por que razão ainda não teve lugar; não quero demorá-la por mais tempo. Não sei o que tenho hoje, sinto-me disposto a ser cumprimenteiro...

Agora que o Monsoreau morreu e que não receio que ele venda a mulher ao duque, disse Bussy consigo, pouco me importa que este a torne a ver; se a acatar, saberei defendê-la. Vamos lá, aproveitemos a ocasião que se me oferece de ir visitá-la."

E saiu para ordenar que aparelhassem os cavalos.

Dali a um quarto de hora, enquanto Catarina dormia ou fingia que dormia para descansar das fadigas da jornada, o príncipe, Bussy e mais dez fidalgos, montados em magníficos cavalos, dirigiram-se para Méridor com aquela alegria que um dia bonito, os campos cobertos de relva, e a mocidade, costumam sempre inspirar não só aos homens como também aos animais.

O porteiro do castelo, logo que avistou tão luzida cavalgada, veio até à borda do fosso perguntar os nomes dos gentis cavaleiros que a compunham.

- É o duque de Anju! - bradou o príncipe.

O porteiro agarrou numa trompa e fez um toque, ao som do qual todos os criados do castelo se reuniram sobre a ponte levadiça.

Em seguida ouviu-se o rumor de gente a correr com rapidez pelos quartos, pelas escadas; as janelas das torrinhas abriram-se, sentiu-se uma bulha de ferragens arrastadas pelos pavimentos de lajes, e o velho barão apareceu à porta, trazendo na mão as chaves do seu castelo.

- É incrível a pouca impressão que aqui causou a morte de Monsoreau - disse o duque olha, Bussy, vê o parecer tão natural com que está toda esta gente.

Assomou neste momento uma mulher ao alto da escadaria.

- Ah, acolá está a formosa Diana - exclamou o duque. - Vê-la, Bussy, vê-la?

- Vejo, sim, meu Senhor - respondeu o mancebo. Mas, acrescentou ele para consigo, quem eu não vejo é Rémy. "

Diana vinha saindo, com efeito, de casa; mas logo após Diana saía também uma maca, sobre a qual se tinha feito transportar Monsoreau, deitado, e com os olhos incendiados pela febre ou pelo ciúme, parecendo mais, naquele estado, um sultão da Índia no seu palanquim, do que um moribundo sobre o seu leito fúnebre.

- Oh, oh! Cue é isto? - exclamou o duque, dirigindo-se para o seu companheiro, o qual se havia tornado ainda mais branco do que o lenço com que procurava encobrir a sua emoção.

- Viva Sua Alteza o Senhor Duque de Anju! - gritou Monsoreau fazendo um esforço violento para levantar a mão ao ar.

- Devagar! - disse uma voz por detrás dele. - Olhe que se abre outra vez a ferida! Era Rémy, o qual, sempre fiel ao seu dever de médico, fazia ao doente esta prudente recomendação.

As surpresas são de pouca duração na corte, nos rostos pelo menos: o duque de Anju fez um movimento para transformar a estupefacção em sorriso.

- Oh, meu caro conde - exclamou ele -, que feliz surpresa! Há-de acreditar que nos disseram que tinha morrido?.

- Aproxime-se, aproxime-se, meu Senhor - disse o ferido -, quero beijar a mão de Vossa Alteza. Graças a Deus, não só não morri, mas até tenho esperanças de escapar desta para me empregar em seu serviço com maior ardor e fidelidade.

Pelo que respeita a Bussy, o qual não era príncipe nem marido, duas posições sociais em que se torna indispensável a dissimulação, tinha a testa alagada em suor frio, e nem se atrevia a levantar os olhos para Diana. Dilacerava-lhe o coração ver aquele tesouro, que duas vezes havia perdido, tão chegado ao seu possuidor.

- E o Sr. de Bussy - disse Monsoreau -, o senhor que aí está ao lado de Sua Alteza, receba os meus sinceros agradecimentos, pois é quase ao senhor que devo a vida.

- A mim? Como? - balbuciou o mancebo, julgando que era por ironia que o conde Lhe agradecia.

- Sem dúvida que é ao senhor, se bem que indirectamente; mas nem por isso é menor a minha gratidão; aqui está quem me salvou - prosseguiu ele apontando para Rémy o qual erguia com desesperação os braços ao Céu, e quisera naquele momento sumir-se pela terra dentro -; a ele devem os meus amigos o estar eu ainda vivo.

E apesar dos sinais que Lhe fazia o pobre doutor para que se calasse, o que ele tomava como recomendações higiénicas, passou a narrar enfaticamente os cuidados, a destreza, e caridade com que tinha sido tratado por Le Haudouin.

O duque franziu a testa; Bussy olhou para Rémy com uma expressão medonha.

O pobre rapaz, escondido por detrás de Monsoreau, limitou-se a responder com um gesto que queria dizer: Eu não sou o culpado.

- Já me constou - prosseguiu o conde - que Rémy também o encontrou um dia semimorto, como hoje me encontrou a mim. Conte de ora em diante com a minha amizade, Sr. De Bussy, e olhe que quando Monsoreau é amigo de alguém, é amigo deveras; também quando odeia alguém, é de todo o coração!

Quis parecer a Bussy que o raio fulminado pelos olhos do conde ao proferir estas palavras era dirigido ao duque de Anju.

O duque não reparou.

- Vamos pois! - disse ele apeando-se e oferecendo a mão a Diana. - Digne-se, formosa Diana, fazer-nos as honras desta casa, que julgávamos encontrar enlutada, e que, felizmente continua a ser a morada da alegria. E o senhor, Monsoreau: vá descansar: quem está ferido precisa de muito sossego.

- Meu Senhor - disse o conde -, não quero que se diga que vindo Vossa Alteza visitar Monsoreau, e estando ele vivo, encarregou outrem de o receber; os meus criados me levarão e acompanhá-lo-ei enquanto aqui se demorar.

Dir-se-ia que o duque tinha adivinhado o pensamento oculto do conde, pois largou imediatamente a mão de Diana.

Monsoreau sossegou.

- Chegue-se a ela - disse Rémy ao ouvido de Bussy.

Bussy aproximou-se de Diana, e Monsoreau tornou a sorrir-se.

- Veio encontrar aqui uma grande mudança, Senhor - disse Diana a meia voz.

Ah! murmurou Bussy, porque não havia de ser ainda maior?...

É escusado dizer que o barão tratou o príncipe e os Fidalgos que o acompanhavam com todo o fausto da sua hospitalidade patriarcal.

 

         DO INCONVENIENTE DAS MACAS MUITO LARGAS E DAS PORTAS MUITO ESTREITAS

Bussy não se aFastava de Diana; o sorriso benévolo do conde de Monsoreau dava-Lhe uma liberdade que ele tratava de aproveitar.

Os ciumentos têm este privilégio, que fazendo a guerra a todo o transe para defenderem o que Lhes pertence, não são poupados, quando os ratoneiros lhes entram pela propriedade.

- Minha Senhora - dizia Bussy para Diana -, sou na verdade o homem mais infeliz do mundo. Logo que me participaram que ele tinha morrido, aconselhei ao príncipe que voltasse para Paris e fizesse as pazes com a mãe; ele anuiu, e agora é Diana que tem de ficar no AMju.

- Oh, Luís - respondeu Diana, apertando com a extremidade dos torneados dedos a mão de Bussy -, pois atreves-te a dizer que somos infelizes? Visto isso esqueces esses dias de inefável gozo, cuja recordação ainda agora me faz palpitar o coração.

- Não esqueci, Diana, bem pelo contrário: por muito me recordar é que sinto tão amargosamente a perda de tamanha felicidade. Que tormento não será o meu, se tiver de voltar a Paris! Como poderei eu viver a cem léguas distante de ti? Despedaça-se-me o coração, Diana, chego a desanimar.

Diana olhou para Bussy; havia no seu semblante uma tal expressão de dor, que ela abaixou a cabeça e ficou pensativa.

O mancebo esperou um momento, com o olhar suplicante e as mãos postas.

- Pois bem! - disse Diana de repente. - Irás para Paris, Luís, e eu também.

- Como? - exclamou o mancebo. - Queres abandonar o Sr. de Monsoreau?

- Ainda que o abandonasse - respondeu Diana, - não me abandonaria ele a mim; não, Luís, acredita no que te digo: melhor será que ele nos acompanhe.

- Ferido e doente como está? É impossível!

- Há-de ir também, sou eu que to digo!

E logo, deixando o braço de Bussy, chegou-se ao príncipe, o qual estava respondendo de muito mau humor a Monsoreau, cuja maca rodeavam Ribeirac, Antraguet e Livarot.

O parecer do conde serenou à vista de Diana; mas aquele instinto de bonança foi de pouca dura; passou como um raio de Sol entre duas nuvens.

Diana aproximou-se do duque, e o conde carregou os sobrolhos.

- Meu Senhor - disse ela com um sorriso encantador -, tenho ouvido dizer que Vossa Alteza é apaixonado por flores. Venha comigo, quero mostrar a Vossa Alteza uma colecção das flores mais raras de todo o Anju.

Francisco ofereceu-lhe cortesmente a mão.

- Aonde vai a senhora conduzir Sua Alteza? - perguntou Monsoreau.

- À estufa, Senhor.

- Ah! - disse Monsoreau. - Pois bem, levem-me também à estufa.

Está-me parecendo, pensou Rémy, que fiz bem em não o matar. Louvado seja Deus! É ele que se há-de matar por suas próprias mãos!

Diana sorriu para Bussy dum modo que prometia grandes resultados.

- É preciso que o Sr. de Monsoreau não desconFie que vai deixar o Anju - disse-Lhe ela ao ouvido -; o mais fica por minha conta.

- Está bom! - disse Bussy.

E aproximou-se do príncipe, enquanto a maca de Monsoreau ia dando a volta por detrás dum grande grupo de árvores.

- Meu Senhor - disse ele -, nada de indiscrições; não convém que Monsoreau saiba que estamos a ponto de fazer as pazes.

- Por que motivo?

- Porque poderia avisar a rainha-mãe das nossas intenções para lhe captar a amizade; e sua Majestade, se tivesse conhecimento da resolução que tomámos, poder-se-ia mostrar menos disposta a fazer-nos concessões.

- Tens razão - replicou o duque -; pelo que vejo desconfias bastante dele...

- De Monsoreau? Pudera não!

- Pois confesso-te que eu também; quer-me parecer que foi para algum fim oculto que ele se fingiu morto.

- Lá isso não, juro-Lhe eu; levou na verdade uma famosa estocada no peito; o toleirão do Rémy, que o salvou, chegou até a julgar que ele estava morto; parece que tem a alma cavilhada ao corpo!

Chegaram finalmente à porta da estufa.

Diana continuava a rir-se para o príncipe com o maior agrado.

O duque entrou primeiro; seguiu-se Diana; Monsoreau quis entrar após eles; mas, quando diligenciaram fazer passar a maca, verificaram que era impossível: a porta, que era em ogiva tinha muita altura, mas apenas a largura suficiente para admitir os vasos maiores que para ali se recolhiam, e a maca do Sr. de Monsoreau tinha seis pés de largura.

Monsoreau, à vista daquela porta tão estreita e daquela maca tão larga, soltou um rugido. Diana entrou para a estufa sem fazer caso dos gestos coléricos do marido.

Bossy, para quem era perfeitamente inteligível o sorriso de Diana, em cujo coração ele estava costumado a ler pelos olhos, conservou-se ao lado de Monsoreau, dizendo com a maior placidez:

- Debalde quer teimar, Senhor Conde: a porta é demasiado estreita, não pode caber por ela.

- Meu Senhor, meu Senhor! - gritava Monsoreau. - Não entre nessa estufa, há aí exalações mortais; flores exóticas que espargem aromas sóbremaneira venenosos, meu Senhor!

Porém Francisco não Lhe dava ouvidos; apesar da sua habitual prudência, só atendia ao prazer que lhe causava o contacto da mão de Diana na sua, e ia- se entranhando com ela pelas veredas viçosas da estufa.

Bussy, entretanto, exortava Monsoreau a sofrer com paciência as suas dores; porém, apesar das pregações de Bussy sucedeu o que necessariamente devia acontecer: Monsoreau sucumbiu afinal, não à dor física, pois nesse particular parecia ele ser de ferro, mas à dor moral e Desmaiou.

Rémy usou da autoridade que esta circunstância lhe dava: mandou que tornassem a levar o ferido para o seu quarto.

- Agora - perguntou Rémy a Bussy - que determina que faça?

- Boa pergunta!. - replicou Bussy. - Conclui a obra que tão felizmente encetaste; fica com ele, e cura-o!

Em seguida foi dar conta a Diana do que tinha sucedido ao marido.

Diana despediu-se logo do duque de Anju, e encaminhou-se para o castelo.

- Conseguiste o que desejamos? - perguntou-Lhe Bussy, quando ela Lhe passou ao lado.

- Penso que sim - replicou ela -; em todo o caso fala com a Gertrudes antes de te retirares.

O duque só gostava das flores porque as estava vendo em companhia de Diana; logo que ela se afastou, recordou-se das recomendações do conde, e saiu do edifício.

Ribeirac, Livarot e Antraguet acompanharam-no.

Durante este tempo Diana tinha ido ter com o marido, a quem Rémy procurava reanimar. O conde não tardou a abrir os olhos.

O seu primeiro movimento foi para se erguer com violência; porém Rémy tinha previsto o caso, e o conde estava amarrado ao colchão.

Soltou um novo rugido, mas quando olhou em redor de si viu Diana de pé à cabeceira da cama.

- Ah, é a senhora - disse ele -; muito estimo vê-la aqui, para Lhe dizer que partimos esta noite para Paris.

Rémy protestou energicamente contra semelhante resolução, mas Monsoreau fez tanto caso de Rémy como se ele ali não estivesse.

- Como pode lembrar-se de tal, Senhor Conde? - disse Diana com a usual placidez. E a sua ferida?

- Minha Senhora - disse o conde -, não me importa a ferida para nada; queria antes morrer do que sofrer; partiremos pois esta noite, ainda que eu vá morrer pelo caminho.

- Pois bem, Senhor Conde - disse Diana -, será como quiser.

- É esta a minha vontade; peço-lhe, pois, que trate de se aprontar.

- Os meus aprestos não me hão-de levar muito tempo; mas não me dirá qual foi a causa de tão repentina determinação.

- Dir-lha-ei, minha Senhora, quando não tiver mais flores para mostrar ao príncipe, ou quando eu tiver mandado construir portas com a largura suficiente para que a minha maca caiba por elas.

Diana inclinou-se.

- Porém, minha Senhora. - disse Rémy.

- O Senhor Conde assim o quer - respondeu Diana -, cumpre-me obedecer-lhe.

E Rémy julgou perceber por um sinal da dama que devia pôr termo às suas observações. Calou-se, mas sempre a resmungar:

Hão-de matar-mo, e depois dirão todos que foi por culpa do médico. Durante este tempo, o duque de Anjú dispunha-se a sair de Méridor. Agradeceu muito o barão o bom acolhimento que dele tinha recebido, e tornou a montar a cavalo.

Gertrudes apareceu naquele instante; vinha dizer em voz alta ao duque que a ama, não podendo deixar o conde, pedia desculpa de não vir despedir-se, e, ao ouvido de Bussy, que Diana partia naquela noite.

Saíram todos.

O duque até então tinha tido desejos de deixar o Anju porque Diana o tratava com rigor; agora, que se mostrava menos cruel, já se sentia inclinado a ficar.

- Sabes que mais, Bussy? Parece-me que não convém aceder assim tão prontamente aos desejos de minha mãe.

- Tem razão, visto ela ter-se em grande conta como política.

- Lembra-me que, pedindo-Lhe oito dias, ou antes entretendo-a durante oito dias, e dando algumas funções na qual trataremos de reunir a nobreza da província, mostrarei a minha mãe a influência que tenho aqui.

- Fala com muito acerto, meu Senhor. Contudo, parece-me...

- Ficarei, pois, mais oito dias - prosseguiu o duque -, e graças a essa demora hei-de arrancar novas concessões a minha mãe, sou eu que to digo.

Bussy fingiu reflectir profundamente.

- Muito bem, meu Senhor - disse ele arranque, arranque quanto puder; mas olhe, não piorem os seus negócios em vez de melhorarem com a demora. El-rei, por exemplo...

- Que há-de el-rei fazer?

- El-rei, não sabendo das suas intenções, pode encolerizar-se; bem sabe quanto el-rei é irascível.

- Tens razão; deveria talvez mandar alguém a cumprimentar meu irmão em meu nome e a participar-Lhe o meu regresso; assim ganharia os oito dias de que muito careço.

- Sim, mas esse alguém expor-se-ia a grande perigo - disse Bussy.

O duque de Anju sorriu com o seu sorriso de maldade.

- No caso de eu mudar de resolução, não é assim? - disse ele - E apesar da promessa que fizer a seu irmão, há-de mudar se algum interesse o levar a isso, não é verdade?

- Eu sei lá! - replicou o príncipe.

- Bonito! E nesse caso irá o seu embaixador parar à Bastilha.

- Não lhe diremos o objecto da missão, e dar-Lhe-emos uma carta.

- Ao contrário - disse Bussy é melhor não lhe dar carta alguma, e dizer ao que vai.

- Mas então ninguém quererá incumbir-se dessa missão! - disse o duque.

- Qual!...

- Então conheces algum homem que a possa querer desempenhar?

- Conheço um.

- Quem é?

- Eu, meu Senhor.

- Tu?

- Sim, eu, gosto de negociações intrincadas.

- Bussy, meu querido Bussy - exclamou o duque -, se me fazes esse favor, podes contar com a minha eterna gratidão!

Bussy sorriu; já conhecia por experiência o valor da gratidão em que lhe falava Sua Alteza.

O duque julgou que ele hesitava.

- E dar-te-ei dez mil escudos para as despesas da jornada - acrescentou ele.

- Ora vamos, meu Senhor - disse Bussy -, seja mais generoso; há porventura dinheiro

que pague serviços desta natureza?...

- Mas então queres partir?

- Quero.

- Para Paris?

- Para Paris.

- E quando?

- Logo que determinar.

- Quanto mais depressa melhor.

- Pois bem!...

- Pois bem, o quê?

- Será esta noite, se Vossa Alteza quiser.

- Meu valente Bussy, meu querido Bussy! Então sempre queres ir?

- Se quero ir? - disse Bussy. - Vossa Alteza bem sabe que eu, para o servir, sou capaz de me atirar a uma fogueira. É negócio tratado, ponho-me a caminho esta noite. E Vossa Altéza trate de viver por cá alegremente, não se esquecendo de apanhar à rainha- mãe alguma pingue abadia.

- Já me ocorreu essa lembrança, meu amigo.

- Pois então adeus, meu Senhor.

- Adeus, Bussy! Ah, não te esqueças duma coisa.

- Qual é?

- Despede-te de minha mãe.

- Hei-de ter essa honra.

E Bussy, ágil, alegre e ligeiro como um rapaz de escola quando o sino toca para a saída da aula, foi fazer uma visita a Catarina, e aprontou-se para partir logo que lhe chegasse o aviso de Méridor.

O aviso só Lhe chegou no dia seguinte pela manhã. Monsoreau tinha ficado tão fraco depois da emoção que havia sofrido, que ele mesmo conheceu que precisava descansar aquela noite.

Porém, pela volta das sete horas, o mesmo criado de cavalariça que tinha trazido a carta de Saint-Luc, veio participar a Bussy que, apesar das lamentações do velho barão e da oposição de Rémy o conde acabava de partir para Paris numa maca, que acompanhavam a cavalo Diana, Rémy e Gertrudes.

Para conduzir a maca iam oito homens que se revesavam de légua em légua. Bussy só esperava por esta notícia; saltou para cima dum cavalo que desde a véspera tinha mandado conservar aparelhado, e tomou o mesmo caminho.

 

          QUAL ERA A DISPOSIÇÃO EM QUE ESTAVA O REI HENRIQUE III QUANDO O SR. DE SAINT LUC SE APRESENTOU NA CORTE

Depois da partida da rainha Catarina, o rei, apesar do muito que conFiava na habilidade do embaixador que tinha enviado ao Anju, só tratava de se pôr em guarda contra as tentativas do irmão.

Conhecia por experiência o génio dos membros da sua família; sabia quanto pode um pretendente à coroa, isto é, um homem novo, contra o legítimo possuidor dela, isto é, contra o homem aborrecido e já conhecido de todos.

Entretinha-se, ou para melhor dizer, enfastiava-se como Tibério, a formular com Chicot listas de proscrição, nas quais eram inscritos, por ordem alfabética, os nomes de todas as pessoas que mostravam pouco zelo em abraçar o partido do rei.

As tais listas tornavam-se de dia para dia mais extensas.

E quando chegava ao e ao L, isto é, duas vezes em lugar de uma, o rei nunca deixava de assentar o nome do Sr. de Saint-Luc.

A cólera do rei contra o antigo valido era continuamente excitada pelos comentários da corte, pelas pérfidas insinuações dos cortesãos e pelas recriminações amargas de todos contra a fuga do marido de Joana de Cossé para o Anju, a qual tinha tomado a aparência de traição desde o dia em que o duque fugindo também se havia retirado para aquela província.

E com efeito, Saint-Luc, fugindo para Méridor, Figurava de alguma maneira como comissário do Senhor Duque de Anju, encarregado de aprontar quartel para o príncipe em Angers.

No meio de toda aquela confusão, de todo aquele movimento e de toda aquela emoção, era muito para ver o ardor com que Chicot incitava os favoritos do rei a aFiarem as adagas e as espadas, para darem cabo dos inimigos de Sua Majestade Cristianíssima.

Chicot, assim brincando, desempenhava na realidade um papel muito mais sério, pois, pouco a pouco, e por assim dizer a homem por homem, ia organizando um exército para serviço de seu amo.

De repente, uma tarde em que o rei estava ceando com a rainha, cuja sociedade procurava mais assiduamente cada vez que o ameaçava algum perigo político, Chicot entrou na sala com Os braços estendidos e as pernas abertas como os bonecos de papelão que se movem por meio dum cordelinho.

- Safa! - disse ele.

- Que é? - perguntou o rei.

- O Sr. de Saint-Luc! - respondeu Chicot.

- O Sr. de Saint-Luc?

- É verdade.

- Em Paris?

- Em Paris.

- No Louvre?

- No Louvre.

O rei logo que ouviu esta terceira afirmativa, levantou-se da mesa muito vermelho e a tremer. Seria bastante difícil dizer qual era o sentimento que o animava.

- Peço perdão - disse ele para a rainha, limpando o bigode e atirando com o guardanapo para cima da cadeira -; são negócios de Estado de que as mulheres nada entendem.

- Sim - disse Chicot engrossando a voz -, são negócios de Estado. A rainha quis levantar-se da mesa para deixar o marido em liberdade.

- Não, minha Senhora - disse Henrique -, peço-lhe que Fique, vou ao meu gabinete.

- Oh, Real Senhor - disse a rainha com a terna solicitude que mostrou em toda a sua vida pelo ingrato esposo -, peço-lhe que se não encolerize.

- Deus permita - respondeu Henrique, sem reparar no gesto de escárnio com que Chicot torcia o bigode.

Henrique saiu vivamente da sala e Chicot acompanhou-o.

Logo que se viu fora da porta:

- Que vem aqui fazer aquele traidor? - perguntou Henrique com voz trémula.

- Quem sabe. - replicou Chicot.

- Aposto que vem como deputado dos Estados do Anju. Vem na qualidade de embaixador de meu irmão, porque é esse sempre o resultado das rebeliões; são águas turvas e lodacentas nas quais os revoltosos pescam toda a casta de benefícios, sórdidos, na verdade, mas sempre vantajosos, e que, de provisórios e precários, passam gradualmente a ser permanentes e imudáveis. Este aderiu provavelmente à revolta, e fez dela um salvo-conduto para vir aqui insultar-me.

- Quem sabe. - disse Chicot.

O rei reparou no laconismo.

- Também pode ser. - disse Henrique, continuando a atravessar as galerias com passos desiguais e que mostravam a agitação em que estava. - Pode ser que venha pedir-me que Lhe restitua os seus bens, de que estou recebendo os rendimentos, o que de alguma maneira se pode qualificar como um abuso, visto que ele, afinal de contas, não cometeu crime algum qualificado, hem?

- Quem sabe. - repetiu Chicot.

- Ah - exclamou Henrique -, estás como o meu papagaio, repetes sempre a mesma coisa; irra, que me fazes perder a paciência com o teu eterno quem sabe.

- E que tal está! Pensas acaso que me divertes muito, tu, com as tuas eternas perguntas?.

- Responde-me alguma coisa, ao menos.

- E que queres tu que te responda? Julgas porventura que eu sou o Fatum dos Antigos? Ou tomas-me por Júpiter, por Apolo, ou por Manto? Fazes-me perder a paciência com as tuas impertinências e suposições asnáticas.

- Sr. Chicot.

- E depois, Sr. Henrique?

- Chicot, meu amigo, estás vendo os meus desgostos e tratas-me com tanta aspereza!.

- Pois não tenhas desgostos!

- Mas se todos me atraiçoam!.

- Quem sabe. quem sabe.

Henrique, perdido nas suas conjecturas, foi descendo para o seu gabinete, onde, atraídos pela singular notícia da volta de Saint-Luc, se achavam já reunidos todos os familiares do Louvre, entre os quais, ou, para melhor dizer, à frente dos quais, brilhava Crillon, com os olhos

incendiados, o nariz avermelhado e o bigode eriçado como um cão de fila pronto a arremeter.

Saint-Luc também ali estava de pé, no meio de todos os rostos ameaçadores, ouvindo sussurrar de roda de si a cólera de toda aquela gente, mas sem dar a mais pequena mostra de alteração. Tinha trazido consigo a mulher, a qual estava sentada num tamborete de encontro à balaustrada do leito.

Ele passeava, de mão na ilharga, dum lado para o outro, encarando os curiosos e os insolentes pela mesma forma por que eles o encaravam.

Alguns dos fidalgos, em atenção à senhora, tinham-se afastado, apesar do desejo com que estavam de acotovelar Saint-Luc, e haviam-se calado, apesar do muito que desejavam dirigir-lhe algumas palavras desagradáveis.

Era naquele vácuo que se movia silenciosamente o ex-valido.

Joana, embrulhada com modéstia na sua manta de jornada, esperava com os olhos pregados no chão.

Saint-Luc, embuçado com altivez na sua capa, esperava também, numa atitude que mais parecia desafiar do que recear uma provocação.

Finalmente, os circunstantes queriam saber, antes de o provocarem, o que vinha fazer Saint-Luc à corte, onde cada um deles, desejoso de alcançar uma parcela do seu antigo valimento, o julgava muito inútil.

Em suma, estavam todos em expectativa quando apareceu o rei.

Henrique entrou muito agitado e procurando excitar-se a si mesmo; é daquele açodamento perpétuo que se compõe a maior parte das vezes aquilo a que chamam dignidade nos príncipes.

Logo atrás dele vinha Chicot, o qual tinha assumido o semblante sereno e digno que deveria Ostentar o rei de França, e examinava o porte de Saint-Luc, que era a primeira coisa que Henrique III devera ter feito.

- Ah, Senhor, por aqui? - exclamou o rei sem atender às pessoas que o cercavam, assim como o touro quando sai à praça só vê num milhar de homens um nevoeiro que se mexe e no arco-íris das trincheiras só diferença a cor vermelha.

- Sim, Real Senhor - respondeu Saint-Luc com singeleza e modéstia, e inclinando-se respeitosamente.

A placidez e docilidade da resposta causou tão pouca impressão no rei, que logo prosseguiu sem intervalo algum:

- A sua presença no Louvre admira-me muito, na verdade.

Em seguida a tão brutal agressão houve um silêncio de morte em torno do rei e do seu valido.

- Era como o silêncio que reina num duelo quando dois adversários se batem para decidir uma questão suprema.

Saint-Luc foi o primeiro que falou.

- Senhor - disse ele com a usual elegância e sem se perturbar com o mau humor do rei - , a mim só me admira uma coisa, e é ver que Vossa Majestade não esperava que eu aqui me apresentasse, nas actuais circunstâncias.

- Que quer isso dizer, Senhor? - perguntou Henrique com gesto soberano e endireitando a cabeça, à qual dava, quando queria, uma expressão incomparável de dignidade.

- Senhor - respondeu Saint-Luc -, Vossa Majestade está em iminente perigo.

- Em perigo? - exclamaram os cortesãos.

- Sim, meus Senhores, el-rei está ameaçado dum perigo muito grande e sério, e para resistir ao qual carece do auxílio de todos quantos lhe são afectos, desde os mais elevados até aos mais insignificantes; e eu, convencido de que, num período como este a que aludo não se despreza ajuda alguma, venho depor aos pés do meu rei a oferta dos meus muito humildes serviços.

- Ah, ah! - disse Chicot. - Vês tu, meu filho, que eu tinha razão quando dizia: Quem sabe?

Henrique III não respondeu logo; correu os olhos pela reunião, e viu que os circunstantes se mostravam comovidos e escandalizados; porém Henrique não tardou em descobrir nos olhos de todos o ciúme que lhes devorava os corações.

Dali concluiu que Saint-Luc tinha praticado uma acção que a maioria da assembleia era incapaz de praticar, isto é, uma acção louvável.

Entretanto não quis ceder assim, sem mais nem menos.

- Não fez senão a sua obrigação - replicou ele -, pois os seus serviços são-nos devidos.

- Eu bem sei, Real Senhor - replicou Saint-Luc -, que todos os súbditos de el-rei devem seus serviços a el-rei; mas neste tempo em que vivemos há muita gente que se não lembra de pagar as suas dívidas. Eu, Real Senhor, venho pagar a minha, e julgar-me-ei muito feliz se Vossa Majestade quiser continuar a considerar-me como seu devedor.

Henrique, aplacado por tão constante doçura e humildade, deu um passo para Saint-Luc.

- Visto isso - disse ele -, voltou sem outro motivo além desse que disse? Veio sem missão e sem salvo-conduto?

- Senhor - replicou prontamente Saint-Luc, conhecendo, pelo tom da voz, que o rei já não estava agastado nem encolerizado -, voltei pura e simplesmente porque quis voltar, e vim a toda a brida. Agora pode Vossa Majestade mandar-me encerrar na Bastilha daqui a uma hora, ou arcabuzar-me daqui a duas, que já cumpri com o meu dever. Senhor, o Anju está revolucionado, não tardará que a Touraine se revolte, e a Guiena levantar-se-á também para auxiliar. O Senhor Duque de Anju trata de promover uma insurreição no Oeste e no Sul de França.

- E tem sido eficazmente ajudado, não é assim? - exclamou o rei.

- Meu Senhor - disse Saint-Luc, que logo percebeu o sentido das palavras do rei -, nem os conselhos nem as representações têm podido deter o duque; e o Sr. de Bussy, apesar de toda a Firmeza, não tem conseguido desassombrar seu irmão do terror que Lhe inspira Vossa Majestade.

- Ah, ah! - disse Henrique. - Então o rebelde já treme.

E sorriu interiormente.

- Por Deus! - disse Chicot acariciando a barba. - Que homem tão hábil! Em seguida, empurrando o rei com o cotovelo:

- Tira-te daí, Henrique - exclamou ele -; que quero ir apertar a mão ao Sr. de Saint-Luc. Este movimento fez cessar a hesitação do rei. Deixou que Chicot acabasse de fazer os cumprimentos ao recém-chegado, e depois, caminhando lentamente para o seu antigo valido e pondo-lhe a mão sobre o ombro:

- Seja bem-vindo, Saint-Luc - disse.

- Ah, Senhor - exclamou Saint-Luc beijando a mão do rei -, até que aFinal tornei a encontrar o meu amo muito querido!

- Pois sim, mas eu é que não te encontrei o mesmo - disse o rei -; ou por outra, encontro-te tão magro, meu pobre Saint-Luc, que não te teria conhecido se te visse passar por mim.

Ouviu-se uma voz feminina quando o rei acabou de proferir estas palavras.

- Real Senhor - disse a voz -, é a consequência do desgosto que teve por haver incorrido no desagrado de Vossa Majestade.

Se bem que a voz era suave e respeitosa, Henrique estremeceu. Era-Lhe tão antipático o metal daquela voz quanto o era a Augusto o estampido dos trovões.

- A Sr. de Saint-Luc! - murmurou ele. - Ah, é verdade que me tinha esquecido!

Joana ajoelhou.

- Levante-se, minha Senhora - disse o rei -; eu sou muito amigo de tudo quanto tem o nome de Saint-Luc.

Joana pegou na mão do rei e levou-a à boca.

Henrique retirou a mão vivamente.

- Prossiga - disse Chicot para Joana -, prossiga, minha Senhora, procure converter el-rei; tem formosura suficiente para o conseguir.

Porém Henrique voltou as costas para Joana, e, deitando o braço ao pescoço de Saint-Luc, entrou com ele para a câmara.

- Ora vamos - disse Sua Majestade -, estão feitas as pazes, Saint-Luc.

- Diga antes, Real Senhor - respondeu o cortesão -, que me concedeu o perdão. - Minha Senhora - disse Chicot para Joana, que tinha ficado indecisa -, uma esposa extremosa não deve abandonar o marido. especialmente quando o marido está em perigo. E empurrando-a levemente, fê-la entrar na câmara em seguida ao rei e a Saint-Luc.

 

         EM QUE SE TRATA DE DUAS PERSONAGENS IMPORTANTES DESTA HISTÓRIA, QUE O LEITOR PERDEU DE VISTA HÁ JA ALGUM TEMPO

Há uma personagem desta história, há mesmo duas, de cujas obras e gestos o leitor há-de com razão, exigir que Lhe dêmos conta.

Com toda a humildade dum autor de prefácio antigo apressar- nos-emos a satisfazer uma curiosidade cuja importância avaliamos devidamente.

Trata-se em primeiro lugar dum enorme frade, com densas sobrancelhas, beiços vermelhos e carnudos, mãos espalmadas, ombros largos, e um pescoço que vai diminuindo todos Os dias na proporção do desenvolvimento que vão tendo o peito e as faces.

Em segundo lugar trata-se dum alentado jumento, cujos ilhais se vão arredondando graciosamente à imitação dum balão.

O frade vai-se assemelhando gradualmente a uma pipa escorada por duas travezinhas.

O jumento já se parece com um berço de criança sustentado por quatro balaústres.

O primeiro habita numa cela do Convento de Santa Genoveva, onde o Senhor derrama sobre ele todas as suas graças.

O segundo habita na estrebaria do mesmo convento, onde tira o seu ventre da miséria em frente duma manjedoura sempre cheia.

Um responde quando se chama por Gorenflot.

O outro deveria responder quando se chamasse por Panurgo.

Ambos estão gozando, na actualidade pelo menos, da sorte mais próspera que pode desejar um frade e um burro.

Os frades de Santa Genoveva esmeram-se em tratar com o maior carinho o seu ilustre companheiro, e, assim como as divindades de terceira ordem tratavam da águia de Júpiter, do pavão de Juno e das pombinhas de Vénus, os irmãos serventes procuram engordar Panurgo em atenção ao dono.

Na chaminé da cozinha da abadia está o lume aceso continuamente, e garrafas dos mais afamados vinhos da Borgonha são despejadas sem cessar para copos das maiores dimensões

Quando por acaso chega ao convento algum missionário de volta duma jornada a terras longínquas para a propagação da Fé, ou algum legado secreto do papa, portador de indulgências mandadas por Sua Santidade, mostra-se-Lhe Frei Gorenflot, verdadeiro modelo da igreja

predicante e militante, que maneja a palavra como S. Lucas e a espada como S. Paulo; mostra-se-lhe Gorenflot em toda a sua glória, isto é, no meio dum banquete: mandou-se chanfrar uma mesa para nela caber a barriga de Gorenflot, e é com sentimento de nobre orgulho que se observa ao santo viajante que Gorenflot engole, ele só, uma ração igual à de oito dos maiores comilões do convento.

E logo que o recém-chegado acaba de contemplar piedosamente aquele portento:

- Que admirável natureza! - diz o prior de mãos postas e levantando os olhos ao Céu.

- O nosso irmão Gorenflot gosta dos prazeres da mesa e cultiva as belas-artes; veja como ele come! Ah, se ouvisse o sermão que ele pregou uma certa noite, pronto a sacrificar-se pelo triunfo da Fé!. E uma boca que fala como a de S. João Crisóstomo, e que engole como um poço.

Contudo, no meio de tanto esplendor, uma nuvem escurece às vezes a fronte de Gorenflot; é debalde que as galinhas cevadas espargem o seu aroma debaixo das dilatadas ventas do frade; as ostras da Flandres, de que é capaz de engolir um milheiro a brincar, debalde bocejam e se torcem nas conchas de madrepérola; as garrafas de diversos feitios ficam intactas apesar de abertas; Gorenflot está com semblante lúgubre; Gorenflot não tem apetite; Gorenflot medita.

Espalha-se então a fama de que o estimável religioso está em êxtase como S. Francisco, ou com um espasmo como Santa Teresa, e aumenta a admiração.

Já não é simplesmente um frade agostinho, é um santo; já nem é um santo, é um semideus; Alguns até chegam a afirmar que é um deus completo.

- Silêncio - dizem os frades -, não perturbemos as meditações de Frei Gorenflot! E afastam-se todos com respeito.

Apenas o prior fica esperando que Frei Gorenflot dê um sinal de vida; chega-se então ao monge, pega-lhe na mão com afabilidade e interroga-o respeitosamente.

Gorenflot levanta a cabeça e olha para o prior muito espantado.

Parece ter caído das nuvens.

- Que estava fazendo, meu digno irmão? - perguntou o prior.

- Eu? - diz Gorenflot.

- Sim; estava pensando em alguma coisa?

- Sim, meu padre, estava compondo um sermão.

- Semelhante àquele que tão denodadamente nos pregou na noite em que se reuniu aqui a Santa Liga?

Gorenflot lastima-se da sua doença cada vez que Lhe falam naquele sermão.

- Sim - responde ele soltando um suspiro -, semelhante a esse. Ah, que pena tenho de não ter escrito!

- Pois um homem como o senhor precisa porventura de escrever, meu caro irmão? Não:

quem possui o seu talento, fala por inspiração, abre a boca, e, como tem em si a palavra de Deus, é a palavra de Deus que sai dos seus lábios.

- Parece-Lhe isso? - diz Gorenflot.

- Feliz daquele que duvida! - respondeu o prior.

E com efeito, Gorenflot, de tempos a tempos, avaliando as necessidades da sua posição comprometido demais a mais pelos seus antecedentes, projecta um novo sermão. Adeus, Marco Túlio, César, S. Gregório, Santo Agostinho, S. Jerónimo e Tertuliano! É Gorenflot quem vai regenerar a eloquência sagrada. Rerum novus ordo nascitur De tempos a tempos também, no fim do jantar ou no meio dos seus êxtases, Gorenflot ergue-se, e, como impelido por um braço invisível, vai direito à estrebaria; chegado ali, olha com amor para Panurgo, o qual zurra de contente; depois corre a imensa mão pelo espesso pêlo do jumento, no qual se lhe enterram os dedos.

Então já não é prazer que ele sente, é felicidade; Panurgo já não se limita a zurrar, espoja-se. O prior e três ou quatro dignitários do convento que o acompanham geralmente em semelhantes excursões, praticam mil servilismos para com Panurgo: um oferece-Lhe bolos, outro biscoitos, outro doces, à imitação dos Antigos, que, para tornarem Plutão propício aos seus votos, ofereciam bolos de mel a Cérbero.

Panurgo está por tudo; tem um génio muito condescendente; e demais, nem tem êxtases, nem anda meditando sermões; e como a única reputação que precisa sustentar é a de teima, de preguiça e de luxúria, acha que nada mais pode desejar, e que é o mais feliz dos burros.

O prior olha para Panurgo com ternura.

- É simples e dócil - diz ele -: tem a virtude dos fortes.

Gorenflot pescou que a palavra latina ita significa sim; foi uma descoberta admirável, e a tudo quanto lhe dizem responde ita com uma facilidade que nunca deixa de produzir efeito.

O abade, animado por esta adesão perpétua, diz-lhe às vezes:

- Entrega-se muito ao trabalho meu querido irmão, por isso anda tão triste.

E Gorenflot responde a Messer José Foulon, como Chicot responde às vezes a Sua Majestade Henrique III:

- Quem sabe?.

- Acha talvez a nossa comida muito ordinária - acrescenta o prior -, quer que se mude de irmão cozinheiro? O irmão sabe muito bem: Quaedam saturationes minus succedunt.

- Ita - responde sempre Gorenflot fazendo festas ao seu burro.

- Está acariciando muito o seu Panurgo, meu irmão - diz o prior -; dar-se-á o caso que o acometesse novamente a mania de viajar?

- Oh! - responde Gorenflot com um suspiro.

O caso é que as recordações das suas viagens são o motivo da tristeza de Gorenflot.

O frade, que a princípio havia encarado o seu desterro do convento como uma imensa desgraça, tinha encontrado no mesmo desterro uma infinidade de gozos para ele desconhecidos e provenientes da liberdade.

No meio da felicidade que desfruta sente como um verme que Lhe rói o coração; é o desejo de se ver livre; livre na sociedade de Chicot, seu alegre companheiro, de quem ele é amigo sem saber porquê, talvez porque Lhe dá uma sova de vez em quando.

- Parece-me que tem razão, respeitável prior - diz timidamente um frade que tem estado a estudar o movimento da fisionomia de Gorenflot -; o nosso Rev. Padre está enfastiado de viver encerrado no convento.

- Não é isso precisamente - diz Gorenflot -; é porque sinto que nasci para uma vida agitada, para tomar parte nos movimentos políticos e pregar às turbas.

E ao dizer estas palavras os olhos de Gorenflot incendeiam-se; lembra-se das fritadas de Ovos que lhe oferecia Chicot, do vinho de Anju, de mestre Cláudio Bonhomet e da casa de pasto da Cornucópia.

Desde a noite da assinatura da Liga, ou, para melhor dizer, desde a manhã do dia imediato em que ele voltou para o convento, nunca mais o deixaram sair; os membros da Liga estão usando da maior prudência desde que o rei se tornou chefe da associação.

Gorenflot é tão simples, que nem Lhe lembrou tirar partido da sua posição para conseguir que lhe abram as portas. Disseram-Lhe: Irmão, está proibido de sair, e deixou-se ficar.

Ninguém desconfiava daquela saudade que o devorava, e que Lhe tornava tão pesada a felicidade do convento.

E por isso, o prior, vendo que ele, de dia para dia, se ia tornando mais triste, disse-Lhe uma manhã:

- Meu muito prezado irmão, ninguém deve contrariar a tendência de outrem; a sua é de militar pelo Cristo; vá pois; desempenhe a missão que o Senhor lhe confiou; peço-lhe unicamente que poupe a sua vida, para nós tão preciosa, e que esteja aqui presente para o grande dia.

- Qual grande dia? - pergunta Gorenflot absorto pela alegria.

- O do Corpo de Deus.

- Ita - disse o frade com ar de profunda inteligência -; porém - acrescentou -, para que eu me possa inspirar, é preciso que distribua algumas esmolas, por isso, dê-me algum dinheiro.

O prior deu-se pressa em ir buscar uma bolsa bem recheada, que apresentou a Gorenflot.

Gorenflot meteu nela a volumosa mão.

- Há-de ver com quanto volto para o convento - disse ele introduzindo no amplo bolso do hábito o dinheiro que acabava de tirar da bolsa do prior.

- Já escolheu o texto do seu sermão, não é assim, irmão Gorenflot? - perguntou José Foulon.

- Certamente.

- Confia-mo?

- Com todo o gosto; mas há-de ser somente ao irmão.

O prior chegou-se a Gorenflot, e escutou atentamente.

- Ouça.

- Estou ouvindo.

- O mangual, quando bate no trigo, dá em si mesmo - disse frei Gorenflot.

- Oh, é magnífico, é sublime! - exclamou o prior.

E os circunstantes, partilhando o entusiasmo de Messer José Foulon, se bem que nada tinham ouvido, repetiram todos:

- É magnífico, é sublime!

- E agora, meu padre, posso sair? - perguntou humildemente Gorenflot.

- Sim, meu filho - exclamou o abade -; vá e caminhe na paz do Senhor.

Gorenflot mandou aparelhar Panurgo, escarranchou-se nele auxiliado por dois frades dos mais robustos, e saiu do convento pela volta das sete horas da noite.

Era no mesmo dia em que Saint-Luc tinha chegado de Méridor.

As notícias vindas de Anju tinham causado certa emoção em Paris.

Gorenflot, depois de ter seguido a Rua de Santo Estêvão, acabava de tomar à esquerda.

já tinha passado o Convento dos Domínicos, quando de repente Panurgo estremeceu: era alguém que Lhe tinha dado uma vigorosa pancada na anca.

- Quem vem lá? - gritou Gorenflot assustado.

- É de paz! - replicou uma voz que a Gorenflot pareceu conhecida.

Gorenflot tinha muito desejo de se voltar; porém, assim como os marítimos, sempre que embarcam depois de terem passado algum tempo em terra, precisam de acostumar novamente os pés ao balanço do navio, também Gorenflot, cada vez que tornava a montar no burro precisava de algum tempo para achar o seu centro de gravidade.

- Que pretende? - disse ele.

- Meu respeitável irmão - replicou a voz -, quer ter o incómodo de me ensinar o caminho para a estalagem da Cornucópia?

- Por Deus - exclamou Gorenflot não cabendo em si de contente -, é o Sr. Chicot em pessoa!

- Exactamente - respondeu o bobo -; ia ter com o meu caríssimo irmão ao convento, quando o vi sair; segui-o por algum tempo, com receio de me comprometer falando-lhe; porém agora, que estamos sós, aqui me tem. Como tens passado, meu masmarro? Com todos os demónios! Acho-te mais magro.

- E eu, Sr. Chicot, dou-lhe a minha palavra de honra que o acho mais gordo.

- Parece-me que estamos mangando um com o outro.

- Mas que trouxa é essa, Sr. Chicot? - disse o frade. - Parece-me que vem muito carregado.

- É um quarto de gamo que furtei a Sua Majestade - respondeu o gascão -; mandá- lo-emos assar.

- Meu caro Sr. Chicot - exclamou o monge -, e debaixo do outro braço?

- É um frasco de vinho de Chipre, que foi mandado por um rei ao meu rei.

- Vejamos - disse Gorenflot.

- É o vinho da minha predilecção; gosto muito dele - disse Chicot abrindo a capa -, e tu, meu frade?

- Oh, oh! - exclamou Gorenflot ao avistar as duas preciosidades; e estrebuchou por tal forma sobre o burro, que o pobre Panurgo por pouco não se foi abaixo com ele - oh, oh! Foi tal a alegria do monge que levantou as mãos ao Céu, e com uma voz que faria tremer

dos dois lados da rua as vidraças das casas, começou a cantar com acompanhamento de zurros de Panurgo.

Era a primeira vez que Gorenflot cantava havia quase um mês.

 

         EM QUE SE DESCREVE A JORNADA DO SR. DE MONSOREAU PARA PARIS

Deixemos os dois amigos na estalagem da Cornucópia, para onde Chicot, como o leitor estará lembrado, nunca levava o frade senão com intenções cuja gravidade este estava longe de suspeitar, e tornemos ao Sr. de Monsoreau, que segue numa maca a estrada de Méridor para Paris, e a Bussy, que saiu de Angers com tenção de tomar o mesmo caminho. Um homem bem montado não somente alcança com facilidade gente que vai a pé, mas até arrisca, a maioria das vezes, a passar-lhe adiante.

Eis o que sucedeu a Bussy.

Estava-se no Fim de Maio e fazia muito calor, especialmente pela volta do meio-dia. O Sr. de Monsoreau mandou fazer alto num bosquezinho que ficava à beira da estrada; como desejava que o Senhor Duque de Anju tivesse notícia da sua partida o mais tarde possível, determinou que todas as pessoas da sua comitiva entrassem para o centro do arvoredo, para passar a maior força do calor; como traziam um cavalo carregado de víveres, puderam tomar uma refeição sem recorrer a pessoa alguma.

Durante este tempo passou Bussy.

Porém Bussy não ia, como bem se pode presumir, pela estrada fora sem indagar das pessoas que encontrava se tinham visto um rancho de gente a cavalo acompanhando uma maca levada às costas de camponeses.

Até à aldeia de Durtal, obtivera ele informações positivas e satisfatórias; e por isso, na convicção de que Diana o precedia, metera o cavalo a passo, levantando-se sobre os estribos quando chegava ao cume de algum outeiro, para ver se divisava ao longe o rancho em cujo alcance ia. Mas, contra a sua expectativa faltaram-Lhe de repente as informações; os viajantes que encontrava não tinham visto pessoa alguma, e quando chegou às primeiras casas de La trhe, ficou convencido que em vez de seguir as pessoas que procurava, lhes tomara a dianteira. Lembrou-se então do bosquezinho que tinha atravessado, e logo viu o motivo por que o cavalo relinchara depois de haver farejado o ambiente ao passar em frente do arvoredo. Tomou imediatamente a sua resolução; apeou-se na pior taberna da rua, e depois de ter visto que o cavalo ficava bem tratado, e como lhe dava menos cuidado a sua própria pessoa do que a cavalgadura, a cujo vigor lhe poderia ser preciso recorrer, foi sentar-se ao pé de uma janela, ocultando-se por detrás dum farrapo que servia de cortina.

O motivo por que Bussy tinha escolhido para descansar aquela espécie de baiuca, era por ficar defronte da melhor hospedaria do lugar, na qual Monsoreau havia de pernoitar.

Bussy tinha acertado; pelas quatro horas da tarde apareceu um andarilho que parou à porta da hospedaria.

Dali a meia hora chegou a comitiva toda.

As principais personagens de que se compunha eram o conde, a condessa, Rémy e Gertrudes.

As personagens secundárias eram oito homens, que se iam substituindo de cinco em cinco léguas.

O andarilho vinha encarregado de ajustar os camponeses para as mudas. Como o ciúme de Monsoreau o obrigava a ser generoso, aquele modo de viajar, apesar de muito desusado, não sofria diFiculdades nem demoras.

As personagens principais entraram umas após outras para a hospedaria. Diana foi a última, e pareceu a Bussy que se demorava de propósito como quem esperava ver alguém. O seu primeiro movimento foi para se mostrar, mas teve ânimo de se conter; a menor imprudência podia perdê-los a ambos.

Anoiteceu finalmente.

Bussy pensava que Rémy sairia logo que fosse noite, ou que Diana apareceria a alguma das janelas; embuçou-se pois na capa, e foi colocar-se de sentinela na rua.

Esteve à espera até as nove horas da noite; a esta hora saiu o andarilho. Passados cinco minutos chegaram à porta oito homens, quatro dos quais entraram na hospedaria.

Oh, disse consigo Bussy, quererão prosseguir na jornada de noite? Se acaso é assim, teve o Senhor Conde de Monsoreau uma excelente ideia.

Tudo concorria para o confirmar naquela suposição: a noite estava muito serena, o céu estrelado, e uma brisa suave e aromática agitava o ar.

Saiu primeiro a maca.

Em seguida, Diana, Rémy e Gertrudes, a cavalo.

Diana tornou a olhar atentamente em redor de si; mas quando estava assim entretida, o conde chamou por ela e não teve remédio senão ir para o lado da maca.

Os quatro homens que iam para mudas acenderam archotes e tomaram lugar aos lados da comitiva.

Bom, disse Bussy, se fosse eu mesmo que houvesse determinado a maneira por que havia de marchar o cortejo, não o teria feito melhor. "

Voltou para a taberna, aparelhou o cavalo, e saiu em seguimento da caravana. Desta vez não podia enganar-se no caminho, nem também perdê-los de vista: os archotes indicavam claramente o caminho que seguiam.

Monsoreau não consentia que Diana se retirasse um instante do seu lado. Ia conversando com ela, ou, para melhor dizer, ia-a repreendendo.

Aquele passeio de Diana com o duque de Anju à estufa servia-lhe de pretexto para comentários inesgotáveis e para uma multidão de perguntas.

Rémy e Gertrudes iam amuados; ou por outra: Rémy ia pensativo, e Gertrudes ia amuada com Rémy.

O motivo do amuo era fácil de perceber.

Rémy já não julgava que fosse preciso namorar Gertrudes, uma vez que Diana estava relacionada com Bussy.

O séquito ia caminhando no meio dos ralhos de uns e dos amuos dos outros, quando Bussy, que ia seguindo a cavalgada fora do alcance da vista procurou avisar Rémy que estava presente, assobiando para esse fim no apito de prata que, lhe servia para chamar os criados no seu palácio da Rua de Grenelle Saint-Honoré.

O som do apito era agudo e vibrante; ouvia-se em todos os recantos do palácio, e ao chamamento costumavam acudir os criados e os animais.

Dizemos criados e animais, porque Bussy, assim como todos os homens fortes, gostava de criar cães de raça, domesticar cavalos indomáveis e falcões bravos.

Ao som do apito, os cães estremeciam nas casinholas, os cavalos nas cavalariças, e os falcões no poleiro.

Diana tremeu e olhou para o médico, o qual lhe fez com a cabeça um sinal afirmativo. - é ele.

- Quem lhe está falando, minha senhora? - perguntou Monsoreau.

- A mim, Senhor? Ninguém.

- Não há tal; vi como uma sombra ao seu lado e ouvi perfeitamente a voz.

- A voz que ouviu é a do Sr. Rémy; Também tem ciúmes do Sr. Rémy, ?.

- Não; mas gosto de ouvir falar em voz alta, sempre é uma distracção.

- E contudo há coisas que se não podem dizer na presença du Senhor Conde - interrompeu Gertrudes vindo desta maneira em auxílio da ama.

- Porquê?

- Por duas razões.

- Quais são?

- A primeira é porque podem ser coisas que em nada interessem ao Senhor Conde, e ainda, porque pode muito bem ser que lhe interessem demasiado.

- E de que natureza são as coisas que o Sr. de Rémy acaba de dizer à senhora?

- Eram das tais que interessam demasiado ao Senhor Conde - respondeu Gertrudes.

- Que Lhe dizia Rémy. minha Senhora? Quero sabê-lo.

- Dizia eu, Senhor Conde, que se continuar nessa inquietação, estará morto antes de termos andado uma terça parre do caminho.

Diana, trémula e pensativa, calou-se.

- Ele vem-nos seguindo um pouco atrás - disse Rémy para Diana com voz imperceptível -; demore alguma coisa o passo do cavalo, que ele a alcançará.

Rémy tinha falado tão baixo, que Monsoreau apenas ouviu um murmúrio, fez um esforço, voltou a cabeça para trás, e viu que Diana ia seguindo a maca.

- Se fizer outro movimenco igual ao que acaba de fazer, Senhor Conde - disse Rémy não me responsabilizo pelas consequências da hemorragia.

Diana, com o andar do tempo, tinha-se tornado muito mais animosa. O amor havia despertado nela a audácia que toda a mulher verdadeiramente apaixonada geralmente além dos limites razoáveis; virou pois a cabeça do cavalo, e esperou. Rémy apeou-se ao mesmo tempo, deu o cavalo a segurar a Gertrudes, e aproximou-se

para entreter o doente durante a ausência de Diana.

- Vejamos o pulso - disse ele -, aposto que está com febre, Senhor Conde. Daí a cinco segundos estava Bussy ao lado de Diana.

Os dois namorados não precisavam de falar para se entenderem, e por isso conservaram-se durante alguns minutos muito ternamente abraçados.

- Vês? - disse Bussy quebrando primeiro o silêncio. - Partiste, e eu venho seguindo-te.

- Oh, que dias e que noites tão felizes eu vou ter, Bussy, sabendo que estás tão perto de mim!

- Mas de dia pode ele ver-me.

- Não, seguir-nos-ás de longe e só eu te verei, meu Luís. Nas voltas da estrada, no cume dos outeiros, a pluma do teu chapéu, a bordadura da tua capa, o teu lenço agitado no ar, tudo me falará de ti, tudo me dirá que me amas. E se, quando o dia declinar e a névoa começar a cobrir as planícies, eu vir ao longe o teu vulto acenando-me com um beijo de despedida, julgar-me-ei por extremo ditosa!

- Fala, fala sempre, minha Diana muito querida; nem tu imaginas quanto é harmoniosa a tua voz tão suave.

- E quando caminharmos de noite, o que muitas vezes há-de suceder, porque Rémy disse- Lhe que a fresquidão da noite era favorável à ferida, quando caminharmos de noite, então assim como agora, ficarei para trás de vez em quando, para te apertar nos meus braços e dizer-te rapidamente, agarrando-te na mão, o muito que hei-de pensar em ti durante o dia.

- Oh, quanto te amo! - murmurou Bussy.

- Parece-me - disse Diana - que as nossas almas estão unidas tão intimamente, que mesmo em distância um do outro, sem nos falarmos, sem nos vermos, podemos ser felizes só pelo pensamento.

- Oh, sim, mas ver-te e apertar-te nos meus braços... Oh, Diana, Diana.

E os dois cavalos tocavam-se e brincavam sacudindo os freios prateados, enquanto os dois amantes se abraçavam e se esqueciam do mundo.

De repente soou uma voz que os fez estremecer a ambos, Diana de receio e Bussy de cólera.

- Diana - bradava a voz -, onde está Diana? Responda-me!

Este grito atravessou os ares como se fora uma evocação fúnebre.

- Oh, é ele, é ele! Já me tinha esquecido - murmurou Diana. - É ele! E eu estava sonhando! Que sonho tão suave! E que despertar tão cruel!

- Ouve - exclamou Bussy -, ouve, Diana: estamos nos braços um do outro. Diz uma única palavra, e ninguém mais te arrancará do meu poder; Diana, fujamos! Quem poderá obstar à nossa fuga? Temos diante de nós o espaço, a ventura e a liberdade! Uma palavra tua e partimos já! Uma palavra, e, perdida para ele, ficar-me-ás pertencendo eternamente.

E o mancebo detinha-a brandamente.

- E meu pai? - disse Diana.

- Quando o barão souber que te amo... - murmurou Bussy.

- Oh - exclamou Diana. - Olha que ele é pai... que estás tu dizendo?

Esta palavra foi quanto bastou para Bussy tornar a si.

- Não quero conseguir coisa alguma por violência, querida Diana - disse ele ordena que eu obedecerei.

- Ouve - disse Diana estendendo a mão o nosso destino está acolá; sejamos superiores ao demónio que nos persegue; nada receies, verás se eu sei amar.

- Oh, meu Deus, é preciso pois separarmo-nos?... - murmurou Bussy.

- Condessa, condessa! - bradava a voz. - Responda, quando não, salto abaixo desta infernal maca, ainda que o resultado seja a minha morte!

- Adeus - disse Diana -, adeus! Ele é capaz de fazer o que está dizendo, e matava-se decerto.

- Ainda te compadeces dele!...

- Forte ciumento! - replicou Diana com um gesto adorável e um sorriso encantador.

Bussy deixou-a ir.

Diana voltou para ao pé da maca em dois galões; achou o conde quase desmaiado.

- Pare! - murmurou o conde. - Pare!

- Nada de parar - dizia Rémy -, está louco! Se quer matar- se, mate-se muito embora, mas não com a minha responsabilidade.

A maca ia caminhando sempre.

- Mas para que serve tanta gritaria? - dizia Gertrudes. - A senhora está aqui ao meu lado. Venha, minha Senhora, e responda- lhe; o Senhor Conde está tresvariado, por certo.

Diana, sem proferir uma palavra, entrou para o círculo da luz que derramavam os archotes.

- Ah - disse o Sr. de Monsoreau exaurido de forças -, onde estava?

- Onde queria que eu estivesse, Senhor, a não ser atrás da maca?

- Quero-a ao meu lado, minha Senhora, ao meu lado! Não se tire daqui. Diana já não precisava ficar para trás; sabia que Bussy vinha em seu seguimento. Se fosse noite de luar até poderia vê- lo.

Chegaram a uma pousada. Monsoreau descansou durante algumas horas, e quis logo partir. Ficava com pressa, não de chegar a Paris, mas de se afastar de Angers.

De tempos a tempos, renovava-se a cena que acabámos de descrever.

Rémy dizia consigo:

Morra ele de raiva, e ficará salva a honra do médico.

Porém Monsoreau não morreu; bem pelo contrário: ao cabo de dez dias tinha chegado a Paris, e ia tendo melhoras muito visíveis.

Não se podia duvidar que Rémy era um médico muito hábil, muito mais hábil do que ele mesmo desejava ser.

Durante os dez dias que tinham gasto na jornada, Diana havia conseguido destruir, a poder de ternura toda a soberba de Bussy.

Tinha-Lhe aconselhado que se apresentasse em casa de Monsoreau, e que procurasse cultivar amizade que ele Lhe mostrava.

Havia um pretexto muito natural para a visita, que era saber da saúde do conde. Rémy tratava do marido, e entregava as cartas à mulher.

- Faço de Esculápio e de Mercúrio - dizia ele -; é uma acumulação.

 

         E COMO O EMBAIXADOR DO SENHOR DUQUE DE ANJU CHEGOU A PARIS, E POR QUE MANEIRA FOI RECEBIDO

Entretanto, nem Catarina, nem o duque de Anju, tinham voltado para o Louvre, e o boato duma questão havida entre os dois irmãos ia-se espalhando e tomando mais corpo de dia para dia.

O rei não tinha recebido comunicação alguma da mãe, e em vez de se lisonjear com a esperança de receber boas notícias depois daquele silêncio, dizia, pelo contrário, abanando a cabeça:

- Não há notícias, más notícias!

Os favoritos acrescentavam:

- Talvez que Francisco, mal-aconselhado, tenha detido sua mãe. Francisco mal aconselhado. E com efeito, toda a política daquele reinado singular e dos três reinados antecedentes a isto se reduzira.

Mal-aconselhado tinha sido o rei Carlos IX, quando autorizou a matança do dia de S. Bartolomeu.

Mal-aconselhado tinha sido Francisco II, quando ordenou os assassínios de Amboise.

Mal-aconselhado tinha sido Henrique II, pai de toda aquela raça perversa, quando mandou queimar tanto herege e tanto conspirador antes de ser morto por Montgomery, o qual também tinha sido mal-aconselhado, segundo dizem, quando a haste da sua lança furou tão desastradamente a viseira do capacete do rei.

Ninguém se atreve a dizer a um rei:

- Seu irmão tem mau sangue nas veias; ele quer, segundo o uso da família, destroná-lo, fechá-lo num convento e envenená-lo; quer fazer a Vossa Majestade o mesmo que Vossa majestade fez ao seu irmão mais velho, o que seu irmão mais velho fez ao dele, e o que sua mãe

ensinou a todos que fizessem uns aos outros.

Um rei daquela época, um rei do século xv, teria considerado semelhantes observações como outros tantos insultos, porque um rei naquele tempo era um homem, e só a civilização fez tornar a realeza um fac-símile de Deus, como Luís XIV, ou um mito não responsável, como um rei constitucional.

Os favoritos diziam pois a Henrique III:

- Senhor, seu irmão foi mal-aconselhado.

E como não havia senão uma única pessoa que tivesse inteligência e talento para aconselhar o de Anju, era contra Bussy que se formava a tempestade, de dia para dia mais furiosa e mais próxima a rebentar.

Neste comenos chegou a notícia de que o príncipe mandava um embaixador ao rei.

Como tinha vindo aquela notícia? Quem a tinha trazido? Como se tinha espalhado?

Mais fácil seria dizer como se levantam os redemoinhos de vento no ar, os redemoinhos de pó no campo, ou os redemoinhos de bulha no meio das cidades.

Há um demónio que dá asas a certas notícias, e larga-as como águias no espaço. Quando esta que acabámos de mencionar chegou ao Louvre, houve uma conflagração geral. O rei empalideceu de cólera, e os cortesãos, exagerando como sempre os sentimentos do homem, tornaram-se Fulos.

Fizeram-se imensos juramentos. Difícil seria dar conta de tudo quanto se jurou, mas foi, entre muita outra coisa:

que, se o embaixador fosse um velho, havia de ser vilipendiado, escarnecido, e metido na Bastilha.

E que, se Fosse rapaz, havia de ser aberto de meio a meio e torrado em bocadinhos. os quais seriam remetidos para todas as províncias de França como amostras da vingança real. "

Depois de adoptada tão louvável resolução, começaram os favoritos, conforme tinham por costume, a açacalar as durindanas, a tomar lições de esgrima e a apunhalar as paredes.

Chicot deixou a espada na bainha e a adaga na cinta, e passou a meditar profundamente. O rei, vendo Chicot pensativo, lembrou-se que já uma vez num caso intrincado ele fora do mesmo parecer que a rainha-mãe, a qual tinha razão como depois viu.

Concluiu, pois, que Chicot era a pessoa mais prudente do seu reino, e passou a consultá-lo.

- Senhor - replicou Chicot depois dum instante de reflexão -: ou o Senhor Duque de Anju Lhe envia um embaixador, ou não envia.

- E foi para achar esse dilema que estiveste tanto tempo a cismar?

- Paciência, paciência! Como diz, na harmoniosa língua do mestre Maquiavel, a rainha sua augusta mãe, a quem Deus guarde - paciência!

- Bem vês que paciência não me falta - disse o rei -, e a prova é que te estou ouvindo.

- Se ele Lhe envia um embaixador, é porque julga que pode fazê- lo; se ele julga que pode fazê-lo, ele que é a prudência em pessoa, é porque se sente forte se ele se sente forte, é preciso poupá-lo: respeitemos as potências, enganemo-las, mas não as ludibriemos; devemos receber o embaixador, e mostrar-lhe muita satisfação em o ver. Não resulta disso comprometimento

algum; não está lembrado como seu irmão abraçou o bom do almirante, quando raciocinou como embaixador dos huguenotes, os quais também se tinham em conta de potência?

- Visto isso, aprovas a política de meu irmão Carlos IX.

- Nada; é preciso que nos entendamos; estou citando um Facto e acrescentarei: se com otempo se nos oferecer algum ensejo, não de fazer mal a um pobre diabo de rei-de-armas, de viado ou de embaixador, mas sim de pôr a mão por cima do amo, do instigador do chefe, do muito alto e muito poderoso príncipe o Senhor Duque de Anju, verdadeiro e único criminoso, com os três Guisas, bem entendido, e de os entaipar nalgum forte mais seguro do que o Louvre, oh, então, meu Senhor, não percamos a ocasião.

- Agrada-me esse prelúdio - disse Henrique III.

- Não tens mau gosto, meu filho - disse Chicot. - Prosseguirei pois.

- Diz lá.

- Mas se ele não te enviar embaixador algum, de que serve andarem por aí a berrar os teus?

- A berrar?

- Sim; diria a bramir, se fosse possível tomá-los por leões. Digo berrar. porque. a, Henrique, faz nojo ver uns poucos de marmanjos mais barbados do que os monos do pátio dos bichos, a brincarem como rapazinhos com o papão, para meter medo a homens; afinal, se o duque de Anju não enviar pessoa alguma, hão-de persuadir-se de que foi por causa deles, e julgarão que são algumas personagens.

- Chicot, tu esqueces-te que os indivíduos a que aludes são meus amigos, os meus únicos amigos.

- Queres tu que eu te ganhe mil escudos, ó meu rei? - disse Chicot.

- Fala.

- Aposta comigo que os tais indivíduos te guardarão fidelidade a toda a prova; e eu apostarei que dos quatro hei-de comprar três daqui até amanhã à noite.

A convicção que transparecia nas palavras de Chicot deu que pensar a Henrique. Não respondeu.

- Ah - exclamou Chicot -, também tu estás meditando, estás encostando o teu encantador queixo à tua linda mão. Tens mais esperteza do que eu pensava, meu filho, porque vais descobrindo a verdade.

- Qual é, enfim, o conselho que me dás?

- Dou-te de conselho que esperes, meu rei. Metade da sabedoria do rei Salomão está nessa palavra. Se vier algum embaixador, faz-lhe boa cara. Se não vier ninguém, faz o que quiseres; mas agradece sempre em mente a teu irmão, e crê no que te digo, não o sacrifiques a estes brejeiros. Bem sei que é um grande desavergonhado, mas é um Valois. Mata-o, se assim te faz conta; mas, por honra da firma, não o desacredites, deixa esse cuidado por conta dele, que não faz mal.

- Tens razão.

- É mais uma lição que me ficas devendo; felizmente para ti já lhe perdemos a conta.

Agora deixa-me dormir, Henrique; há oito dias foi-me preciso embebedar um frade, e sempre que faço uma tal habilidade ando uma semana com a cabeça atordoada.

- Um frade? Seria aquele estimável monge de Santa Genoveva em que já me falaste?

- Exactamente. Olha que Lhe prometeste uma abadia.

- Eu?

- Tu mesmo; e não sei que menos possas fazer para o recompensar do que ele tem feito a teu favor.

- Então ainda me é muito afecto?

- Adora-te. Ora diz-me uma coisa, meu Filho...

- Que é?

- Daqui a três semanas é a festa do Corpo de Deus.

- E depois?

- É natural que tenhas na forja o plano de alguma linda procissãozinha.

- Eu sou um rei cristianíssimo, e como tal é meu dever dar ao povo exemplos religiosos.

- E hás-de fazer as estações do costume nos quatro conventos principais de Paris?

- Como sempre.

- Uma delas há-de ser a Abadia de Santa Genoveva, não é assim? - Sem dúvida, é a segunda em que tenciono entrar.

- Bom.

- Porque me perguntas isso?

- Por nada. É porque sou muito curioso. Já sei o que queria saber. Boa noite, Henriq o inho.

Naquele mesmo instante, e quando Chicot já ia fazendo as suas disposições para dormir

comodamente ouviu-se um grande rumor no Louvre.

- Que bulha será aquela? - perguntou o rei.

- Está bom - disse Chicot -, é sina minha não dormir esta noite, Henrique!

- E depois?

- Depois. olha, meu filho, manda-me alugar um quarto fora do paço, quando não, despeço-me do teu serviço; palavra de honra que não se pode viver no Louvre. Naquele momento entrou o capitão da guarda real muito sobressaltado.

- Que novidades temos? - perguntou o rei.

- Meu Senhor - respondeu o capitão -, o enviado do Senhor Duque de Anju acaba de se apear à porta do Louvre.

- Traz alguma comitiva? - perguntou o rei.

- Não, meu Senhor, vem sozinho.

- Então deves fazer-lhe ainda maior acolhimento, Henrique, porque o homem é valente disse Chicot.

- Vamos lá - disse o rei, procurando assumir um semblante sereno que a sua polidez desmentia -, vamos lá; mandem reunir a minha corte toda na sala do trono, e vistam-me de preto; quem tem a desgraça de tratar com um irmão por intermédio dum embaixador deve vestir-se de dó!

No fundo da sala principal estava o trono de Henrique III.

De roda do trono agitavam-se em tumulto os cortesãos.

O rei veio tomar assento com passo vagaroso e semblante carregado.

Os olhos de todos estavam voltados para a galeria por onde o capitão da guarda real havia de introduzir o enviado.

- Meu Senhor - disse Quélus chegando-se ao ouvido do rei -; Vossa Majestade já sabe o nome do tal embaixador?

- Não, nem me importa saber!

- É o Sr. de Bussy, meu Senhor; não lhe parece ainda maior o insulto?

- Não vejo em que possa haver insulto - respondeu Henrique procurando mostrar-se altivo.

- Vossa Majestade poderá não ver - disse Schomberg -, mas nós vemos muito bem. Henrique não deu resposta; sentia a cólera e o ódio a fermentarem-lhe em volta do trono, felicitava-se, lá no seu particular, de poder opor aos seus inimigos duas barreiras tão fortes. Quélus, empalidecendo e corando alternadamente, descansou ambas as mãos sobre os copos da espada.

Schomberg descalçou as luvas e desembainhou metade do seu punhal. Maugiron pegou na espada, que tinha dado a guardar a um pajem, e afivelou-a à cinta. D'Épernon retorceu os bigodes até aos olhos, e colocou-se por detrás dos companheiros. Henrique, semelhante ao caçador que ouve rugir a matilha contra o javali, contemplava seus validos e sorria-se.

- Dêem-lhe entrada! - disse ele por fim.

A estas palavras, houve na sala um silêncio de morte, no meio do qual parecia ouvir-se rugir surdamente a cólera do rei; ao mesmo tempo sentia-se pela galeria o som de passos, acompanhado do retinir orgulhoso de esporas sobre as lajes.

Bussy entrou com a cabeça levantada, o olhar sereno, e de chapéu na mão. O altivo mancebo nem sequer olhou para as pessoas que cercavam o rei. Caminhou em direitura a Henrique, cortejou-o respeitosamente, e Ficou esperando que ele o imterrogasse, numa atitude arrogante, mas que nada tinha de insultante para a majestade dele, por isso que era unicamente a arrogância pessoal própria dum fidalgo cônscio da sua mais elvada hierarquia.

- Por aqui, Sr. de Bussy? Julgava que estava lá no fundo do Anju!

- Estava efectivamente, Real Senhor - respondeu Bussy -, mas, como Vossa Majestade vê, já o deixei.

- E que motivo o traz à nossa capital?

- O desejo de fazer os meus respeitosos cumprimentos a Vossa Majestade. O rei e os favoritos olharam uns para os outros; era evidente que esperavam outra resposta do Fogoso fidalgo.

- E. nada mais? - perguntou o rei com bastante altivez.

- Acrescentarei, meu Senhor, que tive ordem de Sua Alteza o Senhor Duque de Anju, meu amo, para juntar os seus cumprimentos aos meus.

- E foi isso unicamente o que lhe disse?

- Disse-me também que, achando-se próximo a voltar para Paris na companhia de Sua Majestade a Rainha-Mãe, desejava que Vossa Majestade fosse informado do regresso dum dos seus mais fiéis súbditos.

O rei, quase sufocado pelo espanto, não pôde continuar com o interrogatório. Chicot aproveitou-se da interrupção para se aproximar do embaixador.

- Como tem passado, Sr. de Bussy? - disse ele.

Bussy voltou-se, admirado de encontrar um amigo naquela reunião.

- Ah, Sr. Chicot, saúdo-o de todo o coração. Como está o Sr. de Saint-Luc?

- Vai passando sem novidade; foi agora mesmo mostrar à mulher os viveiros dos pássaros.

- E era isso quanto tinha a dizer-me, Sr. de Bussy? - perguntou o rei.

- Sim, meu Senhor; se acaso Vossa Majestade esperava alguma comunicação mais importante, o Senhor Duque de Anju terá a honra de lha fazer pessoalmente.

- Muito bem! - disse o rei.

E levantando-se pensativo, desceu os dois degraus do trono.

Estava acabada a audiência, e imediatamente dispersaram-se os grupos. Bussy observou, pelo canto do olho, que tinha sido cercado pelos quatro mancebos, e como que encerrado num círculo vivo repleto de insultos e de ameaças.

Na extremidade da sala estava o rei, conversando em voz baixa com o chanceler. Bussy fingiu não ter percebido e continuou a conversar com Chicot. O rei, então, como se estivesse conluiado com os conspiradores e tivesse resolvido entregat- Lhes Bussy, chamou pelo bobo.

- Vem cá, Chicot - disse ele -, tenho muito que te dizer; vem já, não te demores. Chicot despediu-se de Bussy com a urbanidade própria dum perfeito cavalheiro. Bussy cumprimentou-o com igual elegância, e Ficou só no meio do círculo. Mudou então de atitude e de semblante: tinha falado ao rei com serenidade, a Chicot com polidez; transformou a polidez em afabilidade.

Vendo que Quélus se aproximava:

- Ah, Sr. de Quélus - disse ele -, permitir-me-á que tenha a honra de perguntar-lhe como tem passado?

- Mal bastante, Sr. de Bussy - respondeu Quélus.

- Oh, muito sinto - exclamou Bussy como se realmente o afligisse muito aquela resposta -; e que foi que lhe sucedeu?

- Há uma coisa que me incomoda muito - replicou Quélus.

- Uma coisa? - disse Bussy muito admirado. - E não é porventura bastance ter poder o senhor e os seus, mas o senhor especialmente, para destruir essa tal coisa?

- Peço perdão, Senhor Conde - disse Maugiron afastando Schomberg, que também se adiantava para tomar parte na conversação, a qual se ia tornando interessante -: não é coisa que o Sr. de Quélus queria dizer, é uma pessoa.

- Pois se alguém incomoda o Sr. de Quélus - retorquiu Bussy -, ele que afaste essa pessoa, como o senhor agora fez.

- Foi o conselho que Lhe dei, Sr. de Bussy - disse Schomberg -, e parece-me que Quélus está resolvido a segui-lo.

- Ah, é o Sr. de Schomberg - disse Bussy -; não tinha tido a honra de o reconhecer.

- Pode ser que tenha ainda a cara suja de azul - replicou Schomberg.

- Não senhor, acho-o pelo contrário, muito desmaiado; está incomodado, não?

- Se acaso estou pálido, Senhor Conde - disse Schomberg -, é de cólera.

- Então, visto isso, está como o Sr. de Quélus: incomoda-o alguma coisa ou alguém.

- Exactamente.

- O mesmo me sucede a mim - disse Maugiron -; também há uma pessoa que me incomoda.

- Sempre espirituoso, meu caro Sr. de Maugiron - exclamou Bussy -; mas, realmente quanto mais olho para os senhores, mais me fazem cismar os vossos pareceres tão transtornados.

- Esqueceu-se de mim, Senhor - disse d'Épernon, colocando-se em atitude insolente defronte de Bussy.

- Peço perdão, Sr. d'Épernon, estava por detrás dos mais, segundo o seu costume, e tenho na verdade tão pouco conhecimento do senhor, que me não competia falar-lhe primeiro.

Era na realidade um espectáculo curioso ver o sorriso e desembaraço de Bussy, metido entre aqueles quatro homens furiosos, cujos olhos falavam com terrível eloquência. Só quem fosse tolo ou estúpido deixaria de perceber o que eles queriam dizer.

Só Bussy era capaz de fingir que não os entendia.

Ficou calado e conservou o mesmo sorriso nos lábios.

Quélus foi o primeiro que perdeu a paciência, e batendo com o tacão da bota na laje, exclamou em voz alta:

- Enfim!

- Notou, Sr. de Quélus - disse Bussy -, o eco que tem esta sala? Não há nada que repita tão bem os sons como as paredes de mármore, e debaixo duma abóbada do estuque a voz parece muito mais sonora; no campo aberto sucede o contrário, dividem-se os sons creio, pela minha honra, que as nuvens também os absorvem em parte. Esta proposição repito eu segundo Aristófanes. Já leram Aristófanes, meus Senhores?

Maugiron julgou ter percebido as intenções de Bussy, e chegou-se a ele para lhe falar ao ouvido.

Bussy deteve-o.

- Nada de conFidências aqui, peço-lhe eu, Sr. de Maugiron - disse ele -; sabe muito bem quanto Sua Majestade é desconfiado: poder-se- ia persuadir de que estávamos falando dele.

Maugiron afastou-se, ainda mais enfurecido.

Schomberg tomou o lugar dele, e disse para Bussy, com afectação:

- Eu sou um alemão muito pesado, muito obtuso, mas muito franco, e falo alto e bom som para que as pessoas a quem me dirijo possam ouvir-me distintamente; porém, quando vejo que as minhas palavras, por muito claras que eu procure torná-las, não são ouvidas porque aquele a quem me dirijo é surdo, ou não são entendidas, porque aquele com quem falo não quer entender, então eu.

- O senhor. - disse Bussy, Fitando no mancebo, cuja mão nervosa se ia afastando do muro, um daqueles olhares de tigre que parecem surgir de um abismo e derramar torrentes de fogo - o senhor. Schomberg estacou.

Bussy encolheu os ombros, deu uma reviravolta e voltou-Lhe as costas. Achou-se cara a cara com d'Épernon.

D'Épernon, assim colhido de repente, não pôde recuar.

- Vejam, meus Senhores - disse ele -, como o Sr. de Bussy se tornou provinciano na excursão que fez com o Senhor Duque de Anju; traz a barba crescida, não tem fiador na espada e apresenta-se com botas pretas e chapéu cinzento.

- Essa mesma observação estava eu fazendo comigo, meu caro Sr. d'Épernon. Vendo o vestido com tanta elegância, estava notando quanto pode influir no traje dum homem a ausência da capital; eis-me pois reduzido, eu, Luís de Bussy, Sr. de Clermont, a tomar para modelo de bom gosto um fidalgo da Gasconha. Mas peço-Lhe que me deixe passar: está tão chegado a mim que me pisou um pé; e o Sr. de Quélus também, que muito bem o senti apesar das minhas botas - acrescentou ele com amável sorriso.

No mesmo instante, Bussy, passando pelo meio de d'Épernon e de Quélus, estendeu a mão para Saint-Luc, que acabava de entrar.

Saint-Luc achou-Lhe a mão fria e húmida de suor.

Logo percebeu que tinha havido novidade, e conduziu Bussy para fora do grupo, e em seguida para fora da sala.

Um murmúrio singular, nascido do grupo dos favoritos do rei, foi-se comunicando aos demais cortesãos presentes.

- É incrível - dizia Quélus -, insultei-o e ele não me replicou!

- Eu - disse Maugiron - provoquei-o, e ele não saiu.

- Eu - disse Schomberg - levantei a mão à altura da cara dele, e não fez caso.

- Eu pisei-o, - gritava d'Épernon -, pisei-o, e ele não respondeu ao meu insulto! E dizendo isto parecia ter crescido à altura do pé de Bussy.

- É evidente que não se quis dar por entendido - disse Quélus. - E teve para isso algum motivo que nós não sabemos.

- O motivo que ele teve - exclamou Schomberg - sei-o eu perfeitamente!

- Qual é?

- É porque está convencido de que algum de nós quatro o há-de matar, e não quer morrer.

Naquele momento dirigia-se o rei para onde estavam os quatro mancebos. Chicot vinha- lhe falando ao ouvido.

- Então - perguntou o rei -, que dizia o Sr. de Bussy? Pareceu-me ouvir paraaqui uma conversa bastante animada!

- Vossa Majestade quer saber o que dizia o Sr. de Bussy?... - perguntou d'Épernon.

- Quero; sabes muito bem que sou bastante curioso - replicou Henrique sorrindo.

- Não dizia coisa que tivesse jeito - respondeu Quélus -; já não parece parisiense.

- Então que parece?

- Está um verdadeiro lapuz e duma prudência extraordinária!

- Oh, oh! - exclamou o rei. - Que quer isso dizer?

- Quer dizer que vou ensinar o meu cão a saltar-lhe às canelas - disse Quélus -; e ainda assim dúvido que sinta as mordeduras através das botas.

- E eu - disse Schomberg - tenho no meu pátio um peste que serve para um jogo, pois hei-de chamar-lhe Bussy.

- Eu - acudiu d'Épernon - ainda hei-de fazer mais. Hoje pisei- o, amanhã hei-de esbofeteá-lo. É um fanFarrão; toda a sua valentia é fingida; disse lá consigo: Já me tenho batido quanto basta para criar Fama, agora quero ser prudente durante o resto da minha vida.

- Pois quê, Senhores - disse Henrique fingindo-se muito agastado -, atreveran-se a ofender em minha casa, no Louvre, um fidalgo que está ao serviço de meu irmão?

- Infelizmente! Assim fizemos - disse Maugiron, respondendo com Fingida humildade à fingida cólera do rei -, e se bem que o ofendemos gravemente, juro-lhe, meu Senhor, que ele nada respondeu.

Henrique III olhou para Chicot sorrindo-se, e chegando-se-Lhe ao ouvido:

- Ainda achas que berram, Chicot? - perguntou ele. - Quer-me parecer que desta vez rugiram, hem?

- Eu sei lá - disse Chicot -, pode muito bem ser que miassem unicamente! Eu conheço muitas pessoas que têm ataques de nervos quando ouvem miar um gato. Talvez que o Sr. de Bussy seja desse número, e, se assim é, aí tem o motivo por que ele saiu sem responder.

- Julgas isso? - perguntou o rei.

- Quem viver, há-de ver - respondeu Chicot sentenciosamente.

- Deixa-te de petas - replicou Henrique - tal amo, tal criado.

- Se quer dizer com essas palavras, meu Senhor, que Bussy é criado de seu irmão, parece-me que está muito enganado.

- Meus Senhores - disse Henrique -, vou daqui para os aposentos da rainha, com quem janto hoje. Até logo. Os cómicos italianos hão-de vir ao paço representar uma farsa: convido-os a assistirem ao espectáculo.

Todos os circunstantes se inclinaram respeitosamente, e o rei saiu pela porta principal. No momento em que ele ia a sair, entrou o Sr. de Saint-Luc por uma porta lateral.

- Peço perdão, Sr. de Quélus - disse ele cumprimentando-o mas desejava saber se ainda mora na Rua de Santo Honorato?

- Ainda lá moro, meu caro amigo; porque me faz essa pergunta? - respondeu Quélus.

- É porque tenho a dizer-Lhe duas palavras.

-Ah!... Ah!

- E o Sr. de Schomberg, quer dizer-me a sua morada?

- Eu? Moro na Rua de Béthesy - disse Schomberg muito admirado.

- A sua sei eu, d'Épernon.

- Moro na Rua de Grenelle.

- Bem sei, é meu vizinho. E o Sr. de Maugiron?

- Eu estou ao serviço aqui no Louvre.

- Principiarei pois pelo senhor, se mo permitir, ou, senão, pelo Sr. de Quélus.

- Perfeitamente! Parece-me que já vou percebendo. Vem do mandado do Sr. de Bussy?

- Depois direi quem aqui me mandou, meus Senhores, basta por enquanto que lhes declare que preciso muito falar-Lhes.

- A todos quatro?

- Exactamente.

- Pois bem! Se não quer dar-nos o seu recado aqui no Louvre, como presumo, porque o sítio não é próprio, podemos ir para casa de um de nós. Poderemos ouvir todos juntos a comunicação que tem a fazer a cada um de nós em particular?

- Perfeitamente.

- Então vamos para casa de Schomberg; é na Rua de Béthesy, daqui a dois passos.

- Pois sim, vamos para minha casa - respondeu o mancebo.

- Aceito, meus Senhores - disse Saint-Luc, e tornou a cumprimentar -; ensine-nos caminho, Sr. de Schomberg.

- Com todo o gosto.

Os cinco fidalgos saíram do Louvre de braços dados, e tomando toda a largura da rua. Atrás deles iam os respectivos criados, completamente armados.

Chegaram assim à Rua de Béthesy, e Schomberg mandou abrir a sala principal do palácio. Saint-Luc ficou esperando na antessala.

 

           DE QUE MANEIRA DESEMPENHOU O SR. DE SAINT LUC A INCUMBÊNCIA QUE BUSSY LHE TINHA DADO

Deixemos Saint-Luc por momentos na sala de Schomberg; vejamos o que se tinha passado entre ele e Bussy.

Bussy, como vimos, tinha saído da sala da audiência com o amigo, dirigindo pelo caminho cumprimentos aos Fidalgos que não levavam o espírito de cortesania ao ponto de desprezarem um homem tão temível como Bussy.

Porque naqueles tempos de fòrça bruta, em que o vigor pessoal predominava, todo o homem forte e hábil conseguia fundar para si um reinozinho físicu e moral no meio do formoso reino de França.

Era assim que Bussy reinava na corte de Henrique III.

Porém naquele dia, como vimos, Bussy não tinha sido bem acolhido no seu reino.

Logo que saíram a porta, Saint-Luc parou e olhando para ele com atenção, perguntou-lhe:

- Está acaso incomodado, meu amigo? Na verdade, está empalidecendo por forma tal que parece próximo a desmaiar.

- Não - replicou Bussy -, é a cólera que me sufoca.

- Então quer fazer caso dos ditos daquela brejeirada?

- Já vai ver se quero fazer ou não, meu caro amigo.

- Vamos, vamos, Bussy, sossegue!

- Gosto de ouvi-lo; aconselha-me que sossegue!... Estou certo de que se Lhe tivessem dito metade do que eu acabo de ouvir, com o génio que tem, já teria morto algum.

- Ora então que deseja de mim?

- Sei que é meu amigo, Saint-Luc, e já me deu uma prova terrível da sua amizade.

- meu caro amigo - disse Saint-Luc, o qual julgava Monsoreau não somente morto mas enterrado até -, foi um favor muito insigniFicante; peço-lhe que não me fale em tal, porque nem vale a pena; é verdade que a estocada era bonita e teve o resultado que eu desejava.

mas não quero gabar-me de ter sido o inventor dela: foi el- rei que me ensinou quando esteve preso cá no Louvre.

- Querido amigo...

- Deixemos pois o Monsoreau onde está, e falemos de Diana. A pobre pequena ficou satisfeita? Perdoa-me o mal que fiz? Quando se casam? Quando baptizam o primeiro fillho?

- Devagar, caro amigo! Espere que primeiro morra o conde de Monsoreau.

- Pois é possível que ele não tenha morrido? - exclamou Saint- Luc dando um pulo como se tivesse metido a ponta dum prego num pé.

- Meu bom amigo, as papoilas não são plantas tão perigosas como tinha julgado, e tanto assim, que o homem caindo sobre elas não morreu da queda; bem pelo contrário, está vivo e mais furioso do que nunca.

- Ora essa! Pois deveras...

- Sem tirar nem pôr; só pensa em se vingar, e jurou que o há-de matar logo que tenha ocasião.

- Com que então está vivo!.

- Está, inFelizmente!

- E quem foi o alarve do médico que o tratou?

- Foi o meu, querido amigo.

- Custa-me a acreditar no que me diz - replicou Saint- Luc, aterrado pela notícia que Bussy lhe dava. - Não há uma coisa assim! Visto isso, estou completamente desacreditado pois participei a toda a gente que ele tinha morrido, e já os herdeiros deitaram luto... oh, mas prometo que não hei-de ficar por mentiroso; hei-de torná-lo a encontrar e, logo que o apanhe a jeito, em vez duma estocada só, dar-Lhe-ei quatro se for preciso!

- Sou eu agora que Lhe digo que sossegue, meu querido Saint-Luc - disse Bussy -; O Monsoreau está-me servindo muito melhor do que pode julgar; desconfia que foi o duque quem o instigou a matá-lo, e é do duque que tem ciúmes. Eu sou para ele um anjo, um amigo inapreciável, um bayard; sou o seu querido Bussy, enfim. E isto é natural, desde que foi a besta do Rémy que o livrou de morrer.

- Que estúpida lembrança ele teve!

- Então, que quer? Foi uma lembrança de homem de bem; imaginou que por ser médico tem obrigação de curar toda a gente...

- Mas o sujeito é um visionário!

- Em suma: é a mim que ele diz que deve a vida; e de mim é que confia a mulher.

- Ah, compreendo muito bem que esse procedimento deva dar-Lhe a resignação necessária para esperar tranquilamente que ele morra; mas digo-lhe, na verdade, que o meu espanto é cada vez maior.

- É assim, meu caro amigo!

- Palavra de honra que caio das nuvens!

- Ora pois, bem vê que não se trata por enquanto do Sr. de Monsoreau.

- Não, gozemos a vida enquanto ele está deitado de costas. Mas desde já o previno que, assim que ele entrar em convalescença, encomendo logo um colete de malha de aço, e mando forçar as portas de ferro. E o meu amigo saiba do duque de Anju se a sua boa mãe não lhe ensinou alguma receita de contravenenos. Entretanto, meu querido amigo, vamo-nos divertindo.

Bussy não pôde deixar de se sorrir; enfiou o braço no de Saint- Luc.

- Já vê, pois, meu caro Saint-Luc - disse ele -, que só me prestou meio serviço.

Saint-Luc olhou para ele admirado.

- É verdade - replicou deseja talvez que eu acabe de todo com o homem... Confesso que me custa; mas, para o obsequiar, meu querido Bussy, tudo farei, especialmente se ele tornar a fitar em mim aqueles olhos amarelados; fora! Que nojo!

- Não é isso, meu caro, não é isso; já Lhe disse que não se trata de Monsoreau; e se acha que me deve alguma coisa, pague-me essa coisa por outro modo.

- Vejamos, diga-me, que eu sou todo ouvidos.

- Está em boas relações com aqueles senhores favoritos?

- Exactamente como os cães com os gatos, quando estão ao sol; enquanto os raios nos aquecem a todos, estamos quietos; mas se algum de nós procurasse usurpar o quinhão de calor dos outros, oh, então acabava-se a boa harmonia e entravam em cena unhas e dentadas.

- Pois muito bem, meu caro amigo, muito estimo ouvi-lo falar assim.

- Ah, deveras?

- Imaginemos que lhe interceptam um raio de Sol...

- Seja assim, imaginemos.

- Pois então arreganhe os seus lindos dentes tão brancos, deite de fora as suas temíveis unhas, e entremos na lide.

- Não o percebo.

Bussy sorriu-se.

- Meu caro amigo, há-de fazer o favor de ir procurar o Sr. de Quélus.

- Ah, ah! - disse Saint-Luc.

- Já vai percebendo, não é assim?

- É verdade.

- Muito bem. Perguntar-lhe-á qual é o dia em que mais lhe convém encontrar-se comigo para me matar a mim, ou para que eu o mate a ele.

- Assim farei, meu caro amigo.

- Não o incomoda esta incumbência?

Irei ter com ele quando quiser; no mesmo instante, se assim o deseja.

- Espere. Quando for a casa do Sr. de Quélus, far-me-á de caminho o obséquio de entrar em casa do Sr. de Schomberg, a quem submeterá a mesma proposta, sim?

- Ah, ah! - disse Saint-Luc. - Ao Sr. de Schomberg também? Cos demónios! Logo dois de pancada, Bussy!

Bussy fez um gesto que não admitia réplica.

- Está bom - respondeu o Sr. de Saint-Luc -, será cumprida a sua vontade.

- E então, meu querido Saint-Luc - tornou Bussy -, visto mostrar tanta condescendência, peço-lhe ainda que procure aqui no Louvre o Sr. de Maugiron, a quem vi de gola, sinal de que está de serviço, e convidá-lo-á a juntar-se com os outros dois.

- Oh, oh! - exclamou Saint-Luc. - Três? Está falando seriamente, Bussy? E acabou-se a lista, ao menos?

- Não.

- Como assim? Pois ainda há mais?

- Irá em seguida por casa de d'Épernon; este vai por de mais, porque o tenho em muito pouca conta; mas enfim, sempre será mais um.

Saint-Luc deixou cair os braços e olhou para Bussy.

- Quatro duma vez?... - murmurou ele.

- É isso mesmo, meu querido amigo - disse Bussy fazendo com a cabeça sinal de aprovação quero bater-me com todos quatro; é escusado dizer a um homem de tanto espírito tão valente e tão cortês, que será conveniente empregar para com esses senhores a moderação que possui em grau tão elevado.

- Estou certo que há-de desempenhar esta incumbência... cavalheirosamente. O negócio há-de ser tratado do melhor modo, não é verdade?

- Há-de ficar satisfeito, meu amigo.

Bussy estendeu a mão para Saint-Luc com um sorriso.

- Ora muito bem - disse ele. - Ah, senhores favoritos, chegou a minha vez de me rir também.

- ora, meu caro amigo, as condições.

- Que condições?

- As suas.

- Eu não imponho condições; aceitarei as que exigirem esses senhores.

- E que armas escolhe?

- As que eles quiserem.

- E o dia, o lugar, e a que hora há-de ser?

- No dia, no lugar e à hora que eles determinarem.

- Mas enfim...

- Não falemos mais em semelhantes ninharias; vá, conclua o negócio quanto antes, meu querido amigo. Vou passear para o jardim do Louvre; lá me encontrará quando voltar de desempenhar a comissão.

- Visto isso, Fica à minha espera?

- Fico.

- Pense porém que talvez tenha alguma demora...

- Não tenho pressa.

Já sabemos que Saint-Luc ainda achou os quatro fidalgos juntos na sala da audiência;

e dissemos a maneira por que entabulou a negociação.

Vamos ter com ele à antessala do Palácio de Schomberg, onde o deixámos esperando cerimoniosamente, e conforme as leis da etiqueta em uso naquela época, enquanto os quatro validos de Sua Majestade, prevendo o motivo da visita de Saint- Luc, passavam a colocar-se nos quatro pontos cardeais da extensa sala.

Depois, concluídos estes preliminares, abriram-se as duas meias portas e veio um escudeiro buscar Saint-Luc, o qual, de mão na ilharga e erguendo elegantemente a capa com a espada sobre cujos copos descansava a mão esquerda, caminhou de chapéu na mão até ao meio do limiar da porta, onde parou com uma regularidade que lhe invejaria o mais hábil arquitecto - O Sr. d'Épinay de Saint-Luc! - bradou o escudeiro. Saint-Luc entrou.

Schomberg, como dono da casa, levantou-se e foi ao encontro da sua visita; mas Saint-Luc em lugar de o cumprimentar, tornou a pôr o chapéu na cabeça.

Esta formalidade dava a conhecer a qualidade com que ali se apresentava.

Schomberg respondeu cortejando, e depois, voltando-se para Quélus:

- Tenho a honra de apresentar - disse ele - o Sr. Diogo de Lévis, conde de Quélus.

Saint-Luc deu um passo para Quélus, e cumprimentou-o respeitosamente.

- Também procurava este senhor - disse ele.

Quélus cortejou.

Schomberg prosseguiu, voltando-se para outro ângulo da sala:

- Tenho a honra de lhe apresentar o Sr. Luís de Maugiron.

Seguiu-se a mesma cerimónia de parte a parte.

- Também procurava este senhor - disse Saint-Luc.

Repetiu-se a cena para com d'Épernon, sempre com o mesmo vagar e a mesma formalidad.

Finalmente, Schomberg apresentou-se a si mesmo, e recebeu o mesmo cumprimento.

Acabadas as apresentações, sentaram-se os quatro amigos; Saint- Luc ficou de pé.

- Senhor Conde - disse ele para Quélus -, o senhor insultou o Senhor Conde Luís de Clermont de Amboise, Sr. de Bussy, o qual lhe faz os seus respeitosos cumprimentos, rogando- lhe que se encontre com ele no dia e hora que melhor Lhe convier, para contra ele combater em duelo de morte, com armas que forem da sua vontade e à sua escolha... Quer aceitar?

- Por certo que sim - respondeu Quélus sem se alterar -, e muito me honra esse convite do Sr. de Bussy.

- Que dia designa o Senhor Conde?

- É-me indiferente; contudo, quereria que fosse antes amanhã do que depois de amanhã, e antes depois de amanhã do que mais tarde, Senhor.

- A que horas?

- De manhã.

- Que armas escolhe?

- A espada e a adaga, se estes dois instrumentos agradarem ao Sr. de Bussy. Saint-Luc inclinou-se.

- Tudo quanto resolver a semelhante respeito será observado pelo Sr. de Bussy. Dirigiu-se em seguida a Maugiron, que respondeu o mesmo, e sucessivamente aos outros dois.

- Porém - disse Schomberg, que, na qualidade de dono da casa foi o último que recebeu o convite - não nos lembrámos de uma coisa, Sr. de Saint-Luc.

- Que coisa?

- É que se sucedesse (porque às vezes há casos muito célebres) se sucedesse, digo, escolher mos todos o mesmo dia e a mesma hora, pode muito bem ser que o Sr. de Bussy se visse bastante embaraçado.

O Sr. de Saint-Luc cortejou novamente, sorrindo com a maior polidez.

- O Sr. de Bussy - disse ele - ver-se-ia decerto em grande embaraço, como qualquer cavalheiro, tendo de arrostar a um tempo com quatro valentes como são os senhores; mas afirma que o caso não seria novo para ele, por isso que já se viu na mesma conjuntura junto do Palácio das Tournelles, próximo da Bastilha.

- E havia de bater-se com todos quatro? - perguntou o Sr. d'Épernon.

- Com todos quatro, sim senhor - respondeu Saint-Luc.

- Separadamente? - perguntou Schomberg.

- Separadamente ou ao mesmo tempo; o desafio que propõe é individual e colectivo. Os quatro fidalgos olharam uns para os outros, Quélus foi o primeiro que falou.

- O conceito que de nós forma o Sr. de Bussy é muito lisonjeiro - disse ele corando de raiva porém, se pouco valemos, acho que nenhum de nós quererá auxílio para dar conta do recado; aceitaremos pois o convite do Senhor Conde com a condição de irmos sucedendo uns aos outros. ou senão, talvez fosse melhor.

Quélus olhou para os amigos, os quais, percebendo provavelmente qual era o seu pensamento, fizeram sinal de que anuíam.

- Ou talvez fosse melhor - prosseguiu ele -, visto que não desejamos assassinar um homem tão cavalheiro, que se tirasse à sorte qual de nós há-de ter por adversário o Sr. de Bussy.

- Porém - acudiu Saint-Luc - os três que ficam?

- Os três que ficam? O Sr. de Bussy tem tantos amigos, e nós tantos inimigos, que os outros três não ficarão decerto de braços cruzados. São desta opinião, meus Senhores? - perguntou Quélus voltando-se para os companheiros.

- Somos! - responderam eles à uma.

- Até digo mais - exclamou Schomberg -: ser-me-ia extremamente agradável que o Sr. de Bussy convidasse o Sr. de Livarot para esta função.

- Se me é lícito emitir a minha opinião - disse d'Épernon -, também desejaria que nela aparecesse o Sr. de Balzac d'Antraguet.

- E a festa seria completa - disse Maugiron - se o Sr. de Ribeirac quisesse fazer companhia aos seus amigos.

- Meus Senhores - disse Saint-Luc -, farei presentes os vossos desejos ao Senhor Conde Bussy, e parece-me que posso desde já asseverar-Lhes que é tal a sua delicadeza que não deixará de se conformar com eles. Só me resta, pois, meus Senhores, agradecer-Lhes muito sinceramente em nome do Senhor Conde.

Saint-Luc tornou a cumprimentá-los, e as cabeças dos quatro fidalgos que ele acabava de desafiar abaixaram-se ao mesmo tempo, correspondendo à sua cortesia.

Os quatro amigos acompanharam Saint-Luc até à porta da sala.

Na última antessala estavam reunidos os quatro lacaios.

Saint-Luc puxou por uma bolsa cheia de ouro e atirou-Lhes com ela dizendo: - Aí têm para beberem à saúde de vossos amos.

 

         EM QUE SE MOSTRA QUE O SR. DE SAINT LUC ESTAVA MUITO MAIS CIVILIZADO DO QUE O SR. DE BUSSY; QUAIS FORAM AS LIÇÕES QUE ELE LHE DEU E O USO QUE DELAS FEZ O AMANTE DA FORMOSA DIANA

Saint-Luc voltou muito satisfeito do bom resultado da sua missão.

Bussy estava esperando por ele, e agradeceu-Lhe.

Saint-Luc achou-o muito triste, coisa extraordinária num homem tão valente em vésperas dum bom e brilhante duelo.

- Andei mal no negócio? - perguntou Saint-Luc. - Parece-me que não ficou satisfeito.

- Não, por certo, meu caro amigo, e a minha única pena é que, em vez de aprazar dia, não lhes dissesse que havia de ser já hoje.

- Tenha paciência, meu amigo, ainda cá não estão os angevinos; dê-Lhes tempo de chegarem; e demais, que pressa é essa de juncar o chão de mortos e moribundos?

- É porque desejo morrer quanto antes.

Saint-Luc olhou para BusSy com aquela admiração que as pessoas perfeitamente organizadas sentem na presença da menor desgraça que sucede aos outros.

- Morrer!. Na sua idade, com o seu nome, e tendo uma amante como a sua.

- Creio bem que hei-de matá-los a todos quatro; mas por fim hei-de levar uma boa estocada que me há-de dar o descanso eterno.

- Que ideias tão fúnebres, Sr. de Bussy!

- Sempre queria vê-lo no meu lugar. Um marido que todos julgavam morto, e que torna à vida; uma mulher que não se pode tirar da cabeceira da cama do tal moribundo; não poder vê-la, nem falar-Lhe, nem tocar-Lhe na mão! Ah! Quem me dera poder matar alguém!. Saint-Luc respondeu a esta imprecação com uma gargalhada que aFugentou um bando de pardais que estavam espicaçando as sorveiras do jardim do Louvre.

- Ah - exclamou ele -, que homem tão inocente! E gostam as mulheres deste Bussy, que é um verdadeiro criançola! Oh, meu querido amigo parece que perdeu o juízo; pois digo-lhe que não há no mundo um amante mais feliz do que o senhor.

- Pois muito bem, prove-me isso, o senhor, que é homem casado.

- Nihilfacilius, como dizia o jesuíta Triquet, meu pedagogo; o senhor não é amigo do Monsoreau?

- Tenho vergonha que assim seja, por honra da inteligência humana. Com efeito, aquele maldito chama-me seu amigo.

- Pois bem seja amigo dele!

- Oh, pois, hei-de abusar desse nome?

- Prorsus absurdum! dizia também Triquet. É ele deveras seu amigo?

- Ele assim o diz.

- Mas não é, visto que o torna infeliz; ora pois, o único fim da amizade é fazerem-se

Os homens mutuamence felizes; é assim pelo menos que Sua Majestade define a amizade e el-rei é homem de letras.

Bussy desatou a rir.

- Ainda continuo - disse Saint-Luc. - Se ele o torna infeliz, já se vê que não é seu amigo; e logo, é lícito tratá-lo como indiferente, e tirar-Lhe a mulher; ou como inimigo, torná-lo a matar, se ele não gostar do seu procedimento.

- O caso é - disse Bussy - que o detesco.

- E ele teme-u.

- Mas julga que ele não é meu amigo?

- Experimente: tire-Lhe a mulher, e depois verá.

- Essa lógica é também do padre Triquet?

- Não, esta é minha.

- Receba os meus cumprimentos.

- Agrada-Lhe?

- Não. Antes quero ser homem de bem...

- E consentir que a Sr. de Monsoreau cure o marido moral e fisicamente? Porque, afinal de contas, se deixar que o matem, ela não terá outro remédio se não agarrar-se ao homem que Lhe fica...

- Bussy encrespou as sobrancelhas.

- E demais - acrescentou Saint-Luc -, aí vem minha mulher, que sempre me dá bons conselhos. Acabou de fazer um ramalhete das flores da rainha mãe, há-de estar de muito bom humor; consulte-a, ela fala como um livro.

Joana vinha-se aproximando, efectivamente; risonha, resplandecente de felicidade, e toda ela respirando malícia. Há pessoas assim, de carácter tão feliz que a todos que as cercam comunicam a sua alegria.

Bussy cumprimentou-a amigavelmente; ela apertou-lhe a mão, e aqui observaremos que esta moda, que já naquele tempo se usava, não foi, como dizem, importada da Inglaterra pelo plenipotenciário Dubois com o tratado da Quádrupla Aliança.

- Como vão os amores? - perguntou ela atando ao mesmo tempo o ramalhete com um trancelim de ouro.

- Estão a morrer - respondeu Bussy.

- História! Estão feridos e desmaiaram - disse Saint-Luc -; aposto que não tarda que os faça recobrar os sentidos, Joana.

- Vamos lá - disse ela -, quero ver a ferida.

- Em duas palavras, eis o caso - replicou Saint-Luc -: o Sr. de Bussy não gosta de se sorrir para o conde de Monsoreau, e tem tenção de se retirar da cena.

- E de deixar Diana em poder dele? - exclamou Joana de Cossé com susto.

Comovido por esta primeira demonstração Bussy acrescentou:

- Oh, minha Senhora, Saint-Luc ainda não Lhe disse que eu quero morrer.

Joana encarou-o por um instante com uma compaixão que não era de todo evangélica.

- Pobre Diana! - murmurou ela; - apaixonem-se lá por um homem!... São todos ums ingratos!

- Bom - exclamou Saint-Luc -, aí está a moral de minha mulher.

- Ingrato, eu - disse Bussy -, porque não quero aviltar o meu amor lançando mão dos recursos da hipocrisia?.

- Isso não passa dum pretexto frívolo - replicou Joana. - Se estivesse apaixonado deveras, só recearia um aviltamento, que era deixar de ser amado.

- Ah, ah! - disse Saint-Luc. - Trate de pagar a lição, meu caro amigo.

- Porém, minha Senhora - respondeu afectuosamente Bussy -, há sacrifícios de natureza tal...

- Nem mais uma palavra! Confesse que já não ama Diana; uma tal declaração será mais própria dum homem de bem.

Bussy estremeceu só de ouvir tal lembrança.

- Não se atreve a dizê-lo? Pois bem, eu Lho direi.

- Minha Senhora, minha Senhora!.

- Gosto de ouvir os homens falar de sacrifícios. e nós não fazemos porventura sacrifícios? Pois quê! Arriscar-se uma débil mulher a ser assassinada por aquele tigre do Monsoreau; conservar para entregar a um homem todos os seus direitos, desenvolvendo para isso um ânimo e uma força de vontade de que teriam sido incapazes Sansão e Aníbal; domar a fera de Marte para a atrelar ao carro do triunfador, não será heroísmo?. Oh, juro-lhe que a conduta de Diana é sublime aos meus olhos; eu não seria capaz de fazer a quarta parte do que ela faz todos os dias.

- Muito obrigado - respondeu Saint-Luc com uma cortesia tão reverenciosa que Joana desatou a rir.

Bussy ainda hesitava.

- E está reflectindo!. - exclamou Joana. - Não cai de joelhos, não diz um mea culpa!

- Tem razão - replicou Bussy -, conheço que sou apenas um homem, isto é, uma criatura imperfeita e inferior à mais vulgar das mulheres.

- Ainda bem que está convencido disso - replicou Joana.

- Que me determina pois?

- Que vá sem demora fazer uma visita.

- Ao Sr. de Monsoreau?

- Quem Lhe fala em tal?. A Diana.

- Mas eles estão sempre juntos, segundo me consta.

- Ora diga-me: quando ia visitar com tanta frequência a Sr. a de Barbezieux, não encontrava sempre ao lado dela um mono que lhe mordia, porque tinha inveja das festas que ela lhe fazia?

Bussy riu-se, Saint-Luc imitou-o, Joana seguiu o exemplo de ambos; formaram assim um terceto de hilaridade que atraiu às janelas os cortesãos que andavam passeando pelas galerias.

- Minha Senhora - disse finalmente Bussy -, vou a casa do Sr. de Monsoreau. Adeus! E ditas estas palavras separaram-se, tendo Bussy recomendado previamente a Saint-Luc que não falasse no duelo que ele tinha proposto aos favoritos.

Foi efectivamente a casa do Sr. de Monsoreau, que achou ainda na cama se O conde soltou uma exclamação de alegria ao avistá-lo: Rémy acabava de Lhe prometer que a ferida havia de estar sarada antes de três semanas.

Diana levou um dedo aos lábios: era a sua maneira de cumprimentar. Bussy teve de contar ao conde a história da missão de que havia sido encarregado pelo duque de Anju, a sua ida à corte, a recepção que Lhe tinha feito o rei, e a frieza com que tinha sido tratado pelos favoritos.

Frieza foi a palavra de que se serviu Bussy, e que provocou o riso de Diana. Monsoreau ficou pensativo ao ouvir estas notícias; e pedindo a Bussy que se aproximasse disse-lhe ao ouvido:

- Anda-se tramando nova conspiração, não é verdade?

- Penso que sim - replicou Bussy.

- Ouça o que lhe digo - prosseguiu Monsoreau -: não queira comprometer-se por causa daquele malvado! Eu conheço-o a fundo; é muito pérfido; nunca hesita em fazer uma traição.

- Bem sei - disse Bussy com um sorriso que fez recordar ao conde a cirtunscância em que ele, Bussy, tinha sido atraiçoado pelo duque.

- Julgo do meu dever preveni-lo, porque o considero como meu amigo. E demais, sempre que se achar numa posição dificultosa, aconselhe-se comigo.

- Senhor, Senhor! É preciSo dormir agora depois do curativo da ferida - disse Rémy -; vamos, durma.

- Sim, meu caro doutor. Amigo Bussy, vá dar um passeio com a Sr.a de Monsoreau - disse o conde. - Tenho ouvido dizer que o meu jardim está lindo este ano.

- Obedecerei - respondeu Bussy.

         AS CAUTELAS DO SR. DE MONSOREAU

Ao fim de oito dias já Bussy estava convencido que Saint-Luc e Joana tinham razão, e fazia-lhes toda a justiça.

Bussy, galante como Alcibíades e esquecido de Plutarco, que deixara de ser o seu autor predilecto desde que o amor lhe corrompera o coração, só tratava do presente, e, esquecido do desejo que outrora nutria de se assimilar aos heróis da Antiguidade, já não fazia caso de artigos de história, mesmo que versassem sobre a continência de Cipião ou sobre as proezas de Bayard.

Diana entregava-se toda aos dois instintos que o misantropo Fígaro diz serem inatos no sexo feminino: amar e enganar. A sua lógica era amar Bussy; a sua moral era pertencer-lhe; e um estremecimento de todo o corpo quando sentia de encontro à sua mão o contacto de Bussy, era a sua metafísica.

O Sr. de Monsoreau (havia já quinze dias que o desastre lhe tinha sucedido) ia melhorando progressivamente. Tinha passado sem Febre, em consequência da aplicação da água fria, remédio novo que o acaso, ou antes, a Providência, revelara a Ambrósio Paré, quando sofreu de repente um grande abalo: soube que o Senhor Duque de Anju acabava de chegar a Paris com a rainha-mãe e os seus angevinos.

O conde tinha razão em se assustar; porque, logo no dia imediato à sua chegada, o príncipe, com o pretexto de saber como passava o monteiro-mor, apresentou-se no seu palácio da Rua dos Petits- Pères; não era possível negar a entrada em sua casa a uma alteza real que lhe dava tamanha demonstração de interesse.

O Sr. de Monsoreau recebeu pois a visita do príncipe, e este mostrou a maior amabilidade para com o monteiro-mor, e para com a esposa especialmente.

Apenas o príncipe saiu, o Sr. de Monsoreau chamou Diana, encostou-se-Lhe ao braço, e, apesar dos gritos de Rémy, deu três voltas de roda da poltrona.

Acabado o passeio tornou a sentar-se na mesma poltrona, de roda da qual acabava, como dissemos, de traçar uma tríplice linha de circunvalação; estava tão satisfeito que Diana logo adivinhou que ele planeava alguma das suas diabruras.

Porém isto diz respeito à história particular da casa de Monsoreau.

Tornemos portanto à chegada do Senhor Duque de Anju, a qual pertence à parte épica deste livro.

Bem se pode avaliar que não foi indiferente aos observadores o dia em que Sua Alteza Francisco de Valois fez a sua reentrada no Louvre. Eis o que todos notaram:

Muito orgulho no rei.

Muita indiferença na rainha-mãe.

E o porte um tanto insolente do duque de Anju, que parecia dizer: Para que demónio me convidou a voltar, se tencionava receber-me dum modo tão desabrido?

A recepção foi sempre acompanhada dos olhares chamejantes e iracundos dos Srs. de Livarot, de Ribeirac e de Antraguet, os quais, já avisados por Bussy tinham todo o empenho em dar a entender aos seus futuros adversários que, se houvesse algum obstáculo ao duelo, não havia de ser por certo suscitado por eles.

Chicot, naquele dia, deu mais voltas do que César na véspera da batalha de Farsália. Depois tornou tudo ao mesmo estado de sossego.

Dois dias depois da sua volta para o Louvre, o duque foi fazer segunda visita ao ferido. Monsoreau, a quem já haviam contado todos os pormenores da entrevista do rei com o irmão, acariciou com gestos e palavras o Senhor Duque de Anju, para o manter nas suas disposições hostis.

E como as melhoras iam em aumento, assim que o duque se despediu, tornou a agarrar no braço da mulher, e, em vez de dar três voltas de roda da poltrona, deu um passeio à roda do quarto.

Acabado o passeio, sentou-se ainda mais contente do que da primeira vez. Naquela mesma noite, Diana preveniu Bussy de que o Sr. de Monsoreau tinha decerto algum projecto em mente.

Passado um instante ficaram sós Monsoreau e Bussy.

- E pensar eu - disse Monsoreau para Bussy - que este príncipe que me faz tanta festa é meu inimigo figadal, e que foi ele quem me mandou assassinar pelo Sr. de Saint-Luc.

- Oh, assassinar, isso não! - replicou Bussy - Lembre-se, Senhor Conde, que Saint-Luc é um perfeito cavalheiro, e o senhor mesmo confessou que o havia provocado, que foi o primeiro a desembainhar a espada, e que foi batendo-se com ele que levou a estocada.

- Concordo, mas nem por isso é menos certo que ele foi instigado pelo duque de Anju - Olhe - disse Bussy -, eu conheço muito bem o duque, e melhor ainda o Sr. de Saint-Luc; posso asseverar-Lhe que o Sr. de Saint-Luc é muito afeiçoado a el-rei, e que não pode ver o príncipe. Ah, se a estocada que levou tivesse sido dada por Antraguet, Livarot ou Ribeirac, nada diria. mas por Saint-Luc.

- O senhor não está ao facto da história de França, meu caro Sr. de Bussy - disse Monsoreau sem querer despersuadir-se.

Bussy poder-Lhe-ia ter respondido que se não estava ao facto da história de França, conhecia perfeitamente a de Anju, e com especialidade a daquela parte do Anju em que estava situado o Castelo de Méridor.

Monsoreau melhorou, finalmente, a ponto de poder descer a passear no jardim.

- É quanto me basta - disse ele quando voltou para cima. - Mudaremos de casa esta noite.

- Para quê? - perguntou Rémy. - Não lhe agrada o ar que se respira na Rua dos Peti-Pères, ou falta-Lhe distracção?

- Bem pelo contrário - respondeu Monsoreau -, é porque tenho aqui demasiadas distracções; já me vão apoquentando as visitas do Senhor Duque de Anju; traz sempre consigo uma comitiva de vinte ou trinta fidalgos, e o retinir de tanta espora irrita-me os nervos duma maneira espantosa.

- Mas para onde se quer mudar?

- Mandei aprontar a minha casinha ao pé do Palácio das Tournelles. Bussy e Diana (porque Bussy não se tirava da casa de Monsoreau) olharam um para o outro, recordando- se com saudade do que se tinha passado na tal casinha.

- Pois quê, quer ir para aquela baiuca? - exclamou Rémy irreflectidamente.

- Ah!... Sabe então qual é a casa? - perguntou Monsoreau.

- É forte admiração! - respondeu o médico - quem é que não conhece a morada do senhor Monteiro-Mor de França, e especialmente tendo morado, como eu, na Rua Beautreilles?

o Monsoreau, para não perder o costume, sempre ficou vagamente desconFiado.

- Sim, sim, vou para lá - disse ele e hei-de dar-me bem. Não podem lá caber mais de quatro pessoas quando muito. É uma espécie de fortaleza, e da janela posso avistar à distância de trezentos passos as pessoas que vierem visitar-me.

- De forma que... - perguntou Rémy.

De forma que poderei negar-me quando quiser - replicou Monsoreau -, e especialmente quando estiver bom de todo.

Bussy mordeu os beiços; lembrou-se que ainda viria talvez tempo em que Monsoreau procurasse evitá-lo a ele também.

Diana suspirou.

Lembrou-se que era ali naquela casinha que tinha visto Bussy ferido e desmaiado sobre o leito.

Rémy, depois de reflectir um instante, foi o primeiro que falou.

- Não pode ir morar para lá - disse ele.

- E por que motivo diz isso, Senhor Doutor?

- Porque o monteiro-mor de França tem obrigação de receber certas visitas, de ter numerosos criados, e um estado correspondente à sua categoria. Ninguém se admirará que tenha um palácio para habitação dos seus cães; mas todos hão-de reparar em que esteja vivendo num

covil.

- Hum! - disse Monsoreau, com um modo que queria dizer: lá isso é assim.

- E demais - disse Rémy -, como eu, na minha qualidade de médico, entendo das doenças do coração como das do corpo, dir-Lhe-ei que bem conheço que não é por sua própria causa que deseja mudar daqui a sua residência.

- Então porque é?

- Por causa da Senhora Condessa.

E nesse caso?

- Nesse caso, mude a habitação da Senhora Condessa para outra parte.

- Separar-me dela? - exclamou o Sr. de Monsoreau fitando em Diana um olhar no qual transluzia muito mais raiva do que amor.

- Pois se assim não Lhe convém, abandone o seu emprego, peça a sua demissão de monteiro-mor; parece-me que seria o passo mais acertado, porque de duas uma: ou há-de desempenhar ou deixar de desempenhar as suas funções. Se não as desempenhar desagradará a el-rei, e se as desempenhar...

- Hei-de servir o meu cargo - disse o Sr. de Monsoreau apertando os dentes -, e não hei-de separar-me da condessa suceda o que suceder.

O conde acabava apenas de dizer estas palavras, quando se ouviu no pátio um grande estrépido de cavalos e de vozes.

Monsoreau estremeceu.

- É o duque outra vez! - murmurou ele.

O duque, usando do privilégio que têm os príncipes de entrarem sem mandar recado apareceu no quarto imediatamente.

Monsoreau estava à espreita, e notou que a primeira pessoa para quem Francisco tinha olhado Fora para Diana.

As Finezas inesgotáveis do duque conFirmaram-no em breve nas suas suspeitas; trazia ele a Diana uma daquelas jóias raríssimas que produziam três ou quatro vezes durante a vida os artistas pachorrentos e generosos que ilustraram aquela época, em que os primores da arte eram mais frequentes do que hoje em dia, apesar do tempo que levavam a executar.

Era um lindo punhal com o cabo de ouro cinzelado; o cabo era um frasco, e sobre a folha via-se figurada uma montaria, admiravelmente aberta a buril; cães, cavalos, caçadores, feras árvores e céu, tudo isto reunido formava uma harmoniosa confusão que obrigava os olhos a demorarem-se com gosto na contemplação daquele conjunto de azul e de ouro.

- Permita-me que eu veja - disse Monsoreau receando que viesse algum bilhete escondido dentro do cabo.

O príncipe desvaneceu-Lhe o receio separando à sua vista o cabo em duas metades.

- Para o senhor, que é caçador, o ferro - disse ele para a condessa, o cabo. Bons dias Bussy. pelo que vejo, agora é íntimo amigo do conde...

Diana corou.

O Sr. de Bussy, pelo contrário, conservou bastante presença de espírito.

- Vossa Alteza - replicou ele - já se esqueceu que me incumbiu esta manhã de saber como tinha passado o Sr. de Monsoreau. Obedeci, como sempre, às ordens de Vossa Alteza.

- É verdade - respondeu o duque.

Em seguida foi sentar-se ao lado de Diana, e falou-lhe em voz baixa.

Dali a um instante:

- Está um calor insuportável neste quarto de doente - disse ele. - Vejo que a condessa mal pode respirar; vou oferecer-lhe o braço para dar uma volta pelo jardim.

O marido e o amante trocaram um olhar encolerizado.

Diana, anuindo ao convite, levantou-se e deu o braço ao príncipe.

- Dê-me também o braço a mim - disse o Sr. de Monsoreau para Bussy.

E desceu logo atrás da esposa.

- Ah, ah! - disse o duque de Anju. - Está inteiramente restabelecido.

- Sim, meu Senhor, e parece-me que não tardará muito que eu possa acompanhar a Sr. de Monsoreau para toda a parte para onde ela for.

- Está bom! Mas entretanto, meu caro Senhor, é preciso que não se afadigue.

Monsoreau não pôde deixar de reconhecer que era prudente a recomendação que lhe fazia o príncipe.

E pensando assim, foi sentar-se num sítio de onde não podia perdê-lo de vista.

- Olhe, conde - disse ele para Bussy - se não receasse tornar-me importuno, pedir-lhe-ia que acompanhasse esta noite a Sr. a de Monsoreau para o meu palacete junto da Bastilha; digo-Lhe de verdade que antes quero mandá-la para lá do que tê-la aqui. Arranquei-a em Méridor das garras daquele abutre, e não quero que ma devore em Paris.

- Não senhor - disse Rémy para o amo -, não pode prestar semelhante serviço ao Senhor Conde.

- Por que motivo? - perguntou Monsoreau.

- Porque o Sr. de Bussy está ao serviço do Senhor Duque de Anju, que nunca lhe perdoaria se soubesse que tinha contribuído para Lhe pregar uma tal peça.

Bem me importa a mim isso! ia para exclamar o fogoso mancebo, quando um olhar de Rémy - Lhe indicou que devia calar-se.

Monsoreau reflectiu.

- Rémy tem razão - disse ele -: não devo exigir do senhor esse serviço; irei eu mesmo acompanhá-la, porque já amanhã, ou depois poderei ir morar para aquela casa.

- Será uma loucura, Senhor Conde - disse Bussy -, perder o seu emprego.

- Pode ser - replicou o senhor de Monsoreau -, mas ficarei com a minha mulher.

E carregou as sobrancelhas ao dizer estas palavras, que fizeram respirar Bussy. O conde de Monsoreau levou efectivamente a mulher naquela mesma noite para a casa das Tournelles, já muito conhecida dos nossos leitores.

Rémy ajudou o convalescente a estabelecer-se na sua nova residência, E como era em extremo afeiçoado ao amo, e logo desconFiou que Bussy havia de precisar muito dele naquele local tão apertado, para proteger os seus amores, procurou fazer as pazes com Gertrudes, a qual começou por lhe dar uma sova, e acabou por lhe perdoar.

Diana tomou novamente posse do seu quarto, situado à frente da casa, e onde se achava o retrato e o leito com cortinas de damasco branco bordado a ouro.

Havia unicamente um corredor de permeio entre o quarto de Diana e o do conde de Monsoreau.

Bussy arrancava os cabelos às mãos ambas.

Saint-Luc afirmava que, tendo a construção das escadas de corda chegado à melhor perfeição, não era indispensável entrar pela porta para subir a qualquer casa.

Monsoreau esfregava as mãos e sorria-se quando pensava no logro que tinha pregado ao Senhor Duque de Anju.

 

         UMA VISITA A CASA DA RUA DAS TOURNELLES

Há homens em quem a excitação substitui a realidade da paixão, assim como a fome dá ao lobo e à hiena uma aparência de coragem.

Fora sobre a impressão dum sentimento desta natureza que o Senhor Duque de Anju, cujo despeito ao saber que Diana já não estava em Méridor não se pode descrever, tinha regressado a Paris; quandu voltou já estava quase apaixonado por ela, e isto unicamente por ter sido privado de a ver.

Daí resultou que o ódio que ele havia votado a Monsoreau desde o dia em que soube que o conde o atraiçoava, se transformara numa espécie de furor, tanto mais perigoso por isso que, sabendo por experiência quanto era enérgico o carácter do conde, queria conservar-se pronto a feri-lo sem expor a sua pessoa.

Por outro lado, não renunciara às suas esperanças políticas; bem pelo contrário, a certeza que havia adquirido da sua importância engrandecera-o a seus próprios olhos.

Apenas voltou para Paris, começou por conseguinte a urdir as suas tenebrosas e surdas maquinações.

A ocasião não podia ser mais favorável: um grande número de conspiradores frouxos, dos que sempre aplaudem o vencedor, animados por aquela sombra de triunfo que a fraqueza do rei e a astúcia de Catarina tinham dado aos Angevinos, procuravam benquistar-se com o du que de Anju, ligando assim por um fio imperceptível, mas muito poderoso, a causa do príncipe dos Guisas, os quais se conservaram com toda a prudência por detrás da cortina, permanecendo num silêncio que muito assustava Chicot.

A intimidade do príncipe com Bussy também tinha acabado: o príncipe tracava-o com hipocrisia e mais nada.

O príncipe não tinha gostado de o ver com tanta familiaridade em casa de Monsoreau; invejava a confiança que nele depositava o conde apesar do seu génio tão desconfiado.

Também o assustavam a alegria que respirava o rosto de Diana. O príncipe sabia que as flores só desabrocham e coram aos raios do Sol, e as mulheres em reflexo do amor.

Diana estava sendo visivelmente muito feliz, e o duque, sempre malévolo e invejoso, olhava como uma injúria a felicidade de outrem.

Um dia, depois de ter passado a noite muito desassossegado, sentiu o príncipe, ao acordar que estava na disposição de espírito necessária para a execução do seu projecto, e mandou

aprontar o estado para ir visitar Monsoreau.

O conde, como já dissemos, tinha-se mudado para a casa da Rua das Tournelles.

O príncipe sorriu-se ao ouvir esta notícia.

Era o entremez da comédia de Méridor.

Indagou, para salvar as aparências, onde Ficava a tal casa; responderam-Lhe que era no Largo de Santo António; e voltando-se então para Bussy, que o tinha acompanhado:

- Já que ele está nas Tournelles - disse ele -, vamos também às Tournelles.

A comitiva pôs-se a caminho, e logo Ficou todo o Bairro da Bastilha alvoroçado com a presença dos vinte e quatro fidalgos, de que se compunha habitualmente o séquito do príncipe; e cada um dos quais levava consigo dois lacaios e três cavalos.

O príncipe conhecia perfeitamente a casa e a porta; e Bussy conhecia-as tão bem como ele.

Pararam ambos em frente da casa, entraram e subiram juntos; porém, chegados que foram acima, só o príncipe entrou para os quartos, e Bussy conservou-se no patamar.

O resultado deste arranjo foi que o príncipe, que parecia o mais favorecido, viu unicamente

O conde de Monsoreau, que o recebeu estendido sobre um canapé, enquanto que Bussy foi recebido nos braços de Diana, que o apertou com ternura de encontro ao peito, tendo previamente postado Gertrudes de sentinela.

Monsoreau, que de seu natural era pálido, tornou-se lívido ao avistar o príncipe.

Era o seu pesadelo.

- Vossa Alteza? - disse ele estremecendo de raiva - Vossa Alteza nesta pobre casa?

Quem sou eu para Lhe merecer tamanha honra, meu senhor!

A ironia era bem visível, pois que o conde mal procurava disfarçá- la.

Todavia o príncipe fingiu não a ter percebido, e aproximando-se do convalescente com um sorriso, disse:

- Para onde quer que for um amigo meu doente, lá o irei procurar para saber dele.

- Parece-me, na verdade, meu príncipe, que Vossa Alteza proferiu a palavra amigo...

- Proferi, sim, meu caro conde; mas, como vai passando?

- muito melhor, meu Senhor; já me levanto, já dou o meu passeio, e daqui a oito dias espero estar completamente bom de todo.

- Foi o seu médico quem Lhe receitou que viesse tomar ares para o pé da Bastilha? perguntou o príncipe com a expressão da maior ingenuidade.

- Sim, meu Senhor.

- Não se dava bem na Rua dos Petits-Pères?

- Não, meu Senhor, recebia lá muitas visitas, e a bulha que faziam incomodava-me.

O conde disse estas palavras com uma Firmeza que não escapou ao príncipe, porém este fingiu não ter percebido nada.

- Contudo, aqui, segundo me parece, não tem jardim... - disse ele.

- O jardim para nada me servia, meu Senhor - respondeu Monsoreau.

- Mas então para onde vai passear, meu caro?

- Já não passeio, meu Senhor.

O príncipe mordeu os beiços e encostou-se para trás na cadeira.

- Saberá, conde - disse ele depois de um momento de silêncio - que tem havido muitos pretendentes ao seu emprego de monteiro-mor...

- Deveras? E que pretexto alegam, meu Senhor?

- Afirma muita gente que morreu.

- Oh, estou bem certo que Vossa Alteza tem dito que eu ainda estou vivo...

- Eu não tenho dito coisa alguma. Quem se enterra vivo, meu caro, é como se estivesse efectivamente morto.

Chegou a vez de Monsoreau morder também os beiços.

- Que Lhe hei-de fazer, meu Senhor?... - disse ele. - Ficarei sem o emprego.

- Na verdade?

- Certamente, porque há coisas a que dou preferência.

- Ah - exclamou o príncipe -, dá nisso uma grande prova de desinteresse!

- É meu génio, Senhor.

- Se é essa a sua maneira de pensar, não levará por certo a mal que el-rei o saiba.

- Quem Lhe há-de dizer?

- Se ele me interrogar, que remédio terei senão repetir-lhe a nossa conversa.

- Se se repetisse a el-rei tudo quanto se diz em Paris, não bastariam a Sua Majestade os dois ouvidos.

- Que se diz pois em Paris, Sr. de Monsoreau? - perguntou o príncipe voltando-se para

O conde com tanta vivacidade como se o houvera picado uma cobra.

Monsoreau percebeu que a conversa tinha tomado insensívelmente uma direcção demasiado séria para um convalescente; disfarçou portanto a cólera que Lhe fazia ferver o sangue e, aparentando um rosto de indiferença:

- Que sei eu, pobre entrevado! - respondeu ele. - Do meu retiro apenas vejo a sombra dos acontecimentos. Se el-rei está agastado por eu não poder cumprir as minhas obrigações faz mal.

- Como assim?

- Sem dúvida, o desastre que me sucedeu...

- Que quer dizer?

- Foi de algum modo por culpa dele.

- Explique-se, conde.

- Pois o Sr. de Saint-Luc, que me deu esta estocada, não é um dos mais íntimos amigos de el-rei? Foi el-rei quem lhe ensinou o bote de ponta com que ele me furou o peito, e quem me diz que não foi el-rei quem o mandou ocultamente contra mim...

O duque de Anju fez um aceno com a cabeça como aprovando.

- Tem razão - disse ele -; mas enfim, o rei sempre é o rei.

- Até que deixe de o ser, não é assim? - perguntou Monsoreau.

O duque estremeceu.

- É verdade - disse ele -, a Sr. de Monsoreau não está morando aqui com o conde?

- Está muito incomodada hoje; se assim não fora já teria vindo apresentar os seus respeitos a Vossa Alteza.

- Incomodada? Pobre senhora!.

- Sim, meu Senhor.

- É da pena que tem tido de o ver sofrer tanto!

- É esse um dos motivos; e a mudança para aqui também contribuiu para o seu incómodo.

- É de esperar que a moléstia não se prolongue, meu querido conde. Deve confiar na habilidade do seu médico.

E dizendo isto, levantou-se.

- O caso é - disse Monsoreau - que o meu bom Rémy foi quem me salvou.

- Rémy é o médico de Bussy, se não me engano...

- E foi o conde, com efeito, quem mo emprestou.

- Visto isso, é íntimo de Bussy?

- É o meu melhor amigo, e até deveria dizer que o meu único amigo - respondeu Monsoreau friamente.

- Adeus, conde - disse o príncipe levantando o reposteiro de damasco. Ao mesmo tempo que o duque deitava a cabeça de fora da tapeçaria, pareceu-lhe que tinha visto sumir-se para o quarto imediato a extremidade de um vestido de mulher, e Bussy apareceu imediatamente no lugar em que tinha ficado no meio do corredor.

A desconfiança do duque aumentou.

- Vamo-nos embora - disse ele para Bussy.

Bussy, sem lhe responder, desceu imediatamente para dar ordem à escolta que se aprontasse, talvez para assim melhor encobrir ao príncipe a vermelhidão das faces.

O duque tendo ficado só no patamar; tentou penetrar no corredor para onde tinha visto sumir-se o vestido de seda.

Porém, ao voltar-se, viu que Monsoreau tinha vindo acompanhá-lo, e se conservava, páli do e de pé, encostado à ombreira da porta.

- Vossa Alteza engana-se no caminho - disse o conde secamente.

- É verdade - balbuciou o duque -; muito obrigado.

E desceu com o coração a pular-Lhe de raiva.

Durante todo o caminho, que não levou pouco tempo, nem ele nem Bussy deram palavras. Bussy despediu-se do duque à porta do seu palácio.

Apenas o duque entrou e ficou só no seu gabinete, apresentou-se- lhe Aurilly misteriosamente.

- E então? - disse o duque logo que o avistou. - Fui ludibriado pelo marido.

- E pode ser que pelo amante também, meu Senhor - respondeu o músico.

- Que dizes tu!

- A verdade, Alteza.

- Acaba pois!

- Ouça-me, meu Senhor; e desde já confio que me perdoará, pois o que Fiz foi para melhor servir a Vossa Alteza.

- Vamos adiante; está dito, ficas de antemão perdoado.

- Muito bem! Saberá que depois que entrou, fui pôr-me a espreita debaixo dum telheiro no pátio.

- Ah, ah! E que viste?

- Vi aparecer um vestido de mulher, vi que a mulher se inclinou para diante, e que dois braços se lhe enlaçaram ao pescoço; e, como tenho o ouvido muito apurado, percebi muito distintamente o som de um beijo muito demorado e muito terno.

- Mas quem era o homem? - perguntou o duque. - Também o conheceste a ele?

Como poderia conhecê-lo pelos braços?. - replicou Aurilly. - As luvas não têm cara, meu Senhor.

- É verdade, mas podias conhecer as luvas.

- E pareceu-me, efectivamente. - disse Aurilly.

- Que as conhecias, não é verdade? Vamos lá!

- Todavia, isso não passa duma conjectura.

Não importa, diz sempre.

- Pois bem, meu Senhor! Quis-me parecer que eram as luvas do Sr. de Bussy.

- Umas luvas de anta bordadas a ouro, não é assim? - exclamou o duque, de cujos olhos desapareceu de repente a nuvem que Lhe encobria a verdade.

- De anta, bordadas a ouro, sim, meu Senhor, é isso mesmo - repetiu Aurilly.

- Ah, Bussy, sim, Bussy, é Bussy! - tornou a exclamar o duque. - Como eu estava cego!. ou melhor: não estava cego, mas parecia-me impossível tamanho atrevimento.

- Tenha cautela, meu Senhor - disse Aurilly -, parece-me que Vossa Alteza está levantando muito a voz.

- Bussy!. - repetiu novamente o duque, recordando-se de mil circunstâncias em que não tinha reparado, e que se lhe apresentavam agora à lembrança.

- Entretanto, meu Senhor - acudiu Aurilly -, convém não o incriminar ao de leve; não poderia estar algum homem escondido no quarto da Sr. de Monsoreau?

- Podia, não há dúvida; mas Bussy, Bussy, que estava no corredor, tê-lo-ia visto!

- É verdade, meu Senhor.

- E além disso as luvas, as luvas!.

- Também é assim; e demais, afora o som do beijo, ouvi ainda.

- O quê?

- Quatro palavras.

- Quais foram?

- Estas: Até amanhã à noite.

- Oh meu Deus!.

- De forma que, se quiséssemos, Senhor Duque, começar outra vez a pôr em prática o nosso antigo sistema, poderíamos saber com certeza.

- Aurilly, começaremos amanhã à noite.

- Vossa Alteza sabe muito bem que estou sempre às suas ordens, meu Senhor.

- Bom! Ah, Bussy! - repetiu o duque por entre os dentes. - Bussy traidor ao seu amo! Bussy que tanto assombro causou a todos! Bussy que tem fama de homem de bem!. Bussy que não quer que eu seja rei de França!.

E o duque, sorrindo-se com infernal alegria, despediu Aurilly para poder reflectir em liberdade.

 

           OS ESPREITADORES

Aurilly e o duque de Anju conservaram-se firmes no seu propósito: o duque entreteve Bussy junto a si quanto pôde durante o dia para que não lhe escapasse nenhum dos seus passos.

Bussy estimava muito ter ocasião de fazer a corte ao príncipe durante o dia, porque assim ficava-lhe a noite livre.

Era o sistema que tinha adoptado, e punha-o em prática sem segunda tenção. Às dez horas da noite, embuçou-se no capote, e metendo a escada de corda debaixo do braço, encaminhou-se para a Bastilha.

O duque, que não sabia que Bussy tinha escondido a escada na sua antessala, e que não podia supor que ele se atrevesse a andar só de noite pelas ruas de Paris, calculou que iria primeiro a casa buscar um cavalo e algum criado, e por isso perdeu dez minutos em preparativos; durante esses dez minutos, Bussy, ligeiro como um namorado, andara já as três quartas partes do caminho.

Bussy foi feliz na sua digressão como o são em geral as pessoas afoitas; não teve nenhum encontro mau pelo caminho, e ao chegar ao pé da casa viu luz por dentro dos vidros.

Era o sinal que tinha convencionado com Diana.

Atirou com a escada à varanda; a escada, guarnecida de seis ganchos de ferro colocados em sentidos diversos, nunca deixava de se agarrar a alguma coisa.

Diana, logo que sentiu o ruído, apagou a luz e abriu a janela, para melhor firmar os ganchos. Em seguida correu os olhos pelo largo, examinou bem todos os cantos, e vendo que estava tudo deserto, fez sinal a Bussy que podia subir.

Bussy, obedecendo ao sinal, trepou os degraus a dois e dois; os degraus eram dez, galgou-os em cinco pernadas, isto é, em cinco segundos.

A ocasião tinha sido perfeitamente escolhida, pois enquanto Bussy subia pela janela, o Sr. de Monsoreau, depois de ter estado mais de dez minutos a escutar à porta do quarto da mulher, descia a muito custo a escada, encostado ao braço dum criado seu valido, que supria as vezes de Rêmy quando não se tratava de curativos nem de remédios.

Aquelas duas manobras, que pareciam ter sido combinadas por um hábil estratégico, executaram-se por forma tal, que Monsoreau abriu a porta da rua no mesmo momento em que Bussy puxava a escada a si e Diana fechava a janela.

Monsoreau saiu para a rua; porém, como já dissemos, estava deserta, e o conde não viu ninguém.

- Dar-se-á o caso que não sejam verdadeiras as informações que te deram? - perguntou Monsoreau ao criado.

- Não, meu Senhor - respondeu, este -; estive agora mesmo no Palácio de Anju, e o intendente das cavalariças que é meu amigo, asseverou-me positivamente que Sua Alteza tinha mandado aprontar dois cavalos para esta noite; contudo, pode bem ser que fosse para ir a alguma outra parte.

- Onde queres tu que ele vá? - disse Monsoreau com modo sombrio. O conde era como todos os homens ciumentos, que se persuadem que o resto da humanidade não trata de outra coisa senão de os inquietar.

Olhou pois segunda vez em redor de si.

- Talvez fosse melhor ter ficado no quarto de Diana - murmurou ele. - Mas pode ser que tenham combinado sinais para se corresponderem, e então avisava-o ela da minha presença, e eu ficava sem saber coisa alguma. Sempre é melhor espreitar cá da parte de fora, conforme resolvemos, Vamos lá, leva-me para o tal esconderijo de onde tu dizes que se pode ver tudo.

- Venha, meu Senhor - disse o criado.

Monsoreau foi andando, agarrado ao braço do criado e encostando-se à parede. E com efeito, à distância de vinte ou vinte e cinco passos da porta, para o lado da Bastilha, estava um enorme montão de pedras provenientes de umas casas demolidas, e que de dia serviam de fortificação aos rapazes do bairro quando travavam combates entre si, restos populares dos Armanhaques o dos Borguinhões.

No meio daquele montão de pedras tinha arranjado o criado uma espécie de guarita, que podia muito facilmente abrigar e esconder duas pessoas.

Estendeu o capote sobre as pedras, e Monsoreau sentou-se.

O criado acocorou-se ao pé do conde.

Ao lado deles estava, para o que desse e viesse, um bacamarte carregado. O criado quis aprontar o morrão da arma, porém Monsoreau deteve-o.

- Espera lá - disse ele -, observemos primeiro. É caça real a que estamos fazendo; espera, que quem desfechar sobre ela tem crime de baraço.

E os seus olhos, ardentes como os dum lobo emboscado na vizinhança dum aprisco, diva gavam das janelas de Diana para as profundidades do arrabalde, para as ruas adjacentes, porque ao passo que desejava surpreender o amante da mulher, receava ser por ele surpreendido.

Diana tinha corrido prudentemente as suas cortinas de pesada tapeçaria, de sorte que um ténue raio de luz que brilhava pelos interstícios, era o único sinal de vida que se notava naquela

casa tão escura.

Ainda não tinham decorrido dez minutos depois que Monsoreau entrara para o seu es conderijo, quando apareceram dois homens a cavalo desembocando da Rua de Santo António.

O criado não falou, mas estendeu a mão na direcção dos dois cavalos.

- Estou vendo - disse Monsoreau -, estou vendo.

Os dois cavaleiros apearam-se à esquina do Palácio das Tournelles, e prenderam os cavalos às argolas de ferro que havia na parede para esse Fim.

- Meu Senhor - disse Aurilly -, parece-me que chegámos muito tarde; ele veio pro vavelmente em direitura do palácio de Vossa Alteza para aqui; trazia-nos uma dianteira de dez minutos; já entrou decerto.

- Pois bem - replicou o príncipe -: se não o vimos entrar, havemos de vê-lo sair.

- Pois sim, mas quando? - perguntou Aurilly.

- Quando quisermos - disse o príncipe.

- Se não fosse mostrar-me demasiado curioso, perguntaria a Vossa Alteza que meio tenciona empregar para o conseguir.

- É coisa facílima. Basta que um de nós bata à porta, tu por exemplo, dizendo que vens saber como passou o Sr. de Monsoreau. Os namorados assustam-se com qualquer rumor.

Então, assim que tu entrares pela porta, sai ele pela janela, e eu, que estarei cá de fora, vê-lo-ei saltar para a rua.

- E o Monsoreau?

- Que diabo queres tu que ele diga meu amigo, estou com muito cuidado nele, mando saber como passou, porque lhe achei ontem mau parecer; é muito natural.

- Acho essa lembrança muito engenhosa, meu Senhor - disse Aurilly.

- Ouves o que eles estão dizendo? - perguntou Monsoreau ao criado.

- Não, meu Senhor; mas se continuarem a falar, havemos de ouvi- los por força, porque vêm caminhando para aqui.

- Meu Senhor - disse Aurilly - aqui está um monte de pedras que parecem ter sido postas neste lugar de propósito para esconder a Vossa Alteza.

- Bem vejo; mas espera, talvez possamos espreitar através das gretas das cortinas.

A luz, que Diana havia tornado a acender, brilhava, como já dissemos, pelo intervalo das cortinas.

O duque e Aurilly andaram mais de dez minutos às voltas para acharem um posto de onde pudessem ver o interior do quarto.

Durante todas estas evoluções, sentia Monsoreau que o sangue lhe fervia nas veias, e por umas poucas de vezes pegou no bacamarte, cujo cano estava menos frio do que a mão que o segurava.

- Oh, pois eu hei-de sofrer isto? - murmurou ele. - Hei-de tragar mais esta injúria?

Não, não; acabou-se-me a paciência. É forte desgraça, não poder dormir, nem velar, nem mesmo padecer à minha vontade, só porque o cérebro odioso daquele miserável príncipe nutre um desejo vergonhoso! Não; eu não sou nenhum lacaio condescendente; sou o conde de Monsoreau, e se ele para aqui se aproximar, por minha honra que lhe deito os miolos fora!

Acende o morrão, René, acende...

Naquele momento precisamente, o príncipe, conhecendo que era impossível ver para dentro do quarto, já se ia dispondo, segundo o seu projecto, a esconder-se por detrás do entulho enquanto Aurilly ia bater à porta, quando de repente este último, esquecendo-se da distância

que havia entre ele e o príncipe, agarrou com força no braço do duque de Anju.

- Que é? - disse o príncipe admirado. - Que temos?

- Venha, meu Senhor, venha - disse Aurilly.

- Mas por que motivo?

- Não vê brilhar alguma coisa ali para a esquerda? Venha, meu Senhor, venha!

- Vejo, efectivamente, como que uma faísca no meio daquelas pedras.

- É o morrão dum mosquete ou dum arcabuz, meu Senhor!

- Ah? - disse o duque. - E quem demónio estará ali emboscado?...

- Algum amigo ou algum criado de Bussy; afastemo-nos, dêmos uma volta, e tornemos por outro lado; o criado há-de dar sinal, e então veremos Bussy saltar da janela.

- Tens razão - respondeu o duque -; vamos.

Atravessaram ambos a rua para voltarem ao sítio onde tinham prendido os cavalos.

- Vão-se embora - disse o criado.

- Vão, sim - disse Monsoreau. - Conheceste-los?

- Eram, se não me engano, o príncipe e Aurilly.

- Exactamente; mas daqui a um instante hei-de sabê-lo com toda a certeza.

- Que vai fazer, meu Senhor?

- Vem comigo!

Durante este tempo, o duque e Aurilly tomavam pela Rua de Santa Catarina com tenção de seguir pelos jardins e de voltar pela Alameda da Bastilha.

O Sr. de Monsoreau entrou em casa e mandou aprontar a liteira.

Sucedeu o que o duque tinha previsto; Bussy assustou-se com a bulha que fez Monsoreau; a luz tornou-se a apagar; abriu-se novamente a janela, firmou-se a escada de corda, e Bussy com grande pesar, teve de fugir como Romeu; mas sem ter, como Romeu, visto o primeiro arrebol da madrugada e ouvido o canto mavioso das cotovias.

No instante em que ele chegava ao solo e em que Diana Lhe tirava a escada, o duque e Aurilly desembocavam à esquina da Bastilha; viram mesmo por baixo da janela da formosa Diana uma sombra suspensa entre o céu e a terra; porém o vulto desapareceu quase imediatamente pela Rua de S. Paulo.

- Senhor - dizia o criado para Monsoreau -, olhe que vamos acordar toda a gente da casa.

- Que me importa a mim isso! - respondia Monsoreau com furor. - Parece-me que o dono da casa sou eu, e que, como tal, posso muito bem fazer o que o Senhor Duque de Anju projectava.

A liteira estava pronta. Monsoreau mandou buscar dois criados que moravam mais adiante, na Rua das Tournelles, e logo que chegaram aqueles dois homens, que eram os que sempre o acompanhavam desde que tinha sido ferido, mandou-os colocar às portinholas, e deu ordem para partir.

A pesada máquina, puxada por dois vigorosos cavalos, partiu a trote, e em menos de um quarto de hora parou à porta do Palácio de Anju.

Havia tão pouco tempo que o duque e Aurilly tinham voltado, que os cavalos estavam aparelhados.

Monsoreau, que tinha entrada franca em casa do príncipe apareceu no limiar da porta no mesmo instante em que este, depois de ter atirado com o chapéu para cima duma cadeira, estendia as pernas para um criado, mandando que Lhe tirasse as botas.

Entretanto, um criado do quarto de Sua Alteza, que tinha vindo adiante, anunciou a entrada do Senhor Monteiro-Mor.

Um raio que tivesse caído no meio do quarto não teria causado maior assombro ao príncipe do que as palavras que acabava de ouvir.

- O Sr. de Monsoreau? - exclamou ele com uma inquietação que manifestava ao mesmo tempo pela palidez do rosto e pela emoção da voz.

- Sim, meu Senhor, eu mesmo - disse o conde cumprimentando-o, ou, para melhor dizer procurando comprimir o sangue que Lhe fervia nas artérias.

O esforço que fez o Sr. de Monsoreau foi tão violento, que lhe fraquejaram as pernas, e deixou-se cair numa cadeira que estava à entrada do quarto.

- Quer matar-se, meu caro amigo, e está na verdade tão pálido que parece próximo a desmaiar.

- Oh, não por certo, meu Senhor. Tenho notícias demasiado importantes a comunicar a Vossa Alteza. Pode ser que desmaie, mas há-de ser depois.

- Vejamos, fale pois, meu caro conde - disse Francisco muito embaraçado.

- Penso que não quererá que se fale diante dos criados. - disse Monsoreau. O duque de Anju mandou todos embora, inclusivamente o próprio Aurilly. Ficaram somente os dois.

- Vossa Alteza voltou de fora agora mesmo? - perguntou-lhe Monsoreau.

- Como vê, conde.

- Vossa Alteza comete uma imprudência muito grande em andar assim de noite pelas ruas.

- Quem lhe disse que andei pelas ruas?

- Basta olhar para a poeira que traz no fato.

- Sr. de Monsoreau - disse o príncipe com um acento nada equívoco -, tem porventura outro ofício além do de monteiro-mor?

- O de espião? Sim, meu Senhor. Toda a gente faz mais ou menos de espião hoje em dia; eu faço como os outros.

- E quanto ganha por esse ofício, Senhor Conde?

- Ganho o saber o que se passa.

- Há-de ser muito curioso - disse o príncipe, chegando-se para a campainha, a fim de poder chamar alguém no caso que se tornasse necessário.

- Muito curioso, na verdade - replicou Monsoreau.

- Então conte-me o que tem a dizer-me.

- Foi para isso que vim aqui.

- Dá licença que me sente?.

- Poupe a ironia, meu Senhor, para com um humilde e fiel amigo como eu, que veio aqui a esta hora, e no estado em que se acha, unicamente para lhe prestar um serviço relevante. Se me sentei, meu Senhor, é porque não posso realmente conservar-me de pé.

- Um serviço? - repetiu o duque. - Um serviço?

- Sim, meu Senhor.

- Fale pois.

- Meu Senhor, venho ter com Vossa Alteza por mandado dum príncipe muito poderoso.

- De el-rei?

- Não; do Sr. de Guisa.

- Ah!. - disse o príncipe. - Por mandado do duque de Guisa é muito diferente. Aproxime-se, e fale baixo.

 

         COMO FOI QUE O SENHOR DUQUE DE ANJU ASSINOU E, DEPOIS DE TER ASSINADO, FALOU

Houve um instante de silêncio entre o duque de Anju e Monsoreau. O primeiro que falou foi o duque.

- Então, Senhor Conde? Que comunicação tem a fazer-me da parte dos Srs. de Guisa?

- Tenho muito que lhe dizer, meu Senhor.

- Visto isso escreveram-lhe.

- Oh, não; os Srs. de Guisa já não escrevem desde que mestre Nicolau David desapareceu dum modo tão misterioso.

- Foi pois ao acampamento ter com eles?

- Não, meu Senhor; vieram eles a Paris.

- Os Srs. de Guisa estão em Paris? - exclamou assombrado o duque.

- Sim, meu Senhor.

- E ainda os não vi?

- Eles são muito prudentes, não querem comprometer-se, nem a Vossa Alteza.

- E não me mandaram avisar?

- Mandaram, sim, meu Senhor, pois para esse Fim é que eu aqui venho.

- Mas o que vêm eles cá fazer?

- Vêm em cumprimento da ordem que Vossa Alteza lhes deu - disse Monsoreau.

- Eu dei-lhes ordem para que viessem?.

- Sem dúvida alguma; no dia em que Vossa Alteza foi preso, tinha recebido uma carta dos Srs. de Guisa, e mandou-Lhes responder verbalmente, por mim mesmo, que estivessem em Paris de 31 de Maio até 2 de Junho. Estamos hoje em 31 de Maio; já Vossa Alteza vê que, se nunca mais se lembrou dos Srs. de Guisa. Os Srs. de Guisa, pelo contrário, não se esqueceram das ordens de Vossa Alteza.

Francisco empalideceu. Tinham tido lugar tantos acontecimentos diversos desde aquele dia, que nunca mais se havia lembrado de semelhante ajuste, apesar da sua importância.

- É verdade - disse ele -; porém as relações que nessa época existiam entre mim e os Srs. de Guisa já acabaram.

- Se assim é, meu Senhor - replicou o Sr. de Monsoreau -, penso que Vossa Alteza faria bem em os avisar, pois eles encaram a questão de outro modo.

- Como assim?

- Pode ser que Vossa Alteza se julgue desligado dos seus compromissos para com eles; porém eles ainda se consideram obrigados pela promessa que Lhe Fizeram.

- Isso é um laço, meu caro conde; é um engodo que não serve para enganar duas vezes um homem como eu.

- E quando foi a primeira vez em que Vossa Alteza caiu no tal laço?

- Como? Quando caí no laço?. No Louvre, por Deus!

- E foi por culpa dos Srs. de Guisa?

- Não direi isso - murmurou o duque -, não direi isso; mas sempre é certo que não procuraram auxiliar-me na minha fuga.

- Como poderiam eles fazê-lo, visto terem fugido também, meu Senhor?

- É verdade - balbuciou o duque.

- Mas logo que chegou ao Anju, não fui eu mesmo encarregado de Lhe dizer em seu nome que poderia contar com eles, como eles contavam com Vossa Alteza, e que no dia em que marchasse sobre Paris, também eles marchariam?

- Também é verdade - disse o duque -; porém eu não marchei sobre Paris.

- Vossa Alteza marchou, e tanto assim que está aqui.

- Sim, mas estou em Paris como aliado de meu irmão.

- Vossa Alteza há-de permitir-me que Lhe observe que para com os Guisas é mais do que um aliado.

- Que sou então?

- Vossa Alteza é seu cúmplice.

O duque de Anju mordeu os beiços.

- E disse que tinha sido por eles encarregado de me prevenir da sua chegada?

- Sim, meu Senhor, fizeram-me essa honra.

- Porém não Lhe comunicaram os motivos que tiveram para aqui voltar?

- Como sabem a confiança que Vossa Alteza deposita em mim, comunicaram-me tudo motivos e projectos.

- Ah, eles têm projectos? E quais são?

- Sempre os mesmos.

- E julgam que serão praticáveis?

- Estão convencidos do seu bom êxito.

- E os projectos em questão têm por fim...

O duque deteve-se, não se atrevendo a proferir as palavras que deviam seguir-se às que acabava de dizer.

Monsoreau acabou a frase do duque.

- Têm por fim elevar Vossa Alteza ao trono de França.

O duque de Anju sentiu que uma alegria inefável Lhe fazia subir a cor ao rosto.

- Mas - perguntou ele - a ocasião será favorável?

- A sabedoria de Vossa Alteza resolverá.

- A minha sabedoria?

- Sim; eis os factos, bem visíveis e irrecusáveis.

- Vejamos.

- A nomeação de el-rei para chefe da Liga não passou duma comédia a que todos deram logo o devido valor. Agora já se vai operando a reacção, e não tarda que a nação toda se revolte contra a tirania de el-rei e das suas criaturas. Os sermões dos padres, o chamamento às armas e as igrejas, lugares onde se amaldiçoa el-rei em vez de se orar a Deus. O exército está impaciente, os burgueses vão formando associações, os nossos emissários trazem continuamente novas assinaturas e adesões à Liga; finalmente o reinado de Valois está próximo a acabar.

Numa tal ocorrência, os Srs. de Guisa precisam escolher seriamente um competidor ao trono, e lançaram as vistas, como era de supor, para Vossa Alteza. Diga-me, pois, meu Senhor, se já renunciou às ideias que teve noutro tempo.

O duque não respondeu.

- Então? - perguntou o senhor de Monsoreau. - Qual é o parecer de Vossa Alteza?

- Eu sei lá! - respondeu o príncipe. - Parece-me.

- Vossa Alteza sabe muito bem que pode responder-me com toda a franqueza.

- Meu irmão não tem filhos - replicou o duque -, é duma saúde muito débil, e por sua morte reverte o trono para mim; de que me serve pois tomar parte em todos os movimentos? Que utilidade tiro eu de comprometer o meu nome, a minha dignidade, a minha afeição, numa rivalidade inútil? Que necessidade tenho, enfim, de me arriscar para alcançar uma coisa que me há-de pertencer um dia sem incómodo algum?

- É neste ponto, exactamente - disse Monsoreau -, que vossa Alteza está enganado: o trono de seu irmão só lhe pertencerá se lho tirar. Os Srs. de Guisa não podem ser reis, mas nunca consentirão que reine outro rei senão aquele que eles houverem escolhido; contavam substituir o actual reinante por Vossa Alteza; mas, se Vossa Alteza se recusar, desde já o previno que hão-de procurar outro.

- E quem se atreverá - exclamou o duque de Anju carregando os sobrolhos - a sentar-se no trono de Carlos Magno?

- Um Borbom, em lugar dum Valois; a coisa é simples, meu Senhor; ambas as casas descendem de S. Luís.

- El-rei de Navarra. - exclamou Francisco.

- Porque não? É moço e valente; não tem filhos, é verdade, mas sabe-se com certeza que os pode vir a ter.

- É um huguenote.

- Ele? Pois não se converteu à fé na noite de S. Bartolomeu?.

- É verdade; mas já depois disso abjurou.

- O mesmo que fez para salvar a vida, fá-lo-á para se sentar no trono.

- E julgam porventura que eu hei-de ceder os meus direitos sem os defender?

- Penso que esse caso foi previsto.

- Hei-de combater a todo o transe.

- Não lhes meterá medo, são homens de guerra.

- Pôr-me-ei à frente da Liga.

- Eles são a alma da associação.

- Reunir-me-ei com meu irmão.

- A esse tempo já seu irmão terá deixado de existir.

- Chamarei em meu auxílio os reis da Europa.

- Os reis da Europa não terão dúvida em guerrear outro rei. mas sempre hão-de hesitar em declarar guerra a um povo inteiro.

- Como? A um povo?

- Decerto, porque os Srs. de Guisa estão resolvidos a tudo, mesmo a convocar os Estados, e a constituírem uma república.

Francisco juntou as mãos com inexprimível angústia. Monsoreau metia-lhe medo com as suas respostas, que estavam de harmonia con, os desejos dele.

- Uma república?. - murmurou ele.

- Sem dúvida, como a da Suíça, Génova e Veneza.

- Porém o meu partido não há-de consentir que tornem assim a França numa república.

- O seu partido? - disse Monsoreau. - Na verdade, meu Senhor, tem sido tão desinteressado tão magnânimo, que o seu partido, hoje em dia, apenas consta do Sr. de Bussy e de mim.

O duque não pôde reprimir um sorriso sinistro.

- Nesse caso devo considerar-me ligado pela minha promessa? - disse ele.

- Assim me parece, Senhor.

- Mas para que recorrem eles a mim, se, como diz, eu não tenho poder algum?

- Vossa Alteza nada pode sem os Srs. de Guisa, mas pode tudo com eles.

- Posso tudo com eles?

- Pode; basta que Vossa Alteza diga uma palavra, para ser rei.

O duque levantou-se muito agitado e começou a passear pelo quarto, amarrotando tudo quanto Lhe caía debaixo da mão, cortinas, reposteiros e tapetes de mesas; por final parou defronte de Monsoreau.

- Disse a verdade, conde, quando afirmou que eu só tenho dois amigos, o senhor e Bussy?

E proferiu estas palavras com um sorriso de benevolência.

- De forma que, meu fiel servidor - replicou o duque -, pode falar, que eu estou pronto a ouvi-lo.

- É esse o seu desejo, meu Senhor?

- É.

- Pois bem! Aqui tem Vossa Alteza o plano em duas palavras.

O duque descorou, mas parou para ouvir.

- De hoje a oito dias é a festa de Corpo de Deus, não é assim, meu Senhor?

- É verdade.

- El-rei tenciona, há muito tempo, solenizar esse dia com uma grande procissão, que há-de fazer estações nos principais conventos de Paris.

- É costume antigo sair todos os anos uma procissão nesse dia.

- Então, como Vossa Alteza estará lembrado, el-rei não vai acompanhado de guardas ou, pelo menos, os guardas ficam à porta. El-rei pára defronte de cada um dos altares de estação do Santíssimo Sacramento, ajoelha, e reza cinco pais- nossos e cinco ave-marias acompanhados dos sete salmos de penitência.

- Sei tudo isso.

- Há-de ir à Abadia de Santa Genoveva como às mais.

- Não há dúvida.

- Contudo, como em frente do convento há-de ter sucedido um desastre...

- Um desastre?

- Sim, há-de ter aluído um cano durante a noite.

- E depois?

- O altar da estação do Santíssimo não poderá ser colocado debaixo do pórtico: há-de estar dentro do pátio.

- Estou ouvindo.

- Pouco me resta a dizer: el-rei há-de entrar... poderão segui- lo quatro ou cinco pessoas; mas logo que el-rei e essas cinco pessoas estiverem dentro, fechar-se-ão as portas.

- E depois?

- Depois - replicou Monsoreau -, Vossa Alteza sabe quais hão-de ser os frades encarregados de receber Sua Majestade na abadia...

- Hão-de ser os mesmos...

- Que lá estavam quando Vossa Alteza foi sagrado; exactamente os mesmos.

- E ousarão pôr as mãos no ungido do Senhor?...

- Oh, para Lhe raparem unicamente a cabeça.

- E serão capazes de fazer semelhante coisa? - exclamou o duque brilhando-Lhe nos olhos a avidez. - Não hesitarão em tocar na cabeça dum rei?

- Oh, quando isso suceder já ele não há-de ser rei.

- Como assim?

- Nunca ouviu falar num frade de Santa Genoveva, num santo homem que se entretém em fazer discursos, enquanto não chega a ocasião de fazer milagres?

- É Frei Gorenflot?

- Precisamente.

- Aquele que queria pregar a Liga de arcabuz ao ombro?

- Esse mesmo. Pois bem! El-rei há-de ser conduzido para a cela do tal frade; logo que ali tenha entrado, o frade encarrega-se de o obrigar a assinar a abdicação; e depois, assim que tiver abdicado, há-de entrar a Senhora Duquesa de Montpensier com a competente tesoura. A tesoura já está comprada, e a Sr.a de Montpensier trá-la consigo, pendente do cinto. É uma tesoura linda, de ouro maciço, admiravelmente lavrada, e muito própria, pela sua riqueza, para o fim a que é destinada.

Francisco ficou calado; os olhos refalsados tinham-se-Lhe dilatado como os do gato que está na escuridão à espera da presa.

- O que a isto se há-de seguir é fácil de adivinhar, meu Senhor - continuou o conde. Proclama-se ao povo, dizendo-lhe que el-rei, tocado dum santo arrependimento dos seus pecados, manifestou desejos de não tornar a sair do convento; se alguns duvidarem da realidade da vocação, o Senhor Duque está à testa do exército, o Senhor Cardeal tem influência na Igreja, e o Sr. de Maiena nos burgueses; e com estes três poderes pode-se fazer acreditar ao povo quase tudo que se quer.

- Mas hão-de acusar-me de ter usado de violência - disse o duque, passado um instante.

- Não é obrigado a estar presente.

- Olhar-me-ão como usurpador.

- Vossa Alteza esquece a abdicação.

- El-rei há-de recusar.

- Dizem-me que Frei Gorenflot é não somente uma pessoa muito capaz, mas também um homem muito robusto.

- Já assentaram, pois, nesse plano?

- Irrevogavelmente.

- E não receiam que eu os denuncie?

- Não, meu Senhor; porque já se assentou noutro igualmente seguro para o caso de Vossa Alteza querer atraiçoar-nos.

- Ah? - disse Francisco.

- É verdade, meu Senhor, e desse nada sei; como conhecem quanto sou amigo de Vossa Alteza, não o conFiaram de mim. Sei que existe, e mais nada.

- Está bem: cedo, conde; que é necessário fazer?

- Aprovar.

- Pois bem! Aprovo.

- Bem; mas não basta que aprove por palavras.

- Então por que maneira hei-de aprovar?

- Por escrito.

- É loucura supor que eu possa anuir a isso!

- Porquê?

- E se a conspiração malograr?.

- É justamente para o caso de ela se malograr que se pede a assinatura de Vossa Alteza.

- Visto isso, querem fazer do meu nome um escudo.

- Unicamente.

- Pois então recuso mil vezes.

- Já não pode fazê-lo.

- Já não posso recusar?

- Não.

- Está louco?.

- Recusar é trair.

- Trair o quê?

- O que Vossa Alteza me obrigou a revelar- lhe.

- Pois não me importa! Os três senhores que qualifiquem o meu procedimento como quiserem; sou eu que escolho o perigo, se o há.

- Veja Vossa Alteza, não faça má escolha.

- Quero correr-lhe o risco - disse Francisco, já algum tanto abalado, mas procurando mostrar firmeza.

- Por seu interesse, meu Senhor - disse o conde -, dou-Lhe de conselho que não faça tal.

- Porém vou comprometer-me, se assinar.

- E recusando-se a assinar, ainda será pior, porque será assassinado! Francisco estremeceu.

- Atrever-se-ão a tanto? - disse ele.

- Atrever-se-ão a tudo, meu Senhor. Os conspiradores chegaram a ponto tal que já não podem recuar; hão-de levar a sua avante, custe o que custar.

O duque ficou num estado de indecisão que facilmente se avaliará.

- Assinarei pois - disse ele.

- Quando?

- Amanhã.

- Não, meu Senhor; se quer assinar, há-de ser já.

- Porém é necessário que os Srs. de Guisa redijam a obrigação que eu vou contrair para com eles.

- Já está redigida, meu Senhor, aqui a trago comigo.

Monsoreau tirou um papel da algibeira; era uma adesão completa ao plano que já sabemos. O duque leu do princípio ao fim, e, à medida que ia lendo, notou o conde que ele descorava; quando acabou, faltaram-lhe as pernas, e sentou-se, ou antes, deixou-se cair numa cadeira defronte da mesa.

- Aqui está, meu Senhor - disse Monsoreau oferecendo-Lhe uma pena.

- Então sempre é preciso que eu assine? - disse Francisco, encostando a cabeça à mão, pois sentia-se acometido duma vertigem.

- É preciso, se assim o quer; ninguém o obriga.

- Mas obrigam-me, sim, porque me ameaçam com o assassinato!

- Eu não ameaço, meu Senhor, Deus me livre de tal! Aviso unicamente Vossa Alteza.

- Dê-me o papel - disse o duque.

E como fazendo um esforço sobre si mesmo, tomou, ou, para melhor dizer, arrancou a pena da mão do conde, e assinou.

Monsoreau seguiu-lhe os movimentos com os olhos incendiados pelo ódio e pela esperança; quando Lhe viu pôr a pena no papel, teve de se encostar à mesa: as meninas dos olhos dilatavam-se-Lhe à medida que a mão do duque ia formando as letras de que compunha o seu nome.

- Ah! - exclamou ele quando o duque acabou.

E agarrando no papel com a mesma violência com que o duque tinha agarrado na pena, dobrou-o, entalou-o entre a camisa e o jaleco de malha de seda que substituía o colete naquela época, abotoou o gibão, e traçou a capa por cima de tudo.

O duque olhava para ele muito espantado, não percebendo a significação da alegria feroz que exprimia o pálido rosto do conde.

- E daqui em diante, meu Senhor - disse Monsoreau -, tenha prudência.

- Que quer isso dizer? - perguntou o duque.

- Quer dizer que não torne a divagar pelas ruas à noite em companhia d'Aurilly, como fez há apenas um instante.

- Explicar-me-á a razão desse dito?.

- É que esta noite, meu Senhor, foi Vossa Alteza requestar uma mulher casada que é adorada pelo marido, o qual tem tanto ciúme que. é capaz de matar quem dela se aproximar sem que ele o autorize.

- Quer acaso referir-se a si e a sua mulher?.

- Exactamente, meu Senhor; e já que Vossa Alteza adivinhou a quem eu aludia, falar-lhe-ei com franqueza. Estou casado com Diana de Méridor, pertence-me, e ninguém há-de possuí-la enquanto eu for vivo, nem mesmo um príncipe. E olhe, meu Senhor, para que Vossa Alteza Fique bem convencido do firme propósito em que estou, juro sustentar o que disse pelo meu nome e por este punhal.

E dizendo estas palavras, chegou o punhal tão perto do peito do príncipe, que este recuou.

- Está-me ameaçando? - disse Francisco pálido de cólera e de raiva.

- Não, meu príncipe; repito o que ainda agora disse: isto é um aviso somente.

- E de que pretende avisar-me?

- Que ninguém há-de possuir minha mulher.

- E eu, senhor toleirão - exclamou o duque de Anju Fora de si -, aFirmo-lhe que o aviso vem muito tarde e que já alguém a possui.

Monsoreau deu um grito terrível, arrepelando o cabelo com as mãos ambas.

- Não é o senhor!. - balbuciou ele. - Não é o senhor.

E, com a mão sempre armada do punhal, continuava a ameaçar o peito do príncipe.

Francisco recuou novamente.

- Está doido, conde! - disse ele dispondo-se a tanger a campainha.

- Não, estou em meu perfeito juízo! Sei o que digo, e ouço muito bem; acabou de dizer que alguém possui minha mulher; assim o assevera.

- E ainda o repito!

- Diga-me o nome dessa pessoa e prove-me o facto.

- Quem era que estava escondido esta noite à distância de vinte passos da sua porta com um mosquete?

- Era eu.

- Pois bem, conde, enquanto ali estava.

- Enquanto eu ali estava.

- Estava um homem em sua casa; ou, para melhor dizer, no quarto de sua esposa.

- Viu-o entrar?.

- Vi-o sair.

- Pela porta?.

- Pela janela.

- E conheceu quem ele era?

- Conheci - respondeu o duque.

- Diga-me o seu nome! - gritou Monsoreau. - Diga-me o seu nome, meu Senhor, quando não. perco-me!

O duque correu a mão pela testa, e uma espécie de sorriso assomou-Lhe aos lábios.

- Senhor Conde - disse ele -, à fé de príncipe de sangue, por Deus e por minha alma, daqui a oito dias hei-de declarar-Lhe quem é o homem que possui sua mulher.

- Jura-mo?. - exclamou Monsoreau.

- Juro.

- Pois bem, meu Senhor! Até daqui a oito dias. - disse o conde, batendo no peito por cima do sítio onde estava o papel assinado pelo príncipe - até daqui a oito dias. ou, quando não.

- Volte de hoje a oito dias, nada mais Lhe digo.

- Está bom, é melhor assim - replicou Monsoreau dentro de oito dias terei eu recobrado toda a minha força, e quem deseja vingar-se precisa de toda a sua energia.

E saiu, dirigindo ao príncipe um gesto de despedida que mais parecia um gesto de ameaça.

 

           UM PASSEIO ÀS TOURNELLES

Os fidalgos angevinos, entretanto, tinham regressado uns após outros a Paris. Não se pode dizer, contudo, que voltavam com muita conFiança. Conheciam perfeitamente o rei, o irmão e a mãe, para esperarem que a função acabaria por se abraçar a família toda.

Ainda se lembravam da montaria que os amigos do rei lhes tinham feito, e não se resolviam a acreditar que houvesse desejos de Lhes oferecer agora um triunFo em compensação daquela cena bastante desagradável.

Voltavam pois timidamente, e entravam muito sorrateiros na capital, armados de ponto em branco, prontos a desfechar à menor provocação, e puxaram pelas espadas mais de cinquenta vezes antes de chegarem ao palácio do duque de Anju, contra burgueses pacíficos que só tinham cometido o crime de olhar para eles quando passavam.

De todos eles o que mostrava mais heroicidade era Antraguet, e atribuía todos os dissabores que Lhe sucediam aos senhores favoritos do rei, formando, no seu particular, o projecto de lhes dizer, logo que tivesse ocasião, algumas palavras explícitas a semelhante respeito.

Deu parte da tenção em que estava Ribeirac, que era homem de bom conselho, e este respondeu-Lhe que antes de procurar satisfazer tão louvável desejo, seria muito conveniente certificar-se se estava bem aberto o caminho para as fronteiras.

- Dar-se-ão as providências necessárias - respondeu Antraguet.

O duque recebeu-os muito bem. Eram estes os seus validos, como os Srs. de Maugiron, Quélus, Schomberg e d'Épernon eram os favoritos do rei.

Começou por dizer-Lhes:

- Meus amigos, trata-se, segundo me consta, de dar cabo dos senhores. É assim que se recebem aqui os hóspedes agora, e portanto guardem bem as costas.

- Estamos alerta, meu Senhor - replicou Antraguet -; mas não parece a Vossa Alteza que será conveniente irmos apresentar os nossos humildes respeitos a Sua Majestade? Julgo que, para decoro do Anju, não convém que nos escondamos.

- Têm razão - disse o duque -; vão, e se quiserem, acompanhá-los- ei. Os três Fidalgos olharam uns para os outros como para se consultarem. Ao mesmo tempo entrou Bussy na sala, e correu a abraçar os amigos.

- Olé - exclamou ele -, os senhores demoraram-se muito! Mas que acabei eu de ouvir?. Sua Alteza quer ir ao Louvre expor-se a ser morto como César no meio do Senado de Roma? Lembre-se, meu Senhor, que não há um único dos senhores favoritos que não estimasse levar debaixo da capa um bocadinho do corpo de Vossa Alteza para relíquia.

- Porém, querido amigo, nós também queremos ter ocasião de contender um pouco com esses senhores.

Bussy deu uma gargalhada.

- Ah, ah! - disse ele. - Veremos, veremos.

O duque olhou para eles muito atentamente.

- Vamos ao Louvre - disse Bussy -, porém vamos nós sozinhos; Sua Alteza ficará no seu jardim, divertindo-se a derribar as cabeças das papoilas.

Francisco fingiu rir-se com muita satisfação.

O caso é que ele, lá no íntimo da alma, sentia-se muito feliz por ter escapado de os acompanhar.

Os angevinos vestiram-se com o maior esmero. Eram todos oriundos de casas muito nobres, e gastavam alegremente, em sedas, veludos e bordadoras, os rendimentos dos bens paternos.

Formavam assim reunidos um composto de ouro, de pedras preciosas e de brocado, que excitava as aclamações do povo que os via passar, e cujo faro infalível adivinhava que por baixo daqueles sumptuosos trajes palpitavam corações inflamados de ódio contra os favoritos do rei.

Henrique III não quis receber esses senhores do Anju, os quais esperaram debalde na galeria; foram os Srs. de Quélus, Maugiron, Schomberg e d'Épernon, que vieram comunicar esta resolução aos angevinos, cumprimentando-os ao mesmo tempo com toda a urbanidade, e exprimindo-lhes o profundo sentimento que tinham em ser portadores de tão má notícia.

- Meus Senhores - disse Antraguet, porque Bussy não parecia resolvido a tomar a palavra -, a notícia é triste por certo, mas, sendo dada pelos Senhores, torna-se muito menos desagradável.

- Meus Senhores - respondeu Schomberg -, não se pode na realidade ser mais amável e cortês do que os senhores são. Querem que metamorfoseemos a recepção, visto não poder ter lugar, num passeio juntos?

- Oh, esse favor estávamos nós para solicitar, meus Senhores - acudiu Antraguet, a quem Bussy acotovelou para Lhe dizer ao ouvido:

- Cala-te! deixa-os falar.

- Aonde havemos de ir? - disse Quélus como quem pensava.

- Eu sei dum sítio muito lindo para a banda da Bastilha - disse Schomberg. - Vão pois adiante, meus Senhores - replicou Ribeirac -, que nós os seguiremos. E com efeito, os quatro amigos do rei saíram do Louvre, seguidos pelos quatro angevinos, e, dirigiram-se pelo cais para a antiga Cerca das Tournelles, onde então se fazia a feira do gado e que era uma espécie de praça bastante larga, tendo de espaço em espaço algumas árvores definhadas, e entre elas barreiras destinadas a guardar os cavalos ou a prendê-los. Os oito fidalgos caminhavam de braço dado, tratando- se mutuamente com a maior delicadeza e conversando em assuntos alegres e frívolos, com grande pasmo dos burgueses, que já se arrependiam dos vivas que haviam dado aos angevinos, e diziam que estes tinham pactuado com os bacorinhos de Herodes.

Chegaram afinal.

Quélus tomou a palavra.

- Vejam que belo terreno - disse ele -, que sítio tão solitário, e como os pés se firmam bem neste chão salitroso.

- É verdade - replicou Antraguet batendo com o pé no solo em atitude de esgrimador.

- Pois bem - prosseguiu Quélus -, pensámos, estes senhores e eu, que talvez quisessem anuir a acompanhar-nos a este sítio, algum dia destes, como auxiliares do Sr. de Bussy, vosso amigo, que nos fez a honra de nos reptar a todos três.

- É verdade - disse Bossy para os seus amigos estupefactos.

- Não nos tinha dito coisa alguma! - exclamou Antraguet.

- Oh, o Sr. de Bussy é um homem que sabe o valor de certas coisas - replicou Maugiron. - Aceitam o convite, senhores de Anju?

- Por certo que sim! - responderam à uma os três angevinos. - E dá-nos muito prazer tamanha honra.

- Perfeitamente! - disse Schomberg esfregando as mãos. - E agora, se lhes parece, cada um de nós escolherá o seu adversário.

- Aprovo muito essa... - disse Ribeirac com olhar chamejante. - E então...

- Nada - interrompeu Bussy -, não convém assim; estamos todos animados dos mesmos sentimentos; portanto é Deus quem nos inspira. Creiam que é Deus que sugere as ideias dos homens. Deixemos a Deus o cuidado de nos emparelhar. E demais, não poderá haver dúvida em consentir nesta minha proposta, se convencionarmos que o primeiro que ficar livre possa acometer os outros.

- E assim deve ser! Assim convém que seja - exclamaram os favoritos.

- Então aí está mais uma razão para que a coisa se faça como eu proponho; imitemos os Horácios, tiremos à sorte.

- Eles tiraram à sorte? - disse Quélus reflectindo.

- Persuado-me que sim - respondeu Bussy.

- Pois então imitamo-los.

- Esperem um instante - atalhou Bussy -; antes de sabermos quais serão os nossosantagonistas, regulemos a forma do combate; seria indecoroso estabelecer as condições do duelo depois de escolhidos os adversários.

- As condições são muito simples - replicou Schomberg é um duelo de morte, como disse o Sr. de Saint-Luc, bater-nos-emos pois até morrer.

- Não há dúvida; mas com que armas nos havemos de bater, Senhor?

- A espada e adaga - respondeu Bussy -; são armas que nós sabemos manejar.

- A pé? - perguntou Quélus.

- E para que nos serviriam os cavalos? O homem montado não tem a mesma liberdade de movimentos que a pé.

- Pois seja a pé.

- E em que dia há-de ser?

- Quanto mais depressa melhor.

- Não - disse d'Épernon eu tenho imensos negócios a tratar primeiro, e preciso fazer o meu testamento; estimaria que houvesse mais alguma demora... três ou seis dias de espera ainda nos despertarão mais o apetite.

- Isso é que é falar como um valente - disse Bussy com bastante ironia.

Visto isso, está tudo tratado?

- Não há dúvida. Havemos de estar de perfeito acordo até ao fim.

- Então tiremos à sorte - disse Bussy.

- Espere - disse Antraguét -; proponho uma coisa: dividamos primeiro o terreno imE parcialmente. Como os nomes hão-de sair ao acaso a dois e dois, risquemos quatro divisões no terreno, uma para cada um dos pares.

- Muito bem lembrado.

- Proponho para o número 1este quadrilongo entre duas tílias... é bom lugar.

- Aprovado.

- Porém o Sol?...

- O número 2 do primeiro par que tenha paciência, há-de ficar com a cara voltada para leste.

- Nada, meus Senhores, isso não é justo - replicou Bussy. - Matemo-nos, mas não nos assassinemos. Descrevamos um semicírculo e coloquemo-nos por forma tal que o sol nos dê a todos de perfil. Sempre será melhor.

A proposição de Bussy foi aceite, e, em seguida, sortearam-se os nomes. Schomberg foi o primeiro que saiu; o segundo foi Ribeirac; foram designados para formar o primeiro par.

Quélus e Antraguet foram os segundos.

Livarot e Maugiron ficaram sendo os terceiros; ao nome de Quélus, Bussy, que tinha desejos de o ter por adversário, carregou as sobrancelhas.

D'Épernon, vendo-se necessariamente emparelhado com Bussy, empalideceu e começou a puxar pelo bigode para chamar alguma cor ao rosto.

- Ora agora, meus Senhores - disse Bussy -, daqui até ao dia do duelo pertencemos uns aos outros. Somos amigos até à morte, querem aceitar um jantar no Palácio de Bussy?

Inclinaram-se todos em sinal de assentimento, e voltaram para casa de Bussy, onde um magníFico banquete os conservou reunidos até pela manhã.

 

           EM QUE CHICOT ADORMECE

Tòdas aquelas disposições dos angevinos tinham sido observadas pelo rei, em primeiro lugar, e, em segundo lugar, por Chicot.

Henrique conservou-se no Louvre, esperando com impaciência que os seus amigos voltassem do passeio com os senhores do Anju.

Chicot seguira-os a distância, e, depois de ter examinado e conhecido pelos gestos quais eram as tenções de Bussy e de Quélos, encaminhou-se para casa de Monsoreau.

Monsoreau era um homem muito matreiro; mas não tanto que pudesse lisonjear-se de lograr Chicot. O gascão apresentou-se como encarregado pelo rei de saber da sua saúde, o que não podia deixar de ser muito bem recebido.

Chicot achou Monsoreau deitado.

A visita da véspera tinha quebrado todas as molas daquela organização apenas reconstruída; e Rémy, com o rosto encostado à mão, bastante aborrecido, esperava pelos primeiros sinais da febre que ameaçava querer apoderar-se novamente da sua vítima.

Monsoreau pôde, todavia, sustentar a conversação e disfarçar tão habilmente a raiva com que estava ao duque de Anju, que outro qualquer que não fosse Chicot não teria desconfiado de tal.

Porém, quanto mais reserva e circunspecção ele queria aparentar, mais o gascão Lhe descobria o pensamento.

Não há dúvida, dizia ele consigo, este despeito que o conde revela para com o duque de Anju leva água no bico.

Chicot, que entendia de doenças, procurou certificar-se se a febre do conde seria alguma comédia parecida com a que havia representado outrora Nicolau David.

Mas Rémy não se tinha enganado; e logo que tomou o pulso de Monsoreau: Está bom, pensou Chicot; está doente deveras e não poderá empreender coisa alguma; resta-nus purtanto o Sr. de Bussy; vejamos o que pretenderá ele fazer. "

E partiu correndo para o Palácio de Bussy, que achou resplandecente de luzes e lançando aromas culinários capazes de fazer endoidecer de contentamento Frei Gorenflot.

- Então o Sr. de Bussy casou-se hoje? - perguntou ele a um criado.

- Não, meu Senhor - respondeu o servo -; o Sr. de Bussy congraçou-se com uns poucos de fidalgos da corte, e para solenizar a sua reconciliação deu-Lhes um banquete; e que deslumbrante banquete que ele é!

Se ele os não envenenar, e disso sei eu que ele não é capaz, pensou Chicot, também Sua Majestade pode ficar descansado por esse lado.

Voltou para o Louvre, e achou Henrique na sala de armas, passeando e praguejando. Havia mandado três correios em procura de Quélus, e como os homens não sabiam os motivos que tinha Sua Majestade para estar com tanto cuidado haviam-se demorado todos três em casa do Sr. de Birague Júnior, onde todo o indivíduo que trajava a farda da casa real encontrava sempre um copo cheio de vinho, um naco de presunto e frutas de conserva.

Era o método que tinham adoptado os Birague para conservar o seu valimento. Logo que Chicot apareceu à porta da sala, Henrique soltou uma exclamação.

- Oh, meu querido amigo - disse ele -, já sabes o que será feito deles?

- De quem, dos teus meninos?

- Sim, dos meus pobres amigos!.

- A estas horas estão eles bem atrapalhados - replicou Chicot.

- Mataram-nos talvez!. - exclamou Henrique com gesto ameaçador. - Estão mortos?.

- Mortos?. Quer-me parecer que sim.

- Pois tu ris de semelhante desgraça, malvado?

- Espera, meu Filho, que eu ainda não conclui; parece-me que estarão mortos sim, mas é de bebedeira.

- Ah, bobo. mal sabes o mal que me fizeste! Mas porque estás tu caluniando os meus fidalgos?

- Ao contrário, estou-os glorificando.

- Estás sempre com zombarias. Ora vamos, peço-te que fales sério; sabes que eles saíram com os angevinos?.

- Sei, sim, meu Senhor.

- E então, qual foi o resultado?

- O resultado foi o que eu já te disse: estão a cair de bêbados, ou pouco Lhes há-de faltar a esta hora.

- Porém, Bussy, Bussy.

- Bussy está tratando de os embriagar, é um homem muito perigoso.

- Chicot. por favor!.

- É o que te digo! Bussy deu um jantar aos teus amigos; e parece-te isso muito bonito?

- Bussy deu-Lhes um jantar? Oh, é impossível, são inimigos figadais!.

- É esse exactamente o motivo; se fossem amigos não sentiriam a necessidade de se embriagarem juntos. Olha cá, tens tu boas pernas?

- Que queres dizer?

- Serias capaz de andar até às margens do rio?

- Sou capaz de ir até ao fim do mundo para presenciar um acontecimento tão extraordinário.

- Pois bem, basta que chegues ao Palácio de Bussy para veres o tal prodígio.

- Vens comigo?

- Obrigado, de lá venho eu agora mesmo.

- Mas enfim, Chicot.

- Oh, não, não; deves entender muito bem que eu, que já presenciei tudo, não preciso de lá tornar para me convencer; andei hoje tanto, que as minhas pernas estão reduzidas a três polegadas de comprimento, tanto têm encolhido para dentro da barriga. Se fosse a dar nova caminhada, eram capazes de se sumirem até aos joelhos. Vai tu, meu filho, vai.

O rei olhou para ele muito irado.

- Fazes bem - disse Chicot - em te pores de mau humor por causa daquela gente. Estão rindo, banqueteando-se, e fazendo oposição ao teu governo. Encara estas coisas filosoficamente, eles riem? Tratemos de rir nós também; estão a jantar? Manda que nos tragam algum petisco saboroso e quente. Eles querem fazer oposição? Pois vamo-nos deitar depois da ceia.

O rei não pôde deixar de sorrir.

- És um homem de muito talento, podes gabar-te disso - disse Chicot: Tem havido em França reis cabeludos, houve um rei audacioso, um rei grande, e reis mandriões; mas a ti estou certo que te hão-de chamar Henrique, o Sofredor. Ah, meu filho, é grande virtude. À falta de outra!

- Atraiçoarem-me - dizia o rei -, atraiçoarem-me!. Aqueles homens não têm sentimentos cavalheirosos!

- Ora pois, estavas com muito cuidado nos teus amigos - exclamou Chicot empurrando ao mesmo tempo o rei para a sala onde acabavam de pôr a ceia na mesa -, estavas-te carpindo como se eles tivessem morrido, e apesar de eu te dizer que não morreram, ainda choras e ainda te lamentas!. Henrique, tu estás continuamente a queixar-te.

- Dá-me cabo da paciência, Sr. Chicot!

- Diz-me: antes querias que tivesse cada um deles sete ou oito estocadas no corpo?. Sê pois consequente.

- Eu queria ter amigos com quem pudesse contar - disse Henrique com um modo triste.

- Oh, se é isso que te falta - respondeu Chicot -, conta comigo; eu aqui estou, meu filho, mas dá-me de comer. Quero um bocado de faisão. e túbaros também - acrescentou ele apresentando-lhe o prato.

Henrique e o seu único amigo foram-se deitar muito cedo; o rei a suspirar por sentir tamanho vácuo no coração, e Chicot sem poder respirar por ter o estômago muito cheio.

No dia seguinte, à hora a que o rei costumava levantar-se, apresentaram-se no paço os Srs. de Quélus, Schomberg, Maugiron e d'Épernon; o porteiro da câmara estava no costume de os deixar entrar, e por isso não hesitou em correr o reposteiro para os quatro fidalgos.

Chicot dormia ainda; o rei não tinha podido pregar olho.

Saltou muito enfurecido do leito abaixo, e, arrancando a máscara e as luvas perfumadas com que dormia sempre:

- Fora daqui - bradou ele -, fora daqui!

O porteiro, espantado, explicou aos quatro cavaleiros que o rei mandava que saíssem. Olharam uns para os outros com igual espanto.

- Porém, Real Senhor. - balbuciou Quélus. - Queríamos dizer a Vossa Majestade.

- Que já não estão embriagados - vociferou Henrique -, não é assim! Chicot abriu um olho.

Peço perdão, Real Senhor - replicou Quélus com seriedade -, Vossa Majestade está iludido.

- Pois não é porque eu bebesse vinho de Anju!.

- Ah, muito bem, muito bem!. - disse Quélus sorrindo-se. - Já percebo. sim. Pois bem!.

- Pois bem, o quê!

- Queira Vossa Majestade ouvir-nos sem testemunhas, e então conversaremos, se o houver por bem.

- Não posso aturar bêbados nem traidores!

- Senhor!. - exclamaram ao mesmo tempo os quatro fidalgos.

- Tenham paciência, Senhores - disse Quélus voltando-se para os companheiros -; Sua Majestade dormiu mal provavelmente, e teve sonhos desagradáveis. Bastará uma palavra para amenizar a disposição de espírito em que se acha o nosso respeitável soberano. Esta desculpa tão insolente, oferecida por um súbdito ao seu rei, causou alguma impressão em Henrique. Logo concluiu que não era possível que homens cujo arrojo chegava a ponto de dizerem semelhantes palavras, tivessem faltado aos deveres da honra.

- Fale - disse ele -, e seja breve.

- O que Vossa Majestade exige é possível, mas difícil.

- Sim. há certas acusações a que não é fácil responder.

- Não, meu Senhor, responde-se, e já - disse Quélus olhando para Chicot e para o porteiro, como para renovar a Henrique o seu pedido duma audiência particular.

O rei fez um aceno; o porteiro saiu. Chicot abriu o outro olho, e disse:

- Não façam caso de mim, que estou a dormir como pedra em poço. E tornando a fechar os olhos, começou a ressonar com toda a força.

 

           EM QUE CHICOT ACORDA

Quando viram que Chicot dormia tão conscienciosamente, ninguém mais reparou nele. Além de que, já todos estavam acostumados a considerar Chicot como formando parte da mobília da câmara do rei.

- Vossa Majestade - disse Quélus inclinando-se - apenas sabe metade da história; e direi mais: a metade menos interessante. É com efeito verdade, e nenhum de nós tenciona negá-lo, que jantámos todos em casa do Sr. de Bussy, e devo mesmo acrescentar, em abono do seu cozinheiro, que jantámos muito bem.

- Havia especialmente um certo vinho da Áustria, ou da Hungria - disse Schomberg - , que, na verdade, me pareceu admirável.

- Oh, não foras tu alemão! - interrompeu o rei; - gostas de vinho, sempre desconfiei disso.

- Eu já o sabia há muito tempo - disse Chicot -, tenho-o visto bêbado mais de vinte vezes.

Schomberg virou-se para ele.

- Não faças caso, meu filho - disse o gascão -, eu costumo falar a sonhar, e senão el-rei que o diga.

Schomberg voltou-se para Henrique.

- Eu, meu Senhor - replicou ele -, não costumo ocultar nem as minhas inclinações, nem as minhas antipatias; o vinho, quando é bom, é coisa muito apreciável.

- Não devemos chamar apreciável a uma coisa que nos faz esquecer de nosso senhor - disse o rei com um modo bastante reservado.

Schomberg ia para responder, pois não queria provavelmente abandonar assim de leve a defesa de tão bela causa, porém Quélus fez-Lhe um sinal.

- Tens razão - disse Schomberg -, prossegue.

- Dizia eu, pois, meu Senhor - replicou Quélus - que tanto antes como durante o jantar conversámos muito seriamente sobre assuntos importantíssimos, por isso que eram particularmente concernentes aos interesses de Vossa Majestade.

- O exórdio já vai muito extenso - disse Henrique -; é mau sinal.

- Cos demónios! Muito tagarela é este Valois! - exclamou Chicot.

- Oh, oh, senhor gascão - disse Henrique com altivez -, se não estás a dormir, sai já daqui.

- Se estou acordado é porque não me deixas dormir; a tua língua parece uma matraca em Sexta-Feira de Paixão.

Quélus, vendo que não era possível na câmara real tratar seriamente qualquer assunto, por muito grave que fosse, por isso que era tal a frivolidade de todos que não prestavam atenção a coisa alguma, suspirou, encolheu os ombros, e levantou-se despeitado.

- Contudo, meu Senhor - disse d'pernon balanceando o corpo -, o negócio de que se trata é muito sério.

- Muito sério? - repetiu Henrique.

- Sem dúvida... isto é, se a vida de oito valentes cavalheiros tem algum valor aos olhos de Vossa Majestade.

- Que quer dizer isso? - perguntou o rei.

- Quer dizer que estou a esperar que el-rei se digne ouvir- me.

- Estou ouvindo, meu filho, estou ouvindo - disse Henrique pondo a mão sobre o ombro de Quélus.

- Muito bem! Dizia eu pois, Real Senhor, que tínhamos conversado muito seriamente e agora eis o resultado da nossa conferência: a realeza acha- se ameaçada e fraca.

- Queres dizer que todos conspiram contra ela? - exclamou Henrique.

- Parece-se - prosseguiu Quélus - com aqueles deuses extraordinários, semelhantes aos deuses de Tibério e de Calígula, que se tornam decrépitos sem poderem morrer, e continuavam a existir, sempre imortais, mas sofrendo todas as enfermidades humanas. Os rais deu5es, quando chegavam àquele ponto, só paravam no meio da sua decrepitude quando a louvável dedicação de algum sectário os remoçava e ressuscitava. Pois bem! Real Senhor: a vossa realeza assemelha-se aos deuses em questão; já não pode viver senão a poder de sacrifícios.

- Está dizendo bocadinhos de ouro - acudiu Chicot: Quélus, meu filho, dedica-te a pregar pelas ruas de Paris, e aposto um boi contra um ovo que hás-de sobressair a Lincestre Caliler, Cotton, e até mesmo ao tonel de eloquência a que chamam Frei Gorenflot.

Henrique não respondeu coisa alguma; era evidente que se estava a efectuar grande mudança no seu espírito; tinha começado por atacar os seus favoritos com olhar altivo, mas, cedendo gradualmente à influência da verdade, tornava-se agora pensativo, sombrio e inquieto.

- Continua - disse ele -, bem vês que estou a ouvir com atenção Quélus.

- Vossa Majestade - replicou este - é um grande rei, mas já não tem horizonte na sua frente: os nobres acabam de levantar umas barreiras além das quais os olhos de Vossa Majestade nada vêem a não ser o vulto que já não fazendo as barreiras que o povo também começa a levantar. Ora bem! Vossa Majestade, que é um valente cabo-de- guerra, diga-me: que se faz numa acção, quando um batalhão vem colocar-se, qual outra muralha ameaçadora, a trinta passos de distância de outro batalhão? Os fracos olham para a retaguarda, e vendo o espaço lev e livre, fogem; os valentes abaixam a cabeça, e sem medir o perigo, arremetem para a frente.

- Pois bem, seja assim; vamos para a frente! - Bradou o rei. - Não sou eu, porventura o primeiro nobre do meu reino? Sempre quero que me digam se já houve batalhas mais importantes do que aquelas em que entrei na minha mocidade; e se este século que está a terminar se pode gabar de muitos nomes mais gloriosos do que os de Jarnac e Moncontour... Para a frente pois, Senhores; e eu irei adiante de todos, como é sempre o meu costume nas refregas.

- Muito bem, Real Senhor! - exclamaram os fidalgos electrizados por esta demonstração belicosa do rei. - Saiamos a campo!

Chicot sentou-se na cama.

- Silêncio! Caluda! Deixem continuar o meu orador. Anda, Quélus, anda, meu filho; tens falado muito bem, mas ainda te resta muito que dizer. meu amigo, prossegue.

- Sim, Chicot, tens razão, e já não é a primeira vez que isso te sucede. Prosseguirei pois, para dizer a Sua Majestade que está chegada a ocasião de aceitar em favor da realeza um daqueles sacrifícios de que há pouco falei. Há quatro homens que resolveram sair a campo contra todos os obstáculos que cercam insensivelmente a Vossa Majestade, e estão certos de que hão-de merecer a sua aprovação, Real Senhor, e os louvores da posteridade.

- Que dizes tu, Quélus! - perguntou o rei com alegria e solicitude ao mesmo tempo. Quem são esses quatro homens?

- Estes senhores e eu - respondeu o jovem fidalgo com aquele sentimento de altivez que engrandece todo o homem que se dispõe a jogar a vida por um princípio ou por uma paixão - ; estes senhores e eu, determinamos sacrificarmo-nos, Real Senhor.

- Para quê?

- Para salvarmos Vossa Majestade.

- E contra quem?

- Contra os seus inimigos.

- Ódios de rapazes! - exclamou Henrique.

- Oh, aí está a expressão dos preconceitos do vulgo, Real Senhor; e a afeição que nos tem Vossa Majestade é tão generosa que procura encobrir-se sobre um pretexto tão trivial; mas nós bem a reconhecemos. Fale como rei, Senhor, e não como um burguês da Rua de S. Dinis. Não finja persuadir-se de que Maugiron detesta Antraguet, e que Schomberg tem aversão a Livarot, que d'Épernon tem inveja de Bussy e que Quélus quer mal a Ribeirac. Nada disso; todos eles são jovens e de bom carácter; amigos e inimigos, todos poderiam estimar-se como irmãos. Não é a rivalidade de homem para hómem que nos impele a desembainharmos as espadas, é a contenda de França com o Anju, a questão do direito popular contra o direito divino; vamos apresentar-nos como campeões da Liga, e vimos aqui dizer a Vossa Majestade: Abençoe-nos, Senhor; digne-se sorrir para aqueles que vão morrer pela sua causa. A sua bênção contribuirá talvez para que sejam vencedores, e um sorriso seu ajudá-los-á a morrer.

Henrique, sufocado pelo pranto, abriu os braços para Quélus e seus companheiros. Apertou-os de encontro ao peito; e não era por certo um espectáculo destituído de interesse, aquela cena em que o ânimo varonil se unia às emoções duma profunda ternura, que a dedicação santiFicava naquela hora solene.

Chicot, muito sério e sorumbático, e com a cabeça encostada à mão, contemplava-os do fundo da alcova, e aquele rosto, em que ordinariamente apenas se divisava a frieza da indiferença ou o riso do sarcasmo, não era naquela ocasião o menos nobre nem o menos eloquente dos seis.

- Ah, meus valentes! - disse Finalmente o rei. - A vossa dedicação é bela, é nobre, e eu sinto-me hoje orgulhoso, não de ser rei de França, mas de ter amigos como os senhores. Contudo, como sei o que me convém melhor do que pessoa nenhuma, não quero aceitar um sacrifício cujo resultado seria ficar eu entregue às mãos dos meus inimigos, se acaso fossem mal sucedidos. Acreditem no que lhes digo: para fazer guerra ao Anju, basta a França. Eu conheço meu irmão, os Guisas e a Liga; já por muitas vezes na minha vida tenho domado cavalos mais fogosos e intratáveis.

- Porém, Senhor - exclamou Maugiron -, os soldados não raciocinam assim; a probabilidade duma alternativa desfavorável não pode entrar no exame duma questão como esta; questão de honra, questão de consciência, em que o homem se empenha por convicção, sem medir as consequências.

- Isso não é assim, Maugiron - respondeu o rei -; o soldado pode ir como cego, mas o capitão tem de reflectir.

- Reflicta pois Vossa Majestade, e deixe que nós, visto não sermos mais do que soldados obremos como entendermos - disse Schomberg e demais, eu cá não sei o que seja sorte adversa, sou sempre feliz.

- Ah, meu amigo - interrompeu o rei tristemente -, já eu não posso dizer o mesmo; é verdade que tu apenas tens vinte anos.

- Senhor - disse Quélus -, as palavras tão obsequiosas que Vossa Majestade acaba de nos dirigir ainda aumentam o nosso ardor. Em que dia determina que se cruzem as nossas espadas com as dos Srs. de Bussy, Livarot, Antraguet e Ribeirac?

- Nunca; proíbo-lho expressamente. Nunca! Têm entendido?

- Queira Vossa Maestade desculpar-nos - replicou Quélus - mas ontem, antes do jantar, ajustámos o nosso encontro, demos as nossas palavras, e não podemos faltar a elas.

- Embora, Senhor - respondeu Henrique -; el-rei pode anular os juramentos e as palavras dizendo: eu quero, ou, não quero; porque o rei tem o poder supremo. Mande dizer aos tais senhores que eu proíbo aos meus amigos que se batam, sob pena de sentirem o peso da minha cólera; e para que os senhores mesmos não fiquem em dúvida da realidade da minha proibição, juro desterrá-los a todos se...

- Não continue, Senhor - interrompeu Quélus -, porque se Vossa Majestade pode desligar-nos das nossas promessas, só Deus pode desligá-lo da sua. Não jure, pois, porque se incorrermos no seu desagrado por este motivo, e se o resultado da nossa desobediência for um desterro, sairemos do reino com muita satisfação, por isso que, logo que deixarmos de pisar terras de Vossa Majestade, poderemos cumprir a nossa promessa, e encontrarmo-nos com os niossos adversários em país estrangeiro.

- Se eles se aproximarem dos meus amigos à distância dum tiro de arcabuz que seja exclamou Henrique -, mando-os encerrar a todos quatro na Bastilha.

- Senhor - respondeu Quélus -, se Vossa Majestade fizesse semelhante coisa, iríamos no mesmo dia, descalços e com uma corda ao pescoço, apresentar-nos a Lourenço Testu, governador da fortaleza, para que nos encerrasse juntamente com esses fidalgos.

- Mandar-Lhes-ei cortar as cabeças, por Deus! Parece-me que ainda sou rei!

- Se tal desgraça sucedesse aos nossos inimigos, Real Senhor, iríamos degolar-nos ao pé do seu cadafalso.

Henrique conservou-se por alguns instantes calado, e afinal, erguendo os seus olhos pretos:

- Têm razão, meus amigos - disse ele -; são uns Fidalgos às direitas! Muito bem...

- Se Deus não abençoasse uma causa que tem por defensores gente como...

- Não sejas ímpío... não digas blasfémias! - disse Chicot com solenidade, saltando abaixo da cama e dirigindo-se ao rei. - Sim, todos eles são homens valentes e generosos. Mas Deus há-de fazer o que Lhe aprouver, percebes, meu amo? Vamos lá indicar o dia para o duelo destes rapazes. É isso que te cumpre fazer, e não dar leis ao Todo-Poderoso.

- Oh, meu Deus, meu Deus! - murmurou Henrique.

- Real Senhor, nós Lho suplicamos - disseram os quatro fidalgos, inclinando a cabeça e dobrando o joelho.

- Pois bem, far-lhes-ei a vontade. Com efeito, Deus é justo, e deve-nos a vitória; mas sempre trataremos de correr para ela por meios judiciosos e próprios de cristãos. Meus caros amigos, lembrem-se que Jarnac cumpriu com as suas obrigações de devoção antes do duelo com La Chataignerale; este último era um hábil esgrimador, porém nas vésperas do encontro entregou-se à devassidão e à sua paixão por mulheres, pecado abominável. Em suma; tentou a Deus, o qual, compadecido da sua mocidade, formosura e vigor, quis talvez salvar-lhe a vida e o resultado foi Jarnac deixá-lo aleijado duma perna. Ouçam-me pois: nós vamos começar com as nossas devoções; se houvesse tempo, mandaria as vossas espadas a Roma para que O Padre Santo as benzesse... Porém temos aqui o relicário de Santa Genoveva, que também é muito eficaz. Jejuemos, flagelemo-nos, e santiFiquemos o grande dia do Corpo de Deus; e logo no imediato.

- Ah, Real Senhor, obrigado, obrigado!. - exclamaram os quatro fidalgos. - É de hoje a oito dias.

E beijaram as mãos do rei, que os abraçou a todos novamente, e se recolheu em seguida para o seu oratório lavado em lágrimas.

- O nosso cartel já está redigido - disse Quélus -; falta só designar o dia e a hora. Escreve, Maugiron, senta-te a essa mesa. com a pena de el-rei, escreve; no dia imediato ao do Corpo de Deus.

- Está pronto - respondeu Maugiron -; mas quem havemos de encarregar de levar a carta?

- Irei eu levá-la, se quiserem - disse Chicot aproximando-se -, mas primeiro desejo dar-lhes um conselho, meus meninos: Sua Majestade falou em jejuns, flagelações e relicários... Tudo isso é muito bom quando se trata de cumprir um voto depois de alcançada a vitória; porém antes dum combate, parece-me mais eficaz usar de comida suculenta, de vinho generoso, e dormir solitariamente oito horas por dia ou por noite. Não há coisa que tanto contribua para dar flexibilidade e firmeza ao pulso como é uma estação de três horas à mesa, mas sem embriaguez, já se sabe. Aprovo todavia o que disse el-rei a respeito dos amores: é divertimento que muito enfraquece, será bom absterem-se deles.

- Bravo, Chicot! - exclamaram a um tempo os mancebos.

- Adeus, meus leõezinhos - respondeu o gascão -; vou sem demora ao Palácio de Bussy.

Deu três passos, e voltou atrás.

- É verdade - disse ele -, não abandonem nem um instante el-rei durante o grande dia do Corpo de Deus; não vão para o campo nem para parte alguma: conservem-se no Louvre como um grupo de paladinos. Está combinado, não é assim? Bem, então vou fazer o vosso recado.

E Chicot, com a carta na mão, abriu a esquadria que formavam as suas imensas pernas, e desapareceu.

           DIA DO CORPO DE DEUS

Durante aqueles oito dias foram-se preparando os acontecimentos, como se forma uma tempestade na atmosfera nos dias calmosos e pesados do Estio.

Monsoreau, já restabelecido, depois de quarenta e oito horas de febre, procurou ele mesmo espreitar o ladrão da sua honra; porém, como não descobriu pessoa alguma, ficou mais do que nunca capacitado da hipocrisia do duque de Anju e das suas tenções sinistras relativamente

a Diana.

Bussy não interrompeu as suas visitas diárias a casa do monteiro-mor. Contudo, tendo sido avisado por Le Haudouin da contínua espionagem do convalescente, absteve-se de entrar de noite pela janela.

Chicot repartiu o tempo em duas partes iguais:

Uma era consagrada a seu amo muito querido, Henrique de Valois, a quem ele fazia assídua companhia, vigiando-o como uma mãe ao Filho.

A outra dedicava-a ao seu terno amigo Gorenflot, que ele tinha induzido a muito custo havia oito dias, a voltar para a cela, aonde o tinha acompanhado, sendo recebido pelo abade o Rev. o José Foulon, com as maiores demonstrações de prazer.

Naquela primeira visita tinha-se falado muito a respeito da piedade do rei; e o prior parecia sumamente penhorado pela honra que Sua Majestade tencionava fazer à abadia, visitando-a.

A honra ainda era maior do que a princípio se esperava, pois Henrique, a pedido do venerável abade, tinha anuído a passar o dia e a noite em oração no convento. Chicot confirmou o abade nesta esperança, que ele não se atrevia a nutrir, e como era geralmente sabido que o rei atendia muito Chicot, convidaram-no com muita instância a que voltasse, e este aceitou o convite. Quanto a Gorenflot, esse tinha crescido mais dez braças na opinião dos frades. Era com efeito um golpe de mestre ter assim captado toda a confiança de Chicot. Maquiavel de política memória, não o teria feito melhor.

O gascão, acedendo ao convite que Lhe tinha sido feito, voltou ao convento, e como levava sempre consigo, nos bolsos, debaixo da capa, e dentro das enormes botas, frascos dos vinhos mais raros e mais estimados, Frei Gorenflot ainda lhe fazia melhor acolhimento do que o Rev. o José Foulon.

Encerrava-se então horas inteiras na cela do monge, partilhando, no dizer de todos, dos seus estudos e dos seus êxcases.

Na antevéspera do dia do Corpo de Deus, até passou a noite toda no convento; no dia seguinte corria na abadia o boato de ter Gorenflot resolvido Chicot a meter-se frade.

O rei, entretanto, ocupava-se em dar lições de esgrima aos seus amigos, procurando inventar com eles sortes desconhecidas, e esmerando-se principalmente em adestrar d'Épernon, a quem a sorte tinha deparado um tão temível adversário, e que se mostrava visivelmente preocupado com a aproximação do dia decisivo.

Quem andasse pela cidade a certas horas da noite, teria encontrado no Bairro de Santa Genoveva aqueles frades tão singulares que descrevemos no princípio desta história, e que mais pareciam homens de armas do que monges.

Finalmente, também poderíamos acrescentar, para completar o quadro que aqui começámos a esboçar, que o Palácio dos Guisas se tinha tornado um antro misterioso e turbulento, muito povoado no interior e deserto exteriormente; que todas as noites havia conciliábulos na sala principal, depois de fecharem hermeticamente as portas das janelas; que aos conciliábulos precediam jantares para os quais só eram convidados homens, mas a que presidia no entanto a Sr. de Montpensier.

Estes pormenores, que existem nas memórias daquele tempo, damo-los aos nossos leitores, por isso que não os encontrariam por certo no arquivo da polícia.

É fora de dúvida que a polícia daquele reinado tão benigno não tinha a mais leve ideia do que se tramava, se bem que a conspiração, como adiante se verá, fosse bastante grave, e os honrados burgueses que faziam as patrulhas nocturnas de morrião na cabeça e alabarda na mão, estavam tão cegos como ela, pois não eram gente que sonhasse com outros perigos além dos que resultam do fogo, dos ladrões, de cães danados, e de rixas de bêbados.

Verdade seja que, de vez em quando, lá parava uma patrulha em frente da hospedaria da Estrela Brilhante na Rua da Árvore Seca; porém mestre La Hurière era tido na conta de tão bom católico, que ninguém duvidava que fosse para maior glória de Deus a grande algazarra que se ouvia naquele estabelecimento.

Foi nesta situação que a cidade de Paris viu decorrer os dias que precederam a manhã daquela grande solenidade, hoje abolida pelo governo constitucional, e a que chamavam o Corpo de Deus.

Estava um tempo lindo na manhã daquele dia festivo, e as flores de que se achavam juncadas as ruas espargiam pelo ar os seus suaves aromas.

Chicot, que dormia efectivamente, havia quinze dias, no quarto do rei, acordou Henrique logo ao amanhecer.

Ainda ninguém tinha entrado na câmara real.

- Ah, meu pobre Chicot - exclamou Henrique -, que má ocasião escolheste para me despertar. Interrompeste o sonho mais agradável que tenho tido na minha vida!

- E em que estavas tu sonhando, meu Filho? - perguntou Chicot.

- Sonhava que Quélus tinha passado Antraguet de lado a lado com uma estocada, e que via aquele meu querido amigo a nadar no sangue do seu adversário. Mas está chegado o dia, Vamos orar a Deus para que se realize o meu sonho. Chama, Chicot, chama!

- Que queres tu?

- Quero o meu cilício e as minhas disciplinas.

- Não seria melhor um bom almoço? - perguntou Chicot.

- Idólatra! - exclamou Henrique. - Queres ouvir a missa do dia do Corpo de Deus com o estômago cheio?

- Tens razão.

- Chama, Chicot, chama.

- Tem paciência - retorquiu Chicot -, são oito horas apenas, há tempo de sobejo para te açoitares daqui até à noite. Conversemos primeiro: queres conversar com o teu amigo? Olha que não te hás-de arrepender, Valois, à fé de Chicot.

- Pois bem, conversemos - disse Henrique -; mas avia-te.

- Como tencionas dividir o dia de hoje, meu filho?

- Em três partes.

- Em louvor da Santíssima Trindade, muito bem. Vejamos como se hão-de preencher essas três partes.

- Em primeiro lugar, ouviremos missa em S. Germano-L'Auxerrois.

- Bom!

- De volta ao Louvre, tomaremos uma refeição.

- Muito bem.

- Depois, haverá uma procissão de penitentes pelas ruas, a qual fará estações nos principais conventos de Paris, começando pelos Domínicos, e acabando nos frades de Santa Genoveva, onde já prometi ao prior que me hei-de recolher até amanhã na cela duma espécie de santo, que há-de passar a noite a orar para alcançar de Deus o triunfo da minha causa.

- Bem sei quem é.

- Quem, o santo?

- Exactamente.

- Tanto melhor; acompanhar-me-ás, Chicot, rezaremos juntos.

- Pois sim, fica descansado.

- Pois então veste-te, e anda comigo.

- Espera lá.

- Que mais temos?

- Ainda preciso indagar de ti alguns pormenores.

- Não podes perguntar-me o que pretendes saber enquanto me vestirem?

- Prefiro perguntar enquanto estamos sós.

- Pois diz depressa, que o tempo vai passando.

- Que fazes da tua corte?

- Vai comigo.

- E teu irmão?

- Há-de acompanhar-me.

- E os teus guardas?

- A guarda francesa, comandada por Crillen, há-de esperar por mim no Louvre; os suíços

hão-de ir para a porta da abadia.

- Uptimamente! - disse Chicot. - Estou perfeitamente informado.

- Já posso chamar?

- Podes.

e Henrique tangeu uma campainha.

- A função há-de ser magnífica - prosseguiu Chicot.

- E espero que há-de ser bem aceite por Deus.

- Amanhã veremos. Porém, diz-me, Henrique, antes que entre mais alguém: não tens mais

nada a comunicar-me?

- Não. Esquecer-me-ia algum dos pormenores do cerimonial?

- Não é a isso que me refiro...

- A que te referes então?

- A nada.

- Porém perguntavas-me...

- Se sempre estás resolvido a ir à Abadia de Santa Genoveva...

- Decerto.

- E tencionas lá passar a noite?

- Assim o prometi.

- Pois bem, se nada mais tens a comunicar- me, meu filho, dir-te-ei que esse cerimonial não me agrada.

- Como?

- Já disse; e quando acabarmos de jantar.

- Sim.

- Dar-te-ei conta do plano de outra função que imaginei.

- Pois bem, consinto.

- Ainda que não consentisses, meu filho, sempre havia de pôr em prática o meu projecto.

- Que queres tu dizer?

- Silêncio, que vêm entrando na antessala os teus criados!

E com efeito, os porteiros correram os reposteiros, e logo apareceu o barbeiro, o cabeleireiro, e o criado particular de Sua Majestade, os quais, apoderando-se do rei, começaram a executar, de concerto, as diversas operações que já descrevemos no princípio desta obra.

Quando Sua Majestade estava quase pronto, anunciaram-Lhe a chegada de Sua Alteza o Senhor Duque de Anju.

Henrique voltou-se para o lado de onde ele vinha entrando, e aprontou para o receber o seu mais amável sorriso.

O duque vinha acompanhado do Sr. de Monsoreau, d'Épernon e Aurilly. D'Epernon e Aurilly ficaram atrás.

Henrique, à vista do conde ainda pálido, e cujo semblante estava mais transtornado que de costume, não pôde reprimir um movimento de surpresa.

O duque percebeu o movimento, o qual também não escapou ao conde.

- Real Senhor - disse o duque -, aqui está o Sr. de Monsoreau, que vem apresentar os seus respeitos a Vossa Majestade.

- Obrigado, Senhor Conde - respondeu Henrique -; e penhora-me tanto mais a sua visita, por isso que ouvi dizer que foi muito ferido; é verdade?

- Sim, meu Senhor.

- Andando à caça, segundo me constou.

- Sim, meu Senhor, andando à caça.

- Porém já está melhor agora, não é assim?

- Já estou restabelecido.

- Senhor - disse o duque -, será do agrado de Vossa Majestade que, depois de cumpridas as nossas devoções, o Senhor Conde de Monsoreau nos prepare uma boa montaria nos bosques de Compienha?

- Mas. - disse Henrique - não sabe que amanhã.

Ia para dizer: amanhã quatro dos meus amigos ajustaram encontrarem-se com igual número dos seus, mas lembrou-se que lhe tinham pedido que guardasse segredo, e deteve- se.

- Não percebe, Senhor - replicou o duque de Anju -, mas se Vossa Majestade quisesse informar-me.

- Queria dizer - tornou Henrique - que tencionando passar a noite que vem em oração na Abadia de Santa Genoveva, não poderei talvez aprontar-me para amanhã; mas não importa: o Senhor Conde pode partir, e se amanhã não tiver lugar a montaria, ficará para depois de amanhã.

- Ouviu? - disse o duque para Monsoreau.

- Sim, meu Senhor - respondeu o conde inclinando-se.

Naquele momento entraram Schomberg e Quélus; o rei recebeu-os de braços abertos.

- Ainda um dia! - disse Quélus cumprimentando o rei.

- Um só dia, felizmente! - disse Schomberg.

Entretanto, dizia Monsoreau para o duque:

- Pelo que vejo, fez-me desterrar, meu querido Senhor...

- Não cumpre porventura ao monteiro-mor preparár as caçadas de el-rei? – respondeu o duque rindo-se.

- Eu bem me entendo - respondeu Monsoreau -, e percebo o motivo de tudo isto. Acaba esta noite o oitavo dia de espera que Vossa Alteza me pediu, e Vossa Alteza prefere mandar-me para Compienha a cumprir o que prometeu. Mas acautele-se Vossa Alteza: daqui até

à noite, posso eu com uma única palavra...

Francisco agarrou no braço do conde.

- Cale-se! - disse ele. - Pois o que eu Fiz foi para cumprir essa promessa cuja execução reclama.

- Explique-se.

- A sua partida para a caça há-de ser sabida de toda a gente, visto que é por ordem oFicial.

- E depois?

- E depois não partirá; esconder-se-á nas imediações da sua casa, e naturalmente lá há-de aparecer, julgando que o senhor partiu, o homem que deseja conhecer; o mais que terá a fazer não me toca a mim indicar-lhe; pois se bem me lembra, foi isto unicamente o que prometi.

- Ah, ah, se isso é assim... - disse Monsoreau.

- Tem a minha palavra - respondeu o duque.

- Tenho outro penhor de maior valia, meu Senhor: tenho a sua assinatura.

- Tem, com todos os demónios, bem sei.

E o duque afastou-se de Monsoreau para se aproximar do irmão; Aurilly bateu no braço d'Épernon.

- É negócio tratado - disse ele.

- O quê? Que negócio é que está tratado?

- O Sr. de Bussy não se há-de bater amanhã.

- Mas porque não se há-de bater amanhã o Sr. de Bussy?.

- Eu Lho prometo.

- E quem Lhe há-de obstar?

- Que Lhe importa! Contanto que ele não se bata...

- Se acaso assim for, meu querido nigromante, ganhaste mil escudos!

- Meus Senhores - gritou Henrique logo que acabou de se vestir -, vamos para S. Germano-L'Auxerrois!

- E de lá para a Abadia de Santa Genoveva? - perguntou o duque.

- Certamente - respondeu o rei.

- Conte com isso - murmurou Chicot, afivelando o cinturão da espada.

E Henrique encaminhou-se para a galeria, onde toda a corte o estava esperando.

 

         ESCLARECIMENTOS PARA INTELIGÊNCIA DO CAPÍTULO ANTECEDENTE

Na véspera, à noite, depois de terem os Guisas e os angevinos concertado o seu plano, o Sr. de Monsoreau, ao voltar para casa, tinha encontrado lá Bussy.

Então, lembrando-se que aquele valoroso fidalgo, por quem ele sentia verdadeira amizade, poderia comprometer-se gravemente no dia seguinte, se não fosse avisado, chamou-o de parte.

- Meu querido conde - disse ele -, quer permitir que lhe dê um conselho?

- Pois não - respondeu Bussy -, com o maior gosto.

- Eu, se fora ao senhor, meu amigo, ausentar-me-ia amanhã de Paris.

- E por que motivo?

- Porque só assim é que se livrará duma grandíssima responsabilidade.

- Duma grandíssima responsabilidade?. - repetiu Bussy, olhando fixamente para o conde - e de que natureza?

- Ignora o que deve ter lugar amanhã?

- Completamente.

- Pela sua honra?

- À fé de cavalheiro!

- O Sr. de Anju não Lhe conta coisa alguma?

- Nada. O Sr. de Anju só me conta aquilo que me pode dizer abertamente, e até acrescentarei: aquilo que ele pode contar a toda a gente.

- Pois bem! Eu não sou o duque de Anju; eu, que sou amigo dos meus amigos por eles e não por mim, dir-Lhe- ei, meu caro conde, que se andam preparando para amanhã acontecimentos muito sérios, e que os partidários de Anju e dos Guisas tencionam pôr em execução um projecto, cujo resultado poderá muito bem ser a deposição de el-rei.

Bussy encarou o Sr. de Monsoreau com alguma desconfiança; porém o seu rosto exprimia a maior franqueza, não havia ali por certo fingimento.

- Conde - respondeu ele -, eu pertenço ao duque de Anju, como sabe; isto é, pertemcem-Lhe a minha vida e a minha espada. El-rei, contra quem eu nunca empreendi coisa alguma ostensivamente, é-me contrário, e nunca deixa perder ocasião de dizer ou de fazer coisas que me ofendam. E amanhã mesmo (Bussy falou baixinho) - digo-lhe isto, mas é segredo, parcebe? - amanhã vou expor a minha vida para desfeitear Henrique de Valois na pessoa dos seus validos.

- Visto isso - perguntou o Sr. de Monsoreau -, está resolvido a sofrer todas as consequências da sua adesão ao partido do duque de Anju?.

- Estou.

- E já calculou bem até que ponto essa resolução o pode arrastar?

- Sei até que ponto tenciono chegar; por muito fortes que sejam os motivos que tenha para não gostar de el-rei, nunca a minha mão se erguerá contra o ungido do Senhor; deixarei proceder os mais, e seguirei o Senhor Duque de Anju, para o defender, se ele correr algum

perigo mas sem ferir nem provocar pessoa alguma.

O Sr. de Monsoreau reflectiu um instante, e pondo a mão sobre o ombro de Bussy:

- Meu querido conde - disse ele - o duque de Anju é um pérfido, um cobarde, um traidor, capaz de sacrificar o seu mais fiel servidor, ou o seu maior amigo, por causa dum crime ou dum receio; abandone-o, meu caro conde, tome o conselho dum amigo; vá passar o dia de amanhã na sua casinha de Vincenas; vá para onde lhe parecer, menos à procissão do Corpo de Deus.

Bussy tornou a olhar para ele fixamente.

- Mas como segue então o senhor o partido do duque de Anju? - replicou ele.

- Porque me encontro na dependência dele ainda por algum tempo - respondeu o conde - , por motivos que dizem respeito à minha honra, senhor!

- Pois bem, eu estou no mesmo caso - disse Bussy -; por motivos que também dizem respeito à minha honra, preciso acompanhar amanhã o duque.

O conde de Monsoreau apertou a mão ao Sr. de Bussy, e separaram-se. Já contámos no precedente capítulo o que se passou na manhã seguinte na câmara do rei. O Sr. de Monsoreau entrou em casa e participou à esposa que partia para Compienha;

em seguida deu as suas ordens para os aprestos da jornada.

Diana recebeu a notícia com imenso prazer.

Ela já sabia pelo marido do duelo de Bussy com d'Épernon; mas d'Épernon era, dos quatro Favoritos do rei, o que tinha menor fama de valor e destreza, e por isso a ideia do encontro do dia seguinte causava-lhe mais ufania do que receio.

Bussy tinha-se apresentado logo pela manhã em casa do duque, que acompanhou ao Louvre, ficando na galeria. O duque chamou-o quando saía da câmara do irmão, e toda a real comitiva se encaminhou para S. Germano-L'Auxerrois.

O príncipe, ao contemplar Bussy, tão franco, tão leal e tão dedicado ao seu serviço, tinha sentido alguns remorsos; porém duas coisas neutralizaram nele as boas disposições; uma, era o muito ascendente que Bussy tinha tomado sobre ele, como toda a organização superior toma sobre uma organização fraca, e que lhe inspirava o receio de que Bussy, assim mesmo de pé ao lado do seu trono, viesse a ser o rei verdadeiro; a outra, era o amor de Bussy por Diana de Monsoreau, amor que tinha acordado no íntimo do coração do príncipe todos os tormentos da inveja e do ciúme.

Contudo, como ele se receava quase tanto de Monsoreau como de Bussy, tinha dito consigo: Bussy ou me acompanha e, auxiliando-me com o seu valor, fará triunfar a minha causa e, então, se eu for bem sucedido, pouco me importa o que disser ou que fizer o Monsoreau; ou me abandona, e nesse caso, não Lhe devendo mais nada, abandoná-lo-ei também por minha vez.

O resultado desta dupla reflExão de que Bussy era objecto, foi o duque não tirar os olhos um instante desse fidalgo: viu-o entrar na igreja com parecer tranquilo e risonho, e ajoelhar um pouco mais atrás, tendo previamente deixado passar adiante de si, com toda a urbanidade, o Sr. d'Épernon, seu futuro adversário.

O príncipe chamou então Bussy para junto de si com um aceno: na posição em que se achava, tinha de voltar de todo a cabeça, enquanto que, mandando-o colocar à sua esquerda bastava-lhe volver os olhos para o ver.

Havia um quarto de hora, pouco mais ou menos, que tinha começado a missa, quando Rémy entrou na igreja, e foi ajoelhar ao lado do amo.

O duque estremeceu quando viu aparecer o jovem médico, que era; como ele muito bem sabia, o confidente dos mais ocultos pensamentos de Bussy.

E com efeito, passado um instante, Rémy, depois de ter dito algumas palavras ao ouvido do conde, entregou- lhe misteriosamente um bilhete.

O príncipe sentiu como um arrepio por todo o corpo; o sobrescrito do bilhete era duma linda letra de mulher.

É dela, pensou ele; participa-lhe que o marido não fica hoje em Paris. " Bussy pôs o bilhete na copa do chapéu, abriu-o, e leu.

O duque já não via o bilhete; mas viu o rosto de Bussy radiante de amor e alegria.

Ah! mal sabes tu o que te espera se não me acompanhares!. " - murmurou ele.

Bussy levou o bilhete aos lábios, e depois escondeu-o sobre o coração. O duque olhou em redor de si.

Se Monsoreau estivera ali presente, é provável que o duque não tivesse paciência de esperar até à noite para lhe denunciar Bussy.

Acabada que foi a missa, voltaram todos para o Louvre, onde estava pronta uma refeição para o rei nos seus quartos, e para os gentis-homens na galeria. Os suíços estavam em alas desde a porta do Louvre. A guarda francesa, comandada por Crillon, tinha formado no pátio.

Chicot vigiava todos os passos do rei com a mesma atenção com que o duque de Anju vigiava os de Bussy.

Ao entrarem no Louvre, Bussy chegou-se ao duque.

- Com licença, meu Senhor - disse ele inclinando-se -, desejava dar duas palavras a Vossa Alteza.

- É negócio urgente? - perguntou o duque.

- Muito urgente, meu senhor.

- Não podes dizer-me o que tens a comunicar-me durante a procissão! Iremos ao lado um do outro.

- Vossa Alteza há-de desculpar, pois o que eu venho pedir é justamente dispensa de o acompanhar.

- Como assim! - perguntou o duque, custando-Lhe a disfarçar a alteração da voz.

- Meu Senhor, amanhã, como Vossa Alteza muito bem sabe, é o dia aprazado para o encontro dos partidários do Anju com os de el-rei; desejo pois retirar-me para a minha casinha de Vincenas, e conservar-me lá recolhido todo o dia.

- Visto isso, não queres assistir à procissão a que vai a corte, e el-rei?.

- Não, meu Senhor, se Vossa Alteza se dignar dispensar-me.

- Nem vais ter comigo ao Convento de Santa Genoveva?

- Senhor, eu desejava ter o dia todo por meu.

- Porém - disse o duque - se no decurso do dia houver acontecimentos de natureza tal que eu careça do apoio dos meus amigos?.

- É mais um motivo para eu instar pela licença que peço - respondeu Bussy -, por isso que Vossa Alteza só poderia carecer de mim para desembainhar a espada contra el- rei, e minha espada não pode sair da bainha enquanto não me encontrar com o Sr. d'Épernon, com quem estou comprometido.

Monsoreau dissera na véspera ao príncipe que podia contar com Bussy; era evidente pois que ele mudara de parecer, e aquela mudança era proveniente, sem dúvida, do bilhete que Le Haudouin Lhe entregara na igreja.

- Visto isso - disse o duque apertando os dentes -, queres abandonar o teu amo e senhor, Bussy?.

- Meu Senhor - replicou Bussy -, o homem que amanhã há-de jogar a vida num duelo de morte como há-de ser o nosso, com toda a certeza já não tem senão um único amo, e é a esse que eu tenciono dedicar as minhas últimas devoções.

- Sabes que se trata da minha elevação ao trono, e apesar disso deixas-me?. - Vossa Alteza sabe quanto tenho trabalhado em seu favor, e ainda amanhã vou expor a minha vida por sua causa. Não queira exigir mais.

- Está bem! - replicou o duque com voz abaFada. - Vá em paz Sr. de Bussy. Bussy cortejou o príncipe sem fazer caso daquela frieza tão repentina, desceu a escadaria do Louvre, e logo que se viu fora do paço, encaminhou-se apressadamente para sua casa.

O duque chamou Aurilly.

Aurilly aproximou-se.

- Então, meu Senhor? - perguntou o tocador de alaúde.

- Está dito! Sentenciou-se ele a si próprio.

- Não acompanha Vossa Alteza?

Não.

- Vai ao encontro que lhe aprazaram no bilhete?

- Vai.

- Nesse caso o negócio é para esta noite?

- Não há dúvida.

- O Sr. de Monsoreau já Foi avisado?

- Já; mas ainda não sabe qual é o homem que há-de encontrar com a mulher. - Pelo que vejo está resolvido a sacrificar o conde.

- Estoú resolvido a vingar-me - replicou o príncipe -; e já não receio senão uma coisa.

- Qual é?

- É que o Monsoreau se Fie demasiadamente na sua própria força e destreza, e que Bussy lhe escape.

- Esteja Vossa Alteza descansado.

- Porquê?

- Condenou irrevogavelmente o Sr. de Bussy?.

- Decerto! Já não posso soFrer um homem que se arvorou em meu tutor, que não me deixa ser senhor da minha vontade, e que para tudo me tirar, até me tirou a minha amante! É uma espécie de leão do qual apenas sou guarda! Sim, sim, Aurilly, está condenado sem apelo nem agravo.

- Muito bem! Então, como há pouco disse, esteja Vossa Alteza descansado: porque se escapar de Monsoreau, não há-de escapar de outro sujeito que eu conheço.

- E quem é esse outro?

- Vossa Alteza ordena-me que lhe diga quem é?

- Ordeno, sim.

- Esse outro é o Sr. d'Épernon.

- D'Épernon? D'Épernon. o que há-de bater-se com ele amanhã?

- Sim, meu Senhor.

- Conta-me essa história.

Aurilly ia para começar a sua narração, quando vieram chamar o duque, pois O rei tinha ido para a mesa, e admirando-se de não ver o duque de Anju, de quem Chicot lhe fizera notar a ausência, mandara-o procurar.

- Contar-me-ás tudo isso durante a procissão - disse o duque.

E acompanhou o criado que tinha vindo chamá-lo.

Como não nos será possível seguir o duque de Anju e Aurilly pelas ruas de Paris, visto termos de nos ocupar duma personagem mais importante, diremos aos nossos leitores o que havia tido lugar entre d'Épernon e o tocador de alaúde.

Naquela manhã, ao romper do dia, d'Épernon tinha-se apresentado no Palácio de Anju para falar com Aurilly.

O fidalgo e o músico eram conhecidos havia muito; este último tinha-lhe dado lições de alaúde; e o discípulo e o mestre costumavam reunir-se com frequência para executarem concertos de viola e rabecão, como então era moda, não só em Espanha, mas também na França.

Daqui tinha resultado, entre os dois músicos, uma amizade bastante íntima, apesar de modificada pela etiqueta.

E demais, o Sr. d'Épernon, com a subtileza de gascão, usava do método de insinuação, que consiste em fazer dos criados caminho para chegar aos amos, e poucos eram os segredos da casa do duque de Anju, que ele não soubesse pelo seu amigo Aurilly.

Acrescentaremos que Epernon empregava toda a sua habilidade diplomática em se conservar benquisto do rei e do duque, poupando a ambos, com receio de ter por inimigo o futuro rei, e de perder a protecção do reinante.

A visita a Aurilly tinha por fim conversar com ele acerca do seu próximo duelo com Bussy. Esse tal duelo não deixava de lhe dar bastante cuidado.

A feição mais saliente do carácter de d'Épernon nunca tinha sido a valentia; e para arrostar a sangue- frio um combate com Bussy era preciso ser mais do que valente, era preciso ser temerário; bater-se com ele era expor-se a uma morte certa. Alguns indivíduos a tanto se haviam atrevido, mas todos tinham caído para nunca mais se levantarem.

Logo à primeira palavra que d'Epernon disse ao músico acerca do assunto que o preocupava, este, que muito bem sabia o ódio que o amo nutria no coração contra Bussy abundou no seu sentido, lastimando muito que a sorte lhe tivesse deparado um tal adversário, e dizendo- Lhe que havia oito dias que o Sr. de Bussy jogava a espada por espaço de duas horas, todas as manhãs, com um clarim da guarda real, que era o esgrimador mais traiçoeiro que até ali aparecera em Paris, uma espécie de artista de estocadas, o qual, viajando como filósofo, adquirira a prudência dos Italianos, a destreza dos Espanhóis, a firmeza do pulso dos Alemães, e o jogo irregular dos incultos Polacos, a que então chamavam Sármatas:

D'Épernon, durante esta enumeração das probabilidades que tinha contra si, cheio de terror, roía as unhas.

- Em conclusão: devo desde já considerar- me morto - disse ele, meio a rir, meio a tremer.

- Parece-me que sim! - respondeu Aurilly.

- Mas é uma loucura, na verdade - exclamou d'Épernon -, sair a campo contra um homem que sei com certeza que me há-de matar. É como se fosse jogar aos dados com um sujeito que tivesse a certeza de deitar sempre a doble.

- Devia ter feito essa reflexão antes de comprometer a sua palavra, Senhor Conde.

- Não tem dúvida - disse d'Épernon -, eu me desligarei dela. Era o que me faltava! "e não me servia de nada ser gascão. Não sou tão tolo que queira despedir-me assim da vida aos vinte e cinco anos, Mas agora me ocorre uma lembrança, e muito lógica. Ouça-me.

- Diga.

- Diz o senhor que Bussy há-de matar-me infalivelmente?.

- Estou intimamente convencido que sim.

- Então, visto ter ele essa certeza, já não é um duelo, é um assassinato!.

- Assim parece.

- E sendo um assassinato, que dúvida...

- Acabe.

- Que dúvida pode haver em evitar um assassinato por...

- Por...

- Por... por outro assassinato?

- Nenhuma.

- Se ele quer matar-me, porque não hei-de matá-lo primeiro a ele?

Não sei porque não o há-de fazer; a mim já me tinha lembrado isso.

- Não lhe parece muito claro este meu raciocínio?

- Claro como a luz do dia.

- É natural?

- Muito natural.

- A única diferença será que, em vez de o matar cruelmente por minha mão, como ele quer praticar para comigo, eu, que tenho repugnância em derramar sangue, incumbo a tarefa a outro.

- Quer dizer: há-de pagar a quem o mate...

- Exactamente; como fizeram o Sr. de Guisa e o Sr. de Maiena, no caso de Saint-Mégrin.

- Há-de custar-lhe muito dinheiro.

- Gastarei três mil escudos.

- Quando os esbirros souberem quem é a pessoa com quem têm de se haver, não conseeguirá mais do que seis homens.

- E parece-lhe que não bastarão?

- Seis homens!... Primeiro que eles lhe cheguem é o Sr. de Bussy capaz de matar quatro!

Lembre-se daquela refrega da Rua de Santo António, na qual ele feriu Schomberg numa coxa, o senhor num braço, e quase que abriu a cabeça a Quélus.

Pois gastarei seis mil escudos, se for preciso - disse d'Épernon. - Preciso que a coisa toda seja feita em termos, e que ele não se me escape.

- E tem à mão a gente necessária, meu caro Sr. d'Épernon? - perguntou Aurilly.

- Conheço por aí alguns vadios, soldados que tiveram baixa, e bravos que não têm inveja aos de Veneza e Florença.

- Muito bem, muito bem! Mas acautele-se sempre.

- Porquê?

- Porque se forem agarrados, hão-de denunciá-lo.

- Tenho o rei por mim.

- Isso já não é pouco; mas o rei não poderá obstar a que o Sr. de Bussy o mate.

- Isso é exacto - disse d'Épernon tornando-se pensativo.

- Lembra-me outra combinação - disse Aurilly.

um - Fale, meu amigo, fale.

- Porém talvez não queira ligar-se com outra pessoa...

- Recorrerei a tudo quanto puder aumentar as probabilidades de me livrar daquele cão danado.

- Pois bem! Um inimigo do seu inimigo tem ciúmes dele.

- De forma que, a esta hora...

- Acabe!... A esta hora o quê?

- Está tratando de Lhe armar um laço.

- E depois?

- Está porém falto de dinheiro; com os seis mil escudos podia ele arranjar ao mesmo

tempo o negócio de ambos. Não tem empenho em ficar com a glória da acção, não é assim?

- Não, por certo! Tomara eu que ninguém fale em mim!

- Mande pois os seus homens para o sítio que Lhe for indicado, sem se Lhes dar a conhecer, e ele os empregará.

- Mas se não é necessário que os meus homens me conheçam, desejava eu conhecer o indivíduo de que se trata.

- Eu Lhe mostrarei hoje mesmo.

- Onde?

- No Louvre.

- É fidalgo?

- É.

- Aurilly tão depressa me mostre, Ficarão logo à sua disposição os seis mil escudos.

- Está pois o negócio tratado?

- Irrevogavelmente.

- Vámos para o Louvre!

- Vamos lá.

Já no capítulo antecedente se viu o que Aurilly disse para d'Épernon.

- Fique descansado que o Sr. de Bussy não há-de bater-se com o senhor amanhã!

 

         A PROCISSÃO

Henrique III, apenas acabou a refeição entrara para a sua câmara, na companhia de Chicot, para vestir o fato de penitente, e, passado um instante, tinha tornado a sair, descalço, com uma corda à cintura e o capuz cobrindo o rosto.

Os cortesãos durante aquele tempo tinham envergado idêntico vestuário. O dia estava lindo, as ruas juncadas de flores; dizia-se que havia altares para as estações do Santíssimo, qual deles o mais esplêndido, e especialmente o que os frades de Santa Genoveva tinham armado na capela subterrânea do convento.

Uma multidão imensa de povo formava alas por todo o trânsito para as quatro estações que havia de fazer o rei, as quais eram: à porta do Convento dos Domínicos, à dos Carmelitas, à dos Capuchos, e, Finalmente, na Abadia de Santa Genoveva.

O cabido de S. Germano L'Auxerrois ia na frente de tudo. O arcebispo de Paris levava o Santíssimo Sacramento. Entre o cabido e o arcebispo iam andando de recuo rapazinhos que balouçavam os turíbulos com incenso, e meninas que desfolhavam rosas.

Em seguida ia o rei, descalço, como já dissemos, e acompanhado dos seus quatro amigos, descalços como ele, e vestidos pela mesma forma.

Seguia-se o duque de Anju; porém este levava o seu trajo usual, e ia acompanhado de toda a sua corte angevina, a qual caminhava de envolta com os dignitários da coroa, que marchavam após o soberano, cada qual no lugar que segundo a etiqueta lhe pertencia.

Atrás de tudo iam os burgueses e o povo.

Passava já da uma hora da tarde quando saíram do Louvre.

Crillon queria seguir o rei com a guarda francesa. Porém este deu-lhe a entender por um aceno que era escusado, e portanto Crillon ficou com a sua gente de guarda ao paço.

Eram quase seis horas da tarde quando, depois de concluídas as estações nos diferentes altares, os que iam na frente da comitiva começaram a avistar o pórtico arrendado da antiga abadia, e os frades todos, com o prior à frente, colocados à entrada, esperando para receberem Sua Majestade.

Durante a marcha que separava a abadia da última estação, que era a que tinham feito no altar em frente do Convento dos Capuchos, o duque de Anju, que estava de pé desde pela manhã sentira-se incomodado com o cansaço, e por isso pedira e alcançara do rei licença para se recolher ao seu palácio.

Os seus gentis-homens tinham saído também do cortejo, retirando- se com ele, como para darem bem claramente a conhecer que era ao duque que acompanhavam e não ao rei.

Mas o caso era que, devendo três deles baterem-se no dia seguinte, estimavam muito não se cansar demasiadamente.

O rei, logo que chegou à porta da abadia, com o pretexto de que Maugiron, Schomberg é d'Épernon não careciam menos de descanso do que Livarot, Ribeirac e Antraguet, despediu-os também.

O arcebispo tinha oficiado desde pela manhã, e não tendo comido coisa alguma, como os demais padres, estava a cair de fraqueza; o rei compadeceu-se daqueles santos mártires, e logo que chegou, como dissemos, à porta da abadia, mandou-os embora a todos.

Depois, voltando-se para o prior José Foulon:

- Eis-me aqui, meu padre - disse ele falando fanhoso - venho, como pecador que sou, procurar descanso na solidão do seu convento.

O prior inclinou-se, e então o rei, dirigindo-se para as pessoas que tinham resistido às provas daquele dia e que o haviam acompanhado até ali, disse:

- Agradeço-lhes, meus Senhores; vão com Deus.

Todos cortejaram respeitosamente, e o real penitente, batendo com a mão no peito, entrou na abadia.

Apenas Henrique tinha passado do limiar da abadia, fecharam-se as portas. O rei ia por tal forma absorto em suas meditações, que não deu fé desta circunstância, a qual, demais a mais, depois de ele ter despedido a sua comitiva, nada tinha de extraordinário.

- Vamos em primeiro lugar - disse o prior para o rei - conduzir Vossa Majestade à capela subterrânea, que enfeitámos da melhor maneira que pudemos, em louvor do Rei do Céu e do soberano da Terra.

O rei apenas respondeu com um gesto de aprovação, e foi andando atrás do prior.

Porém, logo que ele saiu para fora da sombria arcada, aos lados da qual se conservavam imóveis duas Fileiras de monges, e apenas tinha voltado a esquina do pátio que ficava em frente da capela, saltaram para o ar mais de vinte capuzes; e viram-se brilhar na penumbra olhos em que relampejava o contentamento e a ufania do triunfo.

Não eram aqueles rostos por certo de frades mandriões e pusilânimes; os bastos bigodes e a tez crestada denotavam neles força e actividade. Muitos descobriram caras sulcadas por cicatrizes, e ao lado do mais altivo de todos, do que apresentava a mais ilustre e mais célebre cicatriz, aparecia o rosto triunfante e exaltado duma mulher envolvida num hábito religioso.

A mulher levantou no ar uma tesoura de ouro que trazia pendente duma corrente presa à cinta, e exclamou:

- Até que enfim, meus irmãos, temos em nosso poder o Valois!

- Assim também o creio, minha irmã - respondeu o Acutilado.

- Ainda não, ainda não - murmurou o cardeal.

- Como assim!

- Parece-lhes que as nossas tropas populares serão suficientes para conter Crillon e a sua gente?

- Temos coisa melhor do que as tropas populares - replicou o duque de Maiena -; e creio que não se há- de disparar um único tiro de mosquete.

- Vejamos - disse a duquesa de Montpensier -, como é isso? A mim não se me dava que houvesse algum motim.

- Pois, minha irmã, sinto muito dizer-lhe que terá de passar sem esse gosto. Quando el-rei souber que está preso, há-de gritar, mas ninguém responderá aos seus gritos. Obrigá-lo-emos então, por meio da persuasão ou por violência, mas sem nos mostrarmos, a assinar a abdicação. Apenas ele assinar, será logo a abdicação espalhada pela cidade, e disporá em nosso favor os burgueses e os soldados.

- O plano é bom; parece-me que desta vez não pode malograr-se - disse a duquesa.

- É algum tanto brutal - disse o cardeal de Guisa abanando a cabeça.

- El-rei não há-de querer assinar a abdicação - acrescentou o Acutilado -; é valente, há-de preferir morrer.

- Pois que morra então! - exclamaram a um tempo Maiena e a duquesa.

- Isso não! - replicou com firmeza o duque de Guisa. - Isso não! Estou pronto a suceder no trono a um príncipe que abdica e que todos desprezam; mas não quero suceder a um homem assassinado, cuja sorte todos hão-de lastimar. E demais, esquecem-se, nos vossos planos, do duque de Anju, que há-de reclamar a coroa se el-rei for morto.

- Pois que a reclame, por Deus, que a reclame! - disse Maiena. - Aqui está o nosso irmão cardeal, que já preveniu esse caso. O Senhor Duque de Anju há-de ser compreendido no auto da abdicação do irmão. O Senhor Duque de Anju teve relações com os huguenotes, tornou-se indigno de reinar.

- Com os huguenotes? Está certo disso?

- Que dúvida!. Pois foi com o auxílio de el-rei de Navarra que fugiu do Louvre!

- Muito bem.

- Sim, sim - disse o cardeal -, eu já preveni tudo isso; mas poderá muito bem suceder que a guarda francesa, para se certificar se a abdicação é verdadeira e voluntária, arrombe as portas da abadia. Crillon, como todos nós sabemos, não é para graças, e será capaz de dizer a el-rei: Real Senhor, pode a sua vida correr perigo, mas antes de tudo, salvemos a honra.

- Este obstáculo competia ao general aplainá-lo - retorquiu Maiena -, e o general já deu as suas providências. Temos aqui para sustentar o assédio oitenta fidalgos, e eu mandei distribuir armas a cem frades. Podemos resistir aqui durante um mês a todo um exército. E afinal, caso nos levem de vencida, resta-nos o subterrâneo para fugirmos com a nossa presa.

- E onde está o duque de Anju neste momento?

- Na hora do perigo fraquejou, como sempre. O duque de Anju recolheu-se ao palácio.

- e está provavelmente à espera de notícias nossas, sentado entre Bussy e Monsoreau.

- Mas aqui é que ele devia estar, e não em casa!

- Parece-me que está enganado, meu irmão - disse o cardeal -; o povo e a nobreza talvez olhassem a reunião dos dois irmãos como uma cilada armada à família. Conforme há pouco dissemos, cumpre-nos evitar primeiro que tudo o papel de usurpadores. Herdaremos e nada mais. Deixando o duque de Anju e a rainha-mãe independente, chamaremos sobre nós as bênçãos de todos, excitaremos a admiração dos nossos partidários, e ninguém terá o menor motivo de nos censurar. Se assim não fizermos, teremos contra nós Bussy e mais um cento de espadas perigosas.

- Não há que recear! Bussy tem um duelo amanhã com os favoritos.

- E há-de matá-los, naturalmente; e depois fica sendo dos nossos - disse o duque de Guisa. - Eu estou resolvido a nomeá-lo general do exército que há-de marchar para a Itália com a qual vamos ter guerra indubitavelmente. O Sr. de Bussy é um homem de muito merecimento, e que muito estimo.

- E eu, para mostrar que o não estimo menos do que meu irmão - disse a duquesa de Montpensier -, caso com ele se enviuvar.

- Ficar com ele, minha irmã? - exclamou Maiena.

- Que admiração! - disse a duquesa. - Há senhoras de mais elevada hierarquia do que eu, que ainda têm feito mais em favor dele, e sem ele ser general dum exército.

- Está bom, está bom - disse Maiena - depois trataremos disso; mãos à obra.

- Quem está com el-rei? - perguntou o duque de Guisa.

- O prior e Frei Gorenflot, segundo penso - disse o cardeal. - É preciso que ele só veja junto de si caras conhecidas, quando não, logo desconfiava.

- Certamente - replicou Maiena -; tratemus de comer us frutos da conspiração, mas deixemos a outros o trabalho de os colher.

- Ele já está na cela? - perguntou a Sr. de Montpensier, a qual estava com impaciência de dar ao rei a terceira coroa que ela lhe destinava havia tanto tempo.

- ainda não; há-de ver primeiro o altar da capela subterrânea, e de lá passará imediatamente a adorar as santas relíquias.

- E depois?

- Depois o prior há-de dirigir-lhe algumas palavras sonoras acerca da vaidade dos bens deste mundo; e em seguida Frei Gorenflot, aquele que proferiu o magnífico discurso na noite da Liga.

- Sim, e então?

- Frei Gorenflot há-de tratar de alcançar dele, por meio da convicção, aquilo que nos repugna arrancar-lhe pela força.

- E com efeito, se assim se conseguisse, era muito melhor - disse o duque pensativo.

- Henrique é supersticioso e fraco de espírito - disse Maiena -; estou certo de que há-de ceder, com medo do Inferno.

- Eu estou menos esperançoso - disse o duque -; mas agora já não há que recuar. Depois da tentativa do prior e do discurso de Gorenflot, se nem um nem outro produzir o desejado efeito, lançaremos mão do último recurso, que é a intimidação.

- E então hei-de eu tosquiar o meu Valois! - exclamou a duquesa tornando sempre à sua ideia favorita.

Naquele momento soou o toque duma campainha pelas abóbadas, que já iam escurecendo com as primeiras sombras da noite.

- El-rei desceu à capela subtrrrânea - disse o duque de Guisa -; vamos, Maiena, chame os seus amigos e tornêmo-nos frades outra vez.

Frontes audazes, olhos ardentes e cicatrizes acusadoras, tudo desapareceu logo para baixo dos capuzes; e, em seguida, trinta ou quarenta monges, capitaneados pelos três irmãos, encaminharam-se para a entrada da capela subterrânea.

O rei estava por tal forma engolfado em seu meditar, que parecia infalível o bom êxito dos projectos dos Srs. de Guisa. Entrou no subterrâneo com toda a comunidade, beijou o relicário, e concluiu todas as cerimónias, batendo repetidas vezes no peito e resmungando os mais lúgubres salmos.

O prior encetou ali as suas exortações, que o rei ouviu dando mostras da mais fervorosa contrição.

Finalmente, a um aceno do duque de Guisa, José Foulon inclinou-se para Henrique e disse-lhe:

- Real Senhor, quer agora vir depor a sua coroa terrestre aos pés do soberano eterno?

- Vamos... - replicou o rei laconicamente.

E logo a comunidade toda, formando alas para ele passar, encaminhou-se para as celas tomando à esquerda pelo corredor principal.

Henrique parecia muito comovido.

Continuava a bater com uma das mãos no peito, enquanto a outra corria as contas do rosário que trazia à cinta, e que era formado de caveiras de marfim.

Chegaram por fim à cela: no limiar da porta estava Gorenflot de pé, com o rosto iluminado e os olhos brilhantes como carbúnculos.

- É aqui? - perguntou o rei.

- Aqui mesmo - respondeu o enorme frade.

O rei tinha razão em hesitar, porque no fim do corredor via-se uma porta, ou, para melhor dizer, uma grade bastante misteriosa, que deitava para uma ladeira muito inclinada e perfeitamente escura.

Henrique entrou para a cela.

- Hic porrus salutis? - murmurou ele com voz comovida.

- Sim - respondeu Foulon -, este é o porto.

- Deixem-nos - disse Gorenflot com jesto majestoso.

Fechou-se logo a porta, e ouviu-se o som das passadas dos circunstantes, que se afastavam.

O rei, vendo um escabelo no fundo da cela, sentou-se nele com as mãos descansadas sobre os joelhos.

- Ah, és tu, Herodes! És tu, pagão! És tu, Nabucodonosor! - disse Gorenflot sem transição alguma e encostando as alentadas mãos às ilhargas.

O rei mostrou-se surpreendido.

- É comigo que está falando, meu irmão? - disse ele.

- Sim, é contigo mesmo que eu estou falando! E com quem havía de ser?. Haverá porventura insulto algum que tu não mereças?.

- Meu irmão!... - murmurou o rei.

- Não tem aqui irmão nenhum! Há já muito tempo que ando compondo um discurso. E hás-de ouvi-lo. Dividi-o em três partes, como fazem os bons pregadores. Em primeiro lugar, és um tirano, depois, és um sátiro, e finalmente, estás destronado; é sobre este assunto que eu vou discorrer.

- Destronado, meu irmão? - exclamou arrebatadamente Henrique.

- Sem tirar nem pôr! Aqui não há-de suceder como na Polónia, não poderás fugir...

- Uma cilada!.

- Ó Valois! Sabe que um rei não é mais do que um homem, quando porventura é homem.

- É uma violência, meu irmão!

- Boa dúvida! Pensas que te prendemos para te pouparmos?.

- Isso é abusar da religião, meu irmão!

- Que vem a ser isso de religião? - exclamou Gorenflot.

- Oh! - replicou o rei. - Pois é possível que um santo profira semelhantes palavras?

- Tenho dito.

- Quer danar-se?.

- Quem é que acredita em tal?

- Está falando como um ímpio, meu irmão!

- Vamos, nada de sermões de capucho! Estás pronto, Válois?

- Para quê?

- Para depores a coroa; incumbiram-me de te convidar a dar esse passo. Convido-te pois.

- Meu irmão, isso é cometer um pecado mortal!

- Oh, oh! - disse Gorenflot com uma risada de cínico. - Eu tenho direito de deitar as absolvições, e desde já me absolvo a mim mesmo; vamos, renuncia, irmão Valois.

- A quê?

- Ao trono de França.

- Antes morrer!

- Pois bem, morrerás. Olha, eis o prior que volta. resolve-te.

- Ainda tenho por mim as minhas guardas e os meus amigos; hei-de defender-me!

- Pode ser, mas hás-de ser morto primeiro.

- Conceda-me ao menos um instante para reflectir.

- O seu zelo leva-o muito longe, meu irmão - disse o prior.

E fez com a mão um aceno, que queria dizer para o rei: Senhor, é-lhe concedido o que pediu.

O prior tornou a fechar a porta.

Henrique ficou entregue a uma profundíssima meditação.

- Vamos - disse por Fim -, aceitemos o sacrifício.

- Está tudo arranjado - disse Gorenflot -; ele anuiu.

O rei ouviu como que um murmúrio de satisfação e de surpresa no corredor.

- Leiam-lhe o auto. - disse uma voz que causou tal sobressalto ao rei, que foi espreitar pelo postigo da porta da cela.

E um pergaminho enrolado passou da mão dum dos frades para a de Gorenflot. Este leu a muito custo o tal auto ao rei, que mostrava grande aflição e escondia o rosto com as mãos.

- E se eu não quiser assinar?. - disse ele lacrimejando.

- Acabará de se perder - respondeu a voz do duque de Guisa abafada pelo capuz.

- Considere-se morto para o mundo, e não obrigue os seus súbditos a derramar o sangue dum homem que foi seu rei.

- Não poderão compelir-me - disse Henrique.

- É o que eu tinha previsto - murmurou o duque para a irmã, cuja testa se enrugou, ao passo que nos olhos se Lhe reflectia um pensamento sinistro. - Vá, meu irmão - prosseguiu ele, dirigindo-se para Maiena -, mande armar toda a gente e que se aprontem.

- Para quê? - perguntou o rei com voz lastimosa.

- Para o que der e vier - respondeu José Foulon.

A desesperação do rei aumentou.

- Com todos os demónios! - exclamou Gorenflot. - Eu odiava-te, Valois; mas agora desprezo-te! Anda, assina, quando não, morres às minhas mãos!

- Tenha paciência, tenha paciência, meu irmão - disse o rei -; deixe que eu me recomende ao Omnipotente, para que ele me dê resignação.

- Ele ainda quer reflectir!. - gritou Gorenflot.

- Conceda-se-Lhe espera até à meia-noite - disse o cardeal.

- Eu te agradeço, homem caridoso - exclamou o rei num paroxismo de aflição. - Deus Nosso Senhor te há-de dar o pago!

- Aquela cabeça está realmente muito fraca - disse o duque de Guisa -; faremos um grande benefício à França em o destronar.

- Não importa - disse a duquesa -; assim mesmo fraca como está, hei-de ter muito gosto em a tosquiar à minha vontade.

Durante este diálogo, Gorenflot, com os braços cruzados, dirigia a Henrique os maiores insultos e enumerava-lhe todos os seus excessos.

De repente ouviu-se um rumor surdo pela parte de fora do convento.

- Silêncio! - gritava a voz do duque de Guisa.

Reinou logo o mais profundo silêncio. Em breve, porém, ressoaram rijas pancadas com intervalos regulares na porta da abadia.

Apareceu Maiena com quanta pressa lhe consentia a sua gordura.

- Meus irmãos - disse ele -, um bando de gente armada apareceu em frente do portão!

- Vêm-no buscar - disse a duquesa.

- Mais uma razão para que ele assine quanto antes - disse o cardeal.

- Assina! Valois, assina! - gritou Gorenflot com uma voz de trovão.

- Concedeu-me espera até à meia-noite. - respondeu o rei choramingando.

- Oh, já mudaste de tenção, porque pensas que vem gente em teu auxílio.

- Não há dúvida, julgo que tenho essa probabilidade em meu favor. - A probabilidade que ele tem é de morrer, se não assinar imediatamente! – replicou a voz desabrida e imperiosa da duquesa.

Gorenflot agarrou no pulso do rei e apresentou-Lhe uma pena para assinar. O ruído lá fora ia sempre em aumento.

- Acaba de chegar mais tropa! - veio dizer um frade. - Entraram no adro, e cercam-nos pela esquerda.

- Vamos, depressa! - gritaram com impaciência Maiena e a duquesa. O rei molhou a pena na tinta.

- Aí estão os suíços! - veio dizer Foulen. - Tomaram à direita para a porta do cemitério; agora está toda a abadia cercada!

- Pois bem, defender-nos-emos - replicou Maiena resolutamente -; com reféns como este nunca uma praça se entregou à discrição.

- Já assinou! - berrou Gorenflot arrancando o papel das mãos de Henrique, o qual como aniquilado, enterrou a cabeça até ao fundo do capuz, e escondeu o capuz com os dois braços.

- Então somos nós os reis! - disse o cardeal para o duque. - Leva depressa esse precioso papel.

O rei, com o excesso da sua dor, deitou ao chão o candeeiro que mal iluminava aquela cena; porém o duque de Guisa já estava de posse do pergaminho.

- Que se há-de fazer?. Que se há-de fazer?. - veio perguntar um frade, cujo hábito encobria visivelmente um cavaleiro armado de ponto em branco. - Chegou Crillon com a guarda Francesa e quer arrombar as portas. Ouçam!.

- Abram, em nome de el-rei! - gritou a voz vibrante de Crillon.

- Já não há rei! - respondeu Gorenflot da janela.

- Quem é o maroto que diz isso! - replicou Crillon.

- Sou eu! Sou eu! - exclamou Gorenflot do centro da escuridão com o orgulho mais provocador.

- Tratem de ver onde está esse brejeiro e metam-lhe algumas balas no corpo! - disse Crillon.

Gorenflot, vendo que os soldados aprontavam as armas, saltou para dentro, e caiu sobre as nádegas no meio da sala.

- Arrombe a porta, Crillon! - gritou no meio do silêncio geral uma voz que Fez arrepiar os cabelos a todos os Frades verdadeiros ou fingidos que estavam esperando no corredor.

Era a voz dum homem que, tendo saído das fileiras, se aproximara da abadia.

- Lá vai, Real Senhor - respondeu Crillon descarregando na porta principal um tremendo golpe de machado que fez estremecer as paredes.

- Que pretendem? - perguntou o prior assomando à janela a tremer.

- Ah, é o irmão Foulon - respondeu a mesma voz altiva e serena. - Quero que me restituam o meu bobo, que foi passar a noite numa das vossas celas. Preciso de Chicot; estou triste sem ele no Louvre.

- E eu tenho-me divertido aqui grandemente, meu filho - exclamou Chicot, deitando o capuz para trás e rompendo por entre a chusma dos frades, que se apartaram para os lados soltando exclamações de espanto.

A este tempo, o duque de Guisa, que tinha mandado buscar uma luz, examinava o auto, e via que a assinatura que tanto tinha custado a alcançar, e que ainda estava fresca, era:

CHICOT I.

- Chicot I!. - exclamou ele. - Esta só no InFerno!

- Bem - disse o cardeal -, estamos completamente perdidos, fujamos. - Pois sim! - exclamou Chicot, dando em Gorenflot, quase desmaiado, repetidas pancadas com a corda que trazia à cintura.

 

           O CAPITAL E OS JUROS

Ao passo que o rei tinha falado, e que os conjurados lhe haviam conhecido a voz, o espanto em que estavam tornara-se em terror.

A abdicação assinada por Chicot I tinha transformado o terror em raiva.

Chicot acabou de deitar o capuz para cima dos ombros, cruzou os braços, e enquanto Gorenflot fugia com toda a velocidade de que era susceptível, conservou-se ele imóvel e risonho pronto a sustentar o primeiro choque.

Foi um momento terrível.

Os fidalgos, enfurecidos, cercaram o gascão, resolvidos a vingarem-se nele da cruel caçoada de que tinham sido vítimas.

Porém aquele homem desarmado, com o peito unicamente resguardado pelos braços aquele rosto escarnecedor que na sua franqueza parecia zombar de tanta força, deteve-os ainda mais do que as admoestações do cardeal, o qual lhes observava que a morte de Chicot de nada serviria, senão provocar alguma vingança de el-rei, que se tinha tornado cúmplice do seu bobo naquela cena de terrível zombaria.

O resultado foi abaixarem-se as adagas e as espadas que ameaçavam o peito de Chicot o qual, ou por desprezo da vida, ou porque Lhes houvesse adivinhado os pensamentos, continuou a escarnecer deles.

Entretanto as ameaças do rei tornavam-se mais sérias e as machadadas de Crillon mais amiudadas.

Era evidente que a porta não podia resistir por muito tempo a um ataque tão vigoroso e que ninguém procurava repelir.

E por isso, o duque de Guisa, depois de ter deliberado um instante, deu ordem para a retirada.

Esta ordem fez sorrir Chicot, o qual, durante as noites que viera passar na cela de Gorenflot tivera ocasião de examinar o subterrâneo e de notar a porta que dele dava saída para a rua, em consequência do que, denunciara a existência de tal porta ao rei, que para lá havia mandado Tocquenet, tenente da guarda suíça.

Era pois evidente que os conspiradores iam meter-se, uns após outros, na boca do lobo.

O cardeal foi o primeiro que desapareceu, acompanhado duns vinte fidalgos; depois, Chicot viu passar o duque, com igual número de frades, pouco mais ou menos; e afinal Maiena a quem tinha sido conFiado o comando da retaguarda, como era natural em vista da sua enorme barriga e corpulência.

Quando o Sr. de Maiena desfilou atrás de todos pela frente da cela de Gorenflot, e que Chicot o viu passar, arrastando a muito custo aquela massa de carne, já não se sorria, ria como um louco.

Decorreram dez minutos durante os quais Chicot esteve aplicando o ouvido, esperando a cada momento sentir o rumor dos conspiradores repelidos para dentro do subterrâneo; mas, com grande pasmo seu, a bulha, em vez de aumentar, ia sempre em diminuição.

De repente ocorreu ao gascão uma ideia que Lhe mudou as gargalhadas em ranger de dentes. O tempo ia passando e os conspiradores não voltavam; teriam eles percebido que a porta estava guardada, e teriam achado outra saída?

Chicot ia para sair da cela, quando subitamente viu a porta obstruída por um vulto disforme, que se Lhe espojou aos pés, arrancando da cabeça mãos-cheias de cabelos.

- Ah, desgraçado de mim! - exclamou o frade. - Oh, meu bom Sr. Chicot, perdoe-me, perdoe-me!

Como era que Gorenflot, que tinha fugido adiante de todos, voltava só, quando já tinha tempo de estar muito longe?

Foi esta a questão que se apresentou muito naturalmente ao espírito de Chicot.

- Oh, meu bom Sr. Chicot, querido fidalgo, acuda-me! - continuava a berrar Gorenflot.

- Perdoe ao seu indigno amigo, que se arrepende do que fez, e confessa de joelhos a sua culpa.

- Mas diz-me, brejeiro - perguntou Chicot. - Porque não fugiste tu com os mais? - Porque não pude caber por onde couberam os outros, meu bom Senhor; porque Deus em Sua ira, quis que eu me tornasse assim obeso. Oh, desgraçada barriga, oh, miserável bandulho! - gritava o frade batendo com ambas as mãos na parte do corpo que lhe causava aquela aflição. - Ah, quem me dera ser esbelto como o Sr. Chicot! Quanto é feliz quem tem o corpo assim delgado!

Chicot, por mais que pensasse, não atinava com o motivo das lamentações do frade.

- Visto isso. os mais puderam passar por alguma parte?. - exclamou Chicot com voz de trovão; - então fugiram!

- Pois então - replicou o monge -, que queria que Fizessem? Que ficassem aqui à espera para serem enforcados?. Oh, minha desgraçada barriga!.

- Cala-te - gritou Chicot -, e responde-me!

Gorenflot pôs-se de joelhos.

- Interrogue-me, Sr. Chicot - respondeu ele -, tem todo o direito de o fazer. - Como fugiram os mais?

- A toda a pressa.

- Não duvido. mas por onde?

- Pela fresta.

- Qual fresta?

- A fresta do carreiro do cemitério.

- É essa a saída a que chamam o subterrâneo? Responde-me depressa! - Não, meu querido Sr. Chicot. A porta do subterrâneo estava guardada pela parte de fora. O grande cardeal de Guisa, quando ia para a abrir, ouviu um suíço que dizia: Mich durstet

palavras que significam, segundo me disseram: Tenho sede.

- Bem sei que significam isso! - exclamou Chicot. - De forma que os fugitivos tomaram outro caminho.

- Tomaram, meu rico Sr. Chicot, fugiram pelo carreiro do cemitério. Que deita.

- Por um lado para a cripta, e pelo outro para a porta de S. Tiago. - Mentes!

- Eu, meu senhor?

- Se eles tivessem fugido pelo carreiro que deita para a cripta, tê-los-ia eu visto tornar a passar por diante da tua cela.

- É verdade, meu caro Sr. Chicot; mas lembraram-se que já não havia tempo para darem tamanha volta, e meteram-se então pela Fresta.

- Mas que fresta é essa?

- É uma fresta que deita para o jardim, e dá luz para o carreiro.

- De forma que tu.

- De forma que eu, que sou muito gordo.

- Bem, e depois?

- Não pude caber; e então puxaram-me para trás pelos pés, porque interceptava o caminho aos outros.

- Mas - exclamou Chicot, brilhando-lhe repentinamente o rosto com singular alegria - , se tu não coubeste.

- Não pude passar, e contudo bem lhe fiz a diligência; veja os meus ombros, veja o meu peito!

- Então ele, que ainda é mais gordo do que tu...

- Ele quem?

- Ó meu Deus - exclamou Chicot -, se me ajudares nesta ocasião, prometo-te um magnífico círio!. Decerto que ele também não há-de caber.

- Sr. Chicot!

- Levanta-te, masmarro!

O frade levantou-se com quanta pressa pôde.

- Bom, leva-me à tal fresta.

- Aonde quiser, meu rico Senhor.

- Anda adiante, desgraçado, anda!

Gorenflot começou a trotar com toda a ligeireza de que era capaz, erguendo de vez em quando os braços para o Céu, e seguido por Chicot, que o conservava naquela andadura a poder de chicotadas que Lhe dava com a corda que tinha à cinta.

Atravessaram o corredor e desceram ao jardim.

- Por aqui - disse Gorenflot -, por aqui.

- Cala-te, e anda para diante, maroto!

Gorenflot Fez um último esforço, e chegou ao pé dum grupo de árvores de onde saíam gemidos.

- Ali - disse ele.

E acabando-se-lhe o fôlego, caiu de nádegas sobre a relva do jardim.

- Chicot deu ainda três passos para a Frente, e lobrigou alguma coisa que se agitava.

Ao lado dessa alguma coisa, que muito se assemelhava à parte posterior do animal que Diógenes denominou um galo com dois pés e sem penas, via-se uma espada e um hábito de frade.

Era bem evidente que o indivíduo que se achava tão desgraçadamente entalado tinha largado sucessivamente todos os objectos que Lhe podiam aumentar o volume, tais como a espada e o hábito, e estava por conseguinte reduzido à mais simples expressão.

E todavia, como Gorenflot, fazia baldados esforços para desaparecer completamente.

- Com mil demónios, com um milhão de diabos! - gritava a voz abafada do fugitivo.

- Antes queria passar por meio de toda a guarda! Ai, não puxem tão de rijo, meus amigos!

Hei-de ir entrando gradualmente... sinto que vou ganhando terreno... devagar, é verdade, mas já me não falta muito...

- Com a breca, o Sr. de Maiena! - murmurou Chicot num êxtase de prazer. – Senhor Deus meu, ganhaste o círio!

- Não foi sem razão que me alcunharam de Hércules... - prosseguiu a voz abafada era capaz de deslocar esta pedra! Hem!

E fez um esforço tão violento que a pedra estremeceu efectivamente.

- Espera... - disse Chicot em voz baixa - espera...

E bateu com es pés como se fosse alguém que chegava muito apressado.

- Eles aí vêm, eles aí vêm! - disseram umas poucas de vozes no carreiro.

- Ah! - exclamou Chicot como quem vinha esbaforido. - Ah, és tu, miserável frade!

- Não fale, meu Senhor - murmuraram as vozes -; ele toma-o por Gorenflot.

- Ah, és tu, enorme massa, pondus immobile... toma lá! Ah és tu, indigesta moles'... toma lá!

E a cada uma destas exclamações, Chicot, que tinha conseguido finalmente a tão desejada ocasião de se vingar, Fustigava com quanta força tinha as partes carnudas que se Lhe ofereciam

à vista, com a corda que já Lhe tinha servido para bater em Gorenflot.

- Silêncio! - continuavam a dizer as vozes. - Ele está-o tomando pelo frade.

E com efeito, Maiena apenas soltava gemidos abafados, ao passo que tentava novos esforços para deslocar a pedra que obstava a que ele entrasse no carreiro.

- Ah, conspirador! - prosseguiu Chicot. - Ah, frade indigno! Toma lá, pela soberba...

Toma lá, pela preguiça... Toma lá, pela avareza... Toma lá, pela ira... Tóma lá, pela luxúria...

Toma lá, pela inveja... Toma lá, pela gula... Toma lá, pela embriaguez... A minha pena é que sejam unicamente sete os pecados mortais! Toma lá, toma lá, toma lá, por todos os vícios que tens.

- Sr. Chicot! - dizia Gorenflot escorrendo em suor. - Sr. Chicot, tenha dó de mim!

- Ah, traidor! - continuou Chicot, batendo sempre. - Toma lá, pela tua traição.

- Misericórdia! - murmurava Gorenflot, julgando sentir todos os açoites que Maiena estava levando. - Misericórdia, meu rico Sr. Chicot!

Porém Chicot, em vez de cessar, estava cego de raiva, e dava cada vez mais.

Maiena, por muito poder que tivesse sobre si mesmo, já não podia reprimir os gemidos.

- Ah! - exclamou Chicot. - Porque não havia Deus de pôr aqui, em lugar do teu corpo vulgar e do teu lombo plebeu, as muito altas e muito poderosas omoplatas do duque de Maiena, a quem eu sou devedor duma sova de pau que estava vencendo juros há sete anos?... Toma

lá, toma, toma!

Gorenflot soltou um suspiro e caiu para o lado.

- Chicot! - vociferou o duque.

- Sim, eu mesmo, sim! Chicot, indigno servidor de el- rei, Chicot, débil braço, que muito folgaria de ter nesta ocasião os cem braços de Briareu!

E Chicot, exaltando-se ainda mais, repetiu os açoites com tal furor, que a vítima, reunindo todas as suas forças, deslocou a pedra num paroxismo de dor, e com as costelas dilaceradas e o espinhaço em sangue, caiu afinal nos braços dos seus amigos.

O último açoite de Chicot deu em falso.

Chicot voltou-se então: o verdadeiro Gorenflot estava desmaiado; se não era com a dor era com o susto pelo menos.

 

         O QUE SE PASSAVA PARA A BANDA DA BASTILHA, ENQUANTO CHICOT PAGAVA AS SUAS DÍVIDAS NA ABADIA DE SANTA GENOVEVA

Eram onze horas da noite; o duque de Anju estava encerrado no gabinete para onde se havia retirado depois do incómodo que tinha sentido na Rua de S. Tiago, e esperava com impaciência a vinda de algum mensageiro do duque de Guisa a anunciar-Lhe a abdicação do rei seu irmão.

Passeava sem cessar da janela para a porta do gabinete, e da porta do gabinete para as janelas da antessala, olhando repetidas vezes para o relógio da parede, e escutando o progresso dos segundos que soavam lugubremente dentro da caixa de madeira dourada. De repente ouviu o tropear dum cavalo no pátio; pensou que era o do mensageiro que esperava, e correu logo à janela da sacada; porém o cavalo, seguro à mão por um criado, estava à espera do dono.

O dono saiu do interior do palácio: era Bussy, o qual, na sua qualidade de capitão da guarda do duque, acabava de dar o santo e a senha para a noite, antes de ir para o encontro que o bilhete lhe havia aprazado.

O duque, ao avistar aquele galante e valoroso mancebo, de quem nunca tinha tido razão de queixa, sentiu por um instante alguns remorsos; porém, à medida que ele se aproximava do archote que segurava o moço, viu-Lhe o duque mais claramente o rosto, e leu nele tanta alegria, tanta esperança e felicidade, que Lhe avivou todo o ciúme.

Entretanto, Bussy, que não sabia que o duque estava olhando para ele e espreitando-Lhe até à mais insignificante expressão da Fisionomia, Bussy, dizíamos, depois de ter dado o santo e a senha, enrolou o capote a tiracolo, montou, e chegando ambas as esporas ao cavalo, saiu do pátio com grande estrépido.

O duque, que já estava inquieto por não ver chegar pessoa alguma, ainda se lembrou de mandar no encalço dele, pois não duvidava que Bussy, antes de ir para a Bastilha, passasse primeiro por casa; mas Figurou-se-lhe estar vendo o mancebo a rir com Diana de seu amor desprezado, e colocando-o, a ele príncipe, a par do marido odiado, e então ainda desta vez o seu instinto mau venceu o bom.

Bussy, ao partir, ia sorrindo com a lembrança da ventura que o esperava; aquele sorriso era um insulto ao príncipe, e portanto deixou-o ir; se ele tivesse mostrado tristeza e semblante carregado, podia ser que o houvesse detido.

Bussy, apenas saiu do Palácio de Anju, abrandou a carreira do cavalo, cumo se receasse a bulha da própria marcha, e entrando em casa, conforme tinha previsto o duque, entregou o cavalo a um criado da cavalariça que estava ouvindo respeitosamente uma prelecção de arte veterinária que lhe dava Rémy.

- Ah, ah! - disse Bussy logo que viu o jovem doutor. - És tu, Rémy?

- Sim, meu Senhor, em pessoa.

- E ainda não te foste deitar?

- Ainda me faltam dez minutos, meu Senhor; voltei agora mesmo para casa; digo-lhe na verdade que me fez falta o meu ferido: parece-me agora que os dias têm quarenta e oito horas.

- Andas aborrecido por não teres em que te ocupar? - perguntou Bussy.

- Desconfio que assim é.

- E os amores?

- Ah, como já por várias vezes lhe tenho dito, eu estou sempre em guarda contra os amores, e em geral só me servem para estudo da ciência.

- Visto isso, abandonaste Gertrudes?

- De todo.

- Então já te fartaste?

- De levar pancada; eram as provas de amor que me dava a minha amazona, que é, contudo, uma boa rapariga.

- E não sentes no teu coração alguma saudade dela esta noite?

- Esta noite? Porquê, meu Senhor?

- Porque se quisesses levava-te comigo...

- À Bastilha?

- Sim.

- Vai lá hoje?

- Vou.

- E o Monsoreau?

- Está em Compienha, meu amigo; foi fazer os aprestos duma montaria a que há-de assistir Sua Majestade.

     - Tem a certeza disso, meu Senhor?

   - A ordem foi-lhe dada publicamente esta manhã.

   -Ah!...

     Rémy conservou-se um instante pensativo.

- E então? - disse ele passado um momento.

- Então, passei o dia a dar graças a Deus da felicidade que me deparava para esta noite, e vou passar a noite a gozar dessa felicidade.

- Muito bem. Jordão, traz a minha espada - disse Rémy. O criado da cavalariça desapareceu para o interior da casa.

- Mudaste pois de parecer? - perguntou Bussy.

- Porquê?

- Porque mandaste buscar a espada...

- Quero acompanhá-lo até à porta, por duas razões.

- Quais são?

- A primeira, é com receio de que não tenha algum mau encontro pelas ruas. Bussy sorriu-se.

- Pois sim, ria, meu Senhor... Bem sei que não tem medo dos maus encontros, e que o Dr. Rémy é fraca companhia; mas não é tão fácil serem atacados dois homens como um só. A segunda razão é porque tenho a dar-lhe uma imensidade de conselhos.

- Vem, meu caro Rémy, vem. Conversaremos a respeito dela; depois do gosto que se sente quando se vê a mulher a quem se ama, não sei que possa haver outro maior do que falar nela.

- E muitas pessoas há - replicou Rémy - que sentem ainda muito maior prazer em falar nas amantes do que em as ver.

- Porém - disse Bussy - parece-me que o tempo está muito inconstante.

- Mais um motivo para eu o acompanhar; o céu ora está sombrio, ora claro. Eu gosto da variedade. Obrigado, Jordão - prosseguiu ele, dirigindo-se para o criado, que lhe trazia a espada.

E depois, voltando-se para o conde:

- Eis-me pronto, meu Senhor; partamos.

Bussy enfiou o braço no do jovem doutor, e ambos se encaminharam para a Bastilha. Rémy havia dito ao conde que tinha uma imensidade de conselhos a dar-Lhe, e, com efeito, apenas se puseram a caminho, começou o doutor a recitar mil citações latinas, qual delas, mais autorizada, para provar a Bussy que fazia mal em ir naquela noite visitar Diana, em vez de se conservar muito sossegado na cama, por isso que, em geral, nunca um homem se bate bem quando tem dormido mal; depois dos apotegmas da faculdade, passou o médico aos mitos da cábula, e contou, com muita graça, que era Vénus quem habitualmente desarmava Marte.

Bussy sorria-se; Rémy continuava a insistir.

- Olha, Rémy - disse o conde -, quando a minha mão empunha uma espada, agarra-se a ela por tal forma, que as Fibras da carne tomam o vigor e a flexibilidade do aço, enquanto que, por outro lado, o aço parece animado e quente como se tivesse vida. A minha espada fica desde logo sendo um braço, e o meu braço uma espada; e então, percebes? Já não há necessidade de força nem de disposição. Uma folha de espada não se cansa.

- Não, mas embota-se.

- Não tenhas receio.

- Ah, meu caro Senhor - continuou Rémy -, é porque amanhã tem de tomar parte numa luta como a de Hércules com Anteu, como a de Teseu com o Minotauro, como o combate dos Trinta, ou como o de Bayard; uma empresa homérica, gigantesca, impossível; é preciso que digam os vindouros o duelo de Bussy como tendo sido o duelo por excelência, e eu quero que dele escape sem que lhe arranhem a pele sequer.

- Deixa estar, meu bom Rémy verás coisas espantosas; esta manhã entreguei quatro espadas a quatro esgrimadores, e, durante oito minutos, nenhum dos quatro me chegou uma única vez, enquanto que eu Lhes fiz os gibões em farrapos. Pulava como um tigre!

- Não duvido que assim fosse, meu amo; porém julga que as suas pernas terão amanhã o mesmo vigor que tinham hoje?.

Bussy e o seu médico encetaram neste ponto um diálogo em latim, frequentemente interrompido por estrondosas gargalhadas.

Chegaram assim à extremidade da Rua Direita de Santo António.

- Adeus - disse Bussy -; eis-nos chegados.

- Parece-lhe que fique esperando? - disse Rémy.

- Para quê?

- Para ter a certeza de que há-de voltar daqui a duas horas, a fim de que possa dormir descansado cinco ou seis horas, pelo menos, antes do duelo.

- E se te der a minha palavra?.

- Oh, é quanto me basta. A palavra de Bussy era o que faltava duvidar eu dela!

- Pois muito bem: dou-ta. Daqui a duas horas, Rémy, estarei em casa.

- Está bem. Adeus, meu Senhor.

- Adeus, Rémy.

Os dois mancebos separaram-se; porém Rémy conservou-se no mesmo sítio; viu o conde encaminhar-se para a casa; e, como a ausência de Monsoreau Lhe dava toda a segurança, entrou pela porta, que Lhe abriu Gertrudes, em lugar de subir pela janela.

Depois dirigiu-se filosoficamente pelas ruas desertas para o Palácio de Bussy. Ao desembocar no Largo Beaudoyer, avistou cinco homens embuçados em capotes, e que pareciam ir completamente armados.

Cinco homens àquela hora era um acontecimento notável; Rémy escondeu-se à esquina duma casa.

Chegados que foram a distância de dez passos do sítio onde ele se achava, os cinco homens pararam, e, depois duma despedida muito cordial, quatro deles tomaram por dois caminhos diferentes, enquanto que o quinto se conservava imóvel e pensativo no mesmo sítio.

Naquele momento o luar rompeu por uma nuvem e deu em cheio no rosto do passeante nocturno.

- O Sr. de Saint-Luc! - exclamou Rémy.

Saint-Luc ergueu a cabeça quando ouviu proferir o seu nome, e viu um homem que caminhava para ele.

- Rémy! - exclamou ele ao conhecê-lo.

- Rémy em pessoa, e muito estimo não ter que dizer: pronto para o servir! visto que me parece gozar de perfeita saúde. Será indiscrição perguntar o que está fazendo a esta hora tão longe do Louvre?

- Eu Lhe digo, meu caro: ando examinando, por ordem de el-rei, o aspecto da cidade. Disse-me Sua Majestade: Saint-Luc, vai passear pelas ruas de Paris, e, se por acaso ouvires dizer que eu abdiquei, responde afoitamente que é mentira.

- E ouviu falar em semelhante coisa?

- Nem palavra. Ora pois, como já é quase meia-noite, tudo está sossegado, e só encontrei o Sr. de Monsoreau, despedi-me dos meus amigos, e dispunha-me a voltar para casa quando me viu a reflectir.

- Como?. O Sr. de Monsoreau?

- Sim, ele.

- Encontrou o Sr. de Monsoreau?

- Com um rancho de homens armados; dez ou doze pelo menos.

- O Sr. de Monsoreau!. é impossível!

- Impossível, porquê?

- Porque a estas horas deve estar em Compienha.

- Devia lá estar, mas não está.

- Porém a ordem que lhe deu el-rei?.

- Pensas que ele obedece a el-rei?

- Encontrou o Sr. de Monsoreau com dez ou doze homens?

- Com toda a certeza.

- Ele conheceu-o?

- Creio que sim.

- E eram cinco unicamente?

- Os meus quatro amigos e eu, mais ninguém.

- E ele não o acometeu?

- Evitou-me, pelo contrário, o que muito me admirou; pois logo que o vi receei que tivéssemos uma terrível refrega:

- Que direcção levava ele?

- Ia para a banda da Rua da Tixeranderie.

- Ah, meu Deus! - exclamou Rémy.

- Que é?. - perguntou, Saint-Luc, assustado pelo acento da voz do médico.

- Sr. de Saint-Luc, vai suceder decerto uma grande desgraça!

- Uma grande desgraça? A quem!

- Ao Sr. de Bussy!

- A Bussy? Por Deus, fale, Rémy! Bem sabe que sou um dos amigos dele.

- Que desgraça!. O Sr. de Bussy persuadiu-se que de Monsoreau estava em Compienha.

- E então?

- Então, pensou que podia aproveitar-se da sua ausência.

- De maneira que está neste momento.

- No quarto de Diana!

- Ah! - disse Saint-Luc. - O caso é muito sério!

- Não Lhe parece? - disse Rémy; - desconfiou, provavelmente, ou teve alguma denúncia, e fimgiu que partia, para voltar inesperadamente.

- Espere! - disse Saint-Luc batendo na testa.

- Ocorreu-lhe alguma ideia? - perguntou Rémy.

- Anda nisto o duque de Anju.

- Porém foi o duque de Anju quem promoveu esta manhã a partida do Sr. de Monsoreau.

- Isso vem aumentar a minha desconfiança. Que tal funciona o seu bofe, meu bom Rémy?

- À fé, que é capaz de desbancar um fole de ferreiro!

- Pois então corramos! Corramos sem perda dum instante! Sabe onde é a casa?

- Sei.

- Vá adiante, pois.

E os dois mancebos deitaram a correr pela rua fora com uma tal velocidade que pareciam dois gamos perseguidos pelos caçadores.

- Ele leva-nos muita dianteira? - perguntou Rémy sempre correndo.

- Quem, o Monsoreau?

- Ele, sim.

- Um quarto de hora pouco mais ou menos - disse Saint-Luc saltando um enorme montão de pedras.

- Oxalá cheguemos a tempo! - disse Rémy desembainhando a espada para o que desse e viesse.

         ASSASSINATO

Bussy tinha entrado para casa de Diana sem receio e sem hesitação, sendo afoitamente recebido por ela, pois estava convencida de que era verdadeira a ausência do marido.

Nunca a formosa dama havia mostrado tamanha alegria, nunca Bussy se tinha sentido mais feliz; há certos momentos em que a alma, ou, para nos exprimirmos com mais exactidão, o instinto conservador, sente toda a gravidade, e o homem, unindo então as suas faculdades morais a todos os recursos físicos que Lhe podem ministrar os sentidos, concentra-se e multiplica-se. Aspira com toda a força a vida que Lhe pode faltar dum momento para o outro, sem que possa prever qual a catástrofe que Lha há-de tirar.

Diana, comovida em extremo, por isso mesmo que procurava encobrir a sua inquietação, Diana, dizemos, comovida com o receio dos perigos do dia seguinte, parecia ainda mais terna, por isso que a tristeza, quando se confunde com o amor, dá-lhe o perfume da poesia que Lhe falta; uma paixão verdadeira nunca é brincalhona, e os formosos olhos duma mulher que se encontra verdadeiramente apaixonada choram mais do que riem.

Começou pois por deter o mancebo nos seus transportes amorosos. O que ela tinha a dizer-Lhe naquela noite é que Lhe pertencia; o que ela tinha a discutir com ele era sobre os meios mais seguros de fugir. Porque não bastava vencer; era necessário, depois de ter vencido, fugir da cólera do rei, pois era muito de supor que Henrique não se resolvesse a perdoar ao vencedor a derrota ou a morte dos seus validos.

- E demais - dizia Diana, com um dos braços deitados à roda do pescoço de Bussy e devorando com a vista o rosto do amante -, não és tu porventura o cavalheiro mais valoroso que existe em toda a França? Que empenho podes ter em aumentar a tua glória? Já és tão superior aos outros homens, que seria falta de generosidade em ti quereres engrandecer-te ainda mais. Tu não queres agradar a nenhuma outra mulher, porque me amas a mim, e terias receio de me perderes para sempre, não é assim, meu Luís? Luís, defende pois a tua vida. Não te digo: Lembra-te da morte! ", porque me parece que não pode haver no mundo um homem bastante grande, bastante forte, bastante poderoso, para matar o meu Luís, a não ser à traição. Mas lembra-te das feridas; podes ficar ferido; tu bem sabes que eu devo a felicidade de te conhecer a teres sido ferido numa briga com esses mesmos homens.

- Deixa estar - replicou Bussy rindo-se -, hei-de resguardar o rosto, não quero ficar desfigurado.

- Oh, resguarda a tua pessoa toda. Quero que ela seja sagrada para ti, meu Bussy, como se tu fosses eu. Lembra-te da dor que sentirias se me visses voltar ferida e ensanguentada; pois bem, a mésma dor que tu terias, senti-la-ia eu vendo correr o teu sangue. Sê prudente, meu leão destemido, é quanto te recomendo. Imita aquele romano de quem me leste a história outro dia para me tranquilizares. Oh, faz em tudo como ele, deixa combater os teus três amigos; acode unicamente ao que vires mais ameaçado. Porém, se dois ou três homens te atacarem ao mesmo tempo, foge, para depois te voltares, como Horácio, e mata-os sucessivamente à distância uns dos outros.

- Sim, minha querida Diana - disse Bussy.

- Oh, estás-me respondendo sem me ouvires, Luís! Estás olhando para mim, mas não me atendes.

- Sim, mas estou-te vendo. e tu és tão formosa!

- Não é da minha formosura que se trata agora! Oh, meu Deus, é de ti que se trrata, da tua vida, da nossa vida! Olha! o que eu vou dizer-te é horrível, mas quero que o saibas porque, se bem que não te há-de dar mais valor, há-de tornar-te mais prudente. Pois bem, hei-de ter o ânimo de presenciar teu duelo!

- Tu?

- Sim, hei-de assistir a ele.

- Como? É impossível, Diana.

- Não, ouve: sabes que no quarto ao lado deste há uma janela que deita para um paliozinho, e da qual se avista de lado a lado a Cerca das Tournelles.

- Sim, bem me lembro; é uma janela que fica na altura de vinte pés do chão, pouco mais ou menos, por cima duma grade de ferro, em cujas lanças eu estive outro dia espetando bocadinhos de pão, que os pássaros vinham espicaçar.

- De lá, percebes, Bussy, poderei ver-te. Trata de te colocar de maneira tal que eu te veja; hás-de saber que eu estou lá, e também poderás ver-me. Mas não. louca que eu sou! Não olhes para mim, pois o teu inimigo poder-se-ia aproveitar da tua distracção.

- E matar-me, não é assim? Enquanto eu estivesse com os olhos fitos em ti, minha bela. Se eu fosse condenado, Diana, e me deixassem escolher o modo por que queria morrer, era assim que eu desejaria acabar.

- Sim, mas não estás condenado; e não se trata agora de morrer; trata-se, bem pelo contrário, de viver, para me dares alegria, para me dares felicidade.

- E hei-de viver, fica descansada; e demais, tenho óptimos auxiliares; tu não conheces, como eu, os meus amigos! Antraguet joga a espada como eu, Ribeirac tem muito sangue-frio, e nele só parecem vivos os olhos com que devora o adversário, é o braço com que o fere; Livarot é dotado duma agilidade de tigre. Crê no que te digo, Diana: as probabilidades são todas em meu favor: Eu queria que o perigo fosse maior, para ter mais merecimento em me livrar dele.

- Muito bem, querido amigo; acredito no que dizes, e sorrio-me, porque confio; mas atende-me, e promete- me que me obedecerás.

- Prometo, contanto que não me ordenes que te deixe, minha querida Diana.

- Pois é isso justamente o que eu ia dizer, e é para o teu juízo que apelo agora.

- A boas horas, depois de me teres feito enlouquecer!.

- Nada de conceitos, meu galante cavalheiro; o que se exige é obediência, pois também é uma prova de amor.

- Ordena, então.

- Querido amigo, os teus olhos estão cansados; precisas duma noite sossegada; vai-te embora.

- Oh, pois já?

- Vou orar, e depois abraçar-me-ás.

- A ti é que todos deveriam orar como a um anjo!

- E pensas tu que os anjos não oram a Deus?. - disse Diana ajoelhando. E, do íntimo do coração, com um olhar que parecia atravessar o tecto do quarto para ir procurar Deus no meio da abóbada azulada do céu, disse:

- Senhor, se quereis que a Vossa serva viva feliz e não morra de angústia, protegei o homem que atravessastes no meu caminho para que eu amasse, e a quem unicamente amo.

Acabava ela de proFerir estas palavras e Bussy abaixava-se para a enlaçar nos braços e trazer-lhe o rosto à altura dos lábios, quando de repente voou, feito em estilhas, um vidro da janela; depois abriu-se a própria janela, e três homens armados apareceram na varanda, enquanto um quarto galgava a balaustrada.

Este último trazia o rosto coberto por uma máscara, segurava com a mão esquerda uma pistola, e na outra uma espada desembainhada.

Bussy permaneceu um instante imóvel e espantado pelo grito terrível que Diana soltou, agarrando-se-lhe ao pescoço.

O homem da máscara fez um sinal, e os três companheiros deram um passo para a frente; um dos três vinha armado com um arcabuz.

Bussy fez arredar Diana com a mão esquerda, ao passo que arrancava a espada da bainha com a direita.

Depois, recuando um pouco, abaixou vagarosamente o ferro, sem perder de vista os adversários.

- Vamos, vamos, meus valentes - disse uma voz sepulcral que saía de dentro da máscara de veludo -, ele já está meio morto de medo.

- Está enganado - disse Bussy -, não sei o que é medo.

Diana Fez um movimento para se chegar a ele.

- Afasta-te, Diana! - disse ele com firmeza.

Porém Diana, em vez de obedecer, deitou-se-Lhe segunda vez ao pescoço.

- Tire-se, se não quer que me matem, minha Senhora - disse ele.

Diana arredou-se, deixando-o inteiramente a descoberto. Tinha percebido que a única maneira por que podia auxiliar o amante era obedecendo-Lhe passivamente.

- Ah, ah! - disse a mesma voz abafada. - É na verdade o Sr. de Bussy; e eu que não queria acreditar!. Sempre sou bem tolo! Que amigo! Que bom e excelente amigo!.

Bussy conservava-se calado, mordendo os beiços e examinando em redor de si quais seriam os seus meios de defesa quando se empenhasse a luta.

- Soube - prosseguiu a voz com uma intonação motejadora, que tornava ainda mais terrível a sua vibração profunda e lúgubre - que o monteiro-mor estava ausente, que tinha deixado a mulher sozinha, que a dama poderia ter medo, e veio fazer-lhe companhia. e em que ocasião? Na véspera dum duelo. Torno a dizer: que bom e excelente amigo é o Sr. de Bussy!...

- Ah, é o Sr. de Monsoreau - replicou Bussy. - Bem, arranque a máscara. Agora já sei com quem tenho a tratar.

- Assim farei - disse o monteiro-mor.

E atirou para longe de si a máscara de veludo preto.

Diana soltou um grito. O conde estava pálido como um cadáver e sorria-se como um demónio.

- Acabemos com isto - disse Bussy -, não gosto de espalhafato; falar antes de a gente se bater podia agradar aos heróis de Homero, que eram semideuses; eu, porém, sou um simples mortal, se bem que não cabe o medo em meu peito, e portanto: ataque-me ou deixe-me passar.

Monsoreau respondeu com uma risada surda e estridente, que fez estremecer Diana e despertou em Bussy a mais impetuosa cólera.

- Abra caminho, vamos! - repetiu o mancebo, que sentia subir às fontes o sangue que por um instante Lhe havia refluído ao coração.

- Oh, oh! - exclamou Monsoreau. - Abrir caminho, foi isso que disse, Sr. de Bussy?.

- Pois então cruzemos as espadas, e acabemos com isto! - replicou o mancebo. - Preciso de voltar para casa, e moro longe.

- Veio para ficar aqui, Senhor - redarguiu o monteiro-mor -; e aqui há-de ficar.

Durante este tempo apareceram através das grades da varanda as cabeças de mais dois homens, os quais, depois de terem galgado a balaustrada, vieram colocar-se ao lado dos companheiros.

- Quatro e dois são seis - disse então Bussy -; onde estão os outros?

- Estão esperando à porta - respondeu o monteiro-mor.

Diana caiu de joelhos, e, apesar dos esforços que fazia para reprimir o choro, Bussy ouvia-Lhe os soluços.

Olhou rapidamente para ela, e depois, virando-se para o conde:

- Meu caro Senhor - disse ele após ter reflectido durante alguns segundos -, sabe que sou homem de bem.

- Sim - replicou Monsoreau -, é homem de bem, como essa senhora é mulher honesta.

- Muito bem, Senhor - retorquiu Bussy meneando ligeiramente a cabeça de alto a baixo

- ; essa resposta é um ultraje, mas é merecido; eu pagarei tudo junto. Contudo, como estou comprometido para amanhã com quatro cavalheiros seus conhecidos, a quem me cumpre satisfazer em primeiro lugar, peço-Lhe que me conceda licença para me retirar esta noite, dando-Lhe a minha palavra que me apresentarei onde e quando quiser.

Monsoreau encolheu os ombros.

- Ouça-me - disse Bussy - juro-Lhe por Deus Senhor, que logo que tiver dado a devida satisfação aos Srs. de Schomberg, d'Epernon, de Quélus e Maugiron, ficarei inteiramente à sua disposição. Se me matarem, ficará pago pelas vidas deles; e se, pelo contrário, eu os matar, ainda ficarei habilitado a pagar a minha dívida.

Monsoreau voltou-se para a sua gente.

- Vamos! - gritou ele. - Eia, meus valentes!

- Ah! - disse Bussy. - Vejo que estava enganado: pensava que era um duelo, e é um assassinato.

- Boa dúvida!... - replicou Monsoreau.

- Sim, bem vejo agora: ambos estávamos iludidos a respeito um do outro; porém reflicta Senhor, que o duque de Anju não Lhe há-de levar isto a bem.

- Foi ele quem aqui me mandou - disse Monsoreau.

- Bussy estremeceu. Diana, suspirando dolorosamente, levantou as mãos para o Céu.

- Nesse caso - exclamou o mancebo - invocará Bussy a protecção do seu próprio braço.

Guardem-se pois bem, meus pimpões, e não errem fogo, que o erro pode-Lhes ser fatal!

E, num abrir e fechar de olhos, derrubou o genuflexório, puxou para si uma banca, e colocou por cima de tudo uma cadeira, improvisando assim, em menos dum segundo, uma trincheira entre si e os seus inimigos. Este movimento foi tão rápido, que uma bala partida dum

arcabuz não atingiu senão o genuflexório, onde ficou alojada; ao mesmo tempo, Bussy deitava ao chão uma credência do tempo de Francisco I, e com ela aumentava o seu entrincheiramento.

Diana ficou encoberta por este último móvel; ela compreendia que não podia auxiliar Bussy senão com orações, e orava.

Bussy lançou um rápido olhar para ela, depois para os assaltantes, depois para a barricada que improvisara.

- Vamos lá - disse ele -, mas tomem cuidado, que a minha espada fere!

Os bravos, impelidos por Monsoreau, fihzeram um movimento para o javali que os esperava, recurvado, e com os olhos em Fogo; um deles chegou a estender a mão para agarrar o genuflexório; mas antes da mão tocar o móvel protector, a espada de Bussy, passando por um intervalo que era como uma seteira, encontrara o braço em todo o seu comprimento e rasgara-o do pulso até ao ombro.

O homem soltou um grito e recuou até à janela.

Bussy ouviu então passos rápidos no corredor, e julgou-se metido entre dois fogos. Atirou-se então para a porta para Lhe correr os ferrolhos; mas antes de se aproximar ela abriu-se.

O mancebo deu um passo atrás para se pôr em guarda ao mesmo tempo contra os inimigos que já tinha na sua frente e contra os que chegavam de novo pela retaguarda.

Dois homens se precipitaram por essa porta.

- Ah, meu caro amo! - exclamou uma voz bem conhecida. - Chegamos a tempo?

- Rémy! - exclamou o conde.

- E eu também - bradou uma segunda voz -; parece que se trata aqui de algum assassinato!

Bussy reconheceu a voz, e dando um rugido de imensa alegria exclamou:

- Saint-Luc!

- Eu mesmo!

- Ah, ah! - disse Bussy. - algora, meu caro Sr. de Monsoreau, creio que fará bem em nos deixar passar, porque se não nos abrir caminho, passaremos por cima do senhor!

- Venham mais três homens! - bradou colérico o Sr. de Monsoreau. E logo três novos assaltantes apareceram na varanda.

- Ah isso é assim? Mas então o senhor tem um exército?. - disse Saint-Luc.

- Senhor meu Deus! Protegei-o! - dizia Diana levantando as mãos ao Céu.

- Infame! - gritou Monsoreau.

E deu dois passos para ir ferir Diana.

Bussy reparou nesse movimento. Ágil como um tigre, deu um pulo por cima da barricada; a sua espada encontrou a de Monsoreau, depois caiu a fundo e feriu-o no pescoço; mas a distância era muito grande, e por isso fez-Lhe apenas uma esfoladura.

Cinco ou seis homens saltaram ao mesmo tempo sobre Bussy.

Um desses homens caiu morto ao receber uma estocada de Saint-Luc.

- Avancemos! - bradou Rémy.

- Não avances! - disse Bussy. - Pelo contrário: Rémy, pega em Diana e leva-a. Monsoreau deu um gemido, e arrancou uma pistola das mãos dum dos que acabavam de chegar.

Rémy hesitava.

- E o senhor? - disse ele.

- Leva-a, leva-a! - bradou Bussy. - Confio-ta.

- Meu Deus! - exclamou Diana. - Meu Deus, socorrei-o!

- Venha, minha Senhora - disse Rémi.

- Isso nunca, nunca o abandonarei!

Rémy agarrou nela ao colo.

- Bussy - gritou Diana -, acode-me!

A pobre senhora estava louca; não distinguia já os amigos dos inimigos; tudo que a afastava de Bussy era fatal, era como a morte.

- Vai, vai - disse Bussy -, que eu irei depois ter contigo.

- Isso sim! - uivou Monsoreau. - Isso sim, eu também espero que hás-de ir ter com ela!.

Bussy viu Haudouin oscilar, depois ir-se dobrando, e quase ao mesmo tempo cair, arrastando Diana na queda.

Bussy deu um grito e voltou-se.

- Não é nada, Senhor Conde. - disse Rémy - Fui eu que recebi a bala. ela está salva. Três homens atiraram-se a Rémy; no momento em que ele se voltava, Saint-Luc passou entre Bussy e os três homens; um dos três caiu morto.

Os outros dois recuaram.

- Saint-Luc! - disse Bussy - Saint-Luc, por aquela que ama, salve Diana!

- Mas tu?.

- Eu? Eu sou homem!

Saint-Luc correu para Diana, que já estava de joelhos; tomou-a nos braços e desapareceu com ela pela porta.

- Venham! - gritou Monsoreau. - Venham os da escada.

- Ah, malvado! - exclamou Bussy. - Ah, cobarde!

Monsoreau foi pôr-se atrás da sua gente.

Bussy deu um golpe de revés, e depois uma estocada; com o primeiro abriu uma cabeça pelas fontes, com a segunda atravessou um peito.

Isto sempre vai diminuindo as dificuldades disse ele para consigo.

Depois voltou para o seu entrincheiramento.

- Fuja, fuja, Senhor Conde! - murmurou Rémy

- Fugir, eu? Fugir diante de assassinos?

Depois, inclinando-se para o mancebo:

- É preciso a todo o custo salvar Diana! - disse ele. - Mas. tu que tens?

- Olhe para a porta - disse Rémy -, veja o que lá vêm!

Com efeito, quatro homens acabavam de entrar precipitadamente pela porta da escada. Bussy achava-se agora colocado entre duas forças.

Entretanto só teve um pensamento:

E Diana?. exclamou ele, e Diana?.

E ao mesmo tempo, sem perda de um segundo, lançou-se a esses quatro homens; atacados assim de repente, caíram dois, um ferido, outro morto.

Depois, como Monsoreau avançasse para ele, deu um passo à retaguarda e achou-se atrás da sua improvisada trincheira.

- Fechem os ferrolhos - gritou Monsoreau -; dêem volta à chave, que ele está em nosso poder.

Durante este tempo, fazendo um último esforço, Rémy arrastara-se até ao pé de Bussy; vinha trazer o seu corpo para reforço do material da trincheira.

Houve um instante de pausa.

Bussy, com as pernas trémulas, o corpo encostado à parede, o braço curvado e a espada em descanso, lançou rapidamente a vista em redor de si.

Estavam por terra sete homens; havia nove em pé.

Bussy contou-os com os olhos. Mas ao ver reluzir nove espadas, ao ouvir Monsoreau animar esses homens, e sentindo os seus pés patinhar no sangue, esse valente, que nunca conhecera o medo, viu como que a imagem da morte desenhar-se ao fundo do quarto e chamá-lo com o seu triste sorriso.

São nove, disse ele; ainda darei facilmente cabo de cinco, mas os quatro restantes matar-me-ão. Ainda tenho forças para dez minutos de combate; pois bem! façamos, durante esses dez minutos, o que homem algum nunca fez, nem será jamais capaz de fazer.

Pensando isto, agarrou na capa, enrolou-a no braço esquerdo como se fosse um escudo e deu um pulo para o meio do quarto, como se fosse indigno da sua fama combater por mais tempo a coberto, abrigado embora por tão frágil barreira.

Então atirou-se três vezes ao monte, enFiando por ele a espada como a víbora enFia pelo covil; três vezes abriu um claro, e por ele tornou a meter o braço; três vezes ouviu estalar o couro dos boldriés, ou a pele de búfalo das fardas, e três vezes um fio de sangue morno Lhe correu até à mão direita pela lâmina da espada.

Durante este tempo aparou mais de vinte golpes de corte e de ponta com o braço esquerdo. A capa estava toda golpeada.

A táctica dos assassinos mudou ao verem cair dois homens e retirar-se o terceiro; renunciaram então a fazer uso da espada: uns caíram sobre ele à coronhada de mosquete; outros descarregavam sobre ele as pistolas, de que ainda se não tinham servido, e cujas balas evitou destramente, ora inclinando-se para o lado, ora abaixando-se. Naquela hora suprema todo o seu ser se multiplicava; porque não só via, ouvia e obrava, mas ainda quase que adivinhava o mais súbito e o mais secreto pensamento dos seus inimigos; Bussy estava enfim num desses momentos em que a criatura atinge o apogeu da perfeição; era menos que Deus, porque era mortal, mas era decerto mais do que um homem.

Pensou então que o matar Monsoreau deveria pôr fim ao combate; procurou-o pois com a vista entre os assassinos mas ele, tão calmo quanto Bussy estava agitado, carregava as pistolas da sua gente, ou, tomando-as já carregadas das mãos deles, atirava, sempre encoberto por detrás dos seus companheiros.

Mas para Bussy era coisa fácil abrir uma passagem; atirou-se para o meio dos esbirros, que se afastaram, e achou-se Face a face com Monsoreau.

Nesse momento, ele, que tinha uma pistola armada, apontou para Bussy e desfechou. A bala deu de encontro à lâmina da espada e quebrou-a a umas seis polegadas acima dos copos.

- Desarmado! - gritou Monsoreau. - Desarmado!

O Sr. de Bussy recuou um passo e apanhou a folha da espada partida. Num segundo tinha-a outra vez empunhado, segurando-a com o lenço. E a batalha recomeçou, apresentando o espectáculo prodigioso dum homem quase sem armas, mas também quase sem feridas, aterrando seis homens bem armados e fazendo por si uma trincheira de dez cadáveres.

A luta então tornou-se mais terrível do que até ali; enquanto os homens de Monsoreau caíam sobre Bussy, Monsoreau, que adivinhara que o mancebo procurava uma arma no chão, afastava para o seu lado todos os que Lhe estavam no alcance.

Bussy estava cercado; aquele pedaço de espada, já sem fio e cheio de mossas, vacilava-Lhe na mão; a fadiga começou a entorpecer-lhe o braço; olhava em volta de si, quando um dos cadáveres, reanimando-se, ajoelhou, e meteu-lhe na mão uma forte e comprida espada.

Este cadáver era Rémy, cujo último esforço era uma grande dedicação. Bussy deu um grito de alegria e ao mesmo tempo saltou para trás, a fim de desenrolar o lenço da mão e desembaraçar-se do pedaço da espada, tornado agora inútil.

A este tempo, Monsoreau aproximou-se de Rémy e descarregou-Lhe à queima-roupa uma pistola na cabeça.

Rémy caiu com o crânio despedaçado, e desta vez pareceu que para nunca mais se levantar.

Bussy deu um grito, ou antes, um rugido.

As forças tinham-Lhe voltado com os meios de defesa; moveu a espada nesse círculo: derribou um braço à direita e rasgou uma face à esquerda.

Por este duplo golpe ficara a porta desimpedida.

Ágil e nervoso, correu para ela e procurou arrombá-la dando-lhe um empurrão que abalou a parede. Mas os fechos resistiram.

Cansado de tantos esforços, Bussy deixou cair o braço direito, enquanto que com o esquerdo procurava correr os fechos por detrás, fazendo ao mesmo tempo frente aos adversários.

Nesse instante recebeu um tiro que lhe varou uma perna, e duas cutiladas que o feriram nos lados.

Mas tinha conseguido correr os fechos e dar volta à chave.

Rugindo como uma fera, sublime de furor, deitou por terra, dum golpe, o mais encarniçado bandido, e lançando-se sobre Monsoreau, feriu-o no peito.

O monteiro-mor vociferou uma maldição.

Ah! disse então Bussy abrindo a porta, começo a crer que escaparei. Os quatro homens atiraram as armas ao chão e agarraram-se a Bussy; não podendo tocá-lo com o ferro, tanto a sua maravilhosa destreza o tornava invulnerável, tentaram asfixiá-lo.

Mas, ora com os copos, ora com o fio da espada, o corajoso, o valente Bussy ia-os derrubando e ferindo sem descanso. Monsoreau aproximou-se duas vezes do mancebo, e mais duas vezes foi tocado, sem contudo o poder ferir.

Mas três homens agarraram-Lhe nos copos da espada e arrancaram-lha da mão. Bussy pegou num tamborete de madeira esculpida e deu com ele três pancadas; dois homens caíram por terra, mas o tamborete partiu-se nas costas do terceiro, que ficou em pé.

Esse enterrou-Lhe a adaga no peito.

Bussy agarrou-lhe a mão, arrancou-Lhe a adaga, e voltando-a contra o seu adversário, obrigou-o a apunhalar-se a si mesmo.

O último saiu pela janela.

Bussy deu dois passos em seu seguimento, mas Monsoreau, estendido entre os cadáveres, levantou-se por sua vez, e com uma faca rasgou-Lhe a barriga da perna.

O mancebo soltou um grito, procurou com os olhos uma espada, apanhou a primeira que se lhe deparou, e enterrou-a tão vigorosamente no peito do monteiro-mor que o pregou no chão.

- Ah - exclamou Bussy -, não sei se morrerei, mas ao menos ainda te vi morrer! Monsoreau quis responder; mas um suspiro apenas, e foi o último, Lhe passou pela boca entreaberta.

Bussy arrastou-se então para o corredor; estava perdendo muito sangue pelas duas feridas da perna.

Lançou para trás de si um último olhar.

A Lua vinha saindo brilhante duma nuvem; a sua luz entrava por aquela câmara inundada de sangue; reflectia-se nos vidros das janelas e iluminava as paredes golpeadas pelas espadas, furadas pelas balas, tocando levemente em sua passagem os pálidos rostos dos mortos, que, na maior parte, tinham conservado, ao expirarem, o olhar feroz e ameaçador do assassino.

Bussy, à vista desse campo de batalha juncado de mortos, ferido como estava e quase moribundo, sentia- se repleto dum orgulho sublime.

Como havia dito, tinha Feito aquilo que nenhum homem teria sido capaz de fazer.

Restava-Lhe agora fugir, salvar-se; e podia fugir, porque fugia diante dos mortos. Não estava tudo acabado para o desgraçado mancebo.

Ao chegar à escada, viu reluzir armas no pátio; partiu um tiro de fuzil, e a bala atravessou-lhe um ombro.

O pátio estava guardado.

Lembrou-se então da janelinha pela qual Diana lhe prometera ver o duelo na manhã seguinte, e tão rapidamente como pôde, dirigiu-se para esse lado.

Estava aberta, emoldurando um belo céu cheio de estrelas.

Bussy fechou e aferrolhou a porta que lhe ficava atrás; depois subiu à janela com grande dificuldade, passou as pernas por cima do parapeito, e mediu com a vista a grade de ferro a fim de Lhe saltar por cima.

- Oh, não terei forças para tanto! - murmurou ele com desalento.

Mas, neste momento, soaram passos na escada: era outro grupo que subia. Bussy estava incapaz de se defender; entretanto, com as poucas forças que lhe restavam, e ajudando-se com a única mão e o único pé de que ainda se podia servir, saltou.

Mas, ao saltar, a sola da bota escorregou na pedra.

Pois se havia tanto sangue debaixo dos pés!

E caiu sobre as lanças de ferro; umas entraram-lhe no corpo, outras prenderam-lhe o fato, e ele ficou pendurado.

Nesse momento pensou no último amigo que ainda lhe restava no mundo.

- Saint-Luc! - exclamou ele. - Saint-Luc, acuda-me!

- Ah, Sr. de Bussy, é o senhor? - disse de repente uma voz saída dum maciço de árvores. Bussy estremeceu. Aquela voz não era a de Saint-Luc.

- Saint-Luc, acuda-me! - bradou ele segunda vez. - Não tema nada a respeito de Diana. Matei o Monsoreau!

Esperava que Saint-Luc estivesse oculto ali perto, e correria ao ouvir esta nova.

- Ah, o Monsoreau está morto? - disse outra voz.

- Está.

- Muito bem.

E Bussy viu sair dois homens de entre as árvores. vinham ambos mascarados.

- Meus Senhores - disse Bussy -, meus Senhores! Em nome do Céu, socorram um pobre fidalgo que ainda pode escapar se Lhe acudirem!

- Que diz, meu Senhor? - perguntou a meia voz um dos tais desconhecidos.

- Imprudente! - disse o outro.

- Meu Senhor! - exclamou Bussy, que tinha ouvido, tanto o cuidado dos sentidos havia aumentado com o desespero da sua situação. - Meu Senhor, acuda-me, que eu Lhe perdoo o ter-me traído!

- Ouves? - disse um dos mascarados.

- Que ordena, meu Senhor?

- Que lhe acudas.

Depois acrescentou, com um sorriso que a máscara ocultou:

- Para que não tenha mais sofrimentos.

Bussy voltou a cabeça para o lado donde vinha a voz qe ousava falar com acento da zombaria em semelhante momento.

- Oh, estou perdido! - murmurou ele.

Com efeito, no mesmo momento, o cano dum arcabuz foi-Lhe encostado ao peito e o tiro partiu.

A cabeça de Bussy caiu sobre o ombro, e encresparam-se-lhe as mãos.

- Assassino! - disse ele. - Sê maldito!

E expirou pronunciando o nome de Diana.

Algumas gotas do seu sangue caíram sobre aquele a quem o outro chamara meu Senhor.

- Está morto? - perguntaram alguns homens que, tendo forçado a porta, apareceram à janela.

- Está - respondeu Aurilly -; mas fujamos: lembrem-se que o Senhor Duque de Anju era o protector e amigo do Sr. de Bussy.

Os homens não quiseram saber de mais nada; desapareceram. O duque ouviu o ruído dos passos ir-se afastando, diminuir, e por fim perder-se.

- Agora, Aurilly - disse o outro mascarado -, sobe a esse quarto e deita-me pela janela o corpo de Monsoreau.

Aurilly subiu, reconheceu entre aquele montão de cadáveres o corpo do monteiro-mor, pô-lo às costas, e como Lhe ordenara o companheiro, atirou da janela abaixo o corpo, que, ao cair, veio por sua vez manchar com o seu sangue o fato do duque de Anju.

Francisco meteu a mão por entre a camisa do monteiro-mor, e tirou o auto de aliança assinado pela sua real mão.

- Cá está o que eu procurava - disse ele - agora nada mais temos que fazer aqui.

- E Diana? - perguntou Aurilly da janela.

- Na verdade, já não estou apaixonado, e como ela não nos reconheceu, desamarra-a. desamarra também Saint-Luc, e que vão para onde quiserem.

Aurilly desapareceu.

Não serei rei de França ainda desta vez, disse o duque rasgando o documento; mas também ainda desta vez não serei enforcado por crime de alta traição. "

 

         DOS APERTOS EM QUE SE VIU FREI GORENFLOT COLOCADO ENTRE UMA FORCA E UMA ABADIA

A aventura da conspiração foi uma verdadeira comédia até ao fim. debalde os suíços se colocaram na foz daquele rio de intriga, e a guarda francesa no seu confluente; não só escaparam às redes por eles deitadas os conspiradores de marca grande, como também a arraia-miúda.

Fugiram todos pelo caminho subterrâneu.

Não se viu por conseguinte sair pessoa alguma da abadia, e pur isso Crillon, apenas conseguiu arrombar a porta, pôs-se à frente duns trinta homens e invadiu o Convento de Santa Genoveva acompanhado do rei.

Reinava um silêncio de morte no imenso e sombrio edifício. Crillon, como homem perico em coisas de guerra, teria preferido sentir grande ruído, pois receava alguma cilada.

Mas debalde se destacaram os exploradores para a frente, debalde se abriram portas e janelas e se passou revista à cripta: tudo estava deserto.

O rei caminhava na frente de todos, de espada em punho e gritando com toda a força:

- Chicot! Chicot! Ninguém respondia.

- Matar-mo-iam? - dizia o rei. - Por Deus, se o fizeram, hão-de pagar-me o meu bobo pelo valor dum fidalgo!

- Tem razão, Real Senhor - respondia Crillon -, que fidalgo é ele, e dus mais valentes.

Chicot não respondia porque estáva entretido em fustigar o Sr. de Maiena, e sentia tanto prazer naquele divertimento que não via nem ouvia o que se passava em redor de si.

Entretanto, assim que o duque desapareceu e que Gorenflot desmaiou, como nada mais preocupava Chicot, ouviu então e conheceu a voz do rei, que chamava por ele.

- Por aqui, meu Filho, por aqui -, gritou ele com quanta força tinha, procurando ao mesmo tempo fazer sentar Gorenflot.

Conseguiu-o aFinal, e encostou-o a uma árvore.

A força que ele empregava para efectuar aquela obra de caridade tornava-Lhe, em parte, menos sonora a voz, de forma que Henrique julgou a princípio que aquelas palavras eram proferidas em tom lamentável.

Não era todavia esse o caso, pois Chicot estava, pelo contrário, entregue a toda a exaltação do triunfo; porém, vendo o estado lastimoso em que se achava o frade, consigo mesmo deliberava se seria melhor furar de lado a lado aquele bandalho traidor, ou usar de clemência para com o volumoso tonel.

Estava pois olhando para Gorenflot, como Augusto, segundo diz a História, olhou, durante alguns instantes, para Diana.

Gorenflot ia tornando a si gradualmente, e, por muito estúpido que fosse, não chegava a ponto de se iludir a respeito da sorte que o esperava; demais, o frade não deixava de ter sua semelhança com certos animais que os homens maltratam de contínuo, e que por instinto já sabem que a mão nunca Lhes toca senão para bater, e que a boca, se a eles se chega, é para os devorar unicamente.

Foi portanto nesta disposição de espírito que ele tornou a abrir os olhos.

- Senhor Chicot! - exclamou ele.

- Ah, ah! - disse o gascão. - Visto isso, ainda não morreste.

- Meu bom senhor Chicot! - prosseguiu o monge, fazendo um grande esforço para juntar as duas mãos em frente da enorme barriga. - É possível que queira entregar-me aos meus perseguidores? Será capaz de me fazer isso a mim, ao seu Gorenflot?

- Grande canalha! - disse Chicot com um acento de ternura mal disfarçada. Gorenflot começou a berrar.

Depois de ter conseguido juntar as mãos, procurava torcê-las.

- Não Lhe merecerei perdão eu, que tão bons jantares comi na sua companhia? - gritou ele sufocando-se em pranto. - Eu, a quem o Sr. Chicot chamava sempre o rei das esponjas, pelo bem que bebia, segundo me dizia? Eu, que dava tanto apreço às galinhas cevadas com que me mimoseava na estalagem da Cornucópia, que só lhes deixava os ossos?

Esta última tirada pareceu a Chicot sublime naquele género, e inclinou-o de todo à clemência.

- Eles aí vêm - exclamou Gorenflot fazendo diligências por se levantar, mas sem o poder conseguir -, eles aí vêm! estou morto! Oh, meu bom Sr. Chicot, acuda por mim!

E o monge, como não conseguia levantar-se, escolheu a posição que Lhe era mais cómoda, e deitou-se de bruços.

- Levanta-te! - disse Chicot.

- Perdoa-me?.

- Veremos.

- Já me deu tanta pancada, que para castigo basta.

Chicot desatou a rir.

O pobre frade estava tão atarantado, que julgava ter levado todas as pancadas retribuídas por Chicot ao duque de Maiena.

- Está-se rindo, meu bom Sr. Chicot? - disse ele.

- Estou-me rindo, sim, animal.

- Visto isso, hei-de continuar a viver?

- Pode ser.

- Porque, enfim, não se estaria rindo, se o seu Gorenflot estivesse para morrer.

- Isso não está na minha mão - retorquiu Chicot -; só el-rei poderá decidir; a el-rei somente compete o direito de vida ou de morte.

Gorenflot tentou outro esforço, e conseguiu ajoelhar-se.

Naquele momento um brilhante clarão dissipou as trevas: uma multidão de indivíduos de fardas bordadas e de espadas que relampejavam à luz dos archotes, cercou os dois amigos.

- Chicot, meu querido Chicot! - exclamou o rei. - Quanto estimo tornar a ver-te!

- Ouviu, meu bom Senhor? - disse o monge em voz baixa. - O grande rei dá-se por feliz de tornar a vê-lo.

- E que tem?

- É que neste momento em que se julga tão ditoso, não Lhe negará por certo o que lhe pedir; solicite pois o meu perdão.

- Pedir ao torpe Herodes, que te perdoe?

- Oh, oh, cale-se, meu caro Sr. Chicot!

- Então, Real Senhor - perguntou Chicot voltando-se para o rei -, quantos agarrou Vossa Majestade?

- Confiteor - dizia Gorenflot.

- Nem um - replicou Crillon. - Os traidores deram provavelmente com alguma saída de que não tínhamos conhecimento.

- É provável - disse Chicot.

- Porém tu viste-os? - perguntou o rei.

- Vi, por certo.

- A todos?

- Desde o primeiro até ao último.

- Conteor - repetia Gorenflot não podendo atinar com outra palavra.

- Conheceste então quem eram?

- Não, meu Senhor.

- Pois quê, não os conheceste?

- Isto é. apenas conheci um único, e ainda assim.

- Ainda assim.

- Não foi pelo rosto, meu Senhor.

- E qual foi o que tu conheceste?

- O Sr. de Maiena.

- O Sr. de Maiena? Aquele a quem tu devias.

- Já está paga a dívida, meu Senhor.

- Ah, conta-nos isso, Chicot!

- Depois te contarei tudo, meu filho; tratemos agora do que temos a fazer.

- Contteor - tornou Gorenfloc.

- Ah, sempre fez um prisioneiro - disse de repente Crillon deixando cair a pesada mão sobre Gorenflot, o qual, apesar da resistência que oferecia a sua massa, vergou com a palmada.

O frade ficou sem fala.

Chicot demorou-se em responder de propósito, para dar tempo a que todas as angústias inerentes ao terror mais profundo viessem por um instante dilacerar o coração do desgraçado monge.

Gorenflot por pouco não desmaiou segunda vez, quando viu de roda de si tanto ferro fora da bainha e tanto olhar iracundo.

Finalmente, depois dum momento de silêncio, durante o qual Gorenflot julgou que ouvia soar a trombeta do dia de juízo:

- Real Senhor - disse Chicot -, olhe bem para este frade.

Um dos circunstantes chegou um archote à cara de Gorenflot; este fechou os olhos para ter menos que fazer na sua passagem deste para o outro mundo.

- É o pregador Gorenflot? - exclamou Henrique.

- Conteor! conìteor conteor! - repetiu vivamente o monge.

- Ele mesmo - respondeu Chicot.

- Aquele que.

- Isso mesmo - interrompeu o gascão.

- Ah, ah! - disse o rei com sinais de satisfação.

O suor corria em bica pelas faces de Gorenflot.

E o caso não era para menos, pois as espadas retiniam como se os ferros estivessem animados, e agitando-se com impaciência.

- Alguns indivíduos aproximaram-se dele com gestos de ameaça.

Gorenflot não os viu, mas sentiu-os chegar, e soltou um grito.

- Espere - disse Chicot -, é preciso que el-rei saiba tudo.

E puxando Henrique de parte:

- Meu filho - disse-lhe ele ao ouvido -, dá graças a Deus por ter feito nascer este santo

homem há uns trinta e cinco anos; pois foi ele quem nos salvou a todos.

- Como assim?

- Foi ele quem me contou o plano da conspiração, do princípio até ao fim.

- Quando?

- Haverá oito dias, pouco mais ou menos; de forma que, se os inimigos de Vossa Majestade o colherem algum dia às mãos, pode considerar-se homem morto.

Gorenflot só ouviu as últimas palavras.

- Como? Morto?...

E tornou a cair de bruços.

- Que homem digno! - disse o rei olhando com benevolência para aquela massa de carne, que, aos olhos de todo o homem sisudo, só podia apresentar uma soma de matéria capaz de absorver e de apagar o fogo da inteligência. - Que homem honrado! Havemos de tomá-lo debaixo da nossa protecção.

Gorenflot percebeu que o rei Lhe lançava um olhar de compaixão, e ficou como a máscara do parasita da Antiguidade, rindo dum dos lados e chorando do outro.

- E farás bem, meu rei - respondeu Chicot -, porque é um servidor admirável.

- Que destino te parece que será conveniente dar-Lhe? - perguntou o rei.

- Parece-me que enquanto estiver em Paris correrá grande risco...

- E se eu Lhe desse guardas? - disse o rei.

Gorenflot ouviu a proposta de Henrique.

Está bom, disse ele consigo, penso que estão resolvidos a meter-me numa prisão. Antes quero isso do que ser açoitado, contanto que me dêem bastante de comer.

- Não - replicou Chicot -, é escusado; basta que me dês licença para o levar comigo.

- Para onde.

- Para minha casa.

- Pois bem, leva-o, e volta para o Louvre, onde vou ter com os nossos amigos, a Fim de os preparar para o dia de amanhã.

- Levante-se daí, meu Reverendíssimo - disse Chicot para o Frade.

- Está caçoando comigo - murmurou Gorenflot -; tem mau coração!

- Então levanta-te, bruto! - replicou em voz baixa o gascão dando-Lhe um pontapé no traseiro.

- Ah, eu bem mereço isto! - exclamou Gorenflot.

- Que diz ele? - perguntou o rei.

- Real senhor - respondeu Chicot -, o pobre monge está-se recordando dos trabalhos por que passou, e como eu Lhe prometi a protecção de Vossa Majestade, ele, cônscio de quanto vale, diz: Bem mereço isto! "

- Pobre diabo! - disse o rei - trata-o muito bem, meu amigo.

- Ah, fique descansado, Real Senhor; ele estando comigo, nada lhe falta.

- Ah, Sr. Chicot - exclamoù Gorenflot -, meu querido Sr. Chicot, para onde vão levar-me?

- Não tarda que o saibas. Entretanto, agradece a Sua Majestade, monstro de iniquidades - agradece, anda!

- Porquê?

- Agradece, já te disse.

- Real Senhor - balbuciou Gorenflot -, visto ter-se dignado Vossa Majestade.

- Sim - replicou Henrique -, sei tudo quanto fez, na sua jornada a Lião, durante a noite da Liga, e hoje finalmente. Deixe estar que há-de ser remunerado conforme merece.

Gorenflot soltou um suspiro.

- Onde está Panurgo? - perguntou Chicot.

- O pobre animal está na estrebaria.

- Pois bem, vai buscá-lo, monta-te nele, e vem ter comigo aqui.

- Sim, Sr. Chicot.

E o frade lá foi o mais depressa que pôde, muito admirado por ver que não ia acompanhado por nenhuma escolta.

- Agora, meu filho - disse Chicot para o rei -, fica com vinte homens para te servirem de escolta, e destaca dez com o Sr. de Crillon.

- E onde deverei mandá-los?

- Ao Palácio de Anju, para trazerem teu irmão à tua presença.

- Para quê?

- Para que te não torne a fugir.

- Julgas que meu irmão.

- Achas que fizeste mal em seguir hoje os meus conselhos?.

- Não, por certo!

- Pois, então, faz o que te digo.

Henrique ordenou ao coronel da guarda francesa que fosse buscar o duque de Anju e o conduzisse ao Louvre.

Crillon, que não era por extremo afeiçoado ao príncipe, marchou logo.

- E tu? - disse Henrique.

- Eu estou à espera do meu santo.

- E voltas depois para o Louvre?

- Daqui a uma hora lá estarei.

- Então deixo-te.

- Adeus, meu filho.

Henrique saiu com o resto da tropa.

Chicot encaminhou-se para a estrebaria, e quando ia a entrar no pátio viu aparecer Gorenflot montado no Panurgo.

O pobre pateta nem tinha tido a lembrança de tentar subtrair-se à sorte que o esperava.

- Vamos, vamos - disse Chicot agarrando na arreata do Panurgo -, aviemo-nos, que estão à nossa espera.

Gorenflot não opôs a menor resistência, mas ia chorando tão amargamente que emagrecia a olhos vistos.

- Bem dizia eu! - murmurou ele. - Bem dizia eu!

Chicot ia puxando pelo Panurgo e encolhendo os ombros.

 

         EM QUE CHICOT ADIVINHA QUAL ERA O MOTIVO POR QUE D'ÉPERNON TINHA TANTO SANGUE NOS PÉS E TÃO POUCO NAS FACES

O rei, quando voltou para o Louvre, achou os seus amigos já deitados e dormindo sossegadamente.

Os acontecimentos históricos têm uma influência singular, que é de reflectir a sua magnitude nas circunstâncias que os precederam.

Quem considerar pois os acontecimentos que estavam para ter lugar naquela mesma manhã, porque o rei voltou para o Louvre pelas duas horas da madrugada, quem considerar, dizemos, aqueles acontecimentos com o prestígio que dá a presciência, achará talvez algum interesse em ver o rei que esteve por um triz a perder a coroa, procurar refúgio junto dos seus três amigos, os quais, dentro de algumas horas, vão arrostar por causa dele um perigo que talvez Lhes custe a vida.

A natureza privilegiada que não prevê, mas que adivinha, achará decerto melancólicos e encantadores aqueles rostos juvenis que o sono está refrescando, e a quem a confiança faz sorrir, e que, semelhantes a irmãos deitados no dormitório paterno, descansam em seus leitos alinhados ao lado uns dos outros.

Henrique entrou no quarto sem fazer bulha, seguido por Chicot, o qual, depois de ter depositado o seu afilhado em lugar seguro, tinha vindo ter com o rei.

Estava um leito devoluto, era o de d'Epernon.

- Ainda não voltou, aquele imprudente! - murmurou o rei. - Ah, que desgraçado! Ah, que louco! Não se lembra que tem de se bater com Bussy, o homem mais valente de toda a França, e o mais perigoso decerto de todo o mundo.

- Com efeito, admira - disse Chicot.

- Vão procurá-lo e tragam-mo! E depois vão-me buscar Miron; quero que adormeça aquele estouvado por bem ou por mal, Quero que o sono o torne vigoroso e ágil, para que fique em estado de se defender.

- Real Senhor - disse um porteiro -, aí está o Sr. d'Épernon, que chegou neste instante. D'Épernon acabava com efeito de chegar.

Sabendu do regresso do rei e desconfiando da visita que ele havia de fazer ao dormitório, dirigira-se às furtadelas para o quarto comum, na esperança de lá entrar sem ser visto.

Os criados porém estavam espreitando a sua volta, e como já vimos, vieram dizer ao rei que tinha chegado. Como viu que não havia meio algum de escapar à repreensão, transpôs a porta muitíssimo enleado.

- Ah, chegas, finalmente! - disse Henrique. - Anda cá, desgraçado, e vê os teus amigos! D'Épernon relanceou a vista em roda do aposento, e fez sinal que tinha visto.

- Vê os teus amigos! - prosseguiu Henrique. - Tiveram juízo e avaliaram a importância do dia de amanhã; e tu, desgraçado, em vez de orares como eles e dormires como eles estão dormindo, foste correr as casas de jogo e os alcouces! Por Deus, como estás pálido, e que linda figura não farás amanhã, quando já esta noite não podes contigo!.

D'Épernon estava na realidade muito pálido, tão pálido que a observação do rei o fez corar.

- Vamos - continuou Henrique -, deita-te, que assim o quero; e dorme, se é que ainda podes dormir.

- Eu? - respondeu d'Épernon, como se uma tal dúvida o ferisse no coração.

- Pergunto se ainda terás tempo para dormir. Não sabes que o duelo é ao romper do dia, e que nesta estação, infelizmente, é dia claro às quatro horas? Já são duas; restam portanto só duas horas.

- Duas horas bem aproveitadas - replicou d'Épernon - chegam para muita coisa.

- E dormirás?

- Perfeitamente, meu Senhor.

- Duvido muito.

- Por que motivo?

- Porque estás desassossegado, estás pensando no dia de amanhã. Infelizmente, tens razão; porque amanhã já é hoje. Porém não me posso conformar com a ideia de dizer que estamos pois chegados ao dia fatal.

- Meu Senhor - disse d'Épernon -, prometo- lhe que hei-de dormir; mas é preciso que Vossa Majestade mo consinta.

- É justo - disse Chicot.

D'Épernon despiu-se, efectivamente, e deitou-se com uma tal serenidade e satisfação, que pareceram de feliz agoiro ao rei e a Chicot.

- Sempre é valente como um césar - disse o rei.

- Tão valente - replicou Chicot coçando numa orelha - que, palavra de honra, custa-me a acreditar no que vejo!

- Olha, já dorme!

Chicot aproximou-se do leito, pois ainda duvidava que chegasse a tal ponto a tranquilidade de d'Epernon.

- Oh. oh! - exclamou ele de repente.

- Que é? - perguntou o rei.

- Olha!

E Chicot indicou com o dedo ao rei as botas de d'Épernon.

- Sangue! - murmurou o rei.

- Meteu os pés em sangue, meu filho. Que homem tão valente que ele é!

- Acaso estará ele ferido? - perguntou o rei com bastante cuidado.

- Nada! Tê-lo-ia dito. E só se estivesse ferido como Aquiles, no calcanhar.

- É célebre, e também o gibão está manchado; vê esta manga. Que lhe sucederia?

- Pode ser que matasse alguém - disse Chicot.

- Para quê?

- Ora, para se exercitar.

- É caso bem célebre! - disse o rei.

Chicot coçou ainda mais na orelha.

- Hum. hum! - disse ele.

- Não me respondes?

- Respondo, sim; digo: hum. hum! Parece-me que isto significa muita coisa.

- Oh, meu Deus - disse Henrique -, que acontecimentos tão extraordinários que estão tendo lugar em roda de mim! Qual será o futuro que me espera? Felizmente que amanhã.

- Hoje, meu filho; tu confundes sempre os dias.

- Sim, é verdade.

- Pois bem, hoje.

- Hoje ficarei descansado.

- Porquê?

- Porque os meus amigos hão-de livrar-me dos malditos angevinos.

- Pensas isso, Henrique?

- Tenho toda a certeza, eles são valentes.

- Eu ainda não ouvi dizer que os angevinos sejam cobardes.

- Não, por certo; mas vê como estes são fortes; olha para o braço de Schomberg, que lindos músculos! Que lindos braços!

- Ah, se tu visses os braços de Antraguet!.

- Vê estes lábios tão imperiosos de Quélus, e a fronte de Maugiron, tão altiva mesmo a dormir. Com gente assim não pode falhar a vitória. Ah, quando estes olhos despedirem o raio, já o inimigo estará meio vencido!

- Querido amigo - replicou Chicot abanando tristemente a cabeça -, eu conheço frontes igualmente altivas que encobrem olhos capazes de dardejarem raios tão terríveis como estas em que te fias. É nisso somente que tens fé?

- Não; vem comigo, pois quero mostrar-te uma coisa.

- Aonde?

- No meu gabinete.

- E é nessa coisa que vais mostrar-me que confias para alcançar a vitória?

- É...

- Vamos lá.

- Espera.

E Henrique deu um passo para se aproximar dos quatro mancebos.

- Que é? - perguntou Chicot.

- Ouve, não quero entristecê-los, nem comovê-los amanhã, ou, para melhor dizer, hoje. Vou despedir-me deles já.

Chicot abanou a cabeça.

- Despede-te, meu filho - disse ele.

O tom da voz com que proferiu estas palavras era tão melancólico, que o rei sentiu como um arrepio pelas veias e humedecerem-se-lhe os olhos de lágrimas.

- Adeus, meus bons amigos! - murmurou o rei. - Adeus, meus bons amigos! Chicot virou a cara para o lado; o seu coração também não era de pedra. Mas logo, com pesar seu, tornou a volver os olhos para os mancebos. Henrique ia-os beijando sucessivamente na testa.

A pálida luz duma vela de cera cor-de-rosa alumiava aquela cena comunicando o seu fúnebre reflexo aos cortinados do quarto e às fisionomias dos actores.

Chicot não era supersticioso; mas quando viu Henrique chegando os lábios à testa de Maugiron, de Quélus e de Schomberg, representou-se-Lhe na imaginação que era um vivente aflito que se estava despedindo de mortos já deitados em seus ataúdes.

- É coisa singular! - disse Chicot. - Nunca experimentei semelhante sensação; pobres rapazes! Apenas o rei acabou de beijar os seus amigos, abriu d'Épernon os olhos para ver se ele já tinha saído.

Acabava então de se retirar do quarto, encostado ao braço de Chicot. D'Épernon saltou da cama abaixo, e tratou logo de limpar da melhor forma que pôde as manchas de sangue que tinha nas botas e no gibão.

Esta ocupação trouxe-lhe ao pensamento a cena do Largo da Bastilha. O meu sangue todo, murmurou ele, nunca teria sido bastante para que pudesse satisfazer aquele homem, que tanto derramou, ele só, esta noite.

E tornou a deitar-se.

Henrique, entretanto, levou Chicot ao seu gabinete, e abrindo um cofrezinho comprido, de ébano, forrado de cetim branco:

- Aqui está - disse ele olha.

- Espadas - disse Chicot. - Bem vejo. E depois?

- Sim, espadas, mas espadas benzidas, meu querido amigo.

- Por quem?

- Pelo nosso Santo Padre, o Papa em pessoa, que me concedeu este favor. Este cofre, aqui onde o vês, custou- me, para ir a Roma e voltar, vinte cavalos e quatro homens; mas consegui as espadas.

- Estão elas bem aFiadas? - perguntou Chicot.

- Estão, sim; mas o que lhes dá a maior virtude, Chicot, é terem sido benzidas.

- Sim, bem sei; mas também não desgosto de saber que estão bem afiadas.

- Idólatra!

- Ora vamos, meu filho, passemos agora a outro assunto.

- Pois sim, mas avia-te.

- Queres dormir?

- Não, quero orar.

- Nesse caso, então, tratemos de negócios sérios. Mandaste buscar o Sr. de Anju?

- Está esperando lá em baixo.

- Que destino tencionas dar-lhe?

- Tenciono mandá-lo encerrar na Bastilha.

- Acho isso muito prudente. Porém escolhe um calabouço bem profundo, bem seguro, bem fechado; aquele, por exemplo, onde esteve o condestável de Saint-Pol ou Jacques de Ar magnac.

- Oh, deixa estar.

- Olha que eu sei onde se vende lindo veludo preto, meu filho.

- Chicot, lembra-te que é meu irmão.

- É verdade, e o roxo é que se usa para o luto de família na corte; tens tenção de lhe falar?

- Tenho; quanto mais não fosse para Lhe tirar toda a esperança, mostrando-Lhe que foram descobertas todas as suas maquinações.

- Hum! - disse Chicot.

- Achas inconveniente que eu vá falar com ele?

- Não; mas se estivesse no teu lugar, suprimia o discurso, e duplicava a prisão.

- Tragam o Senhor Duque de Anju à minha presença - disse Henrique.

- Faz o que quiseres - disse Chicot abanando a cabeça -, mas eu ainda estou pelo que disse.

Passado um instante, entrou o duque; vinha muito pálido e desarmado. Crillon acompanhava-o, trazendo na mão a espada do príncipe.

- Onde o encontrou? - perguntou o rei a Crillon, interrogando-o como se o duque não estivesse presente.

- Real Senhor, Sua Alteza não estava em casa; porém, um instante depois de eu ter tomado posse do palácio em nome de Vossa Majestade, voltou Sua Alteza, e prendemo-lo então sem que opusesse a menor resistência.

- Pois admira - disse o rei desdenhosamente.

E depois, voltando-se para o príncipe:

- Onde estava, Senhor? - perguntou ele.

- Fosse qual fosse o lugar onde eu me achava - respondeu o duque -, Vossa Majestade pode ter a certeza de que por sua causa é que eu lá estava.

- Não duvido - disse Henrique -; e vejo, pela sua resposta, que fiz bem em me lembrar do senhor.

Francisco inclinou-se com serenidade e respeito.

- Diga-me pois, onde estava? - tornou o rei caminhando para o irmão. - Que estava o senhor fazendo enquanto eram presos os seus cúmplices?

- Os meus cúmplices? - exclamou Francisco.

- Sim, os seus cúmplices - repetiu o rei.

- Vossa Majestade foi decerto mal informado a meu respeito.

- Oh, desta vez, Senhor, não me escapará, e está finda a sua carreira de crimes. Ainda desta vez, mano, creio que não será meu herdeiro.

- Senhor, Senhor, por favor modere-se! Há certamente alguém que o incita contra mim.

- Miserável! - bradou Henrique arrebatado pela cólera. - Hás-de morrer de fome num calabouço da Bastilha!

- Estou esperando as suas ordens, Senhor, e hei-de acatá-las ainda mesmo que me sentencie a morrer.

- Mas, enfim, onde estavas, hipócrita?

- Estava tratando de salvar Vossa Majestade, e trabalhando para a glória e tranquilidade do seu reinado.

- Oh! - exclamou o rei muito espantado. - Por minha honra que me parece grande o descaramento!

- Ora, não há coisa assim - disse Chicot encostando-se para trás numa cadeira -; conte-nos isso, meu príncipe; a história há-de ser curiosa.

- Senhor, tê-lo-ia dito no mesmo instante a Vossa Majestade, se me tivesse tratado como seu irmão; mas visto tratar-me como um criminoso, esperarei que falem por mim os acontecimentos.

O duque, logo que acabou de proferir estas palavras, tornou a cortejar o irmão, ainda mais respeitosamente do que da primeira vez, e voltando-se para Crillon e para os outros oficiais que estavam presentes:

- A qual dos senhores toca acompanhar para a Bastilha o primeiro príncipe de sangue da França?

Chicot conservava-se pensativo; um raio de luz iluminou-Lhe subitamente o espírito.

Ah. ah! murmurou ele, parece-me que já percebo qual era o motivo por que o Sr. d'Épernon tinha tanto sangue nos pés e tão pouco nas faces!

 

         A MANHÃ DO COMBATE

Raiava sobre Paris um lindo dia; nenhum burguês sabia ainda dos acontecimentos da véspera; porém os fidalgos realistas e os do partido dos Guisas, estes últimos ainda estupefactos, estavam já à espera das consequências, e adoptavam medidas de prudência para darem oportunamente os parabéns ao vencedor.

O rei, como vimos no precedente capítulo, não se deitou naquela noite; orou e chorou; e como, afinal de contas, era um homem valente e muito perito em matéria de duelos, saiu pelas três horas da madrugada com Chicot, para fazer aos seus amigos o único favor que podia dispensar-Lhes.

Foi examinar o terreno em que devia ter lugar o combate.

A cena foi bastante notável, e, di-lo-emos sem zombaria, houve pouco quem a observasse. O rei, vestido com trajes de cor sombria, embuçado num amplo capote, a espada à cinta, o cabelo e olhos encobertos pelas abas do chapéu, seguiu pela Rua de Santo António até à distância de trezentos passos para diante da Bastilha; mas, quando ali chegou, vendo um grande ajuntamento de povo acima da Rua de S. Paulo, não quis aventurar- se a ir até ao meio da multidão; tomou pela Rua de Santa Catarina, e dirigiu-se pela parte de trás da Cerca das Tour nelles.

Já o leitor terá adivinhado o que fazia ali aquela multidão; estava contando as pessoas que tinham sido mortas durante a noite.

O rei desviou-se, e não soube, por consequência, nada do que se tinha passado. Chicot, que assistira à contenda, ou, para melhor dizer, ao ajuste que tivera lugar havia oito dias, explicava ao rei, à vista do sítio escolhido para o combate, os lugares que deviam ocupar os combatentes e as condições do duelo.

Henrique, logo que acabou de ouvir as informações, começou a medir o espaço, olhou por entre as árvores, calculou o reflexo do Sol, e disse:

- Quélus fica muito exposto; há-de dar-lhe o sol no único olho que tem, enquanto que Maugiron Fica inteiramente à sombra. Quélus devia ter tomado o lugar de Maugiron e Maugiron, que tem excelente vista, o de Quélus. Até este ponto está o negócio muito mal regulado. Quanto a Schomberg, que é fraco de pernas, esse tem uma árvore para se encostar se for preciso. A respeito deste fico pois descansado; mas Quélus, o meu pobre Quélus!.

E abanou a cabeça.

Quélus, num precedente duelo, tinha ficado cego do olho esquerdo, que havia sido vazado com uma estocada.

- Faz-me pena ver-te assim afligir, meu rei - disse Chicot. - Ora vamos, não te desesperes dessa maneira, há-de ser o que tiver de ser.

O rei levantou os olhos para o Céu e suspirou.

- Vê, ó meu Deus, como ele está blasfemando - murmurou o rei; - mas felizmente sabes muito bem que é um louco.

Chicot encolheu os ombros.

- E d'Épernon? - prosseguiu o rei. - À fé que sou injusto, não me lembrava dele. D'Épernon, que há-de ter por adversário Bussy, quanto Fica exposto! Olha para a disposição do terreno, meu honrado Chicot: à esquerda, uma barreira; à direita, uma árvore; na retaguarda, um fosso; logo por fatalidade é este o lugar de Épernon, que há-de ter de recuar a cada instante, porque Bussy é um tigre, um leão, uma cobra! Bussy é uma espada animada, que pula, que se encolhe, que se estende e que se torce!

- Sossega - disse Chicot -; a mim não me dá cuidado d'Épernon.

- Não tens razão; duvido que escape de ser morto.

- Quem, ele? Não é tolo a esse ponto; há-de ter prevenido o caso, deixa estar!

- Que queres tu dizer com isso?

- Quero dizer que não se há-de bater.

- Então não o ouviste ainda há pouco?.

- Ouvi.

- E então?

- E então, é por isso mesmo que te repito que não se há-de bater.

- Homem íncrédulo e desprezador!

- Eu sei o que são gascões Henrique; mas se queres o meu conselho, retiremo-nos daqui, meu caro soberano; já é dia claro; volcemos para o Louvre.

- E julgas que terei ânimo para me conservar no Louvre durante o combate?.

- Que remédio terás tu senão ficar lá, porque se ce vissem aqui, diriam todos, no caso de saírem os teus amigos vencedores, que lhes deste a vitória por meio de algum feitiço, e, se forem vencidos, que a tua presença lhes foi fatal.

- E que me importam a mim as tagarelices e as censuras do vulgo? Hei-de ser amigo deles até à última.

- Estimo muito que mostres tanta superioridade de espírito, Henrique; acho também muito louvável que estimes os teus amigos, pois é uma virtude muito rara para nós príncipes, mas não quero que deixes o Sr. de Anju só no Louvre.

- E Crillon não está lá?.

- Ora, é um búFalo, um rinoceronte, um javali, um animal destemido e indomável, e mais nada; enquanto que teu irmão é uma osga, uma víbora, uma cascavel; um réptil que pode mais pelo veneno do que os outros pela força.

- Tens razão, eu devia tê-lo mandado para a Bastilha.

- Bem te dizia eu que fazias mal em o receber.

- Pois sim, deixei-me iludir por aquela afoiteza com que ele aFirmou ter-me prestado um serviço.

- É mais uma razão para desconfiares dele. Vamo-nos embora, meu filho, sou eu que te peço.

Henrique fez a vontade a Chicot, e encaminhou-se com ele para o Louvre, depois de ter olhado uma derradeira vez para o próximo campo de batalha.

Já todos estavam a pé no Louvre quando o rei e Chicot lá chegaram.

Os favoritos tinham acordado primeiro que ninguém, e já os lacaios os estavam vestindo. O rei quis saber o que estavam fazendo.

Schomberg fazia exercícios ginásticos; Quélus banhava os olhos com água e vinho; Maugiron bebia um copo de vinho de Espanha; e d'Épernon afiava a espada numa pedra.

Este último estava bem visível, pois tinha mandado trazer um rebolo para a porta do quarto comum.

- E dizes tu que aquele homem não é um bayard!. - disse Henrique olhando para ele com ternura.

- Não digo isso; o que digo é que me parece um amolador de facas e tesouras, e mais nada - respondeu Chicot.

D'Épernon viu-os, e gritou.

- Aí vem o rei!

Então, apesar da resolução que havia tomado, e que, mesmo que não se tivesse dado aquela circunstância, não teria tido ânimo de sustentar, Henrique entrou no quarto.

Já dissemos que ele era um rei cheio de majestade, e que tinha grande força de vontade para se dominar.

O seu rosto quase sereno e risonho não revelava o que sentia o coração.

- Bons dias, meus Senhores! - disse ele. - Acho-os bem dispostos, segundo me quer parecer...

- Graças a Deus, assim é, meu Senhor - replicou Quélus.

- Estás com um parecer muito sombrio Maugiron.

- Meu Senhor, eu sou muito supersticioso, como Vossa Majestade sabe; e como tive sonhos desagradáveis, estou bebendo um cálice de vinho de Espanha para fortalecer o coração.

- Meu amigo - disse-Lhe o rei -, é necessário lembrarmo-nos, segundo afirma Miron, que é um doutor muito hábil, é necessário lembrarmo-nos, repito, que os sonhos são os resultados das impressões da véspera, e que não influem de maneira alguma nas acções do dia seguinte, excepto se assim o quer a vontade de Deus.

- Sou desse parecer, Real Senhor - disse d'Épernon -, e por isso aqui me tem cheio de ânimo. Também tive muito maus sonhos esta noite, mas, apesar dos sonhos, o meu braço está firme e o olhar bem penetrante.

E arremeteu de encontro à parede, na qual fez uma incisão com a espada que tinha acabado de afiar.

- Bem sei - disse Chicot -; sonhou naturalmente que tinha as botas sujas de sangue; esse sonho não é mau; quer dizer que há-de ser um dia um triunfador igual a Alexandre ou a César.

- Meus valentes - disse Henrique -, sabem muito bem que a honra do vosso soberano está em litígio, visto que, em certo modo, é a sua causa que defendem; porém é a honra unicamente, perceberam? Não Lhes dê cuidado, pois, a segurança da minha pessoa. Esta noite firmei o meu trono de maneira tal, que, por algum tempo pelo menos, nenhum repelão o poderá abanar. Batam-se pois somente pela honra.

- Real Senhor, fique descansado; perderemos talvez a vida - disse Quélus -, mas, em todo o caso, a honra há-de ficar salva.

- Meus Senhores - continuou o rei -, amo- os a todos muito ternamente, e estimo-os também. Deixem pois que Lhes dê um conselho: nada de temeridades; não é morrendo que me dareis razão, mas sim matando os seus inimigos.

- Oh, eu por mim - disse d'Épernon - tenciono não lhes dar quartel.

- Eu - acudiu Quélus - não formo tenção alguma; hei-de fazer o que puder.

- E eu - disse Maugiron - posso assegurar com toda a firmeza a Vossa Majestade que se morrer, hei-de matar também o meu adversário, respondendo-lhe golpe por golpe.

- Batem-se à espada, simplesmente?

- À espada e à adaga - respondeu Schomberg.

O rei tinha metido a mão no peito.

Pode ser que aquela mão e aquele coração que se tocavam, estivessem comunicando um ao outro os seus receios pelos estremecimentos e pulsações; porém, exteriormente, altivo, com os olhos enxutos, a boca imperiosa, só mostrava que era rei, isto é, estava mandando soldados para o combate, e não amigos para a morte.

- Na verdade, meu rei - disse-Lhe Chicot -, está verdadeiramente majestoso neste momento.

Os quatro fidalgos estavam já prontos, só lhes restava cortejar o amo.

- Vão a cavalo? - perguntou Henrique.

- Não, meu Senhor - disse Quélus -, vamos a pé; é um exercício saudável, desembaraça a cabeça, e, como Vossa Majestade no-lo tem dito muitas vezes, não é tanto o braço como a cabeça que dirige a espada.

- Tens razão, meu filho. Dá-me a tua mão.

Quélus inclinou-se, e beijou a mão do rei; os outros três fizeram o mesmo.

D'Épernon ajoelhou, dizendo:

- Real Senhor, deite a bênção à minha espada.

- Não, d'Épernon - disse o rei - restitui a espada ao teu pajem. Quero dar-Lhes espadas melhores do que as vossas. Traz cá as espadas, Chicot.

- Nada! - replicou o gascão. - Dá essa incumbência ao capitão da tua guarda, meu filho; eu sou um louco, um idólatra mesmo; e as bênçãos do Céu poder-se- iam transformar em funestos feitiços, se o Diabo, meu amigo, se lembrasse de olhar para as minhas mãos, e visse o que eu trazia.

- Que espadas são essas pois, Real Senhor? - perguntou Schomberg, lançando a vista para a caixa que um oficial acabava de trazer.

- São espadas italianas, meu filho; foram forjadas em Milão: os copos são bons, como vês; e como, à excepção de Schomberg, têm todos as mãos delicadas, à primeira pancada desarmá-los-iam logo, se não tivessem as mãos bem resguardadas.

- Obrigado, obrigado, Real Senhor - disseram ao mesmo tempo os quatro Fidalgos.

- Vão, que já são horas - disse o rei, não podendo já disfarçar a emoção que sentia.

- Diga-me, Real Senhor - perguntou Quélus -: não teremos, para nos animar, a vista de Vossa Majestade?

- Não; seria pouco decoroso; vão bater-se sem que eu o saiba, sem a minha autorização.

Não quero dar solenidade ao combate; convém que todos julguem que foi o resultado de alguma desavença particular.

E despediu-os com um gesto verdadeiramente majestoso.

Logo que eles desapareceram da sua presença, que os últimos criados saíram do portão do Louvre e que deixou de se ouvir a bulha das esporas que levavam os escudeiros, todos armados de ponto em branco, o rei, deixando-se cair sobre um estrado, exclamou:

- Ah, que eu morro!

- E eu - disse Chicot -; quero assistir ao duelo; tenho na ideia, não sei porquê, que há-de suceder alguma coisa muito curiosa a respeito de d'Épernon...

- Então deixas-me, Chicot? - disse o rei com voz bastante lastimosa.

- Deixo - retorquiu Chicot -; porque se algum deles cumprir mal com o seu dever quero lá estar para o substituir, e sustentar a honra do meu rei.

- Então vai - disse Henrique.

O gascão, apenas obteve a licença, abalou com a rapidez dum raio.

O rei então recolheu-se para a sua câmara, mandou fechar as portas das janelas, proibiu que se Fizesse o menor rumor no Louvre, e disse a Crillon, o qual já estava ciente do que se ia passar:

- Se ficarmos vencedores, Crillon, vem dizer-mo; mas se, pelo contrário, formos vencidos, bate três pancadas na porta da minha câmara, percebes?

- Sim, Real Senhor - respondeu Crillon abanando a cabeça.

 

         OS AMIGOS DE BUSSY

Os amigos do duque de Anju, à imitação dos do rei, também tinham dormido sossegadamente naquela noite.

Depois duma ceia lauta em que se tinham reunido de moto próprio, sem a presença nem conselho do patrono, o qual não tratava os seus validos com o carinho com que o rei tratava os seus, deitaram-se em boas camas, em casa de Antraguet, cujo domicílio havia sido escolhido para ponto de reunião, por ficar mais próximo do campo de batalha.

O escudeiro de Ribeirac, que era um grande caçador e hábil armeiro, tinha empregado o dia todo em limpar, polir e afiar as armas; e ficou incumbido de acordar os mancebos logo que despontasse o dia, como era costume nos dias em que tinham alguma função, caçada ou duelo.

Antraguet, antes da ceia, tinha ido visitar, na Rua de S. Dinis, uma rapariga lojista que ele namorava, e a quem chamavam em todo o bairro a linda vendedora de imagens".

Ribeirac tinha escrito à mãe, e Livarot tinha feito o testamento.

Às três horas em ponto, isto é, quando os amigos do rei apenas começavam a acordar, já eles estavam todos a pé, frescos, bem dispostos, e perfeitamente armados.

Tinham vestido calções e meias vermelhas, para que os inimigos não Lhes vissem o sangue, e mesmo para que a vista do sangue não os assustasse a eles próprios; levavam gibões de seda cinzenta para terem os movimentos mais desembaraçados, caso concordassem em se baterem vestidos.

Finalmente, tinham calçado sapatos sem tacões, e haviam encarregado os pajens de levar as espadas para não cansarem os braços e os ombros.

Estava um tempo admirável para namorar, para brigar, ou para passear: o sol dourava os cumes dos telhados ainda brilhantes do orvalho da noite. Um aroma penetrante e delicioso ao mesmo tempo subia dos jardins e derramava-se pelas ruas. O chão estava enxuto e a atmosfera fresca.

Os três amigos, antes de saírem, tinham mandado saber, a casa do duque de Anju, notícias de Bussy.

Foi-lhes respondido que saíra na véspera às dez horas da noite e que ainda não voltara. O criado indagou se ele saíra só. e armado.

Disseram-Lhe que saíra acompanhado de Rémy, e que ambos levavam as espadas. Em casa do conde ninguém estava com cuidado nele, pois costumava ausentar-se assim muitas vezes, e como todos sabiam quanto ele era destemido, valente e destro, não se assustavam com semelhantes ausências.

Os três amigos Fizeram repetir ao criado todos estes pormenores:

- Bem - disse Antraguet -, não ouviram dizer, meus Senhores, que el-rei tinha dado ordem para uma grande montaria de veados na mata de Compienha, e que o Sr. de Monsoreau devia ter partido ontem para dar as providências necessárias?.

- É verdade - responderam os mancebos.

- Então, bem sei onde ele está: enquanto o monteiro-mor anda entretido em desencovar os veados, está ele dando caça à corça do monteiro-mor. Fiquem descansados, que há-de estar a esta hora mais próximo do lugar do encontro do que nós, e há-de lá chegar primeiro.

- Pois sim - disse Livarot -, mas cansado e sem ter dormido.

Antraguet encolheu os ombros.

- Julgas porventura que Bussy é homem que se canse?. - replicou ele. - Vamos, a caminho, a caminho, meus Senhores; quando passarmos pelo palácio dele o chamaremos. Puseram-se todos a caminho.

Era exactamente na ocasião em que Henrique distribuía as espadas aos seus adversários; levavam-lhes por consequência dez minutos de dianteira, pouco mais ou menos.

Como Antraguet morava ao pé de Santo Eustáquio, tomaram pela Rua dos Lombardos, pela Rua da Fábrica de Vidros, e finalmente pela Rua de Santo António.

Todas estas ruas estavam desertas.

Os camponeses que vinham de Montreuil, de Vincenas ou de Saint-Maur-les-Fossés, com leite e hortaliças, alguns deles a dormir sobre os carros ou sobre os machos, eram as únicas pessoas que viam desfilar aquele luzido rancho de três homens valorosos acompanhados de três pajens e de três escudeiros.

Tinham-se acabado as bravatas, os gritos e as ameaças; sabiam muito bem que o duelo de parte a parte havia de ser encarniçado, mortal e desapiedado, e por isso mesmo os tais estouvados iam pensativos naquela manhã.

Quando chegaram à altura da Rua de Santa Catarina, todos três volveram os olhos para a casinha de Monsoreau, com um sorriso que bem dava a conhecer que um mesmo pensamento lhes ocorria naquele momento.

- Há-de ver-se muito bem de acolá - disse Antraguet -, e estou certo que a pobre Diana há-de chegar mais duma vez à janela.

- Olha - disse Ribeirac -, parece que já lá chegou.

- Porquê?

- Está aberta a vidraça.

- É verdade. Mas. para que estará aquela escada encostada à janela, tendo a casa portas?.

- Com efeito, é célebre! - disse Antraguet.

Aproximaram-se todos três da casa com um pressentimento íntimo de que iam presenciar algum grave sucesso.

- Não somos nós os únicos que nos admiramos - disse Livarot -; vê aqueles camponeses que vão passando, e que se põem de pé nos carros para olharem para dentro da casa.

Os três mancebos chegaram debaixo da sacada.

Já lá se achava um hortelão, que parecia estar examinando o terreno.

- Olá, Sr. de Monsoreau! - gritou Antraguet. - Quer-nos falar? Se quer, avie-se, porque temos empenho em chegar primeiro que os nossos adversários.

Esperaram, mas debalde.

- Ninguém responde - disse Ribeirac -; mas que diabo faz aqui esta escada?

- vilão! - disse Livarot para o hortelão. - Que estás fazendo aí? Foste tu que puseste aí essa escada?

- Deus me livre de tal, meus Senhores! - respondeu o homem.

- Porquê? - perguntou Antraguet.

- Olhe lá para cima.

Todos três levantaram a cabeça.

- Sangue! - exclamou Ribeirac.

- É sangue, sim senhor; por minha fé - replicou o aldeão -, e até já está bem escuro!

- A porta foi arrombada - disse ao mesmo tempo o pajem de Antraguet. Antraguet correu a vista da porta para a janela, e, agarrando na escada, trepou à varanda num segundo.

Lançou os olhos para o quarto.

- Que há de novo? - perguntaram os companheiros, vendo que ele desfalecia e mudava de cor.

Um grito terrível foi a única resposta que o mancebo deu aos seus amigos. Livarot tinha subido atrás dele.

- Cadáveres! A morte, a morte, por toda a parte! - exclamou este último. E ambos entraram no quarto.

Ribeirac Ficou em baixo, para os guardar de alguma surpresa.

Durante este tempo, o hortelão, com as suas exclamações, fazia parar toda a gente que passava.

Viam-se por todo o quarto os vestígios da luta horrível que ali tinha tido lugar naquela noite. Manchas, ou, para melhor dizer, um rio de sangue, cobria todo o sobrado.

As tapeçarias tinham sido retalhadas pelas cutiladas e furadas pelas balas das pistolas.

Os trastes, despedaçados e tintos de sangue, estavam derrubados e misturados com fragmentos de carne e vestuário.

- Oh, pobre Rémy! Oh, pobre Rémy! - exclamou de repente Antraguet.

- Está morto? - perguntou Livarot.

- Já está frio.

- Pelo que vejo - replicou Livarot - entrou neste quarto algum bando de assassinos! Naquele mesmo instante Livarot viu que a porta do corredor estava aberta; o rasto do sangue mostrava que a luta tinha continuado naquela direcção; seguiu os terríveis vestígios, e chegou até à escada.

O pátio estava deserto e solitário.

Antraguet, em vez de o seguir, encaminhou-se para o quarto imediato; havia sangue por toda a parte: as pegadas eram em direitura à janela.

Encostou-se ao peitoril, e examinou com sobressalto todo o jardinzinho. Na grade de ferro estava pendurado, lívido e inteiriçado, o cadáver do infeliz Bussy. Não foi um grito mas um rugido que aquela vista arrancou do peito de Antraguet. Livarot correu para ele.

- Olha - disse Antraguet -, aqui está Bussy morto.

- Bussy assassinado e deitado por uma janela fora!. Entra, Ribeirac, entra! Livarot desceu ao pátio, e encontrando Ribeirac no princípio da escada, levou-o consigo. Entraram por uma portinha que dava serventia do pátio para o jardim.

- É ele, não há dúvida! - exclamou Livarot.

- Tem uma mão decepada - disse Ribeirac.

- E duas balas no peito!

- Está crivado de punhaladas!

- Ah, pobre Bussy, pobre Bussy! - gritou Antraguet. - Vingança! Vingança! Livarot, ao voltar-se, deu com o pé noutro cadáver.

- Monsoreau! - exclamou o mancebo.

- Pois quê? Monsoreau também?

- Sim, Monsoreau aí está feito num crivo, e com a cabeça esmigalhada de encontro às pedras.

- Então, visto isso, assassinaram todos os nossos amigos esta noite!

- E a mulher? Que será feito dela? - exclamou Antraguet. - Diana, Diana! Ninguém respondeu; ouvia-se apenas o murmúrio do populacho, que já começava a juntar-se em frente da casa.

Era nesta ocasião que o rei e Chicot chegavam à altura da Rua de Santa Catarina, e se desviavam para não passar por pé do ajuntamento.

- Bussy, meu pobre Bussy! - bradava Ribeirac com imenso desespero.

- Compreendo agora! - disse Antraguet. - Quiseram dar cabo do mais temível de todos nós!

- Isto é uma cobardia! uma infâmia! - gritaram os dois fidalgos.

- Vamos queixar-nos ao duque - gritou um deles.

- Nada - atalhou Antraguet -, não dêmos a outrem a incumbência de nos vingar; ficaríamos mal vingados, meus amigos; esperem aí.

Num momento desceu, e veio ter com Livarot e Ribeirac.

- Meus amigos - disse ele -, olhem para aquele rosto tão nobre do mais valente dos homens; vejam como ainda goteja sangue; sirva-nos ele de exemplo; ele nunca incumbiu pessoa alguma de o vingar. Bussy meu querido Bussy, faremos como tu, e deixa estar que nos havemos de vingar!

Ao proferir estas palavras, tirou o chapéu, chegou a boca aos lábios de Bussy e, desembainhando a espada, molhou-a no sangue do amigo.

- Bussy - disse ele -, juro pelo teu cadáver que este sangue há-de ser lavado com o sangue dos teus inimigos!

- Bussy! Bussy! - exclamaram os outros dois. - Juramos matá-los ou morrer!

- Senhores - disse Antraguet embainhando a espada -, nem piedade, nem misericórdia, não é assim?

Os mancebos estenderam as mãos sobre o cadáver.

- Nem piedade, nem misericórdia - repetiram ambos.

- Porém - observou Livarot - já não somos senão três contra quatro.

- É verdade; mas nós não assassinámos pessoa alguma - respondeu Antraguet -, e Deus há-de proteger os inocentes. Adeus, Bussy!

- Adeus, Bussy! - disseram os outros dois amigos.

E saíram, espavoridos, daquela casa maldita.

Tinham adquirido ali, em presença da imagem da morte, a profunda desesperação que centuplica as forças, e iam animados da generosa indignação que torna o homem superior à sua essência mortal.

Romperam a custo por entre a multidão, a qual, em menos dum quarto de hora, tinha aumentado consideravelmente.

Quando chegaram ao lugar aprazado, já lá encontraram os adversários esperando por eles; uns sentados sobre pedras, e outros pitorescamente encostados às barreiras.

Deram os últimos passos a correr, envergonhados de terem chegado tão tarde. Os quatro favoritos do rei tinham também consigo quatro escudeiros. As quatro espadas, deitadas no chão, pareciam estar à espera como os donos.

- Meus Senhores - disse Quélus levantando- se e cortejando-os com certa altivez -, tivemos a honra de os esperar.

- Desculpem-nos, meus Senhores - replicou Antraguet - teríamos chegado à hora aprazada, se não nos tivesse falhado um dos nossos companheiros.

- O Sr. de Bussy - disse d'Épernon -; com efeito, não o vejo. Custa-Lhe muito a sair da cama hoje.

- Assim como nós esperámos até agora - disse Schomberg -, esperaremos agora mais algum tempo.

- O Sr. de Bussy não pode vir, meus Senhores - respondeu Antraguet. Os rostos de todos deram mostras de profundo espanto, só o de d'Épernon exprimiu outro sentimento.

- Não pode vir - disse ele; - ah, ah, então o homem valente entre todos os valentes está com medo?.

- Não pode ser esse o motivo! - replicou Quélus.

- Tem razão, Sr. de Quélus. - disse Livarot.

- E porque não pode ele vir então? - perguntou Maugiron.

- Porque está morto - respondeu Antraguet.

- Morto? - exclamaram os favoritos do rei.

D'Épernon ficou calado, e até empalideceu imperceptivelmente.

- E morreu assassinado! - prosseguiu Antraguet. - Não o sabiam, meus senhores?.

- Não - respondeu Quélus. - E porque o havíamos de saber?

- E demais, será isso certo? - perguntou d'Épernon.

Antraguet desembainhou a espada.

- É tão certo - disse ele -, que está aqui na minha espada uma mancha do seu sangue.

- Assassinado! - exclamaram novamente os três amigos do rei. - O Sr. de Bussy assassinado!.

D'Épernon continuava a abanar a cabeça em ar de dúvida.

- Este sangue está bradando por vingança - disse Ribeirac - não acham, meus Senhores?

- Essas suas exclamações - disse Schomberg - parecem feitas com segunda tenção.

- Pudera não! - replicou Antraguet.

- Que quer então dizer com isso? - exclamou Quélus.

- Procurai a quem aproveita o crime, diz o legista - murmurou Livarot.

- Ora vamos, Senhores, querem explicar-se alto e bom som? - disse Maugiron com voz estrondosa.

- Por isso mesmo é que aqui estamos - replicou Ribeirac -, e temos motivos de sobejo para nos matarmos reciprocamente.

- Então peguemos nas espadas quanto antes - disse d'Épernon - e aviemo-nos.

- Oh, oh, está com muita pressa senhor gascão!. - acudiu Livarot; - não gritava tanto quando éramos quatro contra quatro.

- E é por culpa nossa que já não são senão três? - perguntou d'Épernon.

- É por sua culpa - bradou Antraguet -; Bussy foi morto porque havia pessoas que antes queriam vê-lo deitado na sepultura de que de pé no campo de duelo; deceparam- Lhe a mão para que não pudesse empunhar mais a espada; mataram-no porque era preciso fazer cerrar a todo o custo aqueles olhos, cujo brilho os teria deslumbrado a todos quatro. Entende agora?

Schomberg, Maugiron e d'Épernon estavam desesperados.

- Basta, basta, meus Senhores - disse Quélus. - Retire-se, Sr. d'Épernon; bater-nos-emos três contra três; estes senhores vão ver que, não obstante o nosso direito, não somos pessoas capazes de aproveitarmos uma desgraça que lamentamos tanto como eles. Venham, meus Senhores, venham - prosseguiu o mancebo atirando com o chapéu para o chão e er guendo a mão esquerda ao passo que brandia a espada com a direita -; venham, e quando nos virem brigar à face do Céu e debaixo das vistas de Deus, então julgarão se somos assassinos. Vamos, tomemos os nossos lugares!

- Ah, eu odiava-os - disse Schomberg -, agora abomino-os!

- E eu - disse Antraguet - há uma hora só os mataria em duelo; agora era capaz de os estrangular! Em guarda, meus Senhores, em guarda!

- Com os gibões, ou sem eles? - perguntou Schomberg.

- Sem gibão, sem camisa - replicou Antraguet -, com o peito nu e o coração descoberto! Os mancebos despiram os gibões e em seguida tiraram as camisas.

- Olha que esta!. - disse Quélus ao despir-se. - Lá perdi a minha adaga. Não se segurava bem na bainha, e caiu-me provavelmente no caminho.

- Ou talvez a deixasse em casa do Sr. de Monsoreau, no Largo da Bastilha - disse Antraguet -, nalguma bainha de onde não se atreveu a tirá-la.

Quélus soltou um grito de raiva, e pôs-se em guarda.

- Ulhe que ele não tem adaga! - gritou Chicot, que chegava naquele momento ao campo de batalha.

- Pior para ele - disse Antraguet -; a culpa não é minha E desembainhando a adaga com a mão esquerda, pôs-se também em guarda.

 

           O COMBATE

Conforme dissemos, o terreno onde ia ter lugar aquele terrível duelo, era plantado de árvores e desviado dos caminhos.

Em geral só o frequentavam as crianças, que para ali iam brincar de dia, ou os bêbados e os ladrões, que iam lá dormir de noite.

As barreiras armadas pelos alquiladores aFastavam naturalmente a multidão, que, semelhante às ondas dum rio, segue sempre a corrente, e só volta atraída por algum redemoinho.

A gente que passava costeava aquele lugar sem se demorar muito nele. E demais, era ainda muito cedo, e a casa ensanguentada de Monsoreau estava chamando a atenção geral.

Chicot, com o coração a palpitar, se bem que não era de natureza muito terna, sentou-se na frente dos escudeiros e dos pajens, numa balaustrada de madeira.

Não gostava dos angevinos, e detestava os Favoritos do rei; mas tanto uns como outros eram rapazes valentes, e nas veias de todos corria um sangue generoso, que em breve ia ser derramado.

D'Épernon quis aventurar uma bravata - Então que é isto, têm medo de mim? - exclamou ele.

- Cale-se, tagarela! - disse-lhe Antraguet.

- Estou no meu direito - replicou d'Epernon -, eram oito pessoas que deviam figurar no duelo.

- Vamos, passe de largo! - disse Ribeirac com impaciência, tolhendo-lhe o passo.

D'Épernon voltou costas com gestos de fanFarrão, e tornou a embainhar a espada.

- Venha - disse Chicot -, venha, beijinho dos homens valentes, quando não, ficar- lhe-ão os sapatos perdidos, como ontem lhe ficaram as botas.

- Que está dizendo este doido chapado?

- Digo que não tarda que haja sangue pelo chão, e que poderia suceder sujar os pés como Lhe aconteceu a noite passada.

D'Épernon tornou-se fulo. Toda a sua jactância se desvaneceu na presença de tão terrível arguição.

Sentou-se a distância de dez passos de Chicot, para quem já não olhava sem terror.

Ribeirac e Schomberg aproximaram-se um do outro, depois de se terem cumprimentado segundo o estilo.

Quélus e Antraguet, que já estavam em guarda havia um instante, cruzaram as espadas dando cada um deles um passo em frente.

Maugiron e Livarot, cada um deles encostado a uma barreira, olhavam-se mutuamente, procurando azo para travarem o combate em posição vantajosa.

O duelo começou quando davam cinco horas em S. Paulo.

Nas feições dos combatentes só se manifestava furor; porém os beiços cerrados, a palidez ameaçadora dos rostos, o tremor involuntário dos pulsos, tudo indicava que aquele furor era por eles reprimido a poder de prudência, e que, à semelhança dum cavalo fogoso, não deixaria de causar largos estragos logo que se soltasse.

Houve durante alguns minutos, que pareceram um espaço de tempo enorme, um toque de espadas que ainda não chegava a ser tinido. Não se tinha dado um único golpe.

Ribeirac, cansado, ou antes, satisfeito de ter experimentado a destreza do seu adversário, abaixou a mão e esperou.

Schomberg deu dois passos com rapidez, e correu-lhe uma estocada, que foi o primeiro relâmpago que saiu daquela nuvem.

Ribeirac ficou ferido.

A pele tornou-se-Lhe lívida, e um fio de sangue brotou-lhe do ombro; recuou logo, para avaliar a gravidade da ferida.

Schomberg quis repetir a estocada, porém Ribeirac levantou a espada em parada de prima, e feriu-o num lado.

Cada um deles tinha a sua ferida.

- Agora descansemos durante alguns segundos, se Lhe parece - disse Ribeirac. Entretanto, Quélus e Antraguet iam aquecendo gradualmente; Quélus, porém, privado da sua adaga, tinha grande desvantagem; via-se obrigado a aparar os golpes com o braço esquerdo, e como estava com o braço nu, cada golpe que aparava fazia-lhe uma ferida.

Ao cabo de alguns segundos, se bem que não se encontrasse gravemente ferido, tinha a mão toda ensanguentada.

Antraguet, pelo contrário, usando de toda a vantagem da sua posição, e não menos hábil do que Quélus, aparava cuidadosamente os golpes. Finalmente, correu três estocadas, e logo esguichou o sangue do peito de Quélus, por três feridas não de gravidade.

Porém este repetia a cada golpe: Não é nada.

Livarot e Maugiron ainda se conservavam em guarda.

Quanto a Ribeirac, esse, enfurecido pela dor e sentindo que Lhe iam diminuindo as forças com a perda de sangue, acometeu novamente Schomberg.

Schomberg não recuou um passo, e limitou-se a estender a espada, de forma que os dois mancebos enfiaram-se mutuamente nos ferros um do outro.

Ribeirac ficou com o peito atravessado, e Schomberg com uma ferida no pescoço. Ribeirac, mortalmente ferido, levou a mão esquerda ao peito, descobrindo-se assim completamente.

Schomberg aproveitou este descuido para correr segunda estocada a Ribeirac, que o atravessou. Ribeirac, porém, segurou com a mão direita a mão do adversário, e com a esquerda enterrou-lhe a adaga no peito até aos copos. O ferro atravessou-Lhe o coração.

Schomberg soltou um grito abafado e caiu de costas, arrastando consigo Ribeirac ainda atravessado pela espada.

Livarot, vendo cair o amigo, deu rapidamente um passo em retirada, e correu velozmente para ele, perseguido por Maugiron. Ganhou alguma dianteira a este, e ajudando Ribeirac nos esforços que fazia para se desembaraçar da espada de Schomberg, arrancou- lha do peito.

Mas então já tinha sido alcançado por Maugiron, e teve de se defender com a desvantagem dum terreno escorregadio e de sol nos olhos.

Dali a um instante, uma cutilada abriu a cabeça de Livarot, que largou a espada e caiu de joelhos.

Quélus estava vivamente apertado por Antraguet. Maugiron tratou de traspassar Livarot com uma estocada. Livarot caiu de todo.

D'Épernon soltou um enorme grito.

Restavam pois Quélus e Maugiron contra Antraguet.

Quélus estava escorrendo em sangue, mas os ferimentos eram muito leves. Maugiron estava a bem dizer são e escorreito.

Antraguet conheceu o perigo; não tinha ainda a menor arranhadura, mas já começava a sentir-se cansado: não era possível naquelas alturas pedir tréguas a um homem ferido, furioso e encarniçado, nem a outro ainda sedento de carnagem. Deu uma pancada rija na espada de Quélus, e aproveitando o desvio do ferro, saltou ligeiramente por cima duma barreira.

Quélus acometeu-o com uma cutilada que só deu no pau.

Porém nesse mesmo instante Maugiron atacou Antraguet pelo flanco. Antraguet voltou-se, Quélus aproveitou o movimento para passar por baixo da barreira.

- Está perdido -disse Chicot.

- Viva el-rei! - gritou d'Épernon. - Ânimo, meus leões, ânimo!

- Silêncio, Senhor, por favor - disse Antraguet -; não insultem um homem que se há-de bater enquanto tiver fôlego.

- E que ainda não morreu! - gritou Livarot.

E no momento em que já ninguém pensava nele, ergueu-se sobre os joelhos, com o corpo coberto de lama ensanguentada, e enterrou a adága entre as espáduas de Maugiron, o qual caiu como uma massa inerte, suspirando:

- Jesus, meu Deus! Estou morto.

Livarot tornou a cair sem sentidos: aquela acção e a cólera tinham-lhe exaurido as forças.

- Sr. de Quélus - disse Antraguet abaixando a espada -, é um homem valoroso: entregue-se, ofereço- lhe a vida.

- E porque hei-de eu entregar-me? - disse Quélus. - Estou acaso já caído por terra?.

- Não; mas está crivado de golpes, e eu estou são e salvo.

- Viva el-rei! - gritou Quélus; - ainda tenho a minha espada, Senhor! E correu sobre Antraguet, que aparou o golpe apesar da sua rapidez.

- Não senhor, já não a tem - replicou Antraguet, agarrando na folha junto aos copos. E torceu o braço de Quélus, que não teve remédio senão largar a espada. Antraguet ficou com um dedo da mão esquerda levemente ferido.

- Oh - gritou Quélus -, uma espada! Uma espada!

E atirando-se a Antraguet com um pulo de tigre, enlaçou-o nos braços. Antraguet deixou-se agarrar, e passando a espada para a mão esquerda e a adaga para a direita, começou a ferir Quélus sem interrupção, e por toda a parte, salpicando-se a cada golpe com o sangue do inimigo, o qual de maneira nenhuma o largava, e gritava a cada ferida:

- Viva el-rei!

Quélus conseguiu afinal segurar a mão que o feria, e apertar, como faria uma serpente, o seu inimigo intacto, entre as pernas e os braços.

Antraguet sentiu que Lhe ia faltando a respiração.

E com efeito, cambaleou e caiu.

Mas, ao cair, como se tudo devesse ser em seu favor naquele dia, abafou, por assim dizer, o desgraçado Quélus.

- Viva el-rei! - murmurou este último quase agonizante.

Antraguet conseguiu desenvencilhar o peito dos braços de Quélus, levantando-se sobre uma das mãos, e descarregou-lhe um último golpe, que lhe atravessou o peito.

- Viva el-r. - balbuciou Quélus com os olhos semicerrados.

Antraguet levantou-se do chão coberto de sangue; porém era sangue do seu adversário unicamente: tinha apenas, como já dissemos, uma arranhadura na mão esquerda.

D'Épernon persignou-se, e fugiu espavorido como se o perseguisse algum espectro.

Antraguet lançou para os companheiros e para os seus inimigos, mortos e moribundos, um olhar semelhante àquele que Horácio lançou provavelmente para o campo da batalha que decidira do destino de Roma.

Chicot correu a levantar Quélus, o qual vertia sangue por dezanove feridas. O movimento reanimou-o.

Tornou a abrir os olhos.

- Antraguet. - disse ele. - Juro pela minha honra que não sou culpado da morte de Busssy.

- Oh, acredito-o, Senhor - respondeu Antraguet enternecido -, acredito-o.

- Fuja, Senhor - murmurou Quélus -, fuja; el-rei nunca lhe perdoaria.

- E eu, Senhor - replicou Antraguet -, não quero abandoná-lo nesse estado, ainda que vá parar a um cadafalso.

- Ponha-se a salvo, mancebo - disse Chicot -, e não tente a Deus; escapou por um milagre, não espere por dois no mesmo dia.

Antraguet chegou-se a Ribeirac, que ainda respirava.

- Então?. - perguntou este.

- Ficamos vencedores - respondeu Antraguet baixinho, para não ofender Quélus.

- Obrigado. - disse Ribeirac, - Vai-te embora.

E tornou a cair desmaiado.

Antraguet Foi apanhar a espada, que tinha deixado cair na luta, e depois agarrou também as de Quélus, de Schomberg e de Maugiron.

- Acabe de me matar, Senhor - disse Quélus -, se não quer dar-me a espada.

- Tome-a lá, Senhor Conde - respondeu Antraguet, cumprimentando-o respeitosamente ao oferecer-lha.

Brilhou uma lágrima nos olhos do Ferido.

- Podíamos ter sido amigos!. - murmurou ele.

Antraguet deu-Lhe a mão.

- Muito bem! - disse Chicot. - Não se pode mostrar mais cavalheirismo. Mas põe-te a salvo, Antraguet, que és digno de viver.

- E os meus companheiros? - perguntou o mancebo.

- Hei-de tratá-los com toda a atenção, como os amigos de el-rei.

Antraguet embrulhou-se num capote que lhe apresentou o seu escudeiro, a fim de que ninguém visse o sangue de que ia coberto, e, deixando os mortos e feridos entregues aos pajens e aos criados, desapareceu pela Porta de Santo António.

 

O rei, pálido, inquieto e estremecendo à menor bulha, passeava pela sala de armas, conjecturando com a experiência dum homem prático, o tempo que deviam ter gasto os seus amigos para se reunirem com os adversários e baterem-se, assim como todas as probabilidades favoráveis ou contrárias que lhes davam os seus caracteres, a força ou a destreza.

A estas horas, tinha ele dito primeiro, vão eles atravessando a Rua de Santo António. Entram agora na cerca. Puxam das espadas. Já travaram o combate.

E ao proferir estas palavras, o pobre rei, todo trémulo, foi-se pôr a rezar. Mas no fundo do coração lutavam outros sentimentos, e aquela devoção era superficial e não passava dos lábios.

Ao cabo de alguns instantes, ergueu-se o rei.

Contanto que Quélus, disse ele, se recorde daquele modo de rebater e revirar uma estocada que lhe ensinei, que é aparar com a espada e ferir ao mesmo tempo com a adaga. Quanto a Schomberg, que tem muito sangue-frio, esse há-de matar o tal Ribeirac. Maugiron, se não for muito infeliz, há-de livrar- se depressa de Livarot. Morto d'Épernon! Oh, esse desde já o considero morto. Felizmente é dos quatro aquele a quem tenho menos amizade. Mas, desgraçadamente, o ele morrer tem outras consequências; Bussy, o terrível Bussy apenas o tiver morto, há- de acometer os três que ficam. Ah, meu pobre Quélus, meu pobre Schomberg, meu pobre Maugiron!

- Real Senhor - bradou Crillon batendo à porta.

- Que temos? Pois já? - exclamou o rei.

- Não, meu Senhor, não trago notícia alguma; venho dizer unicamente que o Senhor Duque de Anju pretende falar a Vossa Majestade.

- Para quê? - perguntou o rei, conservando sempre a porta fechada.

- Diz que é chegada a ocasião de ele participar a Vossa Majestade qual foi o serviço que Lhe prestou, e que a comunicação que tem a fazer a el-rei há-de acalmar em parte os receios que o agitam neste momento.

- Pois vá buscá-lo! - respondeu o rei.

No mesmo instante, e quando Crillon ia a voltar-se para obedecer à ordem do rei, ouviram-se passadas de alguém que subia a escadaria com rapidez, e logo uma voz que dizia para Crillon:

- Quero falar a el-rei, já, já!

O rei reconheceu a voz, e abriu ele mesmo a porta.

- Anda cá, Saint-Luc, anda cá - disse ele -; que foi que sucedeu? Mas. que tens tu, meu Deus! E que notícias trazes? Morreram todos?...

Com efeito, Saint-Luc tinha entrado arrebatadamente pela câmara dentro, pálido, sem chapéu, sem espada, e todo ele manchado de nódoas de sangue.

- Real Senhor! - bradou Saint-Luc lançando-se aos pés do rei - vingança! Venho pedir-lhe vingança!

- Meu pobre Saint-Luc! - disse o rei - que te aconteceu? Fala, que dá lugar a esse teu desespero:

- Senhor! O mais ilustre dos seus súbditos, o mais valente dos seus soldados. Faltaram-Lhe as palavras.

- Hem, que é isso! - disse Crillon que se julgava com direito a este último título especialmente.

- Foi morto, esta noite! Morto traiçoeiramente por assassinos! - prosseguiu Saint-Luc. O rei, a quem uma única ideia preocupava, ficou descansado: era evidente que não tinha sido nenhum dos seus amigos, pois vira-os a todos naquela manhã.

- Morto, assassinado esta noite. - disse o rei; - mas, de quem falas tu, Saint-Luc?

- Meu Senhor, eu bem sei que Vossa Majestade não era amigo dele - continuou Saint-Luc -, porém ele era-lhe fiel, e se se tivesse oferecido ocasião, juro-Lhe que teria dado todo o seu sangue por Vossa Majestade, e por isso era seu amigo.

- Ah!. - disse o rei, que já ia começando a perceber.

E uma espécie de irradiação de alegria e esperança lhe iluminou o rosto.

- Vingança, Real Senhor, para o Sr. de Bussy - bradou Saint-Luc -, vingança!

- Para o Sr. de Bussy? - repetiu o rei, carregando em cada palavra.

- Sim, para o Sr. de Bussy, que foi apunhalado por vinte assassinos a noite passada! E bem fizeram eles em ser vinte, pois que catorze morreram-lhe às mãos.

- O Sr. de Bussy morto?

- Sim, meu Senhor!

- Então não poderá bater-se esta manhã! - disse de repente o rei, cedendo a um movimento irresistível.

Saint-Luc dirigiu para o rei um olhar que ele não pôde suportar; ao voltar o rosto deu com os olhos em Crillon, que se conservava de pé junto da porta, esperando novas ordens.

Fez-Lhe sinal para que fosse buscar o duque de Anju.

- Não, meu Senhor - acrescentou Saint-Luc com voz severa -; o Sr. de Bussy não se bateu, com efeito, e é esse o motivo por que venho pedir, não vingança, como erradamente disse a Vossa Majestade, mas sim justiça, porque eu estimo o meu rei e a sua honra mais que tudo, e acho que foi um serviço deplorável que prestou a Vossa Majestade quem mandou apunhalar o Sr. de Bussy.

O duque de Anju acabava de chegar à porta, e aí se conservava, de pé, imóvel como uma estátua de bronze.

As palavras de Saint-Luc foram um raio de luz para o rei; lembrou-se então do serviço que o irmão afirmara ter-lhe prestado.

O seu olhar cruzou-se com o do duque, e logo se desvaneceram todas as dúvidas, porque o duque, ao passo que Lhe dizia que sim com os olhos, tinha-Lhe feito um aceno imperceptível de alto a baixo com a cabeça.

- Quer saber o que todos hão-de dizer agora? - exclamou Saint- Luc. - Hão-de dizer, que se os seus amigos ficarem vencedores, que foi em consequência de ter mandado matar Bussy.

- E quem há-de dizer semelhante coisa? - perguntou o rei.

- Quem há-de ser? Toda a gente! - replicou Crillon, intrometendo-se na conversação sem-cerimónia, como era o seu costume.

- Não senhor - disse o rei, inquieto e subjugado pela opinião emitida por aquele que tinha em conta do homem mais valente do seu reino, depois que Bussy deixara de existir -, não senhor: ninguém tal há-de dizer, porque eu exijo que me declarem quem foi o assassino.

Saint-Luc viu projectar-se uma sombra.

Era o duque de Anju, que tinha dado dois passos para dentro do quarto. Virou-se, e conheceu-o.

- Sim, meu Senhor, hei-de eu declarar-lhe quem foi - disse Saint-Luc levantando-se - , porque quero a todo o custo tirar de Vossa Majestade o odioso de tão abominável acção.

- Pois bem! Diz lá.

O duque parou e esperou com tranquilidade.

Crillon estava por detrás dele, olhando-o de soslaio e abanando a cabeça.

- Senhor - disse Saint-Luc -, fizeram cair Bussy numa cilada a noite passada: enquanto ele estava visitando uma mulher que o amava, o marido, avisado por um traidor, voltou a casa acompanhado de assassinos, que espalhou por toda a parte; estavam na rua, no pátio, e até no jardim.

Se não estivessem todas as janelas fechadas, como já dissemos, na câmara do rei, quem olhasse para o príncipe quando Saint-Luc pronunciou aquelas palavras, tê-lo-ia visto empalidecer, apesar do muito poder que tinha sobre si mesmo.

- Bussy defendeu-se como um leão, meu Senhor, porém o número pôde mais do que o valor, e.

- E foi morto - interrompeu o rei -, e muito bem morto; não serei eu por certo que vingarei um adultério.

- Permita, Real Senhor, que eu conclua a minha narração - replicou Saint-Luc. - O desgraçado, depois de se ter defendido durante quase meia hora dentro do quarto, conseguiu levar de vencida os seus inimigos, e já ia fugindo, ferido, ensanguentado e mutilado; bastava então que alguém Lhe houvesse estendido a mão para o socorrer, como eu faria decerto, se não tivesse sido preso peles assassinos, com a mulher que ele confiara à minha protecção, e por eles amarrado e amordaçado. Infelizmente esqueceram-se de me privar da vista, como me privaram da fala, e vi, então, Real Senhor, vi aproximarem-se dois homens do desgraçado Bussy, que estava dependurado por uma perna nas lanças duma grade de ferro; ouvi o ferido pedir-lhes que o socorressem, porque esses dois homens tinha ele razão para considerar como amigos. Pois bem, meu Senhor, o que vou dizer-Lhe é horrível, mas acredite que ainda foi mais horrível vê-lo e ouvi-lo: um deles mandou dar fogo, e o outro obedeceu!

Crillon fechou os punhos e carregou os sobrolhos.

- E conheceste o assassino? - perguntou o rei, involuntariamente comovido.

- Conheci - respondeu Saint-Luc.

E voltando-se para o príncipe, com a fala e o gesto repletos de todo o ódio que durante tanto tempo havia reprimido:

- Foi Sua Alteza - disse ele -; o assassino foi o príncipe! O assassino foi o amigo! O rei já esperava aquela acusação. O duque ouviu-a sem pestanejar.

- É verdade - disse ele com toda a placidez -; o Sr. de Saint-Luc viu e ouviu efectivamente isso que acaba de contar; fui eu quem mandou matar o Sr. de Bussy, e Vossa Majestade apreciará devidamente o passo que dei, pois o Sr. de Bussy era meu criado, é verdade, mas, apesar de todas as observações que lhe fiz, tencionava pegar em armas contra vossa Majestade esta manhã.

- Mentes, assassino, mentes - exclamou Saint-Luc. - Buss crivado de feridas, com a mão decepada por uma cutilada, com o ombro fracturado por uma bala, e dependurado por uma perna numa grade de ferro, só pedia inspirar compaixão aos seus mais cruéis inimigos que o teriam socorrido. Mas tu, assassino de La Mole e de Cocunás, mataste Bussy, não por ele ser inimigo de teu irmão, mas porque era o conFidente dos teus segredos. Ah, bem sabia Monsoreau o motivo por que tu cometias aquele crime!.

- Cos demónios! - murmurou Crillon. - Quem me dera ser rei nesta ocasião!

- Estão-me insultando na vossa presença, meu irmão! - disse o duque, enfiado de susto, pois não se julgava muito seguro, colocado como estava entre a mão convulsiva de Crillon e o olhar sanguinolento de Saint-Luc.

- Saia, Crillon! - disse o rei.

Crillon saiu.

- Justiça! Senhor, justiça! - continuou a bradar Saint-Luc.

- Senhor - disse o duque -, castigue-me, se Lhe apraz, por ter salvo esta manhã os amigos de Vossa Majestade, e por ter favorecido a justiça da sua causa, que também é a minha.

- E eu - replicou Saint-Luc não podendo já conter-se -, digo-te que a causa que tu abraças Fica sendo uma causa amaldiçoada, e que quando passas por alguma parte é porque está para cair sobre o lugar onde estiveste o peso da cólera de Deus! Senhor! Senhor! Seu irmão protegeu os nossos amigos: desgraçados deles!

O rei sentiu correr-lhe pelo corpo como um arrepio de terror.

Ao mesmo tempo ouviu-se pela parte de fora da câmara um rumor vago, logo em seguida passadas de alguém que chegava precipitadamente, e depois o som dos interrogatórios que se faziam com solicitude ao recém-chegado. Seguiu-se um profundo silêncio.

No meio desse silêncio, e como se fora uma voz vinda do Céu para dar razão a Saint-Luc, três pancadas, vibradas com lentidão e solenidade, fizeram estremecer a porta a que batia o punho robusto de Crillon.

As fontes de Henrique ficaram inundadas de suor frio e as feições transtornaram-se-Lhe completamente.

- Vencidos - exclamou ele -, os meus pobres amigos foram vencidos!.

- Então? Que Lhe dizia eu, meu Senhor?. - gritou Saint-Luc.

O duque juntou as mãos com terror.

- Vês, cobarde! - exclamou o mancebo fora de si - aí está como os assassinos salvam a honra dos príncipes! Anda, mata-me a mim também, que estou desarmado!

E atirou com a luva de seda à cara do duque.

Francisco soltou um grito de furor e tornou-se lívido.

Porém o rei nada via, nem ouvia; tinha encoberto o rosto com as mãos.

- Oh! - murmurava ele. - Os meus pobres amigos, vencidos, feridos!. Oh, quem me dará deles notícias certas?

- Eu, meu Senhor - respondeu Chicot.

O rei, ao ouvir aquela voz amiga, estendeu os braços para a frente.

- Então! - perguntou ele.

- Dois deles já morreram, e o terceiro está próximo a derramar o último suspiro.

- Qual é o terceiro, que ainda não expirou?

- É Quélus, meu Senhor.

- E onde está ele!

- Está no Palácio de Bussy, para onde o mandei conduzir.

O rei não quis ouvir mais nada, e saiu a correr pela câmara fora, soltando gritos lastimosos.

Saint-Luc tinha levado Diana para casa da sua amiga Joana de Brissac; e dali proveio a sua demora em se apresentar no Louvre.

 

Joana, durante três dias e três noites, não perdeu de vista a infeliz senhora, que estava entregue ao mais cruel tresvario.

Ao quarto dia, Joana, cedendo ao cansaço, foi-se deitar durante alguns instantes; mas quando voltou, passadas horas, para o quarto da amiga, já ali a não encontrou.

Todos sabem que Quélus, o único dos três combatentes defensores da causa do rei que sobrevivera, apesar das dezanove feridas, morreu nos braços do rei, depois duma agonia de trinta dias, naquele mesmo Palácio de Bussy, para onde Chicot o mandara transportar.

Henrique ficou inconsolável. Mandou erigir aos seus três amigos túmulos magníficos, nos quais eles estavam figurados em mármore e de tamanho natural. Instituiu missas por tenção deles, recomendou-os às orações dos eclesiásticos, e acrescentou às suas rezas usuais um dístico, que repetiu toda a vida depois das orações da manhã e da tarde, e no qual pedia a Deus que tivesse na sua presença Quélus, Schomberg e Maugiron.

Durante quase três meses, Crillon guardou à vista o duque de Anju, que o rei tinha tomado em profunda aversão, e a quem nunca perdoou.

Assim foi decorrendo o tempo até ao mês de Setembro, época na qual Chicot, que não se tirava do lado do amo, e que teria conseguido consolar Henrique se a dor que este sentia admitisse consolação, recebeu a carta seguinte, datada do Priorado de Baume. Era traçada por mão dum escrevente:

Meu Querido Sr Chicot:

Os ares por aqui são muito agradáveis, e com razão se esperam abundantes colheitas na Borgonha este ano. Consta-me que el rei, nosso senhór a quem eu salvei a vida, segundo ouvi dizer continua sempre na mesma tristeza; traga-o consigo aqui ao meu priorado, caro Sr Chicot. Dar-lhe-emos a beber um vinho de 1550 que descobri na minha adega, e que é capaz de fazer esquecer us maiores pesares; estou certo que se há-de alegrar logo que oprovar pois nos Livros Sagrados encontrei estafrase: O bom vinho alegra o coração do homem! Estas palavras en latim soam muito bem; hei-de ler-lhas. Venhapois, querido Sr Chicot venha com el rei, com dÉpernon, e com o Sr de Saint-Luc. verá como havemos de engordar todos.

O Reverendo Prior Dom Gorenflot que se confessa seu humilde servo e amigo.

  1. S. - Dirá a el rei que ainda não tive tempo de rezar por alma dos seus amigos, conforme ele me ordenou, em consequência dos muitos encargos que se seguiram à minha posse; porém, logo que se acabe a vindima, passarei sem falta a ocupar-me deles.

Amén! disse Chicot; os pobres diabos caíram em boas mãos para serem encomendados a Deus!.

 

O autor nos dirá o que tinha sido feito dela (Diana) no seu romance Os Quarenta e Cinco, no qual encontraremos parte das personagens que figuram na história de A Dama de Monsoreau.

 

                                                                                Alexandre Dumas  

 

                      

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