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A DEUSA DA ROSA / P.C.Cast
A DEUSA DA ROSA / P.C.Cast

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Era uma vez, numa época em que os homens ainda acreditavam que havia deuses e deusas na Terra, foi concedido a Hécate, a grande Deusa da Noite, o domínio sobre as encruzilhadas. Essa deusa da escuridão levou a sério sua missão, pois não apenas passou a vigiar as estradas e os caminhos dos mortais, como também a guardar as distâncias entre os sonhos e a realidade, entre o corpóreo e o etéreo. Seu domínio era o lugar de onde todos os sonhos, e também a magia criada por eles, originavam-se.
Assim, a Deusa da Noite foi denominada Deusa da Magia, bem como Deusa das Feras e Deusa da Lua Negra.
Sempre vigilante, Hécate convocou uma antiga e monstruosa fera para ajudá-la. A criatura era a fusão perfeita entre o homem e a fera. De bom grado, esta jurou agir como a protetora de suas encruzilhadas e obedecer às suas ordens. Filho do Titã Cronos, o Guardião era um ser como nenhum outro e, como recompensa por sua lealdade, Hécate o presenteou com o coração e a alma de um homem. Embora sua aparência fosse monstruosa, a deusa sentiu-se segura ao lhe confiar a guarda das encruzilhadas mágicas, as quais batizou de Reino das Rosas, assim como a das Sacerdotisas de Sangue que ali a serviam. Durante séculos, o Guardião permaneceu fiel, seguindo os ditames de sua missão sagrada, pois era tão honrado quanto influente, e tão sábio quanto poderoso.
Até um dia de Beltane. O Guardião conhecia o seu dever. Mas, céus!, até mesmo um protetor podia se cansar. E não cometera nenhum deslize por crueldade ou ganância.
Seu único erro fora amar sem reservas. Ele quebrara a confiança de sua deusa e, em um rompante de raiva, Hécate lançara um feitiço sobre ele e sobre o Reino das Rosas: o reino não teria mais Alta Sacerdotisa, e o Guardião dormiria eternamente, a menos que fosse despertado por uma mulher que carregasse o sangue mágico das Empousas de Hécate, que fosse sábia o suficiente para enxergar a verdade e sensível o bastante para agir sobre ela.
E, assim, o Reino das Rosas se desesperou, e o Guardião adormeceu enquanto sua deusa aguardava...

 

 

 


 

 

 


Parte 1
Capítulo 1
— Andei tendo aqueles sonhos de novo.
Nelly ajeitou-se na cadeira e deu a Mikki um de seus olhares mais clínicos.
— Gostaria de me contar sobre eles?
Mikki desviou o olhar da amiga. Será que gostaria?
Descruzou e tornou a cruzar as pernas longas, passou a mão nervosamente pelos cabelos e tentou acomodar-se na poltrona.
— Antes de eu responder a essa pergunta, quero que responda a uma minha.
— É justo — concordou Nelly.
— Se eu lhe contar os meus sonhos, como vai ouvi-los? Como minha amiga ou como minha psiquiatra?
A médica riu.
— Por favor, Mikki! Estamos em uma lanchonete, não no meu consultório! Não vai me pagar cento e vinte dólares por hora para eu ficar sentada aqui com você. E não
vamos nos esquecer: — ela inclinou-se para a frente e exagerou no sussurro — é minha amiga há anos, mas nunca foi minha paciente!
— É verdade. Mas não por falta de assunto.
— Ah, sem dúvida — Nelly aquiesceu com sarcasmo. — E então? Vai me contar sobre os sonhos, ou terei que usar meus truques de psiquiatra para dissuadi-la? — Tudo
menos isso! — Mikki levantou as mãos como para defender-se de um ataque. Encolheu os ombros. — Eles são iguais aos outros. Nelly ergueu as sobrancelhas significativamente.
— Está bem — Mikki suspirou e revirou os olhos. — Talvez tenham mudado um pouco.
— Consegue ver o rosto dele agora? — a outra moça perguntou, gentilmente.
— Quase — Mikki fixou o olhar em um ponto qualquer da aconchegante lareira de tijolos em um canto. — Na verdade, acho até que vi seu rosto desta vez, mas...
— Mas?
— Eu estava tão preocupada que não consegui me concentrar nele — ela elaborou, apressada.
— Preocupada?
Mikki parou de olhar para a lareira e encontrou os olhos da amiga.
— Preocupada em ter o sonho mais erótico da minha vida! Não dei a mínima para o rosto dele.
— Ora, ora, ora — Nelly comentou, surpresa. — Não me lembro de ter falado em sexo nos outros sonhos. Agora estou realmente interessada nessa história.
— Isso porque eles não... ou talvez eu... Ah, não sei. Por alguma razão, os sonhos estão mudando. — Ela esforçou-se para descrever o que estava acontecendo. — Estou
dizendo, Nelly, os sonhos estão ficando cada vez mais reais.
O brilho de diversão deixou os olhos escuros da outra moça, substituído pela preocupação.
— Diga-me, querida. O que está acontecendo?
— Quanto mais realistas ficam esses sonhos, menos a minha vida parece real.
— Conte-me sobre esse último, então.
Em vez de responder de imediato, Mikki rodou uma mecha do cabelo cor de cobre no dedo e sorveu um gole do cappuccino. Nelly e ela eram amigas fazia anos. Tinham
se conhecido no hospital onde ambas trabalhavam e haviam se tornado confidentes no mesmo instante. Na aparência, possuíam pouca coisa em comum. Nelly era morena
e esguia, de uma beleza exótica, herança do sangue haitiano da mãe. E devia ser ao menos uns vinte centímetros mais alta do que ela, calculou Mikki. Ao contrário
dela que, além de clara, era cheia de curvas e um tanto comum. A despeito de suas diferenças, contudo, não existia nenhum tipo de ciúme entre elas. E, desde que
tinham se conhecido, apreciavam uma a outra por suas singularidades.
Era uma amizade sólida, baseada na confiança e no respeito mútuo. E Mikki não fazia ideia do motivo pelo qual encontrava-se tão hesitante em contar seus sonhos a Nelly. Principalmente o último.
— Mikki?
— Não sei por onde começar — prevaricou.
Nelly esboçou um sorriso e tomou um gole do próprio cappuccino, para então mordiscar um biscoito de chocolate.
— Leve o tempo que quiser. Todos os bons psiquiatras têm uma coisa em comum...
— Eu sei, eu sei. Vocês são pacientes até demais!
— Isso mesmo.
Mikki brincou com a caneca de café. Precisava exorcizar aquele sonho de uma vez. Aquilo estava ficando estranho demais. Era como se houvesse sido hipnotizada...
ou seduzida.
Continuou ali parada, entretanto. Não apenas porque tinha dúvidas quanto a revelar os detalhes do sonho em voz alta, como também porque parte dela temia que a amiga,
uma excelente psiquiatra, fosse proferir alguma palavra mágica que a curasse dele.
Não tinha certeza se queria aquilo.
— Ei, sou eu! — Nelly incitou suavemente.
Ela deu-lhe um sorriso apertado e compreensivo, e respirou fundo.
— Está bem. Esse começou igual aos outros. — Cutucou o esmalte da unha, nervosa.
— Quer dizer na cama de dossel?
— Na mesma cama de dossel imensa, no quarto enorme — ela reforçou. — O lugar era o mesmo, só que não estava tão escuro como antes. Desta vez, a luz entrava por uma
parede inteira de janelas. — Mikki buscou a palavra. — Eram painéis de vidro verticais... Sabe o que eu quero dizer?
Nelly assentiu.
— Janelas quadriculadas?
— Quase isso. Bem, independentemente de como elas são chamadas, eu as notei desta vez porque estavam deixando entrar alguma luz. — Seu olhar continuou preso às chamas
que queimavam, alegres, enquanto revivia o sonho. — Era uma luz suave, rosada, como a do amanhecer... Enfim, eu despertei — continuou, deixando escapar uma risadinha
nervosa. — Foi estranho ter sido acordada de um sonho em outro sonho — ela encolheu os ombros. — Mas eu acordei. Estava de bruços e sentia alguém escovando os meus
cabelos. Uma delícia. E, fosse quem fosse, usava uma daquelas escovas grandes, de cerdas macias — sorriu para a amiga. — Você sabe... Não há coisa mais gostosa do
que alguém lhe escovando os cabelos.
— Concordo, mas ter o cabelo escovado não é assim tão sexy.
— Ei, já faz algum tempo, mas sei muito bem que escovar os cabelos não tem a ver com sexo! Não cheguei nessa parte ainda... Só estou contando como fiquei relaxada
e feliz por conta disso — explicou Mikki, lançando a Nelly um olhar impaciente.
— Desculpe interromper. Basta fingir que não estou aqui.
— Isso é coisa de psiquiatra?
— Não. Só estou querendo ouvir a parte do sexo, pipocas!
Mikki riu.
— Nesse caso, terei prazer em continuar. Vamos ver... Eu estava tão relaxada que me sentia flutuando. Foi bizarro. Senti a alma leve, como se estivesse deixando
meu corpo... Então, tudo começou a ficar muito louco.
— Como assim, “muito louco”?
— Bem, senti uma lufada de vento. Foi como se ela houvesse me pegado e me levado para algum lugar, mas não o meu corpo; apenas o meu espírito. A sensação foi de...
purificação. Isso me assustou, e eu abri os olhos. Estava de volta no meu corpo, só que no meio do roseiral mais incrível que já tinha visto ou imaginado na vida.
— Sua voz perdeu qualquer indício de dúvida quando passou a descrever a cena. — Foi de tirar o fôlego. Eu queria beber o ar como um vinho. Estava cercada por rosas!
E das minhas favoritas: Prazer em Dobro, Chrysler Imperial, Cary Grant, Prata Esterlina... — Ela suspirou, feliz.
— Nenhuma rosa Mikado?
A pergunta de Nelly a trouxe de volta à realidade.
— Não, não vi nenhuma rosa homônima minha. — Aprumou-se, lançando à amiga um olhar irritado. — E não acho que isso esteja acontecendo comigo porque minha mãe decidiu
me dar o nome de sua rosa favorita.
Nelly fez um gesto conciliatório com a mão.
— Mikki — falou, pronunciando o apelido de forma clara, como se quisesse apagar o nome Mikado do ar —, precisa admitir que o fato de essas rosas aparecerem em todos
os seus sonhos é muito estranho.
— Por quê? Sou voluntária no Roseiral Municipal e cultivo minhas próprias rosas. Por que uma parte integrante da minha vida não deveria figurar nos meus sonhos?
— Está certa. As rosas são uma parte importante da sua vida, assim como eram na de sua mãe e...
— Na da minha avó. E na da minha bisavó — Mikki interrompeu.
Nelly sorriu, aquiescendo.
— Sabe que eu acho esse seu hobby encantador e morro de ciúme da sua capacidade de cultivar aquelas rosas maravilhosas.
— Sinto muito. Eu não devia ter sido tão indelicada. Acho que é a falta de sono.
— Não tem dormido direito? — A preocupação sombreou a expressão de Nelly.
— Não, não... — Mikki negou rapidamente. — Apenas ando levando muito trabalho para casa e ficando acordada até tarde.
Por favor, não me pergunte mais nada sobre isso!, pensou, lançando um olhar tenso na direção da amiga enquanto remexia o cappuccino e sorvia um gole. Nelly não precisava
saber que sua exaustão nada tinha a ver com falta de sono ou muito trabalho. Tudo o que desejava era escapar daquele mundo de sonhos e dormir. O pior era que, apesar
de nunca mais ter se sentido completamente descansada depois de ter ingressado naquele mundo de fantasias, ainda via-se compelida a retornar para ele todas as noites.
— Mikki?
— Onde eu estava mesmo? — ela se atrapalhou.
— No belo jardim de rosas.
— Ah, sim.
— E as coisas estavam ficando muito loucas.
— Isso mesmo. — Mikki deixou os olhos voltar para a lareira. — Por algum tempo, eu apenas caminhei entre as rosas, tocando cada uma delas e apreciando sua beleza.
Havia acertado no palpite: era de manhã cedo, o ar estava fresco e as flores ainda encontravam-se respingadas com orvalho; como se tudo tivesse acabado de ser lavado.
O jardim era circular, e as rosas e seus canteiros formavam uma espécie de labirinto. Fiquei andando por ali, apenas me divertindo.
Seu sorriso oscilou e ela fez uma pausa antes de iniciar a parte seguinte do sonho. Pôde sentir as faces ganhando cor e desviou o olhar para evitar o olhar curioso
da amiga.
— Não me diga que está envergonhada! — provocou Nelly.
— Mais ou menos. — Mikki esboçou um breve sorriso.
— Mikki, você e eu fizemos depilação à brasileira, esqueceu? Juntas. Na mesma sala. Supere logo essa coisa e me dê mais detalhes. Se mesmo assim falhar, lembre-se...
— Nelly deu mais uma mordida no biscoito e continuou com a boca cheia: — sou uma profissional.
— Prefiro não me lembrar — murmurou Mikki antes de respirar fundo. — Pois, então. Estou no roseiral e, de repente, sinto a presença dele. Eu não conseguia vê-lo,
mas sabia que estava atrás de mim. — Umedeceu os lábios e, inconscientemente, levou a mão à garganta, os dedos acariciando a pele sensível na base do pescoço enquanto
falava. — Comecei a andar mais rápido porque, a princípio, senti que deveria me manter distante... Mas logo tudo mudou. Eu podia ouvi-lo atrás de mim conforme ele
ia se aproximando. E ele não estava tentando se esconder. Seus ruídos eram assustadores... quase selvagens. Era como se eu estivesse sendo caçada por uma fera.
Mikki tentou fazer a respiração voltar ao normal, embora sentisse o corpo formigar com uma onda de calor. Surpresa, percebeu uma gota de suor escorrendo entre os
seios.
— Estava com medo? — Nelly perguntou.
— Não. Nem um pouco. Na verdade, estava excitada. — Ela respondeu tão baixo que a amiga inclinou-se a fim de escutá-la melhor. — Eu queria que ele me pegasse. Quando
eu corria, era só para provocá-lo... e eu queria muito fazer isso.
— Nossa! — a outra moça exclamou com um suspiro.
— Eu avisei... E o sonho fica ainda melhor.
— Oba. — Nelly mastigou outro biscoito.
— Eu corria nua e ria. O vento parecia meu amante conforme soprava no meu corpo. Eu me deliciava com cada gemido, cada rosnado, cada grunhido feito pela coisa que
me perseguia. E queria ser apanhada, mas não até que ele estivesse muito, muito ansioso por me agarrar.
— Pelo amor de Deus, não pare por aí! Ele pegou você ou não?
Mikki tornou-se introspectiva e seus olhos voltaram-se para o fogo mais uma vez.
— Sim e não. Como eu disse, eu estava correndo e ele me perseguia. Cheguei a um canto do labirinto e me virei. — Seus lábios se apertaram, em seguida se curvaram
em um sorriso travesso. — Então tropecei e caí em um buraco. Quando bati no fundo, devia ter me machucado, mas minha queda foi amortecida por pétalas. Eu tinha caído
em um poço cheio de pétalas de rosa! E devia haver milhares delas lá. Seu perfume preenchia o ar, e elas acariciaram o meu corpo. Cada centímetro da minha pele ganhou
vida em meio a tanta suavidade. E depois as mãos dele substituíram as rosas. — Respirou fundo. — Elas não eram macias. Mas ásperas, fortes e exigentes. O contraste
entre as duas sensações foi incrível. Ele acariciou o meu corpo nu, desde os meus seios, passando pela minha barriga e coxas... Exatamente como eu gostaria que me
tocasse. Foi como se ele tivesse entrado nas minhas fantasias e conhecesse todos os meus desejos secretos.
Mikki fez uma pausa para afastar uma mecha de cabelo do rosto. Sentiu a mão tremer, mas, não querendo que Nelly notasse, apressou-se em continuar com a narrativa.
— Estava mais escuro no poço do que no jardim, e minha visão parecia meio turva, quase como se o perfume das pétalas esmagadas tivesse criado uma névoa. Eu não podia
vê-lo, mas, onde quer que ele me tocasse, eu pegava fogo. Antes disso, em todos os meus sonhos, podia sentir sua presença como se ele fosse um ser irreal, um fantasma
ou uma sombra. Eu pressentia sua presença, mas até então ele nunca havia me perseguido ou posto a mão em mim. E eu certamente jamais o tinha tocado também. Mas,
naquele poço de rosas, tudo mudou. Podia sentir suas mãos na minha pele e também podia acariciá-lo... A certa altura, eu o puxei para mim e ele...
Mikki engoliu em seco e fechou os olhos com a lembrança.
— Ele era forte e incrivelmente grande. Corri as mãos por seus ombros e braços e percebi que seus músculos eram como pedra. E eu senti algo mais... ele era... ele
tinha... Engoliu, tentando aplacar a súbita secura na garganta. Deveria contar a Nelly? Deveria revelar aquilo a alguém?Enquanto se lembrava, foi quase como se estivesse
lá outra vez; naquele poço de sensações e fragrâncias. Suas mãos tinham se deslocado até uma massa espessa de cabelo. Tivera a intenção de segurá-lo pelo rosto,
de abrir os olhos e vê-lo enfim. Mas deparara-se com os chifres. A criatura que acariciava seu corpo, levando-a a uma excitação que nunca experimentara na vida,
possuía chifres!
Não. Não podia contar aquilo a Nelly. Era absurdo demais. Sua amiga iria achar que estava ficando maluca.
— Ele usava um traje esquisito — murmurou em vez disso, nervosa. — Uma espécie de armadura cobrindo o peito, não sei. E foi incrivelmente erótico: aqueles músculos
rijos cobertos pelo couro... Eu o senti e acariciei, então ele mergulhou o rosto nos meus cabelos, aqui.
Fechando os olhos, puxou uma massa de cachos avermelhados para a frente e afundou a mão neles, perto da orelha direita.
— A partir desse ponto, para mim, foi fácil escutar cada som que ele fazia. Quando eu o afagava, ele gemia ao meu ouvido; só que não era bem um gemido. Ao menos
não o gemido de um ser humano... Era um rosnado baixo e profundo, que não parava nunca. — Ela franziu o cenho. — Isso devia ter me assustado. Eu devia ter gritado
e lutado ou, no mínimo, ficado petrificada, paralisada de medo. Mas não queria ficar longe dele. E aquele som terrível, animalesco e maravilhoso me excitou ainda
mais. Senti que iria morrer se não pudesse tê-lo por inteiro. Quando arqueei o corpo, consegui sentir sua ereção, e ele começou a se esfregar em mim.
Mikki engoliu em seco novamente.
— Foi então que ele falou, e sua voz soou diferente de tudo o que já ouvi: uma voz meio humana meio animalesca. E era tão intensa que foi quase como se eu pudesse
escutá-la também com a mente.
— E o que ele disse? — Nelly incitou, meio sem fôlego, quando Mikki parou de falar.
— Murmurou em meu ouvido algo como: “Nós não podemos... Eu não posso... Isto não pode acontecer!”. Mas eu não parei. Sentia o desejo dele nas palavras tanto quanto
no que tinha no meio das pernas. Implorei a ele que não parasse enquanto me agarrava àquela armadura. Queria arrancá-la; eu o queria nu contra mim. Mas era tarde
demais. Eu já estava gozando, e tudo o que podia fazer era colocar as pernas em volta dele conforme o meu corpo explodia. — Mikki respirou fundo. — Foi o orgasmo
que me acordou.
Capítulo 2
Nelly limpou a garganta antes de tentar falar.
— Caramba! Concordo com você. Esse foi definitivamente mais realista do que os outros sonhos e muito mais sexy! — Ela se abanou com um guardanapo.
— Eu poderia ter visto o rosto dele, Nelly. Estava bem ali o tempo todo, ao lado do meu. Apesar de o poço estar meio nevoento, havia luz suficiente para que eu pudesse
enxergá-lo. Eu poderia até senti-lo olhando para mim, mas me recusei a abrir os olhos. Não queria ver como ele era. — Em silêncio, Mikki reconheceu: tinha vacilado
ao sentir os chifres. Não quisera arruinar sua fantasia, com medo do que ele podia ser.
— Então, mesmo estando excitada, uma parte de você teve medo?
Ela levou algum tempo para responder, em dúvida se Nelly falava como amiga ou como psiquiatra.
— Talvez. Mas não sei se o meu medo foi por conta do que eu poderia ter visto, ou porque temi que aquela magia fosse rompida e eu nunca mais pudesse sonhar com ele
de novo — admitiu num murmúrio.
— Magia?
Mikki deu de ombros.
— Como você chamaria isso? O que está acontecendo comigo parece mais mágica do que psicose. Ao menos para mim.
Nelly voltou a sorrir.
— Sabe a minha opinião sobre esse assunto. Creio que há muitas coisas mágicas no cérebro humano, mas todas têm raízes na ciência.
— Agora está parecendo uma psiquiatra!
— Pare com isso, sua puxa-saco. — Nelly desviou o olhar para o relógio. — Ah, merda! Tenho que ir embora daqui a pouco.
— Já sei. Outro maluco esperando para descarregar os problemas em você.
— Claro que sim. É a parte do meu trabalho de que eu mais gosto. — Nelly mergulhou o biscoito no cappuccino que restava. — Espere um pouco... Não tinha dito algo
sobre os sonhos estarem tornando-se mais realistas e o mundo ao redor parecer menos real? Aconteceu mais alguma coisa estranha?
— Pensei que tivesse de ir embora...
— Em breve, mas não neste instante. Eu ainda tenho mais biscoitos para devorar, então desembucha.
Mikki suspirou.
— Você nunca se esquece de nada, não é?
— Tudo parte do meu caríssimo treinamento. — Nelly acenou para a amiga com o biscoito molhado. — Continue, por favor.
— Está bem! Ontem eu estava atravessando a 21st Street, indo do Woodward Park para o meu apartamento. Trabalho de voluntária no Roseiral às quintas, lembra-se?
— Claro.
— Bem, foi um pouco depois do anoitecer. Eu havia terminado o serviço mais tarde do que de costume. Ainda há muito a ser feito para que as rosas fiquem prontas para
o inverno e, com aquela droga de reforma na terceira camada do jardim, estamos atrasados. Enfim, eu estava atravessando a rua e ouvi um barulho estranho atrás de
mim.
Ela parou e estreitou os olhos, pensativa.
— Barulho estranho?
— Eu sei que parece loucura. — Mikki deu uma risada nervosa. — Mas a quem mais eu poderia dizer essas coisas senão à minha amiga psiquiatra? — Nelly fez uma careta
e, em um gesto inconsciente de desafio, Mikki jogou os cabelos para trás. — Pois então... eu ouvi esse barulho às minhas costas. A princípio, pensei que tivesse
algo a ver com a peça que estão ensaiando no parque.
— Ah, é verdade. O “Teatro no Parque” vai acontecer na primeira semana de novembro. Eu tinha quase me esquecido. O que eles vão encenar este ano?
— Medeia — contou Mikki com um sorriso de lado.
— Um som estranho vindo dessa peça não seria assim, tão surpreendente.
— Não. O problema é que escutei um rugido e, apesar de não ler a história desde o ensino médio, não me lembro de haver animais selvagens em Medeia.
— Ouviu o rugido de um leão?
— Não sei... Algo parecido, mas soava um pouco diferente.
Mikki deteve-se outra vez. Sabia muito bem que o rugido não era de um animal de zoológico. Havia soado totalmente, terrivelmente solitário. E de uma forma humana,
também. Mas não havia como admitir aquilo para a amiga. Não estava tão louca assim. Ainda não, pelo menos. Em vez disso, apressou-se com o restante da explicação:
— Nelly, o zoológico fica do outro lado da cidade. Mesmo que leões ou outros animais estivessem rugindo feito loucos, eu jamais iria ouvi-los em Woodward Park! Mas
eu juro para você: escutei um rugido e, como pode imaginar, ele me assustou. Assim que pisei na calçada, me virei. Mas, acredite, não consegui ver nada porque o
parque estava cheio daquelas “ondas térmicas”. Não sei como, diabos, aquelas coisas se chamam... Você sabe, aquelas ondas que sobem do asfalto no meio do verão.
Pensei que estivesse com alguma coisa nos olhos, então pisquei e os esfreguei. E quando os abri novamente, o parque tinha sumido.
Nelly franziu as sobrancelhas.
— Como assim “o parque tinha sumido”?
— Tinha sumido. Puf! — Ela encolheu os ombros. — Não estava mais lá. Em vez disso, havia uma imensa floresta.
— Mikki... Woodward Park tem árvores — lembrou Nelly, como se essa fosse uma explicação suficiente.
— Ah, por favor — Mikki bufou baixinho. — Não estou falando de árvores lindas e bem cuidadas, bem dispostas em torno de fontes e arbustos de azaleias. Era uma floresta
de verdade: densa e escura, com carvalhos enormes. — Estremeceu involuntariamente. — Se eu tivesse andado por ela, teria me perdido.
— E ouviu o barulho de novo?
— Não. — Ela abanou a cabeça. — Estava tudo muito silencioso. Pensando bem, silencioso até demais.
— Teve alguma outra sensação durante esse desvario?
— Lá vem a psiquiatra de novo.
— Apenas responda à minha pergunta!
Os lábios de Mikki curvaram-se em um sorriso.
— Senti o perfume de rosas.
— Ao menos você é coerente. — Nelly sorriu. Logo depois, sua expressão tornou-se sóbria. — Como terminou?
Ela fez uma careta.
— Um idiota em uma picape acelerou e buzinou enquanto gritava algo inteligente como “Aí, ruiva gostosa!” A fantasia teve fim no mesmo instante.
— Só não terminaria se estivesse em um trailer no meio do parque — provocou Nelly.
— Urgh — Mikki assentiu em concordância. — E então... pirei ou não?
— Eu não acho que “pirar” seja o termo médico mais adequado.
— “Despiroquei”
A outra moça suspirou.
— Brincadeiras à parte, Mikki, preciso saber como está se sentindo com tudo isso. Está com medo?
— Admito que essa história está me deixando nervosa — ela respondeu devagar, mantendo contato visual com a amiga. — Fico me perguntando o que está acontecendo dentro
da minha cabeça, mas não sinto medo. Ele nunca me fez sentir medo. — Respirou fundo antes de concluir a resposta. — Honestamente, não quero parecer uma aberração
ou uma pervertida, mas esses sonhos se tornaram muito sensuais. Droga, mesmo essa última visão estranha fez meu coração bater mais depressa e me deu a sensação de
que tinha acabado de ser beijada por alguém que sabia o que estava fazendo. Odeio admitir isso, mas, de novo, fiquei excitada e não apavorada! — Mikki mordeu o lábio.
— É muito grave?
— Não — Nelly garantiu depressa. — Fico feliz que não tenha ficado ansiosa ou com medo. — Ela apanhou a nécessaire e checou o batom. — Minha opinião profissional,
embora tecnicamente não tenha perguntado por ela, é que a sua imaginação está fazendo hora extra.
— Isso é o que diria a uma paciente?
— Você não é uma das minhas pacientes. E, amiga, você não está louca.
— Então, sou apenas imaginativa e tarada, é isso?
— Suponho que sim. Mas, se quiser, posso lhe indicar um bom neurologista.
— Neurologista!? — A surpresa fez a voz de Mikki soar estridente. — Acha que estou com algum tumor no cérebro ou algo assim?
— Não entre em pânico. Existe uma série de problemas neurológicos que podem causar sintomas como esses que tem enfrentado. — Nelly se levantou e apanhou a maleta
na cadeira ao lado. — Se eles ficarem piores e estiverem incomodando muito, pode fazer um exame de sangue ou algo do gênero.
— “Algo do gênero” é outro termo médico?
— Assim como “pirar” e “despirocar”. — A médica inclinou-se e deu-lhe um abraço rápido e forte. — Não se preocupe. Siga com a sua vida como sempre fez porque você
é normal. Ah, e não se esqueça do encontro que eu marquei entre você e aquele professor que está na cidade para uma palestra na Tulsa University!
Mikki gemeu.
— Agora eu queria estar louca!
— Pare com isso. Esse encontro vai ser bom para você. Só não aja como se odiasse todos os homens. Não causaria uma boa impressão.
— Eu não odeio todos os homens. Eu até gosto deles... na teoria. O problema é que os últimos trinta anos me fizeram acreditar que eles vão acabar me desiludindo
mais cedo ou mais tarde.
— Essa também não é uma atitude muito positiva.
— Está bem... Vou tentar ser boazinha.
— Eu não pedi para ser boazinha. Só não seja cínica. E não se preocupe... Está ótima. — Nelly a abraçou novamente e se apressou porta afora.
Mikki franziu o cenho e olhou o relógio. Precisava correr também. Bebeu o restante do café, resmungando consigo:
— Não me preocupar? Tá bom, então. Eu assisti ao Fenômeno. John Travolta pensando que tinha sido visitado por extraterrestres... até morrer por causa de seu tumor
cerebral. Alienígenas... um amante sexy e animalesco... que diferença faz?
Capítulo 3
— Serviços de Enfermagem... Posso ajudar? — Mikki respondeu ao chamado enquanto olhava para o relógio. Passava apenas um pouco da hora do almoço. O dia não iria
acabar nunca?
— Posso falar com a srta. Empousai? — perguntou o homem.
— É ela mesma. — Mikki tentou ocultar a impaciência na voz. Provavelmente era mais um representante de medicamentos tentando puxar conversa com ela apenas para chegar
a sua chefe. Como assistente executiva da diretora de Serviços de Enfermagem do St. John’s Hospital, era função sua rechaçar vendedores e outros “tomadores de tempo”,
o que era um lado um tanto aborrecedor de seu trabalho. Aqueles sujeitos não desistiam nunca?
— Mikki, é Arnold Asher. Estou ligando para confirmar o nosso encontro desta noite.
— Ah! C-Claro — ela gaguejou.
— Parece surpresa. Registrei a data errada no meu Blackberry?
Pelo telefone, Mikki pôde ouvi-lo digitar na pequena tela eletrônica.
— Não, eu não me esqueci. É que tive uma manhã muito movimentada — desconversou. Na verdade, depois do café com Nelly só conseguira pensar no suposto tumor em seu
cérebro e em passar o restante do dia no trabalho, sem ter nenhum surto psicótico do tipo soltar espuma pela boca... Tentou lembrar se combinara o sutiã com a calcinha
naquele dia. Deus, seria embaraçoso ser admitida na ala psiquiátrica do hospital usando lingerie velha.
A voz de Arnold se intrometeu em suas reflexões. Ela havia quase se esquecido de que estava ao telefone com um desconhecido. Quase.
— Nossa amiga em comum, Nelly Peterson, me contou que o seu restaurante favorito é o Wild Fork, então fiz uma reserva para as sete horas. Tudo bem para você?
Mikki refreou o desejo de desmarcar o encontro. Não seria justo com o sujeito. Ele tinha uma voz agradável, e Nelly não lhe arrumaria um pretendente que não fosse
atraente e interessante. Ignorou o pensamento de que atraentes e interessantes sempre escondiam arrogantes e irritantes sob roupas bonitas e boas maneiras. Sem dizer
que quase podia ouvir Nelly gritando: “Dê uma chance ao cara, pelo amor de Deus!”
— Ah, sim. Jantar no Wild Fork me parece ótimo. É mesmo um dos meus restaurantes favoritos — concordou, esforçando-se para parecer entusiasmada.
— Perfeito. Posso ir buscá-la lá pelas seis e meia?
— Não! — ela respondeu rápido demais e, para disfarçar sua indelicadeza, riu como se tivesse perdido um parafuso. — Quero dizer, não precisa se incomodar... Eu moro
na mesma rua do restaurante. Posso encontrá-lo lá.
— Compreendo. O que for melhor para você.
Era impressão sua ou Arnold falara num tom condescendente demais?
— É o melhor para mim — confirmou, meio seca.
— Então está combinado. Eu a vejo às sete, no Wild Fork. Mas, como vou reconhecê-la?
Mikki esfregou a testa, sentindo o início de uma dor de cabeça. Ou era o seu tumor cerebral se manifestando? Ela realmente detestava encontros às cegas.
— Vou ser a ruiva com a rosa no cabelo.
Uma risada agradável fluiu através da linha, surpreendendo-a.
— Será difícil eu confundi-la com outra mulher — ele concluiu, ainda rindo baixinho.
— Essa é a ideia. — Mikki viu-se rindo também. — Espero que seja tão charmoso quanto a sua risada... Nós nos veremos às sete, então.
— Estou ansioso por isso.
— Eu também.
Mikki desligou o telefone sorrindo. Agora se encontrava ansiosa mesmo por conhecer o homem por trás da voz. Ainda estava sorrindo quando a chefe, Jill Carter, correu
para fora de sua sala.
— Mikki! Chame todos os outros assistentes de direção. Houve um grave acidente na Broken Arrow Expressway. Um ônibus cheio de velhinhos indo para Las Vegas capotou.
Estão trazendo os idosos para cá em massa. Vamos precisar de toda a ajuda possível para atendê-los.
— Agora mesmo — ela respondeu, digitando os números de telefone antes mesmo de Jill ter concluído.
Três horas mais tarde, o Pronto Atendimento ainda se assemelhava a um campo de guerra geriátrico, mas, aparentemente, a equipe médica vencia a batalha.
— Acho que as únicas que ainda não foram atendidas são aquelas duas senhoras ali — Patricia, assistente executiva do diretor de segurança, apontou com um gesto de
cabeça em direção a um canto distante da sala de espera.
Mikki suspirou.
— Fico com a de saia vermelha enquanto você pega a de terninho de poliéster laranja.
— Combinado — aquiesceu a outra moça, partindo para a tarefa.
Mikki suspirou. Deus, estava cansada. Sentia-se tão velha quanto a senhora de quem estava se aproximando. Lembrando a si mesma de que, embora estivesse exausta e
estressada, não havia passado por um acidente, ela estampou um sorriso amigável no rosto. A mulher se encontrava com os olhos fechados e a cabeça inclinada para
trás, de encontro ao azulejo estéril da parede do PA. Os cabelos brancos e fartos tinham sido presos num elegante coque e, ao chegar mais perto, Mikki notou a saia
longa e o casaco de cashmere combinando. Um grosso e brilhante colar de pérolas pendia de seu pescoço quase até a cintura e brincos em forma de gota, também feitos
de pérolas, adornavam-lhe as orelhas. Um lenço de seda branco estava amarrado em torno de sua mão esquerda, e o tecido parecia manchado de sangue seco.
— Senhora? — chamou baixinho, sem querer assustá-la.
A mulher não respondeu.
— Com licença, senhora? — ela repetiu, desta vez mais alto.
Não houve resposta.
Uma sensação terrível se instalou em seu estômago. E se a mulher estivesse morta?
— Senhora! — Mikki tentou controlar o pânico na voz, sem sucesso.
— Não estou morta, filha! Apenas cansada. — Sem abrir os olhos, a mulher proferiu as sílabas de cada palavra com cuidado. Tinha uma voz rouca e atraente, com um
leve sotaque.
Ela continuou com os olhos cerrados.
— Perdão, eu... Não achei que estivesse morta. Pensei apenas que estivesse dormindo — ela mentiu. — É a sua vez. Preciso anotar seus dados para o seguro.
A mulher abriu os olhos, e Mikki piscou, surpresa. Eram surpreendentemente claros, e de um azul vibrante e profundo. Se a esperança tivesse uma cor, seria aquela,
refletiu, emudecida diante de sua beleza.
As linhas da pele plissada ao lado dos olhos da idosa se aprofundaram quando ela sorriu.
— Devia dizer a verdade sempre, querida. Não sabe mentir. Mas não se preocupe: ainda estou bem viva... ao menos por enquanto.
Estendeu a mão bem cuidada, que não se encontrava enfaixada pelo lenço, e Mikki a tomou no mesmo instante, ajudando-a a se pôr em pé.
— Sim, senhora — ela respondeu, sem graça.
— Sempre achei que o título de “senhora” deveria ser reservado a moças que desejassem parecer mais velhas, ou mulheres mais velhas que tivessem desistido de viver.
Como nenhum dos casos é o meu, prefiro signora, ao modo dos italianos. — A mulher sorriu outra vez. — Mas pode me chamar de Sevillana.
Mikki esboçou um sorriso.
— Sevillana?
— Sim, é o meu nome de batismo. Algum problema, querida?
Ela ajudou a anciã a se acomodar na cadeira em frente à mesa de registro antes de responder.
— Problema nenhum. É que eu já conhecia esse nome.
— Verdade? — Sevillana ergueu uma sobrancelha grisalha. — E o que sabe sobre ele?
— É o nome de uma rosa Meidiland que se originou na França, de um vermelho brilhante e muito resistente. Dá um renque cerrado e floresce durante quase quatro meses
seguidos.
Sevillana sorriu com satisfação.
— Eu sabia que existia algo especial em você!
Mikki tentou devolver o sorriso, porém ainda se encontrava desconcertada por aquela estranha coincidência. Muitas rosas haviam sido batizadas com os nomes de pessoas
importantes: rosa JFK, rosa Dolly Parton, rosa Lady Di... Mas nunca conhecera uma pessoa comum, além dela mesma, que também tivesse o nome de uma rosa. Uma vez de
volta à sua mesa, digitou no teclado do computador e abriu a tela de registro para a nova paciente.
— Qual é o seu sobrenome, senhora... digo, signora? — perguntou, sorrindo.
— Kalyca. Soletra-se K-a-l-y-c-a. — Sevillana apanhou o cartão do seguro na bolsa e o entregou a ela. — E o seu, querida, qual é?
Mikki ergueu os olhos da tela do computador, pronta para dizer o próprio apelido, mas algo na expressão da mulher a fez hesitar.
— Mikado — admitiu, hesitante.
O sorriso que iluminou o rosto de Sevillana eliminou décadas de sua idade.
— Oh, Deus! Outra dama das rosas. Que surpresa agradável.
— É mesmo incomum — ela concordou com uma pitada de sarcasmo.
Sevillana a estudou, atenta.
— Quando for mais velha, vai aprender a gostar do inusitado; não importa de que forma o descubra... Ou então ele vai descobrir você.
Mikki apertou os lábios para impedir o gracejo que lhe veio à mente. Havia algo tão sábio nos olhos da mulher que sentiu suas barreiras cedendo.
— Acha mesmo? — indagou, incapaz de se conter.
— Claro que sim. — Os olhos incríveis de Sevillana a fitavam, perspicazes. — O incomum é o mais próximo que podemos chegar neste mundo de viver a verdadeira magia.
E a magia é o sopro da vida.
Mikki teria gostado de conversar mais com a velha senhora a respeito, porém uma enfermeira as interrompeu.
— Acredito que seja a minha última paciente. — Sorriu e ajudou Sevillana a se levantar. — Vamos ver essa mão.
— Foi só um arranhão — afirmou a mulher conforme deixava a moça conduzi-la para longe do balcão. E, fitando Mikki nos olhos por cima do ombro, completou de forma
clara: — Já me machuquei mais podando minhas rosas sem luvas...
As palavras fizeram Mikki se arrepiar dos pés à cabeça. Como ela sabia?
Ainda tinha os olhos fixos na porta pela qual Sevillana havia desaparecido quando sua chefe a cutucou no ombro, fazendo-a dar um salto.
— Desculpe, Mikki, eu não quis assustá-la! Eu só queria lhe agradecer por sua ajuda hoje. Foi muito além do que devia.
— Imagine, Jill. Foi bom mudar um pouco de ares.
Jill observou a assistente de perto, percebendo sua palidez incomum e os círculos escuros sob os olhos expressivos. Mikki era sua assistente fazia anos, e ela já
se acostumara ao modo tranquilo como esta tocava a rotina administrativa dos Serviços de Enfermagem.
Mas, ultimamente, a moça a vinha preocupando. Parecia cada vez mais distraída e dois dias antes ela a pegara dormindo na mesa. Talvez fosse hora de dar a Mikki umas
férias; e um aumento, também. Odiaria perdê-la para um dos hospitais concorrentes, ainda mais para o cardiológico que acabara de abrir na 91st Street. Na certa eles
se encontravam em pleno processo de contratação de funcionários experientes.
Suspirou. Iria pensar em um aumento para Mikki e, na segunda-feira pela manhã, traria para ela um daqueles folhetos de cruzeiros.
— Por que não vai para casa mais cedo hoje? Foi uma semana difícil.
Mikki abriu um sorriso.
— Puxa, obrigada! — agradeceu, surpresa. — Tenho que me aprontar para um encontro, mesmo.
A outra moça sorriu de volta.
— Vou cruzar os dedos, então. — Olhou em volta para ter certeza de que ninguém iria ouvi-la. — Sabe como é... Não é fácil encontrar um homem que preste hoje em dia.
— E eu não sei? — Mikki deu uma risadinha seca. — Esse é professor.
— Bem, espero que o... — Jill fez uma pausa, omitindo a palavra e erguendo as sobrancelhas sugestivamente — dele seja tão eficiente quanto o cérebro! — Afastou-se
com seu andar característico, balançando os quadris. — Vejo você na segunda!
Mikki ainda sorria ao desligar o computador.
Tinha acabado de dar um clique no mouse quando notou o cartão de seguro sobre a mesa.
— Ah, droga! Eu não o devolvi a Sevillana.
Apanhou o cartão laminado e correu até a porta que dava para o interior do setor de emergência.
O posto de enfermagem ficava no meio do imenso saguão e ela reconheceu a secretária sentada atrás do balcão alto. Como de costume, a moreninha se encontrava ocupada,
digitando diretivas no computador.
— Ei, Brandi, em que sala está Sevillana Kalyca?
— Na sete. — Compenetrada, a moça nem sequer olhou para ela. — Esta aí um nome difícil de esquecer.
— Obrigada! — Mikki rumou para a porta de número sete. — Espero que seja tranquilo para você esta noite...
— Parece que sim — murmurou Brandi, distraída.
Mikki bateu à porta fechada.
— Pode entrar! — falou a voz inconfundível da mulher.
Ela abriu a porta e espiou dentro do quarto, hesitante.
Sevillana acenou com a mão boa. Tinha a mão esquerda apoiada sobre um braço de alumínio que saía da maca, o qual alguém havia coberto com um pano azul.
Mikki franziu o cenho ao ver o corte em toda a parte carnuda de sua palma, de onde ainda pingava sangue.
— Venha, querida... A enfermeira foi buscar alguns instrumentos para dar um jeito nisto. — Apontou a mão ferida com um gesto de cabeça. — Parece que vou precisar
de pontos.
— Sinto muito — ela murmurou, pesarosa. — Espero que não esteja doendo muito.
— Isto não é nada. — Sevillana indicou a cadeira ao lado da cama. — Por favor, sente-se. Foi muito gentil de sua parte ter vindo me ver, Mikado.
— Eu também vim lhe trazer isto. — Mikki entregou-lhe o cartão do seguro, constrangida por ter vindo por conta daquilo e não para ver como a mulher estava.
— Ah, obrigada! Eu jamais iria me lembrar de onde o tinha deixado. — A velha senhora pegou o cartão, sorrindo calorosamente.
Mikki sentou-se, tentando não olhar para o corte na mão de Sevillana, entretanto seus olhos continuavam pousando sobre ele... como quando as pessoas deparam com
um acidente na estrada.
E havia algo mais na palma da mulher.
Piscou, tentando enxergar melhor.
— O sangue é fascinante, não é mesmo? — A voz de Sevillana soou quase hipnótica.
— Essa cor sempre me faz lembrar as rosas — ela concordou. Em seguida, obrigou-se a fitar o rosto da mulher. — Não sou nenhuma ghoul, fique tranquila... Aquele demônio
lendário que ataca túmulos e se alimenta de cadáveres — emendou, sem graça. — É que rosas recém-desabrochadas e sangue fresco têm uma cor única. Não entendo por
que isso tem uma conotação tão negativa — disse, na defensiva.
Os incríveis olhos azuis de Sevillana a fitaram, penetrantes.
— Você é muito sábia, apesar de tão jovem. Demorei anos para compreender que não há conotação negativa no que diz. Rosas e sangue compartilham muitas características,
o que é maravilhoso.
— Sabe tanto assim sobre rosas e sangue? — Mikki perguntou num impulso.
A mulher abriu um sorriso assisado.
— Prontinho! — A enfermeira entrou, apressada, trazendo uma bandeja cheia de instrumentos esterilizados. Logo atrás dela vinha uma das novas médicas residentes.
— A dra. Mason vai cuidar da senhora.
A médica olhou para Mikki.
— É parente?
— Não, não... Sou assistente de Jill Carter.
— Então terá de sair da sala, por favor.
Ela assentiu com um gesto de cabeça e lançou um olhar de desculpas na direção de Sevillana.
— Tenho que ir. Foi muito bom conhecê-la, signora.
— Espere um momento, querida! — Sevillana remexeu a bolsa que mantivera a seu lado, na maca.
— Senhora, se ela não é parente sua, vai ter que sair... — repetiu a médica, antipática.
— Eu compreendo, minha jovem. Não estou pedindo para que a moça fique. Quero apenas dar algo a ela — Sevillana explicou no tom que uma mãe usaria para repreender
uma filha mal-educada. Sem esperar por resposta, afundou a mão boa na bolsa enorme, do tipo sacola, e tirou dela um minúsculo frasco de vidro, do tamanho de um dedo
mindinho, coberto de saliências.
Mikki estreitou o olhar. Por que aquilo lhe parecia familiar?
— Tome, querida. Quero que fique com isto. — Sevillana colocou o frasco em sua mão, e, quando Mikki o tocou, percebeu por que aquilo lhe parecia familiar. Era uma
réplica de vidro perfeita da haste de uma rosa, com pequenos espinhos. — É um perfume que mandei fazer para mim em minha última visita à ilha de Creta, que fica
ao Sul da sempre maravilhosa costa da Grécia. Ele me trouxe muito boa sorte e muita magia no passado... Tomara possa fazer o mesmo por você.
Mikki apertou o frasco na mão, comovida.
— Obrigada, Sevillana — agradeceu, enquanto a enfermeira a conduzia para a porta.
— Lembre-se... — a mulher sussurrou ainda.
E a porta se fechou com um clique suave às suas costas.
Capítulo 4
Seu apartamento era um santuário, concluiu Mikki. Ela assinara por ele um contrato de locação de longo prazo, cinco anos antes, e nunca se arrependera. Morava na
cobertura de um pequeno edifício. Era um local espaçoso e silencioso, porém ela não se decidira por ele por causa de seu interior, mas por conta de sua localização.
A vista da varanda de ferro forjado, que ligava a sala de estar ao quarto, dava para o Woodward Park. E o Woodward Park era contíguo a seu lugar favorito: o Roseiral
Municipal de Tulsa.
Consultou o relógio ao pisar na sacada. Ainda eram seis e meia, então teria tempo suficiente. Apreciou a vista maravilhosa, reparando que nada oscilava ou se deslocava
no ar... O Woodward era apenas um parque. Aguçou os ouvidos, tentando captar algum rosnado, mas, com exceção de um ou outro motor de carro que passava pela 21st
Street e dos trabalhadores que cuidavam dos últimos retoques no palco para a apresentação que se daria dali a duas noites, tudo parecia normal e em silêncio. E aquele
início de noite de outubro estava agradavelmente fresco. O sol acabara de se pôr, contudo o céu parecia relutante em abandonar o que sobrara da luz. Um tom de ardósia
se misturava com malva e coral, tingindo o dia que se despedia aos poucos. Mikki sabia que as cores iriam se desvanecer depressa, no entanto. Aquela noite seria
de lua nova, o que significava que a única luz no céu noturno seria a das estrelas.
Sacudiu a cabeça. Era melhor parar de sonhar e se apressar, se pretendia não chegar atrasada ao restaurante.
Uma brisa soprou, e ela respirou profundamente, saboreando o doce perfume de rosas. Suas rosas. A varanda continha cinco grandes vasos de barro onde ela cultivava
cinco espécies de bem cuidadas roseiras. E todos os arbustos estavam em flor. Fazia muito tempo que havia parado de mesclar rosas em casa. Eram necessários consistência
e muito cuidado para tanto. Mesmo assim, seu sucesso era evidente. Todos os arbustos se encontravam em plena floração, e as rosas mostravam mais do que aquele típico
florescimento de última hora, antes de o inverno colocá-las para dormir. Suas rosas Mikado eram um verdadeiro milagre. As pétalas externas das flores eram vermelhas,
mas não de um vermelho qualquer. Seu escarlate podia ser comparado a rubis, fogo, sangue... Mais internamente, o tom vivo se fundia com o ouro, como se a base da
flor tivesse sido mergulhada em uma taça de xerez.
Mikki sorriu. Havia sido a vencedora na categoria amadora do concurso de jardinagem “Rosas Selecionadas de Toda a América” nos últimos cinco anos. Suas covoluntárias
no Roseiral de Tulsa gostavam de brincar, dizendo que ninguém poderia vencê-la porque ela possuía uma poção mágica que derramava nas rosas. A cada ano, faziam um
verdadeiro teatro, implorando para que ela
compartilhasse seu segredo. Ela apenas sorria e aceitava os elogios, mas nunca confirmara contar com tal poção...
Colocou no chão o regador e a pequena caixa de ferramentas em que guardava suas várias tesouras para poda e outros apetrechos de jardinagem, então se aproximou do
primeiro arbusto. Franzindo a testa, arrancou uma pequena folha que, para um olho destreinado, poderia parecer saudável, mas segundo sua experiência, era um problema
em potencial.
— Míldio! — exclamou com nojo. — Eu sabia que as últimas noites tinham sido frias demais, mas pensei que a temperatura durante o dia fosse impedir esse tipo de coisa.
— Acariciou uma flor de leve, falando com o arbusto como se este fosse uma criança. — É muito cedo para isso. Não vai querer que eu o traga para dentro ainda...
Acho que vou ter que lhe cobrir à noite.
Indo de planta em planta, Mikki as inspecionou, atenta. Não encontrou mais nenhuma folha danificada, porém lembrou a si mesma que deveria verificar a previsão do
tempo antes de ir para a cama. Se a temperatura fosse ficar em torno dos quatro graus, cobriria as rosas.
Voltando à caixa de ferramentas, selecionou um par de tesouras de tamanho médio. Uma vez feita a escolha, posicionou-se ao lado da roseira mais próxima das portas
de vidro deslizantes que levavam a seu quarto. Com movimentos firmes, segurou a haste de uma flor delicada, recém-desabrochada, e fez um corte vertical no caule
verde. Levou a flor ao nariz e aspirou sua inebriante fragrância.
— Vou adorar usá-la nos cabelos esta noite — murmurou, carinhosa.
Voltou às ferramentas mais uma vez. Com cuidado, pousou a rosa cortada no chão da varanda, assim como o par de tesouras, e tratou de revirar a caixa em busca do
último apetrecho de que precisaria naquela noite.
Encontrou o canivete rapidamente. Era pequeno, entretanto ela já estava acostumada com a caixa bem organizada e nunca demorava a achar alguma coisa dentro dela.
Abriu a navalha e a lâmina brilhou, perigosa, à luz fraca. Metódica, Mikki abriu a última gaveta da caixa e extraiu dela um pequeno pacote. Rasgou a embalagem do
lenço umedecido em álcool. Limpou primeiro a palma da mão esquerda e, em seguida, a lâmina que já parecia mais do que esterilizada.
Podia ouvir a voz familiar da mãe falando na memória: Cuidado nunca é demais, Mikado. Não tem por que pegar uma infecção.
Satisfeita ao ver ambas as superfícies limpas, ela descartou o lenço umedecido e olhou ao redor. Embora a varanda ficasse de frente para a rua, a altura do apartamento
e da folhagem espessa das roseiras evitava que qualquer transeunte tivesse mais do que um vislumbre seu. Numa véspera de lua nova, entretanto, queria evitar até
mesmo a possibilidade de ser vislumbrada.
Nada se movia ao redor, exceto a brisa.
Mikki segurou a mão esquerda à sua frente, vendo a palma cheia de pequenas cicatrizes brancas. Olhou para a da mão direita. Sim, lembrava-se bem... Em meio às marcas
daquela palma, existia uma mais recente, ainda rosada, recém-curada, o que lhe garantia que, naquele mês, era a palma esquerda que deveria usar.
Sem hesitação, pressionou a lâmina afiada contra a pele e, com um movimento preciso, cortou-se.
O sangue jorrou no mesmo momento, fazendo-a se lembrar do corte de Sevillana. Tinha sido exatamente no mesmo lugar, só que maior e mais profundo. Foi então que,
de repente, percebeu o que mais ela havia visto na mão da mulher: marcas claras, finas, bem cicatrizadas... e muito familiares. Sentiu uma súbita vertigem e fechou
os olhos para a varanda que girava.
Como Sevillana podia ter as mesmas cicatrizes que ela? Apenas as mulheres de sua família praticavam aquele ritual, e isso fora feito em sigilo por várias gerações.
Desde a morte de sua mãe, no ano anterior, ela pensava ser a última pessoa no mundo que conhecia o segredo das rosas cultivadas com sangue. Franziu a testa. Precisava
descobrir mais sobre Sevillana. A primeira coisa que faria na segunda-feira pela manhã seria puxar o prontuário da mulher e obter seu endereço. Tinha que encontrar
a velha senhora de novo!
A vertigem desapareceu, e Mikki abriu os olhos, vendo o sangue que brotara de sua ferida. Antes que este pingasse na varanda, mergulhou a mão no balde de rega. A
princípio o corte ardeu, mas o frescor da água rapidamente acalmou a sensação. Com um suspiro, ela girou a mão dentro do recipiente, vendo a água se tingir de vermelho.
Após alguns minutos, tirou a mão da água, sacudiu-a e a envolveu com firmeza em uma tira de gaze que puxou da gaveta aberta da caixa. Sabia que o sangramento logo
iria parar, deixando uma crosta estreita e discreta que ela ocultaria com Band-aids da cor da pele nos dias seguintes. Se as outras voluntárias do roseiral notassem,
ela apenas sorriria diante das admoestações para que fosse mais cuidadosa e usasse luvas de couro grosso ao podar...
Poucas pessoas, contudo, costumavam reparar em cortes tão insignificantes.
Carregando o balde com a mão incólume, dividiu a água cuidadosamente entre as cinco plantas. Devagar, derramou o líquido tingido de sangue sobre as raízes de cada
planta, sussurrando palavras de carinho e elogiando-as por sua beleza. Como sempre, Mikki pensou que podia ver as rosas respondendo ao ritual. Uma brisa fresca soprou
em meio às folhas espessas, e as flores pesadas balançaram como se estivessem dizendo: Sim, nós somos parte de você... Sangue do seu sangue.
E para Mikki elas eram mesmo muito mais do que simples plantas. Aquelas rosas eram seu legado, o último vestígio de sua mãe e de sua família. Sem elas, estaria completamente
só no mundo.
Quando a água acabou, sorriu, feliz com o resultado do trabalho.
— Tudo o que eu gostaria de fazer agora era puxar minha cadeira de balanço para cá, servir um copo daquele vinho tinto que comprei ontem e passar a noite lendo um
bom livro.
Mas tinha um encontro, lembrou a si mesma. Com um homem dono de uma voz agradável e de um riso encantador. Olhou as horas. Eram quinze para as sete! E levaria ao
menos dez minutos a pé até o restaurante...
— Droga!
Agarrou o balde vazio, a caixa de ferramentas e praticamente os jogou dentro da sala. Arrumaria aquela bagunça quando chegasse em casa mais tarde. Correndo para
o banheiro, deu uma última olhadela na maquiagem e no cabelo. Parecia bem. A saia de couro preta era uma de suas favoritas e o ferrugem do suéter de cashmere era
como um elogio a seus lindos cabelos avermelhados. Apressada, optou por um colar fino e comprido de antigas contas de vidro preto e revirou a gaveta de brincos até
encontrar um par de pingentes que combinasse.
Deixou o banheiro correndo, apanhou um agasalho, e estava lutando para fechar o zíper das botas novas quando se lembrou da rosa para os cabelos. Ela a havia deixado
na varanda! Repreendendo-se por andar distraída demais, apanhou a rosa cortada, tirou as folhas do caule e usou o pequeno espelho decorativo da sala a fim de posicioná-la
em meio aos cachos acima da orelha esquerda. Respirou fundo. Que perfume poderia escolher?
Estreitando os olhos com uma lembrança, abriu o zíper lateral da bolsa, onde normalmente guardava apenas um batom, o pó compacto e as chaves. O “caule de vidro”
estava ali, aninhado junto aos outros itens.
— Por que não? — perguntou a si mesma. — Sevillana disse que o perfume havia lhe trazido sorte. Talvez, se usá-lo esta noite, terei um encontro decente para variar.
Abriu a pequena rolha e levantou o frasco até o nariz. Inalou e piscou, surpresa. O perfume era uma mistura densa de rosas e especiarias. Cheirou-o outra vez. Nunca
sentira um odor assim. Junto com a fragrância familiar de rosas, reconheceu o aroma do gengibre, da canela e do cravo, todos misturados em um óleo forte e adocicado.
Passou o perfume em ambos os lados do pescoço, na base da garganta e nos pulsos antes de colocar o frasco de volta na bolsa.
Cantarolando baixinho, trancou a porta atrás dela e correu para a calçada, amando o modo como a brisa da noite misturou a doce fragrância das rosas que levavam o
seu nome com a simplicidade de seu novo perfume. Sem dúvida, estava cheirando muito bem.
E, de repente, deu-se conta de que também estava se considerando uma mulher de muita sorte.
Capítulo 5
O Wild Fork ficava no coração da Utica Square, em Tulsa: uma bela área com um paisagismo lindo, árvores antigas, lojas da moda e restaurantes finos. Como de costume,
era uma noite de sexta-feira movimentada, e todas as mesas já se encontravam ocupadas por fregueses famintos. Mikki olhou ao redor disfarçadamente, mas não viu nenhum
homem sozinho. Ele devia ter se sentado lá dentro. Olhou o relógio de novo. Eram sete e dez. Droga. Odiava se atrasar. Suspirando, entrou no restaurante.
O amável maître anotava um dos nomes de um grupo de seis, garantindo-lhes que o tempo de espera não seria muito longo. Com um gesto delicado demais dos dedos longos,
apontou-lhes a área de espera. Quando seu olhar se deslocou para ela, sua expressão eficiente foi logo substituída por um sorriso acolhedor.
— Mikki, sua ingrata! Venha aqui... Faz séculos que não a vejo!
— Olá, Blair querido... — Ela devolveu o sorriso, e eles compartilharam um breve abraço. — Afinal, quando vai chutar Anthony para fora da sua cama e me colocar nela?
— indagou, brincando.
— Fale baixo, coisa ruim! — O maître riu e fingiu corar. — Tony está trabalhando esta noite. Se ouvi-la vai ficar verde de ciúme. E você sabe que verde é a cor que
menos combina com ele.
— Como uma ruiva de fechar o trânsito, acho trágico que as pessoas loiras não possam usar verde — Mikki provocou, batendo os cílios para o amigo.
Blair se afastou para estudá-la.
— Nossa, está deliciosa esta noite, sabia? Essa saia preta e justa é de matar! Quem é a vítima?
Ela esboçou um sorriso nervoso. Quase havia se esquecido.
— Tenho um encontro às escuras aqui.
Blair sugou o ar e levou a mão ao peito.
— Não me diga! Deixe-me adivinhar: Nelly tem algo a ver com isso?
Mikki assentiu.
— Outro doutor para passar o tempo?
— Mais ou menos. Este não é médico. É professor, engenheiro ou algo assim. O palestrante convidado da Tulsa University da semana que vem.
Blair revirou os olhos.
— Saia da cidade! Soa terrivelmente maçante.
— Ora, seja razoável. É o que eu estou tentando fazer.
— Espere... — A expressão de Blair congelou e ele baixou a voz. — Deve ser o moreno misterioso que está aqui há uns vinte minutos! Menina, ele não é nada mau!
Mikki sentiu o coração dar um salto e tentou se lembrar da descrição que Nelly lhe dera de Arnold Asher.
— Ele é forte, de estatura média, tem a cabeça raspada e um brinquinho de diamante em uma orelha?
— Isso mesmo! E um bigode maravilhoso! Tony e eu estávamos até comentando que ele é uma mistura de chefão da máfia com Telly Savalas. Que este descanse em paz...
— Blair se benzeu, apressado.
— Pare com isso! Você não é católico.
— Ora, você sabe muito bem que eu acredito na tática de jogar em todas as posições...
Foi a vez de Mikki revirar os olhos.
— Então achou que ele é bonitinho.
— Bonitinho?! — guinchou Blair. — Ele é uma delícia!
— Que bom. — Ela endireitou os ombros. — Quero dizer, eu não esperava menos do que isso... Nelly não ia me arrumar nenhuma encrenca. — Era verdade. Mas havia muito
mais para se avaliar em um homem do que a aparência. — O que está esperando? Estou pronta para encontrar o Mister Mundo.
Blair apanhou um cardápio e fez meia-volta, afetado.
— Siga-me, por favor, mademoiselle — falou por cima do ombro em seu tom de maître mais esnobe e começou a caminhar em direção aos fundos do salão.
— Ei! — Mikki puxou-lhe a manga. — Essa é a parte mais pecaminosa do restaurante!
— Foi onde ele pediu para ser acomodado... um lugar discreto. — Blair deu de ombros, os olhos brilhando.
Mikki ergueu as sobrancelhas, apreensiva.
— Desconfio de que vá levar mais do que estava esperando desta vez, mocinha — alertou o maître em uma imitação abominável de John Wayne.
— Por favor! Nada de John Wayne esta noite. Meu estômago já está doendo.
— Ah, relaxe, amiga! Estou com um ótimo pressentimento.
Mikki seguiu Blair até o setor mais íntimo e menos iluminado do Wild Fork, onde várias mesinhas abrigavam casais que conversavam bem próximos. Blair se pôs de lado
para que ela pudesse ser vista por todas as mesas. Um rapaz sozinho, vestindo calças e jaqueta pretas, caras e de muito bom gosto, com uma linda malha de lã verde-clara
por baixo, ergueu os olhos do livro que estava lendo. Tinha a cabeça raspada, e a luz fraca do ambiente captou o brilho de um pequeno brinco de diamante em sua orelha
esquerda. Nelly tinha sido honesta em sua avaliação. Havia descrito Arnold Asher como “interessante, mas não de uma maneira tradicional”, e ela precisava concordar,
refletiu Mikki. Ele era mesmo atraente. Meio misterioso, ao estilo bad boy, e muito másculo. Sentiu uma ponta de apreensão. Normalmente não se sentia atraída por
homens bonitos. Havia algo neles que era demais para ela. Depois de passar muito tempo com um espécime daqueles, costumava sentir-se como se tivesse comido uma sobremesa
calórica. E, muitas vezes, descobrira que seu interior era tão vazio quanto seu exterior era atraente...
Sorriu quando ele reconheceu a rosa em seus cabelos e fez um aceno.
— Bingo! — exclamou Blair.
Segura, ela caminhou ao encontro de Arnold Asher, e este se levantou para recebê-la.
— Você deve ser Mikki Empousai — perguntou, os olhos deslizando num claro elogio por seu corpo.
— Eu mesma, Arnold. Muito prazer.
Apertaram as mãos. O cumprimento dele era forte e quente, tão acolhedor como seu sorriso.
Blair puxou uma cadeira para ela, e Mikki se sentou.
— Nossa, eu... — Arnold tropeçou nas palavras, parecendo chocado e um pouco nervoso. — Desculpe-me, mas tive a nítida impressão de que já nos conhecíamos antes,
embora eu saiba que isso não é possível.
— Verdade? — Ela riu, adorando a admiração em seus olhos. — Gosta dessas coisas que mexem com o inconsciente? Nelly não me disse nada.
Ele continuou sorrindo.
— Prefiro chamar isso de intuição. Mas, sim, gosto de me manter aberto a novas possibilidades.
Sentindo o rosto corar com seu óbvio interesse, Mikki desviou os olhos para o livro que ele estava lendo. A última temporada.
— Pat Conroy! — exclamou e tocou a capa dura. — Gosta de Conroy?
— É um dos meus top ten favoritos — afirmou Arnold.
— Meu também! Eu amo esse escritor! O príncipe das marés, O Grande Santini...
— Canção do mar, Guardiães da honra... — ele continuou para ela.
— Adorei Canção do mar!
— Eu também. Quase tanto como O príncipe das marés. Fiquei zangado ao ouvir críticas negativas a respeito — ele acrescentou depressa.
— E eu não? A prosa de Conroy é mágica. Não consigo entender como podem criticá-lo.
Sentaram-se, sorrindo, surpresos um com o outro, e Mikki sentiu-se invadida por algo que não sentia havia muito tempo: esperança.
O suspiro romântico e absolutamente exagerado de Blair transformou-se em uma tosse fingida quando ela o fulminou com o olhar.
— Ah, meu Deus, me desculpem. Alguma coisa me atacou a garganta — ele disfarçou.
— Pode me trazer a minha taça de Chianti, Blair? — pediu Mikki, antes de volver o olhar para Arnold. — Está com fome? Eu pulei o almoço e adoraria uns aperitivos.
— Por mim, está bem.
— Que bom. Que tal um pão de azeitona? Ele sempre me faz lembrar a Itália.
Tão logo o professor assentiu, Blair saiu correndo.
— Então é fã de Conroy. — Arnold sorriu outra vez. — Qual seu livro favorito?
— O príncipe das marés, provavelmente. Mas adorei todos. — Acariciou a capa do volume, depois o colocou sobre a mesa. — Ainda não li este.
— Pois precisa ler. Ele faz uma análise incrível da própria vida.
— Vou comprá-lo sem falta. — Eles se entreolharam, e Mikki sentiu nova onda de expectativa. — Disse que Conroy é um dos seus dez autores favoritos. Quais são os
outros?
Arnold inclinou-se para a frente, aquecendo-se para o assunto como apenas um verdadeiro amante dos livros poderia fazer, e ela o estudou, atenta. Não, ele não era
assim tão bonito. E ela sempre preferira homens mais altos e mais jovens. Mas havia algo em Arnold. Algo como inteligência, experiência... e sensualidade.
— É difícil restringi-los a dez. Suponho que, ao lado de Conroy, eu tenha que citar Herman Wouk.
— Ventos de guerra. Que livro fabuloso! — exclamou Mikki.
— E não se esqueça de Lembranças de guerra.
— Impossível esquecer.
— Em seguida, eu citaria James Clavell — lembrou Arnold.
— Changi, Tai-Pan e o melhor: Xogun! — ela enumerou, mal se concentrando em Blair quando este trouxe seu vinho e o pão de azeitona.
— Mas eu não gostei da minissérie.
— Richard Chamberlain como Blackthorne? Faça-me o favor — ela concordou com desdém. — Odeio quando um grande livro é transformado em enlatado.
— O que já não aconteceu com um dos meus outros “dez mais”: Os pistoleiros do Oeste, de Larry McMurtry.
Mikki parou, prestes a dar uma mordida no pão.
— Adorei o livro e amei a minissérie!
A partir daí, eles se lançaram em uma animada discussão acerca dos filmes feitos com base em seus autores mais queridos: do Oeste de McMurtry à África e o Egito
de Wilbur Smith. Em algum ponto da discussão, conseguiram pedir a comida. Mikki tinha vontade de se beliscar. Não conseguia se lembrar da última vez em que tivera
uma conversa tão agradável com um homem. Com amigas era comum que se tivesse assuntos interessantes. Com os homens, ao menos em seu caso, parecia quase impossível.
No entanto, antes que se desse conta, engolira três copos de Chianti, devorado uma excelente refeição e pedido um café irlandês para a sobremesa, em vez do “Morte
por Bolo de Chocolate”, a sobremesa que sempre a tentava. Encontrava-se agradavelmente zonza e aproveitando o encontro como nunca. Tanto que foi um choque olhar
para o relógio e ver que quase duas horas tinham se passado.
Tomou um gole do café e sentiu que Arnold a estudava, atento. A indagação em seu rosto era tão clara que ela sorriu.
— O que foi?
— É incrível.
— Na verdade, eu estava pensando a mesma coisa — falou, um pouco tímida.
— Não acredito que eu tenha encontrado uma mulher que tenha realmente lido e apreciado mais do que um desses romances baratos.
Um fio de água fria começou a se derramar no gostoso calor que a dominara. Ele havia dito “romances baratos”? Como os da maravilhosa Nora Roberts, das encantadoras
MaryJanice Davidson, Susan Grant, Gena Showalter, Sharon Sala, Merline Lovelace, e de mais uma série de outras autoras fabulosas que lhe faziam companhia em suas
noites solitárias, e que a faziam rir, chorar e suspirar?
— O que quer dizer? — indagou, reticente.
Alheio à sua mudança de tom, Arnold continuou, entusiasmado.
— Não é muito comum que uma mulher atraente e disponível tenha lido e compreendido livros tão interessantes.
— Eu sempre fiz questão de ler vários autores e gêneros. Creio que isso amplia os nossos horizontes e impede que tenhamos uma visão estreita da vida — replicou com
cuidado, tentando manter o tom neutro. — Eu estava pensando, Arnold... Por acaso já leu algum livro de Anne Tyler?
— Não, creio que não.
— Ela ganhou um Pulitzer por Lições de vida, sabia?
— É mesmo? — Ele esboçou um sorriso. — Que bom para ela.
Mikki se retesou diante do tom paternalista.
— E quanto a O historiador, de Elizabeth Kostova?
— Também não.
— Pensei que gostasse de romances históricos...
— Eu gosto.
— Que tal As brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley?
— O mito arturiano contado sob o ponto de vista feminino? — Dessa vez, seu riso foi sarcástico e condescendente. — Eu não o consideraria histórico.
— Você o leu?
— Não, claro que não. Prefiro Tennyson ou T. H. White. — Arnold esfregou a testa como se ela estivesse lhe causando uma dor de cabeça. — Gosto de autores consagrados.
— Está bem, então, que tal os livros de Nora Roberts? Uma estatística afirma que a cada sessenta segundos alguém compra um romance dela, ou seja, é uma autora consagrada.
E, estatisticamente, pelo menos, pode ter lido alguma coisa dela; até mesmo sem querer.
— Nora Roberts? Mas não é ela que escreve aqueles romances “água com açúcar”?
Blair flutuou até a mesa nesse momento.
— Vou deixar a conta aqui. — Colocou-a ao lado do braço de Arnold, alegre. — Mas não precisam se apress... — Suas palavras sumiram quando ele viu a expressão irritada
de Mikki. Limpou a garganta. — O que eu quis dizer é: podem me chamar a qualquer momento. — Com um olhar preocupado na direção da amiga, o maître se retirou, passando
a observá-los do balcão dos garçons.
A saída abrupta de Blair fez Mikki perceber que precisava melhorar o próprio humor, mas, quando ela olhou para Arnold, viu que não precisava se afligir. Ele nem
sequer olhava para ela, e sim para a conta, carrancudo.
— Algum problema? — Mikki quis saber.
Ele a fitou e em seguida deslizou a conta em sua direção.
— Problema nenhum. Eu só estava calculando a minha parte da conta.
— Como?
— Bem, foi você quem pediu o aperitivo e bebeu uma taça de vinho a mais. E esse café irlandês não foi muito barato.
Mikki piscou, incrédula, enquanto tentava redescobrir a voz.
Arnold pegou a carteira, tirou uma nota de vinte, e duas de dez dólares.
— Isso deve dar para a minha parte e mais um pouco para a gorjeta. — Fitou-a, atento. — Vai pagar com dinheiro ou com cartão de crédito?
Ela não pôde evitar e riu.
— Quer que eu pague a minha metade do jantar?
— Claro — ele respondeu com naturalidade. — Os tempos são outros. As mulheres de hoje querem ser tratadas com igualdade e respeito, e estou apenas demostrando isso.
— Perfeito... — Mikki concordou, rindo, embora começasse a sentir o sangue ferver nas veias. Aquilo era o máximo. — Simplesmente perfeito. Sendo assim, escute bem,
dr. Asher. É assim que o tratam, não?
Arnold concordou com um gesto de cabeça, parecendo vagamente confuso.
— Ótimo — ela assentiu. — Eu só queria ter certeza. A questão é a seguinte, dr. Asher... Não está demostrando respeito ao usar de retórica quanto ao que as mulheres
de hoje querem, apenas como desculpa para ser mesquinho. Pelo contrário. Não me importa em que tempo estejamos vivendo. Se isto era um encontro, e eu tinha a impressão
de que era, então deveria ser uma questão de orgulho e boas maneiras para um cavalheiro pagar pelo jantar. Isso, sim, eu consideraria respeitoso. Mas não pode compreender
esse tipo de coisa porque, sem dúvida nenhuma, não tem um pingo de respeito para com as mulheres. Sua atitude sobre o que acredita que as mulheres gostam de ler
é tão condescendente como é evidente o seu desdém para com as autoras do sexo feminino. — Ela enfiou a mão na bolsa, tirou três notas de vinte dólares e estatelou-as
em cima da conta. — E aqui vai uma novidade: os romances que chama de “baratos” e de “água com açúcar” superam em vendas todos os outros gêneros do mercado literário.
Muitas das autoras que criam essas tramas, em que figuram mulheres fortes e apaixonadas, assim como homens honrados e heroicos, são extremamente perspicazes e cultas.
Deveria tentar ler algumas delas. Essas autoras de romances femininos, das quais desdenha, poderiam lhe ensinar algumas coisas sobre como se comportar como um verdadeiro
cavalheiro. — Ela se levantou e colocou a bolsa no ombro. — Boa noite, dr. Asher. — Ele fez menção de dizer algo. — Não, por favor... Não se levante. Quero me lembrar
de você assim mesmo: confuso e sem palavras. É uma boa perspectiva para a sua pessoa. Sem dúvida alguma é bem melhor do que a de machista e paternalista.
Com um sorriso sarcástico estampado no rosto, Mikki deu meia-volta e caminhou sem pressa para fora da sala mal iluminada.
Ainda estava rindo quando continuou caminhando pela calçada. Santo Deus, estava feliz por ter dado um fora naquele sujeito! Jamais seria capacho de homem nenhum.
Sem dizer que tinha, mesmo, o pavio muito curto. Deus, quem poderia imaginar!? Ele parecia tão interessante e sexy a princípio... Mas, como a maioria dos homens,
fora uma decepção.
A ideia de que nenhum homem jamais se aproximaria dela porque ela mesma nunca se permitira compartilhar o segredo que pulsava através de seu sangue brotou em seu
subconsciente... O pensamento foi efêmero, contudo. Rindo e meio embriagada, Mikki tratou de reprimir a ponta de verdade contida neste pensamento, ao mesmo tempo
em que dava um pulinho e cambaleava de leve sobre o halo de luz que um poste formava no chão.
Na verdade, nunca desistira de um encontro daquela maneira antes.
Tinha sido até emocionante!
Seus passos se tornaram mais lentos. Estava começando a achar que talvez não tivesse sido talhada para um relacionamento de longo prazo. Talvez fora o sinal de que
precisava naquela noite. Algo como um presságio. Ela era diferente. E vinha se tornando cada vez mais claro que não havia o “homem certo” para ela. Ele não existia.
A conclusão, entretanto, não a fez sentir-se triste ou solitária. Em vez disso, fez com que se sentisse mais sábia; como se tivesse alcançado uma percepção que seus
amigos ainda não contavam com maturidade suficiente para ter. Respirou fundo, experimentando um estranho sentimento de libertação.
Ao passar pelo McGill’s, um pub local muito popular, considerou entrar para um drinque rápido. Mas a porta se abriu e o burburinho que escapou lá de dentro a fez
mudar de ideia. Não estava disposta a ficar gritando por cima da música e do barulho apenas para pedir uma bebida. Além disso, já bebera o suficiente. Não que isso
fosse ruim. Não estava dirigindo, estava viajando!
Mikki riu e seguiu adiante, respirando o ar frio de outubro. Conforme deixou a área de comércio e se aproximou de Woodward Park e do apartamento, as construções
mudaram: das lojas e restaurantes elegantes para as antigas mansões da época da exploração de petróleo que cercavam o parque.
Ela amava aquela parte de Tulsa. Queria ter vivido na década de vinte. Seria uma daquelas mulheres com ar blasé, de cabelos curtos, vestidos soltos e cheios de contas
— do tipo que faziam barulho quando se andava. Beberia muito e dançaria a noite toda. E, em meio às festas, ainda lutaria por direitos iguais para as mulheres.
Como tinha feito naquela noite, pensou, alegre. Com exceção do vestido, do penteado e das danças. Deu outro pulinho sob a luz do poste seguinte e riu de si mesma.
Já podia desconsiderar a ausência da dança. Agora teria que voltar ao restaurante na noite seguinte para contar todos os detalhes sórdidos a Blair e ao restante
da turma.
A calçada chegou ao fim, bifurcando à sua frente. Encontrava-se bem no limite entre os casarões e o Woodward Park. Era ali que normalmente atravessava a rua para
o apartamento. Olhou para o parque, hesitante, mas não detectou qualquer mudança estranha em sua percepção que pudesse sinalizar uma de suas “crises”. Na realidade,
havia até se esquecido da estranheza que tomara conta de sua vida com aqueles seus últimos sonhos.
— Isso prova que dispensar um homem é bom para o que me aflige — falou para si mesma, satisfeita.
Tudo parecia normal. Postes antigos salpicavam de luz o Woodward Park. O vento sussurrava em meio aos carvalhos bem cuidados, chamando a mudança das estações suavemente
e provocando uma cascata de folhas que se dispersava em forma de minitornados. E, bem no centro da área arborizada, ela podia ver a iluminação suave do palco para
a apresentação que aconteceria em breve. Ouviu, ao longe, a atriz ensaiando sua fala:
“Um pouco de amor é uma alegria na casa;
Um pouco de fogo é uma joia na geada e nas trevas...”
Começou a atravessar a rua em direção ao apartamento, porém hesitou ao olhar para o parque repleto de som e luz. Estava tão lindo! Parecia um oásis mágico no meio
da noite, um subsídio ao seu estado de espírito. Uma brisa fresca soprou, trazendo um cheiro parecido com o de canela das folhas de outono, e envolveu seu corpo,
atraindo-a.
Por que não?
Mikki olhou o relógio. Eram apenas nove horas. O parque e o roseiral não fechavam até as onze. Nelly lhe havia aconselhado a seguir em frente com a própria vida...
Portanto, era normal que fosse até o parque visitar suas rosas. Passou pelos atores que ensaiavam e passeou rapidamente pelos jardins. Precisava mesmo verificar
as rosas que cercavam o local da construção. Estava preocupada que aquele ir e vir dos operários, com suas botas pesadas, irritasse as plantas.
Olhou para o céu escuro, lembrando-se de que era noite de lua nova. Se as rosas precisassem de cuidado, não haveria ocasião melhor, decidiu. Passaria pela camada
central e verificaria se os trabalhadores tinham limpado sua bagunça e mexido com as flores. Depois iria para casa, beberia uma boa taça de vinho e iria para a cama
com um bom livro... de uma autora do sexo feminino!
Ou então, sussurrou sua mente, sedutora, poderia apenas dormir. Não era preferível encontrar seu amante de sonho a qualquer outra coisa?
Com um esforço supremo, afastou aquela linha de pensamento. Não podia viver uma vida de fantasias, ou provaria que estava ficando mesmo louca.
Capítulo 6
Mikki tomou a encruzilhada entre o parque e a rua, depois seguiu pela calçada que contornava os lindos tanques alimentados por pequenas cascatas, as quais emolduravam
a parte setentrional do Woodward Park. Na bifurcação seguinte, rumou para longe da lateral norte, caminhando em direção à área central do parque, que se encontrava
lotada de atividades em torno do palco erguido na noite anterior. Trechos de poesias da peça flutuaram ao seu redor, estimulando-a.
“As fontes sagradas brotam da terra.
A fumaça do sacrifício brota da terra.
A águia e o cisne selvagem se erguem da terra.
E também a retidão brotou da terra até os pés da deusa...”
Intrigada, Mikki procurou na memória detalhes da história de Medeia. Lembrava-se vagamente de que a peça era uma tragédia grega antiga, e que a trama era centrada
em Medeia, a qual tinha sido abandonada pelo marido Jasão por causa de... Franziu a testa enquanto tentava se recordar de minúcias da história dos tempos de colégio.
Mas as mulheres nunca vão odiar seus próprios filhos.
Flutuando até ela por intermédio do vento suave, a frase atiçou sua memória. Medeia ficara zangada com Jasão porque ele a havia abandonado em troca de uma mulher
mais jovem, filha do rei de onde quer que eles tinham fugido, após ela ter traído sua própria pátria para salvá-lo.
— Faz sentido. Coisa típica de homens... — Mikki resmungou para si mesma.
Diminuiu o passo ao se aproximar do grupo agitado de pessoas que, aqui e ali, redirecionava luzes e transportava peças de madeira pintadas para o cenário. Várias
atrizes se encontravam no palco, contudo estavam em silêncio. Três delas se agruparam, agitadas, à esquerda da plataforma. Outra permaneceu em pé, sozinha, no lado
oposto, à direita. Todas vestiam túnicas drapeadas e possuíam cabelos longos, os quais usavam soltos até a cintura. E todas olhavam ao redor, como se esperando que
alguém se materializasse das sombras à beira do palco. Mikki parou para observar, tentando descobrir por que elas pareciam tão tensas.
— Onde, diabos, se meteu Medeia?!
A voz trovejou pelos alto-falantes, mas também vinha de uma pequena barraca aberta, não muito longe dela, o que a fez dar um pulo.
— Ela... disse que precisava fazer uma pausa — respondeu a mulher à direita do palco, timidamente.
— Isso foi meia hora atrás! — a voz respondeu, irritada. — Como vamos terminar a passagem de som sem Medeia?
Mikki fixou o olhar no local de onde a voz fluía. Tudo o que podia avistar no interior da tenda era um tampo iluminado com dezenas de interruptores e luzes piscando,
diante do qual via-se uma silhueta escura.
— Posso usar dois microfones e ler a fala dela e a minha — ofereceu-se uma das três atrizes, protegendo os olhos dos holofotes direcionados para o palco, enquanto
tentava olhar para o homem que, Mikki concluiu, devia ser o diretor.
— Isso não vai dar certo. Não podemos testar o som dessa maneira. Droga! Já estou cansado dos choramingos de Catie. Quem ela pensa que é? A própria Medeia? — Ele
fez uma pausa, e Mikki pôde vê-lo andar de um lado para o outro sobre o chão de folhas, irritado. Então, como se o olhar dela o tivesse atraído, voltou a cabeça
por cima do ombro. — Ei, moça! Será que se importaria em nos dar uma ajuda?
Mikki piscou.
— Eu? — Ela riu, nervosa.
— Sim, vai levar apenas alguns minutos. Poderia subir no palco, deixar que coloquem um microfone em você e dizer algumas frases?
— Mas... eu não sei as frases — ela argumentou, tensa.
— Não importa. — O homem sinalizou para um rapaz em pé, próximo ao palco. — Arrume um roteiro para a moça e peça a Cio que ponha um microfone nela. — Voltou-se para
Mikki. — Que tal eu lhe dar um par de ingressos para a estreia como pagamento?
— E-Está bem — ela gaguejou. Mas por que diabo estava tão nervosa? Nelly amava aquele tipo de coisa... Poderia convidá-la.
Sentindo-se um pouco tola, deixou-se conduzir por dois assistentes até o palco. Um deles colocou um roteiro aberto em suas mãos e o outro, o que o diretor chamara
de Cio, empurrou seus cabelos para trás e prendeu neles um minúsculo microfone.
Cio voltou-se para o diretor:
— Os cabelos dela são tão espessos como a peruca que Catie usa...
— Isso é bom. Assim poderemos fazer um teste acurado.
— Aquela é a sua marca — o rapaz orientou Mikki, apontando uma linha feita com fita adesiva no chão do palco. — Tudo o que tem a fazer é ficar lá. Depois que as
Mulheres de Corinto disserem suas falas, eu lhe farei um sinal e poderá começar a ler a invocação de Medeia a Hécate. — Ele fez uma pausa, pegou uma caneta do bolso
da camisa e circulou um parágrafo no roteiro. — Esta estrofe aqui. Fique de frente para a plateia e tente falar o mais devagar e claramente possível. Entendeu?
Mikki assentiu.
— Ótimo. — Ele deu-lhe um tapinha no ombro, distraído, antes de sair do palco.
— Fique tranquila... — uma das três mulheres cochichou, sorrindo para ela. — É moleza...
— Não sei, não — Mikki sussurrou de volta. — Nunca invoquei uma deusa antes.
— Ei, não se preocupe com isso! Não vai invocar deusa nenhuma, a menos que seja Medeia mesmo — disse a mulher, simpática.
— Ou se for uma das Sacerdotisas de Sangue de Hécate — completou outra atriz.
— Ou se tiver mania de grandeza e acreditar que é as duas coisas... — Todas as atrizes reviraram os olhos com o comentário da primeira mulher. Era evidente que a
atriz principal, que se encontrava ausente, havia deixado seu papel subir à cabeça.
— Prontas, senhoras? — chamou o diretor pelo alto-falante.
As quatro mulheres lançaram um olhar de incentivo a Mikki conforme ela se movia para a sua marca no centro do palco.
— Muito bem, vamos acabar com isto para que possamos ir para casa! Primeira Mulher Coríntia, comece, por favor.
A voz da atriz soou forte e clara quando ela repetiu as falas que Mikki tinha ouvido antes:
“As fontes sagradas brotam da terra.
A fumaça do sacrifício brota da terra.
A águia e o cisne selvagem se erguem da terra.
E também a retidão brotou da terra até os pés da deusa...”.
Mikki sentiu um arrepio na boca do estômago. Seu nervosismo, porém, foi logo substituído pela emoção, e as palavras da moça preencheram o espaço ao seu redor, afastando
qualquer receio.
A Segunda Mulher Coríntia falou diretamente a ela:
“As mulheres odeiam a guerra, mas os homens irão mantê-la.
As mulheres podem odiar os maridos; e os filhos, a seus pais...
Contudo, as mulheres nunca vão odiar os próprios filhos”.
Mikki seguiu as linhas do roteiro conforme a voz da Primeira Mulher tremia de emoção:
“Quanto a mim, farei o bem ao meu marido,
amarei os meus filhos e filhas, e adorarei aos deuses”.
Da beirada do palco, Cio apontou para ela e, como um cavalo instigado por esporas, Mikki se pôs a declamar as falas de Medeia:
“Calai-vos!
Viestes para ver como a mulher bárbara suporta a traição.
Então observai e sabereis...”.
Estava escrito no roteiro: “(Medeia se ajoelha e reza)”, e Mikki olhou para Cio, em dúvida. Ele assentiu com um gesto de cabeça e apontou para o chão do palco. Respirando
fundo, ela ajoelhou-se e começou a ler a invocação:
“Não por acaso, tenho adorado a deusa sombria e selvagem
que caminha na escuridão, a deusa sábia
que domina as encruzilhadas do homem,
os animais selvagens e as antigas magias secretas:
Hécate, doce flor da lua negra...”.
Conforme falou, percebeu a voz ganhando poder, e o pequeno arrepio que sentira no estômago ao escutar a fala da Primeira Mulher Coríntia sacudiu todo o seu corpo.
Uma estranha excitação, tal como uma onda de adrenalina, subiu-lhe para a garganta, de modo que, quando ela continuou a invocação, sua voz ganhou ainda mais força
e magnitude. Se tivesse olhado para o diretor, ela o teria visto ajustando freneticamente os botões da mesa de som. Se tivesse observado as atrizes a seu lado, no
palco, teria percebido suas expressões divertidas mudarem para o espanto. Porém, Mikki nada enxergou, exceto o roteiro diante dela e as palavras que, de repente,
pareciam incandescentes na página, como se tivessem ganhado vida.
“Rainha da Noite, ouça a prece da tua Sacerdotisa errante.
Perdoa-me por eu ter me esquecido dos teus caminhos.”
Vacilou quando o pequeno corte coberto pelo Band-aid em sua palma começou a latejar, e um forte ruído em seus ouvidos a fez lembrar-se do oceano. A brisa noturna,
que momentos antes fora suave e fresca, transformou-se numa lufada de vento quente que açoitou seu corpo e lhe levantou os cabelos como se, assim como ela, estivessem
eletrizados. Acariciado pelo vento, o perfume incomum que ela usara nos pulsos ergueu-se e preencheu seus sentidos. Mikki respirou fundo, inalando rosas, especiarias
e calor. Suplantadas pelo aroma extraordinário do extrato, as palavras brilhantes no roteiro se embaçaram até que ela já não podia mais vê-las. Mas não importava.
Inacreditavelmente, estas agora brotavam de sua própria cabeça:
“Eu te invoco agora, Hécate, pelo sangue que corre em minhas veias,
e te peço que me ajudes a voltar a servi-te, e a teu reino!
E que eu possa, mais uma vez, lembrar-me da magia do sangue
e da beleza antiga do Reino das Rosas”.
Um grande rugido dividiu a noite e um forte zunido invadiu seus ouvidos, provocando-lhe uma vertigem. Mikki piscou os olhos cheios de lágrimas e olhou ao redor como
se tivesse acabado de despertar de um sonho.
Droga! Estou tendo outra crise! Tentou dar sentido às luzes brilhantes e às mulheres que a fitavam, boquiabertas. A peça! Droga! Droga! Olhou para o roteiro que
apertava nas mãos suadas, mas agora as palavras impressas ali, em preto e branco, não faziam sentido, pois nada tinham a ver com as que ela acabara de declamar.
Que diabos estava acontecendo com ela?!
Três palmas soaram, vindas da parte de trás do palco.
— Maravilhoso improviso! Absolutamente comovente... — soou uma voz cheia de sarcasmo.
Mikki conseguiu se pôr de pé, desajeitada, quando uma mulher pequena e atraente, vestindo uma túnica dourada e uma peruca longa e escura, aproximou-se dela.
— Mas a atriz principal voltou. Por isso, pode me passar o microfone, a minha posição no palco e dar o fora.
Mikki viu-se paralisada pela humilhação ao ver a atriz erguer a mão para tirar o dispositivo cuidadosamente escondido sob a rosa que ela trazia nos cabelos.
— Ai! Merda! — gritou a mulher e retraiu a mão para chupar o dedo que sangrava. — Essa droga de flor me espetou!
Tensa, Mikki tocou a rosa.
— Desculpe — murmurou, constrangida, tirando o microfone dos cabelos. — As rosas Mikado não costumam ter espinhos.
— Catie, querida, está tudo bem... A moça só estava nos ajudando na checagem do som. — Cio correu para o palco.
A atriz praticamente arrancou o microfone da mão dela e deu-lhe as costas com desdém enquanto o assistente de som prendia, às pressas, o pequeno dispositivo em sua
peruca.
— Alguém, por favor, me dê um Band-aid antes que eu sangre até a morte! E, meu Deus!, que cheiro é esse?! Quem passou tanto perfume? Isto aqui está parecendo um
bordel, e não um palco! Inacreditável... Eu saio daqui por um minuto e tudo desanda!
Mais duas pessoas correram para cima do palco. Mikki esgueirou-se para fora, ignorando o diretor quando ele a agradeceu sem muito entusiasmo, lembrando-a de que
ela poderia pegar seus ingressos para a noite de estreia no Garden Center.
Capítulo 7
Demorou alguns minutos para que as faces de Mikki esfriassem. Ela podia imaginar a cor que estavam. Deus, que experiência mais humilhante! Deixou a calçada e rumou
para a pequena colina que a levaria até a entrada superior do roseiral. Movendo os pés ruidosamente sobre as folhas secas que tingiam de marrom o gramado do parque,
tentou entender o que se passara. Tudo lhe parecera bem, até divertido, quando subira ao palco. Tinha começado a ler a fala, e então... Olhou para o roteiro que
se esquecera de deixar para trás. Na penumbra, não conseguia enxergar muito bem as palavras, mas não precisava lê-las para saber que o que havia saído de sua boca
nada tinha a ver com o que se encontrava escrito no roteiro. Lembrava-se muito bem de ter visto as palavras brilharem e, em seguida, ouvir outras brotando de sua
mente. Correu a mão trêmula pelos cabelos.
O que estava acontecendo com ela? Precisava ir para casa. Talvez devesse chamar Nelly. Se ter uma alucinação daquelas diante de várias pessoas não constituía uma
emergência na opinião de sua amiga...
Chegou ao topo da pequena elevação e parou. O Roseiral Municipal de Tulsa se estendia diante dela, familiar, e isso acalmou seus nervos. O que havia de tão terrível,
afinal, no que ela acabara de fazer? O que acontecera, era provável, tinha mais a ver com aquelas três taças de vinho e por ela ter se visto em cima de um palco,
do que com alguma psicose. Enfiou o roteiro na bolsa. Quando chegasse em casa, iria reler as falas de Medeia. Na certa, o que dissera era muito próximo do texto
original. Precisava parar de ser tão exigente consigo mesma. Era ridículo se concentrar em cada pequeno erro que cometia ou em cada devaneio a que se permitia. Sorriu,
considerando pegar os tais ingressos gratuitos apenas para provocar a diva Catie na noite de abertura.
Conforme concentrou-se na enorme quantidade de rosas à sua frente, Mikki sentiu a força daquele jardim amado dissipar os últimos resquícios de seu nervosismo. O
vergel fora construído na forma de um retângulo gigantesco, lembrando um enorme bolo de casamento italiano. Havia cinco camadas de jardins, as quais subiam quase
duzentos e oitenta metros acima do nível da rua. E cada camada era preenchida com diversas fileiras de rosas bem cuidadas. O roseiral fora idealizado com base nos
famosos jardins da Renascença italiana, e, em meio às mais de nove mil rosas e estátuas importadas, havia juníperos italianos, podados à mão em forma de cone, magnólias
do Sul, assim como azevinhos e pínus mugos.
Cada nível continha sua própria fonte de água. Os jardins ostentavam desde tanques fundos e brilhantes, passando por bicas antigas, instaladas nos muros, até o chafariz
gracioso que posava de obra de arte no magnífico centro do terceiro e maior plano.
Naquele momento, tudo encontrava-se às escuras. Ao contrário do Woodward Park, o roseiral não contava com nenhum poste de luz. Em vez disso, cada tanque de água
era iluminado por baixo. E o efeito era espetacular. Os jardins pareciam cintilar, suspensos, na iluminação tremeluzente das águas com perfume de rosas.
Uma estranha brisa levantou os cabelos fartos de Mikki, incitando-a a seguir em frente. Ansiosa, ela cruzou a fronteira entre os dois parques e respirou fundo. Imediatamente,
o odor das rosas preencheu seus sentidos.
— Nem o céu pode cheirar melhor — sussurrou consigo.
Como se seus pés tivessem vida própria, conduziram-na por sua trilha favorita, fazendo-a rumar devagar para a área mais central do jardim. Em algumas noites, tudo
aquilo ficava cheio de gente até quase a hora do fechamento, e as pessoas traziam cadeiras e cestos de piquenique, livros e blocos de desenho. Mikki ficou aliviada
ao perceber que, naquela noite, apenas um casal de namorados se divertia sobre uma coberta estendida na borda da camada superior. Ela os ignorou e eles fizeram o
mesmo. Preferia dessa maneira. Gostava de ter as rosas apenas para ela.
Caminhou preguiçosamente em meio aos canteiros, parando para apreciar os seus prediletos. A noite estava muito quieta, exceto pelo vento que soprava através das
árvores, pelo burburinho hipnótico das águas e pelo toc-toc suave de seus saltos contra os seixos das veredas. Era como se as rosas criassem uma barreira de som
entre os jardins e o restante do mundo.
Deixando de lado o decepcionante encontro com o médico e o fiasco na interpretação de Medeia, Mikki viu-se divertindo mais uma vez conforme tomava a escadaria larga
que descia pelo lado direito da terceira camada. Apressada, ela quase pulou os degraus que levavam ao coração do roseiral. O final da escada de pedra era encimado
por um arco feito de rochas pesadas e, como de costume, ao passar por ele sentiu como se estivesse adentrando outro mundo.
Sorriu e olhou à esquerda.
— Você é um dos grandes responsáveis por isso... — falou para a estátua imponente que ficava entre a arcada pela qual ela acabara de passar e um segundo arco de
pedra. Este, por sua vez, emoldurava um novo conjunto de degraus à sua esquerda: uma cópia da escada que ela acabara de descer.
Mikki caminhou até a escultura e a estudou, aspirando o perfume das rosas Prazer em Dobro, as quais se encontravam em profusa floração ao redor.
— Olá, velho amigo — saudou baixinho.
A luz tremeluzente da enorme fonte circular, situada a poucos metros dali, fazia incidir sobre a estátua um brilho estranho, aquático, iluminando-a com uma luz inquieta
e sobrenatural. Ela estremeceu. Aquela coisa parecia quase viva à luz azulada. Sua pele marmorizada parecia emprestar o brilho da água que pulsava na fonte, o que
lhe dava a aparência de um ser vivo. A antiga estátua parecia até respirar. Então, sacudiu a cabeça.
— Não seja ridícula — falou para si mesma. — É a mesma escultura que sempre esteve aqui. E com esse nome, “Guardião das Rosas”, tem mesmo que ser assustadora.
Conforme Mikki verbalizou seus pensamentos, a estátua pareceu reassumir os contornos do mármore que ela conhecia desde criança. O cartaz local dizia que a obra fora
presente de uma excêntrica herdeira grega em 1934, ano em que os jardins tinham sido inaugurados. Aparentemente, não houvera nenhuma razão específica para sua generosidade.
Supunha-se que a mulher tivesse visitado o local e caído de amores pelo projeto dos jardins.
Mikki avançou um passo e deixou os dedos correrem pelas palavras em relevo da placa: Fera da Deusa Grega da Noite. Esta estátua é uma cópia restaurada daquela encontrada
no Partenon e pode ter sido a inspiração para o mito do Minotauro de Creta.
Os lábios de Mikki se contorceram em um sorriso de lado. Para ela, a fera nunca se parecera como o Minotauro. Sim, ele sempre evocara imagens exóticas de mito e
fantasia, lembrando-a das noites em que não conseguia dormir e dos contos de fadas que sua mãe costumava ler para ela na infância. Mas não via tanta similaridade
entre a estátua e a criatura mitológica, que, supunha-se, tinha corpo de homem e cabeça de touro.
— É mais como se você pertencesse a outro mundo, e não à antiga mitologia — disse à obra de mármore. Na verdade, admitiu para si mesma enquanto a estudava pela enésima
vez, a estátua era uma maravilhosa mistura de homem e fera.
Era enorme, tinha ao menos dois metros de altura e parecia bem mais humana do que o “Touro de Minos”. O fato de ser um homem, entretanto, não a fazia menos imponente.
Ele se encontrava agachado no topo de um pedestal de mármore largo e todo trabalhado. Suas pernas traseiras eram grossas como as de um velocista profissional, exceto
pelo fato de serem cobertas por uma camada de pelo que terminava em cascos fendidos. Suas mãos eram enormes e se crispavam como garras em torno do topo da base,
e os músculos em seus braços, ombros e ancas, dilatados. Os traços de seu rosto, no entanto, tinham sido entalhados indistintamente, quase como se não houvessem
sido concluídos. Os olhos eram de um mármore vazio, arregalados sob grossas sobrancelhas. Mas, mesmo parecendo feroz e bestial, ele possuía a aparência de um homem.
Mikki inclinou a cabeça para analisá-lo. Era uma fera, sim, mas na pele de um ser humano. Não um touro; ainda que possuísse tais traços. Na cabeça, trazia um par
de chifres pontudos e uma impressionante massa de cabelos que lhe caía em cascata sobre os ombros enormes. E esta fora esculpida para trás, como se a criatura estivesse
enfrentando uma ventania.
De repente, ela sentiu um choque de reconhecimento. A estátua tinha chifres! Como a criatura em seu sonho, na noite anterior...
Estreitou os olhos. Talvez sua fantasia tivesse se originado naquele lugar.
Teve vontade de dar um tapa na própria testa. Era imaginação demais! A resposta à sua suposta obsessão era assim, tão simples? Ela sempre adorara o roseiral, principalmente
o daquele nível. E, como sua mãe a teria lembrado se ainda estivesse viva, possuía uma tendência a fantasiar demais. Quantas vezes a mãe não a havia admoestado,
pedindo que parasse de sonhar e limpasse o quarto, fizesse a lição de casa ou lavasse a louça? Nelly estava com a razão de novo. Seus sonhos recentes decerto não
eram nada mais do que um reflexo de sua obsessão pelas rosas e tudo o que as rodeava. Suas alucinações não deviam passar de devaneios de uma mente excitável e cansada
devido à falta de sono.
Uma mente que não tinha mais com o que fantasiar, lembrou a si mesma. Havia enfrentado a verdade naquela noite: sua vida real era destituída de homens com quem ela
pudesse sonhar. Assim, os sonhos foram apenas mais uma fantasia que ela havia criado para se divertir.
Sentiu-se dominada por uma onda de decepção, que ela tratou de sufocar rapidamente.
— Preferiria ter um tumor cerebral do tamanho de uma bola de tênis? — repreendeu a si mesma, ao mesmo tempo que chutava uma pedra solta, distraída. — O que estava
imaginando? Que vinha tendo uma experiência sobrenatural, em que um amante saído de seus sonhos entraria em sua vida real? Que coisa mais patética! Sem essa, garota!
Tente se lembrar por que está aqui.
Mikki deu as costas para a estátua e marchou em direção à área de construção isolada por cordas. Aproximou-se do local com passos determinados. Aquela parte do jardim,
em particular, começara a desmoronar, por isso pedreiros tinham sido contratados para consertá-la, com instruções explícitas para que não tocassem nas rosas, as
quais cresciam alegremente nos canteiros ao redor do muro por décadas.
Deixou escapar uma exclamação de desgosto. Assim como suspeitava, havia lixo por toda parte. Passou por debaixo da fita amarela da construção e adentrou o jardim.
Recolheu os detritos que pontilhavam as fileiras de arbustos, colocando-os em um saco plástico que tirara de cima de duas roseiras. Quando encontrou uma pequena
geladeira térmica vazia, jogada no meio do canteiro, sentiu o sangue ferver.
— Mas, que inferno!
O dia seguinte era sábado, portanto o jardineiro-mestre não iria trabalhar. Mas a primeira coisa que ela faria na segunda-feira pela manhã seria chamá-lo e apresentar
um relatório completo sobre a negligência dos operários. E, no dia seguinte, ficaria ali durante o dia todo para supervisionar aqueles neandertais, impedindo-os
de causar outros estragos.
Terminou de catar o lixo e, em seguida, concentrou a atenção nas rosas.
— Ah, não! — Sentiu um aperto no estômago ao examinar os arbustos. Já os tinha achado meio murchos no dia anterior, porém tivera esperanças de que isso fosse apenas
mais um sintoma de sua superproteção. Mas agora sabia que havia tido razão em se preocupar. A folhagem normalmente espessa e brilhante encontrava-se sem viço, a
despeito da luz difusa da fonte. As flores também estavam caídas e pétalas se soltavam das rosas, espalhando-se pelo chão como penas de aves moribundas.
Mikki balançou a cabeça, desalentada.
— Que pena! — falou para as plantas danificadas. — Depois de tudo isso, não terão força suficiente para enfrentar o frio. Se o inverno for muito rigoroso, vamos
perder todo este canteiro — falou baixinho, remexendo os arbustos como uma desolada professora de jardim de infância.
A possível perda das plantas feriu seu coração. Mikki sabia que a maioria das pessoas não entenderia seu amor pelas rosas. Suas próprias amigas tinham cansado de
lhe dizer que estas eram apenas plantas, e não pessoas ou animais de estimação.
Mas sempre que ela tocava numa rosa ou aspirava o perfume inebriante dos jardins, lembrava-se da mãe e da avó e, por intermédio das rosas, nem que apenas por um
momento, podia sentir seu amor novamente.
E estava cansada de perder aqueles que amava.
Precisava fazer alguma coisa.
Parou e olhou ao redor, porém o jardim encontrava-se deserto. Nada se movia com exceção da água e do vento.
Distraída, cutucou o esmalte da unha já lascado.
Dê um jeito nisso!, disse a si mesma em pensamento. Ninguém vai saber.
A caixa térmica capturou seu olhar, e Mikki tomou uma decisão.
— Está bem — disse para os arbustos murchos. — Mas não contem a ninguém!
Apanhou a caixa, passou de novo sob a fita da construção, e caminhou rapidamente na direção da fonte. Mergulhou o recipiente vazio na água e, com um grunhido, puxou-o
para fora. A água espirrou em seus pés quando ela a pôs no chão, a seu lado.
Levou apenas um segundo para tirar o curativo da palma da mão esquerda. O corte já começava a cicatrizar, porém ainda estava rosado e sensível. Sem pensar duas vezes,
Mikki colocou a unha do polegar direito contra a linha fina. Segurando o fôlego, fechou os olhos e apertou a ferida, forçando-a a se abrir de novo. Puxou o ar com
a súbita dor, mas, ao abrir os olhos, ficou aliviada ao ver sangue fresco escorrendo da palma. Com uma careta, mergulhou a mão na água da caixa. Quando chegasse
em casa, precisaria fazer uma desinfecção completa, pensou, tentando ignorar a dor lancinante.
Começou a arrastar o cooler cheio d’água por todo o caminho pedregoso, de volta para o canteiro das rosas danificadas. Uma vez dentro da área de construção, endireitou
o corpo, sem saber ao certo que atitude tomar.
— Vocês são tantos! — disse aos arbustos. Era óbvio que não poderia regar todos com aquela quantidade de água. Seus lábios se contorceram em um sorriso sarcástico.
Teria que puncionar uma veia para isso, o que não era uma ideia muito boa.
Assumindo uma postura decidida, Mikki colocou as mãos nos quadris e se dirigiu às rosas.
— Que tal eu regar vocês com apenas algumas gotas desta água?
Os arbustos não responderam, e Mikki considerou aquilo como um “sim”. Curvando-se, usou ambas as mãos para espalhar a água tingida por sangue sobre as rosas que
a cercavam. Encaixar os pulsos e arremessar o líquido logo se tornou uma diversão, enquanto a brisa fresca da noite se misturava à escuridão e ao doce aroma de rosas
e terra. Mikki riu e espargiu a água para todos os lados, fingindo ser uma fada que derramava magia em crianças adormecidas.
Estava ofegante e sorridente ao terminar. Estudou os arbustos úmidos. Podia ser apenas sua imaginação hiperativa, mas tinha certeza de que estes já começavam a reagir.
Mesmo na penumbra, podia jurar que as folhas e flores murchas se endireitavam. Havia mais água na caixa do que ela imaginara. Mikki inclinava-se para jogá-la no
arbusto mais próximo quando um facho de luz capturou-lhe o canto do olho, dançando sobre a estátua do Guardião.
Por que não?, indagou em pensamento.
Olhando em volta para se certificar de que continuava sozinha, levou o cooler quase vazio até a estátua de mármore.
— Suas rosas merecem um pouco de incentivo, também — disse à Fera silenciosa. — Afinal, está cuidando delas há muito mais tempo do que eu.
Sorrindo, mergulhou a mão que ainda sangrava no que restava da água rosada e, com movimentos firmes, espalhou-a pelas rosas que cercavam a estátua. Quando terminou,
escondeu a caixa térmica perto da parede, ao lado de onde havia deixado o saco cheio de lixo. Ao perceber que tinha jogado um pouco da água na estátua inadvertidamente,
deu um tapinha na mão da criatura.
— Opa... Eu não queria molhar você — desculpou-se, sorrindo. — Mas acho que me entende, não é? Quero dizer, por favor. Afinal, temos mais ou menos o mesmo trabalho.
Nós dois cuidamos das rosas.
Remexendo a bolsa, apanhou um lenço de papel, que pressionou contra a palma da mão esquerda, encolhendo-se com a dor no corte reaberto. Mas não importava. Tinha
valido a pena. Agora estava certa de que as rosas iriam sobreviver ao inverno e florescer novamente na primavera seguinte.
Sentindo-se leve, Mikki refez o caminho para fora da terceira camada, passou sob o arco de pedra e subiu a escadaria. Com passos lentos, atravessou o segundo nível,
mantendo-se próxima da lateral do caminho para que pudesse tocar uma ou outra flor com a mão boa.
Os jardins se encontravam desertos agora, e ela imaginou que eles eram seus; que era uma grande senhora morando em uma mansão, cuja única função era cuidar e desfrutar
suas rosas.
A noite parecia concordar com ela. Não havia nenhum barulho, nem mesmo o eco das atrizes em Woodward Park, o que a aliviou, pois isso significava que deviam ter
terminado os ensaios e ido para casa. Por sorte, não teria de enfrentá-las de novo.
O silêncio era tanto que imaginou estar dentro de uma bolha com o ar frio de outubro perfumado por rosas. Este também a levou a aguçar os sentidos.
Foi quando escutou o barulho.
Começou como um som estranho, vindo de algum lugar atrás dela, provavelmente na terceira camada. E então a fez pular, surpresa, como um trovão distante.
Mikki chegou até mesmo a olhar para o céu, meio que esperando ver nuvens anunciando uma tempestade.
Mas não. A noite continuava clara e milhares de estrelas salpicavam seu manto escuro. Não havia sequer um indício de nuvens sobre ela. Parou e ouviu atentamente.
Quando não escutou mais nada, decidiu que o barulho devia ter sido causado por um coelho, ou talvez por um gato.
— Na certa derrubando o lixo deixado pelos trabalhadores da construção... — disse à roseira mais próxima.
Continuou a caminhada, tentando ignorar o fato de que seus pés a faziam avançar mais depressa e de que os cabelos em sua nuca se encontravam arrepiados.
Outros ruídos começaram tão logo ela chegou à metade do segundo nível. A princípio, Mikki pensou que eram o eco de suas botas de salto retornando das paredes de
rocha que separavam uma camada da outra. Bastaram mais dois passos, contudo, para saber que não estava ouvindo eco nenhum. Estava era escutando outras passadas,
as quais pisavam os seixos de maneira muito mais pesada.
Não foram os passos, contudo, que lhe causaram estranheza. Muitas pessoas gostavam de caminhar pelo roseiral depois das nove horas em uma noite fria de outono...
Foi o ruído característico que chamou sua atenção.
Quando ela o escutou uma vez, não lhe deu muita importância. Ao escutá-lo pela segunda vez, contudo, parou, fingindo cheirar uma linda rosa Princesa de Mônaco, quando,
na verdade, ouvia com todas as fibras de seu ser.
Na terceira vez em que o escutou, teve certeza. Era um grunhido dolorosamente familiar... uma expiração profunda e retumbante; algo entre um resmungo e um rosnado.
E este varreu seu corpo em uma onda intimista que a fez estremecer. Seus olhos se arregalaram em choque. Não havia outro ruído como aquele, e nenhum outro ser poderia
fazer aquele som, exceto a criatura de seus sonhos. E ela estava chegando cada vez mais perto a cada passo!
Não mesmo!, a razão gritou dentro dela. Aquilo era impossível.
É apenas uma ilusão, disse a si mesma. Nada mais do que um sintoma da minha imaginação hiperativa.
Mas não importava o que lhe dizia o bom-senso. Ela sabia que o que estava ouvindo era real... ao menos para ela. Naquele momento, o que acontecia era a sua realidade.
Sentiu o coração bater, descompassado. Saia do roseiral e vá para o parque, onde estará cercada por luzes e pessoas!, sua mente a incitava, solapando a onda de excitação
que lhe comprimia a boca do estômago.
Não estava sonhando. Não estava segura, dormindo no apartamento, ou recontando uma fantasia erótica à amiga. Tampouco misturava as falas de um roteiro por conta
de um excesso de Chianti ou nervosismo. Algo a perseguia, e tinha que buscar segurança. Assim que deixasse o roseiral, estaria longe dos caminhos encobertos pelas
sombras e da privacidade que a escuridão da noite proporcionava. Então poderia gritar por ajuda. Mesmo que os atores e ajudantes de palco tivessem se recolhido,
sempre havia alguém nos arredores do Woodward Park. Além disso, ela estaria bem iluminada pelos postes que pontuavam a área arborizada, o que ajudaria em seu resgate.
E também facilitaria para que ele a visse, sussurrou uma voz dentro dela, sedutora.
Mikki apertou o passo.
Um grunhido abafado, que soou mais como um fole de ferreiro e não um ser vivo, veio da vereda que corria paralela à que ela se encontrava. Separando-os havia apenas
um canteiro de rosas Tiffany em plena floração. Tensa, ela enviou um olhar furtivo para além das flores rosadas.
Não estava suficientemente próxima do parque para que as luzes da cidade a ajudassem a enxergá-lo... Tanto que conseguiu apenas captar o brilho de um par de olhos
enormes antes que estes se desviassem dela. Ofegou. A criatura era imensa! Mesmo contra sua vontade, sentiu o corpo invadido por uma onda de medo e excitação.
Um rugido repentino e violento fez os cabelos em sua nuca se eriçarem. Ele iria atacá-la de flanco! Pretendia impedi-la de se aproximar das luzes do parque.
Mais rápido!, a razão a advertia. Saia do jardim, corra para a luz do parque e grite por socorro! O medo suplantou a excitação e, em uma imitação burlesca e assustadora
de seu sonho, Mikki correu.
Quando ele sentiu sua presença, pensou que estivesse sonhando mais uma vez. Ele não os compreendia, porém aceitava os sonhos como um raro presente, pois estes aliviavam
a escuridão interminável de seu sepultamento e quase lhe davam esperança.
Quase.
Mas a trama daquele sonho era diferente. A princípio isso não o surpreendeu ou alarmou. Encontrava-se ali havia muitas gerações, e muito raramente lhe fora permitido
um fio de pensamento ou o aroma sedutor do mundo dos vivos... Qualquer mundo dos vivos. E a cada vez tinha sido um pouco diferente. Ao longo dos anos ele se esforçara
para ouvir o som de uma voz, o toque de mãos macias, o cheiro de rosas e especiarias. Algumas vezes fora recompensado... Mas na maioria delas não.
Até pouco tempo antes, quando começara a sonhar. Ela entrara em seu cárcere, então, e ele começara a viver de novo. Tinha se deleitado com os sonhos, aspirado seu
cheiro até se inebriar dele.
Sonhos... Quem melhor do que ele conhecia sua magia? Talvez pudesse sonhar que tocava sua pele novamente... Talvez...
De repente, o sangue dela havia respingado na pedra fria que o sepultava, e a dor que o sacudira tinha estilhaçado os dois últimos séculos como gelo sendo atirado
contra mármore.
Ele mal pudera acreditar que fora libertado. Pensara ser apenas outra ilusão cruel. Teria levado uma década para conseguir um mínimo movimento de um de seus músculos
se o cheiro dela não tivesse começado a minguar.
Ela o estava deixando! Fugindo dele.
Não! De novo, não!
Enfrentando a dor, flexionara os músculos maciços e rompera a barreira das trevas. Sentira o ar perfumado. Sim, ali, mergulhado na noite que cheirava a rosas e sangue,
estava o óleo sagrado... Por isso ordenara a seu corpo rígido que se pusesse em movimento e seguisse o perfume que ele conhecia tão bem através do jardim escuro
e desconhecido. Apenas com muito esforço não atropelou as roseiras que os separava para agarrá-la. Obrigou-se a esperar até ser capaz de controlar melhor a fera
dentro dele. A criatura tinha ficado confinada por muito tempo... Suas necessidades eram muito pungentes, muito brutais. Não podia lhe rasgar a carne com suas garras.
Isso não resolveria nada. Deveria capturá-la com cuidado, assim como a um pássaro delicado, e então devolvê-la ao destino para o qual ela pensara em fugir.
Controlando a ferocidade dentro dele, continuou a persegui-la. Não podia vê-la bem, mas nem precisava. O óleo sagrado o atraía; ela o atraía. E ela estava ciente
de sua presença. Podia sentir seu pânico. Mas havia algo mais. Algo estranho que irradiava da mulher. Franziu o cenho. Alguma coisa estava errada. Retomou o ritmo
quando ela deixou o roseiral, mas estacou ao se pôr sob um facho de luz.
Aquela não era a Sacerdotisa que ele procurava! Desapontado e confuso, ficou parado, observando enquanto ela lutava com o fecho da bolsa de couro que carregava,
à procura de algo. Uma arma? Os olhos da mulher buscaram as sombras densas atrás dela freneticamente; as sombras em que ele se encontrava.
— Vamos, Mikki! Onde está esse maldito celular?!
Ele ouviu sua voz estranha e percebeu que ela tremia enquanto vasculhava a bolsa. Tremia tanto que o saco de couro escorregou de suas mãos e caiu no caminho de pedra
com um baque surdo.
— Merda! Merda! Merda! — repetiu a estranha enquanto caía de joelhos e enfiava a mão na bolsa.
De repente, ela sugou o ar, aparentemente em resposta a uma súbita dor, e retirou a mão. Seus dedos pareciam pegajosos com sangue. O cheiro de sangue misturado ao
do óleo sagrado de uma Alta Sacerdotisa o invadiu, refletindo em suas entranhas. Ela não era a traidora, porém tinha sido marcada por Hécate.
E ele deveria obedecer à vontade da deusa.
Começou a se mover em sua direção novamente, desta vez evocando seus poderes recém-liberados para chamar a escuridão e manter o corpo camuflado na noite.
Ainda assim, ela ergueu a cabeça e fitou o nada com os olhos arregalados em sua direção.
— Não tenha medo — ele murmurou, tentando imputar gentileza à sua poderosa voz.
A mulher soltou uma exclamação.
— Quem é você?! O que quer de mim?
Ele sentiu seu terror e, por um momento, lamentou o que deveria fazer.
Mas só por um momento. Conhecia seu dever. E, desta vez, iria cumprir com sua missão.
Antes que a desconhecida escapulisse, usou sua velocidade sobrenatural para chegar até o local onde ela ainda se encontrava ajoelhada sobre as folhas. Ela continuou
fitando o nada, incapaz de enxergar através do manto de trevas.
E era tão pequena... tão humana.
Com um comando áspero, ele ordenou que a escuridão encobrisse a ambos e, no instante seguinte, passou os braços ao seu redor, engolfando-a em uma onda de vertigem.
A brisa fresca que antes fora agradável e acolhedora, de repente, os açoitou em um frenesi de perfume e sons. Foram capturados em um turbilhão de confusão e o solo
pareceu se abrir para engoli-los, tremendo, oscilando, sacudindo...
O mundo em torno deles começou a se desvanecer e finalmente desapareceu por completo enquanto o ar brilhante era cortado por um rugido.
Como uma cobra rastejando para seu buraco, a escuridão e a Fera sumiram, carregando Mikado Empousai com elas.
Parte 2
Capítulo 8
Suavidade... Ela estava cercada de maciez. Com o corpo enroscado de lado, tinha o rosto apoiado em um travesseiro. Mikki esfregou a face contra a superfície lisa.
Seda. Tinha que ser seda. Aninhou-se mais fundo junto ao acolchoado espesso, aspirando o perfume da roupa de cama cara.
E, enquanto ela se deixava ficar ali, alguém lhe escovava os cabelos com uma escova grande, de cerdas macias. Mikki suspirou, feliz, e se pôs de bruços para que
pudessem ter melhor acesso às suas madeixas. Era um sonho... Tinha de estar sonhando.
E seus sonhos vinham sendo maravilhosos ultimamente. Precisava mais era relaxar e desfrutá-los.
A pessoa cantarolava uma melodia, enquanto lhe escovava os cabelos. Sua voz era uma cascata de notas delicadas que se misturava às escovadelas suaves, mergulhando-a
em um estado quase hipnótico de relaxamento.
Mikki suspirou, satisfeita.
De repente, em meio à cantiga de ninar, as palavras sussurradas Bem-vinda, Sacerdotisa ecoaram em sua mente e interromperam seu sono pesado. Ela respirou fundo em
seu sonho. Precisava descansar mais.
Outras mãos a tocaram, e estas se concentraram em lhe massagear os pés. Com a segurança de um massagista profissional, alguém passou a executar movimentos em círculos
por suas solas delicadas.
Mikki sentiu-se liquefazer. Sem dúvida merecia o melhor dos sonhos; ainda mais depois da noite que havia tido.
Sua mente viajou em retrocesso. O desastroso encontro às escuras... Uma fera imaginária perseguindo-a pelo roseiral... O corte nos dedos causado pelo frasco de perfume
quebrado dentro da bolsa... O barulho ensurdecedor e a sensação terrível de estar sufocando...
As lembranças romperam o contentamento proporcionado pelo delicioso sonho. Como chegara em casa? O que acontecera antes da estranha vertigem que a assolara no Woodward
Park?
Uma onda de desconforto a percorreu. Precisava despertar!
Abriu os olhos. Um burburinho de atividade soou atrás dela e Mikki virou o corpo, vendo duas mulheres ao lado de sua cama.
Não... Aquela não era a cama dela!
Aquilo não estava certo. Para ser mais precisa, era a cama de seus sonhos: a de dossel, imensa, no quarto enorme...
Pressionou as palmas das mãos sobre os olhos fechados, então esfregou o rosto vigorosamente. Podia sentir o próprio corpo, e muito bem. A sensação era clara, não
como aquela bruma doce e erótica que lhe preenchia os sonhos. Com os olhos ainda fechados, deu um tapa na própria face com força.
— Ai! Merda! — praguejou. Aquilo doía!
Mas agora tinha certeza de que estava acordada.
Abriu os olhos e as garras do medo lhe comprimiram o estômago. Nada havia mudado. A cama de dossel continuava lá, assim como o quarto gigantesco. As duas mulheres
vestiam longas túnicas reluzentes, envoltas nos corpos, cujas barras roçavam o espesso tapete. Eram jovens e bonitas, e sua silhueta perfeita se desenhava contra
uma parede de janelas envidraçadas.
— Que merda é essa?!? — Mikki deixou escapar, ao mesmo tempo que sentia o ar abandonando o corpo e o coração quase saltando pela boca. — Quem são vocês? — guinchou,
em pânico. E se tivesse sido atacada no parque e morrido? — Eu estou morta?! Vocês são fantasmas?
As mulheres arregalaram os olhos, e a morena estendeu a mão delicada em um gesto que devia ter sido reconfortante.
Mas o simples fato de estar ali e reagir à pergunta foi ainda pior para Mikki, que recuou pela cama até se ver encurralada pela cabeceira.
— Senhora! Somos do mundo dos vivos... não há nada a temer. — A voz da moça era suave e melódica, e Mikki percebeu de pronto que esta era a que havia cantarolado
para ela. — Estamos aqui para lhe dar as boas-vindas e para atendê-la, Sacerdotisa.
A outra mulher, cujos cabelos lembravam a juba de um leão da cor do trigo, concordou com um gesto de cabeça.
— Sim, Sacerdotisa. Estamos todas muito vivas.
Agarrando-se ao acolchoado, Mikki tentou controlar a agitação na voz.
— O-Onde estou?
— Em casa! — A morena sorriu, magnânima.
— E onde é “em casa”? — Mikki perguntou com uma sensação de dormência em torno da boca, como se tivesse chupado um picolé rápido demais e estivesse tendo dificuldade
em mover os lábios.
— Está no Reino das Rosas — respondeu a loira.
— Então eu consegui — Mikki gemeu consigo. — Fiquei completamente louca! — concluiu, e escondeu o rosto nas mãos.
No mesmo momento, as duas desconhecidas correram para ela, acariciando seus ombros e cabelos.
Mikki afastou-se delas num pulo.
— Não me toquem! Só estão piorando as coisas... Posso senti-las quando fazem isso, mesmo dormindo! Isso devia ser um so... — interrompeu sua tagarelice. Com a respiração
difícil, fez apenas um gesto para as duas mulheres. — Fiquem longe de mim. Só estão me dando mais uma prova de como estou maluca!
As duas recuaram alguns passos, tensas.
— Acredite, Sacerdotisa, não está doente — falou a morena, que obviamente era a líder. — Não fazemos parte de nenhum sonho seu ou fantasia sua. — Seu sorriso foi
hesitante, porém doce. — Eu sei que isto deve parecer muito estranho... — ela olhou a parceira, que espelhou seu sorriso — ... mas você está mesmo no Reino das Rosas,
e nós somos suas servas.
A loira assentiu, ansiosa, as ondas dos cabelos chacoalhando alegremente. Mikki sentiu o olho direito começar a piscar sozinho.
— Talvez eu esteja bêbada — murmurou, tentando lembrar-se do quanto havia bebido antes de largar Arnold falando sozinho no restaurante. Tinham sido três ou quatro
taças daquele Chianti delicioso? Oh, Deus...
— Ficaremos felizes em lhe trazer um pouco de vinho, Sacerdotisa — a loira ofereceu num trinado.
— Fique quieta e me deixe pensar! — ela falou sem nenhuma delicadeza. — E parem de me chamar de Sacerdotisa. Esse não é o meu nome e nem o meu cargo!
Revirou os olhos diante do próprio comentário. Que coisa mais idiota para se dizer! Ser maluca já era suficiente. Ser uma maluca imbecil era o cúmulo da humilhação!
Suas servas, entretanto, pareciam alheias à sua idiotice. Continuaram paradas, trocando olhares assustados.
— Mas... — a morena recomeçou, hesitante — ... você deve ser a nossa Sacerdotisa. Afinal, despertou o Guardião.
Mikki deixou escapar uma exclamação exasperada.
— Estou maluca, mesmo...
As mulheres começaram a falar umas com as outras como se ela não estivesse mais ali.
— Ela é linda — comentou a loira e, estudando-a com cuidado, farejou o ar ao seu redor. — E foi devidamente ungida.
— Mas não é tão jovem como as outras Escolhidas. — A morena piscou, os olhos fixos nela.
Sua parceira concordou em silêncio, franzindo a testa com preocupação.
— Talvez assim seja melhor... — Sua voz tornou-se um sussurro e Mikki teve que se esforçar para escutar as palavras. — Você sabe bem o que aconteceu com a última.
— Quieta! — ralhou a morena.
A loira retesou-se, os lábios apertados em uma linha fina.
— Você é virgem, não é? — a morena perguntou a Mikki com naturalidade.
— Já chega! — Ela jogou as pernas para a lateral da cama e se pôs em pé tão depressa que as duas estranhas recuaram, assustadas. — Como se já não bastasse eu estar
tendo um surto psicótico, meus delírios ainda discutem a minha idade e questionam a minha vida sexual! — Fez gestos agitados com as mãos. — Circulando, vocês duas...
Prefiro curtir a minha psicose sozinha!
— Não pretendíamos ofendê-la, Sacerdotisa! — desculpou-se a morena, nervosa, ao que a loira assentiu de novo, aflita.
— Vocês não me ofenderam... Minha mente, ou melhor, a falta dela foi que me irritou.
As mulheres piscaram feito duas bonecas.
— Ora, apenas me deixem sozinha por algum tempo! Tenho muito que pensar.
— Se precisar de alguma coisa, basta nos chamar — ofereceu a morena. — Voltaremos depois do pôr do sol a fim de prepará-la para o ritual noturno. Tomara que até
lá...
— Não! Não preciso de nada. — Mikki ergueu a mão, interrompendo o discurso. — Para citar um contador idiota que tive a infelicidade de namorar, já estou de saco
cheio! Vão embora! — E, diante da mágoa nos olhares de ambas, acrescentou: — Por favor...
Aquelas duas podiam ser uma criação de sua mente doentia, mas — como ela estava certa de que a mãe a teria lembrado — não havia razão para ferir seus sentimentos
e ser indelicada. Elas não tinham culpa por seu mau humor.
Relutantes, as moças cruzaram o quarto.
Mikki esperou que elas atravessassem a parede, como bons seres de sua imaginação fariam, porém a loira abriu a enorme porta entalhada e a fechou devagar atrás delas.
Nem mesmo suas alucinações se comportavam como deviam!
— Louca — Mikki disse para si mesma. — Está completamente insana!
Sentiu as pernas fracas e sentou-se na cama. No mesmo momento, as cobertas se juntaram ao seu redor como uma nuvem dourada.
Incapaz de resistir, ela passou a mão pela superfície sedosa do acolchoado.
— Inacreditável — murmurou. A roupa de cama era maravilhosa. E bem mais sofisticada do que as que havia na Blue Dolphin, a loja cara que gostava de visitar na Utica
Square.
E visitar era a palavra certa, pois jamais teria condições de comprar um só lençol lá.
Agora estava cercada por cobertas que fariam as da Blue Dolphin se parecerem com as da K-Mart.
Ao menos estava tendo um delírio caro...
Na verdade, caro nem mesmo chegava perto do que era aquele quarto. Melhor seria dizer OBSCENAMENTE SUNTUOSO. Assim mesmo, com letras maiúsculas.
Coisa de contos de fadas, explicou sua voz interior.
Mikki a ignorou, contudo, pois esta não se provara confiável.
Olhou ao redor. Conhecia aquele quarto. Seus sonhos fantásticos sempre haviam começado ali, mas as imagens que retivera eram vagas. Em geral, quando acordava, lembrava-se
apenas de ter estado naquele quarto e que este lhe proporcionara uma incrível sensação de conforto, a qual servira de base para o restante de suas experiências...
O que a morena tinha dito? Está em casa, Sacerdotisa!
Impossível. Sua casa era um pequeno apartamento, apenas bem localizado, e não o quarto típico de uma princesa.
Mikki percorreu seu entorno com o olhar, maravilhada. Princesa? Uma ova. Aquele lugar fora idealizado para uma deusa. A luz filtrada pela parede feita de vidraças
era fraca contudo, três enormes lustres de cristal pendiam do teto em correntes douradas. Suas muitas velas combinavam com os candelabros que destacavam os cantos
do cômodo, assim como com a enorme lareira, na qual um fogo crepitava, alegre. O efeito final era que o quarto todo parecia mergulhado no calor das chamas, e o ouro
e o escarlate das roupas de cama refletiam bem a atmosfera do lugar.
O tapete era de pelúcia, incrivelmente macio, e da cor da neve. As paredes de mármore eram claras como nuvens e com pequenas linhas douradas, além de decoradas com
tapeçarias, cujos desenhos intrincados eram — Mikki sorriu com agradável surpresa — todos de rosas! Um mais bonito do que o outro.
Entontecida, fixou o olhar na obra de arte mais próxima e prendeu o fôlego. Era uma rosa Mikado!
Seus olhos foram de parede a parede. Todas as tapeçarias retratavam rosas Mikado, percebeu. E todas pareciam tão reais que quase podia sentir seu bouquet delicado.
— Coerência deve contar para alguma coisa, mesmo que seja ilusória — falou consigo.
Intrigada com o que sua mente concebia, ela explorou o restante do quarto. Armários esculpidos descansavam, elegantes, entre as tapeçarias e um enorme espelho fora
colocado não muito longe da cama de dossel, como se à espera de uma fada ou deusa prestes a sentar-se diante dele para se enfeitar. O leve tilintar de um lustre
chamou sua atenção, e ela ergueu o olhar. O teto se estendia a uma altura inacreditável, tanto que teve de inclinar a cabeça para trás a fim de ver a abóbada pintada
com afrescos delicados, nos mesmos vermelho e dourado das rosas Mikado.
— Onde, diabos, estou?! — murmurou, incrédula. Como sua cabeça podia ter fabricado aquela realidade? Talvez eu não tenha inventado tudo isto... Talvez isto tudo
seja real, e a minha vida chata e monótona do passado é que era um sonho. O pensamento, mais efêmero do que fumaça, logo deixou sua mente confusa.
Tentando não se sentir como uma intrusa, Mikki se levantou, afundando os pés no tapete exuberante.
Estava descalça?
Olhou para si mesma. Vestia um manto longo e branco, com um profundo decote em “V” que expunha uma quantidade generosa de seu colo. As mangas terminavam em renda
e circundavam seus pulsos, e todo o traje era bordado com pequenas rosas escarlates.
Passou um dedo pelo tecido. Nunca tinha sentido nada parecido! Não era exatamente de seda, mas muito maleável e escorregadio para ser de algodão.
Seria algum linho especial?
Fosse o que fosse, era maravilhoso. Caía como uma cascata diáfana por seu corpo, mostrando apenas o suficiente para deixá-la sedutora, sem parecer vulgar.
Projetou uma perna, amando a riqueza do tecido contra sua pele nua.
— Nua?
Congelou por um instante. Logo depois, erguendo a parte superior do vestido para longe do peito, olhou para baixo.
— Completamente nua! — sussurrou, sentindo o rosto pegar fogo.
Como ficara daquele jeito? Ou melhor, quem a tinha deixado daquele jeito?
Provavelmente as servas, disse a si mesma, tentando afastar da memória a fera que a perseguira com tanta tenacidade. Mesmo que as moças lhe fossem estranhas, ao
menos eram mulheres.
Após se convencer disso e ser dominada por uma sensação de alívio, acariciou uma das mangas, distraída. A maciez do tecido acalmou seus nervos. Levantou o braço
para olhar as rendas filigranadas mais de perto e notou que as feridas em sua mão já começavam a cicatrizar, ainda que doessem ao ser pressionadas. Lembrava-se claramente
de tê-la cortado quando o frasco de perfume havia se quebrado dentro da bolsa, na noite anterior.
Apertou os pequenos cortes e fez uma careta. Eram de verdade! Respirou fundo, e o cheiro do perfume exótico que passara nos pulsos e que se espalhara por sua mão
no momento em que ela a pusera dentro da bolsa subiu-lhe ao nariz. Uma alucinação não incluía tantos sentidos... Ou incluía?
Suspirou e caminhou até a parede envidraçada. Quando chegou mais perto, percebeu que os painéis centrais tinham alças e davam para uma enorme varanda. Pressionou
o rosto contra o vidro, tentando enxergar em meio à luz que se esvaía. Tudo o que podia ver lá fora era o contorno distante da balaustrada. Além disso, só avistava
formas vagas e escuras.
O vidro começou a ficar embaçado com sua respiração.
— Não seja tonta — disse para o próprio reflexo, e ignorando as batidas aceleradas do coração, forçou as maçanetas e saiu para a noite fria.
A varanda parecia estender-se indefinidamente. O chão era de mármore cor de pérola e se curvava ao longe numa elipse. E não era possível ver onde cada lado da sacada
terminava naquela parte do... castelo!
Mikki engoliu em seco e virou-se para a estrutura imponente atrás dela.
— Meu Deus do Céu! — exclamou, atordoada, os olhos arregalados. A construção gigantesca era feita do mesmo mármore opaco da sacada e, olhando-se com mais atenção,
parecia mais um palácio do que um castelo. Erguia-se acima dela como uma montanha e se estendia para ambos os lados, até onde a vista não podia alcançar. E parecia
erguer-se acima de tudo o mais, como se tivesse sido construído sobre um precipício.
Mikki continuou a fitá-lo, boquiaberta. De onde estava, podia afirmar que havia várias asas arredondadas, as quais erguiam-se acima do que parecia a estrutura básica
do palácio. E gigantescas janelas de vitrais cintilavam com luzes bruxuleantes.
De repente, algo pareceu estalar dentro dela.
— Não posso ter inventado isto — concluiu, fazendo com que o som da própria voz reforçasse as palavras. — Se eu fosse sonhar com um palácio, um castelo ou algo do
gênero, teria imaginado algo como o castelo da Cinderela, na Disney. Não isto. — Balançou a cabeça. — Isto jamais teria saído da minha cabeça. — Ergueu as mãos e
em seguida as deixou cair, desalentada. — Não sei onde estou ou o que aconteceu, mas isto não pode ser coisa da minha mente.
Atrás dela, um pequeno estalo chamou sua atenção, e Mikki se virou. Além da borda da sacada, luzes cintilaram.
Engolindo em seco, ela começou a avançar. Levou mais de trinta passos para alcançar as balaustradas esculpidas que a beirada da varanda ostentava. O mármore liso
batia-lhe pouco acima da cintura e, com a respiração em suspenso, ela se inclinou e olhou para baixo.
— Rosas!
Mikki quase gritou de tanta alegria. O palácio era cercado por um enorme labirinto de roseirais misturados a árvores ornamentais, sebes, fontes e estátuas. No coração
dos jardins, pensou ver uma silhueta escura, porém o início da noite não proporcionava luz suficiente para que pudesse distinguir claramente coisa nenhuma, ainda
que, espalhadas por todo o lugar, houvesse pequenas lamparinas pendendo dos galhos das árvores, ou então tochas erguendo-se da terra.
O ruído abafado fez-se ouvir de novo e, dessa vez, Mikki avistou uma moça que vestia um traje de seda drapeado acendendo uma das tochas. Logo notou que havia muitas
outras circulando em silêncio ao longo das veredas e, assim como cometas, deixando pequenas chamas em seu rastro.
Diante da cena inacreditável, sentiu uma onda de náusea.
— Deus! — Mikki abriu os braços em um gesto de total frustração, combatendo um princípio de tontura. — Está aí outra coisa que eu não poderia ter inventado... Ninfas
acendendo tochas!
— Não está inventando nada do que vê, tampouco ficando louca, Mikado Empousai.
Mikki deu um pulo e prendeu a respiração quando uma voz forte de mulher a surpreendeu. O choque expulsou a sensação de vertigem que ameaçava dominá-la.
Dando meia-volta, ela viu-se diante de uma desconhecida que se materializara do nada e que, sem dúvida, reinava soberana sobre tudo ali. Estarrecida, não conseguiu
descobrir a própria voz. Só conseguiu olhar para a mulher como uma criança maravilhada.
Ela era alta e de ombros retos. Tinha o corpo perfeito de uma estátua e um rosto forte e inteligente. Seus lábios eram cheios e vermelhos, e os olhos enormes e penetrantes
eram de um cinza extraordinário. Usava um vestido feito de camadas cintilantes de seda preta, o qual lhe caía em torno do corpo à perfeição, e tinha a cintura delgada
cingida por uma corrente de rosas de prata, interligadas por hastes de rubis. Através de uma fenda no tecido brilhante, Mikki pôde ver parte de uma perna bem torneada
que parecia ter sido esculpida em mármore. Seus pés estavam cobertos por sandálias douradas e, a seu lado, reclinavam-se os maiores cães que ela já vira.
Sem piscar, as criaturas negras a encararam com olhos de um vermelho sobrenatural. Mikki desviou o olhar, passando-o da tocha flamejante que a mulher segurava para
o turbante brilhante que lhe envolvia a cabeça. Aninhada junto aos cabelos trançados e escuros, viu uma cascata de pequenos pontos de luz, os quais cintilavam tais
como miniaturas de estrelas.
Quando a mulher falou novamente, o poder em sua voz provocou nela um arrepio de medo.
— Eu sou a Deusa Hécate. Bem-vinda ao Reino das Rosas.
Capítulo 9
— Hécate? — Mikki sentiu a boca seca. Algo inominável na mulher fez seus joelhos bambearem, e ela recuou até se ver pressionada contra a balaustrada de mármore.
— A Hécate de Medeia? — arriscou, a voz saindo num sussurro.
— Na verdade, eu sou a deusa de Medeia. — Hécate falou num tom áspero. — E se desmaiar como uma mulherzinha, ficarei muito descontente, Mikado.
— Eu nunca desmaiei! — Mikki disse a primeira coisa que lhe veio à mente.
— Então não comece a fazer isso agora.
Ela só pôde assentir com um movimento de cabeça.
Hécate a estudou em silêncio. Seu rosto forte era impenetrável, e Mikki teve um desejo infantil de torcer as mãos e se mover, mas forçou os braços para o lado e
ficou parada, embora o olhar da mulher fosse tão penetrante que ela imaginou poder sentir seu toque.
— Eu não sou apenas “a deusa de Medeia”. — Hécate quebrou o silêncio. — Sou a Deusa das Feras, da Magia e da Lua Negra. Tenho domínio sobre a escuridão da noite,
sobre os sonhos e sobre as encruzilhadas entre o conhecido e o oculto.
As palavras da diva ecoaram com autoridade e Mikki sentiu seu poder deslizando pela pele como serpentes famintas. Então a voz de Hécate baixou, perigosa, e ela teve
que se esforçar para não se encolher de medo.
— Eu conheci sua mãe, Mikado. E a mãe de sua mãe. E a mãe desta última... Por várias gerações tenho observado as mulheres de sua família. Continuei a observá-las
e permaneci fiel a elas, mesmo depois que todas se esqueceram de mim.
— Minha mãe? Minha avó? — indagou Mikki, surpresa. — Mas como? Não estou entendendo nada disso.
Quase imperceptivelmente, a expressão da deusa abrandou.
— Nunca se perguntou sobre a origem dos dons que recebeu, Mikado?
— Dons?
— Sim! A tinta... — falou a deusa, áspera, e os cães a seus pés rosnaram, inquietos. — Não fique aí parada como se fosse um homem e só conseguisse pensar com a cabeça
de baixo! Reconheça suas dádivas, Empousa!
Mikki reagiu ao comando da deusa com uma voz meio trêmula.
— Meu sangue faz as rosas crescerem. Eu o misturo com água durante a lua nova e... — Fez uma pausa, os olhos se arregalando ao perceber o que estava implícito no
título “Deusa da Lua Negra”. — Durante a lua nova eu rego as rosas com ele.
— E suas rosas sempre crescem — a deusa concluiu por ela.
— Sempre — Mikki murmurou.
— Esse é um dom. O outro é algo que as mulheres de sua família carregam com elas de geração em geração — afirmou Hécate.
Mikki franziu o cenho, então seu rosto se iluminou.
— Meu sobrenome, Empousai! Todas as mulheres da minha família sempre o mantiveram. Nós nunca o mudamos, não importando o que aconteça. É uma tradição, uma regra
não escrita que temos seguido há várias gerações. Mesmo quando era inédito para uma mulher não assumir o nome do marido, as Empousai se mantiveram fiéis a isso.
Fundos fiduciários foram criados e diversos testamentos foram escritos sob a condição de que as Empousai mantivessem seu sobrenome. Minha mãe até me contou histórias
sobre noivas Empousai que romperam seus compromissos quando os homens se recusaram a seguir essa regra. — Mikki fechou a boca de repente, ciente de que estava tagarelando
como uma idiota.
Hécate concordou com um breve gesto de cabeça.
— Isso porque nas veias das mulheres de sua família corre o sangue sagrado de Empousa, minha mais querida sacerdotisa. Foi uma longa espera, mas alegra meu coração
saber que, finalmente, reacendeu a chama da deusa que existe em você, ungiu-se, misturou o sangue à água e invocou meu nome. — Por um instante, o magnífico semblante
de Hécate pareceu quase gentil. — Pode ver que recompensei sua fé. Você despertou meu Guardião e voltou para o Reino das Rosas.
— Mas foi um acidente! — Mikki falou, com vontade de chorar. — Eu não fiz nada de propósito.
— Então, explique-se! — A deusa cuspiu as palavras. — Como pode ter se ungido e me invocado por acidente?
O mármore da balastrada parecia ferro frio de encontro à túnica diáfana de Mikki. Os enormes cães aos pés da deusa levantaram as orelhas, como se também estivessem
curiosos acerca de sua resposta.
À beira da histeria, ela se questionou se Hécate mandaria que eles a devorassem ao descobrir que aquilo tudo não passara de um enorme mal-entendido.
Respirou fundo e encontrou os olhos cinzentos e gélidos da divindade.
— Você diz que eu me ungi, mas suponho que esteja se referindo ao perfume que estou usando.
— Perfume? — Hécate levantou as sobrancelhas. — De fato... E como obteve a fragrância exata do óleo sagrado da minha Alta Sacerdotisa?
— Ele me foi dado por uma senhora que conheci esta manhã.
Mikki fez uma pausa. Havia acontecido naquele dia, fazia vários dias, ou anos antes?
Não podia pensar naquilo, entretanto. Não importava naquele momento. A única coisa que importava era que Hécate compreendesse que ela não pertencia àquele lugar.
Ou então nada daquilo importava porque estava enganada sobre aquele lugar ser sua nova realidade. Devia ter enlouquecido de vez, provavelmente estava toda curvada
em posição fetal no meio do Roseiral de Tulsa, babando!
— Eu já disse que não está sofrendo alucinações nem tendo delírios, Mikado. Tampouco está louca — afirmou Hécate.
— Consegue ler minha mente?
— Conheço os medos mais profundos e os desejos mais intensos das minhas Empousa. Agora, Sacerdotisa, continue a explicar esse acidente para a sua deusa.
Sua deusa.
Uma emoção inimaginável sacudiu o corpo de Mikki quando Hécate pronunciou aquelas duas simples palavras. Era como se alguma coisa esquecida dentro dela havia muito
tempo tivesse despertado e estivesse ansiosa com a possibilidade de uma nova vida.
Seu coração se lembra, Empousa, assim como o seu sangue.
A deusa não falou, porém o eco da voz de Hécate soprou no ouvido de Mikki.
Uma voz em sua mente?
Ela sacudiu a cabeça, apavorada, e passou a falar depressa, na esperança de que o som da própria voz narrando os eventos que, ela sabia, haviam acontecido no “mundo
real”, ancorassem seu senso de realidade.
— Uma senhora me deu o perfume. Nós nos demos bem porque ela também recebera o nome de uma rosa.
— E qual era o nome dessa velhota?
— Sevillana Kalyca — Mikki falou, reparando em como os olhos de Hécate se estreitavam. A deusa, porém, não a interrompeu mais e ela pôde continuar: — Eu tinha um
encontro naquela noite, então pensei em usar o perfume. — Fez uma careta ao se lembrar do arrogante professor Asher. — Acontece que o sujeito era um horror. Eu o
deixei e fui para casa.
Hécate balançou a cabeça, pensativa.
— Poucos homens são dignos de uma Empousa.
Mikki fitou a divindade nos olhos e se surpreendeu ao ver a compreensão neles. Sorriu para Hécate, tímida.
— Definitivamente, eu nunca dei sorte no amor.
A deusa bufou.
— Os homens são todos uns inconsequentes.
Mikki sentiu parte da tensão em seus ombros desaparecer. Com certeza tinha deparado com muitos deles.
— Pois então... eu decidi não ir direto para casa. Atravessei o parque porque fiquei com vontade de passear pelo roseiral.
— Mora perto de um roseiral? — indagou a deusa.
Mikki assentiu.
— Do outro lado da rua do roseiral da cidade. Sou voluntária lá há um ano.
Hécate pareceu satisfeita.
— Isso é bom. Como Empousa, sua mais importante missão, depois de me honrar, é cuidar das rosas.
— Eu sempre cuidei das rosas. Assim como minha mãe, minha avó e...
Hécate interrompeu a explicação com um gesto impaciente.
— As mulheres da sua família estão ligadas por laços de sangue com as rosas. Eu sei disso. O que não sei é por que invocou meu nome.
— Foi sem querer. Eu estava andando pelo parque para chegar ao roseiral, e havia um grupo ensaiando a peça Medeia. Eles precisaram de alguém para substituir a atriz
que fazia Medeia no mesmo momento em que passei por perto. O diretor me perguntou se eu podia ler algumas linhas, e eu concordei... — A voz de Mikki foi sumindo
conforme ela se lembrava de como as palavras do roteiro tinham se embaçado, brilhado, e então sido pronunciadas por ela como se por vontade própria. — Depois que
eu disse o nome da deusa tudo pareceu mudar! — Ela não percebeu que pensava em voz alta até que a voz poderosa de Hécate respondeu à sua dúvida.
— Sua alma e o sangue que pulsa em seu coração sabem o meu nome e o invocaram, embora sua mente tenha se esquecido de mim.
— Como é possível? — Mikki sacudiu a cabeça e passou a mão trêmula sobre o rosto.
— Entretanto, não houve sacrifício... O vento teria soprado suas palavras, a terra teria tremido e as águas iriam chorar como se queimadas pelo fogo. E você não
poderia ter despertado o Guardião e ser transportada para o meu reino sem derramar o seu sangue.
— Eu alimentei as rosas — Mikki contou com voz fraca, lembrando-se da cacofonia de sons que crescera em torno dela quando tinha lido a invocação à deusa.
Ar... Terra... Água... Fogo... Teriam todos reagido a ela?
O pensamento a emocionou e a oprimiu.
A expressão impaciente de Hécate, contudo, a trouxe rapidamente de volta à realidade.
— Trabalhadores de uma obra nos jardins judiaram das rosas — prosseguiu, tensa. — Era noite de lua nova, e eu já havia regado as que tenho na varanda da minha casa.
Foi uma coisa natural eu reabrir o corte na mão e ajudá-las também. Mas acho que exagerei um pouco porque espalhei água por todo lado... inclusive na estátua. —
Mikki segurou a respiração e olhou para Hécate. — A estátua! Aquela criatura... Ela... Ela...
— Ele — Hécate a corrigiu. — O Guardião é do sexo masculino. E, sim, a sua invocação somada ao seu sacrifício de sangue o despertou. Foi ele quem a trouxe aqui.
Era seu dever devolver a minha Sacerdotisa.
Os olhos de Mikki se desviaram da deusa para as sombras que aumentavam com o cair da noite.
— O Guardião não está por aqui — Hécate a tranquilizou. — Ele esteve ausente de seu cargo por muito tempo... Tem muito que corrigir. E também não precisa temê-lo.
A única finalidade do Guardião é proteger o Reino das Rosas e certificar-se de que as tramas da realidade se misturam às dos sonhos e da magia.
Mikki abanou a cabeça.
— Tramas da realidade? Como ele...
— Não é importante que você compreenda seu propósito — a deusa a interrompeu. — Basta dizer que o Guardião não representa perigo algum para sua pessoa. Ele toma
conta de todos que residem no meu reino.
— Se ele é seu Guardião, então o que fazia como uma estátua no Roseiral de Tulsa? — E por que estava me seduzindo nos meus sonhos? — ela completou em pensamento,
inconformada.
O olhar de Hécate deixou Mikki, e a deusa da escuridão olhou para os jardins iluminados por tochas, que pareciam espalhar sua beleza indefinidamente. Quando falou,
foi mais para as sombras do que para a mulher que tinha ao lado.
— Eu sou uma deusa, mas também sou falível. Foi por um erro de julgamento meu que o Guardião foi banido. É meu desejo corrigir essa minha falha.
Mikki não soube o que dizer. Se em algum momento tivesse parado para pensar em antigos deuses e deusas, iria pressupor que estes eram seres poderosos e onipotentes,
imunes a qualquer tipo de engano.
Agora estava diante de uma divindade que dizia ser Hécate, que irradiava poder e autoridade e admitia ter cometido um equívoco. Não fazia sentido.
Mas, até então, nada do que estava acontecendo com ela fazia.
Mais uma vez, Hécate falou sem olhar para ela.
— Sim, uma deusa pode errar... Também tenho um coração e uma alma, paixões e sonhos. Eu amo e odeio. Como posso ser uma deusa sábia, digna de adoração, se não compreendo
os erros da humanidade? Para compreender esses deslizes, preciso vivenciar alguns deles — concluiu com uma voz sombria.
— Perdão — Mikki murmurou.
Os olhos cinzentos de Hécate voltaram a pousar nela.
— Senti falta da presença da minha Empousa no Reino das Rosas. Mesmo que seu retorno pareça acidental — desta vez, ela acrescentou um toque de humor à palavra —,
estou satisfeita por estar aqui. Já estava cansada de esperar.
— Mas ainda não sei por que estou aqui — lembrou Mikki. Poderia mesmo ser uma Sacerdotisa daquela deusa incrível?
— Está aqui por causa das rosas! — Hécate abriu os braços em um gesto magnânimo que abrangeu todos os jardins à sua frente. — Vai restabelecer meus rituais e trazer
saúde e vida renovadas ao meu reino.
— Hécate, eu não sei como fazer isso, eu...
— Claro que sabe — a divindade a interrompeu. — Esse conhecimento está em seu sangue. Tudo o que precisa fazer é olhar para dentro de si mesma e interpretar o que
deixei registrado em suas gerações passadas.
Um ruído suave de passos apressados sobre mármore impediu a resposta de Mikki. Ela e a deusa olharam para os jardins lá embaixo, onde quatro mulheres corriam pelo
caminho mais próximo até a escadaria que levava à varanda.
— Suas servas se aproximam. — Hécate olhou para o céu escuro. — Vejo que, ao menos, elas não se esqueceram da ordem correta das coisas, embora o Reino das Rosas
tenha sofrido com a ausência de seu Guardião e de minha Empousa.
Como uma onda lambendo avidamente uma praia sedenta, as quatro mulheres correram juntas para a varanda e fizeram uma reverência graciosa, com as cabeças inclinadas,
os longos cabelos caindo para a frente e sombreando seus rostos ansiosos. A serva que usava um traje de seda amarela, da cor do ranúnculo — um complemento perfeito
para seus cabelos dourados —, foi quem falou primeiro. Ergueu o rosto para a deusa e chorou, a voz saindo embargada pela alegria:
— Ave, Hécate, grande Deusa da Lua Negra!
Em seguida, falou a menina vestida de vermelho, cujos cabelos longos e escarlates eram brilhantes como o fogo:
— Ave, Hécate, sábia Deusa das Feras!
Mikki percebeu que reconhecia as duas moças restantes quando a criada vestida de azul-safira e cabelos da cor da espuma das ondas do mar ergueu a cabeça.
— Ave, Hécate, bela Deusa da Magia!
Antes que o som de sua voz doce tivesse se desvanecido, a morena, a qual vestia seda verde-musgo, a mesma cor de seus enormes olhos adornados por cílios escuros,
levantou a cabeça, o rosto radiante de alegria.
— Ave, Hécate, Deusa da Encruzilhada entre a realidade e os sonhos, e poderosa protetora do Reino das Rosas!
— Levantem-se, minhas filhas. Venham! Beijem a minha mão... Senti saudades.
As servas obedeceram e Mikki deu-se conta de que elas eram bem mais jovens do que pensara a princípio. Na verdade, eram praticamente adolescentes. Ainda mais considerando
o modo como, rindo como crianças, cada uma delas pressionou os lábios na mão da deusa.
Hécate as recebeu, tocando-as nas cabeças, satisfeita. Para o espanto de Mikki, os cães enormes a seus pés se inquietaram tais como filhotinhos de estimação, farejando
as meninas com entusiasmo e aceitando beijos e carícias de todas elas.
Então, a deusa ergueu sua tocha, e as moças ficaram imediatamente em silêncio.
— Servas de Hécate, eu as convido a dar as boas-vindas à minha Empousa!
Com seu pronunciamento, a tocha brilhou e uma cascata de faíscas caiu em redemoinho em seu entorno.
As jovens soltaram uma exclamação, cochichando entre si, entusiasmadas, enquanto faziam uma reverência a Mikki.
— Eu disse que ela havia voltado! — Ela teve a certeza de ouvir a morena dizendo para as outras.
Hécate levantou a mão, pedindo silêncio.
— Vão para dentro. Lá irão preparar a Empousa para o ritual de autoiniciação, que será realizado no coração do meu reino.
Hécate ergueu a tocha novamente, mas, desta vez, virou-se para os vastos jardins.
— Que o Templo de Hécate se acenda mais uma vez!
Ao comando da deusa, todas as luzes começaram a brilhar com intensidade, e as servas reagiram com exclamações de entusiasmo e alegria. De olhos arregalados, Mikki
viu a silhueta de um templo adornado por colunas acender-se de repente.
— Vão — Hécate ordenou às servas suavemente. — A Sacerdotisa irá acompanhá-las em breve.
As meninas fizeram uma profunda reverência e atravessaram correndo a ampla varanda para entrar no quarto em que Mikki tinha despertado.
— Precisa fazer duas coisas esta noite, Mikado — Hécate disse-lhe com firmeza. — Em primeiro lugar, lançar um círculo sagrado. As servas irão ajudá-la com isso,
até que possa pôr em prática o conhecimento que ainda dorme em seu sangue. Em segundo lugar, vai realizar um ritual de autoiniciação. Nesse ritual, irá dedicar-se
a uma nova vida como minha Empousa, uma Sacerdotisa do Sangue de Hécate.
— Mas eu não sei como realizar um ritual de iniciação! Não sei como fazer ritual nenhum — Mikki falou, aflita com a própria inaptidão.
— Mikado! — Os olhos cinzentos de Hécate a fulminaram. — Você invocou a minha presença, despertou meu Guardião. Em seu sangue reside o conhecimento de gerações de
Sacerdotisas minhas... Se não tem coragem para compartilhar esse conhecimento, lance o círculo sagrado e, depois, saia dele. Eu juro: no momento em que deixar o
círculo, voltará àquela vida mundana, nos limites da minha encruzilhada. — Os lábios da deusa curvaram-se com desgosto, e os pelos nos braços de Mikki eriçaram-se
em resposta à ira divina que ardeu ao seu redor. — Talvez você se case... talvez não. Mas, sem dúvida, vai gerar uma filha, outra “Empousai”, como as suas antepassadas
começaram a chamar a si mesmas. Irá viver uma vida comum e morrer. E eu continuarei esperando por outras gerações pelo retorno da minha Sacerdotisa... Mas se não
romper o círculo sagrado e, em vez disso, optar por completar o ritual, saiba que, tão certo como seu coração bate e seu sangue corre, será para sempre minha Alta
Sacerdotisa, a Empousa do Reino das Rosas. — Hécate ergueu a tocha acesa outra vez. — Decida esta noite, Mikado Empousai, e saiba que nunca mais terá outra chance
de mudar o seu destino! — Faíscas fluíram da tocha e, com uma lufada de vento, Hécate desapareceu.
Capítulo 10
Completamente confusa, Mikki ficou sozinha, piscando contra os pontos brilhantes de luz que a deusa lhe deixara na vista. Deveria lançar o tal círculo? Aquilo não
era bruxaria?
E, se conseguisse fazê-lo sem ser atingida por um raio ou ser engolida por Satanás — ou o que ou quem quer que fosse —, ainda deveria olhar para dentro de si mesma
a fim de saber como poderia realizar um ritual de autoiniciação porque era uma Empousa: uma Sacerdotisa de Hécate.
Risinhos abafados fluíram da porta aberta de seu quarto e Mikki suspirou. Além de decidir sobre o próprio destino, também precisava se vestir...
— Droga de dor de cabeça! — Esfregou a testa que latejava. O novo templo iluminado atraiu seu olhar e Mikki viu-se mirando os jardins pouco iluminados ao redor da
construção abobadada.
Uma onda de emoção fluiu através dela. Se aquilo tudo era verdade, se estava realmente acontecendo, então ela estava mesmo tendo a oportunidade de se tornar a Alta
Sacerdotisa de uma poderosa deusa. Uma deusa que tomava conta das mulheres de sua família havia gerações.
Não podia negar que aquela possibilidade a fascinava.
Mas e se nada daquilo fosse real? E se houvesse inventado tudo aquilo e aquele mundo fantástico e sua deusa não passassem de um delírio?
Se isso fosse verdade, não importava se ela escolhesse ficar ou ir embora. De qualquer forma, estava frita... falando de modo figurado, por enquanto.
Então, por que não acabava logo com aquilo? Por que não optar por se tornar uma Alta Sacerdotisa de Hécate em vez de uma paciente de hospital psiquiátrico?
Pensou sobre a deusa. Hécate era poderosa e atemorizante. Como seria ser sua Sacerdotisa?
O pensamento teve o efeito de uma chama brilhante e a arrastou com um exótico calor. Hécate tinha dito que seu primeiro dever como Empousa seria cuidar de suas rosas.
Mikki olhou a extensão escura dos jardins. A brisa suave da noite girou ao seu redor, trazendo consigo o aroma atraente e familiar das belas flores. Fechou os olhos
e respirou fundo. Era como estar em casa.
O pensamento a assustou. Era possível que pertencesse àquele lugar? Era corajosa o bastante para considerá-lo como sua realidade, seu futuro, seu destino?
Ela era muitas coisas: teimosa, obstinada, cínica... Mas não covarde.
Decidida, Mikki atravessou a ampla varanda e entrou no quarto cujo tema principal também eram as rosas. Como um pequeno grupo de peixes exóticos, de barbatanas de
seda, as jovens mulheres voltaram-se para ela, curvando-se numa série de reverências.
— Empousa! Seu traje para o cerimonial a aguarda — disse a morena, apontando para uma fabulosa túnica longa em seda roxa e cintilante, que caía em cascata pela beirada
da cama.
— Obrigada — ela agradeceu, a mente demorando a se alinhar com as palavras. — Mas, antes de irmos, acho que precisamos nos apresentar. Meu nome é... — ela pausou
apenas um instante — Mikado. Como vocês já devem saber, fui trazida até aqui por circunstâncias pouco comuns, e tudo isto é muito novo e assustador para mim.
A morena franziu o cenho.
— Não é Empousa em seu mundo?
— Não.
As quatro moças espelharam expressões de choque.
— Se não era uma Empousa, então o que fazia? — perguntou a morena.
— Eu... — Mikki hesitou, escolhendo as palavras com cuidado. — Eu era a assistente de uma mulher muito importante, que era responsável pelos cuidados para com muitos
doentes.
A carranca da morena se aprofundou.
— Essa mulher não pode ser mais importante do que Hécate.
— Não! — as outras responderam em coro.
Elas a haviam apanhado.
— Talvez o fato de eu estar trabalhando para uma, hã, deusa menos importante estivesse me preparando para este trabalho. — Mikki apertou os lábios, reprimindo um
sorriso ao pensar como Jill reagiria ao ser considerada uma divindade.
— Trabalho? — repetiu a menina de cabelos vermelhos. — Ser uma Empousa não é um emprego, é um destino.
— Um privilégio divino! — acrescentou a serva vestida de seda amarela.
— Sim, eu estou começando a entender isso... — Mikki sentiu como se estivesse tentando segurar as rédeas de um cavalo em fuga. — Mas, no lugar de onde eu vim, as
coisas são muito diferentes. Vai levar algum tempo até que eu me acostume ao meu destino.
A morena soltou uma exclamação, os olhos verdes cintilando com uma súbita compreensão.
— Você é do mundo comum!
— Isso mesmo — confirmou Mikki.
Horrorizadas, as servas a fitaram em silêncio. A loira cobriu a boca com a mão, como se para conter um soluço.
— Não é tão ruim lá... — Mikki falou, sentindo a necessidade de defender ao menos Tulsa. — É cheio de pessoas e coisas interessantes, como a Internet e... e... alguns
restaurantes excelentes. Principalmente os da Utica Square.
Longe de se convencer, as moças continuaram a fitá-la.
— Então... — Mikki suspirou e mudou de assunto — ... que tal vocês me dizerem seu nome, depois vou me vestir e poderão me dar algumas dicas sobre como lidar com
o restante da noite.
— Que indelicadeza a nossa, Empousa! — a morena se desculpou, lançando às outras três meninas um olhar zangado. — Eu sou Gii.
— Eu sou conhecida como Floga — contou a impressionante ruiva.
— Pode me chamar de Nera — disse a loira que a recebera ao lado de Gii.
— E eu sou Aeras — falou a última moça.
— É um prazer conhecer as quatro. — Mikki sorriu calorosamente, enquanto tentava decorar os nomes incomuns, e cruzou os dedos em pensamento para que todas se tornassem
suas aliadas.
— Podemos vesti-la, Empousa? — Gii quis saber.
Mikki queria dizer “muito obrigada, mas não”. Olhou para a longa túnica de seda e percebeu que não tinha a menor ideia de como colocá-la. Será que precisava enrolá-la
em torno do corpo? Com o que poderia prendê-la?
E onde estava a calcinha?!
— Está bem... Podem me vestir.
— Não posso sair em público assim! Deve estar faltando alguma coisa! — Mikki se olhou no espelho. A seda roxa fora presa apenas por uma trança prateada por cima
de seu ombro direito. Dali, o tecido caía com graça por seu corpo, deixando seu seio esquerdo, assim como a perna direita, completamente, totalmente, absolutamente
desnudos.
Gii tornou a franzir o cenho.
— Mas, Mikado, essa é a veste tradicional para o ritual da lua negra da Empousa.
— Por que quer acrescentar outra coisa? Está tão linda! — concordou Nera, a confusão enrugando-lhe a testa.
Mikki apontou para o reflexo de seu peito nu.
— Estou quase pelada!
Como aqueles bonequinhos de péssimo gosto que ficavam sobre o painel de alguns carros, as quatro sacudiram a cabeça para ela.
Mikki suspirou e tentou outra vez:
— Como posso andar por aí com um dos seios à mostra? — Sem mencionar a perna direita e metade do traseiro sem calcinha! — Isto não pode estar certo.
— Claro que está certo! — protestou Floga, a ruiva, claramente desconcertada com a reação negativa de Mikki. — É como a Empousa de Hécate sempre se veste para esse
ritual.
— Não é normal, no mundo comum, uma Sacerdotisa realizar rituais com o seio exposto? — indagou Gii com um súbito discernimento.
— Na verdade, no mundo comum é bem anormal ser vista em público com um peito desnudo! Ao menos onde eu vivia...
Gii abanou a cabeça, tristonha.
— As mulheres devem ser muito reprimidas no seu antigo mundo.
Mikki abriu a boca para corrigi-la, dizer que as mulheres modernas dos Estados Unidos, ainda que comuns, possuíam direitos iguais aos dos homens e...
A imagem de uma última vítima de estupro sobre a qual havia lido no Tulsa World veio-lhe à mente, porém. A moça tinha cerca de vinte anos e fora atacada enquanto
se divertia no centro da cidade. O artigo fizera várias menções à maneira sedutora com que ela estivera vestida, deixando implícito que ela mesma podia ter provocado
o estupro.
E, ainda fresca em sua memória, estava a voz do repórter que ela ouvira enquanto se vestia para o trabalho naquela mesma manhã. O maníaco sexual atacara outra mulher
em Tulsa. Assim como em outras ocasiões, ele entrara no quarto da vítima por meio de uma janela aberta.
E a polícia, assim como os meios de comunicação, tinham aconselhado o público feminino a ser mais cuidadoso, trancando suas portas e janelas.
Mikki sentiu uma onda de raiva dominá-la. As mulheres é que haviam sido julgadas, alertadas, advertidas... Nenhum dos homens fora condenado por sua selvageria.
Encontrou o olhar de Gii.
— Creio que esteja certa, embora isso não seja aparente.
— Assim como os pensamentos, o que não se vê é geralmente o que nos controla — Gii afirmou.
Mikki concordou com um gesto de cabeça. Então tornou a se concentrar em seu reflexo no espelho. Endireitou os ombros e ergueu o queixo. A mulher que a encarou de
volta parecia exótica e feminina, envolta naquela seda roxa drapeada, com os cabelos pendendo livres ao redor dos ombros. E, à luz bruxuleante das velas, sua pele
nua assumira um delicado tom de pêssego
Num impulso, ela ergueu um pouco a perna nua, apontando os dedos dos pés descalços, e o tecido macio do traje para o cerimonial a acariciou numa deliciosa resposta.
Sexy... Estava definitivamente sexy.
E, naquela roupa, os três quilos e pouco contra os quais vivia batalhando apenas enfatizavam sua sensualidade. Parecia mais curvilínea e muito mais bonita do que
já tinha pensado ser possível.
— Estou pronta — falou com firmeza, mais para si do que para as quatro mulheres que a observavam atentas.
O sorriso de Gii foi instantâneo. Ela agarrou a mão de Mikki e a puxou delicadamente em direção às portas abertas que davam para a varanda.
— Vamos! O Templo de Hécate está cheio de luz outra vez. Vamos nos apressar e enchê-lo com vida também!
Em um rufar de sedas e risos, Mikki deixou-se levar por toda a sacada, depois pela escadaria cor de pérola que dava nos jardins.
Outra onda de náusea e vertigem dominou-a conforme seguia as servas. Nervosa, ela apertou os lábios e fez o que pôde para ignorá-la, afinal, mudar de mundo devia
ser difícil para o organismo de qualquer um.
Com os olhos muito abertos, tentou assimilar tudo o que podia enquanto as meninas a apressavam por um dos muitos caminhos de mármore que serpenteavam por entre as
inúmeras fileiras de rosas. Notou fontes borbulhantes e bancos, porém tudo se encontrava cuidadosamente protegido pela noite, pelas sombras e pela luz morna das
lanternas a óleo perfumadas que pendiam dos galhos das árvores ornamentais.
Quando o templo surgiu como um sonho diante delas, Mikki estacou, e tudo deixou sua mente. Tochas brilhavam por dentro e por fora, iluminando as colunas altas que
sustentavam o domo de um santuário ao ar livre. Diante deste, avistou uma gigantesca fonte contendo múltiplas bacias de mármore, das quais caía em cascata uma água
cristalina que se derramava por todos os lados numa melodia que se espalhava por todo o jardim.
As linhas minimalistas do templo só faziam ressaltar sua elegância. Não havia nada no interior da construção, exceto uma única chama que queimava bem no centro de
um espaço largo e circular de mármore liso.
— A tocha de Hécate foi acesa! — comentou Floga numa voz embargada pela emoção. A bela serva vestida de escarlate foi a primeira a subir a escada e entrar no santuário.
— Senti isso na alma, mas vê-la outra vez faz meu coração pular de alegria!
E então, para o espanto de Mikki, ela caminhou direto para o fogo e acariciou suas chamas como se a uma criança amada.
Em vez de queimá-la, contudo, o fogo pareceu rejuvenescê-la. Suas mãos brilharam onde ela o tocou, e seus cabelos vermelhos crepitaram ao seu redor, como se tivessem
vida própria.
— Ela está tocando o fogo e não se queima! — Mikki exclamou, ofegante.
— Claro que não — Gii afirmou. — Ela é o Fogo.
Com muito esforço, Mikki desviou o olhar da serva em escarlate e voltou toda a sua atenção para Gii.
— Como assim, “ela é o Fogo”?
A criada a estudou, atenta.
— Empousa, não reconhece suas próprias servas? Sei que estava confusa quando Nera e eu a acolhemos, mas decerto sabe quem somos agora que viu as quatro juntas.
— Gii, eu nunca tive servas antes. Como poderia reconhecê-las?
— Não nos reconhece? — a moça indagou, tristonha.
Mikki teve uma vontade insana de gritar que não reconhecia mais nem a si própria. Como, diabos, poderia reconhecer quatro mulheres que lhe eram totalmente estranhas?
A dor nos olhos da serva, contudo, a fez pesar melhor as palavras.
— No meu mundo antigo, eu não adorava nenhuma deusa — Mikki fitou as servas nos olhos.
No silêncio que se seguiu às suas palavras, ouviu que Floga se aproximava. Sem falar, a moça juntou-se às companheiras.
Mikki continuou, devagar:
— Eu nunca lancei nenhum círculo. Nunca realizei nenhum ritual. Eu não fazia ideia de que era uma Sacerdotisa de Hécate, até que ela mesma me contou. Então não é
apenas a vocês quatro que eu não reconheço. Não reconheço absolutamente nada neste mundo.
As mulheres a fitaram de olhos arregalados.
— Não existem deusas no mundo comum? — Gii indagou por fim, com a voz abafada.
Mikki escolheu as palavras antes de responder, lembrando-se de que Hécate afirmara ter assistido as mulheres de sua família ao longo de várias gerações. E não havia
dúvida de que as mulheres Empousai possuíam algo mágico em seu sangue.
Tocadas por uma deusa.
O pensamento voejou em sua mente. As mulheres de sua família tinham sido abençoadas por uma divindade, o que significava que, reconhecidas ou não, deviam agir mesmo
em Tulsa, Oklahoma.
— Acho que existem deusas no meu antigo mundo — elaborou Mikki, pensando em suas antepassadas e deixando que o instinto lhe guiasse as palavras. — Mas a maioria
das pessoas, a maioria das mulheres, aprendeu a viver sem elas.
— Que coisa terrível... — Aeras sussurrou.
— Por tudo isso, se não quiserem me chamar de Empousa, não haverá problema — Mikki afirmou num murmúrio. — Eu não mereço esse título.
— Mas Hécate a nomeou sua Empousa. É direito da deusa fazê-lo, e apenas ela poderá remover seu título — Gii afirmou. — Se Hécate a reconhece como tal, então, nós
também a reconhecemos.
As outras três mulheres assentiram, porém não com tanto entusiasmo desta vez.
— E não se esqueçam — Gii acrescentou, olhando com firmeza para as outras —, Mikado despertou o Guardião. Isso é algo que apenas o sangue de uma Empousa de Hécate
tem poder para fazer.
À menção do Guardião, Mikki sentiu um calafrio. Tinha quase se esquecido da estátua.
Tinha quase se esquecido dele, ela se corrigiu. Afinal, o Guardião não era mais uma escultura... E estava lá fora, em algum lugar, vivo, pois seu sangue o havia
tocado.
Que papel ele desempenhava naquilo tudo? Por que ele visitara seus sonhos?
De repente, Mikki viu-se cansada de tantas perguntas sem resposta.
— Gii, você disse que Floga não se queima com fogo porque ela é o Fogo... Por favor, explique-me.
Floga, entretanto, não deu a Gii a chance de responder. Em vez disso, a serva de cabelos vermelhos adiantou-se e ficou ao lado de Mikki. Levantou a palma para cima
e, sorrindo, assoprou de leve, como se estivesse lhe mandando um beijo.
Mikki sentiu o calor incomum de sua respiração antes mesmo que uma chama alaranjada brotasse da mão da moça.
— Foi isto o que Gii quis dizer, Empousa. Suas servas foram cuidadosamente selecionadas por Hécate entre todas as outras mulheres do Reino das Rosas. Cada uma de
nós foi escolhida porque carrega dentro de si uma afinidade especial com um dos Quatro Elementos. Meu elemento é o fogo. Posso evocá-lo e nunca me queimar. Quando
o fio da minha vida chegar ao fim, eu voltarei para ele.
— Inacreditável — Mikki disse, ofegante. Aproximou um dedo para tocar de leve o fogo que ardia na mão de Floga. Foi como tocar a chama de uma vela. Pôde suportá-lo
por um instante, contudo sabia que iria se queimar se mantivesse o dedo ali por mais tempo.
Então seu olhar deslizou para as outras três mulheres.
Gii fez menção de falar, porém Mikki balançou a cabeça, interrompendo-a.
— Não, não me diga... Se sou mesmo uma Sacerdotisa de Hécate, deveria ser capaz de descobrir as coisas por mim mesma.
Piscou, pensativa.
Os Quatro Elementos. Floga já disse que é o Fogo. O que resta?
Conforme raciocinava, seus olhos permaneceram em Gii. Primeiro inconscientemente, em seguida, com mais propósito. Olhou as vestes cor de musgo que combinavam com
o lindo verde de seus olhos e enfatizavam os longos e fartos cabelos castanhos... então soube.
— Terra! — exclamou. — Você tem que ser Terra.
O sorriso de Gii foi uma deliciosa recompensa.
— Isso mesmo, Empousa. Floga é fogo e eu sou Terra. — A moça silenciou-se e acenou com gestos de incentivo.
Mikki voltou a atenção para as duas restantes: Nera e Aeras. Nera vestia azul e tinha os cabelos tão leves que lembravam nuvens; mas não lembravam Ar. Era por demais
voluptuosa. A seda azul envolvia seu corpo exuberante como ondas translúcidas.
A pequena Aeras, contudo, usava um traje amarelo que se movia em torno dela como uma brisa, e seus cabelos lisos e compridos eram da cor dourada do sol de verão.
— Nera é Água, e Aeras é Ar.
As servas bateram palmas alegremente, fazendo Mikki sentir-se orgulhosa de si mesma.
— Percebe, Empousa? — falou Gii. — Reconheceu todas as suas servas.
— Com sua ajuda. Agora talvez possam me ajudar também a lançar um círculo.
— Você tem aqui tudo o que precisa para lançar o círculo sagrado, Empousa — garantiu a moça. — Tem os espíritos dos Quatro Elementos e também sua própria afinidade.
— Minha própria afinidade? Mas há apenas Quatro Elementos. O que eu poderia representar?
— Representa o coração do círculo: seu espírito — afirmou Gii. — Por isso veste a cor púrpura. Essa é a cor sagrada do espírito. E, por isso, sua posição será sempre
no centro do círculo.
— Vamos lhe mostrar, Empousa — disse Aeras, subindo os degraus para o templo. — Todas temos nossas posições.
Mikki endireitou os ombros e percorreu o santuário junto com as outras.
Aeras caminhou com segurança até um local a poucos metros de distância da chama que ardia no meio e, então, virou-se para Mikki.
— O ar sempre fica a Leste.
Floga moveu-se ao longo de um círculo invisível para a esquerda de Aeras.
— O Fogo alinha-se com o Sul.
— A Água prefere o Oeste — Nera explicou, posicionando-se de frente para Aeras.
— O lugar da Terra é sempre ao Norte — falou Gii, completando o círculo.
— E seu lugar, a posição do espírito, é no centro, próximo do coração da chama da deusa.
Não se dando tempo para hesitar, Mikki rumou para o centro do círculo formado pelos elementos personificados e ficou ao lado da chama de Hécate. Sentindo-se um pouco
perdida e extremamente tola, deu de ombros, inquieta.
— Não sei o que fazer agora — sussurrou, porém sua voz ecoou na quietude do templo.
— Na verdade, é algo muito simples — Gii explicou com gentileza.
— Muito natural — Nera acrescentou.
— Mas uma coisa maravilhosa! — completou Floga, mal contendo a emoção.
— Você sempre começa comigo — explanou Aeras, sorrindo. — Deve me saudar e chamar o vento, acolhendo o ar. Depois mova-se deosil ao redor do círculo e invoque os
outros elementos.
— Deosil?
— Nesta direção — explicou Floga, movendo a mão em sentido horário.
— Está bem, entendi — Mikki assentiu.
— Conforme invoca cada elemento, pense na energia que está chamando para que esta a proteja e apoie, Empousa — lembrou Gii.
— Vai aparecer um círculo mesmo? — Mikki perguntou, tímida.
— Só depende de você, Empousa — disse Gii.
Ela sentiu o estômago se apertar. Faça de uma vez!, ordenou a si mesma. Então, ergueu o queixo e aproximou-se de Aeras.
Capítulo 11
— Ave, Aeras.
— Empousa... — A serva ajoelhou-se e curvou-se sobre o chão de mármore numa mesura graciosa.
Mikki buscou algo, qualquer coisa, para dizer. Deveria concentrar-se no poder elementar, como a moça explicara.
Respirou fundo para se acalmar. Respirou o ar... que também era vento.
— Invoco o elemento Ar para o círculo! — disse, cruzando os dedos mentalmente para que não provocasse um desastre. — O ar que respiramos quando nascemos e sem o
qual todos perecem.
Conforme falava, Aeras foi deixando sua profunda reverência. Ergueu os braços delgados, fechou os olhos e inclinou a cabeça para trás.
Mikki engoliu em seco e continuou:
— Quando penso no vento, penso em seu movimento e em sua força invisível. É uma contradição, um paradoxo. Ele não pode ser contido, mas pode ser aproveitado. Pode
preencher delicadamente os pulmões do recém-nascido, mas também tem o poder de dizimar cidades.
De repente, a seda amarela da veste diáfana de Aeras começou a se levantar e se agitar e, em seguida, em uma onda de som, o vento soprou em torno da serva enquanto
ela permanecia no centro de um vórtice mágico. O ar tocou também a pele de Mikki, porém não com tanta violência. Apenas a acariciou, fazendo com que o mamilo desnudo
enrijecesse. Surpreendentemente, ela não se sentiu constrangida ou exposta. Em vez disso, sua nudez lhe pareceu natural, e o fato de o elemento ter reagido ao seu
apelo e tocado seu corpo com tanto amor fortaleceu sua confiança.
Ela sorriu e encontrou os olhos brilhantes de Aeras.
— Bem-vindo, Ar!
Virou-se para a direita. Seus passos eram bem mais seguros quando se aproximou da serva vestindo escarlate.
— Ave, Floga.
— Empousa... — esta respondeu, e também curvou-se no chão numa respeitosa mesura.
— Invoco o elemento Fogo para o círculo!
Assim como Aeras tinha feito, Floga se levantou, ergueu os braços e fechou os olhos.
Mikki observou a expressão ansiosa da moça, intrigada. Era como se ela estivesse preparada para receber um amante.
Inspirada pela personificação do elemento, ela prosseguiu:
— O Fogo é paixão e calor. Ele consome, mas também cuida e aquece. Sem fogo nossas noites seriam escuras e frias.
Os cabelos vermelhos e brilhantes de Floga começaram a se levantar e, em um turbilhão, seu corpo foi delineado por uma estranha luminosidade. Mikki sentiu o calor
que irradiava de Floga a ponto de uma fina camada de suor brotar em sua pele.
— Bem-vindo, Fogo!
Quando virou-se para a direita mais uma vez, pensou ter um vislumbre de um delicado fio de luz prateado que se estendia entre Aeras e Floga.
— Ave, Nera.
— Empousa... — Nera curvou-se junto ao chão, e seus cabelos espessos, de um loiro platinado, cobriram-lhe o rosto como uma onda.
— Chamo agora o elemento Água para o círculo. A água nos cerca antes de nascermos e nos nutre durante nossa vida. Ela limpa e purifica, alimenta e acalma.
Nera levantou-se devagar, e Mikki viu quando seus contornos voluptuosos pareceram se liquefazer. De repente, seus cabelos transformaram-se em espuma e o azul de
suas vestes de seda ondulou como a maré.
Mikki viu-se envolvida por um frescor que era um misto de chuva de primavera e praias quentes, tropicais.
— Água, bem-vinda! — saudou, sentindo-se mais leve conforme ia até o ponto onde Gii a esperava.
Desta vez, viu claramente a fita de prata cintilante que ligava Aeras a Floga e, agora, também a Nera.
— Ave, Gii.
— Empousa... — A moça fez a mesma reverência das demais.
— Eu invoco para o círculo o elemento Terra!
Mikki sorriu carinhosa para Gii conforme a serva se pôs em pé, levantou os braços e aguardou a aproximação do espírito de seu elemento.
— A Terra é a nossa mãe. Pode ser fértil e nutritiva como uma gleba cultivada, úmida como o solo e seca como areia. É o lar de todos os outros elementos.
As vestes cor de musgo de Gii foram se transformando até parecerem mais com hera do que com seda. Seus cabelos escuros pareceram se alongar, cobrindo-lhe os ombros
e caindo por suas costas com a exuberância de um campo recém-arado.
Mikki teve os sentidos preenchidos com imagens da terra cheirando à doçura do feno cortado, das frutas maduras, e sentiu-se segura como se os braços da mãe estivessem
mais uma vez ao seu redor, como um bebê embalado com carinho.
— Bem-vinda, Terra! — saudou com um nó na garganta.
— Agora, Empousa, deve receber o seu próprio elemento — falou Gii, apontando para o centro do círculo, ao lado da chama sagrada.
Mikki encaminhou-se para lá. Fechou os olhos e levantou os braços, imitando as outras mulheres.
— Invoco para o círculo o espírito!
As vozes das virgens inundaram seus pensamentos e sentidos, até que Mikki não soube mais dizer se elas falavam realmente ou se aquelas eram outras vozes, vindas
das profundezas de sua alma.
— O espírito está presente em toda parte! — Aeras anunciou, então, em sua voz doce e límpida.
— É o grande alquimista! — A de Floga soou cheia de paixão.
— O espírito é o elemento que une todos os outros! — Nera entoou no tom fluido de um riacho.
— Ele tem o poder de moldar a natureza de todas as coisas! — disse Gii, em uma amorosa voz de mãe.
— Bem-vindo, espírito! — gritou Mikki.
Deu-se um estalo e o ar dentro do templo chiou. Mikki abriu os olhos e percebeu que estava no meio de um círculo formado por quatro mulheres ligadas por uma deslumbrante
trama de prata, a qual, por sua vez, criava uma fronteira que pulsava com luz e energia. A chama que ardia a seu lado assumira uma encantadora coloração violeta.
— Funcionou! — exclamou, extasiada.
As servas riram e seu riso inundou o templo de felicidade. Parecia música, e Mikki teve vontade de rodopiar e dançar.
Dance, Empousa!
As palavras sussurradas penetraram sua mente tal como num sonho. Ela não parou para questionar seu impulso, tampouco hesitou. Apenas começou a dançar dentro do círculo,
girando e ondulando os braços e o corpo.
As servas logo pegaram o ritmo de seus movimentos e começaram a cantar uma melodia sedutora. Mikki sentiu-se linda, poderosa e absurdamente feliz.
Agora sabia que decisão tomar quanto ao restante de sua vida. Iria escolher aquele mundo mágico. E não porque estava com medo de deixá-lo e descobrir que havia enlouquecido...
Escolhia aquela vida porque tinha despertado nela uma profunda alegria.
Uma alegria que ela nunca experimentara.
A realidade que se danasse! Aquilo era mais do que suficiente para ela.
Diga as palavras que a unirão a mim, Empousa!, comandou a voz em sua cabeça.
Mikki respondeu à deusa e, enquanto falava, sua própria voz tornou-se mais forte e confiante:
— Hécate, Deusa das Encruzilhadas, das Feras e da Lua Negra, lancei teu círculo sagrado e recebi a chance de um novo destino. Estou no limiar entre minha antiga
vida e uma nova... — Fez uma pausa, apenas por tempo suficiente para encarar a chama violeta. — Minha escolha é tornar-me tua Empousa!
Quais as duas palavras que a unirão a mim?
A voz sombria da deusa flutuou no meio do círculo sagrado, e Mikki olhou para a chama do espírito. Não fazia ideia de que palavras eram aquelas. O que poderia vinculá-la
a Hécate? O que diziam seus instintos?
Não tinha certeza, mas sabia o que seu coração lhe dizia. Havia apenas duas coisas que vinculavam uma pessoa a outra.
— O amor e a confiança.
Então, que assim seja, Empousa. Está ligada a mim através do sangue, do amor e da confiança!
A chama violeta cresceu, quase alcançando a abóbada do templo.
— Benditos sejam os teus pés, que te trouxeram para este caminho! — entoou Aeras. E o espírito do Ar estendeu as mãos na direção da Empousa.
Mikki as segurou, sentindo a onda de energia ao seu redor.
— Bendito seja o teu sexo, fonte de amor e poder! — gritou Floga.
Ela refez o caminho dentro do círculo até o espírito do Fogo. Quando tomou as mãos de Floga, seu poder a preencheu com uma onda de calor.
A voz de Nera a chamou mais adiante:
— Bendito seja o teu peito, e o coração que dentro dele bate! — As mãos do espírito da Água foram como uma vaga de energia fresca que lembrou a Mikki um mergulho
em um lago fundo e claro.
A bênção de Gii chamou-a para o topo do círculo.
— Bendita seja a tua boca que entoará os rituais da deusa!
Mikki segurou as mãos do espírito da Terra e sentiu a força de árvores centenárias e campos maduros adentrando seu corpo.
Logo depois, sem precisar ser incitada por nada, exceto por uma inata sensação de dever, ela retomou seu lugar ao lado da chama do espírito e sussurrou:
— Benditos sejam os meus olhos que irão enxergar o novo caminho à minha frente.
A Empousa é minha, e eu sou dela... de corpo, mente e espírito!, a voz poderosa de Hécate fez-se ouvir no templo. O ritual está completo. Que assim seja!
Mikki escutou, então, o clamor de uma multidão e, olhando para além do círculo, avistou, surpresa, centenas de mulheres, jovens e velhas, lotando os jardins do santuário,
aplaudindo e acenando para ela, entusiasmadas. De repente, elas começaram a entoar uma melodia sem palavras, tambores juntaram-se a suas vozes, e começaram a dançar,
descalças e exuberantes, no jardim iluminado por tochas.
Fascinada, Mikki assistiu à exibição. Nos vergéis semiocultos pelas sombras, as mulheres pareciam flores noturnas agitando-se na brisa fresca.
Perguntou-se o porquê de não haver homens ali; contudo, o pensamento foi fugaz e a voz de Gii o baniu por completo de sua mente.
— Encerre o círculo sagrado, Empousa, e vamos nos juntar às outras para a celebração! — pediu o espírito da Terra.
Antes que ela perguntasse como, a voz macia de Aeras ergueu-se acima do bramido da multidão como uma brisa de verão:
— Caminhe na ordem inversa em torno do círculo. Toque em cada uma de nós e visualize a teia de luz se desfazendo.
Sorrindo, agradecida, Mikki refez seus passos, roçando a mão na cabeça de cada uma das mulheres conforme estas se curvavam em nova reverência à Empousa. Viu a trama
de luz se dissolver, que, quando retomou seu lugar no centro do círculo, desapareceu no ar, deixando apenas a chama da deusa queimando no centro do templo.
Gii tomou-lhe uma das mãos; Aeras, a outra; e, ladeada por Terra e Ar, a recém-batizada Sacerdotisa foi levada até a multidão a fim de participar da celebração que
lhe fora preparada.
O Guardião a tudo assistiu debaixo de um velho carvalho. A luz do Templo de Hécate o chamara. Quando esta brilhara outra vez no coração do reino, ele se vira atraído
até ali, embora seu corpo ainda sofresse com as dores nos músculos e tendões recém-despertados.
Quisera ajoelhar-se ao lado da chama e pedir novamente o perdão da deusa, além da autorização para retomar todos os deveres que tinha para com Hécate quando a confiança
entre eles ainda não fora abalada.
Mas antes que se pusesse em movimento, a brisa noturna mudara, trazendo o cheiro dela. Suas narinas haviam se inflado e sua pele morena, se arrepiado.
A Sacerdotisa se aproximava. Sabia que era ela por seu aroma: rosas e especiarias, destiladas pelo calor de sua pele macia. Ele o reconhecia porque bebera de seu
perfume em seus sonhos e, mesmo acordado, tocara-lhe a pele ao segurá-la nos braços enquanto o poder de Hécate os transportava para o Reino das Rosas.
Fechou os olhos e inclinou-se contra a árvore. Ele a assustara, ainda que não tivesse tido essa intenção. Seu despertar fora abrupto, e a fera dentro dele, que parecia
em constante batalha com seu lado humano, estivera demasiado forte, demasiado ansiosa por capturar e possuir.
Lembrando-se da sensação, ele sentiu o corpo tremer e o coração doer dentro do peito. Deveria partir, voltar ao seu refúgio e preparar-se para o dia seguinte. Ficara
ausente do Reino das Rosas por tempo demais e já podia afirmar que nem tudo por ali estava como devia ser. Precisava se esforçar, se concentrar. Deveria retomar
a guarda do reino, como era seu dever.
E se a deusa fosse misericordiosa, ele também seria autorizado a utilizar todos os seus dons novamente.
Entretanto, permanecera ali. Quando sua aguçada audição detectara as passadas leves da sacerdotisa, ele pronunciara um comando em uma linguagem havia muito tempo
esquecida, e as lanternas que pendiam dos galhos da gigantesca árvore tinham se extinguido, mergulhando-o nas sombras. Sob as sobrancelhas grossas, seus olhos expressivos
abriram-se a tempo de ver Floga correr para o templo.
Prestara pouca atenção ao espírito do Fogo, porém, ou ao de qualquer das outras servas. Como uma fascinante sereia, ela capturara sua atenção e ele passara a observá-la.
Seu constrangimento era óbvio, assim como o das outras mulheres. Estas estavam habituadas a uma Empousa que se movia com confiança, que conhecia cada ritual da deusa
a ponto de realizá-los com tanta naturalidade quanto respirar.
Mas ela era diferente.
As servas tinham sido obrigadas a explicar como ela deveria lançar o círculo sagrado. Ele a vira superar sua hesitação inicial, depois passar de elemento em elemento,
chamado o Ar, o Fogo, a Água, a Terra e o Espírito para dentro do templo.
E, a despeito de sua inexperiência, seu poder ficara evidente na trama que se formara para unir o círculo.
E então ela havia dançado...
Ele respirou fundo. Sentira a respiração ficar mais forte, e um grunhido brotara, quase inaudível, de sua garganta. O desejo subira, quente e inexorável, através
de seu corpo, em consonância com as batidas de seu coração. Sua visão inumana tornara-se mais aguçada... e amaldiçoada. Por conta desta, ele pudera ver o suor e
o rubor na pele nua enquanto ela engendrava uma dança sedutora ao redor do círculo; a naturalidade com que o mamilo do seio exposto se contraíra, sedutor...
Tinha virado a enorme cabeça a fim de afastar a tentação e pressionara a testa na casca áspera do carvalho, até que as pontas de seus cornos cor de ébano descansassem
contra a árvore. Mas aquela brisa traidora voejara em torno dele, mais uma vez trazendo o perfume de rosas, óleo e especiarias da mulher, somado a seu suor e calor.
Resmungou uma maldição, condenando seus sentidos sobrenaturais. Que a deusa o ajudasse... o desejo ainda ardia dentro dele!
Mas por quê?
Ergueu as mãos, as quais se transformaram em garras afiadas que se cravaram na casca grossa da árvore. Por que, em seu longo cárcere, não conseguira curar aquela
vontade absurda?
Tinha ouvido a voz de Hécate entoando as palavras do ritual, ordenando à nova Empousa que se vinculasse a ela.
Amor e confiança.
Ela proferira as palavras, e a noite as tomara e as levara até ele, de maneira que pudera sentir o poder do juramento em sua própria pele.
Por que ela escolhera aquelas duas palavras? Por várias gerações, as Empousas de Hécate tinham escolhido, para se vincular à deusa, termos como: conhecimento, poder,
beleza, força, sucesso... E, no entanto, para completar o ritual de autoiniciação, a nova Empousa escolhera “amor e confiança”!
O Guardião mostrou os dentes. O que uma Sacerdotisa conhecia sobre o amor e a confiança? O que qualquer mulher mortal sabia sobre aquelas coisas? Ele havia pressentido
quando a multidão aproximara-se do templo, e ordenara que mais sombras o cercassem. As mulheres do reino não puderam vê-lo enquanto passavam pelo grande carvalho,
mas haviam sentido sua presença e desviado os olhos para a escuridão que o encobria, afastando-se, tensas, da gigantesca árvore.
Quando elas gritaram de alegria com a conclusão do ritual e começado a homenagear a Empousa com música e dança, ele se sentira como uma enorme ilha de tristeza no
meio de um oceano de alegria.
E ainda não conseguira parar de olhar para ela.
Naquele momento, a Sacerdotisa fechava o círculo e a chama da deusa mudara de cor, acariciando-lhe a pele nua. Seu corpo o hipnotizou mais uma vez enquanto ela se
aproximava de cada um dos elementos para dispensá-los.
Inconscientemente, ele cravou mais as garras na árvore, reduzindo a antiga casca a sulcos profundos.
Em resposta à súbita flexão de seus músculos, uma onda de dor percorreu-lhe os braços e peito.
Sentiu-se agradecido, porém. A dor o fazia lembrar-se de seu banimento e da razão para tanto. Estava enfeitiçado por várias gerações por conta de sua fraqueza.
Quanta ironia! Ele era uma fera. Nenhum mortal poderia igualar-se a ele em termos de força física... e uma fraqueza o tinha levado a faltar com seu dever e trair
a si mesmo.
Mas isso não aconteceria de novo. Não permitiria que aquilo acontecesse outra vez!
Sua mente clareou com um novo pensamento. Talvez tudo aquilo — os sonhos dela, seu despertar, e agora a volta daquele desejo insano — fosse parte de um plano da
deusa.
Sim...
Ele se endireitou, recolhendo as garras. Fazia sentido. Hécate estava lhe oferecendo a oportunidade de recuperar seu dever sagrado. Estava sendo tentado para que
pudesse provar a ela que não iria acontecer de novo.
Nunca mais ele trairia sua deusa e seu reino. Voltaria a exercer as funções que ela lhe atribuíra como o Guardião do Reino das Rosas. E quando chegasse a hora do
Ritual de Primavera do Beltane, completaria sua missão, levando aquela nova Empousa a conhecer seu destino.
Não sem esforço, o Guardião reprimiu os anseios dentro de si. Não iria ceder a suas fraquezas novamente. Por incontáveis gerações, ele havia protegido o reino mágico
de Hécate. Tinha sido sempre vigilante. Fora incansável em sua devoção.
E estivera sozinho, mesmo durante os breves momentos em que imaginara que sua solidão pudesse chegar ao fim.
Lembrou-se da dor de descobrir como estivera errado, e soube que a tristeza daquela rejeição fora maior do que todos os anos de solidão que a haviam precedido.
O que a última Empousa tinha dito era verdade. Ele era uma fera. Uma mulher poderia até se tornar sua amiga, poderia tratá-lo com compaixão, assim como faria com
um gato ou um cão fiel... mas jamais poderia amá-lo verdadeiramente. Pouco importava que a deusa tivesse lhe premiado com o coração e a alma de um homem. Esse coração
e essa alma encontravam-se dentro do corpo de um animal. Era seu destino ficar só. E um destino não poderia ser alterado.
Com um último olhar para a nova Empousa, ele se virou.
Dever. Apenas isso deveria guiar sua vida.
Mas parte do meu dever é garantir a segurança da Empousa; ter a certeza de que ela está sendo bem cuidada, o homem dentro dele sussurrou numa tentação.
Será que alguma das servas lembrara-se de que a Sacerdotisa precisava comer e beber após o ritual para se fortalecer? Claro que não.
Parou e olhou, por cima do músculo dilatado do ombro, para onde as mulheres riam e a cercavam. Ela era tão inexperiente que precisara aprender a lançar um círculo.
Não fazia ideia de que tinha de se alimentar e beber para repor as forças.
Mais uma vez, ele obrigou-se a desviar o olhar da Empousa. Rosnando um comando, fez com que as trevas o encobrissem ainda mais e traçou um caminho invisível para
longe da celebração no templo.
Quando encontrava-se distante da multidão, apertou o passo, cerrando o maxilar contra a dor que lhe irradiava dos músculos das pernas, as quais, até o dia anterior,
haviam estado mortas.
É meu dever como Guardião mandar preparar sua refeição e ter certeza de que ela se alimentará bem.
Sim, aquela era apenas mais uma obrigação.
Seus cascos fendidos, porém, batiam contra o chão macio num ruído abafado que parecia entoar uma só palavra: mentiroso... mentiroso... mentiroso...
Capítulo 12
Apenas quando parou de dançar Mikki sentiu voltar a vertigem. Tantas mulheres!, pensou, passando a mão pela testa suada e penteando para trás a massa de cabelos
desgrenhados.
E cada uma delas tinha uma palavra de boas-vindas para lhe dar, queria dançar em sua companhia ou rir com ela.
Por isso agora encontrava-se ofegante e sentia as pernas fracas. Definitivamente, estava esgotada.
— Empousa? — Nera a fitou, preocupada. — Sente-se bem?
— Só estou cansada. Foi um longo dia.
— Venha comigo. — Gii se pôs a seu lado, firmando seu cotovelo. Começou a conduzi-la em meio à multidão que ainda festejava, rumando para o palácio. — Quer que as
outras servas a acompanhem, Empousa? — indagou quando Nera, Floga e Aeras perceberam que elas se afastavam e fizeram uma pausa em sua celebração.
— Não! — Mikki falou depressa, sinalizando para que as moças permanecessem ali. A última coisa que queria agora era ser mimada. Na verdade, um pouco de solidão e
algo para beber seria perfeito. — Também não precisa deixar a festa, Gii. Tenho certeza de que posso descobrir o caminho de volta para meu quarto.
— É uma honra acompanhá-la — Gii afirmou. Então sorriu e passou a dispensar as mulheres que insistiam para que Mikki permanecesse na celebração, resgatando a Alta
Sacerdotisa da multidão.
Mikki suspirou e resignou-se aos cuidados maternais da serva. O palácio bem iluminado parecia aconchegante e convidativo, e ela ficou incrivelmente feliz em vê-lo
avultar-se sobre ela.
Abraçou a si mesma. Agora que não estava dançando, tornara-se consciente do ar frio da noite, bem como da fome que sentia. Quando tinha comido uma refeição de verdade
pela última vez? O jantar no Wild Fork havia acontecido na noite anterior? Como funcionava o tempo naquele reino mágico? Não era de admirar que estivesse faminta
e se sentisse tão fraca e enjoada...
Subiu a escada de mármore que levava à varanda aos tropeços, até que Gii parou de repente, quase fazendo-a trombar com ela. Surpresa, a serva fitava a linda mesa
que fora colocada próxima das portas abertas de seu quarto. Em meio à varanda escura, esta a aguardava sob o círculo de luz projetado por uma tocha. Uma manta espessa
fora colocada no encosto da única cadeira de ferro forjado e um par de chinelos descansava estrategicamente no chão ao lado.
E a mesa encontrava-se repleta de alimentos.
— Nossa! Quem fez isto é o meu novo herói!
Ignorando a reticência de Gii, Mikki correu pela sacada escura e enfiou os pés gelados nos chinelos. Então, como boa apreciadora de comida que era, gemeu em voz
alta diante da variedade de pratos a sua frente. Eram inúmeras as iguarias: queijos, azeitonas, fatias finas de carne, pão quente saído do forno.
Antes de se regalar com o banquete como uma esfomeada, porém, lembrou-se de Gii, que continuava de pé, perto da escadaria. Intrigada, percebeu que a serva parecia
ter esquecido-se dela. Sua atenção estava concentrada além das sombras, do outro lado da varanda.
Limpou a garganta para chamar a atenção da moça, e esta deu um pulo. E, embora Gii estivesse muito longe para que ela tivesse certeza, Mikki teve a nítida impressão
de que a serva parecia quase apavorada quando seus olhos se encontraram.
Sorriu para a moça, perguntando-se o que a estaria incomodando. E se ela tivesse cometido algum tipo de gafe ao correr para a mesa posta sem convidar a serva para
se juntar a ela? Certamente não tivera a intenção de ser rude com a pessoa que mais lhe demonstrara dedicação até o momento.
Mesmo preferindo ficar só para comer e relaxar, fez um gesto em direção à mesa.
— Eu sei que há apenas uma cadeira, mas podemos puxar outra do meu quarto até aqui. — Olhou para a mesa já com água na boca. — E há comida mais do que suficiente
para nós duas... Por que não janta comigo?
Lançando mais um olhar nervoso para as sombras, Gii sorriu e sacudiu a cabeça.
— Não, Empousa. Está cansada. É melhor comer à vontade e depois ir dormir. — A serva começou a se afastar. Então, mudando de ideia, virou-se e caminhou apressadamente
até ela, a preocupação tornando-se cada vez mais visível no rosto delicado. — Perdoe a minha impertinência, Mikado, mas não posso ficar calada...
— O que foi, Gii?
A jovem serva terminou de cobrir a distância entre elas e ajoelhou-se a seu lado, tomando-lhe as mãos. Embora sua voz não fosse mais do que um sussurro, falou com
uma intensidade que exigia toda sua atenção.
— Seu destino e o destino deste reino estão completamente entrelaçados agora. As escolhas que fizer terão muito mais consequências do que imagina.
Embora confusa, Mikki percebeu que a preocupação de Gii era genuína.
— Vou me lembrar disso, Gii. — E, não sabendo mais o que dizer, acrescentou: — Serei cuidadosa, prometo.
Parecendo aliviada, a serva assentiu e apertou suas mãos antes de soltá-las.
— Foi perfeita esta noite, Empousa. Bem-vinda ao Reino das Rosas. — Fez uma reverência profunda e, afastando-se, desceu a escadaria, desaparecendo tão rápida e silenciosamente
como se tivesse sido apenas um sonho.
Ela estava sozinha, por fim. O que tinha sido tudo aquilo?
Cansada demais para pensar sobre o comportamento estranho e os conselhos enigmáticos de Gii, Mikki alongou e girou os músculos dos ombros. Seu pescoço, assim como
o restante de seu corpo, estava rígido e dolorido. Que diabo havia de errado com ela? Deveria passar mais tempo na academia. Quem não deveria? Mas não se encontrava
em tão má forma que se divertir por cerca de uma hora e pouco pudesse fazê-la sentir-se como uma velha, ou então como alguém que tinha acabado de levar uma surra!
Suas mãos tremiam quando pôs queijo e carne no prato, mas, assim que engoliu alguns pedaços das deliciosas iguarias, começou a sentir-se melhor. Estremeceu e puxou
a manta larga do espaldar da cadeira, colocando-a sobre os ombros. Uma vez aquecida, partiu um naco de pão e suspirou, feliz, ao morder o miolo macio, imaginando
que este também alimentava-lhe a alma, além do corpo. Um lindo candelabro brilhava a sua frente, tal qual um parceiro silencioso que viera para a mesa apenas para
fazer-lhe companhia, e sua luz dançou através da taça de cristal com vinho tinto. Ela a ergueu, admirando a linda rosa gravada em sua superfície e agradecida por
alguém já ter lhe deixado o copo cheio, além de uma jarra inteira de vinho. Se havia uma boa ocasião para beber vinho, muito vinho, era aquela.
Mikki olhou ao redor, tentando ver algum movimento nas sombras mais ao fundo da varanda, mas o lugar continuava deserto.
Ao levar a taça aos lábios, ela parou, as sobrancelhas unidas. Flutuando no meio do pequeno mar escarlate da bebida havia um botão de rosa, tão vermelho que parecia
quase preto.
Que diabo fazia uma flor dentro do copo?
Sem ter certeza de como deveria tirar a rosa do vinho, Mikki olhou para a mesa, depois de novo para a taça de cristal. Deveria puxá-la com os dedos ou usar um garfo?
Talvez uma colher de sobremesa fosse mais adequada?
— E nem posso pedir outra taça — murmurou, pensando que encontrar um botão de rosa no vinho era o final perfeito para um dia no mínimo bizarro. O que poderia dizer?
“Ei, garçom, ou melhor, serva, há uma rosa na minha sopa, digo, no meu vinho!”? Balançou a cabeça e riu alto. — Inacreditável!
— Os povos antigos acreditavam que uma taça de vinho não podia ser desfrutada, a menos que houvesse um botão de rosa dentro dela... — Uma voz profunda e poderosa
retumbou da área da varanda envolta em sombras, fazendo com que os cabelos em sua nuca se eriçassem. — ... Um hábito ao qual eu aderi.
Mikki pulou e atrapalhou-se com a taça, deixando-a quase cair.
— Perdoe-me por assustá-la, Empousa.
— E-Eu não estava esperando companhia... — Mikki vacilou, tentando enxergar através das sombras. Só havia escuridão, contudo ela não precisou vê-lo. Sabia de quem
era aquela voz.
Sentiu o estômago se apertar. Respirou fundo e puxou mais a manta sobre os ombros, subitamente consciente de que não tinha se trocado depois do cerimonial e que
continuava muito exposta.
— Pensei que estivesse sozinha — disse, espantada por a própria voz soar tão normal.
— Eu não queria perturbá-la. Vim apenas para me certificar de que iria se alimentar bem após o ritual.
Mikki olhou na direção da voz sem rosto e, ignorando a flor dentro da taça, tomou um longo gole de vinho. Era ele... A estátua. A fera de seus sonhos. A criatura
que a espreitara através do roseiral.
Ao contrário de sua voz, suas mãos não puderam lhe esconder as emoções tão facilmente, e ela teve de apertá-las em torno da taça para se impedir de bater o cristal
contra os dentes.
Quando ela não respondeu, a fera continuou falando naquela voz áspera e intensa, tão em desacordo com a civilidade de suas palavras:
— Mais uma vez, peço que perdoe minha falta de juízo, Empousa. Eu só quis ver se tudo se encontrava ao seu gosto, para que pudesse se sentir melhor. Não tive a intenção
de incomodá-la.
Ela olhou para o espaço escuro de onde a voz se originava.
— Você fez tudo isso?
— Orientei os servos... sim. Deve se lembrar sempre de comer e beber depois de lançar o círculo sagrado ou realizar qualquer ritual. Dessa forma, conseguirá se estabelecer
melhor neste mundo. Se não fizer isso, vai se sentir fraca e doente.
Mikki precisou engolir uma risada histérica. Estava conversando sobre regras a ser adotadas após um ritual divino com a estátua viva de uma fera, a qual falava como
um professor universitário e com uma voz que poderia pertencer ao Godzilla...
Era uma loucura total.
Tomou outro longo gole da bebida. Desta vez sentiu o perfume do botão de rosa e notou a maneira como este acentuava o aroma do vinho encorpado.
Baixou a taça e observou a mesa posta: toalha de linho, porcelana fina, cristais gravados com o desenho de uma rosa, baixelas repletas de deliciosas iguarias...
E, para completar, uma manta quente e chinelos confortáveis.
Ele havia pedido tudo aquilo?
Olhou para o canto da varanda e, em seguida, tornou a desviar o olhar às pressas para servir-se de mais vinho. Seu silêncio a fazia ainda mais nervosa do que sua
voz poderosa e inumana. Ele a deixara ou continuava ali, à espreita?
A erótica cena de perseguição de seu sonho brotou-lhe na memória, fazendo suas faces corarem e as palavras saírem altas demais de seus lábios.
— Eu não sabia que precisava me alimentar depois dos rituais... Está tudo delicioso, obrigada.
Mikki quis morder o lábio diante da própria idiotice. Precisava, mesmo, agradecer a ele?
— Não me deve nenhum agradecimento, Empousa. Sou o Guardião deste reino. É meu dever velar pelo bem-estar das pessoas que nele habitam, e isso inclui a Alta Sacerdotisa
de Hécate — ele respondeu.
— Ah, bem... — ela murmurou, desajeitada, sem saber o que dizer, mas querendo ser educada. — Ainda assim, muito obrig...
— Não!
Mikki sentiu a força do comando na pele e o sangue de seu rosto, antes corado, se esvair. A garantia de Hécate de que a fera não lhe faria mal algum de repente não
pareceu suficiente; ela apertou as mãos nos braços da cadeira e juntou as pernas, pronta para correr para o quarto e se trancar lá. Talvez ele não entrasse no palácio.
Ou talvez ela pudesse pedir ajuda e...
— Perdão! Parece que a assustei novamente... Não tive a intenção, eu juro. Acontece que não deve me agradecer por nada. O que eu fiz é parte do meu dever, por isso
Hécate me convocou. Compreende?
Ele estava tentando modular a voz para um tom mais suave e menos intimidante, e Mikki reconheceu seu esforço, ainda que ele não estivesse sendo de todo bem-sucedido.
Em vez de responder imediatamente, ela soltou os braços da cadeira e, com ambas as mãos, ergueu a taça de vinho aos lábios mais uma vez.
Após ter tomado outro gole da bebida fortificante, tornou a encarar as trevas. Aquilo era ridículo e duas vezes mais assustador, afinal estava falando com uma voz
desencarnada e deixando a imaginação preencher todos os detalhes sinistros da aparência da fera.
— Estou tentando entender, mas não é fácil. Muito menos porque não consigo ver com quem estou falando.
Houve uma longa pausa.
E então ele saiu da escuridão.
A taça de cristal escorregou dos dedos dormentes de Mikki e espatifou-se no chão de mármore. A fera fez menção de se aproximar mais e, sofrendo outra súbita descarga
de adrenalina, Mikki, pôs-se de pé, derrubando a cadeira no processo.
Ao vê-la pisando os cacos de cristal, ele estacou.
— Cuidado... Pode se cortar mesmo usando os chinelos. — As palavras eram gentis, entretanto a voz que as proferia vibrava, bestial.
Mikki não conseguia respirar e não pôde fazer com que suas cordas vocais trabalhassem. Conseguia apenas mirar a criatura.
Ele suspirou, então, e ela reconheceu o ruído familiar, o que lhe permitiu uma exclamação abafada em meio ao pânico.
— Eu não vim lhe fazer nenhum mal. Tem a minha palavra de que não corre nenhum perigo.
Seus lábios estavam gelados e insensíveis, porém Mikki forçou-se a falar.
— Você é mesmo a estátua... A mesma do roseiral.
— Sim — ele assentiu com um gesto da cabeça enorme. — Você me conhece de quando eu me encontrava em seu mundo, sepultado em meio ao mármore... Agora que acordei,
retomei minha posição como Guardião do Reino das Rosas.
Mikki passou a mão trêmula pela testa como se pudesse clarear a mente.
A criatura avançou mais um passo em sua direção; os cascos batiam, assustadoramente, no silêncio da varanda.
— Não! — ela desabafou, o sangue pulsando nos ouvidos. — Fique longe de mim!
Como se para mostrar que não lhe faria nenhum mal, ele levantou a mão imensa.
Mikki fitou-a sem piscar. Apesar do tamanho, esta parecia normal. Contudo, vislumbrara algo como garras afiadas e mortais à luz bruxuleante da tocha.
Ele fechou a mão e deixou-a cair de lado, onde foi envolta pelas sombras.
— Pensei que fosse desmaiar.
— Estou bem — ela replicou. Escolheu o caminho com cuidado em meio aos pedaços de cristal, endireitou a cadeira e permitiu-se afundar nela antes que as pernas cedessem.
— Não vou desmaiar. — Obrigou-se a soar tão normal quanto possível. Ele havia prometido que não iria machucá-la. A própria Hécate dissera o mesmo... Até porque,
se ele fosse atacá-la, de nada adiantaria desmaiar.
Entrelaçou as mãos, tentando impedi-las de tremer.
— Estou bem, verdade — garantiu, mais para si própria.
— Precisa comer — ele lembrou. — Isso vai fortalecê-la.
Mikki apenas fitou. Como, diabos, poderia comer com aquela fera parada ali?
Ficou surpresa ao ver a compreensão em um rosto tão estranho. E, ao mesmo tempo, reconheceu algo mais. Algo que nublou a voz poderosa como névoa: tristeza.
Ele realmente parecia triste. Ou era era apenas sua imaginação?
— Eu deveria deixá-la comer à vontade, mas primeiro permita-me... — Ele se interrompeu e deu um comando em uma voz áspera e ininteligível. Estendeu a mão enorme
e, de repente, uma taça de cristal idêntica à que tinha quebrado surgiu no ar. Ele a apanhou no mesmo momento.
Mikki deixou escapar algo entre um soluço e um grito dos lábios.
— Não queria outra taça? — ele perguntou.
Ela conseguiu apenas acenar com um gesto de cabeça quando tudo o que queria dizer era que precisava de um Valium para engolir com o vinho.
A fera a observou, atenta, e ela teve a impressão de que sua expressão se atenuara. Porém seu rosto era tão feroz que era difícil dizer.
— Posso levar esta taça até você?
Mikki hesitou, depois assentiu novamente com um movimento rápido e leve de cabeça.
Ele avançou devagar, com uma graça atlética e tão intimidante quanto selvagem; o barulho dos cascos escuros contra o mármore da varanda ecoando no silêncio.
Mikki não conseguiu desviar o olhar um só instante. Quando ele se aproximou, não pôde evitar colar as costas na cadeira onde continuava rígida e imóvel, o coração
batendo com força nos ouvidos. Por um momento, pensou que fosse passar por mentirosa e perder os sentidos.
Ele a ampararia se isso acontecesse?
Apenas pensar que ele poderia tocá-la a fez estremecer.
Tão logo aproximou-se do cristal quebrado, ele fez um gesto com a mão e murmurou uma palavra.
Os estilhaços o obedeceram de pronto, voando para longe da varanda em um pequeno tornado de cristal.
Então ele se pôs ao lado da mesa e a luz do candelabro bruxuleou sobre as linhas musculosas de seu corpo. Manteve-se imóvel, como se lhe desse tempo para estudá-lo
e habituar-se a proximidade.
A estátua do parque não usava roupas, porém ele se encontrava coberto por uma espécie de couraça preta sobre uma túnica curta. O traje lembrava o que Russell Crowe
usara em Gladiador, ainda que, se os dois ficassem lado a lado, o Guardião teria feito o ator australiano parecer um menino.
A criatura era enorme, devia ter mais de dois metros de altura. Seu cabelo era negro como uma noite de lua nova e caía, denso, sobre seus ombros maciços. Dois chifres
escuros e afilados saíam de sua cabeça, curvando-se para a frente.
E seu rosto...
Mikki prendeu a respiração. O rosto da estátua tinha sido grosseiramente talhado, mas o do Guardião não era uma pedra inacabada. Era másculo, com sobrancelhas grossas
e bem desenhadas, linhas bem definidas e um queixo quadrado. Lembrava aquelas imagens antigas estampadas nas moedas estrangeiras ou esculpidas em estátuas de guerreiros
mortos havia muito tempo.
A combinação das características clássicas com os chifres e o brilho acentuado dos dentes de um carnívoro, contudo, mostrava que o homem não dominava completamente
a fera, a qual parecia tão próxima da superfície.
Seu peito de armas e túnica deixava parte de seu corpo musculoso nu. A pele que cobria seu torso era morena e parecia bronze à luz das velas.
Mikki permitiu-se olhar mais para baixo. Ela sabia o que iria ver, mas, ainda assim, prendeu a respiração, chocada com a realidade. Suas pernas grossas eram cobertas
de pelo escuro. Em vez de pés, a luz tremeluzente iluminava cascos fendidos.
Ele era a personificação do poder animalesco e, embora não a ameaçasse, a aura de selvageria que o cercava era quase palpável.
Mikki estremeceu e puxou mais a coberta em torno dos ombros.
— A noite está ficando fria — disse a fera o mais suavemente possível. — Eu devia ter posto seu jantar junto da lareira.
— E-Está bom aqui — ela gaguejou.
— Verdade? Ou está apenas sendo educada?
— Não. Costumo jantar na varanda da minha casa — ela afirmou, sentindo uma ponta de saudade. Não que sentisse falta de sua antiga vida, mas o apartamento confortável
e a vista que costumava ter do Woodward Park seria sempre uma lembrança amarga.
— Então, fico feliz por ter me decidido por servir seu jantar em sua nova varanda, Empousa.
Devagar, ele colocou a taça sobre a mesa e, com um gesto cortês, totalmente contrário a sua aparência bestial, encheu-a com o vinho da jarra. Cada um de seus movimentos
foi realizado sem pressa e com uma graça felina.
Como um predador, ela refletiu.
Tão logo a serviu, ele recuou um passo e sinalizou para a taça cheia sobre a mesa.
— Beba. Vai ficar mais calma.
Mikki obedeceu, mal sentindo o gosto do excelente vinho tinto. Sentia-se como se seu corpo estivesse destacado da alma; contudo, a bebida a aqueceu e a ajudou a
ancorar os sentidos. Bebeu vários goles, sem se importar se o vinho a deixaria tonta ou confundiria seus pensamentos.
Estes, afinal, já eram mais do que suspeitos.
— Eu sonhei com você. Lá atrás, em seu antigo mundo... em sua antiga casa. Sonhei com você muitas vezes.
As palavras a fizeram pousar a taça com força demais e esta também se quebrou. Mikki ergueu os olhos para os dele. Eles eram amendoados, escuros e profundos.
— Eu sei — respondeu num fio de voz. — Eu também sonhei com você.
— Foi um choque — ele confessou, desviando o olhar para fitar as trevas. — Depois de todos esses incontáveis anos de vazio... — Sacudiu a cabeça e seus cabelos moveram-se
suavemente em torno de seus ombros. — Parecia impossível que eu estivesse consciente outra vez. A princípio, eu a sentia, mas não podia vê-la. Apenas sabia da sua
presença... — Sua voz soou grave, hipnótica, porém seu rosto permaneceu impassível como se parte dele houvesse transformado-se em pedra mais uma vez. Ele não ousou
encará-la. — ... Então os sonhos mudaram. Tornaram-se mais reais. Eu podia vê-la e senti-la. Foi quando me chamou e me despertou por completo. Eu sabia que era a
Empousa de Hécate. Somente esta poderia ter me despertado. Meu domínio sobre a magia voltou, e eu a trouxe até aqui.
— Eu pensei que estivesse enlouquecendo — confessou Mikki, desejando que ele a fitasse ou lhe desse alguma pista sobre o que estava sentindo.
Contudo, ele continuou fitando a noite.
— Não, Empousa. Não está louca. Está cumprindo seu destino.
Capítulo 13
— Você sabe que esse não é o meu nome! — ela protestou num desabafo.
Engoliu em seco. Por que, diabos, tinha dito aquilo?
Ele virou a cabeça e a encarou finalmente.
— Claro que não. Empousa é um título de respeito, não um nome.
— Mesmo assim, ainda não soa como se fosse eu. Como tudo, aqui parece estranho... fora de lugar. — Ela reprimiu um suspiro, perguntando-se como podia estar falando
com tanta naturalidade com aquela criatura.
— Se não quer que eu a chame de Empousa, então como devo chamá-la?
— Mikki.
Ele franziu a testa larga e, por um momento, ela pensou ver uma ponta de humor nos olhos escuros.
— Mikki? Isso é um nome?
— Não o meu nome de batismo, mas é como todos me chamam.
— E qual é o seu nome?
— Mikado.
— Ah. — Ele balançou a cabeça sorrindo e, à luz das velas, seus dentes afiados reluziram. — A rosa Mikado. Bem conveniente.
Mikki tomou outro gole de vinho e, conforme um delicioso calor propagou-se por seu corpo, viu-se dominada por uma súbita coragem. Limpou a garganta e falou rapidamente
antes que mudasse de ideia:
— Qual é seu nome?
— Eu sou o Guardião das Rosas.
Mikki franziu o cenho.
— Mas como posso chamá-lo?
— Sempre fui chamado de Guardião.
— Guardião? — ela repetiu, em dúvida. — Mas soa como Empousa: um título, não um nome.
— É o que eu sou. Título ou nome, não existe diferença para mim. — Sua expressão mudou de novo e, desta vez, Mikki teve a certeza de ver tristeza nela antes que
esta se transformasse em uma máscara indecifrável. Ele era um poço de contradições. Em um instante, tirava-lhe o fôlego de medo; no outro, fazia com que ela sentisse
pena dele.
Mikki sentiu a cabeça rodar de leve. Estava mais relaxada. Não tranquila, porém relaxada o suficiente para se permitir mais uma pergunta.
— Estou imaginando você? Isto tudo está acontecendo apenas na minha mente?
— Não. Somos todos reais: você, eu, assim como o Reino das Rosas e a deusa a que ambos servimos.
— Então não estou dormindo e sonhando com isto?
— Não, Mikado. — Ele enunciou seu nome com cuidado. — Não desta vez.
Seus olhos encontraram os dela, escuros e expressivos, como se ele estivesse se recordando do que acontecera em seus sonhos.
— Está bem desperta, assim como eu... finalmente.
— Às vezes meus sonhos pareciam mais reais que o mundo à minha volta.
Devagar, sem tirar os olhos dela, ele aproximou-se e ergueu a mão para tocá-la de leve no rosto.
— Rompeu o feitiço que me sepultava... Terei uma dívida de gratidão para com você por toda a eternidade.
O calor de sua carícia a fez estremecer. Ele deixou cair a mão e se afastou.
— Por que eu? — A voz de Mikki soou áspera, refletindo o misto de medo e fascínio que duelavam dentro dela. — Como posso ter quebrado um feitiço do qual nem tinha
conhecimento?
— Você carrega o sangue da Sacerdotisa de Hécate. Nenhuma outra poderia ter rompido o feitiço e me despertado.
— Então despertei você... — Mikki repetiu. — E estou aqui porque precisava ser libertado de um encantamento.
— Não, Empousa — o Guardião disse com firmeza. E o poder que ela mantivera dominado vibrou entre eles mais uma vez. — Não está aqui por minha causa. Está aqui por
causa das rosas.
Mikki encolheu-se inadvertidamente diante da força de sua voz, mais uma vez temendo a monstruosa criatura diante dela.
O Guardião suspirou. Quando tornou a falar, havia modulado a voz de novo:
— Termine sua refeição sossegada. Se precisar de alguma coisa, basta chamar e suas servas virão atendê-la. Boa noite. — Ele se curvou, respeitoso, depois se virou
e desapareceu nas sombras de onde tinha vindo.
Quando Mikki teve a certeza de que ele fora embora, soltou as mãos apertadas e enxugou o rosto.
Calma... Respire. Deixou as palavras instalarem-se em seu corpo.
E, em vez de pegar a taça de vinho, começou a comer carne e queijo devagar. Precisava pensar com clareza. Alimentar-se a fez se sentir mais normal, e ela o fez,
permitindo que o simples ato de reabastecer o próprio corpo rejuvenescesse-lhe a mente. Não bebeu mais nem pensou sobre a conversa impossível que acabara de ter
até ter aplacado a fome e a sensação de tontura, desaparecido.
Fez uma pausa no jantar e tomou um gole do vinho. Os alimentos haviam tido o efeito que ele prometera. Sentia-se satisfeita e normal novamente; se é que pudesse
usar a palavra “normal” para se referir a qualquer coisa que estava experimentando naquele mundo de fantasia.
A criatura... Como algo tão terrível e poderoso podia caminhar e falar como um homem? Quando era estátua ela sempre pensara nele mais como homem do que como um animal.
Mas vê-lo vivo e ouvi-lo falar a fizera compreender muito bem que ele não era, nem poderia ser, apenas um homem.
Não está aqui por minha causa. Está aqui por causa das rosas.
As palavras ainda pareciam ecoar na varanda vazia, acusando e zombando dela. Lembrou-se da tristeza que lhe sombreara o rosto. As bestas sentiam tristeza? Um animal
teria posto uma mesa suntuosa para uma mulher e, em seguida, deixado um botão de rosa em seu vinho? Poderia entrar nos sonhos e fantasias de uma mulher?
E por que uma fera tocaria seu rosto com tanta doçura?
Ele não era, nem poderia ser, qualquer animal.
Mikki tentou concentrar-se em coisas que ele dissera. Ele não era um sonho. Não era uma alucinação. Tinha sido tudo muito real.
Está aqui por causa das rosas, havia dito, assim como Hécate.
Mas o que aquilo significava?
— Amanhã — disse em voz alta. — Amanhã eu vou descobrir tudo.
Bebeu um último gole do vinho e, com um gemido de protesto devido aos músculos rígidos, arrastou-se da varanda para o quarto.
Enquanto estivera ocupada, conversando com uma estátua viva, alguém apagara os candelabros, deixando apenas um deles aceso. O fogo fora amainado, contudo o quarto
continuava agradavelmente quente após o frescor da noite. As roupas de cama espessas tinham sido puxadas para ela e uma camisola, muito parecida com a que ela usara
na noite anterior, fora disposta ao pé da cama.
Antes de se trocar, Mikki fechou as portas para a varanda, nervosa, e puxou as grossas cortinas de veludo. Então livrou-se do escasso vestido do ritual e, agradecida,
vestiu a camisola macia.
Enquanto enfiava-se em meio aos acolchoados, pensou como gostaria de mergulhar o corpo rígido em uma banheira com água quente.
Suspirou. Poderia apostar que, na manhã seguinte, estaria um trapo.
Sentiu as pálpebras pesadas. Era impossível mantê-las abertas.
Seu pensamento final, antes que mergulhasse no sono, foi se perguntar se ele a visitaria em seus sonhos naquela noite...
Em seu covil, o Guardião andava de um lado para o outro. Devia estar satisfeito... Poderia estar comemorando sua libertação. Por fim, depois de todos aqueles anos
de silêncio e imobilidade, vivia e respirava.
E ela estava ali. Pouco importava que fosse inexperiente ou que tivesse vindo do mundo comum, onde ele ficara sepultado por muitos séculos. Ela contava com a bênção
de Hécate. Mikado era a nova Empousa. As coisas no Reino das Rosas, mais uma vez, voltariam ao normal.
Lembrou-se do medo em seus olhos quando ele saíra das sombras, mas então esse medo tinha mudado e sido temperado com fascínio, embora seu poder a intimidasse. Sabia
como ela estava se sentindo. Fora seu próprio fascínio por ela que o havia despertado. Ele já a conhecera antes, da ocasião em que ela invadira sua mente até mesmo
dentro do mármore. Não quisera admitir isso nem para si mesmo. Mas agora que ele a vira, conversara com ela, sentira seu perfume e tocara o calor de sua pele...
não poderia mais se iludir. Seu desejo por ela era como o ar que o preenchia e sustentava. Sentia-se vivo apenas quando ele a respirava.
— Por quê? — resmungou enquanto andava.
Um teste. Era a única resposta. Hécate lhe dera esse encargo para suportar e, por todos os Titãs, ele iria fazê-lo!
A primavera chegava cedo ao Reino das Rosas. Certamente a deusa o aliviaria de sua agonia até lá e, então, ele poderia voltar para o isolamento, que sempre fora
seu inimigo menos cruel. Até lá iria manter-se ocupado com os próprios deveres, os quais, admoestou a si mesmo, não incluíam observar a Empousa comer. Aquilo fora
mais uma mentira que seu sedicioso desejo transformara em uma verdade temporária. Não precisava ter ficado e assistido, tampouco precisara falar com ela. O ritual
a deixara faminta e sedenta, porém seu corpo teria exigido cuidados, naturalmente. Até mesmo os espíritos dos Elementos teriam eventualmente explicado um conceito
tão básico à inexperiente Sacerdotisa.
Ele não deveria se iludir. Ficar longe dela era a escolha mais sábia, e isso seria fácil. Não tinha necessidade de vê-la para saber quando ela estava perto. Conhecia
seu cheiro.
Cerrou os punhos e reprimiu a vontade de socá-los contra as paredes lisas da caverna. O cheiro dela iria avisá-lo de sua proximidade, assim como o sol brilhando
em seus fartos cabelos cor de cobre.
Havia tocado aqueles cabelos em seus sonhos. Tinha deslizado as mãos por sua pele lisa, deleitando-se com sua suavidade.
E ela o havia tocado de volta, acariciando seu corpo como se eles fossem amantes. Ele vira a lembrança daquele toque em sua expressão. Tivera vontade de reagir,
exatamente como desejara reagir ao corpo dela quando este estremecera sob o dele no último sonho...
— Não! — gritou, inconformado. Não podia permitir que aquilo acontecesse de novo. Agora tinha uma chance de endireitar seus erros passados. Não deveria amá-la. Não
poderia. E desta vez não se enganaria, acreditando que existia alguma chance de ela amá-lo de volta, embora, na realidade, seus sentimentos pouco importassem.
Ela era Empousa de Hécate, portanto, deveria morrer.
Afundou na cama de peles em que dormia e afundou o rosto nas mãos. Queria chorar, mas sentia-se vazio de tudo, exceto de dor e desespero. Não obteria conforto nas
lágrimas.
— Sente por eu ter permitido que ela o despertasse?
O Guardião virou a cabeça e deparou com sua deusa trajando toda sua indumentária: o penteado de estrelas, envolta no véu da noite, com a tocha acesa na mão e a outra
repousando sobre a cabeça de um dos gigantescos cães.
Numa súplica, caiu de joelhos diante dela, com a cabeça tão baixa que seus chifres tocaram o solo a seus pés.
— Grande deusa! Alegro-me por estar em sua presença mais uma vez.
— Levante-se, Guardião — ordenou Hécate.
— Não posso, Senhora. Não até que me perdoe pelo meu crime.
— Não cometeu crime algum. Apenas sucumbiu à humanidade que depositei em você. Foi um equívoco castigá-lo de modo tão severo por uma fraqueza com que eu mesma o
contemplei.
Os ombros largos estremeceram com o esforço que ele precisou fazer para manter as emoções sob controle.
— Então peço que perdoe a minha fraqueza, grande deusa!
Hécate curvou-se para tocá-lo na cabeça.
— Eu já demonstrei meu perdão quando permiti que minha nova Empousa o despertasse. Agora levante-se, Guardião.
Devagar, ele obedeceu.
— Obrigado, Senhora. Não vou decepcioná-la outra vez.
— Eu sei disso. Mas não vamos falar de um passado que está morto. Você finalmente voltou para mim. Meu reino sentiu muito sua ausência, assim como eu.
— Estou preparado para retomar minhas funções, Senhora, se isso for de sua vontade.
— Claro que é. — Hécate passou a mão pelo ar, reunindo um poder invisível, até que esta brilhou. Em seguida, num movimento rápido, arremessou a luz brilhante sobre
ele.
— Tenho a honra de devolver-lhe os domínios sobre as tramas da realidade.
O Guardião tornou a baixar a cabeça conforme o poder mágico reassentava em seu corpo, preenchendo-o com seu calor familiar. Quando foi capaz, encontrou os olhos
cinzentos de sua deusa.
— Obrigado, Hécate.
— Não precisa me agradecer. Estou devolvendo o que é seu. Durante todo o tempo em que esteve fora, as servas nunca pegaram seu jeito... Nem mesmo atuando como os
Quatro Elementos foram capazes de costurar a realidade aos sonhos mortais como sempre fez.
— Estou ansioso por começar de novo, minha deusa.
— Eu não esperaria menos de você. Mas, esta noite, ordeno que descanse. Pode começar amanhã.
— Sim, grande deusa — ele concordou e abaixou a cabeça novamente, esperando que ela desaparecesse como sempre fazia: em uma chuva de estrelas.
Quando Hécate não o fez, ergueu o olhar, curioso diante de sua hesitação.
— Senhora?
— Como sabe, minha Empousa voltou.
Ele assentiu com um gesto de cabeça.
— Ela... — Hécate fez uma pausa, escolhendo as palavras com cuidado. — Ela não é como as outras Empousa. É do mundo comum. Este reino lhe é estranho e novo.
— E ela é mais velha do que a outras Sacerdotisas — ele lembrou.
O olhar de Hécate o fez praguejar em silêncio por sua ousadia.
— Tem razão. E também é verdade que ela não conhece as tarefas de uma Sacerdotisa. Mantenha-se atento ao que ela faz, Guardião. Mikado tem muito a aprender e muito
pouco tempo para fazê-lo. O dia de Beltane já está chegando.
Ele abaixou a cabeça.
— Farei sua vontade, Senhora.
Os olhos cinzentos e penetrantes de Hécate o fitaram.
— Desta vez, tomei providências para que não se sinta tentado a errar. Com o retorno de seu poder sobre as tramas da realidade, também lhe dei um... — ela fez uma
pausa e curvou os lábios em um sorriso de lado — ... digamos, seu próprio fio de realidade. Sei que seu corpo ardia pela minha última Empousa e que ela usou esse
desejo contra você quando buscou o impossível. Então, nunca mais se verá tentado a trair a si mesmo por conta da luxúria de novo. Saiba que agora será impossível
consumar seu desejo por uma mulher, a menos que esta o ame e o aceite como a fera que é, assim como o homem que se esconde dentro da criatura. Portanto, estará a
salvo de seus sonhos impossíveis. Compreende, Guardião?
Dominado pela vergonha, ele abaixou a cabeça novamente.
— Sim, grande deusa.
A voz dela suavizou:
— Não faço isso por crueldade. Faço para protegê-lo, assim como meu reino. Afinal, que mulher mortal poderia amar uma fera de verdade?
Sem esperar por qualquer resposta dele, Hécate levantou a tocha e desapareceu em um turbilhão de luz, deixando seu Guardião como ele estivera antes: sozinho e cheio
de desespero.
Capítulo 14
Ao contrário da primeira vez, Mikki não se viu confusa ou com aquela estranha sensação de deslocamento quando despertou. Sabia exatamente onde estava. Abriu os olhos
para a luz alegre da manhã que brilhava tal qual uma onda dourada através da parede de vidraças. Alguém tinha aberto as cortinas e ela percebeu que a mesa onde havia
jantado na noite anterior fora reposta com um farto café da manhã.
Aquilo era obra dele? Estaria lá fora, esperando para observá-la mais uma vez?
Mikki sentiu o estômago apertar-se ao perguntar-se como seria vê-lo em plena luz do dia. Na noite anterior, ele se mesclara à escuridão como um bicho-papão... Ou,
sua imaginação murmurou, traiçoeira, como um amante proibido.
— Contenha-se! — Mikki sentou-se, sacudindo a cabeça como se o movimento pudesse lhe clarear os ridículos pensamentos, e, mais uma vez, foi surpreendida pela beleza
do quarto que agora era seu.
Afastando o Guardião dos pensamentos, ela quis saltar da cama e correr para a maravilhosa varanda, como qualquer um que possuía a sorte de viver em um lugar incrível
como aquele teria feito... contudo, só conseguiu mancar para fora da cama e soltar um gemido ao endireitar o corpo.
Caramba, como estava dolorida!, pensou, mancando até as portas da sacada. Quando as virgens a tinham conhecido, haviam dito claramente que ela era velha demais para
ser Empousa. Talvez porque só mesmo uma adolescente para resistir às consequências de se lançar um círculo e depois ficar dançando o restante da noite acompanhada
por um bando de mulheres...
Agora até mesmo seus cabelos pareciam doer.
Cheirou a si mesma. Precisava de um banho. De preferência um quente e bem longo.
Abriu as portas da varanda e foi recebida por uma brisa fresca com perfume de rosas, desviando sua atenção da refeição que a esperava, de seus músculos doloridos
e do misterioso Guardião, e incitando-a a atravessar a ampla sacada a fim de mirar os vastos jardins.
Mikki ficou extasiada. O espaço que estendia-se diante dela era preenchido por fileiras e fileiras de canteiros de rosas, as quais cintilavam em nuvens coloridas
sobre o céu esverdeado de seus ramos. Vários caminhos formavam labirintos de mármore branco em torno dos jardins, ligando-os a árvores e arbustos, além de uma ou
outra fonte. Dali podia ver o mármore cor de creme do teto abobadado do Templo de Hécate, e o reflexo dançante do sol que vinha da enorme fonte central próxima deste.
Era tudo tão lindo que enfraqueceu a descrença e o cinismo, os quais ela levava como escudo desde muito moça. Poderia ser feliz ali... Poderia pertencer àquele lugar.
— Você escolhe, Empousa.
Desta vez, a presença de Hécate não a assustou. O fato de a deusa materializar-se a seu lado era apenas um reforço para o milagre que descortinava-se a sua frente.
— Eu pertenço a este lugar — afirmou Mikki, sem desviar o olhar dos jardins.
— Sim, este é seu destino. — A deusa pareceu satisfeita com sua afirmação.
Mikki virou-se para Hécate e viu-se invadida pela surpresa. Na noite anterior, a divindade parecera ter entre trinta e cinquenta e poucos anos.
Naquela manhã, Hécate usava o mesmo traje escuro e brilhante, o mesmo penteado cheio de estrelas. Os cães gigantescos continuavam a seus pés, como tinham estado
antes... Mas a deusa havia rejuvenescido décadas. Tinha o rosto cheio de frescor, o corpo jovem de uma adolescente e a face lisa tocada por um leve rubor cor de
pêssego.
Hécate ergueu as sobrancelhas arqueadas.
— Não reconhece sua deusa, Empousa?
Mikki engoliu em seco. Ela podia parecer uma adolescente, mas não perdera sua aura de poder.
— Não é que eu não a reconheça, mas... está me parecendo tão jovem!
— Isso porque, das minhas três formas, escolhi a Virgem hoje. Mas não se engane pela minha fachada da juventude. Já deve saber que o exterior de uma mulher não define
o que ela tem por dentro.
— Pode não defini-la por dentro, mas com certeza a afeta. Sou madura o suficiente para saber disso — afirmou Mikki sem preâmbulos.
Então, horrorizada com o tom brusco que adotara, acrescentou depressa:
— Não tive a intenção de desrespeitá-la.
Os olhos cinzentos e inteligentes da deusa pareceram sábios demais para seu rosto jovem.
— Não considero desrespeito uma Empousa falar honestamente comigo, Mikado. E está certa. Muitas vezes, somos julgadas por nosso exterior; sobretudo em seu antigo
mundo, que há muito esqueceu-se das lições das deusas. — Hécate deu de ombros. — Mesmo em meu reino, onde a aparência de uma mulher não deveria servir como base
para seu julgamento, minhas filhas muitas vezes esquecem-se das lições da deusa de três caras. — Os olhos sábios e cinzentos de Hécate brilharam. — Por exemplo,
alguns diriam que uma Empousa da sua idade é muito velha para assumir o papel de minha Alta Sacerdotisa. Não em minha presença, mas, sem dúvida, diriam... Como responderia
a tal impertinência, Mikado?
Mikki ignorou a tensão nas costas e nos músculos doloridos, e sustentou o olhar da deusa com firmeza.
— Eu diria que posso ser mais velha, mas isso significa apenas que vivi mais... Então sugeriria que cuidassem de suas jovens vidas. Idade e experiência normalmente
triunfam sobre a juventude e a exuberância.
Hécate riu e, quando o fez, sua aparência mudou outra vez para a bela mulher de meia-idade que Mikki vira na noite anterior.
— Vou contar-lhe um segredo, minha Empousa. Das três, esta é a forma que eu prefiro. A juventude é muitas vezes desprezada.
— Principalmente pelos jovens — Mikki concordou.
Sorriram uma para a outra e, por um momento, não eram uma deusa e uma mortal. Eram apenas duas mulheres em perfeita sintonia.
Depois de um breve silêncio, Hécate manifestou-se outra vez.
— Imagino que isso tudo lhe pareça bastante incomum. — Fez um gesto, abrangendo os jardins e o palácio.
Incentivada pela acessibilidade da deusa, Mikki deu um sorriso de lado.
— É estranho, incomum e irresistível. Sinto-me atraída demais por tudo o que há aqui. — Apressou-se em continuar, não querendo que Hécate se lembrasse de incluir
naquilo seu visitante da noite anterior. — Quando lancei o círculo e realizei o ritual de iniciação, eu me senti mais bonita e poderosa do que em toda minha vida.
Hécate assentiu.
— O sangue de minha Empousa corre em suas veias, Mikado. Jamais poderia sentir que pertencia ao mundo comum. Parte de você ansiava retomar seu lugar em meu reino.
Suspeito de que mesmo sua mãe, e as mães antes dela, passaram por esse desconforto.
Mikki pensou na mãe, lembrando-se de como ela sempre preferira ficar sozinha, ou passar o tempo trabalhando em seu jardim, com suas rosas, a se socializar. De como
esta não parecia nem mesmo sentir a falta do marido. Quando ela, Mikki, perguntava sobre o pai, a mãe dizia apenas que ela fora resultado de uma indulgência de sua
juventude, mas que sempre seria grata a ele por ter lhe dado seu bem mais precioso: uma filha.
Sua avó também não fora uma mulher de muitos amigos, exceto a própria filha e a neta. Raramente falava de seu avô. Apenas sorria e dizia que eles haviam tido pontos
de vista diferentes sobre o casamento: que ele o aproveitara, mas ela não. Os homens não tinham sido muito importantes na vida de nenhuma delas.
Não que elas não tivessem sido dedicadas aos maridos. Haviam sido, sim. E ela sentia muita falta delas.
Sua avó morrera de um inesperado ataque do coração cinco anos antes, e um câncer de mama levara sua mãe quatro anos depois.
Mikki pensava em ambas como belas e atemporais, como se tivessem saído de um dos contos de fadas que a mãe costumava ler para ela quando era menina. Ambas tinham
sido de outro mundo...
— Elas estão em paz agora, Mikado. Mesmo deixando o mundo comum, partindo para as fronteiras de minhas encruzilhadas, suas almas foram capazes de descobrir o paraíso
dos Campos Elísios e, finalmente, seu verdadeiro destino. Não precisa chorar por elas.
Mikki ergueu a mão para o rosto, surpreendendo-se ao sentir lágrimas.
Olhou para Hécate.
— Elas também pertenciam a este mundo. Por isso não se encaixavam muito bem no mundo comum.
— Parte delas pertencia a meu reino, mas a magia em seu sangue não era tão forte quanto a magia dentro de você. Se fosse, elas teriam despertado o Guardião e retornado.
Mikki enxugou o rosto.
— O Guardião... Eu o conheci na noite passada.
A deusa inclinou a cabeça, estudando sua Sacerdotisa.
— E qual foi sua reação?
— Fiquei assustada — ela confessou. Depois acrescentou, devagar: — Ele me deixou triste.
— Triste? — Hécate ergueu as sobrancelhas escuras.
Mikki moveu os ombros, inquieta.
— Não sei... Ele me pareceu tão sozinho.
— Não há nenhuma outra criatura como ele; então ele é sozinho por natureza. Eras atrás, quando assumi o domínio sobre este reino, precisava de um protetor para vigiá-lo.
Este é o reino do qual todos os sonhos e a magia se originam, e ele precisa ser guardado. Por isso invoquei uma grande fera da antiguidade: o filho imortal de um
Titã. Embora eu seja a Deusa das Feras, não detenho pleno domínio sobre elas. Mesmo eu não poderia obrigar uma delas a me servir. A criatura que conheceu na noite
passada comprometeu-se voluntariamente comigo. Ele aceitou um fardo eterno que não era seu. Eu o premiei com alguns poderes que são exclusivos para este reino; contudo,
o Guardião tem sua própria magia: ele une as tramas da realidade com as deste reino.
— Ele sempre foi como é agora?
O olhar penetrante de Hécate pareceu entrar dentro dela.
— O Guardião nunca foi um homem, e jamais o será. Não cometa o erro de acreditar no contrário.
Com muito esforço Mikki não se retesou diante da raiva da deusa. Mudou a linha de seu interrogatório depressa.
— Ele é chamado de “o Guardião”, e você afirmou que ele é necessário para proteger o reino. Contra o que ele precisa de proteção?
— Contra os Ladrões de Sonhos e aqueles que desejam possuir sua magia. Sonhos e Magia pertencem a toda a humanidade, mesmo àqueles que vivem no mundo comum. Ninguém
tem o direito de roubar tais coisas para si mesmo.
Mikki não compreendeu o que a deusa estava falando. E estava cansada de soar como uma idiota. Como havia deixado claro para Hécate, era madura o suficiente para
descobrir as coisas por si mesma.
Por isso iria manter os olhos bem abertos e aprender. E também não iria mais fazer tantas perguntas sobre o Guardião. Era óbvio que aquilo provocava a ira da deusa...
E uma deusa irada não podia ser coisa boa.
Mas ainda existia uma pergunta que precisava fazer:
— Onde as rosas se encaixam nisso tudo?
Hécate sorriu enquanto contemplava a imensidão colorida das flores.
— As rosas são a beleza, e a beleza está no centro de todos os sonhos e
magia. São sua base, seu apoio. Sem beleza, a mente não pode ir além do corpóreo para alcançar o etéreo.
Mikki arqueou uma sobrancelha enquanto franzia o cenho. A deusa não acabara de dizer que o exterior não definia o interior? Agora dizia que a beleza era tudo.
Hécate riu baixinho.
— Há mais de um tipo de beleza, Empousa.
Mikki respondeu a primeira coisa que lhe veio à mente:
— Não diria isso se conhecesse o gosto da maioria dos homens do meu mundo.
— Por que soa tão cínica? Seu corpo e rosto são muito agradáveis, Mikado.
— Agradáveis. Apenas isso. Até me considero bonita. Tenho cabelos lindos, seios fartos e pernas bem torneadas. E isso é tudo o que os homens veem. Nenhum deles preocupa-se
em me olhar mais a fundo.
Sua consciência lembrou-a de que ela não dera muitas oportunidades a qualquer homem de olhá-la mais a fundo, de descobrir seus segredos... E essa verdade só a fez
ainda mais cínica.
— Acho que poderá ensinar muita coisa neste reino, Mikado. E há muito que ele também poderá ensinar-lhe em troca. Será uma aventura para você, assim como seu destino.
Mikki suspirou. Estava ali havia apenas um dia, e já estava farta de tantos mistérios.
— Estou aqui por causa das rosas — falou, imitando as palavras do Guardião.
— Está. Elas são o alicerce sobre o qual os sonhos e a magia são construídos, bem como a fronteira entre dois mundos.
— Fronteira entre dois mundos? Literalmente?
— Sim, Empousa. As rosas povoam este reino, e a força de sua beleza dá vida aos sonhos e à magia. Sua energia também delimita as fronteiras do meu reino. — Hécate
apontou para os jardins e fez um gesto abrangente. — Os limites dos jardins são traçados por uma imensa muralha formada por rosas. Além dessa muralha, existe uma
vasta floresta, uma espécie de submundo, que é a encruzilhada entre a realidade e a magia. Em um lado da floresta descansa o mundo antigo, onde os deuses e deusas
ainda são venerados. Do outro, poderá encontrar seu antigo mundo: o mundo comum. A muralha das rosas é o que define os limites entre esse mundo e o nosso. Cuide
da saúde das rosas e, em troca, tudo em meu reino irá prosperar. Se as rosas adoecerem, meu reino perecerá com elas. O Reino das Rosas passou muito tempo sem sua
Empousa. As flores precisam de sua atenção, e você tem outras funções também... É a Alta Sacerdotisa da Magia e, como tal, terá de dar conselhos e realizar rituais
para o povo. Seja sábia, Mikado, de modo que deve agir como uma encarnação minha. Quando falar, meu poder irá responder.
Mikki sentiu o sangue do rosto se esvair.
— Mas, Hécate, não sei nada sobre feitiços, magias e rituais!
A expressão serena da deusa manteve-se inalterada.
— Sua mente não sabe, mas seu espírito sim. Olhe para dentro de si mesma, como fez na noite passada, e irá descobrir o que procura. Não importa como as coisas sejam
na superfície; siga seus instintos. Eles não o abandonarão. E use sua experiência, Mikado. Creio que vou gostar de ter uma Empousa mais velha...
— Então, basta eu confiar em meus instintos?
— Em resumo, sim — afirmou Hécate. — Suas servas estão aqui para ajudá-la mas lembre-se: só você é minha Sacerdotisa. Elas personificam os Elementos sobre os quais
eu lhe dei domínio. Integre-os se quiser. Use seus poderes se precisar. Assim como as servas, o Guardião também está à sua disposição. Ele é uma criatura mágica,
cujos poderes foram destinados a proteger o Reino das Rosas. Se houver qualquer problema aqui, não hesite em invocá-lo.
Mikki sentiu um arrepio de emoção à menção do Guardião.
— Mas, se eu achar que o reino está em perigo, não deveria invocar a você? — indagou, em dúvida.
— Meus deveres são inúmeros! Não terei tempo de responder a suas invocações como se eu fosse uma mera serva!
Mikki deu um passo involuntário para trás, surpresa com a súbita explosão de Hécate.
— Não foi isso o que eu quis dizer. Eu...
A deusa dispensou a desculpa com um gesto.
— Eu me esqueci de que não tem experiência como Empousa. Sou a deusa suprema do Reino das Rosas, mas a você e ao Guardião foi dada a tarefa de protegê-lo. Eu gostaria
de passar mais tempo aqui, porém minhas obrigações não me permitem esse luxo. — Hécate a estudou com cuidado. — Não deve temer o Guardião. Eu já lhe disse que ele
não lhe fará mal algum.
— Eu sei. — Mikki mordeu o lábio. Evitando os olhos da deusa, ela mirou os jardins. — É que nunca imaginei alguém como ele antes.
— É mesmo? — A voz de Hécate soou suave. — Mas não me contou que passou muito de seu tempo cuidando das rosas dos jardins em que ele dormia na forma de uma estátua?
— Sim. — Mikki assentiu com um gesto de cabeça.
— Então como ele pode ser tão diferente do que imaginou? — indagou Hécate com naturalidade.
— Quando coloca dessa forma... — As palavras de Mikki foram sumindo conforme ela se virava para a deusa.
— Não há outra forma de se colocar — replicou de pronto. — Ele ficou em silêncio, observando-a cuidar de suas rosas na ocasião, e fará o mesmo agora, só que não
mais em silêncio. Tente esquecer que ele é uma fera. Pense nele apenas como o Guardião que é. — E sem dar tempo a Mikki de responder, Hécate continuou: — Muito bem...
Vou deixá-la agora. Faça seu desjejum e depois chame as servas para que elas a ajudem a se vestir antes que inicie suas tarefas do dia. Essas rosas já passaram tempo
demais sem o toque de um Empousa. Elas necessitam de seus cuidados. Lembre-se: siga seus instintos, Mikado. Permita que seu espírito e o conhecimento intrínseco
a seu sangue a guiem, e tudo dará certo.
A deusa levantou a mão e, numa chuva de faíscas coloridas, ela e os cachorros desapareceram.
Balançando a cabeça, Mikki caminhou para a mesa repleta de frutas, pão e queijos.
— Seria bem mais fácil se eu fosse mesmo louca — murmurou.
E, servindo-se do chá de rosas perfumado e fumegante, desejou ter uma aspirina e uma pomada anti-inflamatória.

 

 

 

 


C O N T I N U A