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CAPÍTULO 1
Setembro de 1799
Lydia sustinha o olhar na cascata de seda pura e musselina que pendia dos braços de Sarah. Mal conseguia distinguir a cor dos tecidos. O único dos seus sentidos que permanecia alerta era o do tato, especificamente para a textura da carta amarfanhada entre os dedos apertados.
– Qual vai ser, milady? – Sarah avançou a musselina. – O conde sempre gostou deste azul. Uma vez que ele estará presente, será uma boa escolha.
O vestido azul em questão parecia algo que uma rapariguinha usaria na sua primeira temporada. Dado que Lydia tinha quase vinte e quatro anos, não era adequado. Era efetivamente o preferido do irmão, o conde de Southwaite, mas a verdade é que este ainda a via como uma menina e assim continuaria até que se casasse. E a probabilidade de tal alguma vez acontecer diminuía a cada ano que passava.Graças a Deus.
Pestanejou para espantar a distração e alisou a carta amarrotada sobre o colo.
O seu punho tinha esborratado a tinta, mas ainda se conseguia ler as palavras. Uma vez mais, provocaram-lhe um calafrio na espinha. Desta vez, todavia, em vez de proclamar um estado de choque, ao chegar à cabeça o calafrio colidiu com a incandescência da sua indignação.
Terá todo o interesse em encontrar-se comigo no estabelecimento de Mrs. Burton, esta noite, para falarmos de informações chocantes sobre si que chegaram ao meu conhecimento. Tenho a certeza de que, se juntarmos ideias, conseguiremos encontrar uma forma de lhe poupar um enorme escândalo.
Um seu criado,
Algernon Trilby
O canalha enviara-lhe uma proposta de chantagem. Que disparate. Como se houvesse fosse o que fosse no seu passado suficientemente interessante para provocar este tipo de coisa! O estúpido do homenzinho estava provavelmente equivocado.
Imaginou o insípido Mr. Trilby a endereçar-lhe esta carta acidentalmente e, por engano, enviar ao verdadeiro alvo da sua extorsão um convite para uma das suas entediantes demonstrações de magia. Não fosse
pelo interesse dela em passes de mágica, nunca o teria conhecido suficientemente bem para atrair a sua atenção.
Sarah agitou os dois vestidos e os tecidos e ornamentos ecoaram uma música indistinta. As sobrancelhas em crescente da aia quase lhe alcançavam a escura linha de cabelo, tão exasperada era a sua impaciência.
– Nem um, nem outro – respondeu Lydia, rejeitando os dois vestidos com um movimento da mão.
Levantou-se e saiu do quarto de vestir. No quarto de dormir, acomodou-se na cadeira junto à secretária. Escrevinhou rapidamente uma nota, chamando ao mesmo tempo por Sarah.
– Leva isto para baixo e pede a um dos lacaios que o entregue à Cassandra. Depois prepara o meu vestido de noite verde.
– O verde de seda? Lady Ambury disse que o jantar seria informal, foi o que a milady me disse.
– Não vou a esse jantar. Vou arranjar uma desculpa.
– Mas que decisão tão repentina.
– Repentina, mas necessária. Tenho de ir hoje a casa de Mrs. Burton.
A boca de Sarah contorceu-se numa expressão de reprovação. Lydia tolerava tal familiaridade porque ela e Sarah haviam brincado juntas em crianças, em Crownhill, a propriedade de campo da família, onde
o pai de Sarah ainda servia como moço de estrebaria.
– Desembucha – ordenou Lydia no regresso ao quarto de vestir. – Não suporto quando dizes o que pensas com a cara e não com palavras.
Sarah girou por trás dela e pousou os dois vestidos.
– Certamente que poderá faltar a um serão passado nas mesas de jogo para estar com a família e os amigos próximos. Penso que Lady Ambury e Lady Southwaite planearam este jantar com alguma dedicação.
Lydia mexericava na caixa de joias.
– Isso significa que convidaram um homem qualquer para eu conhecer. Mais uma razão para ir ter com Mrs. Burton. A Cassandra acrescentará a tia para equilibrar a mesa ou então a Emma trará uma das nossas
tias. A minha ausência não causará qualquer estranheza significativa.
Sarah abriu o guarda-roupa e retirou o vestido verde de seda.
– Só desejam que o conheça, se tiver razão quanto aos seus planos. Uma simples apresentação não será propriamente uma imposição. Quanto a Mrs. Burton, qual a possível diversão para si, agora que o seu
irmão lhe pediu aquela promessa?
– O Southwaite não pediu nada. Exigiu.
Esta conversa com o irmão tinha sido suficientemente recente para que ainda se contorcesse com o insulto.
– Ele só quer o melhor para si – murmurou Sarah.
Claro que sim. Toda a gente queria. Southwaite e a mulher Emma, Cassandra e as suas duas tias, todos queriam o melhor para ela, segundo aquilo que era a opinião coletiva. Até Sarah queria.
– Ele sabia que era apenas uma questão de tempo até a sua sorte virar – prosseguiu Sarah.
Mas ainda não tinha virado. E isso frustrava o irmão. A misteriosa capacidade de Sarah de sair sempre à frente na mesa de jogo parecia imoral para quem acredita que colhemos o que semeamos. A modesta fama
que angariou na sequência da sua sorte cheirava-lhes a escândalo.
Assim, Southwaite, depois de esperar em vão que a irmã recebesse o castigo merecido com uma perda colossal, decidiu interferir para garantir que tal perda nunca chegaria a acontecer. Se ela alguma vez
arriscasse mais do que cinquenta libras numa só noite, ele retirar-lhe-ia a mesada e trataria de garantir que todas as salas de jogo da cidade tomariam conhecimento da ocorrência.
– Talvez o preocupasse também que a milady se tivesse deixado levar demasiado pela excitação. – Sarah manteve o olhar fixo no vestido verde enquanto verificava se tinha algum defeito. – Já aconteceu a
algumas pessoas. Chega ao ponto de já não se conseguirem afastar, do mesmo modo que um bêbedo não consegue largar o gin.
Esticou-se para alcançar o cesto de costura.
– Prescindem de outras diversões, até de serões com a família e os amigos, para regressarem àqueles antros de inferno. Mesmo que apliquem os ganhos da melhor forma, a excitação, por si só, pode ser muito
tentadora.
Através do espelho, Lydia olhou de relance a concentração que Sarah dedicava à agulha e à linha. Tinham brincado na lama em miúdas e o que as unia era mais a amizade do que a relação de senhora e criada.
Lydia desafiara as suas duas tias, insistindo que Sarah deveria permanecer a seu lado, apesar de tal significar dois anos de supervisão e formação por um empregado mais experiente.
Todavia, Lydia não apreciou por aí além este aviso indireto de Sarah. Demasiadas pessoas se sentiam à vontade para a avisar, orientar, repreender, gerir. Era uma mulher adulta, por amor de Deus.
– Receias que eu possa ser uma pessoa desse tipo, Sarah? Embriagada pela excitação? Incapaz de me afastar? Fazendo-o pela excitação e não como um meio para alcançar um fim?
– Não, milady. Eu nunca pensaria... – O seu rosto enrubesceu.
Claro que pensaria. Acabara de o fazer.
– Podes ficar descansada, não estou a mudar os planos desta noite para poder jogar.
– Sim, milady.
– A verdade é que, e tens de me prometer que não contas a ninguém, vou a casa de Mrs. Burton encontrar-me com um homem.
Relanceou novamente para o espelho e notou com satisfação como Sarah arregalava os olhos de choque e curiosidade.
– Leva, por favor, essa carta para baixo e depois ajuda-me a arranjar-me rapidamente.
Clayton Galbraith, duque de Penthurst, acreditava que um homem, por mais elevado que possa ser o seu estatuto, não poderia arrogar-se de bom carácter se não demonstrasse paciência e boa educação para com
os membros mais idosos da família. Esforçou-se assim por encontrar a sua equanimidade e ir ao encontro das necessidades da sua tia Rosalyn enquanto esta jogava no salão de Mrs. Burton.
Tinha-lhe solicitado que a acompanhasse. E ficou à espera de que ela revelasse o motivo. Até ao momento, pareceria que procurara a sua companhia unicamente para que pudesse partilhar um mês de mexericos.
Não era preciso arrastá-lo até ali para fazer tal coisa. A tia vivia em sua casa, como aliás em toda a vida do sobrinho. Nunca se tinha casado porque, como gostava de explicar, frequentemente, ao casar-se,
a filha de um duque perdia estatuto e precedência. Ele suspeitava de que o verdadeiro motivo fora que o casamento a retiraria da residência ducal e lhe perturbaria a possibilidade de se intrometer nas
vidas dos seus habitantes. Uma vez que ele era neste momento a única pessoa que lá vivia, isso significava intrometer-se na vida dele.
O elegante vestido de noite, da cor de um lago gelado, surgia como complemento à sua pele branca, ao cabelo grisalho e ao seu porte real. Foi perdendo o dinheiro a um ritmo tranquilo, entre confidências
em sotto voce. Em toda a mesa, o jogo também abrandava, adaptando-se ao seu ritmo. Um a um, os restantes jogadores escusaram-se, até que ficaram apenas os dois. O que, suspeitava ele, tinha sido a sua
intenção.
Deslizou na direção do croupier um guinéu em jeito de pedido de desculpa, enquanto a tia olhava de esguelha para a nova mão que tinha acabado de receber. À medida que a idade lhe ia adelgaçando o rosto
e acentuando os traços, ele e ela iam-se tornando cada vez mais parecidos. Ele não se apercebera de tais semelhanças até que, um dia, quando tinha dezassete anos, a visitou quando ela estava doente e a
viu sem a maquilhagem, os sorrisos ou a perturbadora cabeleira. Os mesmos olhos de avelã e as sobrancelhas arqueadas e direitas, sem dúvida, e quem sabe a mesma boca larga, embora a versão feminina dos
seus traços lhe parecesse menos severa.
– Tenho pena do Kendale – murmurou enquanto estudava as cartas. – Esperou demasiado, é claro. Quanto mais um homem envelhece, maior a probabilidade de uma jovem sedutora lhe dar a volta à cabeça.
Penthurst ponderou se deveria defender o amigo, o visconde Kendale, ou aceitar o desafio que acabava de lhe ser lançado. Maldição, se a tia tivesse engendrado este serão para abordar o fastidioso tema
do facto de ainda não ter esposa, forçá-la-ia a ser direta e não lhe facilitaria a tarefa.
– Parece estar feliz e muito apaixonado. A tia desejar-lhe-ia menos do que isso?
– O Kendale, apaixonado? Quem diria que tal dia haveria de chegar.
Ciciou com a língua em jeito de exasperação e depois pediu uma carta.
– Ela não é adequada. Toda a gente sabe isso, inclusive ele. Deveria ter-se casado como deve ser. Pode estar muito apaixonado, mas não teria de prescindir de nada.
– É demasiado honesto para isso. Já deveria sabê-lo. Provavelmente vai passar os vinte e um, se tirar outra carta.
– Honesto? É isso que se diz quando um dos nossos pares se entrega a ideias românticas próprias de uma rapariguinha de escola? Espero de si muito mais bom senso do que esse género de honestidade.
– Pode ficar descansada, sou tão implacavelmente prático com as minhas mulheres que ninguém alguma vez terá pena de mim como a tia tem do Kendale.
Ela pediu outra carta, apesar do seu conselho. Estourou.
– Sim. Bom, mas pelo menos ele casou-se, não é verdade?
Deixou escapar um tom de censura melindrada.
– Ela é adorável, tenho de admitir. E, apesar das suas origens, tem algum estilo.
Ele recusou-se a fazer-lhe a vontade. Voltou a atenção para o salão de baile, que funcionava como salão de jogo nesta residência de Mayfair. Mrs. Burton geria o estabelecimento mais polido de Londres,
a pari passu com os clubes de cavalheiros, onde se podia esbanjar fortunas no jogo, sendo talvez a única casa que podia ser frequentada por senhoras sozinhas sem que tal gerasse um generalizado levantar
de sobrancelhas. Houvera algumas movimentações oficiais contra outros salões de jogo geridos por mulheres distintas nas suas residências, mas a clientela aristocrática de Mrs. Burton garantira-lhe um estatuto
especial.
– Por falar em raparigas adoráveis – disse a tia enquanto o croupier lhe levava o dinheiro. – Terei porventura referido que a sobrinha de Lady Barrowton vem à cidade? Consta que a sua beleza é muito elogiada.
– Consta? Ainda ninguém a viu para saber ao certo?
Apenas um recanto da sua mente prestava atenção à conversa, uma vez que já sabia tudo o que iria ouvir. A maior parte da sua atenção havia ficado presa logo à entrada do salão de baile. Uma mulher de cabelo
escuro e olhar emotivo acabara de chegar. Lydia Alfreton.
Que estranho. Tinha a certeza de ter ouvido Southwaite referir que a irmã estaria naquele pequeno jantar que se realizaria esta noite na casa de Ambury. E porém ali estava ela, pronta, pelo contrário,
a tentar a sua considerável sorte nas mesas.
O vestido verde que ostentava realçava-lhe a beleza do cabelo escuro e da pele muito clara. Parecia feliz. Só surgia assim quando jogava, infelizmente. Se a encontrássemos durante o dia, o seu olhar fixo
atravessava-nos, opaco e cego, o rosto inexpressivo.
– É claro que há quem já tenha visto a sobrinha. De outro modo não seria tão elogiada. Mas a verdade é que ela nunca veio à cidade. Vem para a prova final antes de debutar.
– Uma criança, portanto. As crianças são todas adoráveis. E doces. E aborrecidas.
– De todo uma criança. Uma rapariga fresca e inocente. Gostava de lha apresentar.
– Não estou interessado, obrigado.
A proximidade do croupier fê-la repentinamente sentir-se desconfortável. Mandou-o embora num tom imperioso que o forçou a recuar de imediato, deixando uma boa quantia de dinheiro sem vigilância. Virou
o corpo inteiro e inclinou a cabeça grisalha, de modo a garantir que as palavras que proferiria em seguida seriam ouvidas.
– Tem de se casar, mais cedo ou mais tarde, e esta rapariga parece perfeita.
– Já lhe disse há muito que não me submeteria a este tipo de manipulação. Se pensa que serei mais dócil por abordar o assunto num lugar público, e não em casa, pois está muito enganada. E certamente já
saberá entretanto que não tenho qualquer desejo de me casar com uma rapariga fresca e inocente, se alguma vez chegar o dia em que de facto venha a casar-me.
A tia soltou um suspiro paciente.
– Nunca consegui compreender a sua preferência por mulheres mais velhas.
– Ai não?
Ela enrubesceu e desviou o olhar para evitar ter de responder à pergunta. Algo a distraiu. Franziu o sobrolho.
– Suponho que me deva curvar perante as suas preferências, já que o seu instinto se revelou acertado quanto àquela ali. A pobre mãe deve estar a dar voltas na tumba.
Não foi preciso olhar para saber que se referia a Lydia Alfreton. Mas olhou, ainda assim, a tempo de ver Mrs. Burton a cumprimentar Lady Lydia e a acompanhá-la à mesa de dados.
– Não tive instinto nenhum em relação a ela. Fiquei compreensivelmente aborrecido consigo e com Lady Southwaite por terem decidido com quem eu deveria casar-me quando a miúda não tinha sequer um dia de
vida. Esse tipo de combinações são antiquadas, não têm qualquer legalidade e não devem ser toleradas.
Quando tomara posse da herança, aos quinze anos, anular este acordo ridículo fora uma das primeiras coisas que fizera. Mais ninguém voltara a falar do assunto, com exceção da tia. E duvidava de que mais
alguém sequer se lembrasse.
– A Celeste era a minha amiga mais próxima, tão doce e tão boa. Quem haveria de pensar que a filha iria... Bom, que se transformaria naquilo.
Acenou com a mão na direção de Lydia, que acabara de ganhar num lançamento de dados. As pessoas tinham-se aglomerado à sua volta para a ver. Quem sabe era a sua reputação de vencedora que os atraía. Ou
talvez a vivacidade do seu entusiasmo. Com os olhos ardentes de luzes que, por norma, o mundo nunca tinha oportunidade de lhe ver, elevava o olhar e os braços enquanto ria após cada vitória, como que agradecendo
à Providência por, uma vez mais, ter favorecido as suas apostas.
A tia estalou a língua.
– De dia, é uma esfinge, passa despercebida. À noite, aqui, é como uma bacante embriagada de vinho. Vai levar o Southwaite à ruína, se ele não a controlar. Toda a gente o diz. Ela vai levar-se a si mesma
à ruína, e a ele, e a toda a família.
– Ela ganha. Se continuar assim, o mais provável é que não arruíne a família, mas sim que duplique a sua fortuna.
Era precisamente esse o problema. Southwaite estava convicto de que, se ela perdesse apenas uma vez, em grande, seria o fim de toda esta história.
– Não estou a falar do jogo.
Agora, sim, conseguira captar a sua atenção.
– Não pode estar a falar de homens.
– Ai não posso?
– Ela não nutre qualquer interesse por homens. Pelo jogo, sim. Cavalos, sim. Arte e literatura, sim. Mas se existem rumores sobre esse outro tipo de ruína, não podem estar certos.
– Certamente que ouviu isso do Southwaite. Como se ele fosse saber!
Focou os olhos no outro lado da sala.
– Ela estabeleceu relações com uma série de homens durante o jogo e dizem-me que é pouco recatada nas conversas que mantém com eles. A sua tia Amelia está extremamente consternada. – Abanou a cabeça. –
Minha querida, querida Celeste. Talvez tenha sido pelo melhor que não tenha vivido para ver isto.
Engoliu a tentação de repetir que esses mexericos não eram verdade, nem de longe nem de perto. Afinal de contas, que sabia ele? Southwaite preocupava-se certamente com a irmã. Se algo mais do que o jogo
se tornara um problema para a família, Penthurst não esperava ser informado.
Como que para confirmar os sussurros da tia, um homem aproximou-se da mesa de dados. Furou por entre a multidão, posicionando-se junto ao cotovelo de Lydia. Penthurst inclinou a cabeça para poder ver melhor
o rosto da pessoa. Não conseguiu conter uma risada quando reconheceu o homem. Algernon Trilby? Trilby e Lady Lydia? Aí está algo que nunca pensara ser provável.
– O que acha tão divertido? – exigiu saber a tia.
– Estava a matutar no que acabou de me dizer e não pude evitar a minha reação.
– Ria-se, ria-se. O que consta por aí raramente está errado neste tipo de coisas. – Fez sinal ao croupier e regressou às cartas.
A conversa regressou ao tema da sua apresentação à doce e inocente sobrinha de Lady Barrowton e ele esquivou-se a ter de assumir qualquer tipo de compromisso no sentido de se encontrar com ela. Enquanto
ponderavam cuidadosamente os seus passos nesta dança entre interferência e resistência, deu por si a olhar ocasionalmente para o local onde Lydia parecia estar a ganhar bem aos dados.
Ela parecia conhecer Trilby. Falou com ele várias vezes. O que quer que lhe tenha dito levou o homem a corar. Por fim, Trilby afastou-se discretamente e foi assistir ao jogo de Faraó. Lady Lydia parecia
saber livrar-se das atenções indesejadas com graciosidade, mas com carácter definitivo.
Quase chegou a fazer notar isso mesmo à sua tia, para que quem sabe o poupasse dos mexericos desnecessários sobre a irmã do seu amigo. Mas, precisamente quando ia abrir a boca, a própria Lydia se levantou
da mesa. Os olhos já não brilhavam e, com a expressão distante e vazia que levava a tia a chamar-lhe esfinge, caminhou diretamente para as portas do terraço e saiu.
Vinte passos atrás dela, seguia-a Algernon Trilby.
– Terá de me perdoar. Penso que me vou retirar um pouco e depois pode levar-me a casa.
– A tia estendeu a mão para que ele a ajudasse a erguer-se.
– Procuro-a daqui a minutos – disse ele.
– Não se apresse muito. Os melhores mexericos estarão certamente nos aposentos de trás.
– Esperarei até que tenha uma dose suficiente.
Ela levantou-se e saiu. Deixou trinta libras sobre a mesa, como se devolvê-las à sua bolsa fosse uma grande maçada. Para uma mulher que toda a vida havia sido sustentada por duques, provavelmente era.
Ele fez sinal para receber cartas.
Com a saída da tia, outras pessoas se aproximaram para usar a mesa. Seguiu-se um jogo animado. Na quarta ronda, olhou em volta do salão e deu-se conta de que Lydia e Trilby não haviam ainda regressado.
Não houvera qualquer indicação de que Lydia tivesse um encontro marcado, mas a cada minuto que passava cada vez mais pessoas pressupunham que isso mesmo tinha acontecido. Imaginava agora Trilby lá fora,
no melhor dos casos a entediá-la ou, no pior, a importuná-la.
Entregou as cartas, pôs-se de pé e caminhou em direção às portas. Afinal de contas, se ela fosse sua irmã, esperaria de Southwaite que a mantivesse debaixo de olho.
CAPÍTULO 2
Lydia segurou na folha de papel sob a lanterna e leu as palavras que já conhecia. Fitou Algernon Trilby com um olhar furioso.
– Enviar-me aquela carta e exigir este encontro já é indesculpável e agora ousa fazer insinuações sobre esta folha que me trouxe. Está louco?
– E você, está louca?
Mesmo sob a luz da lanterna, ela conseguia ver como ele enrubescia. Trilby forjou uma indignação arrogante para disfarçar o seu desconforto. Assim que passara por aquelas portas, ela tinha-o confrontado
com tanta fúria quanto a que conseguia exibir, num lugar em que qualquer pessoa os podia ver se assim o quisesse.
– Fiquei chocado quando li isso – prosseguiu. – Chocado, pode estar certa disso. Por saber que corre este tipo de riscos. Comprometer a honra da sua família...
– Não seja tonto. Quem lhe deu isto? – E agitou-lhe a folha diante do rosto.
– Comprei-a. Paguei bastante por ela, para lhe poupar a si o escândalo se caísse nas mãos erradas.
– Foi retirada de um texto maior. Muito maior.
– Efetivamente. O diário que lhe dá contexto não é algo de que se deva propriamente orgulhar. Nem explica por que razão estava a manter relatos e registos pormenorizados dos navios aportados em Portsmouth,
bem como as suas movimentações, há menos de dois anos. Pareceria que... bom, parece que estava... – Trilby ergueu as sobrancelhas e franziu os lábios.
Lydia fixou o olhar na lista de navios. Era como se estivesse a controlar a frota naval por razões perfeitamente erradas.
Num mundo racional, jamais alguém alvitraria a ideia de que ela, logo ela, espiara a frota para os Franceses. Infelizmente, neste momento o mundo não era racional. Estava, isso sim, cheio de pessoas preocupadas
com uma invasão para breve e com a presença oculta de agentes franceses entre nós. Até o irmão dela passava uma boa parte do tempo a defender o reino deste tipo de coisas.
Que trapalhada! E isto havia logo de cair nas mãos de um tonto como Trilby. Inspirou profundamente para acalmar o caos das suas emoções.
– Não é um diário. É um romance, escrito na primeira pessoa.
Não era um bom romance. Uma primeira tentativa muito rudimentar. Um exercício caprichoso na arte do romance, enquanto aguardava que acontecesse algo maravilhoso. A simples recordação do manuscrito causava-lhe
uma nostalgia triste e evocava uma primavera em que ainda guardava sonhos.
Já nem sequer olhava para aquelas páginas há mais de ano e meio. Desde o dia em que soube que não aconteceria nada de maravilhoso. Jamais. Deixara o manuscrito na casa de campo da tia Amelia em Hampshire,
por terminar.
Ou será que tinha terminado? Tantas memórias dessa época haviam sido engolidas pela nuvem monótona e cinzenta em que passou a viver durante tanto tempo depois disso.
Trilby entrelaçou as mãos atrás das costas e olhou com severidade do alto do seu nariz empinado. O cabelo louro formava um bico na testa de onde partiam os arcos subidos das suas entradas, e o efeito alongava-lhe
o rosto já de si estreito. O patife tinha a ousadia de ostentar uma atitude de superioridade e analisava-a para fazer juízos de valor.
Quem teria adivinhado que este homem banal tinha a capacidade de causar tantos problemas? Chegara à cidade há seis meses e conseguira ser apresentado a pessoas relevantes através de um primo que era o
irmão mais novo da esposa de um baronete. Ninguém lhe teria dispensado a mínima atenção, exceto pelo facto de algumas anfitriãs terem considerado que os seus passes de mágica eram uma forma divertida de
preencher uma hora nas suas salas de estar. O próprio interesse de Lydia nesses truques, para seu próprio esclarecimento, haviam-na levado a conhecê-lo.
Amarfanhou a folha no punho erguido, mesmo junto ao rosto de Trilby.
– Tem de me entregar o resto do manuscrito. Já. Será indigno se o guardar.
Trilby olhou para o punho e encolheu os ombros.
– Há mais de onde essa veio. Pode ficar com ela, se quiser.
O seu espírito disparou perante a ideia de haver «mais». O modo amador como enchera todo o romance com listas de pratos de banquetes ou descrições de vestidos de baile – ou de navios ancorados – percorria-lhe
a memória. A descrição destes últimos fora uma tentativa de conferir uma cor local, tal como a enumeração das milícias organizadas ao longo da costa próximo da propriedade da família em Crownhill.
Oh, céus. Isso pareceria tão mau quanto os navios.
Formaram-se de novo na sua mente as personagens do romance, a par dos pormenores da sua história, que se baseava em pouca experiência, mas em muitas fantasias.
Algumas das passagens mais íntimas entre o herói e a heroína forçaram por fim caminho até à primeira linha dos seus pensamentos. Desenrolou mentalmente uma cena em especial, escrita numa noite em que se
sentia particularmente solitária e perdida de amor...
Meu Deus do céu.
Afastou-se do candeeiro, de modo a ele não se aperceber da sua reação. Comparada com alguns capítulos daquele romance, esta página pareceria inócua, caso viessem a público. E se pensassem que se tratava
de um diário...
– Já o leu?
– Não na íntegra. Não me pareceu correto.
– Não, não teria sido correto, apesar de se tratar de uma obra de ficção. Está tão mal escrita que não suportaria se alguém a lesse. O facto de eu ter pensado que um tal empreendimento literário deveria
incluir listas de navios observados daquela colina é prova suficiente da sua má qualidade.
– Ou de alguma outra coisa – murmurou ele.
– Repito: é só um romance. Tem de mo devolver. Sabe bem que sim.
Coçou as entradas na testa enquanto ponderava estas palavras.
– Esforcei-me bastante para que chegasse às minhas mãos. Para a poupar a si, como já referi. Não sou um homem rico. Gostaria de ser ressarcido.
Já tinham então chegado ao cerne da questão.
– Qual é então o valor do seu esforço, Mr. Trilby?
– O meu esforço vale dez mil libras.
Sentiu-se a ficar sem ar. Estaria louco? Duvidava de que ele tivesse pago mais do que cem, no máximo. Onde poderia ele ter ido buscar dez mil libras a pronto?
Onde poderia ela ir buscá-las, para falar a verdade?
A escandalosa quantia desanimou-a. Aparentemente, Trilby compreendia o valor do que encontrara. Não sentiu ser possível negociar um montante mais baixo, embora tivesse de tentar.
– Não há qualquer possibilidade de o ressarcir de todas as suas despesas de imediato.
– Basta entrar ali e lançar os dados ou jogar cartas. Já vi o seu talento.
– E se eu perder? Ficarei de tal forma na miséria que nunca lhe poderei pagar, durante anos. Vou arranjar uma forma de lhe entregar uma boa parte da quantia e prometo pagar o restante mais tarde. No final,
terá sido totalmente ressarcido.
Daria cabo dela ter de passar a jogar só para pagar a dívida a este chantagista. Tinha muito melhores destinos para os seus ganhos e partir-lhe-ia o coração ver-se forçada a negligenciá-los.
Trilby cruzou os braços e fez uma careta.
– Se não consegue resolver a situação sozinha, talvez o seu irmão possa fazê-lo por si.
A simples ideia de Southwaite pegar naquele romance e, quisesse Deus que nunca acontecesse, ler aquela cena, quase a desfez.
– Se o meu irmão souber disto, o mais provável é que o desafie para um duelo e que o mate por ousar chantagear-me.
Trilby recuou perante a ameaça, mas rapidamente recuperou.
– Chantagem? Estou a tentar protegê-la das piores especulações acerca do seu carácter e da sua lealdade e acusa-me de tal coisa? Sinto-me ofendido.
– Não está nada ofendido. Está impaciente e é ganancioso.
– Não tolerarei este tipo de insultos. Se o Southwaite não colaborar, certamente encontrarei outra utilidade para o documento. Há quem pague muito bem por este tipo de coisa. – Apontou para o punho dela.
– O resto dessa lista, por exemplo. Quem sabe o governo não quererá pagar para a ver.
– Ninguém estará disposto a pagar o seu esforço senão eu. Não seria melhor receber parte do valor em breve e o restante mais tarde, em vez de receber uma quantia muito mais reduzida de imediato?
Mantendo a pose de ofendido, Trilby ponderou a questão. Ela virou-lhe as costas e cruzou os braços, à espera. Foi então que reparou no homem encostado à casa, como se tivesse acabado de sair pelas portas
francesas. O homem olhou em volta, até que a sua atenção se fixou nela. Nesse preciso momento, sentiu um toque no ombro: era Mr. Trilby a chamar a sua atenção.
O homem junto à porta reparou nesse toque, Lydia tinha a certeza disso. Pareceu endireitar-se. Avançou em largas passadas e a luz do candeeiro incidiu sobre ele. Com uma altura impressionante, vestia uma
distinta sobrecasaca azul-escura ostentando rebordos bordados discretos, mas ricos, como se o seu dono houvesse, com pesar, desistido da indumentária mais extravagante de outros tempos. Pelos ínfimos brilhos
de reflexo emitidos por aqueles filamentos dourados, Lydia soube de quem se tratava.
– Lady Lydia, posso de algum modo ajudá-la?
A voz confirmou a sua identidade, precisamente no momento em que conseguiu distinguir-lhe o rosto. Os olhos encovados do duque de Penthurst pousaram, não tanto sobre Lydia, mas sim sobre Mr. Trilby atrás
dela. Luzes douradas e resplandecentes fulgiam daqueles olhos à medida que se aproximava, fazendo-o parecer perigoso. Com a surpresa, Trilby congelou.
Penthurst lançou-lhe um olhar mais direto.
– Caro senhor, solte a senhora, por favor.
– Será melhor fazer o que ele diz, Mr. Trilby. De quando em vez, a Sua Senhoria mata homens em duelos por assuntos sem importância como este. Sendo ele duque, tem esse direito.
Trilby retirou a mão rapidamente, como se o ombro estivesse a arder. Com duas longas passadas, afastou-se de Lydia.
– Eu... Quero dizer, eu...
– Penthurst, é sempre um prazer encontrá-lo. – Lydia fez uma vénia. – Conhece Mr. Trilby? Cruzámo-nos por acaso aqui fora e estava a confidenciar-me o funcionamento de um dos seus truques.
– Não nos conhecemos, embora tenha já ouvido falar dos truques. Não sabia que envolviam importunar mulheres.
Trilby ficou de queixo caído.
– Import...? Não, jamais, senhor. Eu... Eu...
– Não importunou de todo, senhor. Uma simples pancadinha no ombro, para me informar de que o truque estava pronto.
– A mim pareceu-me algo mais do que uma pancadinha.
– Poderá ter-lhe parecido a si, mas não a mim. Se não o tivesse assustado, tenho a certeza de que teria sido uma pancadinha mesmo muito ao de leve.
A expressão severa de Penthurst não se suavizou.
Na tentativa de conduzir o confronto para algo menos dramático, Lydia fez as devidas apresentações. Penthurst não pareceu satisfeito. Trilby mal conseguia disfarçar o alívio. Falou atabalhoadamente e proferiu
lisonjas durante meio minuto, com uma conversa desconjuntada, pouco fazendo o duque para o ajudar.
– Bem, tenho de... Ou seja, devo... – Rodando simplesmente sobre os calcanhares, Trilby despediu-se.
Penthurst mirava o jardim, o seu perfil recortado pela luz do candeeiro. Lydia fez menção de se encaminhar igualmente para as portas.
– Interrompi alguma coisa, Lydia?
Ela virou-se na sua direção.
– Era apenas uma conversa.
– Pareceu-me zangada quando saí. Aquele homem estava a incomodá-la?
– Apenas com a sua conversa entediante.
– Tinha as mãos em si.
– Quis captar a minha atenção, nada mais. Receio bem que seja um pouco tolo.
– Pareceu-me que concordou em encontrar-se com ele aqui fora. – Virou-se e olhou para ela. – Foi evidente.
– Para si, naturalmente.
– E para outros. Estas coisas são sempre evidentes.
– Que descuido o meu, então, ao informar que precisava de ar à frente dele. Mas não tenho culpa se alguém precisar de ar ao mesmo tempo, pois não? Se nos seguiu para me salvar, não era de facto necessário.
Apesar de ter sido um gesto cavalheiresco, a verdade é que eu não sou da sua responsabilidade.
– Como amigo do seu irmão, e da sua família, e como cavalheiro, eu não poderia permitir que caísse vítima de um Trilby ou dos possíveis mexericos que pudessem gerar-se pelo facto de ele a seguir até cá
fora, mesmo que o seu comportamento tivesse sido convidativo.
Esta última parte golpeara a sua já frágil compostura. Por causa dele, o assunto com Trilby ficara por resolver. Quanto à atitude de Penthurst – nutria pelo duque uma terrível aversão, por uma série de
excelentes razões. Uma delas era o facto de ter efetivamente combatido em duelos com homens de menor valor e não ter precisado de responder por isso. Outra era a arrogância com que lhe dirigia a palavra,
olhando-a de cima, mas ao mesmo tempo com muita familiaridade.
Esta familiaridade tinha que ver com a sua já longa história. Era amigo de Southwaite há muitos anos e marcava presença no círculo familiar desde que ela tinha memória. Contudo, o duque nunca lhe mostrara
apreço nem simpatia. Mesmo quando era ainda criança, se ela se visse envolvida numa discussão que o irmão e os restantes amigos consideravam divertida, Penthurst assumia muitas vezes uma postura mais crítica
e, tal como agora, propunha ocasionalmente uma correção.
Do ponto de vista de Lydia, a maturidade trazia consigo algumas vantagens, sendo uma delas não ter de tolerar o duque de Penthurst mais do que o absolutamente necessário. Não tinha qualquer intenção de
ceder agora à sua arrogância, precisamente no dia em que um enorme problema surgira na sua vida.
– Que atenção a sua, senhor, por me recordar as minhas falhas, dando-me a oportunidade de melhorar. Sinto-me honrada por se ter incomodado em minha defesa. Ora, não vá dar-se o caso de surgirem mexericos
sobre nós, talvez devêssemos regressar ao salão. – E marchou em direção às portas.
Ele alcançou-as primeiro e abriu uma.
– Por que razão sequer está aqui? Pensei que tinha um jantar.
– Está certamente equivocado.
Ela esvoaçou à frente dele e entrou novamente na sala.
Ele recuperou o passo e entrou a seu lado.
– O seu irmão referiu-o de passagem esta tarde quando o vi. Um pequeno jantar na casa do Ambury, disse ele, consigo e mais algumas pessoas. Esqueceu-se da data ou a atração dos jogos levou a melhor e não
conseguiu resistir, nem mesmo por uma noite?
Ela ponderou concordar com a segunda razão. Conduziria provavelmente a outra repreensão, do mesmo modo que toda a gente a repreendia sempre que jogava. Mas a verdade é que dificilmente poderia explicar
que tinha pedido para ser dispensada do jantar para se encontrar com um chantagista.
Teria de optar pela fraca memória.
– Oh, céus, e não é que poderá ter razão? Se calhar esqueci-me mesmo. – Pestanejou energicamente e fingiu-se consternada. – Por algum motivo, pensei que o jantar fosse amanhã. Que desagradável da minha
parte. Terei de escrever à Cassandra amanhã de manhã e pedir perdão.
Ele puxou do relógio de bolso.
– Ainda vai a tempo. Chegará atrasada, mas com uma boa desculpa.
– Não me parece que...
– Espere aqui. Vou buscar a minha tia e chamar a carruagem; deixo-a lá a caminho de casa.
– Não é necessário...
Mas ele já se fora, atravessando a sala com passos decididos.
Ela quase bateu com os pés no chão de frustração. Agora compareceria no jantar, depois de ter pedido para ser dispensada, o que só levaria o irmão e todos os outros a fazerem mais perguntas. Penthurst
deveria era meter-se na sua própria vida.
Descortinou Trilby e os seus olhares cruzaram-se. Ele endireitou o colarinho, fez um esgar e depois sorriu. Agia como se partilhassem uma conspiração e por pouco tivessem escapado de serem descobertos.
Pelo menos já não trazia um ar ofendido. Quem sabe isso significava que ele esperaria antes de agir precipitadamente como, por exemplo, abordando o irmão. Fez um gesto no ar simulando o ato de escrita
e depois desenhou um trajeto entre ela e Trilby, indicando que lhe enviaria uma nota em breve. Quando regressasse a casa, decidiria o que diria exatamente nessa nota.
Com Mr. Trilby temporariamente apaziguado, dirigiu-se para a porta, onde se deparou com Penthurst e a tia.
Ambury vivia a não mais de cinco quarteirões de distância da casa de Mrs. Burton. Na mente de Penthurst, foram os cinco quarteirões mais longos que alguma vez percorrera na vida.
Dizer que a tia estava desagradada com a companhia de Lydia seria generoso. Se tivesse tido oportunidade, ter-se-ia recusado a permitir tal coisa, pelo que Penthurst apresentou Lydia como um facto consumado.
A tia viajava agora ao lado de Lydia, de rosto tenso e os olhos dardejando relâmpagos cruéis enquanto examinava minuciosamente a sua jovem companheira com olhares críticos de esguelha.
– É um jantar, foi o que me disse quando me foi buscar. É assim mesmo, Lydia? Vamos levá-la a um jantar? Já é um pouco tarde para isso.
Lydia permaneceu imóvel e sem expressão, os olhos escuros com uma indiferença opaca. O rosto não revelava qualquer reação ao permanente escrutínio. Dir-se-ia que perdera a audição, de tão imperturbável.
– Os convivas não acharão estranho que chegue tarde, com esse vestido de seda? É demasiado sofisticado, adequa-se no máximo a um baile.
– Acharão certamente estranho – obrigou-se Lydia a responder. – Talvez fosse melhor eu regressar a casa. Penthurst, poderia talvez dar indicações ao cocheiro para ir para o outro lado de Berkeley Square
para que eu possa fazer isso mesmo, em vez de me levar para o lado da casa do Ambury.
– Receio bem que Lady Ambury nunca me perdoaria, ou a si, se a ajudasse a rejeitá-la – respondeu.
– Lady Ambury? – Uma compreensão plena de autossatisfação dominou a expressão da tia. – Ah, mas é claro.
A esfinge ganhou então vida. Lydia virou a cabeça e recebeu o olhar de reprovação lançado na sua direção.
– É claro o quê, Lady Rosalyn?
A tia inspirou e ergueu o queixo.
– Nada, nada.
– Rogo que me diga. Aparentemente está prestes a explodir de vontade de o fazer.
Nenhum relance de esguelha desta vez, mas sim um olhar direto e estupefacto. Os seus olhos encovados recuaram ainda mais sob as rugas profundas das sobrancelhas.
Ele conhecia aquele olhar.
– Tia Rosalyn...
– Não interfira, por favor. A rapariga exigiu que eu não me contenha, e é isso que vou fazer.
Rodou o corpo inteiro para assim aceitar de frente o desafio de Lydia.
– A sua amizade com a esposa de Ambury não abona nada a seu favor. O seu irmão proibiu-a em tempos e as aventuras amorosas do amigo não deveriam tê-lo dissuadido de manter essa sentença acertada. Mas dado
que o fizeram, e agora que renovou a sua amizade com ela, é claro que se veste de seda para frequentar sozinha um salão de jogos. A influência que ela exerce sobre si desgastou em vão a sua mãe e eu estaria
em falta para com a sua memória se não o dissesse.
O gesto que brandiu para terminar o discurso conseguiu abranger, não apenas o vestido de Lydia, como também todo o seu carácter.
Penthurst tateou à procura do lenço, pronto para reconfortar Lydia quando esta começasse a choramingar. Dirigiu à tia um duro olhar reprovador. Era infame a sua capacidade de levar mulheres às lágrimas.
Não eram de todo, nem o momento, nem o local certos e Lydia não estava à sua guarda.
Lydia não chorou. Nem sequer revelou a sua fúria, exceto na forma como os olhos relampejavam.
– Não simpatiza com a Cassandra, segundo entendo. Nem comigo, deduzo. Teria preferido que ambas levássemos vidas comuns, que não assumíssemos uma independência mais mundana. Tem razão quando diz que ela
me influenciou, mas para bem. Na verdade, teria preferido que não se tivesse casado com o Ambury, domesticando-se, para que me pudesse acompanhar a caminho do inferno.
O queixo da tia caiu.
– Rapariga egoísta e obstinada – cuspiu ela, batendo no peito como se sentisse o coração a palpitar. – A sua mãe era a minha amiga mais querida e isto não é digno de uma filha sua. Vá para o inferno, isso
sim! A Amelia confidenciava-me as suas apreensões, mas era evidentemente demasiado tímida para admitir as piores.
– A minha tia Amelia mal me conhece. Há quase dois anos que passamos pouco tempo juntas. Atualmente, quando o meu irmão precisa de um carcereiro para mim, recorre à tia Hortense.
– A Hortense! Como se ela servisse de grande coisa! Tem maneiras impecáveis, mas determinação e discernimento nulos. Tem tanta certeza de ser sagaz, mas nem dá conta se um comerciante a enganar com o troco.
Tenho a certeza de que lhe dá um belíssimo baile nas situações em que ela a acompanha. Pediu para ser acompanhada pela Hortense para poder prevaricar mesmo debaixo do seu nariz?
– E agora insulta a minha tia. Já terminou ou a lista ainda continua?
Penthurst olhava pela janela. Ainda faltava um quarteirão. Quando lá chegassem, elas já poderiam estar a deferir socos.
– Minhas senhoras, penso que deveriam concluir esta conversa antes que ambas precisem de sais.
A tia dirigiu a sua fúria contra ele, que foi recebida com um olhar firme. A tia engoliu fosse o que fosse que tinha intenção de dizer.
Mas Lydia não.
– Considero muito pouco simpático da sua parte ter sequer arrastado a minha mãe para esta questão, quanto mais utilizá-la como desculpa para me censurar. Nada do que lhe possa dever inclui certamente a
possibilidade de me insultar.
A tia ergueu-se completamente do assento.
– Não posso, sua rapariga atrevida? Ela e eu tínhamos a mesma opinião em tudo o que tocava a si e tudo o resto. Entristece-me que me sinta, na verdade, aliviada por a obstinação do meu sobrinho me ter
libertado do meu dever. Pelo menos, quando for para o inferno, não arrasta a minha família consigo!
Com uma arrogância indignada de quem tinha terminado a conversa, a tia voltou-se para a frente e ignorou a existência de Lydia. Esta inclinou a cabeça zombeteiramente.
Penthurst deu-se conta de que nunca ninguém falara a Lydia do pacto estabelecido entre a mãe e a sua tia. Nunca se questionara sobre se ela saberia ou não, mas fazia sentido que ela não tivesse noção.
Tinha cinco anos quando ele anulou o acordo.
Por fim, a carruagem estacou. Sinceramente feliz por um pouco de ar fresco, Penthurst saiu e ofereceu a mão a Lydia. No interior, a tia manteve-se uma imperiosa estátua de pedra olhando fixamente em frente.
Lydia vislumbrou a casa do irmão do outro lado da praça.
– Seria menos embaraçoso ir simplesmente para casa. Certamente ninguém se importará.
A sua chegada desorientou o criado que abriu a porta. Olhou por cima do ombro, na direção dos sons que ecoavam na sala de jantar, confuso. Pediu licença e saiu apressadamente.
– Eu disse-lhe que devia ter ido para casa – fez notar Lydia. – Estou a provocar uma cena ao chegar assim tarde.
O criado regressou com Lady Ambury. De cabelo escuro, olhos azuis e demasiado voluptuosa, para mal dos seus pecados, a ex-Cassandra Vernham saudou Lydia com satisfação.
– Insisti em vir pessoalmente recebê-la, para que saiba que ainda é bem-vinda.
Beijou Lydia, voltando em seguida para ele os seus olhos azuis.
– Vejo que teve um encontro prévio, Lydia. Que simpatia a do duque em partilhá-la assim connosco e entregá-la ainda antes de terminarmos o primeiro prato.
– Não foi um encontro – retificou Lydia, começando a enrubescer. – Eu... Quero dizer, ele...
– Não tem de me explicar nada, querida. Pelo menos até terminarmos o jantar. Gostaria de fazer-nos companhia, Penthurst? Assim equilibra os convivas à mesa.
– Infelizmente, tenho outra senhora à espera.
Despediu-se e regressou a essa mesma senhora, reunindo coragem para a viagem de regresso a Grosvenor Square.
A meio caminho, as últimas palavras de Lady Ambury penetraram por entre o infindável fluxo de indignação despejado pela tia. Assim equilibra os convivas à mesa. Isso significava que Lydia provocara o desequilíbrio
e que afinal não contavam com a sua presença. Não se esquecera da data. Havia pedido dispensa para poder ir a casa de Mrs. Burton.
Para jogar? Ou para um encontro com Algernon Trilby? Esperava que não fosse esta segunda possibilidade. Se queria ir para o inferno, certamente conseguia arranjar melhor diabo do que aquele.
CAPÍTULO 3
–Porque vamos tão depressa? – Sarah apressava o passo para acompanhar o andar decidido de Lydia.
– É exercício. Um pouco de energia faz bem à saúde, Sarah. Temos hábitos demasiado indolentes.
Corriam também o perigo de se atrasarem para o encontro com Mr. Trilby. Após devida ponderação, concluíra que seria pouco sensato fazer qualquer referência ao romance por escrito, pelo que solicitara que
se encontrassem naquela manhã no parque para continuarem a conversa.
– Se exercício era o que queria, podíamos ter dado três voltas à praça a pé – resmungou Sarah. – Disse-me que iríamos apreciar o ar matutino, não que faríamos uma prova de atletismo nas margens do Serpentine.
– Com que então eu arranjo forma de saíres de casa e apreciares um dia bem passado e tudo o que fazes é queixares-te. Da próxima vez deixo-te em casa.
– Para poder levar ralhetes da sua tia Hortense? Não, muito obrigada, milady. Deixou-me as orelhas a ferver durante uma boa meia hora quando soube que a milady tinha ido sozinha à livraria anteontem.
A referência a orelhas quentes lembrou-lhe a discussão com a tia de Penthurst na carruagem há duas noites. Vinha a caminho uma repreensão, disso podia ter a certeza. Chegaria depois de circular pela família,
até que alguém fosse nomeado o agente de execução de alguma persuasão corretiva.
Quem seria? Certamente não o irmão. Este tinha de se sentir extremamente provocado para a abordar a respeito do seu comportamento. A tia Hortense? As suas lições não foram bem recebidas no passado, pelo
que o consenso passaria por outro lado. Emma? A esposa do irmão não a repreenderia propriamente.
Pelo menos Emma, ao contrário de todos os outros, reconhecia que Lydia não era uma criança. Contudo, a forma muito franca de Emma falar poderia ser mais incómoda do que uma repreensão. Lydia podia ignorar
os ralhetes, mas seria difícil esquivar-se do olhar direto e das perguntas de Emma.
Ninguém censuraria a tia de Penthurst, como é evidente. Era um pilar da sociedade e o mundo inteiro lhe prestava deferência. Ninguém acreditaria que atacara o carácter de alguém, a sua educação e a sua
virtude, tudo em apenas seis ou sete frases. E os que acreditassem presumiriam certamente que tinha sido merecido.
Continuou a avançar a passos largos, com mágoa. A situação com a sua família trouxe-lhe à memória esta nova situação com Mr. Trilby. As pessoas esperavam dela sempre o pior, quando nem sequer tivera a
oportunidade de ser má! De algum modo, tornara-se a irmã problemática de Southwaite, simplesmente porque evitava casar-se e queria um pouco de... algo diferente. Algo menos previsível. Uma pitada de aventura
de vez em quando. Um motivo de entusiasmo. Seria ela assim tão malévola por desejar algumas experiências que não as habitualmente atribuídas às mulheres da sua classe?
Varreu o parque com os olhos, conduzindo Sarah para o seu interior. Uma milícia civil fazia exercícios, como acontecia quase todos os dias. Alguns cavalheiros montavam a cavalo mais ao longe, aproveitando
as primeiras horas da manhã e a escassez de visitantes para cavalgarem energicamente.
Mais à frente, atrás da milícia, descortinou Mr. Trilby a caminhar para trás e para a frente, com as mãos hirtas atrás das costas. Aparentemente não iria ter o bom senso de vir na sua direção, para que
parecesse um encontro acidental.
Quando conduzia Sarah em torno da milícia, um dos milicianos reparou nela e dirigiu-lhe um sorriso sedutor. Sarah fingiu não o ter visto, mas corou.
Lydia continuou a caminhar mais cinquenta metros, até que mantivessem uma distância respeitável.
– Porque não recuperas o fôlego aqui? Podemos ficar a ver os exercícios. Não te importas, Sarah?
Sarah encolheu os ombros, mas observou atentamente os exercícios. Em especial os movimentos de um determinado jovem alto e de cabelo ruivo, com bonitos olhos azuis. Sempre que ele se virava de frente para
elas, lançava-lhe novamente aquele sorriso. Sarah foi ficando cada vez mais vermelha.
Trilby percebeu a insinuação e avançou na sua direção. Antes que chegasse demasiado perto, Lydia acenou e afastou-se de Sarah. De pé, ao lado de Mr. Trilby, continuou a observar a milícia.
– Trouxe o dinheiro? – perguntou ele.
– Por que pateta me toma? Como poderia trazê-lo para aqui? Dentro da bolsa? – E ergueu a pequena bolsa com fecho de cordão.
– Pensei que um levantamento no banco...
– Não posso fazer isso, mesmo sobre a minha parte, sem que o meu irmão fique a saber. Claramente, nunca soube como é viver como uma mulher, Mr. Trilby, e não percebe nada das nossas limitações.
– Espero bem que não.
– Pode bem esperar que não. Seria escusado dizer que não marquei este encontro para lhe entregar dez mil libras. Nesse caso, teria exigido que me trouxesse o manuscrito, não acha? Pedi para nos encontrarmos
para podermos continuar a discutir este assunto.
Trilby lançou as mãos ao ar, afastou-se alguns passos e depois voltou-se, exasperado, encaminhando-se de novo para junto de Lydia.
– Não há nada a discutir. O diário custou-me...
– Romance. Não é um diário.
– O romance custou-me dez mil libras. É quanto tenho de ganhar com ele. Esta semana, Lady Lydia. Estou a sofrer constrangimentos devido a esta compra em sua defesa e não posso esperar mais.
Os pensamentos de Lydia corriam a mil à hora, tentando calcular quanto conseguiria angariar numa semana. Não dez mil, isso era certo. Nem que penhorasse todas as joias e vendesse todos os vestidos de seda.
– Não é possível numa semana.
– Faça com que seja possível. Conte ao seu irmão uma história em que ele acredite. Peça emprestado a amigos. Tem uma vida privilegiada e deverá ser capaz de aceder facilmente a uma quantia destas, basta
refletir um pouco.
Mr. Trilby ostentava mais confiança e determinação do que no terraço de Mrs. Burton. Oxalá Penthurst não houvesse interferido nesse momento. Talvez tivesse conseguido negociar uma quantia inferior, ou
mais tempo, se este homem não tivesse tido dois dias para consolidar a coragem e treinar as falas.
Ele ergueu o queixo na direção da milícia.
– Pessoas como eles não veriam com bons olhos as suas atividades de monitorização da frota, quem quer que seja o seu irmão. Aceitariam ainda menos bem as descrições de gente como eles junto à costa. Oh,
sim, também li isso, enquanto aguardava notícias suas. Quem sabe não terá de fugir para França, quer tenha estado ou não a espiar, se aquelas páginas caírem no domínio público.
Lydia não precisava que este homem lhe descrevesse o estado de espírito reinante no país e as interpretações erróneas que aquilo poderia gerar. No jantar em casa de Cassandra, os homens haviam falado muito
sobre a guerra, como aliás toda a gente. O seu próprio irmão, tanto quanto conseguira perceber, estava envolvido num sistema oficioso de vigilantes na costa oriental, na esperança de impedir a infiltração
de agentes.
Mesmo que conseguisse sobreviver às piores ameaças de Trilby, correriam rumores suficientes para contaminar toda a gente – o irmão, as tias, Emma. E tudo isso ainda antes de qualquer um deles ler os outros
capítulos, aqueles que seriam encarados como contendo descrições chocantes das artes de Vénus.
O que lhe passara pela cabeça?
Que jamais alguém lhe poria a vista em cima, é claro. Mas Mr. Trilby havia-o feito. Apenas ele?
– O manuscrito foi roubado. Se não o roubou pessoalmente, como o obteve?
– Não posso dizer-lhe.
– Quero saber quantas pessoas o viram. A menos que o ladrão seja o senhor, foi-lhe entregue por outra pessoa. Por quantas mãos passou antes de chegar às suas?
– Parece-me a mim que deveria estar agora a pensar na melhor forma de o fazer passar para as suas.
– Se metade de Londres já o folheou, porque haveria eu de pagar para o manter privado? Coloque-se na minha posição e compreenderá porque preciso de saber.
– Não passou por muitas mãos. Também não tem de se preocupar com a discrição daqueles que o tiveram na sua posse antes de mim. Posso garantir-lhe.
A garantia de um chantagista não deveria tranquilizá-la, mas tinha esperança de que fosse verdade. Queria que fosse verdade. Verdade ou mentira, continuava no mesmo apuro.
– Uma semana, Lady Lydia. Deverei receber uma mensagem sua até daqui a sete dias, informando-me do local onde me ressarcirá. Estarei na casa do meu primo pelo menos até então.
E ao proferir estas palavras, partiu.
Lydia aproximou-se de novo de Sarah, cujo olhar nunca abandonara o jovem miliciano.
– Recuperaste o fôlego ou perdeste-o por completo, Sarah?
– É um sujeito muito bem-parecido, não é? Alto, forte e bastante atraente.
– Tem um sorriso muito bonito. Como se chama?
– Como hei de eu saber?
Lydia riu-se.
– Queres dizer que passaste o último quarto de hora a trocar olhares sedutores com um total desconhecido? Francamente, Sarah! Estou chocada.
– Não foi essa a minha intenção. Foi como se perdesse a noção de onde estava.
– A tia Hortense ficará horrorizada – provocou Lydia. – Insistirá que fiques a pão e água durante pelo menos três dias.
Sarah encheu as bochechas e revirou os olhos.
– Só se alguém lho contar. Duvido que milady lhe conte alguma coisa. Se eu for interrogada sobre o meu comportamento, teria também de explicar o que esteve milady a fazer nesse mesmo quarto de hora, enquanto
eu estava tão negligentemente distraída.
Outro chantagista. Mas Sarah poderia ser perdoada por jogar aquele ás. Demasiadas pessoas lhe faziam exigências, a maioria das quais, se ela obedecesse, a obrigariam a trair a confiança e a privacidade
de Lydia. Não invejava a sorte de Sarah e a forma como tinha de conciliar tantas patroas.
Enfiou o braço no de Sarah, para que caminhassem como tantas vezes faziam quando eram meninas.
– Agora vais querer passear no parque todas as manhãs, provavelmente.
– Acho que não é sempre a mesma companhia a reunir-se aqui todas as manhãs. Vão rodando, parece-me. – Relanceou por cima do ombro para ver mais uma vez. – Deve existir algures uma lista com as milícias
civis que utilizam o parque em cada dia. O tipo de lista que poderá ser consultada por uma pessoa como, por exemplo, um conde.
– Vou pedir ao meu irmão, mas vou ter de explicar porquê. Caso contrário, poderá achar que quem perdeu o fôlego esta manhã fui eu, e não tu.
– Algo que não lhe aconteceu a si, já que fala no assunto. Quando muito, parecia contrariada. Espero que me perdoe dizê-lo, mas entre o meu soldado bem constituído e o seu cavalheiro magro e pálido, acho
que quem fez o melhor passeio matinal fui eu.
O visconde Ambury mantinha o cavalo a passo ao lado do de Penthurst quando assomaram a uma pequena elevação no fundo do parque. As montadas transpiravam do galope intenso e movimentavam energicamente as
patas, de excitação.
Prosseguiram a um passo mais calmo, integrando-se por entre os cavaleiros e caminhantes que, como eles, saíam em busca da frescura matinal. Eram poucos os que o faziam, o que era pena, e mesmo os que se
haviam aventurado a sair fluíam agora na direção dos portões perante a aproximação das nuvens e o seu prenúncio de chuva.
Mantiveram-se à margem do trilho das carruagens até o alcançarem. Algumas carruagens passaram por eles. Mas uma chamou a atenção de Penthurst. O homem no seu interior parecera-lhe aquele fulano, Trilby.
Sentada à sua frente, ia uma mulher. Só a entreviu fugazmente, mas o suficiente para saber que não era Lady Lydia.
– Como correu o jantar, Ambury? Animado, deduzo.
– Foi considerado um êxito, apesar da chegada inesperada da Lydia.
– Essa observação soou menos simpática do que foi sua intenção, espero eu.
– Diabos me levem, é verdade que soou. Ela tinha lamentado tardiamente a sua ausência, é isso que eu queria dizer, pelo que a sua presença foi peculiar. Uma vez que se tratava sobretudo de família e amigos
próximos, não foi demasiado constrangedor. E resolveu o assunto premente clara e rapidamente, exatamente como eu previra.
– E que assunto era esse?
– Saber se um determinado cavalheiro cairia nas boas graças de Lydia. A Cassandra está a fazer de casamenteira.
– Suponho que alguém tenha de o fazer.
– É exatamente o que pensa a minha mulher. Uma vez que o Southwaite não é propriamente subtil nestes assuntos e que as preferências das duas tias dificilmente correspondem às de uma jovem mulher, a Cassandra
dedicou a sua própria atenção a esta missão. Consequentemente, a única pessoa sentada naquela mesa que não era família ou amigo próximo era um homem que fora convidado para que Lydia o conhecesse.
Que homem? Quase perguntou. Cassandra tinha ficado por fim com Ambury, o qual amara e abandonara muitas outras antes dela, por isso os seus gostos poderiam igualmente não ser apropriados. Não que fosse
da sua conta, evidentemente.
– Depois, após todas as diligências da Cassandra, a Lydia pediu dispensa do jantar à última hora. O referido cavalheiro, um escocês de boas origens e de posses abastadas da família MacKinnon, veio na expectativa
de impressionar a irmã de um conde, acabando por ficar sentado ao lado da tia da Cassandra, a tonta Sophie. Por isso, apesar de também constrangedora, a mudança de ideias tardia da Lydia foi um alívio
para a Cassandra.
– E todos apreciaram então um belo jantar. E ele, impressionou-a?
Ambury riu-se.
– Sabe como é a Lydia. Atualmente, procurar conhecê-la é como arrastar um carrinho de mão pela lama. Foi bem-educada. Concedeu-lhe três sorrisos, creio eu. Mas receio bem que o pobre tipo terá pensado
que estava a conversar com uma morta-viva. Não a compreendo. Ninguém compreende. Era tão irrequieta em miúda. Contudo, as senhoras dizem encontrar nela uma vivacidade permanente, em privado. Já nós, os
restantes... Quanto a esse pobre conviva, deve ter sido para ele uma longa refeição.
Ela fora irrequieta em miúda. Animada, expansiva e, frequentemente, travessa. Muito diferente da Lydia que mostrava hoje em dia ao mundo. A menos que estivesse a jogar. De outro modo, isolava-se por trás
daquela máscara e escondia-se numa concha bem dura. Penthurst questionava-se porquê.
– Foi desagradável para si não ter sido convidado?
A pergunta de Ambury despertou-o bruscamente dos seus pensamentos.
– Porque haveria de ter sido?
– Estávamos lá todos. Só pensei que...
– Uma vez que estavam lá todos, isso também inclui o Kendale. Apesar de me ter perdoado, bem como o Southwaite, a verdade é que o Kendale não o fez.
Instalou-se um clima de constrangimento, como sempre acontecia quando qualquer um deles abordava o assunto em causa, mesmo que apenas obliquamente. A verdade é que, há um ano, Penthurst e Ambury não teriam
saído para cavalgar juntos, quanto mais falar de amenidades sociais. Eram todos amigos há muitos anos: ele, Ambury, Southwaite, o visconde Kendale e o barão Lakewood. Mas tudo tinha mudado no dia da morte
de Lakewood – pela mão de Penthurst.
– Muito aconteceu naquele dia que me surpreendeu – disse ele a Ambury. – O assunto que me levou, a mim e ao Lakewood, àquele campo não valia que alguém desse a vida por ele.
– É para mim um alívio ouvi-lo, por fim, falar do assunto – respondeu Ambury. – Sei mais do que pensa. – Os seus extraordinários olhos azuis, normalmente repletos de faíscas de humor, emanavam agora uma
luz mais fria.
– Anda a investigar?
Ambury tinha especial talento para este tipo de coisa. Conduzira mesmo investigações a troco de compensação, muito discretamente, quando o pai, o conde de Highburton, lhe havia cerceado severamente os
seus rendimentos.
– Resisti à tentação. Contudo, deixe-me dizer-lhe que compreendo agora o que queria dizer quando me referiu em tempos que o Lakewood não era o que parecia ser. Conseguia ser oportunista, e mesmo indigno,
lamento ter vindo a saber.
Caíam agora algumas gotas de chuva. Mas eles não esporearam os cavalos. Este assunto, finalmente exposto, exigia ar fresco.
– O Southwaite está agora convicto de que o Lakewood se colocou no caminho da sua bala – informou Ambury. – Pensa que foi uma espécie de suicídio, para que o seu nome nunca pudesse ser conspurcado.
Penthurst chegara a essa mesma conclusão ao reviver aqueles momentos centenas de vezes. Tinha deliberadamente apontado para fora do alvo, para que Lakewood tivesse ainda a oportunidade de depor as armas.
Ao invés, parecera que Lakewood se mexera na direção da trajetória do disparo.
– Como lhe disse, as minhas acusações não exigiam de todo o suicídio. Eram indignas, mas não condenatórias. Ele poderia ter sobrevivido. Outros sobreviveram.
– Se calhar esta história tem mais que se lhe diga do que pensa.
– Há muito que suspeito que sim.
Haviam sido feitas algumas tentativas pouco empenhadas no sentido de o descobrir, mas nenhuma surtiu efeito. O homem estava morto e parecia errado remexer a sua história só para aliviar a curiosidade ou
a sensação de culpa.
– Quer que eu faça umas pesquisas, a ver o que vem à tona? – perguntou Ambury.
– Penso que não. Caso mude de ideias, dir-lho-ei.
Era melhor que Ambury e os outros não chegassem a tomar conhecimento sequer daquilo que ele já sabia, quanto mais do que poderia ser descoberto com uma investigação.
As gotas eram agora mais abundantes. Caía uma chuva fina, com nuvens pesadas em promessa de mais. Passaram a cavalgar a trote. Um minuto depois, o céu desabava sobre as suas cabeças.
– Com os diabos, lá vem ela.
Ambury pressionou o cavalo para meio galope.
Com a velocidade, pouco conseguiam ver enquanto aceleravam até à entrada do parque. Ainda assim, Penthurst reparou nas duas mulheres que corriam em busca de abrigo sob uma árvore. Uma senhora e a sua criada,
ao que parecia. Olhou para o céu e duvidou de que a árvore as pudesse manter secas por muito tempo.
Virou o cavalo na direção da árvore. Ambury deu conta e imitou-o. Puxaram as rédeas apenas uns momentos depois de as mulheres se terem agachado sob os ramos.
– Lydia! – chamou Ambury. – Que altura bizarra para passeios no parque.
– Há uma hora, parecia uma boa ideia.
– Vou dizer ao seu cocheiro que traga aqui a carruagem.
A criada puxou a touca e agitou-a vigorosamente.
– Viemos sempre a andar. – E lançou um olhar ressentido na direção da patroa.
Lydia não reagiu, nem sequer pôs a criada no seu devido lugar. Penthurst pensou que havia sido generosa. Talvez sentisse alguma culpa por a ter arrastado a pé até ali.
Desmontou.
– Não parece que isto vá parar em breve. Nós levamo-las até casa. Molhar-se-ão de qualquer modo, mas o sofrimento será mais curto.
Retirou e sacudiu a sobrecasaca e lançou-a sobre os ombros de Lydia. Com ela ainda surpreendida com tal ato, Penthurst içou-a para a sela do seu cavalo.
Ambury procedeu de modo idêntico com a criada, petrificada num silêncio estupefacto.
Penthurst, num impulso, subiu para trás de Lydia. Com as suas pernas femininas balançando lateralmente sobre o dorso do cavalo, rodeou-a com os braços para chegar às rédeas. Ela contraiu-se.
– Perdoe-me – disse ele –, não há outra forma.
– Naturalmente.
– Agarre-se a algo para se segurar. Caso contrário, serei forçado a ser ainda mais ousado para a manter no sítio.
A esfinge corou. Agarrou a frente da sela com tanta força que os nós dos seus dedos ficaram brancos.
Ambury baixou-se para passar sob os ramos e partiu, tão depressa que a criada soltou um guincho. Lydia não emitiu um único som quando Penthurst se lhe seguiu.
CAPÍTULO 4
Lydia tentou não se mexer um milímetro, mas tal revelou-se impossível sobre um cavalo a galope. Sentada assim de lado, com as pernas a baloiçar e a anca em risco de deslizar, seguia aos encontrões, para
a frente e para trás. Balançar para a frente não a preocupava, uma vez que lhe deslocava o corpo na direção do pescoço do cavalo. Já para trás, infelizmente, levava-a de encontro ao imponente tórax do
duque de Penthurst.
Olhou sempre em frente e fingiu que tudo aquilo não prosseguia a um ritmo regular que a envergonhava. Porque não fora Ambury a levá-la no seu cavalo? Lá mais à frente, tudo o que conseguia distinguir de
Sarah eram os sapatos, baloiçando ao ritmo da passada do cavalo.
P-pum. P-pum. Pelo menos, a grossa sobrecasaca sobre os ombros e braços amortecia o contacto, impedindo-o de se tornar tão íntimo. Todavia, as mangas da camisa de Penthurst, de um branco resplandecente
e puro sob a chuva, cingiam-na algo apertadas e não havia qualquer tipo de lã grossa a cobri-las.
Chovia a cântaros. O seu acompanhante não parecia dar-se conta de como a chuva lhe encharcava o cabelo e essas mesmas mangas de camisa e o colete a poucos centímetros do nariz dela. P-pum. Um belo colete,
reparou ela pelo canto do olho. Rodou a cabeça para o estudar mais de perto. P-pum. O nariz esbarrou diretamente no brocado cor de vinho. O rosto lançou-se abruptamente contra o rico bordado a prata. Chegou
mesmo a sentir o calor do seu corpo através do tecido.
– Peço desculpa, Lydia. Havia um desnível no chão e um pequeno salto poupou-lhe bastante desconforto. – A sua voz, grave e masculina, fluiu-lhe pelos ouvidos adentro.
Ela afastou-se e tentou endireitar o chapéu com uma mão. Uma torrente de água jorrava pela aba, caindo diretamente no seu nariz. Estava com um aspeto pavoroso, isso ela sabia. Felizmente, não estava preocupada
em impressionar Penthurst. Era o último homem no mundo inteiro com cuja opinião se importava.
– É todo fino. – Apontou com o nariz para o colete, já que não ousava largar a sela para usar um dedo. – Vejo que não reformulou totalmente o seu gosto. Já não usa os cetins e os entrançados dourados,
e cortou finalmente o rabo de cavalo, mas não consegue deixar de marcar a sua posição, não é verdade?
– Não compreendo o desejo que os cavalheiros têm atualmente de se assemelharem a banqueiros. Estes estilos simples são apenas moda, vão passar.
– A mudança não foi pequena, como trocar simplesmente de camisa. Todos têm uma aparência muito diferente daquela que tinham há dez anos. Não creio que os velhos costumes venham a regressar, pelo menos
para os homens, porque os atuais são mais democráticos. Você não se parece verdadeiramente com um banqueiro. Contudo, a distinção entre o que vejo em si e um banqueiro é muito menos visível hoje do que
antigamente.
– E pensa que isso é bom?
– O que eu penso não interessa. As coisas são simplesmente assim.
– Essa é uma resposta traiçoeira. Não admira que o seu irmão se rale consigo, se responder às suas perguntas dessa forma. – Baixou a cabeça de modo a falar-lhe diretamente ao ouvido. – Ou será que não
tem qualquer tipo de opinião, Lydia? Será que o espírito é tão vazio quanto o rosto? Não me parece. Suspeito que encontraremos muitas opiniões por trás dessa máscara, até grandes paixões, que não ousa
revelar aos outros. Se calhar ergueu um muro para nos impedir a todos de ver aquilo que é verdadeiramente.
A sua respiração quente provocou um calafrio por todo o corpo de Lydia. As suas especulações andavam muito perto da verdade, penosamente perto. A intimidade das suas observações, mais alarmantes ainda
devido à sua premente presença física, evocou nela a outra ocasião em que ele lhe falara deste modo, como um homem poderia falar com uma mulher, e não apenas a irmã de um amigo. Desta vez, não se sentiu
tão chocada, mas o que ele lhe disse na altura não encerrava em si o mesmo perigo.
Colocara a memória dessa outra ocasião num compartimento da sua cabeça, fechara a porta e nunca mais lá voltara a entrar. Agora, essa memória eclodia com toda a força, trazendo consigo uma vez mais a sua
confusão, depois o choque e, por fim, o ressentimento. Apesar da forma como tornava ainda mais constrangedora a sua intimidade em cima do cavalo, foi de bom grado que recebeu essa memória, já que se apercebeu
de que poderia haver uma forma de, afinal, arranjar as dez mil libras.
– Esse muro que eu ergo não deve ser grande coisa – tartamudeou, segurando a sua pose com o mesmo desespero com que agarrava a sela –, se consegue ver através dele com tanta facilidade; ou é transparente
ou a sua presunção dá-lhe capacidades de visão que lhe são exclusivas.
Fixou o olhar nas casas que ia avistando, mas sentia-o ali, aquecendo o seu ombro, prestando demasiada atenção. Será que estava a imaginar aquelas mangas de camisa a aproximarem-se, a apertarem-na mais?
Não para a segurar. Enquanto seguiam a trote pela calçada de seixos abaixo, ela sentia cada vez mais os abanões, agora de um lado para o outro. As costas de Lydia embatiam repetidamente contra o braço
dele. Teve de se segurar com força para evitar que o peito fizesse o mesmo contra o braço à sua frente.
Entraram por fim em Berkeley Square. Ele abrandou o cavalo, iniciando uma marcha tranquila. Aproximaram-se da casa de Lydia no momento em que Ambury levantava Sarah para a retirar da sela. Sarah, que muito
raramente andara a cavalo, estava encantada e tonta. Ela e Ambury riam-se de algo. A porta abriu-se então e dela saiu um homem alto de cabelo escuro. O irmão de Lydia.
Ele disse algo a Sarah. Esta fez uma breve vénia e apressou-se a fugir da chuva. Ambury apontou para a vereda, mais acima. Southwaite virou-se e, com uma expressão de curiosidade, os seus olhos escuros
observavam o cavalo de Penthurst.
Os moços de estrebaria vieram segurar os cavalos. Southwaite desceu ao nível da rua.
– Estou a ver que encontrou bagagem perdida, Penthurst.
– Não propriamente perdida, mas apanhada pela tempestade.
O irmão aproximou-se e desceu-a do cavalo. Examinou-a minuciosamente da cabeça aos pés, abanando a cabeça.
– Que estranha manhã para dar um passeio.
– Quis sair para passear por entre as glórias da natureza.
– As pessoas que vivem em praças têm essa oportunidade sempre que o desejam sem que precisem de caminhar para o outro lado da cidade. É por isso que as casas nas praças são tão apetecíveis.
Abanou uma vez mais a cabeça da forma exasperada e impotente que tantas vezes usava com ela. Retirou-lhe a sobrecasaca dos ombros.
– Entre e seque-se, e depois vá por favor ter com a Emma. Tem estado à sua espera toda a manhã, para poder partilhar novidades consigo. A Cassandra já cá está.
Agarrou na saia ensopada e subiu até à porta, chapinhando ruidosamente com os sapatos encharcados. Quando passou o limiar da porta, ouviu o irmão a falar com os amigos.
– Meus senhores, entrem, tomem um café e sequem-se também. Gostaria de dar uma palavrinha aos dois.
*
Penthurst e Ambury estenderam as botas até próximo do fogo brando da biblioteca. Um criado serviu um café a cada um. Os casacos secavam numa cadeira rústica a seu lado, trazida especificamente para esse
efeito. Southwaite permanecia de pé ao lado da prateleira da lareira.
– Tudo isto é muito simpático da sua parte, Southwaite, mas limitámo-nos a trazer a casa duas mulheres apanhadas na tempestade – declarou Ambury. – Eu podia atravessar a praça e pedir ao meu criado de
quarto que liberte os seus de todo este incómodo.
– Eu disse que lhes queria dar uma palavrinha.
– Sim, é verdade. Deixe-me garantir-lhe que, qualquer que seja o motivo da presença da Lydia no parque hoje, estou certo de que terá sido inocente.
Southwaite franziu o sobrolho.
– Achou que eu teria pensado de outro modo?
Ambury bebeu demoradamente um trago de café.
– A sua repreensão quando ela regressou deu-me a entender que sim.
– Estava apenas a comentar o comportamento estranho da minha irmã... não dá a entender nada mais.
– Ótimo. Mas caso tenha de facto suspeitado de algo, fique descansado que, tanto quanto pude ver, não havia ninguém no parque esta manhã com quem pudesse ter planeado encontrar-se. Eu era provavelmente
a única pessoa ali que ela sequer conhecia. – Começou de novo a beber, mas a chávena estacou a meio caminho dos lábios. – Bom, com exceção aqui do Penthurst.
Seguiu-se um silêncio pouco usual.
– Sim, bom, já está em casa, lá em cima, e a ouvir o que quero dizer-lhes aos dois. – Southwaite endireitou-se um pouco. – A Emma está grávida.
– Isso são belíssimas notícias, Southwaite. – Penthurst levantou-se, felicitando-o com pancadinhas nos ombros.
– Realmente são. E porque nos está a oferecer apenas café? – exigiu Ambury. – Pode ser cedo, mas a ocasião exige pelo menos brandy, seja a que horas for.
Serviu-se então brandy e seguiu-se uma hora de boa disposição e felizes especulações. Penthurst sentiu-se entusiasmado com aquele espírito de camaradagem, que se assemelhava àquilo que tinham partilhado
tantos anos antes, até que deveres e duelos os haviam distanciado.
Penthurst e Ambury despediram-se juntos.
– A Lydia estava no parque provavelmente para se encontrar com alguém, como é evidente – disse Ambury enquanto se acomodava na sela. – Quer fosse um encontro inocente ou inapropriado, não queria ser vista
nesta praça com ele, especialmente bem cedo de manhã.
– Esperemos então que seja o primeiro caso e o Southwaite poderá entregá-la em breve em casamento e libertar-se de todas as preocupações que tem com ela.
Ambury virou o cavalo e partiu. Penthurst tomou o sentido das ruas para lá da praça.
Mal Lydia tinha acabado de entrar nos seus aposentos, já Sarah dançava na sua direção com a excitação.
– São notícias maravilhosas, não são, milady?
– Como é que já sabes?
– A cozinheira disse-me enquanto me secava junto à lareira da cozinha. Uma criada de cima contou-lhe. Penso que a aia de Lady Southwaite contou à criada de cima e...
– E, sem dúvida, tu soubeste antes de mim. Mas, sim, são notícias maravilhosas. A Emma está tão contente. Já sabe há alguns meses, mas adiou a revelação, mesmo ao meu irmão, até saber que tudo parecia
bem e seguro.
– Está de quatro meses, disse a cozinheira. Bem, isto significa que teremos um bebé pela primavera.
Sarah ajudou-a a despir a roupa ainda húmida. Não tivera tempo de se trocar antes de falar com Emma. Quando corre o rumor de boas notícias, é natural querer-se saber de que se trata. Secara-se o melhor
possível com uma toalha enquanto, com Emma e Cassandra, passava bons momentos no quarto de vestir de Emma.
Todo aquele entusiasmo havia varrido da sua mente os acontecimentos da manhã, mas agora começavam a insinuar-se de novo, atenuando a sua alegria e marcando o regresso das suas preocupações. Uma semana,
dissera Trilby. Seria preciso um milagre para arranjar dez mil libras numa semana. Ou uma sorte mesmo muito grande.
– Sarah, tu falas de mim às outras pessoas aqui de casa, como a cozinheira te falou a ti sobre a Emma?
Sarah não o negou de imediato, como Lydia teria esperado. Pelo contrário, pousou as meias húmidas que acabara de retirar e sentou-se, pensativa.
– Houve vezes em que deixei escapar algumas coisas. Nada de importante. É só que, numa casa grande e atarefada como esta, o que é e não é privado pode tornar-se pouco claro, não é? Tenho de me recordar
a mim própria que é possível que saiba coisas que não são do conhecimento da sua família.
– Se eu te dissesse que é importante que não saibam uma coisa, achas que podes garantir que nunca a deixarias escapar? Preciso de falar contigo sobre um assunto, Sarah, e não posso partilhá-lo com a Emma
ou a Cassandra.
Sarah sentou-se a seu lado no divã e envolveu-a com um braço.
– Claro que sim. Sempre o fiz quando éramos pequenas, não foi? Eu sei que agora é uma milady, mas, no meu coração, será sempre a Quida.
Era o nome que Sarah lhe chamava quando eram pequenas. Ouvi-lo agora trouxe-lhe um conforto inesperado.
– Estão a fazer chantagem comigo, Sarah. – Falou-lhe de Trilby, do romance e das suas exigências. – Esta situação é ridícula, mas isso não significa que não seja perigosa.
Sarah reagiu como uma boa amiga deve reagir, com choque e apreensão.
– Ele parece-me tão ganancioso. Que quantia tão elevada! Será que ele não teme que a milady possa contar tudo ao seu irmão? É agora a sua melhor opção, não é?
– E o que lhe vou dizer? Que escrevi um romance que parece um diário, que alguém lhe pôs as mãos e reparou que algumas partes podem ser interpretadas de uma forma que me retratam como uma traidora? Por
isso, dê-me cá uma fortuna para eu o poder subornar, por favor?
Não contara tudo a Sarah. Deixara de fora as partes do romance que ultrapassavam os limites da decência em cenas românticas. Só de se lembrar do cariz explícito desse capítulo trazia calor ao seu rosto.
Nenhum romance respeitável continha tais coisas, mas ela nunca acreditara verdadeiramente que o manuscrito seria publicado.
E tinha de garantir que nunca tal aconteceria.
– Se calhar podemos roubá-lo – sugeriu Sarah. – Vamos descobrir onde vive, entrar às escondidas, encontrá-lo e...
– Mesmo que saibamos onde vive, não temos qualquer garantia de que o manuscrito esteja lá. Receio bem que tenhamos de encontrar uma forma de arranjar o dinheiro e comprar de volta as minhas estúpidas palavras.
– Não acumulou algum dinheiro dos jogos? Por esta altura, já deveria ter uma quantia razoável, diria eu.
– Seria de pensar, não é? Infelizmente... – Encolheu os ombros.
Esse dinheiro não ficava guardado na sua bolsa. Tinha-lhe dado outros destinos. Destinos secretos, que só ela conhecia. Doava, muitas vezes anonimamente, a causas de valor.
Gostaria de chamar a si alguma bondade por fazê-lo, mas sentia tanto prazer, que estes gestos quase lhe pareciam egoístas. Além disso, esses donativos não eram importantes apenas pela beneficência. Com
cada um, declarava a si mesma que tinha uma vida autónoma, que era uma pessoa autónoma e que possuía um objetivo na vida.
Questionava-se se a bondade dos atos seria de algum modo diminuída pelas suas motivações orgulhosas ou pelo prazer que sentia a ganhar aquele dinheiro.
É provável que sim.
Sarah levantou-se e começou a retirar os ganchos do cabelo molhado e emaranhado de Lydia.
– Pode pedir o dinheiro emprestado a uma amiga?
– Uma pequena quantia, talvez. Mas um valor tão elevado, tenho a certeza de que nem a Emma nem a Cassandra me poderiam ajudar sem pedirem aos maridos. Mesmo mulheres como nós não têm acesso a tanto dinheiro,
Sarah. A menos que esteja num fundo fiduciário, ou seja, indisponível.
– Se assim é, em que estava ele a pensar quando decidiu pedir tanto?
– Acho que partiu do princípio de que eu podia ganhá-lo nas mesas de jogo.
Sinais de reprovação percorreram lentamente o rosto de Sarah. Sem uma palavra, posicionou-se por trás de Lydia e começou a escovar-lhe o cabelo.
– Poderia consegui-lo dessa forma – ponderou Lydia, pensando em voz alta. – Mas demoraria algum tempo. Nunca arrisquei tanto, nem nunca ganhei tanto, muito menos numa semana. Nunca ousaria tentar tudo
numa só noite: seria realmente abusar da sorte. – Pensou de novo na cavalgada à chuva e na ideia que então lhe tinha ocorrido. – A menos que fosse uma só aposta. Sim, isso deveria funcionar, se decidisse
sequer seguir esse caminho, acho eu. Tenho a certeza de que nesse caso eu ganharia e poderia cumprir o prazo de Mr. Trilby.
– Eu não jogo, por isso perdoe-me se a minha pergunta lhe parecer disparatada, mas, se a outra pessoa apostar dez mil, isso não significa que também tem de ter os seus dez mil?
Pensou novamente naquele encontro bizarro com Penthurst da primeira vez que fora à casa de Mrs. Burton no ano passado. Ele tentara deliberadamente chocá-la, foi o que percebeu mais tarde. Tinha sido bem-sucedido,
pelo menos nessa noite. Contudo, ao fazê-lo, propusera uma aposta muito elevada, não fora verdade? Quando um cavalheiro faz uma aposta daquelas, está obrigado a levá-la até ao fim se a oferta for aceite.
– Não precisaria necessariamente de dinheiro, Sarah. Apenas de algo de valor equivalente.
CAPÍTULO 5
Lydia ergueu bem alto a cabeça enquanto se aproximava da casa de Grosvenor Square. A seu lado, Sarah debatia-se com o chapéu, a saia, as luvas.
– Sossega – repreendeu-a Lydia. Era tudo o que podia fazer para impedir a sua própria inquietação e a falta de confiança de Sarah não a ajudava nada a manter a sua.
– Tem a certeza de que ele lhe dará o dinheiro? Será muito constrangedor pedi-lo e ele recusar.
Lydia dissera apenas que visitaria o duque para averiguar se este estaria disposto a ajudá-la, como amigo da família. Sarah pressupusera que a intenção seria pedir um empréstimo. Era melhor Sarah não saber
que Lydia não tinha qualquer intenção de pedir dinheiro, não diretamente. Ao invés, faria do duque vítima das suas próprias maquinações, dar-lhe-ia o castigo merecido há muito e, por fim, sentiria o sabor
da vingança pela forma como ele lhe arruinara a oportunidade de felicidade com que em tempos fora agraciada. E também receberia o dinheiro. Se não estivesse tão nervosa, estaria a apreciar verdadeiramente
a situação.
O criado recebeu o cartão de Lydia. Depois de lhe dar uma olhadela, apagou a expressão crítica que ostentara ao ver uma mulher à sua porta, às oito horas da noite.
– Deves esperar aqui, Sarah. – Apontou para um banco junto à parede do vestíbulo. – Tenho de falar com ele em privado.
– Não será apropriado e sabe bem disso. Eu deveria ir consigo e sentar-me na mesma sala, encostada a uma parede.
– Basta teres vindo comigo. Qualquer pessoa que possa ter-me visto, e certamente alguém viu, ter-te-á visto a ti também. Seja o que for que suceda, agora que estamos dentro de portas, não terá qualquer
importância.
– Ele pode ficar com uma ideia errada. O duque, quero eu dizer.
Lydia riu-se. Serviu para lhe acalmar os nervos.
– Eu sou a incómoda irmã mais nova de um dos seus amigos, Sarah. O duque de Penthurst nunca ficaria com uma ideia errada sobre mim. Se alguma vez insinuasse tal coisa, não passaria de uma cruel provocação.
Estarei a salvo.
Tinha esperança de que tudo isso fosse verdade, mesmo que o plano não funcionasse, mas não se permitia pensamentos de fracasso. Esta noite, estaria no seu elemento. Utilizaria o seu único talento e a sua
marca distintiva e sairia por esta porta com o dinheiro de que necessitava. E Penthurst pagaria indiretamente por coisas que nem sequer imaginava estar a dever-lhe.
O criado regressou ao seu encontro. Seguiu-o pela larga escadaria de mármore branco, revestida por uma faixa de alcatifa de padrões profusos. Caminharam por um enorme patamar até se encontrarem perante
portas profundamente apaineladas. O criado abriu uma das portas e afastou-se para o lado.
Lydia entrou numa biblioteca do tamanho de um salão de baile. Tinha escadas que conduziam a um mezanino que percorria três dos seus lados e cadeiras e divãs suficientes para se sentarem dezenas de pessoas.
Duas longas mesas ostentavam aglomerados de livros, como se alguém estivesse a utilizá-los nesse momento. Em tudo o resto, a sala parecia vazia, faustosa e raramente utilizada.
Ela olhou em volta, tentando decidir onde deveria sentar-se enquanto esperava. Subitamente, apareceram dois cães vindos do nada. Acometeram correndo na sua direção, revelando os dentes. Ela recuou, estendendo
os braços para se defender de um ataque.
No meio da névoa do seu pânico ouviu um comando calmo e em baixo volume:
– César. Cleo. Senta.
Os dois cães baixaram imediatamente os quadris e transformaram-se em estátuas. O comando fora tão seguro de que seria obedecido que ela quase se sentou também.
– As minhas desculpas, Lydia. Esqueci-me de que nunca aqui esteve. De futuro, não voltarão a tratá-la como uma intrusa.
O som da sua voz assustou-a. Penthurst levantou-se por trás de uma cadeira de espaldar alto, de costas voltadas para ela. Devia estar a ler quando o criado lhe trouxe o cartão.
Todavia, na verdade não aparentava ter planeado uma noite de leitura. Estava vestido para uma saída noturna, era uma elegante figura em preto e branco. A luz do candeeiro sobre a mesa apontava para cima,
na direção do seu rosto, escavando profundamente os seus traços, conferindo-lhe uma aparência muito altiva, austera e... reprovadora. A direito e não arqueadas, as suas sobrancelhas subiam inclinadas acima
dos olhos, contribuindo para um olhar crítico e intenso.
Todo ele era duque e cavalheiro, e no entanto... Lydia pensou sempre que ele se sentiria mais à vontade num castelo sombrio do que numa mansão em Grosvenor Square. Conseguia imaginá-lo no grande salão
do castelo com os seus cães, alto e em desalinho depois de cavalgar, com as labaredas do fogão de sala a crepitar nas suas costas.
Questionava-se se ele também não se veria a si próprio da mesma forma. Tinha cortado o rabo de cavalo, um dos últimos da sua geração a fazê-lo, mas não apreciava um penteado de estilo mais romano. Continuava
com o cabelo mais comprido do que o da maioria, com toda a sua densidade a roçar a parte de trás do colarinho e os lados da cara.
Não se deslocou na direção de Lydia, não lhe deixando outra opção senão ser ela a caminhar na sua. O modo como a observava a aproximar-se enervou-a a ponto de ficar sem ar.
– Veio pedir desculpa?
A pergunta fê-la estacar a uns bons cinco metros de distância.
– Pedir desculpa? Porquê? Por se ter molhado hoje?
– Isso foi por opção minha. Não, pedir desculpa à minha tia pela sua descortesia na carruagem na outra noite.
– A descortesia foi iniciativa dela.
– Provocou-a, deliberadamente. Quanto às palavras proferidas pela minha tia, trata-se de uma mulher mais velha que procurou alertá-la e aconselhá-la, poupando assim muito sofrimento a uma mulher jovem.
Além disso, é filha de um duque.
Quaisquer dúvidas que pudesse ainda ter acerca da extorsão que estava prestes a exercer sobre este homem desapareceram por completo.
– Nem que fosse a rainha, eu não toleraria tais insultos. Por isso, respondendo à sua pergunta, não vim até aqui para lhe pedir desculpa.
– Posso então presumir que tenha vindo visitar-me a mim.
Percorreu-a dos pés à cabeça com o olhar, desviando-o em seguida na direção da porta.
– Veio sozinha?
– A Sarah está comigo.
– Não, não está.
– Quis dizer que está à espera no vestíbulo. Não me pareceu que ela devesse ouvir o que preciso de conversar consigo.
Agora interessado, e também vagamente divertido, fez sinal para que se aproximasse e indicou as cadeiras.
– Queira então sentar-se e diga-me em que lhe posso ser útil.
Lydia ocupou outra cadeira, muito semelhante àquela em que ele próprio se sentara anteriormente. A sua atitude era agora tolerante e paciente. Ela apercebeu-se de que ele presumia que ela lhe pediria um
favor ou alguma espécie de benesse. Sendo duque, provavelmente muita gente vinha aqui dizer-lhe aquilo em que ele lhes poderia ser útil.
Penthurst não se sentou, mantendo-se em pé ao lado da cadeira, com um braço apoiado sobre o espaldar alto. Lydia reparou uma vez mais na sua indumentária e questionou-se se a visita dela interferira na
sua saída para um jantar ou outro convite. Quem sabe se teria a intenção de visitar uma mulher. Algo nele lhe levava a pensar que sim. Por outro lado, se calhar estaria à espera de que uma mulher o visitasse
a ele. Mas não ela, é claro.
Seria uma situação constrangedora. Esperava que os criados soubessem manter a sua amante afastada enquanto ele recebia outras visitas. O melhor era acelerar esta conversa.
– Lembra-se da primeira vez que estive na casa de Mrs. Burton? – perguntou. – Vimo-nos lá.
– Lembro-me da primeira vez que a vi na casa de Mrs. Burton. Há cerca de um ano, não é verdade? Se me diz que foi a sua primeira vez, não tenho qualquer motivo para não acreditar.
– Eu estava a ganhar ao vingt-et-un. Ganhei uma e outra vez. Você sentou-se na mesa ao lado da minha quando eu já lá estava há uma hora. O Ambury queria que eu viesse embora, a Cassandra também. Lembra-se?
Silêncio. Que se alargou a ponto de ela pensar se ele afirmaria alguma falha de memória.
– Lembro-me. A Lydia estava embriagada com a excitação do risco, se bem me recordo.
Embriaguez não descrevia aquela incrível excitação. Sentiu-se viva, vital, alerta para toda a sua pessoa. Passara meses a dormir. Nessa noite, ela despertou.
Ganhara oitocentas libras nessa noite. Uma pequena fortuna. E depois tinha-as oferecido a quem delas necessitava desesperadamente. Numa só noite, vivera uma experiência de ressurreição e de comoção, e
encontrou além disso um desígnio.
– Propôs uma aposta, Penthurst. Penso que a sua intenção era chocar-me e estragar a minha diversão. Funcionou.
– Não por muito tempo.
– Não voltei a jogar nessa noite, nem durante duas semanas.
– Mas depois recomeçou. Teria sido melhor ter aceitado a minha aposta. A perda talvez tivesse acabado com esse fascínio.
– Estou convicta de que eu teria ganho e deveria ter sido suficientemente corajosa para o acompanhar no seu jogo, em vez de deixar que interferisse e arruinasse o meu serão.
– Está convicta, então?
– Sim. Por motivos que desconheço, a sorte sorri-me. Penso que, se fosse agora, ganharia também. Tenho a certeza. Estou tão certa que vim aqui aceitar o desafio que me lançou nessa noite.
Penthurst não conseguiu ocultar a sua surpresa. Mas foi fugaz.
– Terá possivelmente esquecido os pormenores da aposta em causa.
– De todo. Propôs as suas dez mil libras contra a minha inocência, sendo que o vencedor seria determinado numa só cartada.
Lydia tentou soar mundana, como se falasse permanentemente deste tipo de assuntos. Queria que ele soubesse que já não era a tontinha que emudecera naquela mesa de vingt-et-un.
O seu objetivo tinha sido confundi-la. E funcionara demasiado bem. Ela não conseguia lembrar-se se a sua perplexidade adviera da proposta em si, a ponto de perder o interesse no jogo, ou se do facto de
ter sido ele a fazê-la. Bem, agora era mais senhora de si. Sabia uma ou outra coisa acerca do mundo.
– A aposta foi feita sabendo que nunca aceitaria.
– Eu sei. Contudo, também nunca foi retirada. Que descuido da sua parte.
– Não é possível que queira fazer isto.
– O que quero é as suas dez mil libras. Esta é apenas a forma mais fácil de o obrigar a desfazer-se delas.
Não veio resposta. Apenas um olhar longo e sombrio. A sua autoconfiança começou a desmoronar-se. Uma excitação semelhante ao frémito que sentia na mesa de jogo despertou no seu âmago. Ele parecia um pouco
contrariado, o suficiente para contrair o maxilar e endurecer o contorno dos lábios. Ficava ainda mais atraente assim, mas a preocupação de Lydia era que a sua expressão refletisse uma crescente obstinação
nascida do sentido de dever e da amizade com Southwaite e todas e quaisquer outras razões que ele pudesse invocar para recusar. Afinal de contas, ele não sabia que iria perder. O cariz escandaloso da aposta
poderia estar a levá-lo a ponderar seriamente.
Se assim era, então ele nunca deveria tê-la feito.
– Caso deseje ser dispensado, não posso obrigá-lo a levar a aposta até ao fim – disse ela. – Embora eu duvide que queira ser conhecido como um homem que propõe apostas sem qualquer intenção de as cumprir.
Ele fitou-a como se ela tivesse acabado de ameaçar que contaria ao mundo inteiro precisamente isso. Não fora essa a intenção, apesar de poder ter soado assim. Oh, céus. Tinha sido descuidada.
– Vejo que está determinada em arriscar a ruína, Lydia. Assim seja.
Caminhou até uma pequena mesa redonda, ergueu-a e pousou-a entre as duas cadeiras. Dirigiu-se rapidamente a uma das estantes e retirou algo de uma pequena gaveta. Regressando, colocou um baralho de cartas
sobre a mesa.
– Uma só cartada, foi o que disse. Sem trunfos nem jokers, o ás ganha. Está de acordo?
– Totalmente de acordo.
Lydia descalçou as luvas, já que nunca as usava nas mesas de jogo. Pensando melhor, também desprendeu o chapéu, retirou-o e colocou-o de lado, já que nas mesas também nunca o usava. O melhor talvez fosse
imitar o mais possível a aparência e o estado de espírito que levava nas situações reais de apostas. Não era propriamente supersticiosa, mas quando existem indícios de uma força tão irracional como a sorte,
há tendência para seguir outras irracionalidades.
Penthurst sentou-se na cadeira. Baralhou as cartas, empilhou-as impecavelmente e empurrou o baralho na direção de Lydia, reclinando-se depois comodamente na cadeira.
– Pode avançar primeiro, Lydia.
Ela sentou-se na ponta da cadeira, com o corpo quase em contacto com a mesa. Tentou ignorá-lo porque nunca prestava atenção às outras pessoas enquanto jogava. Infelizmente, não conseguia eliminá-lo totalmente
da sua mente. Mesmo sem o encarar, sentia-o ali, de olhos postos nela, a sua presença a pressioná-la, como se emanasse uma energia mensurável. Ele deixava-a nervosa e impregnava este risco com mais perigo
do que ela gostaria de reconhecer.
Mas que tonta. Não havia perigo. Pelo menos não nas cartas. Ela iria puxar uma carta, ganhar, receber o dinheiro, livrar-se de Mr. Trilby e queimar o manuscrito logo que o tivesse de volta.
Espalhou as cartas em leque. Os dedos tremiam quando estendeu a mão. Com a mão suspensa no ar, fez a sua escolha. Retirou uma carta e virou-a.
Dama de espadas.
Ergueu os braços com um entusiasmo triunfante, deixando escapar um gritinho de contentamento. Olhou para a dama, admirando-a e apreciando o frémito da vitória.
Uma mão surgiu por sobre as cartas. Uma mão muito masculina, mas bastante bela à sua maneira, com dedos longos e de uma robustez esguia. Esses mesmos dedos puxaram uma carta. A carta desapareceu. Lydia
ergueu o olhar para observar Penthurst a analisá-la. Pela sua expressão, ela sabia que ganhara.
Ele não parecia disposto a atirar a carta para junto da dama. Rindo, ela levantou-se, debruçou-se sobre a mesa, sacou-a de entre os dedos de Penthurst e largou-a na mesa, pronta para se regozijar.
O riso ficou-lhe preso na garganta. O espírito esvaziou-se. De olhos postos nela, ao lado da sua dama, jazia o rei de espadas.
Não. Impossível. Qual a probabilidade de ele puxar uma das muito poucas cartas de que precisava para lhe ganhar? Não conseguia tirar os olhos da carta.
Atordoada, mergulhou novamente na cadeira.
– Manipulou-as de algum modo?
– Dada a sua perturbação, vou fingir que não ouvi esse insulto.
Perturbação era dizer pouco. A voz de Penthurst produziu um soco de terror em todo o corpo de Lydia. Obrigou-se a olhar para ele. Ele, por seu lado, observava-a.
– Não compreendo – balbuciou. – Nunca perco em grandes apostas.
– Se tivesse perguntado ao seu irmão, teria ficado a saber que eu também não.
Não parecia justo que a sorte dele fosse mais forte do que a dela, logo naquela noite. Como poderia ter previsto tal coisa? Agora ela perdera e ele ganhara e... Oh, céus.
Penthurst estendeu as pernas e cruzou as botas. Com os olhos resplandecentes de uma luz demoníaca, bateu com os dedos na mesa, apontando uma vez mais para as cartas.
– Qual a melhor forma de abordar isto, Lydia?
– Abordar o quê?
– Pressuponho que ambos desejemos a máxima discrição. Eu preferiria se o Southwaite não me desafiasse para um duelo e tenho a certeza de que a Lydia preferirá que o mundo não saiba que perdeu a inocência
no jogo.
Lydia não encontrava a sua voz para poder responder. Não que tivesse qualquer resposta inteligente para dar.
– Não em Londres, parece-me – prosseguiu ele, ponderando a questão. – Tem facilidade em visitar a propriedade da sua família no litoral, não é verdade? Deve planear deslocar-se até lá na próxima semana.
Leve consigo a sua tia, aquela que nunca a vigia com deve ser.
– Como sabe se ela me vigia ou não como deve ser?
– Está neste momento aqui, não está?
– A tia Hortense não é o meu carcereiro. Posso andar pela cidade sem ela. Sou uma mulher adulta.
– É claro que é. Eu nunca pensaria na melhor forma de preparar a cama se não o fosse.
Preparar a cama. O seu espírito ficou imediatamente em choque. Lydia fitou Penthurst, tentando não imaginar o que tal implicaria. Não conseguiu, ainda assim, evitar pequenos clarões de imagens do seu belo
rosto erguendo-se por sobre os ombros e o peito sem roupa e daquela mão pousada na mesa e não sobre ela.
Sentiu-se percorrida por um novo pânico, inundando-a de calor e confusão, demasiado consciente do seu atual isolamento. Sentiu-se terrivelmente vulnerável face à masculinidade que dele emanava como um
farol apontando na sua direção. Não conseguia deixar de reparar em pequenas peculiaridades, como aquela mão, e a sua boca, e as minúsculas luzes douradas nos seus olhos, e na forma escandalosa como tratava
de a observar. Aquele olhar parecia discreto o bastante, mas ela quase se contorcia com o modo como a atenção dele lhe comunicava as implicações daquilo que iria acontecer.
– ... Eu tratarei do resto – continuou ele. – Suponho que possa dar-se numa estalagem, mas prometo que será de qualidade, com proprietários muito discretos. Mas se calhar era melhor arrendar uma casa.
Terei de ver o que está disponível.
– Não haverá certamente qualquer pressa.
Lydia quis soar sofisticada. Ao invés, a voz ecoava desespero, mesmo aos seus próprios ouvidos.
Penthurst esticou o pescoço. Formou um ligeiríssimo sorriso que pouco fez para a tranquilizar.
– Não estou habituado a aceitar crédito.
– Não estou a sugerir propriamente um crédito, apenas...
– Será que apostou algo que não possui? É esse o problema?
Lydia demorou um momento a descortinar o que ele queria dizer. Quando por fim o conseguiu, apenas lhe provocou novo choque.
– Estou totalmente na posse daquilo que apostei. Contudo, uma semana... tenho outra coisa para fazer esta semana.
Novamente aquele sorriso vago.
– Ah. Deseja um adiamento. Pequeno, espero eu.
Lydia acenou afirmativamente, como que embrutecida.
– Duas semanas, então, mas fico na expectativa de uma contrapartida pela minha paciência.
Pôs-se de pé e ofereceu a mão para a ajudar a levantar-se.
Lydia agarrou nas luvas e no chapéu. Aceitou a mão, demasiado alerta para a sensação quente e seca que a sua pele causava sobre a dela. Voltou-se com a intenção de partir de imediato.
Penthurst não lhe largou a mão. Mesmo quando ela a puxou levemente, ele segurou-a com firmeza. Lydia virou-se para ele com curiosidade. Os olhos dele estreitaram-se e ele puxou-a de volta. Lydia rodou
na sua direção até esbarrar diretamente contra o seu corpo.
Com a outra mão, Penthurst pressionou-lhe a cintura, pelas costas.
– Esqueceu-se da contrapartida. No sentido legal, quero eu dizer. Eu faço algo por si, e a Lydia faz algo por mim.
A sua voz, grave e suave, gerou em Lydia um calafrio pela espinha acima. Fixou os olhos nele, sentindo-se ainda mais tonta do que antes, tentando engolir o seu espanto por estar a ser apertada contra ele
de uma forma extremamente imprópria.
– Algo...?
– Um pequeno algo. Um gesto de boa vontade, como promessa de que não quererá fugir ao pagamento da dívida.
– Tem a minha palavra de que... – O resto ficou-lhe preso na garganta logo que se deu conta da intenção de Penthurst.
Ele baixou a cabeça. Ela arregalou os olhos. Certamente ele não podia estar a pensar em...
Podia. Era o que estava a fazer. O duque de Penthurst decidira que um beijo era a contrapartida que desejava por ter de esperar uma semana para desflorar Lydia.
Ela conseguia assistir à cena como se estivesse sentada num dos quadros da parede. Assistiu ao seu próprio espanto no preciso momento em que o sentiu. Assistiu à cabeça escura de Penthurst a inclinar-se
para reclamar a sua boca. Observou-se a si mesma a permiti-lo, impotente, demasiado chocada para se mexer. Um novo tipo de choque apoderou-se dela, um choque de comoção profunda no meio da confusão. Nova
surpresa. O beijo mexeu com ela, quando era o último beijo que alguma vez o poderia ter feito. Horrorizou-a. Recuperou alguma presença de espírito. Empurrou as costas contra a mão de Penthurst, voltando
e afastando a cabeça.
Ele permitiu. Ela relanceou-o brevemente enquanto se afastava. Tinha cometido um erro. Ele observava-a como um falcão a perscrutar um rato em fuga, com aquela confiança de que não lhe daria qualquer luta
caso decidisse que seria uma boa refeição.
Lydia quase tropeçou ao retirar-se apressadamente. Ele não se riu da sua figura. Pelo menos enquanto ela não saiu da sala.
Para uma mulher do mundo, Lydia não se tinha saído particularmente bem. Penthurst recordava quão mal ela se saíra, enquanto bebia um pouco de brandy. Na mesa a seu lado, jaziam ainda a dama e o rei de
espadas, de faces voltadas para cima.
Estaria louca? Vir aqui e exigir-lhe que cumprisse aquela aposta – a simples ideia ainda o deixava estupefacto, como tudo o que sucedera.
Ela estivera certa de que ganharia. Tinha uma hipótese em duas de o conseguir. Caso não o conseguisse, perderia por fim em grande, da forma que a família esperava e desejava. E fora isso que realmente
acontecera. O choque estampado no seu rosto mostrava que começara a acreditar na sorte mais do que teria sido sensato.
Tudo isso terminaria agora. Deixá-la-ia preocupar-se com as suas intenções por um dia ou dois e depois libertá-la-ia deste acordo nefasto. Por essa altura, já deveria ter aprendido plenamente a lição.
Os seus pensamentos divagaram para aquele beijo, como já várias vezes antes. Gostaria de afirmar que tinha sido apenas parte da lição, mas não era inteiramente verdade. Contudo, ele poderia ser perdoado
por impor um pouco a sua vantagem. Considerando a situação que ela criara, sorte a dela que se tivesse ficado apenas por um beijo. Uma mulher não deve permitir que um homem a coloque na sua esfera de posse,
a menos que não se importe que ele a veja sob esse ângulo.
E ele vira-a assim. Bastante explicitamente. Pobre Lydia ali sentada, de queixo caído com o choque, enquanto ele a imaginava nua numa cama. Duvidava de que ela o tivesse adivinhado. Estava demasiado perturbada
para imaginar a direção dos seus pensamentos. Contudo, nos dias seguintes, poderia começar a fazê-lo.
É isso mesmo, ele tinha-a beijado. Em parte por curiosidade, em parte por desejo, mas sobretudo porque já sabia que seria tudo o que alguma vez conseguiria dela.
Consultou o relógio de bolso. Com um suspiro, pousou o copo e levantou-se. Mirou novamente as cartas.
Não, ela não estava louca. Viera por uma razão e não fora para brincar com ele. Algo importante a fizera ganhar coragem para desenterrar aquela velha aposta e encontrar-se com ele sozinha com o intuito
de o coagir a levá-la até às últimas consequências.
Virou as duas cartas e devolveu-as ao baralho. Dinheiro. Ela queria as dez mil libras. Estava suficientemente desesperada para se colocar em risco dessa forma. Tentou imaginar por que razão quereria o
dinheiro. Ou precisaria dele. Qualquer que fosse o motivo, concluíra que não teria outro modo de o obter. Isso significava que não podia recorrer ao irmão, nem às amigas, nem às tias.
Era evidente que esta, afinal, não fora a sua primeira grande perda. Deveria tê-la questionado sobre as suas dívidas de jogo, em vez de sucumbir aos ímpetos mais básicos que o joguinho dela havia provocado.
Saiu da biblioteca e desceu. O mordomo trocou um olhar com o seu enquanto descia as escadas e inclinou a cabeça indicando a sala de jantar. Penthurst mudou de direção e encaminhou-se para lá.
– As minhas desculpas – disse ao entrar –, tarda tantas vezes em descer que presumi que não se importaria se eu me entretivesse com um brandy enquanto esperava.
A tia inclinou a cabeça para trás, de modo a poder mirá-lo por cima do ombro. Permanecia o mais alta e direita possível, para produzir o pleno efeito ducal. Quando era criança, com aquela pose, ela era
para ele colossal e assustadora. E continuava a demonstrar que não estava satisfeita.
– Pergunto-me se a nossa anfitriã será tão compreensiva quanto eu – entoou ela.
– A nossa anfitriã aguardará a nossa chegada mesmo que estejamos duas horas atrasados, pelo que não se deverá importar minimamente se chegarmos com menos de trinta minutos de atraso. Vamos?
Movimentando a boca como se mastigasse palavras que insistiam em não serem engolidas, aceitou sair da sala de jantar a seu lado.
– Não esteve apenas a beber brandy. Teve companhia. Uma mulher.
Diabos.
– Viu-a sair?
– Claro que não. Quando vi a criada, escapuli-me para a sala de jantar. Porque esteve a Lydia aqui?
Ele conduziu-a à saída do edifício e até à carruagem que os esperava.
– Empenhou-se numa causa para a qual tem esperança que eu possa usar a minha influência. – Preferia não mentir à tia, mas isso não significava que nunca o fizesse.
A tia subiu para a carruagem.
– Veio até aqui para lhe pedir isso? Há anos que não lhe dirige uma palavra decente, tanto quanto ouvi dizer. Trata-o como um desconhecido e, de repente, espera que seja seu amigo só porque uma vez se
ofereceu para a levar ao jantar do irmão? Rapariga atrevida. Atrevida.
– Nem sabe da história a metade – balbuciou ao sentar-se à sua frente.
– O que disse?
– Nada.
– Espero que a causa dela não seja a questão dos escravos. Já gastou todas as suas boas graças nessa arena, mesmo junto do Pitt.
– Como político e ministro, o Pitt está constrangido por limitações práticas que não se aplicam a mim, mas ainda pensamos do mesmo modo sobre esse tópico e muitos outros temas. Mas a causa da Lydia não
é essa. – Para evitar que a tia o pressionasse para saber qual seria então exatamente essa causa, mudou de assunto. – Temos de estar em sintonia quanto a esta noite. Um jantar e uma apresentação ao irmão
de Lady Barrowton, e é tudo. Se for novamente convidado, declinarei. Quando conhecer a sobrinha...
– Não seja ridículo. A rapariga ainda não debutou. Não estará presente.
– A tia e Lady Barrowton prepararam algum ardil para que eu a conhecesse ainda assim, tenho a certeza. Compreenda que não farei a corte a esta rapariga e duvido sequer que a convide para dançar se estivermos
no mesmo baile na sua primeira temporada.
– Aceito o seu trato. – Lançou-lhe um olhar recatado. – É claro que está livre de não o cumprir, se for esse o seu desejo.
– Não é esse o meu desejo. Só o faço porque a tia prometeu precipitadamente a Lady Barrowton que eu jantaria com o irmão. Não me volte a comprometer desta forma. Não o tolerarei.
– Eu sei. Não foi correto da minha parte. Penalizo-me devidamente. Não voltarei a interferir.
É claro que voltaria. Contudo, a partir daquela noite, só tornaria a fazê-lo passadas algumas semanas.
CAPÍTULO 6
Lydia precisou de dois dias para recuperar da catástrofe em casa de Penthurst. A desgraça que pendia sobre si dominava-lhe os pensamentos e os sonhos. Considerou todos os tipos de esquemas possíveis para
escapar ao cumprimento daquela aposta. Apelar à honra dele parecia ser a melhor opção.
Se isso não o demovesse, poderia sempre suplicar-lhe que a libertasse da dívida, mas a ideia de suplicar seja o que for a Penthurst horrorizava-a. Conseguia ouvir já o sermão que ele lhe daria com toda
a autossatisfação, caso aceitasse. Na verdade, preferiria simplesmente ser ela a recusar. O problema é que isso significaria que era ela quem não tinha honra, quer como filha de um conde quer como jogadora.
Ao fim de três dias, obrigou-se a pôr o problema de lado. Penthurst não devia ser agora a sua maior preocupação. O prazo de Trilby expiraria antes de ser marcado qualquer encontro no litoral. Estava a
ficar sem tempo de arranjar dinheiro suficiente para apaziguar o seu chantagista.
Só lhe ocorria outra forma de deitar a mão a uma grande quantidade de dinheiro. Infelizmente, não teria possibilidade de executar esse plano sozinha.
Precisava de um cúmplice.
Nessa tarde, atravessou a praça para ir visitar Cassandra. Ambury estava com ela. Quando Lydia entrou na biblioteca, ambos lhe dirigiram olhares peculiares – daquele tipo que se fazem quando se acabou
nesse preciso instante de falar sobre a pessoa em causa.
– Espero que esteja tudo bem do outro lado da praça – disse Ambury. – A Emma continua a irradiar felicidade por estar prestes a constituir família?
– Está, é verdade. Porém, se o meu irmão não parar de a apaparicar, acabará por deixar de saber andar. Ontem à noite, em conversa ao jantar apercebi-me de que ele lhe tinha proposto evitar a leiloeira
o resto do ano. – Emma ainda desempenhava uma função secreta no negócio da família, a leiloeira Fairbourne’s. Tanto quanto Lydia conseguira determinar, Emma desempenhava também a função principal.
– Duvido que ela tenha reagido bem – respondeu Cassandra.
– Nada bem. Não se seguiu propriamente uma discussão, apenas sinais de que, diga ela o que disser, ele não tem estado a ouvi-la. Sabem como podem ser os homens.
Cassandra disparou um olhar de esguelha na direção do marido.
– Sei como podem ser alguns homens, lá isso é verdade.
– Uma vez que eu serei provavelmente um desses homens, penso ser a altura ideal para ir saindo – declarou Ambury. – Assim, minhas senhoras, podem queixar-se dos homens à vontade.
Cassandra encarou-o com um brilho nos olhos.
– Nunca se valoriza a si mesmo, querido. Quando digo «alguns homens», refiro-me a outros. Foi por si que insisti desde logo em falar apenas de alguns.
– Uma mentira piedosa. Mas vou acreditar, prefiro não me imaginar o assunto da vossa conversa. – E saiu da sala.
Lydia sentou-se ao lado de Cassandra no sofá.
– Ele há de cair em si – disse Cassandra.
– O Ambury?
– O Southwaite. Com a Emma. Ainda está a viver as primeiras emoções, tanto de entusiasmo como de apreensão. Ela conseguirá negociar com ele uma maior liberdade de movimentos dentro de algumas semanas.
– Não vejo porque teria ela de negociar seja o que for. Não é uma criança. Tomou conta de si própria suficientemente bem antes de se casarem. Ela até pode fazer o seu próprio caminho, se um dia precisar,
o que lhe invejo profundamente. O meu irmão não deveria poder mudar os hábitos dela e interferir nos seus prazeres só por capricho.
Dois anos antes, nunca teria pensado que faria um tal discurso a Cassandra, entre todas as mulheres. Cassandra fora a mulher solteira mais livre que conhecera na altura. Invejava-a e admirava-a ao mesmo
tempo e tentava moldar a sua própria liberdade segundo esse exemplo.
Não que alguma vez tivesse chegado longe nesse processo. Houve sempre alguém a interferir. O irmão. As tias. Os seus próprios receios e falta de confiança. Cassandra era dona de uma beleza exuberante emanando
uma visão ousada que a todos cativava, mesmo que não concordassem ou aprovassem. Quando Lydia se mirava no espelho, via uma mulher comum sem uma distinção especial, que nunca conseguiria tal façanha.
Cassandra riu-se. Esticou-se, pegou num caracol rebelde e enfiou-o de novo no penteado de Lydia.
– Continua às voltas com aquilo que o mundo deveria ser, em vez de o aceitar como é, Lydia. Como lhe disse, o seu irmão cairá em si. A Emma tratará disso. Nós, as mulheres, temos as nossas armas nesses
pequenos conflitos.
Tentou imaginar quais seriam essas armas e quais as suas possíveis limitações. Nem Cassandra nem Emma pareciam oprimidas, mas isso tinha muito que ver com as personalidades de Southwaite e Ambury, e não
tanto com eventuais armas femininas. Se fossem casadas com outros homens, ambas ficariam desarmadas.
– No seu caso, pelo menos, não tem de esperar quaisquer negociações – disse Lydia, abordando o tópico que a levara ali. – Por vezes ainda pode fazer o que lhe apetece. O Ambury não colocaria objeções se
saísse à noite sozinha uma vez, por exemplo.
– Há algum local em especial onde queira que eu vá?
– Fui assim tão evidente?
– Só porque a conheço tão bem. – Inclinou-se para chegar mais perto, como uma conspiradora. – O que está a congeminar?
– Numa palavra, vingança. Estou finalmente pronta para dar ao velhaco batoteiro que a roubou aquilo que ele merece.
Cassandra endireitou-se abruptamente.
– Que me roubou? Lydia, de que está a falar?
– Contou-me que perdeu uma enorme quantia nas mesas de jogo porque um patife fez batota. Não se lembra? Eu disse que iria dar voltas à cabeça até encontrar uma forma de fazer justiça.
– Querida, foi há tanto tempo. Há quase dois anos, talvez? Já estava totalmente esquecido. E tendo em conta que esse embaraço financeiro conduziu à minha aliança com o Ambury, já nem sequer odeio o homem.
– Bem, mas eu sim. É um batoteiro. Além disso, continuou a fazer o mesmo este tempo todo. Descobri quem ele é e tenho andado a vigiá-lo há meses, sempre que posso. Até pedi a uma pessoa que me ensinasse
passes de mágica, para conseguir descortinar como o consegue fazer.
Tinha esperança de que Cassandra nunca viesse a saber o quanto essa experiência correra mal. Que essa pessoa era Trilby e que fora assim que este tivera oportunidade de a conhecer melhor do que seria de
esperar.
– Estou pronta para o desmascarar.
Em vez de aplaudir, Cassandra pareceu desagradada.
– Tem andado a vigiá-lo há meses? Mas hoje em dia ele só joga nos antros da pior espécie. Não me diga que tem visitado regularmente esses locais.
– Dificilmente o poderia estudar se nunca fosse aos locais onde ele joga.
– Meu Deus do céu, Lydia.
– Não sei porque está tão chocada. Disse-lhe que iria fazê-lo quando me descreveu pela primeira vez o dilema que ele lhe criou. Foi essa a primeira razão para eu aprender a jogar e para ter treinado tanto
com as cartas.
– Está a dizer-me que só iniciou este... entretenimento para o apanhar nos seus truques? Por favor, nunca conte isso ao seu irmão. Ele proibi-la-á de voltar a falar comigo, e a Emma também. – Os olhos
de Cassandra semicerraram-se em jeito de crítica. – Nem poderá alegar que foi o seu único motivo para começar a jogar. Já vi o quanto o aprecia. O primeiro passo poderá ter tido essa finalidade, mas ficou
mais do que feliz por poder continuar depois disso, para sua própria satisfação.
Aquilo não estava a correr como planeado.
– Não estou a culpá-la. Não penso que haja motivo para culpar seja quem for. Estou apenas a explicar por que motivo, numa das próximas noites, precisarei de visitar uma sala de jogo menos sofisticada do
que a de Mrs. Burton e porque achei que quereria acompanhar-me quando o fizer.
– Pois estava enganada. Nenhuma de nós irá. Não é próprio.
– Mas que estranha sentença vinda da sua parte. Costumava ir, quando era uma mulher do mundo, e não uma noiva dócil e obediente.
Arrependeu-se daquela reposta abrupta no preciso momento em que a deu.
Cassandra parecia que tinha levado uma bofetada na cara. Mantiveram-se em silêncio. Lydia ponderou se levar Sarah consigo faria o efeito pretendido. Poderia vestir Sarah de forma elegante para que parecesse
sua companhia, sentá-la à mesa e...
– Está mesmo determinada? – perguntou Cassandra.
– Sim. Fá-lo-ei sozinha, no caso de achar que ajudar-me poderá comprometê-la de alguma forma.
– Não se trata disso. – Cassandra pegou-lhe na mão e afagou-a. – Esperava que tivesse aprendido com o meu erro, é só. Mas suponho que isso quase nunca aconteça. Acompanhá-la-ei, para que não se gere grande
falatório. Mas neste duelo só tem direito a este disparo, Lydia. Certifique-se de que a pólvora está seca antes de fazer pontaria.
*
No regresso a casa, Lydia recebeu a notícia de que Emma adoecera.
Correu para os aposentos do irmão. Ele estava sentado junto à cama de Emma, com rugas de apreensão formando parênteses em torno dos olhos. Emma estava sentada na cama, apoiada em muitas almofadas. Lia
um livro à luz débil de final do dia. Saudou Lydia com alegria.
– Ouvi dizer que estava doente – disse Lydia.
– Nunca estive doente. Tive apenas uma tontura.
– Quase desmaiou – disse Southwaite.
Emma deu palmadinhas na cama ao lado dela.
– Sente-se um pouco. Darius, porque não aproveita a oportunidade para ir até ao jardim apanhar ar?
– Não preciso de ar.
Emma olhou-o com benevolência.
– A Lydia fica comigo e temos duas criadas a postos no meu quarto de vestir, caso delas necessite. Não seria conveniente eu ter de me preocupar com a sua saúde ainda mais do que se preocupa com a minha.
Relutantemente, Southwaite ergueu-se.
– Deve chamar-me de imediato, Lydia, se ela... Quero dizer, se alguma coisa... – debruçou-se e beijou o cimo da cabeça de Emma, saindo em seguida.
Emma esticou o pescoço, à escuta até ouvir a porta fechar. Quando isso aconteceu, mergulhou novamente nas almofadas com um suspiro profundo.
– Obrigada por ter vindo, para me dar alguma folga. Ele vigia-me tão de perto que estou consciente de cada inspiração.
– É verdade que quase desmaiou?
– Senti-me apenas tonta por um momento, quando me levantei da cadeira na biblioteca. Infelizmente, ele estava lá e... – Apontou para a cama. – Receio bem que ficará aqui sentado a noite toda.
– Eu ofereço-me para ficar em vez dele, se preferir. – Os planos com Cassandra teriam de esperar.
– Ele nunca o permitirá. Não tarda nada regressa e expulsa-a daqui até amanhã.
– Deve estar preocupado com o bebé. Poderá ser o seu herdeiro.
Emma era capaz de abranger uma pessoa inteira só com o olhar, com uma penetração tão franca que conseguia ser inquietante. Foi o que fez nesse momento.
– Em parte, é a preocupação pelo bebé que o torna tão protetor e apreensivo, mas é sobretudo o facto de se sentir torturado de preocupação por mim.
– Se o diz, tenho de acreditar, já que o conhece tão melhor do que eu. – Por vezes, ela não compreendia Southwaite de todo, nem ele a compreendia a ela. – Mas se ele continuar assim, receio pelo mal que
lhe poderá fazer até ao nascimento da criança.
Emma soltou um risinho e ambas riram juntas.
– Oh, ele deixará de ser assim impossível daqui a uma semana ou pouco mais. Não acabou ele agora de sair? Trinta minutos aqui, duas horas ali... estou a desabituá-lo da minha companhia. Por fim acabarei
por ter uma vida mais próxima do normal.
– Suficientemente normal para a leiloeira da sua família? – Emma franziu o sobrolho.
– Penso que sim, mas não tão rapidamente quanto desejaria. Confesso que tive de recorrer a algum logro nesse domínio. – Ergueu novamente o pescoço, à escuta, e depois acenou com a mão na direção da porta
do quarto de vestir. – Vá, depressa. Na gaveta do meu toucador está uma carta. Traga-a.
Lydia entrou no quarto de vestir. A aia de Emma e outra criada encontravam-se ali sentadas a coser, esperando ser chamadas. Retirou a carta da gaveta sob o tampo do toucador.
Entregou-a a Emma, que leu rapidamente o seu conteúdo.
– Se tivesse tido mais tempo para escrever, poderia ser mais pormenorizada. Mas terá de servir. – E começou a dobrá-la. – Será que podia enviá-la por mim ao Obediah, na Fairbourne’s? Ele escreveu a fazer
algumas perguntas a que eu tinha de responder sobre o próximo leilão.
Lydia pegou na folha, agora dobrada e suficientemente pequena para caber na palma da mão. Obediah Riggles era o leiloeiro da Fairbourne’s.
– Continua a gerir as coisas por lá, então?
– Não estou a gerir. Ele pede conselhos e eu dou-lhos. Isso não é gerir.
– Como conseguiu escrever esta carta sem o meu irmão a pairar por perto?
– Convenci-o a deixar-me tomar banho sem a ajuda dele. – Riu-se. – Ele ficou aqui. Deveria ter-me visto: a escrever que nem louca enquanto a minha aia esparrinhava para produzir os sons da água. Felizmente,
eu estava mesmo no banho quando as minhas morosas abluções o levaram a vir espreitar para se assegurar de que não precisava de ajuda.
– Se calhar só a quis ver nua.
Emma atirou-lhe novamente aquele olhar.
– Lydia, tem mesmo um talento para observações surpreendentes. Não é tanto o que diz, mas o tom corriqueiro com que o profere que nos põe, a Cassandra e a mim, a questionarmo-nos sobre si.
– Espero que não se questionem em demasia. Lamento dizer que a única coisa extraordinária na minha pessoa é o meu talento para observações inconvenientes. – Debruçou-se e beijou Emma. – Agora vou-me. Acho
que ele está parado do lado de fora da porta a tentar fingir que ainda está de mente sã. Vou enviar a carta e volto amanhã para arranjar forma de lhe dar tempo suficiente de escrever novamente ao Obediah,
se for preciso.
Southwaite estava efetivamente do lado de fora da porta, de braços cruzados, dominando por momentos os seus receios pela sua amada. Logo que Lydia pôs um pé fora da porta, ele entrou de imediato.
Era provável que passasse ali a noite inteira, o que significava que não daria conta do destino que ela daria à carruagem naquela noite.
A biblioteca chamava por ele. Acompanhado pelos cães, Penthurst dirigiu os seus passos até lá, planeando um serão de leitura em silêncio após um dia passado a mobilizar todas as suas capacidades de argumentação
contra a ideia temerária de invadir França.
Esse género de planos era proposto pelo menos uma vez a cada duas semanas, mas este, apresentado por um general de quem se esperaria maior sensatez, levantara voo e voara por toda Whitehall como uma águia,
quando na verdade era apenas um minúsculo pardal ferido. Pelo menos três ministros mostravam-se convictos de que os agricultores e os comerciantes de Inglaterra abandonariam as enxadas e encerrariam os
seus estabelecimentos para servirem no exército.
Penthurst compreendia o desejo de ação. De qualquer coisa, na verdade, que pudesse pôr fim a anos sucessivos de guerra. Contudo, a Grã-Bretanha não tinha capacidade para colocar em campo um exército suficientemente
numeroso para uma invasão, especialmente agora que Napoleão começara a recrutar no seu próprio povo. Diversas vozes haviam sido suficientemente insanas a ponto de sugerir que a Grã-Bretanha fizesse o mesmo.
Como se os Ingleses alguma vez aceitassem tal coisa.
Uma vez escolhidos os livros, instalou-se na sua cadeira preferida. César esparramou-se a seus pés. Cleo sentou-se ao seu lado direito, com a cabeça a postos para receber eventuais festas que Penthurst
lhe pudesse distraidamente estender e oferecer.
Junto a ele encontrava-se a mesa onde recentemente estivera uma dama de espadas e onde esta perdera. Olhou em frente, para a outra cadeira, e recordou o choque de Lydia quando viu o rei.
Quase se sentira constrangido por ela. Quase. Esperava que ela estivesse agora bem preocupada com aquela aposta.
Abriu o seu livro de história de Roma, mas, agora que se distraíra a pensar em Lydia, manteve aí os seus pensamentos, ponderando qual o grau de angústia que lhe deveria causar. Impunha-se enviar-lhe uma
carta recordando que deveria organizar a sua ida para o litoral dentro de dez dias.
Sorriu para si mesmo ao imaginar a reação de Lydia.
Uma pequena comoção interrompeu-lhe o devaneio. Ouvia-se mesmo do lado de fora da biblioteca, perto da porta na outra extremidade da sala. Os cães levantaram-se de imediato, prontos para atacar, o que
significava que uma pessoa desconhecida entrara em casa. Ordenou-lhes que se sentassem e ambos se transformaram em estátuas. A cadeira estava virada para uma das lareiras, posicionada perto do fogo, de
modo a modelar um espaço à escala humana dentro da vastidão daquele compartimento, mas atrás dele ouviu uma porta a abrir-se.
– Oh, pobrezinha – disse a tia. – Venha. Sente-se. Aflige-me vê-la tão perturbada.
Um choro de mulher ecoava por trás das palavras de compaixão da tia.
O que estava ela aqui a fazer? Deveria estar no teatro e não aqui, a invadir a sua privacidade.
O choro continuou. Palavras intervaladas por soluços e fungadelas, enquanto a outra mulher ia desabafando os seus padecimentos.
– Que bondade a sua. Fiz uma figura horrível, não foi? Deveria ter ficado em casa logo que soube, em vez de... em vez de arriscar perder a compostura em público.
– Não aceito que se martirize. Pensa que a deixaria passar a noite nos seus aposentos a andar de um lado para o outro? A peça era tão aborrecida que foi um prazer tratar de a fazer desaparecer dali. Agora,
temos de juntar ideias e ver se é possível fazer alguma coisa.
– Demasiado... tarde. A família recebeu notícias tão maravilhosas e agora tem de lidar com este...
Já tinha passado o momento de Penthurst revelar a sua presença. Desejando ter sido possível evitá-lo, sabendo que iria ouvir pelo menos uma hora de explicações da ruína que pendia sobre a família desta
mulher, levantou-se e contornou a cadeira, seguido por César e Cleo.
– Perdoem-me – disse ele. – Não contava que a biblioteca viesse a ser usada hoje. Pegarei no meu livro e sairei, para que possam ter privacidade.
A tia debruçou-se sobre o corpo choroso da amiga, enquanto a mulher de cabelo grisalho largava o seu pranto sobre as mãos. Nenhuma olhou para ele em sinal de o terem ouvido. Caminhou até à porta mais próxima,
para assim conseguir escapar antes que uma delas...
– Espere. – Ecoou a voz da tia. Com as plumas do toucado ainda debruçadas sobre o padecimento da amiga, ergueu um braço para travar a sua saída. – Acalme-se, Amelia. O meu sobrinho está aqui. Ele saberá
o que fazer.
Amelia? A tia viúva de Southwaite, Lady Pontfort?
E foi a própria quem lhe ergueu os olhos, cheia de esperança no rosto macio coberto de lágrimas e nos seus olhos azuis velados.
– Oh, Penthurst. Sim, ele saberá o que fazer.
Ele não tinha a mínima ideia do que fazer. Sabia o que queria fazer, mas, cavalheiro como era, aproximou-se das duas mulheres. Cumprimentou Lady Pontfort com a voz e a atitude adequadas ao seu pesar.
– A Amelia estava no camarote ao lado do meu, no teatro, com a Hortense – explicou a tia. – Percebi, logo que chegou, que não estava em si. Depois, durante o primeiro ato, começou a chorar. – A tia apontou
para Lady Pontfort, como que a demonstrar. – Como é evidente, dirigi-me até lá, peguei nela e chamei a carruagem.
– Que bondade a sua – sussurrou Lady Pontfort. Passou levemente um lenço de renda pelos olhos.
– No caminho até cá, contou-me a causa da sua mágoa. Conte-lhe o que me disse a mim, Amelia. Se o primeiro-ministro e o príncipe confiam nele, certamente também a Amelia poderá confiar.
Lady Pontfort anuiu em concordância.
– Quando a carruagem do meu sobrinho se atrasou hoje para me levar ao teatro, perguntei ao cocheiro qual fora o motivo. A sua resposta foi o que causou a minha perturbação. – As últimas palavras que proferiu
quase se afogaram num soluço abafado.
Penthurst lançou um olhar interrogador à tia. Esta baixou as pálpebras em jeito de reprovação face ao que estava para vir.
– Ele atrasou-se porque outro elemento da família do meu sobrinho havia solicitado a carruagem. Ele transportara a minha sobrinha Lydia até um antro de jogo ignóbil no centro da cidade. Sozinha. Certamente
toda a cidade ficará a saber. Reúnem-se ali homens da pior estirpe e até... até ouvi dizer que mulheres de má reputação frequentam esse local. Receio que a minha sobrinha se arruinará esta noite.
– Ou irá para o inferno – murmurou a tia. – Está a referir-se àquele local horrível, o Morgan’s Club. Certamente já ouviu falar.
Ele não tinha apenas ouvido falar, mas não havia qualquer vantagem em referir isso. Ou em dizer fosse o que fosse nesse momento. Lá se ia a lição de Lydia.
A tia segurou Lady Pontfort pelos ombros.
– Agora tem de se recompor. Ela tem de ser travada. A sua falecida mãe esperaria que fizéssemos alguma coisa.
– O que posso fazer? Não posso propriamente entrar por ali adentro e exigir que esse tal de Morgan ma entregue.
– O Southwaite deve ser informado – sugeriu a tia.
Lady Pontfort abanou a cabeça.
– Ele está com a Emma. Ela sofreu uma má-disposição esta tarde. O médico diz que não há motivo para preocupação, mas dizem sempre isso quando não têm uma solução. O Southwaite está retirado com ela nos
seus aposentos, disse o cocheiro.
– Se tem a mulher doente, não é a pessoa indicada para salvar a Lydia – interveio Penthurst. – Seria cruel acrescentar mais este assunto às suas preocupações.
– Nesse caso, enviarei até lá vários criados robustos, com ordens de a trazer ao colo, se necessário – anunciou a tia.
Penthurst começou a imaginar a cena. Morgan tinha ao serviço alguns empregados também eles robustos, todos com grande prática em garantir que ninguém perturbasse o funcionamento da casa.
– Não enviará criados. Irei eu, como amigo do Southwaite.
– Oh, faria isso? – Lady Pontfort não conteve a sensação de alívio. – Que generosidade a sua.
A tia franziu o sobrolho.
– Não me parece sensato.
– Certamente que não. Consigo imaginar várias formas como o pagarei caro. Contudo, irei, já que alguém tem de o fazer.
CAPÍTULO 7
Lydia estava sentada de frente para Mr. Peter Lippincott. Há já três horas que vinha a preparar o modo de atrair este trapaceiro para a sua teia. Mais trinta minutos e ele conheceria a sua desgraça.
Sentavam-se na mesa que ele preferencialmente usava no Morgan’s. Vestido impecavelmente de casaca escura e plastrão firme, todo ele com a aparência de um cavalheiro que na realidade não era, Lippincott
baralhava as cartas. Enquanto isso, tagarelava e olhava-a de frente. Lydia sabia que a sua intenção era que ela lhe retribuísse o olhar e que não observasse as suas mãos macias e quase femininas, bem como
o ignóbil trabalho que elas faziam.
Nas últimas duas horas sentara-se àquela mesa uma longa fileira de tolos crédulos, seguros de que conseguiriam vencer os seus truques de ilusionismo. Deixou que um em cada três lograsse sucesso, o que
significava que tirava proveito dos outros. Lydia suspeitava de que Mr. Morgan estava perfeitamente a par e que participava nos lucros.
Mas não estava certa de que Mr. Morgan tivesse conhecimento de outros métodos que Lippincott usava para enganar. As finas unhas daquelas finas mãos iam deteriorando as cartas quando as utilizava sucessivamente
no jogo. Tinha dado conta deste facto há sete meses. Nalgumas fazia pequenos vincos nos lados. Outras deformava-as para ficarem côncavas. Algumas ficavam levemente estragadas nos cantos. Absolutamente
indetetáveis, as alterações geravam um código que lhe permitia ler os valores das cartas quando voltadas ou senti-las com as mãos.
Os meses que haviam decorrido desde então, passara-os a aprender o código. Ele usava sempre o mesmo.
Naquela noite Lydia já ganhara uma boa quantia de dinheiro. No faraó e no bacará, tinha convertido as cem libras que Cassandra lhe emprestara em três mil, através de apostas ousadas. Não tinha qualquer
dúvida de que Mr. Lippincott trazia ainda mais na carteira. Enriquecera com as suas jogatinas.
Cassandra pairava à volta dela, sussurrando avisos, funcionando como um coro grego. Tudo isso fazia parte do plano. Expressava-se com espanto ofegante e pesaroso perante a inquietante sorte de Mr. Lippincott,
a que a sua fortuna havia infelizmente sucumbido. Lydia suspeitava de que Cassandra estava verdadeiramente nervosa. Lydia não contara a Cassandra acerca das cartas marcadas. Não queria que Cassandra argumentasse
com ela a moralidade ambígua de fazer batota para enganar um batoteiro.
As mãos macias movimentavam-se. Embora Lydia mantivesse os olhos no rosto dele, o fundo do seu campo de visão estava focado no deslize daquelas mãos. Observava a leveza da mão que desviava algumas cartas
para o cimo do baralho e outras para o fundo.
Segurando o baralho na mão, abriu as cartas em leque e estendeu-as na direção de Lydia.
– Escolha uma, Lady Lydia.
Ela assim fez. Ele fingiu estar a refletir.
– Dez de paus.
Lydia atirou o dois de ouros. Ele bateu com a palma da mão na testa.
Ele deixara-a ganhar, para a atrair para uma perda mais profunda.
– Que sorte a sua, Lydia! – exclamou Cassandra. – Tem muito mais do que eu. Ela ganhou uma fama considerável por isso, Mr. Lippincott.
– Estou a perceber porquê. – E esboçou uma expressão indicando que a sorte de Lydia era para ele inconveniente e dispendiosa.
Deixou-a vencer novamente. Ela ria e dava saltinhos de contentamento. Cassandra aplaudia. Virou-se novamente para Mr. Lippincott, para forçar a sua sorte.
À terceira vez, quando Lydia estendeu a mão para tirar uma carta, o leque tornou-se um alvo em movimento, deslizando apenas o suficiente para que os seus dedos repousassem numa determinada carta. Aquela
que ele queria que ela tirasse. Se não tivesse estado à espera, Lydia não teria dado conta. Tocou na orelha esquerda com a mão esquerda, o sinal que combinara com Cassandra.
– Porque não tiram ambos a carta desta vez? – sugeriu Cassandra. – Vai ser muito mais empolgante.
Lydia não tirou a carta.
– Oh, sim, vamos fazer isso. Vence a carta mais alta.
Lippincott ergueu o olhar para Cassandra.
– Não pensei que quisesse encorajar a sua amiga a fazer isso, tendo em conta...
– Tendo em conta a minha fraca prestação naquele jogo? Ela tem muito mais sorte, como lhe referi. Nem eu lhe permitiria que apostasse tão precipitadamente como eu naquele jogo em que nos enfrentámos no
passado.
Ele baralhou novamente as cartas e pousou-as na mesa para cortar o baralho. Lydia cortou, mas, em vez de as deixar para que ele as espalhasse, ela mesma as abriu lentamente em leque sobre a mesa. No momento
em que o fez, reparou nos vincos nos lados de algumas e na subtil falta de lisura de outras. Estas seriam as cartas de honra. Quando, por fim, tinha passado a ponta dos dedos sobre todas as cartas, sabia
quais haviam sido marcadas pelo seu sistema e quais elas eram.
– Primeiro o senhor, já que eu cortei – propôs ela.
– Qual o valor da aposta?
Franziu o sobrolho mirando a sua pilha de dinheiro e depois começou a deslocar quinhentas libras na direção das cartas.
– Isso é exageradamente muito – repreendeu-a Cassandra.
– Está determinada a estragar-me a diversão? Tenho tanta certeza de que vou ganhar que até devia apostar tudo.
Cassandra debruçou-se sobre o ombro de Lydia e retirou trezentos.
– Estou aqui para a impedir de ser imprudente, ou já se esqueceu?
Lydia fez uma careta que apenas Mr. Lippincott conseguiu ver. Ele fez deslizar a ponta dos dedos ao longo do leque de cartas, para trás e para a frente, procurando decidir que carta tirar. Repousaram por
fim numa das cartas convexas. Voltou-a para revelar o rei de copas.
– Está a ver? – exclamou Cassandra. – Este é um jogo sem ponta de sensatez, como amargamente aprendi.
Lydia tirou uma carta não marcada e voltou-a. É claro que revelou uma carta baixa, um quatro de ouros. Contrariada, recolheu as cartas rapidamente e começou a baralhá-las.
– Mais uma vez, se lhe for conveniente, senhor.
– Com certeza, se for do seu agrado.
– É, sim.
– Lydia – avisou a voz de Cassandra ao seu ouvido.
– Oh, sossegue.
Entregou as cartas a Lippincott, que cortou o baralho e as abriu em leque sobre a mesa.
– Lydia. – Desta vez, o sussurro foi como um sibilo. – Parece que atraiu certas atenções.
Nada de novo. É o que muitas vezes acontecia enquanto jogava. Nunca prestava atenção a quem a observava nas mesas de jogo. Eram puras distrações.
– Uma aposta mais alta desta vez, parece-me. Consegue cobrir tudo o que ganhei esta noite?
Lippincott lançou um olhar ao dinheiro de Lydia.
– Deve ter aí mais de duas mil.
– Mas não mais de três, tenho a certeza. – E empurrou tudo para a frente.
Agora ansioso, Lippincott aceitou cobrir a quantia e empurrou pelo menos metade do valor dela, prometendo um marcador para que o resto lhe fosse entregue no dia seguinte, caso ele perdesse. Ela fingiu
analisar as cartas.
– Lydia.
Cassandra estava a ser uma maçada e os seus sussurros zumbiam incomodamente no seu ouvido. Enxotou a abelha e estendeu a mão para retirar a carta que identificara como sendo o rei de espadas.
Precisamente no momento em que os seus dedos baixavam na direção da carta, outra mão chegou lá primeiro. Não era a de Lippincott. Esta nova mão era mais forte do que a de Lippincott e exibia dedos longos
e masculinos.
Lydia conhecia aquela mão.
Também reconheceu a presença que pairava sobre o seu ombro esquerdo, enquanto Cassandra lhe apertava o direito.
– Novamente uma só cartada, Lady Lydia. Parece apreciar essa aposta. O que está a arriscar desta vez? – perguntou Penthurst.
Vá-se embora, vá-se embora.
– Os ganhos da noite e nada mais.
– Fico aliviado por sabê-lo. Não gostaria de pensar que teria apostado algo que já tivesse perdido.
Lydia sentiu o calor subir-lhe ao rosto. Recusou-se a olhar para ele. Mais uma cartada e Lippincott pagaria bem caro por ter enganado Cassandra e ela teria o suficiente para silenciar Trilby por muito
tempo.
Tentou puxar a carta, mas Penthurst prendeu-a.
– Tire a mão, por favor.
– Quem é este homem? – a pergunta fora dirigida a Cassandra.
Cassandra posicionou-se ao lado da mesa, distanciando-se do duque.
– Permita-me que lhe apresente...
– Não pedi para ser apresentado. Só perguntei o nome.
Lippincott encolheu-se na cadeira.
– Mr. Peter Lippincott.
– Informe Mr. Lippincott de que esta presa em particular já não jogará mais esta noite.
Cassandra não precisou de dizer palavra. Varrendo o seu dinheiro da mesa, Lippincott saiu.
Lydia quase chorou de frustração. Tinha sido por tão pouco. Mais dez segundos e... Empurrou a cadeira para trás, diretamente ao encontro de Penthurst. Levantou-se e virou-se contra ele.
– Como se atreve a interferir?
– Atrevo-me, como amigo do seu irmão. Ele hoje tem preocupações mais importantes do que sair atrás da sua irmã inconstante.
– Foi enviado pelo meu irmão?
– Optei por não o preocupar com mais uma das suas histórias de rebeldia. Ele não tem de me pedir para agir em vez dele.
– Sem esse pedido, não tem aqui a menor autoridade. De qualquer modo, já cumpriu o seu dever, como referiu, e o assunto está tratado. Desejo-lhe uma boa noite, senhor.
Cassandra soltou um pequeníssimo tremor de sobressalto perante uma tão franca rejeição. Lydia esperava que fosse o suficiente para levar o duque a sair. E dedicou os seus pensamentos a calcular como poderia
ganhar muito e muito rapidamente sem recorrer a Mr. Lippincott.
Os olhos de Penthurst semicerraram-se.
– Perde a noção de quem é, Lydia. Sem dúvida a excitação dos jogos poderá explicar a sua grosseria. À semelhança de um amante contrariado em pleno ato de paixão, a inconclusão da sua aposta parece tê-la
deixado fora de si. – Mais um pequeno sobressalto em Cassandra. – O que lhe passou pela cabeça para apostar tanto? – apontou para o dinheiro que ainda jazia sobre a mesa. – Pensava que o Southwaite lhe
tinha apertado as rédeas, mas, se esta semana pode porventura servir de exemplo, está a desobedecer-lhe impunemente.
Exasperada, Lydia olhou para Cassandra que, para sua irritação, ficara séria e calada.
– Estávamos muito perto. Se uma pessoa não tivesse estragado tudo, estaríamos ambas mais ricas e satisfeitas.
Cassandra abriu a boca para responder, mas o seu olhar recaiu no duque. O que quer que tenha visto silenciou-a novamente. Agarrou na bolsa de Lydia e enfiou o dinheiro lá para dentro.
Lydia pegou na bolsa agora protuberante e lançou um olhar pela clientela que permanecia ainda nas mesas do Morgan’s. Duas conhecidas cortesãs tinham estado à frente do jogo de hazard quando Lydia chegou,
mas haviam desistido da tarefa. Calculou quanto tempo seria necessário para transformar as três mil libras em dez, se fosse bafejada pela sorte. Seriam horas na casa de Mrs. Burton, mas esta definia limites
para as apostas, protegendo-se assim da sorte em demasia. Morgan, por outro lado, apreciava ele próprio um bom jogo. Era por isso que por vezes até nobres era possível encontrar neste espaço muito democrático.
O estabelecimento não impunha limites.
Teria de ser hazard. A menos que...
Olhou para Penthurst, ali de pé, alto e severo, de olhos escuros repletos da reprovação que ela tão bem conhecia.
Baixou o olhar sobre a mesa. As cartas de Mr. Lippincott ainda ali estavam.
Não deveria. Seria muito errado.
– O Ambury sabe que está aqui? – Penthurst virava agora o seu descontentamento para Cassandra.
As pestanas escuras de Cassandra desceram sobre os seus olhos brilhantes.
– Não faço a mínima ideia. Não pedi permissão ao meu marido, se é isso que pretende saber. Nunca peço, aliás.
Sim, seria errado. Por outro lado, Penthurst falava agora com Cassandra num tom que dificilmente lhe estimulava o sentido de virtude perante aquelas cartas.
– Certamente por saber que ele não aprovaria a sua vinda a este local, quanto mais o facto de trazer Lady Lydia consigo. Não foi suficiente ter-lhe apresentado a casa de Mrs. Burton?
– Foi essa também a minha opinião. Mas não a dela. O Ambury não teria desejado que a deixasse vir aqui sozinha, isso pelo menos é certo. Ou pensa que deveria tê-lo feito?
– Penso que deveria ter usado a sua influência para a dissuadir de todo a vir.
– Poderei fazer-lhe notar que ela é uma mulher adulta? É dona do seu nariz, tal como eu, e como já eu era antes de me casar. Não precisamos nem desejamos que os homens, mesmo que sejam nossos irmãos e
maridos, determinem as nossas vidas, do mesmo modo que esses homens não o quereriam para eles próprios.
Lydia teve vontade de aplaudir. Esta era a velha Cassandra, a mulher que enfrentara a sociedade para levar a vida que quis, a Cassandra que Lydia invejara e que, após o casamento com Ambury, desejara poder
reencontrar.
Olhou novamente para as cartas. Muito errado. Mas a verdade é que ele se tornara insuportável. Acabara de arruinar todas as suas hipóteses de tratar da ameaça de Mr. Trilby de uma vez por todas, por isso
obrigá-lo a pagar em vez de Lippincott exercia sobre ela um delicioso apelo. Além do mais, como sempre mantinha presente, baixar um pouco a crista faria tão bem a Penthurst quanto a Mr. Lippincott, por
razões muito mais evidentes.
– Penthurst, parece determinado a arruinar a diversão do meu serão – afirmou.
– A minha única determinação consiste em retirá-la deste lugar de imediato.
– E se eu recusar?
– Tratarei de que não o faça.
Lydia fez uma careta na direção de Cassandra.
– Acha que ele me leva ao colo lá para fora? Quase me sinto tentada a ver se sim.
– Lydia...
– Para evitar um espectáculo tão pouco digno, proponho uma solução de compromisso. Permita-me mais um jogo à minha escolha, por cinco minutos apenas, e sairei pelo meu próprio pé.
– Raramente cedo a soluções de compromisso. Contudo... cinco minutos. Não mais do que isso. Quanto ao valor da sua aposta, não interferirei. O seu irmão já previa que seria temerária a ponto de ficar gravemente
escaldada. Alguns precisam do dobro das lições, por isso quem sabe será agora a segunda.
Cassandra ergueu o sobrolho perante aquele pequeno discurso.
– Tenho a certeza de que a Lydia não seria tonta a ponto de apostar tudo o que tem na bolsa. Não é verdade, Lydia?
– Se a aposta for suficientemente tentadora, quem sabe não o farei. – Simulou estar a perscrutar a sala para escolher o jogo.
Cassandra tomou-lhe o braço. Puxou Lydia para o lado a fim de lhe dar uma palavra em privado.
– Basta. Fomos descobertas e Lippincott já lá vai.
– Eu ainda não acabei. Pretendo ganhar muito mais. Ao Penthurst.
– Está louca?
– Admita que não se importaria de assistir a uma tal cena, depois da forma como acabou de falar consigo. Convido-o para o lugar de Lippincott, para a cartada que ele próprio interrompeu. Tem uma certa
justiça.
Cassandra olhou de relance para trás, na direção de Penthurst, e depois sussurrou:
– Não pode estar a pensar usar o mesmo baralho de cartas.
– Porque não? Não é que eu tenha feito alguma coisa às cartas.
Cassandra estudou-a.
– Não estará a fazer batota, então? E ainda assim espera ganhar.
– Ganho quase sempre. Quanto ao que eu espero... apenas boa sorte.
Dito isto, caminhou de novo para junto de Penthurst.
– Escolho uma aposta consigo. Apostarei o conteúdo da minha bolsa e o Penthurst apostará metade, mais o que possa ter ganhado na última semana. Se se sente tão à-vontade para repreender o pecado do jogo,
é provável que nem sequer tenha quaisquer ganhos para arriscar.
– Por acaso, os meus ganhos esta semana foram consideráveis. Mas não chegam às três mil libras, como aquelas que tem para oferecer. Oitocentas.
– É uma aposta tentadora, nesse caso?
– Não.
Que homem impossível. Cassandra parecia aliviada.
– Contudo – disse ele –, sentir-me-ia tentado se a Lydia prometesse dobrar o que ganhei na semana passada, caso venha a perder. O valor era bastante reduzido, por isso terá a possibilidade de guardar grande
parte do que contém na bolsa.
Uma oferta generosa, para quem não soubesse que ele a ganhara igualmente a ela, juntamente com o «quase nada».
Vislumbrando um caminho de saída daquele imbróglio, e também para acumular mais fundos para se livrar de Trilby, Lydia sentou-se à mesa. Penthurst tomou o lugar de Mr. Lippincott. Ela recolheu as cartas.
– Cassandra, sugeria que as baralhasse e as dispusesse na mesa.
Cassandra sentou-se à sua direita e baralhou as cartas.
– Um momento – interrompeu Penthurst. – Essas são as cartas de Lippincott?
– Penso que sim.
– O homem que se suspeita ser batoteiro. O baralho pode estar marcado. Não tolerarei que me acuse de fazer batota.
Inclinou o tronco, chamou a atenção de um criado e pediu outro baralho.
O coração de Lydia mergulhou até ao estômago. Normalmente, pressuporia que a sorte estaria do seu lado, mas...
Penthurst baralhou suavemente as cartas, as belas mãos revelando-se muito hábeis. Entregou-as a Cassandra, para que cortasse o baralho e o abrisse em leque. Cassandra assim fez, mas fixou o olhar em Lydia,
comunicando uma vez mais com o olhar a sua proposta de se retirar.
– Porque hesita, Lydia? A aposta é vantajosa para si, sob todos os aspetos – declarou Penthurst. – Gostaria de acrescentar mais um elemento. Se ganhar, nunca contarei ao seu irmão o que se passou aqui
esta noite.
Será que Cassandra reparou na aparência que o duque emanava neste preciso momento? Na forma como luzes douradas cintilavam nos seus olhos escuros e na forma como a sua expressão vagamente divertida fazia
perder o fôlego. Conseguia veicular uma atitude predatória, mas de um modo extremamente atraente. Não lhe era possível ignorar como o seu nervosismo lhe acelerava a pulsação. A atenção de Penthurst gerava
uma excitação quase apelativa.
Estava tudo ali, nos seus olhos – aquilo que Lydia estava efetivamente a apostar e aquilo que possuía nesse momento. Ele olhava-a como a uma mulher que contava vir a possuir. O dinheiro era o que menos
importava. O dobro ou nada sobre a sua dívida carnal era agora a verdadeira aposta, ali mesmo, debaixo do nariz de Cassandra, que de nada suspeitava.
E, no entanto, seria mesmo o dobro? Só se perde a inocência uma vez. Depois disso, seria uma perda diferente, e muito mais pequena. Poder-se-ia mesmo dizer que, depois disso, não resta na verdade grande
coisa para perder. E se ela ganhasse, ficaria livre da dívida e ganharia ainda mais mil e seiscentas libras.
De qualquer modo, não tinha escolha. Não propriamente.
Penthurst esperava. Lydia observava-o, com a tez ligeiramente enrubescida. Apesar da sua expressão impassível, Lydia não parecia agora tão confiante.
Tivera ela a intenção de o enganar no jogo? Ela dissera no terraço de Mrs. Burton que Trilby lhe estava a mostrar os seus passes de mágica. Poderá ter aprendido a utilizar esses ensinamentos para fins
pouco recomendáveis, a par de outros truques mais sofisticados, como a marcação de cartas.
Alguém tinha marcado as outras cartas. Certamente não ela. Ainda assim, não podia negar que a hesitação de Lydia parecia estranha para uma mulher que tomara a iniciativa de lançar o desafio.
Lydia desviou os olhos para a mesa, tendo então recuperado as cores do rosto. Se calhar tinha visto mais nele do que ele desejara. Quando a provocou com a última aposta, e a desafiou a duplicá-la, a sua
mente fora invadida por algumas imagens vívidas da cobrança da dívida. Provavelmente Lydia não fazia ideia de como este tipo de pensamentos domina tão frequentemente os homens, mesmo que a mulher não seja
um objeto de desejo adequado.
Nesse momento Lydia estava bastante bonita, olhos grandes e irresolutos, lutando por preservar a sua reserva distante. Nem por sombras tão atrevida. Quase sentiu pena dela.
Lydia endireitou as costas e os seus dedos afunilados e esguios estenderam-se na direção do leque de cartas. Penthurst quase conseguia ver como evocava a deusa da fortuna desejando que os dedos repousassem
sobre uma carta alta.
Lydia puxou abruptamente uma carta e virou-a. Dez de copas.
– Tem uma hipótese mais do que favorável de ganhar, Lydia. Muito bem – disse Cassandra.
Ele olhou para as cartas, procurando decidir. De repente, nada daquilo lhe parecia um jogo, nem sequer uma forma de ensinar a Lydia uma lição. Pelo contrário, enquanto esperava que a sua sorte superasse
as probabilidades, deu-se conta de que se estava nas tintas para o resultado. Era a sua vaidade a entrar em ação. E o seu orgulho. Além disso, era forçado a admitir, era ainda o lado obscuro da sua alma
que esta semana fantasiara com demasiada frequência com o modo como levaria Lydia a pagar a dívida.
Puxou uma carta e virou-a.
Cassandra suspirou. Lydia não conseguiu desviar o olhar da carta.
– Esta noite não parece estar em forma – disse ele, batendo suavemente com os dedos na dama de copas. – Outra vez.
O olhar de Lydia ergueu-se na sua direção. Luminoso. Alerta. Curioso. Surpreendido. E então toda a vida abandonou os seus olhos e estes tornaram-se opacos, no momento em que tornou a colocar a sua máscara
de esfinge.
– Vamos, Cassandra – puxando os cordões da bolsa. – Devo-lhe mil e seiscentas libras, Penthurst.
– Não é necessário contá-las agora. Sei que cumpre todas as suas apostas. Escrever-lhe-ei a propor a melhor forma de efetuar o pagamento. – Levantou-se e ofereceu-lhe a mão e, depois, a Cassandra. – Lady
Ambury, tem a sua carruagem disponível?
– Tenho um criado à espera. Ele providenciar-nos-á uma carruagem fretada.
– Conto que o terá subornado bem para não ir espalhar mexericos sobre esta aventura lá em casa.
– Em vão, já que o tivemos a si a assistir a tudo.
– Embora possa estar vinculado à obrigação de amigo de relatar as suas atividades ao Ambury nalgumas ocasiões, esta não é uma delas. A menos que ele mo pergunte diretamente, a minha discrição é a sua,
se assim o desejar. Em vez de esperar enquanto providencia uma carruagem, permita-me que me ofereça para a levar a casa, bem como a Lady Lydia.
A carruagem de Penthurst parou primeiro em casa de Cassandra. No caminho, ele e Cassandra iam conversando. O estado de espírito de Cassandra era agora animado. Talvez tivesse esquecido a forma como este
homem a repreendera. Ou então o alívio com a sua promessa de discrição trouxera-lhe o bom humor.
Aos olhos de Lydia, Cassandra foi muito descuidada ao descer da carruagem sem sequer uma pausa para ponderar se deveria deixá-la sozinha com o duque. Cassandra despediu-se e encaminhou-se para a porta
acompanhada do seu lacaio. A carruagem rolou rumo ao outro lado da praça.
Lydia olhava pela janela, para a noite. Examinava as luvas. Registava ao pormenor os ornamentos da carruagem. Fez todos os possíveis por não olhar para Penthurst sentado à sua frente. Mas, ainda assim,
conseguia vê-lo, especialmente sempre que passavam sob um candeeiro de rua e um súbito clarão de luz dourada entrava pela janela. Sempre que a sua forma sombria se transformava num homem sob a luz acutilante,
reveladora de ângulos, sombras e detalhes. Via então os seus olhos, observando-a. E as suas mãos, repousadas de lado sobre a almofada.
Mais do que isso, todavia, Lydia conseguia senti-lo. Ele enchia a carruagem. E não era a sua estatura que a tolhia. Era todo ele – aquela presença que lhe causava desconforto desde menina.
– Serei discreto também quanto à sua visita àquele antro, apesar de ter perdido a aposta – afirmou ele.
Supostamente ela deveria agradecer. Mas não queria admitir que a vida seria mais agradável sem que Southwaite tomasse conhecimento. A ideia de aceitar favores de Penthurst também não lhe agradava.
– Se usar de discrição, faça-o por ele, não por mim. Ele preocupar-se-ia muito mais do que o necessário.
– Não lhe interessa se ele ficar a saber?
– De todo. Dedicar-me-á alguns sermões fastidiosos, isso é verdade. Contudo, o meu irmão é suficientemente esclarecido para saber que uma mulher da minha idade não pode ser vigiada como uma rapariga.
Um clarão de luz dourada atravessou o rosto de Penthurst, mostrando a metade inferior e revelando o seu sorriso vago.
– Ele só o aceita porque não sabe o que anda a fazer. Ele vê esse seu olhar vazio com que encara o mundo e questiona-se se existirá de todo alguma mente lá por trás, quanto mais uma mente esperta e cheia
de maquinações.
– Esperta? Maquinações? Pretende elogiar-me ou insultar-me?
– É apenas a verdade que tenho à minha frente.
Lydia sentiu a sua atenção perfurá-la na escuridão.
– Hoje tinha planeado enganar-me no jogo, não é verdade? Aquelas cartas estavam marcadas. Vi e senti o suficiente quando as entreguei ao empregado do Morgan.
– As cartas não eram minhas. – Encostou a cara à janela para avaliar quanto faltaria ainda para chegar. Quase se poderia atirar uma pedra entre a casa de Cassandra e a sua, mas esta viagem nunca mais acabava.
– Não renegamos a nossa honra apenas porque circunstâncias criadas por outros nos oferecem essa oportunidade.
Num ápice, o ressentimento converteu-se em cólera desmedida.
– Como se atreve a dar-me lições de bom carácter? Seria cómico da sua parte, entre todos os homens, que ousasse fazê-lo. Eu poderia do mesmo modo dizer-lhe que não se usa a honra como desculpa para matar
um amigo só porque as circunstâncias lhe ofereceram essa oportunidade.
Silêncio. Instalou-se entre eles um ambiente pesado, tão denso que poderia chover sangue. Passaram sob outro candeeiro. Desta vez a faixa de luz revelou-lhe os olhos. A sua expressão prendeu a respiração
de Lydia. Duvidava alguma vez ter sido alvo de uma ira tão direta e... algo mais, algo tão acutilante que não conseguiria descrever com palavras.
– Refere-se ao Lakewood. Queira lembrar-se de que os lordes me absolveram.
– É um duque. Claro que o absolveram.
– O seu irmão também o fez.
Sim, era verdade. Southwaite não só votara nesse sentido no julgamento, como também, após quase um ano em que recusou dirigir a palavra a Penthurst, o irmão havia posto fim a esse distanciamento. Ambury
também.
Nem queria acreditar! Um homem mata um amigo e o seu único castigo é um ano de silêncio dos outros amigos do seu círculo. Até os duques deveriam enfrentar mais justiça do que isto.
Uma fúria de desilusão e ressentimento cortava-lhe a respiração. Sob essa ira, um profundo pesar cingia-lhe o coração. Nunca passara pela cabeça destes homens que Lakewood fora também amigo dela. Mantiveram-na
à margem de todo o episódio, sem sequer pararem para pensar. Abandonaram-na entregue ao sofrimento e à cólera e, depois, deixaram-na fora da decisão de reconciliação. Southwaite, Ambury e Kendale tinham-se
uns aos outros para enfrentar a perda. Ela contava apenas consigo própria e com o pouco conforto que Sarah lhe conseguira dar.
Colocava-se agora perante Penthurst do mesmo modo que havia aprendido a enfrentar o mundo nos terríveis meses após aquele duelo, escondendo o sofrimento por trás de um rosto que nada refletia.
– Admito que sim. Uma vez mais, destaca o modo como o meu comportamento, e mesmo a minha forma de pensar, são incorretos. Tendo sido absolvido com base na sua própria palavra de que a morte de um homem
bom se devia a uma questão de honra, pretende agora ser poupado de qualquer referência ao assunto e todos temos de aceitar a retidão das suas ações.
Misericordiosamente, a carruagem abrandou. Lydia abriu a porta de rompante logo que parou e saiu a tropel escadas abaixo, tropeçou então na assistência apressada de um lacaio e estugou o passo até ao santuário
que eram os seus aposentos.