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“Agora, há um mês que estou escrevendo um romance de costumes modernos que se passará em Paris. Será a história moral dos homens da minha geração; a história sentimental, para ser mais exato. É um livro de amor, de paixão; mas de paixão como pode existir hoje, isto é, inativa. O assunto, tal como o concebi, é, creio, profundamente verdadeiro, mas, por isso mesmo, provavelmente pouco divertido. E pobre de fatos, de drama; além disso, a ação estende-se durante um lapso de tempo demasiado considerável. Em suma, tenho grandes dificuldades e estou cheio de inquietação.”
É esse o texto essencial em que Flaubert define, com perfeita lucidez, a ideia fundamental, a inspiração, a atmosfera de A Educação Sentimental, numa carta de 6 de outubro de 1864 à Srta. Leroyer de Chantepie (a).
Foi efetivamente a 1º de setembro de 1864, como se vê pela data do manuscrito, que Flaubert começou o seu grande romance. Demorará cinco anos a escrevê-lo, pois A Educação Sentimental, terminada em maio de 1869, será posta à venda a 17 de novembro desse mesmo ano, pelo editor Michel Lévy.
Como habitualmente, pode seguir-se, ao longo da Correspondance, a gênese e o desenvolvimento da obra (b). “Livro pesado”, diz ele ainda, ao referir-se a esta obra na qual vemos hoje o balanço de uma época; durante dez horas por dia, mergulha no trabalho, às vezes irritado com um assunto que contraria as suas aspirações profundas: “O que me desola é a convicção de estar fazendo uma coisa inútil, quero dizer, oposta à finalidade da Arte, que é a exaltação vaga. Com as exigências científicas de agora, e um tema burguês, a coisa parece-me radicalmente impossível. A beleza não é compatível com a vida moderna”. Afirmação muitas vezes repetida, num tom de sincero desânimo. Contudo, neste assunto “inextricável devido à sua simplicidade e abundância”, ele pôs, como vamos ver, uma grande parte da sua vida secreta. Mas Flaubert não era homem de escrever o que o seu coração lhe ditasse. Para ele, a grande dificuldade era “entrosar as suas personagens nos acontecimentos políticos de 48”. Receava que “o fundo absorvesse os primeiros planos; é o defeito do gênero histórico. As figuras da história são mais interessantes do que as da ficção, sobretudo quando as paixões daquelas são moderadas”. Esta preocupação iria justificar-se em vista de certas críticas, aliás bem pouco argutas, que acolheram o romance quando do seu aparecimento. Aludindo a alguns desses juízos, Flaubert escrevia a George Sand: “Os mais indulgentes acham que me limitei a fazer quadros, e que faltam inteiramente a composição e o desenho”.
Embora a posteridade o tenha ilibado de tais culpas, a incompreensão da crítica pode justificar-se, em parte, pelo duplo caráter de A Educação Sentimental, que é, ao mesmo tempo, um romance pessoal, o romance da desilusão, e a suma de uma época, uma espécie de romance social.
Por um lado, Flaubert retratou-se na personagem de Frédéric Moreau, e sob o nome de Senhora Arnoux evocou a figura da Senhora Schlésinger, que conhecera em Trouville, em 1836, quando ainda era quase uma criança e que foi a grande ternura, a única verdadeira paixão de toda a sua vida. Considerada deste ponto de vista, A Educação Sentimental acha-se na linha dos grandes romances pessoais do século XIX, Adolphe, Volupté, Le Lys dans la Vallée, Dominique.
Por outro lado, ao contar-nos esta história de uma derrota, este belo sonho que se desfaz a pouco e pouco ao contacto de uma realidade humilhante, esta renúncia da sensibilidade e da imaginação perante a vida, Flaubert fez reviver a Paris da Monarquia de Julho, minada pela fibre das revoluções, povoada por uma juventude já desanimada, pelo fato de ser “suficientemente inteligente e forte para conceber um ideal, mas não o bastante para o realizar”. A geração que ele encarna nos seus tristes heróis é aquela que vem imediatamente depois do triunfo e do declínio do romantismo. E, sob esse aspecto, A Educação Sentimental situa-se entre La Confession d’un Enfant du Siècle e Les Déracinés.
Este duplo caráter — romance psicológico e pessoal, romance de costumes e histórico — evidencia-se melhor ainda a partir da importante publicação feita por M.-J. Durry dos Projets inédits de Flaubert, segundo os Carnets, e os comentários tão perspicazes e penetrantes com os quais ilustrou esses documentos essenciais (c).
Não seria demais insistir, com efeito, sobre o que Flaubert, apesar de sua injustificada reputação de impessoalidade, quis por de si mesmo e de experiência vivida em seu livro. A Senhora Durry cita, sublinhando, esta frase de uma carta do autor à mãe, escrita na época em que meditava seu romance: “Transporto para esta obra (segundo meu hábito) tudo o que vejo e sinto”. Já é sabido que, por mais de uma vez, encontrou-se ele na situação em que colocará o seu herói; quaisquer possíveis dúvidas a esse respeito, aliás, desaparecem ao lermos nos seus Carnets, inicialmente, as páginas intituladas Moeurs parisiennes, e depois sobretudo os “projetos” de romances, os das Senhoras Dumesnil e Moreau, onde aparecem estas linhas emocionantes: “Travessia no barco de Montereau; um colegial. Sra. Sch (lésinger), Sr. Sch (lésinger), eu. Obsessão mulher virtuosa e sensata (escoltada pelos filhos) ”.
A Educação Sentimental pode ser considerada, depois de Madame Bovary, como um esforço vitorioso de Flaubert para se purgar do romantismo da sua juventude. Já Faguet observara, com razão, que Frédéric Moreau era filho espiritual de Bovary e de Emma. Vamos encontrar nele essa herança de ilusões interiores, de impaciências amorosas, de falências sentimentais que a mãe lhe deixou. Mas essa herança era também a de Flaubert, que liquida no seu livro, por meio da observação e da ironia, todos os seus sonhos, todas as quimeras dos seus vinte anos, dos quais já tinha feito o balanço, em 1845, num livro que tem o mesmo título (d).
Entre a primeira Educação Sentimental, a dos vinte e cinco anos, e a Educação de 1869, está toda a experiência ganha por Flaubert no decurso dos outros vinte e cinco anos que as separam. Mas entre os dois livros há também um grande número de profundas analogias, que demonstram ao mesmo tempo a continuidade dessa educação do sentimento em Flaubert e as estreitas relações de ambas as ficções com a realidade (e). Os dois livros contam igualmente uma educação da sensibilidade ao longo da vida, a experiência da vida amorosa nos anos de formação. Frédéric Moreau é também Flaubert, tal como o Jules da primeira Educação.
Já foi dito que Frédéric era uma transposição realista do romântico Amaury de Volupté. E é inegável que a influência do romance de Flaubert sobre a literatura realista foi considerável, talvez mais considerável do que a de Madame Bovary; no romance realista serão frequentes essas existências frustradas; a obra do próprio Maupassant, assim como a de Zola, de Daudet, dos Goncourt, de Huysmans, estão cheias de Educações Sentimentais. Noutras literaturas, quer seja em Ana Karenina, de Tolstoi, quer no Pequeno Mundo de Outrora, de Fogazzaro, encontra-se igualmente esse tipo de espíritos desiludidos, destituídos de vontade, cujas grandes ambições ou inquietos desejos esbarram com as duras necessidades de uma evolução social que os ultrapassa. E, bem perto de nós, um crítico descobria, há alguns anos, no romance de Paul Morand, Bouddha vivant, uma longínqua sobrevivência da obra-prima de Flaubert: essa aprendizagem da sensibilidade por um jovem príncipe oriental, através da nossa civilização gasta, termina por uma renúncia, por um malogro análogo ao de Frédéric Moreau (f).
A matéria “pessoal” de A Educação Sentimental é hoje bem conhecida; graças aos notáveis estudos de Gérard-Gailly (g). Já antes dele se sabia que a grande paixão de Flaubert tinha sido a Sra. Schlésinger, a “velha ternura”, a “sempre amada”, e que a sua figura revive na Educação sob os traços da Senhora Arnoux. Os flaubertistas já não eram mais os únicos a saber do encontro da criança romântica, na praia de Trouville, com a jovem a quem dedicou durante a vida inteira um amor impossível. Mas quase nada se sabia acerca dessa mulher. Os livros de Gérard-Gailly fizeram-nos conhecer tudo a seu respeito: em primeiro lugar, o seu nome de solteira, que nunca fora citado por ninguém, Elisa Foucault; as suas origens, o seu parentesco, o seu estado civil; depois, a data exata do encontro em Trouville, agosto de 1836, e não de 1837, como sempre se supusera; os dois casamentos de Elisa Foucault, o mistério que envolve os primeiros anos da sua vida de mulher, e que Gérard-Gailly respeita delicadamente, embora deixando-nos entrever o seu sentido; o nascimento dos seus dois filhos; a sua vida conjugal com essa figura curiosa que era Maurice Schlésinger, cuja personalidade complexa e desconcertante atividade nos são apresentadas numa pitoresca e divertida evocação; todos os contrastes e todas as quedas de um destino falhado, através das extravagâncias do marido e os desentendimentos dos filhos, até o fim trágico da mãe num hospício... Essa história não é contada gratuitamente: os seus episódios principais estão ligados à vida de Flaubert, com a qual cruzam constantemente, e à teia romanesca de A Educação Sentimental, para onde foram transpostos, e onde os podemos reconhecer.
Contrariamente ao que foi repetido pela maior parte dos críticos, desde a publicação das obras de juventude de Flaubert, Gérard-Gailly estabelece o evidente parentesco, graças a esta verdadeira ressurreição da Sra. Schlésinger, entre A Educação Sentimental de 1845 e a de 1869: na primeira, Flaubert, aos vinte e cinco anos, dá à sua grande paixão o natural desenlace que sonhara; na segunda, aos quarenta e oito anos, confessa com pungente lucidez o desmentido que a vida lhe infligira.
Quem se sinta tentado, apesar de tão convincente demonstração, a pôr em dúvida a presença da recordação de Elisa Foucault na vida e na obra de Flaubert, deve refletir neste fato comovedor que nos é revelado por Gérard-Gailly: ele sabe onde se encontram, em Paris, os exemplares dos livros de Flaubert que o escritor enviava fielmente à sua amiga de sempre; Gérard-Gailly pôde ver todos esses livros e as respectivas dedicatórias, pôde tocar-lhes, coma emoção e o respeito que se pode adivinhar; mas em vão procurou entre eles A Educação Sentimental.
Evocação amorosa, mas bem diferente da confissão romântica de um Musset, ou mesmo de um Sainte-Beuve (h), A Educação Sentimental e também uma espécie de romance histórico. Isso, ele próprio o disse; aqui, o historiador, procedendo com o mesmo escrúpulo que tivera ao escrever Salammbô ou Hérodias, baseará a vasta reconstituição de uma época política e social numa massa imponente de documentos vividos ou impressos, de inquéritos, de testemunhos de toda a espécie.
Qual é hoje o valor histórico deste quadro da Paris de 1848? Se foi possível encontrar-lhe erros de pormenor, ninguém o pôde todavia acusar de tendencioso, e a imparcialidade, a objetividade do autor parecem absolutas. Quando apareceram Os Miseráveis, Flaubert, não obstante a admiração e o respeito que dedicava a Victor Hugo, protestou indignadamente contra um livro no qual não encontrava “nem verdade, nem grandeza”. Revoltava-o sobretudo o estilo, intencionalmente incorreto e vulgar”: “É uma forma de adular o populacho. Hugo tem atenções e lisonjas para toda a gente; Sansimonistas, Filipistas e até os estalajadeiros, todos são baixamente adulados...”. É necessário ler esse juízo na íntegra (i), para se apreciar com quanta arte Flaubert soube harmonizar, num romance que é, sob certos aspectos, um romance social, o fundo histórico, a realidade viva e a ficção romanesca, sem desnaturar esta nem aquela.
Já se pretendeu estabelecer um paralelo entre A Educação Sentimental e um romance de Maxime Du Camp, Les Forces perdues, que descreve a mesma época. O próprio Flaubert se inquietava com tal aproximação, considerando embora que o romance do seu amigo dava “uma ideia exata dos homens da sua geração” (j). Mas, tanto para o historiador dos costumes como para o historiador político, o quadro descrito por Du Camp é muito menos vasto e completo do que o de Flaubert. O primeiro recorre quase exclusivamente às suas impressões e recordações pessoais; o segundo fez obra de historiador. Conforme já foi dito, a vida das personagens de A Educação Sentimental “está tão bem entretecida de realidades que se torna impossível perceber em que ponto deixa de ser história” (k). Eis por que este livro pode ser hoje utilizado como um testemunho histórico; confrontando-o com os historiadores da Monarquia de Julho e da Revolução de 1848 (l), pôde verificar-se a sua exatidão; as numerosas alusões que ele encerra controlam-se, esclarecem-se, definem-se pelos fatos e as figuras da época, e esse trabalho de exegese, que ainda mais o aproxima de nós, não lhe é desfavorável. E chegou até a dizer-se que “um historiador que deseje conhecer a época que precedeu o golpe de Estado não pode dispensar A Educação Sentimental” (m).
Será necessário acrescentar que é inútil atermo-nos estritamente à cronologia numa obra em que a realidade histórica serve de trama à ficção romanesca? Entretanto, pesquisadores pacientes submeteram tal cronologia a uma crítica rigorosa (n). Afinal, que importa que Flaubert, nos capítulos III e IV da última parte de A Educação Sentimental se tenha “deixado prender nas malhas das alusões múltiplas” e que, às vezes, tenha sido “colhido pelos fios de uma meada que ele de moto próprio embaraçara”! Muito mais sofreu a cronologia com a negligência, talvez proposital, do autor, em Bouvard et Pécuchet, romance além do mais inacabado, e as inconsequências que se pôde relevar na vida dos dois personagens em nada diminuem o interesse do livro.
Nessa questão das datas, como na das fontes, temos às vezes tendência a subestimar, se não a negligenciar, a parte predominante da arte do escritor. Admirando a habilidade com que Flaubert conseguiu soldar, no seu personagem de Frédéric, “tantos traços que provêm de Du Camp a tantos outros, muito mais numerosos ainda, provenientes de seu próprio passado”, René Dumesnil conclui com felicidade: “Isso mostra como é arriscado procurar num romance uma confissão inteira, uma autobiografia sincera. Quem diz romance digno desse nome, diz forçosamente invenção (o).”
Quando Flaubert, escrevendo o seu romance, lamentava “fazer uma coisa oposta à finalidade da Arte, que é a exaltação vaga”, terá sentido confusamente que dava sobre a sua própria personalidade um testemunho tão sincero e tão emocionante como sobre os jovens da sua geração? A Educação Sentimental e o drama da juventude burguesa de 1840; e é também o drama de um temperamento romântico, sempre frustrado, porque sempre procura o inacessível. A vida de Frédéric Moreau malogrou porque as circunstâncias exteriores são adversas ao sonho, e porque Frédéric se evade sempre, em vez de viver. Mas, Flaubert, o Flaubert de 1860, que conclusão tirou ele desta evasão falhada? “O desprezo pelas tentações do mundo e o refúgio na arte” (p).
Primeira parte
I
No dia 15 de setembro de 1840, o Ville-de-Montereau, pronto a largar, soltava os seus grossos rolos de fumo junto do cais Saint-Bernard. Gente chegava esbaforida; barricas, cordas, cestos de roupa dificultavam a circulação; os marujos não respondiam a ninguém; as pessoas atropelavam-se; entre os dois cilindros eram içadas encomendas, e a vozeria perdia-se no silvo do vapor das máquinas que, escapando por entre as chapas de zinco, envolvia a cena numa nuvem esbranquiçada, enquanto a sineta, à proa, tocava sem parar1.
Por fim, o navio partiu; e as duas margens, cobertas de lojas, de estaleiros e de fábricas, desenrolaram-se como duas largas fitas.
Um jovem de dezoito anos, de cabelos compridos, e que segurava um álbum debaixo do braço, conservava-se imóvel junto do leme. Através do nevoeiro, contemplava campanários, edifícios cujo nome ignorava; em seguida, lançou um derradeiro olhar à ilha Saint-Louis, à Cité, à Notre-Dame; e, dentro em pouco, tendo Paris desaparecido, soltou um profundo suspiro.
O Senhor Frédéric Moreau2, tendo acabado o curso secundário, regressava a Nogent-sur-Seine, onde se aborreceria durante dois meses, antes de ir seguir o curso de Direito. A mãe dera-lhe a quantia exata para ir ao Havre visitar o tio, cuja herança esperava que viesse a caber ao filho; só na véspera regressara e, como compensação por não poder demorar-se na capital, escolhera o mais longo caminho de volta.
O tumulto apaziguava-se; todos se tinham instalado; alguns, de pé, aqueciam-se em redor da máquina, e a chaminé ia soltando, com um estertor lento e rítmico, o seu penacho de fumaça negra; gotinhas de orvalho escorriam pelas superfícies de cobre; o tombadilho tremia com uma pequena vibração interna, e as duas rodas, girando rapidamente, açoitavam a água.
As duas margens do rio eram arenosas. Cruzava-se com jangadas de madeira que ficavam ondulando sob o efeito das vagas, ou então, num barco sem velas, era um homem que pescava, sentado; depois, as névoas errantes desfizeram-se, o sol apareceu, a colina que, à direita, acompanhava o curso do Sena, foi diminuindo aos poucos e outra surgiu, mais próxima, na margem oposta.
Coroavam-na árvores, por entre casas baixas de telhados à italiana. Tinham jardins em declive, divididos por muros novos, grades de ferro, gramados, estufas, e vasos de gerânios, a intervalos regulares, em terraços onde se podia ficar debruçado. Alguns dos viajantes, ao ver essas residências graciosas, muito tranquilas, sonhavam ser proprietários delas3, para aí viver até o fim dos seus dias, com um bom bilhar, uma chalupa, uma mulher ou qualquer outro sonho. O prazer inédito de uma excursão marítima5 facilitava essas expansões. Os espirituosos já tinham dado início às suas graças. Muitos cantavam. Todos estavam alegres. Bebiam.
Frédéric pensava6 no quarto em que iria morar, no plano de um drama, em motivos de quadros, em futuras paixões. Achava que a felicidade merecida pela excelência da sua alma estava tardando. Declamou, de si para si, versos melancólicos; percorria o tombadilho em passos rápidos; seguiu até o extremo, junto da sineta; — e, numa roda de passageiros e marujos, viu um senhor que dirigia galanteios a uma camponesa, brincando com a cruz de ouro que ela trazia ao peito. Era um sujeito forte, de uns quarenta anos, cabelos crespos. O tronco robusto enchia o jaquetão de veludo preto, na camisa de cambraia brilhavam duas esmeraldas, e as calças largas caíam sobre estranhas botas vermelhas, em couro da Rússia, realçadas por desenhos azuis7.
A presença de Frédéric não o perturbou. Voltou-se diversas vezes para ele, piscando-lhe o olho; depois, ofereceu charutos a toda a gente que estava à volta. Mas, cansando-se daquela companhia, sem dúvida, foi para mais longe. Frédéric acompanhou-o.
A conversa incidiu a princípio sobre as várias espécies de fumo, em seguida, como era natural, sobre mulheres. O cavalheiro de botas vermelhas deu conselhos ao jovem; expunha teorias, contava anedotas, dava-se a si próprio como exemplo, falando sempre em tom paternal, com uma corrupção divertida e ingênua.
Era republicano; viajara, conhecia os teatros por dentro, os restaurantes, os jornais, assim como todos os artistas célebres, aos quais tratava, familiarmente, pelo primeiro nome; não tardou que Frédéric lhe contasse os seus projetos; ele encorajou-o.
Mas calou-se para observar a chaminé do vapor, em seguida ao que, se pôs a fazer rapidamente, por entre dentes, um longo cálculo a fim de saber “quanto cada movimento do êmbolo, a tantos por minuto, devia etc.” — e, tendo achado o resultado, admirou muito a paisagem. E dizia-se feliz por se ter livrado dos negócios.
Frédéric sentia um certo respeito por ele, e não resistiu ao desejo de lhe perguntar o nome. O desconhecido respondeu, dum jato:
— Jacques Arnoux, proprietário da Art industriel, Bulevar Montmartre.
Um criado de boné com galões dourados veio dizer-lhe:
— O senhor quer fazer o favor de descer? A menina está chorando.
E desapareceu.
A Art industriel era um estabelecimento híbrido, que incluía um jornal de pintura e uma galeria de arte. Frédéric vira esse título, por diversas vezes, na vitrina da livraria da sua terra natal, em imensos prospectos, nos quais o nome de Jacques Arnoux se ostentava gloriosamente.
O sol caía a prumo, fazendo rebrilhar os anilhos de ferro em torno dos mastros, as placas da pavesada e a superfície da água, que a proa abria em dois sulcos prolongados até às margens. Nas curvas do rio, surgia sempre a mesma cortina de salgueiros esmaecidos. Não se descortinava vivalma. Pequenas nuvens brancas paradas pontilhavam o céu — e um vago tédio parecia enlanguescer a marcha do vapor e tornar ainda mais insignificante o aspecto dos passageiros.
Com exceção de alguns burgueses, na primeira classe, eram operários e lojistas com as mulheres e os filhos. Como o costume de então era vestir-se sordidamente em viagem, quase todos usavam velhas barretinas gregas, ou chapéus desbotados, fraques pretos puídos, lustrosos de roçar nas escrivaninhas, ou então sobrecasacas cujos botões forrados se esgarçavam, de tanto terem servido nas lojas; aqui e ali, um colete posto aos ombros como xale deixava entrever uma camisa de algodão, maculada de café; alfinetes dourados prendiam gravatas esfarrapadas; tiras de pano prendiam aos pés pantufas de feltro; dois ou três vadios, ostentando pingalins com alças de couro, lançavam olhares de esguelha, e chefes de família esbugalhavam os olhos, fazendo perguntas. Conversavam em pé ou sentados nas bagagens; outros dormiam pelos cantos; alguns comiam. Cascas de nozes e de peras, pontas de charuto, restos de chouriço, trazido dentro de papéis, sujavam o tombadilho; três marceneiros, de blusões, estacionavam diante da cantina; um tocador de harpa, esfarrapado, descansava apoiado no seu instrumento; de tempos em tempos, ouvia-se o ruído do carvão de pedra na fornalha, uma voz que se elevava, uma risada; — e o capitão, na ponte, ia sem parar de uma roda à outra. Para voltar ao seu lugar, Frédéric abriu a cancela da primeira classe, passando por entre dois caçadores e os seus cães.
Foi como uma aparição8:
Ela estava sentada, sozinha, no meio do banco; pelo menos, ele não distinguiu mais ninguém, cego pela luz que lhe emanava dos olhos. Quando passava, ela ergueu a cabeça; Frédéric, involuntariamente, vergou os ombros; e, sentando-se mais adiante, do mesmo lado, ficou a olhar para ela.
Tinha um grande chapéu de palha, com fitas cor-de-rosa que o vento fazia esvoaçar. O cabelo preto formava bandôs, que, quase tocando a extremidade das longas sobrancelhas, desciam tão baixo que pareciam cingir amorosamente o oval do seu rosto. O vestido de musselina clara, de bolinhas, estendia-se em numerosas pregas. Bordava qualquer coisa; e o nariz reto, o queixo, toda ela se recortava sobre o fundo azul do céu9.
Mantendo-se ela na mesma atitude, Frédéric foi para um lado, depois para outro, a fim de dissimular a sua manobra; em seguida instalou-se bem junto da sombrinha dela, encostado ao banco, fingindo observar uma chalupa que passava.
Nunca vira um tal esplendor de pele morena, sedução igual à daquela cintura, nem dedos tão finos como os dela, que a luz atravessava. Olhava com pasmo para a cestinha de costura, como se fosse uma coisa extraordinária. Como se chamaria, onde morava, qual seria a sua vida, o seu passado? Desejava conhecer os móveis do quarto dela, todos os vestidos que ela usara, as pessoas que frequentava; e o próprio desejo carnal da posse desaparecia perante uma aspiração mais profunda, numa curiosidade dolorosa que não tinha limites.
Uma negra, de lenço amarrado na cabeça, surgiu, trazendo pela mão uma menina já crescida. A criança tinha os olhos marejados de lágrimas, acabava de acordar; ela sentou-a no colo. “A menina não tinha juízo, embora tivesse quase sete anos; sua mãe ia deixar de gostar dela; deixavam-na ter todos os caprichos”. E Frédéric encantava-se por ouvir aquelas coisas, como se fosse uma descoberta, uma aquisição10.
Supunha-a de origem andaluza11, ou talvez crioula: teria trazido com ela aquela negra, das Ilhas?
Entretanto, um grande xale12 de listras roxas pendia-lhe atrás das costas, na barra de cobre da amurada. Quantas vezes, em pleno mar, durante as noites úmidas, não o teria posto em volta dos ombros, coberto com ele os pés, dormido envolta nele! Mas o xale, arrastado pelo peso das franjas, ia deslizando, estava prestes a cair na água. Frédéric de um salto agarrou-o. Ela disse-lhe:
— Muito obrigada, senhor.
Os seus olhos encontraram-se.
— Está pronta, minha mulher? — exclamou o Senhor Arnoux, surgindo no vão da escada.
A pequena Marthe correu para ele, e, pendurando-se-lhe no pescoço, puxava-lhe os bigodes. Ouviram-se os sons de uma harpa, e ela quis ver a música; o harpista, trazido pela negra, não tardou a surgir na primeira classe. Arnoux reconheceu nele um antigo modelo, e tratou-o por tu, para surpresa dos assistentes. Finalmente, o harpista deitou os longos cabelos para trás dos ombros, estendeu os braços e começou a tocar.
Era uma romança oriental, em que se falava de punhais, flores e estrelas. O homem coberto de andrajos cantava com uma voz mordente; as pancadas da máquina cortavam a melodia fora do compasso; ele dedilhava com mais força: as cordas vibravam; e os seus sons metálicos pareciam exalar soluços, como se fosse a queixa de um amor orgulhoso e malogrado. De ambos os lados do rio, os bosques chegavam quase à beira d’água; sentiu-se uma corrente de ar fresco; a Senhora Arnoux fitava a distância, com um ar vago. Quando a música terminou, pestanejou várias vezes, como se despertasse de um sonho.
O harpista aproximou-se deles, humilde. Enquanto Arnoux procurava dinheiro trocado, Frédéric estendeu a mão fechada para o boné e, abrindo-a com pudor, depositou nele um luís de ouro. Não era a vaidade que o levava a dar aquela esmola diante dela, mas uma ideia de bênção à qual a associava, um movimento quase religioso do coração.
Arnoux, mostrando-lhe o caminho, convidou-o cordialmente a descer. Frédéric afirmou que acabara de almoçar; pelo contrário, estava morrendo de fome; e já não tinha um cêntimo sequer no fundo da bolsa.
Em seguida pensou que tinha tanto direito como qualquer outra pessoa de estar na sala.
Em volta das mesas redondas, burgueses comiam, e um criado circulava; a Senhora Arnoux e o marido estavam ao fundo, à direita; Frédéric sentou-se no comprido banco forrado de veludo, e pegou num jornal que lá se achava.
Em Montereau, eles tomariam a diligência de Châlons. A sua viagem pela Suíça ia durar um mês. A Senhora Arnoux censurou o marido por fazer todas as vontades da filha. Ele murmurou-lhe qualquer coisa ao ouvido, certamente uma palavra afetuosa, porque ela sorriu. Depois, Arnoux soergueu-se para fechar, atrás dela, o cortinado da janela.
O teto, baixo e todo branco, refletia uma luz crua. De frente para eles, Frédéric podia distinguir a sombra dos cílios da Senhora Arnoux. Ela molhava os lábios no copo, partia um pedaço de pão; o medalhão de lápis-lazúli, preso ao seu pulso por uma correntinha de ouro, batia de vez em quando de encontro ao prato. E, contudo, as outras pessoas não pareciam dar conta da sua presença.
Pelas vigias, de quando em quando, via-se deslizar o costado duma barca, que vinha trazer ou levar passageiros. Os que estavam sentados às mesas debruçavam-se das vigias e diziam os nomes dos lugares por onde iam passando.
Arnoux queixava-se da cozinha: ao ver a conta, reclamou, e obteve uma redução. Em seguida levou Frédéric até a proa, para beberem grogues. Mas o jovem não tardou a voltar para debaixo do toldo, onde a Senhora Arnoux já se encontrava novamente. Ela estava lendo um volume fino, de capa cinzenta. De vez em quando, os cantos da sua boca levantavam-se, e passava-lhe no rosto uma expressão de prazer. Frédéric invejou o autor daquelas coisas que pareciam interessá-la. Quanto mais a contemplava, mais sentia o abismo que os separava. Pensava que dentro em pouco teria que a deixar, irremissivelmente, sem ter obtido dela uma palavra, sem lhe deixar uma recordação sequer!
À direita estendia-se uma planície; à esquerda, um prado prolongava-se suavemente até uma colina, na qual se avistavam vinhas, nogueiras, um moinho por entre a vegetação, e estreitas veredas mais além, que faziam ziguezagues ao longo da rocha branca que parecia tocar o céu. Que felicidade não seria subir com ela ao seu lado, o braço envolvendo-lhe a cintura, enquanto o vestido dela arrastaria as folhas amarelecidas, escutando-lhe a voz, sob a luz dos seus olhos! O barco podia parar, e eles podiam descer; e esta coisa tão simples não era, afinal, mais fácil do que parar o sol!
Um pouco adiante avistava-se um castelo, de telhado pontiagudo e torres quadradas. Um canteiro de flores estendia-se diante da fachada; e avenidas que lembravam abóbadas escuras abriam-se debaixo das altas tílias. Frédéric imaginou-a passando junto aos caramanchões. Nesse momento, uma moça e um rapaz surgiram no terraço, entre as caixas das laranjeiras. Depois tudo desapareceu.
A menina brincava junto dele. Frédéric quis beijá-la. Ela escondeu-se atrás da criada; a mãe ralhou-lhe por não ser amável com o senhor que lhe salvara o xale. Pretenderia fornecer-lhe uma deixa?
“Irá ela afinal falar-me?”, perguntava Frédéric aos seus botões.
O tempo urgia. Como conseguir ser convidado para a casa de Arnoux? E não imaginou coisa melhor do que fazer-lhe notar a cor do outono, acrescentando:
— Não tarda aí o inverno, tempo dos bailes e dos jantares!
Mas Arnoux estava demasiado ocupado com as bagagens.
Surville apareceu, as duas pontes aproximavam-se, o barco passou junto duma cordoaria, em seguida surgiu uma enfiada de casas baixas; junto delas, viam-se barricas de alcatrão, lascas de madeira; e garotos corriam pela areia, dando cambalhotas.
Frédéric reconheceu um homem, que vestia colete, e gritou-lhe:
— Anda depressa!
Tinham chegado. Frédéric teve dificuldade em achar Arnoux na multidão dos passageiros, e o outro respondeu, apertando-lhe a mão:
— Passe bem, meu caro senhor!
Chegado ao cais, Frédéric voltou-se. Ela estava de pé, junto do leme. Ele lançou-lhe um olhar em que tentara pôr toda a sua alma; como se ele nada tivesse feito, ela permaneceu imóvel. Depois, sem prestar atenção aos cumprimentos do criado:
— Por que não trouxeste o carro até aqui?
O homem desculpava-se.
— És um trapalhão! Dá cá dinheiro!
E foi comer numa estalagem.
Passado um quarto de hora, teve vontade de entrar no pátio das diligências, como se fosse por acaso. Quem sabe, talvez a visse ainda?
“Para quê?”, disse de si para si.
E tomou a charrette. Os cavalos não eram ambos de sua mãe. Pedira emprestado o do Senhor Chambrion, o coletor de impostos, para o atrelar junto com o seu. Isidore, que partira na véspera, descansara em Bray até o anoitecer, e dormira em Montereau, de modo que os animais estavam folgados e trotavam com ânimo.
Campos já ceifados estendiam-se a perder de vista. Duas filas de árvores ladeavam a estrada, montículos de cascalho sucediam-se; e, a pouco e pouco, Villeneuve-Saint-Georges, Ablon, Châtillon, Corbeil e os outros lugares, toda a viagem lhe voltou à memória, com tanta nitidez que distinguia agora novos pormenores, particularidades mais íntimas; sob o último folho do vestido, aflorava o pé, numa fina botina de seda castanha; o toldo de riscado formava um grande pálio sobre a cabeça dela, e as pequenas borlas vermelhas da franja oscilavam à brisa, perpetuamente.
Ela lembrava as mulheres dos livros românticos13. Frédéric nada desejaria acrescentar nem tirar à sua pessoa. De súbito, o universo tinha-se alargado. Ela era o ponto luminoso para o qual convergia a totalidade das coisas; — e, embalado pelo movimento do carro, de olhos semicerrados, o olhar perdido nas nuvens, abandonava-se a uma alegria vaga e sem limites.
Em Bray, não esperou que dessem aveia aos cavalos, e foi caminhando pela estrada, sozinho. Arnoux tinha-lhe chamado “Marie!”. E gritou muito alto “Marie!”. A sua voz perdeu-se no ar.
Uma extensa faixa cor de púrpura incendiava o céu ao ocidente. Grandes medas de trigo, erguidas no meio dos colmos, projetavam sombras gigantescas. Numa propriedade, ao longe, um cão pôs-se a latir. Frédéric estremeceu, tomado por uma inquietação sem causa.
Quando Isidore o alcançou, sentou-se na boleia e tomou conta das rédeas. O seu mal-estar tinha passado. Estava decidido a fazer-se convidar pelos Arnoux, de qualquer forma, e a manter relações com eles. A sua casa devia ser divertida. Aliás, simpatizara com Arnoux; e depois, quem sabe? Então, uma onda de sangue subiu-lhe ao rosto: as fontes latejaram-lhe. Fez estalar o chicote, sacudiu as rédeas e lançou os cavalos a tal galope que o velho cocheiro repetia:
— Devagar! Mais devagar! Vai deixá-los esfalfados.
Frédéric foi-se acalmando aos poucos, e pôs-se a escutar o seu velho criado.
O patrão era esperado com grande impaciência. A Senhorita Louise tinha chorado, porque queria vir na charrette.
— Quem é a Senhorita Louise?
— A menina do Senhor Roque, não se lembra?
— Ah! Já nem me lembrava dela! — replicou Frédéric, distraidamente.
Entretanto, os dois cavalos não podiam mais. Ambos mancavam; e soavam nove horas em Saint-Laurent quando ele chegou à Praça d'Armes, diante da casa de sua mãe. Essa casa, espaçosa, com um jardim que dava para o campo, aumentava a consideração em que era tida a Senhora Moreau, a pessoa mais respeitada da região.
A Senhora Moreau pertencia a uma velha família de fidalgos, já extinta. O marido, plebeu que os pais a tinham feito desposar, morrera duma sabrada, durante a gravidez dela, deixando-lhe um pecúlio comprometido. Recebia três vezes por semana e dava de vez em quando um grande jantar. Mas o número de velas era calculado com antecedência, e os rendimentos, esperados impacientemente. Esse aperto, dissimulado como se fosse um vício, conservava-lhe a honestidade. Todavia, a sua virtude era destituída de afetação e de azedume. Os seus menores gestos caritativos pareciam grandes esmolas. Era consultada sobre a escolha dos criados, a educação das meninas, a arte de fazer doces, e o Bispo, nas suas visitas episcopais, ficava hospedado em casa dela.
A Senhora Moreau tinha grandes ambições para o filho. Não gostava de ouvir críticas ao Governo, por uma espécie de prudência antecipada. De início, ele teria necessidade de proteção; depois, graças às suas qualidades, chegaria a conselheiro de Estado, a embaixador, a ministro. Os triunfos que ele obtivera no colégio de Sens justificavam tal orgulho; Frédéric tinha ganhado o primeiro prêmio.
Quando ele entrou no salão, todos se ergueram ruidosamente, para abraçá-lo; e formou-se um grande círculo de poltronas e cadeiras em volta da lareira. O Senhor Gamblin perguntou imediatamente a opinião dele sobre a Senhora Lafarge14. Este processo, que fez furor na época, suscitou, como não podia deixar de ser, uma discussão violenta, que a Senhora Moreau interrompeu, para pesar do Senhor Gamblin; achava-a útil ao jovem, na sua qualidade de futuro jurisconsulto, e saiu do salão, irritado.
Isso não era para estranhar da parte dum amigo do Senhor Roque! A propósito do Senhor Roque, falou-se do Senhor Dambreuse, que acabava de adquirir a propriedade de Fortelle. Mas o recebedor chamara Frédéric de parte, para lhe perguntar o que pensava da última obra do Senhor Guizot15. Todos queriam saber da sua situação; e a Senhora Benoît fê-lo habilmente, perguntando pelo tio de Frédéric. Como passava esse estimado parente? Já não dava sinal de si há muito tempo. Ele não tinha um primo afastado na América?
A cozinheira veio anunciar que a sopa do Senhor Frédéric estava na mesa. Todos, discretamente, se retiraram. Uma vez a sós, na sala, a mãe disse-lhe, em voz baixa:
— Então?
O velho recebera-o com toda a cordialidade, mas sem revelar as suas intenções.
A Senhora Moreau suspirou.
“Onde estará ela agora?”, pensava Frédéric.
A diligência rodava, e ela, sem dúvida envolta no xale, apoiava no forro da carruagem a sua bela cabeça adormecida.
Já subiam para os seus quartos quando um criado do Cygne de la Croix veio trazer um bilhete.
O que é?
— É o Deslauriers que me quer ver — disse ele.
— Ah! O teu colega! — exclamou a Senhora Moreau com ar de escárnio. — Escolheu bem a hora, não há dúvida!
Frédéric hesitava. Mas a amizade foi mais forte. Pegou no chapéu.
— Pelo menos, não te demores muito! — disse-lhe a mãe.
II
O pai de Charles Deslauriers, antigo capitão do exército, que pedira demissão em 1818, voltara a Nogent para se casar, e comprara, com o dote, um cartório de meirinho, que mal lhe dava para viver. Amargurado por antigas injustiças, sofrendo ainda os efeitos dos velhos ferimentos, e sempre saudoso do Imperador, vingava-se nos seus próximos da cólera que o roía. Poucas crianças tinham sido mais espancadas do que o seu filho. O pequeno não cedia, apesar das surras. A mãe, quando tentava meter-se de permeio, apanhava também. Finalmente, o capitão o pôs no seu cartório, e mantinha-o o dia inteiro curvado sobre a escrivaninha, copiando processos, o que lhe deixou o ombro direito visivelmente mais forte do que o outro.
Em 1833, a convite do presidente do Tribunal, o capitão vendera o cartório. A mulher morreu de câncer, e ele instalou-se em Dijon; depois fez-se mercador de homens1, em Troyes; e, tendo conseguido uma meia-bolsa para Charles, o pôs no colégio de Sens2, onde Frédéric o conheceu. Mas um tinha doze anos, o outro quinze; aliás, mil diferenças de caráter e de origem os separavam.
Frédéric guardava na sua cômoda as mais variadas provisões, e coisas finas, como, por exemplo, um estojo de toilette. Gostava de dormir até tarde, pela manhã, de contemplar as andorinhas, de ler peças de teatro, e, sentindo falta dos aconchegos de casa, achava a vida do colégio dura.
O filho do meirinho achava-a excelente. Trabalhava de tal maneira, que ao fim do segundo ano passou para a quinta série.
Contudo, devido à pobreza, ou ao humor belicoso, não era olhado com simpatia. Mas quando um criado lhe chamou, uma vez, pé-rapado, atirou-se-lhe ao pescoço e tê-lo-ia morto se não fosse a intervenção de três inspetores. Frédéric, entusiasmado, apertou-o contra o peito. Desde esse dia, a intimidade foi completa. A afeição de um colega mais velho lisonjeou, sem dúvida, a vaidade do pequeno, e para o outro foi uma felicidade aquela dedicação que se oferecia.
Durante as férias, o pai deixava-o no colégio. Uma tradução de Platão, que abriu por acaso, entusiasmou-o. Apaixonou-se então pelos estudos metafísicos; e fez rápidos progressos, porque os empreendia com força juvenil e o orgulho de uma inteligência que se liberta; Jouffroy, Cousin, Laromiguière, Malebranche, os Escoceses, tudo o que havia na biblioteca, ele devorou. Tivera que roubar a chave da sala, para conseguir livros.
As distrações de Frédéric não eram tão sérias. Desenhou na Rua des Trois-Rois a genealogia de Cristo, esculpida num poste, em seguida o pórtico da catedral. Depois dos dramas da Idade Média, lançou-se às memórias: Froissart, Comines, Pierre de L’Estoile, Brantôme.
As imagens que essas leituras suscitavam no seu espírito obcecavam-no de tal maneira que sentia a necessidade de as reproduzir. Ambicionava vir um dia a ser o Walter Scott da França3. Deslauriers projetava um vasto sistema de filosofia, que teria as mais longínquas aplicações.
Conversavam acerca de tudo isso, durante os recreios, no pátio, diante do preceito moral pintado por baixo do relógio4, e, em voz baixa, na capela, nas barbas de S. Luís; e sonhavam com essas coisas no dormitório, que dava para um cemitério. Nos dias de passeio, deixavam-se ficar para trás dos outros, e conversavam sem parar.
Falavam do que viriam a fazer mais tarde, depois de terem saído do colégio. Primeiro, empreenderiam uma grande viagem com o dinheiro do pecúlio que Frédéric receberia, ao chegar à maioridade. Depois voltariam a Paris, trabalhariam juntos, nunca haviam de se separar; — e, como distração para os seus trabalhos, teriam amores com princesas em câmaras forradas de cetim, ou fulgurantes orgias com ilustres cortesãs. A inquietação sucedia a esses arroubos de esperança. Depois das crises de alegria verbosa, caíam em profundos silêncios.
Nas tardes de verão, quando tinham andado longo tempo pelos caminhos de pedras que ladeavam os vinhedos, ou pela estrada em pleno campo, e o trigo ondulava ao sol, enquanto um perfume de angélica impregnava o ar, sentiam uma espécie de opressão, e estendiam-se de costas, atordoados, embriagados. Os outros, em mangas de camisa, jogavam barra ou empinavam papagaios. O vigilante chamava-os. Regressavam, pelos jardins que ribeirinhos atravessavam, depois pelas avenidas ensombradas por velhos muros; as ruas desertas ressoavam sob os seus passos; abria-se a grade, subiam as escadas; e sentiam-se tristes, como depois de grandes devassidões.
O censor achava que eles se sublimavam mutuamente. Contudo, se Frédéric trabalhou nas classes superiores, foi graças às exortações do amigo; e, nas férias de 1837, levou-o para a casa de sua mãe.
O jovem não agradou à Senhora Moreau. Comeu imensamente, recusou-se a assistir à missa do domingo, proferia discursos republicanos; além disso, julgou saber que ele levara o seu filho para lugares desonestos. As suas relações foram vigiadas. Isso ainda mais os aproximou; e a despedida foi penosa quando Deslauriers, no ano seguinte, deixou o colégio, para ir estudar Direito em Paris.
Frédéric contava encontrar-se lá com ele. Havia dois anos que não se viam; e, acabados os abraços, foram até as pontes, para conversar mais à vontade.
O Capitão, que explorava agora um bilhar em Villenauxe, deitara fogo pelos olhos quando o filho lhe exigira a prestação de contas da tutela, e cortara-lhe até os subsídios. Mas, como pretendia concorrer mais tarde a uma cadeira de professor na Escola, e não tinha dinheiro, Deslauriers aceitara, em Troyes, um lugar de primeiro escrevente de um procurador. À força de privações, economizaria quatro mil francos; e, mesmo que não viesse a receber nada da herança materna, sempre teria meios para trabalhar livremente, durante três anos, enquanto não obtivesse uma posição. Tinham assim que pôr de parte o velho projeto de viverem juntos na capital, pelo menos nos tempos mais próximos.
Frédéric baixou a cabeça. Era o primeiro dos seus sonhos que caía por terra.
— Consola-te — disse o filho do capitão — a vida é longa; nós somos jovens. Irei ter contigo! Não penses mais nisso!
Sacudia-lhe as mãos e, para distraí-lo, interrogou-o sobre a viagem.
Frédéric não tinha grande coisa para contar. Mas, ao pensar na Senhora Arnoux, a sua dor evolou-se. Não falou nela, inibido por um pudor5. Em compensação, referiu-se abundantemente a Arnoux, dele evocando os discursos, as maneiras, as relações; e Deslauriers estimulou-o vivamente a cultivar esse conhecimento.
Nos últimos tempos, Frédéric nada escrevera; as suas opiniões literárias tinham-se modificado: apreciava acima de tudo a paixão; Werther6, René, Franck, Lara, Lélia e outros mais medíocres entusiasmavam-no quase no mesmo grau. Por vezes, parecia-lhe que só a música poderia exprimir a sua perturbação interior; então, sonhava com sinfonias; ou era atraído pela superfície das coisas, e desejava pintar. Contudo, fizera versos; Deslauriers achou-os muito belos, mas não lhe pediu que recitasse outra poesia.
Quanto a ele, deixara a metafísica. Agora interessava-se pela economia social, pela Revolução Francesa. Aos vinte e dois anos, era um rapaz alto e desengonçado, magro, com uma boca grande, ar decidido. Vestia, nessa noite, um pobre paletó de alpaca; e os seus sapatos estavam brancos de poeira, pois viera de Villenauxe a pé, só para ver Frédéric.
Isidore chegou junto deles. A senhora pedia ao senhor que voltasse para casa, e, receando que ele tivesse frio, mandava-lhe o sobretudo.
— Não te vás já embora! — disse Deslauriers.
E continuaram a passear de uma extremidade à outra das duas pontes que se apoiavam sobre a estreita ilha, formada pelo canal e pelo rio.
Quando iam na direção de Nogent, tinham, à sua frente, um grupo de casas, num leve declive; à direita, a igreja aparecia por trás dos moinhos de madeira, cujas comportas estavam fechadas; e, à esquerda, sebes de arbustos, ao longo da margem, fechavam jardins, que mal se distinguiam. Mas, do lado de Paris, a estrada larga descia em linha reta, e os prados perdiam-se ao longe, nas brumas da noite, que era silênciosa e de uma luminosidade esbranquiçada. Vinha até eles o cheiro de folhagem úmida; a água da represa, cem passos adiante, caía com aquele murmúrio forte e manso que fazem as ondas nas trevas.
Deslauriers parou, e disse:
— Tem graça, essa boa gente dormindo tranquilamente! Paciência! Um novo 89 se prepara! Estamos fartos de constituições, de cartas, de sutilezas, de mentiras! Ah! Se eu tivesse um jornal ou uma tribuna, que safanão dava nisso tudo! Mas, para se empreender seja o que for, é preciso dinheiro! Que maldição, ser filho de um taberneiro e perder a juventude ganhando o pão!
Baixou a cabeça, mordendo os lábios; tiritava, sob a roupa leve.
Frédéric lançou-lhe sobre os ombros metade do sobretudo. Envolveram-se os dois nele; e, abraçando-se pela cintura, foram caminhando assim, lado a lado.
— Como eu hei de viver lá, sem ti? — dizia Frédéric. A amargura do amigo deixara-o novamente triste. — Poderia fazer alguma coisa, com uma mulher que me amasse... Por que te ris? O amor é o alimento e como que a atmosfera do gênio. As emoções extraordinárias produzem as obras sublimes. Mas desisti de procurar aquela de quem precisaria! Aliás, se algum dia a encontrar, serei repelido por ela. Pertenço à raça dos deserdados, e morrerei com o meu tesouro sem saber se ele era um diamante verdadeiro ou artificial.
Sobre a calçada alongou-se a sombra de alguém, ao mesmo tempo em que ouviam estas palavras:
— Criado às ordens, meus senhores!
Quem as pronunciava era um homenzinho vestindo uma larga sobrecasaca marrom, e que usava um boné sob cuja pala se divisava um nariz afilado.
— E o Senhor Roque? — disse Frédéric.
— Em pessoa! — retorquiu a voz.
O homem de Nogent justificou a sua presença contando que vinha do jardim, onde inspecionara as armadilhas postas à beira d’água para os lobos.
— Então, de regresso à nossa terra? Muito bem! Eu soube pela minha filha. A saúde sempre boa, espero? Não nos vai deixar, por enquanto?
E foi-se embora, sem dúvida descontente com o acolhimento de Frédéric.
Com efeito, a Senhora Moreau não lhe frequentava a casa; o Senhor Roque vivia em concubinato com a criada, e era muito pouco estimado, apesar de ser o cabo eleitoral e o administrador do Senhor Dambreuse.
— O banqueiro que mora na Rua d'Anjou? — retorquiu Deslauriers. — Sabes o que tu devias fazer, meu velho?
Isidore veio interrompê-los novamente. Tinha ordens para levar Frédéric, definitivamente. A senhora estava inquieta com a demora.
— Bom, bom! Ele já vai — disse Deslauriers; — não vai ficar fora de casa.
E prosseguiu, depois da partida do criado:
— Devias pedir a esse velhote que te apresentasse em casa dos Dambreuse; não há coisa mais útil do que frequentar uma casa rica! Já que tens uma casaca e luvas brancas, aproveita! Precisas conhecer esse mundo! Mais tarde me levarás lá. Um homem que possui milhões, calcula! Arranja maneira de lhe agradar, e à mulher também. Torna-te amante dela!
Frédéric achava absurdo.
— Mas o que te estou dizendo são coisas clássicas! Lembra-te de Rastignac na Comédia Humana! Hás de triunfar, tenho certeza!
Frédéric tinha tal confiança em Deslauriers que se sentia abalado e, quer esquecesse a Senhora Arnoux, ou a incluísse na predição feita acerca da outra, não pôde deixar de sorrir.
— Último conselho: faz os teus exames! Um título é sempre bom; e deixa de uma vez os teus poetas católicos e satânicos, que não estão mais adiantados em filosofia do que se estava no século XII. O teu desespero é tolo. Grandes sujeitos principiaram a sua carreira com muito maiores dificuldades, a começar por Mirabeau. Além disso, a nossa separação não durará muito. Obrigarei o malandro do meu pai a largar o dinheiro. São horas de me ir embora, adeus! Tens aí cinco francos para eu pagar o jantar?
Frédéric deu-lhe dez, quanto lhe restava do dinheiro que pedira pela manhã a Isidore.
Entretanto, a quarenta metros das pontes, na margem esquerda, uma luz brilhava no postigo de uma casa baixa.
Deslauriers avistou-a e disse com ênfase, tirando o chapéu:
— Vênus, rainha dos céus, um teu criado! Mas a Penúria é a mãe da Prudência. Muito nos caluniaram por causa disso, misericórdia!
Essa alusão a uma aventura em comum pô-los em boa disposição. E riam muito alto, pelas ruas afora.
Depois, paga a despesa na estalagem, Deslauriers acompanhou o amigo até a encruzilhada do Hospital; — e após um demorado abraço, os dois amigos separaram-se.
III
Dois meses depois, Frédéric, que certa manhã desembarcara na Rua Coq-Héron, pensou imediatamente em fazer sua grande visita.
O acaso ajudara-o. O Senhor Roque viera com um rolo de papéis, pedindo que os entregasse pessoalmente em casa do Senhor Dambreuse; e juntara um bilhete por lacrar, apresentando o seu jovem conterrâneo.
A Senhora Moreau mostrou-se surpreendida com o pedido. Frédéric dissimulou o prazer que ele lhe causava.
O verdadeiro nome do Senhor Dambreuse1 era, na realidade, Conde d'Ambreuse; entretanto, abandonara em 1825 a nobreza e o seu partido, e voltara-se para a indústria; e, tendo informadores em todos os organismos públicos, metendo-se nos mais diversos empreendimentos, sempre no encalço dos bons negócios, sutil como um grego e duro no trabalho como um camponês de Auvergne, constituíra uma fortuna que se dizia ser considerável; era, além disso, oficial da Legião de Honra, membro do conselho geral do departamento do Aube, deputado, e não tardaria a ser par de França; prestativo, apesar disso, importunava constantemente o ministro com os seus pedidos de subsídios, de comendas, de concessões para venda de tabaco; e, quando não estava satisfeito com o Governo, aproximava-se do partido da “centro-esquerda”2. Sua mulher, a linda Senhora Dambreuse, que os jornais de modas citavam, presidia associações de caridade. Adulando as duquesas, aplacava os rancores do nobre faubourg, e dava a entender que o Senhor Dambreuse talvez ainda se arrependesse e pudesse ser útil.
O jovem sentia-se perturbado, dirigindo-se para a casa deles.
“Devia ter posto a sobrecasaca. Vão com certeza convidar-me para o baile da próxima semana? Que irão dizer-me?”
Recuperou a calma ao lembrar-se de que o Senhor Dambreuse não passava de um burguês, e apeou-se com desenvoltura do cabriolé3, no passeio da Rua d’Anjou.
Depois de ter aberto um dos dois portões4 atravessou o pátio, subiu o lanço de escadas e entrou num vestíbulo lajeado com mármore de cor.
Uma escadaria dupla, reta, com um tapete vermelho preso por varetas de cobre, subia rente à alta parede revestida de estuque brilhante. Ao pé havia uma bananeira, cujas largas folhas caíam sobre o veludo do corrimão. Dois candelabros de bronze suportavam globos de porcelana suspensos por pequenas correntes; um ar pesado emanava das aberturas escancaradas dos caloríferos, e ouvia-se apenas o tique-taque de um grande relógio de parede, que se erguia na outra extremidade do vestíbulo, debaixo de uma panóplia.
Ouviu-se uma campainha; surgiu um lacaio, que introduziu Frédéric numa saleta, onde se viam dois cofres, cujos compartimentos estavam cheios de pastas de papelão. No meio do aposento, o Senhor Dambreuse escrevia, sentado a uma escrivaninha de tampa corrediça.
Leu a carta do tio Roque, cortou com um canivete a tela que encerrava os papéis e examinou-os.
De longe, devido à sua pequena estatura, podia parecer ainda jovem. Mas os cabelos brancos que rareavam, os membros débeis e, sobretudo, a extraordinária palidez do rosto, denunciavam uma constituição arruinada. Uma energia implacável brilhava nos olhos glaucos, mais frios que olhos de vidro. Tinha os maxilares salientes e mãos de articulações nodosas.
Por fim, ergueu-se, e fez ao jovem algumas perguntas sobre pessoas que conheciam, sobre Nogent, sobre os estudos; depois despediu-o, com uma vênia. Frédéric saiu por outro corredor, e foi ter ao fundo do pátio, junto da cocheira.
Um cupê azul, puxado por um cavalo preto, estacionava diante da entrada principal. A portinhola abriu-se, uma dama subiu e a carruagem deslizou sobre a areia, com um ruído surdo.
Frédéric chegou ao mesmo tempo que ela junto da entrada do edifício. O espaço não era suficiente, e teve que esperar. Uma senhora, ainda jovem, debruçada à portinhola, falava em voz baixa com o porteiro. Frédéric só lhe via as costas, envolvidas num manto violeta. Entretanto, o seu olhar mergulhava no interior da carruagem, forrado de repes azul, com passamanarias e franjas de seda, e inteiramente tomado pelo vestuário da dama; aquela caixinha almofadada exalava um perfume de íris e um vago odor de elegâncias femininas. O cocheiro soltou as rédeas, o cavalo roçou bruscamente o marco, e tudo desapareceu.
Frédéric regressou a pé, pelos bulevares.
Tinha pena de não ter podido ver a Senhora Dambreuse.
Um pouco acima da Rua Montmartre, um congestionamento de trânsito fê-lo voltar a cabeça; e, do outro lado, em frente, leu numa placa de mármore:
Jacques Arnoux
Como fora possível não ter ainda pensado nela? A culpa era de Deslauriers; encaminhou-se para o estabelecimento, mas não entrou; esperava que Ela surgisse.
As altas vidraças transparentes deixavam ver, habilmente dispostos, estatuetas, desenhos, gravuras, catálogos, números do Art industriel5; e os preços da assinatura ostentavam-se também na porta, decorada, ao meio, com as iniciais do editor. Distinguiam-se, encostados às paredes, grandes quadros cujo verniz brilhava, e, ao fundo, duas arcas carregadas de porcelanas, de bronzes, de curiosidades atraentes; entre elas subia uma escada, fechada ao alto por um reposteiro de veludo; e um lustre antigo em porcelana de Saxe, um tapete verde cobrindo o soalho e uma mesa de embutidos davam mais uma impressão de sala de visitas do que de loja.
Frédéric fingia examinar os desenhos. Ao cabo de infinitas hesitações, entrou.
Um empregado levantou o reposteiro, e disse que o patrão não estaria na loja antes das cinco. Mas se queria deixar algum recado...
— Não, eu volto — replicou delicadamente Frédéric.
Passou os próximos dias tratando da sua instalação; e decidiu-se finalmente por um quarto no segundo andar, numa casa de cômodos, na Rua Saint-Hyacinthe6.
Com uma pasta nova debaixo do braço foi assistir à abertura dos cursos. Trezentos jovens, sem chapéu, enchiam um anfiteatro onde um velho, de toga vermelha, dissertava em voz monocórdica; as penas rangiam sobre o papel. A sala cheirava a poeira, tal como a escola, tinha uma cátedra igual, o mesmo tédio! Voltou lá durante quinze dias. Mas não tinham chegado ainda ao artigo 3º quando Frédéric abandonou o Código Civil, deixando as Institutas na Summa divisio personarum.
Não sentira o prazer com que tinha contado; e, depois de ter esgotado um gabinete de leitura, percorrido as coleções do Louvre e ido várias vezes ao teatro, caiu numa inércia total.
Mil coisas novas agravavam a sua tristeza. Era preciso fazer o rol da roupa e aturar o porteiro, um rústico com aspecto de enfermeiro, que vinha todas as manhãs fazer-lhe a cama, cheirando a álcool e resmungando. O quarto, ornamentado com um relógio de mármore, não lhe agradava. As paredes eram pouco espessas; ouvia os estudantes fazerem ponche, rirem e cantarem.
Cansado da solidão, procurou um antigo camarada, chamado Baptiste Martinon7; foi dar com ele numa pensão burguesa da Rua Saint-Jacques, estudando processo civil, junto à lareira.
Diante dele, uma mulher de vestido de chita remendava meias.
Martinon era o que se chama um belo homem: alto, rosto cheio, traços regulares e olhos azulados à flor do rosto; o pai, abastado agricultor, destinava-o à magistratura — e Martinon, para se dar já um ar de seriedade, usava uma barba passa-piolho.
Como Frédéric não tinha motivo justificável para o seu tédio e não podia queixar-se de nenhuma infelicidade, Martinon nada compreendeu das suas lamentações sobre a existência. Por sua parte, ia todas as manhãs à Escola, depois dava um passeio nos jardins do Luxembourg, tomava o seu café todas as noites e, com mil e quinhentos francos por ano e o amor daquela operária, sentia-se perfeitamente feliz.
“Que felicidade!”, disse Frédéric de si para si.
Na Escola fizera outro conhecimento, o do Senhor de Cisy, de família nobre, e que parecia uma menina, tão delicadas eram as suas maneiras.
O Senhor de Cisy desenhava, e apreciava o gótico. Foram por diversas vezes admirar a Sainte-Chapelle e a Notre-Dame. Mas a distinção do jovem aristocrata recobria uma inteligência muito limitada. Tudo o surpreendia; ria muito da graça mais insignificante, e mostrava-se tão ingênuo que Frédéric, a princípio, pensara que ele se divertia à sua custa, e acabou por considerá-lo néscio.
Não tinha, portanto, com quem se expandir; e continuava a esperar o convite de Dambreuse.
No Ano-Novo, mandou-lhes cartões; mas não recebeu nenhum em troca.
Voltou à Art industriel.
Foi lá pela terceira vez, e finalmente encontrou Arnoux, que discutia no meio de cinco ou seis pessoas, e mal respondeu ao seu cumprimento; Frédéric sentiu-se ofendido. Mas nem por isso deixou de continuar à procura da maneira de se aproximar d’Ela.
Primeiro teve a ideia de aparecer muitas vezes, como se quisesse comprar quadros. Depois pensou em deitar na caixa da correspondência do jornal alguns artigos “muito importantes”, o que provocaria o estabelecimento de relações. Mas talvez fosse melhor ir direito ao fim, declarar o seu amor? Então compôs uma carta de doze páginas, cheia de expansões líricas e apóstrofes; mas rasgou-a, e nada fez, nada tentou — imobilizado por temor ao fiasco.
Por cima do estabelecimento havia um primeiro andar de três janelas, que todas as noites se iluminavam. Viam-se circular sombras, uma, sobretudo; era a dela; — e Frédéric vinha de muito longe para olhar aquelas janelas e contemplar aquela sombra.
Uma negra, com quem topou um dia nas Tulherias, levando uma menina pela mão, lembrou-lhe aquela da Senhora Arnoux. Ela vinha certamente ali, como as outras; todas as vezes que atravessava as Tulherias, o coração palpitava-lhe, na esperança de encontrá-la. Nos dias de sol, continuava o passeio até o fim dos Champs-Elysées.
Mulheres indolentemente reclinadas em caleches, com véus flutuando ao vento, desfilavam a seu lado, ao passo firme dos cavalos, com um balouçar insensível que fazia gemer os couros envernizados. As carruagens tornavam-se mais numerosas e abrandavam a marcha depois de Rond-Point, ocupando toda a largura da via. Crinas ao lado de outras crinas, lanternas ao lado de outras lanternas; os estribos de aço, os freios de prata, as fivelas de cobre, destacavam-se como pontos luminosos entre os calções curtos, as luvas brancas e as peles que pendiam sobre os brasões das portinholas. Frédéric sentia-se perdido num mundo longínquo. Os seus olhos iam de uma cabeça feminina a outra; e vagas semelhanças faziam-no pensar na Senhora Arnoux. Imaginava-a, no meio das outras, num desses pequenos cupês, semelhantes ao da Senhora Dambreuse. Mas entardecia, e o vento frio levantava turbilhões de poeira. Os cocheiros encolhiam o queixo sobre as gravatas, as rodas giravam mais depressa, o macadame chiava; e todas as equipagens desciam a trote largo a longa avenida, quase se tocando, passando umas à frente das outras, afastando-se, para depois, na Praça de la Concorde, se dispersarem. Por trás das Tulherias, o céu tomava a tonalidade das ardósias. As árvores do jardim formavam duas massas enormes, de topo violáceo. Acendiam-se os bicos de gás; e o Sena, esverdeado em toda a sua extensão, dilacerava-se em reflexos de prata de encontro aos pilares das pontes.
Ia jantar, por quarenta e três soldos, num restaurante da Rua de la Harpe.
Olhava com desdém o velho balcão de mogno, os guardanapos com nódoas, a baixela sórdida e os chapéus pendurados na parede. Os que o rodeavam eram estudantes como ele. Falavam dos professores, das amantes. Mas que lhe importavam os professores! E tinha por acaso amante? Para evitar aquela alegria chegava o mais tarde possível. Restos de comida cobriam todas as mesas. Os dois garçons dormitavam de cansaço pelos cantos, e um cheiro de cozinha, de candeeiros de azeite, de tabaco enchia a sala deserta.
Depois ia lentamente pelas ruas. Os revérberos balouçavam, fazendo estremecer longos reflexos amarelados sobre a lama. Pela beira dos passeios deslizavam sombras, ao abrigo dos guarda-chuvas. A calçada era escorregadia, o nevoeiro adensava-se, e parecia-lhe que as trevas úmidas, ao envolvê-lo, desciam-lhe indefinidamente no coração.
Assaltou-o o remorso. Voltou às aulas. Mas como nada sabia da matéria dada, as coisas mais simples embaraçavam-no.
Pôs-se a escrever um romance8, que intitulou Sylvio, le fils du pêcheur. A coisa passava-se em Veneza. O herói era ele próprio; a heroína, a Senhora Arnoux. Ela chamava-se Antonia; — e, para possuí-la, ele assassinava diversos gentis-homens, incendiava uma parte da cidade e cantava-lhe debaixo da janela, onde a brisa fazia palpitar os cortinados de damasco vermelho do Bulevar Montmartre. Deu conta do excesso de reminiscências e desanimou; não foi avante, e a sua inércia agravou-se.
Então suplicou a Deslauriers que viesse partilhar o quarto com ele. Arranjariam maneira de viver com os seus dois mil francos de pensão; tudo era preferível àquela existência intolerável. Mas Deslauriers não podia ainda deixar Troyes. Recomendava-lhe que procurasse distrações, que frequentasse Sénécal.
Sénécal era um explicador de matemática, homem de cabeça sólida e convicções republicanas, um futuro Saint-Just, dizia Deslauriers. Frédéric subiu três vezes os cinco andares da casa onde morava, sem que ele lhe pagasse a visita. Não voltou lá.
Procurou divertir-se. Foi aos bailes da Ópera. Mas aquela alegria tumultuosa deixava-o gelado, mal entrava. Aliás, intimidava-o o receio de um desaire pecuniário; imaginava que cear com um dominó exigiria gastos consideráveis, era uma grande aventura.
Parecia-lhe, contudo, que podia ser amado. Acordava por vezes com o coração batendo de esperança, vestia-se com esmero, como se fosse a uma entrevista, e fazia caminhadas intermináveis pelas ruas de Paris. Cada mulher que seguia à sua frente ou que vinha na sua direção lhe fazia exclamar: “É ela!”. E era sempre uma nova decepção. A lembrança da Senhora Arnoux estimulava esses desejos. Quem sabe se não a encontraria? E imaginava, para aproximar-se dela, complicações do acaso, perigos extraordinários de que a salvaria.
Assim decorriam os dias, na repetição dos mesmos aborrecimentos e dos hábitos adquiridos. Folheava livros sob as arcadas do Odéon, ia ler a Revue des Deux Mondes9, no café, entrava numa sala do Collège de France, escutava durante uma hora uma aula de chinês ou de economia política. Todas as semanas, escrevia longas cartas a Deslauriers, jantava uma vez ou outra com Martinon, via de quando em quando o Senhor de Cisy.
Alugou um piano, e compôs valsas alemãs.
Uma noite, no teatro do Palais-Royal10, avistou, num camarote de boca, Arnoux acompanhado por uma mulher. Seria ela? A cortina de tafetá verde, corrida diante do camarote, escondia-lhe o rosto. Por fim o pano subiu; a cortina foi aberta. Era uma mulher esguia, de uns trinta anos, gasta, cujos lábios grossos deixavam ver, quando ria, dentes esplêndidos. Conversava familiarmente com Arnoux e dava-lhe pancadinhas nos dedos com o leque. Depois, uma rapariga loira, com as pálpebras avermelhadas, como se tivesse acabado de chorar, veio sentar-se entre eles. Arnoux ficou daí por diante meio inclinado sobre o ombro dela, falando sempre, e ela escutava sem responder. Frédéric procurava imaginar qual seria a condição daquelas mulheres, que envergavam modestos vestidos sombrios com golas de cabeção.
No fim do espetáculo, precipitou-se para os corredores, que formigavam de gente. Arnoux, à sua frente, descia a escadaria de braço dado com as duas mulheres.
De repente, um bico de gás iluminou-o em cheio. Tinha um fumo no chapéu. Teria ela morrido? Essa ideia atormentou tanto Frédéric que, no dia seguinte, correu à Art industriel, e, pagando apressadamente uma das gravuras expostas na vitrina, perguntou ao empregado como passava o Senhor Arnoux.
O jovem respondeu:
— Passa muito bem!
Frédéric acrescentou, empalidecendo:
— E a senhora?
— A senhora também!
Frédéric esqueceu-se de levar a gravura.
O inverno chegava ao fim. Na primavera, Frédéric sentiu-se menos triste, começou a preparar os exames e, tendo passado sem brilho, partiu em seguida para Nogent.
Não foi a Troyes ver o amigo, para evitar as reprimendas da mãe. Depois, quando as aulas recomeçaram, deixou o seu antigo quarto e alugou, no cais Napoléon, dois quartos que mobiliou. Perdera a esperança de receber um convite dos Dambreuse; a sua grande paixão pela Senhora Arnoux começava a extinguir-se.
IV
Numa manhã de dezembro, quando ia para a aula de Processo Civil, pareceu-lhe notar, na Rua Saint-Jacques, mais animação do que de costume. Os estudantes saíam precipitadamente dos cafés, ou, das janelas abertas, interpelavam-se de uma casa à outra; os lojistas, no meio do passeio, tinham um ar inquieto; fechavam-se os taipais; e, quando chegou à Rua Soufflot, viu um grande ajuntamento em volta do Panthéon.
Jovens, em grupos desiguais de cinco a doze, passeavam de braço dado e abordavam os grupos mais numerosos que se formavam aqui e ali; no fundo da praça, junto às grades, homens de blusão peroravam, enquanto os guardas-civis, de tricórnio sobre a orelha e mãos atrás das costas, rondavam rente às paredes, fazendo ressoar as lajes com as botas grossas. Todos tinham um ar misterioso, atarantado; esperava-se evidentemente qualquer coisa; todos tinham uma pergunta na ponta da língua.
Frédéric estava junto de um jovem loiro, de figura agradável, que usava bigode e barbicha, como um elegante da época de Luís XIII. Perguntou-lhe qual a causa da desordem.
— Nada sei — retorquiu o outro. — E eles tampouco! É a moda, agora! Que grande farsa!
E desatou a rir.
As petições a favor da Reforma1, que se iam assinar na guarda nacional, juntamente com o recenseamento Humann2, e ainda outros acontecimentos, havia seis meses que provocavam, em Paris, inexplicáveis comícios; e estes tinham-se tornado tão frequentes que os jornais já nem falavam neles.
— Isto tem falta de linha e de cor — prosseguiu o vizinho de Frédéric. — Antolha-se-me, meu caro senhor, que nós degeneramos! Nos belos tempos de Luís undécimo, ou até de Benjamin Constant, havia mais motins entre os escolares. Acho-os pacíficos como borregos, burros como portas, e tão dignos como merceeiros, benza-os Deus! E é a isto que se chama a mocidade das escolas!
Abriu largamente os braços, como Frédérick Lemaître no Robert Macaire.
— Mocidade das escolas, eu te abençoo!
Depois, apostrofou um trapeiro, que remexia um monte de conchas de ostras junto ao marco de uma taberna:
— E tu, fazes também parte da mocidade das escolas?
O velho ergueu para ele um rosto hediondo, no qual se distinguiam, no meio de uma barba grisalha, um nariz vermelho, e dois olhos avinhados e estúpidos.
— Não, tu antes me pareces um destes homens de figura patibular que se veem, em diversos grupos, semeando ouro às mãos cheias... Oh! Semeia, meu patriarca, semeia! Corrompe-me com os tesouros de Albion! Are you English? Eu não repilo as dádivas de Artaxerxes! Conversemos um pouco sobre a união aduaneira.
Frédéric sentiu alguém tocar-lhe no ombro; voltou-se. Era Martinon, extraordinariamente pálido.
— Então! — disse ele, com um suspiro profundo. — Mais uma arruaça!
Tinha medo de ser comprometido, lamentava-se. Inquietavam-no, sobretudo, os homens de blusão, que deviam pertencer a sociedades secretas3.
— Ora, as sociedades secretas! — disse o jovem de bigode. — Isso é uma velha história inventada pelo Governo, para assustar os burgueses!
Martinon pediu-lhe que falasse mais baixo, com receio da polícia.
— O senhor ainda acredita na polícia? Mas afinal, sabe lá o senhor se eu próprio não serei um espião?
E olhou para ele de tal maneira que Martinon, muito impressionado, não compreendeu logo a brincadeira. A multidão empurrava-os, e os três foram obrigados a recolher-se à pequena escada que, através de um corredor, conduzia ao novo anfiteatro.
Dentro em pouco, a multidão abriu alas; várias cabeças se descobriram; saudavam o ilustre Professor Samuel Rondelot, o qual, envergando uma sobrecasaca de tecido espesso, soerguendo os óculos de prata, com a respiração de asmático, vinha a passo tranquilo para dar a sua aula. Esse homem era uma das glórias jurídicas do século XIX, rival dos Zachariae, dos Ruhdorff. A nova dignidade de par de França não alterara em nada a sua atitude. Sabia-se que era pobre, e um grande respeito o cercava.
Entretanto, do fundo da praça alguns gritaram:
— Abaixo Guizot!
— Abaixo Pritchard!4
— Abaixo os vendidos!
— Abaixo Luís Filipe!
A multidão oscilou, e, fazendo pressão sobre a porta do pátio, que estava fechada, impedia o professor de prosseguir. Ele parou diante das escadas, e surgiu daí a pouco no último dos três degraus. Pôs-se a falar; um murmúrio abafou-lhe a voz. Embora há pouco o respeitassem, agora odiavam-no, porque representava a Autoridade. Todas as vezes que tentava fazer-se ouvir, os gritos recomeçavam. Fez um gesto largo para convidar os estudantes a segui-lo. Respondeu-lhe uma vociferação geral. Ele encolheu os ombros com desdém e penetrou no corredor. Martinon aproveitou-se do lugar em que se encontrava para desaparecer atrás dele.
— Que covarde! — disse Frédéric.
— É prudente! — retorquiu o outro.
A multidão irrompeu em aplausos. A retirada do professor tornava-se para ela uma vitória. A todas as janelas, curiosos espreitavam. Alguns entoavam a Marselhesa; outros propunham que se fosse à casa de Béranger5.
— À casa de Laffitte6!
— À casa de Chateaubriand7!
— À casa de Voltaire! — berrou o jovem de bigode loiro.
Os guardas procuravam circular, dizendo o mais delicadamente que podiam:
— Vão-se embora, meus senhores, vão-se embora, retirem-se!
Alguém gritou:
— Abaixo os assassinos!
Era uma injúria habitual desde os motins de setembro8. Todos a repetiram. Vaiavam-se, apupavam-se os guardiães da ordem pública que começavam a ficar pálidos; um deles não se dominou mais, e, ao ver um rapazola aproximar-se demasiado, rindo-lhe na cara, empurrou-o tão rudemente que ele foi cair de costas a meia dúzia de passos, diante do armazém de vinhos. Toda a gente se afastou; mas quase logo ele próprio foi atirado ao chão por um homenzarrão cuja cabeleira extravasava, como se fosse estopa, de um boné de oleado.
Estava parado, havia alguns minutos, à esquina da Rua Saint-Jacques, e largara rapidamente uma caixa de papelão que trazia, para saltar sobre o guarda; pesando sobre ele, esmurrava-lhe a cara com toda a força. Os outros policiais acorreram. O terrível jovem era tão forte que foram precisos quatro, pelo menos, para dominá-lo. Dois agarravam-no pelo pescoço, outros dois puxavam-no pelos braços, enquanto um quinto lhe dava joelhadas nos rins, e todos lhe chamavam bandido, assassino, desordeiro. De peito à mostra, a roupa em pedaços, protestava a sua inocência; não tinha podido ver, de sangue-frio, espancar uma criança.
— Chamo-me Dussardier! Da casa Valinçart Irmãos, rendas e novidades, Rua de Cléry. Onde está a minha caixa? Quero a minha caixa! — E repetia: — Dussardier... Rua de Cléry. A minha caixa!
Sossegou, contudo, e, com ar estoico, deixou-se conduzir para a delegacia da Rua Descartes. Uma onda de gente foi atrás. Frédéric e o jovem do bigode seguiam imediatamente atrás dele, cheios de admiração pelo caixeiro e revoltados contra a violência do Poder.
À medida que se afastavam, a multidão ia diminuindo.
Os guardas, de quando em quando, voltavam-se com ar feroz; e como os mais barulhentos já nada tinham que fazer, e os curiosos nada que ver, todos se iam embora a pouco e pouco. Os transeuntes com que cruzavam olhavam para Dussardier e faziam em voz alta comentários ofensivos. Uma velha, da sua porta, disse até que ele tinha roubado um pão; essa injustiça aumentou a irritação dos dois amigos. Finalmente, chegaram diante do posto policial. Só restavam umas vinte pessoas. A vista dos soldados bastou para dispersá-las.
Frédéric e o seu camarada reclamaram, com atrevimento, aquele que acabava de ser preso. A sentinela ameaçou prendê-los também, se eles insistissem. Perguntaram pelo chefe do posto, e declinaram os nomes, com a sua qualidade de alunos de Direito, afirmando que o preso era um condiscípulo.
Mandaram-nos entrar para uma sala nua, com quatro bancos encostados às paredes caiadas, escurecidas pelo fumo. No fundo abriu-se um guichê. Então surgiu a cabeça robusta de Dussardier, que lembrava vagamente, com o cabelo desgrenhado, os olhinhos francos e a ponta quadrada do nariz, a fisionomia de um cão bondoso.
— Não nos reconheces? — disse Hussonnet9.
Assim se chamava o jovem do bigode.
— Mas... — balbuciou Dussardier.
— Não te faças de idiota — continuou o outro; — bem sabemos que és, como nós, estudante de Direito.
Por mais que lhe piscassem o olho, Dussardier não percebia nada. Pareceu meditar, e disse de repente:
— Encontraram a minha caixa?
Frédéric ergueu os olhos para o céu, desanimado. Hussonnet retorquiu:
— Ah, a caixa em que guardas as fichas do curso? Encontraram, sim, podes estar descansado!
E voltaram à mesma pantomima. Dussardier compreendeu finalmente que eles queriam ajudá-lo; e calou-se, receando comprometê-los. Aliás, sentia uma espécie de vergonha ao ver-se elevado à categoria social de estudante, a um igual daqueles rapazes que tinham as mãos tão brancas.
— Precisas mandar recado a alguma pessoa? — perguntou Frédéric.
— Não, obrigado, a ninguém!
— Mas a tua família?
Ele baixou a cabeça e não respondeu; o pobre rapaz era filho natural. Os dois amigos não compreendiam o seu mutismo.
— Não precisas de tabaco? — acrescentou Frédéric.
Ele apalpou as algibeiras, e tirou de uma delas os destroços de um cachimbo — um belo cachimbo em espuma do mar, com o tubo de madeira preta, tampa de prata e boquilha de âmbar.
Havia três anos que se dedicava a fazer dele uma obra-prima. Tivera o cuidado de conservar o fornilho sempre metido num invólucro de camurça, de fumar o mais lentamente possível, nunca o pousando sobre mármore, e pendurando-o, todas as noites, à cabeceira da cama. Agora contemplava os destroços que tinha na mão, cujas unhas sangravam; e, de queixo descaído sobre o peito, o olhar parado, contemplava aquelas ruínas da sua alegria com um olhar de inefável tristeza.
— Se nós lhe déssemos charutos, hein? — disse Hussonnet em voz baixa, fazendo menção de meter a mão na algibeira.
Mas Frédéric já pousara, na borda do guichê, uma charuteira cheia.
— Toma! Adeus, tem coragem!
Dussardier precipitou-se sobre as duas mãos que eles lhe estenderam. Apertou-as freneticamente, com a voz entrecortada pelos soluços.
— Como?.. A mim!... A mim!...
Os dois amigos esquivaram-se às suas manifestações de gratidão, saíram, e foram almoçar juntos no café Tabourey, em frente ao Luxembourg.
Trinchando o bife, Hussonnet informou o companheiro de que trabalhava para jornais de modas e confeccionava anúncios para o Art industriel.
— De Jacques Arnoux — disse Frédéric.
— Conhece-o?
— Sim! Não!... Quer dizer, vi-o, encontrei-me com ele uma vez.
Perguntou negligentemente a Hussonnet se via às vezes a mulher dele.
— De quando em quando — redarguiu o boêmio.
Frédéric não teve coragem de fazer mais perguntas; aquele homem acabava de tomar uma importância desmedida na sua existência; pagou o almoço, sem qualquer protesto por parte do outro.
A simpatia era mútua; trocaram os respectivos endereços, e Hussonnet convidou cordialmente Frédéric a acompanhá-lo até a Rua de Fleurus.
Iam no meio do jardim quando o empregado de Arnoux, retendo a respiração, deformou o rosto numa visagem horrenda e começou a cantar como galo. Então, todos os galos da vizinhança lhe responderam com cocoricós prolongados.
— É um sinal — disse Hussonnet.
Detiveram-se junto do teatro Bobino, em frente de uma casa cuja entrada se fazia por uma aleia. Ao postigo de um sótão, entre gerânios e ervilhas-de-cheiro, mostrou-se uma rapariga, sem chapéu, de espartilho, que apoiou os braços na borda da goteira.
— Bom-dia, meu anjo, bom-dia, bichinha — disse Hussonnet, atirando-lhe beijos.
Abriu a cancela com um pontapé e desapareceu.
Frédéric esperou-o a semana inteira. Não queria ir procurá-lo em casa a fim de não dar a impressão de estar impaciente para que ele lhe retribuísse o almoço; mas procurou-o por todo o bairro latino. Uma noite encontrou-o, e o convidou a ir ao seu quarto do cais Napoléon.
A conversa foi longa; ambos se expandiram. Hussonnet ambicionava a glória e os lucros que dá o teatro. Colaborava em vaudevilles que nunca eram aceites, “tinha montes de planos”, compunha cançonetas; e cantou algumas. Depois, vendo na estante um volume de Hugo e outro de Lamartine, desmanchou-se em sarcasmos sobre a escola romântica. Esses poetas não tinham bom senso nem correção, e, sobretudo, não eram franceses! Gabava-se de saber a língua e desfibrava as mais belas frases com aquela odienta severidade, aquele gosto acadêmico que caracteriza as pessoas de humor jocoso quando falam da arte séria.
Frédéric sentiu-se ferido nas suas predileções; tinha vontade de cortar relações com ele. Por que não falar logo naquilo de que dependia a sua felicidade? E perguntou ao amigo se o podia apresentar aos Arnoux.
A coisa era fácil, e combinaram para o dia seguinte.
Hussonnet faltou ao encontro; e faltou a outros três. Um sábado, pelas quatro horas, apareceu. Mas, aproveitando a carruagem, parou primeiro no Théâtre-Français, para obter uma entrada de camarote; depois fez-se conduzir ao alfaiate, a uma costureira; e deixava bilhete com os porteiros. Chegaram finalmente ao Bulevar Montmartre. Frédéric atravessou o estabelecimento, subiu as escadas. Arnoux reconheceu-o no espelho que pendia em frente à sua escrivaninha; e, sem parar de escrever, estendeu-lhe a mão por cima do ombro.
Cinco ou seis pessoas, de pé, enchiam a sala estreita, iluminada por uma única janela, que dava para o pátio; um canapé em damasco de lã castanho ocupava, ao fundo, o interior de uma alcova, entre reposteiros do mesmo tecido. Sobre a parte superior da lareira, coberta de papelada, havia uma Vênus de bronze; dois candelabros, com velas cor-de-rosa, ladeavam-na. À direita, junto de um fichário, um homem de chapéu na cabeça lia o jornal, sentado numa poltrona; as paredes estavam cobertas de estampas e quadros, gravuras preciosas ou esboços de mestres contemporâneos, com dedicatórias, que testemunhavam a mais sincera afeição por Jacques Arnoux.
— Como tem passado? — perguntou ele, voltando-se para Frédéric.
E, sem esperar resposta, perguntou em voz baixa a Hussonnet:
— Como é o nome do seu amigo?
Depois, em voz alta:
— Tire um charuto, da caixa que está em cima do fichário.
A Art industriel, instalada no ponto central de Paris, era um cômodo lugar de encontro, um terreno neutro onde as rivalidades se acotovelavam familiarmente. Estavam lá, naquele dia, Anténor Braive, o retratista dos reis; Jules Burrieu, cujos desenhos da guerra da Argélia começavam a torná-lo popular; o caricaturista Sombaz, o escultor Vourdat, e outros ainda, e nenhum correspondia à ideia que deles fizera o estudante. Suas maneiras eram simples, a conversa livre. O místico Lovarias contou uma história obscena; e o inventor da paisagem oriental, o famoso Dittmer, usava uma malha por baixo do colete e tomava o ônibus para voltar a casa.
Primeiro falou-se numa certa Apollonie, antigo modelo, que Burrieu pretendia ter avistado no bulevar, numa carruagem à Daumont. Hussonnet explicou essa metamorfose pela série dos seus amantes.
— Como este diabo conhece bem as mundanas de Paris! — disse Arnoux.
— Depois de vós, sire, se sobrar alguma — replicou o boêmio, fazendo continência, e imitando o granadeiro que ofereceu o cantil a Napoleão.
Depois discutiram alguns quadros, para os quais Apollonie tinha posado. Os confrades ausentes foram criticados. Pasmavam dos preços alcançados pelos seus quadros; e todos se queixavam de não ganhar o suficiente, quando entrou um homem de estatura mediana e sobrecasaca fechada por um único botão, olhar cheio de vivacidade e ar aloucado.
— Mas que raça de burgueses vocês são! — disse ele. Que importância tem isso, misericórdia! Os antigos, que faziam obras-primas, não se preocupavam com o dinheiro. Correggio, Murilba...
— Não esquecendo Pellerin — disse Sombaz.
Mas ele, sem dar atenção ao epigrama, continuou a discorrer com tanta veemência que Arnoux teve que lhe dizer duas vezes:
— Minha mulher precisa de você, na quinta-feira. Não se esqueça!
Aquela frase fez voltar os pensamentos de Frédéric para a Senhora Arnoux. Era com certeza pelo gabinete ao lado do divã que se passava para os aposentos dela. Arnoux, para ir buscar um lenço, acabava de abrir a porta; Frédéric distinguira, ao fundo, um lavatório. Mas do canto da lareira ergueu-se uma espécie de grunhido; era o personagem que lia o jornal, na poltrona. Tinha cinco pés e nove polegadas, as pálpebras meio descaídas, uma cabeleira grisalha, o ar majestoso — e chamava-se Regimbart.
— Que temos, cidadão? — disse Arnoux.
— Mais uma pouca-vergonha do Governo!
Tratava-se da demissão de um mestre-escola; Pellerin reatou o seu paralelo entre Miguel Ângelo e Shakespeare. Dittmer dispôs-se a sair. Arnoux reteve-o para lhe meter na mão duas notas de banco. Então Hussonnet, julgando o momento propício:
— Não poderia adiantar-me, meu caro patrão?..
Mas Arnoux já se tinha sentado, e ralhava com um velho de aspecto sórdido, de óculos azuis.
— Ah! Tio Isaac, mas que lindo serviço! Lá ficaram três obras desacreditadas, perdidas! Toda a gente faz pouco de mim! Agora, quem não as conhece? Que quer que eu faça com elas? Terei que as mandar para a Califórnia!... Para a casa do diabo! Cale-se!
A especialidade do homenzinho consistia em pôr a assinatura de mestres antigos nos quadros. Arnoux recusava-se a pagar-lhe; despediu-o brutalmente. Depois, mudando de modos, cumprimentou um senhor condecorado, todo empertigado, de suíças e laço branco.
De cotovelo apoiado no fecho da janela, conversou com ele durante algum tempo, com ar meloso. Por fim, explodiu:
— Ora! Não tenho dificuldade em arranjar corretores, senhor conde!
E, como o gentil-homem se resignasse, Arnoux pagou-lhe vinte e cinco luíses, e logo que ele saiu, exclamou:
— Como esses grão-senhores são maçantes!
— Todos uns miseráveis! — murmurou Regimbart.
À medida que o tempo passava, as ocupações de Arnoux redobravam; classificava artigos, abria cartas, fazia contas; ouvindo martelar no armazém, saía para vigiar as embalagens, e voltava à sua ocupação anterior; e, enquanto deixava correr a pena sobre o papel, ripostava aos gracejos. Iria jantar em casa do advogado, e partia no dia seguinte para a Bélgica.
Os outros discutiam os casos do dia: o retrato de Cherubini, o hemiciclo das Belas-Artes, a próxima Exposição. Pellerin incentivava o Instituto. Os comentários maldosos e as conversas cruzavam-se. A sala, de teto baixo, estava tão cheia que ninguém se podia mexer; e a luz das velas cor-de-rosa passava através do fumo dos charutos como raios de sol através do nevoeiro.
A porta ao lado do divã abriu-se, e uma mulher alta e delgada entrou com gestos bruscos que faziam tilintar de encontro ao seu vestido de tafetá preto os berloques do relógio.
Era a mulher que Frédéric avistara, no verão passado, no Palais-Royal. Alguns, chamando-a pelo nome, trocaram com ela apertos de mão. Hussonnet conseguira por fim tirar cinquenta francos de Arnoux; o relógio deu sete horas; todos se retiraram.
Arnoux disse a Pellerin que não se fosse embora, e conduziu a Senhorita Vatnaz ao gabinete.
Frédéric não ouvia o que eles diziam; falavam em voz baixa. Contudo, a voz feminina elevou-se:
— Há seis meses que o negócio está feito, e continuo à espera!
Houve um longo silêncio, e a Senhorita Vatnaz reapareceu. Arnoux prometera-lhe novamente qualquer coisa.
— Oh! Oh! Mais tarde havemos de ver!
— Adeus, homem feliz! — disse ela ao partir.
Arnoux foi rapidamente ao gabinete, espalhou cosmético no bigode, repuxou os suspensórios para esticar as presilhas; e enquanto lavava as mãos disse:
— Preciso de uns painéis para a parte de cima de duas portas, a duzentos e cinquenta cada um, gênero Boucher, estamos combinados?
— Está bem — disse o artista, corando.
— Bom! E não se esqueça de minha mulher!
Frédéric acompanhou Pellerin até o fim do faubourg Poissonmère, e pediu licença para visitá-lo de vez em quando, o que lhe foi graciosamente concedido.
Pellerin lia todos os livros de estética para descobrir a verdadeira teoria do Belo, convencido de que faria obras-primas quando a tivesse descoberto. Rodeava-se de todos os apetrechos imagináveis, desenhos, gessos, modelos, gravuras; e procurava, desesperava-se; acusava o tempo, os nervos, o ateliê, vinha para a rua à procura de inspiração, sentia o arrepio da descoberta, mas depois abandonava a obra e punha-se a sonhar com outra que devia ser mais bela. Assim, atormentado por sonhos de glória e consumindo o tempo em discussões, acreditando em mil ninharias, nos sistemas, nas críticas, na importância de um regulamento ou de uma reforma em matéria de arte, aos cinquenta anos ainda não tinha feito senão esboços. Um sólido orgulho não o deixava desanimar, mas andava sempre irritado e naquela exaltação, ao mesmo tempo fictícia e natural, que é o estofo do comediante.
Quando se entrava em casa dele chamavam a atenção dois quadros nos quais os primeiros tons, aqui e ali, punham na tela branca manchas castanhas, vermelhas e azuis. Por cima estendia-se um entrecruzamento de linhas traçadas a giz, como malhas de rede vinte vezes recomeçadas; era mesmo impossível compreender-lhes o sentido. Pellerin explicou o assunto das duas composições, apontando com o polegar as partes que faltavam. Uma devia representar A demência de Nabucodonosor, a outra O incêndio de Roma por Nero. Frédéric admirou-as.
Admirou academias de mulheres esguedelhadas, paisagens em que pululavam troncos de árvores torcidos pela tempestade, e sobretudo os caprichos à pena, ecos de Callot, de Rembrandt ou de Goya, cujos modelos não conhecia. Pellerin não dava valor a esses trabalhos da juventude; atualmente, era a favor do grande estilo; dogmatizou sobre Fídias e Winckelmann, com eloquência. As coisas à volta dele aumentavam-lhe a força das palavras; via-se uma caveira sobre um genuflexório, iatagãs, um hábito de frade; Frédéric vestiu-o.
Quando chegava cedo, ia surpreendê-lo deitado numa pobre cama de vento, por trás de um reposteiro improvisado; porque Pellerin deitava-se tarde, frequentando os teatros assiduamente. Era servido por uma velha esfarrapada, jantava nas tabernas e vivia sem amante. Os seus conhecimentos, colhidos ao acaso, tornavam-lhe os paradoxos divertidos. O ódio que tinha à vulgaridade e ao burguês transbordava em sarcasmos de um lirismo soberbo, e o seu culto pelos mestres era tão grande que quase o igualava a eles.
Mas por que não falava ele nunca na Senhora Arnoux? Quanto ao marido, umas vezes chamava-lhe bom rapaz, outras, charlatão. Frédéric esperava-lhe as confidências.
Um dia, folheando uma pasta, encontrou o retrato de uma cigana que tinha qualquer coisa da Senhorita Vatnaz, e, como esta o interessava, quis saber qual a posição dela.
Ao que Pellerin supunha, ela começara como professora na província; agora, dava aulas particulares e procurava escrever em pequenos jornais.
A atitude dela com Arnoux, achava Frédéric, fazia supor que fosse sua amante.
— Claro que é! E tem outras!
Então o jovem, desviando o rosto, que corou de vergonha sob a infâmia deste pensamento, acrescentou, dando-se ares:
— Decerto a mulher paga-lhe na mesma moeda?
— De modo algum! É honesta10!
Frédéric teve remorsos, e tornou-se mais assíduo na Art industriel.
As grandes letras que compunham o nome de Arnoux na placa de mármore, na fachada da loja, pareciam-lhe ter um sentido especial, como se fosse uma escrita sagrada. O largo passeio, descendente, facilitava a marcha, a porta abria quase sem esforço, e a maçaneta, suave ao tato, tinha a doçura e como que a inteligência de outra mão na sua. Insensivelmente, Frédéric tornou-se tão pontual como Regimbart.
Todos os dias, Regimbart sentava-se ao canto da lareira, na sua poltrona, lançava mão do National,11 e não o largava mais, manifestando a sua opinião por meio de exclamações ou um simples encolher de ombros. De quando em quando, limpava a testa com o lenço amarrotado em bola, e que trazia no peito, entre dois botões da sobrecasaca12. Usava calça vincada, sapatos abotinados, uma gravata comprida; e o chapéu de abas reviradas permitia reconhecê-lo, de longe, no meio da multidão.
Às oito da manhã, descia das alturas de Montmartre, para beber um vinho branco na Rua Notre-Dame-des-Victoires. O almoço, ao qual se seguiam diversas partidas de bilhar, retinha-o até às três horas. Dirigia-se então à passagem dos Panoramas, para tomar o seu absinto. Depois da reunião em casa de Arnoux, entrava no Bordelais, taberna onde tomava o seu vermute; depois, em vez de voltar para junto da mulher, preferia muitas vezes jantar sozinho, num pequeno café da Praça Gaillon, onde queria que lhe servissem “pratos caseiros, coisas naturais”! Finalmente, transferia-se para outra casa de bilhares, onde ficava até meia-noite ou uma da manhã, até o momento em que, apagado o gás e corridos os taipais, o proprietário do estabelecimento, extenuado, lhe implorava que se fosse embora.
E não era o amor pela bebida que atraía o cidadão Regimbart a esses lugares, mas o hábito antigo de aí discutir política; com a idade, sua veia esgotara-se, e ficava num silêncio moroso. Dir-se-ia, pela gravidade do rosto, que tinha o mundo dentro da cabeça. Mas nada saía dela; e ninguém, nem mesmo os seus amigos, lhe conhecia qualquer ocupação, embora ele pretendesse ter uma casa de negócios.
Arnoux parecia ter por ele uma estima infinita. Disse um dia a Frédéric:
— Ah! Esse sabe muita coisa! É um homem forte!
De outra vez, Regimbart desdobrou sobre a escrivaninha alguns papéis referentes a umas minas de caolino na Bretanha; Arnoux fiava-se na experiência dele.
Frédéric tornou-se mais cerimonioso com Regimbart — ao ponto de lhe oferecer um absinto de vez em quando; e, embora o considerasse estúpido, ficava muitas vezes na sua companhia durante uma longa hora, unicamente por ele ser amigo de Jacques Arnoux.
Depois de ter, a princípio, ajudado artistas contemporâneos, o negociante de quadros, homem de progresso, procurara, embora continuando a dar-se ares artísticos, aumentar as suas vantagens pecuniárias. Procurava a emancipação das artes, o sublime a preço módico. Todas as indústrias de luxo parisienses lhe sofreram a influência, que foi boa para as pequenas coisas, e funesta para as grandes. Na ânsia de adular o público, desviou do seu caminho os artistas hábeis, corrompeu os fortes, esgotou os fracos e tornou ilustres os medíocres; manobrava-os graças às relações e à revista. Os pintores jovens ambicionavam ver os seus quadros na vitrina da Art industriel, e os decoradores procuravam no estabelecimento modelos de mobiliário. Frédéric considerava-o ao mesmo tempo um milionário, um diletante, um homem de ação. Muitas coisas, todavia, lhe causavam espanto, porque o Senhor Arnoux era malicioso no seu comércio.
Recebia do interior da Alemanha ou da Itália um quadro que tinha sido comprado em Paris por mil e quinhentos francos, e, exibindo uma fatura que lhe elevava o preço para quatro mil, revendia-o por três mil e quinhentos, por especial obséquio. Uma das suas habilidades mais correntes com os pintores era exigir como luvas uma réplica do quadro em tamanho reduzido, a pretexto de publicar a respectiva gravura; vendia sempre a réplica e a gravura nunca era publicada. Aos que se queixavam de ser explorados, respondia com pancadinhas no ventre. Excelente pessoa, aliás, prodigalizava os charutos, tratava por tu os desconhecidos, entusiasmava-se por uma obra ou por um homem, e então, tornando-se obstinado, não poupava esforços, multiplicava as recomendações, as cartas, os anúncios. Julgava-se muito honesto e, na sua necessidade de expandir-se, contava ingenuamente certas indelicadezas que cometia.
Uma vez, para humilhar um confrade que inaugurava com uma grande festa outro jornal de pintura, pediu a Frédéric que lhe escrevesse diante dos olhos, um pouco antes da hora marcada, bilhetes em que se anulava o convite.
— Isto não vai contra a honra, compreende?
E o jovem não teve coragem de lhe negar esse serviço.
No dia seguinte, entrando com Hussonnet no escritório, Frédéric viu a cauda de um vestido desaparecer pela porta que dava para as escadas.
— Mil desculpas! — disse Hussonnet. — Se soubesse que havia senhoras...
— Oh, nada disso, era a minha — retorquiu Arnoux. — Veio fazer-me uma visitinha, de passagem.
— Como? — disse Frédéric.
— Pois claro! Foi-se embora para casa.
As coisas em redor perderam de súbito todo o interesse. Aquilo que sentia vagamente esparso no ambiente acabava de se evolar, ou antes, nunca tinha estado lá. Sentia uma surpresa imensa, e como que a dor de uma traição.
Arnoux, rebuscando na gaveta, sorria. Estaria troçando dele? O caixeiro pousou na mesa um maço de papéis úmidos.
— Ah! Os cartazes! — exclamou o negociante. — Não é hoje que vou jantar cedo!
Regimbart pegou no chapéu.
— Como, já se vai embora?
— Sete horas! — disse Regimbart.
Frédéric acompanhou-o.
À esquina da Rua Montmartre, voltou-se; olhou para as janelas do primeiro andar; e riu interiormente, de pena de si próprio, lembrando-se com quanto amor as contemplara tantas vezes! Mas então, onde vivia ela? E agora, que fazer para a encontrar? A solidão cavava-se de novo em volta do seu desejo, mais imensa do que nunca!
— Vamos tomá-lo? — disse Regimbart.
— Tomar quem?
— O absinto!
E, cedendo às obsessões do amigo, Frédéric deixou-se conduzir ao Bar Bordelais. Enquanto o companheiro, fincando os cotovelos na mesa, considerava a garrafa, Frédéric olhava para um lado e para outro. Mas distinguiu o perfil de Pellerin no passeio; bateu com força na vidraça, e ainda o pintor não se tinha sentado e já Regimbart lhe perguntava por que ninguém o via mais na Art industriel.
— Diabos me levem se lá tornar a pôr os pés! É um bruto, um burguês, um miserável, um safado!
Essas injúrias amenizavam a cólera de Frédéric. Mas sempre o feriam, porque lhe parecia que elas iam atingir um pouco a Senhora Arnoux.
— Mas que lhe fez ele, afinal! — disse Regimbart.
Pellerin bateu o pé no chão, e fungou com força, em vez de responder.
Incumbia-se de trabalhos clandestinos, como retratos a dois lápis ou imitações dos grandes mestres para os amadores pouco esclarecidos; e, como esses trabalhos o humilhavam, preferia calar-se, em geral. Mas “a sujeira de Arnoux” exasperava-o demais. E expandiu-se.
De acordo com uma encomenda, que Frédéric testemunhara, levara-lhe dois quadros. Então, o negociante permitira-se fazer críticas! Tinha censurado a composição, a cor e o desenho, sobretudo o desenho; em suma, de modo algum quisera ficar com eles. Mas, forçado pelo vencimento de uma letra, Pellerin cedera-o ao judeu Isaac; e, quinze dias depois, Arnoux em pessoa vendia-os por dois mil francos a um espanhol.
— Nem mais nem menos! Pouca vergonha! E tem feito muitas outras, pudera! Um dia destes vamos vê-lo no banco dos réus!
— Como você exagera! — disse Frédéric, numa voz tímida.
— Aí está, exagero! — exclamou o artista, dando um grande soco na mesa.
Essa violência fez com que Frédéric recuperasse a firmeza. Não há dúvida que o comportamento dele podia ter sido mais decente; contudo, se Arnoux achava que os dois quadros...
— Eram maus! Não tenha medo de dizer! Conhece-os? É a sua profissão? Ora, menino, amadores é coisa que não admito!
— Ora! Não tenho nada com isso! — disse Frédéric.
— Então que interesse tinha em defendê-lo? — replicou friamente Pellerin.
O jovem balbuciou:
— Mas... porque sou amigo dele.
— Pois então dê-lhe beijos da minha parte! Boa-noite!
E o pintor saiu furibundo, sem pagar a despesa, evidentemente.
Frédéric convencera-se a si próprio, ao defender Arnoux. No calor da sua eloquência, sentira-se enternecido por aquele homem inteligente e bom, caluniado pelos amigos, e que estava a trabalhar sozinho, abandonado. Não resistiu à singular necessidade de tornar a vê-lo imediatamente. Daí a dez minutos, abria a porta do estabelecimento.
Arnoux estava preparando, com o caixeiro, enormes cartazes para uma exposição de quadros.
— Olá! Que o traz de volta?
Esta pergunta tão simples deixou Frédéric embaraçado; e, não sabendo como responder, perguntou se não tinham encontrado por acaso o seu caderno de apontamentos, um caderninho de couro azul.
— É onde guarda as cartas de mulheres? — disse Arnoux.
Frédéric, corando como uma virgem, protestou contra tal suposição.
— Então, as suas poesias? — replicou o comerciante.
Pegava numa folha e noutra, discutia a forma, a cor, a margem; e Frédéric sentia-se cada vez mais irritado com aquele ar de meditação, e sobretudo com as mãos que corriam pelos cartazes — mãos grossas, um pouco moles, de unhas achatadas. Por fim, Arnoux levantou-se, dizendo: — Está pronto! — e passou-lhe familiarmente a mão pelo queixo. Essa liberdade não agradou a Frédéric, que fez um movimento de recuo; depois atravessou o limiar do escritório, pela última vez na sua existência, julgava ele. A própria Senhora Arnoux ficava diminuída pela vulgaridade do marido.
Naquela semana, recebeu uma carta em que Deslauriers lhe anunciava a sua chegada a Paris na quinta-feira seguinte. Então, refugiou-se violentamente nessa afeição mais sólida e mais elevada. Um homem assim valia todas as mulheres. Não precisaria mais de Regimbart, de Pellerin, de Hussonnet, de ninguém! Para instalar melhor o amigo, comprou um catre de ferro, outra poltrona, duplicou a roupa de cama; e, na quinta-feira pela manhã, estava se vestindo para ir ao encontro de Deslauriers quando soou a campainha da porta. Arnoux entrou.
— Só duas palavras! Recebi ontem de Genebra uma bela truta; contamos com você, hoje, às sete em ponto... É na Rua de Choiseul, 24 bis. Não se esqueça!
Frédéric teve que se sentar. Tinha ficado com os joelhos trêmulos. E repetia de si para si: “Finalmente! Finalmente!”. Depois, escreveu ao alfaiate, ao chapeleiro, ao sapateiro; e mandou os bilhetes por três mensageiros diferentes. A chave girou na fechadura, e o porteiro apareceu, carregando ao ombro uma mala.
Ao dar com os olhos em Deslauriers, Frédéric começou a tremer como uma mulher adúltera perante o olhar do marido.
— Que é que te deu? — disse Deslauriers. — Não recebeste uma carta minha?
Frédéric não teve coragem de mentir.
Abriu os braços e estreitou-o ao peito.
Em seguida, o escrevente contou a sua história. O pai recusara-se a prestar contas da tutela, supondo que tais contas prescreviam ao fim de dez anos. Mas, forte em processo civil, Deslauriers arrancara-lhe por fim toda a herança da mãe, sete mil francos líquidos, que trazia consigo, numa velha carteira.
— É uma reserva, para caso de infelicidade. Tenho que tratar de os colocar e de me instalar amanhã mesmo, pela manhã. Por hoje, liberdade completa, o dia é todo para ti, meu velho!
— Oh, não faças cerimônia! — disse Frédéric. — Se tiveres alguma coisa importante a fazer esta noite...
— Ora! Era preciso que eu fosse um verdadeiro miserável...
Esse epíteto, dito ao acaso, atingiu Frédéric em pleno coração, como uma alusão ultrajante.
O porteiro dispusera na mesa, junto à lareira, costeletas, galantina, uma lagosta, uma sobremesa e duas garrafas de bordéus. Semelhante recepção comoveu Deslauriers.
— Estás me tratando como um rei, palavra de honra!
Conversaram sobre o passado, sobre o futuro; e, de vez em quando, estreitavam as mãos por cima da mesa, contemplando-se durante um minuto com emoção. Mas um mensageiro veio trazer um chapéu novo. Deslauriers observou em voz alta, como a copa era brilhante.
Depois, o alfaiate em pessoa veio trazer a casaca, que tinha passado a ferro.
— Parece que te vais casar — disse Deslauriers.
Daí a uma hora, um terceiro indivíduo surgiu e tirou de um grande saco preto um par de esplêndidas botinas de verniz. Enquanto Frédéric as experimentava, o sapateiro observava com ar sarcástico o calçado do provinciano.
— E o senhor não precisa de nada?
— Não, obrigado — replicou o escrevente, escondendo debaixo da cadeira os velhos sapatos de cordões.
Essa humilhação incomodou Frédéric. Não tinha coragem de confessar a verdade. Finalmente, exclamou, como se se lembrasse de repente:
— Oh! Com os diabos, tinha-me esquecido!
— De quê?
— Esta noite janto fora!
— Em casa dos Dambreuse? Por que nunca me falaste deles nas tuas cartas?
Não era em casa dos Dambreuse, mas na dos Arnoux.
— Podias ter-me avisado! — disse Deslauriers. — Eu teria vindo um dia mais tarde.
— Impossível! — replicou bruscamente Frédéric. — Só fui convidado esta manhã, há pouco.
E, para compensar a falta e distrair o amigo, desatou as cordas que envolviam a mala dele, e dispôs sobre a cômoda os objetos que lhe pertenciam, quis dar-lhe a sua própria cama, ficando ele a dormir no cubículo onde guardava a lenha. E, logo que deram as quatro horas, começou os preparativos para a festa.
— Tens tempo de sobra! — disse o outro.
Finalmente, vestiu-se e saiu.
“Os ricos são assim!”, pensou Deslauriers.
E foi jantar na Rua Saint-Jacques, num modesto restaurante que já conhecia.
Frédéric parou diversas vezes nas escadas, tão forte lhe batia o coração. Uma das luvas, esticada demais, rompeu-se; e, enquanto escondia o rasgão sob o punho da camisa, Arnoux, chegando por trás dele, agarrou-o pelo braço e fê-lo entrar:
No vestíbulo, decorado à chinesa, havia uma lanterna pintada, suspensa do teto, e bambus aos cantos. Ao atravessar a sala de visitas, Frédéric tropeçou numa pele de tigre. As velas não estavam acesas, mas ao fundo, num pequeno gabinete, estavam acesos dois candeeiros.
A menina Marthe veio dizer que a mamãe estava se vestindo. Arnoux ergueu-a à altura do rosto e beijou-a; depois, querendo ser ele próprio a escolher certas garrafas de vinho da sua adega, deixou Frédéric com a criança.
Ela tinha crescido muito desde a viagem a Montereau. Os cabelos castanhos caíam-lhe em anéis sobre os braços nus. O vestido, mais armado do que uma saia de bailarina, deixava à mostra as perninhas rosadas, e toda a sua gentil pessoa rescendia como um ramo de flores. Ouviu os elogios daquele senhor com um ar requebrado, pousou nele os olhos profundos e, esgueirando-se por entre os móveis, desapareceu como um gato.
Frédéric já não se sentia perturbado. Os globos dos candeeiros, cobertos de papel rendado, espalhavam uma luz leitosa, que atenuava a cor das paredes, forradas de cetim lilás. Através das chapas do guarda-fogo, que pareciam um grande leque, viam-se as brasas da lareira; diante do relógio havia um cofrezinho com fechos de prata. Aqui e ali, espalhavam-se coisas íntimas: uma boneca no meio do canapé, um xale nas costas de uma cadeira, e, na mesa de costura, um tricô de lã com duas agulhas de marfim pendentes, de ponta para baixo. Era um lugar ao mesmo tempo sossegado, honesto e familiar.
Arnoux voltou, e, pela outra porta, a Senhora Arnoux surgiu13. Como estava na sombra, a princípio Frédéric só lhe via nitidamente a cabeça. Tinha um vestido de veludo negro e envolvia-lhe os cabelos uma comprida rede argelina em filé de seda vermelha, a qual, depois de se enrolar no pente, lhe caía sobre o ombro esquerdo.
Arnoux apresentou-lhe Frédéric.
— Oh! Lembro-me muito bem do senhor — disse ela.
Depois os convivas chegaram todos quase ao mesmo tempo; Dittmer, Lovarias, Burrieu, o compositor Rosenwald, o poeta Théophile Lorris, dois críticos de arte, colegas de Hussonnet, um fabricante de papel, e por fim o ilustre Pierre-Paul Meinsius, derradeiro representante da grande pintura, que suportava virilmente, juntamente com a glória, os seus oitenta anos e uma barriga proeminente.
Quando se encaminharam para a sala de jantar, a Senhora Arnoux tomou-lhe o braço. Ficara uma cadeira vazia, para Pellerin. Arnoux gostava dele, embora explorando-o. Aliás, temia-lhe a língua viperina — a tal ponto que, para amansá-lo, publicara-lhe o retrato no Art industriel, acompanhado por hiperbólicos elogios; e Pellerin, mais sensível à glória do que ao dinheiro, chegou às oito horas, esbaforido. Frédéric supôs que já se teriam reconciliado havia muito tempo.
A companhia, as iguarias, tudo agradava a Frédéric. A sala, lembrando um locutório da Idade Média, era forrada de couro batido; diante de uma étagère holandesa via-se uma prateleira com cachimbos turcos; e sobre a mesa, os cristais da Boêmia, de cores variegadas, assemelhavam-se, por entre as flores e os frutos, às luzes de um jardim.
Teve que escolher entre dez espécies de mostarda. Comeu gaspacho, caril, gengibre, melros da Córsega, lasanhas romanas; bebeu vinhos extraordinários, Liebfraumilch e tocai. Com efeito, Arnoux tinha a presunção de receber bem. Aliciava os cocheiros de diligências para obter bons produtos, e relacionara-se com cozinheiros de grandes casas, que lhe davam receitas de molhos.
Mas era sobretudo a conversa que encantava Frédéric. O seu gosto pelas viagens foi estimulado por Dittmer, que falou do Oriente; satisfez a curiosidade pela vida teatral ouvindo Rosenwald falar da Ópera; e a existência atroz da boêmia pareceu-lhe divertida, ao ouvir contar, pelo alegre Hussonnet, de maneira pitoresca, como passara um inverno inteiro não tendo outra coisa para comer senão queijo holandês. Depois, uma discussão entre Lovarias e Burrieu, sobre a escola florentina, revelou-lhe obras-primas, abriu-lhe horizontes, e conteve dificilmente o seu entusiasmo quando Pellerin exclamou:
— Deixem-me em paz com essa medonha realidade! Que quer isto dizer, a realidade? Para uns é negra, para outros é azul, para a multidão é estúpida. Nada menos natural do que Miguel Ângelo, e nada mais forte! A preocupação com a verdade exterior é um sinal da baixeza contemporânea; e, a caminhar assim, a arte acabará por tornar-se coisa reles, abaixo da religião, em poesia, e abaixo da política, em interesse. Não se conseguirá alcançar a sua finalidade — sim, a sua finalidade! — que é provocar em nós uma exaltação impessoal, com pinturinhas, apesar de todas as sutilezas de execução. Vejam um quadro de Bassolier, por exemplo: é bonito, agradável, limpinho, não é pesado! Pode trazer-se no bolso, e levar em viagem! Os notários dão vinte mil francos por isso, que não tem dez réis de ideia; mas, sem a ideia, não se faz nada de grande! Sem grandeza, não há belo! O Olimpo é uma montanha! O monumento mais grandioso serão sempre as Pirâmides. Vale mais a exuberância do que o gosto, o deserto do que um pedaço de rua, e um selvagem do que um cabeleireiro!
Enquanto escutava essas coisas, Frédéric contemplava a Senhora Arnoux. As palavras caíam-lhe no espírito como metais numa fornalha, juntavam-se à sua paixão e transformavam-se em amor.
Estava sentado três lugares longe dela, do mesmo lado. De vez em quando, ela inclinava-se um pouco, voltando a cabeça para dirigir algumas palavras à filha; e, ao sorrir, surgia-lhe uma covinha no rosto, o que lhe dava uma expressão de bondade mais delicada.
Na altura dos licores, ela saiu. A conversa tornou-se muito livre; então Arnoux brilhou, e Frédéric ficou espantado com o cinismo daqueles homens. Todavia, o interesse que mostravam pela mulher estabelecia entre eles e Frédéric uma espécie de igualdade, que o elevava no próprio conceito.
Quando voltaram à sala de visitas, pegou, para fazer alguma coisa, num dos álbuns espalhados por cima da mesa. Os maiores artistas da época tinham-no enchido de desenhos, de prosa e verso, ou simplesmente deixado a sua assinatura. Entre os nomes famosos havia muitos de desconhecidos, e os pensamentos curiosos entremeavam-se com um transbordar de disparates. Todos eles continham uma homenagem mais ou menos direta à Senhora Arnoux; Frédéric não se atreveria a escrever qualquer coisa da sua lavra.
Ela foi buscar ao boudoir o cofrezinho de fechos de prata que Frédéric notara, sobre a lareira. Era um presente do marido, obra do Renascimento. Os amigos de Arnoux felicitaram-no, ela agradeceu-lhe; Arnoux, enternecido, beijou-a diante de toda a gente.
Depois, a conversa dispersou-se, em grupos, aqui e ali; Meinsius sentara-se junto da Senhora Arnoux, num pequeno sofá, perto do fogo; ela inclinava-se para o seu ouvido, as cabeças tocavam-se; — e Frédéric teria aceitado ser surdo, valetudinário e feio em troca de um nome ilustre de cabelos brancos, em troca de qualquer coisa que o entronizasse numa intimidade igual. E sofria, furioso com sua mocidade.
Mas ela veio até o canto do salão em que ele estava, perguntou-lhe se conhecia alguns dos convivas, se gostava de pintura, há quanto tempo estudava em Paris. Cada palavra que lhe caía dos lábios parecia a Frédéric uma coisa nova, uma dependência exclusiva da pessoa dela. Olhava com toda a atenção as mechas do cabelo que lhe acariciavam os ombros nus; não tirava os olhos deles, mergulhando a alma na brancura daquela carne feminina; todavia, não ousava erguer as pálpebras, e olhar para ela face a face.
Rosenwald interrompeu-os, vindo pedir à Senhora Arnoux para cantar alguma coisa. Preludiou, enquanto ela esperava; os lábios entreabriram-se-lhe, e um som puro, longo, prolongado, elevou-se no ar.
Frédéric não compreendeu nada das palavras italianas.
Começava num ritmo grave, como um canto de igreja, depois ganhava animação, num crescendo, multiplicava os efeitos sonoros, para apaziguar-se de súbito; e a melodia voltava amorosamente, com uma oscilação larga e preguiçosa.
Ela estava em pé, junto do piano, de braços caídos e olhar perdido. De vez em quando, para ler a música, semicerrava os olhos e aproximava a cabeça por um instante. A sua voz de contralto ganhava nas cordas baixas uma entoação lúgubre que dava calafrios, e, nesses momentos, inclinava sobre o ombro a bela cabeça, que endireitava de súbito, os olhos chamejantes; o seio palpitava-lhe, abria os braços, e o pescoço, de onde se evolavam os trinados, inclinava-se langorosamente, como sob o efeito de aéreos beijos; soltou três notas agudas, depois uma grave, lançou outra ainda mais alta e, depois de uma pausa, terminou com uma nota prolongada.
Rosenwald não deixou o piano. Continuou a tocar, para si próprio. De quando em quando, um dos convivas desaparecia. Às onze horas, quando os últimos se despediam, Arnoux saiu com Pellerin, a pretexto de o acompanhar. Era destas pessoas que se dizem doentes quando deixam de dar a sua volta depois do jantar.
A Senhora Arnoux viera até o vestíbulo; Dittmer e Hussonnet despediam-se, ela estendeu-lhes a mão; estendeu-a igualmente a Frédéric; e ele sentiu como que uma penetração em todos os átomos da pele.
Separou-se dos amigos; sentia necessidade de ficar só. O seu coração transbordava. Por que lhe estendera ela a mão? Era um gesto irrefletido, ou um estímulo? “Ora, estou louco!”
Que importância tinha isso, afinal, se agora podia frequentá-la à vontade, viver na sua atmosfera!
As ruas estavam desertas. Às vezes passava uma pesada carroça, fazendo tremer o pavimento. Sucediam-se as fachadas cinzentas das casas, de janelas fechadas; e ele pensava com desdém em todos os seres humanos deitados por trás daquelas paredes, que existiam sem a ver, e nenhum dos quais suspeitava sequer a existência dela! Já não tinha consciência do meio, do espaço, de nada; e, martelando a calçada com os tacões, e batendo com a bengala nos taipais das lojas, ia seguindo sempre em frente, ao acaso, perdido, em êxtase. Sentiu-se envolvido numa atmosfera úmida, e reparou que estava à beira do cais.
Os revérberos brilhavam em duas linhas retas, indefinidamente, e na profundidade da água vacilavam longas chamas vermelhas. A água tinha uma cor de ardósia, enquanto o céu, mais claro, parecia assentar nas grandes massas de sombra que se erguiam de ambos os lados do rio. Edifícios que não se distinguiam formavam zonas ainda mais sombrias. Para além, flutuava uma névoa luminosa, acima dos telhados; todos os ruídos fundiam-se num burburinho único; soprava um vento leve.
Frédéric parou no meio do Pont-Neuf, e, de cabeça descoberta, o peito aberto14, respirou fundo. Sentia vir de dentro de si próprio uma coisa inesgotável, um afluxo de ternura que o enervava, como o movimento das ondas diante dos seus olhos. O relógio de uma igreja bateu uma hora, lentamente15, como se uma voz o chamasse.
Então, teve um desses arrepios da alma em que nos sentimos transportados a um mundo superior. Sentiu dentro de si um dom extraordinário, cuja finalidade desconhecia. E interrogou-se, a sério, se seria um grande pintor ou um grande poeta; — decidiu-se pela pintura, porque as exigências desse mister o aproximariam da Senhora Arnoux. Então, encontrara a sua vocação! Agora a finalidade da sua existência estava clara, e o futuro era infalível.
Quando fechou a porta do apartamento, ouviu alguém roncar, no gabinete escuro, ao lado do quarto. Era o outro. Tinha-se esquecido dele.
Viu-se refletido no espelho. Achou-se belo — e ficou durante um minuto a contemplar-se.
V
No dia seguinte, antes do meio-dia, já tinha comprado uma caixa de tintas, pincéis, um cavalete. Pellerin acedeu a dar-lhe lições, e Frédéric levou-o a sua casa, para ele ver se não faltava nada entre os seus utensílios de pintura.
Deslauriers já regressara. Na outra poltrona estava sentado um jovem. O escrevente disse, apontando para ele:
— É ele! Aqui o tens! Sénécal1!
O moço desagradou a Frédéric. A testa era realçada por um corte de cabelo em escova. Nos olhos cinzentos havia algo de duro e frio; e a sobrecasaca preta, comprida, todo o seu vestuário, enfim, dava-lhe um ar de pedagogo e de eclesiástico.
A princípio, conversaram sobre os casos do dia, entre outros sobre a questão do Stabat de Rossini2; Sénécal, interrogado, declarou que não ia nunca ao teatro. Pellerin abriu a caixa das tintas.
— Tudo isto é para ti? — disse o escrevente.
— Pois claro!
— Essa agora! Que ideia!
E inclinou-se para a mesa, sobre a qual o explicador de matemática folheava um volume de Louis Blanc. Ele mesmo o trouxera, e lia trechos em voz baixa, enquanto Pellerin e Frédéric examinavam juntos a paleta, a espátula, as bisnagas; em seguida falaram sobre o jantar de Arnoux.
— O negociante de quadros? — perguntou Sénécal. — Que salafrário!
— Por quê? — disse Pellerin.
Sénécal replicou:
— Um homem que faz dinheiro à custa de torpezas políticas!
E pôs-se a falar numa célebre litografia, em que se via toda a família real dedicando-se a ocupações edificantes; Luís Filipe tinha um código nas mãos, a rainha um livro de missa, as princesas bordavam, o duque de Nemours cingia o sabre, o Senhor de Joinville mostrava um mapa aos irmãos mais novos; ao fundo, distinguia-se um leito dividido em dois compartimentos. Essa estampa, que tinha como legenda Uma boa família, encantara os burgueses e revoltara os patriotas. Num tom vexado, como se tivesse sido ele o autor, Pellerin retorquiu que todas as opiniões se equivaliam; Sénécal protestou. A Arte devia ter exclusivamente em vista a moralização das massas! Só deviam ser reproduzidos assuntos capazes de levar à prática de atos virtuosos; os outros eram nocivos.
— Mas isso depende da execução? — exclamou Pellerin. — Posso fazer obras-primas!
— Neste caso, tanto pior para o senhor! Não se tem o direito...
— Como?
— Não, meu caro senhor, não tem o direito de me interessar por coisas que reprovo! Que necessidade temos nós de laboriosas bagatelas, das quais não se pode tirar o menor proveito, dessas Vênus, por exemplo, e de todas as vossas paisagens? Não vejo que daí se tire ensinamento nenhum para o povo! Mostre-nos, isso sim, as misérias dele! Faça-nos sentir entusiasmo com os sacrifícios que ele realiza! E, santo Deus, não são os assuntos que faltam: o trabalho do campo, a oficina...
Pellerin, balbuciando de indignação, e julgando ter achado um argumento:
— O senhor admite Molière?
— Seja! — disse Sénécal. — Admiro-o como precursor da Revolução Francesa.
— Ah! A Revolução! Que arte! Jamais houve época mais lamentável!
— Nunca houve nenhuma maior, meu caro senhor!
Pellerin cruzou os braços e, olhando para ele frente a frente:
— O senhor saiu-me um autêntico guarda nacional!
O seu antagonista, habituado às discussões, respondeu:
— Não faço parte dela! E detesto-a tanto como o senhor! Mas é com tais princípios que se corrompem as multidões! É fazer o jogo do Governo, e além disso ele não seria tão forte sem a cumplicidade de uma porção de vigaristas como esse.
O pintor tomou a defesa do negociante, porque as opiniões de Sénécal o exasperavam. Atreveu-se mesmo a afirmar que Arnoux era um verdadeiro coração de ouro, dedicado aos amigos, adorando a mulher.
— Oh! Oh! Se lhe oferecessem uma boa quantia, era capaz de a ceder para servir de modelo.
Frédéric ficou lívido.
— Ele deve ter-lhe feito muito mal?
— A mim? Não! Vi-o uma única vez, no café, com um amigo. Nada mais.
Sénécal dizia a verdade. Mas sentia-se cotidianamente irritado com os anúncios do Art industriel. A seus olhos, Arnoux representava um mundo que considerava funesto à democracia. Republicano austero, via corrupção em todas as formas da elegância, não tendo aliás necessidade dela, e sendo de uma probidade inflexível.
A conversa teve dificuldade em recomeçar. O pintor não tardou a lembrar-se de que tinha um encontro, o explicador, de que os seus alunos o esperavam; e, depois que eles saíram, Deslauriers fez diversas perguntas a respeito de Arnoux.
— Mais tarde hás de apresentar-mo, não é verdade, meu velho?
— Sem dúvida — disse Frédéric.
Em seguida trataram de se instalar. Deslauriers obtivera, sem dificuldade, um lugar de escrevente de um procurador, fizera a matrícula na Escola de Direito, comprara os livros indispensáveis — e a vida que tanto tinham sonhado começou.
Era deliciosa, graças à beleza da sua juventude. Como Deslauriers não falara em qualquer combinação pecuniária, Frédéric também não disse nada. Fazia todas as despesas, arrumava o armário, tomava conta de tudo; mas, quando era necessário passar uma descompostura no porteiro, era Deslauriers que o fazia, continuando, como no colégio, no seu papel de protetor e de mais velho.
Separados durante todo o dia, só à noite se reuniam. Cada qual tomava o seu lugar junto do fogo e se lançava ao trabalho. Mas não tardavam a interrompê-lo. Eram efusões intermináveis, alegrias sem causa, por vezes discussões, por causa do candeeiro que deitava fumo ou de um livro que se extraviara, cóleras de um minuto, que acabavam em risadas.
A porta do quartinho da lenha ficava aberta, e conversavam de longe, cada um da sua cama.
Pela manhã, passeavam em mangas de camisa no terraço; o sol nascia, havia ligeiras névoas sobre o rio, ouvia-se a gritaria do mercado de flores, que era mesmo ao lado; — e a fumaça dos seus cachimbos fazia novelos no ar puro, que lhes refrescava os olhos ainda inchados de sono; sentiam, ao aspirá-lo, a expansão de uma vasta esperança.
Ao domingo, quando não chovia, saíam juntos; e, de braço dado, iam pelas ruas afora. Quase sempre, formulavam ao mesmo tempo a mesma observação, ou então conversavam sem dar atenção ao que os rodeava. Deslauriers ambicionava a riqueza, como instrumento de domínio entre os homens. O seu desejo seria ter uma vida agitada, fazer falar de si, ter três secretários às suas ordens, e dar um grande jantar político uma vez por semana. Frédéric sonhava com um palácio mourisco, para viver estendido sobre divas de caxemira, ao murmúrio de um repuxo, servido por pajens negros; — e estas coisas sonhadas acabavam por se tornar de tal forma nítidas que se sentia desolado, como se as tivesse perdido.
— Para que falar em tudo isso — dizia ele — se nunca havemos de o ter!
— Quem sabe? — replicava Deslauriers.
Apesar das suas opiniões democráticas, estimulava-o a aproximar-se dos Dambreuse. O outro punha objeções.
— Ora, volta lá! Hão de convidar-te!
Receberam, em meados de março, entre outras contas bastante pesadas, a do restaurante que lhes mandava as refeições. Como Frédéric não tinha dinheiro suficiente, pediu cem escudos de empréstimo a Deslauriers; quinze dias depois, repetiu o mesmo pedido, e o escrevente ralhou com ele, por causa das despesas que fazia na loja de Arnoux.
Efetivamente, fazia-as sem a menor moderação. Uma vista de Veneza, uma vista de Nápoles e outra de Constantinopla ao centro das três paredes, motivos equestres de Alfred de Dreux aqui e ali, um grupo de Pradier sobre a lareira, números do Art industriel em cima do piano, e caixas de cartão no chão, em todos os cantos, atravancavam de tal modo a habitação que era difícil achar onde pousar um livro e mexer os cotovelos. Frédéric pretendia que tudo aquilo lhe era necessário para a sua pintura.
Ia trabalhar com Pellerin. Mas este, muitas vezes, não estava — tendo por costume assistir a todos os enterros e acontecimentos que deveriam ser noticiados nos jornais; — e Frédéric passava horas e horas inteiramente só no ateliê. O sossego daquela grande sala, onde se ouvia apenas o perpassar dos ratos, a luz que caía do teto, e até o roncar do calorífero, tudo o mergulhava a princípio numa espécie de bem-estar intelectual. Depois, os seus olhos, distraindo-se do trabalho, fixavam as paredes escalavradas, perdiam-se entre os bibelôs das prateleiras, ao longo dos torsos que o pó acumulado cobria de retalhos de veludo; e, como um viajante perdido no meio de um bosque e que todos os caminhos levam sempre ao mesmo lugar, no fundo de cada ideia surgia-lhe a recordação da Senhora Arnoux.
Marcava dias para ir visitá-la; ao chegar ao segundo andar, diante da porta, hesitava em tocar; vinham abrir, e a estas palavras: “A senhora saiu”, sentia uma libertação, como um fardo de menos sobre o coração.
Encontrou-a em casa, todavia. Da primeira vez, estavam três senhoras com ela; uma outra tarde, chegou o professor de caligrafia da Srta. Marthe. Aliás, os homens que a Senhora Arnoux recebia não lhe faziam visitas. Não voltou lá, por discrição.
Mas, para não deixarem de o convidar para os jantares de quinta-feira, não faltava na Art industriel, todas as quartas; ficava até depois de todos se terem ido embora, mais tempo mesmo que Regimbart, até o último minuto, fingindo contemplar uma gravura ou ler um jornal. Finalmente, Arnoux dizia-lhe: “Está livre, amanhã à noite?”. Frédéric dizia que sim, mesmo antes de acabada a frase. Arnoux parecia ganhar-lhe afeição.
Ensinou-lhe a arte de conhecer os vinhos, a queimar o ponche, a fazer guisado de galinholas; Frédéric seguia docilmente os conselhos que recebia dele — gostando de tudo quanto dependia da Senhora Arnoux, dos móveis, dos criados, da casa, da rua.
Quase não falava durante aqueles jantares; contemplava-a. Ela tinha um sinalzinho, do lado direito, junto da têmpora; os seus bandós eram mais negros do que o resto do cabelo, e estavam sempre como que úmidos nas extremidades; ela ajeitava-os de vez em quando, com dois dedos apenas. Frédéric conhecia a forma de cada uma das suas unhas, deleitava-o ouvir o roçagar do vestido de seda quando ela passava junto das portas, aspirava às ocultas o perfume do seu lenço; o pente, as luvas, os anéis dela, eram para Frédéric coisas especiais, importantes como se fossem obras de arte, quase vivas, como pessoas; a todas tinha afeto, e todas faziam crescer a sua paixão.
Não tivera forças para a esconder de Deslauriers. Quando voltava da casa da Senhora Arnoux, acordava-o, como que sem querer, para poder falar dela.
Deslauriers, que dormia no quartinho da lenha, junto da pia, dava um grande bocejo, e Frédéric sentava-se aos pés da cama. Começava por falar do jantar, depois contava mil pormenores insignificantes, nos quais via sinais de indiferença ou de afeto. Uma vez, por exemplo, ela não lhe aceitara o braço, e tomara o de Dittmer; Frédéric sentia-se desolado.
— Mas que tolice!
Ou então tinha-lhe chamado seu “amigo”.
— Bom, nesse caso, avança!
— Mas não me atrevo — dizia Frédéric.
— Então, não penses mais nela! Boa-noite.
Deslauriers voltava-se para a parede e adormecia. Não compreendia nada daquele amor, que considerava uma derradeira fraqueza de adolescência; e, decerto por não lhe bastar a sua intimidade, teve a ideia de reunir os amigos comuns uma vez por semana.
Vinham no sábado, pelas nove horas. Os três cortinados de fustão estavam cuidadosamente corridos; o candeeiro e quatro velas estavam acesos; ao centro da mesa, o recipiente do tabaco, cheio de cachimbos, tinha à sua volta as garrafas de cerveja, o bule do chá, uma garrafa de rum e bolos. Discutia-se sobre a imortalidade da alma, comparavam-se professores.
Uma noite, Hussonnet trouxe consigo um jovem alto, metido numa sobrecasaca curta nos punhos, e de ar intimidado. Era o rapaz que eles tinham reclamado na delegacia, um ano antes.
Não tendo podido devolver ao patrão a caixa com rendas, perdida na desordem, fora acusado de ladrão, ameaçado com os tribunais; agora era caixeiro numa empresa de transportes. Hussonnet encontrara-o nessa manhã, ao dobrar uma esquina; e trouxera-o, porque Dussardier, por gratidão, queria ver “o outro”.
Estendeu a Frédéric a charuteira intacta, e que conservara religiosamente na esperança de a devolver. Os jovens convidaram-no a voltar, o que ele não deixou de fazer.
Estavam todos concordes. Em primeiro lugar, o ódio comum ao Governo tinha o caráter de um dogma indiscutível. Somente Martinon se esforçava por defender Luís Filipe. Atacavam-no com todos os lugares-comuns que vinham nos jornais: o embastilhamento de Paris3, as leis de setembro4, Pritchard, Lorde Guizot5 — de tal modo que Martinon silenciava, no receio de ofender alguém. Em sete anos de colégio, não tivera um único castigo, e, na escola de Direito, sabia agradar aos professores. Trajava normalmente uma grossa sobrecasaca amarelada e galochas de borracha; mas uma noite apareceu vestido como para um casamento: colete de veludo, laço branco, corrente de ouro.
O pasmo aumentou quando souberam que saía da casa do Senhor Dambreuse. Com efeito, o banqueiro acabava de comprar a Martinon pai uma considerável partida de madeira; e como o homenzinho lhe tivesse apresentado o filho, convidara-os ambos para jantar.
— Havia muitas trufas — perguntou Deslauriers — e abraçaste a esposa dele entre duas portas, sicut decet?
Então, a conversa passou a versar sobre mulheres. Pellerin não admitia que houvesse belas mulheres (preferia os tigres); aliás, a fêmea do homem era uma criatura inferior na hierarquia estética:
— Aquilo que vos seduz particularmente é aquilo que a degrada como ideia; quero dizer, os seios, o cabelo...
— Todavia — objetou Frédéric — longos cabelos negros, com grandes olhos negros...
— Oh! Estamos fartos disso! — exclamou Hussonnet. — Basta de andaluzas! Coisas antigas? Ora! Porque enfim, que diabo, uma cortesã é mais divertida do que a Vênus de Milo! Sejamos gauleses, com mil raios! E Regência, se for possível!
Correi, bons vinhos; mulheres, sorri!
É preciso ir da morena à loira! Que lhe parece, amigo Dussardier?
Dussardier não respondeu. Todos insistiam para conhecer os seus gostos.
— Bem — disse ele, corando — cá por mim, queria amar sempre a mesma!
Disse isto de tal maneira que houve um momento de silêncio, uns surpreendidos com aquela candura, os outros, porventura, reconhecendo o secreto desejo da sua alma.
Sénécal pousou sobre o rebordo da lareira o copo de cerveja e declarou dogmaticamente que, sendo a prostituição uma tirania e o casamento uma imoralidade, o melhor era a abstenção. Para Deslauriers, as mulheres eram uma distração, e nada mais. O Senhor de Cisy manifestava relativamente a elas os mais diversos temores.
Educado sob as vistas de uma avó devota, a companhia desses jovens era para ele atraente como uma casa suspeita, e instrutiva como uma Sorbonne. E não lhe poupavam as lições, que o encontravam cheio de zelo, a ponto de querer fumar, apesar das náuseas que o acometiam sempre que repetia a experiência. Frédéric rodeava-o de atenções. Admirava-lhe o tom das gravatas, a pele que lhe debruava o paletó, e sobretudo as botas, maleáveis como luvas e que tinham um ar insolente, de tão finas e delicadas; a carruagem ficava sempre esperando por ele na rua.
Ele acabava de sair, uma noite, e nevava, quando Sénécal se pôs a lamentar o cocheiro. Depois declamou contra as luvas amarelas e o Jóquei Clube. Achava mais valor num operário do que nesses senhores.
— Eu, pelo menos, trabalho! Eu sou pobre!
— Bem se vê — acabou por dizer Frédéric, exasperando-se.
O explicador não lhe perdoou o remoque.
Mas, como Regimbart tivesse dito que conhecia um pouco Sénécal, Frédéric, querendo ser atencioso com o amigo de Arnoux, convidou-o a vir às reuniões de sábado, e o encontro foi agradável aos dois patriotas.
Contudo, suas opiniões divergiam.
Sénécal — que tinha um crânio aguçado — apenas considerava os sistemas. Regimbart, pelo contrário, só via os fatos como fatos. O que principalmente o preocupava era a fronteira do Reno6. Dava-se como conhecedor em matéria de artilharia, e vestia-se no alfaiate da Escola Politécnica.
No primeiro dia, quando lhe ofereceram doces, encolheu desdenhosamente os ombros, e disse que aquilo era bom para mulheres; e nas noites seguintes não se mostrou mais amável. Mal a discussão alcançava certa elevação, murmurava: “Oh! nada de utopias, nada de sonhos!”. No capítulo da arte (embora frequentasse os ateliês, onde, complacentemente, dava de vez em quando uma lição de esgrima), as suas opiniões não eram transcendentes. Comparava o estilo do Sr. Marrast ao de Voltaire7, e a Srta. Vatnaz à Sra. de Staël, por causa de uma ode sobre a Polônia, “em que havia coração”. Em suma, Regimbart irritava toda a gente, em especial Deslauriers, porque o Cidadão era amigo de Arnoux. Ora, o escrevente ambicionava frequentar aquela casa, na esperança de travar relações proveitosas. “Quando me levas lá?”, dizia ele. Arnoux estava sobrecarregado de ocupações, ou então ia partir; depois, não valia a pena, porque os jantares estavam acabando.
Se fosse necessário arriscar a vida pelo amigo, Frédéric não teria hesitado. Mas, como fazia questão de se apresentar sob a luz mais favorável, como cuidava da linguagem, das maneiras e do traje a tal ponto que não ia à loja Art industriel senão irrepreensivelmente enluvado, receava que Deslauriers, com aquela sobrecasaca negra e coçada, o seu ar de procurador e aqueles discursos impertinentes, desagradasse à Senhora Arnoux, o que podia comprometê-lo, diminuindo-o aos olhos dela. Dos outros não se importava, mas aquele, precisamente, iria fazê-lo sentir-se mil vezes mais envergonhado. O escrevente dava conta de que ele não queria cumprir a promessa, e o silêncio de Frédéric era como uma agravação da ofensa.
O seu desejo seria conduzi-lo de modo absoluto, vê-lo desenvolver-se de acordo com o ideal da sua juventude; e a ociosidade do amigo revoltava-o como se fosse uma desobediência e uma traição. Aliás, Frédéric, dominado pela ideia da Senhora Arnoux, falava muitas vezes no marido; e Deslauriers começou a usar um estribilho intolerável, que consistia em repetir o nome daquele cem vezes ao dia, no fim de cada frase, como um tique de idiota. Quando batiam à porta, ele respondia: “Entre, Arnoux!”. No restaurante, pedia um queijo de Brie “como Arnoux”; e, de noite, fingindo um pesadelo, acordava o companheiro aos gritos de “Arnoux! Arnoux!”. Um dia, por fim, Frédéric, exasperado, disse-lhe numa voz lamentosa:
— Mas deixa-me em paz com Arnoux!
— Nunca! — respondeu o escrevente.
Sempre ele! Ele em toda a parte! Gélida ou ardente
A imagem de Arnoux...
— Acaba com isso! — exclamou Frédéric, erguendo o punho.
E acrescentou, com doçura:
— Bem sabes que esse assunto é doloroso para mim.
— Oh! Perdão, meu rapaz — replicou Deslauriers, fazendo uma profunda vênia — respeitaremos doravante os nervos da menina! Mais uma vez, perdão! Mil desculpas!
E assim acabou aquela brincadeira.
Mas, dai a três semanas, Deslauriers disse, uma noite:
— Pois vi-a há pouco, à Senhora Arnoux!
— Onde?
— No palácio da Justiça, com Balandard, o procurador; não é uma mulher morena, de estatura mediana?
Frédéric fez um sinal de assentimento. Esperava que Deslauriers falasse. Bastaria o mais leve sinal de admiração, e ter-se-ia expandido largamente; estava pronto a adorar o amigo; mas este calara-se; finalmente, não se dominando mais, perguntou-lhe com ar indiferente como ela lhe parecera.
Deslauriers achara-a “nada mal, mas todavia sem nada de extraordinário”.
— Achas? — disse Frédéric.
Entretanto agosto chegou, época do seu segundo exame8. Segundo a opinião corrente, quinze dias deviam bastar para preparar as matérias respectivas. Frédéric, cheio de confiança nas suas forças, absorveu de enfiada os quatro primeiros livros do Código de Processo, os três primeiros do Código Penal, vários trechos de Instrução Criminal e uma parte do Código Civil, com as anotações de Poncelet. Na véspera, Deslauriers fê-lo sofrer uma recapitulação que se prolongou até pela manhã; e, para tirar proveito do último quarto de hora, continuou a fazer-lhe perguntas na calçada, enquanto caminhavam.
Como diversos exames eram feitos simultaneamente, havia muita gente no pátio, entre outros Hussonnet e Cisy; vinha-se assistir sempre às provas, quando se tratava de camaradas. Frédéric envergou a tradicional toga negra; depois entrou, seguido pela multidão, com três outros estudantes, numa grande sala, que recebia luz de janelas sem cortinados, guarnecida de bancos, ao longo das paredes. No centro, cadeiras de couro rodeavam uma mesa, coberta por um pano verde. A mesa separava os candidatos dos senhores examinadores, de toga vermelha, todos eles de capelo de arminho aos ombros e borla de galões dourados na cabeça.
Frédéric era o penúltimo da série, má posição. À primeira pergunta sobre a diferença entre uma convenção e um contrato, trocou as definições; e o professor, bom sujeito, disse-lhe: “Não se atrapalhe, senhor, acalme-se!”. Depois, tendo feito duas perguntas fáceis, que obtiveram respostas obscuras, passou finalmente ao quarto candidato. Frédéric ficou desmoralizado com aquele medíocre começo. Na sua frente, Deslauriers fazia-lhe sinal, do meio do público, de que nem tudo ainda estava perdido, e no segundo interrogatório sobre Direito Criminal, mostrou-se passável. Mas, depois do terceiro, relativo ao testamento místico, como o examinador se mantivesse impassível o tempo todo, a sua angústia duplicou; porque Hussonnet juntava as mãos como que aplaudindo, ao passo que Deslauriers encolhia os ombros repetidamente. Finalmente, chegou o momento em que era necessário responder sobre Processo! Tratava-se do embargo de terceiros. O professor, irritado por ter ouvido teorias contrárias às suas, perguntou-lhe num tom brutal:
— E o senhor, também pensa assim? Como concilia o principio do artigo 1.351 do Código Civil com essa extraordinária forma de ataque?
Frédéric sentia uma grande dor de cabeça, por ter passado a noite sem dormir. Um raio de sol, coando-se pela fresta de uma gelosia, batia-lhe no rosto. Em pé, atrás da cadeira, balançava o corpo, cofiando o bigode.
— Continuo esperando a sua resposta! — insistiu o homem da borla dourada.
E, certamente irritado com o gesto de Frédéric:
— Não é com certeza na sua barba que a vai encontrar!
Esse sarcasmo provocou uma risada na assistência; o professor, envaidecido, abrandou. Fez ainda duas perguntas sobre o adiamento e o processo sumário, depois baixou a cabeça, em sinal de assentimento; o ato público estava terminado. Frédéric saiu para o vestíbulo.
Enquanto o bedel o auxiliava a despir a toga, que passou imediatamente a outro candidato, os amigos rodearam-no, acabando de desorientá-lo com as suas opiniões contraditórias sobre o resultado do exame. Este não tardou a ser proclamado numa voz sonora, à entrada da sala: “O terceiro tinha sido... adiado!”
— Liquidado! — disse Hussonnet. — Vamo-nos embora!
Diante do cubículo do porteiro, encontraram Martinon, corado, emocionado, os olhos sorridentes e a auréola do triunfo na fronte. Acabava de passar sem embaraço o último exame. Faltava apenas a defesa de tese. Dentro de quinze dias estaria licenciado. A família tinha um ministro entre as suas relações, e “uma bela carreira” o esperava.
— Este enterrou-te, não há dúvida — disse Deslauriers.
Nada é tão humilhante como ver os tolos vencer nas empresas em que malogramos. Frédéric, vexado, respondeu que pouco lhe importava. As suas ambições visavam mais alto; e, como Hussonnet se dispusesse a partir, chamou-o à parte para lhe dizer:
— Nem uma palavra acerca disto em casa deles, está claro!
O segredo era fácil de conseguir, pois Arnoux partia no dia seguinte para a Alemanha.
À noite, ao regressar à casa, o escrevente encontrou o amigo singularmente mudado: dava piruetas, assobiava; e, como o outro estranhasse tal disposição, Frédéric declarou que não iria para casa da mãe; passaria as férias estudando.
Ao saber da partida de Arnoux, sentira uma grande alegria. Podia frequentar a casa à vontade, sem receio de que as suas visitas fossem interrompidas. A certeza de uma segurança absoluta dava-lhe coragem. Até que enfim não seria afastado, não seria separado d’Ela! Algo mais forte do que um grilhão de ferro o prendia a Paris, uma voz interior dizia-lhe que devia ficar.
Havia alguns obstáculos. Venceu-os, escrevendo à mãe; começava por confessar o malogro, motivado por mudanças que tinha havido no programa — um acaso, uma injustiça; aliás, todos os grandes advogados (e citava os nomes) tinham sido reprovados nos exames. Mas contava apresentar-se novamente em novembro. Ora, não havendo tempo a perder, não iria esse ano para casa; e pedia, além do dinheiro de um trimestre, duzentos e cinquenta francos para explicações de Direito, muito úteis — tudo isso envolvido em lamentações, condolências, adulações e protestos de amor filial.
A Senhora Moreau, que esperava vê-lo chegar no dia seguinte, ficou duplamente magoada. Ocultou o insucesso do filho e respondeu-lhe que “viesse mesmo assim”. Frédéric não cedeu. A mãe ficou zangada. Contudo, no fim da semana, recebia o dinheiro do trimestre mais a quantia destinada a pagar as explicações, a qual serviu para pagar uma calça cinza-pérola, um chapéu de feltro branco e uma bengalinha de castão de ouro.
Quando se viu na posse de tudo isso:
— Terei tido, talvez, uma ideia de sedução? — pensou.
E dominou-o uma grande hesitação.
Para saber se iria ou não à casa da Senhora Arnoux, atirou por três vezes uma moeda ao ar. De todas elas o presságio foi de bom agouro. Portanto, a fatalidade assim o queria. E fez-se conduzir de fiacre à Rua de Choiseul.
Subiu rapidamente a escada, e puxou o cordão da campainha; esta não tocou; sentiu-se prestes a desfalecer.
Depois, sacudiu, com toda a força, a pesada borla de seda vermelha. Um carrilhão retiniu, silenciou gradualmente, e não se ouviu mais nada. Frédéric teve medo.
Encostou o ouvido à porta; nem um murmúrio! Espreitou pelo buraco da fechadura, mas via apenas, no vestíbulo, a ponta de duas hastes, na parede, entre as flores de papel. Por fim, ia já voltar as costas, mas mudou de ideia. Desta vez, deu um pequeno toque, muito suave. A porta abriu-se e, no limiar, o cabelo em desalinho, muito vermelho e uma expressão de aborrecimento, surgiu Arnoux em pessoa.
— Olá! Que diabo o traz por aqui? Entre!
Fê-lo entrar, não para o toucador ou o quarto, mas para a sala de jantar, onde se viam, em cima da mesa, uma garrafa de champanha e dois copos; e, com brusquidão:
— Precisa alguma coisa de mim, meu caro amigo?
— Não! Nada! Nada! — balbuciou o jovem, enquanto procurava um pretexto para a sua visita.
Por fim, disse que tinha vindo saber notícias dele, porque o julgava na Alemanha, segundo dissera Hussonnet.
— Mas não! — retorquiu Arnoux. — Que trapalhão é esse rapaz, para entender tudo às avessas!
Para dissimular a perturbação, Frédéric andava de um lado para o outro. Foi de encontro ao pé de uma cadeira, e fez cair uma sombrinha que estava pousada sobre ela; o cabo de marfim partiu-se.
— Meu Deus! — exclamou ele. — Como estou aborrecido por ter quebrado a sombrinha da Senhora Arnoux.
Ao ouvir isso, o negociante levantou a cabeça, e esboçou um sorriso singular. Frédéric, aproveitando o pretexto para falar nela, acrescentou timidamente:
— Eu poderia vê-la?
Tinha ido para a terra dela, fazer companhia à mãe, que estava doente.
Não se atreveu a perguntar quanto tempo duraria a sua ausência. Perguntou apenas de onde era a Senhora Arnoux.
— De Chartres! Acha estranho?
— Eu? Mas não! Por quê? De modo algum!
Em seguida, ficaram sem ter absolutamente nada a dizer. Arnoux, que confeccionara um cigarro, andava em volta da mesa, bufando. Frédéric, de pé junto ao calorífero, contemplava as paredes, a prateleira, o chão: e deliciosas imagens perpassavam-lhe na memória, ou melhor, diante dos olhos. Por fim, foi-se embora.
Um pedaço de jornal, feito uma bola, estava caído no vestíbulo; Arnoux pegou nele, e, erguendo-se na ponta dos pés, meteu-o na sineta, para poder continuar, disse ele, a sesta interrompida. E depois, dando-lhe um aperto de mão:
— Diga ao porteiro, por favor, que não estou em casa!
E fechou-lhe violentamente a porta nas costas9.
Frédéric desceu a escada degrau por degrau. O insucesso dessa primeira tentativa desanimava-o sobre a sorte das outras. Então começaram três meses de tédio. Como não tinha nenhum trabalho, a sua ociosidade reforçava a tristeza.
Passava horas contemplando, do alto da varanda, o rio que deslizava entre os cais cinzentos, enegrecidos, aqui e ali, pela babugem dos esgotos, com um pontão de lavadeiras ancorado junto à margem, onde de vez em quando a garotada se divertia banhando no lodo um cachorrinho. Os seus olhos, deixando, à esquerda, a ponte de pedra da Notre-Dame e três pontes pênseis, fixavam sempre o cais aux Ormes e um maciço de velhas árvores, que lembravam as tílias do porto de Montereau. A torre Saint-Jacques, a Municipalidade, Saint-Gervais, Saint-Louis, Saint-Paul erguiam-se em frente, entre a confusão dos telhados, — e o gênio da coluna de Julho resplandecia ao oriente como uma grande estrela de ouro, enquanto na outra extremidade as Tulherias ostentavam a pesada massa azul da sua cúpula. Devia ser ali por trás, desse lado, a casa da Senhora Arnoux.
Voltava ao quarto; depois, estendido no divã, abandonava-se a uma meditação desordenada: planos de trabalho, projetos de conduta, aspirações de vida futura. Por fim, para fugir a si próprio, saía.
Percorria, ao acaso, o bairro latino, habitualmente cheio de tumulto, mas deserto naquela época, com os estudantes em férias. As altas paredes dos colégios, que o silêncio parecia tornar mais extensas, tinham um aspecto ainda mais triste; ouvia-se um sem-número de ruídos pacíficos, bater de asas nas gaiolas, a vibração de um torno, o martelo de um sapateiro; e os vendedores de roupas, no meio da rua, interrogavam inutilmente com os olhos todas as janelas. No fundo dos cafés solitários, a dama do balcão bocejava entre as garrafas cheias; os jornais permaneciam em ordem na mesa dos gabinetes de leitura; nas casas das engomadeiras, a roupa branca estremecia ao sopro do vento morno. De vez em quando, detinha-se diante do tabuleiro de um alfarrabista; um ônibus que descia, rente ao passeio, fazia-o voltar-se; e, chegando em frente ao Luxembourg, não ia mais longe.
Às vezes, a esperança de uma distração atraía-o aos bulevares. Depois dos becos sombrios que exalavam uma úmida frescura, chegava às grandes praças desertas, ofuscantes de luz, onde os monumentos desenhavam no chão bordados de sombra. Mas as carroças, os estabelecimentos reapareciam, e a multidão deixava-o atordoado — sobretudo aos domingos — quando, da Bastilha à Madeleine, era uma onda imensa e ondulante sobre o asfalto, no meio da poeira e de um burburinho contínuo; causava-lhe asco a vulgaridade dos rostos, a inanidade das conversas, o ar de imbecil satisfação das testas em suor! Todavia, a consciência de valer mais do que essa gente atenuava a fadiga de a contemplar.
Ia todos os dias à Art industriel, — e, para saber quando a Senhora Arnoux estaria de volta, perguntava insistentemente pela mãe. A resposta de Arnoux era invariável; “as melhoras continuavam”, e a mulher mais a filha voltariam na semana seguinte. Quanto mais ela tardava em regressar, maior inquietação manifestava Frédéric, a tal ponto que Arnoux, comovido por tamanha afeição, o levou cinco ou seis vezes a jantar num restaurante.
Frédéric, nessas longas conversas a sós, reconheceu a pouca espiritualidade do negociante de quadros. Mas Arnoux podia aperceber-se dessa desilusão; e, além disso, precisava retribuir, pouco que fosse, as gentilezas dele10.
Assim, querendo fazer as coisas o melhor possível, vendeu a um belchior a roupa nova, por oitenta francos; e, juntando-lhe outros cem que lhe restavam, foi buscar Arnoux para jantar. Regimbart também lá estava. Foram todos juntos ao Trois-Frères-Provençaux.
O Cidadão começou por tirar a sobrecasaca e, certo da deferência dos outros dois, escolheu os pratos. Mas, embora fosse à cozinha para falar em pessoa com o cozinheiro, descesse à adega, de que conhecia todos os desvãos, e fizesse comparecer o dono da casa, no qual “passou uma descompostura”, não se mostrou satisfeito nem com a comida, nem com os vinhos, nem com o serviço! A cada novo prato, a cada garrafa diferente, ao levar à boca o primeiro bocado, ao primeiro gole, pousava o garfo, afastava de si o copo; depois, com o corpo descaído sobre a mesa, em que fincara o cotovelo, exclamava que já não se podia jantar em Paris! Finalmente, não sabendo o que imaginar para a sua boca exigente, Regimbart pediu feijões com azeite, “simplesmente”, os quais, embora não estivessem precisamente como ele queria, o apaziguaram um pouco. Em seguida teve com o criado um diálogo acerca do antigo pessoal do Provençaux: “Que era feito do Antoine? E um tal Eugène? E Théodore, aquele baixinho que servia sempre na sala do rés-do-chão? Nesse tempo a comida era bem mais delicada, e havia umas cabeças de vitela ao borgonha como nunca mais se veriam!”.
Em seguida, falaram do valor dos terrenos no subúrbio, uma especulação infalível de Arnoux. Entretanto, estava perdendo os juros. Como não queria vendê-los por preço nenhum, Regimbart havia de lhe descobrir alguém. E os dois ficaram fazendo cálculos, com um lápis, até o fim da sobremesa.
Foram tomar café na Galeria Saumou, num botequim, instalado numa sobreloja. Frédéric presenciou, sem arredar pé, intermináveis partidas de bilhar, molhadas com inúmeros chopes; — e ficou ali, até à meia-noite, sem saber por quê, por covardia, por estupidez, na vaga esperança de qualquer acontecimento favorável ao seu amor.
Quando tornaria a vê-la? Frédéric desesperava-se. Mas, uma noite, quase no fim de novembro, disse-lhe Arnoux:
— Sabe, minha mulher voltou ontem!
No dia seguinte, às cinco horas, estava em casa dela.
Começou por congratular-se, a propósito da mãe, cuja doença fora tão grave.
— Mas não! Quem lhe disse tal coisa?
— Arnoux!
Ela proferiu um breve “Ah!” e acrescentou que, a princípio, tivera sérios receios, mas agora estava tranquilizada.
Estava junto da lareira, na poltrona estofada. Frédéric sentara-se no canapé, com o chapéu pousado nos joelhos; e a conversa foi penosa, ela abandonava-a a todo o momento, e Frédéric não encontrava oportunidade para aludir aos seus sentimentos. Mas, como ele se queixasse de estudar Direito, ela replicou: — Sim... Compreendo... Os negócios!... — enquanto baixava os olhos, de súbito absorta nos próprios pensamentos.
Ele ansiava por conhecê-los e, de fato, não pensava noutra coisa. O crepúsculo ia amontoando sombras à volta dos dois.
Ela ergueu-se, pois tinha que sair, e voltou com um chapéu de veludo e uma manta preta, debruada de petigris. Frédéric ousou oferecer-se para acompanhá-la.
Já não se via, quase; o tempo estava frio, o cheiro do denso nevoeiro que esbatia a fachada das casas, impregnava o ar. Frédéric aspirava-o deliciado; porque sentia, através do tecido macio, a forma do braço dela; e a mão delicada, que ele desejaria cobrir de beijos, apoiava-se na sua manga. Como o chão estava escorregadio, eles oscilavam um pouco; e parecia a Frédéric que iam como que embalados pelo vento, no meio de uma nuvem.
No bulevar, as luzes ofuscantes fizeram-no voltar à realidade. A ocasião era boa, o tempo urgia. Impôs-se declarar o seu amor até chegarem à Rua de Richelieu. Mas, quase imediatamente, diante de uma casa de louças, ela parou, e disse-lhe:
— Cá estamos, muito obrigada! Até quinta, não é verdade, como de costume?
Os jantares recomeçaram; e, quanto mais ele frequentava a Senhora Arnoux, mais se acentuavam os seus langores.
A contemplação daquela mulher enervava-o, como o uso de um perfume intenso demais. Era uma coisa que lhe descia até as profundezas do temperamento, e se tornava quase uma maneira geral de sentir, uma nova forma de existir.
As prostitutas com que topava à luz do gás, as cantoras soltando os seus gorjeios, as amazonas galopando nos cavalos, as burguesas a pé, as costureirinhas à janela, todas as mulheres só o faziam pensar naquela, por vagas semelhanças ou por violentos contrastes. Contemplava, ao longo das vitrinas, as sedas, as rendas e as bijuterias, imaginando-as a cingir-lhe os rins, cosidas no corpo do vestido, brilhando entre os seus cabelos negros. Nos tabuleiros das floristas, as flores desabrochavam para que ela, ao passar, as escolhesse; na vitrina dos sapateiros, as pantufazinhas de cetim debruadas de arminho pareciam esperar o seu pé; todas as ruas levavam à casa dela; as carruagens só estacionavam nas praças a fim de conduzir mais depressa para lá; Paris convergia para a pessoa dela, e a grande cidade, com todas as suas luzes, zumbia, como imensa orquestra, em volta dela.
Quando ia ao Jardim das Plantas, sentia, ao ver uma palmeira, a atração dos países distantes. Viajavam juntos, montados em dromedários, sob a tenda dos elefantes, na cabina de um iate por entre arquipélagos azuis, ou, lado a lado, no dorso de mulas que faziam soar as suas campainhas, tropeçando nas colunas partidas, entre a erva. Por vezes, detinha-se no Louvre diante de velhas pinturas; e o seu amor transportava-a até os séculos desaparecidos, substituindo-a às figuras dos quadros. Toucada com o hennin11, orava de joelhos atrás de um vitral. Castelã da Espanha ou da Flandres, estava sentada, de cabeção encanudado e um corpete de varas de grandes pregas. Depois descia alguma grande escadaria de pórfiro, no meio dos senadores, sob um pálio de penas de avestruz, num vestido de brocado. Outras vezes, sonhava-a de pantalona de seda amarela, sobre os coxins de um harém; — e tudo quanto era belo, o cintilar das estrelas, certas árias, a melodia de uma frase, um contorno, tornavam-na presente ao seu pensamento de uma maneira brusca e insensível.
Quanto a tentar fazer dela sua amante, tinha a certeza de que qualquer tentativa seria vã.
Uma noite, Dittmer, ao chegar, beijou-a na testa; Lovarias imitou-o, dizendo:
— Permite-me, não é verdade, segundo o privilégio dos amigos?
Frédéric balbuciou:
— Parece-me que somos todos seus amigos?
— Nem todos são amigos velhos! — retorquiu ela.
Era repeli-lo antecipadamente, de maneira indireta.
Aliás, que poderia fazer? Dizer-lhe que a amava? Ela não lhe daria ouvidos, certamente; ou até, indignando-se, o poria para fora da porta! Ora, Frédéric preferia todos os sofrimentos à horrível perspectiva de nunca mais a ver.
Invejava o talento dos pianistas, as cicatrizes dos soldados. Desejava ter uma doença perigosa, esperando assim interessá-la.
Uma coisa o espantava12, era não sentir ciúmes de Arnoux; e não podia imaginá-la senão vestida — de tal maneira o seu pudor parecia natural, relegando o sexo para uma sombra misteriosa.
Todavia, sonhava com a felicidade que seria viver com ela, tratá-la por tu, acariciar-lhe demoradamente os bandós, ficar de joelhos junto dela, abraçando-a pela cintura, bebendo-lhe a alma nos olhos! Mas, para isso, seria necessário que fossem alteradas as leis do destino; e, incapaz de agir, amaldiçoando Deus e acusando-se pela sua própria covardia, girava em torno do seu desejo, como um prisioneiro na cela. Uma angústia o oprimia constantemente. Ficava horas imóvel, ou então punha-se a chorar; e, um dia que não tivera forças para se dominar, Deslauriers dissera-lhe:
— Mas, com a breca! Que tens tu?
Frédéric sofria dos nervos13. Deslauriers não acreditava. Perante tamanha dor, sua ternura pelo amigo reavivou-se, e procurou reconfortá-lo. Um homem como ele deixar-se abater assim, que disparate! Na juventude, vá lá, mas, passada ela, é perder tempo.
— Estás estragando o meu Frédéric! Reclamo o antigo! Desse é que eu gosto! Vamos, fuma uma cachimbada, animal! Reage, não te posso ver assim!
— Tens razão — disse Frédéric — estou louco!
O escrevente prosseguiu:
— Ah! Meu velho trovador, bem sei onde te dói! O coraçãozinho? Confessa! Ora — uma perdida, dez achadas! A melhor cura contra as mulheres virtuosas está nas outras. Queres que te faça conhecer mulheres? É só vires ao Alhambra. (Era um baile público inaugurado recentemente, lá para o fim dos Champs-Elysées, e que faliu logo na segunda estação, por causa de um luxo prematuro em estabelecimentos desse gênero.) Parece que lá a gente se diverte. Vamos daí! Levarás os teus amigos, se te apetece; mesmo, se quiseres, o Regimbart!
Frédéric não convidou o Cidadão. Deslauriers privou-se da companhia de Sénécal. Levaram apenas Hussonnet, Cisy e Dussardier; e o mesmo fiacre deixou os cinco à porta do Alhambra.
Duas galerias mouriscas estendiam-se à direita e à esquerda, paralelamente. A parede de uma casa, em frente, ocupava todo o fundo, e o quarto lado (o do restaurante) representava um claustro gótico com vitrais coloridos. O estrado em que os músicos tocavam era abrigado por uma espécie de teto chinês; em redor, o solo era asfaltado, e lanternas venezianas, pendentes de postes, formavam de longe uma coroa de luzes multicores sobre as quadrilhas. Aqui e ali, de pedestais figurando conchas de pedra, elevavam-se finos repuxos d’água. Por entre as folhagens havia estátuas de gesso, Hebes ou Cupidos engordurados de pintura a óleo; e as aleias numerosas, cobertas de saibro muito amarelo, cuidadosamente alisado, faziam parecer o jardim muito mais vasto do que era na realidade.
Estudantes passeavam as amantes; caixeiros de casas de modas pavoneavam-se, de bengala na mão; colegiais fumavam régalias; velhos celibatários passavam um pente na barba tingida; havia ingleses, russos, gente da América do Sul, três orientais de turbante. Mulheres fáceis tinham vindo na esperança de encontrar um protetor, uma aventura, uma moeda de ouro, ou simplesmente pelo prazer de dançar; e os seus vestidos de túnica, verde-água, azul, cereja ou roxo, passavam, agitavam-se por entre os ébanos e os lilases. Quase todos os homens usavam tecido xadrez, e alguns, calças brancas, apesar do ar fresco da noite. Começavam a acender-se os bicos de gás.
Hussonnet, graças às suas relações nos jornais de modas e nos pequenos teatros, conhecia muitas mulheres; atirava-lhes beijos com a ponta dos dedos, e, de vez em quando, deixando os amigos, ia conversar com elas.
Deslauriers, invejando aquelas atitudes, interpelou cinicamente uma loira alta, vestida de crepe-da-china. Depois de o ter encarado com desprezo, ela disse: — Nada de confianças, meu filho! — e voltou-lhe as costas.
Deslauriers abordou então uma morena forte, a qual, sem dúvida, era louca, pois deu um salto, mal ele abriu a boca, ameaçando-o, se continuasse, de chamar a polícia. Deslauriers procurou rir; depois, vendo uma mulherzinha sentada sozinha, sob um revérbero, convidou-a para uma contradança.
Os músicos, empoleirados no estrado, pareciam macacos, rabecando e soprando furiosamente. O regente, de pé, marcava o compasso como um autômato. Todos, amontoados, divertiam-se; os laços desatados dos chapéus roçavam as gravatas, as botas desapareciam debaixo das saias; a multidão saltava em cadência; Deslauriers apertava contra si a mulherzinha e, contagiado pelo delírio do cancã, desengonçava-se no meio das quadrilhas como um fantoche. Cisy e Dussardier continuavam o seu passeio; o jovem aristocrata lançava olhares às mulheres, mas, apesar das exortações do caixeiro, não se atrevia a dirigir-lhes a palavra, imaginando que, em casa de tais mulheres, havia sempre “um homem escondido no armário, com uma pistola, e que surge a exigir a assinatura de letras”.
Voltaram para junto de Frédéric. Deslauriers deixara de dançar; e todos se perguntavam como acabar a noite, quando Hussonnet exclamou:
— Olha! A Marquesa de Amaegui!
Era uma mulher pálida, de nariz arrebitado, com mitenes até o cotovelo e grandes brincos negros que lhe pendiam ao longo do rosto, como duas orelhas caninas. Hussonnet disse-lhe:
— Devíamos organizar uma festazinha em tua casa, uma recepção oriental! Vê se reúnes algumas das tuas amigas para estes cavalheiros franceses! Então, que é que te prende? Estarás porventura esperando o teu hidalgo?
A andaluza baixara a cabeça; conhecendo os hábitos pouco luxuosos do amigo, receava que a despesa lhe saísse da bolsa. Finalmente, quando ela falou em dinheiro, Cisy ofereceu cinco napoleões, tudo quanto tinha; e a coisa ficou decidida. Mas Frédéric desaparecera.
Parecera-lhe reconhecer a voz de Arnoux, divisara um chapéu de mulher, e penetrara imediatamente no caramanchão ao lado.
A Srta. Vatnaz estava sozinha com Arnoux.
— Desculpem! Incomodo?
— De forma alguma! — retorquiu Arnoux.
Frédéric compreendeu, pelas últimas palavras da conversa dos dois, que ele acorrera ao Alhambra para tratar com a Srta. Vatnaz de um assunto urgente; e Arnoux não parecia estar inteiramente tranquilo, porque lhe disse, com ar inquieto:
— Está certa disso?
— Certíssima! Você é amado! Ah! Que homem!
E fazia trejeitos, estendendo os lábios grossos, quase sanguinolentos, de tão vermelhos. Mas tinha uns olhos admiráveis, fulvos, com palhetas douradas, cheios de vivacidade, amor e sensualidade, que iluminavam a tez um pouco amarelada do seu rosto magro. Arnoux parecia divertir-se com as negaças dela. Inclinou-se e disse-lhe:
— Você é muito gentil, dê-me um beijo!
Ela agarrou-o pelas orelhas, e beijou-o na testa.
Nesse momento, as danças pararam; e, no lugar do regente da orquestra, surgiu um jovem bonito, demasiado gordo, de uma brancura de cera. Tinha o cabelo comprido, negro, penteado à Cristo, um colete de veludo azul, com grandes palmas douradas, um ar orgulhoso de pavão, e estúpido como um peru; e, tendo saudado o público, começou uma cançoneta. Era um camponês contando a sua viagem à capital; o artista imitava o falar normando, fingia-se bêbado; o refrão:
Ah! Como eu ri, como eu ri,
Nesta piolheira de Paris!
provocava acessos de entusiasmo. Delmas, “cantor expressivo”, não era tolo para o deixar arrefecer. Passaram-lhe rapidamente um violão, e ele gemeu uma romança intitulada O irmão da albanesa.
A letra lembrava a Frédéric a que cantava o homem coberto de andrajos, no barco. Os seus olhos fixavam involuntariamente a orla do vestido espalhada diante dele. Depois de cada estrofe, havia uma longa pausa — e o rumorejar do vento nas árvores assemelhava-se ao marulhar das ondas.
A Srta. Vatnaz, afastando com a mão os ramos de uma alfeneira que lhe tirava a vista do estrado, contemplava o cantor, fixamente, as narinas dilatadas, as sobrancelhas franzidas, como que absorta numa alegria interior.
— Muito bem! — disse Arnoux. — Agora compreendo por que veio esta noite ao Alhambra! Delmas caiu-lhe no goto, minha querida.
Ela nada quis confessar.
— Ah! Que pudor!
E, apontando para Frédéric:
— Será por causa dele? Faz mal. É o jovem mais discreto do mundo!
Os outros, que procuravam o amigo, entraram no caramanchão. Hussonnet apresentou-os. Arnoux fez uma distribuição de charutos e ofereceu sorvete a todos.
A Srta. Vatnaz tinha corado ao encarar-se com Dussardier. Não tardou a levantar-se, e, estendendo-lhe a mão:
— Não está me reconhecendo, Senhor Auguste?
— De onde a conhece? — perguntou Frédéric.
— Já trabalhamos na mesma casa! — respondeu Dussardier.
Cisy puxou-o pela manga, e saíram; logo que ele desapareceu, a Srta. Vatnaz elogiou-lhe o caráter. Acrescentou mesmo que ele tinha “o gênio da bondade”.
Depois falaram de Delmas, que poderia, como mímico, ter êxito no teatro; e seguiu-se uma discussão, em que entraram Shakespeare, a Censura, o Estilo, o Povo, as receitas do teatro da Porta Saint-Martin, Alexandre Dumas, Victor Hugo e Dumersan. Arnoux conhecera diversas atrizes famosas; os moços inclinavam-se para o escutar. Mas as palavras dele eram abafadas pelo barulho da música; e, mal terminava uma quadrilha ou uma polca, todos voltavam para as mesas, chamavam o criado, riam; as garrafas de cerveja e de limonada gasosa deflagravam entre a folhagem, as mulheres gritavam como galinhas; de vez em quando, dois cavalheiros faziam menção de bater-se; a certa altura prenderam um gatuno.
Num galope, os pares invadiram as aleias.
Arfantes, sorridentes, afogueados, desfilavam num turbilhão que levantava os vestidos e as abas dos fraques; os trombones vibravam com mais força; o ritmo acelerava-se; atrás do claustro medieval, ouviam-se crepitações, estouravam petardos; sóis começaram a girar; a luz dos fogos de artifício, cor de esmeralda, iluminou por um minuto todo o jardim; — e, com o último foguete, a multidão exalou um profundo suspiro.
Depois, dispersou-se lentamente. Uma nuvem de pólvora flutuava no ar. Frédéric e Deslauriers caminhavam no meio da multidão, passo a passo, quando um espetáculo14 os fez parar; Martinon recebia o troco, no depósito dos guarda-chuvas; acompanhava uma mulher de uns cinquenta anos, feia, magnificamente vestida, e de categoria social problemática.
— Esse sujeito — disse Deslauriers — é menos simples do que se supõe. Mas onde se meteu Cisy?
Dussardier mostrou-lhes o botequim, onde viram o descendente dos grandes, diante de um copo de ponche, na companhia de um chapéu cor-de-rosa.
Hussonnet, que se ausentara durante cinco minutos, reapareceu nesse momento.
Uma jovem, de braço dado com ele, chamava-lhe em voz alta “meu gatinho”.
— Mas não! — dizia ele. — Não! Em público, não! Chama-me antes visconde! Sempre dá um ar de cavalheiro, Luís XIII e botas moles, que me agrada! Sim, meus caros, uma velha amiga! Não acham que é um amor? — E segurando-lhe o queixo: — Cumprimenta estes senhores! São todos filhos de pares de França! Frequento-os para eles me nomearem embaixador!
— Que louco você é! — suspirou a Senhorita Vatnaz.
E pediu a Dussardier que a conduzisse até a porta de casa.
Arnoux seguiu com os olhos o par que se afastava, e disse, voltando-se para Frédéric:
— A Vatnaz não lhe agrada? Aliás, você não é nada franco nesses assuntos! Faz segredo dos seus amores?
Frédéric tornara-se lívido, e jurou que não escondia nada.
— Como não se lhe conhece amante... — retorquiu Arnoux.
Frédéric teve vontade de citar um nome ao acaso. Mas “ela” podia vir a saber do caso. E respondeu que, de fato, não tinha nenhuma amante.
O comerciante censurou-o.
— Esta noite, a ocasião era boa! Por que não fez como os outros, que vão cada um com sua mulher?
— Pois sim, e o senhor? — disse Frédéric, irritado com aquela insistência.
— Ah! Eu! Meu filho! É diferente! Eu volto para junto da minha!
Chamou um cabriolé, e desapareceu.
Os dois amigos voltaram a pé. Soprava um vento de leste. Nenhum deles falava. Deslauriers tinha pena de não ter brilhado diante do diretor de um jornal, e Frédéric ia mergulhado na própria tristeza. Por fim, disse que achara15 o Alhambra estúpido.
— E de quem é a culpa? Se não nos tivesses trocado pelo teu Arnoux!
— Ora! Tudo o que eu pudesse fazer teria sido completamente inútil!
Mas o escrevente tinha as suas teorias. Para obter as coisas, bastava desejá-las com força.
— Todavia, tu mesmo, ainda agora...
— Queria lá saber delas! — disse Deslauriers, não o deixando completar a insinuação. — Tenho mais que fazer do que aturar mulheres!
E declamou contra o sentimentalismo e as tolices delas; em suma, aborreciam-no.
— Deixa-te de atitudes! — disse Frédéric.
Deslauriers calou-se. E depois, de repente:
— Queres apostar cem francos como levo a primeira que passar?
— Apostado!
A primeira a passar era uma mendiga horrenda; e já desesperavam do acaso quando, no meio da Rua de Rivoli, avistaram uma jovem alta, com um pequeno embrulho na mão.
Deslauriers abordou-a debaixo das arcadas. Ela cortou bruscamente para o lado das Tulherias, e não tardou a seguir pela Praça do Carrousel, lançando olhares à direita e à esquerda. Correu atrás de um fiacre; Deslauriers alcançou-a. Caminhava a seu lado, falando-lhe com gestos eloquentes. Finalmente ela aceitou-lhe o braço, e prosseguiram ao longo do cais. Depois, pela altura do Châtelet, andaram de um lado para outro, no passeio, como dois marinheiros fazendo o quarto. Mas, de repente, atravessaram a Ponte au Change, o Mercado das flores, o cais Napoléon. Frédéric entrou atrás deles. Deslauriers fez-lhe compreender que os incomodaria, e o melhor que tinha a fazer era seguir-lhe o exemplo.
— Quanto tens ainda?
— Duas moedas de cem sous!
— É o suficiente! Boa-noite!
Frédéric foi dominado pelo pasmo que se sente ao ver bem-sucedida uma brincadeira: “Ele está fazendo pouco de mim”, pensou. “E se eu subisse?” Deslauriers seria capaz de supor que lhe invejava aquele amor? “Como se eu não tivesse um, e mil vezes mais raro, mais nobre, mais forte!” Impelia-o uma espécie de raiva. Chegou diante da porta da Senhora Arnoux.
Nenhuma das janelas da rua pertencia ao apartamento deles. Contudo, permaneceu de olhos pregados na fachada — como se, por meio dessa contemplação, julgasse possível trespassar as paredes. Agora, sem dúvida, ela repousava, tranquila como uma flor adormecida, os belos cabelos negros entre as rendas do travesseiro, lábios entreabertos, a cabeça deitada sobre um braço.
Mas surgiu-lhe a imagem de Arnoux. E afastou-se, para fugir àquela visão.
Lembrou-se do conselho que lhe dera Deslauriers; fez-lhe horror. Então, pôs-se a vagabundear pelas ruas.
Quando vinha alguém na direção contrária, procurava distinguir-lhe as feições. De vez em quando, um raio de luz passava-lhe por entre as pernas, descrevendo no chão um imenso arco de círculo; e um homem surgia da sombra, de cesta e lanterna na mão. Em alguns lugares, o vento sacudia o cano de zinco de uma chaminé; chegavam-lhe sons longínquos, que se misturavam ao zumbido da sua cabeça, e parecia-lhe ouvir, nos ares, o vago compasso das contradanças. O movimento da marcha alimentava essa embriaguez; achou-se na Ponte de la Concorde.
Então, lembrou-se daquela noite do inverno passado, em que, saindo de casa dela, pela primeira vez, se tinha visto obrigado a parar, tão rapidamente o coração lhe batia, sob a pressão das suas esperanças. Todas estavam mortas, agora!
Nuvens escuras passavam diante da lua. Contemplou-a, sonhando com a vastidão dos espaços, a miséria da vida, o nada a que tudo se reduzia. O dia surgiu; batia os dentes de frio; e, meio a dormir, molhado pelo nevoeiro e coberto de lágrimas, perguntou a si próprio por que não poria termo à vida. Era só fazer um movimento! O peso da cabeça arrastava-o, via o seu cadáver flutuando na água; Frédéric debruçou-se. O parapeito era bastante largo, e foi por lassidão que não fez esforço para o transpor.
O pavor assaltou-o. Voltou para os bulevares, e deixou-se cair num banco. Foi acordado por agentes da polícia, convencidos de que “andara na pândega”.
Recomeçou a caminhada. Mas, como sentia imensa fome, e todos os restaurantes estavam fechados, foi cear a uma taberna do Halles. Depois, pensando que era ainda cedo demais, vagueou pelas redondezas da Municipalidade, até às oito e um quarto.
Havia muito já que Deslauriers mandara embora a donzela; estava a escrever, sentado à mesa, no meio do quarto. Pelas quatro horas, o Senhor de Cisy apareceu.
Graças a Dussardier, travara relações com uma dama, na véspera à noite; e tinha-a mesmo acompanhado de carruagem, com o marido, até à porta de casa, onde ela lhe marcara uma entrevista, donde Cisy regressara naquele momento. Mas ninguém conhecia o nome da tal senhora.
— Que quer que eu lhe faça? — perguntou Frédéric.
Então o gentil homem espraiou-se; falou da Srta. Vatnaz, da Andaluza, e das outras todas. Por fim, com muitas perífrases, expôs a finalidade da sua visita: confiando na discrição do amigo, vinha solicitar a companhia dele numa empresa, após a qual se consideraria definitivamente um homem; Frédéric não lha recusou. Contou a história a Deslauriers, sem dizer a verdade sobre o que lhe dizia pessoalmente respeito.
O escrevente achou que “ele ia agora muito bem”. Esta deferência para com os seus conselhos aumentou-lhe o bom humor.
Fora graças a este que conseguira seduzir, logo no primeiro dia, a Srta. Clémence Daviou, bordadeira em ouro para equipamentos militares, o ser mais doce do mundo, esbelta como uma haste, de grandes olhos azuis, que tinham sempre uma expressão atônita. Deslauriers abusava da sua candura, a ponto de lhe fazer crer que era condecorado; e ornamentava a sobrecasaca com uma fita vermelha, quando se encontrava com ela, coisa de que se abstinha em público, para não humilhar o patrão, dizia ele. Aliás, mantinha-a a distância, deixava-se acariciar como um paxá, chamava-lhe “filha do povo”, brincando. Ela trazia-lhe, de cada vez, um pequeno ramo de violetas. Frédéric por nada no mundo teria desejado um amor assim.
Todavia, quando eles saíam, de braço dado, para ir a um gabinete particular no Restaurante Pinson, ou no Barillot, apoderava-se dele singular tristeza. Frédéric ignorava quanto fizera sofrer Deslauriers havia um ano, todas as quintas-feiras, quando arranjava as unhas antes de ir jantar na Rua de Choiseul!
Uma noite, quando, da sua sacada, os via sair, avistou de longe Hussonnet na Ponte d'Arcole. O boêmio começou a fazer-lhe sinais, chamando-o, e disse-lhe, quando Frédéric desceu os cinco andares:
— A coisa é a seguinte: no próximo sábado, dia 24, é a festa onomástica da Sra. Arnoux.
— Mas como, ela não se chama Marie?
— Angèle, também, que importância tem isso? A festa será na casa de campo que eles têm em Saint-Cloud; estou encarregado de o convidar. Há um carro para o transporte até lá, às três horas, em frente ao jornal! Então, está combinado! Desculpe tê-lo feito descer. Mas tenho tanto que fazer!
Mal Frédéric voltara as costas, o porteiro entregou-lhe uma carta:
“O Senhor e a Senhora Dambreuse pedem ao Senhor F. Moreau que lhes dê a honra de jantar em casa, no sábado, 24 do corrente. — R.P.F.”
“Demasiado tarde”, pensou ele.
Contudo, mostrou a carta a Deslauriers, o qual exclamou:
— Ah! Finalmente! Mas não pareces contente. Por quê?
Frédéric, depois de leve hesitação, disse que tinha outro convite para o mesmo dia.
— Faz-me o favor de mandar às favas a Rua de Choiseul. Nada de tolices! Responderei por ti, se isso te custa.
E o amanuense escreveu, na terceira pessoa, aceitando o convite.
Tendo visto o mundo apenas através da febre das ambições, imaginava-o como uma criação artificial, funcionando em virtude de leis matemáticas. Um jantar, o encontro com um homem de posição, o sorriso de uma jovem podiam, por uma série de ações deduzindo-se umas das outras, ter gigantescos resultados. Alguns salões parisienses eram como essas máquinas que tomam a matéria em bruto e a devolvem centuplicando-lhe o valor. Acreditava nas cortesãs aconselhando diplomatas, nos casamentos ricos conseguidos por meio de intrigas, no gênio dos forçados, nas docilidades do acaso sob a garra dos fortes. Enfim, considerava tão útil frequentar os Dambreuse, e falava tão bem, que Frédéric já não sabia que decisão tomar.
Nem por isso descuidaria, visto ser o aniversário da Senhora Arnoux, de oferecer-lhe um presente; pensou, naturalmente, numa sombrinha, para reparar o seu gesto desastrado. Ora, descobriu uma de seda furta-cor, o cabo curto de marfim cinzelado, importada da China. Mas custava cento e setenta e cinco francos, e ele estava sem vintém, vivendo até a crédito por conta do próximo trimestre. Contudo, queria-a a todo o custo, e, apesar da sua repugnância, recorreu a Deslauriers.
Deslauriers respondeu-lhe que não tinha dinheiro.
— Mas eu preciso — disse Frédéric — preciso muito!
E, como o outro repetisse a mesma desculpa, irritou-se.
— Bem podias, uma vez ou outra...
— O quê?
— Nada!
O escrevente compreendera. Tirou das suas economias o dinheiro de que Frédéric precisava, e disse, depois de lhe ter entregue, moeda por moeda:
— Não te peço recibo, visto que vivo à tua custa!
Frédéric saltou-lhe ao pescoço, com mil protestos de amizade. Deslauriers permaneceu frio. E, no dia seguinte, ao ver a sombrinha em cima do piano:
— Ah! Era isso!
— Talvez a mande entregar — disse covardemente Frédéric.
O acaso veio em seu auxilio, pois recebeu, nessa mesma noite, um bilhete tarjado de negro, no qual a Senhora Dambreuse lhe anunciava a morte de um tio, desculpando-se por adiar o prazer de o conhecer.
Chegou às duas horas ao escritório do jornal. Em vez de esperar para o conduzir na sua carruagem, Arnoux partira na véspera, não resistindo mais à necessidade de ar livre.
Todos os anos, quando surgiam as primeiras folhas, durante vários dias seguidos, saía pela manhã, dava longos passeios pelo campo, bebia leite nas fazendas, gracejava com as aldeãs, informava-se sobre as colheitas, e trazia pés de alface embrulhados num lenço. Finalmente, realizando o seu sonho, comprara uma casa de campo.
Enquanto Frédéric falava com o empregado, surgiu a Srta. Vatnaz, que ficou desapontada por não encontrar Arnoux. Ele ainda se demoraria por lá talvez dois dias. O empregado aconselhou-a a “ir lá”; mas ela não podia; que escrevesse uma carta; mas ela receava que se perdesse. Frédéric ofereceu-se para a levar ele próprio. Ela escreveu-a rapidamente, e implorou-lhe que não a entregasse diante de testemunhas.
Daí a quarenta minutos descia em Saint-Cloud.
A casa, distante da ponte uns cem passos, erguia-se a meia encosta. Os muros do jardim ficavam escondidos por dois renques de tílias, e um largo relvado descia até a beira do rio. O portão estava aberto, e Frédéric entrou.
Arnoux, estendido na grama, brincava com uma ninhada de gatinhos. Esta distração parecia absorvê-lo inteiramente. A carta da Senhorita Vatnaz tirou-o do seu torpor.
— Diabo, diabo! Que coisa cacete! Ela tem razão; preciso ir.
Depois, tendo metido a missiva na algibeira, deu-se ao prazer de mostrar os seus domínios. Mostrou tudo, a cavalariça, o alpendre, a cozinha. O salão ficava do lado direito, e dava, do lado de Paris, para uma varanda de caniçada, coberta por uma clematite. Mas, por sobre as cabeças deles ouviu-se um trinado; a Senhora Arnoux, julgando-se só, divertia-se cantando. Fazia escalas, trilos, arpejos. Havia notas longas que pareciam ficar suspensas; outras caíam precipitadas, como gotas d’água de uma cascata; e aquela voz, passando através da gelosia, quebrava o grande silêncio, e subia para o céu azul.
Calou-se de súbito, à chegada de dois vizinhos, o Senhor e a Senhora Oudry.
Depois, apareceu ao alto da escadaria; e, quando ela descia os degraus, ele viu-lhe o pé. Calçava uns sapatinhos abertos, em pelica castanha, de reflexos dourados, com três tiras transversais que desenhavam sobre as meias uma rede dourada.
Os convidados chegaram. Exceto o advogado Lefaucheur, eram os convivas das quintas-feiras. Cada qual trouxera o seu presente: Dittmer um lenço da Síria, Rosenwald um álbum de romances, Burrieu uma aquarela, Sombaz a sua própria caricatura, e Pellerin um desenho a carvão, representando uma espécie de dança macabra, horrenda fantasia de medíocre execução. Hussonnet dispensara-se de oferecer qualquer presente.
Frédéric deixou-se ficar para trás, para oferecer o seu.
Ela agradeceu-lhe muito. Então, ele disse:
— Mas... era quase uma dívida! Fiquei tão aborrecido.
— Com quê? — retorquiu ela. — Não compreendo!
— Para a mesa! — disse Arnoux, pegando-lhe num braço; e depois disse-lhe, ao ouvido: — Mas que ingênuo você é!
Nada podia ser mais agradável do que a sala de jantar, pintada num verde aquoso. Numa das extremidades, uma ninfa de pedra molhava o pé num vaso em forma de concha. Pelas janelas abertas, via-se o jardim todo, com o extenso relvado, e um velho pinheiro da Escócia, já meio seco; maciços de flores irregulares destacavam-se, aqui e ali; e, para além do rio, estendiam-se, num largo semicírculo, os bosques de Boulogne, Neuilly, Sèvres, Meudon. Diante do portão, em frente, um pequeno barco a vela fazia evoluções.
Primeiro falou-se da vista que se tinha dali, depois da paisagem em geral; e as discussões começaram quando Arnoux deu ordem ao criado para ter a carruagem pronta às nove e meia. Uma carta do caixa chamava-o.
— Queres que eu volte contigo? — disse a Senhora Arnoux.
— Pois com certeza! — e, fazendo-lhe uma grande reverência: — Bem sabeis, senhora, que não se pode viver sem vós!
Todos a felicitaram por ter tão excelente marido.
— Ah! É porque não sou eu apenas! — replicou ela com doçura, apertando a filha.
Depois a conversa voltou à pintura, falou-se num Ruysdaël com o qual Arnoux esperava obter grandes lucros, e Pellerin perguntou-lhe se era verdade que o famoso Saul Mathias, de Londres, viera, no mês passado, oferecer-lhe por ele vinte e três mil francos.
— Nada mais verdadeiro! — e, voltando-se para Frédéric: — É aquele cavalheiro com quem me viu outro dia no Alhambra, bem contra minha vontade, posso garantir-lhe, porque esses ingleses não são nada divertidos!
Frédéric, suspeitando na carta da Srta. Vatnaz qualquer história de saias, admirara a desenvoltura com que Arnoux arranjara maneira de justificar a sua partida; mas essa nova mentira, inteiramente inútil, fê-lo arregalar os olhos.
O comerciante acrescentou, com toda a simplicidade:
— Como se chama aquele seu amigo alto?
— Deslauriers — respondeu com vivacidade Frédéric.
E, para reparar os agravos que sentia ter-lhe feito, elogiou-o como sendo uma inteligência superior.
— Ah! Realmente? Mas não é tão simpático como o outro, o empregado dos transportes.
Frédéric amaldiçoou Dussardier. Ela ia pensar que ele frequentava gente comum.
Depois falou-se nos embelezamentos da capital, dos bairros novos, e Oudry mencionou, entre os grandes especuladores, o Senhor Dambreuse.
Frédéric, aproveitando a oportunidade para se fazer valer, disse que o conhecia. Mas Pellerin iniciou uma catilinária contra os merceeiros; vendedores de velas ou de dinheiro, era tudo a mesma coisa. Depois Rosenwald e Burrieu discutiram porcelanas; Arnoux falava de jardinagem com a Senhora Oudry, enquanto Sombaz, brincalhão da velha escola, divertia-se à custa do marido: chamava-lhe Odry, como o ator, declarou que ele devia ser descendente de Oudry pintor de cachorros, porque a bossa dos animais era-lhe visível na testa. Fez até menção de lhe apalpar o crânio, ao que o outro se esquivou, por causa da peruca; e a sobremesa terminou entre gargalhadas.
Depois de tomarem o café, debaixo das tílias, fumando, e tendo dado algumas voltas ao jardim, foram passear à beira do rio.
O grupo deteve-se junto de um pescador, que limpava enguias, numa peixaria. A menina Marthe quis vê-las. Ele esvaziou a lata na grama; e a garota pôs-se de joelhos para agarrá-las, rindo de prazer, e dando gritos assustados. Fugiram todas, mas Arnoux pegou-as.
Em seguida, teve a ideia de um passeio de barco.
Um dos lados do horizonte começava a empalidecer, enquanto, do outro, uma larga faixa alaranjada se estendia no céu, mais escura no alto das colinas, já completamente negras. A Senhora Arnoux sentara-se numa grande pedra, com aquele clarão de incêndio por trás. Os outros flanavam, para aqui e para ali; Hussonnet, junto à margem, fazia ricochetear pedras na água.
Arnoux reapareceu, seguido por uma velha barca, onde, apesar do temor dos mais prudentes, empilhou os seus convivas. A barca soçobrava; tiveram que desembarcar.
As velas já ardiam no salão, todo forrado de chita da Pérsia, com candelabros de cristal nas paredes. A Senhora Oudry adormeceu suavemente numa poltrona, enquanto os outros escutavam Lefaucheur, que dissertava sobre as glórias do foro. A Senhora Arnoux estava só, junto da janela, e Frédéric aproximou-se.
Falaram do que se estava discutindo. Ela admirava os oradores; ele preferia a glória dos escritores. Todavia, dizia ela, devia-se sentir um prazer mais intenso emocionando diretamente a multidão, vendo que se consegue transferir para a sua alma todos os sentimentos da nossa. Mas esses triunfos não tinham o menor atrativo para Frédéric, que não era ambicioso.
— Ah! Mas por quê? — perguntou ela. — É necessário ter alguma ambição!
Estavam um junto do outro, de pé, no vão da janela16. Na sua frente, a noite estendia-se como um imenso véu sombrio, com cintilações prateadas. Era a primeira vez que a conversa deles não tratava de coisas insignificantes. Ele ficou mesmo a conhecer as antipatias e os gostos dela; certos perfumes faziam-na sentir-se mal, os livros de história interessavam-na, e acreditava nos sonhos.
Frédéric abordou o capítulo das aventuras sentimentais. Ela lamentava os desastres causados pela paixão, mas revoltavam-na as torpezas hipócritas; e essa retidão de espírito harmonizava-se tão bem com a beleza regular do seu rosto que parecia uma emanação desta.
Ela por vezes sorria, pousando os olhos em Frédéric, por um instante. Então, ele sentia aquele olhar penetrar-lhe na alma, como esses grandes raios de sol que descem até o fundo da água. Amava-a sem segunda intenção, sem a menor esperança de ser correspondido; e, nesses silenciosos transportes, semelhantes a arroubos de gratidão, o seu desejo seria cobrir-lhe a testa com uma chuva de beijos. Todavia, uma força interior como que o transportava para fora de si; era uma ânsia de sacrifício, uma necessidade de dedicação imediata, tanto mais forte quanto não a podia satisfazer.
Não partiu com os outros; Hussonnet também não. Voltariam na carruagem; e esta já esperava junto à escadaria, quando Arnoux desceu ao jardim para colher rosas. Depois, tendo amarrado o ramo com um fio, como as hastes se prolongavam desigualmente, meteu a mão na algibeira cheia de papéis, tirou um ao acaso, envolveu nele o pé do ramo e consolidou sua obra com um grande alfinete, oferecendo-o à mulher, com certa emoção.
— Aqui tens, minha querida, desculpa-me por te ter esquecido!
Mas ela deu um gritinho; como o alfinete, posto sem jeito, a ferira, ela voltou para o quarto. Esperaram-na mais de um quarto de hora. Por fim reapareceu, agarrou em Marthe e precipitou-se para a carruagem.
— E o teu ramo? — indagou Arnoux.
— Não! Não! Não vale a pena!
Frédéric correu para apanhá-lo; ela gritou-lhe:
— Não o quero!
Mas Frédéric não tardou a voltar com o ramo, dizendo que tornara a metê-lo no invólucro, porque encontrara as flores no chão. Ela meteu-as na bolsa de couro, atrás da boleia, e partiram.
Frédéric, sentado a seu lado, notou que ela tremia horrivelmente. Depois de terem passado a ponte, como Arnoux voltasse à direita:
— Mas não! Estás enganado! É pela esquerda!
Parecia irritada; tudo a incomodava. Finalmente, quando Marthe fechou os olhos, ela agarrou no ramo e atirou-o pela portinhola; depois segurou no braço de Frédéric, fazendo-lhe sinal, com a outra mão, para nunca mais falar nele.
Depois, apertou o lenço de encontro aos lábios, e ficou quieta.
Na boleia, os outros dois conversavam sobre assuntos de tipografia e de assinantes. Arnoux, que guiava descuidadamente, perdeu-se no meio do Bois de Boulogne. Então, meteram-se por pequenas veredas. O cavalo avançava a passo; os ramos das árvores roçavam a capota. Frédéric só distinguia, na sombra, os olhos da Senhora Arnoux; Marthe deitara-se-lhe no colo, e Frédéric segurava-lhe a cabeça.
— Ela o está incomodando! — disse a mãe.
Ele respondeu:
— Não, de maneira nenhuma!
Erguiam-se lentos turbilhões de poeira; iam atravessar Auteuil; todas as casas estavam fechadas; um revérbero iluminava, aqui e ali, o ângulo de uma parede, e depois mergulhavam outra vez nas trevas; em certo momento, Frédéric deu conta de que ela chorava.
Seria um remorso? Um desejo? Ou o quê? Aquele desgosto, que ele ignorava, interessava-o como se fosse coisa sua; agora, existia entre eles um novo laço, uma espécie de cumplicidade; e Frédéric disse-lhe, com a voz mais carinhosa que pôde:
— Está sofrendo?
— Sim, um pouco — replicou ela.
A carruagem rodava, e as madressilvas e as silindras, que ultrapassavam as vedações dos jardins, espalhavam na noite exalações entorpecentes. As pregas do vestido cobriam-lhe os pés. Parecia a Frédéric que todo ele comunicava com a pessoa dela através daquele corpo de criança estendido entre os dois. Inclinou-se para a menina, e, afastando-lhe os lindos cabelos castanhos, beijou-lhe docemente a testa.
— Como o senhor é bom! — disse a Senhora Arnoux.
— Por que diz isso?
— Porque gosta de crianças.
— Nem de todas!
E não acrescentou mais nada, mas pousou a mão esquerda do lado dela, e deixou-a aberta — imaginando que ela faria talvez o mesmo que ele, e as duas se encontrariam. Depois teve vergonha, e retirou-a.
Dentro em pouco rodavam sobre o empedrado. A carruagem ia agora mais depressa, os candeeiros de gás multiplicavam-se, estavam em Paris. Hussonnet, ao passarem diante do Garde-Meubles, saltou. Frédéric esperou, para descer, que chegassem ao pátio da casa; depois, pôs-se de atalaia na esquina da Rua de Choiseul, e viu Arnoux dirigir-se lentamente para os bulevares.
A partir do dia seguinte, pôs-se a trabalhar com todas as suas forças.
Via-se num tribunal, numa tarde de inverno, no fim dos debates, quando os jurados estão pálidos e a multidão ofegante faz estalar as divisórias do pretório, a fim de perorar durante quatro horas, fazendo o resumo de todas as suas provas, descobrindo outras novas e sentindo, a cada frase, a cada palavra, a cada gesto, erguer-se atrás de si a lâmina da guilhotina; depois, na tribuna da Câmara, como orador de cujas palavras depende a salvação de um povo inteiro, aniquilando os adversários com o vigor das suas prosopopeias, esmagando-os com uma réplica, com coriscos e entonações musicais na voz, irônico, patético, apaixonado, sublime. Ela estaria presente, nalgum lugar, no meio dos outros, escondendo sob um véu as lágrimas de entusiasmo; encontrar-se-iam depois; — e os desânimos, as calúnias e as injúrias não o atingiriam, se ela dissesse: “Ah! Isso é belo!”, pousando-lhe de leve as mãos na testa.
Essas imagens fulguravam como faróis no horizonte da sua vida. O espírito de Frédéric, excitado, tornou-se mais ágil e mais forte. Até agosto fechou-se no quarto; e foi aprovado no último exame.
Deslauriers, que tivera tanta dificuldade em lhe meter na cabeça, uma vez mais, a matéria do segundo, em fins de dezembro, e em fevereiro a do terceiro, estranhava-lhe o ardor. Então, as antigas esperanças renasceram. Era preciso que, dentro de dez anos, Frédéric fosse deputado; dentro de quinze, ministro; por que não? Com o seu patrimônio, que não tardaria a receber, poderia, antes de mais nada, fundar um jornal; seria o começo; depois se veria. Pela sua parte, Deslauriers continuava a ambicionar uma cátedra na Escola de Direito; e defendeu a tese de doutoramento com tanto brilho que foi felicitado pelos professores.
Frédéric defendeu a sua, três dias depois. Antes da partida para as férias, teve a ideia, a fim de rematar as reuniões dos sábados, de organizar um piquenique, no qual se mostrou alegre. A Senhora Arnoux estava agora junto da mãe, em Chartres. Mas dentro em breve tornaria a vê-la, e acabaria por tornar-se seu amante.
Deslauriers, admitido nesse mesmo dia nas reuniões de Orsay, fizera um discurso que foi muito aplaudido. Embora fosse sóbrio, embriagou-se, e à sobremesa disse a Dussardier:
— Tu, sim, és honesto! Quando eu for rico, farei de ti meu administrador.
Sentiam-se todos felizes; Cisy não completaria o curso de Direito; Martinon ia continuar o seu estágio na província, onde seria nomeado juiz substituto; Pellerin preparava-se para pintar um grande quadro representando “o Gênio da Revolução”; Hussonnet iria ler, na semana seguinte, o plano de uma peça ao diretor do Délassements, e estava certo do êxito:
— Porque, quanto à estrutura do drama, esta será entregue a mim! Pelo que toca às paixões, vivi o bastante para as conhecer bem; e quanto aos ditos de espírito, é a minha profissão!
Deu um salto, caiu sobre as mãos e andou durante algum tempo em redor da mesa, de pernas para o ar.
Esta brincadeira não desanuviou o rosto de Sénécal. Acabava de ser expulso da pensão, por ter batido no filho de um aristocrata. Como a sua miséria se agravava, atacava a ordem social, amaldiçoava os ricos; e abriu o coração a Regimbart, que estava cada vez mais desiludido, entristecido, enojado. O Cidadão interessava-se, agora, pelos problemas orçamentários, e acusava a Camarilha de perder milhões na Argélia17.
Como não podia dormir sem ter feito o seu estágio na taberna de Alexandre, desapareceu às onze horas. Os outros debandaram mais tarde; e Frédéric, ao despedir-se de Hussonnet, soube que a Senhora Arnoux devia ter regressado na véspera.
Assim, foi às Messageries transferir o lugar marcado para o dia seguinte, e, pelas seis horas, apresentou-se em casa dela. Soube pelo porteiro que o regresso da Senhora Arnoux fora adiado para daí a uma semana. Frédéric jantou só, depois do que deambulou pelos bulevares.
Nuvens rosadas, esfiapadas, estendiam-se para além dos telhados; começavam-se a recolher os toldos das lojas; carros-pipas lançavam uma chuva sobre a poeira, e uma frescura inesperada misturava-se às emanações dos cafés, onde se viam, pelas portas escancaradas, entre pratas e dourados, ramos de flores refletidos nos altos espelhos. A multidão caminhava lentamente. Grupos de homens conversavam no meio da calçada; mulheres passavam, com uma languidez nos olhos e essa tez de camélia que o cansaço dos grandes calores dá às carnes femininas. Algo de enorme se expandia, envolvendo as casas. Nunca Paris lhe parecera tão belo. E via, no futuro, uma série interminável de anos cheios de amor.
Deteve-se diante do teatro da Porta Saint-Martin, olhando o cartaz; e, por não ter que fazer, comprou um bilhete.
Representava-se uma velha mágica. Os espectadores eram escassos; e, pelos postigos da galeria, o dia recortava-se em pequenos quadrados azuis, enquanto as candeias da ribalta formavam uma linha única de luzes amarelas. A cena representava um mercado de escravos em Pequim, com campainhas, tantãs, sultanas, barretes pontiagudos e trocadilhos. Depois, quando o pano desceu, vagueou pelo átrio, solitário, e admirou um grande landau verde, parado à porta do teatro, puxado por dois cavalos brancos, com cocheiro de calção.
Regressava ao seu lugar quando entraram no primeiro camarote de boca, no balcão, uma dama e um senhor. O marido tinha um rosto pálido, emoldurado por um fino colar de barba grisalha, a roseta de oficial da Legião de Honra, e esse aspecto glacial que é costume atribuir aos diplomatas.
A mulher, pelo menos vinte anos mais jovem18, nem alta nem baixa, nem feia nem bonita, usava os cabelos loiros encaracolados à inglesa, um vestido de corpete liso, e um grande leque de renda negra. Para pessoas da sociedade, como aquelas, virem ao teatro, naquela estação do ano, era necessário supor um acaso, ou o aborrecimento de passarem o serão a sós. A dama mordiscava o leque, o cavalheiro bocejava. Frédéric não conseguia recordar-se onde teria visto aquela cara.
No intervalo seguinte, ao atravessar um corredor, encontrou-se com ambos; ao vago cumprimento que ele fez, o Senhor Dambreuse, reconhecendo-o, aproximou-se e pediu desculpa, imediatamente, pela sua imperdoável negligência. Era uma alusão aos numerosos cartões de visita, enviados a conselho do escrevente. Todavia, confundia as épocas, e supunha que Frédéric ainda estivesse no segundo ano de Direito. Depois confessou quanto o invejava por ir para o campo. Bem precisaria descansar, mas os negócios retinham-no em Paris.
A Senhora Dambreuse, apoiada no seu braço, inclinava levemente a cabeça; e a amena espiritualidade do seu rosto contrastava com a expressão entediada de há pouco.
— Contudo, aqui sempre há belas distrações! — disse ela, em resposta às últimas palavras do marido. — Como este espetáculo é idiota! O senhor não acha? — E os três ficaram de pé, conversando sobre teatro e peças novas.
Frédéric, afeito aos esgares das burguesas da província, não vira em mulher alguma tal desenvoltura de maneiras, aquela simplicidade, que é um refinamento, em que os ingênuos julgam ver a manifestação de uma simpatia instantânea.
Esperavam a visita dele, quando voltasse; o Senhor Dambreuse pediu-lhe que apresentasse os seus cumprimentos ao velho Roque.
Voltando para casa, Frédéric não deixou de referir a Deslauriers esse acolhimento.
— Magnífico! — retorquiu o escrevente. — E não te deixes dominar pela tua mamãezinha! Volta depressa!
No dia seguinte à chegada de Frédéric, a Senhora Moreau, depois do almoço, levou o filho para o jardim.
Mostrou-se feliz por vê-lo formado, pois não eram tão ricos como se supunha; a terra rendia pouco; os rendeiros pagavam mal; até se vira obrigada a vender a carruagem. Em suma, expôs-lhe a situação em que se encontravam.
Nas primeiras dificuldades da sua viuvez, um homem astucioso, o Senhor Roque, fizera-lhe empréstimos, renovados e prolongados contra a vontade dela. E de repente viera reclamá-los; ela sujeitara-se às condições impostas, cedendo-lhe por um preço irrisório a fazenda de Presles. Dez anos depois, o seu capital sumira na falência de um banqueiro, em Melun. Dado o seu horror às hipotecas, e para manter aparências úteis ao futuro do filho, como Roque tornasse a aparecer, aceitara-lhe novamente as ofertas. Mas agora estava definitivamente quite. Em suma, restavam-lhe cerca de dez mil francos de rendimento, dos quais dois mil e trezentos pertenciam a Frédéric, e eram todo o seu patrimônio!
— Mas não é possível! — exclamou Frédéric.
Ela fez um aceno de cabeça, para dizer que era assim mesmo.
Mas o tio havia de lhe deixar alguma coisa?
Nada era menos certo!
E deram uma volta pelo jardim, silenciosos. Finalmente, ela apertou-o contra o peito, e, numa voz abafada pelas lágrimas:
— Ah! Meu pobre pequeno! Quantas ilusões tive que abandonar!
Frédéric sentou-se no banco, à sombra das acácias.
O conselho que ela lhe dava era que ele entrasse como escrevente para o cartório do Senhor Prouharam, o qual lhe cederia a clientela; se Frédéric a valorizasse, poderia revendê-la e arranjar um bom casamento.
Frédéric já não a escutava. Olhava maquinalmente, por cima da sebe, para o jardim do lado.
Uma menina dos seus doze anos, de cabelo avermelhado, achava-se ali, sozinha. Tinha confeccionado uns brincos com bagas de sorveira; a blusa de linho cinzento descobria-lhe os ombros, um pouco dourados pelo sol; nódoas de doce maculavam-lhe a saia branca; — e havia uma graciosidade de jovem animal selvagem em toda a sua pessoa, ao mesmo tempo nervosa e franzina. A presença de um desconhecido espantava-a, sem dúvida, pois se detivera subitamente, com o regador na mão, fixando nele os olhos de um verde-azul límpido.
— É a filha do Senhor Roque — disse a Senhora Moreau. — Ele casou há pouco com a criada, e legitimou a filha.
VI
Arruinado, espoliado, desgraçado!
Deixara-se ficar sentado no banco, como que atordoado pela comoção. Amaldiçoava a sorte, tinha vontade de bater em alguém; e, para cúmulo do desespero, sentia pesar sobre ele uma espécie de ultraje, de desonra; — porque Frédéric tinha imaginado que a fortuna paterna se elevaria um dia a quinze mil libras, de rendimento, e dera-o a saber, de forma indireta, aos Arnoux. Assim, ia passar por um fanfarrão, um trapaceiro, um obscuro intrujão, que se lhes metera em casa na esperança de tirar qualquer proveito! E ela, a Senhora Arnoux, como poderia agora tornar a vê-la?
Isso, aliás, era completamente impossível, tendo apenas três mil francos de rendimento! Teria que continuar morando num quarto andar, ter como criado o porteiro, e aparecer com umas pobres luvas pretas desbotadas, um chapéu ensebado, a mesma sobrecasaca durante todo o ano. Não! Não! Nunca! Contudo, a existência sem ela era insuportável. Havia muita gente que vivia bem, mesmo não tendo fortuna, por exemplo Deslauriers; — e achou-se covarde por dar tamanha importância a coisas insignificantes. Talvez a miséria lhe centuplicasse os dons. Exaltou-se, pensando nos grandes homens que trabalhavam em mansardas. Uma alma como a da Senhora Arnoux não poderia deixar de comover-se perante tal espetáculo, e de lhe corresponder. Assim, aquela catástrofe era afinal uma felicidade; como os tremores de terra que põem tesouros a descoberto, revelara-lhe as secretas riquezas da sua natureza. Mas havia no mundo um só lugar para lhes dar valor: Paris! Porque, na sua ideia, a Arte, a Ciência e o Amor (as três faces de Deus, como diria Pellerin) dependiam exclusivamente da capital.
À noite, declarou à mãe que ia regressar a Paris; a Senhora Moreau ficou surpreendida e indignada. Era uma loucura, um absurdo. Era melhor seguir os conselhos que lhe dera, isto é, ficar junto dela, num cartório. Frédéric encolheu os ombros: “Que ideia!” considerando aquela proposta um insulto.
Então, a boa senhora passou a usar outro método. Numa voz suave, e soltando pequenos soluços, começou a falar-lhe na sua solidão, na sua velhice, nos sacrifícios que fizera. Agora que se sentia mais infeliz, ele queria abandoná-la. Depois, aludindo ao seu próximo falecimento:
— Tem um pouco de paciência, por Deus! Não tardará que estejas livre!
Essas lamentações repetiram-se vinte vezes ao dia, durante três meses; e, ao mesmo tempo, Frédéric ia sendo corrompido pelas delicadezas do lar; tinha uma cama mais confortável, as toalhas não tinham rasgões; e, embora cansado, enervado, enfim, vencido pela força tremenda da doçura, Frédéric deixou-se levar ao cartório de Prouharam.
Aí não mostrou ciência nem habilidade. Fora até então tido como um jovem de grande futuro, que viria a ser a glória do departamento. Foi uma decepção pública.
A princípio, pensara: “Preciso informar a Senhora Arnoux”, e, durante uma semana, meditara epístolas ditirâmbicas, e breves bilhetes, em estilo lapidar e sublime. O receio de confessar a sua situação conteve-o. Depois, considerou que seria melhor escrever ao marido. Arnoux conhecia a vida, e saberia compreendê-lo. Finalmente, ao cabo de quinze dias de hesitação:
“Ora! Nunca mais tornarei a vê-los; que me esqueçam! Ao menos, não terei desmerecido na recordação dela! Pensará que morri, e... talvez tenha saudades de mim.”
Como as resoluções excessivas lhe custavam pouco, jurara nunca mais voltar a Paris, e até nunca mais pedir notícias da Senhora Arnoux.
Entretanto, até do cheiro do gás e do barulho dos ônibus sentia falta. Sonhava com todas as palavras que lhe ouvira, com o timbre da voz, com a luz dos olhos dela — e, considerando-se um homem morto, não fazia absolutamente mais nada.
Levantava-se tarde, e ficava a olhar da janela as carroças que passavam. Sobretudo os seis primeiros meses foram abomináveis.
Certos dias, contudo, tomava-o uma indignação contra si mesmo. Então, saía. Corria os prados, quase cobertos, durante o inverno, pela inundação do Sena. Dividiam-nos linhas de choupos. Aqui e ali, elevava-se uma pequena ponte. Vagabundeava até o anoitecer, empurrando as folhas amarelas diante dos pés, aspirando o nevoeiro, saltando fossos; à medida que as artérias batiam com mais força, vinham-lhe desejos violentos de agir; queria fazer-se caçador na América, servir um paxá no Oriente, engajar-se como marujo; exalava a sua melancolia em longas cartas para Deslauriers.
Este debatia-se furiosamente para triunfar. A falta de coragem do amigo e as suas sempiternas lamentações pareciam-lhe estúpidas. Não tardou que a sua correspondência quase cessasse. Frédéric dera todos os seus móveis a Deslauriers, que ficara com o apartamento. A mãe falava-lhe neles de vez em quando, até que ele, um dia, confessou a dádiva, e ela o estava censurando quando o rapaz recebeu uma carta.
— Que tens tu? — perguntou ela. — Estás tremendo?
— Não tenho nada! — replicou Frédéric.
Deslauriers informava-o de que recolhera Sénécal; havia quinze dias que viviam juntos. Assim, Sénécal refestelava-se agora no meio das coisas que tinham vindo da loja de Arnoux! Podia vendê-las, fazer comentários sobre elas, gracejos. Frédéric sentiu-se ferido até o fundo da alma. Foi para o quarto. Tinha vontade de morrer.
A mãe chamou-o. Era para consultá-lo acerca de uma plantação no jardim.
Esse jardim, à maneira de um parque inglês, era dividido ao meio por uma vedação de estacas; metade pertencia ao tio Roque, que tinha outro, para os legumes, à margem do rio. Os dois vizinhos, que não se davam, evitavam ir ao jardim às mesmas horas. Mas, desde que Frédéric voltara, o homenzinho passeava por ali com mais frequência, e desfazia-se em amabilidades com o filho da Senhora Moreau. Lamentava-o por viver numa cidadezinha. Um dia, contou-lhe que o Senhor Dambreuse perguntara por ele. De outra vez, pôs-se a falar no antigo costume da Champanha, a transmissão da nobreza pela linha feminina.
— Naqueles tempos, o senhor teria sido nobre, pois a sua mãe é uma Fouvens. E, digam o que disserem, olhe que um nome sempre é alguma coisa! E afinal — acrescentou, olhando para Frédéric com ar de esperteza — isso depende do ministro da Justiça.
Essa ambição pela aristocracia contrastava singularmente com a sua pessoa. Como era baixo, a comprida sobrecasaca castanha exagerava-lhe a altura do torso. Quando tirava o boné, via-se um rosto quase feminino, de nariz extremamente aguçado; o cabelo amarelado parecia uma cabeleira postiça; e fazia grandes salamaleques às pessoas, cosendo-se com as paredes.
Até os cinquenta anos, contentara-se com os serviços de Catherine, uma lorena da mesma idade que ele, muito marcada pelas bexigas. Mas, por volta de 1834, trouxe de Paris uma bela loira, com cara de carneiro, que tinha “um porte de rainha”. Não tardou a ser vista pavoneando-se com grandes brincos, e tudo se explicou com o nascimento de uma filha, registrada sob os nomes de Élisabeth-Olympe-Louise Roque.
De ciúme, Catherine dispunha-se a execrar a criança. Pelo contrário, ganhou-lhe amor. Rodeou-a de cuidados, de atenções e de carinhos, para suplantar a mãe e torná-la odiosa, empresa fácil, pois a Senhora Éléonore desinteressava-se totalmente da filha, preferindo ficar de conversa com os fornecedores. Logo no dia seguinte ao casamento, fez uma visita à subprefeitura, deixou de tratar as criadas por tu, e julgou da sua obrigação, para ser uma senhora, tratar a criança com severidade. Assistia às lições; o professor, um velho burocrata da câmara municipal, não sabia lidar com ela. A aluna insurgia-se, apanhava bofetadas, e ia chorar no colo de Catherine, que se punha invariavelmente ao seu lado. Então, as duas mulheres brigavam; o Senhor Roque mandava-as calar. Casara por amor à filha, e não queria que a atormentassem.
Ela andava muitas vezes com um vestido branco esfarrapado e umas calças compridas enfeitadas com rendas; e, nos dias de festa, saía à rua vestida como uma princesa, para fazer raiva aos burgueses, que não deixavam os fedelhos brincar com ela, dado o seu nascimento ilegítimo.
Vivia sozinha, no jardim, brincando no balanço, corria atrás das borboletas, depois ficava de súbito imóvel, contemplando os besouros que vinham pousar nas roseiras. Eram esses hábitos, sem dúvida, que lhe davam ao rosto uma expressão ao mesmo tempo atrevida e sonhadora. Aliás, tinha a mesma estatura de Marthe, de tal modo que Frédéric lhe disse, da segunda vez que se encontraram:
— A menina permite que eu lhe dê um beijo?
Ao que ela respondeu, erguendo a cabeça:
— Sim!
Mas a sebe separava-os.
— Tens que subir — disse Frédéric.
— Não, pega em mim!
Frédéric inclinou-se por cima da vedação e agarrou a menina, beijando-a em ambas as faces; depois, pô-la novamente no chão, pelo mesmo processo que se renovou das vezes seguintes.
Com a mesma naturalidade de uma criança de quatro anos, mal sentia a aproximação do amigo precipitava-se ao seu encontro, ou então, escondendo-se atrás de uma árvore, imitava o ladrar de um cão, para assustá-lo.
Um dia que a Senhora Moreau tinha saído, Frédéric levou-a para o seu quarto. Ela abriu todos os frascos de perfume e encheu o cabelo de cosmético; depois, sem o menor constrangimento, deitou-se na cama e deixou-se ficar ao comprido, acordada.
— Estou fingindo que sou a tua mulher — dizia ela.
No dia seguinte foi encontrá-la em prantos. Confessou que “chorava os seus pecados”, e, como ele quisesse saber quais eram, respondeu, de olhos baixos:
— Não me faça mais perguntas!
Aproximava-se o dia da primeira comunhão; pela manhã tinham-na levado a confessar-se.
O sacramento não a tornou mais ajuizada. De vez em quando tinha acessos de violenta cólera; e chamavam Frédéric para acalmá-la.
Ele levava-a muitas vezes consigo a passear. Enquanto ia andando, perdido nos seus sonhos, ela colhia papoulas na orla dos trigais, e, quando o via mais triste do que de costume, procurava consolá-lo, dizendo-lhe coisas gentis. O coração de Frédéric, privado de amor, entregou-se àquele afeto de criança; desenhava bonecos para ela, contava-lhe histórias e começou a ler em voz alta para ela.
Principiou pelos Annales romantiques, coletânea de verso e prosa, então célebre. Depois, esquecendo a idade dela, tanto a sua inteligência o encantava, leu-lhe sucessivamente Atala, Cinq-Mars, as Feuilles d’automne. Mas, uma noite (nessa mesma tarde tinha-lhe lido Macbeth, na simples tradução de Letourneur), ela acordou gritando: “A mancha! A mancha!”. Batia os dentes, tremia, e, fixando os olhos esgazeados na mão direita, esfregava-as dizendo: “Sempre a mancha!”. O médico finalmente chegou, e recomendou que lhe evitassem as emoções.
Os burgueses viram nisso apenas um prognóstico desfavorável para os seus costumes. Dizia-se que o “jovem Moreau” queria fazer dela, mais tarde, uma atriz.
Não tardou a dar-se outro acontecimento: a chegada do tio Barthélemy. A Senhora Moreau instalou-o no seu quarto de dormir, e levou a condescendência ao ponto de servir carne nos dias de abstinência.
O velho não foi muito amável. Fazia constantes paralelos entre o Havre e Nogent; achava o ar pesado, o pão ruim, as ruas mal pavimentadas, a alimentação medíocre e os habitantes uns preguiçosos; — “Como o comércio aqui é pobre!” Condenava as extravagâncias do seu defunto irmão, ao passo que ele juntara vinte e sete mil libras de rendimento! Finalmente, foi-se embora ao fim de uma semana, e, já no estribo da carruagem, soltou estas palavras pouco tranquilizadoras:
— É uma grande satisfação saber que se acham numa boa situação.
— Não te vai deixar nada! — disse a Senhora Moreau, quando voltaram para a sala.
O tio viera a convite dela; e, durante oito dias, ela tentara provocar uma declaração, talvez claramente demais. Arrependia-se de ter insistido, e permanecia na sua poltrona, de cabeça baixa, lábios comprimidos. Na sua frente, Frédéric observava-a; e ficavam os dois calados, como cinco anos antes, quando ele chegara de Montereau. Essa coincidência, que se lhe apresentou ao espírito, fê-lo pensar na Senhora Arnoux.
Nesse momento ouviu-se debaixo da janela o estalar de um chicote, e uma voz que o chamava.
Era o tio Roque, sozinho, na sua carroça. Ia passar o dia inteiro na Fortelle, em casa do Senhor Dambreuse, e ofereceu-se cordialmente a Frédéric para levá-lo.
— Não precisa de convite, indo comigo; não tenha receio!
Frédéric teve vontade de aceitar. Mas como iria explicar a sua residência definitiva em Nogent? Não tinha uma roupa de verão apresentável; além disso, que diria a mãe? E recusou.
Daí por diante, o vizinho mostrou-se menos amigável. Louise crescia; a Senhora Éléonore caiu de cama, com uma doença grave; e, com grande satisfação da Senhora Moreau, que receava para o futuro do filho o convívio com aquela gente, a amizade desfez-se.
Sonhava comprar para ele a secretaria do tribunal; Frédéric não mostrava muita oposição a essa ideia. Agora, acompanhava-a à missa, jogava cartas com ela, à noite, habituava-se à província, ia-se enterrando nela; — e até o seu amor ganhara uma espécie de doçura funerária, um encanto adormecedor. De tanto expandir em cartas à própria dor, de a ter misturado às leituras, passeado pelos campos, espalhando-a por toda parte, quase a esgotara, de tal forma que a Senhora Arnoux era para ele como que uma morta, da qual não achava estranho ignorar o túmulo, tanto esse afeto se tornara tranquilo e resignado.
Um dia, a 12 de dezembro de 1845, pelas nove horas da manhã, a cozinheira foi levar uma carta ao seu quarto. O endereço, em letras gordas, era de uma caligrafia desconhecida; e Frédéric, sonolento, não se apressou a abri-la. Finalmente, leu:
“Juizado de Paz do Havre. 3º distrito”.
Senhor:
O Senhor Moreau, vosso tio, tendo falecido ab intestat...”
Era herdeiro!
Como se um incêndio acabasse de atear-se do outro lado da parede, saltou para fora da cama, descalço, em camisa: passou a mão pelo rosto, não ousando crer nos seus olhos, pensando ainda estar sonhando, e, para se integrar na realidade, escancarou a janela.
Tinha nevado; os telhados estavam brancos; — e reconheceu mesmo no pátio uma tina de lavar roupa, na qual tropeçara na véspera à noite.
Releu a carta mais três vezes; era a pura verdade! A fortuna inteira do tio! Vinte e sete mil libras de rendimento! — e uma alegria frenética apoderou-se dele, à ideia de tornar a ver a Senhora Arnoux. Com a nitidez de uma alucinação, viu-se a seu lado, em casa dela, trazendo-lhe um presente embrulhado em papel de seda, enquanto à porta estacionaria o seu tílburi, não, antes um cupê! Um cupê preto, com um lacaio de libré castanha; ouvia o cavalo escarvar o chão, e o ruído dos guizos misturava-se ao rumor dos seus beijos. A cena repetir-se-ia todos os dias, indefinidamente. Havia de recebê-los em casa, na sua casa; a sala de jantar seria forrada de couro vermelho, o quarto de vestir, de seda amarela, com divãs por todos os lados! E que prateleiras! Que louças da China! Que tapetes! Essas imagens sobrevinham em tal tumulto que sentia tonturas. Então, lembrou-se da mãe; e desceu as escadas, sem largar a carta.
A Senhora Moreau procurou conter a emoção e teve um desfalecimento. Frédéric tomou-a nos braços e beijou-lhe a testa.
— Querida mãe, agora podes tornar a comprar a tua carruagem; ri, não chores mais, fica feliz!
Dez minutos depois, a notícia chegara até os bairros afastados. Então, o Dr. Benoist, o Senhor Gamblin, o Senhor Chambion, todos os amigos acorreram. Frédéric ausentou-se momentaneamente, para escrever a Deslauriers. Novas visitas chegaram. A tarde passou-se em felicitações. Nem se esqueceram da Senhora Roque, que, todavia, estava “muito embaixo”.
À noite, quando ficaram a sós, a Senhora Moreau disse ao filho que lhe aconselhava abrir escritório de advogado em Troyes. Sendo mais conhecido na sua região do que em qualquer outra, facilmente poderia encontrar bons partidos!
— Ah! Isso é demais! — exclamou Frédéric.
Mal tinha uma felicidade ao seu alcance, logo lha queriam tirar. E manifestou a decisão irrevogável de viver em Paris.
— Para fazer o quê?
— Nada!
A Senhora Moreau, surpreendida com aqueles modos, perguntou-lhe o que ambicionava ser.
— Ministro! — replicou Frédéric.
E afirmou que não estava brincando, que pretendia lançar-se na diplomacia, que os seus estudos e os seus instintos o inclinavam para essa carreira. Primeiro, entraria para o Conselho de Estado, com a proteção do Senhor Dambreuse.
— Mas tu o conheces?
— Pois claro! Por intermédio do Senhor Roque!
— Isso é interessante — disse a Senhora Moreau.
Frédéric despertara-lhe no coração os velhos sonhos de ambição. Abandonou-se-lhes interiormente, e não voltou a falar nos outros.
Se tivesse dado ouvidos à sua impaciência, Frédéric teria partido naquele mesmo instante. No dia seguinte, todos os lugares nas diligências estavam reservados; sofreou a impaciência até o outro dia, às sete horas da noite.
Tinham-se sentado para jantar, quando o sino da igreja deu três badaladas; e a criada veio dizer que a Senhora Éléonore acabava de falecer.
Afinal, aquela morte não era uma infelicidade para ninguém, nem sequer para a filha. Esta só teria a ganhar com isso, mais tarde.
Como as duas casas eram geminadas, ouvia-se um grande tropel, e um rumor de vozes; e a ideia daquele cadáver tão próximo punha algo de fúnebre na sua separação. Duas ou três vezes, a Senhora Moreau enxugou os olhos. Frédéric sentia o coração opresso.
Depois da refeição, Catherine veio à procura dele. A menina queria vê-lo a todo o custo. Esperava por ele no jardim. Frédéric saiu, passou por cima da sebe, e, chocando-se de vez em quando com as árvores, dirigiu-se para a casa do Senhor Roque. Via-se luz numa janela do segundo andar; depois, uma sombra surgiu da treva, e uma voz murmurou:
— Sou eu.
Ela pareceu-lhe mais alta do que habitualmente. Sem dúvida era por causa do vestido preto. Não sabendo como se lhe dirigir, limitou-se a pegar-lhe nas mãos, e a suspirar:
— Ah, minha pobre Louise!
Ela não respondeu. Contemplou-o profundamente, durante muito tempo. Frédéric estava com receio de perder a diligência; parecia-lhe ouvir um rodar de carro ao longe, e disse, para acabar com aquilo:
— Catherine disse-me que tinhas qualquer coisa...
— Sim, é certo! Queria dizer-lhe...
Frédéric estranhou a mudança de tratamento; e, como ela tivesse ficado novamente em silêncio:
— Então, o que é?
— Já não sei. Esqueci-me! É verdade que se vai embora?
— Sim, daqui a pouco.
Ela repetiu:
— Ah! Daqui a pouco?... De vez?... Não nos tornaremos a ver?
Os soluços estrangulavam-na.
— Adeus! Adeus! Então beija-me!
E apertou-o convulsivamente nos braços.
Segunda parte
I
Depois que se instalou no seu lugar, ao fundo da carruagem, e a diligência se pôs em marcha, arrastada pelos cinco cavalos arrancando ao mesmo tempo, começou a sentir-se eufórico. Como um arquiteto que faz o plano de um palácio, dispôs, por antecipação, a sua vida. Encheu-a de coisas delicadas e de esplendores; ela erguia-se até as alturas, numa prodigalidade de coisas, e essa contemplação era tão profunda que os objetos exteriores tinham desaparecido.
Ao fim da encosta de Sourdan deu conta do lugar onde estavam. Tinham percorrido cinco quilômetros, quando muito! Ficou indignado. Desceu a vidraça, para ver a estrada. Perguntou diversas vezes ao cocheiro quanto tempo, ao certo, demorariam para chegar. Mas acabou por sossegar, e deixou-se ficar no seu canto, de olhos abertos.
A lanterna, pendente do assento do cocheiro, iluminava as garupas dos cavalos. Para além, via apenas as crinas dos outros cavalos, ondulando como vagas brancas; o bafo dos animais formava um nevoeiro de ambos os lados da parelha; as ferragens matraqueavam, as vidraças tremiam nos caixilhos; e a pesada carruagem rodava pela estrada afora, num ritmo regular. Aqui e ali distinguia-se a parede de um celeiro, ou uma hospedaria isolada. Às vezes, ao passar pelas aldeias, o forno de uma padaria projetava clarões de incêndio, e a silhueta monstruosa dos cavalos corria sobre a fachada fronteira. Nas mudas, depois de desatrelados os cavalos, estabelecia-se por instantes um grande silêncio. Alguém remexia em cima, debaixo da cobertura, enquanto, na soleira da porta, uma mulher abrigava a candeia com a mão. Depois o condutor saltava para o estribo, e a diligência punha-se novamente a caminho.
Em Mormans, ouviu-se bater uma hora e um quarto.
“É portanto hoje, pensava ele, hoje mesmo, daqui a nada!”
Mas, pouco a pouco, as esperanças e as recordações, Nogent, a Rua de Choiseul, a Senhora Arnoux, a mãe, tudo se confundiu.
Um ruído surdo de tábuas despertou-o, atravessavam a Ponte de Charenton, era Paris. Então, os seus dois companheiros de viagem, um tirando o boné, o outro o lenço, puseram os chapéus e começaram a conversar. O primeiro, um homenzarrão corado, de sobrecasaca de veludo, era negociante; o outro vinha à capital a fim de consultar um médico; — e, receando tê-lo incomodado durante a noite, Frédéric, espontaneamente, pediu-lhe desculpa, a tal ponto a felicidade o enternecia.
Como o cais da gare estava provavelmente inundado, seguiram em frente, e o campo recomeçou. Ao longe, fumegavam altas chaminés de fábricas. Depois, dobraram para Ivry. A carruagem subiu uma rua; de repente, Frédéric avistou a cúpula do Panthéon.
A planície, revolta, dava uma impressão de vagas ruínas. A linha das fortificações formava uma saliência horizontal. Nos passeios de terra que ladeavam a estrada, arvorezinhas sem ramos eram defendidas por ripas eriçadas de pregos. Estabelecimentos de produtos químicos alternavam com estâncias de madeireiros. Portões altos, como há nas fazendas, deixavam ver, pelos batentes entreabertos, o interior de pátios ignóbeis, cheios de imundícies, tendo ao meio charcos de água suja. Compridas tabernas, cor de sangue de boi, ostentavam à altura do primeiro andar, entre as janelas, dois tacos de bilhar, cruzados, dentro de uma coroa de flores pintadas; aqui e ali, via-se uma casinhola de alvenaria, semiconstruída, que fora abandonada. Depois, começou a dupla fieira ininterrupta das construções; e, sobre a nudez das fachadas destacava-se, de vez em quando, um gigantesco charuto de latão, para indicar uma tabacaria. Tabuletas de parteiras representavam uma matrona de touca, embalando um bebê embrulhado numa colcha enfeitada com rendas. Nos cantos das paredes, cartazes esgarçados tremiam ao vento, como andrajos. Passavam operários de blusão, e barris de cervejeiros, carroças de lavadeiras, carripanas de açougueiros; caía uma chuva fina, estava frio, e o céu pálido, mas dois olhos, que para Frédéric eram como o sol, resplandeciam por entre a névoa.
Ficaram muito tempo parados na barreira, por causa do ajuntamento formado por vendedores de galinhas, carreteiros e um rebanho de carneiros. O guarda, embiocado no capuz, ia e vinha diante da guarita para se aquecer. O fiscal da alfândega subiu à imperial, e ouviu-se uma fanfarra de trombone de varas. A diligência desceu o bulevar a trote largo, os tirantes frouxos e a rédea solta. A ponta do comprido chicote estalava no ar úmido. O condutor proferia o seu grito sonoro: “Upa! Upa!” e os varredores afastavam-se, os pedestres saltavam para trás, a lama espadanava entre as vidraças, cruzava-se com carroças, cabriolés, ônibus. Finalmente passaram ao longo da grade do Jardim das Plantas.
O Sena, amarelado, chegava quase às pontes. Havia no ar uma frescura de água. Frédéric aspirou-a com todas as suas forças, saboreando esse bom ar de Paris que parece conter eflúvios amorosos e emanações intelectuais; e sentiu-se enternecido ao ver o primeiro fiacre. Gostava até do limiar das tabernas, guarnecido de palha, até dos engraxates, com as suas caixas, até dos caixeiros de mercearia, agitando os torradores de café. Mulheres apressavam-se, debaixo dos guarda-chuvas; Frédéric inclinava-se para lhes distinguir o rosto; um acaso podia ter feito com que a Senhora Arnoux tivesse saído.
As lojas desfilavam, a multidão crescia, o barulho aumentava. Depois do cais Saint-Bernard, o cais da Tournelle e o cais Montebello, seguiram pelo cais Napoléon; Frédéric queria ver as janelas da casa dela, mas estavam longe. Depois atravessaram novamente o Sena, pelo Pont-Neuf, desceram até o Louvre; e, pelas ruas Saint-Honoré, Croix-des-Petits-Champs e de Bouloi, chegaram à Rua Coq-Héron, e entraram no pátio do hotel.
A fim de prolongar o seu prazer, Frédéric vestiu-se o mais lentamente possível, e dirigiu-se a pé ao Bulevar Montmartre; sorria à ideia de que não tardaria a ver, na placa de mármore, o nome adorado; — ergueu os olhos. Tinham desaparecido as vitrinas, tinham desaparecido os quadros, não havia nada!
Correu à Rua de Choiseul. O Senhor e a Senhora Arnoux já ali não moravam, e uma vizinha guardava o cubículo do porteiro; Frédéric esperou que ele voltasse; finalmente, apareceu, mas já não era o mesmo. Não sabia para onde se tinham mudado.
Frédéric entrou num café e, enquanto almoçava, consultou o Almanaque do Comércio. Havia trezentos Arnoux, mas nenhum Jacques Arnoux! Onde morariam eles? Pellerin devia saber.
Seguiu até o cimo do faubourg Poissonnière, onde ele tinha o ateliê. Como a porta não tinha campainha nem batente, deu grandes socos, chamou, gritou. Mas só o vazio lhe respondeu.
Então lembrou-se de Hussonnet. Mas onde descobrir um tal sujeito? Uma vez, acompanhara-o até à casa da amante, na Rua de Fleurus. Mas, chegando à Rua de Fleurus, Frédéric deu-se conta de que ignorava o nome da moça.
Recorreu então à Chefatura de Polícia. Andou de escada em escada, de repartição em repartição. A das informações estava fechando. Disseram-lhe que voltasse no dia seguinte.
Em seguida visitou todos os negociantes de quadros, para saber se conheceriam Arnoux. O Senhor Arnoux já não se dedicava a esse comércio.
Finalmente, desanimado, esgotado, doente, voltou para o hotel e deitou-se. No momento em que se metia entre os lençóis, uma ideia fê-lo saltar de alegria:
“Regimbart! Que imbecil eu sou! Não me lembrar dele!”
No dia seguinte, mal tinham dado sete horas, chegava à Rua Notre-Dame-des-Victoires, diante de um estabelecimento onde Regimbart costumava beber vinho branco. Ainda não estava aberto; deu uma volta pelas proximidades, e daí a meia hora voltou. Regimbart tinha acabado de sair. Frédéric precipitou-se no seu encalço. Pareceu-lhe até reconhecer de longe o chapéu dele; mas um carro funerário e o préstito atravessaram-se na frente. Quando acabaram de passar, a visão tinha desaparecido.
Felizmente, lembrou-se de que o Cidadão almoçava todos os dias, às onze horas em ponto, num pequeno restaurante da Praça Gaillon. Era preciso ter paciência; e, depois de vaguear interminavelmente da Bolsa à Madeleine, e da Madeleine ao Gymnase, Frédéric, às onze horas em ponto, entrou no restaurante da Praça Gaillon, certo de lá encontrar o seu Regimbart.
— Não conheço! — disse com maus modos o proprietário.
Frédéric insistia; ele replicou:
— Deixei de o conhecer, meu caro senhor! — levantando as sobrancelhas majestosamente e abanando a cabeça com ar misterioso.
Mas, na última vez que tinham estado juntos, o Cidadão falara na taberna Alexandre. Frédéric engoliu um brioche, e, tomando um cabriolé, perguntou ao cocheiro se não conhecia algures, lá para o alto de Sainte-Geneviève, um certo Café Alexandre. O cocheiro conduziu-o à Rua des Francs-Bourgeois-Saint-Michel, a um estabelecimento com esse nome, e à sua pergunta: — O Senhor Regimbart, por favor? — ao que o patrão respondeu-lhe, com um sorriso mais que gentil:
— Ainda não o vimos hoje, meu caro senhor — ao mesmo tempo que lançava à esposa, instalada no balcão, um olhar cúmplice.
E logo em seguida, voltando-se para o relógio:
— Mas cá o teremos, segundo espero, dentro de dez minutos, quando muito um quarto de hora. — Célestin, os jornais, rápido! — Que deseja o senhor tomar?
Embora nada lhe apetecesse, Frédéric tomou um cálice de rum, em seguida outro de kirsch, em seguida outro de curaçau, em seguida diversos grogues, tanto frios como quentes. Leu Le Siècle1 desse dia de ponta a ponta, e voltou a lê-lo; examinou a caricatura do Charivari2, até ao grão do papel; por fim, já sabia de cor os anúncios. De vez em quando, ouvia-se lá fora um ruído de passos, era ele! E nas vidraças perfilava-se a forma de alguém; mas ninguém entrava!
Para se distrair, Frédéric mudava de lugar; foi instalar-se ao fundo, depois à direita, em seguida à esquerda; e ficava no meio do banco, de braços estendidos. Mas um gato, pisando delicadamente o veludo do assento, assustava-o de súbito, ao dar um salto para ir lamber as gotas do refresco que tinham ficado na bandeja; e o filho dos donos da casa, um insuportável pimpolho de quatro anos, brincava com uma matraca nos degraus do balcão. A mamãe, mulherzinha exangue, de dentes estragados, sorria com ar estúpido. Mas por onde andaria Regimbart? Frédéric esperava-o, perdido num desânimo infinito.
A chuva crepitava, como se fosse granizo na capota do cabriolé. Afastando a cortina de cassa, Frédéric via o pobre cavalo, mais imóvel do que se fosse de madeira. A enxurrada, que se tornara enorme, corria entre dois raios da roda, e o cocheiro cochilava, ao abrigo da capota; mas, receando que o cliente desaparecesse, de vez em quando entreabria a porta, molhado como um pinto; — e, se o olhar tivesse poder sobre as coisas, o relógio ter-se-ia desfeito, de tanto que Frédéric o fixava. Entretanto, os ponteiros iam avançando. O Senhor Alexandre andava de um lado para o outro, e repetia: — Ele não tarda! — e, para o distrair, falava-lhe de política. A sua gentileza foi mesmo ao ponto de lhe propor uma partida de dominó.
Finalmente, às quatro e meia, Frédéric, que estava ali desde o meio-dia, levantou-se dum salto, dizendo que não ia esperar mais.
— Também não compreendo — retorquiu o patrão com ar inocente — é a primeira vez que o Senhor Ledoux não aparece!
— Qual Senhor Ledoux?
— Sim, meu caro senhor!
— Eu disse Regimbart! — gritou Frédéric exasperado.
Ah, perdão, o senhor está enganado! Não é verdade, Senhora Alexandre, que este cavalheiro disse: o Senhor Ledoux?
E interpelou o criado:
— Você não ouviu também, tal como eu?
Mas, para se vingar do patrão, sem dúvida, o criado limitou-se a sorrir.
Frédéric fez-se conduzir aos bulevares, indignado com o tempo perdido, furioso com o Cidadão, implorando-lhe a presença como se fosse a de um deus, e firmemente decidido a arrancá-lo ainda que fosse das mais longínquas tabernas. A carruagem já o irritava, mandou-a embora; começava a sentir-se confuso; depois, todos os nomes dos cafés que ouvira pronunciar aquele imbecil jorraram-lhe ao mesmo tempo da memória, como as mil girândolas de um fogo de artifício: Café Gascard, Café Grimbert, Café Halbout, Bar Bordelais, Havanais, Havrais, Boeuf-à-la-mode, Cervejaria Allemande, Mère Morel, e a todos visitou sucessivamente. Mas, num, Regimbart acabava de sair; noutro, talvez viesse; num terceiro, havia seis meses que não aparecia; noutro ainda, encomendara na véspera um assado para sábado. Finalmente, no Vautier Refrescos, Frédéric, ao abrir a porta, foi de encontro ao criado.
— Conhece o Senhor Regimbart?
— Como não havia de conhecer, meu caro senhor! Sou eu quem tem a honra de o servir. Está lá em cima, acabando de jantar!
E, de guardanapo no braço, o patrão em pessoa aproximou-se:
— Pergunta pelo Senhor Regimbart? Esteve aqui agora mesmo.
Frédéric proferiu uma praga, mas o homem garantiu que o encontraria infalivelmente no Bouttevilain.
— Dou-lhe a minha palavra de honra! Saiu um pouco mais cedo do que de costume, porque tinha uma entrevista sobre negócios com uns cavalheiros. Mas, repito, poderá encontrá-lo no Bouttevilain, Rua Saint-Martin, 92, segundo patamar, à esquerda, ao fundo do pátio, sobreloja, porta à direita!
Finalmente, avistou-o através do fumo dos cachimbos, só, no fundo da sala atrás do bilhar, com um chope diante dele, de cabeça baixa, numa atitude meditativa.
— Ah! Há quanto tempo ando à sua procura!
Sem se impressionar, Regimbart estendeu dois dedos apenas, e, como se o tivesse visto na véspera, proferiu algumas frases insignificantes sobre a abertura do parlamento.
Frédéric interrompeu-o, dizendo, com o ar mais natural que pôde:
— Como vai o Arnoux?
A resposta demorou a vir, porque Regimbart gargarejava com a bebida.
— Não vai mal!
— Onde mora ele agora?
— Mas... na Rua Paradis Poissonnière — respondeu o Cidadão, admirado.
— Que número?
— Trinta e sete, ora essa, você tem cada pergunta!
Frédéric ergueu-se:
— Como, já se vai embora?
— Sim, tenho uma coisa urgente a fazer, tinha-me esquecido! Adeus!
Frédéric foi direto do botequim à casa de Arnoux, como se uma aragem tépida o conduzisse, e com a extraordinária facilidade que se sente nos sonhos.
Não tardou a encontrar-se num segundo andar, diante de uma porta cuja sineta tilintava; uma criada surgiu; abriu-se outra porta; a Senhora Arnoux estava sentada ao lado da lareira. Arnoux precipitou-se para o abraçar. Ela tinha um menino, talvez de três anos, sentado no colo; a filha, já tão alta como ela, estava de pé, do outro lado da lareira.
— Permita que lhe apresente este sujeito — disse Arnoux, agarrando o filho por baixo dos braços.
E divertiu-se durante alguns minutos lançando-o ao ar, muito alto, agarrando-o com os braços estendidos.
— Vais matá-lo! Ah! Meu Deus! Acaba com isso! — exclamava a Senhora Arnoux.
Mas Arnoux, garantindo que não havia perigo, continuava, dizendo coisas ternas à criança em dialeto marselhês, sua fala natal. Em seguida perguntou a Frédéric por que estivera todo aquele tempo sem lhes escrever, em que se ocupara na sua terra, por que voltara.
— Eu agora, meu caro amigo, sou negociante de louças. Mas falemos de você!
Frédéric alegou um processo demorado, a saúde da mãe; e insistiu muito nesse ponto, para se dar ares. Em suma, vinha instalar-se em Paris, desta vez definitivamente; não disse nada da herança — no receio de comprometer o seu passado.
As cortinas, assim como o estofo dos móveis, eram de tecido adamascado, em lã castanha; duas almofadas, lado a lado, apoiavam-se num almofadão; uma botija de aquecimento estava sobre o lume de carvão; e o abajur do candeeiro, que estava pousado na beira da cômoda, iluminava mal a sala. A Senhora Arnoux estava com um chambre azul-escuro, de lã. De olhos fitos nas cinzas, uma das mãos pousada no ombro da criança, desfazia, com a outra, a alça da camisinha do bebê, que chorava, coçando a cabeça, como o filho do Senhor Alexandre3.
Frédéric esperava ter espasmos de alegria; — mas as paixões estiolam quando as tiram do seu meio natal, e, não encontrando a Senhora Arnoux no mesmo ambiente em que a tinha conhecido, parecia-lhe que ela perdera alguma coisa, que houvera nela como que uma vaga degradação, em suma, que não era a mesma. A tranquilidade do próprio coração surpreendia-o.
Perguntou pelos velhos amigos, por Pellerin, entre outros.
— Vejo-o raramente — disse Arnoux.
Ela acrescentou:
— Já não recebemos, como antigamente!
Seria uma forma de o avisar de que não seria mais convidado? Mas Arnoux, sempre cordial, censurou-o por não ter vindo jantar com eles, de improviso; e explicou o que o levara a mudar de indústria.
— Que se há de fazer numa época de decadência como a nossa? A grande pintura passou de moda! Aliás, em tudo se pode pôr arte. Bem sabe como eu amo o Belo! É preciso que venha um dia destes visitar a minha fábrica.
E quis mostrar-lhe, imediatamente, alguns dos seus produtos, no armazém da sobreloja.
Pratos, travessas, bacias, atulhavam o chão. Encostados às paredes, viam-se grandes ladrilhos para pavimento de salas de banho e gabinetes de toilette, com assuntos mitológicos em estilo Renascença, enquanto ao centro, em prateleiras que subiam até o teto, havia vasos para gelo, jarras, candelabros, pequenas jardineiras e grandes estatuetas policromadas, representando negros ou pastoras Pompadour. As demonstrações de Arnoux aborreciam Frédéric, que sentia frio e fome.
Correu ao Café Anglais, onde ceou esplendidamente, e dizia de si para si, enquanto comia:
“Que figura eu fiz lá, com as minhas dores! Por pouco ela nem me reconhecia! Que burguesinha!”.
E, num repentino ímpeto de saúde, tomou resoluções egoístas. Sentia o coração duro como a mesa em que apoiava os cotovelos. Portanto, agora podia lançar-se na vida mundana, sem receio. Lembrou-se dos Dambreuse; havia de se servir deles; pensou em Deslauriers. “Ora, paciência!” Contudo, mandou-lhe recado por um portador, marcando-lhe encontro para o dia seguinte no Palais-Royal, para almoçarem juntos.
Com esse, a fortuna não se mostrara tão amável.
Apresentara-se ao concurso para a agrégation com uma tese Sobre o direito de testar, onde defendia a ideia de que este devia ser restringido ao máximo; — e, como o seu adversário o incitasse a dizer tolices, proferira muitas, sem que os examinadores abrissem a boca. Depois, quisera o acaso que, ao tirar à sorte o tema para a aula, lhe saísse a Prescrição. Então, Deslauriers expusera teorias deploráveis; as velhas contestações deviam ser apresentadas da mesma forma que as novas; por que deveria o proprietário ser privado dos seus bens por não poder apresentar os respectivos títulos senão volvidos trinta e um anos? Era garantir a segurança do homem honesto ao herdeiro do ladrão enriquecido. Todas as injustiças eram consagradas por uma extensão desse direito, que era a tirania, o abuso da força! E chegara até a exclamar:
— Acabemos com ele; e os gauleses não mais serão oprimidos pelos francos, os irlandeses pelos ingleses, os peles-vermelhas pelos ianques, os árabes pelos turcos, os negros pelos brancos, a Polônia...
O presidente interrompera-o:
— Bem, bem, senhor! Não estamos interessados nas suas opiniões políticas, voltará a apresentar-se mais tarde!
Deslauriers não quisera apresentar-se outra vez. Mas aquele infeliz parágrafo XX do livro III do Código Civil passara a ser para ele um enorme tropeço. Estava elaborando um grande trabalho sobre A Prescrição, tomada como fundamento do direito civil e do direito natural dos povos; e mergulhara nos tratados de Dunod, Rogérius, Balbus, Merlin, Vazeille, Savigny, Troplong e outras consideráveis leituras. A fim de se lhes dedicar mais à vontade, pedira demissão do seu lugar de escrevente. Vivia de explicações, de redigir teses; e, nos corredores do parlamento, assustava com a sua virulência o partido conservador, todos os jovens doutrinários discípulos do Senhor Guizot — de modo que alcançara, em certa sociedade, uma espécie de celebridade, a que se misturava uma tal ou qual desconfiança relativamente à sua pessoa.
Apresentou-se no lugar combinado com um paletó grosso, forrado de flanela vermelha, como usava outrora Sénécal.
O respeito humano, por causa do público que passava, impediu-os de se abraçarem demoradamente, e dirigiram-se ao Restaurante Véfour, de braço dado, rindo de prazer, com uma lágrima no canto do olho. Depois, mal se viram a sós, Deslauriers exclamou:
— Ah! Com a breca, agora vamos viver bem!
Frédéric não gostou dessa maneira de ele associar-se, imediatamente, à sua fortuna. O amigo manifestava alegria demais por conta dos dois, e menos do que deveria pela de Frédéric.
Em seguida, Deslauriers contou o seu insucesso, e, a pouco e pouco, os seus trabalhos, a sua existência, falando de si com estoicismo, e dos outros com azedume. Tudo lhe desagradava. Não havia homem instalado na vida que não fosse cretino ou canalha. Por causa de um copo que não estava bem lavado, irritou-se com o criado, e, como Frédéric lhe fizesse uma vaga censura:
— Querias que tivesse contemplações com tipos destes, que chegam a ganhar seis ou oito mil francos por ano, que são eleitores, e até elegíveis, sabe-se lá! Ah! Não, não!
Depois, com ar jovial:
— Mas esquecia-me que tinha diante de mim um capitalista, um Mondor, sim, porque tu agora és um Mondor!
E, tornando a falar da herança, exprimiu esta ideia: que as sucessões colaterais (coisa em si injusta, embora neste caso o alegrasse) não tardariam a ser abolidas, na próxima revolução.
— Parece-te? — indagou Frédéric.
— Podes estar certo disso! — respondeu ele. É uma coisa que não pode continuar! Sofre-se demais! Quando vejo na miséria homens como Sénécal...
“Sempre esse Sénécal!”, pensou Frédéric.
— E além disso, que contas de novo? Ainda estás apaixonado pela Senhora Arnoux? Já passou, não?
Frédéric, não sabendo que responder, fechou os olhos e baixou a cabeça.
A propósito de Arnoux, Deslauriers informou-o de que o seu jornal era agora de Hussonnet, que o tinha modificado. Chamava-se L’Art, “instituto literário, sociedade por ações de cem francos cada; capital social: quarenta mil francos”, dando a cada acionista o direito de nele fazer sair os seus escritos; porque “a sociedade tem como finalidade publicar as obras dos estreantes, de poupar ao talento, e quem sabe se ao gênio, as dolorosas crises que assoberbam etc...”, estás vendo o embuste! Havia contudo uma coisa que se podia fazer, seria elevar o nível da referida folha, e depois, mantendo os mesmos redatores e prometendo o prosseguimento do folhetim, apresentar aos assinantes um jornal político; não seria preciso adiantar muito dinheiro.
— Que te parece isso? Não queres tomar parte?
Frédéric não repeliu a proposta. Mas era preciso esperar que os seus negócios estivessem em ordem.
— Depois, se precisares de alguma coisa...
— Obrigado, meu velho! — disse Deslauriers.
Em seguida fumaram charutos, apoiados no encosto de veludo, rente à janela. O sol brilhava, o ar estava ameno, bandos de pássaros, esvoaçando, vinham pousar no jardim; as estátuas de bronze e de mármore, lavadas pela chuva, rebrilhavam; criadas de avental conversavam, sentadas em cadeiras; e ouviam-se risos de crianças, juntamente com o murmúrio contínuo do repuxo.
Frédéric sentira-se perturbado com a amargura de Deslauriers; mas, sob a influência do vinho que lhe circulava nas veias, meio entorpecido, com a luz batendo-lhe em cheio no rosto, sentia apenas um imenso bem-estar, voluptuosamente estúpido, como uma planta saturada de calor e umidade. Deslauriers, de pálpebras semicerradas, fitava a distância, vagamente. Respirava profundamente, e começou a dizer:
— Ah! Era mais belo, quando Camille Desmoulins, ali, de pé numa mesa, incitava o povo a avançar sobre a Bastilha! Nesse tempo vivia-se, era possível alguém afirmar-se, provar a própria força! Simples advogados davam ordens a generais4, a canalha correu com os reis, ao passo que hoje...
Calou-se, e, de súbito, exclamou:
— Ora! O futuro dirá!
E, tamborilando o toque de carga na vidraça, declamou os versos de Barthélemy5:
Ela há de voltar, a terrível Assembleia,
Que quarenta anos depois ainda vos assusta,
Colosso que progride a passos decididos.
— Já não sei o resto! Mas é tarde, se fôssemos embora?
E continuou, na rua, a expor as suas teorias.
Frédéric, sem lhe prestar atenção, observava nas vitrinas das lojas os tecidos e os móveis que conviriam para a sua instalação; e foi talvez por pensar na Senhora Arnoux que parou diante de um antiquário, contemplando três pratos de faiança. Tinham arabescos amarelos, de reflexos metálicos, e custava cada um cem escudos. Mandou-os pôr de parte.
— Eu, no teu lugar, comprava antes pratas — disse Deslauriers, revelando, por esse amor aos valores seguros, o homem de baixa extração.
Mal se viu só, Frédéric dirigiu-se ao célebre Pomadère, onde encomendou três pares de calças, duas casacas, um casaco de peles e cinco coletes; em seguida a um sapateiro, depois a um camiseiro e a um chapeleiro, a todos pedindo a maior urgência possível.
Três dias depois, à noite, tendo regressado do Havre, encontrou em casa o seu guarda-roupa completo; e, impaciente por estreá-lo, resolveu fazer imediatamente uma visita aos Dambreuse. Mas era demasiado cedo, oito horas apenas.
“Se eu fosse à casa dos outros?”, disse de si para si.
Arnoux, sozinho diante do espelho, fazia a barba. Ofereceu-se para conduzi-lo a um lugar onde se divertiria, e, quando Frédéric falou em Dambreuse:
— Ah! Vem a propósito! Você vai encontrar lá uns amigos dele; venha, então! Vai ser divertido!
Como Frédéric quisesse desculpar-se, a Senhora Arnoux reconheceu-lhe a voz, e deu-lhe os bons dias através do tabique, porque a filha estava indisposta, e ela também não se sentia bem; e ouviu-se retinir uma colher de encontro a um copo, e todo esse sussurro de coisas em que se toca delicadamente, próprio do quarto dos doentes. Depois Arnoux desapareceu, para se despedir da mulher. Acumulava razões:
— Bem sabes que é sério! Preciso ir lá, é indispensável, estão à minha espera.
— Vai, vai, meu amigo. Diverte-te!
Arnoux chamou um fiacre.
— Palais-Royal! Galeria Montpensier, 7.
E recostando-se na almofada:
— Ah! Como estou cansado, meu caro! Um dia estouro. Aliás, com você não preciso guardar segredo.
Inclinou-se ao ouvido de Frédéric, misteriosamente:
— Estou tentando achar o vermelho de cobre dos chineses.
E explicou o que era o esmalte e o fogo lento.
Chegados ao estabelecimento de Chevet, entregaram-lhe um grande ramo de flores, que mandou pôr no fiacre. Em seguida, Arnoux escolheu, para “a sua pobre mulher”, uvas, ananases, diversas gulodices, e recomendou que fossem entregues cedo, no dia seguinte.
Em seguida passaram por um estabelecimento que alugava fantasias; tratava-se de um baile. Arnoux escolheu uns calções de veludo azul, uma túnica condizente, uma cabeleira vermelha; Frédéric optou por um dominó; e apearam-se na Rua de Laval, diante de uma casa iluminada no segundo andar com lanternas de cor.
No fundo das escadas já se ouvia o som de violinos.
— Mas aonde demônio me leva você? — perguntou Frédéric.
— A casa de uma excelente pequena! Não tenha medo!
Um groom abriu-lhes a porta, e entraram no vestíbulo, onde se viam paletós, sobretudos e xales empilhados nas cadeiras. Uma jovem, com o uniforme dos dragões de Luís XV, atravessava-o nesse momento. Era a Senhorita Rose-Annette Bron, a dona da casa.
— Então? — indagou Arnoux.
— Arranjado! — respondeu ela.
— Ah! Obrigado, meu anjo!
E pretendeu beijá-la.
— Tem cuidado, imbecil! Vais estragar-me a maquilagem!
Arnoux apresentou-lhe Frédéric.
— Toque, meu caro senhor, e seja bem-vindo!
E, afastando um reposteiro por trás dela, gritou com ênfase:
— Mestre Arnoux, moço de cozinha, e um príncipe das suas relações!
A princípio, Frédéric sentiu-se ofuscado pelas luzes; só distinguia sedas, veludos, ombros nus, uma massa de cores que ondulava aos sons de uma orquestra oculta por folhagens, entre paredes forradas de seda amarela, tendo, aqui e ali, retratos a pastel e tocheiros de cristal estilo Luís XVI. Altos candeeiros, cujos globos baços pareciam bolas de neve, dominavam açafates de flores, pousados sobre consolos, aos cantos; e, em frente, depois de outra sala menor, distinguia-se, numa terceira, um leito com colunas torcidas, com um espelho de Veneza à cabeceira.
As danças pararam, e houve aplausos, um rumor alegre, à vista de Arnoux que avançava de cesto à cabeça; as vitualhas faziam uma saliência ao centro. “Cuidado com o lustre!” Frédéric levantou os olhos: era o velho lustre de louça que adornava a loja Art industriel; a recordação dos dias antigos veio-lhe à memória; mas um soldado de linha, com esse ar lorpa que a tradição atribui aos recrutas, parou à sua frente, abrindo os braços para exprimir o seu pasmo; e ele reconheceu, apesar da tremenda bigodeira negra de pontas ultraafiladas que o desfigurava, o velho amigo Hussonnet. Numa algaravia, semialsaciana, seminegra, o boêmio cumulava-o de felicitações, chamando-lhe seu coronel. Frédéric, desconcertado por tanta gente, não sabia que responder. Ao bater de um arco sobre uma estante, os dançarinos puseram-se nos seus lugares.
Eram cerca de sessenta, as mulheres na sua maior parte vestidas de aldeãs ou de marquesas, e os homens, quase todos de meia-idade, em trajes de carroceiro, de estivador ou de marujo.
Encostado à parede, Frédéric ficou a observar a quadrilha.
Um velho gaiteiro, coberto, como um doge veneziano, por um longo manto de seda púrpura, dançava com a Senhora Rosanette, de casaca verde, calções de malha e botas moles com esporas de ouro. O par que lhe fazia face era formado por um Albanês carregado de iatagãs e uma Camponesa Suíça de olhos azuis, branca como leite, rechonchuda, em corpinho e colete vermelho. Para valorizar o cabelo, que lhe descia até à barriga da perna, uma loira alta, figurante da Ópera, estava de Mulher Selvagem, tendo apenas, sobre a malha acastanhada, uma tanga de couro, braceletes de vidrilhos e um diadema de lantejoulas, do qual se erguia um penacho de penas de pavão. A sua frente, um homem, vestido à Pritchard, de casaca preta grotescamente larga, marcava o compasso na caixa de rapé com o cotovelo. Um pastorzinho Watteau, azul e prata como o luar, batia com o seu cajado no tirso de uma Bacante, coroada de cachos de uvas, com uma pele de leopardo atravessada e coturnos de fitas douradas. Do outro lado, uma Polonesa, num casaquinho de veludo nacarado, tinha uma anágua de gaze que balançava sobre as meias cinza pérola, e botinas cor-de-rosa, rematadas de peles brancas. Sorria a um quadragenário barrigudo, mascarado de Menino de Coro, que pulava muito alto, erguendo com uma das mãos a sobrepeliz e retendo com a outra o solidéu vermelho. Mas a rainha, a estrela, era Lulu, célebre bailarina dos bailes públicos. Como agora estava rica, trazia uma gola larga de renda sobre a blusa de veludo preto liso; e as calças largas, de seda cor de sangue, justas nas ancas, e cingidas à cintura por uma faixa de seda, tinham em todo o comprimento das costuras pequenas camélias brancas naturais. O seu rosto pálido, um pouco inchado, de nariz arrebitado, ainda parecia mais insolente por causa da peruca esguedelhada, sobre a qual assentava um chapéu de homem, de feltro cinzento, amarrotado com um soco sobre a orelha direita; e, com os saltos que dava, os seus escarpins com fivelas de brilhantes quase tocavam o nariz do vizinho, um grande Barão Medieval, tolhido na sua armadura de ferro. Havia também um Anjo, de gládio dourado na mão, duas asas de cisne nas costas, o qual, indo e vindo, perdia constantemente o seu par, um Luís XIV, não entendia nada das figuras e atrapalhava a contradança.
Frédéric, contemplando aquela gente, experimentava uma sensação de abandono, de mal-estar. Pensava ainda na Senhora Arnoux, e tinha a impressão de estar tomando parte em algo hostil que se tramava contra ela.
Quando a quadrilha terminou, Rosanette aproximou-se dele. Estava um pouco ofegante, e a gola, polida como um espelho, soerguia-se suavemente debaixo do queixo.
— E o senhor — disse ela — não quer dançar?6
Frédéric desculpou-se, não sabia dançar.
— Não? E comigo? Vamos?
E, descansando sobre uma perna só, com o outro joelho um pouco recolhido, acariciando com a mão esquerda o punho de nácar da espada, fitou-o durante um minuto, com ar meio suplicante, meio trocista. Finalmente disse “Boa-noite!”, fez uma pirueta e desapareceu.
Frédéric, descontente consigo mesmo, e não sabendo o que fazer, pôs-se a deambular pelo baile.
Entrou no boudoir, revestido de seda azul pálido com ramos de flores silvestres; no teto, dentro de um círculo de madeira dourada, Cupidos emergiam de um céu azul, brincando sobre nuvens em forma de acolchoado. Essas elegâncias, que hoje seriam mesquinhas para mulheres como Rosanette, deslumbraram-no; ele admirou tudo: as trepadeiras artificiais que ornavam o contorno do espelho, as cortinas da lareira, o divã turco, e, numa reentrância da parede, uma espécie de tenda forrada de seda cor-de-rosa, com musselina branca por cima. Móveis pretos, marchetados de cobre, guarneciam o quarto de dormir, e, sobre um estrado coberto com penas de cisne, erguia-se o grande leito de dossel e penas de avestruz. Alfinetes com cabeça de pedrarias espetados em novelos, anéis espalhados por salvas, medalhões emoldurados em ouro e caixas de prata divisavam-se na penumbra, ao clarão de uma urna da Boêmia, suspensa por três correntinhas. Por uma pequena porta entreaberta, divisava-se uma estufa que ocupava toda a largura de um terraço, que do lado oposto terminava num aviário.
Era um ambiente bem próprio para lhe agradar. Numa brusca revolta da sua juventude, jurou a si próprio que havia de o gozar, encheu-se de coragem; depois, voltando à entrada do salão, onde agora a afluência era maior (tudo se agitava numa espécie de poalha luminosa), ficou de pé, contemplando as quadrilhas, semicerrando os olhos para ver melhor, — e aspirando o perfume sensual das mulheres, que circulavam como um imenso beijo esparso.
Mas perto dele, do outro lado da porta, estava Pellerin; Pellerin em traje de gala, com o braço esquerdo metido no peito e segurando na mão direita, juntamente com o chapéu, uma luva branca, rasgada.
— Viva, há quanto tempo não o víamos! Onde diabo estava você metido? De viagem, na Itália? Vulgar, hein, essa Itália? Menos de pasmar do que se diz? Enfim! Venha mostrar-me os seus esboços, um dia destes!
E, sem esperar resposta, o artista pôs-se a falar de si próprio.
Fizera grandes progressos, e reconhecera definitivamente a tolice da Linha. Não era tanto a Beleza e a Unidade que se devia procurar numa obra, mas o caráter e a diversidade das coisas.
— Porque tudo existe na natureza, portanto tudo é legitimo, tudo é plástico. O que importa é fixar a nota certa, e pronto. Descobri o segredo! — E, dando-lhe uma cotovelada, repetiu várias vezes: — Descobri o segredo, compreendeu? Assim, repare nessa pequena com penteado de esfinge que está dançando com um Postilhão Russo, é limpo, seco, nítido, tudo em planos e em tons violentos: índigo debaixo dos olhos, um toque de cinábrio na face, bistre nas têmporas; pá, pá! — e, com o polegar, dava pinceladas no ar. — Enquanto a gorda, acolá — prosseguiu, mostrando uma Peixeira, de vestido cor de cereja, cruz de ouro ao pescoço e lenço de algodão amarrado atrás — é toda em curvas; as narinas achatam-se tais quais as pontas do lenço, os cantos da boca levantam-se, o queixo desce, tudo é gordo, tudo se espalha, tranquilo e luminoso, um autêntico Rubens! Contudo, ambas são perfeitas. Então onde está o tipo? — Acalorou-se: — Que vem a ser uma bela mulher? Que vem a ser o belo? Ah! O belo! Quererá você dizer-me...
Frédéric interrompeu-o para perguntar quem era um Pierrô, com perfil de bode, que abençoava todos os pares.
— Nada! Um viúvo, pai de três filhos. Deixa-os andar seminus, passa a vida no clube e dorme com a criada.
— E aquele, mascarado de Bailio, que está no vão da janela conversando com uma Marquesa Pompadour?
— A marquesa é a Senhora Vandael, ex-atriz do Gymnase e amante do Doge, que é o Conde de Palazot. Há vinte anos que estão juntos; não se sabe por quê. Que lindos olhos tinha outrora essa mulher! Quanto ao cidadão que está ao lado dela, é o Capitão d’Herbigny, um da velha guarda, cuja única riqueza é a cruz da Legião de Honra e a sua pensão; serve de tio às mundanas nas solenidades, organiza duelos e janta fora.
— Um canalha? — indagou Frédéric.
— Não! Um homem respeitável!
— Ah!
O artista nomeou outros ainda, até que, avistando um cavalheiro que envergava, como os médicos de Molière, um grande balandrau de sarja preta, mas bem aberto de alto a baixo, para mostrar todos os seus berloques:
— E ali tem o Doutor Des Rogis, que morre de raiva por não ser célebre, escreveu um livro de pornografia médica, é servil com a alta sociedade, e discreto; estas senhoras adoram-no. Ele e a esposa (aquela Castelã magra, de vestido cinzento) aparecem sempre em todos os lugares públicos e outros. Apesar das dificuldades com que vivem, têm um dia para receber — chás artísticos em que se recitam versos. Cuidado!
Com efeito, o doutor aproximava-se deles; e não tardou que os três formassem um grupo de conversadores à porta do salão, ao qual veio juntar-se Hussonnet, depois o amante da Mulher Selvagem, um jovem poeta que exibia, sob um mantelete à Francisco I, a mais débil das anatomias, e finalmente um rapaz espirituoso, fantasiado de Turco. Mas o seu casaquinho, debruado de amarelo, andara tanto nas costas dos dentistas ambulantes, as calças largas, de pregas, eram de um vermelho tão desbotado, o turbante, enrolado como uma enguia, à tártara, tinha um ar tão pobre, em suma, todo o seu traje era de tal maneira deplorável e perfeito, que as mulheres não dissimulavam a sua repugnância. O doutor consolou-o, com grandes elogios à amante, fantasiada de Estivadora. O Turco era filho de um banqueiro.
Entre duas quadrilhas, Rosanette dirigiu-se para a lareira, junto da qual estava instalado, numa poltrona, um velhinho obeso, de casaca castanha com botões dourados. Apesar das pelancas murchas que pendiam sobre o laço branco, os cabelos ainda loiros, e que frisavam naturalmente, como o pelo de um caniche, davam-lhe ainda um certo ar brincalhão.
Ela escutou-o, inclinada sobre o seu rosto. Depois, trouxe-lhe um copo de refresco; e não havia coisa tão delicada como as mãos dela, saindo das mangas de renda que ultrapassavam os canhões da casaca verde. Depois de ter bebido, o homenzinho beijou-lhas.
— Mas é o Senhor Oudry, o vizinho de Arnoux!
— Foi ele quem o tirou do bom caminho — disse rindo Pellerin.
— Como?
Um Postilhão de Longjumeau7 agarrou-a pela cintura; começara uma valsa. Então, todas as mulheres sentadas ao redor do salão se ergueram sucessivamente, com presteza; e as saias, os lenços, os penteados começaram a girar.
Volteavam tão próximo dele que Frédéric distinguia o suor gotejando-lhes na testa; — e aquele movimento giratório, regular e cada vez mais vivo e rápido, vertiginoso, comunicava-lhe ao pensamento uma espécie de embriaguez, suscitava outras imagens, enquanto todas passavam no mesmo deslumbramento, mas cada uma provocando uma excitação particular, conforme o gênero da sua beleza. A Polonesa, que se abandonava langorosamente, inspirava-lhe o desejo de a ter contra o peito, correndo os dois num trenó, por uma planície coberta de neve. Horizontes de volúpia tranquila, à beira de um lago, num chalé, erguiam-se dos passos da Suíça, que valsava de torso ereto e pálpebras baixas. Depois, subitamente, a Bacante, deitando para trás a cabeça, fazia-o sonhar com carícias avassalantes, em bosques de aloendros, durante uma tempestade, ao vago soar de tamborins. A Peixeira, esbaforida pelo compasso demasiado rápido, passava rindo; e Frédéric sonhava beber com ela no Porcherons, amarrotar-lhe o lenço com ambas as mãos, como nos velhos tempos. Mas a Estivadora, cujos pés ligeiros mal tocavam o tapete, parecia resumir na flexibilidade do corpo e na gravidade do rosto todos os refinamentos do amor moderno, que tem a exatidão de uma ciência e a mobilidade de um pássaro. Rosanette rodopiava, de mão no quadril; a sua cabeleira postiça, saltitando sobre a gola, espalhava em volta dela pó de íris; e, a cada volta, pouco faltava para atingir Frédéric com as suas esporas de ouro.
Ao derradeiro acorde da valsa, surgiu a Srta. Vatnaz. Tinha um lenço argelino amarrado na cabeça, muitas piastras na testa, os olhos pintados com antimônio, e envergava uma espécie de paletó em seda preta que caía sobre um saiote claro, em lhama de prata; trazia na mão um pandeiro.
Atrás dela vinha um rapaz alto, no traje clássico de Dante, e que era (ela agora já não fazia segredo disso) o antigo cantor do Alhambra — o qual, chamando-se Auguste Delamare, começara por usar o nome de Anténor Dellamarre, em seguida Delmas, depois Belmar, e finalmente Delmar, modificando e aperfeiçoando assim o nome, à medida que a sua glória crescia; porque trocara o café-concerto pelo teatro, e acabava precisamente de estrear com grande êxito no Ambigu, em Gaspardo le Pêcheur8.
Ao vê-lo, Hussonnet franziu a testa. Desde que a sua peça fora recusada, execrava os atores. Ninguém podia imaginar como esses senhores eram vaidosos, sobretudo aquele! — Que pedante, olhem para aquilo!
Depois de ter feito uma ligeira vênia a Rosanette, Delmar encostara-se à lareira; e ficara imóvel, com a mão sobre o peito, o pé esquerdo para a frente, de olhar extático, com a sua coroa de louro dourada por cima do capuz, procurando encher o olhar de poesia, para fascinar as damas. Tinha-se feito, à distância, um grande círculo à volta dele.
Mas a Vatnaz, depois de ter beijado demoradamente Rosanette, veio ter com Hussonnet, pedindo-lhe para rever, do ponto de vista do estilo, uma obra de educação que desejava publicar: La Guirlande des jeunes Personnes, compilação literária e moral. O homem de letras prometeu-lhe a colaboração. Então, ela perguntou-lhe se não poderia, num dos jornais que lhe estavam abertos, publicar uns elogios ao amigo dela, ou até confiar-lhe mais tarde um papel. Hussonnet até se esqueceu de beber um copo de ponche.
Tinha sido feito por Arnoux; e este, seguido pelo groom do conde, com uma bandeja vazia, oferecia-o às pessoas, todo satisfeito.
Quando passou diante do Senhor Oudry, Rosanette deteve-o.
— E então, esse negócio?
Ele corou levemente; por fim, dirigiu-se ao homenzinho:
— A nossa amiga disse que o senhor estaria disposto a fazer o obséquio...
— Como não, meu caro vizinho! Inteiramente às suas ordens.
E o nome do Senhor Dambreuse foi pronunciado: como falavam a meia-voz, Frédéric não os ouvia distintamente; dirigiu-se para o outro ângulo da lareira, onde Rosanette e Delmar conversavam.
O cabotino tinha uma fisionomia vulgar, feita para ser contemplada à distância como os cenários de teatro. As mãos eram grossas, os pés grandes, o maxilar pesado; dizia mal dos mais ilustres atores, tratava com desprezo os poetas, dizia “o meu órgão, o meu físico, os meus dotes”, colorindo as suas frases com palavras pouco inteligíveis mesmo para ele próprio, pelas quais tinha um fraco, como fossem “morbidez, análogo e homogeneidade”.
Rosanette escutava-o fazendo leves acenos de aprovação com a cabeça. Via-se a admiração brilhar sob a pintura do rosto, e uma certa umidade velava-lhe os olhos, claros, de cor indefinível. Como podia um homem assim encantá-la? E Frédéric estimulava interiormente ainda mais o seu desprezo pelo ator, para eliminar, talvez, a pontinha de inveja que sentia.
A Srta. Vatnaz estava agora junto de Arnoux; e, enquanto ria muito alto, lançava de vez em quando um rápido olhar à amiga, que o Senhor Oudry não perdia de vista.
Depois, Arnoux e a Vatnaz desapareceram; o homenzinho veio falar em voz baixa a Rosanette.
— Sim, está bem! Deixe-me em paz.
E pediu a Frédéric que fosse à cozinha ver se Arnoux lá estava.
Um batalhão de copos meio vazios cobria o soalho; e as caçarolas, as marmitas, a panela do peixe, a frigideira ferviam. Arnoux dava ordens aos criados, tratando-os por tu, batia a maionese, provava os molhos, dizia graças à criada.
— Pronto — disse ele. — Pode avisá-la! Vou mandar servir.
Tinha parado a dança, as mulheres acabavam de sentar-se, os homens passeavam. No meio do salão, diante de uma das cortinas, enfunada pelo vento, a Esfinge, apesar das observações de toda a gente, expunha à corrente de ar os braços suados. Mas onde estava Rosanette? Frédéric procurou-a mais longe, até no boudoir e no quarto. Alguns, para estar sós, ou dois a dois, tinham-se refugiado aí. A penumbra e os murmúrios confundiam-se. Ouviam-se risinhos, escondidos pelos lenços, entreviam-se junto aos decotes vibrações de leques, lentos e suaves como o bater de asa de um pássaro ferido.
Ao entrar na estufa, viu, sob as folhas largas de um caládio, junto do repuxo, Delmar, deitado de barriga para baixo no canapé de linho; Rosanette, sentada a seu lado, tinha a mão pousada na cabeça dele; olhavam um para o outro. Nesse instante, Arnoux entrou pela outra porta, a que dava para o aviário. Delmar ergueu-se de um salto, e saiu tranquilamente, sem se voltar; e parou, mesmo, junto da porta, para colher uma flor de hibisco, que pôs na botoeira. Rosanete inclinou a cabeça; Frédéric, que a via de perfil, percebeu que chorava.
— Mas, que é isso? — perguntou Arnoux.
Ela encolheu os ombros, sem responder.
— Será por causa dele? — prosseguiu Arnoux.
Ela lançou-lhe os braços ao pescoço, e, beijando-o na testa, disse lentamente:
— Tu bem sabes que te amarei sempre, meu querido. Não se pensa mais nisso! Vamos cear!
Um lustre de cobre com quarenta velas alumiava a sala, cujas paredes estavam inteiramente cobertas por velhas faianças; e aquela luz crua, caindo a prumo, tornava ainda mais branco um gigantesco rodovalho que, entre os hors-d’oeuvre e as frutas, ocupava o centro da mesa, ao redor da qual havia pratos de sopa de marisco. Com um roçagar de vestidos, as mulheres, ajeitando as saias, as mangas e os lenços, sentaram-se umas ao lado das outras; os homens, de pé, espalharam-se pelos cantos. Pellerin e o Senhor Oudry foram instalados junto de Rosanette; Arnoux ficou em frente deles. Palazot e a amiga acabavam de sair.
— Boa viagem! — disse ela. — Ao assalto!
E o Menino de Coro, homem brincalhão, fazendo um largo sinal da cruz, entoou o Benedicite.
As damas ficaram escandalizadas, principalmente a Peixeira, que tinha uma filha da qual pretendia fazer uma mulher honesta. Também Arnoux “não gostava daquilo”, achando que a religião devia ser respeitada.
Um relógio alemão, com um passarinho, deu as duas horas, provocando numerosos gracejos sobre o cuco. Depois jorrou um tumulto de palavras, trocadilhos, anedotas, bazófias, apostas, mentiras dadas como verdades, asserções improváveis, que não tardaram a espalhar-se em conversas particulares. Os vinhos circulavam, os pratos sucediam-se, o doutor trinchava. Atiravam-se de longe laranjas, rolhas; saía-se do lugar para falar com alguém. Rosanette voltava-se frequentemente para Delmar, imóvel atrás dela; Pellerin tagarelava, o Senhor Oudry sorria. A Srta. Vatnaz comeu os lagostins quase todos, e as carapaças estalavam sob os seus longos dentes. O Anjo, pousado no banco do piano (único lugar onde as asas lhe permitiam sentar-se), mastigava placidamente, sem parar.
— Que garfo! — repelia o Menino de Coro, siderado. — Que garfo!
E a Esfinge bebia aguardente, gritava a plenos pulmões, agitava-se como um demônio. De repente, as faces incharam-lhe, e, não podendo conter mais o sangue que a sufocava, levou o guardanapo à boca, e atirou-o depois para debaixo da mesa.
Frédéric tinha visto.
— Não é nada!
E, às instâncias dele para que se fosse embora e cuidasse de si, ela respondeu lentamente:
— Ora! Para quê? Tanto faz isto como outra coisa qualquer! A vida não é lá muito engraçada!
Então, ele sentiu um arrepio, assaltou-o uma tristeza glacial, como se tivesse visto de súbito mundos inteiros de miséria e desespero, um fogareiro de carvão junto dum leito de tábuas, e os cadáveres do necrotério, de avental de couro, com a torneira deixando correr água fria sobre o seu cabelo.
Entretanto, Hussonnet, acocorado aos pés da Mulher Selvagem, clamava, em voz rouca, imitando o ator Grassot:
— Não sejas cruel, ó Celuta9! Esta pequena festa de família é deliciosa! Embriagai-me de volúpias, meus amores! Haja alegria! Haja alegria!
E pôs-se a beijar os ombros das mulheres. Elas estremeciam, picadas pelo bigode; em seguida, ocorreu-lhe quebrar um prato de encontro à cabeça, com uma leve pancada. Outros seguiram-lhe o exemplo; cacos de louça voavam como telhas durante uma grande ventania, e a Estivadora exclamou:
— Não façam cerimônia! Não custa nada! O burguês que os fabrica dará outros!
Todos os olhares voltaram-se para Arnoux, que replicou:
— Ah! Com licença, sob fatura! — fazendo sem dúvida questão de mostrar que não era, ou já não era amante de Rosanette.
Mas ouviram-se duas vozes encolerizadas:
— Imbecil!
— Malcriado!
— Às suas ordens!
— Às suas!
Eram o Cavaleiro da Idade Média e o Postilhão Russo que altercavam; como esse último afirmasse que as armaduras dispensavam a coragem, o outro tomara isso como um insulto. Queria bater-se, toda a gente se meteu de permeio e o Capitão, no meio do tumulto, procurava fazer-se escutar.
— Meus senhores, uma palavra! Escutem-me! Eu tenho experiência, meus senhores!
Rosanette, batendo com a faca no copo, acabou por obter silêncio; e, dirigindo-se ao Cavaleiro, que conservava o elmo na cabeça, e em seguida ao Postilhão, que ostentava um barrete de peles:
— Primeiro, tire essa caçarola! Faz-me calor! E você aí, tire essa cabeça de lobo! Querem obedecer-me ou não?! Olhem para as minhas dragonas! Sou a vossa marechala!
Eles obedeceram, e toda a gente aplaudiu, gritando:
— Viva a Marechala! Viva a Marechala!
Então ela tirou de cima da lareira uma garrafa de champanha, e despejou-o de alto sobre as taças que lhe estendiam. Como a mesa era demasiado larga, os convivas, sobretudo as mulheres, inclinaram-se para o lado dela, erguendo-se na ponta dos pés, sobre as travessas das cadeiras, o que formou durante alguns instantes uma pirâmide de penteados, de ombros nus, de braços estendidos, de corpos inclinados; — e longos jatos de vinho espadanaram no meio de tudo isso, porque o Pierrô e Arnoux, nos dois cantos da mesa, cada qual abrindo a sua garrafa, respingavam os rostos dos outros. Os passarinhos do aviário, cuja porta tinha ficado aberta, invadiram a sala, desorientados, esvoaçando em torno do lustre, indo de encontro às vidraças e aos móveis; e alguns, pousando nas cabeças, pareciam grandes flores no meio dos penteados.
Os músicos já tinham ido embora. O piano foi trazido do vestíbulo para o salão. A Vatnaz sentou-se e, acompanhada pelo Menino de Coro, que tocava pandeiro, atacou furiosamente uma contradança, martelando as teclas como um cavalo escarvando o chão, e balançando o corpo, para marcar melhor o compasso. A Marechala arrastou Frédéric, Hussonnet dava cambalhotas, a Estivadora contorcia-se como um clown, o Pierrô parecia um orangotango, a Mulher Selvagem, de braços abertos, imitava a oscilação de uma chalupa. Finalmente, todos, não podendo mais, pararam; e abriu-se uma janela.
A luz do dia entrou, com a frescura da manhã. Houve uma exclamação de espanto, e depois um silêncio. As chamas amarelas vacilavam, fazendo de vez em quando estalar as arandelas; o chão estava juncado de fitas, flores e pérolas; nódoas de ponche e refresco maculavam os móveis; os reposteiros estavam sujos, os trajes amarrotados, poeirentos; as tranças caíam por cima dos ombros; e a maquilagem, escorrendo juntamente com o suor, deixava a descoberto rostos lívidos, cujas pálpebras avermelhadas piscavam à luz.
A Marechala, viçosa como se acabasse de sair do banho, tinha as faces rosadas, os olhos brilhantes. Atirou para longe a cabeleira postiça; e o seu cabelo envolveu-a como um manto, só deixando visível a pantalona, o que produzia um efeito ao mesmo tempo cômico e tocante.
A Esfinge, que batia os dentes de febre, precisou de um xale.
Rosanette correu ao quarto em busca de um, mas, como a outra fosse atrás dela, fechou-lhe a porta na cara, apressadamente.
O Turco fez notar, em voz alta, que ninguém tinha visto sair o Senhor Oudry. Mas ninguém comentou a insinuação, tal era o cansaço.
Depois, esperando as carruagens, envolveram-se nas capelinhas e nos agasalhos. Batiam sete horas. O Anjo ainda estava na sala de jantar, e atirava-se a um creme de manteiga com sardinhas; e a Peixeira, a seu lado, fumava, enquanto lhe dava conselhos sobre a existência.
Finalmente os fiacres chegaram, e os convidados foram-se embora. Hussonnet, que fazia uma correspondência para a província, precisava ler cinquenta e três jornais antes do almoço; a Mulher Selvagem tinha um ensaio, Pellerin, um modelo à espera, o Menino de Coro, três encontros. Mas o Anjo, atacada pelos primeiros sintomas de indigestão, não conseguiu levantar-se. O Barão Medieval levou-a até o fiacre.
— Cuidado com as asas! — gritou da janela a Estivadora.
Estavam no patamar, quando a Senhorita Vatnaz disse a Rosanette:
— Adeus, querida! Estava muito boa a tua festa.
E acrescentou, falando-lhe ao ouvido:
— Não o deixes fugir!
— Até virem melhores tempos — replicou a Marechala, lentamente, enquanto voltava as costas.
Arnoux e Frédéric voltaram juntos, como tinham vindo. O fabricante de louça tinha uma expressão de tal modo sombria que o companheiro pensou que ele estivesse indisposto.
— Eu? De maneira nenhuma!
Mordia o bigode, franzia as sobrancelhas, e Frédéric perguntou-lhe se estava preocupado com os negócios.
— Nem por sombra!
E acrescentou, de súbito:
— Você conhece o velho Oudry, não é verdade?
E, com uma expressão rancorosa:
— É rico, esse velho pirata!
Depois, Arnoux falou de uma fornada importante que se faria na fábrica, nesse dia. Não queria deixar de assistir. O trem partia dentro de uma hora. — Mas não posso deixar de ir dar um beijo na minha mulher.
“Ah, a mulher dele!”, pensou Frédéric.
Quando se deitou, sentia uma dor intolerável na nuca; bebeu uma garrafa de água, para acalmar a sede.
Outra sede o assaltara, a das mulheres, do luxo e de tudo o que comporta a vida parisiense. Sentia-se um pouco atordoado, como um homem que acaba de sair de um barco; e, na alucinação do primeiro sono, via passar e tornar a passar, continuamente, os ombros da Peixeira, os rins da Estivadora, as pernas da Polonesa, os cabelos da Mulher Selvagem. Depois, surgiram dois grandes olhos negros, que não estavam no baile; e, leves como borboletas, ardentes como tochas, iam e vinham, vibravam, subiam à altura do teto, desciam-lhe até os lábios. Frédéric empenhava-se a ver se reconhecia aqueles olhos, mas em vão. Mas já o sonho tomara conta dele; parecia-lhe estar atrelado ao lado de Arnoux, aos varais de um fiacre, e que a Marechala, escarranchada nas suas costas, lhe espetava nos rins as esporas de ouro.
II
Frédéric descobriu, na esquina da Rua Rumfort1, um palacete, e comprou, de uma só vez, o cupê, o cavalo, os móveis e duas jardineiras, adquiridas na loja de Arnoux, destinadas a ladear a porta do salão. Atrás desse compartimento ficavam um quarto e um gabinete. Lembrou-se de instalar aí Deslauriers. Mas “ela”, a sua futura amante, como aceitaria isso? A presença de um amigo seria um empecilho. Mandou deitar abaixo o tabique, para aumentar o salão, — e fez do gabinete sala de fumar.
Comprou os poetas de que gostava, livros de viagens, atlas, dicionários, porque tinha planos de trabalho sem conta; apressava os operários, corria os estabelecimentos, e, na impaciência de gozar as coisas, comprava tudo sem discutir preços.
Pelas faturas dos fornecedores, Frédéric deu conta de que em breve teria que pagar uns quarenta mil francos, não contando com os direitos sucessórios, os quais iam além de trinta e sete mil francos; como a sua fortuna era em imóveis, escreveu ao notário do Havre dando ordem para vender uma parte deles, para se libertar das dívidas e ficar com algum dinheiro à sua disposição. Em seguida, querendo conhecer finalmente essa coisa vaga, ofuscante e indefinível que se chama “a sociedade”, mandou um bilhete aos Dambreuse perguntando se o podiam receber. A senhora respondeu que esperava a visita dele no dia seguinte.
Era dia de recepção. Carruagens estacionavam no pátio. Dois lacaios acorreram, e um terceiro, no alto das escadas, tomou-lhe a dianteira.
Atravessou um vestíbulo, depois uma sala, depois um grande salão de altas janelas, cuja lareira monumental suportava um relógio em forma de esfera e dois monstruosos vasos de porcelana, dos quais se projetavam dois feixes de arandelas. Nas paredes viam-se quadros no estilo do Spagnoletto; pesados reposteiros caíam majestosamente; e as poltronas, os consolos, as mesas, todo o mobiliário, estilo Império, tinha o seu quê de imponente e diplomático. Frédéric sorria de prazer, malgrado seu.
Chegou finalmente a um salão oval, forrado de pau rosa, atulhado de móveis delicados, e que era iluminado apenas por uma janela dando sobre um jardim. A Senhora Dambreuse estava sentada junto da lareira, e uma dúzia de pessoas fazia círculo à sua volta. Com uma palavra amável, fez-lhe sinal para que se sentasse, mas não dando nenhuma mostra de surpresa por não o ver há tanto tempo.
Quando Frédéric entrou, elogiava-se a eloquência do Padre Coeur. Em seguida, deplorou-se a imoralidade dos criados, a propósito de um roubo cometido por um lacaio; e o falatório continuou. A velha dama de Sommery tinha um resfriado, a Senhorita de Turvisot ia casar, os Montcharron só voltariam no fim de janeiro, assim como os Bretancourt, agora as pessoas demoravam-se mais no campo; e a mesquinhez da conversa era como que realçada pelo luxo do ambiente; mas as coisas que se diziam eram menos estúpidas do que a maneira de conversar, sem finalidade, sem nexo e sem animação. E todavia, achavam-se ali homens versados na vida, um antigo ministro, o cura de uma grande paróquia, dois ou três altos funcionários do Governo; mas não saíam dos mais batidos lugares-comuns. Alguns lembravam mulheres idosas e cansadas, outros tinham ar de negociantes de cavalos; e alguns velhos acompanhavam as mulheres, que poderiam passar por suas netas.
A Senhora Dambreuse recebia-os a todos gentilmente. Quando se falava de um doente, franzia dolorosamente as sobrancelhas, e tomava um ar alegre quando se falava em bailes e reuniões. Não tardaria a ver-se privada destes, porque ia tirar do colégio uma sobrinha do marido, uma órfã. A sua dedicação foi muito louvada; era um procedimento de verdadeira mãe de família.
Frédéric observava-a. A pele mate do rosto parecia esticada, e era de uma frescura sem brilho, como a de um fruto conservado. Mas o cabelo, com cachos à inglesa, era mais fino do que seda, os olhos de um azul brilhante, todos os seus gestos delicados. Sentada ao fundo, no sofá, acariciava a franja vermelha de um biombo japonês, para exibir as mãos, que eram compridas e finas, um pouco magras, de dedos arrebitados. Tinha um vestido de chamalote cinza, fechado no pescoço, como uma puritana.
Frédéric perguntou-lhe se não iria naquele ano à Fortelle. A Senhora Dambreuse não sabia. Ele compreendia isso muito bem, aliás: devia achar Nogent aborrecido. O número de visitantes crescia. Era um contínuo roçagar de vestidos sobre os tapetes; as senhoras, pousadas na extremidade das cadeiras, soltavam risinhos, articulavam duas ou três palavras, e ao cabo de cinco minutos saíam com as filhas atrás. Não tardou que se tornasse impossível seguir a conversa, e Frédéric dispunha-se a sair quando a Senhora Dambreuse lhe disse:
— Todas as quartas-feiras, não é assim, Senhor Moreau? — compensando com essa única frase a indiferença que demonstrara para com ele.
Frédéric estava contente. Não obstante, respirou profundamente, ao chegar à rua; e, sentindo necessidade de um ambiente menos artificial, recordou-se que estava devendo uma visita à Marechala.
A porta do vestíbulo estava aberta. Dois cachorrinhos javaneses acorreram. Ouvia-se uma voz:
— Delphine! Delphine! É você, Félix?
Frédéric ficara imóvel; os dois cachorrinhos continuavam a latir. Finalmente Rosanette surgiu, envolta numa espécie de penteador de seda branca, guarnecido de rendas, sem meias, calçando chinelas.
— Ah! Perdão, meu caro senhor! Julguei que fosse o cabeleireiro! Um minuto! Volto já!
E ele ficou só, na sala de jantar.
As persianas estavam descidas. Frédéric percorreu o aposento com os olhos, recordando a desordem da outra noite, quando avistou ao centro, em cima da mesa, um chapéu de homem, um chapéu mole amassado, ensebado, imundo. De quem seria tal chapéu? Mostrando impudicamente a copa descosida, parecia dizer: “Que me importa, afinal! Sou eu quem manda!”.
A Marechala reapareceu. Agarrou no chapéu, abriu a porta da estufa para onde o atirou, fechou a porta (outras portas, ao mesmo tempo, se abriam e fechavam), e, tendo feito passar Frédéric pela cozinha, introduziu-o no quarto de vestir.
Via-se imediatamente que era aquele o lugar mais frequentado da casa, como que o seu verdadeiro coração. Uma chita de grandes folhagens forrava as paredes, as poltronas e um vasto divã de molas; sobre uma mesa de mármore branco pousavam duas grandes bacias de louça azul; acima, prateleiras de cristal ostentavam frascos, escovas, pentes, cosméticos, caixinhas de pó; o lume refletia-se num alto toucador; um lençol pendia de uma banheira, e havia no ar um perfume de amêndoa e benjoim.
— Não repare na desordem! Hoje, janto fora.
E, ao voltar as costas, quase esmagou um dos cachorrinhos.
Frédéric achou-os encantadores. Ela ergueu-os no ar, e, aproximando de Frédéric os focinhos pretos:
— Vamos, façam uma cara bonita para este senhor!
Um homem, de sobrecasaca suja com gola de peles, entrou de súbito.
— Félix, meu caro — disse ela, — domingo que vem, sem falta, terá aquele negócio.
O homem começou a penteá-la. Ia-lhe dando notícias das amigas: a Senhora de Rochegume, a Senhora de Saint-Florentin, a Senhora Lombard, todas eram nobres, como no palácio Dambreuse. Depois falou dos teatros; nessa noite davam no Ambigu uma récita extraordinária.
— Vai?
— Não! Hoje fico em casa.
Delphine surgiu. Rosanette ralhou com ela, por ter saído sem licença. A outra jurou que “acabava de voltar do mercado”.
— Bem, traga-me o livro das contas! Você dá licença, não é verdade?
E, lendo o caderno a meia-voz, Rosanette fazia observações sobre cada verba. A soma estava errada.
— Devolva-me quatro sous!
Delphine entregou-lhos, e, depois de a ter mandado embora:
— Ah! Virgem Santa! O que se sofre com essa gente!
Frédéric sentiu-se chocado com essa recriminação. Fazia-lhe lembrar por demais as outras, estabelecendo entre as duas casas uma espécie de igualdade pouco agradável.
Delphine voltou, e aproximou-se da Marechala para lhe dizer qualquer coisa ao ouvido.
— Ah! Não! Não a quero ver!
Delphine surgiu novamente.
— Minha senhora, ela insiste.
— Ah, que maçada! Corra com ela!
No mesmo instante, uma senhora idosa, vestida de preto, empurrou a porta. Frédéric não ouviu nada, não viu nada: Rosanette precipitara-se para o quarto, ao encontro dela.
Quando voltou, tinha as maçãs do rosto vermelhas, e sentou-se numa das poltronas, silenciosa. Uma lágrima correu-lhe pela face; depois, voltando-se para o jovem, suavemente:
— Qual é o seu primeiro nome?
— Frédéric.
— Ah! Federico! Não se importa que eu lhe chame assim, à espanhola?
E olhava para ele com uma expressão carinhosa, quase amorosa. De repente, soltou um grito de alegria ao ver a Srta. Vatnaz.
A artista não tinha tempo a perder; às seis horas em ponto tinha que presidir à sua mesa-redonda; estava ofegante, não podia mais. Começou por tirar da bolsa uma corrente de relógio com um papel, e depois uma série de objetos que tinha adquirido.
— Fica sabendo que, na Rua Joubert, há luvas de camurça a trinta e seis sous, magníficas! O teu tintureiro demora ainda oito dias. Quanto às rendas, disse que voltava lá. Paguei ao Bugneaux. É tudo, se não me engano? Deves-me cento e oitenta e cinco francos!
Rosanette tirou dez napoleões de uma gaveta. Nenhuma delas tinha troco, que Frédéric ofereceu.
— Depois os restituo — disse a Vatnaz, metendo os quinze francos na bolsa. — Mas você é muito mau. Não gosto mais de você, outro dia não dançou comigo uma única vez! Ah! Minha querida, descobri, numa loja do cais Voltaire, uns colibris empalhados num caixilho, que são uns amores. No teu lugar, comprava. Olha! Que tal achas isto?
E exibia um retalho velho de seda cor-de-rosa, que comprara no Temple, a fim de fazer um gibão medieval para Delmar.
— Ele esteve aqui hoje, não é verdade?
— Não!
— É estranho!
E passado um minuto:
— Aonde vais esta noite?
— À casa da Alphonsine — disse Rosanette (o que era a terceira versão sobre a maneira como tencionava passar a noite).
A Senhorita Vatnaz prosseguiu:
— E quanto ao Velho da Montanha2, que há de novo?
Mas, piscando-lhe rapidamente o olho, a Marechala impôs-lhe silêncio; e acompanhou Frédéric até o vestíbulo, para saber se ele contava ver Arnoux dentro em breve.
— Diga-lhe para aparecer; mas não diante da mulher, é claro!
No alto da escada, havia um guarda-chuva encostado à parede, ao lado de um par de tamancos.
— Olha as galochas da Vatnaz — disse Rosanette. — Que pés, hein? É forte, a minha amiguinha!
E num tom melodramático, carregando muito nos rr:
— Não se fiarrr nela!
Frédéric, encorajado pela intimidade que ela lhe dava, quis beijá-la no pescoço. Rosanette disse friamente:
— Pois não! Não custa nada!
Frédéric, ao sair dali, sentia-se leve, na certeza de que não tardaria a fazer da Marechala sua amante. Esse desejo fez nascer outro; e, apesar de um certo rancor que ainda sentia contra ela, teve vontade de ver a Senhora Arnoux.
Aliás, devia ir lá, por causa do recado de Rosanette.
“Mas agora”, pensou (estavam a dar seis horas), “o Arnoux está certamente em casa”.
E adiou a visita para o dia seguinte.
Ela estava na mesma atitude que no primeiro dia, cosendo uma camisa de criança. O filho, aos seus pés, brincava com bichinhos de madeira; Marthe3, um pouco afastada, escrevia.
Começou por fazer elogios às crianças. Ela respondia sem o menor exagero de cegueira materna.
O quarto tinha um aspecto tranquilo. Um sol radioso entrava pelas vidraças, os cantos dos móveis reluziam, e, como a Senhora Arnoux estava sentada junto da janela, um raio de sol, incidindo sobre os cachos da nuca, punha-lhe reflexos de ouro na pele cor de âmbar. Então, Frédéric disse:
— Como esta menina cresceu de três anos para cá! Lembra-se, menina, uma vez que dormiu no meu colo, quando vínhamos na carruagem? — Marthe não se recordava. — Uma noite, quando voltávamos de Saint-Cloud?
A Senhora Arnoux teve um olhar singularmente triste. Seria para que ele não fizesse nenhuma alusão à recordação que tinham em comum?
Aqueles belos olhos negros, cuja esclerótica brilhava, moviam-se docemente sob as pálpebras um pouco pesadas, e havia na profundidade das suas pupilas uma infinita bondade. Frédéric sentiu-se dominado por um amor mais forte que nunca, imenso: era uma contemplação que o deixava entorpecido, mas reagiu. Como havia de se valorizar aos olhos dela? E, depois de muito procurar, Frédéric não encontrou coisa melhor do que o dinheiro. Pôs-se a falar do tempo, que estava menos frio do que no Havre.
— Esteve lá?
— Sim, por causa de um assunto de família... uma herança.
— Ah! Como estou contente! — respondeu ela, com uma expressão de prazer tão verdadeira que ele se emocionou como se fosse um grande favor.
Depois ela perguntou-lhe o que pensava fazer, um homem precisava ter qualquer ocupação. Frédéric recordou-se da sua mentira, e disse ter esperança de chegar ao Conselho de Estado, graças ao Senhor Dambreuse, o deputado.
— A senhora conhece-o, talvez?
— Apenas de nome.
E acrescentou, em voz baixa:
— Ele levou-o ao baile, no outro dia, não é verdade? — Frédéric não respondeu.
— Era o que eu queria saber, obrigada.
Em seguida, ela fez-lhe duas ou três perguntas discretas sobre a sua família e a sua província. Era muito gentil da parte dele ter ficado lá tanto tempo sem os esquecer.
— Mas... como podia eu? — retorquiu Frédéric. — Tinha alguma dúvida a esse respeito?
A Senhora Arnoux levantou-se.
— Estou certa de que nos dedica uma boa e sólida afeição. Adeus... até à vista!
E estendeu-lhe a mão de maneira franca e viril. Não era um compromisso, uma promessa? Frédéric sentia-se cheio de alegria de viver; dominava-se, para não cantar, precisava expandir-se, fazer gestos generosos, dar esmolas. Olhou à sua volta para ver se havia alguém que pudesse socorrer. Mas nenhum mendigo passava; e essa veleidade de dedicação desvaneceu-se, porque não era homem de ir buscar longe as ocasiões.
Depois lembrou-se dos amigos. O primeiro em que pensou foi Hussonnet, depois Pellerin. A posição ínfima de Dussardier exigia naturalmente atenções; quanto a Cisy, era-lhe grato poder mostrar-lhe a sua prosperidade. Escreveu portanto aos quatro, para virem inaugurar o apartamento, no domingo seguinte, às onze em ponto, e encarregou Deslauriers de trazer Sénécal.
O explicador fora despedido do seu terceiro colégio por ter sido contrário à distribuição de prêmios, uso que tinha como funesto à igualdade. Trabalhava agora com um construtor de máquinas, e havia seis meses que deixara de morar com Deslauriers.
A separação não fora nada penosa. Nos últimos tempos, Sénécal recebia homens de blusão, todos patriotas, todos trabalhadores, todos excelentes pessoas, mas cuja companhia parecia entediar o advogado. Aliás, certas ideias do amigo, excelentes como armas de guerra, desagradavam-lhe. Não dizia nada por ambição, empenhado em poupá-lo para o poder dominar, porque esperava impacientemente uma grande reviravolta que lhe permitisse arranjar um bom lugar.
As convicções de Sénécal eram mais desinteressadas. Todas as noites, acabado o trabalho, voltava para a mansarda, e procurava nos livros a justificação dos seus sonhos. Anotara o Contrato Social. Não largava a Revue lndépendante4. Conhecia Mably, Morelly, Fourier, Saint-Simon, Comte, Cabet, Louis Blanc, a carrada dos escritores socialistas, aqueles que reclamam para a humanidade o nível das casernas, aqueles que quereriam diverti-la num lupanar ou dobrá-la sobre um balcão5; e, da mistura de tudo isso fizera um ideal de democracia virtuosa com o duplo aspecto de fazenda e fábrica de fiação, uma espécie de Lacedemônia americana em que o indivíduo existiria apenas para servir a Sociedade, mais onipotente, absoluta, infalível e divina do que os Grandes Lamas e os Nabucodonosores. Não tinha a menor dúvida sobre o próximo advento dessa concepção; e encarniçava-se contra tudo o que lhe julgava adverso, com raciocínios de geômetra e uma boa-fé de inquisidor. Os títulos nobiliárquicos, as comendas, os penachos, sobretudo as librés, e mesmo as reputações demasiado apregoadas, escandalizavam-no, — e tanto os estudos como os sofrimentos estimulavam nele, de dia para dia, o ódio essencial contra qualquer distinção ou superioridade.
— Que devo eu a esse sujeito, para lhe fazer amabilidades? Se ele quisesse dar-se comigo, podia aparecer!
Mas Deslauriers conseguiu arrastá-lo.
Encontraram o amigo no quarto de dormir. Estores e cortinados duplos, espelhos de Veneza, nada faltava; Frédéric, envergando um casaco de veludo, estava reclinado num divã, fumando cigarros turcos.
Sénécal franziu as sobrancelhas, como os devotos numa reunião mundana. Deslauriers apreciou tudo num relance de olhos, e disse, fazendo uma grande reverência:
— Monsenhor! Apresento-vos os meus respeitos!
Dussardier atirou-se-lhe ao pescoço.
— Então agora é rico? Ah, tanto melhor, com os diabos, tanto melhor!
Cisy apareceu de crepe no chapéu. Desde que a avó morrera dispunha de considerável fortuna, e preocupava-o menos distrair-se do que distinguir-se dos outros, não ser como toda a gente, em suma, “ter estilo”. Era o termo que usava.
Contudo, era já meio-dia, e todos abriam a boca; Frédéric esperava alguém. Ao ouvir o nome de Arnoux, Pelerin fez uma careta. Considerava-o um renegado, desde que ele abandonara as artes.
— E se passássemos sem ele? Que dizem vocês?
Todos aprovaram.
Um criado de polainas compridas abriu a porta, e deparou-se-lhes a sala de jantar, com o seu alto plinto de carvalho, com dourados, e os dois aparadores carregados de louça. As garrafas de vinho estavam sobre o calorífero, para aquecer; as lâminas das facas brilhavam junto das ostras. Os copos de vidro muito fino, de uma tonalidade leitosa, tinham como que uma doçura convidativa, e a mesa desaparecia sob a profusão da caça, das frutas, de coisas extraordinárias.
Essas atenções passaram inteiramente despercebidas a Sénécal, o qual começou por reclamar pão comum (o mais duro possível), e, a propósito disso, falou nos crimes de Buzançais e na crise dos gêneros alimentícios6.
Nada disso teria acontecido se a agricultura fosse mais bem protegida, e se não dominasse em todos os setores a concorrência, a anarquia, a deplorável máxima do laissez faire, laissezpasser! Era assim que se constituía o feudalismo do dinheiro, pior que o outro! Mas cautela! O povo acabaria por se cansar, e poderia fazer pagar caro os seus sofrimentos aos detentores do capital, quer com sangrentas proscrições, quer com a pilhagem dos palácios.
Frédéric entreviu, num relance, uma multidão de braços nus invadindo o grande salão da Senhora Dambreuse e quebrando os espelhos com a ponta dos piques.
Sénécal prosseguia: o operário, dada a insuficiência dos salários, era mais infeliz do que o ilota, o negro ou o pária, sobretudo quando tem filhos.
— Deveria ele asfixiá-los, como lho aconselha não sei que doutor inglês, discípulo de Malthus?
E, voltando-se para Cisy:
— Teremos que acabar por seguir os conselhos do infame Malthus?
Cisy, que ignorava a infâmia, e até a existência de Malthus, respondeu que, todavia, muita miséria era socorrida, e que as classes superiores...
— Ah! As classes superiores! — disse em tom de chacota o socialista. — Em primeiro lugar, não há classes superiores; só o coração dá superioridade! Não queremos esmolas, está ouvindo? Mas sim a igualdade, a justa repartição dos produtos.
O que ele reclamava era que o operário pudesse tornar-se capitalista, tal como o soldado, coronel. As jurandas, ao menos, limitando o número dos aprendizes, impediam o excesso de trabalhadores, e o sentimento de fraternidade era estimulado pelas festas, pelos estandartes.
Hussonnet, como poeta, deplorava que os estandartes tivessem acabado; Pellerin também, predileção que lhe nascera no café Dagneux, ouvindo conversarem os falansterianos7. E declarou que Fourier era um grande homem.
— Ora, ora! — disse Deslauriers. — Um velho tonto, que vê nas derrocadas dos impérios um efeito da vingança divina! É como esse tal Saint-Simon com a sua igreja, e o seu ódio à Revolução Francesa: uma porção de intrujões que nos queriam dar um novo catolicismo!
O Senhor de Cisy, para se esclarecer, sem dúvida, ou dar uma boa ideia de si, disse com voz untuosa:
Então esses dois sábios não são da opinião de Voltaire?
— Ah, pode ficar com esse! — retorquiu Sénécal.
— Como? mas eu pensava...
— Não! Ele não gostava do povo!
Depois a conversa abordou os acontecimentos contemporâneos: os casamentos espanhóis8, as dilapidações de Rochefort9, o novo capítulo de Saint-Denis10, o que provocaria um aumento de impostos. Segundo Sénécal, já era hastante o que se pagava, todavia!
— E para quê, meu Deus? Para erguer um palácio aos macacos do Museu, para fazer paradas de brilhantes Estados-Maiores nas nossas praças, ou para manter, entre a criadagem do Castelo, uma etiqueta gótica!
— Li na Mode — disse Cisy — que no dia de S. Fernando, no baile das Tulherias, estavam todos fantasiados de chicards11.
— Que coisa ridícula! — disse o socialista, encolhendo os ombros com repugnância.
— E o museu de Versalhes! — exclamou Pellerin. — Imaginem! Esses imbecis encurtaram um quadro de Delacroix e aumentaram um de Gros12. No Louvre, restauraram, rasparam e mexeram de tal maneira em todos os quadros que, daqui a dez anos, talvez não reste nenhum! Quanto aos erros do catálogo, um alemão escreveu um livro inteiro sobre o assunto. Palavra que os estrangeiros caçoam de nós!
— Sim, somos o ridículo da Europa — disse Sénécal.
— É porque a Arte se enfeudou à Coroa.
— Enquanto não tivermos o sufrágio universal...
— Um momento! — interrompeu o artista que, recusado havia vinte anos em todos os salões, estava furioso contra o Poder. — Deixem-nos em paz. Eu nada peço! Só acho que as Câmaras deviam estatuir sobre os interesses da Arte. Era necessário criar uma cadeira de Estética, cujo professor, ao mesmo tempo artista e filósofo, conseguisse, espero, atrair a multidão. Era bom que você, Hussonnet, abordasse o assunto no seu jornal.
— Mas onde está a liberdade dos jornais? E a nossa? — disse Deslauriers com veemência. — Quando penso que são necessárias vinte e oito formalidades para pôr um barquinho num rio, dá-me vontade de ir viver no meio dos antropófagos! O Governo devora-nos! Tudo é dele, a filosofia, o direito, as artes, o ar; e a França arqueja, enervada, debaixo da bota do gendarme e da sotaina da padralhada!
O futuro Mirabeau aliviava assim a bílis. Finalmente, empunhou o copo, levantou-se, e, de mão à cintura e olhar esbraseado, disse:
— Bebo13 à destruição completa da ordem atual, isto é, de tudo aquilo que se chama Privilégio, Monopólio, Direção, Hierarquia, Autoridade, Estado! — e, elevando a voz: — Que quereria estilhaçar como isto! — e lançou de encontro à mesa o belo copo de pé, que se desfez em mil pedaços.
Todos aplaudiram, sobretudo Dussardier.
O espetáculo das injustiças fazia-lhe palpitar o coração. Preocupava-se com Barbès;14 era daqueles que se atiram para debaixo das carruagens, a fim de socorrer os cavalos caídos. A sua erudição limitava-se a duas obras, uma que se chamava Crimes des rois, e a outra, Mystères du Vatican. Escutara o advogado de boca aberta, em êxtase. Por fim, não se conteve:
— O que eu não perdoo a Luís Filipe é ter abandonado os poloneses!15
— Um momento! — disse Hussonnet. — Primeiro, a Polônia não existe: é uma invenção de Lafayette! Os poloneses, em geral, são todos do bairro de Saint-Marceau, os autênticos morreram todos afogados com Poniatowski. — Em suma, “não caía mais nessa”, estava “farto dessas histórias!”. Era como a serpente do mar, a revogação do Edito de Nantes e “essa velha lorota da noite de São Bartolomeu”!
Sénécal, sem defender os poloneses, objetou às últimas palavras do homem de letras. Os papas tinham sido caluniados16; afinal, eles defendiam o povo, e chamou à Liga “aurora da Democracia, um grande movimento igualitário contra o individualismo dos protestantes”.
Frédéric estava um pouco surpreendido com aquelas ideias. E elas desagradavam certamente a Cisy, que orientou a conversa para os quadros vivos do Gymnase, que atraíam então muita gente.
Sénécal mostrou-se preocupado com tal fato. Esses espetáculos corrompiam as filhas dos proletários; além disso, viam-nas ostentar um luxo insolente. Por isso aprovava os estudantes bávaros, que tinham insultado Lola Montès17. A exemplo de Rousseau, dava mais importância à mulher de um carvoeiro do que à amante de um rei.
— Que disparate! — replicou majestosamente Hussonnet. E tomou a defesa daquelas criaturas, por consideração para com Rosanette. Em seguida, falando do baile e da fantasia de Arnoux:
— Ao que se diz, não anda ele muito bem de finanças — retorquiu Pellerin.
O negociante de quadros acabava de ter um processo por causa dos seus terrenos de Belleville, e estava agora metido numa companhia de caolino da Bretanha, com outros vigaristas da sua espécie.
Dussardier sabia mais coisas; porque o seu patrão, o Senhor Moussinot, fora pedir informações de Arnoux ao banqueiro Oscar Lefebvre, e este respondera que o considerava pouco seguro, tendo conhecimento de algumas reformas de letras que ele fizera.
A sobremesa terminara; passaram ao salão, forrado, como o da Marechala, de tecido adamascado, em estilo Luís XVI.
Pellerin censurou Frédéric por não ter preferido o estilo neogrego; Sénécal riscou fósforos na parede; Deslauriers não fez observações. Reservou-as para a biblioteca, que achou própria de uma menina. Havia ali a maior parte dos literatos contemporâneos. Não foi possível falar dos livros deles, porque Hussonnet começava imediatamente a contar anedotas sobre as suas pessoas, criticando-lhes o físico, os costumes, a maneira de vestir, exaltando os espíritos de décima quinta ordem e denegrindo os de primeira, e deplorando, evidentemente, a decadência moderna. Por si só, certa cantiga da aldeia continha mais poesia do que todos os líricos do século XIX; tinha-se exagerado o valor de Balzac, Byron não prestava, Victor Hugo não entendia nada de teatro etc.
— Por que não tem os volumes dos nossos poetas-operários?
E o Senhor de Cisy, que se ocupava de literatura, estranhou não ver sobre a mesa de trabalho de Frédéric “algumas destas modernas fisiologias, a fisiologia do fumante, a do pescador à linha, a do cobrador de impostos”.
Acabaram por irritá-lo tanto que teve vontade de os pôr fora aos empurrões. “Mas estou ficando estúpido!” E, chamando Dussardier à parte, perguntou-lhe se podia ser-lhe útil em alguma coisa.
O excelente jovem ficou comovido. Com o seu emprego de caixa, não precisava de nada.
Depois, Frédéric levou Deslauriers ao quarto e disse, tirando dois mil francos da secretária:
— Aqui tens, meu velho! É o saldo das minhas velhas dívidas.
— Mas, e o jornal? — perguntou o advogado. — Falei ao Hussonnet, bem sabes.
E, como Frédéric dissesse estar naquele momento “com certas dificuldades”, o outro teve um sorriso maldoso.
Depois dos licores, bebeu-se cerveja; depois da cerveja, grogues; e acenderam novamente os cachimbos. Por fim, às cinco da tarde, foram todos embora; iam lado a lado, sem falar, quando Dussardier se pôs a dizer que Frédéric os recebera muito bem. Todos concordaram.
Hussonnet achava que o almoço fora um pouco pesado. Sénécal criticou a futilidade do interior, com o que Cisy estava completamente de acordo, achando que não tinha “estilo” nenhum.
— Eu acho — disse Pellerin — que ele bem podia ter-me encomendado um quadro.
Deslauriers não dizia palavra, e apalpava no bolso as notas que recebera.
Frédéric ficara só. Pensava nos amigos, e sentia entre si e eles como que um grande fosso escuro os separava. Estendera-lhes a mão, contudo, e eles não lhe tinham correspondido à franqueza do coração.
Recordou-se do que Pellerin e Dussardier tinham dito de Arnoux. Era com certeza uma invenção, uma calúnia! Mas por quê? E imaginou a Senhora Arnoux arruinada, em lágrimas, vendendo os móveis. Essa ideia atormentou-o durante toda a noite; e no dia seguinte apresentou-se em casa dela.
Não sabendo de que maneira poderia comunicar-lhe o que sabia, perguntou-lhe, em tom de conversa, se Arnoux ainda tinha os terrenos de Belleville.
— Sim, ainda os tem.
— Ele agora faz parte de uma companhia para explorar o caolino da Bretanha, creio eu?
— É certo.
— E a fábrica vai bem, não é verdade?
— Mas... creio que sim.
E perante a hesitação dele:
— Mas o que tem o senhor? Está me assustando!
Frédéric contou-lhe a história das letras reformadas. Ela deixou pender a cabeça, e disse:
— Já o suspeitava!
Com efeito, Arnoux, para fazer uma boa especulação, recusara-se a vender os terrenos, fizera grandes empréstimos sobre eles e, não encontrando compradores, esperara restabelecer a situação instalando uma fábrica. Mas as despesas tinham ido além do orçamento. Era tudo quanto ela sabia; ele fugia ao assunto, e afirmava sempre que “ia tudo muito bem”.
Frédéric procurou tranquilizá-la. Talvez fossem dificuldades passageiras. Além disso, viria dizer-lhe qualquer coisa que soubesse.
— Oh! Fará isso, não é verdade? — disse ela, juntando as mãos, num encantador gesto de súplica.
Assim, podia ser-lhe útil. Eis que entrava na existência dela, no seu coração!
Arnoux entrou.
— Ah, como é gentil da sua parte, vir-me buscar para jantar!
Frédéric não soube que responder.
Arnoux falou de coisas sem importância, e depois avisou a mulher de que voltaria muito tarde, porque tinha um encontro com o Senhor Oudry.
— Em casa dele?
— Pois claro, em casa dele.
Enquanto desciam as escadas, confessou que, como a Marechala estava livre, combinara uma noitada com ela no Moulin-Rouge; e, como precisava sempre ter com quem expandir-se, fez com que Frédéric o conduzisse até a porta.
Em vez de entrar, ficou passeando na calçada, observando as janelas do segundo andar. De súbito, as cortinas foram afastadas.
— Ah! Bravo! O tio Oudry já foi embora. Boa-noite!
Então era Oudry quem a mantinha? Frédéric já não sabia que pensar.
Desse dia em diante, Arnoux mostrou-se ainda mais cordial do que antes; convidava-o para jantar em casa da amante, e dentro em pouco Frédéric era assíduo frequentador de ambas as casas.
A de Rosanette divertia-o. Era costume reunirem-se lá, depois do clube ou do espetáculo; tomava-se uma xícara de chá, jogava-se uma partida de loto; aos domingos, brincavam de mímica; Rosanette, mais turbulenta do que todos, distinguia-se por invenções cômicas, como por exemplo correr de gatas, e enterrar um barrete de algodão na cabeça. Para ir à janela, olhar quem passava, punha um chapéu de couro; fumava cachimbo de tubo comprido, e cantava árias tirolesas. À tarde, como não tinha que fazer, recortava flores num pedaço de chita, colava-as ela própria nas vidraças, punha pintura no focinho dos cães, queimava pastilhas aromáticas, ou deitava as cartas. Incapaz de resistir a um capricho, entusiasmava-se por um bibelô que tinha visto, perdia o sono por causa dele, corria a comprá-lo, trocava-o por outro; estragava fazendas, perdia joias, desperdiçava dinheiro, e era capaz de vender a camisa para comprar um camarote de boca. Muitas vezes, pedia a Frédéric que lhe explicasse uma palavra que tinha lido, mas não prestava atenção à resposta, porque saltava rapidamente de uma ideia para outra, e multiplicava as perguntas. Depois de repentes de alegria, tinha cóleras infantis; ou então ficava a sonhar, sentada no chão, diante do lume, de cabeça pendida e abraçando os joelhos, mais inerte do que uma cobra entorpecida. Sem se preocupar, vestia-se diante dele, esticava lentamente as meias de seda, depois lavava o rosto com muita água, dobrando o busto para trás, como uma náiade arrepiada; e o riso dos seus dentes brancos, o fulgor dos seus olhos, a sua beleza, a sua alegria deixavam Frédéric extasiado e fustigavam-lhe os nervos.
Ia encontrar quase sempre a Senhora Arnoux ensinando o garoto a ler, ou atrás da cadeira de Marthe, que tocava escalas no piano; quando ela estava fazendo qualquer trabalho de costura, era uma grande felicidade para ele apanhar, de vez em quando, a tesoura. Todos os movimentos dela tinham uma tranquila majestade; as mãos delicadas pareciam feitas para espalhar esmolas, para enxugar lágrimas; e a voz, que era naturalmente um pouco surda, tinha inflexões cariciosas, leves como a brisa.
Ela não mostrava entusiasmo pela literatura, mas tinha expressões simples e penetrantes cujo espírito encantava. Gostava de viagens, do rumor do vento nos bosques, e de passear sem chapéu, à chuva. Frédéric escutava deliciado essas coisas, em que lhe parecia ver um princípio de intimidade.
O convívio com estas duas mulheres fazia como duas melodias na sua vida: uma, estouvada, exaltada, divertida, a outra, grave e quase religiosa; e, vibrando simultaneamente, aumentavam sempre e confundiam-se aos poucos; porque, se acontecia a Senhora Arnoux tocá-lo com um dedo que fosse, a imagem da outra logo se apresentava ao seu desejo, porque ele tinha, desse lado, uma esperança menos longínqua; e, na companhia de Rosanette, quando lhe acontecia sentir o coração perturbado, lembrava-se imediatamente do seu grande amor.
Essa confusão era provocada por semelhanças entre as duas casas. Um dos baús que se viam outrora no Bulevar Montmartre adornava agora a sala de jantar de Rosanette, o outro estava no salão da Senhora Arnoux. Nas duas casas o serviço de mesa era igual, e até se encontrava o mesmo barrete de veludo atirado nas poltronas; depois, uma infinidade de pequenos presentes, ventarolas, caixinhas, leques, iam e vinham da casa da amante para a da esposa, porque, sem o menor escrúpulo, Arnoux tirava muitas vezes a uma o que lhe tinha dado, para presentear a outra.
A Marechala ria com Frédéric desta falta de modos. Num domingo, depois do jantar, levou-o atrás da porta, para lhe mostrar, no bolso do paletó de Arnoux, um pacotinho de doces que ele acabava de escamotear da mesa, sem dúvida a fim de presentear a família. O Senhor Arnoux gostava de fazer brincadeiras que roçavam pela torpeza. Para ele, era um dever defraudar o fisco: nunca pagava a entrada nos espetáculos, com um bilhete de segunda ordem pretendia sempre meter-se na primeira, e contava como excelente farsa o seu costume, nos banhos públicos, de meter na caixa do empregado um botão, em vez de uma moeda de dez sous, o que não impedia a Marechala de o amar.
Um dia, contudo, falando dele, disse:
— Ah, estou farta de aturá-lo! Enfim, paciência, arranjarei outro!
Frédéric supunha que “o outro” já estava arranjado, e se chamava Oudry.
— E então — disse Rosanette — que tem isso?
E depois, com lágrimas na voz:
— Eu peço-lhe bem pouca coisa, afinal, e ele não quer, aquele estúpido! Não quer! Quanto às promessas que faz, oh! Isso é outra coisa.
Ele chegara a prometer-lhe a quarta parte dos lucros das famosas minas de caolino; mas não aparecia lucro nenhum, nem tampouco o xale de caxemira que lhe estava prometendo havia seis meses.
Frédéric pensou, imediatamente, em lho oferecer. Mas Arnoux podia tomar esse gesto como uma lição, e zangar-se.
Contudo, ele era bom, e a própria mulher o dizia. Mas como era doido! Em vez de levar todos os dias os amigos para jantar em casa, agora convidava-os para o restaurante. Comprava coisas completamente inúteis, como correntes de ouro, relógios, utensílios caseiros. A Senhora Arnoux mostrou até a Frédéric, no corredor, uma enorme provisão de botijas, escalfetas e samovares. Finalmente, um dia, ela confessou a sua inquietação: Arnoux pedira-lhe que assinasse uma letra, à ordem do Senhor Dambreuse.
Todavia, Frédéric não desistira dos seus projetos literários, por uma espécie de ponto de honra consigo mesmo. Queria escrever uma História da Estética, ambição que tinha origem nas suas conversas com Pellerin, e em seguida pôr em forma dramática diversas épocas da Revolução Francesa e compor uma grande comédia, sob a influência indireta de Deslauriers e de Hussonnet. No meio do trabalho, muitas vezes o rosto de uma ou de outra surgia diante dele; lutava contra o desejo de ir vê-la, e não resistia por muito tempo; e achava-se mais triste quando voltava da casa da Senhora Arnoux.
Uma manhã em que ruminava a sua melancolia ao canto do lume, Deslauriers entrou-lhe pela porta adentro. Os discursos incendiários de Sénécal tinham assustado o patrão e, uma vez mais, ele estava sem recursos.
— E que queres tu que eu faça? — indagou Frédéric.
— Nada! Não tens dinheiro, bem sei. Mas não lhe poderias arranjar um lugar, por intermédio do Senhor Dambreuse ou de Arnoux?
Este devia ter precisão de engenheiros para a fábrica. Frédéric teve uma inspiração: Sénécal poderia avisá-lo das ausências do marido, levar cartas, ajudá-lo nas mil oportunidades que surgissem. De homem para homem, podem sempre prestar-se tais serviços. Aliás, arranjaria sempre maneira de o utilizar, sem ele dar conta. O acaso oferecia-lhe um auxiliar, era de bom augúrio, não devia perder a oportunidade; e, fingindo indiferença, respondeu que talvez se pudesse arranjar alguma coisa, que ia tratar do assunto.
E tratou imediatamente. Arnoux tinha muitas dificuldades com a fábrica. Pretendia obter o vermelho de cobre dos chineses, mas as cores volatilizavam-se no forno. Para evitar que a porcelana estalasse, misturava cal na argila, mas a maioria das peças quebrava, o esmalte das pinturas a frio ficava empastado, as peças grandes abaulavam; e, atribuindo essas falhas à má aparelhagem da fábrica, queria mandar fazer novos trituradores, novos fornos. Frédéric recordou-se de algumas dessas coisas; e apareceu-lhe dizendo ter encontrado um homem muito capaz, que poderia achar o famoso vermelho. Arnoux ficou entusiasmado, mas, depois de o ter escutado, respondeu que não precisava de ninguém.
Frédéric exaltou os prodigiosos conhecimentos de Sénécal, ao mesmo tempo engenheiro, químico e guarda-livros, além de ser matemático de primeira ordem.
O fabricante de louça consentiu em vê-lo.
Ambos se desentenderam quanto aos honorários. Frédéric interveio, e, no fim da semana, conseguiu levá-los a um acordo.
Mas, como a fábrica era em Creil, Sénécal não poderia ajudá-lo em nada. Essa reflexão, muito simples, fê-lo perder todo o entusiasmo.
Pensou que, quanto mais Arnoux se afastasse da mulher, maiores esperanças ele poderia ter. Então, pôs-se a fazer constantemente a apologia de Rosanette; fez-lhe ver todas as faltas que cometera contra ela, contou-lhe as vagas ameaças que lhe ouvira, e falou mesmo do xale de caxemira, sem esconder que ela o acusava de ser avarento.
Arnoux, irritado com o epiteto (e, aliás, sentindo-se inquieto), levou o xale a Rosanette, mas repreendeu-a por ela se ter queixado a Frédéric; e, como ela dissesse ter-lhe lembrado cem vezes o prometido, pretendeu ter-se esquecido, devido às muitas ocupações.
No dia seguinte, Frédéric apresentou-se em casa dela. Embora já fossem duas horas, a Marechala ainda estava deitada; e, à sua cabeceira, Delmar, instalado diante de uma mesinha, estava acabando uma fatia de foie gras. Ela gritou, mal viu Frédéric: — Já o tenho, já o tenho! — e depois, agarrando-o pelas orelhas, beijou-o na testa, agradeceu-lhe muito, tratou-o por tu, quis mesmo que ele se sentasse na cama. Os lindos e meigos olhos brilhavam, a boca úmida sorria, os braços torneados saíam-lhe da camisa, que não tinha mangas; e, de vez em quando, ele sentia-lhe, através da cambraia, os rijos contornos do corpo. Delmar, entretanto, revirava os olhos.
— Mas, realmente, minha amiga, minha querida amiga!...
O mesmo se deu nas vezes seguintes. Logo que Frédéric entrava, ela empoleirava-se numa almofada, para ele a beijar melhor, chamava-lhe de amor, de queridinho, punha-lhe uma flor na botoeira, arranjava-lhe a gravata; e essas gentilezas redobravam sempre que Delmar estava presente.
Seria isso para provocá-lo? Frédéric assim julgou. Quanto a enganar um amigo, também Arnoux, no seu lugar, não teria escrúpulos! E tinha todo o direito de não ser virtuoso com a amante dele, tendo-o sido sempre com a mulher; porque julgava tê-lo sido, ou antes, queria fingi-lo aos próprios olhos, para justificar a sua imensa falta de coragem. Contudo, achava-se estúpido, e decidiu levar as coisas adiante com a Marechala.
Assim, uma tarde, tendo-se ela abaixado diante de uma cômoda, aproximou-se e teve um gesto tão eloquente que ela se ergueu, corando muito. Ele insistiu; então, ela pôs-se a chorar, dizendo que era muito infeliz, mas que isso não era razão para ser desprezada.
Ele repetiu as tentativas. Ela, então, adotou outra atitude, que foi rir sempre. Ele julgou-se esperto, ripostando no mesmo tom, e exagerando-o. Mas mostrava-se alegre demais para que ela pudesse julgá-lo sincero; e essa camaradagem era um obstáculo à expansão de qualquer emoção séria. Um dia, finalmente, ela respondeu que não queria os restos de outra.
— Que outra?
— Ora! Vai procurar a Senhora Arnoux!
Porque Frédéric falava muitas vezes nela; Arnoux, por seu lado, tinha a mesma mania; Rosanette impacientava-se, por fim, farta de ouvir elogiar sempre aquela mulher; e a sua resposta tinha sido uma espécie de vingança.
Frédéric guardou-lhe rancor.
Aliás, ela começava a irritá-lo. Às vezes, querendo mostrar-se experiente, dizia mal do amor, com um riso cético que dava vontade de a esbofetear. Passado um quarto de hora, não havia outra coisa no mundo, e, apertando os braços sobre o peito, como se cingisse alguém, murmurava: — Oh, sim, é bom! Como é bom! — de pálpebras semicerradas, em êxtase. Era impossível conhecê-la, saber, por exemplo, se ela gostava de Arnoux, porque tanto fazia pouco dele como se mostrava ciumenta. Era o mesmo com a Vatnaz, à qual chamava uma miserável, e outras vezes, a sua melhor amiga. Finalmente, em toda a sua pessoa, até na maneira de enrolar o coque, havia algo de inexprimível que era como um desafio; e ele desejava-a, sobretudo pelo prazer de a vencer e de a dominar.
Como fazer? Porque muitas vezes ela mandava-o embora, sem a menor cerimônia, surgindo um instante entre duas portas, e murmurando: — Estou ocupada; apareça à noite! — ou então ia encontrá-la no meio de uma dúzia de pessoas; e, quando se achavam a sós, dir-se-ia coisa propositada, de tal forma os impedimentos se acumulavam. Convidava-a para jantar, e ela recusava sempre; uma vez aceitou, mas não veio.
Então surgiu-lhe no cérebro uma ideia maquiavélica.
Sabendo por Dussardier das queixas de Pellerin a seu respeito, lembrou-se de lhe encomendar o retrato da Marechala, um retrato em tamanho natural, que exigiria muitas sessões; ele não faltaria a nenhuma; a habitual falta de pontualidade do artista facilitaria os encontros. Assim, incitou Rosanette a fazer-se retratar, para oferecer a sua imagem ao querido Arnoux. Ela aceitou, porque se via já no meio do Grande Salão, no lugar de honra, com uma multidão contemplando-a, e os jornais haviam de falar, o que a “lançaria” imediatamente.
Quanto a Pellerin, esse agarrou avidamente a oportunidade. Aquele retrato faria dele um grande homem, seria uma obra-prima.
Passou em revista, na memória, todos os retratos dos mestres que conhecia, e decidiu-se finalmente por um Ticiano, que seria realçado por ornamentos a Veronese. Assim, executaria o seu projeto sem sombras fictícias, numa luz franca, incidindo sobre o tom liso da carne, e fazendo reverberar os acessórios.
“Se eu lhe pusesse”, pensava ele, “um vestido de seda cor-de-rosa, com um albornoz oriental? Oh! Não! O albornoz é acanalhado! Não será melhor vesti-la de veludo azul, sobre fundo cinza, muito colorido? Também podia acrescentar uma gola de renda branca, com um leque preto e, atrás, um cortinado escarlate?”
E, assim procurando, cada dia alargava a sua concepção, e maravilhava-se com ela.
Bateu-lhe o coração quando Rosanette, acompanhada por Frédéric, chegou à casa dele para a primeira sessão. Fez com que ela se pusesse de pé numa espécie de estrado, no meio da sala; e, queixando-se da luz e lamentando não ter já o seu antigo ateliê, primeiro fê-la apoiar-se num pedestal, depois sentar numa poltrona e, ora afastando-se, ora aproximando-se dela, para corrigir com um piparote as pregas do vestido, contemplava-a de olhos semicerrados, consultando Frédéric de vez em quando.
— Não, não é isto! — exclamou ele. — Volto à minha ideia! Vou pintá-la de veneziana!
Rosanette teria um vestido de veludo encarnado, com um cinto de metal trabalhado, e as mangas largas de arminho deixariam ver o braço nu, tocando no corrimão de uma escada que subia atrás dela. À esquerda, uma alta coluna iria encontrar-se, no alto do quadro, com estruturas arquitetônicas descrevendo um arco. Por baixo, distinguir-se-iam vagamente maciços de laranjeiras quase negros, sobre os quais se recortaria um céu azul, com nuvens brancas. Sobre o balaústre, coberto por um tapete, ver-se-ia, numa salva de prata, um ramo de flores, um rosário de âmbar, um punhal e uma caixinha de marfim antigo, amarelado, da qual extravasariam sequins de ouro; mesmo alguns destes, caídos aqui e ali, no chão, constituiriam uma série de pontos brilhantes, de forma a atrair os olhos para a ponta do pé, pois ela ficaria no antepenúltimo degrau, num movimento natural e em plena luz.
Foi buscar uma caixa de quadros, que pôs sobre o estrado, figurando o degrau; em seguida dispôs como acessórios, num banco à guisa de balaustrada, um jaquetão, um escudo, uma caixa de sardinhas, um feixe de penas, uma faca, e, depois de espalhar diante de Rosanette uma dúzia de moedas, fê-la tomar a pose escolhida.
— Imagine que estas coisas são riquezas, presentes esplêndidos. A cabeça um pouco voltada para a esquerda! Isso mesmo! Não se mexa! Esta atitude majestosa vai bem com o seu tipo de beleza.
Ela estava com um vestido de tecido escocês, com um grande regalo, e tinha imensa vontade de rir.
— Quanto ao penteado, vamos entretecê-lo com um cordão de pérolas; fica sempre bem, com os cabelos vermelhos.
A Marechala protestou, dizendo não ter cabelos vermelhos.
— Deixe lá! O Vermelho dos pintores não é o mesmo dos burgueses!
Começou a delinear a posição das massas; estava tão preocupado com os grandes artistas do Renascimento que se pôs a falar deles. Durante uma hora, sonhou em voz alta com essas existências magníficas, cheias de gênio, de glória e de suntuosidade, com entradas triunfais nas cidades e festas de gala à luz dos archotes, entre mulheres seminuas, belas como deusas.
— Você era feita para viver naquela época. Uma criatura do seu calibre merecia um monsenhor.
Rosanette estava encantada com aqueles galanteios. Marcaram o dia para a próxima sessão; Frédéric encarregava-se de trazer os acessórios.
Como o calor da estufa a deixara um pouco entontecida, voltavam a pé pela Rua du Bac, até a Ponte Royal.
Fazia um belo dia, áspero e esplêndido. O sol declinava; os vidros de algumas casas, na Cité, brilhavam ao longe como placas de ouro, enquanto mais atrás, à direita, as torres de Notre-Dame18 destacavam-se, negras, sobre o fundo azul do céu, que no horizonte se diluía numa névoa cinzenta. O vento começou a soprar; e, tendo Rosanette declarado que estava com fome, entraram na Pâtisserie Anglaise.
Algumas senhoras, com os filhos, comiam de pé junto ao balcão de mármore, sobre o qual se alinhavam, debaixo das campânulas de vidro, os pratos de doces. Rosanette comeu duas tortas com creme. O açúcar em pó fazia-lhe bigodes no canto da boca. De vez em quando, para limpá-la, tirava o lenço do regalo; e o seu rosto, sob o chapéu de seda verde, parecia uma rosa aberta entre as folhas.
Prosseguiram o seu caminho; na Rua de la Paix, ela deteve-se diante de uma ourivesaria, contemplando um bracelete; Frédéric queria dar-lho de presente.
— Não — disse ela. — Guarda o teu dinheiro.
Ele sentiu-se ofendido com aquela resposta.
— Que tem o bichinho? Ficou triste?
E, como a conversa continuasse, ele voltou, como sempre, às suas declarações de amor.
— Bem sabes que não é possível!
— Mas por quê?
— Ah! Porque não...
Caminhavam lado a lado, ela apoiando-se no braço de Frédéric, com os folhos do vestido batendo nas pernas dele. Isso fazia-o recordar um crepúsculo de inverno, em que, no mesmo passeio, a Senhora Arnoux caminhava assim, ao seu lado; e essa recordação dominou-o a tal ponto que nem dava conta da presença de Rosanette.
Ela olhava distraidamente diante de si, deixando-se levar, como uma criança preguiçosa. Era a hora de voltar do passeio, e as carruagens desfilavam a trote largo sobre a rua seca. Rosanette estava sem dúvida lembrando-se dos elogios de Pellerin, porque disse, dando um suspiro:
— Há mulheres felizes! Decididamente, nasci para ter um homem rico.
Ele retorquiu, com brutalidade:
— Não é isso que lhe falta! — porque o Senhor Oudry tinha fama de ser três vezes milionário.
Ela nada desejava tanto como se ver livre dele.
— E quem a impede?
E Frédéric proferiu amargos gracejos sobre esse velho burguês de cabeleira postiça, mostrando-lhe como tal ligação era indigna e que devia acabar com aquilo.
— Sim — respondeu a Marechala, como se falasse de si para si. — É o que acabarei por fazer, sem dúvida!
Frédéric ficou encantado com o desinteresse. Ela abrandou a marcha, e julgou que estivesse fatigada. Mas Rosanette obstinou-se a não querer ir de carruagem, e despediu-se de Frédéric diante da porta, atirando-lhe um beijo com a ponta dos dedos.
— Ah! Que pena! E pensar que há imbecis que me acham rico!
Estava melancólico, ao chegar em casa.
Hussonnet e Deslauriers esperavam-no.
O boêmio, sentado à mesa, desenhava cabeças de turcos, e o advogado, de botas enlameadas, cochilava no sofá.
— Ah! Finalmente — disse ele. — Mas que cara brava! Poderás dar-me atenção?
A sua fama como explicador diminuía, porque metia na cabeça dos alunos teorias que os prejudicavam nos exames. Defendera duas ou três causas, que perdera, e cada nova decepção dava mais força ao seu velho sonho: ter um jornal em que pudesse expandir-se, vingar-se, soltar a bílis e as ideias. Aliás, fortuna e reputação vinham uma atrás da outra. Era nessa esperança que se agarrara ao boêmio, visto Hussonnet ser dono de uma folha.
Presentemente, editava-a em papel cor-de-rosa; inventava boatos, fazia enigmas, procurava estabelecer polêmicas, e até (não obstante o local) pretendia organizar concertos! A assinatura de um ano “dava direito a uma poltrona num dos principais teatros de Paris; além disso, a administração encarregava-se de fornecer aos senhores estrangeiros todas as informações que pudessem desejar, artísticas e outras”. Mas o impressor fazia ameaças, deviam três meses ao proprietário, e surgiam dificuldades de toda espécie; Hussonnet teria deixado morrer o Art se não fossem as exortações do advogado, que quotidianamente lhe levantava o moral. Trouxera-o consigo, para dar mais autoridade à iniciativa.
— Vimos por causa do Jornal — disse ele.
— Como, tu ainda pensas nisso! — respondeu Frédéric, num tom distraído.
— Claro que ainda penso!
E expôs novamente o seu plano. Por meio de informações da Bolsa, entrariam em contato com financistas, e obteriam desse modo os cem mil francos de caução indispensáveis. Mas, para que a folha pudesse ser transformada em jornal político, era necessário ter antes uma grande clientela e, para isso, resignar-se a algumas despesas, para gastos com papel, tipografia e escritório. Em suma, precisavam de quinze mil francos.
— Estou sem fundos — disse Frédéric.
— Que diremos nós! — exclamou Deslauriers, cruzando os braços.
Frédéric, irritado com o gesto, replicou:
— Não tenho culpa disso!
— Ah! Muito bem! Eles têm lenha no fogão da sala, trufas ao jantar, boa cama, biblioteca, carruagem, todas as comodidades! Mas se alguém tiritar numa mansarda, jantar por vinte sous, trabalhar como um forçado e não tirar os pés da miséria, será culpa deles?
E repetia: “Será culpa deles?”, com uma ironia ciceroniana que tresandava a tribunal. Frédéric queria falar.
— Aliás, compreendo, há necessidades... aristocráticas; porque, sem dúvida, alguma mulher...
— E se houvesse? Não serei livre?..
— Oh! Absolutamente livre!
E, depois de uma pausa:
— É muito cômodo fazer promessas!
— Meus Deus! Não nego que as fiz! — disse Frédéric.
O advogado prosseguia:
— No colégio, fazem-se juras, havemos de constituir uma falange, imitaremos “os Treze” de Balzac19! Depois, quando se encontram: Adeus, meu velho, vai passear! Porque aquele que poderia ser útil ao outro retém preciosamente tudo só para si.
— Como?
— Sim, tu nem sequer nos apresentaste aos Dambreuse!
Frédéric olhou para ele; com a velha sobrecasaca, os óculos foscos e aquele rosto lívido, o advogado pareceu-lhe tão miserável que não pôde evitar um sorriso desdenhoso. Deslauriers notou-o, e corou.
Já tinha pegado no chapéu para se ir embora. Hussonnet, aflito, tentava apaziguá-lo com olhares suplicantes; e, como Frédéric estivesse de costas para eles, disse-lhe:
— Ora, meu rapaz! Seja o meu Mecenas! Proteja as Artes!
Frédéric, num brusco movimento de resignação, tomou uma folha de papel e, depois de rabiscar algumas linhas, entregou-lha. A face do boêmio iluminou-se. E disse, passando-a a Deslauriers:
— Apresente desculpas, senhor!
Frédéric pedia ao seu notário que lhe enviasse quinze mil francos o mais rapidamente possível.
— Ah! Estou reconhecendo o meu velho Frédéric! — disse Deslauriers.
— Palavra de honra! — acrescentou o boêmio. — Você é um homem às direitas, e vai para a galeria dos sujeitos úteis!
O advogado disse ainda:
— Não vais ter prejuízo, a especulação é excelente.
— Sem dúvida! — exclamou Hussonnet. — Eu punha as mãos no fogo!
E disse tanto disparate, prometeu tantas maravilhas (nas quais talvez acreditasse), que Frédéric não sabia se era para troçar dos outros ou dele próprio.
Nessa noite, recebeu uma carta da mãe.
Ela estranhava não o ver ainda ministro, embora troçando um pouco dele. Depois falava-lhe da saúde, e informava-o de que o Senhor Roque frequentava agora a casa dela. “Desde que enviuvou, pareceu-me já não haver inconveniente em recebê-lo. Louise tem mudado muito, para melhor.” E em pós-escrito: “Não me dizes nada desse ótimo conhecimento, o Senhor Dambreuse; no teu lugar, servia-me dele”.
Por que não? Desistira das ambições intelectuais, e a sua fortuna (dava agora conta disso) era insuficiente; porque, pago o que devia, e entregue aos outros a quantia prometida, o seu rendimento sofria uma diminuição de quatro mil francos, pelo menos! Aliás, sentia necessidade de abandonar aquela existência, de se agarrar a qualquer coisa. Por isso, no dia seguinte, enquanto jantava em casa da Senhora Arnoux, disse que a mãe insistia com ele para escolher uma profissão.
— Mas eu supunha — retorquiu ela — que o Senhor Dambreuse ia arranjar-lhe um lugar no Conselho de Estado... Seria muito bom para o senhor.
Ela queria que assim fosse. Frédéric obedeceu.
Como da primeira vez, o banqueiro estava sentado à escrivaninha, e pediu-lhe, com um gesto, que esperasse alguns minutos, porque alguém que estava de costas para a porta lhe falava de assuntos importantes. Tratava-se de carvão vegetal, e da fusão a operar entre diversas companhias.
Os retratos do General Foy e de Luís Filipe pendiam um de cada lado do espelho; pastas de papelão amontoavam-se até o teto, encostadas à parede, e havia seis cadeiras de palha; o Senhor Dambreuse não tinha necessidade de melhor instalação para fazer os seus negócios; era como aquelas sombrias cozinhas em que se elaboram os grandes festins. Frédéric observou sobretudo dois imensos cofres, que se erguiam nos cantos. Perguntava aos seus botões quantos milhões caberiam ali dentro. O banqueiro abriu um dos cofres, e a porta de ferro girou, mostrando apenas, no interior, cadernos de papel azul.
Por fim o visitante passou diante de Frédéric. Era o velho Oudry. Ambos coraram, ao cumprimentar-se, o que pareceu espantar o Senhor Dambreuse. Aliás, este se mostrou muito amável. Nada seria mais fácil do que recomendar o seu jovem amigo ao ministro da Justiça. Ficariam muito satisfeitos por o ter lá; e terminou as gentilezas convidando-o para uma recepção que ia dar dentro de alguns dias.
Frédéric tomava o cupê para lá ir, quando chegou um bilhete da Marechala. À luz das lanternas leu o seguinte:
“Meu caro, segui os seus conselhos. Acabo de expulsar o meu Osage. A partir de amanhã à noite, liberdade! Diga se não sou valente”.
Nada mais! Mas era oferecer-lhe o lugar vago. Soltou uma exclamação, meteu o bilhete no bolso e partiu.
Dois guardas a cavalo estacionavam na rua. Por cima de cada um dos dois portões de entrada havia um renque de lanternas; no pátio, os criados gritavam para que as carruagens avançassem até junto da escadaria, debaixo da marquise. Depois, subitamente, passava-se ao silêncio do vestíbulo.
Grandes árvores enchiam o vão da escada; a luz dos globos de porcelana ondulava sobre as paredes como reflexos de cetim branco. Frédéric subiu com vivacidade as escadas. Um mordomo anunciou-o. O Senhor Dambreuse estendeu-lhe a mão; e, quase imediatamente, a Senhora Dambreuse apareceu.
Trazia um vestido malva, guarnecido de renda, e seu penteado tinha mais cachos do que de costume, e não usava uma única joia.
Ela queixou-se por ele os visitar tão raramente, e arranjou maneira de dizer qualquer coisa. Os convidados começavam a chegar; como saudação, inclinavam-se para um lado, ou dobravam-se pela cintura, ou baixavam apenas a cabeça; depois passava um casal, uma família, e todos se dispersavam pelo salão já cheio.
No meio, debaixo do lustre, um enorme sofá redondo tinha ao centro uma jardineira, cujas flores, inclinadas como plumas, pendiam sobre a cabeça das mulheres sentadas à volta, enquanto outras ocupavam as poltronas, formando duas linhas simetricamente interrompidas pelos grandes cortinados de veludo nacarado das janelas e pelas altas aberturas das portas de padieiras douradas.
A multidão dos homens que se conservavam de pé, de chapéu na mão, parecia, vista de longe, uma só massa negra, pontilhada aqui e ali de vermelho pelas fitas das condecorações nas botoeiras, e tornada ainda mais sombria pela monótona brancura das gravatas. À exceção de alguns jovens, cuja barba começava a despontar, todos pareciam aborrecer-se; alguns elegantes, de expressão entediada, apoiavam-se ora num pé ora noutro. As cabeças grisalhas, as perucas eram numerosas; aqui e ali brilhava uma calva; e os rostos, ou apopléticos ou lívidos, revelavam, nos seus estragos, os vestígios de imensas fadigas, — as pessoas que ali se encontravam eram políticos ou homens de negócios. O Senhor Dambreuse convidara também alguns sábios, magistrados, dois ou três médicos ilustres, e repelia com expressão humilde os elogios que recebia pela sua recepção ou pela sua riqueza.
Circulava por todos os lados numerosa criadagem, usando grandes galões dourados. Os grandes tocheiros semelhavam flores de fogo, desabrochando nos cortinados e refletindo-se nos espelhos; e, ao fundo da sala de jantar, adornada por um renque de jasmins, o bufê parecia o altar-mor de uma catedral ou uma exposição de ourivesaria — tamanha era a quantidade de pratos, terrinas, talheres e colheres de prata ou dourados, no meio dos cristais facetados, que trocavam, por cima das carnes, reflexos irisados. Os outros três salões regurgitavam de objetos de arte: paisagens de mestres pendentes das paredes, marfins e porcelanas sobre mesas, louças da China pousadas em consolos; biombos de laca desdobravam-se diante das janelas, tufos de camélias erguiam-se sobre as lareiras; e uma suave música vibrava, ao longe, como um zumbido de abelhas.
As quadrilhas eram escassas, e os pares, pela maneira displicente como arrastavam os escarpins, pareciam cumprir um dever. Frédéric ouvia frases como estas:
— Esteve na última festa de caridade dos Lambert, minha senhora?
— Não, senhor, não estive!
— Daqui a pouco vai estar um calor!
— Oh! É certo, vai ficar asfixiante!
— Quem é o autor desta polca?
— Ah, minha senhora, não sei!
E, atrás dele, três velhos decrépitos, metidos no vão de uma janela, murmuravam observações obscenas; outros discutiam sobre estradas de ferro, câmbio livre; um esportista contava histórias de caça; um legitimista e um orleanista discutiam.
Vagueando de grupo em grupo, Frédéric chegou ao salão de jogo, onde reconheceu, numa roda de gente grave, Martinon, agora “juiz adjunto aos tribunais da capital”.
O seu rosto cheio, cor de cera, harmonizava-se como convinha à barba em colar, que era uma maravilha, pela regularidade com que os pelos negros estavam aparados; e, mantendo um justo equilíbrio entre a elegância requerida pela idade e a dignidade exigida pelas funções que desempenhava, metia o polegar debaixo do braço, de acordo com a moda, e depois enfiava o braço no colete, segundo o uso dos conservadores. Embora o polimento das suas botas fosse extremo, usava as têmporas rapadas, para ficar com uma testa de pensador.
Depois de trocar friamente algumas palavras com Frédéric, voltou-se para o seu conciliábulo. Um proprietário dizia:
— É uma gente que sonha com a destruição da sociedade!
— Reclamam a organização do trabalho! — dizia outro. — Imaginem!
— Que querem! — disse um terceiro. — Se nós vemos o Senhor de Genoude entender-se com Le Siècle20!
— Se até há conservadores que se intitulam progressistas! Para nos dar o quê? A República! Como se tal coisa fosse possível na França!
Todos declararam que, na França, a República era impossível.
— Seja como for — observou em voz alta um sujeito — fala-se demasiado da Revolução; publica-se sobre isso uma porção de histórias, livros!...
— Além do que — disse Martinon — há, talvez, temas mais sérios que merecem estudo!
Um partidário do ministério investiu contra os escândalos do teatro:
— Assim, por exemplo, esse novo drama, La Reine Margot, excede realmente os limites! Havia alguma necessidade de nos vir falar dos Valois? Tudo isso mostra a realeza sob um aspecto desfavorável! É como essa imprensa! Digam o que disserem, as leis de setembro são demasiado benévolas! Por mim, queria que houvesse tribunais marciais para calar a boca aos jornalistas! À menor insolência, conselho de guerra! Assim é que é!
— Oh! Cuidado, meu caro senhor, cuidado! — disse um professor. — Não ataque as nossas preciosas conquistas de 1830! Respeitemos as nossas liberdades. Melhor seria a descentralização, repartir o excedente das cidades pelos campos.
— Mas os campos estão gangrenados! — exclamou um católico21. — O que se impõe é dar firmeza à Religião!
Martinon apressou-se a dizer:
— Efetivamente, é um freio!
Todo o mal vinha desse desejo moderno de se elevar acima da sua classe, de aspirar ao luxo.
— Todavia — observou um industrial — o luxo favorece o comércio. Por isso estou de acordo com o Duque de Nemours, por exigir calção curto nas suas recepções.
— O Senhor Thiers foi lá de calça comprida. Conhece a frase dele?
— Sim, é deliciosa. Mas está se tornando demagogo, e o discurso dele sobre o caso das incompatibilidades não deixou de ter influência no atentado de 12 de maio.
— Ora, ora!
— Oh, oh!
O círculo teve que se abrir para dar passagem a um criado com uma bandeja, que se dirigia à sala de jogo.
Sob o quebra-luz verde das velas, renques de cartas e de moedas de ouro cobriam as mesas. Frédéric deteve-se diante de uma, perdeu os quinze napoleões que trazia na algibeira, fez uma pirueta, e achou-se no limiar da saleta onde se encontrava a Senhora Dambreuse.
Estava cheia de mulheres, sentadas lado a lado em banquinhos semespaldar. As compridas saias, abrindo em leque à volta delas, eram como ondas das quais lhes emergia o busto, e os seios ofereciam-se ao olhar na abertura dos decotes. Quase todas tinham um ramo de violetas na mão. A tonalidade mate das luvas fazia sobressair a brancura humana dos braços; franjas e ervas22 caíam-lhes sobre os ombros, e parecia às vezes, por certos estremecimentos, que o vestido ia cair. Mas a decência dos rostos temperava as provocações do traje; algumas tinham até uma placidez quase bestial, e esta reunião de mulheres seminuas lembrava o interior de um harém; no espírito de Frédéric surgiu uma comparação mais grosseira. Com efeito, havia ali belezas de todo gênero: inglesas de perfil de keepsake, uma italiana cujos olhos negros fulguravam como um Vesúvio, três irmãs vestidas de azul, três normandas, frescas como macieiras em abril, uma ruiva alta, com um adereço de ametistas; — e as brancas cintilações dos brilhantes que tremeluziam em penachos, nas cabeleiras, o brilho das pedrarias sobre os bustos, e o fulgor tênue das pérolas acompanhando os rostos, misturavam-se aos reflexos dos anéis de ouro, às rendas, ao pó de arroz, às plumas, ao vermelhão das boquinhas, ao nácar dos dentes. O teto, em cúpula, dava à saleta a forma de uma corbelha; e uma corrente de ar perfumado circulava sob o palpitar dos leques.
Frédéric, por trás delas, de monóculo, achava que nem todos os ombros eram perfeitos; pensava na Marechala, o que lhe reprimia as tentações e o consolava.
Entretanto, contemplava a Senhora Dambreuse, e achava-a encantadora, apesar de ter a boca um pouco larga demais e narinas muito dilatadas. Mas tinha um encanto particular. Havia nos seus cachos um langor apaixonado, e a testa cor de ágata parecia conter muitas coisas e revelava um espírito dominador.
Sentara ao lado dela a sobrinha do marido, jovem bastante feia. De vez em quando, levantava-se para receber senhoras que entravam; e o murmúrio das vozes femininas aumentava, parecendo um chilrear de pássaros.
Falavam dos embaixadores tunisinos e dos seus trajes. Uma das damas assistira à última recepção na Academia; outra referiu-se ao Don Juan de Molière, que o Théâtre-Français pusera novamente em cena. Indicando a sobrinha com um relancear de olhos, a Senhora Dambreuse levou um dedo aos lábios, mas um sorriso que não pôde reter desmentia essa austeridade.
De repente surgiu Martinon, na outra porta. Ela ergueu-se. Ele deu-lhe o braço. Frédéric, para presenciar a continuação dos galanteios do amigo, atravessou a sala de jogo e aproximou-se deles, no salão; a Senhora Dambreuse deixou imediatamente o companheiro e falou com familiaridade a Frédéric.
Compreendia que ele não jogasse, nem dançasse.
— Os jovens costumam ser tristes! — E acrescentou, depois de olhar de relance para o salão:
— Aliás, tudo isto não é divertido! Pelo menos para certas naturezas!
E deteve-se junto à fila das poltronas, dizendo a esta e àquela uma palavra gentil, enquanto senhores idosos, com lunetas de duas hastes, vinham fazer-lhe a corte. Ela apresentou Frédéric a alguns. O Senhor Dambreuse tocou-lhe no cotovelo, ligeiramente, e levou-o para o terraço.
Tinha falado ao ministro. A coisa não era fácil. Antes de ser apresentado como auditor ao Conselho de Estado, teria que prestar um exame. Frédéric, tomado de inexplicável confiança, respondeu que sabia as matérias.
O homem de negócios não o estranhava, em vista dos elogios que o Senhor Roque lhe tecia.
Ao ouvir esse nome, Frédéric recordou a pequena Louise, a sua casa, o seu quarto; lembrou-se das noites iguais, em que ficava à janela, escutando as carroças que passavam. Essa evocação das suas tristezas fê-lo pensar na Senhora Arnoux; e continuava, calado, o passeio pelo terraço. As janelas formavam, no meio da escuridão, longas placas vermelhas; o ruído do baile começava a diminuir; já havia carruagens que partiam.
— Por que motivo — perguntou o Senhor Dambreuse — faz questão do Conselho de Estado?
E afirmou, dando-se ares de liberal, que as funções públicas não tinham futuro, ele bem o sabia; os negócios eram outra coisa. Frédéric objetou a dificuldade de aprender.
— Ora, ora! Em pouco tempo eu punha-o a par de tudo.
Teria ele a ideia de o associar aos seus empreendimentos?
Frédéric entreviu, como que num relâmpago, uma imensa fortuna à sua espera.
— Voltemos para dentro — disse o banqueiro. — Vai cear conosco, não é verdade?
Eram três horas, a festa tinha acabado. Na sala de jantar, uma mesa servida esperava os íntimos.
O Senhor Dambreuse avistou Martinon e, aproximando-se da mulher, perguntou em voz baixa:
— Foi você que o convidou?
— Sim, fui eu!
A sobrinha não estava presente. Bebeu-se largamente, rindo muito alto; e os gracejos atrevidos não escandalizavam, todos sentiam aquele alívio que se segue aos constrangimentos bastante demorados. Apenas Martinon mantinha o ar grave; não quis beber champanha, para se dar ares, sem, aliás, deixar de ser obsequioso e muito bem-educado; como o Senhor Dambreuse, que tinha o peito estreito, se queixasse de sentir uma opressão, informou-se por várias vezes da saúde dele; e depois pousava os olhos azulados na Senhora Dambreuse.
Ela interpelou Frédéric, para saber qual das moças lhe agradara. Mas ele não distinguira nenhuma, e preferia, aliás, as mulheres de trinta anos.
— Talvez não seja tolice! — respondeu ela.
Quando vestiam as peliças e os sobretudos, o Senhor Dambreuse disse-lhe:
— Procure-me um dia destes, para conversarmos!
Martinon, ao fundo da escada, acendeu um charuto; e ao chupá-lo ficava com um perfil tão espesso que o seu companheiro largou esta frase:
— Mas que cara tens, palavra de honra!
— O que não impediu que fizesse virar algumas cabeças! — replicou o jovem magistrado, com uma expressão ao mesmo tempo enfatuada e vexada.
Ao deitar-se, Frédéric passou em revista aquela noite. Em primeiro lugar, o seu traje (estudara-se por diversas vezes diante dos espelhos), desde o corte da casaca até o laço dos escarpins, nada deixava a desejar; falara a homens importantes, vira de perto mulheres ricas, o Senhor Dambreuse fora extremamente amável e a Senhora Dambreuse, quase aliciante. Pesou uma por uma as mais insignificantes palavras dela, os seus olhares, mil coisas impossíveis de analisar e todavia significativas. Não seria nada mal ter por amante uma tal mulher! E por que não, afinal? Ele não era pior do que outro qualquer! Quem sabe, talvez ela não fosse muito difícil? Depois lembrou-se de Martinon; e, ao adormecer, sorria de piedade por aquele bom rapaz.
A ideia da Marechala despertou-o; aquelas palavras do bilhete: “A partir de amanhã à noite” eram evidentemente um convite para aquele mesmo dia. Esperou até as nove horas, e correu à casa dela.
Alguém que subia a escada, à sua frente, fechou a porta. Frédéric tocou; Delphine veio abrir, e afirmou que a senhora não estava.
Ele insistiu, implorou. Tinha uma coisa grave para lhe comunicar, era só uma palavra. Por fim, o argumento da moeda de cem sous deu resultado, e a criada deixou-o só, no vestíbulo.
Rosanette apareceu. Estava de camisola, os cabelos soltos; e, abanando a cabeça, fez de longe um largo gesto com ambos os braços, significando que não o podia receber.
Frédéric desceu as escadas, lentamente. Aquele capricho excedia todos os outros. Não compreendia nada.
Diante do cubículo do porteiro foi detido pela Srta. Vatnaz.
— Ela recebeu-o?
— Não!
— Correu com o senhor?
— Como é que sabe?
— Vê-se logo! Mas venha, vamos embora, sinto-me abafar!
E arrastou-o para a rua. Estava ofegante. Frédéric sentia-lhe o braço magro tremer de encontro ao seu. De súbito, ela explodiu.
— Ah! O miserável!
— Quem?
— Mas é ele, é ele, Delmar!
Essa revelação humilhou Frédéric; perguntou:
— Tem certeza?
— Pois se eu o segui! — exclamou ela. — Vi-o entrar! Compreende agora? Eu devia contar com isto, aliás; fui eu, na minha estupidez, que o levei à casa dela. E se você soubesse, meu Deus! Recolhi-o, dei-lhe de comer, vesti-o; e como me fartei de correr para os jornais! Amava-o como se fosse mãe dele! — E, depois de uma risada escarninha: — Ah! É que sua excelência queria trajes de veludo! Uma especulação da parte dele, como calcula! E ela! Lembrar-me que a conheci costureira! Se não fosse eu, já por mais de vinte vezes tinha caído na lama! Mas agora deixo-a cair mesmo! Oh, sim! Quero vê-la morrer no hospital! Tudo se há de saber!
E, como uma torrente de água suja, a sua cólera fez passar tumultuosamente diante de Frédéric as vergonhas da rival.
— Ela dormiu com Jumillac, com Flacourt, com aquele baixinho, o Allard, com Bertinaux, com Saint-Valéry, o picado de bexigas. Não! Foi com o outro! São dois irmãos, não importa! E quando tinha dificuldades, eu resolvia tudo. E que ganhei com isso? Ela é tão unha de fome! E depois, há de concordar comigo, era muita condescendência da minha parte, porque enfim, não somos do mesmo meio! Sou por acaso uma mulher da rua? Eu não me vendo! Além disso, ela é estúpida como uma porta! Escreve categoria com th. De resto, estão muito bem um para o outro, embora ele se intitule artista e se julgue um gênio! Mas, meu Deus! Se ele tivesse ao menos um bocadinho de inteligência, não teria cometido semelhante infâmia! Não se troca uma mulher superior por uma vagabunda! E depois, quero lá saber! Ele está ficando feio! Odeio-o! Se o encontrasse, olhe, escarrava-lhe na cara. — E cuspiu. — Sim, é a única coisa que ele merece. E Arnoux, hein? Que coisa abominável! Quantas vezes ele lhe perdoou! Ninguém sabe os sacrifícios que fez por ela! Ela devia beijar-lhe os pés! Ele é tão generoso, tão bom!
Frédéric sentia prazer em ouvi-la insultar Delmar. Aceitara Arnoux. Esta perfídia de Rosanette afigurava-se-lhe uma coisa anormal, injusta; e, contagiado pela emoção da solteirona, chegava a sentir uma espécie de enternecimento por Arnoux. De repente, achou-se diante da porta deste; sem que tivesse dado conta, a Senhorita Vatnaz fizera-o descer o Bulevar Poissonnière.
— Cá estamos — disse ela. — Eu não posso subir. Mas ao senhor, nada o impede!
— De fazer o quê?
— Ora essa, de lhe contar tudo!
Frédéric, como se despertasse em sobressalto, compreendeu a infâmia a que ela pretendia arrastá-lo.
— Então? — insistiu ela.
Frédéric levantou os olhos para o segundo andar. O candeeiro da Senhora Arnoux estava aceso. Efetivamente, nada o impedia de subir.
— Eu espero-o aqui. Ande!
Esse imperativo acabou por fazê-lo voltar à realidade, e disse:
— Vou demorar-me bastante. Era melhor ir para casa. Amanhã irei visitá-la.
— Não, não! — retorquiu ela, batendo o pé. — Leve-o lá! Faça com que ele os surpreenda.
— Mas Delmar já não estará lá!
Ela baixou a cabeça.
— Sim, talvez tenha razão.
E ficou sem falar, no meio da rua, entre as carruagens; depois, fixando-o com aquele olhar de gata selvagem:
— Posso contar com o senhor, não é verdade? Entre nós, agora é sagrado! Vá. Até amanhã!
Frédéric, ao atravessar o corredor, ouviu duas vozes que altercavam. A da Senhora Arnoux dizia:
— Não mintas! Não me mintas mais!
Quando entrou, eles calaram-se.
Arnoux andava de um lado para o outro, e a mulher estava sentada na cadeirinha ao lado da lareira, extremamente pálida, de olhar parado. Frédéric fez menção de se retirar. Arnoux agarrou-lhe a mão, aliviado com a presença dele.
— Mas, eu receio que... — disse Frédéric.
— Fique! — murmurou Arnoux ao ouvido dele. Ela continuou:
— Há de desculpar, Senhor Moreau! São destas coisas que surgem às vezes entre os casais.
— Porque alguém as inventa — disse com todo o descaramento Arnoux. — As mulheres têm cada coisa! Assim, esta, por exemplo, não é má. Não, pelo contrário! Pois bem, há uma hora que se entretém a massacrar-me a paciência com uma porção de histórias.
— Que são verdadeiras! — replicou a Senhora Arnoux. — Sim, porque tu o compraste!
— Eu?
— Sim, tu, tu! E do persa!
“O xale de caxemira!”, pensou Frédéric.
Sentia-se culpado, e estava com medo.
Ela continuou:
— Foi no mês passado, um sábado, dia 14.
— Ah! Nesse dia, precisamente, eu estava em Creil! Estás vendo?
— Não, senhor! Porque no dia 14 jantamos em casa dos Bertin.
— No dia 14? — disse Arnoux, pondo os olhos no teto, como se procurasse uma data.
— E até o caixeiro que to vendeu era um rapaz loiro!
— Como é que me hei de lembrar do empregado!
— E todavia, ele escreveu, por tua ordem, o endereço: Rua de Laval, 18.
— Como sabes? — indagou Arnoux, estupefato.
Ela encolheu os ombros.
— Ora, é muito simples: fui lá para mandar consertar o meu xale23, e um dos empregados disse-me que tinha acabado de expedir um igual para a Senhora Arnoux.
— Será culpa minha, se existe na mesma rua uma dama de nome Arnoux?
— Sim, mas não existe um Jacques Arnoux — retorquiu ela.
Então ele pôs-se a divagar, protestando inocência. Era uma confusão, uma coincidência, uma destas coisas inexplicáveis que acontecem às vezes. Não se devia condenar ninguém por uma simples suspeita, por vagos indícios; e citou o exemplo do infeliz Lesurques.
— Enfim, garanto que estás enganada! Queres que te dê a minha palavra de honra?
— Não vale a pena!
— Por quê?
Ela olhou para ele bem nos olhos, sem dizer nada; depois estendeu a mão, tomou o cofrezinho de prata que estava sobre a lareira, e estendeu-lhe uma fatura desdobrada.
Arnoux corou até a raiz dos cabelos, e o rosto, descomposto, ficou mais flácido.
— Então?
— Mas... — respondeu ele lentamente. — E isso que prova?
— Ah! — disse ela, com entonação singular, em que havia dor e ironia. — Ah!
Arnoux ficara com a fatura na mão, e dava-lhe voltas, sem despregar os olhos do papel, como se esperasse descobrir nele a solução de um grande problema.
— Ah! Sim, sim, agora me lembro — disse ele, por fim. — Foi uma encomenda que me pediram para fazer. Você deve estar lembrado, Frédéric? — Mas Frédéric não abriu a boca. — Uma compra que me pediu para fazer o... o velho Oudry.
— E para quem?
— Para a amante dele!
— Dele e tua! — exclamou a Senhora Arnoux, pondo-se de pé.
— Eu juro-te...
— Não recomeces! Sei tudo!
— Ah! Muito bem! Então, andas me espionando!
Ela replicou, com frieza:
— Isso fere a tua delicadeza de sentimentos?
— Com irritação — disse ele procurando o chapéu — não se pode conversar!
E acrescentou, dando um suspiro:
— Não se case, meu pobre amigo, não caia nessa!
E saiu, porque precisava tomar ar.
Houve um grande silêncio; e tudo, na sala, pareceu ficar mais imóvel. Um círculo luminoso, por cima do candeeiro, clareava o teto, ao passo que, nos cantos da casa, a sombra se estendia como gazes negras sobrepostas; ouvia-se o tique-taque do relógio e o crepitar do lume.
A Senhora Arnoux voltara a sentar-se na poltrona do outro lado da lareira; mordia os lábios, trêmula; ergueu as duas mãos, e não pôde reter um soluço; chorava.
Frédéric sentou-se na cadeira pequena; e, numa voz carinhosa, como se fala a um doente:
— Bem sabe quanto eu sinto...
Ela não respondeu. Mas, continuando em voz alta as suas reflexões:
— Eu dou-lhe toda a liberdade! Não precisava mentir!
— Certamente — disse Frédéric.
Era sem dúvida consequência dos hábitos dele, não pensara nisso, e talvez que, com coisas mais graves...
— E alguma coisa podia ser mais grave?
— Oh! Nada!
Frédéric inclinou-se, com um sorriso de aquiescência. Todavia, Arnoux possuía certas qualidades; gostava muito dos filhos.
— Ah! E faz tudo para deixá-los na miséria!
Era consequência de ele ser aéreo; porque, afinal, era muito bom rapaz.
Ela exclamou:
— Mas que significa isso, ser bom rapaz!
Frédéric defendia-o assim, da forma mais vaga que podia, e, embora com pena dela, rejubilava e deliciava-se, no fundo da alma. Por vingança, ou por necessidade de afeição, ela procuraria refúgio junto dele. A esperança de Frédéric, aumentando desmedidamente, dava forças ao seu amor.
Nunca ela lhe parecera tão cativante, tão profundamente bela. De vez em quando, uma aspiração erguia-lhe o peito; os seus olhos fixos pareciam dilatados por uma visão interior, e permanecia com a boca entreaberta, como se fosse exalar o último suspiro. De quando em quando, apoiava o lenço com toda a força de encontro aos lábios; e ele quereria ser aquele pedacinho de cambraia, encharcado de lágrimas. A seu pesar, olhava para o leito, no fundo da alcova, imaginando a cabeça dela sobre o travesseiro; e via a cena tão nitidamente que se dominava para não a tomar nos braços. Ela cerrou as pálpebras, apaziguada, inerte. Então, Frédéric chegou-se para mais perto dela, examinando-lhe avidamente o rosto. No corredor ressoou um ruído de botas. Ouviram a porta do quarto dele fechar-se. Com um sinal, Frédéric perguntou-lhe se devia ir lá.
Ela replicou “sim” da mesma forma; e essa troca silenciosa de pensamentos era como um consentimento, um princípio de adultério.
Arnoux estava prestes a meter-se na cama.
— Então, ela como está?
— Oh! Muito melhor! — disse Frédéric. — Aquilo passa!
Mas Arnoux estava penalizado.
— Você não a conhece! E ela deu agora para ter nervos!... O imbecil desse caixeiro! É para que serve ser bom! Se eu não tivesse dado esse maldito xale a Rosanette!
— Não o lamente! Ela ficou-lhe tão grata!
— Você acha?
Frédéric não tinha a menor dúvida. A prova era que ela acabava de correr com o velho Oudry.
— Ah! Pobre querida!
E, no excesso da emoção, Arnoux queria correr à casa dela.
— Não vale a pena! Eu venho de lá. Ela está doente!
— Mais uma razão!
Tornou a vestir rapidamente a sobrecasaca e pegara no castiçal. Frédéric amaldiçoou a própria estupidez e fez-lhe ver que, por uma questão de decência, devia ficar aquela noite junto da mulher. Não podia abandoná-la, seria muito feio.
— Francamente, seria proceder muito mal! Nem há urgência nenhuma de ir lá! Vai amanhã! Vamos! Faça isso por mim.
Arnoux pousou seu castiçal e disse-lhe, abraçando-o:
— Como você é bom!
III
Começou então para Frédéric uma existência desgraçada. Tornou-se o parasita da casa.
Se alguém estava indisposto, vinha três vezes ao dia saber notícias, ia ao afinador de pianos, inventava toda espécie de atenções; e sofria com ar satisfeito os amuos da Srta. Marthe e as ternuras do pequeno Eugène, que lhe passava sempre as mãos sujas pela cara. Assistia aos jantares em que o senhor e a senhora, um em frente do outro, não trocavam uma só palavra; ou então, Arnoux irritava a mulher com observações disparatadas. Terminada a refeição, ia para o quarto brincar com o filho, escondia-se atrás dos móveis, ou passeava-o às costas, caminhando de quatro. Finalmente, ia-se embora, e ela abordava imediatamente o seu eterno motivo de queixa: Arnoux.
Não eram as aventuras dele que a indignavam. Mas parecia sofrer no seu orgulho, e mostrava repugnância por aquele homem sem delicadeza, sem dignidade, sem honra.
— Ou então, é um louco! — dizia.
Frédéric provocava-lhe habilmente as confidências. Não tardou a conhecer toda a vida dela.
Era filha de modestos burgueses de Chartres1. Um dia, Arnoux, que desenhava nas margens do rio (nessa época julgava-se pintor), viu-a saindo da igreja, e pediu-a em casamento; como era rico, não tinha havido hesitações. Aliás, amava-a perdidamente. Ela acrescentou:
— Meus Deus! E ainda me ama! À maneira dele!
Durante os primeiros meses tinham viajado pela Itália.
Apesar do entusiasmo perante as paisagens e as obras-primas, Arnoux não fizera senão queixar-se do vinho, e organizava piqueniques com ingleses, para se distrair. Alguns quadros que revendera com vantagem tinham-no levado a dedicar-se ao comércio das artes. Depois, entusiasmara-se com uma fábrica de louça. Agora, outras especulações o atraíam; e, tornando-se cada vez mais vulgar, ganhava hábitos grosseiros e dispendiosos. Eram menos os vícios que ela lhe censurava, do que todos os seus atos. Nenhuma modificação se podia esperar, e a infelicidade dela era irreparável.
Frédéric afirmava que também a sua própria vida falhara2.
Contudo, era bem moço. Por que havia de perder a esperança? E ela dava-lhe conselhos: “Trabalhe! Case-se!”. Ele respondia com sorrisos amargos; porque, em vez de exprimir o verdadeiro motivo do seu sofrimento, fingia ter outro, sublime, dando-se uns ares de Antony3, o amaldiçoado, — linguagem que, aliás, não lhe traía de todo o pensamento.
Para certos homens, agir é tanto mais impraticável quanto mais forte é o desejo. A desconfiança de si mesmos embaraça-os, o receio de desagradar mete-lhes medo; além disso, as afeições profundas são como as mulheres honestas: receiam ser descobertas, e passam pela vida de olhos baixos.
Embora conhecesse melhor a Senhora Arnoux (ou talvez por isso mesmo), era ainda mais covarde do que outrora. Todas as manhãs jurava a si próprio ser ousado. Um pudor invencível não lho permitia; e não podia guiar-se por nenhum exemplo, visto ela ser diferente das outras. Devido à força dos seus sonhos, colocara-a acima das condições humanas. Ao lado dela, sentia-se menos importante sobre a terra do que os fiapos de seda que lhe caíam da tesoura.
Depois pensava em coisas monstruosas, absurdas, tais como surpreendê-la, de noite, com narcóticos e chaves falsas — tudo lhe parecia mais fácil do que afrontar-lhe o desdém.
Aliás, as crianças, as duas criadas, a disposição da casa, constituíam obstáculos intransponíveis. Assim, decidiu possuí-la sem partilha, e irem viver juntos muito longe, no fundo de uma solidão; e chegava a procurar qual o lago suficientemente azul, à beira de que praia suficientemente suave, se seria na Espanha, na Suíça ou no Oriente; e, escolhendo de propósito os dias em que ela parecia mais irritada, dizia-lhe ser necessário sair daquilo, imaginar uma solução, e que não via outra senão a separação. Mas, por amor aos filhos, jamais ela chegaria a tal extremo. Tanta virtude aumentou o respeito de Frédéric.
Passava as tardes recordando a visita da véspera, desejando a daquela noite. Quando não jantava em casa deles, postava-se, cerca das nove horas, na esquina mais próxima; e, mal Arnoux tinha fechado a grande porta, Frédéric subia rapidamente os dois andares e perguntava com ar ingênuo à criada:
— O senhor está?
Depois, mostrava-se surpreendido por não encontrá-lo.
Muitas vezes, Arnoux voltava de improviso. Então, era necessário acompanhá-lo até um café que havia na Rua Sainte-Anne, que Regimbart agora frequentava.
O Cidadão começava por articular qualquer nova acusação à realeza. Em seguida conversavam, trocando amigavelmente injúrias; o fabricante considerava Regimbart um pensador de alto coturno, e, desgostoso por ver perdido tamanho talento, acusava-o de ser preguiçoso. O Cidadão via em Arnoux um coração e uma imaginação excepcionais, mas achava-o imoral demais; por isso tratava-o sem a menor indulgência, e recusava-se mesmo a jantar em casa dele, porque “as cerimônias o irritavam”.
Às vezes, na altura das despedidas, Arnoux sentia fome. “Precisava” comer uma omeleta ou batatas cozidas; e, como não havia nunca tais comestíveis no estabelecimento, mandava-os buscar. Esperava-se. Regimbart não ia embora, e acabava, resmungando, por aceitar qualquer coisa.
Não obstante, mostrava-se sombrio, e ficava às vezes horas seguidas diante do mesmo copo meio vazio. A providência não conduzia as coisas de acordo com as ideias dele, estava ficando hipocondríaco, já nem sequer queria ler os jornais, e soltava rugidos só de ouvir pronunciar o nome da Inglaterra. Uma vez exclamou, a propósito de um criado que não o servia bem:
— Não teremos recebido ainda suficientes afrontas do Estrangeiro?
E, fora dessas crises, conservava-se taciturno, meditando “um golpe infalível que fizesse ir tudo pelos ares”.
Enquanto ele estava perdido nas próprias reflexões, Arnoux contava, em voz monótona e com sinais de embriaguez no olhar, incríveis anedotas nas quais sempre brilhara, graças à sua incrível desfaçatez; e Frédéric (o que se devia sem dúvida a semelhanças profundas) sentia uma certa atração por ele. Era uma fraqueza que censurava a si próprio, achando que, pelo contrário, deveria odiá-lo.
Arnoux queixava-se na sua frente do humor da mulher, da teimosia, das injustas prevenções dela. Outrora não era assim.
— No seu lugar — dizia Frédéric — dava-lhe uma pensão e ia viver só.
Arnoux não respondia; e, passados instantes, iniciava o elogio dela. Era bondosa, dedicada, inteligente, virtuosa; e, passando às qualidades físicas, prodigalizava as revelações com a leviandade das pessoas que exibem os seus tesouros numa estalagem.
Uma catástrofe veio perturbar-lhe o equilíbrio.
Entrara, como membro do Conselho Fiscal, numa companhia de caolino. Mas, confiando em tudo quanto lhe diziam, assinara relatórios inexatos e aprovara, sem verificar, os inventários anuais fraudulentos preparados pelo gerente. Ora, a companhia falira, e Arnoux, responsável em face da lei, acabava de ser condenado, juntamente com os outros, por perdas e danos, o que significava um prejuízo de uns trinta mil francos, agravado pelas custas do processo.
Frédéric soube disso pelo jornal, e correu à Rua Paradis.
Foi recebido no quarto da Senhora Arnoux. Era a hora do café. Xícaras de café com leite atravancavam uma pequena mesa, junto da lareira. Chinelos espalhavam-se pelo tapete, e roupas por cima das cadeiras. Arnoux, de ceroulas e colete de malha, tinha os olhos vermelhos e o cabelo em desalinho; o pequeno Eugène chorava, por causa da caxumba, enquanto roía o pão com manteiga; a irmã comia tranquilamente; a Senhora Arnoux, um pouco mais pálida do que de costume, servia os três.
— Então! — disse Arnoux, soltando um suspiro profundo. — Já sabe! — E, como Frédéric fizesse um gesto de compaixão: — É assim! Fui vítima da minha confiança!
Depois, calou-se; e o seu abatimento era tal que recusou o café. A Senhora Arnoux pôs os olhos no teto, encolhendo os ombros. Arnoux passou a mão pela testa.
— Afinal, não sou culpado. Nada tenho de que me acusar. Foi uma infelicidade! Hei de sair dela! Ah, paciência, que se há de fazer!
E trincou um brioche, obedecendo, aliás, às solicitações da mulher.
À noite, quis jantar a sós com ela, num gabinete particular da Maison d’Or. A Senhora Arnoux não entendeu nada desse impulso do coração, e até se ofendeu por ser tratada como uma cortesã; — o que, da parte de Arnoux, era, pelo contrário, prova de afeição. Depois, sentindo-se aborrecido, foi distrair-se em casa da Marechala.
Até então, tinham-lhe desculpado muitas coisas, devido ao seu caráter lhano. O processo pô-lo na categoria dos anormais. Fez-se um vazio em volta dele.
Frédéric teve como ponto de honra frequentá-los ainda mais assiduamente. Tomou uma frisa de assinatura no Italiens, e todas as semanas os convidava. Entretanto, eles estavam naquele período em que, nas uniões desiguais, um invencível cansaço acaba por resultar das concessões feitas, e torna a existência intolerável. A Senhora Arnoux dominava-se para não explodir. Arnoux tornava-se taciturno; e o espetáculo da infelicidade desses dois seres entristecia Frédéric.
Como ele lhe merecia confiança, ela encarregara-o de averiguar o estado dos negócios de Arnoux. Mas Frédéric sentia vergonha, e sofria por lhe comer os jantares ao mesmo tempo que lhe desejava a mulher. Todavia, continuava, e dava a si próprio como desculpa a necessidade de a defender, e que podia surgir uma oportunidade de lhe ser útil.
Oito dias depois do baile, visitara Dambreuse. O banqueiro oferecera-lhe vinte ações da sua empresa de carvão; Frédéric não voltara a procurá-lo. Deslauriers escrevia-lhe cartas; não lhes dava resposta. Pellerin convidara-o a ir ver o retrato; ele desculpava-se sempre. Contudo, acedera ao pedido de Cisy, que insistia em que o apresentasse a Rosanette.
Ela recebeu-o muito bem, mas não se lhe atirou ao pescoço, como antigamente. Cisy ficou encantado por ser admitido ao convívio de uma impura, e sobretudo por conversar com um ator, pois Delmar estava presente.
Um drama, no qual desempenhava o papel de um campônio que dá uma lição a Luís XIV, e profetiza a revolução de 89, dera-lhe tal evidência que lhe fabricavam constantemente o mesmo papel; e agora a sua função consistia em escarnecer dos monarcas de todos os países. Cervejeiro inglês, invectivava Carlos I; estudante de Salamanca, amaldiçoava Filipe II; ou, pai extremoso, indignava-se contra a Pompadour, o que ainda era melhor! Para o ver, a garotada esperava-o à porta do palco; e a sua biografia, vendida nos intervalos, dizia que era o amparo de uma mãe idosa, lia os Evangelhos, ajudava os pobres, em suma, fazia dele um autêntico S. Vicente de Paulo de mistura com um Bruto e um Mirabeau. Dizia-se: “O nosso Delmar”. Tinha uma missão, era um novo Cristo.
Tudo isso fascinara Rosanette; e vira-se livre do velho Oudry, sem querer saber de mais nada, porque não era interesseira.
Arnoux, que a conhecia bem, aproveitara-se disso durante muito tempo, para a ter como amante pouco dispendiosa; aparecera Oudry, e os três tinham tido o cuidado de não procurar uma explicação franca. Depois, supondo que ela tinha corrido com o velho por amor dele, Arnoux aumentara a pensão que lhe dava. Mas os pedidos de dinheiro começaram a repetir-se com inexplicável frequência, pois ela fazia agora uma vida menos dispendiosa; até vendera o xale de caxemira, para acabar com velhas dívidas, dizia ela; e Arnoux dava sempre o dinheiro, ela enfeitiçava-o, abusava dele sem piedade. Como resultado disso, as faturas e o papel selado choviam em casa de Arnoux. Frédéric sentia aproximar-se uma crise.
Um dia, foi lá para ver a Senhora Arnoux. Tinha saído. Arnoux estava embaixo, no armazém.
Arnoux, com efeito, no meio das suas louças, estava vendo se “levava” uns recém-casados, burgueses provincianos. Falava-lhes de tornear e afeiçoar no torno, de truité e de vidrado; eles, não querendo parecer ignorantes, faziam sinais de aquiescência e compravam.
Quando os clientes foram embora, ele contou que tivera, pela manhã, uma pequena altercação com a mulher. Para evitar as observações dela sobre as despesas, afirmara-lhe já não ter nada com a Marechala.
— Até disse que ela era sua amante.
Frédéric ficou indignado; mas podia trair-se, protestando; balbuciou:
— Ah! Fez mal, muito mal!
— Que importância tem isso? — disse Arnoux. — Não haveria desonra nenhuma para você em ser amante dela! Eu não o sou? Você não se sentiria envaidecido com isso?
Ela ter-lhe-ia contado? Seria uma alusão? Frédéric respondeu precipitadamente:
— Não! De modo algum! Pelo contrário!
— Bem, e então?
— Sim, tem razão, não tem importância.
Arnoux acrescentou:
— Por que não aparece mais por lá?
Frédéric prometeu que voltaria a aparecer.
— Ah! Já me esquecia! Você podia... falando de Rosanette... dar a entender qualquer coisa à minha mulher... qualquer coisa capaz de a convencer de que é amante de Rosanette. Peço-lhe isto como um favor, compreende?
Como única resposta, o jovem fez uma careta ambígua. Aquela calúnia era a sua perda. Nessa mesma noite foi à casa dela, e jurou que a afirmação de Arnoux era falsa.
— Realmente?
Parecia sincero; e, depois de ter respirado profundamente, ela disse-lhe: “Acredito no que me diz”, e teve um sorriso aberto; depois, baixou a cabeça e, sem olhar para ele:
— Aliás, ninguém tem direitos sobre o senhor!
Assim, ela não adivinhara nada, e desprezava-o, visto não pensar que ele pudesse amá-la suficientemente para lhe ser fiel! Frédéric, esquecendo as suas tentativas junto da outra, achava aquela autorização ultrajante.
Depois, ela pediu-lhe que fosse de vez em quando, “à casa dessa mulher”, para saber como iam as coisas.
Arnoux apareceu e, passados cinco minutos, queria arrastá-lo à casa de Rosanette.
A situação estava se tornando intolerável.
Veio distraí-lo dessas preocupações uma carta do notário, o qual anunciava que lhe enviaria quinze mil francos no dia seguinte; e, para compensar a negligência que tivera com Deslauriers, foi imediatamente comunicar-lhe esta boa notícia.
O advogado morava na Rua des Trois-Maries4, no quinto andar, num apartamento dos fundos. O seu gabinete era um cubículo ladrilhado e frio, forrado de papel acinzentado, e tinha como principal decoração uma medalha de ouro, o seu prêmio de doutoramento, num caixilho de ébano, encostada ao vidro. Uma estante de mogno, envidraçada, encerrava uns cem volumes. A escrivaninha, coberta de carneira, estava colocada no meio da sala. Quatro velhas poltronas forradas de veludo verde ocupavam os cantos; alguns cavacos ardiam na lareira, na qual havia sempre um feixe de madeira, pronto a acender mal tocasse a campainha. Era a hora de ele receber os clientes; o advogado estava de gravata branca.
Ao anúncio dos quinze mil francos (certamente já não os esperava) deu uma risadinha de prazer.
— Excelente, meu velho, excelente, ótima coisa!
Pôs mais lenha no fogo, tornou a sentar-se, e começou imediatamente a falar do Jornal. A primeira coisa a fazer era ver-se livre de Hussonnet.
— Esse cretino irrita-me! Quanto a servir uma opinião, o mais justo é, em meu entender, não ter nenhuma!
Frédéric pareceu estranhar.
— Mas certamente! Já é tempo de se tratar a Política cientificamente. Os velhos do século XVIII começavam a fazê-lo, quando Rousseau e os literatos introduziram nela a filantropia, a poesia e outras lorotas, para maior alegria dos católicos; aliança natural, aliás, pois todos os reformadores modernos (posso prová-lo) acreditam na Revelação. Mas, se nos pomos a dizer missas pela Polônia, se, em vez do Deus dos dominicanos, que era um carrasco, pomos o deus dos românticos, que era um tapeceiro; se, finalmente, não temos uma concepção do Absoluto mais larga do que a dos nossos antepassados, a monarquia reaparecerá sob as formas republicanas, e o barrete frígio ficará reduzido a um solidéu sacerdotal! Apenas a tortura terá dado lugar ao regime celular, o sacrilégio ao ultraje à Religião, a Santa Aliança ao concerto europeu; e, nesta bela ordem tão admirada, formada pelos resíduos de Luís XIV e pelas ruínas voltairianas, com um reboco imperial por cima e fragmentos de constituição inglesa, veremos os conselhos municipais procurando vexar o prefeito, os conselhos gerais vexar o governador, as câmaras vexar o rei, a imprensa vexar o poder, a administração vexar toda a gente! Mas as boas almas extasiam-se perante o Código Civil, obra fabricada, digam o que disserem, com um espírito mesquinho, tirânico; porque o legislador, em vez de fazer o que lhe cumpria, e que era regularizar o costume, pretendeu modelar a sociedade como Licurgo! Por que oprime a lei o pai de família em matéria de testamento? Por que dificulta ela a venda forçada dos imóveis? Por que pune, como delito, a vagabundagem, que nem sequer devia ser considerada contravenção? E há outras coisas! Conheço-as muito bem! Por isso é que vou escrever um pequeno romance, intitulado Histoire de l’idée de justice, que vai ser engraçado! Mas estou com uma sede terrível! E tu?
Debruçou-se da janela, e gritou para o porteiro que fosse buscar grogues à taberna.
— Em resumo, vejo três partidos... não! Três grupos, nenhum dos quais me interessa: aqueles que têm, aqueles que deixaram de ter e aqueles que procuram ter. Mas todos se harmonizam na idolatria imbecil da Autoridade! Exemplos: Mably recomenda que seja proibido aos filósofos darem publicidade às doutrinas deles; o Senhor Wronski, geômetra, chama à censura, na sua linguagem, “repressão crítica da espontaneidade especulativa”; o velho Enfantin5 abençoa os Habsburgos “por terem estendido por cima dos Alpes uma mão pesada para comprimir a Itália”; Pierre Leroux6 pretende que sejamos obrigados a escutar um orador, e Louis Blanc inclina-se para uma religião de Estado, a tal ponto este povo de vassalos tem a obsessão do governo! Todavia, nenhum é legítimo, apesar dos seus sempiternos princípios. Mas, como “princípio” significa “origem”, é necessário apelar sempre para uma revolução, um ato de violência, um fato transitório. Desse modo, o princípio do nosso é a soberania nacional, compreendida na forma parlamentar, embora o parlamento não o admita! Mas por que seria a soberania do povo mais sagrada do que o direito divino? Ambos não passam de ficções! Basta de metafísica, basta de fantasmas! Não se precisa de dogmas para varrer as ruas! Dirão que isso é deitar por terra a sociedade! E se assim for? Onde estará o mal? É limpa, com efeito, a tua sociedade!
Frédéric teria muitas objeções a fazer-lhe. Mas, vendo que ele se afastava das teorias de Sénécal, sentia-se cheio de indulgência. Limitou-se a fazer-lhe notar que tal sistema os tornaria odiados por toda a gente.
— Pelo contrário, como teremos dado a cada partido uma garantia de ódio contra o vizinho, todos contarão conosco. Tens de trabalhar também, fornecendo-nos crítica transcendente!
Era necessário atacar as ideias feitas, a Academia, a Escola Normal, o Conservatório, a Comédie-Française, tudo o que fosse instituição. Desse modo, dariam uma doutrina de conjunto à Revista. Depois, quando ela estivesse bem firmada, a publicação tornar-se-ia quotidiana; e então passariam a atacar as pessoas.
— E seremos respeitados, podes estar certo!
Deslauriers via prestes a realizar-se o seu velho sonho: ser chefe de redação, isto é, ter a inexprimível felicidade de dirigir os outros, de cortar os artigos, à vontade, de os encomendar, de os recusar. Os seus olhos faiscavam por trás dos óculos, exaltava-se, bebendo copinhos sucessivos, maquinalmente.
— Terás que dar um jantar todas as semanas. É indispensável, nem que isso custe metade dos teus rendimentos! Toda a gente há de querer vir, será um centro para os outros, e para ti uma alavanca; manejando a opinião pública pelos dois extremos, a literatura e a política, vais ver que antes de três meses estaremos no galarim de Paris.
Frédéric, ao ouvi-lo, sentia-se rejuvenescer, como um homem que, depois de estar longo tempo fechado num quarto, fosse transportado para o ar livre. O entusiasmo de Deslauriers contagiava-o.
— É certo, tenho sido um preguiçoso, um imbecil, tu tens razão!
— Ora, ainda bem! — exclamou Deslauriers; — voltas a ser o meu velho Frédéric!
E, pondo-lhe o punho debaixo do queixo:
— Ah! Fizeste-me sofrer. Mas não importa! Gosto de ti do mesmo modo.
Estavam de pé, olhando um para o outro, prestes a abraçarem-se.
Uma touca de mulher surgiu na porta do vestíbulo.
— Que te traz por aqui? — disse Deslauriers.
Era a Senhorita Clémence, sua amante.
Ela disse que, tendo passado diante da casa ocasionalmente, não pudera resistir ao desejo de o ver; e, para fazerem juntos uma pequena refeição, trouxera uns pastéis, que pousou na mesa.
— Cuidado com os meus papéis! — disse o advogado com azedume. — Aliás, é a terceira vez que te proíbo que me venhas visitar às horas de consulta.
Ela quis beijá-lo.
— Bom! Vai-te embora, vamos!
Repelia-a, e ela soltou um profundo soluço.
— Ah, estás me aborrecendo, afinal!
— É porque gosto de ti!
— Eu não quero que me amem, mas que me sirvam!
A dureza da resposta estancou as lágrimas de Clémence. Pôs-se diante da janela, e ficou imóvel, com a testa encostada à vidraça.
Essa atitude e esse mutismo impacientavam Deslauriers.
— Quando acabares, farás o favor de te pores a fresco!
Ela voltou-se, num sobressalto.
— Estás me mandando embora?
— Exatamente!
Clémence pousou nele os grandes olhos azuis, sem dúvida numa derradeira imploração, depois cruzou as duas pontas do lenço, esperou ainda uns instantes, e foi-se embora.
— Não devias deixá-la ir assim — disse Frédéric.
— Ora!
E, como tinha precisão de sair, Deslauriers foi à cozinha, que era o seu quarto de vestir. Em cima da pia, junto de um par de botas, viam-se os restos de um modesto almoço, e no chão, a um canto, um colchão e um cobertor enrolados.
— Como vês, não costumo receber marquesas! — disse ele. — É fácil passar sem elas, deixa lá! E sem as outras também. As que não nos custam dinheiro tiram-nos tempo; é dinheiro sob outra forma; e eu não sou rico! E depois, são todas tão estúpidas, tão estúpidas! Tu consegues conversar com uma mulher?
Separaram-se na esquina do Pont-Neuf.
— Então, está combinado! Trazes-me a coisa amanhã, logo que a tenhas recebido.
— Combinado! — disse Frédéric.
No dia seguinte, ao despertar7, recebeu pelo correio uma ordem de pagamento de quinze mil francos.
Via, naquele pedaço de papel, quinze gordos sacos de dinheiro; e pensou que, com tal quantia, poderia não só conservar a carruagem durante três anos, em vez de se desfazer dela, medida a que, em breve, seria obrigado, mas também comprar duas belas armaduras adamascadas que tinha visto no cais Voltaire, e além disso uma porção de coisas, pinturas, livros, e quantos ramos de flores, quantos presentes para a Senhora Arnoux! Tudo, em suma, valia mais do que arriscar, do que perder tanto dinheiro naquele jornal! Achava Deslauriers presunçoso, e a dureza que ele mostrara na véspera esfriara a amizade que lhe tinha: Frédéric estava nesse estado de espírito quando, com grande surpresa sua, Arnoux entrou, sentando-se pesadamente na beira da cama, como um homem acabrunhado.
— Que aconteceu?
— Estou perdido!
Tinha de pagar, nesse mesmo dia, no cartório Beauminet, notário da Rua Sainte-Anne, dezoito mil francos que lhe emprestara um tal Vanneroy.
— É um desastre inexplicável! Apesar de eu lhe ter dado uma hipoteca que o devia deixar tranquilo, ameaça-me com uma execução, se não lhe pagar hoje mesmo, esta tarde!
— E então?
— Então, é muito simples! Vai pôr em praça o meu imóvel! O primeiro anúncio será a minha ruína, nem mais nem menos! Ah! Se eu encontrasse alguém que me pudesse emprestar essa maldita quantia, tomava o lugar de Vanneroy e eu estava salvo! Você, por acaso, não a terá?
A ordem de pagamento ficara em cima da mesinha de cabeceira, junto de um livro. Frédéric ergueu o volume e pousou-o em cima dela, enquanto dizia:
— Meu Deus, não tenho, meu caro amigo!
Mas custava-lhe dizer não a Arnoux.
— Mas como é possível que não encontre ninguém que queira?....
— Ninguém? E pensar que dentro de oito dias terei receitas! Devem-me coisa de uns... cinquenta mil francos para o fim do mês!
— Não poderia pedir às pessoas que lhe devem para lhe adiantarem?...
— Quem dera!
— Mas não possui qualquer valor, letras?
— Nada!
— Que fazer? — disse Frédéric.
— É o que eu pergunto a mim mesmo — retorquiu Arnoux.
Calou-se, e pôs-se a andar de um lado para o outro.
— Não é por minha causa, meu Deus! Mas por causa dos meus filhos, da minha pobre mulher!
E prosseguiu, acentuando cada palavra:
— Enfim... serei forte... pego nas minhas coisas... e vou tentar a sorte... não sei onde!
— Impossível! — exclamou Frédéric.
Arnoux replicou, com toda a calma:
— Como posso eu viver em Paris, agora?
Houve um longo silêncio.
Frédéric começou a dizer:
— Quando poderia devolver esse dinheiro?
Não era que o tivesse; pelo contrário! Mas nada o impedia de procurar amigos, de fazer uma tentativa. E chamou o criado para vesti-lo, enquanto Arnoux lhe agradecia.
— São dezoito mil francos que precisa, não é assim?
— Oh! Dezesseis mil chegavam! Porque arranjarei facilmente dois mil e quinhentos ou três mil com as minhas pratas, caso Vanneroy espere até amanhã; e, repito, pode garantir, pode jurar a quem o emprestar, que dentro de oito dias, talvez mesmo dentro de cinco ou seis, o dinheiro será reembolsado. Aliás, ficará garantido pela hipoteca. Assim, não há perigo, compreende?
Frédéric disse que compreendia, e que ia sair imediatamente.
Ficou em casa, amaldiçoando Deslauriers, pois queria manter a sua palavra, e ao mesmo tempo servir Arnoux.
“Se eu falasse ao Senhor Dambreuse? Mas a que pretexto lhe vou pedir dinheiro? Era eu, pelo contrário, quem teria de lho dar, pelas ações do carvão! Ah! Que vá para o diabo mais as suas ações! Não lhe devo nada!”
E Frédéric sentia-se feliz com a sua independência, como se tivesse recusado um pedido do Senhor Dambreuse.
“Pois bem, dizia ele de si para si, visto que tenho um prejuízo desse lado, pois poderia, com quinze mil francos, ganhar cem mil! Às vezes isso acontece, na Bolsa... Portanto, se falto a um, não estarei livre?... Aliás, não faz mal que Deslauriers espere! Mas não, isso é feio, vamos lá!”
Olhou para o relógio.
“Ah! Não tem pressa nenhuma! O Banco só fecha às cinco horas.”
E, às quatro e meia, depois de receber o dinheiro:
“Agora, não vale a pena! Já não o encontrava; irei lá esta noite!” — dando-se assim tempo para modificar a sua decisão, porque fica sempre na consciência qualquer coisa dos sofismas que nela instilamos; ela conserva-lhes o sabor amargo, como a bebida de má qualidade.
Passeou pelos bulevares, e jantou sozinho no restaurante. Depois foi assistir a um ato, no Vaudeville, para se distrair. Mas o dinheiro que tinha consigo incomodava-o como se o tivesse roubado. Não lhe desagradaria nada se o perdesse.
Ao voltar para casa, encontrou uma carta com estas palavras:
“Que há de novo?
“Minha mulher e eu esperamos confiados que, etc.
“Todo seu”.
Seguia-se uma rubrica.
“Sua mulher! Ela também me pede!”, disse Frédéric de si para si.
Nesse mesmo instante, surgiu Arnoux, para saber se ele conseguira a quantia.
— Pronto, aqui está — disse Frédéric.
E, vinte e quatro horas depois, respondia a Deslauriers:
— Não recebi nada.
O advogado voltou nos três dias seguintes. Insistia para ele escrever ao notário. Ofereceu-se até para ir ao Havre.
— Não! Não é preciso! Eu mesmo vou lá!
No fim da semana, Frédéric pediu timidamente a Arnoux os quinze mil francos.
Arnoux prometeu-os para o dia seguinte, depois para o outro. Frédéric só se atrevia a sair noite fechada, receando ser surpreendido por Deslauriers.
Uma noite, foi de encontro a alguém na esquina da Madeleine. Era ele.
— Vou buscá-los — disse.
E Deslauriers acompanhou-o até a porta de uma casa, no faubourg Poissonnière.
— Espera aqui!
Deslauriers ficou à espera. Finalmente, passados quarenta e três minutos, Frédéric saiu com Arnoux, e fez-lhe sinal para se pacientar ainda um pouco. O fabricante de louça e o seu companheiro subiram, de braço dado, a Rua Hauteville, e se meteram depois pela Rua Chabrol.
Era uma noite escura, com rajadas de vento tépido. Arnoux caminhava lentamente, falando das Galerias do Comércio: uma série de passagens que iriam do Bulevar Saint-Denis ao Châtelet, uma especulação formidável, em que estava com grande vontade de se meter; e parava de vez em quando, para ver pelas vidraças dos estabelecimentos o rosto das costureiras, e depois voltava ao seu discurso.
Frédéric escutava os passos de Deslauriers atrás dele, como uma censura, como se lhe repercutissem na consciência. Mas não se atrevia a reclamar, por falsa vergonha, receando que fosse inútil. O outro aproximava-se. Decidiu-se.
Arnoux, com a maior sem-cerimônia, disse que as suas cobranças tinham falhado, e que nesse momento não lhe podia devolver os quinze mil francos.
— Não lhe estão fazendo falta, espero?
Nesse momento, Deslauriers abordou Frédéric, e chamando-o à parte:
— Fala com franqueza, tens o dinheiro ou não?
— Realmente, não tenho! — disse Frédéric. — Perdi-o!
— Ah! Mas como?
— No jogo!
Deslauriers não disse uma palavra; fez uma grande vênia, e foi-se embora. Arnoux aproveitara a ocasião para acender um charuto numa tabacaria. Ao voltar, perguntou quem era aquele jovem.
— Nada! Um amigo!
E, três minutos depois, diante da porta de Rosanette:
— Suba — disse Arnoux. — Ela ficará contente. Você anda agora tão arredio!
Um revérbero, em frente, iluminava-o; e, com o charuto entre os dentes brancos e aquele ar feliz, tinha algo de intolerável.
— Ah! A propósito, o meu notário foi esta manhã falar com o seu, por causa da inscrição daquela hipoteca. Foi minha mulher que mo lembrou.
— Mulher de cabeça no lugar! — retorquiu maquinalmente Frédéric.
— Sem dúvida!
E Arnoux recomeçou o elogio dela. Não havia outra, como espírito, coração, economia; e acrescentou em voz baixa, esbugalhando os olhos:
— E que corpo de mulher!
— Adeus! — disse Frédéric.
Arnoux fez um movimento.
— Como! Por quê?
E, de mão meio estendida para ele, examinava-o, desconcertado pela cólera que lhe via no rosto.
Frédéric replicou, secamente:
— Adeus!
Desceu a Rua de Bréda como uma pedra que despenha, furioso contra Arnoux, jurando nunca mais o ver, nem tampouco a ela, magoado, desolado. Em vez da ruptura com que contava, eis que o outro, pelo contrário, se punha a adorá-la completamente, da ponta dos cabelos até o fundo da alma. A vulgaridade daquele homem exasperava Frédéric. Tudo era para ele! Encontrava-o no limiar da cortesã; e a mortificação de um rompimento acrescentava-se à raiva da sua impotência8. Aliás, a honestidade de Arnoux, oferecendo garantias pelo seu dinheiro, humilhava-o; tinha vontade de o estrangular; e, acima do seu desgosto, planava-lhe na consciência, como uma névoa, o sentimento da traição ao amigo. Estava à beira das lágrimas.
Deslauriers descia a Rua des Martyrs, praguejando de indignação, em voz alta, porque o seu projeto, como um obelisco deitado ao chão, lhe parecia agora de uma altura imensa. Sentia-se roubado, como se tivesse sofrido uma grande perda. A sua amizade por Frédéric estava morta, e sentia-se alegre com isso; era uma compensação! Dominava-o o ódio contra os ricos. Pôs-se a pensar que Sénécal tinha razão, e prometeu a si próprio apoiar as ideias dele.
Entretanto, Arnoux, comodamente instalado numa poltrona, junto da lareira, bebia uma xícara de chá, com a Marechala sentada no colo.
Frédéric não voltou à casa deles; e, para distrair-se da sua calamitosa paixão, lançou mão do primeiro assunto de que se lembrou, e decidiu escrever uma História do Renascimento. Amontoou sobre a mesa de trabalho os humanistas, os filósofos e os poetas; ia ao museu, ver as gravuras de Marc-Antoine; procurava entender Maquiavel. A pouco e pouco, a serenidade do trabalho trouxe-lhe sossego. Perdendo-se na personalidade dos outros, esqueceu a sua, o que é a única maneira de não sofrer.
Um dia em que estava tomando notas, tranquilamente, a porta abriu-se e o criado anunciou a Senhora Arnoux.9
Era realmente ela! Sozinha? Não! Trazia pela mão o filho, e atrás vinha a criada, de avental branco. Ela sentou-se; e, depois de tossir.
— Há quanto tempo não vem a nossa casa!
Como Frédéric não soubesse como se desculpar, ela acrescentou:
— É muito delicado da sua parte!
Ele retorquiu:
— Delicado por quê?
— Depois do que fez por Arnoux! — disse ela.
Frédéric fez um gesto, como quem diz: “Quero lá saber disso! Foi por sua causa!”.
Ela mandou a criança brincar com a criada, no salão. Trocaram duas ou três frases a respeito da saúde, e a conversa caiu.
Seu vestido era de seda marrom, cor de vinho da Espanha, com um paletó de veludo preto, debruado de marta, que dava vontade de passar as mãos, e os seus compridos bandós, muito lisos, atraíam os lábios. Mas alguma emoção a perturbava, porque disse, voltando os olhos em direção à porta:
— Está um pouco quente, aqui dentro!
Frédéric adivinhou a intenção prudente do olhar dela.
— Perdão! Os dois batentes estão apenas encostados!
— Ah! É verdade!
E sorriu, como se dissesse: “Não receio nada”.
Frédéric perguntou-lhe imediatamente a que devia a visita dela.
— Meu marido — disse ela com esforço — pediu-me que viesse à sua casa, não se atrevendo a vir ele próprio.
— Mas por quê?
— Dá-se com o Senhor Dambreuse, não é verdade?
— Sim, um pouco!
— Ah, um pouco.
E ficou calada.
— Não tem importância! Continue.
Então ela contou que, na antevéspera, Arnoux não tinha podido pagar quatro letras de mil francos, sacadas pelo banqueiro, e avalizadas por ela. Arrependia-se de ter comprometido a fortuna dos filhos. Mas tudo era melhor do que a desonra; e se o Senhor Dambreuse suspendesse o protesto, não tardaria a receber o dinheiro, porque ela ia vender uma casinha que possuía em Chartres.
— Pobre mulher! — murmurou Frédéric. — Vou procurá-lo, pode contar comigo.
— Obrigada!
E ergueu-se para se ir embora.
— Oh! Não vá embora já!
Ela ficou de pé, examinando o troféu de flechas mongóis pendurado do teto, a estante, as encadernações, todos os utensílios para escrever, ergueu o recipiente de bronze para as penas; os seus saltos assentaram em diversos pontos do tapete. Tinha vindo algumas vezes à casa de Frédéric, mas sempre com Arnoux. Agora, estavam a sós — sós, na própria casa dele — era um acontecimento extraordinário, quase uma aventura.
Quis ver o jardinzinho; ele deu-lhe o braço para lhe mostrar os seus domínios, trinta pés de terreno, rodeado de casas, com arbustos nos cantos e um canteiro ao centro.
Era nos primeiros dias de abril. As folhas dos lilases começavam a despontar, respirava-se um ar puro; os passarinhos chilreavam, e o seu canto alternava com o ruído distante de uma forja de segeiro.
Frédéric foi buscar a pá da lareira; e, enquanto eles passeavam lado a lado, a criança fazia montes de areia na aleia.
A Senhora Arnoux achava que o filho não viria a ter uma grande imaginação, mas era carinhoso. A irmã, pelo contrário, era seca por natureza, o que por vezes a fazia sofrer.
— Há de mudar — disse Frédéric. — Nunca se deve desesperar.
Ela replicou:
— Nunca se deve desesperar!
Aquela repetição maquinal da sua frase pareceu-lhe uma espécie de estímulo; colheu uma rosa, a única do jardim.
— Lembra-se... de um certo ramo de rosas, uma noite, na carruagem?
Ela corou levemente; e, com ar de compaixão trocista:
— Ah! Como eu era jovem!
— E esta — prosseguiu Frédéric em voz baixa — terá a mesma sorte das outras?
Ela respondeu, enquanto fazia girar a haste da flor entre os dedos, como se fosse um fuso:
— Não! Guardá-la-ei!
Fez um gesto, chamando a criada, que pôs a criança no colo; depois, no limiar, na rua, a Senhora Arnoux aspirou a flor, inclinando a cabeça sobre o ombro, com um olhar suave como um beijo.
Quando voltou ao gabinete de trabalho, Frédéric contemplou a poltrona em que ela se sentara e todos os objetos em que tinha tocado. Qualquer coisa dela pairava no ar. A carícia da sua presença durava ainda.
“Ela esteve aqui!”, dizia Frédéric de si para si.
E sentia-se embalado nas vagas de uma ternura infinita.
No dia seguinte, às onze horas, procurou o Senhor Dambreuse. Foi recebido na sala de jantar. O banqueiro almoçava em frente da mulher. Ao lado dela estava a sobrinha, e do outro a preceptora, uma inglesa toda marcada de bexigas.
O Senhor Dambreuse convidou o jovem amigo para almoçar, e, como ele recusasse:
— Em que posso ser-lhe útil? Sou todo ouvidos.
Frédéric confessou, afetando um ar indiferente, que vinha fazer um pedido em favor de um certo Arnoux.
— Ah! Ah! O antigo negociante de quadros — disse o banqueiro, descobrindo as gengivas num riso mudo. — Oudry era fiador dele, mas desavieram-se.
E pôs-se a ver as cartas e os jornais pousados a seu lado.
Dois criados serviam silenciosamente à mesa; e a altura da sala, que tinha três reposteiros e duas pias de mármore branco, o metal polido dos rescaldos, a disposição dos hors-d’oeuvre, e até o engomado dos guardanapos, todo aquele bem-estar luxuoso fazia, no espírito de Frédéric, contraste com outro almoço, em casa de Arnoux. Não se atrevia a interromper o Senhor Dambreuse.
A Senhora Dambreuse notou-lhe o embaraço.
— Costuma ver o nosso amigo Martinon?
— Ele vem cá esta noite — disse com vivacidade a sobrinha.
— Ah! Tu sabias? — replicou a Senhora Dambreuse, lançando-lhe um olhar frio.
Um dos criados inclinou-se-lhe ao ouvido, e ela disse:
— É a tua costureira, minha filha!... Miss John!
E a preceptora, obediente, desapareceu com a aluna.
O Senhor Dambreuse, despertado pelo arrastar das cadeiras, perguntou de que se tratava.
— É a Senhora Regimbart.
— É curioso! Regimbart! Esse nome não me é estranho! Já vi essa assinatura.
Frédéric atacou finalmente a questão: Arnoux merecia que se interessassem por ele; ia até, com o único fim de satisfazer os compromissos, vender uma casa da mulher.
— Dizem que ela é muito bonita — observou a Senhora Dambreuse.
O banqueiro acrescentou, com ar malicioso:
— Você conhece-os... intimamente?
Frédéric, fugindo à resposta, disse que lhe ficaria muito grato se ele tomasse em consideração...
— Pois bem, visto que isso lhe dá prazer, seja! Esperaremos! Ainda tenho tempo. Quer descer até meu escritório?
O almoço terminara; a Senhora Dambreuse inclinou-se ligeiramente, com um sorriso singular, que era ao mesmo tempo cortês e irônico; Frédéric não teve tempo de refletir no seu significado, porque o Senhor Dambreuse, logo que se viram sós, disse:
— Não veio buscar as suas ações.
E sem lhe dar tempo a que se desculpasse:
— Bom! Bom! É justo que conheça o negócio um pouco melhor.
Ofereceu-lhe um cigarro, e pôs-se a falar.
A União Geral das Hulhas Francesas achava-se constituída; apenas faltava o alvará. Por si só, a fusão diminuía as despesas de vigilância e mão de obra e aumentava os lucros. Além disso, a Sociedade concebera uma coisa nova, que era associar os operários à empresa. Construiria casas para eles, habitações salubres; finalmente, seria a fornecedora dos próprios empregados, que receberiam tudo ao preço do custo.
— E eles ganharão, meu caro amigo; eis um autêntico progresso; é a resposta vitoriosa a certo palavreado oco dos republicanos! Temos no nosso conselho de administração — e exibia o prospecto — um par de França, um sábio do Instituto, um oficial superior de Engenharia reformado, nomes conhecidos! Semelhantes elementos dão confiança aos capitais desconfiados e atraem os capitais inteligentes! — A Companhia contaria com as encomendas do Estado, e além disso com as estradas de ferro, a navegação a vapor, os estabelecimentos metalúrgicos, o gás, as cozinhas burguesas. — E assim, aquecemos, iluminamos, penetramos até o fundo dos mais humildes lares. Mas como, poderá perguntar-me, garantimos nós a venda? Graças a direitos protetores, meu caro amigo, e havemos de os conseguir; isto é conosco! Pela minha parte, sou francamente protecionista! O País acima de tudo! — Tinham-no feito diretor; mas faltava-lhe tempo para se ocupar de certos pormenores, entre outros, da redação. — Já confundo um pouco meus autores, esqueci o meu grego! Precisaria de alguém... que pudesse traduzir as minhas ideias. — E, de repente: — Não quer ser esse homem, com o título de secretário-geral?
Frédéric não sabia que responder.
— Então, que o impede de aceitar?
As suas funções limitar-se-iam a escrever, todos os anos, um relatório para os acionistas. Estaria em relações quotidianas com os homens mais importantes de Paris. Representando a Companhia junto dos operários, far-se-ia, naturalmente, adorar por eles, o que lhe permitiria, mais tarde, abrir caminho para o Conselho Geral, para a deputação.
Frédéric sentia campainhas nos ouvidos. De onde vinha aquele interesse por ele? E desfez-se em agradecimentos.
Mas era necessário, disse o banqueiro, que não ficasse na dependência de ninguém. A melhor maneira era ficar com ações, “colocação soberba, aliás, porque o seu capital lhe garante a posição, assim como a posição lhe garante o capital”.
— Mais ou menos, quanto seria necessário? — indagou Frédéric.
— Meu Deus! Quanto quiser; calculo que entre quarenta e sessenta mil francos.
A quantia era tão insignificante para o Senhor Dambreuse, e tamanha a sua autoridade, que Frédéric se decidiu imediatamente a vender uma propriedade. Aceitava. O Senhor Dambreuse fixaria um encontro para daí a alguns dias, a fim de terminarem as combinações.
— Então, posso dizer a Jacques Arnoux?...
— Tudo o que quiser! Pobre rapaz! Tudo o que quiser!
Frédéric escreveu aos Arnoux que podiam ficar tranquilos, e mandou a carta pelo criado, ao qual Arnoux, o negociante, disse:
— Muito bem!
Todavia, a sua intervenção merecia alguma coisa mais. Esperava uma visita, pelo menos uma carta. Não recebeu a visita. Nenhuma carta veio.
Seria esquecimento da parte deles, ou intenção? Como a Senhora Arnoux o visitara uma vez, o que a impedia de voltar? A espécie de subentendido, de confissão, que ela lhe fizera, seria então, apenas, uma manobra executada por interesse? “Terão estado a rir-se de mim? Ela será cúmplice?” Uma espécie de pudor, apesar da vontade que sentia, impediu-o de voltar à casa deles.
Uma manhã (três semanas depois da sua visita), o Senhor Dambreuse escreveu-lhe, dizendo-lhe que o esperava nesse mesmo dia, dentro de uma hora.
A caminho, o seu pensamento voltou aos Arnoux; e, não descobrindo motivo para a maneira como estavam a conduzir-se, sentiu uma angústia, um pressentimento fúnebre. Para ver-se livre dele, chamou um cabriolé e mandou seguir para a Rua Paradis.
Arnoux estava de viagem.
— E a senhora?
— Está no campo, na fábrica!
Quando volta o Senhor Arnoux?
— Amanhã sem falta!
Iria encontrá-la só; era o momento. Uma voz imperiosa gritava-lhe na consciência: “Vai!”
Mas o Senhor Dambreuse? “Paciência, que se há de fazer! Direi que estava doente.” Correu à estação; depois, no vagão: “Fiz mal, talvez? Ora, que importa!”
À direita e à esquerda estendiam-se planícies verdejantes; o trem rolava; as pequenas casas das estações deslizavam como se fossem cenários, e a fumaça da locomotiva lançava sempre do mesmo lado os seus grossos fiapos, que dançavam sobre a erva durante algum tempo, antes de se dissiparem.
Frédéric, sozinho no seu banco, olhava tudo aquilo, por aborrecimento, mergulhado naquele langor que dá o próprio excesso de impaciência. Mas surgiram guindastes, armazéns. Era Creil.
A cidade, construída na vertente de duas colinas baixas (uma das quais nua, e a outra coroada por um bosque), com a torre da igreja, as casas desiguais e a ponte de pedra, parecia-lhe ter algo de alegre, discreto e bom. Um grande barco chato descia ao sabor da água, que batia no casco, fustigada pelo vento; galinhas, junto do cruzeiro, esgaravatavam na palha; passou uma mulher, com roupa molhada à cabeça.
Transposta a ponte, achou-se numa ilha; à direita viam-se as ruínas de um convento. Um moinho girava, barrando a toda largura o segundo braço do Oise, à margem do qual se encontra a manufatura. As proporções deste edifício impressionaram Frédéric, que sentiu mais respeito por Arnoux. Três passos adiante, entrou numa viela, fechada ao fundo por uma grade.
Ia entrando, quando a porteira o chamou, gritando-lhe:
— Tem licença?
— Para quê?
— Para visitar a manufatura!
Frédéric respondeu, com secura, que vinha procurar o Senhor Arnoux.
— Que Arnoux?
— Mas o dono, o patrão, o proprietário, em suma!
— Não, meu caro senhor, aqui é a fábrica dos Senhores Leboeuf e Milliet!
Certamente, a boa mulher estava gracejando. Chegavam operários; abordou dois ou três; todos deram a mesma resposta.
Frédéric saiu do pátio, cambaleando como um bêbado; tinha um ar tão desorientado que, na Ponte de la Boucherie, um burguês que fumava o seu cachimbo lhe perguntou se procurava alguma coisa. Esse conhecia a manufatura de Arnoux. Ficava em Montataire.
Frédéric procurou uma carruagem, mas só havia na estação. Voltou lá. Uma caleche desconjuntada, puxada por um cavalo velho cujos arreios descosidos pendiam por entre os varais, estacionava diante da sala das bagagens, solitária.
Um garoto ofereceu-se para descobrir o “tio Pilon”. Passados dez minutos voltou: o tio Pilon estava almoçando. Frédéric, impaciente, resolveu ir a pé. Mas a barreira estava fechada. Teve de esperar a passagem de dois trens. Finalmente, precipitou-se através dos campos.
A monotonia da verdura lembrava um enorme bilhar. Dos dois lados da estrada, estendiam-se montes de escórias de ferro, como se fosse cascalho. Um pouco mais adiante, sucediam-se chaminés de fábricas, fumegantes. À sua frente, no alto de uma colina arredondada, erguia-se um pequeno castelo com torreões, e distinguia-se o campanário quadrangular de uma igreja. Mais abaixo, longos muros formavam uma linha irregular por entre as árvores; e, ao fundo, espalhavam-se as casas da aldeia.
Eram casas de um só andar, com escadas de três degraus, feitas de blocos sem argamassa. Ouvia-se, a intervalos, a campainha da porta de uma confeitaria. Passos pesados enterravam-se na lama negra, e caía uma chuva fina tracejando o céu pálido.
Frédéric seguia pelo meio da estrada; acabou por encontrar, à entrada de um caminho, um grande arco de madeira no qual se lia, em letras de ouro: LOUÇAS10.
Não fora sem motivo que Arnoux escolhera a vizinhança de Creil; instalando a sua fábrica o mais perto possível da outra (de nome firmado havia muito) provocava entre o público uma confusão favorável aos seus interesses.
O edifício principal ficava junto à margem de um rio que atravessava os prados. A casa de moradia, rodeada por um jardim, distinguia-se pela escadaria, ornada com quatro vasos, em que se eriçavam cactos. Montículos de terra esbranquiçada secavam debaixo de alpendres; viam-se outros ao ar livre; e, no meio do pátio, achava-se Sénécal, com o seu eterno paletó azul de forro vermelho.
O antigo explicador estendeu-lhe a mão fria.
— Queria ver o patrão? Ele não está.
Frédéric, desconcertado, respondeu estupidamente:
— Bem sei. — Mas, arrependendo-se logo: — É por causa de um assunto que diz respeito à Senhora Arnoux. Ela poderá receber-me?
— Não sei! Há três dias que não a vejo — disse Sénécal.
E pôs-se a desfiar um rosário de queixas. Ao aceitar as condições do fabricante, era na intenção de ficar em Paris, e não de se vir enterrar na aldeia, longe dos amigos, privado de jornais. Mas, paciência! Resignara-se. Todavia, Arnoux parecia não dar a menor importância aos seus méritos. Aliás, era um sujeito de vistas curtas, retrógrado, ignorante como ninguém. Em vez de procurar aperfeiçoamentos artísticos, antes tivesse instalado fornos a carvão e a gás. O homem estava “se enterrando”; e Sénécal acentuou a palavra. Em suma, as suas atuais ocupações não lhe agradavam; e quase intimou Frédéric a falar em seu favor, para lhe aumentarem o ordenado.
— Pode estar descansado! — disse o outro.
Não encontrou ninguém nas escadas. No primeiro andar, deu uma olhadela num compartimento vazio; era o salão. Chamou, muito alto. Ninguém respondeu; certamente, a cozinheira tinha saído, a criada também; por fim, tendo chegado ao segundo andar, empurrou uma porta. A Senhora Arnoux estava só, diante de um armário de espelho. O cinto do chambre entreaberto pendia ao longo dos quadris. O cabelo, inteiramente solto de um lado, caía-lhe como uma onda negra sobre o ombro direito; tinha os dois braços erguidos, retendo com uma das mãos o coque, enquanto, com a outra, espetava-lhe um grampo. Deu um grito, e fugiu.
Depois voltou, corretamente vestida. O busto, os olhos, o roçagar do vestido, tudo o encantou. Frédéric continha-se para não a cobrir de beijos.
— Desculpe-me — disse ela — mas eu não podia...
Ele teve a ousadia de a interromper:
— Contudo... estava muito bem... ainda agora.
Certamente ela achou o galanteio um pouco grosseiro, porque corou. Frédéric receou tê-la ofendido. Ela continuou:
— Que bons ventos o trazem?
Ele não soube que responder; e, depois de um risinho que lhe deu tempo para refletir:
— Se eu lhe dissesse, acreditaria?
— Por que não?
Frédéric contou que tinha tido, numa das últimas noites, um sonho horrível.
— Sonhei com a senhora: vi-a gravemente doente, às portas da morte.
— Oh! Nem eu nem meu marido nunca estamos doentes!
— Foi só com a senhora que sonhei — disse ele.
Ela fitou-o calmamente.
— Os sonhos nem sempre se realizam.
Frédéric balbuciou, procurou as palavras, e lançou-se numa grande tirada sobre a afinidade das almas. Existia uma força capaz de pôr em contato, através dos espaços, duas pessoas, avisá-las do que sentem e fazer com que se juntem.
Ela escutava-o de cabeça inclinada, enquanto sorria com o seu belo sorriso. Ele observava-a disfarçadamente, cheio de alegria, e expandia mais livremente o seu amor sob a facilidade de um lugar-comum. Ela ofereceu-se para lhe mostrar a fábrica; e, como insistisse, Frédéric aceitou.
Para o distrair primeiro com algo divertido, levou-o a uma espécie de museu, que decorava as escadas. Os espécimes pendurados na parede ou pousados em prateleiras atestavam os esforços e as manias sucessivas de Arnoux. Depois de ter procurado o vermelho dos cobres chineses, quisera fazer majólicas, faenza, etrusco, oriental, enfim, tentara alguns dos aperfeiçoamentos realizados mais tarde. Assim, podiam ver-se, na série, grandes vasos cobertos de mandarins, tigelas de reflexos avermelhados, vasos adornados de caracteres árabes, jarros no estilo Renascença e grandes pratos com duas figuras, parecendo desenhados à sanguínea, de maneira delicada e vaporosa. Agora fabricava letras para tabuletas, rótulos para marcas de vinho; mas a sua inteligência não era suficientemente superior para se elevar até a Arte, nem suficientemente burguesa para visar exclusivamente o lucro, de tal maneira que se ia arruinando, sem contentar ninguém. Ambos contemplavam aquelas coisas, quando Marthe passou.
— Não reconheces este senhor? — disse-lhe a mãe.
— Ah! Sim! — replicou ela, cumprimentando-o, no mesmo tempo que o seu olhar, límpido e desconfiado, o seu olhar de virgem, parecia murmurar: “Que vens tu fazer aqui?” e continuou subindo as escadas, de cabeça um pouco de lado.
A Senhora Arnoux conduziu Frédéric ao pátio, depois explicou com ar muito sério como se mói o barro, como se limpa, como se peneira.
— O mais importante é a preparação da pasta.
E fê-lo entrar numa sala cheia de tinas, onde girava pesadamente um eixo vertical munido de braços horizontais. Frédéric estava arrependido por não ter recusado terminantemente o convite, havia pouco.
— São as “patas-chocas” — explicou ela.
Frédéric achou a palavra grotesca e como que indecente, na boca da Senhora Arnoux. Largas correias iam de uma ponta à outra do teto, enrolando-se em tambores, e tudo se agitava sem parar, de maneira matemática, irritante.
Saíram dali e passaram ao lado de uma cabana em ruínas, que servira outrora para guardar instrumentos de jardinagem.
— Já não serve para nada — disse a Senhora Arnoux.
Ele replicou, numa voz trêmula:
— A felicidade poderia caber lá dentro!
O estrondo da bomba a vapor abafou-lhe as palavras, e entraram na oficina de modelagem.
Os operários, sentados a uma mesa estreita, tinham diante de si, sobre um disco giratório, um bolo de barro; com a mão esquerda cavavam o interior, enquanto com a direita acariciavam a superfície, e os vasos tomavam forma, como flores que se abrissem.
A Senhora Arnoux mandou que lhe mostrassem os moldes para os trabalhos mais difíceis.
Noutro compartimento faziam-se os filetes, as molduras côncavas, as linhas salientes. No andar de cima, tiravam-se as excrescências e tapavam-se com gesso os pequenos orifícios deixados pelas operações anteriores.
Em prateleiras, pelos cantos, no meio dos corredores, por toda a parte se amontoavam peças de louças.
Frédéric começava a aborrecer-se.
— Está talvez fatigado? — disse ela.
Receando que isso pusesse termo à visita, Frédéric fingiu, pelo contrário, o maior interesse. Tinha até pena de não se ter dedicado a tal indústria.
Ela pareceu surpreendida.
— Mas certamente! Teria podido viver a seu lado!
E, como procurasse o olhar dela, a Senhora Arnoux, para o evitar, pegou algumas bolas de massa que havia sobre uma prateleira, provenientes de emendas inutilizadas, alisou-as numa placa e moldou nela a mão.
— Posso levar isso? — disse Frédéric.
— Que criança é, meus Deus!
Ele ia responder, quando Sénécal entrou.
O senhor subdiretor deu conta, mal entrou, de uma infração ao regulamento. As oficinas deviam ser varridas todas as semanas; era sábado, e, como os operários não o tivessem feito, Sénécal comunicou-lhes que teriam que ficar mais uma hora. — Tanto pior para vocês!
Eles inclinaram-se sobre as peças, sem murmurar; mas adivinhava-se a cólera pelo arfar rouco do peito. Alias, não era fácil lidar com eles, pois todos tinham sido despedidos da grande fábrica. O republicano dirigia-os com dureza. Homem de teorias, só considerava as massas, mostrando-se implacável para com os indivíduos.
Frédéric, incomodado pela presença dele, perguntou em voz baixa à Senhora Arnoux se não seria possível ver os fornos. Desceram ao rés-do-chão; e ela estava explicando o funcionamento das cubas, quando Sénécal, que os acompanhara, se interpôs.
Ele próprio continuou a demonstração, discorrendo sobre as várias espécies de combustíveis, maneira de enfornar, os periscópios, os alandiers, os engobes11, os lustres e os metais, prodigalizando os termos de química, cloreto, sulfato, bórax, carbonato. Frédéric não entendia uma palavra, e a todo minuto voltava-se para a Senhora Arnoux.
— Você não presta atenção — disse ela. — Contudo, o Senhor Sénécal é bem claro. Sabe todas essas coisas muito melhor do que eu.
O matemático, envaidecido com o elogio, propôs a visita à sala onde se dava a cor. Frédéric lançou um olhar ansioso à Senhora Arnoux. Mas ela ficou impassível, não querendo, certamente, nem ficar sozinha com ele, nem deixá-lo. Frédéric ofereceu-lhe o braço.
— Não! Muito obrigada! A escada é demasiado estreita!
E, quando chegaram lá em cima, Sénécal abriu a porta de uma sala cheia de mulheres.
Elas manejavam pincéis, frascos, conchas, placas de vidro. Ao alto da parede, viam-se estampas gravadas; esvoaçavam pedaços de papel fino; e um calorífero de ferro exalava uma temperatura irritante, a que se misturava o cheiro da terebintina.
Quase todas as operárias estavam miseravelmente vestidas. Destacava-se uma, porém, de lenço na cabeça e compridos brincos. Ao mesmo tempo delgada e bem torneada, tinha grandes olhos negros e lábios carnudos de negra. O seio abundante soerguia-lhe a blusa, presa na cintura pelo cordão da saia; com um cotovelo apoiado na mesa, e o outro braço pendente, olhava vagamente para os campos, ao longe. A seu lado, espalhados na mesa, havia alguns frios e uma garrafa de vinho.
O regulamento proibia comer nas oficinas, medida de limpeza para o trabalho e de higiene para os operários.
Sénécal, por sentimento do dever ou por imperativo despótico, gritou de longe, apontando um aviso metido num caixilho.
— Ei! Aí a Bordalesa! Leia-me em voz alta o artigo 9.
— Está bem; e daí?
— Daí, menina? São três francos de multa que vai pagar!
Ela olhou para Sénécal de frente, impudicamente:
— Pouco me importa! O patrão, quando voltar, anula-me a multa! Não me mete medo, homenzinho!
Sénécal, que passeava de mãos atrás das costas, como um vigilante de sala de estudo, limitou-se a sorrir.
— Artigo 13, insubordinação, dez francos!
A Bordalesa voltou ao trabalho. A Senhora Arnoux, por compostura, não dissera nada, mas franziu as sobrancelhas. Frédéric murmurou:
— Arre! Para democrata, você é de uma dureza!
O outro respondeu, com ar professoral:
— A Democracia não é a devassidão do individualismo. É o nível comum debaixo da lei, a divisão do trabalho, a ordem!
— Está esquecendo a humanidade! — disse Frédéric.
A Senhora Arnoux tomou-lhe o braço; Sénécal, talvez ofendido por aquela aprovação sem palavras, foi-se embora.
Frédéric sentiu com isso imenso alívio. Desde manhã esperava uma oportunidade para se declarar; aí a tinha. Aliás, o movimento espontâneo da Senhora Arnoux parecia-lhe cheio de promessas; e alegando ter os pés frios, pediu que fossem para o quarto dela. Mas, depois de sentado a seu lado, sentiu-se embaraçado; faltava-lhe o ponto de partida. Sénécal, felizmente, veio-lhe à lembrança.
— Não há coisa mais tola — disse ele — do que aquele castigo!
A Senhora Arnoux retorquiu:
— Há severidades necessárias.
— Como pode dizer isso, a senhora, que é tão bondosa! Oh! Estou mentindo! Porque às vezes gosta de fazer sofrer!
— Não compreendo enigmas, meu amigo.
E o seu olhar austero, ainda mais do que as palavras, impuseram-lhe silêncio. Mas Frédéric estava decidido a prosseguir. Um volume de Musset achava-se por acaso em cima da cômoda. Folheou algumas páginas, e pôs-se a falar do amor, dos seus desesperos e dos seus arrebatamentos.
Tudo isso, na opinião da Senhora Arnoux, era criminoso ou fingido.
Frédéric sentiu-se atingido por essa negação; e, para a combater, citou como prova os suicídios que se veem nos jornais, exaltou os grandes tipos literários, Fedra, Dido, Romeu, Desgrieux. Metia os pés pelas mãos.
O lume da lareira apagara-se, a chuva fustigava as vidraças. A Senhora Arnoux permanecia imóvel, com as mãos apoiadas nos braços da poltrona; as fitas da touca lembravam os planejamentos de uma esfinge; o seu perfil puro destacava-se, pálido, na obscuridade.
Frédéric tinha vontade de se lhe lançar aos pés. Mas, como qualquer coisa tivesse estalado no corredor, ele não se atreveu.
Impedia-lho, aliás, uma espécie de temor religioso. Aquele vestido, que se confundia com as trevas, afigurava-se-lhe desmedido, infinito, impossível de erguer; precisamente por causa disso o seu desejo exacerbava-se. Mas o medo de fazer demais e de não fazer o suficiente tirava-lhe toda a capacidade de discernimento.
“Se lhe desagrado, pensava, que me escorrace! Se me quer, que me estimule!”
E disse, com um suspiro:
— Então não admite que se possa amar... Uma mulher?
A Senhora Arnoux replicou:
— Sendo livre, desposa-se; se pertence a outro, vai-se para longe dela.
— Então, a felicidade é impossível?
— Não! Mas não se encontra nunca na mentira, nas inquietações e no remorso.
— Que importa, se isso for pago por alegrias sublimes!
— A experiência sai demasiado cara!
Frédéric quis atacá-la pela ironia.
— A virtude não será apenas covardia?
— Diga antes que é sagacidade. Mesmo para aqueles que fossem capazes de esquecer o dever ou a religião, o simples bom-senso pode ser suficiente. O egoísmo é uma sólida base da prudência.
— Ah! Como as suas máximas são burguesas!
— Mas eu não pretendo passar por uma dama da alta roda!
Nesse momento, o filho entrou no quarto.
— Mamãe, não vens jantar?
— Sim, vou já.
Frédéric levantou-se; ao mesmo tempo chegou Marthe.
Ele não podia decidir-se a partir, e disse, com olhar suplicante:
— Essas mulheres de que fala são então completamente insensíveis?
— Não! Mas são surdas quando assim é necessário.
Mantinha-se de pé, no limiar do quarto, com um filho de cada lado. Frédéric inclinou-se, sem dizer palavra. Ela respondeu silenciosamente ao cumprimento.
O que Frédéric sentiu a princípio foi uma estupefação imensa. Aquela maneira de lhe fazer compreender a inanidade das suas esperanças deixou-o sucumbido. Sentia-se perdido, como quem, caído ao fundo de um abismo, sabe que ninguém o virá socorrer e a morte o espera.
Caminhava, todavia, mas sem nada ver, ao acaso; tropeçava nas pedras; enganou-se no caminho. Chegou-lhe aos ouvidos um bater de tamancos; eram os operários que saíam da fundição. Então voltou a si.
No horizonte, as lanternas da estrada de ferro traçavam uma linha de luzes. Chegou no momento em que partia um trem, deixou-se empurrar para um vagão, e adormeceu.
Uma hora depois, nos bulevares, a alegria do Paris noturno fez de súbito recuar a sua viagem para um passado muito distante. Quis ser forte, e aliviou o coração cobrindo a Senhora Arnoux com epítetos injuriosos:
“É uma idiota, uma imbecil, uma estúpida, não se pensa mais nela!”.
Ao chegar em casa, encontrou no escritório uma carta de oito páginas, em papel azul, com as iniciais R. A.
Começava por amistosas queixas:
“Que é feito de você, meu caro? Aborreço-me!”
Mas a letra era tão horrorosa que Frédéric ia deitá-la fora quando leu, em pós-escrito:
“Conto com você para me levar amanhã às corridas”.
Que queria dizer aquele convite? Seria mais uma treta da Marechala? Mas não se faz pouco do mesmo homem duas vezes a propósito de nada; e, tomado de curiosidade, releu a carta com atenção.
Frédéric conseguiu ler: “Mal-entendido... tinha seguido caminho errado... desilusões... Que pobres crianças nós somos!... Como dois rios que se juntam! etc.”.
Aquele estilo contrastava com a linguagem habitual da mundana. Que mudança teria havido?
Conservou as folhas na mão durante muito tempo. Cheiravam a íris; e havia, na forma das letras, na desordem das linhas, como que um desalinho de toilette que o perturbou.
“Por que não hei de ir?”, disse finalmente de si para si. “Mas se a Senhora Arnoux viesse a saber? Ora! Pois que saiba! Tanto melhor! E que tenha ciúmes! Ficarei vingado!”
IV
A Marechala, já pronta, esperava por ele.
— Ah, como você é gentil — disse-lhe, fitando-o com os lindos olhos, ao mesmo tempo meigos e risonhos.
Depois de ter amarrado as fitas do chapéu, sentou-se no sofá, e ficou calada.
— Vamos? — disse Frédéric.
Ela olhou para o relógio.
— Oh! Não! Só daqui a uma hora e meia — como se ela própria tivesse marcado esse limite à sua indecisão.
Finalmente, como a hora tivesse chegado:
— Bem, andiamo, caro mio!
E deu um último toque aos bandós, fez recomendações a Delphine.
— A senhora vem jantar?
— Por quê? Iremos jantar os dois em qualquer parte, no Café Anglais, onde quiser!
— Seja!
Os cachorrinhos latiam em volta dela.
— Podemos levá-los, não é assim?
O próprio Frédéric levou-os até a carruagem. Era uma berlinda de aluguel, com dois cavalos de posta e um postilhão; Frédéric instalara o seu criado no lugar de trás. A Marechala pareceu satisfeita com estas atenções; depois, mal se sentou, perguntou-lhe se tinha ido ultimamente à casa de Arnoux.
— Há um mês que não vou lá — disse Frédéric.
— Encontrei-o anteontem, ele pensava mesmo vir hoje. Mas tem uma porção de complicações, mais um processo, nem sei o quê. Que homem engraçado!
— Sim! Muito engraçado!
Frédéric acrescentou, com ar indiferente:
— A propósito, continua a ver... como é que ele se chama?... esse antigo cantor... Delmar?
Ela replicou, secamente:
— Não! Acabou.
Assim, não havia dúvida de que tinham rompido. Isso deu esperanças a Frédéric.
Desceram a passo o bairro de Bréda; as ruas, como era domingo, estavam desertas, e viam-se, por trás das janelas, caras de burgueses. A carruagem rodou mais depressa; o barulho das rodas fazia voltarem-se os transeuntes, o couro da capota descida brilhava, o criado perfilava-se, e os cachorrinhos, um ao lado do outro, pareciam dois regalos de arminho, pousados sobre as almofadas. Frédéric abandonava-se ao embalo das molas. A Marechala voltava a cabeça para um lado e para outro, sorrindo.
O seu chapéu de palha nacarada tinha uma guarnição de renda preta. O capuz do albornoz flutuava ao vento; e abrigava-se do sol com uma sombrinha de cetim lilás, aguçada como um pagode.
— Que amor de dedinho! — disse Frédéric, pegando-lhe delicadamente na outra mão, a esquerda, adornada com um bracelete de ouro, em forma de corrente. — Ah, que coisa delicada; de onde veio isto?
— Oh! Já o tenho há muito tempo — disse a Marechala.
O jovem não fez objeção a essa resposta hipócrita. Preferiu “tirar proveito das circunstâncias”. E, sem lhe largar o pulso, beijou-o, entre a luva e o punho do vestido.
— Pare, olhe que vão ver!
— Ora! Que importância tem isso!
Depois da Praça de la Concorde, seguiram pelo cais de la Conférence e pelo cais de Billy, onde se destaca um cedro dentro de um jardim. Rosanette julgava que o Líbano era na China; ela própria riu da sua ignorância, e pediu a Frédéric que lhe desse lições de geografia. Em seguida, deixando à direita o Trocadéro, atravessaram a Ponte d’Iéna, e pararam finalmente, no meio do Champ de Mars, junto das outras carruagens, já enfileiradas no Hipódromo1.
Os canteiros de grama estavam cheios de populares. Viam-se curiosos na sacada da Escola Militar; e nos dois pavilhões fora da pesagem, e nas duas tribunas dentro dela e, numa terceira diante da tribuna real, uma multidão endomingada manifestava, pela sua atitude, deferência por esse novo divertimento. O público das corridas, nessa época mais restrito, tinha um aspecto menos vulgar; era a época das presilhas, das golas de veludo e das luvas brancas. As mulheres, vestidas de cores brilhantes, usavam vestidos de corpo comprido e, sentadas nos degraus dos estrados, lembravam grandes maciços de flores, aqui e ali pontilhados de negro pelos trajes sombrios dos homens. Mas todos os olhares se voltavam para o célebre argelino Bu-Maza2, que se mantinha impassível, entre dois oficiais de Estado-Maior, numa das tribunas reservadas. Na do Jóquei Clube viam-se unicamente senhores com ar grave.
Os mais entusiastas tinham-se instalado embaixo, junto da pista, isolada por duas linhas de estacas, que suportavam cordas; no imenso oval que esta aleia formava, vendedores de coco agitavam as matracas, outros vendiam o programa das corridas, outros apregoavam charutos, e um vasto rumor se estendia; os guardas municipais iam e vinham; uma sineta, pendente de um poste cheio de números, tilintou. Cinco cavalos surgiram, e toda a gente voltou para as tribunas.
— Eu trouxe guarda-chuvas — disse Frédéric — e tudo o que é preciso para nos distrairmos — acrescentou, erguendo a tampa da mala, na qual havia um cesto com provisões de boca.
— Bravo! Vejo que nos compreendemos!
— E ainda havemos de nos compreender melhor, não é assim?
— Quem sabe! — disse ela, corando.
Os jóqueis, de boné de seda, tentavam pôr em linha os cavalos, retendo-os com ambas as mãos. Alguém abaixou uma bandeira vermelha. Então, os cinco partiram ao mesmo tempo, inclinando-se sobre as garupas. A princípio, permaneceram unidos num bloco único; mas este não tardou a distender-se, e fragmentou-se; o jóquei de boné amarelo quase caiu, no meio da primeira volta; a situação esteve durante muito tempo indecisa entre Filly e Tibi; depois, Tom Pouce apareceu à frente; mas Clubstick, na retaguarda desde o início, alcançou-os e chegou em primeiro lugar, batendo Sir Charles por duas cabeças; foi uma surpresa; houve gritos; o tablado das tribunas vibrava sob o bater dos pés.
— Como a gente se diverte! — disse a Marechala. — Adoro-te, meu querido!
Frédéric não teve mais dúvidas sobre a sua felicidade; a última frase de Rosanette confirmava-a.
À distância de uns cem passos, num cabriolé milorde, surgiu uma dama. Inclinava-se sobre a portinhola, depois, subitamente, recolhia-se; isso repetiu-se várias vezes. Frédéric não podia distinguir-lhe o rosto. Assaltou-o uma suspeita, parecia-lhe ser a Senhora Arnoux. Contudo, era impossível! Por que teria ela vindo? Desceu da carruagem, a pretexto de ir dar uma volta pela pesagem.
— Não é nada gentil, você! — disse Rosanette.
Ele não lhe deu atenção, e prosseguiu. O milorde, arrepiando caminho, seguiu a trote.
Nesse exato momento, Frédéric foi agarrado por Cisy.
— Bom-dia, meu caro! Como tem passado? Hussonnet está aí! Ouça!
Frédéric procurava livrar-se dele para ir atrás do milorde. A Marechala fazia-lhe sinal que voltasse para junto dela. Cisy avistou-a, e queria por força ir cumprimentá-la.
Desde que acabara o luto pela avó, realizava o seu ideal, conseguia “ter estilo”. Colete escocês, casaca curta, calça de boca de sino sobre os escarpins, o bilhete de entrada metido no chapéu, nada faltava, com efeito, ao que ele chamava o seu “chique”, um chique anglômano e à mosqueteiro. Começou por se queixar do Champ de Mars, turfe execrável, falou depois das corridas de Chantilly e das brincadeiras que lá se faziam, jurou ser capaz de beber doze taças de champanha enquanto batiam as doze badaladas da meia-noite, sugeriu à Marechala que apostasse, e acariciava os dois cachorrinhos; e, apoiando-se com o outro cotovelo na portinhola, continuava a dizer tolices, metendo na boca o punho do pingalim, de pernas abertas, aprumando-se muito. A seu lado, Frédéric fumava, enquanto procurava descobrir onde estaria o milorde.
A sineta tilintou, e Cisy foi-se embora, com grande satisfação de Rosanette, a quem aborrecia muito, dizia ela.
A segunda prova não teve nada de particular, a terceira também não, exceto um homem que foi levado de maca. A quarta, em que oito cavalos disputaram o Prêmio da Cidade, foi mais interessante.