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A DEUSA DA ROSA - P. 2
A DEUSA DA ROSA - P. 2

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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A DEUSA DA ROSA - Parte II

 

Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

Capítulo 15
A comida estava deliciosa, principalmente o queijo, e Mikki deu conta do último pedaço de queijo branco cremoso que espalhara sobre uma fatia de pão. Tinha paixão
por queijos havia anos — seu traseiro avantajado era uma prova disso — e os que tinham escolhido para seu café da manhã eram ainda mais extraordinários do que os
do banquete da noite anterior.
O Guardião sabia do que ela mais gostava? Será que, assim como Hécate, ele conseguia enxergar seus gostos e medos? Teria descoberto suas comidas favoritas em seu
subconsciente? Se tivesse, então também saberia que ela estava pensando nele... e que continuava intrigada, bem como intimidada pela ideia de vê-lo novamente.
Estou aqui por causa das rosas!
Deu um pulo, sentindo-se culpada. Ele era uma fera. Uma criatura de um mundo estranho que jurara guardar o reino de Hécate. Era evidente que alguma coisa dera errado
para ele acabar como uma estátua em Tulsa.
O que havia feito?
Fosse o que fosse, ela apostava que ele não faria de novo.
Mikki suspirou. Havia tantos mistérios e perguntas sem resposta ali que já estava enlouquecendo.
Pare com isso! Balançou a cabeça e tomou um último gole de chá. Precisava dar um passo de cada vez e descobrir as coisas conforme elas se apresentavam. Precisava
apenas pensar naquilo tudo como um novo emprego. Podia ser assustador ter que aprender tantos novos procedimentos, mas não era impossível.
Mas e quanto ao Guardião?
Deveria pensar nele como em qualquer outro segurança, concluiu.
Por um momento, a imagem do guarda-noturno do Roseiral de Tulsa, Mel, veio-lhe à mente. Ele era baixinho, gordo e muito pálido. Na verdade, lembrava um Papai Noel
careca. Mel não poderia ser mais diferente do que a magnífica criatura que, de pedra, transformara-se em carne e osso...
Seus lábios curvaram-se num sorriso com a comparação. O Guardião e Mel? Só mesmo estando louca para encontrar alguma similaridade entre aqueles dois.
Mikki mordeu o lábio, tensa. Não sabia como lidar com aquela criatura, com as rosas, com a magia...
Antes que ficasse estressada mais uma vez, levantou-se e espreguiçou-se com cuidado na tentativa de aliviar a tensão nos músculos. Sentia-se muito melhor.
Fez o caminho de volta para o quarto, então. Precisava partir logo para o trabalho e manter-se ocupada. Isso ajudaria seus músculos a se soltar e seu cérebro a não
ficar tão obcecado por chifres e cascos.
E estava ansiosa por ver as rosas. Suas rosas. Hécate tinha dito que ela era responsável por cuidar delas, que aquele era seu destino. Não era mais apenas outra
voluntária que sonhava em ter seus próprios jardins.
Olhou ao redor, ansiosa. Hécate havia dito que chamasse as servas para ajudá-la a se vestir. Isso significava que existia algum tipo de campainha ou sineta no quarto?
Não era assim que as coisas funcionavam nos palácios de antigamente?
Aquela, entretanto, não era uma cena de filme com castelos e tal. Era um reino de mitos e magia, algo para o qual sua experiência de vida não a preparara.
— Talvez eu tenha que chamar uma coruja mensageira como em Hogwarts — murmurou para si mesma. — Agora já está sendo ridícula... — Mikki levou as mãos aos quadris.
— Não pode ser tão difícil. Hécate disse para eu chamar as servas, então é isso o que eu vou fazer.
Na verdade, iria chamar Gii. Tinha mais afinidade com ela e, sendo honesta, as quatro moças ao mesmo tempo seriam mais do que ela poderia lidar no momento.
Limpou a garganta.
— Gii? — chamou timidamente, e depois um pouco mais alto: — Gii, poderia vir aqui, por favor? Preciso de sua ajuda!
Mas nada de a serva se materializar. Nada de passinhos apressados pela varanda.
— Está bem, deve haver outra maneira de fazer isso...
Mikki andou de um lado para o outro enquanto pensava. Precisava invocar as servas, concluiu, estacando. Afinal, elas eram a personificação de seus elementos. Não
havia invocado cada um deles para o círculo, na noite anterior? Talvez devesse fazer algo parecido agora.
Fechou os olhos e pensou em Gii, no elemento Terra. Na noite anterior, sua presença fora precedida por um aroma que lembrava a fertilidade da terra e da colheita,
a doçura do feno recém-cortado, a maturação dos frutos e bagas. Quase pudera sentir a riqueza de uma terra verdejante.
— Gii — chamou baixinho. — Venha até mim!
Quase de imediato, duas rápidas batidas soaram na porta, e ela abriu os olhos a tempo de vê-la abrir-se para o quarto suntuoso, proporcionando-lhe apenas um vislumbre
de um corredor largo e claro, conforme Gii entrava correndo. Nos braços, a serva trazia metros e metros de tecidos âmbar, creme e dourado.
— Bom dia, Empousa! — Gii fez uma reverência graciosa.
— Eu consegui! — Mikki sorriu. — Eu a chamei e você veio!
— Que bom, Empousa! — O sorriso de Gii foi caloroso. — É um prazer ter a Alta Sacerdotisa de Hécate em nosso reino mais uma vez. Estivemos distantes por tempo demais.
— Ela parou e olhou ao redor. — Não chamou as outras servas?
— Na verdade, como não estou acostumada a ter serva nenhuma, gostaria de começar apenas com você hoje. Pode ser?
— Como quiser, Empousa. É uma honra ter sido escolhida para servi-la. A alegria da moça fez Mikki sentir-se muito menos nervosa por não saber bem que diabo deveria
fazer. Estava onde devia estar, refletiu. Todo o restante entraria nos eixos aos poucos.
Apontou para os tecidos nos braços de Gii com um gesto de cabeça.
— Eu ia dizer que precisava de você para me ajudar a vestir algo, mas parece que já tomou providências... — Mikki cruzou dedos para que o traje daquele dia ao menos
mantivesse seus seios cobertos.
— Claro, Empousa. Eu sabia que estaria ansiosa por supervisionar seus jardins. Quando me chamou, eu já me preparei.
Gii ajudou Mikki a se livrar da camisola com destreza. Com as palavras “seus jardins” ainda ecoando na mente, Mikki permaneceu muito quieta enquanto a criada ajeitava
o tecido longo e dourado em torno de seu corpo. Com alfinetes de ouro que tirou das pregas volumosas de sua própria túnica, Gii prendeu-o a seus ombros. Para sua
satisfação, o pano caiu num lindo drapeado, ocultando-lhe ambos os seios. Em seguida, Gii soltou um dos cintos trançados que trazia em torno da cintura e o amarrou
sobre os quadris de sua Empousa.
— Gii, eu não quero reclamar, mas... — Mikki hesitou, tentando encontrar a palavra certa para definir o retângulo de tecido que vestia — ... esta roupa é muito linda
para se trabalhar no jardim. Não teria algo mais adequado?
A serva endireitou o corpo e abriu-lhe um sorriso confuso.
— Que outro traje é mais adequado do que um quitão?
— Bem, há uma enorme quantidade de outros tecidos... — Apontou para o pano fino e comprido que lhe pendia graciosamente até os pés. — Será que isto vai atrapalhar?
— Não, se usá-lo assim... e assim. — Gii fez uma demonstração, prendendo parte da linda túnica cor de menta que usava em seu cinto, de modo a deixar suas pernas
longas e fortes quase nuas. O elemento Terra estendeu os braços. — Não costumamos esconder os braços em mangas pesadas, mas, se ficar com frio, basta passar a palla
em torno dos ombros.
— Palla?
Gii franziu a testa para sua Alta Sacerdotisa.
— Empousa, nunca usou um quitão com uma palla?
Com muito esforço Mikki não gritou de frustração.
— Gii, eu já lhe contei, na noite passada, que meu antigo mundo é muito diferente deste. Eu nunca entendi nada sobre sacerdotisas ou deusas, e não vestimos nada
parecido com isto. Quando eu ia trabalhar no jardim, usava jeans — imitou vestir um par de calças — e uma camiseta curta que eu punha pela cabeça, e que cobria a
metade superior de meu corpo.
Gii a fitou, horrorizada.
— Não quero falar mal do seu antigo mundo, Empousa, mas ele me parece um horror! Por que uma sacerdotisa, ou qualquer outra mulher, optaria por vestir-se com uma
roupa tão feia e desconfortável?
Mikki fez menção de dizer que jeans não eram feios nem desconfortáveis, mas então seus olhos foram capturados por seu reflexo de corpo inteiro no espelho, e as palavras
morreram em sua boca. Ela parecia a rainha de um mundo antigo.
Caminhou para a frente, devagar, estudando-se com cuidado. O tecido era suave e solto, feminino e sedutor. Não havia o que lhe incomodasse o traseiro ou lhe pegasse
nos ombros, deixando marcas vermelhas ao final do dia...
Em comparação àquela roupa, um sutiã, calcinha, jeans e camisetas eram, sim, feios e desconfortáveis.
— Explique-me direito, Gii. Você chamou isto de quitão?
— Sim, Empousa. Pode usá-lo de infinitas maneiras, principalmente se acrescentar uma palla ou outros tipos de manto.
Tomando uma escova larga e macia da penteadeira, Gii começou a escovar seus cabelos enquanto falava, para depois amarrá-lo com um cordão dourado.
— Acreditamos que o vestuário deve idealizar o corpo de uma mulher em vez de tentar esconder suas formas ou reprimi-lo.
— Sem dúvida, este traje é muito bonito, mas vou conseguir trabalhar com ele?
— Que tal experimentar, Empousa?
Mikki tomou a palla de cor âmbar esparramada sobre a cama e cobriu os ombros.
— Por que não?
Mikki soube que algo estava errado tão logo aproximou-se do canteiro de rosas plantado próximo da escadaria que saía da varanda, onde as flores chegavam a roçar
o parapeito de mármore. Sentiu o mesmo mal-estar da noite anterior, só que, naquela manhã, este parecia bem mais forte. Seu estômago se apertou e ela teve que se
esforçar para não vomitar.
O sorriso que iluminara seu rosto quando havia reconhecido as rosas Old Garden e Blush Noisette esvaiu-se junto com a cor de suas faces. O canteiro era grande e
as plantas, bem espaçadas, mas quanto mais chegava perto destas, mais óbvio se tornava que elas não se encontravam tão saudáveis como pareciam lá de cima.
Correu pelos últimos degraus. Assim que deixou a trilha de mármore e aproximou-se das flores, ignorou a ânsia de vômito e, caindo de joelhos sobre o canteiro, praguejou
baixinho enquanto tocava as folhas e os caules para observar melhor as plantas.
— Empousa?
— Elas estão horríveis! — Mikki exclamou, sem interromper sua inspeção. — As folhas estão amarelas e moles, e os caules tão finos! E as flores, que pareciam bem
à distância, estão pequenas, e várias não terão forças nem mesmo para se abrir. Quando foram fertilizadas pela última vez?!
Não tirou os olhos das rosas até perceber que Gii não estava lhe respondendo. A serva fitava as mãos, as quais apertava com força.
— Gii, qual o problema? Eu só perguntei quando foi a última vez que as rosas foram fertilizadas. Isso deve ser feito sempre para que... — Ela parou ao perceber que
a moça parecia cada vez mais aborrecida.
— A Empousa é quem cuida das flores — Gii balbuciou, sem fitá-la.
— Está me dizendo que, durante todo o tempo em que estiveram sem uma Alta Sacerdotisa, ninguém cuidou destas rosas?
A serva levantou os olhos marejados para Mikki.
— Cuidar das rosas é o dever sagrado de uma Empousa. Sem poder contar com uma sacerdotisa, Hécate as enfeitiçou e elas adormeceram.
Assim como o Guardião.
A cabeça de Mikki começou a girar. Sentindo bile subir à garganta, ela mal conseguiu se concentrar no que Gii dizia:
— Não havia o que pudéssemos fazer por elas. As rosas não reagiam aos nossos cuidados. Tinham parado até mesmo de florescer. — A moça baixou a voz para um sussurro.
— Pensamos que elas estivessem morrendo.
— E nenhuma de vocês se lembrou de me contar isso quando estávamos nos divertindo na noite passada? — Mikki ralhou, irritada consigo por estar tão encantada com
tudo o mais que não tinha percebido como os jardins aparentemente belos se encontravam doentes.
E onde, diabos, estivera sua intuição na noite anterior? Por que, naquele dia, bastava se aproximar dos canteiros para ter vontade de vomitar o café da manhã?
Mas talvez sua intuição estivesse intacta. Na noite anterior, ela atribuíra seu mal-estar ao nervosismo e à falta de alimentos. Mas também ficara zonza, seu estômago
se apertara e ela se sentira mal...
E naquela mesma manhã sentira-se como se tivesse levado uma surra.
Não fora porque havia estado prestes a ter um colapso nervoso ou porque dançara demais. Seu corpo apenas reagira à doença das rosas.
Por que Hécate não lhe avisara sobre o estado lamentável de suas flores?
Franziu o cenho. O que a deusa tinha dito mesmo?
O Reino das Rosas passou muito tempo sem sua Empousa. As flores precisam da sua atenção.
Precisavam de sua atenção?
Mikki deixou os olhos pousarem sobre o canteiro mais próximo, reconhecendo outras variedades de Old Garden, além de rosas Eglantine e Laville de Bruxelles.
Estreitou o olhar. Elas também estavam doentes. Iriam precisar de muito mais do que apenas sua atenção.
— Pensamos que tudo iria ficar bem agora que está aqui — prosseguiu Gii. — Até percebemos que estava chegando porque as rosas, de repente, começaram a florir outra
vez.
— Gii, estas rosas não estão bem. Estão subnutridas e anêmicas! E estes botões não estão normais, eles estão... estão agonizando!
Então, como se Hécate ainda estivesse a seu lado, Mikki ouviu a voz da deusa ecoando em sua mente.
Os limites dos jardins são traçados por uma imensa muralha formada por rosas... Essa muralha é o que define os limites entre o mundo comum e o nosso... Se as rosas
adoecerem, meu reino perecerá com elas.
Um arrepio a percorreu, e ela sentiu o alerta em seu próprio sangue. Precisava chamar o Guardião.
Capítulo 16
— Gii, todas as rosas do reino estão como estas?
A serva acedeu e, parecendo uma criança, repetiu:
— Pensamos que tudo ficaria bem depois que você chegasse!
Mikki esboçou um sorriso que, ela esperava, não parecesse muito forçado.
— Acho que vai ficar tudo bem, mas isto vai dar trabalho. A primeira coisa que quero fazer é reunir todas aquelas mulheres que estavam dançando conosco na noite
passada. Peça-lhes para me encontrar no Templo de Hécate. E chame as outras três servas também.
— Sim, Empousa. — Gii fez uma reverência, mas hesitou antes de se afastar. — Não vem comigo?
— Não, vá na frente. Eu a encontrarei no templo em breve. Tenho algo de que cuidar aqui primeiro.
A moça lançou-lhe um olhar aliviado antes de correr para longe.
Mikki esperou até que ela desaparecesse na esquina de mais dois canteiros de rosas doentes, então endireitou os ombros e caminhou de volta para a escadaria de mármore
que levava à ampla varanda.
Estaria fazendo a coisa certa? Achava que sim...
Não. Tinha certeza disso. Quando percebera o quanto as rosas estavam doentes — todas elas —, sentira aquele calafrio inconfundível.
Subiu dois degraus e parou. Reconsiderou, depois subiu mais um.
Pronto. Ali estaria alta o bastante.
Fechou os olhos e, assim como havia chamado Gii, o invocou. Pensou na força de seu corpo, no poder de sua voz, na consideração que ele tivera com ela ao lhe pedir
um jantar, nos chinelos e no botão de rosa que flutuava dentro da taça de cristal...
— Guardião? — chamou suavemente. — Venha até mim.
O ar pareceu engrossar e pressionou sua pele com um furioso zunido.
— Por que me chamou?
Por um instante, Mikki manteve os olhos fechados com força.
Estes são os meus jardins agora, e ele é como um segurança. Pense nele apenas como um funcionário difícil!
Abriu os olhos e o viu parado a poucos metros dela.
Deus, como uma criatura podia ser tão grande? Fora inteligente de sua parte subir mais um degrau. À luz reveladora da manhã, o Guardião parecia menos humano do que
na noite anterior. Vestia a mesma túnica curta e o peitoral de couro, em estilo militar, mas as roupas nada faziam para disfarçar a bestialidade das pernas peludas
e da cabeça adornada por chifres. Nem de longe ele parecia civilizado... ou controlável.
Sentiu a boca seca e precisou engolir duas vezes antes de reencontrar a voz.
— Eu o chamei porque foi o que Hécate me disse para fazer caso eu achasse que o reino estava em perigo — ela esforçou-se para explicar, e o resultado foi que sua
voz soou alta e exasperada.
Quando os olhos escuros arregalaram-se com surpresa, Mikki decidiu que sua assertividade, ainda que não intencional, tinha sido útil.
— E qual é o perigo, Empousa? — ele rugiu.
Desta vez, ela mordeu o lábio, nervosa.
— Não sei ao certo. Tudo o que sei é que as rosas estão doentes, o que significa que o muro de rosas que circunda o jardim provavelmente encontra-se doente também.
Minha intuição me diz que essa possível fraqueza, de alguma forma, é perigosa.
Segurou a respiração, esperando por um grunhido. Em vez disso, ele a surpreendeu, curvando a cabeça para ela.
— Fez bem em me invocar, Empousa. Eu não devia ter questionado sua autoridade. Se a fronteira entre os mundos se encontra enfraquecida, devo guardá-la contra aqueles
que queiram utilizá-la para se infiltrar em nosso reino.
— Então, para curar as rosas, preciso me concentrar na muralha antes de tudo?
— Seria o mais sábio, Empousa.
Mikki aquiesceu.
— Era o que meus instintos me diziam — murmurou, mais para si mesma do que para ele. — Ainda bem que Hécate me mandou ir fundo.
— Ir fundo?
— Sim — ela confirmou, apressada. — Hécate disse que eu devia seguir meus instintos e faria a coisa certa.
— A deusa a mandou “ir fundo”?
Seria possível que seus olhos escuros estivessem brilhando com humor?
— Bem, não foi exatamente nesses termos. — Surpreendendo a si mesma, Mikki sorriu para ele.
Seus olhares encontraram-se, e ela pôde sentir a força dos olhos castanhos, como se estes pudessem atravessar o espaço que os separava e tocá-la com sua intensidade.
E sentiu algo mais. Algo que reconheceu de seus sonhos: a agitação do desejo. Ele era perigoso e assustador, mas era também muito viril... E, assim como nos sonhos,
Mikki viu-se irremediavelmente presa por seu fascínio.
Sustentando o olhar, respirou fundo.
— Hécate mandou que eu seguisse minha intuição, e é isso o que pretendo fazer.
Como se arrastado pela força de seus olhos, o Guardião avançou alguns passos até ficar perto o suficiente para poder tocá-la.
— E o que sua intuição está lhe dizendo agora, Mikado?
Mikki prendeu a respiração. Podia sentir o calor de seu corpo. O fato de ela ter subido alguns dos degraus os deixara quase no mesmo nível e, mais uma vez, ela se
viu impressionada pelos contrastes que compunham o rosto a sua frente: bonito e bestial... perigoso e fascinante.
Ele não é parte homem, parte fera. É mais do que isso. Ele é um semideus.
Lentamente, o Guardião ergueu a mão e pegou uma mecha do cabelo espesso que tinha escapado do cordão dourado, e Mikki permaneceu imóvel enquanto ele a deixava escorrer
como água pelos dedos.
— Não consegue falar, Mikado? — Sua voz profunda vibrou entre eles. — Onde está a Sacerdotisa corajosa que invocou minha presença? Minha proximidade a assusta?
— Estou com medo, mas não vou a lugar nenhum — ela afirmou, resoluta, e ficou contente ao ver a surpresa nos olhos castanhos. Imitando seu gesto, estendeu a mão
e tocou a cabeleira escura e brilhante que lhe caía sobre os ombros.
Como se seu toque lhe provocasse uma descarga elétrica, o Guardião se afastou.
— Cuidado, Empousa... — ele alertou com voz rouca. — Pode descobrir que a fera que despertou não é tão inofensiva como suas rosas de estimação.
Então virou-se com um grunhido e se afastou, os cascos batendo ruidosamente contra o mármore.
Ele estava indo embora!
— Espere! — Mikki gritou, aflita.
A criatura estacou e olhou por cima dos ombros largos.
Ela quase pôde se ver refletida nos olhos enormes: uma mulher fraca, indecisa... uma menina inexperiente que o chamara de volta sem nem mesmo saber ao certo o que
queria dizer.
O pensamento a irritou. Hécate a havia escolhido para ser sua Sacerdotisa, Empousa do Reino das Rosas. Ela o havia invocado. Seus instintos a tinham alertado para
um possível perigo, e não importava que não o compreendesse bem. Estava fazendo o que a deusa lhe ordenara.
E, droga!, o Guardião a tocara primeiro! Que diabo de jogo era aquele, e com que direito ele achava que poderia dispensá-la? Ela não era nenhuma menininha vestida
com trajes de sacerdotisa. Era uma mulher madura, independente e inteligente, que não tolerava homens machistas... com ou sem cascos e chifres!
Mikki estreitou o olhar e falou devagar e claramente:
— Há coisas que preciso saber antes que fuja.
— Eu não estou fugindo.
— Ah, não? — ela replicou, ignorando a ameaça na voz profunda. — Está se esquecendo de que falo com a autoridade de Hécate. Portanto, ouça e me responda.
Uma estranha mistura de homem e fera estampou-se em seu rosto; contudo, Mikki teve a certeza de ver uma ponta de admiração nos olhos escuros.
— O que deseja saber, Empousa? — Virando-se por completo, ele andou alguns passos em sua direção.
Foi como se mudasse o padrão do ar em torno dela.
Mikki engoliu em seco, porém tratou de manter a voz neutra e os pés no chão.
— Preciso saber se existe na muralha alguma parte em que o acesso seja mais fácil. Algum lugar onde haja uma falha nas rosas; uma passagem ou portal.
Ele considerou a pergunta por um instante, depois concordou com um gesto de cabeça, os cabelos chacoalhando sobre os ombros largos.
— Sim, há um portal na muralha. Faz sentido que esse seja o local onde a barreira possa ser mais facilmente violada.
— As servas sabem onde fica esse portal?
— Sim, Empousa.
— Então vou pedir que me levem até ele depois que elas conseguirem fertilizantes.
O Guardião ergueu as sobrancelhas grossas.
— Espera que as servas cuidem das rosas?
Mikki o encarou e deu de ombros.
— Como espera que eu cuide delas sozinha? Só para começar, as flores precisam ser fertilizadas e podadas. Eu iria me matar tentando fazer tudo, sem mencionar que
não daria conta do serviço. Não seria inteligente nem produtivo.
O rosto moreno transformou-se em uma máscara indecifrável mais uma vez, e Mikki deixou escapar um suspiro de frustração.
— Está me dizendo que as outras Empousas faziam tudo sozinhas?
— Não me lembro de ter visto uma Empousa pedindo às mulheres que cuidassem das rosas; exceto quando pediam algumas para decorar seu quarto.
— E quanto à adubação, o controle de pragas e os cuidados gerais de que as flores sempre necessitam?
— Essas rosas nunca precisaram desse tipo de cuidado. Elas só necessitavam da presença da Empousa para se desenvolver.
— Elas nunca ficaram doentes antes?
— Nunca.
— E antes de ter ficado preso como uma estátua... viveu aqui por muito tempo?
— Vivo aqui desde que Hécate proclamou seu domínio sobre o reino.
O que, Mikki imaginava, acontecera havia muito, muito tempo. Por eras, as rosas tinham sido saudáveis e dispensado qualquer cuidado, exceto a presença da Alta Sacerdotisa
de Hécate.
E isso até ela ser nomeada Empousa do Reino.
Que maravilha. As notícias estavam ficando cada vez melhores.
— Bem, parece que os tempos mudaram. Ou então sou uma Empousa diferente porque as rosas necessitam de cuidados agora. Não posso cuidar delas sozinha, por isso as
mulheres vão ter que me ajudar.
O Guardião fitou-a em silêncio.
— Acredito que seja, mesmo, um tipo diferente de Alta Sacerdotisa — falou, quando Mikki já não suportava mais esperar.
— Isso é bom ou ruim?
— Não sei — ele admitiu num rosnado. — É apenas um fato.
— Pois eu acho que é bom — ela replicou com firmeza, determinada a não se deixar intimidar por seu cinismo. Sabia, por conta de sua própria tendência para o sarcasmo,
que essa era a atitude típica de quem desejava esconder sentimentos dolorosos. Seu cinismo, por exemplo, ocultava o fato de que ela nunca se sentira bem em sua antiga
vida.
Mikki perguntou-se o que o Guardião tentava encobrir. Será que tinha algo a ver com o fato de Hécate tê-lo transformado em pedra e banido do reino?
Percebeu que continuava parada, encarando-o, e tratou de continuar, apressada:
— Suponho que mudar de mundo tenha me feito pensar assim.
— Estranho — ele comentou, a voz profunda recheada de escárnio. — Não teve o mesmo efeito em mim.
— Imagino que se eu tivesse sido transformada em pedra, também não estaria tão disposta a achar que “diferente” é sinônimo de “bom”. Mas ao menos sabe que não posso
transformá-lo em estátua novamente — ela completou.
E quis cobrir a boca por deixar escapar palavras tão estúpidas ao ver o rosto do Guardião transformar-se numa máscara de tensão.
— Isso é tudo o que deseja me perguntar, Empousa? Preciso ir para a muralha das rosas e fiscalizar a fronteira.
— Sim. Vou chamar as outras mulheres e o encontrarei no portal. — Mikki precisou falar a última frase em voz alta, pois ele já se afastava a passos largos. — Obrigada
— murmurou para si mesma.
Deus, ele a deixava confusa! Em um instante parecia sedutor e perigoso, o típico bad boy... E, no outro, contido e cínico! Era como se fossem duas pessoas!
— Mas que diabo estou pensando? — Balançou a cabeça. — Ele é isso mesmo! Mas não duas pessoas. É uma pessoa e um animal. E eu preciso parar de ter delírios com esse
Marlon Brando de chifres e me lembrar de que ele não é completamente humano. Relacionamentos inter-raciais, que seja, mas entre espécies? Por favor, Mikado. Já chega.
Recobre o juízo e trate de cuidar dessas rosas!
Com um suspiro, começou a percorrer o caminho que Gii tomara para o centro dos jardins, partindo para o que, ela desconfiava, seria um dia muito difícil.
As mulheres reunidas separaram-se como um mar colorido de flores delicadas, abrindo caminho para Mikki juntar-se às quatro moças que aguardavam em pé dentro do Templo
de Hécate. Muitas delas a saudavam, contudo pareciam bem mais contidas do que haviam estado na noite anterior.
Mikki torceu para que elas estivessem dispostas a trabalhar. Subiu os degraus do templo, cumprimentou os Quatro Elementos e, em seguida, virou-se para a multidão.
Por favor, não deixe que percebam como estou nervosa!, pensou. No mesmo momento, a voz severa de Hécate manifestou-se em sua mente:
Sou eu quem fala por seu intermédio.
As palavras aumentaram sua confiança. Mikki ignorou a dor persistente no corpo, assim como a náusea da qual parecia incapaz de se livrar, e encarou a multidão, fitando
várias das mulheres nos olhos.
— As rosas estão doentes.
Murmúrios assustados percorreram o grupo e ela precisou levantar a mão para silenciá-lo.
— Por isso mesmo estou aqui. Eu entendo de rosas. Sei do que elas precisam e, com sua ajuda, poderemos torná-las saudáveis outra vez. — Mikki ficou satisfeita com
as expressões atentas das mulheres. — A primeira coisa que se deve fazer é fertilizá-las, então peço que reúnam as coisas de que as flores vão precisar.
Fez uma pausa, ordenando os pensamentos. Já tinha percebido o óbvio: dependeria inteiramente de métodos orgânicos de adubação e de controle de pragas e doenças,
o que não era de todo ruim. Muitas vezes, os métodos naturais eram os melhores. Na noite anterior, ela havia comido carne com gosto de presunto. Isso significava
que eles deviam ter porcos em algum lugar, o que já era um começo.
— Esterco de porco — disse, e as expressões atentas transformaram-se em caretas. — Vocês têm porcos, não têm?
Algumas assentiram, hesitantes.
— Que bom. Pois preciso que encham algumas cestas com dejetos de suínos. — Virou-se para Nera sem esperar por resposta. O elemento Água a fitava com os olhos muito
abertos. — Nera, há um lago ou mar nas proximidades?
— Sim, Empousa, há um grande lago dentro do reino.
— Excelente. — Ela voltou-se para a multidão. — Vou precisar de cabeças ou entranhas de peixes; qualquer coisa que normalmente se joga fora em vez de cozinhar. Na
verdade — continuou como se as mulheres não estivessem olhando para ela, boquiabertas —, preciso de matéria orgânica morta, tanto vegetal como animal... Gii, imagino
que a floresta do lado de fora da muralha das rosas seja escura e densa.
— É, sim, Empousa.
— Então seu solo deve ser rico em argila. Levem baldes, cestos, o que for, junto com alguma coisa para revirar a terra ao redor das rosas, de modo que possamos misturar
o fertilizante ao solo.
— Mas levar para onde, Empousa? — indagou Gii.
— Ah, perdão... — Mikki falou em voz alta para a multidão. — Levem tudo: cestas vazias e as que encherem com o adubo que mencionei, além de ferramentas para jardinagem,
até o portal na muralha das rosas. Vamos começar por lá.
Ninguém se moveu.
— Seria bom se começassem agora — ela acrescentou com firmeza. — Essas rosas já foram ignoradas por tempo demais.
Ainda assim, ninguém saiu do lugar.
Floga limpou a garganta e aproximou-se dela.
— Empousa, isto não está certo.
— O que não está certo? O fato de eu dizer que precisamos fertilizar as rosas ou que estão se recusando a fazer o que uma Empousa pede?
A serva empalideceu.
— Eu jamais ousaria desobedecer a uma ordem sua.
Mikki olhou para as outras três servas.
— Nenhuma de nós poderia recusar um pedido seu, Sacerdotisa — Gii afirmou depressa e as demais concordaram.
Ela virou o olhar para a plateia e ergueu a voz, deixando claro que encontrava-se aborrecida.
— Então são apenas as mulheres do reino que se recusam a obedecer a Empousa de Hécate?
A multidão se agitou.
Uma mulher, provavelmente de mesma idade que a dela, avançou um passo e fez uma breve reverência.
— Minhas irmãs e eu reuniremos as cestas para o barro da floresta, Empousa.
Outra destacou-se do grupo.
— Eu trarei restos de peixe.
— Eu também...
— Cuidaremos dos dejetos dos suínos! — uma menina disse do meio de um grupo de adolescentes.
Mikki teve vontade de chorar com alívio e agradecer a todas. Mas algo lhe dizia que não era essa a reação que as pessoas esperavam ou mereciam.
— Eu as encontrarei no portal — respondeu apenas. — Precisam se apressar. Temos um longo dia pela frente. Quanto mais rápido começarmos, melhor. — Deu as costas
para a multidão que começava a se dispersar e buscou os olhos de Gii. — Preciso que me mostre onde fica o tal portal — pediu baixinho.
A serva sorriu antes de abaixar a cabeça e curvar-se em uma profunda reverência.
— Como quiser, Empousa.
Capítulo 17
— Ali! É essa a muralha da rosa. O portal fica depois daquela curva no arbusto. — Gii apontou um pouco à frente delas, para uma parte da parede viva que fazia uma
curva de volta para o jardim.
— Rosas Multiflora... Quem diria? — Acompanhando a imponente divisa que pareceu materializar-se do nada, Mikki abanou a cabeça. — Eu sabia que elas eram conhecidas
como “cerca viva”, mas nunca as vira de uma forma tão ordenada.
Ela já vira rosas Multiflora tomarem conta de pastagens e destruí-las em menos de dois anos, mas diante dela estava uma enorme parede de rosas silvestres que, aparentemente,
tinha sido “domada”.
Contornaram a muralha, e Mikki olhou para cima. A muralha de flores devia ter quase quatro metros de altura.
— Elas não se espalham e ameaçam tomar conta da floresta? — Ou o restante do reino?, pensou consigo.
— A muralha obedece aos comandos de Hécate.
Mikki viu Gii pular em resposta à voz grave do Guardião e ficou grata por não ter tido a mesma reação.
Mas sabia que ele ficara de encontrá-la junto ao portal.
Inconscientemente, ou talvez nem tanto, estivera preparada para sua chegada.
Seu olhar deixou a muralha das rosas e pousou no estranho ser. Ele estava de pé na outra extremidade da curva, emoldurado pelo que parecia ser uma imensa porta feita
de rosas Multiflora. Como de costume, seu rosto era sombrio e sua expressão, indecifrável, mas os olhos... estes se encontravam fixos nela.
Ele não vai me intimidar. Não passa de um segurança. Um segurança enorme e mal-humorado... E eu sou a Empousa, ou seja, sua supervisora, no mínimo.
Mikki sorriu.
— Conheço muitos fazendeiros no meu antigo mundo que fariam qualquer coisa para ter Hécate comandando as rosas dessa maneira, a fim de que estas se comportassem
tão bem.
Ele franziu o cenho.
— Hécate não é uma comerciante que pode ser...
— Eu não quis dizer isso literalmente. Só estava brincando — ela o interrompeu, esforçando-se para não revirar os olhos.
Olhou para Gii. A serva mordia o lábio, os olhos enormes indo de um para o outro, assustados.
Céus!, pensou Mikki. Pelo visto ninguém brincava com o Guardião. Ou a última Empousa nunca tivera muito senso de humor, e as outras, provavelmente, eram jovens demais
para se arriscar.
Outra coisa que ela teria de mudar por ali.
— Muito bem... Então esse é o portal. — Ignorou a ambos e marchou adiante, parando não muito longe do Guardião. Pelo canto dos olhos, percebeu que Gii a seguira,
mas tomara o cuidado de não ficar muito perto da criatura.
Mikki aproximou-se do portal, observando que as flores que compunham a parede pareciam apenas um pouco mais saudáveis do que as plantas doentes dos jardins. As folhas
das rosas Multifloras ainda estavam verdes em sua maioria, mas havia uma quantidade preocupante de folhagem amarelada misturada à que crescia de modo saudável. Havia
uns poucos botões rosados, mas nenhuma das flores se abrira.
Ela tocou as folhas, virando-as e olhando em meio à massa de plantas que compunha o corpo do arbusto, atentando para pontos negros e insetos.
— Não vejo nada de muito errado com elas. Nenhuma doença ou infestação. — Suspirou. — Assim como o restante das rosas nos jardins, elas apenas parecem doentes.
O Guardião aproximou-se dela, também estudando as flores na muralha.
— Pode curá-las?
— As rosas costumam gostar da minha companhia — afirmou, ainda que nunca tivesse conhecido uma parede de rosas Multiflora que atendia aos comandos de uma antiga
deusa. Seria contraproducente mencionar isso, contudo. — Vamos começar pelo começo... Passo um: precisamos nos certificar de que as flores sejam bem fertilizadas.
Isso é básico.
Nesse momento, uma leve brisa trouxe até eles um burburinho. Eram mulheres conversando.
O Guardião ergueu a cabeça e respirou fundo. Então olhou para Mikki com uma careta.
— Deve estar sentindo o cheiro do nosso fertilizante... — Mikki sorriu. — De qual deles? Cabeças de peixe ou estrume de porco?
— Dejetos de porco.
Desta vez, não importou que o rosto dele não fosse como o de nenhum outro ser vivo. Mikki reconheceu em seus olhos o brilho do humor.
— Que bom! — comentou alegremente.
— É mesmo uma Empousa incomum se estrume de porco a faz feliz...
Ela riu.
— Eu sou incomum e, sim, estrume de porco me deixa feliz. Agora é hora de começarmos a trabalhar.
O Guardião abriu um sorriso, exibindo dentes muito brancos... e afiados.
Curvou-se para ela.
— Às suas ordens, Sacerdotisa.
Ignorando a exclamação de Gii, Mikki inclinou a cabeça de uma maneira que, gostava de pensar, uma deusa faria para reconhecer um gesto de boa vontade. Em seguida
fez meia-volta e começou a dar instruções para as mulheres que se aproximavam.
Até que elas não estavam fazendo um trabalho muito ruim para quem nunca havia trabalhado com rosas, Mikki pensou e, levantando-se, esticou-se toda, circulando os
ombros para tentar aliviar a tensão que sempre encontrava uma forma de descansar sobre suas costas.
Limpou as mãos em uma parte do tecido que dobrara para dentro do quitão e olhou ao redor. Havia mulheres espalhadas ao longo da muralha viva até onde se podia ver.
As que ela convocara para atuar junto à parede tinham três tarefas: um grupo cavava buracos rasos acima e abaixo das raízes das rosas; outro cobria de fertilizante
a terra recém-cavada; e um terceiro derramava o conteúdo orgânico das cestas nos buracos.
Um fluxo constante de mulheres ia e vinha, carregando cestas com os dejetos de porcos e restos de peixes. Havia também uma corrente delas passando cestas cheias
com o barro do chão da floresta, que ficava do outro lado, para as que esperavam do lado de dentro da muralha a fim de acondicioná-lo em torno da base da cerca viva.
Mikki olhou para o portal aberto. Com certeza, teria de aguardar apenas alguns instantes para ver o Guardião. Ele passara a manhã toda andando de um lado para o
outro, inquieto, do lado da floresta. A boa vontade que se instalara entre eles tinha se dissipado assim que Mikki insistira para que as mulheres fossem até o outro
lado para encher as cestas com o solo rico que sustentava a floresta.
— Não é sábio manter esse portal aberto — ele rosnara, mesmo depois que ela havia explicado a que se destinavam as cestas.
— As rosas necessitam de nutrientes que são encontrados na matéria orgânica que compõe o chão da floresta. O portal precisa ficar aberto porque as mulheres terão
de ir e vir — ela dissera de forma clara e sem nenhum medo, diante de todas as outras.
— A floresta não é segura — o Guardião insistira, teimoso.
— Não é por isso que está aqui?
Ele tinha resmungado algo ininteligível que fez sua pele se arrepiar; entretanto, ela se recusara a desviar o olhar, assim como não abrira mão de ver as mulheres
indo para a floresta. Sabia do que as rosas necessitavam, e muitos dos nutrientes só poderiam ser encontrados lá fora.
Aquele mal-humorado teria de lidar com aquilo. Não conseguiria demovê-la da ideia de fazer algo que ela sabia estar certo.
Afinal, o que ele poderia fazer com ela na frente das outras mulheres do reino? Devorá-la? Mordê-la? Sacudi-la? Ela era a Empousa e ele, aquele que deveria cuidar
de sua segurança. Não poderia lhe fazer mal algum. O máximo que poderia fazer seria largar tudo e ir embora.
Se ele fizesse isso, ela precisaria descobrir uma forma de abrir aquele gigantesco portal feito de rosas, que não tinha alças, travas e nem...
— Insisto para que nenhuma das mulheres fique fora da minha vista.
— Como quiser... Segurança é o seu trabalho, não o meu.
O Guardião havia inclinado a cabeça e enviado-lhe um olhar fulminante.
— Quer saber? Faça o que quiser. Contanto que elas possam ir para o outro lado recolher o barro — ela corrigira docemente.
— Ainda assim, não estou gostando disso.
— Pois eu insisto.
Ela havia sentido os olhares abismados das mulheres quando enfrentara o Guardião. Pareciam chocadas por ela tê-lo enfrentado, o que a fez perguntar-se como as Empousas
mais jovens administravam eventuais desentendimentos com o intimidante protetor.
Não importava, disse a si mesma com firmeza. Ela era a Empousa agora, e ele precisava saber que ela não era nenhuma criança inocente que poderia ser subjugada.
Ele bufou, mas caminhou até o portal. Erguendo as mãos, pronunciou algumas palavras que ela não conseguiu entender, mas que pareceram ondular sobre sua pele como
água quente... Então o portal abriu-se devagar, apenas o bastante para que ele passasse com seu corpanzil.
Ela o seguiu e as mulheres, lideradas por Gii, também iam atrás da fera e de sua Empousa para as margens da mata escura.
A floresta era densa, como ela já esperara que fosse. E as árvores, gigantescas: carvalhos antigos, de troncos tão espessos que nem mesmo os braços do Guardião conseguiriam
envolvê-los. Ramos entrelaçados formavam uma copa verde e luxuriante que a luz solar mal conseguia penetrar.
Mas parecia perfeitamente normal. Pássaros chilreavam. Esquilos corriam. Mikki até pensou avistar a traseira de um cervo assustado à distância.
As mulheres que escavaram o solo coberto de folhas para colocá-lo nos cestos permaneceram silenciosas, e nenhuma delas foi muito longe. Mas nenhum bicho-papão ou
monstro saltou sobre elas. E durante todo esse tempo, o Guardião andou de um lado para o outro, os olhos atentos, indo das mulheres para as profundezas da floresta
e vice-versa.
A voz doce de Gii interrompeu as reflexões de Mikki:
— Já é meio-dia, Empousa — avisou o elemento Terra, enxugando o suor da testa. Apontou, então, para uma fila de mulheres que vinha de uma direção diferente da que
trazia os fertilizantes. — As criadas do palácio já estão trazendo a comida.
— Já é tarde assim? — Mikki desviou o olhar do sempre vigilante Guardião e sorriu para a serva.
— Sim, Empousa. E várias de suas novas jardineiras precisam comer para depois trocarem de lugar com as Tecedoras de Sonhos.
— Tecedoras de Sonhos?
— Eu me esqueci de que você é nova neste reino e não está habituada com as coisas daqui. Principalmente depois de vê-la lidar com tanta facilidade com... — Gii fez
uma pausa, e seu olhar deslizou para o portal aberto, além do qual se encontrava o sinistro protetor — ... as rosas.
Mikki ignorou a referência ao Guardião porque não sabia ao certo o que fazer com ela.
Mas estava morrendo de vontade de fazer perguntas sobre ele e as Altas Sacerdotisas que tinham vindo antes dela. Por exemplo, onde estas encontravam-se agora? Será
que as Empousas se aposentavam? Se era assim, uma delas não poderia ser temporariamente convocada para treiná-la?
A intuição lhe dizia, porém, que fazer muitas perguntas acerca do Guardião e das outras Empousas iria fazer com que parecesse ainda mais inexperiente e insegura
do que ela já se sentia. Sem dizer que ganhara um pouco de respeito das mulheres naquele dia e não queria perdê-lo.
Mas havia algo estranho na maneira como elas desviavam os olhos do Guardião e evitavam ficar muito perto dele.
— Posso, Empousa? — Gii estava perguntando.
— Ah, me desculpe, Gii... Sim, já é hora de fazermos uma pausa. Enquanto isso, vou me informar melhor sobre essas Tecedoras de Sonhos. — As quais, ela imaginava,
eram um assunto mais seguro.
Conforme a serva mandava duas moças que trabalhavam ali perto informar aos outros três Elementos que era hora do almoço, Mikki afastou-se para um dos muitos bancos
de mármore estrategicamente colocados em meio a lindas alcovas repletas de rosas por todo o jardim. Sentou-se, percebendo como seus músculos encontravam-se doloridos
agora que havia parado de se movimentar, e ficou grata por Gii ter assumido a liderança.
As mulheres logo dividiram-se em pequenos grupos, reunindo-se em torno dos bancos e fontes. O som suave de sua conversa mesclou-se ao perfume sempre presente das
rosas, criando uma atmosfera que a acalmou a despeito de seus músculos cansados e da sensação ruim que se apossara dela a princípio, no momento em que deparara com
as flores doentes.
Mikki respirou fundo, pensando em como o jardim ficaria maravilhoso quando as rosas estivessem saudáveis outra vez. Deixando a mente vagar junto com os olhos, imaginou
os canteiros e a muralha das rosas em plena floração.
Seus devaneios foram interrompidos no instante que seu olhar pousou no carrancudo Guardião conforme ele conduzia a última das mulheres de volta através do portal.
Parecia tão sério e sombrio... Por quê? O que havia naquela floresta que o deixava tão tenso?
Droga. Talvez ele fosse sempre daquele jeito.
Não. Ela se lembrava bem do brilho de humor em seus olhos, do toque de sua mão em seus cabelos... Era óbvio que nem sempre ele era tão tenso.
Ainda assim, precisavam ter uma conversa franca. Ela não aceitaria mistérios nem subterfúgios. Se a floresta era tão perigosa, precisava saber.
O Guardião proferiu um comando conciso e o portal fechou-se de pronto. Mikki bocejou e esticou-se, tentando não dar na vista que o observava. Uma das criadas do
palácio aproximou-se dele, ressabiada, e ofereceu-lhe uma cesta de alimentos. Ele a ignorou, mas aceitou um odre, do qual bebeu profundamente. Quando o entregou
de volta à mulher, esta se afastou quase correndo.
Mikki acompanhou-o com o canto dos olhos conforme ele caminhava até uma árvore que crescia perto da muralha das rosas e pareceu desaparecer à sombra de seu tronco.
Nesse momento, Gii aproximou-se com uma cesta cheia, de onde exalavam cheiros deliciosos, e sentou-se a seu lado.
— Não gostou da comida, Empousa? — indagou quando ela não fez nenhum movimento para começar a comer.
Mikki tratou de desviar o olhar da árvore.
— Não, não... Tudo está maravilhoso. — Partiu um pedaço de pão e adicionou nele uma fatia de queijo. — Eu estava apenas me perguntando por que o Guardião não come.
O elemento Terra encolheu os ombros enquanto preparava seu próprio sanduíche.
— Eu nunca o vi comer. Não que ele não o faça... A comida que é deixada na entrada de seu covil sempre desaparece e tem que ser substituída.
— Covil? — Mikki repetiu, quase engasgando com o pedaço de queijo que tinha acabado de engolir.
— Sim, covil. — Gii parou, confusa, com a surpresa de Mikki. — O lugar em que ele dorme e onde fica quando não está cuidando das rosas.
— Pensei que ele vivesse no palácio, como nós.
— Oh, não, Empousa, ele é como um animal. — Gii pareceu chocada. — Não seria adequado que morasse no palácio.
Mikki estudou a serva, tentando compreender as palavras. O elemento Terra era gentil e compassivo. Tanto que ela passara a procurar Gii com mais frequência do que
as outras moças, e já sentia como se as duas fossem amigas.
No entanto, naquele momento, Gii lhe pareceu fria e insensível. O Guardião era um animal e talvez não necessitasse das mesmas comodidades dos que habitavam o palácio...
mas também era o protetor do Reino das Rosas.
Bem lá no fundo, aquilo não lhe parecia certo. Ao contrário, parecia dolorosamente errado.
Entretanto, ela não contestou Gii, tampouco a questionou mais. Ainda não sabia o suficiente sobre o que se passava por ali.
Mas algo não se encaixava, e tinha a ver com o Guardião. Ela já havia aprendido, só de chegar perto das rosas, que nem tudo naquele reino era como parecia... Por
isso manteria os olhos bem abertos no que dizia respeito ao protetor. Seu instinto lhe dizia que, se ela se aproximasse dele o suficiente, poderia descobrir o que
se escondia sob aquela fachada feroz.
Isso se ele permitisse. Ou se ela tivesse coragem.
Até lá iria apenas observá-lo, tentar aprender mais sobre ele e seguir seus instintos.
— Fale-me mais sobre as... Como as chamou mesmo? Tecedoras de Sonhos? — Mudou de assunto propositadamente.
O rosto de Gii se iluminou.
— As Tecedoras de Sonhos têm a capacidade de pegar as coisas comuns e as não tão comuns, incorporá-las aos sonhos e à magia e, logo depois, enviá-las para outros
mundos. É a partir do que é criado aqui que nascem todos os sonhos e a magia da humanidade.
Mikki esforçou-se para compreender.
— E quais são esses “outros mundos”?
— Seu antigo mundo, o mundo comum, por exemplo. Há também o mundo antigo, onde os deuses e deusas continuam a ser reverenciados e de onde as mulheres deste reino
e eu fomos escolhidas.
Então era a isso que Hécate se referira ao falar sobre as encruzilhadas entre os mundos, concluiu Mikki. Ela ficara confusa na hora, mas agora sentia-se mais capaz
de absorver os detalhes incompreensíveis de seu novo lar.
E percebeu que ao menos uma das dúvidas sobre as quais vinha ponderando fora respondida. As outras Empousas, obviamente, tinham vindo do mundo antigo e deviam ter
voltado para lá. Fazia sentido.
— Você disse que as mulheres precisavam voltar ao palácio para trocar de lugar com as Tecedoras de Sonhos. É isso o que elas estão fazendo lá agora? Criando sonhos
e magia?
— Sim, Empousa.
— Nossa, como eu gostaria de ver isso! Não posso assistir? — perguntou, ansiosa.
— Pode fazer mais do que assistir... — Gii sorriu. — Como Empousa, também tem habilidade para tecer sonhos e lidar com magia.
Capítulo 18
Ela possuía habilidade para tecer sonhos e lidar com magia?
As palavras de Gii permaneceram na mente de Mikki pelo restante do dia, dando voltas em sua imaginação, a qual se manteve tão ocupada quanto suas mãos. Apenas o
conceito de que os sonhos vinham de algum lugar que não o subconsciente já era bizarro.
E pensar que ela possuía a capacidade de criá-los! Era a coisa mais extraordinária que já imaginara.
— Empousa?
A voz grave do Guardião a assustou, porém Mikki teve o cuidado de encobrir seu nervosismo limpando as mãos no quitão enlameado antes de erguer-se para longe do imenso
arbusto de rosas Felicite Parmentier. Ele estava tão perto que sua sombra pareceu engoli-la, assim como as rosas em que ela vinha trabalhando.
— Ah, Guardião... Só um momento — Mikki pediu, tentando ganhar tempo para se acalmar. Então chamou Gii. — Gii, as rosas deste canteiro precisam ser replantadas.
Pode me lembrar de trazer estacas de madeira amanhã?
— Claro, Empousa — a serva respondeu, solícita.
Uma vez recomposta, Mikki virou-se para o Guardião.
— Perdão. No que posso ajudá-lo?
— Está anoitecendo. As mulheres não podem permanecer na floresta depois que escurecer.
Por cima do ombro largo, Mikki espreitou o sol que, de fato, começava a se pôr sobre o imenso dossel verde da floresta.
— Céus! Perdi a noção do tempo. Como pode ser tão tarde? Mas está certo. Já é hora de pararmos.
— Já trabalhou muito, Empousa.
Mikki sorriu. Pelo visto, ele não se encontrava mais aborrecido com ela.
— Soa como um elogio...
— E é. — O Guardião assentiu de leve.
Ela respirou fundo, discretamente.
— Seria uma ajuda e tanto se você checasse o restante da muralha e me informasse se existem outras partes vulneráveis — falou, agora que ele parecia ter recuperado
o bom humor. — Ela é tão grande... Quero ter certeza de que será fertilizada por inteiro. Mas sinto que é importante começarmos a trabalhar nas rosas dos jardins.
— Faz sentido. O jardim também precisa de seus cuidados. Vou inspecionar a muralha amanhã cedo.
— Obrigada. Isso vai me economizar um bom tempo. — Mikki tentou não prestar atenção na forma como o sol brilhava, incandescente, por trás dos chifres escuros. Como
ele não fez menção de se afastar, ela acrescentou, tensa: — Estive pensando... Seria bom se Gii ou outra pessoa me arrumasse um mapa dos jardins. Assim poderei dividir
a área em quatro: Norte, Sul, Leste e Oeste. Cada um dos Elementos pode assumir uma dessas partes com um grupo de mulheres, e essa seria a seção dos jardins pela
qual elas ficariam responsáveis... pela fertilização ou qualquer outra coisa necessária. Claro que vou passar por todas as seções para supervisioná-las, mas dividir
a área pode organizar melhor as coisas.
— Excelente. — Ele pareceu prestes a dizer mais, no entanto desviou o olhar, parecendo mudar de ideia.
— O que foi? — Mikki o fitou, atenta. — Ei, preciso de todos os conselhos do mundo quanto a esse trabalho... Não precisa ficar preocupado em pisar nos meus calos.
A fera enrugou a testa e olhou de seus cascos fendidos para os pés delicados dela, calçados por chinelas.
Mikki caiu na gargalhada, despertando olhares curiosos de várias das mulheres.
— Eu não falei literalmente! É apenas um modo de dizer... Você estaria “pisando nos meus calos” se tentasse me dar conselhos sem que eu os tivesse pedido, é isso.
— Ah — ele bufou. E, para a total surpresa dela, riu. Um riso que soou alto e claro, e não houve mulher por ali que não arregalasse os olhos, abismada.
— Não está rindo porque pensou mesmo em pisar no meu pé, não é?
— Não agora que concordou que as mulheres devem deixar a floresta.
Aquilo era um gracejo? O Guardião estaria mesmo brincando com ela?
A vida era mesmo uma caixinha de surpresas.
— Gii? — Mikki chamou, sem desviar o olhar do dele. — Pode avisar às mulheres que terminamos por hoje? Certifique-se de chamar as que estão na floresta primeiro,
por favor. O Guardião precisa fechar o portal o mais rápido possível.
— Sim, Empousa — aquiesceu a serva, lançando um olhar nervoso ao ser diante dela.
— Obrigado, Mikado — ele falou em voz baixa. — Não considero o reino seguro enquanto essa porta permanece aberta.
Sem saber se aquele era o momento certo para perguntar sobre os perigos que a floresta encerrava, Mikki abaixou-se para apanhar o par de tesouras que usara para
podar as rosas. A alça da túnica escorregou por seu ombro, mas, antes que ela pudesse puxá-la de volta, ele inclinou a cabeça e, como se em câmera lenta, usou a
ponta do chifre para recolocá-la no lugar com delicadeza.
Uma onda de calor percorreu toda a extensão de seu braço, e seus olhares se encontraram.
— Eu não... não estou acostumada a usar esses quitões — Mikki gaguejou incoerentemente.
— Vai se acostumar em breve.
— O-obrigada — ela falou sem fôlego. Embora sua voz tivesse saído mais fraca do que um sussurro, a intensidade nos olhos escuros obrigou-a a perguntar: — Esse tipo
de coisa também é dever do Guardião?
O rosto moreno, que parecia tão legível um momento antes, de repente se fechou. Como se lembrasse a si mesmo de sua condição, ele recuou um passo.
— É... Sim — respondeu, inseguro, sem olhar para ela. — Cuidar de você é meu dever.
Mikki franziu o cenho. Que diabo estava acontecendo com ele? Aquele seu humor instável estava acabando com ela!
Assim como o silêncio incômodo que se instalou entre eles.
Estava procurando alguma coisa para dizer quando o Guardião manifestou-se outra vez:
— Posso lhe desenhar o mapa, se quiser. — Sua voz soou profunda e tão inescrutável como sua expressão. Ele fitou-a por um instante, então desviou o olhar para longe,
inexplicavelmente nervoso.
— Mapa? — Mikki repetiu, distraída, depois se lembrou. — Ah! O mapa dos jardins para que eu possa dividir a área entre os Elementos... Seria ótimo — concordou depressa.
— Dê-me algum tempo para arrumar as coisas por aqui e me limpar. Mais tarde podemos nos encontrar na minha varanda e discutir esse projeto enquanto jantamos, que
tal? Pode levar o que tiver de material e já começar um esboço para mim.
— Não! — A palavra saiu quase num rugido, fazendo com que várias cabeças se voltassem em sua direção. — Não... — repetiu o Guardião em voz baixa. — Não seria correto.
— Não sei por quê! — ela replicou, dando de ombros. — Eu preciso comer, você também. Temos que conversar sobre isso, e quanto mais cedo, melhor. Assim poderei dar
as novas coordenadas para as servas bem cedo, amanhã.
Mikki se questionou se deveria ou não incitá-lo. Aquilo teria algo a ver com a maneira insensível com que Gii se referira a ele antes?
Hora de eu parar de me questionar e seguir meus instintos!, disse a si mesma.
— Se não quer ir à minha varanda, o que eu não compreendo, porque ontem mesmo esteve lá, posso pedir que levem o jantar para o lugar onde mora. Poderíamos comer
lá, enquanto discut...
— Eu vou à sua varanda — ele decidiu depressa.
— Ótimo. — Ela teve o cuidado de não demonstrar a alegria que sentiu ao vê-lo ceder. — Mas não se esqueça de que tenho de terminar aqui antes e depois tomar um banho
porque...
O Guardião levantou a mão para interrompê-la.
— Prefere que eu o invoque quando estiver pronta? — Mikki perguntou num murmúrio.
— Isso mesmo. Chame e eu irei até você — ele falou com um suspiro, e afastou-se em direção ao portal.
Mikki sorriu.
— Acho que me dei bem — sussurrou para o arbusto de Felicite Parmentier.
— Céus!, o que eu não daria por um longo banho de imersão em uma banheira de hidromassagem! — Mikki disse para ninguém em particular enquanto, exausta, caminhava
lentamente de volta ao palácio na companhia de suas quatro servas.
— O que é um banho de imersão em uma banheira de hidromassagem? Pode me explicar? — Nera quis saber.
— Claro, e vai gostar, pois tem tudo a ver com água. — Ela sorriu para o elemento Água, que riu em resposta. — Pode-se tomar um banho de imersão com hidromassagem
numa enorme banheira de água quente que assopra a água em torno de você, formando bolhas que aliviam seus músculos cansados. — Mikki suspirou, melancólica. — Mas
isso só é possível por meio da tecnologia, que é a versão do meu mundo para a magia.
— Pois acho que seu novo mundo pode lhe proporcionar coisa melhor...
Gii sorriu significativamente para as outras servas.
— Sem dúvida podemos oferecer muito mais do que uma banheira de água borbulhando para a nossa Empousa — confirmou Nera.
— É verdade! — concordou Aeras.
— E se quiser um banho mais quente, posso cuidar disso — garantiu o elemento Fogo, travessa.
Gii tomou uma das mãos de Mikki, e Nera, a outra. Com energia renovada, as servas a arrastaram pela lateral do palácio, passando pelo local onde ficava seu quarto
e a varanda em curva e rumando por um caminho entre duas fileiras de arbustos ornamentais cortados em forma de cones. A alameda fazia uma curva e então revelava
uma ampla escadaria em espiral que seguia para a direita. Antes que chegassem ao final dela, Mikki percebeu a temperatura subir e sentiu um perfume vagamente familiar.
A escada acabava em uma plataforma. Ela pisou no mármore branco e suspirou, maravilhada.
— Piscinas de água quente!
Mas não eram como nenhuma que ela já vira.
Havia dois níveis: o primeiro, superior, continha piscinas menores; cinco no total, Mikki contou depressa. E todas cheias com uma água borbulhante azul-turquesa.
Cada uma delas possuía mais ou menos o dobro de uma banheira de hidromassagem, e era como se tivessem sido escavadas na rocha irregular e branca por uma colher de
sorvete gigante.
Da borda desse nível, a água coberta por vapor caía em cascata para uma piscina maior. Mikki caminhou até a beira e espiou lá para baixo. A piscina era funda e rodeada
por mais pedra clara. E era possível ver, através da água límpida, a areia branca que havia ao fundo.
— As piscinas de cima são mais quentes que a de baixo — explicou Nera. — Garanto que elas vão ajudá-la a afastar as dores no corpo.
— Inacreditável! — Ela suspirou. — Para ficar mais perfeito eu só precisaria de sabão, roupas limpas e muito vinho!
Mal tinha pronunciado as palavras, ouviu passos leves na escada atrás delas. Sem palavras, assistiu a várias mulheres deslocarem-se pelo complexo, apressadas. Algumas
traziam várias bandejas com taças e jarras de vinho. Outras carregavam tecidos nos braços, enquanto outras, ainda, seguravam inúmeras cestas repletas de delicadas
garrafas de vidro, esponjas macias e escovas.
Gii riu ao ver a expressão de Mikki.
— Empousa, se desejar algo, vai acontecer! Essas mulheres são criadas do palácio, cuja única responsabilidade é fazer todas as vontades da Empousa de Hécate.
— É como magia! — sussurrou Mikki.
— Não é como magia. É magia. A sua magia — garantiu Gii, soltando os broches que mantinham sua túnica suja precariamente presa ao ombro.
— Então, meus desejos são mesmo uma ordem? — Mikki perguntou, com uma sensação de dormência enquanto as servas dispunham as bandejas na piscina e, com uma reverência,
desapareciam escadaria acima.
— Claro que são — concordou Gii.
— Meu Deus, e se eu desejar algo inapropriado?
Gii fitou-a nos olhos.
— Creio que seja sábia demais para isso, Empousa.
Ela esperava que sim, refletiu Mikki, preocupada. Por sorte faria muito esforço físico por algum tempo. Desejar um fudge cake triplo àquela hora não poderia ser
classificado como inadequado, mas ficar sem exercício depois disso seria definitivamente imprudente.
Perdida em pensamentos, ela permitiu que o elemento Terra a livrasse do quitão e, com um gemido de prazer, escorregou, nua, para uma das piscinas borbulhantes. Nera,
Aeras e Floga já haviam enchido cinco taças até a borda com o vinho branco da cor da luz do sol e arrastado cestas cheias com garrafas e esponjas para a borda de
cada uma das piscinas.
Gii passou um cálice a Mikki antes de começar a tirar a própria roupa.
— Que bom que escolheu este vinho branco gelado em vez de um tinto! — Floga falou da piscina à esquerda da dela. — Sonhei com esta delícia a semana toda!
— Mas eu não... — Mikki começou e, em seguida, fechou a boca ao perceber que, sim, havia imaginado vinho branco e refrescante enquanto falava. Inacreditável.
A bebida gelada fazia um maravilhoso contraste com a água quente e borbulhante, e ela estremeceu de prazer. Descansou de encontro ao lado liso da piscina e fitou
a beleza que se estendia a sua frente. As pequenas lagoas situavam-se na parte de trás do precipício em que o palácio fora construído, e a vista era espetacular.
Olhou uma área dos jardins repleta com o que parecia ser um mesmo tipo de rosa, as aquais tinham sido plantadas em canteiros em forma de espiral e, embora certamente
estivessem doentes, pareciam mais verdes e saudáveis do que as do restante do reino.
Além desses canteiros, podia ver dali a grossa muralha de Multifloras e, um pouco além, a floresta. O sol já havia se posto no horizonte, escorado nas folhas verdes;
contudo, o céu ainda ostentava algumas cores.
Mikki tomou um gole de vinho e fixou o olhar nas roseiras circulares, apreciando a simetria e o estilo dos canteiros exclusivos. Conseguia vislumbrar dali a silhueta
de alguns botões, e alguns deles pareciam até mesmo ter desabrochado. Eram vermelhos, com um toque de ouro na base...
Sentou-se de um salto, fazendo a água espirrar sobre a pedra lisa e clara ao redor da piscina.
— Eu estava me perguntando quando você ia notar... — Gii falou baixinho.
— Esses canteiros sempre foram de rosas Mikado?!
— Não. Eles mudam a cada nova Empousa. Esta parte dos jardins é reservada às Altas Sacerdotisas de Hécate. Se olhar com atenção, verá que no meio do canteiro central
há um pequeno templo. É seu santuário particular, um lugar em que jamais será perturbada.
Um pensamento brotou na mente de Mikki e, quase sem querer, ela fez a pergunta:
— Onde é o covil do Guardião?
— A entrada fica logo abaixo destes mananciais. Hécate fez questão de acomodá-lo num local próximo, de maneira que ele nunca ficasse distante de sua Empousa.
Mikki percebeu o desagrado na voz de Gii e virou-se para fitar a serva.
— Você não gosta dele.
— É irrelevante eu gostar ou não do Guardião. Ele é um animal e seu único propósito é proteger o reino — a moça soou estranhamente concisa.
— Ela tem medo de que ele cometa outro deslize e condene o reino a mais feitiços — explanou Floga, a expressão tão fria e desaprovadora quanto sua voz.
— Parece que está preocupada com isso também — observou Mikki, perspicaz.
— Estou...
— Vocês também? — Ela olhou para Aeras e Nera, e ambos os Elementos assentiram sem cerimônia. — Afinal, o que o Guardião fez para deixar Hécate com tanta raiva?
— indagou, ao mesmo tempo que se perguntava por que ela se sentia tão irritada com as servas e tão disposta a defender aquela criatura sinistra.
Quando ninguém respondeu, voltou-se para Gii. A serva moveu-se, inquieta, e não fitou-a nos olhos.
Mikki suspirou.
— Querem fazer o favor de me dizer o que aconteceu? É tão terrível assim?
Afinal, Hécate permitiu que ele voltasse!
Gii ergueu o rosto finalmente, e seus olhos brilharam com lágrimas não derramadas.
— Não podemos dizer, Mikado.
— Só podem estar brincando! Por que, diabos, não podem me dizer?
— Perdão... Perdoe a todas nós, mas não estamos autorizadas a falar sobre isso. Nem deveríamos ter permitido que a conversa chegasse a este ponto. — Lágrimas escorreram
pelas faces do elemento Terra.
— Por favor, não fique zangada, Empousa! — implorou Nera.
— Gii está dizendo a verdade! — choramingou Aeras. — Fomos proibidas de tocar nesse assunto.
— Ela está certa. Eu não devia ter mencionado isso — afirmou Floga. — Hécate ordenou que essa história permanecesse no passado. Não podemos falar do assunto nunca
mais.
— E quanto ao Guardião? Ele falaria?
— Oh, não, Empousa! — implorou Gii, o rosto antes corado pelo banho quente perdendo toda a cor. — Não deve falar do passado com ele!
Os outros Elementos ecoaram suas súplicas, horrorizadas.
— Está bem, está bem! Eu não vou perguntar a ele. Fique tranquila, Gii, por favor, não chore... Vamos esquecer esse assunto — Mikki assegurou, odiando-se por ter
causado tanta aflição nas moças. — Agora me ajudem a descobrir o que há nestas garrafas. Não quero usar óleo em vez de xampu nos cabelos.
Fungando e enxugando os olhos, Gii apontou os sabonetes e óleos na cesta de Mikki; contudo, esta mal prestou atenção em sua explicação. Seus pensamentos continuavam
girando em torno das questões não respondidas. Apesar das advertências, ela ainda pretendia perguntar ao Guardião o que acontecera.
Não naquela noite, claro. Não tão cedo. Mas e se viesse a conhecê-lo melhor? Naquela tarde, ele havia sorrido e até brincado com ela.
E a havia tocado...
Estremeceu ao lembrar-se de como o simples toque de seu chifre tinha feito a pele de seu braço se arrepiar e de como seus olhos pareciam ver a alma dela.
Admita... Ele a tira do prumo!
Era verdade.
Mikki silenciou os pensamentos, porém, obrigando-os a deixar a fera e se concentrar no mistério que cercava o reino que esta guardava. Hécate não podia esperar que
ela vivesse ali sem que quisesse descobrir a sequência de eventos que a levara a se tornar sua Empousa. Talvez a deusa houvesse proibido as servas de falar sobre
o assunto porque não queria que ela ficasse sabendo das coisas por terceiros.
Gii não dissera especificamente que o Guardião também fora proibido de falar. Apenas se preocupara diante de sua intenção de perguntar a ele sobre o passado...
E era evidente que suas damas de companhia, assim como as outras mulheres no reino, pisavam em ovos quanto à criatura. Não sabiam se tratavam o Guardião como um
cão raivoso ou um semideus.
Pois ela não pensava nele como nenhuma das duas coisas.
Tirou a rolha da garrafa que Gii apontara como sendo xampu e derramou uma quantidade generosa dele nos cabelos. Conforme a noite esfriava, o vapor das piscinas naturais
erguia-se em ondas espessas, envolvendo cada banhista na névoa quente. Perdida em um mundo só dela, Mikki respirou fundo, notando que o sabão tinha a mesma fragrância
do perfume exótico que Sevillana havia lhe dado.
Terminou de lavar e enxaguar os cabelos e destampou as outras garrafas: sabão, xampu e óleo possuíam todos o mesmo aroma.
— Têm o perfume da unção da Empousa... Nenhuma outra pessoa pode usá-lo.
Como cada mulher degustava seu vinho e se banhava, as piscinas tinham se aquietado e a voz de Floga a assustou. Mikki fitou-a através do vapor e notou a estranha
expressão do elemento Fogo. Era quase como se ela estivesse irritada.
— Queria usá-los, Floga? — perguntou sem preâmbulos, baixando a voz para que suas palavras chegassem apenas até a linda ruiva.
— Não, Empousa! — A serva respondeu num sussurro, contrariada. — Claro que não.
Quando a moça desviou olhar do dela, contudo, Mikki não teve tanta certeza disso.
Capítulo 19
— Não, obrigada, Gii. Vou comer alguma coisa e ir direto para a cama. Estou exausta, e amanhã vai ser um dia cheio. — Mikki abriu um grande sorriso, dizendo a si
mesma que não estava mentindo para a serva. Estava apenas omitindo parte da verdade.
— Mas, Empousa, tem certeza de que não quer que eu a ajude com a camisola?
— Não é necessário. — Mikki olhou para a veste amarela, simples e elegante. — Acho que já estou me acostumando a amarrar essas túnicas.
Gii sorriu.
— E a que usou esta tarde deu certo como roupa de trabalho?
— Acho que sim. — Mikki foi sincera. Após a dificuldade inicial em ficar dobrando o tecido das saias, tinha descoberto que a veste era confortável e até adequada
para se trabalhar...
Mesmo que tivesse exigido alguma ajuda do Guardião para ficar no lugar.
Na verdade, talvez por isso mesmo ela havia gostado de usá-la.
— Então gostou mais do quitão do que do jens?
— Jeans. — Mikki riu. Obrigou-se a se concentrar na moça a sua frente e, num impulso, deu-lhe um forte abraço. — Quer saber? Acho que gostei, mesmo, mais do quitão
do que do jeans.
Gii retribuiu o abraço, afetuosa.
— Descanse bem, Empousa.
— Você, também, Gii. Chame as outras meninas assim que eu acordar, e tomaremos o café juntas. Estou com algumas ideias que quero discutir com vocês.
— Como quiser, Empousa. — Gii fez uma reverência, então saltitou alegremente até a escada da varanda e desapareceu na escuridão.
Uma vez sozinha, Mikki viu-se ansiosa quanto ao restante da noite. Tal como acontecera na noite anterior, a mesa fora colocada do lado de fora das portas de vidro
e, de novo, encontrava-se repleta de carnes frias, queijos, pão e vinho. Notou as duas cadeiras, mas havia apenas um prato com talheres e uma taça.
Franziu o cenho. Ele não iria se safar dessa. Ela o convidara para jantar, e assim seria!
Fechou os olhos e pensou nas criadas que tinham aparecido de forma mágica quando ela desejara vinho, sabão e roupa limpa.
— Preciso de mais um lugar na mesa, por favor! — pediu em voz alta.
Antes que pudesse contar até dez, ouviu duas batidas fortes na porta do quarto. Enfiou a cabeça para dentro do cômodo e ordenou que entrassem.
De imediato, reconheceu uma das mulheres que a servira na piscina natural, a qual, apressada, veio carregando uma bandeja com as louças.
Mikki foi a seu encontro.
— Obrigada por ter vindo tão rápido.
— Peço desculpas, Empousa. Se eu soubesse que não estaria jantando sozinha, já teria colocado a mesa para dois.
— Não se preocupe com isso. Na verdade, foi uma mudança de planos — ela respondeu, evasiva, torcendo para que as criadas só lessem seus pensamentos quando ela estivesse
precisando de alguma coisa, e não quando estivesse mentindo. Estendeu as mãos para pegar a bandeja. — Pode deixar...
A mulher pareceu confusa.
— Quer que eu traga mais comida e vinho?
— Não. Já trouxe o suficiente. Não precisa se preocupar.
— Nunca é um incômodo atendê-la, Empousa.
Mikki esforçou-se para não suspirar. Podia não ser um incômodo servi-la, mas já podia dizer que tanta diligência podia ser, sim, muito aborrecida.
— Qual é seu nome? — perguntou, mudando de tática.
A criada piscou, surpresa.
— Daphne.
— Daphne... Lindo nome.
A moça corou até a raiz dos cabelos.
— Eu mesma levo isto para a mesa agora, Daphne. — Apanhou a bandeja das mãos da desconcertada serva. — Mas vou precisar de você amanhã cedo. Pretendo tomar o café
da manhã na companhia dos Quatro Elementos. Não se esqueça de trazer o suficiente para todas nós, está bem?
— Sim, Empousa.
— Maravilhoso! Agora, você e as outras mulheres podem descansar... Não preciso de mais nada. — Daphne abriu a boca para protestar, contudo Mikki a interrompeu com
firmeza: — Boa noite, Daphne. Eu a verei amanhã, no desjejum.
Relutante, a serva curvou-se e deixou o quarto.
— Saco! — Mikki murmurou para si mesma enquanto punha a mesa. — Esse “Sim, Empousa?”, “O que posso fazer por você, Empousa?” pode soar interessante na teoria. Na
prática, é um porre!
Talvez não fosse se ela não estivesse se esgueirando feito uma adolescente prestes a se encontrar com um namorado à revelia dos pais.
— Não sou nenhuma adolescente! — disse ao próprio reflexo enquanto escovava os cabelos já secos. — E ele não é meu namorado. Vai ser apenas um jantar de negócios.
— Pressionou a mão contra o frio na boca do estômago. — Então, pare de agir como uma menininha, droga!
A mesa estava pronta. Ela estava pronta.
Ou tão pronta como podia estar, concluiu Mikki, apreensiva.
Caminhou até a varanda e sentou-se. Respirando fundo, colocou as mãos no colo, fechou os olhos e pensou no Guardião: na forma como ele cuidara das mulheres naquela
tarde, em seu sorriso, no calor de seu corpo quando ele estava perto dela, em seu toque... E em como ele parecera só ao desaparecer na sombra da árvore em vez de
se juntar ao restante do grupo na hora do almoço.
— Parece triste, Empousa. Há alguma coisa errada?
Mikki abriu os olhos. Ele estava em pé, fora do círculo de luz que o candelabro emanava de cima da mesa.
— Não estou triste. Estava apenas me concentrando. Não estou acostumada a chamar alguém apenas pensando na pessoa.
— É um dom com o qual Hécate contempla cada Empousa.
— Fico muito agradecida, mas talvez ainda leve algum tempo para me habituar a ele. — Fez um sinal na direção da cadeira no outro lado da mesa. — Sente-se... Eu não
tinha percebido como estava com fome até agora, quando senti o cheirinho da comida.
Ele saiu das sombras devagar, como se lhe dando tempo para se adaptar à sua presença.
Mikki disse a si mesma para não ficar olhando. Seria muito rude.
Mas ele era uma criatura tão inacreditável que não havia como dar apenas um sorriso e iniciar uma conversa educada, fingindo que, a cada nova visão sua, ela não
ficava em choque.
Seus cascos tocaram o mármore no silêncio e Mikki viu-se olhando para baixo. Ele vestia outra túnica curta, ao estilo militar, o que deixava grande parte das pernas
musculosas desnudas. Exceto por estas serem cobertas por uma camada de pelos lisos, eram mais parecidas com as de um ser humano do que com as de um animal. O peitoral
de couro moldava claramente os músculos do peito e do abdômen, os quais eram, sem dúvida, os de um homem.
Não, Mikki corrigiu-se em pensamento. Nenhum homem tinha um tórax como aquele. Ele não era mais de pedra, mas podia ter sido esculpido em mármore de tão perfeito.
O Guardião aproximou-se da mesa e parou, como se permitindo que ela o estudasse. Mikki sentiu o rosto arder, traiçoeiro.
— Como se chama isso? — perguntou num impulso, tentando disfarçar a vergonha por tê-lo encarado.
— Isso o quê, Empousa? — Ele enrugou a testa, confuso.
— Essa armadura que você usa... Lembre-se de que sou nova por aqui. — Ela ergueu uma ponta da própria roupa. — Apenas esta manhã Gii me ensinou que isto é chamado
de quitão. Então fiquei curiosa por saber sobre essa sua roupa. — Ela sorriu de leve, perguntando-se se não estava parecendo uma imbecil.
Provavelmente.
Ele olhou para si mesmo, depois voltou a fitá-la.
— É o cuirasse de um guerreiro. Uma couraça.
— Cuirasse — ela repetiu a palavra. — Usa sobre um quitão?
— Não, esta é uma túnica curta. Um guerreiro não poderia vestir um quitão em uma batalha.
Diante da expressão divertida no rosto forte, Mikki ousou apontar para as pernas desnudas dele.
— Pois eu acho que você precisaria de mais proteção numa batalha.
O rosto do Guardião endureceu.
— Eu precisaria se fosse um homem. Os gregos costumam entrar numa batalha com enemides de couro dos tornozelos aos joelhos. — Ele levantou a pata e a baixou em seguida
com um baque surdo. — Eu não necessito de tal proteção.
— Compreendo... — Ela sentiu um pequeno tremor, misto de medo e fascínio, percorrer a pele. Fitou os olhos escuros, orgulhosa por fazer a voz soar normal: — Esse
tipo de uniforme deve ser muito útil em seu trabalho.
— Ser o Guardião de Hécate não é meu trabalho, é minha vida.
Mikki obrigou-se a dar um sorriso despreocupado e colocou uma fatia de carne fria no prato.
— Não tem ideia de quantos homens no meu antigo mundo falam o mesmo sobre seus trabalhos...
— Eu não sou um homem — ele reafirmou num rosnado.
Desta vez, ela suspirou, largou o garfo e o encarou.
— Estou bem ciente disso. Assim como imagino que você e os outros habitantes deste reino estejam bem conscientes de que não sou como as outras Empousas. Nem por
isso fico cheia de melindres! Fico lembrando que sou provavelmente uns vinte anos mais velha do que as outras, e que fico confusa com quase tudo o que me cerca aqui?
Não. Por dois motivos. Em primeiro lugar porque é muito aborrecido e, em segundo, porque ficar me lamentando não vai mudar nada. Ou seja, eu poderia reclamar o tempo
todo sobre querer ser mais alta ou mais magra, mas isso não iria mudar o fato de que estou uns dois, três... — ela hesitou, reconsiderando — uns quatro quilos acima
do meu peso. — Apontou para a cadeira outra vez, frustrada. — Agora sente-se e vamos jantar. Estou faminta e, se não como logo, fico irritada.
Para sua surpresa, ele não rosnou para ela nem fez meia-volta. Sentou-se.
Mikki pegou o garfo e prosseguiu, carregando o prato com uma variada e deliciosa seleção de carnes e queijos. Naquela noite, tinham trazido também azeitonas pretas
picantes e pimentões assados, bem como figos frescos.
Ela levantou a cabeça quando percebeu que ele continuava apenas sentado a sua frente, e ergueu uma sobrancelha.
— Não estou acostumado a comer na companhia de outros — explicou o Guardião em voz baixa.
Mikki não teve que indagar por quê. Gii já havia respondido a essa pergunta. O restante do reino o via apenas como uma fera, um animal. A própria Hécate tinha afirmado
que ele nunca fora e nem nunca seria um homem.
Pois ela via as coisas de modo diferente.
Não, ele não era um homem... Mas também não era um animal.
— De onde eu sou é pouco educado deixar alguém comer sozinho, sabia?
— E você não é mesquinha, Mikado.
Ele não colocou a frase como uma pergunta, mas ela respondeu assim mesmo.
— Não. Às vezes sou egoísta e teimosa; até mesmo cínica. Mas posso jurar que nunca fui mesquinha.
Enquanto falava, algo no rosto dele mudou. Era como se ela tivesse, de alguma forma, retirado a camada protetora dentro da qual ele se mantinha, deixando-o, inesperadamente,
muito vulnerável.
Mikki lembrou-se do rugido terrível de solidão que ecoara da estátua pelo mundo moderno até seus sonhos. Quis estender a mão e tocá-lo, dizer-lhe que tudo ficaria
bem, mas, de repente, ficou com medo. Não do ser fantástico que continuava sentado, sem jeito, do outro lado da mesa, e sim de si mesma.
Desviou o olhar da emoção estampada em seus olhos e ocupou-se em arrumar a comida. Não demorou e ouviu o tilintar das louças e talheres, o que indicava que ele também
enchia seu prato.
Encheu o próprio cálice com o vinho branco gelado, cujo jarro transpirava, e ficou contente por ser o mesmo vinho excelente que lhe tinham oferecido nas piscinas.
Olhou para o Guardião.
— Vinho?
Ele concordou, e ela o serviu. Então ergueu a própria taça e sorriu.
— Às rosas — falou num brinde.
Ele hesitou. Logo depois, fez um pequeno gesto com a mão e falou uma única palavra em voz baixa. Só depois levantou a taça, a mão enorme envolvendo o cristal delicado
desajeitadamente, como se estivesse com medo de esmagá-lo.
— À nossa nova Empousa.
Quando ela ergueu o copo até os lábios, viu a rosa branca e perfeita
flutuando no mar de vinho.
Sorriu. Esta não estivera lá antes. Ele a fizera aparecer para ela.
Fechou os olhos e bebeu, inalando seu doce perfume; um acompanhamento perfeito para o líquido borbulhante.
Mais tarde, pensou, iria se lembrar daquele como o exato momento em que se apaixonara por seu Guardião.
Capítulo 20
Mikki queria que o jantar fosse tranquilo e casual, mas, no fim, houve vários momentos embaraçosos. O Guardião manteve-se em silêncio e desconfortável, o que fazia
todo o sentido. Ele sempre comia sozinho. O reino inteiro o considerava um animal, um intruso. Como podia saber como se portar educadamente em um jantar?, ela se
perguntou, desolada.
Teve o cuidado de não fitá-lo, pois, sempre que o fazia, ele parava de comer. Tentando deixá-lo mais à vontade, dispensou sutilezas como o garfo e a faca e passou
a consumir a carne e o queijo com os dedos, mastigando mais ruidosamente do que o normal. Ainda assim ele continuou calado, comendo e bebendo pouco, e apenas quando
sua atenção encontrava-se em outro lugar.
Mikki encontrou seus olhos por cima da mesa e desviou o olhar pela milésima vez. Pena não terem uma televisão diante da qual pudesse se sentar ou, pelo menos, outros
comensais nos quais pudessem prestar atenção. Ele precisava de algo que o fizesse esquecer que estava jantando ali com ela.
Foi então que Mikki se lembrou.
— O mapa dos jardins! — exclamou, ansiosa. — Poderia desenhá-lo para mim enquanto estamos comendo... Aposto que as criadas que me trazem comida poderiam arrumar
papel e lápis.
Ela poderia ficar perto da porta e não permitir que as criadas entrassem no quarto. Ninguém precisava saber que ele se encontrava ali.
— Fiz um enquanto aguardava seu chamado.
O Guardião estendeu a mão enorme e falou uma palavra que soou como um grunhido misturado a vogais. No instante seguinte, um pergaminho surgiu em sua mão. Ele o estendeu
para ela, e Mikki o segurou devagar, com medo que desaparecesse com seu toque.
— É incrível a maneira como pode fazer as coisas aparecer. — Ela limpou a garganta e, em tom de brincadeira, acrescentou: — Será que não pode me ensinar a fazer
isso? — Duvidava, mas, naquele mundo, tudo era possível.
— Receio que tivesse de ter nascido filha de um Titã para ter a capacidade de conjurar objetos inanimados.
— Ah, que pena! Seria ótimo poder conjurar uma enxada ou tesouras de poda quando eu precisasse delas em vez de ter que carregá-las para todos os cantos.
Os lábios dele curvaram-se num breve sorriso.
— Em compensação eu não tenho a capacidade de invocar os Quatro Elementos, tampouco de lançar o círculo sagrado de Hécate.
Mikki sorriu de volta.
— Ser Empousa tem suas vantagens.
— Concordo. — Ele ergueu o vinho com ela novamente e, desta vez, pareceu mais à vontade ao segurar a taça de cristal.
Mikki empurrou alguns dos pratos até a borda da mesa, abrindo espaço para o amplo pergaminho. Desenrolou o mapa e colocou quatro dos pratos menores em cada um dos
cantos, de modo a poder estudá-lo.
Pelo visto, o esboço fora feito com pena e tinta. Ele havia desenhado um círculo amplo e espesso que representava claramente os limites da muralha. Dentro dele,
em extraordinários detalhes, fizera a planta do jardim. O palácio fora colocado ao Norte, onde ele desenhara até mesmo a varanda em que estavam, bem como o rochedo
atrás da gigantesca construção, onde ficavam as piscinas naturais e os canteiros de rosas exclusivos dela. O Templo de Hécate fora representado em forma de cúpula,
acompanhado do imenso chafariz, o qual, ela pôde ver, ficava bem no centro dos vergéis. E, espiralando destes, como raios de uma roda, desenhara os inúmeros canteiros
de rosas aninhados em um labirinto de veredas entrelaçadas.
Mikki esperava algo parecido com um desenho de escola, mas aquilo era uma obra de arte rica em detalhes e beleza.
Perplexa, olhou do mapa para a criatura que o fizera com tanto cuidado e inesperado talento.
— Mas, Guardião, este mapa está maravilhoso! Não apenas tem tudo o que preciso para dividi-lo em quatro partes e mostrar às servas exatamente qual a área dos jardins
pela qual elas serão responsáveis, como também vai me ser muito útil! Agora não tenho mais que me preocupar em não encontrar o caminho de volta para o palácio. —
Fitou as mãos gigantescas que assemelhavam-se mais a enormes patas do que às ferramentas delicadas de um artista. — Como fez isto?
Por um momento, ele não respondeu. Em seguida, ergueu a mão esquerda devagar. Era a mão de um homem, porém maior, com dedos do tipo que um linebacker de futebol
americano teria.
— Elas são realmente mais habilidosas do que parecem — murmurou. — Levei séculos para aprender a manejá-las.
Espalhou bem os dedos, e sua mão tremeu antes que, de cada unha, brotasse uma longa garra.
— Cacete! — Mikki exclamou, estupefata.
Ele soltou uma risada áspera.
— Isso é uma praga?
Ela endireitou a espinha.
— Mais ou menos. De péssimo gosto. Eu devia cuidar da minha língua, mas você... — Mais uma vez, ela ficou sem palavras. Só conseguia olhar para as cinco facas perigosas
em que os dedos dele tinham se transformado.
— Eu a assustei — ele concluiu.
— Não! — Mikki replicou depressa. — Você não me assusta, apenas me surpreende. — Fitou-o nos olhos. — Posso tocar?
— Sim... — A palavra pareceu brotar do fundo de seu peito.
Ela tocou uma das garras reluzentes.
— Você é como o Wolverine.* 1.
— Como o carcaju, aquele animal pequeno e temperamental?
— Não! — Fascinada, Mikki continuou a olhar as garras, sentindo as lâminas frias e duras na ponta dos dedos. — Esse também é o nome de um personagem dos quadrinhos...
uma espécie de livro do meu antigo mundo. Na verdade, ele deve se chamar Wolverine por causa do nome inglês do bicho. É um homem que tem habilidades especiais. Uma
delas é que pode fazer brotar garras das mãos, assim mesmo.
O Guardião não tirava os olhos do dedo que o tocava, quente.
— E esse Wolverine também é um demônio rejeitado pelo restante dos personagens da história?
— Ele tem lá seus problemas... Mas no fundo é um homem de bom coração que se esforça para fazer a coisa certa. — Mikki finalmente ergueu os olhos para os dele. —
Depois que você o conhece melhor, começa a compreender que o único demônio dentro dele é o que ele próprio imagina.
Não conseguiu mais desviar o olhar. Aqueles olhos escuros devoravam sua razão. De repente, já não importava o que ele era. Não enquanto ficasse olhando para ela
como se ela fosse seu mundo.
Com um pequeno tremor, Mikki sentiu as garras se retraírem e percebeu que agora sua mão descansava na dele. Com uma risadinha nervosa, puxou a dela depressa.
— Usa suas garras como pena de escrever?
— Sim, Empousa. — Sua expressão tornou-se ilegível novamente.
Mikki sentiu o estômago se apertar. Não queria que ele subisse a guarda outra vez e, em vez de recostar-se na cadeira, colocou a mão em seu antebraço.
Os olhos escuros do Guardião voltaram-se para ela, contudo ele nada disse; tampouco afastou-se de seu toque.
— Obrigada por este belo mapa. Era exatamente o que eu precisava para organizar as mulheres amanhã.
— Por nada, Empousa.
Ela sorriu e se recostou, enfim.
— Eu queria que me chamasse de Mikki. Gosto de ser Sacerdotisa, mas há momentos em que desejo ser apenas eu mesma.
— Se não se importar, prefiro chamá-la de Mikado. — A voz grave ressoou entre eles. — É uma bela rosa, e descobri que ela me lembra você.
Mikki sentiu um arrepio de prazer com o elogio.
— Não me importo. Gosto da maneira como meu nome soa quando o pronuncia... como se houvesse algum segredo contido na palavra.
— Talvez haja.
— Talvez — ela murmurou, mais uma vez perdendo-se em seu olhar.
— É melhor eu ir — ele falou de súbito, rompendo o contato e fazendo menção de se pôr em pé.
— Ainda não... — Inclinando-se para a frente, Mikki segurou-lhe a mão e sentiu o tremor que passou por ele. — Fique um pouco mais e beba outra taça de vinho comigo.
Ao vê-lo relaxar de volta na cadeira ela o soltou, relutante, e ocupou-se em encher as duas taças.
— Sei que deve estar esgotado... Meu corpo também está, mas minha mente continua girando com tudo o que preciso fazer amanhã e com o que eu devia ter feito hoje.
— Fez muitas coisas hoje. Devia estar satisfeita.
— E estou. Mas também estou impaciente para começar a trabalhar no restante dos jardins.
O Guardião concordou com um gesto de cabeça.
— É importante que as rosas se curem e se desenvolvam. Elas são a base e a força do nosso reino. É perigoso para elas adoecer.
— O que há na floresta que o deixa tão preocupado? — Mikki perguntou em voz baixa.
— Ladrões de Sonhos.
— Hécate os mencionou, mas não faço ideia de quem eles sejam. Tudo o que sei é que você, ela e, pela maneira como as mulheres que entraram na floresta ficaram caladas
e assustadas, olhando, todos neste reino acreditam que eles são perigosos. Compreendo, mas não imagino o que possam ser.
— Ladrões de Sonhos assumem formas diferentes dependendo de sua vítima. Essa é uma das razões pelas quais eles são tão perigosos. A face que iriam lhe mostrar seria
bem diferente daquela que mostrariam a uma de suas servas.
— Então eles são seres físicos?
— Eles podem ter formas físicas, sim. — O Guardião parou e a estudou com cuidado. — Em seu antigo mundo também deve haver Ladrões de Sonhos. É possível que eles
se personifiquem de outra maneira lá.
Mikki pensou nos jovens membros de gangues que viviam lotando a sala de emergência, até que, inevitavelmente, acabavam no necrotério ou na penitenciária... Nas estatísticas
que apontavam Oklahoma como um dos estados com o maior número de adolescentes grávidas, bem como nos relatórios de abuso infantil; além do número absurdo de mulheres
que viviam na pobreza.
— Tem razão. Também há Ladrões de Sonhos no meu antigo mundo. Jovens jogam fora suas vidas, meninas se submetem a abusos até não terem mais saída... Coisas terríveis
acontecem todos os dias.
— E o que faz essas coisas acontecer? O que está no centro dessas tragédias?
— O ódio, a ignorância, a apatia...
— Exatamente. E esses são apenas alguns dos Ladrões de Sonhos que espreitam a floresta da encruzilhada entre os mundos. Se eles entrassem em nosso reino, não apenas
destruiriam a vida das pessoas, mas os sonhos que fazem as gerações sobreviverem.
— Vai mantê-los longe daqui, não vai?
— Jurei pela minha vida que sim.
— Devia ter me contado tudo isso antes. — Mikki estremeceu, sentindo-se mal só de pensar como insistira para que ele abrisse o portal e permitisse que as mulheres
fossem para a floresta. — Não, não é culpa sua... Você tentou me dizer que era perigoso. Eu devia tê-lo escutado.
— Você fez o que acreditava ser melhor para as rosas. Nada aconteceu, e eu estava lá para proteger o portal... Eu sempre estarei por perto para proteger o portal.
— Mas, se essas coisas estão na floresta, por que existe um portal? Não deveríamos eliminá-lo e nos certificar de que ele nunca mais fosse aberto de novo?
— Não podemos. Mikado, nem tudo na floresta é ruim. Você deve saber que até mesmo os sonhos precisam ser temperados com a realidade de tempos em tempos. Nossa realidade
vem da floresta, e as tramas desta, que vagueiam por lá, vêm do além.
— Vai inspecionar o restante da muralha e ver se nenhum outro pedaço dela ficou vulnerável com as rosas doentes, amanhã cedo?
— Vou. Pode dormir tranquila, Mikado. O reino é seguro sob minha proteção.
Mikki sabia que o que ele dizia era verdade. Sabia, nas profundezas da alma, que aquele ser incrível, meio homem, meio animal, daria a vida para manter o Reino das
Rosas e sua Empousa seguros.
— Obrigada.
Dessa vez, em lugar de indignar-se com seu agradecimento, ele apenas curvou ligeiramente a cabeça.
Durante algum tempo eles beberam, cada um perdido em seus próprios pensamentos.
— Posso lhe fazer outra pergunta? — Mikki rompeu o silêncio.
— Pode. — Ele a fitou com uma expressão interessada.
— Quando eu perguntei se você poderia me ensinar a conjurar as coisas, disse que não porque apenas alguém nascido de um Titã tinha essa habilidade... Afinal, quem
eram seus pais?
Ele não respondeu à pergunta de imediato, ponderando se deveria contar sua história ou se deveria ficar em silêncio e deixar que aquilo permanecesse um mistério
para Mikado. Um mistério que ela acabaria se cansando de tentar resolver.
O pensamento o fez sentir-se muito sozinho.
Quando recomeçou a falar, sua voz soou estranhamente fraca e ele não conseguiu olhar para ela. Em vez disso, desviou os olhos para a noite escura.
— Meu pai é o Titã Cronos. Certo dia, ele visitou a antiga ilha de Creta e pilhou-se encantado por algo além da beleza dessa terra perdida no meio do mar. Ele viu
e caiu de amores por Pasífae... Mas ela não era uma virgem ingênua. Sabia que os mortais que tornavam-se amantes dos deuses costumavam ter fins trágicos, por isso
recusou o Titã. Cronos não se deixou abalar por sua rejeição. Esperou e observou. Quando Minos, rei de Creta, escolheu Pasífae como sua noiva, meu pai viu sua oportunidade...
Na noite de núpcias de Minos, ele drogou o rei e tomou sua aparência, bem como a virgindade de sua noiva. Minos foi enganado, assim como Pasífae. Mas a mulher de
Cronos, Reia, não. Suspeitou da infidelidade do marido e enfrentou Cronos. Ele negou ter se deitado com Pasífae. E, na verdade, não mentiu. Uma vez que havia saciado
seu desejo pela mortal, seu amor tinha desaparecido... Ainda assim, Reia não ficou satisfeita. Ela vigiou Pasífae e descobriu que esta estava grávida. Em um arroubo
de ciúme, Reia amaldiçoou a criança: se, de fato, fosse o filho de um Titã, não nasceria homem nem deus, mas uma abominação, uma criatura como nenhuma outra do mundo
antigo. Foi no que eu me transformei.
— Mas, então... o mito do Minotauro foi baseado em você!
Os olhos castanhos encontraram os dela, vazios.
— Esse foi o nome que Minos me deu. Ele me odiou no momento em que nasci.
— E quanto a sua mãe?
— Pasífae foi mais gentil do que o marido. Até ousava me visitar secretamente; e eu me lembro de que, quando era criança, às vezes ela cantava para eu dormir. —
O Guardião fez uma pausa, lutando para controlar as emoções.
— Então sua mãe amou você.
Ele se retesou, como se as palavras o ferissem.
— Prefiro pensar que ela tentou me amar. Ela me deu o nome Asterius, recusando-se a me chamar de Minos, mas, mesmo em sua bondade, não conseguia esquecer que eu
era uma aberração. Sabia, por conta da minha forma monstruosa, que Cronos conseguira deitar-se com ela, e abominava tal ideia. Minha figura era um lembrete constante
de que o Titã a tinha enganado e invadido seu corpo. Assim, ela convenceu Minos a construir um enorme labirinto, dizendo que, em seu centro, ele deveria esconder
a fortuna de Creta, e que eu poderia guardá-la. Foi assim que cresci no labirinto da ilha, longe dos olhos de minha mãe e daqueles que me caçavam por esporte. E
estaria lá até hoje se não fosse por Hécate.
— Meu Deus! Contam tantas histórias sobre você. Dizem que muitas virgens e meninos foram sacrificados por sua causa.
A expressão atordoada no rosto de Mikki o desconcertou.
— Precisa saber que nem sempre fui como sou agora. Antes de responder à invocação de Hécate, eu era como Reia havia me amaldiçoado: uma abominação de corpo e alma.
Quando me comprometi com a deusa, ela abrandou a maldição de Reia e me deu o coração e a alma de um homem, embora não houvesse nada que a grande deusa pudesse fazer
para alterar minha aparência.
A Empousa estendeu a mão e tocou a dele, que descansava sobre a mesa, perto do mapa aberto. O Guardião fitou a mão delicada, surpreso.
— Não vejo uma abominação quando olho para você — disse Mikki.
— Talvez devesse olhar mais a fundo. Ainda existe uma fera dentro de mim.
— Se me permitisse, eu gostaria de acreditar no homem, Asterius.
— O homem... — Suas palavras foram quase inaudíveis enquanto seus olhares se encontravam. — O homem a escuta, Mikado, mesmo que ainda pareça estar falando nos meus
sonhos.
— Talvez eu esteja. — Ela sorriu suavemente. — Você e eu já estivemos nos sonhos um do outro antes.
Ele virou a mão pequena sobre a dele e deixou o polegar rastrear a delicada linha da vida na palma, seguindo até o pulso. Então, com uma carícia mais suave do que
a asa de uma borboleta, alisou-o em círculos.
— Posso sentir as batidas de seu coração — murmurou.
— Percebe como ele está batendo mais rápido?
Ele ergueu os olhos para os dela.
— Sim.
O rosto de Mikado estava tão próximo que ele podia sentir o calor de sua respiração. Seus olhos se enevoaram e os lábios entreabriram-se num convite.
Ele precisava prová-la! Queria beber dela e perder-se em sua doçura...
Com um rosnado baixo, substituiu o polegar pelos lábios. Podia sentir a vida pulsando em seu sangue e provou o sal da pele macia.
Mikado estremeceu sob o toque, e ele moveu a boca para o recuo suave de seu cotovelo. Levantou a cabeça. A respiração dela havia se acelerado, e Mikki o fitava com
os olhos embaçados pelo desejo.
Antes que a razão e o bom-senso o fizessem mudar de ideia, Asterius inclinou-se e tocou-lhe os lábios.
Ela deixou escapar um gemido que pareceu brotar da alma, e ele aprofundou o beijo.
Uma espécie de dor varreu seu corpo. Seu sangue pareceu transformar-se em lava, e pulsar com intensidade em suas veias. Por um momento, ficou tão desorientado que
suas garras surgiram e ele sentiu os dentes se arreganharem, prontos para combater o inimigo invisível que o tinha atacado...
Então, compreendeu. O feitiço de Hécate! A Empousa não o amava e, portanto, sua paixão não seria permitida.
Levantou os olhos torturados para ela. Pálida, Mikado parecia chocada e havia recuado na cadeira o mais que pudera.
Ele se levantou, derrubando o próprio assento e fazendo com que a mesa oscilasse perigosamente.
— Foi imprudência demais... Eu não devia estar aqui.
— O que aconteceu? Parece estar sentindo uma dor terrível... — Hesitante, ela estendeu a mão em sua direção, porém ele se esquivou, incapaz de suportar o gesto de
solidariedade.
— Não deve me tocar!
— Está bem! — Ela deixou cair a mão trêmula a seu lado. — Não vou mais tocar você. Basta sentar e me dizer o que está acontecendo.
— Não. — Ele recuou mais um passo. — Eu devia ter obedecido a seu comando de lhe trazer um mapa e depois ter voltado ao meu covil.
— Eu não mandei que fizesse um mapa. Eu apenas pedi que o fizesse, assim como pedi para jantar comigo. Não fez nada de errado. Nós não fizemos nada de errado — ela
argumentou, totalmente confusa com aquela súbita mudança de comportamento.
— Está enganada. Você não fez nada de errado, mas eu fiz. Comecei a torcer as tramas da realidade para transformá-la em um sonho, algo que, mesmo neste mundo de
fantasias e magia, é tão impossível quanto perigoso... Isso não pode acontecer novamente.
Com a agilidade de uma fera e o poder de um deus, o Guardião bateu em retirada e distanciou-se dela. Conforme o fez, a dor em seu corpo cedeu, deixando-o exausto
e vazio.
Então era aquilo no que sua vida havia se transformado; o que seria dali para a frente. Ele era um homem dentro de um animal, amarrado a uma deusa. Podia sentir
desejo, mas não a satisfação. Como Tântalo, estava condenado a viver em tormento, com o alívio à vista, porém inatingível.
Asterius estacou, pendeu para trás a cabeça e gritou em agonia para o céu impassível.
Capítulo 21
Mikki acordou com dor de cabeça e os olhos inchados e vermelhos. Espreguiçou-se com um bocejo e caminhou até a parede de janelas, abrindo a porta. O sol apenas começava
a espreitar no horizonte, e a manhã estava tão fria que ela podia ver a própria respiração. Alguém já tinha levado toda a louça do jantar, o que a entristeceu. Era
como se toda a noite anterior, tanto os bons como os maus momentos, tivessem sido varridos sem deixar rastros.
Caminhou até a cadeira em que o Guardião se sentara, os dedos demorando-se no espaldar.
Asterius...
Ele jamais seria apenas o Guardião para ela outra vez. Não depois do que ele lhe dissera e depois do que ela vira em seus olhos: uma profunda solidão e, por um momento,
um desejo que despertara uma pronta resposta dentro dela.
Mas não importava que ele houvesse lhe dado um vislumbre de sua alma. Aquilo não daria em nada.
E não apenas por conta do óbvio: por ele ser uma fera ou, mais precisamente, misto de deus e mortal; um ser como nenhum outro... assim como ele mesmo tinha explicado.
Asterius.
Não. Não era por causa do óbvio. O óbvio importava cada vez menos para ela. Se fosse honesta consigo, teria que admitir: mesmo em Tulsa, quando ele começara a seduzi-la
em seus sonhos, sua aparência não fora um impedimento; muito pelo contrário. Representara um fascínio desde o início.
Se as coisas não eram possíveis entre eles, era porque ele as estava tornando impossíveis.
Era como se houvesse alguma lei impedindo-os de se aproximar. Ele a havia tocado, beijado, desejando-a claramente... E depois fugido como se ela fosse a criatura
perigosa. Seu comportamento era confuso e irritante.
Mikki esfregou os olhos. Tudo bem. Talvez fosse mesmo uma lei ou comando. Talvez ninguém tivesse permissão para ficar perto dele.
Então a coisa mais inteligente a fazer seria falar com Hécate a respeito. Pedir à deusa que...
... Que o quê? Estava mesmo disposta a perguntar a Hécate se ela se importava que sua nova Empousa estivesse apaixonada pelo homem-fera, seu Guardião?
Francamente!, refletiu Mikki, desgostosa. Não era uma idiota. Aquilo não estava certo. Asterius deixara tudo bem claro. Se falasse com Hécate e a deusa ordenasse
que ela ficasse longe dele, o que poderia fazer? Teria de manter distância dele, não teria?
Era melhor não perguntar nada.
E ela estaria mesmo pensando em conquistá-lo depois do que tinha acontecido entre eles na noite anterior?
Sim. Estava, sim. Não fazia ideia de onde aquilo iria levá-los, mas não conseguia esquecer o choque que atravessara seu corpo quando o havia tocado.
Esfregou o pulso, distraída, lembrando-se do calor de seus lábios. Além de seu magnetismo, ela vira a solidão imensa que sombreava sua expressão a cada vez que ele
baixava a guarda; mesmo quando ele rejeitara seu toque.
Por outro lado, Asterius devia estar tão acostumado a ser tratado como uma aberração que, talvez, sua rejeição fosse mais por medo e hábito do que pelo desejo de
afastá-la.
Ela precisava pensar mais sobre o rumo que estava tomando. Precisava pensar mais sobre o Guardião.
Mikki estremeceu quando a brisa da manhã soprou sua camisola fina. As fontes termais deviam estar quentes e deliciosas em uma manhã gelada como aquela... Que lugar
melhor haveria para pensar?
Antes de descer a escada da varanda e pegar o caminho para a lateral do palácio, contudo, Mikki fechou os olhos e enviou em pensamento uma rápida mensagem para Daphne.
Mikado estava pensando nele enquanto se banhava, concluiu o Guardião. Podia senti-la fazendo isso.
Não porque o invocava. Não era nada tão específico. Ela estava apenas pensando nele.
Não devia ser capaz de sentir aquilo. Não devia saber.
Mas sabia. E isso jamais tinha acontecido.
Em todas as eras em que atuara como o Guardião de Hécate, em todas as gerações de Empousas que tivera como Altas Sacerdotisas em seu reino, ele nunca captara o pensamento
de nenhuma das escolhidas.
Assim como nunca sentira a gentileza do toque de qualquer Empousa. Nem mesmo da sacerdotisa que havia amado... e que ele pensara tê-lo amado em troca.
Na verdade, nenhuma mulher jamais o tocara com carinho. Ele tinha apenas uma vaga lembrança da mãe esgueirando-se pelo labirinto algumas vezes.
Numa delas, ela até tocara sua face... Mas fora há tanto tempo, e uma carícia tão breve.
E, no entanto, aquela mortal do mundo comum não apenas havia lhe tocado de bom grado e aceitado sua carícia, como estremecera sob seus lábios.
O toque de uma mulher... Algo tão pequeno, tão simples. Tanto os mortais quanto os deuses pouco pensavam sobre isso. Tocavam-se na saudação e na despedida. Tocavam-se
enquanto riam e conversavam. Tocavam-se quando amavam. Uma coisa tão pequena, tão comum...
Até que lhes fosse negada.
Como ele tinha desejado os carinhos de uma mulher para acalmar a fera que habitava dentro dele!
E o toque de Mikado fizera ruir suas defesas.
Seu gemido de frustração transformou-se em um rosnado enquanto erguia-se do catre. Ela o havia chamado de Asterius e dito que acreditava no homem dentro do monstro...
E ainda permitira que ele a beijasse!
Com certeza, aquilo não fora nada mais do que um gesto de bondade. Mikado não percebia que seu toque e suas palavras seduziam o homem, assim como atraíam a fera
para ela.
Os cascos de Asterius feriram o mármore do covil enquanto ele andava. Ela não podia saber o quanto ele encontrava-se desesperado para ajoelhar-se a seus pés e implorar-lhe
que nunca mais parasse de tocá-lo, de pensar nele, de falar com ele como se realmente acreditasse em seu lado humano.
E mais tarde, na primavera, quando ela deveria ser sacrificada?
Desesperado, ele olhou as mãos conforme suas garras se estendiam. Ainda podia sentir a suavidade de sua pele nas lâminas frias. Permitiria que Mikado escapasse,
assim como fizera com a que viera antes dela?
Não. Claro que não. As rosas estavam doentes e ele não tinha dúvidas quanto ao motivo. A última Empousa havia fugido sem completar seu destino.
O que aconteceria ao reino se Mikado fizesse o mesmo?
Sabia o quê. Ele não iria sobreviver.
E se havia alguém que deveria pagar por isso, era ele. Tudo aquilo era culpa sua.
Tinha consciência da verdade, embora esta o envergonhasse.
Não que não estivesse correndo o risco de trair sua deusa outra vez...
Mas não importava quão desesperadamente ele desejava Mikado. Não permitiria que seus desejos causassem a destruição do Reino das Rosas.
Seu rugido se aprofundou e ele teve que lutar contra a vontade de derramar uma lágrima. O homem dentro dele manteve a fera sob controle, mas apenas por um instante.
A dor e o desejo pelo impossível, que deixavam suas emoções em um turbilhão, também despertavam o monstro dentro dele. Mikado podia acreditar no homem, mas este
continuava em consonância com o animal. Eram duas criaturas em uma. Se ela mexesse com o homem, a fera despertava. Ele precisava se lembrar de que, não importando
com quanta doçura ela pronunciasse seu verdadeiro nome, ou o tocasse, ou permitisse que ele a tocasse, Mikado estaria imaginando o homem.
O que aconteceria quando ela percebesse que estava seduzindo também o animal?
Iria rejeitá-lo, na certa. Todo o restante era apenas um sonho.
E ele, de todas as criaturas, sabia como os sonhos eram insubstanciais. Precisava esquecê-los e lidar com a realidade, o que ele fazia de melhor.
Nada daquilo importava. Ele não poderia amá-la. Mal podia tocá-la sem sentir a dor lancinante causada pelo feitiço de Hécate.
De repente, Asterius ergueu a cabeça e seus olhos se arregalaram. Era isso! Ele não precisava mais ter de conter a fera. A deusa reprimira o monstro dentro dele.
Poderia ficar próximo de Mikado tanto quanto ela lhe permitia. A magia de Hécate iria garantir que ele nunca fosse longe demais. Tudo o que tinha de fazer era suportar
alguma dor. E quando esta se tornasse insuportável...
Lembrou-se da sensação da pele de Mikado contra os lábios, da mão pequena dentro da dele. Sim, ele poderia suportar parte da punição da deusa em troca do milagre
que era tocar a pele da Empousa.
Isso se ela permitisse que ele se aproximasse novamente.
Retomou suas passadas frustradas. Após a maneira como ele a deixara na noite anterior, seria compreensível se ela evitasse sua companhia.
Mas, talvez, Mikado não fosse evitá-lo para sempre. Era tão excepcional, tão diferente das outras mulheres. Ela havia lhe perguntado se ele não poderia eliminar
o portal! Nenhuma outra Empousa teria indagado uma coisa dessas.
Mas claro que não sabia de seu destino. Não sabia que sua única saída seria passar por ali e seguir até o mundo comum que ficava além da floresta.
Contudo, uma voz dentro dele dizia que, mesmo que ela soubesse, Mikado ainda poderia optar por ficar com as rosas... e com ele.
Asterius foi até a entrada do covil. O sol começava a despertar o céu com gavinhas de luz, e ele pôde sentir a Empousa afastar os pensamentos dele conforme deixava
seu banho.
Logo depois, já não conseguiu sentir mais nada. Imaginou que ela estivesse se preparando para chamar os Elementos e começar seu dia.
E ele também deveria iniciar o seu. Mikado pedira-lhe que inspecionasse a muralha das rosas, e seu pedido fora sábio.
Com um suspiro, Asterius deixou o covil e deu início a sua caminhada solitária ao longo da fronteira entre os mundos.
Preferindo ficar invisível, Hécate observou o Guardião. Seu andar poderoso parecia cansado, e ela viu claramente o conflito de emoções em seus olhos escuros e expressivos.
Sorriu e acariciou a cabeça de um de seus enormes cães.
— As coisas estão indo bem.
— Viram como eu dividi os jardins em quartos? — Mikki tinha odiado mexer no mapa de Asterius, porém era necessário que tudo estivesse claro para os Elementos. Por
isso ela pedira a Daphne que lhe trouxesse uma pena e tinta, e havia desenhado suas próprias linhas, bem menos atraentes, para dividir o projeto. — Como eu disse
antes, cada uma de vocês terá a área que corresponde à direção de seu elemento. Por exemplo: Nera ficará a Oeste; Aeras, a Leste. Gii e Floga, naturalmente, ficarão
ao Norte e ao Sul. E cada uma terá seu próprio grupo de mulheres. Comecem fertilizando os canteiros, como lhes mostrei ontem. Eu passarei por cada área, verificando
se as rosas necessitam de atenção especial. Têm alguma dúvida? — indagou aos Quatro Elementos.
Como havia feito na noite anterior, tinha empurrado os pratos de lado e aberto o mapa de Asterius sobre a mesa. As servas a fitaram, extasiadas.
— Que mapa bonito, Empousa! — Gii elogiara, tocando o esboço delicado que representava a fonte central do reino.
— E preciso, também! — concordou Aeras. — Acho que todas as veredas foram representadas aqui.
— Vejam! Tem até as piscinas! — exclamou Nera, satisfeita com o traçado das águas que representavam seu elemento.
— Quem fez isto, Empousa? — Floga perguntou.
Mikki ergueu os olhos do mapa para encontrar o olhar penetrante do elemento Fogo.
— O Guardião — contou, tomando o cuidado de manter a voz casual e a expressão serena.
— O Guardião?! — exclamou Gii. — Mas como ele...
— Ela ordenou, ora — Floga interrompeu o elemento Terra. — Ele faria qualquer coisa que a Empousa mandasse.
— Na verdade, eu não ordenei que ele fizesse coisa nenhuma. Apenas perguntei se ele podia me ajudar a fazer o mapa. — Mikki ergueu os ombros, sem se abalar com o
tom estranho da moça. — Aparentemente, não foi nenhum sacrifício. Ele tem garras que pode estender e usar como penas embutidas. E está aqui há séculos... Não me
admira que conheça todos os recantos do reino. — Deu um sorriso tenso na direção de Floga. — Mas obrigada por me lembrar. Preciso invocar o Guardião para que ele
venha até aqui. Pedi a ele que inspecionasse o restante da muralha das rosas e verificasse se há alguma outra parte enfraquecida à qual precisemos dar uma atenção
especial.
Mikki não precisou fechar os olhos para se concentrar nele. Depois do que acontecera na noite anterior, o Guardião nunca ficava longe de seus pensamentos.
Desviou o olhar das servas e mirou os jardins.
— Venha até mim, Asterius! — sussurrou para o vento.
Mal teve tempo de se perguntar se ele se importaria que ela o chamasse pelo nome dado pela mãe antes que a pressão do ar na varanda mudasse. De súbito, este pareceu
mais pesado e denso contra sua pele.
Pouco depois, ouviu as batidas fortes de cascos no mármore, conforme ele subia para a varanda.
Embora suas passadas fossem poderosas, uma mistura inconfundível de animal e homem, Mikki notou que Asterius parecia cansado. Parecia tão aborrecido quanto ela ficou
decepcionada quando ele se curvou e se dirigiu a ela formalmente, sem fitá-la nos olhos.
— Chamou, Empousa?
— Sim. Queria saber se teve a chance de inspecionar o restante da muralha das rosas esta manhã.
— Sim, Empousa.
— E então?
— Não vi mais nenhuma área vulnerável, exceto a que envolve o portal.
— Acha que podemos nos concentrar nas rosas do jardim agora?
Ele encontrou seu olhar enfim.
— Sim, estou de acordo.
— Que bom — ela respondeu rapidamente, ignorando o arrepio que ele lhe causava no estômago. Virou-se para as servas. — Cada uma de vocês reunirá seu grupo de mulheres
e providenciará suas cestas de fertilizantes. Preparem os canteiros, assim como fizemos na área em torno das raízes das rosas Multiflora. Visitarei cada parte do
jardim, e veremos o que precisa ser feito.
— Sim, Empousa — os Quatro Elementos responderam em coro. Fizeram uma reverência e começaram a deixar a varanda junto com o Guardião.
— Floga, Guardião... Eu gostaria de conversar com vocês — chamou Mikki.
Embora o elemento Fogo houvesse mantido uma expressão neutra, seus olhos revelaram um profundo desconforto.
Ela não confia em mim.
— Floga, sua área do jardim é a seção que fica mais ao Sul, e a que inclui o portal das rosas. Eu sei que seria mais rápido para suas mulheres ir para a floresta
e usar o barro como fertilizante, como fizemos ontem, mas estou preocupada em manter o portal aberto hoje novamente.
Floga pareceu surpresa, e Mikki não podia culpá-la. No dia anterior, ela insistira, na frente de todos, que Asterius mantivesse o portal aberto, ignorando o perigo.
Ela o fitou.
— O que aconselha?
— Creio que seja uma atitude sábia não abrir o portal tão cedo — opinou ele.
— Então estamos de acordo que, talvez em um ou dois dias, Floga possa permitir que as mulheres coletem mais barro, mas que agora não é uma boa ideia?
— Sim, Empousa. Estamos de acordo.
— Ótimo.
Mikki sabia que seu sorriso para o Guardião fora mais do que caloroso, e pudera sentir os olhos da serva fixos em sua expressão, porém não se importou. Todas ali
deveriam saber que ela valorizava a opinião de seu protetor. Não iria tratá-lo como um animal, pois ele não era um; e nem as demais o fariam. Não enquanto ela fosse
a Empousa. Havia uma nova autoridade no reino, e seria melhor se elas se acostumassem com aquilo.
Ainda sorrindo, Mikki voltou-se para Floga.
— Entendeu o que eu preciso que faça?
— Sim, Empousa.
— Que bom. Então está livre para começar. O Guardião e eu iremos para lá em breve.
Os olhos de Floga se arregalaram, contudo ela não disse nada enquanto fazia uma reverência e, em seguida, corria da varanda, deixando a Sacerdotisa e o Guardião
sozinhos.
— Bom dia, Asterius — Mikki falou suavemente.
Foi o que bastou para ele. O som de seu nome nos lábios dela o desarmou e ele não pôde mais lutar contra seu desejo por ela, assim como contra a necessidade de permanecer
em sua presença. Apesar do feitiço de Hécate e da dor que este lhe causaria, viesse a primavera ou as portas do inferno, pelo tempo que passassem juntos, ele queria
ouvir o som doce daquela voz. E, se o destino lhe concedesse esse privilégio, sentir o toque de sua mão de novo.
— Perdoe-me, Mikado.
— Pelo quê?
— Pela maneira como a noite terminou. Não tenho nenhuma prática em... — Fez uma pausa, buscando palavras que nunca tinha dito antes.
— Não há nada para perdoar — ela afirmou. — É difícil saber a coisa certa a dizer ou fazer, principalmente quando deparamos com uma situação nova. Às vezes é mais
fácil fugir.
— Isso me faz parecer um covarde.
— Não. — Ela sorriu. — Isso o faz parecer humano.
Asterius a fitou, chocado. Logo depois, bem devagar, seus lábios esboçaram um sorriso que acabou chegando a seus olhos.
— Você é uma mulher extraordinária, Mikado.
— Vamos ver se ainda vai pensar assim no final do dia.
Ele levantou uma sobrancelha, confuso.
— Vou colocar todos esses músculos para trabalhar... Esta noite estará muito cansado para não dormir.
Seus olhos escuros encontraram os dela.
— Sabia que eu não dormi na noite passada?
— Não fique muito impressionado com meu poder de observação. Não preciso ser uma deusa para saber disso. Está com uma aparência péssima nesta manhã.
— Como se eu fosse muito bonito normalmente... — ele replicou, seco.
Mikki quase engasgou.
— Não me diga que agora deu para fazer piada das coisas!?
A brisa carregou seu riso enquanto os dois deixavam a varanda.
E ela nem mesmo notou as mulheres que os observavam com os olhos arregalados através das janelas do palácio.
Capítulo 22
Mikado não havia exagerado quando afirmara que iria pôr os músculos dele para trabalhar, pensou Asterius. Ele nunca tinha carregado tantos cestos ou escavado tantos
buracos em todos os longos séculos de sua vida imortal.
E nunca havia sido tão feliz.
Vinha trabalhando ao lado da Empousa todos os dias. Ela supervisionava tudo ativamente e não hesitava em arregaçar as mangas para ajudar no mais sujo dos trabalhos.
As mulheres do reino não pareciam muito satisfeitas com as tarefas complicadas e cansativas que Mikki lhes atribuíra, mas se mostravam contentes com o fato de sua
Empousa estar ali, bem no meio daquela bagunça, junto delas.
Mikado trabalhava tanto quanto as outras e parecia estar em todos os lugares ao mesmo tempo.
E o mais surpreendente: estava feliz com aquilo. A Alta Sacerdotisa parecia gostar de sujar as mãos na terra enquanto demonstrava exatamente como esta precisava
ser trabalhada em torno das raízes dos arbustos. Não se enojava com o fertilizante malcheiroso, pelo contrário. Ajudava a misturá-lo no solo e até ria e fazia piadas,
perguntando-se como algo que cheirava tão mal podia ser tão bom para fazer as rosas vicejar.
Asterius ignorou os olhares que as mulheres lhe lançavam. Estava acostumado àquilo. Não importava quantas vezes ele caminhasse entre elas, estas sempre mostravam-se
pouco à vontade com ele por perto.
Agora, mais do que nunca. Todas sabiam o que ele fizera e a ira que sua atitude evocara na deusa, pois elas também pagaram por seu erro. Não foram envoltas em pedra
e banidas do reino como ele, mas tinham sido obrigadas a esperar, sem envelhecer, sem mudar, incapaz de fazer mais do que ver o tempo passar a seu redor por todos
os séculos em que ele dormira.
Asterius suspirou. Podia imaginar como devia ser perturbador para elas vê-lo ao lado de sua Empousa de novo, principalmente quando Mikki deixava claro que valorizava
sua opinião e o tratava como se ele fosse um homem.
Que maravilhoso milagre era Mikado! E ela continuava a seu lado, ou melhor, ele continuava a seu lado.
Mikado começara a inspeção das rosas a Leste e, após uma análise exaustiva de todos os canteiros, com Aeras prometendo seguir cada uma de suas instruções, fora até
o Sul.
Ele nunca iria se esquecer de como ficara lá, fingindo-se ocupado, empilhando cestas vazias ao alcance das mulheres, enquanto ela despedia-se alegremente do elemento
Ar. Pensou que fosse ficar ali no Leste e continuar trabalhando, que talvez mais para o final do dia fosse ter um vislumbre dela andando entre as plantas, porém
Mikki tinha outras ideias. Quando percebeu que ele não a acompanhava, marchara de volta.
— Preciso de você comigo. Eu gostaria muito de sua ajuda hoje.
— Claro, Empousa — ele havia respondido.
Mas a alegria que o invadira não fora nada formal, e ele tivera esperanças de que ela pudesse vê-la refletida em seus olhos.
Conforme afastavam-se de Aeras e suas mulheres, a palla de Mikado tinha ficado presa a uma roseira e escorregado. Sem pensar duas vezes, ele a desenroscara habilmente
e a ajudara a recolocá-la, descansando as palmas sobre os ombros delicados até sentir uma pontada de dor.
Mas quando ela havia sorrido para ele, fitando-o nos olhos, esquecera-se da dor e lembrara-se apenas do calor de sua pele.
Não era de admirar que os olhares das virgens agora os seguissem por onde quer que fossem. Ele não conseguia manter as mãos longe dela, e ela... ela sorria para
ele, muitas vezes deixando claro o prazer que sentia em sua companhia.
Mikado levara mais tempo para inspecionar o trecho sul dos jardins. As rosas estavam mais doentes lá, embora ele nem precisasse olhar para as plantas para saber
disso. Ver as feições da Empousa tornarem-se sombrias e pálidas dizia-lhe muito mais do que inspecionar as roseiras.
O meio do dia chegou depressa. Ele estava preparando as cestas de fertilizantes para um canteiro de rosas multicoloridas muito murchas, chamadas Masquerade, quando
sentiu o cheiro de comida. Não ergueu a cabeça ao perceber as criadas do palácio chegando com o almoço, porém. Continuou trabalhando. A parte mais constrangedora
do dia anterior tinha sido exatamente aquele momento: as mulheres separando-se em pequenos grupos para conversar, rir e comer juntas, o que sempre lhe fora negado.
Ele podia tomar conta delas, mas não era aceito nem mesmo o suficiente para compartilhar com elas uma simples refeição.
Na noite anterior, ao compartilhar com ele sua mesa, Mikado havia lhe dado um grande presente.
Amaldiçoou-se em silêncio por ter arruinado aquele momento, na véspera.
Ouviu as mulheres preparando-se para o almoço. Elas agruparam-se em torno das fontes, lavando as mãos nas águas claras, seu riso mesclando-se à melodia suave das
fontes.
Perguntou-se onde estaria Mikado. Provavelmente no meio delas. Ela era uma das que tinham o riso mais fácil, e as mulheres do reino respondiam bem a seu bom humor.
Tomara ela estivesse ocupada e distraída o suficiente para não perceber como ele era rejeitado. Não queria sua piedade.
De qualquer modo, sabia que uma das servas do palácio logo iria encontrá-lo ali e oferecer-lhe comida e bebida. Não porque queria, mas porque era seu serviço.
Sem olhar ao redor, Asterius afastou-se do canteiro em que estivera trabalhando e seguiu em direção ao portal das rosas. Havia uma árvore gigante ali, em cuja sombra
ele poderia se sentar e tentar escapar de olhares indiscretos. Também poderia descansar e talvez beber um pouco do vinho que a criada lhe oferecesse.
Estava com fome, claro, mas não iria comer. Não podia suportar tantos olhares. Era como se ele fosse ficar de quatro e rasgar a comida com os dentes.
Talvez devesse fazer isso... Causaria uma grande celeuma, no mínimo.
Reprimiu um suspiro cansado. Isso faria apenas reforçar a crença de que ele era, na verdade, uma fera estúpida e insensível.
— Aí está você! — Mikado correu até ele, um pouco sem fôlego. — Ainda bem que é alto ou eu nunca o teria encontrado aqui!
Ele parou e fitou a cesta enorme nas mãos dela. Suas mãos e seu rosto estavam molhados, como se ela tivesse acabado de se lavar; enquanto sorria para ele, usou uma
dobra da túnica manchada de sujeira para limpar um filete de água do rosto.
— Acabei de preparar o canteiro das Masquerades. O que quer que eu faça agora?
— Quero que almoce! — Ela sorriu, apontando para o cesto carregado. — Eu trouxe comida suficiente para nós dois.
Asterius perguntou-se se Mikado podia escutar o sangue correndo em suas veias, bombeando o choque e a descrença por todo seu corpo.
Respirou fundo. Quando falou, esforçou-se para manter a voz baixa, de modo que apenas ela o escutasse.
— Devia comer com as outras mulheres.
— Não. Elas já formaram suas panelinhas... quero dizer, seus grupos. Se eu me convidasse para qualquer um deles, na certa as deixaria constrangidas por terem que
comer com a chefe, e estragaria a festa. E, como já dei muitas ordens, hoje, elas devem estar loucas para se livrar de mim. Além do mais, prefiro comer em sua companhia
— ela acrescentou.
— Mas eu nunca...
— Não! — Mikki o interrompeu, fazendo com que várias cabeças se voltassem. Em um tom mais calmo, porém ainda firme, continuou: — Estou cansada de ouvir sobre o que
nunca foi feito antes. Sou a Empousa agora, e as coisas vão ser diferentes por aqui. E não apenas em relação às rosas.
— Como quiser, Empousa — ele aquiesceu, lançando mão da formalidade para encobrir suas turbulentas emoções.
— Que bom. Vamos comer debaixo daquela árvore em que você desapareceu ontem... Quero dar outra olhadela naquele portal depois.
— Como quiser. — Asterius começou a caminhar em direção à árvore antiga, próxima do portal das rosas, cuidando para diminuir as passadas, de modo que ela não precisasse
se esforçar para acompanhá-lo.
Quando chegaram à árvore, sentiu uma onda de alívio. Nenhum grupo de mulheres tinha escolhido comer nas proximidades.
Com um longo suspiro, Mikado sentou-se e apoiou as costas no largo tronco do carvalho. Olhou para o portal.
— Não parece muito melhor do que estava ontem — comentou, desanimada.
— Mas também não parece pior.
— Acho que isso já é alguma coisa. Não sei por que, mas não sinto nada de muito terrível vindo da floresta. Se você não tivesse me falado sobre os perigos que existem
lá, eu continuaria pensando que essa mata nada mais era do que um amontoado de árvores antigas e sombrias.
— Os Ladrões de Sonhos escolhem bem o momento de aparecer. Lembre-se de ficar sempre alerta quando estiver próxima do portal, ou na floresta propriamente dita.
— Mas vai estar sempre comigo, não vai? Quero dizer, não posso abrir essa passagem sozinha.
Ele levantou uma sobrancelha.
— Claro que pode, Empousa!
Mikki mirou o portal com os olhos muito abertos antes de voltar-se para ele outra vez.
— Vou tomar cuidado, prometo. — Então, voltou a atenção para a cesta de comida. — Vamos nos preocupar com essa floresta mais tarde... Agora é hora de comermos.
Hesitando apenas um momento, Asterius sentou-se e fez um gesto quase imperceptível para que as sombras se fechassem mais em torno deles. Queria observá-la à vontade,
o que não seria possível se as outras mulheres os enxergassem com facilidade.
— Parece cansada — comentou, atento.
— Você também — ela respondeu, enquanto puxava um odre da cesta e, em seguida, tomava um longo gole.
— Está um pouco pálida, Mikado.
— Não me surpreende. — Ela entregou-lhe o odre e começou a tirar queijo e pão da cesta. Olhou para ele. — Beba! — ordenou.
Ele obedeceu, pensando com prazer que poderia provar ali a essência deixada por seus lábios...
E a sensação foi mais intoxicante do que o vinho jamais poderia ser.
Só então deu-se conta do que ela havia respondido e obrigou-se a parar com aqueles devaneios.
— Por que não está surpresa com sua palidez?
— Porque as rosas nesta parte do jardim estão mais doentes do que as do Leste — ela explicou em meio a mordidas.
— Eu percebi.
— De alguma forma, estou ligada a elas. Consequentemente, também me sinto mal.
— Imaginei. Você mudou quando entramos nesta parte dos jardins.
— Sabe se isso já havia acontecido com alguma outra Empousa?
— Cada Empousa tem uma ligação especial com as rosas — ele explicou devagar. — Isso está no sangue das Altas Sacerdotisas de Hécate.
— Eu sei. Mesmo em Tulsa eu tinha uma forte conexão com as rosas, assim como todas as mulheres da minha família têm. Sempre tivemos. É uma espécie de tradição familiar.
Ela pareceu incomodada, notou Asterius. Talvez tivesse perdido a família. Ou sentia falta de seu antigo mundo?
O pensamento fez o peito dele se apertar. Haveria algum outro homem? Por isso ela parecera tão estranha ao mencionar sua antiga vida?
Antes que considerasse perguntar, Mikado continuou:
— O que eu queria saber é se alguma das outras Empousas sentia coisas por causa das rosas...?
— Talvez, mas eu não saberia dizer. As outras Sacerdotisas raramente falavam comigo.
Ela pareceu surpresa.
— Mas sempre foi o Guardião do reino. Elas não precisavam falar com você sobre... — fez um gesto na direção da muralha de rosas e ao redor — ... proteção e tudo
o mais?
— As outras Empousas sabiam que eu cumpriria com meu dever. Nenhuma sentiu a necessidade de falar comigo a respeito. Se uma Sacerdotisa pressentia algum perigo,
chamava por mim. Fora isso, raramente tínhamos a necessidade de conversar.
Ele pensou na Empousa que viera antes de Mikado e, mais uma vez, sentiu vergonha por ter se deixado enganar e acreditado que esta se importava com ele. Mas a razão
pela qual seu estratagema tinha funcionado tão bem fora justamente o fato de, antes dela, ter havido inúmeras gerações de Empousas que o evitavam, tomando sua proteção
como certa. Bastara uma ou duas palavras amáveis por parte dela, e ele ficara cego para tudo, exceto para a possibilidade de ela conceder-lhe mais um pouco de atenção...
Era o que estava acontecendo de novo com Mikado? Continuava tão desesperado pelo carinho de uma mulher que estava se deixando levar por outro jogo?
Mas que jogo? Mikado não conhecia seu destino. Não tinha motivo para seduzi-lo por interesse.
— Asterius?
O som de seu verdadeiro nome invadiu os pensamentos turbulentos do Guardião.
— Não deve me chamar assim quando alguma das mulheres puder ouvir. — Sua voz soou mais áspera do que ele pretendia, e ele odiou a mágoa que viu refletida nos olhos
dela.
— Sinto muito. Eu devia ter perguntado se você se importava que eu o chamasse por seu verdadeiro nome.
— Não me importo... — Ele encontrou seu olhar, disposto a permitir que ela lesse em seus olhos tudo o que ele sentia e tudo o que não podia pôr em palavras. — Mas
prefiro continuar a ser apenas o Guardião para o restante delas.
— Compreendo.
— Mesmo? Tem ideia do poder que existe em um nome de verdade?
— Não — ela admitiu suavemente. — Explique-me.
— Quando fala meu nome verdadeiro, eu não o escuto apenas com os ouvidos, mas com a alma. Com essa palavra, toca a minha alma, Mikado.
— A alma de um homem, Asterius.
— Assim me disse a deusa.
— Não acredita nela?
— Eu nunca deixaria de acreditar em Hécate — ele afirmou depressa.
— Então é em você mesmo que não acredita — ela concluiu.
Asterius desviou os olhos para longe do olhar perspicaz da Empousa e não respondeu. Durante muito tempo, tudo o que fez foi abrir e fechar as garras inconscientemente.
— Talvez eu tenha mesmo dificuldade em acreditar no homem dentro do monstro — confessou, relutante.
Foi a vez de Mikki permanecer em silêncio.
Ele podia sentir seus pensamentos. Não conseguia lê-los, porém sabia que ela estava pensando nele, ponderando, pesando sua resposta.
— Talvez precise de alguém que acredite no homem, de maneira que possa parar de ver apenas o monstro.
As palavras abalaram Asterius, e a esperança surgiu dentro dele com tanta intensidade que ele sentiu a fera arrepiar-se em resposta.
— Como pode enxergar alguma coisa além do monstro? — A profundidade de suas emoções fez sua voz soar com a força de um rosnado. Percebendo que, desta vez, ela não
recuara um só centímetro, lutou para recuperar o autocontrole. — Olhe para mim. Ouça-me... — falou por entre os dentes, contido. — Não consigo nem mesmo controlar
a voz para falar com você! Há muito pouco de humano em minha natureza.
— Basta eu olhar além de sua aparência.
O sorriso que curvou os lábios carnudos fez o coração de Asterius bater mais forte. Ele teve vontade de puxá-la para os braços e esmagá-la contra o peito, mas não
podia. Não ali, não naquele momento. Talvez nunca.
Mas poderia tocá-la. Só por um instante...
Levantou a mão e deixou os dedos roçarem o rosto delicado.
— Você me faz acreditar que eu ainda sonho, Mikado — falou o mais suavemente possível.
Os olhares se encontraram.
— Seria tão bom! Gii me disse que eu tenho poder para tecer sonhos. Quem sabe eu consiga tecer um para nós?
Os dedos dele começaram a arder e, relutante, ele os afastou da pele macia.
Mikki suspirou, como se também estivesse desapontada por ele ter interrompido o contato, então estremeceu.
— Os sonhos devem ficar para depois... Vamos comer logo. Ainda não terminei e quero fazer uma inspeção completa nas áreas de Nera e Gii antes que fique muito escuro.
Almoçaram em silêncio e sob o escrutínio de muitas das mulheres do reino, que não paravam de lançar olhares em sua direção, tentando enxergar através das sombras
do antigo carvalho.
Sua audição acurada captou o som de um dos Elementos aproximando-se antes mesmo que Mikado a notasse e, disfarçadamente, ele fez com que as sombras ao redor da árvore
clareassem. Depois levantou-se e se pôs de lado, querendo dar a impressão de que estava ali apenas aguardando pela ordem seguinte da Empousa, e não de que haviam
estado juntos, partilhando uma refeição.
— Empousa, as mulheres terminaram o almoço — anunciou Floga, lançando um olhar desconfiado em sua direção.
— Que bom! Nós também terminamos aqui. — Mikado estendeu a mão para ele.
Asterius hesitou apenas um instante antes de tomá-la e ajudar a Sacerdotisa a se pôr em pé. Esta sorriu e agradeceu, como se ele fosse um cavalheiro acostumado ao
toque da mão de uma dama.
Virou-se para o elemento Fogo.
— Vamos voltar ao trabalho.
Capítulo 23
— Estou contente por o palácio estar situado ao Norte e Gii e seu grupo estarem no comando das rosas que o rodeiam — Mikki disse a Asterius enquanto eles observavam
o elemento Terra avisar as mulheres que o trabalho havia terminado naquele dia.
— É óbvio que você e ela estão se tornando amigas — ele comentou.
— Estamos, sim — Mikki concordou, pensando que também era óbvio que Gii parecia incomodada com a familiaridade da Empousa com o Guardião.
— Não é de estranhar que sejam tão compatíveis. Rosas combinam naturalmente com a terra.
— Está certo, combinam mesmo.
Gii teria apenas que se acostumar a ter Asterius por perto, ponderou Mikki. Mas não achava que isso fosse ser muito árduo para a moça. Tudo o que a serva precisava
fazer era parar de pensar nele como uma fera, e logo enxergaria o homem que existia ali dentro.
Não tinha sido nada difícil para ela. Mas como seria para o restante das mulheres?
— Preciso ir agora, Mikado. As servas vão querer ficar algum tempo a sós com você, e ainda tenho muito que fazer.
Ela o fitou, surpresa por estar triste com sua partida depois de ter passado o dia todo em sua companhia. Em geral, ficava cansada da companhia de um homem em menos
da metade desse tempo.
— Vai voltar?
Mikki notou o modo como os olhos castanhos escureceram.
— Se me invocar, eu voltarei.
— Então farei isso — ela decidiu.
O Guardião curvou-se numa mesura, assim como as quatro damas de companhia que se aproximavam. Não passou despercebido para Mikki o modo como elas pareceram aliviadas
quando Asterius virou-se e desapareceu nas sombras do jardim.
Tratou de reprimir seu aborrecimento. Elas haviam trabalhado muito naquele dia e deviam estar todas exaustas. Além do mais, não seria razoável esperar que as mulheres
mudassem a maneira como se sentiam acerca de Asterius em apenas dois dias. As outras Empousas tinham tratado seu Guardião como um animal. Era natural, portanto,
que qualquer mulher do reino tratasse-o da mesma forma.
Ela teria apenas que dar o exemplo. Elas eram meninas inteligentes; logo iriam mudar de comportamento.
— Vocês quatro... prontas para um longo banho de imersão?
Aquela noite parecia ainda mais fria do que a anterior, e o vapor das piscinas mergulhava tudo em uma névoa quente e úmida. Mikki recostou-se na lateral da piscina
privada e comeu outra uva. Já encontrava-se agradavelmente satisfeita e um pouco tonta por conta do vinho.
Não tinha planejado jantar com as mulheres. Havia pensado em tomar um banho rápido, retirar-se para o quarto e ter um jantar a sós com Asterius... Mas as servas
estavam com fome e, afinal, quem poderia banhar-se tão depressa quando as piscinas estavam tão deliciosas e a companhia era tão agradável?
Estava sinceramente feliz por desfrutar o momento. As servas encontravam-se exaustas depois do longo dia, mas em nenhum momento queixaram-se ou reclamaram. Em vez
disso, conversaram sobre o trabalho que haviam realizado em suas áreas e fizeram incontáveis perguntas sobre os cuidados com as rosas, já discutindo planos para
a manhã seguinte. A adubação continuaria; entretanto, algumas das mulheres começariam a podar flores murchas ou aquelas que pareciam fracas demais para desabrochar.
Mikki concordou, inclusive, em mostrar-lhes um exemplo de cada no período da manhã.
— Acho que já fizemos a parte mais difícil do trabalho de recuperação das rosas. A fertilização será praticamente concluída amanhã. Em seguida, vamos nos concentrar
na poda de qualquer haste inútil. Depois disso, basta ficarmos atentas a elas e esperar.
— Quanto tempo elas vão levar para se recuperar por completo? — Gii perguntou.
— Não demora muito para que um bom fertilizante comece a fazer efeito, muito menos se o que faltava para as rosas era uma boa nutrição. Devemos ver mudanças em breve.
— E se não virmos? — indagou Floga.
— Então eu tentarei algo diferente. Tenho mais truques na manga. — Ela balançou o braço molhado e nu no ar, fazendo as moças rir.
— Deveria lançar um feitiço para dar mais saúde às rosas — sugeriu Nera.
— Você sabe... como faria se alguma das mulheres do reino lhe pedisse para livrá-la de uma febre.
— É uma boa ideia! — concordou Aeras.
— Não faria mal algum — aderiu o elemento Fogo enquanto comia um figo.
— Pelo contrário, pode fazer um grande bem — Gii acrescentou.
Sentindo-se insegura quanto às próprias capacidades, Mikki desejou que seu novo emprego e destino tivessem vindo com um manual.
— Seria como o ritual de autoiniciação. Nós quatro ficaríamos junto com você quando lançasse o círculo sagrado, e depois bastaria seguir seu coração. — O sorriso
de Gii foi cheio de generosidade. — Você sabe o que fazer, Empousa.
— Também pode começar com uma magia para algo que conheça tão intimamente como as rosas. Será mais fácil dessa maneira. De qualquer forma, é apenas uma questão de
tempo antes que as mulheres do reino comecem a procurá-la para que lance feitiços de amor e etecetera... — afirmou Floga.
— Ela está certa, Empousa — concordou Gii.
— Feitiços de amor? — Mikki indagou.
— Feitiços de amor! — Aeras suspirou, melancólica. — Há quanto tempo!
— Tempo demais! — concordou Floga.
— Na verdade — Nera recomeçou, hesitante —, eu estive pensando. Talvez possa... Bem... — O elemento Água fez uma pausa e olhou, nervosa, para as outras servas, que
assentiram, encorajando-a. Ela afundou um pouco mais na água quente, então, como se sugando a força de seu elemento e, logo depois, concluiu depressa: — Eu gostaria
de saber se poderia lançar um feitiço de sedução para mim e para algumas outras...
Mikki notou o rubor que coloriu as faces da serva, e que não era causado pela água quente.
— Eu ficaria feliz em lançar um feitiço para você e suas amigas, mas quem estaríamos enfeitiçando, e onde?
— Os homens, ora! — Nera respondeu, tímida, o rosto passando do rosa para o vermelho.
— E aqui... — Floga ronronou.
Mikki bufou.
— Eu ia perguntar justamente sobre a ausência de homens neste reino.
— Não há homens no Reino das Rosas — confirmou Gii.
— Você quer dizer, exceto pelo Guardião — lembrou Mikki.
Gii franziu o cenho.
— O Guardião não é um homem. Ele é um animal.
Mikki abriu a boca para protestar, porém Floga já estava falando.
— Não há homens no reino porque eles só podem vir até aqui se a Empousa enviar um convite mágico para o mundo antigo. Como não tem havido Empousas no Reino das Rosas,
há tempos os homens não são convidados.
Mikki olhou para o elemento Fogo.
— Está me dizendo que desde que o Guardião foi banido e a última Empousa se foi, estão sem homens aqui?
— Sim! — os Quatro Elementos responderam juntos.
— Quanto tempo faz isso?
Por um momento, ninguém respondeu. Então Gii sussurrou:
— Tempo demais, Empousa.
E ela pensando que sua vida amorosa fosse um horror!, Mikki refletiu, chocada. Era a rainha do romance em comparação àquelas meninas.
— Claro que vou fazer um feitiço de sedução! E um dos grandes, agora mesmo!
Gii riu.
— Pode ser amanhã, Empousa. Esta noite estamos cansadas demais para que esse feitiço nos seja de muita utilidade...
— Amanhã, então. Que tal trabalharmos até meio-dia? Depois posso lançar um círculo e tentar um feitiçozinho.
— O meu eu não quero pequeno! — Floga falou brincando. — Homenzinhos não me interessam, ainda mais depois desse tempo todo!
Nera riu e fez um movimento com o pulso na água da própria piscina, dando um banho em Floga. Gii chamou-a de “sangue quente” e Aeras brincou, dizendo que se Floga
precisasse de um sopro de vento frio do Norte, ela o providenciaria de bom grado.
Mikki riu e observou as brincadeiras bem-humoradas, mas sua mente não estava nas servas, e sim em uma pele morena, uma voz profunda e poderosa... e na luz das velas
refletindo em um par de chifres escuros.
Será que ficaria sempre nervosa antes de invocá-lo?
Mikki olhou ao redor da varanda, certificando-se pela milésima vez de que estava sozinha.
A mesa encontrava-se pronta e sobre ela havia um jarro de vinho e duas taças. Tomara que ele não tivesse esperado para comer com ela. Não o convidara para jantar...?
Não. Lembrava-se de ter pedido que ele viesse vê-la mais tarde, mas não para jantar.
Alisou o tecido macio da túnica, que, naquela noite, era de um tecido fabuloso que envolvia seu corpo como seda, e do mesmo verde de seus olhos. Sabia que a cor
lhe favorecia, assim como tinha consciência de que Daphne a trouxera para ela após o banho porque ela mesma desejara algo bem lindo para vestir. Queria ficar bonita
para Asterius...
— Venha! — sussurrou para a noite, e pôde senti-lo se aproximando. Tal como uma tempestade, ele era um poço de energia e vigor.
— Boa noite, Mikado.
— Olá, Asterius... — Ainda nervosa, ela apontou para a mesa. — Gostaria de um pouco de vinho? Espero que já tenha jantado. As servas quiseram comer comigo no banho,
e elas trabalharam tanto hoje que eu não tive coragem de dizer “não”.
— Era assim que devia ser. Os Elementos necessitam da presença de sua Empousa. Não se preocupe. Eu comi enquanto aguardava sua chamada.
— Mas vai se juntar a mim em uma taça de vinho...?
— É claro.
Mais uma vez, quando Mikki levou a taça aos lábios, encontrou um botão de rosa flutuando no vinho e deliciou-se com a fragrância delicada enquanto bebia.
— Vai acabar me deixando mal-acostumada — falou sorrindo. — Nunca mais vou conseguir desfrutar uma taça de vinho sem que haja uma rosa dentro.
— É assim que deve ser — ele repetiu.
Mikki observou-o sorver a bebida devagar. Naquela noite, Asterius parecia mais relaxado do que na anterior, e ela sentiu-se mais à vontade para olhá-lo abertamente.
Ele era um paradoxo tão grande... Tinha a força descomunal de um monstro e um corpo que mesclava o de o homem com o de uma fera. No entanto, era humano o suficiente
para conjurar uma rosa para seu vinho.
— O que pensa quando olha para mim assim?
Mikki deu um pulo, culpada, diante da súbita pergunta.
— Não precisa responder se não quiser — ele acrescentou depressa, desviando o olhar.
— Eu não me importo em responder, é que... Bem... Sei que é rude da minha parte ficar olhando.
— Estou acostumado aos olhares das mulheres.
Mikki sentiu uma onda de raiva ao pensar no tipo de olhar que ele precisava suportar.
— Vou contar o que eu estava pensando... Estava pensando que é incrível que seja tão poderoso e ao mesmo tempo tão amável.
— Amável?
— Não fique tão chocado. É claro que é amável. Quem pediu um jantar para mim na primeira noite em que cheguei aqui? E ainda ordenou que colocassem uma manta e chinelos
para mim aqui fora! Sem mencionar as rosas que nunca se esquece de adicionar a meu vinho.
— Isso não me faz amável. Apenas demonstra que estou cumprindo com meu dever de cuidar da Empousa.
Ela bufou.
— Por favor. Você não é gentil apenas comigo. É assim com todas as mulheres. Eu vi hoje. Mesmo quando elas o tratam com estranheza e mostram-se ariscas a sua proximidade,
tem a maior paciência do mundo com elas.
— Esse é meu dever, Mikado. Apenas isso.
— Está me dizendo que nunca se sente frustrado ou aborrecido com elas?
— Não — ele confessou.
— Então por que não demonstra isso?
— Porque isso seria uma desonra e... — Ele parou de repente, percebendo que estava falando demais.
— E o quê? — ela insistiu.
— Seria errado.
— Seria errado ou seria provar que o que dizem é verdade?
Os olhos escuros encontraram os dela, e ela leu a resposta neles.
— O que dizem sobre você não é verdade — Mikki falou em voz baixa.
— Não pode afirmar isso.
— Claro que posso. Eu sei disso aqui... — Ela pôs a mão no coração. — E aqui... — Estendeu a mão por sobre a pequena mesa e tocou suavemente a couraça que lhe moldava
o peito. Através do couro maleável, sentiu a batida forte do coração dele e a maneira como sua respiração acelerou-se com o contato.
Entreolharam-se. Mikki desejou que Asterius retribuísse o toque, que cobrisse a mão dela com a sua, que ele lhe dissesse que não se importava por ela tocá-lo...
Mas seus únicos movimentos foram a batida de seu coração e sua respiração.
Relutante, tirou a mão do peito largo.
— Deu tudo certo hoje, Mikado. — A voz de Asterius soou estranhamente alta no silêncio que se instalara entre eles.
— Também acho. Amanhã vamos trabalhar apenas até o meio-dia. Depois tentarei fazer um feitiço.
Os lábios dele curvaram-se de leve.
— Isso vai ser interessante.
— Ainda mais porque não tenho ideia do que vou fazer!
— Vai, sim. Basta ouvir sua voz interior. E lembre-se: os Quatro Elementos estarão lá para ajudá-la. Quando lançar um feitiço, pode evocar qualquer coisa no âmbito
de seu poder para ajudá-la na magia.
— Como assim? — Mikki se entusiasmou.
Ele bebeu um gole de vinho e considerou a questão.
— Digamos que uma moça venha até você porque foi amaldiçoada com dores terríveis na cabeça e pede um feitiço para curar essa dor. A lavanda tem sido associada à
saúde, à paz e ao relaxamento... Basta que peça a Gii que lhe forneça lavanda fresca e a Aeras que encha a brisa ao redor da virgem com o cheiro da erva.
— Faz sentido! — ela falou com entusiasmo. — Então, tudo o que preciso fazer é pensar sobre o que cada Elemento pode fornecer para me ajudar nos feitiços que eu
quiser lançar!
— E completá-lo com as palavras e o poder de Hécate.
— Nossa! — ela exclamou. — Incrível...
— Vai ver que funciona. As Altas Sacerdotisas de Hécate lidam com grande poder. Sua magia será poderosa e consistente.
— Em outras palavras, é melhor eu pensar antes de falar.
— Não tenho nenhuma dúvida de que vai agir com sabedoria, Mikado.
— Eu queria ter tanta certeza — ela murmurou, depois deu um suspiro. — Há tanta coisa que eu ainda não sei.
— Mas vai aprender.
— Pode me ajudar?
— Talvez — ele replicou com cuidado.
— Que bom! Então há algo que quero que faça esta noite. — Mikki ignorou a inexpressividade atrás da qual ele se escondeu mais uma vez. — É mais ou menos como o desenho
do mapa que fez para mim na noite passada... — Isso pareceu tranquilizá-lo e, quando ele acenou com um gesto de cabeça, ela prosseguiu: — Como conhece os jardins
tão bem, suponho que conheça o palácio da mesma forma.
Ele pareceu surpreso, porém concordou.
— Conheço.
— Pois eu não. — Ela apontou as portas de vidro que levavam a seus aposentos. — Até agora só deixei meu quarto por ali. Nunca pus um pé no corredor! Mas sei que
deve haver algum tipo de sonho ou magia acontecendo lá dentro...
Implícito nas palavras, estava o que ela dissera anteriormente: que queria tecer um sonho para eles dois.
— É verdade.
— Eu adoraria ver isso com meus próprios olhos. Mas quero ser capaz de compreender, de assimilar tudo. Poderia me mostrar o que acontece lá, Asterius?
Os olhos escuros do Guardião brilharam com a intensidade da alegria que aquele pedido lhe proporcionava. Ele sorriu, permitindo que ela vislumbrasse seus caninos
brancos.
— Seria uma honra.
Capítulo 24
Andar pelo quarto com Asterius foi uma experiência estranhamente íntima. Mikki percebeu os olhos dele pousando na cama opulenta. Suas passadas longas e seguras vacilaram
e, pela primeira vez, ela o viu mover-se com certo constrangimento.
Teve de se esforçar para não sorrir. Se ele não estava pensando em levá-la para a cama, então por que a visão o abalara? Aquele era um excelente sinal.
Quando Asterius abriu a porta e afastou-se para que ela pudesse passar, esse tipo de pensamento a abandonou. Seu quarto era o último no corredor, e a varanda ladeava
toda a lateral de seus aposentos, o qual ficava no extremo leste do palácio. À sua esquerda, a galeria principal da vasta construção estendia-se indefinidamente.
O corredor era imenso; o teto, muito alto. Enormes janelas quadriculadas davam para o sul, exibindo a paisagem noturna do jardim iluminado por tochas. O lado norte
da galeria ostentava incontáveis portas, cada uma delas entalhada com símbolos místicos e desenhos. Ao lado destas, assim como na parede em ambos os lados do corredor,
ardiam archotes.
Mikki piscou, surpresa, ao ver as floreiras de mármore entre as portas. Estas não eram de rosas. A atmosfera na galeria encontrava-se impregnada por uma fragrância
doce e delicada que lembrava a das orquídeas, mas, na verdade, as flores pareciam-se um pouco com lírios. Suas folhas eram maiores e mais arredondadas, embora as
pétalas brancas também tivessem o formato de um clarim.
Que estranho!, pensou, aproximando-se. Elas eram cercadas por uma névoa cintilante, como se tivessem sido aspergidas com glitter.
Algo nas flores cutucou sua memória.
— Mas... São flores-da-lua! Nós as temos em Oklahoma. Elas se abrem assim apenas à noite. Durante o dia, suas pétalas se fecham, e elas se curvam como se estivessem
quase mortas.
— Sim, nós as chamamos de flores-da-lua aqui também.
— Mas o que é essa névoa que parece sair das flores?
— Não está saindo das flores. Está sendo atraída por elas.
— Sendo atraída? Como assim?
— É a essência dos sonhos. Todas as noites, as flores-da-lua capturam a essência dos sonhos e a levam para as salas, onde as mulheres do reino a pegam e transformam
novamente, enviando-a de volta ao mundo para criar a magia que nasce dos sonhos.
— Tudo isso está acontecendo por detrás dessas portas?
— Está. — Ele sorriu diante de sua expressão maravilhada.
O sorriso que Mikki lançou-lhe de volta foi brilhante e, quando ela apertou-lhe o braço, Asterius pensou que seu coração fosse explodir dentro do peito.
Porém, tinha de se lembrar que a magia do reino a animara daquela forma, e não ele.
Mas não importava. A felicidade de Mikado o agradava, qualquer que fosse o motivo, e ele encontrava-se determinado a aproveitá-la; assim como a alegria de estar
em sua presença pelo máximo de tempo que lhe fosse permitido.
— Continue, Mikado, e eu a acompanharei até as salas dos sonhos.
Mikki assentiu com um gesto de cabeça, respirou fundo e baixou a maçaneta da primeira porta, que se abriu para dentro. Entrou no cômodo e piscou, tentando dar sentido
ao que estava vendo.
O quarto encontrava-se perfumado com o doce aroma de flores-da-lua, e mulheres sopravam bolhas de vidro, o que não era muito difícil de entender. Estava mais quente
ali do que na galeria, mas não tanto como devia estar se considerasse os fornos abertos em cada canto do aposento.
As mulheres ergueram as cabeças, deixando de lado suas tarefas, quando ela e o Guardião entraram. Ignoraram Asterius, contudo puseram-se a fazer mesuras para ela,
cumprimentando-a alegremente.
— Não parem! Continuem trabalhando... seja lá no que for — Mikki completou para si mesma.
— Elas estão criando bolhas de sonho.
Asterius estava muito próximo e sua voz grave vibrou no ouvido dela, fazendo a pele de sua nuca se arrepiar.
— Está vendo como, conforme cada esfera cresce, aumenta também o sonho dentro dela?
Mikki assentiu e observou, extasiada, enquanto as mulheres sopravam ao longo dos tubos compridos, virando e moldando, até as protuberâncias nas extremidades em forma
de globos de vidro delicados e iridescentes, de diferentes cores. Conforme as bolhas iam crescendo, ela percebeu que havia algo dentro delas.
Chegou mais perto e deu-se conta de que estava diante de cenas fantásticas. Em uma esfera, uma menina pulava de um penhasco, mas, em vez de cair, a criança flutuava
em um céu cor de violeta, com pássaros que pareciam pinguins voadores. Na outra, dois cavaleiros lutavam enquanto mulheres parcamente vestidas torciam. Em outra,
ainda, uma idosa olhava para um espelho de mão e, no espelho, seu rosto foi ficando cada vez mais jovem até ter de novo a pele lisa de uma adolescente...
— O que está vendo é a essência dos sonhos sendo reformulada.
— Então esses são sonhos que as pessoas terão de verdade? — ela indagou num sussurro.
— Sim.
— Como eles vão daqui até a mente delas?
— Daquele modo... — Ele ergueu o queixo em direção a uma mulher cuja bolha tinha atingido o tamanho de uma toranja. Ela parou de soprar no tubo e levantou a esfera
ao nível dos olhos.
Na cena que se desenrolava ali dentro, Mikki pôde ver uma mulher dançando com um mar de grama azul até os joelhos e com o céu chovendo flores a sua volta. A criada
do palácio deu apenas um toque na bolha, e esta soltou-se do tubo.
Mas não se espatifou no chão como Mikki esperava. Em vez disso, flutuou. A mulher soprou-a uma última vez e a bolha ergueu-se no ar, desaparecendo no teto.
— Gostaria de criar um sonho, Empousa?
Mikki deu um pulo quando a serva que havia acabado de soltar a bolha ofereceu-lhe o tubo vazio.
— Ah, não, obrigada... Esta noite estou apenas observando.
— Como quiser, Empousa. — A criada sorriu para ela e voltou ao trabalho.
Mikki agarrou a mão de Asterius e o puxou na direção da porta.
— Quero ver mais!
— Claro, Empousa — respondeu o Guardião, tentando parecer formal e indiferente diante das mulheres que os observavam e ouviam.
Mas a mão delicada dentro da dele era um tesouro sem preço, e Asterius não conseguiu esconder de todo a felicidade que iluminou seu rosto por ela tocá-lo com tanta
intimidade.
Não se importou mais que estivessem olhando; tampouco com a dor que irradiava por seu braço. O mais importante foi que ela não tirou a mão da dele até chegarem à
porta seguinte, que Mikki abriu, cheia de expectativa.
Ele a seguiu, sorrindo diante de sua exclamação de prazer.
Aquela sala era muito mais fria e cheirava a flor-da-lua e chuva de primavera. Um córrego claro borbulhava no centro do cômodo, vindo do nada e desaparecendo no
nada. De um lado do curso, mulheres descansavam em enormes almofadas vermelho-claras, conversando e rindo, enquanto corriam as mãos pela água. De vez em quando,
uma delas puxava algo que parecia uma moeda do riacho, estudava-a com cuidado, estalava os dedos e a moeda desaparecia em uma nuvem cor-de-rosa.
Do outro lado do córrego, as servas encontravam-se confortavelmente sentadas, com as pernas cruzadas, mergulhando aros redondos na água.
Uma delas a avistou e saudou, alegre:
— Bem-vinda, Empousa!
Logo, o restante das Tecedoras de Sonhos a cumprimentou.
— Não me deixem interrompê-las, eu só quero observar! — garantiu Mikki. Então, baixou a voz e aproximou-se de Asterius. — E agora, o que elas estão fazendo?
— O riacho carrega as moedas de todos os poços e fontes dos desejos do mundo comum. As mulheres escolhem uma moeda e, se gostam do desejo, elas o transformam em
um sonho.
— E se elas não gostam?
— Este permanece no córrego e, eventualmente, transforma-se no lodo de que são feitos os pesadelos.
— Elas não podem jogá-los fora ou algo assim? Odeio pesadelos!
— Deve haver equilíbrio, Mikado. O claro e o escuro, o bem e o mal, a vida e a morte. Sem equilíbrio, o círculo da vida entraria em colapso.
— Continuo não gostando de pesadelos — ela resmungou. Depois apontou as mulheres com os aros. — O que elas estão fazendo?
— Estão tentando encontrar a mistura ideal entre os sonhos, a água e a magia para fazer espelhos mágicos.
— Espelhos mágicos?
— Espelhos usados para segunda visão; para se discernir o que não pode ser visto a olho nu.
— Verdade? Mas isso é incrível! Quero olhar mais de perto... — Mikki marchou para uma das mulheres que pescavam moedas.
— Ficarei honrada se quiser juntar-se a mim, Empousa. — A serva sorriu, calorosa, e abriu lugar na almofada.
Mikki sentou-se e olhou para dentro da água: esta era clara e corria apressada sobre a areia branca que se formava no fundo do riacho mágico. De repente, um círculo
de prata rolou, ficando à vista e, sem pensar duas vezes, ela mergulhou a mão. A água encontrava-se agradavelmente quente, fazendo um delicioso contraste com a sala
fria.
Seus dedos se fecharam em torno da moeda. Sorrindo, triunfante, Mikki a ergueu.
— Muito bem, Empousa. — A voz profunda de Asterius retumbou a seu lado. — Agora, olhe para ela e verifique se o desejo é um sonho que irá conceder.
Mikki estreitou os olhos para a moeda e, com um pequeno choque, percebeu que estava segurando um quarto de dólar, e que a data estampada era 1995. Era apenas uma
moeda de vinte e cinco centavos, igual às que ela vira e gastara a vida inteira. Como poderia haver magia dentro del...?!
A face da moeda ondulou, e ela quase a deixou cair. Fitou-a mais de perto. Era quase como colocar os olhos num daqueles antigos binóculos para slides, mas a cena
dentro da moeda movia-se como num vídeo.
Um homem e uma mulher encontravam-se deitados sobre um tapete de pele de carneiro, diante de uma lareira acesa. Estavam nus e faziam amor. Mikki pôde ouvi-lo dizendo
o quanto ela era bonita, como tinha gosto de mel e amor... Em seguida, conforme a mulher atingia o ápice, neve começou a cair na sala, ao redor do casal, sem tocá-los
ou deixá-los molhados.
— Quer que esse desejo seja transformado em sonho? — Asterius perguntou.
Mikki olhou da cena erótica para o estranho ser a seu lado. Engoliu em seco, permitindo que o olhar viajasse do peito largo para os lábios benfeitos e tão humanos.
— Quero, sim — falou baixinho.
Sem que ninguém precisasse dizer-lhe o que fazer, estalou os dedos e a moeda explodiu em uma nuvem de fumaça cor-de-rosa que derivou preguiçosamente na direção do
teto.
— Deseja escolher outro, Empousa? — a mulher sentada a seu lado indagou.
— Eu gostaria muito, mas ainda preciso visitar as outras salas esta noite.
E, pela segunda vez naquele dia, Mikki estendeu a mão para o Guardião.
Desta vez não houve hesitação antes que ele a tomasse e a ajudasse a se pôr em pé.
Quando ela se levantou, Asterius soltou-lhe a mão; contudo ela não se afastou. Em vez disso, segurou-o na dobra do braço para que ele a acompanhasse para fora da
sala, como se ele fosse um daqueles antigos cavalheiros do Sul.
— Vamos ver os outros cômodos.
— Como quiser, Empousa.
Suas palavras ainda eram formais, mas não havia mais dúvida quanto à forma como a expressão dele se suavizava quando falava com ela, e como eles se inclinavam na
direção um do outro, partilhando sorrisos e sussurros. Deixaram a sala sem dar a menor atenção ao espanto nos olhares das Tecedoras de Sonhos.
Capítulo 25
A mente de Mikki encontrava-se em um turbilhão, tal fora a beleza que ela testemunhara nos quartos de tecelagem de sonhos. Quando pensava que não havia mais nada
de incrível, Asterius a levava a outra sala e ela ficava espantada outra vez.
Desejou que sua mãe e sua avó estivessem ali com ela. Sua mãe, em particular, adoraria a sala onde as mulheres pintavam minúsculos animais feitos de porcelana, os
quais ganhavam vida e saíam flutuando através do teto. Sua avó gostaria mais da confecção de sonhos que era dedicada à magia, como a sala onde cenas coloridas eram
pintadas em longos rolos de pergaminho, tão finos que podia-se ver através deles. Quando as cenas eram concluídas, o papel de repente se partia e, como asas de pomba,
voava para longe da vista.
Asterius explicara que ali as mulheres criavam a essência das cartas de Tarô.
Havia também uma sala onde elas usavam agulhas de prata para tecer diáfanas mantas de crochê, as quais variavam do amarelo ao cinza. “Véus de Lua”, usados para atrair
o luar, ele explanara. E Mikki tinha percebido que, de fato, eles possuíam as cores das diferentes fases da lua.
Mas sua sala favorita era a das velas. Era cheia com várias fileiras de velas grossas, cor de creme, nas quais as servas esculpiam na cera mole fantásticas cenas
de sonho. Quando a cena era concluída, a vela era acesa. E, conforme queimava, o sonho era lançado e transportado para o outro mundo em uma nuvem perfumada e colorida.
— Só mais uma sala — Asterius determinou, sério, conforme deixavam a das velas. Antes que Mikki pudesse protestar, ele sacudiu a cabeça. — Já está ficando com olheiras.
Pode continuar sua exploração amanhã à noite.
— Isso tem a ver com sua obrigação de cuidar de mim, ou está cansado de ser arrastado de sala em sala?
— Não — ele respondeu calmamente enquanto aproximavam-se da porta seguinte. Parou e segurou o rosto dela com ambas as mãos, os polegares traçando as sombras sob
seus olhos. — É que não gosto de ver você com aparência de cansada, mesmo desejando que esta noite não tivesse fim.
Mikki o fitou, surpresa e satisfeita com as palavras e a suavidade de seu toque. Quis dizer que sentia muito por ter entendido mal, ou agradecê-lo ou, droga!, dizer
que estava tendo uma noite maravilhosa também... mas Asterius já abria a porta entalhada, e a atenção dela deslocou-se para a nova sala e os milagres que nela se
realizavam.
Tudo ali dentro parecia normal. Mulheres encontravam-se sentadas diante de enormes telas de tecido, suas agulhas trabalhando furiosamente enquanto criavam primorosas
tapeçarias.
Como de costume, elas a cumprimentaram, mas, desta vez, não ignoraram Asterius.
— Trouxe mais fio, Guardião? — Uma das mais velhas indagou em um tom profissional.
— Não tenho nenhum comigo. Esta noite estou acompanhando a nova Empousa pelas salas de confecção de sonhos.
— Empousa, por favor... Não quero desrespeitá-la, mas é importante que o Guardião vá buscar mais material para nós ainda esta noite, se lhe conceder sua licença.
Enquanto ele esteve — a mulher fez uma pausa, constrangida, antes de prosseguir — distante do reino, fomos obrigadas a trabalhar com as tramas que os Quatro Elementos
nos forneciam, e estas mal foram suficientes.
— As tapeçarias estão ficando fracas — acrescentou outra mulher um pouco mais jovem, com uma espessa massa de cabelos loiros que tinha presa em uma trança.
Várias das outras servas concordaram.
Confusa, Mikki conteve sua frustração com um suspiro.
— Claro que vou permitir que o Guardião vá buscar mais fios para vocês. Já estávamos terminando nossas visitas mesmo...
— Ah, obrigada, Empousa!
Mikki dispensou os agradecimentos e retirou-se da sala com Asterius.
— Muito bem, vai ter que me explicar isso — pediu de pronto.
— Percebeu alguma coisa diferente nas cenas desta sala?
Ela franziu o cenho, não gostando do fato de ele ter respondido à sua pergunta com outra, mas pensou sobre as cenas e as mulheres que as bordavam. Havia uma em que
uma mãe segurava o filho recém-nascido no colo. Outra mostrava um homem falando diante de uma enorme multidão. Em uma terceira, uma mulher encontrava-se sentada
em uma escrivaninha, mastigando um lápis, pensativa.
Mikki encolheu os ombros.
— Não sei. Elas me pareceram normais.
— Porque, nessa sala, os sonhos tecidos na tapeçaria são os que vão se tornar realidade.
— Quer dizer que eles realmente acontecem? As coisas que aquelas mulheres estavam criando se tornam realidade no mundo real?
— Sempre — ele garantiu.
— Então, por isso o fio tem que ser diferente — ela falou devagar, seguindo sua intuição com cuidado, como a uma trilha mal traçada. — Elas não podem obtê-lo apenas
do material que as flores-da-lua sugam. Sonhos que se tornam realidade precisam de algo mais... real.
— Isso mesmo. — Ele pareceu satisfeito. — Sonhos que vão se tornar realidade precisam ser tecidos com fios colhidos da realidade.
— E você pode fazer isso?
— Posso — ele concordou com um gesto de cabeça.
— Pode me mostrar como?
Asterius começou a protestar, dizendo que era tarde demais e que ela estava muito cansada, porém Mikki tocou-o de leve no braço.
— Por favor!
— Está bem. Venha comigo.
— Aonde estamos indo?
— Para o portal das rosas — ele explicou, levando-a de volta pelo corredor.
— Estamos indo para a floresta? — A mão dela apertou seu braço.
— Sim. A realidade não pode ser adquirida no reino dos sonhos e da magia. — Ele cobriu a mão delicada com a dele. — Não tenha medo. Não deixarei que nada lhe aconteça.
Mikki sorriu.
— Não tenho medo. Não quando estou com você.
O enorme portal feito de rosas, contudo, parecia um tanto sombrio naquela noite. Não importava que houvesse tochas nas proximidades e que lanternas pendessem dos
galhos do antigo carvalho. Ainda estava escuro, e a muralha parecia algo saído dos livros da controvertida autora britânica Tanith Lee. Mikki até gostava das versões
estranhas de seus contos de fadas... Muito, aliás.
Mas não queria vivenciar nenhum deles. Nunca.
— Fique aqui. Eu vou para a floresta, colho os fios e volto o mais rápido que puder — orientou Asterius.
— Não! Não vou ficar sozinha. Quero ir com você.
Com a mão dela presa firmemente à dobra do braço, o Guardião apanhou uma das tochas fincadas no chão, perto da passagem. Após pronunciar a palavra mágica que abria
o portal, ambos deixaram o Reino das Rosas.
Mikki estremeceu.
— É mais frio aqui.
Ele deu outro comando e uma palla na cor púrpura materializou-se sobre seus ombros.
— É mesmo útil ter você por perto! — comentou Mikki, tentando acalmar os nervos com um sorriso. Então acenou em direção ao fundo escuro da floresta. — Estamos indo
para lá?
— Não tenha medo.
— Fácil para você dizer... eu não tenho garras — ela resmungou.
O sorriso branco do Guardião brilhou à luz das tochas.
— Minhas garras estão a seu inteiro dispor, senhora...
— Você diz coisas tão doces! — ela recitou com seu melhor sotaque sulista, e Asterius soltou uma gostosa gargalhada.
Entraram na linha das árvores e foram imediatamente engolidos por uma escuridão que bloqueava a luz prateada da lua crescente.
A luz da tocha de Asterius emanava sombras que se movimentavam, sinistras, nas cascas das árvores antigas.
Se não estivesse com Asterius, Mikki pensou, estaria apavorada. Na companhia dele sentia-se apenas assustada e ansiosa por voltar para a claridade segura do palácio.
— Já andamos o suficiente. Preciso apenas recolher alguns fios para satisfazer as mulheres. Amanhã posso vir buscar mais. — Ele parou e enfiou a tocha no chão outra
vez, olhando para onde a mão dela agarrava seu braço. — Preciso dos meus dois braços livres, Mikado... — completou suavemente.
— Ah, desculpe. — Ela afrouxou o aperto e recuou um passo, agradecida pela escuridão que escondia seu rubor.
— Não se desculpe — ele falou, meio áspero. — Seu toque me agrada.
Mikki piscou, surpresa. Tinha ouvido bem? As palavras eram gentis, mas Asterius parecia aborrecido.
Ficou confusa. Assim como ficava quando as mãos dele a tocavam suaves, porém, seu rosto parecia refletir algo parecido com dor.
— Verdade? — indagou, insegura.
O suspiro de Asterius foi quase como uma ventania.
— Verdade. — Ele a segurou pelos ombros e a moveu alguns passos para o lado.
— Fique aqui. Isso não vai demorar muito.
Em silêncio, Asterius estendeu as mãos e uma luz brilhou das garras que, de repente, brotaram de seus dedos. Ele fechou os olhos e ergueu a cabeça, movendo-se em
círculo até que se voltou para a brisa suave. Embora estivesse meio afastado dela, Mikki podia vê-lo movendo os lábios, como se numa oração silenciosa. Asterius
levantou a mão e a empurrou para a frente, como se estivesse agarrando o vento; em seguida, a torceu e fechou em um gesto breve e inumano.
Foi então que, da ponta de suas garras, o ar começou a brilhar, enquanto fios longos e finos começaram a tomar forma. Ele os puxou, mão após mão, deixando um monte
de filigranas luminosas junto aos cascos.
Espantada, Mikki assistiu-o trabalhar. O Guardião movia-se em um pequeno círculo, permanecendo próximo dela, dentro da luz da tocha. Não apenas tirava os fios do
nada, mas também estendia a mão na direção das folhas da velha árvore acima deles e puxava tramas invisíveis. Mudava o foco e corria os dedos pelas plantas da floresta
que brotavam do solo fértil e verdejante.
E, enquanto isso, o extraordinário amontoado de fios crescia. Mikki nem podia olhar diretamente para eles por muito tempo. As tramas a deixavam tonta com suas variações
e fulgores. Na pilha, ela pensou vislumbrar silhuetas de pessoas; contudo, estas pareciam desmembradas. Era como tentar estudar um Picasso através da imagem distorcida
de um espelho.
Em vez dos fios, Mikki observou Asterius. Ele movia-se com a graça de um guerreiro somada à força de um grande felino. Apesar dos chifres e dos cascos fendidos,
parecia mais um leão do que um touro com aquela cabeleira escura, os olhos escuros e profundos e a graça selvagem.
De repente, seus olhos voltaram-se para ela. Asterius respirava pesadamente e seus braços estavam úmidos de suor.
— De todas as maravilhas que me mostrou esta noite, ver você puxar as tramas da realidade das trevas foi o que achei mais incrível... — ela comentou.
— Gostaria de experimentar?
— Claro que sim!
— Então precisa vir até mim.
Sem hesitar, Mikki fez o que ele pedia.
— Confia em mim? — Asterius quis saber.
— Sim.
— Vire-se de costas.
Ela obedeceu e sentiu que ele cobria a pequena distância que os separava, depois curvava-se de modo a poder pegar suas mãos nas dele.
— Abra as mãos e pressione-as contra as minhas, assim será como se minhas garras fossem suas.
Mikki espalhou os dedos, juntando-os com os dele na medida do possível. Pressionou os braços aos de Asterius da mesma forma, até que viu-se moldada contra sua pele.
Seus corpos se encontraram, e ela percebeu quando ele sugou o ar, assim como o arrepio que o atravessou. Seu próprio corpo respondeu com um calor que fez o interior
de suas coxas arder.
— Agora, mova-se comigo...
Ela se moveu, as mãos vasculhando o ar da noite junto com as dele. Sentiu o formigamento dos fios contra as palmas. Quando as mãos de Asterius se fecharam, fechou
também as dela e, de repente, as cenas em meio ao monte de fios já não lhe causavam vertigens: entraram em foco e tornaram-se muito claras. Conforme as puxava da
escuridão, era como se estivesse assistindo ao desenrolar de uma fita de filme.
De repente, viu uma mulher de costas para um homem, na mesma posição em que ela se encontrava com Asterius. Ela estava nua, e a linha clara e delgada de suas costas
só era quebrada pela cascata de cabelos cor de cobre.
Como o meu cabelo! Ela tem o meu cabelo!, Mikki pensou, entontecida.
Foi então que, na cena, surgiram dois braços musculosos, cuja pele era do tom do bronze polido. Os braços envolveram a mulher, puxando-a para trás, de maneira que
seu corpo repousasse em um peito nu. O homem curvou a cabeça para a frente, acariciando o pescoço da mulher... e uma luz brilhou de seus dois chifres escuros.
O rosnado do Guardião fragmentou a cena que o fio revelava. Mikki tropeçou e quase caiu quando ele afastou-se dela. Quando retomou o equilíbrio e virou-se para fitá-lo,
Asterius estava de pé ao lado da tocha, com a cabeça baixa e rodeado por pilhas de fios. Respirava pesadamente e, enquanto ela o observava, limpou a testa com as
costas da mão, trêmulo.
— Preciso levar os fios para o palácio. — Sua voz voltou a soar formal e sem emoção.
— Eu o aborreci? — Mikki quis saber.
— Não.
— Então por que está agindo assim?
Quando ele ergueu a cabeça e a encarou, ela pensou que nunca tinha visto olhos tão sombrios.
— Viu a cena na trama?
— Sim — ela admitiu num sussurro.
De repente, com movimentos instáveis e violentos, ele começou a recolher as pilhas de fios.
— Não compreendo o que aconteceu. Essas são tramas da realidade. Supõe-se que sejam tecidas em sonhos que se tornarão realidade.
Em silêncio, Mikki tirou a palla dos ombros e a esticou no chão, perto de Asterius, para que ele pudesse empilhar os fios dentro dela.
— E daí? — incitou diante de seu silêncio.
— Daí que não se espera que elas mostrem fantasias e mentiras!
A força de sua voz fez a luz da tocha bruxulear, porém Mikki não se alterou. Em vez disso, percorreu os dois passos que os separava. Ao vê-lo imóvel, estendeu a
mão e deixou a ponta dos dedos acariciar seu rosto.
Ele estremeceu sob o toque, mas não se afastou.
— Gosta quando toco você? — ela perguntou baixinho.
— Sim...
— Quer me tocar também?
— Sim! — ele rosnou por entre os dentes.
— Então não entendo por que diz que a cena que acabamos de ver é uma fantasia ou mentira.
— Porque sou um animal e você é uma mortal.
— Pare com isso! — Mikki fitou-o nos olhos. — Você é o único que está tornando isso impossível. Eu não me importo com nada disso... — Ela fez um gesto brusco, apontando
seus chifres e cascos. — Nada me impediu de desejá-lo em Tulsa, quando começou a visitar meus sonhos. E eu nem conhecia o homem dentro de você! Por que iria me impedir
de desejá-lo agora?
— Não entende, Mikado. Há mais em jogo do que o que pode ou não acontecer entre nós dois. Você só está aqui...
— ... por causa das rosas! Droga, Asterius, eu sei disso! Acha que sou incapaz de fazer meu trabalho e amá-lo ao mesmo tempo? Santo Deus! As pessoas deste reino
disseram coisas terríveis sobre meu antigo mundo, e algumas delas até são verdade, mas estou começando a me perguntar sobre as Sacerdotisas que vieram antes de mim.
Elas não eram nem um pouco flexíveis?
— Por favor, não me diga nada que não seja verdade.
Mikki estreitou os olhos. Asterius soava como se seu coração tivesse sido partido.
— Do que está falando? Estou sendo sincera.
— Uma mortal não pode amar uma fera.
— Quem disse isso?
Ele desviou o olhar rapidamente.
Mikki deu um passo e se pôs a sua frente, tocando-o no rosto outra vez. Asterius fechou os olhos, como se seu toque lhe causasse muita dor.
— Foi a última Empousa, Asterius? A que fez Hécate ficar zangada com você?
Ele abriu os olhos em choque.
— Quem lhe falou dela?
— Ninguém. Ninguém ousaria... Mas não sou estúpida. Você irritou Hécate, a Empousa se foi, as rosas estão doentes... Eu estou aqui, e foi você quem me trouxe. Ora,
vamos, não é tão difícil imaginar que algo aconteceu entre vocês dois.
— Estou proibido de falar do passado.
— Compreendo. Você e todos aqui estão proibidos... Mas eu não. Então me deixe explicar algo: em primeiro lugar, eu não sou ela. Tenho certeza de que sou bem mais
velha do que a outra sacerdotisa e, digamos, ao menos em relação a isto, um pouco mais sábia. Em segundo lugar, venho de outro mundo, o que significa que não tenho
os mesmos preconceitos das mulheres deste reino. Por exemplo: não vejo nenhum problema em sujar as mãos para cuidar das rosas. Assim como não tenho dificuldades
em ver o homem que existe dentro de você. Agora, quero que responda a uma pergunta de forma muito honesta e clara para mim, e não quero ouvir nada dessa história
de “Estou proibido de falar sobre isso”...
— Diga.
— Existe alguma regra dizendo que a Empousa de Hécate não pode amar seu Guardião?
Seus olhos escuros encontraram os dela.
— Não conheço nenhuma regra parecida, mas creio que uma norma dessas nunca foi necessária antes.
Mikki prendeu a respiração por um momento.
— E é agora?
— Mikado... — A voz dele saiu tensa. — Disse que enxerga o homem dentro de mim?
— Na verdade, o que estou dizendo é que estou apaixonada pelo homem dentro de você! Acho que estive desde que veio para meus sonhos, Asterius.
Ela não o estava tocando, contudo encontrava-se perto o suficiente para ver que ele tremia.
— Apenas ouvi-la dizer essas palavras é um raro e maravilhoso presente para mim... Algo que nunca me foi dado antes. Mas deve compreender que, apesar de eu ter o
coração e a alma de um homem, também tenho as paixões de uma fera. Consigo domar o animal, mas ele está sempre presente... e mostra-se tão voraz por seu amor como
o homem.
A onda de emoção que invadiu Mikki fez aumentar as batidas de seu coração. Mas ela não ficou com medo. Ficou fascinada.
Pegou a mão dele devagar e a ergueu até os lábios.
— Eu não poderia amar o homem sem aceitar a fera.
— Não tem medo de mim? — ele rosnou com sua voz profunda.
Mikki descansou o rosto contra a mão larga. Asterius segurou-lhe o rosto, e ela beijou-lhe a palma.
— O animal dentro de você quer me machucar?
— Não! Ele quer amá-la, mas não sabe como.
— Então vamos ter que ensiná-lo.
Com um suspiro, eles juntaram os fios em silêncio, porém suas mãos encontraram-se muitas vezes e seus olhos falaram de sonhos ainda não realizados.
Retomaram o caminho através da floresta, preocupados demais um com o outro para pressentirem a presença do que escondia-se nas sombras e cujos olhos vermelhos seguiam,
vorazes, todos seus movimentos.
Capítulo 26
Asterius carregou os fios embrulhados na palla de seda, e eles cruzaram o caminho por entre os jardins adormecidos. Caminharam juntos, os braços roçando um no outro,
porém ele recebeu a dor que o contato lhe causava no corpo de bom grado. Estava mais do que disposto a pagar tal preço pela proximidade de Mikado.
Sua cabeça era um só turbilhão.
O contato com ela ainda me dói, então Mikado ainda não me ama. Mas poderia estar se apaixonando por mim? Seria possível? E se isto for apenas um engano ou um impulso
que ela resolveu seguir, mas do qual vai se arrepender?
Sentiu o peito se apertar. Deveria mais era ir embora e fechar aquela noite com as palavras e a esperança que ela lhe dera. Era o suficiente.
Não, não é o bastante!, rugia a fera dentro dele.
Mas tem que ser. Mesmo que, por algum milagre, ela possa me amar, isso não muda nada... Seu destino deve permanecer o mesmo.
Com a mente e o coração em franco combate, Asterius permaneceu em silêncio, vivenciando sua batalhas internas ao mesmo tempo que deliciava-se com o toque macio do
braço delicado contra o seu.
Mikki, por sua vez, tentou não pensar. De vez em quando lançava um olhar na direção do perfil forte: o queixo quadrado, a testa larga, os chifres escuros como ônix...
Um arrepio a sacudiu, parte por medo, parte por fascínio.
Mas não, não iria pensar. Iria seguir os próprios instintos.
Ambos estavam tão preocupados que surpreenderam-se ao deparar com a escada que levava à varanda de Mikki.
— Vou levar os fios para as Tecedoras de Sonhos — Asterius murmurou com voz grave.
— Vá... Elas estão esperando por você. — Ela fez menção de tocar a pilha brilhante de tramas, porém pensou melhor e, deixando a mão cair ao lado do corpo, o encarou.
— O sonho em que estávamos juntos... As mulheres vão vê-lo e tecer uma tapeçaria também?
Asterius pareceu surpreso com a pergunta.
— Não faço ideia. Nunca um sonho meu tornou-se realidade.
Mikki ergueu a cabeça de modo a fitá-lo nos olhos.
— Não tem sonhos?
— Tenho, mas eles não acontecem. Desde que me dispus a ficar a serviço de Hécate vejo muitos dos sonhos dos outros tornando-se realidade, mas esse presente nunca
me foi concedido. — Asterius continuou a olhar para ela. — Agora já sabe que sou filho de um Titã, que já vivi por incontáveis séculos e que estes se prolongam interminavelmente
diante de mim. Mas também quero que saiba: vou me lembrar deste dia enquanto meu coração bater.
— Está falando como se hoje tivesse acabado.
Ele sorriu, permitindo que ela vislumbrasse os dentes brancos e afiados por um momento; contudo, seus olhos permaneceram tristes.
— Foi um dia agradável, mas, assim como todas as coisas, ele também precisa terminar.
Mikki, no entanto, não queria que ele acabasse. Não ainda. Queria que Asterius...
Seus pensamentos perderam-se diante das possibilidades. O que desejava que ele fizesse? Estar tão perto dele a deixou, mais uma vez, impressionada com seu tamanho
e a mistura poderosa do homem e animal: as patas e pernas cobertas de pelo, o peito largo, os ombros musculosos, o rosto que parecia pertencer a um antigo deus guerreiro,
e não a uma criatura que era em parte fera. Em seus sonhos, ela fora perseguida por ele e terminara em seus braços. E tinha sido tão erótico e excitante!
Mas não passara de um sonho. A realidade era muito diferente.
Primeiro porque Asterius, definitivamente, não a perseguia. Segundo porque ela precisava se lembrar do que o Guardião dissera sobre o animal que habitava dentro
dele. Ela não era nenhuma princesa de conto de fadas, e Asterius não iria se transformar em um príncipe janota se ela concordasse em se casar com ele.
Inferno. Asterius sequer lhe havia proposto casamento! Só Deus sabia quais eram suas intenções. Na maior parte do tempo, sua expressão era tão impenetrável que ela
não podia nem imaginar o que ele estava pensando.
Afinal, o que ela pretendia? Já havia admitido que poderia estar apaixonada, mas o que aquilo significava? Até onde estava disposta a ir?
— Se não precisa mais de mim, então já é hora de eu lhe dar boa-noite, Mikado.
Quando Asterius falou, Mikki percebeu que tinha ficado ali, parada, olhando para ele como uma idiota. Piscou, sentindo-se como se tivesse saído de um transe.
— Há mais uma coisa que pode fazer por mim. — Subiu três degraus da escada para a varanda.
Asterius começou a segui-la, porém ela fez meia-volta e ele teve que estacar. Mikado ficou quase no nível de seus olhos e, por um momento, ele apenas ficou parado,
deliciando-se com a rara sensação de estar tão próximo de uma mulher que não se encolhia em sua presença, tampouco tratava-o como se ele fosse um cão vira-lata.
Então, ela colocou as mãos em seus ombros.
— O que posso fazer por você, Mikado? — A despeito da dor lancinante que começou a irradiar por sua pele com o toque delicado, ele tentou falar o mais suavemente
possível, amaldiçoando o peito descomunal e a voz que brotava de dentro dele, temendo assustá-la de novo, com medo de que ela parasse de tocá-lo... ou de que não
o fizesse.
— Isto — Mikki sussurrou, e colou os lábios aos dele.
Asterius não conseguiu se mover. Foi como se o beijo o tivesse transformado em pedra outra vez.
Ela afastou-se apenas alguns centímetros, de maneira a poder fitá-lo nos olhos.
— Seus lábios são quentes — falou num sussurro.
— E os seus, incrivelmente macios. — De algum modo, ele conseguiu proferir as palavras que encontravam-se presas em sua garganta.
— Posso beijá-lo de novo?
Asterius sabia que ela podia sentir seu corpo tremendo por conta do prazer doce e incomum causado pelo peso de suas mãos pequenas. Não confiando em si mesmo para
manter o controle da voz, ele apenas assentiu.
Desta vez, os lábios de Mikado demoraram-se mais sobre os seus. Com um esforço supremo, ele ignorou a onda excruciante de dor e bebeu dela.
Seu perfume preenchia-lhe os sentidos. Mikado tinha o cheiro pungente das rosas e o calor de uma mortal, e o tocava, beijava, quase mergulhando em seus braços.
Foi mais inebriante do que qualquer magia que ele pudesse operar.
— É melhor você me beijar de volta! — ela murmurou contra seus lábios.
Como ele havia visto tantas vezes nos sonhos de outros homens, entreabriu a boca e inclinou a cabeça.
Uma língua macia tocou a sua de leve, e Asterius percebeu o corpo reagindo instantaneamente. Com um grunhido que transformou-se num gemido, ele largou a palla e
os fios luminosos derramaram-se à volta deles na escada. Suas mãos circundaram a curva suave da cintura de Mikado, e ela arqueou o corpo, fazendo com que seus seios
fartos pressionassem a cuirasse.
Asterius sentiu seu peso e calor com tanta intensidade como a doçura da boca que o engolia e viu-se dominado por um misto de agonia e luxúria. Seu pulso se acelerou
e seu sangue afluiu como fogo líquido nas veias, fazendo latejar suas têmporas. Não havia mais nada no mundo exceto ela: seu toque, seu gosto, seu calor...
Ele precisava tê-la. Mesmo que aquela dor o destruísse, Mikado tinha que ser sua! Precisava mergulhar nela e preencher seu calor com todo o desejo que o consumia.
Braços delicados fecharam-se em torno de seus ombros, e o beijo se aprofundou. Asterius deslizou a mão pela linha suave das costas delgadas enquanto a outra descia
para segurar a curva irresistível das nádegas redondas para trazê-las mais para si, pressionando-as com firmeza contra seu membro.
Por Hécate! Ele nunca havia sentido nada parecido com a dor deliciosa de ter o corpo pressionado contra o dela!
Sua mente preenchida pela dor e pelo prazer não registrou o primeiro grito de Mikado. Só ouviu o segundo, quando ela começou a tentar desvencilhar-se dele.
Respirando com dificuldade, Asterius obrigou-se a afastar a boca da dela.
Foi então que sentiu cheiro de sangue e olhou para os lábios de Mikado. Estavam inchados, machucados, e um deles tinha um corte que sangrava. Mikki ofegava tanto
quanto ele, os olhos verdes fitando-o, arregalados.
— Não! — ele rosnou, inconformado e, libertando-a, cambaleou para trás.
Ela também recuou um degrau, vacilante, e apoiou-se no corrimão. Quando seu corpo tocou o mármore, Mikki fez uma careta de dor.
— O que eu fiz? — ele indagou, grave.
— Suas garras... — ela começou, a voz soando um pouco estridente. — Deve ter me arranhado.
Asterius olhou para as mãos e viu as lâminas totalmente estendidas.
Voltou os olhos para ela.
Oh, Deusa, por favor... Não permita que eu a tenha ferido!
— Deixe-me ver suas costas — murmurou, mas quando começou a mover-se em sua direção, Mikado recuou mais um passo.
— Estou bem... Tenho certeza de que estou bem.
Asterius parou como se ela tivesse lhe cravado uma estaca, mantendo-o no lugar. Os olhos dela estavam cheios de medo e repugnância... Algo que ele reconhecia de
pronto. Conhecia muito bem aquele olhar, pois o tinha visto na outra Empousa que o havia rejeitado. Os olhos desta também revelavam que ela temera e odiara a fera.
Desistindo de avançar e tocar Mikado, Asterius recolheu os fios derramados, reunindo-os dentro da palla. Então endireitou o corpo e desceu a escada antes de se permitir
olhar para ela novamente.
Mikado continuava parada, as costas pressionadas contra o corrimão, observando-o com os olhos muito abertos.
— Eu não queria machucá-la. Não peço que me perdoe porque sei que isso não é possível... mas peço que ao menos tente acreditar: não tive a intenção de feri-la, Mikado.
Eu jamais iria querer isso.
E, com um rosnar abafado, ele virou-se e desapareceu na noite.
Quando Asterius se foi, Mikki passou a mão trêmula pela boca. Retraiu-se ao sentir o corte no lábio com a língua. Sequer tinha percebido os dentes dele fazendo aquilo!
Sentiu os joelhos fracos e subiu a escada curva devagar.
Mas não foi para o quarto. Continuou andando ao longo da sacada e desceu a escadaria que levava ao leste do palácio.
Por sorte, não precisou chamar Daphne. Como pedira mais cedo, naquela mesma noite, as servas haviam começado a deixar grossas toalhas, assim como túnicas extras
e camisolas, junto com os sabonetes, óleos e jarras de vinho, em grandes cestos perto das piscinas de água quente. Naturalmente, elas tinham protestado, dizendo
que era seu dever atender às necessidades da Empousa a qualquer hora, porém ela insistira. Queria ter privacidade para se banhar.
Só não sabia que iria querer desfrutá-la tão depressa.
Livrou-se do quitão, encheu um cálice com o vinho tinto de um jarro e, devagar, deixou-se afundar em uma das piscinas fumegantes, prendendo o fôlego quando a água
mineral tocou-lhe as costas.
Havia ficado muito assustada. Estava beijando Asterius e adorando a experiência... Ele tinha um gosto de homem misturado a algo almiscarado. Algo tão estranho quanto
emocionante.
E ele parecia uma rocha, pensou, estremecendo. Seu corpo era quente e forte.
E Asterius a quisera. Desesperadamente. Pudera sentir seus músculos retesando-se e tremendo sob seu toque.
Suspirou. Havia deleitado-se com a firmeza da ereção pressionada contra ela, e seu próprio corpo reagira com um ardor e umidade tão deliciosos que chegara até a
doer... Esfregara-se contra ele, provocante, sensual, adorando sentir o membro másculo através da seda fina da túnica.
E o rosnar abafado que ele soprara em sua boca a excitara ainda mais... Céus!, conseguia fazer tudo aquilo com ele!? Pensar que tivera uma fera nos braços e a fizera
tremer por ela era no mínimo inebriante.
Respirou fundo. Havia encaixado-se nele, moldado sua suavidade aos músculos fortes. Tinha sido quase como no sonho, só que melhor, pois não teria que acordar sozinha
e contentar-se com um orgasmo solitário e pouco satisfatório... Asterius estava bem ali, e ela poderia tê-lo por inteiro.
Então a dor havia misturado-se ao prazer.
Mikki suspirou. Sabia que ele não tivera a intenção de estender as garras. Asterius apenas perdera-se em seus braços, e a paixão tinha provocado uma reação espontânea
nele.
Ela bem que tentara pedir que ele se afastasse um pouco, contudo Asterius pareceu não ouvi-la a princípio, e depois...
Fechou os olhos. Tinha sido terrível. Ele vira o medo em seus olhos e fugira, ainda mais depois que ela não permitira que ele se aproximasse.
Fora um mal-entendido. Claro que sim. Quantas mulheres não deviam ter olhado para ele com medo? Provavelmente fora assim com a outra Sacerdotisa. Quando ele havia
dito que Hécate não possuía nenhuma razão para criar uma regra em que o Guardião e a Empousa não pudessem desejar um ao outro, dera a entender que não tinha acontecido
nada entre os dois... Mas ela sabia que Asterius estava escondendo algo. Todos estavam escondendo algo dela.
A outra Empousa partira o coração dele. Talvez por isso Hécate o tivesse punido: para que ele pudesse superar tal sentimento. E talvez tivesse expulsado a outra
Sacerdotisa porque ela o rejeitara.
Mas quem sabia o motivo? Quem sabia o porquê das coisas naquele estranho mundo de sonhos, magias e desejos?
Mikki pensou no olhar tristonho que vira no rosto moreno de Asterius no momento em que ele a havia deixado. Ela também partira seu coração sem querer.
Mas ficara tão chocada e com tanto medo quando aquelas garras tinham lhe arranhado as costas. Não pela dor em si... mas porque sentira um desejo absurdo invadi-la.
Tivera vontade de cravar os dentes nos lábios dele e de obrigá-lo a amá-la ali mesmo, com violência, sem parar! Sentir que tudo aquilo era seu a excitara além da
razão, e pensar que Asterius mal controlava seu desejo, sua paixão, sua violência!
Mikki estremeceu de prazer ao lembrar-se de que poderia invocá-lo sempre que quisesse, e que ele iria responder com aquele mesmo fogo até que ela estivesse tão saciada
como com nenhum dos homens em sua vida. Tinha ficado extasiada, intrigada e chocada ao obter um vislumbre do que poderia satisfazê-la...
E em pensar que aquilo talvez não fosse de um homem, mas de uma fera...
A verdade, no fim, era que não tivera medo dele. Havia tido medo de si mesma.
Capítulo 27
— Acho que fizemos muito, principalmente por termos trabalhado apenas metade do dia.
Mikki limpou as mãos uma na outra e inspecionou os canteiros de rosas recém-fertilizadas que circundavam o Templo de Hécate. Se não olhasse muito de perto, ou não
tivesse aquele mal-estar sempre que encontrava-se perto das rosas doentes, os jardins pareceriam-lhe quase normais, principalmente na área do reino mais próxima
ao templo. Ali as rosas eram todas em tons de lavanda e roxo e, mesmo na triste condição em que estavam, sua doce fragrância preenchia tudo ao redor.
A água fluía da imensa fonte com múltiplas bacias, gotejando nas valas de mármore que estendiam-se desde sua base até os quatro cantos dos jardins. Nera havia explicado
que o chafariz carregava água para todas as roseiras. Mikki nunca imaginara que pudesse existir um sistema de irrigação tão bonito.
— O trabalho está indo bem. Muitas das mulheres estavam sorrindo hoje — comentou Gii.
— Isso porque os rumores de que vou lançar um feitiço para convidar os homens para o reino já se espalhou — contrapôs Mikki, sorrindo de volta para o elemento Terra.
Mas as mulheres tinham mesmo trabalhado muito e feito tudo com bom humor; principalmente naquele dia. Ela estava bem ciente disso porque lutara durante toda a manhã
contra um enorme desânimo, o qual não fora fácil de ocultar.
Droga! Asterius não havia mostrado um casco, chifre ou fio de cabelo até aquele momento.
Verdade que ela não o invocara. Não tivera nenhum motivo para isso. A maior parte do trabalho pesado fora concluída no dia anterior. Naquele dia, as mulheres haviam
estado concentradas em podar as flores mortas e limpar as hastes fracas. Nenhuma tarefa exigia sua força.
Mas ele podia ter aparecido para dizer bom-dia ou checar alguma coisa!
Asterius devia estar certo de que ela o rejeitaria depois que ele a havia machucado e assustado.
Mas a triste verdade era que o amor e o desejo não eram lógicos. Ela queria vê-lo. Ansiava por vê-lo. Mas não queria pedir, muito menos forçá-lo, que viesse até
ela. Queria que ele viesse por não conseguir ficar longe por muito tempo.
— Devo dispensar as mulheres, Empousa, ou prefere que elas permaneçam aqui enquanto lança o círculo sagrado e invoca a magia? — indagou Gii.
— Ah, desculpe... Sim, dispense as mulheres. Ainda não fico à vontade com muita plateia. — Mikki ordenou os pensamentos. — E diga às outras servas que quero fazer
o feitiço primeiro. Podemos comer depois.
— Sim, Empousa. — O elemento Terra saiu correndo.
Mikki franziu a testa e mordeu o lábio. Em vez de ficar alimentando aquela obsessão por Asterius, devia ter pensado no que iria fazer quanto à magia para o jardim.
Suspirou. O feitiço para atrair os homens devia ser mais fácil de fazer, ou pelo menos assim ela esperava.
Por outro lado, continuava confusa e com ideias muito pouco consistentes.
Merda.
Não demorou, e os Quatro Elementos a chamavam e acenavam para ela, já de seus lugares, ao redor do fogo que ardia no centro do Templo de Hécate.
Mikki jogou o cabelo para trás das orelhas e limpou uma mancha de sujeira do quitão cor de violeta. Tinha ficado insegura, naquela manhã, quando Gii lhe trouxera
a linda e escandalosa túnica, pensando que não seria fácil para ela trabalhar até o meio-dia com um seio de fora... Mas a moça tinha rido e dito que o traje que
lhe expunha um peito seria usado apenas nos rituais que aconteciam nas noites sem lua. Caso contrário, era suficiente que ela usasse apenas a cor do Espírito para
os feitiços.
Fora um alívio. Ou ao menos devia ter sido um alívio... pois parte dela murmurava que adoraria ter visto a reação de Asterius àquela roupa sedutora. Isso se ele
tivesse se preocupado em aparecer naquela manhã!
Subiu os degraus e entrou no Templo de Hécate, sentindo que sua beleza acalmava-lhe os nervos. Endireitou a espinha e caminhou com o queixo erguido. Era a Alta Sacerdotisa
ali, cujos poderes tinham sido concedidos pela deusa. Não era apropriado que ficasse pensando em um homem (ou num animal, que fosse!) quando devia estar centrada
na obra de uma Empousa.
Tomou seu lugar no centro do círculo. Fechou os olhos e limpou a mente, respirando fundo para se concentrar.
Então pensou nos fios de luz que vira da última vez em que lançara o círculo sagrado, e em como eles haviam formado um campo de magia e energia, ligando os Quatro
Elementos. Quando sentiu-se pronta, voltou-se para Aeras, a Leste, e se aproximou.
— Ave, Aeras.
— Empousa... — O elemento Ar fez uma reverência profunda e graciosa.
Invocar os elementos para o círculo foi mais fácil dessa vez, e Mikki andou deosil, passando depressa pelo Ar, pelo Fogo, pela Água e pela Terra, e com muito mais
confiança do que sentira na primeira invocação. Quando chamou o Espírito, os fios de proteção que formavam a fronteira do círculo brilhavam, bem visíveis, mesmo
à luz do meio-dia.
Mikki respirou fundo outra vez e aguardou um momento para ouvir atentamente sua voz interior antes de dar início ao ritual.
— Hécate, grande deusa da Lua Negra, peço-te que me concedas o poder e a sabedoria para evocar saúde e proteção para o Reino das Rosas!
A chama do espírito à sua frente saltou em resposta, e ela sentiu uma súbita onda de energia dentro do corpo. Seguindo seu instinto, virou-se primeiro para Floga.
— Floga, tu és o Fogo, e eu te ordeno que teu elemento proteja o reino. Toda noite, quando o sol se puser, quero tochas ardendo ao longo de toda a muralha das rosas,
enviando luz para a escuridão e fazendo com que o que esconde-se nas sombras procure outro lugar onde se camuflar.
Uma chama bruxuleante lambeu o corpo da serva enquanto ela respondia ao ritual:
— É o que me pedes, pois que assim seja.
Em seguida, Mikki aproximou-se do elemento Água.
— Nera, tu és a Água. Tua parte na magia de hoje será a saúde, e não a proteção. A cada alvorada, quero que a água de uma chuva leve e refrescante banhe os jardins.
Não é suficiente que o reino seja irrigado. As rosas precisam do teu elemento nas pétalas para que mantenham-se saudáveis.
A túnica de um azul-pálido de Nera oscilou em torno de seu corpo, feito ondas chegando numa praia.
— É o que me pedes, portanto, que assim seja.
Mikki se colocou, então, entre Gii e Aeras. Olhou de uma para a outra enquanto abordava os elementos personificados.
— Gii, tu és a Terra... Aeras, tu és o Ar. Uni-vos para promover a saúde das rosas. Quero que convoques as joaninhas da floresta, Gii. — Mikki fez uma pausa, pensando
nos pequenos insetos vermelhos e pintados de preto. — E, Aeras, desejo que as sopres até trazê-las para o reino, onde irão descobrir um novo lar, assim como eu descobri.
— Sorriu para o lindo elemento Ar.
Juntas, Gii e Aeras entoaram:
— É o que tu pedes, portanto, que assim seja.
Mikki voltou para o lugar do Espírito.
— Eu vos agradeço, Ar, Água, Fogo e Terra, poderes dos elementos, espíritos divinos da natureza. Com a bênção de Hécate, peço que estejais sempre presentes neste
reino de sonhos, magia e beleza. Rogo a vós e digo: que assim seja.
Quando Mikki concluiu o feitiço, teve uma profunda sensação de realização, como se tivesse limpado um canteiro de rosas cheio de ervas daninhas particularmente desagradáveis.
Um feitiço já foi. Mas ainda falta o outro...
Começou com o elemento Ar, assim como no momento em que lançara o círculo sagrado pela primeira vez. Já tinha pensado sobre o que gostaria de pedir a cada um dos
elementos, ensaiado as palavras e praticado em pensamento naquela manhã, de modo que, quando falou, sua mente vagou para longe.
— Aeras, eu te ordeno que aos homens seja permitido visitar o reino outra vez, mas apenas a convite de uma mulher. Se esta fizer o convite em voz alta, carrega com
o vento suas palavras até seu amante, e depois deixa que ele venha.
Asterius. Esse é o nome que eu chamaria, e o amante que pediria ao vento...
Mikki caminhou até o elemento Fogo.
— Floga, tua afinidade é com a chama. Usa o calor do teu elemento para inflamar a paixão de qualquer homem que for desejado por uma mulher do Reino das Rosas e deixa
que a amor entre eles arda como fogo.
Eu sei que Asterius me quer. Ele provou isso na noite passada... Pois desejo que Asterius queime por mim. Tanto que não consiga se manter longe, que não permita
que nossas diferenças nos separem!
Estava em pé diante de Nera.
— Deixa o teu elemento preparar nosso corpo para a doce intrusão de um amante. Quente e úmido: é como quero o corpo de cada mulher que desejar um homem em sua cama,
de modo que todas experimentem a emoção da consumação do amor.
Quero Asterius na minha cama, seu corpo junto do meu... E não quero mais ter medo do meu desejo por ele!
Quase sem saber como chegou lá, Mikki viu-se diante de Gii.
— A terra é rica e selvagem, fértil e viçosa. Deixa o teu elemento preencher os sentidos dos amantes. Deixa-os conhecer a plenitude do amor, que é tão profunda com
uma floresta antiga e tão doce como as frutas maduras.
Ajuda-me a não ter medo de amá-lo, assim Asterius poderá conhecer o amor a meu lado por fim!
De volta à chama do Espírito, Mikki sentia o corpo todo arder, os mamilos intumescidos contra o tecido macio da túnica.
— Hécate, eu te imploro que, por meio do teu poder e dos poderes dos elementos, este reino seja um lugar de paixão e amor, assim como de paz e encantamento. É o
que peço a ti... Que assim seja.
Fechou os olhos ao sentir o desejo brotar, líquido, em seu corpo, e teve que morder o lábio para não gemer o nome dele em voz alta.
Asterius.
Mikki não devia ter se surpreendido com a rapidez com que as servas desculparam-se e afastaram-se para seus quartos. Porém, ela agora sabia que as mulheres do reino
viviam na ala oeste do gigantesco palácio, tão longe de seus aposentos que ela poderia ter passado eras sem saber que estariam lá, caso Gii não houvesse lhe contado.
Sorriu para si mesma enquanto caminhava, sonhadora, rumo à escada para a varanda. Podia imaginar o que iria acontecer naquela noite em seus aposentos...
Desejo que aconteça a mesma coisa no meu quarto... só que com rosnados e mordidas!
Deixou escapar uma risadinha. Ainda sentia-se quente e tonta.
Não. Não era bem assim. Sentia-se quente e excitada.
Olhou a varanda em volta. Vazia. Havia tido esperanças de que Asterius estivesse ali! Ele era do sexo masculino, devia ter sentido o feitiço, e devia saber que ela
era a única pessoa que poderia tê-lo lançado.
E se Asterius pensasse que ela estava abrindo o reino para os homens apenas para que pudesse chamar alguém para ela?
Mas como ele poderia pensar nisso? Ela usara o nome dele durante o ritual; só pensara nele.
A verdade era que devia estar mantendo-se afastado porque pensava tê-la ferido. Ou talvez porque tinha medo de machucá-la se a amasse.
Apenas o pensamento fez Mikki estremecer de prazer. Todo aquele poder... Um homem no corpo de uma fera. Era bom demais. E tão erótico!
Ela poderia invocá-lo e ele teria que vir, claro. Mas era isso o que queria?
Claro que não. Queria que ele viesse de livre e espontânea vontade.
Era isso! Asterius precisava que ela fosse até ele. Se o fizesse, estaria demonstrando que não o temia, que gostava dele, que o desejava, que o amava o bastante
para ir a seu encontro.
Gii dissera que o lar do Guardião ficava logo abaixo das piscinas térmicas, e Mikki não parou para pensar duas vezes: seguiu seu instinto e seu coração. Correu da
varanda rumo ao caminho que conduzia às fontes de água quente. Passando pelo primeiro nível, desceu a escada que ligava a piscina maior às de banho individuais de
um patamar acima. Não tinha estado naquele nível antes, mas não demorou muito a descobrir a segunda escada, que claramente não era tão utilizada quanto as outras.
Esta descia, íngreme, voltada o Norte.
O final da escadaria dava em uma área gramada que abraçava a lateral do penhasco onde ficavam o palácio e as piscinas quentes. À sua direita, o gramado abria-se
para o labirinto formado pelos canteiros de rosas Mikado, as quais eram, de longe, as mais saudáveis de todo o reino.
Mikki lembrou-se de que seu templo particular ficava bem no meio do arranjo em espiral das roseiras. Havia passado por aquela área com Aeras e Asterius no dia anterior,
então também sabia que não havia nenhum covil por ali.
Estudou o imenso gramado. Este corria ao longo da base do rochedo como um caminho.
Sorriu e seguiu os próprios instintos. Virando numa curva da esquina, a parede do penhasco de repente abria-se para a entrada disfarçada de uma caverna.
— Ou melhor dizendo... um covil — sussurrou para si mesma.
Respirou fundo, seguro o fôlego e entrou.
E ficou surpresa com o que viu. A entrada era apenas um pouco maior do que uma porta comum, mas, lá dentro, tochas que não emanavam nenhuma fumaça emprestavam uma
luz quente e amarela a todo o espaço, fazendo com que o lugar acolhedor nada tivesse de uma caverna. As paredes de cor creme eram altas e lisas como as das piscinas
térmicas... E também eram repletas de pinturas exuberantes.
Impressionada com o talento do artista, Mikki as percorreu com o olhar. As cenas retratavam uma ilha rochosa, cercada por praias de areia branca e águas de um turquesa
brilhante. A única pessoa na paisagem era uma mulher alta, de cabelos dourados.
A ilha de Creta! Só podem ser imagens da ilha em que ele nasceu.
Mas e aquela mulher? Era a mãe de Asterius ou a Empousa que o rejeitara?
Sem ter certeza se queria saber, ela afastou-se das lindas paredes decoradas.
Havia uma enorme mesa de madeira no meio da sala, contendo uma tigela cheia com carnes frias, queijo e uma jarra de vinho. Também viu vários rolos de pergaminho
e garrafas de vidro cheias com um líquido espesso e escuro. Intrigada, Mikki aproximou-se e percebeu que o líquido era tinta. Um dos pergaminhos fora desenrolado
e preso no lugar por pedras lisas, onde ela avistou um desenho quase terminado.
Com o coração aos saltos, contornou a mesa para ver o que Asterius tinha desenhado. Era um esboço seu, com o traje do ritual que usara em sua primeira noite no reino!
Estava de pé no Templo de Hécate, diante da chama do espírito. De alguma forma, Asterius havia capturado a aura de poder que ela sentira dentro do círculo sagrado.
Desenhara seus cabelos voejando ao seu redor e captara a expressão de êxtase em seu rosto.
Era um desenho lindo, obviamente trabalhado com amor e atenção aos detalhes, bem como pelo talento de um mestre.
Uma fera não faria aquilo. Mas um homem faria...
E um homem que estivesse perdidamente apaixonado.
— Você não devia estar aqui!

 

 

 

 


C O N T I N U A