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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A DANÇA DA MORTE - P.3 / Stephen King
A DANÇA DA MORTE - P.3 / Stephen King

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

QUANDO LUCY SWANN ACORDOU, faltavam 15 minutos para a meia-noite pelo relógio Pulsar modelo feminino que ela usava. Havia relâmpagos silenciosos a oeste, onde ficavam as montanhas - as Rochosas, retificou com certa reverência. Antes desta viagem ela nunca estivera a oeste de Filadélfia, onde morava seu cunhado. Havia morado.

 

 

A outra metade do saco duplo de dormir estava vazia; era isso que a tinha acordado. Pensou em apenas virar para o outro lado e continuar a dormir - ele voltaria para a cama quando estivesse pronto -, mas então levantou-se e caminhou silenciosamente para onde imaginava encontrá-lo, no lado oeste do acampamento. Caminhou com cautela, sem incomodar vivalma. Exceto o juiz, claro; seu turno de vigia era das dez à meia-noite e ninguém jamais surpreenderia o juiz Farris cochilando em serviço. O juiz tinha setenta anos e se juntara ao grupo em Joliet. Agora eram 19 ao todo: 15 adultos, três crianças e Joe.

 

- Lucy? - chamou o juiz em voz baixa.

 

- Sim. O senhor viu...

 

Uma risadinha contida.

 

 

 

 

- Claro que vi. Ele foi lá para a rodovia. Para o mesmo lugar da noite de ontem e anteontem.

 

Ela chegou mais perto e viu que ele tinha sua Bíblia aberta sobre os joelhos.

 

- Juiz, vai prejudicar sua vista lendo no escuro.

 

- Bobagem. O brilho das estrelas é a melhor luz para isto aqui. Talvez a única luz. O que acha disto? "Não tem porventura o homem um tempo designado sobre a Terra? Não são seus dias como os dias de um assalariado? Como o servo que aspira pela sombra e como o assalariado que espera a paga pelo seu trabalho: assim me deram por herança meses de vaidade, e noites de trabalho me foram designadas. Deitando-me a dormir, então digo: Quando me levantarei? Mas comprida é a noite, e farto-me de me voltar na cama até a alva."

 

- Isso é profundo - disse Lucy sem muito entusiasmo. - Muito bonito, juiz.

 

- Não é bonito, é Jó. Nada existe de bonito no Livro de Jó, Lucy. - Ele fechou a Bíblia. - "E farto-me de me voltar na cama até a alva." Aí está seu homem, Lucy; isto retrata Larry Underwood à perfeição.

 

- Sei disso - replicou ela e suspirou. - Se ao menos eu soubesse o que há de errado com ele...

 

O juiz, que tinha suas suspeitas, ficou calado.

 

- Não podem ser os sonhos - disse ela. - Ninguém os tem tido mais, a não ser que Joe seja a exceção. E Joe... ele é diferente.

 

- É, sim. Pobre garoto.

 

- E todo mundo está saudável. Pelo menos desde que a Sra. Vollman morreu. - Dois dias após o juiz ter se juntado ao grupo, um casal que se apresentou como Dick e Sally Vollman tinha chegado com Larry e seu sortido séquito de sobreviventes. Lucy achou bastante improvável que a gripe houvesse poupado um homem e sua esposa e desconfiou de que o casamento deles fosse do tipo consensual e extremamente recente. Ambos estavam na casa dos quarenta anos e pareciam muito apaixonados. Então, uma semana atrás, na casa da velha em Hemingford Home, Sally Vollman adoecera. Acamparam por dois dias, esperando impotentes que ela melhorasse ou morresse. Ela havia morrido. Dick Vollman continuava com eles, mas era um homem diferente - calado, pensativo, pálido.

 

- Larry está levando isto tudo muito a sério, não está? - perguntou ela ao juiz Farris.

 

- Larry é um homem que encontrou a si mesmo relativamente tarde na vida - disse o juiz, pigarreando. - Pelo menos, assim me parece. Quando isso acontece aos homens, eles nunca se mostram seguros. Eles são todas as coisas de que nos falam os livros de civismo acerca de como deveriam ser os bons cidadãos: dedicados mas nunca fanáticos, respeitadores dos fatos que envolvem cada situação mas nunca deturpando tais fatos, pouco à vontade em postos de liderança mas raramente rejeitando uma responsabilidade que lhes tenha sido oferecida... ou a confiança neles depositada. Eles se tornam os melhores líderes em uma democracia, porque é improvável que se apaixonem pelo poder. Pelo contrário. E quando as coisas dão errado... quando morre uma Sra. Vollman...

 

O juiz interrompeu a si mesmo:

 

- Poderia ter sido diabetes? Acho bem provável. A pele cianótica, a rápida entrada em coma... é possível, é possível. Mas, se assim foi, onde estava sua insulina? Poderia ela ter se deixado morrer? Poderia ter sido suicídio?

 

O juiz fez uma pausa para refletir, as mãos entrelaçadas debaixo do queixo. Parecia uma negra ave de rapina à espreita.

 

- O que quer dizer acerca de quando as coisas dão errado? - incentivou ela gentilmente.

 

- Quando as coisas dão errado... quando uma Sally Vollman morre, seja de diabetes, de hemorragia interna ou do que for... um homem como Larry culpa a si mesmo. Os homens idolatrados pelos livros cívicos raramente têm um bom final. Melvin Purvis, o superagente federal dos anos 30, matou-se com sua própria pistola de serviço em 1959. Quando Lincoln foi assassinado, era um homem prematuramente envelhecido, à beira de um colapso nervoso. Estamos acostumados a testemunhar a decadência dos presidentes diante de nossos próprios olhos, de mês a mês e até de semana, em cadeia nacional de TV... com exceção de Nixon, é claro, que cobiçava o poder como um morcego-vampiro cobiça o sangue, e Reagan, que parecia um tanto imbecil demais para envelhecer. Acho que Gerald Ford também era assim.

 

- Creio que existe algo mais - disse Lucy tristemente.

 

Ele olhou para ela com ar indagador.

 

- Como foi isso? Já me saturei de vê-lo voltar-se na cama até a alva.

 

Ele assentiu e ela acrescentou:

 

- Uma bela descrição de um homem apaixonado, não é?

 

O juiz olhou para ela, surpreso por vê-la saber tudo sobre uma coisa que ele não diria. Lucy deu de ombros, sorriu com um trejeito amargo dos lábios.

 

- As mulheres sabem - disse. - As mulheres quase sempre sabem.

 

Antes que o juiz pudesse replicar, ela já seguia rumo à rodovia, onde Larry deveria estar, sentado e pensando em Nadine Cross.

 

- Larry?

 

- Estou aqui - respondeu ele, lacônico. - O que está fazendo ainda acordada?

 

- Senti frio - disse ela. Larry sentava-se de pernas cruzadas numa pedra à beira da estrada, como que meditando. - Há lugar para mim?

 

- Claro. - Ele cedeu-lhe espaço. A pedra continuava um pouco aquecida com o calor daquele dia, que agora estava amainando. Ela sentou-se. Larry a enlaçou com um braço. Segundo os cálculos de Lucy, deviam estar a uns 80 quilômetros a leste de Boulder. Se começassem a rodar pelas nove da manhã, chegariam à Zona Franca de Boulder para o almoço.

 

Foi o homem no rádio que a chamou de Zona Franca de Boulder; seu nome era Ralph Brentner e ele disse (com algum embaraço) que a Zona Franca de Boulder era principalmente um prefixo de rádio, mas Lucy gostou do nome, pelo modo como soava. Parecia correto. Parecia como um novo começo. E Nadine Cross havia adotado o nome com um zelo quase religioso, como se ele fosse um talismã.

 

Três dias depois que Larry, Nadine, Joe e Lucy haviam chegado a Stovington e encontrado o centro de epidemias deserto, Nadine sugerira que arranjassem um rádio da faixa do cidadão e começassem a tentar os quarenta canais. Larry aceitara a ideia de muito bom grado - da maneira como aceitava a maioria das ideias, pensou Lucy. Ela não compreendia Nadine Cross de jeito nenhum. Larry estava gamado por aquela mulher, era óbvio, porém Nadine não queria ligar-se muito a ele fora da rotina diária.

 

De qualquer modo, a ideia do rádio FC tinha sido boa, ainda que produzida por um cérebro que era um bloco de gelo (exceto em relação a Joe). Seria o meio mais fácil de localizar outros grupos, dissera Nadine, e combinarem um ponto de encontro.

 

Isto provocara debates perplexos no grupo, que naquela ocasião já totalizava seis pessoas com a inclusão de Mark Zellman, que tinha sido soldador na parte norte de Nova York, e Laurie Constable, uma enfermeira de 26 anos. E a perplexa discussão levara a outro debate perturbado relativo aos sonhos.

 

Laurie o iniciara, protestando que eles sabiam exatamente para onde estavam indo. Seguiam o engenhoso Harold Lauder e seu grupo para Nebraska. É claro que assim faziam, e pelo mesmo motivo. A força dos sonhos era simplesmente poderosa demais para ser negada.

 

Após idas e vindas sobre o tema, Nadine ficara histérica. Ela não tivera sonhos - repetindo: nenhum dos malditos sonhos. Se eles queriam praticar auto-hipnose mutuamente, tudo bem. Enquanto houvesse uma base racional atraindo-os para Nebraska, como o aviso na instalação de Stovington, ótimo. No entanto, queria deixar bem claro que não estava acompanhando o grupo baseando-se num punhado de balelas metafísicas. Se todos eles concordassem com isso, ela preferia depositar sua fé em rádios, não em visões.

 

Mark se virara para a tensa Nadine com um sorriso amistoso, dizendo:

 

- Se você não tem tido sonhos, como é que me fez acordar esta noite, quando falava durante o sono?

 

Nadine ficou branca como papel.

 

- Está me chamando de mentirosa? - quase gritou. - Porque, se estiver, um de nós dois vai sair deste grupo agora mesmo! - Joe encolheu-se contra ela, estremecendo.

 

Larry contornara o dilema ao concordar com a ideia do rádio FC. E assim, na última semana, mais ou menos, começaram a captar transmissões, não de Nebraska (uma ideia abandonada antes mesmo de concretizada - os sonhos lhes disseram que não fossem para lá, mas até mesmo os sonhos vinham se desvanecendo, perdendo a insistência), mas sim de Boulder, Colorado, novecentos e tantos quilômetros para oeste - sinais irradiados pelo potente transmissor de Ralph.

 

Lucy ainda recordava os rostos eufóricos, quase extasiados dos outros enquanto o sotaque arrastado de Oklahoma de Ralph Brentner soava anasalado em meio à estática.

 

- Aqui é Ralph Brentner, Zona Franca de Boulder. Se está me ouvindo, responda pelo Canal 14. Repetindo: Canal 14.

 

Podiam ouvi-lo, porém não possuíam um transmissor com potência suficiente para responder, não por enquanto. No entanto, haviam chegado mais perto e, desde aquela transmissão inicial, ficaram sabendo que a velha, chamada Abagail Freemantle (embora Lucy sempre pensasse nela como Mãe Abagail) e seu grupo tinham sido os primeiros a chegar, mas desde então as pessoas vinham chegando em duplas e trios, e até em grupos grandes de trinta. Já havia duzentas pessoas em Boulder quando Brentner fez o primeiro contato com eles; neste entardecer, ao conversarem de lá para cá - o FC deles agora já estava a uma distância em que era alcançado com facilidade -, eles já somavam 350 pessoas. O próprio grupo deles estava com quase quatrocentas.

 

- Um centavo por seus pensamentos - disse Lucy a Larry, pondo a mão no braço dele.

 

- Estava pensando nesse relógio e na morte do capitalismo - respondeu ele, apontando para o Pulsar de Lucy. - Antes era lutar com unhas e dentes e vencer... ou perecer. Quem lutasse com mais dureza ficava com o Cadillac vermelho, azul e branco e com o relógio Pulsar. Agora temos a verdadeira democracia. Qualquer dama na América pode ter um Pulsar digital e um casaco de mink azulado. - Ele riu.

 

- Talvez - disse ela -, mas quero lhe dizer uma coisa, Larry. Posso não saber muita coisa sobre capitalismo, mas sei algo sobre este relógio de mil dólares. Sei que não é tão bom quanto se pensa.

 

- Não? - Larry se virou para ela, surpreso e sorrindo. Era apenas um leve sorriso, mas autêntico. Lucy ficou feliz em ver o sorriso dele... um sorriso dirigido a ela. - Por que não?

 

- Porque ninguém mais sabe que horas são - disse Lucy, petulante. - Quatro ou cinco dias atrás, perguntei ao Sr. Jackson, a Mark e a você, um depois do outro, e todos me deram horas diferentes e disseram que seus relógios tinham parado pelo menos uma vez... Lembra-se daquele lugar onde marcam a hora do mundo? Li um artigo numa revista, certa vez, quando estava num consultório médico. Era impressionante. Eles haviam acertado o tempo até o micromicrossegundo. Dispunham de pêndulos, de relógios de sol, tudo que se possa imaginar. Agora às vezes fico pensando nesse lugar e isso simplesmente me deixa furiosa. Todos os relógios já devem ter parado, mas trago no pulso um relógio Pulsar de mil dólares, que surrupiei de uma joalheria, e ele não marca o tempo corrigido até o segundo solar, como deveria. Por causa da gripe. Dessa maldita gripe!

 

Ela se calou e eles ficaram sentados juntos, sem falar por algum tempo. Então Larry apontou para o céu.

 

- Veja!

 

- O quê? Onde?

 

- Três horas em ponto. Duas, agora.

 

Ela olhou, mas só viu o que ele estava apontando depois que Larry pressionou as mãos cálidas contra os lados de seu rosto, virando-o para o quadrante correto do céu. Então ela viu e a respiração ficou presa na sua garganta. Uma luz viva, brilhante como uma estrela, mas firme, sem tremeluzir. Ela voou rapidamente, cruzando o céu na direção leste-oeste.

 

- Meu Deus! - exclamou ela. - É um avião, não é, Larry? Um avião?

 

- Não. É um satélite terrestre. Ficará girando e girando lá no alto, provavelmente pelos próximos setecentos anos.

 

Sentaram-se e observaram até o satélite desaparecer por trás da massa escura das Rochosas.

 

- Larry - disse ela suavemente. - Por que Nadine não admite? A respeito dos sonhos?

 

Ele enrijeceu quase imperceptivelmente, fazendo Lucy desejar não ter abordado o assunto. Entretanto, agora que já o fizera, estava determinada a seguir em frente... a não ser que ele a cortasse inteiramente.

 

- Ela diz que nunca tem quaisquer sonhos.

 

- Mas deve tê-los, sim... Mark estava certo sobre isso. E ela fala durante o sono. Falava tão alto uma noite que chegou a me acordar.

 

Ele olhava para ela agora. Após um longo momento, perguntou:

 

- O que dizia ela?

 

Lucy pensou, tentando recordar corretamente.

 

- Ela se debatia no saco de dormir, enquanto repetia: "Não, isso é frio demais, não, eu não suportaria que você fizesse isso, é frio demais, muito frio!" Então, começou a puxar os cabelos. Começou a puxar os próprios cabelos no sono. E a gemer. Cheguei a ter calafrios.

 

- As pessoas podem ter pesadelos, Lucy. Isto não significa que sejam sobre... bem, sobre ele.

 

- É "melhor não se falar muito nele depois do escurecer, não acha?

 

- Sim, é melhor.

 

- Ela age como se estivesse se desembaraçando, Larry. Entende o que eu quero dizer?

 

- Entendo. - Ele sabia. Embora Nadine insistisse em dizer que não sonhava, houvera círculos castanhos sob seus olhos na hora em que chegaram a Hemingford Home. Sua massa magnífica de fartos cabelos estava perceptivelmente mais branca. E se alguém a tocasse, ela saltava. Ela se encolhia.

 

- Você a ama, não? - perguntou Lucy.

 

- Ah, Lucy - disse ele, em tom de reprovação.

 

- Não, eu só queria saber... - Sacudiu violentamente a cabeça ao ver a expressão dele. - Preciso dizer isto. Percebo a maneira como olha para ela... a maneira como ela olha para você às vezes, quando você está ocupado com alguma coisa e... é visível. Ela o ama, Larry. No entanto, tem medo.

 

- Medo de quê? Medo de quê?

 

Larry recordou sua tentativa de fazer amor com ela, três dias após o fiasco de Stovington. Desde então, Nadine ficara cada vez mais reservada - ainda se mostrava alegre às vezes, mas agora era óbvio que se esforçava para parecer alegre. Joe tinha pegado no sono. Larry fora sentar-se ao lado dela e, por algum tempo, ficaram conversando, não sobre a situação atual, mas sobre as velhas coisas, as coisas seguras. Larry tentara beijá-la. Ela o repeliu, virando a cabeça, mas antes que ele sentisse as coisas que Lucy acabara de lhe dizer. Ele havia tentado de novo, sendo rude e gentil ao mesmo tempo, desejando-a com uma ânsia desesperada. E por um instante apenas ela havia cedido a ele, mostrado a ele como poderia ser, se...

 

Então ela rompeu o contato e foi embora, os braços cruzados sobre os seios, as mãos segurando os cotovelos, a cabeça baixa.

 

Não tome a fazer isto, Larry. Por favor, não. Ou pegarei Joe e irei embora.

 

Por quê? Por que, Nadine? Por que isso tem de ser tão complicado assim?

 

Ela não havia respondido. Simplesmente permanecera naquela postura de cabeça baixa, já tendo se iniciado aqueles pontos escuros debaixo dos olhos.

 

Se pudesse contar-lhe, eu o faria, disse ela por fim e se afastou sem olhar para trás.

 

- Tive uma amiga que certa vez agiu mais ou menos assim - disse Lucy. - Foi no meu último ano no ginásio. O nome dela era Joline. Joline Majors. Ela não estava mais no colégio. Largou os estudos quando se casou com seu namorado, que era da Marinha. Joline estava grávida quando se casaram, mas ela perdeu o bebê. O marido ficava ausente por muito tempo e Joline... bem, ela gostava de divertir-se. Adorava cair na gandaia e o marido era um bocado ciumento. Avisou-a de que se descobrisse o que ela fazia na sua ausência, quebraria seus dois braços e lhe deixaria o rosto desfigurado. Você pode imaginar que vida deve ter sido? O marido chega em casa e diz: "Estou embarcando agora, meu amor. Me dê um beijo e depois daremos uma boa trepada. Por falar nisso, se eu voltar e alguém me disser que você andou transando por aí, quebro-lhe os braços e desfiguro o seu rosto."

 

- É, isso não foi uma boa.

 

- Então, passado algum tempo, ela conheceu um cara - continuou Lucy. - Ele era assistente do instrutor de educação física na Burlington High. Eles ficavam se esgueirando, sempre olhando por cima dos ombros, e não sei se o marido dela botou alguém para espioná-los, mas, passado algum tempo, isto deixou de preocupar. E foi aí que Joline começou a ficar realmente grilada. Sempre que via um homem esperando o ônibus na esquina, ela achava que era um dos amigos do marido. Ou então o vendedor que se registrava no motel, atrás dela e de Herb. Ela pensava isto mesmo se o motel ficasse no interior do estado de Nova York. Ou até mesmo o guarda que lhes dava informações a respeito do local de um piquenique. Isto se tornou tão grave que ela soltava um gritinho se o vento fazia uma porta bater, e pulava toda vez que alguém subia suas escadas. E como morava num prédio dividido em sete pequenos apartamentos, sempre havia alguém subindo as escadas. Herb ficou assustado e a largou. Ele não tinha medo do marido de Joline... passou a ter medo dela. E pouco antes que seu marido voltasse de licença, Joline teve um colapso nervoso. Tudo porque gostava de fazer amor um pouco demais... e porque o marido era louco de ciúmes. Nadine me lembra esta garota, Larry. Lamento por ela. Não gosto muito de Nadine, acho, mas lamento sinceramente. Ela parece estar muito mal.

 

- Está querendo dizer que Nadine tem medo de mim, da maneira como essa garota tinha medo do marido?

 

Lucy respondeu:

 

- Talvez. E lhe digo mais isto: quem quer que seja o marido de Nadine, ele não está aqui.

 

Larry gargalhou, um tanto sem jeito.

 

- Será melhor irmos dormir. Amanhã vai ser um dia duro.

 

- Sim - disse Lucy, achando que ele não entendera uma palavra do que tinha dito. E de repente irrompeu em lágrimas.

 

- Ei! - disse ele. - Ei! - Tentou enlaçá-la com o braço.

 

Ela o repeliu.

 

- Você está conseguindo de mim o que quer. Não precisa fazer isso!

 

Ainda havia nele o bastante do antigo Larry para especular se as palavras de Lucy não teriam sido ouvidas no acampamento.

 

- Lucy, eu nunca torci seu braço - replicou, carrancudo.

 

- Ah, como pode ser tão idiota? - gritou ela, dando-lhe um tapa na perna. - Por que os homens são tão idiotas, Larry? Tudo que podem ver é o que está preto no branco. Não, você nunca torceu meu braço. E não sou como ela. Você poderia torcer-lhe o braço e ela ainda cuspiria no seu olho e cruzaria as pernas. Os homens têm nomes para garotas como eu, que escrevem nas paredes dos banheiros, ouvi dizer. Mas tudo é assim, tudo se resume em precisar de alguém que seja terno, em precisar de ternura. Precisar de amor. Será assim tão horrível?

 

- Não, não é. No entanto, Lucy...

 

- No entanto, você não acredita nisso - replicou ela, ressentida. - Portanto, continue atrás da Senhorita Altaneira e, nesse meio-tempo, vá curtindo com a Lucy depois do pôr do sol.

 

Ele ficou calado, assentindo. Era verdade cada palavra que ela dizia. Estava demasiado cansado, por demais exaurido, para discutir aquilo. Ela pareceu perceber, seu rosto suavizou-se e pousou a mão no braço dele.

 

- Se conseguir apanhá-la, Larry, serei a primeira a atirar-lhe um buquê. Jamais guardei ressentimento na vida. Apenas... tente não parecer tão desapontado.

 

- Lucy...

 

A voz dele elevou-se subitamente, áspera com inesperada energia, e por um momento os braços dele se arrepiaram.

 

- Por acaso considero o amor muito importante, só o amor poderá nos conduzir através disso, os bons relacionamentos. Pior é o ódio contra nós, porque representa o vazio. - A voz dela baixou de tom. - Você tem razão. Já é tarde. Vou para a cama. Você vem?

 

- Sim - respondeu ele e levantou-se. Hesitou, olhando para ela. - Eu te amo tanto quanto posso, Lucy.

 

- Sei disso - replicou ela e deu-lhe um sorriso cansado. - Sei disso muito bem, Larry.

 

Desta vez, quando ele a enlaçou com o braço, Lucy não o repeliu. Caminharam juntos de volta ao acampamento, fizeram amor timidamente e dormiram.

 

Nadine despertou como um gato no escuro uns vinte minutos depois que Larry Underwood e Lucy Swann voltaram ao acampamento, dez minutos depois que terminaram seu ato de amor e caíram no sono.

 

A férrea voz estridente do terror cantava em suas veias.

 

Alguém me quer, pensou, enquanto o disparar em seu coração se reduzia. Seus olhos, dilatados e repletos de escuridão, voltaram-se para onde os galhos altos de um olmo rendilhavam o céu com sombras. É isso. Alguém me quer. É verdade.

 

No entanto... é tão frio.

 

Seus pais e seu irmão tinham morrido em um acidente de carro quando ela estava com seis anos; ela não os acompanhara naquele dia para visitar seus tios, sendo deixada para brincar com uma amiga que morava na mesma rua. Eles tinham se gostado fraternalmente da melhor maneira, ela se recordava. O irmão não havia sido como ela, roubada menininha de um berçário de orfanato à idade de quatro meses e meio. As origens do irmão haviam sido claras. Ele tinha sido - trombetas, por favor - Independente. Mas Nadine pertencera para todo o sempre apenas a Nadine. Era uma filha da terra.

 

Depois do acidente, tinha ido morar com os dois únicos parentes que lhe restavam. Nas White Mountains, a leste de New Hampshire. Recordava que eles a haviam levado a passeio no monte Washington pelo trem de cremalheira no seu aniversário de oito anos. A altitude fizera seu nariz sangrar e os tios ficaram zangados com ela. Eles eram muito idosos, estavam com cinqüenta e poucos anos quando ela completara 16, o ano em que correra rapidamente pela grama orvalhada, ao luar - a noite do vinho, quando os sonhos se condensavam no ar rarefeito como o leito noturno da fantasia. Uma noite de amor. E se o rapaz a alcançasse, ela teria que entregar a ele fosse qual fosse o prêmio que lhe competia dar. E o que importava, se ele a alcançasse? Eles tinham corrido, não era isso o que importava?

 

Mas ele não a alcançara. Uma nuvem havia encoberto a lua. O orvalho começou a ficar pegajoso, desagradável, amedrontador. De algum modo, o gosto do vinho em sua boca passara a ter um sabor de saliva eletrizada, ligeiramente ácido. Ocorrera uma espécie de metamorfose, uma sensação de que ela deveria, precisava esperar.

 

E onde estivera ele então, o seu pretenso e escuro noivo? Em que ruas, em que estradas vicinais, cronometrando o tempo ao longo da escuridão suburbana do exterior enquanto no interior o tinido frágil da conversa rompia o mundo em seções perfeitas e racionais? Que ventos frios eram os dele? Quantos bastões de dinamite em sua mochila surrada? Quem sabia como se chamava quando ela estava com 16 anos? Que idade teria? Onde havia sido o seu lar? Que tipo de mãe o amamentara? Nadine só tinha certeza de que era um órfão como ela, que o tempo dele ainda estaria por vir. Ele caminhava principalmente por estradas que nem sequer haviam sido abertas, enquanto ela só tinha um pé nessas mesmas estradas. A encruzilhada onde se encontrariam ainda estava muito distante. Ele era americano, ela sabia disso, um homem que gostaria de leite e torta de maçã, um homem que apreciaria a beleza doméstica das toalhas de mesa em xadrez vermelho e riscadinho. Seu lar era a América, e seus caminhos eram os caminhos secretos, percorrendo as rodovias às ocultas, as ferrovias subterrâneas cujas indicações são escritas em runas. Ele era o outro homem, o outro rosto, o incorrigível, o Turista Andarilho, e os saltos gastos de suas botas repicavam ao longo dos caminhos perfumados da noite de verão.

 

Quem sabe quando chega o noivo?

 

Nadine havia esperado por ele, o vaso que não se quebra. Aos 16 anos ela quase caíra, o que quase se repetira na universidade. Os dois pretendentes tinham ido embora furiosos e perplexos, da maneira como Larry estava agora, pressentindo as encruzilhadas dentro dela, o senso de algum ponto de junção, místico e predeterminado.

 

Boulder era o lugar onde as estradas se bifurcavam.

 

A hora se aproximava. Ele havia chamado, a convidara para vir.

 

Após a universidade ela mergulhara no trabalho, partilhara uma casa alugada com mais duas garotas. Que duas garotas? Bem, elas iam e vinham. Apenas Nadine ficava, recebia bem os rapazes que suas mutantes companheiras levavam em casa, porém ela própria jamais tivera um. Imaginava que falassem a seu respeito, que a chamassem de solteirona encalhada, talvez até mesmo especulassem que fosse uma lésbica cuidadosamente circunspecta. Não era verdade. Ela estava simplesmente...

 

Intacta.

 

Esperando.

 

Às vezes parecia-lhe que uma mudança era iminente. No fim do dia, enquanto guardava brinquedos na sala de aula silenciosa, fazia uma pausa repentina, os olhos trêmulos e vigilantes, uma das mãos segurando uma esquecida caixa de surpresas. E pensava: Está chegando uma mudança... um grande vento vai soprar. Em certas ocasiões, quando tinha tal pensamento, flagrava-se olhando para trás, por sobre o ombro, como alguém perseguido. Então a sensação parava e ela ria, perturbada.

 

Seu cabelo começara a ficar grisalho aos 16 anos, aquele mesmo ano em que havia sido perseguida mas não capturada - apenas alguns fios a princípio, cintilando visivelmente em todo o negror da cabeleira, mas não grisalhos, não, esta era a palavra errada... brancos, tinham sido fios brancos.

 

Anos depois, ela comparecera a uma festa no porão de um prédio de fraternidade universitária. As luzes haviam sido amortecidas e, após algum tempo, as pessoas foram saindo, em duplas. Muitas das garotas - entre as quais Nadine - tinham pedido dispensa de passar aquela noite em seus dormitórios. Ela estava plenamente decidida a... levar aquilo até o fim... porém algo que ficara sepultado sob os meses e anos a impedira de cumprir sua resolução. Na manhã seguinte, à fria claridade das sete horas, olhara para sua imagem em um dia de uma longa fila de espelhos, no banheiro do dormitório, e viu que o branco avançara de novo, aparentemente da noite para o dia - embora isso, claro, fosse impossível.

 

Desta maneira, os anos foram passando, marcando o tempo como as estações numa época de seca, e houvera sensações, sim, sensações, e às vezes, na escura sepultura da noite, ela havia despertado com frio e calor ao mesmo tempo, banhada de suor, deliciosamente viva e cônscia na trincheira de sua cama, pensando em sexo esquisito numa espécie de sórdido êxtase. Rolando em líquido quente. Gozando e mordendo ao mesmo tempo. E, nas manhãs seguintes, ia ao espelho e fantasiava que via mais branco nos cabelos.

 

Ao longo daqueles anos ela foi, externamente, apenas Nadine Cross: doce, boa com as crianças, boa na sua profissão, solteira. Algum tempo atrás, uma mulher assim teria provocado comentários e curiosidade na vizinhança, mas os tempos haviam mudado. E sua beleza era tão singular que de alguma forma parecia perfeitamente certo para ela ser simplesmente como era.

 

Agora os tempos estavam mudando novamente.

 

Agora a mudança estava vindo e nos seus sonhos ela havia começado a conhecer seu noivo, a compreendê-lo um pouco, embora jamais lhe tivesse visto o rosto. Ele era o homem por quem estivera esperando. Queria ir para ele... e não queria. Fora destinada àquele homem. Estava destinada a ele, porém ele a aterrorizava.

 

Então surgira Joe, e depois dele, Larry. E as coisas se tornaram terrivelmente complicadas. Ela começou a sentir-se como um prêmio disputado num cabo-de-guerra. Sabia que sua pureza, sua virgindade, de algum modo, eram importantes para o homem escuro. Que, se deixasse que Larry a possuísse (ou qualquer outro homem), o sombrio encantamento terminaria. E ela sentia-se atraída por Larry. Havia decidido, deliberadamente, que ele a teria - mais uma vez, resolvera ir até o fim daquilo. Que ele a possuísse, que isso terminasse, que tudo terminasse. Sentia-se cansada e Larry estava certo. Ela havia esperado demais pelo outro, ao longo de muitos anos secos.

 

Mas Larry não estava certo... ou assim havia parecido de início. Ela havia repelido as investidas iniciais dele com uma espécie de desdém, da maneira como uma égua enxotaria uma mosca pousada em sua cauda. Lembrava-se de ter pensado: Se isso é tudo que existe para ele, quem me culparia por rejeitar sua proposta?

 

Ela o seguira, porém. Isto era um fato. Mas ela tinha sido frenética em alcançar outras pessoas, não só por causa de Joe, mas porque havia chegado quase ao ponto de abandonar o garoto e seguir para oeste por conta própria para encontrar o homem. Somente os anos de responsabilidade arraigada pelas crianças entregues a seus cuidados é que a impediram de fazer isto... e sabia que Joe morreria se fosse entregue à própria sorte.

 

Num mundo em que tantos já morreram, provocar mais morte é certamente o mais grave dos pecados.

 

Assim decidira ir com Larry, que era, afinal, melhor do que nada ou ninguém.

 

No entanto, isto veio a demonstrar que havia muito mais em Larry Underwood do que ser nada ou ninguém - ele era como uma dessas ilusões de ótica (talvez até para si mesmo), em que a água parece rasa com apenas 5 ou 10 centímetros de profundidade, mas que, quando a gente introduz a mão, de repente vê que a água molha o braço até o ombro. A maneira como ele ficara conhecendo Joe era uma coisa. A maneira como Joe se apegara a ele era outra; a sua reação enciumada ao crescente relacionamento entre os dois era uma terceira. Na concessionária de motocicletas em Wells, Larry entregara os dedos de ambas as mãos ao capricho do menino e vencera.

 

Se eles não estivessem concentrando sua plena atenção na tampa que cobria o reservatório de gasolina, teriam visto a boca de Nadine abrir-se num vagoroso o de surpresa. Ela ficara observando-os, incapaz de mover-se, seu olhar concentrado na brilhante linha de metal do pé-de-cabra, esperando que ele primeiro escorregasse e depois caísse. Só depois que a operação foi concluída é que ela percebeu que estivera esperando que os gritos começassem.

 

Depois a tampa foi erguida e ela foi confrontada com seu próprio erro de julgamento, um erro tão profundo que foi fundamental. Naquele caso ele tinha conhecido Joe melhor que ela, e sem qualquer treinamento especial e com tempo de intimidade muito mais curto. Apenas a percepção tardia permitiu-lhe entender quão importante tinha sido o episódio da guitarra, quão rápida e fundamentalmente ele havia definido o relacionamento entre Larry e Joe. E o que estava no centro desse relacionamento?

 

Ora, dependência, é claro - o que mais poderia ter causado o acesso de ciúme que a consumia? Se Joe tivesse ficado dependente de Larry, isto teria sido uma coisa normal e aceitável. O que a incomodava era que Larry também dependia de Joe, precisava de Joe de uma maneira que ela não precisava... e Joe sabia disso.

 

Teria sido tão errado seu julgamento sobre o caráter de Larry? Ela achava que agora a resposta era sim. Aquele exterior nervoso e automático era um verniz que estava se desgastando pelo uso constante. O simples fato de Larry ter mantido todos eles unidos naquela viagem falava sobre sua determinação.

 

A conclusão parecia clara. Por sob sua decisão de deixá-lo fazer amor com ela, havia uma parte sua ainda comprometida com o outro homem... e fazer amor com Larry seria como matar para sempre aquela parte de si mesma. Nadine não tinha certeza de poder fazer isto.

 

E ela não era a única a sonhar com o homem escuro agora.

 

Isto a perturbara no início, depois a apavorara. O medo era tudo que existia quando só tinha Joe e Larry com quem comparar notas; quando encontraram Lucy Swann e ela contou que tivera o mesmo tipo de sonho, o medo se tornou uma espécie de terror frenético. Não era mais possível dizer para si mesma que os sonhos deles apenas pareciam com os dela. E se todos os sobreviventes os viessem tendo? E se a hora do homem escuro soara finalmente - não apenas para ela, mas para todos que tinham restado no planeta?

 

Mais do que qualquer outra, esta ideia criou dentro dela as emoções conflitantes de absoluto terror e forte atração. Ela se apegara à sugestão de Stovington com uma ânsia que era quase pânico. Pela natureza de sua função, como um símbolo de sanidade e racionalidade contra a crescente maré de magia negra que sentia à sua volta. Mas Stovington também fora um projeto abandonado; era um arremedo de paraíso seguro que ela havia construído para ficar em sua mente. O símbolo de sanidade e racionalidade era um necrotério.

 

À medida que avançavam para oeste, recolhendo sobreviventes, sua esperança de que, de alguma forma, aquilo terminasse para ela sem um confronto foi morrendo pouco a pouco. Morreu enquanto Larry crescia em sua estima. Ele estava dormindo com Lucy Swann agora, mas o que importava isso? Falavam dela por causa disso. Os outros vinham tendo dois sonhos opostos: o homem escuro e a velha. A velha parecia representar alguma espécie de força elementar, tal como o homem escuro. A velha era o núcleo em tomo do qual os outros se reuniam gradualmente.

 

Nadine jamais sonhara com ela.

 

Somente com o homem escuro. E quando os sonhos dos outros haviam se desvanecido, tão inexplicavelmente como tinham surgido, os seus próprios sonhos ganharam mais força e nitidez.

 

Nadine sabia muita coisa que eles ignoravam. O nome do homem escuro era Randall Flagg. Aqueles que, no oeste, se opuseram a ele foram calcificados ou levados à loucura de algum modo, ou libertados para vaguearem pela bacia fervente do Vale da Morte. Havia pequenos grupos de pessoas com formação técnica em São Francisco e Los Angeles, mas apenas temporários; em breve estariam indo para Las Vegas, onde aumentava a concentração principal de seus seguidores. Para ele não havia pressa. O verão agora ia descambando. Em breve, as Rochosas ficariam cobertas de neve, e enquanto houvesse arados para limpá-las, eles não seriam capazes de manter calor suficiente nos seus corpos para manejar os arados. Haveria um longo inverno para consolidar isto. E no próximo abril... ou maio...

 

Nadine deitou-se no escuro, olhando para o céu.

 

Boulder era sua última esperança. A velha era sua última esperança. A sanidade e racionalidade que esperara encontrar em Stovington começaram a ganhar corpo era Boulder. Eles eram os bons, pensou, os bons sujeitos. Como se pudesse ser assim tão simples para ela, presa à alucinada teia de desejos conflitantes.

 

Soando incessantemente como um acorde dominante, havia a sua firme crença de que o assassinato, neste mundo dizimado, era o pecado mais grave. No entanto, seu coração lhe dizia, firme e sem questionar, que a atividade de Randall Elagg era a morte. Mas, ah, como desejava seu beijo frio - mais do que desejara os beijos do garotão do ginásio ou do rapaz da universidade... e mais ainda, receava, do que o beijo e o abraço de Larry Underwood.

 

Estaremos em Boulder amanhã, pensou ela. Talvez então eu fique sabendo se esta viagem chegou ao fim ou...

 

O fogo de uma estrela cadente riscou o céu e, como criança, ela fez um pedido.

 

A AURORA DESPONTAVA E PINTAVA O CÉU do leste com uma delicada tonalidade rósea. Stu Redman e Glen Bateman estavam a meio caminho da montanha Flagstaff, em West Boulder, onde surgem as primeiras elevações das Rochosas, alçando-se das planícies lisas como uma visão pré-histórica. À claridade do alvorecer, Stu pensou que os pinheiros emaranhados entre as faces de pedras nuas e quase perpendiculares assemelhavam-se a veias, entrecruzando a mão de um gigante que assomara da terra. Em algum lugar a leste, Nadine Cross estava afinal caindo num sono leve e insatisfatório.

 

- Vou ter uma dor de cabeça esta tarde - disse Glen. - Acho que desde os tempos de estudante que não passo uma noite inteira bebendo.

 

- O nascer do sol vale a pena - comentou Stu.

 

- Sim, vale. É uma beleza. Já tinha visto as Rochosas antes?

 

- Nunca - disse Stu. - Mas estou feliz por ter vindo. - Ele ergueu um odre de vinho e tomou um gole. - Estou na maior confusão. - Ele contemplou a paisagem por um momento, em silêncio, depois se virou para Glen, com um sorriso forçado. - O que irá acontecer agora?

 

- Acontecer? - Glen ergueu as sobrancelhas.

 

- Claro. Foi por isso que trouxe você aqui em cima. Eu disse a Frannie: "Vou botar ele de porre e depois escarafunchar-lhe os miolos." Ela disse que estava ótimo.

 

Glen sorriu.

 

- Não há folhas de chá no fundo de uma garrafa de vinho.

 

- Não, mas ela me explicou exatamente o que você costumava fazer. Sociologia. O estudo de interação em grupo. Portanto, faça algumas suposições eruditas.

 

- Ponha prata na minha mão, ó aspirante ao conhecimento!

 

- Esqueça a prata, careca. Amanhã eu o levo ao First National Bank de Boulder e lhe dou 1 milhão de dólares. O que acha disso?

 

- Falando sério, Stu... o que você quer saber?

 

- As mesmas coisas que aquele cara mudo, Andros, quer saber, suponho. O que vai acontecer em seguida. Não sei como ser mais claro do que isso.

 

- Haverá uma sociedade - disse Glen lentamente. - De que tipo? É impossível prever no momento. Há quase quatrocentas pessoas aqui agora. Acredito que, na proporção que estão chegando, mais a cada dia, por volta do início de setembro seremos 1.500. Quatro mil e quinhentos no início de outubro, e talvez uns oito mil quando cair a neve de novembro, fechando as estradas. Anote isto como a previsão número 1.

 

Para divertimento de Glen, Stu de fato tirou um bloco de anotações do bolso traseiro dos jeans e tomou nota do que ele acabara de dizer.

 

- É difícil de acreditar - disse Stu. - Cruzamos o país de cabo a rabo e não chegamos a ver cem pessoas.

 

- Sim, mas elas estão chegando, não estão?

 

- Estão... num pinga-pinga.

 

- Que diabo é isso? - perguntou Glen, sorrindo.

 

- Pinga-pinga. Minha mãe costumava dizer assim. Está esnobando a maneira da minha mãe falar?

 

- Nunca vai chegar o dia em que perderei o amor por minha própria pele para esnobar uma mãe do Texas, Stuart. Bem, eles estão chegando, é claro. Ralph está em contato com cinco ou seis grupos neste exato momento, e isto fará com que sejamos quinhentos pelo fim de semana. - Glen sorriu de novo. - Mãe Abagail está lá, sentada ao lado dele na "estação de rádio" de Ralph, mas ela não quer falar no FC. Diz que tem medo de ser eletrocutada.

 

- Frannie adora aquela velha - disse Stu. - Em parte, porque ela entende muito de fazer partos, mas também porque simplesmente... adora Mãe Abagail. Sabia?

 

- Claro. Quase todos nós a adoramos.

 

- Oito mil pessoas pelo inverno! - exclamou Stu. - Ah, cara.

 

- É apenas aritmética. Digamos que a gripe acabou com 99% da população. Talvez não tenha chegado a este nível, mas vamos ficar nesse número só para ter apoio para os pés. Se a gripe foi 99% fatal, isto significa que eliminou perto de 218 milhões de pessoas, somente neste país. - Ele olhou para o rosto chocado de Stu e assentiu sombriamente. - Talvez não tenha sido tão ruim assim, mas dá para fazermos uma boa suposição da estimativa mais aproximada da realidade. Isto faz os nazistas parecerem principiantes, não é mesmo?

 

- Santo Deus! - exclamou Stu numa voz seca.

 

- Isso, no entanto, ainda deixaria mais de 2 milhões de pessoas, um quinto da população pré-epidemia de Tóquio, um quarto da população pré-epidemia de Nova York. Este número só neste país. Bem, acredito que 10% desses 2 milhões talvez não tenham sobrevivido à situação após a gripe. Pessoas como o pobre Mark Braddock, com seu apêndice supurado, mas também por causa de acidentes, suicídios e, claro, também homicídios. Isto nos reduz a 1,8 milhão. No entanto, suspeitamos da existência de um Adversário, não é? O homem escuro sobre quem temos sonhado. A oeste há sete estados que poderiam ser legitimamente chamados de território dele... se é que ele de fato existe.

 

- Acho que ele existe, com certeza - disse Stu.

 

- Também é a minha opinião. No entanto, estará ele dominando todas as pessoas naquela parte do país? Seria como comparar Mãe Abagail dominando automaticamente as pessoas nos outros 41 estados continentais. Acredito que as coisas tenham se mantido num fluxo lento e que esta situação começa a chegar a seu fim. As pessoas estão começando a se agrupar. Quando discutimos isto pela primeira vez, lá em New Hampshire, fantasiei dezenas de pequenas sociedades isoladas. O que deixei de fora... porque ainda não sabia nada a respeito... foi a atração total, mas irresistível, desses dois sonhos opostos. Era como um fato novo que ninguém poderia prever.

 

- Está insinuando que terminaremos com 900 mil pessoas e ele com outras 900 mil?

 

- Não. Em primeiro lugar, o próximo inverno irá cobrar seu preço. Cobrará esse preço aqui, e a situação ficará muito mais dura para os pequenos grupos que não nos alcançarem antes da neve. Já percebeu que não temos um médico sequer na Zona Franca? Nossa equipe médica se resume a um veterinário e à própria Mãe Abagail, que já esqueceu mais da medicina popular do que teremos chance de aprender. Ainda assim, parecem engenhosos, tentando aplicar uma placa de aço no crânio do paciente se ele leva um tombo e bate com a cabeça no chão, certo?

 

Stu deu uma risadinha.

 

- O velho companheiro Rolf Dannemont provavelmente empunharia seu rifle Remington e me meteria uma bala.

 

- Acredito que a população total americana possa baixar para 1,6 milhão na próxima primavera... e esta é uma estimativa otimista. Desse número, espero que fiquemos com o milhão.

 

- Um milhão de pessoas - disse Stu, impressionado. Olhou para a esparramada e principalmente deserta cidade de Boulder, agora brilhando enquanto o sol começava a içar-se sobre o horizonte oriental. - Simplesmente não consigo imaginar isto. Esta cidade iria inchar até estourar.

 

- Boulder não tem como receber tanta gente. Sei que isto confunde a mente quando caminhamos pelas ruas vazias da cidade e na direção de Table Mesa, porém a cidade não comportaria essa gente toda. Teremos que disseminar as comunidades à nossa volta. A situação que temos é a de uma gigantesca comunidade, com o resto do país, a leste daqui, absolutamente vazio.

 

- Por que acha que a maioria ficará conosco?

 

- Por um motivo bastante não-científico - disse Glen, alisando com a mão o que lhe restava de cabelos. - Gosto de acreditar que a maioria das pessoas é boa. E acredito que os realmente maus, quem quer que sejam, estejam dirigindo o espetáculo a oeste daqui. No entanto, tenho um palpite... - Ele se interrompeu.

 

- Vamos lá, desembuche.

 

- Eu o farei porque estou bêbado. Mas isto fica entre nós, Stuart.

 

- Tudo bem.

 

- Me dá sua palavra?

 

- Tem a minha palavra.

 

- Acho que ele vai ficar com a maioria dos técnicos - disse Glen por fim. - Não me pergunte por quê, é apenas um palpite. Só que os técnicos, em sua maioria, gostam de trabalhar em um ambiente de disciplina rígida e objetivos claros. Eles gostam quando os trens circulam no horário. O que temos no momento aqui em Boulder é uma zorra total, com todos andando de um lado para o outro e cuidando da própria vida... e temos de fazer algo a respeito do que meus alunos teriam chamado de "juntar a nossa merda". Mas aquele outro sujeito... aposto como terá os trens circulando no horário e suas tropas em prontidão. Afinal, os técnicos são tão humanos quanto qualquer um de nós; irão para onde são mais desejados. Desconfio de que nosso Adversário quer abocanhar o máximo que puder. Os fazendeiros que se danem, porque ele logo contará com alguns homens que possam limpar a poeira daqueles silos de mísseis no Idaho e colocá-los de novo em operação. O mesmo para os tanques de guerra e helicópteros, talvez um ou dois bombardeiros B-52, para variar. Embora eu duvide que ele vá tão longe... de fato, tenho certeza. Nós saberíamos. Neste exato momento, é provável que esteja concentrado em restabelecer a eletricidade... talvez ele ache necessário se permitir um ou dois expurgos. Roma não se fez num dia e ele sabe disso. Tem tempo de sobra. Mas quando vejo o sol se pôr ao entardecer... estou falando sério, Stuart... fico com medo. Não é nenhum pesadelo que irá me assustar. Para isso, tudo que preciso fazer é pensar neles lá do outro lado das Rochosas, ocupados como formigas operárias.

 

- O que deveríamos fazer?

 

- Precisaria dar-lhe uma lista? - replicou Glen, sorrindo.

 

Stuart gesticulou para seu surrado caderno de notas, tendo na sua capa cor-de-rosa duas dançarinas de discoteca e as palavras BOOGIE DOWN!

 

- Desembuche - disse.

 

- Está brincando?

 

- De jeito nenhum. Você mesmo disse, Glen, que precisamos juntar nossa merda em algum lugar. Também acho. Está ficando mais tarde a cada dia que passa. Não podemos ficar aqui, de braços cruzados, e ouvindo a faixa do cidadão. Podemos acordar uma bela manhã e encontrar esse cara irrecuperável entrando em Boulder à frente de uma coluna blindada, completada com reforço aéreo.

 

- Não espere por ele amanhã - disse Glen.

 

- Não. Mas e quanto ao próximo mês de maio?

 

- É possível - disse Glen em voz baixa. - Sim, bastante possível.

 

- E o que acha que nos acontecerá?

 

Glen não respondeu com palavras. Fez um gesto explícito de apertar o gatilho com o indicador da mão direita e então, apressadamente, bebeu o resto do vinho.

 

- É - disse Stu. - Então temos de começar a organizar tudo.

 

Glen fechou os olhos. A claridade do dia que começava lhe tocou a face e a testa franzidas.

 

- Tudo bem - disse ele. - É o seguinte, Stu. Primeiro: recriar a América. A Pequena América. Por meios honestos e desonestos. Organização e governo antes de mais nada. Se isso começar agora, podemos formar o tipo de governo que desejarmos. Se esperarmos até que a população triplique, teremos sérios problemas.

 

"Digamos: se convocarmos uma assembleia para uma semana a contar de hoje, ela cairia em 18 de agosto. Com comparecimento de todos. Antes da assembleia, deveria haver um Comitê de Organização ad hoc. Um comitê de sete pessoas, digamos. Eu, você, Andros, Fran, Harold Lauder, talvez, e mais dois. A função do comitê seria criar uma agenda para a assembleia de 18 de agosto. E posso lhe dizer, agora mesmo, quais seriam alguns dos itens da agenda."

 

- Vamos lá.

 

- Primeiro, leitura e ratificação da Declaração de Independência. Segundo, o mesmo sobre a Constituição. Terceiro, o mesmo sobre a Carta de Direitos. Toda ratificação deve ser feita por voto oral.

 

- Céus, Glen, todos somos americanos...

 

- Não, aí é que você se engana - retrucou Glen, abrindo os olhos, que pareciam encovados e injetados. - Somos um bando de sobreviventes sem qualquer tipo de governo. Somos uma miscelânea de grupos etários, religiosos, sociais e raciais. Governo é uma ideia, Stu. O que realmente é isto tudo, uma vez que se corte a burocracia e a baboseira. Vou mais longe. É uma persuasão, nada senão uma trilha de lembrança embotada através do cérebro. O que temos pela frente agora é uma defasagem cultural. A maioria dessas pessoas ainda acredita em governo por representação, a República, o que imaginam como sendo "democracia". No entanto, a defasagem cultural nunca dura muito. Após algum tempo, as pessoas começarão a ter as reações corajosas: o presidente está morto, o Pentágono fechou para balanço, nada está sendo debatido no Congresso a não ser pelas baratas e cupins. Em breve as pessoas aqui vão acordar para o fato de que as velhas normas já eram e que elas podem reestruturar a sociedade e qualquer antiga norma a seu bel-prazer. Nós queremos... precisamos... capturá-las antes que acordem e cometam alguma loucura.

 

Ele levantou o dedo para Stu.

 

- Se alguém pedir a palavra nessa assembleia de 18 de agosto e propuser que Mãe Abagail seja colocada no comando absoluto, tendo a mim, você e aquele Andros como seus assessores, todos aprovariam a proposta por aclamação, abençoadamente inconscientes de que acabaram de votar pela primeira ditadura a operar na América desde Huey Long.

 

- Ah, não posso acreditar nisso! Aqui há pessoas com grau universitário, advogados, ativistas políticos...

 

- Talvez costumassem ser. Hoje não passam de um bando de pessoas cansadas e assustadas, ignorando qual será seu destino. Alguns irão gritar, discordando, mas calarão a boca quando lhes for dito que Mãe Abagail e seus assessores abdicarão do poder em sessenta dias. Não, Stu, é muito importante que a primeira providência seja a ratificação do espírito da antiga sociedade. Isto é o que quero dizer, sobre recriar a América. Tem de ser assim, enquanto estivermos operando sob a direta ameaça do homem a quem chamamos de Adversário.

 

- Prossiga.

 

- Certo. O próximo item da agenda deve ser o de tocarmos o governo como se dirigíssemos um condado da Nova Inglaterra. Democracia perfeita. Enquanto formos relativamente poucos, tudo funcionará à perfeição. Só que, em vez de uma junta de pessoas selecionadas, teremos sete... representantes, suponho. Representantes da Zona Franca. O que lhe parece?

 

- Parece ótimo.

 

- Também acho. E providenciaremos para que as pessoas eleitas sejam as mesmas que integraram o comitê ad hoc. Apressaremos todo mundo e encerraremos a votação antes que as pessoas possam fazer qualquer lobby por seus amigos. Podemos escolher pessoas que nos indiquem e depois nos apoiem. A votação transcorrerá tão fácil quanto merda escorrendo no cano de esgoto.

 

- Bem pensado - disse Stu, cheio de admiração.

 

- Claro - replicou Glen, sombrio. - Se você quiser provocar um curto-circuito num processo democrático, pergunte a um sociólogo.

 

- O que virá em seguida?

 

- Isto vai se tornar muito popular. O item dirá: "Decidido: é concedido a Mãe Abagail poder absoluto de veto sobre qualquer ato proposto pela Junta."

 

- Céus! Acha que ela concordará com isso?

 

- Creio que sim. Porém não acho que ela algum dia esteja apta a exercer seu poder de veto, não em qualquer circunstância que eu consiga prever. Não vamos esperar que aqui haja um governo viável, a menos que a tornemos sua chefe titular. Ela é a coisa que todos nós temos em comum. Todos tivemos uma experiência paranormal girando em torno dela. E Mãe Abagail tem... ela irradia uma espécie de aura. Todos usam o mesmo punhado de adjetivos para descrevê-la: bondosa, gentil, velha, sábia, inteligente, compreensiva. Essas pessoas tiveram um sonho que as deixou apavoradas e outro capaz de fazer com que se sentissem a salvo e seguras. Elas amam a fonte do sonho bom e confiam mais nela, por causa do sonho que as aterrorizou. E podemos deixar claro para Mãe Abagail que será apenas nossa líder nominal. Acho que é como ela preferiria. Já está velha, cansada...

 

Stu sacudia a cabeça.

 

- Ela pode estar velha e cansada, mas considera este problema do homem escuro como uma cruzada religiosa, Glen, e também não é a única, você sabe disso.

 

- Está insinuando que talvez ela quisesse tomar parte ativa?

 

- Talvez não fosse tão ruim - assinalou Stu. - Afinal, foi com ela que sonhamos, não com uma Junta de Representantes.

 

Glen sacudia a cabeça.

 

- Não, recuso-me a aceitar a ideia de que somos todos peões em algum jogo pós-Apocalipse, do bem e do mal, com ou sem sonhos. Pelo amor de Deus, isto é irracional!

 

Stu deu de ombros.

 

- Bem, não vamos nos ater a detalhes agora. Acho excelente a ideia de dar a ela o poder de veto. De fato, acredito que devíamos dar-lhe também o poder de propor, bem como de dispor.

 

- Mas não o poder absoluto quanto a isto - respondeu Glen de imediato.

 

- Isto não. As ideias dela seriam ratificadas pela Junta de Representantes - replicou Stu, acrescentando astutamente: - Mas poderíamos, de qualquer modo, nos ver aprovando suas decisões sem discutir, e não o contrário.

 

Fez-se um longo silêncio. Glen apoiava a testa na mão. Por fim, disse:

 

- É, você tem razão. Ela não pode ser apenas uma figura de proa... e vamos ter de aceitar a possibilidade de que Mãe Abagail possa ter suas próprias ideias. E é aí que volto a guardar a minha turva bola de cristal, Texano Oriental. Porque ela é aquilo que nós, os militantes na Sociologia, chamaríamos de diferencial direcionado.

 

- Quem é o outro?

 

- Deus? Thor? Alá? Não importa. O que isto significa é que o que ela diz não tem de ser necessariamente direcionado para o que esta sociedade necessita ou para os costumes que irá adotar. Ela estaria ouvindo outra voz. Como Joana d’Arc. Você me faz ver que talvez estejamos aqui lidando com uma teocracia.

 

- Teo... o quê?

 

- Sob um governo de Deus - disse Glen. Ele não pareceu muito feliz com isso. - Quando você era garotinho, Stu, nunca imaginou que, quando adulto, poderia tornar-se um dos sete sumos sacerdotes e/ou sacerdotisas de uma velha negra de 108 anos de Nebraska?

 

Stu fitou-o fixamente. Por fim, disse:

 

- Ainda sobrou um pouco daquele vinho?

 

- Já era.

 

- Merda!

 

- É isso aí - disse Glen.

 

Ficaram se encarando mutuamente e, de súbito, começaram a gargalhar.

 

Sem a menor dúvida, aquela era a mais bela casa em que Mãe Abagail já vivera e, sentada ali, no alpendre revestido de tela, ela recordava um caixeiro-viajante que chegara em Hemingford em 1936 ou 1937. Bem, ele era o sujeito de fala mais macia que já conhecera na vida; seria capaz até de encantar os pássaros nos galhos das árvores. Ela perguntara àquele homem, chamado Sr. Donald King, o que tinha a tratar com Abby Freemantle, e ele respondera:

 

- Meu negócio, dona, é prazer. O seu prazer. A senhora gosta de ler? De ouvir rádio, por acaso? Ou talvez prefira apenas pousar os velhos pés cansados sobre uma banquetinha e ficar ouvindo o mundo enquanto ele rola pela grande pista de boliche do universo?

 

Ela havia admitido que apreciava todas aquelas coisas, mas não que seu rádio Motorola fora vendido um mês antes para pagar por noventa fardos de feno.

 

- Bem, são essas coisas que eu vendo - disse-lhe o fala-macia. - Isto aqui pode ser chamado de aspirador de pó Electrolux, complementado com todos os acessórios, mas, na realidade, ele é de fato um poupador de tempo. Ligue-o na tomada e terá um leque inteiro de novas possibilidades de lazer em sua vida. Quanto aos pagamentos, serão quase tão fáceis quanto se tornarão seus trabalhos domésticos.

 

Estavam então no auge da Depressão, ela não pudera sequer arranjar 20 cents para as fitas de cabelo com que presenteava as netas nos aniversários. Portanto, não havia como ficar com aquele aspirador Electrolux. No entanto, aquele Sr. Donald King, de Peru, Indiana, não tinha o maior papo de vendedor que já se ouviu? Ora, como tinha! Ela jamais tomara a vê-lo, porém nunca esquecera seu nome. Podia apostar que ele iria partir o coração de alguma dama branca. Abby só veio a ter um aspirador depois da guerra contra os nazistas, quando parecia que, de repente, todo mundo podia comprar o que quisesse, e até os brancos pobretões podiam ter um Mercury escondido sob o telheiro dos fundos.

 

Esta casa de agora, que Nick lhe dissera estar situada no bairro Mapleton Hill de Boulder (Mãe Abagail apostava que não houvera muitos negros morando ali antes que a epidemia se alastrasse), possuía todas as engenhocas, inclusive algumas que desconhecia. Lavadora de pratos. Dois aspiradores, um destinado exclusivamente ao andar de cima. Trituradores de lixo na pia. Forno de microondas. Máquinas de lavar e secar roupas. Havia uma engenhoca na cozinha, com todo o aspecto de uma caixa de aço. Ralph Brentner, o amigo de Nick, explicara-lhe que era um "compactador de lixo", que se podia pôr dentro dele 50 quilos de detritos e receber de volta um bloquinho de lixo prensado, do tamanho de um escabelo. Os prodígios nunca acabavam.

 

Bem, por falar nisso, alguns já tinham.

 

Sentada na cadeira de balanço do alpendre, seus olhos por acaso pousaram sobre uma placa de tomada elétrica fixada no rodapé. Provavelmente, no verão, os antigos residentes ficassem no alpendre, ouvindo rádio ou vendo jogos de beisebol naquela interessante TV arredondada. No país inteiro, nada era mais comum do que aquelas plaquinhas nas paredes, com seus orifícios e fendas. Ela as tivera até mesmo em sua velha choupana em Hemingford. Ninguém ligava a mínima para tais plaquinhas... a não ser que parassem de funcionar. Então, percebia-se que boa parte da vida das pessoas dependia delas. Todo aquele tempo de lazer, aquele prazer que Don King lhe declamara... vinha daquelas plaquinhas instaladas na parede. Com a interrupção da energia elétrica, podia-se usar todas aquelas engenhocas, como o forno de microondas ou o compactador de lixo, também como cabideiro para pendurar chapéus e casacos.

 

Deus do Céu! Sua própria casinha tinha sido mais bem equipada para lidar com a morte daquelas plaquinhas do que era esta casa. Aqui, alguém precisava apanhar água lá no córrego Boulder, e que tinha de ser fervida antes de ser consumida, por medida de segurança. Na sua velha casa Abagail tinha sua própria bomba de mão. Aqui, Nick e Ralph tiveram de trazer de caminhão um troço horrendo chamado Port-O-Sam, ou seja, um sanitário portátil, que colocaram no quintal dos fundos. Na sua casa ela dispunha de sua própria latrina externa. Ela trocaria num segundo a lavadora-secadora Maytag por sua velha tina de lavar roupa, mas conseguira com que Nick arranjasse uma nova para ela, e Brad Kitchner encontrara-lhe em algum lugar uma tábua de esfregar e um pouco do velho e bom sabão de lixívia. Eles provavelmente achavam que ela era uma velha chata, querendo lavar pessoalmente sua roupa - mas limpeza para ela era quase um ato de devoção. Nunca em sua vida mandara lavar roupa fora, e não era agora que ia começar. Sofria seus próprios acidentes de vez em quando, como todos os idosos, mas enquanto pudesse ela mesma lavar, aqueles acidentes eram problema dela e de mais ninguém.

 

Em breve a energia seria restabelecida, claro. Era uma das coisas que Deus lhe mostrava nos sonhos. Ela sabia de muitas coisas boas que iriam acontecer aqui - algumas através de seus sonhos, outras graças ao seu próprio bom senso. Tudo estava entrelaçado demais para se poder fazer uma separação.

 

Em breve todas essas pessoas iam parar de correr às tontas como galinhas com as cabeças decepadas e começariam a se reunir. Ela não era socióloga como Glen Bateman (que sempre a olhava como um bookmaker examinando uma nota falsa de 10 dólares), mas sabia que as pessoas sempre se reuniam depois de um certo tempo. A maldição e a bênção do gênero humano eram sua camaradagem. Ora, se algumas pessoas viessem flutuando Mississippi abaixo no teto de uma igreja durante uma inundação, elas começariam um jogo de bingo tão logo o teto encalhasse num banco de areia.

 

Primeiro, iriam querer instaurar uma espécie de governo, talvez algum que girasse em torno dela. Claro que não permitiria isso, por mais que apreciasse a ideia; não seria da vontade de Deus. Eles que cuidassem de tudo que tivesse a ver com esta terra - obter a energia de volta? Ótimo. A primeira coisa que ela iria fazer seria testar aquele "compactador de lixo". Restabeleceriam o fornecimento de gás, para que não congelassem seus traseiros no próximo inverno. Que votassem suas resoluções, assim estava ótimo. Ela não meteria o bedelho nesta parte. Insistiria para que Nick tivesse um cargo na administração, e talvez Stu. Aquele texano parecia decente, sabia manter a boca fechada quando seus miolos não estavam funcionando bem. Ela supunha que talvez quisessem aquele rapazola gorducho, aquele tal de Harold. Ela não se oporia, mas na verdade não gostava dele. Harold a deixava nervosa. O tempo todo sorrindo, mas o sorriso nunca lhe chegava aos olhos. Ele era simpático, dizia as coisas certas, mas os olhos eram como duas pedrinhas frias se salientando do chão.

 

Ela achava que aquele Harold tinha algum tipo de segredo. Alguma coisa fedorenta e imprestável, embrulhada numa compressa malcheirosa, dentro de seu coração. Não fazia ideia do que poderia ser; não seria da vontade de Deus que visse isso, de maneira que o assunto não devia ser importante ao plano Dele para aquela comunidade. Ao mesmo tempo, ficava perturbada ao pensar naquele jovem gordo participando dos conselhos supremos comunitários... mas nada diria sobre isso.

 

Quanto a ela, pensava complacentemente sentada na cadeira de balanço, seu lugar nos conselhos e deliberações teria a ver somente com o homem escuro.

 

Ele não tinha nome, embora gostasse de chamar a si mesmo de Flagg... pelo menos por enquanto. E seu trabalho já havia começado do outro lado das montanhas. Abby não conhecia os planos dele; estavam tão velados a seus olhos quanto os segredos abrigados no coração de Harold. Mas não precisava saber dos detalhes. O objetivo claro e simples do homem escuro era destruir todos eles.

 

Sua compreensão a respeito dele era surpreendentemente sofisticada. Todas as pessoas que foram atraídas para a Zona Franca vinham vê-la e Abby as recebia, embora às vezes a deixassem cansada... e todas desejavam contar-lhe que haviam sonhado com ela e com ele. Tinham pavor dele e Abagail assentia, as confortava e tranquilizava o melhor que podia, mas em particular achava que a maioria delas não reconheceria este Flagg se acaso o encontrasse na rua... a não ser que ele quisesse ser notado. Poderiam senti-lo - um calafrio, do tipo que se tem quando a morte passou por perto, uma súbita sensação de calor como um relance febril, ou uma aguda e momentânea dor perfurante nos ouvidos ou nas têmporas. Mas as pessoas se iludiam ao imaginá-lo com duas cabeças, ou seis olhos, ou grandes chifres pontudos brotando de suas têmporas. Ele provavelmente não diferia muito do leiteiro ou do carteiro.

 

Ela adivinhava que por trás do mal consciente havia um inconsciente vazio. Era isso que distinguia os filhos das trevas na Terra; eles não podiam construir coisas, somente destruí-las. Deus, o Criador, fizera o homem à Sua imagem, isto significando que cada homem e mulher vivendo sob a luz de Deus era um criador de alguma espécie, uma pessoa com ânsia de estender a mão e modelar o mundo em algum padrão racional. O homem escuro queria - era capaz disso - apenas demolir. Anti-Cristo? Poder-se-ia muito bem dizer anticriação.

 

Ele teria seus seguidores, claro; isso não era nada novo. Era um mentiroso, e seu pai era o Pai das Mentiras. Pareceria aos seus acólitos como um enorme letreiro em néon, pendurado muito alto no céu, ofuscando-lhes a visão com crepitantes fogos de artifício. Aqueles aprendizes de destruição não seriam capazes de notar que, como um letreiro em néon, ele só podia produzir os mesmos padrões simples, repetidamente. Não estariam aptos a perceber isso. Quando se libera o gás que forma os lindos padrões deste complexo sortimento de tubos, ele flutua silenciosamente para longe e se dissipa, deixando para trás nada mais que um bafejo ou cheiro.

 

Alguns tirariam suas próprias deduções com o tempo - seu reino jamais seria um reino de paz. Os postos de sentinelas e o arame farpado nas fronteiras de sua terra estariam lá, não só para manter os convertidos em confinamento como também inibir possíveis invasores.

 

Ele venceria?

 

Abby não tinha certeza. Sabia que o homem escuro estaria tão cônscio dela como ela estava dele. Nada daria a ele maior prazer do que ver seu corpo negro esquelético pendendo de uma cruz de postes telefônicos para ser bicado pelos corvos. Ela sabia que alguns deles, além dela mesma, haviam sonhado com crucificação, mas somente uns poucos. Estes tinham contado somente a ela, a ninguém mais. E nenhum deles respondeu à pergunta:

 

Ele venceria?

 

Não competia a ela saber, tampouco. Deus trabalhava com discrição, utilizando meios que fossem do Seu agrado. Agradara-Lhe deixar que os Filhos de Israel suassem e se vergassem ao peso do jugo egípcio durante gerações. Agradara-Lhe enviar José para a escravidão, seu belo capote multicolorido rasgado rudemente de suas costas. Agradara-Lhe permitir que Jó recebesse a visita de cem pragas, como fora do Seu agrado permitir que Seu único Filho fosse pendurado a uma cruz com uma piada de mau gosto escrita sobre Sua cabeça.

 

Deus era um jogador - se tivesse sido um mortal, estaria à vontade debruçado sobre um tabuleiro de xadrez do alpendre do armazém de Pop Mann, lá em Hemingford Home. Ele tanto jogava com peças vermelhas ou pretas, pretas ou brancas. Abby refletiu que, para Ele, o jogo mais do que justificava o esforço, o jogo era o próprio esforço. Ele prevaleceria quando julgasse chegado o momento certo. Só que não necessariamente neste ano ou nos próximos mil anos... e ela não iria superestimar a habilidade e a astúcia do homem escuro. Se ele era gás néon, então ela era a diminuta partícula de poeira negra que uma pesada nuvem de chuva forma sobre a terra ressequida. Apenas outro soldado raso - e há muito passado da idade de ser reformado, era verdade! - a serviço do Senhor.

 

- Seja feita a Vossa vontade! - disse ela e enfiou a mão no bolso do avental e tirou um pacote de amendoim. Seu último médico, o Dr. Staunton, lhe dissera para evitar alimentos salgados, mas do que sabia ele? Havia sobrevivido a ambos os médicos que supostamente deveriam aconselhá-la sobre sua saúde desde o seu 86º aniversário, e comeria amendoins sempre que tivesse vontade. Eles machucavam terrivelmente suas gengivas, mas... ora, não eram deliciosos?

 

Enquanto mascava os amendoins, Ralph Brentner veio até sua calçada, o chapéu com a pena enfiada na fita puxado bem para trás da cabeça. Quando bateu à porta do alpendre, ele tirou o chapéu.

 

- Está acordada, Mãe?

 

- Ora, se estou - disse ela, com a boca cheia de amendoins. - Entre, Ralph. Não estou mastigando com os dentes, mas com as gengivas, e dói terrivelmente.

 

Ralph riu e entrou.

 

- Há um pessoal lá fora, diante do portão, que gostaria de lhe dar um alô, se não estiver muito cansada. Chegaram faz uma hora. Eu diria que se trata de um grupo e tanto. O líder é um daqueles caras cabeludos, mas parece bem à vontade com isso. Chama-se Larry Underwood.

 

- Ora, traga-os aqui, Ralph, está tudo bem.

 

- Ótimo. - Ele virou-se para sair.

 

- Onde está Nick? - perguntou ela. - Não o vi hoje nem ontem. Está ficando importante demais para esnobar os amigos?

 

- Ele foi até o reservatório - explicou Ralph. - Ele e aquele eletricista, Brad Kitchner, foram dar uma olhada na usina de energia. - Ele esfregou o lado do nariz. - Passei a manhã fora. Imaginei que todos os caciques deveriam deixar pelo menos um índio para pôr as coisas em ordem.

 

Mãe Abagail gargalhou. Ela gostava de Ralph. Era uma alma simples, mas sagaz. Ele tinha um instinto para como as coisas funcionavam. Não se surpreendeu que tivesse montado sozinho o que todos agora chamavam de Rádio da Zona Franca. Era o tipo de homem que não teria medo de tentar usar epóxi na bateria de um trator quando ela começasse a se rachar, e se o epóxi não resolvesse, ora, era só tirar seu chapéu deformado e coçar a cabeça calva e dar aquele sorriso, como quando era um guri de 11 anos de idade, com seus afazeres feitos e sua vara de pescar apoiada no ombro. Ele era o tipo de cara a se ter por perto quando as coisas não corriam bem e o tipo de homem que sempre, de algum modo, ficava aliviado quando tudo corria bem para os demais. Era capaz de colocar o tipo certo de válvula na bomba da bicicleta quando ela não combinava com um pneu mais largo do que o tipo usual, e sabia o que estava causando aquele zumbido engraçado no seu forno só de olhar para ele. Mas quando tinha de lidar com o relógio de ponto de uma firma, ele de algum modo sempre acabava batendo o ponto de entrada atrasado e o ponto de saída mais cedo, sendo logo despedido. Ele sabia que se poderia adubar o milho com estrume de porco, se fosse misturado corretamente, e sabia como preparar picles, mas nunca seria capaz de entender como funcionava um financiamento para comprar carro, ou imaginar como os vendedores conseguiam enrolá-lo a cada vez. Um formulário de pedido de emprego preenchido por Ralph Brentner pareceria como se tivesse sido através de um misturador Hamilton-Beach... erros de grafia, amarrotado, com borrões de tinta e impressões digitais gordurosas. Seu currículo parecia um tabuleiro de xadrez que dera a volta ao mundo num cargueiro sem rota fixa. Mas quando o próprio tecido do mundo começou a se rasgar, foram os Ralph Brentners da vida que não tiveram medo de dizer: "Vamos aplicar um pouco de epóxi aqui e ver se irá segurar." E com mais frequência que não, a coisa funcionava.

 

- Você é um grande sujeito, Ralph, sabia disso? Você é único.

 

- Ora, a senhora também, Mãe. Não que seja um sujeito, mas a senhora sabe o que quero dizer. De qualquer modo, esse tal Redman andou por aí enquanto estivemos trabalhando. Queria falar com Nick sobre participar de uma espécie de comitê.

 

- E o que disse Nick?

 

- Ah, escreveu umas duas páginas. Mas o que resultar disso estará bom para mim, se estiver bom para Mãe Abagail. Está?

 

- Bem, o que é que uma velha dama como eu tem a dizer sobre tais assuntos?

 

- Muita coisa - disse Ralph com ar sério, quase chocado. - A senhora é o motivo por estarmos aqui. Acho que faremos tudo que a senhora quiser.

 

- O que eu quero é continuar vivendo livre, como sempre vivi, como americana.

 

- Bem, tudo será assim.

 

- Os outros pensam do mesmo modo, Ralph?

 

- Pode apostar que sim.

 

- Então está tudo bem. - Ela balançou-se serenamente na cadeira. - Já é tempo de tudo entrar nos eixos. Há toda essa gente vagando por aí... A maioria apenas esperando que alguém lhes diga onde se acocorar e ficar.

 

- Então, posso ir em frente?

 

- Com quê?

 

- Bem, Nick e Stu me perguntaram se eu poderia encontrar uma impressora e botá-la em funcionamento, se eles me dessem alguma eletricidade para acioná-la. Eu disse que não precisava de eletricidade nenhuma. Basta dar um pulo no ginásio e pegar o maior mimeógrafo manual que pudesse encontrar. Eles estão querendo alguns panfletos. - Sacudiu a cabeça. - Eles querem setecentos, imagine! Ora, afinal somos apenas quatrocentos e poucos.

 

- E tem mais uns vinte esperando lá no portão, talvez pegando uma insolação enquanto jogamos conversa fora. Vá buscá-los.

 

- É pra já - disse ele, começando a ir.

 

- Ah, Ralph?

 

Ele se virou.

 

- Pode imprimir mil - disse ela.

 

Eles passaram enfileirados pelo portão aberto por Ralph, e Abby sentiu seu pecado, aquele que ela considerava a mãe do pecado. O pai do pecador era o roubo; cada um dos Dez Mandamentos reduzia-se a "Não furtarás". Matar era o roubo de uma vida, adultério era o roubo de uma esposa, a cobiça sendo o roubo secreto, sorrateiro, que ocorria no fundo do coração. Blasfêmia era o roubo do nome de Deus, surrupiado da Casa do Senhor e enviado para percorrer as ruas como uma prostituta empertigada. Ela jamais tivera tendência para o roubo; no máximo, escamoteava algo insignificante, de vez em quando.

 

A mãe do pecado era o orgulho.

 

O orgulho era o lado feminino de Satã na raça humana, o óvulo silencioso do pecado, sempre fértil. O orgulho impedira Moisés de chegar a Canaã, onde as uvas eram tão grandes que os homens tinham de carregá-las em tipóias. Quem extraiu água da rocha quando estávamos sedentos?, perguntaram os Filhos de Israel e Moisés respondeu: Fui eu.

 

Ela sempre tinha sido uma mulher orgulhosa. Sentia orgulho do chão que lavava, apoiada nas mãos e joelhos (mas Quem lhe dera as mãos, os joelhos, a própria água com que lavava?), orgulho dos filhos, que tinham sido cidadãos decentes - nenhum na cadeia, nenhum dominado pela bebida ou drogas, nenhum dando escapadas para lençóis alheios -, mas as mães dos filhos eram as filhas de Deus. Ela sentia orgulho de sua vida, porém não era ela quem tinha feito sua vida. O orgulho era a maldição da vontade e, sendo mulher, o orgulho tinha seus caprichos. Aos 108 anos, Abby ainda não aprendera todas as fantasias do orgulho e tampouco superara seus encantos.

 

E quando os recém-chegados passaram enfileirados pelo portão, ela pensou: Foi a mim que eles vieram ver. E, no rastro desse pecado, uma série de metáforas blasfemas surgiu em sua mente sem ser convidada: como cruzavam o portão em fila por um, parecendo comungantes, seu jovem líder com os olhos principalmente baixos, tendo ao lado uma mulher de cabelos claros, um menino logo atrás dele com uma mulher de olhos escuros, cujos cabelos negros eram raiados de fios grisalhos. E os demais atrás deles, em fila.

 

O rapaz subiu os degraus do alpendre, mas sua mulher ficou parada atrás dele. O líder tinha cabelos compridos, como Ralph anunciara, mas limpos. Ostentava uma vasta barba louro-avermelhada. Tinha feições fortes, marcadas por linhas finas recentes de preocupação, em torno da boca e cruzando a testa.

 

- A senhora é mesmo real - disse ele suavemente.

 

- Ora, sempre pensei que fosse - respondeu ela. - Sou Abagail Freemantle, mas quase todos aqui me chamam de Mãe Abagail. Seja bem-vindo ao nosso lar.

 

- Obrigado - disse ele em voz rouca e Abagail percebeu que o rapaz lutava para conter as lágrimas. - Estou... estamos muito contentes por chegar aqui. Meu nome é Larry Underwood.

 

Abby estendeu a mão, que ele apertou levemente, com reverência. Ela voltou a sentir aquela pontada de orgulho, aquela arrogância. Era como se o rapaz pensasse que ela tivesse um fogo que o queimaria.

 

- Eu... sonhei com a senhora - disse ele de modo desajeitado.

 

Ela sorriu e assentiu. Ele se virou rigidamente, quase tropeçando. Desceu os degraus, os ombros encurvados. Ele voltaria ao seu normal, pensou ela. Sim, agora que estava aqui e descobrisse que não tinha mais que carregar nos ombros todo o peso do mundo. Um homem que duvida de si mesmo não deveria esforçar-se tanto e por tanto tempo, não até que amadurecesse, e aquele Larry Underwood ainda estava um pouco verde. Mas mesmo assim gostou dele.

 

A mulher dele, uma gracinha de olhos cor de violeta, se aproximou em seguida. Olhou atrevida para Mãe Abagail, mas não desdenhosamente.

 

- Sou Lucy Swann. É um prazer conhecê-la. - Embora estivesse usando calças, ela fez uma pequena mesura.

 

- Fico satisfeita por ter vindo, Lucy.

 

- A senhora se incomodaria se eu perguntasse... bem... - Agora ela baixou a vista e começou a enrubescer intensamente.

 

- Cento e oito, pela última contagem - disse Abagail amavelmente. - Alguns dias tenho a impressão de ser o dobro.

 

- Sonhei com a senhora - disse Lucy, e então retirou-se, um tanto confusa.

 

A de olhos escuros e o menino aproximaram-se em seguida. A mulher fitou-a com gravidade, quase inexpressiva; o rosto do menino exibia a mais franca surpresa. Estava tudo bem com o garoto. No entanto, havia algo naquela mulher que fez Abagail sentir um frio tumular. Ele está aqui, pensou. Ele vem na forma desta mulher... pois eis que ele surge em outras formas que não a sua... de lobo... de corvo... de serpente.

 

Ela não estava imune de temer por si mesma e por um instante achou que aquela mulher estranha, com fios brancos no cabelo, estenderia as mãos, quase casualmente, e apertaria seu pescoço. Por um instante, a sensação se manteve, Mãe Abagail realmente fantasiava que o rosto da mulher se fora e ela estava olhando num buraco no tempo e no espaço, um buraco do qual dois olhos, escuros e amaldiçoados, a fitavam - olhos que estavam perdidos, desfigurados e desamparados.

 

Mas era apenas uma mulher, e não ele. O homem escuro jamais ousaria aparecer ali, mesmo numa forma que não era a dele. Esta era apenas uma mulher - muito bonita, também -, com um rosto expressivo e sensível e um braço passado em torno dos ombros do menino. Ela esteve apenas sonhando acordada por um momento. Por certo isto foi tudo.

 

Para Nadine Cross, o momento foi de confusão. Sentira-se perfeitamente bem quando o grupo atravessara o portão. Estivera tudo bem até que Larry começara a falar na velha senhora. Então, fora invadida por um senso quase atordoante de repulsa e terror. A velha podia... podia o quê?

 

Podia ver.

 

Sim, ela temia o que a velha pudesse ver em seu íntimo, onde as trevas já haviam sido plantadas e vicejavam. Ela temia que a velha se erguesse da cadeira de balanço e a denunciasse, exigindo que abandonasse Joe e fosse procurar aqueles (ele) com quem pretendia ficar.

 

As duas, cada qual com seus temores, se entreolharam, avaliando uma à outra. Foi um breve momento, mas que pareceu interminável para ambas.

 

Ele está nela - o diabrete do demônio, pensou Abby Freemantle.

 

Todo o poder deles está bem aqui, pensou Nadine, por seu turno. Ela é tudo que possuem, embora possam pensar o contrário.

 

Joe estava ficando inquieto ao lado dela, puxando-a pela mão.

 

- Olá - disse ela em voz baixa e apática. - Sou Nadine Cross.

 

- Sei quem você é - retrucou a velha.

 

As palavras pairaram no ar, cortando de súbito qualquer outra conversa. As pessoas se viravam, intrigadas, procurando saber se alguma coisa estava acontecendo.

 

- Sabe? - perguntou Nadine suavemente. De súbito parecia que Joe era a sua proteção, a única.

 

Ela passou o menino lentamente para a sua frente, como um refém. Os estranhos olhos cor de mar de Joe ergueram-se para Mãe Abagail.

 

- Este é Joe - apresentou Nadine. - Também sabe quem é ele?

 

Os olhos de Mãe Abagail permaneceram fixados nos da mulher que se apresentara como Nadine Cross, porém uma fina camada de transpiração brotara em sua nuca.

 

- Não acho que Joe seja o nome dele, assim como o meu não é Cassandra - replicou ela. - E não creio que você seja a mãe dele.

 

Baixou os olhos para o menino com algo parecido com alívio, incapaz de reprimir uma esquisita sensação de que a mulher, de algum modo, havia vencido - que pusera o garoto entre as duas, usara-o para impedi-la de cumprir o seu dever, qualquer que fosse... ah, mas fora tudo tão repentino... e ela não estivera preparada para tanto!

 

- Qual é o seu nome, filho? - perguntou ao menino.

 

Ele remexeu-se como se tivesse um osso entalado na garganta.

 

- Ele não vai lhe dizer - interveio Nadine, pousando a mão no ombro dele. - Ele não pode lhe dizer. Não creio que ele lem...

 

Joe lançou a voz para fora, e isto pareceu ter rompido o bloqueio.

 

- Leo! - exclamou, com súbita força e grande clareza. - Leo Rockway, este sou eu! Sou Leo!

 

Em seguida, correu para os braços de Mãe Abagail, aos risos. Isto provocou uma risada geral e até aplausos do grupo. Nadine ficou virtualmente ignorada, e Abby sentiu de novo que algum foco vital, alguma chance vital, havia desaparecido.

 

- Joe - chamou Nadine. O rosto dela estava outra vez distante e sob controle. O menino afastou-se um pouco de Mãe Abagail e olhou para ela.

 

- Vamos embora - disse Nadine, e agora olhava firmemente para Abby, falando diretamente para ela, não para o menino. - Ela é velha. Você vai machucá-la. Ela é muito velha e... não muito forte.

 

- Ah, acho que sou forte o bastante para curtir um pouco um garotão como ele - disse Mãe Abagail, mas sua voz soou estranhamente incerta aos seus próprios ouvidos. - Ele parece ter passado por maus bocados.

 

- Bem, ele está cansado agora. E a senhora também, pelo aspecto. Vamos, Joe.

 

- Gosto dela - disse o menino, sem se mover.

 

Nadine pareceu contrair-se ao ouvi-lo. Sua voz se aguçou:

 

- Vamos embora, Joe!

 

- Meu nome não é Joe! Leo! Leo! Este é meu nome!

 

O grupo de peregrinos aquietou-se novamente, percebendo que algo inesperado acontecia, mas ninguém podia dizer o que seria.

 

Os olhos das duas mulheres se entrecruzaram como sabres. Sei quem você é, diziam os olhos de Abby. Sim, responderam os olhos de Nadine. E eu a conheço. Mas desta vez foi Nadine quem baixou a vista primeiro.

 

- Tudo bem - disse ela. - Leo, ou seja lá como preferir. Vamos embora antes que você a canse.

 

Ele deixou com relutância os braços de Abagail.

 

- Venha me visitar sempre que quiser - disse Abagail, porém não ergueu a vista para incluir Nadine.

 

- Está bem - disse o menino e soprou-lhe um beijo. O rosto de Nadine estava pétreo. Ela nada falou. Quando caminhava para o portão, o braço nos ombros do menino mais parecia uma corrente do que um consolo. Mãe Abagail ficou olhando para eles, cônscia de que perdia o foco novamente. Não vendo mais as feições da mulher, o senso de revelação começou a turvar-se. Não mais tinha certeza do que sentira. Evidentemente, ela era apenas outra mulher... não era?

 

O rapaz, Underwood, estava parado na base dos degraus, e seu rosto era como uma nuvem de tempestade.

 

- Por que fez isso? - perguntou a Nadine e, embora tivesse baixado a voz, Mãe Abagail pôde ouvi-lo perfeitamente.

 

Nadine não lhe deu a menor atenção. Passou por ele sem uma palavra. O menino olhou para Larry de um modo suplicante, mas a responsável era Nadine, pelo menos por enquanto, e ele deixou-se levar.

 

Houve um momento de silêncio e, de súbito, ela sentiu que uma perda o preenchia, embora ele precisasse ser preenchido...

 

...não precisava?

 

Não era sua função preenchê-lo?

 

E uma voz indagou suavemente: É isso? Isso é que é seu trabalho? É por isso que Deus a trouxe aqui, mulher? Para ser a Recepcionista Oficial dos portões da Zona Franca?

 

Não consigo pensar, protestou ela. A mulher estava certa: ESTOU cansada.

 

Ele surge em outras formas que não a sua própria, persistia a pequena voz interior. Lobo, corvo, serpente... mulher.

 

O que isto significava? O que havia acontecido aqui? O quê, em nome de Deus?

 

Aqui estava eu, sentada complacentemente e esperando ser paparicada - sim, era exatamente o que estava fazendo, não adianta negar - e agora aparece essa mulher e estou esquecendo o que aconteceu. Mas havia alguma coisa sobre essa mulher... não havia? Tem certeza? Tem certeza, Abby?

 

Houve um instante de silêncio e então todos pareceram estar olhando para ela, esperando a prova que lhes daria. E ela não o estava fazendo. A mulher e o menino já estavam fora de vista; tinham saído como se fossem os verdadeiros crentes, ela não passando de um Sinédrio falso e sorridente que eles perceberam imediatamente.

 

Ah, mas estou velha! Isto não é justo!

 

Outra voz logo se seguiu a esta, pequena, baixa e racional, uma voz que não era a dela: Não tão velha para saber que a mulher é...

 

Agora outro homem aproximou-se, de modo hesitante e deferente.

 

- Olá, Mãe Abagail - disse. - Meu nome é Zellman. Mark Zellman. De Lowville, Nova York. Sonhei com a senhora.

 

E ela se viu confrontada com um súbito dilema, uma escolha que ficaria nítida apenas por um instante em sua mente idosa. Poderia responder à apresentação deste homem, tagarelar com ele um pouco para deixá-lo à vontade (mas não por demais à vontade; não era exatamente isso que ela queria), e então passar para o seguinte, o seguinte e o seguinte, recebendo suas homenagens como folhas novas de palma, ou poderia ignorá-lo e aos demais. Poderia seguir o fio de seu pensamento até as profundezas de si mesma, buscando o que quer que o Senhor pretendia dar-lhe a conhecer.

 

A mulher é...

 

...o quê?

 

Isso importava? A mulher já se fora.

 

- Tive um sobrinho-neto que morou certa vez no norte do estado de Nova York - disse ela descontraída a Mark Zellman. - Numa cidade chamada Rouse’s Point. Bem encostada a Vermont, no lago Champlain, isso mesmo. Imagino que nunca tenha ouvido falar, não é?

 

Mark Zellman respondeu que, claro, já ouvira falar; quase todos no estado de Nova York conheciam aquela cidade. Ele já estivera lá? O rosto dele se rompeu tragicamente. Não, nunca tinha ido lá, mas sempre o desejara.

 

- Pelo que Ronnie dizia nas suas cartas, você não perdeu grande coisa - disse ela, e Zellman voltou a ficar contente.

 

Os demais foram até ela apresentar cumprimentos, como tinham feito os grupos que os precederam, tal como fariam outros nos dias e semanas vindouros. Um adolescente chamado Tony Donahue. Um homem de nome Jack Jackson, que era mecânico de automóveis. Uma jovem enfermeira diplomada chamada Laurie Constable - esta chegava bem na hora. Um velho chamado Richard Farris, a quem todos chamavam de Juiz; ele a encarou fixamente e quase a fez sentir-se constrangida de novo. Dick Vollman. Sandy DuChiens - belo nome francês. Harry Dunbarton, um vendedor de óculos apenas três meses atrás. Andrea Terminello. Um Smith. Um Rennett. E uma infinidade de outros. Abby falou com todos eles, assentiu, sorriu e os deixou à vontade, porém o prazer que sentira em outros dias não existia hoje, e ela só sentia dores nos pulsos, dedos e joelhos, havendo ainda uma agoniante suspeita de que precisava usar o sanitário portátil e, caso demorasse muito, acabaria manchando o vestido.

 

Tudo isso e mais a sensação, se desvanecendo agora (e que iria embora por completo ao cair da noite), de que deixara escapar algo de suma importância do qual poderia se lamentar muito mais tarde.

 

Ele pensava melhor quando escrevia, por isso botava no papel tudo que poderia ser de importância em linhas gerais, usando duas canetas com ponta de feltro: uma azul e uma preta. Nick Andros sentava-se no estúdio da casa em Baseline Drive que dividia com Ralph Brentner e sua esposa, Elise. Já estava quase escuro. A casa era uma beleza, assentada abaixo da massa da montanha Flagstaff, porém bastante acima da cidade de Boulder, de modo que, da janela panorâmica da sala de estar, as ruas e estradas pareciam distender-se como um gigantesco tabuleiro de xadrez. Na parte externa, a vidraça dessa janela fora tratada com alguma técnica reflexiva prateada, permitindo que os moradores vissem o exterior, mas impedindo que os transeuntes tivessem qualquer visão do interior. Nick calculava que aquela casa valesse de 450 mil a 500 mil dólares - achando-se misteriosamente ausentes o proprietário e sua família.

 

Em sua longa jornada de Shoyo a Boulder, primeiro sozinho, depois com Tom Cullen e os outros, ele passara por dezenas de cidades e povoados. Em todos, as casas não passavam de malcheirosas capelas mortuárias. Não havia motivos para que Boulder fosse diferente... mas era. Havia cadáveres ali, sim, milhares deles, e algo precisava ser feito antes que os dias secos e quentes terminassem e começasse a chover, provocando uma decomposição mais rápida e possíveis enfermidades... só que ali não havia cadáveres suficientes. Nick gostaria de saber se mais alguém, além dele e Stu Redman, chegara a notar isso. Lauder, talvez. Lauder percebia quase tudo.

 

Para cada residência ou prédio público atulhados de cadáveres, havia dez outros inteiramente vazios. Em algum momento durante o último espasmo da epidemia, a maioria dos cidadãos de Boulder, doentes ou saudáveis, abandonara a cidade. Por quê? Bem, ele achava que isso realmente não importava e que talvez nunca ficasse sabendo. Permanecia o espantoso fato de que Mãe Abagail, sem saber, conseguira conduzidos para talvez a única cidade dos Estados Unidos que ficara limpa das vítimas da epidemia. Isso bastava para que até mesmo um agnóstico como ele se perguntasse onde ela conseguira tal informação.

 

Nick ocupara três cômodos no térreo da casa, e eram belos cômodos, mobiliados com pinho nodoso. Nenhuma pressão por parte de Ralph o levara a ampliar seu espaço - ele já se sentia como um intruso, mas gostava deles -, e até sua viagem de Shoyo até Hemingford Home ele não havia percebido o quanto sentia falta de outros rostos. Ele ainda não tinha se fartado.

 

E a casa era a melhor em que alguém já poderia ter vivido, isso era. Ele tinha sua entrada independente pela porta dos fundos e mantinha sua bicicleta de dez marchas estacionada debaixo do beiral baixo e pendente da porta, onde ela permanecia afundada até o eixo em gerações de folhas de álamo apodrecendo fragrantemente. Ele tinha o começo de uma coleção de livros, algo que sempre desejara e nunca fora capaz de ter em seus anos de perambulação. Tinha sido um leitor compulsivo naqueles dias (durante esses novos dias, raramente pareceu ser hora de sentar e ter uma longa conversa com um livro), e alguns dos livros nas prateleiras - prateleiras que ainda continuavam amplamente vazias - eram velhos amigos, a maioria deles originalmente emprestada de bibliotecas que cobravam 2 cents por dia; nos últimos poucos anos ele nunca passara tempo suficiente em uma cidade para obter um cartão regular de biblioteca. Outros eram livros que ainda não tinha lido, livros que as bibliotecas o haviam induzido a procurar. Enquanto sentava-se ali no estúdio com suas canetas e papel, um desses livros apoiava-se na mesa ao lado de sua mão direita - Ponha Fogo Nesta Casa, de William Styron. Ele havia usado como marcador uma nota de 10 dólares que encontrara na ma. Havia um monte de dinheiro nas ruas, que o vento soprava ao longo das sarjetas, e ele ainda se surpreendia e divertia com a quantidade de pessoas - inclusive ele - que paravam para pegá-lo. E por quê? Os livros eram grátis agora. As ideias eram grátis. Às vezes esse pensamento o divertia. Às vezes o assustava.

 

O papel em que estava escrevendo veio de um caderno espiral em que guardava todos os seus pensamentos - o conteúdo do caderno era meio diário, meio lista de compras. Ele havia descoberto uma profunda inclinação para fazer listas; achava que um de seus ancestrais devia ter sido contador. Quando sentia sua mente perturbada, descobrira que fazer uma lista costumava acalmá-la de novo.

 

Voltou à página branca diante dele, fazendo rabiscos disformes na margem.

 

Parecia-lhe que tudo quanto necessitavam ou queriam da vida antiga achava-se estocado na central elétrica deserta a leste de Boulder, como um tesouro empoeirado num armário às escuras. Uma sensação desagradável parecia estar dominando as pessoas reunidas em Boulder, algo apenas um tanto submerso, logo abaixo da superfície - sendo todas elas um bando assustado de garotos vagando pela casa assombrada local após o escurecer. De algumas maneiras, o lugar era como uma cidade fantasma repugnante. Havia uma sensação de que a permanência ali em Boulder era uma coisa estritamente temporária. Um homem chamado Impening havia morado em Boulder, trabalhando em uma das turmas de vigilância na fábrica da IBM situada na Diagonal Boulder-Longmont. Impening parecia determinado a produzir inquietação. Vivia dizendo a todos que em 1984 houvera em Boulder 4 centímetros de neve em 14 de setembro, e que por volta de novembro ali faria frio suficiente para congelar os bagos de um macaco de bronze. Este era o tipo de conversa em que Nick gostaria de dar um basta. Se Impening pertencesse ao Exército, já teria sido preso pelo que andava falando; esta porém era uma lógica vazia, caso houvesse alguma lógica, afinal. O importante era que as palavras de Impening perderiam força se as pessoas pudessem se mudar para casas com as luzes acendendo e caldeiras exalando ar quente através das grelhas ao toque de um dedo num botão. Se isso não acontecesse antes das primeiras nevascas, Nick receava que todos simplesmente começassem a ir embora, e então nem todas as assembleias, representantes e ratificações do mundo poriam um paradeiro nisso.

 

Segundo Ralph, na central elétrica não havia muito o que corrigir, pelo menos que saltasse aos olhos. As turmas encarregadas de seu funcionamento haviam desligado parte da maquinaria; a outra parte desligara-se automaticamente. Dois ou três motores das grandes turbinas estavam queimados, talvez em decorrência de algum afluxo final de energia. Ralph disse que teriam de substituir parte da fiação, mas ele e Brad Kitchener, auxiliados por uma dúzia de homens, dariam conta disso. Haveria necessidade de uma turma bem mais numerosa para remover a fiação de cobre queimada e enegrecida dos geradores queimados das turbinas, sendo instalada em seguida uma nova fiação de cobre. Havia fartura de fio de cobre nas lojas de ferragens de Denver; Ralph e Brad tinham ido lá na semana anterior para verificar pessoalmente. Com a energia humana eles achavam que podiam restabelecer o fornecimento de energia elétrica já no Dia do Trabalho, ou seja, na primeira segunda-feira de setembro.

 

- Então daremos a festa mais danada de boa que esta cidade já viu - disse Brad.

 

Lei e Ordem. Aí estava algo que mais o perturbava. Stu Redman poderia incumbir-se disso? Ele não queria, mas Nick achava que talvez pudesse convencê-lo a aceitar. Caso não desse resultado, recorreria a Glen, amigo de Stu. O que de fato o deixava preocupado era a lembrança, ainda recente e dolorosa demais para ser analisada com mais minúcias, de sua breve e terrível passagem como carcereiro em Shoyo. Vince e Billy morrendo. Mike Childress pulando em cima de sua refeição e gritando, em petulante desafio: Greve de fome! Estou fazendo uma porra de greve de fome!

 

Doía-lhe pensar que pudessem precisar de tribunais e prisões em Boulder... talvez mesmo de um carrasco. Céus, afinal aquele era o povo de Mãe Abagail, não do homem escuro! Entretanto, Nick desconfiava de que o homem escuro não se daria ao trabalho de enfrentar trivialidades como tribunais e cadeias. Seu castigo seria rápido, certeiro e duro. Não precisaria ameaçar com prisão quando os cadáveres pendessem das cruzes de postes telefônicos ao longo da I-15 para serem bicados pelos pássaros.

 

Nick esperava que a maioria das infrações fosse de pouca monta. Já houvera diversos casos de embriaguez e comportamento desordeiro. Um garoto, de fato ainda muito jovem para dirigir, estivera movimentando uma enorme draga pela Broadway, afugentando as pessoas das ruas. Por fim, colidira com um veículo parado, um pequeno furgão de padaria, e batera com a testa - e, na opinião de Nick, o acidente saíra barato. As pessoas que o tinham visto sabiam que era jovem demais para a tarefa, mas ninguém se sentira com coragem suficiente para impedi-lo.

 

Autoridade. Organização. Ele escreveu no bloco e depois fez um círculo duplo nas palavras. O fato de formarem o povo de Mãe Abagail não os imunizava contra fraqueza, estupidez ou más companhias. Nick ignorava se seriam ou não os filhos de Deus, mas quando Moisés descera da montanha, aqueles que não se empenhavam em adorar o bezerro de ouro distraíam-se no jogo de dados, e ele sabia disso. Em Boulder tinham de enfrentar a possibilidade de que alguém se ferisse durante um jogo de carteado ou se alguém seria morto a tiros por causa de uma mulher.

 

Autoridade. Organização. Circulou de novo as palavras, que estavam como prisioneiras atrás de uma tríplice estacada. Como se davam bem juntas... e que péssimo som produziam!

 

Não muito tempo depois, Ralph entrou.

 

- Conseguimos mais gente chegando amanhã, Nick, e um verdadeiro desfile no dia seguinte: coisa para mais de trinta pessoas.

 

"Ótimo", Nick escreveu. "Em breve teremos um médico. Assim diz a lei de probabilidades."

 

- É - disse Ralph. - Graças a Deus estamos nos transformando numa cidade normal.

 

Nick assentiu.

 

- Tive uma conversa com o líder do grupo que chegou hoje. Chama-se Larry Underwood. Um cara esperto, Nick. Esperto paca.

 

Nick ergueu as sobrancelhas e deixou um ponto de interrogação no ar.

 

- Bem, vamos ver - disse Ralph, que sabia o que significava o ponto de interrogação: dê mais informação, se puder. - Ele é seis ou sete anos mais velho que você, acho, e talvez oito ou nove anos mais jovem que Redman. Mas é o tipo de homem que você disse que devíamos estar procurando. Ele faz as perguntas certas.

 

Outro ponto de interrogação.

 

- Quem está no comando, por exemplo - disse Ralph. - O que vem a seguir, quem se incumbe disso.

 

Nick assentiu. Sim - as perguntas certas.

 

Mas seria o homem certo? Ralph poderia ter razão. Mas também poderia não ter. "Tentarei me encontrar com ele amanhã para dizer um alô", escreveu Nick numa outra folha de papel.

 

- É, você deveria. Ele é legal. - Ralph arrastou os pés. - E conversei com a Mãe pouco antes de esse Underwood e seu grupo aparecerem para as apresentações. Conversei com ela como você queria que eu fizesse.

 

Mais um ponto de interrogação.

 

- Ela diz que devíamos seguir em frente, nos pôr em movimento. Ela diz que há pessoas vadiando e que elas precisam de líderes para lhes dar o que fazer.

 

Nick recostou-se na cadeira e riu silenciosamente. Depois escreveu: "Eu tinha quase certeza de que ela acharia isto. Falarei com Stu e Glen amanhã. Imprimiu os panfletos?"

 

- Ah! Aqueles! Sim, merda - disse Ralph. - Foi nisso que perdi a maior parte da tarde.

 

Ele mostrou a Nick uma prova, ainda cheirando fortemente a tinta do mimeógrafo. A impressão era em tipos grandes e chamativos. O próprio Ralph o redigira:

 

ASSEMBLEIA GERAL!!!

UMA JUNTA DE REPRESENTANTES

SERÁ INDICADA E ELEITA!

 

18 de agosto de 1990, às 20h30

Local: Canyon Boulevard Park & Bandshell (TEMPO BOM)

 

Chautauqua Auditório no Parque Chautauqua (TEMPO RUIM)

SERÃO SERVIDOS REFRESCOS

APÓS A ASSEMBLEIA

 

Mais abaixo havia dois mapas rudimentares para os recém-chegados e para aqueles que não gastaram muito tempo explorando os logradouros de Boulder. Abaixo dos mapas, em letras pequenas, havia os nomes combinados entre ele, Stu e Glen, após uma discussão mais cedo naquele dia:

 

Comitê Ad Hoc

Nick Andros

Glen Bateman

Ralph Brentner

Richard Ellis

Fran Goldsmith

Stuart Redman

Susan Stern

 

Nick apontou para a linha que falava em refrescos e ergueu as sobrancelhas.

 

- Ah, sim. Bem, Frannie chegou e sugeriu que poderíamos reunir mais gente se oferecêssemos alguma coisa. Ela e aquela sua amiga, Patty Kroger, vão cuidar disso. Biscoitos e Za-Rex. - Ralph fez uma careta. - Se eu tivesse de escolher entre beber Za-Rex e mijo, teria que me sentar para pensar. Você pode ficar com meu refresco, Nick.

 

Nick sorriu.

 

- O único reparo que tenho a fazer - continuou Ralph, mais sério - é terem me colocado nesse comitê. Sei o que a palavra significa. Quer dizer: "Parabéns, você ficou com todo o trabalho duro." Bem, não que isso faça diferença, porque batalhei a vida inteira. Só que comitês, supostamente, devem incluir cabeças pensantes, e não sou bem o tipo de homem com ideias.

 

No seu bloco, Nick esboçou rapidamente uma grande estrutura de FC, tendo ao fundo uma torre de rádio com raios de eletricidade partindo de seu topo.

 

- Ah, isso é muito diferente - disse Ralph em tom sombrio.

 

"Você será ótimo", escreveu Nick. "Pode crer."

 

- Se assim diz... bem, farei uma tentativa. Mas continuo achando que estaria mais bem servido com o tal do Underwood.

 

Nick sacudiu a cabeça e bateu no ombro de Ralph. Este lhe desejou boa-noite e seguiu para o andar de cima. Depois que ele se foi, Nick ficou olhando pensativo para o panfleto. Se Stu e Glen tivessem visto cópias - e tinha certeza de que a esta altura já teriam visto -, saberiam que ele retirara, unilateralmente, o nome de Harold Lauder da lista de integrantes do comitê ad hoc elaborada por eles. Era difícil saber como aceitariam sua decisão, mas o fato de ainda não terem aparecido talvez fosse um bom sinal. Eles poderiam querê-lo para fazer alguma barganha política e, sendo preciso, aceitaria, apenas para manter Harold fora da cúpula. Se quisessem um nome, ele indicaria Ralph, que não desejaria o posto, de qualquer modo, embora fosse dono de uma sagacidade nata e a capacidade quase inestimável de captar todos os detalhes de um problema. Seria um elemento essencial num comitê permanente, e ele achava que Stu e Glen já tivessem cabalado o comitê entre os amigos. Se ele queria Lauder de fora, seus companheiros teriam de concordar. Para que essa liderança marchasse sem tropeços, era indispensável não haver discordância entre eles. Ei, mãe, como aquele homem conseguiu tirar um coelho da cartola? Bem, filho, não tenho certeza, mas acho que poderia ter usado o velho truque de "desviar a atenção com biscoitos e Za-Rex". Sempre funciona.

 

Voltou à página em que estivera rabiscando quando Ralph entrou. Olhou para as palavras que havia circulado não apenas uma, mas três vezes, como se para gravá-las bem. Autoridade. Organização. De repente, escreveu outra abaixo delas - havia espaço. Agora as palavras no círculo triplo eram:

 

Autoridade. Organização. Política.

 

Mas ele não estava tentando tirar Lauder de campo só porque sentia que Stu e Glen Bateman tentavam tomar para si o que era realmente seu jogo. Sentia porém um certo ressentimento, com certeza. Seria muito estranho se não sentisse. De algum modo, ele, Ralph e Mãe Abagail tinham fundado a Zona Franca de Boulder.

 

Temos agora centenas de pessoas e milhares se encontram a caminho, se Bateman está certo, pensou, batendo o lápis contra as palavras circuladas. Quanto mais olhava para elas, mais feias pareciam. Mas quando Ralph, eu, Mãe, Tom Cullen e o resto de nosso grupo chegamos aqui, as únicas coisas viventes eram os gatos e o cervo que veio do parque estadual para pastar nos jardins das pessoas... e até nas lojas. Lembra daquele que de alguma forma entrou no supermercado Table Mesa e depois não conseguia sair? Estava louco, correndo de um lado para outro entre as gôndolas, derrubando coisas, caindo, depois se levantando e correndo de novo.

 

Somos recém-chegados, certo, não faz nem um mês que aqui chegamos, mas fomos os primeiros! Portanto, há um pouco de ressentimento. Mas não é por essa razão que quero Harold fora. Eu o quero fora porque não confio nele. Harold sorri o tempo todo, mas há um compartimento estanque

 

(sorriso estanque?)

 

entre sua boca e seus olhos. Houve uma rixa entre ele e Stu, por causa de Frannie, e os três dizem que acabou, mas fico me perguntando se acabou mesmo. Às vezes vejo Frannie olhando para Harold, parecendo pouco à vontade. Ela parece como se tentando imaginar o quanto "acabou" realmente. Ele é realmente brilhante, mas sua instabilidade me preocupa.

 

Nick sacudiu a cabeça. Isso não era tudo. Em mais de uma ocasião ele havia especulado se Harold não seria louco.

 

É principalmente aquele sorriso. Não quero ter de partilhar segredos com alguém que sorri daquele jeito e parece como se não tivesse dormido bem à noite.

 

Lauder não. Eles terão de concordar com isso.

 

Nick fechou o caderno e o guardou na última gaveta da escrivaninha. A seguir se levantou e começou a tirar as roupas, ansioso por uma chuveirada. Estava se sentindo obscuramente sujo.

 

O mundo, pensou, não segundo Garp, mas segundo a supergripe. Este admirável mundo novo. Mas não lhe parecia particularmente admirável, ou particularmente novo. Era como se alguém tivesse posto uma enorme bomba de cerejeira na caixa de brinquedos de uma criança. Houvera uma grande explosão e tudo voara por toda parte. Brinquedos se esparramaram de um canto para outro da sala de jogos. Alguns ficaram irremediavelmente perdidos, outros podiam ser consertados, porém a maioria tinha sido esparramada. Aquelas coisas ainda estavam quentes demais para manipular, mas ficaria tudo bem depois que esfriassem.

 

Enquanto isso, a tarefa era pôr as coisas em ordem. Jogar fora tudo que não prestasse. Aproveitar os brinquedos que podiam ser consertados. Anotar tudo que ainda estivesse em perfeito estado. Arranjar uma nova caixa de brinquedos para guardar as coisas, uma bela caixa de brinquedos nova. Uma caixa de brinquedos forte. Existe uma facilidade assustadora e doentia - e uma clara atração - no modo como as coisas podem ser explodidas em pedaços. O difícil é juntar tudo de novo. Pôr em ordem. Consertar. Listar. E descartar as coisas que não prestam mais, evidentemente.

 

Exceto... pode você algum dia jogar fora as coisas que não estão boas?

 

Nick parou a meio caminho do banheiro, nu, com as roupas nos braços.

 

Ah, a noite estava tão silenciosa... mas todas as noites não eram todas sinfonias de silêncio? Por que seu corpo de repente tinha se arrepiado?

 

Ora, porque ele de súbito percebeu que não havia brinquedos que o Comitê da Zona Franca devesse catar, nem sequer havia brinquedos. De repente, sentiu que tinha juntado algum bizarro círculo costurado do espírito humano - ele, Redman, Bateman e Mãe Abagail, sim, até mesmo Ralph com seu enorme rádio e seu equipamento que enviava sinais da Zona Franca para todos os lados do continente morto. Cada um tinha uma agulha e talvez estivessem funcionando em conjunto para produzir um cobertor aquecido contra o frio do inverno... ou talvez tivessem apenas, após uma breve pausa, recomeçado a fazer uma mortalha para o gênero humano, iniciando seu trabalho pelos pés e seguindo por todo o caminho acima.

 

Depois do amor, Stu preparou-se para dormir. Estivera dormindo pouco ultimamente, e passara a noite anterior bebendo com Glen Bateman e fazendo planos para o futuro. Frannie pusera seu robe e tinha chegado à sacada.

 

O prédio em que moravam se situava no centro da cidade, na esquina da Pearl Street com a Broadway. O apartamento ficava no terceiro andar e abaixo ela podia ver o cruzamento, com a Pearl correndo de leste para oeste e a Broadway seguindo de norte para sul. Ela gostava do lugar, onde tinham os pontos cardeais bem demarcados. A noite era quente e sem vento, a rocha negra do céu manchada por um milhão de estrelas. À sua claridade fraca e gelada, Fran podia ver as placas das Flatirons elevando-se a oeste.

 

Ela deslizou a mão do pescoço às coxas. O robe que usava era de seda e nada vestia por baixo. Sua mão passou suavemente pelos seios e então, em vez de continuar lisa e reta até a branda elevação do púbis, desenhou um arco no ventre, seguindo uma curvatura que sequer era percebida duas semanas antes.

 

Sua gravidez começava a se evidenciar, não muito ainda, mas Stu comentara a respeito nesta noite. A pergunta dele tinha sido casual, embora com um toque de comicidade: Por quanto tempo ainda podemos fazer sem que eu... hã, sem que eu aperte ele?

 

Ou ela, havia respondido Fran, divertida. Que tal quatro meses, chefe?

 

Excelente, respondera Stu, deslizando deliciado para dentro dela.

 

Uma conversa anterior tinha sido muito séria. Não muito depois da chegada a Boulder. Stu contou-lhe que havia falado sobre o bebê com Glen, o qual comentara, muito cautelosamente, que o germe ou vírus da supergripe ainda poderia estar ativo. Assim sendo, era possível que o bebê morresse. Era uma ideia inquietante (Glen não falhava, pensou ela: sempre se podia contar com ele para uma ou duas Ideias Inquietantes), mas certamente, se a mãe era imune, o bebê...?

 

Ainda assim, havia ali muita gente que perdera filhos na epidemia.

 

Certo, mas isto significaria...

 

Significaria o quê?

 

Bem, em primeiro lugar, poderia significar que todas as pessoas ali eram apenas um epílogo da raça humana, uma breve coda. Ela não queria acreditar nisso, não podia acreditar. Se fosse verdade...

 

Alguém vinha subindo a rua, dando voltas para contornar um caminhão-basculante que enguiçara com duas rodas sobre a calçada e junto à parede de um restaurante chamado Pearl Street Kitchen. O homem trazia um blusão leve jogado sobre o ombro. Em uma das mãos carregava o que tanto poderia ser uma garrafa quanto uma arma de cano longo. Na outra tinha uma folha de papel, talvez com um endereço escrito, a julgar pelo modo como verificava os números da rua. Por fim, parou diante do prédio de Fran. Olhava para a porta como se tentando decidir o que fazer. Frannie achou que ele parecia um pouco como um detetive particular de alguma série de TV. Ela estava a menos de 6 metros acima da cabeça dele e viu-se num daqueles dilemas. Se falasse com ele, poderia assustá-lo. Se não falasse, o homem começaria a bater e acordaria Stu. E afinal o que estava fazendo empunhando uma arma... se era mesmo uma arma?

 

De repente, ele espichou o pescoço e olhou para cima, talvez procurando alguma luz acesa no prédio. Frannie ainda olhava para baixo. Os olhos de ambos se encontraram diretamente.

 

- Santo Deus! - exclamou o homem na calçada. Ele deu um passo involuntário para trás, tropeçou no meio-fio caiu sentado duramente na sarjeta.

 

- Ah! - exclamou Frannie no mesmo momento, também recuando na sacada. Havia uma planta trepadeira em um enorme vaso de cerâmica em pedestal atrás dela. As costas de Frannie se chocaram com o vaso. O vaso oscilou, quase decidido a viver um pouco mais, porém terminou caindo sobre os ladrilhos da sacada, com um baque ruidoso.

 

No quarto, Stu grunhiu, virou-se e se aquietou de novo.

 

Frannie, talvez previsivelmente, teve um acesso de riso. Tapou a boca com as mãos, beliscou os lábios com força, mas os risinhos continuaram escapando numa série de sussurros breves e roucos. O furacão Grace ataca de novo, pensou, enquanto ria-sussurrava como louca, dentro das mãos em concha. Se ele tivesse uma guitarra, eu poderia deixar o maldito vaso cair-lhe na cabeça. O sole mio... CRASH! Seu ventre doeu de tanto tentar segurar o riso.

 

Um sussurro conspiratório abriu caminho lá de baixo:

 

- Ei, você aí na sacada... Pssst!

 

- Psssit - sussurrou Frannie para si mesma. - Psssit, essa é boa.

 

Tinha que sair dali antes que ele começasse a zurrar como um jumento. Jamais fora capaz de conter o riso, depois de começado. Correu rapidamente através do quarto escuro, pegou um quimono mais substancial - e recatado - atrás da porta do banheiro e desceu o corredor esforçando-se para vestir o traje que, colado a seu rosto, funcionava como uma máscara de borracha. Chegou ao patamar e desceu um lance de escadas antes de deixar o riso escapar livremente. Desceu os dois últimos lances, agora dando boas risadas.

 

O homem - era um rapaz, via agora - já se levantara e sacudia a poeira. Era esguio e bem-proporcionado, a maior parte do rosto coberta por uma barba que podia ser loura ou talvez quase ruiva à luz do dia. Ele tinha círculos escuros debaixo dos olhos, mas exibia um pequeno sorriso pesaroso.

 

- O que foi que derrubou? - perguntou ele. - Parecia um piano.

 

- Foi um vaso - disse ela. - Ele... ele... - O acesso de riso voltou a dominá-la, e Frannie só pôde apontar um dedo para ele, rir baixinho, sacudir a cabeça e então voltar a segurar o ventre dolorido. Lágrimas rolavam por suas faces. - Você parecia muito engraçado... sei que não deveria falar assim para quem nem conheço, mas... ah, poxa! Estava mesmo engraçado.

 

- Se isto acontecesse nos velhos tempos - disse ele, sorrindo -, minha primeira providência seria processá-la em 150 mil dólares, pelo menos. De cara. Meritíssimo, olhei para cima e lá estava esta moça, me observando. Sim, acho que fazia caretas. O rosto, pelo menos, estava contorcido. Decidiremos em favor do queixoso, este pobre rapaz. E também em favor do oficial de justiça. Haverá um recesso de dez minutos.

 

Riram juntos por algum tempo. O rapaz vestia jeans desbotados e uma camisa azul-escura. A noite de verão era cálida e agradável, e Frannie começava a alegrar-se por ter descido.

 

- Por acaso seu nome não seria Fran Goldsmith?

 

- Por acaso, sim. Só que não o conheço.

 

- Sou Larry Underwood. Eu e meu grupo chegamos hoje. Na verdade, eu procurava por um cara chamado Harold Lauder. Disseram-me que estava morando na Pearl Street, 261, junto com Stu Redman, Frannie Goldsmith e mais algumas pessoas.

 

Isto conteve as risadinhas de Fran.

 

- Harold morou neste prédio tão logo chegamos a Boulder, mas já faz um bom tempo que se mudou. Agora mora na Arapahoe, que fica no lado oeste da cidade. Se quiser, posso lhe dar o endereço e explicar como chegar lá.

 

- Eu ficaria muito grato. Mas esperarei até amanhã. Não quero correr mais riscos esta noite.

 

- Conhece Harold? - perguntou ela.

 

- Sim e não - disse Larry. - Tal como conheço e não conheço você. Aliás, para ser franco, devo dizer que em nada se assemelha com a pessoa que imaginei. Eu a fantasiei como uma loura tipo Valkyrie, saída direto de uma ilustração de Frank Frazetta, talvez com uma pistola .45 em cada quadril. Mas, de qualquer modo, é um prazer conhecê-la. - Ele estendeu a mão, que Frannie apertou com um leve sorriso de surpresa.

 

- Acho que não faço a menor ideia do que você está falando.

 

- Sente-se no meio-fio por um minuto e explicarei.

 

Ela sentou-se. Uma brisa ligeira percorria a rua, levantando restos de papel e fazendo os velhos olmos se agitarem no gramado do tribunal, a três quarteirões dali.

 

- Eu trouxe uma coisa para Harold Lauder - disse Larry. - Mas é para ser uma surpresa. Portanto, se o encontrar antes de mim, nem uma palavra a respeito.

 

- Claro - disse Frannie. Ela estava mais aturdida do que nunca.

 

Ele ergueu a arma de cano longo, que afinal não era arma nenhuma, mas sim uma garrafa de vinho de gargalo comprido. Ela virou o rótulo para a luz das estrelas e conseguiu ler a custo apenas as letras maiores - BORDEAUX no alto e, ao fundo, o ano: 1947.

 

- A melhor vindima do vinho Bordeaux neste século - informou ele. - Pelo menos era o que dizia um velho amigo meu. Seu nome era Rudy. Que sua alma descanse em paz com o amor de Deus.

 

- Mas 1947... foi há 43 anos. Será que não... bem, não se estragou?

 

- Rudy costumava dizer que um bom Bordeaux nunca se estraga. De qualquer modo, eu o carreguei por todo o caminho desde Ohio. Se é um vinho ruim, será por certo o vinho ruim mais viajado.

 

- O vinho é para Harold?

 

- O vinho e mais alguma coisa. - Ele tirou algo do bolso do blusão e estendeu a ela.

 

Fran não precisou virá-lo para a luz das estrelas a fim de ler a marca. Começou a rir.

 

- Chocolate Payday! - exclamou. - É o preferido de Harold... mas como ficou sabendo disso?

 

- Aí é que está a história.

 

- Então me conte!

 

- Muito bem. Era uma vez um sujeito chamado Larry Underwood que foi da Califórnia a Nova York para ver sua velha e querida mãe. Esta não foi a única razão por ter vindo, e as outras razões são um pouco menos agradáveis, mas vamos nos ater à razão do bom rapaz, certo?

 

- Por que não? - concordou Fran.

 

- E eis que a Fada Má do Oeste, ou alguns babacas do Pentágono, castigou o país com uma grande epidemia, e antes que se pudesse dizer "Aí vem a Capitão Viajante", praticamente toda a população de Nova York estava morta, inclusive a mãe de Larry.

 

- Sinto muito. Também perdi meus pais.

 

- É... os pais e mães de todo mundo. Se todos nós fôssemos enviar cartões de condolências, não restaria mais nenhum. Mas Larry foi um dos sortudos. Ele saiu da cidade com uma dama chamada Rita, que não estava muito bem preparada para lidar com o que aconteceu. E, infelizmente, Larry não estava muito bem preparado para lidar com o problema dela.

 

- Ninguém estava preparado.

 

- Mas alguns se adaptaram mais rápido do que outros. Seja como for, Larry e Rita seguiram para a costa do Maine. Chegaram a alcançar Vermont, e lá a dama preferiu pôr fim a tudo com uma superdosagem de soníferos.

 

- Ah, Larry, que tristeza!

 

- Larry levou isto muito a sério. De fato, encarou isto mais ou menos como julgamento divino sobre sua força de caráter. Além disso, uma ou duas pessoas já lhe tinham dito que seu traço de caráter mais incorruptível era uma dose esplêndida de egoísmo, que cintilava como uma madona de Day-Glo afixada no painel de um Cadillac 59.

 

Frannie estirou-se um pouco para trás na calçada.

 

- Espero que não a esteja incomodando, mas tudo isto ficou revirando dentro de mim por um longo tempo, e tem a ver com o papel que Harold representa na história. Tudo bem?

 

- Tudo bem.

 

- Obrigado. Creio que, desde que chegamos aqui e conhecemos aquela velha hoje, venho procurando um rosto amigável com quem pudesse desabafar. Simplesmente pensei que seria o de Harold. De qualquer modo, Larry continuou seguindo para o Maine porque parecia não haver qualquer outro lugar para onde ir. Já vinha padecendo de sonhos muito ruins na ocasião, mas uma vez que estava sozinho não tinha como saber que outras pessoas também padeciam dos mesmos pesadelos. Presumiu simplesmente que fosse outro sintoma de seu continuado colapso mental. Mas finalmente chegou a uma cidadezinha costeira chamada Wells, onde encontrou uma mulher chamada Nadine Cross e um menino estranho cujo nome se descobriu ser Leo Rockway.

 

- Wells - murmurou ela com admiração.

 

- De qualquer modo, os três viajantes tiraram a sorte com uma moeda para ver qual direção tomariam na Nacional 1. Como deu coroa, rumaram para o sul, onde finalmente chegaram a...

 

- Ogunquit! - exclamou Frannie, deliciada.

 

- Isso mesmo. E lá, em um celeiro, através de letras enormes, fiz meu primeiro contato com Harold Lauder e Frances Goldsmith.

 

- O aviso de Harold! Ah, Larry, como ele ficará contente!

 

- Seguimos as indicações no celeiro até Stovington, e depois as indicações de Stovington até Nebraska, e depois as indicações da casa de Mãe Abagail até Boulder. Conhecemos pessoas no caminho. Uma delas foi uma garota chamada Lucy Swann, que agora é minha mulher. Gostaria de apresentá-la a você. Creio que vai gostar dela.

 

"Mas então aconteceu alguma coisa que Larry realmente não desejava. Seu pequeno grupo de quatro cresceu para seis. Os seis encontraram mais quatro ao norte do estado de Nova York e nosso grupo absorveu o deles. Quando chegamos ao aviso de Harold na casa de Mãe Abagail, já éramos 16 pessoas e encontramos mais três no justo momento em que partíamos. Larry ficou responsável por esse corajoso bando. Não houve votação nem nada parecido. Simplesmente foi isso. E na verdade ele não queria assumir a responsabilidade. Aquilo era um fardo que o fazia passar noites em claro. Começou a tomar pílulas. Mas é engraçado o modo como a mente luta com a mente. Eu não podia continuar com aquilo. Era uma questão de auto-respeito. E eu... ele... vivia com medo de estragar tudo, de acordar a qualquer manhã e encontrar alguém morto no saco de dormir, tal como aconteceu com Rita naquela ocasião em Vermont. Então todos lhe apontariam o dedo, acusando: ‘É culpa sua. Devia ter agido melhor, portanto é o culpado.’ E isto era algo que eu não podia comentar, nem mesmo com o juiz."

 

- Quem é o juiz?

 

- O juiz Farris. Um velho de Peoria. Imagino que foi de fato juiz lá pelo início dos anos 50, um juiz itinerante ou coisa que o valha, mas já estava aposentado havia muito tempo quando a gripe surgiu. É porém um sujeito muito capaz. Quando olha para a gente, poderíamos jurar que tem olhos de raios X. De qualquer modo, Harold foi importante para mim. Ficou mais importante à medida que o grupo aumentava. Em proporção direta, se poderia dizer. - Larry deu uma risadinha. - Aquele celeiro. Caramba! A última linha daquele aviso, a que trazia o seu nome, foi escrita tão baixo que pude imaginá-lo escrevendo com o traseiro empinado ao vento.

 

- Sim. Eu estava dormindo quando ele o pintou. Se não, o teria impedido.

 

- Comecei a ter certa noção dele - continuou Larry. - Encontrei um invólucro de Payday na cúpula daquele celeiro em Ogunquit e depois junto à inscrição entalhada na viga...

 

- Que inscrição?

 

Ela sentiu que Larry a estava inspecionando no escuro e puxou o quimono para mais junto do corpo... não num gesto de recato, porque não sentia nenhuma ameaça por parte daquele homem, mas por puro nervosismo.

 

- Apenas as iniciais dele - disse Larry casualmente. - H. E. L. Se aquilo tivesse sido o fim de tudo, eu não estaria aqui agora. Mas, depois, na concessionária de motos em Wells...

 

- Nós estivemos lá!

 

- Sei que estiveram. Vi que faltavam duas motos. O que mais me impressionou foi que Harold havia sugado gasolina do tanque subterrâneo. Você deve tê-lo ajudado, Fran. Quase perdi meus dedos fazendo isso.

 

- Não, não precisei ajudá-lo. Harold andou de um lado para outro até encontrar uma coisa que chamou de bocal do respiradouro...

 

Larry soltou um grunhido e bateu na testa.

 

- O bocal do respiradouro! Meu Deus! Nem mesmo procurei verificar por onde eles ventilavam o reservatório! Quer dizer que ele apenas deu algumas voltas... puxou uma tampa... e enfiou a mangueira dentro?

 

- Bem... foi isso.

 

- Esse Harold! - disse Larry num tom de admiração que Frannie jamais ouvira antes, pelo menos não em relação ao nome de Harold Lauder. - Bem, aí está um dos truques que não captei. De qualquer modo, chegamos a Stovington. E Nadine ficou tão descontrolada que desmaiou.

 

- Pois eu chorei - disse Fran. - Berrei a ponto de pensar que nunca ia parar. Já imaginava que, ao chegarmos lá, alguém viria nos dar as boas-vindas, dizendo: "Olá! Podem entrar, a lanchonete fica logo à esquerda!" - Ela sacudiu a cabeça. - Parece uma tolice, recordando agora.

 

- Não desanimei. O Intrépido Harold esteve lá antes de mim, deixou seu aviso e foi embora. Eu me sentia como um sujeito inexperiente do Leste seguindo as indicações do índio, como em O Desbravador.

 

O conceito dele sobre Harold ao mesmo tempo fascinava e espantava Frannie. Não tinha sido Stu quem realmente estivera liderando o grupo desde que deixaram Vermont e partiram para Nebraska? Sinceramente, ela não conseguia se lembrar. A esta altura todos tinham ficado preocupados com os sonhos. Larry agora recordava-lhe coisas que ela havia esquecido... ou pior, não reconhecia. Harold arriscando a vida para escrever aquele aviso no celeiro - tinha-lhe parecido um risco tolo, mas resultara em algum benefício, afinal. E extrair gasolina daquele tanque subterrâneo... aparentemente tinha parecido a Larry uma façanha, mas que Harold considerara uma coisa trivial. Isto fez com que se sentisse insignificante e culpada. Todos mais ou menos presumiam que não passava de um risonho coadjuvante. No entanto, ele executara um bocado de truques nas últimas seis semanas. Estivera tão apaixonada por Stu que fora preciso aparecer aquele perfeito estranho para apontar-lhe algumas verdades a respeito de Harold? O que tornava a situação ainda mais desconfortável era o fato de que, após sentir-se firme nos dois pés, Harold se tornara inteiramente adulto em relação a ela e Stuart.

 

Larry disse:

 

- Portanto, lá em Stovington estava outro aviso caprichado, dando a numeração das estradas, certo? E voejando sobre a relva ali perto, encontrei outro invólucro de chocolate Payday. Tive a sensação de que, em vez de ficar seguindo galhos quebrados e capim amassado, estava na trilha do chocolate de Harold. Bem, não seguimos inteiramente a rota de vocês. Dobramos para norte, perto de Gary, Indiana, porque havia um tremendo incêndio, ainda ardendo em vários pontos. Era como se cada maldito reservatório de gasolina da cidade tivesse explodido. De qualquer modo, foi nesse desvio de rota que recolhemos o juiz e seguimos para Hemingford Home... a essa altura já sabíamos que ela partira, por causa dos sonhos, você sabe, mas todos queríamos conhecer o lugar, mesmo sem ela. O milharal... o balanço feito com o pneu... entende o que quero dizer?

 

- Entendo - respondeu Frannie, baixinho. - Claro que entendo.

 

- E eu quase enlouquecendo o tempo todo, pensando que alguma coisa podia acontecer, que íamos ser atacados por uma gangue de motoqueiros ou coisa parecida, que nossa água acabaria, sei lá.

 

"Minha mãe tinha um livro, que ganhou de sua avó ou sei lá quem. Chamava-se Nos passos Dele. Continha todas essas historinhas com sujeitos com problemas terríveis. Em sua maioria, eram problemas éticos. O autor dizia que para resolver os problemas bastaria a gente perguntar: ‘O que faria Jesus?’ Isto resolvia a situação de imediato. Sabe o que acho? Esta é uma pergunta zen: não realmente uma pergunta, mas sim uma forma de clarear a mente, como ficar dizendo Om e fitando a ponta do nariz."

 

Fran sorriu. Ela sabia o que sua mãe teria dito a respeito de uma coisa dessas.

 

- Então, quando realmente comecei a ficar emaranhado em dúvidas, Lucy, é a minha garota, já lhe contei?, Lucy costumava dizer: "Depressa, Larry, faça a pergunta!"

 

- E o que faria Jesus? - perguntou Fran, divertida.

 

- Não. O que faria Harold? - respondeu Larry, muito sério. Fran estava à beira da incredulidade total. Como desejaria estar por perto quando Larry conhecesse Harold! Qual seria a reação dele, afinal?

 

- Acampamos no terreiro de uma fazenda, certa noite, e estávamos praticamente sem água. Havia um poço lá, mas era impossível conseguirmos água, porque, sem energia elétrica, a bomba não funcionaria. E Joe... perdão, Leo, seu verdadeiro nome é Leo... bem, Leo ficava perambulando em volta e repetindo: "Tô de sede, Larry, sede muito agora." E isto estava me dando nos nervos. Eu podia ver a irritação se acumulando e, se ele continuasse com a ladainha, eu acabaria lhe dando uns cascudos. Que belo sujeito, hã? Pronto para bater numa criança aflita. Mas ninguém muda de uma hora para outra. Tive tempo de sobra para me corrigir.

 

- E você os trouxe intactos desde o Maine - disse Frannie. - Infelizmente, um dos nossos morreu. Seu apêndice estourou. Stu tentou operá-lo, mas não deu certo. No cômputo geral, Larry, acho que você se saiu muito bem.

 

- Harold e eu é que nos saímos muito bem - corrigiu ele. - De qualquer modo, Lucy disse: "Depressa, Larry, faça a pergunta!" Então, a fiz. Na fazenda havia um cata-vento que fazia a água subir até o celeiro. Estava girando muito bem, porém nenhuma água saía das torneiras do celeiro. Então, abri a enorme caixa ao pé do cata-vento que abriga todo o mecanismo e vi que o eixo-motor principal escapara do seu orifício. Recoloquei-o e pronto! Ali estava toda a água que se poderia desejar. Fresca e saborosa. Graças a Harold.

 

- Graças a você. Harold não estava presente, Larry.

 

- Bem, ele estava na minha cabeça. E agora estou aqui e trouxe para ele o vinho e as barras de chocolate. - Ele a olhou de esguelha. - Eu meio que pensei que ele poderia ser seu homem.

 

Ela sacudiu a cabeça e olhou para baixo, para os dedos cerrados.

 

- Não. Ele... Harold, não.

 

Larry ficou calado por um longo tempo, mas Frannie percebia que olhava para ela. Por fim, ele disse:

 

- Muito bem, onde foi que errei? A respeito de Harold?

 

Ela se levantou.

 

- Tenho que entrar agora. Foi bom conhecê-lo, Larry. Apareça amanhã para conhecer Stu. Traga a sua Lucy, se ela não estiver ocupada.

 

- O que há sobre ele? - insistiu Larry, também se levantando.

 

- Ah, não sei - disse ela, tensa, sentindo-se de repente à beira das lágrimas. - Suas palavras me fazem sentir como se... se houvesse tratado Harold mal... e não sei... por que ou como fiz isso... Serei culpada por não amá-lo como amo Stu? Será que a culpa é minha?

 

- Não, claro que não! - exclamou Larry, confuso. - Escute, sinto muito. Perdoe a minha chegada intempestiva. Vou embora.

 

- Ele mudou! - explodiu Frannie. - Não sei como nem por quê. Às vezes penso que poderia ser para melhor... mas não sei... sinceramente não sei. Há ocasiões em que tenho medo.

 

- Medo de Harold?

 

Ela não respondeu, limitando-se a olhar para os pés. Achava que já havia falado além da conta.

 

- Não ia me explicar como chegar lá? - perguntou ele gentilmente.

 

- É fácil. Siga em frente pela Arapahoe até ver o parquezinho... o Eben G. Fine Park, acho que é este o nome. O parque fica à direita. A casinha de Harold é à esquerda, bem em frente ao parque.

 

- Fico muito grato. Foi um prazer conhecê-la, Fran, com vaso quebrado e tudo.

 

Ela sorriu, mas apenas superficialmente. Todo o estonteante bom humor desaparecera da noite.

 

Larry ergueu a garrafa de vinho e ofereceu um pequeno sorriso enviesado.

 

- E se por acaso estiver com ele antes de mim, guarde segredo, combinado?

 

- Claro.

 

- Boa-noite, Frannie.

 

Ele seguiu de volta por onde viera. Fran ficou observando-o até que sumiu de vista. Então, subiu a escada e enfiou-se na cama ao lado de Stu, que ainda dormia profundamente.

 

Harold, pensou ela, puxando as cobertas até o queixo. Como poderia contar ao tal de Larry, que parecia tão bom na sua maneira estranhamente desligada (mas todos eles não estavam desligados agora?), que Harold Lauder era gordo, adolescente e desorientado? Deveria contar-lhe que um dia, não muito tempo atrás, surpreendera o esperto e despachado Harold, o-que-Jesus-faria-Harold?, aparando o gramado vestido só de sunga e chorando? Deveria contar-lhe que o Harold às vezes carrancudo e frequentemente amedrontado que chegara a Boulder vindo de Ogunquit se transformara num político decidido, do tipo que dá tapinhas nas costas e acolhe todo mundo cordialmente mas que, não obstante, olhava para a gente com as pupilas opacas e frias de um lagarto-gila?

 

Frannie concluiu que esta noite ia demorar muito para pegar no sono. Harold apaixonara-se perdidamente por ela, que se apaixonara perdidamente por Stu Redman, e sem dúvida este era um velho e duro mundo. E agora, a cada vez que o vejo, sinto calafrios. Mesmo parecendo ter perdido uns 5 quilos, mesmo não tendo tantas espinhas como antes, fico...

 

Sua respiração ficou audivelmente presa na garganta, e ela se ergueu apoiada nos cotovelos, os olhos arregalados no escuro.

 

Alguma coisa se movera dentro dela.

 

Levou as mãos à ligeira protuberância no meio do corpo. Ah, por certo ainda era cedo demais para isso... Tinha sido apenas sua imaginação. Exceto que...

 

Exceto que não fora imaginação.

 

Voltou a deitar-se devagar, o coração batendo com força. Ela quase acordou Stu, mas preferiu não fazê-lo. Se ao menos o bebê fosse dele, e não de Jess! Se fosse de Stu, ela o acordaria para partilharem aquele momento. No seu próximo bebê o faria. Se houvesse um próximo bebê, é claro.

 

E então o movimento repetiu-se, tão leve que só poderia ter sido gases. Mas ela sabia que não era. Era o bebê. E o bebê estava vivo.

 

- Ah, que glória! - murmurou para si mesma e se recostou. Larry Underwood e Harold Lauder foram esquecidos. Tudo quanto lhe sucedera desde que sua mãe ficara doente fora esquecido. Esperou pela repetição do movimento, procurando ouvir aquela presença dentro de si e adormeceu, ainda ouvindo. Seu bebê estava vivo.

 

Sentado numa cadeira do gramado da pequena casa que escolhera para si, Harold olhava para o céu e pensava em uma velha canção de rock and roll. Ele detestava rock, mas podia se lembrar desta, quase linha por linha, inclusive o nome do grupo que a interpretava: Kathy Young and the Innocents. O cantor ou cantora solista, fosse quem fosse, tinha uma voz aguda, ansiosa e esganiçada que às vezes lhe prendia a atenção por completo. Uma jóia de ouro, na opinião dos DJs. Um Sopro do Passado. Um Disco que Faz Diferença. A solista aparentava ter 16 anos, era pálida, loura e sem graça. Soava como se estivesse cantando para um retrato que passava a maior parte do tempo enterrado em uma gaveta da cômoda, um retrato só retirado de lá na calada da noite, quando todos na casa estivessem dormindo. Ela soava como se desesperançada. O retrato para o qual cantava talvez houvesse sido escamoteado do anuário da irmã mais velha - era uma foto do galã local, capitão do time de futebol e presidente do Conselho Estudantil. O tal galã estaria transando com a animadora de torcida em alguma alameda deserta dos namorados, enquanto na periferia esta garota feia e sem peitos, com uma espinha no canto da boca, cantava:

 

- Mil estrelas no céu... me deixem perceber... que você é meu único amor... diga que me ama... que você é meu, todo meu...

 

Havia no céu desta noite muito mais de mil estrelas, porém não eram estrelas de enamorados. Ali não havia nada semelhante a uma suave coifa da Via Láctea. Ali, a 1.500 metros acima do nível do mar, elas eram tão agressivas e anéis como 1 bilhão de buracos em veludo negro, estocadas no furador de gelo de Deus. Eram estrelas dos inimigos e, por causa disso, Harold se sentia apto a formular um pedido a elas. Querer-eu-quero, pedir-eu-mereço, aceitem-o-pedido-que-esta-noite-faço. Caiam mortos, camaradas.

 

Sentou-se silenciosamente com a cabeça inclinada para trás, como um astrônomo em meditação. Seus cabelos estavam mais compridos do que nunca, embora não mais sujos, empastados e embaraçados. Também não exalava mais o odor de uma mijada em um monte de feno. Até mesmo as marcas das espinhas estavam clareando, agora que deixara 556 de comer doces. E trabalhando duro e andando tanto, começava a perder algum peso e a adquirir uma aparência bastante aceitável. Havia vezes, nas últimas poucas semanas, em que ao passar por alguma superfície reflexiva, ele dava uma olhada por sobre o ombro, espantado, como se tivesse captado o vislumbre de um completo desconhecido.

 

Remexeu-se na cadeira. Havia um livro em seu colo, um volume comprido com lombada em azul marmóreo e capas imitando couro. Ele o mantinha escondido sob uma laje da lareira da casa sempre que se ausentava. Se alguém encontrasse aquele livro, isto significaria o seu fim em Boulder. Na capa do livro havia duas palavras impressas em dourado: LIVRO-RAZÃO. Era o diário que ele iniciara após ter lido o de Fran. Já enchera as primeiras sessenta páginas com sua caligrafia apertada, de uma margem a outra. Não havia parágrafos, apenas um bloco sólido de escrita, uma vazão de ódio, como pus fluindo de um abscesso cutâneo. Ele nunca imaginara guardar tanto ódio dentro de si. A esta altura, achava que já teria exaurido o fluxo, mas ele tinha apenas começado. Era como aquela velha piada. Por que o solo estava todo branco após a última resistência de Custer? Porque os índios continuavam vindo, vindo, vindo...

 

E por que ele odiava?

 

Sentou-se ereto, como se a pergunta tivesse vindo lá de fora. Era uma pergunta de difícil resposta, exceto para alguns poucos eleitos. Einstein não afirmara que no mundo havia apenas seis pessoas capazes de entender todas as implicações de E = mc2? E quanto à equação dentro de seu próprio crânio? A relatividade de Harold. A velocidade da praga. Ah, ele poderia encher o dobro daquelas páginas já escritas falando sobre isso, tornando-se mais obscuro, mais arcano, até finalmente ficar perdido no mecanismo dele próprio e ainda assim sem chegar perto do eixo principal. Estava talvez... estuprando a si mesmo. Seria isso? De qualquer modo, estava bem próximo. Um ato obsceno e contínuo de sodomia. Os índios vindo e vindo.

 

Em breve estaria deixando Boulder. Dentro de um mês ou dois, não mais que isso. Quando finalmente acertasse um método de fixar seus motivos. Então, partiria para oeste. E quando lá chegasse, abriria sua boca e vomitaria tudo que sabia sobre este lugar. Iria contar-lhe o que acontecia nas assembleias públicas e, mais importante, nas reuniões privadas. Estava certo de que participaria do Comitê da Zona Franca. Seria bem recebido e recompensado pelo líder de lá... não com um final do ódio, mas com o veículo perfeito para isso: um Cadillac Ódio, comprido e brilhando sombriamente. Entraria nele, que o conduziria com seu ódio contra toda essa gente daqui. Ele e Flagg chutariam esta colônia miserável como se fosse um formigueiro. Mas primeiro iria ajustar contas com Redman, o homem que lhe mentira e roubara sua mulher.

 

Certo, Harold, mas por que você odeia?

 

Não, não havia nenhuma resposta satisfatória para isso, apenas uma espécie de... de endosso para o próprio ódio. Era sequer uma pergunta justa? Ele achava que não. Era o mesmo que perguntar a uma mulher por que ela dera à luz um bebê deformado.

 

Houvera uma época, uma hora ou um instante, em que contemplara o encerramento do ódio. Tinha sido logo após acabar de ler o diário de Fran e descobrir que ela estava irrevogavelmente comprometida com Stu Redman. Este súbito conhecimento agira sobre ele tal como um jato de água fria age sobre uma lesma, fazendo-a contrair-se como uma bolinha rígida, em vez de permanecer como um organismo espichado, sondando indolentemente. Naquela hora ou instante, ele percebeu que podia simplesmente aceitar o que era, um conhecimento que tanto o extasiou quanto aterrorizou. Pois naquele espaço de tempo ele soube que poderia tornar-se uma nova pessoa, um novo Harold Lauder clonado do antigo pelo aguçado e interveniente bisturi da epidemia de supergripe.

 

Mais claramente do que qualquer dos outros, ele percebeu qual era a finalidade da Zona Franca de Boulder. As pessoas não eram mais as mesmas. Aquela sociedade provinciana não guardava semelhança com nenhuma outra sociedade dos EUA pré-epidemia. Eles não viam isso porque não se colocavam como um observador independente, a exemplo do que ele fazia. Homens e mulheres estavam vivendo juntos sem qualquer desejo aparente de reinstituir a cerimônia do casamento. Grupos inteiros viviam em pequenas subcomunidades, à maneira de comunas. Não havia muita disputa. As pessoas pareciam conviver bem. E, o mais estranho de tudo, nenhuma delas parecia estar questionando as profundas implicações teológicas dos sonhos... e da epidemia em si. A própria Boulder era uma sociedade clonada, uma tabula tão rasa que era incapaz de sentir sua própria beleza nova.

 

Harold a sentia, e a odiava.

 

Muito além das montanhas havia outra criatura clonada. Uma extração de sombria malignidade, uma única célula selvagem, arrancada do corpo agonizante da velha estrutura política, um representante solitário do carcinoma que estivera devorando a velha sociedade viva. Uma única célula, mas que já começara a se reproduzir, gerando outras células malignas. No tocante à sociedade, isto significava a antiga luta, o esforço do tecido saudável para rejeitar a incursão maligna. Contudo, para cada célula individual, havia a velha e antiga pergunta, aquela que remontava ao Jardim do Éden - deve-se ou não comer a maçã? Lá no oeste, todos já a estavam comendo, numa orgia de torta e ponche de maçã. Os assassinos do Éden estavam lá, os fuzileiros negros.

 

E ele próprio, ao defrontar-se com o conhecimento de que era livre para aceitar o que era, rejeitara a nova oportunidade. Aceitá-la seria o mesmo que se matar. O fantasma de cada nova humilhação já sofrida clamava contra isso. Seus sonhos e ambições assassinados tinham retornado à vida espectral, perguntando se ele podia esquecê-los com tanta facilidade. Na nova sociedade da Zona Franca ele só podia ser Harold Lauder. Lá do outro lado ele poderia ser um príncipe.

 

A malignidade o atraía. Era como um parque de diversões negro - rodas-gigantes com as luzes apagadas, girando acima de uma paisagem negra, um espetáculo mambembe interminável preenchido por aberrações como ele próprio e, na tenda principal, os leões comiam os espectadores. O que mais o atraía era essa dissonante música do caos.

 

Abriu seu diário e escreveu com firmeza à luz das estrelas:

 

12 de agosto de 1990 (início da manhã).

 

Dizem que os dois grandes pecados humanos são o orgulho e o ódio. São mesmo? Prefiro pensar neles como as duas grandes virtudes. Desistir do orgulho e do ódio é o mesmo que dizer que você passa para o lado do bem do mundo. Aceitados, divulgados, é mais nobre; significa que o mundo deve mudar para o nosso bem. Estou embarcando numa grande aventura.

 

HAROLD EMERY LAUDER

 

Ele fechou o livro. Entrou em casa, colocou o livro em seu esconderijo sob a lareira e repôs com cuidado a laje afastada. Foi até o banheiro, firmou o lampião Coleman em cima da pia, para que iluminasse o espelho, e durante os 15 minutos seguintes ensaiou sorrisos. Estava ficando excelente nisso.

 

OS CARTAZES DE RALPH ANUNCIANDO a assembleia de 18 de agosto foram espalhados por toda Boulder. Houve um bocado de comentários animados, principalmente a respeito das boas e más qualidades dos sete integrantes do comitê ad hoc.

 

Mãe Abagail tinha ido exausta para a cama, antes que a claridade desaparecesse do céu. O dia inteiro fora uma corrente interminável de visitantes, todos querendo saber sua opinião. Ela respondia que considerava muito boas as escolhas para o comitê. As pessoas estavam ansiosas em saber se ela faria parte de um comitê mais permanente, e se algum dia ele seria formado durante a grande assembleia. Ela respondia que seria um cargo demasiado cansativo, mas que daria toda a ajuda que pudesse a um comitê de representantes eleitos, caso eles o desejassem. Garantiram-lhe, vezes sem conta, que qualquer comitê permanente que recusasse sua ajuda seria derrubado maciçamente, e isto logo ficou bem claro. Mãe Abagail foi para a cama cansada porém satisfeita.

 

O mesmo aconteceu com Nick Andros essa noite. Em um único dia, graças a um único volante, impresso em mimeógrafo manual, a Zona Franca se transformara de um grupo desordenado em uma comunidade de votantes potenciais. Eles gostaram da ideia, que lhes dava a noção de pertencer a um lugar após um longo período de queda livre.

 

Naquela tarde Ralph o levou de carro até a central de energia. Ele, Ralph e Stu haviam concordado em uma reunião preliminar na casa de Stu e Frannie, dois dias mais tarde. Isto permitiria que os sete integrantes do comitê tivessem mais dois dias para ouvir os comentários das pessoas.

 

Nick sorriu, pondo as mãos em concha sobre os ouvidos inúteis.

 

- A leitura labial é ainda melhor - disse Stu. - Sabe, Nick, estou começando a achar que realmente vamos conseguir algo desses motores avariados. Aquele Brad Kitchner é uma fera para trabalhar. Se conseguirmos uns dez como ele, teremos esta cidade inteira funcionando à perfeição em 1º de setembro.

 

Nick fez para ele o gesto de unir o polegar e o indicador em círculo antes de entrarem na usina.

 

Naquela tarde, Larry Underwood e Leo Rockway seguiram pela Arapahoe Street na direção oeste, rumo à casa de Harold. Larry levava a mochila que carregara durante toda a viagem através do país, mas tudo que continha agora era uma garrafa de vinho e meia dúzia de Paydays.

 

Lucy estava fora, com um grupo que se prontificara a limpar as ruas e estradas de Boulder, removendo os veículos enguiçados que as bloqueavam. O problema era que estavam trabalhando por sua própria conta - esta era uma operação esporádica, que só funcionava quando algumas pessoas se juntavam para levada a cabo. Um mutirão para retirar destroços em vez de um mutirão de costura, pensou Larry, e seu olho captou um dos cartazes com o título ASSEMBLEIA GERAL, pregado a um poste telefônico. Talvez aí estivesse a resposta. Que diabo, todos queriam trabalhar, mas precisavam de alguém que coordenasse as coisas e lhes dissesse o que fazer. Ele achava que, mais do que tudo, as pessoas queriam limpar a evidência do que tinha acontecido aqui no início do verão (e será que já seria o fim do verão?), tal como se usa um apagador para limpar palavras sujas de um quadro-negro. Talvez não possamos fazer isso de um extremo a outro do país, pensou Larry, mas deveríamos fazê-lo aqui em Boulder antes que chegue a neve, se a Mãe Natureza cooperar.

 

Um ruído de vidro estilhaçado o fez virar-se. Leo apanhara uma pedra de bom tamanho do jardim de alguém e a jogara no vidro de trás de um velho Ford. Um adesivo colado no pára-choque traseiro do Ford dizia: LEVE SEU TRASEIRO ATÉ O PASSO NAS MONTANHAS - COLD CREEK CANYON.

 

- Não faça isso, Joe.

 

- Sou Leo.

 

- Leo - corrigiu Larry. - Não faça isso.

 

- Por que não? - perguntou Leo, complacentemente, e por um longo momento Larry não atinou com uma resposta satisfatória.

 

- Porque faz um ruído feio - disse ele por fim.

 

- Tudo bem.

 

Continuaram caminhando. Larry pôs as mãos nos bolsos. Leo fez o mesmo. Larry chutou uma lata. Leo desviou-se do seu caminho para chutar uma pedra. Larry começou a assoviar uma melodia. Leo emitiu um sopro sussurrante para acompanhar. Larry afagou os cabelos do menino e Leo ergueu para ele aqueles estranhos olhos de chinês, sorrindo. E Larry pensou: Pelo amor de Deus, estou me apegando a ele. Era só o que faltava!

 

Chegaram ao parque que Frannie havia mencionado. Na calçada fronteira havia uma casa verde com persianas brancas. Um carrinho de mão cheio de tijolos estava no caminho cimentado que levava à porta da frente, tendo junto a ele uma tampa de lixo cheia daquela mistura para argamassa do tipo faça-você-mesmo, à qual bastava adicionar água. Agachado ao lado dela, de costas para a ma, estava um sujeito de ombros largos, sem camisa e mostrando vestígios de uma extensa queimadura de sol, ainda descascando. Empunhava uma colher de pedreiro. Estava levantando uma mureta em volta de um canteiro.

 

Larry pensou nas palavras de Fran: Ele está mudado... não sei como ou por quê, nem mesmo se foi para melhor... e às vezes sinto medo.

 

Então ele adiantou-se e disse exatamente o que planejara nos seus longos dias atravessando o país:

 

- Você deve ser Harold Lauder, não?

 

Harold virou-se bruscamente, surpreso, um tijolo numa das mãos e na outra a colher de pedreiro, semi-erguida como uma arma. Pelo canto do olho, Larry achou ter visto Leo encolher-se para trás. Seu primeiro pensamento foi, sem a menor dúvida, de que Harold em nada se assemelhava ao tipo que havia imaginado. O segundo pensamento teve a ver com a colher de pedreiro: Meu Deus, será que ele pretende me atacar com essa coisa? Harold tinha o rosto sério e tenso, os olhos apertados e sombrios. Os cabelos caíam numa onda frouxa sobre a testa suada. Os lábios estavam comprimidos, quase lívidos.

 

E então houve uma transformação tão súbita e completa que Larry, mais tarde, jamais conseguiu acreditar ter visto aquele tenso e carrancudo Harold exibindo o rosto de um homem mais propenso a usar a colher de pedreiro para emparedar alguém em algum nicho de porão do que construir uma mureta ao redor de um canteiro de flores.

 

Ele sorriu, um sorriso amplo e inofensivo que produziu duas diminutas covinhas nos cantos da boca. Seus olhos perderam a sombra ameaçadora (tinham cor verde-garrafa, e como olhos tão claros e sem energia teriam parecido ameaçadores, ou mesmo sombrios?). Ele enfiou a colher de pedreiro na argamassa - chunk! -, limpou as mãos nos lados da calça jeans e avançou, estendendo a mão direita. Larry pensou: Meu Deus, ele é apenas um garoto, muito mais novo do que eu. Seja tem 18 anos, poderei comer as velas de seu último bolo de aniversário.

 

- Creio que não o conheço - disse Harold, sorrindo ao apertar-lhe a mão. Tinha um aperto firme e a mão de Larry foi sacudida para baixo e para cima exatamente três vezes, antes de ser solta. Isto fez Larry recordar da vez em que trocara um aperto de mãos com George Bush no tempo em que este era candidato à presidência. Tinha sido em um rali político ao qual comparecera a conselho de sua mãe, muitos anos atrás. Se você não tem dinheiro para o cinema, então vá ao zoológico. Se não tem dinheiro para o zoológico, então vá ver um político.

 

O sorriso de Harold, no entanto, era contagiante, e Larry o retribuiu. Rapazola ou não, aperto de mão de político ou não, o sorriso o impressionou como absolutamente autêntico e, após todo esse tempo, após todos aqueles invólucros de chocolate, finalmente Harold Lauder estava à sua frente, em carne e osso.

 

- Não, não me conhece - disse Larry. - Mas eu o conheço bem.

 

- Ah, então é isso! - exclamou Harold, e seu sorriso se ampliou. Se ampliar um pouquinho mais, pensou Larry divertido, os cantos da boca se encontrarão na nuca e os dois terços superiores de sua cabeça cairão.

 

- Eu o segui através do país, desde o Maine - explicou Larry.

 

- Está brincando! Fez mesmo isso?

 

- Exatamente. - Ele abriu a mochila. - Aqui, eu lhe trouxe uma coisa. - Tirou a garrafa de Bordeaux e a pôs na mão de Harold.

 

- Ora, não precisava fazer isso - disse Harold, olhando para a garrafa com certo espanto. - É de 1947?

 

- Uma boa safra - disse Larry. - E tem mais isto aqui.

 

Depositou quase meia dúzia de Paydays na outra mão de Harold. Uma das barras escorregou por entre seus dedos e caiu no gramado. Harold abaixou-se para pegá-la e, enquanto o fazia, Larry captou um relance daquela expressão anterior.

 

Depois Harold se ergueu de novo, sorrindo.

 

- Como você sabia?

 

- Segui suas pistas... e seus invólucros de chocolate.

 

- Ora, raios me partam! Vamos entrar. Precisamos mastigar alguma coisa, como meu pai costumava dizer. Seu garoto aceitaria uma Coca?

 

- Claro. Não é mesmo, L...?

 

Olhou em torno, porém Leo não estava mais perto dele. Recuara uma boa distância na calçada e olhava para umas rachaduras no concreto como se fossem do seu maior interesse.

 

- Ei, Leo! Quer uma Coca?

 

Leo murmurou algo que não conseguiu ouvir.

 

- Fale mais alto! - gritou Larry, irritado. - Para que foi que Deus dotou você de voz? Perguntei se quer uma Coca!

 

De modo quase inaudível, o garoto respondeu:

 

- Acho que vou ver se mãe-Nadine já voltou.

 

- Mas que diabo! Acabamos de chegar aqui!

 

- Quero ir embora! - disse Leo, erguendo os olhos do chão. O sol lhe bateu em cheio nos olhos e Larry pensou: O que significa isso, em nome de Deus? Ele está quase chorando.

 

- Só um momentinho - disse Larry para Harold.

 

- Claro - respondeu ele, sorridente. - Meninos às vezes são tímidos. Eu era.

 

Larry foi até Leo e abaixou-se para ficar à altura dele.

 

- Qual é o problema, garoto?

 

- Eu só quero ir embora - disse Leo, desviando o olhar. - Quero mãe-Nadine.

 

- Bem, você... - Larry se interrompeu, sem saber o que dizer.

 

- Quero voltar. - Olhou brevemente para Larry, seus olhos passando por cima do ombro dele e indo até onde estava Harold, no meio de seu gramado. Depois ele voltou a olhar para o chão. - Por favor.

 

- Você não gosta de Harold?

 

- Não sei... está tudo bem com ele... só quero voltar.

 

Larry suspirou.

 

- Sabe voltar sozinho?

 

- Sei.

 

- OK. Mas continuo achando que deveria entrar e tomar uma Coca. Há muito tempo que venho esperando conhecer Harold. Você sabe disso, não sabe?

 

- Se... sei.

 

- E depois voltaríamos juntos.

 

- Não vou entrar naquela casa - sibilou Leo e por um momento voltou a ser Joe, com os olhos se tornando opacos e selvagens.

 

- OK - replicou Larry prontamente e levantou-se. - Vá direto para casa. Depois saberei se fez isso. E não fique vagando pelas ruas.

 

- Tudo bem. - De repente, Leo começou a falar rapidamente, naquele sussurro baixo e sibilante: - Por que não volta comigo agora mesmo? A gente volta junto, hein, Larry? Por favor! Vamos?

 

- Puxa, Leo, você...

 

- Deixa pra lá - disse o garoto, e antes que Larry pudesse dizer algo mais ele já estava correndo. Larry ficou parado, observando até ele desaparecer. Então voltou até Harold, o cenho franzido.

 

- Está tudo bem - disse Harold. - Garotos são esquisitos.

 

- Bem, este certamente é, mas acho que tem esse direito. Ele passou por maus bocados.

 

- Aposto que sim - replicou Harold e por um breve instante Larry ficou desconfiado. Sentiu que a pronta simpatia de Harold por um menino que não conhecia era tão artificial quanto ovos em pó. - Bem, vamos entrar - convidou Harold. - Se quer saber, você é a minha primeira visita. Frannie e Stu estiveram aqui algumas vezes, mas eles quase não contam. - Seu riso transformou-se em sorriso, um sorriso ligeiramente triste, e Larry de repente sentiu pena daquele rapazola, porque na realidade não passava disso. Vivia solitário e ali estava Larry, o mesmo velho Larry de sempre, nunca tendo uma palavra generosa para alguém, julgando a pessoa cheio de empolação. Não era justo. Era hora de parar de ser tão desconfiado.

 

- Obrigado pelo convite - respondeu ele.

 

A sala de estar era pequena mas confortável.

 

- Vou trazer alguns móveis novos para cá, quando der uma volta por aí - declarou Harold. - Coisa moderna, em cromado e couro. Como diz o comercial: "Que se dane o orçamento! Eu tenho um MasterCard!"

 

Larry riu a valer.

 

- Há alguns copos decentes no porão. Vou buscados. Sente-se naquela cadeira verde. É a menos ruim.

 

Larry teve um último pensamento duvidoso durante este desabafo: Ele até mesmo fala como um político: suave, rápido e loquaz.

 

Harold saiu, e Larry sentou-se na cadeira verde. Ouviu uma porta se abrindo e depois as pisadas fortes de Harold descendo um lance de escadas. Olhou em torno. Nenhum daqueles aposentos era digno de nota, mas com um tapete felpudo e uma bela mobília moderna tudo ficaria ótimo. O melhor detalhe naquela sala era a lareira de pedra com sua chaminé. Um belo trabalho, esmeradamente feito à mão. Entretanto, havia uma laje frouxa na lareira. Larry teve a impressão de que se soltara e fora recolocada com desleixo. Do jeito como estava, parecia uma peça de quebra-cabeça deslocada ou um quadro pendurado torto na parede.

 

Levantando-se, pegou a laje da lareira. Harold ainda remexia em algum lugar do porão. Larry ia recolocar a laje da maneira correta quando viu um livro na concavidade, sua capa agora levemente polvilhada com o pó da laje, mas não o bastante para cobrir as duas palavras impressas em dourado: LIVRO-RAZÃO.

 

Sentindo-se levemente envergonhado, como se estivesse espionando intencionalmente, ele repôs a laje no lugar quando as passadas de Harold retomaram a subida. Desta vez o encaixe foi perfeito, e quando Harold entrou na sala de estar com uma taça bojuda em cada mão, Larry estava de novo sentado na cadeira verde.

 

- Levei um minuto para lavá-las na pia lá embaixo - disse Harold. - Estavam meio empoeiradas.

 

- Parecem ótimas - disse Larry. - Olhe, não ouso jurar que o vinho não se estragou. Talvez já tenha virado vinagre.

 

- Quem não arrisca não petisca - disse Harold, sorrindo.

 

Aquele sorriso fez Larry sentir-se pouco à vontade e de repente ele se viu pensando no livro-razão - seria de Harold ou havia pertencido ao antigo dono da casa? E se fosse de Harold, o que poderia estar escrito nele?

 

Abriram a garrafa de Bordeaux e, para seu mútuo prazer, constataram que o vinho estava excelente. Meia hora mais tarde, estavam ligeiramente altos, Harold um pouco mais que Larry. Ainda assim, o sorriso de Harold permanecera. De fato, até se ampliara.

 

A língua um tanto afrouxada pelo vinho, Larry comentou:

 

- Vi os cartazes sobre a grande assembleia do dia 18. Como é que seu nome não consta daquele comitê, Harold? Acho que seria uma escolha natural, em se tratando de um sujeito como você.

 

O sorriso de Harold se ampliou mais, beatífico.

 

- Bem, sou jovem demais. Talvez achem que não tenho experiência suficiente.

 

- Pois acho isso vergonhoso. - Acharia mesmo? O sorriso. A expressão suspeita, sombria, quase imperceptível. Acharia mesmo? Larry não sabia.

 

- Bem, quem pode prever o dia de amanhã? - replicou Harold. - Cada cão tem o seu dia.

 

Larry foi embora por volta das cinco horas. Sua despedida de Harold foi amistosa; Harold apertou-lhe a mão, sempre sorrindo, disse-lhe para voltar sempre. Larry, no entanto, teve a impressão de que o outro pouco se importava se algum dia ele voltasse àquela casa.

 

Caminhou lentamente pela passagem cimentada que levava à calçada e se virou para acenar, porém Harold já havia entrado. A porta foi trancada. Estivera bem fresco na sala porque as persianas se achavam baixadas, fazendo com que tudo lá dentro parecesse ótimo. No entanto, de pé na calçada, ocorreu-lhe de repente que aquela era a única casa que visitara em Boulder que mantinha persianas e cortinas cerradas. Mas refletiu que ainda havia inúmeras residências na cidade com as persianas baixadas. Eram as casas dos mortos. Quando adoeceram, aquelas pessoas cerraram suas cortinas contra o mundo, para poderem morrer em privacidade, como prefere qualquer animal ao sentir que seu fim está próximo. Os vivos - talvez reconhecendo subconscientemente o fato da morte - escancaram suas persianas e cortinas.

 

Estava com uma leve dor de cabeça por causa do vinho e tentou dizer a si mesmo que o calafrio que sentia era resultado disso, parte de uma pequena ressaca, justa punição por encher a cara de um bom vinho como se fosse um moscatel barato. Mas isso não iria abatê-lo - não iria mesmo. Ele olhou aia acima e abaixo e pensou: Graças a Deus pela visão de túnel. Graças a Deus pela percepção seletiva. Porque, sem isso, todos nós poderíamos muito bem fazer parte de uma história de Lovecraft.

 

Seus pensamentos estavam confusos. De súbito, ficou convencido de que Harold o espionava por entre as frestas de suas persianas, suas mãos se abrindo e fechando num gesto de estrangulamento, o sorriso transformado em um olhar de soslaio de ódio... Cada cão tem o seu dia. Ao mesmo tempo ele se lembrou daquela noite em Bennington, quando dormia no palco da concha acústica e acordara com a horrível sensação de que havia alguém lá... e depois ouvindo (ou foi apenas sonho?) o som empoeirado de botas seguindo para oeste.

 

Pare com isso. Pare com isso. Pare de bancar o esquisito.

 

Cemitério, sua mente associou livremente. Pelo amor de Deus, pare com isso, eu gostaria de nunca ter pensado nos mortos, nos mortos atrás de todas essas persianas baixadas, reposteiros corridos e cortinas cerradas, no escuro, como no túnel Lincoln. Cristo, e se todos eles começarem a se mover e se agitar? Santo Deus, pare com isso...

 

E de repente viu-se pensando numa visita ao zoo do Bronx com sua mãe quando era pequeno. Eles tinham ido até o recinto dos macacos e o odor ali o atingiu como uma coisa física, um punho direcionado não só ao seu nariz, mas também para dentro dele. Ele havia se virado para escapulir dali, mas fora impedido por sua mãe.

 

Apenas inspire normalmente, Larry, ela tinha dito. Em cinco minutos você nem vai mais notar este cheiro desagradável.

 

Portanto ele ficou, mas sem acreditar nela, apenas lutando para não vomitar (mesmo tendo apenas sete anos, ele achava que não havia nada pior do que vomitar), e resultou que tinha razão. Quando consultou seu relógio no momento seguinte, constatou que estiveram no recinto dos macacos por meia hora, e não podia entender por que as senhoras que se aproximavam tapavam de repente seus narizes com as mãos e pareciam enjoadas. Comentou isto com a mãe e Alice Underwood achara graça.

 

Ah, ainda cheira mal, certo, só que não para você.

 

Como assim, mãe?

 

Não sei. Todo mundo pode fazer isso. Agora diga apenas a si mesmo: "Vou sentir de novo o quanto cheira REALMENTE mal o recinto dos macacos", e depois inspire profundamente.

 

Assim ele fez e o fedor continuou, sendo até mais forte e pior do que era quando chegaram. E os cachorros-quentes e a torta que comera começaram a subir por ele e uma grande náusea o acometeu. Ele disparou para a porta e o ar puro atrás dela e conseguiu - dificultosamente - segurar o vômito.

 

Isto é percepção seletiva, pensou agora, e ela sabia do que se tratava mesmo que não soubesse que assim era chamada. Este pensamento mal se completara em sua mente antes que ouvisse a voz de sua mãe dizendo: Apenas diga para si mesmo: "Vou sentir de novo o quanto cheira REALMENTE mal a cidade de Boulder." E ele estava sentindo o cheiro - isso mesmo, estava sentindo-o. Sentia o cheiro do que estava por trás de todas as portas fechadas e persianas baixadas e cortinas cerradas, sentia o cheiro da decomposição em andamento até mesmo neste lugar que tinha morrido quase deserto.

 

Apressou o passo, não correndo, mas chegando bem próximo a isso, carregando consigo aquele ranço intenso e sumarento que ele - e todo mundo - tinha parado conscientemente de sentir porque estava em toda parte, estava em tudo, estava colorindo seus pensamentos, e a pessoa não suspendia suas persianas nem se estivesse fazendo amor, porque os mortos jaziam das persianas baixadas e os vivos ainda queriam olhar para o mundo lá fora.

 

A ânsia de vômito queria subir dentro dele, não de cachorro-quente e torta de cereja agora, mas de vinho e chocolate Payday. Porque este era um recinto dos macacos do qual ele nunca seria capaz de sair, a não ser que se mudasse para uma ilha onde ninguém jamais viveu. E embora ainda detestasse vomitar mais do que tudo, ele agora ia...

 

- Larry! Você está bem?

 

Levou tamanho susto que sua garganta emitiu um pequeno ruído - "Iiik!"- e ele saltou. Era Leo, sentado no meio-fio a uns três quarteirões além do de Harold. Tinha uma bola de pingue-pongue e a fazia quicar no concreto.

 

- O que está fazendo aqui? - perguntou Larry. Seus batimentos cardíacos foram lentamente se normalizando.

 

- Eu queria ir para casa com você - explicou Leo, acanhado -, mas não queria entrar na casa daquele cara.

 

- Por que não? - perguntou Larry, sentando-se junto dele.

 

Leo encolheu os ombros e tornou a concentrar-se na bola de pingue-pongue, que fazia um pequeno som de ploc! ploc!, enquanto batia no chão e saltava de volta para a sua mão.

 

- Não sei.

 

- Leo?

 

- O que é?

 

- Isso é muito importante para mim. Porque gosto de Harold... e não gosto dele. Sinto as duas coisas ao mesmo tempo. Já se sentiu assim sobre uma pessoa?

 

- Eu só sinto uma coisa sobre ele. - Ploc! Ploc!

 

- O quê?

 

- Medo - respondeu Leo com simplicidade. - Podemos ir para casa e ver minha mãe-Nadine e minha mãe-Lucy?

 

- Claro.

 

Continuaram descendo a Arapahoe por algum tempo, sem falar, Leo ainda quicando a bola de pingue-pongue e apanhando-a de volta com destreza.

 

- Lamento por você ter esperado tanto tempo - disse Larry.

 

- Ah, tudo bem.

 

- Não. Se eu realmente soubesse, teria me apressado.

 

- Eu tinha uma coisa para fazer. Achei esta bola no gramado de alguém. É uma bola de pongue-pingue.

 

- Pingue-pongue - corrigiu Larry com ar ausente. - Por que acha que Harold baixa as persianas da casa dele?

 

- Acho que é para ninguém ver lá dentro - disse Leo. - Pra ele poder fazer coisas escondidas. É como as pessoas mortas, não é? - Ploc! Ploc!

 

Continuaram caminhando, chegaram ao cruzamento com a Broadway e dobraram para o sul. Agora já viam outras pessoas nas ruas; mulheres olhando as roupas nas vitrines, um homem com uma picareta, voltando de algum lugar, outro homem vasculhando casualmente uma caixa de apetrechos de pescaria através da vitrine quebrada de uma loja de artigos esportivos. Larry viu Dick Vollman, de seu grupo, pedalando em outra direção. Ele acenou para Larry e Leo, que acenaram de volta.

 

- Coisas escondidas - murmurou Larry, não mais interessado em sondar o menino.

 

- Talvez ele esteja orando para o homem escuro - disse Leo casualmente e Larry estremeceu como se fustigado por um choque elétrico de fio desencapado. Leo não percebeu. Estava fazendo a bola quicar duplamente, primeiro fora da calçada, depois apanhando o richochete da parede de tijolos pela qual passavam... ploc!

 

- Você acha mesmo? - perguntou Larry, esforçando-se para soar casual.

 

- Não sei. Mas ele não é como nós. Sorri demais. Bem, acho que pode ter vermes dentro dele, que fazem ele sorrir. Vermes grandes e brancos, comendo seu cérebro. Como larvas.

 

- Joe... quero dizer, Leo...

 

Os olhos de Leo - escuros, remotos e amendoados - brilharam subitamente. Ele sorriu.

 

- Veja, lá está Dayna. Gosto dela. Ei, Dayna! - gritou, acenando. - Tem chicletes?

 

Dayna, que lubrificava a roda dentada de uma levíssima bicicleta de dez marchas, virou-se e sorriu. Enfiou a mão no bolso da camisa e exibiu em leque tabletes de goma de mascar, como se fosse uma mão de pôquer. Com um riso de alegria, Leo correu até ela, os cabelos compridos esvoaçando, a bola de pingue-pongue aferrada em uma das mãos, enquanto Larry ficava observando-o. Aquela ideia de vermes brancos por trás do sorriso de Larry... onde foi que Joe (não, Leo, ele é Leo, pelo menos acho que seja) buscou uma ideia tão sofisticada - e tão horrível - como essa? O menino estivera num semitranse. E não era o único. Quantas vezes, nos poucos dias de sua estada ali, Larry já não vira alguém parar de repente na rua, ficar olhando para o nada apaticamente por um momento e depois seguir em frente? As coisas haviam mudado. O alcance global da percepção humana parecia ter subido um ponto. Era assustador como o inferno.

 

Larry pôs seus pés em movimento e caminhou até onde Leo e Dayna dividiam agora a goma de mascar.

 

Nessa tarde, Stu encontrou Frannie lavando roupa no pequeno pátio dos fundos do prédio onde moravam. Ela enchera de água uma tina baixa de lavar roupa, despejara nela quase meia caixa de sabão em pó e mexera tudo com um cabo de vassoura até conseguir uma espuma fraca. Duvidava que estivesse fazendo a coisa certa, mas de modo algum procuraria Mãe Abagail exibindo sua ignorância. Jogou as roupas na água fria como gelo, depois pulou carrancuda para dentro da tina e começou a pisotear, como um siciliano esmagando uvas. Seu novo modelo Maytag 5000, ela pensou. Com o Método de Esfregação por Dois Pés, perfeito para todos os tecidos de cores fortes, peças íntimas delicadas e...

 

Ela virou-se e contemplou seu homem, parado junto ao portão do pátio e espiando com ar divertido. Frannie parou, meio sem fôlego.

 

- Ah-ah, muito engraçado! Há quanto tempo espiava, espertinho?

 

- Uns dois minutos. Afinal, como se chama isso? Dança de acasalamento dos patos selvagens?

 

- Mais uma, ah-ah! - Ela o encarou friamente. - Mais uma piadinha dessas e vai passar a noite no sofá, ou lá na Flagstaff, com seu amigo Glen Bateman.

 

- Escute, eu não pretendia...

 

- Aqui estão também suas roupas, Sr. Stuart Redman. Você pode ser um dos Pais Fundadores e tudo o mais, porém ainda deixa marcas ocasionais nas suas cuecas.

 

Stu sorriu, o sorriso se alargando até cair na gargalhada.

 

- Isso é grosseria, querida.

 

- No presente momento não me sinto particularmente educada.

 

- Bem, pule fora daí um instante. Preciso falar com você.

 

Ela o fez com satisfação, embora tendo de lavar os pés antes de entrar. Seu coração disparava, não de felicidade, mas sim lugubremente, como uma peça fiel de mecanismo sendo usada de modo indevido por alguém notadamente incapaz. Se era assim que minha tataravó lavava roupa, pensou Frannie, então talvez ela merecesse o lugar que finalmente se tornou a preciosa sala de visita de minha mãe. Talvez ela considerasse isso como um jogo de azar, ou algo parecido.

 

Ela olhou desanimada para a parte inferior das pernas e para os pés. Ainda havia uma fina camada de espuma de sabão cinzenta grudada. Limpou-a com desprazer.

 

- Quando minha esposa lavava roupa - disse Stu -, ela usava... como é mesmo o nome? Tábua de esfregar, acho. Recordo que minha mãe tinha três.

 

- Sei disso - respondeu Frannie, irritada. - Eu e June Brinkmeyer perambulamos por metade da cidade procurando uma. Não encontramos nada. A tecnologia ataca outra vez.

 

Ele sorria de novo.

 

Frannie pôs as mãos na cintura.

 

- Está debochando de mim, Stuart Redman?

 

- Não. Só estava pensando que sei onde lhe arranjar uma tábua de esfregar. Para Juney também, se ela quiser.

 

- Onde?

 

- Deixe-me dar uma espiada primeiro. - O sorriso desapareceu e ele passou os braços em torno dela e encostou a testa na de Frannie. - Você sabe que fico grato por estar lavando minhas roupas - disse - e sei que uma mulher grávida tem melhor noção do que seu homem quanto ao que ela pode ou não fazer. Mas então, Frannie, por que se preocupar?

 

- Por quê? - Ela o fitou com perplexidade. - Bem, o que acha que vai vestir? Quer andar por aí de roupas sujas?

 

- As lojas estão repletas de roupas, Frannie. E meu número é fácil de achar.

 

- O quê?! Está querendo jogar fora as roupas velhas só porque estão sujas?

 

Ele deu de ombros, meio sem graça.

 

- Não tem outro jeito - disse ela. - Voltamos ao velho sistema, Stu. Como as caixas que usavam para pôr o Big Mac ou se devolvia o casco para comprar outra garrafa cheia. Não há outro jeito de recomeçar tudo.

 

Ele a beijou de leve.

 

- Está bem. Só que o próximo dia de lavar roupa é a minha vez, ouviu bem?

 

- Certo. - Ela sorriu, um tanto acanhada. - E quanto tempo isso vai durar? Até eu ter o bebê?

 

- Até conseguirmos a eletricidade de volta - disse Stu. - Então vou lhe trazer a maior e mais reluzente lavadora que já se viu. Eu mesmo farei a ligação.

 

- Oferecimento aceito. - Ela o beijou com firmeza e ele retribuiu o beijo, movendo as mãos fortes inquietamente por entre os cabelos dela. O resultado foi uma calidez crescente (fogo, vamos falar claro, estou com fogo, ele sempre me deixa afogueada quando faz isso), que primeiro enrijeceu seus mamilos e depois estendeu-se para baixo, até o baixo-ventre. - É melhor você parar - disse ela meio sem fôlego -, a menos que pretenda fazer mais do que falar.

 

- A gente talvez possa falar depois.

 

- As roupas...

 

- Deixá-las de molho é bom para amolecer a sujeira - disse ele, sério. Frannie Começou a rir e ele imobilizou sua boca com um beijo. Enquanto a erguia, colocava-a de pé e a levava para dentro, ela sentiu o calor do sol em seus ombros e imaginou: Fazia tanto calor antes? Era tão forte? Desfez cada sarda em minhas costas... seria ação dos raios ultravioleta ou da altitude? Será assim cada verão? Tão quente?

 

E então ele estava fazendo coisas com ela, mesmo na escada fazia coisas com ela, começava a despi-la, deixava-a afogueada e a fazia amá-lo.

 

- Não, você vai ficar sentada - disse ele.

 

- Mas...

 

- É isso mesmo, Frannie.

 

- Stuart, elas irão coagular ou coisa parecida. Pus meia caixa de sabão em pó na tina...

 

- Não se preocupe.

 

Portanto, ela ficou sentada na cadeira do gramado, à sombra lançada pelo prédio. Stuart levara duas cadeiras quando desceram. Então, tirou os sapatos, as meias, arregaçou as calças até acima dos joelhos e entrou na tina. Quando começou a pisotear as roupas molhadas, com expressão séria, Frannie desatou a rir descontroladamente.

 

Stu olhou para ela e disse:

 

- Vai querer passar a noite no sofá?

 

- Não, Stuart - disse ela, repentinamente séria. Logo a seguir, recomeçou com os risinhos... até as lágrimas escorrerem e ela sentir o estômago entorpecido, dolorido. Após conseguir controlar-se um pouco, perguntou: - Pela terceira e última vez, o que queria falar comigo?

 

- Ah, sim. - Ele continuou pisoteando as roupas na tina, de um lado para o outro, a esta altura produzindo uma boa camada de espuma. Uma calça jeans flutuou à superfície e Stuart a empurrou para baixo com uma forte pisada, o que lançou um esguicho cremoso de espuma no gramado. Frannie pensou: Isto parece um pouco com... ah, não, pare com isso, antes que comece a rir como louca e termine abortando!

 

- Teremos aquela primeira reunião ad hoc esta noite - disse Stu.

 

- Arranjei duas embalagens de cerveja, biscoitos de queijo, pasta de queijo, um pouco de pimentão que ainda deve...

 

- A questão não é essa, Frannie. Dick Ellis disse hoje que quer ficar fora do comitê.

 

- Ele disse? - exclamou ela, surpresa. Dick não a havia impressionado como o tipo de homem que recuasse de responsabilidades.

 

- Ele disse que trabalhará de bom grado em qualquer função tão logo a gente consiga um médico de verdade, mas no momento é impossível. Tivemos mais 25 pessoas chegando, uma delas com uma perna gangrenada. A mulher parece que arranhou a perna quando rastejava por baixo de uma cerca de arame farpado enferrujado.

 

- Ah, isso é lamentável!

 

- Dick a salvou... Dick e aquela enfermeira que chegou com Underwood. Uma moça alta e bonita, chamada Laurie Constable. Dick falou que a mulher teria morrido sem a ajuda de Laurie. De qualquer modo, tiveram que amputar a perna à altura do joelho, e ambos estão exaustos. Levaram três horas. Além disso, estão às voltas com um garotinho sofrendo convulsões e Dick está ficando louco tentando imaginar se é epilepsia, algum tipo de pressão craniana ou talvez diabetes. Já tiveram vários casos de intoxicação alimentar. Pessoas têm comido coisas que já se estragaram, e Dick diz que se não imprimirmos rapidamente um panfleto, ensinando como escolher suprimentos, algumas pessoas irão morrer. Vejamos, onde estava eu? Ah, dois braços quebrados, um caso de gripe...

 

- Meu Deus! Você disse gripe

 

- Calma. É a gripe comum. Aspirina derruba a febre facilmente... e ela não volta a subir. Nada de manchas negras no pescoço, tampouco. Mas Dick não tem certeza de quais antibióticos usar, se é que existe algum, e está fundindo a cuca tentando descobrir. E também receia que a gripe se espalhe e as pessoas entrem em pânico.

 

- Quem está com a gripe?

 

- Uma senhora chamada Rona Hewett. Veio andando desde Laramie, em Wyoming, e Dick diz que está pronta para pegar um micróbio.

 

Fran assentiu.

 

- Para sorte nossa, esta Laurie Constable parece estar gamada por Dick, embora ele tenha o dobro da idade dela. Acho que isso é ótimo.

 

- Muito nobre de sua parte dar-lhes o selo de sua aprovação, Stuart.

 

Ele sorriu.

 

- Seja como for, Dick tem 48 anos e um pequeno problema cardíaco. Neste exato momento, ele acha que não pode acumular outras funções... está praticamente estudando para ser médico, pelo amor de Deus! - Olhou seriamente para Fran. - Posso entender por que Laurie está caída por ele. Dick é algo mais próximo de um herói que temos por aqui. Não passa de um veterinário rural e vive apavorado, com medo de matar alguém. E sabe que a cada dia aparece mais gente, pessoas que chegam cheias de problemas de saúde.

 

- Se é assim, precisamos de mais alguém para o comitê.

 

- É. Ralph Brentner indicou esse Larry Underwood e, pelo que você diz, ele parece ter vindo a calhar.

 

- Sim. Veio mesmo. Acho que seria ótimo. E encontrei a mulher dele na cidade. Chama-se Lucy Swann. É um doce de pessoa e tem muita admiração por Larry.

 

- Acho que toda mulher que se preze é assim. No entanto, Frannie, tenho de ser sincero com você: não gosto da maneira como ele desabafou a história de sua vida com alguém que acabara de conhecer.

 

- Creio que ele só fez isso porque estive com Harold desde o começo. Imagino que não tenha entendido por que fiquei com você e não com Harold.

 

- Gostaria de saber qual a impressão que ele teve de Harold.

 

- Pergunte a ele e saberá.

 

- Acho que o farei.

 

- Vai convidá-lo para integrar o comitê?

 

- É mais provável que não. - Ele se levantou. - Gostaria de indicar aquele velhinho que chamam de o juiz. Mas afinal ele está com setenta anos, é idoso demais.

 

- Falou com ele sobre Larry?

 

- Não, mas Nick falou. Nick Andros é um cara muito inteligente, Fran. Modificou algumas propostas feitas por Glen e por mim. Glen não gostou muito, mas acabou concordando que as ideias de Nick são boas. Seja como for, o juiz disse a Nick que Larry é justamente a pessoa que procuramos. Disse que Larry andou por aí tentando descobrir algo de útil para fazer, e que é ainda melhor do que se julga.

 

- Eu chamaria isso de uma recomendação pra lá de boa.

 

- Sem dúvida - concordou Stu. - De qualquer modo, primeiro preciso saber o que ele pensa de Harold antes de convidá-lo para embarcar.

 

- Por que essa prevenção contra Harold? - perguntou ela, inquieta.

 

- Seria melhor perguntar a respeito de você, Fran. Ainda se sente responsável por ele.

 

- É mesmo? Não sei disso. Mas, quando penso nele, ainda me sinto um pouco culpada... posso lhe dizer o motivo.

 

- Por quê? Porque a tomei dele? Fran, você algum dia o quis?

 

- Claro que não. - Ela quase estremeceu.

 

- Menti para ele uma vez - confessou Stu. - Bem... não foi realmente uma mentira. Foi no dia em que nós três nos conhecemos, no Quatro de Julho. Acho que desde então ele sentiu o que estava por vir. Eu disse que você não me interessava. Como eu iria saber naquela hora se a desejaria ou não? Nos livros pode haver essa coisa de amor à primeira vista, mas na vida real...

 

Ele se interrompeu e um lento sorriso se formou em seu rosto.

 

- Está rindo de quê, Stuart Redman?

 

- Estava apenas pensando - disse ele - que na vida real isto me tomou pelo menos... - Ele esfregou o queixo, pensando. - Ah, vamos dizer que levou quatro horas.

 

Ela beijou-lhe a face.

 

- Isso foi muito gentil.

 

- É a verdade. Seja como for, acho que ele ainda guarda rancor contra mim pelo que eu disse.

 

- Ele jamais disse uma palavra mesquinha contra você, Stu... ou contra alguém mais.

 

- Não - concordou Stu. - Ele sorri. É disso que não gosto.

 

- Acha que ele está... planejando vingança, ou algo assim?

 

Stu sorriu e se levantou.

 

- Não. Harold, não. Glen acha que o Partido de Oposição pode começar simplesmente a formar-se em torno de Harold. Tudo bem. Só espero que ele não venha a estragar o que estamos fazendo agora.

 

- Lembre-se apenas de que ele está assustado e solitário.

 

- E ciumento.

 

- Ciumento? - Ela pensou a respeito, depois sacudiu a cabeça. - Não acredito nisso... realmente não. Falei com ele e acho que eu saberia. Ele pode estar se sentindo rejeitado, porém. Creio que esperava fazer parte do comitê...

 

- Esta foi uma das decisões unilaterais... esta é a palavra certa?... tomadas por Nick que tivemos de acatar. O que pesou de fato foi que nenhum de nós confia plenamente nele.

 

- Em Ogunquit - disse ela -, Harold foi o garoto mais insuportável que se poderia imaginar. No entanto, boa parte disso era compensação pela sua situação familiar, creio... para eles deve ter parecido como se Harold tivesse sido chocado de um ovo de um pássaro ou algo assim. Mas depois da gripe ele pareceu mudar. Pelo menos mudou em relação a mim. Parecia estar tentando ser... bem, um homem. Depois mudou de novo. Da noite para o dia. Começou a sorrir o tempo todo. Aliás, nem se conseguia mais se conversar direito com ele. Vivia... concentrado em si mesmo. Tal como as pessoas ficam quando se convertem a uma religião ou leem... - Ela se interrompeu de repente e seus olhos assumiram uma expressão momentânea de sobressalto, bem parecida com medo.

 

- Leem o quê? - perguntou Stu.

 

- Alguma coisa que modifique suas vidas - disse ela. - Das Kapital. Mein Kampf. Ou talvez cartas de amor interceptadas.

 

- Do que está falando?

 

- Hã? - Ela olhou em torno para ele, como se saindo de um devaneio profundo. Depois sorriu. - Nada. Você vai se encontrar com Larry Underwood?

 

- Claro... se você estiver bem.

 

- Estou melhor do que bem... estou definitivamente ótima. Vá, se apresse. A reunião é às sete. Se for rápido, dá tempo de voltar aqui para uma ceia antes da reunião.

 

- Tudo bem.

 

Ele já estava no portão que separava o pátio dos fundos do da frente quando ele o chamou.

 

- Não esqueça de perguntar-lhe o que achou de Harold.

 

- Não se preocupe. Vou perguntar.

 

- E observe o olhar dele quando responder.

 

Quando Stu perguntou casualmente a Larry qual a impressão que tivera de Harold (a esta altura não mencionou a vaga no comitê, afinal), os olhos dele se arregalaram, intrigados.

 

- Fran lhe contou sobre a minha fixação em Harold, não é?

 

- Sim.

 

Estavam na sala de estar de uma casinha situada na área de Table Mesa. Na cozinha Lucy empenhava-se em preparar o jantar, aquecendo alimentos enlatados sobre uma grelha que Larry montara para ela, funcionando com gás de botijão. Ela cantava trechos de "Honky Tonk Women" enquanto trabalhava, parecendo muito feliz.

 

Stu acendeu um cigarro. Reduzira a quantidade a não mais que cinco ou seis por dia; nem queria imaginar Dick Ellis operando-o de câncer no pulmão.

 

- Bem, durante todo o tempo em que segui Harold, dizia para mim mesmo que, com toda a certeza, ele não seria como o imaginava. E não é mesmo, embora eu ainda continue procurando descobrir o que há com ele. Recebeu-me na maior cordialidade. Um bom anfitrião. Abriu a garrafa de vinho que lhe trouxe e brindamos à nossa saúde. Apreciei o encontro. Mas...

 

- Mas?

 

- Quando eu e Leo chegamos o surpreendemos de costas. Ele construía uma mureta em volta do canteiro de flores e então se virou depressa. Creio que só percebeu nossa chegada quando falei. E por um minuto, enquanto o encarava, fiquei pensando: "Santo Deus, o cara quer me matar!"

 

Lucy apareceu à porta.

 

- Fica para jantar, Stu? Há comida suficiente.

 

- Obrigado, mas Frannie me espera. Só posso ficar mais uns 15 minutos.

 

- Sério?

 

- Fica para outra vez, Lucy, obrigado.

 

- OK - disse ela e voltou para a cozinha.

 

- Você só veio para perguntar sobre Harold? - quis saber Larry.

 

- Não - disse Stu, chegando a uma decisão. - Vim perguntar-lhe se faria parte do nosso pequeno comitê ad hoc. Um dos candidatos, Dick Ellis, recusou-se a participar.

 

- Então é isso, hein? - Larry foi até a janela e olhou para a rua silenciosa. - Pensei que poderia ser soldado raso outra vez.

 

- A decisão é sua, claro. Precisamos de mais uma pessoa e você foi recomendado.

 

- Por quem, se não se importa em...

 

- Perguntamos por aí. Frannie acha que você seria um grande acréscimo. E Nick Andros disse... bem, ele não pode falar, mas se comunica. Ele se entendeu com um dos que chegaram com você. O juiz Farris.

 

Larry pareceu satisfeito.

 

- Quer dizer que o juiz me indicou, hã? Isto é formidável. Mas quer saber de uma coisa? Vocês deviam convidá-lo. É um cara inteligente pra cacete.

 

- Foi o que Nick disse. Mas o juiz está com setenta anos, e nossos recursos médicos são bastante rudimentares.

 

Larry virou-se para fitá-lo, com um meio sorriso.

 

- Este comitê não é tão temporário como parece, certo?

 

Stu sorriu e relaxou um pouco. Ainda não decidira realmente como se sentia em relação a Larry Underwood, mas estava bem claro que ele não nascera ontem.

 

- Be... bem, vamos colocar assim. Gostaríamos que nosso comitê fosse eleito por tempo integral.

 

- De preferência sem oposição - disse Larry. Seus olhos fixos em Stu eram amistosos mas penetrantes... muito penetrantes. - Aceitaria uma cerveja?

 

- Desculpe, mas não. Duas noites atrás tomei um porre com Glen Bateman. Fran é uma garota paciente, mas sua paciência tem limites. E então, Larry? Quer embarcar nesta canoa conosco?

 

- Acho que... ah, diabo, aceito. Achei que nada no mundo me tornaria mais feliz do que chegar aqui e descarregar meu pessoal, deixando que outra pessoa assumisse o comando, para variar. No entanto, o que aconteceu é que nunca me senti mais entediado na vida.

 

- Vamos ter uma pequena reunião esta noite em minha casa para discutirmos a grande assembleia do dia 18. Acha que poderia ir?

 

- Claro. Posso levar Lucy?

 

Stu sacudiu lentamente a cabeça.

 

- Nem uma palavra a ela sobre isso. Queremos manter sigilo por enquanto.

 

O sorriso de Larry evaporou-se.

 

- Não tenho muito jeito para essas intrigas palacianas. Prefiro fazer tudo às claras para poupar aborrecimentos posteriores. Acho que a tragédia aconteceu em junho porque gente demais estava mantendo sigilo demais. Não foi um ato divino. Foi um ato de cretinice humana.

 

- Antes de mais nada, não queremos criar problemas com a Mãe - disse Stu, que sorria, relaxado. - Por acaso concordo com você. Mas sua opinião seria a mesma em tempo de guerra?

 

- Não estou entendendo.

 

- O homem com quem sonhamos. Duvido que tenha desaparecido.

 

Larry pareceu sobressaltado, refletindo.

 

- Glen diz que compreende por que ninguém fala a respeito - continuou Stu -, embora todos tenhamos sido avisados. As pessoas ainda estão em estado de choque, com a sensação de que atravessaram o inferno para chegar aqui. Tudo que desejam agora é lamber as feridas e enterrar a cabeça no chão. Entretanto, se Mãe Abagail está aqui, então ele está lá. - Stu moveu a cabeça na direção da janela, de onde se tinha uma vista das Flatirons, elevando-se na bruma do auge do verão. - Aqui, talvez a maioria das pessoas não esteja pensando nele, mas aposto quanto quiser como ele está pensando em nós.

 

Larry relanceou para a porta que levava à cozinha, mas Lucy tinha saído para falar com Jane Hovington, na casa vizinha.

 

- Você acha que ele está atrás de nós - disse em voz baixa. - É um belo pensamento para se ter logo antes do jantar. Abre o apetite.

 

- Larry, eu mesmo não tenho certeza de nada. Mas Mãe Abagail diz que isto não vai terminar, de um modo ou de outro, enquanto ele não acabar conosco... ou nós acabarmos com ele.

 

- Espero que ela não ande comentando isso por aí. Todo mundo acabaria fugindo para a Austrália.

 

- Pensei que você fosse dos que não gostam muito de sigilo.

 

- E sou, mas isto... - Larry interrompeu-se. Stu sorria gentilmente e Larry sorriu de volta, mas com uma expressão um tanto amarga. - OK, você venceu. Discutiremos a coisa e ficaremos de bico fechado.

 

- Ótimo. Vejo você às sete, então.

 

- Pode contar com isso.

 

Caminharam juntos até a porta.

 

- Agradeça a Lucy pelo convite para jantar - disse Stu. - Frannie e eu aceitaremos, qualquer dia desses.

 

- OK. - Quando Stu chegou à porta, Larry o chamou: - Ei.

 

Stu voltou-se, com um ar indagador.

 

- Há um menino - disse Larry lentamente - que veio do Maine com a gente. Seu nome é Leo Rockway e tem tido problemas. Eu e Lucy mais ou menos o partilhamos com uma mulher chamada Nadine Cross. Essa Nadine é uma pessoa um tanto fora do comum, entende?

 

Stu assentiu. Ouvira comentários acerca de uma pequena e peculiar cena entre Mãe Abagail e a tal Nadine, quando Larry chegara com seu grupo.

 

- Nadine cuidava de Leo antes que eu os encontrasse. Leo parece ler as pessoas. Aliás, não é o único. Talvez sempre tenha havido gente assim, mas isso parece ter aumentado um pouco desde a gripe. E Leo... ele se recusou a entrar na casa de Harold. Nem mesmo quis pisar no gramado. É uma coisa... um tanto esquisita, não é?

 

- Sem dúvida - concordou Stu.

 

Entreolharam-se pensativamente por um momento, e então Stu foi para casa jantar. Fran pareceu preocupada, mas pouco falou. E enquanto ela lavava os últimos pratos num balde de plástico cheio de água morna, as pessoas foram chegando para a primeira reunião do Comitê Ad Hoc da Zona Franca.

 

Depois de Stu ter saído para a casa de Larry, Frannie correu para seu quarto no andar de cima. No canto do armário estava o saco de dormir que havia carregado através do país, afivelado à traseira de sua moto. Ela havia guardado seus pertences pessoais numa pequena sacola com zíper. A maioria desses pertences estava distribuída agora pelo apartamento que ela e Stu dividiam, mas alguns não tinham encontrado um lugar e descansavam agora ao pé do saco de dormir. Havia vários frascos de creme de limpeza - ela sofrera um súbito ataque de urticária após as mortes de seu pai e de sua mãe, mas agora já havia regredido -, uma caixa de miniabsorventes para o caso de começar a sangrar (ela ouvira falar que às vezes isso acontecia com grávidas), duas caixas de charutos baratos, numa delas escrito É UM MENINO!, e na outra É UMA MENINA! O último item era o seu diário.

 

Ela o pegou e ficou examinando-o especulativamente. Escrevera nele apenas oito ou nove vezes desde a chegada a Boulder, e a maioria das anotações tinha sido curta, quase elíptica. O grande fluxo de palavras tinha vindo e ido enquanto ainda estavam na estrada... como placenta, ela pensou um tanto pesarosa. Não escrevera nada nos últimos quatro dias e suspeitou de que o diário pudesse ter por fim escapado por completo da sua mente, embora houvesse pretendido firmemente ser mais assídua quando as coisas se assentassem um pouco. Por causa do bebê. Agora, contudo, estava mais uma vez em sua mente.

 

Tal como as pessoas ficam quando se convertem a uma religião... ou leem alguma coisa que muda suas vidas... como cartas de amor interceptadas...

 

De repente pareceu-lhe que o livro tinha ganhado peso, e que o próprio ato de abrir sua capa podia fazer o suor brotar de sua testa e... e...

 

Ela olhou para trás de repente por sobre o ombro, seu coração batendo selvagemente. Algo havia se movido ali?

 

Um camundongo, talvez, escondendo-se atrás da parede. Por certo nada mais do que isso. Mais provavelmente produto de sua imaginação. Não havia nenhuma razão, nenhuma razão, afinal, para ela estar pensando tão subitamente no homem do manto preto, no homem com o cabide. Seu bebê estava vivo e a salvo e isto era apenas um livro e, de qualquer modo, não havia nenhum meio de saber se um livro tinha sido lido. E mesmo se houvesse, seria impossível dizer se a pessoa que o tinha lido fora Harold Lauder.

 

Ainda assim, abriu o diário e começou a virar lentamente as páginas, obtendo instantâneos do passado recente como fotografias em preto-e-branco tiradas por um amador. Filmes mentais domésticos.

 

Esta noite estivemos admirando-as e Harold discorria sobre cor & textura & tom quando Stu deu-me uma piscadela sóbria. Droga, pisquei de volta...

 

Harold objetará quanto aos princípios gerais, é claro. Porra, Harold, vê se cresce!

 

... e eu podia vê-lo se preparando com um dos seus Comentários Esnobes Patenteados Harold Lauder...

 

(Meu Deus, Fran, por que você algum dia disse todas essas coisas sobre ele? A troco de quê?)

 

Bem, você conhece Harold... sua arrogância... todas aquelas palavras & pronunciamentos pomposos... um garotinho inseguro...

 

Isso foi a 12 de julho. Pestanejando, passou adiante rapidamente, folheando as páginas agora, apressada para chegar ao fim. Frases ainda saltando acima, parecendo colidir com ela: De qualquer modo, Harold cheirava bem limpo, para variar... o hálito de Harold afugentaria um dragão esta noite... E outra, parecendo quase profética: Ele acumula objeções como tesouros de pirata. Mas com que fim? Alimentar seus próprios sentimentos de superioridade e perseguição secretos? Ou era uma questão de represália?

 

Ah, ele está fazendo uma lista... e conferindo-a duas vezes... ele vai descobrir... quem é bom e quem é mau...

 

Depois, em 1º de agosto, apenas duas semanas atrás. A anotação começava no pé da página. Nenhuma anotação na noite passada, eu estava feliz demais. Algum dia já me senti tão feliz? Acho que não. Stu e eu estamos juntos. Nós

 

Fim da página. Ela virou para a seguinte. As primeiras palavras no alto da página eram fizemos amor duas vezes. Mas elas mal atraíram seus olhos, porque sua visão baixou até o meio da página. Lá, ao lado de uma opinião sobre seu instinto maternal estava alguma coisa que lhe chamou a atenção e a deixou gélida, quase congelada.

 

Era uma escura e suja impressão digital de polegar.

 

Seus pensamentos dispararam loucamente: eu dirigia uma moto o dia inteiro, todos os dias. Claro, a gente procura se limpar a cada oportunidade, mas as mãos se sujam e...

 

Ela estendeu a mão, percebendo sem qualquer surpresa que tremia horrivelmente. Pôs o polegar sobre a mancha. Era bem maior que seu dedo.

 

Bem, claro que é, disse para si. Quando você mancha alguma coisa, o borrão naturalmente fica maior. E isso, não é mais nada além disso...

 

Mas esta impressão digital não estava borrada. As pequenas linhas, curvas e espirais apareciam claramente, na sua maior parte.

 

E a mancha não era de graxa ou óleo, não adiantava querer se enganar.

 

Era de chocolate seco.

 

Payday, pensou Fran, empalidecendo. Barra de doce com cobertura de chocolate.

 

Por um momento, receou até virar a cabeça - temia que pudesse ver o riso de Harold pendendo acima de seu ombro, como o sorriso do gato de Cheshire, em Alice. Os lábios grossos de Harold movendo-se enquanto ele dizia solenemente: Todo cão tem seu dia, Frannie. Todo cão tem seu dia.

 

Mas mesmo se Harold tivesse passado os olhos pelo seu diário, isto significava que ele tramava alguma vingança secreta contra ela e Stu ou qualquer dos outros? Claro que não.

 

Mas Harold está mudado, sussurrou uma voz interior.

 

- Droga, ele não mudou tanto assim! - gritou para o quarto vazio. Ela encolheu-se ligeiramente ao som da própria voz, depois emitiu um riso trêmulo. Desceu para o andar de baixo e começou a preparar o jantar, que seria mais cedo esta noite por causa da reunião... mas de repente aquela reunião deixou de ser tão importante como lhe parecera antes.

 

Trechos das Minutas da Reunião do Comitê Ad Hoc

13 de agosto de 1990

 

A reunião teve lugar no apartamento de Stu Redman e Frances Goldsmith. Estiveram presentes todos os membros do comitê, quais sejam: Stuart Redman, Frances Goldsmith, Nick Andros, Glen Bateman, Ralph Brentner, Susan Stern e Larry Underwood...

 

Stu Redman foi escolhido como mediador e Frances Goldsmith como secretária...

 

Estas anotações (mais uma completa cobertura de cada arroto, gorgolejo e similares, tudo foi gravado em fitas cassete Memorex, para quem for louco o bastante para querer ouvir) serão colocadas em uma caixa-forte do First Bank de Boulder...

 

Stu Redman apresentou um relatório sobre o tema intoxicação alimentar, escrito por Dick Ellis e Laurie Constable (uma olhada de banda captou SE VOCÊ FOR COMER, LEIA ISTO PRIMEIRO!). Ele disse que Nick queria o relatório impresso e afixado por toda Boulder antes da grande assembleia de 18 de agosto, porque já tivera 15 casos de intoxicação entre nós, dois deles bastante sérios. Por uma votação unânime, ficou decidido que Ralph mimeografaria mil cópias das instruções de Dick e que dez pessoas o ajudariam a espalhá-las por toda a cidade...

 

A seguir, Susan Stern apresentou outro item que Dick e Laurie queriam submeter à reunião (todos desejaríamos que um dos dois pudesse ter comparecido). Ambos consideram ser necessária a formação de um Comitê de Sepultamentos; Dick acha que isto deveria ser anotado na agenda da assembleia pública, sendo apresentado não como risco à saúde - devido à possibilidade de gerar pânico -, mas como "a coisa decente a ser feita". Todos sabemos que, surpreendentemente, há poucos cadáveres em Boulder em proporção à sua população pré-epidemia, porém ignoramos o motivo... não que isso interesse muito agora. Contudo, ainda há milhares de cadáveres que devem ser sepultados se pretendemos aqui permanecer.

 

Stu perguntou quão grave era o problema no momento. Sue disse achar que a situação só ficaria realmente séria no outono, quando o tempo quente e seco em geral se torna úmido.

 

Larry Underwood propôs uma moção, que acrescentamos à sugestão de Dick, de que um Comitê de Sepultamentos constasse da agenda para 18 de agosto. A moção foi aprovada por unanimidade.

 

Ralph Brentner leu então os comentários por escrito de Nick, que cito aqui literalmente:

 

"Uma das questões mais importantes a ser conduzida por este comitê é se concordamos ou não em dar pleno conhecimento a Mãe Abagail. Deverá ser dito a ela tudo que ocorra em nossas reuniões, sejam elas abertas ou fechadas? A pergunta também pode ser formulada de outro modo: deverá Mãe Abagail tomar pleno conhecimento deste comitê - e do comitê permanente que se seguirá a ele? E deverá o comitê ser posto a par dos contatos mantidos por ela com Deus ou lá quem seja... particularmente os sigilosos?

 

"Isto pode soar como tolice, mas permitam-me explicar, porque realmente se trata de uma questão pragmática. Teremos que estabelecer imediatamente o lugar de Mãe Abagail na comunidade, pois nosso problema não consiste apenas em firmarmos nossos pés outra vez. Se isto fosse tudo, para começar nem precisaríamos dela. Como todos sabemos, existe outro problema referente ao homem que às vezes chamamos de homem escuro ou, como diz Glen, o Adversário. Minha prova da existência dele é muito simples, e creio que a maioria das pessoas em Boulder apoiaria meu raciocínio - se, afinal, quiserem refletir sobre ele. É o seguinte: sonhei com Mãe Abagail e ela existia; sonhei com o homem escuro e portanto ele deve existir, embora nunca o tenha visto. Aqui as pessoas amam Mãe Abagail, como eu também amo. Entretanto, não iremos muito longe - de fato, não iremos a lugar algum -, se não obtivermos a aprovação dela para o que estamos fazendo.

 

"Assim, no início desta tarde eu a procurei e fiz-lhe a pergunta diretamente, sem nenhum rodeio: A senhora continuará conosco? Ela respondeu que sim - mas não sem condições. Foi irredutível quanto a isso. Disse que teríamos plena liberdade para dirigir a comunidade em ‘todos os assuntos mundanos’, foi a expressão que usou. Limpeza pública, ocupação das casas, restabelecimento da energia.

 

"No entanto foi bem clara quanto a querer ser consultada sobre todas as questões relativas ao homem escuro. Ela acredita que todos fazemos parte de um jogo de xadrez entre Deus e Satã; que neste jogo o principal agente de Satã é o Adversário, cujo nome ela diz ser Randall Flagg (‘o nome que ele usa no momento’, conforme declarou); que por motivos que só Ele sabe, Deus a escolheu como o seu agente nesta questão. Ela acredita, e nisto por acaso concordo com ela, que estamos na iminência de uma luta, cujo resultado será nós ou ele. A Mãe acha que esta luta é a coisa mais importante e não abre mão de ser consultada quando nossas deliberações se referirem a isto... ou a ele.

 

"Ora, não quero me imiscuir nas implicações religiosas de tudo isto ou argumentar-se ela está certa ou errada. No entanto, fica evidente que, pondo-se de lado todas as implicações, temos uma situação que devemos enfrentar. Assim, tenho uma série de moções a apresentar."

 

Houve alguma discussão sobre a declaração de Nick.

 

Nick apresentou a seguinte moção: Podemos nós, como um Comitê, concordar em não discutir as implicações teológicas, religiosas ou sobrenaturais do tema Adversário durante nossos encontros? Por unanimidade o comitê concordou em abolir discussões sobre tais temas, pelo menos enquanto estivermos "em sessão".

 

Depois, Nick apresentou outra moção: Podemos concordar em que a atividade principal do comitê, privada e secreta, é a questão de como lidar com esta força conhecida como o homem escuro, o Adversário ou Randall Flagg? Glen Bateman apoiou a moção, acrescentando que, de tempos em tempos, poderiam surgir outras questões - como o real motivo para o Comitê de Sepultamento - que só deviam ser do conhecimento dos empossados. A moção foi aprovada por unanimidade.

 

Nick então apresentou sua moção original, a de mantermos Mãe Abagail informada de todos os assuntos públicos e privados discutidos pelo comitê.

 

Esta moção também teve aprovação unânime.

 

Estando resolvido o caso de Mãe Abagail por enquanto, o comitê passou então para o tema homem escuro em si, a pedido de Nick. Ele propôs que enviássemos três voluntários ao oeste, que se juntariam aos seguidores do homem escuro a fim de obter informações sobre o que de fato está acontecendo lá.

 

Sue Stern imediatamente se ofereceu. Após calorosa discussão, Stu deu a palavra a Glen Bateman, que apresentou a seguinte moção: Fica resolvido que ninguém do nosso comitê ad hoc ou do comitê permanente será aceito como voluntário para esse reconhecimento de terreno. Sue Stern quis saber por que não.

 

Glen: "Todos respeitamos seu desejo honesto de ajudar, Susan, mas o fato é que simplesmente não sabemos se o voluntário enviado voltará, ou quando ou em que estado. Nesse meio-tempo, temos a tarefa nada insignificante de colocar as coisas nos trinques aqui em Boulder, se me perdoam a gíria. Se você partir, teremos de preencher sua vaga com alguém que precisaria ser posto a par das medidas já tomadas e postas em prática. Não creio que estejamos em condições de desperdiçar tanto tempo."

 

Sue: "Suponho que esteja certo... ou pelo menos sendo sensível... mas às vezes especulo se aquelas duas coisas não são sempre as mesmas. Ou até habitualmente as mesmas. O que você está realmente dizendo é que não podemos mandar ninguém do comitê porque somos todos tremendamente indispensáveis. Assim, nós simplesmente... simplesmente... não sei..."

 

Stu: "Ficamos na sombra e água fresca?"

 

Sue: "Sim. Obrigada. É exatamente o que quero dizer. Ficamos na sombra e água fresca e mandamos alguém para lá, talvez para ser crucificado num poste telefônico, talvez alguma coisa até pior."

 

Ralph: "O que diabo poderia ser pior?"

 

Sue: "Não sei. Mas se alguém sabe, esse alguém é Flagg. Simplesmente detesto isto."

 

Glen: "Você pode detestar, mas definiu nossa situação muito sucintamente. Somos políticos aqui. Os primeiros políticos da nova era. Temos apenas de esperar que nossa causa seja mais do que simplesmente uma das causas pelas quais os políticos mandaram gente para situações de vida ou morte antes desse momento."

 

Sue: "Nunca pensei em virar política."

 

Larry: "Bem-vinda ao clube."

 

A moção de Glen para que nenhum integrante do comitê ad hoc fosse enviado como batedor foi aprovada - sem muito entusiasmo - por unanimidade. Fran Goldsmith então perguntou a Nick que tipo de qualificações deveríamos buscar em possíveis agentes infiltrados e o que deveríamos esperar que descobrissem.

 

Nick: "ignoramos o que há para sabermos até que eles voltem. Se voltarem. A questão é: não temos a menor ideia do que ele está fazendo por lá. Somos mais ou menos como pescadores usando iscas humanas."

 

Stu disse que, na sua opinião, o comitê deveria selecionar as pessoas que pretendia utilizar, havendo concordância geral a respeito. Por votação do comitê, a maior parte da discussão do assunto foi transcrita literalmente nesses trechos em fitas cassete. Parecia importante ter um registro permanente de nossas decisões sobre a questão dos batedores (ou espiões), porque resultava tão delicada quanto inquietante.

 

Larry: "Tenho alguém que gostaria de indicar, se puder. Suponho que soará meio estranho para aqueles de vocês que não o conhecem, mas poderia ser realmente uma boa ideia. Refiro-me ao juiz Farris."

 

Sue: "O quê?! Aquele velho? Larry, você deve estar louco!"

 

Larry: "Ele é o velho mais arguto que já conheci. Ele tem apenas setenta anos, a propósito. Ronald Reagan foi presidente com mais idade do que isso."

 

Fran: "Não é o que eu chamaria de recomendação muito forte."

 

Larry: "Mas ele está em perfeita forma. E creio que o homem escuro poderia não desconfiar se mandássemos um caco velho como Farris para espioná-lo... e temos de levar em conta as suspeitas dele, vocês sabem. Ele deve estar esperando uma ação como essa, e não ficaria inteiramente surpreso se ele tiver guardas de fronteira monitorando pessoas que chegam lá com um potencial ‘perfil de espião’. E, isto pode parecer brutal, eu sei, em especial para Fran... mas se o perdermos, não estaremos perdendo alguém com bons cinquenta anos pela frente."

 

Fran: "Você está certo. Parece brutal."

 

Larry: "Tudo que desejo acrescentar é que sei que o juiz aceitaria. Ele de fato quer ajudar. E realmente acho que ele poderia se sair bem."

 

Glen: "Um ponto bem abordado. O que mais alguém acha?"

 

Ralph: "Acompanharei outra opinião, porque não conheço o cavalheiro. Mas não acho que deveríamos descartá-lo só porque está velho. Afinal, é só olhar para quem está responsável por este lugar: uma velha dama que já passou dos cem anos."

 

Glen: "Outro ponto bem abordado."

 

Stu: "Você soa como um árbitro de tênis, carequinha."

 

Sue: "Ouça, Larry. E se ele iludir o homem escuro e depois cair morto por um ataque cardíaco enquanto estiver pondo os bofes para fora querendo voltar para cá?"

 

Stu: "Isso poderia acontecer com qualquer um. Ou até mesmo um acidente."

 

Sue: "Concordo... mas com um homem velho as possibilidades se elevam."

 

Larry: "É verdade, mas você não conhece o juiz, Sue. Se conhecesse, veria que as vantagens superam as desvantagens. Ele é realmente esperto. A defesa encerra o seu ponto."

 

Stu: "Creio que Larry está certo. É o tipo de coisa que Flagg não esperaria. Apoio a moção. Todos a favor?"

 

Foi aprovada por unanimidade.

 

Sue: "Bem, aprovei seu candidato, Larry... Talvez agora você aprove o meu."

 

Larry: "Sim, política é isso, tudo bem. [Todos riram.] E quem é?"

 

Sue: "Dayna."

 

Ralph: "Que Dayna?"

 

Sue: "Dayna Jurgens. É mais corajosa do que qualquer mulher que já conheci. Claro, sei que ela não está com setenta, mas acho que se lhe apresentarmos a ideia, topará."

 

Fran: "Sim... se realmente tivermos que fazer isso, ela será boa. Apoio a indicação."

 

Stu: "OK... Dayna Jurgens foi indicada e apoiada para a missão. Todos a favor?"

 

O comitê aprovou unanimemente.

 

Glen: "Muito bem... quem é o terceiro?"

 

Nick (lido por Ralph): "Se Fran desaprovou o de Larry, receio que vai realmente desaprovar o meu. Indico...

 

Ralph: "Nick, você está louco! Não pode querer fazer isso!"

 

Stu: "Vamos, Ralph, acabe de ler."

 

Ralph: "Bem... aqui diz que ele quer indicar... Tom Cullen."

 

Protestos do comitê.

 

Stu: "Calma, Nick está com a palavra. Ele esteve escrevendo como um condenado, então é melhor você ler, Ralph."

 

Nick: "Primeiramente, conheço Tom tão bem quanto Larry conhece o juiz, e provavelmente até melhor. Ele adora Mãe Abagail. Faria qualquer coisa por ela, inclusive ser assado em fogo lento. É isso mesmo que quero dizer... não é piada. Ele tacaria fogo em si por ela, se Mãe Abagail lhe pedisse isso."

 

Fran: "Ninguém está discutindo essa questão, mas Tom é..."

 

Stu: "Pare, Fran... Nick está com a palavra."

 

Nick: "Meu segundo ponto é o mesmo que Larry defendeu sobre o juiz. O Adversário não vai esperar que mandemos uma pessoa retardada como espião. Suas reações combinadas a esta ideia talvez sejam o melhor argumento a favor dela.

 

"Meu terceiro e último ponto é o seguinte: embora Tom possa ser retardado, ele não é idiota. Ele salvou minha vida uma vez quando apareceu um tornado, e reagiu muito mais rápido do que qualquer outro que conheço teria feito. Tom é infantil, mas até mesmo uma criança pode aprender a fazer certas coisas se é treinada e ensinada, e depois treinada mais uma vez. Afinal, não vejo nenhum problema em dar a Tom uma história muito simples para memorizar. No final, eles irão provavelmente presumir que nós o enviamos porque..."

 

Sue: "Porque não o queremos poluindo nossa combinação genética? Ora, isso é bom."

 

Nick: "... porque ele é retardado. Tom pode até mesmo dizer que é louco para as pessoas que o enviam e gostaria de voltar para elas. O único imperativo que teria de ser incutido nele seria nunca mudar sua história, não importa o que aconteça."

 

Fran: "Ah, não, não posso acreditar..."

 

Stu: "Calma, Nick está com a palavra. Vamos manter tudo ordenadamente."

 

Fran: "Certo... desculpe."

 

Nick: "Alguns de vocês podem achar que por Tom ser retardado seria mais fácil sacudi-lo de sua história do que ocorreria com alguém com uma inteligência mais ampla, porém..."

 

Larry: "É."

 

Nick: "... porém, na verdade, o contrário é verdadeiro. Se eu disser a Tom que simplesmente deve se ater à história que eu der a ele, se ater não importa o que aconteça. ele o fará. Uma pessoa pretensamente normal só poderia suportar tantas horas de tortura sob a água, ou tantos choques elétricos, ou tantas farpas debaixo das unhas..."

 

Fran: "Isso não iria ocorrer, iria? Iria? Quero dizer, ninguém realmente acha que poderia ocorrer, não é?"

 

Nick: "... antes de dizer: ‘OK, desisto. Vou lhes contar tudo que sei.’ Tom simplesmente não o faria. Se lhe inculcarem bastante sua história, ele não vai apenas decorá-la; irá quase acreditar que é verdade. Ninguém será capaz de dobrá-lo. Só quero deixar claro que acho, de inúmeras maneiras, que o retardo mental de Tom é realmente um trunfo numa missão como essa. ‘Missão’ soa como uma palavra pretensiosa, mas é exatamente isso."

 

Stu: "Isso é tudo, Ralph?"

 

Ralph: "Há um pouco mais."

 

Sue: "Se Tom realmente começar a acreditar na sua história de cobertura, Nick, como diabos ele saberá que chegou a hora de voltar?"

 

Ralph: "Desculpe, madame, mas parece que é mais ou menos disso que se trata."

 

Sue: "Ah."

 

Nick (lido por Ralph): "Tom pode receber uma sugestão pós-hipnótica antes de ser enviado. Mais uma vez, isto não se trata apenas de lavagem cerebral; quando tive esta ideia, perguntei a Stan Nogotny se poderia tentar hipnotizar Tom. Stan me disse que às vezes costumava fazer isto como brincadeira de salão em festas. Bem, Stan não achava que fosse funcionar... mas Tom ficou hipnotizado por cerca de seis segundos."

 

Stu: "Eu ficaria. O velho Stan sabe como fazer isto, hã?"

 

Nick: "A razão por que achei que Tom possa ser ultra-susceptível remonta à época em que o conheci em Oklahoma. Ele aparentemente desenvolveu a aptidão, durante muitos anos, de hipnotizar a si mesmo até um certo grau. Isto o ajuda a fazer ligações. Ele não pôde entender o que eu era até aquele dia em que o encontrei... por que eu não podia falar com ele ou responder às suas perguntas. Continuei pondo minha mão na boca e depois na garganta para mostrar que era mudo, mas ele não entendeu, afinal. Então, de uma vez só, ele simplesmente se desligou. Não sei explicar de maneira melhor que essa. Ele ficou perfeitamente imóvel. Seus olhos perderam-se na distância. Depois emergiu do transe, exatamente do modo como emerge um paciente quando o hipnotizador lhe diz que é hora de acordar. E ele soube. Simplesmente assim. Foi para dentro de si mesmo e voltou com a resposta."

 

Glen: "É realmente espantoso."

 

Stu: "Por certo que é."

 

Nick: "Pedi que Stan desse a ele uma sugestão pós-hipnótica quando tentamos isto, já faz agora uns cinco dias. A sugestão foi que quando Stan dissesse "Eu certamente gostaria de ver um elefante", Tom sentisse uma grande ânsia de ir para a esquina e plantar uma bananeira. Stan incutiu isto nele por cerca de meia hora e depois o acordou. Tom saiu correndo até a esquina e plantou uma bananeira. Todos os brinquedos e bolas de gude caíram dos seus bolsos. Depois ele sentou-se, sorriu para nós e disse: "Agora fico imaginando: por que Tom Cullen saiu e fez isso?"

 

Glen: "Posso simplesmente ouvi-lo, também."

 

Nick: "Seja como for, toda essa elaborada coisa de hipnose é apenas uma introdução para duas questões muito simples. Primeira, podemos plantar uma sugestão pós-hipnótica a que Tom responda dentro de um determinado tempo. A maneira óbvia seria fazer isto durante a lua cheia. Segunda, ao colocá-lo em hipnose profunda, quando ele voltar, obteremos uma lembrança quase perfeita de tudo que ele viu."

 

Ralph: "Assim termina o que Nick escreveu. Ufa!"

 

Larry: "Para mim se assemelha àquele velho filme Sob o Domínio do Mal."

 

Stu: "O quê?!"

 

Larry: "Nada."

 

Sue: "Tenho uma pergunta, Nick. Você também programaria Tom... imagino que seja a palavra correta... para não dar nenhuma informação acerca do que estamos fazendo?"

 

Glen: "Nick, deixe-me responder a isto, e se você achar que seja diferente, basta acenar com a cabeça. Eu diria que Tom não precisa ser programado, afinal. Deixe-o vazar toda e qualquer coisa que saiba a nosso respeito. Estamos mantendo entre quatro paredes tudo que se refere a Flagg, de qualquer modo, e não vamos fazer muito mais que ele não possa adivinhar por sua própria conta... mesmo que sua bola de cristal esteja avariada."

 

Nick: "Exatamente."

 

Glen: "Muito bem... estou apoiando a moção de Nick no ato. Acho que temos tudo para vencer e nada para perder. É uma ideia tremendamente ousada e original."

 

Stu: "Foi tudo apresentado e apoiado. Podemos debater mais se vocês quiserem, mas só um pouco. Ficaremos aqui toda a noite, se não formos rápidos. Há algo mais a discutir?"

 

Fran: "Pode apostar que sim. Você disse que temos tudo para vencer e nada para perder, Glen. Bem, e quanto a Tom? E quanto às nossas próprias malditas almas? Talvez vocês rapazes não se importem em pensar sobre pessoas enfiando... coisas... sob as unhas de Tom e dando-lhe choques elétricos, mas isto me incomoda. Corno podem ser tão frios assim? E, Nick, hipnotizá-lo de modo que ele proceda como... uma galinha com a cabeça enfiada num saco! Vocês deviam se envergonhar! Pensava que Tom fosse amigo de vocês!"

 

Stu: "Fran..."

 

Fran: "Não, tenho que falar. Não vou lavar minhas mãos do comitê ou mesmo cair fora zangada se for voto vencido, mas vou dizer o que penso. Vocês realmente querem pegar aquele doce e desligado rapaz e transformá-lo num avião U-2 humano? Nenhum de vocês entende que isto é o mesmo que iniciar toda a velha merda de novo? Não conseguem ver isto? O que fazemos se o matarem, Nick? O que fazemos se matarem todos eles? Criar alguns vírus novos? Uma versão melhorada da Capitão Viajante?"

 

Houve uma pausa enquanto Nick escrevia uma resposta.

 

Nick (lido por Ralph): "As coisas que Fran trouxe à baila me afetaram muito profundamente, mas mantenho meu voto. Não, não me sinto bem quanto a lançar Tom às feras, e não me sinto bem em relação a enviá-lo para uma situação em que poderia ser torturado e depois morto. Só gostaria de assinalar de novo que ele estaria fazendo isto por Mãe Abagail e pelas ideias dela, pelo Deus dela, e não por nós. E também creio realmente que temos de usar quaisquer meios à nossa disposição para pôr fim à ameaça que este ser representa. Ele está crucificando pessoas por lá. Tenho certeza disso através de meus sonhos, e sei que alguns de vocês também tiveram esse sonho. A própria Mãe Abagail sonha com isso. E sei que Flagg é o mal. Se alguém desenvolver uma nova cepa da Capitão Viajante, Fran, pode crer que será ele, para usar contra nós. Gostaria de detê-lo enquanto ainda podemos."

 

Fran: "Tudo isso é verdade, Nick, não discuto. Sei que ele é mau. Por tudo que sei, ele pode ser o Diabrete de Satã, como diz Mãe Abagail. Mas estamos pondo nossa mão no mesmo comutador a fim de detê-lo. Lembra-se de A Revolução dos Bichos? ‘Eles olharam dos porcos para os homens e não puderam ver a diferença.’ Acho que o que realmente desejo ouvir de você - mesmo se for pela voz de Ralph - é que se temos de acionar esse comutador a fim de detê-lo... se o fizermos... é que seremos bem-sucedidos. Garante isso?"

 

Nick: "Não com certeza, acho. Não com certeza."

 

Fran: "Neste caso, meu voto é não. Se devemos enviar pessoas para o oeste, pelo menos enviemos pessoas que saibam o que estão fazendo."

 

Stu: "Alguém mais?"

 

Sue: "Também sou contra, porém por motivos mais práticos. Se vamos prosseguir com este plano, terminaremos com um velho e um debilóide. Desculpem pela palavra, também gosto dele, mas isto é o que ele é. Sou contra e agora calarei a boca."

 

Glen: "Proceda à votação, Stu."

 

Stu: "OK. Vamos percorrer a mesa. Eu voto a favor. Frannie?"

 

Fran: "Sou contra."

 

Stu: "Glen?"

 

Glen: "Sim."

 

Stu: "Suze?"

 

Sue: "Não."

 

Stu: "Nick?"

 

Nick: "Sim."

 

Stu: "Ralph?"

 

Ralph: "Bem... também não gosto muito disso, mas se Nick aprova, eu o acompanho. Sim."

 

Stu: "Larry?"

 

Larry: "Posso ser franco? Acho que a ideia cheira tão mal que me sinto como num sanitário público. Isto é o tipo de coisa que você consegue quando está por cima, acho. Um lugar fodido para se estar. Voto a favor."

 

Stu: "Moção aprovada por cinco a dois."

 

Fran: "Stu?"

 

Stu: "Sim?"

 

Fran: "Eu gostaria de mudar meu voto. Se realmente vamos botar o Tom nessa coisa, é melhor o fazermos juntos. Desculpe-me por ter feito tanta onda, Nick. Sei que isto o magoa... posso ler no seu rosto. É uma coisa tão louca! Por que algo assim tem de acontecer? Isso por certo não é igual a estar no comitê de formatura da faculdade, eu lhes digo. Frannie vota a favor."

 

Sue: "Eu também, então. Frente unida. Nixon Bate Pé Firme e Diz: Não Sou Um Escroque. A favor."

 

Stu: "Votação unânime. Sete a zero. Aqui está um lenço, Fran. E gostaria de registrar isso para demonstrar que a amo."

 

Larry: "Feita esta observação, acho que deveríamos suspender a sessão."

 

Stu: "Foi apresentado, e aprovado pelo papai aqui, que devemos suspender. Aqueles a favor, que levantem as mãos. Os que se opõem, preparem-se para ganhar uma lata de cerveja na cabeça."

 

A suspensão ganhou por sete a zero.

 

- Vai para a cama, Stu?

 

- Vou. Já é tão tarde assim?

 

- Quase meia-noite. Tarde o suficiente.

 

Stu se afastou da sacada. Estava só de cuecas, nada mais; a alvura da peça era quase ofuscante contra sua pele bronzeada. Fran, apoiada na cama com um lampião Coleman sobre a mesinha-de-cabeceira a seu lado, viu-se novamente espantada ante a intensidade profunda do seu amor por ele.

 

- Pensando na reunião?

 

- Sim. Estava. - Ele serviu-se de um copo de água sobre a mesa-de-cabeceira e fez uma careta ao sentir o gosto insosso da água fervida.

 

- Achei que você foi um mediador maravilhoso. Glen o convidou para a mesma função na assembleia pública, não é? Isto o incomoda? Você recusou?

 

- Não, falei que aceitava. Acho que posso fazer isso. Estava pensando em enviarmos essas três pessoas através das montanhas. É uma atitude suja enviarmos espiões. Mas você tinha razão, Frannie. O único problema é que Nick também estava certo. Num caso como esse, o que é que se pode fazer?

 

- Vote em sua consciência e então tenha a melhor noite de sono que puder, assim acho. - Esticando o braço, ela se preparou para apagar o lampião Coleman. - Pronto para a luz?

 

- Apague. - Fran apagou a luz, e Stu enfiou-se na cama, ao seu lado. - Boa-noite, Frannie - disse. - Eu te amo.

 

Ela ficou olhando para o teto. Estava em paz quanto a Tom Cullen... mas aquela impressão digital manchada de chocolate permanecia na sua mente.

 

Cada cão tem seu dia, Fran.

 

Talvez eu devesse contar a Stu agora mesmo, pensou. No entanto, se havia algum problema, era problema dela. Teria apenas que esperar... vigiar... e ver se acontecia alguma coisa.

 

Levou um bom tempo até pegar no sono.

 

NAS PRIMEIRAS HORAS DA MANHÃ, Mãe Abagail jazia insone em sua cama. Estava tentando orar.

 

Levantou-se sem acender uma luz e ajoelhou-se na sua camisola branca de algodão. Pressionou a fronte contra sua Bíblia, que estava aberta nos Atos dos Apóstolos. A conversão do velho e teimoso Saulo na estrada de Damasco. Ele tinha sido cegado pela luz, e na estrada de Damasco as escamas haviam caído de seus olhos. Atos era o último livro da Bíblia em que a doutrina era apoiada por milagres, e o que eram os milagres senão a mão divina de Deus atuando sobre a Terra?

 

E, ah, havia escamas nos seus olhos e algum dia eles ficariam livres para enxergar?

 

Os únicos sons no quarto eram o débil chiado da lamparina a óleo, o tiquetaquear do despertador Westclox, e a sua voz baixa e sussurrante.

 

- Mostrai meu pecado, Senhor. Eu não sei qual é. Sei que fui embora e perdi alguma coisa que queríeis que eu visse. Não consigo dormir, não consigo tirar uma soneca, e não Vos sinto, Senhor. Sinto como se estivesse orando para um telefone mudo, e este é um tempo ruim para isso acontecer. Como Vos ofendi? Estou ouvindo, Senhor. Ouvindo aquela vozinha baixa em meu coração.

 

E ela ouviu. Pôs seus dedos artríticos unidos sobre os olhos, inclinou-se ainda mais à frente e tentou ler sua mente. Mas tudo estava escuro lá, escuro como a sua pele, escuro como a terra lavrada que espera pela boa semente.

 

Por favor, meu Senhor, meu Senhor, por favor, meu Senhor...

 

Mas a imagem que surgiu foi um solitário trecho de estrada de terra em meio a um mar de milho. Havia uma mulher com um saco de aniagem cheio de galinhas recém-abatidas. E as doninhas chegaram. Elas dispararam à frente e fizeram investidas contra o saco. Podiam sentir o cheiro de sangue - o velho sangue do pecado e o sangue fresco do sacrifício. Ela ouviu a velha erguer a voz para Deus, mas seu tom era débil e gemente, uma voz petulante, não implorando humildemente que fosse feita a vontade de Deus, qualquer que pudesse ser o lugar dela no esquema das coisas daquela vontade, mas exigindo que Deus a salvasse, de modo que pudesse concluir o trabalho... o seu trabalho... como se ela conhecesse a Mente de Deus e pudesse subordinar Sua vontade à dela. As doninhas ficaram mais ousadas ainda; o saco de aniagem começou a se esfrangalhar à medida que elas o mordiam e puxavam. Seus dedos estavam muito velhos, fracos demais. E quando as galinhas acabassem, as doninhas ainda estariam famintas e investiriam contra ela. Sim. Elas iriam...

 

E depois as doninhas foram dispersadas, tinham corrido guinchando para a noite, abandonando o conteúdo do saco semidevorado, e ela pensou, exultante: Deus me salvou, afinal! Louvado seja Seu Nome! Deus salvou Sua boa e fiel serva.

 

Não foi Deus, velha. Fui eu.

 

Na sua visão, ela virou-se, o medo saltando candente na sua garganta com um gosto semelhante a cobre novo. E lá, abrindo seu caminho para fora do milharal como um esfarrapado fantasma prateado, estava um enorme lobo cinzento das montanhas Rochosas, suas mandíbulas abertas num riso sardônico, os olhos em fogo. Havia uma coleira de prata lavrada em volta de seu grosso pescoço, uma coisa de uma beleza agradável e bárbara, e dela oscilava uma pequena pedra de âmbar-negro... e no centro havia uma pequena fenda rubra, como um olho. Ou uma chave.

 

Ela se benzeu, fez o sinal contra o mau-olhado para esta pavorosa aparição, mas as mandíbulas do lobo apenas se alargaram mais, e entre elas sacudia-se o músculo rosado e nu da sua língua.

 

Estou vindo buscar você, Mãe. Não agora, mas em breve. Corremos atrás de você como os cães correm atrás dos cervos. Sou todas as coisas que imagina, porém ainda mais. Sou o homem que faz magia. Sou o homem que fala para os mais novos. Seu próprio povo me conhece melhor, Mãe. Ele me chama de João, o Conquistador.

 

Saia! Deixe-me em paz em nome do Deus Todo-Poderoso!

 

Mas ela estava tão aterrorizada! Não pelas pessoas ao seu redor, que no sonho eram representadas pelas galinhas no saco, mas por si mesma. Tinha medo na alma, temia por sua alma.

 

O seu Deus não tem poder sobre mim, Mãe. O vaso dele é fraco.

 

Não! Não é verdade! Minha força é a força de dez, eu me elevarei com asas, como as águias...

 

O lobo, no entanto, apenas sorriu e chegou mais perto. Ela se encolheu para evitar o hálito da fera, que era intenso e fétido. Este era o terror do meio-dia e o terror que surge á meia-noite, e ela estava com medo. Estava no ápice do medo. E o lobo, ainda sorridente, começou a falar em duas vozes, perguntando e respondendo a si mesmo.

 

- Quem extraiu água da rocha, quando estávamos sedentos?

 

- Fui eu - respondeu o lobo numa voz petulante, meio grasnada, meio enrouquecida.

 

- Quem nos salvou quando desfalecemos? - perguntou o lobo sorridente, seu focinho agora a centímetros dela, o hálito recendendo a um matadouro em pleno funcionamento.

 

- Fui eu - respondeu a voz uivante, chegando mais perto ainda, o focinho sorridente repleto de morte brutal, os olhos vermelhos e atrevidos. - Ah, fiquem de joelhos e louvem meu nome, sou o doador da água no deserto, louvem mm nome, sou o bom e fiel servo que leva a água ao deserto, e meu nome é também o nome de meu Mestre...

 

A boca do lobo arreganhou-se ao máximo para devorá-la.

 

- ...meu nome - murmurou ela. - Louvem o meu nome, louvem a Deus, do qual fluem todas as bênçãos, louvem o nome Dele, ó criaturas aqui de baixo...

 

Erguendo a cabeça, ela olhou em torno do quarto, numa espécie de estupor. Sua Bíblia tinha caído ao chão. A claridade do alvorecer surgia na janela que dava para o leste.

 

- Ah, meu Senhor! - gritou em voz alta e trêmula.

 

Quem extraiu água da rocha quando estávamos sedentos?

 

Seria isso? Santo Deus, seria isso? Seria por isso que as escamas tinham lhe coberto os olhos, tornando-a cega para as coisas que devia saber?

 

Lágrimas amargas começaram a cair de seus olhos e ela se pôs de pé, lenta e dolorosamente. Caminhou até a janela. A artrite fincava agulhas duras e afiadas nas juntas de suas coxas e joelhos.

 

Olhou para fora e soube o que tinha de fazer agora.

 

Retomou para junto do armário e puxou a camisola branca de algodão, por cima da cabeça. Deixou-a cair no chão. Agora estava nua, revelando um corpo tão franzido pelas rugas que poderia ter sido o leito do grande rio do tempo.

 

- Será feita Vossa vontade - disse e começou a vestir-se.

 

Uma hora mais tarde, ela caminhava lentamente pela Mapleton Avenue na direção dos desfiladeiros estreitos e emaranhados de vegetação, além da cidade.

 

Stu estava na usina elétrica com Nick, quando Glen chegou precipitadamente. Sem mais rodeios, ele soltou a bomba:

 

- Mãe Abagail. Ela desapareceu.

 

Nick olhou bruscamente para ele.

 

- Do que está falando? - perguntou Stu, ao mesmo tempo afastando Glen para longe da turma que enrolava fio de cobre em uma das turbinas queimadas.

 

Glen assentiu. Percorrera de bicicleta os 8 quilômetros até ali e ainda estava sem fôlego.

 

- Fui procurá-la para falar-lhe um pouco sobre a reunião da noite passada, e para rodar a fita, se ela quisesse ouvir. Queria saber a opinião dela a respeito de Tom, porque me sentia incomodado com toda essa ideia... a opinião de Frannie meio que atuou sobre mim nas horas mortas, acho. Queria estar lá, bem, porque Ralph disse que há mais dois grupos chegando hoje, e você sabe como ela gosta de recepcioná-los. Cheguei lá por volta de oito e meia. Ela não atendeu à minha batida, então entrei. Pensei em encontrá-la dormindo e simplesmente iria embora... mas quis me certificar de que não estava... se não tinha morrido ou sofrido qualquer coisa... afinal, na idade dela...

 

O olhar de Nick não se afastava dos lábios de Glen.

 

- Só sei que ela não estava lá. E encontrei isto em seu travesseiro. - Glen estendeu-lhe uma toalha de papel. Nela estava escrita em garranchos grandes e trêmulos a seguinte mensagem:

 

Preciso me afastar por algum tempo exatamente agora. Pequei e me gabei de conhecer a Mente de Deus. Meu pecado foi o ORGULHO, e Ele quer que eu encontre meu lugar em Sua obra novamente.

 

Logo estarei com vocês, ser for a vontade de Deus.

 

Abby Freemantle

 

- Puta que pariu - disse Stu. - O que faremos agora? O que acha, Nick?

 

Nick pegou o bilhete e leu de novo. Devolveu-o a Glen. A fúria havia sumido de seu rosto e ele apenas parecia triste.

 

- Acho que precisamos antecipar aquela assembleia para esta noite - sugeriu Glen.

 

Nick sacudiu a cabeça. Pegou seu bloco, escreveu, destacou a folha e entregou-a para Glen. Stu leu por cima do ombro dele.

 

"O homem põe e Deus dispõe. Mãe Abagail gostava de falar isto, costumava citar com frequência. Glen, você mesmo disse que ela era dirigida por algo mais: Deus, a mente dela, seus delírios, seja o que for. O que fazer? Ela se foi. Não podemos alterar isto."

 

- Mas o tumulto... - começou Stu.

 

- Claro, vai haver tumulto - disse Glen. - Nick, não deveríamos, pelo menos, reunir o comitê para debater isto?

 

Nick escreveu:

 

"Para quê? Por que fazermos uma reunião que não vai resolver nada?"

 

- Bem, poderíamos formar um grupo de busca. Ela não deve ter ido muito longe. Nick fez um círculo duplo em tomo da frase O homem põe e Deus dispõe. Mais abaixo, escreveu: "Se a encontrarem, como vão trazê-la? Acorrentada?"

 

- Santo Deus, não! - exclamou Stu. - Mas não podemos deixá-la vagando por aí, Nick! Ela enfiou na cabeça a ideia louca de que ofendeu a Deus. E se achar que tem de se internar no deserto, como algum cara do Velho Testamento?

 

Nick escreveu: "Tenho quase certeza de que foi exatamente o que ela fez."

 

- Ora, deixe disso!

 

Glen pôs a mão no braço de Stu.

 

- Baixe o facho um minuto, Texano Oriental. Vamos analisar as implicações disso.

 

- Que se danem as implicações! Não vejo qualquer implicação em se deixar uma mulher idosa andar por aí a esmo, dia e noite, até morrer abandonada às intempéries!

 

- Ela não é uma velha qualquer! Ela é Mãe Abagail, e por aqui era considerada o próprio papa! Se o próprio papa decidir que tem de ir a pé até Jerusalém, você discutiria com ele, se é um católico praticante?

 

- Droga, não é a mesma coisa e você sabe muito bem!

 

- É a mesma coisa, sim! É. Pelo menos o povo da Zona Franca vai entender assim. Stu, você pode afirmar, com certeza, que Deus não disse a ela que se internasse nos ermos?

 

- Nã-ão... mas...

 

Nick estivera escrevendo e então mostrou o papel a Stu, o qual ficou perplexo com algumas das palavras. A caligrafia de Nick geralmente era impecável, mas agora parecia apressada, quase impaciente:

 

"Stu, isto não muda nada, exceto que provavelmente afetará o moral da Zona Franca. Talvez nem mesmo afete. As pessoas não irão se dispersar apenas porque ela está ausente. Isto significa que não precisamos contar em nossos planos com ela, pelo menos já. Talvez seja melhor assim."

 

- Vou enlouquecer! - exclamou Stu. - Às vezes falamos dela como um obstáculo a ser contornado, como se fosse um bloqueio de estrada. Outras vezes, vocês se referem a Mãe Abagail como se fosse o papa, que não poderia fazer nada de errado, mesmo querendo. Pois acontece que gosto dela! O que pretende, Nick? Que alguém tropece no cadáver dela neste outono, num daqueles desfiladeiros apertados a oeste da cidade? Quer que a deixemos lá, para que se transforme em um... banquete sagrado para os corvos?

 

- Stu - disse Glen gentilmente. - Foi ela quem tomou a decisão.

 

- Ah, droga, que confusão! - disse Stu.

 

Ao meio-dia, a notícia do desaparecimento de Mãe Abagail já se espalhara pela comunidade. Conforme previsto por Nick, a sensação geral foi mais de dolorosa resignação do que de alarme. A comunidade achava que ela devia ter-se ausentado a fim de "orar por orientação" para ajudá-los a escolher o caminho certo a seguir na assembleia geral do dia 18.

 

- Não quero blasfemar chamando-a de Deus - disse Glen durante um rápido almoço no parque -, mas ela é uma espécie de Deus-por-procuração. Pode-se medir a força da crença de qualquer sociedade observando o quanto essa fé enfraquece, quando seu objetivo empírico é removido.

 

- Assino embaixo, de novo.

 

- Quando Moisés sacrificou o bezerro de ouro, os israelitas pararam de adorá-lo. Quando uma enchente inundou o templo de Baal, os malaquitas decidiram que Baal não era um deus com essa bola toda. Mas Jesus saiu para o almoço por 2 mil anos, e as pessoas não só continuavam seguindo seus ensinamentos, como viveram e morreram acreditando que ele finalmente voltaria, e foi a coisa mais simples quando voltou. É assim que a Zona Franca se sente em relação à Mãe Abagail. Essas pessoas estão perfeitamente certas de que ela vai voltar. Já falou com elas?

 

- Falei - disse Stu. - E não posso acreditar. Há uma velha perambulando por aí e todos dizem que está bem. Eu gostaria de saber se ela trará os Dez Mandamentos em lousas de pedra, a tempo para a assembleia.

 

- Talvez ela o faça - disse Glen gravemente. - De qualquer modo, nem todos estão dizendo "Está bem". Ralph está praticamente arrancando os cabelos.

 

- Ótimo para Ralph. - Stu encarou Glen. - E quanto a você, careca? Onde se situa em tudo isso?

 

- Gostaria que não me chamasse assim. Não me dignifica em nada. No entanto, lhe direi que chega a ser um tanto engraçado. O velho Texano Oriental parece mais imune ao Evangelho que ela semeou nesta comunidade do que o velho e agnóstico urso sociólogo. Acho que ela voltará. Sei lá como, mas é o que acho. O que Frannie pensa a respeito?

 

- Não sei. Não a vi durante toda a manhã. Que me conste, deve estar por aí comendo gafanhotos e mel silvestre com Mãe Abagail. - Stu contemplou as Flatirons, erguendo-se muito alto à brisa azulada do início de tarde. - Céus, Glen, só espero que a velha senhora esteja bem.

 

Fran nem sequer sabia do desaparecimento de Mãe Abagail. Passara a manhã na biblioteca, lendo sobre jardinagem. Não foi a única pesquisadora. Viu duas ou três pessoas com livros sobre agricultura, um rapaz de óculos com cerca de 25 anos debruçado sobre um livro chamado Sete Fontes Independentes de Energia para o seu Lar, e uma bela lourinha de seus 14 anos às voltas com uma surrada brochura intitulada 600 Receitas Simples.

 

Saiu da biblioteca por volta do meio-dia e desceu a Walnut Street. A meio caminho de casa encontrou Shirley Hammet, a mulher mais velha que viajara com Dayna, Susan e Patty Kroger. A melhora de Shirley fora impressionante desde então. Agora parecia uma alegre e simpática matrona circulando pela cidade.

 

Ela parou e cumprimentou Fran.

 

- Quando acha que ela vai voltar? Estive perguntando a todo mundo. Se essa cidade tivesse um jornal, eu escreveria para a seção Cartas dos Leitores. Por exemplo: "O que acha da posição do senador Bunghole sobre a escassez de combustível?" Mais ou menos assim.

 

- Quando e quem vai voltar?

 

- Mãe Abagail, é claro. Por onde tem andado, menina?

 

- Afinal do que se trata? - perguntou Frannie, alarmada. - O que aconteceu?

 

- Simplesmente que ninguém sabe ao certo. - E Shirley então lhe contou o que acontecera enquanto Fran estivera na biblioteca.

 

- Quer dizer... que ela se foi? - perguntou Frannie, franzindo o cenho.

 

- Sim. Mas é claro que ela voltará - acrescentou Shirley confidencialmente. - Assim dizia o bilhete.

 

- Que era a vontade de Deus?

 

- Isto é só uma maneira de dizer, tenho certeza - replicou Shirley e olhou para Fran com certa frieza.

 

- Bem... assim espero. Obrigada por me contar, Shirley. Ainda está tendo dores de cabeça?

 

- Ah, não. Elas acabaram. Estarei votando em você, Fran.

 

- Hã? - Sua mente estava distante, em busca de novas informações, e por um momento não teve a menor ideia do que Shirley poderia estar falando.

 

- Para o comitê permanente!

 

- Ah, sim, obrigada. Nem mesmo sei se vou aceitar o cargo.

 

- Você será ótima. Você e Susy. Vá em frente, Fran. A gente se vê.

 

Despediram-se e Fran se apressou de volta ao apartamento, querendo ver se Stu sabia de mais alguma coisa. Acontecendo tão logo após sua reunião da noite passada, o desaparecimento da velha senhora bateu em seu coração como uma espécie de medo supersticioso. Não gostava da impossibilidade de comunicarem a Mãe Abagail suas decisões principais - como aquela de enviar gente para o oeste -, para que ela opinasse a respeito. Com sua partida, Fran sentia que a responsabilidade cairia sobre seus próprios ombros.

 

Chegando em casa, encontrou-a vazia. Por 15 minutos deixara de encontrar Stu. O bilhete debaixo do açucareiro dizia: "Estarei de volta às nove e meia. Estou com Ralph e Harold. Não se preocupe. Stu."

 

Ralph e Harold?, pensou e sentiu uma súbita pontada de medo que nada tinha a ver com Mãe Abagail. Ora, por que deveria recear por Stu? Meu Deus, se Harold tentasse alguma coisa... bem, fizesse alguma graça... Stu o partiria ao meio. A não ser... a não ser que Harold o pegasse à traição ou algo assim, e...

 

Fran apertou os cotovelos, sentindo frio, e imaginou o que Stu poderia estar fazendo com Ralph e Harold.

 

Volto às nove e meia.

 

Meu Deus, parecia tempo demais.

 

Ela ficou na cozinha por mais um momento, olhando para a sua mochila, que colocara sobre a bancada.

 

Estou com Ralph e Harold.

 

Portanto a pequena casa que Harold habitava na Arapahoe estaria deserta até às nove e meia daquela noite. A não ser, é claro, que eles estivessem lá. E se estivessem, ela poderia juntar-se a eles e satisfazer sua curiosidade. Poderia pedalar até lá rapidamente. Se não encontrasse ninguém lá, poderia descobrir algo que tranquilizaria sua mente... ou... mas não se permitiria pensar a respeito.

 

Tranquilizar sua mente?, atiçou a voz interior. Ou simplesmente deixá-la mais louca? Suponhamos que você DESCUBRA alguma coisa fora do comum. E aí? O que fará sobre isso?

 

Ela não sabia. De fato, não tinha sequer o mais leve vislumbre de uma ideia.

 

Não se preocupe. Stu.

 

Mas havia preocupação. Aquela impressão digital no seu diário era indício de preocupação. Porque um homem capaz de roubar o diário de alguém e imiscuir-se nos seus pensamentos é um homem sem muitos princípios ou escrúpulos. Um homem assim pode esgueirar-se por trás de alguém a quem odeia e empurrá-lo de uma elevação. Ou usar uma pedra. Ou uma faca. Ou uma pistola.

 

Não se preocupe. Stu.

 

Porém, se Harold fizesse tal coisa, seria o seu fim em Boulder. O que poderia fazer, então?

 

Fran não sabia. Não sabia se Harold era do tipo de homem que fantasiara - ainda não, claro -, mas, no fundo do coração, sabia da existência de um lugar para gente assim. Ah, sabia realmente.

 

Colocou a mochila às costas em gestos rápidos e nervosos e caminhou para a porta. Três minutos mais tarde, pedalava pela Broadway em direção à Arapahoe ao radioso sol da tarde, pensando: Eles devem estar na sala de Harold, bebendo café, falando sobre Mãe Abagail, e tudo estará numa boa.

 

Mas a casinha de Harold estava escura, deserta... e fechada.

 

Tal fato em si era uma espécie de fenômeno em Boulder. Nos velhos tempos a casa ficaria trancada na ausência dos moradores, para ninguém entrar e roubar a televisão, o estéreo ou as jóias da esposa do proprietário. Agora, no entanto, estéreos e aparelhos de TV eram de graça, embora de nada servissem sem energia elétrica. Quanto às jóias, qualquer um poderia ir a Denver e recolher um saco delas, a qualquer momento.

 

Por que trancou sua porta, Harold, quando não há nada para ser roubado? Será que é porque ninguém teme tanto ser roubado quanto um ladrão? Será por isso?

 

Ela não era do tipo que espiava pelo buraco de fechadura. Já se resignara a ir embora quando lhe ocorreu tentar as janelas do porão. Ficavam logo acima do nível do solo, opacas de sujeira. A primeira que experimentou deslizou relutantemente no trilho, deixando cair terra no piso do porão.

 

Fran olhou em torno, porém o mundo estava quieto. Ninguém exceto Harold optara por morar tão longe, na Arapahoe, por enquanto. O que também era estranho. Harold podia sorrir até rachar as faces, dar tapinhas nas costas dos outros e passar parte do dia em convívio com as pessoas, oferecer ajuda de bom grado sempre que solicitado - às vezes até quando não solicitado. Na verdade, era altamente conceituado em Boulder. Só que o lugar que escolhera para morar... bem, isso já era outra coisa, não? Isso exibia um aspecto levemente diferente de como Harold via a sociedade e seu lugar dentro dela... talvez. Ou talvez ele simplesmente gostasse da quietude.

 

Fran introduziu-se pela janela, sujando a blusa, e caiu no chão, lá dentro. Agora a janela do porão estava ao nível dos seus olhos. Não era mais ginasta do que abelhuda, e teria que subir em alguma coisa para poder sair dali.

 

Olhou em torno. O porão havia sido adaptado como área de brinquedos e jogos. O tipo de coisa de que seu pai sempre falava mas que nunca tinha feito, pensou com uma leve pontada de tristeza. As paredes eram de pinho nodoso, com alto-falantes quadrifônicos embutidos. O teto era rebaixado e havia uma grande estante repleta de jogos de quebra-cabeça e livros, um trem elétrico, um jogo eletrônico de corridas de carros. Havia também um jogo pneumático de hóquei, sobre o qual Harold pusera indiferentemente uma embalagem de Coca. Ali havia sido o recanto das crianças, com pôsteres pregados às paredes - o maior mostrando o presidente George Bush saindo de uma igreja no Harlem, as mãos erguidas bem alto, ostentando um amplo sorriso. Em enormes letras vermelhas, a legenda dizia: VOCÊ NÃO VAI QUERER IMPINGIR NENHUM BOOGIE-WOOGIE AO REI DO ROCK AND ROLL!

 

De repente, ela sentiu mais tristeza do que sentira desde... bem, desde que não podia se lembrar, para falar a verdade. Atravessara fases de choques, medo e profundo terror, e um pesar que era uma total selvageria complacente, mas aquela tristeza funda e dolorosa era algo novo. Com ela veio uma súbita onda de saudade de Ogunquit, do oceano, das boas montanhas e pinheiros do Maine. Sem nenhuma razão, afinal, ela de súbito pensou em Gus, o atendente do estacionamento praiano de Ogunquit, e por um momento pensou que seu coração se partiria de pesar e tristeza. O que fazia ali, imprensada entre as planícies e as montanhas que dividiam o país em dois? Ali não era o seu lugar. Não pertencia àquela região.

 

Um soluço escapou-lhe e soou tão aterrorizado e solitário que ela tapou a boca com as mãos pela segunda vez neste dia. Já chega, Frannie, menininha boba. Você não pode superar com demasiada rapidez uma coisa de tal magnitude. Um pouco de cada vez. Se tiver que chorar, chore mais tarde, não aqui no porão de Harold Lauder. A obrigação em primeiro lugar.

 

Passou pelo pôster a caminho das escadas e um sorrisinho amargo repuxou-lhe o rosto ao passar pela expressão incansavelmente sorridente e calorosa de George Bush. Eles certamente lhe impingiram um pouco de boogie-woogie, ela pensou. Alguém o fez, seja como for.

 

Quando chegou ao alto das escadas do porão, teve certeza de que a porta estaria trancada, mas abriu-a facilmente. A cozinha estava imaculadamente limpa, a louça do almoço lavada e secando no escorredor, o pequeno fogareiro a gás lavado e reluzente... mas ainda pairava no ar um cheiro gorduroso de fritura, como um fantasma do Harold de antigamente, o Harold que se havia apresentado nesta parte de sua vida entrando na casa dela ao volante do Cadillac de Roy Brannigan, enquanto ela sepultava o pai.

 

Certamente seria muita falta de sorte se Harold escolhesse este exato momento para voltar, pensou. O pensamento a fez olhar de repente por sobre o ombro. Meio que esperava ver Harold parado à porta que levava à sala de estar, sorrindo para ela. Não havia ninguém ali, mas seu coração começara a bater desagradavelmente contra a caixa torácica.

 

Não havia nada na cozinha, então ela passou para a sala de estar.

 

Estava tão escuro ali que a deixou inquieta. Harold não apenas trancava as portas, como também baixava as persianas. Mais uma vez ela sentiu como se estivesse testemunhando uma manifestação exterior inconsciente da personalidade de Harold. Por que alguém manteria suas persianas baixas numa pequena cidade onde era desse modo que os vivos vinham a saber e marcavam as casas dos mortos?

 

A sala de estar, como a cozinha, estava caprichosamente limpa, mas a mobília era antiga e um pouco surrada. O detalhe mais bonito do cômodo era a lareira, uma enorme obra em pedra, tendo à frente uma cornija grande o bastante para alguém sentar. Ela sentou-se ali por um instante, olhando em volta pensativamente. Ao mexer o corpo, sentiu uma laje solta sob o traseiro. Ia levantar-se para examiná-la quando alguém bateu à porta.

 

O medo desabou sobre ela como um peso sufocante de penas. Um súbito terror paralisou-a. Sua respiração cessou e só mais tarde percebeu que havia urinado um pouco.

 

A batida se repetiu, uma meia dúzia de pancadas firmes e rápidas.

 

Meu Deus, pensou. Pelo menos as persianas estão baixadas, graças aos céus por isso.

 

Tal pensamento foi seguido por uma súbita e fria certeza de que deixara sua bicicleta lá fora, onde qualquer um podia vê-la. Deixara mesmo? Tentou pensar desesperadamente, mas por um longo momento nada recordou senão um balbucio de tolices inquietantemente familiares: Antes de removeres o cisco do olho do próximo, tira a tora do teu...

 

A batida soou de novo, junto com uma voz de mulher:

 

- Alguém em casa?

 

Fran ficou absolutamente imóvel. De repente lembrou que estacionara a bicicleta nos fundos, debaixo do varal de roupas de Harold, não visível da frente da casa. Mas se a visitante decidisse experimentar a porta dos fundos...

 

A maçaneta da porta da frente - Frannie podia vê-la através do pequeno vestíbulo - começou a girar para diante e para trás em frustrados semicírculos.

 

Seja ela quem for, espero que, como eu, não tenha o hábito de espiar pelo buraco da fechadura, pensou Frannie e depois teve de apertar as duas mãos sobre a boca para conter um insano acesso de riso. Foi então que baixou os olhos para os shorts de algodão e viu até que ponto havia se assustado. Pelo menos não me caguei de medo, pensou. Até agora, não. O riso borbulhou de novo, histérico e amedrontado, logo abaixo da superfície.

 

Então, com indescritível sensação de alívio, ela ouviu pisadas se afastando da porta e descendo o caminho cimentado do jardim de Harold.

 

O que Fran fez a seguir foi por um impulso inconsciente. Correu silenciosamente até o vestíbulo onde ficava a porta da frente e colou um olho na pequena fenda entre a persiana e a borda da janela. Viu uma mulher com cabelo escuro comprido raiado de branco. Ela subiu numa pequena motoneta Vespa que estava estacionada no meio-fio. Quando o motor ganhou vida, ela jogou os cabelos para trás e o prendeu com grampos.

 

É a tal Nadine Cross - aquela que chegou com Larry Underwood! Será que conhece Harold?

 

Então Nadine ligou a motoneta, deu partida com um pequeno solavanco e logo sumiu de vista. Fran soltou um longo suspiro e suas pernas ficaram bambas. Abriu a boca para soltar a gargalhada que estivera borbulhando sob a superfície, já sabendo como soaria - trêmula e aliviada. Mas em vez disso irrompeu em lágrimas.

 

Cinco minutos depois, nervosa demais para continuar qualquer busca, esforçava-se em passar pela janelinha do porão, trepada numa cadeira de vime que puxara para perto. Uma vez do lado de fora, conseguiu empurrar a cadeira até uma distância suficiente para ninguém perceber que fora usada como meio de fuga. Ainda estava fora da posição original, mas as pessoas raramente notavam tais coisas... e nem mesmo parecia que Harold frequentasse o porão, exceto para estocar Coca-Cola.

 

Recolocou a janela no lugar e caminhou para sua bicicleta. Ainda se sentia fraca e aturdida e um pouco nauseada com o susto. Pelo menos, meus shorts estão secando, pensou. Na próxima vez que invadir uma casa, Frances Rebecca, lembre-se de usar suas calcinhas impermeáveis.

 

Pedalou para fora do pátio de Harold e deixou a Arapahoe Street o mais rápido que pôde, chegando ao centro da cidade pelo Canyon Boulevard. Quinze minutos depois, entrava em seu apartamento.

 

O lugar estava em completo silêncio.

 

Ela abriu seu diário, olhou para a impressão digital de chocolate e se perguntou onde estaria Stu.

 

Especulou se Harold estaria com ele.

 

Ah, Stu, volte para casa, por favor, preciso de você.

 

Depois do almoço, Stu se despedira de Glen e voltara para casa. Ficara sentado na sala de estar, alheado, imaginando onde estaria Mãe Abagail e também perguntando-se se Nick e Glen não teriam razão em deixar tudo como estava. Então, bateram à porta.

 

- Stu! - chamou Ralph Brentner. - Ei, Stu, você está em casa?

 

Harold Lauder o acompanhava. O sorriso de Harold estava fora do ar hoje. mas não desaparecera de todo; ele parecia um cordial pranteador tentando ficar sério para a cerimônia de sepultamento.

 

Perturbado pelo desaparecimento de Mãe Abagail, Ralph encontrara Harold meia hora atrás, voltando para casa após ter ajudado um grupo que recolhia água no riacho Boulder. Ralph apreciava Harold, que sempre parecia encontrar tempo para ouvir e ser solidário com qualquer um que tivesse uma história triste para contar... sem dar a impressão de querer algo em troca. Ralph soltara toda a história do desaparecimento de Mãe Abagail, incluindo seus temores de que ela sofresse um ataque cardíaco ou fraturasse um dos seus frágeis ossos, isto se não morresse por passar a noite ao relento.

 

- E você sabe que aqui chove a cada maldito fim de tarde - encerrou Ralph enquanto Stu fazia café. - Se ela ficar encharcada, certamente pegará um resfriado. E depois? Pneumonia, acho.

 

- O que podemos fazer a respeito? - perguntou-lhes Stu. - Não podemos forçá-la a voltar, se ela não quiser.

 

- Bem, claro que não - concordou Ralph. - Mas Harold teve uma ideia muito boa.

 

Stu desviou o olhar para ele.

 

- Como vai indo, Harold?

 

- Muito bem. E você?

 

- Ótimo.

 

- E Fran? Tem cuidado bem dela? - Os olhos de Harold não abandonavam os de Stu, mantendo-se levemente jocosos, com um brilho agradável, mas Stu teve uma sensação momentânea de que aquele olhar sorridente era como o sol no charco da pedreira de Brakeman, na sua terra natal, a água parecia muito atraente, mas descia a profundidades que o sol nunca alcançava, e quatro meninos haviam perdido a vida ao longo dos anos naquele lugar que todos consideravam tão aprazível.

 

- O melhor que posso - respondeu. - Qual é a sua ideia, Harold?

 

- Bem, olhe, eu apóio o ponto de vista de Nick. E o de Glen também. Eles reconhecem que a Zona Franca vê Mãe Abagail como um símbolo teocrático... e pode-se dizer que eles estão agora qualificados a falar pela Zona, não estão?

 

Stu sorveu um gole de café.

 

- O que quer dizer com "símbolo teocrático"?

 

- Eu chamaria de um símbolo terreno de uma aliança feita com Deus - disse Harold, e seus olhos ficaram levemente velados. - Como a Santa Comunhão ou as vacas sagradas da índia.

 

Stu inflamou-se um pouco ao ouvi-lo.

 

- É, muito bom. Essas vacas... lá na Índia deixam que elas perambulem pelas ruas, atravancando o trânsito, certo? Elas podem entrar e sair das lojas, bem como ir embora da cidade.

 

- Isso mesmo - concordou Harold. - No entanto, a maioria dessas vacas é doente, Stu. Estão sempre à beira da inanição. Algumas são tuberculosas. E tudo porque são um símbolo agregado. As pessoas convenceram-se de que Deus cuidará delas, da mesma forma como a nossa gente convenceu-se de que Deus cuidará de Mãe Abagail. Mas tenho minhas dúvidas sobre um Deus que diz ser certo deixar uma pobre vaca idiota vagar por aí em sofrimento.

 

Ralph pareceu momentaneamente desconcertado e Stu adivinhava o que ele sentia. Era o que ele também sentia, e isto lhe dava uma medida de seus sentimentos em relação a Mãe Abagail. Achava que Harold estava beirando a blasfêmia.

 

- Seja como for - disse Harold prontamente, descartando as vacas sagradas da Índia -, não podemos alterar a maneira como as pessoas se sentem em relação a ela...

 

- E nem desejamos - acrescentou Ralph rapidamente.

 

- Certo! - exclamou Harold. - Afinal, foi ela quem nos reuniu, e não exatamente por onda curta, tampouco. Minha ideia é que montemos em nossas motos e passemos a tarde fazendo um reconhecimento do lado oeste de Boulder. Se permanecermos razoavelmente próximos uns dos outros, manteremos contato por walkie-talkie.

 

Stu assentiu. Era o tipo de coisa que ele queria fazer o tempo todo. Vacas sagradas ou não, Deus ou não, simplesmente não era certo deixar Mãe Abagail perambular sozinha pelos arredores. Aquilo nada tinha a ver com religião; algo assim era apenas negligência insensível.

 

- E se a encontramos - disse Harold -, poderemos perguntar-lhe se precisa de alguma coisa.

 

- Como uma carona de volta à cidade - sugeriu Ralph.

 

- Pelo menos poderemos monitorá-la - completou Harold.

 

- Tudo bem - disse Stu. - Acho que é uma ideia danada de boa. Deixe-me apenas escrever um bilhete para Fran.

 

Mas enquanto ele garatujava o bilhete, continuou sentindo uma ânsia de olhar por cima do ombro para Harold - para ver o que Harold estava fazendo às suas costas e qual a expressão que tinha nos olhos.

 

Harold tinha pedido e obtido o trecho sinuoso de estrada entre Boulder e Nederland, porque o considerava a área menos provável. Achava que se nem ele conseguiria caminhar de Boulder a Nederland em um dia, muito menos aquela velha caduca. No entanto, seria um passeio agradável e lhe daria tempo para meditar.

 

Agora, faltando 15 para as sete, decidiu regressar. A Honda estava estacionada em uma área de descanso e ele sentava a uma mesa de piquenique, tomando uma Coca e comendo biscoitos. O walkie-talkie que pendia do guidom da moto, com sua antena esticada ao máximo, crepitou fracamente. Era Ralph Brentner. Eles só tinham rádios de curto alcance, e Ralph estava em algum lugar no alto da montanha Flagstaff.

 

- ...Anfiteatro Aurora... nem sinal dela... a chuvarada já acabou por aqui.

 

Depois a voz de Stu, mais forte e mais próxima. Estava no parque Chautauqua, a apenas 6 quilômetros da posição de Harold:

 

- Repita, Ralph.

 

A voz de Ralph soou novamente, na verdade gritando. Talvez ele acabasse tendo um enfarte, uma bela maneira de encerrar o dia.

 

- Nem sinal dela por aqui! Estou descendo, antes que escureça! Câmbio!

 

- Dez-quatro - disse Stu, soando desanimado. - Harold, está ouvindo? - Harold levantou-se, limpando as mãos sujas de biscoito nos lados dos jeans. - Harold? Chamando Harold Lauder! Está na escuta, Harold?

 

Harold estirou o dedo médio - o dedo-vá-se-foder, como chamavam aqueles trogloditas lá no ginásio de Ogunquit - para o walkie-talkie, a seguir apertou o botão e respondeu em voz agradável, mas com a nota exata de desencorajamento:

 

- Estou na escuta. Tinha me afastado um pouco... pensei ter visto alguma coisa na vala do acostamento. Era só uma jaqueta velha. Câmbio.

 

- Sim, OK. Por que não desce para o Chautauqua, Harold? Esperaremos aqui por Ralph.

 

Gosta de dar ordens, hein, seu escroto? Talvez eu tenha algo reservado para você. Sim, talvez tenha mesmo.

 

- Harold, está na escuta?

 

- Sim, desculpe, estava distraído. Posso chegar aí em 15 minutos.

 

- Está na escuta, Ralph? - berrou Stu, fazendo Harold pestanejar. Ele tornou a fazer o gesto obsceno com o dedo, sorrindo furtivamente enquanto isso. Aqui pra você, seu filho-da-puta do Oeste Selvagem.

 

- Entendido. Vocês estarão no parque Chautauqua - soou debilmente a voz de Ralph em meio à estática. - Estou a caminho. Câmbio e desligo.

 

- Estou a caminho também - disse Harold. - Câmbio e desligo.

 

Ele desligou o walkie-talkie, embutiu a antena e tomou a pendurá-lo no guidom. Mas ficou sentado na moto por um instante, sem dar partida no motor. Estava usando uma japona de excedentes do Exército. O forte acolchoamento era confortável quando se pilotava uma moto acima de 1.800 metros de altitude, mesmo no verão. Mas a japona servia a outro propósito. Possuía vários bolsos enormes, e num deles estava um Smith & Wesson .38. Harold pegou a arma e a fez girar várias vezes nas palmas das mãos. Estava plenamente carregada e pesava nas suas mãos, como se o revólver percebesse que seus propósitos eram graves: morte, destruição, assassinato.

 

Esta noite?

 

Por que não?

 

Iniciara essa expedição na esperança de que pudesse ficar a sós com Stu pelo tempo suficiente de fazer aquilo. Agora parecia que ia ter essa chance no parque Chautauqua em menos de 15 minutos. Mas a viagem servira também a outro propósito.

 

Não pretendera fazer todo o trajeto até Nederland, uma cidadezinha miserável aninhada muito acima de Boulder, uma cidade cuja única reivindicação à fama era o fato de que Patty Hearst tinha permanecido lá durante seus tempos de fugitiva. Entretanto, à medida que ia subindo, com a Honda ronronando suavemente entre suas pernas, o ar tão frio como a lâmina de uma navalha cega contra seu rosto, algo acontecera.

 

Se você colocar um ímã na ponta de uma mesa e um pedaço de aço na outra, nada acontece. Se você mover o aço para mais perto do ímã aos poucos (ele manteve essa imagem na mente por um instante, saboreando-a, lembrando a si mesmo de anotar isto no seu diário quando o pegasse esta noite), virá uma hora em que o empurrãozinho que dá no pedaço de aço parece impeli-lo mais longe do que deveria. O aço pára, mas parece fazer isto com tanta relutância como se ganhando vida, e parte de sua vivacidade é um ressentimento da lei da física que se refere à inércia. Com mais um empurrãozinho ou dois, você pode quase - ou talvez até realmente - ver o aço tremendo na mesa, parecendo dançar e vibrar levemente, como um daqueles feijões saltadores mexicanos que se pode comprar em lojas de produtos exóticos, aqueles que parecem como nós de madeira, mas na verdade têm uma larva viva no seu interior. Mais um empurrão e o equilíbrio entre fricção/inércia e a atração do ímã começa a agir de outro modo. O pedaço de aço, inteiramente vivo agora, move-se por conta própria, cada vez mais rápido, até que finalmente beija o ímã e fica grudado nele.

 

Um horrível e fascinante processo.

 

Quando o mundo terminou, em junho último, a força do magnetismo ainda não tinha sido compreendida, embora Harold achasse (sua mente nunca tivera uma tendência racional científica) que os físicos que estudavam tais coisas pensassem que estavam intimamente entrelaçadas com o fenômeno da gravidade, e essa gravidade era a pedra angular do universo.

 

Em seu caminho para Nederland, seguindo para oeste, subindo, sentindo o ar ficar mais frio, vendo nuvens de trovoadas lentamente se avolumando em volta dos mais altos picos muito além de Nederland, Harold havia sentido esse processo começar em si mesmo. Ele estava se aproximando do ponto de equilíbrio... e não muito além disso ele alcançaria o ponto de mudança. Ele era o pedaço de aço a apenas aquela distância do ímã em que um pequeno empurrão o envia mais longe do que a força conferida faria sob circunstâncias mais comuns. Ele podia sentir a dança em si mesmo.

 

Era a coisa mais próxima a uma experiência sagrada que ele já tivera. O jovem rejeita o sagrado, porque aceitar isso significa aceitar a morte final de todos os objetos empíricos, e Harold também rejeitava isso. A velha era uma espécie de psíquica, tinham-lhe dito, e assim também era Flagg, o homem escuro. Eles eram estações de rádio em carne e osso, nada mais que isso. Seu poder real se apoiaria em sociedades que se aglutinavam em torno de sinais, que eram tão diferentes um do outro. Assim ele tinha pensado.

 

Mas montado na sua moto no final da esburacada rua principal de Nederland, com a luz neutra da Honda reluzindo como um olho de gato, ouvindo o gemido invernal do vento nos pinheiros e abetos, ele tinha feito algo mais do que mera atração magnética. Experimentara uma força estupenda e irracional que vinha do oeste, uma atração tão grande que, se a contemplasse mais atentamente, ficaria louco. Ele sabia que, caso se aventurasse muito longe do braço da balança, qualquer vontade própria seria anulada. Ele ficaria exatamente como estava agora, de mãos vazias.

 

E por isso, embora não tivesse culpa, o homem escuro o mataria.

 

Assim, ele voltou atrás, sentindo o frio alívio do pré-suicida que volta de um longo período de consideração sobre uma profunda queda no vazio. Mas ele podia ir esta noite, se quisesse. Sim, podia matar Redman com uma única bala disparada à queima-roupa. Depois era só controlar-se, ficar frio até que o caipira do Oklahoma chegasse. Outro disparo na têmpora. Ninguém se alarmaria com os estampidos; a caça era farta e muita gente se acostumara a abater os cervos que desciam para perambular na cidade.

 

Faltavam dez para as sete agora. Lá pelas sete e meia já teria dado cabo dos dois. Fran só daria o alarme lá pelas dez e meia ou mais. A esta altura ele já estaria bem longe, seguindo para oeste em sua Honda, tendo seu livro-razão na mochila. Mas nada disso aconteceria se continuasse ali sentado na moto, deixando o tempo passar.

 

A moto pegou à segunda tentativa. Era uma boa máquina. Harold sorriu. Ele positivamente irradiava contentamento. Começou a rodar para o parque Chautauqua.

 

O crepúsculo começava quando Stu ouviu a moto de Harold se aproximando do parque. Pouco depois viu o farol dianteiro da Honda brilhando intermitentemente entre as árvores que margeavam a íngreme alameda de subida. Depois avistou a cabeça de Harold enfiada no capacete, olhando à direita e à esquerda, procurando-o.

 

Stu, sentado na beira de uma pedra usada como churrasqueira, acenou e gritou. Após um minuto, Harold o viu, retribuiu o aceno, pondo a moto em segunda marcha.

 

Depois da tarde que os três haviam passado, Stu sentia-se bastante melhor em relação a Harold... melhor do que nunca estivera, de fato. A ideia dele fora excelente, embora não tivesse dado resultado. E Harold insistira em pegar a estrada de Nederland... devia ter passado um frio terrível apesar da pesada japona. Quando ele freou a moto, Stu viu que o sorriso perpétuo mais parecia uma careta; seu rosto estava tenso e muito pálido. Sem dúvida, decepcionado porque as buscas em nada resultaram, pensou Stu.

 

- Nada mesmo, hein? - ele perguntou a Harold, saltando entorpecidamente do alto da pedra de churrasco.

 

- Nadinha - disse Harold. O sorriso reapareceu, mas de modo mecânico, sem força, como um ricto. Seu rosto ainda parecia estranho e mortalmente pálido. Tinha as mãos enfiadas nos bolsos da japona.

 

- Não importa. Foi uma boa ideia. Por tudo que sei, a esta hora ela já deve ter voltado para casa. Se não voltou, podemos recomeçar a busca amanhã.

 

- Seria mais ou menos como procurar um cadáver.

 

Stu suspirou.

 

- Talvez... sim, talvez. Por que não volta para jantar comigo, Harold?

 

- O quê? - Harold pareceu encolher-se à claridade difusa sob as árvores. Seu sorriso parecia mais tenso do que nunca.

 

- Jantar - disse Stu pacientemente. - Olhe, Frannie também ficará satisfeita em revê-lo. Sem sacanagem. Ficará mesmo.

 

- Bem, talvez - disse Harold, ainda parecendo desconfortável. - Só que eu... bem, tive uma queda por ela, você sabe. Talvez seja melhor se nós... hã... deixássemos passar um tempo. Não é nada pessoal. Sei que vocês dois estão indo muito bem juntos. - Seu sorriso brilhou com renovada sinceridade. Era infeccioso; e Stu retribuiu.

 

- Você é quem sabe, Harold. Mas a porta está aberta, a qualquer hora.

 

- Obrigado.

 

- Não, eu é que agradeço - disse Stu em tom sério.

 

Harold pestanejou.

 

- A mim?

 

- Por ter ajudado na busca quando todo mundo mais decidiu deixar a natureza seguir seu curso. Mesmo que não tenha dado em nada. Quer trocar um aperto de mão?

 

Stu estendeu sua mão. Harold a fitou apaticamente por um instante, dando a Stu a impressão de que se recusaria. Então, Harold tirou a mão direita do bolso da japona - ela pareceu enganchar-se em alguma coisa, talvez no zíper - e apertou brevemente a mão de Stu. A mão de Harold estava quente e um pouco suada.

 

Stu deu um passo à frente dele, olhando para a ladeira.

 

- Ralph já deveria ter chegado aqui. Espero que não tenha sofrido um acidente ao descer aquela montanha terrível. Ele... ah, aí vem ele.

 

Stu caminhou até a beira da alameda; um segundo farol dianteiro brilhava agora na subida e brincando de esconde-esconde entre a cortina das árvores.

 

- Sim, é ele - disse Harold naquela voz desligada, por trás de Stu.

 

- Tem alguém com ele.

 

- O quê?!

 

- Veja! - Stu apontou para um segundo farol de motocicleta, seguindo atrás do primeiro.

 

- Ah... - De novo aquela esquisita voz opaca, que fez Stu se virar.

 

- Você está bem, Harold?

 

- Apenas cansado.

 

O segundo veículo pertencia a Glen Bateman; era uma bicicleta motorizada de baixa potência, a coisa mais próxima de uma moto que ele utilizaria, e que faria a Vespa de Nadine parecer uma Harley. E na garupa de Ralph vinha Nick Andros. Nick queria convidar todos para tomar um café ou uma dose de conhaque na casa que dividia com Ralph. Stu concordou e Harold recusou, ainda parecendo tenso e fatigado.

 

Ele está muito desapontado, pensou Stu, refletindo que aquela não era apenas a primeira vez que já sentira empatia por Harold, mas que talvez já a estivesse devendo há muito. Renovou o convite de Nick, porém Harold limitou-se a sacudir a cabeça, dizendo que já tivera o suficiente por um dia. Os outros imaginaram que ele queria ir para casa, dormir um pouco.

 

Ao chegar em casa, Harold tremia tanto que mal conseguiu enfiar a chave na fechadura. Quando logrou abrir a porta, entrou rapidamente, como se desconfiasse que um maníaco pudesse esgueirar-se pelo caminho, atrás dele. Bateu a porta, passou a chave na fechadura, colocou a corrente de segurança. Então recostou-se contra a porta durante um instante, a cabeça virada para trás e os olhos fechados, sentindo-se à beira de lágrimas histéricas. Assim que conseguiu controlar-se, cruzou o vestíbulo, entrou na sala de estar e acendeu todos os lampiões a gás.

 

Sentou-se na sua poltrona preferida e fechou os olhos. Quando o coração começou a bater com mais normalidade, ele foi até a lareira, retirou a laje solta e apanhou seu LIVRO-RAZÃO. Isto o acalmou. Um livro-razão está sempre ao alcance quando se quer ter uma noção de dívida, contas extraordinárias, juros acumulados. Era onde, por fim, registrava-se o pagamento de todas as contas.

 

Voltando a sentar-se, folheou o livro até a página onde ele havia parado, hesitou e então escreveu: "14 de agosto de 1990." Ficou escrevendo por quase uma hora, a caneta abrindo caminho do começo ao fim de cada linha, página após página. Ao terminar, leu o que escrevera, friccionando distraidamente a mão direita dolorida.

 

Recolocou o livro no esconderijo e repôs a laje. Estava calmo agora; anotara tudo que precisava extravasar; passara para o papel seu terror e fúria, e sua resolução continuava forte. Isso era bom. Às vezes o ato de escrever coisas fazia-o sentir-se mais irrequieto, e eram essas as ocasiões em que sabia ter escrito falsamente, ou sem o esforço requerido para afiar o gume cego da verdade até se tornar um gume cortante - que produziria sangue. Mas esta noite ele podia guardar o livro com uma mente calma e serena. A raiva, o medo e a frustração haviam sido transferidos em segurança para o livro, tendo por cima uma pedra a escondê-lo enquanto dormia.

 

Harold alçou uma das persianas e olhou para a rua silenciosa. Erguendo a vista para as Flatirons, pensou calmamente no quão perto estivera de ir em frente fosse como fosse, apenas sacando o .38 e acabando com todos os quatro. Isso poria fim ao seu hipócrita e malcheiroso comitê ad hoc. Quando os liquidasse, não sobraria nem a porra de um quórum.

 

Mas, no último momento, um esfiapado cordão de sanidade se mantivera firme, em vez de arrebentar. Ele fora capaz de soltar a arma e apertar a mão do maldito traidor. Como pudera fazê-lo, jamais saberia, mas graças a Deus conseguira. A marca do gênio é a sua aptidão em adiar - e assim ele faria.

 

Estava sonolento agora. Aquele tinha sido um dia longo e movimentado.

 

Desabotoando a camisa, Harold apagou dois dos lampiões e levou o terceiro para o seu quarto. Quando cruzou a cozinha, estacou de repente, gelado.

 

A porta que dava para o porão estava aberta.

 

Foi até ela, segurando o lampião no alto, e desceu os três primeiros degraus. O medo apertou seu coração, expulsando a tranquilidade.

 

- Quem está aí? - chamou. Não houve resposta. Podia ver a mesa do jogo pneumático de hóquei. Os pôsteres. No canto mais afastado, um conjunto de malhos de croqué colocados na sua prateleira.

 

Ele desceu mais três degraus.

 

- Tem alguém aí?

 

Não; ele sentia que não havia. Contudo, isto não afastou seu medo.

 

Desceu os degraus restantes, mantendo o lampião bem acima da cabeça; no outro lado do porão uma monstruosa sombra dele, tão imensa e negra como o gorila da rua Morgue, repetia seus movimentos.

 

Havia alguma coisa no chão, ali mais adiante? Sim. Havia.

 

Ele passou por trás da pista dos carros de corrida e foi até abaixo da janela por onde Fran entrara. No piso havia montículos de terra espalhada, de tom castanho-claro. Ele pousou o lampião perto do peitoril. No centro daquela terra espalhada, tão claramente como uma impressão digital, havia a marca de uma sapatilha ou tênis... não um padrão de linhas ziguezagueantes, mas grupos de círculos e linhas. Ficou olhando para aquilo, queimando em sua mente, e então chutou a terra, que se elevou numa nuvem leve de pó, destruindo a marca. Seu rosto estava lívido como uma cabeça de cera à luz do lampião Coleman.

 

- Você vai me pagar! - exclamou baixinho. - Quem quer que seja, juro que vai me pagar! Sim, vai pagar! Ora, se vai!

 

Tornou a subir a escada e vasculhou a casa de cabo a rabo, em busca de quaisquer outros sinais de profanação. Nada encontrou. Terminou na sala de estar, agora não mais sonolento. Acabara de concluir que alguém - um garoto, talvez - invadira a casa por curiosidade, quando então o pensamento no LIVRO-RAZÃO explodiu em sua mente como um clarão num céu de meia-noite. O motivo da invasão era tão óbvio, tão terrível, que quase o omitira por completo.

 

Correu até a lareira, levantou a laje e arrebatou o LIVRO-RAZÃO do esconderijo. Pela primeira vez, teve total noção do quanto aquele livro era perigoso. Se alguém o encontrasse, tudo estava acabado. Ele, mais que ninguém, sabia disso; afinal, tudo não começara por causa do diário de Fran?

 

O LIVRO-RAZÃO. Aquela pegada no porão. Esta última significava que a primeira tinha sido descoberta? Claro que não. Mas como ter certeza? Não havia como saber, esta era a pura e maldita verdade da questão.

 

Harold recolocou a laje e levou o LIVRO-RAZÃO para seu quarto. Colocou-o sob o travesseiro, junto com o Smith & Wesson, refletindo que deveria queimá-lo mas sabendo que jamais poderia. O que escrevera de melhor em toda a sua vida estava entre aquelas capas, os únicos escritos que resultaram da crença e comprometimento pessoais.

 

Deitou-se, resignado a uma noite insone, a mente disparando incessantemente em busca de possíveis esconderijos. Debaixo de uma tábua de assoalho frouxa? Nas costas de um armário? E que tal usar o velho truque da carta furtada e deixá-lo audaciosamente em uma das prateleiras, um volume entre muitos outros volumes, flanqueado por uma coleção de livros condensados na Readers Digest de um lado e por um exemplar de A Mulher Total do outro? Não, seria arriscar demais. Ele jamais conseguiria ausentar-se de casa em paz. Não, ele queria o livro a seu alcance, onde pudesse vê-lo.

 

Por fim, começou a devanear e sua mente, agora começando a ficar entorpecida por um início de sonolência, seguindo à deriva sem qualquer rumo consciente, um fliperama em câmera lenta. Ele pensou: Ele precisa ser escondido, eis a questão... se eu não tivesse lido o que ela realmente pensava a meu respeito... sua hipocrisia... se ela tivesse...

 

Harold sentou-se aprumado na cama, um pequeno grito em sua boca, os olhos arregalados.

 

Ficou sentado assim por um longo tempo e a seguir começou a tremer. Ela saberia? Aquela pegada no porão seria de Fran? Diários... anotações... livros-razão...

 

Finalmente tornou a deitar-se, mas demorou muito a pegar no sono. Continuou especulando se Fran Goldsmith costumava usar tênis ou sapatilhas. E se usasse, qual seria o seu número?

 

Padrões do número de calçado revelavam os padrões da alma. Quando pegou no sono, seus sonhos foram inquietos e mais de uma vez chorou deploravelmente no escuro, como se isso afastasse coisas que já tinham sido assimiladas para sempre.

 

Stu chegou às 9h15 da noite. Fran estava enrodilhada na cama de casal, usando uma camisa dele que lhe chegava quase aos joelhos - e lendo um livro intitulado Cinquenta Plantas Amigas. Levantou-se quando ele chegou.

 

- Onde foi que esteve? Estava preocupada!

 

Stu contou-lhe sobre a ideia de Harold de saírem à procura de Mãe Abagail, a fim de que, pelo menos, ficassem de olho nela. Não mencionou as vacas sagradas. Desabotoando a camisa, concluiu:

 

- Não a levamos conosco, meu bem, porque não sabíamos onde encontrá-la.

 

- Estava na biblioteca - disse ela, observando-o enquanto ele tirava a camisa e a enfiava no saco de roupa para lavar, pendurado atrás da porta. Ele era inteiramente peludo, peito e costas, e ela descobriu-se pensando que, até conhecer Stu, sempre achara os homens peludos levemente repulsivos. Supôs que seu alívio por tê-lo de volta estava lhe pondo minhocas na cabeça.

 

Harold tinha lido seu diário, sabia disso agora. Ficara terrivelmente apavorada ante a ideia de que podia dar um jeito de ficar a sós com Stu e... bem, fazer alguma coisa com ele. Mas por que agora, hoje, precisamente quando ela havia descoberto? Se Harold deixara o cão adormecido por esse tempo todo, não era mais lógico presumir que não queria acordar o cão, afinal? E não era também possível que, ao ler seu diário, Harold percebesse a futilidade de persegui-la constantemente? Culminando com a notícia do desaparecimento de Mãe Abagail, ela chegara a um estado de ânimo que a impeliria a ver maus presságios até em entranhas de galinha, mas o fato era que, se Harold simplesmente lera o seu diário, não estivera lendo uma confissão para os crimes do mundo. Se contasse a Stu o que descobrira, apenas faria papel de tola e o deixaria irritado com Harold... e provavelmente com ela própria por ser tão tola, em primeiro lugar.

 

- Nenhum sinal dela, Stu?

 

- Nada.

 

- Como é que Harold parecia?

 

Stu estava despindo as calças.

 

- Bastante acabrunhado. Lamentava que sua ideia não tivesse dado certo. Convidei-o para jantar sempre que quiser vir. Espero que você não se importe. Sabe, acho que até poderia gostar daquele chato. Você jamais me convenceria disso naquele dia em que conheci os dois, em New Hampshire. Acha que foi errado convidá-lo?

 

- Não - respondeu ela, após uma pausa para refletir. - Não, eu gostaria de ficar em bons termos com Harold. - Mas fiquei aqui plantada, pensando que Harold estaria planejando estourar seus miolos, pensou, enquanto você o convidava para jantar. Vá se entender a imaginação das grávidas!

 

Stu disse:

 

- Se Mãe Abagail não aparecer até o dia raiar, pensei em perguntar a Harold se gostaria de fazer outra busca comigo.

 

- Eu também gostaria de ir - disse Fran rapidamente. - E há mais alguns por aí que não acreditam inteiramente que ela esteja sendo alimentada pelos corvos. Dick Vollman é um deles. E Larry Underwood é outro.

 

- Tudo bem - disse Stu, juntando-se a ela na cama. - Escute, o que está usando por baixo desta camisa?

 

- Um homem forte e grandalhão como você devia ser capaz de descobrir, sem precisar da minha ajuda - respondeu Fran, recatada.

 

Afinal, ela não usava nada.

 

Às oito da manhã seguinte o grupo de busca começou modestamente com meia dúzia de pessoas - Stu, Fran, Harold, Dick Vollman, Larry Underwood e Lucy Swann. Por volta do meio-dia, o grupo engrossara para vinte, e ao crepúsculo (acompanhado pela habitual e breve pancada de chuva com relâmpagos nos contrafortes das montanhas) mais de cinquenta pessoas vasculhavam o matagal a oeste de Boulder, chapinhando através de riachos, subindo e descendo desfiladeiros e invadindo as transmissões FC uns dos outros.

 

Um estranho ânimo de pavor conformado substituíra gradualmente a aceitação da véspera. Apesar da poderosa força dos sonhos que elevara Mãe Abagail a uma posição semidivina na Zona Franca, a maioria das pessoas havia sofrido o suficiente para ser realista a respeito de sobrevivência: a velha já passara bem dos cem anos e havia ficado a noite toda ao relento. E agora vinha uma segunda noite.

 

O sujeito que abrira caminho à força através do país, da Louisiana a Boulder, liderando um grupo de 12 pessoas, resumia à perfeição este sentimento. Chegara com sua gente ao meio-dia da véspera. Ao saber que Mãe Abagail desaparecera, este homem, chamado Norman Kellogg, atirara ao chão o seu boné de beisebol dos Astros, exclamando:

 

- Que maldita falta de sorte a minha! Quem vocês botaram para procurá-la?

 

Charlie Impening, que se tornara mais ou menos o arauto de más notícias da Zona Franca (fora ele quem dera a notícia de neve em setembro), começou a sugerir aos demais que, se Mãe Abagail caíra fora, talvez fosse um sinal para que todos fizessem o mesmo. Afinal, Boulder ficava perto demais. Perto demais de quê? Não importa, todos sabiam o que significava perto demais, de maneira que Nova York ou Boston fariam seu filho Mavis Impening sentir-se muitíssimo mais seguro. Não encontrou adeptos. Estavam todos cansados e prontos para se fixar ali. Se ficasse frio demais e não houvesse aquecimento, eles poderiam se mudar, mas não antes. Eles estavam se recuperando. Perguntaram educadamente a Impening se ele planejava ir embora sozinho. Ele disse que ia esperar até que mais algumas pessoas enxergassem a realidade. Chamado a opinar, Glen Bateman disse que Charlie Impening daria um péssimo Moisés.

 

"Medo resignado" foi o máximo a que chegaram os sentimentos da comunidade, acreditava Glen Bateman, porque eles ainda eram pessoas de natureza racional, apesar de todos os sonhos, apesar do seu medo arraigado em relação a seja lá o que estivesse acontecendo a oeste das Rochosas. A superstição, como o verdadeiro amor, precisa de tempo para amadurecer e refletir sobre si mesma. Quando se termina a construção de um celeiro, dizia ele a Nick, Stu e Fran após a escuridão ter encerrado as buscas por aquela noite, costuma-se pendurar uma ferradura acima da porta para dar sorte. Mas se um dos pregos se solta e a ferradura fica pendendo por uma ponta, mesmo assim não se abandona o celeiro.

 

- Chegará o dia em que nós ou nossos filhos poderemos abandonar o celeiro, caso a ferradura deixe a sorte fugir, mas isso vai levar anos. Neste exato momento, todos nos sentimos um tanto estranhos e perdidos. Mas isso passará, creio. Se Mãe Abagail está morta... e Deus sabe que espero que não esteja... isto provavelmente não poderia ter vindo em momento melhor para a saúde mental desta comunidade.

 

Nick escreveu:

 

"Mas se ela iria ser um empecilho para nosso Adversário, a nêmese dele, alguém a pôs aqui para equilibrar os pratos da balança."

 

- Sim, eu sei - disse Glen, sombrio. - Eu sei. Os dias em que a ferradura já não importa mais podem realmente estar passando... ou já passaram. Acredite-me, eu sei.

 

Frannie interveio:

 

- Você não acredita de fato que nossos netos vão ser nativos supersticiosos, não é, Glen? Queimando bruxas e cuspindo nos dedos para dar sorte?

 

- Não sei ler o futuro, Fran - replicou Glen e à luz do lampião seu rosto parecia velho e gasto, o rosto, talvez, de um mágico fracassado. - Nem mesmo conseguia ver o efeito que Mãe Abagail vinha exercendo na comunidade até Stu me apontar isto naquela noite na montanha Flagstaff. Mas uma coisa eu sei: estamos todos nesta cidade por causa de dois acontecimentos. A supergripe, que podemos atribuir à estupidez do gênero humano. Não importa se fomos nós, os russos ou os letões. Quem esvaziou o cântaro perde importância diante da verdade geral: Ao final de todo o racionalismo, a sepultura de concreto. As leis da física, as leis da biologia, os axiomas da matemática, tudo faz parte do trajeto da morte, porque somos aquilo que somos. Se não fosse a Capitão Viajante, teria sido qualquer outra coisa. A moda era culpar a "tecnologia", mas a "tecnologia" é o tronco da árvore, não suas raízes. As raízes são o racionalismo, e eu assim definiria essa palavra: "Racionalismo é a ideia de que podemos sempre compreender tudo sobre o estado do ser." É um trajeto da morte, sempre foi. Assim, podem culpar o racionalismo pela supergripe, se quiserem. Mas o outro motivo por estarmos aqui são os sonhos, e sonhos são irracionais. Concordamos em não falar sobre este simples fato enquanto estamos em comitê, mas não estamos em comitê agora. Portanto, direi o que todos sabemos ser verdade: estamos aqui a mando de forças que não compreendemos. Para mim, isso significa que podemos estar começando a aceitar... apenas subconscientemente agora, e com um monte de deslizes deixados para trás devido à defasagem cultural... uma definição diferente da existência. A ideia de que jamais entenderemos tudo sobre o estado do ser. E se racionalismo é uma viagem mortal, então o irracionalismo poderia muito bem ser uma viagem vital... pelo menos até prova em contrário.

 

Falando muito lentamente, Stu comentou:

 

- Bem, tenho lá minhas superstições. Andei rindo disso, mas tenho. Sei que não faz a menor diferença se um sujeito acende dois ou três cigarros num fósforo, mas dois não me deixam nervoso e três sim. Não passo debaixo de escadas e pouco estou ligando se um gato preto cruza o meu caminho. Mas viver sem nenhuma ciência... adorando o sol, talvez... pensando que monstros estão jogando boliche no céu quando troveja... alto lá, nada disso faz meu gênero, careca. Ora, a mim me parece um tipo de escravidão.

 

- Mas suponha que tais coisas sejam verdade - disse Glen baixinho.

 

- Que coisas?

 

- Suponhamos que a era do racionalismo passou. Eu mesmo estou quase certo disso. Ela já chegou e já se foi antes, estão sabendo? Ela quase nos deixou na década de 1960, a assim chamada Era de Aquário, e chegou bem perto de tirar férias permanentes durante a Idade Média. E suponhamos... suponhamos... que quando o racionalismo se vai, é como se um vívido deslumbramento se imponha por algum tempo e possamos ver... - Ele se interrompeu, desviando o olhar.

 

- Ver o quê? - perguntou Fran.

 

Ele ergueu os olhos para os dela; estavam cinzentos e estranhos, parecendo cintilar com sua própria luz interior.

 

- Magia negra - disse suavemente. - Um universo de prodígios onde a água flui montanha acima, gigantes vivem nos bosques mais profundos e dragões sob as montanhas. Prodígios brilhantes, poder branco. "Levanta-te, Lázaro." Água transformada em vinho. E... apenas talvez... a expulsão dos demônios.

 

Ele fez uma pausa, depois sorriu.

 

- A viagem vital.

 

- E o homem escuro? - perguntou Fran, baixinho.

 

Glen deu de ombros.

 

- Mãe Abagail o chama de Diabrete do Demônio. Talvez, ele seja apenas o último mago do pensamento racional, reunindo as ferramentas da tecnologia contra nós. E talvez haja algo mais, algo bem mais sombrio. Só sei que ele existe, e não creio mais que a sociologia, a psicologia ou qualquer outra logia darão cabo dele. Acho que só a magia branca o fará... e a nossa maga branca está por aí, em algum lugar, perambulando e sozinha. - A voz de Glen quase falhou e ele baixou a vista rapidamente.

 

Lá fora já estava escuro e uma brisa vindo das montanhas lançou uma nova rajada de chuva contra a vidraça da sala de estar de Stu e Fran. Glen acendia seu cachimbo. Stu tirara um punhado de moedas do bolso e as sacudia para cima e para baixo, para depois abrir as mãos e ver quantas tinham dado cara e quantas dado coroa. Nick fazia elaborados rabiscos na primeira folha do bloco, e na sua mente ele via as mas vazias de Shoyo e ouvia - sim, ouvia - uma voz sussurrar: Ele está vindo para você, mudinho. Está mais perto agora.

 

Após algum tempo, Glen e Stu acenderam um fogo na lareira e todos ficaram observando as chamas sem dizer muita coisa.

 

Depois que eles se foram, Fran sentia-se desanimada e infeliz. Stu sentia-se do mesmo jeito. Ele parece cansado, pensou ela. Devíamos ficar em casa amanhã, apenas ficar em casa, para conversarmos e tirar uma soneca à tarde. Devíamos ir com mais calma. Ela olhou para o lampião Coleman e ansiou em vez disso pela luz elétrica, a brilhante luz elétrica que se obtinha com a simples pressão num interruptor na parede.

 

Sentiu os olhos arderem com lágrimas e disse furiosa a si mesma para não começar, não acrescentar mais isto aos problemas que já tinham, porém a parte dela que controlava os canais lacrimais não estava inclinada a ouvir.

 

Então, de súbito, Stu se animou.

 

- Por Deus! Não é que quase me esqueci?

 

- Esqueceu o quê?

 

- Vou lhe mostrar! Espere bem aqui! - Dirigiu-se à porta e seus passos rápidos ecoaram pelas escadas. Fran foi até a porta e um momento depois o viu subindo de volta. Trazia algo na mão e era uma... uma...

 

- Stuart Redman, onde conseguiu isso? - perguntou, agradavelmente surpresa.

 

- Na loja Música e Artes Populares - disse ele, sorrindo.

 

Fran pegou a tábua de lavar roupa e virou-a para um lado e para outro. O brilho da luz refletia-se na superfície cor de anil.

 

- Música e Artes...?

 

- Descendo a Walnut Street.

 

- Uma tábua de lavar numa loja de música?

 

- É, também havia uma tina danada de boa, mas alguém já tinha feito um furo nela para transformá-la num baixo.

 

Ela começou a rir. Pôs a tábua de lavar sobre o sofá, achegou-se a Stu e o abraçou com força. As mãos dele subiram para os seios de Fran e ela apertou-o ainda mais.

 

- O doutor disse que o bebê precisa de música amorosa - sussurrou ela.

 

- Hã?

 

Ela pressionou a face contra o pescoço dele.

 

- Parece que esse tipo de música o faz sentir-se ótimo. É o que a canção diz, de qualquer modo. Você pode fazer com que eu me sinta ótima, Stu?

 

Sorrindo, ele a ergueu nos braços.

 

- Bem - disse -, acho que poderia pelo menos tentar.

 

Às 2h15 da tarde seguinte Glen Bateman irrompeu no apartamento sem bater. Fran se encontrava na casa de Lucy Swann, onde as duas tentavam fazer um bolo. Stu estava lendo um faroeste de Max Brand. Ergueu a vista e viu Glen, seu rosto pálido e chocado, os olhos arregalados, e jogou o livro no chão.

 

- Stu - disse Glen. - Ah, cara, estou contente que esteja aqui.

 

- Algo errado? - perguntou Stu incisivamente. - Alguém... alguém a encontrou?

 

- Não - disse Glen. Ele sentou-se abruptamente, como se suas pernas tivessem fraquejado. - Não são más notícias. São boas. Mas trata-se de algo muito estranho.

 

- O que é?

 

- Kojak. Tirei um cochilo depois do almoço e, quando me levantei, Kojak estava no alpendre, adormecido. Está que é só pele e osso. Parece ter sido batido num liquidificador com lâminas rombudas, mas é ele.

 

- Está falando do cachorro? Aquele Kojak?

 

- Exatamente.

 

- Tem certeza?

 

- O mesmo cão com a etiqueta que diz "Woodsville, N.H.". A mesma coleira vermelha. O mesmo cão. Ele está realmente esquelético e andou brigando. Dick Ellis... ah, o Dick ficou supercontente em cuidar de um animal, só para variar... ele diz que Kojak perdeu um olho para sempre. Arranhões feios nos flancos e na barriga, alguns deles infeccionados, mas Dick cuidará deles. Deu-lhe um sedativo e passou ataduras por sua barriga. Segundo Dick, deve ter brigado com um lobo, talvez mais de um. Sem vestígio de raiva, porém. Ele está limpo. - Glen sacudiu a cabeça lentamente e duas lágrimas escorreram por suas faces. - O danado do cachorro veio atrás de mim. Por Deus, como lamento tê-lo deixado para trás, forçando-o a vir por sua própria conta, Stu. Estou me sentindo mal paca por causa disso.

 

- Não daria para trazê-lo, Glen. Não de motocicleta.

 

- Sim, mas... ele me seguiu, Stu. É o tipo de coisa que a gente lê na Star Weekly... Cão Fiel Segue o Dono por 3 mil Quilômetros. Como pôde fazer uma coisa dessas? Como?

 

- Talvez do mesmo modo como fizemos. Cachorros sonham, você sabe... por certo que sonham. Você nunca viu um adormecido no chão da cozinha, as patas se agitando? Havia um velho companheiro em Arnette, Vic Palfrey, que costumava dizer que os cães tinham dois tipos de sonho, o bom e o mim. O bom é quando as patas se agitam. O mau é o sonho rosnante. Acorde um cão no meio do sonho rosnante, o sonho ruim, e ele vai estar pronto para morder você, pode apostar.

 

Glen sacudiu a cabeça de um modo apático.

 

- Você está dizendo que ele sonhou...

 

- O que estou dizendo não é nem um pouco mais engraçado do que você esteve falando a noite passada - repreendeu Stu.

 

Glen sorriu e assentiu.

 

- Ah, posso falar baboseiras por horas sem fim. Sou um dos maiores papos-furados em tempo integral. É quando algo realmente acontece.

 

- Faça o que eu digo e não faça o que eu faço.

 

- Não fode, Texano Oriental. Quer ir lá ver o meu cachorro?

 

- Claro.

 

A casa de Glen ficava na Spruce Street, a dois quarteirões do Boulderado Hotel. A planta trepadeira na parede do alpendre estava em boa parte morta, como estavam todos os gramados e a maioria das flores em Boulder - sem a rega diária dos cidadãos, o clima árido havia triunfado.

 

Havia no alpendre uma pequena mesa redonda com gim e tônica. ("Essa coisa não é horrível pra cacete sem gelo?", perguntou Stu, e Glen respondeu: "Você não nota muita diferença depois do terceiro.") Ao lado da bebida havia uma bandeja com cinco cachimbos, e exemplares de Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas, Minha Vida no Beisebol e Meu Gatilho é Rápido, todos abertos em lugares diferentes. Também havia um saco aberto de petiscos de queijo.

 

Kojak estava deitado no alpendre, o focinho machucado apoiado pacificamente nas patas dianteiras. O cão estava esquálido e dolorosamente maltratado, mas Stu o reconheceu, mesmo tendo-o conhecido brevemente. Stu se agachou e começou a acariciar a cabeça de Kojak. O cão acordou e olhou todo satisfeito para ele. E sorriu, no modo como os cachorros parecem sorrir.

 

- Ora, este é um bom cachorro - disse Stu, sentindo um ridículo nó na garganta. Como um baralho de cartas rapidamente distribuídas com as faces voltadas para cima, ele parecia ver cada cachorro que tivera desde que sua mãe o presenteara com Old Spike, quando tinha apenas cinco anos de idade. Um monte de cachorros. Talvez não um para cada carta do baralho, mas ainda assim um monte de cachorros. Um cachorro era uma boa coisa para se ter e, até onde sabia, Kojak era o único em Boulder. Ele olhou acima para Glen e depois de novo para baixo rapidamente. Imaginou que até mesmo velhos sociólogos carecas que liam três livros ao mesmo tempo não gostavam de ser flagrados chorando.

 

- Bom cachorro - repetiu, e Kojak bateu o rabo contra as tábuas do alpendre, presumivelmente concordando que era de fato um bom cachorro.

 

- Estou indo lá dentro por um minuto - disse Glen, rudemente. - Preciso ir ao banheiro.

 

- Vá - disse Stu sem olhar para cima. - Ei, garotão, diga lá, velho Kojak, você foi um bom garoto, não é mesmo?

 

O rabo de Kojak bateu com satisfação.

 

- Você não pode rolar? Brinque de morto, garoto. Role.

 

Kojak obedientemente rolou sobre as costas, as patas traseiras arreganhadas, as dianteiras erguidas no ar. O rosto de Stu ficou preocupado ao passar a mão gentilmente sobre a sanfona branca rígida de ataduras que Dick Ellis havia colocado. Mais acima pôde ver arranhões vermelhos e de aparência inchada que sem dúvida evoluíram para sangue coagulado por baixo das ataduras. Alguma coisa o atacara, por certo, e não havia sido outro cão errante. Um cão teria visado o focinho ou a garganta. O que havia acontecido com Kojak era obra de alguma forma de vida inferior à de um cachorro. Mais selvagem. Uma alcateia de lobos, talvez, mas Stu duvidava que Kojak pudesse escapar de uma alcateia. De qualquer modo, ele tivera sorte em não ter sido estripado.

 

A porta telada bateu quando Glen voltou para o alpendre.

 

- O que quer que o tenha atacado por pouco não lhe tirou a vida - disse Stu.

 

- Os ferimentos foram profundos e ele perdeu um bocado de sangue - concordou Glen. - Simplesmente não me perdoo por tê-lo abandonado para passar por isso.

 

- E Dick falou em lobos.

 

- Lobos ou talvez coiotes... mas ele achou improvável que coiotes tivessem feito um trabalho assim, e assino embaixo.

 

Stu bateu no traseiro de Kojak e o cão rolou de volta sobre a barriga.

 

- Como é possível que todos os cães tenham morrido e ainda existam tantos lobos num lugar... e a leste das Rochosas, por falar nisso... para atacar um bom cachorro como este?

 

- Acho que nunca saberemos - disse Glen. - Como também nunca saberemos por que a maldita epidemia levou os cavalos mas não as vacas, matou a maioria das pessoas mas nos poupou. Nem vou esquentar a cabeça pensando nisso. Quero somente arranjar um bom suprimento de ração canina e mantê-lo alimentado.

 

- É... - Stu olhou para Kojak, cujos olhos tinham se fechado. - Ele foi dilacerado, mas seus órgãos vitais ainda estão intactos... percebi isso quando ele rolou. Poderíamos agora ficar de olho numa cadela para ele, não é?

 

- Sim, é isso aí - disse Glen pensativamente. - Quer um gim-tônica quente, Texano Oriental?

 

- Diabo, não. Posso não ter cursado mais que um ano de escola profissionalizante, mas não sou nenhum bárbaro fodido. Conseguiu cerveja?

 

- Ah, acho que posso arranjar uma lata de Coors. Quente, porém.

 

- Aceito. - Ele começou a seguir Glen para a casa, depois parou, com a mão na porta telada, a fim de olhar de novo para o cachorro adormecido. - Durma bem, garoto - disse. - É bom ter você aqui.

 

Ele entrou com Glen.

 

Mas Kojak não estava adormecido.

 

Jazia em algum estado intermediário, onde a maioria dos seres vivos passava considerável parte de tempo quando estavam gravemente feridos, mas não gravemente o bastante para estar na sombra da morte. Um comichar intenso fazia sua barriga arder como fogo, a coceira da cura. Glen teria de passar horas tentando distraí-lo, para que Kojak não arrancasse as ataduras para se coçar, reabrindo os ferimentos e tornando a infeccioná-los. Mas isto, contudo, seria mais tarde. No exato momento, Kojak (que se imaginava como Big Steve, seu nome original) satisfazia-se em pairar naquele lugar intermediário. Os lobos haviam caído sobre ele em Nebraska, enquanto ainda farejava desanimado em volta da casa de Mãe Abagail, sustentada por macacos a óleo na cidadezinha de Hemingford Home. O cheiro do HOMEM - a sensação do HOMEM - o levara até esse lugar e ali parava. Para onde ele fora? Kojak não sabia. Então os lobos, quatro lobos, saíram do milharal como espíritos maltrapilhos dos mortos. Seus olhos queimavam quando fitavam Kojak, os beiços se arreganhavam para trás, exibindo os dentes, enquanto emitiam rosnados graves e horripilantes que revelavam suas intenções. Kojak recuara, também rosnando, as patas enrijecidas e escavando a terra da soleira de Mãe Abagail. À esquerda pendia o balanço de pneu, projetando sua profunda sombra arredondada. O lobo líder atacou exatamente quando os quartos traseiros de Kojak deslizaram para a sombra projetada pelo alpendre. O lobo investiu agachado, procurando o ventre, sendo seguido pelos outros. Kojak saltou para o focinho arreganhado do líder, oferecendo a ele a visão de sua barriga. Quando o líder começou a morder e arranhar, Kojak fincou-lhe os dentes na garganta, as presas penetrando fundo, tirando sangue. O lobo uivou e tentou libertar-se, subitamente acovardado. Conforme ele recuava, as mandíbulas de Kojak se fechavam com velocidade de relâmpago sobre o focinho macio do inimigo. O lobo soltou um uivo profundo, um grito abjeto, ao sentir o focinho aberto até os beiços, reduzido a tiras e tendões. Fugiu ganindo de agonia, sacudindo a cabeça loucamente de um lado para outro, salpicando gotas de sangue à esquerda e â direita, e na rude telepatia partilhada por todos os animais da mesma linhagem, Kojak pôde ler o pensamento incessante do adversário em fuga:

 

(vespas em mim ah vespas e vespas em minha cabeça vespas estão em minha cabeça)

 

E então os outros o atacaram, um pela esquerda, outro pela direita, como enormes balas rombudas, o último do trio enfiando-se por baixo, rindo, abocanhando, pronto para desventrá-lo. Kojak saltara para a direita, ganindo asperamente, querendo enfrentar primeiro aquele para poder mergulhar debaixo do alpendre. Se conseguisse enfiar-se ali, poderia resistir a eles, talvez para sempre. Agora, deitado no alpendre, ele reviveu a batalha em Uma espécie de câmera lenta: os rosnados e uivos, as investidas e recuos, o cheiro de sangue que lhe havia penetrado no cérebro e aos poucos o transformara em uma espécie de máquina de lutar, só mais tarde vindo a perceber seus próprios ferimentos. Enviou o lobo à sua direita pelo mesmo caminho do primeiro, um dos olhos inutilizado e um enorme, escancarado e provavelmente mortal ferimento no lado da garganta. No entanto, o lobo também causara seus danos; a maioria dos ferimentos era superficial, porém dois dos arranhões penetraram fundo, feridas que custariam a fechar, deixando uma cicatriz torcida, como um t minúsculo. Mesmo quando se tomou um cão velho, muito velho (Kojak viveria mais 16 anos, muito depois de Glen Bateman ter morrido), aquelas cicatrizes doíam e latejavam nos dias úmidos. Ele conseguira libertar-se, conseguira rastejar para baixo do alpendre e, quando um dos dois lobos remanescentes, alucinado pelo cheiro de sangue, tentou espremer-se atrás dele, Kojak saltou sobre o adversário, cravou os dentes e dilacerou-lhe a garganta. O outro recuou quase até a borda do milharal, ganindo inquietamente. Se Kojak o perseguisse, querendo mais briga, ele teria fugido com o rabo entre as pernas. Mas Kojak não saiu, não naquele momento. Estava esgotado. Só podia deitar de lado, ofegando rápida e fracamente, lambendo as feridas e rosnando do fundo do peito toda vez que via aproximar-se a sombra do lobo remanescente. Então escureceu e uma meia-lua enevoada cruzou o céu acima de Nebraska. E a cada vez que o último lobo ouvia Kojak vivo, presumivelmente disposto à luta, fugia ganindo. Algum tempo após a meia-noite, ele foi embora, deixando Kojak a sós para descobrir se viveria ou morreria. Nas primeiras horas da manhã ele havia sentido a presença de algum outro animal, algo que o deixou aterrorizado, emitindo uma série de suaves gemidos. Era qualquer coisa no milharal, uma coisa caminhando no milharal, talvez procurando-o. Kojak ficou trêmulo, esperando para ver se a coisa o encontraria, aquela coisa horrível que tanto parecia ser um Homem quanto um Lobo e um Olho, uma coisa como um antigo crocodilo, lá no milharal. Algum tempo (não registrado) mais tarde, após a lua ter ido embora, Kojak sentiu que a coisa se fora. Adormeceu. Ficou lá, encolhido debaixo do alpendre, durante três dias, só saindo quando impelido pela fome ou sede. Uma poça d’água se formara no pátio, abaixo do bocal da bomba de mão. Na casa havia todo tipo de restos saborosos, muitos deles sobras da refeição que Mãe Abagail preparara para o grupo de Nick. Ao sentir que estava em condições de continuar, Kojak soube para onde ir. Nada havia farejado para isso; era uma sensação de calor proveniente de seu próprio tempo, mortal e profundo, um brilhante bolsão de calor que vinha do oeste. Então ele se foi, claudicando sobre três patas pela maioria dos últimos 8 mil quilômetros, a dor sempre mordendo seu ventre. De tempos em tempos, conseguia farejar o HOMEM, o que o deixava ciente de estar no rumo certo. E por fim chegara a Boulder. O HOMEM estava ali. Não havia lobos. Não experimentou nenhuma noção da Coisa sombria... do Homem com fedor de lobo, daquele Olho que podia ver o que quisesse, caso se virasse na direção certa. Por enquanto, tudo estava ótimo. E assim pensando (até onde os cães podem pensar, em sua cautelosa relação com um mundo visto quase inteiramente através dos instintos), Kojak se sentiu à deriva, mergulhando mais fundo, agora para um sono real, agora para um sonho, um sonho bom de caçar coelhos através dos trevos e capim rabo-de-rato que lhe chegavam à altura da barriga e umedecidos por suave orvalho. Seu nome era Big Steve. O lugar ficava bem longe dali, e os coelhos saltitavam por toda parte naquela manhã cinzenta e interminável. Enquanto sonhava, suas patas estremeciam.

 

Trechos da ata da reunião do Comitê Ad Hoc,

17 de agosto de 1990

 

ESTA REUNIÃO TEVE LUGAR na casa de Larry Underwood, na rua 42, distrito de Table Mesa. Todos os integrantes do comitê estavam presentes...

 

O primeiro item da pauta referia-se à eleição do comitê provisório como comitê permanente de Boulder. Fran Goldsmith pediu a palavra.

 

Fran: "Tanto eu quanto Stu concordamos em que a maneira melhor e mais fácil de todos nós sermos eleitos consistiria na ratificação de todos os nomes por Mãe Abagail. Isto nos pouparia o problema de termos vinte pessoas indicadas pelos amigos, possivelmente estragando tudo. Agora, porém, teremos de agir de outro modo. Não vou sugerir nada que não seja perfeitamente democrático e todos vocês estão a par do plano, seja como for, mas quero enfatizar novamente que cada um de nós precisa estar seguro de quem nos indicará e nos apoiará. Claro que não podemos fazer isto uns pelos outros - assim ficaria muito parecido com a Máfia. E se vocês não encontrarem uma pessoa para indicá-los e outra para apoiá-los, seria melhor desistirem."

 

Sue: "Uau! Isso é dissimulação, Fran."

 

Fran: "Sim, é, um pouco."

 

Glen: "Estamos voltando ao assunto da moralidade do comitê, e embora eu tenha certeza de que todos nós o consideraremos um tópico infinitamente fascinante, gostaria de vê-lo adiado pelos próximos poucos meses. Acho que temos de concordar que estamos servindo ao melhor interesse da Zona Franca e deixar isso como está."

 

Ralph: "Você parece um pouco chateado, Glen."

 

Glen: "Estou um pouco chateado. Admito. O próprio fato de que passamos tempo demais comendo nossos próprios fígados a respeito deste assunto nos daria uma indicação muito boa de para que lado pendem nossos corações."

 

Sue: "A estrada para o inferno é pavimentada com..."

 

Glen: "Boas intenções, sei disso, e uma vez que todos nós parecemos preocupados com nossas intenções, devemos estar certamente na estrada para o céu."

 

Glen disse a seguir que pretendia falar ao comitê sobre nossos batedores, espiões ou qualquer nome que se queira dar, mas em vez disso achava melhor propor uma moção para que nos reuníssemos a fim de discutir o tema no dia 19. Stu perguntou a ele por quê.

 

Glen: "Porque talvez nem todos estejamos aqui no dia 19. Alguém poderia ser destituído. É uma possibilidade remota, mas ninguém realmente sabe o que um grupo grande de pessoas vai fazer quando estão todas reunidas num lugar. Devemos ter o máximo de cuidado."

 

Isto causou um momento de silêncio e a seguir o comitê aprovou por unanimidade uma reunião para o dia 19 - como Comitê Permanente -, a fim de discutir a questão dos batedores... ou espiões... ou fosse o que fosse.

 

Foi dada a palavra a Stu, que expôs ao comitê um terceiro item de trabalho, referente a Mãe Abagail.

 

Stu: "Como todos sabemos, ela partiu por motivos pessoais. Seu bilhete diz que ‘ficará fora por algum tempo’, o que é bastante vago, e que voltará ‘se for da vontade de Deus’. Bem, isto não é nada estimulante. Durante três dias despachamos grupos de busca e nada encontramos. Não queremos simplesmente arrastá-la de volta, caso ela não queira voltar, mas se ela estiver caída em algum lugar, com uma perna quebrada ou inconsciente, bem, aí é outra questão. Parte do problema agora é que não temos gente suficiente para pesquisar todos os locais agrestes em torno de Boulder. Outra parte é que exatamente a mesma coisa vem retardando os trabalhos na central energética. Simplesmente não há organização. Assim, estou pedindo permissão para colocar na agenda da grande assembleia de amanhã à noite este caso dos grupos de busca, assim como os da usina de força e da equipe de sepultamento. E eu gostaria que Harold Lauder fosse o encarregado, porque a ideia foi dele, para começar."

 

Glen disse não acreditar que algum grupo de busca encontrasse notícias muito boas, após cerca de uma semana. Afinal, a senhora em questão está com 108 anos de idade. O comitê concordou em peso e depois votou. A moção foi aprovada por unanimidade, tal como Stu a expusera. Para tornar este registro tão honesto quanto possível, eu deveria acrescentar que houve várias expressões de dúvida quanto a Harold ser o encarregado... mas, como apontou Stu, a ideia partira dele, para início de conversa, e não dar-lhe o comando do grupo de busca seria uma bofetada direta no rosto.

 

Nick: "Retiro minha objeção a Harold, mas não minhas restrições básicas. Simplesmente não simpatizo muito com ele."

 

Ralph Brentner perguntou se Stu ou Glen redigiriam a moção de Stu sobre o grupo de busca, a fim de acrescentada à agenda, a qual pretende mimeografar no ginásio esta noite. Stu disse que o faria com prazer.

 

Larry Underwood então propôs que a sessão fosse suspensa. Ralph o acompanhou e a proposta foi votada por unanimidade.

 

Frances Goldsmith, secretária

 

Na noite seguinte, o comparecimento à reunião foi quase total e pela primeira vez Larry Underwood, embora estando na Zona Franca por apenas uma semana, teve uma noção de quão grande estava se tornando a comunidade. Uma coisa era ver pessoas indo e vindo pelas ruas, em geral sozinhas ou em duplas. Outra bem diferente era vê-las reunidas num só lugar - no Auditório Chautauqua. O recinto estava apinhado, cada assento ocupado, havendo pessoas sentadas nos corredores e de pé no fundo do salão. Formavam uma multidão curiosamente reprimida, murmurando mas não tagarelando. Pela primeira vez, desde sua chegada a Boulder, havia chovido o dia inteiro, uma garoa que parecia pairar suspensa no ar, tornando o ambiente mais enevoado do que molhado. E mesmo com aquela reunião de quase seiscentas pessoas, podia-se ouvir o quieto som da chuva no telhado. O som mais alto no interior era o farfalhar constante de papel enquanto os presentes examinavam as agendas mimeografadas que haviam sido empilhadas em duas mesinhas, logo após as portas duplas da entrada.

 

Esta agenda dizia:

 

ZONA FRANCA DE BOULDER

Agenda da Assembleia Geral

18 de agosto de 1990

 

Ver se a Zona Franca concordará em ler e ratificar a Constituição dos Estados Unidos da América.

Ver se a Zona Franca concordará em ler e ratificar a Carta de Direitos da Constituição dos Estados Unidos da América.

Ver se a Zona Franca indicará e elegerá uma chapa de sete representantes para atuar como junta de governo.

Ver se a Zona Franca concordará em vetar o poder de Abagail Freemantle sobre qualquer e todos os assuntos acordados pelos representantes.

Ver se a Zona Franca aprovará um Comitê de Sepultamentos de pelo menos vinte pessoas para enterrar decentemente aquelas que morreram da epidemia de supergripe em Boulder.

Ver se a Zona Franca aprovará um Comitê de Energia de pelo menos sessenta pessoas, inicialmente para restaurar a eletricidade antes do inverno.

Ver se a Zona Franca aprovará um Comitê de Busca de pelo menos 15 pessoas para descobrir o paradeiro de Abagail Freemantle, se possível.

 

Larry descobriu que suas mãos nervosas estiveram ocupadas em dobrar aquela agenda, cujo teor sabia de cor, quase palavra por palavra, para transformá-la em um aviãozinho de papel. Participar do comitê ad hoc era uma espécie de diversão, como um jogo - crianças brincando de processo parlamentar na sala de estar de alguém, sentadas em grupo e bebendo refrigerantes, comendo uma fatia do bolo feito por Frannie, discutindo os temas. Até mesmo a questão de enviarem espiões ao outro lado da montanha, diretamente no colo do homem escuro, havia parecido uma brincadeira, em parte por ser uma coisa que ele não se imaginava fazendo pessoalmente. Era preciso ter perdido todo o amor à vida para enfrentar semelhante pesadelo vivo. Mas nas suas reuniões fechadas, com a sala confortavelmente iluminada por lampiões Coleman, aquilo parecera certo. E se o juiz, Dayna Jurgens ou Tom Cullen fossem apanhados, parecia - nas reuniões fechadas pelo menos - algo de somenos importância, tal como a perda de uma torre ou uma rainha num jogo de xadrez.

 

Mas agora, sentado na parte central da plateia, ladeado por Lucy e Leo (não vira Nadine o dia inteiro e Leo também parecia ignorar seu paradeiro: "Fora" tinha sido a sua desinteressada resposta), ele compreendeu a verdade daquilo e teve a sensação de um bate-estacas contra seu estômago. Não era brincadeira. Havia 580 pessoas ali, a maioria delas não tendo a menor ideia de que Larry Underwood não era um cara legal ou de que a primeira pessoa de quem procurara cuidar após a epidemia morrera por superdosagem de remédios.

 

Suas mãos estavam úmidas e geladas. Tentavam novamente transformar a agenda em um aviãozinho de papel e ele as imobilizou. Lucy tomou uma delas, apertou-a e sorriu para ele. Larry só conseguiu retribuir com um arremedo de sorriso que mais parecia uma careta e, no fundo do coração, ouviu a voz da mãe: Falta alguma coisa em você, Larry.

 

O pensamento lhe causou pânico. Haveria um meio de escapar àquilo ou as coisas já tinham ido longe demais? Não queria esse fardo sobre os ombros. Na reunião fechada já propusera uma moção que poderia enviar o juiz Farris para a morte. Se fosse destituído por votação, sendo alguém eleito para seu posto, teriam de fazer nova votação para enviar o juiz, não teriam? Claro que teriam. E votariam para enviar alguém mais. Quando eu for indicado por Laurie Constable, basta que eu fique de pé e me recuse. Claro, ninguém pode me forçar, certo? Não se eu decidir que quero ficar fora. E, que diabo, quem precisa dessa merda que eu sou?

 

Wayne Stukey, tanto tempo atrás, dizendo na praia: Há um lado durão em sua natureza, cara.

 

Lucy disse, baixinho:

 

- Você estará ótimo.

 

Ele sobressaltou-se.

 

- Hã?

 

- Eu disse que você estará ótimo. Não é mesmo, Leo?

 

- Ah, sim - disse Leo, sacudindo a cabeça em confirmação. Seus olhos não se afastavam da plateia, como se não conseguisse entender o seu tamanho. - Ótimo.

 

Você não entende, sua besta quadrada, pensou Larry. Está segurando minha mão e não compreende que eu poderia tomar uma decisão ruim, matando vocês dois. Já estou a caminho de matar o juiz Farris e ele vai apoiar a porra de minha indicação. Que confusão isso se tornou. Um ligeiro som escapou de sua garganta.

 

- Você disse alguma coisa? - perguntou Lucy.

 

- Não.

 

A seguir Stu cruzava o palco em direção ao pódio, sua suéter vermelha e calças jeans muito vivas e claras à iluminação forte das lâmpadas de emergência, funcionando graças a um gerador Honda que Brad Kitchner e parte de sua equipe da usina de força haviam instalado. Os aplausos começaram em algum ponto no meio do salão, Larry nunca soube com certeza onde, e sua parte cínica ficou sempre convencida de que fora uma trama urdida por Glen Bateman, o especialista local na arte/ofício de manipular multidões. De qualquer modo, não importava muito. As primeiras palmas solitárias incharam para um trovão de aplausos. No palco, Stu fez uma pausa junto ao pódio, parecendo comicamente pasmo. Os aplausos foram secundados por saudações e assobios agudos.

 

Então toda a plateia levantou-se, os aplausos aumentaram até virar um som semelhante ao de chuva forte, com todos gritando "Bravo! Bravo!". Stu ergueu as mãos, porém a ovação não cessou, pelo contrário, redobrou de intensidade. Larry olhou de esguelha para Lucy e viu que ela aplaudia no maior entusiasmo, os olhos fixos em Stu, a boca encurvada em um trêmulo mas triunfante sorriso. Ela chorava. Do outro lado, Leo também aplaudia, batendo palmas com tanta força que, pensou Larry, suas mãos acabariam caindo se o garoto continuasse assim por muito tempo. No auge de sua alegria, o vocabulário recém-recuperado de Leo o tinha abandonado, assim como o inglês às vezes abandona uma pessoa que o aprende como segunda língua. Leo só conseguia uivar, ruidosa e entusiasticamente.

 

Brad e Ralph também haviam adaptado um amplificador de força ao gerador. Stu soprou no microfone e então falou:

 

- Senhoras e senhores...

 

Mas os aplausos continuaram.

 

- Senhoras e senhores, se quiserem retomar seus assentos...

 

Mas ninguém estava disposto a sentar-se de novo. Os aplausos rugiam e Larry olhou para baixo, porque sentia as mãos doendo. Só então percebeu que aplaudia tão freneticamente como os demais.

 

- Senhoras e senhores...

 

Os aplausos travejavam e ecoavam. Mais acima, uma família de andorinhas que fixara residência naquele excelente e privativo local após o surto da epidemia agora voejava loucamente, revoluteando e mergulhando, ansiosa por sair para um local onde não houvesse gente.

 

Estamos aplaudindo a nós mesmos, pensou Larry. Estamos aplaudindo o fato de estarmos aqui vivos, juntos. Talvez, estejamos novamente dizendo olá ao próprio grupo, sei lá. Olá. Boulder. Finalmente. É bom estar aqui, é ótimo estar vivo!

 

- Senhoras e senhores, queiram sentar-se, por favor, eu apreciaria muito se o fizerem.

 

Os aplausos começaram a diminuir gradativamente. Agora se podia ouvir as fungadelas das senhoras - e de alguns homens também. Narizes eram assoados. As conversas eram sussurradas. Houve aquele som roçagante de auditório quando as pessoas retomaram seus assentos.

 

- Fico contente por estarem todos aqui - disse Stu. - Também estou contente por eu mesmo estar aqui. - Houve um chiado no amplificador e Stu murmurou "Droga de engenhoca!", comentário que foi claramente captado e transmitido. Houve um ondular de riso e Stu enrubesceu. - Acho que vamos ter de nos acostumar com essas coisas outra vez - disse, e isto produziu nova explosão de aplausos.

 

Quando o silêncio retornou, Stu prosseguiu:

 

- Para aqueles que não me conhecem, sou Stu Redman, oriundo de Arnette, Texas, embora, permitam-me dizer, isto pareça bem distante daqui onde estou agora. - Ele pigarreou e o microfone chiou brevemente, fazendo-o recuar um passo, assustado. - Sinto-me um bocado nervoso aqui em cima, portanto conto com a ajuda de vocês para...

 

- Nós o ajudaremos, Stu! - gritou Harry Dunbarton exuberantemente, provocando risadas apreciativas. Parece uma reunião de acampamento, pensou Larry. Logo, todos estarão cantando hinos. Se Mãe Abagail estivesse aqui, aposto que já estariam.

 

- Da última vez em que tive tanta gente olhando para mim, foi quando nosso timinho de futebol do ginásio conseguiu chegar às finais, e na época todos nós tínhamos que encarar mais 21 sujeitos, sem falar naquelas garotas de saia curtinha.

 

Mais gargalhadas.

 

Lucy sussurrou no ouvido de Larry:

 

- Com que Stu está preocupado? Ele preenche todos os requisitos!

 

Larry assentiu.

 

- Mas se vocês todos me apoiarem - continuou Stu -, poderei dar conta do recado.

 

Mais aplausos. A multidão ali reunida aplaudiria até o discurso de renúncia de Nixon e ainda pediria que ele bisasse ao piano, pensou Larry.

 

- Em primeiro lugar, quero falar a vocês sobre o comitê ad hoc e qual o motivo que me traz aqui, afinal. Sete pessoas dentre nós decidiram reunir-se e programar este encontro, para que pudéssemos nos organizar de algum modo. Há muita coisa por fazer, e gostaria de apresentar-lhes cada membro do nosso comitê. Espero que tenham guardado alguns aplausos para eles, pois uniram esforços para elaborar a agenda que todos vocês agora têm em mãos. Para começar, a Srta. Frances Goldsmith. Levante-se, Frannie, e deixe que vejam como você parece usando um vestido.

 

Fran levantou-se. Usava um belo vestido verde e um modesto colar de pérolas que, nos velhos tempos, teriam custado 2 mil dólares. Foi francamente aplaudida, os aplausos acompanhados por alguns assobios de galanteio.

 

Fran se sentou, bastante ruborizada, e antes que os aplausos cessassem por completo, Stu prosseguiu:

 

- O Sr. Glen Bateman, de Woodsville, New Hampshire.

 

Glen se levantou e foi aplaudido. Acenou para todos e a plateia rugiu sua aprovação.

 

Stu apresentou Larry, que se levantou, cônscio de que Lucy sorria para ele, e então ficou perdido em meio ao cálido vagalhão de aplausos que lhe eram dirigidos. Uma vez, pensou, em outro mundo, haveria concertos, e assim este tipo de aplauso seria reservado para o encerramento do espetáculo, com uma pequena canção chamada "Garota, você saca o seu homem?". Isto aqui era melhor. Ele ficou de pé apenas um segundo, porém pareceu muito mais tempo. Agora sabia que não recusaria sua indicação.

 

Stu apresentou Nick por último, e ele obteve a mais prolongada e mais ruidosa ovação.

 

Terminados os aplausos, Stu disse:

 

- Isto não constava da agenda, mas seria bom se pudéssemos começar cantando o hino nacional. Acho que todos vocês se lembram da letra e da melodia.

 

Houve aquele som rastejante, de pés se movendo, quando as pessoas começaram a se levantar. Outra pausa, enquanto todos esperavam que alguém começasse. Então uma voz doce, jovem e feminina elevou-se no ar, mas solitária no início: "Ah, digam que podem..." Era a voz de Frannie, mas por um momento Larry teve a impressão de que estava sublinhada por outra voz, a dele, e o lugar não era Boulder, mas sim a parte alta de Vermont, e o dia era o Quatro de Julho, a república completava 214 anos de idade e Rita jazia morta na tenda atrás dele, a boca inundada de vômito esverdeado e tendo um frasco de pílulas na mão enrijecida.

 

Um calafrio gelado o acometeu e de repente sentiu que estavam sendo vigiados, espionados por algo que, como nas palavras da velha canção dos The Who, enxergava por quilômetros de distância. Alguma coisa apavorante, sombria e alienígena. Por um breve momento sentiu uma ânsia de fugir dali, começar a correr sem parar. Não havia nenhum jogo naquele lugar. Aquilo era um negócio sério; negócio de matar. Talvez pior.

 

Então outras vozes se juntaram no hino. "... podem ver, ao primeiro brilho da aurora", e Lucy estava cantando, segurando sua mão e chorando outra vez. E outros também choravam, a maioria chorava, chorava pelo perdido, amargo e desaparecido sonho americano, um sonho em cromado e rodas, movido a combustível, saindo da linha de montagem. De súbito, o pensamento de Larry não estava mais em Rita morta na tenda, mas nele e em sua mãe no Yankee Stadium - era 29 de setembro, os Yankees estavam apenas a um jogo e meio do líder Red Sox, e tudo podia acontecer. Havia 55 mil pessoas no estádio, todas de pé, os jogadores no campo com os bonés sobre o coração, Guidry na elevação do lançador, Rickey Henderson de pé na extrema esquerda ("... ao último fulgor do crepúsculo..."), e acesos os refletores ao lusco-fusco purpúreo do entardecer, mariposas e insetos voadores noturnos chocando-se suavemente contra eles. E em volta de tudo, Nova York, apinhada, cidade da noite e da luz.

 

Larry uniu sua voz ao coro e, terminado o hino, os aplausos espocando mais uma vez, ele também chorava um pouco. Rita se fora. Alice Underwood se fora. Nova York se fora. A América se fora. Mesmo que pudessem derrotar o homem escuro, Randall Flagg, qualquer coisa que pudessem fazer, nada seria igual àquele mundo de ruas escuras e sonhos vívidos.

 

Suando intensamente debaixo das brilhantes luzes de emergência, Stu expôs os primeiros itens: leitura e ratificação da Constituição e da Carta dos Direitos. Cantar o hino nacional também o afetara profundamente, e ele não foi o único. Metade da plateia, talvez mais, estava em lágrimas.

 

Ninguém exigiu uma leitura real de cada documento - o que teria sido um direito sob o processo parlamentarista -, pelo que Stu ficou profundamente grato. Não era muito bom em leituras. A seção "lida" de cada item foi aprovada pelos cidadãos da Zona Franca. Glen Bateman levantou-se e propôs que aceitassem ambos os documentos como governando a lei da Zona Franca.

 

- Tem minha aprovação! - gritou uma voz ao fundo.

 

- Proposto e aprovado - disse Stu. - Aqueles que estão a favor, digam sim!

 

- SIM! - O brado subiu até o teto. Kojak, que estivera dormindo junto à cadeira de Glen, ergueu os olhos, piscou e tornou a apoiar o focinho sobre as patas. Um momento mais tarde, voltou a erguer a vista, quando a plateia aplaudiu estrondosamente a si mesma.

 

Encerrada esta preliminar, Stu sentiu a tensão esgueirar-se por seus músculos. Agora, pensou, vamos ver se há surpresas desagradáveis à nossa espera.

 

- O terceiro item de nossa agenda diz - começou ele e então pigarreou para limpar a garganta novamente. O microfone emitiu um guincho estridente, fazendo-o suar ainda mais. Fran olhava tranqüilamente para ele, fazendo sinal para que continuasse. - Aqui diz: "Providenciar para que a Zona Franca indique e eleja um quadro de sete representantes da Zona Franca." Isto significa...

 

- Sr. Presidente? Sr. Presidente!

 

Stu ergueu os olhos de suas notas rascunhadas e sentiu uma onda de puro medo, seguida por algo semelhante a uma premonição. Era Harold Lauder. Estava vestido de terno e gravata, os cabelos bem penteados, agora de pé na metade do corredor central. Certa vez Glen disse achar que a oposição poderia aglutinar-se em torno de Harold. Mas tão cedo? Ele esperava que não. Por um breve momento pensou intensamente em não dar a palavra a Harold - mas Nick e Glen já o tinham alertado sobre os perigos inerentes em deixar qualquer parte daquilo parecer feito a toque de caixa. Imaginou se estivera enganado quanto a Harold ter se tornado um novo homem. Tudo indicava que ia descobrir isso ali mesmo.

 

- A presidência dá a palavra a Harold Lauder.

 

Cabeças se viraram, pescoços espichados para ver Harold melhor.

 

- Eu gostaria de propor que aceitemos o quadro do comitê ad hoc in toto como comitê permanente. Se ele funcionar, é claro. - Harold sentou-se.

 

Houve um momento de silêncio. Stu pensou, desnorteadamente: Toto? Toto? Não era o nome do cachorro em O Mágico de Oz?

 

Então os aplausos se intensificaram novamente, enchendo o recinto junto com gritos de "Apoiado!". Harold permanecia placidamente acomodado em seu assento, sorrindo e falando para as pessoas que lhe davam tapinhas nas costas.

 

Stu precisou bater várias vezes com o martelo para obter silêncio.

 

Ele planejou tudo isso, Stu pensou. Essas pessoas irão nos eleger, mas será de Harold que se lembrarão. Ainda assim, ele chegou à raiz da coisa de uma maneira que nenhum de nós pensou, nem mesmo Glen. Foi praticamente uma tremenda jogada de gênio. Então, por que estaria tão preocupado? Ciúmes, talvez? Será que suas boas intenções em relação a Harold, assumidas ainda na véspera, já estavam indo pro espaço?

 

- Há uma moção apresentada! - Stu gritou ao microfone, ignorando o chiado desta vez. - Uma moção foi apresentada, companheiros! - Bateu o martelo e o alarido se reduziu a um murmúrio. - Foi proposto e apoiado que aceitemos o comitê ad hoc como Comitê Permanente da Zona Franca de Boulder. Antes de passarmos à discussão da proposta ou à votação, devo perguntar se algum integrante do comitê ad hoc tem alguma objeção ou intenção de renunciar.

 

Silêncio na plateia.

 

- Muito bem - disse Stu. - Vamos discutir a moção?

 

- Não creio que haja necessidade de qualquer discussão, Stu - declarou Dick Ellis. - É uma grande ideia. Vamos logo votar!

 

Isto foi acolhido com aplausos, de modo que Stu não precisou mais insistir no assunto. Charlie Impening acenava com a mão pedindo a palavra, mas Stu ignorou-o - um bom caso de percepção seletiva, como diria Glen Bateman - e convocou a votação.

 

- Aqueles a favor da moção de Harold Lauder, por favor, confirmem dizendo sim.

 

- Sim! - gritaram, assustando novamente as andorinhas.

 

- Alguém contra?

 

Ninguém se manifestou, nem mesmo Charlie Impening - pelo menos verbalmente. Assim, Stu passou para o tema seguinte sentindo-se meio aturdido, como se alguém - mais precisamente Harold Lauder - tivesse chegado sorrateiro por trás e lhe batido na cabeça com um porrete.

 

- Vamos desmontar e empurrá-las um pouco, está bem? - pediu Frannie, parecendo cansada.

 

- Claro. - Stu saltou da bicicleta e caminhou ao lado dela. - Está se sentindo bem, Fran? O bebê incomoda?

 

- Não. Estou apenas cansada. É 1h15 da madrugada... ou será que você não reparou?

 

- Sim, já é bem tarde - concordou Stu e começaram a empurrar as bicicletas lado a lado em amistoso silêncio. A assembleia prosseguira até uma hora atrás, a maior parte da discussão focalizada nos grupos de busca por Mãe Abagail. Todos os demais assuntos foram aprovados com um mínimo de discussão, embora o juiz Farris tivesse proporcionado uma valiosa informação que explicava por que havia tão poucos cadáveres em Boulder. Segundo os quatro últimos números de Camera, o jornal diário local, espalhara-se pela comunidade um desenfreado rumor de que a supergripe se originara nas instalações do Centro de Observação Atmosférica de Boulder, na Broadway. Porta-vozes do Centro - os poucos que continuavam de pé - protestaram, alegando que isso era pura tolice. E que qualquer um que duvidasse teria livre acesso á instalação, onde nada encontraria de mais perigoso do que os indicadores de poluição atmosférica e dispositivos vetoriais do vento. Mesmo assim os boatos persistiram, talvez alimentados pela comoção histérica daqueles dias finais de junho. O Centro havia sido explodido a bomba ou incendiado, após o que grande parte da população de Boulder pusera-se em fuga. O Comitê de Sepultamentos e o Comitê de Energia Elétrica haviam sido aprovados, com uma emenda de Harold Lauder - que parecia quase surpreendentemente preparada para a assembleia - para que cada comitê fosse acrescido de dois membros a cada aumento de cem pessoas na população total da Zona Franca.

 

O Comitê de Busca também foi eleito sem oposição, mas a discussão sobre o desaparecimento de Mãe Abagail tinha sido demorada. Glen aconselhara Stu antes da assembleia a não limitar a discussão a esse tópico, a não ser se absolutamente necessário; era preocupante para todos eles, especialmente a ideia de que sua líder espiritual acreditava ter cometido algum tipo de pecado. Era melhor que todos desabafassem.

 

No verso de seu bilhete, Abagail rabiscara duas referências bíblicas: Provérbios 11:1-3 e Provérbios 21:28-31. O juiz Farris havia procurado as referências com a cuidadosa diligência de um advogado elaborando uma petição e, ao início do debate, levantou-se e os leu em sua voz rachada e apocalíptica de velho. Os versículos do 11º capítulo de Provérbios diziam: "Balança enganosa é abominação para o Senhor, mas o peso justo é o seu prazer. Vindo a soberba, virá também a afronta, mas com os humildes está a sabedoria. A sinceridade dos sinceros os encaminhará, mas a perversidade dos desleais os destruirá." A citação do capítulo 21 era similar: "A testemunha mentirosa perecerá, mas o homem que ouve falará sem imputação. O homem ímpio endurece o seu rosto, mas o reto considera o seu caminho. Não há sabedoria, nem inteligência, nem conselho contra o Senhor. O cavalo prepara-se para o dia da batalha, mas do Senhor vem a vitória."

 

A conversa que se seguiu (não poderia ser outra) à leitura pelo juiz desses versículos bíblicos estendeu-se além da conta (às vezes sendo até cômica). Um homem declarou sobriamente que se os números dos capítulos fossem aumentados poder-se-ia chegar a 31, o número de capítulos do Apocalipse. O juiz levantou-se de novo para dizer que o Apocalipse tinha somente 28 capítulos, pelo menos na Bíblia dele, e que, de qualquer modo, 21 mais 11 davam 32 e não 31 - O pretenso numerólogo resmungou, porém não disse mais nada.

 

Outro sujeito declarou ter visto luzes no céu na noite anterior ao desaparecimento de Mãe Abagail e que o profeta Isaías confirmara a existência de discos voadores... de modo que era melhor todos fumarem um cachimbo da paz coletivo, não era? O juiz Farris levantou-se uma vez mais, agora para assinalar que o homem confundira Isaías com Ezequiel e que a referência exata não era a discos voadores, mas a "uma roda dentro de uma roda", sendo o próprio juiz de opinião de que os únicos discos voadores de existência comprovada eram os pratos que às vezes voavam durante brigas conjugais.

 

Boa parte da outra discussão foi uma nova apresentação dos sonhos, que tinham cessado por completo, até onde se sabia, e agora pareciam eles próprios um tanto em forma de sonho. Uma pessoa após outra levantou-se para protestar contra a acusação de Mãe Abagail a si mesma, a respeito do orgulho. Tais pessoas mencionaram a sua cortesia e a aptidão para deixar alguém à vontade apenas com uma palavra ou frase. Ralph Brentner, que parecia atemorizado pelo tamanho da multidão e quase ficara de boca amarrada - mas decidido a vender seu peixe -, levantou-se e falou dessa capacidade de Mãe Abagail por quase cinco minutos, acrescentando ao final que jamais conhecera mulher mais refinada, desde que sua mãe morrera. Ao voltar a sentar-se, estava à beira das lágrimas.

 

Analisada em conjunto, a discussão fez Stu recordar com desconforto de um velório. Isso lhe disse que, no fundo, todos já estavam quase propensos a dar Mãe Abagail por morta. Se voltasse agora, Abby Freemantle seria acolhida com alegria, continuaria sendo procurada, ouvida... mas ela também perceberia, pensou Stu, que sua posição sofrera uma sutil mudança. Se ocorresse um confronto entre ela e o Comitê da Zona Franca, desapareceria o prejulgamento de que venceria, com poder de veto ou não. Mãe Abagail se fora, mas a comunidade continuava a existir. A comunidade não esqueceria isso, embora já estivesse meio esquecido o poder dos sonhos que haviam reunido todos eles.

 

Após a reunião, mais de vinte pessoas ficariam sentadas por algum tempo no gramado atrás do Chautauqua; a chuva cessara, as nuvens esfiapavam-se e o anoitecer era agradavelmente fresco. Stu e Fran tinham ficado sentados com Larry, Lucy, Leo e Harold.

 

- Você quase nos roubou a cena esta noite - disse Larry a Harold. Cutucou Frannie com o cotovelo. - Eu não lhe disse que ele era de primeira classe?

 

Harold limitava-se a sorrir, dando de ombros.

 

- Foram duas ideias que tive, nada mais. Vocês sete puseram as coisas em movimento outra vez. Certamente tiveram pelo menos o privilégio de ver isto se desenvolvendo do início ao fim.

 

Agora, 15 minutos depois de deixarem aquela reunião improvisada e ainda a dez minutos de casa, Stu repetia:

 

- Tem certeza de que está se sentindo bem?

 

- Tenho. Minhas pernas é que estão um pouco cansadas, nada mais.

 

- Tem que ir com calma, Frances.

 

- Não me chame assim, você sabe que detesto.

 

- Desculpe. Não faço mais, Frances.

 

- Todos os homens são uns escrotos.

 

- Estou tentando melhorar meu comportamento, Frances... sinceramente.

 

Ela mostrou-lhe a língua, que chegou a um interessante ponto, mas ele podia dizer-lhe que não estava sinceramente de caçoada e deixou passar. Ela parecia pálida e um tanto apática, em assustado contraste com a Frannie que tinha cantado o hino nacional poucas horas antes.

 

- Alguma coisa a entristece, meu bem?

 

Ela fez que não com a cabeça, mas ele achou ter visto lágrimas em seus olhos.

 

- O que é? Me conte.

 

- Não há nada. Esse é que é o problema. Nada é o que está me incomodando. Acabou, e finalmente percebi que não há mais nada. Menos de seiscentas pessoas cantando o hino. Foi algo que me ocorreu de repente. Não tem mais quiosques de cachorro-quente. As barcas de roda não estão mais contornando Coney Island à noite. Ninguém está mais tomando a saideira no Space Needle, em Seattle. Alguém finalmente descobriu um meio de acabar com o tráfico de drogas na Zona de Combate de Boston e com a prostituição em Times Square. Eram coisas terríveis, mas acho que a cura foi bem pior do que a doença. Entende o que quero dizer?

 

- Sim, entendo.

 

- No meu diário eu tinha uma pequena seção chamada "Coisas a Recordar". Para que o bebê soubesse... ah, todas as coisas que nunca saberá. E fico triste quando penso nisso. Eu devia ter chamado a seção de "Coisas que se Foram". - Ela soluçou um pouco e parou a bicicleta para poder tapar a boca com o dorso da mão e conter os soluços.

 

- Percebi que todo mundo está se sentindo da mesma maneira - disse Stu, pondo um braço em tomo dela. - Esta noite muita gente vai chorar até pegar no sono, pode crer.

 

- Não entendo como se pode lamentar por um país inteiro - replicou ela, o choro aumentando -, mas creio que é possível. Aquelas... aquelas pequenas coisas do cotidiano insistem em penetrar na minha mente. Vendedores de carros. Frank Sinatra. Old Orchard Beach em julho apinhada de gente, a maioria vindo de Quebec. Aquele imbecil na MTV... Randy, acho que o nome era esse. Aqueles tempos... ah, meu Deus, estou percebendo um daqueles poemas de te-terror de Rod Muh-McKuen!

 

Ele a abraçou, dando-lhe tapinhas nas costas, e recordou uma vez em que sua tia Betty tivera um acesso de choro por causa de um bolo que ficara solado. Estava com uns sete meses de gravidez de sua priminha Laddie, e Stu ainda se lembrava dela enxugando os olhos com a ponta de um pano de prato, dizendo a ele que não ligasse, que qualquer grávida estava a dois passos da enfermaria de loucos, porque os fluidos expelidos por suas lágrimas misturavam-se todos, como em um ensopado.

 

Após algum tempo, Frannie disse:

 

- Tudo bem, tudo bem. Já estou melhor. Vamos.

 

- Frannie, eu te amo - disse ele e tornaram a pegar as bicicletas.

 

Ela perguntou a ele:

 

- Do que é que você se lembra melhor? Qual a coisa?

 

- Bem, você sabe... - disse ele e se interrompeu com uma breve risada.

 

- Não, não sei, Stuart.

 

- É loucura.

 

- Me conte.

 

- Não sei se quero contar. Você começará a procurar os pescadores para ouvir as lorotas deles.

 

- Me conte! - Ela já vira Stu em diversos estados de ânimo, mas esta inquietude embaraçosa era nova para ela.

 

- Nunca contei a ninguém - disse ele -, mas estive pensando nisso nas duas últimas semanas. Algo aconteceu comigo lá para os idos de 1982. Eu estava trabalhando no posto de gasolina de Bill Hapscomb. Ele costumava me dar um bico quando eu estava de folga na fábrica de calculadoras. Era em meio expediente, das onze da noite até fechar, que era por volta das três da madrugada naquele tempo. Não havia muito movimento depois que o pessoal saído do turno de três às onze na fábrica de papel parava para abastecer... muitas noites não havia um único carro parando para abastecer entre meia-noite e três da madrugada. Eu ficava lá sentado e lia um livro ou uma revista, e diversas noites até cochilava, sabe disso?

 

- Sei. - Ela sabia. No olho de sua mente ela podia vê-lo, o homem que se tornaria seu amante na plenitude dos tempos e na peculiaridade dos acontecimentos, um homem de ombros largos dormindo numa cadeira de plástico com um livro aberto e o rosto baixado para o colo. Ela o via dormindo numa ilha de luz branca, uma ilha circundada por um grande mar interior na noite do Texas. Ela o amava assim retratado, bem como o amava em todos os retratos que sua mente esboçava.

 

- Bem, já eram 2h15 da madrugada e eu estava sentado com os pés em cima da mesa de Hap, lendo um livro de faroeste... Louis L’Amour, Elmore Leonard, um desses caras, e aí apareceu aquele velho Pontiac grande, com todos os vidros baixados e o alto-falante a todo o volume tocando loucamente Hank Williams. Até mesmo me lembro da canção... era "Movin’ On". Esse cara, nem jovem nem velho, estava sozinho. Era um homem bem-apessoado, mas de certo modo um pouco assustador... quero dizer, ele parecia como se pudesse fazer coisas assustadoras sem pensar muito a respeito. Tinha cabelos pretos bastos e encaracolado::. Havia uma garrafa de vinho aninhada entre suas pernas e dois dados de plástico pendendo do espelho retrovisor. Ele pede gasolina especial, eu digo OK, mas por um minuto apenas fiquei parado ali, olhando para ele. Porque achei que o conhecia. Tentava me lembrar de onde.

 

Estavam na esquina agora; seu prédio ficava do outro lado da ma. Pararam ali. Frannie o fitava detidamente.

 

- Portanto, eu disse: "Não conheço você? Por acaso não é lá daquelas bandas de Corbett ou Maxin?" Mas realmente não parecia que eu o conhecesse dessas duas cidades. E ele diz: "Não, mas uma vez passei por Corbett com minha família, quando ainda era garoto. Parece que passei por cada pedaço do país quando era garoto. Meu pai era da Força Aérea."

 

Stu continuou narrando:

 

- Então voltei para trás e abasteci seu carro, e o tempo todo fiquei pensando nele, tentando situar seu rosto, e de repente me ocorreu. De repente eu soube. E fiquei pau da vida comigo mesmo, porque o homem ao volante do Pontiac supostamente deveria estar morto.

 

- Quem era ele, Stuart? Quem era?

 

- Não, deixe-me contar ao meu modo, Frannie. Não que não seja uma história louca, não importa o jeito como é contada. Voltei à janela e disse: "São 6 dólares e 30 centavos." Ele me deu duas notas de 5 dólares mandou-me guardar o troco. E eu disse: "Acho que poderia reconhecê-lo agora." E ele: "Bem, talvez possa", e então me dá aquele gélido e estranho sorriso, e o tempo todo Hank Williams está cantando acerca de ir para a cidade. Digo: "Se você é quem estou pensando, deveria estar morto." Ele responde: "Você não pode acreditar em tudo que lê, cara." E eu: "Você gosta de Hank Williams, certo?" Foi tudo que pude imaginar para dizer. Porque vi, Frannie, que se não dissesse alguma coisa, ele ia simplesmente erguer o vidro da janela e cair na estrada... e eu queria que se fosse, e ao mesmo tempo não queria. Não ainda. Não até que tivesse certeza. Não sabia à época que uma pessoa nunca tem certeza de um monte de coisas, não importa o quanto queira ter.

 

Stu fez uma pausa e continuou:

 

- Ele diz: "Hank Williams é um dos melhores. Gosto de música de estrada." Depois acrescenta: "Estou indo para Nova Orleans. Vou dirigir a noite toda, dormir o dia inteiro amanhã, depois farrear a noite toda. Não é a mesma coisa? Nova Orleans?" Eu digo: "Como o quê?" E ele: "Bem, você sabe." E eu digo: "Bem, é tudo o Sul, embora haja muito mais árvores por aquele caminho abaixo." Isso o faz rir e ele diz: "Talvez eu veja você de novo." Mas eu não sabia se queria revê-lo, Frannie. Porque ele tinha os olhos de um homem que esteve tentando enxergar no escuro por muito tempo e talvez tenha começado a ver o que existe lá. Creio que se algum dia tivesse visto esse tal de Flagg, seus olhos deveriam ser desse tipo.

 

Stu sacudiu a cabeça enquanto eles empurravam suas bicicletas ao longo da rua e as estacionavam.

 

- Estive pensando nisso. Pensei em arranjar alguns dos discos dele depois disso, mas eu não os queria. A voz dele... é uma boa voz, mas me causa arrepios.

 

- Stuart, de quem você está falando?

 

- Lembra-se de um grupo de rock chamado The Doors? O homem que parou no posto de gasolina em Arnette naquela noite era Jim Morrison. Tenho certeza.

 

Fran ficou boquiaberta.

 

- Mas ele morreu! Ele morreu na França! Ele... - Então se interrompeu. Porque houvera alguma coisa esquisita em relação à morte de Morrison, não houvera? Alguma coisa secreta.

 

- É mesmo? - perguntou Stu. - Fico imaginando. Talvez tenha morrido e o cara que vi se parecesse com ele, mas...

 

- Você acha realmente que se parecia? - perguntou ela.

 

Estavam sentados nas escadas do seu prédio agora, os ombros se tocando, como crianças pequenas esperando que a mãe as chamasse para jantar.

 

- Sim - disse ele. - Acho. E até este verão pensava que seria para sempre a coisa mais estranha que já me aconteceu. Mas estava errado.

 

- E você nunca contou a ninguém - espantou-se ela. - Você viu Jim Morrison anos depois de ele estar supostamente morto e nunca contou a ninguém. Stuart Redman, Deus devia ter-lhe dado um cadeado no lugar da boca quando o pôs no mundo.

 

Stu sorriu.

 

- Bem, os anos foram passando, como se diz nos livros, e toda vez que pensava naquela noite... o que acontecia de tempos em tempos... eu ficava cada vez mais certo de que não era ele, afinal. Apenas alguém que se parecia um pouco com ele. E tirei isso da cabeça de uma vez por todas. Mas, nas últimas poucas semanas, me descobri novamente intrigado com o assunto. E penso cada vez mais que era ele. Diabo, ele bem que poderia estar vivo exatamente agora. Seria engraçado paca, não é?

 

- Se ele estiver vivo - disse ela -, não se encontra aqui.

 

- Não - concordou Stu -, eu não esperaria que estivesse. Vi os olhos dele, entende?

 

Ela pôs a mão no braço dele.

 

- É uma história e tanto.

 

- É, e provavelmente há 20 milhões de pessoas neste país com uma história parecida... só que relativa a Elvis Presley ou Howard Hughes.

 

- Não há mais tanta gente.

 

- Não... não há mais. O Harold foi uma parada esta noite, não?

 

- Creio que está querendo mudar de assunto.

 

- Creio que você está certa.

 

- Sim - concordou ela. - Ele foi.

 

Stu sorriu ao tom preocupado dela e ao leve franzir de sobrancelhas.

 

- Ele a incomodou um pouco, não foi?

 

- Sim, mas eu não diria tanto. Você está do lado dele agora.

 

- Ora, não está sendo justa, Fran. Isso também me incomodou. Já havíamos tido duas reuniões anteriores... tudo perfeitamente planejado para funcionar... pelo menos era o que pensávamos... e então surge Harold. Ele dá uma alfinetada aqui, outra ali, e depois diz: "Não era isso mesmo que pretendiam?" E respondemos: "Sim, era isso mesmo, obrigado, Harold. Você está certo." - Stu sacudiu a cabeça. - Instigar todo mundo para uma eleição geral, como é que nunca pensamos nisso, Fran? Foi um tiro na mosca. E nunca sequer discutimos isso!

 

- Na verdade, nenhum de nós sabia qual era o estado de ânimo dos outros durante a assembleia. Imaginava... especialmente depois do sumiço de Mãe Abagail... que todos estivessem irritados, talvez até mesquinhos. Com aquele Impening falando para eles como um corvo agourento...

 

- Eu me pergunto se ele deveria ser calado de algum modo - comentou Stu, pensativo.

 

- Só que não foi como eu pensava. Eles estavam tão... exuberantes pelo simples fato de se reunir. Percebeu isso?

 

- Sim, percebi.

 

- Foi quase um desses revivals religiosos realizados em tendas. Não creio que Harold tivesse planejado isso. Ele simplesmente agarrou o momento.

 

- Não sei o que pensar sobre ele - disse Stu. - Naquela noite, depois que procuramos por Mãe Abagail, cheguei a sentir pena. Quando Ralph e Glen chegaram, ele parecia terrivelmente abatido, como se fosse desfalecer ou algo assim. No entanto, quando estivemos conversando no gramado há pouco, quando todos o felicitavam, ele parecia inchado como um sapo. Dava a impressão de sorrir da boca para fora, enquanto por dentro dizia: "Estão vendo agora como o comitê de vocês não vale nada, bando de idiotas?" Ele é como um daqueles quebra-cabeças que a gente nunca podia imaginar quando era criança. Os puxadores de dedos chineses ou aqueles três anéis de aço que se separam se a gente os puxar da maneira correta.

 

Fran estendeu os pés e olhou para eles.

 

- Por falar em Harold, você nota alguma coisa engraçada em meus pés, Stuart?

 

Stu fitou-lhe os pés com atenção.

 

- De modo algum. Vejo apenas que está usando aqueles tênis curiosos lá do fim da rua. E estão enormes nos seus pés, claro.

 

Ela deu um tapinha em Stu.

 

- Este modelo de tênis é excelente para os pés, como as melhores revistas anunciam. Aliás, para sua informação, eu calço 37, um tamanho relativamente pequeno.

 

- Afinal, o que têm seus pés a ver com alguma coisa? Já é tarde, meu bem.

 

Stu começou a empurrar a bicicleta e Fran o imitou.

 

- Nada, acho. Acontece que Harold não parou de olhar para os meus pés o tempo todo. Depois da assembleia, quando estávamos sentados no gramado, conversando. - Ela balançou a cabeça e franziu ligeiramente a testa. - Ora, por que Harold Lauder estaria interessado em meus pés?

 

Quando Larry e Lucy chegaram em casa, vinham sozinhos, caminhando de mãos dadas. Pouco antes, Leo fora para a casa onde morava com "mãe-Nadine". Agora, ao caminharem para a porta, Lucy disse:

 

- Foi uma assembleia e tanto. Nunca pensei... - As palavras ficaram presas na sua garganta quando uma forma escura se destacou das sombras do alpendre. Larry sentiu o medo candente saltar em sua garganta. É ele, pensou loucamente. Veio atrás de mim... e vou ver seu rosto.

 

Mas então especulou como pudera pensar tal coisa, já que a sombra era Nadine Cross, nada mais. Trajava um vestido de tecido macio cinza-azulado, os cabelos soltos caindo sobre os ombros e pelas costas, uma cabeleira negra raiada de fios alvíssimos.

 

Ela faz Lucy parecer um carro usado num pátio de especuladores, pensou ele quase sem querer e odiou-se pela comparação. Era o velho Larry falando... o velho Larry falando... o velho Larry? Seria melhor dizer o velho Adão.

 

- Nadine! - exclamou Lucy, trêmula, levando a mão ao peito. - Você me deu o maior susto de minha vida! Pensei que... bem, nem sei o que pensei.

 

Nadine ignorou Lucy.

 

- Posso falar com você? - perguntou a Larry.

 

- Quê? Agora? - Ele olhou de esguelha para Lucy, ou pensou ter olhado... mais tarde não seria capaz de recordar como ela ficara naquele momento. Foi como se tivesse sido eclipsada, mas por uma estrela escura, em vez de brilhante.

 

- Agora. Tem de ser agora.

 

- Pela manhã não seria...

 

- Tem de ser agora, Larry. Ou nunca mais.

 

Larry tomou a olhar para Lucy e desta vez pôde vê-la, notar a resignação em seu rosto enquanto olhava alternadamente dele para Nadine. Notou também a mágoa.

 

- Eu entro em um minuto, Lucy.

 

- Ah, não, não entrará - disse ela, apática. Lágrimas começaram a reluzir nos seus olhos. - Não entrará. Duvido muito.

 

- Dez minutos, então.

 

- Dez minutos, dez anos - disse Lucy. - Ela veio buscar você. Trouxe a coleira e a focinheira, Nadine?

 

Para Nadine, Lucy Swann não existia. Seus olhos fixavam-se apenas em Larry, aqueles olhos escuros e grandes. Para Larry, seriam sempre os olhos mais estranhos e mais belos que já vira, olhos que se voltam para a gente, calmos e profundos, quando estamos feridos, com problemas, ou talvez apenas desorientados pelo pesar.

 

- Não vou demorar, Lucy - disse Larry automaticamente.

 

- Ela...

 

- Entre.

 

- Sim. Acho que vou entrar. Ela chegou. Fui dispensada.

 

Lucy subiu os degraus correndo, tropeçou no último, reequilibrou-se, empurrou a porta para entrar e bateu-a atrás de si com um estrondo que abafou os soluços que haviam começado.

 

Nadine e Larry entreolharam-se por muito tempo, como que fascinados. É assim que acontece, pensou ele. Quando você capta os olhos de alguém do outro lado de um salão e nunca mais os esquece, ou se vê alguém na extremidade oposta de uma plataforma superlotada do metrô que poderia ser seu sósia, ou ouve uma risada na ma que poderia ter sido a risada da sua primeira namorada...

 

Mas havia um travo muito amargo na sua boca.

 

- Vamos caminhar até a esquina e voltar - disse Nadine em voz baixa. - Faria isso?

 

- É melhor eu entrar e ficar com ela. Você escolheu uma péssima hora para vir aqui.

 

- Por favor, é só ir até a esquina e voltar. Se quiser, eu lhe suplico de joelhos. Se for isto que quiser. Pronto, está vendo?

 

E, para seu horror, ela caiu de joelhos, erguendo um pouco a saia para que pudesse fazê-lo, exibindo-lhe as pernas nuas, deixando-o curiosamente certo de que ela estava completamente nua por baixo da saia. Por que pensava isso? Não sabia. Os olhos de Nadine fixavam-se nele, fazendo sua cabeça rodar, e houve uma nauseante sensação de poder envolvida em algum lugar aqui, envolvida com tê-la ajoelhada diante de si, a boca nivelada com...

 

- Levante-se! - disse ele asperamente. Tomou-lhe as mãos e puxou-a de pé, tentando não ver o modo como a saia subia ainda mais antes de cair de volta no lugar; as coxas dela tinham a cor de creme, aquele tom de branco que não é pálido e sem vida, mas sim vigoroso, saudável e provocante. - Vamos - instou ele, quase totalmente enervado.

 

Seguiram para oeste, na direção das montanhas, que eram uma presença negativa mais adiante, retalhos triangulares de escuridão borrando as estrelas que surgiram depois da chuva. Caminhar na direção daquelas montanhas à noite sempre o deixara estranhamente inquieto, mas de algum modo destemido, e agora com Nadine a seu lado, a mão dela repousando levemente na dobra de seu cotovelo, tais sensações pareceram se intensificar. Ele sempre tivera sonhos vívidos, e os tivera três ou quatro noites atrás, acerca daquelas montanhas; sonhara que havia gigantes nela, criaturas horrendas com olhos verdes brilhantes, as desproporcionais cabeças de cretinos hidrocefálicos e com poderosas mãos de dedos curtos. Mãos de estrangulador. Gigantes idiotas, guarnecendo os desfiladeiros das montanhas. Esperando até que a hora dele fosse chegada - a hora do homem escuro.

 

Uma brisa suave serpenteou ma abaixo, soprando papéis à sua frente. Passaram pelo King Sooper’s, com alguns carrinhos de compras parados no grande estacionamento como sentinelas mortas, fazendo-o pensar no túnel Lincoln. Encontrara criaturas assim no túnel Lincoln. Estavam mortas, mas isso não significava que todos os gigantes nesse seu novo mundo estivessem mortos.

 

- É difícil - disse Nadine, ainda em voz baixa. - Ela torna tudo isso difícil porque está certa. Eu quero você agora. E receio que seja tarde demais. Quero permanecer aqui.

 

- Nadine...

 

- Não! - disse ela furiosamente. - Deixe-me terminar. Quero permanecer aqui, será que não consegue entender? E se estivermos juntos, serei capaz disso. Você é minha última chance - disse ela, a voz entrecortada. - Joe se foi agora.

 

- Não, não se foi - replicou Larry, sentindo-se lerdo, estúpido e desnorteado. - Nós o deixamos com você a caminho de casa. Ele não está lá?

 

- Não. Quem está é um garoto chamado Leo Rockway, adormecido na cama dele.

 

- O que está...

 

- Ouça - insistiu ela. - Ouça-me, você não pode ouvir? Enquanto tive Joe, eu estava bem. Eu podia... ser tão forte como tinha de ser. Mas ele não precisa mais de mim. E sinto falta de ser necessária.

 

- Ele precisa de você!

 

- Claro que precisa - retrucou Nadine, e Larry sentiu medo de novo. Ela não estava mais falando sobre Joe; ele não sabia sobre quem ela falava. - Ele precisa de mim. É disso que tenho medo. É por isso que vim procurá-lo. - Ela parou diante dele e olhou para cima, seu queixo de lado. Larry pôde aspirar-lhe um secreto perfume de limpeza e a desejou. Mas parte dele retomava a Lucy. Era a parte de que precisava, se pretendia fixar-se aqui em Boulder. Se a largasse e fosse com Nadine, poderiam escapulir de Boulder ainda esta noite. Tudo estaria acabado para ele. O velho Larry triunfante.

 

- Tenho de ir para casa - disse ele. - Sinto muito. Você terá que sair dessa por conta própria, Nadine. - Sair dessa por conta própria não eram as palavras que ele vinha usando com as pessoas de uma forma ou outra, por toda a sua vida? Por que tinham de aflorar desta maneira, quando sabia que estava certo? Por que ainda o prendiam e amarravam e o faziam duvidar de si mesmo?

 

- Faça amor comigo - disse Nadine e pôs os braços em volta do seu pescoço. Pressionou o corpo contra ele e Larry soube que, pela frouxidão, calor e elasticidade daquele corpo, ele estivera certo, que ela usava o vestido e nada mais. Nua por baixo, pensou, e isto o excitou tremendamente. - Está tudo bem, posso sentir você - disse ela e começou a se esfregar contra ele, de lado, para cima e para baixo, criando uma deliciosa fricção. - Faça amor comigo e será o fim disso. Estarei salva. Salva. Estarei salva.

 

Ele ergueu os braços e, mais tarde, nunca veio a saber como foi capaz de fazê-lo, quando podia ter se enfiado no calor dela em apenas três rápidos movimentos e uma estocada, do jeito como ela queria, mas, de alguma maneira, ergueu os braços, afastou as mãos que o enlaçavam e empurrou-a com tal força que Nadine tropeçou e quase caiu, soltando um gemido baixo.

 

- Larry, se você soubesse...

 

- Bem, não sei. Por que não tenta me contar em vez de... de me estuprar?

 

- Estuprar! - repetiu ela, rindo descontroladamente. - Ah, essa é boa! Ah, o que está dizendo! Eu! Estuprar você! Ora, Larry!

 

- Seja o que for que queira de mim, já poderia ter tido. Poderia ter tido na semana passada ou na anterior. Na semana retrasada em que lhe pedi. Desejaria que você tivesse aceitado.

 

- Era cedo demais - sussurrou ela.

 

- E agora é tarde demais - replicou ele, odiando o som brutal da sua voz mas incapaz de controlá-la. Ainda estremecia todo por desejá-la, portanto como poderia falar em outro tom? - O que você vai fazer, hã?

 

- Tudo bem. Adeus, Larry.

 

Ela estava lhe virando as costas. Nesse instante ela era mais do que Nadine lhe virando as costas para sempre. Ela era a higienista. Era Yvonne, com quem partilhara um apartamento em Los Angeles - ela o entediara e então ele simplesmente enfiara os sapatos e caíra fora, deixando-a para bancar sozinha o aluguel. Ela era Rita Blakemoor.

 

Pior que tudo, ela era sua mãe.

 

- Nadine?

 

Ela não se voltou. Era um vulto escuro só distinguível dos outros vultos escuros quando atravessou a ma. Depois desapareceu por completo contra o pano de fundo negro das montanhas. Ele chamou-a mais uma vez e ela não respondeu. Havia algo de aterrorizante na maneira como ela o abandonou, no modo como simplesmente se fundira àquela paisagem negra.

 

Ele ficou parado em frente à King Sooper’s, as mãos crispadas, o cenho coberto com pérolas de suor apesar do frescor da noite. Seus fantasmas agora o acompanhavam, e por fim ele soube qual era o pagamento por não ser um cara legal; jamais claro acerca de suas próprias motivações, jamais capaz de distinguir a dor da ajuda, exceto pela norma do polegar, jamais podendo livrar-se do gosto acre da dúvida na boca e...

 

Sua cabeça se ergueu num gesto brusco. Os olhos se dilataram, parecendo saltar do rosto. O vento aumentara de novo, produzia um estranho som ululante em alguma varanda vazia e, ao longe, ele julgou ouvir tacões de botas ecoando na noite, tacões de botas descendo as montanhas em algum ponto e aproximando-se dele à rajada gélida daquela brisa da madrugada.

 

Tacões de botas imundas marcando sua passagem na sepultura do oeste.

 

Lucy o ouviu entrar e seu coração disparou loucamente. Ordenou ao coração que amenizasse seus batimentos, que Larry provavelmente só voltara para buscar suas coisas, mas ele continuou em disparada. Ele me escolheu, era o pensamento que martelava no seu cérebro, acentuado pelos batimentos alucinados do coração. Ele prefere a mim...

 

Apesar de sua excitação e esperança, que se sentia impotente para controlar, ela enrijeceu, deitada de costas na cama, e ficou esperando, olhando apenas para o teto. Ela havia apenas lhe contado a verdade quando disse que, para ela e para garotas como sua amiga Joline, a única falha era necessidade excessiva de amar. Mas ela sempre tinha sido fiel. Não era nenhuma leviana. Nunca havia enganado seu marido e de igual modo procedera com Larry, e se nos anos antes de tê-lo conhecido não tivesse sido exatamente urna freira... bem, passado era passado. Não se podia pegar de volta as coisas já feitas e consertá-las de novo. Os deuses poderiam ter tal poder, mas ele não se estendia aos homens e mulheres, o que talvez fosse uma boa coisa. Tivesse sido ao contrário, as pessoas provavelmente morreriam de velhice ainda tentando reescrever sua adolescência.

 

Talvez se pudesse perdoar sabendo que o passado é inalcançável.

 

Lágrimas estavam rolando por suas faces.

 

A porta se abriu com um estalido e ela o viu, apenas uma silhueta.

 

- Lucy? Está acordada?

 

- Estou.

 

- Posso acender o lampião?

 

- Se quiser...

 

Ela ouviu o breve chiado do gás e então veio a luz, transformada em um fio de chama, revelando-o. Larry parecia pálido e abatido.

 

- Preciso dizer uma coisa.

 

- Não, não precisa. Apenas venha para a cama.

 

- Tenho que falar. Eu... - Ele pressionou a mão contra a testa e passou-a pelo cabelo.

 

- Larry? - Ela sentou-se na cama. - Você está bem?

 

Ele falou como se não a tivesse ouvido, e falou sem olhar para ela.

 

- Eu te amo. Se você me quiser, me terá. Mas não sei ao certo se está recebendo grande coisa. Nunca serei o melhor para você, Lucy.

 

- Vou correr o risco. Venha para a cama.

 

Ele o fez. E eles fizeram. Quando o amor terminou, ela disse que o amava. Deus sabia que era verdade, mas Lucy deduziu que ele não havia dormido por muito tempo. Houve um momento na noite em que ela acordou (ou sonhou que acordou) e pareceu-lhe ver Larry diante da janela, espiando para fora, a cabeça inclinada na postura de quem ouve, as linhas de luz e sombra dando ao seu rosto a aparência de uma máscara desfigurada. Entretanto, à claridade do dia, ela ficou mais certa de que deveria ter sido um sonho; á luz do dia, ele pareceu ser o Larry de sempre.

 

Foi só três dias depois que souberam, por Ralph Brentner, que Nadine se mudara para a casa de Harold Lauder.

 

Ao ouvir isto, o rosto de Larry pareceu retesar-se um pouco, mas foi só por um momento. E embora se detestasse por isso, Lucy respirou um pouco melhor com a notícia dada por Ralph. Parecia que tudo terminara.

 

Nadine voltou em casa logo após estar com Larry. Entrou, foi à sala de estar e acendeu o lampião. Carregando-o no alto, dirigiu-se aos fundos da casa, parando apenas um instante para deixar a luz entrar no quarto do menino. Queria conferir se havia contado a verdade a Larry. Havia.

 

Leo jazia emaranhado numa confusão de cobertas, vestido somente de shorts... mas os cortes e arranhões estavam desbotados, quase todos desaparecidos, e o bronzeado perene que obtivera por andar praticamente nu também havia esmaecido. Ele não era mais Joe, e sim apenas outro menino, dormindo após um dia movimentado.

 

Nadine recordou a noite em que, quase adormecendo, despertara para descobrir que ele não estava ao seu lado. Isso tinha sido em North Berwick, Maine - a quase um continente inteiro de distância agora. Ela o havia seguido até a casa onde Larry dormia no alpendre. Larry dormindo lá dentro, Joe esperando lá fora, brandindo sua faca em muda selvageria, sem nada entre eles senão a tela fina e facilmente cortável. E ela o fizera recuar.

 

O ódio brotou em Nadine como um jato súbito, soltando brilhantes fagulhas, semelhantes às da pedra batendo no aço. O lampião tremeu na sua mão, produzindo sombras loucas saltitantes e dançantes. Devia ter permitido que Joe o fizesse! Ela mesma devia ter aberto a porta telada para Joe, deixando que ele entrasse para esfaquear, cortar, rasgar e perfurar, estripar e destruir. Devia ter...

 

Mas agora o garoto se revirou na cama, emitindo um gemido, como se prestes a acordar. Suas mãos se ergueram, agitando-se no ar, parecendo querer afugentar uma sombra negra num sonho. E Nadine recuou, uma veia latejando fortemente na têmpora. Ainda havia algo de estranho no menino, e ela não gostou da maneira como o via mover-se no sonho, como se tivesse captado seus pensamentos.

 

Tinha de prosseguir agora. Precisava agir depressa.

 

Foi para seu próprio quarto. Havia um tapete no chão, uma cama estreita de velha solteirona. Isso era tudo. Não havia sequer um quadro. O quarto era totalmente desprovido de personalidade. Ela abriu a porta do anuário e estendeu o braço para as roupas penduradas nos cabides, vasculhando atrás delas. Estava de joelhos agora e suava.

 

Apanhou uma caixa vivamente colorida, tendo na frente uma foto de adultos risonhos, adultos reunidos e jogando. Era um jogo que tinha pelo menos 3 mil anos de idade.

 

Havia encontrado a prancheta mediúnica em uma loja de presentes no centro da cidade, mas não ousava usada na casa, não com o menino ali. De fato, não ousara usá-la ainda... até hoje. Algo a impelira para aquela loja e quando vira a prancheta, acondicionada em sua alegre caixa cinzenta, surgira em seu íntimo uma luta terrível - o tipo de conflito que os psicólogos chamam de aversão/compulsão. Nadine estivera suando à ocasião como agora, querendo duas coisas: se apressar para fora daquela loja sem olhar para trás e surrupiar a caixa, aquela caixa terrivelmente alegre, levando-a para casa. A segunda coisa a assustava mais, porque não parecia ser da sua própria vontade.

 

Por fim, acabou levando a caixa.

 

Isso ocorrera quatro dias antes. A cada noite, a compulsão se tornara mais forte até esta noite, quando, meio insana por medos que não compreendia, tinha ido procurar Larry sem usar nada sob seu vestido cinza-azulado. Quisera pôr um ponto final em seus medos para sempre. Esperando no alpendre até que todos voltassem da assembleia, tivera certeza de que finalmente fizera o que era devido. No seu íntimo residira aquela sensação, ligeiramente inebriante, esfuziante, que não vivenciava desde que havia corrido pelo relvado úmido de orvalho com o garoto a persegui-la. Só que desta vez o rapaz a pegaria. Deixaria que ele o pegasse. Isto seria o fim.

 

No entanto, quando a tinha pegado, ele a rejeitara.

 

Nadine se levantou, segurando a caixa junto ao peito, e apagou o lampião. Ele a menosprezara, e não diziam que nem no inferno havia fúria comparável a...? Uma mulher desprezada podia perfeitamente fazer um pacto com o demônio... ou com seu preposto.

 

Ela parou apenas o tempo suficiente para pegar a grande lanterna de pilha em cima da mesa, no vestíbulo. Das profundezas da casa, o menino gritou em seu sono, gelando-a por um instante, fazendo seus cabelos se arrepiarem.

 

Então, saiu.

 

Sua Vespa estava estacionada junto ao meio-fio, a mesma que usara dias antes para ir à casa de Harold Lauder. Por que tinha ido lá? Não trocara uma dúzia de palavras com ele desde que chegara a Boulder. No entanto, em sua confusão sobre a prancheta, aterrada pelos sonhos que continuavam a povoar seu sono, depois que os sonhos de todos os demais tinham cessado, parecera-lhe que devia conversar a respeito com Harold. Sentira receio desse impulso, também se lembrou enquanto enfiava a chave na fenda de ignição da Vespa. Tal como a súbita ânsia de pegar a prancheta (Surpreenda seus amigos! Anime suas reuniões!, dizia a caixa), parecera ser uma ideia que lhe fora projetada do exterior. Ideia dele, talvez. No entanto, ao chegar à casa de Harold, ele havia saído. A casa estava trancada, era a única casa trancada que tinha visto em Boulder, além de ter as persianas arriadas. Ela até que gostaria disso, apesar da decepção momentânea por não encontrar Harold. Se estivesse em casa, ele a convidaria a entrar e trancaria a porta em seguida. Poderiam ter ido para a sala de estar e conversado, poderiam até ter feito amor ou coisas indizíveis juntos, sem que ninguém ficasse sabendo.

 

A casa de Harold era um lugar privativo.

 

- O que está acontecendo comigo? - sussurrou para a escuridão, que no entanto nada lhe respondeu. Ela deu partida na Vespa, e o ronco borbulhante do motor pareceu profanar a noite. Nadine passou a marcha e partiu. Para oeste.

 

Com o movimento, o ar frio da noite fustigava-lhe o rosto, fazendo-a se sentir finalmente melhor. Um vento noturno, soprando para longe as teias de aranha. Você sabe, não sabe? Quando todas as alternativas são eliminadas, o que você faz? Escolhe aquela que sobrou. Escolhe qualquer aventura sombria que lhe signifique algo. Você deixou Larry ficar com aquela criaturinha idiota que rebolava o traseiro dentro das calças compridas apertadas, com um vocabulário monossilábico e mente de revista de cinema. Vá atrás deles. Arrisque... o que quer que haja para ser arriscado.

 

Principalmente arrisque a si mesma.

 

A rua desenrolava-se à sua frente, à luz do pequeno farolete dianteiro da Vespa. Precisou reduzir para segunda quando a rua começou a se elevar; estava na Baseline Road agora, encaminhando-se para a montanha negra. Que eles tenham suas assembleias. Eles estavam preocupados em restaurar a energia elétrica; seu amado preocupava-se com o mundo.

 

O motor da Vespa engasgou, esforçou-se e quase morreu. Uma horrível mas sexy espécie de medo começou a dominá-la, e o vibrante selim da motoneta passou a esquentá-la por baixo (ora, você está com tesão, Nadine, pensou com incômodo bom humor, maliciosa, maliciosa, MALICIOSA). À sua direita havia um abismo a prumo. Ali, nada mais além da morte. E acima? Bem, ela iria ver. Era tarde demais para voltar e essa simples ideia a fez sentir-se paradoxal e deliciosamente livre.

 

Uma hora mais tarde, ela chegava ao Anfiteatro Aurora - só que a aurora ainda demoraria três horas ou mais. O anfiteatro ficava no topo da montanha Flagstaff, e quase todos na Zona Franca já tinham estado ali para acampar pouco depois de chegarem a Boulder. Num dia límpido - como era a maioria dos dias em Boulder, pelo menos durante o verão - podia-se ver dali a cidade e a I-25 estirando-se ao sul na direção de Denver e depois mergulhando nas brumas da distância até o Novo México e 300 quilômetros além. A leste ficavam as terras planas, estendendo-se até Nebraska, e mais perto o Boulder Canyon, uma fenda entre montanhas, as paredes cobertas de pinheiros e abetos. Em verões passados, praticantes de asa-delta haviam aproveitado as correntes termais sobre o Anfiteatro Aurora como se fossem pássaros.

 

Agora, Nadine via apenas o que era revelado pelo clarão da lanterna de pilhas que deixara sobre uma mesa de piquenique, perto do abismo. Havia um grande bloco para esboços e, agachada sobre uma página em branco, estava a prancheta de três quinas, como uma aranha triangular. Projetando-se do seu ventre, como o ferrão de aranha, havia um lápis tocando ligeiramente o bloco de papel.

 

Nadine encontrava-se em um estado febril, metade euforia, metade terror. Subir até ali montada laboriosamente em sua Vespa, que decididamente não fora feita para escalar montanhas, fizera-a sentir quase o mesmo que Harold havia sentido em Nederland. Ela podia pressentido. Mas enquanto Harold sentira aquilo de uma maneira inteiramente precisa e tecnológica, como um pedaço de aço atraído por um ímã, uma atração para a frente, Nadine o sentia como uma espécie de evento místico, um cruzamento de fronteira. Era como se aquelas montanhas, das quais estava apenas no sopé, fossem uma terra de ninguém entre duas esferas de influência - Flagg no oeste, a velha no leste. E ali a magia fluía nos dois sentidos, mesclando-se, formando sua própria composição, que não pertencia nem a Deus nem a Satã, sendo inteiramente pagã. Sentia como se estivesse num lugar mal-assombrado.

 

E a prancheta...

 

Ela abrira indiferentemente a caixa marcada de cores vivas, com a inscrição MADE IN TAIWAN, deixando-a receber o vento. A prancheta em si era apenas um pedaço de madeira compensada ou gipsita, precariamente estampada. Não fazia diferença. Era uma ferramenta que usaria apenas uma vez - só ousaria usar uma vez -, e mesmo uma ferramenta de fabricação rústica serve à sua finalidade: arrombar uma porta, fechar uma janela, escrever um NOME.

 

As palavras na caixa anunciavam: Surpreenda seus amigos! Anime suas reuniões!

 

Como era mesmo a canção que Larry às vezes berrava, sentado na sua Honda, enquanto seguiam pela estrada? Alô, Central, o que há com sua linha? Quero falar com...

 

Falar com quem? Ora, esta era a questão, não era?

 

Ela se lembrou da época em que usara a prancheta na faculdade, mais de 12 anos atrás... mas bem que poderia ter sido ontem. Ela subira para perguntar a alguém no terceiro andar do dormitório, uma garota chamada Rachel Timms, sobre a tarefa na turma de recuperação em literatura de que participavam. O quarto estava repleto de garotas, seis ou oito pelo menos, dando risadinhas e gargalhando. Nadine lembrava-se de ter pensado que estavam drogadas com alguma coisa, maconha ou até algo mais pesado.

 

- Parem com isso! - disse Rachel, ela própria rindo. - Como podem esperar que os espíritos se comuniquem se vocês estão agindo como um bando de idiotas?

 

A ideia de idiotas risonhas as atingiu como algo deliciosamente engraçado, e um vendaval de novo riso feminino assolou o quarto por um instante. A prancheta tinha sido fixada do mesmo jeito que agora, uma aranha triangular sobre três pernas atarracadas, lápis apontado para baixo. Enquanto elas riam, Nadine pegou um maço de páginas tamanho grande rasgadas de um caderno de esboços de desenhista e separou aquelas "mensagens do plano astral" que já tinham chegado.

 

Tommy diz que você esteve usando de novo aquela ducha sabor morango.

 

Mamãe diz que está ótima.

 

Chunga! Chunga!

 

John diz que você não vai peidar tanto se parar de comer aqueles GRÃOS DE CAFETERIA!!!

 

E outras, tão tolas quanto.

 

Agora os risos se aquietaram o suficiente para que pudessem recomeçar. Três garotas sentaram-se na cama, cada qual com as pontas dos dedos colocadas num lado diferente da prancheta. Por um momento, nada aconteceu. Depois, a tábua trepidou.

 

- Você é que fez isso, Sandy! - acusou Rachel.

 

- Não fiz!

 

- Shhh!

 

A tábua trepidou de novo e as garotas se calaram. Ela se moveu, parou, moveu-se de novo. Formou a letra P.

 

- Por... - começou a garota chamada Sandy.

 

- Porra para você também - disse uma outra e todas irromperam em risos mais uma vez.

 

- Shhh! - repreendeu Rachel severamente.

 

A prancheta começou a se mover mais rapidamente, traçando as letras A, P, A, I.

 

- Papai querido, sua neném está aqui - disse uma garota chamada Patty-alguma-coisa e depois riu. - Deve ser meu pai, ele morreu de ataque cardíaco quando eu tinha três anos.

 

- Está escrevendo algo mais - disse Sandy.

 

D, I, Z, a prancheta soletrou laboriosamente.

 

- O que está havendo? - sussurrou Nadine para uma garota alta e de feições eqüinas que não conhecia. Essa garota olhava com as mãos enfiadas nos bolsos e um ar aborrecido no rosto.

 

- Um bando de garotas brincando com alguma coisa que não entendem - disse a garota com feições equinas. - É isso que está havendo - concluiu num sussurro mais baixo ainda.

 

- PAPAI DIZ QUE PATTY - citou Sandy. - É o seu velho e querido pai, está bem, Pats.

 

Outra explosão de risos.

 

A garota com feições equinas usava óculos. Agora tirou as mãos dos bolsos do macacão que vestia e usou-as para retirar os óculos. Ela os poliu e explicou depois a Nadine, ainda num sussurro:

 

- A prancheta é a ferramenta usada pelos psíquicos e médiuns. Cinesteólogos...

 

- Ólogos o quê?

 

- Cientistas que estudam o movimento e a interação de músculos e nervos. - Ah.

 

- Eles alegam que a prancheta está na realidade reagindo a pequenos movimentos musculares, provavelmente guiados pelo subconsciente em vez de pela mente consciente. Claro que médiuns e psíquicos alegam que a prancheta é movida por entidades do mundo espiritual...

 

Outra irrupção de riso histérico veio das garotas agrupadas em volta da tábua. Nadine olhou por sobre o ombro da garota com feições equinas e leu a mensagem: PAPAI DIZ QUE PATTY DEVIA PARAR DE IR...

 

- ... ao banheiro demais - sugeriu outra garota no círculo de espectadores e todas riram mais um pouco.

 

- Seja como for, elas estão apenas brincando com isso - disse a cara de cavalo com um fungado desdenhoso. - É muita burrice. Tanto médiuns quanto cientistas concordam que a escrita automática pode ser perigosa.

 

- Os espíritos estão hostis esta noite, não acha? - perguntou Nadine suavemente.

 

- Talvez os espíritos sejam sempre hostis - disse a cara de cavalo, dando-lhe um olhar incisivo. - Ou você poderia obter uma mensagem de sua mente subconsciente a qual está totalmente despreparada para receber. Há casos documentados de escrita automática ficando inteiramente fora de controle, sabe? Pessoas têm ficado loucas.

 

- Ah, isto já é forçar demais a barra. É apenas um jogo.

 

- Jogos às vezes se tomam muito sérios.

 

A mais alta explosão de riso pôs um ponto final no comentário da cara de cavalo antes que Nadine pudesse replicar. A garota chamada Patty-alguma-coisa tinha caído da cama e jazia no chão, agarrando o estômago, rindo e chutando com os pés fracamente. A mensagem completada dizia: PAPAI DIZ QUE PATTY DEVERIA PARAR DE IR ÀS CORRIDAS SUBMARINAS COM LEONARD KATZ.

 

- Você fez isso! - disse Patty para Sandy enquanto finalmente se sentava de novo.

 

- Não fiz, Patty! Juro!

 

- Foi o seu pai! Do Grande Além! Do Lado de Lá! - disse a Patty outra garota numa voz de Boris Karloff que Nadine achou realmente muito boa. - Lembre-se apenas de que ele vai estar de olho em você da próxima vez em que tirar suas calcinhas no banco traseiro do Dodge de Leonard.

 

Outra explosão de risos com esta tirada. Enquanto se extinguia, Nadine impeliu-se à frente e aferrou o braço de Rachel. Pretendia perguntar sobre a tarefa e depois escapar discretamente.

 

- Nadine! - gritou Rachel, seus olhos cintilantes e alegres. Suas bochechas estavam rosadas. - Sente-se, vamos ver se os espíritos têm uma mensagem para você!

 

- Não. Na verdade eu só vim para pegar a tarefa para a recuperação em li...

 

- Ah, dane-se a tarefe para a recuperação em literatura! Isto é importante, Nadine! Isso é um barato! Você precisa experimentar. Venha, sente-se aqui junto comigo. Janey, você fica do outro lado.

 

Janey sentou-se do lado oposto a Nadine e, com a insistência repetida de Rachel Timms, ela descobriu-se com oito dedos de suas mãos tocando levemente a prancheta. Por alguma razão, olhou por sobre o ombro para a garota com feições eqüinas. Ela sacudiu a cabeça para Nadine uma vez, deliberadamente, e as fluorescentes acima ricochetearam nas lentes de seus óculos e transformaram seus olhos num par de amplos clarões brancos de luz.

 

Ela sentira um momento de medo à ocasião, lembrou-se enquanto estava de pé olhando para outra prancheta ao brilho de uma lanterna de seis pilhas, mas seu comentário para a garota com cara de cavalo se repetia - era só um jogo, pelo amor de Deus, e que coisa horrível poderia possivelmente acontecer no meio de um bando de garotas que riam à toa? Se houvesse uma atmosfera mais hostil para a produção de espíritos genuínos, hostis ou amistosos, Nadine não sabia o que poderia resultar.

 

- Agora todo mundo calado - ordenou Rachel. - Espíritos, têm uma mensagem para nossa irmã Nadine Cross?

 

A prancheta não se moveu. Nadine sentiu-se levemente embaraçada.

 

- Uni-du-ni-tê - disse a garota que imitara Boris Karloff numa imitação igualmente bem-sucedida da voz de Alceu do desenho animado. - Os espíritos já vão falar.

 

Mais risos.

 

- Shhh! - fez Rachel.

 

Nadine decidiu que se uma das duas outras garotas não começasse a mover a prancheta tão logo soletrasse qualquer outra mensagem tola que tivessem para ela, faria isso ela própria - virá-la ao contrário para soletrar algo curto e doce, como BU! Assim conseguiria sua tarefa e iria embora.

 

Tão logo estava prestes a fazer isto, a prancheta trepidou rudemente sob seus dedos. O lápis deixou uma escura risca em diagonal na página nova.

 

- Ei! Nada de espíritos malignos - disse Rachel num tom de voz vagamente inquieto. - Você fez isso, Nadine?

 

- Não.

 

- Janey?

 

- Nada disso. Juro.

 

A prancheta se agitou se novo, quase expelindo seus dedos para fora e deslocando-os para a margem superior esquerda do papel.

 

- Caramba - disse Nadine. - Estão sentindo...

 

Elas estavam, todas elas, embora nem Rachel nem Jane Fargood falassem a ela sobre isto mais tarde. E ela nunca mais se sentira particularmente bem-vinda em qualquer alojamento feminino depois daquela noite. Era como se tivessem certo receio de se aproximarem dela depois disso.

 

A prancheta começou de repente a trepidar debaixo de seus dedos; era como tocar de leve o pára-lama de um carro ligado suavemente em marcha lenta. A vibração era constante e inquietante. Não era o tipo de movimento que uma pessoa poderia causar sem ser claramente óbvia a respeito.

 

As garotas tinham ficado em silêncio. Seus rostos exibiam todos uma expressão peculiar, uma expressão comum aos rostos de todas as pessoas que participam de uma sessão espírita onde alguma coisa inesperadamente autêntica ocorreu - quando a tábua começa a girar, quando nós de dedos invisíveis batem na parede ou quando o médium começa a expelir teleplasma cinzento e enfumaçado pelas narinas. Esta é uma lívida expressão de espera, meio desejando que cesse aquilo que começou, seja lá o que for, e meio desejando que continue. É uma expressão de excitamento pavoroso e aturdido... e quando ostenta esse aspecto específico, o rosto humano parece mais como o crânio que sempre jaz a milímetros abaixo da pele.

 

- Parem com isso! - gritou de súbito a cara de cavalo. - Parem imediatamente ou irão se lamentar!

 

E Jane Fargood gritou numa voz repleta de medo:

 

- Não consigo tirar meus dedos dela!

 

Alguém soltou um gritinho arrotado. No mesmo instante, Nadine percebeu que seus próprios dedos estavam também grudados na tábua. Os músculos de seus braços se contraíram num esforço para puxar as pontas dos dedos da prancheta, mas eles não saíam do lugar.

 

- Tudo bem, basta de gozação - disse Rachel, em voz tensa e assustada. - Quem...

 

E de repente a prancheta começou a escrever.

 

Movia-se com impressionante velocidade, arrastando seus dedos junto, estalando seus braços para todos os lados de um jeito que seria engraçado não fossem as expressões capturadas e indefesas nos rostos das três garotas. Nadine pensou mais tarde que era como se os seus braços tivessem ficado presos numa máquina de exercício. A escrita antes havia sido em letras enviesadas e imperfeitas - mensagens que pareciam como se escritas por uma criança de sete anos. Esta aqui era uma caligrafia uniforme e poderosa... letras de fôrma grandes e inclinadas que açoitavam através da página branca. Havia alguma coisa tanto inflexível quanto maligna naquela caligrafia.

 

NADINE, NADINE, NADINE, a prancheta rodopiante escreveu. COMO TE AMO NADINE SEJA MEU AMOR MINHA NADINE SEJA MINHA RAINHA SE VOCÊ SE VOCÊ SE VOCÊ FOR PURA PARA MIM SE VOCÊ FOR LIMPA PARA MIM SE VOCÊ FOR SE VOCÊ FOR MORTA PARA MIM MORTA VOCÊ FOR

 

A prancheta arremeteu, disparou e recomeçou, mais abaixo.

 

VOCÊ FOR MORTA COM O RESTO DELES VOCÊ FOR NO LIVRO DOS MORTOS COM O RESTO DELES NADINE ESTÁ MORTA COM ELES NADINE ESTÁ PUTREFATA COM ELES A NÃO SER A NÃO SER

 

Parou. Trepidou. Nadine pensou, esperou - ah, como esperou - que estivesse acabado, e então ela disparou de volta à margem da folha e recomeçou. Jane berrou deploravelmente. Os rostos das outras estavam chocados de assombro e desalento.

 

O MUNDO O MUNDO EM BREVE O MUNDO ESTÁ MORTO E NÓS NÓS NÓS ESTAMOS NÓS ESTAMOS NÓS

 

Agora as letras pareceram gritar através da página:

 

NÓS ESTAMOS NA CASA DOS MORTOS NADINE

 

A última palavra uivou em destaque através da página em letras maiúsculas de 1,25 centímetros de altura e depois a prancheta rodopiou da tábua, deixando um comprido risco de grafite para trás, como um grito. Ela caiu no chão e se partiu em duas.

 

Houve um instante de silêncio chocado e imóvel, e então Jane Fargood irrompeu num choro alto e histérico. A coisa havia terminado com a zeladora subindo para ver o que estava ocorrendo de errado, Nadine recordou, e esteve prestes a chamar a enfermaria para Jane quando a garota conseguiu recuperar um pouco o controle.

 

Durante toda a confusão, Rachel Timms sentara-se na cama, calma e pálida. Quando a zeladora e a maioria das outras garotas (inclusive a cara de cavalo, que indubitavelmente sentia que uma profetisa não goza de muita honra em sua própria terra) saíram, ela havia perguntado a Nadine numa voz monótona e estranha:

 

- Quem era, Nadine?

 

- Não sei - Nadine respondera com toda a sinceridade. Ela não fizera a menor ideia. Não à ocasião.

 

- Não reconheceu a caligrafia?

 

- Não.

 

- Bem, talvez seja melhor levar este... este bilhete do além ou lá o que seja... e voltar para seu quarto.

 

- Foi você quem me pediu para sentar! - Nadine flamejou para ela. - Como eu ia saber que alguma coisa como... como isso iria acontecer? Só aceitei me sentar à prancheta por educação, pelo amor de Deus!

 

Rachel tivera ao menos a gentileza de enrubescer a isto; tinha até mesmo pedido desculpas. Mas Nadine pouco tornara a ver a garota depois disso, e Rachel Timms tinha sido uma das poucas garotas de quem se sentira muito íntima durante seus primeiros três semestres na faculdade.

 

De lá para cá, ela nunca voltara a tocar numa daquelas aranhas triangulares feitas de madeira compensada.

 

Mas o tempo tinha... bem, tinha desabado por aí finalmente, não tinha?

 

Sim, de fato.

 

Com o coração batendo audivelmente, Nadine sentou-se no banco de piquenique e pressionou os dedos ligeiramente em dois dos três lados da prancheta. Pôde senti-la começando a se mover sob a polpa de seus dedos quase de imediato, e então pensou era um carro parado, com o motor ligado. Quem seria o motorista? Quem era ele, realmente? Quem subiria no carro, bateria a porta e colocaria as mãos enegrecidas pelo sol sobre o volante? Um motorista cujos pés brutais e pesados, calçando velhas e empoeiradas botas de vaqueiro, pisariam no acelerador e a levaria para... onde?

 

Para onde está nos levando, motorista?

 

Sem qualquer ajuda ou esperança de socorro, Nadine sentou-se ereta no banco, na crista da montanha Flagstaff, em meio ao negrume da madrugada, os olhos arregalados, experimentando, mais forte do que nunca, a sensação de encontrar-se na fronteira. Olhava para o leste, mas sentia a presença dele vindo de trás de si, pressionando-a pesadamente, arrastando-a para baixo como pesos atados aos pés de uma mulher morta: a presença escura de Flagg, chegando em ondas constantes e inexoráveis.

 

Em algum lugar, o homem escuro estava longe na noite, e ela pronunciou duas palavras, como um encantamento, a todos os espíritos que já existiram - encantamento e convite:

 

- Fale comigo.

 

E, sob seus dedos, a prancheta começou a escrever.

 

Trechos das minutas da reunião do Comitê Permanente da Zona Franca

19 de agosto de 1990

 

ESTA REUNIÃO TEVE LUGAR no apartamento de Stu Redman e Fran Goldsmith. Todos os membros do Comitê da Zona Franca estavam presentes.

 

Stu Redman ofereceu congratulações a todos nós, inclusive a si mesmo, pela eleição para o Comitê Permanente. Propôs que fosse feita uma carta de agradecimento a Harold Lauder, assinada por todos do comitê. A moção foi aprovada por unanimidade.

 

Stu: "Uma vez que já cuidamos das velhas questões, Glen Bateman tem dois itens a apresentar. Não sei mais do que vocês quais são os assuntos, mas desconfio de que um deles tem a ver com a próxima assembleia geral. Confere, Glen?"

 

Glen: "Aguardarei minha vez."

 

Stu: "É típico de você. A principal diferença entre um velho bêbado e um velho professor universitário careca é que o professor espera sua vez antes de começar a falar pelos cotovelos."

 

Glen: "Agradeço a você por essas pérolas de sabedoria, Texano Oriental."

 

Fran disse que entendia que Stu e Glen fizessem suas gozações particulares, mas queria saber se poderiam ir direto ao ponto, tal como todos os seus programas preferidos de TV’ começam impreterivelmente às nove. Este comentário foi saudado com mais risos do que talvez merecesse.

 

O primeiro item de importância foi o de nossos batedores no oeste. Recapitulando, o comitê decidiu pedir ao juiz Farris, a Tom Cullen e a Dayna Jurgens que fossem. Stu sugeriu que as pessoas que os indicaram fossem as mesmas a abordar o assunto com seus próprios indicados - ou seja, Larry pergunta ao juiz, Nick terá de falar com Tom - com a ajuda de Ralph Brentner - e Sue falará com Dayna.

 

Nick disse que convencer Tom poderia levar alguns dias, e Stu disse que abordaria a questão de quando enviados. Larry disse que não poderiam ser enviados juntos, sob o risco de serem capturados juntos. Continuou dizendo que tanto o juiz quanto Dayna provavelmente suspeitariam de que enviaríamos mais de um espião, mas desde que não soubessem seus nomes, não poderiam dar com a língua nos dentes. Fran disse que a expressão "dar com a língua nos dentes" dificilmente cabia aqui, considerando o que o homem no oeste poderia fazer com eles - se fosse um homem.

 

Glen: "Eu não seria tão pessimista se fosse você, Fran. Se dermos ao Adversário crédito por até mesmo um tantinho de inteligência, ele saberá que não daríamos aos nossos agentes... acho que poderíamos chamados assim... qualquer informação que considerássemos vital para seus interesses. Ele deverá saber que a tortura pouco lhe será útil."

 

Fran: "Você quer dizer que ele lhes dará uns cascudos e dirá que nunca mais façam isso? Pois acredito que poderia torturados, simplesmente porque tortura é uma das coisas de que ele gosta. O que diz a isso?"

 

Glen: "Acho que não há muito que eu possa dizer."

 

Stu: "Essa decisão foi tomada, Frannie. Todos nós concordamos que estaríamos mandando gente nossa para uma missão perigosa, e todos sabemos que tomar tal decisão não foi nada divertido."

 

Glen sugeriu que concordássemos experimentalmente com a seguinte agenda: o juiz partiria em 26 de agosto, Dayna no dia 27 e Tom no dia 28, nenhum deles sabendo sobre os outros e cada qual partindo por uma estrada diferente. Isso daria o tempo necessário para preparar Tom, acrescentou.

 

Nick disse que, à exceção de Tom Cullen, a quem será dito quando voltar, através de uma sugestão pós-hipnótica, aos outros dois deve ser dito que terão liberdade de voltar quando sua própria discrição assim indicar, mas que o clima seria um fator - pode nevar forte nas montanhas na primeira semana de outubro. Nick sugeriu que cada um deles fosse aconselhado a não ficar mais de três semanas no oeste.

 

Fran disse que eles poderiam fazer um giro pelo sul, caso a neve caia cedo nas montanhas, mas Larry discordou, assinalando que a cordilheira Sangre de Cristo ficaria no caminho, a não ser que todos desçam até o México. E, se tiverem de fazer isso, só tomariam a vê-los na primavera.

 

Larry disse que, sendo este o caso, talvez devêssemos dar uma dianteira ao juiz. Ele sugeriu 21 de agosto, depois de amanhã.

 

Isto encerrou a questão dos batedores... ou espiões, se preferirem.

 

Glen então tomou a palavra, e agora estou citando a fita gravada.

 

Glen: "Quero propor a convocação de outra assembleia geral a 25 de agosto e vou sugerir algumas coisas que poderíamos abordar nessa reunião. Para começar, indicaria algo que talvez os surpreenda. Estivemos presumindo que totalizamos umas seiscentas pessoas na Zona Franca, e Ralph tem mantido registros admiráveis e acurados do número de grupos grandes que chegam. É com base nesses números que temos estimado nossa população. Entretanto, também há pessoas chegando a torto e a direito, talvez numa proporção de dez por dia. Então, hoje cedo fui com Leo Rockway ao auditório do Chautauqua e contamos todos os assentos. Há seiscentos e sete lugares. Muito bem, isto não lhes diz alguma coisa?"

 

Sue Stern disse que a contagem deveria estar errada, porque vira pessoas de pé ao fundo e sentadas nos corredores quando já não havia assentos disponíveis. Então, todos compreendemos aonde Glen queria chegar, e acho que seria bem apropriado dizer que o comitê ficou chocado.

 

Glen: "Não temos nenhum meio de avaliar acuradamente quantos estavam sentados ou em pé, mas creio que cem seria uma estimativa bastante conservadora. Portanto, como podem ver, estamos com mais de setecentas pessoas aqui na Zona. Como resultado dos achados que Leo e eu fizemos, proponho que um dos itens a ser inserido na agenda seja a formação de um Comitê de Recenseamento."

 

Ralph: "Bem, quero ser um filho-da-puta se isto não é comigo!"

 

Glen: "Não, não é culpa sua. Você é o homem dos sete instrumentos, Ralph, e acho que todos concordamos em que vem fazendo um excelente trabalho..."

 

Larry: "Assino embaixo."

 

Glen: "... Mas mesmo se estivéssemos recebendo quatro solitários por dia, isso ainda acrescenta quase trinta por semana. E meu palpite é de que estejamos recebendo mais de 12 ou 14. Eles simplesmente não chegam a nós e se anunciam, vocês sabem, e com Mãe Abagail ausente, não há um único lugar onde se possa contá-los tão logo tenham chegado."

 

Frannie Goldsmith então apoiou a moção de Glen de que o comitê inserisse um Comitê de Recenseamento na agenda para a assembleia de 25 de agosto, o mencionado comitê sendo responsável pela manutenção de uma lista contendo cada habitante da Zona Franca.

 

Larry: "Sou totalmente a favor se houver alguma razão boa e prática para fazer isso. Mas..."

 

Nick: "Mas o quê, Larry?"

 

Larry: "Bem... já não temos coisas demais com que nos preocupar para ficar jogando conversa fora com um monte de burocracia de merda?"

 

Fran: "Vejo um motivo válido exatamente agora, Larry."

 

Larry: "E qual é?"

 

Fran: "Bem, se Glen estiver certo, isto significa que vamos precisar arranjar um local maior para a próxima assembleia. É a única solução. Se tivermos oitocentas pessoas aqui por volta do dia 25, jamais poderemos amontoá-los no auditório do Chautauqua."

 

Ralph: "Meu Deus, jamais pensei nisso. Eu disse a vocês que não estava apto para este trabalho."

 

Stu: "Relaxe, Ralph, você está indo muito bem."

 

Sue: "Bem, então onde é que vamos realizar a maldita assembleia?"

 

Glen: "Espere aí, espere aí. Uma coisa de cada vez. Há uma droga de uma moção esperando ser votada."

 

Foi votada e ganhou por unanimidade a inserção do Comitê de Recenseamento na agencia para a próxima assembleia.

 

Stu propôs então que a assembleia de 25 de agosto se realizasse no Auditório Munsiger, na Universidade de Colorado, cuja capacidade é maior - cerca de mil pessoas.

 

Glen pediu a palavra, que lhe foi concedida novamente.

 

Glen: "Antes de continuarmos, gostaria de assinalar que existe outra boa razão para se ter um Comitê de Recenseamento, uma bem mais séria do que saber a quantidade de pasta para os biscoitinhos aperitivos a levar para o grupo. Deveríamos saber quem está chegando... mas também quem está partindo. Acho que tem gente indo embora, entendem? Talvez seja apenas paranoia, mas eu poderia jurar que não vi mais rostos que costumava ver antes. Seja como for, após nossa ida ao Auditório Chautauqua, Leo e eu fomos à casa de Charlie Impening. E querem saber? A casa está vazia, os pertences de Charlie sumiram, até o diploma universitário dele."

 

Houve alguns comentários surpresos do comitê e também alguns xingamentos que, embora interessantes, não se enquadram neste registro.

 

Ralph perguntou então que vantagem teríamos em saber quem está partindo. Sugeriu que, se pessoas como Impening queriam ficar do lado do homem escuro, então que bons ventos as levassem. Vários do comitê o aplaudiram e Ralph corou como um colegial, se me permitem acrescentar isso.

 

Sue: "Não, eu compreendo o ponto de vista de Glen. Isso equivaleria a uma constante drenagem de informação."

 

Ralph: "Bem, e o que poderíamos fazer? Botados na cadeia?"

 

Glen: "Por mais feio que pareça, acho que deveríamos considerar seriamente esta questão."

 

Fran: "Nem pensar. Enviar espiões... isso ainda posso engolir, mas prender pessoas que vieram para cá, só porque discordam da maneira como estamos agindo? Por Deus, Glen! Isso é coisa de polícia secreta!"

 

Glen: "Sim, concordo, mas acontece que nossa situação aqui é extremamente precária. Você me coloca na posição de defensor da repressão, o que considero muito injusto. Estou perguntando a vocês se querem permitir que continue uma evasão de cérebros, em vista de nosso Adversário."

 

Fran: "Ainda continuo detestando isso. Nos anos 50, Joe McCarthy tinha como alvo o comunismo. Nós temos o nosso homem escuro. Como é maravilhoso para nós."

 

Glen: "Fran, você está preparada para correr o risco de que alguém possa ir embora daqui com uma peça importante de informação no bolso? A de que Mãe Abagail se foi, por exemplo?"

 

Fran: "Charlie Impening pode dizer isso a ele. Que outras peças importantes de informação nós temos, Glen? Na maior parte do tempo não ficamos perambulando por aí sem nenhum indício?"

 

Glen: "Quer que ele fique a par da nossa força numérica? De como estamos indo na parte técnica? Que nem sequer ainda dispomos de um médico?"

 

Fran disse que preferia isso a começarmos a trancafiar as pessoas porque não gostavam do modo como fazíamos as coisas. Stu então propôs que arquivássemos toda ideia de prender pessoas por opiniões contrárias. A moção foi aprovada com Glen votando contra.

 

Glen: "É bom se acostumarem com a ideia de que terão de lidar com isso cedo ou tarde... e provavelmente mais cedo. Charlie Impening dar com a língua nos dentes para Flagg já é mim o bastante. Vocês só têm que perguntar a si mesmos se querem multiplicar o que Impening sabe por algum fator x teórico. Bem, não importa, vocês já puseram em votação. Porém há mais uma coisa... fomos eleitos indefinidamente, algum de vocês já pensou nisso? Não sabemos se nosso mandato é de seis semanas, seis meses ou seis anos. Minha sugestão é de que fosse de um ano... o que nos levaria ao fim do começo, nas palavras de Harold. Eu gostaria de ver a ideia do mandato de um ano na agenda da próxima assembleia geral.

 

"Mais um último item e termino. Governar por reuniões dos cidadãos... que é essencialmente o que temos... será ótimo por algum tempo, até ficarmos com uma população de umas três mil pessoas, mas quando as coisas extrapolarem, a maioria dos presentes nas assembleias será formada de claques e elementos dissidentes... a fluorização causa esterilidade, pessoas querendo algum tipo de bandeira, coisas desse tipo. Minha sugestão é de que precisamos refletir seriamente na maneira de transformarmos Boulder em uma República, em fins do próximo inverno ou começo da primavera."

 

Houve alguma discussão informal sobre a última proposta de Glen, mas nenhuma ação foi tomada nesta reunião. Nick teve a palavra e passou algo a Ralph para ser lido.

 

Nick: "Estou escrevendo isto na manhã do dia 19, em preparação para a reunião desta noite, e Ralph terá que ler isto como a última ordem de serviço. Ser mudo é às vezes muito difícil, mas tentei pensar em todas as ramificações possíveis do que estou prestes a propor. Gostaria de ver isto incluído na agenda de nossa próxima assembleia geral: Providenciar para que a Zona Franca crie um Departamento da Lei e da Ordem, tendo Stu Redman como chefe."

 

Stu: "Isto é um tremendo abacaxi para eu descascar, Nick."

 

Glen: "Interessante. Vai de encontro ao que justamente acabamos de debater. Deixe-o acabar, Stuart... você terá sua vez."

 

Nick: "O quartel-general deste Departamento da Lei e da Ordem seria a sede do condado de Boulder. Stu teria o poder de delegar trinta homens para assessorá-lo e, acima de trinta, só por uma maioria de votos do Comitê da Zona Franca e, acima de setenta, por uma maioria de votos das assembleias gerais da Zona Franca. Eis a resolução que gostaria de ver na próxima agenda. Claro que podemos aprovar até ficarmos roxos de vergonha, o que nada traria de positivo, a menos que Stu continue."

 

Stu: "Acertou em cheio!"

 

Nick: "Já crescemos o suficiente para precisarmos realmente de um arremedo de lei. Sem isso, será o caos. Temos o caso daquele garoto Gehringer dirigindo velozmente aquele carro acima e abaixo da Pearl Street. Ele por fim bateu com o carro e teve a sorte de safar-se com apenas um corte na testa. Podia ter morrido, ter matado alguém. Ora, todos os que o viram fazendo aquilo sabiam que resultaria em problema. B-E-B-I-D-A atrai problemas, como diria Tom Cullen. No entanto, ninguém achou que devia impedi-lo, porque não tinham autoridade para isso. Essa foi uma coisa. Depois houve o caso de Rich Moffat. Talvez alguns de vocês conheçam Rich, mas, para quem não o conhece, ele talvez seja o único alcoólatra inveterado da Zona. É um sujeito meio decente quando sóbrio, mas perde a noção das coisas quando está bêbado, e ele passa um bocado de tempo bebendo. Há três ou quatro dias, estava alto e resolveu quebrar todas as janelas de vidro laminado da Arapahoe Street. Bem, falei com ele depois de passada a bebedeira... na minha maneira de falar, por escrito. Ele ficou muito envergonhado e apontou para o que fizera, dizendo: ‘Olhe só para isso, veja o que fiz! Cacos de vidro por toda a calçada! E se alguma criança se cortasse? A culpa seria minha!’"

 

Ralph: "Não sinto a menor pena de gente assim. Nenhuma."

 

Fran: "Ora, vamos, Ralph! Todos sabem que o alcoolismo é uma doença!"

 

Ralph: "Doença o cacete! Não passa de vício, isso sim!"

 

Stu: "E vocês dois parece que beberam. Vamos lá, baixem o facho!"

 

Ralph: "Desculpe, Stu. Vou me limitar a ler a carta de Nick."

 

Fran: "E ficarei calada por pelo menos dois minutos, Sr. Presidente. Prometo."

 

Nick: "Para resumir uma longa história, arranjei uma vassoura e Rich varreu toda a porcaria que tinha feito. Aliás, varreu muito bem. No entanto, estava certo ao perguntar por que ninguém o impediu. Nos velhos tempos, caras como Rich nem tinham condições de bancar o porre de alta tensão que desejavam; ficavam na bebida barata e batizada. Mas agora temos um sortimento incrível de bebida de todo tipo nas prateleiras, é só pegar e levar. Além disso, acho que jamais permitiriam a Rich quebrar mais do que a primeira vidraça, mas ele quebrou todas as janelas do lado ímpar da rua por três quarteirões. Só parou porque ficou cansado. E eis mais um exemplo: tivemos o caso de um homem, cujo nome não vou mencionar, que encontrou sua mulher, cujo nome também omitirei, passando todo o seu tempo ocioso à tarde em companhia de uma terceira pessoa. Imagino que todos saibam de quem estou falando."

 

Sue: "Claro, acho que sabemos. O grandalhão brigão."

 

Nick: "Seja como for, o homem em questão surrou a terceira pessoa e também a mulher envolvida. Ora, acho que não nos interessa saber quem tinha ou não razão..."

 

Glen: "Você está enganado nisso, Nick."

 

Stu: "Deixe o homem terminar, Glen."

 

: "Vou deixar, mas há um ponto a que quero retomar."

 

Stu: "Ótimo. Prossiga, Ralph."

 

Ralph: "Sim... vamos até o final agora."

 

Nick: "... porque o importante é que esse homem cometeu um delito grave, agressão e espancamento, mas continua circulando livre por aí. Dos três casos, esse é o que mais preocupa os cidadãos. Estamos vivendo numa sociedade heterogênea, uma verdadeira mistura, e vamos enfrentar todo tipo de conflitos e atritos. Não creio que nenhum de nós queira uma sociedade de fronteira aqui em Boulder. Pensem na situação que teríamos se o homem em questão houvesse pegado um .45 em alguma casa de penhores e matasse as outras duas pessoas, em vez de surradas. Então estaríamos com um assassino à solta."

 

Sue: "Meu Deus, Nick, o que é isso? O pensamento do dia?"

 

Larry: "É, é horrível, mas ele está certo. Há um velho ditado, acho que da Marinha, que diz.: ‘Qualquer coisa que possa dar errado dará.’"

 

Nick: "Stu já é o nosso mediador público e privado, isto significando que as pessoas o vêem como uma figura de autoridade. E, pessoalmente, acho que Stu é um bom homem para a função."

 

Stu: "Obrigado pelas palavras gentis, Nick. Acho que você nunca notou que uso botas de tacão alto. Falando sério, porém... aceitarei a indicação, se é o que deseja. Não quero realmente o maldito posto... pelo que vi lá no Texas, o trabalho policial consiste principalmente em limpar vômito da camisa quando sujeitos como Rich Moffat botam os bofes para fora, ou tirar das mas idiotas como esse garoto Gehringer. Tudo que peço é que, quando levarmos o assunto para a assembleia geral, coloquemos neste cargo o mesmo limite de um ano que iremos propor para nossos cargos no comitê. E quero deixar bem claro que vou cair fora depois de completado um ano. Se a ideia for aceita, é claro."

 

Glen: "Acho que posso falar por todos nós ao dizer que é isso aí. Quero agradecer a Nick por sua moção e deixar registrado que se trata de uma tacada de gênio. E apóio a moção."

 

Stu: "Muito bem, a moção está aprovada. Algo mais a ser discutido?"

 

Fran: "Sim, há algo mais. Tenho uma pergunta. E se alguém estourar sua cabeça?"

 

Stu: "Não acredito que..."

 

Fran: "Não, você não acredita. Não acredita mesmo! Bem, o que é que Nick irá me dizer se tudo o que acham estiver errado? ‘Ah, sinto muito, Fran?’ É isso que ele irá dizer? ‘Seu homem está caído na sede do condado com um - buraco de bala na cabeça e acho que cometemos um erro’? Pelo amor de Deus, vou ter um bebê e vocês querem que ele seja Pat Garrett?!"

 

Houve mais dez minutos de discussão, em sua maior parte irrelevante; e Fran, obediente secretária de atas, permitiu-se um bom choro antes de recuperar o controle. A votação para indicação de Stu como xerife da Zona Franca foi de 6 a 1, e desta vez Fran não modificou seu voto. Glen pediu a palavra uma última vez, antes que fosse encerrada a reunião.

 

Glen: "Isto é só uma ideia novamente, não uma moção, nada para ser votado, mas algo que deve ser bem pensado. Voltando ao terceiro exemplo de Nick sobre problemas de lei e ordem: ele descreveu o caso e terminou dizendo que a nós não importava quem estava certo ou errado. Acho que ele estava errado. Acredito que Stu seja um dos homens mais justos que já conheci. No entanto, a aplicação da lei sem um sistema judiciário não é justiça. É apenas vigilância, regida pelos punhos. Suponhamos agora que o sujeito, que todos conhecemos, tivesse pegado um .45 e matado com ele sua mulher e o amante dela. Suponhamos ainda que Stu, como nosso xerife, o trancafiasse no xadrez. E depois? Por quanto tempo mantê-lo preso? Legalmente, não poderíamos sequer prendê-lo, pelo menos segundo a Constituição que adotamos em nossa assembleia da noite passada, porque, segundo ela, um homem é inocente até que seja provada sua culpa em julgamento. Ora, na verdade, todos sabemos que o trancafiamos. Não nos sentiríamos seguros com ele circulando pelas ruas! Então fizemos isso, embora gritantemente anticonstitucional, porque quando a segurança e a constitucionalidade estão em campos opostos, a segurança deve prevalecer. Contudo, compete a nós tomar segurança e constitucionalidade sinônimos, o mais rápido que pudermos. Precisamos pensar em um sistema judiciário."

 

Fran: "Isso é muito interessante e concordo que seja algo em que devemos pensar, mas no momento proponho adiarmos. É tarde, estou muito cansada."

 

Ralph: "Caramba, apóio a proposta. Vamos falar de justiça na próxima vez. Nesse exato momento, minha cabeça não está muito boa, está girando sem parar. Esse negócio de reinventar o país é mais difícil do que parecia a princípio."

 

Larry: "Amém."

 

Stu: "Há uma moção para adiar. Todos estão de acordo?"

 

A proposta de adiamento foi aprovada por unanimidade.

 

Frances Goldsmith, secretária

 

- Por que está parando? - perguntou Fran quando Stu pedalou a bicicleta lentamente para o meio-fio e pousou o pé no chão. - Ainda falta um quarteirão. - Os olhos dela ainda estavam vermelhos do choro durante a reunião. Stu achou que nunca a vira com aspecto tão fatigado.

 

- Essa história de ser xerife... - começou ele.

 

- Stu, não quero falar sobre isso.

 

- Alguém teria de assumir o cargo, meu bem. E Nick estava certo. Sou a escolha lógica.

 

- Que se dane a lógica! E quanto a mim e ao bebê? Não enxerga nenhuma lógica em nós, Stu?

 

- Eu devia saber o que você quer para o bebê - disse ele suavemente. - Você já não me disse isso tantas vezes? Quer vê-lo criado num mundo que não esteja tão totalmente louco. Quero coisas seguras para ele... ou ela. Também quero isso. Mas não vou dizer tais coisas na frente dos outros. Isto é algo entre nós dois. E você e o bebê são as principais razões por ter concordado.

 

- Sei disso - disse ela em voz baixa e sufocada.

 

Stu pôs os dedos sob o queixo dela e a fez erguer o rosto. Sorriu para Fran, que fez um esforço para sorrir de volta. Era um sorriso cansado, as lágrimas rolavam pelas faces, porém era melhor do que nenhum sorriso, afinal.

 

- Tudo vai correr bem - disse ele.

 

Ela sacudia a cabeça de um lado para outro, lentamente. Algumas lágrimas voaram para a cálida noite de verão.

 

- Acho que não - replicou ela. - Sinceramente, acho que não.

 

Ela ficou muito tempo acordada durante a noite, pensando que o calor só podia provir do fogo - Prometeu teve o fígado bicado por isso - e que o amor está sempre comprometido com sangue.

 

Então foi tomada por singular certeza, tão entorpecedora quanto uma anestesia furtiva, de que terminariam em uma torrente de sangue. O pensamento a fez colocar as mãos protetoramente sobre o ventre e, pela primeira vez em semanas, viu-se pensando no seu sonho: o homem escuro com seu sorriso... e seu cabide retorcido.

 

Além de procurar por Mãe Abagail com um grupo de voluntários selecionados em seu tempo de folga, Harold Lauder fazia parte do Comitê de Sepultamento. Passou o dia 21 de agosto na carroceria de um caminhão-basculante com mais cinco homens, todos usando botas, trajes protetores e grossas luvas de borracha Playtex. Chad Norris, o chefe do Comitê de Sepultamento, encontrava-se no lugar que denominara, com uma calma quase espantosa, de Sítio de Sepultamento no 1. Ficava 15 quilômetros a sudoeste de Boulder, numa área que certa época fora destinada à mineração de carvão. O local era tão agreste e estéril quanto as montanhas lunares sob o ardente sol de agosto. Chad aceitara o posto relutantemente, porque um dia tinha sido ajudante de coveiro em Morristown, Nova Jersey.

 

- Não há nada de enterramento nisto - dissera ele naquela manhã no terminal de ônibus Greyhound, entre as mas Arapahoe e Walnut, que se tomara a base de operação do Comitê de Sepultamento. Ele acendera um Winston com um fósforo de madeira e sorria para os vinte homens sentados em tomo. - Quero dizer, trata-se de um enterramento, mas não de um enterramento enterrado, se é que me entendem.

 

Houve alguns sorrisos tensos, o de Harold sendo o mais amplo entre eles. Seu estômago roncava constantemente porque não ousara comer nada como café-da-manhã. Não tivera certeza de poder conservar o alimento dentro de si, considerando-se a natureza do trabalho. Podia ter ficado com as turmas de busca a Mãe Abagail e ninguém murmuraria uma palavra de protesto, embora fosse óbvio para qualquer homem pensante na Zona Franca (se houvesse algum homem pensante na Zona Franca além dele - uma questão a se discutir) que procurá-la com a ajuda de apenas 15 homens era um exercício inútil ao se considerarem os milhares de quilômetros quadrados de florestas e planícies vazias ao redor. E, naturalmente, ela talvez nem tivesse saído de Boulder, hipótese em que ninguém parecia ter pensado (o que não constituía nenhuma surpresa para Harold). Ela bem que poderia ter se instalado em alguma casa, situada em qualquer ponto além do centro da cidade, e talvez nunca fosse encontrada, a não ser que se fizesse uma busca de casa em casa. Redman e Andros não tinham dito qualquer palavra de protesto ao ouvirem a sugestão de Harold para que o Comitê de Busca aproveitasse um fim de semana para trabalhar, uma espécie de busca ao entardecer. Isso disse a Harold que também eles já davam o caso como encerrado.

 

Ele poderia ter ficado no Comitê de Busca, porém quem é mais apreciado em qualquer comunidade? Quem é a pessoa mais confiável? Ora, o cara que faz o trabalho sujo, claro, e o faz com um sorriso. O cara que faz o trabalho que ninguém tem coragem de fazer.

 

- Vai ser como sepultar madeira empilhada - Chad disse a eles. - Se puderem enfiar isso na cabeça, tudo correrá bem. Alguns de vocês talvez vomitem no começo. Não há nenhuma vergonha nisso; basta que se retirem para algum lugar onde os outros não possam ver. Depois de vomitarem, acharão mais fácil pensar dessa maneira: madeira empilhada. Nada mais que madeira empilhada.

 

Os homens se entreolharam desconfortavelmente.

 

Chad os dividiu em equipes de seis homens. Ele e os outros dois foram preparar um lugar para onde seriam levados os corpos. Cada equipe recebeu uma zona específica da cidade onde atuar. O caminhão de Harold passara o dia na área de Table Mesa, abrindo caminho lentamente para oeste, a partir da rampa de saída do posto de pedágio Denver-Boulder. Subiram a Martin Drive até o cruzamento com a Broadway. Desceram a ma 39 e retornaram à 14, com casas suburbanas em uma extensão de terreno agora com uns trinta anos de idade, retroagindo ao tempo da explosão populacional de Boulder.

 

Chad conseguira máscaras contra gás no arsenal da Guarda Nacional, porém só teriam de usá-las depois do almoço (almoço? Que almoço? O de Harold consistiu em uma torta de maçã Berry’s, e isso fora tudo que pudera ingerir). Depois entraram na igreja dos mórmons, na parte baixa da Table Mesa Drive. As pessoas haviam corrido para ali, já infectadas pela epidemia, e era onde tinham morrido, mais de setenta, exalando um fedor terrível.

 

- Madeira empilhada - repetiu um dos parceiros de Harold, em voz aguda, nauseada e risonha. Harold o contornara em passos trôpegos. Chegou a uma quina do aprazível prédio de tijolos, que outrora fora utilizada como seção eleitoral em anos de votação. Ali despejou todo o recheio de torta de maçã e concluiu que Norris estivera certo: sentiu-se bem melhor de estômago vazio.

 

O trabalho de esvaziar a igreja exigiu-lhes duas viagens e a maior parte da tarde. Vinte homens, pensou Harold, para dar fim a todos os cadáveres em Boulder. Chegava a ser engraçado. Boa parte dos residentes fugira de Boulder como coelhos com medo do Centro de Observações Atmosféricas, mas ainda... Harold supôs que se o Comitê de Sepultamentos crescesse com a população, seria possível já terem colocado a maioria dos corpos debaixo da terra quando caísse a primeira nevasca forte (não que ele esperasse ainda estar ali à ocasião) e a maioria das pessoas jamais saberia o quanto fora real o perigo de uma nova epidemia - uma epidemia à qual não estavam imunes.

 

O Comitê da Zona Franca estava repleto de ideias brilhantes, pensou ele com desdém. O comitê seria excelente... enquanto seus membros pudessem contar com o bom e velho Harold Lauder para verificar se os cordões de seus sapatos estavam amarrados, claro. O bom e velho Harold se presta bem para isso, mas não é bom o suficiente para participar da porra do Comitê Permanente. Ah, claro que não. Ele nunca prestou o suficiente nem para arranjar uma garota para ser seu par no baile de formatura no Ginásio Ogunquit, nem mesmo uma feiosa. Santo Deus, não, não Harold. Lembrem-se, rapazes, quando descemos diretamente àquele proverbial lugar onde o mamífero peludo esvaziou os intestinos no capinzal, isto não é nenhuma questão lógica, analítica, nem mesmo uma questão de bom senso. Quando descemos àquele lugar, tudo se resume a uma porra de um concurso de beleza.

 

Bem, alguém se lembra. Alguém está fazendo o registro, rapazes. E o nome desse alguém é - por favor, um rufar de tambor, maestro - Harold Emery Lauder.

 

Assim, ele retornou à igreja limpando a boca e sorrindo o melhor que podia, assentindo que estava pronto para continuar. Alguém lhe bateu nas costas e o sorriso de Harold aumentou, enquanto ele pensava: Algum dia ainda vai perder sua mão por causa disso, seu babaca.

 

Fizeram o último carregamento às 16h15. A carroceria do caminhão seguiu lotada com os últimos cadáveres mórmons. Na cidade, o caminhão precisou tecer laboriosamente o seu trajeto, indo de um lado para outro no trânsito bloqueado pelos veículos parados e abandonados, mas na Colorado 119 três carros-guincho haviam trabalhado o dia inteiro, removendo os veículos abandonados ou abalroados e depositando-os nas valas dos dois lados da estrada. Ali jaziam eles, como brinquedos capotados de alguma criança-gigante.

 

No local de sepultamento, os outros dois caminhões cor de laranja estavam já estacionados. Homens perambulavam por ali, agora sem as luvas, os dedos brancos e franzidos nas pontas por suarem o dia inteiro contra a borracha. Eles fumavam e conversavam trivialidades. Quase todos estavam muito pálidos.

 

Norris e seus dois auxiliares tinham conseguido transformar a tarefa em uma ciência. Estenderam uma enorme folha de plástico sobre o solo de cascalho. Norman Kellog, o homem da Louisiana que dirigia o caminhão de Harold, rodou em ré até a borda do plástico. A traseira da caçamba desceu com estrondo e os primeiros cadáveres caíram sobre o plástico estendido, como bonecos de trapo parcialmente enrijecidos. Harold quis virar-se, porém receou que os outros considerassem isso uma fraqueza. Não se importava muito em ver os corpos caindo; pior era o barulho que faziam ao bater no que seria sua mortalha. O ronronar do motor do caminhão se intensificou e houve um gemido hidráulico quando a caçamba começou a erguer-se. Agora os cadáveres caíam para fora como uma grotesca chuva humana. Harold sentiu um instante de piedade, uma sensação tão profunda que chegava a doer. Madeira empilhada, pensou. Estava para lá de certo. Ali estava tudo que restava... madeira empilhada.

 

- Eia! - gritou Chad Norris e Kellog impeliu o caminhão à frente e fez a caçamba voltar à posição normal. Chad e seus ajudantes pisaram no plástico, todos carregando ancinhos. Agora Harold desviou a vista, fingindo examinar o céu em busca de indícios de chuva, e não foi o único, mas ele ouviu um som que o assombraria nos seus sonhos, o som de moedas caindo dos bolsos de homens e mulheres mortos enquanto Chad e seus ajudantes usavam os ancinhos, espalhando os cadáveres uniformemente. As moedas caindo sobre o plástico produziam um som que lembrava Harold absurdamente o de fichas de jogo despejadas numa bandeja. O fedor doentio-adocicado de decomposição se espalhou no ar quente.

 

Quando olhou de volta, três deles estavam erguendo as bordas da mortalha de plástico, grunhindo com o esforço, os músculos dos braços retesados. Alguns dos outros homens, Harold entre eles, ajudaram na tarefa. Chad Norris surgiu com um enorme grampeador industrial. Vinte minutos depois, essa parte do serviço estava concluída e o plástico jazia no solo como uma cápsula de gelatina gigante. Norris subiu na cabine de um buldôzer amarelo-vivo e ligou o motor. A prancha de escavar entrou em ação. O buldôzer rolou à frente.

 

Um homem chamado Weizak, também do caminhão de Harold, se afastou da cena com os passos saltitantes de um fantoche descontrolado. Um cigarro tremia entre seus dedos.

 

- Cara, não consigo ver isso - disse ele ao passar por Harold. - Chega a ser meio engraçado. Só hoje descobri que sou judeu.

 

O buldôzer empurrou o enorme embrulho de plástico para um comprido corte retangular no solo. Chad recuou, desligou o motor e desceu da cabine. Fazendo sinal para os homens se agruparem, ele caminhou até um dos caminhões e pôs um pé calçado de bota sobre o estribo.

 

- Sem vivas de torcida organizada, rapazes - disse ele -, mas vocês se saíram tremendamente bem. Enterramos perto de mil unidades hoje, acho.

 

Unidades, pensou Harold.

 

- Sei que esse tipo de trabalho exige um bocado de um homem. O comitê está nos prometendo mais dois homens antes do fim da semana, mas sei que isso não muda o jeito como vocês se sentem... ou o jeito como eu me sinto, por falar nisso. Tudo que quero dizer é que, se para alguns de vocês isto foi uma barra pesada, não se sintam na obrigação de agüentar mais um dia desse serviço e não precisam se preocupar em me evitar se cruzarem comigo nas ruas. Mas se algum de vocês acha que não pode suportar, é tremendamente importante que encontre alguém para substituí-lo amanhã. Até onde é da minha conta, este é o serviço mais importante na Zona Franca. A situação não é tão ruim agora, mas se ainda tivermos 20 mil cadáveres em Boulder quando vier o tempo chuvoso, as pessoas vão ficar doentes. Se acharem que podem continuar, eu os verei amanhã de manhã no terminal de ônibus.

 

- Estarei lá - disse alguém.

 

- Eu também - disse Nonnan Kellogg. - Depois de um banho de seis horas esta noite.

 

Risadas.

 

- Conte comigo - ecoou Weizak.

 

- Comigo também - disse Harold, baixinho.

 

- É um trabalho sujo - continuou Norris numa voz baixa e cheia de emoção. - Vocês são bons homens. Duvido se o resto deles reconhecerá isto algum dia.

 

Harold teve uma sensação de união, de camaradagem, e lutou contra isso, subitamente temeroso. Isto não fazia parte do plano.

 

- Te vejo amanhã, Falcão - disse Weizak e apertou-lhe o ombro.

 

O sorriso de Harold foi perplexo e defensivo. Falcão? Que tipo de piada era essa? De mau gosto, claro. Sarcasmo barato. Chamar de Falcão o gordo e espinhento Harold Lauder. Ele sentiu o velho e sombrio ódio ressurgir, desta vez dirigido a Weizak, um ódio que depois parou de crescer, em súbita confusão. Ele não era mais gordo. Nem sequer podia ser chamado de robusto. Suas espinhas haviam desaparecido ao longo das últimas sete semanas. Weizak não sabia que ele tinha sido o alvo de gozações na escola. Weizak não sabia que o pai de Harold lhe perguntara uma vez se ele era homossexual. Weizak não sabia que Harold tivera de carregar a cruz de ter uma irmã popular. E, se tivesse sabido, Weizak não teria ligado a mínima.

 

Harold subiu na carroceria de um dos caminhões, sua mente se revolvendo desamparadamente. De súbito, todos os rancores antigos, as velhas mágoas e as contas não ajustadas pareceram tão inúteis quanto o papel-moeda que entupia todas as caixas registradoras do país.

 

Poderia ser verdade? Poderia mesmo? Ele ficou em pânico, sozinho e assustado. Não, decidiu por fim. Era impossível ser verdade. Porque, vamos considerar: se você tem força de vontade suficiente para resistir ao baixo conceito dos outros, quando eles o consideram um maricas, um constrangimento ou apenas um velho saco de merda, então tem de ter força de vontade suficiente para resistir a...

 

Resistir a quê?

 

À boa opinião dos outros a seu respeito?

 

Esse tipo de lógica não era... bem, esse tipo de lógica era loucura, não era?

 

Uma velha citação aflorou-lhe à mente perturbada: a justificativa de um general para o confinamento de nipo-americanos durante a Segunda Guerra Mundial. Quando observaram a este general que nenhum ato de sabotagem ocorrera na Costa Oeste, onde era maior a concentração de japoneses naturalizados, ele respondera: "O próprio fato de não ter havido sabotagem já é um indício de mau agouro."

 

Este era ele?

 

Era?

 

O caminhão deles parou no pátio de estacionamento do terminal da Greyhound. Harold saltou por sobre a lateral da carroceria, refletindo que até sua coordenação havia melhorado mil por cento, fosse pelo peso que perdera, por seu exercício constante ou por ambas as coisas.

 

O pensamento lhe retornou, teimoso, recusando-se a ser sepultado: Eu poderia ser um esteio desta comunidade.

 

Mas eles o tinham esnobado.

 

Isso não importa. Tenho cérebro para arrombar a porta que bateram na minha cara. E creio que terei peito para abri-la, mesmo que não esteja trancada.

 

Porém...

 

Pare com isso! Pare! Você poderia muito bem estar usando algemas e correntes nas pernas com essa palavra impressa em todas elas. Porém! Porém! Porém! Será que não pode parar com isso, Harold? Não pode, pelo amor de Deus, descer da porra deste seu pedestal?

 

- Ei, cara, você está legal?

 

Harold sobressaltou-se. Era Norris, voltando do escritório do despachante, que passara a ser o seu. Parecia cansado.

 

- Eu? Ah, estou ótimo. Estava só pensando.

 

- Bem, continue. Parece que, toda vez que faz isso, você imprime dinheiro para este negócio.

 

Harold sacudiu a cabeça.

 

- Não é verdade.

 

- Não? - Chad não insistiu. - Quer que o deixe em algum lugar?

 

- Não precisa. Tenho meu helicóptero.

 

- Quer saber de uma coisa, Falcão? Acho que a maioria desses caras vai mesmo voltar amanhã.

 

- Eu também vou. - Harold caminhou até sua moto e subiu nela. Viu-se saboreando seu novo apelido, embora um tanto a contragosto.

 

Norris sacudiu a cabeça.

 

- Eu nunca teria acreditado nisso. Imaginei que, uma vez tivessem visto o que era o serviço, os rapazes procurariam um monte de outras coisas com que se ocupar.

 

- Vou lhe dizer o que acho - disse Harold. - Acho que é mais fácil realizar um trabalho sujo para si mesmo do que fazê-lo para outra pessoa. Alguns desses rapazes... creio que é a primeira vez em suas vidas que não trabalham para um patrão.

 

- É, acho que faz algum sentido. Vejo você amanhã, Falcão.

 

- Às oito - confirmou Harold e seguiu com a moto pela Arapahoe, entrando na Broadway. À sua direita, uma equipe formada principalmente por mulheres manobrava um carro-guincho e um guindaste, endireitando um veículo que havia capotado. O grupo havia atraído uma respeitável multidão. Este lugar está se arrumando, pensou Harold. Não reconheço metade dessas pessoas.

 

Seguiu em frente rumo a sua casa, a mente preocupada e matutando o problema que julgara ter resolvido há muito tempo. Ao chegar em casa havia uma pequena Vespa branca estacionada junto ao meio-fio. E uma mulher sentada nos degraus da entrada.

 

Ela se levantou quando Harold começou a subir a aleia e estendeu a mão. Era uma das mulheres mais extraordinárias que já vira - já a tinha visto antes, claro, mas não tão de perto.

 

- Sou Nadine Cross - disse ela. Tinha uma voz grave, quase rouca. O seu aperto de mão era firme e calmo. Os olhos de Harold desceram involuntariamente para o corpo dela por um instante, um hábito que sabia ser detestado pelas garotas, mas que não conseguia conter. Mas ela não pareceu se importar. Usava slacks claros, em sarja de algodão, que aderiam às pernas longas, e uma blusa sem mangas feita de um tecido sedoso azul-claro. Não usava sutiã, adivinhou ele. Que idade teria? Trinta? Trinta e cinco? Talvez mais jovem. Estava ficando prematuramente grisalha.

 

No corpo inteiro?, indagou aquela parte de sua mente que vivia incessantemente excitada (e, aparentemente, sempre virginal), fazendo seu coração acelerar um pouco.

 

- Harold Lauder - respondeu ele, sorrindo. - Você chegou com o grupo de Larry Underwood, não é?

 

- Isso mesmo.

 

- Seguiram Stu e Frannie e a mim através do Grande Vazio, estou sabendo. Larry me visitou na semana passada. Trouxe uma garrafa de vinho e algumas barras de chocolate. - Suas palavras soavam de maneira falsa e distante. De repente, Harold compreendeu que Nadine sabia que ele a estava catalogando, despindo-a mentalmente. Lutou contra a ânsia de lamber os lábios e venceu... pelo menos por enquanto. - Ele é um cara superlegal.

 

- Larry? - Ela riu um pouco, um som estranho e um tanto enigmático. - Sim, Larry é um príncipe.

 

Os dois entreolharam-se por um momento. Harold jamais havia sido examinado por uma mulher cujos olhos fossem tão francos e especulativos. Ficou de novo cônscio de sua excitação, de um cálido nervosismo no ventre.

 

- Bem - disse ele. - Em que posso servi-la esta tarde, Srta. Cross?

 

- Para começar, pode me chamar de Nadine. E também poderia me convidar para jantar. Isso nos tomaria algum tempo.

 

Aquele senso de excitação nervosa começou a se espalhar.

 

- Aceitaria ficar para jantar, Nadine?

 

- Com imenso prazer - respondeu ela e sorriu. Quando pousou a mão no antebraço dele, Harold sentiu uma espécie de pequeno choque elétrico. Os olhos dela não se desviavam dos seus. - Muito obrigada.

 

Ele enfiou a chave no buraco da fechadura, pensando: Agora ela uai perguntar por que tranco a porta e vou ficar gaguejando, procurando uma resposta, parecendo um tolo.

 

Mas Nadine nada perguntou.

 

Não foi ele quem preparou o jantar; foi ela.

 

Harold chegara ao ponto em que achava impossível produzir uma refeição pelo menos decente à base de enlatados, mas Nadine saiu-se muito bem. Recordando de súbito o que estivera fazendo o dia inteiro, ele perguntou se ela aguardaria uns vinte minutos (e Nadine por certo estaria ali por causa de uma questão muito mundana, alertou-se Harold, em desespero), enquanto ele tomava um banho.

 

Quando voltou - tendo usado dois bons baldes de água para limpar-se - ela manejava coisas na cozinha. A água fervia alegremente no fogão a botijão de gás. Quando Harold entrou na cozinha, Nadine despejou meia xícara de macarrão dentro da panela. Algo líquido fervia em fogo brando no outro bico de gás, dentro de uma caçarola. Ele inspirou um aroma combinado de sopa de cebola, vinho tinto e cogumelos. Seu estômago roncava. O dia de trabalho penoso mal terminara, mas agora era de repente substituído por um voraz apetite.

 

- O cheiro está fantástico - disse ele. - Você não deveria estar cozinhando, mas não lamento por isso.

 

- É uma caçarola de estrogonofe - disse ela, virando-se para sorrir-lhe. - Estritamente improvisada, lamento dizer. Carne enlatada não é um dos ingredientes recomendados quando este prato é feito nos restaurantes mais finos do mundo, porém... - Ela deu de ombros, indicando as limitações a que todos ali estavam submetidos.

 

- Foi muita gentileza sua se dar a este trabalho.

 

- De jeito nenhum! - Ela lançou-lhe outro olhar especulativo, virou-se a meio para ele, o tecido sedoso da blusa retesado sobre o seio esquerdo, moldando-o suavemente. Harold sentiu um cabrão subindo por seu pescoço e desejou não ter uma ereção.

 

- Nós vamos ser muito bons amigos - disse ela.

 

- Vamos... mesmo?

 

- Sim. - Ela voltou-se para o fogão, parecendo encerrar o assunto e deixando Harold diante de inúmeras possibilidades.

 

Depois disso, a conversa consistiu estritamente em trivialidades... Fofocas sobre a Zona Franca, em sua maior parte. Já havia um farto suprimento disso. Em dado momento, quando estavam em meio à refeição, ele tentou perguntar-lhe de novo o que a havia trazido ali, mas ela limitou-se a sorrir e sacudir a cabeça.

 

- Gosto de ver um homem comer bem.

 

Por um instante, Harold imaginou que Nadine devia estar falando sobre outra pessoa e então percebeu que era com ele. E comeu; serviu-se três vezes de estrogonofe e, em sua opinião, a carne enlatada não desmereceu o prato em absoluto. A conversa parecia fluir sem dificuldade, deixando-o livre para aquietar o leão em sua barriga e olhar para ela.

 

Achara-a impressionante? Ela era linda. Madura e linda. Os cabelos, que puxara para trás num rabo-de-cavalo a fim de cozinhar com mais facilidade, estavam entremeados por fios alvíssimos, não grisalhos como pensara a princípio. Os olhos eram escuros e sérios e quando se focalizavam nos dele sem hesitação, Harold sentia-se confuso. A voz de Nadine era baixa e confidencial. O som daquela voz começou a afetá-lo de uma forma que tanto tinha de desconfortável quanto de quase excruciantemente agradável.

 

Terminada a refeição, Harold começou a levantar-se, mas ela o impediu.

 

- Café ou chá?

 

- Na verdade, eu poderia...

 

- Poderia, mas não vai. Café, chá... ou eu? - Ela sorriu então, não o sorriso de alguém que fez um comentário de pequeno risco ("conversa audaciosa", como diria sua velha e querida mãe, a boca franzida numa linha desaprovadora), mas um pequeno sorriso lento, sumarento como o creme encimando uma sobremesa. E, de novo, aquele olhar especulativo.

 

Com o cérebro rodopiando, Harold replicou com insana despreocupação:

 

- Os dois últimos - e mal conseguiu conter um acesso de incontidas risadinhas adolescentes, tendo de empregar um poderoso esforço.

 

- Bem, vamos começar com chá para dois - disse Nadine e foi para o fogão.

 

Sangue quente latejou na cabeça de Harold no instante em que ela virou as costas, indubitavelmente fazendo seu rosto enrubescer como uma beterraba. Você é o próprio Sr. Cortês!, censurou-se febrilmente. Você interpretou mal um comentário perfeitamente inocente como o maldito idiota que é, e talvez tenha estragado uma ocasião perfeita. E isso lhe cai como uma luva! Cai tremendamente!

 

Na hora em que trouxe as canecas fumegantes de chá preto para a mesa, o intenso rubor de Harold tinha se reduzido um pouco e ele se manteve sob controle. O aturdimento se transformara tão abruptamente em desespero que ele sentiu (não pela primeira vez) que seu corpo e mente tinham sido enfiados a contragosto no vagão de uma enorme montanha-russa feita de pura emoção. Ele odiava isto, mas sentia-se impotente para se livrar.

 

Se ela estivesse interessada em mim, afinal, pensou ele (e só Deus sabe por que estaria, acrescentou desalentado para si mesmo), sem dúvida eu creditaria isso ao expor o pleno alcance de minha inteligência imatura.

 

Bem, ele já fizera coisas assim e supôs que poderia conviver com o conhecimento de que o fizera novamente.

 

Nadine fitou-o por sobre a borda da xícara de chá, exibindo aqueles olhos desconcertantemente francos, e sorriu de novo, e o farrapo de equanimidade que fora capaz de reunir desapareceu de imediato.

 

- Posso ajudá-la em alguma coisa? - perguntou. Isto soou como uma frase de duplo sentido, porém tinha que dizer qualquer coisa, pois ela devia ter vindo com algum objetivo em vista. Estava tão confuso que não conseguiu distender os lábios em seu sorriso de autoproteção.

 

- Pode - disse ela, depositando a xícara no pires, com ar decidido. - Sim, você pode. Talvez a gente possa se ajudar mutuamente. Quer vir para a sala de estar?

 

- Claro. - A mão dele tremia. Quando depositou a xícara, derramou um pouco do chá no pires. Ao segui-la até a sala de estar, reparou que os slacks de Nadine (que nada tinham de frouxos, sua mente tagarelou) aderiam uniformemente ás nádegas. Harold lera em algum lugar, talvez numa das revistas que guardava no fundo do armário de seu quarto, atrás das caixas de sapatos, que era a linha das calcinhas que rompia a uniformidade da aderência dos slacks da maioria das mulheres. A mesma revista dizia que se a mulher quisesse apresentar realmente aquela aparência lisa e uniforme, deveria usar meia-calça ou nenhuma calcinha, em absoluto.

 

Ele engoliu em seco. Tentou, pelo menos. Em sua garganta parecia haver uma espécie de bloqueio.

 

A sala de estar estava na penumbra, iluminada apenas pela claridade que se filtrava através das persianas baixadas. Passava das seis e meia, e lá fora a tardinha já ia se tomando crepúsculo. Harold foi até uma das janelas para levantar a persiana e deixar entrar mais luz, quando ela pousou a mão no seu braço. Virou-se para Nadine com a boca seca.

 

- Não. Gosto delas arriadas. Isso nos dá privacidade.

 

- Privacidade - grasnou Harold com a voz de um papagaio velho.

 

- Para que eu possa fazer isto - disse ela, avançando levemente para os braços dele.

 

O corpo de Nadine pressionou-se franca e inteiramente contra o dele. Era a primeira vez na vida de Harold que algo assim lhe acontecia, de maneira que sua surpresa foi total. Podia sentir a pressão macia e individual de cada seio através da blusa azul e sedosa de Nadine. O ventre dela, firme porém vulnerável, achatou-se sobre o seu, não recuando ao sentir a ereção. Ela exsudava um cheiro adocicado, talvez de perfume - ou talvez fosse apenas seu próprio cheiro. Aquilo parecia um segredo contado que irrompe, revelador, sobre o ouvinte. As mãos de Harold encontraram os cabelos de Nadine e mergulharam neles.

 

Por fim houve o beijo, mas ela não recuou, seu corpo permanecendo contra o dele como uma pequena fogueira. Nadine talvez fosse uns 10 centímetros mais baixa, pois tinha de erguer o rosto para o dele. Ocorreu vagamente a Harold que aquela era uma das ironias mais divertidas da sua vida: quando o amor - ou um equivalente razoável - finalmente o encontrara, era como se houvesse deslizado enviesadamente para as páginas de uma história de amor água-com-açúcar de uma revista feminina. Certa vez, em uma carta não-assinada para a revista Redbook, ele afirmara que os autores de tais histórias eram um dos poucos argumentos convincentes em prol da eugenia compulsória.

 

Agora, no entanto, o rosto de Nadine se erguia para o seu, os lábios estavam úmidos e entreabertos, os olhos brilhavam e quase... quase... sim, quase cintilavam como estrelas. O único detalhe não estritamente compatível com o conceito que a Redbook fazia da vida era a sua ereção, verdadeiramente espantosa.

 

- Agora - disse ela. - No sofá.

 

Os dois chegaram lá de algum modo e então ficaram enredados. Ela soltou os cabelos, que lhe fluíram sobre os ombros; seu perfume parecia estar por toda parte. As mãos de Harold apalpavam os seios e ela não se incomodava; na verdade, se contorcia e retorcia, permitindo um acesso mais livre à mão dele. Ele não a acariciava; na sua urgência frenética, ele quase a violentava.

 

- Você é virgem - disse Nadine. Não era uma pergunta... e seria mais fácil não ter de mentir. E ele confirmou.

 

- Então vamos fazer isto primeiro. Da próxima vez será mais lento. E melhor.

 

Nadine desabotoou-lhe os jeans, que se abriram, deixando caminho para o zíper da braguilha. Ela traçou de leve uma linha com o indicador através do ventre de Harold, logo abaixo do umbigo. A carne dele estremeceu e saltou ao seu toque.

 

- Nadine...

 

- Psss! - O rosto dela estava oculto pela massa de cabelos, impedindo que ele visse sua expressão.

 

O zíper foi puxado e a Coisa Ridícula, tornada ainda mais ridícula pelo algodão branco na qual estava enfaixada (graças a Deus ele mudara de roupa após o banho), pulou fora como um boneco de mola. A Coisa Ridícula não se dava conta da sua própria aparência cômica, pois sua questão era terrivelmente séria. A questão da virgindade é sempre terrivelmente séria - não prazer, mas experiência.

 

- Minha blusa...

 

- Eu posso...?

 

- Sim, é o que quero. E então vou cuidar de você.

 

Cuidar de você. As palavras ecoaram para dentro de sua mente como pedras atiradas em um poço, e então ele começou a chupar seu peito com sofreguidão, sentindo o gosto salgado e doce dela.

 

- Harold, que delícia - disse ela com um suspiro. Cuidar de você, as palavras retiniram e martelaram em sua mente.

 

As mãos de Nadine deslizaram para dentro da cintura de sua sunga e os jeans escorregaram até os tornozelos, com um tilintar de chaves.

 

- Levante-se - sussurrou ela, e Harold obedeceu.

 

Levou menos de um minuto. Ele gritou alto com a potência de seu clímax, incapaz de conter-se. Foi como se alguém tivesse encostado um fósforo aceso a toda uma rede de nervos logo abaixo da pele, nervos que mergulhavam fundo para formar todo o emaranhado de sua virilha. Agora compreendia por que tantos escritores faziam aquela conexão entre orgasmo e morte.

 

Depois ele se deitou em meio à penumbra, a cabeça recostada no sofá, o peito arqueado, a boca aberta. Receava olhar para baixo. Achava que jatos de sêmen deviam estar espalhados por toda parte.

 

Jovem parceiro, fizemos jorrar petróleo!

 

Harold olhou para ela, constrangido pela rapidez com que terminara. Entretanto, Nadine apenas lhe sorria, com aqueles olhos escuros e calmos que pareciam saber tudo, os olhos de uma garotinha muito nova em uma pintura vitoriana. Uma menina que sabia demais, talvez, a respeito do próprio pai.

 

- Sinto muito - murmurou ele.

 

- Por quê? Pelo quê? - disse ela sem parar de fitá-lo.

 

- Você não tirou muito proveito disso.

 

- Au contraire, senti uma enorme satisfação. - Ela fez uma pausa. - Você é jovem. Podemos repetir quantas vezes quiser.

 

Ele a fitou, incapaz de falar qualquer coisa.

 

- Mas você precisa saber de uma coisa. - Ela pousou a mão levemente sobre ele. - Aquilo que me disse sobre ser virgem... Bem, eu também sou.

 

- Você... - A expressão de espanto dele devia ser cômica, porque Nadine lançou a cabeça para trás e riu.

 

- Não há espaço para a virgindade em sua filosofia, Horácio?

 

- Não... sim... mas...

 

- Sou virgem. E assim vou continuar. Porque estou guardando minha virgindade para outra pessoa.

 

- Quem?

 

- Você sabe quem.

 

Ele a encarou, subitamente todo gelado. Ela enfrentou seu olhar, mostrando absoluta calma.

 

- Ele?

 

Nadine virou-se meio de lado e concordou.

 

- De qualquer modo, posso ensinar-lhe coisas - disse ela, ainda sem encará-lo. - Nós dois podemos fazer coisas. Coisas que você jamais... ora, retiro o que disse. Talvez você tenha sonhado com elas, porém nunca sonhou que as faria. Podemos brincar. Podemos nos embriagar com isso. Podemos chafurdar nisso. Podemos... - Nadine se interrompeu e olhou para ele com uma expressão tão felina e sensual que Harold recomeçou a ficar excitado. - Podemos fazer qualquer coisa... tudo... menos essa coisinha. E essa coisinha, afinal, não é tão importante assim, não é?

 

Imagens rodopiaram loucamente no cérebro de Harold. Estolas de seda... botas... couro... borracha. Puxa vida! Fantasias de um colegial. Uma estranha espécie de sexo solitário. Mas isto era tudo uma espécie de sonho, não era? Uma fantasia brotada da fantasia, filha de um sonho sombrio. Ele queria todas aquelas coisas, queria ela, porém também queria mais.

 

A questão era: até que ponto fixaria a situação?

 

- Você pode me contar tudo - disse ela. - Serei sua mãe, ou sua irmã, ou sua puta, ou sua escrava. Tudo que quiser fazer, é só me contar, Harold.

 

Como isto ecoava em sua mente! Como o intoxicava!

 

Ele abriu a boca e a voz que emergiu foi tão dissonante quanto o badalar de um sino rachado.

 

- Mas por um preço. Não é correto? Por um preço. Porque nada é de graça. Nem mesmo agora, quando tudo está dando sopa por aí, esperado para ser apanhado.

 

- Eu quero o que você quiser - disse ela. - Sei o que está no seu coração.

 

- Ninguém sabe disso.

 

- O que está no seu coração está escrito no seu livro-razão. Eu poderia lê-lo... sei onde ele está... mas não preciso fazer isso.

 

Ele teve um sobressalto e olhou para ela com terrível sensação de culpa.

 

- Ele costumava estar debaixo daquela laje solta ali - disse ela, apontando para a lareira. - Mas você o trocou de lugar. Agora está atrás da isolação no sótão.

 

- Como sabe disso? Como você sabe?

 

- Sei porque ele me contou. Ele... você poderia dizer que ele me escreveu uma carta. E o que é mais importante, ele me contou sobre você, Harold. Como o texano tomou sua mulher e depois o excluiu do Comitê da Zona Franca. Ele quer nós dois juntos, Harold. E ele é generoso. A partir de agora até quando partirmos daqui, há um recesso pra nós dois.

 

Ela o tocou e sorriu.

 

- Então, a partir de agora é tempo de diversão. Está sabendo?

 

- Eu...

 

- Não - respondeu ela. - Você não sabe. Ainda não. Mas saberá, Harold. Saberá.

 

De modo insano, ocorreu-lhe dizer a ela que o chamasse de Falcão.

 

- E depois, Nadine? O que ele quer depois?

 

- O que você quiser. E o que eu quero. O que você quase fez com Redman na primeira noite em que saíram para procurar a velha... mas numa escala muito maior. E quando estiver feito, podemos ir nos juntar a ele, Harold. Podemos ficar com ele. Podemos permanecer com ele. - Os olhos dela semicerraram-se numa espécie de êxtase. Talvez paradoxalmente, o fato de ela amar o outro mas entregar-se a ele... poderia realmente usufruir isso... atiçou de novo seu desejo, quente e opressivo.

 

- E se eu não aceitar? - perguntou ele, os lábios frios e exangues.

 

Ela deu de ombros e o movimento fez os seios oscilarem sedutoramente.

 

- A vida continua, não é mesmo, Harold? Tentarei outro meio de fazer a coisa que tenho de fazer. Você segue em frente. Cedo ou tarde, encontrará uma garota que queira fazer essa... coisinha para você. Entretanto, essa coisinha fica muito tediosa depois de algum tempo. Tediosa demais.

 

- Como pode saber? - perguntou ele e deu um sorriso enviesado para ela.

 

- Sei porque sexo é vida em miniatura e a vida é tediosa... tempo perdido numa variedade de salas de espera. Você poderia obter suas pequenas glórias aqui, Harold, mas a troco de quê? No todo será uma vida enfadonha, para baixo, e você sempre recordará de mim sem a blusa, e sempre imaginará como eu parecia completamente nua. Você imaginará como teria sido me ouvir falando sacanagens para você... ou espalhando mel sobre seu corpo... e depois lambê-lo todo... e você imaginará...

 

- Pare com isso. - Ele tremia todo. Mas ela não parou.

 

- Acho que também imaginará como teria sido no seu lado do mundo - disse ela. - Mais do que qualquer coisa e tudo o mais, talvez...

 

- Eu...

 

- Decida, Harold. Vai pôr minha blusa de volta ou tirar minha roupa toda?

 

Por quanto tempo ele pensou? Não sabia dizer. Mais tarde, nem mesmo teve certeza de ter meditado sobre o assunto. No entanto, ao falar, as palavras tiveram um sabor de morte em sua boca.

 

- No quarto. Vamos para o quarto.

 

Nadine sorriu para ele, um sorriso de triunfo com tal promessa sensual que Harold estremeceu, evitando sorrir em resposta. Ela pegou-lhe a mão.

 

E Harold Lauder sucumbiu ao seu destino.

 

A CASA ONDE O JUIZ MORAVA dava para um cemitério.

 

Ele e Larry estavam sentados no alpendre dos fundos depois do jantar, fumando charutos e contemplando o sol que se punha, desbotando para um alaranjado pálido ao redor das montanhas.

 

- Quando eu era menino - disse o juiz -, morávamos a uma distância em que se podia ir a pé até o melhor cemitério de Illinois. Chamava-se Monte da Esperança. Toda noite depois do jantar, meu pai, então com seus sessenta anos, ia dar um passeio. Às vezes eu ia com ele. E se o passeio por acaso nos fazia passar por aquele cemitério perfeitamente bem cuidado ele dizia: "O que você acha, Teddy? Existe alguma esperança?" E eu respondia: "Há o Monte da Esperança." E toda vez dávamos gargalhadas, como se aquela fosse a primeira. Costumo pensar que caminhávamos por ali só para ele poder partilhar aquela piada comigo. Meu pai era um homem de posses, porém esta era a piada mais engraçada que parecia conhecer.

 

O juiz deu uma baforada, o queixo baixo, os ombros encurvados elevados.

 

- Ele morreu em 1937, quando eu ainda era adolescente - continuou. - Tenho sentido sua falta desde então. Um garoto não precisa de um pai a menos que ele seja um bom pai, mas um bom pai é indispensável. Nenhuma esperança senão o Monte da Esperança. Como ele gostava disso! Estava com 78 anos quando faleceu. Morreu como um rei, Larry. Ele estava sentado no trono no menor cômodo da nossa casa, com o jornal no colo.

 

Larry, incerto a como responder a este acesso de nostalgia um tanto bizarro, nada comentou.

 

O juiz suspirou.

 

- Não demora muito vai haver uma pequena operação por aqui - disse ele. - Isto é, se vocês puderem restaurar a energia. Se não puderem, as pessoas vão ficar nervosas e começar a seguir para o sul antes que o mau tempo chegue e as retenha aqui.

 

- Ralph e Brad garantem que vão restaurar a energia. Confio neles.

 

- Então vamos esperar que sua confiança seja bem fundada, não é? Talvez seja uma boa coisa a velha ter desaparecido. Talvez ela soubesse que seria melhor assim. Talvez as pessoas devessem ter liberdade para julgar por si mesmas o que são as luzes no céu, se uma árvore tem um rosto ou se o rosto era apenas um truque de luz e sombra. Entende o que quero dizer, Larry?

 

- Não, juiz - respondeu Larry com franqueza. - Não sei se entendo.

 

- Eu me pergunto se precisaremos reinventar toda aquela cansativa história de deuses, salvadores e o além na eternidade antes de reinventarmos a privada com descarga. É o que eu queria dizer. Eu me pergunto se esta é a hora apropriada para os deuses.

 

- Acha que ela está morta?

 

- Já faz seis dias que ela se foi. O Comitê de Busca não encontrou a menor pista. Sim, acho que está morta, porém não tenho certeza. Era uma mulher surpreendente, completamente diversa de qualquer estruturação racional. Talvez um dos motivos por estar contente pelo desaparecimento dela deva-se a eu ser um velho rabugento racional. Gosto de cumprir minhas tarefas diárias e regar meu jardim... viu como consegui recuperar as begônias? Estou bastante orgulhoso disso... ler meus livros, fazer anotações para meu próprio livro sobre a epidemia. Gosto de fazer tudo e depois tomar um copo de vinho antes de ir para a cama e adormecer com a consciência em paz. Sim. Nenhum de nós quer saber de portentos e augúrios, pouco importando o quanto apreciemos histórias fantásticas e filmes de terror. Nenhum de nós quer realmente ver uma Estrela no Oriente ou uma coluna de fogo à noite. Queremos paz, racionalidade e rotina. Se tivermos que ver Deus no rosto negro de uma velha, isto nos fará recordar que existe um demônio para cada deus... e nosso demônio pode estar mais perto do que desejaríamos.

 

- Esse é o motivo por que vim aqui - disse Larry constrangidamente. Preferia que o juiz não tivesse falado no seu jardim, seus livros, suas anotações e seu copo de vinho antes de deitar. Ele tivera uma ideia nem um pouco brilhante numa reunião de amigos e fizera uma alegre sugestão. Agora imaginava se havia qualquer forma de prosseguir sem parecer um idiota cruel e oportunista.

 

- Sei por que está aqui. E aceito.

 

Larry teve um sobressalto, fazendo ranger o vime de sua cadeira.

 

- Quem lhe disse? Para todos os efeitos, isso deveria ser muito sigiloso, juiz. Se alguém do comitê andou vazando, estaremos numa enrascada dos diabos.

 

O juiz ergueu a mão coberta de manchas hepáticas, interrompendo-o. Seus olhos pestanejaram no rosto surrado pelo tempo.

 

- Calma, meu garoto, calma. Ninguém do seu comitê andou tagarelando, não que eu saiba, e olhe que mantenho meus ouvidos colados no solo. Não, eu mesmo sussurrei o segredo para mim. Por que você viria aqui esta noite? Seu rosto é um livro aberto, Larry. Espero que não se meta a jogar pôquer... Quando estava falando sobre meus prazeres simples, pude ver seu rosto enrijecer e desanimar-se... enquanto nele aparecia uma expressão meio cômica e...

 

- Isso é tão engraçado? O que eu deveria fazer? Mostrar-me feliz sobre... sobre...

 

- Enviar-me ao oeste - completou o juiz, baixinho. - Para espionar a terra. Não é isto?

 

- Exatamente.

 

- Eu me perguntava quanto tempo levaria para a ideia vir à tona. É tremendamente importante, claro, tremendamente necessário que seja garantida à Zona Franca a chance plena de sobreviver. Não fazemos a menor ideia do que está acontecendo lá do outro lado. É o mesmo como se ele estivesse atuando na face escura da lua.

 

- Se é que ele realmente está por lá.

 

- Ah, claro que está. Em uma forma ou outra, ele está. Jamais duvide disso. - O juiz tirou um cortador de unhas do bolso da calça e começou a aparar as dele, os pequeninos cliques metálicos do cortador pontuando sua fala. - Diga-me uma coisa: o comitê já discutiu o que pode acontecer se concluirmos que a permanência do outro lado é melhor? Se resolvermos ficar por lá?

 

Larry ficou estupefato ante a ideia. Disse ao juiz que, pelo melhor que sabia, a hipótese não ocorrera a nenhum deles.

 

- Imagino que ele tenha restaurado a energia elétrica - comentou o juiz com enganosa lentidão. - Há uma atração nisso, você sabe. Obviamente, esse tal Impening se sentiu atraído.

 

- Que bons ventos levem quem não presta - replicou Larry, carrancudo.

 

O juiz riu, longa e cordialmente. Quando parou, disse:

 

- Partirei amanhã. Num Land-Rover, acho. Para o norte do Wyoming e depois para oeste. Graças a Deus, ainda dirijo bem o suficiente! Cruzarei o Idaho em linha reta, rumo ao norte da Califórnia. Posso levar duas semanas na ida, um pouco mais na volta. Pode haver neve na volta.

 

- Sim. Discutimos esta possibilidade.

 

- Além disso, estou velho. Os velhos são propensos a ataques de coração e de estupidez. Imagino que estejam mandando reforços, não?

 

- Bem...

 

- Não, creio que você não pode falar sobre isso. Retiro a pergunta.

 

- Olhe, o senhor pode recusar. Ninguém está apontando uma arma para sua ca...

 

- Está tentando eximir-se de sua responsabilidade para comigo? - perguntou o juiz, incisivo.

 

- Talvez. Talvez eu ache que suas chances de voltar sejam de uma em dez. E de voltar com informações que nos permitam tomar decisões sejam de uma em vinte. Talvez só esteja tentando dizer, de maneira gentil, que eu poderia ter cometido um erro. Talvez o senhor seja idoso demais.

 

- Estou idoso demais para aventuras - disse o juiz, abandonando o cortador de unhas -, mas espero não ser tão velho para fazer o que considero certo. Há uma velha em algum lugar por aí que talvez tenha sofrido uma morte deplorável porque tomou a atitude que considerou correta. E que foi levada a isso por uma fantasia religiosa, não duvido. Porém as pessoas que se empenham em fazer a coisa certa sempre parecem malucas. Eu irei. Passarei frio. Meus intestinos não funcionarão devidamente. Estarei solitário. Sentirei falta das minhas begônias, mas... - Ele ergueu os olhos para Larry e suas pupilas reluziram no escuro. - Também serei esperto.

 

- Acredito que sim - disse Larry e sentiu a ardência das lágrimas nos cantos dos olhos.

 

- Como está Lucy? - perguntou o juiz, aparentemente encerrando o assunto da sua partida.

 

- Bem - disse Larry. - Nós dois vamos indo muito bem.

 

- Sem problemas?

 

- Negativo - ele respondeu e pensou em Nadine. Algo sobre o desespero dela, na última vez em que a vira, ainda o perturbava profundamente. Você é minha última chance, ela dissera. Um jeito estranho de falar, quase suicida. E que ajuda havia para ela? Psiquiatria? Isso era uma piada, se o máximo que tinham ali, em termos médicos, era um veterinário, um médico para cavalos. Até mesmo o Disque Oração sumira do mapa.

 

- É bom que você esteja com Lucy - disse o juiz -, mas imagino que esteja preocupado com a outra mulher.

 

- Sim, estou. - O que se seguiu foi extremamente difícil de dizer, mas ter desabafado com outra pessoa o fez sentir-se muito melhor. - Acho que ela talvez esteja pensando em suicídio - acrescentou rapidamente. - Não por minha causa, por favor, não pense que uma garota se mataria só porque não conquistou o velho e sexy Larry Underwood. Mas o menino do qual tomava conta saiu da concha, e creio que isso a fez sentir-se solitária, sem ninguém dependendo de sua ajuda.

 

- Se a depressão dela ser tornar uma coisa cíclica e crônica, é possível que se mate mesmo - declarou o juiz, com gélida indiferença.

 

Larry olhou para ele, chocado.

 

- Mas você só pode ser um único homem - disse o juiz. - Não é mesmo?

 

- Claro.

 

- E já fez sua escolha?

 

- Fiz.

 

- Para sempre?

 

- Sim, definitiva.

 

- Então siga em frente - disse o juiz com grande alívio. - Pelo amor de Deus, cresça! Desenvolva um pouco de hipocrisia. Hipocrisia demais é uma coisa feia, Deus sabe disso, porém uma pequena dose, aplicada sobre todos os seus escrúpulos, é de absoluta necessidade! Representa para a alma o mesmo que um bloqueador solar representa para a pele durante o calor do verão. Só você pode dominar sua alma, e de vez em quando algum psicólogo babaca questionará sua capacidade de sequer fazer isso. Cresça! Sua Lucy é uma excelente mulher. Assumir responsabilidade demais por ela e por sua própria alma é um dos meios mais populares de a humanidade cortejar o desastre.

 

- Gosto de conversar com o senhor - disse Larry, perplexo e divertido pela franca generosidade do comentário.

 

- Talvez seja porque eu esteja dizendo exatamente o que você quer ouvir - replicou o juiz, com ar sereno. E acrescentou: - Há muitas maneiras de alguém cometer suicídio, você sabe.

 

Antes que se passasse muito tempo, Larry teve ocasião de recordar este comentário em amargas circunstâncias.

 

Às 8h15 da manhã seguinte o caminhão de Harold partia do terminal da Greyhound para retomar â área de Table Mesa. Harold, Weizak e dois outros viajavam na carroceria. Norman Kellogg e outro homem seguiam na cabine. Achavam-se no cruzamento da Arapahoe com a Broadway quando um Land-Rover tinindo de novo se aproximou deles lentamente.

 

Weizak acenou e gritou:

 

- Para onde está indo, juiz?

 

Parecendo um tanto cômico em uma camisa de lã e sobretudo, o juiz parou junto deles.

 

- Acho que vou passar o dia em Denver - disse brandamente.

 

- Será que essa coisa consegue levá-lo até lá? - perguntou Weizak.

 

- Acredito que sim, se ficar longe das estradas principais.

 

- Bem, se passar por uma daquelas livrarias pornôs, não poderia nos trazer uma mala cheia?

 

O gracejo foi saudado com gargalhadas gerais - inclusive do juiz -, excetuando-se Harold. Ele parecia pálido e abatido esta manhã, como se não tivesse dormido bem. Aliás dormira pessimamente. Conforme Nadine prometera, ele realizara um bocado de suas fantasias durante a noite. Fantasias da variedade úmida, digamos. Ele mal podia esperar a chegada de mais uma noite, e a piada de Weizak sobre pornografia extraiu-lhe apenas uma sombra de sorriso, agora que tivera uma pequena experiência em primeira mão. Nadine ainda dormia quando ele saíra. Antes de se renderem ao cansaço, por volta das duas da madrugada, ela lhe dissera que desejava ler o livro-razão. Harold consentira, se ela assim desejasse. Talvez estivesse se escravizando a ela, mas sentia-se confuso demais no momento para ter certeza.

 

Agora Kellogg estava debruçado para fora da cabine do caminhão a fim de dirigir-se ao juiz.

 

- Vá com cuidado, tio. Está bem? Há uns caras esquisitos pelas estradas hoje em dia.

 

- Há mesmo - replicou o juiz com um sorriso estranho. - E vou mesmo tomar cuidado. Um bom dia para vocês, cavalheiros. Para você também, Sr. Weizak.

 

Isto provocou outra explosão de risos, e eles partiram.

 

O juiz não rumou para Denver. Quando chegou à Rodovia 36, seguiu direto por ela até a Rodovia 7. O sol da manhã era brilhante e suave, e nessa estrada secundária não havia excesso de veículos parados bloqueando a passagem. Na cidade de Brighton a coisa piorou; a certa altura ele teve de abandonar a estrada e rodar através do campo de futebol do ginásio local, a fim de evitar um engarrafamento colossal. Continuou rumo leste até chegar à I-25. Ali, uma virada à direita o levaria para Denver. Em vez disso, dobrou à esquerda - para o norte -, tomando a rampa de descida. Meio caminho abaixo, pôs a transmissão em ponto morto e tomou a olhar à esquerda, para oeste, onde as Rochosas se erguiam serenamente contra o céu azul, com Boulder jazendo na sua base.

 

Ele dissera a Larry que estava velho demais para aventuras, mas que Deus o perdoasse, porque era mentira. Seu coração não batia com este ritmo rápido por vinte anos, o ar nunca parecera tão doce, as cores nunca tão vívidas. Ele pegaria a I-25 até Cheyenne e então seguiria para oeste em direção a qualquer coisa que o aguardasse além das montanhas. Sua pele, ressequida pela idade, ainda assim contraiu-se e arrepiou-se um pouco ao pensamento. Seguiria rumo oeste pela I-80 até Salt Lake City, depois cruzaria Nevada até Reno. Então rumaria de novo para o norte, mas isso pouco importava, porque em algum lugar entre Salt Lake City e Reno, talvez até mais cedo, ele seria detido, interrogado, e provavelmente mandado para algum lugar a fim de ser interrogado de novo. E em qualquer desses lugares, um convite seria feito.

 

Não era nem mesmo impossível pensar que poderia conhecer o homem escuro pessoalmente.

 

- Continue em frente, velho - disse a si mesmo suavemente.

 

Pôs o Rover em movimento e desceu até o posto de pedágio. Havia três pistas na direção norte, todas relativamente vazias. Tal como previra, congestionamentos e múltiplos acidentes em Denver tinham efetivamente prejudicado o fluxo de tráfego. O tráfego era pesado do outro lado da pista central - os pobres tolos que tinham seguido para o sul, na cega esperança de que lá seria melhor -, mas aqui a situação estava boa. Pelo menos por enquanto.

 

O juiz Farris continuou dirigindo, contente por estar começando sua missão. Havia dormido mal a noite passada. Iria dormir melhor esta noite, sob as estrelas, envolto firmemente em dois sacos de dormir. Imaginou se tornaria a ver Boulder e achou que as chances talvez fossem poucas. E ainda assim sua empolgação era imensa.

 

Este era um dos melhores dias de sua vida.

 

No início daquela tarde, Nick, Ralph e Stu pedalaram até o norte da cidade e pararam à frente de uma pequena casa de estuque onde Tom Cullen morava sozinho. A casa já se tornara um ponto de referência para os "velhos" residentes de Boulder. Stan Nogotny disse que era como se católicos, batistas e adventistas do Sétimo Dia tivessem se juntado aos democratas e adeptos do reverendo Moon para criar uma Disneylândia político-religiosa.

 

O gramado em frente à casa era uma extravagante exibição de estátuas. Havia uma dúzia de imagens da Virgem Maria, algumas delas aparentemente no ato de alimentar flamingos de plástico cor-de-rosa. O maior dos flamingos era mais alto que o próprio Tom e ancorava-se ao solo numa só pata que terminava num espigão de 1,50m. Havia um poço dos desejos gigante, tendo um enorme Jesus de plástico fosforescente-no-escuro de pé na cuba ornamental com as mãos estendidas... aparentemente abençoando os flamingos cor-de-rosa. Ao lado do poço dos desejos estava uma enorme vaca de gesso que parecia beber de um chafariz para pássaros.

 

A porta se abriu e Tom saiu ao encontro deles, nu da cintura para cima. Visto de longe, pensou Nick, qualquer um o tomaria como um escritor ou pintor fantasticamente viril, com seus brilhantes olhos azuis e aquela farta barba louro-arruivada. Visto mais de perto, a impressão mudava para alguém não tanto intelectual... talvez algum tipo de artesão da contracultura que substituíra a originalidade por um estilo kitsch. E quando mais perto ainda, sorrindo e falando aos borbotões, percebia-se com certa tristeza que Tom Cullen tinha um parafuso a menos na cabeça.

 

Nick sabia que uma das razões por que sentia uma forte empatia por Tom resultava de ele próprio ter sido considerado retardado mental, primeiro porque sua deficiência o impedira de aprender a ler e escrever, depois porque as pessoas simplesmente achavam que quem era surdo-mudo devia ser mentalmente retardado. Vez por outra, ouvira todas as gírias relativas à condição: Tem um parafuso frouxo. É debilóide, lelé da cuca. Não regula bem das ideias. Sofre da bola.

 

Ele recordou a noite em que parara para tomar cerveja no Zack’s, a espelunca nos arredores de Shoyo - a noite em que Ray Booth e seus cupinchas o tinham atacado. O atendente postado na extremidade do balcão inclinou-se confidencialmente sobre ele para falar a um freguês. Sua mão meio que tapava a boca, de modo que Nick só pôde captar fragmentos do que ele dizia. Nick, porém, não precisara especular muito mais do que isso. Surdo-mudo... talvez retardado... quase todos esses caras são retardados...

 

Mas, entre todas as expressões feias aplicadas ao retardo mental, havia uma que se encaixava à perfeição em Tom Cullen. Era uma que Nick aplicara a ele com frequência, e com grande compaixão no silêncio de sua própria mente. A frase era: Ele não está jogando com um baralho completo. Isto era o que havia de errado com Tom. Era o que o prejudicava. E o lamentável caso de Tom era que faltavam muito poucas cartas, e cartas não muito valiosas, afinal. Mas sem aquelas cartas ele não podia fazer um bom jogo, qualquer jogo. Não se podia nem jogar paciência com aquelas cartas faltando no baralho.

 

- Nicky! Estou tão contente em te ver! Minha nossa, como estou! Tom Cullen está muito contente! - Passou os braços pelo pescoço de Nick e abraçou-o com força. Nick sentiu seu olho mim umedecer com lágrimas por trás da vencia preta que ainda usava em dias ensolarados como aquele. - E Ralph também veio! E esse outro. Você... como é mesmo?

 

- Sou... - começou Stu, mas Nick o silenciou com um brusco gesto cortante da mão esquerda. Ele andara praticando mnemônica com Tom, e parecia funcionar. Se a pessoa pudesse associar alguma coisa que conhecesse com um nome que queria lembrar, isto com frequência acendia uma luz e ela lembrava. Rudy havia praticado isto com Nick, em todos aqueles longos anos atrás.

 

Ele agora tirou seu bloco do bolso e escreveu nele. Depois o passou a Ralph para que lesse em voz alta.

 

Franzindo um pouco o cenho, Ralph assim o fez:

 

- O que você gosta de comer que vem numa tigela com carne, legumes e molho?

 

Tom parou de súbito, a animação sumindo de seu rosto. A boca pendeu aberta frouxamente e ele agora era o próprio retrato do idiota.

 

Stu remexeu-se com desconforto e disse:

 

- Nick, não acha que devíamos...

 

Nick levou um dedos aos lábios pedindo silêncio e, no mesmo instante, a animação de Tom retornou.

 

- Stew! - disse ele, cabriolando e rindo. - Você é Stew{?}!

 

Ele olhou para Nick buscando confirmação, e este lhe fez um V de vitória.

 

Tom continuou:

 

- B-E-B-I-D-A, isto pede um ensopado, Tom Cullen sabe disso, todo mundo sabe disso!

 

Nick apontou para a porta da casa de Tom.

 

- Querem entrar? Minha nossa, é claro! Todos nós vamos entrar. Tom estava decorando sua casa!

 

Ralph e Stu entreolharam-se enquanto seguiam Nick e Tom até os degraus do alpendre. Tom vivia "decorando". Ele não "mobiliava", porque a casa já era mobiliada quando se mudara para lá. Entrar ali era como penetrar em um mundo da carochinha absolutamente de pernas para o ar.

 

Uma enorme gaiola dourada, com um papagaio verde empalhado e cuidadosamente preso ao poleiro com arames, pendia logo depois da porta de entrada e Nick precisou mergulhar por baixo dela. A coisa era que as decorações de Tom não pareciam apenas uma renda irlandesa tecida ao acaso, pensou Nick. Isto tornaria a casa em algo não mais extraordinário do que retalhos vendidos num bazar de caridade. Mas havia algo mais ali, algo que parecia chegar logo além do que a mente comum poderia captar como um padrão. Em um grande bloco quadrado acima da lareira na sala de estar havia uma grande coleção de anúncios de cartões de crédito, todos eles centralizados e cuidadosamente montados. SEU CARTÃO VISA É BEM-VINDO AQUI. DIGA APENAS MASTERCARD. ACEITAMOS AMERICAN EXPRESS. DINER’S CLUB. Agora vinha a pergunta: como é que Tom sabia que todos aqueles anúncios faziam parte de um conjunto específico? Ele não sabia ler, mas, de algum modo, captara o padrão.

 

Assentado sobre a mesinha de centro, havia um grande hidrante de isopor. No peitoril da janela, onde captava a luz solar e refletia refrescantes leques de luz azulada na parede, estava uma sinaleira de radiopatrulha.

 

Tom os conduziu num giro por toda a casa. A sala de jogos no andar térreo estava repleta de pássaros e animais empalhados que Tom descobrira numa loja de taxidermia; os pássaros haviam sido presos a cordas de piano quase invisíveis e pareciam voejar de um lado para o outro: corujas, gaviões e até uma águia de cabeça branca com penas comidas pelas traças e com um olho de vidro amarelo faltando. Uma marmota erguia-se sobre as patas traseiras a um canto, um esquilo em outro, um gambá no terceiro canto e uma doninha no quarto. No centro do cômodo estava um coiote, de certo modo parecendo centralizar a atenção de todos os animais de menor porte.

 

O corrimão das escadas tinha sido envolto em tiras de papel Contact brancas e vermelhas, de modo a parecer um poste de barbearia. O corredor superior mostrava aviões de caça presos em mais cordas de piano - Eokkers, Spads, Stukas, Spitfires, Zeros, Messerschmitts. O piso do banheiro tinha sido pintado de um azul-ferrete reluzente e sobre ele estava a extensa coleção de barcos de brinquedo de Tom, navegando em um mar esmaltado em volta de quatro ilhas e um continente de porcelana branca: os pés da banheira e a base do vaso sanitário.

 

Por fim, Tom os levou de volta para o térreo e eles se sentaram sob a montagem dos cartões de crédito e de frente para uma foto em 3-D de John e Robert Kennedy contra um fundo de nuvens orladas de dourado. A legenda abaixo proclamava: IRMÃOS REUNIDOS NO CÉU.

 

- Vocês gostam da decoração de Tom? O que acham? É bonita?

 

- Muito bonita - declarou Stu. - Diga-me: aqueles pássaros lá embaixo... eles não dão nos seus nervos? Não metem medo?

 

- Minha nossa, não! - exclamou Tom, atônito. - Eles estão cheios de serragem!

 

Nick entregou um bilhete a Ralph.

 

- Tom, Nick quer saber se não se importa em ser hipnotizado novamente. Como Stan fez naquele dia. Agora é importante. Não é apenas uma brincadeira. Nick diz que lhe explicará tudo depois.

 

- Vão em frente - disse Tom. - Vocêêê... está ficando... com muuuuito sono... certo?

 

- É isso aí - disse Ralph.

 

- Vocês querem que eu olhe para o relógio de novo? Eu não me importo. Vocês sabem, quando ficam balançando ele pra lá e pra cá? Muuuuuito sooono. - Tom olhou para eles em dúvida. - Só que eu não estou com muito sono. Minha nossa, não. Fui dormir cedo a noite passada. Tom Cullen sempre se deita cedo porque não tem televisão para assistir.

 

Stu disse suavemente:

 

- Tom, você gostaria de ver um elefante?

 

Os olhos de Tom se fecharam de imediato e sua cabeça pendeu frouxa à frente. Sua respiração se aprofundou para longos e lentos haustos. Stu observou isto com grande surpresa. Nick lhe tinha dado a frase-chave, porém Stu não sabia se queria ou não acreditar que funcionasse. E jamais esperara que pudesse acontecer tão rápido.

 

- É como colocar uma galinha com a cabeça debaixo da asa - disse Ralph. maravilhado.

 

Nick passou a Stu seu "roteiro" já preparado para este encontro. Stu olhou para Nick por um longo momento. Nick desviou a vista, depois acenou sério para que Stu prosseguisse.

 

- Tom, você pode me ouvir? - perguntou Stu.

 

- Sim, posso ouvir você - disse Tom, e a qualidade de sua voz fez Stu olhar para cima incisivamente.

 

Soava diferente da voz normal de Tom, mas de uma forma que Stu não entendia plenamente. Recordava-lhe algo que acontecera quando estava com 18 anos e se formando no ginásio. Eles estiveram no vestiário dos rapazes antes da cerimônia, todos os caras com quem estudara desde... bem, desde o primeiro dia do primeiro ano do curso primário em pelo menos quatro casos, e um tempo quase tão longo em muitos outros. E apenas por um momento ele vira o quanto seus rostos tinham mudado entre aqueles velhos dias, aqueles primeiros dias, e aquele momento de percepção, de pé sobre o piso de ladrilhos do vestiário com a beca em suas mãos. A visão da mudança deu-lhe calafrios à ocasião e lhe produzia o mesmo efeito agora. Os rostos que tinha fitado não eram mais rostos de crianças... mas tampouco se haviam tornado rostos de homens. Eram rostos no limbo, rostos percebidos perfeitamente entre dois bem definidos estados do ser. Esta voz, brotando da terra em sombras que era o subsconsciente de Tom Cullen, parecia a voz do homem para sempre negado.

 

Mas esperavam que prosseguisse, e ele fez o que devia.

 

- Sou Stu Redman, Tom.

 

- Sim, Stu Redman.

 

- Nick está aqui.

 

- Sim, Nick está aqui.

 

- Ralph Brentner também está aqui.

 

- Sim, Ralph também está.

 

- Nós somos seus amigos.

 

- Eu sei.

 

- Gostaríamos que fizesse uma coisa, Tom. Para a Zona Franca. E é perigoso.

 

- Perigoso...

 

A preocupação percorreu o rosto de Tom, como uma nuvem pesada cruzando lentamente um milharal em pleno verão.

 

- Eu vou ficar com medo? Terei que... - Ele se interrompeu. Suspirou.

 

Stu olhou para Nick, perturbado.

 

Nick fez com a boca uma mímica de sim.

 

- É ele - disse Tom e suspirou apavorado. Era como o som que o vento cortante de novembro faz ao passar entre carvalhos desfolhados. Stu sentiu de novo aquele estremecimento interior. Ralph empalidecera.

 

- Quem, Tom? - perguntou Stu brandamente.

 

- Flagg. O nome dele é Randy Flagg. O homem escuro. Você quer que eu... - De novo aquele suspiro doentio, amargo e prolongado.

 

- Como é que o conhece, Tom? - perguntou Stu. Isto não estava no roteiro.

 

- Sonhos... vejo o rosto dele em sonhos.

 

Vejo o rosto dele em sonhos. Contudo, nenhum deles lhe vira o rosto. Estava sempre oculto.

 

- Você o vê?

 

- Sim...

 

- Como é ele, Tom?

 

Tom nada falou por um bom tempo. Stu concluiu que ele não responderia e já se preparava para voltar ao "roteiro" quando Tom disse:

 

- Ele parece como qualquer um que a gente vê na rua. Mas, quando sorri, os pássaros caem mortos das linhas telefônicas. Quando olha para a gente de certa maneira, a nossa próstata dói e nossa urina queima. A relva fica amarela e morre, quando ele cospe. Ele está sempre fora. Ele veio do tempo. Não sabe quem é. Tem o nome de mil demônios. Jesus o jogou em meio a uma vara de porcos certa vez. Seu nome é Legião. Ele tem medo de nós. Estamos dentro. Ele conhece magia. Pode chamar os lobos e viver nos corvos. Ele é o rei de lugar nenhum. Mas tem medo de nós. Tem medo do... dentro.

 

Tom silenciou.

 

Os outros três se entreolharam, pálidos como mármore de sepultura. Ralph havia tirado o chapéu da cabeça e o amassava convulsivamente nas mãos, Nick pusera uma das mãos sobre os olhos. A garganta de Stu parecia ter-se transformado em gelo seco.

 

Seu nome é Legião. Ele é o rei de lugar nenhum.

 

- Pode dizer mais alguma coisa sobre ele? - perguntou Stu em voz baixa.

 

- Só que também tenho medo dele. Mas vou fazer o que vocês querem. Porém Tom... está morrendo de medo! - E tornou a soltar aquele suspiro pavoroso.

 

- Tom - disse Ralph de súbito. - Você sabe se Mãe Abagail... sabe se ela ainda está viva?

 

Ralph tinha o rosto desesperadamente tenso, o rosto de um homem que aposta tudo numa só cartada.

 

- Ela está viva - disse Tom, e Ralph reclinou-se na cadeira, tomando uma grande inspiração de ar. - Mas ainda não está de bem com Deus - acrescentou Tom.

 

- Não está de bem com Deus? Por que não, Tommy?

 

- Ela está no deserto, Deus a ergueu até o deserto, ela não teme o terror que voa até o meio-dia nem o terror que rasteja à meia-noite... nem a serpente a pica nem a abelha a ferroa... mas ela ainda não fez as pazes com Deus. Não foi a mão de Moisés que tirou água da pedra. Não foi a mão de Abagail que enxotou as doninhas com as barrigas vazias. Ela tem de ser punida. Ela verá, mas verá tarde demais. Haverá morte. A morte dele. Ela morrerá do lado errado do rio. Ela...

 

- Faça-o parar - gemeu Ralph. - Pode fazer isto?

 

- Tom - disse Stu.

 

- Sim?

 

- Você é o mesmo Tom que Nick conheceu no Oklahoma? Você é o mesmo Tom que conhecemos quando está acordado?

 

- Sim, mas sou mais do que aquele Tom.

 

- Não entendi.

 

Tom se moveu ligeiramente. O rosto adormecido era calmo.

 

- Eu sou o Tom de Deus.

 

Totalmente acovardado agora, Stu quase deixou os bilhetes de Nick caírem no chão.

 

- Você disse que fará o que quisermos.

 

- Sim.

 

- Mas entenda... você acha que voltará?

 

- Isso é uma coisa que não posso ver nem dizer. Para onde é que eu vou?

 

- Para o oeste, Tom.

 

Tom gemeu. Foi um som que arrepiou os cabelos na nuca de Stu. Para o que nós o estamos enviando? Talvez ele soubesse. Talvez tivesse estado lá, só que em Vermont, em labirintos de corredores, onde o eco dava a impressão de que passadas o seguiam. E se aproximavam.

 

- Para o oeste - disse Tom. - Oeste, sim.

 

- Estamos enviando você para espiar, Tom. Espiar e observar. Depois voltará para cá.

 

- Voltarei para contar.

 

- Pode fazer isso?

 

- Posso. A não ser que me peguem e me matem.

 

Stu pestanejou. Todos pestanejaram.

 

- Você irá sozinho, Tom. Sempre para oeste. Pode achar o caminho do oeste?

 

- É onde o sol se põe.

 

- Exato. E se alguém perguntar por que está lá, deverá dizer que o expulsaram da Zona Franca...

 

- Me expulsaram. Expulsaram Tom. Me mandaram para a estrada.

 

- ... porque você tinha a cabeça fraca.

 

- Expulsaram Tom porque Tom tem cabeça fraca.

 

- ... e porque você poderia ter uma mulher e ela poderia ter filhos retardados.

 

- Filhos retardados como Tom.

 

O estômago de Stu rolava para diante e para trás sem que ele nada pudesse fazer. Sua cabeça era como um pedaço de ferro que houvesse aprendido a suar. Como se estivesse padecendo de uma terrível e debilitante ressaca.

 

- Agora repita o que irá dizer se alguém perguntar por que você está no oeste.

 

- Que expulsaram Tom porque Tom tinha a cabeça fraca. Minha nossa, sim! Tinham medo que eu ficasse com uma mulher, do jeito que vocês fazem com o pau nelas quando vão para a cama. E fazer filhos retardados nelas.

 

- Está certo, Tom. Está...

 

- Me expulsaram - continuou ele na sua voz lamentosa. - Expulsaram Tom de sua linda casa e botaram os pés dele na estrada.

 

Stu passou a mão trêmula sobre os olhos. Depois olhou para Nick, que pareceu dobrar, e a seguir triplicar, na sua visão.

 

- Nick, não sei como terminar - disse, desalentado.

 

- Termine - disse Tom inesperadamente. - Não me deixe aqui fora, no escuro.

 

Forçando-se, Stu continuou:

 

- Tom, você sabe como é a lua cheia?

 

- Sei... grande e redonda.

 

- Não se trata da metade da lua, nem da maioria da lua.

 

- Não - disse Tom.

 

- Quando vir aquela lua grande e redonda, você voltará para o leste. Voltará para nós, para sua casa, Tom.

 

- Sim, quando eu vir a lua grande, voltarei - concordou Tom. - Voltarei para casa.

 

- E quando estiver voltando para casa, você vai viajar à noite e dormir de dia.

 

- Viajar à noite, dormir de dia.

 

- Exato. E faça o possível para ninguém ver você.

 

- Ninguém me ver.

 

- Mesmo assim, Tom, alguém poderia vê-lo.

 

- É, alguém poderia.

 

- Se for só uma pessoa a vê-lo, Tom, você deve matá-la.

 

- Matá-la - repetiu Tom, em dúvida.

 

- Se for visto por mais de uma, fuja.

 

- Fuja - disse Tom, mais confiante.

 

- Mas tente fazer tudo para não ser visto. Pode repetir tudo isso?

 

- Sim. Voltar com a lua grande. Não a meia-lua, nem aquela que parece uma lasca de unha. Viajar à noite, dormir de dia. Não deixar ninguém me ver. Se uma pessoa me vir, matá-la. Se for mais de uma, fugir. Mas fazer tudo para ninguém me ver.

 

- Está muito bom. Agora quero você acordando em poucos segundos, OK?

 

- OK.

 

- Quando eu perguntar sobre o elefante você acorda, certo?

 

- Certo.

 

Stu recostou-se com um longo e trêmulo suspiro.

 

- Graças a Deus, acabou.

 

Nick concordou com o olhar.

 

- Você sabia que poderia acontecer, Nick?

 

Nick sacudiu a cabeça.

 

- Como Tom poderia saber aquelas coisas? - murmurou Stu.

 

Nick apontou para o bloco. Stu o devolveu, contente por se livrar dele. Seus dedos suados haviam molhado tanto a página com o roteiro escrito de Nick a ponto de deixá-la transparente. Nick escreveu no bloco e o entregou para Ralph ler. Ralph o fez com os lábios se movendo lentamente e depois o passou a Stu.

 

"Através da história, alguns povos consideraram os insanos e retardados bem próximos do divino. Não creio que ele nos contou alguma coisa que possa ter utilidade prática para nós, mas sei que me deixou um bocado assustado. Magia, ele disse. Como é que se combate a magia?"

 

- Está além do meu entendimento, isso é tudo - murmurou Ralph. - Aquelas coisas que ele disse sobre Mãe Abagail... nem mesmo sei se quero pensar sobre elas. Acorde-o, Stu, e vamos logo embora daqui. - Ralph estava à beira das lágrimas.

 

Stu inclinou-se de novo à frente.

 

- Tom?

 

- Sim.

 

- Gostaria de ver um elefante?

 

Os olhos de Tom se abriram de imediato e ele olhou em torno para eles.

 

- Eu falei a vocês que não ia dar certo - disse ele. - Minha nossa, não. Tom não fica com sono no meio do dia.

 

Nick entregou uma folha a Stu, que relanceou para ela e depois falou a Tom.

 

- Nick diz que você esteve ótimo.

 

- Estive? Eu plantei bananeira como antes?

 

Com uma pontada de amarga vergonha, Nick pensou: Não, Tom, você fez um punhado de truques ainda melhores desta vez.

 

- Não - disse Stu. - Tom, viemos perguntar se você poderia nos ajudar.

 

- Eu? Ajudar? Claro! Adoro ajudar!

 

- Isto é perigoso, Tom. Queremos que você vá para o oeste, depois volte e nos conte o que viu por lá.

 

- Tudo bem - disse Tom sem a menor hesitação, mas Stu pensou ter visto uma sombra momentânea cruzar o rosto de Tom... e se prolongar por trás de seus sinceros olhos azuis. - Quando?

 

Stu pôs gentilmente a mão no pescoço de Tom e se perguntou o que diabo estava fazendo ali. Como alguém podia imaginar essas coisas se não era Mãe Abagail nem tinha uma linha direta com o céu?

 

- Em breve - disse ele, gentil. - Muito em breve.

 

Quando Stu regressou ao apartamento, Frannie estava preparando o jantar.

 

- Harold esteve aqui - disse ela. - Perguntei se queria ficar para jantar, mas ele recusou.

 

- Ah.

 

Ela o fitou mais detidamente.

 

- Stuart Redman, que bicho te mordeu?

 

- Um bicho chamado Tom Cullen, acho. - E então contou-lhe tudo.

 

Sentaram-se para jantar.

 

- O que significa tudo isso? - perguntou Fran. Seu rosto estava pálido e ela de fato não comia, empurrando a comida de um lado para o outro do prato.

 

- Raios me partam se eu sei - respondeu Stu. - É uma espécie de... premonição, acho. Não sei por que deveríamos rejeitar a ideia de Tom Cullen tendo visões enquanto está sob hipnose, não depois dos sonhos que todos nós tivemos a caminho daqui. Se os sonhos não foram um tipo de premonição, não sei mais o que foram.

 

- Mas parecem tão distante agora... pelo menos assim acho.

 

- É, eu também - concordou Stu e percebeu que estava empurrando sua comida no prato.

 

- Olhe, Stu... sei que concordamos em não falar sobre os assuntos do comitê fora das reuniões, se pudermos evitar. Você disse que ficaríamos arengando o tempo todo e provavelmente estava certo. Eu não disse uma palavra sobre transformarem você no xerife Dillon depois da reunião do dia 25, disse?

 

Ele sorriu brevemente.

 

- Não, você não disse, Frannie.

 

- Mas tenho de perguntar se vocês ainda acham uma boa ideia enviar Tom Cullen para o oeste. Depois de tudo que aconteceu esta tarde.

 

- Não sei - disse Stu, empurrando o prato quase intocado. Levantou-se, foi até o aparador e pegou um maço de cigarros. Tinha diminuído o consumo para três ou quatro por dia. Acendeu um, tragou, enviou fumaça de tabaco ao fundo de seus pulmões, depois soprou. - Pelo lado positivo, sua história forjada é bastante simples e suficientemente crível. Nós o expulsamos da Zona por ser retardado. Ninguém será capaz de desviá-lo desta instrução. E se Tom voltar poderemos hipnotizá-lo de novo... ele adormece com a rapidez de um estalar de dedos, benza Deus... para que nos conte tudo que viu, as coisas importantes e as sem importância. É possível que ele se torne uma testemunha ocular melhor do que qualquer dos outros. Não duvido.

 

- Se ele voltar bem.

 

- Exato, se. Nós o instruímos para viajar somente à noite e esconder-se durante o dia. Se ele vir mais de uma pessoa, fugir. Se for uma só, matá-la.

 

- Stu, vocês não podiam...

 

- Claro que podíamos! - retrucou ele furioso, voltando-se para ela. - Isto não é nenhuma brincadeira, Frannie! Você deve saber o que pode acontecer a ele e aos outros se forem apanhados! E, antes de mais nada, por que é tão contrária à ideia?

 

- Está bem - disse ela baixinho. - Está tudo bem, Stu.

 

- Não, não está tudo bem! - exclamou Stu e amassou o cigarro recém-aceso num cinzeiro de cerâmica, provocando uma pequena nuvem de fagulhas. Várias delas pousaram no dorso de sua mão e ele as sacudiu num gesto rápido e violento. - Não é correto mandar um rapaz retardado para travar nossas batalhas, como não é correto mover pessoas de um lado a outro como se fossem peões na porra de um tabuleiro de xadrez, e não é correto dar ordens para matar, como um chefão da Máfia. No entanto, não me ocorre o que mais podemos fazer. Simplesmente não sei! Se não descobrirmos o que ele está tramando, há uma maldita chance de que algum dia, na próxima primavera, transforme toda a Zona Franca numa grande nuvem em forma de cogumelo!

 

- OK. Ei. OK!

 

Ele abriu lentamente os punhos crispados.

 

- Eu estava gritando com você. Desculpe, não tinha o direito de fazer isso, Frannie.

 

- Está tudo bem. Você não foi o único a abrir a caixa de Pandora.

 

- Nós todos a abrimos, acho - disse ele embotadamente e pegou outro cigarro no maço sobre o aparador. - Seja como for, quando dei a ele aquela... como se poderia chamar? Bem, quando falei que ele devia matar qualquer um que cruzasse seu caminho, vi que Tom franziu um pouco o rosto. Foi uma expressão que logo desapareceu, nem sei se Nick e Ralph notaram. Mas eu percebi. Foi como se Tom pensasse: "OK, entendo o que vocês querem, mas agirei à minha moda quando chegar a hora."

 

- Já li que não se pode induzir uma pessoa hipnotizada a fazer algo que não faria quando desperta - disse Fran. - Uma pessoa não irá contrariar seu próprio código moral só porque lhe disseram para fazê-lo sob hipnose.

 

Stu assentiu.

 

- Sim, eu estava pensando nisso. E se o tal Flagg dispôs toda uma linha de piquetes ao longo de toda a parte leste de sua fronteira? Eu o faria, se fosse ele. Se Tom deparar com esses piquetes ao seguir para oeste, ele tem a sua história de cobertura. Mas se estiver voltando para leste, será uma questão de matar ou morrer. E se Tom não matar, será como um pato derrubado numa barraca de tiro ao alvo num parque de diversões.

 

- Talvez você esteja preocupado demais com essa parte da coisa - comentou Frannie. - Quero dizer, se houver essa linha de piquetes, seria uma linha muito fraca, não acha?

 

- Certo. Um homem a cada 80 quilômetros, algo mais ou menos assim. E isso se ele contar com cinco vezes mais gente do que nós.

 

- Então, a menos que eles já disponham de algum equipamento muitíssimo sofisticado, instalado e funcionando, algo como radar, infravermelho e coisas tais, como vemos nos filmes de espionagem, Tom não poderia simplesmente passar através dos piquetes?

 

- É com isso que estamos contando, mas...

 

- Mas você não está com a consciência em paz - disse ela, suave.

 

- E não seria de se esperar? Bem, mudando de assunto: o que é que Harold queria, querida?

 

- Ele deixou um monte daqueles mapas de pesquisa, de áreas onde seu Comitê de Busca procurou por Mãe Abagail. De qualquer modo, além de supervisionar o Comitê de Busca, Harold esteve trabalhando com aquelas equipes de sepultamento. Parecia muito cansado, mas não apenas por suas obrigações para com a Zona Franca. Ele também esteve trabalhando em algo mais, parece.

 

- No quê?

 

- Harold arranjou uma mulher.

 

Stu ergueu as sobrancelhas.

 

- Acho que foi por isso que não aceitou o convite para jantar. Você pode adivinhar quem é ela?

 

Stu semicerrou os olhos em direção ao teto.

 

- Ora, com quem Harold poderia estar transando? Deixe-me ver...

 

- Bem, é uma tremenda maneira de enfocar o caso! O que você acha que nós estamos fazendo? - Ela fingiu que ia lhe dar um tapa e Stu recuou, rindo.

 

- Divertido, não é? Pois desisto. Quem é?

 

- Nadine Cross.

 

- Aquela mulher com fios brancos no cabelo?

 

- A própria.

 

- Puxa, ela deve ter o dobro da idade dele!

 

- Duvido muito que Harold se preocupe com isso a esta altura do relacionamento deles - disse Fran.

 

- Larry sabe?

 

- Não sei e pouco estou ligando. Nadine Cross não é a garota de Larry agora. Se é que algum dia foi.

 

- É - disse Stu. Estava contente por Harold ter encontrado para si um pequeno interesse amoroso, mas não terrivelmente interessado no assunto. - Seja como for, como é que Harold se sente em relação ao Comitê de Busca? Ele lhe deu alguma pista?

 

- Bem, você conhece Harold. Ele sorri um bocado, mas... não muito esperançoso. Acho que é por isso que tem se dedicado mais ao serviço de sepultamentos. Sabia que agora o estão chamando de Falcão?

 

- É mesmo?

 

- Foi o que ouvi hoje. Só soube de quem estavam falando depois que perguntei. - Ela ficou pensativa por um instante e depois riu.

 

- Qual é a graça? - perguntou Stu.

 

Frannie espichou os pés calçados de tênis. Nas solas havia desenhos de círculos e linhas.

 

- Ele elogiou meus tênis. Não é um doidão?

 

- Você é que é doidona - disse Stu, rindo.

 

Harold acordou pouco antes do alvorecer com uma dor entorpecida, mas não inteiramente desagradável na virilha. Tiritou um pouco ao levantar-se. Estava ficando nitidamente mais frio a cada manhã, embora estivessem em 22 de agosto e o outono ainda se situasse a um mês de distância.

 

No entanto, havia calor abaixo de sua cintura, ah, como havia! Bastava olhar para a curva deliciosa das nádegas dela, envoltas naquelas diminutas calcinhas transparentes enquanto ela dormia, para excitá-lo consideravelmente. Nadine não se importaria se ele a acordasse... bem, talvez se incomodasse, mas não objetaria. Harold ainda não fazia ideia do que poderia haver por trás daqueles olhos escuros. Também a temia um pouco.

 

Em vez de acordá-la, ele se vestiu silenciosamente. Não queria perder tempo com Nadine, por mais que a ideia lhe apetecesse.

 

O que precisava fazer era ir sozinho a algum lugar e refletir.

 

Parou à porta, inteiramente vestido, carregando as botas na mão esquerda. Entre a ligeira friagem do quarto e o ato prosaico de vestir-se, o desejo o havia abandonado. Agora podia sentir o cheiro daquele aposento, um cheiro que nada tinha de agradável.

 

Era uma coisinha de nada, Nadine dissera, uma coisa que podiam dispensar. Talvez fosse verdade. Nadine sabia fazer coisas inacreditáveis com a boca e com as mãos. Porém, se fosse uma coisinha de nada, por que o quarto conservava aquele cheiro rançoso e ligeiramente acre, que ele associava ao prazer solitário de todos os seus anos negativos?

 

Talvez você queira que sejam negativos.

 

Pensamento perturbador. Ele saiu, fechando a porta silenciosamente atrás de si.

 

Os olhos de Nadine se abriram no momento em que a porta foi fechada. Sentou-se, olhando pensativa para a porta, e depois deitou-se de novo. Seu corpo doía num lento e não-aliviante ciclo de desejo. Era quase como cólicas menstruais. Se fosse uma coisa tão pequena, pensou ela (sem a menor ideia do quanto seus pensamentos eram próximos dos de Harold), por que se sentia assim? A certa altura da noite passada ela tivera de morder os lábios para abafar os gritos: Pare de ficar embromando e me ENFIA logo esta coisa! Está me ouvindo? METE, me enche com isso! Você acha que o que está fazendo é de algum benefício para mim? Enfia essa coisa em mim e seja o que Deus quiser... ou eu, pelo menos... para acabar com esse jogo maluco!

 

Ele estivera com a cabeça enfiada entre as pernas dela, fazendo estranhos ruídos de desejo, ruídos que teriam sido cômicos se não fossem tão honestamente urgentes, quase selvagens. E ela olhava para cima, aquelas palavras tremendo por trás de seus lábios, e tinha visto (ou apenas imaginara ver?) um rosto na janela. Num instante, o fogo de seu próprio desejo tinha se transformado em cinzas frias.

 

Tinha sido o rosto dele, sorrindo selvagemente para ela.

 

Um grito se elevou da garganta dela... e em seguida o rosto se foi, o rosto não era nada mais que um padrão de sombras em movimento no vidro escurecido misturado com nódoas de poeira. Não mais que o fantasma que uma criança imagina ter visto no armário, ou dissimuladamente enroscado atrás da arca de brinquedos no canto.

 

Nada mais do que isso.

 

Só que havia mais, e nem mesmo agora, à primeira luz fria racional do alvorecer, poderia ela simular de outra maneira. Seria perigoso simular de outra maneira. Tinha sido ele, e ele a havia avisado. O futuro marido estava observando sua prometida. E a noiva deflorada seria a noiva repelida.

 

Olhando para o teto, ela pensou: Chupei a pica dele, mas isto não é defloramento. Deixei que me enrabasse, mas isto também não é defloramento. Visto-me para ele que nem uma puta barata rodando bolsinha, mas que mal há nisso?

 

Era o suficiente para fazê-la especular que tipo de homem era realmente seu noivo.

 

Nadine ficou olhando para o teto por um tempo muito longo.

 

Harold preparou café instantâneo, bebeu com uma careta e depois, pegando dois Pop-Tarts frios, seguiu para a entrada da casa. Sentou-se nos degraus e comeu enquanto o amanhecer rastejava através da terra.

 

Em retrospecto, os dois últimos dias tinham-lhe parecido um louco desfile de carnaval. Tudo era um borrão de caminhões alaranjados, Weizak batendo-lhe no ombro e chamando-o de Falcão (todos agora o chamavam assim), cadáveres, numa série bolorenta e interminável, e depois a volta para casa, afastando-se de toda aquela mortandade para um fluxo incessante de sexo curioso. O suficiente para deixar qualquer um zonzo.

 

Mas agora, sentado no degrau frio como uma lápide de sepultura, com uma horrível xícara de café instantâneo diluindo-se nas suas tripas, ele conseguia mascar aqueles bolinhos frios com gosto de serragem e pensar. Sentia a cabeça arejada, lúcida, depois de um período de insanidade. Ocorreu-lhe que, para alguém que sempre se considerara um homem de Cro-Magnon em meio a um rebanho de ruidosos Neandertais, ultimamente se dedicava muito pouco a uma boa meditação. Vinha sendo conduzido não pelo nariz, mas pelo pênis.

 

Voltou a mente para Frannie Goldsmith enquanto desviava o olhar das Flatirons. Foi Frannie quem estivera na sua casa naquele dia, agora tinha certeza. Ele a visitara no apartamento onde vivia com Redman com um pretexto, mas na realidade querendo dar uma espiada no tipo de calçado que ela usava. Por acaso Frannie calçava os mesmos tênis cujo solado combinava com a pegada que ele encontrara no piso de seu porão. Círculos e linhas em vez do costumeiro padrão confuso e ziguezagueante. Sem a menor dúvida, garota.

 

Achou que poderia resolver a questão sem muita dificuldade. De algum modo Fran descobrira que ele havia lido seu diário. Ele devia ter deixado uma mancha ou marca em alguma página... talvez mais de uma. Assim, ela fora à casa dele em busca de algum indício de como ele se sentia após ter lido o que lera. Talvez alguma coisa anotada.

 

Havia, claro, seu livro-razão. Mas Fran não o encontrara, disso Harold tinha certeza. O livro-razão dizia claramente que pretendia matar Stuart Redman. Se ela houvesse descoberto algo semelhante, teria contado a Stu. E, mesmo não contando, Harold não acreditava que pudesse tê-lo acolhido com tanta naturalidade, quando a visitara no dia anterior.

 

Terminou o último Pop-Tart fazendo uma careta ao seu sabor frio e ao mais frio ainda do recheio de gelatina. Decidiu caminhar até o terminal de ônibus, em vez de pegar a motocicleta. Na volta para casa podia pegar uma carona com Teddy Weizak ou Norris. Pôs-se a caminho, puxando o zíper do blusão leve até o queixo para proteger-se contra a friagem que iria desaparecer em mais ou menos uma hora. Passou pelas casas vazias de persianas arriadas e, uns seis quarteirões abaixo, na Arapahoe, começou a ver um X marcado grosseiramente a giz em uma porta após outra. Mais uma vez, ideia sua. O Comitê de Sepultamentos já checara todas aquelas casas marcadas das quais haviam sido recolhidos todos os cadáveres. X, uma marca de eliminação. As pessoas que tinham vivido naquelas casas agora já haviam partido para todo o sempre. Dentro de mais um mês aquele X estaria por toda Boulder, assinalando o fim de uma era.

 

Era hora de pensar, e pensar cuidadosamente. Parecia que havia de fato parado de pensar desde que conhecera Nadine... mas talvez tivesse parado antes mesmo disso.

 

Li o diário dela porque me sentia magoado e com ciúmes, pensou. Então ela invadiu minha casa, quem sabe à procura do meu próprio diário, mas não o encontrou. De qualquer modo, o choque de saber que tivera a casa invadida fora uma boa vingança de Frannie. Sem dúvida, isto o deixara abalado. Talvez agora estivessem quites.

 

Na verdade, ele não queria mais Frannie, queria?... Queria?

 

Sentiu a brasa taciturna do ressentimento reluzir em seu peito. Talvez não. No entanto, isto não alterava o fato de que o haviam excluído. Embora Nadine pouco dissesse sobre seus motivos de ir procurá-lo, Harold tinha a impressão de que, de algum modo, ela também fora excluída, rejeitada, indesejada. Formavam uma dupla de intrusos, e intrusos tramam conspirações. Talvez seja a única coisa que os mantenha lúcidos. (Lembre-se de anotar isto no livro-razão, pensou Harold... já quase no centro da cidade agora.)

 

Havia toda uma legião de forasteiros no outro lado das montanhas. E quando há intrusos suficientes em um só lugar, ocorre uma osmose mística e somos incluídos. No lado de dentro, onde está aquecido, mas na realidade é uma coisa imensa. Talvez a mais importante do mundo.

 

Talvez ele não desejasse ficar quite. Talvez não quisesse ficar num empate. Talvez não quisesse ter como atividade rodar num caminhão recolhendo mortos e receber cartas ocas de agradecimentos por suas ideias, enquanto espera cinco anos até que Bateman se aposente do precioso comitê deles para que possa ter sua oportunidade de participar... mas e se decidissem excluí-lo novamente?

 

A brasa do ressentimento agora cintilava com mais fulgor. Pensar, claro, pensar - isso era fácil de dizer, e às vezes até mesmo de fazer... mas que bem havia em pensar quando tudo que se obtinha dos Neandertais que dirigiam o mundo era um risinho hipócrita ou, pior ainda, uma carta de agradecimentos?

 

Chegou ao terminal. Ainda era cedo, ninguém tinha chegado. Havia um aviso na porta, anunciando que no dia 25 aconteceria outra assembleia pública. Assembleia pública? Era uma porra de circo público, isso sim.

 

A sala de espera estava festonada com pôsteres de viagens, propaganda do Greyhound Ameripass e fotos de enormes ônibus com janelas panorâmicas cruzando Atlanta, Nova Orleans, San Francisco, Nashville, todos os lugares. Sentando-se, Harold ficou olhando, no ar frio da manhã, para as máquinas apagadas de fliperama, a máquina automática de Coca e de café, que também oferecia uma xícara de sopa Lipton que cheirava vagamente a peixe morto. Ele acendeu um cigarro e jogou o fósforo queimado no chão.

 

Eles haviam adotado a Constituição. Uau! Tudo muito formal e nos trinques. Tinham até cantado a porra do hino nacional, pelo amor de Deus! Mas e se Harold Lauder tivesse se levantado, não para oferecer algumas sugestões, mas para dizer a eles os fatos da vida, neste primeiro ano após a epidemia?

 

Senhoras e senhores, meu nome é Harold Emery Lauder e estou aqui para dizer-lhes que, como na letra da antiga canção, as coisas fundamentais são aplicadas conforme passam os anos. Como Darwin. Da próxima vez em que se levantarem para cantar o hino nacional, amigos e vizinhos, saquem isto: a América está morta, para lá de morta, tão morta como Jacob Marley, como Buddy Holly, o Big Bopper e Hariy S. Truman, mas os princípios enunciados em primeira mão pelo Sr. Darwin continuam bem vivos - tão vivos como o fantasma de Jacob Marley esteve para Ebenézer Scrooge. Enquanto os senhora meditam na beleza das normas constitucionais, dediquem algum tempo para pensarem Randall Flagg, o Homem do Oeste. Duvido muito que ele tenha tempo a perder com assembleia pública e ratificações e debates sobre o verdadeiro significado de um pêssego no melhor estilo liberal. Em vez disso, ele tem se concentrado em coisas básicas, no seu Darwin, preparando-se para limpar o grande balcão de fórmica do universo com seus cadáveres. Senhores e senhoras, permitam-me sugerir que, enquanto tentam religar a eletricidade e que um médico descubra nossa feliz colmeiazinha, ele pode estar ansiosamente procurando alguém com um breve de piloto que possa sobrevoar Boulder, na melhor tradição de Francis Gary Powers. Enquanto debatemos o intrigante tema de quem fará parte do Comitê de Limpeza de Ruas, ele já providenciou a criação de um Comitê de Limpeza de Armas, para não falar em canhões, bases de mísseis e talvez até mesmo centro de guerra bacteriológica, o que é uma das coisas que tornam este país grandioso - que país, ah-ah! -, mas os senhores hão de convir que enquanto estamos ocupados em colocar nossas carroças em círculos, esperando um ataque de índios, ele está...

 

- Ei, Falcão, você madrugou?

 

Harold ergueu os olhos, sorrindo.

 

- Bem, pensei que podia ganhar uma hora extra - disse ele para Weizak. - Marquei o seu cartão de ponto logo que cheguei. Você já ganhou seis paus.

 

Weizak riu.

 

- Você é um figuraça, Falcão, sabia disso?

 

- Sou mesmo - concordou Harold, ainda sorrindo. Recomeçou a amarrar as botas. - Um tremendo figuraça.

 

STU PASSOU O DIA SEGUINTE na usina elétrica, revestindo motores, e seguia de volta para casa. Tinha chegado ao pequeno parque em frente ao First National Bank, quando Ralph o chamou. Stu estacionou sua moto e caminhou até a concha acústica, onde Ralph estava sentado.

 

- Andei procurando por você, Stu. Dispõe de um minuto?

 

- Só um. Já estou atrasado para o jantar. Frannie vai ficar preocupada.

 

- É, pelo aspecto de suas mãos, você esteve na usina de força, enrolando fios de cobre. - Ralph parecia distante e preocupado.

 

- Exato. Nem as luvas adiantam muito. Minhas mãos estão destroçadas.

 

Ralph assentiu. Havia talvez mais meia dúzia de pessoas no parque, algumas Observando o trem que certa vez fizera o trajeto entre Boulder e Denver. Três moças haviam estendido na grama uma ceia de piquenique. Stu descobriu ser muito agradável apenas ficar sentado ali, com as mãos laceradas no colo. O cargo de xerife talvez não seja tão ruim, pensou ele. Pelo menos me deixaria longe daquela maldita linha de montagem a leste de Boulder.

 

- Como vão as coisas por lá? - perguntou Ralph.

 

- Eu não saberia dizer... estou só dando uma ajuda, como os outros. Brad Kitchner diz que vai ser como uma casa incendiada. Diz que as luzes estarão de volta ao final da primeira semana de setembro, talvez antes, e que teremos aquecimento em meados do mês. Claro que ele é jovem demais para estar fazendo previsões...

 

- Aposto meu dinheiro em Brad - disse Ralph. - Confio nele. Ele tem feito um bocado daquilo que chamaríamos de "treinamento na marra". - Ralph tentou rir; o riso transformou-se em um suspiro que pareceu arrancado dos saltos das botas do grandalhão.

 

- Por que esse ar tão desanimado, Ralph?

 

- Ouvi algumas notícias no meu rádio - disse Ralph. - Algumas boas e algumas... bem, algumas nem tanto. Quero que fique sabendo, Stu, porque não é possível manter isso sigiloso. Há muita gente aqui na Zona usando a faixa do cidadão. Imagino que muitas pessoas estivessem ouvindo enquanto eu falava com o novo grupo que está chegando.

 

- Quantos?

 

- Mais de quarenta. Um deles é médico, chamado George Richardson.

 

- Ora, essa é uma excelente notícia!

 

- Ele é de Derbyshire, Tennessee. A maioria dos componentes do grupo vem mais ou menos do centro-sul. Bem, parece que havia uma grávida entre eles, que deu à luz dez dias atrás, no dia 13 - Com a ajuda do médico... eram gêmeos... tiveram um bom parto. A princípio estiveram muito bem...

 

Ralph calou-se de repente. Stu agarrou-lhe o braço.

 

- Morreram? Os bebês morreram? Era isso que tentava me dizer? Desembuche, porra!

 

- Morreram - disse Ralph em voz baixa. - Um deles durou 12 horas. Parece que morreu de asfixia. O outro morreu dois dias depois. Nada que Richardson fez conseguiu salvá-los. A mulher ficou fora de si. Falando em morte, destruição e mais nenhum bebê no mundo. Achei que talvez você quisesse deixar Fran afastada quando eles chegarem, Stu. É isto o que eu queria lhe dizer. Aliás, acho que você deveria dar-lhe esta notícia imediatamente. Porque, se não souber da sua boca, alguém contará a ela.

 

Stu soltou lentamente o braço de Ralph.

 

- Esse Richardson, bem, ele queria saber quantas grávidas tínhamos aqui. Respondi que, até onde sabia, havia somente uma. Ele perguntou pelo tempo de gravidez e falei em quatro meses. Está certo?

 

- Ela agora está no quinto mês. Escute, Ralph: ele tem certeza de que os bebês morreram da supergripe? Ele tem certeza?

 

- Não, não tem, e você também precisa dizer isto a Frannie, para que ela compreenda. O médico disse que haveria várias causas prováveis... a dieta alimentará mãe... algum fator hereditário... uma infecção respiratória... ou talvez eles fossem apenas, você sabe, bebês deficientes. Mencionou uma possibilidade do fator Rh, o que quer que isto seja. Não podia garantir, já que o parto ocorreu no meio de um campo à margem da Interestadual 70. Richardson disse que ele e mais três, que eram os responsáveis pelo grupo, ficaram acordados até tarde discutindo o assunto. Richardson explicou-lhes o que isto poderia significar: era de suma importância saberem com segurança se aqueles bebês foram mortos pela Capitão Viajante ou por alguma outra causa.

 

- Eu e Glen conversamos a respeito - disse Stu, soturno - no dia em que o conheci, exatamente no Quatro de Julho, parece que isso foi há anos... Seja como for, se foi a supergripe que matou aqueles bebês, isto provavelmente significa que, daqui a quarenta ou cinquenta anos, tudo que construirmos será herdado pelos ratos, moscas e pardais.

 

- Acho que foi mais ou menos o que Richardson disse a eles. De qualquer modo, estavam a uns sessenta e poucos quilômetros a oeste de Chicago, e ele os convenceu a fazer meia-volta no dia seguinte, levando os cadáveres para um grande hospital onde ele pudesse realizar uma autópsia. Afirmou que assim poderia constatar com segurança se a causa mortis fora ou não a supergripe. Já testemunhara casos suficientes no final de junho. Acho que todos os médicos testemunharam.

 

- É isso aí.

 

- Porém, quando amanheceu, os bebês haviam sumido. A mãe os enterrara e não disse onde. Eles passaram dois dias cavando, pois achavam que ela não poderia ter se afastado muito do acampamento ou os enterrado fundo demais, ainda sob os efeitos pós-parto e tudo o mais. Nada encontraram e ela permaneceu muda, por mais que tentassem explicar-lhe a importância da autópsia. A pobre mulher tinha pirado.

 

- Posso entender isso - disse Stu, pensando no quanto Fran queria ter o bebê.

 

- O médico disse que, mesmo sendo a supergripe, talvez duas pessoas imunes pudessem ter um bebê imune - acrescentou Ralph, esperançoso.

 

- As chances de que o pai natural do bebê de Frannie fosse imune são cerca de uma em um bilhão - retrucou Stu. - Simplesmente ele não está aqui.

 

- É, creio que dificilmente haveria essa possibilidade. Lamento ter-lhe dado essa preocupação, Stu, mas pensei que seria melhor ficar sabendo logo. Assim poderá contar a ela.

 

- É algo que não me seduz nem um pouco - disse Stu.

 

Mas, ao chegar em casa, soube que alguém se antecipara a ele.

 

- Frannie?

 

Não houve resposta. O jantar estava sobre o fogão - queimado, na sua maior parte -, porém o apartamento estava escuro e silencioso.

 

Stu chegou à sala de estar e olhou em torno. Havia um cinzeiro sobre a mesinha de centro, com duas pontas de cigarro. Mas Fran não fumava e aqueles não eram da marca de Stu.

 

- Querida?

 

Foi encontrá-la no quarto, deitada na cama em meio à penumbra, olhando para o teto. Tinha o rosto inchado, marcado de lágrimas.

 

- Oi, Stu - disse baixinho.

 

- Quem foi que lhe contou? - perguntou ele, furioso. - Quem foi que mal pôde esperar para espalhar a boa-nova? Quem quer que tenha sido, vou quebrar-lhe a porra do braço!

 

- Foi Sue Stern. Ela soube por Jack Jackson. Ele sintoniza a faixa do cidadão e ouviu esse médico falando com Ralph. Sue achou que seria melhor me contar antes que alguém fizesse um estardalhaço. Coitadinha da Frannie. Manipule com cuidado. Não abra até o Natal. - Ela deu uma risadinha. Houve uma desolação naquele som que fez Stu sentir como se estivesse chorando.

 

Ele atravessou o quarto, sentou-se na cama ao lado dela e afagou uma mecha de cabelo que lhe caíra na testa.

 

- Não há certeza alguma, querida. Não temos meios de saber com segurança.

 

- Sei que não. E talvez possamos ter nossos próprios filhos, mesmo assim. - Ela se virou para fitá-lo, os olhos vermelhos e infelizes. - Contudo, eu quero este. Será tão errado assim?

 

- Não, claro que não.

 

- Fiquei aqui deitada, esperando que ele se movesse ou algo assim. Nunca mais o senti se mexendo desde aquela noite em que Larry veio procurar Harold. Está lembrado?

 

- Sim.

 

- Senti o bebê se mexendo e não quis acordar você. Agora, gostaria de tê-lo acordado. Sim, bem que gostaria. - Ela recomeçou a chorar e pousou um braço sobre o rosto para que ele não a visse assim.

 

Stu puxou-lhe o braço, estendeu-se ao lado dela e a beijou. Fran abraçou-o forte e aninhou-se passivamente contra ele. Quando falou, as palavras saíram meio sufocadas contra o pescoço dele.

 

- A incerteza torna tudo muito pior. Agora só me resta esperar para ver. Acho que é muito tempo para uma mulher esperar para ver se o seu bebê irá morrer antes mesmo de ter passado um dia fora de seu corpo.

 

- Você não estará esperando sozinha - disse ele.

 

Ela o abraçou com força novamente a esta resposta, e os dois permaneceram enlaçados, sem se mover, durante muito tempo.

 

Nadine Cross passara quase cinco minutos na sala de estar de sua antiga casa, recolhendo coisas, antes que o visse sentado apenas de sunga na cadeira ao canto, o polegar enfiado na boca, seus estranhos olhos de china cinza-esverdeados observando-a. Seu sobressalto foi tão grande - tanto por saber que ele estivera sentado ali o tempo todo quanto pela real e súbita visão dele - que seu coração deu um pulo alto e assustado no peito, e ela gritou. Os livros que pegara para enfiar na mochila caíram no chão, num farfalhar de páginas.

 

- Joe... quero dizer, Leo...

 

Ela levou a mão ao peito, acima da protuberância dos seios, como se para sentir o louco batimento do seu coração. Mas o coração ainda não estava pronto para diminuir seu ritmo, com ou sem mão. Captar a súbita visão dele já foi ruim; captar a visão dele vestido e agindo da mesma forma como fazia na primeira vez em que se encontraram em New Hampshire foi pior ainda. Era um retorno por demais exagerado, como se algum deus irracional a houvesse atirado maldosa e repentinamente através de uma urdidura de tempo e a condenado a viver de novo todas as últimas seis semanas.

 

- Você quase me fez expelir o coração pela boca - concluiu ela fracamente.

 

Joe nada disse.

 

Ela caminhou devagar até o garoto, meio que esperando ver uma comprida faca de cozinha numa das mãos dele, como outrora, mas a mão que não estava enfiada na boca enroscava-se inocentemente em seu colo. Ela percebeu que o corpo dele perdera um pouco do bronzeado. As velhas cicatrizes e arranhões de mato haviam sumido. Mas os olhos eram os mesmos... olhos que podiam assustar. O que quer que tivesse mudado neles, um pouco mais a cada dia, desde que se inflamaram ao ouvir Larry tocar a guitarra, já se fora por completo. Os olhos voltaram a ser como eram à época em que o conhecera, e isto a inundou com uma espécie de terror arrepiante.

 

- O que está fazendo aqui?

 

Joe não disse nada.

 

- Por que não está com mãe-Lucy?

 

Nada de resposta.

 

- Você não pode ficar aqui - disse ela, tentando arrazoar com ele, mas antes que pudesse continuar, viu-se especulando há quanto tempo já estaria ali.

 

Isto se deu na manhã de 24 de agosto. Ela passara as duas noites anteriores com Harold. Ocorreu-lhe o pensamento de que ele deveria ter estado sentado ali naquela cadeira, com o polegar arrolhado seguramente na boca, pelas últimas 48 horas. Claro que era uma ideia ridícula, pois ele teria que comer e beber (não teria?), mas uma vez chegada esta imagem/pensamento, ela não iria embora. A sensação arrepiante acometeu-a novamente, e Nadine percebeu com algo semelhante a desespero o quanto ela própria havia mudado: certa vez dormira destemidamente ao lado deste pequeno selvagem, numa época em que ele tinha estado armado e era perigoso. Agora não portava mais armas, porém se descobrira apavorada com ele. Ela havia pensado que o ser anterior dele

 

(Joe? Leo?)

 

tinha caprichosa e completamente desaparecido. Agora ele estava de volta. E estava ali.

 

- Você não pode ficar aqui - disse ela. - Só voltei para buscar algumas coisas. Estou me mudando. Estou me mudando para morar... com um homem.

 

Ah, então é isso que Harold é?, zombou alguma voz interior. Pensei que fosse apenas uma ferramenta, um meio para alcançar um fim.

 

- Leo, escute...

 

Ele sacudiu a cabeça, débil porém visivelmente. Seus olhos, inflexíveis e cintilantes, fixaram-se no rosto dela.

 

- Você não é Leo?

 

O sacudir débil voltou.

 

- Você é Joe?

 

Um assentimento, igualmente débil.

 

- Tudo bem, então. Mas precisa entender que realmente não importa quem você seja - disse ela, tentando ser paciente. Aquela sensação louca de que estava numa urdidura de tempo, de que estava de volta ao ponto de partida, persistia. Isso a fez sentir-se irreal e assustada. - Aquela parte de nossas vidas... a parte em que nos juntamos por livre e espontânea vontade... essa parte acabou. Você mudou, eu mudei, e não podemos voltar atrás.

 

Porém os olhos estranhos dele continuavam fixos nos dela, parecendo negar isto.

 

- E pare de ficar olhando para mim - sibilou ela. - É muita falta de educação ficar olhando fixamente para as pessoas.

 

Agora os olhos dele pareceram se tornar levemente acusatórios. Pareciam sugerir que também era falta de educação abandonar as pessoas à própria sorte, e mais ainda deixar de dar amor a uma pessoa que precisava e dependia dele.

 

- Não é como se você fosse ficar abandonado - disse ela, virando-se e começando a catar os livros que tinham caído. Ajoelhou-se desajeitadamente e sem graça, seus joelhos estalando como bombinhas enquanto o fazia. Começou a enfiar os livros à força na mochila, por cima de seus absorventes íntimos, caixas de aspirina e roupas de baixo, calcinhas de algodão grosseiro, bem diferentes da lingerie que usava para o prazer frenético de Harold.

 

- Você tem Larry e Lucy. Você os quer bem e eles querem bem a você. Bem, Larry quer, e isso é tudo que importa, porque Lucy faz tudo que ele manda. Ela é como uma folha de papel-carbono. As coisas mudaram para mim agora, Joe, e não é por culpa minha. Não é minha culpa, afinal. Portanto, pode parar de tentar me fazer sentir culpada.

 

Ela começou a tentar fechar a mochila, mas seus dedos tremiam incontrolavelmente e a tarefa era difícil. O silêncio ficava cada vez mais pesado em torno deles.

 

Por fim ela se levantou, pendurando a mochila nos ombros.

 

- Leo - ela tentou falar calma e arrazoadamente, do modo como costumava se dirigir a crianças problemáticas nas suas turmas quando elas tinham acessos de raiva. Simplesmente não conseguiu. Sua voz era toda um vaivém, e o pequeno sacudir da cabeça dele, cumprimentando-a pelo emprego da palavra Leo, só piorava as coisas. - Não foram Larry e Lucy - disse Nadine maldosamente. - Eu teria entendido, se fosse este o caso. Mas foi realmente aquele saco velho que fez você me renegar, não foi? Aquela velha estúpida na sua cadeira de balanço, sorrindo para o mundo com seus dentes postiços. Mas agora ela se foi e você volta correndo para mim. Mas não vai adiantar, está me ouvindo? Não vai adiantar!

 

Joe não disse nada.

 

- E quando implorei a Larry... implorei de joelhos... ele nem se incomodou. Estava ocupado demais fazendo o papel de bom moço. Assim, como vê, nada foi culpa minha. Nada disso!

 

O garoto limitou-se a fitá-la, impassível.

 

O terror de Nadine começou a voltar, sepultando sua raiva incoerente. Ela foi recuando e se afastando dele até a porta e tenteou pela maçaneta às suas costas. Encontrou-a por fim, girou-a e escancarou a porta. O fluxo do ar fresco lá de fora que bateu contra seus ombros foi muito bem recebido.

 

- Vá para a casa de Larry - murmurou ela. - Adeus, garotão.

 

Ela saiu desajeitadamente e parou no último degrau por um momento, tentando reunir coragem. De súbito, ocorreu-lhe que tudo aquilo devia ter sido uma alucinação, provocada por seus próprios sentimentos de culpa... culpa por abandonar o garoto, culpa por fazer Larry esperar tanto tempo, culpa pelas coisas que ela e Harold tinham feito e pelas coisas muito piores que estavam à espera. Talvez não tivesse havido nenhum garoto naquela casa, afinal. Nada mais real do que os fantasmas de Poe - o batimento do coração do velho, soando como um relógio envolto em algodão, ou o corvo empoleirado no busto de Palas.

 

- Batendo, sempre batendo na porta do meu quarto - sussurrou em voz alta sem pensar, o que a fez soltar uma risadinha horrenda e gutural, talvez não muito diferente dos sons que os corvos realmente faziam.

 

Ainda assim, precisava saber.

 

Foi até a janela ao lado dos degraus da frente e olhou para a sala de estar do que uma vez tinha sido sua casa. Na verdade, não que algum dia tivesse sido dela, não mesmo. Quando se vivia numa casa em que tudo que quisesse levar ao partir cabia numa mochila, ela de fato não tinha sido sua, para começar. Olhando para o interior da casa, viu um tapete, cortinas e papel de parede de alguma esposa falecida e cinzeiros e exemplares de Sports Illustrated de um marido falecido espalhados descuidadamente sobre a mesinha de centro. Fotos de filhos mortos sobre a cornija da lareira. E, sentado na poltrona de canto, um garoto, filho de alguma mulher falecida, vestido só de sunga, sentado, ainda sentado, tal como estivera sentado antes.

 

Nadine correu tropeçando, quase caindo, sobre as barreiras baixas de vime que protegiam o canteiro de flores à esquerda da janela por onde tinha olhado. Ela montou na sua Vespa e deu partida no motor. Dirigiu com velocidade imprudente pelos primeiros quarteirões, ziguezagueando entre os carros enguiçados que ainda enchiam aquelas ruas secundárias, mas passado algum tempo ela se acalmou.

 

Na hora em que chegou à casa de Harold, já conseguia manter algum tipo de controle sobre si mesma. Mas ela sabia que tinha de abreviar rapidamente sua estada aqui na Zona. Deveria partir em breve se quisesse manter a sanidade.

 

A assembleia geral no Auditório Munzinger transcorreu bem. Começaram mais uma vez cantando o hino nacional, porém dessa vez a maioria não chegou às lágrimas; era simplesmente parte do que em breve se tomaria um ritual. Um Comitê de Recenseamento foi votado rotineiramente, tendo Sandy DuChiens como encarregada. Ela e mais quatro auxiliares começaram imediatamente a percorrer a plateia, contando cabeças e anotando nomes. No final da reunião, com o acompanhamento de tremendos aplausos, Sandy anunciou que agora havia 814 habitantes na Zona Franca e prometeu (irrefletidamente, como resultou) ter uma lista completa por ocasião da próxima assembleia - uma lista que esperava atualizar semanalmente, contendo nomes em ordem alfabética, idades, endereços em Boulder, endereços anteriores e antigas profissões. Como se revelou, o fluxo para a Zona ficou tão intenso e errático que ela ficava sempre com duas ou três semanas de atraso.

 

O período eletivo do Comitê da Zona Franca foi posto em discussão e, após algumas sugestões extravagantes (dez anos foi uma delas, vitalício foi outra, e Larry ganhou forte ovação ao dizer que aquilo soava mais como sentenças de prisão do que um posto eletivo), foi então proposto o período de um ano. A mão de Harry Dunbarton acenou quase do fundo do salão e Stu o reconheceu.

 

Gritando para fazer-se ouvir, Harry disse:

 

- Até mesmo um ano talvez seja demais. Não tenho nada contra as damas e cavalheiros do comitê, inclusive acho que estão fazendo um trabalho danado de bom - aplausos e assobios -, mas isto aqui vai ficar fora de controle em bem pouco tempo se continuarmos crescendo!

 

Glen levantou a mão, e Stu deu-lhe a palavra.

 

- Sr. Presidente, isto não consta da agenda, mas acho que o Sr. Dunbarton levantou uma questão de grande interesse.

 

Eu podia apostar no que você ia dizer, careca, pensou Stu. Você mesmo já falou isso uma semana atrás.

 

- Eu gostaria de propor que tenhamos um Comitê Governamental de Representantes, para podermos realmente colocar a Constituição em funcionamento. Acho que Harry Dunbarton deveria liderar esse comitê, no qual eu mesmo me prontifico a trabalhar, a não ser que alguém considere que haja conflito de interesses.

 

Mais aplausos.

 

Na última fileira, Harold se virou para Nadine e sussurrou no seu ouvido:

 

- Damas e cavalheiros, está agora na pauta o rasga-seda público.

 

Ela esboçou um lento e sombrio sorriso, e ele se sentiu um tolo.

 

Stu foi eleito xerife da Zona Franca em meio a uma estrondosa aclamação.

 

- Farei por vocês o melhor que puder - disse ele. - Alguns que me aplaudem agora podem mudar de tom se mais tarde eu os surpreender fazendo coisas que não deviam? Você me ouviu, Rich Moffat?

 

Gargalhadas gerais. Rich, que estava bêbado como um gambá, juntou-se ao coro de hilaridade.

 

- No entanto, não vejo motivo algum para enfrentarmos qualquer problema sério aqui. No meu entender, a função principal de um xerife é impedir que as pessoas se machuquem umas às outras. E não há muitos de vocês que queiram fazer isso. Já temos gente de sobra que foi machucada. Bem, acho que é tudo que tenho a dizer.

 

A multidão ofereceu-lhe prolongada ovação.

 

- Agora passemos ao próximo item - continuou Stu. - Uma questão que tem a ver com as linhas da função policial. Precisamos de cinco pessoas para constituir um Comitê Legal, para que eu não fique em dúvida se tiver que prender alguém, caso ocorra tal possibilidade. Ouvi alguma indicação?

 

- Que tal o juiz? - gritou alguém.

 

- Sim, o juiz, é pra lá de correto! - reforçou outro.

 

Cabeças se viraram, esperando que o juiz se levantasse e aceitasse a responsabilidade, no seu habitual estilo rococó. Um sussurro percorreu o recinto enquanto pessoas recontavam a história de como ele espetara um alfinete no balão que um biruta insistia ser um disco voador. Agendas foram postas de lado a fim de que as mãos pudessem aplaudir. Stu e Glen se entreolharam com mútua perturbação: alguém do comitê devia ter previsto tal hipótese.

 

- Ele não está aqui - disse alguém.

 

- Alguém o viu? - perguntou Lucy Swann, preocupada.

 

Larry olhou para ela desconfortavelmente, porém Lucy continuava olhando para a plateia, querendo avistar o juiz.

 

- Eu o vi.

 

Soou um murmúrio interessado quando Teddy Weizak se levantou, na metade final do auditório, parecendo nervoso e polindo os óculos de aros de aço de maneira compulsiva com sua bandana.

 

- Onde?

 

- Onde estava ele, Teddy?

 

- Estava na cidade.

 

- O que estava fazendo?

 

Teddy intimidou-se visivelmente ante esta barragem de perguntas.

 

Stu bateu seu martelo.

 

- Vamos lá, minha gente! Ordem!

 

- Eu o vi faz dois dias - disse Teddy. - Estava num Land-Rover e disse que iria passar o dia em Denver. Não explicou o motivo. Contou uma ou duas piadas a respeito. Estava de muito bom humor. Isso é tudo que sei. - Ele sentou-se, ainda polindo os óculos e tremendamente ruborizado.

 

Stu voltou a pedir ordem no recinto.

 

- Lamento que o juiz não esteja presente. Acredito que seria o mais indicado para o posto, mas, já que não se encontra entre nós, alguém deseja apresentar outra indicação?

 

- Não, vamos deixar como está, por enquanto! - protestou Lucy, levantando-se. Usava um macacão justo de brim, que provocou olhares interessados da maioria dos homens na plateia. - O juiz Farris é um homem idoso. E se ele adoecer em Denver, sem poder voltar?

 

- Lucy - interveio Stu. - Denver é uma cidade grande.

 

Um estranho silêncio pairou sobre o recinto enquanto as pessoas refletiam sobre isso. Lucy sentou-se, pálida, e Larry pôs um braço em torno dela. Os olhos dele encontraram os de Stu, que desviou o rosto.

 

Houve uma proposta desanimada para adiarem a eleição do Comitê Legal até a volta do juiz, proposta recusada após vinte minutos de debate. Eles tinham outro jurista, um advogado de 26 anos chamado Al Bundell, que chegara no final da tarde com o grupo do Dr. Richardson. Bundell aceitou a presidência quando ela lhe foi oferecida, dizendo apenas esperar que ninguém fizesse algo demasiado terrível no mês seguinte, aproximadamente, porque demoraria o mesmo período para elaborarem alguma espécie de sistema de tribunal rotativo. Foi votado um lugar para o juiz Farris no comitê, in absentia.

 

Brad Kitchner, parecendo pálido e desajeitado, um pouco ridículo com terno e gravata, aproximou-se do pódio, deixou cair suas anotações já preparadas, recolheu-as na ordem errada e, por fim, limitou-se a dizer que esperavam ter a energia elétrica restabelecida no início de setembro.

 

Esta observação foi acolhida com uma tempestade de aplausos, o que lhe infundiu confiança para terminar com estilo e até pavonear-se um pouco enquanto deixava o pódio.

 

Chad Norris foi o seguinte, e Stu disse a Frannie mais tarde que abordara a questão exatamente da maneira correta: estavam sepultando os mortos por uma razão de decência comum. Nenhum deles se sentiria realmente bem até que a tarefa fosse concluída e a vida seguisse em frente. Se o trabalho estivesse encerrado na época da estação das chuvas, então todos se sentiriam melhor. Ele solicitou dois voluntários e conseguiria uns trinta, se quisesse. Encerrando, pediu que cada membro do atual Esquadrão das Pás (como os chamava) se levantasse e fizesse uma mesura.

 

Harold Lauder mal se ergueu do lugar, voltando a sentar-se prontamente. Houve pessoas que, saindo da reunião, comentaram o quanto ele era inteligente, além de modesto. Na verdade, Nadine estivera sussurrando-lhe coisas no ouvido, e ele temia fazer muito mais do que se empertigar e esboçar uma reverência. No momento, tinha uma ereção.

 

Quando Norris deixou o pódio, Ralph Brentner assumiu seu lugar. Comunicou que eles finalmente já tinham um médico. George Richardson levantou-se (debaixo de estrondosos aplausos; Richardson fez o sinal da paz com ambas as mãos e os aplausos transformaram-se em ovação) e contou-lhes que, até onde sabia, tinha mais sessenta pessoas chegando nos dois dias seguintes.

 

- Bem, esta foi a agenda - disse Stu. Seu olhar percorreu o povo ali reunido. - Quero que Sandy DuChiens suba até aqui e nos diga quantos somos. Porém, antes disso, há mais alguma coisa que devamos tratar esta noite?

 

Esperou. Podia avistar o rosto de Glen em meio à plateia, bem como o de Sue Stern, Larry, Nick e, naturalmente, Frannie. Todos pareciam meio tensos. Se pretendia falar em Flagg, perguntar o que o comitê estava fazendo a respeito dele, este seria o momento. Mas o silêncio continuou. Após uns 15 segundos, Stu passou o comando para Sandy, que encerrou a assembleia como era devido. Quando as pessoas começaram a desfilar para a saída, Stu pensou: Bem, conseguimos novamente.

 

Várias pessoas se aproximaram para cumprimentá-lo, entre as quais o novo médico.

 

- Conduziu a reunião muito bem, xerife - disse Richardson, e por um momento Stu quase olhou para trás a fim de ver com quem Richardson falava. Então se lembrou e sentiu um medo repentino. Homem da lei? Ele era um impostor.

 

Um ano, disse para si mesmo. Um ano só, nada mais. Contudo, ainda assim sentia medo.

 

Stu, Fran, Sue Stern e Nick caminharam de volta juntos para o centro da cidade, seus pés estalejando surdamente na calçada de cimento enquanto cruzavam o campus da Universidade do Colorado em direção à Broadway. Em torno deles, outras pessoas também voltavam para casa, conversando em voz baixa. Eram onze e meia da noite.

 

- Está frio - disse Fran. - Gostaria de ter trazido meu casaco, além deste suéter.

 

Nick assentiu. Também sentia a friagem. As noites em Boulder costumavam ser frias, mas no momento a temperatura devia estar em torno dos 10. Isto serviu para recordar-lhes que aquele estranho e terrível verão estava chegando ao fim. Não pela primeira vez, desejou que o Deus, Musa ou lá o que fosse de Mãe Abagail tivesse optado por Miami ou Nova Orleans. Mas talvez isto não tivesse sido uma boa escolha, concluiu, agora que pensava melhor. Alto teor de umidade, chuva em excesso... e montes de cadáveres. Pelo menos Boulder era seca.

 

- Eles me deixaram numa roubada, querendo o juiz para o Comitê Legal - disse Stu. - Devíamos ter esperado por isso.

 

Frannie assentiu e Nick escreveu rapidamente em seu bloco:

 

"Certo. As pessoas darão por falta de Tom e Dayna, podem apostar."

 

- Acha que ficarão desconfiados, Nick?

 

Nick escreveu:

 

"Elas irão especular se eles não foram de fato para o oeste."

 

Todos consideraram isto enquanto Nick pegava seu isqueiro e queimava a folha em que escrevera.

 

- Vai ser uma parada - disse finalmente Stu. - Pensa realmente assim?

 

- Claro, ele está certo - disse Sue, taciturna. - O que mais o pessoal iria pensar? Que o juiz Farris foi ao parque Far Rockway para andar de montanha-russa?

 

- Tivemos sorte de ter encerrado esta noite sem uma grande discussão sobre o que está acontecendo no oeste - disse Fran.

 

Nick escreveu:

 

"Bota sorte nisso. Na próxima vez teremos que enfrentar isso, acho. Eis por que desejo adiar ao máximo qualquer outra assembleia geral. Por três semanas, talvez. Que tal 15 de setembro?"

 

- Podemos segurar até lá - disse Sue -, se Brad restabelecer o fornecimento de energia.

 

- Creio que ele conseguirá - opinou Stu.

 

- Vou para casa - disse-lhes Sue. - Amanhã será um dia cheio. Dayna vai partir e irei com ela até Colorado Springs.

 

- Acha que é seguro, Sue? - perguntou Fran.

 

- Mais seguro para ela do que para mim. - Ela deu de ombros.

 

- Como ela assumiu a missão? - quis saber Fran.

 

- Bem, ela é uma garota especial. Foi jóquei na universidade, sabiam? Também gostava de tênis e natação, embora praticasse todos os esportes. Foi para uma pequena universidade comunitária lá na Geórgia, mas nos dois primeiros anos continuou saindo com o namorado do ginásio. Ele era um grandalhão de jaqueta de couro, do tipo mim Tarzan, tu Jane, portanto vá para a cozinha e comece a chocalhar aquelas panelas e frigideiras. Então Dayna foi atraída para uma ou duas reuniões de conscientização feminina por sua colega de quarto, que era uma feminista roxa.

 

- E, concluindo, Dayna acabou se tornando uma feminista mais radical que sua colega de quarto - adivinhou Fran.

 

- Primeiro feminista, depois lésbica - revelou Sue.

 

Stu parou, como se atingido por um raio. Frannie olhou para ele com uma satisfação contida.

 

- Vamos lá, grandalhão - disse ela. - Veja se consegue ajeitar o freio em sua boca.

 

Stu fechou a boca abruptamente.

 

Sue continuou:

 

- Dayna jogou as duas verdades na cara de seu namorado troglodita ao mesmo tempo. Isto o atingiu em cheio e ele a perseguiu com uma arma. Ela o desarmou. Dayna diz que foi a maior reviravolta da sua vida. Disse-me que sempre soube ser mais forte e mais ágil do que ele... sabia disso intelectualmente. Mas isto foi necessário para ela se conscientizar.

 

- Está dizendo que ela odeia homens? - perguntou Stu, fitando-a.

 

Susan negou com a cabeça.

 

- Ela agora é bi.

 

- Bi? O que é isso? - perguntou Stu, em dúvida.

 

- Ela é feliz com ambos os sexos, Stuart. E espero que não vá começar a influenciar o comitê para instituir leis morais semelhantes àquela do "Não matarás".

 

- Já tenho preocupações demais para esquentar a cabeça com quem está dormindo com quem - resmungou ele, e todos riram. - Só perguntei porque não quero ver ninguém entrando nesta história como se fosse um cruzado. Estamos precisando é de olhos lá no oeste, não de guerrilheiros. Isto é um trabalho para doninhas, não para leões.

 

- Ela sabe disso - disse Susan. - Fran me perguntou como ela reagiu quando lhe perguntei se iria até o oeste por nós. Pois reagiu muito bem. Para começar, recordou-me de que, se tivesse permanecido com aqueles homens... lembra-se de como nos encontrou, Stu?

 

Ele confirmou.

 

- Se tivéssemos continuado com eles, teríamos sido feridas até a morte ou ido parar no oeste, porque era para lá que estavam indo... pelo menos quando estavam sóbrios o bastante para ler os letreiros rodoviários. Ela disse que estivera imaginando qual seria seu lugar na Zona Franca, e concluiu que seu lugar seria fora dela. E disse...

 

- O quê? - perguntou Fran.

 

- Que tentaria voltar - respondeu Sue, um tanto bruscamente, e nada mais disse. O que Dayna dissera além disso tinha ficado entre elas, algo que nem mesmo os outros integrantes do comitê deveriam saber. Dayna estava indo para oeste com uma faca de 25 centímetros presa ao braço por uma tira que fazia a lâmina ser acionada através de uma mola. Quando ela inclinava o pulso rapidamente, a mola se desprendia e - pronto - de repente lhe brotava um sexto dedo, um dedo muito mais longo e que cortava dos dois lados. Ela sentia que a maioria deles - os homens - nunca teria entendido.

 

Se ele for um ditador bastante poderoso, então talvez seja isso que os mantém juntos. Se ele desaparecer, os outros poderão começar a discordar e a lutar entre si. Se ele morrer, isto poderia significar o fim deles. E se eu puder me aproximar dele, Susie, é melhor que tenha do lado o seu anjo da guarda demoníaco.

 

Eles a matarão, Dayna.

 

Talvez sim. Talvez não. Acho que valeria a pena, só para ter o prazer de ver as tripas dele espalhadas pelo chão.

 

Susan poderia tê-la impedido, talvez, porém não tentou. Satisfez-se em extrair de Dayna a promessa de seguir o roteiro original, a não ser que surgisse a oportunidade quase perfeita. Dayna concordara com isso, e Susan decidiu que sua amiga jamais teria uma chance. Flagg estaria bem escoltado. Ainda assim, nos três dias desde que mencionara à amiga a ideia de ir para o oeste como espiã, Sue Stern vinha tendo dificuldade em dormir.

 

- Bem, vou para casa dormir - disse ela aos demais. - Boa-noite, pessoal.

 

Afastou-se com as mãos enfiadas na sua jaqueta militar.

 

- Ela parece mais velha - comentou Stu.

 

Nick escreveu algo e ofereceu o bloco a eles.

 

"Todos nós parecemos", estava escrito.

 

Na manhã seguinte, Stu estava a caminho da usina elétrica quando viu Susan e Dayna seguindo para o Canyon Boulevard em duas motos. Acenou e elas pararam. Pensou que nunca vira Dayna com aparência tão bonita. Prendera os cabelos à nuca com uma echarpe de seda em tom verde brilhante. Usava um casaco de couro cru aberto sobre os jeans e uma blusa de cambraia. Um saco de dormir estava amarrado atrás dela.

 

- Stuart! - gritou ela e acenou para ele, sorrindo.

 

Lésbica?, pensou ele duvidosamente.

 

- Soube que você vai fazer uma pequena viagem - disse Stu.

 

- Certo. E você nunca me viu, faça-me o favor.

 

- Eu nunca a vi - respondeu ele. - Um cigarro?

 

Dayna pegou um Marlboro e pôs as mãos em concha em volta do fósforo que ele riscou.

 

- Tome cuidado, garota.

 

- Tomarei.

 

- E volte.

 

- Espero voltar.

 

Os dois se entreolharam à radiosa luz matinal do fim do verão.

 

- Cuide bem de Frannie, grandalhão.

 

- Cuidarei.

 

- E vá com calma no seu cargo de xerife.

 

- Sei que posso maneirar.

 

Ela jogou o cigarro fora.

 

- O que tem a dizer, Suze?

 

Susan deu um aceno de cabeça e engrenou a moto, com um sorriso tenso.

 

- Dayna?

 

Dayna olhou para ele, e Stu deu um selinho em sua boca.

 

- Boa sorte.

 

Ela sorriu.

 

- Você tem que fazer isso duas vezes para dar sorte, sabia?

 

Ele a beijou de novo, desta vez mais lenta e meticulosamente. Lésbica? especulou outra vez.

 

- Frannie é uma mulher de sorte - disse Dayna. - E pode contar que fui eu que falei.

 

Sorrindo, sem saber ao certo o que dizer, Stu recuou um passo e acabou não dizendo nada. Dois quarteirões acima, um dos caminhões cor de laranja do Comitê de Sepultamentos roncou na esquina como um mau presságio e quebrou a magia do momento.

 

- Vamos indo, garota - disse Dayna. - Sempre alerta, bandeirante!

 

As duas se afastaram, e Stu ficou parado no meio-fio, observando-as.

 

Sue Stern voltou dois dias depois. Tinha ficado em Colorado Springs, vendo Dayna seguir para o oeste, espiando-a até não ser mais que um pontinho escuro mesclando-se com a imensa paisagem imóvel. Depois havia chorado um pouco. Na primeira noite Sue acampara em Monument, tendo acordado de madrugada, arrepiada por causa de um som uivante que parecia vir de um cano de esgoto que passava por baixo da estrada rural a cujo lado acampara.

 

Por fim, reunindo coragem, fizera sua lanterna brilhar no interior do cano corrugado, lá descobrindo um encolhido e tiritante cachorrinho que parecia ter seis meses de idade. Ele recuou à sua aproximação e ela era grande demais para rastejar dentro do cano. Finalmente, Susan foi à cidade de Monument, invadiu a mercearia local e voltou às primeiras luzes do falso alvorecer com uma sacola cheia de ração canina. Isto foi a isca. O cachorrinho viajou de volta com ela, perfeitamente aninhado em um dos alforjes laterais da moto.

 

Dick Ellis ficou extasiado com o cachorrinho, que na verdade era uma cadela Irish setter, praticamente raça pura ou tão perto disso que não fazia diferença. Quando tivesse mais idade, tinha certeza de que Kojak não perderia tempo em cortejá-la. A notícia espalhou-se pela Zona Franca e por todo aquele dia o assunto Mãe Abagail foi ofuscado pela excitação do Adão e Eva caninos. Susan Stern tornou-se algo próximo a uma heroína e, até onde sabia o comitê, ninguém se preocupou em perguntar o que ela estivera fazendo naquela noite em Monument, tão ao sul de Boulder.

 

Mas Stu recordava a manhã em que as duas tinham deixado Boulder, em que ficara observando-as enquanto seguiam em direção ao posto de pedágio Denver-Boulder. Porque ninguém mais na Zona Franca tornou a ver Dayna Jurgens.

 

Vinte e sete de agosto; quase crepúsculo; Vênus cintilava contra o céu.

 

Nick, Ralph, Larry e Stu estavam sentados nos degraus da casa de Tom Cullen. Tom estava no gramado, lançando bolas de croqué através de um conjunto de arcos.

 

Está na hora, escreveu Nick.

 

Falando baixo, Stu perguntou se teriam de hipnotizá-lo novamente e Nick sacudiu a cabeça.

 

- Ótimo - disse Ralph. - Creio que não poderia assumir a ação. - Erguendo a voz, ele chamou: - Tom! Ei, Tommy! Venha até aqui!

 

Tom veio correndo e sorrindo.

 

- Está na hora de ir, Tom - comunicou Ralph.

 

O sorriso de Tom desvaneceu-se. Pela primeira vez pareceu notar que estava escurecendo.

 

- Ir agora? Nossa, não! Quando escurece Tom vai para a cama. B-E-B-I-D-A pede cama. Tom não gosta de ficar fora depois que anoitece. Por causa dos fantasmas. Tom... Tom...

 

Tom caiu em silêncio e os outros olharam para ele sem graça. Tom havia passado para um silêncio embotado. Conseguiu sair dele... mas não da maneira habitual. Não foi uma reanimação súbita, como a vida fluindo de volta em um jato, mas uma coisa lenta, relutante, quase triste.

 

- Ir para o oeste? - perguntou ele. - Vocês estão dizendo que chegou a hora?

 

Stu pousou a mão no ombro dele.

 

- Sim, Tom. Se você puder.

 

- Pela estrada.

 

Ralph emitiu um som abafado e murmurado, e caminhou ao redor da casa. Tom pareceu não perceber. Seu olhar se alternava entre Stu e Nick.

 

- Viajar à noite. Dormir de dia. - Muito lentamente em meio ao crepúsculo, Tora acrescentou: - E ver o elefante.

 

Nick assentiu.

 

Larry trouxe a mochila de Tom, que estivera recostada junto aos degraus. Tom a pôs nos ombros, lenta e sonhadoramente.

 

- Você vai ter que ser cuidadoso, Tom - disse Larry em voz rouca.

 

- Cuidadoso. Minha nossa, sim.

 

Stu perguntou-se atrasadamente se deveriam ter dado também a Tom uma barraca individual, mas rejeitou a ideia. Tom ficaria confuso tentando até mesmo armar uma simples barraca.

 

- Nick - murmurou Tom -, tenho mesmo que fazer isso?

 

Nick o enlaçou com o braço e assentiu lentamente.

 

- Tudo bem - disse Tom.

 

- Apenas fique fora daquela grande estrada de quatro pistas - acrescentou Larry. - Aquela que diz 70. Ralph vai levá-lo de moto até o início dela.

 

- Sim, Ralph - disse Tom e fez uma pausa. Ralph voltava após contornar a casa. Estava enxugando os olhos com sua bandana.

 

- Está pronto, Tom? - perguntou roucamente.

 

- Nick? Esta casa ainda será minha quando eu voltar?

 

Nick assentiu vigorosamente.

 

- Tom adora sua casa. Nossa, como adora!

 

- Sabemos disso, Tommy - disse Stu, podendo sentir agora o ardor de lágrimas em sua própria garganta.

 

- Tudo bem, estou pronto. Quem vai me levar de moto?

 

- Eu, Tom - disse Ralph. - Até a Rodovia 70, lembra-se?

 

Tom assentiu e começou a caminhar para a moto de Ralph. Após um momento, Ralph o seguiu, seus ombros sólidos encurvando-se. Até a pena em seu chapéu parecia caída. Montou na moto e a fez ganhar vida. Um momento depois, ele a conduziu para a Broadway e dobrou para leste. Nick e Stu ficaram lado a lado, observando a moto minguando até se tornar uma silhueta em movimento no crepúsculo purpúreo marcado pela claridade móvel do farol dianteiro. A claridade desapareceu por trás do drive-in Holiday Twin e nada mais viram.

 

Nick começou a caminhar, a cabeça baixa, as mãos nos bolsos. Stu tentou juntar-se a ele, mas Nick balançou a cabeça, quase furiosamente, e gesticulou para que se afastasse. Stu voltou para junto de Larry.

 

- Está feito - comentou Larry e Stu assentiu sombriamente.

 

- Acha que tornaremos a vê-lo, Larry?

 

- Se não tornarmos a vê-lo, nós sete... bem, talvez não Fran, pois ela foi contra a ideia de enviá-lo... o resto de nós terá de conviver pelo resto da vida com a decisão de tê-lo enviado.

 

- E Nick mais do que qualquer outro.

 

Olharam para Nick descendo lentamente a Broadway, perdendo-se nas sombras que se adensavam a sua volta. Depois olharam por um minuto para a casa de Tom, às escuras e silenciosa.

 

- Vamos embora daqui - disse Larry subitamente. - Só de pensar naqueles animais empalhados... de repente fiquei com um acesso agudo de arrepios.

 

Quando partiram, Nick ainda estava parado no gramado lateral da casa de Tom Cullen, suas mãos nos bolsos, a cabeça baixa.

 

George Richardson, o novo médico, instalara-se no Centro Médico Dakota Ridge porque ficava perto do Boulder City Hospital, com seu equipamento médico, seus fartos suprimentos de remédios e salas de cirurgia.

 

Por volta de 28 de agosto ele estava ocupadíssimo, assistido por Laurie Constable e Dick Ellis. O veterinário pedira para abandonar o mundo da medicina, porém o pedido fora rejeitado.

 

- Você está fazendo um trabalho excelente aqui - disse Richardson. - Você aprendeu muito e irá aprender ainda mais. Por outro lado, há trabalho demais para eu dar conta sozinho. Pelo andar da carruagem, vamos enlouquecer se não aparecer outro médico dentro de um ou dois meses. Portanto, meus parabéns, Dick, você é o primeiro paramédico da Zona. Dê um beijo nele, Laurie.

 

Ela o fez.

 

Por volta das onze daquela manhã de fins de agosto Fran entrou na recepção e olhou em torno, curiosa e um tanto nervosa. Laurie estava atrás do balcão, lendo um velho exemplar do Ladies’ Home Journal.

 

- Oi, Fran - disse Laurie, levantando-se. - Achei que a veríamos, mais dia menos dia. George está com Candy Jones no momento, mas logo vai atendê-la. Como está se sentindo?

 

- Muito bem, obrigada - disse Fran. - Imagino...

 

A porta de uma das salas de exame se abriu e Candy Jones saiu, seguida por um homem alto e encurvado, trajando calças de veludo cotelê e uma camisa esporte com o jacaré da Izod na lapela. Candy olhava duvidosamente para um frasco rosado que tinha na mão.

 

- Tem certeza de que é isso mesmo? - perguntou a Richardson, intrigada. - Nunca tomei isso antes. Pensava que estava imune.

 

- Bem, você não está e vai tomá-lo agora - disse George com um sorriso. - Não esqueça os banhos de amido e, depois disso, evite andar onde haja capim alto.

 

Ela sorriu pesarosamente.

 

- Jack também pegou. Ele deverá vir consultá-lo?

 

- Não é preciso, mas você pode tornar os banhos de amido um hábito da família.

 

Candy sorriu pesarosamente e então avistou Fran.

 

- Oi, Frannie, como vai a menina?

 

- Tudo bem. O que há com você?

 

- Tudo péssimo. - Candy ergueu o frasco para que Fran pudesse ler a palavra CALADRYL no rótulo. - Sumagre venenoso. E você não sabe onde foi que atacou Jack. - Ela se animou. - Mas aposto como pode muito bem adivinhar.

 

Eles a observaram ir embora com algum divertimento. Então, George disse:

 

- Sita. Goldsmith, não é? Do Comitê da Zona Franca. Muito prazer.

 

Ele estendeu a mão para que Frannie a apertasse.

 

- Apenas Fran, por favor. Ou Frannie.

 

- Certo, Frannie. Qual é o problema?

 

- Estou grávida - disse ela. - E com um medo danado. - E a seguir, sem qualquer aviso, irrompeu em lágrimas.

 

George pôs um braço ao redor de seus ombros.

 

- Laurie, quero você de volta aqui em cinco minutos.

 

- Tudo bem, doutor.

 

Ele conduziu Fran para a sala de exames e a fez deitar na mesa ginecológica.

 

- Muito bem, por que as lágrimas? São por causa dos gêmeos da Sra. Wentworth?

 

Frannie assentiu, desolada.

 

- Aquele foi um parto difícil. A mãe era fumante inveterada. Os bebês tinham muito pouco peso, mesmo para gêmeos. Não tive oportunidade para fazer um post-mortem. Regina Wentworth está sendo cuidada por algumas das mulheres que vieram em nosso grupo. Acredito... tenho esperança... que ela vai superar o estado de fuga mental que está atravessando. Por enquanto, tudo que posso dizer é que aqueles bebês já nasceram em desvantagem. A causa da morte poderia ter sido qualquer coisa.

 

- Inclusive a supergripe.

 

- Sim. Inclusive isso.

 

- Então, só resta esperar para ver.

 

- Diabo, não. Vou fazer com você um pré-natal completo, imediatamente. Vou monitorar você e qualquer outra mulher que vai ficar ou já esteja grávida, dia-a-dia, passo a passo. A General Electric tinha um lema: "O progresso é o nosso produto mais importante." Na Zona, os bebês são o nosso produto mais importante e vão ser tratados de acordo.

 

- Mas realmente nada sabemos.

 

- Não, não sabemos. Mas procure se animar, Fran.

 

- OK, vou tentar.

 

Houve uma breve batida à porta e Laurie entrou. Entregou a George uma prancheta com formulários e ele começou a interrogar Fran sobre seu histórico médico.

 

Quando o exame acabou, George deixou-a por um instante para fazer alguma coisa na sala ao lado. Laurie ficou com Fran enquanto esta se vestia.

 

Laurie disse baixinho enquanto ela abotoava a blusa:

 

- Sabia que invejo você? Com essa incerteza e tudo. Dick e eu temos tentado como loucos fazer um bebê. É realmente engraçado... eu era uma daquelas que costumavam usar um broche com a inscrição POPULAÇÃO ZERO. Quer dizer, crescimento populacional zero, é claro. Mas, quando penso agora naquele broche, isto me dá uma sensação realmente arrepiante. Ah, Frannie, o seu bebê vai ser o primeiro! E sei que correrá tudo bem. Tem que correr.

 

Fran limitou-se a sorrir e assentir, não querendo lembrar a Laurie que o seu bebê não seria o primeiro.

 

Os primeiros tinham sido os gêmeos da Sra. Wentworth. E os gêmeos da Sra. Wentworth haviam morrido.

 

- Fantástico - disse George, meia hora depois.

 

Fran alçou as sobrancelhas, achando por um momento que ele havia pronunciado mal o seu nome. Por nenhuma razão específica, ela se lembrou de que, até a segunda série, o pequeno Mikey Post, seu vizinho de rua, a chamava de Fan.

 

- Estou falando do bebê. Está ótimo.

 

Fran pegou um Kleenex e o segurou fortemente.

 

- Eu o senti mexer-se... mas já faz muito tempo. Desde então, não senti mais. Receio que...

 

- Ele está vivo, sem dúvida, mas não creio que o tenha sentido mover-se. Com toda a probabilidade, foi um pequeno gás intestinal.

 

- Foi o bebê - disse Fran baixinho.

 

- Bem, se foi ou não, ele vai se mexer um bocado daqui por diante. O parto deverá ocorrer de princípios a meados de janeiro. O que acha?

 

- Ótimo.

 

- Está se alimentando direito?

 

- Sim, acho que sim... tenho tentado, seja como for.

 

- Ótimo. Sem náuseas agora?

 

- Tive um pouco no princípio, mas já passou.

 

- Muito bem. Tem feito exercício suficiente?

 

Por um instante de pesadelo, ela se viu cavando a sepultura de seu pai. Piscou, tentando afastar a visão. Aquilo fora em outra vida.

 

- Sim, bastante.

 

- Ganhou algum peso?

 

- Uns dois quilos e pouco.

 

- Formidável. Poderá ganhar mais uns seis. Estou me sentindo generoso hoje.

 

Ela sorriu.

 

- Você é o médico.

 

- Sim, e trabalhava como obstetra, de modo que você veio ao lugar certo. Siga a orientação de seu médico e irá longe. Agora, quanto a bicicletas, motocicletas e motonetas: estão terminantemente proibidas após, digamos, meados de novembro. Seja como for, nessa época ninguém mais as estará usando. O frio será de rachar. Nada de fumar ou beber em excesso, entendeu?

 

- Entendi.

 

- Se, de vez em quando, quiser um drinque antes de dormir, acho que está tudo bem. Vou lhe passar um suplemento vitamínico, que poderá encontrar em qualquer drogaria da cidade...

 

Frannie irrompeu numa gargalhada. George sorriu, sem jeito.

 

- Falei alguma coisa engraçada?

 

- Não. Só soou engraçado devido às circunstâncias.

 

- Ah! Sim, entendo. Bem, pelo menos ninguém mais está se queixando do preço alto dos remédios, não é? Uma última coisa, Fran. Já usou algum dispositivo intrauterino... um DIU?

 

- Não, por quê? - perguntou ela e então pensou no seu sonho: o homem escuro com seu cabide. Estremeceu. - Não - repetiu.

 

- Ótimo. Isso é tudo. - Ele se levantou. - Não lhe direi para que não se preocupe...

 

- Não - concordou ela. O ar divertido sumira dos seus olhos. - Não faça isso.

 

- Mas lhe pedirei que mantenha a preocupação em um mínimo. O excesso de ansiedade da mãe pode levar a desequilíbrio glandular, que não é bom para o bebê. Não gosto de receitar tranquilizantes para grávidas, mas se acha que...

 

- Não, não será necessário - disse Fran, mas ao sair para o sol quente do meio-dia soube que toda a segunda metade de sua gravidez seria assombrada por pensamentos sobre os gêmeos desaparecidos da Sra. Wentworth.

 

No dia 29 de agosto, mais três grupos chegaram, um com 22 integrantes, outro com 16 e o terceiro com 27. Sandy DuChiens procurou os sete membros do comitê para dizer-lhes que a Zona Franca completara agora mil residentes. Boulder não parecia mais uma cidade fantasma.

 

Na noite do dia 30, Nadine Cross estava no porão da casa de Harold, observando-o e sentindo-se inquieta.

 

Quando Harold fazia algo que não fosse alguma coisa de sexo peculiar com ela, ele parecia buscar refúgio no seu domínio particular, onde Nadine não podia exercer controle sobre ele. Quando estava no porão, ele se mostrava frio; mais que isso, parecia desdenhar dela e até de si mesmo. A única coisa que não mudava era o seu ódio por Stuart Redman e os outros integrantes do comitê.

 

Havia um velho jogo de hóquei no porão e Harold trabalhava sobre sua superfície desigual. Tinha um livro aberto a seu lado. Na página virada para ele havia um diagrama. Harold olhava o diagrama por certo tempo, depois olhava para o aparelho em que trabalhava e a seguir fazia alguma coisa nele. Espalhadas ordenadamente junto à sua mão direita estavam as ferramentas do kit de sua motocicleta Triumph. Pequenos pedaços de arame cobriam a superfície da mesa de hóquei.

 

- Sabe de uma coisa? - disse ele com ar ausente. - Você bem que poderia ir dar uma volta.

 

- Por quê? - perguntou ela, um tanto ofendida. O rosto de Harold estava tenso e sério. Nadine podia compreender por que Harold sorria tanto: porque, se parasse de sorrir, ele parecia insano. Aliás, ela desconfiava de que Harold estava insano, ou muito próximo disso.

 

- Porque não sei o quanto esta dinamite é velha - replicou ele.

 

- O que quer dizer?

 

- A dinamite velha transpira - disse Harold, e ergueu os olhos para ela. Nadine viu que o suor escorria por todo o rosto dele, como que para provar o que dizia. - Ela sua, para ser mais exato. E o que ela sua é nitroglicerina pura, uma das substâncias mais instáveis do mundo. Assim, se ela for velha, há uma boa chance de que este projetinho de feira científica acabe explodindo e nos mande pelos ares por cima da montanha Flagstaff e por todo o caminho até a Terra de Oz.

 

- Bem, você não precisa ficar tão irritado por isso - replicou Nadine.

 

- Nadine? Ma chère?

 

- O que é?

 

Harold a encarou calmamente e sem sorrir.

 

- Cale a porra dessa matraca!

 

Ela se calou, porém não foi dar um passeio, embora desejasse. Certamente, se aquilo era a vontade de Flagg (e a prancheta lhe dissera que Harold era o instrumento de Flagg para liquidar o comitê), a dinamite não estaria velha. E, mesmo que estivesse, só explodiria no momento oportuno... não era mesmo? Até que ponto Flagg tinha controle sobre os acontecimentos?

 

O suficiente, disse ela para si mesma, ele tinha controle suficiente. Mas não tinha tanta certeza, e sua inquietação aumentava sem cessar. Voltara à casa em que residira e Joe tinha ido embora. Fora visitar Lucy e tivera de suportar uma fria recepção, o suficiente para saber que, após ter-se mudado para a casa de Harold, Joe (Lucy, é claro, o chamava de Leo) havia "retroagido um pouco". Lucy, sem dúvida, também a culpava por isso... mas se uma avalanche despencasse da montanha Flagstaff, ou se um terremoto rasgasse a Pearl Street, era bem provável que Lucy também a inculpasse por estas coisas. Mas muito em breve haveria muitas coisas pelas quais ela e Harold seriam responsabilizados. Ainda assim, Nadine ficara muito decepcionada por não ter visto Joe... para dar-lhe um beijo de despedida. Ela e Harold não permaneceriam na Zona Franca de Boulder por muito tempo mais.

 

Não importa, é melhor separar-se dele completamente, agora que você está envolvida nesta obscenidade. Você só irá prejudicá-lo... e talvez prejudicar-se também, porque Joe... vê coisas, sabe coisas. Deixe-o parar de ser Joe, que você pare de ser mãe-Nadine. Que ele volte a ser Leo para sempre.

 

O paradoxo daquilo, no entanto, era inexorável. Ela não podia acreditar que qualquer daquelas pessoas da Zona tivesse mais um ano de vida sobrando, e isso incluía o menino. Era vontade dele que eles não vivessem mais...

 

... portanto seja sincera, não é apenas Harold o instrumento dele. Você também é. Você, que certa vez definiu o assassinato como o único pecado imperdoável no mundo da pós-epidemia, o pecado de ser tirada uma única vida...

 

De repente, ela se viu desejando que a dinamite fosse velha, que explodisse e isto fosse o fim de ambos. Um fim misericordioso. Então viu-se pensando no que aconteceria em seguida, depois que houvessem transposto as montanhas, e sentiu a velha e esquiva quentura inundando-lhe o ventre.

 

- Pronto - disse Harold suavemente. Ele havia colocado seu artefato em uma caixa de sapatos Hush Puppies e a deixou de lado.

 

- Está terminado?

 

- Está.

 

- Será que vai funcionar?

 

- Gostaria que eu experimentasse para descobrir? - As palavras dele eram amargamente sarcásticas, porém ela não deu importância. Os olhos de Harold a percorriam daquela maneira cobiçosa e rastejante de garotinho, que ela passara a identificar. Ele havia retornado daquele lugar distante - o lugar sobre o qual escrevera no livro-razão que ela havia lido e depois recolocado cuidadosamente debaixo da laje solta da lareira, onde estivera antes. Agora ela podia manipulá-lo. Agora ele falava apenas por falar.

 

- Gostaria primeiro de espiar, enquanto brinco comigo mesma? - perguntou ela. - Como na noite passada?

 

- Sim - disse ele. - Tudo bem. Ótimo.

 

- Vamos subir, então. - Ela piscou os cílios para ele. - Subirei primeiro.

 

- Sim - disse ele em voz rouca. Pequenos focos de suor brotaram em sua testa, mas desta vez não era por medo. - Vá na frente.

 

Ela subiu primeiro e podia senti-lo olhando por baixo da saia curta do vestidinho à marinheira que usava. Não usava nada por baixo.

 

A porta se fechou e o artefato que Harold montara ficou dentro da caixa de sapatos aberta, na penumbra. Ali havia um walkie-talkie montado à mão, movido a pilha e obtido na loja Radio Shack. A parte de trás fora removida. Ligados por fiação ao walkie-talkie havia oito cartuchos de dinamite. O livro ainda estava aberto. Fora retirado da Biblioteca Pública de Boulder e o título era Vencedores do Prêmio da Feira Nacional è Ciência de 1965. O diagrama mostrava uma campainha de porta ligada a um walkie-talkie, igual àquele que estava na caixa de sapatos. A legenda abaixo dizia: Terceiro Prêmio, Feira Nacional de Ciência de 1977, montado por Brian Ball, de Rutland, Vermont. Diga a senha e toque a campainha, a até 30 quilômetros de distância!

 

Algumas horas mais tarde naquela noite, Harold voltou ao porão, tampou a caixa de sapatos e a levou cuidadosamente para cima. Deixou-a na prateleira superior do armário da cozinha. Ralph Brentner lhe dissera, nessa mesma tarde, que o Comitê da Zona Franca convidara Chad Norris para falar na próxima reunião. E quando seria a próxima reunião?, perguntara Harold casualmente. No dia 2 de setembro, respondera Ralph.

 

LARRY E LEO ESTAVAM SENTADOS na calçada diante da casa. Larry bebia uma cerveja morna e Leo um refrigerante sabor laranja, também momo. Todo mundo podia beber tudo que desejasse na Boulder daqueles dias, desde que não se importasse que a bebida estivesse quente. Dos fundos da casa chegava até eles o ronco uniforme e ríspido do cortador de grama. Lucy estava aparando o gramado. Larry se oferecera para a tarefa, porém Lucy recusara com um aceno de cabeça.

 

- Descubra o que há de errado com Leo, se puder.

 

Aquele era o último dia de agosto.

 

No dia seguinte àquele em que Nadine se mudara para a casa de Harold, Leo não aparecera para o café-da-manhã. Larry encontrara o menino no seu quarto, vestido apenas de sunga, o polegar enfiado na boca. Estava incomunicável e hostil. Larry ficara mais preocupado do que Lucy, porque ela não sabia como o garoto tinha sido quando ele o encontrara pela primeira vez. Chamava-se Joe à época e vivia esgrimindo uma faca de matador.

 

Boa parte da semana já se passara desde então e Leo havia melhorado um pouco, porém ainda não estava normal e se recusara a falar sobre o ocorrido.

 

- Aquela mulher tem algo a ver com isso - dissera Lucy enquanto desenrascava a tampa do tanque do cortador de grama.

 

- Por que acha isso, Lucy?

 

- Bem, eu não pretendia tocar no assunto, mas ela esteve aqui um dia desses, enquanto você e Leo tentavam pescar no rio. Ela queria ver o menino. Fiquei contente por vocês estarem ausentes.

 

- Lucy...

 

Ela deu-lhe um beijo rápido, e Larry deslizou a mão por baixo do bustiê que ela usava, apertando-a carinhosamente.

 

- Eu o avaliei erradamente antes - disse ela. - Acho que sempre lamentarei por isso. Mas eu jamais vou gostar de Nadine Cross. Tem alguma coisa de errado com ela.

 

Larry nada respondeu, mas pensou que, provavelmente, o julgamento de Lucy era correto. Naquela noite em que Nadine viera procurá-lo, tinha agido como uma louca.

 

- E há outra coisa... quando ela esteve aqui não o chamava de Leo. Chamava-o pelo outro nome: Joe.

 

Ele a fitou confusamente enquanto ela ligava o automático e deixava o aparador de grama funcionando.

 

Agora, meia hora depois da discussão, ele bebia sua cerveja e observava Leo quicar a bola de pingue-pongue que tinha achado no dia em que foram à casa de Harold, onde Nadine morava agora. A bolinha branca estava bastante gasta, mas ainda quicava perfeitamente sobre a calçada.

 

Leo (ele agora era Leo, não era?) não quisera entrar na casa de Harold naquele dia.

 

Na casa onde mãe-Nadine estava morando agora.

 

- Está a fim de pescar, garoto? - sugeriu Larry de repente.

 

- Não tem peixe - disse Leo, fitando Larry com seus estranhos olhos verdes da cor do mar. - Conhece o Sr. Ellis?

 

- Claro.

 

- Ele disse que podemos beber a água quando os peixes voltarem. Beber ela sem... - Leo emitiu um som ululante e agitou os dedos diante dos olhos. - Você sabe.

 

- Sem fervê-la?

 

- Isso.

 

Toc-toc-toc.

 

- Gosto do Dick. Dele e da Laurie. Sempre me dão uma coisa para comer. Ele tem medo de não conseguir, mas acho que vão conseguir.

 

- Conseguir o quê?

 

- Conseguir fazer um bebê. Dick pensa que está muito velho, mas eu acho que não está.

 

Larry começou a perguntar como Leo e Dick tinham abordado este assunto, mas optou por calar-se. Dick não comentaria com um menino algo tão pessoal quanto fazer um bebê. Leo apenas... apenas ficara sabendo.

 

Toc-toc-toc.

 

Sim, Leo sabia coisas... ou as intuía. Ele se recusara a entrar na casa de Harold e dissera algo sobre Nadine... não lembrava bem o quê... mas Larry não esquecera essa discussão e ficara muito inquieto ao saber que Nadine fora morar com Harold. Era como se o menino tivesse entrado em transe, como se...

 

(... toc-toc-toc.)

 

Larry espiava a bola de pingue-pongue saltitando e de repente olhou para o rosto de Leo. Os olhos do garoto estavam sombrios e distantes. O som do aparador de grama era um rugido soporífico e longínquo. A claridade do dia era cálida e uniforme. E Leo estava novamente em transe, como se houvesse lido o pensamento de Larry e simplesmente reagido a isso.

 

Leo tinha ido ver o elefante.

 

Larry disse, procurando soar natural:

 

- Sim, acho que eles podem fazer um bebê. Dick não deve ter mais que 55 anos. Cary Grant fez um bebê quando tinha quase 70 anos, acho.

 

- Quem é Cary Grant? - perguntou Leo, enquanto a bola quicava, subindo e descendo.

 

(Interlúdio. Intriga Internacional.)

 

- Não conhece? - Larry perguntou a Leo.

 

- Era aquele ator - disse o menino. - Trabalhou em Interlúdio. E em Intencional.

 

(Intriga Internacional.)

 

- Intriga Internacional, isso mesmo - disse Leo em tom de concordância. Seus olhos não se afastavam da bola quicando.

 

- Exatamente - disse Larry. - Como está a mãe-Nadine, Leo?

 

- Ela me chama de Joe. Para ela sou Joe.

 

- Ah. - Um calafrio começou a subir pelas costas de Larry.

 

- Está ruim agora.

 

- Ruim?

 

- Ruim para eles dois.

 

- Nadine e... (Harold?)

 

- Sim, ele.

 

- Não estão felizes?

 

- Ele enganou os dois. E os dois pensam que ele quer eles.

 

- Ele?

 

- Ele.

 

A palavra ficou pairando no ar de verão.

 

Toc-toc-toc.

 

- Eles vão para o oeste - disse Leo.

 

- Céus - murmurou Larry. Ele estava com muito frio agora. O velho medo o assolava. Desejaria mesmo continuar ouvindo aquelas coisas? Era como espiar a porta de uma tumba girando lentamente, abrindo-se em um cemitério silencioso, vendo uma horrível mão emergir e...

 

Seja o que for, não quero saber o que é!

 

- Mãe-Nadine quer pensar que a culpa é sua - continuou Leo. - Ela quer pensar que você a empurrou para Harold. Só que ela esperou de propósito. Esperou até você amar mãe-Lucy demais. Esperou até ter certeza. É como se ele estivesse apagando aquela parte do cérebro dela que sabe o que é direito e o que é errado. Aos pouquinhos, ele vai apagando essa parte. E, quando apagar tudo, ela vai ficar louca que nem todo mundo no oeste. Até pior, talvez.

 

- Leo - sussurrou Larry, e o garoto respondeu de imediato:

 

- Ela me chama de Joe. Para ela sou Joe.

 

- Deverei chamar você de Joe? - perguntou Larry, duvidoso.

 

- Não. - Houve uma nota de súplica na voz do menino. - Por favor, não.

 

- Você sente falta de sua mãe-Nadine, não sente, Leo?

 

- Ela está morta - replicou Leo com gélida simplicidade.

 

- É por isso que ficou fora até tarde aquela noite?

 

- Sim.

 

- É por isso que não queria falar?

 

- Sim.

 

- Mas agora você está falando.

 

- Tenho você e mãe-Lucy para falar.

 

- Sim, claro.

 

- Mas não para sempre - exclamou o menino, agitadamente. - Não para sempre, a não ser que você fale com a Frannie! Fale com a Frannie!

 

- Sobre Nadine?

 

- Não!

 

- Sobre o quê? Sobre você?

 

A voz de Leo elevou-se, ficando mais estridente:

 

- Está tudo escrito! Você sabe! Frannie sabe! Fale com Frannie!

 

- O comitê...

 

- Nada de comitê! O comitê não vai ajudar você, ele não vai ajudar ninguém, o comitê é a maneira antiga, ele ri do comitê de vocês porque é da maneira antiga, e as maneiras antigas são as maneiras dele, você sabe, Frannie sabe, se vocês dois conversarem vão poder...

 

Leo bateu na bola com força - TOC! -, ela quicou no chão e subiu mais alto que a cabeça dele, tomou a descer e depois afastou-se para longe. Larry observou com a boca seca, o coração batendo desagradavelmente no peito.

 

- Lá se vai minha bola - disse Leo e correu para apanhá-la.

 

Larry ficou sentado, observando-o.

 

Frannie, pensou.

 

Os dois sentavam-se à beira do palco da concha acústica, os pés pendurados. Faltava uma hora para escurecer e pessoas passeavam pelo parque, algumas de mãos dadas. A hora das crianças também é a hora dos apaixonados, pensou Fran desconexamente. Larry acabara de lhe contar tudo que Leo tinha dito em transe, e sua mente turbilhonava com o que ouvira.

 

- E então, o que você acha?

 

- Não sei o que pensar - disse ela suavemente -, exceto que não gosto nem um pouco das coisas que têm acontecido. Sonhos visionários. Uma velha que é a voz de Deus por algum tempo e depois desaparece nos ermos. Agora um garotinho que parece ser telepata. É como viver em um conto de fadas. Às vezes acho que a supergripe nos deixou vivos, porém nos tomou todos loucos.

 

- Ele disse que eu deveria falar com você. Então, vim falar.

 

Ela não respondeu.

 

- Bem - disse Larry -, se algo lhe ocorrer...

 

- Tudo escrito - disse Fran suavemente. - Esse garoto estava certo. Aí está toda a raiz do problema, acho. Se eu não tivesse sido tão estúpida, tão presumida, a ponto de escrever tudo... ah, raios me partam!

 

Larry olhou para ela, espantado.

 

- Do que está falando?

 

- É Harold - disse ela -, e estou com medo. Não contei a Stu. Fiquei com vergonha. Guardar o diário foi uma burrice... e agora Stu... ele realmente gosta de Harold... todo mundo na Zona Franca gosta de Harold, inclusive você. - Ela soltou uma risada que foi abafada por lágrimas. - Afinal, ele foi o seu... seu espírito-guia no caminho até aqui, não foi?

 

- Não estou acompanhando isso muito bem - disse Larry lentamente. - Pode me dizer do que tem medo?

 

- É simplesmente isso... na verdade, não sei. - Ela o fitou, com os olhos banhados de lágrimas. - Acho melhor contar a você o que puder, Larry. Preciso desabafar com alguém. Deus sabe que não posso mais ficar guardando isso dentro de mim e Stu... Stu talvez não seja a pessoa que devesse ouvir. Pelo menos, não a primeira.

 

- Vá em frente, Fran. Desembuche.

 

Então ela lhe contou, começando pelo dia de junho em que Harold surgiu pela entrada de carros de sua casa em Ogunquit, dirigindo o Cadillac de Roy Brannigan. Enquanto falava, a última claridade do dia adquiriu uma tonalidade azulada. Os namorados no parque começaram a ir embora. Uma fina lasca de lua surgiu no céu. No condomínio do lado mais distante e mais alto do Canyon Boulevard começaram a brilhar alguns lampiões a gás Coleman. Ela contou-lhe sobre o aviso pintado no teto do celeiro e em como dormira enquanto Harold arriscava a vida para pôr seu nome no final. Contou-lhe como haviam encontrado Stu em Fabyan e como Harold reagira a ele de modo agressivo. Falou sobre o seu diário e sobre a impressão digital do polegar em uma das folhas. Quando terminou, já passava das nove e os grilos cricrilavam. O silêncio pairou entre eles, e Fran esperou apreensivamente que Larry o rompesse. No entanto, ele parecia perdido nos próprios pensamentos.

 

Por fim, Larry disse:

 

- Está bem certa sobre aquela impressão digital? Tem certeza absoluta em sua mente de que era de Harold?

 

Ela só hesitou um instante.

 

- Sim. Soube que era de Harold tão logo a vi.

 

- Aquele celeiro em que ele pintou o aviso - continuou Larry. - Lembra-se da noite em que a conheci, em que eu disse que estive lá em cima? E que Harold havia entalhado as iniciais dele em uma viga do jirau?

 

- Sim.

 

- Não eram só as iniciais dele. Tinha também as suas. Dentro de um coração. Do tipo que um garotinho apaixonado entalha na carteira da escola.

 

Ela levou as mãos aos olhos e enxugou-os.

 

- Que confusão! - exclamou em voz rouca.

 

- Você não é responsável pelas ações de Harold Lauder, garota. - Ele pegou a mão dela entre as suas e apertou com força. Olhou para ela. - Mire-se em mim, o escroto babaca original. Você não pode se depreciar. Porque, se o fizer... - O aperto dele aumentou até ficar doloroso, porém a voz permaneceu suave. - Se fizer isso, acabará louca. Já é difícil alguém responsabilizar-se pelos próprios atos, quanto mais pelos atos de terceiros.

 

Ele afastou as mãos e os dois ficaram calados por um momento.

 

- Acha que Harold sente tanto rancor por Stu a ponto de querer matá-lo? - perguntou Larry finalmente. - O ódio dele seria tão profundo assim?

 

- Sim - disse ela. - Realmente creio que é uma possibilidade. Talvez ele odeie todo o comitê. Mas não sei o que...

 

A mão de Larry caiu sobre o ombro dela, imobilizando-a. Na escuridão sua postura mudou, os olhos se arregalaram. Os lábios se moviam silenciosamente.

 

- Larry, o que...

 

- Quando ele desceu ao porão - murmurou Larry. - Desceu para pegar um saca-rolha ou algo assim.

 

- O quê?

 

Larry se virou lentamente para ela, como se sua cabeça estivesse fixada em um gonzo enferrujado.

 

- Veja bem - disse ele -, só existe um meio de resolver tudo isso. Não posso garantir nada, porque não olhei no livro, mas... isso está fazendo um bocado de sentido... Harold lê seu diário e não só fica sabendo das coisas, como também tem uma ideia. Pombas, ele poderia até mesmo ter ficado ciumento por você ter pensado nisso primeiro. Todos os grandes escritores não mantêm diários?

 

- Está dizendo que Harold tem um diário?

 

- Quando ele desceu ao porão, no dia em que eu lhe levei o vinho, fiquei em sua sala de estar e comecei a examinar o ambiente. Ele disse que ia modificar a decoração, botar mais couro e cromados, e fiquei tentando imaginar como ficaria. Aí percebi aquela laje solta na lareira...

 

- SIM! - gritou ela, tão alto que Larry saltou. - No dia em que invadi a casa dele... quando Nadine apareceu... sentei-me diante da lareira... e me lembro dessa laje solta. - Olhou outra vez para Larry. - Aí está novamente. Como se alguma coisa nos puxasse pelo nariz, nos levasse até isso...

 

- Coincidência - disse ele, mas soava inquieto.

 

- Será? Ambos estivemos na casa de Harold. Ambos notamos a laje solta. E ambos estamos aqui agora. Isto é coincidência?

 

- Não sei.

 

- O que havia debaixo daquela laje?

 

- Um livro-razão - disse Larry lentamente. - Pelo menos era o que estava escrito na capa. Não olhei dentro. Na ocasião achei que poderia pertencer tanto a Harold quanto ao dono anterior da casa. Mas se fosse do antigo dono, Harold não o teria encontrado? Nós dois percebemos a laje solta. Digamos então que Harold achasse o livro. Mesmo se o morador de antes da gripe tivesse enchido o livro de segredinhos... a quantia que sonegou do imposto de renda, suas fantasias sexuais com a filha e sei lá mais o quê... tais segredos não seriam os de Harold. Dá para entender?

 

- Sim, mas...

 

- Não interrompa enquanto o inspetor Underwood está elucidando um caso, menininha frívola. Portanto, se aqueles segredos não eram seus, por que Harold tornaria a colocar o livro debaixo da laje? Porque eram mesmo os seus segredos. Aquele livro é o diário de Harold.

 

- Acha que ainda está lá?

 

- Talvez. É melhor darmos uma espiada.

 

- Agora?

 

- Amanhã. Ele estará fora, com o Comitê de Sepultamentos, e Nadine tem passado as tardes na usina elétrica.

 

- Combinado - disse Fran. - Acha que devo contar a Stu?

 

- Por que não esperar? Não faz sentido instigar as coisas, a menos que exista algo. O livro pode ter desaparecido. Talvez não passe de uma lista de coisas a realizar. Poderia também ser o registro de coisas perfeitamente inocentes. De coisas em código.

 

- Eu não havia pensado nisso. O que faremos se no livro houver... alguma coisa importante?

 

- Nesse caso, acho que deveremos levá-lo ao Comitê da Zona Franca. Mais um motivo para agirmos com rapidez. Haverá uma reunião no dia 2. O comitê lidará com o caso.

 

- Será?

 

- Bem, acho que sim - respondeu Larry, mas ainda intrigado sobre o que Leo dissera sobre o comitê.

 

Fran deslizou para a borda do palco e dali para o chão.

 

- Sinto-me melhor agora. Obrigada por estar aqui, Larry.

 

- Onde devemos nos encontrar?

 

- Naquele parquezinho diante da casa de Harold. Que tal lá, por volta de urna da tarde, amanhã?

 

- Está ótimo - disse Larry. - Até lá, então.

 

Fran foi para casa sentindo-se mais aliviada do que se sentira em várias semanas. Conforme Larry dissera, as alternativas agora eram bem mais claras. O livro-razão poderia provar que todos os temores dos dois eram inconsistentes. Mas se fosse ao contrário...

 

Bem, se assim fosse, o comitê que decidisse. Como recordara Larry, eles estariam reunidos no entardecer do próximo dia 2 na casa de Nick e Ralph, perto do final da Baseline Road.

 

Ao chegar em casa, Stu estava sentado no quarto, com uma caneta marca-texto em uma das mãos e um pesado volume encadernado em couro na outra. O título, estampado em dourado na capa, era Introdução ao Código de Justiça Penal do Colorado.

 

- Uma leitura de peso - disse ela e beijou-o na boca.

 

- Um saco. - Ele arremessou o livro pelo quarto, que foi pousar na cômoda com um baque surdo. - Foi Al Bundell que trouxe. Ele e seu Comitê Legal estão realmente em alta e atuantes, Fran. Ele quer falar ao Comitê da Zona Franca quando nos reunirmos depois de amanhã. E você, minha bela dama, o que andou fazendo?

 

- Estive conversando com Larry Underwood.

 

Ele olhou detidamente para ela por um longo momento.

 

- Fran... você esteve chorando?

 

- Sim - disse ela, enfrentando firmemente o olhar dele -, mas já me sinto melhor. Muito melhor.

 

- É por causa do bebê?

 

- Não.

 

- O que é, então?

 

- Eu lhe contarei amanhã à noite. Contarei tudo que esteve passando por minha mente. Até lá, nada de perguntas, OK?

 

- É grave?

 

- Não sei, Stu.

 

Ele olhou demoradamente para ela.

 

- Tudo bem, Frannie - disse ele. - Eu amo você.

 

- Sei disso. E amo você também.

 

- Pra cama?

 

Ela sorriu.

 

- Apresse-se.

 

O primeiro dia de setembro amanheceu cinzento e chuvoso, um dia fosco igual a tantos outros - mas um dia que nenhum residente da Zona Franca jamais esqueceria. Aquele foi o dia em que a energia elétrica voltou ao norte de Boulder... brevemente, pelo menos.

 

Faltando dez para o meio-dia, na sala de controle da usina de força, Brad Kitchner olhou para Stu, Nick, Ralph e Jack Jackson, que estavam todos de pé atrás dele. Brad sorriu nervosamente e disse:

 

- Ave-Maria, cheia de graça, ajudai-me a vencer esta corrida de stock-car.

 

Puxou para baixo, com força, duas alavancas grandes. No imenso e cavernoso espaço abaixo deles, dois geradores de emergência começaram a zumbir. Os cinco homens caminharam até a vidraça polarizada que ia de uma parede a outra e olharam para baixo, onde estavam quase cem homens e mulheres, todos usando máscaras protetoras por ordem de Brad.

 

- Se tivermos feito alguma coisa errada, prefiro a explosão de dois geradores em vez de 52 - dissera-lhe Brad mais cedo.

 

Os geradores começaram a zumbir com mais intensidade.

 

Nick cutucou Stu e apontou para o teto. Stu ergueu a vista e começou a sorrir. Atrás dos painéis translúcidos, as lâmpadas fluorescentes começaram a brilhar fracamente. Os geradores aumentaram os ciclos, chegaram a um zumbido alto e fixo, e depois se uniformizaram. Mais abaixo, a multidão dos trabalhadores reunidos prorrompeu em um aplauso espontâneo, alguns deles pestanejando enquanto batiam palmas; tinham as mãos esfoladas após passarem horas enrolando fios de cobre, num trabalho estafante.

 

As fluorescentes agora cintilavam vivamente e de maneira normal.

 

Para Nick, a sensação foi o oposto exato do pavor que vivenciara em Shoyo, quando a eletricidade se fora - não mais de sepultamento, mas agora de ressurreição.

 

Os dois geradores forneciam energia a um pequeno setor da North Street. Naquela área havia pessoas ignorando que o teste seria realizado naquela manhã, e muitas delas fugiram como se perseguidas por todos os demônios.

 

Aparelhos de TV ganharam vida. Numa casa da Spruce Street, um liquidificador entrou em funcionamento, tentando bater uma mistura de ovos e queijo há muito congelada. O motor do liquidificador sofreu uma sobrecarga e estourou. Uma serra elétrica zumbiu para a vida em uma garagem deserta, expelindo serragem de suas entranhas. Queimadores de fogão começaram a cintilar. Ouviu-se a voz de Marvin Gaye cantando dos alto-falantes de uma loja de discos de vinil antigos chamada Museu de Cera; a letra, acompanhada por uma batida firme de discoteca, parecia um sonho do passado voltando à vida:" Vamos dançar... vamos gritar... que se dane tudo o mais... vamos dançar... vamos gritar..."

 

Um transformador explodiu na Maple Street, e uma alegre espiral de fagulhas turbilhonou para baixo, caindo ainda acesa na relva úmida antes de apagar-se.

 

Na usina, um dos geradores começou a zumbir com uma nota mais aguda, mais desesperada. E começou a fumegar. As pessoas recuaram, quase à beira do pânico. O local encheu-se com o adocicado e enjoativo cheiro de ozônio. Uma buzina soou estridentemente.

 

- Sobrecarga! - rugiu Brad. - O filho-da-puta vai queimar! Sobrecarga!

 

Saiu em disparada pela sala e levantou as duas alavancas num gesto brusco. O zumbido dos geradores foi morrendo, mas não antes de ocorrer um estouro ruidoso e gritos, amortecidos pelo vidro de segurança, lá embaixo.

 

- Puta merda! - exclamou Ralph. - Um deles está pegando fogo!

 

Acima deles, as lâmpadas fluorescentes desbotaram para núcleos soturnos de luz branca, antes de se apagarem por completo. Brad abriu bruscamente a porta da sala de controle e saiu para o patamar. Suas palavras ecoaram secamente no amplo espaço aberto:

 

- Joguem espuma nisso! Rápido!

 

Vários extintores foram direcionados para o gerador e o fogo foi debelado. O cheiro de ozônio ainda pairava no ar. Os outros se aglomeraram no patamar, ao lado de Brad. Stu pousou a mão em seu ombro.

 

- Lamento que a coisa tenha saído errado, cara.

 

Brad se voltou para ele, sorrindo.

 

- Lamenta? Por quê?

 

- Bem, o gerador pegou fogo, não foi? - perguntou Jack.

 

- Porra, sim! Claro que pegou! E em algum lugar lá na North Street deve haver um transformador reduzido a merda. Nós esquecemos, porra, esquecemos! As pessoas ficaram doentes, morreram, mas ninguém se deu ao trabalho de desligar seus eletrodomésticos! Por toda Boulder há aparelhos de TV, fomos e cobertores elétricos ligados. É uma sobrecarga de energia. Estes geradores foram construídos para interligarem-se quando a carga estiver forte num lugar e fraca no outro. Aquele lá embaixo tentou interligar-se, mas todos os outros estavam parados, entende agora? - Brad estava quase pulando de exatamente. - Gary! Estão lembrados de como Gary, Indiana, ardeu em chamas até o chão?

 

Eles assentiram.

 

- Não há certeza, nunca teremos certeza, mas o que aconteceu aqui poderia ter acontecido lá. A energia poderia não ter sido desligada com suficiente presteza. Um cobertor elétrico em curto poderia ter sido o bastante nas devidas condições, tal como a vaca da Sra. O’Leary chutando aquele lampião em Chicago. Esses motores tentaram se interligar e não havia nada para ser interligado. Portanto eles queimaram. Estamos com sorte por ter acontecido, é o que acho... podem crer no que digo.

 

- Se você assim diz... - replicou Ralph em dúvida.

 

Brad continuou:

 

- Temos que refazer todo o trabalho, mas somente naquele motor. Estaremos em atividade. Entretanto... - Brad começou a estalar os dedos, num gesto inconsciente de excitamento. - Não ousaremos religá-los enquanto não tivermos certeza. Podemos conseguir mais uma turma de trabalho? Uns dez caras, mais ou menos?

 

- Claro, acho que podemos - disse Stu. - Para quê?

 

- Será a Turma do Desligamento. Nada mais que um bando de sujeitos andando pela cidade e desligando tudo que foi deixado ligado. Não ousaremos religar a energia enquanto isto não for feito. Não temos um corpo de bombeiros para extinguir os incêndios, cara. - Brad riu, um tanto loucamente.

 

- Teremos uma reunião do Comitê da Zona Franca amanhã à noite - informou Stu. - Vá até lá e explique por que precisa dessa gente e conseguirá seus homens. Tem certeza de que essa sobrecarga não se repetirá?

 

- Bota certeza nisso. Não teria acontecido hoje se não houvesse tantos aparelhos ligados nas casas. Por falar nisso, é bom alguém dar uma espiada no setor norte e verificar se tem alguma coisa pegando fogo.

 

Ninguém sabia ao certo se Brad estava ou não pilheriando. Conforme foi descoberto, havia pequenos incêndios, a maioria provocada por eletrodomésticos superaquecidos. Nenhum desses incêndios se propagou, graças à garoa que caía. E o que as pessoas da Zona Franca recordaram mais tarde sobre o 1º de setembro de 1990 foi que aquele havia sido o dia em que a energia elétrica havia sido restaurada - embora por apenas uns trinta segundos.

 

Uma hora mais tarde, Fran pedalou até o Eben G. Fine Park em frente à casa de Harold. Na extremidade norte do parque, pouco além das mesas de piquenique, o córrego Boulder chiava suavemente em seu curso. A garoa da manhã se transformava numa fina névoa.

 

Ela olhou em torno procurando por Larry, não o viu e estacionou sua bicicleta. Fran caminhou através da grama orvalhada em direção aos balanços e uma voz disse:

 

- Por aqui, Frannie.

 

Levando um susto, ela olhou na direção do prédio que abrigava os sanitários de homens e mulheres e sentiu um momento de medo confuso total. Uma figura alta estava parada nas sombras da curta passagem que cortava os sanitários duplos, e por um breve momento pensou...

 

Então a figura se adiantou e era Larry, trajando jeans desbotados e uma camisa caqui. Fran relaxou.

 

- Assustei você? - perguntou ele.

 

- Assustou, mas só um pouco. - Ela sentou-se num dos balanços, seu batimento cardíaco começando a se normalizar. - Eu só vi uma forma, esperando ali no escuro...

 

- Desculpe. Pensei que seria mais seguro, muito embora não haja nenhuma visão direta da casa de Harold para cá. Vejo que também veio de bicicleta.

 

Ela assentiu.

 

- É mais silenciosa.

 

- Guardei a minha fora de vista naquele galpão. - Ele acenou para uma construção de teto baixo e sem paredes junto ao playground. Frannie conduziu sua bicicleta por entre os balanços e o escorrega até alcançar o galpão. Ali, o cheiro era fétido e bolorento. O lugar havia sido um esconderijo para garotos que ainda não tinham idade para dirigir um carro. Estava cheio de garrafas de cerveja vazias e guimbas de cigarro. Havia uma calcinha amarfanhada, no canto mais distante, e os restos de uma fogueira, no mais próximo. Ela deixou a bicicleta junto à de Larry e saiu rapidamente. Naquelas sombras, com o odor almiscarado em seu nariz daquele sexo há muito morto, era fácil imaginar o homem escuro de pé logo atrás dela, com seu cabide retorcido na mão.

 

- Um motel e tanto, hein? - disse Larry secamente.

 

- Não faz o meu gênero de acomodações agradáveis - disse Fran com um leve arrepio. - Não importa o que resultar disso, Larry, quero contar tudo a Stu esta noite.

 

Larry assentiu.

 

- Isso mesmo. Não só porque é membro do comitê como também xerife.

 

Fran olhou para ele, preocupada. Realmente, pela primeira vez ela compreendia que esta expedição poderia botar Harold na cadeia. Eles iam invadir a casa dele, sem um mandado ou algo parecido, e vasculhar tudo.

 

- Ah, droga! - murmurou.

 

- Nada agradável, não é? - concordou ele. - Quer desistir?

 

Ela refletiu por um longo momento e depois balançou a cabeça.

 

- Ótimo. Acho que ambos já sabíamos, de um jeito ou de outro.

 

- Tem certeza de que os dois saíram?

 

- Tenho. Vi Harold dirigindo um dos caminhões do Comitê de Sepultamentos de manhã cedo. E todos os integrantes do Comitê de Energia foram convidados para o teste.

 

- Tem certeza de que Nadine foi?

 

- Seria muito esquisito se ela não comparecesse, não seria?

 

Fran meditou a respeito e assentiu.

 

- Sim, acho que seria. Por falar nisso, Stu disse que esperam ter a maior parte da cidade com a energia restabelecida por volta do dia 6.

 

- Vai ser um dia memorável - disse Larry e pensou em como seria formidável ir ao Shanno’s ou ao The Broken Drum com uma boa guitarra Tender, um amplificador ainda melhor, e tocar alguma coisa... qualquer coisa, desde que fosse simples e tivesse marcação forte... a pleno volume. Talvez "Gloria" ou "Walkin’ the Dog". De fato, uma música qualquer, excetuando "Garota, você saca seu homem?".

 

- Talvez - disse Fran - devêssemos ter uma história de cobertura. Só por garantia.

 

Larry deu um sorriso enviesado.

 

- Por exemplo: dizer que somos vendedores de assinaturas de revistas, caso um deles já tenha voltado?

 

- Ah-ah, Larry.

 

- Bem, poderíamos dizer que viemos contar-lhe o que você acabou de me falar sobre ter a energia religada. Se ela estiver em casa.

 

Fran assentiu.

 

- Sim, isso cairia bem.

 

- Não engane a si mesma, Fran. Ela ia desconfiar até se lhe dissermos que viemos porque Jesus Cristo acabou de aparecer e está andando pra lá e pra cá no topo do Reservatório Municipal.

 

- Se ela for culpada de alguma coisa.

 

- Sim. Se for culpada de alguma coisa.

 

- Vamos - disse Fran após pensar um pouco. - Em frente.

 

Não houve necessidade de história de cobertura. Batidas vigorosas, primeiro na porta da frente e depois na dos fundos, os convenceram de que a casa de Harold estava de fato vazia. Era exatamente isso, pensou Fran - quanto mais pensava na desculpa que haviam elaborado, mais frágil ela parecia.

 

- Como você entrou? - perguntou Larry.

 

- Pela janela do porão.

 

Contornaram o lado da casa, e Larry experimentou a janela do porão infrutiferamente enquanto Fran vigiava.

 

- Você pode já tê-la usado - disse ele -, mas ela está trancada agora.

 

- Não, está apenas emperrada. Deixe-me tentar.

 

Mas ela não teve melhor sorte. Harold trancara firmemente a janela entre sua primeira visita clandestina e aquele momento.

 

- O que faremos agora? - indagou ela.

 

- Vamos arrombar.

 

- Ele perceberá, Larry.

 

- Que perceba. Se nada tem a esconder, pensará que foi apenas uma dupla de garotos arrombando janelas de casas vazias. Se tiver algo a esconder, ficará seriamente preocupado, e ele bem que merece, não concorda?

 

Fran pareceu duvidosa, mas não o deteve quando ele tirou a camisa, enrolou-a em tomo do punho e do antebraço, para então espatifar a vidraça do porão. Cacos de vidro tilintaram pelo interior e Larry tateou, procurando o ferrolho.

 

- Pronto, achei. - Puxou o ferrolho e a janela se abriu. Larry deslizou pela abertura e voltou-se para ajudar Fran. - Tome cuidado, garota. Nada de abortos no porão de Harold Lauder, por favor.

 

Segurou-a por baixo dos braços e a desceu para o chão. Os dois olharam em torno, examinando o desordenado aposento. O conjunto de croquê permanecia ali como uma sentinela. A mesa do jogo de hóquei estava atulhada de pequenos pedaços de fios elétricos coloridos.

 

- O que é isso? - perguntou Fran, pegando um pedacinho de fio. - Não estava aqui antes.

 

Ele deu de ombros.

 

- Talvez Harold esteja montando o supra-sumo da ratoeira.

 

Havia uma caixa debaixo da mesa e Larry a pegou. Na tampa estava escrito: CONJUNTO WALKIE-TALKIE REALISTIC DE LUXE, BATERIAIS NÃO INCLUÍDAS. Larry abriu a caixa, mas seu peso já lhe dissera que estava vazia.

 

- Montando walkie-talkies em vez de ratoeiras - comentou Fran.

 

- Não, isso não era um kit para ser montado. A gente compra esse tipo já pronto para funcionar. Talvez ele o estivesse modificando de algum modo. É típico de Harold. Lembra-se de quando Stu reclamou da recepção do walkie-talkie, quando ele, Harold e Ralph procuravam por Mãe Abagail?

 

Fran assentiu, mas ainda havia alguma coisa acerca daqueles pedacinhos de fio que ainda a preocupava.

 

Larry depositou a caixa de volta no chão e fez aquela que mais tarde consideraria a afirmação mais errônea de toda a sua vida.

 

- Isso não tem a menor importância - disse. - Vamos.

 

Subiram as escadas, mas desta vez a porta de cima estava trancada. Fran olhou para Larry, mas ele deu de ombros.

 

- Já chegamos até aqui, certo?

 

Fran assentiu.

 

Larry jogou o ombro contra a porta algumas vezes para sentir a fechadura do outro lado, e depois arremeteu com mais vigor. Houve um som de metal se soltando, um estalido, e a porta se escancarou. Larry abaixou-se e recolheu um conjunto de ferrolho que caíra no piso de linóleo da cozinha.

 

- Posso recolocar isso no lugar e ele nunca notará a diferença. Isto é, se houver uma chave de fenda por aí.

 

- Para que se incomodar? Ele verá a janela quebrada.

 

- Tem razão, mas se tomar a colocar o ferrolho na porta ele... do que está rindo?

 

- Coloque o ferrolho de volta na porta, tudo bem. Mas como irá fechá-lo pelo lado de dentro do porão?

 

Ele pensou a respeito e disse:

 

- Pô, a coisa que mais odeio é uma mulher espertinha. - Atirou o ferrolho em cima da bancada de fórmica da cozinha. - Vamos dar uma olhada debaixo daquela laje solta da lareira.

 

Foram para a penumbrosa sala de estar e Fran sentiu a ansiedade ir aumentando. Da última vez Nadine não tivera uma chave. Desta vez ela teria uma, caso voltasse. E se retornasse à casa, eles seriam flagrados com a mão na massa. Seria uma amarga ironia se a primeira tarefa de Stu como xerife fosse prender a própria mulher por arrombar uma casa e invadi-la.

 

- É aquela, não? - perguntou Larry, apontando.

 

- É. Seja o mais rápido possível.

 

- De qualquer modo, há uma boa chance de que ele o tenha tirado daí. - E Harold tinha mesmo. Nadine é que o recolocara debaixo da laje solta da lareira. Larry e Fran nada sabiam disso, só que quando Larry ergueu a laje, o livro estava lá na concavidade, as palavras LIVRO-RAZÃO cintilando foscamente para eles, em suas letras douradas.

 

Ficaram olhando para o livro. De repente, a sala pareceu mais quente, mais sufocante, mais escura.

 

- Muito bem - disse Larry. - Vamos ficar admirando-o ou lê-lo?

 

- Você lê - respondeu ela. - Eu nem quero tocá-lo.

 

Larry retirou o livro da concavidade e automaticamente limpou a poeira branca da laje aderida à capa. Começou a folheá-lo ao acaso. A escrita fora feita com uma caneta posta no mercado sob a belicosa marca registrada Hardhead (Cabeça Dura). Ela permitia que Harold escrevesse com uma caligrafia apertada e muito nítida - a caligrafia de um homem intensamente consciencioso, talvez de um homem pressionado. Não havia parágrafos. Lia-se uma linha de ponta a ponta, com uma pequena e constante margem à esquerda e à direita, tão reta que podia ter sido medida com uma régua.

 

- Vou levar três dias para ler tudo isto - disse Larry.

 

- Segure-o - disse Fran, estirando o braço sobre o dele a fim de virar umas duas páginas. Aqui, o fluxo uniforme de palavras fora interrompido, mostrando uma área compacta e destacada do resto. O que tinha sido posto em destaque ali parecia ser uma espécie de lema:

 

Seguir a própria estrela é admitir o poder de alguma Força maior, alguma Providência; contudo, não será possível ainda que o ato de seguir-se seja a raiz mesma de um poder ainda maior? O nosso DEUS, nosso DEMÔNIO, tem a posse das chaves do farol; nestes últimos dois meses eu tenho, contínua e tenazmente, me engalfinhado com isso; no entanto, ele deu a cada um de nós a responsabilidade de NAVEGAÇÃO.

 

HAROLD EMERY LAUDER

 

- Lamento - disse Larry. - Não entendi nada. E você?

 

Fran sacudiu a cabeça lentamente.

 

- Creio que é a maneira de Harold dizer que pode ser tão digno quanto liderar. Como lema, no entanto, acho que não passa de conversa fiada.

 

Larry continuou a folhear em direção às primeiras páginas do livro, e deparou com mais quatro ou cinco daquelas máximas em destaque, todas elas atribuídas a Harold, em letras maiúsculas.

 

- Epa! - exclamou Larry. - Veja só isto, Frannie!

 

Dizem que os dois grandes pecados humanos são o orgulho e o ódio. Serão mesmo? Prefiro pensar neles como as duas grandes virtudes. Abdicar do orgulho e do ódio é o mesmo que dizer que você mudará para o bem do mundo. Manifestá-los é mais nobre. Significa que o mundo deve mudar a nosso bem. Estou envolvido numa grande aventura.

 

HAROLD EMERY LAUDER

 

- Eis a obra de uma mente profundamente perturbada - disse Fran, sentindo-se enregelar.

 

- Para começar, é o tipo de pensamento que nos meteu nessa confusão - concordou Larry e folheou rapidamente até o início do livro. - É uma perda de tempo. Vamos ver o que podemos fazer com isso.

 

Nenhum deles sabia exatamente o que esperar. Nada haviam lido além dos lemas em destaque e uma ou duas frases ocasionais que, devido ao estilo empolado de Harold (as elaboradas e complexas frases pareciam ter sido inventadas com Harold Lauder em mente), pouco ou nada significavam.

 

O que viram no início do livro foi, portanto, um choque total.

 

O diário começava no topo da primeira página de rosto. Estava caprichosamente marcada com o número 1 circulado. Havia um parágrafo aqui, o único parágrafo em todo o livro, até onde Fran podia dizer, excetuando aqueles que começavam em cada lema em destaque. Eles leram aquela primeira frase segurando o livro juntos, como crianças treinando em um coral, e Fran dizia "Ah!" em voz baixa e sufocada e recuava, a mão apertando a boca ligeiramente.

 

- Fran, temos que levar o livro - disse Larry.

 

- Sim...

 

- E mostrá-lo a Stu. Não sei se Leo está certo acerca deles se postarem do lado do homem escuro, porém, no mínimo Harold está perigosamente perturbado. A gente pode notar isso.

 

- Sim - repetiu ela.

 

Sentia-se desfalecer, estava fraca. Então era assim que terminava o assunto dos diários. Como se ela soubesse, como soubesse de tudo a partir do momento em que vira aquela grande e lambuzada impressão digital e tivesse que ficar repetindo para si mesma que não desmaiasse.

 

- Fran? Frannie? Você está bem?

 

Era a voz de Larry. Vindo de muito longe.

 

A primeira frase do livro-razão de Harold era: Meu maior prazer, neste delicioso verão pós-Apocalipse, será matar o Sr. Stuart "Escroto" Redman; e é bem capaz que eu a mate também.

 

- Ralph? Ralph Brentner, está em casa? Ei, tem alguém em casa?

 

Ela ficou parada nos degraus, olhando para a casa. Não havia motos no pátio, apenas duas bicicletas estacionadas a um lado. Ralph a teria ouvido, mas tinha que pensar no mudo. No surdo-mudo. Ela poderia berrar até ficar roxa que ele não responderia, embora estivesse ali.

 

Passando a sacola de compras de um braço para outro, Nadine experimentou a porta e constatou que não fora trancada. Entrou, fugindo da fina névoa que caía, e viu-se num pequeno vestíbulo. Quatro degraus subiam para a cozinha e um lance de escadas levava ao porão, onde Harold dissera que ficava o apartamento de Nick Andros. Exibindo no rosto sua expressão mais afável, Nadine desceu os degraus, tendo preparado uma desculpa caso ele estivesse lá.

 

Entrei porque pensei que não me ouvira bater. Alguns de nós estamos querendo saber se haverá um turno extra para o enrolamento daqueles dois motores que explodiram. Brad lhe disse alguma coisa?

 

Só havia dois aposentos ali. Um deles era um quarto, tão despojado quanto uma cela monástica. O outro era um estúdio. Nele havia uma mesa, uma poltrona, uma cesta de lixo e uma estante de livros. O tampo da mesa estava atulhado de tiras de papel e Nadine as examinou superficialmente. A maioria fazia pouco sentido para ela - imaginou que fossem o lado de Nick em alguma conversa (Assim acho, mas não deveria perguntar a ele se isto não poderia ser feito de maneira mais simples?, dizia um deles). Outros pedaços de papel pareciam memorandos para ele próprio, anotações, pensamentos. Alguns a faziam recordar os tópicos em destaque no livro de Harold, o que ele chamava de "Guia para uma vida melhor" com um sorriso sarcástico.

 

Uma das anotações dizia: Falar com Glen sobre comércio. Algum de nós sabe como o comércio se inicia? Escassez de mercadorias, não? Ou um recanto modificado em algum mercado? Especialização. Esta pode ser uma palavra-chave. E se Brad Kitchner resolver vender a energia em vez de dar? Ou o doutor? Como iríamos pagá-los? Humm.

 

Outra era: A proteção à comunidade é uma rua de mão dupla.

 

Mais uma: A cada vez que se pensa sobre lei, passo a noite tendo pesadelos acerca de Shoyo. Vendo aquela gente morrer. Vendo Childress arremessar sua janta através, da cela. A lei, a lei, o que faremos a respeito da porra da lei? Pena capital. Ora, é uma ideia digna de riso. Quando Brad tiver a energia elétrica restabelecida, quanto tempo se passará antes que alguém lhe peça para montar uma cadeira elétrica?

 

Nadine afastou-se daqueles pedaços de papel - relutantemente. Era fascinante ler as anotações feitas por um homem que só conseguia pensar integralmente através da escrita (um de seus professores na universidade costumava dizer que o processo de pensamento jamais seria completo sem articulação), mas o propósito que a levara até ali já fora completado. Nick estava ausente, não havia ninguém em casa. Demorar-se naquele lugar seria desafiar a sorte sem necessidade.

 

Retornou ao andar de cima. Harold lhe dissera que eles provavelmente fariam a reunião na sala de estar. Era um aposento amplo, o piso coberto com um espesso tapete felpudo cor de vinho, dominado por uma lareira saliente, que penetrava pelo forro em uma coluna de pedra. Toda a parede oeste era envidraçada, permitindo uma visão magnífica das Flatirons. Aquela vidraça a fazia sentir-se exposta como um besouro numa parede. Ela sabia que a superfície externa do vidro era iodada, de modo que alguém de fora veria apenas um reflexo semelhante ao de um espelho, mas a sensação psicológica continuava sendo a de total exposição. Ela queria terminar com aquilo rapidamente.

 

No lado sul da sala encontrou o que procurava: um armário profundo que Ralph não tinha esvaziado. Os casacos pendurados ficavam bem recuados para o fundo e, no canto de trás, havia um emaranhado de botas, luvas e artigos de lã para o inverno com cerca de um metro de profundidade.

 

Trabalhando rápido, ela tirou da sacola de compras as mercadorias que estavam por cima. Eram uma camuflagem e havia apenas uma camada delas. Por baixo das latas de massa de tomate e sardinhas, estava a caixa de sapatos, tendo no seu interior a dinamite e o walkie-talkie.

 

- Se eu a colocar dentro de um armário, funcionará mesmo assim? - ela havia perguntado. - A parede extra não amortecerá a explosão?

 

- Nadine - respondera Harold -, se este artefato funcionar, e tenho todos os motivos para crer que funcionará, ele acabará com a casa e com boa parte da encosta ao redor. Coloque-o onde quiser, onde achar que passará despercebido até a reunião deles. Um armário seria excelente. A parede extra explodirá e saíra voando em estilhaços. Confio na sua escolha, meu bem. Vai ser exatamente como no conto de fadas sobre o alfaiate e as moscas. Sete de uma só vez. Só que neste caso, em vez de moscas, estamos lidando com um bando de baratas politiqueiras.

 

Nadine afastou botas e echarpes para um lado, fez um buraco e introduziu nele a caixa de sapatos. Cobriu-a novamente e saiu de dentro do armário. Pronto. Estava feito. Para o melhor ou pior.

 

Deixou a casa rapidamente, sem olhar para trás, tentando ignorar a voz que não se calava, a voz que agora lhe dizia para voltar lá e arrancar os fios que corriam entre as cápsulas de detonação e o walkie-talkie, instando-a a desistir daquilo antes que ficasse louca. Porque não era a loucura que realmente jazia em algum ponto à frente, talvez agora a menos de duas semanas? Não era loucura a lógica conclusão final?

 

Colocou a sacola de compras no bagageiro da Vespa e ligou o motor. E durante todo o percurso de volta, a voz prosseguia: Você não vai deixar aquilo lá, vai? Você não vai deixar aquela bomba lá, vai?

 

Em um mundo em que tantos morreram...

 

Inclinou-se ao fazer uma curva, mal conseguindo ver para onde seguia. As lágrimas começavam a turvar-lhe a visão.

 

... o único e grande pecado é tirar uma vida humana.

 

Sete vidas ali. Não, mais do que isso, porque o comitê ia ouvir relatórios dos chefes de vários subcomitês.

 

Nadine parou na esquina da Baseline com a Broadway, pensando em manobrar a Vespa e voltar. Todo o seu corpo estremecia.

 

E mais tarde ela jamais conseguiria explicar a Harold exatamente o que havia acontecido - na verdade, nunca chegou a tentar. Era o sabor antecipado dos horrores que viriam.

 

Sentiu uma escuridão que começava a toldar-lhe a vista.

 

Chegou como uma cortina escura puxada lentamente, agitando-se e esvoaçando a uma brisa suave. De vez em quando a brisa aumentava, a cortina agitava-se com mais vigor e permitia-lhe ver um pouco da luz do dia abaixo da sua bainha, uma parte pequena daquele cruzamento deserto.

 

Porém a cortina caía sobre sua visão em constantes drapejos escurecidos e logo a envolveu por completo. Nadine estava cega, estava surda, sem o sentido do tato. A criatura pensante, o ego de Nadine, vagueava num aquecido casulo negro que parecia conter água do mar como líquido amniótico.

 

E ela o sentia rastejar dentro de si.

 

Um grito agudo se formou em seu íntimo, porém não possuía boca com a qual gritar.

 

Penetração: entropia.

 

Ela não sabia o que tais palavras significavam, colocadas juntas desse jeito. Só sabia que eram corretas.

 

Era como nada que já tivesse vivenciado antes. Mais tarde, ocorreram-lhe metáforas para descrever tal situação, porém rejeitou todas, uma a uma.

 

Você está nadando e de repente, no meio da água morna, encontra um bolsão de água profunda, entorpecedoramente gelada.

 

Você recebe uma injeção de Novocaína e o dentista lhe arranca um dente. Ele sai com um puxão indolor. Você cospe sangue na bacia esmaltada de branco. Há um buraco em você, você foi furada. É só passar a língua sobre o buraco onde, um segundo atrás, vivia uma parte sua.

 

Você olha seu rosto no espelho. Contempla-se durante um longo tempo. Cinco minutos, dez, 15. Não vale piscar. Com uma espécie de horror intelectual, você vê seu rosto mudar para o de Lon Chaney Jr., num filme épico de lobisomem. Toma-se uma estranha para si mesma, uma Doppelgänger de pele azeitonada, uma vampira psicótica de pele pálida e olhos fendidos.

 

Não foi realmente nenhuma dessas coisas, mas restou nela um resquício de todas elas.

 

O homem escuro penetrou nela, e ele era frio.

 

Quando Nadine abriu os olhos, seu primeiro pensamento foi o de que estava no inferno.

 

O inferno era brancura, a tese da antítese do homem escuro. Ela via branco, marfim, nada mais que branqueamento. Tudo branco. Era o inferno branco e estava em toda parte.

 

Ela olhou fixamente para a brancura (era impossível fitar dentro dela), fascinada, agoniada, durante minutos antes de perceber que podia sentir a forquilha da Vespa entre suas coxas e de que havia outra cor - verde - na sua visão periférica.

 

Com um movimento brusco, desviou a vista daquele olhar fixo vazio e trancado. Ela olhou em torno de si mesma. Sua boca estava frouxa, trêmula; os próprios olhos fitavam aturdidos e entorpecidos de horror. O homem escuro estivera nela, Flagg estivera nela, e quando tinha chegado ele a conduzira para fora das janelas dos seus cinco sentidos, suas brechas para a realidade. Ele a dirigira como um homem poderia dirigir um carro ou um caminhão. E a havia trazido... para onde?

 

Ela olhou na direção do branco e viu que havia uma enorme tela de cinema drive-in contra um fundo do céu chuvoso de fim de tarde. Voltando-se, ela viu o barzinho. Era pintado num brilhante tom rosado de carne. Na entrada estava escrito: BEM-VINDO AO HOLIDAY TWIN! CURTA SUA DIVERSÃO SOB AS ESTRELAS ESTA NOITE!

 

A escuridão se abateu sobre ela no cruzamento da Baseline com a Broadway. Agora já estava bem adiante na ma 28, quase na divisa da cidade com... Longmont, não era?

 

Ainda havia nela um gosto dele, entranhado na sua mente, como limo frio sobre uma superfície.

 

Estava circundada por postes, postes de aço como sentinelas, cada um deles com 1,50m de altura, cada qual contendo um conjunto de alto-falantes de drive-in. O chão era de cascalho, mas havia capim e ervas daninhas crescendo através dele. Ela adivinhou que o drive-in não estava tendo clientela desde meados de junho ou por aí. Podia-se dizer que havia sido uma espécie de verão morto para o ramo de entretenimento.

 

- Por que estou aqui? - sussurrou ela.

 

Estava apenas falando consigo mesma em voz alta; não esperava nenhuma resposta. Portanto, um grito de terror escapou de sua garganta quando foi respondida.

 

Todos os alto-falantes caíram de seus postes sobre o cascalho onde o mato crescia, com som de CHUNK!, enorme e amplificado, o som de um corpo morto golpeando o cascalho.

 

- NADINE! - Berraram os alto-falantes. Era a voz dele, e ela gritou então! Suas mãos voaram para a cabeça, as palmas tapando os ouvidos, mas eram todos os alto-falantes em uníssono e não havia como fugir daquela voz gigante, que estava plena de hilaridade terrível e desejo cômico assustador.

 

- NADINE, NADINE, AH, COMO EU AMO AMAR NADINE, MINHA MASCOTE, MINHA LINDA...

 

- Pare com isso! - gritou ela de volta, distendendo as cordas vocais com a força do seu grito, e ainda assim sua voz soou pequena demais comparada àquela de gigante abaixo.

 

Contudo, por um instante a voz parou. Fez-se silêncio. Os alto-falantes caídos olhavam para ela do cascalho como os olhos rugosos de insetos gigantes.

 

As mãos de Nadine baixaram lentamente dos ouvidos.

 

Você vai acabar louca, consolou a si mesma. Isso é tudo que é. A tensão da espera... e os jogos de Harold... finalmente plantando o explosivo... tudo isto por fim empurrou-a para a borda, querida, e você vai ficar louca. Talvez esse caminho seja melhor.

 

Mas não ia ficar louca, ela sabia.

 

E isso era muito pior do que enlouquecer.

 

Como se para provar isso, os alto-falantes retumbaram na voz severa, embora quase afetada, de um diretor repreendendo os alunos pelo intercomunicador da escola por alguma travessura que cometeram.

 

- NADINE. ELES SABEM.

 

- Eles sabem - repetiu ela. Não tinha certeza de quem eram eles, ou o que sabiam, mas estava quase certa de que era inevitável.

 

- VOCÊS FORAM ESTÚPIDOS. DEUS PODE AMAR A ESTUPIDEZ, MAS EU NÃO.

 

As palavras estalaram e rolaram para longe no fim de tarde. As roupas de Nadine grudavam-se ensopadas à pele, seus cabelos caíam escorridos contra as faces pálidas, e ela começou a tremer.

 

Estúpida, pensou. Estúpida, estúpida. Sei o que esta palavra significa, acho. Acho que significa morte.

 

- ELES SABEM DE TUDO... MENOS SOBRE A CAIXA DE SAPATOS. A DINAMITE.

 

Alto-falantes. Alto-falantes por toda parte, olhando para ela do cascalho branco, espiando-a dos feixes de dentes-de-leão fechados por causa da chuva.

 

- VÁ PARA O ANFITEATRO AURORA. FIQUE LÁ. ATÉ AMANHÃ À NOITE. ATÉ ELES SE REUNIREM. E ENTÃO VOCÊ E HAROLD PODEM VIR. VIR PARA MIM.

 

Agora Nadine começou a sentir uma gratidão simples e cintilante. Eles haviam sido estúpidos... mas também tinham conseguido uma segunda chance. Eles eram importantes demais para ter uma intervenção garantida. E em breve, muito em breve, ela estaria com ele... e então ficaria louca, estava inteiramente certa disso, e tudo o mais deixaria de ter importância.

 

- O anfiteatro Aurora pode estar longe demais - disse ela. Suas cordas vocais tinham ficado um tanto lesionadas; ela só podia grasnar. - Pode estar longe demais para... - Para o quê?, ponderou. Ah! Ah, sim! Certo! - Para o walkie-talkie. O sinal.

 

Nenhuma resposta.

 

Os alto-falantes jaziam no cascalho, fitando-a, centenas deles.

 

Ela deu partida na Vespa e o pequeno motor tossiu de volta à vida. O eco a fez estremecer. Soava como um disparo de rifle. Ela queria sair daquele lugar assustador, afastar-se daqueles alto-falantes que ficavam encarando-a.

 

Tinha que cair fora.

 

Ela desequilibrou a motoneta ao contornar o barzinho. Poderia ter mantido o equilíbrio se estivesse numa superfície pavimentada, mas a roda traseira da Vespa derrapou debaixo dela num cascalho solto e ela caiu com um baque, mordendo o lábio até sangrar e cortando a face. Nadine se levantou, os olhos arregalados e assustados, e montou de novo, tremendo.

 

Estava agora na alameda que os carros percorriam para entrar no drive-in e a bilheteria, que mais parecia uma pequena cabine de pedágio, estava à frente dela. Ia conseguir sair. Ia se mandar dali. Sua boca se adoçou em gratidão.

 

Atrás dela, centenas de alto-falantes voltavam à vida todos de uma vez, e agora a voz estava cantando, numa horrível desafinação.

 

- ESTAREI VENDO VOCÊ... EM TODOS OS VELHOS LUGARES FAMILIARES... AQUILO QUE ESTE MEU CORAÇÃO ABRAÇA... O DIA INTEEEEEI...

 

Nadine gritou em sua recente voz coaxada.

 

Então veio um enorme e monstruoso riso, uma casquinada sombria e estéril que pareceu encher a terra.

 

- FAÇA DIREITO, NADINE - retumbou a voz. - FAÇA DIREITO, MINHA FANTASIA, MEU SER QUERIDO.

 

Então ela ganhou a estrada e disparou de volta a Boulder em velocidade máxima, afastando-se da voz incorpórea e dos alto-falantes que a fitavam... mas carregando-os no seu coração, por enquanto, para sempre.

 

Nadine esperava por Harold perto da esquina da rodoviária. Quando ele a viu, seu rosto congelou e perdeu a cor.

 

- Nadine... - sussurrou. A marmita caiu de sua mão e bateu no chão com um ruído metálico.

 

- Harold - disse ela. - Eles sabem. Temos que...

 

- Seu cabelo, Nadine, ah, meu Deus, o seu cabelo... - Todo o rosto de Harold parecia ser um olho só.

 

- Ouça o que estou dizendo!

 

Ele pareceu recuperar algum controle.

 

- Tu-tudo bem. O que é?

 

- Eles foram em sua casa e encontraram seu livro. Eles o levaram.

 

No rosto de Harold houve uma guerra de emoções: ódio, horror, vergonha. Aos poucos elas foram desaparecendo e então, como algum horrível cadáver emergindo de águas profundas, um gélido sorriso ressurgiu-lhe no rosto.

 

- Quem? Quem fez isso?

 

- Não sei ao certo e, seja como for, não importa. Fran Goldsmith foi um deles, posso apostar. E talvez Bateman ou Underwood, não sei. E eles virão pegá-lo, Harold.

 

- Como é que você sabe? - Ele a agarrou rudemente pelos ombros, lembrando-se de que Nadine recolocara o livro debaixo da laje da lareira. Sacudiu-a como se fosse uma boneca de trapo, porém Nadine o encarou sem medo. Estivera frente a frente com coisas mais terríveis do que Harold Lauder naquele longo, longuíssimo dia.

 

- Como é que sabe, sua puta?

 

- Ele me contou.

 

Harold deixou cair as mãos.

 

- Flagg? - Um sussurro. - Ele lhe contou? Falou com você? E isto a deixou assim? - O sorriso de Harold era fantasmagórico, o sorriso da Morte montada a cavalo.

 

- Do que está falando?

 

Estavam parados em frente a uma loja de ferragens. Pegando-a de novo pelos ombros, Harold a fez virar-se para a vitrine. Nadine olhou seu reflexo por um longo momento.

 

Tinha ficado de cabelos brancos. Totalmente brancos. Não restara um único fio negro.

 

Ah, como eu amo amar Nadine.

 

- Vamos - disse ela. - Temos que ir embora da cidade.

 

- Agora?

 

- Depois que escurecer. Até lá, ficaremos escondidos e, no caminho, iremos recolhendo apetrechos para acampar.

 

- No caminho para o oeste?

 

- Ainda não. Só amanhã à noite.

 

- Talvez eu não queira mais ir - sussurrou Harold, ainda olhando para os cabelos dela.

 

Ela passou a mão na cabeleira.

 

- É tarde demais, Harold - disse.

 

 

 

                                                                CONTINUA

 

 

 

FRAN E LARRY SENTARAM-SE À MESA da cozinha da casa de Stu e Fran, bebericando café. No andar de baixo Leo dedilhava sua guitarra, que Larry o ajudara a escolher na loja Earthly Sounds. Era uma bela Gibson de 600 dólares, com o braço tendo acabamento em cerejeira. Numa ideia repentina, Larry pegara para o menino um fonógrafo de pilha, bem como uma boa quantidade de álbuns de música folk/blues. Agora Lucy estava com Leo, e uma imitação espantosamente boa de "Backwater Blues", de Dave van Ronk, subia até a cozinha.

Choveu à beça por cinco dias

e o céu ficou negro como a noite...

Há encrenca se armando

no braço de rio esta noite.

Pelo arco de comunicação com a sala de estar, Fran e Larry viam Stu sentado em sua poltrona favorita com o livro de Harold no colo. Estivera sentado naquela posição desde as quatro da tarde. Já eram nove horas e escurecera de todo. Stu nem quisera jantar e virou outra página enquanto Frannie o observava.

 

 

 

 

Lá embaixo, Leo terminou "Backwater Blues" e houve uma pausa.

- Ele toca bem, não é mesmo? - comentou Fran.

- Melhor do que eu - disse Larry e bebericou seu café.

Do andar de baixo chegou subitamente uma batida familiar, um rápido tamborilar que progrediu para um blues não de todo padronizado, que fez Larry parar com a xícara no ar. Então ouviram a voz de Leo, baixa e insinuante, adicionando o vocal ao ritmo lento e compulsivo:

Ei, garota, pintei no pedaço esta noite

E não vim aqui para brigar

Só quero que me diga se puder,

Diga uma vez e entenderei,

Garota, você saca o seu homem?

Ele é um cara legal,

Garota, você saca o seu homem?

Larry derramou seu café.

- Epa! - exclamou Fran e levantou-se para pegar um pano de prato.

- Eu limpo - disse ele. - Acho que balancei quando só devia estremecer.

- Não, fique aí sentado. - Ela pegou o pano de prato e enxugou a mancha rapidamente. - Lembro-me dessa música. Fez sucesso pouco antes da gripe. Leo deve ter pegado o compacto lá na cidade.

- Creio que sim.

- Como era o nome do cara? Do cara que a compôs?

- Não me lembro - disse Larry. - Música pop vem e vai com muita rapidez.

- Sim, mas era um nome um tanto familiar - replicou ela torcendo o pano na pia. - Engraçado a gente estar com o nome na ponta da língua...

 

 

                                                                  Stephen King

 

 

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