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CAPÍTULO 8
O calor do sol dissipou a névoa das primeiras horas da manhã enquanto Penthurst cavalgava rumo a Surrey. Num caminho a duas horas de Londres, cortou para uma estrada que levava a uma casinha de pedra rodeada
de anexos com telhado de colmo. Desmontou e conduziu o cavalo até ao estábulo nas traseiras. Despiu a sobrecasaca, retirou a sela do cavalo, secou-o e instalou-o numa estrebaria com algum feno.
Arregaçando as mangas, dirigiu-se a um terreno situado atrás do estábulo. Trabalhavam ali dois homens, um deles bastante jovem. O mais velho reparou na sua presença e parou o boi que puxava a charrua.
De botas largas e enlameadas, caminhou até ele, limpando o suor da testa com um lenço.
– Chegou cedo este mês, Vossa Senhoria.
– Pareceu-me que estaria um dia agradável. Quem sabe se consigo evitar a chuva desta vez, Mr. Gosden.
Mr. Gosden riu-se com gosto.
– Mais parecia um cão encharcado, realmente.
– Um cão encharcado e coberto de lama, se bem me lembro. – Apontou para a charrua. – Vejo que está a lavrar este pedaço aqui. Eu acabo, a menos que precise dos meus préstimos para outra tarefa.
Os olhos pequenos e claros de Gosden semicerraram-se e perscrutaram o terreno.
– Há aqui muitas pedras. Ando a evitá-lo há anos, mas achei que devia tentar. Já tratámos do pior, mas cuidado ao lavrar ali.
– Vou tentar não lhe partir a charrua.
– Tente mas é não partir a cabeça. Ou uma perna. Mas deixo-lhe a incumbência, já que, se é para partir alguma coisa, é pessoa para partir pedra com todo o empenho. Vamos aproveitar para plantar algum trigo
de inverno e agradecemos a sua ajuda aqui.
Mr. Gosden afastou-se, levando consigo o ajudante. Penthurst pegou na charrua e começou a revolver o solo. Homem e animal sintonizaram-se num ritmo tão antigo quanto a agricultura, desempenhando silenciosamente
os seus papéis na sua missão de persuadir as colheitas a brotarem da terra.
Sabia bem a Penthurst este humilde labor. O exercício e o ar fresco proporcionavam-lhe a clareza de espírito de que necessitava para o assunto que lhe ocupava os pensamentos.
As acusações de Lydia na noite anterior haviam-no surpreendido, mas sobretudo por terem sido proferidas por ela. Certamente muitas pessoas partilhavam a sua opinião. A lei é diferente para os nobres. Eles
cuidam uns dos outros e esperam receber o mesmo tratamento em troca.
Mas a franqueza contundente e furiosa com que referira o assunto fora chocante. Ninguém se atrevia a atirar-lhe acusações daquela maneira. Nem mesmo Southwaite ou Ambury. Aqueles amigos haviam cortado
relações com ele, mas nunca expressaram o que lhes ia no espírito.
Pensaram possivelmente que ele os desafiaria para um duelo e que os mataria também. Por vezes via agora esse raciocínio nos olhos dos homens. Se insistir neste ponto com ele, será que ainda estarei vivo
quando nascer o dia?
Naquele momento questionava se não teria sido um erro não investigar mais a fundo as suas suspeitas acerca de Lakewood. Há mais de um ano que vinha sendo consumido pela ideia de que um homem pudesse optar
por morrer para evitar algo que seria um escândalo superável. Isso sugeria que algo mais teria estado em jogo.
A culpa impedira-o de procurar saber. Tirara a vida a Lakewood. Que benefício poderia advir de lhe tirar também a reputação?
Naquele dia, no entanto, enquanto caminhava sobre a terra revolvida, as acusações de Lydia ecoavam-lhe na cabeça. Não apreciara ouvir aquela perspetiva sobre o seu carácter. Especialmente vindo dela. Estava
a começar a aperceber-se de quão cara lhe saíra a opção de proteger o nome de Lakewood.
A charrua puxou bruscamente para a esquerda e, ao mesmo tempo, uma pedra de dimensão considerável levantou voo para a direita. Praguejou ao ver que a pedra por pouco não lhe acertara no joelho.
Um grito elevou-se no ar vindo da outra extremidade do terreno. Mr. Gosden, que estava a regressar, disparou a correr.
– Acertou-lhe? – gritava, aproximando-se.
– Falhou o alvo, felizmente. Foi culpa minha. Distraí-me.
Mr. Gosden limpou o rosto e acalmou a respiração. Pontapeou a pedra para o lado.
– É fácil distrairmo-nos num dia bonito, mas não é sensato, Vossa Senhoria. A charrua é coisa séria. – Baixou-se e examinou as pernas do boi, a fim de se certificar de que o seu mais precioso companheiro
de trabalho também não ficara ferido. – Já terminou, senhor?
– Pensa que devo dar o trabalho por terminado?
– Se penso? Não me cabe a mim pensar, disso sei eu.
Com esta resposta, não se limitava a mostrar deferência para com os seus superiores. Mr. Gosden pagava muito menos como caseiro do que o normal pelo facto de permitir que um duque aqui trabalhasse ocasionalmente.
Não lhe cabia aprovar ou reprovar, nem estabelecer limites ténues para a duração da estadia do duque.
– Se alguma vez eu me magoar, não será responsabilizado por isso, Mr. Gosden. A culpa será deste meu hábito excêntrico. – Sorriu, talvez para que o agricultor não ficasse tão preocupado. – Quando se souber,
toda a gente vai estranhar esta minha atividade tanto quanto o senhor.
Mr. Gosden encolheu os ombros e esboçou um sorriso aberto.
– Sim, parece-me um pouco estranho. Se eu fosse duque, nunca manusearia uma charrua. Para que serve então ser duque?
Havia uma explicação, mas não que Gosden pudesse compreender. O que começara há muito como um castigo, prosseguira na verdade por opção. Havia ocasiões em que, pelo menos para este duque, era preciso distanciarmo-nos
do título e dos seus privilégios, e este lugar era o mais longe que alguma vez conseguira chegar. Trabalhar a terra da propriedade revelara-se uma das mais elementares formas de trégua e estimulava o género
de reflexão que muitas vezes resolvia dilemas.
Como acontecera hoje.
– Deixo-lhe si a charrua, Mr. Gosden, e espero que as poucas horas que aqui passei tenham feito mais para ajudar do que para atrapalhar. – Deu uma palmada firme na garupa do boi e afastou-se.
– Pensa regressar?
– Oh, sim. Mas no dia habitual.
Sentindo-se mais em si, nessa noite Penthurst compareceu num dos seus clubes. Parou do lado de dentro da porta da sala de jogo do Brooks para ver quem mais ali procurara refúgio. Vislumbrou Ambury sentado
com Southwaite e Kendale.
Ambury fez-lhe sinal para que se juntasse a eles. Uma vez que a expressão de Kendale não congelou, Penthurst acomodou-se numa cadeira à sua mesa e aceitou um copo de brandy.
– A sua mulher já se sente melhor, Southwaite?
– Ela diz que sim.
– Não acredita nela?
– Ele estava agora mesmo a dizer-nos que não deveria ter vindo hoje e que tem de partir muito em breve – comentou Ambury.
– E expliquei porquê – declarou Southwaite com firmeza, refletindo nos olhos escuros o seu desagrado perante o tom provocador de Ambury. Ao contrário de Ambury, reclinado na cadeira como um homem satisfeito
com o mundo em que vivia, Southwaite parecia agitado e preocupado, não sendo provavelmente boa companhia.
– Ele disse que a Emma lhe parecera um pouco pálida quando saiu – interveio Kendale, dignando-se a juntar-se à galhofa, ao contrário do que lhe era habitual.
Kendale estivera no exército até receber uma herança pela morte do irmão. Hirto, duro e um desastre social, os seus olhos verdes viam geralmente o mundo como se estivesse dividido numa série de binómios.
Certo e errado. Dever e autocomplacência. Bravura e cobardia. Com uma tal visão do mundo, a morte de Lakewood fora um assassinato.
O facto de Kendale tolerar sequer a sua companhia esta noite era provavelmente reflexo do seu humor mais positivo após o casamento recente, e não uma verdadeira reconciliação.
– Ela devia ter descansado mais um dia.
– Foi o que o médico recomendou? – perguntou Penthurst.
– Penso que terei de escolher outro.
– Pressuponho então que ele não tenha recomendado tal coisa – disse Ambury. – Se as mulheres caírem à cama durante dois dias de cada vez que têm uma tontura, vamos ter mesmo muitas inválidas.
Southwaite cruzou os braços e parecia irritado. Penthurst pôde adivinhar que as piadas sobre este assunto já duravam há algum tempo antes da sua chegada.
– Mal posso esperar por ouvir a sua lógica tranquila quando chegar a sua vez, caro amigo – respondeu Southwaite a Ambury.
– Provavelmente ela está ansiosa – acrescentou Kendale. – É casado com uma mulher de objetivos e de ação, Southwaite. Vai levá-la à loucura se tentar transformá-la em qualquer outra coisa. – A sua postura
militar empertigou-se ainda mais enquanto emitia opinião sobre o assunto de que menos percebia: mulheres. Certamente o seu casamento recente levara-o erroneamente a pensar que adquirira experiência suficiente
para dar conselhos.
– O filósofo falou e disse – resmungou Southwaite. – A verdade é que ela insinuou isso mesmo, já que querem saber. Basicamente expulsou-me de casa.
– Deve estar aborrecida por ter perdido a diversão da outra noite com a Lydia e não lhe apetece aturar mais as suas ideias protetoras – disse Ambury, com a atenção presa sobretudo num empregado que lhe
trouxera um charuto que ele havia solicitado.
Southwaite olhou-o com um ar severo.
– Que diversão?
O eterno e afável sorriso de Ambury congelou. Observava o modo como o empregado lhe preparava o charuto e não atentou a nada mais. Decididamente não a Southwaite.
– Que diversão?
Ambury demorou-se nas primeiras baforadas.
– Uma pequena saída, nada mais. A minha mulher e a sua irmã passaram o serão juntas. As senhoras fazem isso por vezes, é claro. Nada de incomum. A Emma deve ter ouvido falar disso, era só isso que eu queria
dizer, e sentiu-se excluída.
A explicação apaziguou Southwaite. Pareceu até penalizar-se um pouco.
– E onde foram elas, para que Emma se sentisse excluída? Levo-a lá eu, para a compensar da minha excessiva preocupação.
Ambury franziu o sobrolho por entre o fumo que lançara, enquanto ponderava como responder à pergunta.
– Nem sei bem se a Cassandra mo chegou a dizer. Deixe-me ver se me recordo.
Do outro lado da mesa, Kendale batia com o dedo no queixo.
– A Cassandra e a Lydia por aí juntas, soltas das suas gaiolas. Hmm. Para onde terão voado? Hmm...
– Para onde quer que tenha sido, não há motivo para pensar muito no assunto, por isso podem parar de criar problemas – disse-lhe Ambury. – Chegaram a casa sãs e salvas pela mão aqui do Penthurst, por isso
dificilmente terão andado pelos caminhos do inferno, se se cruzaram com ele.
– Além disso, Lady Ambury estava acompanhada de um lacaio – acrescentou Penthurst. – Mas em vez de deixar que o criado providenciasse uma carruagem, levei-as eu a casa.
– Simpático da sua parte ter olhado por elas – declarou Southwaite.
– Muito simpático – acenou Ambury em concordância.
O tema estava a esgotar-se, graças a Deus. Para todos, exceto para Kendale, a quem faltava o devido instinto quando se tratava de conversas sociais.
– Tem razão, Ambury. Se o Penthurst estava lá, podemos eliminar já a possibilidade de todo o tipo de antros. Casas de gin, por exemplo. Eu cá nunca entraria num sítio desses.
– As tabernas perto de Covent Garden também – disse Penthurst. – Nunca lá vou à noite.
– O Almack’s – acrescentou Ambury. – Você detesta. Não que qualquer uma das senhoras fosse receber permissão para entrar, mesmo que o quisesse.
– Podemos eliminar também os bordéis masculinos – sugeriu Kendale. – Jamais teria motivo para ir a tal sítio.
Agora havia captado a atenção de todos. Um irmão e um marido dispararam olhares perigosos na direção de Kendale.
Penthurst riu-se.
– Posso confirmar que não encontrei as senhoras num bordel, seja de que tipo for.
O seu esforço de frivolidade não surtiu efeito.
– O que se passa consigo para insinuar que a Cassandra e a Lydia poderiam ter frequentado um bordel masculino? – perguntou Ambury.
Kendale pareceu honestamente confuso e irritado pelo facto de uma rara tentativa de humor numa conversa frívola ter feito ricochete e se ter virado contra si.
– Estávamos a enumerar os locais onde não poderiam ter ido. De que forma, ao dizer que não poderiam ter lá estado, estaria eu a insinuar que poderiam lá ter ido?
– A simples referência a tal coisa é suficiente para levar uma sova, no mínimo.
– Vossa? Não me parece.
– Dos dois.
– Vamos matá-lo, Ambury – disse Southwaite.
– Dois contra um? Não seria justo.
– Se for a única forma de aprender finalmente a ter cuidado com o que diz, será mesmo dois contra um.
– Cavalheiros. – Penthurst tentou usar o seu tom de voz mais cativante. – O Kendale estava a tentar fazer uma piada à minha custa, não das senhoras. Não foi isso, Kendale? Tal graça exige alguma prática,
penso que concordarão. É novato neste jogo e é inevitável que cometa alguns erros involuntários.
A expressão dura de Ambury foi a primeira a ceder. Suspirou, reconhecendo que Kendale era mesmo Kendale, e por muito tempo assim seria.
Penthurst decidiu mudar o rumo da conversa.
– Esteve fora durante várias semanas, Kendale. Deduzo que tenha apreciado o campo com a sua mulher? – O casamento com a emigrante francesa Marielle Lyon era suficientemente recente para que Kendale vivesse
ainda em plena convulsão de uma nova paixão, a ponto de sucumbir a este tipo de experiências.
– Muito. Felizmente, ela prefere a cidade, tal como eu.
– E começaram alguma guerra privada na vossa ausência? – Kendale servira no exército e, por vezes, agia como se ainda lá estivesse. E isso criara algumas aventuras dramáticas no passado. – Ou será que
Marte foi desarmado por Vénus?
– Acho que Vénus ficaria desapontada, se eu pousasse todas as minhas armas.
Penthurst riu-se. Os outros demoraram alguns momentos a perceber. Era tão raro Kendale fazer piadas maliciosas que esta quase lhes passou ao lado. A postura inflexível de Kendale terá tido alguma responsabilidade
nisso. Ele mantivera-se ali sentado na cadeira o tempo todo como que montado a cavalo numa parada.
– Neste momento, a sua guerra privada é aqui mesmo. Trouxe Marielle de volta à cidade para mais alguns confrontos com a sociedade – disse Ambury. – Vai ter de deixar a Emma sair da cama, nem que seja só
para ajudar, Southwaite.
– Sim – anuiu Kendale. – A Marielle vai precisar de todos os amigos que puder ter a seu lado. Ambos vamos precisar.
Aí estavam outras palavras pouco usuais na boca de Kendale, pelo que estavam a viver um dia verdadeiramente raro. Normalmente, o seu rosto negava qualquer tipo de falta de confiança, quanto mais de um
tipo que fizesse prever a necessidade de amigos. Contudo, mesmo antes de tomar por esposa uma mulher inadequada, Kendale não se dava propriamente bem em sociedade, por isso estas batalhas teriam lugar
em terreno hostil.
– Vamos todos ao teatro na sexta-feira – propôs Ambury. – O Kendale e a Marielle serão meus convidados no camarote da família. Tem de vir, Penthurst. Fará toda a diferença.
Esperou pelo momento em que Kendale contestaria este último ponto.
– Não perderia qualquer manifestação de independência social como aquela que irão exibir nesse camarote. Um batalhão de combate. As matronas terão uma apoplexia – disse então, na ausência de qualquer contestação.
– Pode trazer consigo a sua amante atual, quem quer que ela seja. Nessa altura todos estaremos acompanhados de mulheres inadequadas.
– Por acaso, não há qualquer amante atual.
Southwaite despertou do que quer que fosse que o tinha absorto.
– Não há amante atual? O que é feito da Mrs. Ca...
– Isso já acabou há algum tempo. Consigo ser tão discreto sobre a minha vida privada como qualquer um de vós, caso estejam a questionar-se como foi possível não terem tido conhecimento.
Southwaite ergueu as sobrancelhas.
– Então as senhoras terão de equilibrar o grupo de outra forma. Está decidido, então? Ficaremos todos à espera do seu convite, Ambury. Prometo não encarcerar a Emma, dado tratar-se de uma causa tão válida.
CAPÍTULO 9
–Se chover outra vez, estou capaz de chorar – exclamou Lydia enquanto, acompanhada por Sarah, caminhava novamente em Hyde Park. Já havia humidade suficiente sem a chuva e o ar estava carregado de uma hostilidade
glacial, como acontecia por vezes imprevisivelmente em dias de outono.
– Mas não me culpe a mim se chover.
– Porque não? Viemos esta manhã para que possas namorar.
– Acho que viemos para que milady possa falar de novo com aquele homem magro e pálido. Está à sua espera ali mais à frente.
Algernon Trilby estava efetivamente à espera, muito mais à vista de todos do que da última vez. Estava ali postado em atitude pretensiosa, apoiado numa bengala que se afastava da perna, formando uma diagonal
íngreme, aprisionada na mão que partia do braço esticado.
A milícia marchava nas suas formações. Lydia não solicitara ao irmão o plano de utilização de cada parque pelas milícias. Ao invés, tinha abordado a sua secretária e confidenciou a paixoneta de Sarah.
O miliciano de cabelo ruivo exibiu agora um dos seus sorrisos, ao dar conta da sua presença.
Deixando Sarah a pasmar, Lydia caminhou mais cem metros na direção de Mr. Trilby. Não lhe concedeu qualquer saudação antes de se lançar no discurso que ensaiara.
– Estou na posse de uma boa parte daquilo que deseja, Mr. Trilby. Não agora na minha pessoa, é claro. No entanto, está tudo bem encaminhado: só teremos de chegar a acordo, eu entrego-lho e tratarei de
obter o restante.
Mr. Trilby girava a bengala de um lado para o outro enquanto mirava o parque. Os olhos semicerraram-se sob a aba do chapéu. Alternou o apoio nas pernas, pousou uma mão na anca e parecia um homem a fingir
que posava para uma fotografia.
Isso levou-a a reparar na sua indumentária. Parecia nova e um furo ou dois acima daquilo que normalmente vestia. O colete amarelo raiava o extravagante. O canalha estava a gastar dinheiro à vontade, na
expectativa de a extorquir.
– Não me parece – disse por fim. – Lamento. Enganei-me na quantia.
Inundada de alívio, Lydia quase o abraçou.
– Eu sabia que era um homem decente. Dez mil conceder-lhe-iam um benefício algo excessivo. Até apenas mil o fariam, embora, é claro, se é isso que deseja, eu...
– Está a compreender-me mal. Não era uma quantia excessiva. Pelo contrário, era demasiado baixa.
– Deus do céu, tenha algum juízo. Não faz qualquer sentido exigir mais do que tenho possibilidade de angariar.
– Estive a analisar esse imbróglio. E descobri uma forma de garantir que consegue pagar.
– Deduzo que seja uma solução justa.
– Justa e generosa, creio eu. Enquanto matutava sobre a questão, ocorreu-me uma ideia. A sua reputação de afortunada no jogo invadiu recorrentemente os meus pensamentos. Combinada com o meu talento em
truques de ilusionismo, poderíamos estabelecer uma boa parceria.
Ele queria dizer que, juntos, deveriam ser parceiros na trapaça. Ele utilizaria passes de mágica ao dispor os baralhos, e ela ganharia. Ninguém questionaria o facto de ganhar, já que era o que acontecia
sempre. Quase sempre, corrigiu-se.
– Não aqui, naturalmente – acrescentou Trilby. – Numa das cidades termais, parece-me. Buxton, por exemplo. É suficientemente longe de Londres e não tão na moda. Lá não seremos reconhecidos.
As intenções dele revoltavam-na. A delineação clara do seu plano surpreendera-a. Tinha-o pensado com uma minúcia perturbadora. As termas de Buxton atraíam o género certo de pessoas. Pessoas que jogavam
após um dia passado à mercê das águas. Situada em Derbyshire, perto dos Peaks, não atraía contudo os mesmos círculos que passavam a maior parte do tempo em Londres.
Ela não o faria. Encontraria uma escapatória. Mas por agora precisava de o apaziguar e não de o enfurecer.
– Se é essa a sua determinação, concordo que Buxton será adequado – declarou.
– Está a ver como a nossa parceria já está a dar frutos? Penso que devíamos lá ir na próxima semana. Ora, em apenas dois dias terá já concluído que a sua sorte gerou riquezas incalculáveis.
– Na semana seguinte seria melhor.
As pálpebras de Trilby baixaram.
– Foi a senhora quem exigiu uma resolução rápida. Vamos combinar irmos ambos a Buxton na quinta-feira? Passaremos um dia a debater a estratégia e os planos, e depois pomos logo mãos à obra.
Lydia aceitou, caminhou em seguida para junto de Sarah e arrastou a criada dali para fora.
Sempre que pensava ter encontrado uma solução para as ameaças de Mr. Trilby, acabava por se envolver em mais complicações ainda. Era suposto ir até ao litoral na semana seguinte. Mais dia, menos dia, Penthurst
escrever-lhe-ia a falar dos seus planos.
Teria simplesmente de adiar o assunto de Penthurst uma vez mais. Senhor meu duque, lamento, mas a minha desfloração terá de ser adiada por mais cerca de uma semana. No dia que refere tenho de ajudar o
meu chantagista a extorquir milhares de libras a pessoas inocentes.
Se calhar podia escrever mesmo isto. Era tão absurdo que, de qualquer modo, ele nunca acreditaria.
Lydia passara o último ano inquieta, de um modo quase frenético, e insatisfeita com a sua vida absolutamente comum. E, de repente, esta mesma vida tinha-se tornado extraordinária, das formas mais bizarras,
e já ansiava pela velha previsibilidade e pela ausência de qualquer tipo de drama.
De tal modo assim foi que o convite para o teatro a interessou. Uma noite rodeada da família e de amigos próximos seria uma boa trégua.
Mas depois ficou a saber que Penthurst também iria estar presente.
– Mas porque é que ele também lá vai estar? – Lydia estava com Emma no quarto de vestir de Cassandra, falando sobre aquela noite, e Cassandra tinha referido aquele nome inoportuno depois de despachar os
nomes do costume.
– A finalidade da saída é ajudar o Kendale e a Marielle, mostrando ao mundo que têm amigos que aceitam a Marielle, apesar das suas origens. Se um duque estiver no camarote connosco, e este duque em particular,
o efeito será igual ou maior do que nós todos juntos poderíamos esperar alcançar com anos de esforço – explicou Cassandra. – Orientei o Ambury durante uma hora para o ensinar a propor o serão na presença
do Penthurst e tentar que fosse incluído.
– Mas o Kendale nem sequer tem o Penthurst em boa conta.
– Se para o Kendale não constituiu problema, porque haveria de ser para si? – fez notar Emma. – O duque poderá estar a fazê-lo como uma oferta de paz, ou pelo menos para que o Kendale o veja com olhos
mais favoráveis.
Lydia não teve outra alternativa senão amuar.
– Não será tão divertido como esperei. Agora estou arrependida de ter adiado a minha visita a Crownhill.
– Não seja pateta. A tia Hortense disse que não poderia acompanhá-la antes de segunda-feira – disse Emma.
– Tinha plena intenção de viajar até Crownhill sozinha.
Cassandra estava absorta a desembaraçar um fio de prata sobre o toucador. Emma escolheu esse momento para puxar um banco e apoiar os pés.
– Sem acompanhante – acrescentou Lydia.
As amigas entreolharam-se. Cassandra suspirou e deixou cair o fio de prata sobre o toucador.
– Lydia, a verdade é que quase toda a gente se preocupa com o que faria se a deixassem andar por aí sozinha.
– Tanto quanto sabemos, poderia tornar-se pirata – disse Emma. – Ou salteadora de estradas. Monta suficientemente bem a cavalo para isso.
Cassandra susteve um risinho.
– Aquele contrabandista que o Southwaite conhece perguntou por si uma vez e o Ambury disse-me que o seu irmão quase o matou. O Ambury disse pensar que Southwaite suspeitava de que o interesse do fulano
era mais o de um parceiro comercial do que de um amante. É uma ideia peculiar vinda de um irmão, por isso ele receia claramente aquilo de que será capaz.
– Por exemplo, ir a antros de jogo como o Morgan’s – disse Emma.
Lydia resmungou.
– E como sabe ele disso? O Penthurst deve ter-lhe contado! Ele prometeu que não o faria. Estão a ver? Não há razão para confiar no Penthurst ou para o admirar e...
– Ninguém lhe disse. Se alguém o tivesse feito, a Lydia estaria certamente a caminho de um convento em França e pouco importaria a guerra – disse Emma. – Eu soube, mas o seu irmão não.
A expressão culpada de Cassandra revelou quem havia contado a história.
– A Cassandra estava comigo – fez notar Lydia. – Não fui sozinha. E isso não significa propriamente que, se for deixada por minha conta, me tornarei pirata ou salteadora.
– Estou a falar metaforicamente, Lydia – respondeu Emma. – Substitua pirata por qualquer coisa empolgante, ousada, romântica e de legalidade questionável.
Como tornar-se uma vigarista com Algernon Trilby.
Cassandra, em vez de a defender, pegou novamente no fio de prata.
– Bem, está decidido. A Lydia tolerará o Penthurst e ele tolerá-la-á a si, e vamos todos divertir-nos enquanto ajudamos a Marielle a enfrentar as feras naquele camarote.
Aos olhos de Penthurst, o esforço de Lydia para o evitar no teatro era cómico. Bastava mudar ligeiramente de posição para a ver em movimento, procurando espaços onde pelo menos duas pessoas os separassem
como uma barreira.
Nas poucas ocasiões em que reconheceram a presença mútua, ela enrubesceu rapidamente. Acabara de acontecer isso mesmo e nesse momento Lydia conversava com Lady Kendale, dedicando toda a sua atenção à amiga
recém-casada, fingindo que a parede a que estavam encostadas se encontrava a pelo menos cinco metros de distância da parede ao lado de Penthurst.
A esposa de Kendale era provavelmente a mulher mais encantadora do camarote, se avaliada estritamente pelas suas qualidades exteriores. Graciosa, e abençoada com traços delicados e elegantes e um exuberante
cabelo castanho-dourado, Marielle tinha tanto de viscondessa como de espia. Não que ela tivesse sido efetivamente uma espia. Ou assim pensava Kendale. O sotaque francês, há muito suprimido, ainda dava
cor à sua entoação quando falava e um certo desprendimento francês ainda marcava os seus modos.
Marielle procurara trocar algumas palavras em privado com Penthurst mal este chegara e falara com uma honestidade desarmante:
– O meu marido diz-me que lhe deu um pequeno livro que eu retirei de França e que o Penthurst tomou providências para que fosse devolvido, a homens de confiança. Diz-me ele que tudo terá corrido como planeado
e que o teor do livro foi utilizado para derrubar aquele que me ameaçou. Agradeço-lhe, agora estou segura, para sempre.
Ela tomara a mão dele, num gesto inesperado. Segurando-a nas suas duas mãos, Marielle beijara o anel de Penthurst.
Kendale, reparando, interviera e desembaraçara suavemente as mãos.
– Aqui não fazemos isso, Marielle. Ele não é um bispo católico.
Marielle não deu qualquer sinal de embaraço.
– De qualquer modo, o gesto está feito, tem a minha eterna gratidão.
– Ele limitou-se a garantir que seria feita justiça – disse Kendale.
– E que boa e bela justiça foi – respondeu ela, de olhos cintilantes de gratidão.
– O único tipo de justiça possível – disse Kendale, levando-a consigo.
O olhar que Marielle lançou sobre o ombro enquanto se afastava indiciava a sua consciência de que a justiça encerrava muitas vezes ambiguidades, mesmo que o marido não concordasse.
Lydia conversava agora com Marielle sobre algo que as animava a ambas. Sim, objetivamente, Marielle era a mais encantadora, mas ele preferia a aparência de Lydia. Esta noite, os seus olhos escuros não
olhavam fixamente como discos opacos, revelando pelo contrário uma profundidade de luzes e pensamentos. A pele clara não surgia fantasmagórica, mas sim esbelta e com toques de pequenos rubores sãos no
topo das maçãs do rosto. O vestido amarelo-claro favorecia a sua altura e, apercebeu-se ele, a sua silhueta. Os seios eram pequenas elevações perfeitas sobre a cintura alta cingida por um laço e o tecido
macio fluía em torno de uma forma feminina ágil, com longas pernas.
A sua imaginação viajou até onde o conduziam estas observações e Lydia não tardou a estar ali à sua frente, nua, guardando apenas o toucado e os collants. Penthurst gostou do que viu. Bastava-lhe observá-la
enquanto Lydia se movimentou de novo, dirigindo-se à parte da frente do camarote para conversar com as outras senhoras, as curvas suaves das suas ancas baloiçando exatamente o suficiente para serem provocadoras,
com as nádegas erguidas de um modo eroticamente belo.
Penthurst desviou o olhar, pensando que era verdadeiramente uma pena que o seu sentido de honra o obrigasse a libertar Lydia daquela dívida. Quando desviou a atenção, reparou que fora observado por dois
pares de olhos.
Um desses pares pertencia a Ambury, que o observava tão distraidamente que poderia não ter detetado os pensamentos por trás daquele longo olhar na direção de Lydia. A questão é que os homens sabiam sempre
quando outros homens estavam a pensar nesse género de coisa, e Ambury tinha-se certamente apercebido. Não expressou qualquer curiosidade ou surpresa quando devolveu a atenção à sua mulher. Ambury, mais
do que a maioria, sabia que as maquinações carnais penetravam os pensamentos dos homens a toda a hora, e frequentemente sem qualquer objetivo. Contudo, o outro par de olhos era de Southwaite, que revelara
surpresa no preciso momento em que Penthurst o apanhara a observar. Confusão também, como se nunca tivesse pensado que a irmã pudesse ser um potencial alvo de luxúria. Por outro lado, quem sabe se Southwaite
estaria apenas a perguntar o que deveria fazer, se é que deveria fazer alguma coisa, e que tipo de problemas tudo isso poderia causar. No seu mundo, era comummente aceite que um homem não seduziria a irmã,
a tia ou – Deus nos livre – a mãe de um amigo, mas isso não significa que tal nunca acontecesse.
Sentindo-se culpado pela consternação do amigo, mas não por aquilo que a causara, Penthurst encaminhou-se para junto de Lydia.
Era chegado o momento de a informar de que não exigiria o cumprimento da aposta.
Quando se aproximou, ouviu-a falar com Emma.
– Esperarei pela tia Hortense até segunda-feira, mas nem mais um dia. Estarei em Crownhill até ao final da semana, com ou sem ela.
Emma deu conta da sua presença atrás de Lydia. Esta virou-se num sobressalto. Não encontrando escapatória, recompôs-se e cumprimentou-o, por fim. Entretanto, Emma voltou-se para o outro lado e envolveu-se
numa conversa com Cassandra.
– A peça tem graça, não acha? – perguntou Lydia, optando por olhar para o palco e não para ele.
– Não lhe sei dizer. Não ouvi palavra dos que os atores disseram até agora.
– Este autor é conhecido pelo seu humor, devo dizer.
– Nesse caso, deve ter graça, sim. – Era deste tipo de futilidades que se faziam as conversas. – Não pude deixar de a ouvir dizer que pretendia viajar para o litoral na próxima semana.
Lydia tentou transformar-se numa esfinge, mas simplesmente não conseguiu criar a máscara. Corou da raiz dos cabelos até ao pescoço e lançou-lhe furtivamente um olhar preocupado. Penthurst estava prestes
a fazer um rápido e misericordioso anúncio de clemência quando ela conseguiu recompor-se.
– É minha intenção fazer essa viagem – respondeu ela, fitando-o diretamente nos olhos. – Mas não pela razão que poderá pensar. Os seus planos terão de esperar... devido a esta outra minha combinação. Lamento
imenso.
As boas intenções de Penthurst desapareceram num ápice.
Lydia não revelava qualquer sentido de obrigação, apesar de a aposta ter sido fruto da sua insistência. Em vez de simplesmente lhe pedir misericórdia, tencionava colocá-lo indefinidamente em espera. Era
certo e seguro que, se tivesse sido ela a ganhar a aposta naquele dia, e não ele, ela teria exigido as dez mil libras em barras de ouro no próprio dia. Tendo no entanto perdido, Lydia tratava o assunto
como se fosse sua prerrogativa ignorá-lo.
A oportunidade de aprender a lição foi-se.
– Não me parece, Lydia.
– Não lhe parece que terá de esperar? Não há qualquer possibilidade de escolha, isso posso assegurar-lhe.
– Não me parece que lamente. Não me parece que tenha outra obrigação. E, sim, não me parece que eu vá esperar.
– Está a chamar-me duplamente mentirosa.
– Estou a chamar-lhe bastante dissimulada. Tivesse eu sabido que haveria todos estes atrasos, teria exigido uma contrapartida maior.
Lydia olhou em volta para ver se alguém os observava. Penthurst não se deu ao trabalho de verificar também. Se algum dos amigos reparasse nesta conversa, veriam um duque a sorrir graciosamente e uma mulher
a saber defender-se bastante bem.
– Nem acredito que está abordar este assunto aqui – sibilou ela baixinho.
– Tratarei de a levar a casa depois da peça. Nessa altura poderemos falar sobre o assunto na carruagem. Quando estivermos sozinhos, poderá explicar-me essa sua nova obrigação que interfere no seu cumprimento
integral da dívida.
Lydia limitou-se a olhá-lo, de olhos arregalados e lábios semiabertos de espanto. Tinha uma expressão muito semelhante à que ostentara na biblioteca após aquele beijo. Tanto assim era que ele começou a
engendrar o modo de conseguir essa viagem sozinho com ela.
Lydia recuperou o sangue-frio.
– Não fará tal coisa. O meu irmão jamais o permitirá. Regressarei na carruagem dele, tal como vim, naturalmente. Quanto a toda esta conversa de cumprimento e contrapartidas, sei bem que está a divertir-se
à minha custa, tal como fez naquela primeira noite na casa de Mrs. Burton. Quer apenas que me rale, para que compreenda quão tola foi aquela aposta. Pode parar agora com isso. Desperdiça o seu tempo e
o meu com este joguinho.
Tudo o que Penthurst pôde fazer para se impedir de a arrastar dali para fora do camarote foi mexer-se o suficiente para os reposicionar a ambos, pelo que Lydia ficou de costas contra a parede e ele de
frente para ela. Nenhuma das suas expressões seria agora visível.
– Ora, não me dá crédito suficiente, depois de me dar tão pouco na última vez que falámos. Sou o tipo de homem que mata um amigo por um assunto sem importância, recorda-se? Insistir que pague a aposta
será muito pouco depois disso, e não é um joguinho. O seu pressuposto de que nunca pagará a dívida diz-me que está desesperadamente a precisar de alguma disciplina, Lydia. Será para mim um prazer oferecer-lha.
Em choque, toda a presunção de Lydia desapareceu. Encostou-se mais à parede. A mão enluvada cobriu a boca para disfarçar a súbita falta de ar.
Penthurst recuou.
– Ver-nos-emos em Crownhill, como inicialmente previsto.
O segundo ato já começara há muito, pelo que o grupo se sentou por fim para assistir à peça. Penthurst fez questão de se sentar atrás de Lydia. Prosseguiram as conversas em voz baixa, levando-o a inclinar-se
para a frente e fazer esta ou aquela observação a Southwaite, sentado ao lado de Lydia. Encontrava sempre uma forma de incluir Lydia na conversa. Ela tentava com todas as suas forças evitá-lo, mas em vão.
– Recebi ontem notícias da costa – disse Southwaite por cima do ombro. – O Tarrington comunica que os contrabandistas franceses estão a ficar mais ousados e a ir até Diehl. Ele quer afundar alguns dos
barcos deles para proteger o seu território e teve a decência de perguntar se tal interferiria nalgum dos nossos planos.
Os planos envolviam uma rede de sentinelas que Southwaite, Ambury e Kendale haviam ajudado a estabelecer no litoral, para que estivessem atentos a eventuais visitantes franceses indesejados que desembarcassem
com contrabando de mercadorias ou refugiados. Fora ideia de Penthurst há vários anos, mas a execução deu-se durante o seu afastamento, pelo que os outros foram incumbidos da tarefa.
– Vai enviar uma resposta através da Lydia? É por isso que ela viaja até lá?
Lydia, cuja atenção permanecia focada no palco, estremeceu ligeiramente, talvez devido à forma como a respiração de Penthurst lhe eriçava os cabelos na nuca.
Southwaite olhou para a irmã.
– Poderei fazê-lo, agora que me deu essa ideia. Quanto aos grandes planos da minha irmã, estou, como sempre, a leste.
– Seria se calhar melhor ser eu a fazê-lo. Tenho alguns assuntos a tratar na zona e estarei por lá.
A cabeça de Lydia esticou por completo quando sentiu o corpo ser sacudido de alarme.
– Além do mais – continuou Penthurst –, se a Lydia se encontrar com contrabandistas, poderá decidir tornar-se um deles, depois de ver a toca do Tarrington.
– Lamento dizer que ela já viu essa toca. Não é verdade, Lydia?
Voltando-se para o irmão, Lydia mostrou o seu perfil tranquilo.
– Toda a vida o conhecemos e à sua família. Se tivesse de repudiar todas as pessoas que na costa mantêm ligações ao contrabando, receio bem que tivesse de obliterar o meu passado e o meu presente. O mesmo
aconteceria consigo, meu caro irmão, com resultados mais devastadores do que alguma vez saberei.
Fosse o que fosse a que ela se estaria a referir, Southwaite recuou de imediato.
– O que o leva até ao litoral, Penthurst?
– Tenho de cobrar uma dívida de jogo que se tem vindo a arrastar.
– Que maçada quando não se paga uma dívida a um cavalheiro. Se o fulano tiver novamente uma desculpa, espero que nos revele o seu nome.
– Tenho confiança de que a honra levará a melhor neste caso.
– A menos que ele não tenha condições de pagar. Acontece constantemente.
– É uma questão de propriedade, não financeira, por isso estou confiante de que o que foi apostado está efetivamente disponível.
– Nesse caso, a desonra é a dobrar. Está a ouvir isto, Lydia? Pensa que lhe dou demasiados sermões sobre o jogo, mas apostar mais do que devemos, com o entusiasmo do momento, conduz muitas vezes a situações
desconfortáveis como esta. Agora o Penthurst tem de viajar para lembrar ao homem as suas obrigações, na esperança de poupar a sua reputação.
A cabeça de Lydia não se mexeu um milímetro. As tranças escuras cuidadamente penteadas no cimo da cabeça fitavam simplesmente o homem sentado atrás dela.
– Na verdade, é pior do que isso – disse Penthurst, inclinando-se para perto de Lydia, de modo a que a sua boca quase tocasse o rosto dela. – Depois de uma primeira aposta em que perdeu, duplicou o valor
da aposta e perdeu novamente.
– Não pode ser!
– Mas foi.
– Mas esse homem era tonto ou estava embriagado?
– Demasiado confiante, diria eu. Embora me pareça, não tenho a certeza, que da segunda vez passou por aquela cabeça desesperada a ideia de fazer batota.
– Não...
– Mas não aconteceu, como referi.
– Ainda assim, o melhor é regularizar tudo o mais depressa possível, para que a tentação não o domine da próxima vez.
– É isso mesmo que eu penso.
– Estará a fazer-lhe um favor. Ele pagará pelo seu pecado e quem sabe lhe perderá o gosto definitivamente. – Lançou um olhar cheio de significado na direção da irmã.
– Ou então pode perdoar a dívida e ser conhecido como um homem generoso. – A voz de Lydia fora projetada para a frente, mal se ouvindo.
Penthurst aproximou-se bem perto da sua cabeça.
– Não me pediram para perdoar a dívida. Pelo contrário, está a ser ignorada, como se nunca tivesse havido qualquer necessidade de regularização. Isso não encoraja uma atitude de generosidade. Poder-se-ia
mesmo dizer que não encoraja um comportamento adequado de um cavalheiro.
– É compreensível – comentou Southwaite. – Como é evidente, ele será cavalheiro, Lydia. Mas é admissível que haja algum melindre, a par de um cumprimento rigoroso dos elementos da aposta nas circunstâncias
em causa. Espero que esteja a aprender alguma coisa com esta conversa. As regras são as mesmas para as mulheres. Quando as mulheres se excedem, também elas têm de pagar. Caso contrário, terão de ser os
seus familiares homens a fazê-lo.
– Nunca precisei que pagasse as minhas dívidas – reagiu Lydia enfaticamente.
Southwaite suspirou, como se se tratasse apenas de uma questão de tempo.
– Tenho motivos para acreditar que a sua irmã nunca apostou algo que não pudesse pagar sozinha. Não é verdade, Lydia?
Ela olhou-o de soslaio. Se um olhar pudesse matar...
– Muito verdade – confirmou ela ao irmão. – A sua fortuna está segura comigo. Agora podemos ver a peça? Já percebi vagamente o que está a acontecer e estava aqui na esperança de não ter de tolerar o zumbido
de conversas nos meus ouvidos, como uma abelha incómoda.
Penthurst era assim o ruidoso inseto, imaginou ele. Pousou os antebraços nas costas da cadeira de Lydia e falou-lhe ao outro ouvido.
– Se já percebeu vagamente esta farsa, está em melhor posição do que eu, Lydia. Esclareça-me para eu também poder seguir o guião.
CAPÍTULO 10
Ninguém da sua família conhecia tão bem as gentes de Crownhill como Lydia. Mesmo Southwaite não beneficiava da mesma intimidade. Para eles, ele sempre fora o futuro conde, ao passo que ela fora sempre
a pequena Lydia.
Os anos que ali passara em menina, a sua proximidade com Sarah, as visitas enquanto montava a cavalo por entre aldeias e quintas – a sua familiaridade com a terra e as pessoas faziam-na sentir-se mais
bem-vinda nas humildes residências da sua propriedade do que alguma vez se sentira nas salas de estar das melhores casas do condado.
Tratando-a como se fosse uma deles, davam-lhe por vezes cobertura. Nenhum dos criados mentia verdadeiramente ao irmão quando este os questionava sobre as suas atividades, mas por vezes a sua memória era
muito curta. Agora que era uma mulher adulta, alguns chegavam mesmo a enganar a tia Hortense em sua defesa. Mais igualitários do que a classe a que Lydia pertencia, aos olhos dos criados era estranho que
ela fosse tratada como uma criança pelas suas acompanhantes e tendiam a acreditar que as atividades dela, para o bem e para o mal, eram assunto exclusivamente seu.
Assim sendo, um dia após a sua chegada a Crownhill, Lydia já tinha executado o seu plano de saída. A intenção declarada por Penthurst de se deslocar até ao litoral para cobrar aquela dívida exigira uma
estratégia mais elaborada do que a que pensara inicialmente.
Estaria mesmo decidido a segui-la até lá? E depois, o que aconteceria? Visitá-las-ia, a ela e à tia Hortense? O que poderia ele dizer ou fazer? A sua sobrinha deve-me a sua virgindade, madame, queira por
isso por favor fechar as portas da sala de estar quando sair, e vamos já tratar do assunto.
Fora uma ameaça vã, para lhe provocar ainda mais receio. Penthurst não apreciara que ela tivesse partido do princípio de que ele a libertaria da obrigação e que tivesse adivinhado o seu jogo. Fora um grande
erro atirar-lho à cara.
Penthurst insinuara que, se ela tivesse pedido o perdão da dívida, ele talvez pudesse ter aceitado. Ou então poderia tê-la deixado suplicar e implorar, para depois recusar. Um verdadeiro cavalheiro de
bom carácter já a teria entretanto libertado da obrigação sem que ela tivesse de o pedir. Lydia já sabia que o seu carácter não era, em boa verdade, aquilo que os outros pensavam, pelo que não estava muito
segura do rumo que a história seguiria se efetivamente suplicasse e implorasse, especialmente agora, depois daquela conversa no teatro. Custar-lhe-ia agora horrores pedir desculpa e implorar misericórdia,
mas supunha que teria de tentar.
Mas não de imediato. Penthurst poderia ficar chocado ao saber que tinha preocupações mais importantes do que as suas estúpidas apostas com ele. Trilby vinha em primeiro lugar. Precisava de resolver o assunto
com este outro patife, para afastar a nuvem de vergonha que ameaçava chover sobre ela.
Iria a Buxton. Não via como escapar. Contudo, uma vez lá chegada, não o ajudaria a trapacear. Convencê-lo-ia de que o seu plano não valia o risco. Levaria consigo três mil libras, para dar mais peso aos
seus argumentos, e levá-lo-ia a aceitar, por fim, receber o restante em pagamentos anuais.
Esta estratégia significava que as suas boas causas teriam de prescindir de todos os seus ganhos, possivelmente durante anos. Quem sabe para sempre. Isso causava-lhe um profundo pesar. Teria pensado que,
considerando as duas formas de gastar dinheiro, o destino lhe seria mais cândido.
Após uma dura cavalgada ao longo da estrada costeira, e uma visita à coudelaria onde o irmão criava e treinava alguns dos melhores cavalos de corrida de Inglaterra, regressou a casa no dia da chegada,
a tempo de jantar cedo com a tia.
Já não visitavam Crownhill há vários meses e a tia passara a tarde a pôr-se a par dos mexericos sobre qualquer pessoa que valesse a pena conhecer em toda a costa. Alta, roliça e intimidante para quem não
conhecia bem, o oposto físico e temperamental da pequena e suave tia Amelia, Hortense atualizava agora Lydia acerca de todas as informações que conseguira obter. O solilóquio expressivo comunicava a sua
opinião sobre o potencial escândalo de cada canto da terra.
– Foi para norte até à primavera – contou a tia num tom de insinuação teatral sobre a filha de uma família respeitável a vários quilómetros de distância. – Bem, toda a gente sabe o que isso significa.
A fedelha engravidou daquele libertino que é o primo dela, isso é que é. Pobrezinha. Ele continuará por aí a pavonear-se enquanto ela fica arruinada. Totalmente arruinada.
Lydia acenou em concordância, algo apática. Fitava o decantador de vinho. As facetas do cristal pareciam flutuar. Utilizou o lenço para limpar suavemente a testa húmida.
– Não se sente bem, Lydia? – Os olhos da tia focaram-se naquela testa e, depois, em Lydia por inteiro.
– Estou perfeitamente bem. Tenho um pouco de calor, é só.
– Não está calor aqui. Está bastante fresco. Venha aqui, menina, para que a possa ver.
Lydia levantou-se e foi até à tia, que encostou as costas da mão ao longo do seu maxilar.
– É verdade que me parece quente.
Lydia escolheu esse momento para se sentir também um pouco tonta.
– Se calhar é melhor ir lá fora apanhar ar.
– Céus, isso é que não. O ar húmido da noite dá cabo de si, se estiver com febre.
– Não me parece que esteja com...
– E que sabe disso? Já vi muito mais febres comparada consigo e parece-me provável que esteja com febre, sim. – Dirigiu-se ao lacaio. – Chame a aia. Vá, já para a cama. Enviarei instruções para que cuidem
de si.
– Se calhar um médico...
– Charlatães, todos eles. Sei mais de medicina do que eles. Se os médicos não tivessem interferido, o meu querido Jonathan ainda estaria comigo. Vá, lá para cima. Quando já estiver deitada, envie a criada
até cá abaixo para eu lhe dizer exatamente o que tem de fazer.
Sarah assomou à porta da sala de jantar. Ajudou Lydia a subir as escadas e, logo que a porta dos aposentos se fechou, Sarah começou a rir.
– Estou a ver que o brandy funcionou.
– Melhor do que eu esperava. Quem haveria de dizer que me faria corar e sentir tonturas.
– Não está habituada, é só isso. – Sarah foi buscar uma mala a um canto. – Tudo pronto para de manhã. Sentir-me-ia mais descansada se eu fosse consigo. Não é correto viajar assim sozinha.
– Tu viajas sem ninguém sempre que vens visitar a tua família. Entras na carruagem sozinha.
– Isso é diferente.
A única diferença era que a sociedade não considerava que Sarah era digna de regras que protegessem a sua integridade física ou a sua reputação.
– Tens de permanecer aqui a cuidar da Lydia que está doente. Lembra-te que começarei a recuperar de manhã e depois melhoro um pouco em cada dia. Não queremos que a Hortense chame o meu irmão. Informa-a
regularmente e promete que farás tudo o que ela disser. Ela tem medo de apanhar doenças, por isso não insistirá em ver-me.
– Tenho a certeza de conseguir mantê-la afastada durante o tempo suficiente.
– Vou viajar por mala-posta o dia inteiro, e não vou parar, por isso penso que conseguirei tratar deste assunto rapidamente. Mr. Trilby verá rapidamente os benefícios da minha proposta.
Penthurst nutria um especial apreço por Crownhill, a sede do condado dos condes de Southwaite. A casa imponente marcava a sua presença no promontório de uma colina, ladeada pelo mar. O ar salino dificultava
a manutenção, mas os seus habitantes consideravam que os ventos revigorantes e as paisagens tumultuosas valiam o esforço.
Penthurst partilhava dessa opinião. A impetuosidade do mar influenciava as atividades humanas junto à costa. O modo de funcionamento da sociedade ostentava algumas ligeiras diferenças. Um pouco menos formalismo,
mesmo entre as melhores famílias. Quem sabe tal acontecesse porque, quando uma tempestade violenta invadia a terra, todos tinham de se ajudar mutuamente e as delicadezas sociais poderiam ser colocadas
de lado por um dia.
Quando era jovem, vinha aqui por vezes durante breves períodos de férias da escola. O seu solar de campo ficava no extremo norte, quase junto à fronteira com a Escócia, demasiado longe para visitas breves.
Para compensar, Southwaite convidava-o para Crownhill. Cavalgavam juntos ao longo daquela estrada costeira, experimentando os cavalos de corrida do pai, arriscando a vida em corridas ou treinando manobras
de cavalgadura perigosas.
À medida que se aproximava da casa, recordava a primeira vez que aqui viera após a morte de seu pai. Demasiado jovem para lhe ser formalmente investido o título, tinha ainda assim passado a ser Penthurst,
superior em precedência mesmo face ao pai de Southwaite. Na escola, os modos com que tutores e colegas o tratavam mudaram imediatamente nessa circunstância. De um dia para o outro, passou a ser mais título
do que homem e adivinhou de imediato que qualquer amizade que não tivesse ainda sido testada não passaria em nenhum teste que ele pudesse inventar. Todos querem alguma coisa dos duques, mesmo que apenas
a distinção social da sua amizade.
Southwaite falara-lhe sobre isso. Primeiro fora o pai a fazê-lo, e depois o filho que ainda não era Southwaite. O conde foi compreensivo, mas considerou que era simplesmente um fardo inerente ao dever.
O filho mencionara-o durante um desses passeios a cavalo.
– Muda tudo, não é? – proferiu estas palavras enquanto traziam lentamente as montadas a pé de regresso aos estábulos da coudelaria. – Naturalmente, sempre soubemos que se tornaria duque, e isso é algo
raro, ao passo que na escola encontramos futuros condes ao virar de cada esquina. Mas agora que aconteceu? Importa-se com a forma como lhe dá uma autoridade que não pediu para ter?
– Essa autoridade faz-me lembrar a de um tutor. De repente, sou velho antes de tempo, perco gravemente toda a graça e todos esperam que renuncie a toda a diversão.
– Poderia ser pior. Poderia ser um duque real.
– Nunca tive qualquer indicação de que esses se sintam obrigados a ser bem-comportados, por isso acho que teria sido melhor, não pior.
Southwaite fez então uma careta com um rasgado sorriso sedutor, até que o rosto se sintonizou com a boca para formar uma cara bonita.
– Mas as raparigas devem gostar. Tanto quanto sei, provavelmente poderá pô-las às suas ordens. As mamãs vão pô-las em fila para sua apreciação.
Será que Southwaite teria ficado chocado se soubesse que o último duque de Penthurst aconselhara o filho a não perder tempo com essas raparigas, mas sim com as respetivas mamãs? Menos risco de confusões.
– Bem, eu cá não lhe vou prestar deferência, por isso espero que não se acostume demasiado. Se começar a fazer mais ares do que o habitual, não quero mais nada consigo.
– O que quer dizer com isso, mais ares do que o habitual?
– Teve sempre alguns. Deve vir com as expectativas, suponho.
– Não tive nada!
– Teve, sim. Na primavera passada, quando aqui esteve, até repreendeu a Lydia.
– Não a repreendi. Avisei-a de que a sua precetora ficaria zangada com ela por ter os sapatos cobertos de bosta de cavalo e que era demasiado perigoso entrar no cercado onde estavam os garanhões.
– Ela estava lá comigo, por isso a repreensão abrangeu-me a mim também, digo eu. Não vale a pena negar. Mas o que quero realçar é: quem raio pensa que é para repreender a minha irmã? A verdade é que ninguém
disse nada, pois não? Porque no futuro seria o raio de um duque.
Southwaite aproximou-se e deu-lhe uma pancadinha bem-disposta no braço.
– A isso estou habituado. Mas se piorar, não vou fazer-lhe a vénia, é só isso. Pode não estar a apreciar agora, mas pode tornar-se um hábito, essa coisa de toda a gente rastejar na sua presença.
Ninguém tinha dito nada, em parte porque pensavam que supostamente iria casar-se com a pequena Lydia dos sapatos cobertos de bosta. Southwaite não sabia que a própria Lydia não se deixara afetar por aquela
repreensão. Oh, sim, os olhos arregalaram-se-lhe e tinha contorcido o rosto a ponto de chorar, mas quando ele se voltou para ir embora, tinha visto como ela enfiara novamente um sapato num monte de bosta,
de propósito, deitando-lhe a língua de fora.
De certa forma, ela fizera o mesmo no teatro na última sexta-feira, não fizera?
Parou o cavalo à frente da casa. Apareceram de imediato dois moços de estrebaria, como se estivessem à sua espera. Levaram e conduziram o cavalo enquanto ele se apresentava à porta.
O criado recebeu o seu cartão e, em seguida, regressou para o acompanhar até à biblioteca. A tia de Lydia, Hortense, formalmente Lady Sutterly, viúva de Sir Jonathan Sutterly, estava à sua espera.
Qual figura de proa de um navio, em Lady Sutterly o peito assumia sempre a dianteira. Amplo e vasto em qualquer estilo, dominava por completo qualquer dos vestidos atuais. Uma tela discreta cobria a pele
sobre o corpete, mas aquela plataforma de feminilidade anunciava a personalidade imponente que impregnava a cabeça a que servia de suporte. De cabelo grisalho e dada a encarar o mundo pela lente de uns
óculos de ópera agarrados a uma longa varinha, a «tia Hortense» emanava a sensação de que não toleraria com benevolência qualquer tipo de tolo.
– Meu caro duque! – Lady Sutterly desenhou uma vénia baixa com uma agilidade notável. – Estamos muito honrados. Está de passagem pelo condado? Necessita de alojamento para esta noite?
Não fora essa a sua intenção, mas a oferta abria todo o tipo de possibilidades.
– É muito generoso da sua parte, se não for demasiado incómodo para o pessoal doméstico.
– Eles organizam-se perfeitamente, como acontece sempre com os criados do meu sobrinho. A maioria está na cidade com ele, como é evidente, mas o nosso conforto está suficientemente garantido. – Sentou-se
e ordenou ao lacaio que trouxesse brandy. – Lydia ficará desolada por não poder descer para o jantar. Teria certamente apreciado mais a sua conversa do que propriamente a minha.
– É uma anfitriã extremamente agradável, e célebre pela sua conversa animada, não há por isso qualquer motivo para recear que o jantar seja aborrecido.
Lady Sutterly sorriu, cheia de si, em confirmação dessa sua reputação.
– Mas então por que razão a Lady Lydia não poderá fazer-nos companhia? – perguntou.
– Ficou doente ontem. Está a recuperar, mas tem de estar na cama, naturalmente.
– Não deveria chamar-se um médico?
– Para quê? Para lhe fazer uma sangria ou administrar alguma espécie de tónico? Teve um pouco de febre, mas a criada diz-me que está ligeiramente melhor hoje. Tenho visto nela muitas vezes este tipo de
pequenas doenças. Com vários dias de repouso na cama, tudo ficará bem.
– O irmão tem conhecimento dessas doenças?
– Passam tão rapidamente que não há motivo para lhe escrever. Também é fácil interpretar mal este tipo de coisas numa descrição por carta. Não quereria que se preocupasse sem necessidade ou que abandonasse
a esposa para se deslocar até aqui. Quando cá chegasse, a Lydia já andaria por aí a cavalgar, percebendo de imediato que desperdiçara o seu tempo, já para não falar da sua dedicação de irmão.
Falava como se tudo isto fosse habitual – Lydia ficar doente, curar-se com repouso na cama e Southwaite não ser informado. Talvez fosse sua convicção de que, se Southwaite tomasse conhecimento, não deixaria
que tia e sobrinha viajassem até aqui juntas, sozinhas, o que acabaria com os seus retiros frequentes na proximidade do mar.
Conversaram mais um pouco e depois Penthurst saiu para preparar a estada do seu cavalo. Com Lydia de quarentena nos seus aposentos, o serão prometia ser muito menos interessante do que o previsto. Em vez
de a acicatar e fazê-la suar com a ideia de pagar a dívida, passá-lo-ia a ouvir as confidências de Lady Sutterly sobre os mexericos locais.
A coudelaria de Crownhill situava-se numa propriedade distante, do outro lado da estrada principal. Mas o solar também possuía estábulos, pelo que pressupôs que a sua montada fora conduzida até ali. Ao
invés de solicitar que lhe trouxessem a mala de viagem, caminhou pelos jardins e atravessou o pequeno terreno até alcançar o edifício.
Estavam a colocar feno nas cavalariças. O seu cavalo pareceu-lhe seco e satisfeito a mastigar ruidosamente a sua refeição. Erguendo a mala do local onde havia sido pousada no lado de fora da cavalariça,
voltou-se e viu um moço de estrebaria mais velho rindo-se com uma jovem de olhos escuros e sobrancelhas altas em meia-lua. Sentiram o seu olhar e calaram-se. O moço de estrebaria fez sinal com o polegar
à mulher.
– Será melhor voltares para o lado dela.
Ao sair, lembrou-se de onde já vira aquela mulher.
– Aquela é a aia de Lady Lydia, não é? – perguntou ao moço de estrebaria.
O homem estava atento a reparar arreios que tinha espalhado sobre o colo.
– É isso mesmo, senhor. A minha filha Sarah serve a senhora. Faz agora cinco ou seis anos.
– É agradável que Lady Lydia cá venha muitas vezes, assim pode ver a sua filha com frequência.
– A mãe e eu estamos gratos por isso.
– Constou-me que Lady Lydia é muito boa cavaleira.
Os dentes do homem reluziram contra a pele bronzeada pelo sol.
– Ganhou-lhe o hábito em criança. Não verá melhor cavaleira. Melhor do que muitos homens, e penso não estar a favorecê-la ao dizê-lo. Aquele é o seu cavalo, o branco. Também não é uma égua. Ela chama-lhe
Helios.
Penthurst deambulou de volta ao estábulo e percorreu as cavalariças até encontrar o Helios branco. Tinha-o batizado com o nome do deus grego que, com a sua carruagem, arrasta o Sol na sua trajetória no
céu. Helios fora criado como um cavalo de corrida, isso era evidente, e não era um animal de grande porte. Ainda assim, não parecia o género de cavalo habituado a passeios tranquilos e sossegados.
Aparentava estar limpo, relaxado e muito bem escovado. Demasiado bem. Parecia-se muito com a montada do próprio Penthurst e não apresentava sinais de ter passado horas na cavalariça.
Carregando ainda a mala, voltou a dirigir-se ao moço de estrebaria que reparava os arreios.
– O Helios foi montado hoje? Pergunto porque parece ter sido escovado há pouco tempo.
O homem não desviou a atenção do freio que estava a inspecionar.
– Poderá ter sido.
– Mas disseram-me que Lady Lydia estava doente.
– Poderá ter sido levado para ser exercitado, senhor, precisamente estando ela doente.
Poderá. Poderá ter sido. Mentalmente, via Sarah de regresso a casa e aos aposentos onde cuidava de Lydia, ou assim supunha Lady Sutterly.
Algo se estava a passar ali. Se calhar era assim que Lydia escapava à supervisão da tia. Declarava-se doente, recolhia-se aos aposentos e depois escapulia-se para sair a cavalo até onde desejasse e podia
fazer tudo o que lhe apetecesse. Ou quem sabe a possível visita de um determinado duque com quem estava em dívida a levara a recorrer ao estratagema da doença para o evitar, caso ele se decidisse efetivamente
a visitá-la.
Regressou a casa a passo decidido e entregou a mala. Depois de o criado lhe ter mostrado os seus aposentos, esperou até que este saísse. Em seguida, percorreu os pisos superiores da casa. Na ala situada
no lado oposto daquele onde fora instalado, cruzou-se com uma criada de copa que transportava uma bandeja com comida. Parando, observou como a entregava junto a uma porta, onde Sarah a recebeu das suas
mãos.
Quando o caminho ficou livre, ele próprio se apresentou nessa mesma porta. As sobrancelhas de Sarah arquearam-se de choque ao vê-lo.
– Como vai a sua senhora? – perguntou.
Sarah lambeu os lábios.
– Bastante bem. Quer dizer, está melhor.
– Mas não tão bem que possa descer para jantar.
– Não. Não tão bem quanto isso.
– E, no entanto, saiu hoje a cavalo. – Não o formulou como uma pergunta.
O rosto de Sarah enrubesceu.
– A cavalo? Eu não... quer dizer, tenho a certeza de que... – Enervada, saiu para o corredor e fechou a porta atrás dela. – Tenho de falar com a tia e informá-la sobre o estado da sobrinha, Vossa Senhoria,
se me permite.
– Ainda não. Deve ficar mais alguns minutos.
– Porquê?
Penthurst levantou o ferrolho e abriu a porta.
– Não gostaria de provocar um escândalo visitando-a estando ela sozinha.
Sarah lançou-se na direção do ferrolho da porta, mas ele já a havia transposto. Penthurst entrou rapidamente nos aposentos, esperando encontrar Lydia a ler ou a escrever cartas, em forma e desperta após
algumas horas de exercício.
Ao invés, a sala de estar estava vazia. Sentindo-se algo tolo, muito desconfiado e extremamente preocupado, virou-se para a porta que deveria conduzir aos aposentos de dormir. Sarah disparou à sua frente
e atirou-se de corpo inteiro contra a porta.
– Isto é muito irregular, senhor. Não posso permitir a violação da privacidade e modéstia da minha senhora, mesmo por alguém da sua categoria.
– E faz muito bem, Sarah. Faz jus à sua senhora.
– Obrigada, senhor.
– Vou cumprimentá-la, desejar-lhe uma rápida recuperação e depois parto.
Sarah encostou-se à porta ainda com mais força.
– Eu... quero dizer, ela está a dormir.
– A dormir tão profundamente que pôde deixá-la e sair para visitar o seu pai, é isso que quer dizer? Se sim, não creio então que esteja de todo doente. Agora afaste-se, por favor, caso contrário afasto-a
eu.
Sarah ficou primeiro de boca aberta, ao que se seguiu um esgar. Com uma expressão consternada, afastou-se da porta.
Penthurst entrou num quarto de dormir onde entrava uma luz imensa pelas janelas voltadas para o mar. Inundados de azul, verde e branco, até parecia que os aposentos estavam submersos. Na sua rápida avaliação
do espaço, reparou nalguns pormenores – a bandeja com a comida intocada sobre uma mesa, a camisa de noite dobrada sobre uma cadeira. A cama estava envolta em cortinados com uma tonalidade azul-claro.
Não foi preciso olhar para saber que Lydia não se encontrava reclinada no interior daquela pérgula azul. A sua ausência fora-lhe palpável logo que ali entrara. Sentira-o mesmo do lado de fora dos aposentos.
Sarah permanecia em pé, calada, de cabeça baixa, os dedos entrelaçados.
– Onde está ela?
Sarah não se mexeu nem proferiu palavra.
– Não lhe quero causar dificuldades a si. Se ela estiver para regressar em breve, diga-me. Se algo mais grave estiver em jogo, tem de me informar. O que quer que tenha acontecido, será sua cúmplice e o
irmão não será racional nem rápido a perdoar, se alguma coisa lhe acontecer. Será responsabilizada, mesmo em caso de acidente.
Sarah juntou as mãos, formando uma esfera, e ergueu-as até à boca. Com um longo suspiro, o seu corpo vergou.
– Receio bem que não estará de volta em breve. Não por vários dias.
– E, contudo, o cavalo regressou.
– Montou-o, isso é verdade. Com um dos moços de estrebaria, que o trouxe de volta. Viajou para Diehl esta manhã.
Penthurst ponderou se deveria continuar a interrogá-la. Lydia deve ter combinado um encontro em Diehl. Um amigo poderia ter-se encontrado com ela nesta localidade. Ou um amante. Esta última possibilidade
insinuou-se nos seus pensamentos, gerando mais desilusão do que teria esperado. A verdade é que, se ela mantinha encontros com um amante, mentira quanto à aposta, de forma descarada.
Não, não era essa a causa do aperto que sentia no peito. Era a simples ideia de um amante. Isso e os possíveis indícios de que Lydia mantinha uma vida plena e desconhecida que a ocupava, colocando-a ainda
mais à margem do mundo a que pertencia.
– Foi encontrar-se com um amigo em Diehl? – perguntou.
– Amigo? – Sarah ficou desconcertada com a palavra, arregalando depois os olhos em choque. – Oh! Não. A minha senhora não... não é o que deve estar a pensar. Não permitirei que ninguém sugira tal coisa.
Foi lá para alugar uma mala-posta, é tudo.
– Onde pretende ela ir?
Sarah abanou a cabeça.
– Para norte. Não lhe posso dizer mais. O pouco que sei foi-me confidenciado em segredo e eu seria uma má criada se revelasse o que a senhora me diz.
– Já alguma vez ela fez isto antes? Fingir-se doente para se escapulir por vários dias?
– Não por vários dias. Mas poderá ter acontecido ocasionalmente por um dia. Quando se sente terrivelmente entediada com a tia ou quando quer simplesmente cavalgar pela costa acima sem qualquer objetivo
especial.
Penthurst olhou pela janela enquanto ponderou toda aquela história. Formavam-se nuvens no horizonte e a fina faixa de mar visível lá fora parecia mais cinzenta do que azul.
Não estava a gostar nada daquilo. Bem fundo, no seu âmago, os seus instintos diziam-lhe que Lydia estava prestes a arranjar sarilhos. O facto de ela nunca antes ter feito algo assim só aumentava a enervante
preocupação.
Conseguiria provavelmente intimidar Sarah para que lhe contasse tudo o que sabia, mas imaginou que, se tivesse engendrado algo em grande para esta viagem, Lydia teria escondido a maior parte, mesmo da
sua aia. Poderia, no entanto, haver outra forma de se certificar de que não estava a caminho de alguma espécie de catástrofe.
– Admiro a sua discrição – disse ele, caminhando para a porta. – Recomendo que prossiga como a sua senhora lhe indicou. Faremos votos de que ela regresse efetivamente daqui a alguns dias, como é sua intenção.
Dirigiu-se novamente aos estábulos. O pai de Sarah já não se encontrava sentado ao sol, mas os rapazes que colocavam feno fresco ainda estavam a trabalhar nas cavalariças. Encostou-se à entrada de uma
delas, observando. Os jovens rapazes começaram a trabalhar mais arduamente, acelerando as suas ações a cada segundo que passava. Por fim, um deles parou e limpou a testa.
– Posso ser-lhe útil, Vossa Senhoria?
– Talvez. Poderei precisar que me prepare o meu cavalo em breve.
– Podemos fazê-lo de imediato, se desejar.
– O meu desejo dependerá de saber se algum dos dois acompanhou a Lydia até Diehl esta manhã.
O outro jovem congelou com um punhado de feno nos braços. Depois, atirou-o ao chão e começou a espalhá-lo com a forquilha.
– Se a irmã do conde necessitar de um acompanhante, nós acompanhamos. Não perguntamos porquê nem para onde.
– Claro que não. Mas também não ficam cegos nem surdos. Estou curioso por saber se conseguiram perceber para onde pretendia ela seguir a partir dali.
Os dois trocaram olhares significativos.
– Talvez – disse o primeiro. – Mas sem certezas.
– Insisto em que me digam, com ou sem certezas.
Hesitaram o tempo suficiente para que Penthurst se questionasse se a lealdade para com Lydia venceria esta contenda.
– Aqui o Andrew acompanhou-a e trouxe o Helios de volta – disse o primeiro. – Conta-lhe, Andrew. É amigo do conde, ele próprio um duque, e ninguém te pode responsabilizar por responder a pessoas da sua
categoria.
Andrew corou enquanto continuava a trabalhar com a forquilha.
– Carreguei a sua mala e ouvi-a falar com o fulano da estalagem da mala-posta sobre como chegar a Buxton. Estava a planear tratar-se com as águas, disse ela.
– E não achou que era uma viagem demasiado longa para ela? Ela podia tratar-se com águas aqui mais perto, em Royal Tunbridge Wells.
– Não me cabe a mim pensar seja o que for, Vossa Senhoria. Ela não teria apreciado, tanto quanto Vossa Senhoria, suponho eu.
Pelas suas expressões de alívio disfarçado, Penthurst soube no entanto que eles pensavam, sim. Ambos pensavam que a aventura atual de Lydia era fora do comum e causa de preocupação.
– Acho que, afinal, vou querer que me preparem o cavalo. De imediato.
Dito isto, regressou à casa para se desculpar junto de Lady Sutterly pela sua súbita mudança de planos.
CAPÍTULO 11
–Se não nos concentrarmos, vamos demorar dias a aperfeiçoar isto – queixou-se Lydia.
– Está constantemente a distrair-me com os seus argumentos. Farei tudo tão bem quanto o necessário, posso garantir-lhe. – Trilby falava com uma confiança excessiva enquanto dava novamente as cartas.
As últimas horas haviam permitido que Lydia confirmasse várias coisas. A primeira era que convencer Mr. Trilby a abandonar o seu plano atual careceria de melhores artes de persuasão do que conseguira convocar
até ao momento. Ele não demonstrara qualquer interesse na sua argumentação cuidadosamente articulada sobre como devia ficar agora com o que tinha para lhe oferecer e como elaborariam um plano para o pagamento
do restante.
A segunda coisa que se tornou clara foi que Algernon Trilby não era propriamente um Peter Lippincott. Apesar da sua habilidade com os passes de mágica, não sabia praticamente nada do que era preciso para
vigarizar no jogo. Isso significava que Lydia tinha de o ensinar, sem que ela própria lhe parecesse experiente no assunto. Ao mesmo tempo, Lydia precisava que ele chegasse à conclusão de que esta parceria
não era uma boa ideia.
– Não é minha intenção contestar – disse ela, experimentando uma nova abordagem. – Sinto apenas que está a tentar apressar tudo com este plano, quando a desonestidade não está no seu carácter. Recordo-lhe
apenas que há uma alternativa.
– A alternativa que propõe demoraria uma eternidade. Vá, escolha uma carta. – Apontou para o leque de cartas sobre a mesa que os separava.
Ali ao lado, quatro matronas de Newcastle jogavam whist. Nesta altura do ano, Buxton não era uma cidade termal muito animada e mesmo os clientes que aqui vinham não eram do género que encontraríamos em
Bath ou mesmo em Royal Tunbridge Wells. Pelo que se dava a ouvir, estas quatro mulheres eram as esposas abastadas de novos industriais.
Aquela sala de cartas do Crescent era disponibilizada aos clientes que ali se hospedavam. Uma vez que Lydia o tinha feito, sob o nome Mrs. Howell, dispunha assim de um espaço algo público para se encontrar
com Mr. Trilby. Ele alojara-se numa das hospedarias de Buxton.
Lydia escolheu uma carta. Trilby empilhou as restantes e depois dividiu o baralho, oferecendo a carta superior central como aquela que Lydia deveria escolher. Logo que ela o fez, ele revelou-se novamente
desastrado.
Uma das mulheres riu-se da conversa da sua companheira. Trilby corou. Não conseguia deixar de ir olhando para a mesa de whist.
– Se receia que elas percebam o que estamos a fazer, garanto-lhe que não – sussurrou Lydia.
– Não é isso, Lady Lydia.
Mas claro que era.
– Mr. Trilby, só poderá fazer isto se exibir uma confiança total. Se parecer culpado ou nervoso, por pouco que seja, todos irão desconfiar. Tem de treinar a sua atitude, ainda mais do que o manuseamento
das cartas. E lembro-lhe que deverá tratar-me exclusivamente por Mrs. Howell.
Trilby atirou as cartas, cruzou os braços e fitou a mesa.
– Estou cansado, tanto do jogo como das suas críticas.
– Não tenho qualquer prazer em criticar, senhor. Contudo, é necessário se quiser levar a cabo o seu plano. Não nasceu para isto, como já lhe disse. Rogo-lhe que analise bem os potenciais efeitos das suas
expectativas, para que ambos possamos abandonar esta cidade com o nosso amor-próprio e a nossa honra intactos.
Trilby brincava com as cartas, observando os dedos pensativamente.
– Tem razão. O meu objetivo não deveria ser uma compensação imediata, mas sim amor-próprio e honra. Tenho vindo a pensar nisso desde que nos encontrámos no parque e dei-me conta de que errei ao exigir
esta vil opção quando existem outras muito melhores.
– Eu sabia que, se pensasse seriamente no assunto, veria que os riscos deste esquema são demasiado elevados.
– É verdade que são e perfeitamente desnecessários. Fui um tolo por não abordar o assunto de forma diferente.
– Eu estava confiante de que mudaria de opinião. Até trouxe comigo a quantia que já tenho disponível, para poder entregar-lhe imediatamente.
Ele olhava para a mesa de whist. Duas das mulheres retribuíram o olhar.
– Certamente não aqui.
– Claro que não, mas enquanto ainda estivermos em Buxton.
– Amanhã, então. Encontramo-nos ao ar livre, no caminho atrás da nascente de St. Anne. Pode ser às dez horas? – Fez menção de se levantar.
– Não quer discutir o resto? Os pagamentos futuros? A entrega do manuscrito? Gostaria de vê-lo antes de lhe entregar uma tão grande quantidade de dinheiro.
Ele fez uma vénia em jeito de despedida.
– Estou certo de que conseguiremos arquitetar uma forma que seja justa, Lady Lydia. – Tomou a mão de Lydia e beijou-a. Várias sobrancelhas se ergueram na mesa de whist. – Explicarei amanhã a minha nova
ideia sobre este assunto. Prevejo que tudo se resolverá em benefício mútuo.
*
Mesmo os grandes investimentos não conseguem conferir elegância a uma cidade. Era o que Penthurst ia pensando enquanto atravessava Buxton montado no seu cavalo. Conhecida como uma cidade de comerciantes,
recebera recentemente o patrocínio do duque de Devonshire que, ao construir o Crescent e alguns outros desenvolvimentos, tentara fazer de Buxton uma outra Bath. Simplesmente, não ficava junto ao mar, mas
sim lá em cima, nos contrafortes dos Peaks, longe de Londres e sem qualquer espécie de Mr. Nash que se tivesse empenhado em conceder-lhe as benesses sociais que caracterizavam Bath. Por conseguinte, qualquer
pessoa minimamente importante já visitara Bath, mas a sua maioria nunca experimentara as águas de Buxton.
Parou em frente ao Crescent, tão claramente uma imitação do hotel de Bath que chegava a ser embaraçoso. Ao contrário da maioria dessas outras pessoas importantes, conhecia bastante bem esta cidade. A sede
de condado do seu título situava-se a ocidente dali. Ao perseguir Lydia, quase regressara a casa.
Meia hora depois de chegar, já havia providenciado aposentos no Crescent, entregou o cavalo para ser tratado, bebeu café na sala de cartas e espreitou o salão principal. Decidindo que o sono poderia esperar,
saiu do edifício para tentar saber algo acerca do paradeiro de Lady Lydia.
Duvidava de que ela tivesse usado o seu nome verdadeiro, fosse qual fosse o objetivo desta aventura. Parado à porta do hotel para calçar as luvas, apercebeu-se de que o local mais provável para ela se
hospedar era o mesmo local que ele escolhera. Ponderou como poderia perguntar por ela sem parecer um libertino à caça de uma mulher que houvesse atraído a sua atenção.
Enquanto procurava escolher um estratagema entre os vários que lhe ocorriam, reparou numa carruagem a abrandar do outro lado da estrada, próximo da nascente. Um homem saiu e contornou a torre que ladeava
a nascente. Parecia-lhe familiar. Seria Trilby?
Penthurst avançou uns dez metros no caminho para ver melhor. O homem da carruagem caminhava a passos largos por uma pequena rampa acima, rumo a uma zona do parque atravessada por trilhos. Uma mulher esperava-o
nesse local. Uma mulher de pele clara e olhos escuros e profundos.
– É pontual, ao contrário da maioria das mulheres. Gosto disso – disse Trilby, aproximando-se. – Só abona a seu favor.
Lydia desejaria responder com malícia. Dificilmente precisava que Mr. Trilby aprovasse o seu carácter. Suprimiu o impulso, para que pudessem finalmente despachar o assunto.
Lydia deu pancadinhas ao de leve na bolsa, a maior que possuía. Mesmo com os seus ganhos convertidos nas notas bancárias de maior valor que conseguiu arranjar, estava bastante abaulada.
– Espero que tenha trazido o manuscrito, para que pelo menos eu possa ver se está completo. Tenho duas mil e quinhentas aqui. Conseguirei entregar mais quinhentas até ao final do ano. E, depois, quinhentas
por ano, até que a dívida esteja saldada.
Trilby olhou para a bolsa. Retirou o chapéu e penteou o cabelo ralo com os dedos. Olhou na direção da nascente.
– Não me parece.
O coração de Lydia afundou. Outra vez, não.
– Meu senhor, a sua inconstância é tal que nunca chegaremos a qualquer acordo. Recuso-me a continuar com esta ambiguidade. Não pode certamente esperar ganhar um valor superior ao que referiu em primeiro
lugar.
– Repensei tudo desde a última vez que nos encontrámos em Londres e concluí que devo reconhecer nesta oportunidade aquilo que ela realmente representa.
Isto não soava bem, pensou Lydia. Não, não soava nada bem.
Trilby voltou-se para ela e sorriu.
– Lady Lydia, não quero o que tem dentro dessa bolsa. Ao invés, gostaria de melhorar a minha posição no mundo. De que me servem milhares de libras, se continuar a ser o simples primo de um homem cuja irmã
se casou com um baronete? Não seria muito melhor ser um homem casado com a irmã de um conde?
O seu sorriso tornou-se demasiado familiar. O olhar assumiu um foco penetrante. Uma sensação de alarme começou a gelá-la antes mesmo de ter conseguido processar toda a situação, mas conseguiu abrir caminho
por entre a confusão, dado a última frase ter sido tão bizarra.
– Não pode estar a falar a sério.
– Este tipo de casamentos faz-se a toda a hora. Um casamento com benefícios mútuos. Dificilmente divulgaria publicamente um diário escandaloso que questiona a reputação da minha mulher e, através dela,
a minha também. Pensei que aderiria a esta ideia brilhante, já que garante a minha discrição de uma forma que o dinheiro jamais conseguiria.
Era horrível, não brilhante.
Lydia mal conseguia respirar. Na sua mente, procurava desesperadamente motivos para que tal plano nunca pudesse funcionar.
– Ficará muito mais pobre dessa forma.
– Do ponto de vista monetário, talvez, mas seria rico de outras formas a que qualquer homem com o meu estatuto social atribui extremo valor.
– O meu irmão jamais o aprovará.
– É maior de idade e não necessita da permissão de um tutor. Contudo, para garantir que ele não interfere, proponho que façamos já uma excursão até à Escócia, onde não haverá interdições a atrasar o procedimento.
Partiremos de imediato.
Lydia olhou para a carruagem. Não teria precisado de uma para este encontro. «De imediato» queria dizer agora, já?
Trilby abandonara ontem a sua companhia com este plano bem delineado. Quem sabe não teria sido essa mesma a sua intenção quando se haviam encontrado no parque. A parceria de batoteiros fora um estratagema
para a levar até Buxton, a mais de meio caminho da Escócia. Tinha sido tola ao subestimá-lo.
Mas era o que tinha feito. Gravemente. Ainda assim, nada neste homem sugerira que poderia ser assim tão astuto.
Lydia recuou.
– Está demasiado impaciente. Regressemos a Londres e façamos uma cerimónia como deve ser. Seria cruel para a minha família se eu fugisse com um amante.
Trilby aproximou-se mais. Tomou a mão de Lydia e ergueu-a até aos lábios. Ela observava, aterrada. Era como se o tempo tivesse abrandado.
– Minha querida Lydia: não se importa com a familiaridade, pois não? Uma vez que em breve nos casaremos, não é inconveniente. É uma mulher inteligente, isso é certo. Contudo, não deve pressupor que sou
um palerma que não consegue ver os seus esquemas à transparência. Se regressarmos a Londres, encontrará formas de me evitar e adiar, tal como fez com o dinheiro. Não, o nosso destino é a fronteira.
Trilby recuou. Lydia tentou libertar a mão, em vão. O sorriso de Trilby transformou-se numa linha fina e firme de contrariedade. Tomou o braço de Lydia e os seus estúpidos sapatos começaram a escorregar
na erva húmida, recusando-se a ficar firmemente presos ao chão enquanto ele a puxava na direção da carruagem.
Meu Deus do céu, ele queria mesmo ir já! Uma vez na Escócia, a escolha dela seria simples. Casar-se com Algernon Trilby ou a ruína total.
Diabos me levem se alguma vez me casarei com este homem ou se viajarei com ele naquela carruagem por cem metros que sejam.
Atirando a sua bolsa recheada contra a cabeça e o braço de Trilby, Lydia gritou por ajuda. Mas Trilby revelou-se mais forte do que pareceria, a julgar pela sua aparência, pelo que daí a momentos ele conseguiria
arrastá-la para o interior da carruagem.
Por entre a sua visão desfocada, Lydia via pessoas deslocando-se na sua direção. Duas mulheres e um homem haviam sido atraídos pelos seus gritos. Nesse momento, uma presença escura irrompeu por entre essas
pessoas, rodeou-a e, repentinamente, a prisão em que Trilby a mantinha desapareceu. Sentiu o chão em contacto com a anca, enquanto uma confusão de movimento e grunhidos rodopiava à sua volta.
De repente, fez-se silêncio absoluto. Um silêncio sinistro. Lydia pestanejou energicamente e olhou para a carruagem. Por alguma razão, a cabeça de Trilby surgia encostada perto do cimo da porta da carruagem,
com o queixo profundamente enfiado no colarinho. O seu corpo pendia como uma boneca de trapos. À frente dele, segurando-o com uma mão pela frente do casaco, encontrava-se um homem alto de cabelo escuro.
– Tem até ao anoitecer para escolher a sua arma – comandou uma voz grave e acutilante. – Encontramo-nos no campo de honra amanhã de manhã. Caso contrário, será conhecido como o cobarde que na verdade é.
Os olhos de Trilby saltavam-lhe do rosto com o choque. Caiu depois prostrado no chão quando as mãos o libertaram.
Lentamente, o mundo começara a endireitar-se. Lydia sentia a humidade sob a anca e percebeu os olhares das mulheres e do homem. A bolsa ficara entreaberta e começavam a revelar-se as arestas de algumas
notas. Enfiou-as novamente na bolsa e agarrou-se a ela para que o dinheiro não começasse a cair e a voar.
Aquela presença escura pairava sobre si. Olhou para as botas a escassos centímetros da sua anca. Depois pelas longas pernas acima. Mais acima, cada vez mais acima, o seu estômago revolvia-se crescentemente
a cada centímetro. Sabia quem era. Apercebeu-se de estar a reconhecer a voz. Nunca a ouvira falar assim, mas...
Inspirou profundamente e inclinou a cabeça para trás. Lá em cima, um rosto belo e severo olhava para ela. O duque de Penthurst viera em seu socorro e não parecia nem um pouco satisfeito com isso.
Penthurst debruçou-se, levantou-a e colocou-a em pé. Tomou o seu braço e empurrou-a para a rua e em direção ao Crescent, não demonstrando muito mais paciência do que Trilby.
– Deveria agradecer-lhe, mas...
– Nem mais uma palavra até termos privacidade, Lydia. Nem uma só. Se falar, deito-a sobre os meus joelhos e dou-lhe umas boas palmadas aqui mesmo e darei àquelas pessoas mais assunto sobre o que escrever
à família quanto ao que se passou hoje.
Nos aposentos de Penthurst, no Crescent, havia uma cadeira. Lydia sentou-se, com afetação, o vestido espalhando erva pela alcatifa.
Penthurst lavou as mãos e avaliou os pequenos danos da luta com Trilby. Desferira mais socos do que o necessário. O grito de Lydia obscurecera o seu espírito e subira-lhe o sangue à cabeça, pelo que Trilby
levou o pior tratamento possível.
Sensatamente, Lydia obedecera e não proferira uma só palavra. Pelo contrário, recolhera-se na sua máscara de esfinge. E Penthurst não estava com disposição para aquilo naquele momento.
– Está ferida? – perguntou ele enquanto vestia novamente o casaco.
Lydia mexeu subtilmente o corpo de um lado para o outro, verificando.
– O braço talvez fique dorido. E tenho a mão magoada.
Penthurst tomou a mão de Lydia na sua. O punho de Trilby deixara-lhe marcas nas costas da mão.
– Vai dizer-me o que aconteceu ali?
– Disse-me para não falar. E eu decidi que, de qualquer modo, prefiro não o fazer. – Lydia ergueu o olhar. – Não está mesmo a pensar lutar com ele, ou está?
– Claro que sim. Nenhum cavalheiro pode permitir um tal comportamento perante uma senhora. Independentemente dos motivos para ele estar aqui, ou dos seus motivos para se encontrar com ele, ele transpôs
um limite que não pode ser violado.
Penthurst esperou que Lydia respondesse às perguntas inevitáveis. O que estava ele aqui a fazer? Porque se encontrou com ele aqui?
– Eu não devia estar aqui – disse ela.
– Também me parece que não.
– Quero dizer aqui, nesta cadeira, no seu... Eu tenho o meu próprio quarto e é para lá que devo ir.
– Lydia, acabou de protagonizar um espectáculo que será falado por montes e vales. Quase foi sequestrada. Não é possível evitar o escândalo que está prestes a afogá-la. Estar aqui comigo é a menor das
suas preocupações.
Lydia tentou manter o seu característico rosto impassível, mas não conseguiu. Ao invés, sentiu-se próxima do choro. Levantou-se, mas oscilou um pouco.
– Ainda assim, tenho de ir.
Suavemente, Penthurst pressionou os ombros de Lydia para que se sentasse de novo. O choque do episódio ocorrido lá fora começava a dar sinais. Ele já o tinha visto antes, a forma como o corpo começa a
reagir apenas muito tempo depois de o perigo ter sido afastado.
– Vai ficar aqui sentada mais um pouco.
Lydia obedeceu, rabugenta. Ele tinha muito para lhe dizer e ela tinha de responder a muitas perguntas, mas não era este o momento.
Penthurst retirou um frasco da mala, verteu um dedo de brandy para um copo e entregou-o a Lydia.
– Beba isto.
Lydia afastou-o.
– Não poderia.
– Quer dizer-me que nunca antes bebeu bebidas alcoólicas? Porque será que duvido disso?
Lydia estendeu a mão para pegar no copo.
– Talvez consiga apenas um gole.
Conseguiu, e muito bem. E depois fechou os olhos. Penthurst imaginou o líquido âmbar a escorregar pela garganta de Lydia abaixo, aquecendo tudo o que tocasse, acalmando-a, mas também instigando um choque
de alerta para toda a sua condição física. Uma pequena quantidade centra a mente e melhora o raciocínio. Pela sua expressão, era isso mesmo que parecia estar a fazer-lhe a ela.
Quando Lydia abriu novamente os olhos, parecia mais ela própria.
– Criei uma grande embrulhada, não foi?
Penthurst questionava-se se Lydia compreenderia exatamente a dimensão da embrulhada em que se transformaria.
– Antes numa embrulhada do que vítima daquele homem. Embora pudéssemos dizer que manter uma amizade com ele foi o que começou a embrulhada.
– Daria um bom vigário. É tão bom a dar sermões.
– Não estou a dar sermões. Quando o fizer, sabê-lo-á.
Lydia levantou-se novamente.
– Vou-me então, antes que se sinta tentado a mostrá-lo.
Ele não a impediu desta vez.
Voltaremos a falar daqui a umas horas, Lydia. Quando estiver recuperada. Já que vou lutar com aquele homem em duelo, gostaria de conhecer o motivo.
Lydia estava estendida na cama a tentar perceber a dimensão da catástrofe que fora aquele dia. Teria havido alguma forma de travar Trilby mesmo antes de gritar por ajuda? Teria ela conseguido convencê-lo
a desistir da sua chocante ideia de casamento? E se tivesse viajado até à Escócia com ele? No caminho, será que o bom senso prevaleceria?
Tinha sérias dúvidas. A ousadia do plano dele atordoara-a, mas não podia negar também que era brilhante. Porque não haveria de explorar o domínio que tinha sobre ela e exigir-lhe casamento? Poderia jantar
com duques e melhorar a sua posição num ápice. Mesmo que os rendimentos de Lydia não estivessem à altura das suas ambições monetárias, sem dúvida conseguir-se-ia insinuar em esquemas de investimento e
outros planos financeiros, tirando partido do rendimento que efetivamente ela tivesse disponível.
Estava capaz de bater em si própria por não ter vislumbrado o perigo de ele começar a aperceber-se das possibilidades. Tinha passado tanto tempo solteira, sem qualquer interesse no casamento, e sem quaisquer
pretendentes, que perdera de vista o facto de ser um bom partido, e para homens de origens de longe melhores do que Trilby.
O comportamento de Trilby fora imperdoável. Bruto. O que não abonava grandemente a favor da felicidade de qualquer mulher com quem se casasse. Ainda assim, não podia permitir que Penthurst lutasse com
ele em duelo. Só há pouco recuperara da última vez que Penthurst matara um homem e desta vez a culpa seria dela.
Uma pancadinha na porta interrompeu o seu jorro de pensamentos. Abriu-a e deparou-se com uma criada, que a informava de que sua senhoria solicitava que se juntasse a ele na sala de cartas.
Sacudiu os restos de erva da saia e calçou sapatos secos. Olhou de relance o seu reflexo no espelho. Tudo o que viu foram uns olhos escuros a perscrutá-la e cabelo escuro aglomerado de forma algo aleatória
no cimo da cabeça. Penteou algumas madeixas soltas e desceu.
A sala estava repleta de hóspedes do Crescent. Claro que sim. Para quê tratar-se com águas termais quando uma grande peça de teatro se havia desenrolado mesmo à frente do hotel? As conversas foram-se interrompendo
aos poucos quando Lydia assomou à sala. Ninguém lhe fixou o olhar, mas todos a olharam de soslaio.
Penthurst estava sentado numa pequena cadeira de braços encostada a uma parede, com o corpo longo reclinado e uma perna estendida. Parecia ler alguma coisa. Quando deu pela presença de Lydia, levantou-se
e cumprimentou-a formalmente.
Lydia ocupou a cadeira à sua frente, sentindo-se muito exposta.
– Poderíamos termo-nos encontrado no jardim. Ou dado um passeio pela cidade.
– Isso nunca seria adequado. Terá de superar isto mais cedo ou mais tarde e mais vale começar desde já. – Retomou a posição confortável e continuou a folhear o papel que tinha na mão. – Deve ler isto.
Lydia pegou no papel. Estava escrito por Trilby.
Meu Senhor Duque,
Não haverá escolha de armas nem testemunhas. Não haverá duelo. Para muita pena minha, compreendeu erroneamente os acontecimentos de hoje. Procurarei explicar.
A senhora é minha noiva. Aceitou casar-se comigo e encontrámo-nos aqui para depois fugirmos para a Escócia. Quando nos encontrámos esta manhã para esse fim, ela declarou as suas dúvidas. Tudo isto apesar
do dinheiro que coloquei de lado para preparar estas núpcias, incluindo o arrendamento de uma residência em Londres, a aquisição de guarda-roupa adequado à minha nova posição social e o aluguer da carruagem
que me trouxe até Buxton e que, por sua vez, nos transportaria a ambos para a Escócia e de regresso a Londres.
Quanto ao meu comportamento, quando reagi a esta inesperada inconstância da parte da senhora, não tenho outra desculpa senão o choque de um homem expectante de uma vida longa e feliz que se depara, pelo
contrário, com o perecimento do seu sonho mais acarinhado.
Apresentarei as minhas desculpas à senhora, caso tenha a amabilidade de combinar um encontro. Estou certo de que ela compreenderá que, nestas circunstâncias, não terei qualquer outra opção senão intentar
contra ela um processo por violação de contrato, mas isso é assunto para abordar noutra ocasião.
Um seu criado,
Algernon Trilby
Lydia dobrou a carta e pousou-a na mesa.
– Nunca aceitei casar-me com este homem.
– Acho estranho que ele tenha uma explicação para tudo, enquanto a Lydia não tem nenhuma.
– Eu juro que nunca...
– Não tem de me jurar nada. Não sou juiz nem júri.
Mas ela tinha mesmo de jurar. Não queria que ele pensasse que tinha sido suficientemente estúpida a ponto de aceitar casar-se com Trilby, e depois tão insensível que o pudesse abandonar no último minuto.
– Não tive com ele qualquer relação que pudesse sequer ser erroneamente interpretada como uma relação de potencial casamento. Ele não é meu noivo.
Penthurst anuiu.
– E sabemos que não é seu amante. Afinal de contas, a sua inocência pertence-me a mim.
Lydia nem queria acreditar que ela pudesse referir aquele assunto na sala de cartas do Crescent. E com tanta calma.
– Ainda assim, ele está aqui e a Lydia também. – Bateu com os dedos na carta. – Ficará satisfeita com um pedido de desculpas? Insistirei no duelo, se preferir. Ele recusará, mas o mundo conhecê-lo-á como
um cobarde. Isso tem mais significado para nomes mais ilustres do que o dele, infelizmente. Parece-me que está disposto a viver com isso.
– É melhor do que estar morto, não é?
Penthurst reconheceu que sim com um pequeno aceno de cabeça.
– Vai contar-me o que a trouxe a Buxton?
Lydia imaginou a sua reação se lhe contasse. Teria de explicar a chantagem e o romance que escrevera...
– Não o farei. Mas digo-lhe o seguinte: não fiz nada de errado. Nada mesmo. Posso ter sido tola e cega, mas nunca pensei que ele chegaria ao ponto de alegar uma mentira destas, como a existência de um
noivado entre nós. Ele não tem qualquer legitimidade para o fazer e está a aproveitar-se da coincidência de ambos estarmos em Buxton ao mesmo tempo. – Lydia quase tropeçou na pequenina inverdade sobre
a coincidência.
– Poderá ter sabido da sua vinda aqui e tê-la seguido.
Lydia nada disse e rezou pela aceitação de tal suposição.
– Esta manhã, a sua bolsa pareceu-me muito cheia, Lydia. – Inclinou-se na sua direção, debruçando-se sobre a mesa, e prendeu o olhar de Lydia com o seu. – Veio até Buxton para jogar? Viajou até tão longe
de casa só para que não chegue aos ouvidos do seu irmão?
Quem haveria de ter imaginado que o seu temível hábito de jogo a salvaria desta forma? Várias respostas inteligentes alinharam-se na sua cabeça, todas elas admirando as suas notáveis capacidades de perceção.
Não teve, no entanto, coragem para proferir nenhuma delas. Ele salvara-a de uma situação impossível e merecia melhor do que isso.
– Mantenho apenas o que já disse. Não fiz nada de errado.
– Pelo menos ainda não. – Levantou-se e ofereceu-lhe a mão.
– Partilhemos o almoço que nos oferecem aqui. Em seguida escreverei a Trilby e combinarei o seu pedido de desculpas.
Lydia permitiu que Penthurst a acompanhasse enquanto saíam da sala de cartas. Quando passaram o limiar da porta, ouviram-se cadeiras a arrastar no chão, quando os outros hóspedes também optaram por ir
jantar.
– Você intriga-me, Penthurst. Permita-me agora uma pergunta. O que está aqui a fazer?
Penthurst manteve a palma da mão de Lydia sobre a sua mão, como se encimassem um grupo formal a caminho da sala de jantar. Efetivamente, formara-se uma longa fila atrás deles.
– Segui-a. Primeiro até Crownhill e depois até aqui. Sabia que eu o faria. Praticamente lho prometi. – Olhou em volta, para os ornamentos do Crescent enquanto desciam as escadas em desfile. – Escolheu
bem este local para nós. O Devonshire garantiu-me que era um local muito elegante. Teria sido mais do que confortável e, não fossem os infelizes acontecimentos desta manhã, teria sido também perfeitamente
discreto.
Não era a primeira vez naquele dia que Lydia se sentia como se tivesse perdido metade da conversa.
– Para nós? Discreto?
– Para quando eu lhe cobrasse a dívida, Lydia. É esse o verdadeiro motivo por que me conduziu até aqui, não é?
Aquele sarcasmo não prometia uma refeição agradável. Penthurst tratou de garantir que ela comia, apesar de ter perdido completamente o apetite. Lydia sentou-se novamente à sua frente, sentindo os olhos
dos hóspedes pousados em ambos, ouvindo alguns sussurros que incluíam o nome de Penthurst.
Lydia pigarreou.
– Quanto à dívida...
– Dívidas. Plural. Recorda-se?
– Seria uma mulher muito estranha se não me recordasse. Todavia, é verdade que disse que poderia ponderar o seu perdão, se eu o solicitasse.
– Falei no tempo passado. Poderia ter considerado perdoar as dívidas se o tivesse solicitado.
– Pensei que, aos seus olhos, esse pedido revelaria falta de carácter: promover tal aposta e depois pedir para ser libertada se perdesse.
– Seria para mim falta de honestidade, lá isso é verdade.
– Contudo, como cavalheiro que é, não pode estar a pensar em efetivamente... levar a história até ao fim.
– Porque não?
– Porque há regras para estas coisas. Sobre inocentes e... tudo isso.
– Não estou bem a ver que existam regras para a nossa situação. E não é que a Lydia tenha demonstrado qualquer tendência para seguir regras. Não vejo porque haverei de ser obrigado a cumprir regras, se
a Lydia não o faz.
– Vai fazer-me implorar, não é?? Humilhar-me. Pôr-me de joelhos e suplicar.
– Essa ideia atrai-me muito.
– É um patife se exigir tal coisa para me libertar da dívida.
– Oh, ainda estamos a falar de perdoar a dívida?
– É claro. Por que outro motivo haveria eu de implorar e suplicar?
Desenhou-se lentamente um vago sorriso.
– É verdade que é inocente, não é?
– Evidentemente.
– Anseio pela ocasião de a esclarecer.
– Está a provocar-me e não tem graça nenhuma.
– Há uma semana, estava a provocá-la. Até há poucos dias, até. Eu diria no entanto que, neste momento, o pagamento da sua dívida se tornou inevitável.
– Só se for mesmo um patife.
– Não serei eu a forçar esta questão, Lydia. – Fez um gesto vago na direção dos ocupantes da sala. – Estes ainda não perceberam quem a Lydia é. Mas é apenas uma questão de tempo. Imagine que é uma das
suas tias e que uma amiga de mexericos a visita com uma história deliciosa sobre um determinado duque, um novo-rico, uma senhora e pancadaria nas ruas de Buxton. Veja na sua cabeça tudo o que eles viram
e faça as perguntas que eles estão a fazer agora.
Lydia tentou colocar-se acima de toda a situação e imaginar a cena. Todos ficariam a saber que tinha viajado sozinha, era forçoso admitir. Poderiam saber que se hospedara no Crescent como Mrs. Howell.
Partiriam do pressuposto de que tinha vindo para se encontrar com Trilby ou Penthurst. Concluiriam que o cavalheiro lutara com alguma ideia de que ambos tinham direitos sobre ela. Teriam ouvido o desafio
de Penthurst e também dos momentos que ela passara com ele. Espalhar-se-ia a notícia de que ambos se haviam hospedado no mesmo hotel.
Quando analisou os acontecimentos sob vários pontos de vista e enumerou os mexericos que provavelmente se espalhariam, o seu coração começou a bater cada vez mais violentamente. Com cada batimento, uma
palavra agigantava-se na sua mente. Escândalo.
Lydia fixou os olhos em Penthurst. Este retribuiu o olhar, não sem candura, mas com uma expressão resignada que indicava que já tinha engendrado aquilo que, na cabeça dela, começava agora a desenhar-se.
Por debaixo das suas pálpebras descidas, Lydia olhou para a direita e para os hóspedes que a haviam seguido desde a sala de cartas. Seria imaginação sua ou todos estavam a olhar para ela e para o duque?
O sussurro das conversas percorria toda a sala. Penthurst. Sim, é ele mesmo. E a mulher? Uma senhora. Reconhece-a? Não consigo situá-la, mas os homens trataram-na por Lady Lydia...
– O que faço agora? – sussurrou em desespero.
– As escolhas são limitadas.
– Não é justo. Não fiz nada de mal.
– O motivo desta viagem justifica legitimamente os seus atos? Consegue apresentar uma desculpa plausível que possa servir de base a uma refutação? Se for esse o caso, poderá tentar.
A verdadeira razão dificilmente a salvaria. Bem pelo contrário.
– Deduzo que a resposta seja não – disse ele secamente.
– Não consigo suportar a ideia de que isto afetará o meu irmão e a Emma. Conseguiria sobreviver a mim mesma, se fosse eu a única envolvida.
– Não, não conseguiria. Acredite em mim. Bem, a solução é evidente, penso que concordará.
Nada era evidente. Quanto mais pensava na tempestade que se formava no horizonte, maior o nevoeiro que dominava os seus pensamentos. Se calhar, na qualidade de duque, ele poderia decretar simplesmente
que ela deveria ser poupada?
– O meu nome está associado ao seu nesta história. Haverá presunções – disse ele, observando-a atentamente. – Casar-nos-emos de imediato.
Com o choque, tudo ficou repentinamente claro na sua cabeça.
– Mas eu não quero casar-me consigo.
– Infelicidade a sua. Mas eu casar-me-ei consigo, Lydia. Diabos me levem se serei conhecido com um homem que tem um caso com a irmã solteira do seu melhor amigo e que não assume um comportamento honrado.
CAPÍTULO 12
Quem olhasse para Lydia, pensaria que estava com a corda da forca ao pescoço. Olhos arregalados. Lábios ligeiramente entreabertos. A pele destituída de cor. Choque. Choque e horror.
Quanto a Penthurst, se não se sentisse tão insultado, teria achado a situação cómica. Serviu o vinho e empurrou o copo na direção de Lydia.
– Beba um pouco e olhe para mim com adoração e não como uma mulher despojada de toda a esperança. Dê-lhes espectáculo, Lydia. Ajudará na história.
Lydia bebeu um trago de vinho. Conseguiu encontrar alguma compostura atrás da sua máscara de esfinge. Raios, Penthurst detestava quando ela se punha assim.
– Que história?
– A Lydia e eu desenvolvemos uma afeição mútua e decidimos fugir para nos casarmos. Chegámos aqui em separado, para depois viajarmos juntos até à Escócia. Trilby, um pretendente rejeitado, seguiu-a e tentou
interferir. Enlouquecido pela ideia de a perder para sempre...
– Não é preciso ser melodramático.
– De a perder para sempre, tentou aquele sequestro esta manhã, que eu impedi. Depois de garantir que a Lydia estava recuperada, de manhã prosseguimos a viagem que havíamos planeado e casámo-nos logo que
atravessámos a fronteira.
– Soa quase plausível.
– É muito plausível e cobre todos os factos públicos. Eu devia escrever romances, o enredo está mesmo impecável.
– Poderia eventualmente alterá-lo um pouco? A parte do casamento. Eu preferia se a história se desenrolasse de outra forma. Por exemplo, após o choque de quase ter sido sequestrada, senti que tinha os
nervos tão afetados que decidi que seria injusto deixar que se casasse com uma mulher tão doente.
– Espero que não me esteja a dizer que acha a ideia de se casar comigo tão revoltante que preferiria viver uma vida inteira a fingir-se inválida. – Não escapou à sua atenção o modo como ela se havia atribuído
uma atitude muito nobre, deixando-o a ele na posição do patife que seduziu a irmã do amigo.
– Talvez não tivesse de fingir para sempre. Talvez eu pudesse ir para os Alpes durante um ano e recuperar a saúde. Isso talvez funcionasse, não acha?
Lydia cintilava com uma esperança renovada. Ele nunca teria imaginado que se veria na situação de se sacrificar num casamento por obrigação para salvaguardar uma mulher da ruína, muito menos a irmã de
Southwaite. Contudo, o que decididamente nunca imaginara era que, caso tal acontecesse por alguma reviravolta perversa do destino, a mulher em questão se revelasse tão renitente.
– Compreende certamente que estou a referir-me a um casamento legal, não compreende? – perguntou ele. – Passaria a ser duquesa.
– Claro que compreendo. Um elo legal e inquebrável. Quanto a ser duquesa, toda a gente saberá quem sou. Toda a gente. Serei vigiada pelo mundo inteiro. Até a realidade que conheci até agora, comparativamente,
parecerá uma liberdade folgada. Além disso, sejamos honestos, também não vai querer este matrimónio. Teremos um daqueles horrendos casamentos por dever e de uma mútua e tensa paciência. De breves acasalamentos
em camas escuras e uma vida familiar cheia de rituais. Se isso o satisfizesse, já teria casado há anos. Merece mais do que isso. Merece mesmo.
Lydia falava com sinceridade. E estava ser honesta. Estava talvez a ser mais honesta do que alguma vez fora com ele, intuiu Penthurst. A sua afirmação no final impressionara-o. Em meia dúzia de frases,
ficou a conhecê-la muito melhor.
Penthurst ponderou se haveria outra saída para a situação de Lydia. Não lhe ocorreu nenhuma.
– É generoso da sua parte preocupar-se com o que me satisfaz, Lydia, mas não se rale. Nasci para o dever e agora a Lydia faz parte de tudo isso. Finja que a pedi em casamento e que aceitou, e fiquemo-nos
por aí.
A esfinge olhou-o nos olhos durante um bom minuto antes de falar.
– Eu nunca teria aceitado. Jamais. Não há nada na vida de que tenha mais certeza. Assassinou um homem que era seu amigo, e meu também. O meu irmão pode tê-lo perdoado, mas eu não. – Lydia levantou-se.
– Estou subitamente muito afetada pelos acontecimentos de hoje. Agora vou retirar-me e descansar, para me preparar para o nosso encontro com Mr. Trilby.
Lydia deixou que a criada do hotel lhe arranjasse o cabelo, e dispensou-a em seguida. Lavou-se, e a sensação da água, embora quente, foi um choque. Na sala das cartas tinha sido invadida por um calafrio.
Quase imediatamente, a nuvem tentara engoli-la novamente.
A única forma de atirar com aquele ano para trás das costas era não lhe mexer mais. E, no entanto, Penthurst tinha agitado novamente as águas, com a conversa sobre casamento. Agora, velhas emoções agrediam
o coração de Lydia e colocavam em risco a sua compostura. Lavou-se, e lavou-se repetidamente, porque, quando terminasse, nada mais haveria a fazer.
Uma leve pancada na porta assustou-a. Lydia abriu uma fresta, esperando encontrar a criada. Ao invés, era Penthurst quem ali estava.
Não pediu para entrar. Bem pelo contrário, agarrou no bordo da porta e limitou-se a afastá-la e a entrar no quarto. Permaneceu assim nessa posição, mas ela recuou como se se tivesse mexido.
– Não terminámos a nossa conversa e não me parece que possa ser adiada como bem lhe entende – disse ele.
A sua audácia ao entrar ali surpreendera-a. Sentiu-se percorrida por um calor agradável quando a sua mente despertou, alerta para o perigo e para as conclusões associadas à presença de Penthurst no seu
quarto.
– Eu já dei a conversa por terminada. Garanto-lhe que não apreciará a continuação, se a exigir.
– Mas eu exijo-a. Censura-me por aquele duelo e faz-me um juízo severo, já o deixou bem claro por duas vezes. Contudo, já passaram quase dois anos. Outros houve que reconsideraram os seus juízos e, nas
circunstâncias em que nos encontramos, chegou a hora de pôr de lado a sua raiva.
– São as circunstâncias que o exigem ou é uma exigência sua? – Lydia ouviu a própria voz a aumentar de volume. Sentiu o coração a explodir. – Matou-o. Por causa de uma estúpida questiúncula de honra que
poderia provavelmente ter sido ignorada. – Lydia sentia os olhos a arder, mas recusava-se a limpá-los, recusava-se a admitir que a sua cólera a havia levado às lágrimas. – Por isso, não posso fingir que
me pediu em casamento e que eu aceitei. Eu nunca, jamais teria tolerado qualquer conversa sobre casar-me consigo, mesmo que, de algum modo, conseguisse ignorar o facto de que nunca gostei de si, assumiu
sempre comigo modos de superioridade e altivez e falou sempre comigo como se fosse uma criança que precisa de ser ensinada. Que a minha escolha agora seja entre a ruína e casar-me consigo é uma piada cruel.
A expressão de Penthurst endureceu sob a investida furiosa de Lydia.
– Como sempre acontece quando se fala daquele dia, estou em desvantagem, Lydia. Muito lhe poderia dizer, mas a Lydia quererá ouvir muito pouco. Também não estou disposto a justificar-me, porque o que está
feito, está feito. Digo apenas isto e espero que ouça. Em primeiro lugar, nunca foi minha intenção matá-lo. Segundo, não se tratou de uma estúpida questiúncula de honra. E, em terceiro lugar, apesar de
pensarmos que o conhecíamos tão bem e há tão longa data, a verdade é que não o conhecíamos de todo.
– Agora também vai tentar destruir a sua memória?
– Pode recordar o Lakewood como bem entender, mas não permitirei que sacrifique a sua vida e o seu futuro por uma lealdade indevida para com ele. Poderá nunca ter recebido um pedido de casamento meu no
decurso normal das nossas vidas, mas terá de aceitar aquele que lhe faço agora.
– Não aceitarei.
Penthurst aproximou-se de Lydia e olhou-a do alto. Lydia quase morreu de susto.
– Permita-me que seja igualmente franco, Lydia. Não tem escolha. Será que terei de cobrar o pagamento da dívida para que consiga ver a justeza de tudo isto? Uma vez que eu a tenha seduzido, não haverá
outro seguimento honroso de todo o caso que não seja o casamento.
– Não se atreveria.
– Não? – Caminhou rapidamente para a porta. – Encontrar-nos-emos com Trilby hoje às cinco da tarde. E partimos para a Escócia de manhã.
Lydia foi invadida por ondas de pânico. Olhou longos momentos para a porta quando o duque saiu, pensando se deveria tentar arrastar uma cadeira pesada para a bloquear.
Forçando-se a recuperar alguma compostura, analisou longamente a sua situação. Penthurst referiu que o escândalo seria inevitável, mas com algumas manobras elaboradas, será que conseguiria evitá-lo, e
também este casamento por obrigação que lhe propunha?
Temia que, contra a imagem de Trilby tentando forçá-la a entrar naquela carruagem, surgiria apenas nada mais, nada menos do que a plena verdade. E uma vez que a plena verdade implicava explicar aquele
estúpido romance, e a chantagem, e o facto de ter aceitado encontrar-se com Trilby para vigarizar os visitantes de Buxton nas cartas, considerou que nem mesmo a verdade a colocaria em melhor posição.
Era tudo culpa de Penthurst. Se ele não a tivesse seguido até ali... Lydia suspirou. Se ele não a tivesse seguido até ali, ela teria estado à mercê de Trilby logo que pusesse um pé naquela carruagem. Quem
sabe o que ele poderia ter feito para garantir que profeririam os votos matrimoniais na Escócia?
Não podia igualmente ignorar o facto de que Penthurst a seguira apenas porque ela fora a sua casa e o forçara a dar seguimento àquela aposta.
Lydia queria mesmo muito responsabilizar alguém pela sua situação impossível, contudo, fosse qual fosse a perspetiva, o dedo acusador apontava sempre diretamente para ela. Mesmo aquele romance que tinha
sido a causa de tudo – o que lhe passara pela cabeça?
Por mais que tentasse, não conseguia recriar o seu estado de espírito naqueles meses em que o escrevera. Entre o momento presente e aquela altura, um período sombrio engolira-lhe as memórias e toda a noção
do tempo. Estava convicta de que uma boa parte de si mesma se refugiara numa espécie de sono acordado, já que viver verdadeiramente lhe causava demasiada dor.
E agora tinha pela frente o casamento com um homem que assassinara todos os seus sonhos.
Não conseguia evitar pensar que tinha desafiado o demónio ao exigir a concretização da aposta e agora os poderes mais obscuros riam-se na cara dela.
Muito pouco mais calma, e nada pacificada, voltou a sua atenção para o horrível Mr. Trilby, que ainda tinha na sua posse o maldito manuscrito. Talvez ela pudesse tirar partido do seu comportamento aviltante
para exigir um acordo definitivo naquela tarde, para que não lhe complicasse a vida ainda mais do que fizera até àquele momento.
Algernon Trilby teve o desplante de se apresentar ofendido quando se encontraram às cinco da tarde perto da nascente. Lydia tinha simplesmente vontade de lhe bater, mas, pelo contrário, cumprimentou-o
formalmente. Penthurst não o fez. Efetivamente, o duque conseguiu ignorá-lo por completo, apesar de estar mesmo à sua frente.
Nada mais se disse, até que Trilby tomou a palavra.
– As minhas mais sinceras desculpas pelo meu comportamento esta manhã. Foi imperdoável.
– Ao dizer «imperdoável», admite que o senhor não tinha qualquer motivo legítimo para acreditar que eu viajaria consigo para a Escócia ou para qualquer outro lugar? Não posso permitir que mantenha as suas
afirmações de existência de um noivado, quanto mais deixar que sejam ventiladas pela corte – disse Lydia. – Se o seu pedido de desculpas não incluir essa admissão, não as aceitarei e pode travar o duelo
ou retirar-se como um cobarde.
A expressão de Trilby contorceu-se e retorceu-se. Parecia um homem a tomar, contrariado, o tónico com o pior paladar possível.
– Uma vez que agora o exige, acrescentarei que poderei ter entendido incorretamente as suas intenções.
– E nunca houve qualquer noivado. Diga-o claramente, senhor, para que não possa mais tarde afirmar que nunca sequer disse tal coisa.
Trilby fulminou Lydia com os olhos e fitou depois o duque, que seria a melhor testemunha possível.
– Declaro, sem qualquer reserva, que nunca houve noivado – disse ele entre dentes cerrados.
– Nesse caso, penso que estamos tratados – declarou Penthurst.
– Se me permite, gostaria de dar uma palavrinha a Mr. Trilby a sós, dois minutos. Não demorará mais do que isso, asseguro-lhe.
Penthurst olhou-a com curiosidade, mas encolheu os ombros e afastou-se. Lydia caminhou na direção de Mr. Trilby e continuou a andar, na expectativa de que o patife a acompanhasse. Lado a lado, conduziu
Trilby para longe do alcance do ouvido do duque.
– O senhor criou uma bela trapalhada. Se não fosse a minha disponibilidade para ouvir o seu pedido de desculpas, o duque estaria neste momento a limpar as pistolas de duelo.
A boca de Trilby afilou-se.
– Foi um desafio excessivo, tendo em conta as circunstâncias.
– Ele encontrou-o duas vezes com as mãos em cima de mim. Além disso, é um desprezível chantagista. A sua persistente avareza levou-o a engendrar planos para vigarizar nas cartas e depois forçar-me a casar-me
consigo. Só de pensar na lista de agravos que tenho contra si faz-me pensar que não deveria ter intercedido por si junto do duque, e pelo contrário deixá-lo enfrentar a sua pior faceta.
O rosto de Trilby contorceu-se num feio sorriso escarninho.
– Pode ter um duque a protegê-la, mas eu ainda tenho o diário. Foi por isso que aceitou o meu pedido de desculpas, não finjamos que foi outro o motivo.
– Que simpatia a sua ao referir esse assunto. Já dei por terminados os problemas que esse documento me causou. Trouxe comigo duas mil e quinhentas libras, como lhe disse antes. Acondicionei-as e entreguei-as
ao gerente do Crescent. Coloquei o seu nome no envelope e ele entregar-lho-á quando o solicitar. Sugiro que o aceite e que o considere suficiente por muito, muito tempo.
Era o plano com que tinha vindo até Buxton logo de início. Depois de tudo por que tinha passado, e por que ainda iria passar, era bom que ele aceitasse.
Trilby caminhou uma boa dúzia de passos antes de anuir.
– Terá de ser suficiente. Por agora. Mas só receberá o diário quando eu receber o resto.
– E eu espero provas de que ainda tem o manuscrito na sua posse antes de lhe dar mais um xelim que seja.
Lydia estacou. Haviam-se afastado cerca de cinquenta metros de Penthurst. Lydia olhou para trás, vendo como os observava, pronto para intervir se necessário.
– Não temos mais nada a tratar. Não conto vê-lo, nem receber qualquer comunicação sua, durante pelo menos um ano, se não mais.
Olharam-se de frente.
– Muito boa tarde, Lady Lydia. – Trilby fez uma vénia e continuou a avançar na direção que haviam tomado anteriormente.
Lydia deu meia-volta e encaminhou-se para junto de Penthurst.
Ele ali estava, parado, por entre árvores quase desnudadas de folhas, uma forma alta e escura cujos olhos se concentravam nela de modo quase invasivo. Surgia como algo completamente separado da cidade,
o cabelo fustigado pela brisa e uma pose que dominava toda a paisagem.
Lydia olhou bem para ele. Observou-o objetivamente como não fazia há anos. Era muito bem-parecido. Sempre fora, mas ela havia sido relutante em lhe atribuir tal qualidade, já que desejava antipatizar com
tudo nele. Admitia agora que a natureza lhe havia favorecido enormemente o rosto e a forma. Se fosse qualquer outra mulher, ficaria provavelmente sem ar só de pensar em tornar-se sua esposa, independentemente
da sua posição social. Uma pequena e viva sensação de calor começou a bailar-lhe no peito quando o olhar de Penthurst se fixou no dela.
Que vergonhosa a capacidade que este homem tinha de provocar nela tais sensações, com os seus olhos e os seus beijos. Lydia desviou o olhar para pôr fim a um estímulo tão escandaloso.
– Penso que poderemos considerar que Mr. Trilby é assunto passado – disse ele. – Depois de nos casarmos, ele não ousará afirmar que sequer alguma vez a conheceu.
Lydia olhou subitamente para o perfil de Penthurst enquanto regressavam ao Crescent. Aquele calor irritante bailava novamente no seu interior. De repente, os seus problemas com Mr. Trilby começaram a desvanecer-se
perante a enormidade de se tornar a esposa de Penthurst. Quem sabe poderia pelo menos adiá-lo.
– É mesmo necessário viajarmos até à Escócia? – perguntou.
– O meu enredo não funciona sem isso.
Provavelmente não. Simplesmente, o seu enredo exigia um capítulo seguinte muito precipitado.
Penthurst tomou-lhe o braço e desviou-se do caminho. Puxou-a para trás de uma árvore que lhes proporcionava alguma privacidade.
– Não me parece que a sua fúria devido ao duelo seja a razão da sua resistência. Penso também que tem receio da consumação. Não há motivo para isso.
Receio? Era uma mulher do mundo e este tipo de mulher não perdia os sentidos perante a ideia de um leito matrimonial. Cassandra receara Ambury? Improvável, considerando as pequenas piadas que haviam surgido
sobre o assunto desde então. É claro, Cassandra fora realmente uma mulher do mundo, ao passo que ela, Lydia, apenas aspirava a sê-lo. E sentia o estômago às voltas sempre que pensava muito naquela parte
do enredo.
– Não tenho receio, mas poderei sentir náuseas.
Penthurst riu-se serenamente. Repousou o indicador sobre os lábios dela. O que se revelou um pequeno toque perturbador, quente e excitante.
– Acho que mais nenhuma mulher me teria dito tal coisa.
– Achei que devia avisá-lo. Pareceu-me a atitude mais correta.
– Nesse caso, eu também deverei ser suficientemente correto para a avisar também.
– De quê?
Penthurst não respondeu com palavras. Ao invés, ergueu o rosto de Lydia e debruçou-se para a beijar. Não foi um beijo muito agressivo. Pelo contrário, foi um beijo doce, mais sedutor do que extasiante.
Lydia imaginou que ele seria um beijador com muita experiência. A dela, por seu lado, era muito reduzida, pelo que se permitiu a curiosidade de a sentir. Nas circunstâncias, com a inevitabilidade do casamento,
era-lhe conveniente para decidir quanto tudo aquilo poderia ser repugnante.
A intimidade afetou-a mais do que o contacto dos lábios propriamente dito, embora tenha começado a sentir uma pulsação interessante nos seus, o que os tornou mais sensíveis. Além do mais, ele não se limitou
a pressionar os lábios contra os dela. Prolongou o contacto com pequenas mordidelas e movimentos suaves que encorajaram os lábios de Lydia a reagir de uma forma que permitiria concluir que ela devolveu
o beijo.
Um calor agradável fluiu pelo seu interior. Arabescos de deleite desenharam-se por todo o seu corpo. Despertou nela um desejo de que as sensações continuassem, como uma nova voz a sussurrar e a apelar
à sua vontade. Não se opôs quando Penthurst lhe envolveu a cabeça com as mãos e a beijou novamente, com mais firmeza. Sentiu nele algo que lhe apelava ao instinto e que a impulsionava a libertar-se de
quaisquer bloqueios. Aquela conversa versava decididamente sobre prazeres carnais.
Lydia compreendeu então o que ele encerrava em si como homem e ela como mulher, e como tinha tão pouco que ver com qualquer interação humana que tivesse conhecido anteriormente, nem mesmo no seu amor por
Lakewood. Mesmo quando sucumbira às suas fantasias mais emocionais de menina, nunca adivinhara o potencial de arrebatamento que sentira agora no limiar do seu beijo.
Penthurst baixou o olhar para Lydia, afagando os seus lábios com o polegar.
– Ainda acha que lhe provocarei náuseas?
Lydia sentiu-se invadir por estranhos tremores.
– É possível que não.
– Garantirei também que não sentirá qualquer receio. – Tomou-lhe a mão e conduziu-a novamente pelo caminho e em direção ao Crescent.
*
Nessa noite, ainda com a memória dos lábios acanhados de Lydia a ocupar-lhe o espírito, Penthurst sentou-se a escrever uma carta. Southwaite deveria ser informado do que estava prestes a vir a público
e porquê. No mínimo, assegurar-lhe-ia que Lydia estava em segurança, para o caso de ter tido conhecimento do seu desaparecimento de Crownhill.
Southwaite,
Caso não saiba já que a Lydia saiu de Crownhill, ficará a sabê-lo ao ler estas minhas palavras. Ela está comigo e vamos a caminho da Escócia para nos casarmos. Explicarei tudo quando regressarmos. Idealmente,
um tal acontecimento deveria ser celebrado com a presença da família, mas esse adiamento não teria sido sensato. A Lydia foi comprometida e receio bem que chegarão aos seus ouvidos as histórias, antes
mesmo de abrir esta missiva. Como muito bem sabe, não importa se esses falatórios são mentiras ou exageros.
Preferiria manter a privacidade até anunciarmos este acontecimento quando regressarmos a Londres. Se considerar que é necessária uma divulgação mais célere, faça-o. Penso que as núpcias se tornarão facto
consumado até terça-feira da próxima semana.
Penthurst
Tinha esperança de que a referência a mentiras e exageros conduzisse Southwaite a ponderar a possibilidade, pelo menos, de que o amigo não seduzira impiedosamente a sua irmã e que estava agora apenas a
fazer o que era correto por ter falhado um qualquer plano de discrição.
Depois de selar a carta, ponderou se deveria escrever a mais alguém. À tia? Tentou imaginar a sua reação ao ouvir a notícia. Quer lhe chegasse por mexericos ou por correio, ficaria desconcertada. Pousou
a pena no suporte. Depois do casamento talvez lhe pegasse de novo para se dirigir à tia.
Saiu dos seus aposentos e do Crescent e decidiu-se por um passeio pelas ruas silenciosas da cidade. As botas ecoavam os seus ritmos contra as pedras. Caminhava decidido e utilizava este exercício como
substituto de algumas horas na quinta de Mr. Gosden. Insistira para que Lydia se conformasse com a inevitabilidade deste casamento. Era chegada a hora de também ele fazer o mesmo.
Quando Lydia explodiu de fúria e culpabilização à sua frente naquele dia, Penthurst sentira-se extremamente tentado a explicar-lhe aquele duelo, e mais especificamente que Lakewood era muito pior do que
Trilby, o homem que acabara de ser despachado. Fora, no entanto, mais sensato conter-se. Lydia não teria acreditado em nada que ele dissesse sobre o assunto. Se calhar nunca viria a acreditar.
Penthurst não tinha qualquer motivo para se sentir culpado nem responsável pela atual situação de Lydia e, contudo, era assim que se sentia. Além do mais, independentemente do que a conduzira ao seu comportamento
imprudente e que a trouxera até Buxton, e pressupunha que fora algo importante, ela estaria mais segura com ele.
Percorreu o caminho de regresso até ao Crescent. Lydia viajaria voluntariamente até à Escócia, não porque ele ameaçara seduzi-la para garantir que concordaria. Lydia não era pateta. Sabia reconhecer uma
situação em que a sociedade detinha o futuro de uma mulher nas suas mãos.
Isso significava que se casaria em breve com uma mulher que nutria por ele uma intensa aversão, apesar de não ser imune aos seus beijos.
Merece mais do que isso. Ela também. Mas teriam de tirar o melhor partido possível daquilo que, pelo contrário, ambos estavam a receber.
Estava quase a chegar ao Crescent quando uma carruagem entrou na rua e acelerou. Penthurst recolheu-se numa ruela para a deixar passar. Quando tal aconteceu, a luz da lanterna da carruagem varreu o flanco
do veículo. A imagem que revelou captou a sua atenção, mas só decifrou o que vira depois de já ter passado e quando a escuridão já tomara conta da rua.
Parecia a carruagem de Trilby, a que utilizara para tentar sequestrar Lydia. E fora certamente o perfil de Trilby que vira na janela. Mas mais interessante fora um outro perfil, nada mais do que uma silhueta,
que mal se via, no seu interior. De uma mulher.
Penthurst continuou o seu percurso até ao Crescent. Frustrado no seu plano de se casar com Lydia, aparentemente Algernon Trilby não havia perdido tempo no que toca a encontrar outra companhia feminina.
Parecia que a vida de Trilby não sofreria qualquer perturbação com os acontecimentos daquele dia, nem sequer um incómodo moderado. Dificilmente Lydia apreciaria a ironia.
CAPÍTULO 13
A simples viagem até à fronteira tornava inevitável o casamento, mesmo que acontecimentos prévios não o exigissem. Ao viajar sozinha com Penthurst, o seu destino estava selado. Uma longa noite a caminhar
para trás e para a frente, a pensar, tinha-lhe permitido chegar à conclusão de que o seu destino já estava determinado. Ao amanhecer, já o aceitara, mesmo que, sob a calma, ainda se insurgisse.
Penthurst não demonstrou qualquer ressentimento relacionado com as acusações que Lydia proferira quando se deixara dominar pelas emoções. Tratou-a gentilmente, sob todos os pontos de vista. Inicialmente,
nem sequer viajou com ela na carruagem que alugou, acompanhando-a montado a cavalo. Só no segundo dia, ao partirem da estalagem de mala-posta onde havia providenciado aposentos, Penthurst a seguiu quando
ela entrou na carruagem.
Lydia ocupava o tempo a ver a paisagem que corria pela janela. Penthurst trouxera um livro e ofereceu-lho para que ela o lesse. O tempo passou praticamente sem conversarem. Ela fingia que não ia ficando
cada vez mais nervosa a cada quilómetro percorrido.
– Escrevi ao seu irmão – disse ele ao final do dia. Parariam para passar outra noite numa estalagem antes de atravessarem a fronteira com a Escócia. – Achei que deveria ser informado.
– O que escreveu?
– Que nos casaríamos na Escócia. Que a sua situação havia sido comprometida. Foi uma carta muito breve. Antes de o vermos, podemos decidir se queremos que ele acredite no meu enredo ou se deseja explicar-lhe
tudo.
– Ficará provavelmente aliviado por saber que estou consigo – disse ela. – Poderia ter sido um pretendente muito menos atrativo, do ponto de vista dele. Um pirata, ou um ladrão.
– Um contrabandista, ou um aventureiro sem dinheiro.
– Um jogador ou o terceiro filho falhado de um cavalheiro da pequena nobreza.
– Um Trilby.
– Penso que, se tivesse sido um Trilby, o meu irmão perguntar-se-ia se eu não teria enlouquecido de vez.
– Mas não o faria se tivesse sido um pirata, um chantagista ou um jogador?
– O ímpeto e o perigo de um pirata ou de um contrabandista podem dar a volta à cabeça de uma mulher. Mas um Trilby... a explicação teria de ser muito boa. Como é evidente, um duque é a escolha perfeita.
Qualquer mulher quer casar-se com um duque. Duvido que seja necessário eu explicar seja o que for. A Emma, contudo, não acreditará no seu enredo. Será ela a fazer-me perguntas.
– Espero que não reprove.
– É uma pessoa muito prática. Não reprovará. Ficará apenas curiosa e cética. – Lydia conseguia já imaginar o olhar desconcertantemente direto de Emma focado nela e ouvia-a comentar como era estranho que
Lydia tivesse mudado de opinião sobre o duque.
Certamente Cassandra também ficaria desconfiada.
Ou não. Afinal de contas, Penthurst era um duque. Um duque. O mais provável era que ninguém questionasse como qualquer mulher teria conseguido casar-se com um, fossem quais fossem as circunstâncias. Como
acontece com a realeza, qualquer ideia de amor soa quase infantil quando se fala no casamento de um duque.
Isso significava que ninguém se sentiria constrangido por ela nem questionaria a sua felicidade. Ninguém se importaria se ela fora forçada a casar-se por circunstâncias que, na realidade, não tivera a
possibilidade de controlar. Até o duque – ele soube desde sempre que era um dos melhores partidos do reino. Revelava-se incapaz de sentir qualquer tipo de compaixão pelo apuro em que ela se encontrava,
quanto mais algum laivo de culpa. Se alguém, neste caso, deveria ser visto como vítima do destino, Penthurst achava que provavelmente seria ele.
Quanto mais pensava nisso, mais vexada se sentia.
– Na carta para o meu irmão, fez alguma referência ao contrato de casamento?
– Pressupus que falaríamos sobre isso quando regressássemos a Londres.
– Gostaria de abordar algumas partes desde já, se não se importar.
– E se eu me importar?
– Terei de aceitar a sua recusa, embora não compreenda por que motivo haveria de se opor. Refiro-me a uma parte muito pequena. Tão pequena que mal valerá a tinta que se gastará a inscrevê-la no velino.
– Fazemos um acordo. Aceitarei as suas negociações sobre essa parte muito pequena do contrato se aceitar a minha presença a seu lado nesse banco.
Lydia avaliou o modo como a sua anca ocupava praticamente todo o banco.
– Não acha que vai ficar apertado e desconfortável deste lado?
– De todo.
– Bem, suponho que sim, por instantes, se assim prefere.
Penthurst mudou de lugar. Ficaram bastante desconfortáveis, ou pelo menos assim pareceu a Lydia. De lado, tinham os corpos encostados um ao outro.
– Ora, de que pequena parte gostaria de falar?
– No que toca ao contrato, gostaria de falar sobre o dinheiro para as minhas despesas.
Penthurst fez uma careta.
– Oh, céus. Acha o assunto desagradável. Pensei que, já que nos casaremos em breve, seria perfeitamente aceitável. Nunca vamos poder falar de dinheiro? Nunca? É bom saber isso.
– Suponho que teremos de o fazer ocasionalmente, como marido e mulher. Só não estou habituado a fazê-lo com mulheres, é só isso.
– A sério? Nunca fala de dinheiro com mulheres? Que interessante. Pede aos seus advogados que o façam? Com as outras mulheres que sustenta, por exemplo. A sua tia. As suas amantes.
Lydia recebeu um olhar longo e firme pelo que acabara de dizer.
– Tem razão, Lydia. Se estivéssemos em Londres, eu estaria a falar sobre tudo isto com o seu irmão, sem qualquer hesitação. Se quiser saber quanto receberá para as suas despesas antes de proferir os votos,
é justo.
Era, na verdade, uma atitude simpática. E isso fez com que, de repente, deixasse de ser tão divertido.
– Então, qual é a sua expectativa? – perguntou ele.
Lydia fez alguns cálculos rápidos. Quinhentos por ano para Trilby, diabos levem o homem. Umas centenas para as suas causas privadas. Uma centena ou duas para as despesas propriamente ditas e afins.
– Gostaria de receber mil por ano, pelo menos. O meu irmão terá melhor conhecimento sobre o que recebem as duquesas e poderá pedir mais, mas eu quero saber se serão pelo menos mil.
– Concordo com esse valor, se se comprometer a não utilizar mais do que cem por mês nas mesas de jogo.
– Só cem? Mais valia dizer que não posso voltar a jogar.
– Poderia, mas optei por não o fazer, a menos que se revele necessário.
– É por isto que o casamento é uma situação onerosa para uma mulher. Sou uma mulher adulta, não uma qualquer rapariguinha de escola, e tenho gozado de alguma independência. Idealmente, você continuará
a tratar da sua vida como fez até agora e eu também trato da minha, como sempre.
– Isso soa tão equilibrado. Eu ficaria impressionado, e sentir-me-ia compelido a concordar, se não fosse por um problema. Parece-me que a vida tal como a tem conduzido até agora a levou a envolver-se em
muitos apuros. Levou-a até Buxton e colocou-a nesta carruagem. Por isso, vai perdoar-me, Lydia, se a minha ideia for mantê-la debaixo de olho, pelo menos por algum tempo.
Lydia não tinha uma boa resposta para isto, já que não podia contestar os factos.
– Há mais uma coisa. Também quero levar a Sarah comigo. É a minha aia. Quero que diga às suas governantas que ela deverá ser bem tratada e que não deverá sentir-se deslocada ou desajustada.
– Essa promessa é fácil.
– Quanto à sua tia...
– Antes que me peça algo que não lhe posso oferecer, deixe-me explicar-lhe uma coisa. As residências da família são tudo o que alguma vez ela conheceu. Prometi ao meu pai, antes de morrer, que nunca a
obrigaria a sair.
Não eram boas notícias. Rosalyn deixara bem claro o que pensava de Lydia. Se ambas se viam agora forçadas a viver sob o mesmo teto, nenhuma das duas levaria uma vida tranquila.
– Não espere que eu lhe dedique alguma deferência ou que permita que me dê instruções.
– Nos seus deveres de duquesa, ela poderá ajudar. Cabe-lhe a si aceitar ou não os seus conselhos. Peço-lhe que seja gentil. Irá tomar o seu lugar na casa e ela sentirá intensamente a diferença.
Não lhe parecia que Lady Rosalyn se fosse demitir benevolentemente do papel de senhora daquelas casas. Exercera o poder durante mais de vinte anos. Abdicar a favor de uma nova duquesa não lhe seria de
todo atrativo.
Penthurst não compreenderia todo o género de conflitos por que as mulheres estão dispostas a lutar numa tal contenda. E provavelmente nem quereria ouvir falar deles. E ela também não tinha qualquer intenção
de ser a noiva frágil e emotiva que se revela impotente quando confrontada com uma mulher imponente na família. Se Rosalyn não recuasse, haveria sem dúvida uma guerra. Penthurst fora avisado.
Chegaram à estalagem de mala-posta antes do cair da noite. Uma vez mais, Penthurst alugou dois quartos. Enquanto uma criada da estalagem ajudava Lydia a retirar da mala os itens necessários para passar
a noite, o duque assomou ao limiar da porta dos seus aposentos. Olhou em volta, registando os pormenores.
– Este quarto é muito melhor do que o meu. Mais espaçoso e confortável.
– Apresentou-se como o duque que é? Se o fez, houve certamente um erro. Podemos trocar. – Com um gesto, Lydia indicou à criada que deveria parar de desfazer a mala.
– O meu quarto é adequado para esta noite. Mas fico satisfeito por ver que lhe disponibilizaram algo mais indicado. Darei instruções para que o guardem para si. – Penthurst dirigiu-se à criada. – Certifique-se
de que Lady Lydia está pronta para viajar meia hora após a alvorada. Boa noite, Lydia.
Era a vez de Lydia estudar o quarto. Parecia-lhe apropriado para a finalidade da noite seguinte. Ele viria ter com ela aqui e cobraria a dívida da aposta e só de manhã ele estaria na posse de tudo o que
ela tinha e tudo o que ela era.
Quando se deitou nessa noite, apercebeu-se de que até o sono deixaria de lhe pertencer no futuro. Era a última noite que seria com toda a certeza só sua, sem que Penthurst aparecesse a seu lado sempre
que desejasse.
Tarduff não gozava da fama de Gretna Green, o que servia perfeitamente a Lydia. A decisão de Penthurst de escolher esta cidade mais obscura revelou-lhe algum sentido de elegância e uma boa dose de bom
senso.
As fugas para casamentos na Escócia davam origem a cerimónias algo rotineiras. Às dez e meia da manhã, Lydia entrou numa igreja pequena e húmida de estilo antigo e ali se colocou, ao lado do duque e duas
testemunhas. Os votos soaram muito distantes, como se tivessem sido proferidos por outras vozes noutra divisão. Simultaneamente, tudo o que via surgia-lhe demasiado vívido e nítido. Achou que iria lembrar-se
para sempre da textura da superfície das pedras mais próximas, ao mais ínfimo pormenor.
E depois já tinha acabado. Sentia a mão pesada com o anel de sinete de Penthurst no dedo, o único à disposição naquele dia. O vigário sorriu para o duque, encantado por ter oficiado para um homem tão importante.
As testemunhas contavam com uma gratificação pela sua prestação. Por fim, Lydia deu-se conta de que havia uma pessoa que dedicava a sua exclusiva atenção a ela.
Penthurst ainda segurava a sua mão olhando-a de frente. Lydia forçou-se a erguer o olhar, meio receosa daquilo que iria ver. A vida tal como a conhecera podia ter terminado, mas este casamento também afetava
a vida dele. Deixaria de poder escolher a sua esposa e duquesa. A realidade desse facto poderia ser difícil de acomodar, agora que não podia ser ignorada.
Lydia não viu qualquer espécie de revolta na sua expressão. Mas também não de resignação ou pavor. O seu olhar quase lhe pareceu doce, e mesmo um pouco divertido.
– O vigário está a pensar por que razão continua a olhar em volta como se estivesse a planear redecorar a igreja – sussurrou ele.
– É encantadora tal como está.
– Sim, mas ele está à espera do nosso beijo.
Lydia voltou-se para o vigário, que sorria expectante e paciente. Um beijo. Sim, era a ordem natural das coisas. Engoliu um alvoroço de pânico e olhou para Penthurst. Para o seu marido. Pelo menos, não
era um perfeito desconhecido. Já era alguma coisa. Vir até aqui também fora opção dela. Isso também já era alguma coisa. Não podia negar como ele era atraente. E também excitante, como tivera oportunidade
de verificar. Com algum tempo e alguma negociação, poderiam conseguir uma vida suportável juntos, apesar do papel que ele desempenhara involuntariamente na sua vida.
Aquela dor começou a emergir logo que assomou ao seu pensamento. Mas obrigou-se a contê-la, a afastá-la. Agora não. Se calhar, nunca, se se esforçasse o suficiente. Não sabia se conseguiria viver neste
casamento se permitisse qualquer tipo de liberdade a tais memórias.
Penthurst envolveu o rosto de Lydia com as suas belíssimas mãos e beijou-a nos lábios. E depois disse algo inesperado, numa voz tão baixa que Lydia se questionou se teria sido realmente sua intenção que
ela ouvisse:
– A pequena Lydia, afinal de contas. Espantoso.
Para uma mulher que, um dia antes, insinuara que poderia vomitar na noite de núpcias, a compostura de Lydia após a cerimónia impressionou Penthurst. Como uma mulher do mundo que afirmava ser, não teve
um ataque de nervos nem se recolheu no silêncio taciturno da vítima de um sacrifício. Pelo contrário, algo repentinamente, animou-se e passou toda a viagem de regresso à estalagem a questioná-lo sobre
as suas propriedades, a família e as formalidades que deveria esperar ter de cumprir quando assumisse a sua posição de duquesa.
Só quando entraram no pátio da estalagem ela parou de tagarelar. Olhou para o edifício e, depois, para ele.
– As noites de núpcias têm os seus rituais, mas eu não tenho qualquer experiência. As mulheres solteiras não ajudam nesses preparativos. Não sei o que fazer.
– Estamos à vontade para dispensarmos quaisquer rituais, Lydia.
– Ainda assim, não sei o que fazer.
Penthurst achou adorável a sua consternação.
– Quando terminarmos de jantar, que tal pedir que lhe preparem um banho, se tiver vontade? Depois peça à criada que a prepare para se deitar como fez ontem à noite.
– Banho e depois cama. Parece fácil. E depois vem visitar-me?
– Se não se importar demasiado. Podemos esperar até...
– Nada de esperar. Não se diz a uma pessoa que tem de arrancar um dente para depois a deixar à espera, ansiosa, uma série de dias.
Lydia falou muito séria. Ele conteve o riso.
– Pretendo tratar deste assunto o quanto antes, se não se importa.
– Não me importo mesmo nada.
Lydia falou durante todo o jantar. Penthurst praticamente não precisou de contribuir para a conversa, o que lhe permitiu imaginar os acontecimentos da noite. Suspeitava de que a loquacidade de Lydia era
uma forma de ela própria evitar visões semelhantes. Pareceu desanimada quando se tornou claro que não havia mais nada para comer e que a refeição terminara.
Permaneceu imóvel na cadeira, de olhar fixo na toalha da mesa.
– Talvez se queira recolher – disse ele.
– Sim. Suponho que sim. É só o que posso fazer.
Puxando o agasalho para cima, de modo a cobrir-lhe os ombros, pediu licença para se levantar.
Penthurst dirigiu-se à sala comum e tomou um porto por entre o ruído e a comoção dos passageiros das carruagens que paravam para trocar de cavalos. Enquanto isso, o seu pensamento imaginou ao pormenor
as atividades de Lydia lá em cima, enquanto tomava banho e se preparava sozinha para a sua noite de núpcias.
Lydia passou o seu plano de fio a pavio, enquanto a criada lhe lavava as costas. Quando terminasse o banho, vestiria a camisa de noite, secaria o cabelo e arrumaria o quarto. Seria necessária uma pequena
vela afastada da cama, mas as restantes seriam apagadas. Os cortinados da cama também deveriam estar fechados. Lydia deitar-se-ia, à espera, e faria o que lhe fosse exigido quando ele chegasse.
Não sabia quanto tempo iria demorar. Não mais de cinco minutos, imaginou. Não era preciso muitos beijos e essas coisas. Era assim que os homens seduziam as mulheres e o duque não precisava de seduzir.
Lydia pertencia-lhe e não tinha de a persuadir a entregar-se.
Haveria alguma dor envolvida, mas Emma insinuara em tempos que se fazia demasiado alarido, da parte de mulheres que tentavam assustar as raparigas, para que se mantivessem virtuosas. Ainda assim, não contava
com uma noite muito agradável.
Pensou na cena de amor do seu romance. Incluíra muitos beijos. Outras carícias também, como imaginava que acontecia por vezes. Mas as suas personagens eram amantes. Verdadeiros amantes. Como apreciavam
a companhia um do outro, era evidente que sentiriam prazer igualmente nas suas uniões físicas.
A sua situação naquela noite seria diferente. Lydia evitava pensar muito nos pormenores ou imaginar fosse o que fosse. Pressupunha, no entanto, que terminaria muito rapidamente.
A água quente acalmou-a. O sabonete conferia um odor doce à névoa em seu redor. A criada deixou-a sozinha para terminar de se lavar e pousou a camisa de noite na cadeira. Depois saiu, com a porta a fechar-se
atrás dela com um estalido cortante.
Lydia recostou-se, repousando o pescoço no rebordo metálico da banheira e deixando a anca deslizar para baixo. Fletiu as pernas e ergueu os joelhos para que pudesse mergulhar o resto do corpo.
– Aí está um panorama de deixar um homem sem ar. Parece-se com uma ninfa com a modéstia protegida tão-somente pela água.
Foi, no entanto, Lydia quem se viu sem ar. Num rápido relance, registou que a água, na verdade, lhe garantia muito pouca modéstia.
Voltou a cabeça. Penthurst estava ali, em pé, a uns três metros de distância. Devia ter entrado quando a criada saíra. Tirara os casacos e o plastrão, e não usava botas. À luz das velas, a sua camisa branca
contrastava cintilantemente com as calças escuras. Exceto no local onde o colarinho aberto revelava um V profundo de pele.
Lydia tentou mergulhar mais fundo na água. Sentia a voz presa no peito.
– Só o esperava mais tarde.
– Ouvi-a no banho e decidi vir ver exatamente a dádiva com que o destino me havia presenteado.
Lydia apercebeu-se de que, com ou sem água, ele conseguia ver o seu corpo nu. Os brilhos tremeluzentes e fluidos dos reflexos da luz ocultavam muito pouco. Consternada com esta mudança nos seus planos
para aquela noite, sentou-se e abraçou os joelhos, para cobrir pelo menos uma parte do corpo.
Penthurst caminhou até ela.
– Deveria ter permanecido em silêncio, para que não se acanhasse. – Agachou-se sobre um joelho ao lado da banheira. Com dois dedos sob o queixo de Lydia, levantou-lhe o rosto, afastando-o dos joelhos.
– É muito bonita, Lydia. Penso que não faz ideia de como é bela.
Beijou-lhe os lábios e, depois, o ombro nu.
– Já terminou o banho? A água já arrefeceu.
Lydia não conseguia falar. Mal conseguia inspirar. Assentiu com a cabeça e esticou-se na direção da cadeira para pegar na toalha.
A mão de Penthurst alcançou-a primeiro. Levantou-se e ofereceu-lhe a mão. Aceitá-la significava que Lydia teria de desenrolar o corpo e erguer-se da água. Não conseguiria esconder nada. Ficou a olhar para
a mão enquanto reunia alguma coragem. Poderia ser inexperiente, mas não queria parecer pouco mais madura do que uma rapariguinha entregue para se casar logo após a primeira temporada.
Na esperança de parecer sofisticada, e rezando para que o seu constrangimento não fosse percetível, Lydia tomou a mão e levantou-se. Olhou para baixo. Ninguém, nem mesmo Sarah, a vira tão completamente
despida.
Ele não a fitou nem a fixou com o olhar, mas, enquanto a ajudava a sair da banheira, ela sentiu o seu olhar sobre ela, deslizando-lhe pelo corpo, demorando-se nos seios, nas pernas e na púbis. Penthurst
envolveu-a com a toalha. Lydia agarrou-a e apertou-a com força tentando secar-se com as pontas.
– Eu faço isso. – E pegou noutra toalha que repousava na cadeira.
Lydia manteve-se tapada com a toalha, segurando-a, fechada, à frente, enquanto ele lhe enxugava os braços e os ombros. Ela apertava-a ainda nas mãos quando ele se apoiou sobre um joelho e começou a secar-lhe
as pernas.
– Está muito serena. Estou impressionado. – As mãos movimentavam a toalha sobre os pés e os tornozelos.
– Bem, já não sou uma criança. As mulheres do mundo não ficam simplesmente loucas só por causa de uma nova experiência.
Penthurst olhou para cima, divertido.
– Uma mulher do mundo. Foi com uma dessas que eu me casei?
– Não por aí além, admito. Por causa da guerra, não viajei como a Cassandra. E por causa das minhas tias e do meu irmão, não levei uma vida independente nem sequer com muita liberdade, com exceção do que
fui conseguindo alcançar sem o seu conhecimento. Mas aspiro a vir a sê-lo e fiz o melhor que pude, tendo em conta as circunstâncias.
Penthurst ergueu uma das pernas de Lydia e pousou o pé no seu joelho. A toalha descaiu, pelo que a maior parte da perna ficou desnudada. Quase toda. Quase até...
– Agora que é duquesa, será mais fácil ser uma mulher do mundo.
Usou a toalha que tinha na mão para secar a perna. A verdade é que já estava bastante seca, pelo que o efeito foi mais como uma carícia. Lentamente, para cima e para baixo, as suas mãos movimentavam o
tecido. Lydia sentia com plena consciência o quanto elas subiam em cada passagem. Quase até à...
Tentou ignorar, mas o seu corpo não o conseguia. Os seus sentidos exclamavam de alarme cada vez que a carícia subia até lá acima. Então, um pouco depois, outra reação veio juntar-se ao choque. Uma estranha
comoção levou-a a esperar por esse choque, como se o desejasse.
Começou a ser difícil apoiar-se só numa perna. Teve de se esforçar para não vacilar. O duque não parecia dar-se conta da sua situação.
– Não quero, no entanto, que haja mal-entendidos. Não lhe permitirei infidelidades, caso no seu entendimento tal faça parte do estatuto de mulher do mundo.
– Sei que isso está fora de questão até que a sua sucessão esteja garantida. Não sou totalmente ignorante quanto à forma de fazer as coisas.
– Nem deverá contar com a minha permissão depois de ter o meu herdeiro, Lydia. Lamento se isso constitui uma surpresa inesperada.
Dado que a atenção de Penthurst estava mais centrada no seu corpo do que no rosto, Lydia estava confiante de que ele não vira nada que refletisse os seus pensamentos. Não lhe interessava grandemente a
conversa sobre ele permitir isto ou aquilo. Ele certamente saberia que, se se apaixonasse por alguém, ela provavelmente não se privaria mais do que ele nas mesmas circunstâncias.
Seria sensato referi-lo agora, em vez de aceitar esta pequenina regra que ele acabara de decretar. Formou uma réplica na sua mente. E depois ele olhou para cima, para ela, e a mente esvaziou-se.
Pequeníssimas chamas despertaram nos seus olhos castanhos. A severidade natural do seu rosto intensificou-se, mas não era uma expressão agastada. O seu olhar sondava-a de uma forma que a fazia tremer e
sentir-se apatetada.
A toalha caiu-lhe das mãos, mas as carícias continuaram. Deliciosamente quentes, subtilmente ásperas, inquestionavelmente possessivas, as mãos dele subiram-lhe ao longo da perna e da coxa. A comoção ganhou
ritmo, elevando-se como uma vibração focada, à medida que as mãos iam subindo sob a orla da toalha.
A sensação de calor confundia-a, como se uma fogueira intensa ardesse na lareira. Um breve pensamento irrompeu pelo seu assombro, de que uma mulher inocente deveria estar com receio de tudo isto e, além
disso, envergonhada. Uma parte de Lydia nutria ambos estes sentimentos, mas simplesmente não lhe conseguia virar as costas e o medo, em si, estava imbuído de uma excitação irresistível.
As carícias pararam. Lydia pensou que agora ele talvez quisesse secar-lhe a outra perna. Dificilmente conseguiria manter o equilíbrio, se assim fosse.
Ao invés, Penthurst ergueu-se até onde Lydia segurava a toalha nas mãos. Instintivamente, Lydia agarrou-a ainda com mais força.
– Agora pode largar, Lydia.
Lydia não obedeceu prontamente, mas, ainda assim, soltou-a um pouco. Penthurst puxou as pontas, soltando-as das mãos de Lydia que as prendiam e deixou cair a toalha.
Lydia não olhou para si mesma, mas a consciência da sua exposição acicatava aquela comoção, até que estremeceu e se movimentou como se tivesse vida própria. Mantinha o pé pousado no joelho e perguntou-se
se ele conseguiria ver aquilo que ela própria nunca tinha visto. A ideia não a chocou em demasia. Já passara esse ponto.
Penthurst acariciou-a novamente, subindo pelo lado de fora dessa perna, até ao fim, até que as pontas dos seus dedos deslizaram sobre a anca e a cintura. A outra mão fez o mesmo na outra perna, como se
ele estivesse a desenhar nos dois flancos, até que as mãos se fecharam sobre a cintura e a agarraram. Penthurst inclinou-se e beijou-lhe o ventre.
Faíscas de deleite dispararam com aquele beijo. Até às extremidades e ao coração, descendo até lá abaixo, onde a comoção continuava a sua agitação erótica.
Penthurst levantou-se e abraçou-a. Coberta pelo seu corpo, Lydia não se sentia menos exposta. Quando muito, sentiu-se ainda mais nua quando se viu comprimida contra a rigidez do seu corpo e quando a roupa
dele lhe raspou a pele. Até o beijo a despiu ainda mais, invocando respostas físicas sobre as quais não tinha qualquer controlo.
Vulnerável, mas segura. Desperta, mas a sonhar. Viva, tão viva, tão consciente dos pormenores e das nuances, mas também atordoada além de qualquer compreensão, tudo o que conseguia fazer era seguir e aceitar.
Beijos no pescoço tiraram-lhe o ar. A força de um novo beijo, invasivo, surpreendeu-a. A forma como as mãos dele se movimentavam pelas costas e, depois, até às nádegas, sobressaltaram-na e deliciaram-na
ao mesmo tempo. Era uma cascata de prazeres, grandes e pequenos, prendendo-lhe o ar. Não tardou a que não pensasse em mais nada e a querer que continuassem, dominada pelos seus instintos do mesmo modo
que ele parecia dominar o seu corpo e a sua vontade.
Uma carícia no flanco, com tanto de sedutor como de controlador, captou a atenção de Lydia. Ondas de tremores percorreram o seu corpo enquanto esperava que acontecesse algo maravilhoso. A sua essência
antevia qualquer coisa que a mente não conhecia. Esse calor chegou mais alto, depois rodeou o corpo, até que a mão dele se fechou sobre o seu seio. Foi uma sensação tão boa que todo o seu ser suspirou.
Com o polegar, ele tocou ao de leve o mamilo, criando uma pressão tão hipnotizante que ela se esqueceu de respirar.
– Está a gostar – murmurou-lhe ele ao pescoço enquanto a boca lhe oferecia outras maravilhas. Lydia anuiu. Aqueles suaves toques entrecortados intensificavam o prazer até à angústia.
Lydia quase clamou uma objeção quando ele parou. Algum sentido de si mesma regressou-lhe à mente. O suficiente para o ouvir dizer:
– Deite-se na cama.
Lydia cambaleou os poucos passos que a separavam da cama, subiu, sem pensar no que ele estava a fazer ou a ver, ou no que poderia ou não acontecer. As mãos de Penthurst cingiram-lhe novamente a cintura
antes de se deitar, quando estava apoiada nas mãos e nos joelhos. Manteve-a nessa posição, ela não sabia porquê, e depois beijou-lhe a curva das costas antes de a soltar.
Lydia deixou-se tombar de costas, sentindo-se mundana e sensual, transformada numa deusa por estas extraordinárias descobertas físicas. Regressou um pouco mais a si e quis alcançar o lençol, para que não
parecesse que estava totalmente desprovida de modéstia. Quando se esticou para agarrar na ponta, reparou que Penthurst se despia.
Ele apercebeu-se de que havia captado a sua atenção.
– Vou apagar o candeeiro e as velas. – E deslocou-se na direção de uma para o fazer.
– Que não o faça por mim. Já vi homens despidos antes.
– Ai, sim?
– Oh, sim. – Lydia falava com desenvoltura, como a mulher do mundo em que verdadeiramente se tinha transformado nos últimos quinze minutos.
Penthurst continuou a despir a camisa.
– E quando foi isso?
Lydia refletiu, procurando com a memória atravessar a névoa que ocupava grande parte da sua mente.
– Não há muito tempo. Era maior de idade, se é isso que quer saber.
– Não sabia que havia uma idade em que as mulheres solteiras começam a olhar para homens nus. Pergunto-me como será que falhei essa regra social.
– Nem todas as mulheres. Só as sofisticadas.
– Quer dizer, as mulheres do mundo, como é o seu caso.
Tirou a camisa e, num minuto, estava despido da cintura para cima. Lydia não conseguia deixar de olhar, fascinada. O corpo dos homens era tão interessante. E o de Penthurst era seco e bem definido. E,
de repente, mais poderoso. Comparando com a altura e a força dele, ela seria pequena e fraca. A sua confiança foi invadida por alguma inquietação.
– Esteve sozinha com ele?
Lydia apercebeu-se, com sobressalto, do que Penthurst lhe estava a perguntar.
– Oh, não foi... Foi um acidente, sabe? Demos com eles por acaso...
– Eles?
– Hmm... dois, sim, a nadar.
– Suponho que sejam situações inevitáveis, penso eu. Saiu imediatamente do local, presumo eu.
«Imediatamente» fora uma infeliz escolha de palavra.
– Saí rapidamente, sim.
Penthurst sentou-se na beira da cama e continuou a tirar a roupa.
– Eles sabiam que os estava a ver?
– Não tenho a certeza. Provavelmente não. A Cassandra disse que muito provavelmente não. – Uma mentira descarada. Cassandra não disse tal coisa.
Penthurst voltou a cabeça e olhou para Lydia.
– Lady Ambury estava consigo?
Oh, céus.
– Estávamos a montar a cavalo juntas quando, por acaso, demos com um local onde as pessoas vão nadar e esforcei-me ao máximo por me impedir de ver mais do que um relance. – Tudo verdade, mas não completamente
rigoroso. – Não foi nada, na verdade. Apenas um momento de surpresa, e depois já tinha terminado.
– Não é propriamente nada, se acha que é normal, e não chocante, a ideia de ver um homem despido. Estou aliviado. Estava preocupado com as suas delicadas sensibilidades. Dado que, não só é uma mulher do
mundo, segundo me diz, como além disso experiente nessas matérias, não me vou preocupar com os candeeiros nem mais nada.
Com estas palavras, Penthurst levantou-se e voltou-se, totalmente nu.
E foi então que Lydia fez aquilo que deveria ter feito, mas que não fez, quando encontrou por acaso aqueles nadadores. Tapou os olhos com a mão.
*
Lá se foi a ideia da sofisticada mulher do mundo. Lydia sentou-se novamente, toda enrolada sobre si mesma, com os joelhos encostados ao queixo e a mão firmemente encostada aos olhos. Penthurst olhou para
baixo e vislumbrou o que provocara o clamor de Lydia. Uma excitação de proporções consideráveis erguia-se em sentido na sua direção.
Paciência. Paciência. Tinha vindo a cantar esta litania o dia todo na sua cabeça, recordando-o de que, apesar da idade que tinha e das suas afirmações de sofisticação, Lydia não era uma mulher experiente,
mas sim inocente, com tudo o que isso significava.
Penthurst deitou-se ao lado de Lydia, sob o lençol.
– Venha cá. – Tomou-a nos braços e arrancou-lhe a mão dos olhos. – As minhas desculpas, mas como disse...
– De costas. Eu vi-os de costas.
– Uma pequena, mas importante omissão na sua história.
Lydia apoiou a cabeça no ombro dele. O seio macio encostou-se ao flanco dele. O odor de Lydia enchia-lhe a cabeça.
– Detesto-me por ter reagido como uma criança. Deve pensar que sou enfadonha.
– De todo. – Penthurst duvidava que Lydia quisesse ouvir o que ele realmente pensava dela. Que era sensual por natureza, que se excitava facilmente e que provavelmente não se sentia demasiado constrangida
por ideias daquilo que seriam atos próprios ou impróprios.
Lydia ergueu-se, apoiando-se no braço, e olhou para baixo, para o lençol que agora o cobria e para a clara prova da sua ereção lá por baixo.
– Isto vai acabar mal, não vai? Vou desejar ter sido obrigada a arrancar um dente estragado e não isto.
Penthurst tinha esperança de que não, mas isso não era assunto de conversa. Nem queria falar sobre mais nada. Fez-lhe uma carícia pelas costas acima e depois deitou-a de costas novamente a seu lado.
– Se se permitir apreciar o prazer, penso que não terminará tão mal quanto receia. Farei tudo para não a magoar.
Lydia corou. As pálpebras fecharam-se. Penthurst reparou pela primeira vez como eram grossas as suas pestanas, e escuras. Beijou-lhe cada uma das pálpebras, depois a face macia e, por fim, os lábios.
De imediato, a ereção dele cresceu ainda mais. Imagens foram invadindo a sua cabeça, imagens eróticas dos prazeres que encontrava em mulheres que eram realmente sofisticadas, mas que não sentiria naquela
noite. Garantiria, porém, que Lydia sentiria desejo, para que não se encolhesse sempre que ele a procurasse de futuro.
Lydia entreabriu os lábios para receber o beijo e para que ele pudesse explorar o quente veludo da sua boca. Lydia tremeu dentro do seu abraço, uma e outra vez, e fez por fim uma tentativa de o abraçar
a ele. A suave pressão das palmas das mãos de Lydia sobre os seus ombros encantou-o.
Penthurst observou os olhos escuros, as pestanas grossas e o rosto claro e oval de Lydia. Era adorável. Perguntava-se agora por que razão não o notara anos antes. A expressão opaca que trazia nos últimos
anos poderá tê-lo desencorajado. Naquela noite, ninguém poderia acusá-la de ser impassível. Luzes bailavam-lhe nos olhos. Parecia alerta, curiosa e corajosa. Dir-se-ia que estava numa mesa de jogo, de
tão viva que parecia.
Penthurst sorriu por dentro enquanto se perdia a beijar o calor do seu pescoço. Pequenas e agudas inspirações ecoavam no seu ouvido e a intensidade de cada uma dizia-lhe quais os beijos que causavam maior
comoção em Lydia. Quando a melodia acelerou e o seu abraço o apertou, Penthurst baixou o lençol para descobrir os seios de Lydia.
– Ponha as mãos atrás da cabeça, Lydia.
Com os olhos aturdidos de paixão, Lydia esboçou um esgar de confusão, mas depois soltou-se de Penthurst e fletiu os braços, de modo a colocar as mãos sob a cabeça. A pose levantava-lhe os seios redondos.
Ele tocou num, depois no outro, e os mamilos endureceram de imediato, formando pontas escuras e fascinantes. Penthurst roçou uma vez mais cada um dos seios, enquanto Lydia arquejava e arqueava as costas.
Arqueava-se sempre, uma e outra vez, de corpo suplicante. Foi o que, por fim, fizeram também os seus gritos.
Lydia fechou os olhos como que para conter a sensação e manter o controlo. Penthurst provocava-a, desenhando círculos com a palma da mão até que ela soltou um gemido. Penthurst pressionou a anca e a perna
contra as de Lydia para sentir como o seu corpo se fletia sob o prazer e a necessidade.
– Quer que eu pare, Lydia?
Ela abanou a cabeça.
– Quer mais?
Lydia abriu os olhos e olhou para ele. Perdida de excitação, próxima do abandono, Lydia anuiu.
Penthurst baixou a cabeça para usar a língua.
Lydia mal conseguia respirar com toda a força das sensações. Mais, perguntou ele. Havia mais?
Observou-o a baixar ainda mais a cabeça e sentiu a suavidade do seu cabelo no peito. O beijo no seio dava-lhe uma ideia do que significava «mais». A língua movia-se rapidamente e Lydia quase se sentiu
morrer. Usou a língua e a boca num dos seios e colocou a mão perversa no outro, e ela pensou que iria desvairar-se.
Certamente, se o pudesse abraçar, não se sentiria tão impotente face ao modo como o prazer a dominava. Oferecendo-se desta forma, absorvendo o prazer que ele lhe oferecia ininterruptamente, só fazia com
que quisesse mais, outra vez, e mais, e ainda mais. Era uma força em crescendo que se formava apenas entre «mais» e «querer». Um desespero esmagava o prazer e ameaçava irromper como uma explosão. O corpo
de Lydia movimentava-se e baloiçava em resposta. Em baixo, entre as pernas, sentiu uma humidade e uma palpitação que também só a levavam a ansiar intensamente por mais.
Carícias, maravilhosos afagos desciam-lhe pelo corpo. Lydia mexia-se para os absorver, com alongamentos sinuosos e lânguidos. Ele levantou um braço para se apoiar a seu lado.
Lydia abriu os olhos e quase os fechou novamente. Cabelo despenteado, mandíbula firme, olhar em chamas, a sua severidade encerrava uma terrível sensualidade. Uma sensualidade atraente que a levava a querer
olhar e olhar. Era tão irresistível e belo que, só de olhar para ele, se sentia a latejar e a querer ainda mais.
Penthurst puxou o lençol e ela ficou nua, mantendo as mãos na cabeça e os seios erguidos. Penthurst observou como as suas carícias reclamavam tudo o que ela tinha para dar, ancas e pernas, coxas e ventre.
Deixou então deslizar a mão entre as suas pernas e tocou naquilo que ainda restava.
Lydia nem queria acreditar que era possível o choque de mais uma sensação. Não sabia que «mais» significava prazeres diferentes, e não apenas mais do mesmo. O seu toque atingiu direta, e quase dolorosamente,
o centro de todos os outros.
Não estava a magoá-la, mas, ainda assim, ela tinha vontade de gritar. Tocou em pontos de sensibilidade insuportável e foi acumulando mais e mais desespero. Fê-lo repetidamente, enquanto lhe beijava os
lábios e o corpo, até que ela teve vontade de gritar face à necessidade que estava a gerar.
Penthurst colocou-se sobre ela e afastou-lhe mais as pernas. Lydia sabia o que ele iria fazer em seguida, mas naquele momento não conseguia pensar em mais nada senão alívio. Com a primeira pressão, quando
começou a penetrá-la, ela sabia que tinha sido para este «mais» que tudo o resto a havia conduzido.
Ele avançou lenta e cuidadosamente, mas doeu o suficiente para que Lydia precisasse de morder o lábio inferior para se impedir de chorar. E depois começou a doer menos, à medida que o seu corpo se rendia
à rebelião. Foi então que mexeu as mãos, para se poder agarrar a ele se o resto também doesse.
Uma sensação dorida ecoava enquanto ele se movimentava dentro dela, mas não sentia realmente dor. Ou talvez o seu espanto não deixasse espaço para esse tipo de sensação tão comum. Com o seu tamanho e a
sua força, ele eclipsava-a e dominava-a. Estava apoiado sobre os antebraços, mas ainda assim, ela aninhava-se sob o seu corpo, indiscutivelmente pequena e frágil em comparação.
A intimidade do ato parecia-lhe austera e opressiva, de tal modo que podia apenas aceitá-la, aturdida pelo choque de ser reclamada e possuída de uma forma tão física, e mesmo primitiva. Tanto quanto lhe
interessava a ele, a sua necessidade não deveria ser negada e, quando alcançou o momento de libertação, o seu poder chocou-a novamente.
Tal como uma ideia singular que lhe ocorreu quando os seus olhares se encontraram, mais próximo do fim. Apercebeu-se de que sempre tivera presente o lado carnal de Penthurst, apenas não o havia compreendido
nem nomeado. Como um impressionante feitiço, havia toldado a sua arrogância e iluminado o seu olhar e afetado tudo o que Lydia sabia dele. Fez com que se sentisse desconfortável com ele porque, na sua
presença, Lydia provara aquele desespero que a esperava e o abandono que a chamava pelo nome.
Lydia questionava-se se alguma vez conseguiria olhar para ele novamente sem se sentir provocada de formas perversas.
À exceção das pestanas oscilando contra a pele clara, Lydia não tinha mexido um cabelo desde que Penthurst saíra de cima dela. Mantinha as pernas afastadas sob o lençol que agora a cobria. Como previra,
não tinha terminado bem.
Possuir uma mulher era fácil. Saber o que dizer depois, se é que se deveria dizer alguma coisa, fora sempre um ponto problemático para os homens. Como se adivinhassem, muitas mulheres, as verdadeiras mulheres
sofisticadas, tagarelavam para aliviar o constrangimento. Naquela noite, Penthurst sabia que lhe cabia a ele tomar a palavra.
– Lamento se a magoei, Lydia. Nunca mais o farei.
Lydia recolheu as pernas e deitou-se de lado, de frente para ele.
– Não me magoou demasiado. Arrancar um dente, afinal, será provavelmente pior.
Penthurst beijou-lhe a testa. Pelo menos ela não se retraiu.
– Anima-me ouvi-lo. Não gostaria que ficasse por aí a saber-se que partilhar o leito comigo é mais infernal do que isso.
Lydia abriu os olhos. Haviam-se tornado emotivos. Já não atordoados pelo prazer ou acesos de excitação, revelando pelo contrário uma reflexão séria e, quem sabe, alguma tristeza.
– Estou a processar tudo. Sinto-me um pouco estranha. Diferente.
– Vou deixá-la, para que tenha a sua privacidade, se assim desejar.
Lydia demorou muito a responder. E depois anuiu.
Penthurst vestiu-se o suficiente para ficar decente e regressou aos seus aposentos. Sentou-se numa cadeira junto à janela processando ele próprio os acontecimentos. Não se sentia estranho, mas certamente
diferente. Casado, para começar.
No calor da paixão, as mulheres podiam ser de certa forma intercambiáveis. Naquela noite, nunca se esquecera de que estava com Lydia. Sua mulher. Pela primeira vez, deitara-se com uma mulher de acordo
com as regras da lei e da sociedade.
Isso mudava tudo. O mesmo ato. Os mesmos prazeres. E, no entanto, diferente.
Mas não diferente do modo referido por Lydia. Isto era tudo o que ela conhecia. A sua referência à diferença dizia respeito a si mesma e à sua vida, imaginava ele. Ele havia-lhe tomado a inocência e isso
assinalava uma viragem crítica na vida de uma pessoa, homem ou mulher.
Tentou imaginar o que estaria ela a pensar, deitada naquela cama manchada pela sua união. Estaria a castigar-se por se ter permitido todo o prazer que pôde? Estaria ressentida com o facto de ele ter usado
as suas habilidades para a forçar a sentir prazer? Estaria a chorar sabendo que não mais poderia ignorar a realidade do casamento?
Talvez tudo junto. Mas, sobretudo, Penthurst suspeitava de que Lydia estaria a processar o facto de lhe ter dado algo que se oferece apenas uma vez na vida de uma mulher. Tinha perdido para sempre a sua
inocência e ele não fora o homem que ela havia escolhido para a receber.