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- QUERO SAIR DA CIDADE - disse Rita sem se virar. Ela estava de pé na sacada do pequeno apartamento, a brisa do início da manhã soprando a camisola diáfana que usava, soprando o tecido através das portas corrediças.
- Tudo bem - disse Larry. Ele estava sentado à mesa, comendo um sanduíche de ovo frito.
Ela voltou-se para ele, seu rosto desfigurado. Se havia parecido uma quarentona elegante no parque no dia em que se conheceram, agora parecia mais uma mulher dançando no fio da navalha cronológico que separa início e fim da casa dos 60. Havia um cigarro entre seus dedos e a ponta tremia, lançando colunas tortas de fumaça enquanto ela o levava aos lábios e o baforava sem tragar.
- É verdade, falo sério.
Ele usou o guardanapo.
- Sei que fala - disse -, e posso perceber. Temos que ir.
Os músculos faciais dela se descontraíram em algo parecido com alívio. Com um desprazer quase (mas não inteiramente) subconsciente, Larry achou que isto a fazia parecer até mais velha.
- Quando?
- Por que não hoje? - perguntou ele.
- Você é um bom garoto - disse ela. - Gostaria de mais café?
- Posso ir pegar.
- Bobagem. Fique sentado aí onde está. Sempre levei para meu marido uma segunda xícara. Ele insistia nisso. Embora eu nunca visse mais que o topo da sua cabeça durante o café-da-manhã. O rosto dele se escondia atrás do Wall Street Journal ou de algumas daquelas pavorosas peças literárias maçantes. Alguma coisa não apenas significativa, ou profunda, mas positivamente prenhe de significado. Böll. Carnus. Milton, pelo amor de Deus. Você é uma mudança bem-vinda. - Ela olhou para trás por cima do ombro a caminho da quitinete; sua expressão era travessa. - Seria uma vergonha esconder seu rosto atrás de um jornal.
Ele sorriu vagamente. O humor dela parecia forçado esta manhã, como tinha sido por toda a tarde da véspera. Ele se lembrou do encontro deles no parque, e como tinha achado que a conversa de Rita parecia mais como espalhar diamantes aleatoriamente sobre o feltro verde de uma mesa de bilhar. Desde a tarde da véspera tinha parecido mais como o brilho de zircões, imitações quase perfeitas que, afinal, não passavam de imitações.
- Aqui está. - Ela entrou para depositar a xícara, e sua mão, ainda tremendo, derramou café quente no antebraço de Larry. Ele saltou para trás com um contido silvo felino de dor. - Ah, desculpe... - Havia algo mais do que consternação no rosto dela; havia algo que poderia ser quase terror.
- Está tudo bem...
- Não, eu simplesmente... um pano gelado... não... sente-se bem aqui... que desajeitada... estúpida...
Rita irrompeu em lágrimas, grasnidos ásperos escaparam dela como se tivesse testemunhado a morte estúpida de sua melhor amiga em vez de ter queimado Larry levemente.
Ele se levantou e agarrou-a, não se preocupando muito com a maneira convulsiva como ela o abraçou em retribuição. Era quase uma muleta. Muleta Cósmica, o novo álbum de Larry Underwood, pensou ele, infeliz. Ah, merda. Você não é um cara legal. Aqui vamos nós de novo.
- Desculpe, não sei qual é o problema comigo, jamais gostei disso, lamento muito...
- Está tudo certo, não é nada. - Ele continuou a tranqüilizá-la automaticamente, esfregando a mão sobre o seu cabelo grisalho que pareceria muito melhor (tudo nela pareceria melhor, aliás) depois que passasse um bom tempo no banheiro.
Claro que ele sabia qual era a parte do problema. Era tanto pessoal quanto impessoal. Isto o havia afetado também, mas não tão de repente ou profundamente. Com ela, era como se algum cristal interno tivesse se estilhaçado nas últimas duas horas, ou por aí.
Impessoalmente, ele supôs, era o cheiro. Estava entrando através da abertura entre a sala de estar do apartamento e a sacada exatamente agora, cavalgando a brisa fria do início da manhã que mais tarde daria passagem ao calor parado, úmido, se este dia fosse algo parecido com os últimos três ou quatro. O cheiro era difícil de definir de qualquer maneira que pudesse ser correta, embora menos dolorosa que a verdade nua e ema. Podia-se dizer que era como o de laranjas mofadas ou peixe estragado, ou o cheiro que às vezes é sentido nos túneis do metrô quando as janelas estão abertas; nenhum deles era exatamente correto. Que era o cheiro de gente apodrecendo, aos milhares, decompondo-se no calor atrás de portas fechadas constituía uma definição melhor, mas você queria ficar longe disso.
Ainda havia luz em Manhattan, mas Larry não achava que fosse durar muito. Já estava faltando na maioria dos lugares. Na última noite ele permanecera na sacada depois que Rita adormecera, e desta posição elevada podia-se ver que as luzes se haviam apagado em mais da metade do Brooklin e em todo o Queens. Havia um bolsão escuro ao longo da rua 110 por todo o caminho que terminava na ilha de Manhattan. Olhando para o outro lado podia-se ainda ver luzes brilhantes em Union City e - talvez - Bayonne, mas, por outro lado, Nova Jersey estava às escuras.
A escuridão significava mais do que a falta de luzes. Entre outras coisas, significava - a perda do ar-condicionado, a conveniência moderna que torna possível viver neste específico núcleo urbano esparramado depois de meados de junho. O que significava que todas as pessoas que haviam morrido silenciosamente nos seus apartamentos e porões estavam agora apodrecendo em fornos, e sempre que pensava nisto sua mente retomava à coisa que vira no toalete da Transversal 1. Havia sonhado com aquilo, e nos seus sonhos aquela guloseima negra e doce voltava à vida e acenava para ele.
Em nível mais pessoal, supunha que ela estava perturbada pelo que haviam encontrado quando desciam a rua rumo ao parque na véspera. Ela estivera risonha, loquaz e alegre quando saíram, mas na volta começara a ficar velha.
O gritador de monstros estava caído numa das alamedas sobre uma poça enorme de seu próprio sangue. Seus óculos, com as duas lentes quebradas, jaziam ao lado da mão esquerda, rígida e estendida. Algum monstro tinha afinal dado as caras, ao que parecia. O homem fora esfaqueado repetidamente. Para os olhos doentes de Larry, ele parecia como uma alfineteira humana.
Rita havia gritado e, quando finalmente sua histeria se aquietou, ela insistiu em que deviam enterrá-lo. Assim fizeram. E, na volta ao apartamento, ela voltara a ser a mulher que ele encontrara esta manhã.
- Está tudo bem - disse ele. - Apenas uma leve queimadura. A pele mal ficou vermelha.
- Vou pegar o unguento. Ainda tem um pouco no armário de remédios.
Ela já ia se afastando. Larry agarrou-a com firmeza pelos ombros e a fez sentar-se. Rita olhou para ele com olhos enegrecidamente circulados.
- O que você vai fazer é comer - disse ele. - Ovos mexidos, torrada, café. Depois vamos arranjar alguns mapas e ver qual é o melhor caminho para sair de Manhattan. Teremos que caminhar, você sabe.
- Sim... suponho que teremos.
Ele foi até a quitinete, não querendo olhar mais para a muda carência nos olhos dela, e pegou os dois últimos ovos na geladeira. Quebrou-os numa frigideira, jogou as cascas no lixo e começou a batê-los.
- Para onde você quer ir? - perguntou ele.
- O quê? Eu não...
- Que caminho? - disse ele com um ar de impaciência. Acrescentou leite aos ovos e pôs a frigideira de volta no fogão. - Norte? A Nova Inglaterra fica nesta direção. Sul? Realmente não vejo sentido nisto. Poderíamos ir...
Um soluço estrangulado. Virou-se e flagrou-a olhando para ele, as mãos de Rita guerreando uma com a outra no seu colo, os olhos brilhantes. Tentava se controlar sem nenhum sucesso.
- Qual é o problema? - perguntou, aproximando-se. - O que é?
- Acho que não posso comer - soluçou ela. - Sei que você quer que eu... tentarei... mas esse cheiro...
Ele atravessou a sala de estar, fez deslizar as portas de vidro ao longo dos seus trilhos de aço imaculados, depois trancou-as com firmeza.
- Pronto - disse suavemente, esperando a contrariedade que sentia que ela não demonstrava. - Está melhor?
- Sim - disse ela, ansiosa. - Está um bocado melhor. Agora posso comer.
Ele voltou à quitinete e mexeu os ovos, que haviam começado a borbulhar. Havia um ralador na gaveta de utensílios e ele ralou um pedaço de queijo, formando uma pequena pilha que salpicou nos ovos. Atrás dele ela se moveu e, um momento depois, Debussy encheu o apartamento, suave e bonito demais para o gosto de Larry. Ele não ligava a mínima para música clássica de câmara. Se você tivesse que aguentar merda clássica, deveria esnobar tudo aquilo e curtir seu Beethoven, Wagner ou alguém parecido. Por que ficar embromando?
Rita lhe havia perguntado de maneira casual qual era o seu meio de vida - na maneira casual, refletiu ele um tanto ressentido, de uma pessoa que nunca tivera que se preocupar com algo tão trivial como "ganhar a vida". Eu era cantor de rock, disse ele, levemente pasmo por ter de usar o verbo no passado. Cantava com uma banda por uns tempos, depois com outra. Às vezes um bico em estúdio. Ela havia assentido e acabou aí. Larry nem quis falar sobre "Garota, você saca o seu homem?" - isso já era passado agora. O abismo entre aquela vida e esta de agora era tão enorme que ele de fato ainda não o assimilara. Naquela vida ele andara fugindo de um traficante de cocaína; nesta ele podia enterrar um homem no Central Park e aceitar isto (mais ou menos) como coisa normal.
Ele pôs os ovos num prato, serviu uma xícara de café instantâneo com creme e açúcar, do jeito que ela gostava (o próprio Larry adotava o credo do caminhoneiro: "Se você queria uma xícara de creme com açúcar, por que pediu café?"), e levou para a mesa. Ela estava sentada numa almofada, segurando os cotovelos e olhando para o estéreo. Debussy escoava dos alto-falantes como manteiga derretida.
- A ceia está servida - chamou ele.
Ela veio para a mesa com um sorriso apagado, olhou para os ovos do modo como um corredor de obstáculos olharia para uma série de barreiras e começou a comer.
- Bom - disse ela. - Você estava certo. Obrigada.
- Você é mais do que bem-vinda - disse ele. - Agora escute. O que vou sugerir é o seguinte. Descemos a Quinta Avenida até a rua 39 e dobramos a oeste. Atravessamos para Nova Jersey pelo túnel Lincoln. Podemos seguir a 495 a noroeste para Passaic e... os ovos estão bons? Não se estragaram?
Ela sorriu.
- Estão ótimos. - Levou outra garfada à boca, seguida por um gole de café. - Eu estava mesmo precisando. Prossiga, estou ouvindo.
- De Passaic simplesmente viramos para oeste até que as estradas estejam desimpedidas o suficiente para passarmos. Depois poderíamos dobrar para nordeste e chegar à Nova Inglaterra. E fazer uma espécie de abotoadeira, entende o que quero dizer? Parece um caminho mais longo, mas acho que irá nos poupar um bocado de aporrinhação. Talvez possamos pegar uma casa litorânea no Maine. Kittery, York, Wells, Ogunquit, talvez até em Scarborough ou Boothbay Harbor. O que lhe parece?
Ele estivera olhando pela janela, pensando enquanto falava, e agora voltou-se para ela. O que viu assustou-o pessimamente por um momento - era como se ela houvesse enlouquecido. Rita estava sorrindo, mas era um ricto de dor e terror. Suor porejava de seu rosto em enormes gotículas redondas.
- Rita? Meu Deus, Rita, o que...
- ...desculpe... - Ela pelejou para se levantar, derrubando a cadeira, e saiu em disparada pela sala de estar. Um pé se enganchou na almofada onde estivera sentada, que rolou de lado como um fardo de tamanho exagerado. A própria Rita quase caiu.
- Rita?
A seguir ela estava no banheiro, e Larry pôde ouvir o som triturante do café-da-manhã subindo pela garganta de Rita. Ele bateu com a mão na mesa, irritado, depois levantou-se e foi atrás dela. Deus, odiava quando as pessoas vomitavam. Isto sempre o fazia sentir-se como se ele próprio estivesse vomitando. O odor levemente azedo de queijo no banheiro provocou-lhe náuseas. Rita estava sentada no piso de azulejo azul-esverdeado, de pernas cruzadas, a cabeça ainda pendendo fracamente sobre o vaso.
Ela enxugou a boca com um pedaço de papel higiênico e depois olhou suplicante para ele, o rosto pálido como uma folha de papel.
- Desculpe, eu simplesmente não podia comer, Larry. Sinto muito, mesmo.
- Bem, se você sabia que ia passar mal, por que tentou?
- Porque você insistiu. Eu não queria que ficasse furioso comigo. Mas você está, não é? Está furioso comigo.
A mente de Larry retornou à noite anterior. Rita fizera amor com ele com uma energia tão frenética que, pela primeira vez, ele se vira pensando na idade dela e tinha sido um tanto desagradável. Tinha sido como ser apanhado em uma daquelas máquinas de exercício. Ele havia gozado rapidamente, quase em autodefesa, pareceu, e por longo tempo mais tarde ela ficou deitada de costas, arquejante e insatisfeita. Mais tarde, enquanto ele se encontrava no limiar do sono, ela se havia achegado e Larry pudera sentir o cheiro do sachê, uma versão mais cara da fragrância que sua mãe sempre usara quando iam ao cinema, e Rita havia murmurado a coisa que o sacudira de volta do sono e o mantivera acordado pelas duas horas seguintes: Você não vai me abandonar, vai? Não vai me deixar sozinha, não é?
Antes disso ela havia sido boa na cama, tão boa que ele estava atônito. Rita o trouxera a este lugar depois do almoço no dia em que se conheceram, e o resultado fora bastante natural. Ele recordou um instante de desprazer ao ver como os seios dela eram caídas e como eram proeminentes as veias azuis (isto o fez pensar nas veias varicosas de sua mãe), mas havia esquecido tudo isso quando as pernas de Rita se elevaram e ela pressionou as coxas contra os seus quadris com uma força espantosa.
Devagar, ela havia rido. Os últimos serão os primeiros, e os primeiros os últimos.
Ele tinha estado a ponto de gozar quando ela o empurrou fora e pegou cigarros.
Que diabo está fazendo?, perguntou ele espantado, enquanto o velho possante ondulava indignamente no ar, visivelmente latejante.
Ela havia sorrido. Você tem uma mão livre, não tem? Pois eu também.
Assim eles fizeram isso enquanto fumavam, e ela tagarelou levemente sobre qualquer assunto - embora a cor tivesse subido à sua face e, após um instante, a respiração houvesse encurtado e o que ela estivesse dizendo começasse a vaguear, esquecido.
Agora, disse ela, pegando os cigarros de ambos e esmagando-os. Vamos ver se você consegue terminar o que começou. Se não conseguir, provavelmente arrasarei com você.
Larry foi até o fim, de modo inteiramente satisfatório para ambos, e depois caíram no sono. Ele acordou pouco depois das quatro e observou-a dormindo, achando que havia alguma coisa a ser dita à guisa de experiência, afinal. Ele havia trepado bastante nos últimos dez anos, mais ou menos, mas o que acontecera antes não tinha sido trepar. Tinha sido algo muito melhor do que isso, embora um tanto decadente.
Bem, ela tivera amantes, claro.
Isto o havia excitado de novo e ele a acordou.
E assim tinha sido até que encontraram o gritador de monstros, e na última noite. Ocorreram outras coisas antes, coisas que o perturbaram, mas que havia aceitado. Alguma coisa assim, ele havia racionalizado, se ao menos o deixar um pouco psicótico, você está seguindo em frente.
Duas noites atrás havia acordado pouco depois das duas e a ouvira enchendo um copo d’água no banheiro. Sabia que ela estava tomando outra pílula para dormir. Rita tinha as cápsulas de gelatina vermelhas e amarelas, que eram conhecidas como "jaquetas amarelas" na Costa Oeste. Grandes tranqüilizantes. Disse a si mesmo que ela já os devia estar tomando antes mesmo do surgimento da supergripe.
E havia o modo como ela o seguia de um cômodo a outro do apartamento, também, até parando à porta do banheiro e falando com ele enquanto se barbeava ou se aliviava. Gostava de ter privacidade no banheiro, mas disse a si mesmo que algumas pessoas não eram assim. Boa parte disso dependia da criação recebida. Teria uma conversa com ela... no momento certo.
Mas agora...
Ele ia ter que carregá-la nas costas? Deus, esperava que não. Ela havia parecido mais forte do que isso, pelo menos no início. Era uma das razões por tê-lo atraído tanto naquele dia no parque... a principal razão, de fato. Não existe mais verdade na propaganda, pensou amargamente. Como diabo se qualificava para tomar conta dela quando não podia sequer cuidar de si mesmo? Ele mostrara isto bastante conclusivamente quando seu disco havia estourado. Wayne Stukey tampouco tivera o menor constrangimento em apontar esta falha.
- Não - disse a Rita -, não estou furioso. É só que... você sabe, não sou seu patrão. Se não se sentir bem comendo, é só dizer.
- Eu lhe disse... disse que achava que não poderia...
- O cacete, que você disse - cortou ele, sobressaltado e furioso.
Ela baixou a cabeça e olhou para as mãos. Larry percebeu que Rita lutava para conter os soluços, pois ele não iria gostar. Por um momento, isto o deixou mais furioso do que nunca e quase gritou: Eu não sou seu pai nem o caixa-alta do seu marido! Não vou tomar conta de você! Você é trinta anos mais velha do que eu, pelo amor de Deus! Depois sentiu o familiar surto de autodesprezo e imaginou que diabo tinha a ver com a questão.
- Desculpe - disse. - Sou um escroto insensível.
- Não, você não é - retrucou ela, e fungou. - É apenas que... tudo isto está começando a me afetar. Ontem, aquele pobre homem no parque... pensei: ninguém jamais vai pegar a pessoa que fez isso com ele e botá-la na cadeia. Vão continuar a fazer isto repetidamente. Como animais na selva. E isto tudo começou a parecer muito real. Você entende, Larry? Percebe o que quero dizer? - Ela voltou os olhos lacrimosos para ele.
- Sim - respondeu ele, mas ainda se sentia impaciente com ela, e apenas um pouquinho desdenhoso. Esta era uma situação real, como poderia não ser? Estavam no meio daquela coisa e a tinham visto se desenvolver até este ponto. Sua própria mãe estava morta; ele a observara morrer, e estaria ela tentando dizer que era de alguma forma mais sensível a tudo isto do que ele? Havia perdido a mãe e Rita perdera o homem que lhe dera um Mercedes. Mas, supostamente, a perda dela seria maior. Bem, tudo isto era besteira. Apenas besteira.
- Tente não ficar furioso comigo - disse ela. - Irei melhorar.
Espero que sim. Claro que espero.
- Você está ótima - disse ele e ajudou-a a se levantar. - Agora vamos. O que diz? Temos um bocado de coisas a fazer. Sente-se capaz?
- Sim - disse ela, mas sua expressão era a mesma como tinha sido quando ele lhe oferecera os ovos.
- Você irá se sentir melhor quando sairmos da cidade.
Ela o fitou, desamparada.
- Irei mesmo?
- Claro - disse Larry, animado. - Claro que irá.
Eles iam de primeira classe.
A loja Manhattan Sporting Goods estava fechada, mas Larry abriu um buraco na vitrine com um cano de ferro comprido que achou. O alarme contra ladrões berrou inutilmente na ma deserta. Ele selecionou uma mochila grande para si e uma menor para Rita. Ela havia embalado duas mudas de roupa para cada um - foi tudo que ele permitiu - e Larry as estava carregando numa bolsa de viagem da PanAm que Rita encontrara no closet, junto com escovas de dente. As escovas de dente lhe pareceram um tanto absurdas. Rita estava elegantemente vestida para caminhar, em pantalonas de seda branca e blusa sem mangas. Larry usava jeans desbotados e uma camisa branca com as mangas arregaçadas.
Encheram as mochilas com alimentos desidratados congelados e nada mais. Não fazia nenhum sentido, disse Larry, sobrecarregarem-se com um monte de outras coisas - inclusive mais roupas - quando poderiam simplesmente pegar o que quisessem do outro lado do rio. Ela concordou fracamente, e a falta de interesse de Rita voltou a se aninhar nele.
Após um curto debate consigo mesmo, Larry acrescentou uma espingarda .30-30 e duzentos cartuchos de munição. Era uma bela arma, e a etiqueta de preço, que puxou da guarda do gatilho e jogou indiferentemente no chão, marcava 450 dólares.
- Acha mesmo que precisaremos disso? - perguntou ela, apreensiva. Rita ainda tinha o .32 na bolsa.
- Creio que é melhor levarmos - respondeu ele, sem querer dizer mais porém pensando no triste fim do gritador de monstros.
- Ah - fez ela em voz fraca, e Larry adivinhou pelo seu olhar que estava pensando nisso também.
- Essa mochila não está pesada demais para você, está?
- Ah, não. Não está, não mesmo.
- Bem, as mochilas costumam ficar mais pesadas à medida que se caminha. É só me avisar que carregarei um pouco para você.
- Estará tudo bem - disse ela e sorriu. A seguir foram de novo para a calçada. Ela olhou para os dois lados e disse: - Estamos deixando Nova York.
- Sim.
Rita voltou-se para ele.
- Estou contente. Sinto-me como... ah, como no tempo em que era uma menininha. E meu pai dizia: "Vamos fazer uma viagem, hoje." Lembra-se de como era?
Larry sorriu um pouco em retribuição, lembrando as noites em que sua mãe dizia: "Aquele faroeste que você queria ver está passando no Crest, Larry. Com Clint Eastwood. O que acha?"
- Acho que me lembro - disse ele.
Ela se ergueu na ponta dos pés e rearrumou a mochila nos ombros dele.
- O começo de uma jornada - disse ela, e depois tão suavemente que ele não teve certeza de ouvi-la corretamente: - O caminho leva um dia ao...
- O quê?
- É uma frase de Tolkien - explicou ela. - O Senhor dos Anéis. Sempre pensei nisto como uma espécie de pórtico para a aventura.
- Quanto menos aventura, melhor - disse Larry, mas quase a contragosto sabia o que ela queria dizer.
Ainda assim, ela estava olhando para a rua. Perto desta esquina havia um cânion estreito entre pedra alta e extensões de vidraças térmicas refletindo o sol, atravancado de carros que refluíam por quilômetros. Era como se todo mundo em Nova York tivesse decidido ao mesmo tempo estacionar nas ruas.
Ela disse:
- Já estive nas Bermudas, Inglaterra, Jamaica, em Montreal, Saigon e Moscou. Mas não viajo desde que era garotinha e meu pai levava minha irmã Bess e a mim ao zoológico. Vamos, Larry.
Foi uma caminhada que Larry Underwood nunca esqueceu. Descobriu-se achando que ela não estivera tão errada ao citar Tolkien, com suas terras místicas vistas através das lentes do tempo e imagens semiloucas e semi-exaltadas, povoadas de duendes, gnomos, gigantes e orcas. Não havia nada disso em Nova York, mas tanta coisa havia mudado, tanta coisa estava desconjuntada, que era impossível não pensar nisso em termos de fantasia. Um homem pendia de um poste na esquina da Quinta Avenida com a rua 54 leste, abaixo do parque e numa área comercial anteriormente congestionada. Um cartaz com a palavra SAQUEADOR estava pendurado no pescoço do homem. Uma gata estava deitada no topo de uma cesta para papéis hexagonal (a cesta ainda tinha anúncios de aparência recente para um espetáculo da Broadway colados nas suas laterais), com suas crias, amamentando-as e apreciando o sol do meio da manhã. Um rapaz com um largo sorriso e uma valise cruzou com eles e disse a Larry que lhe daria 1 milhão de dólares para usar a mulher por 15 minutos. O milhão, presumivelmente, estava na valise. Larry empunhou o rifle e mandou-o levar o seu milhão para outro lugar.
- Claro, cara. Não precisa me apontar isso, sacou? Não se pode culpar um cara só por tentar, não é? Tenha um belo dia. E relaxe.
Chegaram à esquina da Quinta com a rua 39 leste pouco depois do encontro com o homem (Rita, com um tipo histérico de bom humor, insistiu em referir-se a ele como John Bearsford Tipton, um nome que nada significava para Larry). Era quase meio-dia, e Larry sugeriu almoçarem. Havia uma delicatessen na esquina, mas quando empurraram a porta, o cheiro de carne estragada que saiu fez Rita recuar.
- Eu acharia melhor não entrar aí, se quiser resguardar meu apetite - disse ela em tom de desculpas.
Larry achava que poderia encontrar alguma carne curada lá dentro - salame, mortadela, algo assim -, mas depois de cruzar com "John Bearsford Tipton" quatro quarteirões atrás, não queria deixar Rita sozinha nem mesmo pelo curto tempo que levaria para entrar e verificar. Portanto, encontraram um banco a meio quarteirão e comeram frutas desidratadas e tiras de bacon desidratado. Arremataram com queijo espalhado em bolachas Ritz enquanto dividiam uma garrafa térmica de café gelado.
- Desta vez eu estava realmente faminta - disse ela, orgulhosa.
Ele sorriu de volta, sentindo-se melhor. Simplesmente estar em movimento, empreender alguma ação positiva - isto era bom. Ele dissera a ela que se sentiria melhor quando saíssem de Nova York. Na ocasião tinha sido apenas um modo dizer. Agora, consultando o próprio ânimo elevado dos dois, ele imaginou se era verdade. Ficar em Nova York era como estar num cemitério onde os mortos ainda não estavam realmente em repouso. Quanto mais cedo partissem, melhor seria. Rita talvez revertesse àquela maneira como tinha se portado naquele primeiro dia no parque. Seguiriam para o Maine por estradas vicinais e se abrigariam numa daquelas ricas casas de veraneio. Para o norte agora, e para o sul em setembro ou outubro. Boothbay Harbor no verão, Key Biscayne no inverno. Isto tinha um belo apelo. Ocupado com seus pensamentos ele não viu a careta de dor de Rita enquanto se levantava e punha no ombro o rifle que insistira em trazer.
Seguiam para oeste agora, suas sombras por trás deles - a princípio tão agachados como sapos, começando a se alongar à medida que a tarde progredia. Passaram pela Avenue of the Américas, pelas Sétima, Oitava, Nona e Décima avenidas. As ruas estavam atulhadas e silenciosas, rios congelados de automóveis de todas as cores, predominando o amarelo dos táxis. Muitos dos carros se haviam transformado em rabecões, os motoristas em decomposição ainda apoiados ao volante, seus passageiros esparramados como se, fatigados do trânsito engarrafado, tivessem pegado no sono. Larry começou a pensar que talvez eles devessem pegar duas motocicletas tão logo saíssem da cidade. Isto lhes ária mobilidade e uma possibilidade de contornar com êxito o pior dos coágulos de veículos mortos que deviam ter se alastrado pelas estradas em toda parte.
Sempre presumindo que Rita soubesse pilotar uma moto, ele pensou. E do jeito como iam as coisas, seria provável que não soubesse. A vida com Rita estava se tornando um verdadeiro pé no saco, pelo menos em alguns de seus aspectos. Mas se a necessidade o exigisse, Larry supunha que ela poderia viajar na garupa atrás dele.
No cruzamento da rua 39 com a Sétima, viram um rapaz vestido apenas de bermudas jeans deitado no teto de um táxi.
- Será que está morto? - perguntou Rita e, ao som de sua voz, o rapaz sentou-se, olhou em torno, viu-os e acenou. Eles acenaram de volta. O rapaz voltou a se deitar placidamente.
Passava pouco das duas horas quando cruzaram a 11a Avenida. Larry ouviu um grito de dor abafado atrás dele e percebeu que Rita não estava mais caminhando à sua esquerda.
Ela se apoiava sobre um joelho, agarrando o pé. Com algo parecido com horror, Larry notou pela primeira vez que ela estava usando sandálias caras, provavelmente na faixa de 80 dólares, adequadas para um passeio de quatro quarteirões da Quinta Avenida para olhar as vitrines, mas para uma longa caminhada - uma maratona, na verdade - como aquela que estavam empreendendo...
As tiras em volta dos tornozelos haviam lacerado a pele dela. O sangue escorria.
- Larry, eu...
Ele a sacudiu abruptamente, pondo-a de pé.
- O que você estava pensando? - gritou na cara dela. Sentiu uma vergonha momentânea pelo modo deplorável como ela recuou, mas também uma maldosa espécie de prazer. - Que poderia voltar ao apartamento se os seus pés ficassem cansados?
- Nunca imaginei...
- Ora, pombas! - Ele passou as mãos pelos cabelos. - Aposto que não imaginou. Você está sangrando, Rita. Há quanto tempo está assim?
A voz dela soou tão baixa e apressada que ele teve dificuldade em ouvir mesmo naquele silêncio antinatural.
- Desde... desde a Quinta com a rua 49, acho.
- Seus pés estiveram feridos por vinte porras de quarteirões e você não disse nada?
- Achei... que daria... para continuar... já não dói mais... eu não queria... estivamos fazendo um tempo tão bom... saindo da cidade... apenas pensei...
- Você simplesmente não pensou - disse ele furiosamente. - Como continuaremos fazendo um tempo tão bom com você deste jeito? A porra de seus pés dão a impressão de que esteve pregada na cruz.
- Não rogue pragas para mim, Larry - disse ela, começando a soluçar. - Por favor, não... sinto-me tão mal quanto você... por favor, não me rogue pragas.
Ele estava agora num êxtase de raiva, e mais tarde não seria capaz de compreender por que a visão dos pés dela sangrando havia explodido todos os seus circuitos daquela maneira. Mas no momento isto não importava. Ele gritou na cara dela: "Foda-se! Foda-se! Foda-se!" O palavrão ecoou nos andares mais altos dos prédios, indistinto e sem significado.
Ela levou as mãos ao rosto e inclinou-se à frente, chorando. Isto o deixou mais furioso ainda, e ele supôs que parte disso era o que ela realmente não queria ver: em breve iria cobrir o rosto com as mãos e deixar que ele a conduzisse, por que não? Sempre houvera alguém por perto para tomar conta da Nossa Heroína, a Ritinha. Alguém para dirigir o carro, fazer compras, lavar o vaso do banheiro, pagar as contas. Então vamos ouvir um pouco daquele meloso Debussy e pôr as mãos bem manicuradas sobre os olhos e deixar por conta de Larry. Cuide de mim, Larry, depois de ver o que aconteceu com aquele gritador de monstros, decidi que não quero ver mais nada. Tudo é sórdido demais para alguém de meu berço e formação.
Ele puxou as mãos dela. Rita se encolheu e tentou colocá-las de novo sobre os olhos.
- Olhe para mim.
Ela sacudiu a cabeça.
- Porra, olhe para mim, Rita!
Ela finalmente o fez de uma maneira estranha e vacilante, como se pensando que ele iria agora agredi-la com os punhos e com a língua. Do jeito como parte dele se sentia agora, isto seria simplesmente ótimo.
- Quero lhe contar sobre os fatos da vida porque você não parece compreendê-los. O fato é que temos de caminhar mais 30 ou 50 quilômetros. O fato é que, se você ficar infectada por essas esfoladuras, poderá ter envenenamento do sangue e morrer. O fato é que vai ter que botar seu cu na reta e começar a me ajudar.
Ele a estivera agarrando pelas axilas e percebeu que seus dedos haviam quase desaparecido na carne dela. Sua raiva se desvaneceu ao ver as marcas vermelhas surgidas quando a soltou. Ele recuou, sentindo-se novamente vacilante, sabendo com plena certeza que passara dos limites. Larry Underwood ataca outra vez. Se ele era tão esperto, por que não havia verificado seus calçados antes que começassem?
Porque esse é um problema dela, uma parte dele disse com mau humor, na defensiva.
Não, não era verdade. Tinha sido problema dele. Porque ela não sabia. Se pretendia levá-la consigo (e foi somente hoje que começara a pensar quão mais simples a vida seria se não tivesse de fazê-lo), simplesmente teria que ser responsável por ela.
O cacete que serei, disse a voz mal-humorada.
Sua mãe: Você é um tomador, Larry.
A higienista oral da Fordham, gritando pela janela atrás dele: Pensei que você fosse um cara legal! Você não é um cara legal!
Há alguma coisa esquisita em você, Larry. Você é um tomador.
É mentira! Isso é uma MENTIRA fodida!
- Rita - disse ele. - Desculpe.
Ela sentou-se na calçada com sua calça esportiva branca, o cabelo parecendo grisalho e velho. Baixou a cabeça e agarrou os pés feridos. Não olharia para ele.
- Desculpe - repetiu Larry. - Eu... olhe, eu não tinha o direito de dizer aquelas coisas. - Tinha, sim, mas deixa pra lá. Se você se desculpou, as coisas vão se suavizar. Era assim que o mundo funcionava.
- Prossiga, Larry - disse ela. - Não deixe que eu o atrase.
- Já pedi desculpas - replicou ele, sua voz um pouco petulante. - Arranjaremos sapatos novos para você e um par de meias brancas. Nós...
- Nós não faremos nada. Vá em frente.
- Rita, lamento...
- Se disser isto mais uma vez, vou gritar. Você é um merda e suas desculpas não foram aceitas. Agora vá.
- Eu disse que estava...
Ela jogou a cabeça para trás e berrou. Ele recuou um passo, olhando em volta para verificar se alguém a tinha ouvido, para ver se talvez algum policial estivesse se aproximando para saber que tipo de coisa horrenda aquele rapaz estava fazendo à velha dama sentada na calçada com os pés descalços. Abismo cultural, pensou ele distraidamente, como é divertido tudo isto.
Rita parou de gritar e olhou para ele. Fez um gesto adejante com a mão, como se Larry fosse uma mosca impertinente.
- É melhor você parar - disse ele -, ou irei realmente abandoná-la.
Ela limitou-se a olhar para ele. Larry não conseguia fitá-la nos olhos e portanto deixou a cabeça pender, odiando Rita por fazer isso com ele.
- Tudo bem - disse -, aproveite bem quando for estuprada e assassinada.
Pôs o rifle no ombro e começou a se afastar, agora dobrando à esquerda na direção do engavetamento de carros na rampa de entrada 495, descendo para a boca do túnel. Ao pé da rampa viu que tinha sido uma batida tremenda; um homem dirigindo uma van Mayflower tentara forçar seu caminho no fluxo principal de tráfego e canos se espalharam em volta dela como pinos de boliche. Um furgão Pinto incendiado jazia quase debaixo da carroceria da van. O motorista do furgão pendia com metade do corpo fora da janela, cabeça para baixo, braços bamboleando. Um leque de sangue coagulado e vômito abria-se abaixo dele na porta.
Larry olhou em torno, certo de que veria Rita caminhando em sua direção ou então parada e acusando-o com os olhos. Mas nem sinal de Rita.
- Foda-se - disse com ressentimento nervoso. - Tentei me desculpar.
Por um momento não pôde prosseguir; sentia-se perfurado por centenas de olhos mortos furiosos, perscrutando-o de todos aqueles carros. Um verso de Dylan veio-lhe à mente: "Esperei por você no trânsito congestionado... quando você sabia que eu tinha outro lugar para estar... mas onde está você esta noite, doce Marie?"
À frente, ele pôde ver quatro pistas de tráfego para oeste desaparecendo na arcada negra do túnel e, com algo semelhante a autêntico pavor, notou que as luzes fluorescentes no teto do túnel Lincoln estavam apagadas. Seria como entrar num cemitério de automóveis. Eles o deixariam chegar à metade do caminho e então todos começariam a se agitar... a voltar à vida... ele ouviria as portas dos carros se abrindo e depois sendo batidas suavemente... as passadas arrastadas deles...
Um leve suor irrompeu de seu corpo. Acima, um pássaro trinou estridentemente e ele pulou. Você está sendo idiota, disse para si mesmo. Coisa de garoto, é isso que é. Tudo que tem a fazer é permanecer na passagem de pedestres e em momento nenhum você será...
...estrangulado pelos mortos que caminham.
Ele lambeu os lábios e tentou rir, O riso soou pessimamente. Deu cinco passos em direção à praça onde a rampa se juntava à auto-estrada e então parou de novo. À sua esquerda estava um Cadillac El Dorado, e uma mulher com um rosto enegrecido de duende olhava para ele. O nariz estava pressionado como um bulbo contra o vidro. Sangue e muco tinham escorrido para fora da janela. O homem que estivera dirigindo o Cadillac se achava afundado sobre o volante como se procurasse alguma coisa no assoalho. Todas as janelas do Cadillac estavam fechadas; deveria estar uma verdadeira estufa lá dentro. Se ele abrisse a porta do lado da mulher, ela tombaria para fora e se romperia no asfalto como um saco de melões podres, e o odor seria quente e vaporoso, úmido e fervilhante de decomposição
Tal seria o odor dentro do túnel.
Abruptamente, Larry fez meia-volta e percorreu de volta o caminho pelo qual viera, sentindo a brisa que estava esfriando o suor em sua testa.
- Rita! Rita, ouça! Eu quero...
As palavras morreram enquanto alcançava o topo da rampa. Rita se fora. A rua 39 se encolhia até certo ponto na distância. Ele correu da calçada onde estava para a outra, espremendo-se entre pára-choques e passando por cima de capôs quase quentes o bastante para empolar sua pele. Mas a calçada oposta também estava vazia.
Pôs as mãos em concha e gritou:
- Rita! Rita!
A única resposta foi um eco morto: "Rita... ita... ita... ita..."
Por volta das quatro, nuvens começaram a se formar sobre Manhattan e o som de trovão rolava de lá para cá entre os paredões da cidade. Relâmpagos se bifurcavam abaixo sobre os edifícios. Era como se Deus estivesse tentando assustar as poucas pessoas remanescentes fora de abrigo. A luz havia se tornado amarela e estranha, e Larry não gostava disso. Sentia cãibras na barriga e quando acendeu um cigarro ele tremeu em sua mão tal como a xícara de café tremera na mão de Rita esta manhã.
Estava sentado na extremidade da rua que dava acesso à rampa, as costas apoiadas na barra inferior na balaustrada. A mochila repousava em seu colo e o rifle apoiava-se no gradil ao lado dele. Larry imaginara que ela ficaria assustada e voltaria antes que se passasse muito tempo, mas tal não aconteceu. Quinze minutos atrás, desistira de gritar por ela. Os ecos causavam-lhe alucinações.
O trovão ribombou de novo, desta vez próximo. Uma brisa fria passava a mão nas costas da camisa dele, que estava grudada à pele com o suor. Ele teria que se abrigar em algum lugar ou então parar com sua indecisão e entrar no túnel. Se não conseguisse reunir coragem para prosseguir, teria de passar outra noite na cidade e seguir pela ponte George Washington ao amanhecer, e ela ficava a 140 quarteirões ao norte.
Tentou pensar racionalmente acerca do túnel. Não havia nada lá que fosse mordê-lo. Havia esquecido de pegar uma boa lanterna grande - puxa, você nunca se lembrou de tudo -, mas tinha seu isqueiro Bic de butano, e havia um corrimão entre a passarela de pedestres e a pista. Qualquer outra coisa - pensar em todas aquelas pessoas mortas nos seus carros, por exemplo - que não isso era apenas papo alarmista, coisa de gibi, tão ridículo quanto se preocupar com o bicho-papão dentro do armário. Se isto é tudo em que você pode pensar, Larry (ele censurou a si mesmo), então não vai chegar a lugar nenhum neste admirável mundo novo. Não mesmo. Você é...
Uma rajada de relâmpagos fendeu o céu quase diretamente acima, fazendo-o estremecer. Seguiu-se uma pesada explosão de trovões. Ele pensou aleatoriamente: dia 1° de julho, este é o dia em que você deveria levar sua queridinha a Coney Island para comer cachorros-quentes junto â pista de corridas. Derrubar as três garrafas de leite de madeira com uma só bola e ganhar a boneca Kewpie. Os fogos de artifício â noite...
Um respingo frio de chuva atingiu o lado de seu rosto, depois bateu outro na nuca e se enfiou pelo colarinho da camisa. Pingos do tamanho de moedas começaram a cair ao seu redor. Ele se levantou, jogou a mochila sobre os ombros e pôs o rifle a tiracolo. Ainda não tinha certeza de qual caminho seguir - de volta à rua 39 ou para o túnel Lincoln. Mas precisava se abrigar em algum lugar porque a chuva começava a cair.
O trovão estrondeou acima com um ruído gigantesco, fazendo-o guinchar de pavor - um som que não diferia daqueles feitos pelos homens de Cro-Magnon 2 milhões de anos atrás.
- Seu covarde escroto - disse ele, e desceu a rampa em direção â goela do túnel, sua cabeça pendendo à frente quando a chuva começou a apertar. Água escorria do seu cabelo. Passou pela mulher com o nariz enfiado no vidro da janela do El Dorado, tentando não olhar mas mesmo assim captando um vislumbre com o rabo do olho. A chuva batucava no teto dos carros como percussão jazzística. Caía com tanta força que richocheteava de volta, provocando uma leve cerração.
Larry parou por um momento bem à boca do túnel, indeciso e novamente assustado. Então começou a chover granizo e ele se decidiu. As pedras da chuva eram grandes, ferroantes. O trovão ribombou de novo.
OK, pensou. OK. OK, OK, já me convenci. E entrou no túnel Lincoln.
Lá dentro estava muito mais escuro do que imaginara. De início a boca de entrada lançava uma leve claridade branca à frente e ele pôde ver mais carros ainda, engavetados pára-choque contra pára-choque (deve ter sido ruim morrer aqui, pensou, enquanto a claustrofobia envolvia amorosamente seus dedos brancos furtivos em volta da cabeça e começava primeiro a acariciar e depois comprimir as têmporas, deve ter sido realmente ruim. deve ter sido horrível pra cacete), e os azulejos branco-esverdeados que revestiam as paredes curvadas para cima. À direita podia ver o corrimão de pedestres estendendo-se vagamente adiante. À esquerda, a intervalos de 10 ou 15 metros, havia grandes pilares de sustentação. Um letreiro advertia: NÃO MUDE DE FAIXA. Havia fluorescentes apagadas embutidas no teto do túnel, e os olhos de vidro opaco das câmeras de TV em circuito fechado. E enquanto ele vencia a primeira curva suave, mantendo-se ligeiramente à direita, a luz foi se reduzindo até que tudo que podia ver eram reflexos desbotados de cromado. Depois, a claridade se extinguiu por completo.
Ele pegou seu isqueiro Bic e acendeu. A luz que produziu era deploravelmente fraca, alimentando seu desconforto em vez de abrandá-lo. Até mesmo com a chama no seu ponto máximo, ela só lhe dava um círculo de visibilidade de uns 2 metros de diâmetro.
Devolveu o isqueiro ao bolso e continuou a caminhar, sua mão deslizando levemente ao longo do gradil. Havia também um eco aqui, que a ele agradou menos ainda do que aquele lá de fora. O eco soava como se houvesse alguém atrás dele... de tocaia. Parou diversas vezes, a cabeça empinada, olhos arregalados (mas cegos), ouvindo até que o eco morreu. Após um instante começou a arrastar os pés, sem erguer os calcanhares do piso de concreto, de modo que o eco não se repetisse.
Algum tempo depois, parou de novo e acendeu o isqueiro junto ao seu relógio de pulso. Eram 4h20, mas ele não estava certo do que fazer. Nesta escuridão o tempo parecia não ter nenhum significado objetivo. Tampouco a distância, por falar nisso. Que distância tinha o túnel Lincoln, afinal? Um quilômetro? Dois? Certamente não poderia ser 3 quilômetros debaixo do rio Hudson. Digamos que seja um quilômetro e meio. Mas se fosse isso ele já deveria estar do outro lado. Se o homem comum caminha 6 quilômetros por hora, ele pode fazer um quilômetro e meio em 15 minutos, e Larry já estava neste buraco fedorento por cinco minutos ou mais.
- Estou caminhando muito devagar - disse, e pulou ao som da própria voz. O isqueiro caiu de sua mão e retiniu na passarela. O eco respondeu, transformando-se na voz perigosamente jocosa de um lunático se aproximando.
- ...to devagar... devagar... devagar...
- Jesus - murmurou Larry e o eco sussurrou de volta: "sus... sus... sus..."
Ele passou a mão pelo rosto, combatendo o pânico e a ânsia em desistir de pensar e seguir cegamente à frente. Em vez disso, ajoelhou-se (os joelhos estalaram como tiros de pistola, assustando-o mais uma vez) e passou os dedos sobre a topografia em miniatura da passarela de pedestres - os vales fendidos no cimento, a crista de uma velha guimba de cigarro, a colina de uma minúscula bola de papel-alumínio - até achar por fim o seu Bic. Com um suspiro interior, ele o apertou fortemente na mão, levantou-se e caminhou.
Larry começava a readquirir o controle quando seu pé bateu em algo rígido. Emitiu uma espécie de grito inalado e deu dois passos vacilantes para trás. Obrigou-se a manter-se firme enquanto extraía o isqueiro do bolso e o acendia. A chama oscilou loucamente no seu aperto trêmulo.
Havia pisado na mão de um soldado que estava sentado com as costas apoiadas na parede do túnel, as pernas espalhadas através da passarela, uma horrível sentinela deixada ali para barrar a passagem. Seus olhos vidrados fitavam Larry. Os lábios repuxavam-se sobre os dentes e ele parecia sorrir. Um canivete de mola estava enfiado em sua garganta.
O isqueiro estava ficando quente em sua mão e Larry o apagou. Lambendo os lábios e segurando o corrimão num aperto de morte, forçou-se à frente até que a ponta do seu sapato bateu de novo na mão do soldado. Depois passou por cima, dando uma passada comicamente larga, e uma espécie de horrenda certeza se abateu sobre ele: ouviria o ranger das botas do soldado enquanto se levantava e depois a mão dele se estenderia para agarrar sua perna.
Meio correndo de pés arrastados, Larry avançou mais dez passos e então forçou-se a parar, sabendo que, se não parasse, o pânico venceria e ele iria disparar às cegas, perseguido por uma terrível tropa de ecos.
Quando sentiu ter adquirido algum controle, recomeçou a caminhar. Mas agora eslava pior; seus dedos se encolhiam dentro dos sapatos e temia que, a qualquer segundo, fizesse contato com outro corpo esparramado na passarela... e não se passou muito tempo, aconteceu.
Ele resmungou e pegou o isqueiro novamente. Desta vez foi muito pior. O corpo que seu pé tocou foi o de um velho em traje azul. Um solidéu preto de seda havia caído de sua cabeça calva sobre o colo. Havia na sua lapela uma estrela de seis pontas de prata lavrada. Além dele, havia mais meia dúzia de cadáveres: duas mulheres, um homem de meia-idade, uma mulher que devia estar no fim da casa dos 70 e dois adolescentes.
O isqueiro estava quente demais para segurá-lo por mais tempo. Larry o apagou e enfiou no bolso das calças, onde ele esbraseou contra sua perna. A Capitão Viajante não tinha liquidado este grupo e também não havia liquidado o soldado lá atrás. Ele tinha visto o sangue, as roupas rasgadas, os azulejos lascados, os buracos de bala. Eles haviam sido fuzilados. Larry se lembrava dos rumores de que os soldados tinham bloqueado os pontos de saída da ilha de Manhattan. Ficara indeciso se devia acreditar ou não nos boatos; na última semana ouvira muitos, à medida que as coisas se desintegravam.
A situação aqui era bastante fácil de reconstituir. Eles haviam ficado presos no túnel, porém sem ninguém doente demais para caminhar. Saltaram do carro e começaram a seguir para o lado de Jersey, utilizando a passarela, tal como ele fazia agora. Houvera ali um posto de comando, uma base de metralhadora, alguma coisa.
Houvera? Ou ainda haveria?
Larry parou, suando, tentando clarear a mente. A escuridão espessa fornecia a tela de cinema perfeita sobre a qual a mente podia projetar suas fantasias. Ele viu: soldados de olhos implacáveis em uniformes à prova de germes agachados atrás de uma metralhadora equipada com visor infravermelho, sua função sendo abater quaisquer errantes que tentassem atravessar o túnel; um único soldado deixado para trás, um suicida voluntário, usando óculos infravermelhos e rastejando em direção a ele com uma faca entre os dentes: dois soldados carregando silenciosamente o morteiro com uma única lata de gás venenoso.
Ainda assim, não podia forçar-se a recuar. Estava inteiramente certo de que tais imagens eram mera fantasia, e a ideia de voltar era insuportável. Os soldados já teriam ido embora agora. O soldado morto que tinha pisado parecia comprovar isto.
Mas o que de fato o estava incomodando, supôs, eram os soldados diretamente à frente. Eles estavam espalhados a 2 ou 3 metros um do outro. Larry simplesmente não podia passar por cima deles como passara pelo soldado morto. E se saísse da passarela p contorná-los, arriscava-se a quebrar uma perna ou o tornozelo. Se fosse prosseguir, teria que... bem... teria que caminhar por cima deles.
Atrás dele, na escuridão, algo se moveu.
Larry girou, engolfado instantaneamente pelo medo ao ouvir aquele isolado som rangente... o de uma passada.
- Quem está aí? - gritou, tirando o rifle do ombro.
Nenhuma resposta senão o eco. Quando o eco se desvaneceu, ele ouviu - ou imaginou ouvir - o som suave de respiração. Esbugalhou os olhos no escuro, os pêlos da nuca ficando eriçados. Conteve a respiração. Não houve nenhum som. Ele começava a descartá-lo como pura imaginação quando o som recomeçou... uma passada leve, deslizante.
Procurou loucamente pelo isqueiro. A ideia de que o isqueiro poderia torná-lo um alvo nunca lhe ocorreu. Enquanto o extraía do bolso, a rosca de acender se agarrou momentaneamente no forro e o isqueiro caiu de sua mão. Ele ouviu um tinido quando o isqueiro bateu no corrimão, e então houve um honk ao cair sobre o capo ou porta-malas de um carro embaixo.
A passada deslizante retornou, um pouco mais próxima agora, impossível dizer quão próxima. Alguém vinha chegando para matá-lo e sua mente aferrolhada pelo terror deu-lhe um retrato do soldado com o canivete no pescoço, movendo-se lentamente em sua direção no escuro...
De novo, a passada rangente.
Larry lembrou-se do rifle. Jogou a coronha contra o ombro e começou a disparar. As detonações eram estilhaçantemente altas no espaço fechado; ele gritou ao som delas, mas o grito se perdia no barulho. Imagens de flashes fotográficos dos azulejos e pistas de tráfego paralisadas explodiam uma após outra como uma fieira de instantâneos em preto e branco, enquanto o fogo lambia do cano do rifle. Ricochetes gemiam como duendes. A arma escoiceou seu ombro repetidamente até ficar dormente, até ele perceber que a força dos coices o derrubara e que estava disparando sobre a pista de rolamento ao invés de para trás, ao longo da passarela. Continuava incapaz de parar. Seu dedo assumira a função do cérebro e se movia em espasmos irracionais até que o percussor começou a emitir um estalido seco e impotente.
Os ecos voltaram. Pós-imagens brilhantes pendiam diante de seus olhos em tripla exposição. Estava vagamente cônscio do fedor de cordite e do som habilmente que lhe vinha do fundo do peito.
Ainda empunhando o rifle, girou de novo e agora não foram os soldados em seus trajes esterilizados tipo Enigma de Andrômeda que viu na tela do seu cinema interior, mas sim os Morlocks da versão em quadrinhos de A Máquina do Tempo, de H. G. Wells, criaturas corcundas e cegas emergindo de seus buracos no solo onde máquinas funcionavam sem parar nas entranhas da Terra.
Ele começou a pelejar através da macia embora rígida barricada de cadáveres, tropeçando, quase caindo, agarrando o corrimão, prosseguindo. Seu pé atolou em alguma viscosidade repugnante e houve um odor gasoso e pútrido que ele mal notou. Continuou em frente, arfando.
Então, um grito se elevou na escuridão atrás dele, congelando-o no ato. Era um som desesperado, deplorável, beirando os limites da sanidade:
- Larry! Ah, Larry, graças a Deus...
Era Rita Blakemoor.
Ele se virou. Houve soluços agora, um soluçar desvairado que inundou o lugar com novos ecos. Por um momento irracional, ele decidiu continuar de qualquer modo, abandonando-a. Rita acabaria encontrando seu caminho, por que sobrecarregar-se com ela de novo? Então conseguiu se recompor e gritou:
- Rita! Fique onde está! Está me ouvindo?
O soluçar continuou.
Ele voltou tropeçando nos corpos, tentando não respirar, seu rosto retorcido numa careta de desprazer. Então correu na direção dela, incerto de quão longe tinha de ir por causa da qualidade distorcida do eco. Acabou quase caindo sobre ela.
- Larry... - Ela arremeteu contra ele e aferrou-lhe o pescoço com a força de um estrangulador. Larry pôde sentir o coração dela disparando num ritmo vertiginoso sob a blusa. - Larry, não me deixe sozinha aqui, não me deixe sozinha no escuro...
- Não. - Ele a agarrou firmemente. - Eu feri você? Você... você foi baleada?
- Não... só senti o vento... uma bala passou tão perto que senti o zunido dela... e lascas... lascas de azulejo, acho... no meu rosto... cortaram meu rosto...
- Ah, meu Deus, Rita, eu não sabia. Estava fora de mim aqui. A escuridão. E ainda perdi meu isqueiro... você devia ter chamado. Eu poderia ter matado você. - A verdade disso o impressionou. - Eu poderia ter matado você - repetiu, numa revelação aturdida.
- Não tinha certeza de que era você. Fui para um prédio de apartamentos quando você desceu a rampa. E você voltou e chamou e eu quase... mas não pude... e aí dois homens chegaram depois que a chuva começou... acho que estavam procurando por nós... ou por mim. Aí permaneci onde estava e quando eles foram embora pensei: talvez não tenham ido, talvez estejam escondidos e procurando por mim, e não ousei sair até que comecei a pensar que você tinha chegado ao outro lado e que nunca mais o veria... assim eu... eu... Larry, você não vai me abandonar, vai? Você não vai se mandar?
- Não - disse ele.
- Eu estava errada, aquilo que eu disse foi errado, você estava certo, eu deveria ter lhe contado sobre as sandálias, quero dizer, os sapatos, eu comerei quando você mandar... eu... eu... uuuuuaau...
- Calma - disse ele, segurando-a. - Está tudo bem agora. Tudo bem. - Mas na sua mente ele se via atirando nela num pânico cego, e pensou quão facilmente uma daquelas balas poderia ter-lhe esmagado o braço ou estourado seu estômago. De repente sentiu uma terrível urgência de ir ao banheiro e seus dentes queriam chocalhar. - Nós iremos quando você sentir que pode caminhar. Por enquanto relaxe.
- Havia um homem... acho que era um homem... eu pisei nele, Larry. - Ela engoliu em seco e sua garganta estalejou. - Ah, quase gritei na hora, mas não o fiz porque pensei que poderia ser um daqueles homens na dianteira em vez de você. E quando você chamou... o eco... eu não podia dizer se era você... ou... ou...
- Há muito mais gente morta lá na frente. Pode aguentar isto?
- Se você estiver comigo. Por favor... se você estiver comigo.
- Estarei.
- Então vamos. Quero sair daqui. - Ela estremeceu convulsivamente contra ele. - Jamais desejei nada tão desesperadamente em minha vida.
Ele procurou-lhe o rosto e beijou-a, primeiro o nariz, depois cada olho, a seguir a boca.
- Obrigado - disse ele humildemente, não tenho a menor ideia do que queria dizer. - Obrigado. Obrigado.
- Obrigada - repetiu ela. - Ah, querido Larry. Você não vai me abandonar, não é?
- Não - disse ele. - Não vou abandoná-la. Apenas me diga quando sentir que aguenta, Rita, e aí seguiremos juntos.
Quando ela sentiu que podia, eles o fizeram.
Eles passaram por cima de corpos, seis braços enlaçados no pescoço um do outro como amigos bêbados voltando para casa de um bar nas vizinhanças. Depois depararam com algum tipo de bloqueio. Era impossível ver, mas após passar a mão sobre ele, Rita disse que poderia ser uma cama colocada de pé. Juntos, conseguiram jogá-la por cima do corrimão. Ela foi estilhaçar-se contra um carro abaixo com um baque alto e ecoante que fez ambos pularem e se agarrarem um ao outro. Por trás de onde estivera a cama havia mais corpos espalhados, três deles, e Larry adivinhou que estes eram os soldados que haviam atirado na família judia. Passaram por cima deles e prosseguiram, de mãos dadas.
Pouco depois, Rita parou de chofre.
- Qual é o problema? - perguntou Larry. - Há alguma coisa no caminho?
- Não. Posso ver, Larry! É o fim do túnel!
Ele piscou e percebeu que também podia enxergar. A luminosidade era indistinta e chegara tão gradualmente que ele não a percebera até que Rita havia falado. Ele pôde distinguir um tênue brilho nos azulejos, e o pálido borrão no rosto de Rita ficou mais próximo. Olhando para a esquerda, pôde ver o rio morto de automóveis.
- Vamos - disse ele, em júbilo.
Sessenta passos mais adiante, havia outros corpos esparramados na passarela, todos soldados. Eles os ultrapassaram.
- Por que só fecharam Nova York? - perguntou ela. - A não ser, talvez... Larry, vai ver que isto só aconteceu em Nova York!
- Não creio - disse ele, mas sentiu, de qualquer modo, um toque de esperança irracional.
Caminharam mais rápido. A boca do túnel estava à frente deles. Era bloqueada agora por dois enormes caminhões de comboio militares, estacionados nariz com nariz. Os caminhões obliteravam boa parte da luz do dia; se não estivessem lá, Rita e Larry teriam visto luz bem antes, no interior do túnel. Havia outro amontoado de corpos onde a passarela descia para juntar-se à rampa que levava para fora. Eles se espremeram entre os caminhões, pulando por cima dos pára-choques juntos. Rita não olhou para dentro deles, mas Larry o fez. Havia um tripé de metralhadora semimontado, caixas de munição e latas de coisas que pareciam ser gás lacrimogêneo. Havia também três homens mortos.
Quando alcançaram o lado de fora, uma brisa com umidade de chuva pressionou contra eles, e seu cheiro maravilhosamente fresco pareceu fazer tudo ter valido a pena. Larry assim disse a Rita, e ela assentiu e apoiou a cabeça no ombro dele por um momento.
- Eu porém não entraria lá de novo, nem por 1 milhão de dólares - disse ela.
- Em poucos anos você estará usando dinheiro como papel higiênico - replicou ele. - Por favor, não amarrote as verdinhas.
- Mas você tem certeza...
- De que não foi só em Nova York? - Ele apontou. - Olhe.
As cabines de pedágio estavam vazias. A do meio apresentava um monte de vidro quebrado. Além delas, as pistas para oeste estavam vazias até onde eles podiam ver, mas aquelas na direção leste, as que conduziam ao túnel e à cidade que acabavam de deixar, estavam apinhadas de tráfego silencioso. Havia uma pilha desordenada de corpos no acostamento e um bando de gaivotas mantinha vigilância sobre ela.
- Ah, Deus - disse Rita fracamente.
- Havia tantas pessoas querendo entrar em Nova York quanto havia tantas querendo sair. Não sei por que se preocuparam em bloquear o túnel na extremidade de Jersey. Talvez eles tampouco soubessem o motivo. Simplesmente uma brilhante ideia de alguém que não tinha mais o que fazer...
Mas ela sentara-se na estrada e estava chorando.
- Não faça isso - disse ele, ajoelhando-se ao lado dela. A experiência no túnel ainda era recente demais para sentir-se furioso com ela. - Está tudo bem, Rita.
- O que é que está bem? - soluçou ela. - O quê? Me dê só um exemplo.
- Estamos fora, de qualquer modo. Já é alguma coisa. E tem ar puro. De fato, Nova Jersey nunca cheirou tão bem.
Isto lhe valeu um sorriso fraco. Larry olhou para os arranhões no rosto e na têmpora de Rita, onde os estilhaços de azulejo a haviam cortado.
- Deveríamos ir a uma farmácia e colocar um pouco de água oxigenada nesses cortes - disse ele. - Sente-se bem para caminhar?
- Sim. - Ela o fitava com gratidão entorpecida que o deixava desconfortável. - E arranjarei calçados novos. Tênis. Farei o que você mandar, Larry. Quero fazer.
- Gritei com você porque estava descontrolado - disse ele baixinho. Ele arrumou o cabelo dela para trás e beijou um dos arranhões sobre seu olho direito. - Não sou um cara mau - acrescentou.
- Apenas não me deixe.
Ele ajudou-a a se levantar e enlaçou-a pela cintura. A seguir caminharam lentamente em direção às cabines de pedágio e passaram através delas, Nova York atrás deles do outro lado do rio.
HAVIA UM PEQUENO PARQUE no centro de Ogunquit, completo, com um canhão da Guerra Civil e um Memorial de Guerra. Depois que Gus Dinsmore morreu, Frannie Goldsmith ia para lá e sentava-se junto ao lago de patos, ocasionalmente jogando pedras e observando os círculos concêntricos se espalharem na água parada até alcançarem os canteiros de lírios em volta das margens e se desintegrarem em confusão.
Anteontem levara Gus para a residência Hanson na praia, temerosa de que, se ela esperasse mais algum tempo, Gus não conseguiria caminhar e teria de passar seu "confinamento final", como os ancestrais dela denominariam isto com tão pavoroso, embora adequado, eufemismo, no pequeno e quente cubículo junto ao estacionamento da praia pública.
Imaginara que Gus morreria naquela noite. Sua febre estivera alta e ele havia delirado loucamente, caindo da cama duas vezes e até mesmo cambaleado em volta do quarto do velho Sr. Hanson, derrubando coisas, desabando de joelhos e se erguendo de novo. Ele gritava para pessoas que não estavam presentes, respondia a elas e observava-as com emoções que variavam da hilaridade ao desalento, até que Frannie começou a sentir que as companhias invisíveis de Gus eram as reais e que o fantasma era ela. Implorava a Gus para voltar a deitar-se, mas para ele Frannie não estava lá. Ela tinha de ficar fora do caminho dele; se não o fizesse, ele a derrubaria e passaria por cima.
Por fim, ele desabara na cama e tinha passado do delírio enérgico para uma inconsciência arquejante, de respiração pesada, que Fran imaginou ser o coma final. Mas na manhã seguinte, quando olhou para ele, Gus havia se sentado na cama e lia uma brochura de faroeste que encontrara numa das prateleiras. Agradeceu a ela por cuidar dele e disse-lhe sinceramente que esperava não ter dito ou feito alguma coisa que a constrangesse na noite passada.
Quando revelou que não tinha, Gus olhara duvidosamente para os destroços do quarto e disse-lhe que ela era bondosa por não contar a verdade. Fran preparou uma sopa, que ele tomou com satisfação, e quando Gus se queixou de como estava difícil ler sem os óculos, que se haviam quebrado enquanto estivera dando o seu plantão na barricada ao sul da cidade na semana anterior, Fran tinha pegado o livro (apesar dos fracos protestos dele) e lera para Gus quatro capítulos de um faroeste daquela mulher que vivia no norte, em Haven. Cartucho de Natal era o título. O xerife John Stoner vinha tendo problemas com o maior desordeiro da cidade de Roaring Rock, Wyoming, parecia - e, pior, ele não conseguia encontrar nada para dar de Natal a sua jovem e adorada esposa.
Fran havia ficado mais otimista, achando que Gus poderia se recuperar. Mas na última noite ele voltara a piorar e morrera às 7h45 desta manhã, apenas uma hora e meia atrás. Ele estivera lúcido no final, mas inconsciente do quão grave era sua condição. Dissera a Fran ansiosamente que gostaria de tomar um ice cream soda, do tipo que ele e seus irmãos ganhavam do pai a cada Quatro de Julho e de novo no Dia do Trabalho, quando a feira vinha a Bangor. Mas não havia mais energia elétrica em Ogunquit - ela se fora exatamente às 9h17 da noite de 28 de junho, pelos relógios elétricos - e não havia mais sorvete na cidade. Ela especulara se alguém na cidade teria um gerador a gasolina com um freezer conectado a ele num circuito de emergência. Chegou até a pensar em procurar Harold Lauder para perguntar a ele, mas então Gus começou seus estertores finais, a respirar sofregamente. Isso durou cinco minutos, enquanto ela segurava-lhe a cabeça com uma das mãos e com a outra mantinha um pano debaixo de sua boca para aparar as espessas expectorações de muco. Então, chegou ao fim.
Frannie cobriu-o com um lençol limpo e o deixara na cama do velho Jack Hanson, que dava vista para o oceano. Depois tinha vindo para o lago e desde então estivera jogando pedras na água, sem pensar muito a respeito de nada. Mas inconscientemente se deu conta de que era um bom tipo de não pensar; não era como aquela estranha apatia que a envolvera no dia seguinte à morte do pai. Desde então, tinha sido ela mesma cada vez mais. Havia conseguido uma muda de roseira da Casa das Flores do Nathan e a plantara cuidadosamente ao pé da sepultura de Peter. Achou que isto pegaria realmente bem, como teria dito seu pai. A sua falta de raciocínio era agora uma espécie de repouso, após ter visto Gus partir para o seu descanso final. Não foi nada como o prelúdio à loucura que experimentara antes. Havia sido como atravessar um túnel pútrido e sombrio, repleto de formas que mais pareciam ser sentidas do que vistas; era um túnel que da jamais desejaria atravessar outra vez.
Mas Fran teria em breve de pensar o que fazer em seguida, e supunha que este pensamento deveria incluir Harold Lauder. Não apenas porque ela e Harold eram agora as duas únicas pessoas sobreviventes na área, mas porque não fazia ideia do que seria feito de Harold sem ninguém para cuidar dele. Não se considerava a pessoa mais prática do mundo, mas uma vez que estava aqui, teria de fazê-lo. Ainda não gostava especialmente dele, mas pelo menos Harold tentara ser diplomático e se modificara para ter alguma decência. Bastante até, para o seu comportamento esquisito peculiar.
Harold a deixara sozinha desde seu encontro quatro dias atrás, provavelmente respeitando seu desejo de prantear os pais. Mas ela o tinha visto de tempos em tempos no Cadillac de Roy Brannigan, andando sem rumo para lá e para cá. E duas vezes, quando o vento estava na direção certa, ela pudera ouvir o matraquear da máquina de escrever manual de Harold da janela de seu quarto - o fato de haver silêncio o bastante para ouvir aquele som, embora a residência Lauder ficasse a quase 2 quilômetros de distância, parecia sublinhar a realidade do que havia acontecido. Ela estava um tanto divertida porque embora Harold tivesse se amarrado no Cadillac, ele não pensara em substituir sua máquina de escrever mecânica por um daqueles torpedos elétricos zumbidores.
Não que ele pudesse tê-lo agora, pensou ela enquanto se levantava e esfregava o fundilho dos shorts. Sorvete e máquinas de escrever elétricas eram coisas do passado. Isto a fez sentir-se tristemente nostálgica, e viu-se imaginando de novo, com um senso de profunda perplexidade, como tal cataclismo poderia ter ocorrido em apenas duas semanas.
Haveria outras pessoas, não importa o que Harold dissesse. Se o sistema de autoridade havia temporariamente se desintegrado, eles simplesmente teriam de encontrar os outros dispersados e reconstruir tudo. Não lhe ocorreu especular por que "autoridade" parecia uma coisa tão necessária de se ter, nem um pouco mais do que lhe ocorria especular por que havia automaticamente se sentido tão responsável por Harold. Era justamente isso. Estrutura era uma coisa necessária.
Ela saiu do parque e caminhou lentamente pela rua principal rumo à casa dos Lauder. O dia já estava quente, mas com o ar refrescado por uma brisa marinha. Desejou de súbito descer até a praia, encontrar um belo exemplar de alga e mordiscá-la.
- Deus, você está sendo desagradável - disse em voz alta. Claro que ela não estava sendo desagradável; estava apenas grávida. Era isso. Na semana seguinte seriam sanduíches de cebola. Com raiz-forte cremosa por cima.
Ela parou na esquina, ainda a um quarteirão de Harold, surpresa pelo tempo que se passara desde que havia pensado pela última vez no seu "estado interessante". Antes, estivera sempre descobrindo aquele pensamento de estou-grávida em tomo de cantos estranhos, como alguma sujeira desagradável que continuasse esquecendo de limpar: eu devia me certificar e mandar aquele vestido azul para a lavanderia antes de sexta-feira (mais uns poucos meses e posso pendurá-lo no armário porque estou-grávida); acho que tomarei uma chuveirada agora (em poucos meses parecerei uma baleia no boxe do chuveiro porque estou-grávida). Eu devia trocar o óleo do carro antes que os pistons caiam fora dos seus encaixes ou lá o que seja (e imagino o que Johnny lá da Citgo diria se soubesse que estou-grávida). Mas talvez agora Fran já tivesse se acostumado com a ideia. Afinal, ela já estava com quase três meses, quase na terça parte do caminho.
Pela primeira vez imaginou com alguma inquietação quem é que iria ajudá-la a ter o bebê.
Dos fundos da casa dos Lauder vinha um constante clickclickclick catraqueante de um cortador de grama manual, e quando Fran contornou a esquina o que viu foi tão estranho que somente sua completa surpresa a impediu de rir alto.
Harold, vestido apenas com um apertado traje de banho azul, estava aparando a grama. Sua pele branca reluzia de suor; seu cabelo preto comprido agitava-se contra o pescoço (embora fizesse Harold acreditar que ele parecia ter sido lavado no passado não muito distante). Os pneus de gordura abaixo da cintura e abaixo das cintas das pernas do seu calção de banho sacudiam-se violentamente para cima e para baixo. Seus pés estavam verdes de grama cortada até acima dos tornozelos. Suas costas tinham ficado vermelhas, embora ela não soubesse dizer se pelo esforço ou pela ação do sol.
Mas Harold não estava apenas aparando a grama; ele estava correndo. O gramado dos fundos dos Lauder descia até um pitoresco e desconexo muro de pedra, e no meio dele havia uma casinha de verão octogonal. Ela e Amy costumavam dar seu "chás" ali quando eram menininhas, lembrou Frannie com súbita estocada de nostalgia que foi inesperadamente dolorosa, naqueles dias em que ainda podiam chorar ao final de A Menina e o Porquinho e suspirar de felicidade por Chuckie Mayo, o garoto mais bonito da escola. O gramado dos Lauder era um tanto inglês no seu verdor e paz, mas agora um dervixe de sunga azul havia invadido esta bucólica cena. Ela podia ouvir Harold arfando de um modo que era alarmante enquanto ele se voltava para a esquina nordeste onde o gramado dos Lauder era separado daquele dos Wilson por uma fileira de amoreiras. Ele urrava descendo a encosta do gramado, inclinado sobre o guidom em forma de T do cortador. As lâminas zumbiam. A grama voava num jato verde, cobrindo a parte inferior às pernas de Harold. Ele havia aparado talvez metade do gramado; o que restava era um reduzido quadrado com a casinha de verão no centro. Ele dobrou a esquina no fundo da colina e depois voltou, por um momento escondido pela casinha, reaparecendo a seguir inclinado sobre sua máquina como um piloto de Fórmula Um. Mais ou menos a meio caminho, ele a viu. Exatamente no mesmo instante, Frannie disse, tímida:
- Harold? - E percebeu que ele chorava.
- Hã! - disse Harold, ou, mais exatamente, guinchou. Ela o havia arrancado de algum mundo particular, e por um momento temeu que o sobressalto no auge do seu esforço pudesse causar-lhe um ataque cardíaco.
Então ele correu para a casa, seus pés chutando através de tufos de grama aparada, e da ficou perifericamente ciente do aroma adocicado que ela produzia no ar quente de verão.
Ela deu um passo atrás dele.
- Harold, o que hã de errado?
A seguir ele estava subindo os degraus do alpendre. A porta dos fundos se abriu, Harold correu para dentro e bateu a porta atrás de si com um estrondo dissonante. No silêncio que baixou em seguida, um gaio chamou estridentemente e algum animal de pequeno porte fez ruídos chocalhantes nos arbustos atrás do muro de pedra. O cortador, abandonado, permanecia com grama aparada atrás de si e com grama alta adiante, a pouca distância da casinha onde Fran e Amy tinham uma vez bebido seu Kool-Aid nas xícaras da cozinha de Barbie, com os dedos mindinhos projetando-se elegantemente no ar.
Frannie permaneceu indecisa por um instante e por fim subiu até a porta e bateu. Não houve resposta, mas pôde ouvir Harold chorando em algum lugar lá dentro.
- Harold?
Nada de resposta. O choro continuava.
Ela entrou no vestíbulo dos fundos, que estava escuro, frio e fragrante - a despensa da Sra. Lauder abria-se do vestíbulo para a esquerda e, até onde Frannie podia lembrar, aqui sempre houvera o bom aroma de maçãs secas e canela, como tortas em processo de criação.
- Harold?
Ela caminhou do vestíbulo para a cozinha e viu Harold, sentado à mesa. Tinha as mãos emaranhadas no cabelo e seus pés verdes descansavam no linóleo desbotado que a Sra. Lauder mantivera tão imaculado.
- Harold, o que há de errado?
- Vá embora! - gritou ele, cheio de lágrimas. - Vá embora, você não gosta de mim!
- Sim, não gosto. Você está certo, Harold. Talvez não lá tão certo, mas está. - Ela fez uma pausa. - De fato, considerando as circunstâncias e tudo o mais, devo dizer que, neste exato momento, você é uma das minhas pessoas preferidas no mundo inteiro.
Isto pareceu fazer Harold chorar ainda mais.
- Tem algo para se beber?
- Kool-Aid - disse ele e fungou, assoou o nariz. Ainda olhando para a mesa, acrescentou: - Está quente.
- Claro que está. Você conseguiu tirar água da bomba municipal? - Como muitas cidades pequenas, Ogunquit ainda tinha uma bomba comunitária nos fundos da prefeitura, embora pelos últimos quarenta anos tivesse sido mais uma relíquia do que uma fonte eficaz de água. Os turistas costumavam bater fotos dela. Esta era a bomba comunitária na pequena cidade praiana onde passávamos nossas férias. Ah, não era tão original.
- É, foi lá que consegui.
Ela serviu um copo para cada um e sentou-se. Devíamos ter feito isto na casinha de verão, pensou. Teríamos bebido com nossos dedos mindinhos se projetando no ar.
- Harold, o que há de errado?
Harold soltou uma risada estranha e histérica e levou desajeitadamente à boca o seu Kool-Aid. Esvaziou o copo e o depositou.
- Errado? Ora, o que poderia haver de errado?
- Quero dizer, há alguma coisa específica? - Ela provou seu Kool-Aid e reprimiu uma careta. Não que estivesse quente, Harold devia ter puxado a água há apenas pouco tempo, mas ele havia esquecido de adoçar.
Ele finalmente olhou para ela, seu rosto raiado de lágrimas e ainda querendo chorar mais.
- Quero minha mãe - disse ele simplesmente.
- Ah, Harold...
- Quando aconteceu, quando ela morreu, pensei: "Bem, até que não foi tão ruim." - Ele apertava o copo com força, olhando para ela de um jeito intenso, desfigurado, que era um pouquinho assustador. - Sei o quanto isto deve soar terrível para você. Mas eu nunca soube como assumiria isto quando eles morreram. Sou um cara muito sensível. É por isso que sou tão perseguido pelos cretinos naquela casa de horrores que os próceres da cidade chamam de ginásio. Pensei que isto poderia me deixar louco de pesar, a morte deles, ou pelo menos me deixar prostrado por um ano... meu sol interior, por assim dizer, iria... iria... e quando aconteceu, minha mãe... Amy... meu pai... eu disse comigo mesmo: "Bem, até que não foi tão ruim." Eu... eles... - Ele pousou o punho sobre a mesa, fazendo-a retrair-se. - Por que não posso dizer o que pretendo? - gritou. - Sempre fui capaz de dizer aquilo que pretendia! É parte do trabalho do escritor entalhar a linguagem, cortar até quase o osso, portanto por que não posso dizer como me sinta
- Harold, não fale assim. Sei como você se sente.
Ele a fitou, abobado.
- Você sabe...? - Sacudiu a cabeça. - Não, você não poderia.
- Lembra de quando você foi até minha casa? E eu estava cavando a sepultura? Estava meio fora de mim. Metade do tempo eu não podia sequer lembrar o que estava fazendo. Tentei fazer batatas fritas e quase incendiei a casa. Portanto, se aparar a grama faz você se sentir melhor, ótimo. Você porém vai ganhar uma queimadura braba de sol se fizer isto só com calção de banho. Você já está ficando avermelhado - acrescentou ela criticamente, olhando para os ombros dele. Por educação, ela bebericou mais um pouco do pavoroso Kool-Aid.
Ele passou as mãos através da boca.
- Jamais gostei deles tanto assim - continuou -, mas pensava que pesar fosse alguma coisa que a gente sentisse, de qualquer modo. Como você ter de urinar quando a bexiga está cheia. E se parentes próximos morrem, você tem de ser abalado pela dor.
Ela assentiu com a cabeça, achando que era estranho mas não inadequado.
- Minha mãe sempre foi mais chegada a Amy. Era a amiga de Amy - exagerou ele com uma infantilidade inconsciente e quase desprezível. - E eu deixava meu pai horrorizado.
Fran percebeu o quanto podia ser verdade. Brad Lauder tinha sido um homem grandalhão e musculoso, supervisor na tecelagem de Kennebunk. Não teria a mínima ideia do que fazer com aquele filho gordo e esquisito que havia produzido.
- Ele me chamou à parte uma vez - resumiu Harold - e me perguntou se eu era bicha. Foi assim mesmo que disse. Fiquei tão assustado que chorei, e ele me deu um tapa na cara e disse que se eu continuasse sendo a porra de um bebê o tempo todo, o melhor que faria era sair da cidade. E Amy... acho que seria certo dizer que Amy cagou e andou para isso. Eu era apenas um estorvo quando ela convidava seus amigos para vir à nossa casa. Ela me tratava como se eu fosse lixo.
Com esforço, Fran terminou seu Kool-Aid.
- Assim, quando eles se foram e não me senti tão pesaroso desta ou daquela maneira, simplesmente achei que estava errado. "O pesar não é apenas um reflexo patelar", dizia para mim mesmo. Mas fiquei abalado. Sentia falta deles mais e mais a cada dia. Principalmente de minha mãe. Se ao menos pudesse vê-la... um monte de vezes não esteve presente quando eu a queria... precisava dela... ocupava-se demais fazendo coisas para Amy, ou com Amy, mas nunca teve tempo para mim. Então, esta manhã, quando pensei a respeito, disse comigo mesmo: "Vou aparar a grama. E aí não vou pensar mais nisso." Mas pensei. E comecei a aparar cada vez mais rápido... como se pudesse superar isto... e imagino o que você pensou ao chegar. Pareci tão louco como me sentia, Fran?
Ela estendeu o braço sobre a mesa e pegou a mão dele.
- Não há nada de errado com a maneira como você está se sentindo, Harold.
- Tem certeza? - Ele a fitava de novo com aquele olhar infantil e arregalado.
- Sim.
- Graças a Deus - disse. - Graças a Deus por isso. - A mão dele suava na dela, e Harold pareceu sentir isto enquanto ela pensava. E puxou a mão com relutância. - Gostaria de mais um pouco de Kool-Aid? - perguntou humildemente.
Ela deu o seu mais diplomático sorriso.
- Talvez mais tarde - disse.
Fizeram um piquenique no parque: manteiga de amendoim e sanduíche de geleia, biscoitos aperitivos e uma Coca tamanho família. A Coca estava ótima depois de ter sido gelada no lago de patos.
- Estive pensando acerca do que vou fazer - disse Harold. - Não quer o resto desses biscoitos?
- Não, já estou satisfeita.
O resto desapareceu na boca de Harold em uma mordida só. O pesar atrasado não havia afetado seu apetite, notou Frannie, e depois achou que era um modo um tanto maldoso de pensar.
- O quê? - disse ela.
- Estava pensando em ir para Vermont - disse ele hesitantemente. - Gostaria de li comigo?
- Por que Vermont?
- Lá tem um centro governamental para epidemia e doenças transmissíveis, numa cidade chamada Stovington. Não é tão grande quanto aquele de Atlanta, mas na verdade fica bem mais próximo. Estive pensando: se ainda houver pessoas vivas e trabalhando nesta gripe, muitas delas devem estar lá.
- Por que não estariam mortas, também?
- Bem, poderiam estar, poderiam estar - disse Harold um tanto afetadamente. - Mas em lugares como Stovington, onde costumam lidar com doenças transmissíveis, também costumam tomar precauções. E se estiverem funcionando, imagino que devem estar procurando pessoas como nós. Pessoas que sejam imunes.
- Como é que sabe de tudo isso, Harold? - Ela o fitava com franca admiração, e Harold enrubesceu alegremente.
- Eu leio um bocado. Nenhum daqueles lugares é secreto. E então, o que você acha, Fran?
Ela pensou que era uma ideia maravilhosa. Apelava para aquela necessidade desaglutinada por estrutura e autoridade. Imediatamente descartou o repúdio de Harold de que as pessoas que dirigiam tal instituição pudessem estar todas mortas. Eles iriam para Stovington, seriam admitidos, testados, e de todos os testes poderia advir alguma discrepância, alguma diferença entre eles e todas as pessoas que haviam adoecido e morrido. Até então não lhe havia ocorrido imaginar que utilidade uma vacina poderia ter a esta altura.
- Acho que devemos arranjar um mapa rodoviário e ver como podemos chegar lá ontem - disse ela.
O rosto dele se iluminou. Por um momento ela achou que Harold iria beijá-la, e neste único momento cintilante ela provavelmente o teria permitido, mas então o momento passou. Em retrospecto, ela estava contente.
Pelo mapa rodoviário, onde toda distância ficava resumida ao comprimento de um dedo, parecia bastante simples. Rodovia 1 para a Interestadual 95, Interestadual 95 para a Nacional 32, e depois para noroeste pela 302 através das cidades lacustres do Maine ocidental, ao longo da chaminé de New Hampshire pela mesma estrada e depois entrando em Vermont. Stovington ficava apenas a 50 quilômetros a oeste de Barre, acessível tanto pela Auto-Estrada 61 de Vermont quanto pela Interestadual 89.
- A que distância, no total? - perguntou Fran.
Harold pegou uma régua, mediu e depois consultou a escala quilométrica.
- Você não vai acreditar - disse, taciturno.
- Quanto? Cento e sessenta quilômetros?
- Mais de 400.
- Ah, Deus - disse Frannie. - Isto mata a minha ideia. Li em algum lugar que se poderia percorrer a maior parte dos estados da Nova Inglaterra num único dia.
- Isto é uma balela - disse Harold na sua voz mais acadêmica. - É possível percorrer quatro estados... Connecticut, Rhode Island, Massachusetts e apenas cruzar a divisa de Vermont... em 24 horas, se você o fizer da maneira correta, mas é como resolver aquele quebra-cabeça onde se tem dois enigmas entrelaçados... é fácil se você souber como, impossível se não souber.
- De onde diabos tirou esses dados? - perguntou ela, divertida.
- Guinness de Recordes Mundiais - replicou ele com desdém. - Conhecido de outra maneira como Salão de Estudos Bíblicos do Ginásio de Ogunquit. Na verdade, estive pensando em bicicletas. Ou... não sei... talvez lambretas.
- Harold - disse ela solenemente -, você é um gênio.
Harold tossiu, enrubescido e satisfeito novamente.
- Poderíamos pedalar até Wells amanhã de manhã. Lá tem uma concessionária Honda... sabe pilotar uma Honda, Fran?
- Posso aprender, se formos devagar por algum tempo.
- Ah, acho que seria uma grande burrice correr - replicou Harold, sério. - Nunca se sabe o que vem depois de uma curva fechada. E se depararmos com um engavetamento de três carros bloqueando a estrada?
- Não, nunca se pode prever, não é? Mas por que esperar até amanhã? Por que não vamos hoje?
- Bem, já passa das duas agora - disse ele. - Não conseguiríamos chegar muito mais longe do que Wells, e precisamos nos equipar. Seria mais fácil fazer isto aqui em Ogunquit, porque sabemos onde tudo está. E precisamos de armas, é claro.
Foi realmente esquisito. Tão logo ele mencionou aquela palavra, Fran havia pensado no bebê.
- Por que precisaremos de armas?
Ele a fitou por um momento, depois baixou os olhos. Um rubor subiu pelo seu pescoço.
- Porque a polícia e os tribunais se acabaram, e você é mulher e muito bonita, e algumas pessoas... alguns homens... poderiam não ser... não ser cavalheiros. É por isso.
Seu rubor ficou tão acentuado agora que era quase púrpura.
Ele estava falando sobre estupro, pensou ela. Estupro. Mas como poderia alguém querer me estuprar? Estou grávida. Mas ninguém sabia disso, nem mesmo Harold. E mesmo se revelasse isto, dissesse ao estuprador potencial: Poderia, por favor, não fazer isto porque estou grávida? Bem, poderia esperar razoavelmente que o estuprador respondesse: Puxa, dona, sinto muito. Vou procurar outra garota para estuprar.
- Tudo bem - disse ela. - Armas. Mas poderíamos alcançar Wells ainda hoje.
- Tem alguma coisa mais que preciso fazer aqui - replicou Harold.
A cúpula que encimava o celeiro de Moses Richardson estava explosivamente quente. O suor escorrera pelo corpo de Fran quando alcançaram o jirau de feno, mas na hora em que chegaram ao topo do frágil lance de escadas que levava do jirau para a cúpula foi como mergulhar o corpo em rios, escurecendo sua blusa e grudando-a nos seios.
- Acha isto realmente necessário, Harold?
- Não sei. - Ele estava carregando um balde de tinta branca e uma brocha larga com o papel celofane protetor ainda envolvendo-a. - Mas o celeiro dá vista para a Nacional 1, e este é o caminho que a maioria das pessoas seguiria, acho. De qualquer modo, não pode machucar.
- Machucará, se você cair e quebrar seus ossos. - O calor estava fazendo sua cabeça doer e a Coca bebida no almoço dava voltas no estômago de um modo extremamente nauseante. - Na verdade, seria o seu fim.
- Não vou cair - disse Harold nervosamente. Relanceou para ela. - Fran, você parece doente.
- É o calor - replicou ela fracamente.
- Então desça, pelo amor de Deus. Deite-se debaixo de uma árvore. Observe o homem-mosca enquanto ele faz seu número desafiando a morte no vertiginoso telhado, com 10 graus de inclinação, do celeiro de Moses Richardson.
- Sem brincadeira. Ainda acho que é tolice. E perigoso.
- Sim, mas me sentirei melhor se levar isto a cabo, Fran.
Ela pensou: Ora, ele está fazendo isto por mim.
Ele permaneceu lá, suando e assustado, com velhas teias de aranha subindo por seus ombros nus e empolados, a barriga cascateando sobre a cintura dos jeans apertados, determinado a não perder uma aposta, a fazer todas as coisas certas.
Ela ficou na ponta dos pés e beijou-lhe a boca levemente.
- Tenha cuidado - disse ela e desceu rapidamente as escadas, a Coca agitando-se na sua barriga, acima, abaixo, para todo lado, aargh. Continuou rapidamente, mas não tão rápido que não visse a felicidade atordoante subindo aos olhos dele. Ela desceu os frágeis degraus do jirau de feno para o chão do celeiro coberto de palha, até mesmo mais rápido agora, porque sabia que estava prestes a vomitar. E embora soubesse que era por causa do calor, da Coca e do bebê, o que pensaria Harold se ouvisse? Por isso queria chegar logo lá fora, onde ele não poderia ouvir. E conseguiu. Bem a tempo.
Harold desceu às 3h45, sua queimadura de sol agora se avermelhando, os braços salpicados de tinta branca. Fran cochilara desconfortavelmente debaixo de um olmo no pátio de Richardson enquanto ele trabalhava, nunca ferrando no sono por completo, prestando atenção no chocalhar de tabuinhas dando passagem e o grito desesperado do pobre gordo Harold enquanto despencava dos 30 metros desde o teto do celeiro até o duro solo abaixo. Mas isto nunca aconteceu - graças a Deus - e agora ele parou orgulhosamente diante dela - os pés verde-gramado, braços brancos e ombros avermelhados.
- Por que se incomodou em trazer a tinta para baixo? - perguntou ela, curiosa.
- Eu não queria deixá-la lá em cima. Poderia levar a uma combustão espontânea e perderíamos nosso letreiro.
E ela pensou de novo no quanto ele estava determinado a não perder uma simples aposta. Era simplesmente um tanto assustador.
Ambos olharam para o telhado do celeiro. A tinta fresca reluzia em pronunciado contraste com as tabuinhas verdes desbotadas, e as palavras lá pintadas fizeram Fran lembrar dos letreiros que às vezes aparecem lá no Sul, pintados nos telhados dos celeiros - JESUS SALVA ou MASCA RED INDIAN. No de Harold lia-se:
FOMOS PARA O CENTRO DE EPIDEMIAS DE STOVINGTON, VERMONT
NACIONAL 1 PARA WELLS
INTERESTADUAL 95 PARA PORTLAND
NACIONAL 302 PARA BARRE
INTERESTADUAL 89 PARA STOVINGTON
DEIXANDO OGUNQUIT 2 DE JULHO, 1990
HAROLD EMERY LAUDER
FRANCES GOLDSMITH
- Não sabia o seu nome do meio - disse Harold em tom de desculpa.
- Tudo bem - respondeu Frannie, ainda olhando para o letreiro. A primeira linha tinha sido escrita logo abaixo da janela da cúpula; a última, com seu nome, logo acima da calha de chuva. - Como conseguiu escrever esta última linha? - perguntou ela.
- Não foi difícil - disse ele, constrangido. - Tive que pendurar meus pés só um pouco, isso é tudo.
- Ah, Harold. Por que não assinou só o seu nome?
- Porque somos uma equipe - disse ele, e depois olhou para ela um tanto apreensivo. - Não somos?
- Acho que somos... até onde você não se matar. Está com fome?
Ele bufou.
- Faminto como um urso.
- Então vamos comer. E vou aplicar um óleo de bebê na sua queimadura. Você simplesmente vai ter que vestir a camisa, Harold. Não vai conseguir dormir assim esta noite.
- Dormirei muito bem - disse ele e sorriu para ela.
Frannie retribuiu o sorriso. Tiveram uma ceia de comida enlatada e Kool-Aid (Frannie a preparou e adicionou açúcar), e mais tarde, quando havia começado a escurecer, Harold voltou à casa de Fran com algo debaixo do braço.
- Era de Amy - disse ele. - Encontrei no sótão. Acho que meus pais deram a ela quando Amy se formou no colégio. Nem sei se isto ainda funciona, mas consegui algumas pilhas na loja de ferragens. - Ele bateu nos bolsos, que se avultavam com pilhas Eveready.
Era uma vitrola portátil, do tipo com cobertura de plástico, inventada para adolescentes de 13 ou 14 anos levarem para a praia e piqueniques. O tipo de vitrola produzida tendo em mente discos de 45 rpm - aqueles feitos pelos Osmonds, Leif Garrett, John Travolta, Shaun Cassidy. Ela olhou atentamente para a vitrola e sentiu seus olhos se encherem de lágrimas.
- Bem - disse ela -, vamos ver se funciona.
E funcionou. E por quase quatro horas sentaram-se em lados opostos do sofá, a vitrola portátil na mesa de centro diante deles, seus rostos iluminados com uma fascinação silenciosa e dolorosa, ouvindo enquanto a música de um mundo morto enchia a noite de verão.
A PRINCÍPIO STU ACEITOU O SOM sem questionar; era uma parte bem típica de uma ensolarada manhã de verão. Tinha acabado de passar pela cidade de South Ryegate, New Hampshire, e agora a auto-estrada serpenteava através de uma bela paisagem rural de olmos imponentes que salpicavam a estrada de luz solar em movimento. A vegetação rasteira de ambos os lados era espessa - sumagre reluzente, junípero azul-acinzentado, uma infinidade de arbustos que não sabia identificar. A profusão deles era ainda uma maravilha aos seus olhos, acostumados que estavam ao leste do Texas, onde a flora de beira de estrada não tinha nada semelhante a esta variedade. À esquerda uma antiga parede rochosa ziguezagueva para dentro e para fora da vegetação, e à direita um pequeno córrego gorgolejava alegremente para leste. Vez por outra pequenos animais se moviam entre os arbustos (ontem ele tinha sido transfixado pela visão de uma enorme corça parada sobre a linha branca da Nacional 302, farejando o ar matinal), e pássaros chamavam estridentemente. E contra o pano de fundo sonoro, o latido de um cão soou como a coisa mais natural do mundo.
Caminhou cerca de mais 800 metros antes de ocorrer-lhe que o cachorro - mais próximo agora, pelo som - poderia ser algo fora do comum, afinal. Ele tinha visto uma grande quantidade de cachorros desde que deixara Stovington, mas não vivos. Bem, supôs, a gripe havia matado muitas, mas nem todas as pessoas. Aparentemente também havia matado muitos, mas nem todos os cachorros. Talvez o cão estivesse extremamente desacostumado com gente a esta altura. Ao farejá-lo, teria rastejado de volta aos arbustos e latido histericamente para Stu até que este saísse do seu território.
Stu ajustou as tiras da mochila que estava usando e redobrou os lenços que repousavam sob as tiras de cada ombro. Calçava um par de tênis dos Georgia Giants, e três dias de caminhada haviam desgastado quase tudo que ele tinha de novo. Na cabeça usava um vistoso chapéu de feltro vermelho com abas largas e levava uma carabina militar a tiracolo. Não esperava topar com saqueadores, mas tinha uma vaga ideia de que seria bom portar uma arma. Carne fresca, talvez. Bem, ele tinha visto carne fresca ontem, ainda viva, e estivera atônito e bondoso demais para sequer pensar em atirar nela.
A mochila novamente confortável, ele continuou estrada acima. O cachorro soava como se estivesse logo além da próxima margem. Talvez eu o veja, afinal, pensou Stu.
Havia seguido a 302 rumo leste porque supunha que cedo ou tarde ela o conduziria ao oceano. Fizera uma espécie de acordo consigo mesmo: decidirei o que fazer quando alcançar o oceano. Até lá, não vou pensar nisso. Sua caminhada, agora no quarto dia, havia sido uma espécie de processo de cura. Pensara em pegar uma bicicleta de dez marchas ou talvez uma moto com as quais conseguisse contornar as colisões ocasionais que bloqueavam a estrada, mas em vez disso optara por caminhar. Sempre gostara de dar caminhadas e seu corpo clamava por exercício. Até sua fuga de Stovington estivera mantido em confinamento por quase duas semanas e sentia-se flácido e fora de forma. Supunha que em breve o seu lento progresso o tomaria impaciente, fazendo-o optar pela bicicleta ou pela moto, mas por enquanto contentava-se em caminhar rumo leste nesta estrada, olhando para o que quer que desejasse olhar, dando uma parada quando lhe aprouvesse ou deitar-se para uma soneca durante a parte mais quente do dia. Era bom para ele estar fazendo isto. Aos poucos, a busca lunática por um meio de escapar foi se desvanecendo na memória, tal como alguma coisa que havia acontecido em vez de uma coisa tão vívida que provocava suor frio em sua pele. A lembrança daquela sensação de alguém estar seguindo-o fora a mais difícil de descartar. Nas duas primeiras noites na estrada, havia sonhado vezes sem conta com seu encontro final com Elder, quando ele viera cumprir suas ordens. Nos sonhos Stu era sempre lento demais com a cadeira. Elder recuava do golpe, apertava o gatilho da pistola e Stu sentia uma pesada mas indolor luva de boxe sobrecarregada de chumbo pousar no seu peito. Teve este sonho repetidamente até acordar cansado pela manhã, mas tão contente por estar vivo que mal o percebia. Na última noite o sonho não viera. Ele duvidava se o nervosismo iria parar imediatamente, mas achava que poderia estar expelindo o veneno do seu sistema pouco a pouco. Talvez nunca se livrasse de tudo, mas quando a maior parte disso se foi, teve certeza de que seria capaz de pensar melhor acerca do que viria a seguir, quer ou não alcançasse o oceano àquela altura.
Contornou a margem e lá estava o cachorro, um setter irlandês castanho-avermelhado. Latiu alegremente à visão de Stu e correu estrada acima, as unhas estalando na superfície de concreto, sacudindo o rabo freneticamente. Pulou apoiando as patas dianteiras na barriga de Stu, que recuou um passo ao avanço do cachorro.
- Oi, garotão - disse ele, sorrindo.
O cão latiu feliz ao som de sua voz e pulou de novo.
- Kojak! - chamou uma voz firme, e Stu saltou e olhou em torno. - Deite-se e deixe o homem em paz! Vai acabar deixando marcas de lama em toda a camisa dele, seu cão danado!
Kojak voltou a pousar as quatro patas na estrada e andou em volta de Stu com o rabo entre as pernas. O rabo, porém, ainda se agitava em alegria reprimida apesar de seu confinamento. Stu decidiu que este aqui nunca seria grande coisa como ator canino.
Agora Stu pôde ver o dono da voz - e de Kojak, parecia. Um homem de seus 60 anos usando um suéter surrado e velhas calças cinzentas... e uma boina. Estava sentado numa banqueta de piano e empunhava uma paleta. Um cavalete com uma lona estava postado diante dele.
Agora ele se levantou, depositou a paleta sobre a banqueta de piano (Stu pôde ouvi-lo murmurar: "Não esquecer e sentar em cima"), seguiu na direção de Stu com a mão estendida. Por baixo da boina, o seu cabelo grisalho fofo balançava a uma pequena brisa suave.
- Espero que não pretenda fazer nenhum uso errado deste rifle, senhor. Glen Bateman, a seu dispor.
Stu adiantou-se e pegou a mão estendida (Kojak estava ficando brincalhão de novo, girando em torno de Stu, mas sem ousar renovar seus pulos - pelo menos por ora).
- Stuart Redman. Não se preocupe com a arma. Não tenho visto pessoas suficientes para começar a atirar nelas. De fato, ainda não vi ninguém, a não ser você.
- Gosta de caviar?
- Nunca experimentei.
- Então chegou a hora. E, se não se importar, há fartura de outras coisas. Kojak, quieto! Sei que está pensando em voltar a dar seus pulos amalucados... posso ler você como um livro... mas contenha-se. E nunca se esqueça, Kojak, de que controle é o que separa as ordens superiores das inferiores. Controle!
Com este apelo à sua melhor natureza, Kojak se encolheu nas ancas e começou a arfar. Tinha um grande sorriso em seu focinho canino. Por experiência própria, Stu sabia que um cão sorridente ou é um cão mordedor ou é um cão danado de manso. E este não parecia um mordedor.
- Estou convidando-o para almoçar - disse Bateman. - Você é o primeiro ser humano que vejo, pelo menos na última semana. Vai aceitar?
- Com todo o prazer.
- Sulista, não é?
- Texano Oriental.
- Um oriental, engano meu. - Bateman riu da sua própria piada e voltou-se para sua pintura, uma aquarela medíocre dos bosques do outro lado da estrada.
- Eu não sentaria nesta banqueta de piano, se fosse você - disse Stu.
- Merda, não! Não o faria afinal, faria? - Ele mudou de rumo e dirigiu-se aos fundos da pequena clareira. Stu viu que havia um recipiente de refrigeração laranja e branco à sombra lá atrás, com o que parecia uma toalha branca de linho dobrada sobre ele. Quando Bateman a retirou, Stu viu que era justamente o que parecia.
- Esta toalha fazia parte do aparato de comunhão na Igreja Batista da Graça em Woodsville - disse Bateman. - Eu a libertei. Acho que os batistas não darão por falta. Foram todos ao encontro de Jesus. Pelo menos os batistas de Woodsville foram. Eles agora podem celebrar sua comunhão pessoalmente. Embora eu acredite que os batistas vão achar o céu uma grande decepção, a não ser que a gerência lhes permita ver TV... ou talvez chamem TV-Céu por lá... na qual possam ver Jerry Falwell e Jack van Impe. O que temos aqui, em vez disso, é uma velha comunhão pagã com a natureza. Kojak, não pise na toalha. Controle, nunca esqueça disso, Kojak. Em tudo que fizer, tome o controle sua senha. O que acha de descermos a estrada para nos lavarmos, Sr. Redman?
- Pode me chamar de Stu.
- Está certo. Assim farei.
Desceram a estrada e se lavaram na água fria e cristalina. Stu sentia-se feliz. Encontrar este homem em especial, neste momento específico, pareceu de alguma forma exatamente correto. Corrente abaixo deles, Kojak bebeu da água e depois se embrenhou nos bosques, latindo de alegria. Espantou um faisão e Stu observou-o alçar voo do mato e pensou um tanto surpreso que talvez tudo simplesmente se normalizaria. De alguma fornia se normalizaria.
Ele não ligou muito para o caviar - tinha gosto de geleia de peixe fria -, mas Bateman tinha também mortadela, salame, duas latas de sardinha, algumas maçãs levemente moles e uma caixa grande de barras de figo Keebler. Barras de figo são excelentes para os intestinos, disse Bateman. Os intestinos de Stu não lhe tinham dado nenhum problema, afinal, desde que escapara de Stovington e começara a caminhar, mas mesmo assim gostava de barras de figo e serviu-se de meia dúzia. De fato, comeu fartamente de tudo.
Durante a refeição, que foi acompanhada amplamente com bolachas Saltines, Bateman contou a Stu que tinha sido professor-assistente de Sociologia no Woodsville Comunity College. Woodsville, disse ele, era uma cidade pequena ("famosa por seu colégio comunitário e seus quatro postos de gasolina", disse a Stu), mais uns 10 quilômetros descendo a estrada. Sua esposa morrera dez anos antes. Não tinham tido filhos. A maioria de seus colegas nunca se importara com ele, disse, e o sentimento havia sido cordialmente mútuo.
- Eles me consideravam um lunático - disse ele. - A forte possibilidade de que estivessem certos nada fez para melhorar nossas relações.
Ele havia aceitado a epidemia de supergripe com equanimidade, disse, porque finalmente seria capaz de recolher-se e pintar em tempo integral, como sempre desejara fazer.
Enquanto repartia a sobremesa (um bolo inglês Sara Lee) e passava a metade de Stu num prato de papel, ele disse:
- Sou um péssimo pintor, péssimo. Mas simplesmente digo a mim mesmo que neste mês de julho não existem no mundo pintores de paisagem melhores do que Glendon Pequod Bateman, bacharel em arte, mestre de arte e mestre de belas-artes. Uma satisfação do ego barata, mas só minha.
- Sempre foi dono de Kojak?
- Não... isto teria sido uma coincidência inteiramente espantosa, não teria? Creio que Kojak pertencia a alguém lá da cidade. Eu o via ocasionalmente, mas como não sabia qual era o seu nome, tomei a liberdade de rebatizá-lo. Ele não parece se importar. Me dê licença um minuto, Stu.
Ele atravessou a estrada e Stu o ouviu espadanar a água. Voltou pouco depois, as pernas das calças arregaçadas até os joelhos. Em cada mão trazia um engradado de seis latas de cerveja Narrangsett.
- Isto devia ter sido para acompanhar a refeição. Que idiota que eu sou.
- Cai igualmente bem depois - disse Stu, pegando uma lata do engradado. - Obrigado.
Eles puxaram as linguetas em anel e Bateman ergueu sua lata.
- A nós, Stu. Que possamos ter dias felizes, mentes satisfeitas e pouca ou nenhuma lombalgia.
- Amém a isto. - Eles tocaram as suas latas e beberam. Stu achou que um gole de cerveja nunca fora tão saboroso para ele antes e provavelmente jamais voltaria a ser.
- Você é um homem de poucas palavras - disse Bateman. - Espero que não interprete como se eu estivesse dançando sobre a sepultura do mundo, por assim dizer.
- Não - disse Stu.
- Eu tinha preconceito contra o mundo - continuou Bateman. - Admito isto abertamente. O mundo no último quarto do século XX teve, pelo menos para mim, todo o encanto de um velho de 80 anos morrendo de câncer do cólon. Dizem que é um mal-estar que assolou todos os povos ocidentais à medida que o século... qualquer século... se encaminha para seu final. Sempre nos envolvemos em mantas de pesar e saímos chorando, ai de ti, ah Jerusalém... ou Cleveland, como parece ser o caso. A doença dançante teve lugar durante a parte final do século XV. A peste bubônica, a peste negra, dizimou a Europa perto do fim do século XIV. A coqueluche ocorreu perto do fim do século XVII, e o primeiro surto de gripe conhecido se deu perto do fim do século XIX. Ficamos tão acostumados com a ideia da gripe, parece-nos quase como o resfriado comum, não é?, que ninguém senão os historiadores parece saber que cem anos atrás ela não existia.
"É durante as três últimas décadas de qualquer século que surgem os fanáticos com fatos e números mostrando que o Armagedom está finalmente à porta. Tais pessoas sempre existem, é claro, mas perto do final de um século suas fileiras parecem engrossar... e são levadas a sério por uma infinidade de gente. Monstros aparecem. Átila, o Huno, Gêngis Khan, Jack, o Estripador, Lizzie Borden. Na nossa época temos Charles Manson, Richard Speck e Ted Bundy, se preferir. Tem sido sugerido por colegas até mais fantasiosos do que eu que o Homem Ocidental precisa de uma grande purgação do cólon, e isto ocorre ao final dos séculos, de modo que possamos enfrentar o século vindouro limpos e cheios de otimismo. E neste caso nos é aplicado um superenema e, quando você pensa a respeito, faz perfeito sentido. Não estamos, afinal, simplesmente nos aproximando do centenário desta vez. Estamos nos aproximando de um novo milênio inteiro."
Bateman fez uma pausa, pensando.
- Agora que penso nisso, estou dançando sobre a sepultura do mundo. Outra cerveja?
Stu pegou uma e pensou no que Bateman tinha dito.
- Não é realmente o final - disse por fim. - Eu pelo menos não acho. É apenas... um intervalo.
- Inteiramente adequado. Muito bem dito. Vou voltar para minha pintura, se não se importa.
- Vá em frente.
- Viu outros cachorros por aí? - perguntou Bateman enquanto Kojak vinha voltando alegremente do outro lado da estrada.
- Não.
- Nem eu. Você é a única pessoa que vi, mas Kojak parece ser o último representante de sua espécie.
- Se ele está vivo, haverá outros.
- Não muito científico - replicou Bateman amavelmente. - Que tipo de americano é você? Mostre-me um segundo cachorro, de preferência uma cadela, e aceitarei sua tese de que em algum lugar existe um terceiro. Mas não me mostre um e a partir daí pressuponha um segundo. Isso não vale.
- Vi vacas - disse Stu, pensativo.
- Vacas, certo, e corças. Mas os cavalos estão todos mortos.
- Você sabe, isto está certo - concordou Stu. Ele vira vários cavalos mortos na sua caminhada. Em alguns casos, vacas estiveram pastando contra o vento dos corpos inchados. - Bem, por que deveria estar?
- Não faço ideia. Todos nós respiramos muito da mesma maneira, e isto parece principalmente ser uma doença respiratória. Mas fico imaginando se não haveria um outro fator. Homens, cavalos e cachorros pegaram a gripe. Vacas e cervos, não. E os ratos sumiram por um tempo mas parecem estar voltando agora. - Bateman estava imprudentemente misturando tinta na sua paleta. - Há gatos por toda parte, uma praga de gatos, e pelo que posso ver, os insetos estão proliferando muito mais do que costumavam. Claro que os faux pas cometidos pelos humanos raramente os afetaram, de qualquer modo... e a ideia de um mosquito gripado é simplesmente ridícula demais para ser levada em conta. Nada disso faz qualquer sentido evidente. É loucura.
- Claro que é - disse Stu e abriu outra cerveja. Sua cabeça zumbia agradavelmente.
- Estamos prontos para ver algumas mudanças interessantes na ecologia - disse Bateman. Ele estava cometendo o terrível erro de tentar pintar Kojak no seu quadro. - Resta ver se o Homo sapiens vai ser capaz de se reproduzir na esteira disso... resta muito a ser visto... mas pelo menos podemos nos agrupar e tentar. Mas Kojak vai encontrar uma fêmea? Vai algum dia tomar-se um papai orgulhoso?
- Meu Deus, acho que não.
Bateman se levantou, pôs sua paleta na banqueta de piano e pegou outra cerveja.
- Creio que você está certo - disse ele. - Provavelmente, há outras pessoas, outros cães, outros cavalos. Mas muitos animais podem morrer sem jamais se reproduzir. Podem ter ocorrido casos em que fêmeas de alguns animais daquelas espécies suscetíveis estivessem prenhes quando a gripe surgiu, claro. Pode haver dezenas de mulheres saudáveis no país exatamente agora que, me perdoe a crueza, estão com o bolo no forno. Mas alguns dos animais estão propensos a simplesmente afundar abaixo do ponto que não tem volta. Se você eliminar os cavalos da equação, os cervos, que parecem imunes, vão procriar livremente. Por certo que não restaram muitos homens por aí para manter baixa a população de cervos. A temporada de caça vai ser suspensa por alguns anos.
- Bem - disse Stu -, o excedente de cervos vai morrer de fome.
- Não, não vai. Nem todos, nem sequer a maioria deles. Não por aqui, de qualquer modo. Não posso falar pelo que poderia acontecer no Texas oriental, mas na Nova Inglaterra todas as lavouras estavam plantadas e crescendo lindamente antes que esta gripe acontecesse. Os cervos terão muito o que comer neste ano e no próximo. Mesmo depois, nossas lavouras vão germinar selvagens. Não haverá nenhum cervo passando fome por talvez uns sete anos. Se você voltar a passar por aqui passados alguns anos, Stu, terá que empurrar os cervos para fora do seu caminho para alcançar a estrada.
Stu pensou a respeito. Finalmente disse:
- Não está exagerando?
- Não intencionalmente. Pode haver um ou mais fatores que não levei em consideração, mas, honestamente, não penso assim. E podemos acatar minha hipótese sobre o efeito da completa ou quase completa redução da população canina em relação à população cervídea e aplicá-la aos relacionamentos entre outras espécies. Gatos procriando sem controle. O que isto significa? Bem, digo que os ratos estão abaixo na mudança ecológica mas fazendo uma reaparição. Se houver gatos suficientes, isto pode mudar. Um mundo sem ratos parece bom a princípio, mas tenho minhas dúvidas.
- O que quis dizer quando falou que se as pessoas podiam ou não se reproduzir era um tema aberto ao debate?
- Existem duas possibilidades - disse Bateman. - Pelo menos duas que vejo agora. A primeira é a de que os bebês podem não estar imunes.
- Quer dizer... que podem morrer tão logo venham ao mundo?
- Sim, ou possivelmente in útero. Menos provável mas mesmo assim possível, a supergripe pode ter tido algum efeito esterilizante sobre aqueles de nós que escaparam.
- Isto é loucura - replicou Stu.
- O mesmo se dá com a caxumba - disse secamente Glen Bateman.
- Mas se as mães dos bebês que estão... estão in útero... se as mães estão imunes...
- Sim, em alguns casos as imunidades podem passar de mãe para filho, tal como podem as susceptibilidades. Mas não em todos os casos. Você simplesmente não pode fiar-se nisso. Acho que o futuro dos bebês agora in útero ainda é muito incerto. Suas mães estão supostamente imunes, mas a probabilidade estatística diz que a maioria dos pais não, e eles estão mortos agora.
- Qual é a outra possibilidade?
- Que nós mesmos terminemos o trabalho de destruição da espécie humana - disse Bateman calmamente. - Na verdade, creio que isto é muito possível. Não agora, porque estamos todos espalhados demais. Mas o homem é um animal gregário, social, e finalmente todos nos reuniremos, se ao menos pudermos contar um ao outro histórias acerca de como sobrevivemos à grande epidemia de 1990. A maioria das sociedades que o homem formar está propensa a se tornar ditaduras primitivas governadas por pequenos césares, a não ser que tenhamos muita sorte. Algumas podem ser comunidades democráticas, esclarecidas, e vou lhe dizer exatamente qual vai ser a exigência necessária para essa espécie de sociedade na década de 1990 e na primeira década do próximo século: uma comunidade com bastante pessoal técnico capaz de trazer a luz de volta. Poderia ser feito, e muito facilmente. Isto não é conseqüência de uma guerra nuclear, com tudo devastado. Toda a maquinaria continua instalada, esperando apenas aparecer alguém... alguém capaz, que saiba limpar os plugues e substituir umas poucas peças queimadas... que a ponha de novo em funcionamento. É tudo uma questão de saber com quantos dos remanescentes entendidos em tecnologia podemos contar.
Stu bebericou sua cerveja.
- Pensa assim?
- Claro. - Bateman tomou um gole de sua própria cerveja, depois inclinou-se à frente e sorriu sinistramente para Stu. - Agora permita que eu lhe exponha uma situação hipotética, Sr. Stuart Redman, do Texas oriental. Suponha que tenhamos a Comunidade A em Boston e a Comunidade B em Utica. Estão cientes uma da outra, e cada comunidade está ciente das condições no acampamento da outra comunidade. A Sociedade A está em boa situação. Vive em Beacon Hill luxuosamente, porque um de seus integrantes é por acaso um técnico da Com Ed. Este sujeito simplesmente sabe como repor em funcionamento a central energética que atende a Beacon Hill. Seria principalmente uma questão de saber quais disjuntores apertar quando a instalação entrasse em interrupção automática. Uma vez que esteja em funcionamento, é quase tudo automatizado, de qualquer maneira. O técnico pode ensinar a outros membros da sociedade que alavancas puxar e que manômetros observar. As turbinas funcionam a óleo, do qual existe uma saturação, porque todo mundo que costumava usá-lo está para lá de morto. Portanto em Boston a energia elétrica está fluindo. Há aquecimento contra o frio, luz para que se possa ler à noite, refrigeração para que você possa beber seu uísque com gelo como um homem civilizado. De fato, a vida está sendo quase idílica. Nenhuma poluição. Nenhum problema com droga. Nenhum problema racial. Nenhuma escassez. Nenhum problema de dinheiro ou de escambo, porque nem todas as mercadorias, se não todos os serviços, estão em exposição e existe fartura para durar três séculos numa sociedade radicalmente reduzida. Falando sociologicamente, um grupo assim provavelmente se tornaria comunal em natureza. Nenhuma ditadura aqui. O solo adequado para o cultivo da ditadura, condições de penúria, necessidade, incerteza, privação... isso simplesmente não existiria. Boston provavelmente terminaria sendo dirigida de novo por uma forma de governo de assembleia municipal.
"Mas a Comunidade B, lá em Utica. Não há ninguém para pôr em operação a central energética. Os técnicos estão todos mortos. Vai levar um tempo enorme até imaginarem como fazer as coisas andarem novamente. Enquanto isso, passam frio à noite (e o inverno está chegando), estão comendo enlatados, sentem-se infelizes. Um homem-forte assume o poder. Ficam contentes em tê-lo porque estão confusos, com frio e doentes. Ele que tome as decisões. E é claro que ele toma. Manda alguém a Boston com um pedido. Poderiam enviar o melhor técnico que possuem a Utica para ajudá-los a restabelecer sua energia elétrica? A alternativa é uma longa e perigosa migração para o sul durante o inverno. Portanto o que faz a Comunidade A quando recebe esta mensagem?"
- Eles mandam o sujeito? - perguntou Stu.
- Porra, não! O técnico poderia ser retido contra sua vontade, de fato isto seria extremamente provável. No mundo pós-gripe o know-how tecnológico vai substituir o ouro como o mais perfeito meio de troca. E naqueles termos, a Sociedade A é rica e a Sociedade B é pobre. Portanto, o que faz a Sociedade B?
- Imagino que vá para o sul - disse Stu, depois riu. - Talvez até para o Texas oriental.
- Talvez. Ou talvez ameace o povo de Boston com uma ogiva nuclear.
- Certo - disse Stu. - Eles não têm sua central energética em operação, mas podem disparar um míssil nuclear em Beantown.
- Se fosse eu - disse Bateman -, não iria me incomodar com um míssil. Simplesmente tentaria imaginar como destacar a ogiva, depois enviá-la para Boston num furgão. Acha que funcionaria?
- Sei lá.
- Mesmo que não funcione, há fartura de armas convencionais dando sopa por aí. Esta é a questão. Toda essa coisa está jogada por aí, esperando ser apanhada. E se tanto a Comunidade A quanto a B tiverem técnicos especializados, elas poderiam desenvolver algum tipo de intercâmbio nuclear obsoleto por causa de religião, ou territorialidade, ou alguma reles diferença ideológica. Veja bem, em vez de seis ou sete potências nucleares, podemos terminar com sessenta ou setenta delas bem aqui nos Estados Unidos. Se a situação fosse diferente, estou certo de que estaríamos lutando com pedras e porretes, mas o fato é que todos os velhos soldados morreram e deixaram seus brinquedos para trás. É algo assustador de se pensar, em especial depois das coisas terríveis que já aconteceram... mas receio que seja inteiramente possível.
Caiu um silêncio entre os dois. Podiam ouvir Kojak latindo ao longe nos bosques enquanto, o dia ultrapassava sua metade.
- Sabe - disse Bateman por fim -, sou por natureza um homem alegre. Talvez porque tenha um baixo limiar de satisfação. Isto me valeu grande antipatia no meu campo. Tenho meus defeitos; falo demais, como já ouviu, e sou um péssimo pintor, como você já viu, e costumava ser terrivelmente insensato com dinheiro. Às vezes passava os últimos três dias antes de meu pagamento comendo sanduíches de manteiga de amendoim e fiquei notório em Woodsville por abrir contas de poupança e depois encerrá-las uma semana depois. Mas nunca realmente me deixei abater, Stu. Excêntrico mas alegre, assim sou eu. A única mina em minha vida foram os meus sonhos. Desde a infância fui assolado por sonhos assustadoramente vívidos. Boa parte deles era detestável.
Quando rapaz, eram duendes debaixo de pontes que alcançavam e agarravam meu pé ou uma bruxa que me transformava num pássaro... eu abria a boca para gritar, e nada saía senão um monte de grasnidos. Já teve sonhos ruins, Stu?
- Às vezes - disse Stu, pensando em Elder e como ele o perseguia cambaleando em seus pesadelos, e nos corredores que nunca terminavam e que só dobravam de volta neles mesmos, iluminados por luzes fluorescentes frias e repletos de ecos.
- Então você sabe. Quando adolescente, tive a cota regular de sonhos sexuais, tanto secos quanto molhados, mas estes eram às vezes entremeados com sonhos nos quais a garota com quem eu estava virava um sapo, ou uma serpente, ou até mesmo um cadáver em decomposição. À medida que fiquei mais velho tive sonhos de fracasso, sonhos de degradação, sonhos de suicídio, sonhos de uma horrível morte por acidente. O sonho mais recorrente foi um em que eu era esmagado lentamente até a morte debaixo de um ascensor de posto de gasolina. Tudo não passava de uma variação do sonho com duendes, suponho. Realmente acredito que tais sonhos são um simples emético psicológico, e as pessoas que os têm são mais abençoadas do que amaldiçoadas.
- Se conseguir se livrar disso, não vai encalhar.
- Exatamente. Existem todos os tipos de interpretação de sonhos, sendo a de Freud a mais notória, porém sempre acreditei que serviam a uma simples questão eliminatória, e não mais do que isso... que os sonhos são o meio psíquico de arranjar uma boa depressão de vez em quando. E aquelas pessoas que não sonham, ou não sonham de uma maneira que possam lembrar com freqüência quando acordam, são de algum modo mentalmente constipadas. Afinal, a única compensação prática por se ter um pesadelo é acordar e perceber que foi só um sonho.
Stu sorriu.
- Mas ultimamente venho tendo um sonho bastante ruim. É recorrente, como meu sonho de ser esmagado até a morte debaixo do ascensor, mas faz com que a pessoa pareça um babaca em comparação. Não parece com nenhum outro sonho que já tive, mas de alguma maneira é igual a todos eles. Como se... como se fosse a soma de todos os sonhos ruins. E acordo me sentindo péssimo, como se não fosse um sonho, afinal, mas uma visão. Sei o quanto isto pode soar louco.
- O que é essa visão?
- É um homem - disse Bateman, baixinho. - Pelo menos acho que é um homem. Ele está de pé no telhado de um edifício alto, ou talvez seja num penhasco. Seja o que for, é tão alto que cai a prumo na névoa centenas de metros abaixo. Está perto do pôr do sol, mas ele está olhando para o outro lado, para leste. Às vezes parece estar de calças jeans e uma jaqueta de zuarte, porém com mais frequência usa um manto com um capuz. Nunca posso ver-lhe o rosto, mas consigo ver os olhos. Ele tem olhos vermelhos. E tenho uma sensação de que está olhando para mim... e que cedo ou tarde me encontrará ou serei forçado a ir ter com ele... e será a morte para mim. Então tento gritar e... - Sua voz se extinguiu com um pequeno encolher de ombros embaraçado.
- É aí que você acorda?
- Sim. - Eles observaram Kojak voltar correndo. Bateman deu-lhe umas batidinhas enquanto farejava no prato de alumínio e comia o resto do bolo. - Bem, é apenas um sonho, suponho - disse Bateman. Ele se levantou, estremecendo enquanto seus joelhos estalavam. - Se eu fosse fazer psicanálise, suponho que o doutor diria que o sonho expressa meu medo inconsciente de que um líder ou líderes recomeçarão a coisa toda. Talvez medo da tecnologia em geral. Porque acredito que todas as novas sociedades emergentes, pelo menos no mundo ocidental, terão a tecnologia como base. É uma pena, e não precisava ser, mas assim será, porque estamos atrelados. Elas não se lembram... ou optam por não se lembrar... da esquina em que pintamos a nós mesmos. Dos rios imundos, do buraco na camada de ozônio, da bomba atômica, da poluição atmosférica. Tudo de que se lembrarão é que houve uma vez em que podiam se manter aquecidos à noite sem despender muito esforço para isso. Sou um ludita no topo de minhas outras decadências, como vê. Mas este sonho... ele me atormenta, Stu.
Stu nada comentou.
- Bem, quero voltar - disse Bateman bruscamente. - Já estou meio bêbado e creio que teremos aguaceiro e trovões esta tarde. - Ele caminhou até o fundo da clareira e inspecionou por lá. Pouco depois, voltou com um carrinho de mão. Torceu a banqueta de piano até sua menor altura e a colocou dentro dele. Acrescentou sua paleta, o cesto de piquenique e no topo de tudo equilibrou precariamente sua pintura medíocre.
- Veio empurrando tudo isto até aqui? - perguntou Stu.
- Empurrei até ver alguma coisa que desejasse pintar. Sigo caminhos diferentes em dias diferentes. É um bom exercício. Se está indo para o leste, por que não volta a Woodsville e passa a noite em minha casa? Podemos nos revezar empurrando o carrinho. E pus outro engradado de cerveja gelando no córrego. Isto nos levará de volta a casa com estilo.
- Aceito - disse Stu.
- Bom homem. Provavelmente falarei por todo o caminho. Você está nos braços do professor Tagarela, texano oriental. Quando ficar de saco cheio, é só me dizer para calar a boca. Não me ofendo.
- Sou um bom ouvinte.
- Então você é um dos eleitos de Deus. Vamos.
Assim, caminharam pela 302 abaixo, um deles empurrando o carrinho enquanto o outro tomava uma cerveja. Não importa sobre o quê, Bateman ia falando, um monólogo interminável que pulava de um tópico para outro com raras pausas. Kojak seguia pulando ao lado. Stu ouvia por algum tempo, depois seus pensamentos desviavam-se por um instante, seguindo suas próprias tangentes, depois sua atenção voltava. Estava inquieto pela imagem que Bateman esboçou de uma centena de encraves de pessoas, algumas delas militaristas, vivendo num país onde milhares de armas de destruição tinham sido abandonados como os brinquedos de uma criança. Mas, estranhamente, a coisa que sua mente continuava registrando era o sonho de Glen Bateman, o homem sem rosto no edifício alto - ou beira de penhasco -, o homem com olhos vermelhos, de costas para o sol poente, olhando incansavelmente para o leste.
Ele acordou em alguma hora depois da meia-noite, banhado em suor, receoso de ter gritado. Mas, no quarto ao lado, a respiração de Glen Bateman era lenta e regular, imperturbável, e no corredor ele podia ver Kojak dormindo com a cabeça apoiada nas patas. Tudo que se vislumbrava à luz do luar tão brilhante era surreal.
Ao acordar, Stu estivera apoiado nos cotovelos, e agora abaixou-se de volta ao lençol úmido e pôs um braço sobre os olhos, não querendo relembrar o sonho mas incapaz de evitá-lo.
Estivera em Stovington de novo. Elder estava morto. Todo mundo estava morto. O lugar era um túmulo ecoante. Ele era o único ser vivo e não conseguia encontrar a saída. De início tentou controlar o pânico. Caminhe, não corra, dizia repetidamente para si mesmo, mas logo teria que correr. Seu passo se tomava cada vez mais rápido, e o impulso de olhar por sobre o ombro para ter certeza de que eram somente os ecos atrás dele estava se tomando insuperável.
Passou pelas portas de gabinetes com nomes escritos em preto sobre vidro fosco. Passou por uma maca de rodízios tombada. Passou pelo corpo de uma enfermeira com a saia branca dobrada até as coxas, seu rosto enegrecido olhando fixamente numa careta para as cumbucas de gelo invertidas que eram as luzes fluorescentes no teto.
Por fim, começou a correr.
Cada vez mais rápido, as portas se abrindo e fechando à sua passagem, os pés martelando no linóleo. Setas laranja apontando sobre blocos de concreto de cinzas. Letreiros. A princípio pareciam corretos: RADIOLOGIA e CORREDOR B PARA LABORATÓRIOS e NÃO PROSSIGA ALÉM DESTE PONTO SEM PASSE AUTORIZADO. E então se via em outra parte da instalação, uma parte que nunca tinha visto e que supostamente não era para ser vista. A pintura nessas paredes começara a descascar e cair em flocos. Algumas das luzes fluorescentes estavam queimadas; outras zumbiam como moscas capturadas numa tela eletrificada. Algumas das janelas de vidro fosco dos gabinetes estavam estilhaçadas e, através dos buracos estrelados, ele pudera ver destroços e corpos em terríveis posições de sofrimento. Havia sangue. Essas pessoas não haviam morrido da gripe. Elas tinham sido assassinadas. Seus corpos suportaram perfurações e ferimentos de bala e os traumas pavorosos que só poderiam ter sido infligidos por instrumentos rombudos. Seus olhos estavam protuberantes e fixos.
Ele desceu por uma escada rolante parada e seguiu por um comprido túnel escuro revestido de azulejos. Na outra extremidade havia mais gabinetes, mas agora as portas estavam pintadas de preto, as setas de vermelho vivo. As luzes fluorescentes zumbiam e piscavam. Os letreiros diziam POR AQUI PARA AS URNAS DE COBALTO e ARSENAL DE LASER e MÍSSEIS SIDEWINDER e SALA DE EPIDEMIA. Então, soluçando aliviado, viu uma seta apontando ao redor de uma esquina em ângulo reto, e a única e abençoada palavra acima: SAÍDA.
Contornou a esquina e a porta continuava aberta. Além dela estava a doce e fragrante noite. Arremessou-se em direção à porta e então, parado diante dela, bloqueando seu caminho, estava um homem trajando jeans e uma jaqueta de zuarte. Stu deslizou para uma parada, um grito trancado em sua garganta como metal enferrujado. Quando o homem se adiantou sob o brilho das luzes fluorescentes piscantes, Stu viu que só havia uma fria sombra negra onde deveria ter estado o seu rosto, uma escuridão golpeada por dois olhos vermelhos sem alma. Nenhuma alma, mas com um senso de humor. Era isso: uma espécie de expressão flutuante e lunática.
O homem escuro exibiu suas mãos, e Stu percebeu que respingavam sangue.
- Céu e terra - o homem escuro sussurrou do buraco vazio onde deveria estar seu rosto. - Tudo do céu e da terra.
Stu havia acordado.
Agora Kojak gemia e rosnava suavemente no corredor. Suas patas se retorciam no sono, e Stu supôs que até os cachorros sonhavam. Era algo perfeitamente natural sonhar, mesmo que fosse um ocasional pesadelo.
Mas passou-se um longo tempo até que voltasse a dormir.
ENQUANTO A EPIDEMIA DA SUPERGRIPE declinava, houve uma segunda epidemia que durou aproximadamente duas semanas. Esta epidemia era mais comum em sociedades tecnológicas como a dos EUA, porém mais rara em países subdesenvolvidos como Peru e Senegal. Nos EUA a segunda epidemia acometeu cerca de 16% dos sobreviventes da supergripe. Em lugares como Peru e Senegal, não mais do que 3%. A segunda epidemia não ganhou nenhum nome porque os sintomas diferiam extremamente de um caso para outro. Um sociólogo como Glen Bateman poderia ter chamado esta segunda epidemia de "morte natural" ou "aquelas velhas salas de emergência azuis". Num sentido estritamente darwiniano, este era o corte final - o mais desagradável corte de todos, alguns poderiam ter dito.
Sam Tauber estava com cinco anos e meio. Sua mãe morrera no dia 24 de junho no Hospital Geral de Murfreesboro, Geórgia. No dia 25, seu pai e a irmã caçula, April, de dois anos de idade, tinham morrido. Em 27 de junho morreu seu irmão mais velho, Mike, deixando Sam para se virar por conta própria.
Sam estivera em estado de choque desde a morte da mãe. Vagueou descuidadamente de cima a baixo pelas mas de Murfreesboro, comendo quando estava faminto, às vezes chorando. Após um momento ele parava de chorar, porque chorar não fazia nenhum bem. Não trazia as pessoas de volta. À noite seu sono era interrompido por pesadelos horríveis, nos quais papai, April e Mike morriam sem parar, seus rostos inchados e pretos, um terrível som chocalhante nos peitos enquanto sufocavam no próprio muco.
Às 10h15 de 2 de julho, Sam perambulava num campo de amoras silvestres atrás da casa de Hattie Reynolds. Estupidificado e com olhos vagos, ele ziguezagueou entre as moitas de amora que tinham quase o dobro de sua altura, colhendo as bagas e comendo-as até seus lábios e queixo se tingirem de preto. Os espinhos rasgavam suas roupas e às vezes sua carne nua, mas ele mal notava. Abelhas zumbiam preguiçosamente ao seu redor. Sam nunca viu a velha e podre tampa de poço semi-enterrada na relva alta de amoras rastejantes. Ela cedeu sob seu peso com um estrondo estilhaçado e rangente e Sam afundou 6 metros abaixo pelo poço revestido de pedra até o fundo seco, onde quebrou as duas pernas. Morreu vinte horas depois; tanto de medo e sofrimento quanto de choque, fome e desidratação.
Irma Fayette morava em Lodi, Califórnia. Era uma dama de 26 anos, virgem, com um medo mórbido de estupro. Sua vida se tomara um longo pesadelo desde 23 de junho, quando a pilhagem irrompera na cidade e não havia polícia para coibir os saqueadores. Irma possuía uma pequena casa numa ma lateral; sua mãe vivera lá com ela até morrer de derrame em 1985. Quando começou o saque, e os tiros, e o som horripilante de homens bêbados rugindo acima e abaixo pelas mas do principal distrito comercial em motocicletas, Irma trancou todas as portas e depois foi se esconder no quarto de hóspedes no porão. A partir de então, havia rastejado para cima periodicamente, silenciosa como um camundongo, em busca de comida ou para fazer suas necessidades.
Irma não gostava de gente. Se todos na Terra morressem, menos ela, se sentiria perfeitamente feliz. Mas não era o caso. Ontem mesmo, depois que começara a esperar cautelosamente que fosse a única sobrevivente em Lodi, tinha visto um homem corpulento e bêbado, um hippie numa camiseta que dizia CORTEI O SEXO E A BEBIDA E ESTES FORAM OS VINTE MINUTOS MAIS APAVORANTES DE MINHA VIDA, subindo a ma com uma garrafa de uísque na mão. Tinha cabelo louro comprido que cascateava por baixo do boné afanado que estava usando e descia até os ombros. Enfiada na cintura dos jeans apertados havia uma pistola. Irma o espiara através da cortina do quarto até ele sumir de vista e depois correra escadas abaixo até o quarto barricado no porão como se tivesse sido libertada de um encantamento maligno.
Nem todos estavam mortos. Se havia um homem hippie vivo, por certo haveria outros. E seriam todos estupradores. E iriam estuprá-la. Mais cedo ou mais tarde, iriam encontrá-la e a estuprariam.
Nesta manhã, antes da primeira luz, ela rastejara até o sótão, onde as poucas posses de seu pai estavam estocadas em caixas de papelão. Seu pai servira na Marinha mercante. Havia abandonado a mãe de Irma no final dos anos 60, sua mãe lhe contara tudo a respeito e tinha sido inteiramente franca. O pai de Irma era um animal que se embebedava e depois queria estuprá-la. Todos eles agem assim. Quando você se casa, isto dá ao homem o direito de estuprá-la na hora em que bem entender. Mesmo durante o dia. A mãe de Irma sempre resumiu a deserção do marido em uma única frase, as mesmas palavras que Irma poderia ter usado à morte de quase todo homem, mulher e criança na face da Terra: "Nenhuma grande perda."
A maioria das caixas continha nada mais que bugigangas compradas em portos .estrangeiros - suvenir de Hong Kong, suvenir de Saigon, suvenir de Copenhague. Havia um álbum de fotografias. A maioria mostrava seu pai no navio, às vezes sorrindo para a câmera com os braços em tomo dos ombros de seus companheiros animais. Bem, talvez a doença que andavam chamando por aí de Capitão Viajante o tivesse acometido seja lá para onde houvesse fugido. Nenhuma grande perda.
Mas havia uma caixa de madeira com pequenas dobradiças de ouro. E nessa caixa havia uma arma: uma pistola calibre .45. Estava acondicionada em veludo vermelho, e num compartimento secreto debaixo do veludo havia algumas balas. Estavam verdes e com aspecto mofado, mas Irma achou que funcionariam perfeitamente. Balas eram de metal. Não se estragavam como leite ou queijo.
Carregou a pistola sob a única lâmpada cheia de teias de aranha de sótão, depois desceu para o desjejum na mesa da sua própria cozinha. Não iria mais se esconder num buraco que nem um camundongo. Estava armada. Os estupradores que se cuidassem.
Naquela tarde saiu à varanda de frente para ler seu livro. O nome do livro era Satã Está Vivo e Bem no Planeta Terra. Era soturno e prazeroso. Os pecadores e os ingratos tinham tido seu justo merecido, tal como o livro dizia que teriam. Todos se foram, com exceção de uns poucos estupradores hippies, e ela imaginava que podia lidar com eles. A arma estava do seu lado.
Às duas horas o homem de cabelo louro voltou. Estava tão bêbado que mal se aguentava de pé. Viu Irma e o seu rosto se iluminou, sem dúvida achando como era sortudo por ter finalmente encontrado uma "xota".
- Ei, garota! - gritou. - Só tem você e eu! Quanto tempo...
Então o terror anuviou seu rosto ao ver Irma depor o livro e erguer a .45.
- Ei, escute, baixe essa coisa... está carregada? Ei...
Irma apertou o gatilho. A pistola detonou, matando-o instantaneamente. Nenhuma grande perda.
George McDougall vivia em Nyack, Nova York. Tinha sido professor de matemática do secundário, especializado em recuperação. Ele e a esposa haviam sido católicos praticantes e Harriet McDougall dera-lhe 11 filhos, nove meninos e duas meninas. Assim, entre 22 de junho, quando seu filho Jeff, de nove anos, havia sucumbido ao que foi então diagnosticado como "pneumonia ligada à gripe", e 29 de junho, quando sua filha Patrícia, de 16 anos (e, ah, Deus, ela havia sido tão jovem e tão desejadamente bonita), sucumbira ao que todos - aqueles que restavam - estavam chamando de pescoço entubado. Tinha visto as 12 pessoas que mais amava no mundo morrerem enquanto ele próprio permanecia saudável e sentindo-se ótimo. Costumava fazer piada na escola acerca de não se lembrar dos nomes de todos os filhos, mas a ordem dos óbitos estava gravada em sua memória: Jeff no dia 22, Marty e Helen dia 23, sua esposa Harriet e Bill e George Jr. e Robert e Stan no dia 24, Richard dia 25, Danny dia 27, Frank, de três anos, no dia 28, e finalmente Pat - e Pat parecera estar bem melhor pouco antes do fim.
George achou que ia enlouquecer.
Começara a correr dez anos antes, a conselho médico. Ele não jogava tênis ou handebol, pagava a um garoto (um dos seus, claro) para aparar o gramado, e em geral ia de carro à mercearia da esquina quando Harriet precisava de um pão de fôrma. Você está ganhando peso, dissera o Dr. Warner. Chumbo no traseiro. Não é bom para o seu coração. Experimente correr.
Assim, ele arranjara um traje de jogging e saía para correr todas as noites, distâncias curtas a princípio, depois gradativamente mais longas. No começo sentira-se inibido, certo de que os vizinhos deviam estar batendo na testa e revirando os olhos. Então dois homens, que só conhecia de vista quando estavam regando seus gramados, se aproximaram e perguntaram se podiam correr com ele - provavelmente era mais seguro correr em grupo. Naquela ocasião, os dois filhos mais velhos de George se juntaram a eles. Tornou-se uma espécie de coisa de vizinhança, e embora o grupo estivesse sempre evoluindo à medida que pessoas entravam e saíam, continuou sendo uma coisa de vizinhança.
Agora que todo mundo se fora, ele ainda corria. Todo dia. Por horas. Era só quando estava correndo, concentrado em nada mais senão no bater dos tênis na calçada e no balançar dos braços e na respiração áspera constante, que ele perdia aquela sensação de loucura iminente. Não podia cometer suicídio porque, sendo católico praticante, sabia que o suicídio era um pecado mortal e que Deus devia estar poupando-o para alguma coisa. Portanto, ele corria. Na véspera correra por quase seis horas, até ficar completamente sem fôlego e quase tendo ânsia de vômito com a exaustão. Estava com 51 anos, não era mais um garoto, e supôs que correr tanto assim não era bom para ele, mas por outro lado, e mais importante, era a única coisa que lhe fazia algum bem.
Portanto, ele se levantara com a primeira luz desta manhã, após uma noite principalmente insone (ele achava que o refrão sem fim na sua mente era: Jeff-Marty-Helen-Hamett-Bill-George-Junior-Robert-Stanley-Richard-Danny-Frank-Patty-e-achei-que-ela-estava-melhorando), e vestiu sua roupa de corrida. Saiu e começou a correr de cima a baixo pelas ruas desertas de Nyack, seus pés às vezes rangendo sobre vidro quebrado, uma vez saltando por cima de um aparelho de TV que jazia estilhaçado sobre o pavimento, passando por ruas residenciais, onde as persianas estavam baixadas, e também pela horrível colisão de três carros no cruzamento da rua principal.
Correu devagar a princípio, mas tomou-se necessário correr cada vez mais rápido para manter afastados os pensamentos. Abandonou o passo lento, aumentou para um trote, depois correu mais rápido e finalmente disparou, um homem de 51 anos de cabelo grisalho num traje de corrida cinza e tênis brancos, fugindo para cima e para baixo por mas desertas como se todos os demônios do inferno estivessem atrás dele. Às 11h15 ele sofreu uma trombose coronária fulminante e caiu morto na esquina das ruas Oak e Pine, perto de um hidrante. A expressão no seu rosto parecia muito com gratidão.
A Sra. Eileen Drummond, de Clewiston, Flórida, ficou bem embriagada de creme de menta DeKuyper na tarde de 2 de julho. Ela queria se embriagar porque, se estivesse bêbada, não teria de pensar na sua família, e creme de menta foi o único tipo de álcool que pôde obter. Ela encontrara uma trouxinha de maconha no quarto da filha de 16 anos no dia anterior e fora bem-sucedida em ficar ligadona, mas ficar ligadona só piorava as coisas. Sentara-se na sala de estar por toda a tarde, drogada e chorando sobre fotografias no seu livro de recortes.
Portanto, nesta tarde ela bebeu uma garrafa inteira de creme de menta, passou mal e vomitou no banheiro. A seguir foi para a cama, acendeu um cigarro, pegou no sono, incendiou a casa e nunca mais teve que pensar naquilo. O vento havia aumentado e ela incendiou também a maior parte de Clewiston. Nenhuma grande perda.
Arthur Stimson vivia em Reno, Nevada. Na tarde do dia 29, depois de nadar no lago Tahoe, ele pisou num prego enferrujado. O ferimento gangrenou. Ele diagnosticou o problema pelo cheiro e tentou amputar o pé. No meio do procedimento, desmaiou e morreu de choque e hemorragia no saguão do cassino de Toby Harrah, onde havia tentado a amputação.
Em Swanville, Maine, uma garota de dez anos chamada Candice Moran caiu da bicicleta e morreu de fratura do crânio.
Milton Craslow, um rancheiro do condado de Harding, Novo México, foi picado por uma cascavel e morreu meia hora depois.
Em Milltown, Kentucky, Judy Horton estava quase feliz com os eventos. Era bonita e tinha 17 anos de idade. Dois anos antes, ela cometera dois erros graves: permitira-se engravidar e consentira que seus pais cobrassem o casamento do rapaz responsável, um quatro-olhos que estudava engenharia na universidade estadual. Aos 15 anos ela havia sido cantada apenas para dar uma saída com um universitário (embora ele fosse apenas um calouro) e pelo resto da vida não conseguia se lembrar por que permitira que Waldo - Waldo Horton, que nome horrível - "fizesse a cabeça" dela. E se ela ia engravidar, por que tinha de ser dele? Judy também permitira que Steve Phillips e Mark Collins "fizessem sua cabeça"; ambos pertenciam ao time de futebol na Milltown High (o Milltown Cougars, mais exatamente, lutar-lutar-lutar-pro-nosso-azul- e-branco-ganhar) e ela era animadora de torcida. Se não fosse por causa do velho e horrível Waldo Horton, poderia facilmente ter chegado a chefe das animadoras de torcida no último ano letivo. Mas, voltando ao assunto, tanto Steve quanto Mark teriam sido maridos mais aceitáveis. Ambos tinham ombros largos, e Mark possuía cabelos louros de arrasar que caíam até os ombros. Mas foi Waldo, não poderia ter sido ninguém a não ser Waldo. Tudo que ela precisava fazer era olhar no seu diário e fazer as contas. E depois que o bebê viesse, não teria nem mesmo que fazer isto. Parecia exatamente igual a Waldo. Horrível.
Assim, por dois longos anos havia batalhado por aí, através de uma variedade de empregos vagabundos em restaurantes de fast-food e motéis, enquanto Waldo ia para a escola. Isto a fez portanto odiar a escola de Waldo mais que tudo, muito mais que o bebê e o próprio Waldo. Se ele queria uma família tão ruim, por que não podia sair e trabalhar? Ela podia. Mas os pais dela e os dele não permitiriam isto. Sozinha, Judy poderia tê-lo convencido (arrancaria dele a promessa antes de permitir que a tocasse na cama), mas todos os quatro pais metiam o bedelho o tempo todo. Ah, Judy, as coisas ficarão muito melhores quando Waldo tiver um bom emprego. Ah, Judy, as coisas pareceriam muito mais radiantes se você fosse à igreja com mais frequência. Ah, Judy, vá comendo essa porcaria e continue sorrindo até poder botá-la para fora. Até botá-la toda para fora.
Então a supergripe havia aparecido e resolvido todos os seus problemas. Seus pais morreram, seu bebê Petie morrera (esta foi uma triste perda, mas ela se recuperou em dois dias), depois morreram os pais de Waldo, e finalmente o próprio Waldo. Judy ficou livre. A ideia de que ela própria poderia morrer jamais passou por sua cabeça, e claro que não morreria.
Eles tinham morado num prédio de apartamentos enorme e desconexo no centro de Milltown. Uma das características do lugar que persuadiu Waldo a alugá-lo (Judy, claro, não pôde opinar) era um amplo frigorífico para carne no porão. Mudaram-se em setembro de 1988, e o apartamento deles ficava no terceiro andar. E a quem sempre parecia caber a tarefa de buscar o assado e o hambúrguer no frigorífico? Três opções e as duas primeiras não contavam. Waldo e Petie tinham morrido em casa. Naquela ocasião era impossível conseguir remoção hospitalar a não ser que você fosse um mandachuva, e as funerárias estavam abarrotadas (velhos lugares horripilantes, de qualquer modo, dos quais Judy não chegaria perto nem numa aposta), mas ainda havia energia elétrica. Portanto, ela descera com os corpos e os pusera no frigorífico.
A energia acabara em Milltown três dias atrás, mas ainda havia refrigeração razoável lá embaixo. Judy sabia porque descia para olhar seus cadáveres três ou quatro vezes por dia. Dizia a si mesma que estava só verificando. O que mais poderia ser? Certamente, não estaria tripudiando?
Judy desceu na tarde de 2 de julho e esqueceu de pôr o calço de borracha debaixo da porta do frigorífico. A porta bateu atrás dela e se trancou. Foi só então que se deu conta, após dois anos de idas e vindas, que não havia maçaneta interna na porta do frigorífico. Naquela ocasião estava quente demais para congelar, mas não frio demais para morrer de fome. Assim, Judy Horton morreu afinal na companhia de seu filho e marido.
Jim Lee, de Hattiesburg, Mississippi, conectou toda a instalação elétrica de sua casa a um gerador a gasolina e a seguir eletrocutou-se ao tentar pôr a coisa em funcionamento.
Richard Hoggins era um jovem negro que passara toda a vida em Detroit, Michigan. Nos últimos cinco anos se viciara no mais puro pó branco que ele chamava de "roína". Durante a epidemia de supergripe, ele havia passado por extrema abstinência à medida que todos os fornecedores ou usuários que conhecia morriam ou fugiam.
Nesta radiante tarde de verão estava sentado num alpendre desordenado, bebendo um 7-Up quente e desejando tomar um pico, apenas um leve, injetado no músculo em vez de na veia.
Começou a pensar a respeito de Alice McFarlane e de alguma coisa que ouvira falar dela nas mas, pouco antes de a merda bater no ventilador. As pessoas andavam comentando que Allie, que estava em terceiro entre os maiorais de Detroit, acabara de receber um embarque de primeira. Todo mundo ia se dar bem. Nada daquela merda marrom, branco da China, todas essas porras.
Richie não sabia com certeza onde McFarlane guardaria uma grande entrega como essa - não era saudável saber de tais coisas -, mas ouvira diversas vezes de passagem que se os tiras conseguissem um mandado de busca na casa em Grosse Pointe que Allie comprara para seu tio-avô, ela iria sumir até que a lua nova virasse ouro.
Richie decidiu dar um passeio até Grosse Pointe. Afinal, não havia nada melhor a fazer.
Ele conseguiu o endereço no Lake Shore Drive de um tal Erin D. McFarlane no catálogo telefônico de Detroit e foi até lá. Estava quase escuro na hora em que chegou e seus pés doíam. Não tentava mais dizer a si mesmo que este era apenas um passeio casual; ele queria se injetar e queria desesperadamente.
Havia um muro de tijolos cinzentos em volta da propriedade e Richie o escalou como uma sombra negra, cortando as mãos nos cacos de vidro cimentados no topo. Quando arrombou uma janela para entrar, soou um alarme contra roubo, fazendo-o correr até o meio do gramado até se lembrar de que não havia policiais para atender. Ele voltou, irrequieto e empapado de suor.
A energia principal estava desligada e havia bem uns vinte cômodos na porra da casa. Ele teve de esperar até amanhecer para procurar adequadamente, e levaria três semanas para revirar a casa pelo avesso. E o bagulho talvez nem estivesse aqui. Cristo, Richie sentia-se atravessado por uma onda doentia de desespero. Mas iria pelo menos procurar nos lugares óbvios.
E no banheiro de cima encontrou uma dúzia de amplas sacolas de plástico estofadas com pó branco. Estavam na caixa de descarga da privada, aquele velho recurso. Richie olhou para elas, doente de desejo, pensando vagamente que Allie devia ter subornado todas as pessoas certas se podia dar-se ao luxo de guardar um tesouro como este na porra da descarga de uma privada. Havia droga suficiente ali para abastecer um homem por 16 séculos.
Ele levou uma sacola para o quarto principal e abriu-a sobre a cama ampla. Suas mãos tremiam enquanto preparava sua dose. Nunca ocorreu-lhe imaginar o quanto desta coisa era misturada. Nas ruas a dose mais pesada que já havia tomado era 12% pura, e o derrubara num sono tão profundo que era quase um coma. Não tinha sequer cabeceado de sono. Foi só se injetar e apagou, para fora do azul e entrando no negro.
Ele injetou-se acima do cotovelo e empurrou o êmbolo de sua seringa caseira. A droga era quase 96% pura. Bateu na sua corrente sanguínea como um trem em disparada e Richie caiu sobre as sacolas de heroína, esfarinhando com ela a frente da sua camisa. Morreu em seis minutos.
Nenhuma grande perda.
LLOYD HENREID ESTAVA DE JOELHOS. Cantarolava e sorria. Vez por outra esquecia que estivera cantarolando e o sorriso se desvanecia e ele soluçava um pouquinho, e depois esquecia que estava chorando e cantarolava de novo. A canção era "Camptown Races". Vez por outra, em vez de cantarolar ou soluçar, ele sussurrava "Doo-dah, doo-dah", a meia-voz. Todo o bloco de celas estava inteiramente silencioso exceto pelo cantarolar, o soluçar, o ocasional doo-dah e o suave raspar da perna do catre enquanto Lloyd a manuseava desajeitadamente. Estava tentando virar o corpo de Trask de modo que pudesse lhe alcançar a perna. Por favor, garçom, me traga mais dessa salada de repolho e outra perna.
Lloyd parecia como um homem que embarcara numa dieta a todo o vapor. O uniforme de prisioneiro pendia de seu corpo como uma vela desfraldada. A última refeição servida na galeria tinha sido o almoço de oito dias atrás. A pele de Lloyd estava esticada rigidamente através de sua face, delineando cada curva e ângulo do crânio. Seus olhos estavam brilhantes e reluzentes. Os lábios haviam sido repuxados dos dentes. Ele tinha um aspecto estranhamente sarapintado, porque seu cabelo havia começado a cair em tufos. Ele parecia um louco.
- Doo-dah, doo-dah - sussurrava enquanto pescava com a perna do catre. Houve uma vez em que não soubera por que se incomodara em lacerar seus dedos para desaparafusar a maldita coisa. Houve uma vez em que pensara ter conhecido o que era fome de verdade. Aquela fome não tinha sido mais que uma leve falta de apetite em comparação com esta.
- Rode por aí a noite toda... rode por aí a noite toda... doo-dah...
A perna do catre prendeu na calça de Trask na altura da panturrilha e depois ele a puxou sem trazer nada. Lloyd baixou a cabeça e soluçou como criança. Atrás dele, jogado indiferentemente a um canto, estava o esqueleto do rato que havia matado na cela de Trask em 29 de junho, cinco dias atrás. A cauda cor-de-rosa do rato ainda estava ligada ao esqueleto. Lloyd tentara repetidamente comer a cauda, porém era dura demais.
Quase toda a água do vaso sanitário acabara, apesar dos seus esforços para conservá-la. A cela estava repleta com o ranço de urina; ele estivera urinando lá fora no corredor de modo a não contaminar seu suprimento de água. Não tivera - e isto era bastante compreensível, considerando as condições radicalmente reduzidas da sua dieta - que esvaziar os intestinos.
Tinha comido muito rápido os alimentos que estocara. Soube disso agora. Havia pensado que alguém viria. Não tinha sido capaz de acreditar...
Não queria comer Trask. O pensamento de comer Trask era horrível. Somente na última noite ele conseguira acertar uma barata com seu chinelo e a tinha comido viva; sentira a barata se debatendo loucamente dentro da boca pouco antes que seus dentes a partissem em dois. Na verdade, não tinha sido tão mim, muito mais saborosa do que o rato. Não, ele não queria comer Trask. Não queria ser um canibal. Ia ser como o rato. Manteria Trask a seu alcance... mas só em último caso. Só em último caso. Ouvira falar que um homem poderia passar longo tempo sem comida desde que tivesse água.
(não muita água mas não pense a respeito disso agora não simplesmente agora não simplesmente agora)
Ele não queria morrer. Não queria passar fome. Estava também cheio de ódio.
O ódio se desenvolvera num ritmo razoavelmente vagaroso ao longo dos últimos três dias, crescendo junto com sua fome. Ele supunha que se o seu coelho de estimação, morto há tempos, fosse capaz de pensar, o teria odiado da mesma maneira (ele dormia bastante agora, e seu sono era sempre perturbado por sonhos com o coelho, seu corpo inchado, o pêlo emaranhado, os vermes se retorcendo em seus olhos e, pior que tudo, aquelas patas ensangüentadas; quando acordava, Lloyd olhava os próprios dedos em pavorosa fascinação). O ódio de Lloyd se havia aglutinado em tomo de um simples conceito imagístico, e este conceito era A CHAVE.
Ele estava encarcerado. Houve uma vez em que parecera correto que devesse estar. Ele era um dos bandidos. Não realmente bandido; Poke tinha sido o verdadeiro bandido. Merda pequena era o pior que podia ter feito sem Poke. Ainda assim, ele partilhava uma certa quantidade da culpa. Tinha havido George o Magnífico em Vegas, e as três pessoas no Continental branco - ele estivera nisso, e supunha que parte daquele sufoco lhe pertencia. Supunha que merecia tomar uma cana, cumprir alguma pena. Não era algo a que alguém se candidatasse, mas quando tinham você frio eles lhes davam a dica e você a engolia. Como Lloyd dissera ao advogado, ele achava merecer cerca de vinte por sua participação no "massacre triestadual". Não a cadeira elétrica, pelo amor de Deus! A ideia de se ver montado na descarga elétrica era simplesmente... era loucura.
Mas eles tinham A CHAVE, a coisa era essa. Podiam trancafiá-lo e fazer o que bem entendessem com ele.
Nos últimos três dias Lloyd começara a agarrar o poder simbólico e talismânico da CHAVE. A CHAVE era sua recompensa por dançar conforme a música. Se não o fizesse, podiam botá-lo em cana. Não era diferente do Vá para a cadeia no jogo de Monopólio. Não passar de VÁ, não juntar 200 dólares. E com A CHAVE vinham certas prerrogativas. Eles podiam tirar dez anos da sua vida, ou vinte, ou quarenta. Podiam subornar gente como Mathers para espancá-lo. Podiam até mesmo tirar sua vida na cadeira elétrica.
Mas ter A CHAVE não lhes dava o direito de ir embora e deixá-lo trancado passando fome. Não lhes dava o direito de obrigá-lo a comer um rato morto e tentar comer o forro seco do seu colchão. Não lhes dava o direito de deixá-lo num local onde poderia simplesmente ter de comer o homem na cela ao lado para permanecer vivo (se você puder mantê-lo à mão, é isso aí... doo-dah, doo-dah).
Havia certas coisas que não se podia fazer às pessoas. Ter A CHAVE apenas mantinha você a distância, mas não tanta. Eles o haviam deixado ali para sofrer uma morte horrível quando poderiam tê-lo libertado. Ele não era um assassino cão danado que mataria a primeira pessoa que visse, apesar do que disseram os jornais. Merda pequena foi o pior que já havia arrumado antes de conhecer Poke.
Portanto ele odiava, e o ódio o comandava a viver... ou pelo menos tentar. Por um instante pareceu-lhe que o ódio e a determinação de continuar eram coisas inúteis, porque todos aqueles que possuíam A CHAVE haviam sucumbido à gripe. Estavam fora do alcance de sua vingança. Então, pouco a pouco, à medida que ficava mais faminto, percebeu que a gripe não iria matá-los. Mataria os perdedores como ele; mataria Mathers, mas não aquele puto que o subornara, porque o puto tinha A CHAVE. Não iria matar o governador nem o diretor da prisão - o guarda que dissera que o diretor estava doente tinha sido obviamente um mentiroso fodido. Não ia matar o agente da condicional, ou xerifes e os tiras do FBI. A gripe não tocaria naqueles que tinham A CHAVE. Ela não ousaria. Mas Lloyd iria tocá-los. Se vivesse o bastante para sair dali, iria atingi-los plenamente.
A perna do catre prendeu de novo a bainha das calças de Trask.
- Vamos - sussurrou Lloyd. - Vamos lá. Venha até aqui... as damas da noite cantam esta canção... sempre é dia de doo-dah.
O corpo de Trask deslizou lenta e rigidamente ao longo do chão de sua cela. Nenhum pescador jamais fisgou um bonito mais cuidadosamente ou com maior astúcia do que Lloyd fez com Trask. Mas as calças de Trask rasgaram e Lloyd teve de enganchá-la num outro ponto. Mas por fim o pé dele ficou próximo o bastante para que Lloyd pudesse alcançá-lo através das barras e puxá-lo... se quisesse fazê-lo.
- Não é nada pessoal - sussurrou para Trask. Ele tocou a perna de Trask, acariciou-a. - Nada pessoal. E não vou comer você, velho parceiro. Nem que tivesse de fazê-lo.
Lloyd nem sequer percebia que estava salivando.
Lloyd ouviu alguém no arrebol cinzento do entardecer, e como a princípio o som foi tão distante e tão estranho - o choque de metal contra metal -, pensou que devia ter sonhado. Os estados de sono e vigília haviam se tomado muito familiares para ele agora; atravessava aquela fronteira de lá para cá quase sem perceber.
Mas então a voz chegou e ele saltou ereto no catre, os olhos cintilando arregalados, enormes e ligeiros no rosto faminto. A voz veio flutuando pelos corredores sabe Deus de quão distante na ala da Administração e depois desceu pelo poço das escadas para os corredores que ligavam as áreas de visitas ao bloco de celas central, onde estava Lloyd. Infiltrou-se serenamente através das portas de barras duplas e por fim alcançou os ouvidos de Lloyd:
- Oláááá! Alguém em casa?
E, estranhamente, o primeiro pensamento de Lloyd foi: Não responda. Talvez ele vá embora.
- Alguém em casa? Dou-lhe uma, dou-lhe duas...? OK, vou seguir meu caminho, nem que seja para sacudir a poeira de Phoenix das minhas botas...
Ao ouvir isto, a paralisia de Lloyd rompeu-se. Projetou-se fora do leito, pegou a perna do catre e começou a bater freneticamente nas barras; as vibrações correram metal acima e tremeram nos ossos de seu punho fechado.
- Não! - gritou ele. - Não! Não se vá! Por favor, não se vá! A voz, mais próxima agora, vindo da escada entre a Administração e este piso:
- Nós nos preocupamos com você, amamos tanto você... e, ah, alguém parece tão... faminto. - isto foi seguido de um risinho preguiçoso.
Lloyd deixou cair no chão a perna do catre e pôs as duas mãos em torno das barras da porta da cela. Agora podia ouvir as passadas em algum lugar nas sombras, ressoando firmemente no corredor que levava à galeria principal. Lloyd teve vontade de irromper em lágrimas de alívio... afinal, ele estava salvo... embora não fosse alegria e sim medo que sentisse no coração, um pavor crescente que o fez desejar ter ficado calado. Ficado calado? Meu Deus! O que poderia ser pior do que passar fome?
A fome o fez pensar em Trask, que jazia esparramado atrás dele no arrebol cinzento do entardecer. Uma perna estava esticada rigidamente na cela de Lloyd, e uma subtração essencial havia ocorrido na panturrilha daquela perna. Na parte carnuda daquela panturrilha. Havia marcas de dentes ali. Lloyd sabia que dentes produziram aquelas marcas, mas só tinha a mais vaga lembrança de ter almoçado um filé de Trask. Mesmo assim, foi acometido por sensações poderosas de repulsa, culpa e horror. Apressou-se até as barras e empurrou a perna de Trask de volta à cela dele. Então, olhando por sobre o ombro, para ter certeza de que o dono da voz ainda não estava à vista, ele esticou-se e, com as barras divisórias pressionando contra seu rosto, baixou a perna da calça de Trask, ocultando o que tinha feito.
Claro que não havia nenhuma grande pressa, porque os portões gradeados à entrada da galeria estavam fechados e, sem energia elétrica, o interruptor de pressão não funcionaria. Seu salvador teria que voltar e encontrar A CHAVE. Ele teria que..
Lloyd grunhiu enquanto o motor elétrico que operava os portões gradeados gemeu de volta à vida. O silêncio da galeria amplificava o som, que cessou com o familiar estalido dos portões se abrindo.
A seguir as passadas estavam ressoando firmemente no corredor da galeria.
Lloyd voltara à porta de sua cela após livrar-se de Trask. Agora, involuntariamente, recuou dois passos. Baixou o olhar para o chão lá fora e o que viu primeiro foi um par de botas empoeiradas de cowboy pontudas e com saltos gastos, e seu primeiro pensamento foi o de que Poke usara um par igual.
As botas pararam diante de sua cela.
Ergueu lentamente o olhar, subindo dos jeans desbotados aninhados dentro das botas para o cinto de couro com a fivela de latão (vários signos astrológicos dentro de dois círculos concêntricos), a jaqueta jeans com um broche enfiado em cada um dos bolsos da lapela - num deles um rosto sorridente, no outro um porco morto e as palavras COMO VAI O SEU PORCO?
No mesmo instante, os olhos de Lloyd alcançaram relutantes o rosto sombriamente avermelhado de Randall Flagg. Este gritou "Bu!". O som pairou através da galeria vazia e depois reverberou de volta. Lloyd guinchou, tropeçou nos próprios pés, caiu e começou a chorar.
- Está tudo bem - tranqüilizou Flagg. - Ei, cara, está tudo bem. Tudo está inteiramente sob controle. Lloyd soluçou:
- Pode me tirar daqui? Por favor, deixe-me sair. Não quero ser como o meu coelho, não quero acabar assim, não é justo. Se não fosse o Poke, eu nunca teria entrado numa fria, a não ser em merdas pequenas. Por favor, me deixe sair, moço. Farei qualquer coisa.
- Pobrezinho. Você parece um anúncio para férias de verão em Dachau. Apesar da simpatia na voz de Flagg, Lloyd foi incapaz de erguer os olhos acima dos joelhos do recém-chegado. Se o fitasse no rosto de novo, isto iria matá-lo. Era o rosto de um demônio.
- Por favor - murmurou Lloyd. - Por favor, me deixe sair. Estou morrendo de fome.
- Há quanto virou merda enlatada, meu amigo?
- Não sei - disse Lloyd, enxugando os olhos com os dedos. - Faz muito tempo.
- E como é que ainda não está morto?
- Eu soube o que estava por vir - disse Lloyd para as pernas em jeans enquanto juntava em torno de si os últimos farrapos de sua astúcia. - Poupei minha comida. Foi isso.
- Por acaso não tirou um bife deste seu belo colega aí na cela ao lado?
- O quê? - coaxou Lloyd. - O quê? Não! Deus me livre! O que pensa que eu sou? Moço, moço, por favor...
- A perna esquerda dele parece um pouco mais fina do que a direita. Foi por esta razão que perguntei, meu bom amigo.
- Não sei nada sobre isso - sussurrou Lloyd. Estava tremendo todo.
- E quanto ao Irmão Rato? Que gosto tem? Lloyd cobriu o rosto com as mãos e nada disse.
- Qual é o seu nome?
Lloyd tentou dizer, mas tudo que saiu foi um gemido.
- Qual é o seu nome, soldado?
- Lloyd Henreid. - Tentou pensar no que dizer em seguida, mas sua mente era uma mistura caótica. Sentira medo quando seu advogado lhe disse que poderia ir para a cadeira elétrica, mas não este medo. Nunca experimentara este medo em toda a sua vida. - Foi tudo ideia de Poke! - exclamou. - Poke é que deveria estar aqui, não eu!
- Olhe para mim, Lloyd.
- Não - sussurrou Lloyd, seus olhos girando selvagemente.
- Por que não?
- Porque... porque não acho que você seja real. E se você for real... moço, se for real, então é o próprio demônio.
- Olhe para mim, Lloyd.
Desamparadamente, Lloyd ergueu os olhos para aquele rosto escuro e sorridente que pendia além de uma interseção das barras. A mão direita segurava alguma coisa ao lado do seu olho direito. Ao olhar para ela, Lloyd sentiu frio e calor ao mesmo tempo. A coisa parecia uma pedra negra, tão escura que parecia quase resina, como piche. Havia uma fenda vermelha no centro dela, e para Lloyd parecia como um olho terrível, ensangüentado e semi-aberto, espiando-o. A seguir, Flagg girou-a levemente entre os dedos e a fenda vermelha na pedra negra pareceu como... uma chave. Flagg continuou a girá-la entre seus dedos. Uma hora era o olho, noutra hora era a chave.
O olho, a chave.
Ele cantou:
- Ela me trouxe café... ela me trouxe chá... ela me trouxe... quase de tudo... exceto a chave da casa de correção. Está certo, Lloyd?
- Claro - disse Lloyd apressadamente. Seus olhos não desgrudavam da pequena pedra negra. Flagg começou a passá-la de um dedo para o outro, como um mágico fazendo um truque.
- Agora você é um homem que deve apreciar o valor de uma boa chave - disse ele. A pedra negra desapareceu no seu punho cerrado e subitamente reapareceu na outra mão, onde recomeçou a passear de um dedo para outro. - Tenho certeza de que você é. Porque uma chave é feita para abrir portas. Existe algo mais importante na vida do que abrir portas, Lloyd?
- Moço, estou desesperadamente faminto...
- Claro que está - disse o homem. Uma expressão preocupada espalhou-se sobre seu rosto, uma expressão tão amplificada que se tomou grotesca. - Jesus Cristo, um rato não é coisa para se comer! Quer saber o que tive no meu almoço? Um sanduíche de rosbife malpassado no pão-preto, com um pouco de cebola e bastante mostarda escura. Que tal?
Lloyd assentiu com a cabeça, lágrimas escorrendo lentamente de seus olhos para lá de brilhantes.
- Para acompanhar tive batata frita e milkshake de chocolate, e depois, como sobremesa... Deus do céu, estou torturando você, não estou? Alguém devia me dar uma surra, é isto que estou merecendo. Desculpe. Deixarei você sair e depois arranjarei alguma coisa para comer, OA?
Lloyd estava atônito demais até mesmo para sorrir. Concluíra que o homem com a chave era de fato um demônio, ou até mais provavelmente uma miragem, e a miragem permaneceria do lado de fora de sua cela até que Lloyd finalmente caísse morto, falando alegremente sobre Deus, Jesus e mostarda escura, enquanto fazia a estranha pedra negra aparecer e desaparecer. Mas agora a compaixão no rosto do homem parecia bastante real e ele aparentava estar genuinamente aborrecido consigo mesmo. A pedra negra desapareceu de novo em seu punho fechado. E quando o punho se abriu, os olhos vagueantes de Lloyd contemplaram uma chave achatada de prata com uma alça ornamentada jazendo na palma da mão do estranho.
- Meu... querido... Deus! - coaxou Lloyd.
- Gosta disso? - perguntou o homem escuro, divertido. - Aprendi o truque com uma gatinha de uma casa de massagem em Secaucus, Nova Jersey, Lloyd. Secaucus, lar das maiores fazendas suínas do mundo.
Ele inclinou-se e inseriu a chave na fechadura da cela de Lloyd. E isso foi estranho porque, até onde sua memória era útil (e que não era grande coisa neste exato momento), estas celas não tinham rasgos de chaveta, porque eram abertas e fechadas eletronicamente. Mas não teve a menor dúvida de que a chave de prata funcionaria.
No justo momento em que ela chocalhava na fechadura, Flagg parou e olhou para Lloyd, sorrindo astutamente, e Lloyd sentiu o desespero inundá-lo outra vez. Tudo era apenas um truque.
- Já me apresentei? O nome é Flagg, com dois gês. Prazer em conhecê-lo.
- Igualmente - coaxou Lloyd.
- E acho que, antes que eu abra esta cela e a gente saia para jantar, devemos ter um pequeno entendimento, Lloyd.
- Tudo bem - replicou Lloyd e voltou a chorar.
- Vou fazer de você o meu braço-direito, Lloyd. Pôr você exatamente lá com São Pedro. Quando abrir esta cela, vou entregar as chaves do reino direto na sua mão. Está combinado?
- Sim - sussurrou Lloyd, ficando assustado de novo. Estava quase escuro agora. Flagg era pouco mais que uma forma escura, mas seus olhos ainda estavam perfeitamente visíveis. Eles pareciam brilhar no escuro como os olhos de lince, um à esquerda da barra que terminava na fechadura, outro à direita. Lloyd sentia terror, porém também algo mais: uma espécie de êxtase religioso. Um prazer. O prazer de ser escolhido. A sensação de que de algum modo ele superara... alguma coisa.
- Você gostaria de ajustar contas com as pessoas que o jogaram aqui, estou certo?
- Rapaz, pode apostar - disse Lloyd, esquecendo momentaneamente seu terror, que foi engolido por uma raiva faminta e vigorosa.
- Não só com aquelas pessoas, mas com qualquer um que faria uma coisa como esta - sugeriu Flagg. - Existe um tipo de pessoa, não existe? Para um certo tipo de gente, um homem como você não passa de lixo. Porque elas estão por cima. Acham que alguém como você não tem o direito de viver.
- Acertou em cheio - disse Lloyd. Sua fome enorme tinha sido de súbito mudada para um tipo diferente de fome, tal como certamente a pedra negra se transformara na chave de prata. Este homem havia expressado todas as coisas complexas que ele sentira em apenas meia dúzia de frases. Não era apenas com o guarda do portão que queria ajustar contas - ora, aí está o saco de merda esperto, qual é a história, saco de merda, tem alguma coisa esperta a dizer? -, porque ele não era o único. O guarda do portão tinha A CHAVE, tudo bem, mas ele não tinha feito A CHAVE. Alguém a entregara para ele. O diretor, supunha Lloyd, mas tampouco o diretor tinha feito A CHAVE. Lloyd queria encontrar os fabricantes e os ferreiros. Eles estariam imunes à gripe, e Lloyd tinha uma parada a resolver com eles. Ah, sim, e era uma boa parada.
- Você sabe o que diz a Bíblia acerca de gente como essa? - perguntou Flagg baixinho. - Diz que os exaltados serão rebaixados, que os poderosos serão derrubados e os inflexíveis serão quebrados. E sabe o que diz sobre pessoas como você, Lloyd? Diz: Bem-aventurados os humildes, pois eles herdarão a terra. E: Bem-aventurados os pobres de espírito, pois eles verão a Deus.
Lloyd assentia. Assentia e chorava. Por um momento pareceu que uma aura flamejante havia se formado em volta da cabeça de Flagg, uma luz tão brilhante que se Lloyd a olhasse por tempo mais longo seus olhos queimariam até virar cinzas. Então a aura se foi... se é que estivera ali, afinal - e devia não ter estado, porque Lloyd nem sequer perdera sua visão noturna.
- Agora você não está muito brilhante - disse Flagg -, mas você é o primeiro. E tenho a sensação de que seria muito leal. Nós dois, Lloyd, vamos chegar longe. É uma boa época para gente como nós. Tudo está começando para nós. Tudo de que preciso é da sua palavra.
- Pa-palavra?
- De que vamos ficar juntos, você e eu. Nada de recusas. Nada de cair no sono em serviço de guarda. Virão outros muito em breve... eles já estão a caminho para oeste... mas por enquanto somos só nós. Eu lhe darei a chave se você me der sua palavra.
- Eu... prometo - disse Lloyd e as palavras pareceram pairar no ar, vibrando estranhamente. Prestou atenção nesta vibração, sua cabeça virada para um lado, e pôde quase ver aquelas duas palavras, resplandecendo tão sombriamente como a aurora boreal se refletia no olho de um homem morto.
Depois se esqueceu delas enquanto os volteadores faziam suas meias-voltas dentro da fechadura. No momento seguinte, a caixa da fechadura caiu aos pés de Flagg, anéis de fumaça filtrando-se dela.
- Você está livre, Lloyd. Saia.
Incrédulo, Lloyd tocou as barras hesitantemente, como se pudessem queimá-lo; e, de fato, elas pareciam quentes. Mas, quando a empurrou, a porta deslizou para trás facilmente e sem barulho. Olhou para seu salvador, para aqueles olhos ardentes.
Alguma coisa foi colocada em sua mão. A chave.
- Agora é sua, Lloyd.
- Minha?
Flagg capturou os dedos de Lloyd e fechou-os em volta da chave... e Lloyd sentiu a chave se mover em sua mão, sentiu-a mudar. Soltou um grito áspero e seus dedos se abriram. A chave se fora e no seu lugar estava a pedra negra com a fenda vermelha. Ele a ergueu, especulando, e virou-a de um lado para outro. Uma hora a fenda vermelha parecia uma chave, outra hora um crânio e depois novamente um olho sangrento semifechado.
- Minha - Lloyd respondeu para si mesmo. Desta vez ele fechou sua mão sem nenhuma ajuda, apertando a pedra obstinadamente.
- Poderemos ir jantar? - perguntou Flagg. - Temos que viajar um bocado esta noite.
- Jantar - disse Lloyd. - Tudo bem.
- Há muita coisa a ser feita - disse Flagg alegremente. - E temos que nos mover com muita rapidez.
Caminharam juntos em direção às escadas, passando pelos mortos em suas celas. Quando Lloyd tropeçou de fraqueza, Flagg agarrou seu braço acima do cotovelo e o aprumou. Lloyd virou-se e fitou aquele rosto sorridente com algo mais do que gratidão. Olhou para Flagg com algo parecido com amor.
NICK ANDROS DORMIA INQUIETO no beliche de lona no gabinete do xerife Baker. Estava só de cuecas, com o corpo levemente banhado de suor. Seu último pensamento antes de dormir na noite anterior fora o de que estaria morto pela manhã; o homem escuro que havia consistentemente assombrado seus sonhos febris iria de algum modo romper aquela última barreira do sono e carregá-lo.
Era estranho. O olho que Ray Booth havia arrancado doera por dois dias. Depois, no terceiro, a sensação de que calibradores tinham sido aparafusados na sua cabeça se desvaneceu para uma dor entorpecida. Não havia nada senão um borrão cinzento quando olhava agora através daquele olho, um borrão cinzento no qual as formas às vezes se moviam ou pareciam se mover. Mas não era a lesão no olho que o estava matando; era o ferimento produzido pela bala de raspão na perna.
Nick não o desinfetara. A dor no olho tinha sido tão grande que mal tomara conhecimento dele. O ferimento se estendia pouco profundo ao longo da coxa direita e terminava no joelho; no dia seguinte ele examinara meio espantado o buraco nas calças por onde a bala havia saído. E no outro dia, 30 de junho, o ferimento avermelhara nas bordas e todos os músculos daquela perna pareciam doer.
Ele foi mancando até o consultório do Dr. Soames e conseguiu um frasco de água oxigenada. Usou todo o frasco no ferimento, que tinha cerca de 25 centímetros de comprimento. Havia sido um caso de trancar a porta do estábulo depois que o cavalo fora roubado. Naquela noite toda a perna latejava como um dente podre, e por sob a pele ele pôde ver linhas vermelhas de sangue envenenado se irradiando do ferimento, que tinha apenas começado a formar casca.
Em Ia de julho voltara ao consultório de Soames e vasculhara seu armário de remédios, procurando penicilina. Encontrou um pouco e, após um momento de hesitação engoliu as duas pílulas de uma das carteias de amostra. Estava bem ciente de que morreria se o seu corpo tivesse uma forte reação à penicilina, mas achava que a alternativa poderia ser uma morte ainda mais cruel. A infecção evoluía. A penicilina não o matou, mas tampouco houve qualquer melhora aparente.
Ao meio-dia da véspera ele tivera febre alta, e acreditava ter delirado por bastante tempo. Havia fartura de comida mas ele não queria comer; tudo que parecia desejar era beber um copo após outro da água destilada no refrigerador que havia no gabinete de Baker. A água tinha quase acabado quando ele caiu no sono (ou desmaiou) na última noite, e Nick não sabia se poderia arranjar mais. No seu estado febril, ele não ligava muito. Morreria em breve, e não haveria mais com que se preocupar. Não estava apavorado em relação à perspectiva de morrer, mas o pensamento de não sentir mais dor ou preocupação era um grande alívio. Sua perna latejava, coçava e ardia.
Seu sono naqueles dias e noites após a morte de Ray Booth tinha parecido tudo menos sono. Seus sonhos eram uma inundação. Parecia que todo mundo que já conhecera estava voltando para uma chamada ao proscênio. Rudy Sparkman, apontando para a folha de papel em branco: Você é esta página em branco. Sua mãe, batendo de leve em linhas e círculos que o ajudara a traçar em outra página branca: Aqui diz Nick Andros, querido. É você. Jane Baker, seu rosto virado de lado no travesseiro, dizendo: Johnny, meu pobre Johnny. Nos seus sonhos o Dr. Soames pedia repetidamente ao xerife Baker que tirasse a camisa, e vezes sem conta Ray Booth dizia: Segura ele... vou ferrar com ele... esse puto me chutou... segura ele... Ao contrário de todos os outros sonhos que tivera na vida, nesses Nick não precisava fazer leitura labial. Podia realmente ouvir o que as pessoas diziam. Os sonhos eram incrivelmente vívidos. Eles se desvaneciam à medida que a dor na perna o trazia para mais perto do despertar. Depois uma nova cena aparecia enquanto ele mergulhava de novo no sono. Havia pessoas que nunca vira mais de uma vez nos sonhos, e estes eram os sonhos que recordava com mais clareza ao despertar.
Estava num lugar alto. A terra se espalhava abaixo como um mapa em relevo. Era uma terra deserta, e as estrelas acima tinham a claridade louca da altitude. Havia um homem a seu lado... não, não um homem, mas a forma de um homem. Como se a figura houvesse sido cortada do tecido da realidade e o que estivesse de fato parado ao seu lado fosse um homem negativo, um buraco negro na forma de um homem. E a voz desta forma sussurrava: Tudo que você vê será seu se cair de joelhos e me adorar. Nick sacudiu a cabeça, querendo se afastar daquela terrível armadilha, temendo que a forma estendesse seus braços negros e o empurrasse precipício abaixo.
Por que não fala? Por que simplesmente não sacode a cabeça?
No sonho Nick fez o gesto que sempre fizera tantas vezes no mundo desperto: um pousar do dedo sobre os lábios, depois a palma da mão contra a garganta... e então ouviu-se dizer numa voz perfeitamente clara, até mesmo linda:
- Não posso falar. Sou mudo.
Mas você pode. Se quiser, você pode.
Nick então estendeu o braço para tocar a forma, seu medo momentaneamente varrido por uma inundação de espanto e alegria inflamada. Mas enquanto sua mão se aproximava do ombro daquela figura ela se transformou em gelo frio, tão frio que parecia que a havia queimado. Pulou afastando-se, com cristais de gelo se formando nos nós dos dedos. E a figura veio até ele. Nick podia ouvir. A voz da forma escura; o grito longínquo de um pássaro noturno caçando; o uivo infinito do vento. Viu-se de novo completamente mudo pelo prodígio disso. Havia uma nova dimensão para o mundo que ele nunca perdera porque nunca o havia vivenciado. E agora o mundo havia caído no lugar. Nick estava ouvindo sons. Ele parecia saber qual era cada um deles sem que lhe contassem. Eram lindos. Sons lindos. Passou os dedos de um lado a outro da sua camisa e maravilhou-se com o veloz sussurro de suas unhas sobre o algodão.
Então o homem escuro voltou-se para ele, e Nick sentiu um medo terrível. Esta criatura, o que quer que fosse, não realizava milagre de graça.
... se você cair de joelhos e me adorar.
E Nick cobriu o rosto com as mãos porque queria todas as coisas que a forma humana negra lhe havia mostrado desta altitude erma: cidades, mulheres, tesouro, poder. Porém, mais do que tudo, queria ouvir o som fascinante que suas unhas faziam na camisa, o tiquetaquear de um relógio numa casa vazia depois da meia-noite e o som secreto da chuva.
Mas a palavra que disse foi Não e então aquele frio congelante veio sobre ele de novo, e havia sido empurrado, estava caindo de ponta-cabeça e gritando mudamente enquanto tombava através dessas profundezas nubladas, tombava no cheiro de...
... milho?
Sim, milho. Este era o outro sonho, eles se misturavam desse jeito, mal tendo uma costura para mostrar a diferença. Ele estava no milharal, no milharal verde, e o cheiro era de terra no verão e estrume de vaca e coisas brotando. Levantou-se e começou a caminhar subindo a fileira em que se havia encontrado, parando momentaneamente à medida que percebia ser capaz de ouvir o suave relincho do vento fluindo entre as folhas parecidas com espadas do milho verde de julho... e algo mais.
Música?
Sim - algum tipo de música. E no sonho ele pensava: "Então é isso o que significam." Estava vindo diretamente à frente e ele caminhou no rumo da música, querendo ver se esta determinada sucessão de sons lindos vinha do que chamavam "piano", "trompete", "ceio" ou lá o que fosse.
O odor quente do verão em suas narinas, o céu azul arqueando-se acima, aquele som adorável. Neste sonho, Nick nunca tinha sido mais feliz. E à medida que se aproximava da fonte, uma voz juntou-se à música, uma voz velha como couro escuro, pronunciando as palavras um tanto indistintamente como se a canção fosse um ensopado, com freqüência requentado, mas que nunca perdia seu velho sabor. Mesmerizado, Nick caminhou na direção da voz.
Vou para o jardim sozinha,
Enquanto o orvalho as rosas mela.
E a voz que ouço, no meu ouvido caindo,
O filho... de Deus... revela.
E ele caminha comigo, fala comigo.
E me diz que sou seu,
E a alegria partilhada enquanto ali ficamos Nenhum outro... jamais... conheceu.
Ao fim da estrofe, Nick a impeliu até o final da fileira de pés de milho e lá no descampado viu uma choupana, não mais que um casebre, com um latão de lixo enferrujado à esquerda e um velho pneu oscilando à direita. Pendia de uma macieira que estava florida mas ainda verde de vida graciosa. Um alpendre se inclinava para fora da casa, uma coisa velha caindo aos pedaços que era mantida aprumada por velhos macacos a óleo. As janelas estavam abertas, e a brisa típica de verão soprava cortinas brancas esfarrapadas para dentro e para fora delas. Do telhado, uma chaminé pontiaguda de cobre galvanizado, amassada e fumarenta, projetava-se no seu próprio velho e estranho ângulo. Esta casa assentava-se no seu descampado e o milho estendia-se pelos quatro pontos cardeais até onde a vista alcançava; só era rompido ao norte por uma estrada de terra que serpenteava até um ponto no horizonte plano. Era sempre neste ponto que Nick sabia onde estava: condado de Polk, Nebraska, a oeste de Omaha e um pouco ao norte de Osceola. Bem acima daquela estrada de terra ficava a Nacional 30 e Columbus assentava-se à margem norte do rio Platte.
Sentada no alpendre está a mulher mais velha da América, uma mulher negra com cabelo branco fino e fofo - ela própria é fina, usando um vestido caseiro e óculos. Parece fina o bastante para o vento do fim da tarde soprá-la longe, suspendê-la no alto céu azul e carregá-la talvez todo o caminho até Julesburg, Colorado. E o instrumento que ela está tocando (talvez o que a esteja mantendo embaixo, mantendo-a com os pés na terra) é uma "guitarra", e Nick pensa no sonho: Então é assim que soa uma "guitarra". Lindo. Ele sente que poderia ficar parado ali onde está pelo resto do dia, vendo a velha negra sentada no seu alpendre amparado por macacos a óleo no meio de todo este milharal do Nebraska, parado ali a oeste de Omaha e um pouco ao norte de Osceola no condado de Polk, ouvindo. O rosto dela é sulcado por milhões de rugas como o mapa de um estado onde a geografia não foi estabelecida - rios e cânions ao longo de suas faces castanhas coriáceas, cordilheiras abaixo da protuberância do seu queixo, a sinuosa e elevada colina óssea na base da testa, as cavernas dos seus olhos.
Ela recomeçou a cantar, acompanhando-se na velha guitarra.
Jesus, não vai vir aqui?
Ah, Jesus, não vai vir aqui?
Ab. agora... é o tempo de necessidade
Ab, agora... é o tempo de necessidade
Agora é o...
Diga, rapaz, quem pregou você neste local?
Ela põe a guitarra atravessada no colo como um bebê e gesticula para que ele avance. Nick aproxima-se. Diz que só queria ouvi-la cantar, o canto era lindo.
Bem, o canto é a tolice de Deus, agora faço isto a maior parte do dia... como você se saiu com aquele homem escuro?
Ele me assusta, tenho medo...
Rapaz, você tem que ter medo. Até mesmo uma arvore no lusco-fusco, se a enxergar de maneira correta, ela mete medo em você. Somos todos mortais, graças a Deus. Mas como digo não a ele? Como eu...
Como você respira? Como sonha? Ninguém sabe. Mas você vem me ver. Mãe Abagail, é como me chamam. Sou a mulher mais velha por estas bandas, acho, e ainda faço meu próprio biscoito. Venha me ver algum dia, rapaz, e traga seus amigos.
Mas como eu escapo disso?
Deus o abençoa, rapaz, e ninguém mais. Apenas olhe para o alto, para o melhor, e venha ver Mãe Abagail a qualquer hora que quiser. Estou bem aqui; não fique mais circulando por aí. Portanto, venha me ver. Estou bem...
... aqui...
Ele despertou aos poucos até que o Nebraska se foi, e o cheiro do milho, e o rosto escuro e sulcado de Mãe Abagail. O mundo real infiltrou-se, não tanto substituindo o mundo de sonho quanto sobrepondo-se a ele até que sumiu de vista.
Ele estava em Shoyo, Arkansas, seu nome era Nick Andros, nunca tinha falado nem ouvira o som de uma "guitarra"... mas ainda estava vivo.
Sentou-se no catre, balançou as pernas e olhou para o arranhão. O inchaço se reduzira um pouco. A dor era apenas um latejar. Estou sarando, pensou com grande alívio. Acho que vou ficar OK.
Levantou-se do catre e manquejou até a janela só de cuecas. A perna estava rígida, mas era o tipo de rigidez que você sabe que irá regredir com um pouco de exercício. Ele olhou para a cidade silenciosa, não mais a Shoyo, mas o cadáver de Shoyo, e soube que teria de partir hoje. Não seria capaz de ir muito longe, mas tentaria.
Para onde ir? Bem, ele supunha que sabia disso. Sonhos não passam de sonhos, mas para começar supunha que poderia ir para noroeste. Para Nebraska.
Nick pedalou para fora da cidade por volta de 1h15 da tarde de 3 de julho. Embalou uma mochila pela manhã, colocando nela um pouco mais das pílulas de penicilina, para o caso de precisar delas, e alguma comida enlatada. Exagerou na sopa de tomate Campbells e no ravióli Chef Boyardee, dois de seus preferidos. Pôs várias caixas de munição para a pistola e pegou um cantil.
Subiu a ma, olhando nas garagens até encontrar o que queria: uma bicicleta de dez marchas que quase se ajustava à sua altura. Pedalou cauteloso pela ma principal, em baixa velocidade, sua perna ferida se aquecendo lentamente pelo esforço. Seguia para oeste e sua sombra o seguia, pedalando sua própria bicicleta preta. Passou pelas graciosas casas de aspecto frio na periferia da cidade, permanecendo na penumbra com suas cortinas cerradas o tempo todo.
Acampou naquela noite em uma casa de fazenda 15 quilômetros a oeste de Shoyo. Ao cair da noite de 4 de julho estava quase em Oklahoma. Naquela noite, antes de dormir, ficou em outro terreiro de fazenda, seu rosto voltado para o céu, observando uma chuva de meteoros riscar a noite com fogo branco frio. Ele achou que nunca tinha visto nada tão lindo. Fosse o que fosse que tivesse pela frente, estava contente por estar vivo.
LARRY ACORDOU AS oito e trinta para a luz do sol e o som dos pássaros. Ambos produziam nele o maior barato. A cada manhã, desde que haviam deixado Nova York, a luz do sol e o som dos pássaros. E como uma atração extra adicional, um Bônus Grátis, se preferir, o ar cheirando limpo e fresco. Até mesmo Rita notara isto. Ele continuava pensando: Bem, está indo tão bem quanto se poderia desejar. Mas continuava ficando melhor. Ficava melhor até que você especulava o que andaram fazendo com o planeta. E isto o fazia imaginar se este era o modo como o ar sempre cheirava nos estados lá de cima, como Minnesota e Oregon, e na encosta ocidental das montanhas Rochosas.
Deitado na sua metade do saco de dormir duplo, sob o teto de lona baixo da barraca para dois que acrescentaram ao seu kit de viagem em Passaic, na manhã de 2 de julho, Larry se lembrou de como Al Spellman, um dos Tattered Remnants, tentara convencê-lo a seguir numa viagem de camping com ele e dois ou três outros caras. Eles estavam indo para leste, com parada em Las Vegas por uma noite, depois prosseguiriam até um lugar chamado Loveland, Colorado. Iam acampar por cerca de cinco dias nas montanhas acima de Loveland.
- Você pode deixar para John Denver toda essa merda de "Altitude das Rochosas" - Larry tinha zombado. - Vocês voltarão com mordidas de mosquito e uma tremenda alergia no rabo por cagar no mato. Agora, se mudarem de ideia e decidirem acampar no Dunes de Las Vegas por cinco dias, me dêem um toque.
Mas talvez tivesse sido igual a isto. À vontade, sem ninguém para aporrinhá-lo (exceto Rita, e ele achava que podia contornar a aporrinhação dela), respirando ar puro e dormindo à noite sem sobressaltos, apenas bater no leito e um sono rápido, como se alguém lhe tivesse atingido a cabeça com um martelo. Sem problemas, exceto que caminho seguir amanhã e em quanto tempo poderia fazer. Era inteiramente maravilhoso.
E esta manhã em Bennington, Vermont, dirigindo-se agora para o pretendido leste ao longo da Auto-Estrada 9, esta manhã era algo especial. Era o abençoado Quatro de Julho, Dia da Independência.
Ele sentou-se no saco de dormir e olhou para Rita, mas ela estava imóvel como uma luz, nada mostrando senão as linhas de seu corpo debaixo do tecido quadriculado do saco e uma lanugem do cabelo. Bem, ele a acordaria com estilo esta manhã.
Larry puxou o zíper do seu lado do saco e saiu, as nádegas nuas. Por um momento, sua carne ficou marmórea e arrepiada, e o ar pareceu naturalmente quente, provavelmente uns 30 graus já. Seria mais um dia excelente. Ele rastejou para fora da tenda e se levantou.
Estacionada ao lado da barraca estava uma Harley-Davidson de 1.200 cilindradas, preta e cromada. Tal como o saco de dormir e a barraca, havia sido adquirida em Passaic. Naquela hora eles já tinham passado por três carros, dois bloqueados por congestionamentos terríveis de tráfego, o terceiro enfiado no lodo nos arredores de Nutley, ao tentar ultrapassar uma colisão de dois caminhões. A moto foi a solução. Ela podia contornar acidentes, impulsionar-se à frente em baixa velocidade. Quando o tráfego estava seriamente engarrafado, ela podia ser empurrada ao longo do acostamento ou da calçada, se , houvesse uma. Rita não gostava dela. Viajar na garupa a deixava nervosa e ela se agarrava a Larry desesperadamente - mas havia concordado em que era a única solução prática. O congestionamento de tráfego derradeiro da espécie humana tinha sido excepcional. E uma vez que haviam deixado Passaic e entrado na zona rural tiveram maior progresso. Ao anoitecer de 2 de julho haviam reatravessado o estado de Nova York e montado sua barraca nos arredores de Quarryville, com as nevoentas e místicas montanhas Catskills a oeste. Dobraram para leste na tarde do dia 3, entrando em Vennont pouco antes do escurecer. E aqui estavam, em Bennington.
Acamparam numa elevação fora da cidade, e agora, enquanto Larry estava nu e de pé ao lado da moto, urinando, pôde olhar para baixo e maravilhar-se com a imagem de cartão-postal da cidade da Nova Inglaterra abaixo dele. Duas igrejas de um branco imaculado, suas torres se erguendo como se para perfurar o céu azul da manhã; uma escola particular, prédios cinzentos de arenito algemados por trepadeiras; uma usina; dois prédios escolares de tijolos vermelhos; uma infinidade de árvores vestidas com paramentos verdes de verão. A única coisa que tomara o quadro sutilmente errado era a falta de fumaça na chaminé da usina e o número de carros cintilantes em miniatura estacionados em ângulos esquisitos na ma principal, que era também a auto-estrada que estavam seguindo. Mas no silêncio ensolarado (isto é, silêncio exceto por um ocasional chilrear de pássaro), Larry poderia ter ecoado os sentimentos da falecida Irma Fayette, tivesse ele conhecido a dama: nenhuma grande perda.
Só que hoje era o Quatro de Julho, e supunha que ainda era um americano.
Ele pigarreou, cuspiu e cantarolou um pouco para encontrar o seu tom. Inspirou, muito consciente da leve brisa matinal em seu peito e nádegas nus, e irrompeu numa canção.
Ah, diga se pode ver,
à primeira luz da aurora,
O que tão orgulhosamente saudamos
ao último brilho do crepúsculo?...
E cantou isto através de todo o caminho de frente para Bennington, fazendo movimentos da pelve um tanto burlescos no final, porque a esta altura Rita estaria de pé junto â barraca, sorrindo para ele.
Ele terminou com uma saudação vigorosa ao prédio que supunha ser o tribunal de Bennington, depois virou-se, achando que a melhor maneira para iniciar mais um ano de independência dos bons e velhos EUA seria com uma foda totalmente patriótica.
- Larry Underwood, Rapaz Patriota, deseja-lhes uma muito boa m...
Mas a aba da barraca ainda estava fechada e ele sentiu de novo uma irritação momentânea com Rita. Abriu a barraca resolutamente. Ela não conseguia ficar no seu comprimento de onda o tempo todo. Isso é tudo. Quando você podia reconhecer e lidar com isso, estava a caminho de um relacionamento adulto. Ele vinha tentando empenhadamente com Rita desde aquela experiência angustiante no túnel, e achava que havia se saído muito bem.
Era preciso se colocar no lugar dela, a coisa se resumia nisso. Ele tinha de reconhecer que ela era um bocado mais velha, acostumara-se a ter as coisas de uma certa maneira na maior parte de sua vida. Era natural para ela ter um processo mais difícil de adaptação a um mundo que virara de cabeça para baixo. As pílulas, por exemplo. Ele não se enchera de satisfação ao descobrir que Rita havia trazido toda a porra da sua farmácia junto com ela, num pote de geleia com tampa de atarraxar. Moderadores de apetite, Quaaludes, analgésicos e algumas outras coisas que ela chamava de "meus pequenos levanta-astral". Os pequenos levanta-astral eram vermelhos. Três daqueles comprimidos com uma dose de tequila e você iria dançar e sapatear o dia inteiro. Ele não gostava disso porque muitos altos e baixos e variações de humor adicionados à pessoa significavam um peso nas suas costas. Um peso mais ou menos do volume de King Kong. E também não gostava disso porque, quando você abordava o inequívoco xis do problema, isto era uma espécie de tapa na sua cara, não era? O que a deixava nervosa? Por que ela teria dificuldade em dormir à noite? Ele certamente não tinha. E ele não estava cuidando dela? Larry podia espalhar aos quatro ventos que estava.
Voltou para a barraca, depois hesitou por um momento. Talvez devesse deixá-la dormir. Talvez ela estivesse esgotada. Mas...
Baixou a vista para a Cadeira Elétrica, e a Cadeira Elétrica parecia realmente não querer sair do seu sono. Cantar o velho hino americano deturpado o deixara aceso de novo. Portanto, Larry descerrou a aba da barraca e rastejou para dentro.
- Rita?
E isto o atingiu de imediato após a limpeza do ar fresco matinal lá fora; ele devia ter estado muito sonolento antes para não ter percebido. O cheiro não era esmagadoramente forte porque a tenda estava razoavelmente bem ventilada, mas era bastante acentuado: o cheiro agridoce de vômito e doença.
- Rita? - Ele sentiu um alarme crescente ao ver como ela jazia imóvel, com apenas aquela penugem de cabelo sobressaindo do saco de dormir. Rastejou na direção dela apoiado nas mãos e joelhos, o cheiro de vômito mais forte agora, embrulhando seu estômago. - Rita, você está bem? Acorde, Rita!
Nenhum movimento.
Ele a revirou e o saco de dormir estava com o zíper meio puxado, como se ela tivesse tentado sair dele à noite, talvez percebendo o que lhe estava acontecendo, pelejando e fracassando, e ele o tempo todo dormindo pacificamente ao lado, o próprio Sr. Montanhas Rochosas. Ao revirá-la, um dos seus frascos de pílulas caiu-lhe da mão e seus olhos eram mármores nevoentos e opacos por trás das pálpebras semicerradas, e a boca estava cheia com o vômito verde que a sufocara.
Larry olhou para o rosto morto de Rita pelo que pareceu um tempo muito longo. Eles estavam quase nariz com nariz, e a tenda parecia ficar cada vez mais quente até se assemelhar a um sótão no auge do verão pouco antes das chuvas torrenciais refrescantes. A cabeça de Rita parecia estar inchando cada vez mais. A boca estava cheia daquela merda. Larry não conseguia desviar os olhos daquilo. A pergunta que percorria seu cérebro como um coelho mecânico numa pista de corrida de cães era: Por quanto tempo estive dormindo junto dela após ter morrido? Repulsivo, cara. Reee-pulsivo.
A paralisia arrefeceu, e Larry cambaleou para fora dali, ralando os joelhos quando eles saíram do chão acolchoado para a terra nua. Achou que ele próprio ia vomitar e combateu a sensação, desejando que não acontecesse, pois odiava vomitar mais do que qualquer outra coisa. E então pensou: Mas eu estava voltando para cá afim de FODER com ela, porra! E tudo resultou num esforço inútil e ele rastejou para fora daquela mixórdia asfixiante, chorando e odiando o gosto mim em sua boca e nariz.
Pensou nela durante a maior parte da manhã. Sentia algum alívio por Rita ter morrido - um grande alívio, para ser franco. Jamais contaria isso a alguém. Confirmava tudo que sua mãe dissera sobre ele, e também Wayne Stukey, e mesmo aquela tola higienista oral do apartamento perto da Universidade Fordham. Larry Underwood, o exibicionista imoral de Fordham.
- Eu não sou um cara legal - proferiu em voz alta e sentiu-se melhor após dizer isto. Tomou-se mais fácil contar a verdade, que era a coisa mais importante. Ele fizera um acordo consigo, em qualquer recesso do subconsciente onde os Poderes por Trás do Trono agiam e negociavam, de que cuidaria dela. Talvez não fosse um cara legal, mas também não era nenhum assassino, e o que fizera no túnel chegara bem perto de tentativa de assassinato. Portanto ia cuidar dela, não gritaria com ela não importa o quanto ficasse puto às vezes - como quando ela se agarrava a ele com seu Aperto Kansas City patenteado ao montarem na moto -, não iria à loucura por mais que ela o retardasse ou por mais idiota que fosse a respeito de certas coisas. Na penúltima noite ela pusera uma lata de ervilhas nas brasas da fogueira sem ventilar o topo e Larry teve que pescá-la toda queimada e estufada, cerca de três segundos antes que estourasse como uma bomba, talvez cegando-os com estilhaços voadores de uma granada de latão. Mas ele havia ensinado algo a ela? Não, não havia. Só fizera uma leve gozação e deixara passar. O mesmo se deu com as pílulas. Tinha imaginado que as pílulas fossem problema dela.
Talvez você devesse ter discutido isto com ela. Talvez Rita desejasse que o fizesse.
- Isto não era a porra de uma sessão conciliatória - disse em voz alta. Era sobrevivência. E ela não tinha sido capaz de deixar as pílulas. Talvez ela já soubesse disso, desde aquele dia no Central Park quando disparara um tiro descuidado num cinamomo com um .32 de aspecto barato que poderia ter explodido na sua mão. Talvez...
- Talvez, merda - disse Larry furiosamente. Levou o cantil à boca, mas estava vazio e ele ainda sentia na língua aquele travo viscoso. Talvez houvesse gente como Rita em todo o país. A gripe não havia poupado apenas tipos sobreviventes, por que diabo pouparia? Neste exato momento, em algum lugar do país, deveria haver um rapaz em condição física perfeita, imune à gripe mas morrendo de tonsilite. Como Henny Youngman poderia ter dito: "Ei, gente, consegui um milhão deles."
Larry estava sentado em um mirante pavimentado bem à beira da auto-estrada. A paisagem de Vermont estendendo-se para Nova York na névoa dourada da manhã era de tirar o fôlego. Um letreiro anunciava que este lugar chamava-se Ponto dos 20 Quilômetros. Na verdade Larry achava que podia avistar um bocado além de 20 quilômetros. Num dia claro podia-se enxergar infinitamente. No lado mais afastado do mirante havia um muro de pedra à altura do joelho, as rochas unidas com cimento, e algumas garrafas de cerveja quebradas. E também uma camisinha usada. Ele supôs que garotos ginasianos costumavam vir ali ao crepúsculo para ver as luzes se acendendo na cidade lá embaixo. Primeiro eles ficavam extasiados e depois se deitavam. Uma fodelança total, costumavam dizer.
Então por que ele estava se sentindo tão deprimido, de qualquer modo? Estava falando a verdade, não estava? Sim. E o pior da verdade era que sentia alívio, não é, por ter se livrado daquele fardo que carregava?
Não, o pior é estar sozinho. Sentir-se só.
Piegas mas verdadeiro. Ele queria alguém com quem partilhar este panorama. Alguém com quem pudesse comentar com perspicácia modesta: Num dia claro você pode enxergar até o infinito. E a única companhia agora estava na barraca a mais de 2 quilômetros atrás, com a boca cheia de vômito esverdeado. Enrijecendo. Atraindo moscas.
Larry pousou a cabeça nos joelhos e fechou os olhos. Disse a si mesmo que não deveria chorar. Odiava chorar quase tanto quanto detestava vomitar.
No final ele se acovardou. Não conseguiria enterrá-la. Invocou os piores pensamentos que pôde - varejeiras e besouros, as marmotas que a farejariam e viriam mastigar sua parte ruidosamente, a deslealdade de um ser humano deixando outro como um invólucro de doce ou uma lata de Pepsi descartada. Mas também parecia haver algo vagamente ilegal acerca de enterrá-la e, para falar a verdade (e ele estava dizendo a verdade agora, não estava?), isso era apenas uma racionalização barata. Ele podia ir até Bennington e arrombar a loja de ferragens Sempre Popular, pegar a pá Sempre Popular e uma picareta Sempre Popular; podia até mesmo voltar aqui em cima onde era tranqüilo e lindo e cavar a sepultura Sempre Popular perto do Ponto dos 20 Quilômetros Sempre Popular. Mas entrar de novo naquela barraca (que estaria agora cheirando que nem o toalete da Transversal nº 1 no Central Park, onde a doce guloseima escura Sempre Popular estaria esperando pela eternidade) e puxar até o fim o zíper do saco de dormir, arrancar para fora o corpo enrijecido e inflamado, arrastá-lo pelas axilas até o buraco, jogá-lo dentro dele e lançar a terra por cima, observando-a tamborilar sobre as pernas brancas com seus nódulos de veias varicosas protuberantes e grudar nos cabelos dela...
É isso aí, meu chapa. Acho que ficarei fora dessa. Se sou um covarde, que assim seja.
Voltou ao local onde a barraca fora montada e puxou a aba. Encontrou uma vara comprida. Tomou uma profunda inspiração de ar fresco, conteve-o e enganchou suas roupas com a vara. Recuou com elas, vestiu-as. Tomou outra profunda inspiração, conteve-a e usou a vara para pescar suas botas. Sentou-se num tronco de árvore caído e calçou-as.
O cheiro impregnava suas roupas.
- Babaquice - sussurrou.
Ele podia vê-la, metade dentro e metade fora do saco de dormir, a mão rígida estendida e ainda enroscada em tomo de um frasco de pílulas que não estava mais lá. Os olhos semifechados pareciam fitá-lo acusadoramente. Isto o fez pensar de novo no túnel e nas visões de mortos que caminhavam. Rapidamente, usou a vara para fechar a aba da barraca.
Mas ainda podia sentir o cheiro dela sobre ele.
Portanto, fez de Bennington sua primeira parada, afinal. E na Men’s Shop da cidade ele tirou toda a roupa e escolheu outras novas, três mudas e mais quatro pares de meias e cuecas. Até mesmo encontrou um novo par de botas. Examinando-se num espelho de três faces, pôde ver a loja vazia espalhar-se por trás dele e a moto apoiada vulgarmente no meio-fio.
- Coisa fina - murmurou. - De arrasar. - Mas não havia ninguém para admirar seu bom gosto.
Ele saiu da loja e detonou a Harley de volta à vida. Pensou em parar na loja de ferragens e ver se tinham uma barraca e outro saco de dormir, mas tudo que queria fazer agora era cair fora de Bennington. Ele pararia mais adiante.
Olhou para cima onde a paisagem fazia sua lenta ascensão enquanto dirigia a Harley para fora da cidade. Podia ver o Ponto dos 20 Quilômetros, mas não o local onde haviam montado a barraca. Era melhor que assim fosse, era...
Larry olhou de volta para a estrada e o terror pulou entorpecidamente por sua garganta abaixo. Uma picape International-Harvester rebocando um trailer de cavalos dera uma guinada para evitar bater num carro, e o trailer havia tombado. Ele conduzia a moto direto ao trailer porque não prestara atenção para onde ia.
Deu uma guinada firme à direita, sua bota nova se arrastando na estrada, e quase evitou a colisão. Mas o suporte para o pé esquerdo enganchou-se no pára-choque traseiro do trailer, arrancando a moto de baixo dele. Larry foi cair na margem da estrada com um baque que chocalhou seus ossos. A Harley trepidou por um momento atrás dele e depois o motor afogou.
- Você está bem? - perguntou em voz alta. Graças a Deus que estava apenas a uns 30km/h. Graças a Deus que Rita não estava com ele; ela teria entrado num ataque de histeria. Claro que se Rita estivesse junto ele não teria ficado olhando para o alto, para começar. Ele teria dado conta do recado para os que apreciam o cubismo.
- Estou bem - respondeu para si mesmo, embora não muito convicto. Sentou-se. O silêncio se fixou sobre ele como acontecia de tempos em tempos... o silêncio era tanto que se pensasse a respeito acabaria louco. Até mesmo a gritaria de Rita teria sido um alívio a esta altura. Tudo pareceu subitamente repleto de bruxuleios brilhantes, e com repentino horror ele pensou que fosse desmaiar. Pensou: Estou realmente ferido, em apenas um minuto sentirei isso, quando o choque passar, é quando sentirei isso, estou gravemente quebrado ou algo assim, e quem é que vai aplicar um torniquete?
Mas quando o instante de desfalecimento passou, olhou para si mesmo e achou que provavelmente estava bem, afinal. Havia cortado ambas as mãos e sua calça nova se rasgara no joelho direito - o joelho também sofrera um corte -, mas eram apenas escoriações e, que porra, ele tinha saído no lucro, qualquer um podia cair da sua moto, acontece com todo mundo de vez em quando.
Mas ele sabia qual era o lucro. Podia ter batido de cabeça e fraturado o crânio, e aí ficaria jazendo sob o sol quente até morrer. Ou sufocado até a morte no seu próprio vômito, como acontecera com uma amiga dele recém-falecida.
Caminhou trôpego até a Harley e a pôs de pé. Não parecia estar muito danificada, mas tinha agora um jeito diferente. Antes, não passara de uma máquina, uma máquina encantada que podia servir ao duplo propósito de transportá-lo e fazê-lo sentir-se como James Dean ou Jack Nicholson em Demônios sobre Rodas. Mas agora o seu cromado parecia sorrir para ele como um apresentador de espetáculo mambembe, parecendo convidá-lo a subir nela e provar que era homem o bastante para cavalgar um monstro de duas rodas.
A Harley deu partida na terceira pisada e se afastou de Bennington a não mais que velocidade de passeio. Larry usava braceletes de suor frio e, de súbito, desejou desesperadamente, como nunca antes em toda a sua vida, ver outro rosto humano.
Mas não viu nenhum naquele dia.
À tarde, decidiu acelerar um pouco, mas não podia forçar-se a torcer mais o acelerador de mão uma vez que a agulha do velocímetro alcançasse 30km/h, nem mesmo se visse que a estrada estava desimpedida à frente. Havia uma loja de motos e materiais esportivos nos arredores de Wilmington. Ele parou lá e pegou um saco de dormir, algumas luvas grossas e um capacete, e mesmo usando o capacete não ousou seguir mais rápido que 40km/h. Nas esquinas sem visibilidade ele reduzia até que se via empurrando a enorme moto para atravessar. Continuava tendo visões de jazer inconsciente à beira da estrada e sangrando até a morte sem atendimento.
Às cinco horas, enquanto se aproximava de Brattleboro, a luz de superaquecimento da Harley acendeu. Larry a estacionou e desligou-a com sentimentos mistos de alívio e desagrado.
- Você poderia muito bem tê-la empurrado - disse ele. - É nisso que dá correr a 90, seu babaca!
Deixou a moto ali e caminhou pela cidade, sem saber se voltaria para buscá-la.
Dormiu no Parque Municipal, debaixo do abrigo parcial da concha acústica. Deitou-se tão logo escureceu e caiu no sono instantaneamente. Pouco depois, acordou sobressaltado com um som. Consultou o relógio. As linhas finas de rádio no mostrador apontavam 11h20. Apoiou-se num cotovelo e olhou na escuridão, sentindo que a concha acústica se avultava em torno dele, sentindo falta da pequena barraca que mantivera seu corpo aquecido. Aquela pequena lona tinha sido um útero e tanto!
Se tivesse havido um som, ele já se fora agora; até mesmo os grilos caíram em silêncio. Isto estava certo? Poderia estar certo?
- Há alguém ai? - chamou Larry e o som da própria voz o assustou. Ele tateou pelo .30-.30 e por um momento de pânico longo e crescente não conseguiu encontrá-lo. Quando o fez, apertou o gatilho sem pensar, tal como um homem se afogando no oceano apertaria um salva-vidas arremessado. Se o rifle não estivesse travado, ele o teria disparado. Possivelmente em si mesmo.
Havia alguma coisa no silêncio, tinha certeza. Talvez uma pessoa, talvez um animal enorme e perigoso. Claro que uma pessoa também poderia ser perigosa. Uma pessoa como aquela que esfaqueara repetidamente o pobre gritador de monstros, ou como John Bearsford Tipton, que tinha lhe oferecido 1 milhão em espécie pelo uso de sua mulher.
- Quem é?
Larry tinha uma lanterna na mochila, mas para pegá-la teria de pôr de lado o rifle que estava atravessado no colo. Além disso... ele queria realmente ver quem era?
Portanto limitou-se a ficar sentado ali, desejando o movimento ou a repetição do som que o havia acordado (tinha sido um som?, ou apenas algo que havia sonhado?), e após um breve instante ele primeiro cabeceou de sono, depois, cochilou.
De súbito, sua cabeça se agitou, os olhos se arregalaram, a carne se encolheu contra os ossos. Agora havia som, e se a noite não estivesse nublada, a meia-lua o teria mostrado...
Mas ele não queria ver. Não, definitivamente não queria ver. Ainda assim, inclinou-se à frente, a cabeça empinada, ouvindo o som dos saltos das botas empoeiradas se afastando calçada abaixo da rua principal de Brattleboro, Vermont, seguindo para oeste, se desvanecendo, até que o som se perdeu no zumbido difuso do ambiente.
Larry sentiu uma súbita e louca urgência de se levantar, deixando o saco de dormir deslizar em tomo de seus tornozelos, para gritar: Volte, seja lá quem for! Eu não me importo! Volte! Mas ele realmente queria emitir um semelhante cheque em branco a favor de Quem? A concha acústica amplificaria seu grito - sua súplica. E se aqueles saltos de botas de fato voltassem, ficando mais altos na quietude onde nem mesmo os grilos cantavam?
Em vez de se levantar, ele se deitou e se enroscou em posição fetal com as mãos enroladas em torno do rifle. Não vou dormir de novo esta noite, pensou, mas caiu no sono em três minutos e acordou inteiramente convicto, na manhã seguinte, de que tudo aquilo fora um sonho.
ENQUANTO LARRY UNDERWOOD dava sua mijada do Quatro de Julho a apenas um estado de distância, Stuart Redman sentava-se numa enorme pedra à beira da estrada comendo o seu almoço. Ouviu o som de motores se aproximando. Terminou a lata de cerveja num só gole e dobrou cuidadosamente o topo do tubo de papel encerado onde guardava as bolachas Ritz. O rifle estava apoiado na pedra ao lado dele. Stu o pegou, soltou a trava de segurança e o pousou de novo, agora mais ao alcance. Motocicletas se aproximaram, daquelas pequenas, pelo som. Neste grande silêncio era impossível dizer a que distância estavam. Uns 15 quilômetros, talvez, mas apenas talvez. Tinha tempo para comer mais, se quisesse, mas não queria. Nesse meio-tempo, o sol estava cálido e o pensamento de encontrar criaturas amistosas era agradável. Não vira nenhum ser humano desde que deixara a casa de Glen Bateman, em Woodsville. Relanceou de novo para o rifle. Soltara a trava porque as criaturas amistosas poderiam ser que nem Elder. Deixara o rifle apoiado contra a pedra porque esperava que elas fossem como Bateman - só que não tão pessimistas em relação ao futuro. A sociedade irá reaparecer, dissera Bateman. Veja bem, não estou usando a palavra "reformar". Isto teria sido um trocadilho infame. Existe pouca reforma valiosa na raça humana.
Mas o próprio Bateman não queria ser admitido na reaparição da sociedade. Ele parecia perfeitamente satisfeito - pelo menos por enquanto - em sair para passear com Kojak, pintar seus quadros, trabalhar na sua horta e pensar acerca das ramificações sociológicas da dizimação quase total.
Se voltar por este caminho e renovar seu convite para eu "me juntar", Stu, provavelmente concordarei. Esta é a maldição da raça humana. Sociabilidade. Cristo assim teria dito: % na verdade, sempre que dois ou três de vocês se juntam, algum outro vai perder a merda da vida." Precisarei lhe dizer o que a sociologia nos ensina sobre a raça humana? Eu lhe direi isto em poucas palavras. Mostre-me um homem ou uma mulher solitários e lhe mostrarei um santo. Dê-me dois e eles se apaixonarão. Dê-me três e eles inventarão essa coisa encantada que chamamos de "sociedade". Dê-me quatro e eles construirão uma pirâmide.
Dê-me cinco e eles transformarão alguém num pária. Dê-me seis e eles reinventarão o preconceito. Dê-me sete e em sete anos eles reinventarão a guerra. O homem pode ter sido feito à imagem e semelhança de Deus, mas a sociedade humana foi feita à imagem e semelhança de Seu oposto, e está sempre tentando voltar para casa.
Isto era verdade? Se fosse, então Deus que o ajudasse. Ainda há pouco, Stu estivera pensando um bocado nos velhos amigos e conhecidos. Na sua memória havia uma grande tendência para descartar ou esquecer as características menos louváveis deles - o modo como Bill Hapscomb costumava assoar o nariz com os dedos e limpar o muco na sola do sapato. A mão pesada de Norm Bruett com seus filhos, o desagradável método de Billy Verecker de controlar a proliferação de gatos em volta de sua casa ao esmagar os crânios frágeis dos gatinhos recém-nascidos com os saltos de suas botas.
Os pensamentos que surgiam queriam ser inteiramente bons. Sair para caçar ao alvorecer, envoltos em jaquetas acolchoadas e capas alaranjadas impermeáveis. Jogos de pôquer na casa de Ralph Hodges com Willy Craddok sempre reclamando por ganhar apenas 4 dólares no jogo, mesmo se estivesse ganhando 20. Seis ou sete deles empurrando o Scout de Tony Leominster de volta à estrada naquela vez em que, no maior porre, ele fora parar dentro do valão, com Tony cambaleando e jurando por todos os santos que perdera a direção ao se desviar de um U-Haul cheio de mexicanos ilegais. Puxa, como eles tinham rido. A torrente sem fim de piadas étnicas de Chris Ortega. Ir até Huntsville atrás de putas, e aquela vez em que Joe Bob Brentwood pegou chato e tentou dizer a todo mundo que tinha sido do sofá da sala de espera e não da garota lá em cima. Foram tempos danados de tons. Não o que os sofisticados, com suas boates, restaurantes da moda e seus museus considerariam bons tempos, talvez, mas mesmo assim bons tempos. Ele pensou e repensou sobre aquelas coisas, do modo como um velho recluso ficará jogando paciência infinitamente com um baralho ensebado. Queria principalmente ouvir outras vozes humanas, conhecer alguém, ser capaz de se virar para alguém e dizer Viu aquilo?, quando ocorresse algo como a chuva de meteoros que observara na outra noite. Não era um sujeito falador, mas não se importava muito em ficar sozinho, e nunca ficara.
Assim, sentou-se um pouco mais ereto quando as motos finalmente surgiram. Eram duas Hondas 250, pilotadas por um rapaz de seus 18 anos e por uma garota talvez mais velha do que ele. Ela usava uma blusa amarela berrante e calças Levi’s azul-claras.
Viram-no sentado na pedra e as duas Hondas guinaram um pouco, como se a surpresa dos motoqueiros tivesse feito seu controle hesitar brevemente. O rapaz ficou boquiaberto. Por um momento não ficou muito claro se iriam parar ou simplesmente sair em disparada rumo oeste.
Stu ergueu uma mão vazia e disse "Oi!" em voz amistosa. Seu coração batia acelerado no peito. Queria fazê-los parar. Eles o fizeram.
Por um momento Stu ficou intrigado pela postura tensa deles. Particularmente o rapaz; ele parecia como se um galão de adrenalina houvesse penetrado na sua corrente sanguínea. Claro que Stu tinha um rifle, mas não o estava apontando para eles, que por sua vez também estavam armados; o rapaz trazia uma pistola e a garota tinha um rifle de caça a tiracolo, como uma atriz representando Patty Hearst sem grande convicção.
- Acho que ele é legal, Harold - disse a garota, mas o rapaz que ela chamava de Harold continuava montado na sua moto, olhando para Stu com uma expressão de surpresa e até de antagonismo. - Eu disse que acho... - recomeçou ela.
- Como podemos ter certeza? - retrucou Harold sem tirar os olhos de Stu.
- Bem, sinto-me contente em vê-los, se isto faz alguma diferença - disse Stu.
- E se eu não acreditar em você? - desafiou Harold, e Stu percebeu que ele estava para lá de assustado. Com medo dele e por causa da sua responsabilidade para com a garota.
- Bem, então não sei. - Stu pulou fora da pedra. A mão de Harold baixou para a pistola no coldre.
- Harold, deixe essa coisa em paz - disse a garota. A seguir, ela caiu em silêncio e por um momento todos pareceram incapazes de prosseguir, um grupo de reticências que, quando ligados, formariam um triângulo cuja forma exata ainda não se podia antever.
- Uau - disse Frannie, acomodando-se sobre um canteiro musgoso na base de um olmo ao lado da estrada. - Eu nunca tive calos na bunda, Harold.
Harold soltou um grunhido mal-humorado. Ela voltou-se para Stu.
- Já viajou quase 300 quilômetros montado numa Honda, Sr. Redman? Eu não recomendaria.
Stu sorriu.
- Para onde estão indo?
- O que tem a ver com isso? - replicou Harold rudemente.
- Que tipo de atitude é esta? - interveio Fran. - O Sr. Redman é a primeira pessoa que vemos desde que Gus Disnmore morreu! Quero dizer, se não viemos procurar outras pessoas, o que estamos fazendo?
- Ele está preocupado com você, isso é tudo - disse Stu baixinho. Ele pegou um talo de grama e o pôs entre os lábios.
- É isso mesmo, estou - replicou Harold, não abrandado.
- Pensei que estivéssemos cuidando um do outro - disse ela, e Harold enrubesceu intensamente.
Stu pensou: me dê três pessoas e elas formarão uma sociedade. Mas aquelas duas seriam as certas a ser complementadas por ele? Ele gostou da garota, mas o rapaz o impressionou como um fanfarrão assustado. E um fanfarrão assustado podia ser um homem muito perigoso, sob as circunstâncias corretas... ou as erradas.
- Que seja como você diz - resmungou Harold. Ele fuzilou Stu com um olhar sombrio e tirou um maço de Marlboro do bolso da jaqueta. Acendeu um. Fumava como alguém que acabara de adquirir o hábito. Como talvez na antevéspera.
- Estamos indo para Stovington, em Vermont - disse Frannie. - Para o centro de epidemias que tem lá. Nós... o que há de errado, Sr. Redman? - Ele havia empalidecido de repente. O talo de grama que mascava caiu no seu colo.
- Por que para lá? - perguntou Stu.
- Porque lá por acaso existe uma instalação para estudo de doenças contagiosas
- disse Harold, arrogante. - Achei que se houver qualquer resquício de ordem neste país ou quaisquer pessoas especializadas que escaparam do último flagelo, elas provavelmente devem estar em Stovington ou Atlanta, onde existe outro centro semelhante.
- Isso mesmo - disse Frannie.
- Estão perdendo seu tempo - replicou Stu.
Frannie parecia atônita. Harold parecia indignado, o rubor recomeçando a subir pelo seu pescoço.
- Eu dificilmente o consideraria a melhor autoridade nesta questão, meu chapa.
- Pois acredito que seja. Vim de lá.
Agora os dois pareceram aturdidos. Aturdidos e surpresos.
- Sabia disso então? - perguntou Frannie, abalada. - Esteve lá realmente?
- Não, não foi bem assim. Eu...
- Você é um mentiroso! - A voz de Harold soou alta e esganiçada.
Fran percebeu um lampejo de raiva alarmante nos olhos de Redman, depois eles voltaram a ficar castanhos e suaves.
- Não. Não sou.
- Eu digo que é. Digo que não passa de um...
- Cale-se, Harold!
Harold olhou para ela, magoado.
- Mas, Frannie, como pode acreditar...
- Como você pode ser tão rude e antagônico? - replicou ela, acalorada. - Poderia ao menos ouvir o que ele tem a dizer, Harold?
- Não confio nele.
Bastante justo, pensou Stu, pois a recíproca é verdadeira.
- Como pode desconfiar de um homem que acabou de conhecer? Francamente, Harold, você está sendo desagradável!
- Deixem-me contar o que sei - disse Stu e relatou uma versão resumida da história que começou quando Campion colidiu contra as bombas de Hap. Fez um esboço de sua fuga de Stovington uma semana atrás. O olhar vidrado de Harold baixou obtusamente para suas mãos, que estavam colhendo pedaços de musgo e os esfrangalhando. Mas o rosto da garota era como um mapa aberto do trágico país, e Stu sentiu pena da moça. Ela se juntara a este rapaz (que, para dar-lhe crédito, tivera uma ideia para lá de boa) esperando sem muita fé que houvesse restado alguma coisa das antigas condições. Bem, ela se decepcionara. Amargamente, pelo seu olhar.
- Atlanta também? - perguntou. - A epidemia pegou nos dois centros?
- Sim - confirmou ele, e Frannie irrompeu em lágrimas.
Stu queria consolá-la, mas o rapaz não aceitaria isto. Harold relanceou desconcertado para Fran, depois para os frangalhos de musgo em suas mãos. Stu entregou seu lenço para ela, que agradeceu distraidamente, sem erguer o olhar. Harold olhou outra vez taciturno para Stu, seus olhos que nem os de um garotinho guloso que quer toda a lata de biscoitos só para si. Como ele vai ficar surpreso, pensou Stu, quando descobrir que essa garota não é uma lata de biscoitos.
Quando as lágrimas se reduziram a fungadelas, Fran disse:
- Acho que eu e Harold lhe devemos um agradecimento. Pelo menos nos poupou de uma longa viagem que acabaria em decepção.
- Quer dizer que acredita nele? Assim sem mais nem menos? Ele lhe conta uma grande lorota e você simplesmente... você engole isso?
- Harold, por que ele iria mentir? A troco de quê?
- Bem, como posso saber o que ele meteu na cabeça? - perguntou Harold, truculento. - Assassinato, talvez. Ou estupro.
- De minha parte, não acredito em estupro - disse Stu suavemente. - Talvez você saiba algo a respeito disso que ignoro.
- Parem com isso - disse Fran. - Harold, por que tenta ser tão antipático?
- Antipático? - gritou Harold. - Estou tentando olhar por você... por nós... e isto é ser antipático, porra?
- Vejam - disse Stu e arregaçou a manga. Na dobra de seu cotovelo havia várias marcas de agulhadas cicatrizadas e os últimos vestígios de uma equimose descolorida. - Injetaram-me todo tipo de droga.
- Talvez você seja um viciado - disse Harold.
Stu enrolou a manga de volta sem replicar. Era a garota, claro. O rapaz se acostumara à ideia de ser dono dela. Bem, algumas garotas poderiam ser propriedade e outras não. Esta aqui parecia do segundo tipo. Era alta, bonita e de aparência muito viçosa. Seus olhos e cabelos escuros acentuavam um aspecto que podia ser interpretado como suave fragilidade. Seria fácil passar despercebida aquela linha tênue (a linha eu-quero, como a chamava a mãe de Stu) entre as sobrancelhas, que se tomava tão pronunciada quando ela se enfurecia, a destreza rápida de suas mãos, até mesmo o modo decidido como lançava os cabelos para trás.
- Bem, o que faremos agora? - perguntou ela, ignorando por completo a última contribuição de Harold para a discussão.
- Ir de qualquer maneira - disse Harold, e quando ela olhou para ele, com aquela linha se aprofundando entre as sobrancelhas, acrescentou prontamente: - Bem, temos de ir para algum lugar. Certo, ele talvez esteja dizendo a verdade, mas poderíamos verificar. E depois decidir o que fazer a seguir.
Fran relanceou para Stu com um tipo de expressão não-quero-ferir-seus-senti- mentos-mas... Stu deu de ombros.
- Tudo bem? - insistiu Harold.
- Suponho que não faz diferença - disse Frannie. Ela colheu um dente-de-leão desabrochado e soprou as felpas.
- Vocês não viram ninguém por todo o caminho até aqui? - perguntou Stu.
- Houve um cachorro que parecia estar muito bem. Nada de gente.
- Também vi um cachorro. - Stu contou-lhes sobre Bateman e Kojak. Ao terminar, disse: - Eu estava indo para o litoral, mas com vocês dizendo que não há gente por lá... bem, isto me desanimou.
- Sinto muito - disse Harold, longe de ser sincero. Ele se levantou. - Pronta,
Fran?
Ela olhou para Stu, hesitou, depois se pôs de pé.
- De volta à maravilhosa máquina dietética. Obrigada por nos contar o que sabe, Sr. Redman, mesmo com as notícias não sendo tão quentes.
- Só um segundo - disse Stu, também se levantando. Hesitou, especulando de novo se eles não estariam certos. A garota estava, mas o rapaz tinha certamente 17 anos e era afligido por um caso grave de odeio-todo-mundo. Porém sobrara gente bastante para que se pudesse escolher? Stu achava que não.
- Creio que estamos todos procurando pessoas - disse ele. - Eu gostaria de prosseguir com vocês, caso me aceitem.
- Não - disse Harold no ato.
Fran olhou de Harold para Stu, perturbada.
- Talvez nós...
- Esqueça. Eu digo que não.
- Não tenho direito a opinar?
- O que há com você? Não está vendo que ele só quer uma coisa? Porra, Fran!
- Três valem mais do que dois se houver encrenca - disse Stu -, e sei que valem mais do que um.
- Não - repetiu Harold. Sua mão baixou para a coronha da pistola.
- Sim - disse Fran. - Aceitamos sua companhia com muito prazer, Sr. Redman. Harold virou-se para ela, o rosto irritado e magoado. Stu enrijeceu-se por um momento, achando que talvez Harold fosse agredi-la, depois relaxou.
- É isso o que pensa, não é? Só estava esperando um pretexto para se livrar de mim, percebi isto. - Estava tão furioso que as lágrimas inundaram seus olhos, o que o enfureceu ainda mais. - Se é assim que você quer, tudo bem. Fique com ele. Estou pronto! - E se afastou furioso para onde estavam as motos.
Frannie olhou para Stu com olhos atônitos, depois voltou-os na direção de Harold.
- Espere um minuto - disse Stu. - Fique aqui, por favor.
- Não o machuque - pediu ela. - Por favor.
Stu caminhou até Harold, que já estava montado na sua moto e tentava dar partida. Na sua raiva ele virara totalmente o acelerador e foi uma boa coisa para ele que o motor tivesse afogado, achou Stu; se a moto realmente partisse daquele jeito, ela empinaria sobre a roda traseira como um monociclo, e arremessaria o pobre Harold contra a primeira árvore e no chão.
- Não se aproxime, cara! - gritou-lhe Harold iradamente, a mão baixando de novo para a coronha da arma. Stu pôs sua mão sobre a de Harold, como se estivessem brincando de dar bolos nas mãos. Passou a outra mão no braço de Harold, que tinha agora os olhos esbugalhados. Stu acreditava que ele estava prestes a tomar-se perigoso. Não se tratava somente de ciúmes da garota, o que seria um mau excesso de simplificação de sua parte. A dignidade pessoal estava envolvida nisso, e também a nova imagem de Harold como protetor da garota. Deus sabia que tipo de desprezado ele havia sido antes de tudo isto, com sua barriga protuberante, as botas pontudas e o seu jeito arrogante de falar. Mas debaixo da nova imagem estava a crença de que ainda era um desprezado e sempre o seria. Debaixo estava a certeza de que não havia tal coisa que chamavam de um recomeço. Ele teria reagido da mesma forma a Bateman, ou a um garoto de 12 anos. Em qualquer situação triangular ele sempre se veria como o vértice inferior.
- Harold - disse Stu, quase no ouvido do rapaz.
- Deixe-me ir. - Seu corpo pesado parecia leve nesta tensão; tremia como um fio desencapado.
- Harold, você está dormindo com ela?
O corpo de Harold deu um solavanco trêmulo, e Stu soube que não estava.
- Isso não é da sua conta!
- Não. Exceto para colocar as coisas onde possamos vê-las. Ela não é minha, Harold. É dona de si mesma. Não vou tentar tomá-la de você. Desculpe por ter de falar de modo tão rude, mas o melhor é cada um saber onde está pisando. Somos agora dois e mais um e, se você for embora, continuaremos sendo dois e mais um. Não muda nada.
Harold nada comentou, mas seu tremor diminuíra.
- Serei o mais franco possível - continuou Stu, ainda falando bem perto do ouvido de Harold (que estava coalhado de cera) e esforçando-se para falar muito calmamente. - Ambos sabemos que não há necessidade de um homem ficar estuprando mulheres. Não se ele sabe o que fazer com sua mão.
- Isso... - Harold lambeu os lábios e olhou para o lado da estrada onde Fran permanecia de pé, as mãos segurando os cotovelos, os braços cruzados logo abaixo dos seios, observando-os com ansiedade. - Isso é repugnante demais.
- Bem, talvez seja, talvez não, mas quando um homem anda atrás de uma mulher que não o quer na cama, esse homem tem que fazer sua escolha. Eu vivo apelando para a mão. Acho que você também, já que ela continua espontaneamente em sua companhia. Quero apenas uma conversa franca entre nós dois. Não estou aqui para bater em você, como um valentão em um baile na roça.
A mão de Harold relaxou sobre a arma e ele olhou para Stu.
- Você quer dizer que... hã, promete que não vai contar? Stu assentiu.
- Eu a amo - disse Harold em voz rouca. - Ela não me ama, sei disso, mas estou falando francamente, como você sugeriu.
- É melhor assim. Não quero me intrometer. Só quero seguir junto com vocês. Compulsivamente, Harold repetiu:
- Promete?
- Sim, prometo.
- OK.
Desceu silenciosamente da Honda. Ele e Stu caminharam de volta para Fran.
- Ele pode ir com a gente - disse Harold. - E eu... - Olhou para Stu e disse com uma penosa dignidade. - Desculpe por ter sido tão babaca.
- Uau! - gritou Fran e bateu palmas. - Agora que está tudo acertado, para onde vamos?
Acabaram decidindo pelo rumo que Fran e Harold haviam tomado: oeste. Stu disse que achava que Glen Bateman ficaria contente em dar-lhes pousada se alcançassem Woodsville ao escurecer - e poderia até decidir juntar-se a eles pela manhã (a esta hipótese Harold recomeçou a ficar irritado). Stu seguiu na moto de Fran, que foi na garupa da Honda de Harold. Pararam em Twin Mountain para almoçar e deram início à lenta e cuidadosa tentativa de se conhecerem melhor. Stu achou engraçado o sotaque deles, a maneira como ampliavam os ás e omitiam ou modificavam os erres. E imaginou que seu sotaque também soasse engraçado para eles, talvez até mais engraçado.
Comeram em uma lanchonete abandonada, e Stu descobriu que seu olhar era atraído cada vez mais para o rosto de Fran - seus olhos vívidos, o queixo pequeno mas determinado, o modo como ela olhava e falava; gostou até mesmo do modo como seus cabelos escuros eram repuxados das têmporas. E começou então a descobrir que, afinal de contas, a desejava.
NA FRONTEIRA
5 de julho - 6 de setembro de 1990
UM HOMEM JAZIA MORTO no meio da rua principal em May, Oklahoma.
Nick não se surpreendeu. Já vira um bocado de cadáveres desde que deixara Shoyo, e desconfiava de que não tinha visto um milionésimo de todos os mortos pelos quais devia ter passado. Em alguns lugares, o forte odor da morte no ar era suficiente para quase fazer alguém desfalecer. Outro homem morto, um a mais ou a menos, não faria qualquer diferença.
Mas quando o morto se sentou, Nick foi acometido de uma tal explosão de terror que mais uma vez perdeu o controle da bicicleta. Ela ondulou, ziguezagueou, depois colidiu, cuspindo Nick violentamente no asfalto da Auto-Estrada 3 de Oklahoma. Ele teve cortes nas mãos e escoriações na testa.
- Caramba, moço, que tombo feio - disse o cadáver, seguindo em direção a Nick num passo que seria mais bem descrito como cambaleio amistoso. - Não foi mesmo? Minha nossa!
Nick não ouviu nada disso. Olhava para um ponto no asfalto entre suas mãos, onde gotas de sangue de seu corte na testa estavam caindo, e imaginou o quão feio seria o ferimento. Quando a mão tocou seu ombro ele se lembrou do cadáver e saiu engatinhando sobre as palmas das mãos e as solas dos sapatos, o olho não coberto com a venda brilhando de terror.
- Não fique desse jeito - disse o cadáver, e Nick percebeu que não era afinal um morto, mas sim um rapaz que olhava alegremente para ele. Tinha uma garrafa de uísque quase cheia na mão e agora Nick compreendeu. Não era um cadáver, mas sim um homem que havia se embebedado e apagara no meio da rua.
Nick assentiu para ele e fez um círculo com o polegar e o indicador. Foi então que um pingo morno de sangue escorreu no olho que Ray Booth havia lesionado, fazendo-o arder. Ele levantou a venda e passou o antebraço sobre o olho. Hoje tinha um pouco mais de visão daquele lado, mas quando fechou o olho bom, o mundo ainda se recolhia para algo que pouco mais era do que um borrão colorido. Recolocou a venda, depois caminhou devagar até o meio-fio e sentou-se ao lado de um Plymouth com placa do Kansas que arriava lentamente sobre os pneus. Pôde ver o corte em sua testa refletido no pára-choque do Plymouth. Parecia feio, mas não profundo. Encontraria a drogaria local, desinfetaria o ferimento e aplicaria um Band-Aid em cima. Achava que ainda devia ter penicilina suficiente no organismo para curar quase tudo, mas o susto que levara cora a bala de raspão na perna o deixara com pavor de infecção. Pestanejando, limpou partículas de cascalho das mãos.
O homem com a garrafa de uísque ficara observando tudo inexpressivamente. Se Nick erguesse os olhos, o teria rotulado de esquisito no ato. Quando se voltara para examinar seu ferimento no reflexo do pára-choque, a empolgação sumiu do rosto do homem, que ficou vazio, liso, sem linhas. Usava um macacão limpo porém desbotado e sapatos de trabalho pesados. Era bem alto e tinha cabelos tão louros que pareciam quase brancos. Os olhos eram de um azul brilhante e, com aqueles cabelos cor de trigo maduro, sua origem escandinava era inegável. Parecia ter não mais que 23 anos, porém Nick viria a descobrir mais tarde que andava por volta dos 45, porque se lembrava do fim da Guerra da Coréia e de como voltara uniformizado para casa um mês depois. Não havia como pudesse ter inventado tudo isso. Imaginação fértil não combinava muito com Tom Cullen.
Ficou parado ali, o rosto vazio, como um robô cujo plugue havia sido puxado. Depois, pouco a pouco, a animação filtrou-se de volta ao seu rosto. Os olhos avermelhados pelo uísque começaram a faiscar. Ele sorriu. Tornara a se lembrar do que aquela situação exigia.
- Puxa, moço, mas que tombo feio, não é mesmo? Caramba! - Piscou ao ver a quantidade de sangue na testa de Nick.
Nick tinha um bloco e uma caneta Bic no bolso da camisa; nenhum dos dois se havia danificado com a queda. Ele escreveu: "Você me deu o maior susto. Pensei que estivesse morto até que se sentou. Estou bem. Há uma drogaria na cidade?"
Mostrou o bloquinho ao homem de macacão. Ele o pegou. Olhou para o que estava escrito. Devolveu-o. Sorrindo, disse:
- Meu nome é Tom Cullen. Não sei ler. Só fui até a segunda série, mas na época já estava com 16 anos e meu pai me tirou da escola. Disse que eu estava grande demais.
Retardado, pensou Nick. Não falo e ele não sabe ler. Por um momento, ficou inteiramente perplexo.
- Caramba, moço, mas que tombo o seu! - exclamou Tom Cullen. De certa maneira, era a primeira vez para eles dois. - Nossa, não é que foi mesmo?
Nick concordou. Guardou o bloco e a caneta. Pôs a mão sobre a boca de novo e sacudiu a cabeça. Pôs as mãos em concha sobre os ouvidos e sacudiu a cabeça. Colocou a mão esquerda contra a garganta e sacudiu a cabeça mais uma vez.
Cullen sorriu, intrigado.
- Pegou dor de dente? Já tive uma vez. Puxa, como dói, não é mesmo? Nossa! Nick sacudiu a cabeça e repetiu sua mímica. Desta vez Cullen achou que fosse dor
de ouvido. Nick lançou as mãos para cima e foi até a bicicleta. A pintura estava arranhada, mas ela não parecia danificada. Montou e pedalou uma pequena distância rua acima. Sim, estava tudo em ordem. Cullen correu ao lado dele, sorrindo alegremente. Seus olhos não se desviavam de Nick. Não via ninguém havia mais de uma semana.
- Não está a fim de falar? - perguntou, mas Nick não olhou em torno nem pareceu ter ouvido. Tom puxou a manga dele e repetiu a pergunta.
O homem da bicicleta pôs a mão sobre a boca e sacudiu a cabeça mais uma vez. Tom franziu o cenho. Agora o homem havia apoiado a bicicleta no descanso e olhava para a fachada das lojas. Pareceu ver o que queria, porque seguiu para a calçada e depois para a drugstore do Sr. Norton. Se pretendia entrar seria bastante complicado, porque a loja estava fechada. O Sr. Norton deixara a cidade. Quase todo mundo havia trancado tudo e abandonado a cidade, parecia, exceto sua mãe e a amiga dela, a Sra. Blakely, e ambas estavam mortas.
Agora o homem que não falava estava tentando a porta. Tom podia ter dito a ele que era inútil, embora o letreiro ABERTO estivesse pendurado na porta. O aviso de ABERTO era mentiroso. Isso era péssimo, porque Tom adoraria tomar um sorvete. Era bem melhor do que o uísque, que o deixara eufórico no começo mas depois o fizera sentir-se sonolento. E a cabeça a doer como se fosse explodir. Tinha ido dormir para livrar-se da dor de cabeça, mas isto resultou em um monte de sonhos ruins com um homem de terno preto como aquele que Revrunt Deiffenbaker sempre usava. O homem do terno preto o perseguia nos sonhos. Tom o achou um homem muito mau. O único motivo que o levara a beber era porque não devia fazê-lo. Seu pai lhe dissera isso, sua mãe também. Mas e daí? Agora que todos tinham ido embora poderia fazer o que quisesse.
Mas o que o homem que não falava estava fazendo agora? Havia apanhado a lata de lixo na calçada e ia... o quê?! Quebrar a vitrine do Sr. Norton? CRASH! For Deus, não é que quebrou mesmo? E agora passava pelo buraco, abrindo a porta...
- Ei, moço, não pode fazer isso! - gritou Tom, sua voz tremulando de ultraje e excitação. - Isto é ilegal! B-E-B-I-D-A e isso que está fazendo são coisas ilegais. Você não sabe...
Mas o homem já estava lá dentro e não voltou a cabeça.
- Mas você é surdo, afinal? - gritou Tom, indignado. - Nossa! Você vai... Calou-se. A animação e a excitação abandonaram seu rosto. Ele era de novo o robô com o plugue desligado. Em May não era incomum ver Tom Debilóide desse jeito. Ele perambulava ao longo da rua, olhando as vitrines das lojas com aquela expressão eternamente feliz no rosto escandinavo levemente arredondado, e de repente parava e caía na apatia. Alguém gritava "Lá vai o Tom!" e todo mundo ria. Se o pai de Tom estivesse com ele iria censurar e dar uma cutucada no filho, talvez até o socasse repetidamente no ombro ou nas costas até Tom voltar à vida. Mas o pai estivera cada vez menos por perto durante a primeira metade de 1988 porque andava saindo com uma garçonete ruiva que trabalhava no Boomer’s Bar & Grille. Ela se chamava DeeDee Packalotte (e surgiram algumas piadas a respeito desse nome), e cerca de um ano atrás ela e Don Cullen fugiram juntos. Foram vistos apenas uma vez num motel de alta rotatividade não muito distante, em Slapout, Oklahoma, e foi a última.
Muitos consideravam aqueles repentinos apagões de Tom como mais um indício de retardo mental, porém eles eram na verdade exemplos de pensamento quase normal. O processo mental humano é baseado (ou assim nos dizem os psicólogos) em dedução e indução, e a pessoa retardada é incapaz de dar esses saltos dedutivos e indutivos. Existem linhas em algum lugar interior, circuitos em pane, comutadores defeituosos. Tom Cullen não era gravemente retardado, sendo capaz de fazer conexões simples. De vez em quando - durante seus desligamentos - ele conseguia fazer uma conexão indutiva ou dedutiva mais sofisticada. Sentiria a possibilidade de realizar tal conexão do modo como às vezes uma pessoa normal sente um nome bailar "bem na ponta da língua".
Quando isto acontecia, Tom rejeitava seu mundo real, que não passava de um fluxo instante por instante de input sensorial, e se refugiava na sua mente. Seria como um homem que, num quarto escuro e não familiar, segura o plugue de um abajur numa das mãos e, rastejando pelo chão, vai tropeçando em coisas e tateando com a mão livre em busca da tomada. E se a encontrava - nem sempre conseguia - haveria um jato de luz e veria plenamente o cômodo (ou a ideia). Tom era uma criatura sensorial. Uma lista de suas coisas favoritas incluiria o sabor de um sorvete na drugstore do Sr. Norton, ver uma garota de shorts curtos esperando na esquina para atravessar a rua, o aroma de lilases, a textura da seda. Porém, mais do que tudo isso, ele adorava o intangível, adorava o momento em que a conexão seria feita, o comutador ligado (pelo menos momentaneamente), a luz inundando o quarto escuro. Nem sempre acontecia; era freqüente a conexão esquivar-se dele. Desta vez isto não ocorreu. Ele dissera: Mas você é surdo, afinal?
O homem agia como se não ouvisse o que Tom dizia, exceto nos momentos em que olhava direto para ele. E o homem não lhe tinha dito nada, nem mesmo olá. Às vezes as pessoas não respondiam às perguntas de Tom porque algo no seu rosto dizia-lhes que ele "não regulava muito bem da cabeça". Mas quando isto acontecia, a pessoa que não respondia parecia louca, triste ou meio tímida. Este homem não agia assim - ele fizera um círculo com o polegar e o indicador e Tom sabia que isto significava "tudo bem". Mas ele continuava sem falar.
Mãos tapando os ouvidos e sacudindo a cabeça.
Mãos tapando a boca, e o mesmo.
Mãos tapando o pescoço, e o mesmo novamente.
O quarto se iluminou: conexão feita.
- Minha nossa! - exclamou Tom, e a animação voltou ao seu rosto. Os olhos injetados brilharam. Irrompeu na drugstore de Norton, esquecendo que isto era ilegal. O cara que não falava estava despejando no algodão algo que cheirava como Bactine, para depois esfregar o algodão na testa.
- Ei, moço! - gritou Tom, aproximando-se correndo. O homem que não falava não se voltou. Tom ficou momentaneamente intrigado, depois se lembrou. Deu um tapinha no ombro de Nick e este se virou. - Você é surdo e mudo, não é? Não pode ouvir! Não pode falar! Certo?
Nick assentiu. E para ele a reação de Tom não deixou de ser espantosa. Ele deu um salto no ar e bateu palmas loucamente.
- Eu bem que achava! Um viva para mim! Descobri por mim mesmo! Viva Tom Cullen!
Nick teve de sorrir. Não conseguia recordar de quando sua incapacidade dera tanto prazer a alguém.
Havia uma pequena praça defronte ao tribunal, onde havia uma estátua de um fuzileiro naval ataviado com equipamento e armas da Segunda Guerra Mundial. A placa abaixo anunciava que o monumento era dedicado aos rapazes do condado de Harper que fizeram o DERRADEIRO SACRIFÍCIO PELO SEU PAÍS. Nick Andros e Tom Cullen sentavam-se à sombra desse monumento, comendo presunto e frango apimentados Underwood com batatas fritas. Nick tinha um xis de esparadrapo na testa acima do olho esquerdo.
Tentava ler os lábios de Tom (o que era um tanto difícil, pois o outro continuava falando de boca cheia) e refletindo consigo mesmo que estava ficando tremendamente farto de comer aquelas porcarias enlatadas. O que queria realmente era um grande bife com tudo que tinha direito.
Tom não havia parado de falar desde que se sentaram. Era uma repetição sem fim, repleta de exclamações de Minha nossa! e Não é mesmo? lançadas para dar tempero. Nick não se importava. Ele realmente não sabia o quanto deixara de aproveitar de outras pessoas até conhecer Tom, ou como estivera temeroso de ser o último sobre a face da Terra. Isto havia atravessado sua mente até um ponto em que talvez a doença tivesse matado todo mundo menos os surdos-mudos. Agora, pensou com um sorriso interior, podia especular sobre a possibilidade de que ela tivesse matado todos no mundo menos os surdos-mudos e os retardados mentais. Tal pensamento, que parecia divertido à luz das duas horas de uma tarde de verão, voltaria a assombrá-lo naquela noite e não seria nada divertido.
Imaginou para onde Tom achava que todas as pessoas tinham ido. Ele já ouvira falar sobre o pai de Tom, que fugira dois anos antes com uma garçonete, e sobre o emprego de Tom como peão na fazenda Norbutt, e como, dois anos atrás, o Sr. Norbutt decidira que Tom estava "progredindo o bastante" para lhe ser confiada a tarefa de manejar um machado, e sobre os "valentões" que saltaram sobre Tom uma noite e como "briguei até deixar eles quase mortos, e mandei um deles para o hospital com fraturas, B-E-B-I-D-A, isto causa fraturas, e foi o que Tom Cullen fez", e tinha ouvido sobre como Tom havia encontrado sua mãe na casa da Sra. Blakely. Estavam ambas mortas na sala de estar e portanto Tom havia escapulido. Jesus não viria para levar as pessoas mortas para o céu se houvesse alguém observando, disse Tom (Nick refletiu que o Jesus de Tom era uma espécie de Papai Noel ao contrário, levando os mortos chaminé acima em vez de jogar os presentes para baixo). Mas ele nada dissera sobre o esvaziamento total de May, ou sobre a estrada apontando para dentro e para fora da cidade na qual nada se movia.
Colocou as mãos levemente no peito de Tom, interrompendo o fluxo de palavras.
- O que foi? - perguntou Tom.
Nick agitou o braço num círculo amplo abrangendo os prédios da área central da cidade. Ostentou no rosto uma expressão burlesca de perplexidade, franzindo o cenho, empinando a cabeça, coçando a parte posterior do crânio. Depois simulou com os dedos movimentos de caminhada sobre a grama e terminou olhando acima para Tom interrogadoramente.
O que viu foi alarmante. Tom poderia ter morrido ao levantar-se, por toda a animação no seu rosto. Seus olhos, que estiveram cintilando um momento antes com todas as coisas que queria contar, eram agora mármores azuis nublados. Sua boca pendia entreaberta, de modo que Nick pôde ver os farelos encharcados de batata frita que jaziam em sua língua. As mãos estavam flácidas no colo.
Preocupado, Nick esticou o braço para tocá-lo. Antes que pudesse, o corpo de Tom deu um solavanco. Suas pálpebras vibraram, e a animação voltou aos seus olhos como água enchendo um balde. Ele começou a sorrir. Se um balão contendo a palavra EURECA tivesse aparecido sobre sua cabeça o que acontecera não teria sido mais óbvio.
- Você quer saber para onde todas as pessoas foram! - exclamou Tom. Nick sacudiu fortemente a cabeça.
- Bem, acho que elas foram para Kansas City - disse Tom. - Nossa, isso mesmo. Todo mundo sempre está falando sobre como esta é uma cidade pequena. Nada acontece. Nenhuma diversão. Até mesmo o rinque de patinação faliu. Agora só tem o drive-in, e lá só passam aqueles filmes de merda. Minha mãe diz que todo mundo vai embora e ninguém volta. Que nem meu pai. Ele se mandou com uma garçonete do Boomer’s Café, o nome dela era DeeDee Packalotte. Por isso imagino que todo mundo se abasteceu e foi embora ao mesmo tempo. Para Kansas City, deve ter sido, minha nossa, não é mesmo? É para onde devem ter ido, tirando a Sra. Blakely e minha mãe. Jesus vai levá-las pro céu lá em cima e protegê-las eternamente. O monólogo de Tom recomeçava.
Para Kansas City, pensou Nick. Por tudo que eu sei, poderia ser isto também. Todo mundo deixava o pobre planeta infeliz entregue à Mão de Deus e ou ficava eternamente protegido por Ele ou se restabelecia de novo em Kansas City.
Recostou-se e suas pálpebras oscilaram de modo que as palavras de Tom se fragmentassem no equivalente visual de um poema moderno, sans caps, como uma obra de E.E. Cummings:
mamãe disse
que eu não tinha não
mas eu disse a eles eu disse melhor
não se meter
Os sonhos haviam sido tão ruins na noite anterior, que passara num celeiro, e agora, de barriga cheia, tudo que queria era...
minha nossa
L-U-A se escreve
certamente desejo
Nick adormeceu.
Ao acordar, ele primeiro especulou, naquela maneira entorpecida que a gente tem quando dorme pesadamente no meio do dia, por que estava suando tanto. Sentando-se, ele compreendeu. Eram 4h45 da tarde; havia dormido cerca de duas horas e meia, e o sol se movera para trás do memorial de guerra. Mas não era tudo. Tom Cullen, numa perfeita orgia de solicitude, o havia coberto para que não passasse frio. Com dois cobertores e uma manta.
Livrou-se das cobertas, levantou-se e se espreguiçou. Tom não estava à vista. Nick caminhou lentamente para a entrada principal da praça, imaginando o que - se alguma coisa - iria fazer em relação a Tom... ou com ele. O retardado estivera se alimentando da A & P no lado mais oposto da praça municipal. Ele não sentira nenhum remorso acerca de ir lá e pegar o que quisesse para comer pelas figuras nos rótulos das latas porque, Tom disse, a porta do supermercado ficara destrancada.
Nick imaginou ociosamente o que Tom teria feito se a porta estivesse trancada. Supunha que, quando Tom ficasse bastante faminto, esqueceria seus escrúpulos ou os poria de lado só por essa vez. Mas o que seria dele quando a comida acabasse?
Mas isso não era o que realmente o incomodava a respeito de Tom. Era a ansiedade patética com a qual o homem o recebera. Retardado ele poderia ser, pensou Nick, mas não tanto assim que não sentisse solidão. Mas sua mãe e a mulher que havia servido como sua tia por afinidade estavam mortas. Seu pai tinha ido embora muito tempo atrás. Seu patrão, o Sr. Norbutt, e toda a população de May fugiram para Kansas City uma noite enquanto Tom dormia, deixando-o para trás para ficar perambulando pela rua principal como um fantasma suavemente desengonçado. E estava se acostumando com coisas com que não devia se acostumar - como o uísque. Se voltasse a se embebedar, poderia se ferir. E se ele se ferisse sem ninguém para cuidar dele, isto provavelmente significaria o seu fim.
Mas... um surdo-mudo e um homem que era mentalmente retardado? Que possível utilidade teriam um para o outro? Aqui estava um cara que não podia falar e outro cara que não podia pensar. Bem, isto não era justo. Tom podia pensar pelo menos um pouco, mas não sabia ler, e Nick não tinha ilusões acerca de quanto tempo agüentaria até cansar de brincar de charadas com Tom Cullen. Não que Tom se cansasse disso. Minha nossa, não.
Ele parou na calçada junto à entrada do parque, as mãos enfiadas nos bolsos. Bem, decidiu, posso passar esta noite aqui com ele. Uma noite não faz diferença. Pelo menos posso cozinhar uma refeição decente para ele.
Animado um pouco por isto, seguiu ao encontro de Tom.
Nick dormiu no parque essa noite. Não sabia onde Tom dormia, mas quando acordou de manhã, um tanto molhado de orvalho mas sentindo-se inteiramente bem, a primeira coisa que viu ao cruzar a praça foi Tom, agachado sobre uma frota de carros de brinquedo Corgi e um enorme posto Texaco de plástico.
Tom devia ter decidido que se estava tudo bem em arrombar a drugstore de Norton, então estava tudo bem em arrombar outra loja. Ele estava sentado no meio-fio da loja, de costas para Nick. Cerca de quarenta miniaturas de carros estavam enfileiradas ao longo da beira da calçada. Junto dele estava a chave de fenda que Tom usara para abrir o mostruário. Havia todo tipo de carros: Jaguar, Mercedes, Rolls-Royce, um modelo Bentley em escala com uma comprida capota verde-limão, um Lamborghini, um Cord, um Pontiac Bonneville feito de encomenda com 10 centímetros de comprimento, um Corvette, um Maserati e, Deus nos valha e proteja, um Moon 1933 - Tom inclinava-se sobre os carrinhos concentradamente, conduzindo-os para dentro e fora da garagem, abastecendo-os na bomba de gasolina. Um dos ascensores na baia de consertos funcionava, percebeu Nick, e de tempos em tempos Tom erguia um dos carros e fingia fazer alguma coisa debaixo dele. Se tivesse a capacidade de audição, ele teria ouvido, no silêncio quase perfeito, o som da imaginação de Tom Cullen funcionando - o brrrr vibrante dos lábios enquanto conduzia os carros para o piso asfaltado da loja de conveniências, o chk-chk-chk-ding! da bomba de gasolina funcionando, o chiado enquanto o ascensor subia e descia. Do jeito que era, ele podia captar algumas conversas entre o proprietário do posto e as pessoas pequenas nos carros em miniatura: Tanque cheio, senhor? O de sempre? É claro! Me deixe apenas limpar este pára-brisa, madame. Acho que é seu carburador. Vamos retirá-lo e dar uma olhada. Banheiro? Sem dúvida! H só dobrar à direita, ali!
E acima disso, arqueando-se por quilômetros em cada direção, o Deus-céu tinha aquinhoado este pedacinho do estado de Oklahoma.
Nick pensou: Não posso abandoná-lo. Não posso fazer isso. E foi de súbito varrido por uma tristeza amarga e totalmente inesperada, uma sensação tão profunda que por um momento achou que fosse chorar.
Eles foram para Kansas City, pensou. Foi isso que aconteceu. Todos foram para Kansas City.
Nick atravessou a rua e tocou o braço de Tom. Este levou um susto e olhou por sobre o ombro. Um sorriso amplo e culpado distendeu seus lábios, enquanto uma vermelhidão lhe subia pela gola da camisa.
- Sei que isto é para garotinhos, não para homens adultos - disse ele. - Sei disso, nossa, claro que sei. Papai me disse.
Nick encolheu os ombros, sorriu, estendeu as mãos. Tom pareceu aliviado.
- Agora é tudo meu. Meu, se eu quiser. Se você entrou na drugstore e pegou o que quis, também posso entrar na loja e pegar alguma coisa. Minha nossa, não podia mesmo? Não tenho que devolver nada, não é?
Nick negou com um gesto de cabeça.
- Tudo meu! - exclamou Tom na maior felicidade e virou-se de novo para a garagem de brinquedo. Nick voltou a tocar-lhe o ombro e Tom virou-se. - O que é?
Nick puxou-o pela manga e Tom se levantou de bom grado. Nick o conduziu rua abaixo, até onde sua bicicleta jazia apoiada no descanso. Apontou para si mesmo. Depois para a bicicleta. Tom assentiu.
- Claro. Esta bicicleta é sua. Aquele posto Texaco é meu. Não vou tomar sua bicicleta nem você vai tomar minha garagem, não é mesmo?
Nick sacudiu a cabeça. Apontou para si mesmo. Para a bicicleta. Depois para a rua principal. Acenou um adeus com os dedos.
Tom ficou paralisado. Nick esperou. Tom disse, hesitante:
- Você vai embora, moço?
Nick confirmou.
- Não quero que se vá! - explodiu Tom. Seus olhos estavam esbugalhados e muito azuis, brilhando com lágrimas. - Gosto de você! Não quero que vá também para Kansas City!
Nick puxou Tom para perto e pôs um braço em torno dele. Apontou para si mesmo. Para Tom. Para a bicicleta. Sair da cidade.
- Não entendi - disse Tom.
Pacientemente, Nick repetiu tudo. Desta vez acrescentou o aceno de adeus e, num repente de inspiração, ergueu a mão de Tom e o fez acenar adeus também.
- Quer que eu vá com você? - perguntou Tom. Um sorriso descrente porém deliciado iluminou seu rosto.
Aliviado, Nick assentiu.
- Claro! - gritou Tom. - Tom Cullen vai embora! Tom vai... - Ele se interrompeu, parte da felicidade fugindo-lhe do rosto. Olhou para Nick cautelosamente. - Posso levar minha garagem?
Nick pensou a respeito por instantes e depois fez que sim com a cabeça.
- Legal! - O sorriso de Tom reapareceu como o sol por trás de uma nuvem. - Tom Cullen está indo embora!
Nick o levou até a bicicleta. Apontou para Tom, depois para a bicicleta.
- Nunca pedalei uma dessas - disse Tom em dúvida, olhando para as mudanças de velocidade e o selim alto e estreito. - Acho melhor não arriscar. Tom Cullen cai de uma bicicleta complicada como essa.
Mas Nick ficou momentaneamente encorajado. Nunca pedalei uma dessas significava que Tom já tinha alguma experiência com outro tipo de bicicleta. Era só uma questão de encontrar um modelo mais simples para ele. Tom iria atrasá-lo, era inevitável, mas talvez nem tanto, afinal. E por que a pressa, de qualquer modo? Sonhos não passam de sonhos. Mas mesmo assim sentia uma ânsia interior de afastar-se, algo muito forte porém indefinível que já se tornava um comando subconsciente.
Levou Tom de volta ao seu posto de gasolina. Apontou para o brinquedo, depois sorriu e assentiu para o rapaz. Tom agachou-se ansioso, e então suas mãos interromperam o ato de recolher dois carrinhos. Olhou para Nick, seu rosto conturbado e nitidamente desconfiado.
- Você não vai embora sem Tom Cullen, vai?
Nick sacudiu a cabeça firmemente.
- Tudo bem - disse Tom e virou-se confiante para seus brinquedos. Antes que pudesse conter-se, Nick viu-se afagando os cabelos de Tom, que olhou para ele e sorriu timidamente. Nick sorriu de volta. Não, não podia abandoná-lo, tinha certeza disso.
Era quase meio-dia quando encontrou uma bicicleta que julgou apropriada para Tom. Não esperava que isto lhe consumisse tanto tempo, mas uma surpreendente maioria dos habitantes trancara suas casas, garagens e prédios anexos. Na maioria dos casos, viu-se reduzido a espiar o interior de garagens na penumbra, através de janelas empoeiradas e tomadas por teias de aranha, na esperança de localizar a bicicleta certa. Gastou umas boas três horas indo de uma rua à outra, o suor gotejando e o sol batendo firmemente em sua nuca. A certa altura voltara para uma nova olhada na Western Auto, porém foi inútil. As duas bicicletas expostas na vitrine eram de três marchas, uma para homem e outra para mulher; o resto estava tudo desmontado.
Finalmente encontrou o que procurava numa pequena e isolada garagem no extremo sul da cidade. A garagem estava trancada, mas possuía uma janela bem grande para passar através dela. Nick quebrou a vidraça com uma pedra e retirou cuidadosamente os estilhaços ainda presos à velha e carcomida moldura da janela. O interior da garagem estava explosivamente quente, o ar pesado com um cheiro espesso de óleo e poeira. A bicicleta, uma antiquada Schwinn, estava ao lado de uma caminhonete Mercury de dez anos, com pneus carecas e painéis lascados.
Do jeito como anda a minha sorte, pensou Nick, a porra da bicicleta deve estar empenada. Sem corrente, pneus vazios, algo assim. Mas desta vez a sorte lhe sorriu. A bicicleta rodou com facilidade. Os pneus estavam cheios e em bom estado; todos os parafusos e engrenagens pareciam bem ajustados. Não havia cesta, algo que poderia arranjar, mas pendurada na parede, entre um ancinho e uma pá de neve, estava uma corrente para prender bicicletas, além de um bônus especial: uma bomba manual para encher pneus, praticamente nova.
Procurou mais e encontrou sobre uma prateleira uma lata de óleo lubrificante. Nick sentou-se no chão de cimento rachado, agora ignorando o calor, e cuidadosamente lubrificou a corrente e as rodas dentadas. Isto feito, repôs a tampa na lata de óleo e a colocou no bolso da calça.
Amarrou a bomba no porta-bagagem sobre o pára-lama traseiro da Schwinn com um pedaço de corda fina, depois destrancou a porta da garagem e levantou-a. O ar puro nunca cheirara tão doce. Fechou os olhos e inalou profundamente, empurrou a bicicleta para a rua, montou nela e pedalou lentamente, descendo a rua principal. O desempenho da bicicleta era excelente. Seria o ideal para Tom... presumindo-se que realmente soubesse pedalar.
Estacionou-a ao lado de sua Raleigh. A seguir entrou na loja de miudezas. Encontrou uma cesta de arame de bom tamanho adequada para bicicletas, em meio a uma enxurrada de artigos esportivos quase nos fundos da loja. Já ia se virar para sair com ela debaixo do braço quando outra coisa atraiu seu olhar: uma buzina com campainha cromada e um enorme bulbo de borracha vermelho. Sorrindo, Nick colocou a buzina na cesta e passou para a seção de ferragens, em busca de uma chave de parafusos e uma chave-inglesa ajustável. Voltou à rua. Tom se esparramara tranqüilamente à sombra do monumento à Segunda Guerra Mundial, cochilando.
Nick prendeu a cesta ao guidom da bicicleta e montou a buzina ao lado dela. Voltou à loja e saiu com uma sacola de bom tamanho para mercadorias.
Levou a sacola até o A & P, enchendo-a de carne, frutas e vegetais enlatados. Parou diante de algumas latas de feijão apimentado e então viu uma sombra surgir pelo corredor à sua frente. Se pudesse ouvir, já teria percebido que Tom descobrira sua bicicleta. O ruído estridente da buzina percorria a ara de cima a baixo, pontuado pelas risadas de Tom Cullen.
Nick empurrou as portas do supermercado e viu Tom pedalando em velocidade pela ma principal, seu cabelo louro e as abas da camisa esvoaçando atrás dele, apertando sem cessar o bulbo de borracha da buzina. No posto Arco, que assinalava o final da área comercial, ele manobrou e voltou rua acima. Havia um enorme e triunfante sorriso em seu rosto. A garagem de brinquedo aninhava-se na cesta da bicicleta. Os bolsos da calça e da camisa caqui estavam estufados de carros em miniatura. O sol arrancava reflexos brilhantes circulares nos raios das rodas em movimento. Um tanto melancolicamente, Nick desejou poder ouvir o som da buzina, só para ver se isto o agradaria tanto quanto agradava a Tom.
Tom acenou para ele e continuou rua acima. Na extremidade final da área comercial ele fez a curva de novo e pedalou de volta, ainda apertando a buzina. Nick estendeu a mão, como numa ordem de policial para parar. Tom freou a bicicleta subitamente diante de Nick. O suor porejava de seu rosto em grandes gotas. O tubo de borracha da bomba balançava de um lado para outro. Tom ofegava e sorria.
Nick apontou para a cidade e acenou um adeus.
- Ainda posso levar minha garagem? - perguntou Tom.
Nick assentiu e passou a alça da sacola por sobre o pescoço taurino de Tom.
- Já estamos indo?
Nick tornou a assentir. Fez um círculo unindo o polegar e o indicador.
- Para Kansas City?
Nick fez que não com a cabeça.
- Para onde a gente quiser?
Nick confirmou. Para qualquer lugar que quisessem, pensou, mas esse qualquer lugar, muito provavelmente, seria algum lugar em Nebraska.
- Uau! - gritou Tom, cheio de felicidade. - Tudo bem! Sim! Uau!
Pegaram a Rodovia 283 seguindo para o norte e tinham viajado apenas duas horas quando nuvens de trovoada começaram a se formar a oeste. A tempestade chegou rapidamente sobre eles, despejando uma coifa diáfana de chuva. Nick não podia ouvir os trovões, mas via as forquilhas dos relâmpagos dando estocadas para baixo das nuvens. Eram bastante brilhantes para ofuscar os olhos com pós-imagens púrpura-azuladas. Enquanto se aproximavam da periferia de Rosston, onde Nick pretendia virar para leste na Rodovia 64, o véu de chuva sob as nuvens desapareceu e o céu se transformou num matiz de amarelo imóvel e esquisitamente sinistro. O vento, que havia sido refrescante contra sua face esquerda, morreu por completo. Ele começou a sentir-se extremamente nervoso sem saber o motivo, e estranhamente inábil. Ninguém jamais lhe dissera que um dos poucos instintos que o homem ainda partilha com os animais inferiores é exatamente esta reação a uma súbita e radical queda na pressão do ar.
Depois Tom estava repuxando sua manga, repuxando-a freneticamente. Nick olhou para ele. Ficou sobressaltado ao ver que toda a cor sumira do rosto de Tom. Seus olhos eram enormes discos voadores.
- Tornado! - gritou Tom. - Está chegando um tornado!
Nick procurou por um funil e não viu nenhum. Voltou-se para Tom, tentando pensar num meio de tranqüilizá-lo. Mas Tom se fora. Pedalava sua bicicleta no campo à direita da estrada, formando uma trilha retorcida e aplainada no meio da relva alta.
Maldito idiota, pensou Nick furioso. Você vai quebrar a porra do pescoço!
Tom dirigia-se para um celeiro com um silo anexo que se estendia até o final de uma estrada de terra a cerca de 400 metros. Nick, ainda nervoso, pedalou sua bicicleta estrada acima, ergueu-a por cima do portão de gado e depois pedalou pela estrada de terra vicinal até o celeiro. A bicicleta de Tom jazia na terra do lado de fora. Ele não se incomodara em baixar o descanso. Nick teria considerado isto como simples esquecimento se não tivesse visto Tom usar o descanso várias vezes antes. Ele está assustado de acordo com a sua mente curta, pensou Nick.
Sua própria inquietude o fez dar uma última olhada por sobre o ombro, e o que viu se aproximando o congelou no próprio lugar.
Uma escuridão horrível se aproximava de oeste. Não era uma nuvem; mais parecia uma ausência total de luz. Tinha a forma de um funil, e à primeira vista parecia ter 300 metros de altura. Era mais largo no topo do que no fundo; o fundo mal tocava a terra. No seu cume, as próprias nuvens pareciam estar fugindo dele, como se possuídas de algum misterioso poder de repulsa.
Enquanto Nick observava, o tornado pousou a cerca de um quilômetro de distância e um longo edifício azul com o telhado feito de metal corrugado - uma revendedora de autopeças ou um galpão para estocar madeira - explodiu com um alto fragor. Ele não pôde ouvir o som, claro, mas a vibração o atingiu, fazendo-o rodopiar. E o edifício parecia explodir para dentro, como se o funil lhe tivesse sugado todo o ar para fora. No momento seguinte o telhado se partiu em dois. As seções redemoinharam para cima, girando sem parar como um pião enlouquecido. Fascinado, Nick espichou o pescoço para acompanhar sua trajetória.
Estou olhando para o que quer que seja isto nos meus piores sonhos, pensou Nick, e não é um homem, afinal, embora às vezes pareça um homem. Trata-se realmente de um tomado. Um grande ciclone negro todo-poderoso rasgando de oeste, sugando tudo e qualquer coisa infelizes o bastante para estar no seu caminho. É...
Então ele foi agarrado por ambos os braços e literalmente arrancado de seus pés para dentro do celeiro. Olhou em volta procurando Tom Cullen e ficou momentaneamente surpreso ao vê-lo. Na sua fascinação com a tempestade, esquecera quase por completo da existência de Tom Cullen.
- No chão! - gritou Tom. - Rápido! Rápido! Ah, minha nossa, sim! É ura tornado! Tornado!
Por fim, Nick se viu plena e conscientemente com medo, arrancado do estado semi-hipnótico em que estivera e ciente de novo de onde estava e de quem estava com ele. Enquanto deixava Tom conduzi-lo para as escadas que desciam para o porão de abrigo do celeiro, tornou-se consciente de uma vibração estranha e rangente. Era a coisa mais próxima de um som que já havia vivenciado. Era como uma dor irritante no centro de seu cérebro. Então, enquanto descia as escadas atrás de Tom, viu algo que jamais esqueceria: o tapume do celeiro sendo arrancado tábua por tábua, arrancado e rodopiando para cima no ar nublado, como dentes estragados sendo extraídos por um boticão invisível. O feno espalhado no chão começou a se elevar e redemoinhar em diversos funis de tornado em miniatura, ondulando, mergulhando e ricocheteando. Aquela vibração rangente ficava cada vez mais persistente.
A seguir Tom estava abrindo uma pesada porta de madeira, lançando-se através dela. Nick sentiu cheiro de mofo e putrefação. No último instante de luz ele viu que estavam dividindo o porão com uma família de cadáveres roídos por ratos. Tom então fechou a porta e ficaram em completa escuridão. A vibração diminuiu, mas não cessou por completo mesmo então.
O pânico acercou-se com seu manto aberto e o envolveu nele. A escuridão reduziu seus sentidos ao tato e olfato, e nenhum deles enviava mensagens reconfortantes. Ele podia sentir a constante vibração das tábuas debaixo dos pés, e o odor era de morte.
Tom agarrou-lhe a mão cegamente e Nick atraiu o retardado para junto de si. Pôde sentir o tremor de Tom e imaginou se estaria chorando, ou talvez tentando falar-lhe. O pensamento aliviou um pouco de seu próprio medo e ele passou um braço em tomo dos ombros de Tom. Este retribuiu o gesto e permaneceram de pé no escuro, agarrando um ao outro.
A vibração cresceu sob os pés de Nick; até mesmo o ar tremia levemente de encontro a seu rosto. Tom o agarrou mais firmemente ainda. Cego e surdo, ele esperou pelo que poderia acontecer a seguir e refletiu que se Ray Booth tivesse arrancado seu outro olho, toda a vida seria assim. Se isto houvesse acontecido, ele acreditava que teria dado um tiro na cabeça dias atrás, e faria o mesmo agora.
Mais tarde, quase não acreditou no seu relógio, que insistia em que haviam passado apenas 15 minutos na escuridão do porão, embora a lógica lhe dissesse que, como o relógio continuava funcionando, devia ter sido isso mesmo. Nunca antes em sua vida havia compreendido o quão subjetivo e plástico o tempo realmente é. Parecia ter sido pelo menos uma hora, provavelmente duas ou três. E à medida que o tempo passava, ficou convencido de que ele e Tom não estavam sozinhos no porão. Ah, havia os cadáveres - algum pobre sujeito havia trazido sua família cá para baixo quando o fim estava próximo, talvez na presunção febril de que, uma vez que tinham suportado outros desastres naturais aqui, também podiam suportar mais esse -, mas não era aos corpos que se referia. Na mente de Nick, um cadáver era apenas uma coisa, não diferindo de uma cadeira, uma máquina de escrever ou um tapete. Um cadáver era apenas uma coisa inanimada que ocupava espaço. O que ele sentia era a presença de outro ser, e tomou-se cada vez mais convencido de quem - ou o quê - era.
Era o homem escuro, o homem que veio para viver nos seus sonhos, a criatura cujo espírito havia sentido no centro do negro ciclone.
De algum lugar... do canto ou talvez bem atrás dele... ele os estava observando. E esperando. No momento certo os tocaria e iriam ambos... o quê? Enlouquecer de medo, é claro. Só isso. Ele podia vê-los. Nick tinha certeza de que podia vê-los. Ele tinha olhos que podiam enxergar na escuridão como os olhos de um gato, ou aqueles de alguma estranha criatura alienígena. Como aquela daquele filme O Predador, talvez. Sim, isso mesmo. O homem escuro podia distinguir tons do espectro que olhos humanos jamais conseguiriam, e para ele tudo pareceria lento e vermelho, como se o mundo inteiro houvesse sido tingido num tanque de sangue.
A princípio Nick foi capaz de separar esta fantasia da realidade, mas à medida que o tempo passava tomou-se cada vez mais certo de que a fantasia era realidade. Fantasiou que podia sentir a respiração do homem escuro na sua nuca.
Estava a ponto de arremeter até a porta, abri-la e fugir escadas acima, não importava o que acontecesse, quando Tom fez isto em seu lugar. O braço em torno dos ombros de Nick se foi subitamente. No instante seguinte, a porta do porão se escancarou, deixando entrar uma inundação de luz ofuscante que fez Nick erguer uma das mãos e proteger o olho bom. Ele captou apenas um vislumbre fantasmal ondulante de Tom Cullen cambaleando e tropeçando escada acima, e então foi atrás dele, tateando seu caminho na ofuscação. Quando chegou lá em cima, seu olhar já se acostumara.
Ele achava que a luz não tinha estado tão brilhante quando desceram, e agora viu imediatamente por quê. O celeiro havia perdido o telhado. Parecia ter sido quase removido cirurgicamente; o trabalho foi tão perfeito que não havia nenhuma lasca de madeira e dificilmente qualquer palha jazendo no chão que o telhado uma vez tinha coberto. Três vigas do teto pendiam para baixo do sótão, e quase todas as tábuas tinham sido arrancadas das laterais. Estar aqui era como estar dentro do esqueleto montado de um monstro pré-histórico.
Tom não havia parado para avaliar os estragos. Disparava para fora do celeiro como se o próprio demônio estivesse nos seus calcanhares. Só olhou para trás uma vez, os olhos arregalados e quase comicamente aterrorizados. Nick não pôde resistir a dar uma olhada por sobre o ombro para o porão. As escadas se lançavam e guinavam para baixo na sombra, madeira velha, lascada e afundada no centro de cada degrau. Pôde ver palha espalhada no chão e dois pares de mãos projetando-se da sombra. Os dedos tinham sido roídos até os ossos pelos ratos.
Se havia alguém mais ali, Nick não viu.
Nem queria ver.
Seguiu Tom para fora.
Tom estava de pé junto à bicicleta, tremendo. Nick ficou momentaneamente bestificado pela caprichosa forma de seleção do tornado, que tomara a maior parte do celeiro mas desdenhara suas bicicletas, quando percebeu que Tom estava chorando. Foi até ele e pôs um braço sobre os seus ombros. Tom olhava fixamente, olhos arregalados, para as portas duplas vergadas do celeiro. Nick fez um círculo com o polegar e o indicador. Os olhos de Tom descaíram para isto brevemente, mas o sorriso que esperava não se formou no rosto de Tom. Ele simplesmente voltou a olhar para o celeiro. Seus olhos tinham um aspecto vago e fixado que Nick não apreciou.
- Tinha alguém lá - disse Tom abruptamente.
Nick sorriu, mas o sorriso foi frio em seus lábios. Ele não fazia ideia do quão boa era a imitação, mas ela parecia medíocre. Apontou para Tom, para si mesmo, e depois fez um gesto cortante através do ar com a quina da mão.
- Não - disse Tom. - Não apenas nós. Alguém mais. Alguém que saiu do ciclone.
Nick encolheu os ombros.
- Podemos ir agora? Por favor? Nick assentiu.
Empurraram as bicicletas de volta à auto-estrada, usando a trilha de relva desenraizada e solo revirado que o tomado tinha feito. Ele havia baixado no lado oeste de Rosston, cruzara a Nacional 283 na direção oeste para leste, arremessando guardrails e cabos de conexão pelos ares como se fossem cordas de piano, contornara o celeiro à esquerda deles e abrira caminho diretamente através da casa que ficava - tinha ficado - em frente ao celeiro. Quatrocentos metros mais adiante, sua trajetória através do campo cessou abruptamente. Agora as nuvens haviam começado a se dissolver (embora ainda estivesse chovendo, leve e refrescantemente), e os pássaros cantavam despreocupadamente.
Nick observou os músculos grossos sob a camisa de trabalho de Tom enquanto ele erguia a bicicleta por sobre a confusão de destroços na beira da auto-estrada. Esse cara salvou minha vida, pensou. Foi a primeira vez que vi um tornado. Se o tivesse abandonado lá em May como pretendia fazer, eu estaria para lá de morto exatamente agora.
Ele ergueu sua bicicleta por cima dos cabos rompidos, bateu nas costas de Tom e sorriu para ele.
Temos que encontrar mais alguém, pensou Nick. Temos mesmo, só para que eu possa agradecer-lhe. E dizer-lhe meu nome. Ele nem sequer sabe meu nome, porque não sabe ler.
Ficou parado ali por um momento, confuso por isto, e depois eles montaram nas bicicletas e partiram.
Nessa noite acamparam no campo de jogo dos Rosston Jaycee’s, da Pequena Liga. A noite era estrelada e sem nuvens. Nick dormiu logo e não teve sonhos. Acordou ao alvorecer da manhã seguinte, pensando em como era bom estar novamente com alguém, na diferença que isto fazia.
Havia de fato um condado de Polk, Nebraska. A princípio aquilo o tinha sobressaltado, mas ele viajara bastante nos últimos poucos anos. Devia ter falado com alguém que mencionara o condado de Polk ou procedia de lá, e sua mente consciente esquecera isso. Existia também uma Rodovia 30. Mas havia algo em que não podia acreditar, pelo menos não naquele radioso alvorecer, de que realmente encontrariam uma velha negra sentada em seu alpendre no meio de um milharal, acompanhando-se à guitarra enquanto cantava hinos religiosos. Nick não acreditava em visões ou premonições. No entanto, parecia importante ir para algum lugar, procurar pessoas. De certo modo partilhava da ânsia de Fran Goldsmith e de Stu Redman em formar um grupo. Até que isto acontecesse, tudo continuaria estranho e desconexo. Havia perigo em toda parte. Não podia ver, mas era capaz de sentir, tal como achava ter sentido a presença do homem escuro no porão do celeiro na véspera. Sentia que o perigo espreitava em todo lugar: dentro das casas, depois de cada curva de estrada, talvez até escondido debaixo de carros e caminhões espalhados por todas as principais rodovias. E se não estivesse lá, estava no calendário, escondido a apenas duas ou três folhas depois. Perigo, era o que parecia sussurrar cada partícula do seu ser. PONTE CAÍDA. 65 QUILÔMETROS DE ESTRADA EM MAU ESTADO. NÃO NOS RESPONSABILIZAMOS POR QUEM PROSSEGUIR ALÉM DESTE PONTO.
Parte disso era creditado ao tremendo e esmagador choque psicológico da zona airal esvaziada. Enquanto estivera em Shoyo, ficara parcialmente protegido. Não importa que Shoyo estivesse deserta, pelo menos não demais, porque a cidade era muito pequena no esquema geral. Mas quando se movimentava, era como se... Bem, ele lembrou um filme de Walt Disney que vira quando criança, um filme sobre natureza. Enchendo a tela havia aquela tulipa, uma só tulipa, tão bela que dava vontade de prender a respiração. Então, a câmera recuava com uma subitaneidade preguiçosa e podia-se ver um campo repleto de tulipas. Aquilo nocauteava qualquer um. Produzia tamanha carga sensorial acionando o comutador de algum circuito interno, o qual se derretia com um chiado, cortando o input. Aquilo era demais. Tal como tinha sido esta viagem. Shoyo estava deserta e ele pudera adaptar-se a isto. No entanto, McNab também estava, bem como Texarcana e Spencerville. Ardmore pegara fogo até os alicerces. Ele viera para o norte pela Auto-Estrada 81 e só tinha visto dois alces. Por duas vezes vira o que provavelmente fossem indícios de pessoas vivas: uma fogueira de acampamento apagada talvez dois dias atrás e um alce abatido a tiro e que tivera a carne retirada cuidadosamente. Mas nem sinal de gente. Era o suficiente para deixar qualquer um pirado, porque a enormidade da coisa ia penetrando firmemente em você. Não se tratava apenas de Shoyo, McNab ou Texarcana; era o país, jazendo ali como uma enorme lata vazia jogada fora, com umas ervilhas rolando no fundo. E além do país estava o mundo inteiro, e pensar nisto provocava em Nick tanta tonteira e mal-estar que ele acabava desistindo.
Inclinou-se sobre o surrado mapa rodoviário que tirou de sua mochila. Se continuassem em frente, talvez encontrassem mais pessoas que formariam uma bola de neve, rolando montanha abaixo, ganhando maior volume. Com alguma sorte pegariam mais gente entre aquele ponto e Nebraska (ou seriam pegos, se deparassem com um grupo maior). Depois de Nebraska ele supunha que iriam para outro lugar. Era como uma busca sem qualquer objetivo à vista em seu final - nenhum Graal, nenhuma espada enfiada em uma bigorna.
Seguiremos para nordeste, pensou, subindo para Kansas. A Auto-Estrada 35 os levaria a outra versão da 81, e esta os levaria por todo o caminho até Swedeholm, Nebraska, onde ela cruzava com a Rodovia 92 de Nebraska em perfeito ângulo reto. Outra auto-estrada, a Rodovia 30, ligava as duas, como a hipotenusa de um triângulo reto. E em algum ponto deste triângulo ficava a região do seu sonho.
Ao pensar nisso, sentiu uma estranha emoção antecipatória.
Um movimento no alto de sua visão o fez erguer os olhos. Tom estava sentado, esfregando os olhos com os punhos cerrados. Um bocejo cavernoso parecia fazer desaparecer toda a metade inferior do rosto. Nick sorriu para ele e Tom sorriu de volta.
- Hoje vamos viajar mais? - perguntou Tom, e Nick assentiu. - Oba, isso é bom. Gosto de andar na minha bicicleta. Minha nossa, gosto sim! Espero que a gente não pare nunca!
Pondo de lado o mapa rodoviário, Nick pensou: Quem sabe? Talvez seu desejo se realize.
Dobraram para o leste naquela manhã e almoçaram numa encruzilhada não muito distante da fronteira Oklahoma-Kansas. Era o dia 7 de julho e fazia calor.
Pouco antes de pararem para comer, Tom fez a bicicleta dar sua costumeira freada derrapante. Ficou olhando fixamente para um poste sinalizador que havia sido fincado numa base de cimento semi-enterrada no solo macio do acostamento da estrada. Nick olhou para o letreiro, que dizia: VOCÊ ESTÁ DEIXANDO O CONDADO DE HARPER, OKLAHOMA - ESTÁ ENTRANDO NO CONDADO DE WOODS, OKLAHOMA.
- Isso eu sei ler - disse Tom, e se Nick tivesse a faculdade de ouvir, ficaria em parte divertido e em parte sensibilizado pelo modo como a voz de Tom subia para um registro alto, esganiçado e declamatório: - Você agora está saindo do condado de Harper. Você está agora indo para o condado de Woods. - Voltou-se para Nick. - Sabe de uma coisa, moço?
Nick sacudiu a cabeça.
- Nunca saí deste condado em minha vida, nossa, não Tom Cullen. Mas uma vez meu pai me trouxe até aqui e me mostrou este letreiro. Ele disse que, se algum dia me pegasse do outro lado dele, ia me arrancar o couro. Estou torcendo para que ele não nos pegue lá no outro condado. Você acha que ele nos pegará?
Nick sacudiu a cabeça enfaticamente.
- Kansas City fica no condado de Woods? Nick sacudiu de novo a cabeça.
- Mas vamos entrar no condado de Woods antes de seguir para qualquer outro lugar, não é?
Nick assentiu.
Os olhos de Tom brilharam.
- Isso é o mundo?
Nick não entendeu. Franziu o cenho... ergueu as sobrancelhas... encolheu os ombros.
- É do mundo que estou falando - afirmou Tom. - Nós vamos entrar no mundo, moço? - Tom hesitou e depois perguntou com insegura gravidade: - Woods é a palavra para mundo?
Lentamente, Nick fez que sim com a cabeça.
- OK - disse Tom. Olhou para o letreiro por um momento, depois enxugou o olho direito, do qual uma lágrima solitária gotejara. A seguir montou na bicicleta. - OK, vamos. - Pedalou por sobre a linha divisória sem qualquer outra palavra e Nick o seguiu.
Cruzaram a divisa do Kansas pouco antes que ficasse escuro demais para viajarem um percurso maior. Tom havia ficado rabugento e cansado depois da ceia; queria brincar com sua garagem. Queria ver televisão. Não queria viajar mais porque estava com o traseiro doendo. Não tinha a menor noção dos limites estaduais e não reagiu a nenhum estímulo de Nick quando passaram por outro letreiro, este dizendo: VOCÊ ESTÁ ENTRANDO NO KANSAS. Mas a penumbra estava tão espessa na hora que as letras brancas pareciam flutuar centímetros acima do letreiro marrom, como espíritos.
Acamparam a uns 500 metros além da linha divisória, debaixo de um reservatório de água que se apoiava em compridas pernas de aço como um marciano de H. G. Wells.
Tom adormeceu tão logo rastejou para dentro de seu saco de dormir. Nick sentou-se por algum tempo, observando o despontar das estrelas. A paisagem estava inteiramente escura e, para ele, inteiramente silenciosa. Pouco antes de enfiar-se no seu saco de dormir, viu um corvo voar até um moirão de cerca nas proximidades, parecendo espiá-lo. Seus olhinhos negros estavam orlados de semicírculos sanguinolentos - reflexos de uma intumescida lua alaranjada de verão que se erguera silenciosamente. Havia algo em relação àquele corvo que Nick não apreciava, deixando-o inquieto. Encontrou um grande torrão de terra e atirou-o na ave. O corvo bateu as asas, parecendo perfurá-lo com um olhar malévolo, e desapareceu na noite.
Nessa noite ele sonhou com o homem sem rosto, de pé sobre um telhado alto, as mãos estendidas para o leste, e depois com o milharal - os pés de milho mais altos do que sua cabeça - e o som de música. Só que desta vez ele sabia que era música, e sabia que era uma guitarra. Acordou perto do amanhecer com a bexiga dolorosamente cheia, com as palavras dela retinindo em seus ouvidos: Mãe Abagail, é como me chamam... venha me ver quando quiser.
No final daquela tarde, seguindo para leste através do condado de Comanche na Auto-Estrada 160, eles pararam as bicicletas estupefatos, para ver uma pequena manada de búfalos - uma dúzia deles, talvez - caminhando calmamente de um lado a outro da estrada em busca de um bom pasto. Houvera uma cerca de arame farpado no lado norte da estrada, mas aparentemente os búfalos a tinham derrubado.
- Que bichos são esses? - perguntou Tom, cheio de medo. - Vacas é que não são!
E como Nick não podia falar e Tom não sabia ler, Nick não pôde lhe dizer. Era o dia 8 de julho de 1990, e dormiram aquela noite na planície de gado aberta a 60 quilômetros de Deerhead.
Era o dia 9 de julho e almoçavam à sombra de um velho e gracioso olmo no pátio fronteiro de uma casa de fazenda parcialmente incendiada. Tom comia salsichas de uma lata com uma das mãos e com a outra conduzia um carro para dentro e para fora do posto de serviço. E cantava repetidamente o refrão de uma canção popular. Nick sabia a letra de cor pelo movimento labial de Tom: "Garota, você saca o seu homem? Ele é um cara legal, garota, você saca o seu homem?"
Nick estava deprimido e levemente estupefato com o tamanho do país; nunca antes tinha percebido quão fácil era estender o polegar, sabendo que mais cedo ou mais tarde a lei das possibilidades estaria a seu favor. Um carro iria parar, em geral com um homem ao volante, e com uma lata de cerveja descansando entre suas pernas com mais freqüência do que não. Ele desejaria saber para onde você ia, e você lhe passaria o pedaço de papel que guardava no bolso, onde se lia: "Olá, meu nome é Nick Andros. Sou surdo-mudo, lamento dizer. Estou indo para ___________. Muito obrigado pela carona. Sei fazer leitura labial." E assim seria. A não ser que o sujeito tivesse prevenção contra surdos-mudos (e algumas pessoas tinham, embora fossem minoria), ele embarcava e o carro o levava até onde queria ir, ou pelo menos por um bom trecho naquela direção. O carro devorava a estrada e expelia quilômetros pelo seu cano de descarga. O carro era uma espécie de teletransporte. O carro derrotava o mapa. Mas agora não havia nenhum carro, embora em muitas dessas estradas um carro fosse um meio de transporte prático por 100 ou 130 quilômetros numa estirada, se o motorista tivesse cuidado. E quando ele se visse finalmente bloqueado, só teria que abandonar o veículo, caminhar um pouco e depois pegar outro. Não tendo carro nenhum, eles eram como formigas rastejando pelo peito de um gigante caído, formigas andando interminavelmente de um mamilo para o outro. E assim Nick meio que desejava, meio que sonhava acordado, que quando finalmente encontrassem alguém (sempre presumindo que poderia acontecer), seria como na maior parte daqueles dias despreocupados viajando de carona: haveria aquele familiar reluzir de cromado erguendo-se sobre o topo da próxima colina, aquele brilho de sol que ao mesmo tempo ofuscava e agradava a vista. Poderia ser algum carro americano perfeitamente comum, um Chevrolet Biscayne ou um Pontiac Tempest, a velha e doce Detroit fazendo ferro rodar. Nos seus sonhos nunca era um Honda, Mazda ou Yugo. Aquela beleza americana iria encostar e ele veria um homem com o cotovelo bronzeado de sol pendendo petulantemente fora da janela. Esse homem estaria sorrindo e diria: "Caramba, rapazes! Não é que estou contente pra cacete por encontrar vocês? Subam! Subam e vamos ver para onde estão indo!"
Mas eles não viram ninguém nesse dia. E no dia 10 de julho foi com Julie Lawry que depararam.
Era mais um dia sufocante. Haviam pedalado a maior parte da tarde com as camisas amarradas em torno da cintura, e os dois estavam ficando bronzeados como índios. Não haviam progredido muito neste dia, por causa das maçãs. Maçãs verdes.
Tinham-nas encontrado na velha macieira de uma fazenda, verdes, miúdas e ácidas. Mas fazia muito tempo que estavam carentes de frutas frescas, de modo que elas tinham sabor de ambrosia. Nick parou após comer duas, mas Tom devorou seis, esganadamente, uma após outra, deixando só as sementes. Havia ignorado as advertências de Nick de que deveria parar; quando punha uma ideia na cabeça, Tom Cullen era comparável, em todos os sentidos, a uma criança pirracenta de quatro anos.
Assim, começando por volta de onze da manhã e continuando pelo resto da tarde, Tom teve diarréia. O suor escorria dele em pequenos córregos. Ele resmungava. Tivera que desmontar da bicicleta e empurrá-la até mesmo nas descidas. Apesar de sua irritação pelo progresso que faziam, Nick não pôde evitar um certo melancólico divertimento.
Quando alcançaram a cidade de Pratt, por volta das quatro da tarde, Nick decidiu que bastava por aquele dia. Tom desabou agradecidamente em um banco de parada de ônibus situado à sombra e cochilou de imediato. Nick o deixou ali e percorreu o centro comercial deserto à procura de uma drugstore. Arranjaria um Pepto-Bismol e forçaria Tom a tomá-lo quando acordasse, quisesse ou não. Se fosse preciso um frasco inteiro para arrolhar Tom, ele o tomaria. Nick queria cobrir uma distância maior no dia seguinte.
Encontrou uma drugstore Rexall entre o Cine Pratt e o revendedor Norge local. Nick entrou pela porta aberta e parou por um instante, sentindo o cheiro quente e familiar, estagnado e sem arejamento. Havia outros odores de mistura, fortes e aderentes. O de perfume era o mais pronunciado. Talvez algum frasco houvesse explodido com o calor.
Nick olhou em torno, procurando remédios para o estômago, tentando lembrar se o Pepto-Bismol não se estragava com o calor. Bem, conferiria isto na bula. Seus olhos deslizaram por um manequim e, duas gôndolas à direita, avistou o que desejava. Dera dois passos naquela direção quando percebeu que jamais vira um manequim numa drugstore.
Olhou de novo e o que viu era Julie Lawry.
Ela estava de pé e perfeitamente imóvel, segurando um frasco de perfume e tendo na outra mão a pequena vareta de vidro para aplicação do produto. Seus olhos de porcelana azul estavam arregalados em aturdida e descrente surpresa. Os cabelos castanhos estavam repuxados para trás e atados com uma reluzente echarpe de seda que caía até o meio das costas. Usava uma suéter de marinheiro cor-de-rosa e bermudas jeans curtas o bastante para serem confundidas com uma calcinha. Tinha a testa tomada de espinhas e havia outra de bom tamanho bem no meio de seu queixo.
Ela e Nick entreolharam-se através de metade da loja deserta, ambos agora imóveis. Então o frasco de perfume caiu de seus dedos, estilhaçando-se como uma bomba, e um odor desagradável inundou o ambiente, fazendo-o cheirar como uma casa funerária.
- Céus, você é real? - perguntou ela em voz trêmula.
O coração de Nick começara a disparar e ele pôde sentir o sangue latejando loucamente nas têmporas. Até mesmo a vista tinha começado a falhar um pouco, fazendo pontos de luz dispararem através de seu campo de visão.
Ele assentiu.
- Não é um fantasma?
Ele fez que não com a cabeça.
- Então diga alguma coisa. Se não é um fantasma, diga alguma coisa.
Nick levou a mão à boca, depois à garganta.
- O que isto significa? - A voz dela assumira um tom levemente histérico. Nick não podia ouvi-lo... mas podia senti-lo, vê-lo no rosto dela. Ficou com medo de seguir até ela, porque, se o fizesse, a moça iria correr. Ele não achava que estivesse com medo de ver outra pessoa; o que ela temia era que estivesse diante de uma alucinação, e estava fraquejando. Mais uma vez, Nick sentiu uma onda de frustração. Se ao menos pudesse falar...
Em vez disso, retomou sua mímica. Afinal, era seu único recurso. Desta vez houve compreensão.
- Você não fala? É mudo?
Nick assentiu.
Ela deu uma risada estridente que era mais de frustração.
- Finalmente aparece alguém e o cara é mudo!
Nick deu de ombros e sorriu sem graça.
- Bem - disse ela, caminhando em direção a ele -, até que você é atraente. Já é alguma coisa. - Pôs a mão no braço de Nick, a ponta dos seios quase o tocando. Ele pôde sentir pelo menos três tipos de perfume e, debaixo disso tudo, o odor desagradável do suor dela.
- Meu nome é Julie - disse a garota. - Julie Lawry. E o seu? - Deu uma risadinha. - Não pode me dizer, não é? Coitadinho. - Ela achegou-se mais, os seios roçando nele, e Nick começou a sentir-se muito acalorado. Que diabo, pensou inquieto, ela é apenas uma criança.
Afastou-se dela, tirou o bloquinho do bolso e começou a escrever. Após ele ter escrito uma linha ou pouco mais da sua mensagem, ela se inclinou por sobre seu ombro para ler o que estava escrevendo. Céus, ela não usava sutiã, pensou Nick. Ela se livrara muito rapidamente do medo. A escrita dele foi ficando irregular.
- Uau! - fez ela enquanto ele escrevia. Era como se ele fosse um macaco amestrado fazendo um truque particularmente sofisticado. Olhando para o bloco, Nick não "lia" as palavras dela, mas podia sentir a calidez comichante do seu hálito.
"Sou Nick Andros. Sou surdo-mudo. Estou viajando com um homem chamado Tom Cullen, que é ligeiramente retardado. Ele não sabe ler e não entende bem os meus gestos, a não ser os mais simples. Estamos a caminho de Nebraska, porque acho que deve haver mais gente por lá. Pode vir conosco, se quiser."
- É claro - disse ela. - Estou tão contente por ver gente que pouco me importa que sejam um surdo-mudo e um retardado. Este lugar ficou muito esquisito. Mal posso dormir à noite, depois que a eletricidade pifou. - Seu rosto adquiriu contornos de pesar e martírio mais apropriados à heroína de uma telenovela do que a uma pessoa real. - Meus pais morreram há duas semanas, entende? Todos morreram, menos eu. Tenho me sentido muito só! - Com um soluço, ela atirou-se nos braços de Nick e começou a ondular o corpo contra o dele, numa obscena paródia de pesar.
Quando se afastou, seus olhos estavam secos e brilhantes.
- Ei, vamos fazer aqui mesmo - disse ela. - Você é um gato.
Nick ficou boquiaberto. Não posso acreditar, pensou.
Mas a coisa era para valer. Ela estava abrindo o cinto dele.
- Vamos lá. Estou tomando a pílula, não tem perigo. - Fez uma ligeira pausa. - Você consegue, não é? Quero dizer, só porque não pode falar, isto não significa que não possa...
Ele estendeu as mãos, talvez querendo empurrá-la pelos ombros, mas o que encontrou foram os seios. Foi o fim de qualquer resistência que poderia oferecer. O pensamento coerente também abandonou sua mente. Baixando-a para o chão, ele a possuiu.
Depois, Nick caminhou até a porta enquanto tentava afivelar o cinto e procurava por Tom. Ele permanecia no banco do parque, morto para o mundo. Julie se juntou a ele. segurando outro frasco de perfume.
- É o debilóide? - perguntou ela.
Nick confirmou mas não gostou da palavra, que parecia cruel.
Ela começou a falar a respeito de si e Nick descobriu, para seu alívio, que tinha 17 anos, não muito mais nova do que ele. Sua mãe e seus amigos a chamavam de Rosto de Anjo, ou apenas de Anjo, para abreviar, disse ela, por parecer tão jovem. Ela contou-lhe muito mais na hora seguinte, e Nick descobriu ser impossível separar a verdade das mentiras... ou desejo de realização, caso se preferisse. Talvez ela estivesse esperando alguém como ele, que nunca interrompesse o fluxo interminável de seu monólogo, por toda a vida. Os olhos de Nick cansaram-se de apenas observar seus lábios rosados tagarelando. Mas se os seus olhos vagueassem por mais do que apenas um momento, para checar Tom ou para considerar a vitrine quebrada da loja de roupas do outro lado da rua, a mão dela tocava-lhe a face, trazendo os olhos de Nick de volta para sua boca. Ela o queria para "ouvir" tudo, sem nada ignorar. Ele ficou entediado com ela a princípio, depois se aborreceu. Incrivelmente, no espaço de uma hora, viu-se desejando não tê-la encontrado, em primeiro lugar, ou que ela mudasse de ideia quanto a acompanhá-los.
Estava "por dentro" de música de rock e maconha, e tinha um fraco pelo que chamava de "barato colombiano" e "irrita-papai". Tivera um namorado, mas ele ficara tão puto com o "sistema careta" que dirigia o ginásio local que a abandonara para alistar-se nos Fuzileiros Navais em abril último. Não o tinha visto desde então, mas ainda lhe escrevia toda semana. Ela e suas duas amigas, Ruth Honinger e Mary Beth Gooch, iam a todos os concertos de rock em Wichita e tinham pedido carona por todo o caminho até Kansas City em setembro último para ver Van Halen e os Monsters of Heavy Metal. Ela alegou ter "feito aquilo" com o baixista Dokken, e disse que havia sido "a experiência mais gostosa da minha vida"; disse ter "chorado sem parar" após a morte de seus pais num intervalo de 24 horas de um para outro, muito embora a mãe fosse uma "carola chata" e o pai tivesse "um pé atrás" acerca de Ronnie, o namorado que havia deixado a cidade para alistar-se nos Fuzileiros; Julie tinha planos para se tornar uma esteticista em Wichita quando se formasse no curso secundário ou "me mandar para Hollywood e arranjar um emprego numa daquelas empresas que decoram as casas dos artistas, sou vidrada em decoração de interiores, e Mary Beth disse que iria comigo".
Neste ponto ela se lembrou de que Mary Beth Gooch estava morta, e que sua oportunidade de tornar-se esteticista ou decoradora de interiores dos artistas havia morrido com ela... e todo mundo e tudo mais. Isto pareceu golpeá-la com o tipo mais genuíno de pesar. Não era porém uma tempestade, mas apenas uma chuva rápida.
Quando o fluxo de palavras começou a secar um pouco - pelo menos por enquanto - ela quis "fazer aquilo" (como expressou recatadamente) outra vez. Nick negou com a cabeça e a garota fez um beicinho amuado.
- Talvez eu nem queria transar com você, afinal - disse.
Nick encolheu os ombros.
- Mudinho-mudinho-mudinho - disse ela com súbita e ferina maldade. Seus olhos brilhavam de despeito. A seguir ela sorriu. - Eu não pretendia dizer isto. Estava só brincando.
Nick olhou para ela, inexpressivo. Tinha sido xingado dos piores nomes, mas havia alguma coisa em Julie que o desagradava bastante. Alguma instabilidade inquieta. Se ela ficasse furiosa com você não iria gritar ou dar-lhe uma bofetada; isso não. Iria, sim, despedaçá-lo. Ocorreu-lhe com súbita certeza que ela mentira acerca da idade. Ela não tinha 17, nem 14, nem 21 anos. Tinha qualquer idade que quisesse - enquanto você a desejasse mais do que ela o desejava, precisasse mais dela do que ela precisava de você. Apresentava-se como uma criatura sexual, mas Nick achava que a sexualidade dela se resumia a uma manifestação de algo mais em sua personalidade - um sintoma. Sintoma, porém, era uma palavra usada para alguém que estivesse doente, não era mesmo? Achava que ela estivesse doente? De certo modo achava, e temeu subitamente o efeito que poderia exercer sobre Tom.
- Ei, seu amigo está acordando! - disse Julie.
Nick olhou em torno. Sim, Tom agora estava sentando-se no banco do parque coçando seu cabelo emaranhado e arregalando os olhos pálidamente. Nick se lembrou de repente do Pepto-Bismol.
- Ei, você aí! - gorjeou Julie e desceu a rua na direção de Tom, os seios balançando docemente debaixo de seu apertado top. O arregalar de olhos de Tom tinha sido o bastante para começar; agora se ampliou mais ainda.
- Oi! - ele meio disse e meio perguntou lentamente e olhou para Nick, esperando confirmação e/ou explicação.
Disfarçando a própria apreensão, Nick deu de ombros e assentiu.
- Eu sou Julie - disse ela. - Como está você, doce de coco? Imerso nos seus pensamentos - e inquieto -, Nick voltou à drugstore para buscar o que Tom precisava.
- Não, não - disse Tom, sacudindo a cabeça e recuando. - Não, não, não quero. Tom Cullen não gosta de remédio, minha nossa, o gosto é ruim demais.
Nick fitou-o com frustração e revolta, segurando o vidro trifacetado de Pepto-Bismol numa das mãos. Olhou para Julie e ela captou seu olhar, mas nisso ele viu o mesmo brilho debochado de quando o chamara de mudinho - não era um brilho alegre, mas sim um fulgor duro e impiedoso. Era a expressão de uma pessoa sem qualquer senso primordial de humor, quando se prepara para menosprezar alguém.
- Você está certo, Tom - disse ela. - Não beba, é veneno.
Nick a fitou, boquiaberto. Ela sorriu em resposta, as mãos na cintura, desafiando-o a convencer Tom do contrário. Talvez fosse sua vingança mesquinha por ver recusada sua segunda proposta de sexo.
Nick olhou de volta para Tom e ele próprio bebeu um gole do Pepto-Bismol. Podia sentir a embotada pressão da raiva nas têmporas. Estendeu o frasco para Tom, que não ficou convencido.
- Não, hã-hã, Tom Cullen não bebe veneno - replicou ele e, com uma raiva crescente da garota, Nick viu que Tom estava aterrorizado. - Papai disse pra não beber. Papai disse que, se mata os ratos do celeiro, vai matar Tom também! Nada de veneno!
Nick se virou de repente para Julie, não conseguindo suportar seu sorriso zombeteiro. Deu-lhe uma firme bofetada. Tom observava de olhos arregalados, assustados.
- Você... - começou ela e, por um momento, não encontrou as palavras. Seu rosto enrubesceu levemente e, de súbito, pareceu magricela, mimada e maldosa. - Seu mudinho escroto! Foi só uma brincadeira, seu merda! Não pode me bater! Não pode fazer isso comigo, porra!
Avançou para ele, que a empurrou para trás. Julie caiu sentada sobre as bermudas jeans e ficou olhando para ele, os lábios repuxados num esgar.
- Vou arrancar seus bagos - arfou. - Não pode fazer isso!
Com as mãos trêmulas, a cabeça agora latejando, Nick pegou o bloquinho e a caneta. Escreveu uma mensagem em letras grandes e irregulares. Arrancou a folha, que estendeu para ela. Com os olhos brilhantes de fúria, Julie jogou a folha para o lado. Nick a pegou, agarrou a garota pela nuca e pôs o bilhete bem diante do seu rosto. Tom havia recuado, lamuriando-se.
- Está bem! - gritou ela. - Eu leio! Vou ler seu recado nojento!
O bilhete resumia-se a quatro palavras: "Não precisamos de você."
- Foda-se! - gritou ela, libertando-se do aperto dele. Recuou vários passos calçada abaixo. Seus olhos estavam tão arregalados e azuis como quando Nick quase colidira com ela na drugstore, mas agora pareciam expelir ódio. Ele se sentiu cansado. Entre tantas pessoas possíveis, por que justamente ela?
- Não vou ficar aqui - protestou ela. - Também vou com vocês. E não pode me impedir!
Mas ele podia. Será que ela não havia percebido? Não, pensou Nick, não havia. Para ela, tudo isto era uma espécie de cenário hollywoodiano, um filme-catástrofe ao vivo em que era a protagonista. Era um filme onde Julie Lawry, também conhecida como Rosto de Anjo, sempre conseguia o que queria.
Nick sacou o revólver do coldre e apontou para os pés dela. Julie ficou completamente paralisada e o rubor evaporou-se do seu rosto. Os olhos mudaram e ela parecia muito diferente, de certo modo realmente pela primeira vez. Algo penetrara em seu mundo e que ela não conseguia, pelo menos na própria mente, manipular a seu favor. Uma arma. De repente, Nick sentiu-se tão nauseado quanto cansado.
- Eu não falava sério - disse ela rapidamente. - Farei tudo que você quiser, juro por Deus.
Com a arma, Nick fez um gesto para que ela se fosse.
Julie virou-se e começou a caminhar, olhando por sobre o ombro. Caminhou cada vez mais depressa, depois começou a correr. Dobrou a esquina um quarteirão acima e sumiu de vista. Nick devolveu o revólver ao coldre. Estava exausto e deprimido, como se Julie Lawry fosse algo inumano, assemelhando-se mais aos insetos rastejantes e de sangue frio encontrados sob árvores mortas do que a outros seres humanos.
Virou-se à procura de Tom, mas ele não estava à vista.
Desceu a rua sob o sol causticante, sua cabeça doendo terrivelmente, o olho arrancado por Ray Booth latejando. Levou quase vinte minutos para encontrar Tom. Ele estava encolhido em um alpendre de fundos, duas ruas abaixo do centro comercial. Sentara-se num balanço enferrujado, com a sua garagem de brinquedo aninhada contra o peito. Ao ver Nick, começou a chorar.
- For favor, não me faça beber aquilo. Por favor, não faça. Tom Cullen beber veneno, minha nossa, papai disse que se isto matava os ratos, ia matar Tom também. Por favoooor!
Nick percebeu que continuava a segurar o frasco de Pepto-Bismol. Atirou-o longe e abriu as mãos vazias diante de Tom. A diarréia dele teria que seguir o seu curso normal. Muito obrigado, Julie.
Tom desceu os degraus do alpendre, balbuciando:
- Desculpe - dizia repetidamente. - Desculpe, Tom Cullen lamenta muito. Voltaram juntos para a rua principal... e estacaram de repente, o olhar fixo. As bicicletas estavam caídas, os pneus cortados. O conteúdo das mochilas tinha sido espalhado de um lado a outro da rua.
Foi então que algo passou em alta velocidade junto ao rosto de Nick - ele sentiu isso -, e Tom deu um grito esganiçado e começou a correr. Nick ficou parado e atônito por um instante, olhando em torno, e aconteceu de olhar na direção certa, a tempo de ver o clarão do segundo tiro. Vinha de uma janela no segundo andar do Pratt Hotel. Algo como uma agulha de costura de alta velocidade perfurou o tecido da gola de sua camisa.
Ele virou-se e correu atrás de Tom.
Não tinha como saber se Julie dispararia de novo; tudo que soube com certeza ao alcançar Tom foi de que nenhum deles fora atingido. Pelo menos estamos livres daquele diabinho, pensou, mas isto acabou sendo apenas meia-verdade.
Passaram a noite num celeiro, 5 quilômetros ao norte de Pratt. Tom continuava acordando com pesadelos e então acordava Nick para ser tranquilizado. Chegaram a Iuka na manhã seguinte, por volta das onze, e encontraram duas bicicletas numa loja chamada Sport and Cycle World, lá. Nick, que começava a se recuperar por fim de seu encontro com Julie, decidiu que poderiam acabar de se reequipar em Great Bend, que deveriam alcançar o mais tardar no dia 14.
No entanto, às 2h45 da tarde do dia 12 de julho ele percebeu uma piscadela brilhante no espelho retrovisor montado perto do punho esquerdo da bicicleta. Parou (Tom vinha pedalando distraidamente logo atrás e passou com a roda sobre seu pé, mas ele mal sentiu) e olhou por sobre o ombro. O brilho que se elevava no alto da colina diretamente atrás deles como uma estrela diurna agradou e ofuscou seus olhos - ele mal podia crer no que via. Era uma picape Chevrolet de uma série bem antiga, um velho e bom ferro rolante de Detroit, abrindo seu caminho lentamente, ziguezagueando de uma faixa da US 281 para outra, evitando um punhado de veículos parados e dispersos.
Ela passou ao lado deles (Tom acenava agitadamente, porém Nick só pôde ficar parado de pernas abertas com o quadro da bicicleta entre elas, congeladas) e parou. O último pensamento de Nick antes que a cabeça do motorista aparecesse foi de que deveria ser Julie Lawry, dando seu sorriso maldoso e triunfante. Deveria estar com a arma com a qual tentara matá-los antes. E a esta distância tão curta, não teria como errar. O inferno não conhecia maior fúria que a de uma mulher desprezada.
Mas o rosto que apareceu pertencia a um homem quarentão, usando chapéu de palha com uma pena enfiada na faixa azul de veludo, colocado em ângulo perfeito. Quando ele sorriu, seu rosto se tornou um quadro curtido de rugas agradáveis produzidas pelo sol. E o que ele disse foi:
- Pelas chagas de Cristo! Como estou contente em vê-los, rapazes! Podem apostar que estou! Subam aqui e vamos ver para onde iremos!
E foi assim que Nick e Tom conheceram Ralph Brentner.
ELE ESTAVA DESMORONANDO - meu bem, você não sabe disso?
Este era um verso de Huey "Piano" Smith, agora que pensou melhor. Voltando no tempo. Um vislumbre do passado. Huey "Piano" Smith. Dava para lembrar o resto? Ah-ah-ah-ah, daaaay-o... gooba-goobva-gooba-gooba... ah-ah-ah-ah. E por aí vai. O comentário sensato, espirituoso e social de Huey "Piano" Smith.
- Foda-se o comentário social - disse ele. - Huey "Piano" Smith foi anterior à minha época.
Anos depois Johnny Rivers gravara uma das canções de Huey, "Rock da pneumonia e boogie-woogie da gripe". Larry Underwood lembrava-se muito bem desta, e achou-a muito adequada à presente situação. O velho e bom Johnny Rivers. O velho e bom Huey "Piano" Smith.
- Foda-se - repetiu Larry. Sua aparência era horrível: um pálido e frágil fantasma, subindo uma auto-estrada para a Nova Inglaterra. - Me dêem de volta os anos 60.
Claro, os anos 60. Aquela tinha sido a época boa, dos meados ao final dos anos 60. Flower Power. Ficar legal para Gene. Andy Warhol com seus óculos de aros cor-de-rosa e suas porras de caixas de Brillo. Velvet Underground. The Return of the Creature from Yorba Linda. Norman Spinrad, Norman Mailer, Norman Thomas, Norman Rockwell, e o bom e velho Norman Bates do Bates Motel, heh-heh-heh-heh. Dylan quebrou o pescoço. Barry McGuire grasnou "The Eve of Destruction". Diana Ross elevou a consciência de cada criança branca na América. Todos aqueles grupos maravilhosos, pensou Larry entorpecidamente, dêem-me de volta os anos 60 e enfiem no rabo os anos 80. Quando se tratava de rock, os 60 tinham sido o Canto de Cisne da Horda Dourada. Cream. Rascais. Spoonful. Airplane com Grace Slick nos vocais, Norman Mailer como guitarrista líder, e o bom e velho Norman Bates na bateria. Beatles. The Who. Dead...
Ele caiu e bateu com a cabeça.
O mundo dissolveu-se em negror, para então retornar em fragmentos vívidos. Ele passou a mão pela têmpora e viu que ficara manchada com uma fina camada de sangue. Tampouco importava. Que sifu, como costumavam dizer na época brilhante e gloriosa de meados dos anos 60. O que era cair e machucar a cabeça, quando passara a última semana sem conseguir dormir direito, acordado por pesadelos, sendo as únicas noites boas aquelas em que o grito não ia além do meio de sua garganta? Se gritasse alto e isso o acordasse, o medo era ainda pior.
Sonhos de estar de volta ao túnel Lincoln. Havia alguém atrás dele, só que no sonho não era Rita. Era o demônio, que o vinha perseguindo com um sorriso sombrio congelado no rosto. O homem escuro não era o morto que caminha; era pior do que ele. Larry corria com o pânico lento e apavorado dos pesadelos, tropeçando em cadáveres invisíveis, sabendo que o fitavam com os olhos vidrados de troféus empalhados do interior das criptas que eram seus carros, que tinham ficado presos no trânsito congestionado, embora tivessem outro lugar para ir; ele corria, mas de que adiantava isso se o homem-demônio negro, o mago negro, podia enxergar no escuro com olhos de rastreamento telescópico? E, passado algum tempo, o homem escuro começaria a entoar para ele: Venha, Laarry, venha, vamos conseguir isso juuuntos, Laaarry...
Ele podia sentir o hálito do homem escuro em seu ombro e era então que pelejava para sair do sono, escapar do sono, e o grito ficava entalado na garganta dele como um osso quente ou então escapava-lhe realmente dos lábios, ruidoso o bastante para despertar os mortos.
Durante as horas do dia, a visão do homem escuro retirava-se. O homem escuro só trabalhava estritamente no turno da noite. Durante o dia era o Grande Solitário que trabalhava sobre ele, abrindo seu caminho para o cérebro com os dentes aguçados de um incansável roedor - um rato ou uma doninha, talvez. Durante as horas do dia seus pensamentos se concentravam em Rita. Adorável Rita, donzela sob medida. Cada vez mais em sua mente, mais e mais voltava a ela, vendo aqueles olhos fendidos, como os olhos de um animal que morreu surpreso e com dor, aquela boca que havia beijado agora repleta de vômito ressecado. Ela havia morrido tão facilmente na noite, na própria porra daquele saco de dormir, e agora ele estava...
Bem, desmoronando. Era isso, não era? Era isso que estava acontecendo com ele. Estava desmoronando.
- Desmoronando - gemeu. - Meu Deus, estou perdendo o juízo!
Parte dele, que ainda conservava certa racionalidade, afirmava que isto podia ser verdade, porém o que estava sofrendo naquele exato minuto era a prostração do calor. Depois do que acontecera com Rita, Larry não se sentira mais capaz de pilotar a motocicleta. Simplesmente não conseguia; era como um bloqueio mental. Continuava vendo a si mesmo caído no meio da estrada, espichado. Então, finalmente, a havia jogado num valão. Desde então estivera caminhando - quantos dias? Quatro? Oito? Nove? Não sabia. A temperatura andava pelos 32 graus desde as dez horas da manhã, e agora já eram quase quatro da tarde, o sol estava bem atrás dele, e ele não usava chapéu.
Não se lembrava de quantos dias haviam passado desde que se livrara da moto. Ontem não foi, e provavelmente nem no dia precedente (talvez, mas não provavelmente). E o que importava, afinal? Livrara-se dela, quebrara a engrenagem, torcera o acelerador de mão e arrancara o pedal. A moto disparara de suas mãos trêmulas e fracas como um dervixe e havia empinado e mergulhado por cima da barragem da Nacional 9 em algum lugar logo a leste de Concord. Ele achava que o nome da cidade na qual havia assassinado sua moto poderia ter sido Gossville, embora isto tampouco importasse grande coisa. O fato era que a moto deixara de ter serventia para ele. Não ousava pilotá-la a mais de 25km/ h, e até mesmo a essa velocidade tinha visões de pesadelo sendo arremessado por cima do guidom para fraturar o crânio ou de dobrar uma curva fechada e bater num caminhão virado e subir numa bola de fogo. E, passado algum tempo, a porra da luz superaquecida tinha chegado, claro que tinha, e pareceu-lhe que quase podia ler a palavra COVARDE impressa em pequenas letras não-absurdas no nicho de plástico sobre a pequena lâmpada vermelha. Houvera um tempo em que ele não só tinha assumido a moto como também realmente a apreciara, a sensação de velocidade enquanto o vento disparava por ambos os lados de seu rosto, o asfalto borrando-se a uns 15 centímetros abaixo dos pedais? Sim. Quando Rita estivera com ele, antes de tomar-se nada mais que uma boca cheia de vômito verde e um par de olhos fendidos. Ele gostara disso.
Assim, ele mandara a moto, para se despedaçar por cima da barragem e para dentro de uma vala entupida de ervas daninhas; depois havia olhado para ela com uma espécie de terror cauteloso, como se de algum modo ela pudesse subir de novo e puni-lo. Vamos, ele havia pensado, vamos lá e se afogue, sua puta. Mas por um longo tempo a moto não afundou. Por um longo tempo ela rugiu e berrou lá embaixo naquela vala, a roda traseira girando infrutiferamente, a corrente faminta engolindo as últimas folhas de outono e cuspindo nuvens de poeira marrom e amarga. Fumaça azul escapava do cano de descarga cromado. E mesmo quando tinha ido longe demais a ponto de pensar que havia algo de sobrenatural naquela moto, que ela se aprumaria, se ergueria da sua sepultura e o mastigaria - ou isso ou ele olharia para trás uma tarde ao som crescente de um motor e veria sua moto, esta maldita moto que não tinha se afogado e morrido decentemente, rugindo pela estrada direto para ele -, a 120 quilômetros por hora, e inclinado sobre o guidom estaria aquele indefectível homem escuro, e montada na garupa, com suas pantalonas brancas de seda ondulando ao vento, estaria Rita Blakemoor, seu rosto branco como giz, os olhos fendidos, seu cabelo tão seco e sem vida como um canteiro de milho no inverno. Então, finalmente, a moto começou a cuspir e engasgar apopléticamente, e quando parou finalmente ele havia olhado para baixo e sentido uma certa tristeza, como se houvesse matado parte de si mesmo. Sem a motocicleta não havia como ele realizar uma investida decisiva sobre o silêncio, e o silêncio, de certo modo, era pior do que seus temores de morrer ou ficar gravemente ferido num acidente. Desde então, estivera caminhando. Passara por várias cidades pequenas ao longo da Nacional 9 que tinham revendedoras de motos, com vários modelos expostos, as chaves pendendo deles. Mas se olhasse as motos por tempo demais, as visões de si mesmo, caído ao lado da estrada numa poça de sangue, voltariam em vívido e doentio tecnicolor, como algo saído daqueles pavorosos mas de certo modo fascinantes filmes de terror de Charles Band, aqueles em que as pessoas sempre morriam debaixo das rodas de enormes caminhões ou em conseqüência de imensos insetos sem nome que proliferaram e cresceram nos seus próprios órgãos vitais aquecidos e por fim irrompiam livres numa exposição repelente de carne voadora. E ele os ignoraria, suportando o silêncio, pálido e arrepiado. Ignoraria solenemente pequenos feixes de transpiração acumulando-se sobre o lábio superior e nas concavidades de suas têmporas.
Havia perdido peso - como não perderia? Caminhava o dia inteiro do alvorecer ao pôr do sol. Quase não dormia. Os pesadelos o acordavam por volta das quatro da madrugada, e então ele acendia sua lanterna Coleman e se agachava junto a ela, esperando que o sol subisse o suficiente para que pudesse caminhar. E caminharia até que estivesse escuro demais para enxergar e depois acamparia com a velocidade urgente e furtiva de fugitivos de presídio acorrentados uns aos outros. Com o acampamento pronto, ele deitaria insone até tarde, sentindo-se como um homem com cerca de 2 gramas de cocaína circulando por sua corrente sanguínea. Ah, neném, sacuda, chocalhe e role. Tal como um viciado em cocaína da pesada, não estava comendo muito; nunca sentia fome. A cocaína não estimula o apetite, nem provoca terror. Larry não havia cheirado pó desde aquela festa na Califórnia, tanto tempo atrás. Mas sentia-se aterrorizado o tempo todo. O trilar de um pássaro nos bosques dava-lhe um susto. O grito de morte de um pequeno animal parecendo ser maior o punha em sobressalto. Ele havia passado por esbelteza e magreza, superara a fome. Agora estava equilibrado sobre alguma metafórica (ou metabólica) cerca entre emagrecimento e definhamento. Deixara crescer a barba e estava bem atraente, com um tom amarelo-acastanhado duas vezes mais claro do que seu cabelo. Os olhos estavam profundamente encovados no rosto; cintilavam das órbitas como pequenos e desesperados animais que tinham sido capturados em armadilhas gêmeas.
- Desmoronando - resmungou outra vez. O desespero alquebrado neste gemido estilhaçado o horrorizou. Tinha tudo acabado tão mal? Uma vez houvera um Larry Underwood que gravara um disco de moderado sucesso, que ambicionava tornar-se o Élton John do seu tempo - ah, meu caro, como Jerry Garcia riria disso -, e agora aquele sujeito se havia transmutado nesta coisa arruinada que rastejava sobre o asfalto da Nacional 9 em algum lugar a sudeste de New Hampshire, rastejando como uma cobra, este era ele. Aquele outro Larry Underwood podia por certo negar qualquer relação com este rebotalho rastejante... este...
Ele tentou levantar-se, mas não conseguiu.
- Ah, como isto é ridículo - disse, meio rindo, meio chorando.
De outro lado da estrada, numa colina a 200 metros de distância, reluzindo como uma linda miragem, estava uma casa de fazenda típica da Nova Inglaterra, branca e espaçosa. Tinha galpões verdes, arremates também em verde e um telhado verde de madeira. Partindo da casa, um gramado verde começando a parecer abandonado. Ao pé do gramado corria um pequeno córrego; Larry podia ouvi-lo gorgolejar e rumorejar, um som fascinante. Um muro de pedra serpenteava ao longo dele, talvez delimitando a propriedade, e inclinando-se por sobre o muro, a intervalos grandes, havia olmos grandes e frondosos. Ele podia simplesmente convencer o seu Rebotalho Coleante e Rastejante de Fama Mundial a ir até lá e sentar-se à sombra por um instante, era isso que iria fazer. E quando se sentisse um pouco melhor acerca... acerca das coisas em geral... poderia fazer o mesmo com seus pés e descer até o córrego para matar a sede e se lavar. Devia estar cheirando mal. Mas quem se importava com isso? Quem havia para sentir seu fedor agora que Rita estava morta?
Estaria ela ainda jazendo lá naquela tenda?, imaginou morbidamente. Inchando toda? Juntando moscas? Parecendo cada vez mais com aquele confeito negro no toalete da Transversal no 1? Diabo, onde mais poderia ela estar? Jogando golfe em Palm Springs com Bob Hope?
- Meu Deus, isto é horrível - sussurrou e rastejou através da estrada. Quando já estava à sombra teve certeza de que poderia ficar de pé, mas isto lhe parecia esforço demais. Ele poupara porém energia suficiente para olhar de volta para o caminho pelo qual viera a fim de certificar-se de que a motocicleta não estivesse no seu encalço.
A sombra estava pelo menos uns 15 graus mais fresca, e Larry soltou o ar num 364 longo suspiro de prazer e alívio. Levou a mão à nuca, onde o sol estivera batendo a maior parte cio dia, e a puxou de volta com um leve cicio de dor. Queimaduras de sol? Use Xilocaína. E toda aquela boa merda. Tire esses homens do sol quente. Queime, meu bem, queime. Watts. Está lembrado de Watts? Outro relance do passado. A raça humana inteira, apenas um grande e forte relance do passado, um gigantesco e dourado barato.
- Cara, você está doente - disse ele, reclinou a cabeça contra o tronco áspero do olmo e fechou os olhos. A sombra pontilhada de manchas do sol formava padrões móveis de vermelho e preto no interior de suas pálpebras. O som da água gorgolejante e rumorejante era suave e acalmava. Em um minuto desceria até lá para beber um gole de água e lavar-se. Em mais um minuto.
Ele cochilou.
Os minutos foram fluindo e seu cochilo se aprofundou no seu primeiro sono pesado e sem sonhos em muitos dias. Suas mãos descansaram flácidas no colo. O peito mirrado subia e descia, e a barba fazia seu rosto parecer ainda mais magro, o rosto perturbado de um refugiado solitário que escapara de um terrível morticínio em que ninguém acreditaria. Pouco a pouco, as linhas entalhadas no rosto queimado de sol começaram a se suavizar. Ele veio espiralando dos níveis mais profundos de inconsciência e descansou ali como uma pequena criatura fluvial sonhadoramente veraneando em estado de torpor no lodo frio. O sol moveu-se para mais baixo no céu.
Perto da margem do córrego, a tela luxuriante de arbustos chocalhava um pouco, como se algo se movesse firmemente através deles, parasse, depois se movesse de novo. Após um momento, um menino emergiu. Tinha talvez 13 anos, talvez dez, e alto para sua idade. Usava apenas shorts. Seu corpo era bronzeado, da cor do mogno, exceto pela surpreendente faixa branca que começava logo acima da cintura de seus shorts. A pele estava coberta de picadas de mosquito e micuim, algumas recentes, a maioria antiga. Na mão direita trazia uma faca de açougueiro. A lâmina tinha 30 centímetros de comprimento, o gume serrilhado. Reluzia calorosamente ao sol.
Suavemente, inclinando-se um pouco até a cintura, ele aproximou-se do olmo e do muro de pedra até parar bem atrás de Larry. Seus olhos eram de um azul-esverdeado da cor do mar, levemente virados para cima nos cantos, dando-lhe um aspecto de chinês. Eram olhos inexpressivos, um tanto selvagens. Ele ergueu a faca.
Uma voz de mulher, suave mas firme, disse:
- Não!
O menino voltou-se para ela, a cabeça empinada e ouvindo, a faca ainda erguida. Sua atitude era tanto interrogadora quanto decepcionada.
- Vamos esperar e ver - disse a voz da mulher.
O garoto fez uma pausa, olhando da faca para Larry e depois de volta para a faca, com uma nítida expressão de ânsia, e a seguir retirou-se pelo mesmo caminho por onde viera.
Larry adormeceu.
Quando acordou, a primeira coisa que percebeu foi que se sentia bem. A segunda foi que estava com fome. A terceira, que o sol estava errado - parecia ter viajado para trás, através do céu. A quarta foi que precisava, com perdão da palavra, mijar como um cavalo de corrida.
De pé e ouvindo o delicioso estalar das juntas ao espreguiçar-se, percebeu que não tinha apenas cochilado; havia dormido a noite toda. Consultou o relógio e viu por que o sol estava errado. Eram 9h20 da manhã. Deveria haver comida na grande casa branca. Sopa enlatada, talvez presuntada. Seu estômago roncava.
Antes de seguir até lá, ajoelhou-se junto ao riacho, sem roupas, e borrifou água por todo o corpo. Notou como estava ficando magro - a continuar assim, não iria muito longe. Levantou-se, enxugou-se com a camisa e enfiou as calças. Duas pedras exibiam seus negros traseiros molhados fora da correnteza e Larry as usou para atravessar o riacho. Na outra margem, ficou subitamente congelado e olhou para a espessa vegetação. O medo, que estivera adormecido nele desde que acordara, de súbito estourou como um nó de pinheiro explodindo, para depois diminuir com a mesma rapidez. O que ouvira poderia ter sido um esquilo ou uma marmota, talvez uma raposa. Nada mais. Virou-se com indiferença e começou a subir o gramado em direção à espaçosa casa branca.
A meio caminho, um pensamento aflorou-lhe à mente como uma bolha e estourou. Aconteceu casualmente, sem fanfarras, mas as implicações fizeram-no parar de repente.
O pensamento era: Por que não usou uma bicicleta’’’
Parou no meio do gramado, equidistante do córrego e da casa, estupefato pela simplicidade daquilo. Estivera caminhando desde que jogara a moto na vala. Caminhando, exaurindo-se, finalmente desmoronando devido às queimaduras de sol ou algo tão próximo a isso que não fazia diferença. E poderia ter estado pedalando, seguindo a uma boa velocidade de corrida, se assim o desejasse, e provavelmente agora já estaria no litoral, escolhendo sua casa de verão e equipando-a.
Começou a rir, suavemente a princípio, um pouco surpreso com o som do riso em meio a tanto silêncio. Rindo quando não havia mais ninguém por perto para acompanhar o riso era apenas outro sinal de que você estava fazendo uma viagem sem volta para o fictício país da loucura. Mas o riso soava tão real e caloroso, tão danadamente saudável e tão parecido com o antigo Larry Underwood, que continuou rindo pra valer. Ficou parado, as mãos na cintura, a cabeça virada para o céu e apenas dobrando-se de rir, de sua própria e espantosa tolice.
Atrás dele, onde as moitas de arbustos junto ao riacho eram mais espessas, os olhos azul-esverdeados observavam tudo isto, e depois viram como Larry por fim continuou a subir o gramado em direção à casa, ainda rindo um pouco e sacudindo a cabeça. Viram-no subir a varanda, experimentar a porta da frente e encontrá-la aberta. Viram-no desaparecer no interior. Então os arbustos começaram a se agitar, produzindo o som chocalhante que Larry ouvira e ao qual não dera importância. O menino abriu caminho através deles, ainda vestido só de shorts e empunhando a faca de açougueiro.
Outra mão surgiu e acariciou-lhe o ombro. O menino parou de imediato. A mulher apareceu - era alta e imponente, mas parecia não mover os arbustos, afinal. Tinha cabelos espessos, luxuriantemente negros e estriados com largos resplendores do mais puro branco; eram cabelos atraentes, singulares. Estavam torcidos numa trança que pendia sobre um ombro e caía, desviando-se apenas ao alcançar a protuberância dos seios. Ao olhar-se para aquela mulher, o primeiro detalhe que se notava era sua altura, mas depois os olhos eram atraídos para os cabelos, levando à pergunta de como era possível sentir com o olhar aquela tessitura rude mas ao mesmo tempo oleosa. E se você fosse homem, se pegaria imaginando como ela ficaria com aqueles cabelos soltos, libertos, espalhados sobre um travesseiro à luz do luar. O observador especularia como seria ela na cama. No entanto, ela jamais tivera um homem. Era pura. Estava esperando. Tinha havido sonhos. Certa vez, no colégio, houvera um tabuleiro Ouija. E ela voltou a se perguntar se este homem poderia ser aquele.
- Espere - disse ela ao menino.
Virou o rosto agoniado dele para o seu, mais calmo. Sabia qual era o problema.
- Nada vai acontecer à casa. Por que ele iria danificar a casa, Joe? O menino olhou para a casa, ansioso, preocupado.
- Quando ele se for, vamos acompanhá-lo - disse ela. O menino sacudiu vigorosamente a cabeça.
- Sim, temos que fazê-lo. Eu tenho. - E ela sentia isto fortemente. Talvez aquele não fosse o homem, porém. Mas mesmo que não fosse, era o elo em uma corrente que vinha seguindo por anos, uma corrente que agora se aproximava do final.
Joe - este não era realmente o seu nome - ergueu a faca furiosamente, como se fosse cravá-la na mulher. Ela não fez qualquer movimento para proteger-se ou recuar, e ele baixou a faca lentamente. Virando-se para a casa, esfaqueou o ar na direção dela.
- Não, você não vai fazer isso - disse ela. - Porque ele é um ser humano, e irá nos levar a... - Caiu em silêncio. Outros seres humanos, ela pretendera dizer para concluir. Ele é um ser humano e irá nos levar a outros seres humanos. Mas não tinha certeza de que isto era o que queria dizer, ou mesmo se fosse, de que era tudo que pretendia dizer. Já se sentia puxada para dois lados ao mesmo tempo, e começou a desejar que nunca tivesse visto Larry. Tentou acariciar o menino novamente, mas ele se retraiu, irritado; olhava para a grande casa no alto da colina e seus olhos ardiam de ciúme. Após um instante, tornou a embrenhar-se nos arbustos, olhando para a mulher com reprovação. Ela o seguiu para certificar-se de que tudo estava bem com ele. O menino deitou-se no chão, encolheu-se em posição fetal, aninhando a faca sob o peito. Enfiou o polegar na boca e fechou os olhos.
Nadine voltou até onde o córrego formara um pequeno remanso e ajoelhou-se. Bebeu água com as mãos em concha, depois ficou vigiando a casa. Tinha os olhos muito tranqüilos, o rosto muito parecido com o de uma Madona de Rafael.
No fim daquela tarde, enquanto Larry pedalava uma bicicleta ao longo de um trecho margeado de árvores da Rodovia Nacional 9, um letreiro verde em letras fosforescentes surgiu diante de seus olhos. Ele parou para ler e o letreiro dizia que estava entrando no MAINE, A TERRA DAS FÉRIAS. Mal pôde acreditar, devia ter percorrido uma incrível distância em seu semi-entorpecimento de medo. Ou isso ou então desperdiçara dois dias em algum lugar. Já ia recomeçar sua viagem quando alguma coisa - um ruído na vegetação ou talvez apenas na sua cabeça - o fez olhar bruscamente para trás por cima do ombro. Não havia nada senão a Rodovia 9, deserta, espichando-se de volta a New Hampshire.
Desde a casa branca, onde fizera um desjejum de cereal seco e queijo, espalhado de uma lata de aerossol sobre bolachas Ritz ligeiramente mofadas, que vinha tendo a forte sensação de estar sendo espionado e seguido. Estava ouvindo coisas, talvez até mesmo vendo coisas pelos cantos dos olhos. Sua capacidade de observação, apenas começando a despertar plenamente naquela estranha situação, continuava reagindo a estímulos tão mínimos que eram quase subliminares, espicaçando os terminais nervosos com coisas tão pequenas que, mesmo agregadas, formavam apenas uma vaga premonição, uma sensação de "estar sendo espreitado". Era uma sensação que não o atemorizava como as outras. Não produzia nenhuma espécie de alucinação ou delírio. Se alguém o espreitava e se deixava ficar para trás, era provavelmente porque tinha medo dele. E se temia o pobre e esquálido Larry Underwood, agora tão enfraquecido que sequer podia pilotar uma moto a 40km/h, não era portanto motivo de preocupação.
Agora, encarapitado na bicicleta que pegara em uma loja de artigos esportivos situada a uns 6 quilômetros a leste da grande casa branca, ele gritou em voz bem nítida:
- Se tem alguém aí, por que não dá as caras? Não vou machucá-lo!
Não houve resposta. Ele ficou parado na estrada, junto ao letreiro indicando a divisa interestadual, observando e esperando. Um passarinho trinou e depois arremeteu-se para o céu. Nada mais se moveu. Após um instante, ele prosseguiu em frente.
Por volta das seis daquela tarde, Larry chegou à cidadezinha de North Berwick, na junção das Rodovias 9 e 4. Decidiu acampar ali e prosseguir rumo ao litoral pela manhã.
Havia uma pequena mercearia no cruzamento da 9 e 4 em North Berwick, e lá ele pegou uma embalagem de meia dúzia de cervejas no freezer desativado. Era da marca Black Label, que nunca experimentara antes - uma cerveja regional, talvez. Também pegou um saco grande de batatas fritas e duas latas de guisado de carne. Pôs tudo na mochila e voltou à porta.
Do outro lado da rua havia um restaurante, e por um breve momento pensou ter visto duas sombras compridas se arrastando para trás dele e saindo de vista. Talvez fossem seus olhos pregando-lhe uma peça, mas ele achava que não. Pensou em atravessar a estrada correndo e surpreendê-las fora do esconderijo: Achei, podem sair, o pique-esconde acabou, crianças. Mas decidiu não fazê-lo. Sabia o que era o medo.
Em vez disso, caminhou um pouco pela estrada abaixo, empurrando a bicicleta com a mochila repleta balançando do guidom. Viu uma enorme escola de tijolos com um arvoredo nos fundos. Recolheu lenha suficiente caída do arvoredo para fazer uma fogueira de tamanho decente no meio do pátio de recreio asfaltado da escola. Havia um riacho nas proximidades, que fluía através de uma fábrica de tecidos e passava por baixo da estrada. Pôs a cerveja para gelar na água e cozinhou um guisado de carne na própria lata. Comeu-o na sua marmita de escoteiro, sentado num dos balanços do pátio de recreio. Balançou-se lentamente para a frente e para trás, com sua sombra projetando-se através das linhas desbotadas da quadra de basquete.
Ocorreu-lhe especular por que estava com tão pouco medo das pessoas que o seguiam - porque agora tinha certeza de que eram pessoas, pelo menos duas, talvez mais. Como um corolário, ocorreu-lhe especular por que se sentira tão bem o dia inteiro, como se um veneno negro tivesse vazado do seu organismo durante seu longo sono na tarde anterior. Seria tudo simplesmente falta de repouso? Isto e nada mais? Parecia tão simples!
Larry supôs, avaliando com certa lógica, que se os perseguidores pretendessem causar-lhe algum dano, já o teriam tentado. Teriam atirado nele de emboscada ou pelo menos apontariam armas para ele, forçando-o a se render e entregar a sua. Teriam lhe tomado tudo que quisessem... mas de novo pensando logicamente (também era bom pensar com lógica, porque nos últimos dias todo o seu raciocínio tinha sido causticado num banho de ácido corrosivo de terror), o que possivelmente ele teria que alguém pudesse querer? Até onde se sabia, agora havia fartura para todo mundo, porque muito poucos haviam sobrevivido. Por que se dar ao trabalho de roubar e matar, ao risco da própria vida, quando tudo com que sempre sonhou em ter enquanto se sentava na latrina com o catálogo da Sears no colo estava agora disponível atrás de cada vitrine de loja do país? Era só quebrar o vidro, entrar e pegar.
Tudo, exceto a companhia de seus semelhantes. Isto era um artigo raro, como Larry sabia muito bem. E o motivo real por não sentir medo era porque achava que aquelas pessoas deviam querer justamente isto. Cedo ou tarde, o desejo delas suplantaria seu medo. Ele esperaria até lá. Não ia encorajá-las como uma ninhada de codornas; isto só tornaria as coisas piores. Dois dias atrás, teria empalidecido se visse alguém. Simplesmente assustado demais para fazer qualquer outra coisa. Portanto, podia esperar. Mas, porra, ele realmente queria ver alguém de novo. Queria mesmo.
Caminhou de volta ao riacho e lavou sua marmita. Pegou as cervejas que gelavam na água e voltou para o balanço. Abriu a primeira lata e levantou-a na direção do restaurante onde tinha visto as sombras.
- À muito boa saúde de vocês - disse Larry e bebeu metade da lata num só gole. E ainda falam em ser gentil!
Na hora em que traçou a última cerveja passava um pouco das sete e o sol estava quase se pondo. Larry chutou os últimos resquícios de cinza da fogueira e recolheu suas coisas. Depois, meio de pileque e sentindo-se animado, subiu mais meio quilômetro pela Rodovia 9 e encontrou uma casa com o alpendre telado. Estacionou a bicicleta no gramado, pegou o saco de dormir e forçou a porta do alpendre com uma chave de fenda.
Olhou em torno mais uma vez, esperando ver quem o seguia - talvez fossem várias pessoas -, mas a rua estava quieta e vazia. Ele deu de ombros e entrou na casa.
Ainda era cedo e achou que ficaria algum tempo até o sono chegar, mas aparentemente estava precisando dormir mais do que imaginava. Quinze minutos após se deitar estava ferrado no sono, com a respiração lenta e uniforme, o rifle bem ao alcance da mão direita.
Nadine estava cansada. Este parecia agora o dia mais longo da sua vida. Por duas vezes teve certeza de que tinham sido vistos, uma vez perto de Strafford e de novo na divisa do Maine com New Hampshire, quando ele havia olhado por sobre o ombro e gritado. Ela não se importava se tivessem sido vistos ou não. Este homem não era louco, como o homem que havia passado pela casa branca dez dias atrás. Aquele tinha sido um soldado carregado com armas e granadas e cintas de munição. Estivera rindo e chorando e ameaçando explodir os bagos de alguém chamado tenente Morton. Esse tenente Morton não estivera em nenhum lugar à vista, o que foi provavelmente uma boa coisa para ele, caso ainda estivesse vivo. Joe também ficara assustado com o soldado, e neste caso foi provavelmente uma coisa muito boa.
- Joe?
Ela olhou em volta. Joe se fora.
E ela estivera à beira do sono e de escorregar. Empurrou o único cobertor e se levantou, estremecendo com uma centena de dores diferentes. Quanto tempo fazia desde que passara tantas horas pedalando uma bicicleta? Nunca, provavelmente. E depois houve o constante e enervante esforço para descobrir o meio-termo justo. Se chegassem perto demais, ele iria vê-los, o que incomodaria Joe. Se ficassem muito para trás, ele poderia trocar a Rodovia 9 por outra estrada, e iriam perdê-lo. O que incomodaria a ela. Nunca ocorreu-lhe que Larry poderia contorná-los e pegá-los por trás. Felizmente (para Joe, pelo menos), isto tampouco havia ocorrido a Larry.
Continuou dizendo a si mesma que Joe se acostumaria com a ideia de que precisavam dele... e não só dele. Não podiam ficar sozinhos. Se continuassem sozinhos, morreriam sozinhos. Teriam que se habituar com outras pessoas.
- Joe - chamou de novo, suavemente.
Joe podia ser tão silencioso quanto um guerrilheiro vietcongue rastejando através do mato, mas os ouvidos dela conseguiram ficar sintonizados com ele nas últimas três semanas e esta noite, como uma bonificação, era enluarada. Ela ouviu um leve arranhar e ruído de cascalho, e soube para onde Joe estava indo. Ignorando suas dores, ela o seguiu. Eram 10h15 da noite.
Haviam acampado (se você quisesse chamar dois cobertores estendidos na relva de "acampamento") atrás do North Berwick Grille, em frente à mercearia, guardando as bicicletas sob um telheiro atrás do restaurante. O homem que estavam seguindo havia comido no pátio de recreio da escola do outro lado da rua ("Se fôssemos até lá, aposto que ele dividiria sua refeição conosco, Joe", dissera ela com tato. "Está quente... e não é que está cheirando bem? Aposto que está muito mais saborosa do que esta mortadela." Os olhos de Joe se arregalaram, mostrando um bocado do branco. Ele sacudiu sua faca malignamente na direção de Larry) e depois subira a rua até uma casa com alpendre telado. Pelo modo como conduzia a bicicleta, ela achou que talvez estivesse meio bêbado. Estava agora adormecido no alpendre da casa que havia escolhido.
Nadine apressou o passo, estremecendo enquanto seixos esparsos mordiam as solas de seus pés. Havia casas à esquerda e ela atravessou até seus gramados, que estavam agora se transformando em matagal. A grama, pesadamente orvalhada e adocicada, alcançava a altura das suas canelas nuas. Isto a fez pensar numa ocasião em que fugira de um garoto através de uma grama assim, debaixo de uma lua cheia, em vez de minguante, como era esta agora. Houvera uma bola doce e quente de excitação no seu baixo-ventre, e ela estivera muito consciente dos seios como objetos sexuais, cheios, maduros, se projetando do peito. A lua a fizera sentir-se inebriada, e o mesmo tinha feito a grama, molhando suas pernas com a umidade noturna. Tinha sabido que se o garoto a agarrasse, ela o deixaria tirar sua virgindade. Correra como um índio através do milharal. Ele a tinha pegado? O que importava isso agora?
Correu mais rápido, pulando por cima de uma entrada de carros cimentada que brilhava como gelo na escuridão.
E lá estava Joe, parado à beira do alpendre telado onde o homem dormia. Os shorts brancos de Joe eram a coisa mais brilhante na escuridão; de fato, a pele do garoto era tão escura que ao primeiro olhar quase se pensaria que os shorts estavam ali sozinhos, suspensos no espaço, ou então sendo usados por um homem invisível de H. G. Wells.
Joe era oriundo de Epson, ela sabia, porque foi lá que o havia encontrado. Nadine era de South Barnstead, uma cidade que ficava a 24 quilômetros a nordeste de Epson. Ela estivera procurando metodicamente por outras pessoas saudáveis, relutante em abandonar a própria casa na sua cidade natal. Trabalhou em círculos concêntricos que ficavam cada vez mais amplos. Só havia encontrado Joe, delirante e febril por causa da picada de algum tipo de animal - rato ou esquilo, mais ou menos desse porte. Ele estivera sentado no gramado de uma casa em Epson vestido só de shorts, a faca de açougueiro aferrada na mão como um selvagem da Idade da Pedra ou um pigmeu agonizante, mas ainda indomado. Ela já tivera experiência anterior com infecções e o carregara para a casa. Tinha sido a própria casa dele? Nadine achou que provavelmente sim, mas jamais teria certeza, a não ser que Joe lhe dissesse. Haviam encontrado um monte de gente morta na casa: mãe, pai, três outros filhos, o mais velho com cerca de 15 anos. Nadine encontrara um consultório médico onde havia desinfetante, antibióticos e ataduras. Não tinha certeza de quais antibióticos seriam os corretos e sabia que poderia matá-lo se escolhesse o medicamento errado, mas se não lhe desse nada ele morreria de qualquer jeito. A picada era no tornozelo, que havia inchado do tamanho de uma câmara de ar. A sorte esteve do lado dela. Em três dias o tornozelo voltou ao tamanho normal e a febre se foi. O garoto confiava nela. Em ninguém mais, aparentemente, mas nela sim. Acordava pelas manhãs e ele já estava grudado nela. Foram para a grande casa branca. Ela o chamava de Joe. Não era o nome dele, mas na sua vida como professora, qualquer menina cujo nome não sabia era sempre chamada de Jane, qualquer menino, de Joe. O soldado tinha chegado, rindo, chorando e xingando o tenente Morton. Joe quisera sair correndo e matá-lo com a faca. E agora este homem. Ela estava receosa de tomar-lhe a faca, pois era o talismã de Joe. Tentar isto seria a única coisa que poderia fazê-lo voltar-se contra ela. Joe dormia com a faca apertada na mão, e na única noite em que havia tentado puxá-la, mais para ver se podia realmente ser feito do que de fato tomá-la para sempre, ele havia acordado instantaneamente, sem nenhum movimento. Num momento, rapidamente desperto. No momento seguinte, aqueles olhos azul-esverdeados inquietos, com seu aspecto chinês, estiveram fitando-a com branda selvageria. Joe havia puxado a faca de volta com um rosnado baixo. Ele nada falou.
Agora estava erguendo a faca, baixando-a, erguendo-a de novo. Fazendo aqueles ruídos rosnantes baixos na garganta e dando estocadas com a faca para a tela. Preparando-se talvez para investir realmente contra a porta.
Nadine chegou por trás dele, sem fazer qualquer esforço especial para manter silêncio, porém Joe não a ouviu; estava perdido no seu próprio mundo. Num instante, inconsciente do que ia fazer, ela aferrou a mão no pulso dele e torceu-o violentamente no sentido anti-horário.
Joe emitiu um arfar sibilante e Larry Underwood se agitou um pouco no seu sono, virou-se e se aquietou de novo. A faca caiu na grama entre eles, sua lâmina serrilhada captando reflexos irregulares da lua prateada. Os dois pareciam flocos de neve luminosos.
Joe a fitou com raiva, reprovador e com olhos desconfiados. Nadine o fitou de volta, de modo descompromissado. Apontou para o caminho pelo qual tinham vindo. Joe sacudiu a cabeça maldosamente. Apontou para a tela e a protuberância escura no saco de dormir atrás dela. Fez um gesto horrivelmente explícito, traçando seu polegar ao longo da garganta na altura do pomo-de-adão. A seguir sorriu. Nadine nunca o vira sorrir antes e isto lhe causou um calafrio. Não poderia ser mais selvagem nem se aqueles brilhantes cientes brancos tivessem sido afiados com uma lima.
- Não - disse ela suavemente. - Ou acordarei ele agora. Joe pareceu alarmado. Sacudiu a cabeça rapidamente.
- Então volte comigo. Para dormir.
Ele olhou para a faca no chão, depois para ela de novo. A selvageria, pelo menos por enquanto, se fora. Ele era apenas um garotinho que queria seu urso de pelúcia ou o cobertor áspero que o acompanhava desde o berço. Nadine reconheceu vagamente que esta poderia ser a hora de fazê-lo abandonar a faca, para simplesmente sacudir a cabeça num firme "Não". Mas e depois? Iria ele gritar? Joe havia gritado depois que o soldado lunático sumira de vista. Gritara repetidamente, sons enormes e inarticulados de terror e raiva. Queria ela conhecer o homem no saco de dormir à noite, e com aquela gritaria ressoando nos ouvidos dela e dele?
- Vai voltar comigo? Joe assentiu.
- Muito bem - disse ela baixinho. Joe se inclinou depressa e recolheu a faca no chão.
Retornaram juntos, ele se arrastando junto a ela confiantemente, o intruso esquecido, pelo menos por enquanto. Enrolou seus braços em torno dela e foram dormir. Ela sentiu a velha dor familiar no ventre, muito mais profunda e impregnante do que aquelas causadas pelo exercício. Era uma dor de mulher, e nada se podia fazer. Ela caiu no sono.
Ela acordou por volta das primeiras horas da manhã - não usava relógio -, com frio, rígida e aterrorizada, de repente receando que Joe tivesse astuciosamente esperado até ela adormecer para voltar à casa e cortar a garganta do homem enquanto ele dormia. Os braços de Joe não mais a enlaçavam. Sentia-se responsável pelo garoto, sempre sentira-se responsável pelos pequenos seres que nunca pediram para vir ao mundo, mas, se ele tivesse feito isso, Nadine iria deixá-lo por sua própria conta. Tirar uma vida quando tantas já haviam sido perdidas era um pecado imperdoável. E também não podia ficar sozinha com Joe por muito mais tempo sem ajuda; estar com ele era como estar numa jaula com um leão temperamental. Tal como um leão, Joe não podia (ou não sabia) falar; podia apenas rosnar em sua pequena voz perdida de menino.
Ela sentou-se e viu que o garoto ainda estava lá. No seu sono ele se afastara dela um pouco, só isso. Joe havia se encolhido em posição fetal, o polegar dentro da boca, a mão apertada em torno do cabo da faca.
Já inteiramente desperta, ela caminhou até a relva, urinou e voltou para seu cobertor. Quando a manhã raiou, ela não tinha certeza de que acordara de fato durante a noite ou se apenas havia sonhado com isso.
Se sonhei, pensou Larry, devem ter sido bons sonhos. Não recordava de nenhum deles. Sentia-se como nos velhos tempos e achou que aquele seria um dia agradável. Hoje finalmente veria o oceano. Enrolou o saco de dormir, amarrou-o ao bagageiro da bicicleta, voltou para pegar a mochila... e parou.
Um caminho cimentado levava até os degraus do alpendre, e de ambos os lados a grama estava alta e incrivelmente verde. À direita, junto ao próprio alpendre, a relva orvalhada estava caída. Quando o orvalho evaporasse, ela voltaria a se pôr de pé, mas agora retinha a impressão de pegadas. Larry havia sido criado na cidade, não entendia dessas coisas do campo (era mais chegado a Hunter Thompson do que a James Fenimore Cooper), mas era preciso ser cego, pensou, para não concluir que os rastros eram de duas pessoas: uma grande e outra pequena. Em algum tempo durante a noite, tinham se aproximado da tela e olhado para ele. Isto o deixou gelado. Era o tipo de espreita que não lhe agradava, e gostou muito menos do primeiro toque do medo que retornara.
Se os perseguidores não se mostrarem logo, pensou, vou fazer tudo para descobri-los. Somente a ideia de que poderia fazer isto bastou para recuperar sua autoconfiança. Pôs a mochila nas costas e prosseguiu viagem.
Por volta do meio-dia, tinha alcançado a Nacional 1 em Wells. Jogou uma moeda e deu coroa. Então dobrou ao sul pela Nacional 1, deixando a moeda reluzindo indiferentemente na terra. Joe a encontrou vinte minutos depois e ficou olhando para ela como se fosse o cristal de um hipnotizador. Ele a pôs na boca e Nadine o obrigou a cuspi-la.
Três quilômetros estrada abaixo, Larry o viu pela primeira vez, o imenso animal azul, lento e preguiçoso neste dia. Era inteiramente diverso do Pacífico ou do Atlântico, que banhava Long Island. Aquela parte do oceano parecia complacente, de alguma forma, quase domada. Aqui a água era de um azul-escuro, quase cobalto, e chegava à terra em ondulações sucessivas, mordendo as rochas. A espuma, tão espessa como clara de ovo batida, saltava alta no ar e depois se esparramava de volta. As ondas produziam um estrondo permanente contra a praia.
Larry estacionou a bicicleta e caminhou para o mar, sentindo uma profunda excitação que não sabia explicar. Ali estava ele, chegara ao lugar onde o mar assumia o controle. Aquele era o fim do leste. Era o fim da terra.
Cruzou um trecho pantanoso, os sapatos chapinhando na água que cercava montículos e aglomerados de juncos. Havia um cheiro forte e fecundo de maresia. Quando chegou mais perto do promontório, a fina pele de terra foi descascada, mostrando o osso nu de granito que apontava através dela - granito, a verdade final do Maine. Gaivotas alçaram vôo, brancas contra o céu azul, grasnando e gemendo. Ele nunca vira tantas aves juntas num só lugar. Ocorreu-lhe que, apesar de sua alva beleza, gaivotas eram comedoras de carniça. O pensamento seguinte foi quase indizível, mas se formara por completo em sua mente antes que pudesse rejeitá-lo: A comilança deve ter sido muito boa ultimamente.
Recomeçou a caminhar, seus sapatos agora estalando e arranhando na rocha ressecada pelo sol, a qual vivia eternamente molhada em seus muitos veios pelos borrifos. Havia cracas proliferando naquelas rachaduras, e espalhando-se aqui e ali, como estilhaços de granada de osso, estavam as conchas que as gaivotas jogavam para obter o alimento macio dentro delas.
Um momento depois, ele ficou de pé sobre o promontório nu. O vento marinho fustigou-o com força total, levantando da sua testa as mechas espessas de cabelo crescido. Ergueu o rosto para o vento, para o cheiro forte e limpo, o cheiro salitrado do animal azul. As ondulações, em um vidrado tom verde-azul, moviam-se lentamente, o declive ficando mais acentuado quando o fundo se tornava mais raso debaixo delas, os cumes primeiro ganhando um anel de espuma, depois uma coroa cacheada. Então arremetiam suicidamente contra as rochas, como faziam desde tempos imemoriais, destruindo-se e destruindo ao mesmo tempo uma partícula infinitesimal de terra. Havia um ribombar, um estouro tossido, enquanto a água era empurrada fundo para algum canal semi-submerso de rocha, escavado ao longo de milênios.
Ele virou primeiro à esquerda, depois à direita, e viu a mesma coisa acontecendo em cada direção, até onde a vista alcançava... rebentações, ondas, borrifos, a maioria de tudo uma pletora interminável de cor de tirar o fôlego.
Ele estava no fim da terra.
Sentou-se com os pés dependurados na borda, sentindo uma ligeira sensação de triunfo. Ficou ali por meia hora ou mais. A brisa marinha aguçou-lhe o apetite e ele remexeu na mochila procurando o que comer. E comeu vorazmente. Borrifos de espuma haviam manchado as pernas dos seus jeans. Sentiu-se limpo e revigorado.
Caminhou de volta através do terreno pantanoso, ainda tão imerso em seus pensamentos que de início supôs ter sido de novo aquele grito ascendente das gaivotas. Chegou até a erguer os olhos para o céu antes de se dar conta, com maldosa pontada de medo, de que era um grito humano. Um grito de guerra.
Seus olhos voltaram-se de novo para baixo e viu um menino correndo pela estrada em sua direção, as pernas musculosas movendo-se vigorosamente. Em uma das mãos trazia uma comprida faca de açougueiro. Usava apenas shorts e tinha as pernas entrecruzadas de lacerações. Atrás dele vinha uma mulher, acabando de sair do matagal e das urtigas do lado oposto da estrada. Parecia pálida e havia círculos de exaustão debaixo dos olhos.
- Joe! - gritou, e então começou a correr, como se isto lhe exigisse um doloroso esforço.
Joe prosseguiu em frente, sem lhe dar atenção, os pés nus levantando finos lençóis de água do pântano. Todo o seu rosto estava repuxado para trás num sorriso firme e assassino. A faca de açougueiro erguia-se acima de sua cabeça, refletindo o sol.
Está vindo para me matar, pensou Larry, inteiramente aturdido pela ideia. Esse menino... o que foi que fiz a ele?
- Joe! - gritou a mulher, desta vez em voz estridente, cansada, desesperada. Joe continuou a correr, encurtando a distância.
Larry teve tempo de perceber que deixara o rifle na bicicleta, mas então o menino que gritava já estava sobre ele.
Quando Joe brandiu a faca num arco longo e devastador, a paralisia de Larry se desfez. Saltou para o lado, sem sequer pensar, ergueu o pé direito e lançou a pesada e molhada bota que calçava contra o ventre do menino. E o que sentiu foi pena: nada tinha contra o garoto, que foi derrubado como um pino de boliche. Ele parecia feroz, mas não era um peso pesado.
- Joe! - gritou Nadine. Tropeçou em um montículo e caiu de joelhos, manchando a blusa branca de lodo marrom. - Não o machuque! Por favor, não o machuque! É apenas um menino! - Ela se levantou e prosseguiu.
Joe havia caído de costas. Estava esparramado como um x, os braços formando um v, as pernas abertas formando outro, invertido. Larry deu um passo à frente e pisou no seu punho direito, mantendo contra o solo lamacento a mão que segurava a faca.
- Largue isso, garoto!
Joe sibilou, depois emitiu um som como o grugulejar de um peru. Seu lábio superior repuxou-se sobre os dentes. Os olhos de chinês fixaram-se nos de Larry. Manter o pé sobre o pulso do menino era como pisar em uma cobra ferida mas ainda perigosa. Podia senti-lo tentando libertar a mão, pouco ligando se isto lhe custasse lacerações na pele, na carne, ou até mesmo um osso quebrado. Ele contorceu-se para uma posição quase sentada e tentou morder a perna de Larry através do duro brim molhado das calças jeans. Larry pisou com mais força ainda no pulso fino e Joe deu um grito - não de dor, mas de desafio.
- Largue a faca, garoto.
Joe continuou lutando.
A coisa ia continuar até Joe largar a faca ou Larry quebrar-lhe o pulso, se Nadine não tivesse finalmente chegado, enlameada, arquejante, cambaleando de cansaço. Sem olhar para Larry, ela caiu de joelhos.
- Largue isso! - disse ela baixinho, mas com grande firmeza. Tinha o rosto suado porém calmo. Mantinha-o a apenas alguns centímetros acima das feições furiosas e contorcidas de Joe. O menino avançou para ela como um cão e continuou a forcejar. Com uma careta, Larry pelejou para manter o equilíbrio. Se o menino se livrasse agora, provavelmente atacaria a mulher primeiro.
- Solte... isso! - disse Nadine.
O garoto grunhiu. Saliva escorreu por entre seus dentes cerrados. Havia uma nódoa de lodo em forma de ponto de interrogação na sua face direita.
- Vamos abandoná-lo, Joe. Eu o abandonarei e seguirei com ele. A não ser que você se comporte.
Larry sentiu mais uma tensão do braço sob seu pé, depois um afrouxamento. Mas o garoto olhava para ela com um ar pesaroso, acusador e de reprovação. Quando ele desviou o olhar ligeiramente para fitá-lo, Larry pôde ler o ciúme fervente naqueles olhos. Mesmo com o suor escorrendo dele a cântaros, Larry sentiu-se gelado sob aquele olhar.
Nadine continuou a falar calmamente. Ninguém iria machucar Joe. Ninguém o abandonaria. Se ele largasse a faca, todos seriam amigos.
Aos poucos, Larry percebeu que a mão debaixo de sua bota havia relaxado e soltado a faca. O menino permaneceu quieto, olhando para o céu. Tinha optado por ceder. Larry retirou o pé de sobre seu pulso, abaixou-se rapidamente e recolheu a faca. Virando-se, atirou-a para o alto e para longe, na direção do promontório. A lâmina rodopiou, emitindo reflexos solares. Os olhos estranhos de Joe seguiram o rumo da faca e ele soltou um longo e ululante gemido de dor. A faca caiu sobre as rochas com um leve ruído metálico e depois escorregou pela borda do promontório.
Larry virou-se e olhou para eles. A mulher olhava para o braço direito de Joe, onde a forma da bota de Larry ficara profundamente delineada, transformando-se agora em uma irada mancha vermelha. Os olhos escuros dela ergueram-se a seguir para o rosto de Larry, cheios de angústia.
Larry sentiu o surgimento das velhas palavras justificativas - Eu tive que fazer isto, não foi minha culpa, sabe, moça, ele queria me matar -, porque achou que podia ler a acusação naqueles olhos magoados: Você não é um cara legal.
Mas no fim acabou não dizendo nada. A situação era o que era, e seus atos tinham sido forçados pelos do menino. Olhando para ele, que agora se encolhia desolado sobre os joelhos e enfiava um polegar na boca, duvidava de que aquele garoto tivesse dado início â situação. Uma situação que poderia ter tido um desfecho pior, com um deles ferido ou mesmo morto.
Assim, ficou calado, encarou o olhar suave da mulher e pensou: Acho que mudei. De algum modo. Não sei quanto. Flagrou-se lembrando de algo que Barry Grieg lhe dissera sobre um guitarrista de Los Angeles, um cara chamado Jory Baker, que chegava sempre na hora, nunca perdia um ensaio nem ferrava um teste musical. Não era um guitarrista de encher os olhos, não um fenômeno como Angus Young ou Eddie Van Halen, mas competente. Certa vez, dissera Barry, Jory Baker fora a mola mestra de um grupo chamado Sparx, um conjunto que todo mundo parecia achar ser o Sucesso Mais Provável do Ano. Tinham um som que fazia lembrar o Creedence dos primeiros tempos: uma guitarra de rock and roll vigorosa e marcante. Jory Baker tinha feito a maioria dos arranjos e todos os vocais. Então houve um acidente de carro, ossos quebrados, um monte de entorpecentes no hospital. Ele havia saído, como diz a canção de John Prine, com uma placa de aço na cabeça e viciado em drogas. Evoluiu de Demerol para heroína.
Experimentou umas duas vezes. Passado algum tempo, era mais um drogado com dedos desajeitados catando trocados no terminal da Greyhound e vadiando pelas ruas. Então, de algum modo, após um período de 18 meses, conseguiu se limpar e assim permaneceu. Uma boa parte dele se foi. Já não era mais a mola mestra de nenhum grupo, o Sucesso Mais Provável ou coisa que o valha, mas sempre chegava na hora, nunca perdia um ensaio ou ferrava um teste musical. Não era de falar muito, mas a auto-estrada de agulhadas no seu braço esquerdo havia desaparecido. E Barry Grieg arrematara: Ele passou para o outro lado. Isso era tudo. Ninguém pode dizer o que se passa entre a pessoa que você foi e a pessoa na qual se transformou. Ninguém pode reservar aquela azul e isolada seção do inferno. Não há mapas de troca. Você simplesmente... passa para o outro lado.
Ou não passa.
Mudei de algum modo, pensou Larry vagamente. Também passei para o outro lado.
- Sou Nadine Cross - apresentou-se ela. - Este é Joe. Fico feliz em conhecê-lo.
- Larry Underwood.
Trocaram um aperto de mãos, ambos sorrindo levemente pelo absurdo.
- Vamos voltar para a estrada - disse Nadine.
Começaram a caminhar lado a lado. Após alguns passos, Larry olhou para Joe por sobre o ombro. O menino continuava de joelhos, chupando o polegar, parecendo não perceber que estavam indo embora.
- Ele virá - disse ela baixinho.
- Tem certeza?
- Absoluta.
Quando chegaram ao acostamento de cascalho da estrada, ela cambaleou e Larry pegou-a pelo braço. Nadine olhou para ele, agradecida.
- Podemos sentar? - perguntou ela.
- Claro.
Assim, ficaram sentados ali, frente a frente. Após algum tempo, Joe levantou-se e seguiu na direção deles, olhando para seus pés descalços. Sentou-se meio afastado deles. Larry olhou para ele cauteloso, depois virou-se para Nadine.
- Vocês dois estavam me seguindo.
- Você sabia? Sim, creio que notou.
- Por quanto tempo?
- Já faz dois dias - disse Nadine. - Estávamos naquela casa grande em Epson. - Notando a expressão confusa de Larry, acrescentou: - Perto do córrego. Você adormeceu junto ao muro de pedra.
Larry admitiu.
- E na noite passada vocês dois vieram me espiar enquanto eu dormia naquele alpendre. Talvez para ver se eu tinha chifres ou um comprido rabo vermelho.
- Foi Joe - respondeu ela baixinho. - Fui atrás dele quando percebi que havia desaparecido. Como soube?
- Vocês deixaram rastros no orvalho.
- Ah! - Ela o fitou atentamente, escrutinando-o, e embora desejasse, Larry não baixou os olhos. - Não quero que fique zangado conosco. Suponho que pareça ridículo, depois de Joe ter tentado matá-lo minutos atrás, mas ele não é responsável.
- Este é o verdadeiro nome dele?
- Não, apenas o chamo assim.
- Ele parece um selvagem daquelas séries de TV da National Geographic.
- Sim, é mais ou menos isso. Encontrei-o no gramado de uma casa... a casa dele, talvez, o nome era Rockway... passando mal por causa de uma picada. Mordida de rato, talvez. Ele não fala. Só dá grunhidos e gemidos. Até esta manhã fui capaz de controlá-lo. Mas... estou cansada, como vê, e... - Ela deu de ombros. A lama do pântano secava em sua blusa, formando o que poderia ter sido uma série de ideogramas chineses. - No começo eu o vesti, mas ele tirava tudo, exceto os shorts. Por fim, me cansei de tentar. Os mosquitos não pareciam incomodá-lo. - Fez uma pausa. - Eu queria que fôssemos com você. Acho que não adianta mostrar recato sobre isto, devido às circunstâncias.
Larry imaginou o que ela pensaria se lhe contasse sobre a última mulher que quisera acompanhá-lo. Não que desejasse tocar no assunto; era um episódio que estava profundamente sepultado, mesmo que a mulher em questão não estivesse. Não estava mais ansioso em evocar Rita do que um assassino em pronunciar o nome de sua vítima em alguma conversa de salão.
- Não sei para onde estou indo - disse ele. - Vim de Nova York, e acho que pelo trajeto mais longo. O plano era encontrar uma bela casa no litoral e ficar lá até outubro, mais ou menos. Porém, quanto mais longe chego, mais quero encontrar outras pessoas. Quanto mais longe chego, mais isto parece me abalar.
Estava se expressando pessimamente e parecia incapaz de sair-se melhor, para não falar em Rita e nos seus pesadelos com o homem escuro.
- Fiquei muito tempo amedrontado - disse com cautela -, porque estou por minha própria conta. Para lá de paranóico. É como se esperasse que peles-vermelhas surgissem a qualquer momento, querendo tirar meu escalpo.
- Em outras palavras, você parou de procurar casas e começou a procurar gente.
- Sim, talvez.
- Pois já nos encontrou. É um começo.
- Acho que vocês é que me encontraram. E esse garoto me deixa preocupado, Nadine. Tenho de ficar prevenido. Ele agora está sem a faca, mas o que não falta são facas neste mundo, espalhadas por aí, esperando que alguém as pegue.
- Sim.
- Não quero parecer brutal... - Ele deixou as palavras no ar, na esperança de que falassem por si, porém ela nada disse. Continuou fitando-o com aqueles olhos escuros. - Já pensou em abandoná-lo?
Pronto, estava feito. Era como cuspir fora um pedaço de pedra, e Larry ainda não parecia muito um cara legal... mas isto era o certo. Seria justo cada um deles piorar uma situação já péssima sobrecarregando-se com um psicopata de dez anos? Ele dissera que pareceria brutal, e na verdade era. Mas estavam agora vivendo num mundo brutal.
Enquanto isso, os estranhos olhos da cor do mar de Joe o fitavam entediados.
- Eu não poderia fazer isso - disse Nadine calmamente. - Compreendo o perigo, tal como sei que este perigo seria primordialmente para você. Ele sente ciúmes. Receia que você possa tornar-se mais importante para mim do que ele. Joe poderia muito bem tentar... tentar atacá-lo novamente, a menos que o conquiste com a sua amizade e o convença de que não pretende... - Ela interrompeu-se, deixando no ar essa parte. - Se eu o abandonar, porém, isto seria o mesmo que matá-lo. E não quero ser culpada disso. Muita gente já morreu para se matar mais.
- Se ele cortar minha garganta no meio da noite, você terá sua parcela de culpa.
Ela baixou a cabeça.
Falando tão baixo de modo que só Nadine pudesse ouvir (ele não sabia se Joe, que os observava, compreendia o que estavam falando), Larry disse:
- Ele provavelmente o teria feito esta noite, se você não o seguisse. Não é verdade?
Suavemente, ela respondeu:
- São coisas que podem acontecer.
Ele riu.
- O Fantasma do Natal Vindouro?
Nadine ergueu os olhos.
- Quero ir com você, Larry, mas não posso abandonar Joe. Você terá que decidir.
- Você não torna a vida mais fácil.
- A vida não tem sido fácil nesses dias.
Ele pensou a respeito. Joe sentava-se no acostamento da estrada, observando-os com seus olhos da cor do mar. Atrás deles, o mar verdadeiro movia-se incansável contra as rochas, trovejando em seus canais secretos que se infiltravam na terra.
- Tudo bem - falou. - Acho que está sendo perigosamente bondosa, mas... tudo bem.
- Obrigada - disse Nadine. - Serei responsável pelos atos dele.
- O que será um grande consolo se ele me matar.
- Isto me pesaria no coração pelo resto da vida - disse Nadine e uma súbita certeza de que todas as suas palavras sobre a santidade da vida, em um dia não muito distante, se ergueriam para zombar dela, varrendo-a como um vento frio, fazendo-a estremecer. Não, disse para si mesma. Não matarei. Isso não. Nunca.
Nessa noite acamparam na macia areia branca da praia pública de Wells. Larry fez uma grande fogueira acima da linha de algas que marcava a última maré alta e Joe sentou-se do outro lado, longe dele e de Nadine, alimentando o fogo com pequenos gravetos. Ocasionalmente, enfiava um graveto maior nas chamas, até que ardesse como uma tocha. Então corria pela areia, empunhando-o como uma única e chamejante vela de aniversário. Conseguiram vê-lo até uma distância de uns 10 metros da fogueira, mas depois viam apenas sua tocha móvel, repuxada para trás pelo deslocamento de vento na sua louca correria. A brisa marinha aumentara um pouco, sendo bem mais fria do que nos dias anteriores. Vagamente. Larry lembrou-se da pancada de chuva ocorrida na tarde em que encontrara sua mãe morrendo, pouco antes que a supergripe atingisse Nova York como um trem cargueiro em disparada. Lembrou a tormenta e as cortinas brancas soprando violentamente para dentro do apartamento. Estremeceu um pouco, e essa brisa fazia as fagulhas dançarem numa espiral de fogo para cima, na direção do céu negro salpicado de estrelas. As fagulhas turbilhonavam ainda mais alto, cintilando. Larry pensou no outono, ainda distante mas não tanto como aquele dia de junho, quando descobrira sua mãe caída no chão, delirando. Estremeceu de leve. No lado norte, muito além da praia, a tocha de Joe oscilava para cima e para baixo. Isto o fez sentir-se solitário e com mais frio - aquela luz isolada, crepitando na ampla e silenciosa escuridão. As ondas rolavam e ribombavam.
- Você toca?
Larry sobressaltou-se um pouco à pergunta de Nadine e olhou para o estojo da guitarra descansando na areia ao lado deles. Estivera recostado contra um piano Steinway na sala de música da enorme casa que haviam invadido para obter seu jantar. Larry enchera a mochila com latas suficientes para substituir o que haviam comido naquele dia e, num impulso, pegara o estojo sem sequer olhar para ver seu conteúdo. Vindo de semelhante casa, só podia ser um excelente instrumento. Ele nunca mais tocara desde aquela festa alucinada em Malibu, e isto tinha sido há seis semanas. Em outra vida.
- Sim, toco - disse ele e descobriu que queria tocar, não por causa dela, mas porque às vezes se sentia bem tocando, isso acalmava sua mente. E quando há uma fogueira na praia presume-se que alguém tocará. Isto era praticamente gravado em pedra.
- Vamos ver o que temos aqui - disse ele, abrindo o estojo.
Havia esperado algo bom, mas o que jazia dentro do estojo era uma surpresa ainda melhor. Era uma guitarra Gibson de 12 cordas, um belo instrumento, talvez feito de encomenda. Larry não era um bom avaliador de guitarras, para falar com franqueza. Sabia porém que as incrustações de arabescos na madeira eram de madrepérola autêntica, que captava cintilações vermelho-alaranjadas do fogo, esfumando-as em prismas de luz.
- É linda! - exclamou Nadine.
- Sem dúvida.
Larry a dedilhou e gostou do som emitido, embora a guitarra não estivesse inteiramente afinada. Era um som mais encorpado e rico do que o produzido por um instrumento de seis cordas. Um som harmônico, embora firme. Aí residia a vantagem de uma guitarra com cordas de aço: o som obtido é melhor. E as cordas eram da marca Black Diamonds, enroladas e um pouco duras, mas produzindo um som honesto, um tanto ligeiramente cru, quando os dedos saltavam de uma corda para outra - zing! Larry sorriu de leve, recordando a irritação de Barry Grieg por causa das cordas macias do instrumento. Costumava chamá-las de "maciotas de um dólar". O bom e velho Barry, que quando cresceu quis ser Steve Miller.
- Por que está sorrindo? - perguntou Nadine.
- Recordando os velhos tempos - disse ele, e ficou um tanto entristecido. Afinou as cordas de ouvido e não se saiu tão mal, continuando a pensar em Barry,
Johnny McCall e Wayne Stukey. Quando Larry terminava a afinação, Nadine tocou-lhe o ombro de leve e ele ergueu os olhos.
Joe estava parado junto à fogueira, ainda segurando um esquecido graveto carbonizado. Aqueles olhos estranhos fitavam-no, fascinados, e ele estava boquiaberto.
Muito baixinho, tão baixo que poderia até ter sido um pensamento em sua cabeça, Nadine disse:
- A música enfeitiça...
Larry começou a dedilhar uma melodia na guitarra de um antigo blues que recolhera de um álbum folk Elektra, quando adolescente. Algo feito originalmente por Koerner, Ray e Glover, segundo imaginava. Quando achou ter pegado a melodia correta, deixou-a estender-se praia abaixo e então cantou... seu canto sendo sempre melhor que a execução.
Você me vê vindo de longe, baby
Tornarei a noite em dia, mamma
Porque estou aqui Bem distante do meu lar
Mas você pode me ouvir chegando, baby
Pelo ronco do meu Cadillac preto.
Joe agora sorria, sorria na maneira surpresa de alguém que descobriu um alegre segredo. Larry achou que ele parecia alguém que viera sofrendo de uma comichão inalcançável entre as omoplatas por um longo tempo e que agora encontrara por fim alguém que sabia exatamente onde coçar. Larry esquadrinhou arquivos de memória há muito em desuso, caçando uma segunda parte, e então a encontrou.
Posso fazer coisas que os outros não sabem, mamma,
Eles não podem achar os números, baby
Não conhecem a linhagem de Conquistador.
Mas eu posso, pois estou bem longe do meu lar...
E você sabe que vai me ouvir chegando, baby
Pelo cantar de pneus do meu Cadillac preto.
O sorriso aberto e deliciado do menino iluminou aqueles olhos, transformou-os em algo capaz de fazer os músculos das coxas de qualquer garota afrouxarem um pouco. Ele havia alcançado uma ponte instrumental e enveredara por ela, não de todo mau. Seus dedos feriam as cordas certas da guitarra: duros, espalhafatosos e meio desajeitados, como um mostruário de jóias de fantasia, provavelmente roubadas, vendidas em um saco de papel numa esquina de rua. Larry fez um pouco de exibicionismo e depois voltou rapidamente ao bom e velho mi de três dedos antes de estragar tudo. Não conseguiu se lembrar por completo da última estrofe, algo sobre trilhos de ferrovia, de modo que repetiu a primeira e parou.
Quando se fez silêncio de novo, Nadine riu e bateu palmas. Joe atirou seu graveto fora e começou a dar saltos na areia, emitindo uivos ferozes de alegria. Larry não podia acreditar na mudança no garoto e teve de acautelar-se para não considerá-la como garantida. Fazer isto era correr um risco de decepção.
A música enfeitiça e acalma o animal selvagem.
Larry viu-se imaginando, com indesejada desconfiança, se podia ser algo tão simples assim. Joe estava gesticulando para ele, e Nadine disse:
- Ele quer que você toque mais alguma coisa. Seria possível? Isso foi maravilhoso. Fez com que me sentisse melhor. Muito melhor.
Assim ele tocou "Goin Downtown", de Geoff Muldaur, e ‘‘Sally’s Fresno Blues", de sua própria autoria; tocou "The Springhill Mine Disaster" e "That’s All Right, Mamma", de Arthur Crudup. Depois passou para o rock primitivo - "Milk Cow Blues", "Jim Dandy", "Twenty Flight Rock" (fazendo o ritmo de boogie-woogie do coro o melhor que podia, embora seus dedos agora estivessem ficando lentos, entorpecidos e dolorosos), e finalmente uma canção que sempre apreciara, "Endless Sleep", feita originalmente por Jody Reynolds.
- Não posso tocar mais - disse para Joe, que permanecera imóvel durante todo o recital. - Meus dedos. - Ergueu a mão, mostrando os profundos sulcos que as cordas lhe fizeram nos dedos, bem como as lascas nas unhas.
O menino estendeu as próprias mãos.
Larry fez uma pausa por um instante, depois resignou-se. Entregou a guitarra ao garoto, passando primeiro a correia pelo seu pescoço.
- Isso exige um bocado de prática - disse.
O que se seguiu, no entanto, foi a coisa mais espantosa que Larry já ouvira na vida. O menino tocou "Jim Dandy" quase com perfeição, mais uivando do que cantando as palavras, como se tivesse a língua colada ao céu da boca. Ao mesmo tempo, era perfeitamente óbvio que jamais tocara uma guitarra em sua vida; não conseguia ferir as cordas com vigor suficiente para elas soarem da maneira adequada e também, ao passar de uma para outra, as mudanças eram confusas e atropeladas. O som produzido era abafado e espectral - como se Joe estivesse tocando uma guitarra recheada de algodão -, mas, fora isto, era um papel-carbono perfeito da maneira como Larry tocara a música.
Quando terminou, Joe olhou para os dedos curiosamente, como se tentando compreender por que conseguiam produzir a substância da música que Larry tocara, mas não os sons bem articulados.
Entorpecidamente, como se de longe, Larry ouviu-se dizer:
- Você não está tocando com força suficiente, é isso. Tem que fazer calos, pontos duros, nas pontas dos dedos. E também músculos na mão esquerda.
Joe fitou-o detidamente enquanto falava, mas Larry não sabia se Joe entendera bem ou não. Virou-se para Nadine.
- Sabia que ele podia fazer isso?
- Não. Estou tão surpresa quanto você. F. como se ele fosse um prodígio ou algo assim, não é?
Larry assentiu. O menino tocou "That’s Ali Right, Mamma" novamente reproduzindo quase todas as nuances do modo como Larry havia tocado. Mas às vezes as cordas emitiam um som surdo de madeira enquanto os dedos de Joe mais bloqueavam sua vibração do que a faziam soar autêntica.
- Vou lhe mostrar - disse Larry, estendendo as mãos para a guitarra. Os olhos de Joe imediatamente semicerraram-se, desconfiados. Larry imaginou que estivesse recordando a faca atirada no mar. O menino recuou, apertando com firmeza a guitarra.
- Tudo bem - disse Larry. - Ela é toda sua. Quando quiser lições, é só me procurar.
Joe emitiu um som uivante e correu pela praia, erguendo a guitarra bem alto sobre a cabeça, como uma oferenda sacrificial.
- Ele vai acabar destruindo a guitarra - comentou Larry.
- Não - replicou Nadine. - Não creio que faça isto.
Larry acordou a certa altura da noite e apoiou-se num cotovelo. Nadine era apenas uma sombra vagamente feminina, envolta em três cobertas e a um quarto de distância da fogueira apagada. Diretamente em frente a ele estava Joe, também sob várias cobertas, mas com a cabeça de fora. O polegar estava firmemente enfiado na boca. Tinha as pernas encolhidas e, entre elas, o corpo da Gibson de 12 cordas. Sua mão livre envolvia frouxamente o braço da guitarra. Larry olhou para ele, fascinado. Havia tomado a faca do menino e a jogara fora; Joe havia adotado a guitarra. Ótimo. Que ficasse com ela. Não se pode esfaquear ninguém com uma guitarra, embora, supunha, pudesse ser transformada num razoável instrumento rombudo de ataque. Deitou-se para voltar a dormir.
Quando acordou na manhã seguinte, Joe estava sentado numa pedra com a guitarra no colo e molhando os pés na água mansa das ondas que ali morriam, tocando "Sally’s Fresno Blues." Já estava tocando bem melhor. Nadine acordou vinte minutos depois e sorriu radiante para ele. Larry achava que era uma linda mulher e ocorreu-lhe um trecho de canção, algo de Chuck Berry: Nadine, meu bem, essa é você? Em voz alta, disse:
- Vamos ver o que temos para o desjejum.
Acendeu a fogueira e os três sentaram-se ao redor, procurando tirar dos ossos o frio da noite. Nadine fez mingau de aveia com leite em pó e beberam chá forte fervido numa lata, à maneira dos andarilhos. Joe comeu com a guitarra atravessada no colo. E duas vezes Larry viu-se sorrindo para o garoto e pensando que era impossível não gostar de quem gostava de guitarra.
Pedalaram para o sul pela Nacional 1. Joe seguia em sua bicicleta exatamente sobre a linha branca, por vezes adiantando-se quase 2 quilômetros deles. Certa ocasião pegaram-no empurrando placidamente a bicicleta ao longo da margem da estrada e comendo amoras de maneira curiosa - jogava cada amora ao ar e depois a apanhava com a boca aberta, sem perder nenhuma. Uma hora depois disso, encontraram-no sentado sobre um marco histórico da Guerra Revolucionária, tocando "Jim Dandy" na guitarra.
Pouco antes das onze da manhã, alcançaram um bizarro bloqueio de estrada nos limites urbanos de um lugar chamado Ogunquit. Três caminhões de lixo alaranjados da prefeitura estavam atravessados na estrada, bloqueando-a de uma margem a outra. Espalhado em uma das caçambas de lixo estava o corpo bicado pelos corvos do que um dia fora um homem. Os últimos dez dias de intenso calor haviam produzido seu efeito. Nas partes em que o corpo estava desnudo os vermes enxameavam febrilmente.
Nadine virou o rosto.
- Onde está Joe? - perguntou ela.
- Não sei. Em algum lugar à nossa frente.
- Eu não desejaria que ele tivesse visto esta cena. Acha que ele viu?
- É provável - replicou Larry. Ele andara pensando que, para uma artéria principal, a Rodovia Nacional 1 estivera totalmente deserta desde que deixara Wells, sem nada mais que duas dezenas de carros enguiçados ao longo do caminho. Agora entendeu por quê. Haviam bloqueado a estrada. Provavelmente haveria centenas, talvez milhares de carros enguiçados no extremo oposto desta cidade. Entendia como Nadine se sentia acerca de Joe. Seria melhor poupar o garoto daquela cena.
- Por que teriam bloqueado a estrada? - perguntou Nadine. - Por que fariam
isto?
- Devem ter tentado colocar a cidade em quarentena. Acho que vamos encontrar outro bloqueio no extremo oposto.
- Há mais corpos?
Larry pôs a bicicleta sobre o descanso e espiou.
- Três - anunciou.
- Tudo bem. Não pretendo olhar para eles.
Larry assentiu. Empurraram as bicicletas por entre os caminhões e depois voltaram a pedalar. A auto-estrada corria de novo à beira-mar e a temperatura esfriara. Chalés de verão aglomeravam-se em fileiras pequenas e sórdidas. Será que as pessoas passavam férias naqueles cortiços?, pensou Larry. Não seria melhor ir para o Harlem e deixar a criançada brincar nos esguichos de hidrantes?
- Não são muito bonitos, não acha? - perguntou Nadine. De cada lado deles estava enclausurada a essência das praias de veraneio: postos de gasolina, quiosques de frutos do mar, de laticínios, motéis pintados em vívidos tons pastéis, campos de golfe.
Larry foi atraído por aquelas coisas de duas maneiras. Parte dele vociferava contra sua triste e gritante fealdade e contra a fealdade mental daqueles que haviam transformado aquele trecho magnífico de litoral agreste em um comprido parque de diversões para famílias em caminhonetes. Porém havia uma parte dele, mais sutil e profunda, que sussurrava sobre a gente que enchera aqueles lugares e aquela estrada durante outros verões. Mulheres com chapéus de sol e shorts apertados demais para seus amplos traseiros. Estudantes em camisas de rúgbi listradas de preto e vermelho. Garotas em cangas de praia e calçando sandálias de dedo. Crianças choronas com o rosto lambuzado de sorvete. Eram cidadãos americanos e havia uma espécie de romance sujo e compulsivo em tomo deles, onde quer que se agrupassem - pouco importando que o grupo estivesse numa estação de esqui em Aspen ou desempenhando seus prosaicos e arcanos ritos de verão ao longo da Nacional 1 no Maine. E agora todos aqueles americanos haviam morrido. Um raio derrubara um galho de árvore que fora cair sobre o gigantesco anúncio de plástico de uma loja de laticínios, lançando-o no pátio de estacionamento da sorveteria, onde agora jazia de lado, como um pálido chapéu de palhaço. O mato começava a invadir o campo de minigolfe. Este trecho de auto-estrada entre Portland e Portsmouth já tinha sido um parque de diversões com 112 quilômetros de extensão e agora estava reduzido a um assombrado castelo dos horrores onde a corda de todos os relógios chegara ao fim.
- Não, não são nada bonitos - disse ele. - Mas uma vez tudo isso foi nosso, Nadine. Uma vez foi nosso, embora nunca tenhamos estado aqui antes. Agora acabou.
- Mas não para sempre - retrucou Nadine com calma. Larry olhou para ela, para seu rosto limpo e saudável. A testa, de onde sua curiosa mecha de cabelos brancos fora puxada para trás, brilhava como uma lâmpada. - Não sou uma pessoa religiosa, mas, se fosse, diria que o que aconteceu foi um julgamento de Deus. Em cem anos, talvez duzentos, tudo será nosso de novo.
- Aqueles caminhões não estarão mais aqui em duzentos anos.
- Não, mas a estrada permanecerá. Os caminhões estarão no meio de um campo ou uma floresta, com flores silvestres crescendo onde um dia estavam seus pneus. Na verdade, não serão mais caminhões, e sim artefatos.
- Creio que está enganada.
- Como assim?
- Porque estamos procurando por outras pessoas - replicou Larry. - E por que acha que estamos fazendo isso?
Ela o fitou, confusa.
- Bem... porque é a coisa certa a fazer. Pessoas precisam de outras pessoas. Não sentiu isso quando estava sozinho?
- Sim - disse Larry. - Se não tivermos uns aos outros, vamos enlouquecer com a solidão. Quando isto acontecer, vamos enlouquecer com o agrupamento. Quando nos agruparmos, vamos construir quilômetros de chalés de veraneio e nos matarmos mutuamente nas farras de bares de sábado à noite. - Ele riu. Foi um som frio e infeliz, sem nenhum resquício de humor, que ficou pairando por longo tempo no ar deserto. - Não há nenhuma resposta. É como estar enfiado dentro de um ovo. Vamos, Joe já deve estar bem adiante de nós.
Ela demorou um pouco mais para montar na bicicleta, seu olhar perturbado nas costas de Larry enquanto se afastava. Depois pedalou atrás dele. Ele não poderia estar certo. Não poderia. Se uma coisa tão monstruosa como essa havia acontecido sem nenhuma boa razão, afinal, que sentido faria qualquer coisa? Por que eles continuavam vivos?
Joe não estava tão à frente deles, afinal. Encontraram-no sentado no pára-choque traseiro de um Ford azul, parado numa pista de rolamento. Folheava uma revista pornográfica e Larry notou, sem jeito, que o garoto tinha uma ereção. Olhou de relance para Nadine, mas ela olhava para outro lado - talvez deliberadamente.
- Vamos indo? - perguntou Larry.
Joe largou a revista e, em vez de se levantar, fez um som gutural interrogativo, apontando para o ar. Larry ergueu os olhos rapidamente, pensando por um momento que o menino tinha visto um avião. Então, Nadine gritou:
- Não é no céu, é no celeiro! - Sua voz estava repleta de empolgação. - No celeiro! Ah, graças a Deus por você, Joe! Jamais o teríamos avistado!
Foi até Joe, enlaçou-o com os braços num firme abraço. Larry voltou-se para o celeiro, onde letras brancas se destacavam nitidamente sobre o teto de tábuas desbotado:
FOMOS PARA O CENTRO DE EPIDEMIAS DE
STOVINGTON, VERMONT
Abaixo havia uma série de indicações rodoviárias. E ao fundo:
DEIXANDO OGUNQUIT 2 DE JULHO, 1990
HAROLD EMERY LAUDER
FRANCES GOLDSMITH
- Puxa, o cara devia estar com o traseiro exposto ao vento quando escreveu aquela última linha - disse Larry.
- O Centro de Epidemias! - disse Nadine, ignorando-o. - Como é que não pensei nisso? Li um artigo a respeito não faz três meses, no suplemento dominical de uma revista! Eles foram para lá!
- Se é que ainda estão vivos.
- Ainda estão vivos? É claro que estão. A epidemia terminou por volta de 2 de julho. E se eles puderam subir ao teto daquele celeiro, certamente não se sentiam doentes.
- Um deles devia estar muito otimista - concordou Larry, sentindo formar-se em seu estômago uma excitação meio relutante. - E pensar que acabei de atravessar Vermont.
- Stovington fica ao norte da Rodovia 9, a uma distância e tanto - disse Nadine, ausente, ainda olhando para o celeiro. - Mesmo assim, devem estar por lá a esta altura.
Larry, o dia 2 de julho foi há duas semanas. - Os olhos de Nadine brilhavam. - Acha que pode haver mais gente no Centro de Epidemias, Larry? É bem possível, não é, já que eles sabem tudo sobre quarentenas e trajes esterilizados...
- Não sei - disse Larry, cauteloso.
- Claro que tem de haver - replicou ela impaciente e um tanto impetuosamente. Larry nunca a vira tão excitada, nem mesmo quando Joe realizara a espantosa façanha de imitá-lo na guitarra. - Aposto que Harold e Frances encontraram dezenas de pessoas, talvez centenas. Iremos direto para lá. O caminho mais curto...
- Espere um momento - disse Larry, segurando-a pelos ombros.
- O que quer dizer com "espere"? Não percebe que...
- Percebo que aquele aviso esperou duas semanas pela nossa chegada, e bem pode esperar mais um pouco. Enquanto isso, podemos almoçar. E o velho Joe Guitarrista-Bobo está dormindo em pé.
Ela olhou em tomo. Joe voltara a folhear a revista pornô, mas começava a cabecear de sono e a pestanejar. Havia círculos sob seus olhos.
- Você disse que ele está recém-curado de uma infecção - continuou Larry. - E você também fez uma exaustiva viagem... para não falar no Guitarrista à Espreita de Olhos Azuis.
- Tem razão... nem pensei nisso.
- Tudo de que precisamos é de uma refeição e uma boa soneca.
- Claro. Sinto muito, Joe. Não estava pensando em você. Joe emitiu um grunhido sonolento e desinteressado.
Larry sentiu-se ligeiramente engasgado por um medo residual pelo que ia dizer a seguir. No entanto, precisava dizer. Se não o fizesse, Nadine teria alguma chance de pensar... e, além disso, talvez já fosse hora de descobrir se ele havia mudado tanto quanto pensava.
- Nadine, você sabe dirigir?
- Dirigir? Está querendo dizer se tenho carteira de motorista? Sim, só que um carro não seria um veículo prático com tantos obstáculos nas estradas, não acha? Quero dizer...
- Não estava pensando em um carro - disse ele, e a imagem de Rita na garupa da moto do misterioso homem escuro (na sua mente a representação simbólica da morte, ele supôs) de repente surgiu por trás de seus olhos, ambos escuros e descorados, investindo sobre ele montando uma Harley monstruosa como espectrais cavaleiros do apocalipse. O pensamento lhe secou a boca e fez suas têmporas latejarem, mas, ao prosseguir, a voz soou firme. Se houve alguma falha na voz, Nadine não percebeu. Estranhamente, foi Joe quem olhou para ele em sua semi-sonolência, parecendo notar alguma mudança. - Eu estava pensando em motos ou algo parecido. Poderíamos ganhar tempo com menos esforço, com a vantagem de podermos empurrá-las para contornar... bem, quaisquer obstáculos na estrada. Tal como empurramos as bicicletas para contornar aqueles caminhões lá atrás.
A excitação brilhou nos olhos dela.
- Sim, podíamos fazer isto! Nunca pilotei uma, mas você poderia me ensinar, não é?
O terror de Larry aumentou com as palavras nunca pilotei uma.
- Sim - disse ele. - Mas o máximo que eu poderia ensinar seria pilotar bem devagarinho até pegar o jeito. Muito devagar. Uma motocicleta, até mesmo uma pequena, não perdoa erro humano, e eu não teria como levá-la a um médico se sofresse algum acidente na estrada.
- Então será o que faremos. Nós... Larry, você já pilotou uma moto antes de o encontrarmos? Deve ter pilotado, para vir tão rápido de Nova York até aqui.
- Eu a joguei num valão - disse ele com firmeza. - Fiquei nervoso por viajar sozinho.
- Bem, já não estará mais sozinho - replicou Nadine, quase alegremente. Voltou-se para Joe. - Vamos para Vermont, Joe! Vamos ver outras pessoas! Não é formidável? Não é um barata
Joe bocejou.
Nadine disse que estava excitada demais para dormir, mas que se deitaria com Joe até o menino adormecer. Larry pedalou até Ogunquit para procurar uma concessionária de motos. Não havia nenhuma, mas achou ter visto uma loja de motos quando saíram de Wells. Voltou para contar a Nadine e encontrou os dois dormindo à sombra do Ford azul onde Joe estivera se deleitando com a revista pornô.
Deitou-se a pequena distância deles, mas não conseguiu dormir. Por fim, atravessou a auto-estrada e abriu caminho em meio ao capim-rabo-de-rato, que chegava à altura dos joelhos, rumo ao celeiro onde fora pintado o aviso. Milhares de gafanhotos pularam desordenadamente para sair do seu caminho enquanto ele avançava. E Larry pensou: Eu sou a praga deles. Sou o homem escuro deles.
Perto das amplas portas duplas, localizou duas latas vazias de Pepsi e uma crosta dura de sanduíche. Em tempos normais as gaivotas já teriam há muito tempo devorado os restos do sanduíche, mas os tempos haviam mudado e as gaivotas agora estavam acostumadas com alimentos mais substanciais. Ele chutou a crosta de pão e depois uma das latas.
Leve este material para ser periciado, sargento Briggs. Acho que o nosso assassino finalmente cometeu um erro.
Claro, inspetor Underwood. O dia em que a Scotland Yard decidiu enviá-lo foi um dia afortunado para o Departamento de Polícia.
Não diga isto, sargento. É tudo parte do serviço.
Larry entrou no celeiro - estava escuro, quente e animado pelo rufar suave das asas das andorinhas. O cheiro de feno era adocicado. Não havia animais nas baias; o proprietário devia tê-los soltado para que vivessem ou morressem pela supergripe em vez de enfrentarem a morte certa por inanição.
Anote isto para o inquérito do legista, sargento.
Eu o farei, inspetor Underwood.
Olhou de relance para o chão e viu um invólucro de doce. Pegou-o. Uma barra de chocolate Payday estivera certa vez acondicionada dentro dele. O pintor do letreiro tivera coragem, talvez, mas não bom gosto. Qualquer um que gostasse de chocolate Payday deveria ter cozinhado os miolos demais sob o sol quente.
Urna escada de mão levando ao paiol de feno estava pregada a uma das grandes vigas de sustentação. Já untuoso pelo suor, nem mesmo sabendo por que fazia isso, Larry subiu pela escada. No centro do jirau (ele estava caminhando devagar e com o olhar atento para eventuais ratos), um lance de escadas mais convencional levava à cúpula, e esses degraus estavam salpicados de tinta branca.
Creio que topamos com outro achado, sargento.
Inspetor, o senhor me espanta! Sua perspicácia dedutiva só é superada pela sua boa aparência e pelo tamanho de seu órgão reprodutor. Não diga isto, sargento.
Larry subiu até a cúpula. Estava mais quente ali e ele refletiu que se Harold e Frances tivessem deixado a lata de tinta depois de concluída a tarefa, o celeiro com certeza teria se incendiado alegremente até os alicerces uma semana atrás. As janelas estavam empoeiradas e festonadas por teias de aranha esfarrapadas e que sem dúvida haviam sido tecidas no tempo em que Gerald Ford era o presidente. Uma dessas janelas tinha sido forçada para cima e quando Larry a abriu teve um panorama magnífico da região rural se espalhando por quilômetros ao redor.
Este lado do celeiro dava para leste, e ele estava a uma altura suficiente para uma visão ampla das concessões de beira de estrada que, se já eram tão monstruosamente feias quando vistas ao nível do solo, pareceram tão inconseqüentes quanto uma pequena fileira de lixo à margem da rodovia. Além da auto-estrada estava o oceano em toda a sua grandiosidade, com as ondas chegando nitidamente divididas pelo quebra-mar que se estendia do lado norte do porto. A paisagem era uma tela a óleo retratando o auge do verão, tudo verde e dourado, envolto numa névoa imóvel da tarde. Ele podia sentir cheiro de sal e maresia. E olhando para baixo, ao longo da inclinação do telhado, pôde ler o aviso de Harold, de cabeça para baixo.
O simples pensamento de rastejar em volta daquele telhado, tão alto acima do solo, provocava engulhos nas entranhas de Larry. E o rapaz realmente devia ter apoiado suas pernas bem em cima da calha de chuva para escrever o nome da garota.
Por que ele se deu a todo esse trabalho, sargento? Creio que é uma das perguntas que devemos fazer a nós mesmos.
Se assim diz, inspetor Underwood...
Larry voltou a descer a escada, devagar e olhando onde punha os pés. Não era hora nem lugar para uma perna quebrada. No fundo, algo mais captou seu olhar, alguma coisa entalhada em uma das vigas de sustentação, espalhafatosamente branca e recente, em contraste direto com todo o resto da escuridão no velho e empoeirado celeiro. Foi até a viga e examinou o entalhe, depois passou a unha do polegar sobre ele, em parte por diversão, em parte por surpreender-se por outro ser humano ter feito aquilo no dia em que ele e Rita haviam iniciado a jornada para o norte. Passou de novo a unha ao longo das letras entalhadas.
Dentro de um coração atravessado por uma flecha.
Acredito, sargento, que o garoto devia estar apaixonado.
- Ponto para você, Harold - disse Larry, e deixou o celeiro.
A loja em Wells era uma concessionária Honda, e pela maneira como as motos estavam alinhadas no showroom Larry deduziu que duas delas estavam faltando. Ficou mais orgulhoso por uma segunda descoberta - um amarrotado invólucro de chocolate Payday. Parecia como se alguém - provavelmente o enamorado Harold Lauder - tivesse terminado sua barra de chocolate enquanto decidia que motos tornariam ele e sua amada mais felizes. Fizera uma bola com o invólucro e o arremessara na cesta de lixo. Mas errara o arremesso.
Nadine achou que as deduções de Larry eram boas, mas não ficou tão impressionada quanto ele. Examinava as motos remanescentes, ansiosa para partir. Joe sentava-se no degrau frontal do showroom, dedilhando a guitarra de 12 cordas e uivando euforicamente.
- Ouça, Nadine - disse Larry -, já são cinco horas da tarde. Não há como partirmos a não ser amanhã cedo.
- Mas ainda restam três horas de claridade. Não podemos simplesmente ficar sentados! Perderíamos essas três horas!
- Se as perdermos, está feito - replicou ele. - Harold Lauder deixou instruções uma vez, especificando que estradas estavam seguindo. Se prosseguirem, ele provavelmente repetirá as instruções.
- Mas...
- Sei que está ansiosa - disse Larry, pousando as mãos nos ombros dela. Podia sentir sua velha impaciência se formando e forçou-se a controlá-la. - Mas você nunca pilotou uma moto antes.
- Mas sei pedalar uma bicicleta. E sei como usar um pedal de embreagem, já lhe disse. Por favor, Larry. Se não perdermos tempo, podemos acampar em New Hampshire esta noite e cobrir metade do trajeto até a noite de amanhã. Nós...
- Isto não é igual a uma bicicleta, porra! - explodiu ele e a guitarra silenciou abruptamente às suas costas. Larry pôde ver Joe olhando para eles por sobre os ombros, os olhos estreitados e instantaneamente desconfiados. Puxa, não sei mesmo conviver com as pessoas, pensou. O que o deixou com mais raiva ainda.
- Você está me machucando - disse Nadine suavemente.
Larry só então viu que seus dedos se haviam enterrado na carne macia dos ombros dela, e sua raiva cedeu para se transformar em vergonha latejante.
- Desculpe - disse.
Joe ainda o fitava, e Larry reconheceu que acabara de perder metade do terreno ganho com o menino. Talvez mais. Nadine tinha dito alguma coisa.
- O quê?
- Eu falei: diga-me por que não é igual a uma bicicleta.
Seu primeiro impulso foi gritar para ela: Se você sabe tanto, vá em frente e experimente. Veja como fica, olhando para o mundo de cabeça para trás. Procurou se conter, pensando que perdera terreno não apenas com o menino, perdera também consigo mesmo. Talvez tivesse saído para o outro lado, mas uma parte do velho Larry infantil saíra junto com ele, grudada nos seus calcanhares como uma sombra que encolhia ao sol do meio-dia, mas não desaparecia inteiramente.
- A moto é mais pesada - disse ele. - Se você perder o equilíbrio, não pode se reequilibrar tão facilmente do jeito que faz com uma bicicleta. Uma dessas 360 pesa quase 180 quilos. Você se acostuma rapidamente a controlar este peso extra, mas isso requer prática. E, com um carro padrão, a gente passa as marchas com a mão e acelera com o pé. Numa moto é o inverso: o câmbio é acionado com o pé e o acelerador com a mão, o que exige um bocado de prática para a gente se acostumar. Há dois freios em vez de um. O pé direito freia a roda traseira, a mão direita freia a roda da frente. Se esquecer isto e usar apenas o freio manual, está propensa a voar diretamente por cima do guidom. Além disso, vai ter que se acostumar com seu passageiro.
- Joe? Mas pensei que ele fosse com você!
- Gostaria de levá-lo - replicou Larry -, mas neste exato momento não creio que ele me aceitasse. E você?
Nadine olhou para Joe por um longo e preocupado momento.
- Não - concordou ela e depois suspirou. - Ele pode nem mesmo querer seguir comigo. Pode ter medo de moto.
- Se assim for, você vai ser responsável por ele. E eu, responsável pelos dois. Não quero ver ambos cuspidos da moto.
- Aconteceu com você, Larry? Estava com mais alguém?
- Estava - disse ele. - E fui cuspido. Mas a essa altura a dona que me acompanhava já havia morrido.
- Ela bateu com a moto dela? - perguntou Nadine, com o rosto muito imóvel.
- Não. O que aconteceu... bem, eu diria que foi 70% acidente e 30% suicídio. O que quer que ela precisasse de mim... amizade, compreensão, ajuda, não sei... não estava obtendo o suficiente. - Ele parecia preocupado, as têmporas latejando pesadamente agora, a garganta apertada, quase a ponto de chorar. - Chamava-se Rita Blakemoor. Gostaria que tudo corresse melhor com vocês, é isso. Com você e Joe.
- Larry, por que não me contou antes?
- Porque dói falar sobre isso - disse simplesmente. - Dói pra caramba.
Era verdade, mas não a plena verdade. Havia os sonhos. Ele se descobriu imaginando se Nadine tinha pesadelos - na última noite ele havia acordado brevemente e a vira se remexendo inquieta e murmurando. Mas hoje ela nada comentara. E Joe? Ele tinha pesadelos? Bem, nada sabia sobre eles, mas o destemido inspetor Larry Underwood da Scotland Yard tinha medo dos sonhos... e se Nadine caísse da motocicleta eles poderiam voltar.
- Partiremos amanhã - decidiu ela. - Tire esta noite para me ensinar.
Mas primeiro havia a questão de abastecer as duas pequenas motos que Larry conseguira. A concessionária tinha uma bomba de gasolina, mas sem eletricidade ela não funcionaria. Encontrou outro invólucro de chocolate junto à tampa que cobria o tanque subterrâneo e deduziu que ela havia sido recentemente aberta pelo sempre inventivo Harold Lauder. Perdido de amor ou não, fanático por chocolate ou não, Harold ganhara um bocado de respeito por parte de Larry, que quase estava gostando dele por antecipação. Já desenvolvera seu próprio retrato mental de Harold. Provavelmente com seus trinta e poucos anos, um fazendeiro talvez, alto e bronzeado de sol, magro, não muito brilhante intelectualmente, talvez, mas para lá de engenhoso. Ele sorriu. Construir um retrato mental de alguém que nunca tinha visto era um jogo de azar, porque tal pessoa nunca era do jeito que se imaginava. Todo mundo sabe da história do DJ de 130 quilos com uma voz fininha.
Enquanto Nadine preparava uma ceia fria, Larry fez uma ronda em volta da concessionária. Encontrou uma lata de lixo de aço. Encostada nela achou um pé-de-cabra e, enrolado sobre o topo, havia um pedaço de tubo de borracha.
Descobri você de novo, Harold! Dê uma olhada nisto, sargento Briggs. Nosso homem sugou um pouco de gasolina do tanque subterrâneo para seguir em frente. Me surpreende que não tenha levado este tubo com ele.
Talvez ele tenha cortado um pedaço e este é o que deixou para trás, inspetor Underwood... não me leve a mal, mas este aí está na lata de lixo.
Por Júpiter, sargento, você está certo. Vou relacioná-lo para uma promoção.
Pegando o pé-de-cabra e o tubo de borracha, voltou até a tampa do tanque.
- Joe - chamou -, pode vir aqui um minuto e me ajudar?
O garoto ergueu a vista do queijo e da bolacha que estava comendo e olhou desconfiado para Larry.
- Pode ir - disse Nadine baixinho. - Agora já está tudo bem. Joe se aproximou, seus pés se arrastando um pouco.
Larry inseriu o pé-de-cabra na ranhura da tampa.
- Jogue todo o seu peso em cima do pé-de-cabra e vamos ver se conseguimos levantá-la - disse.
Por um momento achou que o garoto ou não havia entendido ou então não queria fazê-lo. Depois agarrou a extremidade oposta do pé-de-cabra e empurrou. Seus braços eram finos porém cobertos de músculos magricelas, o tipo de músculos que trabalhadores oriundos de famílias pobres sempre parecem ter. A tampa inclinou-se um pouco, mas não se ergueu o bastante para que Larry enfiasse os dedos por baixo.
- Mantenha seu peso em cima - disse a Joe.
Aqueles olhos semi-selvagens e amendoados estudaram-no friamente por um momento. Depois Joe se equilibrou sobre o pé-de-cabra, os pés saindo do chão enquanto todo o seu peso foi jogado na alavanca.
A tampa se elevou um pouco mais, o suficiente para que Larry introduzisse os dedos por baixo dela. Enquanto pelejava para içá-la, por acaso pensou que, se o garoto ainda não gostava dele, esta era a melhor oportunidade que teria para demonstrá-lo. Se Joe retirasse seu peso de cima do pé-de-cabra, a tampa baixaria com um estrondo e Larry perderia as suas mãos, exceto os polegares. Nadine tinha se dado conta disto, Larry notou. Ela estivera olhando para uma das bicicletas, mas agora voltara-se para observar, seu corpo em uma postura tensa. Os olhos escuros iam de Larry, apoiado sobre um joelho, para Joe, que observava Larry enquanto jogava seu peso sobre o pé-de-cabra. Aqueles olhos da cor do mar eram inescrutáveis. E ainda assim Larry não conseguia nenhum progresso.
- Precisa de ajuda? - perguntou Nadine, sua voz normalmente calma agora apenas um pouco estridente.
O suor escorreu nos olhos de Larry e ele pestanejou. Ainda nenhuma alegria. Mas podia sentir o cheiro de gasolina.
- Acho que nós dois podemos lidar com isso - disse Larry, olhando diretamente para ela.
Um momento depois, seus dedos encontraram uma pequena ranhura no lado inferior da tampa. Usou toda a força dos seus ombros, e a tampa subiu e se estatelou sobre o piso alcatroado com um clangor surdo. Ouviu Nadine suspirar quando o pé-de-cabra caiu no piso. Limpou a fonte transpirante e olhou de volta para o garoto.
- Foi um bom trabalho, Joe - ele disse. - Se você deixasse aquela coisa escorregar, eu teria que passar o resto da vida puxando o zíper dos meus jeans com os dentes. Obrigado.
Não esperava nenhuma resposta (exceto talvez um grunhido ininteligível enquanto Joe voltava a inspecionar de novo as motos), mas Joe disse, numa voz emperrada e dificultosa:
- Bevindo.
Larry olhou para Nadine, que o fitou de volta, e depois para Joe. A expressão de seu rosto era de agradável surpresa, embora, de alguma forma, desse a impressão - Larry não saberia simplesmente dizer como - de que esperava por isso. Era uma expressão que ele já vira antes, mas nenhuma que pudesse apontar com certeza.
- Joe - disse Larry -, você falou "bem-vindo"?
Joe assentiu vigorosamente.
- Bevindo. Você é bevindo.
Nadine estendeu os braços, sorrindo.
- Isso foi bom, Joe. Muito, muito bom! - Joe caminhou até ela e deixou-se abraçar por um momento. Depois voltou a olhar as motos, uivando e rindo consigo mesmo.
- Ele pode falar - disse Larry.
- Eu sabia que ele não era mudo - respondeu Nadine. - Mas é maravilhoso saber que pode se recuperar. Acho que Joe precisava de nós dois. Duas metades. Ele... ah, sei lá!
Larry percebeu que ela estava enrubescendo e achou que sabia o motivo. Começou a enfiar o tubo de borracha no buraco do tanque, e de repente percebeu que aquilo que fazia poderia ser facilmente interpretado como uma simbólica (e um tanto tosca) pantomima. Olhou para ela de modo penetrante. Ela virou-se depressa, mas não antes que Larry tivesse visto o quão intensamente Nadine observava o que ele estava fazendo com um intenso rubor nas faces.
O medo atroz cresceu em seu peito e ele gritou:
- Pelo amor de Deus, Nadine, cuidada.
Ela se concentrava nos controles manuais da moto, sem olhar para onde se dirigia, e estava conduzindo a Honda diretamente para um pinheiro na trôpega velocidade de 8 quilômetros por hora.
Ela ergueu a vista e Larry a ouviu exclamar um "Ah!" em voz sobressaltada. Depois deu uma guinada muito brusca e caiu da moto. A Honda afogou.
Larry correu até ela, com o coração na garganta.
- Você está bem, Nadine? Você está...
Ela já se levantava, trêmula, olhando para as mãos esfoladas.
- Sim, estou ótima. Que estupidez a minha, não olhar para onde estava indo! Será que escangalhei a moto?
- Que se dane a porra da moto! Deixe-me ver suas mãos.
Ela as estendeu. Larry tirou do bolso um frasco plástico de Bactine e aspergiu o líquido nas lacerações.
- Você está tremendo - disse ela.
- Isso também não importa - respondeu Larry, mais rudemente do que pretendia. - Escute, talvez seja melhor você optar pelas bicicletas. Moto é muito perigoso...
- Respirar também é - respondeu ela calmamente. - E acho que Joe deveria ir com você, pelo menos no princípio.
- Ele não...
- Acho que irá - disse Nadine, olhando para o rosto dele. - E acho que você também acha.
- Bem, vamos encerrar por esta noite. Já está escuro demais para se enxergar.
- Só mais uma vez. Já li em algum lugar que se um cavalo nos derruba, a gente tem que montá-lo outra vez, logo.
Joe perambulava pelas imediações, mastigando amoras que juntara dentro de um capacete de motociclista. Ele descobrira uma boa quantidade de pés de amoras silvestres nos fundos da concessionária e as andara colhendo enquanto Nadine tomava sua primeira lição.
- Também acho - disse Larry, derrotado. - Mas pode, por favor, olhar para onde está indo?
- Sim, senhor. Perfeitamente, senhor. - Ela bateu continência e depois sorriu para ele. Tinha um belo e lento sorriso que lhe iluminava todo o rosto. Larry retribuiu o sorriso; nada mais havia a fazer. Quando Nadine sorria, até mesmo Larry sorria de volta.
Desta vez ela deu duas voltas no quarteirão e depois virou para a estrada, oscilando acentuadamente, o que quase fez Larry expelir o coração pela boca. Mas ela apoiou o pé espertamente, como Larry havia ensinado, e subiu a colina, desaparecendo de vista. Ele a viu passar a marcha cuidadosamente para segunda, ouviu-a engrenar a terceira enquanto descia por trás da primeira elevação. Depois o motor diminuiu para um zumbido até desvanecer de todo. Ele estava parado ansiosamente ao crepúsculo, esperando por ela, enxotando com tapas algum eventual mosquito.
Joe reapareceu, sua boca tingida de azul.
- Bevindo - disse ele e sorriu. Larry deu um sorriso forçado em retribuição. Se Nadine não voltasse em breve, ele teria que ir atrás dela. Visões de encontrá-la caída num valão com o pescoço quebrado bailavam sombriamente em sua cabeça.
Já estava caminhando para a outra moto abastecida, decidindo se levaria ou não Joe com ele, quando o zumbido monótono retornou aos seus ouvidos e evoluiu até o som do motor da Honda, engatado suavemente em quarta marcha. Ele relaxou... um pouco. Angustiado, deu-se conta de que jamais conseguiria relaxar por completo enquanto Nadine estivesse montada naquela coisa.
Ela surgiu de novo à vista, o farol da moto agora aceso, e parou ao lado dele.
- Muito bom, não foi? - Ela desligou o motor.
- Eu já estava pronto para ir procurá-la. Achei que tivesse se acidentado.
- E quase aconteceu. - Ela percebeu o modo como ele havia enrijecido e acrescentou: - Esqueci de usar a embreagem ao reduzir e a moto afogou.
- Ah, já basta por hoje, tá?
- Claro - disse ela. - Estou com dor no traseiro.
Nessa noite, deitado sob suas cobertas, Larry se indagava se Nadine o procuraria depois que Joe adormecesse, ou se ele iria procurá-la. Ele a desejava e achava que, do jeito como ela reagira a sua pequena pantomima absurda com o tubo de borracha, ela também o desejava. Por fim, pegou no sono.
Sonhou que estava perdido num milharal. No entanto havia música, música de guitarra. Era Joe tocando. Se encontrasse o menino, tudo estaria bem. Portanto, acompanhou o som, rompendo através de uma fileira de milho até a próxima, quando era preciso, chegando por fim a uma clareira desigual. Havia uma pequena casa ali, mais propriamente uma choupana, com o alpendre sustentado por velhos macacos a óleo enferrujados. Não era Joe tocando a guitarra, como poderia ser? Joe segurava sua mão esquerda e a direita de Nadine. Os dois estavam com o menino. Uma velha tocava a guitarra, uma espécie de spiritual jazzístico que fazia Joe sorrir. A velha era negra e estava sentada no alpendre. Larry achou que nunca vira uma mulher tão velha em sua vida. Entretanto havia algo nela que o fazia sentir-se bem... bem na maneira em que sua mãe o fizera uma vez sentir-se bem, quando ele era muito pequeno e ela o abraçava de repente e dizia: Aqui está o melhor menino, o melhor menino em toda a vida de Alice Underwood! A velha parou de tocar e olhou para eles.
Bem, acho que tenho visitas. Adiantem-se até onde eu possa vê-los, meus olhos não são mais o que eram.
Eles se aproximaram, os três de mãos dadas. Então Joe estendeu o braço e fez o velho pneu careca do balanço adquirir um lento movimento de pêndulo quando passaram por ele. A sombra em forma de rosca do pneu deslizou para a frente e para trás no solo cheio de ervas daninhas. Estavam numa pequena clareira, uma ilha num mar de milho. Ao norte, uma estrada de terra estendia-se até certo ponto.
Quer tocar esta minha velha guitarra?, perguntou ela a Joe e o garoto adiantou-se ansiosamente, pegando a velha guitarra daquelas mãos encarquilhadas. Começou a tocar a melodia que vieram acompanhando através do milharal, porém melhor e mais rápido do que a velha.
Louvado seja Deus, ele toca bem! Quanto a mim, já estou velha demais. Não posso mais fazer meus dedos correrem tão rápido. É o reumatismo. Mas em 1902 toquei na sede do condado. Fui a primeira negra a tocar ali, exatamente a primeira.
Nadine perguntou quem era ela. Estavam em uma espécie de lugar eterno onde o sol parecia imobilizar-se uma hora antes de escurecer, e a sombra do balanço que Joe pusera em movimento continuava indo para a frente e para trás no terreiro coberto de ervas daninhas. Larry desejou ficar ali para sempre, ele e sua família. Aquele era um bom lugar. O homem sem rosto jamais o alcançaria ali, nem a Joe ou Nadine.
Mãe Abagail é como me chamam. Sou a mulher mais velha no leste de Nebraska, acho, e ainda faço meus próprios biscoitos. Venham me procurar o mais rápido que puderem. Temos de partir antes que ele possa nos farejar.
Uma nuvem cobriu o sol. O arco que o balanço formava reduziu-se a nada. Joe parou de tocar com um som dissonante de cordas, e Larry sentiu os pêlos da nuca se eriçarem. A velha pareceu não notar.
Antes que quem possa nos farejar?, perguntou Nadine, e Larry desejou poder falar, gritar para Nadine retirar a pergunta antes que ela pudesse saltar livre e feri-los.
Aquele homem escuro. Aquele servo do demônio. Temos de pôr as Rochosas entre nós e ele, se Deus quiser, mas as montanhas não vão bloqueá-lo. É por isso que precisamos ficar juntos. No Colorado. Deus me apareceu em sonho e me mostrou onde. Mas temos que ser rápidos, o mais rápidos que pudermos, de qualquer modo. Portanto, venham me procurar. Há outros chegando, também.
Não, disse Nadine numa voz fria e temerosa. Estamos indo para Vermont, está decidido. Só para Vermont - apenas uma curta viagem.
Sua viagem será mais longa do que a nossa, se não lutar contra o poder dele, replicou a velha no sonho de Larry. Ela estava olhando para Nadine com grande tristeza.
Este que trouxe aqui poderia ser um bom homem, mulher. Ele quer dar tudo de si. Por que não se apega a ele em vez de usá-lo?
Não! Estamos indo para Vermont, para VERMONT!
A velha olhou para Nadine piedosamente. Você irá direto para o inferno se não tomar cuidado, filha de Eva. E quando chegar lá, vai descobrir que o inferno é frio.
O sonho interrompeu-se então, desfazendo-se em rachaduras que o engolfaram. Mas naquele negror havia algo que o espreitava. Era frio e impiedoso, e em breve ele veria seus dentes sorridentes.
Mas antes que isto pudesse acontecer ele estava desperto. Passava meia hora do alvorecer, e o mundo estava tomado por um espesso e alvo nevoeiro rente ao chão, que se desvaneceria quando o sol se elevasse um pouco mais. Agora a concessionária se erguia para fora da névoa como alguma estranha proa de navio construída de concreto de cinza em vez de madeira.
Havia alguém perto dele. Viu que não era Nadine, que tinha vindo juntar-se a ele durante a noite, mas sim Joe. O garoto deitava-se perto dele, o polegar enfiado na boca, estremecendo em seu sono, como se o próprio pesadelo de Larry o tivesse acometido. Larry especulava se os sonhos de Joe eram tão diferentes dos seus... e deitou-se de costas, fitando o nevoeiro branco e pensando nisso até que os outros despertaram, uma hora depois.
O nevoeiro já se dissolvera o suficiente para viajarem na hora em que terminassem o desjejum e embalassem suas coisas nas motocicletas. Como Nadine dissera, Joe não fez restrições em viajar na garupa de Larry; de fato, montou na moto de Larry sem que lhe pedissem.
- Devagar - avisou Larry pela quarta vez. - Nada de nos apressarmos e correr o risco de um acidente.
- Tudo bem - disse Nadine. - Estou realmente empolgada! É como estar numa busca!
Ela sorriu para ele. Mas Larry não conseguiu sorrir de volta. Rita Blakemoor dissera algo muito parecido quando estavam deixando Nova York. Tinha dito isto dois dias antes de morrer.
Pararam para almoçar em Epsom, comendo presunto frito de uma lata e bebendo refrigerante de laranja debaixo da árvore, onde Larry havia adormecido e Joe ficara de pé diante dele com a faca. Larry sentira-se aliviado ao perceber que pilotar motos não era tão ruim quanto achava; na maioria dos lugares estavam ganhando um tempo razoável, mesmo quando tinham de seguir pelas calçadas dos povoados em velocidade de pedestres. Nadine estava sendo extremamente cautelosa ao diminuir a velocidade em curvas fechadas, mas mesmo na estrada aberta não insistia com Larry para ir mais rápido do que a velocidade constante de 60km/h estabelecida por ele. Larry achava que, não havendo mau tempo, estariam em Stovington por volta de 19 de julho.
Pararam para jantar a oeste de Concord, onde Nadine comentou que poderiam ganhar tempo sobre em relação ao caminho de Lauder e Goldsmith se seguissem pela Interestadual 89, direto para noroeste.
- Deve ter muito engarrafamento por lá - disse Larry, duvidando.
- Podemos ir contornando o engarrafamento - replicou ela, confiante - e seguir também pelo acostamento. O pior que pode acontecer é termos de recuar até a saída mais próxima e fazer um desvio por uma estrada secundária.
Tentaram isto por duas horas depois do jantar e, de fato, depararam com um bloqueio de um lado a outro das pistas rumo norte. Pouco depois de Warner, uma combinação de carro e trailer para cavalos havia capotado; o motorista e sua esposa, mortos há semanas, jaziam como sacas de cereais no banco dianteiro do seu Electra.
Eles três, unindo forças, conseguiram içar as motos por cima do engate empenado que unia o carro e o trailer. Depois do esforço sentiram-se cansados demais para prosseguir. Naquela noite Larry não pensou se devia ou não aconchegar-se a Nadine, que levara suas cobertas para 3 metros de distância de onde ele espalhara as suas (o garoto estava entre eles). Naquela noite Larry sentia-se cansado demais para qualquer outra coisa senão dormir.
Na tarde seguinte chegaram a um bloqueio impossível de contornar. Um caminhão tinha tombado e meia dúzia de carros colidiram atrás dele. Felizmente só haviam passado 3 quilômetros da saída de Enfield. Retornaram, pegaram a rampa de saída e depois, cansados e desanimados, pararam no estacionamento municipal de Enfield para um descanso de vinte minutos.
- O que você fazia antes, Nadine? - perguntou Larry. Ele estivera pensando na expressão dos olhos dela quando Joe finalmente tinha falado (o garoto acrescentara "Larry, Nadine, brigado" e "Ir bãero" ao seu parco vocabulário), e agora deu um palpite baseado nisto. - Você era professora?
Ela olhou para ele, surpresa.
- Sim. Você é um bom adivinhador.
- De crianças pequenas?
- Isso mesmo. De CA. e primeira série.
Isto explicava algo acerca de sua recusa peremptória em deixar Joe para trás. Pelo menos mentalmente, o garoto havia regredido ao nível de sete anos de idade.
- Como foi que adivinhou, Larry?
- Muito tempo atrás, eu costumava me encontrar com uma fonoaudióloga de Long Island - explicou Larry. - Sei que isto parece mais como o começo de uma daquelas piadas sobre Nova York, porém é a verdade. Ela trabalhava para o sistema escolar de Ocean View. Turmas mais novas. Crianças com problemas de fala, fendas palatais, lábios leporinos, crianças surdas. Ela costumava dizer que corrigir defeitos de fala em crianças consistia apenas em mostrar a elas um meio alternativo de obter os sons corretos. Mostrar a elas, dizer a palavra. Repetidamente, até que alguma coisa na cabeça da criança captasse. E quando falava sobre esse momento de captação, ficava tal qual você quando ouviu Joe dizer "Bevindo".
- É mesmo? - Ela sorriu, um tanto contrafeita. - Eu adorava as crianças. Algumas das minhas estavam avariadas, mas nenhuma delas danificada irremediavelmente. As crianças são os únicos seres humanos bons.
- Uma ideia um tanto romântica, não é?
Ela deu de ombros.
- As crianças são boas. E se trabalhar com elas você acaba virando um romântico. Não é tão ruim. Sua fonoaudióloga não estava feliz com seu trabalho?
- Estava, ela gostava do trabalho - concordou Larry. - Você era casada? Antes?
- Ali estava de novo aquela palavra simples e ubíqua. Antes. Apenas duas sílabas, mas que haviam se tornado abrangentes.
- Casada? Não. Nunca me casei. - Ela voltou a parecer nervosa. - Sou a professora solteirona clássica, mais jovem do que pareço, porém mais velha do que me sinto. Trinta e sete anos. - Os olhos dele voltaram-se para o cabelo de Nadine antes que ele pudesse impedi-los e ela sacudiu a cabeça como se Larry tivesse falado em voz alta.
- É prematuro - disse prosaicamente. - Minha avó tinha os cabelos totalmente brancos aos quarenta anos. Acho que vou levar pelo menos mais uns cinco anos.
- Onde lecionava?
- Em Pittsfield. Uma pequena escola particular muito exclusiva, com paredes cobertas de hera, o mais moderno equipamento para playground. Que se danasse a recessão, o negócio era rodar a toda velocidade. No estacionamento havia dois Thunderbirds, três Mercedes, dois Lincoln e um Chrysler Imperial.
- Você deve ter sido muito boa.
- Sim, acho que fui - disse ela simplesmente, depois sorriu. - Mas isso não importa muito agora.
Ele pôs um braço em torno de Nadine, que enrijeceu. A mão e o ombro dela estavam aquecidos.
- Eu gostaria que não fizesse isso - disse ela, desconfortável.
- Você não me quer?
- Não, não quero.
Ele afastou o braço, desconcertado. Ela queria que ele a abraçasse, esta era a questão; ele podia sentir o desejo de Nadine surgindo em ondas suaves mas claramente perceptíveis. Seu rubor estava muito forte agora, e ela olhava desesperadamente para as mãos entrelaçadas no colo como duas aranhas feridas. Seus olhos reluziam, como se estivesse à beira das lágrimas.
- Nadine... (meu bem, é você?)
Ela ergueu os olhos para ele e Larry viu que Nadine cruzara o limite das lágrimas. Estava a ponto de falar quando Joe apareceu apressado, carregando sua guitarra no estojo. Olharam para o menino com ar culpado, como se tivessem sido apanhados fazendo algo mais pessoal do que simplesmente conversando.
- Senhora - disse Joe, informalmente.
- O quê? - perguntou Larry, sobressaltado e não entendendo muito bem.
- Senhora - repetiu Joe, apontando com o polegar por sobre o ombro.
Larry e Nadine se entreolharam. De repente houve uma quarta voz, estridente e engasgada pela emoção, quase tão assustadora quanto a voz de Deus.
- Graças aos céus! - gritou a voz. - Ah, graças aos céus!
Eles se levantaram e olharam para a mulher que estava quase correndo pela rua na direção deles. Ela sorria e chorava ao mesmo tempo.
- Estou tão feliz em vê-los! - disse ela. - Estou tão feliz em vê-los, graças aos céus!
Ela oscilou e teria desfalecido se Larry não estivesse ali para ampará-la até a vertigem passar. Ele calculou a idade dela em cerca de 25 anos. Vestia jeans e uma blusa simples de algodão branco. Seu rosto estava pálido, com os olhos azuis estranhamente fixos. Aqueles olhos fitavam Larry como se tentando convencer o cérebro atrás deles de que não era uma alucinação, de que aquelas três pessoas estavam realmente ali.
- Sou Larry Underwood - disse ele. - Esta é Nadine Cross. O garoto é Joe. Estamos muito felizes em conhecê-la.
A mulher continuou a fitá-lo sem palavras durante um momento, depois afastou-se dele e caminhou até Nadine.
- Estou tão satisfeita... - começou. - ... tão satisfeita em encontrá-los! - Cambaleou um pouco. - Ah, meu Deus, vocês são mesmo gente de verdade?
- Somos - disse Nadine.
A mulher a enlaçou com os braços e soluçou. Nadine amparou-a. Joe ficou parado na ma, junto a uma picape acidentada, o estojo da guitarra em uma das mãos, o polegar enfiado na boca. Por fim aproximou-se de Larry e olhou para ele. Larry pegou-lhe a mão. Os dois ficaram espiando as mulheres solenemente. E foi assim que conheceram Lucy Swann.
Lucy ficou ansiosa para seguir com eles quando lhe disseram para onde iam e que tinham razão em crer que havia pelo menos duas outras pessoas lá, talvez mais. Larry arranjou-lhe uma mochila tamanho médio numa loja de artigos esportivos e Nadine acompanhou Lucy até a casa dela, nos arredores da cidade, para ajudá-la a arrumar sua bagagem - duas mudas de roupa, algumas roupas íntimas, um par extra de sapatos, uma capa de chuva. E também fotos do marido e da filha, ambos falecidos.
Nessa noite acamparam em uma cidade chamada Quechee, agora na divisa estadual, já em Vermont. Lucy contou uma história curta e simples, porém não muito diferente das outras que ouviriam. O pesar veio incorporado, e também o choque, que a impeliram até pelo menos uma pequena distância da loucura.
O marido adoecera em 25 de junho e a filha no dia seguinte. Ela havia cuidado deles tão bem quanto pôde, na plena esperança de baixar a ronqueira, como estavam chamando a doença naquela parte da Nova Inglaterra. No dia 27, quando seu marido entrou em coma, Enfield estava quase isolada do mundo exterior. A recepção televisiva tornara-se granulada e esquisita. As pessoas morriam como moscas. Durante a semana anterior tinham visto movimentos incomuns de tropas do Exército ao longo do posto de pedágio, mas nenhuma delas se preocupou muito com um lugar pequeno como Enfield, New Hampshire. Nas primeiras horas da manhã de 28 de junho, seu marido tinha morrido. A filha parecera um pouco melhor por algum tempo no dia 29, para ter uma abrupta recaída naquela noite, morrendo por volta das onze. Em 3 de julho, todo mundo em Enfield, exceto ela e um velho chamado Bill Dadds, havia morrido. Bill estivera doente, disse Lucy, mas parecia ter se recuperado inteiramente. Depois, na manhã do Dia da Independência, ela havia encontrado Bill morto na rua principal, inchado e negro, como todas as outras pessoas.
- Então, enterrei minha família e também Bill - disse Lucy, enquanto sentavam em volta da fogueira estalante. - Levou um dia inteiro, mas eu os pus para o repouso eterno. Depois pensei que seria melhor ir para Concord, onde viviam meus pais. Mas simplesmente... jamais saí do lugar. - Olhou para eles apelativamente. - Isso foi errado? Vocês acham que poderiam ter sobrevivido?
- Não - disse Larry. - A imunidade não foi hereditária de nenhuma forma direta. Minha mãe... - Desviou os olhos para o fogo.
- Eu e Wes - disse Lucy - fomos obrigados a nos casar. Foi no verão depois de minha formatura no ginásio... 1984. Meus pais não queriam que eu casasse com ele. Queriam que me ausentasse para ter o bebê e depois dá-lo para adoção. Mas eu não quis. Minha mãe disse que o casamento acabaria em divórcio. Meu pai dizia que Wes não era um homem confiável e que não parava em emprego. Eu disse: "Talvez, mas vamos ver no que vai dar." Eu queria apenas assumir o risco, entende?
- Sim - disse Nadine. Ela estava sentada perto de Lucy, olhando para ela com grande compaixão.
- Tivemos uma bela casinha, e estou certa de que nunca pensei que terminaria assim - disse Lucy com um suspiro que foi quase um soluço. - Nos acertamos muito bem, nós três. Aliás, foi Marcy mais do que eu quem fez Wes sossegar. Para ele era Deus no céu e a bebê na terra. Ele achava...
- Não - disse Nadine. - Tudo isso foi antes.
De novo aquela palavra, pensou Larry. Aquela palavrinha de duas sílabas.
- Sim. Já passou agora. E acho que poderia ter suportado sozinha. E estava suportando, de alguma forma, até que comecei a ter todos aqueles sonhos ruins.
Larry ergueu bruscamente a cabeça.
- Sonhos?
Nadine olhava para Joe, que um momento antes estivera cochilando diante do fogo. Agora ele fitava Lucy, os olhos brilhando.
- Sonhos maus, pesadelos - continuou Lucy. - Nem sempre são os mesmos. Principalmente, há um homem que me persegue, e nunca posso ver exatamente como ele é, porque está sempre envolto numa capa. E ele fica sempre nas sombras, nos becos. - Ela estremeceu. - Fico até com medo de dormir. Mas agora talvez eu...
- Homescuro! - gritou Joe de súbito, tão agressivamente que todos saltaram. Ele se levantou num pulo, como um Bela Lugosi em miniatura, os dedos imitando garras. - Homescuro! Sonho ruim! Me persegue! Me dá medo!
Ele se encolheu de encontro a Nadine e olhou desconfiado para a escuridão. Um breve silêncio caiu entre eles.
- Isso é loucura - disse Larry, mas depois se interrompeu. Todos olhavam para ele. De repente, a escuridão pareceu mais negra ainda, e Lucy readquiriu o ar assustado.
Larry forçou-se a prosseguir:
- Lucy, você alguma vez sonhou com... bem, com um lugar em Nebraska?
- Certa noite sonhei com uma velha negra - disse Lucy -, mas não durou muito. Ela disse alguma coisa como "Venha me ver". Depois eu estava em Enfield e aquele... aquele homem assustador me perseguia. E então acordei.
Larry a fitou por tanto tempo que ela enrubesceu e baixou a vista. Ele virou-se para Joe.
- Joe, você alguma vez sonhou com... hã, um milharal? Uma velha? Uma guitarra?
Joe apenas olhava para ele, envolvido pelo braço de Nadine.
- Deixe-o em paz, você vai perturbá-lo mais ainda - disse Nadine, mas era ela quem parecia perturbada.
Larry pensou um pouco.
- Uma casa, Joe? Um casebre com o alpendre apoiado por macacos?
Achou ter visto um brilho nos olhos de Joe.
- Pare, Larry! - insistiu Nadine.
- Um balanço, Joe? Um balanço feito com um pneu velho?
Joe remexeu-se de repente nos braços de Nadine. Tirou o polegar da boca. Nadine tentou contê-lo, mas o menino libertou-se.
- O balanço! - disse Joe exultante. - O balanço! O balanço! - Afastou-se alguns passos do grupo e apontou primeiro para Nadine, depois para Larry. - Ela! Você! Muitos!
- Muitos? - perguntou Larry, mas Joe já havia se aquietado.
Lucy Swann parecia aturdida.
- O balanço - disse ela. - Lembro-me dele também. - Virou-se para Larry. - Por que estamos tendo todos os mesmos sonhos? Estará alguém usando um raio sobre nós?
- Não sei. - Larry olhou para Nadine. - Também teve esses sonhos?
- Nunca sonho - disse ela, incisiva, e imediatamente baixou os olhos.
Ele pensou: Você está mentindo. Mas por quê?
- Nadine, se você... - começou.
- Já lhe disse que não sonho! - gritou ela, quase histericamente. - Não pode me deixar em paz? Tem de ficar me atormentando?
Ela se levantou e afastou-se da fogueira, quase correndo.
Lucy olhou para ela com incerteza por um momento, a seguir se levantou.
- Vou atrás dela.
- Sim, é melhor - disse Larry. - Joe, você fica aqui comigo, está bem?
- Tá - respondeu o menino e começou a abrir o estojo da guitarra.
Lucy voltou com Nadine dez minutos depois. As duas tinham chorado, Larry percebeu. Mas agora pareciam estar em bons termos.
- Desculpe - disse Nadine para Larry. - É que vivo sempre preocupada. E isto extravasa das maneiras mais esquisitas.
- Está tudo bem.
O problema foi superado. Sentaram-se e ouviram Joe desfilar seu repertório. Ele estava melhorando bastante e, em meio a uivos e grunhidos, vinham fragmentos das letras das canções.
Por fim adormeceram, Larry numa extremidade, Nadine na outra e, no meio deles, Joe e Lucy.
Larry sonhou primeiro com o homem escuro no lugar elevado, depois com a velha negra sentada no seu alpendre. Só que neste sonho ele sabia que o homem escuro estava chegando através do milharal, abrindo caminho com sua foice, com aquele terrível sorriso ígneo estampado no rosto, se aproximando deles, cada vez mais próximo.
Larry acordou no meio da noite, arquejante, o peito comprimido pelo terror. Os outros dormiam como pedras. De alguma maneira, nesse sonho ele soubera. O homem escuro não viria de mãos abanando. Nos braços, transportado como uma oferenda, traria o corpo em decomposição de Rita Blakemoor, agora rígido e intumescido, a carne dilacerada pelos animais carniceiros. Uma acusação muda a ser lançada aos seus pés para trombetear sua culpa para os outros, proclamando silenciosamente que ele não era um cara legal, que lhe faltava alguma coisa, que era um perdedor, que era um aproveitador.
Por fim, voltou a dormir e até que acordasse na manhã seguinte, às sete, rígido, com frio, faminto e precisando ir ao banheiro, não teve sonhos.
- Ah, Deus! - exclamou Nadine. Larry olhou para ela e viu uma decepção profunda demais para causar lágrimas. O rosto estava pálido, os olhos magníficos enevoados e turvos.
Eram 19h15 do dia 19 de julho, e as sombras estavam se desenhando a distância. Tinham viajado o dia inteiro, com poucas paradas de cinco minutos para descanso. A pausa para almoço, que tinham feito em Randolph, fora apenas de meia hora. Nenhum deles se queixara, embora, depois de seis horas em cima de uma moto, todo o corpo de Larry se sentisse entorpecido e dolorido como se espetado de alfinetes.
Agora estavam enfileirados de pé do lado de fora de uma grade de ferro forjado. Abaixo e atrás deles estava a cidade de Stovington, não muito diferente de como Stu Redman a tinha visto nos últimos dois dias de confinamento no Centro de Epidemias. Além da cerca e de um gramado que algum dia fora bem cuidado, mas que estava agora crescido demais e coalhado de gravetos e folhas mortas atirados sobre ele durante os temporais de fim de tarde, ficava a própria instituição, com três andares de altura e sabe-se lá quantos mais no subsolo, supôs Larry.
O local estava deserto, silencioso, vazio.
No centro do gramado havia um cartaz que dizia:
CENTRO DE CONTROLE DE EPIDEMIAS STOVINGTON
ESTA É UMA INSTALAÇÃO DO GOVERNO!
VISITANTES DEVEM SE IDENTIFICAR NA RECEPÇÃO
Ao lado havia um segundo cartaz, e este era o que estavam procurando.
RODOVIA 7 para RUTLAND
RODOVIA 4 para SCHUYLERVILLE
RODOVIA 29 para I-87
I-87 SUL para I-90
I-90 OESTE
TODOS MORTOS AQUI
ESTAMOS INDO RUMO OESTE PARA NEBRASKA
SIGA NOSSO TRAJETO
PROCURE AVISOS
HAROLD EMERY LAUDER
FRANCES GOLDSMITH
STUART REDMAN
GLENDON PEQUOD BATEMAN
8 DE JULHO DE 1990
- Harold, meu garoto - murmurou Larry. - Mal posso esperar para apertar sua mão e pagar-lhe uma cerveja... ou um chocolate Payday.
- Larry! - exclamou Lucy, estridente. Nadine havia desmaiado.
ELA CAMINHOU COM PASSO VACILANTE até o alpendre às 10h40 de 20 de julho, levando seu café e uma torrada, como fazia todos os dias em que o termômetro da Coca-Cola ao lado da janela da pia marcava mais de 30°. Era o auge do verão, o melhor verão de que podia relembrar desde 1955, o ano em que sua mãe falecera à idade avançada de 93 anos. Era uma pena que não houvesse mais ninguém ali para apreciá-lo, pensou enquanto se sentava cuidadosamente na sua cadeira de balanço sem braços. Mas realmente o apreciariam? Alguns sim, claro: os jovens apaixonados e os idosos cujos ossos recordavam tão nitidamente como era o aperto mortal do inverno. Agora a maioria dos jovens e dos velhos se fora, bem como aqueles em idade intermediária. Deus tinha feito um duro julgamento da raça humana.
Alguns poderiam argumentar contra um julgamento tão rigoroso, porém Mãe Abagail não estava entre eles. Ele já fizera isto uma vez, com água, e em algum tempo mais adiante iria fazê-lo com fogo. Não era da sua alçada julgar Deus, embora desejasse que Ele não lhe pusesse o cálice diante dos lábios como tinha feito. Mas quanto às questões de julgamento, estava satisfeita com a resposta que Deus tinha dado a Moisés, a partir da sarça ardente, quando este quisera questionar. Quem sois?, pergunta Moisés e Deus responde da sarça, tão petulante quanto seria desejável: "Eu Sou Quem Eu Sou." Em outras palavras, pare de ficar perdendo tempo aí e ponha seu traseiro em movimento, Moisés.
Ela sacudiu-se de rir, assentiu com a cabeça e mergulhou a torrada na boca larga da xícara de café, até ela amolecer o suficiente para ser mastigada. Fazia 16 anos desde que se despedira para sempre do seu último dente. Viera desdentada do ventre de sua mãe e desdentada iria para o túmulo. Molly, sua bisneta, e o marido dela tinham lhe dado uma dentadura no Dia das Mães um ano depois, ano em que ela própria completara 93 anos. Mas machucava suas gengivas e agora só a usava quando sabia que Molly e Jim vinham visitá-la. Então tirava a dentadura da caixa em sua gaveta, lavava-a bem e a colocava na boca. E se houvesse tempo antes da chegada de Molly e Jim, fazia caretas para si mesma no espelho manchado da cozinha, resmungava através daqueles enormes e brancos dentes postiços e dobrava-se de rir. Parecia um velho e negro crocodilo dos Everglades.
Estava velha e frágil, mas sua mente ainda funcionava muito bem. Abagail Freemantle, era como se chamava, nascida em 1882, tendo uma certidão de nascimento como prova. Tinha visto de tudo durante seu tempo na Terra, mas nada que se comparasse aos eventos do último mês, mais ou menos. Não, jamais vira nada semelhante, e agora seu tempo de vida faria parte disso, ideia que detestava. Estava velha. Queria descansar e apreciar o ciclo das estações entre o momento presente e a hora em que Deus se cansasse de vê-la fazendo sua ronda diária e decidisse chamá-la para morar na Glória. No entanto, o que acontecia quando se questionava Deus? A resposta que se obtinha era Eu Sou Quem Eu Sou e ponto final. Quando Seu próprio Filho orou para que o cálice lhe fosse afastado dos lábios, Deus sequer havia respondido... e ela não estava com essa bola toda, de jeito nenhum, não agora. Não passava de uma pecadora comum e ponto final. E à noite, quando o vento chegou e soprou através do milharal, ficou assustada ao pensar que Deus baixara os olhos para uma bebezinha que assomava entre as pernas da mãe no início de 1882 e dissera para Si mesmo: Vou mantê-la aí por um tempo bem longo. Ela tem serviço a fazer em 1990, na outra extremidade de uma boa quantidade de folhas de calendário.
Seu tempo ali em Hemingford Home estava chegando ao fim, e sua temporada final de trabalho situava-se lá à frente, no oeste, perto das montanhas Rochosas. Ele pusera Moisés para escalar montanhas e Noé para construir barcos; vira Seu próprio Filho pregado na cruz. Por que iria preocupar-se com o medo pavoroso que Abby Freemantle sentia do homem sem rosto, aquele que a espreitava nos sonhos?
Ela nunca o tinha visto. Ele era uma sombra passando através do milharal ao meio-dia, um bolsão frio de ar, um corvo do mal espreitando-a, pousado nos fios telefônicos. A voz dele chamava em todos os sons que já a haviam aterrorizado - falava suavemente, era o ruído de um besouro agourento debaixo da escada, dizendo que algum ente querido em breve ia morrer; quando falava em voz alta, era o trovejar vespertino rolando em meio às nuvens procedentes de oeste como um Armagedon fervilhante. E às vezes não havia nenhum som, exceto o farfalhar solitário do vento noturno entre o milharal, mas ela sabia que ele estava lá, e isso era o pior de tudo, porque o homem sem rosto parecia só um pouquinho menor do que o próprio Deus. Nessas ocasiões, parecia-lhe estar ao alcance do anjo escuro que voara silenciosamente sobre o Egito, matando o primogênito de cada casa cuja soleira não estivesse besuntada de sangue. Isto a assustava mais do que tudo. Seu medo a fazia voltar a ser criança e sabia que, embora outros soubessem dele e estivessem assustados por ele, só ela tivera uma visão clara do seu terrível poder.
- Que belo dia - disse ela, e enfiou na boca o último pedaço de torrada. Balançou-se na cadeira, bebericando seu café. Era um dia radioso e excelente e nenhuma parte do seu corpo lhe causava qualquer incômodo, por isso dedicou uma curta prece de gratidão pelo que havia obtido. Deus é grande, Deus é bom; a mais tenra criança podia aprender estas palavras, que abrangiam o mundo inteiro e tudo nele contido, de bom e de ruim. - Deus é grande - disse Mãe Abagail. - Deus é bom. Obrigada pelo dia ensolarado. Pelo café. Pela boa evacuação que tive à noite. O senhor tinha razão, aquelas tâmaras resolveram o problema, mas, meu Deus, achei o gosto horrível. Mas melhorei, não? Deus é grande...
Seu café estava acabando. Ela depôs a xícara e balançou-se, o rosto virado para o sol como uma viva e estranha face de pedra, estriada por veios de carvão. Cochilou, depois dormiu. Seu coração, de paredes agora tão finas quanto papel de seda, batia ritmicamente como fizera nos últimos 39-630 dias. Como um bebê no berço, seria preciso pôr-se a mão sobre o peito dela para constatar se ainda estava respirando. Mas o sorriso permanecia.
Sem dúvida, as coisas haviam mudado em todos aqueles anos desde que era menina. Os Freemantles tinham vindo para Nebraska como escravos libertos. Molly, a bisneta de Abagail, ria maldosa e cinicamente, sugerindo que o dinheiro que o pai de Abby usara para comprar a propriedade - dinheiro pago por Sam Freemantle de Lewis, Carolina do Sul, como salário pelos oito anos em que o pai e os irmãos dela permaneceram trabalhando após terminada a Guerra de Secessão - tinha sido "dinheiro da consciência". Abagail continha a língua quando Molly falava assim - Molly, Jim e os outros eram jovens e nada entendiam senão o muito bom e o muito ruim -, mas por dentro ela revirava os olhos e falava consigo mesma: Dinheiro da consciência? Bem, existe dinheiro mais limpo do que este?
Assim, os Freemantles se estabeleceram em Hemingford Home e Abby, a caçula dos filhos de papai e mamãe, nascera bem ali, na propriedade da família. Seu pai tinha levado a melhor sobre aqueles que não compravam de negros e aqueles que não vendiam a eles; fora comprando terras aos poucos para não alarmar os que se preocupavam com "aqueles negros escrotos lá das bandas de Columbus"; ele havia sido o primeiro no condado de Polk a tentar a rotação de culturas; o primeiro a usar adubos químicos; e em março de 1902 Gary Sites viera até a casa para dizer a John Freemantle que ele havia sido proposto e aceito como militante da Grange, a organização de fazendeiros dedicada ao fomento agrícola. Era o primeiro negro a pertencer á Grange em todo o estado de Nebraska. Aquele ano tinha sido o máximo.
Ela supunha que qualquer pessoa, olhando sua vida em retrospecto, poderia pinçar um ano e dizer: "Esse foi o melhor." Parecia a todos que havia uma fórmula mágica nas estações em que tudo se juntava, suave, glorioso e pleno de prodígio. Era só mais tarde que se podia imaginar por que havia acontecido daquele jeito. Era como colocar dez tira-gostos na travessa todos de uma vez, de modo que cada um pegasse um pouco do sabor dos outros; os cogumelos ficavam com gosto de presunto e o presunto com gosto de cogumelo; a carne de veado adquiria o gosto mais levemente silvestre de perdiz e a perdiz ficava com o travo mais estanhado de pepinos. Mais tarde na vida, se poderia desejar que as boas coisas que ocorrem todas num determinado ano pudessem ter se disseminado um pouco mais, que se pudesse talvez pegar uma das coisas valiosas e de certo modo transplantá-la por completo no meio de um período de três anos do qual não se pudesse recordar nenhuma coisa abençoada, ou mesmo uma coisa ruim. E assim se saberia que as coisas simplesmente ocorreram como deveriam ocorrer no mundo que Deus criou e Adão e Eva tinham descriado - a lavagem acabara, os assoalhos haviam sido esfregados, os bebês cuidados, as roupas remendadas; três anos sem nada para quebrar o invariável fluxo de tempo cinzento, exceto a Páscoa e o Quatro de Julho, o Dia de Ação de Graças e o Natal. Mas não havia nenhuma resposta para os meios como Deus dava início aos Seus prodígios, e para Abby Freemantle e também para seu pai, o ano de 1902 tinha sido o máximo.
Abby achava que tinha sido a única na família - além do pai, claro - a compreender que era uma coisa grande e sem precedentes ser convidado para se filiar à Grange.
Ele seria o primeiro Granger negro em Nebraska, e muito possivelmente o primeiro no país. Seu pai não se iludia a respeito do preço que ele e a família teriam de pagar na forma de piadas grosseiras e estigmas racistas daqueles homens - principalmente Ben Conveigh - que se opuseram à ideia. Mas ele também viu que Gary Sites lhe estava dando mais do que uma chance de sobrevivência: estava lhe dando a chance de prosperar com o resto do cinturão do milho.
Sendo filiado à Grange, terminariam seus problemas para comprar boas sementes. A necessidade de transportar suas colheitas por todo o caminho até Omaha a fim de encontrar um comprador também terminariam. Isto significaria o fim da querela sobre direitos de água que vinha tendo com Ben Conveigh, um fanático nos assuntos referentes a negros como John Freemantle e amantes de negros como Gary Sites. Isto poderia até mesmo significar que o lançador de impostos do condado daria uma parada nas suas pressões intermináveis. Portanto, John Freemantle aceitou o convite e a votação a seu favor (por uma margem inteiramente confortável, também), e houve piadas irritantes sobre como um negro tinha sido capturado no sótão da sede da Grange, e sobre quando um bebê negro foi para o céu e por causa de suas asinhas negras era chamado de morcego em vez de anjo, e Ben Conveigh circulando por uns tempos e dizendo às pessoas que a única razão pela qual a Mística Coligação Grange aceitara John Freemantle era porque em breve haveria a Feira das Crianças e precisavam de um negro para representar um orangotango africano. John Freemantle fingia não ouvir essas coisas e em casa citava a Bíblia: "Uma resposta suave espanta a ira" e "Irmãos, enquanto semeardes, certamente ireis colher". E a sua preferida, falada não com humildade mas sim com expectativa inflexível: "Os mansos herdarão a Terra."
Aos poucos, ele foi sendo aceito pelos vizinhos. Nem todos, não os fanáticos como Ben Conveigh e seu meio-irmão George, não os Arnold e os Deacon, porém por todos os demais. Em 1903 os Freemantle haviam jantado com Gary Sites e sua família, no salão, como quaisquer outros brancos.
E em 1902 Abagail tocara guitarra no auditório da Grange, mas não no espetáculo de variedades em que os atores eram caracterizados como negros. Ela tocara no show de talentos de gente branca, no final do ano. Sua mãe fora decididamente contra, uma das raras vezes na sua vida em que se opusera às ideias do marido diante das crianças (só que na época os garotos estavam quase chegando à meia-idade e o próprio John tinha bem mais que um vestígio de neve no cocuruto).
- Sei bem como foi isso - ela dissera, chorando. - Você, Sites e aquele Frank Fenner combinaram tudo isso. Tudo bem para eles, John Freemantle, mas o que passou pela sua cabeça? Eles são brancos! Você se reúne com eles no pátio dos fundos e trocam ideias sobre lavoura! Você pode até mesmo ir à cidade e tomar uma cerveja com eles, se aquele Nate Jackson permitir que entre no seu bar. Ótimo! Sei o que deve ter passado nestes últimos anos... melhor que ninguém. Sei que ostentou um sorriso no rosto quando devia estar magoado no seu coração. Só que agora é diferente! Trata-se de sua própria filha! O que irá dizer se ela subir ao palco com seu lindo vestido branco e eles zombarem dela? O que fará se lhe jogarem tomates podres, como fizeram com Brick Sullivan quando ele tentou cantar no show de variedades? E o que vai dizer se ela chegar com manchas de tomate em toda a frente do seu vestido e perguntar: "Por que, papai? Por que fizeram isso? E por que deixou que fizessem?"
- Bem, Rebecca - respondera John -, acho que é melhor deixarmos isto por conta dela e de David.
David tinha sido o seu primeiro marido; em 1902, Abagail Freemantle se tornara Abagail Trotts. David Trotts era um peão de fazenda lá para as bandas de Valparaíso e que viajava quase 50 quilômetros para cortejá-la. John Freemantle certa vez dissera a Rebecca que o boato de que Abagail amansara o velho Davy Trotts direitinho não se tratava absolutamente de um "trote". Muitos zombavam de seu primeiro marido e diziam coisas do tipo: "Acho que sei quem veste as calças naquela família."
Mas David não tinha sido um homem fraco, era apenas reservado e pensativo. Quando ele dissera a John e Rebecca Freemantle "Seja o que for que Abagail considere o correto, tudo bem, reconheço que deva ser feito", ela o abençoou por isso e havia declarado aos pais que pretendia ir em frente.
Assim, em 27 de dezembro de 1902, já grávida de três meses do primeiro filho, ela subira ao palco do auditório da Grange em meio ao silêncio que se fez quando o mestre-de-cerimônias anunciou seu nome.
Pouco antes dela, Gretchen Tilyons apresentara seu número, uma animada dança francesa, exibindo tornozelos e anáguas sob estrondosos assovios, aplausos e batidas de pés da plateia masculina.
Ela ficou parada naquele silêncio denso, sabendo o quanto seu pescoço e rosto negros contrastavam com o vestido branco novo. Seu coração disparava terrivelmente no peito enquanto pensava: Ah, esqueci a letra, cada palavra, e prometi a papai que não choraria, houvesse o que houvesse, eu não choraria, mas Ben Conveigh está na plateia, e quando ele gritar NEGRA, então acho que vou chorar, ah, por que fui me meter nisso? Mamãe tinha razão: estou no lugar errado e vou pagar por isso...
O salão estava repleto de rostos brancos erguidos para fitá-la. Todas as cadeiras estavam ocupadas e havia duas fileiras de espectadores em pé no fundo do recinto. As lanternas a querosene brilhavam e bruxuleavam. As cortinas de veludo tinham sido arrebanhadas em dobras de tecido e atadas com cordões dourados.
E ela pensava: Sou Abagail Freemantle Trotts, toco e canto bem; não sei essas coisas porque alguém me ensinou.
Então começou a cantar "The Old Rugged Cross" naquele silêncio imóvel, dedilhando a melodia. Depois passou para a melodia um tanto mais forte de "How I Love My Jesus", e a seguir, mais forte ainda, "Camp Meeting in Geórgia". Agora as pessoas marcavam o ritmo oscilando para a frente e para trás, incapazes de se controlar. Algumas estavam sorrindo e davam tapinhas nos joelhos.
Ela cantou um medley de canções da Guerra Civil: "When Johnny Comes Marching Home", "Marching Through Geórgia" e "Goober Peas" (mais sorrisos para esta; muitos daqueles homens, veteranos do Grande Exército da República, tinham comido mais que um punhado de amendoins - goober peas - durante seu serviço militar). Terminou com "Tenting Tonight on the Old Campground", e quando o último acorde se dissipou num silêncio que agora era pensativo e triste, ela pensou: Agora, se quiserem jogar seus tomates ou seja o que for, vão em frente. Toquei e cantei o melhor que pude e sei que estive ótima.
Quando o último acorde pairou no silêncio, este silêncio perdurou por um longo e quase encantado momento, como se as pessoas sentadas e as outras de pé no fundo do salão tivessem sido levadas para longe, tão longe que não podiam achar seu caminho de volta imediatamente. Depois os aplausos irromperam e rolaram sobre ela numa onda longa e uniforme, fazendo-a enrubescer, deixando-a confusa, afogueada e tiritante ao mesmo tempo. Ela viu a mãe chorando abertamente, e seu pai e David sorrindo exultantes para ela.
Tentou deixar o palco então, mas gritos de bis irromperam e assim, sorrindo, ela tocou "Digging my Potatoes", "Cavando na Minha Horta". Essa canção era um tantinho arriscada, mas Abby achou que se Gretchen Tilyons podia exibir seus tornozelos em público, então ela podia apresentar esta canção meio obscena, cantada por adolescentes. Afinal, ela era uma mulher casada.
Alguém cavou na minha horta Deixando sementes na porta, E como esse alguém foi embora, vejam o apuro em que estou agora.
Havia mais seis estrofes como essas (algumas até mais pesadas) e Abby cantou todas, e ao final de cada estrofe o rugido de aprovação era mais alto. E mais tarde achou que se fizera algo de errado aquela noite fora apresentar essa canção, que era exatamente o tipo de música que esperariam ouvir cantada por um negro.
Ela terminou para receber outra estrondosa ovação e novos gritos de bis. Subiu de novo ao palco e disse, quando a multidão se aquietou:
- Muito obrigada por tudo. Espero que não pensem que estou sendo presunçosa se pedir para cantar só mais uma, que sempre considerei especial mas nunca esperei cantar aqui. Mas é simplesmente a melhor canção que conheço, por conta do que o presidente Lincoln e este país fizeram por mim e por minha gente, mesmo antes de eu ter nascido.
Todos estavam muito quietos agora, ouvindo atentamente. Sua família sentava-se completamente imóvel, todos juntos perto da ala esquerda, como um pingo de geleia de amora-preta num lenço branco.
- Por conta do que aconteceu no meio da Guerra de Secessão - continuou ela firmemente - minha família teve condições de vir para cá e conviver com os maravilhosos vizinhos que temos.
A seguir tocou e cantou o hino dos Estados Unidos e todos ficaram de pé para ouvir. Alguns dos lenços brancos que saíam, voltaram e quando ela terminou, a plateia aplaudiu estrepitosamente.
Foi o dia mais orgulhoso de sua vida.
Ela se agitou desperta pouco depois do meio-dia e sentou-se ereta, piscando à luz do sol, uma velha de 108 anos. Havia dormido de mau jeito e as costas lhe doíam. Duraria pelo resto do dia, ela já estava escaldada a respeito.
- Que lindo dia - disse, e levantou-se cuidadosamente. Começou a descer os degraus do alpendre segurando-se cautelosa no corrimão meio frouxo, estremecendo às estocadas de dor nas costas e às comichões nas pernas. Sua circulação já não era mais a mesma... por que deveria ser? Vezes sem conta ela prevenira a si mesma das conseqüências de dormir naquela cadeira de balanço. Ela cochilava e todos aqueles velhos tempos voltavam, e isso era maravilhoso, ah, sim como era, melhor do que ver um programa na televisão, mas havia um preço tremendo a pagar quando acordava. Ela poderia censurar-se à vontade, mas era a mesma coisa que um cachorro velho esparramar-se junto a uma lareira. Quando se sentava ao sol, ela adormecia, só isso. Não precisava explicar mais nada.
Chegou ao fim dos degraus, fez uma pausa para "deixar as pernas se emparelharem com ela", depois expectorou uma boa quantidade de catarro e cuspiu na terra. Quando se sentiu mais ou menos normal (a não ser pelo incômodo em suas costas), caminhou lentamente até a privada que seu neto Victor instalara nos fundos da casa em 1931. Entrou, fechou meticulosamente a porta e pôs o trinco, como se houvesse uma multidão lá fora, em vez de uns poucos melros, e sentou-se. Um momento depois, começou a urinar na maior satisfação. Aqui havia outra coisa acerca de ser velha que ninguém jamais pensara em lhe contar (ou será que você nunca ouviu?) - a pessoa parava de pensar quando precisava urinar. Era como se perdesse todas as sensações lá embaixo na bexiga e, se não tomasse cuidado, a primeira coisa que saberia era que teria que ficar trocando de roupa a toda hora. Não gostava de ficar suja, por isso saía para se agachar na privada seis ou sete vezes por dia e à noite mantinha o urinol ao lado da cama. Jim, o marido de Molly, dissera-lhe uma vez que era como um cachorro que não podia passar por um hidrante sem pelo menos erguer uma pata para saudá-lo. Isto a fez rir até as lágrimas brotarem dos olhos e escorrerem pelas faces. Jim era um executivo de publicidade em Chicago e estava progredindo na carreira... estivera, de qualquer modo. Ela supunha que ele já tivesse ido, como os demais. Molly também. Abençoados fossem seus corações, estavam com Jesus agora.
Durante o último ano, mais ou menos, Molly e Jim eram praticamente os únicos que vinham ali para visitá-la. Os outros pareciam ter esquecido que ela estava viva, mas Abby podia entender isto. Tinha vivido além do seu tempo. Era como um dinossauro que não tinha o direito de ainda manter sua carne sobre os ossos, uma coisa cujo lugar mais adequado seria um museu (ou um cemitério). Ela os entendia por não virem visitá-la, mas o que não podia entender era por que não queriam voltar para ver a terra. Não restara muita coisa; apenas alguns hectares da imensa propriedade original. Mas ainda pertencia a eles; ainda era a terra deles. Mas o pessoal de cor não parecia mais dar muita importância a terras. Na verdade, havia alguns que pareciam até envergonhar-se disso. Partiram para ganhar a vida nas cidades e a maioria deles, como Jim, havia se saído muito bem... mas como isto fazia seu coração doer, pensar em todos aqueles companheiros negros dando as costas para a terra!
Molly e Jim quiseram montar um toalete interno para ela no ano retrasado e ficaram magoados com sua recusa. Ela tentou explicar de modo que pudessem entender, mas tudo que Molly conseguiu dizer, reiteradamente, foi:
- Mãe Abagail, você está com 106 anos de idade. Como acha que me sinto sabendo que vai se agachar na privada lá fora com a temperatura alguns dias chegando a 10 ? Não sabe o que o choque térmico pode fazer com seu coração?
- Quando Deus me quiser, Ele virá me buscar - disse Abagail. Ela estava tricotando e claro que eles acharam que se concentrava no tricô e por isto não podia ver o modo como os dois se entreolhavam.
Havia algumas coisas que não se podia deixar passar. Parecia como se fosse outra coisa que os jovens não sabiam. Agora, retrocedendo a 1982, quando ela completara cem anos, Cathy e David lhe ofereceram um aparelho de TV e esta oferta ela havia aceitado. A TV era uma máquina maravilhosa para passar o tempo quando estava sozinha. Mas quando Christopher e Susy apareceram e disseram que queriam arranjar-lhe uma cisterna, ela dera-lhes as costas tal como fizera à gentil proposta de Molly e Jim de um toalete interno. Eles argumentaram que seu poço era raso e poderia secar se houvesse outro verão como o de 1988, quando a estiagem chegou. Era verdade, mas apenas continuou dizendo não. Eles acharam que estava caducando, claro, que estava acumulando camadas de senilidade, tal como um assoalho acumula verniz, mas ela própria acreditava que sua cabeça estava tão nos trinques como sempre estivera.
Içou-se do assento da latrina, polvilhada de cal pelo buraco abaixo, e lentamente deixou-se levar de novo para a luz do sol. Abby mantinha sua latrina perfumada, mas latrinas eram velhos utensílios úmidos, não importa o quanto cheirassem bem.
Era como se a voz de Deus tivesse sussurrado no seu ouvido quando Chris e Susy se ofereceram para providenciar-lhe uma cisterna... a voz de Deus retornou até mesmo quando Molly e Jim quiseram dar-lhe aquele trono de porcelana com a alavanca de descarga do lado. Deus falava para Sua gente; não tinha Ele falado para Noé sobre a arca, dizendo-lhe quantos cúbitos teria de comprimento e quantos de profundidade e quantos de largura? Sim. E acreditava que Ele havia falado com ela também, não de uma sarça ardente nem de um pilar de fogo, mas numa voz baixa e calma: Abby, vais precisar de tua bomba manual. Vais usufruir de toda a eletricidade que quiseres, Abby, mas deves conservar abastecidas aquelas lamparinas a óleo e manter os pavios em bom estado. Vais manter aquela despensa fria do modo como tua mãe fazia antes de ti. E não permitas que nenhum dos jovens te diga qualquer coisa que saibas ser contrária a Minha vontade. Abby. São teus parentes, mas Eu Sou teu Pai.
Ela parou no meio do terreiro, olhando para o mar de milho rompido apenas pela estrada de terra que seguia para o norte, na direção de Duncan e Columbus. Cinco quilômetros além da casa, a estrada já era asfaltada. A safra de milho seria excelente este ano, e era deplorável que não houvesse ninguém ali para colhê-la exceto as gralhas. Era triste pensar que as grandes colheitadeiras vermelhas permaneceriam nos seus galpões neste setembro, triste pensar que não haveria mutirões para a debulha do milho e danças no celeiro. Triste pensar que, pela primeira vez nos últimos 108 anos, ela não estaria aqui em Hemingford Home para ver a época da mudança, quando o verão dava lugar ao pagão e aprazível outono. Ela adorava este verão muito mais porque seria o seu último - sentia isso claramente. E não seria posta para descansar ali, e sim mais a oeste, numa região estranha. Era doloroso.
Caminhou arrastando os pés até o balanço de pneu e o pôs em movimento. Aquele era um pneu velho de trator e tinha sido pendurado ali pelo seu irmão Lucas em 1922. A corda fora mudada muitas vezes nesse meio-tempo, mas nunca o pneu. Agora, a lona aparecia através de vários lugares, havia uma funda depressão onde gerações de nádegas jovens tinham se sentado para balançar. Abaixo do pneu via-se um fundo e poeirento sulco na terra, onde a relva havia muito desistira de crescer. No galho em que a corda estava amarrada, a casca fora sendo esfregada até sumir, mostrando o osso branco do galho. A corda rangia lentamente, e desta vez Abby falou em voz alta.
- Por favor, meu Senhor, a menos que seja preciso, tirai este cálice dos meus lábios, se puderdes. Estou velha e assustada e, mais que tudo, gostaria de jazer aqui, no meu lugar. Estou pronta para ir agora mesmo, se me quiserdes. Seja feita a Vossa vontade, meu Senhor, mas Abby é uma velha negra cansada e incapaz. Seja feita a Vossa vontade.
Nenhum som mais senão o rangido da corda contra o galho e o grasnar dos corvos no milharal. Encostou a velha testa enrugada contra a velha e enrugada cortiça da macieira, plantada por seu pai há tanto tempo, e chorou amargamente.
Naquela noite sonhou que estava de novo subindo os degraus para o auditório da Grange, uma jovem e linda Abagail com três meses de gravidez, uma escura jóia etíope no seu vestido branco, segurando a guitarra pelo braço, subindo, subindo, subindo naquela quietude, seus pensamentos em polvorosa, embora um único pensamento se destacasse acima de todos: Sou Abagail Freemantle Trotts, e toco e canto muito bem. Não sei essas coisas porque alguém me ensinou.
No sonho ela se virava devagar, encarando aqueles rostos brancos voltados para ela como luas, encarando aquele salão tão ricamente iluminado com suas lâmpadas e o suave brilho lançado de volta das janelas escurecidas e levemente impregnadas de vapor, e o cortinado de veludo vermelho com seus cordões dourados.
Agarrou-se firmemente àquele único pensamento e começou a tocar "Rock of Ages". E então entrou sua voz, não nervosa e contida, mas exatamente como saíra quando ela estivera ensaiando, rica e suave como o próprio brilho amarelo da luz artificial. E ela pensou: Vou vencê-los. Com a ajuda de Deus, vou vencê-los. Ah, meu povo, se vocês estão sedentos, eu não extraio água da pedra? Eu os derrotarei, e farei David orgulhoso de mim, e papai e mamãe orgulhosos de mim, farei a mim mesma orgulhosa de mim, extrairei música do ar e água da pedra...
E foi quando ela o viu pela primeira vez. Ele estava de pé bem no canto, atrás de todos os assentos, os braços cruzados no peito. Usava jeans e uma jaqueta de brim com broches nos bolsos. Calçava botas pretas empoeiradas com saltos gastos, botas que pareciam ter caminhado por mais de um quilômetro escuro e poeirento. Sua testa era branca como luz de gás, as faces vermelhas de animação, os olhos incandescendo lascas de diamante azul, faiscando com bom humor, como se o Diabrete de Satã houvesse assumido o posto de Kris Kringle. Um sorriso cálido e zombeteiro repuxara seus lábios dos dentes em algo próximo a um rosnado. Os dentes eram brancos, pontiagudos e alinhados, como os dentes de uma doninha.
Ele ergueu as mãos do corpo. As duas estavam crispadas, tão rígidas e duras como nós em uma macieira. Seu sorriso permanecia, animado e inteiramente hediondo. Gotas de sangue começaram a cair de seus punhos.
As palavras secaram na mente de Abby. Os dedos se esqueceram de como tocar; houve uma dissonância final e depois silêncio.
Deus! Deus!, gritou ela, mas Deus havia desviado Seu rosto.
A seguir, Ben Conveigh se levantou, o rosto vermelho e chamejante, seus olhinhos de porco cintilando. Puta negra!, gritou. O que é que esta puta negra está fazendo em nosso palco? Nenhuma puta negra jamais extraiu música do ar! Nenhuma puta negra jamais extraiu água da pedra!
Gritos selvagens de concordância. Pessoas arremetendo à frente. Ela viu seu marido se levantar e tentar subir ao palco. Um punho o atingiu na boca, arremessando-o para trás.
Botem esses negros sujos para o fundo do salão!, berrou Bill Arnold, e alguém empurrou Rebecca Freemantle. Alguém mais - Chet Deacon, ao que parecia - enrolou uma das cortinas de veludo em volta de Rebecca e depois a amarrou com um daqueles cordões dourados. Ele berrava: Olhem aqui! A crioula vestida! A crioula vestida!
Outros se apressaram para onde Chet Deacon estava, e todos começaram a socar a mulher que se debatia sob a cortina de veludo.
Mamãe!, gritou Abby.
A guitarra foi arrancada de seus dedos sem vigor e despedaçada na beirada do palco.
Ela procurou febrilmente o homem escuro no fundo do salão, mas o motor dele tinha sido posto em movimento e agora estava funcionando doce e calidamente. Ele havia ido para algum outro lugar.
Mamãe!, gritou de novo, e então mãos grandes a estavam arrancando do palco, enfiando-se por baixo do seu vestido, apalpando-a, apertando-a, beliscando seu traseiro. Sua mão foi puxada violentamente por alguém, estalando seu braço, e foi posta contra uma coisa dura e quente.
A voz de Ben Conveigh no seu ouvido: Como você prefere a MINHA rocha da eternidade, sua puta negra?
O salão rodopiava. Ela viu o pai lutando para livrar a flácida forma de sua mãe, e viu uma mão branca baixando uma garrafa contra o encosto de uma cadeira dobrável. Houve um chocalhar e um despedaçar e depois o entalhado gargalo da garrafa, reluzindo ao brilho cálido de todas aquelas lâmpadas, foi enfiado no rosto de seu pai. Ela viu seus olhos fixos e abaulados estourarem como uvas.
Ela gritou e a força do grito pareceu dividir o salão ao meio, deixando entrar a escuridão, e ela era Mãe Abagail novamente, de 108 anos de idade, velha demais, meu Senhor, velha demais (mas seja feita Vossa vontade), e caminhava no milharal, o milhara] místico enraizado, raso porém largo na terra, perdida no milharal que estava prateado ao brilho da lua e preto com as sombras; ela podia ouvir o vento noturno de verão sussurrando gentil através dele, sentir o cheiro de sua maturação, o cheiro inteiramente vívido que sentira em toda a sua longuíssima vida (e muitas vezes pensara que o milho era a planta que mais se aproximava de toda a vida, e seu aroma era o aroma da vida em si, o começo da vida. Ah, ela havia desposado e enterrado três maridos, David Trotts, Henry Hardesty e Nate Brooks. E tivera três homens na cama, havia-os recebido como uma mulher deve receber um homem, cedendo diante dele, e sempre houvera o anelante prazer, ela achava - Ah, meu Deus, como adoro ser sensual com meu homem e como adoro que ele seja sensual comigo quando me possui e o que dispara em mim -, e às vezes, no momento do clímax, ela pensava no milho, o delicado milho com suas raízes plantadas pouco profundas mas largas, pensava na carne e depois no milho, quando acabava e seu marido jazia ao lado dela, o odor do sexo tomando o quarto, o odor do esperma que ele despejara dentro dela, o odor dos fluidos que produzia para lubrificar a entrada para ele, e este era um odor igual ao do milho debulhado, leve e doce, um odor para lá de bom).
E ainda assim estava temerosa, envergonhada desta autêntica intimidade com o solo e o verão, e coisas maturando, porque não estava sozinha. Ele estava aqui com ela, duas carreiras à direita ou à esquerda, pisando logo atrás ou vagueando logo à frente. O homem escuro estava ali, suas botas empoeiradas escavando no núcleo do solo e afastando-o em chutes, sorrindo na noite como uma lanterna de tempestade.
Depois ele falou, pela primeira vez falou em voz alta, e ela pôde ver sua sombra ao luar, encurvada e grotesca, caindo na carreira pela qual caminhava. Sua voz era como o vento noturno que começa a gemer através das velhas e descarnadas espigas de milho em outubro, como o próprio chocalhar daquelas espigas brancas e estéreis enquanto parecem falar do seu fim. Era uma voz suave. Era a voz da condenação.
E dizia: Tenho o seu sangue nos meus punhos, velha Mãe. Se você orar para Deus. ore para que Ele a leve antes de ouvir algum dia meus pés subindo seus degraus. Não foi você quem extraiu música do ar, nem foi você quem extraiu água da pedra, e seu sangue está nos meus punhos.
Então ela se viu desperta, desperta pouco antes do alvorecer, e a princípio pensou que havia urinado na cama, mas era apenas o suor noturno, pesado como o orvalho de maio. Seu corpo franzino tremia desamparadamente, e cada parte dela ansiava por repouso.
Meu Senhor, meu Senhor, afastai este cálice dos meus lábios.
O Senhor não respondeu. Havia apenas o leve golpear do vento matinal nas vidraças das janelas, que estavam frouxas e chocalhantes, precisando de massa nova. Por fim, ela se levantou e atiçou o fogo no seu velho fogão a lenha e pôs o café.
Tinha muitas coisas a fazer nos dias que se seguiriam, porque ia receber visitas. Fossem sonhos ou não, estivesse cansada ou não, nunca fora do tipo de evitar visitas e não era agora que iria começar. Mas precisaria fazer tudo muito devagar, ou terminaria esquecendo coisas - andava muito esquecida ultimamente -, e colocando coisas fora do lugar, até acabar perseguindo a própria cauda.
A primeira tarefa era descer até o galinheiro de Addie Richardson, o que representava uma boa caminhada, de 6 ou 7 quilômetros. Viu-se imaginando se o Senhor não lhe mandaria uma águia para conduzi-la voando por toda aquela distância ou se enviaria Elias na sua carruagem de fogo para lhe dar uma carona.
- Blasfêmia - disse complacente para si mesma. - O Senhor nos envia forças, não táxis.
Após lavar seus poucos pratos, calçou os sapatos resistentes e pegou sua bengala. Mesmo agora raramente usava a bengala, porém hoje precisaria dela. Seis quilômetros de ida e 6 quilômetros de volta. Aos 16 anos ela ia correndo na ida e caminhava na volta, só que não tinha mais 16 anos.
Partiu às oito da manhã, esperando alcançar a fazenda de Richardson lá pelo meio-dia e dormir durante o período mais quente do dia. Ao entardecer, mataria suas galinhas e voltaria ainda com claridade. Só chegaria em casa depois do escurecer, e isto a fez pensar no sonho que tivera esta noite, porém aquele homem ainda estava longe. Seus visitantes estavam bem mais perto.
Caminhou muito lentamente, mais devagar do que achou que seria preciso, mas, mesmo às oito e meia da manhã, o sol estava gordo e vigoroso. Não suava muito - não havia excesso de carne nos seus ossos para extrair-lhe suor -, mas na hora em que chegou à caixa de correio dos Godell precisou descansar um pouco. Sentou-se à sombra da pimenteira deles durante algum tempo e comeu algumas barras de doce de figo. Nem uma águia nem um táxi à vista. Deu uma risada cacarejante, levantou-se, limpou a terra aderida ao vestido e prosseguiu. Não, nada de táxis. O Senhor ajuda àqueles que se ajudam. Ainda assim, podia sentir todas as suas juntas sendo afinadas; naquela noite haveria um concerto.
Apoiava-se cada vez mais na bengala à medida que avançava, embora os pulsos começassem a torturá-la. Seus sapatos com cadarços de couro cru arrastavam-se pela terra. O sol batia sobre ela e, conforme o tempo passava, sua sombra ia se encurtando. Ela viu mais animais selvagens aquela manhã do que tinha visto desde a década de 1920: raposa, guaxinim, porco-espinho, marta. Havia corvos por toda parte, guinchando, crocitando e voando em círculos no céu. Se tivesse estado por perto para ouvir Seu Redman e Glen Bateman discutindo o modo caprichoso - tinha parecido caprichoso para eles, de qualquer fornia - como a supergripe acometera alguns animais enquanto não afetara outros, teria rido. A gripe pegara nos animais domésticos e deixara os selvagens em paz, era simples assim. Algumas espécies de animais domésticos foram poupadas, mas, como regra geral, a peste acometera o homem e os melhores amigos do homem. Pegara nos cachorros mas poupara os lobos, porque os lobos eram selvagens e os cachorros não eram.
Uma dor que parecia uma vela de ignição incandescente instalou-se fundo em cada um dos quadris dela, atrás de seus joelhos, nos tornozelos e nos punhos, que usava para apoiar-se na bengala. Ela seguia caminhando e conversava com seu Deus, às vezes silenciosamente, outras vezes em voz alta, ignorando quaisquer diferenças entre as duas vozes. E viu-se pensando de novo acerca de seu próprio passado. O ano de 1902 tinha sido o melhor de todos, tudo bem. Depois disso pareceu que o tempo disparou, as páginas de um grosso calendário sendo viradas cada vez mais rápido, mal fazendo uma pausa. A vida de um corpo passara tão rápido... até onde um corpo podia ficar tão cansado de viver?
Ela tivera cinco filhos com Davy Trotts; um deles, Maybelle, se engasgara com um pedaço de maçã no pátio dos fundos do Velho Lugar. Abby pendurava roupas na corda e havia se virado para ver a bebê caída de costas, apertando a garganta e ficando roxa. Ela conseguira por fim retirar o naco de maçã da garganta da menina, mas àquela altura Maybelle já estava fria e imóvel, a única menina que tivera e a única de seus muitos filhos a ter morte acidental.
Agora estava sentada à sombra de um olmo do lado de dentro da cerca dos Naugler, e 200 metros estrada acima podia ver a terra batida ceder lugar ao asfalto - este era o local em que Freemantle Road se tornava Polk County Road. O calor do dia provocava um bruxuleio no asfalto, e ao horizonte parecia mercúrio, brilhando como água num sonho. Num dia quente você sempre vê aquele mercúrio na extremidade de até onde a vista alcança, mas nunca se chega inteiramente a ele. Ou pelo menos ela nunca chegara.
David havia morrido em 1913, de uma gripe que não diferia muito desta de agora, que havia matado tanta gente. Em 1916, quando estava com 35 anos, ela se casara com Henry Hardesty, um fazendeiro negro do condado de Wheeler, ao norte. Ele viera cortejá-la especialmente. Henry era um viúvo com sete filhos, todos, exceto dois, já adultos e que tinham seguido suas vidas. Ele era sete anos mais velho que Abagail e lhe dera dois meninos antes que seu trator capotasse sobre ele e o matasse no fim do verão de 1925.
Um ano depois, se casara com Nate Brooks, e houve comentários - ah, sim, as pessoas comentavam, como adoravam mexericar, às vezes parecia que era tudo que tinham a fazer. Nate tinha sido empregado de Henry Hardesty e tornara-se um bom marido para ela. Não tão meigo quanto David, talvez, e certamente não tão tenaz quanto Henry, mas um bom homem que havia feito muito mais do que ela dissera a ele. Quando uma mulher começa a preocupar-se com ninharias no decorrer dos anos, era um conforto saber quem tinha prevalecido.
Seus seis filhos lhe haviam produzido uma safra de 32 netos. Seus 32 netos produziram 91 bisnetos, que conhecia, e no tempo da supergripe ela ganhara três trinetos. Teria tido mais, não fossem as pílulas que as garotas de hoje em dia tomam para evitar bebês. Parecia que para elas o sexo era mais um playground para brincar. Abagail lamentava por elas em seu comportamento moderno, mas nunca tocou no assunto. Cabia a Deus julgar se elas estavam ou não pecando ao tomar aquelas pílulas (e não àquele velho gagá careca no Vaticano - Mãe Abagail tinha sido metodista a vida inteira, e orgulhava-se tremendamente de nunca querer conversa com aqueles católicos hipócritas), mas Abagail sabia o que elas estavam perdendo: o êxtase que vem quando você fica na borda do Vale das Trevas, o êxtase que vem quando você se entrega a seu homem e a seu Deus, quando diz seja feita a vossa vontade e seja feita a Vossa vontade; o êxtase final do sexo na visão do Senhor, quando um homem e uma mulher revivem o antigo pecado de Adão e Eva, só que agora lavado e santificado no Sangue do Cordeiro. Ah, que lindo dia...
Ela queria beber água, queria estar em casa na sua cadeira de balanço, queria ser deixada em paz. Agora podia ver o sol refletindo-se no telhado do galinheiro à sua frente e à esquerda. Apenas uns 2 quilômetros, não mais que isso. Eram 10h15 e ela não estava se saindo tão mal para uma mulher da sua idade. Entraria na propriedade e dormiria até o frescor do entardecer. Não havia nenhum pecado nisto. Não na sua idade. Caminhou penosamente à beira da estrada, seus sapatos pesados cobertos de poeira.
Bem, tinha um bocado de parentes para ampará-la na velhice, e isto já era alguma coisa. Havia alguns, como Linda e aquele vendedor inútil com quem casara, que nem se incomodavam em procurá-la, mas havia os bons como Molly e Jim e David e Cathy, suficientes para substituir milhares de Lindas e vendedores inúteis que iam de porta em porta para vender utensílios de cozinha medíocres. O último de seus irmãos, Luke, havia morrido em 1949, com oitenta e poucos anos, e o último de seus filhos, Samuel, em 1974, à idade de 54 anos. Havia sobrevivido a todos os seus filhos, e não era para ser assim. Mas parecia que Deus tinha planos especiais para ela.
Em 1982, ao completar 100 anos, sua foto saíra no jornal de Omaha e mandaram um repórter de TV para fazer uma matéria sobre ela. "A que atribui sua longevidade?", o jovem lhe perguntara e parecera desapontado com sua resposta breve e quase abrupta: "A Deus." O que eles queriam saber é se ela comia cera de abelha, ou se evitava carne de porco frita, ou se mantinha as pernas elevadas quando dormia. Só que não fazia nada disso, então por que mentir? Deus concede a vida, e a tira quando assim deseja.
Cathy e David lhe deram um aparelho de TV para que pudesse ver-se no noticiário, e recebera uma carta do presidente Reagan (ele próprio não sendo nenhum brotinho) congratulando-a por sua "idade avançada" e pelo fato de ter sempre votado nos republicanos enquanto tivera um voto para dar. Bem, em quem mais ela iria votar? Roosevelt e sua patota eram todos comunistas. E quando ela virou o século, a municipalidade de Hemingford Home a isentara "perpetuamente" de seus impostos por causa da mesma idade avançada pela qual tinha sido parabenizada por Ronald Reagan. Conseguiu um jornal que atestava ser ela a pessoa mais velha de Nebraska, como se isto fosse algo a que as crianças em crescimento aspirassem ser. A isenção de impostos foi uma boa coisa, porém, mesmo se o resto daquilo tudo tivesse sido a mais pura tolice - se não lhe tivessem concedido a isenção, ela teria perdido aquele pequeno pedaço de terra que lhe restava. A maior parte da terra havia sido perdida fazia muito tempo, de qualquer modo; as propriedades Freemantle e o poder da Grange haviam alcançado o seu auge naquele ano mágico de 1902, e vinham declinando desde então. Só restavam agora uns poucos hectares. O resto ou fora confiscado para pagar impostos atrasados ou vendido para fazer caixa ao longo dos anos... e a maior parte da terra fora vendida por seus próprios filhos, ela tinha vergonha de admitir.
No último ano recebera um panfleto de uma entidade nova-iorquina que se intitulava Sociedade Geriátrica Americana. O panfleto dizia que ela era a sexta pessoa mais velha nos Estados Unidos, e a terceira mulher mais idosa. A mais velha era uma de Santa Rosa, Califórnia. A companheira de Santa Rosa tinha 122 anos. Abagail pedira a Jim que pusesse o panfleto numa moldura e o pendurasse ao lado da carta do presidente. Jim não aparecera para fazer isto desde fevereiro. Agora que pensou a respeito, tinha sido esta a última vez em que vira Molly e Jim.
Havia chegado à fazenda Richardson. Quase inteiramente exausta, apoiou-se por um momento no moirão mais próximo do celeiro e olhou ansiosamente para a casa. Estaria fresco lá dentro, fresco e confortável. Ela sentia que poderia dormir por um século. Ainda assim, antes que pudesse fazê-lo, havia mais uma coisa a ser realizada. Diversos animais haviam morrido desta doença - cavalos, cachorros e ratos -, e ela precisava saber se as galinhas estavam incluídas. Seria uma decepção descobrir que dera toda esta caminhada para encontrar apenas galinhas mortas.
Dobrou na direção do galinheiro, que era anexo ao celeiro, e parou quando ouviu os cacarejos lá dentro. Um instante depois, um galo cocoricou irritadamente.
- Tudo bem - murmurou. - Isto é ótimo, então.
Estava se virando quando viu o corpo esparramado junto à pilha de lenha, uma das mãos por cima do rosto. Era Bill Richardson, cunhado de Addie. Ele havia sido escolhido para alimentar os animais.
- Pobre homem - disse Abagail. - Coitado. Que coros de anjos cantem para teu repouso, Billy Richardson.
Voltou-se para a casa fresca e convidativa. Parecia estar a quilômetros de distância, embora na realidade estivesse apenas na entrada. Não sabia com certeza se poderia chegar tão longe; estava totalmente exausta.
- Seja feita a vontade de Deus - disse, e começou a caminhar.
O sol brilhava na janela do quarto de hóspedes, onde ela havia deitado e adormecido tão logo descalçara os sapatos pesados. Por um longo tempo não entendeu por que a luz estava tão brilhante; parecia muito com a sensação que Larry Underwood tivera ao acordar ao lado do muro de pedra em New Hampshire.
Sentou-se, fazendo gritar cada músculo distendido e cada osso frágil do seu corpo.
- Deus Todo-Poderoso, dormi a tarde e a noite inteira!
Sendo assim, devia estar mesmo cansada. Mesmo agora, sentia-se tão incapacitada que levou quase dez minutos para sair da cama e descer o corredor para o banheiro; mais dez para calçar os sapatos. Caminhar era uma agonia, mas sabia ser necessário. Se não o fizesse, a rigidez iria se fixar como feno no seu corpo.
Claudicando e rastejando, atravessou o pátio até o galinheiro e entrou, pestanejando com a quentura explosiva, o cheiro das aves e o inevitável odor de decomposição. O abastecimento de água era automático, alimentado pelo poço artesiano de Richardson através de uma bomba de gravidade, mas a maior parte da ração fora consumida e o próprio calor já matara muitas aves. As mais fracas havia muito tinham perecido de fome ou foram bicadas até a morte, e jaziam pelo chão salpicado de ração e fezes, como pequenos flocos de neve se derretendo tristemente.
A maioria das galinhas remanescentes fugiu à sua aproximação com um grande bater de asas, mas aquelas que estavam chocas continuaram paradas e piscaram à sua lenta e arrastada abordagem com seus olhinhos estúpidos. Eram tantas as doenças que matavam as galinhas que ela temera que a gripe pudesse tê-las dizimado, mas estas pareciam bem. O Senhor provera.
Ela pegou três das mais gordas e as fez enfiar as cabeças debaixo das asas. Elas começaram imediatamente a dormir, Abby as colocou dentro de um saco e então descobriu que estava rígida demais para conseguir erguê-lo. Teve que arrastar o saco pelo chão.
As outras galinhas observavam-na cautelosas dos lugares altos onde se empoleiravam até que a mulher se fosse, depois voltaram à perversa disputa pela ração que escasseava.
Eram quase nove da manhã agora. Abagail sentou-se para pensar no banco que contornava o pátio, junto à porta de carvalho dos Richardson. Parecia-lhe que sua ideia original, de voltar para casa no frescor da tardinha, ainda era a melhor. Havia perdido um dia, mas suas visitas ainda estavam a caminho. Poderia aproveitar este dia para cuidar das galinhas e descansar.
Seus músculos já se flexionavam um pouco melhor contra os ossos, mas havia uma sensação estranha porém bem agradável apertando-a abaixo do esterno. Levou vários minutos para perceber o que era... ela estava com fome! Esta manhã estava realmente com fome, benza Deus, e quanto tempo se passara desde que tinha comido por nenhum motivo senão a força do hábito? Ela havia sido como um foguista de locomotiva empilhando carvão, nada mais. Mas quando cortasse as cabeças dessas três galinhas veria o que Addie tinha deixado em sua despensa e, pelo Senhor abençoado, iria apreciar o que havia descoberto. Vê só?, censurou-se. O Senhor conhece melhor. Segurança abençoada, Abagail, segurança abençoada.
Gemendo e bufando, arrastou seu saco de aniagem até o cepo de cortar carne, situado entre o celeiro e o galpão de lenha. Mal entrou no galpão, encontrou a machadinha de Billy Richardson pendendo de duas cavilhas, seu protetor de borracha acondicionado sobre a lâmina cuidadosamente. Ela a pegou e saiu.
- Bem, Senhor - disse ela, de pé junto ao saco em seus sapatos amarelos de poeira e olhando para o céu sem nuvens de meados de verão. - Vós me destes força para caminhar até aqui, e acredito que me dareis a força para voltar. Vosso profeta Isaías diz que se um homem ou mulher acreditam no Senhor Deus dos Exércitos, ele o proverá de asas como águias. Nada sei sobre águias, meu Senhor, exceto que são principalmente pássaros de natureza má, capazes de enxergar muito longe, mas estou com três galinhas neste saco e gostaria de cortar as cabeças delas e não a minha própria mão. Seja feita a vossa vontade, amém.
Ela ergueu o saco, abriu-o e espiou no seu interior. Uma das galinhas continuava com a cabeça debaixo da asa, adormecida. As outras duas tinham se aconchegado uma à outra, não se movendo muito. Estava escuro no saco e elas pensavam que fosse noite. A única coisa mais estúpida do que uma galinha era um democrata de Nova York.
Abagail pegou uma das galinhas e a deitou sobre o cepo, antes que ela percebesse o que acontecia. Baixou a machadinha com força, pestanejando como sempre fazia ante o baque final e mortal da lâmina mordendo a madeira. A cabeça caiu na terra, ao lado do cepo. A galinha decapitada caminhou empertigada para o pátio junto à porta dos fundos da casa, esguichando sangue e batendo as asas. Após um instante, descobriu que estava morta e caiu por terra decentemente. Galinhas estúpidas e democratas de Nova York, meu Deus, meu Deus!
A tarefa estava realizada, e toda a preocupação em não fazer a coisa direito ou ferir-se havia sido em vão. Deus ouvira sua prece. Três boas galinhas. Agora só lhe restava voltar para casa com elas.
Tornou a colocar as galinhas de volta no saco de aniagem e recolocou a machadinha no lugar onde a pegara. Depois voltou à casa da fazenda para ver o que havia para comer.
Dormiu durante a primeira parte da tarde e sonhou que seus visitantes agora estavam mais próximos; encontravam-se logo ao sul de York, viajando em uma velha caminhonete. Eram seis, um deles um rapaz surdo-mudo. Porém mesmo assim um rapaz decidido, um daqueles com quem precisaria falar.
Acordou por volta das três e meia da tarde, um pouco enrijecida, mas afora isto sentindo-se descansada e revigorada. Nas duas horas e meia seguintes, depenou as galinhas, descansando quando o trabalho fazia seus dedos artríticos doerem demais. Cantou hinos enquanto trabalhava - "Seven Gates to the City" (Ah, Senhor, aleluia), "Trust and Obey" e a sua preferida, "In the Garden".
Ao terminar com a última galinha, cada um de seus dedos sofria de enxaqueca e a luz do dia começara a adquirir aquele matiz quieto e dourado que significa ter chegado a sentinela avançada do crepúsculo. Era final de julho, e os dias recomeçavam a se encurtar.
Abby entrou e comeu mais um pouco. O pão estava dormido, mas sem mofo - nenhum mofo ousaria expor sua cara verde na cozinha de Addie Richardson -, e ela encontrou um pote pela metade com macia manteiga de amendoim. Ela comeu um sanduíche de manteiga de amendoim e preparou outro, que colocou no bolso do vestido, para o caso de sentir fome mais tarde.
Faltavam agora vinte minutos para as sete. Tornou a sair, pegou seu saco de aniagem e desceu com cuidado os degraus do alpendre. Havia depenado as galinhas e posto dentro de outro saco, mas algumas penas haviam escapado e agora agitavam-se ao vento na cerca viva dos Richardson, que estava morrendo por falta de rega. Abagail suspirou pesadamente e disse:
- Estou indo, Senhor. De volta para casa. Caminharei muito devagar, acho que só chegarei lá pela meia-noite ou por aí, porém o Livro diz: não temas o terror da noite e nem aquilo que vejas à luz do dia. Estou procurando seguir Vossa vontade o melhor que posso. Caminhai comigo, por favor. Em nome de Jesus, amém.
Quando chegou ao ponto onde terminava a estrada asfaltada e começava a de terra, já anoitecera por completo. Grilos cricrilavam e sapos coaxavam em algum lugar úmido, talvez no charco onde bebiam as vacas de Cal Goodell. Haveria lua cheia, bem grande e vermelha, quando se elevasse bem alta no céu.
Sentou-se para descansar e comeu metade do seu sanduíche de manteiga de amendoim (o que não daria por uma boa geleia de groselha para tirar aquele travo pegajoso da boca! No entanto, Addie costumava guardar suas conservas no porão, e eram muitos os degraus a descer até lá). O saco de aniagem estava do seu lado. Abagail sentiu o corpo dolorido novamente e sua força parecia prestes a esgotar-se, quando ainda tinha 4 quilômetros de caminhada pela frente... mas sentia-se estranhamente eufórica. Quanto tempo fazia desde que estivera fora de casa depois de escurecer, debaixo de um céu estrelado? As estrelas brilhavam mais do que nunca e, com sorte, talvez visse alguma cadente, para formular um pedido. Uma noite quente como aquela, as estrelas, a lua de verão apenas assomando a face vermelha de enamorada acima do horizonte, tudo isto a fazia recordar sua mocidade com todos os seus altos e baixos, sua vivacidade, sua esplêndida vulnerabilidade enquanto pairava à borda do Mistério. Ah, ela havia sido uma garota! Havia quem não acreditasse, tal como não acreditariam que uma sequóia gigante fora um dia um broto verde. Mas ela havia sido, sim, uma garota, e naquela época os terrores noturnos da infância tinham-se desvanecido um pouco, mas os medos adultos que surgem na noite, quando tudo é silêncio e podemos ouvir a voz de nossa alma mortal, esses medos ainda estavam por vir. Naquele breve intervalo, a noite havia sido um fragrante quebra-cabeça, uma época em que, olhando para o céu pontilhado de estrelas e ouvindo a brisa que trazia aromas tão inebriantes, a gente se sentia muito próxima do coração do universo, do amor e da vida. Parecia-lhe que seria eternamente jovem e que... Seu sangue está nos meus punhos.
Houve um repentino e brusco puxão no saco, fazendo seu coração saltar.
- Ei! - gritou com estridência na sua voz cacarejante e sobressaltada de velha. Puxou o saco para si, com um pequeno rasgão no fundo.
Houve um som baixo e rosnado. Agachada à beira da estrada, entre o acostamento de cascalho e o milharal, estava uma enorme doninha marrom. Seus olhos giraram para Abby, captando reflexos vermelhos de luar. Uma outra se juntou a ela. Depois outra. E mais uma.
Abagail olhou para o outro lado da estrada e viu que estava margeado pelas doninhas, seus olhos maldosos e especulativos. Haviam farejado as galinhas no saco. Como era possível que tantas rastejassem ao seu redor?, imaginou com medo crescente. Já havia sido mordida por uma doninha uma vez; esticara o braço debaixo do alpendre para pegar uma bola de borracha que rolara para lá quando algo parecido com uma boca cheia de agulhas prendeu seu antebraço. A malignidade inesperada disso, a agonia pulando violenta e vital para fora da enfadonha ordem das coisas a fizeram berrar tanto quanto a verdadeira dor. Puxou o braço e a doninha veio pendurada nele, com o sangue de Abagail gotejando no pêlo castanho do animal, cujo corpo rodopiava no ar como o corpo de uma serpente. Ela havia gritado e agitado o braço, mas a doninha não o soltava; parecia ter se tornado um apêndice dela.
Seus irmãos Micah e Matthew estavam no pátio; seu pai no alpendre, examinando um catálogo de reembolso postal. Todos tinham acorrido e por um momento se imobilizaram como que congelados à visão de Abagail, depois então com 12 anos correndo em volta da clareira onde o celeiro seria em breve erguido. A doninha pendia de seu braço como uma estola, suas patas traseiras escavando o ar em busca de apoio. O sangue respingara no seu vestido, nas pernas e sapatos como se caído de um chuveiro desregulado.
Foi seu pai o primeiro a agir. John Freemantle havia pegado uma tora do fogão a lenha ao lado do cepo de cortar carne e berrara: "Fique parada, Abby!" Sua voz, que havia sido a voz de comando definitiva desde sua tenra infância, atravessou o tartamudeio e gaguejar de pânico na sua mente quando talvez nada mais pudesse fazê-lo. Ela permaneceu parada e a tora de lenha desceu sibilando e uma agonia sacolejante percorreu todo o caminho até seu ombro (ela com certeza achou que seu braço estava quebrado), e a seguir a coisa castanha que lhe causara tanta agonia e surpresa - no horrendo calor daqueles poucos momentos as duas sensações estiveram completamente intercambiáveis - jazia no chão, seu pêlo raiado e manchado de sangue. A seguir, Micah saltou no ar e caiu sobre o bicho de pés juntos. Houve um horrendo som de esmigalhamento final, como o som que um doce duro provoca na cabeça quando a gente o mastiga entre os dentes. Se a doninha ainda não havia morrido, certamente estava morta agora. Abagail não desmaiou, mas irrompeu em soluços e gritos histéricos.
Foi então que Richard, o filho mais velho, chegou correndo, o rosto pálido e assustado. Ele e o pai trocaram um olhar sóbrio e cheio de espanto.
- Nunca vi uma doninha fazer nada parecido em toda a minha vida - disse John Freemantle, agarrando a filha soluçante pelos ombros. - Graças a Deus que sua mãe estivesse estrada acima, cuidando de seus feijões.
- Talvez seja r... - começou Richard.
- Feche essa boca - cortou seu pai antes que Richard pudesse prosseguir. Sua voz soara fria, furiosa e assustada, tudo ao mesmo tempo. E Richard fechou a boca, fechou-a tão rápida e firmemente, de fato, que Abby a ouvira fechar no ato. Em seguida, o pai lhe disse:
- Vamos levá-la até a bomba, querida Abagail, e lavar toda essa porcaria.
Foi só um ano mais tarde que Luke lhe contou por que o pai deles não quisera que Richard dissesse aquilo em voz alta: a doninha decerto devia estar raivosa para fazer uma coisa daquele tipo, e se estivesse mesmo com raiva, Abagail teria sofrido uma das mortes mais pavorosas, sem falar da completa tortura, que o gênero humano conhecia. Mas a doninha não estava raivosa; o ferimento havia sarado. Mesmo assim, ela ficara com pavor daquelas criaturas desde então, apavorada tal como algumas pessoas têm pavor de ratos e aranhas. Se ao menos a epidemia tivesse atacado as doninhas em vez dos cachorros! Mas não tinha, e ela estava...
Seu sangue está nos meus punhos.
Uma das doninhas saltou à frente e rasgou a bainha rústica do saco de aniagem.
- Ei! - gritou Abby para ela. A doninha recuou rapidamente, parecendo rir, com fiapos pendendo da boca.
Ele as enviara - o homem escuro.
O terror a engolfou. Agora havia centenas delas, cinzentas, castanhas, pretas, todas farejando galinha. Alinhavam-se de ambos os lados da estrada, atropelando-se na sua ânsia de abocanhar o que farejavam.
Terei de entregar a elas. Tanto trabalho por nada. Se não entregar o saco para elas, vão me estraçalhar para consegui-lo. Tanto trabalho por nada.
Nos recessos sombrios de sua mente podia ver o sorriso do homem escuro, pôde ver os punhos estendidos e o sangue pingando deles.
Outro puxão no saco. E mais um.
As doninhas do outro lado da estrada cruzavam-na agora em sua direção, contorcidas, agachadas, os ventres roçando a terra. Seus olhinhos selvagens cintilavam ao luar como furadores de gelo.
Eis que aquele que crer em Mim não perecerá... pois coloquei sobre ele o Meu sinal e nada o tocará... ele pertence a Mim, disse o Senhor.
Ela se ergueu, ainda aterrorizada, mas agora certa do que devia fazer.
- Saiam! - gritou. - São galinhas, isso mesmo, mas são para as minhas visitas! Agora vão embora!
Elas recuaram. Seus olhinhos pareciam cheios de inquietude. E então sumiram de repente como fumaça desfeita ao vento. Um milagre, pensou ela, inundada de exultação e louvor ao Senhor. Então, inesperadamente, sentiu frio.
Em algum ponto distante a oeste, além das Rochosas, que sequer eram visíveis no horizonte, ela sentiu um olho - um Olho brilhante - subitamente esbugalhado e voltado na sua direção, procurando. Tão claramente como se as palavras tivessem sido pronunciadas em voz alta, ela o ouviu: Quem está aí? É você, velha?
- Ele sabe que estou aqui - sussurrou ela em meio à noite. - Ah, ajudai-me, Senhor. Ajudai-me agora, ajudai a todos nós!
Arrastando o saco de aniagem, recomeçou a caminhar para casa.
Eles apareceram dois dias depois, em 24 de julho. Ela não completara todos os preparativos que desejaria; mais uma vez, estava coxeando e quase inválida, só conseguindo se movimentar com a ajuda da bengala, e quase incapaz de bombear água do poço. No dia seguinte, após matar as galinhas e enxotar as doninhas, dormiu por um longo tempo à tarde, exausta. Sonhou que estava em um alto desfiladeiro no meio das Rochosas, a oeste da divisa continental. A Auto-Estrada 6 se estendia e contorcia-se entre altas paredes de rocha que sombreavam esta garganta durante o dia inteiro, exceto das 11h45 da manhã até 12h50 da tarde. Não era dia claro no seu sonho, mas noite escura, sem lua. Lobos uivavam em algum lugar. E de súbito um Olho abriu-se em toda aquela escuridão, girando de modo horrível de um lado para o outro enquanto o vento movia-se desoladamente através dos pinheiros e espruces azulados da montanha. Era ele, e estava olhando para ela.
Ela havia despertado desta longa e pesada soneca sentindo-se menos descansada do que quando se deitara, e mais uma vez orou para que Deus fosse clemente com ela, ou pelo menos mudasse o rumo que desejava que ela seguisse.
Para norte, sul ou leste, Senhor, e deixarei Hemingford Home cantando em Vosso louvor. Mas não para oeste, não na direção daquele homem escuro. As Rochosas não são uma barreira suficiente para separá-lo de nós. Nem os Andes seriam suficientes.
Mas isso não importava. Mais cedo ou mais tarde, quando aquele homem se sentisse forte o bastante, viria em busca daqueles que resistiam a ele. Se não este ano, então no seguinte. Os cães tinham morrido, dizimados pela peste, mas os lobos permaneciam nas altas regiões montanhosas, prontos para servir àquele Assecla de Satã.
E não seriam apenas os lobos a servi-lo.
Na manhã do dia em que suas visitas finalmente chegaram, ela começara a trabalhar às sete, carregando lenha, duas toras de cada vez, até o fogão aquecer e ter a lenheira abastecida. Deus a tinha favorecido com um dia fresco e nublado, o primeiro em semanas. Ao cair da noite haveria chuva. Pelo menos assim lhe dizia o quadril que havia fraturado em 1958.
Primeiro assou as tortas, usando como recheio os artigos enlatados das prateleiras de sua despensa, juntamente com mibarbos e morangos frescos do pomar. Os morangos tinham acabado de amadurecer, Deus seja louvado, e era bom saber que não ficariam ali até apodrecerem. O simples ato de cozinhar a fez sentir-se melhor, porque cozinhar era vida. Uma torta de vacínio, duas de mibarbo-morango e uma de maçã. O aroma delas enchia a cozinha na manhã. Abby colocou-as na janela para esfriar, conforme fizera a vida inteira.
Ela havia preparado a melhor massa possível, mesmo com a dificuldade para obter ovos frescos - embora a culpada fosse ela, pois estivera lá, bem dentro no galinheiro.
Com ou sem ovos, no início da tarde a pequena cozinha, com seu piso desigual de linóleo desbotado, estava impregnada com o aroma de galinha frita. Ficaram bem tostadas por dentro e, assim, ela manquitolou até o alpendre para ler sua lição diária, usando a orelha do último exemplar de The Upper Room para abanar o rosto.
As galinhas ficaram tão macias e saborosas quanto se poderia desejar. Um dos visitantes bem que poderia colher duas dúzias de milho verde e então teriam uma boa refeição ao ar livre.
Após colocar os pedaços de galinha sobre toalhas de papel, foi para o alpendre dos fundos com a guitarra, sentou-se e começou a tocar. Cantou todos os seus hinos favoritos, sua voz aguda e trêmula flutuando no ar parado.
Passamos por provações e tentações,
Somos sobrecarregados com cuidados excessivos?
Nunca devemos nos sentir desestimulados,
Leve isto em prece ao Senhor.
A música soava tão bem para ela (embora seu ouvido falhasse até um grau onde nunca poderia saber com certeza se sua velha guitarra estava afinada) que tocou outro hino, e mais um, e outro.
Preparava-se para tocar "Estamos em marcha para Sião" quando ouviu o som de um motor procedente do norte e descendo pela County Road em sua direção. Parou de cantar, mas os dedos continuaram a dedilhar as cordas distraidamente enquanto inclinava a cabeça para ouvir melhor. Estão chegando, sim, meu Senhor, encontraram o caminho direitinho. Agora já podia ver a nuvem de poeira provocada pelo veículo ao deixar a estrada asfaltada e entrar na de terra batida que vinha dar na sua porta. Foi tomada por uma grande e bem-vinda euforia, satisfeita por ter vestido sua melhor roupa. Pôs a guitarra entre os joelhos e colocou a mão em pala sobre os olhos, embora ainda não houvesse sol.
Agora o motor soava bem mais alto, e logo depois, onde o milharal cedia espaço para o bebedouro do gado de Cal Goodell...
Sim, podia vê-lo, um velho caminhão Chevrolet de fazenda, movendo-se lentamente. A cabine estava repleta; quatro pessoas ali amontoadas, ao que parecia (nada havia de errado com sua visão a distância, mesmo aos 108 anos), com mais três na carroceria, de pé e olhando por sobre a cabine. Ela distinguiu um homem de cabelos muito louros, uma jovem ruiva e no meio... sim, aquele era ele, um rapaz no fim do aprendizado para tornar-se homem. Cabelos escuros, rosto fino, testa alta. Ele a viu sentada no alpendre e começou a acenar freneticamente. Um momento depois, o homem louro o imitava. A garota ruiva apenas olhava. Mãe Abagail ergueu a mão e acenou de volta.
- Deus seja louvado por trazê-los até aqui - murmurou roucamente. Lágrimas cálidas estriaram sua face. - Meu Senhor, como sou grata...
O caminhão, sacolejando e chocalhando, dobrou para entrar no pátio. O homem ao volante usava um chapéu de palha com uma faixa de veludo azul na qual tinha enfiado uma grande pena.
- Iaaarrruu! - gritou ele e acenou. - Olá, Mãe! Nick imaginou que deveria estar aqui e aqui está você! Iaarru! - Ele tocou a buzina. Sentados com ele na cabine estavam um homem de seus 50 anos, uma mulher da mesma idade e uma garotinha vestindo um macacão de brim vermelho. A garotinha acenou timidamente com uma das mãos; o polegar da outra estava preso firmemente na boca.
O jovem de cabelo escuro com a venda no olho - Nick - saltou pela lateral da carroceria antes mesmo que o caminhão parasse. Recuperou o equilíbrio e depois caminhou lentamente em direção a ela. Seu rosto era solene, mas o olho cintilava de alegria. Parou ao pé dos degraus do alpendre e então olhou em torno com admiração... para o pátio, a casa, para a velha árvore com seu balanço de pneu. E principalmente para ela.
- Olá, Nick - disse Abagail. - Estou contente em vê-lo. Deus o abençoe.
Ele sorriu, agora começando a debulhar as próprias lágrimas. Subiu os degraus até ela e tomou-lhe as mãos. Abagail virou a face enrugada para ele e Nick a beijou suavemente. Atrás dele, o caminhão tinha parado, e todos saltaram. O motorista segurava no colo a garotinha de macacão vermelho, cuja perna direita estava engessada. Os braços dela enlaçavam com firmeza seu pescoço queimado de sol. Perto dele estava a mulher cinqüentona, ladeada pela ruiva e pelo garoto louro barbudo. Não, não é um garoto, pensou Mãe Abagail; é débil mental. Fechando a fila, vinha o outro homem que viajara na cabine. Ele polia as lentes dos seus óculos de aros de aço.
Nick olhava ansioso para ela, que assentiu.
- Vocês fizeram a coisa certa - disse ela. - O Senhor os trouxe e Mãe Abagail vai alimentá-los. Sejam todos bem-vindos! - acrescentou, alteando a voz. - Não podemos demorar muito, porém, antes de partirmos, temos que descansar e repartir o pão juntos. Precisamos confraternizar.
A garotinha perguntou, da segurança dos braços do motorista:
- A senhora é a mulher mais velha do mundo?
- Pssst, Gina! - censurou a mulher cinquentona. Mãe Abagail limitou-se a pôr a mão na cintura e riu.
- Talvez seja, criança. Talvez seja.
Ela fez com que estendessem sua toalha de xadrez vermelho no lado mais afastado da macieira. Olivia e June arrumavam o almoço do piquenique enquanto os homens saíam para colher milho. Não daria muito trabalho cozinhá-lo e, mesmo não tendo manteiga de verdade, Abagail ainda dispunha de bastante óleo e sal.
Pouco falaram durante a refeição - os sons resumiram-se a maxilares mastigando e breves grunhidos de prazer. Fazia bem ao coração de Abby ver gente devorando uma refeição, e aquelas pessoas lhe prestavam inteira justiça. Em comparação a isso, a árdua caminhada até o galinheiro de Richardson e sua disputa com as doninhas nada mais pareciam senão detalhes insignificantes. Não que aquela gente estivesse exatamente faminta, mas quando se passa um mês inteiro comendo enlatados, vem uma poderosa ânsia por alimento fresco e recém-preparado. Ela própria reservara para si três pedaços de galinha, uma espiga de milho e uma pequena fatia da torta de ruibarbo-morango. Ao terminar, ela se sentiu tão cheia quanto o estofo de um colchão.
Depois que todos terminaram e o café foi servido, o motorista, Ralph Brentner, um homem simpático e de expressão franca, disse a ela:
- Foi um almoço e tanto, madame. Não me lembro de ter comido nada tão saboroso na vida. Aceite meus cumprimentos.
Os outros murmuraram em concordância. Nick sorriu e assentiu. A garotinha disse:
- Posso ir aí e sentar no seu colo, vovó?
- Acho que você é pesada demais, meu bem - disse Olivia Walker, a mulher mais velha.
- Bobagem - replicou Abagail. - O dia em que eu não agüentar mais pôr uma criança no colo, será o dia em que me enrolarem na mortalha. Pode vir, Gina.
Ralph a levou, pondo-a no colo da velha.
- Quando achar que está pesando demais, é só me dizer. - Ele fez cócegas no rosto de Gina com a pena do seu chapéu. Ela ergueu as mãos e deu risadinhas.
- Não me faz cócegas, Ralph! Não ouse me fazer cócegas!
- Não se preocupe - disse Ralph, abrandando. - Já estou cheio de fazer cócegas em alguém o tempo todo. - E sentou-se.
- O que houve com sua perna, Gina? - perguntou Abagail.
- Quebrei quando caí do celeiro - disse a menina. - Dick a consertou. Ralph diz que Dick salvou minha vida. - Ela soprou um beijo para o homem com óculos de aros de aço, que enrubesceu um pouco, pigarreou e sorriu.
Nick, Tom Cullen e Ralph haviam encontrado Dick Ellis na metade do caminho através do Kansas, andando à beira da estrada, com a mochila nas costas e empunhando um bastão para ajudar na caminhada. Era veterinário. No dia seguinte, ao passarem pela cidadezinha de Lindsborg, pararam para almoçar e ouviram gritos débeis que vinham do lado sul da cidade. Se o vento estivesse soprando na direção contrária, jamais teriam ouvido os gritos.
- Misericórdia de Deus - disse Abby complacente, afagando os cabelos da menininha.
Gina estivera por sua própria conta durante três semanas. Um ou dois dias antes, brincava no jirau do celeiro do tio quando o piso apodrecido cedeu e ela despencou 12 metros até o feno mais abaixo. O feno havia amortecido a queda, mas Gina rolara dele, fraturando a perna. A princípio, Dick Ellis se mostrara pessimista quanto às suas chances. Aplicou-lhe um anestésico local para encanar a perna fraturada; a menina havia perdido tanto peso e seu estado físico era tão ruim que uma anestesia geral poderia matá-la (as palavras-chave nesta conversa foram pronunciadas enquanto Gina brincava despreocupadamente com os botões do vestido de Mãe Abagail).
Gina, no entanto, se recuperara com uma rapidez que surpreendera a todos. Sentira um apego instantâneo por Ralph e seu curioso chapéu. Falando em voz baixa e confidencial, Ellis declarou suspeitar de que boa parte do problema de Gina fora causado pela insuportável solidão.
- Claro que foi - disse Abagail. - Se não a tivessem encontrado, ela simplesmente teria batido as botas.
Gina bocejou. Seus olhos estavam muito abertos e vidrados.
- Cuidarei dela agora - disse Olivia Walker.
- Coloque-a no quartinho ao fim do corredor - disse Abby. - Se quiser pode dormir com ela. Esta outra moça... como disse que se chamava, meu bem? Me fugiu da memória, com certeza.
- June Brinkmeyer - declarou a ruiva.
- Bem, você pode dormir comigo, June, a menos que tenha outra ideia. A cama não é grande o bastante para duas e, mesmo que fosse, não acho que você gostaria de dormir ao lado de um velho feixe de gravetos como eu. Mas tem um colchão lá no sótão que lhe serviria, caso os insetos já não tenham entrado. Um desses homens grandões pode ir lá pegá-lo para você, acho.
- É claro - disse Ralph.
Gina já havia caído no sono e Olivia a carregou para a cama. A cozinha, agora mais povoada do que nunca estivera em muitos anos, estava se enchendo com as sombras do crepúsculo. Com um grunhido, Abagail se levantou e acendeu três lampiões de querosene, um para a mesa, um que botou em cima do fogão (o Blackwood de ferro fundido estava agora esfriando e estalando contente para si mesmo) e outro para o peitoril da janela que dava para o alpendre. A escuridão foi enxotada.
- Talvez os velhos costumes sejam os melhores - comentou Dick abruptamente, e todos o fitaram. Ele enrubesceu e pigarreou de novo. Abagail apenas deu uma risadinha.
- Quer dizer - prosseguiu ele um tanto na defensiva -, esta foi a primeira refeição caseira que tive desde... desde 13 de junho, imagino. O dia em que acabou a energia elétrica. E eu cozinhava para mim mesmo, mas aquilo que fazia dificilmente podia ser chamado de comida caseira. Minha esposa era... era uma cozinheira de mão cheia. Ela...
- Sua voz se extinguiu.
Olivia retornou.
- Gina dorme a sono solto - disse. - Estava morta de cansaço.
- A senhora faz seu próprio pão? - perguntou Dick a Mãe Abagail.
- Claro que faço. Sempre fiz. É claro que não tem mais fermento; todo o fermento se foi. Mas existem outras maneiras.
- Adoro pão - disse ele simplesmente. - Helen... minha esposa... costumava fazer pão duas vezes por semana. Só que ultimamente isto parece ser tudo que quero. Dê-me três fatias de pão com geleia de morango e acho que poderia morrer feliz.
Tom disse abruptamente:
- Tom Cullen está cansado. B-E-B-I-D-A, isto chama cansaço. - Ele bocejou com um estalar de ossos.
- Você pode ajeitar uma cama no galpão - disse Abagail. - O cheiro é um tanto mofado, mas está seco.
Por um momento ouviram o firme ruído da chuva, que começara cerca de uma hora antes. Se Abby estivesse sozinha, teria sido um som desolador. Em grupo, tornava-se um som agradável e secreto que os unia. Ele gorgolejava das calhas de latão galvanizadas e chapinhava na barreira de chuva que Abby mantinha no lado mais distante da casa. O trovão murmurou a distância, lá para os lados de Iowa.
- Presumo que devam ter trazido seu equipamento para acampar, não? - perguntou a eles.
- De todos os tipos - disse Ralph. - Ficaremos bem instalados. Vamos, Tom - acrescentou, levantando-se.
- Gostaria de saber se você e Nick poderiam ficar mais um pouco, Ralph. Nick permanecera sentado à mesa durante toda a conversa, no lado do cômodo mais
distante da cadeira de balanço de Abby. Qualquer um pensaria, meditou ela, que quando um homem não pode falar, sente-se tão perdido num lugar repleto de gente que ninguém daria por sua falta. Nick, porém, tinha algo que não deixava isto acontecer. Estava sentado absolutamente imóvel, acompanhando a conversa com o olhar, seu rosto reagindo a tudo que fosse dito. Era um rosto franco e inteligente, porém preocupado para alguém tão jovem. Várias vezes Abby notara que os outros o fitavam como se Nick pudesse confirmar o que diziam. Também eram muitos cônscios da sua presença. E em várias ocasiões Abby o vira olhando através da janela para a escuridão com expressão intranqüila.
- Poderiam pegar aquele colchão para mim? - pediu June suavemente.
- Eu e Nick iremos pegá-lo - disse Ralph, levantando-se.
- Não quero ficar sozinho naquele galpão lá fora - disse Tom. - Minha nossa, não!
- Ficarei com você - ofereceu-se Dick. - Acenderemos a lanterna Coleman e deitaremos. - Ele se levantou. - Obrigado mais uma vez, madame. Não tenho palavras para dizer-lhe o quanto foi bom.
Os outros trouxeram o colchão, que provara ser resistente a insetos. Tom e Dick foram para o galpão, onde a lanterna Coleman logo foi acesa. Não demorou muito e Nick, Ralph e Mãe Abagail ficaram sozinhos na cozinha.
- Importa-se que eu fume, madame? - perguntou Ralph.
- Não, desde que não bata as cinzas no chão. Há um cinzeiro no guarda-louça bem atrás de você.
Ralph levantou-se para pegá-lo e Abby ficou olhando para Nick. Ele usava camisa caqui, calças jeans e uma desbotada jaqueta de ginástica. Havia algo nele que lhe dava a sensação de tê-lo conhecido antes, ou que sempre estivera escrito que o conheceria. Ao contemplá-lo, ela experimentava uma calma sensação de conhecimento e propósito, como se aquele momento houvesse sido uma simples predestinação. Como se, em uma extremidade de sua vida, tivesse existido seu pai, John Freemantle, alto, negro e orgulhoso, tendo este homem na outra extremidade, jovem, branco e mudo, fitando-a com um olho brilhante e expressivo no rosto preocupado.
Ela olhou pela janela e viu o brilho da lanterna Coleman derivando para fora da janela do galpão e iluminando um pedacinho da sua porta de entrada. Ficou pensando se aquele galpão ainda tinha cheiro de vaca; ela não estivera lá por uns três anos. Não precisara ir. Sua última vaca, Daisy, havia sido vendida em 1975, mas em 1987 o galpão continuava impregnado com cheiro de vaca. Talvez até hoje. Não importava; havia cheiros piores.
- Madame?
Ela desviou os olhos. Ralph sentava-se agora ao lado de Nick, segurando uma folha do bloco de anotações e fitando-a com olhos semicerrados à luz do lampião. No colo, Nick tinha um bloco e uma esferográfica. Continuava a fitá-la intensamente.
- Nick diz... - pigarreou Ralph, embaraçado.
- Continue.
- O bilhete dele diz que é difícil ler seus lábios porque...
- Acho que sei o motivo - disse ela. - Não se preocupem. Levantando-se, foi arrastando os pés até a cômoda. Na segunda prateleira acima
havia um jarro de plástico, na qual duas placas de dentadura flutuavam num líquido turvo, como numa exposição médica.
Ela as pescou e lavou com um pouco d’água.
- O que tenho sofrido, Senhor! - disse Mãe Abagail funestamente e colocou a dentadura. - Precisamos conversar - continuou ela. - Vocês dois são os cabeças e temos que discutir certas coisas.
- Bem - disse Ralph -, não sou cabeça de nada. Nunca passei de um operário de fábrica em tempo integral e de fazendeiro nas horas vagas. Acumulei mais calos do que ideias no meu tempo. Para mim, o líder é o Nick.
- É verdade isso? - perguntou ela, olhando para Nick.
Nick escreveu brevemente e Ralph leu em voz alta, enquanto ele continuava a escrever.
"Foi ideia minha virmos para cá, sim. Quanto a dirigir o grupo, não sei."
- Encontramos June e Olivia a uns 140 quilômetros ao sul daqui - disse Ralph. - Anteontem, não foi, Nick?
Nick assentiu.
- Já estávamos a esta altura vindo ao seu encontro, Mãe. As mulheres também estavam indo para o norte. Assim como Dick. Então, decidimos continuar juntos.
- Viram outras pessoas? - perguntou ela.
"Não", escreveu Nick. "Mas tive a impressão - Ralph também - de que havia outras pessoas escondidas, nos vigiando. Com medo, suponho. Ainda não recuperadas do choque do que aconteceu."
Ela assentiu, concordando.
"Dick falou que, na véspera de juntar-se a nós, ouviu um barulho de motocicleta em algum lugar ao sul. Portanto, há outras pessoas por aí. Creio que ficam assustadas ao ver um grupo tão grande como o nosso."
- Por que vieram para cá? - Os olhos dela, capturados no seu emaranhado de rugas, fitaram-no intensamente.
Nick escreveu:
"Sonhei com a senhora. Dick Ellis diz que também sonhou uma vez. E a garotinha, Gina, já a chamava de "senhora vovó" muito antes de chegarmos aqui. Descrevia a casa, o balanço de pneu."
- Deus a abençoe - disse Mãe Abagail distraidamente. Olhou para Ralph. - E você?
- Uma ou duas vezes, madame - disse ele. - Na maioria das vezes eu só sonhava com... com aquele outro sujeito.
- Que sujeito?
Nick escreveu. Circulou o que havia escrito. Entregou o papel diretamente a ela. Os olhos de Abby não eram muito bons para perto, a não ser se usasse os óculos ou a lente de aumento adquirida no Hemingford Center no ano anterior. Mas pôde ler aquilo. As letras eram grandes, como as escritas por Deus nas paredes do palácio de Baltasar. Só de olhar para as palavras circuladas sentiu calafrios. Pensou nas doninhas coleando através da estrada sobre os ventres, atacando o saco de aniagem com seus dentes assassinos, afiados como agulhas. Pensou em um solitário olho vermelho que se abria, revelando-se na escuridão, espiando, procurando, agora não apenas uma velha, mas todo um grupo de homens e mulheres... e uma garotinha.
As duas palavras circuladas eram: homem escuro.
- Disseram-me - falou ela em voz baixa, dobrando o papel, desenrolando-o, depois dobrando-o de novo, esquecendo por ora o sofrimento que era a sua artrite - que devemos seguir para oeste. Foi o Senhor Deus quem me disse isto em sonho. Eu não queria ouvir. Sou uma velha e tudo que desejo é morrer neste pequeno pedaço de terra. Pertenceu a minha família por 112 anos, mas não fui destinada a morrer aqui, tal como Moisés não foi destinado a chegar a Canaã com os filhos de Israel.
Fez uma pausa. Os dois homens fitavam-na sobriamente à luz do lampião. Lá fora a chuva continuava a cair, lenta e incessante. Não havia mais trovoadas. Senhor, pensou ela, essa dentadura machuca a minha boca. Quero tirá-la e ir para a cama.
- Comecei a ter sonhos dois anos antes de aparecer esta epidemia. Sempre sonhei, e às vezes meus sonhos se realizavam. A profecia é a dádiva de Deus, e todo mundo tem um pouquinho dela. Minha própria avó costumava chamá-la de a lâmpada brilhante de Deus, às vezes apenas de brilho. Nos meus sonhos, vi-me indo para oeste. A princípio apenas com algumas pessoas, depois outras se juntaram, e mais outras. Para oeste, sempre para oeste, até que pude ver as montanhas Rochosas. A esta altura já formávamos uma caravana inteira, duzentos ou mais. E lá haveria sinais... não, não sinais de Deus, mas sim letreiros rodoviários comuns, cada um dizendo coisas como BOULDER, COLORADO, 980 QUILÔMETROS ou NESTA DIREÇÀO PARA BOULDER.
Fez uma pausa.
- Esses sonhos me amedrontavam. Jamais contei a ninguém que os estava tendo e o quão assustada me sentia. Eu me sentia do modo como Jó deve ter se sentido quando Deus falou a ele sobre o turbilhão. Tentei até fingir que não passavam de sonhos, tolices de velha fugindo de Deus tal como Jonas fugiu. Mas a baleia nos engoliu mesmo assim, como podem ver! E se Deus diz para Abby, Você tem que contar, então devo contar. E sempre senti que saberia que alguém viria a mim, alguém especial, e então seria a maneira de saber que chegara a hora.
Ela olhou para Nick, que se sentava à mesa e a fitava solenemente com seu olho bom através da fumaça do cigano de Ralph Brentner.
- Quando vi você, eu soube - continuou ela. - É você, Nick. Deus colocou o dedo em seu coração. Porém Ele possui outros dedos, e há outras pessoas ainda para chegar, louvado seja Deus, e Ele colocou os dedos nelas também. Sonhei com ele, como está nos procurando exatamente agora. E que Deus perdoe meu espírito mim, eu o amaldiçoei no meu coração. - Ela começou a chorar e levantou-se para beber água e lavar o rosto. As lágrimas eram sua parte humana, fraca e vacilante.
Quando retornou, Nick estava escrevendo. Por fim, ele destacou a folha do bloco e passou-a para Ralph.
"Nada sei sobre o papel de Deus, mas sei que alguma coisa está funcionando aqui. Todos aqueles que encontramos estavam seguindo para o norte. Como se a senhora tivesse a resposta. Sonhou com qualquer dos outros? Dick? June ou Olivia? Talvez com a garotinha?"
- Não sonhei com nenhum deles. Sonhei com um homem que não é de falar muito. Com uma mulher esperando bebê. Com um homem mais ou menos da sua idade que vai chegar a mim com uma guitarra. E com você, Nick.
"E acha que ir para Boulder é a coisa certa?", escreveu ele.
- É o que nos indicaram a fazer - replicou Mãe Abagail.
Nick fez rabiscos incoerentes no bloco por um momento, para afinal escrever: "O quanto sabe sobre o homem escuro? Sabe quem é ele?"
- Sei o que pretende, mas não sei quem ele é. Trata-se da criatura mais maligna que restou no mundo. Os maus que sobreviveram são café pequeno. Ladrões de lojas, depravados sexuais e gente que gosta de brigar. Mas ele os convoca. Até já começou. Está reunindo essa turma muito mais depressa do que nós. Não são apenas os maus que estão com ele, mas também os fracos... os solitários... e aqueles que expulsam Deus de seu coração.
"Talvez ele não seja real", escreveu Nick. "Talvez seja apenas..." Neste ponto ele teve que morder a ponta da caneta e pensar. Por fim, acrescentou: "... a parte medrosa e ruim de todos nós. Talvez estejamos sonhando as coisas que tememos ser capazes de fazer."
Ralph franziu o cenho ao ler aquilo em voz alta, porém Abby compreendeu de imediato o significado que ele quisera dar. Não diferia muito da conversa dos novos pregadores que haviam chegado ao lugar nos últimos vinte anos mais ou menos. Na realidade, não existia nenhum Satã, este era o seu evangelho. Havia o mal, talvez resultante do pecado original, mas estava em todos nós, sendo tão impassível arrancá-lo como tirar um ovo da casca sem quebrá-la. Segundo esses novos pregadores, Satã era como um quebra-cabeça - e cada homem, mulher e criança na Terra acrescentaram sua pequena peça para completar esse quebra-cabeça. Sim, essas coisas modernas soavam bem, só que não eram verdadeiras. E se deixasse Nick continuar pensando assim, o homem escuro o comeria no jantar.
- Você sonhou comigo. Não sou real? - perguntou ela. Nick assentiu.
- E eu sonhei com você. Você não é real? Deus seja louvado, aí está você sentado bem na minha frente, com um bloco apoiado nos joelhos. Este outro homem, Nick, é tão real quanto você. - Sim, ele era real. Ela pensou nas doninhas e no olho vermelho se abrindo na escuridão. E quando voltou a falar, sua voz soou rouca. - Ele não é Satã - disse -, mas ele e Satã se conhecem, e faz muito tempo que os dois se reúnem.
"A Bíblia não diz o que aconteceu com Noé e sua família depois que o dilúvio baixou. Mas eu não ficaria surpresa se houvesse uma terrível disputa pelas almas daquelas poucas pessoas... pelas suas almas, seus corpos, sua maneira de pensar. E também não ficaria surpresa se isto estivesse reservado para nós.
"Ele agora está a oeste das Rochosas. Cedo ou tarde virá para leste. Talvez ainda não este ano, mas quando estiver pronto. E é tarefa nossa lidarmos com ele."
Nick balançava a cabeça, perturbado.
- Sim - disse ela, baixinho. - Você verá. Teremos dias amargos pela frente. Morte e terror, traição e lágrimas. E nem todos nós estaremos vivos para ver como terminará.
- Não estou gostando nem um pouco disso - murmurou Ralph. - A situação já não é dura demais sem este sujeito sobre o qual a senhora e Nick estão falando? Já não temos problemas demais, sem médicos, sem eletricidade, sem nada? Por que estamos metidos nessa confusão?
- Não sei. É a vontade de Deus. Ele não explica essas coisas a gente humilde como Abby Freemantle.
- Se é a vontade Dele - disse Ralph -, eu bem que gostaria que se aposentasse e deixasse alguém mais jovem assumir.
Nick escreveu:
"Se o homem escuro está no oeste, talvez fosse melhor pegarmos nossas coisas e seguirmos para o leste."
Ela sacudiu pacientemente a cabeça.
- Nick, todas as coisas servem ao Senhor. Não acha que este homem escuro também serve a Ele? Pois serve, pouco importando quão misterioso seja o Seu propósito. O homem escuro irá atrás de você não importa para onde fuja, porque ele serve ao desígnio de Deus, e Deus quer que você o combata. Não há nenhum bem em fugir à vontade de Deus. Qualquer um que tente fazer isto acaba na barriga da besta.
Nick escreveu brevemente. Ralph estudou a nota, esfregou o lado do nariz e desejou não ter que ler aquilo. Senhoras idosas não tinham estofo para ouvir coisas como aquela que Nick acabara de escrever. Ela provavelmente diria que era blasfêmia, gritando alto o bastante para acordar a todos na casa.
- O que diz ele? - perguntou Abagail.
- Ele diz... - pigarreou Ralph e a pena enfiada na cinta do seu chapéu oscilou. - Ele diz que não crê em Deus. - Transmitida a mensagem, ele olhou desconsolado para os sapatos, aguardando a explosão.
No entanto, ela deu apenas uma risadinha, levantou-se e caminhou até Nick. Tomou-lhe uma das mãos e bateu nela de leve.
- Deus o abençoe, Nick, mas isso não importa. Deus acredita em você.
Passaram todo o dia seguinte na casa de Abby Freemantle, e aquele foi o melhor dia de que todos puderam recordar desde o surgimento da supergripe, tal como as águas descendo do monte Ararat. A chuva havia parado durante as primeiras horas da manhã e por volta das nove o céu era um agradável mural do Meio-Oeste de sol e nuvens rompidas. O milharal cintilava em todas as direções como tesouro de esmeraldas. O tempo estava mais fresco do que estivera em semanas.
Tom Cullen passou a manhã percorrendo as fileiras de milho de cima a baixo, seus braços estendidos, assustando bandos de corvos. Gina McCone sentava-se alegremente na terra, junto ao balanço de pneu, brincando com várias bonecas de papel que Abagail encontrara no fundo de um baú guardado no closet de seu quarto. Um pouco mais cedo, ela e Tom tiveram uma agradável brincadeira com os canos e caminhões em volta da garagem que Tom trouxera da loja em May, Oklahoma. Tom satisfazia de bom grado todas as vontades de Gina.
Dick Ellis, o veterinário, perguntou timidamente a Mãe Abagail se alguém nas imediações criava porcos.
- Bem, os Stoner sempre tiveram porcos - disse ela. Ela estava sentada em sua cadeira de balanço no alpendre, dedilhando a guitarra e observando Gina brincar no terreiro, a perna engessada estendida rigidamente diante dela.
- Acha que alguns deles ainda possam estar vivos?
- Você tem de ir lá verificar. É possível. Ou talvez tenham escapado dos chiqueiros e se tornado selvagens. - Seus olhos reluziram. - Pode ser também que eu conheça um sujeito que sonhou com costeletas de porco a noite passada.
- Acho que também conheço - replicou Dick.
- Alguma vez já matou um porco?
- Não, madame - disse ele, sorrindo largamente agora. - Livrei alguns deles de vermes, mas nunca matei nenhum. Sempre fui o que vocês chamam de não-violento.
- Será que você e Ralph poderiam aturar uma mulher como capataz?
- Claro - disse ele.
Vinte minutos depois, os três partiam, Abagail viajando entre os dois homens na cabine do caminhão, sua bengala plantada regiamente entre os joelhos. Na propriedade dos Stoner encontraram dois leitões de um ano no chiqueiro dos fundos, saudáveis e bem alimentados. Parecia que, quando a ração escasseara, eles haviam tomado a de seus companheiros de chiqueiro mais fracos e menos afortunados.
Ralph montou a talha de Reg Stoner no celeiro e, sob orientação de Abagail, Dick conseguiu por fim amarrar firmemente uma corda em volta da pata traseira de um dos leitões. Grunhindo e se debatendo, o porco foi arrastado até o celeiro e pendurado de cabeça para baixo na talha.
Ralph saiu da casa com um facão de açougueiro de 90 centímetros de comprimento - aquilo não era mais uma faca, era uma baioneta, benza Deus, pensou Abby.
- Bem, não sei se sou capaz de fazer isto - disse ele.
- Bem, pois então me dê cá a faca - ordenou Abagail e estendeu a mão. Ralph olhou em dúvida para Dick. O veterinário deu de ombros. Ralph entregou a faca.
- Senhor - disse Abagail -, vos agradecemos pela dádiva que estamos prestes a receber de Vossa generosidade. Abençoai este leitão para que possa nos alimentar, amém. Afastem-se, rapazes, isto vai esguichar.
Ela cortou a garganta do leitão com um talho experiente da faca - algumas coisas a gente nunca esquece, não importa quão avançada a idade -, e depois recuou o mais rápido que pôde.
- Estão com aquele fogo aceso debaixo da panela? - ela perguntou a Dick. - Um belo fogo vivo lá no pátio dos fundos?
- Sim, madame - disse Dick respeitosamente, incapaz de desviar os olhos do porco.
- Pegou aquelas escovas? - perguntou a Ralph.
Ele exibiu duas grandes escovas com cerdas amarelas rígidas.
- Bem, então vão ter que rebocar o leitão e mergulhá-lo na panela. Depois que tiver fervido um pouco, estas escovas de cerdas duras irão deixá-lo limpinho. Isto feito, vocês vão poder descascar o velho Sr. Porco como se fosse uma banana.
Ambos pareceram um pouco assustados a esta perspectiva.
- Animem-se - disse ela. - Vocês não podem comê-lo com esta couraça em cima. Precisamos despi-lo primeiro.
Ralph e Dick se entreolharam, arquejaram e começaram a baixar o porco da talha. Tudo ficou pronto por volta das três daquela tarde, chegaram de volta à casa de Abagail às quatro com uma boa provisão de carne e houve costeletas de porco frescas para o jantar. Nenhum dos dois homens comeu muito bem, mas Abagail devorou duas costeletas, saboreando a maneira como a gordura crocante estalava entre suas dentaduras. Não havia nada como carne fresca quando preparada pessoalmente.
Aconteceu pouco depois das nove. Gina dormia, e Tom Cullen havia cochilado na cadeira de balanço de Mãe Abagail no alpendre. Um relâmpago silencioso cintilou contra o céu distante a oeste. Os outros adultos estavam reunidos na cozinha, com exceção de Nick, que saíra para dar um passeio. Abagail sabia da luta que o rapaz estava travando, e seu coração o acompanhou.
- Diga, a senhora não está realmente com 108 anos, está? - perguntou Ralph, lembrando de alguma coisa que ela dissera aquela manhã quando seguiam na expedição para o abate do porco.
- Fique esperando bem aqui - disse Abagail. - Tenho algo para lhe mostrar, Sabidão. - Ela foi até o quarto e pegou a carta emoldurada do presidente Reagan da gaveta de cima de sua cômoda. Trouxe-a para Ralph e a depositou no colo dele. - Leia isto, filhinho - disse orgulhosamente.
Ralph leu: "(...) por ocasião de seu 100o aniversário (...) uma das 72 centenárias comprovadas nos Estados Unidos da América (...) quinta mais velha eleitora republicana registrada nos Estados Unidos da América (...) saudações e parabéns do presidente Ronald Reagan, 14 de janeiro de 1982." Ralph a fitou com olhos arregalados.
- Bem, quero ser um filho da p... - Ele se interrompeu, enrubescido e confuso. - Perdão, madame.
- Quantas coisas já deve ter testemunhado! - maravilhou-se Olívia.
- Nada se compara com o que tenho visto mais ou menos no último mês. - Ela suspirou. - Ou o que ainda espero ver.
A porta se abriu e Nick entrou - a conversa interrompeu-se como se todos estivessem gastando o tempo, esperando por ele. Pela expressão dele, Abagail viu que tinha tomado sua decisão, e achava saber qual era. Ele entregou-lhe o bilhete que escrevera no alpendre, parado ao lado de Tom. Ela espichou o braço que segurava a folha de papel, para conseguir ler.
"Será melhor partimos para Boulder amanhã", Nick escrevera.
Abby olhou do bilhete para o rosto de Nick e assentiu vagarosamente. Passou o bilhete para June Brinkmeyer, que depois o entregou a Olivia.
- Concordo - disse Abagail. - Não desejo nem um pouco mais do que você, mas creio que será melhor para nós. O que o fez tomar a decisão?
Ele deu de ombros, quase irritado, e apontou para ela.
- Que assim seja - disse Abagail. - Minha fé está no Senhor.
Nick pensou: Eu gostaria que a minha também estivesse.
Na manhã seguinte, 26 de julho, após uma breve conferência, Dick e Ralph partiram para Columbus no caminhão.
- Detesto me desfazer dele - disse Ralph -, mas se acha que tem de ser assim, Nick, tudo bem.
Nick escreveu: "Voltem o mais rápido que puderem."
Ralph deu uma breve risadinha e olhou em torno do pátio. June e Olivia lavavam roupa em uma enorme banheira com uma tábua de esfregar presa a uma das extremidades. Tom estava no milharal, enxotando os corvos - uma ocupação que parecia achar infinitamente divertida. Gina brincava com os carrinhos e a garagem que Tom trouxera. A velha cochilava na sua cadeira de balanço, cochilava e roncava.
- Você parece estar com uma pressa danada para enfiar a cabeça na boca do leão, Nicky.
Nick escreveu:
"Temos algum lugar melhor para ir?"
- É verdade. Não adianta ficarmos perambulando por aí. Isto faz a gente se sentir inútil. Já perceberam que uma pessoa dificilmente se sente bem, a menos que tenha um objetivo?
Nick assentiu.
- Tudo bem. - Ralph bateu no ombro de Nick e se virou. - Dick, está pronto para dar um passeio?
Tom Cullen saiu correndo do milharal, com barbas de milho grudadas na camisa, na calça e nos seus compridos cabelos louros.
- Eu também! Tom Cullen também quer passear! Nossa, quero sim!
- Pois então, venha - convidou Ralph. - Mas espere aí. Você está coberto de barbas de milho da cabeça aos pés. E ainda não capturou nenhum corvo! É melhor eu dar uma escovada em você.
Sorrindo desligadamente, Tom permitiu que Ralph escovasse sua camisa e calças. Para Tom, refletiu Nick, aquelas duas últimas semanas tinham sido provavelmente as mais felizes de sua vida. Estava em companhia de pessoas que o aceitavam e estimavam. Por que não o fariam? Ele podia ser retardado, porém continuava sendo uma relativa raridade neste mundo novo, um ser humano vivo.
- Até mais ver, Nick - disse Ralph, subindo para trás do volante do caminhão.
- Até mais ver, Nicky - ecoou Tom, ainda sorrindo.
Nick ficou observando o caminhão até sumir de vista, depois foi ao galpão e encontrou um caixote velho e uma lata de tinta. Quebrou um dos lados do caixote e o pregou a um comprido morrão. Levou tudo para o pátio e começou a pintar um aviso na tábua do caixote, com Gina observando com interesse por sobre seu ombro.
- O que está escrito? - perguntou a menina.
- Diz: "Estamos indo para Boulder, Colorado. Estamos seguindo por estradas vicinais para escapar dos bloqueios de tráfego. Faixa do Cidadão, Canal 14" - leu Olivia.
- O que significa isso? - perguntou June, se aproximando. Ela pegou Gina no colo e ficaram observando enquanto Nick enterrava cuidadosamente o moirão com o letreiro de modo que ficasse de frente para a área em que a estrada de terra desembocava na casa de Mãe Abagail. Fez uma cova bem funda para o moirão, de modo que nada senão um tornado pudesse derrubá-lo. Claro que havia ventos inclementes nesta parte do mundo, e pensou naquele que quase o carregara junto com Tom, e do susto que passaram no porão.
Ele escreveu um bilhete e entregou a June.
"Uma das coisas que Dick e Ralph devem arranjar em Columbus é um rádio da faixa do cidadão. Alguém terá de monitorar o Canal 14 o tempo todo."
- Ah - disse Olivia. - Bem pensado.
Nick bateu na testa, muito sério, depois riu.
As duas mulheres voltaram a pendurar as roupas para secar. Gina retornou aos carrinhos de brinquedos, pulando agilmente numa perna só. Nick cruzou o pátio, subiu os degraus do alpendre e sentou-se perto da velha que cochilava. Seus olhos vagaram por sobre o milharal e ficou pensando em qual seria o destino deles.
Se é assim que diz, Nick, tudo bem.
Eles o haviam transformado em líder. Tinham feito isto e Nick sequer começara a entender o motivo. Ninguém podia aceitar ordens de um surdo-mudo; era como uma piada de mau gosto. Dick é que deveria ser o líder do grupo. Seu próprio lugar seria como portador de lança, o terceiro a partir da esquerda, identificado apenas por sua mãe. Mas desde que conheceram Ralph Brentner, zanzando pela estrada em seu caminhão, sem de fato ir para lugar algum, começara aquele negócio de falarem alguma coisa e logo relancearem para Nick como que à espera de confirmação. Uma névoa de nostalgia já começara a estender-se sobre aqueles poucos dias entre Shoyo e May, antes de Tom e da responsabilidade. Era fácil esquecer o quão se sentira solitário, o medo de que os pesadelos constantes acabassem por enlouquecê-lo. Era fácil recordar como tinha sido cuidar apenas de si mesmo, um portador, terceiro a partir da esquerda, um mero figurante naquela terrível peça.
Eu soube assim que vi você, Nick. Deus pôs Seu dedo sobre você...
Não, não aceito isso. Aliás, tampouco aceito Deus. Vá lá que a velha tenha o seu Deus. Para senhoras idosas, Deus é tão necessário quanto enemas e saquinhos de chá Lipton. Ele iria concentrar-se em uma coisa de cada vez, movendo um pé à frente do outro. Levaria o grupo a Boulder, depois decidiria o que fazer em seguida. A velha disse que o homem escuro era um homem real, não somente um símbolo psicológico, e Nick tampouco queria acreditar nisso... mas no seu coração acreditava. No seu coração acreditava em tudo que ela dissera, e isto o amedrontava. Não queria ser o líder deles.
É você, Nick.
A mão agarrou-lhe o ombro e ele sobressaltou-se, surpreso, então virou-se. Se ela estivera cochilando, agora já não estava mais. Sorria para ele, sentada em sua cadeira de balanço sem braços.
- Eu estava apenas sentada aqui e pensando na Grande Depressão - disse ela. - Sabe que meu pai um dia foi dono de toda esta terra, por quilômetros ao seu redor? É verdade. Uma façanha para um negro. E toquei guitarra e cantei no auditório da Grange em 1902. Faz muito tempo, Nick, muito tempo.
Nick assentiu.
- Eram bons dias aqueles, Nick... pelo menos a maioria deles, acho. Apenas o amor do Senhor. Meu pai morreu e a terra foi dividida entre seus filhos, com um pedaço para meu primeiro marido, vinte e poucos hectares, não muita coisa. Esta casa fica em parte nesse pedaço de terra, entende? Um hectare e meio, foi tudo o que restou. Ah, acho que hoje poderia reivindicar toda a terra outra vez, mas, de certo modo, seria a mesma coisa.
Nick deu batidinhas na mão enrugada da velha, e ela suspirou profundamente.
- Irmãos nem sempre trabalham muito bem juntos, e isso quase sempre acaba em disputas. Lembre-se de Caim e Abel. Todos querem mandar e ninguém quer pegar no pesado. Então veio 1931 e o banco quis o seu dinheiro. Foi quando todos se juntaram para trabalhar duro, mas aí já era tarde demais. Por volta de 1945, tudo já fora perdido, exceto meus 24 hectares e mais 20 ou 15 onde agora fica a propriedade dos Goodell.
Ela puxou o lenço do bolso do vestido e enxugou os olhos com ele, lenta e pensativamente.
- Finalmente só eu restei, sem dinheiro e sem nada. E a cada ano, quando chegava a hora de pagar os impostos, eles tomavam mais um pedacinho para quitar a dívida. Aí vinha para cá e ficava olhando para a parte que não mais me pertencia, chorando por ela como choro agora. Um pedacinho mais a cada ano, para pagar impostos, foi assim que aconteceu. Uma fatia aqui, outra acolá. Arrendei o que sobrou, mas nunca dava para cobrir o que eles exigiam pelos malditos impostos. Então, quando fiz cem anos, eles cancelaram os impostos e me deram isenção perpétua. Sim, eles fizeram isso depois de me levarem tudo, exceto este pedacinho aqui. Grande generosidade deles, não acha?
Nick apertou-lhe a mão suavemente e olhou para ela.
- Ah, Nick - disse Mãe Abagail -, abriguei ódio ao Senhor no meu coração. Todo homem ou mulher que O ame, bem, eles também O odeiam, porque Ele é um Deus duro, um Deus ciumento. Ele é o que é, e neste mundo costuma recompensar o serviço com sofrimento, enquanto aqueles que praticam o mal desfilam pelas estradas em Cadillacs. Até mesmo a alegria de servi-Lo é uma alegria amarga. Faço a vontade Dele, mas minha parte humana O amaldiçoou dentro do coração. "Abby", me disse o Senhor, "muito adiante há trabalho para ti. Portanto vou te deixar viver cada vez mais, até tua carne ficar amarga em cima dos ossos. Eu te deixarei ver todos os teus filhos morrerem antes de ti, que continuará caminhando sobre a terra. Vou deixar que vejas a terra de teu pai ser tomada, pedaço por pedaço. E, no fim, tua recompensa será ir embora com estranhos, para longe das coisas que mais amou, e morrerás em terra estranha, com o trabalho ainda por terminar. Esta é a Minha vontade, Abby", me disse Ele. E respondi: "Sim, meu Senhor, será feita a Vossa vontade." Mas no meu coração praguejei contra Ele e perguntei: "Por quê? Por quê?" E a única resposta que tive foi: "Onde estavas quando fiz o mundo?"
Agora as lágrimas dela vieram num fluxo amargo, escorrendo por sua face abaixo e molhando o corpete do vestido. Nick admirou-se ao ver como uma velha que parecia tão seca e magra que nem um graveto pudesse verter tantas lágrimas.
- Ajude-me daqui por diante, Nick - pediu ela. - Só quero fazer o que é certo.
Nick apertou-lhe as mãos fortemente. Atrás deles, Gina dava risadinhas e erguia um dos carrinhos para o céu, de modo que o sol batesse nele e produzisse reflexos.
Dick e Ralph chegaram de volta ao meio-dia. Dick ao volante de uma van Dodge nova e Ralph dirigindo um carro-guincho vermelho, tendo na frente uma prancha de empurrar e na traseira o oscilante gancho de guindaste. Tom vinha na carroceria, acenando espalhafatosamente. Pararam diante do alpendre e Dick saltou da van.
- Esse carro-guincho tem um tremendo rádio FC - disse ele a Nick. - Coisa de quarenta canais. Acho que Ralph se apaixonou por ele.
Nick sorriu. As mulheres haviam se aproximado e olhavam para os veículos. Os olhos de Abagail notaram o modo como Ralph acompanhou June ao cano-guincho para mostrar-lhe o equipamento de rádio e aprovaram. A mulher tinha belos quadris, entre os quais haveria uma boa porta de alpendre. Poderia parir tantos filhos quantos desejasse.
- E então, quando partimos? - perguntou Ralph.
Nick escreveu: "Logo depois de comermos. Experimentou o FC?"
- Já o testei - respondeu Ralph. - Foi o que fiz, em todo o caminho de volta. Estática horrível. Há um botão para acabar com ela, mas não parece funcionar muito bem. Mas, se quer saber, ouvi alguma coisa, com ou sem estática. Muito distante. Talvez nem fossem vozes, afinal. Mas serei franco, Nick, não me preocupei muito com isso. É tudo igual àqueles sonhos.
Caiu um silêncio entre eles.
- Bem - disse Olivia, interrompendo -, vou cozinhar alguma coisa. Espero que ninguém se incomode em comer porco de novo, no mesmo dia.
Ninguém se incomodou. Lá pela uma da tarde, as tralhas de acampar - e a cadeira de balanço e a guitarra de Abagail - tinham sido acondicionadas na van e eles partiram. O carro-guincho seguia na dianteira, para remover qualquer bloqueio de estrada. Abagail viajava no banco dianteiro da van enquanto rumavam para oeste, em direção à Rodovia 30. Ela não chorou. A bengala estava plantada entre as pernas. Já chorara o suficiente. Havia sido colocada no centro da vontade do Senhor e a vontade Dele seria feita, mas ela pensou naquele olho vermelho que se abria no coração escuro da noite e sentiu medo.
ERA O FIM DA TARDE DE 27 DE JULHO. Estavam acampados no local que o letreiro, agora semidemolido pelas tempestades de verão, anunciava como sendo o Parque de Diversões Kunkle. A própria cidade de Kunkle, Ohio, ficava ao sul. Houvera uma espécie de incêndio ali, de modo que a maior parte da cidade desaparecera. Stu disse que provavelmente teria sido provocado por um raio. Harold, para variar, discordava. Naqueles dias, se Stu dissesse que um carro de bombeiros era vermelho, Harold Lauder apresentaria dados e números provando que, no momento, os carros de bombeiros eram verdes.
Fran suspirou e virou-se. Não conseguia dormir. Tinha medo dos sonhos.
À sua direita se enfileiravam as cinco motocicletas, apoiadas em seus descansos, o luar reluzindo ao longo do cromado dos canos de descarga e acessórios. Como se um bando dos Hell’s Angels houvesse escolhido aquele justo lugar para passar a noite. Não que os Angels rodassem naquelas porcarias de motos como Hondas e Yamahas, ela supôs. Eles pilotavam "locomotivas", as Harley-Davidsons - ou isso era apenas algo que recordava daqueles épicos de estrada da velha American-International que vira na TV? Anjos Selvagens, Demônios sobre Rodas. Os filmes sobre motoqueiros tiveram muito sucesso nos drive-ins quando ela cursava o ginásio: Wells Drive-In, Sanford Drive-In, South Portland Twin, você paga e faz sua escolha. Agora, kapitt, já era, todos os drive-ins tinham acabado, para não falar nos próprios Hell’s Angels e na velha e boa American-International Pictures.
Anote em seu diário, Frannie disse para si mesma, virando-se para o outro lado. Não nesta noite. Nesta noite pretendia dormir, com ou sem sonhos.
A vinte passos de distância podia ver os outros, enfiados nos seus sacos de dormir como os Hell’s Angels após uma farra regada a cerveja, aquela em que todo mundo no filme apagava, exceto Peter Fonda e Nancy Sinatra. Harold, Stu, Glen Bateman, Mark Braddock, Perion McCarthy. Tome Sominex esta noite e durma...
Não foi Sominex que tomaram, mas três centigramas de Veronal cada um. Fora ideia de Stu, quando os sonhos se tornavam realmente ruins e todos começavam a ficar irritados e de convivência difícil. Ele chamara Harold à parte antes de comentar isto com os outros porque a maneira de paparicar o rapaz era pedir sua opinião com seriedade e também porque ele sabia das coisas. Era bom que soubesse, mas também algo um tanto sinistro, como se tivessem um deus de quinta categoria viajando com eles - mais ou menos onisciente, porém emocionalmente instável e propenso a se fragmentar a qualquer momento. Harold pegara mais uma arma em Albany, onde haviam conhecido Mark e Perion, e agora usava as duas pistolas entrecruzadas, como um Johnny Ringo fora de época. Fran lamentava por Harold, porém ele também começava a assustá-la. Começara a imaginar se não poderia dar a louca em Harold e ele passasse a disparar com suas duas pistolas. Com freqüência ela se via recordando o dia em que surpreendera Harold aparando o gramado dos fundos, com todas as suas defesas emocionais demolidas e chorando em traje de banho.
Podia apenas imaginar como Stu discutira o assunto com ele, muito baixinho, quase em tom conspirador: Harold, estes sonhos são um problema. Tive uma ideia, mas não sei ao certo como colocá-la em funcionamento... um sedativo brando... mas teria que ser a dose exata. Uma dose exagerada e ninguém acordaria se houvesse problemas. O que sugere?
Harold sugerira experimentarem seis centigramas do hipnótico Veronal, disponível em qualquer drogaria. Se isso interrompesse o ciclo do sonho, reduziriam para quatro centigramas e meio e, se funcionasse, para a metade. Stu falara a sós com Glen, obtivera sua concordância e resolveram experimentar. Com um centigrama os sonhos começaram a voltar, de modo que fixaram a dosagem em três centigramas.
Pelo menos para os outros.
Frannie aceitava sua dose todas as noites, mas não a tomava. Não sabia se o Veronal podia ou não prejudicar o bebê e preferia evitar riscos. Dizia-se até que a aspirina podia romper a cadeia de cromossomos. Assim, ela sofria os sonhos - sofria era o termo exato. Um deles era predominante; se os outros eram diferentes, cedo ou tarde se fundiriam a este. Ela se via na sua casa em Ogunquit, perseguida pelo homem escuro. Para cima e para baixo em corredores penumbrosos, através da sala de visitas de sua mãe, onde o carrilhão continuava a tiquetaquear as estações numa época árida. Ela podia escapar dele, sabia, se não tivesse que carregar o cadáver. Era o corpo de seu pai envolto em um lençol, mas se ela caísse na penumbra, o homem escuro faria alguma coisa com o corpo, uma terrível profanação. Assim, ela corria, sabendo que ele estava cada vez mais próximo, e por fim a mão dele cairia no seu ombro, aquela mão quente e repulsiva. Ela ficaria flácida e fraca, o cadáver amortalhado do pai escaparia de seus braços e ela se viraria para o homem, pronta a dizer: Leve-o, faça o que quiser, não me importo, apenas pare de me perseguir.
E lá estaria ele, vestido em alguma coisa escura, como um hábito encapuzado de monge, sem nada discernível de suas feições a não ser seu sorriso enorme e feliz. E numa das mãos segurando o cabide torto e contorcido. Foi então que o horror a acometeu como um punho acolchoado e ela lutou para escapar do sono, a pele pegajosa de suor, o coração disparado, desejando nunca mais dormir.
Porque não era o cadáver de seu pai que ele queria; era a criança viva em seu ventre.
Ela revirou-se de novo. Se não conseguisse dormir logo, realmente apanharia o seu diário. Estivera fazendo um diário desde 5 de julho. De certo modo, pretendia guardá-lo para o bebê. Era um ato de fé - fé em que seu bebê viveria. Frannie queria que ele soubesse como havia sido aquilo. Como a epidemia chegara a um lugar chamado Ogunquit, como ela e Harold haviam escapado, o que fora feito deles. Queria que seu filho soubesse como as coisas tinham sido.
O luar era forte o suficiente para poder escrever, e duas ou três páginas sempre bastavam para fazê-la cochilar. Para não falar de seus talentos literários, supunha. Decidiu porém que primeiro daria mais uma chance ao sono.
Fechou os olhos.
E continuou pensando em Harold.
A situação poderia ter abrandado com a chegada de Mark e Perion, se os dois já não estivessem comprometidos. Perion tinha 33 anos, 11 anos mais velha que Mark, porém tais coisas pouca diferença fazem neste mundo. Eles se haviam conhecido, estiveram cuidando um do outro e estavam contentes em ficar juntos. Perion confidenciara a Frannie que estavam tentando fazer um bebê. Graças a Deus eu estava tomando a pílula e não tinha um DIU. Se não, como, em nome de Deus, conseguiria algum dia tirá-lo?
Frannie quase contou a ela sobre o bebê que estava carregando (estava com três meses agora), mas alguma coisa a conteve. Receava que só tornaria pior uma situação ruim.
Portanto, eram agora seis em vez de quatro (Glen se recusara cabalmente a pilotar uma moto e viajava na garupa de Stu ou Harold), mas a situação não havia mudado com a inclusão de outra mulher.
E quanto a você, Frannie? O que você quer?
Se tinha de existir num mundo como esse, com um relógio biológico dentro dela cuja corda pararia dentro de seis meses, queria que alguém como Stu Redman fosse o seu homem - não, não alguém como Stu. Ela queria ele. Era isto, dito com todas as letras.
Com o fim da civilização, todos os cromados e acessórios tinham sido removidos da máquina da sociedade humana. Glen Bateman sustentava este tema com freqüência, o qual sempre parecia agradar excepcionalmente a Harold.
O movimento feminista, decidira Fran (achando que se ia ser franca, poderia ser também totalmente franca), nada mais era que uma excrescência da sociedade tecnológica. As mulheres estavam à mercê de seus corpos. Eram menores. Tendiam a ser mais fracas. Um homem não podia engravidar, mas uma mulher podia - qualquer criança de quatro anos sabe disso. E uma mulher grávida é um ser humano vulnerável. A civilização proporcionara um guarda-sol de sanidade sob o qual ambos os sexos podiam se abrigar. Libertação - aquela única palavra dizia tudo. Antes da civilização, com seu sistema de proteções cuidadoso e misericordioso, as mulheres tinham sido escravas. Não vamos dourar a pílula; éramos escravas sim, pensou Fran. Então os dias do mal acabaram. E o Credo das Mulheres, que deveria ter sido pendurado nos escritórios da revista Ms., de preferência bordado em ponto-de-cruz, era simplesmente este: Obrigada, Homens, pelas estradas de ferro. Obrigada, Homens, por inventarem o automóvel e matarem os peles-vermelhas, que pensavam que seria bom ficarem na América por mais algum tempo, já que chegaram aqui primeiro. Obrigada, Homens, pelos hospitais, pela polícia, pelas escolas. Agora eu gostaria de votar, por favor, de ler o direito de dirigir meu próprio rumo e construir meu próprio destino. Um dia fui escrava, mas isto agora é obsoleto. Meus dias de escravidão devem acabar; preciso ser escrava não mais do que preciso cruzar o oceano Atlântico num barquinho a vela. Aviões a jato são mais seguros e mais rápidos do que barquinhos a vela e a liberdade faz mais sentido que a escravidão. Não tenho medo de voar. Obrigada, Homens.
E o que havia a dizer? Nada. Os lavradores brancos sulistas podiam resmungar acerca da queima de sutiãs, os reacionários podiam disputar jogos intelectuais, mas a verdade apenas sorri. Agora tudo havia mudado, numa questão de semanas - só o tempo diria quanto. Mas deitada ali, em meio à noite, ela sabia que precisava de um homem. Ah, Deus, precisava desesperadamente de um homem!
Não que tudo fosse uma questão de preservar-se e preservar seu bebê, de defender seus interesses (e, supunha, os interesses dele). Stu a atraía, em especial após Jess Rider. Ele era calmo, capaz e, principalmente, não era o que seu pai chamava de "dez quilos de bosta num saco de cinco quilos".
Ele também estava atraído por ela. Fran sabia disso muito bem, soubera desde aquele primeiro almoço juntos no Quatro de Julho, no restaurante deserto. Por um momento - apenas um momento -, os olhos de ambos haviam se encontrado e houvera um instante de calor, como um excesso de energia elétrica em que todos os ponteiros oscilam para sobrecarga. Adivinhou que Stu também sabia como eram as coisas, mas que esperava por ela, deixando que Fran tomasse sua decisão no momento oportuno. Ela estivera antes com Harold, portanto era escrava dele. Uma malcheirosa ideia machista, mas Fran receava que este mundo voltaria a ser nojentamente machista, pelo menos por algum tempo.
Se ao menos houvesse alguém mais, alguém para Harold... Mas não havia, e ela temia não poder esperar muito tempo. Recordou o dia em que Harold, na sua maneira desajeitada, tentara fazer amor com ela, tornar sua reclamação de posse irrevogável. Há quanto tempo? Duas semanas? Parecia mais tempo. Todo o passado parecia mais distante agora. Tinha se esticado como puxa-puxa quente. Entre suas preocupações sobre o que fazer com Harold - e seus temores do que ele poderia fazer se ela procurasse Stuart - e seus medos dos sonhos, jamais conseguiria pegar no sono.
Assim pensando, acabou adormecendo.
Quando acordou ainda estava escuro. Alguém a sacudia.
Ela resmungou um protesto - seu sono tinha sido repousante e sem sonhos pela primeira vez em uma semana - e depois veio relutante para fora dele, achando que amanhecera e era tempo de seguir viagem. Mas por que queriam seguir ainda no escuro? Enquanto se sentava, viu que até mesmo a lua se fora.
Era Harold quem a sacudia, e parecia assustado.
- Harold? Há algo de errado?
Stu também estava de pé, percebeu ela. E Glen Bateman. Perion estava ajoelhada no lado mais afastado de onde ardera sua pequena fogueira.
- É Mark - disse Harold. - Ele está doente.
- Doente? - disse ela, e então veio um lento gemido do outro lado das cinzas da fogueira, onde Perion ajoelhava-se e os dois homens estavam de pé. Frannie sentiu o pavor elevar-se dentro dela como uma coluna negra. Doença era a coisa que todos eles mais temiam.
- Não é... a gripe, é, Harold? - Porque se Mark estivesse com um caso atrasado da Capitão Viajante, isto significava que qualquer um deles poderia pegar. Talvez o germe ainda rondasse por aí. Talvez até tivesse sofrido uma mutação. É melhor se cuidar, minha cara.
- Não, não é a gripe nem nada parecido. Fran, você comeu alguma daquelas ostras enlatadas à noite? Ou talvez quando paramos para almoçar?
Ela tentou se lembrar, sua mente ainda tonta de sono.
- Sim, comi nas duas ocasiões - revelou. - Estavam gostosas. Adoro ostras. É envenenamento alimentar? É disso que se trata?
- Fran, só estou perguntando. Nenhum de nós sabe o que é. Não há médico na casa. Como se sente? Tudo bem com você?
- Estou ótima, apenas com sono. - Mas ela não estava. Não mais. Outro gemido pairou do outro lado do acampamento, como se Mark a acusasse de sentir-se bem enquanto ele não estava.
- Glen acha que poderia ser apendicite - disse Harold.
- O quê?
Harold apenas sorriu debilmente e assentiu.
Fran levantou-se e caminhou até onde os outros estavam reunidos. Harold a seguiu como uma sombra infeliz.
- Temos que ajudá-lo - dizia Perion. Ela falava mecanicamente, como se tivesse dito isto muitas vezes antes. Seus olhos iam de um deles para o outro incansavelmente, olhos tão cheios de terror e desamparo que Frannie mais uma vez sentiu-se acusada. Seus pensamentos direcionavam-se egoisticamente para o bebê que estava carregando e ela tentava empurrá-los para longe. Inadequadamente ou não, eles não iam. Afaste-se dele, uma parte dela gritava para o resto dela. Afaste-se dele imediatamente, ele pode ser contagioso. Olhou para Glen, que estava pálido e com aspecto envelhecido ao brilho firme da lanterna Coleman.
- Harold diz que você acha que seja apendicite - disse ela.
- Não sei - respondeu Glen, soando desconfortável e assustado. - Ele adquiriu os sintomas, sem dúvida; está febril, sua barriga está dura e inchada, dolorosa ao toque...
- Temos que ajudá-lo - repetiu Perion e irrompeu em lágrimas.
Glen apalpou a barriga de Mark. Depois abriu-lhe os olhos, que tinham estado semicerrados e vidrados. Mark gritou. Glen afastou a mão, como se a tivesse colocado sobre uma chapa quente, e olhou de Stu para Harold e depois de volta para Stu com mal-disfarçado pânico.
- O que sugeririam os dois cavalheiros?
Harold continuava com a garganta funcionando convulsivamente, como se houvesse algo enfiado nela e causando-lhe engasgos. Por fim, falou abruptamente:
- Dêem aspirina para ele.
Perion, que estivera olhando fixamente para Mark em meio às lágrimas, agora explodiu ao olhar para Harold.
- Aspirina? - perguntou ela. Seu tom era de furioso assombro. - Aspirina? - Desta vez falou em voz esganiçada. - Isto é o melhor que pode fazer com toda a sua conversa fiada de entender de tudo? Aspirina?
Harold enfiou as mãos nos bolsos e olhou para ela sentindo-se deplorável, aceitando a reprimenda.
Stu disse, baixinho:
- Mas Harold está certo, Perion. Por enquanto, aspirina é o melhor que podemos fazer. Que horas são?
- Vocês não sabem o que fazer! - ela gritou-lhes. - Por que simplesmente não admitem?
- São 3h15 - disse Frannie.
- E se ele morrer? - Perion empurrou de seu rosto uma mecha de cabelo castanho-avermelhado que estava afofada pelo choro.
- Deixe-os em paz, Peri - disse Mark numa voz embotada e cansada, dando um susto em todos. - Eles estão fazendo o que podem. Se continuar doendo tanto, acho que preferia morrer. Podem me dar uma aspirina. Qualquer coisa.
- Vou buscar - disse Harold, ansioso para se afastar. - Tenho um pouco na minha mochila. Excedrin Extraforte - acrescentou, como se esperando pela aprovação geral, e então foi buscá-la, quase em disparada na sua pressa.
- Temos que ajudá-lo - disse Perion, retornando à ladainha. Stu chamou Glen e Frannie à parte.
- Alguma sugestão do que fazer em relação a isto? - perguntou-lhes em voz baixa. - Eu não tenho nenhuma, posso garantir. Ela ficou puta com Harold, mas a sugestão que ele deu de aspirina foi duas vezes melhor do que qualquer ideia que tive.
- Ela está perturbada, é isso - disse Fran. Glen suspirou.
- Talvez seja só um distúrbio intestinal, por comer tanta porcaria. Talvez ele melhore se conseguir evacuar.
Frannie sacudiu a cabeça.
- Não creio que seja isso. Ele não teria febre se fosse apenas intestinal. E também não acho que sua barriga incharia tanto. - Parecia quase como se um tumor houvesse se desenvolvido da noite para o dia. Isto a fez sentir-se mal só de pensar a respeito. Não conseguia se lembrar de quando (exceto nas horas em que tinha aqueles sonhos) estivera tão terrivelmente assustada. O que foi mesmo que Harold tinha dito? Que não havia médicos na casa. Era para lá de verdadeiro, horrivelmente verdadeiro. Meu Deus, estava vindo tudo para ela ao mesmo tempo, tudo se despedaçando em volta dela. Como estavam horrivelmente sozinhos! Quão horrivelmente estavam suspensos na corda bamba, e alguém havia esquecido da rede de proteção. Ela olhou da face vincada de Glen para a de Stu. Viu profunda preocupação nos dois, mas nenhuma resposta de nenhum deles.
Atrás deles, Mark gritou de novo, e Perion ecoou seu grito como se sentisse a mesma dor. De certo modo, Frannie supôs que sentia.
- O que vamos fazer? - perguntou Frannie, desamparada.
Ela estava pensando no bebê, e cada vez mais a pergunta que se infiltrava na sua mente era: E se tiver de ser uma cesariana? E se tiver de ser uma cesariana? E se... Atrás dela, Mark gritou outra vez como algum profeta horrível, e ela o detestou. Olharam um para o outro na luz bruxuleante.
Do diário de Fran Goldsmitb
6 de julho de 1990
Após um pouco de persuasão, o Sr. Bateman concordou em vir conosco. Ele diz que depois de todos os seus artigos ("Eu os escrevo com palavras empoladas para que ninguém perceba como são ingênuos", diz ele) e vinte anos tediosos de estudantes de graduação de Iniciação à Sociologia I e II, para não mencionar Sociologia de Comportamento Divergente e Sociologia Rural, decidiu que não podia se permitir perder esta oportunidade.
Stu quis saber a que oportunidade ele se referia.
- Eu pensaria que estaria claro - diz Harold naquele seu modo INTOLERAVEL-MENTE IRRITADO (às vezes Harold pode ser um doce de pessoa, mas pode também ser um verdadeiro pé no saco, e nesta noite adotava a segunda opção). - O Sr. Bateman...
- Por favor, me chame de Glen - diz ele, muito baixinho, mas, da maneira como Harold olhou para ele, era de se pensar que Glen o acusara de ter alguma doença social.
- Glen, sendo um sociólogo, vê a oportunidade de estudar a formação de uma sociedade em primeira mão, acho. Ele quer ver o confronto entre fato e teoria.
Bem, para encurtar a história, Glen (que é como o chamarei daqui em diante) concordou que era principalmente isso, mas acrescentou:
- Também tenho certas teorias que escrevi e que espero provar ou refutar. Não acredito que o homem que surgir das cinzas da supergripe vá ser algo parecido com o homem que surgiu do berço do Nilo, com um osso no nariz e arrastando uma mulher pelos cabelos. Esta é uma das teorias.
Stu disse, naquele seu jeito tranqüilo:
- Porque tudo está disponível em volta, para ser de novo apanhado. - Ele pareceu tão soturno quando disse isto que fiquei surpresa, e até mesmo Harold olhou para ele com uma espécie de divertimento.
Mas Glen limitou-se a assentir e disse:
- Está certo. A sociedade tecnológica saiu da quadra, por assim dizer, mas deixou todas as cestas de basquete para trás. Aparecerá alguém que se lembre do jogo e o ensinará aos demais. É simples assim, não é? Eu deveria escrever esta tese mais tarde.
(Mas eu mesma já a escrevera, caso ele se esqueça. Quem sabe? O Sombra sabe, eh-eh-eh.)
Então Harold diz:
- Você soa como se acreditasse que a coisa toda recomeçará: a corrida armamentista, a poluição e assim por diante. Esta é mais uma de suas teorias? Ou um corolário da primeira?
- Não exatamente - Glen começou a dizer, mas antes que pudesse prosseguir Harold irrompeu em um de seus característicos apartes contestatórios. Não posso reproduzir palavra por palavra, porque quando fica empolgado Harold fala rápido. Mas o que ele disse significava: como muito embora ele tivesse uma opinião desfavorável da espécie humana em geral, não achava que ela pudesse ser tão estúpida. Ele disse achar que, passado este tempo, certas leis seriam criadas. Ninguém ficaria perdendo tempo por aí com babaquices como fissão nuclear, sprays de fleurocarbono (provavelmente pronunciou errada esta última palavra) e coisas semelhantes. Lembro de uma coisa que ele disse, porque foi uma imagem bastante vívida.
- Só porque o nó górdio foi cortado para nós não há razão para nos darmos o trabalho de atá-lo novamente.
Pude ver que ele estava estragando uma argumentação - uma das coisas que torna difícil gostar de Harold é sua ânsia em demonstrar o quanto sabe (e claro que ele sabe um bocado, não posso tirar isto dele, Harold é superbrilhante) -, mas tudo que Glen disse foi:
- O tempo dirá, não é?
Tudo terminou em cerca de uma hora atrás e agora estou no quarto de cima com Kojak, deitado no chão a meu lado. Cachorro bom! Tudo é para lá de aconchegante, faz eu me lembrar de casa, mas estou tentando não pensar demais em casa porque isto me faz chorar. Sei que isto deve soar terrível, mas realmente gostaria que tivesse alguém para me ajudar a aquecer esta cama. E até já tenho um candidato em minha mente.
Tire isto da cabeça, Frannie!
Assim, amanha partimos para Stovington e sei que Stu não aprecia muito a ideia. Está assustado com aquele lugar. Gosto muito de Stu e gostaria que Harold gostasse mais dele. Harold está tomando tudo muito difícil, mas suponho que ele não pode ir contra sua natureza.
Glen decidiu abandonar Kojak. Lamenta ter de fazê-lo, embora Kojak não vá ter problemas para arranjar comida. Não há como levarmos o cão, a não ser que encontrássemos uma moto com sidecar, e mesmo assim o pobre Kojak poderia ficar assustado e pular fora, se ferindo ou morrendo.
Seja como for, amanhã estaremos partindo.
Coisas para recordar, os Texas Rangers (time de beisebol) tinham um lançador chamado Nolan Ryan que fazia uma série de arremessos com sua famosa bola rápida, e nenhum batedor é muito bom. Havia comédias na TV com trilha sonora de gargalhadas, ou seja, uma claque paga para rir nas partes engraçadas, supostamente para induzir o telespectador a se divertir mais. Costumava-se comprar bolos e tortas congelados no supermercado, que só precisavam ser descongelados para serem comidos. A torta de morango com queijo Sara Lee era a minha predileta.
7 de julho de 1990
Não posso escrever muito. Viajei de moto o dia inteiro. Meu traseiro parece carne moída e minhas costas parecem de pedra. Voltei a ter um pesadelo à noite. Harold também esteve sonhando com este... homem? e isto o deixa perturbado pra caramba, porque não consegue explicar o fato de virmos tendo essencialmente o mesmo sonho.
Stu diz que continua tendo aquele mesmo sonho com Nebraska e a velha negra. No sonho ela insiste com ele para visitá-la quando puder. Stu acha que ela mora numa cidadezinha chamada Holland Home ou Hometown, ou algo parecido. Diz achar que poderia encontrá-la. Harold zombou dele e entrou numa longa preleção sobre como os sonhos eram manifestações psicofreudianas de coisas sobre as quais não ousamos pensar quando acordados. Creio que Stu ficou zangado, mas conseguiu se controlar. Receio que o antagonismo entre eles possa explodir a qualquer momento, E EU NÃO GOSTARIA QUE TIVESSE DE SER ASSIM!
Seja como for, Stu disse:
- Então como é que você e Frannie estão tendo o mesmo sonho? - Harold murmurou algo sobre coincidência e o assunto morreu aí.
Stu disse para mim e Glen que gostaria que fôssemos para Nebraska com ele, após Stovington. Glen deu de ombros e respondeu:
- Por que não? Temos de ir para algum lugar.
Harold, claro, irá objetar em princípio. Droga, Harold, vê se cresce!
Coisas para recordar, houve escassez de gasolina no início da década de 1980, porque todos na América estavam dirigindo alguma coisa e tínhamos usado a maior parte de nossos suprimentos e a OPEP nos mantinha a rédea curta. Os árabes possuíam tanto dinheiro que, literalmente, não podiam gastá-lo. Havia uma banda de rock chamada The Who que às vezes costumava encerrar suas apresentações ao vivo quebrando suas guitarras e amplificadores. Isto era conhecido como "consumo conspícuo".
8 de julho de 1990
É tarde e estou cansada de novo, mas deveria agüentar o máximo que possa antes que minhas pálpebras simplesmente SE FECHEM. Harold terminou de fazer seu cartaz há cerca de uma hora (de muita má vontade, devo dizer) e o colocou no gramado em frente ao Centro de Epidemias de Stovington. Stu o ajudou a fixá-lo e manteve a calma apesar de todas as piadinhas zombeteiras de Harold.
Tentara preparar-me para a decepção. Nunca acreditei que Stu estivesse mentindo, e na verdade acho que Harold também acreditava nele. Portanto tive certeza de que todos estavam mortos, mas mesmo assim foi uma experiência desconcertante que me fez chorar. Não pude conter-me.
Mas não fui a única a ficar desconcertada. Quando Stu viu o lugar tornou-se quase mortalmente pálido. Ele usava camisa de mangas curtas e pude ver que tinha picadas de agulha de cima a baixo nos braços. Seus olhos são normalmente azuis, mas tinham adquirido uma cor de ardósia, como o oceano em dia nublado.
Ele apontou para o terceiro andar e disse:
- Aquele era o meu quarto.
Harold voltou-se para ele e pude vê-lo preparando um de seus patenteados Comentários Babacas Harold Lauder, mas então reparou no rosto de Stu e conteve-se. Realmente acho que foi muito sábio da parte dele.
Assim, após um instante, Harold diz:
- Bem, vamos entrar e dar uma olhada.
- Vai querer fazer isto para quê? - responde Stu, e soava quase histérico, mas mantendo sua reação em rédea curta. Isto me assustou, porque ele costuma ser tão frio quanto uma pedra de gelo. Testemunho o pequeno sucesso que Harold estava obtendo em irritá-lo.
- Stuart... - começa Glen, mas Stu o interrompe.
- Para quê? Não pode ver que é um lugar morto? Não há mais diretores nem soldados, nada. Pode crer, se estivessem aqui, cairiam todos em cima de nós agora. Estivemos todos naqueles quartos brancos lá em cima, que nem a porra de um bando de cobaias! - A seguir, olha para mim e diz: - Desculpe, Fran... não pretendia falar desse jeito. Acho que estou perturbado.
- Bem, eu vou entrar - diz Harold. - Quem vem comigo? - Mas pude perceber que embora tentasse bancar o DURÃO, o próprio Harold estava assustado.
Glen se ofereceu para ir e Stu disse:
- Vá também, Fran, dê uma olhada. Satisfaça sua curiosidade.
Desejei dizer que ficaria lá fora com ele, porque parecia tão inquieto (e também porque eu realmente não queria entrar), mas isto iria criar mais encrenca com Harold, portanto concordei.
Se nós - Glen e eu - tivéssemos realmente tido quaisquer dúvidas acerca da história de Stu, poderíamos tê-las dirimido tão logo abrimos a porta. Era o cheiro. Pode-se sentir o mesmo cheiro em qualquer das cidades pelas quais já tínhamos passado, um cheiro igual ao de tomates podres. Ah, Deus, estou chorando de novo, mas é direito as pessoas não apenas morrerem mas também terem que feder como...
Espere (mais tarde)
É isso aí, tive meu segundo BOM CHORO do dia, seja o que for que possa ter acontecido com a pequena Fran Goldsmith, a Nossa Boa Garota, que costumava mastigar pregos e cuspir marimbondos, ah-ah, como diz o velho ditado. Bem, chega de lágrimas esta noite, e isto é uma promessa.
De qualquer modo, entramos. Curiosidade mórbida, imagino. Não sei sobre os outros, mas desejava ver o quarto onde Stu fora mantido prisioneiro. Seja como for, não foi apenas o cheiro, mas como o lugar estava frio em comparação com o exterior. Um monte de granito e mármore e provavelmente um sistema de isolamento realmente fantástico. Estava mais quente nos dois andares superiores, mas no térreo era aquele cheiro... e o frio... era como um túmulo. ARGH.
Era também fantasmagórico, como uma casa mal-assombrada - nós três estávamos todos arrebanhados como ovelhas, e eu estava contente por ter meu rifle, mesmo que fosse apenas um .22. Nossos passos ecoavam de volta como se houvesse alguém rastejando, nos seguindo, e comecei a pensar naquele sonho de novo, o único estrelado por aquele homem no manto preto. Não admira que Stu não quisesse vir conosco.
Por fim chegamos aos elevadores e subimos, para o segundo andar. Nada havia lá senão escritórios... e vários corpos. O terceiro andar parecia um hospital, mas todos os quartos tinham portas de ar comprimido (tanto Harold quanto Glen confirmaram isto) e janelas panorâmicas especiais. Havia um monte de corpos lá, nos quartos e nos corredores. Muito poucas mulheres. Fico pensando se tentaram liberá-las no final. Havia muita coisa que nunca saberemos. Mas, então, por que desejaríamos isto?
De qualquer modo, no final da ala que conduzia ao corredor principal onde ficavam os elevadores descobrimos um quarto com sua porta a ar comprimido aberta. Havia um homem morto lá, mas ele não era um paciente (todos eles usavam aventais brancos de hospital) e certamente não havia morrido da gripe. Jazia numa grande poça de sangue coagulado e dava a impressão de que estivera tentando rastejar para fora do quarto quando morreu. Havia uma cadeira quebrada e as coisas estavam todas esparramadas, como se tivesse ocorrido uma luta.
Glen olhou em torno por um longo tempo e depois disse:
- Acho melhor não contarmos nada sobre este quarto para Stu. Creio que ele esteve prestes a morrer aqui.
Olhei para aquele corpo esparramado e me senti mais um verme do que nunca.
- O que quer dizer? - perguntou Harold, e até mesmo ele soou comedido. Foi uma das poucas vezes em que ouvi Harold falar como se o que dizia não fosse sair na mídia.
- Creio que este sujeito veio aqui incumbido de matar Stuart - disse Glen -, e que Stu, de algum modo, conseguiu levar a melhor.
- Mas por quê? - perguntei. - Por que iriam querer matar Stu se ele estava imune Não faz nenhum sentido!
Ele olhou para mim e seus olhos estavam assustados. Seus olhos pareciam quase mortos, como os de um peixe.
- Isto não importa, Fran - disse ele. - Sentido não teve muito a ver com este lugar, do modo como ele parece. Existe uma certa mentalidade que acredita em abafar as coisas. Tem gente que acredita nisso com a sinceridade e o fanatismo com que fiéis de alguns grupos religiosos acreditam na divindade de Jesus. Porque, para algumas pessoas, a necessidade de continuar abafando mesmo após o dano ter sido causado é sumamente importante. Isto me leva a especular quantas pessoas imunes eles mataram em Atlanta e São Francisco e no Centro de Vírus de Topeka antes que a epidemia os matasse e acabasse neste morticínio. Quem era esse babaca? Fico contente em saber que está morto. Só lamento por Stu, que passará o resto da vida tendo pesadelos com esse cara.
E sabem o que Glen Bateman fez então? Aquele homem gentil que pinta quadros horríveis? Ele se adiantou e chutou o rosto daquele homem morto. Harold deu uma espécie de grunhido, como se ele é que tivesse sido chutado. A seguir, Glen recuou seu pé.
- Não! - berra Harold, mas Glen voltou a chutar o homem morto. Depois virou-se, enxugando a boca com as costas da mão, mas pelo menos seus olhos perderam aquele horrível aspecto de peixe morto.
- Vamos - diz ele. - Vamos cair fora daqui. Stu estava certo. É um lugar morto. Quando saímos Stu ainda estava sentado com as costas apoiadas no portão de ferro do muro alto que circundava a instalação, e desejei... ah, vá em frente, Frannie, se não pode contar ao seu diário, a quem é que você pode contar? Desejei correr até ele, beijá-lo e contar-lhe que estava envergonhada por todos nós não termos acreditado nele. E envergonhada de como todos nós continuamos a nos queixar da dureza que enfrentamos quando a epidemia estava no auge, e Stu não dizendo quase nada o tempo todo, quando aquele homem quase o havia matado.
Ah, querido diário, estou ficando apaixonada por ele, acho que consegui a paixonite mais esmagadora do mundo. Se ao menos não fosse por causa de Harold, eu assumiria meus malditos riscos!
Seja como for (sempre há um seja como for, mesmo agora que meus dedos estão tão entorpecidos e a ponto de cair), isso foi quando Stu nos disse pela primeira vez que desejava ir para Nebraska, que desejava conferir seu sonho. Tinha uma expressão obstinada e um tanto constrangida, como se soubesse que ia ter de roubar um pouco mais da merda protecionista de Harold. Mas Harold estava abatido demais com nosso "passeio" pela instalação para oferecer mais que uma débil resistência. E mesmo esta cessou quando Glen disse, de modo muito reticente, que havia sonhado com a velha esta noite.
- Claro, poderia ser apenas porque Stu nos contou acerca de seu sonho - disse, com uma espécie de rubor na face -, mas ele foi notavelmente similar.
Harold afirmou que claro que era isto, mas Stu replicou:
- Espere um minuto, Harold... tive uma ideia.
Sua ideia era de que todos pegássemos uma folha de papel e anotássemos tudo que pudéssemos lembrar de nossos sonhos da última semana, para depois compararmos as anotações. Isto era simplesmente científico o bastante para que Harold não resmungasse demais.
Bem, o único sonho que tive é aquele sobre o qual escrevi e não vou repeti-lo. Direi apenas que o anotei na folha, mantendo a parte relativa a meu pai porém omitindo a parte sobre o bebê e o cabide que ele sempre tem.
Quando comparamos as anotações, os resultados foram espantosos.
Harold, Stu e eu tínhamos todos sonhado com o "homem escuro", como eu o chamava. Tanto eu quanto Stu o visualizávamos como um homem num hábito de monge sem. quaisquer feições visíveis - seu rosto está sempre na sombra. Já a anotação de Harold dizia que ele estava sempre de pé num vão de porta escuro, acenando para ele "como um alcoviteiro". Às vezes podia ver apenas seus pés e o brilho dos olhos - "que nem olhos de doninha", foi como escreveu.
Os sonhos de Stu e Glen com a velha são bastante similares. Os pontos de similaridade são quase demasiados para discuti-los (o que é a minha maneira "literária" de dizer que estou ficando com os dedos entorpecidos). De qualquer modo, ambos concordam em que ela se encontra no condado de Polk, Nebraska, embora não tenham conseguido descobrir o nome real da cidade - Stu diz que é Hollingford Home, Glen diz que Hemingway Home. Soam parecidos, ambos parecem crer que poderiam encontrá-la. (Note bem, diário: minha aposta é em "Hemingford Home".)
Glen disse:
- Isto é realmente extraordinário. Nós todos parecemos estar partilhando uma autêntica experiência psíquica.
Harold zombou, claro, mas dá a impressão de que tem tido muito em que pensar. Ele só aceitaria ir para lá na base de "temos de ir para algum lugar". Partiremos pela manhã. Estou amedrontada, excitada e principalmente feliz por ir embora de Stovington, que é uma morada da morte. E a qualquer momento aceitarei aquela velha contra o homem escuro.
Coisas para recordar. "Deixa rolar" significava não fique estressado. "Jóia" e "maneiro" eram modos de dizer que uma coisa era boa. "Não esquenta" significava que você não ia se preocupar. "De vento em popa" era estar atravessando uma boa fase, e um bocado de gente usava camisetas com a inscrição MERDA ACONTECE, o que certamente acontecia... e ainda acontece. "A barra está limpa" era uma expressão muito em voga (eu a ouvi pela primeira vez ainda este ano), querendo dizer que tudo estava correndo bem. "Estou na área" era um modo de anunciar sua chegada; "meu cafofo", de indicar onde estava morando, tudo isto antes de a supergripe atacar. Besteirol, não é? Mas assim era a vida.
Foi a 12 minutos do meio-dia.
Perion caíra num sono exausto ao lado de Mark, que eles haviam removido para a sombra duas horas antes. Ele perdia e recobrava a consciência, e era mais fácil para todos quando estava apagado. Ele combatera a dor pelo resto da noite, mas por fim entregara os pontos ao amanhecer. E quando estava consciente seus gritos gelavam o sangue de todos. Ficavam olhando de um para o outro, desamparados. Ninguém quis almoçar.
- É apendicite - disse Glen. - Creio que não resta a menor dúvida quanto a isto.
- Talvez devêssemos tentar... bem, operá-lo - disse Harold, olhando para Glen. - Suponho que vocês não...
- Iríamos matá-lo - retrucou Glen, peremptório. - Você sabe disso, Harold. Se pudéssemos abri-lo sem fazê-lo sangrar até a morte, o que não poderíamos, como poderíamos distinguir o apêndice do pâncreas? Essas coisas não são rotuladas, você sabe.
- Iremos matá-lo do mesmo jeito se nada fizermos - disse Harold.
- Você quer tentar? - replicou Glen irritadamente. - Às vezes fico especulando sobre você, Harold.
- Também não vejo em que você esteja sendo de muita utilidade em nossa atual situação - disse Harold, enrubescendo.
- Não, chega, vamos parar com isso - disse Stu. - Que bem vocês dois estão fazendo? A não ser que um de vocês esteja planejando abri-lo com um canivete, isto está fora de questão, de qualquer modo.
- Stu! - Frannie quase arquejou.
- O quê? - ele perguntou e deu de ombros. - O hospital mais próximo ficou lá atrás em Maumee. Nunca poderíamos levá-lo até lá. Acho que nem mesmo chegaríamos ao posto de pedágio.
- Você está certo, claro - resmungou Glen e passou a mão sobre a face áspera como lixa. - Harold, me desculpe. Estou muito perturbado. Eu sabia que este tipo de coisa poderia acontecer... perdão, aconteceria... mas acho que só eu sabia disso, de uma forma acadêmica. Isto é um bocado diferente do que insistir nas velhas sessões de livre debate.
Harold murmurou uma concordância mal -agradecida e se afastou com as mãos enfiadas fundo nos bolsos. Parecia um rabugento garoto de dez anos crescido demais.
- Por que não levamos Mark? - perguntou Fran desesperadamente, olhando de Stu para Glen.
- Porque seu apêndice deve estar muito inchado a esta altura - explicou Glen. - Se romper, vai despejar no seu sistema veneno suficiente para matar dez homens.
Stu assentiu.
- Peritonite.
A cabeça de Frannie rodopiou. Apendicite? Isto não era nada hoje em dia. Nada. Ora, às vezes, se alguém ia para o hospital com cálculos biliares ou coisa parecida, os médicos simplesmente extraíam o apêndice baseados em princípios gerais enquanto o paciente estivesse aberto. Ela se lembrou de um colega de escola, um garoto chamado Charley Biggers, que todos tratavam por Biggy, que tivera seu apêndice extraído no verão entre a quarta e a quinta séries. Ele só ficou internado por dois ou três dias. Extração de apêndice era café pequeno, medicamente falando.
Tal como era ter um bebê, medicamente falando.
- Mas se o deixarem sozinho não vai romper mesmo assim? - perguntou ela. Stu e Glen se entreolharam desconfortavelmente e nada disseram.
- Então vocês estão sendo tão maus quanto diz Harold! - exclamou furiosamente. - Vocês vão ter que fazer alguma coisa, nem que seja com um canivete! Vão ter que fazer!
- Por que nós? - retrucou Glen também furioso. - Por que não você? Não temos sequer um manual médico, pelo amor de Deus!
- Mas vocês... ele... isto não pode acontecer desta maneira! Uma extração de apêndice costuma ser café pequeno!
- Bem, talvez fosse assim nos velhos dias, mas é complicado agora - disse Glen, mas àquela altura ela já se afastara, chorando.
Ela voltou por volta das três horas, envergonhada e pronta para desculpar-se. Mas Glen e Stu não se encontravam no acampamento. Harold estava sentado desanimadamente no tronco de uma árvore caída. Perion sentava-se de pernas cruzadas junto a Mark, enxugando o rosto dele com um pano. Parecia pálida mas composta.
- Frannie! - disse Harold, erguendo a vista e animando-se visivelmente.
- Oi, Harold - disse ela, e foi até Perion. - Como está ele?
- Dormindo - disse Perion, mas ele não estava dormindo; até mesmo Fran pôde ver isto. Mark estava inconsciente.
- Para onde foram os outros, Peri? Você sabe?
Foi Harold quem respondeu. Ele se aproximara por trás dela e Fran pôde senti-lo querendo tocar-lhe o cabelo ou pôr a mão sobre seu ombro. Ela não queria. Harold começara a deixá-la tremendamente desconfortável quase o tempo todo.
- Eles foram para Kunkle. Procurar um consultório médico.
- Achavam que poderiam obter alguns livros - explicou Peri. - E alguns... alguns instrumentos. - Ela engoliu em seco e sua garganta produziu um audível estalido. Ela continuou refrescando o rosto de Mark, vez por outra, mergulhando o pano em um dos cantis e espremendo-o.
- Lamentamos sinceramente - disse Harold, sem jeito. - Espero que não pareça babaquice, mas realmente lamentamos.
Peri ergueu a vista e ofereceu a Harold um sorriso doce e constrangido.
- Sei disso - respondeu ela. - Obrigada. Isto não é culpa de ninguém. A não ser que Deus exista, é claro. Se Deus existir, então a culpa é Dele. E quando eu O encontrar, pretendo dar-Lhe um chute nos colhões.
Ela tinha uma espécie de rosto cavalar e um sólido corpo de camponesa. Fran, que via as melhores feições de cada um muito antes que visse aquelas menos afortunadas (Harold, por exemplo, tinha um adorável par de mãos para um rapaz), notou que o cabelo de Peri, de um castanho-avermelhado suave, estava quase deslumbrante, e que seus olhos cor de anil eram belos e inteligentes. Ela lecionara antropologia na Universidade de Nova York, havia lhes contado, e também fora ativista em várias causas políticas, incluindo direitos das mulheres e tratamento igualitário garantido pela lei para as vítimas de Aids. Nunca se casara. Mark, contara para Fran uma vez, se revelara muito melhor para ela do que jamais esperara que um homem fosse. Os outros homens que havia conhecido ou a ignoraram ou a englobavam com outras garotas na categoria de "canhão" ou "bagulho". Ela admitia que Mark poderia ter feito parte do grupo que sempre a ignorara se as condições tivessem sido normais, mas elas não tinham sido. Eles se conheceram em Albany, onde Perion estivera veraneando com seus pais, no último dia de junho. Após alguma deliberação, decidiram sair da cidade antes que todos os germes incubados em todos os corpos em decomposição pudessem fazer com eles o que a supergripe não tinha conseguido.
Portanto partiram e, na noite seguinte, se tornaram amantes, mais por solidão desesperada do que por qualquer atração autêntica (isto era papo de garotas, e Frannie nem sequer o anotara em seu diário). Ele foi bom para ela, Peri contou a Fran na maneira suave e levemente pasma de todas as mulheres banais que descobriram um belo homem num mundo competitivo. Ela começou a amá-lo, um pouco mais a cada dia.
E agora isto.
- É engraçado - disse ela. - Todo mundo aqui, menos Stu e Harold, tem grau universitário. - Virou-se para Harold. - E você também teria, Harold, se as coisas tivessem seguido seu curso normal.
- Sim, imagino que seja verdade - disse Harold.
Peri voltou-se para Mark e recomeçou a passar a esponja em sua testa, gentilmente, com amor. Frannie se lembrou de uma prancha colorida na Bíblia de sua família, um retrato que mostrava três mulheres preparando o corpo de Jesus para o funeral - elas o estavam ungindo com óleos e especiarias.
- Frannie estava estudando inglês, Glen era professor de sociologia, Mark estava fazendo doutorado em história americana. Harold, você estaria fazendo inglês também, querendo tornar-se escritor. Poderíamos nos sentar em círculo e ter algumas maravilhosas discussões em grupo. Na verdade, poderíamos, não acham?
- Sim - concordou Harold. Sua voz, normalmente penetrante, foi quase impossível de ouvir.
- Uma formação em ciências humanas nos ajuda a pensar... já li isto em algum lugar. Os fatos difíceis que se aprendem são secundários a isto. A grande vantagem que se traz da escola é como induzir e deduzir de um modo construtivo.
- Isso é bom - disse Harold. - Gosto disso.
Agora a mão dele pousou no ombro de Frannie. Ela não a refugou, mas estava tristemente consciente da sua presença.
- Mas isto não é bom - disse Peri impetuosamente e, surpreso, Harold tirou a mão do ombro de Frannie. Ela sentiu-se imediatamente mais leve.
- Não? - perguntou ele, um tanto timidamente.
- Ele está morrendo. - exclamou Peri, não em voz alta, mas de uma maneira furiosa e desamparada. - Ele está morrendo porque nós todos estivemos perdendo nosso tempo, aprendendo a impressionar uns aos outros em dormitórios, salões e apartamentos baratos das cidades universitárias. Ah, eu poderia contar a vocês sobre os índios midi da Nova Guiné, e Harold poderia explicar a técnica literária dos últimos poetas ingleses, mas que bem isso faz ao meu Mark?
- Se tivéssemos alguém da escola de medicina... - começou Fran tentativamente.
- Sim, se tivéssemos. Mas não temos sequer um mecânico conosco, ou alguém que cursou faculdade de agronomia e pudesse ao menos ter visto alguma vez um veterinário operando uma vaca ou um cavalo. - Ela olhou para eles, seus olhos cor de índigo ficando cada vez mais escuros. - Por mais que eu goste de todos, acho que a esta altura eu trocaria toda essa cambada de vocês pelo Sr. Faz-tudo. Vocês todos estão até com medo de tocá-lo, muito embora saibam o que vai acontecer se não o fizerem. E estou na mesma situação, não estou me excluindo.
- Pelo menos os dois... - Fran se interrompeu. Ela ia dizer Pelo menos os dois homens foram, depois decidiu que seria uma frase infeliz, com Harold ainda aqui. - Pelo menos Stu e Glen foram. Já é alguma coisa, não é?
Peri suspirou.
- Sim... é alguma coisa. Mas foi Stu quem tomou a decisão, não foi? O único de nós que finalmente decidiu que seria melhor tentar alguma coisa em vez de ficar plantado aqui torcendo as mãos. - Ela olhou para Frannie. - Ele lhe disse qual era seu meio de vida antes?
- Trabalhava numa fábrica - disse Fran prontamente. Ela não notou que o cenho de Harold se anuviou ao ver com que rapidez ela conseguira esta informação. - Ele colocava circuitos em calculadoras eletrônicas. Acho que se poderia dizer que era um técnico de computador.
- Essa é boa - disse Harold e sorriu amargamente.
- Ele é o único de nós que entende de desmontar coisas - disse Peri. - O que ele e o Sr. Bateman vão fazer matará Mark, estou quase certa disso, mas é melhor que morra enquanto alguém está tentando salvá-lo do que seria morrer enquanto ficamos aqui plantados, observando... como se fosse um cachorro que tivesse sido atropelado na ma.
Nem Harold nem Fran encontraram uma resposta para isto. Ficaram apenas parados atrás dela e olhando para o rosto pálido e imóvel de Mark. Após um instante, Harold pôs de novo a mão suada no ombro de Fran. Isto a fez sentir-se como se gritando.
Stu e Glen voltaram às 3h45. Eles haviam levado uma das motos. Amarrados atrás dela havia uma valise preta com instrumentos médicos e diversos livros pretos volumosos.
- Tentaremos - foi o que disse Stu.
Peri ergueu a vista. Seu rosto estava branco e fatigado e sua voz soou calma:
- E mesmo? Por favor. Ambos queremos que o façam.
- Stu? - disse Perion.
Eram 4h10. Stu estava ajoelhado sobre um tapete de borracha que havia sido estendido debaixo da árvore. Rios de suor porejavam de seu rosto. Os olhos pareciam brilhantes, assombrados e desvairados. Frannie estava segurando um livro aberto diante dele, indo e voltando entre duas gravuras coloridas sempre que Stu erguia os olhos e acenava de cabeça para ela. Ao lado dele, horrivelmente pálido, Glen Bateman segurava um carretel de fio branco fino. Entre os dois havia um estojo aberto de instrumentos de aço inoxidável. O estojo estava agora salpicado de sangue.
- Está aqui! - gritou Stu. Sua voz soou subitamente alta, dura e exultante. Os olhos se haviam estreitado para dois pontinhos. - Aqui está o sacaninha! Aqui! Bem aqui!
- Stu? - falou Perion.
- Fran, me mostre de novo aquela outra gravura! Rápido! Rápido!
- Pode extraí-lo? - perguntou Glen. - Meu Deus, Texano Oriental, acha realmente que pode?
Harold se fora. Tinha deixado o grupo mais cedo, mantendo a mão em concha sobre a boca. Estivera parado num bosquete a leste, de costas para eles, durante os últimos 15 minutos. Agora ele voltou, sua ampla cara redonda esperançosa.
- Não sei - respondeu Stu -, mas poderia. Apenas poderia.
Olhou para a gravura colorida que Frannie lhe mostrava. Estava manchado de sangue até os cotovelos, como se usasse luvas escarlates para a noite.
- Stu? - murmurou Perion.
- Ele é independente acima e abaixo - sussurrou Stu. Seus olhos cintilavam de modo fantástico. - O apêndice. Ele é a sua própria unidade. Ele... enxugue minha testa, Frannie. Caramba, estou suando mais do que a porra de um porco... obrigado... Meu Deus, não quero cortar as tripas dele nem um pouco pior do que preciso... aqui está a porra do intestino... mas, caramba, achei, achei!
- Stu - disse Perion.
- Me passe a tesoura, Glen. Não... essa não. A menor.
- Stu.
Ele por fim olhou para Perion.
- Não precisa mais fazer. - Sua voz era calma, suave. - Ele está morto. Stu a fitou, seus olhos apertados lentamente se alargando.
Ela confirmou num gesto de cabeça.
- Quase dois minutos atrás. Mas obrigada. Obrigada por tentar. Stu ficou olhando-a por um longo tempo.
- Tem certeza? - sussurrou por fim.
Ela confirmou de novo, lágrimas escorrendo silenciosas por sua face.
Stu virou-se de costas para eles, deixando cair o pequeno bisturi que estivera segurando. Pôs as mãos sobre os olhos num gesto de total desespero. Glen já tinha se levantado e se afastado, sem olhar para trás, os ombros encurvados, como se houvesse sido golpeado.
Frannie enlaçou Stu com os braços.
- É nisso que dá - disse ele, e ficou repetindo vezes sem conta, falando de um modo lento e desarticulado que a alarmou. - É nisso que dá. Tudo acabado. É nisso que dá. É nisso que dá.
- Você fez o melhor que pôde - disse ela, e abraçou-o com mais força ainda, como se ele pudesse escapar.
- É nisso que dá - repetia, com uma apatia indefinida.
Frannie o abraçava. Apesar de todos os seus pensamentos das últimas três semanas e meia, apesar de sua "paixonite esmagadora", não fizera um único movimento ostensivo. Tinha sido quase dolorosamente cautelosa para não demonstrar seus sentimentos. A situação com Harold era por demais delicada. E nem mesmo agora estava demonstrando o que na verdade sentia por Stu, não de fato. Não era um abraço de amante que estava dando nele. Era simplesmente um sobrevivente se apegando a outro. Stu pareceu entender assim. Suas mãos subiram até os ombros dela e os apertaram com firmeza, deixando impressões digitais de sangue na sua camisa caqui, marcando-a de um modo que parecia torná-los cúmplices em algum lamentável crime. Em algum lugar um gaio crocitou asperamente, e ali mais perto Perion começou a chorar.
Harold Lauder, que não sabia que a diferença entre abraço de sobreviventes e de amantes podia ser aplicada mutuamente, olhou para Frannie e Stu com nascentes suspeita e medo. Após um longo momento, ele se embrenhou furiosamente no mato e só voltou depois da ceia.
Ela acordou cedo na manhã seguinte com alguém sacudindo-a. Abrirei os olhos para topar com Glen ou Harold, pensou sonolenta. Vamos recomeçar tudo, e continuaremos recomeçando até acertarmos. Aqueles que não aprendem da história...
Mas era Stu. E já era quase dia claro; a madrugada avançava envolta na névoa matinal como ouro novo embrulhado em fino algodão. Os outros estavam ferrados no sono.
- O que é? - perguntou ela. - Alguma coisa errada?
- Estive sonhando de novo - explicou ele. - Não com a velha, mas... com aquele outro. O homem escuro. Fiquei com medo, por isso eu...
- Pare com isso - disse ela, assustada pelo olhar no rosto dele. - Diga logo o que pretende, por favor.
- É Perion. O Veronal. Ela pegou o Veronal na mochila de Glen. Ela deu um suspiro sibilante.
- Meu Deus - disse Stu, alquebrado. - Ela está morta, Frannie. Ah, meu Deus, mais esta agora.
Ela tentou falar e descobriu que não podia.
- Acho que vou acordar os outros - disse Stu meio desligadamente. Ele esfregou a face, onde a barba arranhava como lixa. Fran podia ainda lembrar como a sentira contra sua própria face na véspera, quando havia abraçado Stu. Ele voltou-se para ela, aturdido. - Quando isso vai acabar?
- Não creio que acabará - respondeu ela suavemente. Os olhos deles fecharam-se no início do alvorecer.
Do diário de Fran Goldsmith
12 de julho de 1990
Estamos acampados logo a oeste de Guilderland (NY) esta noite, finalmente fizemos isto na Grande Rodovia, a Rodovia 80/90. A empolgação de encontrar Mark e Perion (não acham que é um belo nome? Eu acho) ontem à tarde está mais ou menos arrefecida. Eles concordaram em se juntar a nós - de fato, fizeram a sugestão antes mesmo que 450 qualquer um de nós pudesse.
Não que eu esteja certa de que Harold os teria convidado. Vocês sabem como ele é. E ele estava meio invocado (acho que Glen também estava) por toda a tralha que eles estavam carregando, inclusive dois rifles semi-automáticos. Mas principalmente Harold tinha que dar seu pequeno espetáculo... ele tem que marcar sua presença, você sabe.
Acho que já enchi diversas páginas com A PSICOLOGIA DE HAROLD, e se você não o conhece agora, jamais conhecerá. Debaixo de toda a sua arrogância e todas aquelas declarações pomposas existe um garoto muito inseguro. Ele realmente não acredita que as coisas mudaram. Parte dele - uma parte bem grande, acho - precisa acreditar que todos os seus torturadores do ginásio vão se erguer dos seus túmulos um belo dia e começar de novo a jogar bolinhas de papel cheias de cuspe sobre ele, ou talvez chamá-lo de Lauder Punheteiro, como Amy dizia que costumavam fazer. Às vezes acho que teria sido melhor para ele (e talvez para mim também) se não tivéssemos sido ligados em Ogunquit. Faço parte de sua antiga vida, fui certa vez uma das melhores amigas de sua irmã e assim por diante. O que resume meu excêntrico relacionamento com Harold é o seguinte: por mais estranho que possa parecer, sabendo o que sei agora, eu provavelmente escolheria Harold para amigo em vez de Amy, que era principalmente vidrada em rapazes com carrões e roupas de grife, e que era (Deus me perdoe por falar tão cruamente sobre os mortos, mas é verdade) uma autêntica Esnobe de Ogunquit, do jeito que só uma caloura universitária pode ser. Harold, no seu próprio jeito esquisitão, é um cara legal. Isto é, quando não concentra todas as suas energias mentais em ser um pé no saco. Mas pode-se ver que Harold jamais acreditaria que alguém pudesse considerá-lo um cara legal. Parte dele investiu demais em ser "quadrado". Ele está determinado a carregar todos os seus problemas junto com ele neste não-tão-admirável mundo novo. Ele também poderia tê-los enfiado dentro de sua mochila junto com aquelas barras de chocolate Payday que gostava de comer.
Ah, Harold, eu simplesmente não sei.
Coisas para recordar, o papagaio da Gillette: "Por favor, não aperte o Charmin." O batedor volante da Kool-Aid que costumava dizer: "Ah... YEAAAHHH!" "O Tampão O.B., criado por uma ginecologista." Palestra All-Stars. A noite dos mortos-vivos. Brrr! Esta última bateu bem perto de casa. Desisto.
14 de julho de 1990
Hoje, na hora do almoço, tivemos uma longa e muito séria conversa acerca desses sonhos, que talvez tenha demorado muito mais do que desejaríamos. Estávamos logo ao norte de Batavia, Nova York, por falar nisso.
Ontem, Harold sugeriu muito timidamente (para ele) que começássemos a estocar Veronal e tomássemos doses muito leves para ver se não poderíamos "romper o ciclo de sonhos", nas palavras dele. Prosseguiu com a ideia de modo que ninguém começasse a especular se alguma coisa pudesse estar errada comigo, mas planejo escamotear minha dose porque não sei o que ela poderia fazer com o Zorro (espero que ele seja só um; não sei se poderia enfrentar gêmeos).
Adotada a proposta do Veronal, Mark teve um comentário:
- Vocês sabem, coisas como essa não resistem a muito pensamento a respeito. A coisa seguinte que vocês sabem é que iremos todos pensar que somos Moisés ou José recebendo telefonemas de Deus.
- Aquele homem escuro não está ligando do céu - diz Stu. - Se é uma ligação interurbana, acho que está vindo de um lugar bem mais abaixo.
- Que é a maneira de Stu dizer que o velho capeta está atrás de nós - cantarola Fran.
- E é uma explicação tão boa quanto qualquer outra - diz Glen. Nós todos olhamos para ele. - Bem - continua, um tanto na defensiva, acho -, se olharem para isto de um ponto de vista teológico, parece inteiramente como se fôssemos o nó num cabo-de-guerra entre o céu e o inferno, não é? Se houver quaisquer jesuítas sobreviventes da supergripe, eles devem ficar absolutamente pirados.
Isto fez Mark rir estrondosamente. Na verdade não entendi, mas mantive a boca fechada.
- Bem, acho que essa coisa toda é ridícula - disse Harold. - Vocês estarão contornando Edgar Cayce e a transmigração de almas antes que saibamos disso.
Ele pronunciou errado o nome Cayce e quando o corrigi, lançou-me o HORRÍVEL FRANZIR DE CENHO marca Harold. Ele não é do tipo que agradece quando alguém aponta suas pequenas gafes, querido diário!
- Toda vez que ocorre algo abertamente paranormal - disse Glen -, a única explicação que realmente se adequa bem e sustenta sua lógica interior é a teológica. Eis por que fenômenos psíquicos e religião sempre andaram de mãos dadas, até os seus curadores pela fé dos dias de hoje.
Harold estava resmungando, mas Glen continuou mesmo assim.
- Meu próprio sentimento interior é de que todo mundo é psíquico... e isto está tão entranhado como parte de nós que muito raramente notamos. O talento pode ser largamente preventivo, e isso também evita que seja notado.
- Por quê? - perguntei.
- Porque é um fator negativo, Fran. Algum de vocês já leu o estudo que James D. L. Staunton fez em 1958 sobre desastres ferroviários e aéreos? Foi publicado originalmente em um jornal de Sociologia, mas os tablóides vez por outra retomam o tema.
Sacudimos negativamente as cabeças.
- Deviam ler - disse ele. - James Staunton foi o que meus alunos de vinte anos atrás teriam chamado de "uma cabeça realmente boa", um sociólogo de maneiras afáveis que estudou o ocultismo como uma espécie de hobby. Ele escreveu diversos artigos sobre os temas combinados antes de passar para o outro lado para fazer alguma pesquisa em primeira mão.
Harold bufou, mas Stu e Mark estavam rindo. Receio que eu também.
- Conte-nos sobre os aviões e trens - diz Peri.
- Bem, Staunton compilou estatísticas sobre mais de cinqüenta desastres aéreos desde 1925, e de sobre mais de duzentos desastres de trem desde 1900. Pôs todos os dados num computador. Basicamente, estava correlacionando três fatores: aqueles presentes em qualquer de tais meios de transporte que sofreu desastre, a quantidade de mortos e a capacidade do veículo.
- Não vejo o que ele estivesse tentando provar - disse Stu.
- Para ver isto, você tem de entender que ele arquivou uma segunda série de dados no computador, desta vez um número igual de aviões e trens que não sofreram desastre.
Mark assentiu.
- Um grupo controle e um grupo experimental. Parece ter bastante solidez.
- O que ele descobriu foi bastante simples, mas vacilante em suas implicações. É uma vergonha vacilar através de 16 tabelas para obter o fato estatístico subjacente.
- Que fato? - perguntei.
- Aviões e trens lotados raramente sofrem acidente - disse Glen.
- Ah, isso é uma tremenda BABAQUICE. - Harold esteve a ponto de gritar.
- De modo algum - diz Glen calmamente. - Esta era a teoria de Staunton, e o computador a confirmou. Nos casos em que aviões e trens sofrem desastre, os veículos estão trafegando com 61% da sua capacidade, em relação a cargas de passageiros. Nos casos em que não sofrem desastre, os veículos estão trafegando com 76% da capacidade. É uma diferença de 15%, e este tipo de divergência global é significativo. Staunton assinala que, estatisticamente falando, uma divergência de 3% daria o que pensar, e ele está certo. É uma anomalia do tamanho do Texas. A dedução de Staunton era de que as pessoas sabem que aviões e trens vão sofrer desastre... elas estão inconscientemente prevendo o futuro.
"Sua tia Sally tem uma azia estomacal logo antes de o voo 61 decolar de Chicago para San Diego. E quando o avião se espatifa no deserto de Nevada, todos dizem: ‘Ah, tia Sally, aquela azia foi realmente um aviso de Deus.’ Mas até James Staunton aparecer, ninguém percebera que houve realmente trinta pessoas com azia, dor de barriga ou enxaqueca... ou simplesmente aquela sensação engraçada que você tem nas pernas quando seu corpo está tentando dizer à cabeça que alguma coisa está ficando pronta para dar errado."
- Não acredito nisso - diz Harold, sacudindo a cabeça um tanto pesarosamente.
- Bem, fique sabendo - disse Glen -, cerca de uma semana depois que li o artigo de Staunton pela primeira vez, um jato da Majestic Airlines se espatifou no Aeroporto Logan, matando todos a bordo. Bem, liguei para os escritórios da Majestic em Logan após as coisas se acalmarem um pouco. Disse-lhes que era um repórter do Union-Leader de Manchester... uma pequena mentira por uma boa causa. Disse que estávamos preparando uma matéria sobre desastres aéreos e perguntei se poderiam me dizer quantos desistentes houvera naquele vôo. O homem que me atendia ficou um tanto surpreso, porque disse que o pessoal da Majestic estivera falando sobre isso. O número foi de 16. Dezesseis desistentes. Perguntei-lhe qual era a média em vôos 747 de Denver para Boston, e ele disse que era de três.
- Três - disse Perion, pasma.
- Certo. Mas o cara foi além. Disse que também tiveram 15 cancelamentos, e o número médio é de oito. Portanto, embora as manchetes após o desastre gritassem DESASTRE AÉREO EM LOGAN MATA 94, poderiam também dizer que 31 EVITAM A MORTE NO ACIDENTE DO AEROPORTO LOGAN.
Bem... houve um bocado mais de conversa a respeito de psiquismo, mas isto se afastava muito do tema de nossos sonhos e se eles vinham ou não do Grande Justo lá no céu. Uma coisa que veio à tona (isto foi depois de Harold ter se afastado do grupo, para lá de chateado) foi Stu perguntando a Glen:
- Se todos nós somos tão psíquicos, então como é que não sabemos quando um ente querido acabou de morrer ou que nossa casa simplesmente desabou num tornado, ou algo assim?
- Há casos de coisas exatamente deste tipo - disse Glen -, mas admitirei que estão em algum lugar tão perto do comum... quanto tão fácil de provar com a ajuda de um computador. Este é um ponto interessante. Tenho uma teoria...
(Não é que ele sempre tem, diário?)
- ... que tem a ver com a evolução. Vejam bem, uma vez os homens... ou seus antepassados... tinham rabos e pêlos por todo o corpo, e sentidos muito mais aguçados do que agora. Por que não os temos mais? Rápido, Stu! Esta é a sua chance de ser o primeiro da turma, com barrete de formatura e tudo!
- Ora, pela mesma razão por que as pessoas não usam mais óculos de proteção para vento e poeira quando dirigem, acho. Às vezes você amadurece uma coisa. Ela chega até um ponto em que você não precisa mais dela.
- Exatamente. E de que vale ter um sentido psíquico que é inútil de qualquer modo? Que bem material faria você estar trabalhando no escritório e de repente saber que sua esposa morreu numa colisão de carros ao voltar do mercado? Alguém vai telefonar para você e lhe contar, certo? Esse sentido pode ter se atrofiado muito tempo atrás, se é que algum dia o tivemos. Pode ter ido embora do mesmo jeito que nossos rabos e pêlos.
"O que me interessa em relação a esses sonhos", continuou, "é que parecem pressagiar uma luta futura. Parecemos estar obtendo retratos obscuros de um protagonista... e de um antagonista. Um adversário, se preferirem. Se assim é, isso pode ser como olhar para um avião no qual fomos programados para voar... e ter uma dor de barriga. Foram-nos concedidos os meios que ajudam a formar nosso próprio futuro, talvez. Uma espécie de livre-arbítrio quadridimensional: uma chance de escolher os eventos com antecedência."
- Mas não sabemos o que os sonhos significam - repliquei.
- Não, não sabemos. Mas podemos saber. Não sei se uma pequena sensação de capacidade psíquica significa que somos divinos; há uma infinidade de pessoas que podem aceitar o milagre da visão sem acreditar que a visão prova a existência de Deus, e sou uma delas. Mas acredito que esses sonhos são uma força construtiva apesar de sua capacidade de nos assustar. Estou tendo segundos pensamentos em relação ao Veronal, como conseqüência. Tomá-lo é muito parecido com engolir Pepto-Bismol para aquietar a dor de barriga e depois embarcar no avião de qualquer modo.
Coisas para recordar: recessão, escassez, o protótipo Ford Growler que podia rodar quase 100 quilômetros na estrada com um único galão de gasolina. O carro prodígio. Isso é tudo; paro aqui. Se não encurtar minhas anotações, este diário será tão longo quanto E o Vento Levou antes mesmo que o Zono chegue (embora não, por favor, num cavalo branco chamado Silver). Ah, sim, mais uma coisa a relembrar. Edgar Cayce. Não pode esquecê-lo. Ele supostamente via o futuro em seus sonhos.
16 de julho de 1990
Só duas anotações, ambas relacionadas aos sonhos (ver anotação de dois dias atrás). Primeiro, Glen Bateman ficou muito pálido e silencioso por estes dois últimos dias, e esta noite eu o vi tomar uma dose extragrande de Veronal. Desconfio que ele pulou as duas últimas doses e o resultado foi algum pesadelo MUITO ruim. Isto me preocupa. Gostaria de saber um meio de abordá-lo, mas não consigo pensar em nenhum.
Em segundo lugar, meus próprios sonhos. Nada na noite anterior á última (a noite anterior á nossa discussão); dormi como um bebê e não consigo me lembrar de nada. Na noite passada sonhei com a velha pela primeira vez. Nada a acrescentar além do que já tinha sido dito, exceto que ela parece exsudar uma aura de SIMPATIA, de BONDADE. Acho que posso entender por que Stu estava tão determinado a seguir para Nebraska mesmo diante do sarcasmo de Harold. Acordei esta manhã completamente refrescada, achando que se pudéssemos simplesmente nos juntar àquela velha, Mãe Abagail, tudo ficaria bem. Espero que ela esteja realmente lá. (Aliás, estou quase inteiramente certa de que o nome da cidade é Hemingford Home.)
Coisas para recordar. Mãe Abagail!
QUANDO ACONTECEU, ACONTECEU RÁPIDO.
Era por volta de 10h15 de 30 de julho, e eles estavam na estrada há apenas uma hora. O progresso era lento porque houvera chuvas pesadas na noite anterior e a estrada ainda estava escorregadia. Os quatro pouco haviam conversado desde a manhã da véspera, quando Stu acordara primeiro Frannie, depois Harold e Glen, para contar-lhes sobre o suicídio de Perion. Ele estava se culpando, pensou Fran, infeliz, culpando-se por alguma coisa que era tanto sua culpa quanto uma tempestade teria sido.
Ela teria gostado de dizer-lhe isto, em parte porque ele precisava ser repreendido por sua auto-indulgência e em parte porque o amava. Este último era um fato que ela não podia mais esconder de si mesma. Ela achava-se capaz de convencê-lo de que a morte de Peri não foi por culpa dele... mas o convencimento incluiria mostrar-lhe o que eram seus próprios sentimentos verdadeiros. Ela achava que teria de pregar seu coração na manga, de modo que ele pudesse vê-lo. Infelizmente, Harold também seria capaz de ver. Portanto, isto estava fora... mas somente por enquanto. Achava que teria de fazer isto em breve, com ou sem Harold. Ela poderia apenas resguardá-lo por enquanto. Depois ele teria de saber... e aceitar ou não aceitar. Receava que Harold pudesse escolher a segunda opção. Uma decisão como essa poderia levar a alguma coisa horrível. Eles estavam, afinal, carregando um bocado de armas de fogo.
Ela remoía esses pensamentos quando dobraram uma curva e viram um enorme trailer de cavalos capotado no meio da estrada, bloqueando-a de um lado a outro. Sua lateral corrugada cor-de-rosa ainda reluzia com a chuva da última noite. Isto era bastante surpreendente, porém havia mais - três carros, todos caminhonetes, e um grande caminhão-guincho estavam estacionados ao longo dos dois lados da estrada. Havia pessoas paradas em torno, pelo menos umas dez.
Fran ficou tão surpresa que freou subitamente demais. A Honda que pilotava derrapou sobre a pista molhada e quase a arremessou antes que fosse capaz de recuperar o controle. Então, os quatro haviam parado, mais ou menos numa linha que cruzava a estrada, piscando, e mais do que um pouco atônitos à visão de tantas pessoas ainda vivas.
- Muito bem, desmontem - disse um dos homens. Era alto, de barba ruiva, e usava óculos de sol. Fran viajou no tempo por um momento no interior de sua mente, de volta à praça de pedágio do Maine e sendo parada por um patrulheiro estadual por excesso de velocidade.
Em seguida ele pedirá para ver nossas carteiras de habilitação, pensou. Mas este não era nenhum patrulheiro estadual solitário, multando os infratores e preenchendo talões de multa. Havia quatro homens ali, três deles de pé atrás do homem barbudo numa curta linha de atiradores. O resto do grupo compunha-se de mulheres. Elas pareciam pálidas e assustadas, reunidas em pequenos grupos em torno das caminhonetes estacionadas.
O barbudo portava uma pistola. Os homens atrás dele estavam armados de fuzis. Dois deles usavam acessórios e peças de equipamento militar.
- Desmontem, porra - repetiu o barbudo. Um dos homens atrás dele inseriu um cartucho na culatra de seu fuzil. Foi um som alto e intensamente imperioso no ar nevoento da manhã.
Glen e Harold pareciam intrigados e apreensivos. Isto, e nada mais. Eles eram alvos fáceis, pensou Frannie em pânico crescente. Ela própria ainda não entendia plenamente a situação, mas sabia que a equação aqui estava toda errada. Quatro homens, oito mulheres, disse seu cérebro e depois o repetiu, mais alto, em tons de alarme: Quatro homens! Oito mulheres!
- Harold - disse Stu em voz baixa. Alguma coisa tinha subido aos seus olhos. Alguma percepção. - Harold, não... - E então tudo aconteceu.
O rifle de Stu estava pendurado em suas costas. Ele abaixou um ombro de modo que a tira deslizasse até seu braço, e então teve o rifle empunhado.
- Não faça isso! - gritou furiosamente o barbudo. - Garvey! Virge! Ronnie! Peguem eles! Poupem a mulher!
Harold começou a procurar suas pistolas, a princípio esquecendo que ainda estavam presas com tiras nos coldres.
Glen Bateman permanecia sentado atrás de Harold em atônita surpresa.
- Harold! - gritou de novo Stu.
Frannie começou a tirar da tipóia o próprio rifle. Sentia como se o ar em volta dela tivesse sido envolvido de repente em melaço invisível, uma substância melosa que ela nunca seria capaz de romper a tempo. Deu-se conta de que provavelmente iriam morrer aqui.
Uma das garotas gritou:
- AGORA!
O olhar de Frannie girou para esta garota mesmo enquanto continuava a pelejar com seu rifle. Não realmente uma garota; tinha pelo menos 25 anos. Seu cabelo, de um louro-acinzentado, cobria sua cabeça num capacete enraivecido, como se recentemente o tivesse tosquiado com tesoura de aparar folhagem.
Nem todas as mulheres se moveram. Algumas pareciam estar quase catatônicas de pavor. Mas a garota loura e três das outras agiram.
Tudo isto aconteceu no espaço de sete segundos.
O homem barbudo estivera apontando sua pistola para Stu. Quando a jovem loura gritou: "Agora!", o cano oscilou levemente na direção dela, como uma vareta de rabdomante procurando água. A pistola disparou, produzindo um som alto parecido com uma peça de aço perfurando papelão. Stu caiu da moto e Frannie gritou seu nome.
Então Stu se ergueu apoiado nos cotovelos (ambos arranhados ao se chocar com a estrada, e a Honda estava caída em cima de uma de suas pernas) e abriu fogo. O barbudo pareceu dançar para trás como um sapateador de vaudeville deixando o palco após seu bis. A camisa xadrez desbotada que estava usando se estufou e cresceu. Sua pistola automática voou na direção do céu e aquele som de aço-atravessando-papelão aconteceu mais quatro vezes. Ele caiu de costas.
Dois dos três homens atrás dele tinham se virado ao grito da mulher loura. Um deles apertou os dois gatilhos da arma que estava segurando, uma obsoleta Remington calibre 12. A coronha da arma não estava apoiada contra nada - ele a segurava ao lado do quadril direito -, e quando a espingarda disparou com um som parecido com um trovão num cômodo pequeno, voou de suas mãos para trás, rasgando a pele dos seus dedos neste movimento. Foi se estatelar na estrada. O rosto de uma das mulheres que não reagiram ao grito da loura dissolveu-se num furor inacreditável de sangue. Por um momento, Frannie pôde ouvir realmente o sangue respingando no asfalto, como se caindo de um chuveiro improvisado. Um olho espiou incólume através da máscara de sangue que essa mulher agora usava. Estava aturdido e impenetrável. Depois a mulher caiu para a frente na estrada. A caminhonete atrás dela estava salpicada de chumbo grosso. Uma das janelas era uma catarata de rachaduras leitosas.
A garota loura atracou-se com o segundo homem que tinha se virado em sua direção. O fuzil que o homem empunhava ficou entre seus corpos. Uma das garotas disputava a espingarda perdida.
O terceiro homem, que não tinha se virado em direção às mulheres, começou a atirar em Fran. Ela sentava-se enganchada na sua moto, o rifle empunhado, piscando estupidamente para ele. O homem tinha pele azeitonada, parecendo italiano. Ela sentiu a bala passar rente à têmpora esquerda.
Harold finalmente conseguira sacar uma das pistolas. Ergueu-a e disparou no homem de pele azeitonada. A distância era de uns 15 passos. Ele errou. Um buraco de bala apareceu na lataria do trailer cor-de-rosa logo à esquerda da cabeça do homem de pele azeitonada. Ele olhou para Harold e disse:
- Agora eu te mato, filho-da-puta!
- Não faça isso! - gritou Harold. Ele deixou cair a pistola e exibiu as mãos abertas.
O homem disparou três vezes em Harold. Errou todos. O terceiro tiro chegou bem perto de causar dano; a bala foi silvar no cano de descarga da Yamaha de Harold. A moto caiu, cuspindo fora Harold e Glen.
Vinte segundos já tinham se passado. Harold e Stu jaziam estendidos. Glen sentava-se de pernas cruzadas na estrada, parecendo não saber exatamente onde se encontrava ou o que estava ocorrendo. Frannie tentava desesperadamente atirar contra o homem de pele azeitonada antes que ele pudesse balear Harold ou Stu, mas sua arma negou fogo, o gatilho nem sequer recuou, porque ela esquecera de puxar a trava de segurança. A mulher loura continuava a lutar com o segundo homem, e a mulher que fora recuperar a espingarda caída estava agora disputando com outra mulher a posse da arma.
Praguejando numa língua que era indubitavelmente italiano, o homem de pele azeitonada mirou de novo em Harold. Então Stu disparou e a testa do italiano se esfacelou, e ele caiu como um saco de batatas.
Outra mulher havia se juntado à briga pela posse da espingarda. O homem que a havia perdido tentava impedi-la. A mulher meteu a mão entre as pernas dele e apertou-lhe os bagos. Fran viu os tendões do jarrete dela estalarem do antebraço até o cotovelo. O homem gritou e perdeu o interesse pela espingarda. Agarrou suas partes íntimas, tropeçou e caiu.
Harold rastejou até onde sua pistola jazia caída na estrada e arrebatou-a. Ergueu a pistola e atirou no homem que agarrava as partes íntimas. Disparou três vezes e errou todas.
É que nem Bonnie & Clyde, pensou Frannie. Meu Deus, há sangue por toda parte!
A mulher loura com o cabelo emaranhado havia perdido a luta pela posse do fuzil do segundo homem. Ele conseguiu se livrar dela e chutou-a, talvez visando seu estômago, atingindo-a em vez disso na coxa com sua pesada bota. Ela recuou velozmente, agitando os braços para manter o equilíbrio, e pousou nas próprias nádegas com um estalo molhado.
Agora ele irá atirar nela, pensou Frannie, mas o segundo homem rodopiou como um soldado bêbado fazendo meia-volta, volver, e começou a atirar rapidamente no grupo de três mulheres encolhidas contra a lateral da caminhonete.
- Yaaah! Suas putas! - gritou esse homem. - Yaaah! Suas putas!
Uma das mulheres caiu e começou a se agitar no asfalto entre a caminhonete e o trailer tombado como um peixe harpoado. As duas outras correram. Stu disparou no atirador e errou. O segundo homem disparou em uma das mulheres em fuga e acertou. Ela lançou os braços para o céu e desabou. A outra girou para a esquerda e correu para trás do trailer cor-de-rosa.
O terceiro homem, o que havia perdido e falhado em recuperar a espingarda, ainda cambaleava e segurava os testículos. Uma das mulheres apontou-lhe a espingarda e acionou os dois gatilhos, seus olhos semicerrados e a boca careteando em antecipação ao trovão que viria. O trovão não veio. A espingarda estava sem munição. Ela então segurou a arma pelos dois canos e baixou a coronha num arco vigoroso. Não lhe acertou a cabeça, mas atingiu o lugar onde o pescoço do homem se juntava ao ombro direito. Ele caiu de joelhos. Começou a rastejar. A mulher, que usava uma suéter de malha azul com a inscrição KENT STATE UNIVERSITY e jeans esfarrapados, foi atrás dele, golpeando-o com a espingarda. O homem continuava a rastejar, o sangue agora escorrendo dele em torrentes. E a mulher com a suéter universitária continuou a golpeá-lo.
- Yaaah, suas putas! - gritava o segundo homem. Ele disparou contra uma mulher de meia-idade que sussurrava, aturdida. A distância entre o cano da arma e a mulher era no máximo de 90 centímetros; ela podia quase esticar o braço e tampar o cano com seu dedo rosado. Ele errou. Apertou o gatilho de novo, mas dessa vez o fuzil estava descarregado.
Harold agora segurava sua pistola com as duas mãos, como via os tiras fazendo nos filmes. Puxou o gatilho e sua bala despedaçou o cotovelo do segundo homem. Ele largou o fuzil e começou a dançar pra cima e pra baixo, emitindo uma algaravia de ruídos altos. Para Frannie, ele soava um pouco como Roger Rabbit dizendo "Por fa-favoooor!".
- Eu o peguei! - gritou Harold, extasiado. - Eu o peguei, cacete! Eu o peguei!
Frannie finalmente se lembrou da trava de segurança de seu rifle. Destravou a arma no justo momento em que Stu atirava de novo. O segundo homem caiu, agora segurando o estômago em vez das entrepernas. Continuava a gritar.
- Meu Deus, meu Deus - dizia Glen brandamente. Levou as mãos ao rosto e começou a chorar.
Harold disparou de novo. O corpo do segundo homem saltou e ele parou de gritar.
A mulher com a suéter da Kent baixou mais uma vez a coronha da espingarda e desta vez acertou solidamente a cabeça do homem que rastejava. Parecia o batedor Jim Rice acertando uma bola alta, rápida e traiçoeira. Tanto a cabeça do homem quanto a coronha de nogueira da espingarda se espatifaram.
Por um momento houve silêncio. Só se ouvia o trinar de um pássaro.
Então a garota com a suéter da Kent montou sobre o corpo do terceiro homem e deu um longo e primevo grito de triunfo que assombraria Fran Goldsmith pelo resto da sua vida.
A garota loura era Dayna Jurgens, de Xenia, Ohio. A garota com a suéter da Kent era Susan Stern. Uma terceira mulher, aquela que apertara os testículos do homem da espingarda, era Patty Kroger. As outras duas eram um pouco mais velhas. Shirley Hammet era a mais velha de todas, explicou Dayna. Não tinham conseguido saber o nome das outras duas, que pareciam ter seus trinta e poucos anos; ela estivera em estado de choque, vagueando sem rumo, quando Al, Garvey, Virge e Ronnie a pegaram na cidade de Archbold, dois dias antes.
Todo o grupo deixou a rodovia e acampou numa casa de fazenda em algum lugar logo a oeste de Colúmbia, agora na divisa com o estado de Indiana. Todas elas estavam em choque, e Fran pensou em dias posteriores que sua caminhada através do campo, desde o trailer cor-de-rosa tombado na praça de pedágio até a casa de fazenda, teria parecido a um eventual observador como um ecoturismo patrocinado pelo manicômio local. A relva, alta, viçosa e ainda úmida pela chuva da noite anterior, num instante ensopara suas calças. Borboletas brancas, preguiçosas no ar porque suas asas ainda estavam pesadas de orvalho, precipitavam-se na direção deles e depois afastavam-se em círculos entorpecidos e curvas em forma de oito. O sol pelejava para romper, mas ainda não o havia feito; uma nódoa brilhante iluminava debilmente uma cobertura de nuvem branca uniforme que se estendia de um horizonte a outro. Mas com ou sem cobertura de nuvem o dia já estava quente, oprimido com umidade, e o ar repleto de bandos rodopiantes de corvos e seus gritos ásperos e feios. Havia mais corvos do que gente agora, pensou Fran, aturdida. Se não tomarmos cuidado, eles irão nos bicar por toda a face da Terra. A vingança dos corvos. Eram os corvos carnívoros? Ela temia muito que fossem.
Por trás desse desfile constante de pensamentos idiotas, quase invisíveis, como o sol atrás da cobertura de nuvem liquefeita (mas cheia de energia, como o sol estava nesta úmida e horrível manhã de 30 de julho de 1990), o tiroteio se repetia vezes sem conta em sua mente. O rosto da mulher desintegrando-se sob a rajada da espingarda. Stu caindo. O instante de puro terror em que tivera certeza de que ele estava morto. Um homem gritando Yaaah, suas putas!, e depois soando como Roger Rabbit quando Harold o baleou. O som de aço-atravessando-papelão da pistola do homem barbudo. O grito primitivo de vitória de Susan Stern enquanto montava no corpo do seu inimigo, cujos miolos, ainda quentes, se derramavam do seu crânio rachado.
Glen caminhava ao lado dela, o rosto fino e um tanto sardônico agora perturbado, seu cabelo grisalho esvoaçando em mechas em torno da cabeça como se numa imitação de borboletas. Ele pegou-lhe a mão e ficou dando batidinhas nela compulsivamente.
- Você não deve permitir que isto a afete - disse ele. - Esses horrores... fadados a ocorrer. A melhor proteção está nos números. A sociedade, você sabe. A sociedade é o princípio básico da arcada que chamamos de civilização, e isto é o único antídoto real para proscrição. Você deve assumir... coisas... coisas como esta... como algo de se esperar. Esta foi uma ocorrência isolada. Pense nelas como duendes. Sim! Duendes, diabretes ou algo assim. Monstros de um tipo genérico. Aceito isto. Insisto em que a verdade deve ser evidente por si mesma, uma ética socioconstitucional, se poderia dizer. Ah-ah!
Sua risada foi quase um gemido. Ela havia pontuado cada uma de suas frases elípticas com um "Sim, Glen", mas ele pareceu não ouvir. Glen parecia estar um pouco com ânsias de vômito. As borboletas batiam contra eles e depois se chocavam de novo contra suas próprias companheiras desorientadas. Estavam quase chegando à casa da fazenda. A batalha havia durado menos de um minuto. Menos de um minuto, mas ela suspeitava de que ficaria retida dentro de sua mente a pedido do público. Glen batia de leve na sua mão. Ela queria pedir-lhe para parar com aquilo, mas receava que ele chorasse se o fizesse. Ela podia agüentar isso. Não tinha certeza de agüentar se visse Glen Bateman chorar.
Stu caminhava ladeado por Harold e por Dayna Jurgens, a garota loura. Susan Stern e Patty Kroger flanqueavam a mulher catatônica sem nome que havia sido capturada em Archbold. Shirley Hammet, a mulher que estivera ao alcance à queima-roupa do homem que imitara Roger Rabbit antes de morrer, caminhava um pouco afastada à esquerda, resmungando e fazendo a captura ocasional de borboletas esvoaçantes. O grupo progredia lentamente, porém Shirley Hammet era mais lenta. Seu cabelo grisalho pendia desordenadamente sobre a face, e seus olhos aturdidos perscrutavam o mundo como camundongos assustados espiando de uma toca temporária.
Harold olhou para Stu, pouco à vontade.
- Nós acabamos com eles, não é, Stu? Ferramos com eles, chutamos os seus rabos!
- Acho que sim, Harold.
- Cara, mas tínhamos que fazer isso - disse Harold com veemência, como se Stu tivesse sugerido que as coisas deveriam ter corrido de outra maneira. - Éramos nós ou eles!
- Eles teriam estourado as cabeças de vocês - disse Dayna Jurgens baixinho. - Eu estava com dois caras quando nos atacaram. Balearam Rich e Damon de emboscada. Depois que acabou, meteram uma bala na cabeça de cada um, só para ter certeza. Vocês agiram bem, do contrário estariam mortos agora.
- Do contrário estaríamos mortos agora! - exclamou Harold para Stu.
- Tudo bem - disse Stu. - Acalme ela, Harold.
- Claro! Transpiração negativa! - disse Harold, entusiasmado. Remexeu na sua mochila, pegou uma barra de chocolate Payday e quase a deixou cair enquanto a desembrulhava. Xingou-a amargamente e começou a devorá-la, segurando-a com as duas mãos como um pirulito.
Tinham chegado à casa de fazenda. Harold ficava se apalpando furtivamente enquanto comia a barra de chocolate - querendo se certificar de que não estava ferido. Sentia-se muito mal e receava olhar para a sua virilha. Tinha quase certeza de que havia urinado nas calças pouco depois que as festividades lá junto ao trailer cor-de-rosa chegaram ao seu auge.
Dayna e Susan falaram sem parar durante um lanche distraído que alguns pegaram mas nenhum realmente comeu. Patty Kroger, que tinha 17 anos e era absolutamente linda, vez por outra acrescentava alguma coisa. A mulher sem nome ruminava no canto mais afastado da cozinha empoeirada. Shirley Hammet sentava-se a uma mesa, comia biscoito e resmungava.
Dayna deixara Xenia em companhia de Richard Darliss e Damon Bracknell. Quantos outros haviam sobrevivido em Xenia após a gripe? Só três que ela tivesse visto: um homem muito idoso, uma mulher e uma menininha. Dayna e seus amigos convidaram o trio a se juntar a eles, mas o velho acenou-lhes dizendo algo acerca de "ter negócios a resolver no deserto".
Por volta de 8 de julho, Dayna, Richard e Damon começaram a padecer de pesadelos acerca de um certo homem escuro. Sonhos muito assustadores. Rich tinha na verdade formado a ideia de que o homem escuro era real, disse Dayna, e que vivia na Califórnia. Ele fazia uma ideia de que esse homem, se fosse realmente um homem, era o negócio que aqueles três que encontraram tinham a resolver no deserto. Ela e Damon começaram a temer pela sanidade de Rich. Ele chamava o homem do sonho de "o incorrigível" e disse que ele estava reunindo um exército de incorrigíveis. Acrescentou que em breve esse exército faria uma varredura a partir do oeste e escravizaria todos os sobreviventes, primeiro na América, depois no resto do mundo. Dayna e Damon haviam começado a discutir reservadamente a possibilidade de escaparem de Rich alguma noite e começaram a crer que seus próprios sonhos eram conseqüência do poderoso delírio de Rich Darliss.
Em Williamstown, dobraram uma curva na auto-estrada para descobrir um enorme caminhão de lixo tombado no meio da pista. Havia uma caminhonete e um carro-guincho estacionados nas proximidades.
- Presumimos que fosse apenas mais uma colisão - disse Dayna, esfarelando nervosamente uma bolacha integral entre os dedos -, que era, claro, exatamente o que deveríamos pensar.
Saltaram de suas motos a fim de empurrá-las para contornar o caminhão de lixo, e foi então que os quatro incorrigíveis - para usar a palavra de Rich - apareceram do valão. Mataram Rich e Damon e tomaram Dayna como prisioneira. Ela foi o quarto acréscimo ao que eles às vezes chamavam de "o zoo" e outras vezes de "o harém". Um dos outros tinha sido a resmungona Shirley Hammet, que à época ainda se mostrara quase normal, embora sendo repetidamente estuprada, sodomizada e forçada a praticar felação com os quatro.
- E uma vez - continuou Dayna -, quando ela não conseguiu se segurar até chegar a hora de um deles levá-la para fazer suas necessidades no mato, Ronnie limpou sua bunda com um punhado de arame farpado. Ela teve hemorragia retal por três dias.
- Jesus Cristo - disse Stu. - Quem era esse Ronnie?
- O homem da espingarda - disse Susan Stern. - Aquele de quem rachei o crânio. Gostaria que estivesse bem aqui, deitado no chão, de modo que eu pudesse fazer tudo de novo.
O homem barbudo e usando óculos de sol elas só tinham conhecido como Doe. Ele e Virge faziam parte de um destacamento do Exército que fora enviado para Akron quando a gripe irrompeu. Sua função era de "relações com a mídia", um eufemismo militar para "eliminação da mídia". Quando essa tarefa foi inteiramente executada, eles passaram para "controle de multidão", que era um eufemismo militar para fuzilar saqueadores em fuga e enforcar aqueles que não o faziam. Por volta de 27 de junho, Doe lhes havia contado, a cadeia de comando apresentava muito mais buracos do que elos. Uma boa quantidade de seus próprios homens estava doente demais para patrulhar, mas à ocasião isto já não era tão importante, à medida que os habitantes de Akron ficavam fracos demais para ler ou escrever as notícias, sem falar em saquear bancos e joalherias.
Por volta de 30 de junho a unidade se foi - seus integrantes mortos, agonizantes ou dispersos. Doe e Virge eram os únicos dois dispersos, na verdade, e foi quando eles iniciaram suas novas vidas como guardiães de zoológico. Garvey aparecera em 1º de julho, e Ronnie no dia 3. Neste ponto eles fecharam as inscrições para o seu peculiar clubezinho.
- Mas depois de um tempo vocês os superaram em número - disse Glen. Inesperadamente, foi Shirley Hammet quem respondeu:
- Pílulas - disse ela, olhos de camundongo encurralado fitando-os fixamente por trás da franja dos seus cabelos grisalhos. - Pílulas a cada manhã para animar, pílulas a cada noite para apagar. Altos e baixos. - Sua voz foi afundando e o final da fala mal soou audível. Ela fez uma pausa e depois recomeçou a resmungar.
Susan Stern retomou o fio da história. Ela e uma das mulheres mortas, Rachel Carmody, haviam sido capturadas em 17 de julho, nos arredores de Columbas. Nessa ocasião o grupo estava viajando em uma caravana que consistia em duas caminhonetes e o carro-guincho. Os homens usavam o carro-guincho para remover do caminho veículos batidos ou barricadas, dependendo da situação. Doe mantinha a farmácia presa ao cinto dentro de uma enorme pochete. Soníferos pesados para a hora de dormir; tranquilizantes para viajar; estimulantes para o recreio.
- Eu levantava pela manhã, era estuprada duas ou três vezes e depois esperava Doe trazendo as pílulas - disse Susan prosaicamente. - As pílulas do dia, quero dizer. Por volta do terceiro dia, tive assaduras na minha... bem, vocês sabem, na vagina, e qualquer tipo de intercurso normal era muito doloroso. Eu costumava esperar por Ronnie, porque tudo que queria era boquete. Mas depois das pílulas a gente fica muito calma. Não sonolenta, apenas calma. As coisas não parecem ter importância depois que você se vê dependente daquelas pílulas azuis. Tudo que deseja fazer é sentar com as mãos no colo e observar o cenário passar ou sentar com as mãos no colo e vê-los usar o carro-guincho para tirar alguma coisa do caminho. Um dia Garvey ficou louco por causa de uma garota, ela não devia ter mais que 12 anos, ela não faria... bem, não vou lhe contar. Foi horrível. Portanto Garvey explodiu a cabeça dela. Eu nem me importei. Estava apenas... calma. Depois de um tempo, você quase pára de pensar em escapar. Prefere mais aquelas pílulas azuis do que a liberdade.
Dayna e Patty Kroger assentiam.
Mas eles pareciam reconhecer oito mulheres como seu limite efetivo, disse Patty. Quando a pegaram em 22 de julho, após matarem a mulher cinquentona que estivera viajando com eles, tinham matado uma mulher muito idosa que fizera parte do "zoo" por cerca de uma semana. Quando a garota sem nome sentada na esquina foi apanhada perto de Archbold, uma garota estrábica de 16 anos tinha sido baleada e jogada numa vala.
- Doe costumava fazer piada a respeito - disse Patty. - Ele dizia: "Não passo debaixo de escadas, não cruzo o caminho de gatos pretos e não vou querer ter 13 pessoas viajando comigo."
No dia 29, eles tinham visto Stu e os outros pela primeira vez. O zoo estivera acampado numa área de piquenique afastada da rodovia quando os quatro passaram.
- Garvey estava muito a fim de você - disse Susan, acenando na direção de Frannie, que estremeceu.
Dayna inclinou-se para mais perto deles e falou suavemente.
- E deixaram bem claro o lugar de quem você ia assumir. - Meneou a cabeça quase imperceptivelmente para Shirley Hammet, que continuava resmungando e comendo bolachas integrais.
- Pobre mulher - disse Frannie.
- Foi Dayna quem decidiu que vocês poderiam ser nossa melhor chance - disse Patty. - Ou talvez nossa última chance. Havia três homens no seu grupo... tanto ela quanto Helen Roget tinham visto isso. Três homens armados. E Doe havia adquirido um pouco do excesso de confiança mais adolescente em relação ao truque do trailer tombado na estrada. Doe simplesmente agia como autoridade e os homens nos grupos que encontravam... quando havia homens... caíam direitinho. E eram fuzilados. Isto tinha funcionado como um encantamento.
- Dayna nos pediu para tentar escamotear nossas pílulas esta manhã - continuou Susan. - Eles também andavam meio descuidados em se certificar de que realmente as tomávamos. Além disso, sabíamos que esta manhã eles estariam ocupados em rebocar aquele trailer enorme até a estrada e virá-lo. Não contamos a todas. As únicas que estavam por dentro eram Dayna, Patty e Helen Roget... uma das garotas em que Ronnie atirou. E eu, claro. Helen disse: "Se eles nos pegarem tentando cuspir as pílulas na palma da mão vão nos matar." Dayna disse que nos matariam de qualquer modo, mais cedo ou mais tarde. E mais cedo só se tivéssemos sorte. Claro que sabíamos que era verdade. Portanto, assim fizemos.
- Tive que segurar a minha na boca por um bocado de tempo - disse Patty. - Estava começando a se dissolver na hora em que tive a chance de cuspi-la. - Ela olhou para Dayna. - Acho que Helen teve realmente de engolir a dela. Acho que foi por isso que estava tão lerda.
Dayna assentiu. Ela estava olhando para Stu com uma nítida calidez, o que deixou Frannie inquieta.
- Isto ainda teria funcionado se você não tivesse sacado o lance, meu camarada.
- Eu até que custei a sacar, assim parece - disse Stu. - Da próxima vez farei melhor. - Ele se levantou, foi até a janela e espiou lá fora. - Sabe, isto é metade do que me assusta - disse. - O quanto nós todos estamos sacando.
Fran gostou menos ainda da maneira simpática com que Dayna tratava Stu. Ela não tinha nenhum direito de parecer simpática depois de tudo que havia passado. E ela é muito mais bonita do que eu, apesar de tudo, pensou Fran. E também duvido que ela esteja grávida.
- Este é um mundo dos espertos, meu camarada - disse Dayna. - Ou você fica esperto ou morre.
Stu virou-se para fitá-la, na verdade vendo-a pela primeira vez. Fran sentiu uma estocada de pura agonia ciumenta. Eu esperei demais, pensou. Ah, meu Deus, eu cheguei e fiz isto, cheguei e esperei demais.
Ela por acaso relanceou para Harold e viu que ele estava sorrindo de maneira cautelosa, uma das mãos sobre a boca para ocultar o sorriso. Parecia um sorriso de alívio. De repente sentiu que gostaria de se levantar, caminhar casualmente até Harold e arrancar-lhe os olhos com as unhas.
Nunca, Harold!, ela gritaria ao fazer. Nunca!
Nunca?
Do diário de Fran Goldsmith
19 de julho de 1990
Ah, Senhor, o pior aconteceu! Nos livros, pelo menos, quando isso acontece a história termina, alguma coisa muda, mas na vida real parece continuar cada vez mais, como uma telenovela onde nada chega a uma conclusão. Talvez eu devesse me mexer para resolver a situação, assumir um risco, mas receio que aconteça algo entre eles e. Não se pode terminar uma frase com "e", mas tenho medo de colocar o que poderia vir depois da conjunção.
Deixe-me contar-lhe tudo, querido diário, mesmo não sendo tarefa agradável escrever isso. Odeio até mesmo pensar a respeito.
Glen e Stu foram até a cidade, que por acaso é Girard, Ohio, quase ao crepúsculo, em busca de comida, de preferência produtos concentrados e congelados desidratados. São fáceis de carregar e alguns dos concentrados são realmente saborosos. Mas, na minha opinião, todos os congelados desidratados têm o mesmo gosto, isto é, de excremento seco de peru. E quando foi que já se comeu excremento seco de peru para servir como base de comparação? Não esquente a cabeça, querido diário, algumas coisas jamais serão contadas, ah-ah!
Eles perguntaram se eu e Harold queríamos ir. Respondi que já andara de moto o suficiente por um dia, caso pudessem me dispensar. Harold disse que não, pois pretendia buscar água e botá-la para ferver. Provavelmente já estava armando seus planos. Lamento fazê-lo parecer tão calculista, mas na verdade ele é.
[Uma observação aqui: estávamos todos fantasticamente fartos de água fervida, que tem gosto ruim e é TOTALMENTE DESPROVIDA de oxigênio, porém Mark e Glen diziam que as fábricas e similares não tinham estado fechadas por tempo suficiente para que os córregos e rios se purificassem espontaneamente, em especial no nordeste industrial e no que chamavam de Cinturão da Ferrugem, de modo que pudessem dispensar a fervura. Todos mantínhamos a esperança de encontrar um amplo suprimento de água mineral engarrafada mais cedo ou mais tarde, e já deveríamos ter - assim diz Harold -, mas boa parte dela parece ter desaparecido misteriosamente. Stu acha que inúmeras pessoas concluíram que era a água de torneira que fazia todos adoecerem e estocaram um bocado de água mineral antes que morressem.]
Bem, Mark e Perion estavam em algum lugar, supostamente colhendo bagas silvestres para suplementar nossa dieta, talvez fazendo algo mais - eles eram bastante reservados sobre isso e palmas para eles, eu digo - e portanto fui primeiro colher lenha para um fogo e depois acendê-lo para a chaleira de água de Harold... e muito em breve ele voltou com uma (era bastante óbvio que ficara no riacho tempo suficiente para tomar um banho e lavar o cabelo). Colocou a chaleira, ou como quer que chame aquilo, sobre o fogo. Depois se aproximou e sentou a meu lado.
Estávamos sentados num tronco, falando de uma coisa e outra, quando ele me abraçou de súbito e tentou beijar-me. Eu disse tentou, e reconheço que foi bem-sucedido, pelo menos da primeira vez, já que eu estava desprevenida. Depois me afastei com um repelão - em retrospecto até que parece meio engraçado, embora eu ainda esteja dolorida - e caí para trás, fora do tronco. A queda enrugou as costas de minha blusa, arranhando cerca de 1 metro de pele. Soltei um grito. Dizem que a história se repete: foi muito parecido com aquela vez com Jess no píer, quando mordi a língua... nada que seja tão agradável para servir de consolo.
Em um segundo, Harold estava de joelhos diante de mim, perguntando se eu estava bem e enrubescendo até a raiz dos cabelos lavados. Harold tenta às vezes parecer tão gélido, tão sofisticado - ele sempre me lembra um jovem escritor estafado procurando constantemente aquele especial Sad Café na Margem Ocidental, onde pode gastar o dia falando sobre Jean-Paul Sartre e bebendo vinho barato -, mas por baixo, bem coberto, é um adolescente com um conjunto muito menos maduro de fantasias. Ou assim creio. Fantasias das matinês de sábado para a maior parte: Tyrone Power em O Capitão de Castela, Humphrey Bogart em Prisioneiro do Passado, Steve McQueen em Bullitt. Em tempos de estresse é sempre este lado dele que parece aflorar, talvez porque tenha reprimido isto severamente quando criança, não sei. De qualquer modo, quando ele regride a Bogie, só é bem-sucedido em recordar-me aquele sujeito que representou Bogie naquele filme com Woody Allen, Sonhos de um Sedutor.
Assim, quando ele se ajoelhou ao meu lado e perguntou "Você está bem, garota?", comecei a dar risadinhas contidas. Não é que a história se repete mesmo? Porém foi mais do que o humor da situação, você sabe. Se isso fosse tudo, eu poderia me conter. Não, foi mais no sentido da histeria. Aqueles sonhos ruins, a preocupação com o bebê, o que fazer com meus sentimentos por Stu, viajar o dia inteiro, a rigidez no corpo, o sofrimento, a perda de meus pais, tudo mudado para sempre... isto irrompeu em risos sufocados no início, depois evoluiu para gargalhadas histéricas que eu não conseguia conter.
- Qual é a graça? - perguntou Harold, levantando-se. Acho que era esperado que eu me contivesse a esta voz tão cheia de razões, mas então eu já parara de pensar em Harold e tinha na cabeça uma louca imagem do Pato Donald. O Pato Donald bamboleando através das minas da civilização ocidental e grasnando furiosamente: Qual é a graça, hã? Qual é a graça? Qual ê a porra da graça? Cobri o rosto com as mãos & simplesmente ri & solucei & ri até que Harold deve ter pensado que eu estava absolutamente pirada.
Após algum tempo, consegui parar. Enxuguei as lágrimas do rosto e quis pedir a Harold para verificar até que ponto minhas costas estavam machucadas. Mas não o fiz porque receava que ele interpretasse isso como uma LIBERDADE. Vida, liberdade e a caça a Frannie, oh-oh, não tem nada de engraçado.
- Fran - diz Harold. - Acho que é uma coisa muito difícil de dizer.
- Pois então talvez seja melhor não dizer - repliquei.
- Preciso dizer - ele responde, e comecei a perceber que não aceitaria uma negativa por resposta, a não ser que lhe fosse gritada. - Frannie - diz ele -, eu amo você.
Acho que eu sabia o tempo todo o que ele pretendia dizer. Seria mais fácil se apenas quisesse dormir comigo. O amor é mais perigoso do que apenas transar, de maneira que me vi numa sinuca. Como dizer não a Harold? Acho que só existe uma maneira, não importa a quem tenhamos de dizer.
- Eu não o amo, Harold - foi o que respondi.
O rosto dele se rachou em pedaços.
- É por causa dele, não é? - disse, e seu rosto se contorceu numa horrível careta. - É por causa de Stu Redman, não é?
- Não sei - respondi. Bem, tenho um temperamento que nem sempre consigo manter sob controle, herdado de minha mãe, imagino. Porém, no que se refere a Harold, preciso me esforçar femininamente. Ainda assim, podia senti-lo prestes a explodir.
- Eu sei. - A voz dele se tornara aguda, cheia de autocomiseração. - Eu sei, claro, no dia em que o encontramos eu já sabia. Não queria que viesse conosco porque sabia. E ele disse...
- O que foi que ele disse?
- Que não queria você! Que você podia ser minha!
- Simplesmente como dar a você um par de sapatos novos, certo, Harold?
Ele não respondeu, talvez percebendo que fora longe demais. Com um pouco de esforço recordei aquele dia em Fabyan. A reação instantânea de Harold a Stu foi a reação de um cachorro defendendo seu território de outro cachorro estranho que chega. Eu quase podia ver os pêlos se eriçando na nuca de Harold. Compreendi o que Stu disse: ele disse aquilo para nos tirar da categoria canina e nos recolocar na dos seres humanos. E não é que se trata realmente disso? Esta luta infernizante em que nos encontramos agora, quero dizer. Se não é isso, por que estamos nos incomodando em tentar ser decentes?
- Ninguém é dono de mim, Harold - falei.
Ele resmungou alguma coisa.
- Como disse?
- Eu disse que talvez você tenha que mudar de ideia.
Uma réplica brusca me veio à mente, mas não a deixei sair. Os olhos de Harold pareciam fitar ao longe, e seu rosto estava muito imóvel e franco. Ele disse:
- Já vi este tipo antes, pode crer, Frannie. Ele é o craque do time de futebol, mas que, quando está na sala de aula, fica o tempo todo atirando bolinhas de papel mascado e dando assobios, porque sabe que o professor irá aprová-lo, pelo menos com um C, para que ele possa continuar jogando. Ele é o cara que namora firme a chefe de torcida mais bonita e ela o considera o próprio Jesus Cristo com bala na agulha. O cara que peida quando o professor de inglês pede que você leia sua redação porque foi a melhor da classe. É isso aí, eu manjo bem esses escrotos como ele. Boa sorte.
Então ele se afastou. Não foi a GRANDIOSA E MAJESTOSA SAÍDA que pretendia, tenho quase certeza. Foi mais como se ele tivesse algum sonho secreto e eu o tivesse enchido de buracos de bala - o sonho sendo aquelas coisas que mudaram, a realidade não sendo mais nada do que tinha realmente sido. Senti-me terrivelmente mal por ele, juro por Deus, porque quando ele se retirou não estava simulando um cinismo exausto, mas sentindo um cinismo REAL, não exausto, mas aguçado & danoso como uma lâmina de faca. Ele estava fustigado. Ah, mas o que Harold nunca verá é que sua cabeça tem que mudar um pouco primeiro, ele precisa ver que o mundo vai permanecer o mesmo enquanto ele não mudar. Ele estoca rejeição tal como antigamente os piratas estocavam tesouros...
Bem. Agora todos estão de volta, o jantar comido, os cigarros fumados, o Veronal distribuído (o meu está no bolso em vez de dissolvendo-se no estômago), as pessoas se deitando. Harold e eu tivemos uma dolorosa confrontação que me deixou com a sensação de que nada realmente foi resolvido, exceto que ele está de olho em mim e em Stu para ver o que acontece a seguir. Isto me deixa irritada e inutilmente furiosa para escrever isto. Que direito tem ele de ficar nos observando? Que direito tem ele de complicar esta infeliz situação em que estamos?
Coisas para recordar, sinto muito, diário. Deve ser meu estado mental. Não consigo recordar coisa alguma.
Quando Frannie chegou perto dele, Stu estava sentado numa pedra, fumando um charuto. Com o salto da bota ele fizera um pequeno círculo na terra batida, que usava como cinzeiro. Olhava para oeste, onde o sol já estava se pondo. As nuvens se haviam movido o suficiente para permitir que o sol vermelho espiasse por entre elas. Embora somente no dia anterior tivessem conhecido as quatro mulheres que se integraram ao grupo, isto já parecia distante. Haviam conseguido tirar uma das caminhonetes da vala sem grande dificuldade e agora, com as motocicletas, formavam uma boa caravana enquanto se moviam para oeste através do posto de pedágio.
O cheiro do charuto de Stu fez Frannie lembrar do pai com seu cachimbo. O que lhe veio à memória foi uma tristeza que quase se dissolvia em nostalgia. Estou conseguindo superar sua perda, papai, pensou ela. Creio que você não se incomodaria.
Stu olhou em torno.
- Frannie! - exclamou com autêntico prazer. - Como está?
Ela deu de ombros.
- Vou indo aos trancos e barrancos.
- Quer um pedaço da minha pedra para apreciar o pôr do sol?
Ela juntou-se a ele, seu coração acelerando um pouco. Mas, afinal, por que outro motivo viera até ali? Sabia que direção ele tomara ao deixar o acampamento, tal como sabia que Harold, Glen e duas das moças tinham ido a Brighton procurar um rádio da faixa do cidadão (ideia de Glen em vez de Harold, para variar). Patty Kroger ficara no acampamento cuidando de suas pacientes com fadiga de combate. Shirley Hammet mostrava alguns indícios de sair de seu aturdimento, mas acordara todos eles esta manhã, gritando no sono, as mãos crispadas ferindo o ar em gestos defensivos. A outra mulher, aquela sem nome, parecia estar indo em outra direção. Ficava sentada. Só comia se fosse alimentada. Só realizava as funções fisiológicas. Não respondia a perguntas. Na verdade só voltava à vida no sono. Mesmo com uma dose pesada de Veronal, ela com frequência gemia e às vezes berrava. Frannie achava saber com o que a pobre mulher estava sonhando.
- Parece que ainda temos muito caminho pela frente, não é? - perguntou Fran.
Ele não respondeu por um momento. Depois disse:
- É mais longo do que pensamos. Aquela velha, ela não está mais em Nebraska.
- Eu sei... - começou Frannie e se interrompeu.
Ele a olhou de relance, com um ligeiro sorriso.
- Você não esteve tomando seu remédio, madame.
- Meu segredo foi descoberto - replicou ela, sorrindo sem jeito.
- Não somos os únicos - disse Stu. - Estive falando com Dayna esta tarde. - Frannie sentiu uma pontada de ciúme, e medo, ante a familiaridade com que ele pronunciava o nome dela. - E fiquei sabendo que nem ela nem Susan quiseram tomá-lo.
Fran assentiu.
- Por que você parou? Eles o drogaram... naquele lugar?
Ele bateu as cinzas no seu cinzeiro de terra.
- Sedativos brandos à noite, isso foi tudo. Eles não tinham necessidade de me dopar. Eu estava muito bem trancado. Bem, parei de tomar o remédio três noites atrás porque me sentia... desligado. - Ele meditou por um momento, depois prosseguiu: - Foi mesmo uma boa ideia Glen e Harold irem atrás desse rádio FC. Para que serve um emissor-receptor? Para ficarmos em contato. Um amigo meu lá de Arnette, Tony Leominster, tinha um no seu Scout. Grande engenhoca! A gente pode falar com as pessoas, pode pedir socorro quando enfrenta algum problema. Esses sonhos... Bem, eles são como um FC na cabeça, só que a transmissão parece estar avariada e a gente apenas recebe.
- Talvez estejamos transmitindo - disse Fran baixinho.
Ele a fitou com espanto.
Ficaram sentados em silêncio por um momento. O sol espreitava por entre as nuvens, como se para dizer um rápido até breve antes de afundar além do horizonte. Fran podia compreender por que os povos primitivos veneravam o sol. À medida que a gigantesca quietude da região quase deserta acumulava-se sobre ela dia a dia, imprimindo-lhe no cérebro sua própria verdade pelo próprio peso, o sol - e também a lua, por falar nisso - começou a parecer maior e mais importante. Mais pessoal. Aquelas brilhantes naves celestes começavam a parecer como tinham sido em nossa infância.
- De qualquer modo, parei com o remédio - disse Stu. - E esta noite tornei a sonhar com aquele homem escuro. Foi o pior sonho de todos. Ele está se estabelecendo em algum lugar no deserto. Las Vegas, acho. E Frannie... acredito que ele esteja crucificando pessoas. Aqueles que lhe causam problemas.
- Ele está fazendo o quê?
- Foi o que sonhei. Filas de cruzes ao longo Auto-Estrada 15, feitas com vigas de celeiro e postes telefônicos. Com gente pendendo delas.
- Foi apenas um sonho - replicou ela, inquieta.
- Talvez. - Ele baforou o charuto e olhou para oeste, para as nuvens tingidas de vermelho. - No entanto, faz duas noites, pouco antes de acabarmos com aqueles maníacos que aprisionavam as mulheres, sonhei com ela... a mulher que diz chamar-se Abigail. Estava sentada na cabine de uma velha picape estacionada à margem da Auto-Estrada 76. Eu estava de pé do lado de fora, um braço apoiado na janela, conversando com ela tão naturalmente como falo com você agora. E ela diz: "Você tem que andar um pouco mais rápido, Stuart; se uma velha como eu consegue fazê-lo, um grandalhão do Texas como você também não será capaz?" - Stu riu, jogou fora o charuto e esmagou-o com o salto da bota. De maneira ausente, como se não percebesse o que fazia, pôs um braço nos ombros de Fran.
- Eles estão indo para o Colorado - disse ela.
- Ah, sim, acho que estão.
- Será que... Dayna ou Susan sonhavam com ela?
- As duas. E esta noite Susan sonhou com as cruzes. Tal como eu.
- Há muita gente com essa velha agora.
Stu concordou.
- Umas vinte pessoas, talvez mais. Você sabe, estamos passando por gente quase todos os dias. Eles apenas se escondem, esperando que nos afastemos. Têm medo de nós, mas ela... suponho que todos irão ao encontro dela. Cada um no seu momento.
- Ou então ao encontro do outro - disse Frannie.
Stu assentiu.
- É, dele. Fran, por que parou de tomar o Veronal?
Ela soltou um trêmulo suspiro e imaginou se deveria contar a Stu. Queria contar, mas temia a reação dele.
- Ninguém pode prever o que fará uma mulher - respondeu por fim.
- Ninguém - concordou ele. - Mas há meios de descobrirmos, talvez, o que estão pensando.
- O que... - começou ela, mas Stu tapou-lhe a boca com um beijo.
Ficaram deitados na relva ao final do crepúsculo. O vermelho vivo do céu cedera lugar a um púrpura mais frio enquanto faziam amor, e agora Frannie podia ver estrelas brilhando através das últimas nuvens. Viajariam com bom tempo amanhã. Com um pouco de sorte conseguiriam cruzar a maior parte do estado de Indiana.
Stu enxotou preguiçosamente um mosquito que voejava sobre seu tórax. Havia pendurado a camisa num arbusto próximo. Fran continuava de blusa, porém desabotoada. Seus seios apertavam-se contra o tecido, e ela pensou: Estou ficando maior, apenas um pouquinho por enquanto, mas já é perceptível... pelo menos para mim.
- Há muito tempo que venho desejando você - disse Stu sem olhar diretamente para ela. - Acho que sabia disso.
- Eu quis evitar confusões com Harold - replicou ela. - E há também uma coisa que...
- Harold ainda precisa amadurecer um bocado - disse Stu. - Mas ele tem o estofo para tornar-se um homem e tanto, se enrijecer. Você gosta dele, não?
- A palavra não é bem essa. Não existe uma palavra adequada em inglês para explicar o que sinto por Harold.
- E o que sente por mim?
Frannie olhou para ele e achou impossível dizer que o amava. Não podia dizer isto agora, embora o desejasse.
- Não - disse Stu, como se ela o houvesse contradito. - Eu só quero esclarecer as coisas. Acho que por enquanto você preferiria deixar Harold ignorando o que se passa, não é?
- Sim - disse ela, grata.
- Então tudo bem. Se formos discretos, a situação se resolverá por si mesma. Vi Harold olhando para Patty. São quase da mesma idade.
- Não sei se...
- Você sente uma dívida de gratidão para com ele, certo?
- Acho que sim. Éramos apenas nós dois quando saímos de Ogunquit, de maneira que...
- Foi pura sorte, Frannie, nada mais. Você não vai querer deixar alguém colocá-la em débito por alguma coisa que foi pura sorte.
- Suponho que sim.
- Acho que a amo - disse ele. - Não é muito fácil para mim confessar isto.
- Acho que também o amo. Porém há algo mais que...
- Eu sei.
- Você me perguntou por que parei de tomar os comprimidos. - Ela ficou remexendo na blusa, sem ousar olhar para ele. Tinha os lábios incomumente secos. - Pensei que podiam prejudicar o bebê - sussurrou.
- Prejudicar o... - Interrompeu-se. Depois a agarrou e a fez virar-se para encará-lo. - Você está grávida!
Ela assentiu.
- E não contou a ninguém?
- Não.
- Harold. Ele sabe?
- Ninguém a não ser você.
- Deus do céu - disse e fitou-a no rosto de uma maneira concentrada que a assustou. Ela havia imaginado uma ou duas coisas: Stu a deixaria imediatamente (como Jess sem dúvida teria feito se soubesse que ela estava grávida de outro homem) ou a abraçaria, lhe diria para não se preocupar, que ele cuidaria de tudo. Jamais esperara aquele escrutínio atônito e tão intenso, e viu-se recordando a noite em que contara a seu pai na horta. O olhar dele tinha sido muito parecido com este agora. Gostaria de ter contado a Stu qual era a sua situação antes de terem feito amor. Talvez eles sequer tivessem feito amor, afinal, mas pelo menos ele não acharia que, de algum modo, tivesse se aproveitado do fato de ela ser... como era a velha expressão? Mercadoria danificada. Estaria ele pensando isso? Ela simplesmente não sabia.
- Stu? - murmurou em voz amedrontada.
- Você não contou a ninguém - repetiu ele.
- Eu não sabia como. - Estava à beira das lágrimas agora.
- Para quando será?
- Janeiro - disse ela e as lágrimas chegaram.
Ele a abraçou e a deixou saber que tudo estava bem sem proferir uma única palavra. Não falou que ela não se preocupasse ou que ele cuidaria de tudo, mas tornou a fazer amor com ela e Frannie pensou que nunca se sentira tão feliz.
Nenhum dos dois viu Harold, tão espectral e silencioso como o próprio homem escuro, em pé atrás dos arbustos e olhando para eles. Tampouco souberam que seus olhos apertaram-se em pequenos e mortais triângulos quando Fran gritou de prazer no final, enquanto um bom orgasmo irrompia através dela.
Quando terminaram, a escuridão já era total.
Harold se esgueirara para fora dali silenciosamente.
Do diário de Fran Goldsmith
1º de agosto de 1990
Nada pude anotar a noite passada por estar tão excitada, tão feliz. Stu e eu estamos juntos.
Ele concordou que seria melhor manter em segredo o meu Zorro pelo maior tempo possível, de preferência até nos assentarmos. Se for no Colorado, tudo bem para mim. Do modo como me sinto esta noite, até as montanhas da lua seriam uma boa para mim. Estou parecendo uma colegial deslumbrada? Bem, se uma dama não pode parecer uma colegial deslumbrada no seu diário, onde é que poderia?
Mas devo dizer outra coisa antes de cair no assunto do Zorro. Tem a ver com meu "instinto maternal". Isso existe? Acho que sim. É provavelmente hormonal. Já faz algumas semanas que não venho sentindo o meu velho eu, mas é difícil separar as mudanças causadas por minha gravidez das mudanças causadas pelo terrível desastre que atingiu o mundo. Mas EXISTE certa sensação de ciúme ("ciúme" não é realmente a palavra exata, mas é a que mais se aproxima da palavra correta esta noite), uma sensação de que cheguei mais perto do centro do universo e de que devo proteger minha posição lá. É por isso que o Veronal parece um risco maior do que os pesadelos, embora minha mente racional acredite que o medicamento não prejudicaria o bebê, afinal - pelo menos não nos baixos níveis que os outros vinham mantendo. E suponho que esse sentimento de triunfo seja também parte do amor que sinto por Stu Redman. Sinto que estou amando, bem como comendo, por dois.
Por outro lado, devo ser rápida. Preciso de sono, não importa que sonhos possam vir. Não tínhamos feito todo o caminho através do estado de Indiana tão rápido como esperávamos - fomos atrasados por um terrível engavetamento de veículos perto do trevo de Elkhart. Boa parte dos veículos era do Exército. Havia soldados mortos. Glen, Susan Stern, Dayna e Stu recolheram o máximo de armamento que puderam, cerca de vinte fuzis, algumas granadas e - sim, meus camaradas, é verdade - um lança-foguetes. À hora em que escrevo, Stu e Harold estão tentando montar o armamento, que dispõe de 17 ou 18 foguetes. Queira Deus que não explodam junto com eles.
Por falar em Harold, devo dizer-lhe, querido diário, que ele NEM DE LEVE DESCONFIA (parece uma fala tirada de um velho filme de Bette Davis, não é?). Quando nos juntarmos ao grupo de Mãe Abagail suponho que lhe diremos; não seria justo esconder-lhe por mais tempo, haja o que houver.
Mas hoje ele está mais radiante e mais caloroso do que jamais o vi. Ele riu tanto que achei que seu rosto ia rachar! Foi ele quem sugeriu que Stu o ajudasse com aquele perigoso lança-foguete e...
Mas eis que voltam agora. Terminarei depois.
Frannie dormiu pesadamente e sem sonhos. O mesmo ocorreu com todos eles, exceto Harold Lauder. Pouco depois da meia-noite, ele se levantou e caminhou cautelosamente até onde Frannie se deitara e ficou olhando-a. Não sorria agora, embora o tivesse feito o dia inteiro. Em certos momentos ele achara que o sorriso racharia seu rosto pelo meio, fazendo seu cérebro turbilhonante esguichar para fora. Sem dúvida, isso teria sido um alívio.
Ficou ali em pé olhando para ela, ouvindo o cricrilar dos grilos de verão. Estamos agora nos dias de canícula, pensou. Os dias de canícula, que iam de 25 de julho a 28 de agosto. Ou dias de cão, segundo o dicionário Webster, porque se supunha que nessa época eram mais comuns os casos de raiva canina. Olhou para Fran dormindo docemente, usando o suéter como travesseiro, a mochila ao lado dela.
Todo cão tem seu dia, Frannie.
Ajoelhou-se, ficando gelado ao ouvir os estalos nas rótulas, mas ninguém se mexeu. Desafivelou a mochila de Fran, distendeu os cordéis que a fechavam e enfiou a mão. Dirigiu o facho de uma pequena lanterna-caneta para o conteúdo da mochila. Frannie murmurou algo na profundidade de seu sono, remexeu-se, e Harold susteve a respiração. Encontrou o que queria quase no fundo, atrás de três blusas limpas e um surrado mapa rodoviário de bolso. Um caderno espiral de notas. Puxou-o para fora, abriu na primeira página e jogou a luz sobre a caligrafia apertada mas bastante legível de Frannie.
6 de julho de 1990 - Após um pouco de persuasão, o Sr. Bateman concordou em vir conosco...
Harold fechou o caderno e voltou sorrateiramente para o seu saco de dormir, levando-o consigo. Sentia-se o garotinho que fora um dia, o garotinho com poucos amigos (ele saboreara um breve período de beleza quando bebê, até mais ou menos os três anos, para desde então tornar-se uma feia e gorda piada), porém muitos inimigos, o menino que os pais deixaram mais ou menos entregue à própria sorte - os olhos deles concentravam-se em Amy, enquanto ela iniciava a longa caminhada de Miss América/ Atlantic City, na passarela de sua vida -, o menino que se voltara para os livros como consolo, o menino que nunca era escolhido para o time de beisebol ou que sempre era preterido na Patrulha Escolar para tornar-se Long John Silver, Tarzan ou Philip Kent... o menino que se tornara essas pessoas tarde da noite, debaixo das cobertas, com uma lanterna apontada para a página impressa, os olhos dilatados de excitação, mal sentindo o cheiro dos próprios gases; esse menino agora rastejava para o fundo de seu saco de dormir, com o diário de Frannie e sua lanterna de bolso.
Quando dirigiu o facho da lanterna para a capa do caderno, houve um instante de lucidez. Por um breve momento, parte de sua mente gritou Harold! Pare!, tão vigorosamente que ele estremeceu de alto a baixo. E quase parou. Por um rápido momento pareceu possível parar, recolocar o diário onde o encontrara, desistir dela, deixar que eles seguissem seu próprio caminho antes que algo terrível e irrevogável acontecesse. Nesse momento pareceu que ele conseguira afastar a bebida amarga, despejar sua taça e tornar a enchê-la com o que quer que lhe fora reservado neste mundo. Desista, Harold, pediu a voz lúcida, porém talvez já fosse tarde demais.
Aos l6 anos, ele desistira de Burroughs, Stevenson e Robert Howard em favor de outras fantasias, fantasias que tanto eram amadas como odiadas - não de foguetes ou piratas, mas de garotas em pijamas de seda transparentes, ajoelhadas diante dele em almofadas de cetim, enquanto Harold o Grande se refestelava nu em seu trono, pronto para açoitá-las com chicotes de couro com pontas de castão de prata. Eram amargas fantasias, protagonizadas por todas as garotas bonitas do ginásio de Ogunquit que perambulavam de vez em quando. Esses devaneios sempre terminavam com um acúmulo expletivo em seus rins, uma explosão de fluido seminal que era mais maldição do que prazer. Então ele dormia, o esperma secando escamosamente sobre o seu ventre. Todo cão tem seu dia.
E agora eram aquelas amargas fantasias, as velhas feridas que ele amontoava à sua volta como lençóis amarelados, os velhos amigos que nunca morriam, cujos dentes nunca perdiam o fio, cuja devoção intensa jamais vacilava.
Harold virou a primeira página, apontou o facho da lanterna e começou a ler.
Pouco antes do amanhecer, recolocou o diário na mochila de Fran e tornou a afivelá-la. Não tomou precauções especiais. Se ela acordasse, pensou friamente, ele a mataria e depois fugiria. Fugir para onde? Oeste. Não pararia em Nebraska ou mesmo no Colorado. Nada disso.
Ela não acordou.
Harold voltou para o seu saco de dormir. Masturbou-se amargamente. Quando o sono chegou, foi leve. Sonhou que estava morrendo na metade de uma íngreme encosta de rochas desprendidas e montículos de paisagem lunar. Muito alto, voejando nas correntes termais da noite, abutres esperavam por ele, que lhes serviria de refeição. Não havia lua nem estrelas.
Então, um apavorante Olho vermelho se abriu no escuro; vulpino, sobrenatural. O Olho o aterrorizou, mas também atraiu. O Olho o convidou.
Para oeste, onde as sombras estavam agora mesmo se reunindo, em sua crepuscular dança da morte.
Quando acamparam, ao pôr do sol daquele dia, estavam a oeste de Joliet, Illinois. Beberam uma caixa de cerveja, conversaram animadamente, riram. Sentiam que haviam deixado a chuva para trás, em Indiana. Todos repararam especialmente em Harold, que nunca se mostrara tão alegre.
- Sabe de uma coisa, Harold? - disse Frannie mais tarde, quando a reunião começou a dissolver-se. - Acho que nunca o vi tão animado. O que está havendo?
Ele lhe deu uma piscadela alegre.
- Todo cão tem seu dia, Fran.
Ela sorriu de volta para ele, um tanto intrigada. Mas supôs que era o Harold de sempre, sendo enigmático. Não importava. O que interessava era que as coisas finalmente começavam a entrar nos eixos.
Nessa noite, Harold começou o seu próprio diário.
CHEGOU CAMBALEANDO E ARQUEJANDO ao alto da comprida e íngreme ladeira, o calor do sol cozinhando-lhe o estômago e assando-lhe o cérebro. A interestadual tremeluzia com o calor radiante refletido. Um dia ele tinha sido Donald Merwin Elbert, agora era o Homem da Lata de Lixo para todo o sempre, e contemplou a cidade lendária, Cibola, a Sete-em-Uma.
Por quanto tempo estivera viajando para oeste? Por quanto tempo desde O Garoto? Deus deveria saber; o Homem da Lata de Lixo, não. Tinha durado dias. Noites. Ah, ele se lembrava das noites!
Ficou parado, envolto em seus trapos olhando para baixo, para Cibola, a Cidade Prometida, Cidade dos Sonhos. Ele era um destroço. O pulso que havia quebrado ao pular o gradil da escada que circundava o reservatório da Cheery Oil, ainda não sarado de todo, era uma protuberância grotesca envolvida em ataduras sujas e esfiapadas. Todos os ossos dos dedos daquela mão tinham se encolhido de alguma maneira, transformando-a em uma garra de Quasímodo. O braço esquerdo era uma massa de tecido queimado do cotovelo ao ombro, em lenta cicatrização. Não estava mais supurando nem cheirava mal, porém a carne nova se apresentava sem pêlos e rosada, como a pele de uma boneca barata. Seu rosto sorridente de louco estava queimado de sol, descascando e ficando barbado, coberto de cicatrizes produzidas pelo tombo que levara da bicicleta, quando a roda dianteira se soltara do resto da estrutura. Usava uma desbotada camisa azul, marcada por crescentes círculos de manchas de suor, e calças imundas de brim. Sua mochila, que tinha sido nova não muito tempo atrás, agora assumira o estilo e a substância do dono - uma alça se rompera, Lata de Lixo a amarrara o melhor possível e agora ela lhe pendia das costas enviesadamente, como a persiana de uma casa mal-assombrada. Estava empoeirada, as dobras cheias de areia do deserto. Calçava tênis de cano longo, agora amarrados com pedaços de barbante, e deles subiam os tornozelos sem meias, arranhados e sujos de areia.
Ele contemplou a cidade, muito além e abaixo. Ergueu o rosto para o inóspito céu de cor cinza-chumbo e para o sol abrasador que o envolvia com o calor de uma fornalha. Gritou. Foi um grito selvagem e triunfante, muito parecido com aquele que Susan Stern soltara ao rachar o crânio de Roger Rabbit com a coronha da sua própria espingarda.
Começou a executar uma dança vitoriosa, arrastando os pés na superfície quente e tremeluzente da Interestadual 15, enquanto o vento siroco do deserto soprava areia através da rodovia e os picos azuis das cordilheiras Pahranagat e Spotted serrilhavam os dentes indiferentemente contra o céu brilhante, como vinham fazendo por milênios. Do outro lado da rodovia, um Lincoln Continental e um T-Bird estavam quase sepultados na areia, seus ocupantes mumificados por trás dos vidros de segurança. Mais adiante, do lado de Lata de Lixo, havia uma picape capotada, toda coberta, com exceção das rodas e painéis da carroceria.
Ele dançou. Seus pés, enfiados nos tênis surrados e deformados, tamborilavam na auto-estrada numa espécie embriagada de jiga. A fralda esfarrapada da camisa agitava-se ao vento. O cantil chocalhava contra a mochila. As pontas esfiapadas das ataduras flutuavam ao quente hálito do vento. A pele queimada, lisa e rosada, reluzia cruamente. Veias parecendo molas de relógio se avolumavam nas suas têmporas. Agora fazia uma semana que estava na frigideira de Deus, movendo-se para sudoeste através de Utah e da parte superior do Arizona, para então entrar em Nevada. Estava tão louco quanto o chapeleiro de Alice.
Ele cantava monotonamente enquanto dançava, repetindo sempre as mesmas palavras de uma canção que tinha sido muito popular na época em que ficara internado em Terre Haute. Era uma canção chamada "Down to the Nightclub", de autoria de um grupo negro conhecido como Tower of Power. As palavras, no entanto, eram dele próprio. Cantou:
- Ci-a-bola, Ci-a-bola, bam-bam, bam-bam, bam! Ci-a-bola, Ci-a-bola, bam-bam, bam! - Cada bam! era seguido por um pequeno salto, até que por fim o calor fez tudo girar, o céu de um azul berrante adquiriu um cinza crepuscular e ele caiu na estrada quase desfalecido, o coração sobrecarregado batendo loucamente no peito árido. Com o resto de suas forças, balbuciando e rindo, ele arrastou-se até a picape capotada e deitou-se em sua reduzida sombra, tremendo ao calor e ofegando.
- Cibola! - grasnou. - Bam-bam-bam!
Tirou o cantil do ombro com a sua garra e o sacudiu. Estava quase vazio. Não importava. Beberia até a última gota e ficaria ali até o sol se pôr. Depois desceria a rodovia até Cibola, a cidade lendária, a Sete-em-Uma. Esta noite beberia das fontes perenes folheadas a ouro. Mas não até que o sol assassino se fosse. Deus era o maior incendiário de todos. Muito tempo atrás, um garoto chamado Donald Merwin Elbert havia tacado fogo no cheque de pensão da velha Sra. Semple. Esse mesmo garoto incendiara a Igreja Metodista em Powtanville, e nada restara de Donald Merwin Elbert nessa carapaça, ele tinha certamente sido cremado junto com os tanques de óleo em Gary, Indiana. Dúzias deles, e tinham voado pelos ares como uma girândola de fogos de artifício, e bem a tempo do Quatro de Julho, também. Lindo. E na esteira dessa conflagração só restara o Homem da Lata de Lixo, seu braço esquerdo um cozido rachado e em ebulição, um fogo dentro de seu corpo que jamais iria sair... pelo menos não até que seu corpo estivesse tão enegrecido como carvão.
E esta noite beberia a água de Cibola, sim, e ela teria sabor de vinho.
Ele virou o cantil e sua garganta deglutiu o que restava da água, morna e insossa, que desceu gorgolejando para o estômago. Feito isso, atirou o cantil no deserto. O suor brotava de sua testa como orvalho. Ele ficou tremendo deliciosamente com a cãibra da água ingerida.
- Cibola! - murmurou. - Cibola! Estou chegando! Farei o que você quiser! Minha vida por você! Bam-bam-bam!
A sonolência começava a invadi-lo agora que a sede fora um pouco saciada. Estava quase dormindo quando um pensamento polar deslizou através do fundo de sua mente como a lâmina gélida de um estilete.
E se Cibola tivesse sido uma miragem?
- Não - murmurou. - Nã-nã-não.
No entanto, a simples negação não expulsou o pensamento. A lâmina espetava e sondava, mantendo o sono afastado. E se tivesse bebido sua última água, comemorando uma miragem? À sua própria maneira reconheceu sua loucura, que isto é o tipo de coisa que só uma pessoa louca faz, claro. Se houvesse sido uma miragem, morreria ali no deserto para ser jantado pelos abutres.
Por fim, incapaz de suportar por mais tempo a hedionda possibilidade, levantou-se penosamente e retornou à estrada, lutando contra as ondas de desfalecimento e náusea que queriam subjugá-lo. No sopé da colina olhou ansiosamente para a extensa e nivelada planície abaixo, pontilhada de iúcas, amarilhos e mantilhas-do-diabo. Sua respiração ficou presa na garganta e desprendeu-se num suspiro, como uma manga de tecido sobre um espigão.
Estava lá!
Cibola, tornada lenda pelo antigos, procurada por muitos, mas descoberta pelo Homem da Lata de Lixo!
Muito abaixo no deserto e circundada por montanhas azuis, ela própria azulada pela névoa da distância, suas torres e avenidas cintilando no dia do deserto. Havia palmeiras... ele podia ver palmeiras... e movimento... e água!
- Ah, Cibola... - cantarolou e cambaleou de volta para a sombra da picape. Estava mais distante do que parecia, ele sabia disso. Esta noite, depois que a tocha de Deus abandonasse o céu, ele iria caminhar como jamais caminhara antes. Alcançaria Cibola e seu primeiro ato seria mergulhar de cabeça na primeira fonte que encontrasse. Então encontraria ele, o homem que o convocara para vir aqui. O homem que o atraíra através de planícies e montanhas e, finalmente, para o deserto.
Aquele que É - o homem escuro, o incorrigível. Ele aguardava o Homem da Lata de Lixo em Cibola, e dele eram os exércitos da noite, dele eram os cavaleiros dos mortos de rosto pálido que irrompiam do oeste para a própria face do sol nascente. Chegariam furiosos e rindo, cheirando a suor e pólvora. Haveria gritos, mas Lata de Lixo pouco ligava para gritos; havia estupro e dominação, coisas para as quais ligava ainda menos; haveria assassinatos, mas isso era imaterial...
... e haveria um Grande Incêndio.
Isso era o que mais importava para ele. Nos sonhos o homem escuro lhe aparecia e abria os braços, de pé em um lugar alto, mostrando a Lata de Lixo um país em chamas. Cidades explodindo como bombas. Lavouras transformadas em fileiras de fogo. Os próprios rios de Chicago, Pittsburgh, Detroit e Birmingham estavam incandescentes com petróleo flutuando sobre suas águas. E o homem escuro dissera-lhe uma coisa muito simples nos seus sonhos, uma coisa que o mantivera em movimento: Eu lhe darei um alto posto em minha artilharia. Você é o homem que quero.
Ele virou de lado, a face e as pálpebras escoriadas, irritadas pela areia soprada pelo vento. Estivera perdendo a esperança - sim, vinha perdendo a esperança desde que a roda se desprendera de sua bicicleta. Afinal de contas, parecia que Deus, o Deus dos xerifes-matadores-de-pais, o Deus de Carley Yates, era mais forte do que o homem escuro, afinal, ao que parecia. Ainda assim, ele mantivera a fé e continuava em frente. Por fim, quando tudo indicava que iria morrer tostado naquele deserto antes mesmo de chegar a Cibola, onde o homem escuro o esperava, conseguira avistá-la, muito além e abaixo, sonhando ao sol.
- Cibola! - sussurrou e dormiu.
Tivera o primeiro daqueles sonhos em Gary, mais de um mês atrás, depois de haver queimado seu braço. Fora dormir aquela noite certo de que estava à beira da morte; ninguém podia queimar-se até aquele ponto e continuar vivo. Um refrão se repetia dentro de sua cabeça: Viva pela tocha, morra pela tocha. Viva por ela, morra por ela.
Suas pernas entregaram os pontos num parque de cidade pequena e ele tinha caído, seu braço esquerdo estatelado e afastado dele como uma coisa morta, a manga da camisa queimada. A dor era gigantesca, incrível. Ele jamais sonhara que existisse semelhante dor no mundo. Estivera correndo alegremente de um conjunto de tanques para o seguinte, fixando rústicos artefatos de tempo, cada um construído de um tubo de aço e uma mistura de parafina inflamável, separada de uma pequena quantidade de ácido por uma lingüeta de aço. Ele tinha enfiado esses artefatos nos canos de esgotamento no topo dos tanques. Quando o ácido corroesse o aço, a parafina entraria em ignição, o que causaria a explosão dos tanques. Ele havia planejado situar-se no lado oeste de Gary, perto da confusão de trevos que levavam a várias estradas na direção de Chicago ou Milwaukee, antes que qualquer um deles explodisse. Queria assistir ao espetáculo enquanto toda a cidade imunda fosse pelos ares numa tormenta de fogo.
Mas regulara ou construíra mal o último artefato, que se incendiara enquanto ele trabalhava na abertura da tampa do cano de esgotamento com uma chave de grifo. Houvera um ofuscante clarão branco cegante quando a parafina em combustão foi vomitada do tubo, cobrindo de fogo seu braço esquerdo. Aquilo não era nenhum envoltório indolor de fluido de isqueiro, para ser agitado no ar e depois jogado fora como um fósforo grande. Era uma agonia equivalente a enfiar o braço dentro de um vulcão.
Berrando, ele correra loucamente ao redor do topo do tanque, batendo no gradil que chegava até a cintura como um pino de boliche humano. Se o gradil não estivesse lá, ele teria mergulhado pela borda e caído de ponta-cabeça, como uma tocha caída num poço. Apenas um acaso salvou sua vida; seus pés se emaranharam um no outro e ele caiu com o braço esquerdo preso debaixo do corpo, apagando as chamas.
Sentou-se, ainda semi-enlouquecido de dor. Mais tarde pensaria que somente a pura sorte - ou o desígnio do homem escuro - o salvara de morrer queimado. A maioria do jato de parafina tinha errado o alvo. Por isso ele estava agradecido - mas seu agradecimento veio mais tarde. Na hora só pôde gritar e rolar de um lado para outro, mantendo o braço crispado afastado do corpo, enquanto a pele fumegava, rachava e se contraía.
Vagamente, enquanto a luz se desvanecia do céu, ocorreu-lhe que já havia instalado uma dúzia de artefatos de tempo, que entrariam em ação a qualquer momento. Morrer e livrar-se daquele sofrimento intenso seria maravilhoso; morrer devorado pelas chamas seria o horror absoluto.
De algum modo arrastara-se até a base do tanque e se afastara cambaleando, indo de um lado para outro entre o tráfego morto, mantendo o braço esquerdo "churrasqueado" afastado do corpo.
Quando chegou a um pequeno parque, perto do centro da cidade, já era crepúsculo. Sentou-se na grama entre duas quadras para jogo de amarelinha, tentando pensar no que fazer em relação às queimaduras. Passe manteiga nelas, era o que teria dito a mãe de Donald Merwin Elbert. Mas isto era para pele escaldada ou quando o bacon fritando espirrava muito alto e salpicava a gente com gordura quente. Ele não conseguia se imaginar passando manteiga em cima da mixórdia rachada e enegrecida entre seu cotovelo e ombro; nem sequer podia imaginar-se tocando-a.
Mate-se. Era isto, esta era a solução. Ele mesmo acabaria com seu sofrimento, como um cachorro velho...
Houve uma súbita e gigantesca explosão no lado leste da cidade, como se o tecido de sua existência tivesse sido rasgado ao meio bruscamente. Um pilar líquido de fogo disparou para cima contra o crescente azul-índigo do crepúsculo. Ele apertou os olhos até lacrimejarem, em fendas de protesto contra isso.
Mesmo em sua agonia, o fogo lhe foi agradável... mais ainda, deixou-o deliciado, realizado. O fogo era o melhor remédio, melhor ainda do que a morfina que encontrara no dia seguinte (pelo seu bom comportamento na prisão ele havia trabalhado na enfermaria, bem como na biblioteca e na oficina mecânica, de modo que tinha conhecimento sobre morfina, Elavil e o Complexo Darvon). Não relacionou sua presente agonia com o pilar de fogo. Sabia apenas que o fogo era bom, o fogo era lindo, o fogo era algo de que necessitava e sempre necessitaria. Maravilhoso fogo!
Momentos depois, explodiu um segundo tanque, e mesmo ali, a 5 quilômetros de distância, podia sentir o calor e o deslocamento de ar. Outro tanque explodiu, depois mais um. Uma leve pausa, e então seis deles foram pelos ares em uma fileira chocalhante; a claridade lá era agora ofuscante demais para olhar, mas ele olhou assim mesmo, sorrindo, os olhos repletos de chamas amarelas, o braço ferido esquecido e esquecidos os pensamentos suicidas.
Todos eles levaram mais de duas horas explodindo e, a esta altura, a noite já caíra mas não havia escuridão, a noite era amarela e alaranjada, fabricante de chamas. Todo o arco oriental do horizonte dançava em fogo. Fez com que se lembrasse de um gibi de clássicos ilustrados que tivera na infância, uma adaptação de A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells. Agora, tantos anos depois, o garoto que possuíra esse gibi se fora, mas o Homem da Lata de Lixo estava aqui e era dono do maravilhoso e terrível segredo do raio da morte dos marcianos.
Era hora de deixar o parque. A temperatura já subira 10. Devia seguir para oeste, ficar adiante do fogo tal como fizera em Powtanville, distanciando-se do expansivo arco de destruição. Contudo, não estava em condições de correr. Assim, adormeceu sobre a grama e o brilho do fogaréu dançou sobre o rosto de uma criança cansada e maltratada.
No seu sonho apareceu o homem escuro no seu manto encapuzado, o rosto invisível... ainda assim, o Homem da Lata de Lixo achou que já tinha visto esse homem antes. Quando os fregueses da loja de doces e do bar lá em Powtanville o apupavam, parecia que esse homem encontrava-se entre eles, silencioso e pensativo. Quando trabalhava no lava-jato (ensaboar os faróis, abaixar os limpadores de pára-brisa, ensaboar os quebra-ventos, ei, chefe, quer que dê um polimento nisso?), usando a luva de esponja na mão direita até a mão dentro dela ficar parecendo um pálido peixe morto, as unhas tão brancas como marfim novo, tinha a sensação de ter visto o rosto desse homem, belicoso e sorrindo com alegria lunática por trás da gorgolejante camada de água rolando pelo pára-brisa abaixo. Quando o xerife o enviou para o hospício em Terre Haute, esse homem era o sorridente auxiliar de psiquiatria, em pé e com o rosto acima de sua cabeça na sala onde aplicavam os choques, as mãos sobre os controles (Vou fritar seu cérebro, garoto, ajudá-lo de modo que possa passar de Donald Merwin Elbert para o Homem da lata de Lixo, gostaria de um polimento nisso?), pronto para mil volts crepitando para dentro de seu cérebro. Ele conhecia muito bem esse homem escuro, com um rosto que nunca podia se ver inteiramente, as mãos hábeis no manuseio de todos os instrumentos num convés de espostejar baleias, os olhos além das chamas, o sorriso do além-túmulo do mundo.
- Farei o que você quiser - disse no sonho, agradecido. - Darei a vida por você!
O homem escuro erguera os braços dentro das vestes, dando ao seu manto o formato de uma pipa negra. Estavam em lugar muito alto e, abaixo deles, a América jazia em chamas.
Eu lhe darei um alto posto em minha artilharia. Você é o homem que quero.
Então ele viu um exército de 10 mil homens e mulheres, refugos de todo tipo, seguindo através do deserto para as montanhas, a besta brutal de um exército que vira finalmente que sua hora era chegada; eles lotavam caminhões, jipes, utilitários, trailers e tanques; cada um daqueles soldados usava uma pedra negra pendurada ao pescoço e, incrustada em algumas dessas pedras, havia uma forma vermelha que tanto podia ser um Olho quanto uma Chave. E na vanguarda, no alto de um gigantesco caminhão-tanque com pneus macios, ele viu a si mesmo e sabia que o veículo estava carregado de napalm gelatinoso... e atrás dele, em coluna, vinham caminhões carregados com bombas de pressão, minas Teller e explosivos plásticos; lança-chamas e foguetes de sinalização; mísseis rastreadores térmicos; granadas, metralhadoras e rampas para lançamento de foguetes. A dança da morte estava prestes a começar, e as cordas de violinos e guitarras estavam fumegando, e o odor de enxofre e cordite enchia o ar.
O homem escuro tornou a erguer os braços e quando os deixou cair tudo ficou frio e silencioso, o incêndio se foi, até mesmo as cinzas esfriaram, e por apenas um momento ele foi apenas Donald Merwin Elbert de novo, pequeno, temeroso e confuso. Por somente este momento, desconfiou de que não passava de mais um peão no enorme jogo de xadrez do homem escuro, que ele havia sido logrado.
Depois viu que o rosto do homem escuro não estava mais inteiramente escondido; duas brasas vermelhas de carvão ardiam nos poços afundados onde deveriam estar seus olhos, e iluminavam um nariz tão fino como uma lâmina.
- Farei tudo que você quiser - disse Lata de Lixo, agradecido no sonho. - Darei minha vida por você! Minha alma por você!
- Eu o designarei para incendiar - disse gravemente o homem escuro. - Você precisa vir a minha cidade, e lá tudo será explicado.
- Onde? Onde? - Ele estava agoniado de esperança e expectativa.
- No oeste - disse o homem escuro, se desvanecendo. - No oeste, além das montanhas.
Ele acordou então, mas ainda era noite, e a noite ainda brilhava. As chamas estavam mais próximas. O calor era sufocante. Casas estavam explodindo. As estrelas tinham desaparecido, encobertas por uma espessa nuvem de combustível queimado. Começara uma fina nuvem fuliginosa. Os quadros do jogo de amarelinha estavam cobertos de neve negra.
Agora que ele tinha um objetivo, descobriu que podia caminhar. Manquejou para oeste e, de tempos em tempos, via outras pessoas abandonando Gary, olhando para a conflagração por sobre os ombros. Tolos, pensou Lata de Lixo, quase afetuosamente. No devido tempo vocês vão arder. Eles mal o notaram; achavam que não passava de outro sobrevivente. Desapareceram na fumaça e algum tempo após o amanhecer o Homem da Lata de Lixo manquejou através da divisa do estado de Illinois. Chicago estava ao norte dele, Joliet a sudoeste, o fogo perdido no seu próprio horizonte obscurecido pela fumaça lá atrás. Aquele tinha sido o amanhecer de 2 de julho.
Ele havia esquecido seus sonhos de incendiar Chicago até o solo - seus sonhos de mais reservatórios de combustível e trens de carga cheios de gás de baixa pressão, parados em desvios ferroviários e de cortiços construídos de troncos secos. Ele não ligava a mínima para a Cidade dos Ventos. Nessa tarde invadiu o consultório de um médico em Chicago Heights e roubou uma caixa de morfina. A morfina arrefeceu um pouco a dor, porém tinha um efeito colateral mais importante: fazia-o se preocupar menos com a dor que sentia.
Pegou um enorme pote de vaselina numa drogaria e usou-a no braço queimado com uma camada de 2 centímetros de espessura. Sentia uma sede terrível; parecia querer beber água a todo instante. Fantasias do homem escuro iam e vinham em sua mente como moscas-varejeiras. Quando desmoronou, ao crepúsculo, já começara a pensar que a cidade indicada pelo homem escuro devia ser Cibola, a Sete-em-Uma, a Cidade Prometida.
Nessa noite o homem escuro voltou a aparecer-lhe em sonho e, com uma risadinha sardônica, confirmou que era isso mesmo.
O Homem da Lata de Lixo despertou dessas confusas lembranças de sonhos para o frio tiritante do deserto. No deserto era sempre gelo ou fogo - não havia meio-termo.
Gemendo um pouco, ele se levantou, encolhendo-se o mais que podia. No alto, 1 trilhão de estrelas cintilavam, quase parecendo ao alcance dos dedos, banhando o deserto com sua fria luz espectral.
Caminhou de volta à estrada, careteando ante a sensibilidade de sua pele tenra e seus muitos padecimentos e dores. Agora pouco importavam para ele. Fez uma pausa momentânea olhando para a cidade ao longe, sonhando na noite (havia pequenas fagulhas de luz aqui e ali, como fogueiras elétricas de acampamento). Então começou a caminhar.
Quando a aurora começou a tingir o céu, horas mais tarde, Cibola parecia quase tão distante como quando a vira pela primeira vez, do alto da elevação. Ele bebera tolamente toda a sua água, esquecendo como as coisas pareciam aumentar de tamanho naquele lugar. Não ousava caminhar muito depois de o sol nascer, por causa da desidratação. Teria que se deitar novamente antes que o sol readquirisse toda a sua potência.
Uma hora depois do amanhecer, chegou até um Mercedes-Benz fora da estrada, o lado direito enterrado na areia até os painéis das portas. Abriu uma das portas do lado esquerdo e empurrou para fora os dois ocupantes, enrugados e com aspecto simiesco - uma velha usando um monte de braceletes e um velho de cabelos brancos ostentosos. Resmungando, Lata de Lixo tirou as chaves da ignição, contornou o carro e abriu o porta malas. As malas do casal não estavam trancadas. Ele pendurou uma porção de roupas sobre as janelas do Mercedes, firmando-as com pedras. Agora possuía uma caverna fresca e penumbrosa.
Rastejou para dentro e começou a dormir. Quilômetros a oeste, a cidade de Las Vegas reluzia à claridade do sol de verão.
Ele não sabia dirigir, nunca lhe tinham ensinado na prisão, mas sabia pedalar uma bicicleta. Em 4 de julho, o dia em que Larry Underwood descobriu que Rita Blakemoor exagerara nas suas pílulas e morrera durante o sono, o Homem da Lata de Lixo conseguiu uma bicicleta de dez marchas e começou a pedalar. A princípio seu progresso foi lento, porque o braço esquerdo incomodava. Caiu duas vezes naquele primeiro dia, uma delas diretamente sobre a queimadura, o que lhe causou uma agonia terrível. Àquela altura a queimadura estava supurando livremente através da vaselina e o cheiro era nauseante. Vez por outra ele pensava em gangrena, mas esforçava-se para não pensar a respeito por muito tempo. Começou a misturar a vaselina com um unguento anti-séptico, sem saber se seria útil, mas sentindo que certamente não iria piorar. A mistura produziu um líquido leitoso e viscoso parecido com sêmen.
Pouco a pouco, foi se ajustando à bicicleta, passando a conduzi-la quase com só uma das mãos, e percebeu que podia aumentar a velocidade. A terra se aplainara e, na maior parte do tempo, era-lhe possível manter a bicicleta rodando com grande rapidez. Mantinha-se firme, apesar da queimadura e da tonteira por dopar-se constantemente com morfina. Bebeu litros de água e comeu vorazmente. Avaliava as palavras do homem escuro: Eu lhe darei um alto posto em minha artilharia. Você é o homem que eu quero. Como estas palavras eram maravilhosas! Alguém já o quisera de fato antes? As palavras brincavam sem cessar em sua mente enquanto pedalava debaixo do sol quente do Meio-Oeste. E começou a cantarolar baixinho a melodia de uma cançoneta intitulada "Down to the Nightclub". As palavras (Cia-bola! Bam- bam-bam!) se encaixaram à perfeição. Ele ainda não estava tão insano como ficaria, mas progredia.
A 8 de julho, o dia em que Nick Andros e Tom Cullen viram búfalos pastando no condado de Comanche, Kansas, o Homem da Lata de Lixo cruzou o Mississippi no quadrângulo das cidades de Davenport, Rock Island, Bettendorf e Moline. Estava no Iowa.
No dia 14, o dia em que Larry Underwood acordou perto da grande casa branca no leste de New Hampshire, o Homem da Lata de Lixo cruzou o Missouri ao norte de Council Bluffs e entrou em Nebraska. Já havia recuperado parte do uso da sua mão esquerda, e os músculos das pernas estavam em forma. Deu maior velocidade à bicicleta, sentindo uma enorme necessidade de apressar-se.
Foi na parte ocidental do Missouri que suspeitou pela primeira vez de que o próprio Deus poderia interferir no destino do Homem da Lata de Lixo. Havia alguma coisa de errado em relação a Nebraska, algo terrivelmente errado. Algo que o deixava temeroso. Tinha a mesma aparência de Iowa... mas ao mesmo tempo não tinha. O homem escuro lhe aparecera em sonhos todas as noites anteriores, mas deixou de aparecer quando ele entrou em Nebraska.
Começou então a sonhar com uma velha. Nesses sonhos via-se deitado de bruços em um milharal, quase paralisado de ódio e medo. Era uma radiante manhã. Podia ouvir bandos de corvos crocitando. Diante dele havia uma cortina de enormes folhas de milho parecendo espadas. Não desejando, mas incapaz de se conter, afastava as folhas com mãos trêmulas e espiava entre elas. Viu uma velha casa no meio de uma clareira. A casa era amparada por macacos a óleo ou algo parecido. Havia uma macieira com um balanço de pneu pendendo de um dos galhos. E, sentada no alpendre da casa, uma velha negra tocava guitarra e cantava alguns spirituals dos velhos tempos. As canções variavam de um sonho para outro e Lata de Lixo conhecia a maioria delas porque tinha uma vez conhecido uma mulher, mãe de um garoto chamado Donald Merwin Elbert, que entoava essas mesmas canções enquanto realizava suas tarefas domésticas.
Esse sonho era um pesadelo, mas não apenas porque algo excessivamente horrível acontecia no final dele. A princípio, qualquer um diria que, naquele sonho inteiro, não havia nenhum elemento aterrador. Milharal? Céu azul? Velha? Balanço de pneu? O que havia de assustador nessas coisas? Velhas não jogam pedras nem escarnecem, especialmente velhas que cantam spirituals louvando Jesus, como "In That Great Getting-Up Morning" e "Bye-and-Bye, Sweet Lord, Bye-and-Bye". Os Carley Yates do mundo é que jogam pedras.
No entanto, muito antes de o sonho terminar, ele ficava paralisado de medo, como se não fosse uma velha que estivesse espionando, mas sim algum segredo, alguma luz quase escondida que parecia pronta a irromper em torno da velha, a envolvê-la com um brilho tão flamejante que os tanques incendiados em Gary pareciam meras velas acesas em comparação - uma luz tão brilhante que transformaria seus olhos em cinzas. E, durante esta parte do sonho, tudo que pensava era: Ah, por favor, leve-me para longe dela, não quero me aliar com essa bruxa velha, por favor, leve-me para fora de Nebraska!
Então, fosse qual fosse a canção tocada no momento, havia uma interrupção discordante, abrupta. Ela olhava diretamente para o lugar onde ele espiava, através de uma pequena abertura no amplo rendilhado das folhas. O rosto dela era velho e sulcado de rugas, os cabelos tão ralos que deixavam à mostra o crânio marrom, porém os olhos reluziam como diamantes, repletos daquela luz que ele temia.
Numa voz velha e cacarejada, porém forte, ela gritava: Doninhas no milharal! E ele sentia a mudança em si mesmo, olhava para baixo e via que se tornara uma doninha, uma coisa peluda, esguia e negro-acastanhada, de nariz comprido e afilado, olhos que se reduziam a pontinhos negros, os dedos transformados em garras. Ele era uma doninha, uma coisa covardemente noturna, espreitando os fracos e pequenos.
Ele então começava a gritar e era acordado pelos próprios gritos, suando em bicas, os olhos esbugalhados. Suas mãos voavam pelo corpo, garantindo a si mesmo que todas as partes humanas ainda estavam lá. Ao final desta verificação à beira do pânico, ele agarrava a cabeça, certificando-se de que era ainda uma cabeça humana e não algo comprido, esguio e aerodinâmico, peludo e em forma de bala.
Percorreu 650 quilômetros de Nebraska em três dias, impulsionado principalmente por um terror de alta octanagem. Atravessou para o Colorado perto de Julesburg e o sonho começou a se desvanecer, ganhando tonalidades crescentes de sépia.
(No que se refere à parte de Mãe Abagail, ela despertou na noite de 15 de julho - pouco depois de o Homem da Lata de Lixo ter passado ao norte de Hemingford Home - com terrível calafrio e uma sensação que era tanto de medo quanto de piedade de quem ou do que ainda não conhecia. Achou que podia ter estado sonhando com o seu neto Anders, que morrera estupidamente num acidente de caça quando tinha apenas seis anos.)
No dia 18 de julho, agora a sudoeste de Sterling, Colorado, e ainda a alguns quilômetros de Brush, ele conheceu O Garoto.
Lata de Lixo acordou exatamente enquanto o crepúsculo estava caindo. Apesar das roupas que pendurara sobre as janelas, o Mercedes tinha ficado quente. Sua garganta era um poço seco que havia sido esfregado com lixa. As têmporas latejavam e saltavam. Ao espichar a língua e tocá-la com o dedo, teve a sensação de que era um graveto seco. Erguendo-se, pôs a mão sobre o volante do Mercedes e depois recuou com um chiado escaldado de dor, tendo que enrolar a fralda da camisa em volta da maçaneta para poder sair. Achava que iria simplesmente sair, mas tinha superestimado sua força e subestimado o quanto a desidratação progredira neste anoitecer de agosto: suas pernas fraquejaram e ele caiu na estrada, que também estava quente. Gemendo, apalpou seu caminho à sombra do Mercedes como um lagostim aleijado. Sentou-se ali, braços e cabeça oscilando entre os joelhos erguidos, ofegante. Olhou morbidamente para os dois corpos que retirara do carro, a mulher com seus braceletes nos braços e o homem com seu emaranhado de ostentoso cabelo branco acima do rosto simiesco mumificado.
Ele devia ir para Cibola antes que o sol raiasse na manhã seguinte. Se não o fizesse, iria morrer... e com sua meta ao alcance de vista! Certamente o homem escuro não poderia ser tão cruel assim - certamente que não!
- Minha vida pela sua - sussurrou o Homem da Lata de Lixo. Quando o sol havia baixado além da linha das montanhas, ele se pôs de pé e começou a andar na direção das torres, minaretes e avenidas de Cibola, onde as luzes cintilantes surgiam de novo.
À medida que o calor do dia cedeu lugar ao frio da noite do deserto ele descobriu-se em melhores condições de caminhar. Seus tênis rachados e amarrados com barbante batiam contra a superfície da I-15. Ele pelejava à frente, sua cabeça pendendo como a floração de um girassol agonizante, e ele não viu o letreiro verde iluminado que dizia LAS VEGAS 30 quando passou por ele.
Estava pensando no Garoto. De direito, O Garoto deveria estar com ele agora. Os dois deveriam estar seguindo para Cibola juntos, com os canos de descarga de seu Ford 32 envenenado reverberando ecos do deserto. Mas O Garoto se provara indigno e Lata de Lixo tinha se embrenhado sozinho naquele ermo.
Seus pés subiam e caíam no asfalto.
- Ci-a-bo-la! - ele grasnou. - Bam-bam-bam!
Por volta da meia-noite ele fraquejou ao lado da estrada e caiu num cochilo inquieto. A cidade estava mais perto agora.
Ele iria conseguir.
Estava quase certo de que conseguiria.
Ouviu O Garoto muito tempo antes de vê-lo. Foi o rugido pesado e crepitante de canos de descarga abertos trovejando na direção dele vindo do leste, marcando o dia. O som estava subindo a Auto-Estrada 34 da direção de Yuma, Colorado. Seu primeiro impulso foi se esconder, do jeito como se escondera dos poucos sobreviventes que tinha visto desde Gary. Mas desta vez alguma coisa o fez continuar onde estava, montado na sua bicicleta no acostamento da estrada, olhando apreensivo por sob o ombro.
O estrondo ficava cada vez mais alto, e depois o sol estava refletindo cromado e
(???FOGO???)
alguma coisa brilhante e laranja.
O motorista o viu. Reduziu a marcha fazendo o carro soltar estampidos como uma rajada de metralhadora. Borracha da Goodyear se desgastou no asfalto em amostras quentes. E depois o carro estava ao lado dele, não inutilmente, mas resfolegando como um animal mortífero que pode ou não ser domado, e o motorista estava saindo. Mas a princípio Lata de Lixo só tinha olhos para o carro. Ele entendia de carros, gostava de carros, muito embora nunca tivesse obtido uma permissão de aprendizado. Este carro era uma beleza, carro em que alguém trabalhara durante anos, investindo milhares de dólares nisso, o tipo de coisa que costumava se ver em exposições de automóveis raros, um trabalho de amor.
Era um Ford 1932, mas o proprietário não tinha se restringido nem interrompido as habituais inovações de "envenenamento" feitas por encomenda. Ele havia circulado por aí, transformando o Ford numa paródia de todos os carros genuinamente americanos, um cintilante veículo de ficção científica, com chamas pintadas à mão se destacando dos canos de descarga. A pintura era de um dourado fosco. Os cromados, que se estendiam por toda a extensão do carro, refletiam o sol violentamente. O pára-brisa era uma bolha convexa. Os pneus traseiros eram os gigantescos Wide Ovais da Goodyear, os vãos das rodas cortados até uma altura e profundidade exageradas para acomodá-los. Destacando-se da capota como um estranho tubo de calefação estava um supercompressor. Destacando-se do teto, em preto denso mas salpicado de pintas vermelhas como brasas, estava uma barbatana de tubarão de aço. Escritas de ambos os lados estavam duas palavras, inclinadas para trás a indicar velocidade. O GAROTO, elas diziam.
- Ei, você aí, alto e feio - disse o motorista em voz arrastada. Lata de Lixo desviou sua atenção das chamas pintadas para o piloto daquela bomba rolante.
Ele tinha cerca de 1,60m de altura. Seu cabelo estava empilhado e encaracolado à base de muita brilhantina. Só o cabelo lhe dava mais uns 7 centímetros de altura. Os cachos se encontravam todos acima do seu colarinho, no que era não apenas um rabo-de-pato, mas o avatar de todos os penteados rabo-de-pato um dia preferidos pelos punks e marginais do mundo. Usava botas pretas pontudas. Os lados eram elásticos. Os saltos, que davam ao Garoto mais uns 7 centímetros, trazendo-o à altura respeitável de 1,74m, eram Cubans em camadas. Os jeans desbotados e cavilhados eram tão justos que se podia perceber as moedas em seus bolsos. Eles delineavam cada pequena nádega elegante numa espécie de escultura azul e faziam sua virilha parecer como se a tivesse talvez estofado com uma sacola de camurça cheia de bolas de golfe. Usava uma camisa de seda estilo faroeste de uma inusitada cor de vinho borgonha. Era decorada com atavios amarelos e botões imitando safiras. As abotoaduras pareciam de osso polido - Lata de Lixo descobriu mais tarde que eram mesmo. O Garoto tinha dois pares, um feito de molares humanos, o outro, de incisivos de um doberman. Por cima desse prodígio de camisa, apesar do calor do dia, envergava uma jaqueta de motoqueiro de couro preto, com uma águia nas costas. Estava entrecruzada com zíperes, os dentes reluzindo como diamantes. Das ombreiras e do cinto balançavam três pés de coelho: um era branco, outro castanho e o terceiro de um verde brilhante do Dia de São Patrício. Essa jaqueta, até mais prodigiosa que a camisa, rangia presunçosamente, lustrada com óleo. Acima da águia, desta vez escritas em fio de seda branca, estavam as palavras O GAROTO. O rosto que agora se erguia para o Homem da Lata de Lixo de entre a alta pilha de cabelo reluzente e o colarinho revirado da reluzente jaqueta de motoqueiro era fino e pálido, um rosto de boneca, com lábios cheios mas impecavelmente esculpidos, olhos cinzentos sem vida, testa larga sem qualquer marca ou sutura, estranhas faces carnudas. Ele parecia o Elvis bebê.
Dois cinturões de armas entrecruzavam-se na sua barriga plana e um .45 enorme sobressaía de cada coldre bamboleante nos quadris.
- Ei, cara, o que é que você diz? - O Garoto arrastou as palavras.
A única coisa que Lata de Lixo pôde pensar em dizer foi:
- Gosto do seu carro.
Era a coisa certa. Talvez a única coisa. Cinco minutos depois, Lata de Lixo estava no banco do carona e o carro envenenado acelerou acima da velocidade de passeio do Garoto, que era de cerca de 150km/h. A bicicleta que Lata de Lixo pedalara por todo o caminho desde o Illinois oriental estava se reduzindo a um pontinho no horizonte.
Timidamente, o Homem da Lata de Lixo sugeriu que, a tal velocidade, O Garoto não conseguiria ver um destroço ou um bloqueio na estrada caso deparassem com um (já tinham passado por vários, aliás; O Garoto simplesmente ziguezagueava em torno deles, os pneus Wide Ovais berrando protestos não ouvidos).
- Ei, rapaz - disse O Garoto -, eu tenho reflexos, noção de timing. Já consegui três quintos de segundo. Acredita nisso?
- Sim, senhor - disse Lata de Lixo debilmente. Sentia-se como um homem que simplesmente usara uma vara para cutucar um ninho de cobras.
- Gosto de você, rapaz - disse O Garoto na sua voz estranha e arrastada. Seus olhos de boneca fitavam a estrada bruxuleante por sobre o volante alaranjado fluorescente. Enormes dados de isopor, com caveiras representando as pintas, balançavam e pulavam do espelho retrovisor. - Pega uma cerveja aí no banco de trás.
Eram latas de cerveja Coors e estavam quentes. O Homem da Lata de Lixo detestava cerveja. Bebeu uma rápido e disse que estava muito boa.
- Ei, rapaz - disse O Garoto. - Coors é a única cerveja. Eu só mijaria Coors, se pudesse. Acredita nessa babaquice feliz?
Lata de Lixo disse que de fato acreditava na babaquice feliz.
- Me chamam de O Garoto lá em Shreveport, Louisiana, tá sabendo? Esta besta aqui ganhou todos os grandes prêmios de exibição de carros lá no Sul. Acredita nesta babaquice feliz?
O Homem da Lata de Lixo disse que acreditava e pegou outra cerveja quente. Parecia o melhor a fazer naquelas circunstâncias.
- Como é que chamam você, rapaz?
- O Homem da Lata de Lixo.
- O que? - Por um horrível momento, os olhos sem vida de boneca pousaram no rosto de Lata de Lixo. - Está me gozando, rapaz? Ninguém faz gozação com O Garoto. É melhor acreditar nessa babaquice feliz.
- Acredito - disse Lata de Lixo com sinceridade -, mas é assim que me chamam. Porque eu costumava tacar fogo nas latas de lixo e caixas de correio, essa porra toda. Queimei o cheque de pensão da velha Sra. Semple. Fui mandado para o reformatório por causa disso. E também incendiei a igreja metodista em Powtanville, Indiana.
- É mesmo? - perguntou O Garoto, deliciado. - Rapaz, você parece tão louco como um rato numa latrina! Está tudo bem. Gosto de gente doida. Eu mesmo sou um doidão. Deu um branco na porra da minha cuca. Homem da Lata de Lixo, hã? Gosto disso. Formamos uma dupla. A porra do Garoto e a porra do Homem da Lata de Lixo. Aperte os ossos, Lixo.
O Garoto ofereceu a mão. Lixo apertou-a o mais rápido que pôde para que O Garoto voltasse a ter ambas as mãos de volta ao volante. Contornaram zunindo uma curva e havia um caminhão bloqueando quase toda a estrada. Lata de Lixo pôs as mãos sobre a face, preparado para fazer uma transição imediata para o plano astral. O Garoto nem pestanejou. O carro desviou-se ao longo do lado esquerdo da estrada como uma barata-d’água e eles tiraram um fino da cabine do caminhão, com uma demão de pintura sendo poupada.
- Por pouco - disse Lata de Lixo quando sentiu que podia falar sem um tremor na voz.
- Ei, rapaz - retrucou O Garoto, categórico. - Quer ensinar a missa ao vigário? Como está essa cerveja? Boa paca, não está? Levanta o astral depois de pedalar aquela bicicleta de criança, não é?
- Claro que sim - disse o Homem da Lata de Lixo e tomou outro grande gole de cerveja quente. Ele era ruim da cabeça, mas não o bastante para incorrer no desagrado do Garoto enquanto ele estava dirigindo. De jeito nenhum.
- Bem, não faz nenhum sentido ficar rodando sem destino pela porra desse mato - continuou O Garoto, esticando o braço por sobre o assento para pegar sua própria lata de cerveja. - Acho que estamos indo para o mesmo lugar.
- Acho que sim - respondeu Lixo, cauteloso.
- Seguir em frente - disse O Garoto. - Ir para o oeste. Botar o pé na porra da estrada. Acredita nessa babaquice feliz?
- Acho que sim.
- Você tem sonhado com aquele homem escuro em traje de voo preto, não tem?
- Você quer dizer de sacerdote.
- Eu sempre sei o que quero dizer e digo o que pretendo - replicou O Garoto, categórico. - Não vem me ensinar, seu babaquinha, vê se aprende comigo. É um traje de voo preto, e o cara usa óculos de aviador. Como num filme de John Wayne sobre a Segunda Grande Guerra. Óculos tão grandes que não se pode nem ver a porra do rosto dele. Um troço assustador pra cacete, não é?
- É - respondeu Lata de Lixo e bebericou a cerveja quente. Sua cabeça começava a zumbir.
O Garoto debruçou-se sobre o volante cor de laranja e começou a imitar um piloto de caça - um daqueles que servira na Segunda Guerra, presumivelmente - num combate aéreo. O carro ziguezagueava alarmantemente de um lado para o outro da estrada enquanto ele imitava loops, mergulhos e voltas longitudinais.
- Neeeyaaahhh... ehheheheh... buddabudda-budda... toma esta, seu chucrute escroto... Capitão! Bandidos às doze horas!... Vire o canhão refrigerado a ar para eles, seu babaca fodido... takka... takka... takka-takka-takka! Nós pegamos eles, senhor! Tudo limpo... Que BARAAATO! Missão cumprida, rapazes! Que BARAAATOOO!
Seu rosto era inexpressivo enquanto continuava na sua fantasia; nem um único fio do cabelo brilhantinado se desalinhou enquanto ele jogava o carro aos solavancos de volta a sua faixa e se aprumava na estrada. O coração do Homem da Lata de Lixo batia pesadamente no peito. Um leve brilho de suor untou seu corpo. Acabou sua cerveja. Precisava urinar.
- Mas ele não me assusta - disse O Garoto, como se o tópico anterior da conversa nunca tivesse sido abandonado. - Nem um pouco, porra. Ele é um cara durão, mas O Garoto aqui já lidou com durões antes. Eu adulo eles e depois os derrubo, tal como diz o Chefe. Você acredita nessa babaquice feliz?
- Claro - disse Lixo.
- Você saca o Chefe?
- Claro - disse Lixo. Ele não fazia a menor ideia de quem era ou tinha sido o Chefe.
- É melhor para você sacar o Chefe. Escute aqui, sabe o que vou fazer?
- Ir para o oeste? - arriscou Lata de Lixo. Isto parecia seguro.
O Garoto o olhou com impaciência.
- Depois que chegar lá, porra! Depois! Sabe o que vou fazer depois?
- Não. O quê?
- Vou baixar o facho por uns tempos. Analisar a situação. Pode sacar essa babaquice feliz?
- Claro - disse Lixo.
- Nota dez, porra. Não venha me ensinar, eu ensino toda a porra pra você. Apenas analisar. Analisar o grande homem. Depois...
O Garoto caiu em silêncio, meditando sobre o topo do volante alaranjado.
- Depois o quê?
- Vou derrubá-lo. Mandá-lo para a casa do cacete. Botá-lo para pastar naquela porra do rancho dos Cadillacs. Acredita nisso?
- É claro.
- Aí vou assumir - continuou O Garoto, cheio de confiança. - Tomar as rédeas dele e deixá-lo no rancho dos Cadillacs. Você fica comigo, Lata de Lixo, ou seja lá a porra como se chame. Não vamos mais comer porco e feijão. Vamos comer mais galinhas do que qualquer homem jamais viu.
O carro envenenado rugia estrada abaixo com as chamas pintadas se destacando do cano de descarga. O Homem da Lata de Lixo sentava-se no banco do carona, uma lata de cerveja quente no colo e perturbação em sua mente.
Era quase o alvorecer de 5 de agosto quando o Homem da Lata de Lixo entrou em Cibola, também conhecida como Las Vegas. Em algum lugar dos últimos 8 quilômetros ele havia perdido o tênis esquerdo e agora, enquanto descia a rampa de saída em curva, suas passadas faziam um som de slap-TUMP, slap-TUMP, slap-TUMP, parecendo a aba de um pneu vazio.
Estava quase conseguindo, mas um pequeno assombro voltou enquanto descia a Strip, que estava atulhada de carros abandonados e um bocado de gente morta, a maioria bem picada pelos abutres. Ele havia conseguido. Estava aqui em Cibola. Tinha sido testado e fora aprovado no teste.
Ele viu uma centena de cabarés decrépitos. Havia letreiros que diziam CAÇA-NÍQUEIS LIBERAIS, e CAPELA DE CASAMENTOS BLUEBELL e CASAMENTOS DE 60 SEGUNDOS PARA DURAR A VIDA INTEIRA! Viu um Rolls-Royce Silver Ghost que havia entrado pelo meio da vitrine de uma livraria para adultos. Viu uma mulher nua pendendo de um poste, virada de cabeça para baixo. Viu duas páginas do Sun de Las Vegas impelidas pelo vento. A manchete aparecia a cada vez que o jornal girava pelo chão: A EPIDEMIA PIORA, WASHINGTON SILENCIA. Viu um gigantesco cartaz anunciando: NEIL DIAMOND! NO AMERICANA HOTEL. 15 DE JUNHO-30 DE AGOSTO! Alguém rabiscara as palavras QUE MORRA LAS VEGAS PELOS SEUS PECADOS!, na vitrine de uma joalheria que parecia especializada em nada mais que alianças de noivado e casamento. Viu um piano de cauda jazendo emborcado no meio da rua como se fosse um enorme cavalo de pau inútil. Seus olhos se inundaram daqueles assombros.
Enquanto avançava, começou a ver outros letreiros, suas luzes de néon apagadas neste meio de verão pela primeira vez em anos. Flamingo. The Mint. Dunes. Sahara. Glass Slipper. Imperial. Mas onde estavam as pessoas? Onde estava a água?
Mal sabendo para onde ir, deixou que os pés escolhessem seu próprio caminho. Dobrou a esquina da Strip. Sua cabeça pendeu à frente, o queixo descansou sobre o peito. Cochilou enquanto caminhava. E quando seus pés tropeçaram no meio-fio, quando caiu para a frente e ganhou um nariz sangrando sobre a calçada, quando olhou para cima e viu o que estava lá, mal pôde acreditar. O sangue escorria do seu nariz sem ser notado e ensopava a camisa azul esfarrapada. Era como se ainda estivesse cochilando e este fosse o seu sonho.
Um alto edifício branco se espichava contra o céu do deserto, um monólito no deserto, um obelisco, um monumento, cada parte dele tão magnífica quanto a Esfinge ou a Grande Pirâmide. As janelas da fachada oriental refletiam o fogo do sol nascente como um presságio. Diante desse edifício deserto, branco como osso, flanqueando a porta de entrada, estavam duas enormes pirâmides de ouro. Sobre o toldo havia um grande medalhão de bronze e esculpida nele, em baixo-relevo, estava a cabeça de um leão rugente.
Encimando isto, também em bronze, a prosaica mas poderosa legenda: MGM GRAND HOTEL.
Mas o que atraiu seus olhos foi o que se erguia no quadrângulo relvado entre o estacionamento e a porta de entrada. Lata de Lixo olhou fixamente, um tremor orgástico consumindo-o com tanta intensidade que por um momento só pôde apoiar-se nas mãos ensanguentadas, a ponta solta da atadura se arrastando entre elas, e contemplar o chafariz com seus olhos azuis opacos, olhos que estavam agora meio cegos pela claridade ofuscante. Um pequeno gemido começou a escapar de sua garganta.
O chafariz estava funcionando. Era uma suntuosa construção de pedra e marfim, marchetada e incrustada de ouro. Luzes coloridas brincavam sobre o repuxo, tornando a água púrpura, depois alaranjada, a seguir vermelha e por fim verde. O tamborilar constante enquanto o borrifo caía de volta no tanque era muito alto.
- Cibola - murmurou ele e pelejou para se levantar. Seu nariz ainda gotejava sangue.
Começou a cambalear em direção ao chafariz. Seu cambaleio tornou-se um trote. O trote virou uma corrida, a corrida uma disparada, a disparada um galope alucinado. Seus joelhos esfolados erguiam-se como pistões quase até o pescoço. Uma palavra começou a escapar de sua boca, uma palavra longa como uma serpentina de papel desenrolando-se para o alto, atraindo gente às janelas muito acima (e o que viam as pessoas? Deus, talvez, ou o demônio, mas certamente não o Homem da Lata de Lixo). A palavra ficava cada vez mais alta e estridente, cada vez mais longa à medida que ele se aproximava do chafariz.
E a palavra era:
- CIIIIIBOLAAAAA!
O "A" final se prolongou indefinidamente, o som de todos os prazeres que todas as pessoas que viveram neste mundo tinham algum dia conhecido, e só terminou quando ele colidiu com a borda do chafariz à altura do peito, impeliu-se sobre ela e caiu do outro lado, para um banho de frescor e compaixão incríveis. Ele podia sentir os poros do corpo abrindo-se como um milhão de bocas, absorvendo a água como uma esponja. Gritou. Baixou a cabeça, resfolegou na água e expeliu-a de volta numa combinação de espirro e tosse que cuspiu sangue, água e muco de encontro à parede do chafariz. Baixando de novo a cabeça, ele bebeu como uma vaca sedenta.
- Cibola! Cibola! - gritava Lixo extasiado. - Minha vida por você!
Percorreu o tanque em nado cachorrinho, bebeu outra vez, depois escalou a borda e se deixou cair na grama com um baque desajeitado. Tudo tinha valido a pena, como tinha valido! Foi acometido de cãibras estomacais e de repente vomitou com um grunhido alto. Até mesmo vomitar parecia grandioso.
Ele se levantou e, segurando-se na borda do chafariz com a mão em garra, tornou a beber. Desta vez seu estômago aceitou a dádiva gratamente.
Derramando água como um odre repleto, cambaleou até os degraus de alabastro que levavam às portas desse lugar fabuloso, degraus que passavam entre as pirâmides de ouro. No meio dos degraus, uma nova cãibra o acometeu, fazendo-o vergar-se. Quando passou, ele prosseguiu corajosamente em frente. As portas eram giratórias, e ele reuniu toda a sua débil força para empurrar uma delas. Entrou num saguão maciamente atapetado que parecia estender-se por quilômetros. O tapete sob seus pés era espesso, fofo e tinha cor de arando. Havia um balcão de registro, uma mesa de correio e outra para chaves, os guichês dos caixas. Tudo vazio. À sua direita, além de um gradil ornamental, ficava o cassino. O Homem da Lata de Lixo olhou o ambiente reverentemente - as fileiras compactas dos caça-níqueis, como soldados perfilados numa pausa do desfile, além delas a roleta e a mesa de dados, as balaustradas de mármore circundando as mesas de bacará.
- Quem está aí? - coaxou Lixo, mas não veio resposta.
Ficou com medo então, porque este era um lugar de fantasmas, um lugar onde monstros poderiam espreitar, mas o medo estava enfraquecido pela exaustão. Desceu trôpego os degraus para o cassino e passou pelo Cub Bar, onde Lloyd Henreid sentava-se silenciosamente nas sombras profundas, observando-o e segurando um copo de água Poland.
Lixo chegou a uma mesa forrada de baeta verde, sobre a qual estava a mítica legenda: O CRUPIÊ DEVE CHEGAR A 16 E NÃO PASSAR DE 17. Lixo subiu na mesa e pegou no sono instantaneamente. Logo, quase meia dúzia de homens parou em volta do maltrapilho adormecido que era o Homem da Lata de Lixo.
- O que vamos fazer com ele? - perguntou Ken DeMott.
- Deixá-lo dormir - respondeu Lloyd. - Flagg quer ele.
- Ah, é? E onde diabo está Flagg, de qualquer modo? - perguntou outro.
Lloyd virou-se para encarar o homem, que era calvo e bem uns 30 centímetros mais alto do que ele. Não obstante, o homem recuou um passo diante do olhar de Lloyd. A pedra em torno do pescoço de Lloyd era a única não inteiramente preta; no centro brilhava uma pequena e inquietante fenda vermelha.
- Está tão ansioso para vê-lo, Hec? - perguntou Lloyd.
- Não - replicou o calvo. - Ei, você sabe que eu não...
- Claro. - Lloyd baixou a vista para o homem que dormia sobre a mesa de vinte-e-um. - Flagg deve estar por perto - disse. - Esteve esperando por este cara. Este cara é algo especial.
Na mesa, alheio a tudo isto, o Homem da Lata de Lixo dormia.
Lixo e O Garoto passaram a noite de 18 de julho num motel em Golden, Colorado. O Garoto escolheu dois quartos com uma porta comunicante. A porta comunicante estava trancada. O Garoto, agora já bem de porre, resolveu este problema menor estourando a fechadura com três balas de um de seus revólveres .45.
O Garoto ergueu uma pequena bota e chutou a porta, que se escancarou numa fina névoa de fumaça de disparo de arma.
- Outra porra de uma nota A - disse ele. - Que quarto? A escolha é sua, Lixinho.
O Homem da Lata de Lixo optou pelo quarto da direita e por um instante ficou sozinho. O Garoto tinha ido a algum lugar. Lata de Lixo ficou lentamente considerando a ideia de simplesmente cair fora de fininho antes que algo ruim de fato acontecesse - tentando equilibrar esta possibilidade contra a sua falta de transporte -, quando O Garoto retornou. Lata de Lixo ficou alarmado ao ver que ele empurrava um carrinho de supermercado cheio de embalagens de cerveja Coors. Os olhos de boneca estavam agora injetados e orlados de vermelho. O penteado à pompadour estava se emaranhando como uma mola de relógio quebrada e se expandindo, e cachos de cabelo gorduroso agora caíam pelas orelhas e face do Garoto, fazendo-o parecer algum perigoso (embora absurdo) homem das cavernas que encontrara uma jaqueta de couro deixada por um viajante do tempo e a vestira. Os pés de coelho balançavam de um lado para o outro no cinto da jaqueta.
- Está quente - disse O Garoto -, mas quem é que liga para isso, estou certo?
- Absolutamente certo - disse Lata de Lixo.
- Tome uma cerveja, babaca - disse O Garoto e entregou-lhe uma lata. Quando Lata de Lixo puxou a lingueta, espuma voou no seu rosto e O Garoto irrompeu num riso estranhamente contido, segurando a barriga plana com as duas mãos. Lixo sorriu debilmente. Decidiu que mais tarde nessa noite, depois que aquele pequeno monstro houvesse sucumbido ao sono, ele cairia fora. Já aguentara o suficiente. E aquilo que O Garoto dissera sobre o sacerdote negro... Os medos de Lata de Lixo a respeito disso eram tão grandes que ele nem sequer podia fazê-los se aglutinar. Dizer coisas desse tipo, mesmo de brincadeira, era como cagar no altar de uma igreja ou erguer o rosto para o céu numa tempestade e pedir que um raio o atingisse.
O pior de tudo era que ele não achava que O Garoto estivera brincando.
O Homem da Lata de Lixo não tinha nenhuma intenção de subir as montanhas e contornar todas aquelas curvas sinuosas com este anão maluco que bebia o dia inteiro (e aparentemente a noite inteira) e que falava em derrubar o homem escuro e colocar-se no lugar dele.
Enquanto isso, O Garoto havia bebido duas cervejas em dois minutos, esmagado as latas e as jogado indiferentemente sobre uma das duas camas do quarto. Ele estava olhando mal-humorado para a Chromacolor RCA, com outra lata de cerveja na mão esquerda e na direita o .45 que usara para arrombar a porta comunicante.
- Nem tem porra nenhuma de eletricidade, portanto para que precisamos de uma porra de TV? - disse ele. À medida que ficava mais bêbado, seu sotaque sulista se tornava mais pronunciado, pondo irritação em suas palavras. - Não que eu deteste TV. Adoro isso que todos os babacas perderam, mas, puta que o pariu, onde está o HBO? Cadê a porra dos jogos? Onde está o Canal Playboy? Esse era uma boa, Lixinho. Quero dizer, eles nunca mostravam os caras fazendo o serviço completo, comendo e lambendo a velha xota peluda, sabe o que quero dizer? Mas algumas daquelas donas tinham as pernas arreganhadas até seus queixos, sabe de que porra estou falando?
- Claro - disse Lata de Lixo.
- Você é esperto paca. Mas não venha ensinar missa ao vigário.
O Garoto olhou para a TV desativada.
- Sua porra inútil - disse e disparou no aparelho. O tubo de imagem implodiu com um grande estrondo abafado. Vidro se espalhou voando pelo carpete. Lata de Lixo ergueu o braço para proteger os olhos e sua cerveja se derramou sobre o náilon verde quando fez o movimento.
- Ei, veja o que você fez, seu babaca! - exclamou O Garoto, num tom grandemente ultrajado. De repente, o .45 estava apontado para Lixo, seu orifício tão grande e escuro quanto o da chaminé de um transatlântico. Lata de Lixo sentiu sua virilha entorpecida. Achou que estava mijando nas calças, mas não podia dizer com certeza.
- Vou ventilar sua máquina de pensar por causa disso - declarou O Garoto. - Você derramou a cerveja. Se fosse qualquer outra marca, eu não me importaria, mas foi a Coors que derramou! Eu só mijaria Coors, se pudesse, acredita nesta babaquice feliz?
- Claro - sussurrou Lixo.
- E você acha que continuam fabricando Coors nesses dias, Lixo? Esta porra lhe parece provável?
- Não - sussurrou Lata de Lixo. - Acho que não.
- Está certo pra cacete. É uma indústria extinta. - Ergueu levemente a arma. Lata de Lixo achou que era o fim de sua vida, o fim de sua vida, com certeza. Então, O Garoto baixou a arma de novo... levemente. Tinha uma expressão absolutamente vaga no rosto. Lata de Lixo achou que esta expressão indicava pensamento profundo. - Vou lhe dizer uma coisa, Lixo. Você vai pegar outra lata e enxugá-la. Se puder enxugar a lata toda, não vou mandar você para o rancho dos Cadillacs. Acredita nessa babaquice feliz?
- O que... o que é enxugar?
- Porra, cara, você é burro como uma porta! É beber de um gole só, sem parar, enxugar é isso! Onde é que foi criado, na porra da África? Você vai fazer isto direitinho, Lixo, sem vacilar. Se eu tiver que enfiar uma bala, vai ser direto no seu olho. Este escroto aqui está carregado com balas dundum. Elas o arrebentam todo por dentro, transformam você na porra de um banquete para as baratas. - Ele gesticulou com a arma, os olhos vermelhos fixos em Lata de Lixo. Havia um salpico de espuma de cerveja no seu lábio superior.
Lata de Lixo foi até a embalagem de cerveja, pegou uma lata e puxou a lingueta.
- Vá em frente. Beba tudo. E se der um vacilo e vomitá-la, você está fodido.
Lata de Lixo aprumou a lata. A cerveja desceu aos borbotões. Ele engoliu convulsivamente, seu pomo-de-adâo subindo e descendo como um macaco num galho. Quando a lata se esvaziou, ele a deixou cair entre os pés, travou uma batalha aparentemente interminável com sua goela e ganhou a vida de volta em um longo e ecoante arroto. O Garoto jogou a pequena cabeça para trás e riu com um prazer sonoro. Lixo vacilou sobre seus pés com um débil sorriso. Estava completamente bêbado.
O Garoto repôs a arma no coldre.
- OK. Não foi nada mal, Homem da Lata de Lixo. Não foi um vexame fodido.
O Garoto continuou a beber. Latas vazias se empilhavam sobre a cama do motel. Lata de Lixo mantinha uma lata de Coors entre os joelhos e tomava um gole toda vez em que O Garoto parecia estar olhando-o com desaprovação. O Garoto resmungava sem parar, sua voz ficando cada vez mais baixa e mais sulista â medida que as latas vazias se amontoavam. Ele falava dos lugares onde tinha estado. Corridas que tinha vencido. Um lote de droga que contrabandeara através da fronteira do México num caminhão de lavanderia com um semimotor 442 sob o capô. Coisa chata, disse ele. Todo tipo de droga era uma coisa chata pra cacete. Ele nunca foi chegado a drogas, mas, porra, depois que um cara serve de mula para alguns carregamentos dessa merda, ele poderia até limpar o rabo com papel higiênico de ouro. For fim, começou a ficar com sono, os olhinhos vermelhos se fechando por períodos cada vez mais longos, depois voltando relutantemente para meio-pau.
- Nós vamos pegá-lo, Lixinho - resmungou O Garoto. - Vou para lá, dar uma sacada na situação, continuar puxando o saco do filho-da-puta até ver como a banda toca. Mas puto nenhum fica dando ordens pro Garoto aqui. Não por muito tempo. Não sou capacho. Se entro numa parada, eu dou as ordens, este é o meu estilo. Não sei quem ele é ou de onde vem, ou como pode invadir a porra das nossas máquinas de pensar, mas vou botá-lo pra correr - um enorme bocejo - da porra da cidade. Vou cortar a onda dele, mandá-lo para o rancho dos Cadillacs. Fique comigo, Lata, ou seja lá como você se chame.
Ele desabou lentamente para trás, na cama. A lata de cerveja, recém-aberta, caiu de sua mão relaxada. Mais Coors se derramou sobre o carpete. A embalagem de cerveja acabara e, pelas contas de Lata de Lixo, só O Garoto "enxugara" 21 latas. Lixo não conseguia entender como um homem tão pequeno era capaz de beber tanta cerveja, mas entendia que a hora era chegada: a hora de cair fora. Sabia disso, mas sentia-se bêbado e fraco. O que desejava mais que tudo era dormir um pouco. Estaria tudo bem, não estaria? Ao que tudo indicava, O Garoto tinha condições de dormir como um tronco a noite toda, talvez até a metade da manhã seguinte. Tempo de sobra para ele tirar uma pequena soneca.
Portanto seguiu para o outro quarto (na ponta dos pés, apesar do estado semicomatoso) e fechou a porta comunicante o melhor que podia - o que não adiantava muita coisa. A força das balas a tinha empenado. Havia um despertador sobre a cômoda. Lixo acertou os ponteiros para meia-noite, uma vez que não sabia (e também não importava) que horas eram na realidade, e depois fixou o alarme para as cinco horas. Deitou em uma das camas sem sequer parar para tirar os tênis. Em cinco minutos estava adormecido.
Acordou algum tempo depois, no túmulo escuro da manhã, com o odor de cerveja e vômito soprando através de seu rosto numa pequena rajada seca. Havia alguma coisa na cama com ele, alguma coisa quente, macia e contorcida. Seu primeiro pensamento em pânico foi de que uma doninha tinha de alguma forma saído direto daquele seu sonho com Nebraska para o mundo real. Soltou um pequeno gemido lamuriento ao perceber que o animal na cama com ele, embora não fosse grande, era bem maior que uma doninha. A cerveja lhe dera uma dor de cabeça que perfurava impiedosamente suas têmporas.
- Segura aqui - sussurrou O Garoto no escuro. A mão de Lata de Lixo foi agarrada e conduzida para algo duro, cilíndrico e pulsante como um pistão. - Me bate uma bronha. Vamos, me bate uma bronha. Você sabe fazer, percebi isso na primeira vez em que olhei pra você. Vamos lá, seu punheteiro fodido, me bate uma bronha!
Lata de Lixo sabia como fazer. De muitas maneiras, era um alívio. Sabia disso das longas noites na prisão. Diziam que era errado, que isso era veadagem, mas o que os veados faziam era melhor do que alguns dos outros faziam, aqueles que passavam as noites afiando cabos de colher para servir de estilete e aqueles que apenas ficavam deitados nos seus catres, estalando os nós dos dedos e olhando para você e rindo.
O Garoto pôs a mão de Lata de Lixo na espécie de arma em que ele era perito. Fechou a mão em torno dela e começou. Depois que acabasse, O Garoto cairia no sono de novo. E então ele poderia escapulir.
O resfolegar do Garoto foi se tornando raivoso. Começou a martelar com os quadris ao ritmo da manipulação de Lixo, que a princípio não notou que O Garoto estava também desafivelando seu cinto, depois baixando a calça e a cueca até os joelhos. Lixo deixou. Não importava que O Garoto quisesse enrabá-lo. Já tinha sido enrabado antes. Aquilo não matava. Não era veneno.
Então sua mão se imobilizou. O que quer que estivesse pressionando contra seu ânus não era carne. Era aço frio.
E, de súbito, ele soube o que era.
- Não - sussurrou. Seus olhos estavam arregalados e aterrorizados no escuro: Agora pôde ver indistintamente aquele rosto de boneca homicida no espelho, pendendo por sobre seu ombro com o cabelo caído nos olhos vermelhos.
- Sim - sussurrou de volta O Garoto. - E você não vai querer perder uma estocada, Lixinho. Nem uma porra de uma estocada. Ou eu poderia apenas puxar o gatilho neste rabo. Explodir toda a sua fábrica de merda até o inferno. São balas dundum, Lixinho. Acredita nesta babaquice feliz?
Choramingando, Lata de Lixo recomeçou a masturbá-lo. Seus gemidos se tornaram pequenos arquejos de dor enquanto o cano do .45 abria caminho dentro dele, girando, acanalando, rasgando. E não é que isto o estava excitando? Estava.
Por fim, sua excitação ficou evidente para O Garoto.
- Está gostando, não está? - arfou O Garoto. - Eu sabia que você ia gostar, seu escroto. Você gosta de ter isso enfiado no cu, não gosta? Diz que sim, escroto. Diz que sim ou vai direto pro inferno!
- Sim - lamuriou-se Lata de Lixo.
- Quer que eu bata uma bronha em você?
Ele não queria. Excitado ou não, ele não queria. Mas sabia que era melhor não dizer isso.
- Sim.
- Eu não tocaria na sua pica nem se ela fosse diamante. Faça você mesmo. Por que acha que Deus o fez nascer com duas mãos?
Quanto tempo durou? Só Deus saberia, não o Lata de Lixo. Um minuto, uma hora, uma eternidade - que diferença fazia? Teve certeza de que, no instante do orgasmo do Garoto, ele sentiria duas coisas simultaneamente: o jato quente do sêmen do pequeno monstro na sua barriga e a agonia de uma bala dundum abrindo-se em leque através de seus órgãos vitais. O enema definitivo.
Então os quadris do Garoto se imobilizaram e seu pênis terminou as convulsões na mão de Lata de Lixo, cujo pulso se tornou lustroso, como uma luva de borracha. Um instante depois, o revólver foi retirado. Lágrimas silenciosas de alívio escorreram pelas faces de Lata de Lixo. Ele não estava com medo de morrer, pelo menos não a serviço do homem escuro, mas não queria morrer neste quarto escuro de motel nas mãos de um psicopata. Não antes de ter visto Cibola. Teria orado para Deus, mas sabia instintivamente que Deus fazia ouvidos moucos àqueles que se haviam comprometido com o homem escuro. E o que Deus tinha feito algum dia pelo Lata de Lixo? Ou tampouco por Donald Elbert Merwin, por falar nisso?
No silêncio resfolegante, a voz do Garoto se elevou numa canção, desafinada, rachada, rastejando em direção ao sono:
- Meus cupinchas e eu estamos ficando bem conhecidos... é, os bandidos nos conhecem e estão nos abandonando...
Ele começou a ressonar.
Agora irei embora, pensou Lata de Lixo, mas receava acordar O Garoto caso se movesse. Partirei tão logo tenha certeza de que ele esteja realmente adormecido. Cinco minutos. Não levaria mais tempo que isso.
Mas no escuro ninguém sabe quanto tempo são cinco minutos; seria justo dizer que, no escuro, cinco minutos não existem. Esperou. Rolava para dentro e fora de um cochilo sem saber que havia cochilado. Antes de muito tempo, acabou pegando mesmo no sono.
Estava numa estrada escura que era muito alta. As estrelas pareciam próximas o bastante para serem alcançadas e tocadas; parecia que se podia simplesmente pegá-las do céu e enfiá-las num pote, como pirilampos. O frio era de amargar. Estava escuro. Indistintamente, crestado com o brilho das estrelas, ele pôde ver as faces da rocha viva através da qual esta estrada tinha sido cortada.
E algo caminhava para ele na escuridão.
E a seguir a voz dele, vindo da nada, vindo de toda parte: Nas montanhas eu lhe darei um sinal, lhe mostrarei meu poder. Irei lhe mostrar o que acontece àqueles que se colocam contra mim. Espere. Observe.
Olhos vermelhos começaram a se abrir no escuro, como se alguém tivesse fixado três dúzias de lâmpadas de perigo providas de capuzes, e agora esse alguém estivesse puxando os capuzes em pares. Eram olhos, e rodearam o Homem da Lata de Lixo num círculo tresloucado. De início pensou que eram olhos de doninhas, mas, à medida que o círculo se estreitava à sua volta, percebeu que eram grandes lobos da montanha, as orelhas projetadas à frente, espuma gotejando de seus focinhos escuros.
Ele estava com medo.
Eles não são para você, meu bom e fiel servo. Vê?
E os lobos se foram. Assim, de repente, os ofegantes lobos cinzentos se foram.
Observe, disse a voz.
Espere, disse a voz.
O sonho terminou. Ele acordou para descobrir a brilhante luz do sol penetrando pela janela do quarto de motel. O Garoto estava de pé diante dela, parecendo nem um pouco afetado pela sua rodada de cerveja com a agora defunta Adolph Coors Company na noite anterior. Seu cabelo estava penteado na antiga forma de remoinhos e caracóis reluzentes, e ele admirava seu reflexo no vidro. Havia pendurado sua jaqueta de couro no encosto de uma cadeira. Os pés de coelho balançavam do cinto como pequenos cadáveres pendendo da forca.
- Ei, seu escroto! Pensei que ia ter que lubrificar sua mão de novo para acordá-lo. Vamos, temos um grande dia pela frente. Aquela parada vai acontecer hoje, estou certo?
- Claro que está - replicou Lata de Lixo com um sorriso esquisito.
Quando o Homem da Lata de Lixo emergiu do sono na noite de 5 de agosto, ainda se encontrava deitado sobre a mesa de vinte-e-um no cassino do MGM Grand Hotel. Sentado ao contrário numa cadeira diante dele estava um homem jovem com cabelos escorridos cor de palha e óculos de sol espelhados. A primeira coisa que Lixo notou foi a pedra pendurada em volta do seu pescoço, no V de sua camisa esporte aberta. Preta, com uma fenda vermelha no centro. Como o olho de um lobo na noite.
Tentou dizer que estava sedento e só conseguiu uma débil interjeição.
- Acho que você certamente passou um bom tempo debaixo de sol forte - disse Lloyd Henreid.
- Você é ele? - sussurrou Lixo. - Você é...
- O chefão? Não sou ele. Flagg está em Los Angeles, mas sabe que você chegou aqui. Falei com ele no rádio esta tarde.
- Ele está vindo?
- O quê?! Só para ver você? Não, porra! Ele chegará aqui na hora que quiser. Eu e você, cara, nós somos apenas arraia-miúda. Ele vai chegar na hora que quiser. - E repetiu a pergunta que fizera ao homem alto naquela manha, não muito depois de Lata de Lixo ter apagado. - Está ansioso para vê-lo?
- Sim... não... não sei.
- Bem, seja lá de que modo vai ser, você terá sua chance.
- Tenho sede...
- Certo. Aqui está. - Passou-lhe uma bojuda garrafa térmica cheia de Kool-Aid sabor cereja. Lata de Lixo a esvaziou de um gole, depois se vergou, segurando o estômago e gemendo. Quando a cãibra passou, ele olhou para Lloyd com gratidão muda.
- Acha que poderia comer alguma coisa? - perguntou Lloyd.
- Sim, acho que sim.
Lloyd virou-se para um homem parado atrás deles. O homem estava ociosamente girando uma roleta, e depois deixando a bolinha branca saltar e chocalhar.
- Roger, vá dizer a Whitney ou a Stephanie-Ann que preparem dois hambúrgueres com fritas para este homem. Não, merda, em que é que estou pensando? Ele vai vomitar essa porra toda por aí. Sopa. Façam uma sopa. Tudo bem, meu chapa?
- Qualquer coisa - disse Lixo, agradecido.
- Temos um cara aqui - disse Lloyd -, chamado Whitney Horgan, que era açougueiro. Ele é um gordão, um saco de merda, mas não é que o cara sabe cozinhar? E eles tinham de tudo aqui! Todos os geradores ainda funcionavam quando viemos para cá, e os freezers estavam abarrotados! Las Vegas é do cacete! Não é a porra do lugar mais legal que você já viu?
- É - disse Lixo. Já estava gostando de Lloyd e nem sequer sabia seu nome. - É Cibola.
- O quê?
- Cibola. Procurada por muitos.
- Ah, sim, um bocado de gente andou procurando por ela, mas a maioria foi embora meio decepcionada. Bem, chame-a como quiser, meu chapa... parece que você quase se cozinhou para chegar aqui. Como se chama?
- Homem da Lata de Lixo.
Lloyd não pareceu achar um nome de todo esquisito.
- Com um nome desses, aposto que você era um ciclista. - Ele estendeu a mão. As pontas de seus dedos ainda tinham cicatrizes da sua estada na prisão de Phoenix, onde quase morrera de fome. - Sou Lloyd Henreid. Prazer em conhecê-lo, Lixo. Bem-vindo a bordo do bom navio Pirulito.
Lata de Lixo apertou a mão oferecida e teve de se esforçar para não chorar de gratidão. Até onde podia se lembrar, esta foi a primeira vez em sua vida que alguém lhe oferecera um cumprimento. Estava aqui. Tinha sido aceito. Depois de muito tempo estava dentro de alguma coisa. Teria atravessado dois desertos para usufruir deste momento, e também teria queimado o outro braço e as duas pernas.
- Obrigado - murmurou. - Obrigado, Sr. Henreid.
- Merda, irmão... se você não me chamar de Lloyd, vou jogar fora a porra da sua sopa.
- Lloyd, então. Obrigado, Lloyd.
- Assim está melhor. Depois que comer, vou levá-lo para cima e colocá-lo num quarto só seu. Vamos ter você fazendo alguma coisa amanhã. O chefão lhe arranjou uma tarefa, acho, mas até então há um monte de coisa para você fazer. Conseguimos pôr uma parte do hotel de novo em funcionamento, mas nem chega perto da sua capacidade total. Há uma equipe lá na represa Boulder, tentando restabelecer a energia elétrica. Há outra trabalhando nos suprimentos de água. Temos grupos de batedores arregimentando de seis a oito pessoas por dia, mas vamos manter você fora dessa missão por enquanto. Parece que já pegou sol suficiente para um mês.
- Acho que sim - disse Lata de Lixo com um sorriso fraco. Já estava disposto a dar sua vida por Lloyd Henreid. Reunindo toda a sua coragem, apontou para a pedra na garganta de Lloyd. - Isso...
- É, nós todos que somos uma espécie de chefes as usamos. Ideia dele. É âmbar-negro. Não se trata afinal de uma pedra, você sabe. É como uma bolha de óleo.
- Quero dizer... a luz vermelha, o olho.
- Parece como aquilo para você também, hã? É uma fenda. Especial dele. Não sou o cara mais esperto que ele recrutou, nem sequer o mais esperto nas velhas e boas batalhas perdidas da vida, nem sou uma aposta de risco. Mas sou... merda, creio que se poderia dizer que sou mascote dele. - Olhou detidamente para Lixo. - Talvez você fosse também, quem sabe? Não eu, com certeza. Ele é do tipo fechado, Flagg é. De qualquer modo, ouvimos falar que você é especial. Eu e Whitney. Este não é o treinamento regular, afinal. Muitos vindo para observação especial de muitos. - Fez uma pausa. - Embora eu acredite que ele poderia, se quisesse fazê-lo. Acho que ele poderia observar qualquer um.
Lata de Lixo assentiu.
- Ele pode fazer magia - continuou Lloyd, sua voz ficando levemente áspera. - Eu vi. E odiaria fazer parte dos que estão contra ele, sabe?
- Sim - replicou Lata de Lixo. - Vi o que aconteceu com O Garoto.
- Que garoto?
- O cara com quem eu estava até chegarmos às montanhas. - Ele deu de ombros. - Mas não quero falar sobre isso.
- Certo, cara. Aqui vem sua sopa. E Whitney pôs um hambúrguer do lado, afinal. Você vai adorar. O cara faz hambúrgueres sensacionais. Mas tente não vomitar, OK.
- OK.
- Bem, tenho lugares para ir e gente para ver. Se meu velho cupincha Poke me visse agora, jamais acreditaria. Sou o perneta mais ocupado num concurso de chutar bundas. Vejo você mais tarde.
- Certo - disse Lata de Lixo e depois acrescentou, quase timidamente: - E obrigado. Obrigado por tudo.
- Não me agradeça - disse Lloyd, amigável. - Agradeça a ele.
- Eu o faço - replicou Lixo. - Todas as noites. - Mas falava para si mesmo. Lloyd já estava a meio caminho da descida para o saguão, falando com o homem que trouxera a sopa e o hambúrguer. Lata de Lixo observou-os com ternura até sumirem de vista e então começou a mastigar, comendo vorazmente até quase acabar com tudo. Ele teria se sentido ótimo se não tivesse olhado a tigela de sopa. Era sopa de tomate, e tinha cor de sangue.
Empurrou a tigela para o lado, de repente sem apetite. Era perfeitamente justificável para ele ter dito a Lloyd Henreid que não queria falar a respeito do Garoto; outra coisa bem diferente era querer parar de pensar no que havia acontecido com ele.
Caminhou até a roleta, bebendo o copo de leite que viera junto com a comida. Deu um giro indolente na roleta e deixou cair a bolinha branca no prato. Ela rolou em volta da borda, depois bateu nas ranhuras abaixo e começou a se agitar de um lado para outro. Ele pensou no Garoto. Especulou se alguém viria para mostrar o seu quarto. Pensou no Garoto. Imaginou se a bola iria cair num número vermelho ou preto... mas pensava principalmente no Garoto. A bola irrequieta e balouçante caiu numa das ranhuras, desta vez para valer. A roleta parou. A bola estava assentada debaixo do duplo zero verde.
Rodada vai para a casa.
No dia sem nuvens em que seguiram para oeste a partir de Golden direto para as Rochosas ao longo da Interestadual 70, O Garoto desistira da Coors em favor de uma garrafa de uísque Rebel Yell. Mais duas garrafas aninhavam-se entre eles na corcova do eixo motor, cada qual caprichosamente embrulhada em uma caixa vazia de leite longa vida, de modo que não virassem e se quebrassem. O Garoto tomava um gole da garrafa, arrematava com um gole de Pepsi-Cola e depois gritava cacete! ou iarru! ou máquina do sexo!, no máximo dos seus pulmões. Assinalou várias vezes que só mijaria Rebel Yell, se pudesse. Perguntou a Lata de Lixo se ele acreditava nesta babaquice feliz. Lata de Lixo, pálido de pavor e ainda de ressaca pelas três cervejas da noite anterior, disse que sim.
Nem mesmo O Garoto podia disparar a 120km/h nessas estradas. Reduziu para 90 e resmungou consigo mesmo a respeito daquelas montanhas fedidas. Depois ele se animou.
- Quando chegarmos a Utah e Nevada, vamos recuperar um bocado de tempo perdido, Lixinho. Este queridinho aqui faz mais de 200 numa reta. Acredita nesta babaquice feliz?
- Claro que é um belo carro - disse Lata de Lixo com um sorriso que lembrava um cachorro com o rabo entre as pernas.
- Pode apostar seu cu. - Deu um gole no uísque. Arrematou com Pepsi. Gritou iarru!, com toda a força dos pulmões.
Lixo olhava morbidamente para o cenário que passava, que estava agora banhado pelo sol do meio da manhã. A Interestadual 70 tinha sido aberta a dinamite bem na orla da montanha, e às vezes eles viajavam entre enormes penhascos. Os penhascos apareceram no seu sonho da noite anterior. Iriam aqueles olhos vermelhos aparecer de novo depois que escurecesse?
Ele deu de ombros.
Pouco mais tarde percebeu que a velocidade deles tinha caído de 90 para 60km. Depois para 50km. O Garoto praguejava horrenda e monotonamente consigo mesmo. O carro envenenado serpenteava para dentro e fora do tráfego que engrossava constantemente, todo ele deteriorado e mortalmente silencioso.
- Que porra é esta?! - rugiu O Garoto. - Que foi que eles fizeram? Todos resolveram morrer a 3 mil metros de altitude, caralho? Ei, abram caminho, seus fodidos! Estão me ouvindo? Saiam da porra do meu caminho!
Lata de Lixo encolheu-se.
Dobraram uma curva e depararam com um horrendo engavetamento de quatro carros que bloqueava por completo as pistas da I-70 na direção oeste. Um homem morto coberto de sangue, que havia coagulado até uma desigual superfície esmaltada fendida já há um bom tempo, jazia estatelado de cara na estrada. Perto dele estava uma boneca Chatty Cathy quebrada. Todo o caminho em volta do engavetamento à esquerda estava bloqueado por postes de guardrails de aço com 1,80m de altura. À direita, a terra desaparecia na distância nevoenta.
O Garoto deu um gole no uísque e girou o carro em direção ao abismo.
- Segure-se, Lixinho - sussurrou -, nós vamos contornar.
- Não tem espaço - coaxou Lata de Lixo. Sua garganta parecia o lado de um arquivo de aço.
- Tem sim, espaço bastante - sussurrou O Garoto, os olhos brilhando. Começou a conduzir o carro para fora da estrada. As rodas da direita estavam agora silvando na terra do acostamento.
- Não conte comigo - disse Lata de Lixo apressadamente e agarrou a maçaneta.
- Sente-se aí - ordenou O Garoto -, ou vai virar um escroto morto!
Lixo virou a cabeça e olhou para o orifício do .45. O Garoto ria tensamente.
Lata de Lixo voltou a sentar-se. Ele queria fechar os olhos mas não conseguia. No seu lado do carro, os últimos 15 centímetros de acostamento sumiram de vista. Agora olhava direto para baixo, para uma extensa paisagem de pinheiros cinza-azulados e enormes pedras que tinham rolado do alto. Imaginava os pneus do carro a 10 centímetros do abismo... agora 5...
- Mais um pouquinho - entoou O Garoto, seus olhos arregalados, o sorriso enorme. Suor porejou daquela testa pálida de boneca em gotas claras perfeitas. - Só... mais... um.
Terminou precipitadamente. Lata de Lixo sentiu a traseira direita do carro deslizar de súbito para fora e perigosamente para baixo. Ouviu coisas caindo, primeiro seixos, depois pedras maiores. Gritou. O Garoto praguejava horrivelmente, reduzia para a primeira marcha e pisava fundo no acelerador. Da esquerda, onde passaram raspando pelo cadáver de uma kombi VW, veio um grito horrível de metal esmigalhado.
- Voa! - gritava O Garoto. - Como a porra de um pássaro! VOA, cacete!
As rodas traseiras giraram. Por um momento, o desvio para o abismo pareceu aumentar. Depois o carro impeliu-se â frente, aprumou-se, e estavam de volta à estrada no lado oposto do engavetamento, deixando marcas de pneus.
- Eu disse que o carro ia conseguir! - gritou O Garoto em triunfo. - Porra! Não passamos? Nós passamos, Lixinho, seu puto covarde de merda!
- Nós passamos - disse Lata de Lixo baixinho. Estava todo crispado. Não conseguia controlar isto. E depois, pela segunda vez desde que encontrara O Garoto, disse inconscientemente a única coisa que poderia salvar-lhe a vida. Se não a dissesse, O Garoto por certo o teria matado; esta seria a sua excêntrica maneira de comemorar.
- Grande manobra, campeão. - Ele nunca chamara ninguém de "campeão" em toda a sua vida.
- Ora... não foi lá essas coisas - disse O Garoto, esnobando. - Tem pelo menos mais dois caras no país que poderiam fazer isso. Acredita nesta babaquice feliz?
- Se assim diz, é isso aí, Garoto.
- Não me diga nada, queridinho, eu é que digo a você, porra! Bem, aqui vamos nós. Tudo no trabalho de um dia.
Mas não progrediram por muito tempo. O carro envenenado do Garoto foi parado uns bons 15 minutos depois, a 2.800 quilômetros ou mais desde o seu ponto de origem em Shreveport, Louisiana.
- Eu não acredito - disse O Garoto. - Puta que o pariu... eu não ACREDITO.
Escancarou a porta do lado do motorista e saltou, a garrafa de uísque quase todo consumido ainda aferrada na mão esquerda.
- SAIAM DA MINHA ESTRADA! - rugiu O Garoto, dançando ao redor nos saltos altos grotescos de suas botas, uma força de destruição da natureza em miniatura, como um terremoto engarrafado. - SAIAM DA MINHA ESTRADA, SEUS FILHOS-DA-PUTA, VOCÊS ESTÃO MORTOS, DEVIAM ESTAR NA PORRA DO CEMITÉRIO, NÃO TÊM NADA A VER COM A PORRA DA MINHA ESTRADA!
Arremessou a garrafa de Rebel Yell, que voou, emborcou e aspergiu gotas ambarinas. Espatifou-se numa centena de pedaços contra a lateral de um velho Porsche. O Garoto permaneceu em silêncio, ofegando e cambaleando um pouco sobre os pés.
Desta vez o problema não era tão simples quanto o engavetamento de quatro carros. Desta vez o problema era somente o tráfego. As pistas rumo leste estavam ali separadas daquelas rumo oeste por um canteiro central com uns 100 metros de extensão. O carro envenenado provavelmente poderia passar de um lado para o outro da estrada, mas a condição de ambas as vias era a mesma: as quatro pistas estavam abarrotadas com seis pistas de tráfego, pára-choque contra pára-choque, uma lateral contra outra. Os acostamentos estavam igualmente congestionados. Alguns motoristas tinham até mesmo tentado usar o próprio canteiro central, embora fosse rústico, irregular e cheio de pedras que sobressaíam do fino solo cinzento como dentes de dragão. Talvez veículos de suspensão alta com tração nas quatro rodas tivessem obtido algum sucesso ali, mas o que Lata de Lixo via sobre o canteiro central era um cemitério de automóveis de ferro rolante de Detroit destruído, arranhado e amassado. Era como se uma loucura em massa tivesse infectado todos os motoristas e eles houvessem decidido realizar um concurso apocalíptico de demolição ou uma gincana lunática bem ali no alto da I-70. No cume das Rochosas do Colorado, pensou Lata de Lixo, eu vi chover Chevrolets no céu. Ele quase riu e apressadamente cobriu a boca. Se O Garoto o pegasse rindo agora, o mais provável é que ele nunca riria de novo.
O Garoto veio caminhando de volta nas suas botas de saltos altos, o cabelo esmeradamente penteado reluzindo. Tinha o rosto de um basilisco anão. Os olhos estavam saltados de fúria.
- Não vou abandonar meu carro, porra - disse ele. - Você me ouviu? De jeito nenhum. Não vou abandoná-lo. Você pode caminhar, Lixinho. Dê uma circulada por aí para ver até onde vai a porra desse engarrafamento. Pode ser que tenha um caminhão virado na estrada, não sei. O que sei é que não podemos voltar. Perdemos o acostamento. Teremos que descer todo o caminho. Mas se isso não for apenas um caminhão virado ou coisa parecida, estou cagando e andando. Pularei por cima desses filhos-da-puta, um de cada vez, e os empurrarei direto para a porra do abismo. Posso fazer isso, e é melhor você acreditar nessa babaquice feliz. Mova-se, filho.
Lixo não argumentou. Começou a caminhar cuidadosamente estrada acima, esgueirando-se entre os carros engarrafados. Estava pronto a desistir e correr se O Garoto começasse a atirar. Mas O Garoto não o fez. Quando Lata de Lixo já caminhara pelo que julgava ser uma distância segura (isto é, fora do alcance da pistola), ele subiu em cima de um caminhão-tanque e olhou para trás. O Garoto, uma miniatura de um marginal do inferno, verdadeiramente do tamanho de uma boneca daquela distância, estava recostado no seu carro envenenado, bebendo. Lata de Lixo pensou em acenar-lhe, mas depois decidiu que era má ideia.
O Homem da Lata de Lixo começou a caminhar naquele dia por volta das dez e meia da manhã, horário diurno de montanha. A caminhada era lenta - ele com frequência tinha de passar por cima de capôs e tetos dos carros e caminhões, que estavam tão estreitamente engarrafados - e na hora em que deparou com o primeiro letreiro de TÚNEL FECHADO, já eram 3h15 da tarde. Tinha andado cerca de 15 quilômetros. Não era muito - não para alguém que atravessara 20% do país de bicicleta -, mas, considerando os obstáculos, ele achou que 15 quilômetros era bastante assustador. Podia ter voltado muito tempo antes para dizer ao Garoto que era impossível... se é que ele alguma vez teve quaisquer intenções de voltar. Não tinha, claro. Lata de Lixo nunca lera muito sobre história (depois da terapia de eletrochoque, a leitura se tornara algo um tanto penoso para ele), mas não precisava saber que, nos tempos antigos, reis e imperadores costumavam matar os portadores de más notícias num piscar de olhos. O que sabia era o bastante: já conhecia o suficiente do Garoto para não querer vê-lo nunca mais.
Ficou analisando o letreiro, letras pretas sobre um campo laranja em forma de diamante. Tinha sido nocauteado e deitava-se debaixo de uma roda do que parecia ser o mais velho Yugo do mundo. TÚNEL FECHADO. Que túnel? Espiou à frente, protegendo os olhos com as mãos, e achou que podia ver alguma coisa. Caminhou mais uns 300 metros, passando por cima de carros quando preciso, e chegou a uma confusão alarmante de veículos destruídos e corpos mortos. Alguns dos carros e caminhões tinham pegado fogo até os eixos. Muitos eram veículos militares. Muitos dos corpos estavam vestidos de caqui. Além da cena dessa batalha - Lixo estava inteiramente certo de que tinha sido uma batalha -, o engarrafamento recomeçava. E além dele, a leste e oeste, o tráfego desaparecia nos orifícios gêmeos do que um enorme letreiro pregado na rocha viva proclamava que estavam no TÚNEL EISENHOWER.
Caminhou para mais perto, o coração acelerado, sem sequer saber o que pretendia. Aqueles orifícios gêmeos, forçando seu caminho na rocha, o intimidaram e, à medida que chegava mais perto, a intimidação tornou-se um terror completo. Ele teria entendido perfeitamente os sentimentos de Larry Underwood em relação ao túnel Lincoln; nesse instante eles eram almas gêmeas que não se conheciam, na emoção partilhada de medo supremo.
A principal diferença era que, enquanto a passarela de pedestres do túnel Lincoln ficava acima da pista de rolamento, aqui era tão baixa que alguns carros tinham de fato tentado prosseguir com duas rodas sobre a passarela e as duas outras no asfalto. O túnel tinha 3,5 quilômetros de comprimento. A única maneira de atravessá-lo seria rastejar ao longo de carro a carro na escuridão de breu. Isto levaria horas.
O Homem da Lata de Lixo sentiu os intestinos se liquefazerem.
Permaneceu olhando para o túnel por longo tempo. Larry Underwood, mais de um mês atrás, entrara no seu túnel apesar do medo. Após uma prolongada contemplação, o Homem da Lata de Lixo deu meia-volta e recomeçou a caminhar na direção do Garoto, os ombros arriados, os cantos da boca tremendo. Não foi apenas a ausência de qualquer espaço fácil para caminhar que o fez voltar, ou a extensão do túnel (Lixo, que passara toda a sua vida em Indiana, não fazia ideia do quão extenso era o túnel Eisenhower). Larry Underwood tinha sido impelido (e talvez controlado) por um traço subjacente de egoísmo, pela simples lógica da sobrevivência: Nova York era uma ilha, e ele precisava sair dela. O túnel era o meio mais rápido. Portanto, caminharia através dele o mais depressa que pudesse; iria fazer isto do modo como se aperta o nariz e engole rápido quando se sabe que o remédio é amargo. Lata de Lixo era uma coisa espancada, acostumada a aceitar os golpes e agressões tanto do destino quanto de sua própria natureza inexplicável... e fazer isto de cabeça baixa. Ele havia sido inteiramente emasculado, quase sofrido uma lavagem cerebral, pelo seu encontro cataclísmico com O Garoto. Tinha sido conduzido a velocidades altas o bastante para induzir dano cerebral. Havia sido ameaçado de morte se não bebesse direto uma lata de cerveja e sem vomitar depois. Fora sodomizado com um cano de revólver. Estivera perto de ser jogado 300 metros abaixo da beira do abismo. Coroando tudo isto, poderia ele reunir coragem suficiente para rastejar através de um buraco perfurado direto através da base da montanha, um buraco onde poderia encontrar quem sabe quais horrores na escuridão? Ele não poderia. Outros, talvez, mas não o Homem da Lata de Lixo. E havia também uma certa lógica na ideia de voltar. Era a lógica do espancado e do semilouco, claro, mas ainda tinha o seu próprio encanto perverso. Ele não estava numa ilha. Se tivesse que retroceder pelo resto do dia e todo o dia seguinte a fim de encontrar uma estrada que contornasse as montanhas em vez de passar por dentro delas, ele o faria. Fora obrigado pelo Garoto, era verdade, mas achava que ele poderia ter mudado de ideia e já partido, apesar de sua declaração em contrário. Ou poderia estar caído de bêbado. Ou poderia mesmo (embora Lixo na verdade duvidasse de que uma boa sorte, tão extraordinária, algum dia lhe sorrisse) estar simplesmente morto. Na pior das hipóteses, se O Garoto ainda estivesse lá, observando e esperando, Lata de Lixo poderia esperar até escurecer e então rastejar, passando por ele como
(uma doninha)
algum pequeno animal sob os arbustos. Depois ele iria continuar para leste até encontrar a estrada que estava procurando.
Chegou de volta ao caminhão-tanque de cujo topo tinha visto pela última vez O Garoto e seu mítico carro envenenado, fazendo um tempo melhor na viagem de volta. Desta vez ele não subiu aonde pudesse ser claramente silhuetado contra o céu do anoitecer, mas começou a engatinhar de um carro para outro, tentando ser bem silencioso. O Garoto poderia estar alerta e de tocaia. Nunca se sabia, com um cara como O Garoto... e não valia a pena correr riscos. Viu-se desejando ter apanhado a arma de algum dos soldados, muito embora nunca tivesse usado uma arma na vida. Continuou a engatinhar, os seixos da estrada mordendo dolorosamente suas mãos espalmadas. Eram oito horas, e o sol tinha se posto detrás das montanhas.
Lata de Lixo parou atrás da capota de um Porsche. O Garoto tinha tirado a garrafa da boca e erguido cuidadosamente os olhos sobre ela. Sim, lá estava o carro do Garoto, com sua pintura vistosa em flocos de ouro, seu pára-brisa convexo e a barbatana de tubarão cortando o céu da tardinha cor de sangue. O Garoto estava caído atrás do volante Day-Glo, de olhos fechados e boca aberta. O coração de Lata de Lixo ribombava uma canção de vitória retumbante no seu peito. Caído de bêbado!, proclamavam seus batimentos sincopados. Caído de bêbado! Por Deus! Caído de bêbado! Lixo achava que poderia estar a uns 30 quilômetros a leste dali antes que O Garoto sequer acordasse da ressaca.
Ainda assim, estava cauteloso. Deslocava-se de um carro para outro como uma barata-d’água atravessando a superfície imóvel de um lago, contornando o carro envenenado à sua esquerda, apressando-se através das brechas crescentes. Agora o carro estava às nove horas à sua esquerda, depois sete, agora seis e diretamente atrás dele. Agora, para pôr distância entre ele e aquele louco...
- Seu idiota chupador de pau! Pare onde está!
Lixo imobilizou-se sobre suas mãos e joelhos. Mijou nas calças e sua mente se dissolveu numa escuridão de pânico loucamente agitada.
Voltou-se pouco a pouco, os tendões de seu pescoço rangendo como as dobradiças de uma porta de casa mal-assombrada. E lá estava O Garoto, radiante em uma camisa iridescente de verde e dourado e calças de veludo cotelê desbotadas pelo sol. Havia um .45 em cada mão e uma horrenda careta de ódio em seu rosto.
- Eu estava apenas che-checando este caminho - Lata de Lixo ouviu-se dizendo. - Para ter certeza de que a ba-ba-barra estava limpa.
- Certo... você estava checando de gatinhas, seu escroto! Eu limparei a porra da sua barra. Levante-se!
De alguma maneira, Lata de Lixo conseguiu se levantar e manteve-se de pé apoiado na maçaneta de um carro à sua direita. Os orifícios gêmeos dos .45 do Garoto pareciam tão grandes quanto os orifícios gêmeos do túnel Eisenhower. Estava frente a frente com a morte. Não havia quaisquer palavras que pudessem evitar isto agora.
Dedicou uma prece silenciosa ao homem escuro: Por favor... se for de sua vontade... minha vida por você!
- O que há por lá? - perguntou O Garoto. - Uma colisão?
- Um túnel. Totalmente engarrafado. É por isso que voltei, para lhe contar. Por favor...
- Um túnel - gemeu O Garoto. - Só me faltava essa porra! - A carranca retornou. - Está mentindo pra mim, sua bichona escrota?
- Não! Juro que não! O letreiro dizia túnel Eisenhower. Acho que é o que dizia, mas tenho dificuldade com palavras compridas. Eu...
- Cala a porra dessa boca! A que distância?
- Doze quilômetros. Talvez mais.
O Garoto ficou calado por um momento, olhando a oeste ao longo da estrada. Depois fitou Lata de Lixo com um olhar cintilante.
- Está querendo me dizer que este engarrafamento tem 12 quilômetros? Está mentindo, saco de merda! - O Garoto pôs ambas as armas a meio gatilho. Lata de Lixo, que não distinguiria meio gatilho de gatilho pleno, nem gatilho pleno de um saco de rãs, guinchou como uma mulher e pôs as mãos sobre os olhos.
- Sem sacanagem! Sem sacanagem! - gritou. - Eu juro! Juro!
O Garoto olhou para ele por um bom tempo. Por fim, baixou o cão das armas.
- Vou matar você, Lixinho - disse ele, sorrindo. - Vou tirar a porra de sua vida. Mas primeiro vamos voltar até aquele engavetamento que contornamos esta manhã. Você vai empurrar a kombi pelo abismo. Depois vou voltar e descobrir outro caminho por aí. Não vou abandonar a porra do meu carro - acrescentou, petulante. - De jeito nenhum!
- Por favor, não me mate - sussurrou Lata de Lixo. - Por favor, não!
- Se você conseguir empurrar aquela kombi VW no abismo em menos de 15 minutos, talvez eu não faça isto - disse O Garoto. - Acredita nesta babaquice feliz?
- Sim - disse Lata de Lixo, mas dera uma boa olhada naqueles olhos brilhando de modo sobrenatural, e não acreditou na babaquice feliz.
Caminharam de volta ao engavetamento, Lata de Lixo seguindo à frente do Garoto sobre pernas de borracha vacilantes. O Garoto caminhava de modo afetado, sua jaqueta de couro crepitando suavemente nas suas dobras secretas. Havia um vago e quase doce sorriso nos seus lábios de boneca.
Na hora em que chegaram ao engavetamento, o lusco-fusco quase se fora. A kombi estava tombada de lado, os cadáveres de seus três ou quatro ocupantes um emaranhado de braços e pernas que piedosamente era difícil de ver na luz que declinava com rapidez. O Garoto passou pela kombi e parou no acostamento, olhando para o lugar que tinham contornado cerca de dez horas antes. Uma das marcas de pneu continuava lá, mas a outra tinha sumido à beira do abismo.
- Nada - disse O Garoto, decisivo. - Nunca mais faça isso por aqui de novo, a não ser que a gente faça algum movimento e uma chanfradura, primeiro. Não me diga nada, eu digo a você.
Por um breve momento, Lata de Lixo entreteve a ideia de correr até O Garoto e tentar empurrá-lo no abismo. Então O Garoto voltou-se. Sacara as armas e as apontava casualmente para o peito de Lata de Lixo.
- Ora, Lixinho, você estava tendo maus pensamentos. Não tente me dizer que não. Posso ler você como se fosse a porra de um livro aberto.
Lata de Lixo sacudiu violentamente a cabeça em protesto.
- Não cometa nenhum erro comigo, Lixinho. É a única coisa em todo mundo que você não vai querer fazer. Agora comece a empurrar aquela kombi. Tem 15 minutos.
Havia um Austin estacionado perto do canteiro central quebrado. O Garoto abriu a porta do carona, puxou casualmente para fora o cadáver inchado de uma adolescente (o braço dela soltou-se na sua mão e ele o jogou fora com o ar ausente de um homem que tivesse acabado com a coxa de peru que estivera mordiscando) e sentou-se no assento de costas curvas com seus pés de fora, no asfalto. Gesticulou bem-humorado com seus revólveres para a forma encurvada e estremecida de Lata de Lixo.
- Não perca tempo, bom parceiro. - Ele jogou a cabeça para trás e cantou: - Ah... chegou Johnny com sua pica na mão, é um homem de um bago só e está FORA do ro-deei-o... está certo, Lixinho, seu fodido de merda, bota força nisso, só restam 12 minutos... toda a força à esquerda e toda a força à direita, vamos, seu burro fodido, acerte seu pé direito...
Lixo inclinava-se contra a kombi. Firmou as pernas e empurrou. A kombi moveu-se talvez 5 centímetros para a beira do abismo. No seu coração, a esperança - aquela erva daninha indestrutível do coração humano - recomeçara a brotar. O Garoto era irracional, impulsivo, o que Carley Yates e seus parceiros de sinuca teriam chamado de louco de pedra. Talvez, se ele realmente conseguisse empurrar a kombi no abismo e limpar o caminho para o precioso carro envenenado, o lunático o deixasse viver.
Talvez.
Ele baixou a cabeça, agarrou a beirada da carroceria da kombi e empurrou com todas as suas forças. A dor chamejou no seu braço recentemente queimado, e ele soube que o frágil tecido novo em breve se romperia. Depois a dor se transformaria em agonia.
A kombi moveu-se uns 8 centímetros. O suor gotejava do cenho de Lata de Lixo e escorria por seus olhos, ardendo como óleo de máquina aquecido.
- Ah, chegou Johnny, com sua pica na mão, é um homem de um bago só e está FORA do ro-deeeei-o! - cantou O Garoto. - Bem, toda a força à esquerda e toda...
A canção quebrou-se como um graveto frágil. Lata de Lixo olhou apreensivo para cima. O Garoto pulara fora do assento do Austin. Estava em pé de perfil para Lixo, olhando através daquela parte da estrada para as pistas a leste. Uma encosta rochosa e coberta de mato se elevava além delas, empanando metade do céu.
- Que porra foi isso? - sussurrou O Garoto.
- Não ouvi na...
Então ele ouviu alguma coisa. Ouviu um pequeno chocalhar de seixos e pedras do outro lado da estrada. O sonho voltou-lhe em repentina e total lembrança que congelou seu sangue e evaporou toda a saliva em sua boca.
- Quem está aí? - gritou O Garoto. - É melhor me responder! Responda, caralho, ou vou começar a atirar!
E ele foi atendido, mas não por qualquer voz humana. Um uivo elevou-se na noite como uma sirene áspera, primeiro subindo e depois caindo rapidamente para um rosnado gutural.
- Santo Deus! - exclamou O Garoto, e sua voz soou subitamente fina. Descendo a encosta do lado mais afastado da estrada e atravessando o canteiro central vinham lobos, lobos de montanha cinzentos e lúgubres, os olhos vermelhos, suas mandíbulas abertas e gotejando baba. Havia mais de uma dúzia. Lata de Lixo, num êxtase de terror, urinou de novo nas calças.
O Garoto contornou o porta-malas do Austin, nivelou seus .45 e começou a disparar. Chamas lambiam dos canos; o som dos tiros soou e ressoou das paredes da montanha, parecendo como se uma artilharia estivesse em ação. O Homem da Lata de Lixo gritou e enfiou os dedos indicadores nos ouvidos. A brisa noturna esfarrapou a fumaça de pólvora, fresca, madura e quente. O aroma de cordite ardeu em seu nariz.
Os lobos se acercavam, nem mais rápidos nem mais lentos, num passo acelerado. Os olhos deles... Lata de Lixo descobriu-se incapaz de desviar a vista daqueles olhos. Não eram os olhos de lobos comuns; disso estava plenamente convencido. Eram os olhos de seu Amo, pensou. O Amo deles e seu Amo também. De repente, lembrou-se de uma prece e não sentiu mais medo. Tirou os dedos dos ouvidos. Ignorou a umidade que se espalhava nas entrepernas. Começou a sorrir.
O Garoto esgotara a munição de ambas as armas, abatendo três dos lobos ao fazê-lo. Recolocou as armas nos coldres sem fazer qualquer tentativa para recarregá-las e voltou-se para oeste. Deu cerca de dez passos e depois parou. Mais lobos desciam das pistas a oeste, serpenteando para dentro e para fora da massa volumosa de carros engavetados como esfarrapadas bandeirolas de neblina. Um deles ergueu o focinho para o céu e uivou. Seu uivo foi acompanhado por um segundo, o segundo por um terceiro, o terceiro por um coro completo. Depois continuaram a avançar.
O Garoto começou a recuar. Estava tentando agora municiar um de seus revólveres, mas as balas escapuliam por entre seus dedos nervosos. De repente, ele desistiu. A arma caiu de sua mão e reverberou na estrada. Como se tivesse sido um sinal, os lobos investiram sobre ele.
Com um alto e esganiçado grito de medo, O Garoto virou-se e correu para o Austin. Enquanto corria, seu segundo revólver caiu do coldre baixo e quicou pela estrada. Com um rosnado baixo e dilacerante, o lobo mais próximo saltou sobre ele no justo momento em que O Garoto mergulhava no Austin e batia a porta.
Ele conseguiu, por pouco. O lobo sacudiu a porta, rosnando, seus olhos vermelhos se revirando horrivelmente. Os outros lobos se juntaram ao primeiro e em breve o carro estava cercado de lobos. De dentro, o rosto do Garoto era uma pequena lua branca espiando para fora.
Então um dos lobos se aproximou do Homem da Lata de Lixo, sua cabeça triangular abaixada, os olhos reluzindo como lanternas de tempestade.
Minha vida por você...
Firmemente, pelo menos agora sem medo, Lixo foi ao encontro dele. Estendeu sua mão queimada e o lobo a lambeu. Após um momento, o lobo sentou-se sobre as patas, enrolando sua cauda felpuda e lustrosa.
O Garoto olhava para ele, a boca escancarada.
Com um sorriso nos olhos, o Homem da Lata de Lixo fez um gesto obsceno com o dedo médio.
Com os dois dedos médios.
E gritou:
- Foda-se! Você já era! Está me ouvindo? ACREDITA NESTA BABAQUICE FELIZ? FODA-SE! NÃO ME DIGA NADA, EU DIREI A VOCÊ!
A boca do lobo fechou-se gentilmente na mão boa de Lata de Lixo, que olhou para baixo. O lobo se pôs de pé outra vez, puxando-o delicadamente. Puxando-o para oeste.
- Tudo bem - disse Lata de lixo, sereno. - OK, garoto.
Ele começou a caminhar e o lobo seguiu atrás dele, andando como um cão adestrado. Mais cinco se juntaram a eles, vindo do meio dos carros engavetados. Agora ele caminhava com um lobo à frente dele, outro atrás e dois de cada lado, como um dignitário escoltado.
Fez uma pausa uma vez e olhou para trás por sobre o ombro. Nunca esqueceu o que viu: um anel de lobos sentados pacientemente num círculo cinzento em volta do pequeno Austin, e o pálido círculo do rosto do Garoto olhando para fora, sua boca abrindo-se por trás da janela. Os lobos pareciam rir para O Garoto, suas línguas pendendo das bocas. Pareciam estar lhe perguntando quanto tempo levaria antes que ele apelasse ao homem escuro para sair do sufoco das velhas Batalhas Perdidas. Simplesmente quanto tempo?
Lata de Lixo imaginou quanto tempo aqueles lobos esperariam sentados em volta do velho Austin, cercando-o num círculo de cientes. A resposta, claro, era enquanto durasse. Dois dias, três, até mesmo quatro, talvez. O Garoto ficaria sentado ali, olhando para fora. Sem nada para comer (isto é, a não ser que a adolescente que jogara para fora tivesse tido um passageiro), nada para beber, a temperatura abrasadora no interior do pequeno carro, talvez equivalendo ao efeito de uma estufa. Os cães de guarda do homem escuro esperariam até que O Garoto morresse de fome ou até que ficasse louco o bastante para abrir a porta e tentar uma fuga. Lata de Lixo dava risadinhas na escuridão. O Garoto não era muito grande. Não renderia mais que um naco de carne para cada lobo. E o que comessem poderia muito bem envenená-los.
- Estou certo? - gritou ele e gargalhou para as estrelas brilhantes. - Não venha dizer para mim se você acredita nesta babaquice feliz! Eu é que digo para VOCÊ, porra!
Suas companhias cinzentas fantasmagóricas caminhavam sisudas ao lado dele, indiferentes aos seus gritos. Quando alcançaram o carro envenenado do Garoto, o lobo à retaguarda dele desviou-se até o carro, farejou um dos pneus Wide Ovais e depois, com um arreganho de dentes sardônico, levantou a pata e urinou nele.
Lata de Lixo teve que rir. Riu até lágrimas brotarem dos olhos e escorrerem por suas faces fendidas e com barba por fazer. Sua loucura, como uma frigideira fina, só queria agora o sol do deserto para colocá-la em ebulição e completá-la, para dar-lhe aquele toque final sutil de sabor.
Continuaram caminhando, Lata de Lixo e sua escolta. À medida que o tráfego se tornava mais denso, os lobos ou se contorciam debaixo dos carros, com seus ventres se arrastando na estrada, ou passavam por cima de capôs ou tetos perto dele - companhias silenciosas e sanguíneas com olhos vermelhos e cientes brilhantes. Quando, passando um pouco da meia-noite, alcançaram o túnel Eisenhower, Lata de Lixo não hesitou e seguiu em frente firmemente na coalheira do lado rumando para oeste. Como poderia ter medo agora? Como poderia ter medo com guardiões como aqueles?
Era uma longa viagem, e ele havia perdido toda a noção do tempo quando ela mal havia começado. Seguia em frente cegamente de um carro para o seguinte. Uma vez sua mão afundou em algo molhado e doentiamente macio, e houve um bafo de gás fedorento. Mesmo então, ele não vacilou. De tempos em tempos, via olhos vermelhos no escuro, sempre erguidos à frente, sempre conduzindo-o adiante.
Pouco mais tarde, ele sentiu um novo frescor no ar e começou a apressar-se, uma vez perdendo o equilíbrio e caindo do capo de um carro para bater dolorosamente com o crânio no pára-choque do seguinte. Pouco tempo depois disso, olhou para cima e viu de novo as estrelas, agora empalidecendo ante o romper da aurora. Estava fora.
Sua escolta desaparecera. Mas Lata de Lixo caiu de joelhos e agradeceu numa prece longa e desconexa. Ele vira a mão do homem escuro atuando, e a vira plenamente.
Apesar de tudo que tinha passado desde que acordara na manhã anterior, para ver O Garoto admirando seu penteado no espelho do quarto do Golden Motel, Lixo estava tenso demais para dormir. Em vez disso caminhou, deixando o túnel para trás. O tráfego também estava congestionado no sentido oeste do túnel, mas tinha melhorado o suficiente para caminhar confortavelmente antes que houvesse progredido 3 quilômetros. Ao longo do canteiro central, nas pistas sentido leste, a fila de carros que estiveram esperando para usar o túnel se estendia cada vez mais.
Ao meio-dia, ele começou a descer do Vail Pass para a própria cidade de Vail, passando pelos condomínios e conjuntos residenciais. Agora a fraqueza quase o havia derrotado. Quebrou uma janela, destrancou uma porta, encontrou uma cama. E isso foi tudo de que se lembrou até o início da manhã seguinte.
A beleza do fanatismo religioso é que ele tem o poder de explicar tudo. Uma vez que Deus (ou Satã) seja aceito como a causa primeira de tudo que acontece no mundo mortal, nada é deixado ao acaso... ou mudança. Uma vez que frases encantatórias tais como "vemos agora obscuramente através de um espelho" e "misteriosos são os meios como Ele escolhe seus prodígios a realizar" sejam dominadas, a lógica pode ser alegremente jogada pela janela. O fanatismo religioso é um dos poucos meios infalíveis para responder às fantasias do mundo, porque ele elimina por completo o puro acidente. Para o verdadeiro fanático religioso, isto é tudo que importa.
Foi provavelmente por esta razão que Lata de Lixo conversou com um corvo por quase vinte minutos na estrada a oeste de Vail, convencido de que o pássaro era ou um emissário do homem escuro... ou o próprio homem escuro. O corvo o fitou silenciosamente por longo tempo do alto fio telefônico onde se havia empoleirado, para só voar indo embora quando estivesse entediado ou faminto... ou até que a efusão de louvor e promessas de lealdade de Lata de Lixo fosse completada.
Ele conseguiu outra bicicleta perto de Grand Junction, e por volta de 25 de julho estivera pedalando através do estado de Utah na Rodovia 4, que liga a I-89 no leste, à grande opção para sudoeste da I-15, que segue do norte de Salt Lake City por todo o caminho até San Bernardino, na Califórnia. E quando a roda dianteira da sua nova bicicleta decidiu separar-se de repente de toda a estrutura e seguir em disparada no deserto por sua própria conta, Lata de Lixo foi expelido por cima do guidom para pousar na sua cabeça, um baque que poderia ter fraturado seu crânio (ele estava a 60 quilômetros quando aconteceu, e não usava capacete). Ainda assim, foi capaz de levantar-se menos de cinco minutos depois, com sangue escorrendo sobre o rosto de meia dúzia de cortes e lacerações, capaz de executar sua pequena dança careteira e embaralhada, capaz de entoar:
- Cii-a-bo-la, minha vida por você, Ci-a-hola, pam, pam, pam!
Não havia realmente nada tão reconfortante para o espírito abatido ou um crânio rachado do que uma boa dose forte de "Seja feita vossa vontade’’.
A 7 de agosto, Lloyd Henreid foi ao quarto onde o desidratado e semidelirante Homem da Lata de Lixo fora instalado no dia anterior. Era um quarto confortável no 13º andar do MGM Grand Hotel. Havia uma cama redonda com lençóis de seda e um espelho redondo que parecia ter o tamanho exato da cama, fixado no teto. Lata de Lixo olhou para Lloyd.
- Como se sente, Lixo? - perguntou Lloyd, olhando de volta.
- Bem - respondeu Lata de Lixo. - Melhor.
- Comida, água e repouso, isto é tudo de que você precisa. Eu lhe trouxe roupas limpas. Tive que adivinhar o tamanho.
- Parecem boas. - Lixo na verdade nunca fora capaz de lembrar seu tamanho. Pegou os jeans e a camisa que Lloyd oferecia.
- Desça para o café-da-manhã depois que se vestir - disse Lloyd, falando quase com deferência. - Costumamos comer na deli.
- Tudo bem.
Havia um zunzum de conversa na delicatessen, e ele parou do lado de fora, de repente dominado pelo medo. Todos olhariam para ele quando entrasse. Olhariam e ririam. Alguém começaria a rir baixinho no fundo do salão, alguém mais se juntaria, e então todo o lugar seria um tumulto de riso e dedos apontados.
Ei, esconda seus fósforos, vem aí o Homem da Lata de Lixo!
Ei, Lixo! O que disse a velha Sra. Semple quando você tacou fogo no cheque da pensão dela?
Você mija muito na cama, Lixo?
O suor porejou da sua pele, fazendo-o sentir-se pegajoso apesar da ducha que tomara depois da saída de Lloyd. Ele se lembrou de seu rosto no espelho do banheiro, coberto de crostas de ferida cicatrizando lentamente, seu corpo, macilento demais, os olhos, pequenos demais para suas órbitas escancaradas. Sim, eles ririam. Ficou ouvindo o rumor da conversa, o tilintar dos talhares de prata, e achou que simplesmente deveria escapulir.
Depois, pensou no modo como o lobo havia tomado sua mão, tão gentilmente, e o conduzira para longe do túmulo metálico do Garoto. Então, Lixo aprumou os ombros e entrou no recinto.
Algumas pessoas ergueram a vista brevemente, depois retomaram sua refeição e sua conversa. Lloyd, sentado a uma grande mesa no centro do salão, ergueu um braço e acenou para ele. Lixo abriu caminho por entre as mesas e por baixo de um desativado placar eletrônico Keno. Havia mais três pessoas na mesa. Todos comiam ovos mexidos com presunto.
- Sirva-se - disse Lloyd. - É uma espécie de self-service.
Lata de Lixo pegou uma bandeja e serviu-se. O homem detrás do balcão, gordo e vestindo roupas sujas de cozinheiro, olhou para ele.
- É o Sr. Horgan? - perguntou Lata de Lixo timidamente.
Horgan sorriu, expondo a boca com dentes faltando.
- É isso aí, mas ninguém aqui me chama assim, rapaz. Pode me chamar de Whitey. Está se sentindo melhor? Quando chegou aqui você parecia um caco.
- Muito melhor, claro.
- Sirva-se à vontade. Tudo que quiser. Mas vá devagar com as batatas fritas. Eu o faria, pelo menos. As batatas estão velhas e duras. É bom ter você aqui, garoto.
- Obrigado - disse Lixo.
Ele seguiu de volta à mesa de Lloyd.
- Lixo, este aqui é Ken DeMott. O cara ficando careca é Hector Drogan. E este garoto tentando deixar crescer no rosto os pêlos que sobram no seu cu chama a si mesmo de Maioral.
Todos acenaram de cabeça para ele.
- Este é o nosso novo companheiro - apresentou Lloyd. - Chama-se o Homem da Lata de Lixo.
Mãos se apertaram. Lixo começou a se concentrar nos ovos mexidos. Olhou para o rapaz com a barba irregular e disse, em voz baixa e polida:
- Poderia me passar o sal, Sr. Maioral?
Houve um momento de surpresa enquanto se entreolharam e depois todos gargalharam. Lixo olhou para eles, sentindo o pânico crescer no seu peito, e depois escutou o riso, realmente o escutou, tanto na mente quanto nos seus ouvidos, e compreendeu que não havia nenhuma maldade nele. Ninguém ali iria perguntar-lhe por que não tinha incendiado a escola em vez da igreja. Ninguém ali iria importuná-lo a respeito do cheque de pensão da Sra. Semple. Ele poderia sorrir também, se quisesse. E ele o fez.
- Sr. Maioral - Hector Drogan gargalhava. - Esta é boa, Maioral, você bem que estava merecendo. Sr. Maioral. Adorei. Seeenhor Maaaioral. Cara, essa é boa paca!
Maioral passou o sal para Lata de Lixo.
- Apenas Maioral, isto me basta o tempo todo. É só não me chamar de Sr. Maioral que não irei chamá-lo de Sr. Lixo, tudo bem?
- Tudo bem - disse Lata de Lixo, ainda sorrindo. - Está ótimo.
- Ah, Sr. Maaaioral? - disse Heck Drogan num recatado falsete. A seguir irrompeu de novo em risos. - Maioral, você nunca vai se livrar dessa. Juro que não.
- Talvez não, mas tenho certeza de que vou saber conviver com isso - disse o Maioral e levantou-se com seu prato para buscar mais ovos. Sua mão fechou-se por um momento no ombro de Lata de Lixo enquanto saía da mesa. A mão era quente e firme. Era o tipo de mão amistosa que não aperta ou belisca.
Lata de Lixo voltou-se para seus ovos, sentindo-se cálido e bem por dentro. Este calor e bondade eram tão estranhos à sua natureza que parecia quase uma doença. Enquanto comia, tentava isolar e compreender aquilo. Ergueu a vista, olhou para os rostos à sua volta e achou que poderia compreender o que era.
Felicidade.
Que grupo bacana de pessoas, pensou.
E logo a seguir: Estou em casa.
Naquele dia ele foi deixado à vontade para dormir, mas no dia seguinte estava seguindo de ônibus para a represa de Boulder com um grupo de outras pessoas. Passaram todo o dia enrolando arame de cobre em volta dos fusos de motores queimados. Ele trabalhava numa bancada com vista para a água - o lago Mead - e ninguém o supervisionava. Lata de Lixo presumiu que não havia capataz ou algo parecido porque todos adoravam o que estavam fazendo, tanto como ele próprio. Aprendeu diferentemente no dia seguinte.
Eram 10h15 da manhã. Lata de Lixo estava sentado na bancada, enrolando arame, sua mente a milhões de quilômetros de distância enquanto os dedos faziam seu trabalho. Mentalmente compunha um salmo de louvor para o homem escuro. Ocorrera-lhe que deveria arranjar um livro grande (um Livro, realmente) e começar a escrever alguns de seus pensamentos acerca dele. Seria o tipo de Livro que as pessoas desejariam ler algum dia. Pessoas que sentissem o mesmo que Lata de Lixo em relação a ele.
Ken DeMott aproximou-se, e parecia pálido e assustado sob o seu bronzeado de sol do deserto.
- Vamos - disse ele. - O trabalho está encerrado. Vamos voltar a Las Vegas. Todo mundo. Os ônibus estão lá fora.
- Hã? Por quê? - Lata de Lixo pestanejou para ele.
- Não sei. É ordem dele. Lloyd a transmitiu. Mexa-se, Lixinho. E é melhor não fazer perguntas quando o incorrigível está envolvido.
Ele não fez perguntas. Lá fora, na Hoover Drive, três ônibus da Escola Pública de Las Vegas estavam estacionados, os motores ligados. Homens e mulheres embarcavam. Havia pouca conversa; a volta para Vegas no meio da manhã era a antítese do habitual transporte de ida e volta do trabalho. Não houve gracejos, fofoquinhas, nem nada das habituais zombarias leves entre as vinte e poucas mulheres e os trinta e poucos homens. Todo mundo estava fechado em copas.
Enquanto se aproximavam da cidade, Lata de Lixo ouviu um homem do outro lado dele dizer baixinho ao colega de assento:
- É Heck. Heck Drogan. Puta merda, como é que aquela assombração descobre as coisas?
- Cale a boca - disse o outro e lançou um olhar desconfiado para Lata de Lixo.
Lixo percebeu o olhar e olhou pela janela para o deserto que passava. Sua mente estava mais uma vez perturbada.
- Ah, meu Deus - disse uma das mulheres enquanto desembarcavam, mas o único comentário foi o dela.
Lata de Lixo olhou em volta, intrigado. Todo mundo estava aqui, assim parecia, todo mundo em Cibola. Tinham sido todos chamados de volta, com exceção de uns poucos batedores que estariam em algum lugar desde a península mexicana ao Texas ocidental. Eles foram reunidos num impreciso semicírculo em volta do chafariz, seis e sete de fundo, mais de quatrocentos ao todo. Alguns daqueles na retaguarda subiram em cadeiras do hotel para que pudessem ver, e até Lata de Lixo chegou mais perto. Pensava que era para o chafariz que estavam olhando. Espichando o pescoço, pôde ver que havia alguma coisa jazendo no gramado diante do chafariz, mas não conseguiu distinguir o que era.
Alguém o agarrou pelo cotovelo. Era Lloyd. Seu rosto parecia branco e tenso.
- Estive procurando por você. Ele quer vê-lo mais tarde. Enquanto isso, temos essa coisa. Droga, detesto isso. Venha. Preciso de ajuda e você foi escolhido.
A cabeça de Lata de Lixo rodopiava. Ele queria vê-lo. Ele! Mas, nesse ínterim, havia isto... o que quer que isto fosse.
- O que é, Lloyd? O que é isto?
Lloyd não respondeu. Ainda agarrando levemente o braço de Lata de Lixo, ele o conduziu até o chafariz. A multidão abriu caminho, quase se esquivando deles. O estreito corredor que atravessaram parecia estar isolado por uma fria camada de aversão e medo.
De pé diante da multidão estava Whitney Horgan, que fumava um cigarro. Um de seus tênis Hush Puppies estava apoiado sobre o objeto que Lata de Lixo não conseguira distinguir antes. Era uma cruz de madeira. Sua peça vertical tinha 3,50m de comprimento. Parecia uma rústica letra t minúscula.
- Todo mundo presente? - perguntou Lloyd.
- Sim - disse Whitey. - Acho que estão. Winky fez a chamada. Temos nove caras fora do estado. Flagg disse para não nos preocuparmos com eles. Como está aguentando a barra, Lloyd?
- Estarei nos trinques - disse Lloyd. - Bem, não exatamente, mas você sabe... poderei aguentar isso.
Whitey empinou a cabeça na direção de Lata de Lixo.
- O quanto esse garoto sabe?
- Não sei de nada - disse Lata de Lixo, mais confuso do que nunca. Esperança, reverência e pavor travavam uma incerta batalha dentro dele. - O que é isto? Alguém comentou alguma coisa sobre Heck...
- É, trata-se de Heck - disse Lloyd. - Ele esteve consumindo droga. Cocaína injetável, não que eu tenha algo contra essa porra. Prossiga, Whitey, mande-os trazê-lo para fora.
Whitey se afastou de Lloyd e Lixo, passando por cima de um buraco retangular no solo. O buraco tinha sido emparedado com cimento. Parecia ter exatamente o tamanho e profundidade certos para acolher a ponta inferior da cruz. Enquanto Whitney "Whitey" Horgan subia os largos degraus entre as pirâmides de ouro, o Homem da Lata de Lixo sentiu que toda a saliva de sua boca secava. Voltou-se subitamente, primeiro para a multidão silenciosa, esperando na sua forma de crescente sob o céu azul, depois para Lloyd, que continuava pálido e silencioso, olhando para a cruz e espremendo a cabeça branca de uma espinha no seu queixo.
- Você... nós... vamos pregá-lo? - Lata de Lixo conseguiu dizer por fim. - É disso que se trata?
Lloyd procurou de súbito no bolso de sua camisa desbotada.
- Sabe, consegui uma coisa para você. Ele me deu isto para entregar a você. Não posso obrigá-lo a aceitar, mas é uma coisa danada de boa para mim ter sido lembrado de pelo menos fazer a entrega. Aceita?
Do bolso da lapela ele extraiu um refinado cordão de ouro com uma pedra de âmbar-negro na extremidade. A pedra fendida por um minúsculo ponto vermelho, tal como a de Lloyd. Ele a balançou diante dos olhos do Homem da Lata de Lixo como se fosse um amuleto hipnótico.
A verdade estava nos olhos de Lloyd, clara demais para não ser reconhecida, e Lata de Lixo soube que nunca mais poderia chorar e humilhar-se - não diante dele, não diante de qualquer um, mas - especialmente não diante dele -, e alegar que não havia entendido. Pegue isto e você terá tudo, diziam os olhos de Lloyd. E o que é uma parte de tudo? Ora, Heck Drogan, claro. Heck e o buraco revestido de cimento no chão, o buraco grande apenas o suficiente para receber a extremidade inferior da cruz de Heck.
Entendeu o braço para a pedra lentamente. Sua mão parou pouco antes de os dedos estendidos tocarem o cordão de ouro.
Está é minha última chance. Minha última chance de ser Donald Merwin Elbert.
Mas outra voz, uma que falava com mais autoridade (mas com certa gentileza, como mão fria em testa febril), disse-lhe que a hora das escolhas passara havia muito tempo. Se escolhesse Donald Merwin Elbert agora, ele morreria. Tinha ansiado pelo homem escuro por sua livre e espontânea vontade (se é que tal coisa existia para os Latas de Lixo do mundo), tinha aceitado os favores do homem escuro. O homem escuro o havia salvado da morte nas mãos do Garoto (que o homem escuro pudesse ter mandado O Garoto justamente com esse propósito nunca passou pela cabeça de Lata de Lixo), e certamente isto significava que sua vida era agora um débito que tinha de saldar com o mesmo homem escuro... o homem que alguns aqui chamavam de Turista Andarilho. Sua vida! Ele já não a havia oferecido repetidamente?
Mas e sua alma... ofereceu também sua alma?
Perdido por um, perdido por mil, pensou o Homem da Lata de Lixo e, gentilmente, pôs uma das mãos em torno da corrente de ouro e a outra em volta da pedra negra. A pedra era fria e macia. Ele a manteve no seu punho por um momento só para ver se poderia aquecê-la. Não achou que seria capaz de fazê-lo, e tinha razão. Portanto, a pendurou no pescoço, onde caía sobre sua pele como uma minúscula bola de gelo.
Mas ele não ligou para esta sensação gélida.
A sensação gélida contrabalançava o fogo que sempre estava em sua mente.
- Apenas diga para si mesmo que você não o conhece - disse Lloyd. - Eu me refiro a Heck. É o que sempre faço. Isto torna mais fácil. Isto...
Duas das amplas portas do hotel se escancararam. Gritos aterrorizados e frenéticos chegaram até eles. A multidão suspirou.
Um grupo de nove desceu os degraus. Hector Drogan estava no centro. Lutava como um tigre capturado em uma rede. Seu rosto estava pálido exceto por dois borrões de cor febris subindo de seus malares. Rios de suor escorriam de cada centímetro de sua pele. Estava seminu e cinco homens o seguravam. Um deles era Maioral, o garoto que Heck estivera provocando por causa do seu nome.
- Maioral! - Hector balbuciava. - Ei, Maioral, que você diz? Dê uma pequena ajuda para o garoto aqui, OK! Diga a eles para desistirem disso... eu posso me limpar, juro por Deus que posso limpar minha barra! O que diz? Uma ajudinha! Por favor, Maioral!
Maioral não disse nada; simplesmente apertou mais o braço inútil de Heck. Era resposta suficiente. Hector Drogan recomeçou a chorar. Foi arrastado implacavelmente através do pavilhão até o chafariz.
Atrás dele, caminhando em linha como um solene cortejo fúnebre, vinham três homens: Whitney Horgan, carregando uma bolsa de viagem grande; um homem chamado Roy Hoopes, com uma escada; e Winky Winks, um homem calvo cujos olhos se repuxavam constantemente. Winky carregava uma prancheta com uma folha datilografada presa nela.
Heck foi arrastado até o pé da cruz. Um horrível odor covarde de medo irradiava-se dele; seus olhos reviraram-se, mostrando os brancos lodosos, como os olhos de um cavalo abandonado numa tempestade de trovões.
- Ei, Lixinho - disse ele asperamente enquanto Roy Hoopes colocava a escada atrás dele. - Lata de Lixo, peça a eles para que parem com isto, parceiro. Diga a eles que posso me limpar. Diga a eles que um susto desses é melhor do que todas as porras dos centros de reabilitação do mundo. Diga a eles, cara.
Lata de Lixo ficou olhando para os pés. Enquanto inclinava o pescoço, a pedra negra balançava para fora de seu peito e para dentro do seu campo de visão. A fenda vermelha, o olho, parecia estar olhando acima fixamente para ele.
- Não o conheço - murmurou.
Com o rabo do olho, ele viu Whitey se apoiar num joelho, um cigarro pendendo do canto da boca, seu olho esquerdo semicerrado por causa da fumaça. Ele abriu a bolsa de viagem e foi tirando pregos de madeira afiados. Para horror do Homem da Lata de Lixo, eles pareciam quase tão grandes quanto cunhas de tenda. Depositou os pregos sobre o gramado e depois tirou da bolsa uma enorme marreta de madeira.
Apesar de todas as vozes murmurantes ao redor deles, as palavras de Lata de Lixo pareciam ter penetrado na névoa de pânico da mente de Hector Drogan.
- O que quer dizer? Não me conhece? - gritou ele selvagemente. - Tomamos o café-da-manhã juntos dois dias atrás! Você chamou este garoto aqui de Sr. Maioral. O que quer dizer com essa de que não me conhece, seu mentiroso de merda?
- Não o conheço mesmo - repetiu Lixo, um pouco mais claramente desta vez. E o que sentiu foi quase uma sensação de alívio. Tudo que via ali diante dele era um estranho, um estranho que parecia um pouco com Carley Yates. Sua mão foi para a pedra e se enrolou em torno dela. A frieza da pedra o deixou mais confiante.
- Seu mentiroso! - gritou Heck. Ele recomeçou a lutar, seus músculos se flexionando e bombeando, o suor escorrendo de seu peito e braço nus. - Seu mentiroso! Você me conhece! Conhece sim, mentiroso!
- Não, não conheço. Não o conheço nem quero conhecer.
Heck recomeçou a gritar. Os quatro homens que o agarravam fizeram-no deitar, ofegante e quase sem fôlego.
- Vão em frente - disse Lloyd.
Heck foi arrastado para trás. Um dos homens que o agarravam arremessou a perna e deu-lhe uma rasteira. Ele aterrissou meio sobre a cruz e meio fora dela. Enquanto isso, Winky começara a ler a folha datilografada presa na prancheta numa voz alta que fatiava os gritos de Heck como o gemido de uma serra circular.
- Atenção, atenção, atenção! Por ordem de Randall Flagg, Líder do Povo e Primeiro Cidadão, este homem, Hector Alonzo Drogan, está condenado a ser executado por crucificação, punição assim ordenada pelo crime de uso de droga!
- Não! Não! Não! - gritou Heck em frenético contraponto. Seu braço esquerdo, untuoso de suor, escapou do aperto de Maioral e, instintivamente, Lixo ajoelhou-se e o repôs para baixo, forçando-o contra um braço da cruz. Um segundo depois, Whitey estava ajoelhado ao lado de Lata de Lixo com a marreta de madeira e dois pregos rústicos. O cigarro ainda pendia do canto de sua boca. Ele parecia um homem prestes a fazer um pequeno serviço de carpintaria no quintal dos fundos.
- Isso, segure-o exatamente assim, Lixo. Vou pregá-lo. Não vai levar nem um minuto.
- Uso de droga não é permitido nesta Sociedade do Povo porque prejudica a capacidade do usuário em contribuir plenamente para a Sociedade do Povo - proclamava Winky. Ele falava rápido, como um leiloeiro, e seus olhos se uniam, rangiam e se agitavam. - Especificamente neste caso, o acusado Hector Drogan foi flagrado com toda a parafernália de drogado e com um amplo suprimento de cocaína.
Agora os gritos de Heck alcançaram uma estridência que poderia muito bem ter estilhaçado cristal, se por ali houvesse algum cristal para ser estilhaçado. Sua cabeça chicoteava de um lado a outro. Havia espuma nos seus lábios. Estrias de sangue escorriam de seus braços enquanto seis dos homens, inclusive Lata de Lixo, erguiam a cruz para o fosso cimentado. Agora Hector Drogan silhuetava-se contra o céu com sua cabeça arremessada para trás num ricto de dor.
- ... isto é feito para o bem da Sociedade do Povo - gritava Winky inflexivelmente. - Esta comunicação termina com um aviso solene e saudações ao Povo de Las Vegas. Deixemos que este anúncio dos verdadeiros fatos seja pregado acima da cabeça do descrente, e deixemos que seja marcado com o sinete do Primeiro Cidadão, RANDALL FLAGG.
- Ah, meu Deus, isso DÓI! - berrou Hector Drogan acima deles. - Ah, meu Deus meu Deus Deus Deus!
A multidão permaneceu por quase uma hora, cada pessoa com medo de ficar marcada como tendo sido a primeira a se retirar. Havia desagrado em muitas faces, uma espécie de excitamento entorpecido em muitas outras... mas se houvesse um denominador comum, era medo.
O Homem da Lata de Lixo não estava assustado, porém. Por que deveria ter ficado assustado? Ele não tinha conhecido o homem.
Não o tinha conhecido, afinal.
As 10h15 daquela noite, Lloyd voltou ao quarto do Homem da Lata de Lixo. Olhou para ele e disse:
- Você está vestido. Ótimo. Pensei que já tivesse ido para a cama.
- Não - respondeu Lata de Lixo. - Estou de pé. Por quê?
A voz de Lloyd baixou.
- É agora, Lixinho. Ele quer vê-lo. Flagg.
- Ele...?
- É.
Lata de Lixo ficou eufórico.
- Onde ele está? Minha vida por ele, ah, sim...
- No terraço - disse Lloyd. - Chegou logo depois que acabamos de cremar o corpo de Drogan. Veio da Costa. Ele estava bem aqui quando Whitey e eu voltamos do aterro sanitário. Ninguém nunca o vê chegar ou partir, Lixo. Mas sempre se sabe quando vai partir de novo. Ou quando ele volta. Vamos, vamos indo.
Quatro minutos depois, o elevador chegava ao último andar e o Homem da Lata de Lixo desembarcou, o rosto animado, os olhos muito abertos. Lloyd não saltou. Lixo se voltou para ele.
- Você não...?
Lloyd forçou um sorriso, mas foi uma tentativa frustrante.
- Não, ele quer ver você sozinho. Boa sorte, Lixo.
E antes que Lata de Lixo pudesse dizer alguma coisa, a porta do elevador deslizou para fechar-se e Lloyd sumiu de vista.
Lata de Lixo olhou em torno. Estava em um amplo e suntuoso corredor. Havia duas portas... e a que ficava no final se abriu lentamente. Estava escuro lá. Mas Lixo podia distinguir uma forma parada à porta. E olhos. Olhos vermelhos.
Com o coração tamborilando lentamente no peito, a boca seca, Lata de Lixo começou a caminhar em direção àquela forma. Enquanto o fazia, o ar foi parecendo ficar cada vez mais frio. Seus braços curtidos pelo sol se arrepiaram. Em algum lugar, bem fundo dentro dele, o cadáver de Donald Merwin Elbert revirou-se na sepultura e pareceu gritar.
Depois, aquietou-se de novo...
As 10h15 daquela noite, Lloyd voltou ao quarto do Homem da Lata de Lixo. Olhou para ele e disse:
- Você está vestido. Ótimo. Pensei que já tivesse ido para a cama.
- Não - respondeu Lata de Lixo. - Estou de pé. Por quê?
A voz de Lloyd baixou.
- É agora, Lixinho. Ele quer vê-lo. Flagg.
- Ele...?
- É.
Lata de Lixo ficou eufórico.
- Onde ele está? Minha vida por ele, ah, sim...
- No terraço - disse Lloyd. - Chegou logo depois que acabamos de cremar o corpo de Drogan. Veio da Costa. Ele estava bem aqui quando Whitey e eu voltamos do aterro sanitário. Ninguém nunca o vê chegar ou partir, Lixo. Mas sempre se sabe quando vai partir de novo. Ou quando ele volta. Vamos, vamos indo.
Quatro minutos depois, o elevador chegava ao último andar e o Homem da Lata de Lixo desembarcou, o rosto animado, os olhos muito abertos. Lloyd não saltou. Lixo se voltou para ele.
- Você não...?
Lloyd forçou um sorriso, mas foi uma tentativa frustrante.
- Não, ele quer ver você sozinho. Boa sorte, Lixo.
E antes que Lata de Lixo pudesse dizer alguma coisa, a porta do elevador deslizou para fechar-se e Lloyd sumiu de vista.
Lata de Lixo olhou em torno. Estava em um amplo e suntuoso corredor. Havia duas portas... e a que ficava no final se abriu lentamente. Estava escuro lá. Mas Lixo podia distinguir uma forma parada à porta. E olhos. Olhos vermelhos.
Com o coração tamborilando lentamente no peito, a boca seca, Lata de Lixo começou a caminhar em direção àquela forma. Enquanto o fazia, o ar foi parecendo ficar cada vez mais frio. Seus braços curtidos pelo sol se arrepiaram. Em algum lugar, bem fundo dentro dele, o cadáver de Donald Merwin Elbert revirou-se na sepultura e pareceu gritar.
Depois, aquietou-se de novo.
- O Homem da Lata de Lixo - disse uma voz grave e agradável. - Como é bom tê-lo aqui. Muito bom mesmo!
As palavras lhe caíram da boca como poeira:
- Minha... minha vida por você.
- Sim - disse suavemente a forma parada à porta. Os lábios se entreabriram e dentes brancos exibiram-se num sorriso. - Mas não acho que tenha vindo para isso. Entre. Deixe-me olhar para você.
Os olhos cintilando, o rosto tão estonteado como o de um sonâmbulo, Lata de Lixo entrou no aposento. A porta se fechou e ficaram na penumbra. A mão terrivelmente quente se fechou sobre a de Lata de Lixo, naquele momento gelado... e, de súbito, ele ficou em paz.
Flagg disse:
- Há trabalho para você no deserto, Lixo. Um grande trabalho. Se você quiser.
- Qualquer coisa - murmurou Lata de Lixo. - Farei qualquer coisa.
Randall Flagg deslizou um braço em torno de seus ombros fatigados.
- Colocarei você para incendiar - disse ele. - Venha, vamos beber alguma coisa e falar a respeito.
E, por fim, aquele incêndio era imenso.
QUANDO LUCY SWANN ACORDOU, faltavam 15 minutos para a meia-noite pelo relógio Pulsar modelo feminino que ela usava. Havia relâmpagos silenciosos a oeste, onde ficavam as montanhas - as Rochosas, retificou com certa reverência. Antes desta viagem ela nunca estivera a oeste de Filadélfia, onde morava seu cunhado. Havia morado.
A outra metade do saco duplo de dormir estava vazia; era isso que a tinha acordado. Pensou em apenas virar para o outro lado e continuar a dormir - ele voltaria para a cama quando estivesse pronto -, mas então levantou-se e caminhou silenciosamente para onde imaginava encontrá-lo, no lado oeste do acampamento. Caminhou com cautela, sem incomodar vivalma. Exceto o juiz, claro; seu turno de vigia era das dez à meia-noite e ninguém jamais surpreenderia o juiz Farris cochilando em serviço. O juiz tinha setenta anos e se juntara ao grupo em Joliet. Agora eram 19 ao todo: 15 adultos, três crianças e Joe.
- Lucy? - chamou o juiz em voz baixa.
- Sim. O senhor viu...
Uma risadinha contida.
- Claro que vi. Ele foi lá para a rodovia. Para o mesmo lugar da noite de ontem e anteontem.
Ela chegou mais perto e viu que ele tinha sua Bíblia aberta sobre os joelhos.
- Juiz, vai prejudicar sua vista lendo no escuro.
- Bobagem. O brilho das estrelas é a melhor luz para isto aqui. Talvez a única luz. O que acha disto? "Não tem porventura o homem um tempo designado sobre a Terra? Não são seus dias como os dias de um assalariado? Como o servo que aspira pela sombra e como o assalariado que espera a paga pelo seu trabalho: assim me deram por herança meses de vaidade, e noites de trabalho me foram designadas. Deitando-me a dormir, então digo: Quando me levantarei? Mas comprida é a noite, e farto-me de me voltar na cama até a alva."
- Isso é profundo - disse Lucy sem muito entusiasmo. - Muito bonito, juiz.
- Não é bonito, é Jó. Nada existe de bonito no Livro de Jó, Lucy. - Ele fechou a Bíblia. - "E farto-me de me voltar na cama até a alva." Aí está seu homem, Lucy; isto retrata Larry Underwood à perfeição.
- Sei disso - replicou ela e suspirou. - Se ao menos eu soubesse o que há de errado com ele...
O juiz, que tinha suas suspeitas, ficou calado.
- Não podem ser os sonhos - disse ela. - Ninguém os tem tido mais, a não ser que Joe seja a exceção. E Joe... ele é diferente.
- É, sim. Pobre garoto.
- E todo mundo está saudável. Pelo menos desde que a Sra. Vollman morreu. - Dois dias após o juiz ter se juntado ao grupo, um casal que se apresentou como Dick e Sally Vollman tinha chegado com Larry e seu sortido séquito de sobreviventes. Lucy achou bastante improvável que a gripe houvesse poupado um homem e sua esposa e desconfiou de que o casamento deles fosse do tipo consensual e extremamente recente. Ambos estavam na casa dos quarenta anos e pareciam muito apaixonados. Então, uma semana atrás, na casa da velha em Hemingford Home, Sally Vollman adoecera. Acamparam por dois dias, esperando impotentes que ela...
Stephen King
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