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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A DAMA DO FALCÃO / Marion Zimmer Bradley
A DAMA DO FALCÃO / Marion Zimmer Bradley

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A DAMA DO FALCÃO

Primeira Parte

 

No tempo dos Cem Reinos, quando uma sangrenta guerra civil assolava Darkover, uma jovem saiu de casa sozinha, rompendo com a família e renunciando à sua herança, porque desejava ser ela própria, não o que o pai ou um marido determinassem.

Esta é a história aqui contada, a história de Romilly MacAran, que possuía um laran sem treinamento, uma capacidade mental que lhe permitia entrar em contato mental com falcões, cavalos e outros animais, dominando-os pelo amor.

Esta é a história de sua luta para se afirmar como pessoa, não ser apenas uma mulher eternamente dominada pelos homens, para encontrar seu destino e seu lugar no mundo, para encontrar seu destino e seu lugar no mundo, para encontrar o verdadeiro amor, só possível numa base de igualdade.

É também a história de Rakhal e Carolin, o rei usurpador e o rei exilado, empenhados ambos na eterna luta do bem e do mal, da ânsia pelo poder contra o amor legítimo pelo povo.

É ainda a história de Caryl, um menino que se negava a assumir a crueldade do pai; de Ruyven e Darren, irmãos de Komilly, em permanente conflito com o próprio pai, por se recusarem a ser o que ele desejava; e de Orain, um homem que não podia fugir à sua natureza!

É uma fantasia romântica, uma história de aventuras vertiginosas, uma fascinante ficção, mas também uma projeção da luta de todas as mulheres para poderem se afirmar como pessoas e conquistarem sua independência, que perdura até hoje...

                               NINHO DOS FALCÕES, NAS COLINAS KILGHARD

 

 

Romilly sentia-se tão cansada que mal conseguia se manter de pé.

Estava escuro na gaiola, sem qualquer luz, a não ser uma lanterna protegida com todo cuidado, pendurada em um caibro; mas os olhos do falcão se destacavam muito brilhantes, indômitos e cheios de raiva como sempre. Não, Romilly lembrou a si mesma; não apenas raiva, mas terror.

Ela tem medo. Não me odeia; apenas tem medo.

Romilly podia sentir tudo dentro de si mesma, aquele terror que pulsava por trás da raiva, até que mal podia distinguir entre o que era seu — cansaço, olhos ardendo, pronta para arriar na palha imunda em total exaustão — e o que vinha do cérebro do falcão e inundava sua mente; ódio, medo, um desvairado frenesi de ânsia por sangue e liberdade.

Mesmo enquanto Romilly tirava a pequena e afiada faca do cinto e cortava um naco da carcaça convenientemente colocada próxima, ela tremia com o esforço para não atacar, desvencilhar-se em desespero da correia que a prendia — não, não a ela, prendia o falcão — ao pedaço de madeira; couros implacáveis, cortando seus pés...

O falcão bateu as asas, agitado, Romilly teve uma ação convulsiva de reflexo e o pedaço de carne crua caiu sobre a palha. Romilly sentiu a luta dentro de si mesma, a fúria e o frenesi do terror, como se as tiras de couro que prendiam a enorme ave também a amarrassem, cortando seus pés em agonia... tentou se curvar, procurar a carne calmamente, mas as emoções do falcão, fluindo por sua mente, eram demais para ela. Pôs as mãos sobre os olhos e gemeu alto, deixando que tudo se tornasse parte dela, o ruidoso frenesi das asas, batendo, batendo... uma ocasião, na primeira vez em que aquilo acontecera, há mais de um ano, afastara-se da gaiola em pânico, correndo, correndo, até tropeçar, escorregar e cair, a um palmo da beira do penhasco que descia do Castelo Ninho dos Falcões para os rochedos do Kadarin, lá embaixo.

Não devia permitir que penetrasse tão fundo em sua mente, precisava lembrar que era humana, era Romilly MacAran... forçou a respiração a voltar ao normal, lembrando as palavras da jovem leronis que conversara com ela, por um breve momento e em segredo, antes de retornar à Torre Tramontana.

— Você possui um dom raro, criança — um dos mais raros dos dons chamados laran. Não sei por que seu pai é tão amargo, por que não permite que você e sua irmã e irmãos sejam testados e treinados para o uso desses dons — com certeza ele deve saber que uma telepata destreinada é uma ameaça para si mesma e para todos ao redor; ele próprio possui o dom integral!

Romilly sabia; e desconfiava que a leronis também sabia, mas por lealdade ao pai não falaria com ninguém fora da família e, no final das contas, a leronis era uma estranha; O MacAran fora hospitaleiro, como para qualquer hóspede, mas repelira friamente o propósito da visita da mulher, que era o de testar as crianças do Ninho dos Falcões à procura de dons de laran.

— É minha convidada, Domna Marelie, mas já perdi um filho para as malditas Torres que arruinam nossa terra e atraem os filhos dos homens honestos — e as filhas também, infelizmente —, afastando-os de suas casas e lealdades familiares. Pode se abrigar sob este teto enquanto durar a tempestade e dispor de tudo o que é devido a uma hóspede de honra, mas não aproxime suas mãos intrometidas das mentes dos meus filhos!

Perdeu um filho para as malditas Torres, pensou Romilly, lembrando o irmão Ruyven, que fugira para a Torre Neskaya, no outro lado do Kadarin, quatro anos antes. E é provável que perca outro, pois até eu posso perceber que Darren é mais propenso para a Torre ou o mosteiro de Nevarsin do que para a sucessão no Ninho dos Falcões. Darren ainda estaria em Nevarsin, como o costume exigia do filho de um nobre da região montanhosa, desejava permanecer ali; mas obediente à vontade do pai, voltara para cumprir seus deveres como o Herdeiro.

Como Ruyven podia abandonar o irmão assim? Darren não pode ser o Herdeiro do Ninho dos Falcões sem o irmão ao seu lado. Havia menos de um ano de diferença entre os irmãos e sempre haviam sido unidos, como se fossem gêmeos; mas foram juntos para Nevarsin e apenas Darren voltara; Ruyven, ele comunicara ao pai, seguira para a Torre. Ruyven enviara uma mensagem que apenas o pai lera; mas depois a jogara no lixo e daquele momento em diante nunca mais pronunciara o nome de Ruyven, proibira que qualquer outro o mencionasse.

— Tenho apenas dois filhos — ele dissera, o rosto como pedra. — E um está no mosteiro, o outro no colo da mãe.

A leronis Marelie franzira o rosto e dissera a Romilly:

— Fiz o melhor que pude, criança, mas ele não quis me ouvir. Assim, você deve fazer o melhor que puder para dominar seu dom ou será dominada por ele. E só posso ajudá-la um pouco, no tempo de que disponho; e tenho certeza de que ele não me abrigaria esta noite se soubesse que falei com você a respeito. Mas não ouso deixá-la sem alguma proteção para o momento em que seu laran despertar. Estará sozinha com ele e não será fácil controlá-lo, mas também não é impossível, pois conheço algumas pessoas que conseguiram, inclusive seu irmão.

— Conhece meu irmão? — sussurrara Romilly.

— Conheço, criança... Quem acha que me mandou aqui para falar com você? Não deve pensar que ele a abandonou sem motivo — acrescentara Marelie, gentilmente, enquanto os lábios de Romilly se contraíam. — Ele a ama muito; e ama seu pai também. Mas um pássaro engaiolado não pode ser um falcão e um falcão não pode ser um kyorebni. Voltar para cá, viver sem o pleno uso de seu laran... isso seria a morte para ele, Romilly; pode compreender? Seria como ficar surdo e cego, sem a companhia de sua própria espécie.

— Mas o que pode ser esse laran para que ele renuncie a todos nós? — protestara Romilly.

Marelie assumira uma expressão triste.

— Saberá de tudo quando seu laran despertar, minha criança.

E Romilly bradara:

— Odeio esse laran! E odeio as Torres! Roubaram Ruyven de nós! — Ela se virara, recusando-se a falar de novo com Marelie; e a leronis suspirara e murmurara:

Não posso culpar a lealdade a seu pai, minha criança.

Marelie se retirara para o quarto que lhe fora designado e partira na manhã seguinte, sem outra conversa com Romilly.

Isso acontecera dois anos antes e Romilly tentara apagar o episódio de sua mente; mas naquele último ano começara a compreender que possuía o dom dos MacArans em sua plenitude — aquela coisa estranha em sua mente, pela qual podia penetrar na mente do falcão, cachorro, cavalo ou qualquer outro animal, e passara a desejar ter conversado com a leronis a respeito...

Mas nem devia pensar nisso. Posso ter o laran, ela disse a si mesma, vezes sem conta, mas nunca abandonaria o lar e a família por uma coisa assim!

Assim, empenhara-se em dominar o laran sozinha; e agora, forçando-se a manter a calma e a respirar normalmente, sentiu que o efeito tranquilizador da respiração aquietava sua mente, até arrefecia um pouco a fúria do falcão; o pássaro agrilhoado ficou imóvel e a moça expectante soube que era Romilly outra vez, não uma coisa amarrada, debatendo-se nervosamente para se livrar das peias que a cortavam...

Lentamente, ela recolheu uma informação da loucura de medo e frenesi. As peias estão muito apertadas. Machucando. Romilly inclinou-se, tentanto irradiar ondas tranquilizadoras ao seu redor, para a mente do falcão — mas o falcão está irritado demais de fome e terror para compreender, ou já estaria quieto e saberia que não lhe desejo mal algum. Ela puxou as tiras em torno das pernas do falcão. No fundo de sua mente, cuidadosamente encoberto pelos pensamentos tranquilizadores que tentava irradiar para o falcão, debatia-se o medo de Romilly pelo que estava fazendo — vira um jovem falcoeiro perder um olho ao chegar muito perto do bico de um pássaro assustado —, mas ordenou ao medo que se contivesse e não interferisse em sua ação; afinal, se o falcão sentia dor, o frenesi e o medo seriam piores.

Romilly tateou com uma das mãos na semi-escuridão e abençoou a prática perseverante que lhe ensinara a manipular todos os nós de falcão, vendada e com apenas uma das mãos; o velho Davin enfatizara isso, em muitas e muitas ocasiões, na maioria das vezes você estará numa campina escura e uma das mãos se encontrará ocupada em torno de seu falcão. Assim, hora após hora, ela apertara e afrouxara, atara e desatara aqueles mesmos nós em um graveto depois de outro, antes de poder sequer chegar perto das pernas finas de qualquer pássaro. O couro estava úmido do suor de seus dedos, mas Romilly conseguiu afrouxá-lo um pouco — não muito, ou o pássaro se desvencilharia das peias e voaria livre, talvez partindo as asas contra as paredes da gaiola, mas o suficiente para que não mais cortassem a pele curtida da parte superior das pernas. Depois, ela abaixou-se e tateou pela palha à procura do pedaço de carne, retirando a terra que aderira a ele. Sabia que não fazia muita diferença — os pássaros, não ignorava, precisavam engolir terra e pedras para moer o alimento em seus papos —, mas os fragmentos sujos de palha grudados na carne a repugnavam e removeu-os meticulosamente, antes de tornar a estender a mão enluvada para o falcão. O pássaro algum dia se alimentaria em sua mão? Mas ela tinha de insistir, até que a fome superasse o medo e o pássaro aceitasse a carne, ou perderiam aquele falcão também. E Romilly decidira que isso não aconteceria.

Sentia-se contente agora por ter deixado o outro pássaro ir embora. A princípio, quando encontrara o velho Davin se remexendo e gemendo com a febre do verão, pensara que poderia salvar os dois falcões que ele capturara três dias antes. Davin lhe dissera para soltar ambos ou morreriam de fome, pois ainda não aceitavam alimento de qualquer mão humana. Quando os pegara, ele prometera a Romilly que a deixaria treinar um, enquanto se ocupava com o outro. Mas depois a febre chegara ao Ninho dos Falcões e ao ser dominado pela doença ele mandara que soltasse ambos — haveria outras temporadas, outros falcões.

Mas eram pássaros valiosos, os melhores falcões verrin que Davin pegara em muitas temporadas. Soltando o maior, Romilly compreendera que Davin estava certo. Um falcão como aquele era inestimável — o Rei Carolin, em Carcosa, não tem pássaros melhores, garantira Davin, que sabia das coisas; o avô de Romilly fora mestre falcoeiro do exilado Rei Carolin antes da rebelião que o mandara para as Hellers e provavelmente para a morte. O usurpador Rakhal despachara a maioria dos homens de Carolin para suas propriedades e cercara-se de homens em quem podia confiar.

A perda fora sua; o avô de Romilly era conhecido do Kadarin ao Mar de Dalereuth como o melhor adestrador de falcões nas Colinas Kilghard e ensinara todas as suas artes a Mikhail, agora O MacAran, e a seu primo plebeu Davin Mestre Falcoeiro. Os falcões verrin, capturados já adultos como pássaros selvagens, eram mais obstinados do que os filhotes criados em cativeiro; um pássaro apanhado selvagem podia morrer de fome antes de aceitar comida da mão de alguém e era melhor que voasse livre para gerar outros daquela mesma espécie excepcional do que morrer de fome e medo na gaiola, indomado.

Por isso, pesarosa, Romilly tirara o maior dos pássaros da gaiola, soltara as peias de sua perna e, por trás do estábulo, subira numa rocha alta e o deixara voar livre. Os olhos ficaram toldados pelas lágrimas enquanto observava o falcão subir céu afora até sumir. Em seu íntimo, alguma coisa voara com o falcão, no desenfreado êxtase de subir, em espiral, livre, livre... Por um instante Romilly contemplara o vertiginoso panorama do Castelo do Ninho dos Falcões lá embaixo, ravinas profundas transbordando até as bordas com a floresta, à distância uma forma branca, reluzente, que ela sabia ser a Torre Hali, na margem do Lago — seu irmão estaria ali, mesmo agora? — e depois estava sozinha de novo, tremendo de frio na rocha alta, os olhos ofuscados de se virarem para a claridade, e o falcão desaparecera.

Ela voltara à gaiola e já estendia a mão para pegar o outro pássaro também e libertá-lo, mas os olhos do falcão encontraram-se com os seus por um momento e nesse instante tivera a certeza, um conhecimento forte e inequívoco em seu interior: Posso domar este, não preciso soltá-lo, posso dominá-lo.

A febre que se abatera sobre o castelo e prostrara Davin era quase sua amiga. Em qualquer dia normal Romilly teria deveres e lições, mas a governanta que partilhava com Mallina, a irmã mais jovem, também estava com febre e tremia ao lado do fogo na sala de aula, por isso lhe dera permissão para ir ao estábulo e passear a cavalo ou levar seus cadernos ou bordados para a estufa no alto do castelo, estudando ali, entre folhas e flores a claridade ainda doía nos olhos de Domna Calinda. A velha Gwennis, que fora babá de Romilly quando ela e a irmã eram pequenas, estava ocupada com Mallina, que também tinha um pouco de febre, embora não estivesse gravemente doente. E a Dama Luciella, a madrasta, não saía do lado de Rael, de nove anos, pois ele tinha a febre em sua forma mais perigosa: de suores debilitantes e incapacidade de engolir.

E, assim, Romilly prometera a si mesma um dia maravilhoso de liberdade no estábulo e na casa dos falcões; Domna Calinda seria bastante tola para pensar que ela passaria um dia inteiro de folga estudando os estúpidos deveres ou concentrada no bordado? Mas encontrara Davin também doente com a febre. Ele ficara feliz com sua chegada, pois o aprendiz ainda não era bastante hábil para se aproximar dos pássaros destreinados, embora fosse competente para alimentar os outros e limpar as gaiolas. Davin ordenara a Romilly que soltasse os dois falcões. E ela começara a obedecer...

Mas aquele falcão era dela! Não importava que se empoleirasse ali furioso e soturno, os olhos vermelhos velados pela raiva e terror, batendo as asas freneticamente ao menor movimento nas proximidades, numa descontrolada agitação; aquele falcão era seu e mais cedo ou mais tarde saberia do vínculo que os unia.

Mas não saberia tão depressa ou de forma tão fácil. Romilly já cuidara de ninhegos — filhotes criados em gaiola ou capturados ainda impotentes, acostumados antes de se tornarem emplumados a serem alimentados pela mão ou luva. Mas aquele falcão aprendera a voar, caçar e se alimentar em liberdade; eram melhores caçadores do que os falcões criados em cativeiro, porém mais difíceis de domar; cerca de dois em cada cinco pássaros assim morriam de fome antes de se alimentarem. O pensamento de que isso podia acontecer a seu falcão era um temor que Romilly se recusou a enfrentar. De alguma forma, ela precisava transpor o abismo entre os dois.

O falcão agitou as asas outra vez, furioso. Romilly esforçou-se em manter a noção de si mesma, não se fundir no terror e fúria do pássaro revoltado, ao mesmo tempo em que tentava irradiar ondas de calma. Não vou machucar você, minha adorável. Veja, aqui tem comida. Mas o falcão ignorou o sinal, tornou a se agitar, irado. Romilly teve de fazer um grande esforço para não se encolher de medo, não se deixar dominar pelas impetuosas ondas de raiva e terror que se irradiavam do pássaro aprisionado.

Mas desta vez o esvoaçar não amainara um pouco mais cedo do que antes? O falcão estava cansando. Ou ficava mais fraco, lutaria até a exaustão e morte antes de se render e se alimentar da luva? Romilly perdera a noção do tempo, mas seu cérebro desanuviou à medida que o falcão se acalmava, o que lhe permitiu saber de novo que era Romilly e não o pássaro frenético. Sua respiração normalizou e ela deixou a luva escorregar da mão por um momento. A sensação era de que o pulso e o ombro estavam prestes a cair, mas não tinha certeza se isso acontecia porque a luva era muito pesada (passara horas sustentando-a com o braço estendido, suportanto a dor das cãibras nos músculos e da tensão, a fim de se acostumar ao peso) ou se havia alguma relação com o esvoaçar desesperado de suas asas... não. Não, devia lembrar o que era ela própria, o que era o falcão. Recostou-se na parede áspera às suas costas, semicerrando os olhos. Estava quase dormindo de pé. Mas não devia dormir, não devia se mexer.

Não se deixa um falcão naquele estágio, Davin lhe dissera. Nem por um momento. Ela se lembrava de ter perguntado, quando era pequena, nem mesmo para comer? E ele respondera:

— Se chegar a esse ponto, você pode passar mais tempo sem comida e água do que um falcão; se não é capaz de esperar mais do que o falcão que está domando, então não tem o que fazer aqui.

Mas Davin falara de si mesmo. Não lhe ocorrera na ocasião que uma menina pudesse domar um falcão ou sequer desejasse fazê-lo. Atendera seu capricho de aprender todas as artes da falcoaria — afinal, os pássaros podiam um dia pertencer a ela, embora tivesse dois irmãos mais velhos; não seria a primeira vez que o Ninho dos Falcões passaria pela linhagem feminina, de um marido forte para uma mulher herdeira. Também não era desconhecido uma mulher sair a cavalo com um pássaro dócil e bem treinado; até mesmo a madrasta de Romilly já o fizera, um pássaro domesticado, não maior que um pombo, adornando seu pulso como uma jóia rara. Embora Luciella nunca fosse capaz de tocar num falcão verrin e não lhe passasse pela cabeça a ideia de que a enteada poderia acalentar tal desejo.

Mas por que não?, Romilly perguntou a si mesma, num acesso de raiva. Nasci com o dom MacAran; o laran que me daria o domínio sobre falcão, cavalo ou cão. Não laran, jamais admitirei que tenho essa maldição dos Hastur; mas o antigo dom dos MacAran... Tenho um direito a isso, não é um laran, não de verdade... Posso ser mulher, mas sou tão MacAran quanto meus irmãos!

Ela tornou a se aproximar do falcão, a carne estendida pela luva. O falcão empinou a cabeça e os olhos pequenos fitaram-na friamente; e afastou-se, com um pequeno salto, para o mais distante que as peias lhe permitiam. Romilly pôde sentir que as peias não causavam mais dor. Emitiu alguns murmúrios tranquilizadores, enquanto sua própria fome se manifestava. Deveria ter trazido alguma coisa para comer no bolso; vira Davin muitas vezes pôr na bolsa fatias de carne fria e pão, a fim de ter o que mastigar durante a longa espera com um falcão. Se ao menos pudesse se esgueirar por um instante para a cozinha ou para a copa... e para a privada também, pois a bexiga doía de tanta pressão. O pai ou os irmãos poderiam se virar por um momento, aberto o culote e se aliviado contra o muro. Romilly chegou a cogitar dessa possibilidade, mas tinha muitos cordões e ganchos a desfazer, embora estivesse usando um velho culote de Ruyven. Limitou-se a suspirar, permanecendo onde estava.

Se não pode esperar mais do que um falcão, dissera Davin, então não tem o que fazer aqui. Essa era a única desvantagem concreta de ser uma mulher em que podia pensar, embora até aquele momento nunca tivesse sido um contratempo para ela.

Você também está com fome, ela disse silenciosamente ao falcão. Vamos, aqui está a comida. Só porque estou com fome, isso não significa que você não possa comer, sua teimosa! Mas o falcão não fez qualquer movimento para tocar a comida. Mexeu-se um pouco e por um instante Romilly temeu que fosse explodir em outro daqueles desenfreados acessos de vôo. Mas logo se acalmou e um momento depois ela relaxou, na imóvel quietude da vigília.

Quando meus irmãos eram da minha idade, contava-se como certo — um filho MacAran deve treinar seu cão, seu cavalo e seu falcão. Até Rael, que tem apenas nove anos, o pai já insiste que ele ensine a seus cachorros. Quando ela era menor - antes de Ruyven deixá-los, antes de Darren ser enviado para Nevarsin —, o pai sentia orgulho em permitir que Romilly trabalhasse com cavalos e cães.

Ele costumava dizer: Romilly é MacAran, possui o dom; não há cavalo que não possa montar, não há cachorro com que não possa fazer amizade, as cadelas vão parir em seu colo. Ele se orgulhava de mim. Dizia a Ruyven e Darren que eu seria uma MacAran melhor do que qualquer dos dois, dizia que deviam observar como eu controlava um cavalo.

Mas agora... agora isso o deixa furioso.

Desde que Ruyven partira que Romilly fora entregue aos rigorosos cuidados da madrasta, esperando-se que permanecesse no castelo, "se comportasse como uma dama". Tinha quase quinze anos agora; Mallina, a irmã mais jovem, que já começara a arrumar os cabelos com o fecho de borboleta de uma mulher, contentava-se em ficar sentada e aprender os pontos de bordado, em cavalgar recatadamente numa sela feminina, em brincar com estúpidos cãezinhos de estimação em vez de procurar os espertos cães pastores e os cães de trabalho nos estábulos e pastos. Mallina se tornara uma fútil, e o mais terrível era que o pai preferia que ela assim fosse, desejava audivelmente que Romilly a imitasse.

Nunca. Prefiro morrer a ficar em casa o tempo todo e bordar como uma dama. Mallina montava bem e agora é como Luciella, mole e flácida, estremece quando um cavalo vira a cabeça por perto, não pode montar por meia hora a galope sem cair contra uma árvore, ofegante como um peixe fora d'água; e agora, como Luciella, não pára de exibir um sorriso afetado e fala como um passarinho chilreando. E o pior de tudo é que o pai gosta delas assim!

Houve um ligeiro movimento no outro lado da casa dos falcões e um dos filhotes de lá gritou, o brado selvagem de um pássaro recém-emplumado que sente o cheiro de comida. O som provocou violenta explosão no falcão de Romilly. Em consonância com o esvoaçar furioso, sentindo a fome lhe apertar a barriga como garras, ela compreendeu que o aprendiz do mestre falcoeiro aparecera para alimentar os outros pássaros. Ele foi de um a um, devagar, murmurando-lhes coisas. Romilly sabia que era quase o pôr-do-sol; estava ali desde a metade da manhã. O menino terminou seu trabalho, virou a cabeça e viu-a.

- Ama Romilly! O que está fazendo aqui, damisela?

A sua voz, o falcão tornou a bater as asas. Romilly sentiu outra vez a dor terrível, como se as mãos e os braços fossem cair na palha. Fez um esforço para se manter livre do frenesi, medo, raiva, ânsia de sangue — sangue esguichando, explodindo em sua boca sob o bico e garras implacáveis... e obrigou-se a falar em um tom baixo, a fim de não aterrorizar ainda mais o desesperado pássaro.

— Estou domando este falcão. Vá embora, Ker, seu trabalho já terminou e vai deixá-lo assustado.

— Mas ouvi Davin dizer que o falcão devia ser solto e o MacAran ficou furioso por causa disso — murmurou Ker. — Ele não queria perder os pássaros verrin e ameaçou mandar Davin embora, apesar de velho, se ele os perdesse...

— Pois o pai não vai perder este, a menos que você o assuste tanto que não terá mais jeito — disse Romilly, incisiva. — Vá embora, Ker, antes que ele bata as asas de novo...

Ela podia sentir o tremor aumentar de novo no corpo e na mente do falcão, pressentia que se houvesse outra explosão frenética poderia cair em exaustão, gritar de fúria e frustração. E isso fez com que sua voz se tornasse mais estridente:

— Saia!

A agitação de Romilly transmitiu-se ao falcão, que se lançou mais uma vez num frenético esvoaçar, ondas de ódio e terror se irradiando, ameaçando submergir sua própria percepção e identidade. Ela lutou contra isso, silenciosamente, tentando manter a calma, enviar pensamentos tranquilizadores para o pássaro apavorado. Calma, calma, minha adorada, ninguém vai lhe fazer mal, olhe só, aqui está a comida... e quando soube outra vez quem era e onde estava, o menino já desaparecera.

Ker deixara a porta aberta e havia uma aragem fria das vespertinas neblinas; e não demoraria muito para que a chuva, ou a neve noturna, começasse a cair... desgraçado! Ela roubou alguns segundos para se afastar na ponta dos pés e fechar a porta... de nada lhe adiantaria domar aquele falcão se todos os pássaros morressem com o frio! E assim que saiu do lado do pássaro, começou a especular o que estava fazendo ali e por quê. Como podia imaginar que ela, uma moça, seria capaz de realizar uma coisa em que até mesmo o experiente Davin falhava duas em cinco vezes? Deveria ter dito ao menino que o falcão se encontrava próximo da exaustão, mandar chamá-lo para assumir... já testemunhara o que ele podia fazer com um garanhão selvagem, irado e exausto, das manadas que andavam à solta pelas ravinas e colinas exteriores. Uma hora, talvez duas, com o pai na ponta de uma guia e o garanhão na outra, o animal acabava aceitando a cabeçada, esfregava o focinho contra o peito do MacAran... com certeza ele ainda podia também salvar aquele falcão. Ela estava com frio e cansada, ansiava pelos tempos passados em que podia subir no colo do pai e contar todos os seus problemas...

E foi nesse instante que a voz a alcançou, irada e fria... mas havia ternura também; a voz de Mikhail, senhor do Ninho dos Falcões, O MacAran.

— Romilly! — O tom era agressivo, mas compadecido. — Filha, o que pensa que está fazendo? Isso não é trabalho para uma donzela, domar um falcão verrin! Dei ordens ao miserável do Davin e ele fica estendido inerte na cama, enquanto um falcão é maltratado por uma criança e o outro, não duvido, morreu de fome...

Romilly mal podia falar através das lágrimas que ameaçavam se derramar e destruir seu controle.

— O outro falcão voa livre para gerar mais alguns de sua espécie. Eu o soltei ao amanhecer. E este não foi maltratado, Pai...

Às palavras e movimento, o falcão bateu as asas mais uma vez, ainda mais intensamente do que antes. Romilly ofegou, lutando para manter a noção de si mesma contra a fúria do esvoaçar, a fome, a ânsia de sangue, o frenesi para se desvencilhar, voar livre, lançar-se para a morte contra as vigas escuras que envolviam... mas logo se desvaneceu e Romilly, arrulhando para o pássaro, sentiu outra mente entrar em contato com a sua, enviando ondas de calma... então é assim que o Pai faz, ela pensou em uma parte remota de sua mente, enquanto ajeitava os cabelos caídos sobre os olhos e tornava a se aproximar do falcão.

Aqui está a carne, venha e coma... a náusea embrulhou seu estômago ao cheiro e visão da carne morta na luva. Isso mesmo, os falcões se alimentam de carne fresca, devem ser domados pela fome para se alimentarem de carniça...

Abruptamente, o contato das mentes, menina, homem, falcão, rompeu-se, e Mikhail de MacAran disse em tom ríspido:

— O que vou fazer com você, Romilly? Não tem que se meter aqui, na casa dos falcões; não é trabalho para uma dama. — A voz abrandou quando ele acrescentou: — Não tenho a menor dúvida de que foi Davin quem pôs essa idéia na sua cabeça. Terei uma conversa séria com ele. E agora largue essa carne e vamos embora, Romilly. Às vezes um falcão se alimenta de um bloco vazio quando está com bastante fome. Se isso acontecer, poderemos mantê-lo; se não, Davin poderá soltá-lo amanhã ou aquele menino dele fará alguma coisa para merecer seu sustento. A noite já está fechada para o falcão voar. Não vai morrer... e se morrer, não será o primeiro falcão que perdemos. Vamos entrar, Romilly, tome um banho e deite. Deixe os falcões para o mestre falcoeiro e seu aprendiz... é para isso que eles estão aqui, querida. Minha criança não precisa fazer isso. Vamos embora, Romi.

Ela engoliu em seco, sentindo as lágrimas aflorarem.

— Pai, por favor, tenho certeza de que posso domá-lo. Deixe-me ficar, eu suplico.

— Pelos infernos de Zandru! — praguejou O MacAran. — Ah, se ao menos um dos seus irmãos tivesse sua determinação e habilidade, menina! Mas não permitirei que se diga que minhas filhas devem trabalhar nas gaiolas e estábulos! Vamos entrar, Romilly, e não admito que diga mais nada!

A expressão era irada e implacável; o falcão tornou a bater as asas de raiva e Romilly sentiu que a invadia, também, uma explosão de fúria, frustração e terror. Largou a luva e correu, chorando de raiva; o pai saiu também e trancou a porta.

Romilly foi para seu quarto, onde esvaziou a bexiga dolorida, comeu um pedaço de pão e mel, tomou um copo de leite da bandeja levada por uma das servas; mas a mente ainda estava com o falcão aprisionado, sofredor e faminto na gaiola.

O falcão não comeria e muito em breve morreria. Já começara, apenas um pouquinho, a confiar em Romilly... sem dúvida, nas últimas duas ou três vezes em que esvoaçara, antes que o pai os interrompesse, acalmara-se mais depressa, sentindo seu contato tranquilizador. Mas agora, com certeza, morreria.

Romilly começou a tirar os sapatos. O MacAran não podia ser desobedecido, muito menos por sua filha. Até mesmo Ruyven, mais de um metro e oitenta e quase um homem, nunca ousara desobedecê-lo abertamente, até o rompimento final. Romilly, Darren, Mallina... todos obedeciam à sua palavra e raramente ousavam sequer um olhar de desafio; apenas o caçula, o mimado Rael, às vezes escarnecia e se esquivava das ordens do pai.

No quarto ao lado, além das portas de vidro que separavam os aposentos, Mallina já dormia em sua cama, o cabelo vermelho-claro e a camisola rendada se destacando contra o travesseiro. Dama Calinda há muito que fora para sua cama e a senhora Gwennis cochilava numa cadeira ao lado da adormecida Mallina. Embora não estivesse contente pela doença da irmã, Romilly sentia-se satisfeita pelo fato de a velha ama estar ocupada com sua irmã; se ela visse Romilly em seu atual estado — pesarosa, Romilly contemplou suas roupas sujas e encharcadas de suor —, haveria discussão, sermão, encrenca.

Estava exausta e pensava ansiosa em roupas limpas, um banho, sua cama macia. Fizera tudo o que podia para salvar o falcão. Talvez devesse abandonar o esforço. O falcão poderia se alimentar sozinho na gaiola; porém depois que o fizesse, embora não mais morresse, jamais poderia ser domado o suficiente para se alimentar da mão ou luva do falcoeiro, e teria de ser solto. Pois que partisse! E se em seu estado de exaustão e terror não fosse capaz de se alimentar sozinho e morresse... Ora, muitos pássaros já haviam morrido assim no Ninho dos Falcões!

Mas nunca algum com quem eu tenha entrado em contato tão profundo...

E mais uma vez, como se ainda estivesse de pé, exausta e tensa, na casa dos falcões, ela sentiu o furioso frenesi crescer... Mesmo amarrado na gaiola, o falcão, debatendo-se aterrorizado, podia quebrar as asas... nunca mais voar, permanecer estúpido e acabrunhado num poleiro ou morrer... como eu dentro de uma casa, usando roupas de mulher e aprendendo pontos de bordado...

E foi nesse instante que ela soube que não deixaria que acontecesse desse modo.

O pai, ela pensou friamente, ficaria muito zangado. Desta vez poderia até lhe aplicar a surra que ameaçara na última vez em que o desobedecera. Ele ainda não lhe encostara a mão uma única vez; a governanta batera nela uma ou duas vezes quando era bem pequena, mas a principal punição sempre fora o confinamento, ser proibida de andar a cavalo, privada de algum prazer prometido ou uma excursão.

Desta vez, com certeza, ele vai me bater, pensou Romilly, desesperando-se com a injustiça; serei espancada porque não posso me resignar a deixar o pobre coitado morrer ou se debater até a morte, aterrorizado...

Pois então serei espancada. Ninguém jamais morreu de uma surra, eu acho. Romilly já sabia que desafiaria o pai. Encolheu-se ao pensamento da ira paterna, ainda mais do que pelos golpes imaginários, mas sabia que nunca mais poderia encarar a si mesma se continuasse sentada calmamente em seu aposento e deixasse o falcão morrer.

Deveria ter soltado ambos ao amanhecer, como Davin mandara. Talvez merecesse uma surra por essa desobediência; mas depois de começar, seria cruel demais parar agora. Pelo menos, pensou Romilly, podia compreender por que estava sendo espancada; o falcão não entenderia os motivos para o longo sofrimento até que tudo acabasse. O próprio pai sempre lhe dissera que um bom treinador de animais jamais começava qualquer coisa, com gavião, cavalo ou cão, que não pudesse terminar; não era justo com uma criatura estúpida que nada sabia da razão.

Se faltarem com a palavra a um ser humano por algum motivo que lhes pareça bom, poderão pelo menos lhe explicar, o pai dissera a todos uma ocasião. Mas se faltarem com a palavra a uma criatura estúpida, magoarão essa criatura de maneira imperdoável, porque nunca a farão compreender. A fé é essencial. Nunca, em toda a sua vida, Romilly ouvira o pai falar de fé em qualquer religião ou falar de qualquer Deus, exceto numa imprecação; naquele dia, porém, mesmo enquanto ele falava, pudera sentir a extensão de sua crença e compreendera que as palavras saíam das profundezas de seu ser. Iria desobedecê-lo agora, é verdade; mas, num sentido mais profundo, estaria fazendo o que ele lhe ensinara a pensar que era correto; e assim, mesmo que a espancasse por isso, o pai saberia um dia que ela fizera o que era certo e necessário.

Romilly tomou outro gole de água — podia suportar a fome, se fosse preciso, mas a sede era uma verdadeira tortura; Davin geralmente mantinha um balde com água ao alcance quando trabalhava com um falcão. Romilly esquecera de providenciar um balde e uma caneca. Saiu do quarto sem fazer barulho. Com um pouco de sorte, o falcão "quebraria" antes do amanhecer — iria se alimentar da luva e dormiria.

Aquela interrupção poderia acarretar a perda do falcão — sabia que ele morreria se não se alimentasse em breve —, mas pelo menos teria certeza de que ela, que o confinara ali, não fora responsável pela quebra da fé e seu abandono à morte.

Já deixara o quarto quando se virou e voltou para buscar o acendedor de pederneira e aço; o pai, ou o aprendiz do mestre falcoeiro, sem dúvida, apagara a lanterna e precisaria reacendê-la. Gwennis, no aposento que se situava além das portas de vidro, remexeu-se e bocejou. Romilly ficou imóvel, mas a ama apenas se inclinou para sentir a testa de Mallina e verificar se a febre cedera, depois suspirou, recostou-se na cadeira, sem olhar na direção de Romilly.

Em silêncio ela desceu a escada.

Até os cachorros dormiam. Dois dos enormes cães de cor parda, conhecidos como Despertadores, estavam estendidos na frente da porta; não eram cães ferozes, não mordiam nem atacavam até mesmo a um intruso, a menos que ele fizesse menção de machucá-los, mas eram criaturas ruidosas, com latidos alegres e estrondosos e a função de despertar a casa para a presença de intruso ou amigo. Mas Romilly conhecia aqueles cachorros desde que haviam sido paridos, servira-lhes os primeiros alimentos sólidos depois que desmamaram; empurrou-os um pouco para longe da porta e os cachorros, sentindo a mão familiar e amada, apenas fungaram um pouco no sono e deixaram-na passar.

A luz na casa dos falcões fora de fato apagada. Ao passar pela porta, ela pensou numa balada antiga que a mãe lhe cantava na infância e se dizia como os pássaros, à noite, conversavam entre si, quando não havia nenhuma criatura humana por perto. Descobriu que andava na ponta dos pés, pretendendo ouvir a conversa dos falcões. Mas os pássaros nas gaiolas em que eram guardados os domados não passavam de vultos encurvados nos poleiros, profundamente adormecidos; sentiu deles apenas um silêncio confuso.

Será que são telepatas entre si, especulou Romilly, e tomam conhecimento da dor e angústia um do outro? Nem mesmo a leronis fora capaz de esclarecê-la nessa questão. Agora, ela refletiu, a maioria dos falcões estava mentalmente cega, sem percepção telepática ou laran, caso contrário todos estariam despertos e irrequietos naquele momento; pois Romilly ainda podia sentir, investindo contra ela em ondas de temor e fúria, fome e raiva, as emoções do enorme falcão verrin.

Ela acendeu a lanterna, as mãos trêmulas. O pai nunca acreditara que o falcão pudesse se alimentar sozinho na gaiola; afinal, ele sabia certamente que nenhum falcão se alimentava no escuro. Como ele fora capaz de fazer uma coisa dessas? Mesmo que estivesse zangado com ela, Romilly, não precisava privar o falcão de sua última oportunidade de viver.

Agora, era começar tudo de novo. Romilly viu a carne morta na gaiola; no mesmo lugar, intacta. O falcão não se alimentara. A carne começava a exalar um cheiro repugnante e Romilly teve de superar a repulsa ao pegá-la... se eu fosse um falcão, também não tocaria nesta carniça.

O falcão esvoaçou uma vez mais, irritado, e Romilly chegou mais perto, arrulhando, murmurando palavras tranquilizadoras. E depois de alguns segundos as asas se aquietaram. Seria possível que o falcão lembrasse dela? Talvez a interrupção não tivesse liquidado por completo suas chances. Ela enfiou a mão na luva, cortou outro pedaço de carne da carcaça e estendeu-a para o pássaro, mas de novo pareceu que a repulsa do cheiro fétido era ainda mais intensa do que antes.

Estaria sentindo então o que o falcão sentia? Por um momento, numa onda vertiginosa de náusea, Romilly fitou os grandes olhos amarelo-esverdeados do falcão e experimentou a sensação de que se encontrava em precário equilíbrio sobre algum espaço estreito, sem qualquer lugar apropriado para se apoiar, insólitas tiras de couro lhe prendendo os tornozelos, enquanto certa estranha e odiosa presença tentava forçá-la a engolir alguma coisa repulsiva, absolutamente imprópria para comer... por uma fração de segundo, ela era outra vez uma criança pequena demais para falar, amarrada em sua cadeira alta, a ama com uma colher empurrando alguma coisa horrível por sua garganta, só podia se debater e gritar...

Abalada e nauseada, Romilly recuou, deixando a carne repulsiva cair no chão. Era assim que o falcão a considerava? Deveria deixar o falcão voar, nunca poderia conviver com aquele ódio... todos os animais que domamos nos odeiam assim? Nesse caso, um treinador de cavalos e cães é ainda pior do que um molestador de crianças... e aquele que tira um falcão do céu e o prende numa gaiola não é melhor do que um estuprador, um violador de mulheres... Mas o falcão, debatendo-se, deixara seu poleiro naquele momento, e Romilly se aproximou, ajustando-o pacientemente para que o pássaro pudesse encontrar um lugar firme para se apoiar.

E depois ficou em silêncio, procurando não perturbar o falcão sequer com a respiração, enquanto a batalha prosseguia em sua mente. Parte de Romilly lutava com o falcão aprisionado, terror e raiva disputando a hegemonia; mas ela, em sua própria luta pela serenidade interior, povoou a mente com a lembrança da última vez em que caçara com seu falcão predileto... acompanhando-o pelo céu, atacando, alguma coisa em seu íntimo recordando com nitidez aquele sentimento súbito, que nela seria de orgulho e prazer, enquanto o falcão se alimentava de sua luva... e compreendeu que a sensação seria ainda mais forte se tivesse treinado o falcão pessoalmente; aquele prazer na realização, aquela sensação de repentina união com o pássaro, tudo seria ainda mais profundo.

E partilhara a delícia, indefinida, impossível de formular em palavras, mas uma alegria profunda e ampla, quando sua cadela predileta lhe trouxera os filhotes; o prazer do animal pela carícia que era similar ao que sentia por seu próprio pai, sua alegria e orgulho pelos elogios raros que ele concedia. E embora sentisse a dor real e o medo quando um potro lutara contra as rédeas e a sela, partilhara também a comunhão e a confiança entre cavalo e cavaleiro, conhecera também essa emoção como amor de verdade; e assim adorava o galope vertiginoso, com a certeza de que nenhum mal poderia lhe acontecer enquanto o cavalo a levasse, deixando que o animal assumisse seu próprio ritmo e prazer, dividindo a satisfação pela corrida...

Não, ela pensou, não é uma violação ensinar ou treinar um animal, tanto quanto não foi quando a ama me ensinou a comer mingau, embora eu achasse horrível a princípio e só quisesse leite; porque se ela continuasse a me alimentar com leite depois que meus dentes surgiram, eu ficaria doente e fraca, eu precisava de alimentos sólidos para ficar forte. Tive até de aprender a comer o que era bom para mim, até a usar roupas, embora sem dúvida preferisse ficar enrolada em lençóis como um bebé! E mais tarde tive de aprender a cortar minha carne com garfo e faca, em vez de pegá-la com os dedos e rasgar com os dentes, como faria um animal. E agora me sinto contente por saber todas essas coisas.

Quando o falcão tornou a esvoaçar, Romilly não bateu em retirada de medo e terror, mas participou, sussurrando em voz quase alta:

— Confie em mim, minha adorada, voará livre de novo e caçaremos juntas, você e eu, como amigas, não como ama e escrava, eu prometo...

Ela povoou a mente com imagens de um vôo em liberdade sobre as árvores, tentou abri-la às lembranças da última vez em que caçara; contemplando o falcão descendo em espiral com sua presa, abrindo a carne recém-morta para dar ao pássaro sua parte... e mais uma vez, com uma premência que a deixou nauseada, sentiu a fome enlouquecedora, a imagem mental do falcão atacando, sangue fresco correndo em sua boca... sua própria repulsa humana, a fome do falcão, tudo se misturando, a tal ponto que não sabe o que era o quê. Sentindo essa fome, estendeu o pedaço de carne do coelho de chifres, mas agora o cheiro a repugnou tanto quanto ao falcão; e teve a impressão de que ia vomitar.

Mas você deve comer e se tornar forte, preciosa, ela transmitiu o pensamento, muitas e muitas vezes, sentindo a fome do falcão, sua resistência enfraquecendo. Preciosa; esse é seu nome, é assim que a chamarei, quero que você coma e fique forte, Preciosa, a fim de podermos caçar juntas; mas primeiro você deve confiar em mim e comer... Quero que coma porque amo você e quero partilhar esse sentimento com você, mas primeiro deve aprender a comer de minha mão... coma, Preciosa, minha adorada, minha querida, minha beleza, não quer comer isto? Não quero que você morra...

As horas, ela sentiu, deviam ter se arrastado enquanto permanecia ali, tensa, na interminável luta com o falcão que enfraquecia. A cada vez o frenético esvoaçar se tornava mais frágil, as ondas de fome tão intensas que o corpo de Romilly se contraía de dor. Os olhos do falcão continuavam tão brilhantes quanto antes, cheios de terror; tudo o que projetavam agora envolvia Romilly em crescente desespero.

O falcão estava enfraquecendo, sem dúvida; se não se alimentasse logo, depois de tanta luta, acabaria morrendo; não ingeria qualquer alimento desde que fora capturado, há quatro dias. Morreria ainda lutando?

Talvez seu pai estivesse certo, talvez nenhuma mulher tivesse força para aquilo...

E foi então que se lembrou do momento em que olhara pelos olhos do falcão e ela, Romilly MacAran, não fora sequer uma lembrança, outra coisa além de humana. O medo e o desespero a dominaram; viu-se arrancando a luva, derrotada, assumindo o bordado, deixando que as paredes se fechassem ao seu redor para sempre. Uma prisioneira, mais prisioneira do que o falcão engaiolado, que pelo menos teria de vez em quando uma oportunidade de voar, sentir outra vez o indescritível êxtase do vôo e da liberdade...

Não. Para não viver assim, prisioneira, ela também se deixaria morrer...

Não, tinha de haver um meio, se ao menos pudesse descobri-lo! Não se renderia, nunca admitiria que o falcão a vencera. Era Romilly MacAran, nascida com o Dom MacAran, era mais forte do que qualquer falcão. Não deixaria o falcão morrer... não, não era mais "o falcão", a quem amava, lutaria por sua vida mesmo que tivesse de ficar ali até caírem juntos e morrerem. Mais uma vez ela se projetou, entrando destemida na mente do pássaro, agora plenamente consciente de si mesma como uma tortura furtiva e agora familiar na mente de Preciosa, enquanto o repulsivo cheiro da carne na luva... por um momento, ela pensou que Preciosa se lançaria em outro ataque de esvoaçar, mas desta vez o pássaro inclinou a cabeça na direção da carne na luva.

Romilly prendeu a respiração. Isso, isso, coma e fique forte... e depois Romilly foi dominada pela náusea, a sensação que vomitaria ali pelo pútrido cheiro da carne.

Agora ela quer comer, está disposta a confiar em mim, mas não é capaz de comer isso; talvez se tivesse aceitado antes de ficar tão fraca, mas não agora... não é devoradora de carniça...

Romilly foi invadida pelo desespero. Trouxera o alimento mais fresco que conseguira encontrar na cozinha, mas agora não estava bastante fresco; o falcão começava a confiar nela, poderia até aceitar o alimento de sua luva, se tivesse trazido alguma coisa que ele pudesse engolir sem náusea... um camundongo correu pela palha e ela descobriu que observava através dos olhos do pássaro com intensa fome para o animalzinho...

Amanhecia. No jardim lá fora soou o canto sonolento de um pássaro-fantasma e nos galpões arrulharam os pombos engaiolados, que às vezes eram assados para convidados especiais ou para os doentes. Antes mesmo que o pensamento se definisse, ela já estava em movimento e lá no fundo ouviu sua voz dizer: O guardião das aves comestíveis ficará furioso comigo, não posso tocar nos pombos sem permissão. Mas a fome que martelava sua mente, a mente-ave, não podia ser negada. Romilly jogou o pedaço de carne de coelho de chifre no monturo; apodreceria ali, algum comedor de carniça o encontraria ou um dos cachorros menos exigentes com sua alimentação. Houve uma agitação quando ela enfiou a mão na gaiola dos pombos, um bater de asas e guinchos no instante em que pegou um; seu medo encheu-a com uma sensação que era um misto de dor e de excitamento, a adrenalina percorrendo o corpo e provocando cãibras nas pernas e nas nádegas, com o temor familiar; mas Romilly fora criada em fazenda e não era dengosa; os pombos eram para a panela, em troca de pombais seguros e grãos por toda a vida. Ela segurou o pombo que se debatia por um breve instante de pesar, entre as mãos, depois deu um jeito para mantê-lo com uma das mãos apenas, enquanto enfiava a outra na luva. Penetrou na mente-falcão, sem palavras, uma rápida e intensa percepção de fome e carne fresca... e depois, com um movimento decisivo, torceu o pescoço do pombo e estendeu o corpo ainda quente para Preciosa.

Por um instante, mais uma vez, pareceu que o pássaro estava prestes a explodir numa última convulsão, Romilly sentiu a vertigem do fracasso... mas agora o falcão inclinou a cabeça e, com um impulso tão rápido que Romilly não pôde acompanhar com os olhos, golpeou com o bico, o impacto tão grande que ela chegou a cambalear. O sangue esguichou; o falcão bicou mais uma vez e começou a comer.

Romilly soluçou alto, em meio ao êxtase intenso da força que a inundava, enquanto sentia o pássaro rasgar, engolir, rasgar de novo a carne fresca.

— Ah, minha linda... — ela sussurrou. — Minha querida, minha preciosa!

Depois que o falcão se alimentou... Romilly sentira o arrefecimento da fome e até mesmo sua sede ceder... ela tornou a ajeitá-lo no poleiro. Colocou um capuz na cabeça de Preciosa. Dormiria agora e despertaria lembrando de onde viera sua comida. Devia deixar ordens para que os alimentos daquele falcão fossem sempre frescos; providenciaria passarinhos e ratos recém-mortos, até que Preciosa pudesse caçar sozinha. Não levaria muito tempo. Era um pássaro inteligente ou não teria lutado tanto tempo; Romilly, ainda mantendo um ligeiro vínculo com o falcão, compreendeu que Preciosa agora a reconheceria como a fonte de alimentação e que um dia caçariam juntas.

Tinha a sensação de que o braço cairia a qualquer momento; tirou a pesada luva e limpou a testa com o braço suado. Podia divisar a claridade lá fora; passara a noite inteira na casa dos falcões. E ao perceber a claridade — dali a pouco a casa estaria despertando —, também divisou o pai e Davin, parados na porta.

— Ama Romilly! — disse Davin, chocado e preocupado. — Ficou aqui a noite inteira?

As têmporas do pai latejavam de raiva.

— Menina insuportável, eu mandei que voltasse para casa! Pensa que vou permitir que me desafie desse jeito? Saia daí e deixe o falcão...

— O falcão se alimentou — interrompeu-o Romilly. — Salvei-o para você. Isso não significa nada?

E, depois, toda sua fúria tornou a invadi-la, explodiu como um esvoaçar frenético:

— Pode me bater se quiser... se é mais importante para você que eu me comporte como uma dama e deixe um inofensivo pássaro morrer! Se isso é ser uma dama, então espero nunca me tornar uma! Tenho o laran... — Em sua fúria, ela usou a palavra sem pensar. — ... e não creio que os deuses cometam erros; só pode significar que estou destinada a usá-lo! Não é minha culpa que eu tenha o dom MacAran quando meu irmão não tem. Foi-me concedido e agora eu não podia ficar de braços cruzados e deixar Preciosa morrer...

Ela parou, reprimindo os soluços que ameaçavam sufocar completamente sua voz.

— Ela tem razão, senhor — disse o velho Davin, lentamente. — Não é a primeira dama de MacAran a ter o dom e, os deuses querendo, não será a última.

O MacAran tinha uma expressão furiosa; mas aproximou-se, pegou uma pena e afagou suavemente o peito do falcão que cochilava.

— Um lindo pássaro — ele murmurou finalmente. — Como foi mesmo que o chamou? Preciosa? Um bom nome também. Fez muito bem, filha.

Ele teve de arrancar o elogio de suas entranhas, relutante; depois, amarrou a cara e foi como o fluxo de fúria que se irradiara do falcão.

— E agora vá para casa, tome um banho e vista roupas limpas... não permito que continue imunda como uma rapariga dos estábulos! Vá logo chamar sua criada e não me deixe tornar a vê-la além da porta de casa!

E quando passou pelo pai, Romilly pôde sentir o golpe que ele se preparava para lhe aplicar. Mas O MacAran se conteve... não podia agredi-la e, afinal, ela salvara a vida do falcão. Mas, em sua raiva de frustração, ele gritou a plenos pulmões, enquanto a filha se afastava:

— Isso ainda não acabou, Romilly!

 

Romilly olhava pela janela, a cabeça entre as mãos. O enorme sol vermelho descia do meio-dia; duas das pequenas luas sobressaíam no céu, pálidos reflexos na claridade do dia, a linha distante das Colinas Kilghard atraía sua mente para o alto, com as nuvens e os pássaros voando. Uma página de somas concluídas, posta de lado, estava à sua frente na mesa de madeira, assim como uma página ainda úmida de máximas impecavelmente copiadas do Livro dos Fardos cristoforo; mas ela não as via e também não ouvia a voz da governanta, Calinda, que censurava Mallina por suas páginas bastante borradas.

Esta tarde, depois de cuidar de Preciosa, mandarei selar Ventania e a levarei à minha frente na sela, afim de acostumá-la ao cheiro e ao movimento do cavalo. Ficará encapuzada, pois não posso ainda confiar o suficiente para deixá-la voar livre, mas não vai demorar muito...

No outro lado da sala o irmão Rael arrastou os pés ruidosamente e Calinda censurou-o com um vigoroso meneio de cabeça. Rael, pensou Romilly, estava ainda mais mimado agora — estivera gravemente doente e aquele era seu primeiro dia de volta à sala de aula. O silêncio envolveu as crianças, rompido apenas pelo barulhento ranger da pena de Mallina e pelo suave som das agulhas de tricô de Calinda; ela fazia um colete de lã para Rael, e quando ficasse pronto, pensou Romilly, não sem malícia, só restaria o problema de convencer o menino a usá-lo!

Os olhos vidrados numa sonolência de absoluto tédio, Romilly continuou a olhar pela janela, até que o sossego foi interrompido por uma reclamação de Mallina.

— Pena desgraçada! Derrama manchas como nozes no outono! Agora borrei outra folha!

— Fique quieta, Mallina — disse a governanta, em tom severo. — Romilly, leia para sua irmã a última máxima que mandei você copiar do Livro dos Fardos.

Suspirando, chamada de volta à sala de aula contra sua vontade, Romilly leu em voz alta, contrariada:

— Um mau trabalhador culpa apenas a ferramenta em sua mão.

— Não é culpa da pena se você não consegue escrever sem fazer borrões — acrescentou Calinda, aproximando-se para guiar a pena na mão de sua pupila. — Mantenha sua mão assim...

— Meus dedos doem! — protestou Mallina. — E por que tenho de aprender a escrever, estragando os olhos e deixando as mãos doídas? Nenhuma das filhas dos Altos Penhascos sabe escrever ou mesmo ler e não são piores por isso; já estão comprometidas e não lhes faz falta alguma!

— Devia se considerar afortunada — disse a governanta, sempre rigorosa. — Seu pai não quer que as filhas cresçam na ignorância, capazes apenas de costurar, fiar e bordar, sem sequer aprenderem a escrever "Conserva de maçã e noz" em seus potes na época da colheita! Quando eu era menina, tive de lutar muito para aprender pelo menos isso! Seu pai é um homem de bom senso, que sabe que as filhas precisarão aprender tanto quanto os filhos! Por isso, continuará sentada aí até encher outra folha sem um único borrão. Romilly, deixe-me ver seu trabalho. Está ótimo. Enquanto eu confiro as somas, quer ouvir seu irmão ler do livro?

Romilly levantou-se com entusiasmo para se juntar a Rael; qualquer coisa era melhor do que ficar sentada, imóvel, em sua carteira! Calinda começou a guiar a mão de Mallina com a pena e Rael encostou-se no ombro de Romilly; ela deu um abraço sub-reptício no menino e depois apontou um dedo, conscienciosa, para a primeira linha da cartilha. Era muito antiga; Romilly aprendera a ler naquele mesmo livro e tinha a impressão de que o mesmo acontecera com Ruyven e Darren antes — o livro fora feito e costurado por sua própria avó, quando seu pai aprendera a ler; e escrito na frente, em grandes letras, lá estava Mikhail MacAran, seu próprio livro. A tinta começava a esmaecer um pouco, mas ainda era perfeitamente legível.

— O cavalo está no estábulo — soletrou Rael, devagar. — O pombo está no ninho. O pássaro no ar. A árvore está na floresta. O barco está na água. A noz está na árvore. O menino está... - Ele franziu o rosto à palavra e adivinhou: — No celeiro?

Romilly riu baixinho.

— Tenho certeza que ele gostaria de estar lá, tanto quanto você — ela sussurrou. — Mas não é isso, Rael, Olhe bem. Qual é a primeira letra? Vamos, leia direito...

— O menino está na cozinha — Rael leu, taciturno. — O pão está... na panela?

— Está adivinhando outra vez, Rael. Olhe para as letras. Sabe direitinho.

— O pão está no forno.

— Isso mesmo. E agora vamos à página seguinte.

— A cozinheira assa o pão. O lavrador... — Ele hesitou, mexendo os lábios, o rosto contraído. — Colhe?

— Está certo. Continue.

— O lavrador colhe as nozes. O soldado monta o cavalo. O cavalariço põe a sela no cavalo. Romy, quando poderei ler alguma coisa que faça sentido?

Romilly tornou a rir.

— Quando souber suas letras um pouco melhor. Deixe-me ver seu caderno de caligrafia. Muito bem, copiou tudo, mas repare só como as letras estão esparramadas pelas linhas, como patos bamboleando, quando deviam marchar em formação impecável como soldados... está vendo onde Calinda riscou a linha para você? — Ela largou a cartilha. — Mas direi a Calinda que já sabe a lição, está bem?

— Então talvez a gente possa ir aos estábulos — sussurrou Rael. — Romy, o pai bateu em você por domar o falcão? Ouvi a mãe dizer que ele ia dar uma surra em você.

Não duvido nada, pensou Romilly; mas a Dama Luciella era a mãe de Rael e não falaria mal dela para o menino. Além do mais, Luciella sempre a tratara bem.

— Não, não levei uma surra; o pai disse que eu merecia... mas ele teria perdido o falcão se não fosse por mim, e os verrin são muito raros e caros. E este estava quase morrendo de fome...

— Como conseguiu? Também poderei domar um falcão algum dia? Ficaria com medo, eles são tão ferozes...

Mas ele alteara a voz e Calinda fitou-os, franzindo o rosto.

— Rael, Romilly, estão cuidando da lição?

— Não, mestra — respondeu Romilly, polidamente. — Ele já acabou, leu as duas páginas da cartilha só com um erro. Podemos ir agora?

— Sabem que não devem sussurrar e conversar quando estão estudando — disse a governanta, mas ela também parecia cansada. — Rael, traga-me sua folha de caligrafia. Ora, mas isso está uma vergonha! As letras estão derramadas por toda a página! Um menino crescido como você deve escrever melhor! Sente-se e pegue sua pena!

— Não quero mais! — protestou Rael. — Minha cabeça está doendo!

— Se sua cabeça dói, direi à sua mãe que ainda não está bom para passear a cavalo depois da aula.

Calinda dissimulou o sorriso que aflorou a seus lábios e Rael sentou, mais aborrecido do que nunca, empunhou a pena e começou a escrever outra série de letras tortas pela linha, a língua se projetando por entre os dentes, a cara amarrada por cima da folha.

— Mallina, vá lavar a tinta de seus dedos. Romilly, traga seu bordado e pegue também o de Mallina.

Depois de dar as ordens, a governanta inclinou-se sobre a carteira de Rael. Romilly, o rosto contraído, foi até o armário, pegou sua cesta e a da irmã. Até que era bem rápida e eficiente com a pena, ela pensou, irritada, mas ponham uma agulha na minha mão e parece que tenho cascos em vez de dedos!

— Vou ensinar mais uma vez como se deve fazer esse ponto de nó — disse Calinda.

Ela pegou o linho encardido e amarrotado e tentou alisá-lo, enquanto Romilly espetava um dedo com a agulha e gritava como um cachorrinho.

— Isso é uma vergonha, Romilly. Acho que até Rael poderia fazer melhor, se tentasse.

— Então por que não deixa Rael fazer?

— Mas que coisa horrível, uma menina crescida, quase quinze anos, idade suficiente para casar! — Calinda olhou por cima do ombro de Rael. — Mas o que escreveu aqui?

Sobressaltada pelo tom da governanta, Romilly também olhou por cima do ombro do irmão caçula. Em letras irregulares, ele escrevera: Eu gostaria que meu irmão Ruyven voltasse para casa.

— É a verdade — murmurou Rael, piscando os olhos com força e comprimindo os punhos contra eles.

— Rasgue isso depressa! — ordenou Calinda, pegando o papel e fazendo o que dissera. — Se seu pai visse... Sabe muito bem que ele ordenou que o nome de seu irmão nunca mais fosse mencionado nesta casa!

— Não mencionei, apenas escrevi — protestou Rael, furioso. — E ele é meu irmão e falarei seu nome se quiser! Ruyven, Ruyven, Ruyven... pronto!

— Cale-se, Rael, cale-se! Todos nós...

Calinda parou de falar abruptamente, pensando melhor no que começara a dizer. Mas Romilly ouviu com novos sentidos, tão claramente como se Calinda tivesse concluído a frase: Todos nós sentimos saudade de Ruyven. Mais gentilmente, Calinda acrescentou:

— Pode guardar seu livro e sair para a aula de montaria, Rael.

Rael bateu com a cartilha na carteira e correu para a porta. Romilly observou o irmão com a maior inveja e depois olhou contrariada para o bordado amarrotado em suas mãos. Calinda ficou em silêncio por algum tempo, acabou suspirando e comentando:

— E difícil para uma criança compreender. Seu irmão Darren estará em casa no Solstício do Verão e fico contente por isso... acho que Rael precisa do irmão. Observe meus dedos, Romilly... passe o fio assim, três vezes em torno da agulha, depois puxe... veja, pode fazer direito quando quer.

— Um ponto de nó é fácil — disse Mallina, complacente, levantando os olhos de seus painel de linho engomado, onde uma flor brilhante desabrochava sob a agulha.

— Não se envergonha, Romilly? Mallina já bordou uma dúzia de capas de almofadas para seu enxoval e agora está trabalhando nos lençóis para as núpcias...

— Para que preciso de capas de almofadas bordadas? — reagiu Romilly, acuada. — Uma almofada é para sentar, não para exibir um bordado bonito. E se tiver um marido, espero que ele fique olhando para mim e não para flores bordadas nos lençóis!

Mallina soltou uma risadinha e corou; Calinda disse:

— Que coisa mais horrível para dizer, Romilly! — Mas ela estava sorrindo. — Quando tiver sua própria casa, tenho certeza de que se orgulhará de coisas bonitas para adorná-la.

Duvido muito, pensou Romilly, mas mesmo assim pegou o bordado, resignada, e enfiou a agulha. Mallina inclinou-se sobre a colcha que fazia, com delicadas aplicações de flores brancas sobre um fundo azul, e começou a fazer pequenos pontos junto da armação.

É mesmo bonito, pensou Romilly, mas por que dar tanta importância a isso? Uma colcha simples também a manteria aquecida à noite, até mesmo uma manta de cavalo. Não se incomodaria se pudesse fazer alguma coisa prática, como um manto para cavalgar ou um capuz de falcão mas detestava aquelas flores estúpidas, cuja única utilidade era mostrar um bordado bonito. Contrariada, debruçou-se sobre o trabalho, agarrando a agulha sem muito jeito, enquanto a governanta conferia as somas que fizera naquela manhã.

— Já foi além dos meus ensinamentos nisso, Romilly — disse a governanta finalmente. — Falarei com Dom Mikhail e perguntarei se o intendente pode lhe dar aulas de organização dos livros de contas. Seria uma pena desperdiçar uma inteligência tão grande quanto a sua.

— Aulas do intendente? — disse uma voz da porta. — Bobagem, mestra; Romilly está velha demais para receber aulas de um homem, seria escandaloso. E para que uma dama precisa saber de livros de contas?

Romilly desviou os olhos do emaranhado de fios para deparar com a madrasta Luciella, que entrava na sala.

— Se eu soubesse cuidar de minhas contas, mãe adotiva, nunca precisaria ter medo de ser enganada por um intendente desonesto.

Luciella sorriu gentilmente. Era baixa e roliça, os cabelos encrespados com todo cuidado, tão meticulosamente vestida como se estivesse prestes a receber a rainha para uma festa.

— Acho que podemos arrumar um marido bastante bom para cuidar de tudo isso para você, filha adotiva. — Ela inclinou-se para beijar Mallina no rosto, afagou a cabeça de Romilly. — Rael já foi para a aula de montaria? Espero que o sol não esteja forte demais para ele, ainda não se recuperou completamente.

Luciella contraiu o rosto para os fios emaranhados e a linha irregular de pontos coloridos.

— Oh, não, isso nunca ficará direito! Dê-me essa agulha, criança. Segura-a como se fosse uma rascadeira. Preste atenção, deve segurar assim. Está vendo? E agora o ponto sai perfeito... não é mais fácil quando segura assim?

Relutante, Romilly acedeu com a cabeça. Domna Luciella sempre a tratara com toda gentileza; apenas não podia imaginar por que Romilly não era exatamente como Mallina ou mesmo ainda mais, por ser mais velha.

— Quero ver você fazer outro ponto da maneira como ensinei — acrescentou Luciella. — Está muito melhor, minha cara. Eu sabia que podia fazer, é muito hábil com os dedos... sua caligrafia é muito melhor que a de Mallina, só que não quer tentar. Calinda, vim lhe pedir para dar um dia de folga às crianças... Rael já foi para os estábulos? Não tem problema... só preciso das meninas. Quero que experimentem os novos trajes de montaria; devem estar prontos quando nossos hóspedes chegarem, no Solstício do Verão.

Como era de se esperar, Mallina soltou um gemido.

— Terei mesmo um novo traje de montaria, mãe adotiva? De que cor é? Será de veludo, como o de uma dama?

— Não, minha cara, o seu é feito de gabardine, para usar bastante e ser ajustado à medida que você cresce.

Mallina resmungou.

— Já estou cansada de usar vestidos deselegantes nas costuras, para que possam ser aumentados meia dúzia de vezes enquanto cresço. O pano fica desbotado e todo mundo pode ver onde a bainha foi abaixada...

— Pois então trate de se apressar e termine logo de crescer — disse Luciella, gentilmente. — Não há sentido em fazer um vestido para sua medida quando ficará apertado com seis meses de uso e nem mesmo tem uma irmã menor para passar adiante.

Uma pausa e ela acrescentou, sorrindo:

— Tem sorte por ganhar um vestido novo. Deveria usar as roupas velhas de Romilly, mas todos sabemos que Romilly gasta tanto seus trajes de montaria que não sobra muita coisa depois de meio ano... mal dá para passá-lo à leiteira.

— É que eu ando a cavalo de verdade — protestou Romilly —, não fico sentada no lombo dele a sorrir afetada para o cavalariço!

— Desgraçada! — sussurrou Mallina, dando um chute furtivo na canela da irmã. — Bem que sorriria e muito depressa se ele olhasse para você, mas ninguém jamais olha... não passa de um cabo de vassoura metido num vestido!

— E você é uma gorda porca! — reagiu Romilly. — Não poderia mesmo usar meus vestidos velhos, porque é gorda demais por causa dos bolos de mel que devora sempre que dá um jeito de se esgueirar até a cozinha!

— Meninas! Meninas! — suplicou Luciella. — Devem sempre discutir assim? Vim pedir uma folga para vocês... preferem passar o dia inteiro sentadas na sala de aula, fazendo bainhas em toalhas de prato?

— Não, mãe adotiva, não quero — Romilly apressou-se em dizer. — Desculpe.

E Mallina acrescentou, mal-humorada:

— Devo deixar que ela me insulte?

— Não, mas também não deve insultá-la em resposta. — Luciella suspirou. — Vamos logo, as costureiras estão esperando.

— Precisa de mim, vai domna? — perguntou Calinda.

— Não, mestra, pode ir descansar... tenho certeza de que precisa, depois de uma manhã com minha prole. Mas primeiro mande o cavalariço procurar Rael. Ele precisa experimentar o casaco novo hoje, mas posso esperar até que termine a aula de montaria.

Romilly ficou apreensiva, enquanto seguia a madrasta para onde as costureiras trabalhavam, uma sala clara e arejada, com janelas amplas, plantas verdejantes à luz do sol; não flores, pois Luciella era uma mulher prática, mas vasos com ervas de cozinha e medicinais, que exalavam um suave perfume. O gosto de Luciella tendia para folhos e babados; por algumas discussões acaloradas à época em que era pequena, Romilly temia que os trajes de montaria encomendados pela madrasta fossem num estilo repulsivamente enfeitado. Mas quando viu o veludo verde-escuro, cortado habilmente para acentuar sua silhueta, mas com absoluta simplicidade, sem nenhum adorno além de uma faixa branca no pescoço, todo o traje combinando com o verde de seus olhos e ressaltando o brilho dos cabelos avermelhados, ela corou de satisfação.

— É lindo, mãe adotiva! — murmurou Romilly, permanecendo tão imóvel quanto podia, enquanto as costureiras ajustavam o traje em seu corpo com alfinetes. — E está quase perfeito para mim!

— Vai precisar de um bom traje para cavalgar e caçar quando o pessoal dos Penhascos Altos chegar para o Festival do Solstício do Verão — disse Luciella. — Precisamos mostrar como você monta bem, embora eu ache que precise de um cavalo mais apropriado para uma dama do que o velho Ventania. Já conversei com Mikhail sobre um bom cavalo para você... não treinou um pessoalmente?

A exclamação de alegria de Romilly fez a madrasta sorrir. Tivera permissão para ajudar o pai a treinar três dos excelentes cavalos pretos das propriedades Lanart, e todos estavam incluídos entre os melhores animais dos estábulos do Ninho dos Falcões. Se o pai concordasse em lhe dar um daqueles cavalos... ela pensou com um prazer intenso em correr pelas colinas num dos fogosos cavalos pretos, com Preciosa no braço; e deu um abraço espontâneo em Luciella, surpreendendo a mulher mais idosa.

— Oh, obrigada, mãe adotiva, muito obrigada!

— É um prazer ver você parecendo tanto com uma dama — comentou Luciella, sorrindo à bela imagem de Romilly com o traje verde. — Tire agora, minha cara, para que possa ser costurado.

Virando-se para a costureira que ajustava o traje de Mallina sobre os seios jovens e fartos, ela acrescentou:

— Não, Dará, assim não dá. A túnica não pode ficar tão justa aí, não é próprio para uma moça tão jovem.

Mallina não gostou.

— Por que todas as minhas roupas precisam ser cortadas como uma túnica de criança? Já tenho corpo de mulher mais do que Romilly!

— E tem mesmo — concordou Romilly. — Se seus peitos continuarem a crescer, ainda mais, pode ser contratada como ama-de-leite.

Ela olhou com uma expressão crítica para o corpo estufado de Mallina, que reagiu no mesmo instante:

— Um traje de mulher é um desperdício em você! Podia usar um dos velhos culotes de Darren! Prefere andar por aí parecendo um cavalariço, em roupas de couro de homem, como se fosse da Irmandade da Espada...

— Calma, calma — interveio Luciella, apaziguadora. — Parem com isso. Não deve escarnecer do corpo de sua irmã, Romilly, ela está crescendo mais depressa do que você, só isso. E você também não deve falar assim, Mallina; Romilly já é crescida agora e seu pai deu ordens rigorosas para que ela não continue a montar de botas e culote, mas use um traje de dama apropriado e uma sela feminina no Solstício do Verão, quando o pessoal dos Penhascos Altos estará aqui para as festas e caçadas, talvez Aldaran de Scathfell com os filhos e filhas e algumas pessoas dos Picos Storn.

Mallina soltou um grito de alegria, pois as filhas gêmeas de Scathfell eram suas amigas íntimas e durante o inverno as nevascas intensas haviam separado o Ninho dos Falcões de Scathfell e dos Penhascos Altos. Romilly não demonstrou a mesma satisfação; Jessamy e Jeralda tinham mais ou menos sua idade, mas eram como Mallina, gorduchas e moles, uma agressão a qualquer cavalo que as carregava, muito mais preocupadas com a elegância dos trajes de montaria e ornamentos da sela e das rédeas do que com o bem-estar dos animais que montavam, ou sua habilidade na equitação. O filho mais velho dos Penhascos Altos era quase da idade de Ruyven, e fora seu maior amigo; tratava Romilly e até mesmo Darren como crianças tolas. E as pessoas de Storn já eram adultas, quase todos casados, alguns com filhos.

Mas talvez ela tivesse uma oportunidade de cavalgar com o pai e com Darren, que viria de Nevarsin, poderia lançar Preciosa em vôo; não seria tão ruim assim, mesmo que, enquanto os hóspedes ali permanecessem, tivesse de usar um traje de montaria de uma dama e uma sela feminina, em vez das botas e culote, mais apropriados para a caça; afinal os hóspedes só ficariam uns poucos dias, e depois ela voltaria a usar as roupas de homem para montar; estava disposta a se apresentar da maneira apropriada para satisfazer os hóspedes. Aprendera a se conduzir corretamente em saia de montaria e sela feminina, pois sabia que isso agradava à madrasta.

Cantarolava para si mesma quando voltou ao seu quarto para trocar de roupa. Talvez levasse Rael quando saísse em Ventania para exercitar Preciosa, com a linha comprida em torno de sua cabeça, na qual estavam amarrados pedaços de carne e penas, como era usado no treinamento de falcões. Mas quando procurou atrás da porta pelas velhas botas e culote que sempre usava para montar — haviam pertencido a Ruyven —, nada encontrou.

Bateu palmas para chamar a criada que esperava no quarto das crianças, mas foi a velha Gwennis quem apareceu.

— O que aconteceu? Onde está meu culote?

— Seu pai deu ordens expressas — respondeu Gwennis. — A Dama Luciella mandou jogar fora... nem servem para um aprendiz de mestre falcoeiro agora, aquelas coisas velhas. Seu novo traje está sendo aprontado e pode usar o antigo enquanto espera, minha menina.

Ela apontou para a túnica e a saia de montaria estendidas na cama de Romilly, antes de acrescentar:

— Aqui está, minha cordeirinha. Vou ajudá-la a vestir.

— Você jogou fora? — explodiu Romilly. — Como se atreveu?

— Ora, meu amorzinho, não fale assim. Temos que fazer tudo o que Dama Luciella manda, não é mesmo? Aquele traje ainda fica muito bem em você, apesar de estar um pouco apertado na cintura... mas alarguei ontem, depois que Dama Luciella me falou.

— Não posso montar em Ventania com isso! — Romilly pegou a saia horrorosa e atirou-a no outro lado do quarto. — Ele não está acostumado a uma sela feminina e eu detesto! Além do mais, não temos nenhum hóspede por aqui! Vá me buscar um culote!

Mas Gwennis sacudiu a cabeça firmemente.

— Não posso fazer isso, querida. Seu pai deu ordens, não pode mais montar de culote. E já não é sem tempo. Fará quinze anos dez dias antes do Solstício, precisamos pensar agora em casá-la. E que homem gostaria de casar com uma jovem que corre por aí de culote, como se fosse uma daquelas ordinárias que acompanham os exércitos ou uma das mulheres escandalosas da Irmandade, que estão sempre com uma espada e têm as orelhas furadas? Devia se envergonhar, Romy. Uma moça crescida como você, fugindo para a casa dos gaviões e passando a noite inteira lá... já está na hora de se tornar uma dama! E agora ponha logo essa saia de montaria, se quer sair com seu cavalo, não vamos mais discutir essas bobagens.

Romilly olhou horrorizada para a saia. Então era aquela a punição que o pai lhe aplicava! Pior, muito pior do que uma surra; e ela sabia que não haveria apelação das ordens do pai.

Eu preferia que ele tivesse me dado uma surra. Pelo menos estaria tratando comigo diretamente, com Romilly, com uma pessoa. Mas me entregar a Luciella, deixar que ela me transforme na sua imagem de dama...

— É um insulto para um bom cavalo! — protestou Romilly. — Não farei isso!

Ela desferiu um pontapé furioso no desagradável traje caído no chão.

— Pois não precisa fazer, minha querida, pode ficar dentro de casa como uma dama, sem sair em seu cavalo — sugeriu Gwennis, complacente. — Já passa tempo demais nos estábulos, chegou o momento de permanecer mais em casa, deixar os falcões e cavalos para seus irmãos, como deve ser.

Consternada, Romilly engoliu em seco para desfazer um nó na garganta, olhou do traje no chão para a babá radiante.

— Eu devia esperar por isso de Luciella — ela murmurou. — Luciella me odeia, não é mesmo? É o tipo de coisa vingativa que Mallina faria só porque não é capaz de montar um cavalo decente. Mas nunca pensei que se uniria a elas contra mim!

— Não deve falar assim — protestou Gwennis, sacudindo a cabeça, pesarosa. — Como pode dizer essas coisas contra sua madrasta tão boa? Posso lhe garantir que não são muitas as madrastas tão boas com filhas crescidas quanto Dama Luciella é com você e Mallina, vestindo-as com as roupas mais elegantes quando ambas são mais bonitas do que ela, sabendo que Darren será o dono do Ninho dos Falcões e seu próprio filho apenas o caçula, não muito melhor que um nedestro. Sua própria mãe já a teria proibido de usar culotes há três anos, jamais a deixaria andar por aí desse jeito durante tanto tempo! Como pode dizer que ela a odeia?

Romilly baixou os olhos para o chão, os olhos ardendo. Era verdade, ninguém poderia ter sido mais gentil com ela do que Luciella. Seria muito mais fácil se Luciella tivesse demonstrado alguma vez um pouco de grosseria, por menor que fosse. Eu poderia lutar, se ela fosse cruel comigo. Mas o que posso fazer agora?

E Preciosa estaria à sua espera; Gwennis pensava mesmo que ela deixaria seu falcão aos cuidados de um aprendiz ou até do próprio Davin? As mãos tremiam de fúria quando ela pegou o traje detestado, a gabardine azul puída, e apesar das alterações feitas por Gwennis, ainda muito apertado na cintura, de tal forma que os cordões esticavam sobre a túnica. Mas era melhor montar de saia do que não montar, ela concluiu; contudo, se pensavam que estava derrotada, então se enganavam redondamente!

Será que ela vai me reconhecer neste traje horrível de mulher?

Furiosa, Romilly encaminhou-se para os estábulos e para a casa dos falcões, tropeçando uma ou duas vezes na saia incômoda, diminuindo os passos pela força de vontade para parecer uma dama. Então Luciella queria suborná-la com um lindo traje, a fim de atenuar o golpe? Era típico de uma mulher, aquele truque tolo e insidioso, sem lhe dizer expressamente que deveria esquecer os culotes!

Entrando na casa dos falcões, pôs a velha luva e foi levantar Preciosa em seu braço. Com a mão livre, afagou o peito do falcão com a pena deixada ali para esse propósito — o contato de uma mão nas penas do falcão afetaria a plumagem. Preciosa sentiu sua agitação e mexeu-se irrequieta no pulso. Romilly fez um esforço para se acalmar. Baixando a pena, ela fez sinal para o menino Ker.

— Tem carne fresca para Preciosa?

— Tenho, sim, damisela. Acabei de matar um pombo para a mesa e guardei as entranhas para ela. Tirei-as do pombo há menos de dez minutos.

Romilly farejou desconfiada a carne fresca e depois prendeu-a na isca. Sentindo o cheiro de comida, Preciosa agitou-se, irrequieta, bateu as asas. Romilly falou-lhe suavemente, depois saiu para o pátio. Afrouxou as peias e girou a isca por cima da cabeça; Preciosa lançou-se para cima, o impulso fazendo a mão de Romilly baixar, deu uma volta pelo ar e mergulhou para a isca, alcançando-a um instante antes que caísse no chão. Romilly deixou-a se alimentar em paz por um momento, antes de chamá-la com o pequeno apito de falcoeiro, que o pássaro devia aprender a associar com comida. Entregou a isca a Ker e disse:

— Você gira; quero observá-la voar.

Obediente, o aprendiz do mestre falcoeiro pegou a isca e começou a girá-la por cima da cabeça; outra vez Romilly soltou o falcão, observou-o subir e descer ao sinal de seu apito para a isca voadora. A manobra foi repetida mais duas vezes e Romilly permitiu que o pássaro terminasse a refeição em paz, antes de encapuzá-lo de novo e levá-lo de volta à gaiola. Afagou-o mais uma vez com a pena, ternamente, murmurando palavras afetuosas sem sentido, experimentando a sensação de intimidade e satisfação do falcão alimentado. Preciosa estava aprendendo. Muito em breve voaria livre para pegar suas presas e voltaria ao seu ninho... Ela foi para o estábulo.

— Pode selar Ventania — ela disse, fez uma pausa e acrescentou, sombria: — Suponho que deve usar minha sela feminina.

O cavalariço não quis fitá-la.

— Lamento, damisela... O MacAran deu ordens expressas. Estava muito zangado.

Era mais uma punição. Ainda mais sutil do que uma surra, e não parecia coisa de seu pai — dava para perceber claramente os pontos delicados traçados pela mão de Luciella. Quase que podia ouvir na imaginação as palavras que a madrasta devia ter usado: uma moça tão crescida como Romilly e você a deixa correr à solta pelos estábulos, por que está surpreso com qualquer coisa que ela possa fazer? Mas deixe-a comigo, vou transformá-la numa dama...

Romilly já ia gritar com o cavalariço, furiosa, dizer-lhe para esquecer, uma sela lateral era um insulto a qualquer cavalo que se prezasse... mas Preciosa em seu braço bateu as asas, agitada, e ela compreendeu que o pássaro se contagiava com sua raiva. Fez um esforço para recuperar o controle e disse calmamente:

— Está bem, pode pôr uma sela de mulher.

Com ou sem raiva, com ou sem sela feminina, Preciosa devia se habituar ao movimento do cavalo; e uma volta numa sela feminina era melhor do que nada.

Mas ela pensou muito a respeito enquanto cavalgava naquele dia. Seria inútil fazer qualquer apelo ao pai: era evidente que ele entregara a responsabilidade a Luciella, o novo traje de montaria fora apenas um sinal para indicar a direção em que o vento soprava agora. Não podia haver a menor dúvida de que ainda chegaria o dia em que seria proibida de montar... não, pois Luciella falara de seus planos para lhe dar um bom cavalo. Mas teria de montar como uma dama, recatadamente, pois nenhum cavalo era capaz de nada melhor do que um trote leve com uma sela lateral; montaria estorvada pela saia, incapaz até de treinar seu falcão corretamente; não havia espaço conveniente para um falcão, como numa sela de homem. E muito em breve também, com certeza, seria proibida de entrar nos estábulos e na casa dos falcões, a não ser para sair em passeios típicos de uma dama, como aquele. E o que poderia fazer? Ainda não tinha idade suficiente... faria apenas quinze anos no Solstício e não havia alternativa que não obedecer ao pai. Parecia que as paredes se fechavam ao seu redor.

Por que então recebera aquele laran, já que tudo indicava que só um homem displinha de liberdade para usá-lo? Romilly sentiu vontade de chorar. Por que não nascera homem? Conhecia a resposta que receberia, se perguntasse a Luciella o que devia fazer com seu dom; existe para que seus filhos o herdassem, diria a mulher.

O que significava que ela não passava de um veículo para dar filhos a algum marido desconhecido? Ela pensara muitas vezes que gostaria de ter filhos... lembrava-se de Rael como bebê, roliço e alegre, tão adorável quanto um filhote antes de ser desmamado. Mas renunciar a tudo, ficar dentro de casa, tornar-se mole e flácida como Luciella, a própria vida encerrada, vivendo apenas através dos filhos? Era um preço alto demais para pagar, até mesmo por bebês tão adoráveis. Furiosa, Romilly piscou para conter as lágrimas, sabendo que a emoção se transmitiria ao falcão e ao cavalo, fez um esforço para se acalmar.

Devia esperar. Talvez, depois que serenasse a ira inicial do pai, ele pudesse perceber a luz da razão. E foi então que ela recordou: antes do Solstfcio, Darren estaria em casa e talvez ele, como único herdeiro restante do pai, pudesse interferir a seu favor. Ela afagou o falcão com a pena para acalmá-lo, e voltou para o Ninho dos Falcões, com um vislumbre de esperança no coração.

 

Dez dias antes do Solstfcio, no décimo quinto aniversário de Romilly, Darren, o irmão dela, chegou em casa.

Foi Rael quem avistou os cavaleiros primeiro, quando a família estava no terraço para o desjejum; o tempo era tão agradável que Luciella determinara que fariam a refeição ali, com uma vista para o vale do Kadarin. Rael levara seu segundo pão com mel até a grade, apesar da suave censura de Luciella para que sentasse direito e não se levantasse antes de terminar de comer. Debruçava-se na beira, jogando migalhas de pão nas folhas largas da hera que subia pelas paredes do castelo.

— Ei, mãe, tem cavaleiros subindo pelo caminho... acha que estão vindo para cá? — ele gritou. — Pode ver, pai?

O MacAran franziu o rosto para o menino, levando a taça aos lábios.

— Fique quieto, Rael. Estou conversando com sua mãe... — Mas, abruptamente, Romilly adivinhou quem eram os cavaleiros.

— É Darren! — ela gritou, correndo para a grade. — Conheço seu cavalo... vou descer ao seu encontro!

— Romilly! — protestou Luciella. — Sente-se e acabe sua comida! — Mas Romilly já passava pela porta, as tranças balançando contra os ombros, descia voando pela escada. Podia ouvir atrás o barulho das botas de Rael e riu ao pensar no aborrecimento de Luciella — a refeição serena fora interrompida para sempre desta vez. Ela lambeu os dedos, lambuzados de mel, foi para o pátio, com Rael em sua esteira; o menino pendurou-se nos portões, gritando para que os serviçais viessem abri-los.

— É meu irmão Darren... ele está chegando!

Na maior alegria, os homens começaram a puxar os portões, antes mesmo que o som dos cascos dos cavalos os alcançasse; Rael era apreciado e mimado por todos. Ele continuou pendurado nos portões, rindo, enquanto os homens puxavam, acenou com o braço para os cavaleiros, no maior excitamento.

— É Darren e tem alguém com ele, Romilly! Venha até aqui para recebê-lo!

Mas Romilly permaneceu um pouco atrás, subitamente inibida, consciente dos cabelos trançados às pressas, os dedos e a boca lambuzados, o pão com mel ainda em sua mão; jogou-o depressa para o cachorro que estava no pátio e esfregou o lenço nas manchas na boca. Por que se sentia assim? Era apenas Darren e algum amigo que ele conhecera no mosteiro. Darren saltou do cavalo e no mesmo instante Rael pulou em cima dele, abraçando-o, falando tão depressa que mal dava para entender. Darren riu, pôs Rael no chão e adiantou-se para abraçar Romilly.

— Você cresceu muito, irmã, é quase uma mulher.

— É o aniversário dela, Darren! — gritou Rael. — O que você trouxe de presente?

Darren soltou outra risada. Era alto e magro, os cabelos vermelhos caindo em cachos sobre os olhos, o rosto com a palidez de um inverno passado entre as neves de Nevarsin.

— Esqueci seu aniversário, irmã... pode me perdoar? Mas terei um presente para você no Solstício.

— Você ter vindo hoje já é um presente maravilhoso, Darren. — Romilly sentiu-se invadida pela angústia; amava Darren, mas Ruyven era o irmão a quem sempre fora mais ligada, enquanto Mallina e Darren sempre partilhavam tudo. E Ruyven não voltaria para casa, nunca mais. O ódio às Torres, que haviam arrebatado seu irmão, aflorou impetuoso. Ela teve de engolir em seco, reprimindo as lágrimas de raiva.

— O pai e Luciella estão no desjejum, Darren. Vamos subir para o terraço. Mande o coridom levar os alforjes para seu quarto.

Ela pegou a mão de Darren e começou a puxá-lo, mas ele virou-se para o estranho, que acabara de entregar seu animal a um cavalariço.

— Primeiro, quero que conheça meu amigo. — Ele acenou para que o rapaz se aproximasse. — Alderic de Castamir, minha irmã mais velha.

Alderic era até mais alto do que Darren, os cabelos faiscando em tonalidades avermelhadas e douradas; os olhos eram cinzentos como o aço, e profundos, sob uma testa alta. Vestia-se pobremente, um insólito contraste com a riqueza dos trajes de Darren, que se vestia suntuosamente, como o filho mais velho do Ninho dos Falcões, em belbute cor de ferrugem, adornado com um pêlo escuro. O manto do jovem Castamir estava bastante puído, como se o tivesse herdado do pai ou mesmo do avô, a orla de lã de coelho de chifres se desfazendo em alguns lugares.

Então ele fez amizade com um jovem mais pobre, com certeza o trouxe para cá porque o amigo não tem recursos para a viagem até sua casa nos feriados. Darren é sempre gentil. Romilly também foi gentil em sua recepção e havia uma insinuação de condescendência em sua voz quando disse:

— É bem-vindo, Dom Alderic. Vamos subir para nos juntar a meus pais no desjejum? Garin... — Ela chamou o intendente. — Providencie para que a bagagem de meu irmão seja levada para seu aposento e ponha as coisas de Dom Alderic no quarto vermelho, pelo menos por enquanto; a menos que Dama Luciella dê outras ordens, será melhor que ele fique perto dos aposentos de meu irmão.

— Vamos embora! — Darren passou o braço pelo de Romilly e puxou Alderic pela escada acima. — Não posso andar se você ficar pendurado em mim desse jeito, Rael... suba na nossa frente!

— Ele estava com saudade de você — explicou Romilly. — E...

Ela já ia falar no outro irmão, mas seria discutir problemas de família na presença de um estranho; ela e Darren teriam tempo suficiente mais tarde para confidências. Eles chegaram ao terraço e Darren foi envolvido pelos braços de Mallina, restando a Romilly apresentar Alderic de Castamir ao pai. O MacAran disse, com uma solene cortesia:

— Seja bem-vindo em nossa casa, rapaz. Um amigo de meu filho tem uma acolhida de amigo aqui. Tem algum parentesco com Valdrin Castamir de Highghart? Ele e eu estivemos na guarda do Rei Rafael, antes de seu abominável assassinato.

— Apenas distante, senhor. Não sabia que Lorde Valdrin foi morto e seu castelo destruído porque abrigou Carolin em seu caminho para o exílio?

O MacAran engoliu em seco visivelmente.

— Valdrin morto? Fomos companheiros e bredin, mas Valdrin sempre foi um tolo, como qualquer homem que se intromete nos assuntos dos grandes da terra.

Alderic declarou tensamente:

— Honro a memória de Lorde Valdrin por sua lealdade a nosso legítimo rei no exílio, senhor.

— Honra... — murmurou O MacAran, em tom amargo. — Honra de nada serve para os mortos e para todos os que envolveu nas brigas dos grandes; é uma grande honra para a esposa e os filhos, eu pergunto, morrer com a carne queimada até os ossos? Como se importasse para mim ou para qualquer outro homem sensato que grande asno mantém o trono aquecido com suas nádegas reais, enquanto homens melhores cuidam de sua vida?

Romilly percebeu que Alderic estava prestes a dar uma resposta brusca, mas ele controlou-se, fez uma reverência e não disse nada; não ofenderia seu anfitrião. Mallina foi apresentada a Alderic e sorriu afetada, enquanto Romilly observava com desdém — qualquer coisa vestindo culote, ela pensou, e Mallina de bom grado pratica suas tolas artimanhas femininas, até mesmo para esse maltrapilho refugiado político que Darren pegou em Nevarsin e trouxe para casa, sem dúvida para lhe proporcionar umas poucas boas refeições — ele parecia magro como uma vassoura, com certeza só comiam em Nevarsin mingau de bolotas e água fria!

Mallina ainda conversava com os dois jovens.

— E o pessoal de Picos Storn virá, assim como os filhos e filhas de Aldaran de Scathfell; durante todo o Festival do Solstício teremos festas e caçadas, um grande baile... — Ela desviou os olhos de pestanas compridas para Alderic. — Gosta de dançar, Dom Alderic?

— Tenho dançado muito pouco desde que era criança — respondeu Alderic. — E ultimamente dancei apenas as danças camponesas dos monges e noviços no inverno... mas esperava que me ensinassem outros passos, damisela.

Ele fez uma mesura para ela e depois para Romilly, mas Mallina se apressou em dizer:

— Oh, Romilly não dança com homens... sente-se mais à vontade nos estábulos e prefere que lhe falem de falcões e cavalos!

— Mallina, vá para suas aulas! — interveio Luciella, num tom que dizia claramente "Cuidarei de você mais tarde, mocinha". — Deve perdoá-la, Dom Alderic, ela não passa de uma criança maldosa.

Mallina prorrompeu em lágrimas e saiu correndo da sala, mas Alderic sorriu para Romilly e disse:

— Também me sinto mais à vontade na companhia de falcões e cavalos do que das mulheres. Um dos cavalos que trouxemos de Nevarsin é seu, não é mesmo?

— Pertencia a... — Darren percebeu a carranca do pai e emendou: — ... a um parente nosso. Ele deixou-o em Nevarsin para nos ser devolvido.

Mas Romilly interceptou o olhar entre Darren e Alderic e compreendeu que o irmão confidenciara toda a história ao amigo. Até que ponto, ela especulou, já se espalhara o escândalo que o filho do MacAran rompera com a família e fugira para uma Torre?

— Romilly — disse o pai —, você não deveria estar na sala de aula com mestra Calinda?

— Prometeu-me uma folga no meu aniversário — Romilly lembrou à madrasta.

Luciella murmurou, de má vontade:

— Já que prometi... Acho que gostaria de passar o tempo com seu irmão. Está certo, se é o que deseja.

Ela sorriu para o irmão.

— Gostaria de lhe mostrar meu novo falcão verrin. ..

— Romilly treinou-o pessoalmente! — explodiu Rael, enquanto o pai franzia o rosto. — Quando Davin estava doente. Esperou a noite inteira até o falcão se alimentar e o mestre falcoeiro disse que o próprio pai não poderia ter feito melhor...

— Sua irmã fez o que você não faria, menino — disse O MacAran bruscamente. — Deveria tomar lições de habilidade e coragem com ela. Não seria melhor que ela fosse o menino e você a donzela, usando saias e passando os dias escrevendo e bordando dentro de casa...

Darren corou até as raízes dos cabelos.

— Não escarneça de mim diante de meu amigo, pai. Farei o máximo de que sou capaz, eu lhe prometo. Mas sou como os deuses me fizeram, e nenhum outro. Um coelho de chifres não pode ser um cavalo de guerra, e se tornará apenas motivo de riso se tentar.

— É isso o que aprendeu com aqueles abomináveis monges?

— Eles me ensinaram que sou o que sou — respondeu Darren, enquanto Romilly via lágrimas em seus olhos. — E no entanto, pai, estou aqui à sua disposição, para fazer o melhor que posso, por menos que seja.

Romilly pôde ouvir, tão claro como se o nome proibido tivesse sido pronunciado: Não é minha culpa que eu não seja Ruyven e também não é minha culpa que ele tenha ido embora.

O MacAran cerrou os dentes e Romilly compreendeu que ele também ouvira as palavras proibidas.

— Leve seu irmão para a casa dos falcões, Romy, mostre-lhe seu animal. Talvez ele fique envergonhado e tente imitar o que uma garota pode fazer.

Darren abriu a boca para falar, mas Romilly cutucou-o nas costelas, como a dizer "Vamos sair daqui enquanto podemos, antes que ele diga coisa pior". E Darren limitou-se a murmurar:

— Vamos embora, Alderic, a menos que os falcões o aborreçam. — Dizendo alguma coisa cortês e neutra, Alderic fez uma reverência para O MacAran e Dama Luciella e depois desceu com eles. Durante os últimos dias Preciosa fora colocada entre os falcões já treinados. Com movimentos suaves, Romilly pôs a luva e pegou o pássaro, depois se aproximou dos dois rapazes.

— Esta é Preciosa — disse ela, orgulhosa. — Não quer segurá-la um momento, Darren, enquanto eu pego as iscas e linhas? Ela precisa aprender a suportar outra mão e outra voz...

Mas quando ela se aproximou, Darren recuou, num movimento sobressaltado. Romilly, sentindo como o medo no irmão reverberava na mente do pássaro, concentrou sua atenção em acalmar Preciosa, afagando-a com uma pena. E disse, não em tom de censura, mas tão absorvida no que fazia que não parou para pensar na maneira como suas palavras soariam para outra pessoa:

— Nunca se mexa tão depressa perto de um falcão... devia saber disso! Vai assustá-lo... dá até para pensar que tem medo dele!

— Acontece apenas... não estou acostumado a ficar tão perto de algo tão grande e feroz — murmurou Darren, mordendo o lábio.

— Preciosa feroz! Ora, ela é tão gentil quanto um cachorrinho! — exclamou Romilly, incrédula. Ela chamou o aprendiz do mestre falcoeiro. — Traga as iscas, Ker...

Quando ele as trouxe, Romilly examinou-as, franzindo a testa e torcendo o nariz.

— É isso o que tem para os outros falcões? Acha que são comedores de carniça? Ora, um cachorro recusaria essa comida com nojo! Dei ordens para que Preciosa recebesse carne fresca, até camundongos, se nada melhor estivesse disponível na cozinha, mas nada tão velho e repulsivo quanto isto.

— É o que Davin reservou para os pássaros, Ama Romilly. — Romilly abriu a boca para proferir a crítica que ele merecia, mas antes que qualquer som saísse o falcão em seu pulso esvoaçou furiosamente e ela compreendeu que sua ira contagiava a mente de Preciosa. Ela respirou fundo e disse calmamente:

— Terei uma conversa com Davin. Não pediria a nenhum falcão decente para se alimentar com esta porcaria. Por enquanto, vá buscar uma carne recém abatida para meu falcão; se não for possível um pombo, pegue então um cachorro e providencie um rato ou camundongo.

Darren recuara diante do frenético bater de asas, mas comentou, enquanto Ker se afastava para cumprir a ordem:

— Vejo que cuidar do falcão pelo menos lhe proporcionou algum controle do temperamento e da língua, Romy... foi bom para você.

— Gostaria que o pai concordasse com isso — disse Romilly, ainda afagando o falcão com a pena, tentando acalmá-lo. — Mas os pássaros são como bebês, captam as emoções daqueles que os tratam. Acho que não passa disso. Esqueceu quando Rael era bebê, aquela babá que Luciella arrumou para ele... não consigo lembrar seu nome agora — Marja, Moyra, alguma coisa parecida — Luciella teve de mandá-la embora porque o filho mais velho da mulher morreu afogado e ela chorava sempre que via Rael, deixando-o com cólica. Foi nessa ocasião que Gwennis veio para cá...

— Não, é mais do que isso — disse Alderic, enquanto saíam da escuridão da casa dos falcões para o pátio ladrilhado. — Há um laran famoso e apareceu primeiro, pelo que me informaram, entre as famílias Delleray e MacAran; a empatia com falcão, cavalo e pássaro-sentinela... era para isso que os treinavam, durante a guerra no tempo do Rei Felix. Na família Delleray estava ligado a algum gene letal e acabou desaparecendo, mas os MacAran possuem o dom há gerações.

Darren comentou, com um sorriso apreensivo:

— Eu lhe peço, meu amigo, que não fale em laran tão livremente quando meu pai estiver perto para ouvir.

— Ele é daqueles que falam da flor da noz-doce porque os flocos de neve estão frios demais? — indagou Alderic, sorrindo. — Durante toda a minha vida ouvi falar dos cavalos treinados pelo MacAran como os melhores do mundo, e Dom Mikhail é sem dúvida um dos mais notáveis dos Lordes MacAran. Conhece com certeza os dons e o laran de sua casa.

— Ainda assim, ele não quer ouvir a palavra — explicou Darren. — Desde que Ruyven foi embora para a Torre. Não o culpo, embora alguns possam dizer que sou o ganhador pelo que Ruyven fez... Romilly, agora que o pai não está presente, posso lhe contar, e você transmitirá secretamente a Mallina; acho que Rael ainda é muito pequeno para guardar o segredo, mas use seu julgamento. Recebi uma carta de Ruyven no mosteiro; ele está bem, adora o trabalho que faz e sente-se feliz. Envia seu amor e um beijo para todos, pede-me para falar dele com o pai outra vez, quando achar que o momento é oportuno.

— O que só vai acontecer quando maçãs e frutas-pretas crescerem nos penhascos gelados de Nevarsin — murmurou Romilly. — Esteve lá, sabe o que ele sente...

Darren sacudiu a cabeça.

— Não, irmã, não sou telepata como você, embora percebesse que ele estava furioso. ..

Romilly fitou-o com uma expressão de incredulidade.

— Não é capaz de ouvir uma coisa se não for falada em voz alta? É cego mental como o burro estúpido que monta?

A lenta cor, o vermelho da vergonha, espalhou-se pelo rosto de Darren, enquanto ele baixava os olhos.

— Isso mesmo, irmã.

Romilly fechou os olhos, como se evitasse olhar para uma gritante deformidade. Nunca soubera ou adivinhara isso, sempre pensara que todos os irmãos partilhavam o dom que encarava como certo antes mesmo de saber o que era. E foi com alívio que se virou para Davin, que se aproximava pelo pátio.

— Foi você, velho amigo, quem deu ordens para alimentar os falcões com sobras da cozinha, que nem mesmo são frescas?

Ela apontou para a panela com o refugo repulsivo; Davin pegou-a, farejou desdenhoso.

— Aquele garoto preguiçoso trouxe isto? Ele nunca conseguirá se tornar um falcoeiro! Mandei-o buscar alimento mais fresco na cozinha, mas Dama Luciella diz que não se pode mais abater aves para isca dos falcões. Não duvido que Ker fosse preguiçoso demais para pegar camundongos. Mas pode deixar que providenciarei alguma coisa fresca para exercitar seu falcão, Ama Romilly.

— Posso tocá-lo? — Alderic tirou a pena da mão de Romilly e afagou o peito do falcão. — Ele é mesmo lindo. Os falcões verrin não são fáceis de manter, e olhe que já tentei muitas vezes. Sem sucesso, a menos que tenham sido chocados no cativeiro. E este é um pássaro selvagem? Quem o treinou?

— Fui eu, e ainda estou trabalhando; até agora, não o deixei voar livre.

Romilly sorriu timidamente da expressão de espanto de Alderic.

— Você o treinou? Uma moça? Mas por que não? Afinal, é uma MacAran. Na Torre em que residi por algum tempo havia mulheres que domavam e faziam voar os falcões verrin capturados; e costumávamos dizer, a uma que teve um sucesso notável com um falcão: Você possui a mão de um MacAran com um pássaro...

— Isso significa que há MacAran nas Torres? — indagou Romilly. — Não sabia que havia MacAran entre seus muros até que meu irmão foi para lá...

— O dito já era conhecido no tempo de meu pai no tempo de meu avô... o dom de um MacAran. — A palavra que Alderic usou não era a que se falava nas Colinas Kilghard, laran, a expressão antiga, donas. — Mas seu pai não está satisfeito por ter um filho na Torre? A maioria das famílias das montanhas ficaria orgulhosa.

O sorriso de Darren era amargurado.

— Não tenho o dom para trabalhar com animais... e bem pouco talento para qualquer outra coisa, a não ser aprender. Não tinha importância enquanto Ruyven era o herdeiro de meu pai; eu estava destinado ao mosteiro e sentia-me feliz com a Irmandade. Agora, ele tentará até martelar este prego torto no lugar que meu irmão deixou vago...

— Não tem um terceiro irmão? — perguntou Alderic. — Aquele menino que recebeu você é nedestro ou tão retardado que seu pai não pode criá-lo... Rafael, Rael, como quer que o tenha chamado... para ser o Lorde do Ninho dos Falcões? Ou, vendo o que Ama Romilly é capaz de fazer...

O sorriso foi generoso e Romilly corou, mas Darren disse, amargurado:

— Não conhece meu pai...

Ele não disse mais nada e Romilly ficou refletindo a respeito; quer dizer que parecia razoável para Alderic que ela podia até tomar o lugar de Ruyven no Ninho dos Falcões?

— Trouxe carne fresca para seu falcão, Ama Romilly — informou Davin, entrando no estábulo. — Uma das cozinheiras tinha acabado de matar uma ave para o jantar e deixou-me ficar com as entranhas. Dei ordens para que os restos mais frescos de cada dia fiquem à sua disposição pela manhã. Aquele lixo que Ker trouxe era do dia anterior, uma das cozinheiras tinha guardado para os cães. Ele estava ocupado demais olhando as moças na cozinha para pedir carne fresca. Aquele ali nunca dará um falcoeiro. Juro que eu o trocaria por um sekal e começaria a ensinar o pequeno Amo Rael a cuidar dos pássaros. Romilly soltou uma risada.

— Luciella não ficaria nada feliz. Mas ponha Ker para alimentar os porcos ou cuidar dos canis. Deve haver alguém na propriedade com algum senso dos falcões.

Darren sorriu tristemente.

— Experimente o menino Ganis, filho de Nelda. Ele foi concebido no Festival e há muitos rumores sobre quem foi o pai. Se ele for bom para os animais, atrairá a atenção de meu pai, o que deixará Nelda muito orgulhosa. Sugeri uma vez que ele partilhasse as lições com Rael e nossa grande Dama Luciella teve um ataque... era de se pensar que eu sugerira que o garoto dos porcos jantasse em nossa mesa.

— Já devia saber que Luciella ouve apenas aquilo que quer ouvir — comentou Romilly. — Talvez ela pensasse que a bastardia é como as pulgas, contagia...

Ela mexeu nas cordas e iscas, um pouco atrapalhada com o peso de Preciosa no pulso.

— Não pode segurá-la por um momento, Darren? Se não pode, então por caridade prenda a carne na isca... ela está sentindo o cheiro e não demora muito a ficar frenética!

— Eu posso ficar, se quiser me confiar seu falcão. — Alderic estendeu o braço. — Quer vir comigo, minha linda?

Com todo cuidado ele passou o nervoso falcão do braço de Romilly para o seu, e depois acrescentou:

— Como é mesmo que a chamou? Preciosa? E você é mesmo preciosa, não é?

Romilly observou ciumenta enquanto o falcão encapuzado se ajeitava confortavelmente no pulso de Alderic; mas Preciosa parecia satisfeita e ela concentrou-se em prender a carne na linha. Era preciso evitar que o falcão a abocanhasse muito depressa e obrigá-lo a comer no chão, como um bom falcão de caça deve aprender a fazer. Os falcões mal treinados tendiam a arrebatar a comida da isca em pleno ar, o que em nada contribuía para lhes ensinar a prática da caça. Deviam aprender a levar a presa para seu dono e esperar até que a carne fosse oferecida por sua mão.

— Dê-me essa linha e isca — disse Darren. — Se não sou capaz de fazer mais nada, pelo menos posso arremessar a isca.

Romilly atendeu-o, com evidente alívio.

— Obrigada... você é mais alto do que eu, pode jogar mais longe.

Ela tornou a pegar Preciosa em seu pulso. Com a outra mão, removeu o capuz da cabeça, depois ergueu o braço para deixá-la voar. Puxando a corda, o falcão subiu cada vez mais alto; ao alcançar o ponto máximo, Romilly viu-a virar a cabeça e avistar a isca voando e zunindo. No mesmo instante, com as asas dobradas, Preciosa mergulhou a toda velocidade para a isca, agarrando-a com o bico e as garras e indo pousar aos pés de Romilly. Romilly soprou o apito estridente que o falcão estava aprendendo a associar com comida. Recolheu Preciosa na luva e soltou a carne da isca.

Preciosa curvou-se tão depressa para a comida que pulou para o lado no braço de Romilly, as garras se contraindo dolorosamente no antebraço da jovem, além da luva. O sangue esguichou, manchando o vestido. Romilly cerrou os lábios e não gritou, mas Darren se manifestou bruscamente ao ver a mancha vermelha espalhar-se pelo tecido azul.

— Oh, irmã!

Preciosa, sobressaltada com o grito, perdeu o equilíbrio e caiu, bateu as asas meio desajeitada, atingindo o rosto de Darren. Romilly inclinou-se para pegar o falcão, mas Darren soltou outro grito, em pânico, levantou as mãos para afastar o bico e as garras, perigosamente próximos de seu rosto. A esse novo grito, Preciosa tornou a vacilar e voou para cima, soltando um grito estridente de raiva ao final da linha. Os dentes cerrados, Romilly sibilou num sussurro:

— Maldição, Darren! Ela poderia ter quebrado os voadouros! Não sabe que não se pode ter movimentos tão bruscos junto de um falcão? Saia daqui antes de assustá-la ainda mais!

— Mas... mas... mas você está sangrando! — balbuciou Darren.

— E daí? — indagou Romilly asperamente, empurrando o irmão com um gesto rude e assoviando baixinho e persuasiva para Preciosa. — Seria melhor trazer Rael para cá, seu insensato! Saia daqui!

— E é isso o que tenho como um filho e herdeiro — comentou O MacAran, amargurado.

Ele estava parado na porta, observando os três jovens, sem ser visto. A voz, mesmo na raiva, soou baixa, pois sabia que não se devia alteá-la perto de um pássaro assustado. Permaneceu em silêncio, olhando com as sobrancelhas franzidas, numa expressão carrancuda, enquanto Romilly fazia o falcão baixar para seu pulso e desembaraçava as linhas.

— Não se envergonha, Darren, em ficar de lado enquanto uma menina leva a melhor sobre você no que deveria se manifestar por instinto em qualquer filho meu? Se eu não conhecesse sua mãe tão bem, poderia jurar que foi gerado por algum mendigo das estradas que passou por aqui... Portador dos Fardos, por que oprimiu minha vida com um filho tão inapto para o seu lugar?

Ele agarrou Darren pelo braço e puxou-o para o interior da casa dos falcões; Romilly ouviu Darren gritar e seus dentes se comprimiram contra o lábio, como se o golpe tivesse acertado em seus próprios ombros.

— Saia agora e tente se comportar como um homem, nem que seja por uma vez! Pegue aquele falcão... não, não aquele, pois tem mãos que parecem enormes pernis, apesar de tanto que escreve! Pegue aquele gavião ali e exercite-o com uma isca. E não tente se esquivar ou lhe darei uma surra e o mandarei para à cama a pão e água, como se fosse da idade de Rael!

O rosto de Alderic estava muito pálido e os dentes cerrados, mas ele baixou os olhos para as mãos e não disse nada. Romilly, fazendo grande esforço para manter a calma — não havia sentido em transtornar Preciosa outra vez —, tornou a prender carne na isca. Ainda em silêncio, Alderic pegou a linha e começou a girá-la por cima da cabeça. Romilly observou Preciosa alçar vôo. Os dois tentavam ignorar Darren, o rosto vermelho e inchado, tentando meio desajeitado desencapuzar um falcão estranho no outro lado do pátio. Era tudo o que podiam fazer por Darren agora.

Romilly pensou: Pelo menos ele está tentando. Talvez isso seja mais bravo do que minha atitude ao desafiar o pai; eu tinha o dom, fazia apenas o que é natural para mim, enquanto Darren, obedecendo, vai contra tudo o que é natural para ele... E ela sentiu a garganta apertar, como se fosse chorar, mas tratou de reprimir as lágrimas. Isso não ajudaria Darren. Nada o ajudaria, exceto tentar dominar seu próprio nervosismo. E em algum lugar no seu íntimo não pôde evitar uma pequena pontada de desprezo... como ele podia se atrapalhar com uma coisa que era tão fácil e simples?

 

Romilly não viu os primeiros convidados chegarem para o Festival do Solstício do Verão; o dia amanhecera claro e brilhante, o sol vermelho erguendo-se por cima de uma simples insinuação de nuvem no horizonte. Durante três dias não houve neve nem chuva, e por todo o pátio as flores desabrochavam. Ela sentou na cama, muito excitada: hoje deixaria Preciosa voar livre pela primeira vez.

Era o teste final e angustiante para falcão e treinador. Acontecia com muita frequência, quando libertado pela primeira vez, o falcão subia pelo céu, voava pelas nuvens violetas... e nunca mais voltava. Ela confrontou a possibilidade: não suportaria perder Preciosa agora, mas sabia que isso podia acontecer com um pássaro capturado selvagem.

Mas Preciosa voltaria, Romilly estava confiante. Ela tirou a camisola e vestiu-se para a caçada; a madrasta mandara que seu novo traje de veludo verde fosse deixado pronto no aposento, sedutor, mas ela pôs a camisa e uma túnica velha, um culote de Darren. Se o pai ficasse zangado, então que ficasse; ela não estragaria a primeira caçada de Preciosa com a preocupação se o pássaro avistaria ou não o traje de veludo.

Ao sair para o corredor, Romilly tropeçou numa cesta junto à porta; era o tradicional presente de Solstício do Verão dos homens da família para as mães, irmãs, filhas. O pai era sempre generoso. Levou a cesta para dentro do quarto e vasculhou-a à procura da maçã inevitável e dos doces que sempre havia também, guardando alguns nos bolsos que precisaria para a caçada. Pensou por um instante e pegou mais alguns, para Darren e Alderic. Havia uma segunda cesta na porta; seria de Darren? E uma terceira, pequena, com tiras de papel coladas, meio sem jeito, que vira Rael tentando esconder na sala de aula. Romilly sorriu, indulgente, pois continha um punhado de nozes, que sabia que o irmão menor guardara de suas próprias sobremesas. Como ele era maravilhoso, seu irmãozinho! Por um momento sentiu-se tentada a convidá-lo a participar também daquela incursão especial, mas refletiu por um minuto, suspirou e decidiu que era melhor não se expor à ira da madrasta. Providenciaria alguma coisa especial para Rael depois.

Romilly desceu pelo corredor em silêncio e foi se encontrar com Darren e Alderic, que esperavam na porta da frente, com os cães lá fora — afinal, há muito que amanhecera. Os três jovens caminharam para o estábulo.

— Avisei ao pai que sairíamos para caçar ao amanhecer — disse Darren. — Ele lhe deu permissão para montar seu cavalo, se quiser, Alderic.

— Ele é generoso — murmurou Alderic, encaminhando-se para o falcão.

— Qual você vai levar, Darren? — perguntou Romilly, ajeitando Preciosa em seu pulso.

Darren, fitando-a com um sorriso, respondeu:

— Creio que sabe, irmã, que não sinto o menor prazer em falcões. Se o pai me ordenasse para exercitar um dos seus pássaros, eu obedeceria; mas por causa do feriado talvez ele se abstenha de me dar essa ordem.

Seu tom era tão amargurado que Alderic virou-se e sugeriu:

— Acho que ele tenciona ser gentil, bredu.

— Tenho certeza disso.

Mas Darren não levantou a cabeça enquanto atravessavam o estábulo, a caminho de onde os cavalos esperavam, já prontos.

Romilly pôs Preciosa num poleiro, enquanto selava seu cavalo. Não ordenaria que qualquer homem desobedecesse às ordens de seu pai, mas também não montaria numa sela feminina naquele feriado. Se o pai decidisse puni-la, aceitaria o castigo que ele escolhesse.

Foi puro êxtase montar outra vez num cavalo com trajes apropriados, sentindo o vento frio da manhã contra o rosto e Preciosa à sua frente na sela, encapuzada mas alerta. Podia sentir um fluxo de percepção do pássaro, transbordando de emoções, que Romilly não podia identificar... não chegava a ser medo, como ela viera a conhecê-lo, também não era inteiramente de excitamento, mas podia constatar, com enorme alívio, que não havia a raiva terrível que sentira quando começara a treinar o falcão. As nuvens se dissiparam enquanto se embrenhavam pelas colinas, e sob os cascos dos cavalos só podia se ouvir os menores sons da geada.

— Para onde vamos, Darren? — perguntou Alderic. — Você conhece estas colinas.

Darren soltou uma risada.

— Pergunte a Romilly, não a mim, meu...

Ele parou de falar abruptamente e Romilly, levantando os olhos do falcão, interceptou o olhar severo, quase de advertência, que Alderic lançou para o homem mais jovem. Darren apressou-se em acrescentar:

— Minha irmã conhece mais estas colinas e os falcões do que eu, Lorde Deric.

— Acho que é melhor seguirmos por ali — disse Romilly. — Vamos para o mais distante pasto dos cavalos, onde poderemos fazer os pássaros voarem e ninguém nos incomodará. E há sempre pequenas aves e pequenos animais nas moitas.

Avistaram o pasto do alto de uma elevação, uma larga extensão de relva verde na encosta de uma colina, pontilhada aqui e ali por espinheiros e moitas diversas. Alguns cavalos pastavam a relva, verde com o verão, os campos e moitas cobertos por plinhados de flores silvestres azuis e amarelas. Insetos zumbiam por toda parte; os cavalos ergueram a cabeça numa inquirição de alerta, mas nada avistaram que pudesse perturbá-los, e continuaram a pastar calmamente. Uma potrinha virou a cabeça, viu-os e se aproximou correndo, sobre as pernas compridas e finas. Romilly riu, saltou de seu cavalo e foi acariciar a potrinha, que mal alcançava seus ombros.

— Esta é Anjo — ela disse aos dois rapazes. — Nasceu no inverno passado e eu a alimentava com pedaços de maçã... não, Anjo, essa é a minha comida!

Romilly deu um tapinha no focinho da potrinha, afastando-a de seu bolso. Mas logo se condoeu, pegou a faca e cortou um pedaço da maçã para Anjo.

— E agora já chega, ou vai ficar com dor de barriga.

Como se aceitasse sua palavra, a potrinha afastou-se trotando.

— Vamos logo embora ou o velho Ventania virá para cima da gente — acrescentou Romilly, rindo. — Ele veio pastar aqui. É um castrado velho demais para que as éguas lhe dêem alguma atenção, e os dentes estão muito cansados e quase não consegue pastar direito. O pai deveria tê-lo abatido nesta primavera, mas disse que ele deveria ter um último verão, esperaríamos até o inverno chegar. E Ventania será então despachado para o último repouso. Ele não seria capaz de aguentar outro inverno de muito frio com suas velhas juntas.

— Lamentarei se for encarregado de despachá-lo — comentou Darren. — Todos nós aprendemos a montar nele, parecia uma cadeira de balanço.

Ele fez uma pausa, contemplando com vaga tristeza o pônei idoso e quase cego que pastava a relva macia num canto do campo.

— Acho que o pai poupou-o porque ele foi o primeiro cavalo de Ruyven...

— Ele teve uma boa vida e terá um bom fim — disse Alderic. — Ao contrário dos homens, não se permite aos cavalos que vivam até se tornarem senis e meio loucos... se concedessem aos homens a mesma misericórdia, não haveria agora um rei usurpador no trono em Hali e... e o verdadeiro não estaria vagueando no exílio.

— Não estou entendendo — murmurou Romilly. Darren franziu o rosto, mas Alderic acrescentou:

— Não tem idade bastante para lembrar quando o Rei Felix morreu? Ele tinha mais de cento e cinquenta anos, um emmasca, muito velho e sem filhos; e há muito que perdera a razão, por isso procurou levar ao trono o filho mais velho de seu irmão mais moço, em vez do filho mais velho do irmão seguinte, que era o legítimo herdeiro. E por isso Lorde Rakhal, que adulava e enganava um rei idoso e senil e controlava todos os regentes com subornos e mentiras, um velho devasso de quem nenhuma mulher está a salvo, nem mesmo, pelo que se diz, o filho jovem de qualquer cortesão que deseja agradá-lo, está no trono dos Hastur em Hali. E Carolin e seus filhos vagueiam pelo Kadarin, à mercê de algum bandido ou salteador que queira ganhar os prémios oferecidos por suas cabeças por nosso bondoso Lorde Rakhal... pois nunca lhe concederei o nome de rei.

— Conhece o... rei exilado?

Foi Darren quem respondeu:

— O jovem príncipe passou algum tempo com os monges em Nevarsin, mas fugiu quando chegou a notícia de que Lorde Rakhal estava à sua procura.

— E apóiam o jovem príncipe e o... o rei no exílio? — indagou Romilly.

— Exatamente. Eles merecem todo o meu apoio. Se algum cortesão generoso aliviasse o velho Felix de sua vida, antes que se tornasse um fardo para ele próprio, Carolin reinaria agora em Hali como um rei justo, a cidade sagrada dos Hastur não estaria transformada.. ;. numa cloaca de sujeira e indecências, onde nenhum homem se atreve a clamar por justiça sem um suborno na mão e arrivistas e forasteiros brigam e dividem nossa velha terra entre eles!

Romilly ficou calada, nada sabia de cortes e reis, nunca estivera nem mesmo na cidade de Neskaya, ao pé das colinas, muito menos se embrenhara pelas terras baixas ou se aproximara do Lago de Hali. Estendeu a mão para o capuz de Preciosa e hesitou, resolveu conceder a Alderic a cortesia devida a um hóspede.

— Quer fazê-la caçar primeiro, senhor?

Ele sorriu e sacudiu a cabeça.

— Acho que estamos tão ansiosos quanto você em descobrir como Preciosa vai reagir ao treinamento.

Com as mãos trêmulas, Romilly retirou o capuz da cabeça de Preciosa, observou o falcão distender as penas. Agora. Era o momento do teste, não apenas de seu controle sobre o falcão, mas também da aceitação do treinamento por Preciosa, de seu vínculo a ela. Romilly sentiu que não suportaria se aquele falcão que tanto amava, com quem passara tantas horas árduas e angustiadas, voasse para longe e nunca mais voltasse. Uma idéia aflorou em sua mente: É assim que o pai sente, agora que Ruyven foi embora? Mas não podia deixar de testar o falcão no vôo livre. Caso contrário ela seria apenas um pássaro domado numa gaiola, apático, trepado num poleiro, não um falcão caçador. De qualquer forma, sentiu as lágrimas lhe toldarem a visão quando levantou o pulso e viu o falcão se equilibrar por um instante e depois voar livre, com uma única batida das longas asas.

Preciosa deu uma volta imensa e inclinada na direção do sol, e Romilly, a mente povoada por pensamentos ansiosos — ela voará direito, o longo período de inatividade afetou sua capacidade? — observou-á subir. E alguma coisa nela elevou-se com o falcão, sentindo a indescritível alegria do sol da manhã nas asas, a claridade ofuscando seus olhos, enquanto subia cada vez mais, pairava, subia... virava e se afastava com movimentos vigorosos das asas.

Romilly deixou escapar um longo suspiro. Preciosa fora embora, nunca mais voltaria...

— Creio que a perdeu — murmurou Alderic finalmente. — Lamento muito, damisela.

A perda e a angústia lutavam em Romilly com a participação no êxtase. Em vôo livre, alguma coisa nela se elevando com o falcão... e depois desaparecendo à distância. Ela sacudiu a cabeça. Se perdera o falcão, então nunca o possuíra realmente. Ela pensou: Prefiro perdê-la a mantê-la presa a mim contra sua vontade. Por que o pai não pode perceber isso? Ela compreendeu que o pensamento era de Darren, por causa da amargura. Isso significava que ele não era um cego mental? Ou seria a telepatia errática, como a sua fora outrora, só aflorando raras vezes, e quando ela estava profundamente comovida... a sua se fortalecera apenas quando começara a trabalhar com animais, mas Darren não tinha esse dom...

Então Preciosa estava livre e tudo não passara de uma ilusão. Podia muito bem ficar sentada em casa, quietinha, cuidar de seu bordado, pois fora em vão seu esforço de frequentar a casa dos falcões, tentando trabalhar com os pássaros como um homem...

E foi nesse instante que teve a sensação de que seu coração ia parar. Pois em meio à angústia infinita pela perda, um fio de percepção se insinuou, voando alto, o mundo estendendo-se lá embaixo como um dos mapas em seus livros escolares, só que colorido e definido com toda nitidez, contemplando com uma visão mais aguçada do que a sua, com vislumbres de vida surgindo aqui e ali, pequenos pássaros em vôo, pequenos animais na relva...

Preciosa! O falcão ainda mantinha contato, o falcão não voara para longe! Darren disse alguma coisa, ela não ouviu. Mas as palavras de Alderic penetraram em sua mente:

— Não desperdice a voz, bredu, pois ela não pode ouvi-lo. Está com o falcão...

Romilly continuou na sela, com o hábito automático, empertigada, silenciosa; mas a parte real de seu ser voava alto sobre o pasto, com uma fome intensa, no êxtase do vôo. Com um alerta sobrenatural, a visão e todos os sentidos aguçados, percebendo a vida dos pequenos pássaros, a tal ponto que estalou os lábios, quase riu, quase rompeu o contato com aquele absurdo, mas a fome irresistível prevaleceu subitamente, um desejo quase sexual em seu ímpeto... e mergulhou, desceu com as asas compridas em movimento, o bico golpeando, o sangue esguichando em sua boca, numa repentina explosão de vida e morte...

E continuou descendo, numa intensa vibração. Ainda restava a Romilly consciência suficiente para manter o pulso firme como uma rocha, sob o brusco impacto de um falcão com sua presa. Sentiu as lágrimas escorrendo pelas faces, mas não havia tempo para a emoção agora: a faca estava em sua outra mão e cortou a cabeça, a mão guardou sua parte do coelho decapitado na bolsa, e toda sua percepção se alimentava com o falcão voraz da outra parte. Alderic soltara seu falcão, mas Romilly nem tomou conhecimento, chorava abertamente agora, de amor e alívio, enquanto ajeitava o capuz na cabeça de Preciosa.

Seu falcão voltara. E voltara por livre e espontânea vontade, renunciara à liberdade pela servidão e pelo capuz. Romilly fez um esforço para reprimir as lágrimas, enquanto afagava o falcão com a pena. Percebeu que suas mãos tremiam.

O que eu fiz para merecer isso? Como posso me mostrar digna? Um ser selvagem renunciou à sua liberdade por mim... o que posso fazer para me tornar digna desse dom?

Mais tarde, eles comeram as maçãs e os doces que Romilly trouxera, antes de voltarem ao Ninho dos Falcões, à claridade cada vez maior. Ao se aproximarem do pátio, avistaram cavalos estranhos sendo desencilhados, um deles com o pendão de Aldaran de Scathfell. Compreenderam que o hóspede de linhagem mais alta já chegara. Alderic perguntou, preocupado:

— O velho Gareth ainda é o Lorde de Scathfell?

— Ele não é velho, senhor — respondeu Romilly — Gareth de Scathfell não tem mais que quarenta e nove anos.

Alderic parecia aliviado e Romilly interceptou um olhar inquisitivo que Darren lhe lançou. Alderic explicou bruscamente:

— Talvez eu o conheça de vista.

— Não confia nas leis da...

Darren não foi adiante, franzindo o rosto na direção de Romilly. Inclinando a cabeça sobre o falcão, ela pensou: Eles pensam que sou uma tola? Precisaria ser surda, cega e muda, e cega mental ainda por cima, para não perceber que ele é um aliado de Carolin no exílio, talvez mesmo o próprio jovem príncipe. E sei tão bem quanto ele por que meu pai não pode tomar conhecimento disso.

— O velho Gareth morreu há três invernos e já estava meio cego, senhor — disse Darren. — Todo o pessoal de Scathfell estará aqui, Romilly?

Romilly, aliviada porque o momento de tensão passara, começou a relacionar os filhos e filhas crescidos do senhor de meia-idade de Scathfell; o herdeiro era outro Gareth ("Mas todos os chamam de Garris, à moda das terras baixas", ela acrescentou).

— Dom Garris não está casado, já enterrou três esposas; creio que ele ainda está na casa dos trinta anos, mas parece mais velho e é coxo, com uma doença que consumiu a perna dele.

— E você não gosta dele — comentou Alderic, arrancando um sorriso malicioso de Romilly.

— Como pôde adivinhar, Lorde Alderic? É verdade. Ele está sempre encurralando as moças nos cantos, chegou a apalpar Mallina no ano passado, quando ela ainda não passava de uma criança...

— O velho bode depravado! — explodiu Darren. — O pai soube disso?

— Ninguém queria uma briga com os vizinhos. Luciella limitou-se a dizer a Mallina e a mim que nos mantivéssemos longe dele, se pudéssemos fazê-lo sem sermos grosseiras. Há também Dom Edric, que é cego, e sua esposa Ruanna, que cuida dos livros da propriedade tão bem quanto qualquer homem. E há ainda os gémeos, Cathal e Cinhil, que também não são jovens... têm a idade de Ruyven, vinte e dois anos. E a esposa de Cathal, que foi uma das minhas amigas de infância... Darissa Storn. Cinhil não é casado e o pai uma vez falou em promover nosso noivado, mas não deu em nada, o que alegrou meu coração... Não gostaria de viver em Scathfell, aquele lugar é como um covil de bandidos! É verdade que eu não me importaria em ficar perto de Darissa e Cinhil é bastante simpático...

— Parece-me que ainda é muito jovem para casar — comentou Alderic.

Darren riu.

— As mulheres casam jovens por aqui e Romilly tem quinze anos. E, não duvido, ela está ansiosa em ter sua própria casa, livrar-se da orientação de Luciella. Como é mesmo aquele ditado antigo? Onde duas mulheres reinam sobre uma lareira, o teto acabará queimando com as faíscas voando... Mas acho que o pai pode conseguir algo melhor para Romilly do que um filho mais jovem, um quarto filho ainda por cima. Melhor ser uma dama numa cabana do que uma serva num castelo. Quando Dom Garris casar de novo... ou se o velho Scathfell tomar uma esposa... a mulher de Cinhil ficará em posição inferior, não muito melhor do que as criadas entre si. Darissa era bonita e alegre quando casou, agora parece dez anos mais velha do que Cathal, e está desfigurada de gerar filhos.

— Não estou com pressa de casar — declarou Romilly. — E acho que há homens em quantidade suficiente nestas colinas. Manfred Storn é o herdeiro dos Picos Storn e mais ou menos da idade de Darren. Assim, quando eu tiver idade suficiente para casar, é provável que o pai fale com o velho Lorde Storn. O pessoal dos Penhascos Altos também virá e também tem filhos e filhas solteiros. É possível que Rael ou eu casemos nessa família. — Ela deu de ombros. — Mas que importância isso tem, no final das contas? Todos os homens são iguais.

Alderic riu.

— Por essas palavras sei como é jovem Ama Romilly... Espero que seu pai não procure casá-la até ter idade suficiente para distinguir entre um homem e outro, ou pode despertar um dia e descobrir que está casada com o último homem no mundo que gostaria de ter como marido. O sol está alto e sua madrasta falou alguma coisa sobre um desjejum do Festival... e pude sentir o aroma das cozinheiras preparando pão condimentado quando passamos pela cozinha!

Romilly só torcia agora para que conseguisse subir ao seu quarto sem ser observada a fim de tomar um banho e trocar de roupa antes da refeição festiva. Virando uma esquina no corredor, porém, quase esbarrou num homem alto, pálido, meio gordo, cabelos claros, que saía da enorme sala de banho, com suas banheiras de água quente alimentadas por fontes vulcânicas. Ele estava envolto por um roupão largo, os cabelos úmidos e desgrenhados; era evidente que estivera de molho na água quente para se livrar da fadiga da viagem. Romilly fez uma mesura polida como fora ensinada, depois lembrou-se que estava de culote... maldição! Se tivesse continuado sem a reverência, ele poderia tomá-la por um menino que trabalhava no castelo, cumprindo alguma missão. Em vez disso, o rosto pálido e flácido contraiu-se num sorriso.

— Ama Romilly! — Seus olhos deslocaram-se pelas pernas compridas de Romilly. — Mas que prazer inesperado! Que par de pernas você tem, menina! E está... crescida...

Os pálidos olhos azuis fixaram-se nos cordões esticados da velha túnica, por cima dos seios cheios, antes que ele acrescentasse:

— Será um prazer dançar com você esta noite, agora que tive a satisfação de contemplar o que tantas mulheres escondem com o maior cuidado de seus admiradores...

Romilly corou; sentindo o calor nas faces, abaixou a cabeça e fugiu. Em meio ao calor escaldante que lhe queimava as orelhas, ela pensou, desesperada: Agora entendo o que Luciella estava querendo dizer que eu era grande demais para circular de culote. Parecia até que eu estava nua, pela maneira como ele me olhou. Durante toda sua vida andara com roupas do irmão, tão desprovida de inibição e vergonha como se fosse um rapaz; agora, sob os olhos lúbricos daquele homem, experimentava a sensação de que seu corpo fora rudemente apalpado; os seios comichavam e havia uma estranha sensação abaixo da barriga. Ela foi se refugiar em seu quarto, o coração disparado. Encaminhou-se rapidamente para o lavatório, molhando o rosto quente com água fria, procurando esfriá-lo.

"Luciella estava certa. Oh, por que ela não me contou tudo?", especulou Romilly, angustiada. Depois compreendeu que não havia como falar a respeito, teria ignorado o aviso com uma risada, sem aquela experiência. As mãos ainda tremiam quando desfez os laços da túnica de rapaz, largou o culote no chão e, pela primeira vez em sua vida, contemplou-se no espelho, vendo seu corpo como o de uma mulher. Ainda era esguia, os seios mal haviam se tornado arredondados, os quadris eram pouco mais salientes que os de um menino, as pernas compridas eram de fato masculinas. Mas se algum dia eu usar de novo roupas de homem, ela pensou, cuidarei para que fiquem folgadas o suficiente para que eu pareça um menino.

Através do vidro da porta de ligação com o quarto de Mallina ela viu a irmã explorando suas cestas do Solstício do Verão. Ela também recebera três, o que fez Romilly voltar a examinar a cesta generosa do pai, que continha mais frutas e doces do que flores — O MacAran tinha uma visão bastante realista dos apetites das filhas, que eram tão gulosas quanto os meninos. Examinando agora a cesta menor, que pensara ser de Darren, descobriu que estava cheia de flores de jardim e de estufa, arrumadas com requinte, além de umas poucas frutas exóticas, que ele devia ter trazido de Nevarsin, uma vez que não cresciam nas proximidades do Ninho dos Falcões. Foi só então que viu o cartão e teve a maior surpresa ao lê-lo:

 

Não tenho irmã ou mãe para receber os presentes do Solstício do Verão; aceite isto, com a minha homenagem.

Alderic, estudante.

 

Mallina irrompeu no quarto.

— Ainda não se vestiu, Romy? Não podemos nos atrasar para a primeira refeição do Festival! Não vai usar seu vestido do feriado? Calinda está com a Mãe, pode abotoar o vestido nas costas para mim? Que lindas flores, Romy! As minhas são todas flores de jardim, embora haja um lindo cacho de uvas de gelo, tão doces quanto mel... sabe, eles deixam nas árvores em Nevarsin até congelarem, como frutas vermelhas, depois tiram todo o azedume e ficam doces... Romy, quem você acha que ele é? Parece tão romântico... Acha que Dom Alderic está tentando cortejar uma de nós? Eu ficaria feliz de ser prometida a ele, é tão bonito e galante, como o herói de alguma história de fadas...

— Mas como você fala bobagens, Mally! — Apesar da censura, Romilly sorriu. — Acho que ele é um hóspede atencioso, nada mais do que isso; e com toda certeza também mandou uma cesta assim para a mãe.

— Domna Luciella não vai gostar — disse Mallina. — Ela ainda pensa que a Noite do Festival é um ritual pagão que não está à altura de uma boa cristoforo; repreendeu Calinda porque ela deixou Rael fazer as cestas do Festival, mas o pai disse que todos mereciam um feriado e uma desculpa era tão boa quanto qualquer outra para proporcionar aos camponeses um dia de lazer e alguns presentes bem merecidos, que deixaria Rael aproveitar o Festival enquanto ainda é criança... ele se tornaria um cristoforo tão bom quanto outro qualquer se fosse um bom menino e estudasse o Livro dos Fardos.

Romilly sorriu.

— O pai diz a mesma coisa todo Festival, desde quando posso me lembrar. E não duvido que ele goste do pão condimentado, os bolos doces de açafrão e as frutas tanto quanto qualquer outro. Ele citou do Livro dos Fardos que não se pode negar a uma besta seu grão nem a um trabalhador seu salário e seu feriado. O pai pode ser um homem duro, mas é sempre justo com seus trabalhadores.

Ela abotoou o último botão do vestido e fez Mallina virar-se.

— Como você está linda, Mally! Mas é uma sorte que não tenha de usar esse vestido num dia normal... precisa de uma criada para ajudá-la a se vestir! É por isso que meu vestido do Festival é feito com laços, a fim de que eu possa colocá-lo sozinha.

Ela acabou de prender os punhos bordados da túnica inferior, enfiou a comprida e larga sobrepeliz pela cabeça, vermelho-ferrugem e com borboletas bordadas, virou-se para que Mallina pregasse a trança no pescoço com o fecho de borboleta, que cobria recatadamente o decote do traje. Mallina virou-se para escolher uma flor para seus cabelos nas cestas.

— Não acha que esta rosa combina comigo? É rosa como meu vestido... oh, Romy, olhe só! — Ela soltou uma exclamação meio escandalizada. — Não viu que ele pôs uma flor dourada, uma dorilys, em sua cesta?

— E daí, tolinha? — indagou Romy, escolhendo a flor azul chamada kireseth para pôr na trança.

Mallina, porém segurou sua mão.

— Não, Romilly, não deve usar essa.. . Não conhece a linguagem das flores? O presente da flor dourada é... ora, é uma flor afrodisíaca, você sabe tão bem quanto eu o que significa quando um homem oferece uma dorilys a uma donzela...

Romilly corou, sentindo outra vez olhos lúbricos contemplando-a. Engoliu em seco. Alderic também a olhara com a mesma ganância? Mas depois o bom senso voltou e ela disse, incisiva:

— Chega de bobagem. Ele é um estranho que não conhece os costumes das colinas, e isso é tudo. Mas se esse é o tipo de conversa entre as moças tolas, não usarei essa flor... o que é uma pena, pois é a mais linda de todas. Vamos, escolha-me outra flor para pôr na trança.

As irmãs desceram em toda sua elegância para a festa da família, levando com elas, como o costume determinava, as frutas de suas cestas para partilhar com o pai e os irmãos. A família estava reunida no vasto salão de jantar e não na pequena sala usada para as refeições normais. Domna Luciella recebia os convidados. Rael usava seu melhor traje e Calinda também estava com um vestido novo, escuro e austero como convinha à sua posição, mas bem-feito, não um refugo da família, puído e gasto; Luciella era uma mulher generosa, pensou Romilly, até mesmo com parentes pobres. Darren usava seu melhor traje, da mesma forma que Alderic, embora o seu fosse escuro, sombrio, como condizia com um estudante em Nevarsin, sem qualquer vestígio de cores e insígnias de família. Romilly especulou mais uma vez quem ele era e guardou para si mesma o pensamento que lhe ocorrera: que Alderic podia muito bem ser um dos homens do rei, exilado, talvez mesmo o jovem príncipe... não, ela não diria nada a ninguém, mas gostaria que Darren tivesse lhe confiado o segredo.

Gareth de Scathfell, como o homem de posição mais elevada na assembléia, recebera o lugar mais alto à mesa, geralmente reservado ao MacAran, que agora ocupava um assento mais baixo. Os jovens casais e homens e mulheres solteiros sentavam em mesa separada. Romilly viu Darissa sentada ao lado de Cathal e pensou em se juntar à amiga, mas a madrasta gesticulou para o lugar vazio à esquerda de Dom Garris. Romilly corou, mas não queria uma confrontação ali, naquele momento; foi ocupar o lugar indicado, mordendo o lábio e torcendo para que ele nada lhe dissesse na presença de seus pais.

— Agora, vestida como convém à sua beleza, está ainda mais adorável, damisela.

Isso foi tudo o que ele disse; as palavras eram absolutamente polidas, mas Romilly fitou seu rosto pálido com aversão e não respondeu. Mas, no final das contas, ele nada fizera, as palavras haviam sido bastante corteses, não tinha do que se queixar.

Havia todo tipo de iguarias, pois aquele era o desjejum e a refeição do meio-dia numa só; o banquete prolongou-se por algum tempo. Antes que os pratos fossem retirados, os músicos entraram e começaram a tocar. As cortinas haviam sido puxadas ao máximo para deixar entrar o sol do Solstício do Verão, as portas estavam escancaradas; os móveis na parte inferior do salão haviam sido removidos, abrindo espaço para a dança. Enquanto Darren conduzia a irmã para a primeira dança, como o costume determinava, ela ouviu a conversa na mesa alta sobre os homens enviados à procura do exilado Carolin.

— Nada significa para mim — disse O MacAran. — Não me interessa quem senta no trono, mas também não permitirei que meus homens sejam subornados para se tornarem caçadores de ladrões. Houve um tempo em que os MacArans reinavam aqui como se fosse um reino, mas também não podíamos fazer muito mais do que defender a propriedade pela força das armas. Não tenho o menor desejo de transformar minhas terras num acampamento armado, e os Hastur podem reinar como quiserem, mas tenho de condenar suas guerras fratricidas.

— Soube que Garolin e seu filho mais velho cruzaram o Kadarin — disse Lorde Scathfell. — Sem dúvida em busca de refúgio com meu primo de Aldaran... há um antigo ódio entre a família Hastur e os Aldaran.

O pai de Romilly contraiu a boca num sorriso torto.

— Ninguém é tão entusiasmado na caça aos lobos quanto o cão com sangue de lobo — comentou ele. — Os Aldaran não vieram há muito tempo do mesmo sangue dos Hastur?

— É o que dizem. — Lorde Scathfell acenou com a cabeça, uma expressão sombria. — Não dou muito crédito a todas aquelas histórias sobre os filhos dos Deuses... embora, os Deuses sabem, haja laran na linhagem de Aldaran, até entre meus próprios filhos e filhas, como também acontece em sua família. Não tem um filho numa Torre, Dom Mikhail?

O rosto do MacAran contraiu-se.

— Não por minha vontade ou desejo, nem mesmo com minha permissão. Não dou o nome de filho a quem vive entre os Hali'imyn! — Em seus lábios a palavra inofensiva soava como uma obscenidade; ele acalmou-se com grande esforço e acrescentou: — Mas isso não é conversa para um festival. Não quer dançar, milorde?

— Deixarei a dança para os mais jovens — respondeu Lorde Scathfell. — Mas leve sua dama para dançar, se quiser.

O MacAran virou-se respeitoso para Dama Luciella e levou-a para a pista de dança.

Depois da primeira dança cerimoniosa, os mais jovens reuniram-se para a dança dos círculos, todos os rapazes no círculo exterior, todas as jovens e as mulheres no interior. Não demorou muito para que a dança se tornasse bastante agitada e Romilly viu Darissa se afastar dos dançarinos, com a mão comprimida contra o flanco. Foi buscar um refresco para a amiga e sentou ao seu lado, conversando. Darissa usava a túnica folgada de uma mulher grávida, mas mesmo assim afrouxou os fechos e abanou-se; estava vermelha e ofegante.

— Não dançarei mais até a criança nascer — ela murmurou, comprimindo os dedos compridos contra o corpo inchado. — Acho que ele também gosta de dançar e não vai parar de se mexer até a época da colheita, principalmente quando estou dormindo!

Cathal aproximou-se e inclinou-se solícito para a esposa, mas Darissa gesticulou para que ele voltasse a dançar.

— Vá dançar um pouco com os homens, meu marido. Ficarei sentada aqui, conversando com minha velha amiga... O que você tem feito, Romilly? Ainda não está prometida? Já tem quinze anos, não é mesmo?

Romilly balançou a cabeça. Estava chocada com a amiga, tão bonita e graciosa apenas três anos antes; agora, andava quase se arrastando, os seios pequenos inchados e pesados sob as rendas do vestido, a cintura enorme. Darissa tivera dois filhos em três anos e agora já esperava o terceiro! Como se lesse seus pensamentos, Darissa comentou, os lábios contraídos numa expressão amargurada:

— Não sou mais tão bonita quanto no tempo de donzela... Trate de aproveitar seu último ano de danças, Romilly, pois é provável que no próximo ano também esteja de lado, inchada com sua primeira criança; o pai de meu marido falou em casar você com Cinhil, ou talvez Mallina; ele a considera mais dócil, mais como uma dama.

Romilly murmurou, ainda chocada:

— Precisava ter outro filho tão depressa? Pensei que dois em três anos era suficiente...

Darissa deu de ombros e sorriu.

— Ora, as coisas são assim mesmo... Acho que este vou amamentar em meu próprio seio, em vez de entregá-lo a uma ama-de-leite, talvez não volte a engravidar este ano. Amo meus filhos, mas acho que três é suficiente por algum tempo...

— Seria mais do que suficiente para uma vida inteira! — exclamou Romilly, com a maior veemência.

Darissa riu.

— É o que todas dizemos quando somos jovens. Lorde Scathfell está satisfeito comigo porque já lhe dei dois filhos e espero que agora venha uma filha. Gostaria de ter uma menina... Mais tarde vou levá-la para conhecer meus filhos. São crianças lindas, o pequeno Gareth tem cabelos vermelhos. Talvez ele venha a ter um laran, vire um mago para as Torres...

— E você gostaria que ele...? — murmurou Romilly. Darissa soltou outra risada.

— Claro que sim. A Torre Tramontana estaria disposta a recebê-lo, pois os Aldaran são do sangue dos Hastui dos tempos anteriores aos Cem Reinos. Os vínculos com Tramontana são antigos. — Ela baixou a voz. — Não teve mais notícias de Ruyven? É mesmo verdade que seu pai o repudiou?

Romilly balançou a cabeça e os olhos de Darissa ficaram arregalados; ela e Ruyven também haviam sido companheiros na infância.

— Lembro de um ano, no Solstício do Verão, em que ele me mandou uma cesta do Festival e usei o raminho de flores douradas que me deu de presente. Mas ao final daquele Festival o pai me prometeu a Cathal; temos sido bastante felizes e agora há nossos filhos... mas sempre penso em Ruyven, e ficaria muito contente se me tornasse sua irmã, Romilly. Acha que O MacAran a daria a Cinhil, se ele pedisse? Poderíamos então ser irmãs...

— Não sinto qualquer antipatia por Cinhil.

Interiormente, porém, Romilly se arrepiou, dali a três anos estaria como Darissa, gorda e sem fôlego, a pele manchada e o corpo disforme de procriar? E ela acrescentou, com toda sinceridade:

— A única coisa boa nesse casamento seria a possibilidade de me aproximar de você, mas não tenho a menor pressa em casar. Luciella diz que quinze anos ainda é muito jovem para assentar. Prefere que não casemos antes dos dezessete, ou mais. Não se põe uma boa cadela para gerar no primeiro cio.

— Oh, Romilly!

Darissa corou e as duas riram juntas, como crianças.

— Seja como for, trate de aproveitar a dança enquanto pode, pois esses dias acabarão muito depressa. Olhe, lá está o amigo de Darren, do mosteiro... Ele parece um monge em seu traje escuro. É um dos irmãos?

Romilly sacudiu a cabeça.

— Não sei quem ele é, apenas que é amigo de Darren e do clã Castamir.

Ela guardou as suspeitas para si mesma. Darissa comentou:

— Castamir é um clã Hastur. E me pergunto se ele veio para cá livremente. Pelo que ouvi dizer, eles estão com o velho rei. Seu pai está com Carolin ou apoia o novo rei?

— Não creio que o pai se interesse ou se importe com um rei ou outro — respondeu Romilly.

Antes que ela pudesse acrescentar mais alguma coisa, Alderic aproximou-se.

— Há uma dança de pares certos, Ama Romilly... gostaria de ser minha parceira?

— Importa-se de ficar sozinha, Darissa?

— Não. Tenho Cathal e pedirei a ele para me buscar um copo de vinho.

Romilly deixou que Alderic a conduzisse para junto dos outros dançarinos, seis pares... embora um fosse formado por Rael e Jessamy Storn, que tinha onze anos e era meia cabeça mais alta do que seu parceiro. Ficaram de frente uns para os outros e Darren e Jeralda Storn, no primeiro lugar da fila, começaram, de mãos dadas, circulando cada casal, nos complexos passos da dança. Quando chegou a vez de Alderic, ele entregou-se confiante às suas mãos, fortes, duras e quentes, muito diferentes das mãos de alguém que estuda, sempre macias, não como as dele, calejadas e firmes como as de um espadachim. Não é provável que ele seja um monge, pensou Romilly, logo se concentrando nas complexidades da dança, que ao final deixou-a na frente do irmão Darren e depois diante de Rael. Quando se encontrou por um instante com Cinhil, cruzando as mãos e circulando, ele apertou sua mão e sorriu, mas ela baixou os olhos e não retribuiu o sorriso. Então Lorde Scathfell tencionava casá-la com Cinhil ainda naquele ano, a fim de que ficasse gorda e inchada com um filho depois de outro, como Darissa? De jeito nenhum! Algum dia, ela supunha, teria de casar, mas não com aquele rapaz tão rude, se pudesse evitar! Seu pai não tinha tanto respeito assim pelos Aldaran; e, além do mais, era apenas o Aldaran de Scathfell, não o Aldaran do Castelo Aldaran. Scathfell era o mais rico e o mais influente dos vizinhos, mas O MacAran, pelo que ouvira dizer, já era um proprietário independente antes mesmo da fundação da cidade de Caer Donn!

A dança levou-a agora à presença de Dom Garris. Ele sorriu e também apertou sua mão; Romilly corou, mantendo suas mãos frias e rígidas contra as dele, limitando-se ao contato que a dança exigia. Ficou aliviada quando a dança levou-os a seus lugares originais e encontrou-se outra vez frente a frente com Alderic. Os músicos começaram a tocar uma dança de pares e ela percebeu que Dom Garris avançava em sua direção, com uma expressão determinada; puxou a manga de Alderic e sussurrou:

— Quer me convidar para dançar, Dom Alderic?

— Claro.

Ele sorriu e conduziu-a para a dança. Após um momento, retribuindo ao sorriso, enquanto Garris os observava, Romilly disse:

— Não é tão desajeitado assim na dança, afinal de contas.

— Não? — Ele soltou uma risada. — Há muito tempo que eu não dançava, a não ser com os monges...

— Dançam no mosteiro?

— Às vezes. Para nos mantermos aquecidos. E há uma dança sagrada em alguns serviços. Os estudantes que não são irmãos costumam ir à aldeia e dançam no Festival, mas eu... — Alderic pareceu hesitar por um instante. - ... não dispunha de muito tempo para isso.

— Eles exigem tanto nos estudos? Domna Luciella disse que Darren está muito magro e pálido... eles oferecem o suficiente para comer e roupas que agasalham?

Alderic balançou a cabeça.

— Estou bastante acostumado às dificuldades.

Ele ficou em silêncio, enquanto Romilly desfrutava a dança, a música. Ao se separarem, ao final da música, Alderic disse:

— Usa as minhas flores... espero que tenha gostado.

— E muito.

Romilly sentiu-se inibida outra vez; ele pusera a dorilys em sua cesta como o convite a que Mallina se referira ou fora apenas o desconhecimento de um estranho dos costumes da região? Ela gostaria de perguntar, mas sentia-se muito acanhada para isso. Mas como se lesse seus pensamentos de novo, Alderic disse abruptamente:

— Darren me contou... e pode estar certa de que não tive qualquer intenção imprópria, Ama Romilly. Em minha região... sou das terras baixas... a flor-estrela, dorilys, é o presente de Lorde Hastur à Abençoada Cassilda, um cumprimento cortês em homenagem ao dia, nada mais do que isso.

Ela sorriu.

— Não creio que alguém pudesse pensar que é capaz de qualquer insinuação imprópria, Dom Alderic.

— Sou amigo de seu irmão, não precisa me tratar por Dom. Afinal já caçamos e fizemos falcões voar, juntos...

— E também não precisa me chamar de damisela. Meus irmãos e irmã me tratam por Romy...

— Combinado. Seremos como irmãos, como sou para Darren. Não quer tomar vinho?

Haviam se aproximado da mesa de refrescos. Romilly sacudiu a cabeça e murmurou, ingenuamente:

— Não tenho permissão para tomar vinho acompanhada.

— Shallan então?

Ele serviu para Romilly o refresco de fruta. Ela bebeu, sedenta. Depois de tanto dançar, sabia que os cabelos começavam a cair, mas não queria se afastar para junto das moças risonhas no canto e prendê-los de novo.

— Gosta muito de falcoaria? — ela perguntou a Alderic.

— Gosto, sim. As mulheres de nossa família treinam pássaros-sentinelas. Já voou alguma vez, dami... Romy?

Ela balançou a cabeça. Já vira os enormes e ferozes pássaros, mas disse:

— Não sabia que podiam ser domados. E não são capazes de pegar um coelho de chifres. Eu diria que não são grande coisa como esporte...

— Não são treinados para o esporte, mas sim para a guerra e vigilância de incêndios. É feito com laran. Um pássaro-sentinela em vôo pode observar intrusos num campo, avistar bandidos ou um incêndio na floresta. Mas não é pelo esporte. Na verdade os pássaros são ferozes e não é fácil controlá-los. Contudo, Romilly, acho que você poderia conseguir, se seu laran fosse treinado.

— Mas não é, e provavelmente não será, e com certeza você sabe por quê, se Darren lhe contou tanta coisa. Pássaros-sentinelas! — Ela sentiu um pequeno calafrio, meio agradável, percorrer-lhe a espinha, ao pensamento de controlar as enormes e ferozes aves de rapina. — Acho que não seriam mais difíceis de treinar do que os pássaros-espíritos!

Alderic riu.

— Já ouvi falar sobre isso até nas montanhas distantes. E os pássaros-espíritos são muito estúpidos. Não é preciso muita habilidade para controlá-los, basta criá-los desde filhotes e alimentá-los com comida quente. Farão o que você quiser, descobrindo o rastro de caça com calor ainda no chão. Também dão excelentes pássaros de vigia, pois soltam gritos terríveis a qualquer cheiro estranho...

Romilly estremeceu agora, ao pensar nos grandes carnívoros, cegos, incapazes de voar, treinados para funções de vigia.

— Quem precisa de um pássaro-espírito quando um bom cão Despertador é tão útil e muito mais agradável de se ter em casa? — ela indagou.

— Não discutirei isso e confesso que prefiro escalar o Alto Kimbi descalço do que tentar treinar um pássaro-espírito, mas pode ser feito. Eu não consigo sequer dominar os pássaros-sentinelas, pois não tenho o dom. Mas algumas mulheres de nossa família são capazes, e já vi isso ser feito na Torre, onde os usam para a vigilância de incêndios; seus olhos vêem mais longe que os de qualquer ser humano. — Acordes suaves de música recomeçaram a soar e ele perguntou: — Não quer dançar esta?

Romilly sacudiu a cabeça.

— Agora não, obrigada... está quente, o sol entrando aqui.

Alderic fez uma mesura para alguém por trás dela e Romilly virou-se para deparar com Luciella parada ali, ouvindo-a dizer:

— Romilly, você ainda não dançou com Dom Garris!

Ela respondeu, desdenhosa:

— É típico dele queixar-se à minha madrasta, em vez de se aproximar como um homem e me convidar.

— Romilly! Ele é o herdeiro de Scathfell!

— Não me importo se ele é o herdeiro da Escada das Nuvens ou do nono inferno de Zandru, se quer dançar comigo...

Nesse instante Dom Garris apareceu por trás de Luciella e disse, com seu sorriso insinuante:

— Quer me dar a honra de uma dança, Ama Romilly?

Afinal de contas não havia como recusar sem ser grosseira. Ele era hóspede de seus pais, apesar de achar que Dom Garris deveria dançar com mulheres de sua idade e não ficar cercando as moças. Romilly aceitou a mão dele em seu pulso para conduzi-la à dança. Afinal ele não poderia dizer nada grosseiro à plena vista de seu pai e irmãos. A mão na sua estava desagradavelmente úmida, mas ela calculou que era uma coisa que ele não podia evitar.

— E tão leve quanto uma pluma, damisela... a própria jovem dama! Quem poderia imaginar esta manhã, ao vê-la de botas e culote como um rapaz... posso imaginar que todos os rapazes da região vivem atrás de você, não é mesmo?

Romilly balançou a cabeça, sem dizer nada. Detestava aquele tipo de conversa, embora soubesse que faria Mallina rir e corar. Quando terminaram a dança, Dom Garris pediu outra, mas ela recusou polidamente, alegando sentir uma pontada no lado. Ele queria lhe buscar um copo de vinho ou shallan; quando Romilly disse que desejava apenas sentar um pouco ao lado de Darissa, ele sentou junto e insistiu em abaná-la. Felizmente a dança terminou e os músicos iniciaram no mesmo instante os acordes da dança de círculos. Todos os jovens se reuniram, rindo e levantando os calcanhares na agitada dança. Dom Garris finalmente se afastou, contrariado. Romilly soltou a respiração.

— Acaba de fazer outra conquista — zombou Darissa.

— Não é provável; dançar comigo é como agarrar uma copeira, algo que ele pode fazer sem assumir qualquer compromisso. Os Aldaran de Scathfell são muito importantes para casar em nosso clã, a não ser os filhos mais novos. O pai me falou uma vez em promover meu casamento com Manfred Storn, mas ele ainda não tem quinze anos, e não há pressa. Mas apesar de eu não ser bastante importante para casar, sou muito bem-nascida para que ele possa me seduzir sem represálias. Não gosto dele por isso. — Romilly sorriu e acrescentou: — O pior num casamento com Cinhil, caso ele venha a me pedir, seria ter de chamar aquele idiota grande e gordo de irmão. Com o parentesco, porém, pelo menos seria improvável que ele me dispensasse mais atenção do que é devida à esposa de um irmão.

— Eu não contaria com isso — sussurrou Darissa. — Quando eu estava grávida do pequeno Rafael, ano passado, ele me procurou... e disse que eu não precisava temer as consequências inconvenientes, pois já esperava uma criança. Quando o censurei, ele disse que se lembrava dos velhos tempos nas colinas, quando irmãos e irmãs mantinham todas as suas esposas em comum... e com toda certeza, ele acrescentou, Cathal teria a gentileza de um irmão e não se importaria se eu partilhasse seu leito de vez em quando, já que sua esposa também estava enorme com criança... Chutei suas canelas e mandei que procurasse uma serva para seu leito, se pudesse pagar a alguma para ignorar sua feiúra; e tanto feri seu orgulho que ele nunca mais me abordou. Para dizer a verdade, ele não é tão feio assim, apenas vive se lamuriando, as mãos estão sempre flácidas e úmidas. E... — Darissa fez uma pausa, mostrando as covinhas, que eram quase a única coisa inalterada do tempo em que era menina junto com Romilly. — ... eu amo Cathal demais para procurar qualquer outro leito.

Romilly corou e desviou os olhos; criada entre os animais, sabia muito bem do que Darissa falava, mas Luciella era uma cristoforo rigorosa e não achava apropriado que moças conversassem sobre essas coisas. Darissa interpretou de maneira errada seu rubor e apressou-se em dizer, defensiva:

— Gero filhos sem qualquer dificuldade... não sou como a esposa de Garris; ela não deixou crianças vivas, morreu de parto pouco antes do Solstício do Inverno. Dom Garris já consumiu três esposas, tentando gerar um herdeiro. Notei que todos os seus filhos morrem no nascimento... e não tenho o menor desejo de ficar grávida dele, ou seguirei suas esposas para a morte, com toda certeza. — Darissa fez uma pausa. — Minha irmã mais velha passou algum tempo na Torre Tramontana quando era menina e disse que ouviu falar ali sobre os tempos do antigo programa de reprodução, quando os Aldaran tinham alguns estranhos dons de laran, mas estavam ligados, em sua linhagem, a genes letais... sabe o que são? Mas é claro, seu pai cria seus próprios cavalos, não é mesmo? E Cathal não tem esses genes. Mas acho que Dom Garris não deixará um herdeiro e por isso um dia meus filhos com Cathal herdarão Scathfell...

— E você cantará de galo como a mãe deles — comentou Romilly, rindo.

Rael aproximou-se nesse momento e levou-as para a dança, explicando que não havia mulheres suficientes para formar um segundo conjunto. A conversa foi abandonada.

 

A dança e o banquete prolongaram-se por todo o dia. Antes de meia-noite, O MacAran, Lorde Scathfell e os outros mais velhos retiraram-se para descansar, acompanhados por suas damas. Os jovens ficaram, para dançarem e se divertirem. Rael foi levado pela governanta, assim como Mallina, sob protestos, só se consolando ao constatar que suas amigas Jessamy e Jeralda também eram despachadas para a cama. Romilly estava cansada e disposta a se retirar com as crianças — afinal, acordara antes do amanhecer. Mas Alderic e Darren ainda dançavam, ela não podia admitir que o irmão conseguisse se manter acordado por mais tempo. Ficou desapontada quando Darissa deixou o salão, alegando que precisava dormir por causa da gravidez.

Ficarei perto de Darren. Na presença de meu irmão, Dom Garris não ousará ir muito longe... e depois ela especulou por que estava se preocupando; afinal, ele não lhe dissera qualquer palavra fora do normal, e como ela podia se queixar de um mero olhar? Mesmo assim, a lembrança de seus olhos deixava-a embaraçada; e agora que pensava a respeito, compreendeu que durante todo o dia e a noite estivera de certa forma consciente, no fundo de sua mente, dos olhos de Garris observando-a.

É isso, então, o laran?

Eu preferia nem dançar, acho melhor ficar sentada aqui a conversar sobre falcões e cavalos com meu irmão e seus amigos...

Mas Cinhil convidou-a para uma dança e ela não podia recusar, por questão de cortesia, o convite seguinte, de Dom Garris. A dança estava um pouco mais animada, a música mais acelerada, agora que os mais velhos e austeros haviam se retirado. Ele girou-a até deixá-la tonta, e ela sentiu que suas mãos não mais pousavam decorosamente na manga do vestido, que a puxavam para mais perto do que era confortável; quando tentou se esquivar, contrafeita, Dom Garris limitou-se a rir e puxou-a ainda mais.

— Não venha me dizer que é tão tímida assim — ele murmurou, o rosto afogueado e a voz engrolada, indicando a Romilly que bebera bastante do vinho mais forte na mesa alta. — Não quando anda por aí mostrando as pernas lindas num culote e os seios sobressaindo numa túnica três vezes menor do que o seu tamanho. Não pode bancar a Dama Recatada comigo agora!

Ele puxou-a e seus lábios roçaram no rosto de Romilly, que se desvencilhou, indignada.

— Não faça isso! — E depois ela acrescentou, irritada: — Não gosto do cheiro de excesso de vinho em seu bafo e sei que está bêbado, Dom Garris. Largue-me!

— Você deveria ter bebido mais — disse ele, calmamente, conduzindo-a na dança para uma das galerias compridas que deixavam o salão. — Dê-me um beijo, Romy...

— Eu não sou Romy para você! — Ela desviou a cabeça. — E se não estivesse espionando onde não tinha o direito de estar, não teria me visto com as roupas de meu irmão, que só uso na presença de meus irmãos. Se pensa que eu me mostrava para você, está redondamente enganado!

— Não para mim, mas quem sabe para aquele jovem altivo dos Hali'imyn que a acompanhava na caçada? — indagou Dom Garris, soltando uma risada.

Romilly sacudiu a cabeça, desmanchando os cabelos.

— Quero voltar ao salão. Não vim até aqui por minha vontade, apenas não queria fazer uma cena na pista de dança. Leve-me de volta ao salão ou começarei a gritar para chamar meu irmão! E meu pai irá açoitá-lo!

Ele riu, apertando-a ainda mais.

— Numa noite como esta, o que acha que seu irmão estará fazendo? Ele não vai lhe agradecer por afastá-lo do rapaz que estiver cortejando, na Noite do Solstício do Verão. Devo ser o único a merecer uma recusa? Você não é mais tão criança assim. Vamos, dê-me um beijo...

— Não!

Romilly lutava para se desvencilhar das mãos intrometidas, chorando agora. Ele largou-a.

— Desculpe — murmurou Dom Garris, gentilmente. — Eu estava testando você. Compreendo agora que é uma boa moça e que todos os Deuses proíbam que lhe faça qualquer coisa que não queira.

Ele inclinou-se e depositou um beijo subitamente respeitoso no pulso de Romilly. Ela engoliu em seco, piscou para reprimir as lágrimas e fugiu da galeria, atravessou o salão e subiu a escada. Em seu quarto, tirou o vestido do Festival e meteu-se sob as cobertas quentes, chorando.

Como o odiava!

 

Todos os anos o MacAran promovia seu grande Festival do Solstício do Verão como uma preliminar para uma feira de falcões, cães treinados e cavalos. Na manhã seguinte ao Festival, Romilly despertou com o maior alvoroço no pátio, homens e mulheres circulando de um lado para o outro, enquanto lá no campo cavalos relinchavam, conduzidos por cavalariços. Romilly pôs rapidamente um vestido velho — ainda havia hóspedes, por isso não podia nem pensar em tomar um culote emprestado de Darren — e desceu correndo. Calinda, encontrando-a na escada, soltou uma risada pesarosa.

— Eu sabia que não conseguiria arrancar nenhum trabalho de Rael hoje... ele está além do meu controle, seu pai deve enviá-lo em breve para Nevarsin, a fim de aprender com homens que possam controlá-lo. Mas você também precisa ir ao mercado, Romilly? Ora, está bem... — Calinda fez uma pausa, sorrindo gentilmente para sua pupila. — Pode ir, se quiser, tirarei o dia inteiro para trabalhar com Mallina em sua caligrafia... ela aceita melhor a orientação quando você e Rael não estão presentes para ouvirem. E acho que você não se concentraria no livro se seu coração e pensamentos estiverem no pátio. Mas amanhã terá de estudar com o dobro da atenção.

Romilly abraçou a mulher mais idosa com um vigor que a deixou ofegante.

— Obrigada, Calinda, muito obrigada!

Ela esgueirou-se com todo cuidado por entre a lama do pátio e foi para o campo. Davin exibia num vôo com isca um dos falcões mais bem-treinados, um enorme pássaro em cuja preparação Romilly tivera uma grande participação; ela ficou observando no maior excitamento, até que Davin avistou-a.

— E este falcão é impetuoso e forte, mas tão gentil que até uma jovem donzela pode fazê-lo voar — declarou Davin. — Ama Romilly, quer pegar o pássaro?

Ela pôs a luva e estendeu o braço. Davin passou o falcão para seu pulso e girou a isca. O pássaro alçou vôo, subiu depressa para o céu e depois, enquanto a tira de couro com a carne e as plumas baixava, atacou tão rapidamente que os olhos mal puderam acompanhar o movimento. Romilly recolheu o pássaro e a isca, começou a alimentá-lo com a mão livre, sob o acompanhamento de gritos de espanto e admiração.

— Ficarei com esse falcão para minha dama — disse Cathal Aldaran de Scathfell. — Ela não tem feito exercícios suficientes desde que as crianças nasceram, e um falcão tão bom a estimulará a sair, andar a cavalo...

— Nada disso — interveio o Dom Gareth mais velho. — Nenhuma mulher irá caçar com um falcão assim sob meu teto; mas seus métodos de treinamento são excelentes, messire, e ficarei com um dos falcões menores para Dama Darissa... Por acaso tem um bom falcão para uma dama? Ama Romilly, não poderia me aconselhar sobre o falcão mais apropriado para minha nora?

Romilly baixou os olhos recatadamente.

— Eu posso caçar com um falcão verrin, vai dom, mas com qualquer desses... — ela indicou três dos pássaros menores, com envergaduras de asa que não iam muito além da extensão de seu braço. — ... são bem-treinados e acho que Darissa não teria dificuldades para controlá-los. Mas dou minha palavra, senhor, de que não haverá problemas se quiser comprar o pássaro maior para ela. É tão bem-treinado que Darissa poderia caçar com ele. E os pássaros maiores são melhores na hora de caçar para a cozinha; os menores não são capazes de pegarem nada maior do que um mussaranho.

Ele soltou uma risada desdenhosa.

— As mulheres da minha casa não precisam caçar para que haja carne na panela; se caçam com falcões, é apenas como pretexto para respirarem o ar fresco e fazerem exercício. E o MacAran ainda permite que uma garota crescida como você cace com um falcão verrin! Mas que vergonha!

Romilly reprimiu o protesto em seus lábios — Aldaran pode não aprovar as mulheres que cacem com falcões, mas talvez outros homens não sejam tão tacanhos e antiquados como ele —, compreendendo que uma resposta insolente só serviria para eliminar um valioso vizinho e freguês de seu pai. Embora produzissem a maior parte do que precisavam na propriedade do Ninho dos Falcões, o dinheiro cunhado era sempre escasso e quase todo o disponível do pai provinha daquela venda anual. Ela fez uma reverência para Lorde Scathfell e recuou, devolvendo o falcão a Davin. Enquanto ele negociava com o homem, Romilly correu os olhos pelo campo, assustada — o pai poderia ter tomado a decisão de puni-la com a venda de Preciosa. Mas Preciosa não estava ali, ainda se encontrava em sua gaiola, sã e salva. No outro lado do campo o pai mostrava alguns de seus melhores cavalos, enquanto o homem do canil exibia cães treinados, que obedeciam à palavra ou gesto. A alta nobreza que dançara no castelo durante a noite anterior misturava-se com os pequenos proprietários e fazendeiros, que precisavam de cães para seus rebanhos ou talvez para trocar por um cavalo rejeitado pelos nobres. Darren também estava no outro lado, anotando todos os detalhes das transações para o intendente; Rael corria de um lado para o outro no meio da multidão, fazendo travessuras com um grupo de meninos de sua idade, o rosto e as mãos já imundos, o casaco rasgado.

— Pode me levar para ver os cavalos de seu pai? — indagou Alderic, surgindo de repente ao lado de Romilly. — Eu gostaria muito de trocar meu matungo por algo melhor; não disponho de muito dinheiro, mas talvez pudesse trabalhar algum tempo para ele em troca da diferença... acha que ele se interessaria por um negócio assim? Já notei que seu coridom é velho e fraco... talvez eu pudesse trabalhar para ele por quarenta dias, ou por aí, até que encontre um homem mais adequado às necessidades de seu negócio e possa transferir o velho para um serviço dentro de casa.

Romilly piscou surpresa. Começara a ter certeza de que Alderic era de fato o príncipe Hastur disfarçado e ali estava ele se oferecendo como um trabalhador remunerado ao MacAran em troca de um cavalo! Mas ela disse polidamente:

— Sobre a transação, deve perguntar diretamente; mas temos bons cavalos que não são tão bonitos a ponto de atraírem a atenção dos nobres e devem ser vendidos a um preço menor; talvez um deles atenda às suas necessidades, se for bem-treinado. Aquele, por exemplo...

Ela apontou um cavalo grande e desgracioso, de horrível tonalidade marrom e manchas pretas irregulares, a crina e a cauda um pouco tortas.

— É um bruto feio e ossudo, mas se prestar atenção à sua andadura, à maneira como balança a cauda, vai perceber que é um bom cavalo, forte e também fogoso. Mas não é cavalo para uma dama ou para homem de mãos macias, que prefere seu animal andando num ritmo suave, exige mãos firmes e um bom controle. O pai foi nosso melhor garanhão, mas a égua era de qualidade inferior. Por isso, seu sangue não é ruim, mas saiu um cavalo feio, de cor horrível.

— O lombo parece mesmo forte — comentou Alderic. — Mas eu gostaria de examinar seus dentes pessoalmente. Ele já foi acostumado à sela?

— Já, sim, embora a princípio o pai tencionasse convertê-lo em cavalo de tiro, pois é grande demais para a maioria dos cavaleiros. Mas você é alto, precisaria de um cavalo grande. Foi Ruyven quem o domou, mas eu mesma já o montei... — Uma pausa e Romilly acrescentou, com um sorriso malicioso: — ... embora o pai não saiba disso e você não precise contar.

— E pode dominá-lo, damisela?. — indagou Alderic, com expressão de incredulidade.

— Não vou montá-lo diante de toda essa gente para provar, mas não me rebaixaria a mentir a respeito e... — os olhos dos dois se encontraram por um instante — ... acho que você provavelmente saberia se eu estivesse mentindo.

— Tem razão, Romilly — ele murmurou, solenemente.

— Dou minha palavra de que o cavalo é de bom gênio, mas precisa de um controle firme. Talvez tenha senso de humor... se um cavalo é capaz de rir, eu poderia jurar que já o vi rindo das pessoas que pensam que só precisam montar num cavalo e deixá-lo fazer todo o trabalho. Derrubou Darren em dois minutos. Mas meu pai pode montá-lo até sem o freio, apenas com a sela e as rédeas; porque O MacAran sabe como obrigá-lo a se comportar... ou a qualquer outro cavalo.

— E já me disseram que você possui o mesmo dom, Romilly. Muito bem, farei uma oferta a seu pai. Acha que ele aceitaria meu cavalo em troca?

— Claro que sim. Ele sempre precisa de cavalos baratos para vender aos fazendeiros... a homens que sabem usar corretamente seus animais, mas não têm condições de comprar os melhores. Ele deu uma de nossas velhas éguas, que não tinha mais idade para carregar jovens que passavam o dia inteiro na sela, quase de graça, a um homem idoso que vive aqui perto, pobre demais para comprar um bom cavalo. Assim, a pobre égua levaria o resto de sua vida numa boa casa e fazendo apenas trabalho leve. Tenho certeza de que faria a mesma coisa com seu cavalo. Ele é muito velho?

— Não — respondeu Alderic. — Mas preciso estar em Hellers quando o verão chegar, e mesmo no verão é preciso um bom cavalo para andar por aquelas trilhas.

— Vai para as Hellers?

Romilly especulou sobre o que poderia levá-lo à cordilheira quase intransponível no verão, mas ele tratou de mudar de assunto habilmente, antes que ela pudesse perguntar.

— Eu não esperava encontrar uma moça que conhecesse os cavalos tão bem... como sabe tanta coisa?

— Sou uma MacAran, senhor. Tenho trabalhado ao lado de meu pai desde que tinha idade suficiente para acompanhá-lo aos estábulos e depois que Ruyven foi embora...

Ela parou de falar, incapaz de dizer a alguém que não da família que a deserção do irmão mais velho deixara o pai sem ninguém, além dos criados, para partilhar seu amor pelos animais que criava e treinava. Contudo, sentiu que Alderic compreendia, pois ele sorriu solidário.

— Gosto de seu pai. Ele é rigoroso, é verdade, mas é justo e fala livremente com os filhos.

— Seu pai não era assim?

Alderic sacudiu a cabeça.

— Mal falei meia dúzia de vezes com meu pai desde que deixei de usar fraldas. Minha mãe se uniu a ele num casamento dinástico e havia pouco amor entre os dois; duvido que tenham trocado alguma palavra cortês desde que minha irmã foi concebida, e agora habitam em casas separadas, encontram-se formalmente poucas vezes por ano, não mais do que isso. Creio que meu pai é um homem bondoso, mas tenho a impressão de que não pode fitar meu rosto sem ver as feições de minha mãe, e por isso se sente contrafeito em minha presença. Mesmo quando criança, eu o chamava de senhor e mal nos falamos depois que me tornei adulto.

— Não pode ter sido há tanto tempo assim — zombou Romilly. Mas ele disse, com uma intensidade que a deixou gelada:

— Seja como for, eu a invejo. Vi Rael subir sem medo no colo de seu pai... Não posso me lembrar de ter feito isso alguma vez com meu pai. Mas vocês podem procurar seu pai, conversar com ele livremente. E ele os trata quase como amigos, escuta o que dizem. Embora meu pai seja alto em... — Alderic fez uma pausa, houve um momento de silêncio constrangedor, antes que ele acrescentasse, desolado: — ... alto em posição e honra, eu gostaria de não estar sempre obrigado a tratá-lo por Milorde. Juro que trocaria de pai com você a qualquer momento.

— Ele pode achar que é um bom negócio — murmurou Romilly, amargurada; mas ela sabia que isso não era verdade: o pai a amava, por mais rigoroso que fosse, e ela sabia disso. — Olhe, lá está ele, e no momento não tem nenhum freguês para atender. Procure-o e faça sua proposta por Asa Vermelha.

— Obrigado.

Ele se afastou e um instante depois Davin chamou Romilly e pediu-lhe que mostrasse as habilidades de um cachorro que treinara. Ela tornou a esquecer Alderic. Trabalhou o dia inteiro na feira, explicando linhagens e pedigrees, fazendo exibições com os falcões. A refeição do meio-dia foi de pão com queijo e algumas nozes, no cercado por trás dos estábulos, entre os homens do MacAran. Quando as transações foram interrompidas pela chuva vespertina e os convidados começaram a partir, Romilly estava faminta e imunda, ansiosa por um banho, querendo vestir uma túnica e saias velhas, bem confortáveis, para o jantar da família. Sentiu um cheiro agradável de carne assada e pão fresco ao se aproximar do salão, entrou e foi ocupar seu lugar. Rael ainda conversava com qualquer um que estivesse disposto a escutar sobre seu dia entre os animais, e Luciella finalmente silenciou-o, cansada:

— Fique quieto, Rael, ou terá de jantar em seu quarto; há outras pessoas nesta família que também gostariam de falar sem serem abafadas por você. Como foi seu dia, meu caro?

A pergunta era endereçada ao MacAran, enquanto ele sentava e pegava sua caneca, tomando um longo gole antes de responder.

— Muito bom. Fiz um bom negócio com Asa Vermelha, que é um excelente cavalo para alguém que tenha a capacidade de perceber o que existe por baixo de sua feia pelagem. Dom Alderic me disse que você recomendou a venda, Romilly.

O olhar para a filha mais velha era gentil e ela respondeu timidamente:

— Fiz bem, pai? Não queria interferir, mas achei que seria uma boa montaria para Dom Alderic e... — ela olhou ao redor para verificar se Alderic já chegara, mas o lugar de Darren se encontrava vazio ainda e o amigo do irmão também não estava à mesa. — ... ele me disse que estava com pouco dinheiro e por isso eu sabia que um dos pretos estaria além de sua bolsa.

— Fico grato a você, pois queria Asa Vermelha em boas mãos e a maioria das pessoas não seria capaz de controlá-lo — respondeu o pai. — Mas com o jovem Castamir ele foi tão gentil quanto o pássaro engaiolado de uma criança. Por isso, filha, devo lhe agradecer.

Luciella interveio:

— Mesmo assim, este deve ser o último ano em que ela vai para os campos com os homens, mostrando os falcões e cavalos... ela já está muito crescida, Mikhail!

— Não precisa se preocupar com isso — declarou O MacAran, sorrindo. — Também tenho outras notícias. Romilly, minha cara, você sabe que já está em idade de casar. Nunca imaginei que teria uma oferta tão boa por você, mas Dom Garris de Scathfell pediu-me sua mão em casamento e já dei a resposta: sim.

Romilly sentiu que uma gelada mão lhe apertava a garganta.

— Pai! — ela protestou, enquanto Luciella se mostrava radiante e Mallina soltava um grito de excitamento. — Não Dom Garris!

— Vamos, vamos... — murmurou o pai, com um sorriso jovial. — Não entregou seu coração a outro, não é mesmo? Manfred Storn ainda não está pronto para casar e pensei que você amava tanto Darissa que gostaria de casar naquela família, a fim de ficar perto de sua melhor amiga.

— Eu pensava... talvez Cinhil...

— Se aquele jovem brincou com seus sentimentos, vou virá-lo em meus joelhos e tirar a poeira de seu culote... ele é criança demais para merecer ser chamado de um desafio! Por que casar com o irmão mais moço, minha cara, quando pode casar com o herdeiro?

Romilly sentiu um aperto no coração ao recordar o momento na galeria. Eu estava apenas testando você. Vejo agora que é uma boa moça. Ou seja, ela pensou, se gostasse o suficiente de Dom Garris para beijá-lo seria privada do casamento, como se fosse um prêmio por bom comportamento! Mas como ela demonstrara sua aversão, então se tornava digna de suas atenções? Os olhos ardiam, mas ela não choraria na frente do pai.

— Pai, eu odeio ele! — balbuciou ela, suplicante. — Por favor, não me obrigue a casar com aquele homem!

— Romilly — interveio Mallina —, você será Dama Scathfell! Ora, ele é o herdeiro de Scathfell e talvez até de Aldaran algum dia! E a família Aldaran tem o sangue dos Hastur!

O MacAran gesticulou para que a filha mais jovem se calasse.

— Romy — disse ele, muito sério —, o casamento não é uma questão de capricho. Escolhi um bom jovem para você...

— Ele não tem nada de jovem! — explodiu Romilly. — Já enterrou três esposas e todas morreram de parto!

— Isso aconteceu porque ele casou na família Aldaran. Qualquer criador de cavalos poderá lhe explicar que não é muito sábio promover cruzamentos na mesma família com tanta frequência. Você não tem sangue Aldaran e provavelmente lhe dará filhos saudáveis.

Romilly pensou em Darissa, não muito mais velha do que ela, inchada e disforme de gerar filhos. Ficaria assim e os filhos seriam gerados por Dom Garris, com sua voz lamurienta e suas mãos flácidas e úmidas? A perspectiva deixou-a arrepiada.

— Chega de conversa — disse o pai, com firmeza. — Todas as moças tolas pensam que sabem qual é o homem que querem, mas as cabeças mais velhas devem tomar a decisão do que é melhor para suas vidas. Eu não queria casá-la antes da época da colheita... não quero que uma filha minha seja precipitada ao casamento... mas na colheita casará com Dom Garris e isso é tudo o que tenho a dizer.

— Enquanto eu pensava que o senhor promovia uma venda de cavalos e falcões, estava na verdade vendendo suas filhas! — disse Romilly, amargurada. — Diga-me uma coisa, pai: Dom Garris ofereceu um bom preço?

Ela compreendeu, pelo rubor desgracioso que se espalhou no rosto do pai, que o atingira num ponto sensível.

— Não quero saber de sua impertinência, minha jovem atrevida!

— Sei disso. Prefere negociar com falcões e cavalos porque eles não são capazes de reagir... e pode lhes dar o destino que bem quiser!

O MacAram abriu a boca para responder, mas depois limitou-se a lançar-lhe um olhar agressivo e disse a Luciella:

— É sua obrigação manter minhas filhas sob controle, cuide disso, está bem? Jantarei com o intendente, não quero ouvir discussões à mesa da minha família.

Ele se levantou e saiu.

— Oh, mãe! — balbuciou Romilly, perdendo o controle e pondo a cabeça no colo de Luciella. — Tenho mesmo que casar com aquele... aquele... — as palavras quase lhe faltaram, mas acabou encontrando a que procurava. — ... aquele lesma? Ele mais parece uma coisa com uma dúzia de pernas que saiu rastejando debaixo de um tronco podre!

Luciella afagou seus cabelos gentilmente, perplexa.

— Calma, calma, criança... Não será tão ruim quanto imagina. Não disse a Dom Alderic que um cavalo não deve ser julgado por uma pelagem feia? Dom Garris é um homem bom e honrado. E na sua idade eu já havia tido meu primeiro filho, assim como sua própria mãe, Romy. Calma, calma, não chore...

Romilly sabia que não teria ajuda daquele lado; Luciella nunca desafiaria seu pai. E ela também não podia fazê-lo. Era apenas uma moça, e não havia escapatória.

Sozinha em seu quarto ou cavalgando pelas colinas com Preciosa na sela, Romilly refletiu sobre o que poderia fazer. A impressão era de que estava encurralada. Nunca soube de seu pai haver alterado uma decisão proferida — ele não queria ouvir falar de perdão para Ruyven, por exemplo — ou mudar uma decisão, depois de tomada. Não romperia seu acordo com Dom Garris — ou fora com o próprio Gareth de Scathfell? —, mesmo que os céus caíssem. Sua governanta, até mesmo a madrasta, podiam às vezes ser desobedecidas ou dissuadidas de uma punição ou julgamento; em todos os anos de sua vida, porém, o pai nunca voltara atrás no que dissera, mesmo quando sabia que estava errado. Por todas as Colinas Kilghard a palavra de um MacAran era como a palavra de Hastur: tão válida quanto um compromisso assinado ou o juramento de outro homem.

E se ela o desafiasse? Não seria a primeira vez. Alguma coisa em seu íntimo intimidou-se ao pensamento da ira do pai. Mas quando comparou a raiva do pai com a alternativa, confrontar Dom Garris e a lembrança do desejo em seus olhos, concluiu que preferia que o pai a espancasse todos os dias durante um ano do que entregá-la a Dom Garris. Será que ele não sabia como era aquele homem? E então, com um aperto no coração, ela compreendeu que O MacAran era um homem e nunca perceberia aquele lado de Garris de Aldaran; o lado que Dom Garris mostrava apenas à mulher que desejava.

Vomitarei se ele me tocar, pensou Romilly; e decidiu que devia fazer um apelo final ao pai, por maior que fosse sua ira.

Encontrou-o no pátio, supervisionando um cavalariço que aplicava cataplasmas nos boletos de um pônei preto que caíra no pátio. Sabia que não era o momento apropriado, pois ele parecia irritado e distraído.

— Mantenha os cataplasmas — ordenou O MacAran ao menino. — Quente e frio, durante duas horas pelo menos, depois passe o pó karalla e enfaixe bem. E cuide para que ele não deite no esterco... providencie a troca da palha a intervalos de poucas horas. Mesmo com tudo o que pudermos fazer, terei de vendê-lo com prejuízo ou guardá-lo para trabalho leve na fazenda; se os boletos ficarem infeccionados podemos perdê-lo. Vou deixá-lo sob seus cuidados... se alguma coisa sair errada, arrancarei sua pele, seu pequeno patife, pois foi sua negligência ao montar que o fez cair!

O cavalariço abriu a boca para protestar, mas O MacAran gesticulou para que permanecesse em silêncio.

— E não me venha com uma resposta atrevida! Vi quando corria com ele sobre as pedras! Seu idiota, eu devia pô-lo para recolher o esterco e não deixá-lo exercitar qualquer dos animais durante quarenta dias! — Ele virou a cabeça, irritado, avistou Romilly. — O que você quer nos estábulos, menina?

— Vim à sua procura, pai — ela respondeu, fazendo um esforço para manter a voz firme. — Gostaria de lhe falar, se puder me dispensar algum tempo.

— Tempo? Não tenho nenhum esta manhã, com o pónei ferido e talvez perdido.

Mas ele saiu do estábulo e foi se encostar numa cerca.

— Qual é o problema, criança?

Romilly não foi capaz de falar por um momento, a garganta apertando, enquanto contemplava o panorama, as montanhas que se elevavam no outro lado do vale, o pasto verde com as éguas prenhas perto da hora de parir, pastando placidamente, a lavagem de roupas no pátio, um caldeirão fumegante sobre a fogueira de gravetos... tudo aquilo lhe era tão querido e agora, o que quer que acontecesse, teria de partir... Ninho dos Falcões era um lugar que amava tanto quanto qualquer dos filhos de seu pai, mas teria de ir embora para casar, enquanto os homens, até mesmo Ruyven, que abandonara tudo, poderiam permanecer ali para sempre, entre os cavalos e as colinas conhecidas. Ela engoliu em seco e sentiu as lágrimas se derramarem olhos abaixo. Por que não podia ser herdeira do pai no lugar de Ruyven, já que ele não se importava com nada, trazer seu marido para o Ninho dos Falcões, em vez de casar com alguém que odiaria e viver em um lugar estranho?

— O que é, filha? — o pai perguntou gentilmente.

Romilly compreendeu que ele vira suas lágrimas. Ela tornou a engolir em seco, tentando controlar a voz.

— Pai, sempre soube que deveria casar um dia e teria o maior prazer em cumprir sua vontade, mas... mas... por que tem de ser com Dom Garris? Eu o odeio! Não posso suportá-lo! Aquele homem é como um sapo!

Sua voz se alteou e o pai franziu o rosto, mas apressou-se em desanuviá-lo, naquela calma forçada que ela tanto temia.

— Procurei promover o melhor casamento possível para você, Romy. Ele está próximo de herdar Scathfell e não muito longe de herdar também Aldaran de Aldaran, caso o velho morra sem filhos, o que agora parece provável. Não sou um homem rico e não posso pagar um grande dote para você; e Scathfell é bastante rico para não se importar com o que você possa levar. Dom Garris precisa de uma esposa...

— E já acabou com três! — exclamou Romilly, desesperada. — E vai casar de novo com uma garota de quinze anos...

— Um dos motivos pelos quais ele a pediu em casamento foi o fato de que as outras esposas eram doentias e parentes muito próximas; queria sangue novo para a casa. Se você lhe der um filho saudável, receberá grandes honras e terá tudo o que puder desejar...

— E se isso não acontecer, estarei morta e ninguém terá de se preocupar se sou feliz ou não! — gritou Romilly, as lágrimas voltando a escorrer. — Pai, não posso e não me casarei com aquele... aquele homem nojento! Oh, pai, não estou tentando desafiá-lo, casaria de bom grado com qualquer outro... Chinil ou... ou Dom Alderic...

— Alderic, hem? — O pai pegou seu queixo com a mão enorme e levantou o rosto para fitá-lo. — Diga-me a verdade, criança. Andou brincando de uma maneira que não deveria? Dom Garris espera encontrá-la casta; ele ficará desapontado. Aquele arrogante jovem Castamir abusou de seus sentimentos, menina? Um hóspede sob este teto...

— Dom Alderic nunca me falou uma só palavra ou fez qualquer coisa que não pudesse ser feita à sua vista e da mãe! — protestou Romilly, indignada. — Só falei seu nome porque não o acharia repulsivo, assim como Chinil ou qualquer outro jovem saudável e gentil próximo da minha idade! Mas aquele... aquele pegajoso...

As palavras lhe faltaram e ela mordeu os lábios com força para não chorar.

— Romilly — disse o pai gentilmente, ainda segurando seu rosto entre as mãos —, Dom Garris não é tão velho assim. E afinal de contas não é como se eu tentasse entregá-la a Lorde Gareth ou a algum homem notoriamente perverso, bêbado, jogador ou perdulário. Conheço Garris por toda a sua vida; é um jovem de bem, honrado e bem-nascido, não pode recusá-lo por seu rosto, já que ele não o fez. Um rosto bonito não demora a se desgastar, mas honra, bom nascimento e um temperamento generoso são os atributos que desejo ver no marido de minha filha. Você é apenas uma jovem tola e não pode ver além do rosto bonito de um homem e da elegância ao dançar; e é por isso que os pais e mães promovem os casamentos das filhas, a fim de que possam perceber o verdadeiro valor de um homem.

Ela engoliu em seco e sentiu a vergonha dominá-la por ter de falar sobre uma coisa assim com o pai, mas a alternativa era pior.

— Ele... ele me olha de uma maneira... como se eu estivesse nua... e quando estávamos dançando, pôs as mãos em mim...

O pai franziu o rosto e desviou os olhos, ela compreendeu que ele também se sentia embaraçado. O MacAran finalmente suspirou e disse:

— O homem está querendo uma esposa, isso é tudo; depois de casar, não precisará agir assim. E pelo menos sabe que ele não é um... — o pai tossiu nervosamente. — ... ele não é um amante de homens e não a abandonará para ficar de mãos dadas com um pajem ou um guarda. Acho que ele será um bom marido, Romy. Pode ser desajeitado e não saber como revelar a você quem é realmente, mas estou convencido de que tem as melhores intenções e que vocês serão felizes juntos.

Romilly sentiu as lágrimas aflorarem e escorrerem. E disse, sentindo a voz tremer nos soluços:

— Pai... oh, pai, por favor... qualquer um, qualquer outro, juro que obedecerei sem a menor hesitação, mas não... não Dom Garris...

O MacAran amarrou a cara, mordendo o lábio.

— Romilly, a coisa já foi longe demais para que eu possa recusar honrosamente. Os Scathfell são vizinhos e dependo de sua boa vontade, romper minha palavra a esta altura seria uma afronta à honra deles de que eu não poderia me recuperar pelo resto da vida. Se tivesse alguma ideia de que você se sentia assim, nunca teria dado minha palavra; mas o que está feito, está feito; assumi um compromisso de honra. Não há mais nada a dizer, criança. Você é jovem; muito em breve se acostumará com ele e ficará bem, eu garanto. Vamos, anime-se agora, não chore; prometi-lhe um par de bons pretos, domados por minha própria mão, como presente de casamento, também lhe darei aquela pequena fazenda em Rocha Cinzenta, a fim de que tenha sempre seu lugar. E disse a Luciella que mandasse procurar nos mercados de Caer Donn os melhores tecidos para seu vestido de núpcias, a fim de que não tenha de casar com um traje fiado em casa. Anime-se, enxugue os olhos e escolha pessoalmente os pretos que quer como presente de casamento. Pode também pedir a Luciella para lhe fazer vestidos novos, três... não, quatro vestidos novos, e todos os seus complementos, todas as anáguas, plumas e toucas, todas essas coisas que as mulheres usam e apreciam tanto, pois nenhuma estará mais bem vestida do que você em seu casamento.

Romilly abaixou a cabeça, engolindo em seco mais uma vez. Sabia antes que era irremediável, o pai dera sua palavra a Dom Garris e Lorde Scathfell. Não recuaria agora, e tudo seria inútil, não importava o que ela dissesse. O pai interpretou seu silêncio como concordância e afagou-lhe o rosto.

— É assim que se faz — ele murmurou, constrangido. — Estou orgulhoso de você, criança... Será que algum de seus irmãos teria tanta força e espírito?

— Eu gostaria de ser seu filho e poder ficar em casa com você para sempre...

O pai abraçou-a gentilmente.

— Eu também gostaria, menina — ele disse, os lábios roçando nos cabelos da filha. — Eu também... Mas cabe aos homens desejarem e aos Deuses concederem, só o Portador dos Fardos sabe por que conferiu apenas à minha filha as coisas que um homem quer em seus filhos. O mundo continuará como deve e não como você e eu gostaríamos, Romy.

Ele acariciou-a e Romilly chorou, chorou desesperadamente, como se nunca mais fosse parar.

De certa forma, ela pensou depois, angustiada, a compaixão do pai tornara tudo ainda pior. Se ele explodisse, gritasse, a ameaçasse com uma surra, ela poderia pelo menos sentir que tinha o direito de se rebelar. Diante da gentileza do pai, podia apenas ver sua posição — que ela era jovem, que seus bons pais e guardiães faziam o que julgavam melhor para ela, que estava sendo tola e insensata ao se manifestar contra a decisão.

Tentou dar a impressão de que estava interessada nos preparativos para o casamento, que seria realizado na época da colheita, como determinara O MacAran. Luciella encomendou em Caer Donn a melhor seda-de-aranha para a confecção do vestido de casamento, assim como tecidos tingidos para seus novos vestidos: vermelho, azul e violeta, além de muitas anáguas, camisolas e outras roupas de baixo que despertaram a inveja de Mallina e deixaram-na de mau humor enquanto eram costuradas.

Uma manhã entrou no pátio um cavaleiro procedente de Scathfell e descobriu uma gaiola que se encontrava à sua frente na sela.

— Uma mensagem de Dom Garris, senhor — disse ele ao MacAran —, e um presente para Ama Romilly.

O MacAran pegou a carta, franziu ligeiramente o rosto e abriu-a, depois disse ao filho:

— Seus olhos são melhores do que os meus, Darren. Leia para mim.

Romilly pensou, contrariada, que se a carta era a seu respeito, ela é que deveria ler. Mas talvez O MacAran não quisesse que os outros soubessem que a filha tinha mais conhecimentos do que o filho educado em Nevarsin. Darren correu os olhos pela carta, franziu o rosto e depois leu em voz alta:

— Ao MacAran do Ninho dos Falcões e à minha prometida esposa Romilly, saudações de Gareth-Regis Aldaran de Scathfell. Sua filha informou-me de que costuma caçar com um falcão verrin, o que é compreensível na filha do melhor treinador de falcões da região, mas seria impróprio para a esposa do Herdeiro de Seathfell. Por isso, tomo a liberdade de enviar para ela duas fêmeas da melhor qualidade, que adornarão de maneira condizente o mais belo pulso em todas as Colinas Kilghard, a fim de que ela não precise caçar com um falcão de homem. Suplico a aceitação desses pássaros e os mando agora para que ela possa se acostumar a seu vôo. Transmito meus cumprimentos e lembranças respeitosas à minha prometida esposa e as minhas saudações mais honradas ao senhor. — Darren levantou os olhos e acrescentou: — Tem o próprio sinete de Scathfell.

O MacAran alteou as sobrancelhas, mas disse:

— Uma carta cortês, sem dúvida. Descubra a gaiola, homem.

A capa removida, dois lindos falcões foram revelados; eram pequenos, os capuzes de couro tingido de vermelho, com o timbre de Aldaran em fio dourado. As peias também brilhavam com fios de ouro. Os pássaros estavam lustrosos de saúde e Romilly prendeu a respiração ao contemplá-los.

— Um lindo presente, e muito atencioso. Diga a meu... a meu prometido marido... - ela hesitou, sem encontrar as palavras certas. — ...que estou muito grata e caçarei com estes pássaros pensando nele.

Ela estendeu o pulso e levantou um dos falcões na luva. O pássaro mostrou-se tão tranquilo que ela compreendeu que fora treinado com perfeição. Não importava que aqueles falcões não servissem para outra coisa além de caçar camundongos-do-campo, eram pássaros requintados e a atitude de Dom Garris, preocupando-se com seu interesse conhecido, constituía um bom sinal. Durante algum tempo ela pensou melhor de seu prometido marido. Mais tarde, porém, começou a ter outra impressão: aquela seria apenas a maneira que ele encontrara de lhe dizer que não permitiria que trabalhasse com um bom falcão depois que se tornasse sua esposa? Seria impróprio para a esposa do Herdeiro de Scathfell. E ela tomou a decisão inabalável de não renunciar a Preciosa, não importava o que lhe dissessem ou quanto a pressionassem. O vínculo entre os dois era forte demais para que se separassem.

Ao caçar com os pequenos falcões pela primeira vez — com o sentimento de culpa de estar sendo desleal a sua amada Preciosa — Romilly procurou fazer contato, alcançar o vínculo intenso entre falcão e voador. Mas os pequenos pássaros apenas irradiavam um sentimento de confusão, de exultação; não havia uma emoção íntima, o senso de contato e união — os falcões menores eram muito primários para possuírem a capacidade de laran. Sabia que os pássaros de gaiola não tinham tais faculdades — tentara algumas vezes se comunicar com eles —, na verdade "a mente de um pássaro de gaiola" era como uma mulher estúpida. Caçar com os pequenos falcões não tinha a menor graça, podia observá-los em vôo e não restava a menor dúvida de que eram bonitos, mas não existia a emoção, o sentimento de união e integração que experimentava com Preciosa. Caçava com eles diligentemente todos os dias pelo exercício, mas era sempre com alívio que tornava a encapuzá-los e lançava Preciosa ao céu, escalando o ar com ela num êxtase de vôo e liberdade.

Saía agora principalmente com Darren, e as vezes com Rael; Alderic iniciara o trabalho de coridom e estava sempre ocupado com as contas, acerto dos livros de pedigrees e supervisão dos muitos homens no castelo e estábulos. Romilly raramente o encontrava, só trocavam uma ou outra palavra cortês ao sentarem junto do fogo à noite, jogando castelos ou cartas, junto com Darren ou o pai, ou às vezes fazendo brinquedos de madeira para divertir Rael.

Os dias de Romilly também eram bastante movimentados. O pai dissera que não precisava mais de aulas e o plano de estudar contas com o velho intendente fora abandonado, já que ela casaria em breve. Mas Calinda preenchia seus dias com costura, ensinava como devia supervisionar as costureiras e cozinheiras... até mesmo as leiteiras. Não que houvesse muita necessidade que ela fizesse tais coisas, mas assim poderia saber se as criadas trabalhavam direito ou não, explicara Calinda. Lorde Scathfell era viúvo e ela seria a primeira dama em autoridade lá; não podia deixar que pensassem que o Ninho dos Falcões era um lugar mal administrado a tal ponto que uma de suas filhas não era capaz de supervisionar as mulheres de lá. Romilly pensou que preferia entrar pessoalmente nos estábulos, ordenhar os animais e fazer a manteiga, em vez de supervisionar outras mulheres cuidando disso; quanto às costureiras, tinha certeza de que a mais jovem e menos experiente seria melhor do que ela, e sendo assim, como poderia ter a presunção de supervisionar, muito menos repreender e corrigir? Luciella pegou uma das velhas bonecas de Mallina, vestiu-a com roupas de bebê descartadas de Rael e ensinou a Romilly e Mallina como dar banho num bebê, como segurá-lo e sustentar a cabeça pendente, como trocar a fralda e o que fazer para evitar que a criança tivesse brotoejas e outros problemas de pele. Romilly não podia compreender por que, se havia tantas babás e parteiras competentes em Scathfell e Darissa com duas crianças — não, três àquela altura — precisava aprender a fazer tudo aquilo pessoalmente, antes mesmo de ter algum filho. Mas Luciella insistiu que era parte dos conhecimentos necessários de uma jovem esposa. Romilly não tinha qualquer objeção em particular a ter filhos — Rael fora adorável como bebê —, mas, ao pensar a respeito, a primeira coisa que aflorava a sua mente era Darissa, mole, flácida, gorda e indisposta, depois o processo inevitável para conceber as crianças. Fora criada entre animais e era saudável, pensara muitas vezes com um prazer secreto no momento em que teria um amante, um marido, mas quando tentava ajustar o rosto de Dom Garris nesse lugar, o que (a seu crédito) tentou virtuosamente, apenas sentiu-se nauseada. E agora, mesmo quando pensava em qualquer outro homem, a simples idéia deixava-a repugnada e tonta. Não, não poderia, teria de fugir, iria se juntar à Irmandade da Espada, constituída só por mulheres, usaria armas e lutaria como mercenária para um dos reis que disputavam aquela terra, cortaria os cabelos e furaria as orelhas — e quando chegava a esse ponto, compreendia como era tola, pois se fugisse eles a seguiriam e a arrastariam de volta. E punha-se então a formular planos desvairados, um apelo final ao pai, à madrasta, ao próprio Lorde Scathfell... quando lhe pusessem as pulseiras gritaria "Não!" e as arrancaria; quando tentassem levá-la para o leito nupcial atacaria Dom Garris com uma faca... Com toda a certeza ele a repeliria, não iria mais querê-la... Diria a ele o quanto o detestava e Dom Garris se recusaria a aceitá-la...

Mas sabia, no fundo de seu coração, que tudo isso seria inútil. Devia casar... e não podia!

O verão foi se arrastando; a neve vespertina era apenas alguns pingos de chuva, as colinas brilhavam com flores e árvores viçosas; as moitas-nogueiras estavam cobertas por carocinhos verdes que amadureceriam em nozes, e quase todos os dias Romilly e Mallina podiam colher cogumelos frescos nos lados das árvores antigas em que haviam sido implantadas raízes de fungos. Ela colhia amoras e ajudava a transformá-las em conservas, ajudava a bater manteiga e raramente dispunha de tempo para um passeio a cavalo, muito menos para oferecer um exercício apropriado a Preciosa; mas todos os dias visitava seu falcão na gaiola e pedia a Darren ou Alderic para caçar com ele. Darren tinha medo de falcões e ainda os evitava sempre que podia, mas Alderic saía com Preciosa em sua sela sempre que dispunha de algum tempo.

— Mas ela não caça direito para mim — informou Alderic uma noite. - Acho que sente saudade de você, Romilly.

— E estou negligenciando-a — murmurou Romilly, com uma pontada de remorso.

Ela própria criara o vínculo com aquele pássaro selvagem; não podia agora traí-lo. E resolveu que no dia seguinte, não importava que deveres Luciella lhe impusesse, encontraria algum tempo para sair a cavalo e levaria o falcão.

Fez suas tarefas na manhã seguinte com tanta rapidez e disposição que Luciella ficou espantada e comentou:

— O que você não é capaz de fazer quando está com vontade, criança!

— Como já terminei tudo, mãe adotiva, posso levar meu falcão para caçar um pouco?

Luciella hesitou, mas acabou dizendo:

— Pode, sim... mas não deve negligenciar o presente de Dom Garris. Vá logo, Romilly, divirta-se no ar fresco.

Liberada, ela correu para pôr o traje de montaria e botas, ordenou que seu cavalo fosse selado — supunha que teria de ser uma sela feminina, mas montar assim ainda era melhor do que não montar — e partiu para a casa dos falcões. Darren estava no pátio, exercitando dois falcões, com uma expressão sombria. Romilly notou seus movimentos desajeitados e disse-lhe que ia sair para caçar com seu falcão... ele não gostaria de acompanhá-la? Ele aceitou, aliviado, mandou que também selassem seu cavalo. Romilly tirava Preciosa da gaiola, sentindo o peso familiar na mão enluvada com a maior satisfação, projetando seus sentidos para o falcão, a fim de restabelecer o contato, quando o pai apareceu.

— Romilly!— ele disse bruscamente. — Leve seus próprios falcões, não esse! Sabe o que disse seu prometido marido: é impróprio para uma mulher caçar com um falcão verrin, e você tem seus próprios falcões. Ponha esse de volta na gaiola.

— Pai! — ela protestou, num súbito ímpeto de raiva. — Preciosa é meu falcão, eu mesma a treinei! É meu, meu! Ninguém mais caçará com ela! Como pode ser impróprio para mim caçar com um falcão que treinei? Vai deixar que Dom Garris lhe diga o que é certo para sua própria filha fazer, em sua própria casa?

Ela viu o conflito e consternação no rosto do pai, mas ele disse, o tom ainda ríspido:

— Mandei pôr esse falcão de volta na gaiola e sair com os seus! Não admitirei que me desafie, menina!

Ele avançou para cima da filha. Preciosa sentiu a agitação de Romilly e bateu as asas freneticamente, debateu-se furiosa em seu pulso, esticando as peias amarradas ao máximo, depois se acalmou, irrequieta.

— Pai... — suplicou ela, baixando a voz para não perturbar os pássaros que se assustavam facilmente — ... não faça isso...

O MacAran estendeu a mão, segurou com firmeza as patas de Preciosa e colocou-a de volta na gaiola.

— Vai me obedecer, e ponto final.

— Ela não está tendo exercício suficiente — suplicou Romilly. — Precisa caçar.

O MacAran fez uma pausa.

— Tem razão.

Ele chamou Darren e sacudiu a cabeça para indicar Preciosa.

— Pode pegá-la. Ela é sua. Precisa de um bom falcão para trabalhar, e este é o melhor que temos. Saia com ele hoje e comece a se acostumar.

A boca de Romilly se entreabriu numa surpresa indignada. O pai não podia fazer aquilo com ela... não podia fazer aquilo com Preciosa! O MacAran tornou a pegar o pássaro, segurou-o firmemente até que o esvoaçar se reduzisse, depois colocou-o no pulso de Darren. Ele recuou abruptamente, aturdido. Preciosa, mesmo encapuzada, esticou a cabeça, tentando bicar alguma coisa, bateu as asas. Darren esquivou-se, virando o pulso, de tal forma que o falcão perdeu o equilíbrio e caiu, pendendo das peias. O MacAran disse, num sussurro rouco:

— Pegue-o! E trate de aquietá-lo! E se partir uma única de suas asas de vôo, vou quebrar seu pescoço, menino!

Darren fez alguns movimentos ineficazes para acalmar o pássaro, conseguindo finalmente mantê-lo um pouco quieto em sua luva. Mas sua voz soou estridente quando disse:

— Não... não é justo, senhor. Pai, eu lhe suplico... Romilly treinou esse falcão pessoalmente e com seu laran...

— Cale-se, rapaz! Não se atreva a dizer essa palavra na minha presença!

— Recusar-se a ouvir não fará com que seja menos verdadeira, senhor. É o falcão de Romilly, ela o treinou, ela o mereceu e não o quero... Não o tirarei de Romilly!

— Mas terá de recebê-lo de mim! — O MacAran projetou o queixo para a frente, furioso. — Como se atreve a dizer que não posso dar um falcão que foi treinado em minha própria casa? Romilly ganhou falcões de seu prometido marido. Não precisa deste, e você o aceitará ou...

Ele inclinou-se para Darren, os olhos ardendo, a respiração entrando e saindo ruidosamente.

— Ou torcerei o pescoço do falcão aqui mesmo, na frente de vocês dois! Não admito qualquer desafio em minha própria casa!

Ele fez um gesto ameaçador, como se fosse cumprir a ameaça, e Romilly gritou:

— Não! Não! Por favor, pai, não! Darren, não o deixe... leve o falcão, é melhor você ficar com ele...

Darren respirou fundo, tremendo. Umedeceu os lábios com a língua e ajeitou o falcão no braço.

— Só porque você me pede, Romilly. Só por isso, eu lhe prometo. — Os olhos ardendo, Romilly virou-se para o lado, a fim de pegar um dos falcões pequenos e inúteis que ganhara de presente de Dom Garris. Odiava-os naquele momento, aquelas coisinhas estúpidas. Por mais bonitos que fossem, enfeitados com toda elegância, não passavam de ornamentos, jóias bonitas mas sem sentido, não eram falcões de verdade, não eram como Preciosa. Seu coração ansiava por Preciosa, pousada irrequieta no pulso desajeitado de Darren.

Meu falcão. Meu. E agora o tolo do Darren vai estragá-la... ah, Preciosa, Preciosa, por que isso tinha de acontecer conosco? Ela sentiu que também odiava o pai e até Darren, transferindo Preciosa de sua luva para o poleiro na sela. Lágrimas toldaram seus olhos ao montar. O pai pedira seu grande cavalo cinzento; iria acompanhá-los, ele comunicou, furioso, para se certificar de que Darren usaria o falcão direito; e se não o fizesse, ele aprenderia da mesma forma como aprendera o alfabeto, à custa de uma surra, aplicada com o próprio chicote de montaria do MacAran!

Todos se mantiveram em silêncio, angustiados, enquanto desciam pelo caminho dos picos do Ninho dos Falcões. Romilly seguia por último, olhando para o pai com um ódio irrefreável e para a sela de Darren, onde Preciosa se empoleirava, irrequieta. Irradiou sua consciência, seu laran — já que a palavra fora usada —, para Preciosa, mas o falcão estava agitado demais; sentiu apenas um turbilhão de confusão e ódio, uma ira avermelhada que deixou sua mente atordoada também, até que tudo o que podia era se manter na sela.

Não demorou muito para que alcançassem a vasta campina em que haviam voado os falcões naquele dia... só que, antes, era Alderic quem os acompanhava, um rosto amigo e mãos prestativas, não o pai furioso. Desajeitado, beliscando o falcão em sua pressa, Darren tirou o capuz da cabeça de Preciosa, levantou o punho e lançou-a em vôo; Romilly, projetando seus sentidos para se fundirem com os do falcão que se elevava no ar, sentiu como a fúria se desvanecia enquanto Preciosa voava pelo céu, e pensou, desesperada: Que ela voe livre. Nunca mais voltará a ser minha e não posso suportar a perspectiva de vê-la maltratada por Darren. Suas intenções podem ser boas, mas ele não tem mãos ou coração para falcões. Enquanto penetrava na mente e coração do falcão, Romilly teve a sensação de que toda sua alma se projetava no grito.

Vá, Preciosa! Voe para longe, voe livre... uma de nós pelo menos deve ser livre! Mais alto...mais alto...agora vire e vá embora...

— Romilly, o que a aflige? — A voz do pai era ríspida. — Lance seu pássaro, menina!

Ela voltou, angustiada, à realidade, as mãos experientes soltaram o capuz bordado. O pequeno falcão, brilhando como uma pedra preciosa ao sol vermelho, alçou vôo contra o vento e Romilly ficou observando, sem ver... os olhos estavam toldados pelas lágrimas, toda sua percepção com Preciosa.

Mais alto, mais alto... agora, voe com o vento, para longe, bem longe... livre no vento... voando livre e para longe... uma última e rápida visão do campo, espalhando-se lá embaixo como uma ilustração colorida num dos livros de Rael, depois o frágil vínculo rompeu-se e ela estava sozinha outra vez, sozinha em sua própria mente, as mãos e o coração vazios, ouvindo apenas o estridente grito do pequeno falcão, atacando algum minúsculo roedor na relva... e depois vindo pousar de leve em sua sela. Com gestos automáticos Romilly removeu a pequena carcaça, deixando o falcão alimentar-se de sua luva, mas com o coração vazio.

Preciosa. Ela se foi. Nunca mais...

A cabeça do pai estava inclinada para trás, os olhos esquadrinhavam o céu, na direção em que Preciosa desaparecera.

— Ela se foi há muito tempo — comentou O MacAran. — Romilly, você costuma deixá-la voar até ficar fora de vista?

Ela sacudiu a cabeça. O MacAran esperou, imóvel. Darren também tinha a cabeça inclinada para trás, a boca contraída num "O" de temor. Todos esperaram. Finalmente O MacAran disse em fúria:

— Você o perdeu, seu desajeitado miserável! Nosso melhor falcão e você o perde logo na primeira vez em que o solta! É um filho imprestável, um desgraçado que não serve para nada, a não ser escrever!

Ele levantou o chicote e baixou-o nos ombros de Darren, que soltou um grito, mais de surpresa do que de dor; mas o som fez Romilly entrar em ação. Ela saltou do cavalo e correu para os homens, postando-se entre os dois, de maneira a receber os golpes.

— É em mim que deve bater! — gritou Romilly. Não é culpa de Darren! Eu é que o perdi, deixei-o ir embora... não posso ser livre, devo ficar acorrentada dentro de uma casa e ser privada do meu falcão, seu tirano desgraçado, mas não permitirei que Preciosa fique também acorrentada! Mandei-a embora com meu laran... com meu laran... você afugentou Ruyven com sua tirania, fez Darren ter medo de você, mas eu não tenho medo e pelo menos não maltratará meu falcão outra vez, meu falcão, meu...

Ela rompeu num incontrolável pranto. O pai contivera-se por um momento, quando o primeiro golpe acertara os ombros de Romilly, mas enquanto ouvia a torrente de insultos, enquanto as palavras proibidas Ruyven e laran alcançavam seus ouvidos, o rosto tornou-se sombrio e furioso, congestionado pela ira, ergueu de novo o chicote e bateu com toda força. E continuou a golpear. Romilly estremecia com a dor e gritava para o pai, incoerentemente, mais alto do que nunca; o pai desceu do cavalo e avançou, acertando-a nas costas e ombros com o chicote, até que finalmente Darren passou os braços em torno dele, berrando desesperado; e logo outra voz soou, de Dom Alderic, contendo O MacAran com braços fortes.

— Calma, calma, senhor.. . desculpe, mas não deve bater numa moça assim... bom Deus, Romilly, suas costas estão ensangüentadas... olhe, senhor, até rasgou o vestido!

Ele arrancou o chicote das mãos do pai. O MacAran não esboçou qualquer protesto, baixando os braços, atordoado. Romilly cambaleou, sentindo o sangue escorrer pelas costas, que ardiam. Alderic empurrou o pai para os braços de Darren e foi ampará-la. A ira do MacAran fora substituída pelo torpor; olhou apressado, consternado, para o vestido rasgado de Romilly, onde o chicote cortara o tecido em tiras, desviou os olhos. E balbuciou:

— Eu... eu não sabia o que estava fazendo... e fico lhe devendo, Dom Alderic. .. Eu... eu.. .

A voz lhe faltou. Balançou sem sair do lugar e teria caído se Darren não o segurasse. O MacAran olhou fixamente para Romilly e declarou, a voz áspera:

— Perdi o controle. Não a perdoarei, menina, por ter me levado a agir de maneira tão vergonhosa! Se você fosse um homem, eu a espancaria até ficar sem sentidos! Mas não demora muito e seu marido estará no comando; se lhe falar assim, não duvido nada que ele parta sua cabeça ao meio! Suma da minha frente!

Romilly cambaleou; Alderic conduziu-a para seu cavalo.

— Pode montar? — ele murmurou.

Ela balançou a cabeça, as lágrimas voltando a escorrer.

— É melhor voltar para casa — ele acrescentou —, enquanto seu pai ainda está em choque pelo que fez.

O MacAran empertigou-se, ainda balançando a cabeça em consternação e ira.

— Em todos os anos de minha vida nunca encostei a mão numa mulher ou menina! Não me perdoarei nem a Romilly por me provocar!

Ele levantou os olhos para o céu, na direção em que o falcão desaparecera e murmurou alguma coisa, mas Romilly, levada por Alderic, já se afastava às cegas para o Ninho dos Falcões. Quando entrou em casa, cambaleando, e foi para seus aposentos, a velha babá recebeu-a consternada.

— Oh, meu cordeirinho, minha pequena, o que aconteceu com você? Suas costas... seu traje de montaria...

— O pai me bateu — ela respondeu, com um choro terrível. — E me bateu porque Darren perdeu meu falcão.. .

Gwennis tirou o que restava do traje de suas costas, cuidou da pele lacerada e da carne ferida com óleo e pomada de ervas, cobriu-a com um velho roupão de tecido macio e levou sopa quente para que ela tomasse na cama. Romilly começara a tremer, estava doente e febril. Gwennis resmungava, mas sacudiu a cabeça e perguntou:

— Como pôde irritar tanto seu pai? Ele é um homem gentil, deve ter ficado fora de si para fazer uma coisa assim!

Romilly não podia falar, os dentes batiam. Não parava de chorar, por mais que tentasse se controlar. Gwennis, alarmada, foi chamar Luciella, que também chorou por causa dos ferimentos de Romilly, e pelo traje arruinado, mas mesmo assim repetiu o que Gwennis já dissera:

— Como pôde irritar seu pai desse jeito? Ele nunca faria uma coisa assim se você não o tivesse provocado além do suportável!

Elas me culpam, pensou Romilly, todos me culpam por que fui surrada...

E agora não há esperança para mim. Preciosa se foi. Meu pai está mais interessado em manter suas boas relações com Aldaran do que se importa comigo. Espanca Darren brutalmente porque Darren não tem meus dons, mas também não me deixa ser o que sou nem Darren ser o que é; não se importa absolutamente com o que somos, apenas com o que gostaria que fôssemos. Ela não escutava as atenciosas palavras de Luciella nem dava atenção aos afagos de Gwennis. Não podia parar de chorar; e continuou até que os olhos ficaram doloridos e a cabeça latejando, o nariz avermelhado e escorrendo. E o choro acabou embalando-a até o sono.

Acordou tarde, quando o Ninho dos Falcões estava silencioso e a grande face violeta de Kyrrdis pairava brilhando em sua janela. A cabeça ainda doía muito e as costas ardiam, apesar dos unguentos aplicados por Gwennis. Sentia fome; resolveu descer e pegar um pedaço de pão e carne fria na cozinha.

Meu pai me odeia. Ele expulsou Ruyven de casa com sua tirania, mas Ruyven pelo menos está livre, aprendendo a ser o que deve ser, numa Torre. Ruyven estava certo; pelo menos, fora do alcance da vontade de ferro do pai, ele pode ser o que é, não o que o pai gostaria que ele fosse. E, subitamente, Romilly compreendeu que ela também deveria ser livre, como Preciosa era livre para ser o que era.

Tremendo, ela pegou um velho colete de tricô e colocou-o sobre as costas doloridas, vestiu uma velha túnica e culote. Esgueirou-se em silêncio pelo corredor, com as botas na mão. Eram botas de mulher; uma mulher, ela ouvira durante toda a vida, sozinha não estava segura nas estradas; e depois da maneira como Dom Garris a fitara no Solstício do Verão, podia compreender o porquê. O quarto de Ruyven estava fechado, todas as suas coisas como as deixara; sem fazer barulho, Romilly entrou no quarto, tirou de um baú uma das camisas mais simples do irmão e um velho culote de couro, um pouco grande para ela. Tirou os trajes apertados de Darren e pôs os mais largos de Ruyven; pegou também um manto e uma sobretúnica de couro, depois voltou a seu próprio quarto para buscar a luva de falcoagem. Lembrando que Preciosa fora embora, quase a deixou para trás, mas pensou: Algum dia terei de novo um falcão e me lembrarei de Preciosa por isto. Finalmente, antes de meter sua velha adaga na bainha, cortou os cabelos na nuca. Ao sair, jogou a trança no fundo do monturo, para que não descobrissem. Trancara o quarto de Ruyven e ninguém jamais pensaria em procurar entre as roupas velhas do irmão e contar as camisas. Levaria suas roupas, a fim de que procurassem por uma moça de cabelos compridos num traje verde de montaria, não um rapaz indefinido em roupas velhas e comuns. Entrando no estábulo, pegou uma sela velha, coberta de poeira, escondida atrás de outras sucatas de arreios descartados, colocou em seu cavalo, depois pensou melhor e deixou-o na baia. Um cavalo preto, um cavalo bem criado, poderia denunciá-la em qualquer lugar como uma MacAran. Saiu com a sela e fez um pequeno volume com os arreios e suas roupas femininas. Deixou a sela ali e entrou furtivamente na cozinha - no verão, todo o trabalho da cozinha era realizado num prédio externo, a fim de que o castelo não ficasse muito quente —, encontrou carne e pão, um punhado de nozes e alguns bolos de grãos, que a cozinheira preparava todos os dias para os melhores cães, as cadelas que estavam esperando cria e as que amamentavam filhotes... eram bastante apetitosos e ninguém daria por sua falta, pois eram preparados às dezenas, quase às centenas... um punhado nunca seria contado. Enrolou tudo numa toalha de cozinha e amarrou as pontas da improvisada trouxa, depois calçou as botas, saiu e levou a trouxa e a sela para o pasto exterior, onde velhos cavalos pastavam. Olhou ao redor, à procura de um cavalo cuja falta não seria percebida por alguns dias... que todos pensassem que ela partira a pé. Finalmente decidiu-se por um velho matungo usado apenas de vez em quando, para as visitas do velho coridom, agora aposentado e que raramente saia de casa, aos pastos mais distantes. Chamou suavemente — todos os cavalos a conheciam — e o animal aproximou-se da cerca trotando. Romilly murmurou-lhe algumas palavras, alimentou-o com um punhado de capim, depois ajeitou a sela em suas costas e levou-o pelo caminho, sem montar até ficar bem longe do castelo, quando não mais poderiam ouvi-la. Houve um momento em que um cachorro começou a latir no interior do castelo e ela prendeu a respiração, desejou com toda intensidade que o animal permanecesse em silêncio.

Na base da colina ela subiu na sela, estremecendo quando os recentes ferimentos foram sacudidos, mas rangeu os dentes de dor e envolveu-se com o manto contra o frio. Levantou os olhos para o Ninho dos Falcões em seu penhasco, lá em cima.

Portador dos Fardos! Não posso, não posso... o pai está arrependido por ter me batido, isto é loucura, eu deveria voltar antes que dêem por minha falta...

Mas depois afloraram as lembranças do rosto de Darren quando ela lhe entregara o falcão, a raiva do pai, os olhos determinados e desesperados de Ruyven na última vez em que o vira, antes de fugir de Nevarsin... Não, o pai fará com que sejamos o que ele deseja, não o que somos. A lembrança de Dom Garris e a maneira como a tratara rudemente no Solstício do Verão, o pensamento de como ele poderia se comportar depois que ela lhe fosse entregue, como sua esposa, sua propriedade para fazer o que bem quisesse...

Romilly assumiu uma expressão decidida, como se o rosto fosse feito de ferro. Se alguém pudesse vê-la naquele momento, teria reparado numa coisa: ela era muito parecida com o pai. E afastou-se do Ninho dos Falcões sem olhar para trás uma única vez.

 

A FUGITIVA

 

No terceiro dia começou a nevar. Romilly, que passara toda a vida nos contrafortes das Hellers, sabia que precisava encontrar um abrigo depressa; nenhum ser vivo poderia sobreviver a uma tempestade, mesmo naquela estação, exceto em um abrigo. O vento fustigava como uma faca, e uivava por entre as árvores ao longo do caminho como as vozes de dez mil demônios. Por um instante ela considerou a possibilidade de voltar até a pequena fazenda pela qual passara no início daquela manhã e pedir abrigo... mas não! Os fazendeiros podiam ser dos que de vez em quando iam ao Ninho dos Falcões, e até mesmo no traje de rapaz poderiam reconhecê-la como a filha do MacAran. Nunca estivera tão longe de casa antes e não sabia onde se encontrava.

Sabia vagamente que se continuasse por aquela trilha, seguindo para o norte, acabaria chegando a Nevarsin, de onde poderia pegar a estrada para a Torre Tramontana. Lá encontraria o irmão Ruyven... ou se ele tivesse sido enviado para outro lugar pelas leroni que dirigiam as Torres, pelo menos teria notícias dele. Pensara também em procurar treinamento para seu laran nas Torres, como a leronis Marelie a incentivara a fazer, alguns anos antes. Como alternativa, poderia permanecer em Nevarsin durante o inverno. Vivia nas Hellers por tempo suficiente para saber que viajar no inverno pelas estradas que deveria seguir para chegar a Nevarsin era um empreendimento perigoso, assumido apenas pelos loucos ou desesperados. Com certeza poderia encontrar trabalho em algum lugar de Nevarsin, como aprendiz de mestre falcoeiro, com um ferreiro ou guardião de cavalos como cavalariço... pois não tinha a menor intenção de revelar que era uma moça. Raramente se ausentara de casa, onde até as moças da cozinha e lavadeiras eram tratadas gentilmente e supervisionadas por Domna Luciella, mas a própria maneira como reagiam a esse tratamento indicava como era excepcional. Uma das mulheres, que trabalhara numa taverna há anos, contara muitas histórias sobre o tratamento que lhe era dispensado. Romilly não duvidava de sua capacidade de cuidar de si mesma e manter mãos indesejáveis à distância; mas até mesmo o cavalariço mais humilde ganhava uma remuneração superior a qualquer criada de cozinha ou taverna, e Romilly não tinha muitas habilidades para se elevar acima das tarefas mais subalternas das copeiras. Só conhecia cavalos e falcões e a supervisão de criadas. Costureiras e aias para crianças, ela sabia, podiam ganhar bons salários, mas o simples pensamento de trabalhar como costureira a fazia sorrir, lembrando suas precárias tentativas com a costura, e para o emprego de aia iriam exigir muito mais informações do que ela estava disposta a revelar. Não, se decidisse passar o inverno em Nevarsin teria de permanecer como rapaz, para todos os efeitos e propósitos, procurando trabalho nos estábulos ou casas de falcões.

E assim, pelo menos, estaria perto de cavalos e falcões. Pensou com uma pontada de amargura em Preciosa perdida.

Mas estou contente que tenha acontecido, ela pensou, decidida, inclinando-se contra o vento impetuoso e puxando o manto sobre o rosto, quase cobrindo os olhos. Se não fosse assim, eu nunca teria coragem de realizar o rompimento! Permaneceria obediente, talvez mesmo casasse com Dom Garris... e um tremor de repulsa percorreu seu corpo. Não, era melhor assim, mesmo que tivesse de passar o resto da vida trabalhando como rapaz nos estábulos de algum estranho!

A neve começava a se transformar numa chuva fria e intensa; as patas do cavalo escorregavam na trilha íngreme e Romilly, entrando em contato, sentiu o frio do vento, a maneira apreensiva como o animal estremecia e punha as patas com indeciso cuidado no caminho escorregadio. A chuva congelava ao cair e o manto estava se tornando duro com o gelo. Precisavam mesmo encontrar abrigo, o mais depressa possível.

Chegaram a um ponto em que a trilha se dividia, um caminho levado para cima, através das árvores copadas nos dois lados, o outro mais largo, porém descendo íngreme. Romilly saltou do cavalo e adiantou-se, esticando o pescoço para esquadrinhar à frente através da chuva densa e nevoenta. Para baixo nada pôde divisar, além de um pequeno córrego que cascateava até perder de vista pelas pedras ao lado da estrada; para cima, no entanto, teve a impressão de avistar as paredes de algum tipo de construção, uma cabana de pastor ou um abrigo para animais. A estrada mais larga podia conduzir a uma aldeia ou a algumas fazendas no vale, mas não podia ter qualquer certeza. Além do mais, não via luzes no vale e a chuva era cada vez mais intensa.

Então era melhor subir, na direção do abrigo, por mais tosco que fosse; pelo menos estaria a salvo do vento e chuva. Não tornou a montar — numa trilha como aquela, tão íngreme, o cavalo se sairia melhor sem seu peso. Pegou as rédeas, falando suavemente ao animal quando ele puxou a cabeça bruscamente. Desejou ter trazido seu próprio cavalo, pois aquele era estranho. Contudo, era bastante dócil e até amistoso.

A escuridão através da neve e da chuva foi se tornando cada vez maior; era mesmo uma construção, não muito grande, mas parecia à prova d'água. A porta estava caindo, quase saindo das dobradiças, rangeu quando ela a empurrou e entrou.

— Quem está aí? — gritou uma voz trêmula.

Romilly sentiu o coração disparar e a garganta se apertar de medo. Embora às escuras, quase em ruínas, o abrigo não estava abandonado. Ela se apressou em dizer:

— Não tenciono qualquer mal, madame... perdi-me na tempestade e a chuva está congelando. Posso entrar?

— Honra ao Portador dos Fardos e graças por você ter aparecido — balbuciou uma voz muito velha. — Meu neto foi à cidade e com certeza teve de se abrigar em algum lugar com essa tempestade. Ouvi os passos de seu cavalo e por um momento pensei que fosse Rory voltando. Mas ele monta um pônei e você tem um cavalo. Não posso sair da cama, quer pôr um pouco de lenha no fogo, rapaz?

O rosto de Romilly começava a degelar um pouco e ela pôde sentir o cheiro da fumaça; tateando na escuridão, encaminhou-se para as brasas. O fogo estava quase apagado. Romilly atiçou as brasas, fez o fogo surgir com pequenos gravetos; depois que pegaram, tratou de aumentá-lo com um galho maior e uma acha. Parada, esquentando as mãos, na claridade crescente, divisou uns poucos móveis decrépitos, bancos, uma cama embutida na parede, onde estava deitada uma mulher muito velha, recostada na cabeceira. Enquanto o fogo aumentava, a velha disse:

— Venha até aqui, rapaz. Quero dar uma olhada em você.

— Meu cavalo... — murmurou Romilly, hesitante.

— Pode levá-lo para o estábulo. Faça isso primeiro e depois venha até aqui.

Ela teve de fazer um bom esforço para cobrir o rosto com o manto e tornar a sair para o intenso frio. O estábulo estava deserto, a não ser por um par de gatos esqueléticos, que gemeram e roçaram contra suas pernas. Depois de desencilhar o cavalo e lhe dar dois pedaços do pão de cachorro — seria suficiente para alimentá-lo por aquela noite —, os gatos seguiram-na através da porta para o calor do fogo agora ardente.

— Bom, bom... — murmurou a velha, em sua voz trêmula. — Pensei neles lá fora no frio, mas não podia me levantar para deixá-los entrar. E agora venha até aqui e deixe-me vê-lo, rapaz.

Quando Romilly se adiantou e parou ao lado da cama, a velha ergueu-se um pouco, aproximando o rosto encarquilhado de Romilly.

— Como foi sair com esse tempo, rapaz?

— Estou viajando para Nevarsin, mestra.

— Sozinho? Nessa tempestade?

— Parti há três dias, quando o tempo estava bom.

— Vem do sul do Kadarin? Cabelos vermelhos... você tem mesmo alguma coisa dos Hali'imyn.

A velha estava envolta por várias camadas de xales esfarrapados e três ou quatro mantas puídas, não muito melhores que mantas de cavalo, estavam empilhadas na cama. Parecia esquelética, encovada, exausta. Deixou escapar um trêmulo suspiro e disse:

— Eu esperava que ele voltasse de Nevarsin no início deste dia, mas sem dúvida a neve está pior para o norte... Muito bem, com você para manter o fogo aceso não congelarei aqui, sozinha, na tempestade. Meus velhos ossos já não suportam o frio como antigamente. Antes de sair, ele armou um fogo para três dias, dizendo que voltaria com certeza antes disso...

— Posso ajudá-la em mais alguma coisa, mestra!

— Se sabe preparar um mingau, então poderemos comê-lo juntos. — A velha indicou uma panela vazia, tigela e colher ao seu lado. — Mas primeiro tire essas roupas molhadas, rapaz.

Romilly prendeu a respiração; aparentemente a velha aceitava-a como um rapaz. Tirou o manto e as botas, pendurou o manto perto do calor do fogo para secar; havia um barril com água perto do fogo e pegou a panela vazia, lavou-a. Sob a orientação da velha, encontrou um saco pela metade com um alimento ordinário, mais nozes moídas do que cereais, e um pouco de sal, pôs a mistura na panela e pendurou num gancho comprido por cima do fogo. A velha chamou-a de volta.

— Para onde está indo com esse tempo horrível, meu rapaz?

Ao ouvir o "meu rapaz", Romilly sentiu que um suspiro de alívio lhe subia pela garganta; pelo menos a velha a aceitara pelo que parecia ser, um rapaz e não uma moça prestes a se tornar uma mulher. E depois lhe ocorreu que enganar uma velha, meio cega, não era grande coisa, afinal de contas; que pessoas com olhos mais jovens e espíritos mais perceptivos poderiam descobri-la com facilidade. A velha na cama ainda a espiava através das pálpebras encarquilhadas, esperando uma resposta.

— Estou viajando para Nevarsin — ela acabou dizendo. — Meu irmão está lá.

— No mosteiro? Ora, está muito longe do caminho para lá, rapaz... deveria ter seguido pela esquerda no fundo da montanha. Mas agora é tarde demais, deve esperar a tempestade passar. E quando voltar, Rory mostrará o caminho certo.

— Eu lhe agradeço, mestra.

— Qual é o seu nome, rapaz?

— Rom...

Romilly hesitou, reprimindo o restante de seu nome e compreendendo que não pensara nisso por um momento sequer. Pensou em dizer "Ruyven", mas concluiu que não se lembraria de responder a esse chamado e sempre procuraria pelo irmão. Engoliu em seco, fingiu ter engasgado por um instante com a fumaça do fogo e acabou murmurando:

— Rumai.

— E por que está indo sozinho para Nevarsin? Vai se tornar monge ou foi enviado para lá a fim de aprender com os irmãos, como acontece com os filhos dos nobres? Tem uma aparência de nobre, por falar nisso, como se tivesse nascido numa Grande Casa... e suas mãos são mais finas que as de um cavalariço.

Romilly quase riu, recordando a ocasião em que Gwennis, franzindo o rosto para suas mãos calejadas no contato com rédeas e garras, a censurara:

— Ficará com as mãos de um cavalariço se não tomar cuidado! Porém outra vez a velha esperava por uma resposta e Romilly se lembrou do filho de Nelda, Loran — todos no Ninho dos Falcões sabiam que ele era o filho nedestro do MacAran, embora Luciella preferisse fingir que ignorava e recusava-se a admitir que o rapaz existia.

— Fui criado numa Grande Casa, mas minha mãe era orgulhosa demais para me entregar a meu pai, já que fui concebido num Festival. Ele disse que eu poderia me sair melhor numa cidade e espero encontrar trabalho em Nevarsin... eu era aprendiz do mestre falcoeiro.

E isso, pelo menos, era verdade; era mais aprendiz de Davin do que o imprestável Ker.

— Bom, Rumai, seja bem-vindo. Vivo aqui sozinha com meu neto... minha filha morreu quando ele nasceu e o pai partiu para as terras baixas, a serviço do Rei Rafael, no outro lado do Kadarin, para o sul. Meu nome é Mhari e passei a maior parte da minha vida nesta cabana. Ganhamos a vida com a produção de nozes... ou pelo menos ganhávamos, até que fiquei velha demais para isso. É difícil para Rory cuidar das árvores em todas as estações e ao mesmo tempo cuidar de mim. Mas ele é um bom rapaz e foi vender nossas nozes no Mercado em Nevarsin, voltará com farinha para o mingau e ervas medicinais para meus velhos ossos. Quando ficar um pouco mais velho, talvez consiga arrumar uma esposa e os dois poderão viver aqui, pois isto é tudo o que tenho para lhes deixar.

— Acho que o mingau já está fervendo — disse Romilly.

Ela foi até o fogo, a fim de afastar um pouco a panela das chamas. Serviu uma tigela para a velha, levantou-a para comer, sacudiu os travesseiros e alisou as cobertas, ajeitou-a para dormir.

— Você tem mãos caprichosas como uma moça. — Romilly sentiu o coração parar, até que a velha acrescentou: — Acho que isso vem de cuidar dos pássaros. Nunca tive mãos para isso, nem paciência! Mas seu mingau vai esfriar, criança. Vá comê-lo e depois pode dormir na enxerga de Rory, junto do fogo, pois não é provável que ele chegue com essa tempestade.

Romilly acomodou-se ao lado do fogo abafado para comer, depois lavou a tigela com a água do barril, colocou-a perto do fogo para secar e deitou-se, envolta no manto. Era uma cama dura, mas na trilha dormira em lugares piores. Passou algum tempo desperta, escutando sonolenta o barulho da tempestade lá fora e a ocasional gota d'água que descia pela chaminé para chiar no fogo por um instante. Acordou duas vezes durante a noite para se certificar de que continuava viva. Perto do amanhecer o barulho da tempestade amainou um pouco e ela caiu num sono profundo, do qual foi arrancada por vigorosas batidas na porta. Mhari sentou-se na cama.

— É a voz de Rory — disse ela. — Você passou o ferrolho na porta?

Romilly sentiu-se uma tola. A última coisa que fizera antes de deitar fora trancar a porta por dentro... o que a velha entrevada nunca poderia ter feito. Não era de admirar que a voz lá fora soasse alta e agitada! Ela correu para a porta e puxou o ferrolho.

A porta foi aberta e ela deparou com um jovem alto e corpulento, de bigode e vestido em aniagem puída e com um manto de um estilo que não era usado nas Hellers desde que seu pai era criança. Ele empunhava uma adaga e a teria atacado se não fosse pelo grito da velha Mhari.

— Não, Rory... o rapaz não fez por mal... ele cuidou de mim e preparou um jantar quente... deixei que ele dormisse aqui!

O jovem de aparência rude largou a adaga e correu para a cama.

— Está mesmo bem, vovó? Quando descobri que a porta estava trancada e vi um estranho aqui dentro, fiquei com medo que alguém tivesse entrado e feito alguma coisa a você...

— Calma, calma... — murmurou a velha Mhari. — Estou sã e salva, e ainda bem que ele veio, pois o fogo estava apagado e eu poderia congelar durante a noite.

— Fico grato a você, quem quer que seja, rapaz. — Rory pegou a adaga no chão, guardou-a na bainha e inclinou-se para beijar a avó na testa. — A tempestade estava terrível e toda a noite só pude pensar em vovó, sozinha aqui, com o fogo apagado e sem ter como se alimentar. Meu fogo é seu enquanto tiver precisão.

Era a antiga fórmula de hospitalidade das montanhas que se oferecia a um estranho, e o jovem corpulento logo acrescentou:

— Deixei meu abrigo assim que a chuva parou e vim para casa, embora os anfitriões me convidassem a ficar até o amanhecer. E você está bem e agasalhada, isso é o mais importante, vovó querida.

Ele olhou ternamente para a velha. Jogando o manto num banco, foi até a panela de mingau, ainda pendurada junto do fogo. Tirou um pouco com a concha, o mingau grosso e duro depois da noite, começou a comer com os dedos.

— Ah, comida quente é outra coisa... ainda está frio como o bafo de Zandru lá fora, a chuva congelou nas árvores e na estrada... temi que o velho Faísca escorregasse e quebrasse uma perna. Mas consegui algum cereal, vovó, assim terá pão, além do mingau. Também tenho frutas-pretas secas na bolsa. A esposa do moleiro mandou para você, dizendo que gostaria da mudança. — Ele virou-se para Romilly e perguntou: — Pode fazer o favor de pegar os alforjes no meu animal? Estou com as mãos muito frias, quase congeladas, não poderia desamarrá-los até esquentarem. E você passou a noite inteira no calor.

— Com prazer — respondeu Romilly. — Preciso mesmo sair para ver como está meu cavalo.

— Tem cavalo? — Uma expressão quase de cobiça surgiu no rosto de Rory. — Eu sempre quis ter um cavalo, mas não é para gente como eu. Você deve ter sido criado numa Grande Casa.

Romilly saiu, ajeitando o manto nas costas, tirou os pesados alforjes que estavam no magro pônei que Rory montava. Levou o saco de cereal para o estábulo e voltou à cabana com os alforjes, largando-os no chão, perto do fogo.

Rory estava inclinado para a avó, conversando em voz baixa. Romilly tinha certeza de que ele não a ouvira entrar. Tornou a sair, foi para o estábulo e alimentou seu cavalo com dois bolos de cachorro, afagando-lhe o focinho e falando com ele. Havia uma velha privada dentro do estábulo e ela usou-a; parou ao reajustar o traje, consternada com as manchas de sangue nas roupas de baixo; por causa da tempestade, perdera a noção dos dias. Quando pensava em passar por homem, ela disse a si mesma, ironicamente, havia esquecido de certos aspectos muito importantes que tenho de lembrar. Nunca imaginara que seria simples, mantinha-se alerta para imprimir à voz o tom mais profundo e andar do jeito descontraído pelo qual sempre fora censurada por Luciella e sua governanta, mas esquecera os ritmos inexoráveis da biologia feminina, que poderiam traí-la mais do que qualquer outra coisa.

Enquanto pegava uma das anáguas velhas no saco — talvez pudesse lavá-la escondida à noite — , refletiu sobre o que deveria fazer agora. A velha prometera que Rory lhe mostraria o caminho para Nevarsin. Seria grosseira se insistisse em partir imediatamente? Deveria ter inventado que alguém a esperava naquela cidade e viria procurá-la se não aparecesse na hora marcada. Depois de certificar-se que não havia manchas denunciadoras nas roupas, ela levou o pônei de Rory para o estábulo, providenciando palha fresca e ferragem; não gostava da aparência do jovem corpulento e vulgar, mas o animal não podia ser culpado e não deveria sofrer por sua aversão ao dono.

E depois ela tornou a passar pela porta da cabana... e parou no mesmo instante ao ouvir a voz da velha.

— O rapaz foi bom para mim, Rory. É uma coisa horrível o que você quer fazer, e uma falta de hospitalidade, o que os Deuses detestam.

A voz de Rory era sombria:

— Sabe há quanto tempo sonho em ter um cavalo. Enquanto continuar a viver aqui, no fim do mundo, nunca terei melhor oportunidade. Se ele é um bastardo fugitivo de algum lugar, nunca darão por sua falta. Viu seu manto... em todos os meus anos nunca pude ter um manto assim, só o broche pagaria um curandeiro para vir de Nevarsin e tratar de suas dores nas juntas. Quanto à sua divida com ele... ora, ele teve alojamento e fogo a noite toda, não foi apenas bondade de sua parte. E posso cortar a garganta dele tão depressa quanto uma rajada de vento, ele nem terá tempo de sentir medo.

Romilly sentiu um aperto na garganta, apavorada. Ele tencionava matá-la! Nunca pensara, por um momento sequer, nem mesmo na pobreza da cabana, que seu cavalo e o manto, muito menos o broche de cobre que servia como fecho e o dinheiro em sua bolsa, pudessem representar um risco para sua vida. O primeiro impulso foi recuar sem fazer barulho e fugir; mas sem o manto ou o cavalo, sem comida, morreria depressa no frio intenso! Os dedos envolveram o punho da adaga na bainha ao seu lado. Pelo menos ele não encontraria uma vítima desprevenida ou fácil, venderia sua vida tão caro quanto pudesse. Mas não devia permitir que eles soubessem que estava a par de seus planos; era melhor fingir que não desconfiava de nada, até poder pegar o manto e o saco, correr para o cavalo. Virou-se e voltou em silêncio ao estábulo, pôs a sela no cavalo e deixou-o pronto para a fuga. Agora precisava pegar o manto ou congelaria nas montanhas.

Mantendo a mão discretamente próxima do punho da adaga, ela voltou à cabana, tomando o cuidado de fazer algum barulho ao abrir a porta. Quando entrou, Rory estava sentado num banco, mexendo nas botas, enquanto a velha Mhari continuava na cama, a cabeça no travesseiro, dormindo ou fingindo dormir.

— Quer me dar uma ajuda com as botas, rapaz? — pediu Rory.

— Claro — respondeu Romilly, pensando depressa.

Se ele estivesse sem as botas, não poderia segui-la muito depressa. Ajoelhou-se na frente de Rory, pondo as mãos numa bota e arrancando-a do pé; inclinou-se para a outra bota. Puxava-a com força quando Rory inclinou-se para a frente e ela viu o brilho da faca em sua mão.

Romilly agiu sem pensar; empurrou com toda a força a perna com a bota, levantando-a, de tal forma que o joelho de Rory bateu no queixo, com um estalido alto. O banco virou para trás, com Rory caindo desajeitado. Romilly levantou-se de um pulo e correu para a porta, pegando seu manto na passagem. Tateou o ferrolho, o coração disparado, ouvindo Rory praguejar e gritar atrás dela. Um rápido olhar revelou: ele tinha a boca sangrando, o golpe arrancara-lhe um dente ou cortara o lábio dele. Ela passou pela porta e tentou fechá-la com o ombro, mas Rory empurrou e jogou-se em cima dela. Romilly não viu a faca; talvez ele a tivesse largado, talvez tencionasse usar apenas as mãos enormes. A túnica rasgou-se de alto a baixo quando ele a agarrou; puxou-a, as mãos se fecharam em torno de sua garganta; e depois seus olhos se arregalaram ao verem a túnica rasgada, e abriu-a ainda mais.

— Pelo Fardo! Tetas como uma vaca! Uma mulher, hem?

Ele segurou a mão de Romilly, que tentava atingi-lo nos olhos, e manteve-a imobilizada; depois virou-a e levou-a de volta para a cabana.

— Ei, vovó, veja só o que descobri! Seria uma pena se eu tivesse feito o que queria. Afinal estou atrás de uma esposa há quatro anos, nunca tive um cobre para o dote e agora aparece uma em minha própria porta! — Rory riu, exultante. — Não fique assustada, mulher, não vou machucar um fio de sua cabecinha agora! Tenho coisa melhor para fazer, não é mesmo, vovó? E ela pode ficar com você e esperar, enquanto estou trabalhando na plantação, vou ao moinho ou à cidade!

Rindo, o jovem enorme e rude apertou Romilly entre seus braços, comprimiu a boca contra a dela.

— Você é uma serva fugitiva de nobres, não é mesmo? Pois muito bem, coisinha bonita, agora você terá sua própria cozinha. O que acha disso?

Paralisada pela torrente de palavras, Romilly permaneceu em silêncio, dominada pelo terror, mas pensando mais depressa do que em qualquer outra ocasião de sua vida.

Ele a queria. Não lhe faria mal, pelo menos por enquanto, durante o tempo em que ainda esperava tê-la. A boca de Rory contra a sua encheu-a de repulsa, mas escondeu a sensação de náusea e forçou-se a sorrir.

— Pelo menos você não é pior do que o homem com quem queriam me casar — ela disse, compreendendo que era a verdade absoluta. — Velho, mais que o dobro da minha idade, sempre apalpando as moças indefesas, enquanto você pelo menos é jovem e limpo.

Rory ficou satisfeito.

— Acho que vamos nos dar muito bem, depois de nos acostumarmos um ao outro; e só precisamos partilhar uma cama, uma refeição e um fogo e estaremos legitimamente casados, como se o próprio Lorde Storn tivesse prendido as catenas em nossos braços como nobres! Aumentarei o fogo para que você possa fazer uma refeição para partilharmos. Há farinha nos sacos e você pode fazer um pão de amoras, está bem? Gosto de um bom pão de fruta e não tenho comido nada além de mingau de nozes nos últimos quarenta dias, ou mais!

— Eu... eu farei o melhor que puder — disse Romilly, forçando a voz a se manter calma. — E se não souber direito o que fazer, sem dúvida a mestra Mhari me ensinará.

— Ah, você se julga melhor do que a minha velha vovó, hem? — protestou Rory, truculento. — Vai chamá-la de Dama Mhari até ela permitir que a trate de vovó, está me entendendo?

Romilly percebeu que usara automaticamente a forma com que uma nobre tratava uma inferior. Baixou a cabeça, fingindo estar envergonhada, e murmurou:

— Não fiz por mal...

— E como é uma moça, é mais apropriado que você lave o rosto da vovó e vista uma camisola limpa nela, aprontando-a para o dia. Acha que pode passar algum tempo sentada junto do fogo hoje, vovó? Se nossa boa dama aqui lavá-la e arrumá-la?

— Claro, Rory, sentarei junto do fogo para sua refeição nupcial.

Romilly, mordendo o lábio, declarou que teria o maior prazer em fazer tudo o que pudesse por Dama Mhari.

— Eu sabia que ela tinha mãos boas demais para um rapaz — comentou Mhari, enquanto Romilly a levantava e pegava água quente.

Lavando o rosto e as mãos da velha, pegando uma camisola limpa mas puída no velho armário no canto, ela pensava com mais ansiedade do que nunca. Como poderia escapar? Iriam vigiá-la em todos os momentos até que o casamento fosse consumado; e a esta altura, ela pensou sombriamente, pensarão que estou completamente submissa para tentar escapar. Sentiu o estômago embrulhado de pensar naquele bruto enorme e sujo levando-a para a cama, mas refletiu que não a mataria, e como estava na parte de sangria do ciclo de mulher, pelo menos era improvável que ele a engravidasse. E foi nesse instante que interrompeu abruptamente o que estava fazendo, recordando com a maior alegria uma coisa que Darissa lhe sussurrara poucos meses depois de seu casamento. Na ocasião, Romilly apenas ficara embaraçada e soltara uma risadinha... como os homens eram tolos, supersticiosos com uma coisa assim! Mas agora ela podia tirar algum proveito.

— Estou com frio, molhada desse jeito — queixou-se a velha. — Ponha-me logo as roupas, menina... como devo chamá-la?

Romilly já ia dizer seu nome à mulher — afinal, que importância tinha, agora que sabiam que ela era mulher? — mas depois mudou de idéia; o pai poderia procurá-la mesmo longe assim; e ela disse o primeiro nome que lhe passou pela cabeça:

— Calinda.

— Ponha logo minhas roupas, Calinda, pois estou tremendo de frio!

— Desculpe, Mãe Mhari — ela murmurou, usando o termo submisso de respeito por qualquer mulher idosa. — Eu estava pensando...

Ela inclinou-se para a velha, pondo a camisola e envolvendo-a com o xale de lã, ajeitou os travesseiros, enxugou suas mãos com uma toalha.

— Eu... eu terei o maior prazer em casar com seu neto... — sussurrou Romilly, com a sensação de que as palavras iam sufocá-la.

— E deve mesmo — disse a velha. — Ele é um bom rapaz, vai usá-la direito e nunca baterá em você, a menos que realmente mereça.

Romilly engoliu em seco; pelo menos isso nunca teria de temer de Dom Garris.

— Mas... — Ela fez uma pausa, fingindo estar embaraçada, o que não era difícil. — Ele ficará zangado comigo se tentar partilhar minha cama esta noite, porque estou... estou no meu ciclo e sangrando...

— Fez bem em me contar — disse a velha. — Os homens são engraçados nessas coisas, ele poderia muito bem ter batido em você por causa disso. Meu homem costumava me bater se eu não avisasse antes do tempo para ele ficar longe ou dormir com a leiteira... é isso mesmo, houve um tempo em que já fui próspera, tinha uma leiteira e uma cozinheira, mas agora olhe só para mim. Com os cuidados de uma mulher, porém, logo vou melhorar, e Rory não terá mais que cozinhar mingau e fazer pão, o que não é trabalho para homem. Veja só o bom homem que está ganhando, ele nunca deixou de lavar e virar sua velha avó na cama, nunca deixou de lhe trazer comida e até mesmo esvaziar seu penico. E por falar em penico.

Ela gesticulou e Romilly pegou o objeto, ajudou a velha a usá-lo. Ela pensa que esta vida me fará feliz; desde que tenha um homem como marido, não preciso pedir melhor do que trabalhar como uma serva no estábulo, celeiro e cozinha, cuidar de uma velha entrevada: basta ter o nome de esposa! Romilly estremeceu enquanto pensava. Talvez algumas mulheres se sintam realmente felizes com isso — sua própria casa e um homem trabalhador, um homem que sempre tratou bem sua velha avó. Ela tornou a acomodar a mulher na cama e foi esvaziar o penico. Estava acostumada a trabalhar com as mãos com animais e o trabalho em si mesmo não a repugnava, mas tinha medo de Rory.

Não recusei Dom Garris para casar à força com um camponês, por mais honesto e bom que ele seja. E agora ganhei mais uns poucos dias. Fingirei ser submissa e dócil e mais cedo ou mais tarde eles devem me deixar ficar longe de suas vistas.

Depois que a velha estava lavada e vestida, Romilly foi para a bomba no pátio buscar água. Pôs no fogo o caldeirão grande, esquentando água para a lavagem das roupas. Sob a orientação de Dama Mhari, começou a misturar e cozinhar um pão com pedaços de fruta na massa. Enquanto o pão assava na panela fechada nas cinzas junto da lareira e Dama Mhari cochilava em sua cama, ela sentou num dos bancos para descansar por um momento e pensar.

Ganhara algum tempo. Uma visita rápida à privada mostrara que seu cavalo fora desencilhado e amarrado com nós firmes; se um momento fosse suficiente para escapar, deveria estar com sua adaga preparada para cortar os nós e fugir; talvez o melhor fosse escolher uma ocasião em que Rory estivesse sem as botas e esperançosamente sem o culote também. Poderia abandonar a mochila, se fosse necessário — a comida já acabara e poderia viver sem as outras coisas —, mas precisaria do manto, das botas e da sela... embora fosse capaz de montar em pêlo muito melhor do que a maioria das mulheres de sela. Também precisava levar comida, de alguma forma; não seria roubo, pois trabalhara muito e cuidara direito da velha, fazia jus ao que levasse.

Talvez naquela noite, quando todos dormissem, pensou Romilly. Levantando o corpo cansado do banco, ela começou a lavar as roupas mofadas da cama da velha e também os lençóis da cama no quarto interno, que há muito não era usado. Dama Mhari dissera que Rory dormia ali no calor e apenas com o tempo frio deitava na enxerga ao lado do fogo. Bom, já era alguma coisa... se tinha mesmo de deitar com aquele animal miserável, pelo menos não seria sob os olhos curiosos da velha avó, como poderia acontecer numa cabana mais pobre, com apenas um cômodo. Ela estremeceu subitamente... era assim que as pessoas viviam longe das Grandes Casas?

Devo desistir, fugir de volta para minha família, trocar minha liberdade pela vida protegida que teria como a esposa de Dom Garris? E por um instante, estremecendo ao pensamento do que poderia aguardá-la, mesmo que escapasse de Rory e da avó, ela sentiu-se um pouco tentada.

Como um falcão numa gaiola, acorrentado, encapuzado e estúpido, em troca de ser alimentado e afagado, guardado com todo cuidado como um bem precioso...

Oh, Preciosa, e era para isso que eu a estava treinando... E Romilly sentiu-se profundamente contente por ter libertado o falcão. Pelo menos nunca seria um bem de Darren. Poderia ter a consciência limpa se ficasse com Preciosa pessoalmente — o falcão voltara para ela por sua livre e espontânea vontade, por amor, depois de lhe permitir que voasse livre. Nunca voltaria para Darren.

Ela está livre, não pertence a nenhum homem. E eu também não pertencerei. Rory poderia possuí-la — uma vez — como o preço para fazê-lo pensar que ela estava vencida e submissa. Mas nunca pertenceria a ele; não poderia escravizá-la. Como um falcão mal treinado, no momento em que fosse testada em vôo livre escaparia para o céu...

Romilly suspirou, mergulhando os lençóis na água com sabão. As mãos doíam, mas os lençóis estavam limpos... pelo menos não seria levada para a cama imunda daquele homem!

Pendurou os lençóis perto do fogo para secar, pegou o pão e foi vasculhar nas prateleiras frágeis da cozinha; encontrou favas e ervas secas, pôs na chaleira vazia para fazer uma sopa. Rory, batendo os pés ao entrar na cabana para se livrar da neve que caia, viu-a fazendo isso e ficou radiante. Jogou um saco com cogumelos na mesa e disse:

— Tome aqui, menina, para a sopa. Para o nosso jantar de casamento.

Ele inclinou-se para envolvê-la num abraço desajeitado, deu um beijo babado em sua nuca. Romilly rangeu os dentes e não se esquivou. Rory interpretou sua resignação silenciosa como consentimento, virou-a e deu outro beijo em sua boca.

— Amanhã você não será tão tímida, não é mesmo, minha bela dama? Ela cuidou direitinho de você, vovó? Se não cuidou, vou lhe dar uma lição.

Ele tirou seu manto ordinário e pôs o de Romilly, ajeitando-o nos ombros com enorme orgulho.

— Ficarei com isto. Você não terá mais necessidade de sair além da privada até o degelo da primavera, e então não precisará usá-lo.

Rory tornou a sair. Romilly reprimiu sua raiva ao ver o manto forrado de pele e bem-feito do irmão nos ombros de Rory. Se tivesse uma oportunidade para escapar, levaria o manto de Rory; mesmo ordinário, era bastante quente para protegê-la. Também deveria levar as poucas moedas na bolsa em sua cintura; mesmo sendo poucas, precisaria delas quando chegasse a Nevarsin. Era uma quantia mínima. O MacAran sempre fora generoso com as filhas e a esposa, comprando-lhes qualquer coisa que desejassem, mas achava que não tinham muita necessidade de dinheiro na mão e só lhes dava umas poucas moedas de prata de vez em quando para gastar numa feira. Para Rory, no entanto, pareceria muito; por isso, ela encontrou uma oportunidade de esconder-se dos olhos de Dama Mhari por trás das roupas e transferiu as moedas da bolsa para um pano dobrado, que escondeu entre os seios; com toda certeza, mais cedo ou mais tarde Rory lhe tiraria a bolsa e deixara ali uma ou duas moedas de pouco valor para satisfazer sua ganância — talvez ele não procurasse mais.

Ao anoitecer do dia curto e sombrio ela sentou com os dois à mesa tosca para tomar a sopa que fizera e comer o pão que assara. Rory resmungou — o pão não estava muito bom —, isso era o melhor que ela podia fazer na cozinha? Mas Dama Mhari disse suavemente que ela era jovem, iria aprender, o pão podia estar maçudo, mas era melhor do que o mingau de nozes. Quando chegou a hora de deitar, Rory disse bruscamente que ela podia dormir na cama com Dama Mhari, ele esperaria quatro dias, não mais do que isso, pelo seu retorno à saúde.

Romilly conhecia agora o limite do seu tempo. Mas se acalentava alguma esperança de escapar enquanto eles dormiam, perdeu-a por completo quando Dama Mhari disse:

— Você vai dormir no lado de dentro da cama, menina; pensa que não sei que escaparia se pudesse? Não pode imaginar como é boa sua situação; mas depois que se tornar a esposa de Rory não vai mais querer fugir.

Não vou? pensou Romilly, rangendo os dentes; e deitou, determinada a tentar a fuga assim que a velha dormisse. Mas estava exausta de um dia de árduo trabalho, a que não estava acostumada, adormeceu no momento em que encostou a cabeça no travesseiro; e ao acordar durante a noite, sempre que se mexia, deparava à luz do fogo com os olhos da velha, arregalados e penetrantes como os de um falcão, observando-a.

Três dias passaram praticamente da mesma maneira. Romilly preparava as refeições, lavava os lençóis e roupas da velha, encontrou algum tempo para lavar suas próprias roupas, inclusive a anágua rasgada que usara... felizmente não era observada muito atentamente no caldeirão de lavagem e por isso teve a oportunidade de secar os panos, dobrá-los e escondê-los sob a túnica.

Se queria passar por homem — e estava mais determinada do que nunca a não viajar como mulher naquelas montanhas —, deveria descobrir alguma maneira melhor de ocultar aquela necessidade pessoal. Ouvira comentários sobre as mulheres-soldados, a Irmandade da Espada, que faziam o juramento de nunca usar roupas femininas e não deixar os cabelos crescerem. Nunca vira nenhuma, apenas ouvira falar a respeito, mas havia o rumor de que conheciam uma erva que impedia que as mulheres sangrassem em seu ciclo e ela desejou estar a par desse segredo. Aprendera alguma coisa de ervas cuidando de animais e conhecia as poções que podiam levar uma vaca ou uma cadela — ou, diga-se de passagem, uma mulher também — para ciclos férteis, mas nenhuma para suprimi-lo. É verdade que havia uma poção que evitava que uma cadela entrasse no cio, embora apenas por pouco tempo, quando não era conveniente a reprodução. Seria o que as mulheres-soldados usavam? Talvez pudesse tentar, mas não era uma cadela e o ciclo de cio de uma cadela era muito diferente da fêmea humana. De qualquer forma, tudo não passava de especulação teórica agora, pois não tinha acesso à erva e também não saberia como reconhecê-la em estado selvagem, só depois de preparada para o uso por um curandeiro de animais.

No quarto dia, ao se levantar, Rory anunciou, sorrindo:

— Esta noite você dormirá comigo no quarto interno. Já partilhamos a comida e o fogo, só falta agora deitar com você para que o casamento se torne legal sob todos os aspectos.

E nas montanhas havia uma lei que obrigava a devolução de uma esposa fugitiva a seu marido, Romilly ouvira dizer. Não importava que ela tivesse casado sem o próprio consentimento, uma mulher não tinha como recorrer à lei; assim, se escapasse depois que Rory a levasse para a cama, haveria duas pessoas à sua procura, o pai e o marido; será que até mesmo uma Torre a aceitaria nessas circunstâncias?

Ela enfrentaria esse problema quando chegasse o momento. Mas faria tudo o que pudesse para encontrar uma maneira de escapar hoje.

Durante o dia inteiro, enquanto cuidava das árduas e enfadonhas tarefas domésticas, Romilly refletiu sobre diversas opções. Era possível esperar até que ele a possuísse... e escapar quando ele dormisse depois, como ouvira dizer que os homens sempre faziam. Com certeza a velha não poderia segui-la... mas poderia arrancar Rory do sono. De um jeito ou de outro, precisava impedir que Rory a seguisse...

E se fizesse isso, poderia muito bem deixar que ele a possuísse naquela primeira noite. Sua garganta se contraiu de repulsa ante a perspectiva de ser uma vítima passiva, permitindo que ele a tomasse sem qualquer desafio.

Talvez, quando se despissem para deitar, ela pudesse dar um jeito de esconder suas botas e culote de couro, a fim de que não pudesse persegui-la logo; descalço e sem culote ele não poderia partir em seu encalço, ainda mais a pé, pois também soltaria seu pônei e o levaria para o bosque. Quando ele encontrasse as botas e o culote, e conseguisse pegar o pônei, ela já estaria bem longe, em seu cavalo, a caminho de Nevarsin.

Mas teria de se submeter a ele primeiro...

E, depois, ela pensou: quando nos despirmos para deitar, um chute preciso na virilha o deixaria incapacitado por tempo suficiente para que pudesse escapar, com toda certeza. Só que ela precisava de coragem para chutar com toda força e acertar no alvo na primeira tentativa; caso contrário, ele quase a mataria quando a apanhasse e nunca mais confiaria nela. Romilly lembrou o que sua própria mãe lhe ensinara quando ela e Ruyven eram bem pequenos, que nunca deveria bater ou chutá-lo ali, nem mesmo de brincadeira, porque até um golpe relativamente leve naquela região poderia causar um dano grave e possivelmente permanente; e se as partes fossem rompidas, até a morte. E isso a levou a hesitar e pensar.

Estaria preparada para matar, se fosse necessário, afim de evitar que ele a possuísse?

Afinal, ele tentara primeiro matá-la; se ela fosse de fato homem, ou se sua túnica não tivesse rasgado, revelando que era mulher, Rory teria cortado sua garganta pelo cavalo e pelo manto. É verdade que ele se mostrara gentil depois, à sua maneira, mas isso acontecera porque achava que era melhor, em vez de um cadáver, ter uma escrava... pois sem dúvida sua vida com ele seria assim, o dia inteiro de trabalho pesado, satisfazendo os caprichos da velha. Rory teria mais dela assim e ainda ficaria com o cavalo e o manto. Não, decidiu Romilly, ela não teria qualquer escrúpulo.

Rory voltou à cabana no início da tarde, quando ela amassava pão apaticamente, largou a carcaça de um coelho de chifres na mesa.

— Já limpei e esfolei — disse ele. — Asse uma parte para o jantar esta noite... não provo carne há dez dias... e amanhã salgaremos o resto; pode deixar pendurado no estábulo por esta noite, fora do alcance dos vermes.

— Como quiser, Rory.

Interiormente, Romilly exultou. A carne, congelada como certamente estaria, lhe proporcionaria algum tempo, se conseguisse levá-la para o estábulo sozinha. Tomaria a precaução de pendurá-la perto de sua sela, a fim de poder levá-la quando escapasse. Seria seu sustento por alguns dias.

Não demorou muito para que a carne assada impregnasse a cabana com um aroma agradável; Romilly estava faminta, mas depois de alimentar a velha, limpar seu queixo e prepará-la para a noite, descobriu que não podia mastigar e engolir sem engasgar.

Tenho de estar pronta. Tenho de estar pronta. Será esta noite ou nunca. Ela ficou à mesa, tomando goles nervosamente de um copo de chá de casca quente, até que Rory se aproximou e envolveu-a com os braços por trás.

— Já acendi um fogo na lareira do quarto interno para não sentirmos frio. Vamos embora, Calinda.

Romilly calculou que a velha dissera a ele seu nome falso. Certamente não fora ela. Mas chegara o momento; não poderia mais protelar. Sentia os joelhos fracos e trêmulos e por um instante especulou se teria coragem suficiente para concretizar seu plano.

Deixou que Rory a conduzisse para o outro cômodo, fechasse a porta e puxasse o ferrolho. Não era uma boa coisa. Se quisesse escapar às pressas, precisaria ter o caminho livre.

— Precisa trancar a porta? — ela perguntou. — A vo... Dama Mhari não pode entrar em nosso quarto em qualquer momento constrangedor, pois não é capaz de andar.

— Pensei que assim teríamos mais intimidade — comentou Rory, sorrindo.

— Mas vamos supor... — Romilly hesitou um momento. — Mas vamos supor que Dama Mhari precise de mim durante a noite e eu não possa ouvi-la? Deixe a porta entreaberta para que ela possa me chamar se tiver uma dor ou quiser ser virada para o outro lado.

— Você tem bom coração, menina.

Ele deixou a porta entreaberta, sentou na beira da cama e começou a tirar as botas.

— Deixe-me ajudá-lo.

Romilly foi puxar as botas e deliberadamente torceu o nariz.

— Puxa, como fedem! Dê-me essas botas, meu marido. — Ela usou a palavra com determinação. — Vou limpá-las antes que você se levante pela manhã. E pode me dar o culote de couro também.

Ela ficou imóvel. Teria ido longe demais? Mas Rory de nada desconfiou.

— Está certo. E quero também uma camisa limpa pela manhã, se você já lavou e secou alguma. — Ele empilhou suas roupas nos braços de Romilly. — Leve tudo para o caldeirão de lavagem; se cheiram a estrume, estarão melhor lá do que em nosso quarto nupcial.

Melhor e melhor! Mas ele ainda poderia partir em seu encalço num relance, se desconfiasse; hesitando junto do caldeirão de lavagem, quase disposta a correr para a liberdade — nu, ele não poderia persegui-la muito longe —, ela ouviu-o chamar, desconfiado.

— Calinda! Estou esperando por você! Venha logo!

— Já estou indo!

Ela voltou ao outro cômodo. O destino decidira por ela. Romilly entrou no quarto, tirou os sapatos e as meias, a túnica externa e o culote.

Ele puxou as cobertas da cama e deitou. Inclinou-se para Romilly quando ela sentou na beira da cama. A mão pousou em seu seio, no que ela supôs que devia ser uma carícia, mas era tão pesada que não pôde reprimir um grito de dor. Rory comprimiu a boca contra a sua e puxou-a para a cama.

— Você quer lutar, hem? Pois se é isso o que quer, menina, é o que terá...

Ele ofegava, cobrindo-a com seu corpo nu, a respiração quente e azeda.

Os escrúpulos de Romilly desapareceram por completo. Conseguiu desvencilhar-se um pouco e depois disparou o pé no chute mais violento que já dera em toda a sua vida. Acertou em cheio no alvo e Rory, com um uivo de dor, rolou para fora da cama, gritando em fúria e indignação, as mãos se apertando espasmodicamente entre as pernas.

— Ai! Ai! Tigresa, cadela, miserável! Ai!

Ela ouviu a voz de Dama Mhari se alteando ansiosa numa indagação. Tratou de sair da cama, envolveu-se em seu manto, pegando a túnica com dedos apressados enquanto corria. Empurrou a porta e passou para a cozinha, recolhendo o resto do pão e da carne assada, pegando as botas e o culote de Rory junto com suas coisas, foi tatear na tranca do estábulo. Rory ainda uivava, gritos sem palavras de agonia e ira; agrediam-na, quase imobilizando-a, mas fez um esforço para respirar e entrou no estábulo. Com sua adaga, cortou os nós que prendiam o pônei de Rory e deu um tapa na garupa dele, tangendo-o com um grito para o pátio; cortou as rédeas de seu cavalo e pôs o freio. Os uivos de Rory e a voz de Dama Mhari, alteada numa queixosa lamúria — ela não sabia o que acontecera e Rory ainda não estava em condições de explicar —, fundiam-se num dueto terrível. Parecia que a agonia de Rory vibrava no próprio corpo de Romilly, dolorosamente, mas isso era o laran, um pequeno preço a pagar pelo golpe vingador.

Ele teria me matado, ele teria me estuprado... não preciso me sentir culpada por causa dele!

Ela ia jogar as botas e o culote de Rory na neve; ajustou sua túnica com todo cuidado contra o frio, inclinou-se para pegar as botas dele e teve uma idéia melhor. Abriu a porta da privada e empurrou-as bem para o fundo, com um movimento furioso, jogou o culote por cima. Agora ele terá de descobri-las e limpá-las antes de poder me perseguir, pensou Romilly. Montou seu cavalo, pegou as provisões embrulhadas às pressas e com um grito fincou os calcanhares nos flancos do animal. O cavalo correu para o bosque e ela conduziu-o pela íngreme trilha que descia da cabana, dando rédeas na pressa de escapar. Teve de se segurar no pescoço do animal, tão íngreme era o caminho, mas não havia cavalo vivo em cujo lombo não pudesse se manter se fosse necessário, e sabia que não cairia. Lembrou as palavras de Dama Mhari: Você deveria pegar o caminho da esquerda na base da montanha. O coração batia tão forte que mal podia ouvir o barulho das patas do cavalo na trilha.

Estava livre e Rory não poderia persegui-la, pelo menos por algum tempo. Não importava que estivesse fora de um abrigo na noite escura, com a chuva caindo, com provisões escassas e sem qualquer dinheiro além de umas poucas moedas embrulhadas num pano entre os seios; pelo menos estava fora do alcance das mãos de Rory e da velha.

Agora estou livre. Agora devo decidir o que fazer com minha liberdade. Pensou por um instante em voltar ao Ninho dos Falcões... mas isso seria encarado pelo pai como sinal de abjeta rendição. Dom Garris poderia lhe proporcionar uma escravidão mais confortável do que teria com Rory no bosque; mas não usara toda a sua engenhosidade para se livrar deles e depois voltar à prisão.

Nada disso, procuraria a Torre e treinamento para seu laran. E disse a si mesma que todas as velhas histórias de heroísmo e buscas sempre começavam com o herói tendo de superar muitas provações. Agora sou o herói — por que será que o herói é sempre um homem? — de minha própria busca e superei a primeira provação.

E Romilly estremeceu ao pensamento de que aquele podia não ser o caminho para a liberdade, mas apenas a primeira de muitas provações em sua busca.

 

Romilly não reduziu a velocidade até que a lua se pôs; cavalgando no escuro, a rédea frouxa, deixando o cavalo seguir seu caminho, ela finalmente puxou-a e obrigou o animal a ir mais devagar. Não sabia onde se encontrava; sabia apenas que não seguira pelo caminho da esquerda no fundo da montanha, como deveria, a fim de chegar a Nevarsin — seria fácil demais para Rory descobri-la naquele percurso. E agora tinha certeza que estava perdida; nem mesmo podia determinar para que lado se dirigia até que o sol surgisse e lhe permitisse se orientar.

Encontrou um monte de árvores, desencilhou o cavalo e amarrou-o numa delas. Escavou um pequeno buraco na base da árvore, envolveu-se com o manto e um cobertor ordinário que recolhera ao fugir. Estava com frio e com cãibras, mas dormiu assim mesmo, embora despertasse várias vezes com um pesadelo em que um homem de rosto indefinido, que era ao mesmo tempo Rory e Dom Garris — e também tinha alguma coisa de seu pai —, avançava para ela com uma lentidão inexorável, enquanto ela não era capaz de mexer nem as mãos nem os pés. Era certo que se Rory tornasse a encontrá-la algum dia seria melhor que estivesse com a adaga preparada. Mas alguém jogara sua adaga na fossa e não podia procurá-la porque suas únicas roupas eram trapos ensangüentados e por algum motivo a dança do Festival se realizava na campina em que o pai promovia a feira de cavalos... Ela foi despertada por seu cavalo, resfolegando e cutucando-a com o focinho: o sol estava alto e o gelo derretia das árvores.

Tivera sorte na fuga vertiginosa pela escuridão na noite anterior pelo cavalo não ter quebrado uma perna na trilha congelada. Agora, sobriamente, ela avaliou a situação.

Entre as coisas que trouxera na noite passada, havia um quarto congelado de coelho de chifres, que poderia cozinhar e defumar — não tinha sala para isso, mas com aquele tempo era provável que não estragasse. Na pior das hipóteses poderia cortar fatias finas e comê-las cruas, embora não apreciasse carne crua. Perdera a pederneira e o aço para fazer fogo... não, mas que tola era ela, tinha sua adaga e poderia arrumar uma boa pedra assim que o gelo derretesse. Trouxera o manto ordinário de Rory em vez do seu forrado de pele, mas talvez fosse melhor assim; poderia aquecê-la sem despertar a mesma ganância que seu rico manto já provocara. Tinha as botas e o culote grosso, de couro, a adaga, umas poucas moedas guardadas no esconderijo entre os seios — abandonara a bolsa com o pouco que ali deixara; talvez isso e o manto satisfizessem a ganância de Rory e o levassem a desistir de persegui-la. Mas não correria riscos e seguiria em frente. No alforje ainda tinha alguns pedaços de pão de cachorro, com que poderia alimentar o cavalo; pegou um e deu-o ao animal, deixando-o mastigar enquanto arrumava suas roupas — fugira da cabana semidespida e o que vestira, fizera de qualquer modo — e ajeitava os cabelos curtos e irregulares com os dedos. Devia parecer bastante humilde para passar por um fugitivo aprendiz de mestre falcoeiro. O sol já subira bastante; seria um belo dia, as árvores livravam-se da neve e voltavam a desabrochar. Ela cortou algumas fatias finas de carne congelada e comeu; era uma carne dura e sem sabor, mas aprendera que qualquer coisa que um pássaro comia podia ser digerida por um ser humano; e como os falcões se alimentavam com aquela carne, certamente não lhe faria mal algum, embora preferisse os alimentos cozidos.

Ela se orientou pela posição do sol no céu e tornou a partir, para o norte. Mais cedo ou mais tarde encontraria alguém que lhe indicaria o caminho certo para a cidade de Nevarsin, e de lá poderia indagar a direção da Torre Tramontana.

Cavalgou durante o dia inteiro sem encontrar uma única pessoa ou habitação. Não sentiu medo, pois poderia obter alimento por ali e estaria sã e salva enquanto o bom tempo continuasse. Mas deveria descobrir um abrigo antes que houvesse outra tempestade. Talvez pudesse vender o cavalo em Nevarsin e adquirir um pônei, além do dinheiro para provisões e algumas peças de vestuário necessárias naquele tempo. Calçara as botas com tanta pressa que esquecera as meias de lã.

Romilly suspirou, guardou a faca e engoliu o último pedaço de carne dura. Umas poucas maçãs de inverno murchas estavam penduradas num arbusto. Eram pequenas e azedas, mas o cavalo gostaria. Lá em cima, no céu, ouviu o grito de um falcão; enquanto o observava, circulando, pensou em Preciosa. Pareceu-lhe por um momento — mas com certeza era apenas a memória ou a imaginação, não é mesmo? — que podia sentir o frágil contato que experimentara com Preciosa, como se o mundo se estendesse lá embaixo, viu a si mesma e ao cavalo como minúsculos pontinhos... Oh, Preciosa, você era minha e eu a amava, mas agora está livre e eu também procuro a liberdade.

Ela dormiu naquela noite num abrigo de viajantes há muito abandonado, que não era reparado desde que os Aldaran haviam declarado sua independência dos Seis Domínios das terras baixas; não havia agora muita gente viajando através do Kadarin entre Thendara e Nevarsin. Mas protegia da chuva e era melhor do que dormir sob uma árvore. Romilly conseguiu também acender uma fogueira, assou um pedaço do coelho de chifres e dormiu aquecida. Esperava encontrar algumas nozes — estava cansada de carne —, mas enquanto tivesse com que se alimentar, por pior que fosse, não podia se queixar. Poderia comer até mesmo o pão de cachorro, se fosse precioso, mas o cavalo se beneficiaria mais do que ela com esse alimento.

Viajou sozinha por mais três dias. Àquela altura, pelo que calculava, o pessoal do Ninho dos Falcões já deveria ter desistido de procurá-la. Especulou se o pai lamentava, se a julgava morta.

Quando chegar a Nevarsin deixarei uma mensagem para ele, encontrarei um meio de avisá-lo que estou bem. Mas sem dúvida acontecerá comigo o que já aconteceu com Ruyven, ele vai me repudiar, dirá que não sou sua filha. Ela sentiu um aperto na garganta, mas não podia chorar. Já chorara demais e nada conseguira com as lágrimas, exceto dor de cabeça e olhos doloridos, até que parará de chorar e agira para se salvar.

As mulheres pensam que as lágrimas vão ajudá-las. Acho que os homens estão certos quando dizem que lágrimas são coisa de mulher; isso mesmo, as mulheres choram e por isso são impotentes, mas os homens agem em sua ira e por isso nunca ficam sem poder, não desperdiçam tempo com lágrimas inúteis...

Ela comeu o último pedaço do coelho de chifres e não se lamentou — ao final, pensou, até um cachorro precisaria estar morrendo de fome para comer aquilo, e com certeza qualquer falcão teria virado o bico à porcaria. Na quinta noite só teve para o jantar algumas nozes, encontradas numa árvore abandonada, e uns poucos cogumelos. Talvez no dia seguinte pudesse pegar algum pássaro numa armadilha ou encontrar alguém que informasse se estava mesmo no caminho para Nevarsin... mas achava que não, pois a estrada se tornava cada vez mais deserta e malcuidada; se estivesse se aproximando da maior cidade da região, certamente já teria deparado com outros viajantes e áreas habitadas.

O pão de cachorro também acabou e por isso ela parou algumas horas antes do pôr-do-sol para deixar o cavalo pastar um pouco. Felizmente o tempo continuava bom e podia dormir ao ar livre. Sentia-se muito cansada de viajar, mas refletiu que agora não poderia voltar para casa, mesmo que quisesse — não tinha a menor idéia do caminho para o Ninho dos Falcões. Tanto melhor; agora podia romper por completo os vínculos com sua casa.

Dormiu mal, faminta e com frio, acordou cedo. A estrada era péssima... não poderia voltar por alguma distância e tentar descobrir algum caminho mais usado? Rasgou alguns trapos e enfaixou os pés, a fim de atenuar o roçar das botas... os calcanhares e os dedos estavam doloridos, em carne viva. Um solitário falcão circulava no céu... por que nunca havia mais do que um à vista de cada vez? Como outros animais, será que delimitavam assim seus territórios para caçar? E outra vez aquele estranho relance, como se visse através dos olhos do falcão — era o seu laran de novo? —, e pensou em Preciosa. Preciosa fora embora, livre, perdida. É estranho, sinto mais saudades dela do que de meu pai, de meus irmãos ou de minha casa...

A estação das frutas já passara, mas ela ainda encontrou algumas em arbustos e comeu-as, desejando que houvesse mais. Conhecia uma árvore da qual podia remover a casca externa e comer a macia parte interna, mas ainda não estava com tanta fome assim. Selou o cavalo, exausta apesar do longo sono. Começava lentamente a compreender que poderia se perder e até morrer naquelas florestas solitárias e totalmente desabitadas. Mas talvez hoje encontrasse alguém e descobrisse o caminho para Nevarsin ou alguma pequena aldeia onde poderia comprar comida.

Depois de uma hora chegou a uma encruzilhada e parou, indecisa, tremendo de fome, exausta. Deixaria o cavalo pastar um pouco e subiria a uma elevação próxima, olharia ao redor, à procura de qualquer habitação humana, a fumaça de um lenhador, até uma cabana de pastor. Nunca se sentira tão sozinha em sua vida. Claro que não. Nunca estive tão sozinha em toda a minha vida, ela pensou, com um humor amargo, subindo à elevação, os joelhos doendo.

Há dias que não como direito. Preciso de qualquer maneira encontrar comida e fogo esta noite, o que quer que possa resultar. Quase desejava ter permanecido com Rory e sua abominável avó; pelo menos estaria aquecida e alimentada... e seria mesmo tão horrível assim casar com aquele bruto?

Prefiro morrer na floresta, ela disse a si mesma, com veemência. Mas estava assustada e faminta, e da elevação só pôde avistar o que parecia um mar de árvores. À distância, quase no limite de seu campo de visão, assomava uma montanha alta, para noroeste, com sombras claras ao redor que ela sabia serem picos nevados... eram as Hellers, em comparação com as quais aqueles contrafortes pareciam meros caroços na terra; mais além ficava a Muralha ao Redor do Mundo, que era instransponível, pelo que sabia das histórias de viajantes; pelo menos jamais conhecera alguém que tivesse ido além dela; e em todos os mapas que vira, demarcava o limite do território conhecido. Perguntara uma vez à governanta o que havia além.

— O deserto congelado — respondera a governanta. — Nenhum homem sabe...

O pensamento intrigara Romilly na ocasião. Agora, já vagueara tanto por território desconhecido que alguma companhia humana seria bem-vinda.

Embora o que já vira não lhe desse muita esperança de que encontraria homens nas estradas...

Ora, não tivera sorte, isso era tudo. Ela suspirou e apertou o cinto um pouco mais. Não lhe faria mal continuar a jejuar por mais um dia, embora naquela noite precisasse encontrar algum alimento, de qualquer modo. Tornou a olhar ao redor, definindo com cuidado a direção do grande pico — tinha a impressão de que havia alguma coisa perto do topo, um prédio branco, uma espécie de estrutura feita pelo homem; imaginou se não seria um castelo, uma Grande Casa ou talvez uma das Torres. Noroeste; deveria se manter atenta ao ângulo do sol e à passagem do tempo para não começar a andar em círculos. Mas se seguisse para onde a estrada levava, era pouco provável que conseguisse.

Devia voltar agora para junto de seu cavalo. Tornou a levantar os olhos. Estranho. O falcão ainda circulava. Perguntou-se, num sobressalto ansioso, se não seria o mesmo falcão... não. Acontecia apenas que havia muitos falcões naquelas colinas e sempre que se levantava os olhos para o céu se avistava uma ave de rapina. Por um instante ela experimentou a sensação de que pairava no céu, contemplando o pináculo branco da Torre e um tênue clarão azul que partia do interior... sentiu-se fraca e tonta, sem saber se era o falcão ou ela própria quem via... sacudiu-se e rompeu o contato. Seria fácil demais perder-se naquela comunhão com céu, vento e nuvem...

Voltou ao cavalo e tornou a colocar a sela, meticulosamente. Pelo menos o animal estava alimentado. E disse em voz alta:

— Eu quase gostaria de poder comer capim como você, companheiro.

Ficou aturdida com o som da própria voz. Foi respondida por outro som, o grito alto e estridente de um falcão atacando — isso mesmo, o falcão encontrara alguma presa, pois ela pôde sentir, em algum lugar de sua mente, o fluxo de sangue quente, uma sensação que fez sua boca comichar e se encher de saliva, reatiçando a fome intensa. O cavalo afastou-se nervosamente e ela puxou as rédeas, falando baixinho... e no instante seguinte asas escuras surgiram em seu campo de visão. Sem pensar, estendeu o braço, sentiu a pressão cruel das garras e lançou-se às cegas no contato familiar.

— Preciosa!

Romilly soluçava ao pronunciar o nome. Nunca saberia por que o falcão a seguira através de suas andanças. O grito estridente e o adejar das asas arrancou-a de suas lágrimas e percebeu que havia um pássaro de bom tamanho, ainda quente, nas garras do falcão. Com a outra mão, segurou as pernas do pássaro, levantando a garra de Preciosa de seu pulso — sangrava um pouco onde as garras pousaram, mas a culpa era sua, pois não tinha a luva apropriada. Ajeitou o falcão na sela, o coração batendo forte, pegou a adaga; deu a Preciosa a cabeça e as asas. Enquanto o falcão se alimentava — e louvado seja o Portador dos Fardos, o cavalo sabia o suficiente para ficar quieto quando sua sela se transformava num poleiro improvisado —, depenou o que restava da carcaça, riscou pedra e aço e acendeu uma pequena fogueira para assar o pássaro.

Ela veio me procurar quando eu estava com fome. Ela sabia. Trouxe-me comida, renunciando à própria liberdade. As peias ainda estavam nas pernas de Preciosa. Romilly cortou-as com a adaga.

Se ela quiser ficar comigo agora, será por sua livre e espontânea vontade. Nunca mais a prenderei com qualquer marca de propriedade. Ela pertence a si mesma. Mas seus olhos ainda estavam marejados de lágrimas. Fitou os olhos do falcão e subitamente a comunhão aflorou entre pássaro e mulher, uma emoção estranha e intensa inundando Romilly — não era amor como ela conhecia, mas emoção pura, quase ciúme. Ela não é meu falcão. Eu sou sua garota, pensou Romilly. Foi ela quem me adotou, não o contrário.

O falcão não se mexeu quando ela se aproximou; equilibrando-se, transferindo o peso do corpo de uma garra para outra, ficou imóvel e fitou Romilly nos olhos; depois deu um pulo e pousou em seu ombro. Romilly prendeu a respiração com a dor, quando as garras apertaram sua carne, mesmo através da túnica e do manto. No mesmo instante a pressão diminuiu e Preciosa apertava apenas o suficiente para manter o equilíbrio.

— Bela, linda, maravilhosa... — sussurrou Romilly, enquanto o falcão esticava o pescoço e alisava as penas.

Nunca soube de uma coisa assim, que um falcão libertado voltasse... e Romilly refletiu que fora seu laran que a levara a ter tanta intimidade com o falcão.

Ela permaneceu quieta, naquela comunhão sem palavras, pelo que pareceu um longo tempo, enquanto Romilly terminava de comer a carne assada, apagava o fogo e aprontava o cavalo; suas mãos se mexiam automaticamente nessas tarefas, mas os olhos voltavam a todo instante e a mente entrava em silenciosa união com o falcão.

Ela ficará comigo agora? Ou voará embora outra vez? Não tem mais importância. Estamos juntas.

Finalmente ela cortou um galho e aparou-o, prendendo na sela por trás, como um poleiro para Preciosa, se ela resolvesse ficar ali. Montou, ajeitando Preciosa no poleiro improvisado. O falcão ficou imóvel por um instante, depois bateu as asas e alçou vôo, circulando um pouco acima das copas das árvores. Romilly respirou fundo. Preciosa não a deixaria para sempre. E foi nesse instante que puxou as rédeas do cavalo, pois ouviu vozes; uma voz de homem, áspera, afirmando:

— Estou lhe dizendo que era fumaça o que eu vi.

A voz de outra pessoa protestou alguma coisa. Havia também o barulho de cascos de cavalos e um latido brusco em algum lugar.

Romilly saltou do cavalo e puxou-o para a parte mais densa de árvores à beira do caminho. Não desejava encontrar viajantes antes de poder observá-los e descobrir como eram, quais poderiam ser suas intenções.

Outra voz soou, rude e masculina, mas desta vez com o sotaque refinado de um homem instruído — alguém das terras baixas, pensou Romilly, pois falava como Alderic.

— Se alguém viaja por esta estrada, Orain, com certeza se encontra na mesma situação que nós e ficará igualmente contente ao deparar com outro rosto humano.

Os cavaleiros surgiram agora em seu campo de visão, um homem alto de cabelos vermelhos como o fogo, usando roupas andrajosas, mas com certo ar de elegância — não era um camponês rude como Rory. De alguma forma ele a lembrava Lorde Storn ou o velho Lorde Scathfell, embora seu traje fosse tão ordinário quanto o dela, a barba e os cabelos não estivessem aparados. O homem ao seu lado também era alto, quase macilento, usando um manto-camisa de estilo antigo e botas que pareciam feitas à mão de qualquer maneira com couro cru. Num poleiro à sua frente, na sela, havia um enorme pássaro encapuzado, diferente de qualquer falcão que Romilly já vira antes, mexendo-se irrequieto de uma pata para outra. Romilly, ainda parcialmente em contato com Preciosa por cima das árvores, sentiu um pequeno tremor de raiva e alguma coisa semelhante ao medo. Não sabia que espécie de pássaro era aquele, mas sabia instintivamente que não gostava de sua proximidade.

Por trás dos dois homens na vanguarda havia mais cinco ou seis, também montados. Apenas os dois primeiros tinham cavalos; os outros montavam uma espécie de chervines, pequenos pôneis, nenhum deles muito bom, as pelagens mal cuidadas e os chifres irregulares; um ou dois tinham os chifres cortados, toscamente, com uma falta de habilidade que fez Romilly estremecer. O pai mandaria embora imediatamente qualquer empregado que deixasse seu animal de montaria naquele estado; e quanto ao corte dos chifres, até ela poderia fazer melhor! Gostou da aparência dos dois homens da frente, mas pensou que nunca vira rufiões tão rudes como os homens de trás!

O esquelético e barbudo homem da frente, ao lado do aristocrata de cabelos vermelhos (foi assim que ela o classificou imediatamente em sua mente), desmontou e disse:

— Aqui está o vestígio de uma fogueira e estrume de cavalo também. Um cavaleiro passou por aqui.

— E com um cavalo, nesta floresta desabitada? — indagou o homem de cabeça vermelha, alteando as sobrancelhas.

Ele olhou ao redor, mas foi o esquelético andrajoso que olhou para o lugar em que Romilly se encontrava, ao lado do cavalo, na parte mais densa das árvores.

— Pode sair, rapaz — disse ele. — Não vamos lhe causar qualquer mal.

O homem de cabeça vermelha também desmontou e ficou parado junto dos vestígios da fogueira. Ele atiçou as brasas cuidadosamente cobertas — como todas as pessoas criadas nas Hellers, Romilly era extremamente cautelosa com o fogo na floresta — e finalmente conseguiu obter algumas chamas; acrescentou alguns gravetos à fogueira.

— Poupou-nos o trabalho de acender um fogo — disse ele, numa voz suave e refinada. — Venha partilhá-lo conosco. Ninguém lhe fará mal.

Romilly não sentiu qualquer ameaça nos dois. Saiu do meio das árvores com o cavalo e parou, a mão nas rédeas.

— Quem é você e para onde está indo, rapaz? — perguntou o homem esquelético, a voz gentil.

Ele não era tão velho quanto seu pai, mas era mais velho que qualquer de seus irmãos, pensou Romilly. Ela repetiu a história que imaginara.

— Sou aprendiz de mestre falcoeiro... fui criado numa Grande Casa, mas minha mãe era muito orgulhosa para reivindicar para mim uma posição como filho de um nobre. Por isso, achei que estaria melhor em Nevarsin e peguei a estrada, mas me perdi.

— Mas tem cavalo, manto, adaga e... se não estou enganado... um falcão também — disse o cabeça vermelha, os olhos cinzentos fixando-se no poleiro improvisado, no qual Romilly amarrara as peias cortadas; todo o seu treinamento lhe ensinara para nunca jogar fora um pedaço de couro, pois sempre se podia usá-lo em alguma coisa. — Roubou o falcão? Ou o que um aprendiz está fazendo com um pássaro... e onde ele está?

Romilly levantou o braço; Preciosa desceu e pousou. Ela disse com veemência:

— Ele é meu; nenhum outro pode reclamá-lo, pois o treinei com minha própria mão.

— Não duvido — disse o aristocrata —, pois nesta floresta e sem as peias ele poderia voar para longe se quisesse. Nesse sentido pelo menos, você o possui tanto como qualquer humano pode possuir uma coisa selvagem.

Ele compreende isso! Romilly experimentou uma súbita e profunda sensação de afinidade com aquele homem, como se fosse um irmão, um parente. Sorriu-lhe e ele também sorriu em resposta. Depois, o homem olhou para os homens ao redor e disse:

— Também estamos indo para Nevarsin, embora nosso percurso seja um tanto indireto... por questão de cautela. Pode nos acompanhar, se quiser.

O homem esquelético comentou:

— O que Dom Cario está querendo dizer é que se viajássemos pelas estradas principais haveria muita gente que correria para chamar o carrasco.

Eles eram proscritos, bandidos? Romilly pensou se não pulara, ao escapar de Rory e se envolver com aqueles homens rudes, da frigideira para o fogo! Mas o cabeça vermelha sorriu para o outro homem, com uma expressão de pura afeição e amor, e disse:

— Do jeito como você fala, Orain, parece até que somos um bando de assassinos. Somos homens sem terras que perderam as propriedades de nossos pais, e alguns perderam também a família, porque apoiamos o legítimo rei, em vez do patife que se atreveu a reivindicar o trono dos Hastur. Ele assegurou que teria homens suficientes para envenenar, enforcar ou apunhalar todos aqueles que não o apoiavam e que tinha muitas terras para recompensar seus seguidores, assassinando ou mandando para o exílio qualquer um que o fitasse enviesado ou não curvasse os joelhos bastante depressa. É por isso que estamos seguindo para Nevarsin, a fim de recrutar um exército ali... Rakhal não terá o Palácio de Cristal facilmente! Ele um Hastur? — O homem soltou uma risada. — Aquela coroa não repousará tranqüilamente em sua cabeça enquanto qualquer um de nós estiver vivo! Sou Cario do Lago Azul e este é meu ajudante e amigo Orain.

A palavra que ele usou para "amigo" também podia significar primo ou irmão-adotivo; e Romilly percebeu que o esquelético Orain fitava Dom Cario com uma devoção semelhante a de um bom cachorro por seu dono.

— Se o rapaz é treinador de falcões — disse Orain —, não duvido que possa nos informar o que aflige nossos pássaros-sentinelas, Dom Cario.

Cario virou-se abruptamente para Romilly.

— Qual é seu nome, rapaz?

— Rumai.

— E pelo seu sotaque vejo que foi criado ao norte do Kadarin. Tem algum conhecimento de falcões, Rumai?

Romilly balançou a cabeça.

— Tenho, sim senhor.

— Mostre-lhe os pássaros, Orain.

Orain foi até seu cavalo e pegou o enorme pássaro na sela. Chamou dois outros homens, que também carregavam pássaros iguais em suas selas. Com a maior cautela, Orain retirou o capuz da cabeça do pássaro, tomando cuidado para permanecer fora do alcance; o pássaro virou a cabeça ao redor, fazendo movimentos de bicar, mas estava apático demais para isso. Havia uma comprida crista de penas por cima dos olhos, mas afora isso a cabeça era pelada e horrível. As penas estavam desleixadas e desalinhadas, até as garras da criatura estavam escamosas e pareciam sujas. Ela pensou que nunca vira pássaros tão feios e de aparência tão feroz; mas se gozassem de boa saúde, ainda poderiam exibir a beleza de qualquer criatura selvagem. Agora, pareciam apenas encurvados e desesperados. Um deles esticou o pescoço e deixou escapar um grito longo, depois baixou a cabeça entre as asas e reassumiu uma aparência lamentável. Romilly disse:

— Nunca vi pássaros assim.

Ela pensou que os bichos pareciam mais com o kyorebni, o selvagem pássaro de carniça das colinas altas, do que com qualquer pássaro de caça.

— Mesmo assim, um pássaro é um pássaro — disse Cario. — Recebemos estes de um partidário e queríamos levá-los como presente para os exércitos de Carolin em Nevarsin, mas estão definhando depressa e podem não sobreviver até chegarmos lá. Não sabemos o que os aflige, embora alguns de nós já tenham treinado e caçado com falcões... mas nenhum de nós sabe como tratá-los quando estão doentes. Tem algum conhecimento das doenças dos pássaros, Mestre Rumai?

— Um pouco.

Romilly tentou desesperadamente recordar seus pequenos conhecimentos sobre a cura de animais doentes. E aqueles estavam mesmo doentes; qualquer pássaro, do engaiolado ao falcão verrin, que não alisa suas penas e não mantém as garras em perfeitas condições, é um pássaro doente. Aprendera a emendar um dos voadouros quebrados, mas pouco sabia dos cuidados com pássaros doentes; e se não tinha exúvia da muda ou algo parecido, ela não fazia a menor idéia das providências necessárias.

Mesmo assim, ela aproximou-se dos estranhos pássaros e estendeu a mão para o que Orain segurava, fitando-o nos olhos e projetando o contato instintivo. Uma apatia invadiu-a, uma náusea e angústia que a deixaram com vontade de vomitar. Saiu do contato e perguntou:

— O que estão dando a eles para comer?

Era um bom palpite; lembrava de Preciosa, doente pela insuficiência de alimento fresco.

— Apenas o melhor e o mais fresco dos alimentos — respondeu um dos homens por trás de Orain, na defensiva. — Vivi numa Grande Casa em que eram criados falcões e sei que são comedores de carne; quando nossa caça era escassa, todos nos privávamos para dar carne fresca aos malditos pássaros, o que de nada adiantou.

Ele olhou desolado para o pássaro murcho em sua sela.

— Apenas carne fresca? — indagou Romilly. — Aí está o problema, senhor. Olhe para seus bicos e garras e depois olhe para meu falcão. Esse é um pássaro de carniça, senhor; deve ser libertado para procurar o alimento sozinho. Não pode rasgar a carne fresca, pois seu bico não é bastante forte; e se o levam na sela e não o deixam livre, não pode bicar cascalho para seu papo. Alimenta-se com carne meio apodrecida e precisa estar com o pêlo ou penas... e só lhe davam para comer carne de músculo e esfolada ainda por cima, não é mesmo?

— Pensávamos que era assim que se devia fazer — explicou Orain. Romilly balançou a cabeça.

— Se precisam alimentá-los com carne morta, deixem as penas e o pêlo. Também devem dar a oportunidade de bicarem pedras e gravetos, até mesmo coisas verdes de vez em quando. Esses pássaros, embora eu tenha certeza de que tentaram alimentá-los com o que havia de melhor, estão famintos porque não podem digerir o que lhes deram. Devem permitir que procurem alimento sozinhos, mesmo que tenham de fazê-los voar por uma linha de isca.

— Pelos infernos de Zandru, Orain, isso faz sentido — comentou Dom Cario. — Eu deveria ter percebido... muito bem, agora sabemos. O que podemos fazer?

Romilly pensou a respeito, rapidamente. Preciosa alçara vôo e circulava no céu. Ela entrou em contato com o falcão, vendo através de seus olhos, depois disse:

— Há alguma coisa morta além daquelas árvores. Não conheço muito bem os seus... como é mesmo que os chamam?... pássaros-sentinelas; eles são territoriais ou se alimentam juntos?

— Não deixamos que cheguem perto porque logo começam a brigar — informou Orain. — Este aqui quase arrancou os olhos com bicadas do que está ali na sela de Gawin.

Então não há jeito, terão de alimentá-los separadamente. Ali... — Romilly apontou. — ... tem uma coisa que está morta pelo menos há dois dias... terão de buscá-la e cortar para dar aos pássaros.

Os homens hesitaram.

— O que está esperando? — indagou Dom Cario, asperamente. — Carolin precisa desses pássaros e sem dúvida haverá em Tramontana uma leronis capaz de voá-los, mas precisamos fazer com que cheguem lá vivos!

— Seus incompetentes melindrosos e desajeitados! — berrou Orain. — Estão com medo de sujar as mãos? Pois então darei o exemplo! Onde está essa coisa morta que você viu, rapaz?

Romilly começou a se encaminhar para o local entre as árvores; Orain foi atrás e Dom Cario disse bruscamente:

— Vão logo ajudá-lo, tantos homens quanto ele precisar! Deixarão que um homem e um menino arrastem sozinhos a carniça para três pássaros?

Com a maior relutância, dois homens os seguiram. Qualquer que fosse o animal morto entre as árvores — Romilly desconfiava que era um dos pequenos chervines multicoloridos da floresta —, não demorou a anunciar sua presença pelo cheiro, e ela torceu o nariz. Orain indagou, incrédulo:

— É isso o que devemos dar de comer aos pássaros?

Ele inclinou-se e puxou cauteloso a fétida carcaça; pequenos insetos entravam e saiam pelos buracos vazios dos olhos, mas ainda não se deteriorara o suficiente para que se desintegrasse em suas mãos. Romilly pegou um lado da carcaça e levantou, tentando respirar pela boca, a fim de não sentir o horrível odor.

— Um kyorebni acharia que é uma iguaria maravilhosa — ela respondeu. — Nunca tive um pássaro de carniça, mas suas barrigas não são como as dos falcões. Você gostaria, por exemplo, de ser alimentado com capim?

— Não duvido que você esteja certo — murmurou Orain, sombriamente. — Mas nunca pensei em cuidar de uma carniça fedorenta, nem mesmo para os homens do rei!

Os outros homens chegaram e ajudaram a carregar a carniça. Romilly ficou contente quando acabou, mas alguns dos homens engasgaram e vomitaram. Orain, no entanto, sacou uma enorme faca e começou a cortar a carcaça em três partes; antes mesmo que terminasse, o pássaro encapuzado em sua sela soltou um grito. Romilly deixou escapar um longo suspiro de alívio. Não gostava de pensar no que poderia acontecer se tivesse se enganado, mas era evidente que acertara. Ela pegou um punhado de terra e espalhou sobre o pedaço cortado da carcaça e depois, hesitando — mas lembrando o momento de contato com o pássaro doente —, foi remover o capuz. Orain gritou:

— Ei, cuidado, rapaz, ou ele vai arrancar seus olhos...

Mas o pássaro, sob suas mãos leves, parecia gentil e submisso. Pobre coisa faminta, pensou Romilly, levantando o peso morto — teve de recorrer a toda a sua força — e colocando-o no chão, ao lado da carcaça esquartejada. Soltando um grito, o pássaro mergulhou o bico na carcaça, engolindo pêlo, pedrinhas, a fétida carne em decomposição.

— Estão vendo? — murmurou Romilly.

Ela foi pegar o outro pássaro. Orain aproximou-se para ajudá-la mas o estranho pássaro, furioso, voltou o bico em sua direção; ele recuou e deixou Romilly cuidar de tudo.

Depois que todos os pássaros estavam alimentados e alisavam as penas, soltando pequenos grunhidos de satisfação, Dom Cario alteou uma sobrancelha para Orain, que disse:

— Acompanhe-nos até Nevarsin, rapaz, e depois a Tramontana, onde entregaremos esses pássaros aos homens de Carolin; e mantenha-os saudáveis no caminho. Nós o alimentaremos e a seu cavalo, daremos três moedas de prata para cada dez dias que ficar conosco e os pássaros permanecerem saudáveis. — Uma pausa e ele acrescentou, com um sorriso insinuante: — Seu falcão, sem dúvida, poderá caçar para ele.

— Ela — corrigiu Romilly.

Orain soltou uma risada.

— Ninguém se importa que um pássaro seja macho ou fêmea, a não ser outro pássaro da mesma espécie. O contrário do que acontece com a humanidade, não é mesmo, Dom Cario? — E ele riu de novo, embora Romilly não entendesse qual era a piada. — O que me diz, rapaz? Vai nos acompanhar e cuidar dos pássaros-sentinelas?

Romilly já tomara sua decisão. Seu destino era o mesmo, primeiro Nevarsin e depois Tramontana, à procura do irmão ou de notícias dele. E aquela oportunidade iria proporcionar-lhe proteção e alimentação.

— Com o maior prazer, Dom Cario e Mestre Orain.

— Negócio fechado. — Orain estendeu a mão calejada com um sorriso. — E agora que os pássaros já se alimentaram, podemos nos afastar desse cheiro horrível e comermos alguma coisa?

A comida era uma grossa massa, assada pelo método simples de enfiar varinhas em porções e colocar sobre o fogo e uns poucos tubérculos assaram nas brasas. Romilly sentou ao lado de Orain, que lhe ofereceu sal de um saquinho que tirou do bolso. Depois que a refeição terminou e os pássaros encapuzados estavam de novo nas selas — Orain pediu a Romilly que o ajudasse com um deles —, ela ouviu alguns homens resmungando.

— Aquele garoto monta um cavalo enquanto nós temos de nos contentar com um pônei? O que acham... vamos tirá-lo dele?

— Tente e terá de andar sozinho pela floresta, Alaric — interveio Orain. — Não há ladrões e bandidos em nossa companhia, e se encostar um dedo no cavalo do rapaz, será Dom Cario quem vai cuidar de você!

Romilly sentiu um ímpeto de gratidão; parecia ter encontrado um protetor em Orain e, no momento, fitando o bando maltrapilho, estava um pouco assustada.

Mais cedo ou mais tarde, porém, talvez ela tivesse de enfrentá-los sozinha, sem um protetor...

— Quais são os nomes dos pássaros? — ela perguntou a Orain. Ele sorriu.

— Alguém dá nomes a coisas feias assim, como se fossem o pássaro engaiolado de alguma criança ou a vaca de estimação de uma velha esposa?

— Eu dou — disse Romilly. — Deve-se sempre dar um nome a qualquer animal com que se deseja trabalhar, a fim de que possa ver em sua mente e saiba que é dele que você fala e nele que concentra sua atenção.

— É mesmo? — Orain soltou uma risadinha. — Nesse caso acho que poderíamos chamá-los de Horrendo Um, Horrendo Dois e Horrendo Três!

— De jeito nenhum! — protestou Romilly, indignada. O pássaro em seu punho se agitou irrequieto e ela acrescentou: — Os pássaros são muito sensíveis. Se quer trabalhar com eles, precisa amá-los...

Diante do inequívoco desdém nos olhos dos homens, ela sentiu que corava, mas continuou, mesmo assim:

— Devem respeitá-los e cuidar deles, tratá-los com gentileza. Acham que os pássaros não sabem quando as pessoas sentem repulsa e medo?

— E você não sente? — perguntou Dom Cario.

Ele parecia de fato interessado, e Romilly virou-se em sua direção, aliviada.

— Escarneceria de seu melhor cão de caça se quisesse ter uma boa caçada, com ele reagindo à sua palavra ou gesto? Acha que ele não saberia?

— Não caço desde que era bem jovem — respondeu Dom Cario. — Mas pode estar certo de que não trataria qualquer animal que procurasse domar para o meu serviço de outra forma que não com respeito. Prestem atenção ao que o rapaz está dizendo, homens; ele tem toda a razão. Já ouvi a mesma coisa de meu antigo mestre falcoeiro. E certamente... — Ele afagou o pescoço da magnífica égua preta que montava. — ... todos nós amamos e respeitamos nossos animais, cavalo ou chervine, que nos carregam tão fielmente.

— Muito bem... — murmurou Orain, outra vez contraindo o lábio numa expressão irônica, enquanto olhava para o pássaro-sentinela. — Podemos chamar este de Belo, aquele de Adorável e o terceiro ali de Deslumbrante. Não duvido que eles são bastante bonitos uns para os outros... quem ama o feio bonito lhe parece, como costumava dizer minha velha mãe.

Romilly riu.

— Acho que isso seria um exagero. Eles podem não ter beleza, mas... deixem-me pensar... vou chamá-los pelas Virtudes — ela acrescentou instantes depois. — Este aqui... — Ela levantou o pesado pássaro para a sela de Orain. - ... será Prudência. E este...

Ela franziu o rosto, observando o poleiro sujo, pôs o pássaro encapuzado no punho enluvado de Orain, tirou a faca e raspou um repulsivo monte de sujeira.

— Este será Temperança e este... — virando-se para o terceiro — Diligência.

— Como vamos distingui-los? — perguntou um dos homens. Muito séria, Romilly respondeu:

— Ora, eles são bem diferentes. Diligência é o grande, com pontas azuis nas asas... está reparando? E Temperança... não pode ver agora, está com o capuz, mas sua crista é grande e manchada de branco. E Prudência é o pequeno, com um dedo extra na pata... está vendo?

Ela apontou os detalhes, um a um, Orain ficou olhando espantado.

— Ora, eles são mesmo diferentes... e eu não havia notado!

Romilly montou em seu cavalo e acrescentou, ainda bastante séria:

— A primeira coisa que se deve aprender sobre os pássaros é pensar em cada um como um indivíduo. Em suas maneiras e seus hábitos também são tão diferentes quanto você e Dom Cario. — Ela virou-se na sela para o homem de cabeça vermelha. — Perdoe-me, senhor, talvez eu devesse consultá-lo antes de dar nomes aos pássaros...

Ele sacudiu a cabeça.

— Eu nunca tinha pensado nisso. E parecem bons nomes... é um cristoforo, rapaz?

Ela acenou com a cabeça.

— Fui criado assim. E o senhor?

— Sirvo ao Senhor da Luz.

Romilly não disse nada, mas estava um pouco surpresa — não era com freqüência que se encontrava Hali'imyn naquelas colinas. Mas se eram os homens de Carolin no exílio, então é claro que serviriam aos Deuses dos Hastur. E se os exércitos de Carolin estavam se concentrando em Nevarsin... o excitamento provocou-lhe um aperto na garganta. Sem dúvida era esse o motivo para a presença de Alderic nas colinas: unir-se ao rei quando chegasse o momento oportuno. Ela tornou a especular, por um instante, sobre a verdadeira identidade de Alderic. Se aqueles eram homens de Carolin, talvez o conhecessem e fossem seus amigos. Mas isso não era da sua conta e a última coisa que devia fazer era envolver-se na causa de qualquer homem. Seu pai dissera isso, e era verdade, por que deveriam se importar com o patife que sentasse no trono, desde que deixasse as pessoas honestas em paz para cuidar de suas próprias vidas?

Ela seguiu com os homens, um pouco nervosa, mantendo-se sempre perto de Orain e Dom Cario... não gostava da maneira como Alaric a observava; com certeza, como o infame Rory, ele cobiçava seu cavalo. Pelo menos ele não sabia que ela era mulher e por isso não cobiçava seu corpo; e poderia proteger seu cavalo, pelo menos enquanto contasse com a proteção de Dom Cario.

E pensando nisso, o trabalho que fizera na defesa de seu corpo não fora tão ruim assim.

Viajaram durante o dia inteiro, parando ao meio-dia para uma refeição de mingau, feito com água fria de uma fonte e farinha moída mexida. Foi uma lauta refeição, isso e mais um punhado de nozes. Descansaram um pouco em seguida, mas Romilly pegou uma faca e ficou desbastando e equilibrando melhor os poleiros, pois constatara que os pássaros-sentinelas sofriam considerável aflição pelas incômodas posições em que se encontravam. Também verificou os nós nas peias e descobriu que um dos pássaros tinha um ferimento infeccionado em uma das patas devido aos nós muito apertados, tratando-o com água fria e um cataplasma de folhas cicatrizantes. Os outros homens estavam deitados pela clareira, desfrutando o sol, mas Romilly percebeu que Dom Cario permanecia acordado observando-a, quando voltou da verificação dos pássaros. Mesmo assim, continuou seu trabalho. O chifre de um dos pôneis fora mal cortado e sangrava na base; ela aparou-o e raspou até que ficasse limpo, secando-o com um pano e cobrindo com musgo absorvente. Também examinou os outros pôneis e encontrou um que mancava, removendo com a ponta da faca uma pedrinha do casco dele.

— Muito bem — murmurou Dom Cario finalmente, a voz indolente, abrindo os olhos. — Cuida direito de suas tarefas... não é um preguiçoso, Rumai. Onde obteve seu conhecimento de animais? Possui a habilidade de um MacAran com eles... — Ele sentou e fitou-a. — ... e eu diria que também possui um toque de seu laran. E agora acho que também possui a aparência desse clã.

Os olhos cinzentos encontraram-se com os de Romilly e ela experimentou a estranha sensação de que ele a fitava por dentro e por fora; teve um sobressalto... ele poderia dizer, se tinha o dom dos Hastur, que ela era mulher? Mas Dom Cario não parecia estar a par de sua consternação, apenas continuou a fitá-la — era, pensou Romilly, como se nunca lhe ocorresse que alguém pudesse se recusar a responder quando fazia uma pergunta. E ela disse, as palavras se atropelando:

— Eu fui... já disse... criado... conheço alguns deles...

— Nasceu do lado errado da cama, hem? Um bastardo? Ora, isso é uma história antiga naquelas colinas e em outras partes também. É por isso que o miserável do Rakhal está no trono e Carolin. .. nos aguarda em Nevarsin.

— Conhece bem o rei, senhor? Parece um dos Hali'imyn...

— Porque sou — respondeu Dom Cario calmamente. — Não, Orain, não precisa olhar assim, a palavra não é nestas montanhas o insulto que seria ao sul do Kadarin. O garoto não fez por mal. Quer saber se conheço o rei? Conheço... não o tenho visto com freqüência, mas ele é meu parente e o apoio. Como eu disse, alguns bastardos mais cheios de ambições meteram Carolin nessa dificuldade... seu pai tinha o coração muito mole com os parentes ambiciosos e apenas um tirano garante seu trono pelo assassinato de todos os outros com alguma possibilidade de reivindicação. Por isso compreendo seu apuro, rapaz... se o usurpador Rakhal pusesse as mãos em mim, por exemplo, ou em qualquer dos filhos de Carolin, nossas cabeças estariam adornando as muralhas de seu castelo. Mas imagino que você tem um pouco do donas de MacAran ou não poderia controlar os animais como faz. Há um MacAran laranzu em Tramontana... é para ele e seus companheiros de trabalho que estamos levando esses pássaros. Conhece alguma coisa dos pássaros-sentinelas, meu rapaz?

Romilly sacudiu a cabeça.

— Não. Até hoje nunca tinha visto nenhum, mas ouvi dizer que são usados para espionagem...

— É isso mesmo. Uma pessoa que tem o laran de sua família ou algo parecido deve trabalhar com eles, permanecer em contato enquanto voam para onde se deseja ver. Se há algum exército na estrada, pode-se verificar o número de seus componentes e determinar seu movimento. O lado com os pássaros-espiões mais bem-treinados é muitas vezes o que vence a batalha, pois pode pegar o outro de surpresa.

— E esses pássaros são treinados para isso?

— Precisam ser treinados para que possam ser controlados com facilidade — explicou Cario. — Este foi um presente real, de um dos partidários de Carolin nestas colinas; mas meus homens pouco sabiam deles e por isso foi como se os Deuses nos mandassem você, que pode mantê-los em boa saúde e exercitá-los um pouco.

— A pessoa que os voará ao final é que deve fazer isso — disse Romilly. — Mas me empenharei ao máximo para acostumá-los a mãos e vozes humanas e mantê-los saudáveis e bem-alimentados.

E ela não pôde deixar de especular, porque ouvira dizer que Ruyven se encontrava em Tramontana e talvez fosse ele o laranzu para cujas mãos os pássaros estavam destinados. Como eram estranhos os rumos do Destino... talvez, se conseguisse chegar a Tramontana, seu dom pudesse ser treinado para o controle daqueles pássaros.

— Se seus homens são competentes na caça, seria bom se pudessem abater animais médios ou pequenos, que usaríamos na alimentação dos pássaros, mas não muito frescos, a não ser que possam cortar em pedaços bem pequenos e alimentá-los com pêlo e penas...

— Deixarei a dieta aos seus cuidados — disse Dom Cario. — E se tiver algum problema com os pássaros, avise-me imediatamente. São criaturas valiosas e não quero que sejam maltratados.

Ele levantou os olhos para o céu, que começava a ficar escarlate, o enorme sol começando a descer, depois de se manter a pino. Na extremidade de seu campo de visão, Romilly pôde avistar Preciosa, uma pequena mancha escura dando voltas.

— Seu falcão permanece próximo mesmo quando voa livre? Como o treinou para isso? E qual é o seu nome?

— Preciosa, senhor.

— Preciosa! — escarneceu o homem chamado Alaric, aproximando-se para selar o cavalo de Dom Cario. — Como uma garotinha dando um nome à sua boneca!

— Não zombe do rapaz — disse Dom Cario, gentilmente. — Até que você possa superá-lo nos cuidados com os pássaros, precisamos das habilidades dele. E devia cuidar melhor de seu próprio animal... um chervine pode não ser um cavalo, mas merece ser bem tratado. Deveria agradecer a Rumai por ter encontrado uma pedra no casco de Cinzento.

— E estou mesmo grato — resmungou Alaric, com uma expressão mal-humorada, afastando-se:

Romilly observou-o com o rosto contraído em aversão. Parecia já ter conquistado um inimigo entre aqueles homens, embora nada fizesse para merecê-lo. Mas talvez não demonstrasse tato suficiente ao cuidar do casco do chervine... talvez fosse melhor se simplesmente avisasse a Alaric que seu animal estava mancando. Mas ele não podia ver ou sentir o pobre animal mancando? Ela refletiu que isso era ser cego mental. Ele não podia se comunicar com qualquer animal irracional. E com a intolerância dos muitos jovens, Romilly pensou: Se ele não é capaz de compreender os animais, então não deveria tentar montar um!

Eles montaram pouco depois e viajaram durante a tarde. As trilhas eram mais íngremes agora e Romilly começou a ficar um pouco para trás... em caminhos assim, um chervine criado nas montanhas era melhor do que um cavalo. Havia trechos estreitos em que Romilly, Orain e Dom Cario precisavam desmontar e levar seus cavalos pelas rédeas, enquanto os homens nos animais de passos firmes permaneciam montados, absolutamente seguros. Romilly vivera nas colinas por toda a sua vida e de modo geral não tinha medo de qualquer coisa, mas algumas passagens mais íngremes e penhascos à beira de abismos de espaços vazios e nuvens levaram-na a ofegar e prender a respiração, mordendo os lábios para não demonstrar o temor. E continuaram a subir, cada vez mais, pelas frias camadas de neblina e nuvem. Ela sentia os ouvidos doerem, a respiração tornou-se mais ofegante, o coração batia tão alto que mal podia ouvir os cascos dos cavalos e pôneis no caminho rochoso. Houve um momento em que deslocou uma pedra sob o pé e viu-a descer pela encosta do penhasco, ricocheteando a cada cinco ou seis metros, até desaparecer nas nuvens.

Pararam e se reuniram no desfiladeiro. Orain apontou para as luzes que sobressaíam na semi-escuridão, na montanha seguinte. Falou baixo, mas Romilly, junto dos cavalos, pôde ouvi-lo:

— Lá está, vai dom. Nevarsin, a Cidade das Neves. Mais dois ou três dias de viagem e estaremos a salvo por trás das muralhas de São Valentim das Neves.

— E seu fiel coração poderá descansar sem medo, bredu. Mas todos esses homens são leais e mesmo que soubessem...

— Nem sequer sussurre isso, milorde... Dom Cario! — murmurou Orain, aflito.

Dom Cario inclinou-se e bateu de leve no ombro do outro homem, afetuosamente.

— Você tem me protegido com seus cuidados desde que éramos crianças... quem além de você deveria estar ao meu lado nesse momento, irmão adotivo?

— Ora, terá dezenas e centenas de homens para cuidarem de você então, mi... — Outra hesitação. — ... vai dom.

— Mas nenhum tão fiel como você — insistiu Dom Cario, gentilmente. — Terá todas as recompensas que eu puder conceder...

— Será recompensa suficiente vê-lo ocupar outra vez o lugar que lhe pertence... Cario.

Orain afastou-se para supervisionar a descida dos outros pelo desfiladeiro estreito que levava ao fundo da ravina.

Acamparam ao ar livre naquela noite, sob uma tenda tosca armada embaixo de uma árvore, apenas uma lona inclinada para resguardá-los do pior da chuva. Como convinha a um ajudante, Orain manteve-se perto de Dom Cario. Mas quando arrumavam os cobertores e Romilly verificava os pássaros e alimentava-os com o resto da carniça – os homens haviam resmungado por causa do cheiro, mas nenhum se atreveu a contestar Dom Cario - Orain lhe disse:

— É melhor estender seus cobertores perto de nós, Rumai... não tem o suficiente e mesmo dormindo com seu manto poderá congelar, rapaz.

Romilly agradeceu humildemente e deitou entre os dois. Tirara apenas as botas — não queria ser vista em menos roupas do que isso —, mas mesmo com o manto e um cobertor ainda sentia frio; ficou grata pelos cobertores e calor partilhado. Teve uma vaga noção, à beira do sono, do momento em que Preciosa desceu e pousou dentro do círculo de fogueiras; e, além disso, mais alguma coisa... uma tênue percepção, o contato de laran — os pensamentos de Dom Cario, agitando-se, circulando pelo acampamento para se certificar de que estava tudo bem com os homens, montarias e pássaros.

E depois ela dormiu.

 

Na clara luz da manhã, circulando pela clareira, pegando água para as aves e avaliando a situação — um dos homens deveria caçar hoje, a fim de conseguir alguma coisa para os pássaros-sentinelas, embora eles já parecessem melhores, alisassem as penas e limpassem as garras —, Romilly pôde divisar as muralhas de Nevarsin, bem definidas na claridade, como se fossem feitas de neve ou sal. Uma cidade antiga, construída na encosta da montanha, logo abaixo do nível da neve eterna; e por cima, como os ossos da montanha projetando-se através da neve, as muralhas cinzentas do mosteiro, esculpidas na rocha viva.

Um dos homens, cujo nome ela não sabia, pegava água para o mingau; outro distribuía grãos para os cavalos e chervines. O que se chamava Alaric, corpulento e mal-humorado, trajado de forma grosseira, era o que ela temia, mas não podia evitá-lo completamente; e, de qualquer forma, ele devia ter algum sentimento pelos pássaros-sentinelas, pois carregara um no tosco poleiro na frente de sua sela.

— Com licença — disse Romilly, polidamente —, mas você precisa sair e caçar alguma coisa para os pássaros-sentinelas; se encontrar alguma caça esta manhã, ao anoitecer já estará em decomposição e no ponto certo para eles comerem.

— Essa é muito boa! — rosnou Alaric. — Passa uma noite com o nosso bom líder e agora pensa que pode dar ordens a homens que estiveram em sua companhia durante todo esse ano de fome? Qual deles teve você... ou será que os dois se revezaram, pequeno catamito?

Chocada pelo insulto, Romilly se encolheu, o rosto ardendo.

— Não tem o direito de me dizer isso. Dom Cario me encarregou de cuidar dos pássaros e determinou que fossem alimentados corretamente. Obedeço ao vai dom tanto quanto você!

— Eu que o diga! — exclamou o homem, desdenhoso. — Talvez você queira pôr essa carinha bonita de garota e essas mãozinhas de dama para...

As outras palavras foram tão repulsivas que Romilly literalmente não entendeu o que queriam dizer e teve certeza absoluta de que não queria saber. Mantendo a dignidade possível — sinceramente não sabia como um de seus irmãos teria reagido àquela infâmia, exceto talvez sacando uma faca, mas não era grande o suficiente para lutar em termos de igualdade com o gigante Alaric —, ela disse:

— Talvez você aceite se o próprio vai dom lhe der as ordens.

Ela se afastou, os dentes cerrados, contraindo todo o rosto contra as lágrimas que ameaçavam explodir através da boca e dos olhos. Desgraçado! Desgraçado! Não devo chorar, não devo...

— Ora, ora, mas que cara que parece uma nuvem de tempestade, meu rapaz! — disse Orain, o rosto magro exibindo uma expressão divertida. — Está sentindo alguma dor? O que o aflige?

Ela recorreu ao resquício de autocontrole e disse a primeira coisa que lhe veio à cabeça.

— Tem uma luva de sobra para me emprestar, Tio? — Romilly usou o termo informal para qualquer amigo da geração dos pais. — Não posso cuidar dos pássaros-sentinelas sem uma luva, embora consiga tratar de um falcão; suas garras são muito compridas e minha mão ainda está sangrando de ontem. Acho que devo fazê-los voar numa Linha para que possam caçar pequenos animais ou encontrar carniça...

— Pois terá uma luva — disse Dom Cario, atrás dos dois. — Dê-lhe a sua velha, Orain; pode estar puída, mas ainda protegerá a mão do rapaz. E há pedaços de couro na bagagem, poderá improvisar uma luva esta noite. Mas por que tem de fazê-los voar? Por que não dá ordens para que um dos homens providencie alimento fresco para eles? Temos muitas armadilhas de caça e também precisamos de carne para nós. Mande qualquer dos homens buscar alimento fresco...

Fitando Romilly, suas sobrancelhas avermelhadas se altearam e ele indagou, suavemente:

— Ah, então foi isso o que aconteceu? Qual deles foi... Rumai?

Romilly baixou os olhos para o chão e murmurou, a voz quase inaudível:

— Não quero criar problemas, vai dom. Posso fazê-los voar e de qualquer maneira eles precisam de exercício.

— Não tenho dúvida de que precisam — disse Cario. — Pode fazer com que voem pelos exercício, se quiser, mas também não vou admitir que minhas ordens sejam desobedecidas. Dê-lhe uma luva, Orain, e depois terei uma conversa com Alaric.

Romilly viu o brilho em seus olhos, como aço arrancando fogo da pederneira; aceitou a luva e, de cabeça baixa, foi pegar Temperança, prendeu as iscas de linha e pôs o pássaro para voar. Encontrou uma pena descartada e usou-a para afagar o peito do pássaro, que inclinou a cabeça enorme, numa reação de prazer; estava começando bem no esforço de acostumar aqueles enormes pássaros selvagens ao contato e presença humana. Depois que Temperança voou e encontrou alguma coisa morta no mato, Romilly ficou parada, observando o pássaro-sentinela se alimentar, apoiado numa pata, rasgando a comida com o bico e a garra. Depois voou Diligência da mesma forma; e finalmente, com alívio, pois seu braço ficara cansado, voou Prudência, menor e mais suave.

São pássaros feios, eu admito. Mas são belos à sua maneira; força, poder, aguçada visão... e o mundo seria um lugar mais repulsivo se não houvesse pássaros como estes para limpar o que está morto e apodrecendo. Ela ficou espantada pelo modo como os pássaros, mesmo presos a linhas, encontraram sua própria comida, pequenas carcaças no mato, das quais não sentira o cheiro, nem vira. Como os homens haviam podido ignorar as verdadeiras necessidades daqueles pássaros, quando era tão óbvio para ela o que eles queriam e precisavam?

Acho que é isso o que significa ter laran, refletiu Romilly, subitamente humilde. Um dom que nascera em sua família, pelo qual não podia reivindicar qualquer crédito, já que era inato, nada fizera para merecê-lo. Contudo, até mesmo Dom Cario, que também possuía o precioso laran — tudo nele irradiava poder, tranqüilidade —, não era capaz de se comunicar com os pássaros, embora parecesse capaz de saber tudo sobre os homens. O dom de um MacAran. Ora, mas nesse caso seu pai estava errado, completamente errado, enquanto ela estava certa ao insistir naquele dom precioso e maravilhoso com que fora dotada; ignorá-lo, utilizá-lo mal, não treiná-lo... isso era um erro, um terrível erro!

E seu irmão Ruyven estava certo ao deixar o Ninho dos Falcões e insistir no treinamento de seus dons naturais. Ele encontrara seu lugar na Torre, laranzu para o controle dos pássaros-sentinelas. Um dia ela também ocuparia seu lugar...

O grito de raiva de Prudência arrancou Romilly de seu devaneio. Constatou que o pássaro acabara de se alimentar e puxava outra vez a linha de isca. Romilly deixou Prudência voar em círculos na linha por algum tempo, depois fez contato e exortou gentilmente o pássaro a voltar para o chão; encapuzou-o, levantou-o (agradecida pela luva que Orain lhe entregara, pois podia sentir a tremenda pressão das enormes garras) e ajeitou-o no poleiro.

Enquanto se aprontava para a partida, pensou na distância que ainda tinham pela frente. Ficaria tão perto de Orain quanto pudesse; se Alaric a encontrasse sozinha... e ela pensou, com terror, nos vastos e vazios abismos pelos quais haviam passado no dia anterior. Um passo em falso ali, um pequeno empurrão, e ela seguiria a pedra pelo penhasco, ricocheteando muitas vezes, toda arrebentada antes mesmo de chegar ao impacto final lá no fundo. Sentiu uma náusea subir pela garganta. A maldade de Alaric o levaria até a fazer uma coisa assim? Afinal, ela não fizera nenhuma mal a ele...

Revelara a incompetência do homem para Dom Cario, por quem ele tinha evidentemente o maior respeito. Lembrando Rory, Romilly especulou se havia quaisquer homens, em qualquer lugar, vivos, que fossem movidos por outra coisa além da maldade, do desejo e do ódio. Pensara que em roupas de homem pelo menos estaria a salvo do desejo; mas mesmo ali, entre homens, deparara com todo seu horror. O pai? Os irmãos? Alderic? Ora, o pai a venderia a Dom Garris por sua própria conveniência. Alderic e os irmãos? Não podia dizer que os conhecia direito, pois eles nunca revelariam suas verdadeiras faces a uma moça que consideravam ainda criança. Mas sem dúvida eles também tinham todo o mal em seu íntimo. Rangendo os dentes, constrangida, Romilly selou seu cavalo e depois foi selar os cavalos de Orain e Dom Cario. Seus deveres expressos exigiam apenas que cuidasse dos pássaros, mas do jeito como estavam as coisas preferia a companhia dos cavalos à de qualquer ser humano!

A agradável voz de Dom Cario interrompeu seu devaneio:

— Então selou Pernalta para mim? Obrigado, meu rapaz.

— É um belo animal — comentou Romilly, afagando a égua.

— Posso ver que você possui um olho para cavalos, o que não é de surpreender, se tem o sangue dos MacAran. Esta égua é dos platôs altos em torno de Armida; criam ali melhores cavalos do que em qualquer outro lugar das montanhas, embora às vezes eu pense que não possuem o mesmo vigor dos que são criados nas montanhas. Talvez não seja bom levar Pernalta por estas trilhas; tenho refletido muitas vezes que deveria devolvê-la à sua terra natal e obter um cavalo criado nas montanhas, ou até mesmo um chervine, que seria mais adequado para a região. Mas... — Ele fez uma pausa, passando a mão pela crina lustrosa da égua. — Fico me lisonjeando com a idéia de que ela sentiria minha falta; e, como exilado, não tenho tantos amigos para estar disposto a me separar de qualquer um, mesmo que seja apenas um animal irracional. Diga-me uma coisa, rapaz, já que conhece cavalos: acha que este clima é ruim para ela?

— Eu diria que não — respondeu Romilly, um minuto depois. — Não se estiver bem alimentada e bem cuidada; e talvez pudesse enfaixar suas pernas como proteção extra nestas íngremes trilhas.

— Boa idéia.

Dom Cario chamou Orain e os dois começaram a enfaixar as pernas de seus cavalos, criados nas terras baixas. O cavalo de Romilly fora criado para as Hellers, todo peludo, inclusive nas pernas, e tufos de pêlos projetando-se dos boletos. Pela primeira vez desde que fugira do Ninho dos Falcões ela sentiu-se contente por ter deixado seu próprio cavalo. Aquele, embora estranho, pelo menos a carregara fielmente.

Partiram pouco depois, descendo por um caminho sinuoso para o vale, que alcançaram a tempo da refeição do meio-dia. Pegaram em seguida a estrada bastante usada, que se alargava gradativamente, levando a Nevarsin, a Cidade das Neves.

Acamparam por mais uma noite antes de chegarem à cidade, e desta vez, notando o que Romilly fizera no dia anterior, Orain deu ordens aos homens para cuidarem de seus chervines de montaria. Mesmo contrariados eles obedeceram, contrariados, mas obedeceram; Romilly ouviu um deles resmungar:

— Já que tem aquele miserável garoto-falcão com a gente, por que ele não pode cuidar dos animais? Deveria ser seu trabalho, não nosso!

— Não há a menor possibilidade, pois Orain já transformou o pirralho em seu amiguinho — respondeu Alaric. — Os pássaros que se danem... o miserável está com a gente pela conveniência de Orain, não dos pássaros! Acha que Lorde Cario negará a seu ajudante e amigo qualquer coisa que ele quiser?

— Cale essa boca! — interveio um terceiro. — Não tem o direito de falar assim de seus superiores. Dom Cario é muito bom para todos nós e um homem fiel a Carolin; e Orain era o irmão adotivo do rei. Ainda não perceberam? Ele fala grosso e rude como um camponês, mas quando quer, ou quando esquece, sabe falar tão bem e de modo tão educado quanto o próprio Dom Cario ou qualquer um dos grandes Hastur! E no que diz respeito a seus gostos particulares, não me interessa se ele prefere mulheres, meninos ou coelhos de chifre, desde que não dê em cima da minha esposa!

Romilly, o rosto ardendo, tratou de se afastar. Criada numa família cristoforo, nunca ouvira uma conversa assim, e que só servia para confirmar sua opinião de que apreciava a companhia dos homens ainda menos que a das mulheres. Sentia-se inibida demais, depois do que ouvira, para se juntar a Orain e Dom Cario quando eles estenderam seus cobertores. Passou aquela noite tremendo de frio, no meio dos chervines adormecidos, a fim de aproveitar o calor deles. Pela manhã estava roxa de frio e agachou-se por tanto tempo quanto era possível junto da fogueira acesa para o desjejum, tentando furtivamente esquentar as mãos contra a panela do mingau. O alimento quente esquentou-a um pouco, mas ainda tremia ao exercitar os pássaros e alimentá-los. Alaric, embora protestando, pegara dois coelhos de chifres em armadilhas que já começavam a cheirar mal; ela teve de superar o ímpeto de náusea ao cortá-los, mas em seguida começou a espirrar repetidas vezes. Dom Cario lançou-lhe um olhar preocupado ao selarem os cavalos e montarem para a última etapa da viagem.

— Espero que não tenha sentido muito frio, meu rapaz.

Romilly murmurou, desviando os olhos, que o vai dom não precisava se preocupar.

— Vamos deixar uma coisa bem clara — disse Dom Cario, franzindo o rosto. — O bem-estar de qualquer dos meus seguidores é tão importante para mim quanto o daqueles pássaros para você... meus homens estão sob meus cuidados como os pássaros sob os seus, e não negligencio nenhum homem que me acompanha! Venha até aqui! — Ele encostou a mão, preocupado, na testa de Romilly. — Está com febre; pode montar? Não se preocupe; esta noite estará bem aquecido na casa de hóspedes do mosteiro, e se ficar doente os bons irmãos cuidarão de você.

— Estou bem — protestou Romilly, agora muito alarmada.

Não podia ficar doente de jeito algum! Se fosse levada para a enfermaria dos monges, eles descobririam com certeza, ao tratá-la, que era mulher!

— Tem roupas bastante quentes? — acrescentou Dom Cario. — Orain, seu tamanho é mais próximo do dele do que o meu... arranje alguma coisa quente para o rapaz vestir.

Imóvel, com a mão na testa de Romilly, a expressão de Dom Cario mudou de repente; fitou-a atentamente e, por um momento, ela teve certeza — não sabia como; laran? — que ele sabia. Ficou paralisada pelo temor, estremecendo; mas Dom Cario afastou-se e disse suavemente:

— Orain lhe trouxe um casaco e meias... percebi que seus pés estavam em bolhas dentro das botas. Ponha tudo imediatamente; se é orgulhoso demais para aceitar como um presente, descontaremos de seu salário, mas não permitirei que ninguém que me acompanha não esteja agasalhado, seco e confortável. Vá para o outro lado da fogueira e ponha tudo agora mesmo.

Romilly inclinou a cabeça aquiescendo, foi para trás da linha de cavalos e chervines, pôs as meias quentes — um celestial alívio para os pés doloridos — e o grosso casaco. Eram um pouco grandes, porém assim serviam para aquecê-la ainda mais. Ela espirrou de novo e Orain gesticulou para o caldeirão ainda pendurado sobre o fogo, não inteiramente vazio. Pegou uma concha do caldo quente e acrescentou algumas folhas que tirou de sua bolsa.

— Um remédio das velhas para a tosse que é melhor do que qualquer poção de curandeiro. Tome tudo. — Ele ficou observando, enquanto Romilly engolia a mistura de gosto horrível. — É amargo como o amor perdido, mas acaba com a febre.

Romilly fez uma careta ao terminar de beber a mistura; deixou-a vermelha, com um calor interior e a boca contraída com seu gosto amargo, mas ao final da manhã compreendeu que não voltara a espirrar e que o nariz já não escorria tanto. Cavalgando por um momento ao seu lado, ela disse:

— Aquele remédio lhe valeria uma fortuna nas cidades, Mestre Orain.

Ele riu.

— Minha mãe era uma leronis e estudou as artes da cura, conviveu com os camponeses para aprender seus conhecimentos de ervas. Mas os curandeiros da cidade riem desses remédios rurais.

E, pensou Romilly, ele fora irmão adotivo do rei; e agora servia ao homem do rei no exílio, Cario do Lago Azul. Era verdade o que os homens haviam comentado, embora ela não tivesse percebido antes; falando com os homens, Orain usava o dialeto do campo, mas conversando com Dom Cario e, cada vez mais, também com ela, seu sotaque era o de um homem instruído. Em comparação com os outros homens, ela sentia-se tão segura e tranqüila ao lado de Orain como se estivesse na presença de seus irmãos ou de seu pai. Depois de algum tempo, Romilly perguntou a ele:

— O Rei... Carolin... nos aguarda em Nevarsin? Mas os monges não haviam jurado que não tomariam parte nessa luta entre os leigos? Como podem tomar o lado do Rei Carolin na guerra? Sei muito pouco sobre o que está acontecendo nas terras baixas.

Ela recordava o que Darren e Alderic tinham dito, o que aguçava sua vontade de saber mais. Orain respondeu:

— Os irmãos de Nevarsin não estão se importando com o trono dos Hastur; nem deveriam. Dão abrigo a Carolin porque, como dizem, ele não fez mal a ninguém e seu primo — o grande bastardo, Rakhal, que está no trono — o mataria devido a sua própria ambição. Não vão aderir à causa, mas também não o entregarão a seus inimigos, enquanto estiver asilado lá.

— Se a reivindicação de Carolin é tão justa, por que Rakhal conseguiu tanto apoio? — indagou Romilly.

Orain deu de ombros.

— Uma questão de ganância, sem dúvida. Minhas terras estão agora nas mãos do chefe dos conselheiros de Rakhal. Os homens apóiam quem os enriquece, e o direito não tem muito a ver com isso. Todos esses homens... — Ele gesticulou para os seguidores. — ... são pequenos proprietários, cujas terras deveriam ser invioláveis; nada fizeram além de se manterem leais a seu rei, e não deveriam se envolver nas lutas dos grandes e poderosos. Alaric é um amargurado, é verdade... sabe qual foi o crime dele, o crime pelo qual perdeu suas terras e foi jogado na prisão de Rakhal, sob a sentença de perder uma das mãos e a língua?

Romilly estremeceu.

— Para merecer uma sentença assim deve ter sido um crime terrível!

— Só para aquele cagavrezu do Rakhal — disse Orain, sombriamente. — O crime? Seus filhos gritaram "Vida longa para o Rei Carolin!" quando um dos maiores sicários de Rakhal passava pela aldeia. Não fizeram por mal... acho até que os pirralhos não distinguiam um rei do outro. Mas esse grande patife, Lyondri Hastur, disse que ele devia ter ensinado traição às crianças... e tirou-as da casa de Alaric, alegando que deveriam ser criadas por um homem leal. Mandou-as servirem em sua Grande Casa e jogou Alaric na prisão. Uma das crianças morreu e a esposa de Alaric ficou tão transtornada pelo que aconteceu ao marido e aos filhos que se jogou de uma janela alta e morreu. Por isso Alaric é um amargurado e não gosta de ninguém; não é a você que ele odeia, mas à própria vida.

Romilly baixou os olhos para a sela, respirando fundo. Sabia por que Orain lhe contara a história e aumentou ainda mais sua admiração pelo homem; ele tinha tolerância e compaixão até pelo homem que falara coisas tão horríveis a seu respeito.

— Nesse caso, Tio, tentarei não pensar tão mal dele quanto Alaric pensa de mim.

Mas ela ainda estava confusa. Alderic falara dos Hastur como descendentes dos Deuses, grandes e nobres; Orain pronunciava a própria palavra "Hastur" como se fosse um insulto.

— Quer dizer que todos os Hastur são maus?

— Absolutamente! — protestou Orain, com veemência. — Nunca um homem melhor do que Carolin pisou nesta terra; seu único defeito é que jamais pensou mal dos parentes que eram canalhas e foi muito generoso e clemente com os... — A boca se contraiu no que deveria ser um sorriso. — ... ambiciosos bastardos.

Orain ficou em silêncio e Romilly, observando os sulcos em seu rosto, compreendeu que seus pensamentos estavam a mil léguas dela, de Dom Cario e de seus homens. Ela teve a impressão de que podia ver na mente de Orain imagens de uma linda cidade construída entre dois desfiladeiros nas montanhas, porém baixa, num vale verdejante, à margem de um lago cujas ondas eram como neblina rolando das profundezas. Uma torre branca erguia-se perto da praia e homens e mulheres passavam pelos portões, altos e elegantes, como envoltos por suave magia, muito bonitos para serem reais — e Romilly pôde sentir a profunda tristeza dele, a tristeza do exílio, do homem expatriado...

Eu também sou expatriada, afastei-me de toda a família... Mas é possível que meu irmão Ruyven me aguarde na Torre Tramontana. E Orain também está sozinho, sem família...

Eles passaram pelos enormes e solenes portões de Nevarsin no momento em que o crepúsculo caía e a noite súbita daquela época do ano começava a obscurecer o céu com chuva. Dom Cario seguia na frente, o capuz puxado sobre a cabeça ocultando as feições; percorreram as velhas ruas calçadas com pedras e subiram por íngremes caminhos, ruas estreitas e sinuosas, na direção das trilhas cobertas de neve que levavam ao mosteiro. Romilly pensou que nunca sentira um frio tão intenso; o mosteiro estava situado no meio do gelo glacial, esculpido na rocha maciça da montanha; e quando pararam diante dos portões internos, sob a grande estátua do Portador dos Fardos, encurvado ao peso do mundo, e da imagem menor mas ainda maior que o tamanho natural de São Valentim das Neves, ela estava tremendo outra vez, apesar do agasalho extra.

Um homem alto e distinto, numa volumosa túnica marrom e capuz de monge, gesticulou para que entrassem. Romilly hesitou; fora criada como cristoforo e sabia que nenhuma mulher podia entrar no mosteiro, nem mesmo na casa de hóspedes. Mas escolhera aquele disfarce e agora não podia repudiá-lo. Sussurrou uma oração:

— Abençoado Portador dos Fardos, São Valentim, perdoem-me. Não é por mal que penetro neste mundo dos homens e juro que nada farei para desgraçá-los aqui.

Haveria um escândalo maior se ela revelasse agora seu verdadeiro sexo. E Romilly especulou sobre o motivo da proibição às mulheres. Será que os monges temiam que a presença das mulheres os impedisse de manter seus votos de renúncia? Mas de que adiantavam esses votos se não podiam resistir às mulheres, a não ser que nunca as vissem? E por que eles pensavam que as mulheres se interessariam em tentá-los? Contemplando um pequeno monge encapuzado, ela pensou, com uma reação perigosamente próxima de uma risada, que seria necessário mais caridade do que até um santo podia ter para esquecer sua feiúra e tentá-lo!

Haviam estábulos confortáveis para todos os animais de montaria e um cercado de pedra em que Romilly encontrou gaiolas e poleiros para seus pássaros.

— Pode ir à cidade e comprar comida para eles — disse-lhe Orain, entregando algumas argolas de cobre. — Mas esteja de volta a tempo para o jantar na casa de hóspedes; e se quiser pode comparecer às orações noturnas... talvez goste do coro cantando.

Romilly acenou com a cabeça, obediente, enquanto sentia o maior regozijo interior; Darren comentara a excelência do coro de Nevarsin, para o qual não pudera ingressar nos tempos de estudante por não ser muito afinado; mas o pai também falara de um dos pontos altos de sua vida, quando assistira a um serviço solene no mosteiro e ouvira o canto dos monges. Ela seguiu apressada para a cidade, excitada e um pouco assustada pelo lugar estranho; mas encontrou um vendedor de pássaros, obteve a informação que desejava e descobriu que o homem sabia exatamente qual o alimento apropriado para os pássaros-sentinelas. Esperava ter de carregar uma carcaça fedorenta meio apodrecida pelas ruas da cidade, mas o vendedor declarou que teria o maior prazer em entregar o alimento nos estábulos da casa de hóspedes.

— Ficará alojado no mosteiro, meu jovem? Se quiser, posso entregar todos os dias o alimento apropriado para seus pássaros.

— Perguntarei a meu amo — disse Romilly. — Não sei por quanto tempo eles pretendem ficar.

E ela pensou que era uma boa coisa que tais serviços pudessem ser prestados; mas quando o homem comunicou o preço, ela ficou um pouco perturbada. Mesmo assim, não havia como deixar as muralhas e caçar pessoalmente o alimento para os pássaros; acertou o fornecimento para hoje e amanhã e pagou o que o vendedor pediu.

Retornando pelas ruas da cidade, cinzentas e velhas, as casas antigas inclinadas e as paredes parecendo se fechar ao seu redor, Romilly estava um pouco assustada. Perdera o contato com Preciosa antes de passarem pelos portões de Nevarsin; o clima ali era muito frio para um falcão... Preciosa teria voltado para um clima mais acolhedor? Nunca poderia encontrar alimento na cidade... havia bastante carniça nas ruas, ela calculou pelo cheiro, mas não alimento fresco e vivo para um falcão. Esperava que Preciosa estivesse sã e salva...

Mas, no momento, tinha de pensar nos pássaros-sentinelas; acompanhou sua alimentação e constatou que havia um pátio grande, calçado com pedras, onde poderia exercitá-los e deixá-los voar. Nos limites do pátio, enquanto ela os fazia voar em círculos em linhas compridas — os pássaros gritavam menos agora e ela sabia que estavam se acostumando a seu contato e voz — , avistou um grupo de meninos. Todos usavam os hábitos com capuz do mosteiro. Mas certamente, pensou Romilly, eram jovens demais para serem monges; deviam ser estudantes, enviados como acontecera com Ruyven e depois Darren. Um dia talvez seu irmão Rael estivesse ali. Como sinto saudades de Rael!

Os meninos observavam os pássaros com excitado interesse. Um deles, mais ousado que os demais, gritou:

— Como consegue manipular esses pássaros sem se machucar?

Ele se aproximou, deixando para trás os outros meninos, estendeu a mão na direção de Temperança; Romilly gesticulou para que a retirasse depressa.

— Esses pássaros são ferozes e podem bicar com muita força; se investisse contra seus olhos, poderia feri-lo gravemente.

— Eles não machucam você!

— Porque sou treinado para cuidar deles e já me conhecem.

Obediente, o menino recuou. Não era muito mais velho que Rael, pensou Romilly, devia ter dez ou doze anos. Uma sineta ressoou no pátio e as crianças partiram pelo corredor, correndo e se empurrando; mas o menino que observava os pássaros permaneceu.

— Não deve atender ao chamado da sineta com seus colegas?

— Não tenho nenhuma aula a esta hora — respondeu o menino. — Posso ficar aqui até soar a sineta para o coro, quando terei de ir e cantar. E depois terei uma aula com o mestre de armas.

— Num mosteiro?

— Não serei monge e por isso um mestre de armas vem da aldeia de dois em dois dias para me dar aulas e a alguns outros. Mas não tenho deveres agora e gostaria de observar os pássaros, se não se importa. É uma leronis, vai domna, para conhecer tão bem esses pássaros?

Romilly ficou chocada, mas finalmente conseguiu perguntar:

— Por que me chama de domna?

— Mas posso ver que é, sem a menor dúvida, embora use roupas de homem. — Romilly parecia tão consternada que ele baixou a voz e acrescentou, num sussurro de conspirador: — Não se preocupe que não contarei a ninguém. O Padre-Mestre ficaria muito zangado e eu acho que você não está fazendo mal a ninguém. Mas por que prefere usar roupas de homem? Não gosta de ser mulher?

Alguém poderia gostar?, especulou Romilly. Depois ela perguntou a si mesma por que os olhos claros daquele menino haviam visto o que ninguém mais percebera. Ele respondeu ao pensamento que não fora expresso:

— Sou treinado para isso, como você é treinada para cuidar de falcões e outros pássaros, a fim de que um dia eu possa servir a meu povo numa Torre como um laranzu.

— Uma criança como você?

— Tenho doze anos e em apenas mais três serei um homem — o menino declarou, com a maior dignidade. — Meu pai é Lyondri Hastur, conselheiro do rei; os Deuses me deram sangue nobre e devo estar preparado para servir ao povo sobre o qual terei um dia de reinar.

O filho de Lyondri Hastur! Romilly lembrou a história que Orain contara, sobre Alaric e as mortes em sua família. Fingiu estar ajeitando a linha do pássaro; nunca antes tivera de esconder seus pensamentos e só conhecia uma maneira de fazê-lo — com um discurso rápido, ao acaso.

— Gostaria de segurar Prudência um pouco? Ela é a mais leve e não será muito pesada para seu braço. Eu a manterei quieta para você, se quiser.

O menino parecia satisfeito e excitado. Encapuzando Prudência com todo cuidado e irradiando pensamentos tranqüilizadores — esse menino é amigo, não vai lhe fazer mal, fique quieta — ela enfiou uma luva no braço do menino com a mão livre, e acomodou o pássaro. Ele sustentou Prudência, fazendo o maior esforço para evitar que o braço tremesse. Romilly entregou-lhe uma pena.

— Afague o peito dela com isto. Nunca toque num pássaro com a mão; mesmo que suas mãos estejam limpas, afetará a disposição das penas.

Ele afagou o peito liso do pássaro com a pena, arruinando suavemente.

— Nunca estive antes tão perto de um pássaro-sentinela — murmurou o menino; deliciado. — Ouvi dizer que eram ferozes e não podiam ser domados... é o laran que a mantém tão calma, domna

— Não deve me chamar de domna aqui — disse Romilly, mantendo a voz baixa e serena, a fim de não perturbar o pássaro. — O nome que uso é Rumai.

— É laran, Rumai? Acha que eu poderia aprender a controlar um pássaro assim?

— Se fosse treinado para isso, sem dúvida. Mas deve começar com um falcão pequeno, a fim de que seu braço não canse e a fadiga não perturbe o pássaro. É melhor eu pegar Prudência agora — acrescentou Romilly, pois o braço do menino já tremia com o esforço. Ela ajeitou o pássaro no poleiro. — E o laran nada pode fazer além de ajudar sua mente a entrar em sintonia com a mente do pássaro. Mas o clima aqui é frio demais para os falcões comuns; acho que teria de esperar até voltar às terras baixas.

O menino suspirou, olhando pesaroso para o pássaro no poleiro.

— Esses são mais difíceis do que os falcões, não é mesmo? São parentes do kyorebni?

— Não são diferentes na forma, mas são mais inteligentes do que o kyorebni ou mesmo do que qualquer falcão.

Parecia deslealdade com Preciosa admitir isso, mas depois de alguns dias de contato com os pássaros-sentinelas ela sabia que possuíam uma inteligência superior.

— Posso ajudar, dom... Rumai?

— Já estou quase acabando, mas se quiser pode misturar essa coisa verde e cascalho com o alimento deles. Mas se tocar na carniça, ficará com as mãos fedendo quando for para o coro.

— Posso lavar as mãos no poço antes do coro, pois o Padre Cantor é muito gordo e sempre se atrasa para os ensaios — garantiu o menino, solenemente.

Romilly sorriu, enquanto ele começava a partir a fétida carne, salpicando-a com ervas e pedrinhas. O sorriso desvaneceu-se no instante seguinte; aquele menino era telepata e filho de Lyondri Hastur, poderia representar um perigo para todos.

— Qual é seu nome? — ela perguntou.

— Caryl. Recebi esse nome pelo homem que era rei quando nasci, mas o pai diz que Carolin não é um bom nome para se ter agora. Carolin era rei, mas abusou de seu poder, pelo que me disseram, foi um mau rei e por isso seu primo Rakhal teve de tomar o trono. Mas ele foi gentil comigo.

Romilly disse a si mesma: a criança apenas repete o que ouviu o pai dizer. Caryl terminou de preparar o alimento e perguntou se podia dá-lo a um dos pássaros.

— Dê a Prudência — disse Romilly. — Ela é a mais calma e posso ver que vocês dois já fizeram amizade.

Ele levou o prato para Prudência, ficou observando-a rasgar a carne vorazmente, enquanto Romilly alimentava os outros dois pássaros. Uma sineta soou no pátio externo do mosteiro, abafada pelos muros. O menino teve um sobressalto.

— Tenho de ir para o coro e depois haverá aula — disse ele. — Posso vir esta noite e ajudar você a alimentar os pássaros... Rumai?

Romilly hesitou e ele acrescentou, ansioso:

— Prometo que guardarei seu segredo.

Ela acabou concordando.

— Está bem. Pode vir quando quiser.

O menino saiu correndo. Romilly notou que ele limpou as mãos nas roupas, como qualquer menino muito ativo, esquecendo a promessa de que as lavaria no poço.

Mas depois que ele desapareceu, ela suspirou e ficou imóvel, esquecendo os pássaros por um momento.

O filho de Lyondri Hastur ali no mosteiro... e era o lugar em que Dom Cario deveria encontrar-se com o Rei Carolin e entregar o presente dos valiosos pássaros-sentinelas, além de levantarem um exército na cidade. Não era impossível, ela refletiu, que o menino conhecesse o rei de vista; assim, se Carolin estivesse na cidade disfarçado e se aproximasse do mosteiro, ele poderia reconhecê-lo e então...

Que diferença faz para mim o patife que ocupa o trono? As palavras do pai ressoaram em sua mente. Mas Alderic, que parecia ser o melhor jovem que ela já conhecera, além de seus irmãos, era um homem de Carolin, talvez mesmo seu filho. Cario e Orain também eram leais ao rei exilado. E o conselheiro Lyondri Hastur, independente do que seu filho pudesse dizer, parecia ser um dos piores tiranos de que ela já ouvira falar... ou pelo menos era o que a história contava do que ele fizera com os filhos de Alaric.

E ela era um homem de Dom Cario, pelo menos enquanto recebesse dinheiro a seu serviço. Ele deveria ser informado do perigo que corria o homem que considerava seu legítimo rei. Talvez pudesse avisar a Carolin para não se aproximar do mosteiro enquanto ali estivesse um menino que o reconheceria, capaz de penetrar em qualquer disfarce que ele pudesse usar. Os olhos do menino eram mesmo penetrantes e seu laran... ele percebera que Romilly era mulher.

Embora eu não possa revelar a Dom Cario ou seu amigo como sei que o menino tem laran...

Ela foi para os estábulos ao lado do mosteiro e encontrou os cavalos em boas mãos; conversou um pouco com os cavalariços sobre os cuidados que deveriam ser dispensados aos animais e presenteou-os, como era apropriado, com generosa quantidade da prata e cobre que Orain lhe dera para as despesas. Depois do encontro com o jovem Caryl, ela estava prevenida, mas nenhum dos cavalariços prestou uma atenção maior nela; todos aceitaram-na como se apresentava, apenas outro aprendiz na comitiva do nobre hospedado no mosteiro. Ela saiu à procura de Dom Cario, a fim de fazer-lhe a advertência. Nos aposentos que lhe haviam sido destinados na casa de hóspedes, porém, encontrou apenas Orain, remendando suas toscas botas.

Ele levantou os olhos quando Romilly entrou.

— Algum problema com os pássaros ou cavalos, rapaz?

— Não, estão todos bem. Perdoe-me por interromper seu lazer, mas preciso falar com Dom Cario...

— Não poderá lhe falar agora ou por algum tempo, pois ele está reunido com o Padre Abade... e não creio que seja para confessar seus pecados, pois não é cristoforo. Posso ajudá-lo em alguma coisa, rapaz? Não há nenhum trabalho urgente agora que os pássaros estão cuidados e com boa saúde... aproveite a folga para conhecer a cidade; e se precisar de algum pretexto, eu o mandarei em alguma missão. Pode levar estas botas para consertar, por exemplo. — Orain estendeu-as, com um sorriso cômico. — Estão além da minha competência.

— Farei o que me pede com a maior satisfação, mas tenho uma mensagem importante para Dom Cario. Ele... vocês são homens de Carolin e acabei de saber que... alguém que conhece o rei de vista e pode também conhecer alguns de seus conselheiros está aqui no mosteiro. É o filho de Lyondri Hastur, Caryl.

O rosto de Orain mudou, os lábios se contraíram num assovio silencioso.

— É mesmo? O filhote de lobo está aqui, envenenando as mentes contra milorde?

— O menino tem apenas doze anos e parece ser boa pessoa — protestou Romilly. — Falou bem do rei e disse que ele sempre foi gentil... mas pode conhecê-lo...

— Tem razão — concordou Orain, sombriamente. — Mas uma serpente nova pode dar um bote tão mortífero quanto uma cobra velha. Seja como for, não ouvi falar mal do rapaz. Mas é melhor que Alaric não saiba de sua presença aqui ou pode querer que um filho pague por outro filho... se ele descobrisse o filho de Hastur, duvido muito que pudesse manter as mãos longe de sua garganta, pois sei como ele se sente. Milorde precisa saber disso, e imediatamente...

— Caryl poderia reconhecer Dom Cario também? Ele passou muito tempo na corte? Dom Cario é... — Romilly hesitou. — Ele não é da família de Carolin?

— É, sim. Dom Cario também é um Hastur. — Orain suspirou. — Muito bem, ficarei de olho no menino e avisarei Dom Cario. Foi muito previdente de sua parte vir me falar, Rumai; fico lhe devendo essa. — Como se descartasse o pensamento deliberadamente, ele inclinou-se e pegou as botas remendadas. — Leve isto para a cidade... e para que não se perca, eu o acompanharei e mostrarei o caminho.

Ele passou o braço calmamente pelo de Romilly ao deixarem a casa de hóspedes da mosteiro e desceram pelas ruas da velha cidade. O ar da montanha estava muito frio e Romilly aconchegou-se em seu manto, mas Orain parecia inteiramente à vontade, embora usasse um casaco leve.

— Gosto do ar da montanha — ele comentou. — Nasci à sombra do Alto Kimbi, embora fosse criado nas praias de Hali; e ainda me considero um homem das montanhas. E você?

— Nasci nas Colinas Kilghard, mas ao norte do Kadarin.

— A região em torno de Storn? Conheço o lugar muito bem. Não é de admirar que tenha falcões no sangue; eu também tenho. — Ele riu, pesaroso. — Mas você é meu mestre nisso. Nunca segurei um pássaro-sentinela antes e acho que não ficarei triste se nunca mais puser as mãos em algum.

Eles passaram pela porta de uma loja que recendia a couro, casca de curtume e resina. O sapateiro alteou as sobrancelhas desdenhoso ao ver as velhas botas remendadas na mão de Orain, mas mudou de atitude no instante em que Orain enfiou a mão no bolso e tirou prata e até cobre.

— Quando vai querer suas botas, vai dom?

— Acho que não dá mais para consertar essas — disse Orain. — Mas se ajustam muito bem a meus pés; faça-me um par nessa medida, pois talvez eu tenha de viajar por uma região de muita neve. Você tem botas para as Hellers, Rumai? Espero que nos acompanhe até Tramontana...

E por que não?, pensou Romilly. Não tenho outro lugar para ir, e se Ruyven está lá, ou posso obter notícias dele lá, Tramontana é meu caminho.

— Essas botas que o jovem senhor está usando jamais agüentariam os caminhos através das geleiras — disse o sapateiro, com um olhar subserviente para Orain. — Posso fazer um par resistente para seu filho por duas pratas.

Só agora Romilly compreendeu como Dom Cario pagara generosamente por seus cuidados e conhecimentos de falcões e pássaros. Ela se apressou em dizer:

— Eu tenho...

— Cale-se, rapaz. Dom Cario me disse que providenciasse tudo que você precisasse para a viagem, como faço por todos os seus homens. E agora sente-se ali e deixe que ele tire as medidas dos seus pés... filho.

Ele arrematou com um sorriso. Romilly obedeceu, estendendo o pé fino com a meia esfarrapada e grande demais. O sapateiro assoviava uma melodia enquanto tirava as medidas, rabiscando anotações enigmáticas e números com um coto de giz na prancha ao lado de sua bancada.

— Para quando vai querer?

— Para ontem — respondeu Orain. — Talvez tenhamos de deixar a cidade a qualquer momento.

O sapateiro protestou; Orain negociou por alguns minutos, acabaram acertando o preço e a data para dois dias depois.

— Deveria ser amanhã — comentou Orain, de cara amarrada, ao deixarem a loja. — Mas esses artesãos não têm mais orgulho por seu ofício hoje em dia. — Ele soltou um grunhido, enquanto Romilly se virava. — Está com pressa de voltar ao mosteiro, Rumai, para jantar lentilhas frias e cerveja? Depois de tantos dias de viagem, subsistindo a mingau e bolo, que não era muito melhor que pão de cachorro, estou ansioso por uma ave assada e um bom vinho. Que motivo você tem para voltar? Os pássaros não irão embora, não é mesmo? Os cavalos estão aquecidos nos estábulos e os monges lhes darão algum feno, se não voltarmos. Assim, vamos dar uma volta pela cidade.

Romilly deu de ombros e concordou. Nunca estivera antes numa cidade do tamanho de Nevarsin e receava perder-se se a explorasse sozinha; com Orain, no entanto, poderia aprender o rumo pelas confusas ruas. De qualquer forma, dificilmente deixaria de encontrar o caminho de volta para o mosteiro, pois bastava seguir por qualquer rua que subisse, pois o mosteiro estava localizado acima da cidade.

O curto dia de inverno clareou e depois voltou a escurecer, enquanto atravessavam a cidade, a maior parte do tempo num silêncio amistoso. Orain não parecia muito propenso a conversar, porém apontou vários lugares conhecidos, o antigo santuário de São Valentim das Neves, uma caverna no alto da montanha em que o santo teria vivido e morrido, uma forja em que se fazia a melhor ferradura ao norte de Armida, uma loja de doces em que, ele informou com um sorriso, os estudantes do mosteiro costumavam gastar seu dinheiro nos feriados. Era como se Romilly fosse um dos seus irmãos, livre, sem estar reprimida por qualquer das leis que controlavam o comportamento das mulheres; e sentia-se à vontade com Orain como se o conhecesse há muito tempo. Ele esquecera quase por completo o sotaque de camponês e falava numa voz agradável e educada, apenas com um ligeiro vestígio do sotaque das terras baixas, como Alderic.

Romilly não podia adivinhar sua idade. Com certeza ele não era jovem, mas ela calculou que não podia ser tão velho quanto seu pai. Suas mãos eram rudes e calejadas como as de um espadachim, mas as unhas eram limpas e bem cuidadas, não sujas ou quebradas como as dos outros homens que acompanhavam Dom Cario.

Devia ser muito bem-nascido, se já fora irmão adotivo do exilado Carolin. Seu pai, Romilly tinha certeza, o receberia bem e concederia a honra devida a um nobre; embora Dom Cario não chegasse a tratá-lo completamente como um igual, demonstrava afeição e respeito, ouvia seu conselho em tudo.

Enquanto o crepúsculo se adensava, Orain encontrou uma casa de pasto e pediu uma refeição. Romilly achou que deveria protestar:

— Não deveria... posso pagar minha parte...

Orain deu de ombros.

— Detesto jantar sozinho. E Dom Cario deixou claro que tem outros peixes para fritar esta noite...

Ela inclinou a cabeça, aceitando graciosamente. Nunca antes estivera numa taverna ou casa de pasto, e notou que não havia mulheres, a não ser a corpulenta e afobada copeira, que largou a louça na frente deles e se afastou apressada. Se Orain soubesse seu verdadeiro sexo, jamais a levaria àquele lugar; se uma dama aparecesse ali, o que seria inconcebível, haveria muita deferência e confusão, não a deixariam ficar à vontade. Não poderia se refestelar como ela fazia, os pés em cima do banco em frente, tomando uma caneca de sidra, enquanto o cheiro bom da comida espalhava-se pela sala.

Não, era melhor permanecer como rapaz. Tinha um trabalho respeitável, três moedas de prata por dez dias; nenhuma cozinheira ou leiteira poderia jamais ter a esperança de obter tal remuneração por qualquer trabalho que pudesse fazer. Ela lembrou a avó de Rory, contando sua perdida prosperidade e dizendo que o marido, quando não podia partilhar seu leito, era enviado para dormir com a leiteira, sem qualquer preocupação pelo que esta podia pensar ou querer. Era melhor passar a vida inteira de culote e botas do que ter essa função acrescentada aos deveres normais de uma leiteira!

Ela percebeu que estava especulando se Luciella fazia tais exigências às suas mulheres. O pai devia fazer, às vezes... Afinal havia o filho de Nelda. Romilly sentiu-se contrafeita ao pensar no pai agindo assim e lembrou a si mesma que ele era um cristoforo... Mas faria tanta diferença? No mundo em que ela fora criada admitia-se que um homem tivesse bastardos. Romilly jamais pensara muito nas mães desses bastardos. Ela mudou de posição no banco, irrequieta, e Orain comentou, com um sorriso:

— Está com fome? Tem alguma coisa cheirando muito bem na cozinha. — Meia dúzia de homens jogavam dardos numa tábua no fundo da sala, enquanto outros jogavam dados. — Vamos disputar uma partida de dardos, rapaz?

Romilly sacudiu a cabeça, protestou que não conhecia o jogo.

— Nesse caso — insistiu Orain —, está na melhor idade para aprender.

Ela se viu de pé um momento depois, exortada a arremessar os dardos.

— Segure o dardo assim e jogue — instruiu Orain. — Não precisa fazer muita força.

— Não é tão difícil — comentou um dos homens na multidão por trás. — Basta imaginar que o círculo pintado na parede é a cabeça do Rei Carolin e que tem uma chance de ganhar os cinqüenta reis de cobre oferecidos pela cabeça dele!

— Em vez disso - sugeriu uma voz amarga, por trás do primeiro orador —, imagine que a cabeça é daquele lobo sedento de sangue do Rakhal... ou de seu maior chacal, Lyondri, o Lorde Hastur!

— Traição! — exclamou outra voz. Mais alguém disse:

— Esse tipo de conversa não é seguro nem mesmo aqui, além do Kadarin... quem sabe quantos espiões Lyondri Hastur pode ter enviado para a cidade?

— Pois eu digo que Zandru os atormente com febre e furúnculos! — gritou outro homem. — Que importância tem para os homens livres das montanhas quem é o grande patife que está no trono ou o patife ainda maior que tenta desalojar seu rabo? Que Zandru carregue os dois para seus infernos, e lhes desejo a alegria da companhia mútua! Que permaneçam ao sul do rio e deixem os homens honestos continuarem a tratar de sua vida em paz!

— Carolin deve ter feito alguma coisa ou nunca o expulsariam do trono — sugeriu alguém. — Lá por baixo, os Hali'imyn pensam que os Hastur são parentes dos seus nojentos Deuses... Ouvi muitas histórias quando viajei por lá, poderia contar...

Os dardos foram esquecidos; ninguém veio tomar o lugar de Romilly. Ela sussurrou para Orain:

— Vai permitir que falem assim sobre o Rei Carolin?

Ele não respondeu, Limitou-se a dizer:

— Nossa carne está na mesa, Rumai. Companheiros, talvez joguemos um pouco depois, mas agora o jantar está esfriando, enquanto ficamos aqui conversando.

Orain gesticulou para que Romilly largasse os dardos e voltassem à mesa. Depois que a comida chegou e enquanto cortava a carne em porções, ele murmurou:

— Estamos aqui para servir a Carolin, rapaz, não para defendê-lo de idiotas numa taverna. E agora trate de comer. — Uma pausa e ele acrescentou, ainda sussurrando: — Parte do motivo para que eu circule pela cidade é descobrir o que as pessoas pensam... saber quanto apoio podemos encontrar para o rei aqui. Se queremos recrutar homens para ele em Nevarsin, é indispensável que haja apoio popular, para que ninguém nos traia... muitas coisas podem ser feitas em segredo, mas não há a menor possibilidade de se levantar um exército assim!

Romilly espetou a carne assada com o garfo e comeu em silêncio. Notou que Orain, ao lhe falar, sem pensar, esquecera o rude sotaque camponês e se exprimira como um homem instruído. O que não era de surpreender, se ele era mesmo o irmão adotivo do rei, como ela ouvira dizer. Cario também devia ocupar importante posição naqueles conselhos, e era um dos homens leais... sem dúvida também perdera suas terras e bens quando Carolin fora deposto e fugira para as colinas. O que a lembrava de novo...

Não sei se Carolin tem inimigos na cidade, mas com certeza tem pelo menos um no mosteiro. Não creio que um menino como Caryl pudesse lhe fazer grande mal, ele disse que o rei o tratara com bondade; mas se Cario e Orain esperam se encontrar com o rei dentro dos muros do mosteiro, há pelo menos um par de olhos que o reconheceria. Devem evitar que ele vá até lá. E Romilly se perguntou por que deveria se importar com o que acontecesse ao rei exilado. Como seu pai dissera tantas vezes, que diferença fazia qual o grande patife que sentasse no trono ou o patife ainda pior que tentasse destroná-lo?

Orain e Cario não podem seguir um homem mau. Qualquer que seja o rei que eles apóiem, esse é meu rei também! E a história que ela ouvira do terrível Lorde Hastur, Lyondri, causara-lhe a maior repulsa. E pensou, ironicamente, que se tornara, sem perceber, partidária de Carolin.

— Fique com esse último pedaço de carne, rapaz — disse Orain sorrindo. — Ainda está crescendo e precisa de muita comida.

Ele pediu mais vinho à mulher. Romilly estendeu a mão para pegar outra taça, mas Orain impediu-a com um tapa.

— Não, nada disso, já bebeu demais... traga uma sidra para o rapaz, mulher, ele é jovem demais para a zurrapa que servem aqui. — Uma pausa e ele acrescentou, jovial: — Não quero ter de carregá-lo para casa e os garotos de sua idade não têm cabeça para esse tipo de coisa.

O rosto ardendo, exasperada, Romilly pegou a enorme caneca de sidra que a mulher pôs na sua frente. Tomando um gole, reconheceu que gostava mais do que do vinho forte que queimava em sua boca e estômago e deixava a cabeça girando. E murmurou:

— Obrigado, Orain.

Ele balançou a cabeça.

— Não foi nada. Eu gostaria de ter um amigo para me afastar do vinho quando tinha a sua idade. É tarde demais agora!

Ele sorriu, levantou sua caneca e tomou um longo gole. Romilly ficou sentada, satisfeita e sonolenta, enquanto Orain voltava ao jogo de dardos; quando convidada a acompanhá-lo, ela sacudiu a cabeça, continuou onde estava, escutando a conversa ao redor.

— Bem jogado! Acertou em cheio no olho do rei que não apóia!

— Ouvi dizer que Carolin está nas Hellers porque os Hali'imyn são moles demais para procurá-lo aqui em cima... poderiam ficar com os rabos congelados!

— Se Carolin está aqui ou não, a verdade é que tem muitos partidários do seu regime... ele é um homem de bem!

— O que quer que Carolin faça, eu o apoiarei em qualquer coisa que dê ao bastardo do Lyondri a ponta da corda que ele merece! Já souberam o que ele fez com o velho Lorde di Asturien? Queimaram a casa do pobre homem e o largaram, e à mulher, na estrada em roupas de dormir. Teriam morrido se não fossem encontrados por um camponês que lhes deu abrigo...

Algum tempo depois Romilly acabou cochilando e teve um sonho em que Carolin e o usurpador Rakhal apareceram com as caras dos enormes gatos das montanhas, esgueirando-se pela floresta e se atacando, ao som do grito estridente dos falcões, como se ela circulasse pelo céu, observando a batalha. Sobrevoou uma Torre branca e Ruyven acenou-lhe do topo, depois adquiriu asas e começou a voar ao seu lado, dizendo-lhe solenemente que o pai não aprovaria. E acrescentou: "O Portador dos Fardos disse que é proibido ao homem voar, e é por isso que não tenho asas".E dizendo isso, ele caiu como uma pedra; Romilly despertou com um sobressalto para sentir Orain sacudindo-a levemente.

— Vamos, rapaz, já é tarde, estão fechando... precisamos voltar ao mosteiro!

Sua respiração estava impregnada de vinho, a voz era engrolada; Romilly especulou se ele seria capaz de andar. Mesmo assim, ela ajeitou o manto nos ombros e saíram para a escuridão gelada. Era muito tarde; a maioria das casas estava às escuras. Em algum lugar um cachorro latiu insistente, mas não houve qualquer outro som e a claridade na rua era mínima, apenas a pálida luz da azul Kyrrdis, pairando baixa sobre os telhados da cidade. Os passos de Orain eram trôpegos; ele andava com uma das mãos na parede da casa mais próxima, amparando-se, mas quando as ruas estreitas se abriram numa escada, tropeçou e caiu nas pedras, uivando atordoado com a surpresa. Romilly ajudou-o a levantar-se, sugerindo, alegre:

— É melhor apoiar-se em meu braço.

Orain cuidara para que seu companheiro permanecesse sóbrio, a fim de ter alguém para levá-lo de volta ao mosteiro? Romilly era bastante competente para encontrar um caminho que já percorrera e não demorou muito para que estivessem à sombra do mosteiro.

— Sabe se Carolin está mesmo na cidade, Orain? — ela finalmente perguntou, em voz baixa.

Ele fitou-a com uma desconfiança de bêbado.

— Por que quer saber?

Romilly deu de ombros e abandonou o assunto. Quando ele estivesse sóbrio, voltaria a falar a respeito; mas pelo menos o vinho não lhe abrira a boca, não falaria de sua missão ou planos. Ao subirem pela última rua íngreme, que levava ao pátio da casa de hóspedes do mosteiro, ele apertava seu braço com força, às vezes estendia a mão pelos ombros; mas Romilly sempre se esquivava, pois se Orain chegasse muito perto poderia descobrir, como Rory fizera, que havia uma mulher por baixo daquelas roupas.

Gosto de Orain e o respeito. Mas se ele soubesse que sou mulher, seria como os outros...

Enquanto subiam, ele se apoiava cada vez mais pesadamente no braço de Romilly. Houve um momento em que se virou, desabotoou a braguilha e aliviou-se contra a parede de uma casa; não pela primeira vez, Romilly sentiu-se grata por sua criação, que lhe permitia aceitar aquilo sem corar... se fosse uma mulher que não saía de casa, como Luciella ou sua irmã mais moça ficaria indignada uma dúzia de vezes por dia. Mas também, se fosse assim, provavelmente nunca pensaria em protestar contra o casamento que o pai acertara e certamente não seria capaz de viajar com tantos homens sem se revelar.

Nos portões do mosteiro Orain puxou a corda do sino que anunciava a presença dos dois para o porteiro na casa de hóspedes. Era muito tarde; por um momento Romilly pensou se seriam admitidos, mas o Irmão Porteiro acabou aparecendo e, resmungando, deixou-os entrar. Franziu o rosto e fungou desaprovador ao cheiro de vinho que os envolvia, mas permitiu que passassem e sacudiu a cabeça quando Orain lhe ofereceu uma moeda de prata.

— Não tenho permissão para aceitar, amigo. Mas agradeço pelo gentil pensamento. Sua porta é por ali. — Ele acrescentou para Romilly: — Pode levá-lo para dentro?

Romilly conduziu-o para o quarto.

— Por aqui, Orain.

Lá dentro, ele olhou ao redor, atordoado, como uma coruja à luz do dia.

— Onde...

— Deite e trate de dormir.

Romilly empurrou-o para a mais próxima das duas camas e levantou as pesadas botas. Orain protestou, incoerente... estava mais bêbado do que ela pensara. Segurou-a pelo pulso.

— Gosto de você, Rumai... mas é um cristoforo. Ouvi-o invocar o Portador dos Fardos... droga...

Gentilmente, Romilly desvencilhou a mão, protegeu-o com o manto e saiu sem fazer barulho, especulando onde Dom Cario estaria. Ainda reunido com o Padre Mestre? Ora, não era da sua conta e teria de se levantar cedo para cuidar dos animais. Não queria partilhar os aposentos dos homens que acompanhavam Dom Cario e Orain e por isso preferiu dormir no feno do estábulo — era quente e ninguém a observava, não precisava ser tão cuidadosa contra a acidental revelação de seu corpo. Não percebera, até ficar sozinha outra vez, como era grande a tensão por estar sempre de guarda contra alguma palavra ou gesto momentâneo e inadvertido que poderia traí-la. Tirou as botas, contente pelas meias grossas por baixo, acomodou-se num monte de feno e tentou dormir.

Mas inesperadamente viu que estava desperta. Podia ouvir os movimentos dos pássaros nos poleiros, o barulho suave dos cascos dos cavalos e chervines; à distância, nas profundezas do mosteiro, ouviu um pequeno sino e o arrastar de pés, enquanto os monges seguiam para os Ofícios Noturnos, num momento em que todo mundo ao redor dormia. Orain teria alguma rejeição aos cristoforos, ao ponto de dizer que gostava dela, mas era uma cristoforo? Ele seria um intolerante em matéria de religião? Romilly nunca pensara muito a respeito, era cristoforo porque sua família também era e porque, ao longo de toda a sua vida, ouvira histórias dos bons ensinamentos do Portador dos Fardos, ensinamentos que haviam sido trazidos, diziam os cristoforos, de um lugar além das estrelas, em tempos anteriores ao que qualquer homem vivo podia lembrar ou se referir. Ouvindo o abafado e distante canto, ela acabou mergulhando num sono irrequieto, afundada no feno. Por algum tempo sonhou que estava voando, elevando-se com asas de falcão ou com as asas de um pássaro-sentinela; não sobre suas montanhas, mas sobre uma região das terras baixas, verdejante e bela, com lagos e amplos campos, uma torre branca erguendo-se por cima de um grande lago. E de repente despertou parcialmente com um sino tocando em algum lugar do mosteiro. Pensou, um pouco pesarosa, que se tivesse jantado no mosteiro teria ouvido o coro cantar... talvez a única mulher que já ouvira.

Mas passariam alguns dias ali, ao que tudo indicava; haveriam outras noites, outros serviços para ouvir. Ainda bem que Darren não estava mais no mosteiro... mesmo de seu lugar no coro ele poderia vê-la e reconhecê-la.

Se o Rei Carolin vier ao mosteiro, o jovem Caryl o reconhecerá — Dom Cario deve avisá-lo...

E depois ela voltou a dormir, com sonhos confusos de reis e crianças, alguém a seu lado que falava com a voz de Orain e a acariciava sonolentamente. Passou para um sono profundo e sem sonhos, despertando à primeira claridade com os gritos dos pássaros-sentinelas.

A vida no mosteiro logo entrou numa rotina. Despertar à primeira luz para cuidar dos animais, desjejum na casa de hóspedes, de vez em quando um serviço a realizar para Dom Cario ou Orain. Dois dias depois ela tinha botas novas, feitas sob medida, e com o pagamento que recebem — pois já completara dez dias de serviço — descobriu uma barraca que vendia agasalhos e comprou meias, a fim de poder trocar e lavar as que usava desde que Orain lhe dera. A tarde vagueava sozinha pela cidade de Nevarsin, desfrutando uma liberdade que nunca tivera no tempo em que ainda era filha do MacAran; à noite, depois que os pássaros estavam cuidados e exercitados e ela fizera uma refeição frugal na casa de hóspedes, ia para a capela e escutava o coro de homens e de meninos. Havia uma voz de soprano entre os meninos, doce e aflautada; Romilly aguçou os olhos para descobrir o cantor: era o pequeno Caryl, o filho de Lyondri Hastur.

Ele não queria mal ao Rei Carolin. Romilly esperava que Orain tivesse transmitido sua mensagem a Dom Cario e que este, de alguma forma, avisara ao rei, que ainda não chegara à cidade.

Ela tornou a visitar a taverna com Orain no período de dez dias que se seguiu, umas poucas vezes, mas ele não bebeu nessas ocasiões mais que uma ou duas canecas do vinho local, e não deu o menor indício de ficar embriagado. Não viu mais Dom Cario e calculou que ele estava ocupado com os assuntos do Rei Carolin que o haviam levado à cidade. Era bem possível até que tivesse deixado Nevarsin para se encontrar com Carolin, a fim de adverti-lo para não vir à cidade, pois havia alguém ali que o reconheceria. Romilly não pensava que o menino pudesse trair Carolin — ele dissera que o rei sempre o tratara gentilmente —, mas sua lealdade era com o pai, como não podia deixar de ser. Não interrogou Orain a respeito. Não era da sua conta e preferia deixar como estava.

Timidamente, ela começou a pensar: se o pai resolvesse casá-la com alguém como Orain, teria recusado? Achava que não! Mas havia conflito nisso também.

Pois nesse caso eu ficaria em casa, casada, jamais conheceria esta liberdade maravilhosa da cidade e taverna, bosques e campos, nunca trabalharia livre e teria dinheiro no bolso, nunca saberia realmente o que é a liberdade, nunca treinaria um pássaro-sentinela.

Gostava cada vez mais dos enormes e feios pássaros; agora vinham buscar a comida em sua mão tão prontamente quanto qualquer falcão-pardal ou passarinho engaiolado de criança. Ou seu braço se tornara mais forte ou estava mais acostumada, pois agora era capaz de sustentá-los por tempo considerável, e não se importava com o peso. A docilidade e a doçura que sentia quando entrava em contato com eles levava-a a pensar com pesar em Preciosa; voltaria a ver seu falcão algum dia?

Raramente via os outros homens; dormia separada e só os encontrava pela manhã e à noite, quando todos se reuniam para as refeições na casa de hóspedes do mosteiro. Estava contente por ser assim, pois ainda tinha um pouco de medo de Alaric, e os outros também lhe pareciam estranhos, diferentes. Parecia-lhe às vezes que a única pessoa com quem falava naqueles dias, além do homem que entregava a comida para os pássaros e a forragem para os cavalos e chervines, era o pequeno Caryl, que sempre aparecia quando podia escapar por alguns minutos das aulas, a fim de olhar os pássaros, segurá-los, falar com eles afetuosamente. Sempre se sentia um pouco perturbada com Caryl, aflita com a possibilidade do menino esquecer e chamá-la impensadamente outra vez de vai domna — era um grande peso em segredo para um menino suportar. Houve uma ocasião em que Orain foi à capela para ouvir o canto; sentou lá no fundo, envolto por sombras. Romilly teve certeza de que o menino, no coro iluminado, não podia ver o rosto de um homem solitário na parte mais escura da capela, mas lembrou que Caryl conhecia o rei e certamente reconheceria um dos homens de Carolin; ficou tão agitada que se levantou sem fazer barulho e saiu, com medo de que a criança telepata sentisse seu nervosismo e percebesse a causa. A noite do Solstício do Inverno se aproximava; estandes de pão de condimentos e brinquedos pintados em cores alegres começaram a aparecer no mercado, vendedores de doces enchiam suas bandejas com estrelas recortadas de pão de condimentos ou pasta de noz. Romilly, com saudade de casa ao sentir o aroma do pão de condimentos — Luciella sempre o preparava pessoalmente, dizendo que as criadas não deveriam ter trabalho extra naquela estação —, quase lamentou ter deixado o Ninho dos Falcões; mas depois lembrou que de qualquer maneira não passaria aquele feriado em casa, mas sim em Scathfell, como a esposa de Dom Garris... e naquela altura, sem dúvida, já estaria como a pequena Darissa, inchada e feia com seu primeiro filho! Não, estava muito melhor aqui; mas gostaria de poder enviar um presente para Rael ou que ele pudesse ver aquelas coisas bonitas ao seu lado.

Na manhã anterior ao Festival ela despertou com a neve soprando pelas frestas do lugar em que dormia, embora permanecesse aquecida na pilha de feno. Uma tempestade de inverno soprava, uivando, da Muralha ao Redor do Mundo, e o pátio do mosteiro estava coberto de neve recente, até a altura dos joelhos. Ela pôs os dois pares de meias quando se vestiu e a túnica extra, mas mesmo assim estremeceu ao sair para o pátio, a fim de se lavar na fonte; mas os pequenos noviços e estudantes corriam descalços na neve e ela imaginou como conseguiam fazer isso, rindo, falando muito, jogando bolas de neve uns nos outros. Eles pareciam rosados e aquecidos, enquanto que suas próprias mãos estavam roxas de frio!

Romilly foi cuidar dos animais de montaria e estacou, consternada, ao entrar: o cavalo de Dom Cario não estava no estábulo! Teria sido roubado? Ou Dom Cario saíra no meio daquela terrível tempestade? Ainda nevava, uns poucos flocos caindo de vez em quando do céu supercarregado. Enquanto ela deslocava o feno fragrante para os animais, Orain apareceu. Romilly virou-se para ele, aflita.

— O cavalo de Dom Cario...

— Cale-se, rapaz! Nem mesmo na presença dos homens. A vida dele pode estar em suas mãos; não diga uma só palavra.

Romilly balançou a cabeça, concordando, e ele acrescentou:

— Bom rapaz. Depois do meio-dia, desça à cidade comigo; talvez, quem sabe, eu tenha um presente de Solstício do Inverno para você, já que está longe de casa e da família...

Parecia que Orain andara lendo seus pensamentos e ela virou-se, tensa.

— Não espero presentes, senhor.

Ele sabia, teria adivinhado? Mas Orain limitou-se a sorrir e acrescentou, antes de sair:

— Ao meio-dia, não se esqueça.

Ao meio-dia Romilly tentava, na neve profunda, fazer voar um pouco os pássaros-sentinelas — eles quase não faziam exercício com aquele tempo —, antes de alimentá-los. Os pássaros gritavam rebelados quando ela os puxava nas linhas de isca e procurava encorajá-los a voar — eram temperamentais e não gostavam da neve que ainda caía. A neve no pátio pavimentado era tão profunda que passava por cima das botas e escorria por dentro, seus pés estavam frios, os dedos duros. Sentia-se enregelada e irritada, nem mesmo o jovial rosto do pequeno Caryl era capaz de animá-la. E pensou: Com este tempo, talvez fosse melhor ser uma dama, ao lado do fogo, sem nada para fazer, além de uns pontos de bordado e do pão de condimentos! Caryl usava apenas uma túnica leve, os braços nus e os pés descalços na neve. Romilly perguntou, em tom exasperado:

— Não está congelando?

Ele sacudiu a cabeça, rindo.

— É a primeira coisa que os monges nos ensinam. Como nos aquecermos do interior, pela respiração; alguns dos monges mais velhos podem tomar banho com a água do poço e depois enxugar as roupas pelo calor do corpo, mas isso parece um pouco mais do que eu gostaria de tentar. Sofri com o frio durante os dez primeiros dias, antes de aprender, mas desde então isso não mais aconteceu. Pobre Rumai... parece sentir tanto frio que eu gostaria de poder lhe ensinar também!

Ele estendeu o braço para pegar Prudência, dizendo muito sério:

— Venha, Prudência, você tem de voar. Sei que não gosta da neve, mas não é bom para você ficar sentada o tempo todo em seu poleiro. Precisa manter as asas fortes.

Prudência alçou vôo e circulou na extremidade da linha. Caryl lançou a isca e observou-a descer.

— Veja como ela gosta de brincar, mesmo na neve! Olhe só para ela!

— Você está feliz — comentou Romilly, amarga. — Gosta tanto assim da tempestade?

— Não. Preferia sair, mas com este tempo tenho de permanecer no mosteiro. Além disso, meu mestre de armas não pode vir e por isso sentirei falta da aula de espada. Mas estou feliz porque amanhã é feriado e meu pai virá me visitar. Sinto saudades dele e dos meus irmãos, e tenho certeza que meu pai me trará um bom presente... Estou com doze anos e ele me prometeu uma boa espada, talvez seja seu presente do Solstício do Inverno. E ele sempre me leva à cidade, para que eu possa comprar pão de condimentos e doces, e minha mãe sempre me manda um manto novo. Tenho me esforçado muito em todas as aulas, porque quero que ele fique satisfeito comigo.

Lyondri Hastur no mosteiro? O primeiro pensamento de Romilly foi para Orain e Dom Cario; o segundo, para o rei deles. Ela tratou de controlar os pensamentos e perguntou:

— Seu pai já está no mosteiro?

— Ainda não, mas virá para o feriado, a menos que a tempestade o impeça de viajar. Só que o pai nunca teve medo de tempestades. Tem um pouco do antigo Dom Delleray, pode alterar o tempo. Vai ver só, o pai fará com que pare de nevar antes do anoitecer!

— Eis um laran de que nunca ouvi falar — comentou Romilly, mantendo a voz firme. — Você também o tem?

— Acho que não... pelo menos nunca tentei usá-lo. Deixe-me pegar Temperança, enquanto você exercita na Diligência, está bem?

Ela entregou a Linha de isca para o menino, tentando esconder sua agitação. Alaric também devia ser avisado... ou tentaria se vingar do inimigo que considerava o assassino de sua esposa e de seu filho? Romilly mal conseguiu conversar com o menino. E no meio da alimentação dos pássaros viu a porta do estábulo abrir e Orain sair para o pátio. Tentou gesticular para que ele se retirasse, mas Orain aproximou-se, dizendo:

— Ainda não acabou com os pássaros, meu rapaz? Trate de se apressar, pois quero sua companhia para uma missão na cidade.

Caryl virou-se nesse momento e viu-o, seus olhos se arregalaram um pouco.

— Milorde — disse ele, com uma pequena mesura cortês —, o que está fazendo aqui?

Orain estremeceu e demorou um pouco para responder.

— Vim para cá em busca de santuário, rapaz, já que não sou mais bem-vindo na corte em que seu pai governa para o rei. Vai dar o alarme?

— Claro que não — respondeu o menino, com toda dignidade. — Sob o teto de São Valentim, até mesmo um condenado deve permanecer são e salvo, senhor. Todos os homens que procuram abrigo aqui são irmãos... foi o que os cristoforos me disseram. Mestre Rumai, se deseja sair com seu amo, pode deixar que porei os pássaros nos poleiros.

— Obrigado, mas posso cuidar disso.

Romilly pegou Temperança em seu pulso; Caryl seguiu-a com o outro pássaro em suas duas mãos. E disse, num sussurro:

— Sabia que ele era um dos homens de Carolin? Não estão seguros aqui.

Romilly fingiu estar irritada.

— Não faço perguntas sobre meus superiores. E você deve correr agora para o coro, Caryl.

Ele mordeu o lábio, corando, saiu correndo pela neve, descalço. Romilly respirou fundo; já ia se virar e falar com Orain quando a mão dele apertou seu ombro com toda força.

— Não aqui, Rumai. Fora destes muros. Não tenho certeza agora se os muros não têm ouvidos... e esses ouvidos são de um certo lorde.

Em silêncio, Romilly terminou seu trabalho com os pássaros-sentinelas e depois seguiu Orain pelos portões do mosteiro. A rua estava branca e silenciosa, todos os ruídos abafados pela neve espessa. Orain finalmente disse:

— O filhote Hastur?

Ela acenou com a cabeça. E disse, depois de um momento, a voz tão baixa que Orain teve de se inclinar para escutar:

— E isso não é o pior. O pai... Lyondri Hastur... está vindo para cá, visitará o filho no feriado.

Orain cerrou o punho na outra mão.

— Maldição! E Zandru sabe que ele não é homem de respeitar as leis de santuário! Se deparar com... — Orain ficou em silêncio por um instante. — Por que Dom Cario tinha de se ausentar logo nesta ocasião? Os cães do infortúnio nos perseguem! Tentarei transmitir uma mensagem para ele...

Silêncio; até mesmo os passos eram silenciosos na rua coberta de neve. Orain acabou acrescentando:

— Vamos descer até a cidade. Com notícias assim, preciso de um trago e eles têm sidra temperada na taverna por causa do feriado, o que permitirá a você beber também.

Romilly disse, muito compenetrada:

— Alaric e os outros não devem ser avisados para tomarem cuidado, caso Lorde Hastur apareça?

— Falarei com eles. Mas, por ora, chega de conversa!

Na taverna em que Orain ensinara a ela a jogar dardos, poucos dias antes, ele pediu vinho e sidra quente para Romilly; tinha um cheiro adocicado com os condimentos e ela bebeu satisfeita, aceitou a oferta de uma segunda caneca.

— Tenho um presente para você, Rumai... esse manto imundo que usa não é digno sequer do filho de um cavalariço. Encontrei isto num estande... é velho e usado, mas acho que cabe em você. — Ele chamou a copeira. — Traga-me o embrulho que deixei ontem aqui.

Ele empurrou o pacote por cima da mesa para Romilly.

— Uma boa noite do Solstício do Inverno para você e que Avarra o guarde, filho.

Romilly desfez os nós e tirou um manto verde, de lã de coelho de chifres, bordado e guarnecido com fechos de couro de boa qualidade. Devia ser muito velho, pois tinha as mangas cortadas num estilo que ela só vira em retratos de seu bisavô no Grande Salão do Ninho dos Falcões; mas era bem-feito e confortável. Ela jogou para o lado o manto que pegara ao fugir da casa de Rory na floresta e pôs o novo, murmurando, um momento após, embaraçada:

— Não tenho nenhum presente para você, Mestre Orain.

Ele passou o braço por seus ombros.

— Não quero nada de você, filho; mas dê-me o abraço e o beijo que concederia a seu pai se ele estivesse aqui hoje.

Corando, Romilly abraçou-o e encostou os lábios em sua face, cautelosamente.

— É muito bom para mim, senhor. Obrigado.

— Não foi nada... agora você está vestido como convém a seus cabelos vermelhos e a seu porte de filho de nobre.

Havia tanta ironia nas palavras que Romilly ficou aturdida; ele sabia que ela era mulher? Tivera certeza, em determinado momento, que Dom Cario sabia.

— E pode aproveitar aquela coisa velha como uma manta de cavalo — acrescentou Orain.

Ele gesticulou para que o menino do taverneiro arrumasse o manto antigo. Romilly preferia jogá-lo fora, onde nunca mais precisasse tocá-lo, mas com aquele tempo os cavalos não podiam ficar sem mantas, e a que ela trouxera destinava-se a climas mais quentes. Seu cavalo ficaria grato pelo calor extra, com aquela tempestade de inverno.

Havia poucos fregueses na taverna naquela noite; a tempestade se aproximando e o feriado do dia seguinte contribuíam para manter a maioria dos homens em casa, calculou Romilly, ao lado de suas próprias lareiras. Orain perguntou, quando ela acabou a refeição:

— Vamos disputar uma partida de dardos?

— Não sou bastante bom para que valha à pena para você.

Orain soltou uma risada.

— E quem se importa com isso? Vamos logo.

Eles ficaram de pé, alternando o arremesso dos dardos com goles das canecas, enquanto a noite passava. Subitamente, Orain ficou imóvel, em silêncio.

— É sua vez — disse Romilly.

— Jogue você... voltarei num instante.

A voz estava engrolada e Romilly pensou: Ele não pode ter ficado embriagado tão depressa. Enquanto andava, porém, Orain cambaleava e um dos poucos fregueses na taverna gritou, jovialmente:

— Bêbado já tão cedo? Não vai conseguir segurar sua caneca no feriado!

Ela especulou: Ele está doente? Devo ir ajudá-lo? Uma das coisas que Romilly evitara com todo cuidado, durante suas semanas na cidade, fora entrar na latrina comunitária por trás das tavernas — era o lugar em que poderia ser descoberta. Mas Orain sempre a tratara muito bem, se ele estava em dificuldades não podia deixar de ajudá-lo...

Uma vozinha em sua mente disse: Não. Fique onde está. Aja como se tudo estivesse normal. Como Romilly ainda não estava acostumada ao seu laran — e era raro entrar em contato com os sentimentos de qualquer ser humano, embora agora encarasse a intimidade com os pássaros como coisa corriqueira —, não teve certeza se era mesmo uma mensagem que a alcançava ou seus próprios sentimentos projetados, mas obedeceu. E gritou, atraindo as atenções para si:

— Quem gostaria de jogar comigo, já que meu amigo sucumbiu ao vinho?

E quando dois habitantes da cidade se adiantaram, ela desafiou-os e jogou tão mal que perdeu num instante e teve de pagar uma rodada de bebida. Tinha a impressão de que podia divisar um movimento nas sombras à beira da sala... Orain não teria saído, afinal de contas, mas apenas se afastado? Com quem ele falava? Ela continuou no jogo e fez um grande esforço para não se virar e examinar melhor o outro vulto, alto e gracioso, um capuz cobrindo a cabeça e o rosto, perto de Orain. Mas como se tivesse olhos na nuca, parecia que podia ver tudo, ouvir sussurros... um calafrio percorreu sua espinha e a cada instante tinha a sensação de que ouvia um clamor, vozes, gritos. Abençoado Portador dos Fardos, que dia é esse, diga-me, como fui me envolver nessa intriga, como se fosse importante para mim quem é o rei que está no trono dos Hali'ymin? Que se danem os dois, o rei banido e o rei usurpador. Por que um bom homem como Orain se arriscaria a um laço para o pescoço por causa de um rei ou outro que ocupa o trono dos Hastur?

Se algum mal acontecer a meu amigo, eu vou... e ela parou por aí. O que podia fazer? Ao contrário dos irmãos, não tinha conhecimento de armas, estava indefesa. Se conseguir escapar às intrigas desta noite, ela pensou, pedirei a Orain que me ensine alguma coisa das artes do combate. .. mas riu e gritou:

— Muito bem jogado, bem no olho do gato!

E arremessou seu dardo, quase de qualquer maneira, surpresa quando acertou perto do alvo.

— Beba, rapaz — disse o homem que perdera, pondo uma caneca de vinho na sua frente.

Romilly bebeu, temerosa. Sentia a cabeça girando e parou no meio da caneca, mas todos a observavam e, contra seu melhor julgamento, acabou tomando o resto.

— Vamos jogar outra partida? — sugeriu um dos homens. — É a minha vez de vencer.

Ela deu de ombros e entregou o dardo. Sentia na nuca o arrepio frio e vulnerável que indicava que estava sendo observada de algum lugar, sorrateiramente. Mas o que está acontecendo aqui? Que se danem essas intrigas! E depois Orain estava outra vez ao seu lado, batendo em seu ombro.

— Agora pegou o jeito, mas ainda não é capaz de ensinar a um cachorro velho como roer o osso... Passe-me os dardos, rapaz.

Ele pegou os dardos emplumados, pediu outra rodada de vinho; Romilly percebeu o brilho excitado em seus olhos. Quando a dupla seguinte pegou os dardos, Orain murmurou em seu ouvido:

— Precisamos sair daqui na próxima rodada; tenho uma mensagem...

Ela movimentou a cabeça indicando que compreendera. E no momento seguinte Orain gritou:

— Mas o que está fazendo, homem, pelos nove infernos? Seus pés enormes estão além da linha... Não vou jogar dardos com um desgraçado que trapaceia desse jeito, nem mesmo no Solstício do Inverno... Presentes eu dou, mas não permito que ninguém me roube um trago ou uma moeda de prata!

Ele deu um empurrão furioso no homem que arremessava os dardos, fazendo o bêbado cambalear. O homem virou-se.

— Escute aqui, seu miserável das terras baixas, quem você pensa que é para me chamar de trapaceiro? Vou fazê-lo engolir essas palavras com seu próximo trago ou as enfiarei pela goela abaixo...

Ele acertou o queixo de Orain, cuja cabeça foi arremessada para trás, com um estalido; cambaleou contra a parede e tornou a avançar, furioso. Romilly arremessou seu dardo e acertou na mão do homem, no momento em que ele se preparava para golpear Orain de novo. O atacante virou-se, uivando, arremeteu contra ela, as mãos estendidas, como se pretendesse estrangulá-la. Ela recuou, tropeçou num barril e estatelou-se na serragem. A mão de Orain agarrou-a, puxou-a para cima.

— Ei, parem com isso! — berrou o taverneiro, separando os lutadores com mãos rudes. — Nada de brigas, amigos! Aqui só se pode beber!

— O desgraçado me jogou um dardo! — rosnou o homem, levantando a manga para revelar uma marca vermelha.

— Você é um bebê para gritar por causa de uma picada de abelha? — indagou Orain.

O taverneiro tornou a separá-los.

— Sentem, vocês dois! A penalidade por brigar é um trago para a casa, de cada um!

Com uma relutância ostensiva, Orain pegou a bolsa, tirou uma peça de cobre.

— Podem beber e que se danem todos vocês, estarei torcendo para que se engasguem! Vamos procurar um lugar mais sossegado para continuarmos a beber!

Ele pegou Romilly pelo cotovelo e levou-a para a porta, cambaleando como um bêbado. Lá fora, empertigou-se e perguntou, em voz baixa:

— Você está machucado?

— Não, mas...

— Então está tudo bem. Vamos embora depressa!

Orain começou a subir a ladeira, num ritmo que Romilly mal conseguia acompanhar. Sabia que bebera demais e pensou, enquanto cambaleava meio tonta em seu encalço, se ia vomitar. Depois de um momento, ele virou-se e disse, gentilmente:

— Desculpe... venha aqui, rapaz, apoie-se em meu braço. Não deveria ter bebido aquela última caneca.

— Não pude pensar em qualquer outra coisa para fazer — confessou Romilly.

— E salvou meu pescoço com isso — sussurrou Orain. — Talvez você possa descansar um pouco no mosteiro, antes... Veja! — Ele gesticulou para o céu clareando. — A neve parou de cair. Devemos comparecer ao serviço da véspera do Solstício do Inverno. Qualquer hóspede do mosteiro que não estiver de cama com a perna quebrada tem de estar presente para a porcaria da cantoria de hinos! E com o tempo melhorando aquele rato do Lyondri... — Orain cerrou os punhos. — Ele pode estar presente, grande como a vida, duas vezes mais nojento, sentado presunçosamente no coro e cantando hinos como um homem superior!

Romilly indagou, perturbada:

— Ele poderia reconhecê-lo, Tio?

— Poderia... e a outros também — respondeu ele, sombriamente.

Ela especulou: Será possível que o próprio Carolin esteja em algum lugar do mosteiro? Ou ele se referia a Alaric, cuja família fora condenada à morte pelo Lorde Hastur? Ou a Cario, que certamente era um exilado e que contava com a confiança de Carolin? A mão de Orain estava sob seu braço.

— Apoie-se em mim, rapaz... eu poderia fingir que estou doente e me esconder na casa de hóspedes, mas eles me levariam para a enfermaria e num instante descobririam que não há nada de errado comigo, a não ser vinho além da conta.

Romilly contemplou a neve assentada, encolhendo-se ao vento intenso que surgira depois que a nevasca passara.

— Existe mesmo um laran que pode fazer bruxaria com o tempo?

— É o que eu também ouvi dizer — murmurou Orain, assumindo outra vez uma expressão sombria. — E gostaria que você tivesse um vestígio desse laran, filho!

 

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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