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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ESCOLHA DE ELPHANE / P.C. Cast
A ESCOLHA DE ELPHANE / P.C. Cast

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Embora muitas garotas pensem que são diferentes, Elphame tem certeza de que é única. Uma mistura perfeita entre humano, centauro e deusa. Ninguém em Partholon possuía as mesmas habilidades que ela. Nem uma ligação tão direta com Epona, a divindade de seu povo. Ainda que ela nunca a tivesse sentido...
Para completar, havia chegado a hora de Elphame descobrir seu destino. E ela queria partir logo para o Castelo MacCallan, um lugar amaldiçoado depois da invasão dos fomorianos, e reconstruí-lo das ruínas. Mas eles ainda estavam à espreita, ameaçando a continuidade de Partholon.
Elphame seria capaz de salvar seu reino e ainda redimir sua alma gêmea de uma terrível profecia? Sua escolha poderia levar todos à desgraça. Ou a um futuro em que não estaria sozinha...

 

 

 


 

 

 


AQUELE DIA HAVIA começado com uma normalidade enganadora.
A oferenda da alvorada para Epona havia sido particularmente comovente. A Deusa preenchera Etain tão completamente que o brilho de Sua presença foi carregado por
ela durante toda a manhã. Para variar, teve a permissão de ficar algum tempo sozinha - temporariamente livre dos deveres de Deusa Encarnada.
As contrações começaram com uma vaga sensação de inquietude. Ela não conseguia encontrar um lugar confortável na chaise-longue bem estofada. Repreendeu com impaciência
incomum a zelosa serva que veio verificar se sua senhora precisava de mais água quente. Nem mesmo a ideia de um longo banho na piscina de águas minerais parecia
atraente.
Etain esperava que um passeio por seu magnífico jardim ajudasse a aliviar o que pensava ser apenas uma pequena dificuldade de digerir os morangos do almoço. A caminhada
parecia estar ajudando - até ela parar para cheirar uma lustrosa flor carmim e a água romper com violência sobre as sapatilhas revestidas de seda da Deusa Encarnada.
A normalidade também estava rompida.
- Não é sempre assim? - Ela fez uma careta e trincou os dentes enquanto outra onda de dor cobria seu corpo. Curvando-se para a frente, apoiou-se pesadamente na mulher
cujo braço estava enlaçado ao seu.
- Shh, Etain - falou Fiona em tom confortador no seu leve e melódico sotaque. - Não fale, minha amiga. Apenas se concentre na respiração.
Etain sacudiu a cabeça numa apressada concordância e tentou combinar seus arquejos com a respiração calma e profunda de Fiona. A contração chegou ao apogeu e retrocedeu.
Sobreveio um alvoroço de atividade. As roupas da Deusa Encarnada foram trocadas por seu grupo de criadas, que depois começaram a alertar as Mulheres Sábias que viviam
nas aldeias próximas ao Templo de Epona. Enrolando o braço na cintura de Fiona, e usando sua presença vigorosa para ganhar força, Etain continuou seu passeio pelos
jardins do templo. A amiga e conselheira da Escolhida tinha garantido que andar ajudaria no nascimento da criança.
Enquanto o dia se arrastava metodicamente, a imagem de oásis de tranquilidade de Etain se dissipou, mas o resíduo da posse matinal de Epona a acalmava - como sempre,
a Escolhida de Epona recorreu ao familiar fio que a ligava à Deusa e encontrou força e conforto.
Fiona sorriu com encorajamento, e as duas mulheres se viraram, voltando na direção das janelas que iam do chão ao teto e ligavam os aposentos de Etain ao jardim
particular. Cortinas diáfanas da cor de ouro líquido flutuavam de dentro dos vitrais que serviam de porta e janela. A Deusa Encarnada respirou fundo, tentando estabilizar
os batimentos do coração e preparar-se para a inevitável contração seguinte.
- Acho que essa é a pior parte. - Como sempre, falou para Fiona o que lhe vinha à mente.
- O quê? - Ela olhou pensativa para sua amiga e senhora.
- A inevitabilidade do que está acontecendo. Não posso detê-la. Não posso pausá-la. Nem mesmo posso afetá-la. A verdade é que eu gostaria de dizer "Foi interessante,
mas estou pronta para parar com isso agora. Quero tomar banho, comer uma refeição decente e ter uma boa noite de sono. Vamos retomar daqui amanhã, sim?".
A expressão de curiosidade educada de Fiona se transformou numa gargalhada esfuziante.
- Isso seria bom.
- Bom? - Ela fez uma careta nada divinal. - Seria maravilhoso.
Etain respirou fundo outra vez, apreciando a intoxicante doçura da floração voraz das lilases que emolduravam aquela parte da caminhada. A trilha se curvou à esquerda
e as lilases abriram espaço para uma profusão de rosas de tonalidade violeta, que estavam florescendo. As cortinas delicadas ondulavam na entrada e flutuavam como
as asas de borboletas gigantes sobre as pontas das rosas. Elas pararam a poucos passos dos aposentos que abrigaram a Amada de Epona de Partholon por incontáveis
gerações. A brisa carregava o som encantador de mulheres cantando louvores: "Somos o fluxo da água
Maré alta ou vazante
A torrente de sabedoria
De verdade abundante"
As palavras se costuravam numa harmonia de escalas. O ritmo subjacente era hipnótico. Aquilo atraiu a Escolhida de Epona e acalmou seus nervos desgastados. Lentamente,
o corpo inchado relaxava à medida que Etain era preenchida pela canção de saudação das mulheres.
"Somos o som vicejante
De uma raiz divinal
Plena de força e sabedoria
Uma semente eternal"
As palavras impulsionaram Etain, que entrou com impetuosidade nos aposentos. As Mulheres Sábias enchiam o cômodo. Com a aparição da Deusa Encarnada, o ritmo da canção
aumentou. Girando com graça, elas pareciam flutuar pelo quarto até Etain e Fiona formarem o centro do círculo jubiloso.
"Somos a alma feminina
Um presente de amor
Tão rico em sabedoria
O aclamamos com louvor!"
Com a palavra louvor, as mulheres ergueram os braços para a abóbada e rodopiaram, sussurrando juntas a melodia. A vestimenta de seda que trajavam fluía ao redor
dos corpos como folhas caindo, enquadrando-as em raios cintilantes de luz mutável. Todas as mulheres estavam sorrindo, como se estivessem tomando parte num evento
de tamanho grandioso que tornava impossível o comedimento, tanto que a felicidade transbordava de seus corpos. Enquanto Fiona ajudava sua senhora a se acomodar nas
almofadas da chaise-longue, podia-se ver com clareza um brilho informe delinear cada dançarina tal qual halos espirituais.
- Magia - murmurou Etain.
- Claro - respondeu Fiona em seu tom sensato. - Esperaria menos no nascimento de uma deusa?
- Claro que não. - Mas a verdade era que apesar de Etain ser a Escolhida de Epona há quase uma década, era fácil ficar espantada com o poder da Deusa.
A canção acabou e as dançarinas saíram com graciosidade do círculo. Algumas se aproximaram de Etain, cada qual com um sorriso e uma palavra gentil: - Epona a encheu
de bênçãos, Escolhida.
- É um grande dia para a Deusa, Amada de Epona.
Vistas separadamente, elas perdiam um pouco da magia e mais uma vez se tornavam o que eram: simples mulheres humanas que estavam ali para auxiliar e encorajar o
nascimento de uma criança muito esperada. Variavam em idade e beleza, mas todas tinham um único pensamento.
A contração seguinte começou no alto do abdome de Etain. Ela se sentiu tensa. A dor chegou ao cume. A contração a tomou, tremulando por seu corpo. Era uma onda na
qual ela estava se afogando.
Uma jovem aninhou os ombros de Etain nas mãos.
- Não lute, Deusa. - A voz murmurou com suavidade no ouvido da mulher em trabalho de parto. - Não é uma batalha a ser vencida. Pense nisso como se fosse o vento.
A voz de outra mulher falou com sinceridade depois que a primeira se calou: - Deixe que a preencha, Escolhida.
Outra mulher ainda acrescentou:
- Sim, voe com ele, minha senhora.
- E respire comigo, Etain. - O rosto tranquilizador de Fiona surgiu à vista. A Deusa Encarnada lutou para desacelerar a respiração enquanto era varrida no vórtice
da contração.
Depois de uma série de momentos intermináveis, a dor se foi temporariamente. Um pano frio e úmido limpava o suor da testa de Etain. Fiona levou uma taça de água
clara e gelada aos lábios entreabertos da amiga.
- Deixe-me ver o progresso, minha senhora.
Etain abriu os olhos para espreitar o calmo olhar ciano da curandeira. Era uma loira de constituição robusta, de meia-idade, que carregava consigo o inconfundível
ar de confiança de uma mulher que conhecia intimamente seu trabalho e o executava bem. A Escolhida assentiu e obedientemente ergueu os joelhos. Estava vestindo apenas
uma camisola de algodão na cor creme, tão fina que parecia ter sido fiada com nuvens. A curandeira empurrou a camisola pela cintura inexistente de Etain. O toque
foi gentil e eficiente.
- Está indo bem, Amada da Deusa. - Sorriu de maneira encorajadora e deu-lhe tapinhas na coxa antes de rearrumar a roupa de Etain.
- Mais quanto tempo? - perguntou, cansada.
A curandeira encontrou o olhar da Deusa Encarnada, compreendendo sua impaciência.
- Só a Deusa pode dizer com certeza, minha senhora, mas acho que não vai demorar muito a acolha sua filha.
Etain sorriu e assentiu antes que a curandeira desaparecesse no grupo de mulheres, a quem dava ordens com uma voz feita de aço aveludado. Fiona curvou-se para afastar
um cacho fujão do rosto úmido da amiga.
- Ele não vai chegar aqui a tempo, vai? - Etain não pôde deter o tremor na voz.
- Claro que vai - disse Fiona com firmeza.
- Não devia ter insistido para que ele se fosse. Em que eu estava pensando?
Fiona tentou sem sucesso reprimir a risada ao responder: - Deixe-me ver... Ah, sim! Acho que lembro o que você disse. Algo sobre esfolar a pele dele caso não largasse
do seu pé e parasse de perguntar como estava se sentindo a todo instante. - Ela imitou o tom com tanta exatidão que fez várias das mulheres próximas rirem.
- Sou uma tola - gemeu Etain. - Só uma tola mandaria o marido embora quando está tão grávida a ponto de dar à luz a qualquer momento.
- Minha amiga. - Fiona sentou-se perto de Etain e apertou-lhe a mão. - Midhir estará aqui a tempo para o nascimento da filha. Sabe que Moira o encontrará.
E ela sabia. Ao menos a mente da Deusa Encarnada lhe dizia que era óbvio que Moira, a caçadora-chefe de Partholon, seria capaz de rastrear e encontrar seu marido,
que fora enxotado na véspera na companhia de vários de seus camaradas para uma caçada que duraria toda a noite (e ela se encolheu ao lembrar-se do nítido aborrecimento
na voz ao dizer a ele que a caçada duraria o dia inteiro também). Mas seu coração e seu corpo em trabalho de parto diziam que o bebê chegaria em breve. Com ou sem
a presença do pai.
- Preciso dele aqui, Fiona. - Lágrimas fizeram sua visão tremular.
Antes que Fiona pudesse responder, outra contração começou a crescer, fazendo Etain apertar-lhe a mão.
- Oh! Esta é forte. - Etain ofegou, sentindo-se um pouco nauseada e amedrontada.
E então a Escolhida foi envolvida pelas vozes calmas e tranquilizadoras das mulheres que cantarolavam a melodia da canção de nascimento. Em harmonia com o ritmo,
várias delas falavam em júbilo, uma por vez.
- Estamos a senhora.
- Está indo bem!
- Respire com Fiona, Escolhida.
- Relaxe, deusa. Lembre que cada dor traz sua filha para mais perto deste mundo.
- Não podemos esperar para saudá-la, minha senhora!
As vozes delas se tornaram as rochas de Etain, que as usou para ancorar a concentração quando mais uma vez combinou a respiração com os sopros calmos de Fiona. Entregou-se
à fase final da contração e conseguiu sorrir com apreço para as mulheres ao redor.
As mulheres riram num som doce que era contagiante. Etain descansou uma das mãos no estômago inchado enquanto uma risadinha escapava de seus lábios. Fechou os olhos,
desejando que o corpo relaxasse e descansasse.
Oh, por favor, por favor, faça com que ele chegue a tempo.
Paciência, Amada. A voz formigava na mente de Etain. Seus lábios se curvaram diante da gentil repreensão. O xamã não perderá o nascimento da filha.
- Obrigada, Epona - murmurou. Tranquilizada pela promessa da Deusa, sentiu uma nova onda de energia. - Fiona! Vamos caminhar novamente.
- Está segura disso, Etain? - A testa de Fiona se enrugou de preocupação.
- Você disse que caminhar faria a criança vir mais rápido. - Etain estendeu as mãos para que Fiona a ajudasse a levantar-se desajeitadamente da chaise. - E agora
me parece que quanto mais rápido, melhor. - Ela piscou, então a preocupação no rosto de Fiona diminuiu. A Escolhida girou a cabeça e sorriu para o grupo de mulheres
presentes. - Senhoras, por favor, cantem para mim enquanto apresso a chegada da minha filha.
As mulheres bateram palmas com alegria. Algumas irromperam numa pequena dança de celebração que fez a magia cintilar em seu rastro. Com os braços entrelaçados, as
duas mulheres caminharam devagar através das cortinas diáfanas.
Etain respirou fundo.
- Sentirei falta de estar grávida por causa disso. - Fiona a fitou indagadora. - Meu incrível olfato. Durante toda a gravidez meu olfato esteve bem aguçado. - Ela
caminhou desengonçada até a roseira mais próxima e, com delicadeza, passou um dedo pelas pétalas aveludadas antes de continuar pela trilha.
- Sim, isso é incrí... - A palavra terminou num resmungo quando a contração seguinte a tomou de surpresa.
- Devagar, lembre-se de não lutar, Etain - falou Fiona baixinho ao ouvido da amiga, que se apoiava pesadamente nela. - Devemos voltar para junto das outras mulheres?
Etain meneou a cabeça e arfou.
- Não, sinto que posso respirar melhor aqui fora. - A contração cedeu, e ela se endireitou devagar, secando o suor do rosto com a manga. - E gosto do modo como a
canção delas soa na brisa. É como se o mundo inteiro estivesse preenchido com a magia do nascimento desse bebê.
Os olhos de Fiona de repente cintilaram com lágrimas, e ela abraçou Etain.
- Está, minha senhora, está!
A Escolhida da Deusa tirou a dor de sua mente ao focalizar as suas bênçãos conforme continuavam a hesitante caminhada pelo jardim. A nação de Partholon honrava muitos
deuses e deusas, mas Epona sempre teria um lugar especial no coração de seu povo.
Epona sopra vida ao céu da manhã, o rosto de Epona se reflete na lua cheia. Ela é a Deusa Guerreira do Cavalo, e também a Ofertante dos Frutos da Colheita. E Partholon
sempre a reverenciaria como protetora. Foi a Escolhida de Epona, junto com seu companheiro xamã, quem repeliu a invasão dos demoníacos fomorianos e salvou Partholon
da escravidão. Se os quase cem anos desde a guerra fomoriana importavam pouco nas mentes e nos corações dos partholonianos, a dádiva de Epona nunca seria esquecida,
e sua Amada sempre seria honrada.
Ela era a Amada da Deusa, a Escolhida de Epona, Etain lembrou a si mesma enquanto ofegava durante outra contração. E isso significava que seu primogênito seria uma
menina, e que ela também seria tocada pela Deusa. Seria a neta da lendária Rhiannon, destruidora de fomorianos. A ideia de que sua filha provavelmente estivesse
destinada a sucedê-la como Escolhida de Epona era excitante e fazia o tédio do trabalho de parto um tanto mais fácil de suportar.
A onda da contração seguinte dispersou os pensamentos de Etain, que rapidamente compreendeu que esta era diferente das outras. Veio acompanhada por uma profunda
sensação de ardência e uma necessidade de empurrar tão devastadora que a fez ofegar. Os joelhos cederam e Fiona lutou para guiá-la gentilmente até o chão.
- Preciso empurrar - arfou ela.
- Espere! - disse Fiona com severidade, depois gritou por cima do ombro na direção dos aposentos: - Mulheres! Venham até mim! A Deusa precisa de vocês!
Etain não conseguia saber se alguém a ouvira porque todo seu ser estava concentrado em seu interior. A urgência de empurrar era selvagem, primordial, e lutar contra
isso custou toda a força do temor pela vida da filha.
Então um som penetrou a concentração da Escolhida, cuja alma pulou de alegria quando o reconheceu. Era o som de cascos batendo no chão firme da trilha. Etain piscou
para afastar o suor dos olhos quando o centauro brotou numa curva da trilha e deslizou sobre os joelhos diante dela.
- Aqui, amor. Tudo vai ficar bem agora. Coloque seus braços ao redor dos meus ombros. - A voz profunda do marido parecia afugentar a dor conforme a contração abrandava
e depois se dissipava por completo.
Sem dizer nada, ela envolveu os ombros de granito com os braços e deixou a cabeça tombar no marido, que a ergueu sem esforço. Em poucas passadas longas, os aposentos
estavam à vista. Segundos depois, Midhir deitava a esposa com gentileza na chaise-longue. Ela o agarrou, mas não precisava ter se preocupado. Ele não tinha qualquer
intenção de soltá-la.
- Estou tão contente que esteja aqui - disse ela lentamente, ainda tentando recuperar o fôlego.
- Não pertenço a outro lugar que não seja aqui. - Ele sorriu e afastou um cacho frouxo do rosto suado da esposa.
- Tive medo de que não conseguisse chegar. Pensei que Moira não fosse encontrá-lo a tempo.
- Não encontrou - disse ele, com um enigmático encolher dos ombros. - Sua Deusa o fez. - E ele a beijou com carinho.
Oh, Epona, obrigada por trazê-lo para mim a tempo - e obrigada por tê-lo criado para ser meu consorte. Com os olhos cheios de lágrimas, ela observou seu belo marido
centauro afofar as almofadas nas quais estava apoiada. Mesmo depois de cinco anos de casamento, a força e a virilidade de sua forma centáurea ainda a excitavam.
Claro, sendo Sumo Xamã, ele tinha a habilidade de se metamorfosear para que pudessem realmente se unir, mas ela o amava por inteiro e alegrou-se do fato de que a
Deusa tivesse criado um ser tão maravilhoso para ser seu consorte.
Antes que pudesse dizer a ele mais uma vez o quanto o amava, Etain sentiu o movimento da contração seguinte. Seu gemido invocou a curandeira.
- Meu senhor, ajude-nos a colocá-la em posição para o parto. - Ela deu ordens hábeis, e os braços fortes de Midhir mais uma vez ergueram a esposa. Dessa vez ele
ficou por trás, com as mãos unidas por baixo dos braços dela e apoiando com firmeza as costas da esposa contra si, que suportava o peso com facilidade. Fiona ficou
à direita de Etain, segurando-lhe a mão, e outra mulher tomou-lhe a mão esquerda. A Deusa Encarnada olhou para a curandeira, que estava agachada entre suas pernas,
e ficou vagamente surpresa ao perceber que de alguma maneira ficara nua. Os dedos da curandeira a sondaram com gentileza.
- Já está pronta. Deve empurrar com a próxima contração.
E a contração a envolveu. Etain não era mais nada além de um empurrão. Cores brilhantes explodiram nas pálpebras firmemente fechadas. Ela viu salpicos de dourado
e vermelho, ouviu um som gutural, inumano, e com um pensamento estranhamente distante concluiu que devia ser sua própria voz fazendo aquele ruído animalesco. Por
um instante não conseguiu respirar.
Então um cantarolar mudo registrou-se através da neblina do esforço. Etain não conseguia ver as mulheres, mas as sentia. A canção de nascimento a preencheu, e ela
foi capaz de respirar novamente.
- Mais uma vez, Deusa. Vejo a cabeça de sua filha! - encorajou a curandeira.
Ela ouviu a litania das orações sussurradas por Midhir. As palavras na antiga língua dele, que sempre soaram tão mágicas para a esposa, pareceram espelhar o ritmo
da canção de nascimento exatamente quando a contração tomou o controle.
Mais uma vez, Etain se tornou nada além de um empurrão. Estava sendo partida ao meio. Lutando contra o pânico e o medo, sua mente buscou recorrer ao poder que a
cercava. Deixou que o encantamento do círculo de nascimento a preenchesse e concentrou-se em empurrar com o poder combinado da vontade e da magia. Com um sentimento
líquido de liberação, a umidade quente que era sua filha deslizou de seu corpo.
Então o tempo pareceu acelerar e as coisas aconteceram muito rápido. Etain lutou para dar uma olhada na filha, mas só conseguiu ver imagens desconjuntadas da curandeira
embrulhando a forma úmida nas dobras da veste. As mãos da velha mulher tremiam ao cortar o cordão.
Silêncio.
Os joelhos de Etain cederam, então Midhir e Fiona a sustentaram de encontro à chaise.
- Por que ela não está chorando? - arfou Etain.
Os olhos de Midhir se estreitaram de preocupação e ele logo se voltou para a curandeira, que ainda estava encolhida no chão com o pequeno embrulho.
Então o choro doce e forte de um recém-nascido furou o ar, e Etain sentiu o medo amainar. Mas foi só um adiamento temporário, porque, quase imediatamente, ela registrou
o olhar de choque que tinha imobilizado o rosto pálido da curandeira.
As mulheres que as cercavam também haviam notado, pois o jubiloso canto de saudação subitamente cessou.
- Midhir? - Ela soluçou o nome dele numa pergunta.
O centauro se moveu numa velocidade inumana para observar o embrulho que era sua filha chorando com energia. A curandeira ergueu a cabeça, confusão e desalento envidraçando-lhe
o olhar. Rapidamente Midhir dobrou os joelhos e estendeu os braços para desembrulhar a coberta que escondia sua filha. E ficou congelado.
Seu corpo encobria a visão do bebê, por isso Etain lutou contra a exaustão para se sentar e poder enxergar o que estava acontecendo.
- O que foi? - pranteou ela, o estômago apertando com muito mais do que dores do pós-parto.
Suas palavras fizeram um arrepio correr pelo corpo musculoso de Midhir, que então se estendeu e ergueu o bebê do chão. Num único movimento, voltou-se para a esposa,
os olhos iluminados de alegria.
- É nossa filha, meu amor. - A voz estava grossa de emoção. - E ela é uma pequena deusa!
Com essas palavras, ele caminhou até Etain e entregou-lhe com gentileza o embrulho, agora silencioso, porém ainda esperneando. A Escolhida de Epona viu pela primeira
vez a filha.
O primeiro pensamento de Etain não foi de choque ou surpresa, mas simplesmente de que nunca tinha visto algo tão magnificamente belo. Ela era perfeita. Mesmo que
os fluidos do parto ainda a envolvessem, a cabeça do bebê era recoberta com filetes escuros de cabelo de cor âmbar. A pele era de um atraente moreno sedoso, uma
tonalidade entre bronze e ouro. Era exatamente como se alguém tivesse misturado sua pele com a de Midhir, foi o pensamento distraído que fluiu pela mente de Etain,
que estava tomada de assombro. A pele dourada escurecia na cintura, onde o corpo subitamente se tornava coberto por uma fina pelagem, da mesma cor dos cabelos na
cabeça, mas na qual já aparecia pintas nas partes mais secas, como se fosse o pelo de uma corça recém-nascida. Ela se contorceu e chutou com as duas pernas que se
estreitavam graciosamente para formar dois pequenos cascos, que ainda brilhavam úmidos. Então ela abriu a boquinha perfeita e emitiu um choro indignado.
- Shhh, minha preciosa - arrulhou Etain, beijando-lhe o rosto e maravilhando-se com a surpreendente suavidade da pele. O amor pela filha a inundou, preenchendo Etain
mais completamente do que sequer acreditou ser possível. - Estou aqui e está tudo bem. - Ao som da voz da mãe, os olhos incrivelmente escuros do bebê pareceram se
arregalar e seu choro cessou imediatamente.
- Elphame. - A voz profunda de Midhir estava embargada de emoção. Ele se ajoelhou ao lado delas. Um dos braços rodeou a esposa para que ela pudesse descansar em
segurança encostada a ele, e a outra mão se estendeu para tocar o corpo da filha. - Elphame - repetiu ele. A voz penetrante, maravilhada, acrescentava magia à palavra,
como se ele estivesse conduzindo a Rainha das Fadas. O nome parecia permanecer suspenso no ar ao redor deles.
Etain olhou para o marido em meio às lágrimas. O nome era vagamente familiar, como se o tivesse ouvido num sonho.
- Elphame... O que significa?
Os lábios cálidos primeiro roçaram a testa da esposa, e depois a testa da filha, antes que ele respondesse.
- Era o antigo nome que os xamãs usavam para a Deusa donzela. É quando Ela está mais magnífica, repleta da magia da juventude e da maravilha da renovação da vida.
- Elphame - murmurou Etain enquanto guiava a boca faminta da filha para o seio dolorido. - Minha preciosa.
Sim, Amada. A voz da Deusa se infiltrou pela mente da Escolhida. O xamã lhe deu o nome certo. Ela deve ser chamada de Elphame - anuncie a Partholon o nome de sua
recém-nascida, que também é Amada de Epona.
Etain exibiu um sorriso luminoso e ergueu a cabeça. Numa voz ampliada pelo poder de Epona, suas palavras jubilosas rasgaram o ar: - Exultai, Partholon! O nascimento
de milha filha é um presente digno de uma deusa. - Seu olhar tocou as mulheres à volta, até chegar ao marido com o rosto banhado em lágrimas. - O nome dela será
Elphame. Ela é mesmo uma pequena deusa, a mais bela e magnífica!
Houve uma agitação no ar, como o estalar de um relâmpago. Depois a brisa que soprava as cortinas mudou de direção, e a gaze transparente flutuou para dentro do aposento
numa lufada de ar perfumado e quente. De repente, todos estavam envoltos numa nuvem diáfana de asas delicadas. Centenas de borboletas cintilantes flutuavam ao redor
e acima do grupo, adejando-os com sua magia.
- Obrigada, Epona! - Etain riu, deliciada com a demonstração de prazer de sua Deusa.
Então as mulheres começaram a cantarolar e a rodopiar. Lentamente a princípio, depois com mais rapidez e alegria, iniciaram a antiga cerimônia que era a saudação
tradicional pelo nascimento de uma criança de Partholon.
Etain repousava nos braços do marido, que acalentava a família em seu peito forte.
- A magia da juventude e a maravilha da renovação da vida - murmurou ela para a filha. Etain tocou o bebê com reverência, incapaz de desviar o olhar, sem querer
perder uma respiração ou um movimento. Os dedos correram pelo corpo de Elphame com admiração, acariciando as pernas singulares e descobrindo os contornos de cada
casco delicado. Sátiro. O nome flutuou por sua mente. Mas, não. Ela não era nada parecida com um bode. Era delicada demais e primorosamente constituída para se assemelhar
a Pã. Ela era simplesmente uma perfeita mistura de humana, centauro e deusa.
Uma sensação de assombro varreu Etain, e uma risada borbulhou de seu peito.
Midhir apertou os ombros da esposa em resposta.
- Eu também estou rejubilante com a maravilha que ela é.
Etain assentiu com a cabeça, concordando com ele. Depois, com mais uma risada, acrescentou: - Sim, mas não é por isso que estou rindo.
Midhir arqueou uma sobrancelha com ar questionador.
Ela sorriu e acariciou um dos pequenos cascos de Elphame.
- Eu costumava pensar que ela estava usando botas, pois às vezes seus chutes pareciam bem fortes. Agora vejo exatamente o que estava sentindo.
A gargalhada de Midhir se uniu à da esposa enquanto se deleitavam na magia de sua filha recém-nascida.
Um
PODER. NADA ERA tão bom. Nem o excelente chocolate de Partholon. Nem a beleza de um perfeito nascer do sol. Nem mesmo... Não, não sabia sobre aquilo. Ela sacudiu
a cabeça, mudando com propósito o padrão de seus pensamentos. O vento assobiava veloz por seus cabelos e alguns fios longos açoitavam seu rosto, fazendo-a desejar
que estivessem presos. Geralmente os prendia, mas hoje queria sentir o peso deles, e admitia para si mesma que gostava da maneira como flutuavam às suas costas quando
corria, como a cauda flamejante de uma estrela cadente.
Sua passada vacilou com a oscilação da concentração, porém Elphame logo recobrou o controle de seus pensamentos perdidos. Manter velocidade exigia foco. O campo
no qual corria era relativamente plano e livre da maioria das rochas e obstáculos, mas não seria prudente deixar os pensamentos vagarem. Um passo em falso poderia
facilmente quebrar uma perna; seria tolice acreditar no contrário. Por toda a vida, Elphame fez questão de evitar crenças e comportamentos tolos. Tolice e estupidez
eram para pessoas que podiam se permitir erros normais e cotidianos. Não para ela, alguém cujo físico demonstrava que fora tocada pela Deusa e era, portanto, mantida
à parte do que era aceito como normal e cotidiano.
Elphame aprofundou a respiração e obrigou-se a relaxar a parte superior do corpo. Mantenha a tensão na parte inferior, lembrou a si mesma. Mantenha todo o resto
frouxo e relaxado. Deixe a parte mais poderosa de seu corpo fazer o trabalho. Os dentes brilharam num sorriso quase selvagem quando ela sentiu o corpo se recompor
e disparar em frente. Elphame adorava a maneira como os músculos encordoados em suas pernas respondiam. Os braços se arrojavam sem esforço enquanto os cascos batiam
no macio tapete verde do campo jovem.
Ela era mais rápida do que qualquer humano. Muito mais rápida.
Elphame exigiu mais de si mesma, e o corpo respondeu com força inumana. Poderia não ser tão rápida quanto um centauro em longas distâncias, mas poucos poderiam deixá-la
para trás numa corrida de velocidade, como seus irmãos frequentemente costumavam se gabar. Com um pouco mais de esforço, talvez ninguém fosse capaz de superá-la.
A ideia era quase tão satisfatória quanto o vento em seu rosto.
Quando a ardência começou, ela a ignorou, sabendo que precisava ir além do ponto de simples fadiga muscular, mas começou a angular suas passadas para que a corrida
a levasse num imenso caminho esférico. Terminaria no lugar onde tinha começado.
Mas não para sempre, prometeu a si mesma. Não para sempre. E exigiu ainda mais se si mesma.
- Oh, Deusa. - Observando a filha, Etain suspirou com reverência. - Será que nunca me acostumarei com a beleza dela?
Ela é especial, Amada. A voz de Epona tremulou com familiaridade pela mente da Escolhida.
Ela puxou as rédeas do cavalo para detê-lo ainda dentro da proteção das árvores que flanqueavam uma das extremidades do campo. A égua prateada parou e girou a cabeça,
erguendo as orelhas para sua senhora na versão equina de uma pergunta. E Etain sabia que sua égua, a encarnação equina da Deusa Epona, estava realmente fazendo uma
pergunta.
- Só quero ficar aqui e observá-la.
A Deusa bufou imperiosa pelo nariz.
- Não estou espionando! - exclamou Etain indignada. - Sou a mãe dela. Está no meu direito observá-la correr.
A Deusa sacudiu a cabeça numa réplica que indicava não ter tanta certeza.
- Comporte-se com o devido respeito. - Ela sacudiu as rédeas da égua. - Ou a deixo no templo no próximo passeio.
A Deusa não se dignou a comentar com nada além de um bufo. Etain ignorou a égua que agora a ignorava, e murmurou alguma coisa sobre velhas criaturas mal-humoradas,
mas não alto o bastante para a égua ouvir. Depois apertou os olhos e ergueu a mão para impedir que o sol interferisse na sua visão.
Sua filha estava correndo com uma velocidade que fazia a parte inferior do corpo borrar, tanto que parecia voar sobre os brilhantes brotos verdes do trigo novo.
Ela corria ligeiramente inclinada para a frente, com uma graça que sempre maravilhava a mãe.
- Ela é a mistura perfeita de centauro e humana - murmurou Etain para a égua, que girou as orelhas para capturar as palavras. - Deusa, você é tão sábia.
Elphame tinha completado a longa volta de sua trilha imaginária e estava começando a voltar para o bosque no qual a mãe aguardava. O sol poente emoldurava seu corpo
em movimento, lançando fogo no cabelo castanho-avermelhado da garota. Ele brilhava e faiscava ao redor dela em fios longos e pesados.
- Ela certamente não herdou de mim o adorável cabelo liso - falou Etain com a égua, enquanto tentava prender atrás da orelha um dos cachos que sempre escapavam.
A égua virou as orelhas para trás em atenção. - O brilho vermelho que entremeia o cabelo, sim, mas de resto ela pode agradecer ao pai. - Também poderia agradecê-lo
pela cor daqueles espantosos olhos escuros. O formato era seu - grandes e redondos, repousando em maçãs altas e delicadas que também eram cópias das da mãe, mas
enquanto os olhos de Etain eram verde-musgo, os olhos da filha eram do fascinante negro do pai centauro. Mesmo que a forma física de Elphame não fosse inteiramente
única, sua beleza seria incomum - combinadas a um corpo que só a Deusa poderia ter criado, o efeito era espetacular.
O passo de Elphame começou a diminuir, mudando de direção, dessa vez rumando para as árvores nas quais a mãe e a égua esperavam.
- Devemos nos fazer visíveis para que ela não pense que estávamos nos escondendo nas sombras para observá-la.
Elas surgiram na orla, e Etain viu a filha virar a cabeça na direção delas num gesto instintivo de defesa, mas quase imediatamente Elphame as reconheceu e ergueu
o braço para acenar um olá, ao mesmo tempo que a égua proclamava uma aguda saudação.
- Mamãe! - chamou Elphame com alegria. - Por que vocês duas não vêm se refrescar comigo?
- Claro, minha querida - gritou Etain. - Só que mais devagar, você sabe que a égua está ficando velha e...
Antes que ela pudesse terminar a frase, a "égua velha" em questão disparou e alcançou a jovem, empinando com energia para os lados antes de ajustar com facilidade
seu galope calmo à marcha de Elphame.
- Vocês duas nunca ficarão velhas, mamãe. - Elphame riu.
- Ela só está se exibindo para você - disse Etain à filha, mas abaixou-se para agitar com afeição a crina sedosa da égua.
- Ah, mamãe, por favor. Ela está se exibindo... - Elphame deixou a frase sugestivamente inacabada enquanto erguia a sobrancelha e dava uma olhada sábia nas joias
resplandecentes e no sedutor caimento do traje de montaria de couro macio que se ajustava confortavelmente ao corpo ainda formoso da mãe.
- El, você sabe que usar joias é para mim uma experiência espiritual - disse ela em sua voz de Amada da Deusa.
- Eu sei, mamãe. - Sorriu Elphame.
O bufo da égua era decididamente sarcástico, e a risada de Etain se misturou à da filha enquanto prosseguiam em harmonia pelo campo.
- Onde deixei minha roupa? - murmurou Elphame meio para a mãe, meio para si mesma, enquanto vasculhava a margem do bosque. - Pensei ter deixado nesse tronco.
Etain observou a filha se inclinar num tronco caído à procura do restante da roupa. Ela vestia apenas uma blusa sem mangas de couro, que estava bem presa ao redor
dos seios fartos, e uma pequena tira de linho que envolvia as nádegas musculosas e era recortada bem acima dos quadris, antes que se afundasse num triângulo para
cobri-la na frente. Criação da própria Etain.
O problema era que apesar de o corpo musculoso da moça ser coberto por uma luzidia pelagem equina a partir da cintura, e que ela tivesse cascos em vez de pés, exceto
pelos extraordinários músculos da parte inferior do corpo, Elphame era muito semelhante a uma mulher humana. Então precisava de uma vestimenta que lhe desse a liberdade
de exercitar a velocidade inumana com a qual fora presenteada, além de mantê-la decentemente coberta. Etain e a filha experimentaram muitos estilos diferentes antes
de encontrarem um que satisfizesse com sucesso as duas necessidades.
O resultado funcionara bem, exceto por deixar muito do corpo de Elphame visível. Pouco importava que as mulheres de Partholon sempre tivessem sido livres para exibir
seus corpos com orgulho. Etain frequentemente desnudava os seios durante rituais de bênção para representar o amor de Epona pela forma feminina. Quando Elphame revelava
as pernas unguladas, as pessoas reagiam com absoluto choque e espanto à visão do corpo da Escolhida, tão evidentemente tocado pela Deusa.
Elphame odiava ser objeto dos olhares.
Então se tornara um hábito para Elphame vestir-se de maneira conservadora em público, só tirando suas vestes esvoaçantes quando corria, quase sempre sozinha e bem
longe do templo.
- Ah, encontrei! - gritou ela, pulando por cima de um tronco não muito longe de onde estavam.
Ela apanhou o corte de puro linho que fora tingido na cor das esmeraldas e começou a enrolá-lo ao redor da cintura delgada. A respiração já voltara ao normal; o
brilho leve do suor que tinha feito as penugens dos braços nus cintilarem já havia secado.
Possuía uma silhueta espetacular. O corpo era esguio, atlético e perfeitamente talhado, mas não havia nada de rude ou masculino em sua compleição. A adorável pele
morena parecia sedosa e atraía o toque; só depois de realmente tocá-la, a força primorosa dos músculos por baixo daquela pele podia ser plenamente percebida.
Mas poucos ousavam tocar a jovem Deusa.
Ela era alta, sobrepondo em vários centímetros o 1,70m de altura da mãe. Durante o começo da puberdade, havia sido magra e um pouco desajeitada, mas logo as curvas
e a plenitude da feminilidade substituíram o jeito potrilho. A parte inferior do corpo era uma perfeita mistura de humano e centauro. Ela possuía a beleza e o encanto
de uma mulher, a força e a graça de um centauro.
Etain sorriu para a filha. Como desde o momento do nascimento dela, abraçou a singularidade de Elphame com um amor feroz e protetor.
- Não precisa usar essa roupa, El. - Ela não percebera que havia falado seu pensamento em voz alta até a filha olhar rapidamente.
- Sei que acha que eu não preciso. - A voz, geralmente tão semelhante à da mãe, de repente se endureceu com emoção contida. - Mas preciso. Não é a mesma coisa para
mim. Não me olham como você.
- Alguém disse algo para magoá-la? Diga-me quem é e essa pessoa conhecerá a ira de uma deusa! - Fogo verde faiscava nos olhos de Etain.
A voz de Elphame perdeu toda a expressão ao responder à mãe: - Não precisam dizer nada, mamãe.
- Preciosa... - A raiva se esvaiu dos olhos de Etain - ... sabe que as pessoas a amam.
- Não, mamãe. - Ela ergueu a mão para impedir que a mãe a interrompesse. - Amam você. As pessoas me idolatram e veneram. Não é a mesma coisa.
- Claro que a veneram, El. Você é a filha mais velha da Amada de Epona e foi abençoada pela Deusa de uma maneira muito especial. Deveriam venerá-la.
A égua caminhou até o focinho roçar o ombro da jovem. Antes de responder, El envolveu a cabeça da égua para acariciar o pescoço luzidio.
Ergueu os olhos para a mãe e falou com uma convicção que a fez soar mais velha do que era: - Sou diferente. E não importa o quanto deseje acreditar que me encaixo,
não é a mesma coisa comigo. É por isso que devo partir.
O estômago de Etain se contraiu com as palavras da filha, mas ela se obrigou a permanecer em silêncio e permitir que Elphame continuasse.
- Sou tratada como se fosse uma coisa à parte. Não que seja tratada mal - acrescentou rapidamente -, só que à parte. Como se fosse algo do qual tivessem medo de
se aproximar demais porque eu talvez... - Aqui ela hesitou e encostou a face na ampla testa da égua prateada - ... Não sei... Talvez despedace. Ou talvez os despedace.
Então me tratam como se eu fosse uma estátua que milagrosamente ganhou vida bem diante deles.
Minha bela e solitária filha, pensou Etain, sentindo a familiar dor de não ter a solução para acabar com o sofrimento da primogênita.
- Mas estátuas não são amadas, não exatamente. Elas são cuidadas e mantidas em lugar de honra, mas não são amadas.
- Eu te amo. - A voz de Etain soou embargada.
- Oh, eu sei, mamãe! - A cabeça dela se ergueu e os olhos encontraram os da mãe. - Você e papai, e Cuchulainn e Finegas e Arianrhod me amam. Vocês devem me amar,
são minha família - acrescentou com um rápido sorriso. - Mas mesmo seus guardas particulares, que os adoram inquestionavelmente e que dariam a vida por qualquer
um de vocês, acreditam que sou algo essencialmente intocável.
A égua deu um passo à frente e El encostou-se ao flanco do animal. Etain ansiava por tomar a filha nos braços, mas sabia que a jovem ficaria rígida e diria que não
era mais uma criança, então se contentou em acariciar o cabelo sedoso, transmitindo o conforto de Epona, através de suas mãos, para o corpo da filha.
- Foi por isso que veio aqui hoje, não foi? - perguntou El baixinho.
- Sim - simplesmente respondeu a mãe. - Queria tentar mais uma vez convencê-la a não partir. - Etain ficou pensativa antes de falar novamente: - Por que não fica
aqui e assume a minha posição, El?
A filha deu um pulo, ficou rígida e começou a sacudir a cabeça violentamente de um lado para o outro, mas Etain insistiu: - Tive um reinado longo e próspero. Estou
pronta para me aposentar.
- Não! - A voz de Elphame era inflexível. Só a ideia de tomar o lugar da mãe disparava uma corrente de pânico por ela. - Você não está pronta para se aposentar!
Olhe para você. Parece ser décadas mais jovem que sua idade. Adora realizar os rituais de Epona, e o povo precisa de sua presença. E deve se lembrar da coisa mais
importante, mamãe. O reino espiritual está fechado para mim. Nunca ouvi a voz de Epona ou senti o toque da magia dela... - A tristeza dessas palavras se assentou
resolutamente no rosto de Elphame. - Nunca senti magia nenhuma.
- Mas Epona me fala de você com frequência - disse Etain suavemente, tocando a face da filha. - A mão dela está sobre você desde o nascimento.
- Eu sei. Sei que a Deusa me ama, mas não sou a Escolhida.
- Ainda não - acrescentou a mãe.
A única resposta de Elphame foi encostar-se na cálida familiaridade do pescoço da égua, que nela esfregou o focinho com afeição.
- Ainda não compreendo por que deve partir.
- Mamãe - disse Elphame, virando a cabeça para poder olhar a mãe. - Você fala como se eu estivesse viajando para o outro lado do mundo. - Ela ergueu uma das sobrancelhas
com irritação, o que a mãe sempre achou que a deixava muito parecida com o pai.
A resposta de Etain foi um sorriso zombeteiro. Desde o momento do nascimento, sempre fora devotada aos filhos. Mesmo agora quando adultos, preferia que ficassem
perto dela. Gostava realmente da companhia deles e os apreciava pelos indivíduos que haviam se tornado.
El falou lentamente, desejando que a mãe realmente ouvisse suas palavras: - Não sei por que minha partida a aborrece tanto. Não é como se nunca tivesse me afastado
de casa. Estudei no Templo da Musa, e isso não a aborreceu.
- Isso foi diferente. Claro que tinha que estudar com a Musa. É onde todas as mulheres mais espetaculares de Partholon são educadas. Arianrhod está lá agora. - O
sorriso de Etain era vaidoso. - Minhas duas filhas são espetaculares, uma das razões pelas quais gosto de ter vocês perto de mim - disse Etain expressando lógica.
- Se eu tivesse casado, talvez tivesse me mudado para o lar de meu marido. - A voz de El havia perdido sua nuança frustrada e agora soava exausta.
- Não fale como se nunca fosse casar. Ainda é jovem. Tem anos e anos pela frente.
- Mamãe, por favor. Não vamos começar essa velha discussão outra vez. Você sabe que ninguém se casará comigo. Não existe ninguém como eu, e ninguém que queira se
aproximar de uma deusa.
- Seu pai se casou comigo.
El sorriu com tristeza para a mãe.
- Mas você é humana, mamãe, e, além do mais, o Sumo Xamã dos centauros sempre se uniu com a Escolhida de Epona. Ele foi criado para amá-la - é o normal para ele.
É óbvio que a Deusa me tocou, mas não sou Sua Escolhida. Epona não dispôs nenhum xamã centauro para se apresentar como meu companheiro. Acho que ninguém, homem ou
xamã centauro, foi criado para me amar. Não como você e papai.
- Oh, Corça! - Etain a chamou pelo seu apelido de infância. - Não acredito nisso. Epona não é cruel. Existe alguém para você. Ele só não a encontrou ainda.
- Talvez. E talvez eu tenha que partir para encontrá-lo.
- Mas por que lá? Não gosto de pensar em você lá.
- É apenas um lugar, mamãe. Na verdade é apenas uma velha ruína. Acho que já passou da hora de ser reconstruída. Lembra-se das histórias que costumava me contar
na hora de dormir? Você me disse que já foi lindo - persuadiu El.
- Sim, até se tornar lar de massacre e maldade.
- Isso já tem mais de cem anos. O mal se foi e os mortos não podem me ferir.
- Não pode ter certeza disso - retrucou a mãe.
- Mamãe. - El buscou pela mão dela. - O MacCallan era meu ancestral. Por que seu fantasma me machucaria?
- Muitos mais morreram no massacre do Castelo MacCallan além do chefe do clã e dos nobres guerreiros que deram suas vidas para protegê-lo. E você sabe o que dizem
sobre o castelo: é amaldiçoado. Ninguém ousou entrar naquelas terras, muito menos viver lá, por mais de um século - disse Etain com firmeza.
- Mas durante toda minha vida vi você vigiar o santuário MacCallan e sua chama eterna - contrapôs ela. - Mantivemos viva a memória d'O MacCallan, apesar de o clã
ter sido destruído. Por que meu desejo de restaurar o castelo a surpreende? Afinal, o sangue dele corre em minhas veias também.
Etain não respondeu de imediato. Por um instante realmente brincou com a ideia de mentir para a filha, dizer que tinha conhecimento oferecido pela Deusa da veracidade
da maldição do castelo. Mas só por um instante. Mãe e filha possuíam um profundo senso de confiança, assim como de amor, e Etain não estava disposta a destruir ou
tirar vantagem disso - e ela nunca mentiria sobre o conhecimento revelado a ela por Epona.
- Não acredito realmente que O MacCallan a machuque, embora seja bem possível que espíritos inquietos habitem o velho castelo. E admito que a maldição é apenas um
conto para assustar crianças errantes. Não é que eu tema pela sua segurança... é que não entendo por que deve ir com os trabalhadores que limparão as ruínas. Por
que não esperar até que a bagunça tenha sido retirada e o castelo seja reconstruído e se torne algo realmente habitável? Então você poderia monitorar os estágios
finais da construção.
Elphame suspirou de afeto pela mãe. A Escolhida de Epona estava acostumada a viver no luxo, cercada por servas e criadas. Não era possível para ela compreender o
desejo da filha de sujar as mãos e viver sem facilidades até o trabalho estar pronto.
- Preciso estar atenta a cada detalhe. Reconstruirei o Castelo MacCallan e serei senhora dele. Como senhora do castelo e das terras vizinhas, terei algo só meu,
algo que criei com as próprias mãos. Se não posso ter meu próprio companheiro e filhos, então ao menos terei meu próprio reino. Por favor, compreenda e me dê sua
bênção, mamãe. - Seus olhos imploravam à mãe.
- Só quero que seja feliz, minha preciosa Corça.
- Isso me fará feliz. Precisa confiar que conheço a mim mesma, mamãe.
Deve deixá-la ir, minha Amada. A Deusa falou gentilmente as palavras na mente de Etain, mas ainda era como se uma lâmina tivesse transpassado sua alma. Confie nela
para encontrar o próprio destino e confie em mim para cuidar dela.
Etain fechou os olhos, lutando contra lamentos e perda. Respirando fundo, abriu os olhos e secou as lágrimas das faces.
- Confio em você. E você sempre terá minha bênção.
O rosto de Elphame se transformou e as linhas de preocupação que com tanta frequência o nublavam se dissiparam, fazendo-a parecer excruciantemente jovem.
- Obrigada, mamãe. Acredito que estou destinada a isso. Espere só para ver o Castelo MacCallan vivo outra vez. - Alegre, ela deu um aperto entusiasmado no pescoço
da égua. - Vamos correr de volta para que eu termine de fazer as malas. Você sabe que devo partir amanhã, ao amanhecer.
Elphame tagarelava animada enquanto mantinha facilmente o passo com a égua e a mãe. Etain fez ruídos significativos de que estava atenta, mas não conseguia se concentrar
nas palavras da filha. Era como se já sentisse o peso da ausência de Elphame tal qual um buraco negro em sua alma. E, mesmo que o anoitecer de fim de primavera estivesse
quente, o calafrio deslizou seu dedo pela nuca da Deusa Encarnada.
Dois
- CUCHULAINN, POR QUE foi mesmo que deixei que viesse comigo? - Elphame olhou de soslaio para o irmão e tentou acelerar o trote sem ser muito óbvia. Ele estava cantando
o que parecia ser o quinquagésimo verso de uma marcha militar um tanto grosseira, e o refrão interminável latejava em sua têmpora direita em compasso com sua dor
de cabeça, quase fazendo-a desejar não ter insistido para que os dois viajassem separados do resto do grupo.
O grande capão amarelo no qual Cuchulainn cavalgava prontamente apressou o passo para acompanhar as passadas longas de El. A risada contagiante do irmão soou ao
redor deles.
- Eu vim, minha irmã, para protegê-la.
Elphame deu um bufo nada feminino.
- Oh, por favor, me poupe. Me proteger? É mais provável que esteja cansado de perseguir as donzelas do templo aqui e acolá.
- Acolá? - O rosto bonito irrompeu num sorriso maroto. - Falou mesmo acolá? - Ele sacudiu a cabeça com zombeteira seriedade. - Sabia que estava passando tempo demais
lendo aqueles tomos na biblioteca da mamãe. E não são as donzelas que eu persigo. - Ele ergueu as sobrancelhas de maneira sugestiva para a irmã.
Elphame tentou sem sucesso esconder um sorriso ao lhe dar uma olhada carinhosa.
- Agora vai me lembrar que não precisa perseguir mulher nenhuma em lugar nenhum.
- Isso, minha irmã, é a pura verdade... - Ele deixou as palavras suspensas e abriu um largo sorriso.
- Humm, pensei que ficaria em casa para receber a... - Elphame pigarreou e jogou o cabelo para trás, fazendo uma perfeita imitação do tom de voz e da linguagem corporal
da mãe - ... adorável filha solteira do chefe do Castelo Woulff, que se hospedará no Templo de Epona a caminho para o treinamento no Templo da Musa.
A boca de Cuchulainn se apertou, e por um instante Elphame lamentou a provocação. Então, com seu costumeiro bom humor, ele deu de ombros e lhe exibiu um sorriso
sofrido.
- O nome dela é Beatrice, minha irmã. Pode imaginar alguém chamada Beatrice que não tenha uma fronte alta e porte real? - Ele pronunciou as palavras colocando afetação
na voz profunda, que fez Elphame gargalhar.
- Ela provavelmente é uma mulher muito formosa - disse El em meio a risadinhas.
- Sem dúvida, fértil, com quadris largos e habilidade de prover muitos netos.
Irmão e irmã trocaram olhares de completa compreensão.
- Ficarei contente quando Arianrhod e Finegas tiverem idade bastante para que mamãe comece a arranjar casamentos para eles. - El disse num tom que soou mais sério
que o pretendido.
Cuchulainn suspirou profundamente.
- Os gêmeos farão 18 nesse verão. Em mais três anos mamãe estará em toda sua glória casamenteira.
El lançou um olhar ao irmão.
- Pobres crianças. Quase me faz desejar que não os tivéssemos importunado tanto quando éramos crianças.
- Quase! - Cuchulainn gargalhou. - Ao menos estamos todos juntos nisso, mamãe não iria deixar um de nós solteiro.
Elphame apenas sorriu para ele e acelerou o passo novamente, forçando-se temporariamente a ficar à frente do irmão na trilha que se estreitava. Mas não é a mesma
coisa comigo. Pensamentos rodopiavam incessantemente por sua mente inquieta. Seus irmãos eram humanos - humanos atraentes, talentosos, queridos. Não precisava olhar
por cima do ombro para descrever Cuchulainn. O rosto era tão familiar quanto o dela - e muito semelhante ao dela. Elphame sorriu com ironia. Cuchulainn era apenas
um ano e meio mais jovem, e da cintura para cima poderiam também ser gêmeos. Ele tinha as maçãs altas e bem definidas, mas as dela eram delicadas e femininas, as
deles eram vigorosamente masculinas. Seu queixo era (de acordo com a mãe) um tanto desafiador, e o dele, teimoso e orgulhoso (de acordo com a irmã mais velha), perfeito
com uma fissura adorável. Em vez dos olhos negros e fios castanho-avermelhados, ele tinha olhos de uma cor única matizada entre azul e verde e cabelo espesso, cor
de areia, que se recusava a desistir dos topetes infantis. Então ele o mantinha alisado para trás e cortado bem rente, o que fazia a mãe choramingar e reclamar sobre
o desperdício de não deixá-lo crescer como o de um guerreiro decente.
Mas Cuchulainn, filho de Midhir, Sumo Xamã e Lorde Guerreiro Centauro, não precisava ser um "guerreiro decente". Batizado segundo um dos antigos heróis de Partholon,
já envergava e encenava o papel, comportando-se decentemente ou não. Alto e bem-formado, ele se sobressaía em torneios, era o melhor espadachim humano em Partholon
e nunca fora vencido no arco e flecha. Elphame tinha ouvido mais de uma moça suspirar desejosa e dizer que ele devia ser mesmo Cuchulainn reencarnado.
Não, Cuchulainn nunca deixou de ter parceiras. Só não tinha encontrado ainda sua companheira. Os lábios atraentes de Elphame se ergueram.
- Não por falta de tentativa - murmurou consigo mesma.
Nesse ponto ela era muito diferente do irmão. Ele era delicado e experimentado com o sexo oposto. Ela nunca fora beijada.
Mesmo seus irmãos mais novos, que ela e Cuchulainn haviam apelidado de Pequenos Eruditos, não tinham problema para encontrar parceiros para os rituais lunares. Embora
Arianrhod e Finegas não fossem tão atléticos quanto o irmão e a irmã mais velhos, certamente estavam se tornando jovens adultos inteligentes e equilibrados. Parecendo
quase imagens espelhadas um do outro, seus corpos altos e graciosos eram completamente humanos - totalmente normais. E, Elphame admitia para si mesma, Arianrhod
era tão bela quanto Fin era bonito.
A trilha que cortava a antiga floresta se curvou para a direita e se alargou. Cuchulainn instigou o capão para o lado da irmã.
- Ela me lembra mamãe - disse El de repente.
Cuchulainn olhou ao redor em surpresa.
- Quem?
El revirou os olhos. Sempre esperava que o irmão lesse sua mente e ficava aborrecida nas poucas vezes em que ele não lia.
- Arianrhod, quem mais? É por isso que os garotos já ficam atraídos por ela. Claro que ela não se importa ou sequer nota - não até ser completamente transformada
durante seu primeiro período no Templo da Musa.
Os olhos turquesa do irmão se enrugaram com o sorriso.
- A cabeça de Arianrhod sempre estará nas nuvens.
- A astronomia e a astrologia estão inexoravelmente ligadas às Parcas, por isso é prudente estudá-las com cuidado. - El imitou a irmã mais nova.
Cuchulainn riu.
- Aí está um dos nossos Pequenos Eruditos, muito bem. A ironia é que esses jovens enlouquecidos a perseguirão com mais afinco por causa de sua indiferença. Já se
vê as donzelas começando a perseguir Fin, e sua barba ainda é uma penugem.
- Bom, seja qual for o motivo, eles certamente gostam muito dela.
Cuchulainn olhou com mais atenção a irmã.
- Você está bem?
- Claro - respondeu ela automaticamente, sem encontrar-lhe os olhos.
- Será diferente aqui, Corça - disse ele sossegadamente.
- Eu sei. - Ela rapidamente o fitou, depois afastou o olhar tão rápido quanto temerosa de que ele visse as lágrimas que estavam começando a deixar seus olhos muito
brilhantes.
- Não, é verdade. - O tom sério a fez reduzir o passo para poder ouvi-lo com mais atenção. - Você encontrará o que sempre desejou no Castelo MacCallan. Tive um pressentimento.
As palavras do irmão ficaram suspensas no perfumado ar de primavera. Ela sabia exatamente o que o irmão queria dizer. Era parte do código entre eles. Assim como
Elphame era a filha primogênita de sua mãe, a Deusa Encarnada, e portanto fora marcada por Epona, Cuchulainn era o verdadeiro filho primogênito de seu pai xamã.
Desde tenra idade, ele simplesmente sabia coisas. Quando era criança, havia explicado à irmã dizendo que era como se pudesse ouvir palavras que estavam escondidas
no vento. Às vezes esse "vento" contava-lhe onde itens perdidos poderiam ser encontrados. Outras vezes contava quando alguém estava vindo visitar o templo. E às
vezes previa notícias portentosas, como a morte prematura de uma criança amada ou o rompimento de um juramento de sangue.
O conhecimento sobrenatural havia assustado o jovem Cuchulainn. Não era um inimigo que pudesse vencer com a perícia de seus músculos ou superar com sua esperteza.
Era algo que o fazia se sentir uma aberração; isso lhe dava um poder pelo qual não pedira e que não tinha qualquer desejo de exercer.
Era uma coisa que sua irmã mais velha compreendia muito bem.
Então ele procurava por Elphame sempre que tinha um pressentimento a respeito de algo ou alguém. E a irmã se identificara com seu medo. Não tinha se afastado dele
- na verdade, tornara-se sua confidente mais próxima, embora a atitude de Elphame com relação ao reino espiritual fosse decididamente diferente da dele. Ela era,
afinal, uma manifestação física da magia da Deusa. Não compreendia por que o irmão rejeitava dons do reino espiritual, especialmente quando ela ansiava sentir um
sussurro do poder que a mãe utilizava com tanta facilidade, mas apoiava o desejo dele com uma atitude calma e sensata. Conforme ficava mais velho, Cuchulainn aprendeu
a represar sua florescente habilidade psíquica e não se deixava ser subjugado.
Agora Elphame olhava minuciosamente o irmão. Ele nunca havia mentido para ela. E seu pressentimento nunca errara.
- Promete? - perguntou, um tanto sem fôlego, o súbito rubor que se espalhou pelas faces o único sinal aparente que traía seu excitamento.
- Sim - ele assentiu com firmeza.
A alegria se infiltrou por Elphame.
- Sabia que restaurar o Castelo MacCallan era a coisa certa a ser feita! - Depois o encarou zangada, pensando no quanto custara persuadir a mãe a concordar com sua
partida. - Não podia ter compartilhado esse conhecimento com mamãe?
- Se eu tivesse contado à mamãe que sabia que encontraria seu destino no Castelo MacCallan, acha que haveria alguma força em Partholon que a impedisse de nos acompanhar
até lá?
- Excelente ideia - concordou Elphame rapidamente. Depois seus pensamentos navegaram por uma torrente de emoções e ela perguntou: - Mas por que esperou para contar
para mim?
A testa de Cuchulainn se franziu em pensamento, e ele respondeu lentamente: - O pressentimento é indistinto. - Então, vendo o desapontamento no rosto da irmã, ele
se apressou em tentar explicar: - Não, isso não torna nada menos certo. Sei que encontrará seu destino no Castelo MacCallan. Sei que esse destino está ligado ao
seu consorte, mas quando tento me concentrar nos detalhes sobre o homem, só vejo névoa e confusão. - Meneou a cabeça e sorriu acanhado para Elphame. - Talvez seja
porque você é minha irmã e saber detalhes sobre sua vida amorosa seja na verdade muito perturbador.
- Sei exatamente o que quer dizer. Quando as donzelas ficam poéticas quanto às várias partes do seu corpo... - ela estremeceu e fez uma careta - ... cubro meus ouvidos
e saio gritando na direção oposta.
- Humpf. - Ele bufou sucintamente, rindo apesar de tudo, contente porque a irmã tinha parado de fazer perguntas específicas sobre o pressentimento.
Tinha penado com o que dizer a El sobre a visão. Sabia que causava dor à adorada irmã acreditar que nunca encontraria um par, e sabia que precisava contar a ela
sobre seu pressentimento. Estava claro para ele que ela encontraria seu consorte e seu destino no Castelo MacCallan, mas também sabia que havia mais do que simplesmente
se apaixonar. Parte da premonição era vaga e sinistra. Não era nada como as típicas visões de "amor" que recebera no passado, que geralmente eram vislumbres de um
amigo nos braços de uma mulher, acompanhado por um pressentimento de que aquelas duas pessoas se pertenciam.
Ele tinha vivenciado a visão de sua irmã nos braços de um homem, mas fora incapaz de ver o homem. Talvez porque a primeira coisa que conseguiu ver com clareza fosse
o ar de meiga felicidade que irradiava do rosto geralmente sério da irmã, e aquela visão em particular havia sido tão surpreendente que sua concentração se dispersou
irreparavelmente. Talvez não. E, sim, havia um pressentimento definido de que os dois estavam destinados um ao outro. Quando tentou se concentrar novamente na cena
e estudar o homem, a visão fora banhada por uma ofuscante luz escarlate, como se a cena tivesse sido mergulhada em sangue. Depois, tão rápido quanto surgiu, tudo
se cobriu de escuridão, como se os amantes tivessem sido envoltos numa cortina de veludo, e o homem se dissipou, deixando a irmã sozinha.
Muito próprio do reino dos espíritos, deixá-lo com perguntas sem respostas e uma sensação de inquietude. Sempre odiou a natureza evasiva e fugidia do poder. Não
era como o peso garantido de uma espada ou o alvo claro de uma flecha.
Cuchulainn engoliu com a garganta subitamente seca, contente por Elphame, mais uma vez, seguir à frente dele. Ela lia suas expressões com facilidade. Não queria
que notasse que a última visão havia atingido sua alma e o deixado realmente assustado com estranhos sussurros tintos de vermelho. Flexionou a mão direita. Podia
sentir o peso ilusório de sua claymore enquanto na mente a agarrava e erguia em prontidão.
Sim. Consorte ou não, Cuchulainn estava preparado para proteger a irmã de tudo que pudesse lhe fazer mal.
Três
- NÃO ENTENDO POR que não podíamos ficar em Loth Tor com o resto dos trabalhadores - reclamou Cuchulainn ao alimentar a fogueira com outra tora seca.
- Pensei que guerreiros fossem tão calejados que poderiam dormir em camas de espinhos sem titubear - gracejou Elphame, e atirou-lhe o odre. - Beba. Lembre-se, mamãe
mandou o vinho - acrescentou de forma significativa.
- Guerreiros gostam de camas macias tanto quanto qualquer um - resmungou ele, mas pegou o odre e bebeu bastante. - O amor de mamãe pelo vinho tem sido uma bênção
nessa viagem. Mas não compensa a ausência de uma cama de plumas. - Ou a de uma jovem viúva robusta na mesma cama, pensou.
- Cuchulainn só está zangado porque aquela loira rechonchuda estava obviamente oferecendo mais do que outra porção de cozido excelente.
- Ser uma jovem viúva é um fardo solitário de se carregar.
- Não com você por perto. - Ela riu. - Oh, vamos. Não faça cara feia. Quero ver o sol nascer sobre meu castelo, e não quero fazer isso com um grupo de centauros
e homens me encarando enquanto inventam demônios espreitando de cada sombra.
Cuchulainn resmungou em resposta, tomou outro longo gole de vinho e jogou o odre de volta para a irmã. Cutucou o fogo e parou de reclamar. Estava acostumado aos
modos solitários de Elphame e compreendia suas razões. Ela passou a vida sendo reverenciada porque fora tocada pela Deusa; era um ser do tipo que antes não fora
criado. Não que fosse sempre tratada com crueldade - na verdade, era justamente o contrário. Ela encantava as pessoas, especialmente aquelas que não estavam acostumadas
a vê-la. A maioria dos trabalhadores que os acompanharam era da área ao redor do Templo de Epona, então meramente a tratavam com respeito cauteloso e mantinham distância.
Mas durante os cinco dias de viagem desde o Templo de Epona ao Castelo MacCallan, Cuchulainn havia notado como as pessoas paravam o que estivessem fazendo e corriam
para a estrada, curvando-se tão baixo quando "a jovem deusa Elphame" passava que praticamente enterravam as cabeças nas campinas relvadas que cercavam a estrada
principal. E conforme se aproximavam do destino, novas pessoas e centauros começaram a se juntar ao grupo, ansiosos pelas oportunidades vindouras com o restabelecimento
do Castelo MacCallan. A reação deles à irmã era sempre a mesma - mais assombro e espiadas. Cuchulainn sabia que era por isso que Elphame tinha insistido para que
os dois deixassem a estrada e seguissem o caminho mais estreito e difícil que cortava a floresta. Para El, menos pessoas significava chances menores de ser venerada,
e isso era boa coisa.
Irmão e irmã tinham acampado sob as estrelas e não pararam em nenhuma das aldeiazinhas modorrentas que pontilhavam a região em meio a vinhedos e pastos até chegarem
a Loth Tor, a aldeia aninhada na base do platô no qual se erguia o Castelo MacCallan. Naquela noite haviam se reunido ao grupo e todos jantaram na Estalagem da Égua,
a única taverna da cidade, por onde, talvez, a população inteira compareceu, cada um curvando-se em reverência a Elphame. Alguns perguntavam se podiam tocar a Deusa,
outros apenas fitavam-na boquiabertos. Cuchulainn havia observado a irmã assentir educadamente para cada um deles, aquiescendo com graça ao desejo de venerá-la.
Só ele pareceu notar a tensão incomum em seus ombros e a maneira rígida da postura. Para Cuchulainn, era como se ela fosse se estilhaçar caso se mexesse rápido demais.
Quando a refeição terminou, ela disse que sentia a necessidade de dormir sob as estrelas e ficar sozinha com seu irmão e Epona. Sabia que ela acrescentara o nome
da Deusa para que a cidade não a seguisse e continuasse a olhar. Sem dizer nada, ele selou seu cansado capão e o pôs a galope, arrastando-se para acompanhar Elphame,
que se retirava da aldeia.
- Você sabe que ficará melhor depois de algum tempo aqui - disse ele em tom sossegado.
Ela suspirou profundamente.
- Era de se pensar que eu estivesse acostumada. - Ela deu outro gole no excelente vinho antes de jogá-lo de volta ao irmão. - Mas não. - Ergueu as sobrancelhas e
acrescentou: - É difícil acreditar que meu destino está por aqui.
- Coisas mais estranhas já aconteceram - disse ele tranquilamente, sem querer conversar sobre a visão ou o potencial companheiro dela.
- Como o quê? - perguntou ela.
- Como o fato de termos os mesmos pais, mas eu ser humano e você, parte cavalo - replicou ele prontamente.
Ela revirou os olhos.
- Sou parte centauro, não parte cavalo. - Porém, não discutiu mais.
- Durma um pouco. Precisará de toda energia amanhã. Ficarei acordado para vigiar o fogo. - E você, acrescentou silenciosamente consigo mesmo. A tensão da irmã poderia
ter diminuído com a partida da cidade, mas seus próprios instintos guerreiros o deixavam cauteloso e inquieto.
Por que não conseguia ter uma imagem clara do futuro da irmã? Por que sua visão fora tão sombria e indistinta? E por que parecia tão imersa em sangue?
Elphame enroscou-se de lado, parecendo resguardada e confortável em seu saco de dormir.
- Não me engana, Cuchulainn. - Seus olhos estavam fechados e sua voz era um sussurro, mas a gentil brisa da noite levou as palavras com clareza até o irmão: - Essa
é mais uma das suas coisas de guerreiro que deve proteger a irmã.
- Isso definitivamente soou como algo que mamãe diria - falou ele, e depois acrescentou baixinho: - Já era hora de ter notado.
Os cantos dos lábios da irmã estavam erguidos num sorriso suave enquanto mergulhava em sono profundo.
Elphame sonhou que seu amante vinha até ela numa névoa escura, que a enrodilhou como se a noite tivesse ganhado asas, e apesar de tremer ao toque, ela não sentia
medo. De bom grado, ofereceu-se à névoa, que se curvou e bebeu de seu amor enquanto voavam na escuridão aveludada do céu à meia-noite e faziam sua cama em meio às
estrelas.
- Sabia que seria estupendo - suspirou Elphame contente. - Oh, Cuchulainn, olhe meu castelo!
Estavam de pé na borda da floresta de pinheiros que envolvia o lado do platô no qual o Castelo MacCallan fora construído. O cheiro ácido e limpo de pinho se misturava
à essência salgada do oceano e parecia lavar tudo em esplendor, tornando o verde da floresta luxurioso e sobreposto, o azul e branco do oceano, cristalino e elegante
conforme batia contra as rochas lá embaixo. O castelo assomava diante deles, parecendo imponente em seu poleiro rochoso à beira do magnífico penhasco litorâneo.
Elphame fitou seu novo lar, deixando os olhos sorverem a maravilha daquela primeira visão. Cercado de fileiras e fileiras de olaias e cornisos em plena floração,
além do mato que crescera demais e moitas de amoreiras sem poda, o castelo parecia abrigar uma criatura mágica que dormia havia muito séculos, apenas esperando pelo
beijo de seu verdadeiro amor para despertar.
Um pouco como eu. Elphame se surpreendeu com o pensamento escandalosamente romântico. Mas a visão diante dela, aliada à premonição do irmão, a fizera sentir-se atipicamente
romântica. E, ela concluiu com um sobressalto, era uma sensação que achava ser capaz de gostar.
Seria isso o que andei perdendo por todos esses anos?, refletiu em silêncio. Esta excitação ansiosa e de tirar o fôlego? Como alguém que estivesse prestes a girar
uma chave dentro de si e liberar algo mágico?
O sol estava começando a surgir acima das árvores. Enquanto Elphame observava, os sonhadores rosa e creme do céu no raiar da manhã se transformaram em vibrantes
tons dourados e azuis de um dia claro de primavera. Ela foi imediatamente tomada por uma incrível sensação de esperança, como se o amanhecer daquele dia fosse uma
promessa de um novo começo para ela também. Uma bênção que ouvira a mãe oferecer muitas vezes a Epona infiltrou-se em sua mente, e de repente ela se ouviu repetindo-a
em voz alta - embora suas palavras fossem pouco mais do que um sussurro hesitante: "Grande Deusa Epona, minha Deusa,
posto-me aqui num novo dia,
um dia preenchido por Sua magia.
Posto-me aqui num limiar, diante de Seu véu de mistérios,
e peço Sua bênção.
Que eu possa trabalhar para Sua glória
e para a glória do meu espírito também."
Cuchulainn ficou em silêncio durante a oração da irmã - em parte por respeito a Epona, e em parte por surpresa. Até então nunca ouvira a irmã invocar a bênção de
Epona. Na verdade, Elphame parecia preferir evitar qualquer menção à Deusa que tão obviamente a tocara. Até aquela manhã. Então, apesar de Cuchulainn mal poder ouvir
as palavras da oração, conseguiu sentir a distinta vibração de magia no ar - como sentira muitas vezes quando a mãe executava rituais de Epona.
Se tivesse encarado o irmão, El teria visto os olhos arregalados pelo choque, mas nem mesmo olhou para ele. Estava hipnotizada pela beleza da manhã e pela florescente
sensação que estava apenas começando a reconhecer como um senso de pertencer a algo. De repente, o sol se libertou dos altos pinheiros e seus raios incendiaram as
paredes do castelo numa luz dourada.
- Está vendo isso, Cuchulainn? É como se as paredes brilhassem. - Ela suspirou.
- O que sobrou delas, quer dizer. - Ainda surpreso com o novo poder irradiando da irmã, sua voz soou mais brusca do que o pretendido. Ele clareou a garganta, estreitando
os olhos para ter uma visão melhor do edifício desmoronado. Para ele, o castelo parecia uma velha fera dilacerada encolhida na borda do penhasco à beira-mar. - El,
não tenha esperanças demais. Mesmo daqui posso ver que o lugar está em ruínas. Temos muito trabalho a fazer.
Ela socou o braço dele com carinho.
- Deixe de ser como a mamãe. Venha, vamos logo. - Saiu saltitando, e Cuchulainn apertou com os joelhos seu grande capão, vagueando para manter o passo com a forma
ágil da irmã.
Avançaram com determinação pelo mato grudento até encontrarem a estrada que levava à entrada frontal do castelo. Era mais fácil ir por ali, mas Cuchulainn ainda
resmungava baixinho das ervas daninhas e do tanto de árvores que sufocavam o caminho, antes amplo e limpo.
- Ah, pare de resmungar e olhe para essas árvores maravilhosas! - Elphame repreendeu o irmão enquanto diminuía o passo e girava num círculo, tentando olhar para
todos os lados ao mesmo tempo. - Não tinha ideia de que seria tão bonito. - Tanto que mais de um século de negligência não conseguia diminuir a visão estonteante
de tantas olaias e cerejeiras silvestres carregadas de flores. - É como andar por uma floresta de nuvens rosadas.
- Nuvens geralmente não possuem uma profusão de espinheiros. - Ele apontou para as plantas espinhentas que se apinhavam em meio aos arbustos que proliferavam entre
as árvores.
- Não são espinheiros, são amoreiras. Um pouco de poda e ficarão ótimas. Pense só nos bolos e tortas maravilhosos que teremos nesse verão.
- Depois que construir uma cozinha - murmurou ele.
Ela exibiu para ele um rápido sorriso.
- Construirei uma.
Cuchulainn achou que a determinação na voz dela provavelmente era mais forte do que as paredes do castelo ao qual parecia tão firmemente apegada.
- E você sabe que sempre gostei da floresta. - Ela girou outra vez, a cabeça jogada para trás, o cabelo castanho-avermelhado voando ao redor dela feito um manto.
- Os pinheiros são maravilhosos, mas acho que essas árvores em flor são ainda mais incríveis.
Ele sacudiu a cabeça e falou com o conhecimento de um guerreiro: - Está planejando deixar isso de pé? Por tudo que estudou de história, sua memória não parece muito
exata. Um dos maiores erros do Castelo MacCallan foi deixar as defesas enfraquecerem. - O movimento imponente de seu braço captou a profusão de árvores viçosas.
- O MacCallan deixou isso crescer até seus muros. O exército fomoriano não teve problemas para passar despercebido até romper os muros do castelo e começar o massacre
aos habitantes.
Elphame abriu a boca para retrucar que não estavam em guerra; não houvera um fomoriano em Partholon em 125 anos. Ninguém tentaria romper seus muros. Mas Partholon
também nunca esteve em guerra do ataque. Não até o Castelo MacCallan ser tomado de surpresa. Sim, os fomorianos foram derrotados, e o que restou de sua raça demoníaca
fora expulsa de Partholon através das Montanhas Trier, para além dos Ermos. Se ela viajasse para o norte até as montanhas, sabia que ainda encontraria o Castelo
Guardião mantendo séria vigilância, protegendo eternamente a passagem para Partholon.
Mas 125 anos era um tempo longo, e, exceto por conflitos de clãs e incursões ocasionais dos bárbaros milesianos, afeiçoados ao mar, Partholon conhecera uma prolongada
era de paz e prosperidade, portanto não havia razão lógica para que não continuasse assim.
Elphame estudou o irmão, pronta para lembrá-lo dos fatos que acabavam de brotar em sua cabeça. Ele parecia tenso; sua testa geralmente lisa estava enrugada e ela
podia ver seu queixo cerrar e descerrar enquanto esperava que ela falasse.
- Os milesianos, são eles que preocupam você? - perguntou ela lentamente.
Ele deu de ombros.
- Não sei dizer. Mas seu castelo dá para o mar. Você se mostraria uma líder sábia e prudente se garantisse que MacCallan fosse defensável. - Enquanto falava, ele
não olhava para ela, em vez disso avaliava a floresta ao redor como se esperasse que uma horda bárbara saltasse das árvores floridas e cortasse seus pescoços.
Elphame sentiu um pequeno tremor de inquietação. Era óbvio que algo abalara o normalmente calmo equilíbrio do irmão. Ele podia não ter tido um pressentimento, verdadeiro
e completo, com visões e um claro aviso, mas algo o aborrecia. Mesmo que evitasse o reino espiritual e odiasse mergulhar em seus poderes psíquicos, Cuchulainn os
respeitava - assim como Elphame.
Ela assentiu:
- Você está certo, agradeço por me lembrar. A maior parte dos arbustos deve ser cortada e limpa. - A voz dela era moderada e pensativa. - Precisarei, claro, de seus
conselhos sobre como as defesas do castelo devem ser reconstruídas. - Ela olhou as árvores rapidamente e com desejo. - Acha que podemos pelo menos manter algumas
delas?
- Um ou dois bosques bem longe dos muros do castelo não prejudicariam em nada. - Ele relaxou um pouco e sorriu, surpreso por Elphame ter cedido tão facilmente. -
E suas amoreiras podem ficar. Elas são garantia de mais espinhos do que proteção para um inimigo.
- Bom, então teremos bolo de amoras afinal! - Ela sorriu para o irmão, aliviada por ele voltar a ser alegre. Cuchulainn provavelmente estava sendo ultracuidadoso
e superprotetor com ela, como sempre.
A estrada se curvava gentilmente para a esquerda. Quando se endireitou, eles se viram a menos de 15 metros da entrada frontal do castelo. As sólidas portas de ferro
que, segundo as lendas, nunca se fecharam para convidados, tinham sumido. Haviam enferrujado e desintegrado. Elphame podia ver que fragmentos de seus resquícios
jaziam em meio a uma confusão de ervas daninhas e vinhas. Só a estrutura irregular da grande entrada restava, dando à brecha nos grossos muros a aparência de uma
boca desprovida dos dentes da frente.
Os muros pareciam surpreendentemente intactos, ou ao menos o que podia ser visto deles pela frente, vigorosos e sólidos. Algumas balaustradas estavam desabando,
e não havia adarve. As partes do telhado que foram feitas de madeira tinham sumido, mas o esqueleto do castelo permanecia de pé, forte e orgulhoso.
- Está melhor do que pensei - Cuchulainn rompeu a quietude da expectativa.
- É perfeito. - A voz de Elphame estava cheia de animação incontida.
- El, está em melhor estado do que eu esperava, mas ainda é uma ruína! - Ele estava exasperado com o otimismo cego dela. Não apenas porque era uma atitude ridícula
frente ao precário edifício diante deles, mas porque era totalmente diferente da irmã que conhecia. Antes que pudesse falar mais, Elphame estendeu a mão, tocando-o
de leve no braço.
- Não sente? - A voz dela estava baixa.
Cuchulainn se sobressaltou com surpresa. Embora a irmã tivesse sido fisicamente tocada pela Deusa, nunca exibira qualquer ligação especial com Epona ou com o mágico
reino dos espíritos. Na verdade, exceto pelo corpo singular, Elphame não possuía qualquer poder que a ligasse ao reino espiritual. O irmão a observava com atenção.
- O que quer dizer, El?
Os olhos dela nunca deixavam o castelo, mas a mão ainda repousava em seu braço e Cuchulainn podia sentir o tremor que lhe passava pelo corpo. Seu cavalo ficou subitamente
imóvel. A brisa gentil se aquietou; mesmo os pássaros estavam sobrenaturalmente silenciosos.
- Está me chamando. - A voz da irmã soava muito jovem. - Não com palavras, mas posso sentir. - Ela tirou os olhos do castelo para fitar penetrantemente o irmão.
- É como na primeira vez que mamãe teve que realizar um ritual lunar em outro Templo. Lembra? - Elphame prosseguiu antes que ele pudesse responder: - Ela nunca tinha
ficado realmente longe de nós, não por tanto tempo, e ficou fora por cinco noites. Quando finalmente chegou em casa, chamamos seu nome e corremos para encontrá-la
antes que pudesse sequer alcançar os degraus do Templo. Ela nos abraçou, beijou e riu entre lágrimas. Lembra? - perguntou outra vez.
Cuchulainn assentiu e sorriu:
- Eu lembro.
O olhar de Elphame retornou ao castelo.
- É a sensação que tenho - sussurrou. A magia que enchia suas palavras subiu pela espinha do irmão, fazendo os pelos de sua nuca se arrepiarem. - Ele esteve esperando
por todo esse tempo que eu voltasse para casa.
Quatro
- MAL POSSO ESPERAR para ver o resto. - Elphame se livrou do transe feliz e rumou em frente com determinação.
- Sem mim, não mesmo.
Cuchulainn desmontou depressa e prendeu as rédeas do capão à árvore mais próxima. Correu até ela e, à medida que se aproximavam das portas queimadas, o som de sua
claymore sendo desembainhada era música mortal na calmaria da manhã.
Elphame parou e franziu o cenho para a espada.
- Acha mesmo que isso é necessário?
- Prefiro errar no lado da segurança a errar no da tolice.
Ela plantou as mãos nos quadris e o encarou por cima de seu régio nariz.
- Está dizendo que sou tola?
- Não. - Ele sorriu, contente por ela estar reagindo mais como a El que ele conhecia. - Estou dizendo que eu não serei tolo.
Elphame enrugou o nariz antes de partir em largas passadas em direção à entrada.
- Você é teimosa e cabeçuda - gritou Cuchulainn, sorrindo abertamente quando ela o fitou por cima do ombro. - Mas isso é uma das coisas de que gosto em você.
- Cale-se e me acompanhe. Tenho certeza de que existe algum esquilo maníaco à espreita lá dentro do qual preciso ser protegida porque sou muito indefesa... - Ela
fingiu um desmaio, no meio do qual se curvou à frente e dobrou os poderosos músculos das pernas, disparando de propósito à frente do irmão, tanto que ele respirava
com esforço e resmungava consigo mesmo sobre ela ser meio-cavalo e, definitivamente, nada indefesa quando finalmente a alcançou.
Elphame esperava por ele, parada em silêncio do lado de fora da entrada do castelo. Ervas daninhas e vinhas haviam coberto o espaço onde as grandes portas antes
repousavam, tanto que irmão e irmã tiveram que picar uma pequena trilha antes que pudessem forçar passagem. Elphame foi a primeira a pisar dentro dos limites daqueles
muros. O irmão a seguia de perto.
O emaranhado de plantas acabou assim que adentraram os muros. Estavam numa área espaçosa entre as muralhas externas e o princípio do terreno do castelo.
Cuchulainn relanceou os arredores com curiosidade. A cada lado existiam resíduos do que antes era o caminho de ronda que devia ter se estendido ao longo das muralhas
maciças do castelo. Cuchulainn franziu o cenho. Pena O MacCallan não ter posto vigias lá.
- Olhe, Cuchulainn, aposto que existiam belas portas de madeira aqui. - A voz de Elphame estava baixa, como se tivesse adentrado uma igreja.
Cuchulainn a seguiu através de outro buraco nos muros internos, menores, e entraram no que obviamente fora um grande pátio. O chão estava coberto de escombros e
mergulhado na imundície e no tempo, mas aqui e ali ainda podiam ser vistos retalhos das pedras aplainadas que sustentaram os passos abafados do clã MacCallan por
décadas. Imensos pilares de pedra entalhada circundavam a área, erguendo-se para encontrar o que antes era um teto abobadado, mas que agora estava aberto para o
esplendor do céu matinal. Os pilares maciços ainda carregavam as cicatrizes negras do fogo que fora a morte do castelo.
Elphame engoliu, apesar da secura na garganta.
- Acha que vamos encontrar algum... - Ela calou-se e buscou o olhar do irmão - ... Resquício dos guerreiros?
- Não creio. Já se passou um longo tempo. O que o fogo não consumiu, o tempo e os elementos certamente o fizeram. - Mesmo assim, bastou a ideia para fazê-lo espiar
com suspeita alguns dos montes mais obscuros de folhas e terra.
- Mas se realmente encontrarmos qualquer traço dos guerreiros MacCallan, devemos lhes dar um enterro digno. Eles aprovariam - falou Elphame com calma segurança.
- Consegue senti-los, El? - perguntou o irmão.
- Os guerreiros?
Cuchulainn assentiu.
Ela ficou imóvel, inclinando a cabeça como se tentasse ouvir uma voz no vento.
- Espere, não tenho certeza.
Lentamente se aproximou do mais central dos pilares enegrecidos, que era tão amplo que nenhum dos dois conseguiria tocar as pontas dos dedos se parassem ao redor
da base, com os braços esticados. Assim tão perto, Elphame podia ver que o pilar fora intricadamente esculpido num padrão circular de nós entrelaçados que se uniam
para formar desenhos adoráveis de pássaros, flores e éguas empinadas nas patas traseiras. Mesmo sob as camadas de fuligem e sujeira, a beleza do acabamento era óbvia.
- Você deve ter sido lindo de se ver - sussurrou Elphame para o pilar.
Imediatamente um estranho sussurro de resposta ecoou por seu corpo.
- Oh! - Ela ofegou.
- O que foi, El? - Em dois passos Cuchulainn estava ao lado dela, a claymore bem firme na mão forte.
Ela reservou a ele um sorriso tranquilizador.
- Não se preocupe, não é nada ruim. - Então concentrou novamente sua atenção no pilar. - Posso sentir algo aqui - nesta pedra.
Enquanto a estudava, Elphame subitamente ficou ciente de uma percepção. Era uma presença audível. É de onde vem o sussurro, pensou. Ignorando a vigilância incansável
do irmão, Elphame pousou as mãos esguias na coluna desgastada pelo tempo. Quando sua carne encontrou a pedra, foi como se a superfície da coluna estremecesse. Num
espanto silencioso, ela a acariciou. Por um instante a coluna maciça pareceu se liquefazer sob suas palmas, quase como se seu toque de alguma forma tornasse a pedra
argilosa e maleável. Então suas mãos e a seção da coluna que ela tocava começaram a cintilar, e a radiância subiu por seus braços num afluxo de calor até envolver
seu corpo. Elphame foi tomada por uma sensação surpreendente, como se estivesse imersa numa piscina quente de emoção, ou em segurança no abraço da mãe. As mãos dela
tremeram - não por medo, mas devido à completa beleza daquilo.
- Oh. - A respiração dela veio num sopro. - Oh, sim! Posso senti-los. - O rosto dela se iluminou de emoção.
- Não são os guerreiros o que está sentindo, Deusa. - A voz profunda veio de trás deles, rompendo o silêncio como uma faca quente na neve.
Cuchulainn se moveu com velocidade espantosa para tomar posição entre a irmã e o intruso, a claymore mantida em prontidão diante de si.
- Danann! Esta é uma maneira excelente de garantir que não morra tranquilamente de velhice durante o sono, artífice. - A mão de Cuchulainn tremia devido ao excesso
de adrenalina enquanto embainhava a espada, mas o velho centauro prestava pouca atenção no guerreiro. Seu olhar estava focado em Elphame, assim como o dela estava
focado nele.
- Se não estou sentindo os espíritos dos guerreiros, então o que é isso que sinto? - perguntou ela.
Ao som da voz dele, Elphame tinha interrompido o contato com o pilar, mas as mãos ainda formigavam com o resíduo do calor da pedra. Agora ela esperava ansiosa pela
resposta de Danann. Toda Partholon sabia que Epona presenteara o centauro com uma afinidade especial com a terra. Os espíritos da natureza falavam com ele através
da pedra, razão pela qual Elphame requisitara o artífice para se juntar à equipe para reconstruir o Castelo MacCallan, mesmo que com sua idade avançada ele estivesse
mais inclinado a cochilar ao sol do que a erguer paredes de templos. Mas ele continuava sendo o mais reverenciado canteiro em Partholon. Ele podia ouvir espíritos
dentro das pedras, e assim escolhia, literalmente, a pedra perfeita para cada construção. Com o renomado artífice centauro para guiar as reformas, Elphame poderia
ter certeza de que a reconstrução se sustentaria harmoniosa por séculos.
O centauro se aproximou de Elphame e da coluna atrás dela com um passo enérgico que traía sua idade. Ele estudou a pedra, a princípio sem tocá-la. Quando falou,
sua voz era um som sonhador e distante: - Esta é a grande coluna central do Castelo MacCallan. Já foi a força do castelo. - Ele sorriu para Elphame. - É o espírito
da rocha que você está sentindo. O próprio coração do castelo em si, não os espíritos de guerreiros mortos.
Gentilmente, ele ergueu a mão e a pôs na coluna.
- Toque-a novamente, Deusa. Não tem nada a temer.
- Não tenho medo dela - disse Elphame rapidamente. Sem hesitação, pôs sua mão macia e lisa ao lado da mão enrugada do centauro. Danann fechou os olhos em concentração.
O brilho começou embaixo de sua palma e se espalhou rapidamente para abranger tanto Elphame quanto Danann. Mais uma vez, uma onda de sensação a inundou. Ela estava
preparada para isso e se concentrou, tentando filtrar fragmentos de emoções que eram quase faladas. Alegria - ela captou a palavra à medida que a felicidade a engolfava...
Paz - Elphame queria rir alto... Um fim à espera - a frase esvoaçou brincalhona por sua mente. Então o brilho desvaneceu, deixando Elphame ofegante e eufórica.
- Eu sabia! Eu senti assim que pisei dentro desses muros - gritou o velho artífice. Ele virou a cabeça; por isso, ao abrir os olhos, suas profundezas azuis e límpidas
refletiram o rosto de Elphame.
- Você está sintonizada com o coração deste castelo, Deusa. As próprias rochas lhe dão boas-vindas. Elas exultam pela chegada de sua senhora. - O sorriso dele estava
cheio de calor. - Como sua ancestral, Rhiannon, você tem a habilidade de ouvir os espíritos da terra.
- Não até agora! Não até eu chegar aqui! - gritou ela com alegria. Magia! Ela finalmente fora presenteada com mais do que uma aberração física.
Por impulso, Elphame pôs a mão sobre a que Danann ainda mantinha na coluna e a apertou com gratidão. Quase imediatamente lamentou ter cedido ao impulso. Exceto pelos
membros da família, fazia questão de nunca tocar outras pessoas. Uma das suas antigas lembranças era um incidente envolvendo a filha de um visitante chefe de clã.
Os adultos estavam ocupados discutindo o que quer que seja que os adultos discutem. A jovem Elphame estava entediada e aproveitara a oportunidade para cutucar o
braço da filha do chefe - estava tentando chamar a atenção dela discretamente para que as duas pudessem escapulir e brincar. A criança berrara ao toque de Elphame,
gritando que fora marcada pela Deusa e que certamente morreria. Nenhuma tentativa conseguiu dissuadir a garotinha da histeria. O chefe partiu afobado, lançando olhares
assustados para Elphame - mesmo depois de Etain assegurar-lhe que Epona não estava interessada na vida de sua filha.
Espíritos da terra podiam lhe falar, e pedras lhe darem as boas-vindas, mas mortais não gostavam de ser tocados por uma deusa viva.
Com um pequeno arfar, Elphame tentou tirar a mão da de Danann antes que ele pudesse fugir de seu toque, mas em vez de deixar que ela se afastasse, Danann virou a
palma e apertou-lhe a mão.
- Os espíritos da pedra dizem que este é o seu lugar.
Elphame sentiu o rosto corar.
- Desde que eu me lembro, sempre quis trazer o Castelo MacCallan de volta à vida - deixou escapar. - Obrigada por se juntar a nós aqui, Danann. Sua presença significa
muito para mim.
- Sinto-me honrado em servi-la, Deusa - disse ele simplesmente, apertando-lhe a mão antes de soltá-la.
Danann não se afastou dela com medo nem se curvou numa reverência espantada.
Era como se ela fosse uma simples chefe de clã pedindo sua ajuda. A ideia era tão inesperada que Elphame piscou surpresa, e virou-se rapidamente para o irmão para
esconder sua falta de jeito.
- Cuchulainn, pode acreditar que eu consigo sentir os espíritos nas pedras?
- Claro que acredito. - Ele sorriu para a irmã, contente por ela parecer tão feliz e animada. Quase contente o bastante para esquecer o quanto fora desconcertante
observar o brilho mágico da pedra engolfá-la. Precisava lembrar-se de que era diferente para Elphame. Ele era um guerreiro; não queria contato nenhum com coisas
que não podia vencer com a pancada de uma lâmina, mas Elphame nunca sentira sua inquietação com a magia e o reino espiritual. Apesar de falar pouco nisso, mesmo
com ele, Cuchulainn sabia que a irmã sempre ansiara por uma conexão espiritual com a Deusa que tão obviamente moldara seu corpo. Elphame era a filha primogênita
da Escolhida de Epona. Nunca foi uma certeza, mas geralmente a Deusa chamava a filha mais velha de uma Escolhida idosa para suceder a mãe como líder espiritual de
Partholon. Epona podia estar preparando Elphame para o dia em que tomaria o lugar da mãe. Assim é o mundo, Cuchulainn lembrou a si mesmo. Ele se esquivou do tremor
e aproximou-se de Danann, apertando a mão do velho centauro num cumprimento caloroso.
- Acredito que sou melhor para ouvir espíritos do que para surpreender um guerreiro guardando sua irmã - disse Danann ironicamente.
- Ah, eu diria que você fez bom trabalho ao me surpreender - disse Cuchulainn.
- Cuchulainn está agitado desde a noite passada. Apenas o ignore - disse Elphame enquanto batia o ombro no do irmão, sorrindo abertamente.
Cuchulainn ignorou a provocação de Elphame.
- Veio sozinho, Danann?
O artífice meneou a cabeça e apontou para a entrada tomada por mato.
- Não, me juntei ao resto do seu grupo quando deixaram Loth Tor. Eles preferiram esperar do lado de fora dos muros do castelo. Não estavam nada ansiosos para entrar.
- Ele encolheu os ombros e sorriu. - Os jovens geralmente se assustam com pouco mais do que histórias de ninar e sombras.
Elphame sentiu um ímpeto de gratidão pela atitude sensata do centauro.
- Isso é próprio dos homens jovens. - Ela lançou ao irmão um olhar de aborrecimento fraternal, agrupando-o na categoria dos preguiçosos. - Em vez de se ocuparem,
ficam parados esperando que digam o que devem fazer.
Com experiente elegância, Danann se curvou, dobrando uma das pernas dianteiras prateadas enquanto estendia a outra. Oferecendo o braço num velho gesto de cortesia,
disse: - Então, Deusa, devo escoltá-la para que possa oferecer aos jovens alguma orientação antes que desperdicem suas vidas na ociosidade?
Elphame hesitou. Iria mesmo tocar em alguém fora de sua família pela segunda vez num dia? Olhou do braço galantemente oferecido pelo centauro para o irmão. Cuchulainn
piscou e assentiu. Ela respirou fundo e repousou a mão no antebraço do artífice. Seus dedos tremeram só um pouquinho.
Exatamente como uma pessoa normal, pensou ela, incapaz de conter um sorriso.
Com Cuchulainn acompanhando logo atrás, refizeram o caminho desde as ruínas do pátio, através do buraco nos antigos muros, até onde o grupo esperava.
Como Danann notara, era um grupo jovem - quase todos filhos caçulas que desejavam embarcar na aventura de restaurar o Castelo MacCallan porque nutriam o desejo de
traçar seu próprio caminho no mundo. Haveria terra e oportunidade se o Castelo MacCallan revivesse - e isso injetara animação em seus sangues quentes.
E então lá estava a jovem deusa, Elphame. Toda Partholon sabia que ela lhes fora ofertada por Epona como uma bênção especial, mas ninguém entendia bem o porquê.
Os desígnios de Epona geralmente eram misteriosos. Era uma Deusa benevolente, mas não costumava interferir nas atividades cotidianas de Seu povo; em vez disso, escolhia
uma mulher - alguém com quem tivesse ligação especial, e era através dessa Escolhida que Epona guiava Seu povo. Elphame ter sido marcada tão obviamente pela divindade
de Partholon, especialmente enquanto sua mãe ainda reinava como Deusa Encarnada, fora fonte de assombro e especulação desde seu nascimento. Epona tocara Elphame,
e agora Elphame estava determinada a restaurar o Castelo MacCallan. Certamente a honra de acompanhá-la em sua missão lhes traria uma sorte que nem mesmo os rumores
da maldição do MacCallan poderiam macular. Ou ao menos era o que eles se diziam quando se uniram a ela. Tinham acreditado nisso, até ficarem frente a frente com
os muros desmoronados do castelo devastado pela guerra.
Quando Elphame surgiu, os homens e centauros que estavam nervosamente reunidos a vários metros da entrada ficaram em silêncio. A maioria deles estava acostumada
à visão da jovem Deusa, mas sua aparência ainda os afetava - e naquela manhã em particular ela parecia mais extraordinária do que de costume. O rosto estava iluminado
e a pele parecia reluzir. Vários dos homens e centauros jovens se descobriram pensando no quanto ela era espetacular, e quando seus lábios cheios e sensuais se ergueram
num sorriso refulgente, muitos dos machos reunidos sentiram uma resposta no sangue - mas apenas brevemente - até se recordarem de que não podiam desejar uma deusa
encarnada na Terra. Não importava o quão tentadora ela parecesse.
Quando Elphame falou, sua voz espalhou-se pelo grupo como brasa: - Desde as flores nos galhos, os pássaros melodiosos e a brisa sussurrante até os pilares deste
castelo, todos nos dão as boas-vindas. As próprias pedras nos cumprimentam com alegria. Não será mais uma ruína. - Elphame ergueu as mãos acima da cabeça e gritou:
- Alegrem-se! Este será nosso lar! - Um calor formigou por seus braços como quando ela se comunicara com a pedra, e seu corpo parecia deliciosamente em chamas.
O grupo reagiu em conjunto, não muito por causa de suas palavras ou da ideia de reconstruir o Castelo MacCallan, apenas responderam a ela - sua espetacular Deusa.
Com uma única voz, gritaram uma aclamação que fez as antigas paredes diante deles ecoarem novamente com os sons jubilosos dos vivos.
De seu esconderijo em meio às árvores, Lochlan observou o grupo. Homens e centauros - jovens e orgulhosos. Reconheceu o fogo no sangue deles quando reagiram a ela.
E a reconheceu também. Como não poderia? Sabia que a encontraria ali. Porém, a visão o sobressaltou. Ela parecia muito mais viva que em seus sonhos, e vê-la em pessoa
o fez perceber que nunca compreendera realmente a profundidade da beleza dela.
O corpo! Irradiava paixão e poder sobrenatural. Ele sentiu uma onda de desejo no fundo da carne. Seu sangue bombeou quente e forte e, com a excitação, ele sentiu
suas asas colossais tremerem e começarem a ficar eretas. Rapidamente se forçou a deixar de olhá-la para que pudesse colocar sua luxúria sobre controle.
A dor pinçou suas têmporas e se irradiou pelo corpo, carregada pelo sangue que pulsava forte e quente dentro dele. Seu corpo lutou para controlar o desejo, mas,
como sempre, Lochlan buscou seu poço de humanidade para conquistar os próprios impulsos sombrios. O latejar do sangue se aquietou. As asas estremeceram mais uma
vez antes de se dobrarem devidamente às suas costas.
Ele ignorou a dor familiar que continuava a ecoar fantasmagoricamente por sua mente.
Mas, uma vez controlado, permitiu que seus olhos voltassem a ela. Naquele instante, ela ergueu os braços acima da cabeça e o grupo gritou em resposta. Ele sorriu,
exibindo caninos longos e de aparência perigosa. Elphame o fazia querer gritar também. Foi certo vir sozinho; os outros possivelmente não entenderiam. Mas pensar
nos outros despejou sobre ele uma maré de desespero que ameaçou afogá-lo. Conseguia senti-los. Sempre conseguia senti-los - a necessidade, a dor, a confiança que
tinham nele. Lochlan estremeceu e fechou aquela parte da mente. Agora, não. Não podia pensar nos outros agora. Não quando tudo que havia de honrado e verdadeiro
nele - tudo que era humano - queria correr até Elphame e dizer que ela preenchia seus sonhos e seu coração desde quando conseguia se lembrar.
Ele respirou com dificuldade e esfregou a mão no rosto. Não podia ir até ela. Não em lugar aberto. Não ainda. Apenas o veriam como um fomoriano; seria morto. Não
poderia lutar contra todos por ela. Não importava o quão desesperadamente ansiasse.
Lembre-se de sua promessa, a consciência sussurrou em sua memória na voz de sua amada mãe. Lembre-se da Profecia. É seu destino encontrar uma maneira de curar seu
povo e levá-los de volta a Partholon. É você quem deve cumprir a Profecia de Epona.
Lochlan não podia agir de maneira egoísta. Precisava considerar os outros. Precisava acabar com a dor deles, mesmo que isso significasse...
Lutando contra uma sensação esmagadora de perda, arrancou o olhar de Elphame e desapareceu silenciosamente nas profundezas da floresta.
Cinco
- ESTÁ TENTANDO DE propósito acabar com minha diversão e me sentenciar a uma vida de celibato? - resmungou Cuchulainn com a irmã.
Elphame sorriu.
- Duvido que designá-lo para inspecionar os trabalhadores externos, em sua maioria homens, enquanto entrevisto as mulheres para a criadagem do castelo, possa de
alguma forma afetar sua ativíssima vida amorosa.
- Venha, garoto. Ajudo você a escolher quais nesse lamentável grupo de jovens podem ser canteiros passáveis - disse Danann, dando-lhe tapinhas amigáveis no ombro.
- Então você poderá levar o resto deles e começar a limpar os montes de entulho daqui, como sua irmã instruiu. - O velho centauro piscou para Elphame. - Mantenha
isso em mente: as mulheres ficarão mais dispostas a agraciar sua cama quando as paredes ao redor estiverem sólidas e limpas.
- O oposto dessa devastação, você quer dizer - falou Cuchulainn.
- É exatamente isso o que eu quero dizer - afirmou Danann.
- Hrumph. - Cuchulainn bufou enquanto ele e o artífice rumavam em direção ao pátio principal para retornar aos trabalhadores.
Elphame balançou a cabeça para a figura distante do irmão. Sua voz forte fluiu até ela pelo pátio quando chamou à ordem o grupo de homens e centauros que estavam
do lado de fora dos muros do castelo. Depois que ela cumprimentou os trabalhadores, Cuchulainn, Danann e Elphame fizeram uma rápida varredura das terras do castelo
e não demoraram a perceber que pouco podiam fazer quanto à restauração antes que limpassem os escombros acumulados ao longo do último século. Então a primeira ordem
do dia era tediosa, mas necessária. Limpeza.
Mãos nos quadris, Elphame olhou ao redor. Agora que estava sozinha, relaxou a expressão e estreitou os olhos. Que bagunça. Era verdade que os muros e as estruturas
básicas do castelo ainda estavam de pé, mas tudo o mais estava em ruínas. O que a pira funerária de MacCallan deixara, o tempo havia destruído. Elphame sentiu os
ombros tombarem. Era muito maior do que ela tinha imaginado. As terras do castelo, circundadas pelas sólidas muralhas de pedra, tomavam uma área enorme. Quantas
pessoas já viveram ali? Ao menos tantas quantas as que atualmente povoavam a modorrenta aldeia de Loth Tor. Será que seria capaz? Conseguiria realmente restaurar
tudo aquilo?
Sentindo-se decididamente devastada, os olhos de Elphame foram atraídos pela coluna central marcada pelo fogo. Ela esfregou as mãos, lembrando-se da calorosa sensação
de conversar com a pedra. Magia... Nunca tinha sentido sequer um indício antes, e hoje fora subitamente bombardeada com o conhecimento de que tinha uma afinidade
com os espíritos das pedras. O que isso significava realmente?
Por que não fica aqui e toma meu lugar... Tive um reinado longo e próspero. Estou pronta para me aposentar.
As palavras da mãe vagaram por sua memória, fazendo-lhe o estômago apertar de ansiedade. Não podia tomar o lugar da mãe! Mesmo que sentisse ou não os espíritos nas
pedras, não estava pronta para liderar Partholon; ela não era a mãe.
- Pare! - Elphame disse a si mesma com severidade. A mãe era a Escolhida de Epona; ela, não. Só estava se sentindo intimidada com a enormidade da tarefa diante deles,
o que era natural. Olhou para as paredes desmoronadas, marcadas por fogo. - Não é como se eu achasse que seria fácil - murmurou, sacudindo-se mentalmente. Só precisava
começar. Dar um passo de cada vez. Ficar no controle.
Era seu castelo. Seu lar.
- Elphame! - A voz de Cuchulainn ribombou pelo pátio vazio. - As mulheres estão aqui!
- É aqui que eu começo - sussurrou Elphame. Não podia liderar Partholon - na verdade, não tinha qualquer vontade -, mas podia fazer o Castelo MacCallan reviver.
Ofereceu à forte coluna central um sorriso antes de correr até a entrada do castelo.
As mulheres estavam paradas num pequeno grupo a vários metros do buraco nos muros do castelo. Sem ser notada, Elphame as observou das sombras. Pareciam jovens e
assustadas. E eram tão poucas! Contou rapidamente - pouco mais de uma dúzia. Quase três vezes mais homens e centauros se voluntariaram. E todas as mulheres eram
humanas. Nem uma centaura respondera ao seu chamado? Nem mesmo uma jovem caçadora em treinamento? El se permitiu sentir brevemente o desapontamento. Tinha um trabalho
a fazer e simplesmente teria que trabalhar com o que lhe era disponível. Talvez o pequeno número lhe desse a chance de conhecê-las mais pessoalmente. Aquilo seria
uma boa mudança.
Não se permitiu o luxo de esperar, talvez fazer uma amiga de verdade - mal poderia imaginar tal coisa. Mas talvez esse pequeno grupo de mulheres pudesse aprender
a interagir com ela como se fosse uma chefe de clã, ou até uma alta sacerdotisa, em vez de tratá-la como um objeto a ser venerado - deusa, intocável e distante de
emoções mortais.
Quando Elphame surgiu da ruína, o grupo fez uma nervosa mesura.
Elphame pigarreou e exibiu seu melhor sorriso de boas-vindas.
- Bom dia. Fico contente por ver que tantas de vocês estão interessadas em restaurar o Castelo MacCallan e fazer dele seu lar. Os homens... - ela apontou acima da
cabeça delas para os grupos que já se formavam e começavam a tirar pedregulhos dos arredores dos muros do castelo - ... Cuidarão de grande parte do trabalho pesado,
mas isso não significa que seus serviços serão menos importantes. Precisarei de cozinheiras e mulheres que sejam talentosas com o tear e a costura. - Sem perceber,
o sorriso de Elphame se tornou sonhador. - Quando MacCallan vier à vida novamente, quero encher suas paredes com belas tapeçarias que deixem até minha mãe com inveja.
Reagindo à doce expressão da Deusa, várias mulheres sorriram com hesitação. Fortificada pela reação positiva, Elphame prosseguiu numa voz segura e forte: - E, claro,
precisarei de mulheres que me ajudem com o cuidado diário do castelo. - Elphame riu e olhou ostensivamente para as ervas daninhas e o lixo que sufocavam a entrada.
- Alguns dias definitivamente exigirão mais que outros.
Uma das mulheres deu uma risadinha, depois cobriu a boca com a mão e corou vividamente.
Elphame encontrou-lhe os olhos.
- Não tenha medo de rir aqui. Sei que agora não parece, mas as pedras cantam de alegria por nossa chegada. MacCallan será um lar feliz.
A moça tirou a mão da boca e sorriu timidamente para a Deusa.
- Qual o seu nome? - perguntou-lhe Elphame.
- Meara - disse ela, a voz hesitando nervosamente.
- Meara - repetiu Elphame. - Em que trabalho você é mais talentosa?
- Eu... Eu... - gaguejou ela, depois enfim concluindo com ímpeto: - Sou boa em manter as coisas arrumadas.
- Então veio ao lugar certo. Há muita arrumação esperando você. - Seu olhar viajou sobre o resto do pequeno grupo. - Aquelas que forem boas em limpeza, por favor,
deem o nome para Meara. - Elphame voltou a olhar a moça que tinha se voluntariado e viu os olhos dela se arregalarem de orgulho. - Meara, peço que me entregue uma
lista das suas trabalhadoras ao fim do dia. Agora - Elphame recomeçou -, quem serão as minhas cozinheiras?
Com apenas uma ligeira hesitação, quatro jovens mulheres que estavam de pé juntas num morrinho ergueram as mãos. A que estava no meio do grupo avançou meio passo.
Ela possuía cabelo ruivo brilhante e adoráveis olhos cor de jade.
- Ouvimos seu chamado e viemos do Castelo McNamara. A cozinheira-chefe de lá era... - Ela se calou e olhou para as amigas em busca de apoio. Elas assentiram em encorajamento.
- Ela era muito enfezada e não gostava de cozinheiras jovens. Sim, não gostava principalmente de cozinheiras jovens com ideias novas. - A ruiva despejou suas palavras
com um suave sotaque do oeste.
Elphame ergueu as sobrancelhas.
- Bem, posso assegurar que não me importo com cozinheiras jovens e gosto particularmente de ideias novas. Acho que não sou enfezada, mas Cuchulainn provavelmente
discordaria de mim.
À menção do nome de seu formoso irmão, as moças deram risadinhas e sorriram.
- Então qual de vocês é a melhor cozinheira? - perguntou Elphame.
Três pares de olhos se dirigiram à mulher que tinha falado por elas.
- Somos todas boas cozinheiras, mas admito que tenho talento especial na cozinha. Meu nome é Wynne. As meninas que me acompanham são Ada, Colleen e Ula. - Ela apontou
para cada mulher por vez ao falar.
- Wynne, estou contente em anunciar que você é minha nova cozinheira-chefe - disse Elphame. - Sua primeira tarefa será inspecionar o que restou da cozinha do castelo.
Tome nota do que deve ser reparado para que entre em funcionamento o mais rápido possível. Você tem muitas bocas famintas para alimentar.
- Sim, Deusa - disse Wynne, fazendo uma mesura rápida.
Elphame pôde sentir o queixo apertando à menção do título. Deusa. Nunca a veriam como ela mesma - Elphame, uma jovem mulher que gostava de correr, rir com sua família
e possuía a tendência de gostar um pouco demais de longos banhos na piscina da mãe -, ao menos não enquanto todos insistissem em vê-la apenas como uma deusa.
Talvez esse novo começo pudesse mudar isso. Ela tomou a decisão rapidamente.
- Senhoras - disse ela, e a tagarelice que havia começado se silenciou quando todos os olhos se voltaram para Elphame. - Gostaria de pedir um favor a cada uma de
vocês. Estaremos trabalhando juntas, e prefiro que me chamem por meu nome em vez do título de deusa.
As mulheres piscaram, expressões chocadas espelhadas em cada face.
Elphame suspirou.
- Ou podem me chamar "minha senhora". Qualquer coisa, menos deusa - disse ela, sentindo-se um pouco desesperada quando ninguém falou. - Deixe-me ver - continuou,
apressada. - O que mais? Já sei. Há alguém aqui que tenha talento para tecer ou costurar?
Várias mãos se ergueram. Elphame notou uma loira um tanto gorducha cujo rosto rosado parecia ter uma radiância perpétua.
- Qual o seu nome? - perguntou El.
- Caitlin.
- Caitlin, sabe tecer ou costurar?
- Ambos, deu... Minha senhora.
- Excelente. Tenho várias ideias para as novas tapeçarias. Na verdade, gostaria que elas refletissem um tema para cada cômodo principal do castelo, a começar pelo
Grande Salão. - A voz de Elphame se acendeu de animação. - E o tema para o Grande Salão será o próprio castelo. Quero que as tapeçarias mostrem o Castelo MacCallan
revivido em toda sua grandeza e beleza.
Caitlin piscou várias vezes antes de falar:
- Mas, deusa... Er... Digo, minha senhora, como saberemos o que tecer? Ele... - a moça apontou desalentada para a grande estrutura diante delas - ... Não parece
grandioso agora.
Elphame franziu as sobrancelhas. Tinha se esquecido de que os outros não possuíam uma imagem do castelo restaurado gravada na mente.
- Suponho que precisarei encontrar um artista... - ponderou ela, fitando seu desmantelado e amado castelo.
- Eu poderia esboçá-lo para você, minha senhora.
A cabeça de El girou à procura da mulher, tentando sem sucesso ver quem tinha falado.
- Quem falou? - perguntou.
A mesma voz respondeu de trás do grupo:
- Sou Brenna.
- Venha aqui, não consigo vê-la - disse Elphame com impaciência.
O grupo se partiu para deixar uma morena miúda passar. Sua cabeça estava curvada e o rosto obscurecido. Elphame imediatamente notou que as outras mulheres desviavam
o olhar, como se a visão dela as deixasse desconfortável. Então a pequena mulher ergueu a cabeça. Elphame sentiu um inesperado solavanco no corpo quando viu em cheio
o rosto da mulher, e teve que forçar sua expressão a permanecer impassível.
Brenna era jovem, e já tinha sido bela, Elphame podia julgar isso pelo lado esquerdo de seu rosto. O lado direito era uma ruína. Uma terrível cicatriz de queimadura
vinha desde o pescoço, subindo para cobrir todo o lado direito do rosto. Era grossa e mosqueada com os vívidos pigmentos rosa e branco que distinguiam as queimaduras
mais profundas. O lado direito da boca estava desprovido do contorno dos lábios, o que era mais horrível quando comparado à fartura macia dos lábios ilesos no outro
lado do rosto. O olho direito era límpido e parecia incólume. Possuía o mesmo castanho de corça do olho esquerdo, mas as cicatrizes no canto dele pareciam puxá-lo
para baixo, dando-lhe uma aparência recurvada.
Ela ficou imóvel, deixando que Elphame a estudasse. Correspondeu ao olhar da deusa sem se acovardar.
- Acredito que posso desenhar o castelo para você - disse ela numa voz clara e confiante.
- Você é artista, Brenna? - perguntou Elphame.
- Tenho um pequeno talento para esboçar, especialmente coisas que imagino na minha mente. - Ela exibiu um sorriso torto que Elphame ficou surpresa por considerar
encantador. - Então acho que posso esboçar coisas que você imagine também, se puder descrevê-las para mim.
El assentiu com entusiasmo, mas, antes que pudesse falar, Brenna prosseguiu: - Mas deve saber que não me considero artista. Sou curandeira.
O rosto de Elphame se abriu num grande sorriso.
- Então é mais do que bem-vinda, Brenna. Com todos estes trabalhadores arrastando e construindo coisas, é certo que teremos vários contratempos que exigirão o toque
de uma curandeira. Sei que meu próprio irmão, embora seja um guerreiro perfeito, é incomumente propenso a cortes e arranhões.
Por um instante Elphame viu a expressão de Brenna mudar, e foi como se uma sombra passasse pelo rosto devastado da jovem. Mas ela respondeu sem hesitação: - Claro,
minha senhora. Sempre fico contente em estar onde sou necessária.
- Elphame! - Feito um furacão, Cuchulainn passou pelo grupo de mulheres. Olhos cintilando, ele assentiu para várias das mais bonitas antes de chegar ao lado da irmã.
- As carroças de suprimentos estão presas na bagunça que antes foi chamada de estrada principal para o castelo. Despachei os centauros para encontrá-las e picar
uma trilha até os muros da frente. Quando as carroças chegarem aqui, acho que é melhor erguermos tendas do lado de fora dos muros do castelo, ao menos até tornamos
este monstro habitável novamente.
Elphame ergueu uma sobrancelha para ele e cruzou os braços.
Cuchulainn riu.
- Certo! Perdoe-me por chamar seu palácio de monstro.
- Não é um palácio. É um castelo - corrigiu-o ela.
- Bem, seu castelo não serve nem para gente nem para feras. - Ele piscou para a encantadora e gorducha Caitlin, que corou até quase ficar roxa. - Nem para uma adorável
dama. - Ele apontou para detrás delas. - A área de pasto ali a sudoeste do castelo, que corre desde o muro sul até a beira do penhasco, será mais fácil de limpar.
Em alguns dias poderemos erguer tendas e montar um acampamento. Até lá o povo de Loth Tor ficará contente em nos abrigar. - Cuchulainn sorriu para a irmã de forma
atrevida. - Se isso lhe convém, minha senhora.
Elphame conteve-se para não lhe esmurrar as orelhas.
- Sim, sim, assim está bom. Mas preciso de alguns homens que acompanhem minha cozinheira-chefe e sua equipe. É importante que a cozinha seja restaurada rápido. -
Ela cutucou as costelas do irmão. - Homens precisam de mais do que carne-seca e biscoitos duros no estômago quando vão trabalhar por longos dias.
Cuchulainn deu uma risadinha e apertou as costelas. Gostava de ver a irmã tão relaxada em público - ela geralmente guardava as brincadeiras fraternais para momentos
em que só estavam os dois juntos. Restaurar o gigantesco edifício talvez fosse bom para ela, se a ensinasse a relaxar.
- Por mais que eu deteste admitir, você está certa, minha irmã. Colocarei vários homens à sua disposição - na verdade, à disposição de sua cozinheira. - Seus olhos
brilharam travessamente. - O que significa que precisará me apresentar para sua cozinheira.
Elphame revirou os olhos antes de chamar sua nova cozinheira-chefe: - Wynne, este rapaz incômodo é meu irmão. Cuchulainn, conheça minha cozinheira-chefe.
Cuchulainn se curvou de maneira extravagante.
- Prazer em conhecê-la, Wynne do cabelo flamejante.
- Digo o mesmo, meu senhor - disse a nova cozinheira, dando-lhe um olhar de apreciação primitivamente feminino.
- Agora sabe o nome dela, Cuchulainn. Mande que alguns homens venham encontrá-la. Ela estará dentro do castelo, assim como o resto de nós.
- Ah, você só pensa em trabalho, minha irmã. - Cuchulainn afastou-se do grupo, curvando-se galantemente. - Senhoras, até mais tarde.
As mulheres fizeram mesuras e deram adeus a ele.
- Meu irmão é um malandro. - Ela não percebeu que tinha falado o pensamento em voz alta até Wynne, que ainda olhava os ombros largos de Cuchulainn se afastando,
falar: - Sim, mas um malandro diabolicamente bonito. - Então, como se temesse ter ultrapassado uma barreira imaginária, Wynne empalideceu e murmurou um apressado
pedido de desculpas.
Elphame acenou em desconsideração e disse com forçada indiferença: - Apenas mantenha a ênfase no diabolicamente e ficará a salvo de muito desgosto.
Elas nunca ficariam à vontade em sua presença? Sempre agiriam como se ela fosse um duto sagrado a ser contornado? Ela estava se esforçando para agir "normalmente"
perto das mulheres. Não tinha acabado de provocar Cuchulainn na frente delas?
Vai levar tempo para mostrar a elas que não sou tão diferente, disse a si mesma com firmeza. Esse era seu novo começo, mas precisava ser paciente. Anos vivendo de
um modo não seriam apagados numa manhã. Refreando a frustração, ela se dirigiu ao grupo: - Vamos trabalhar. Sei que cada uma de vocês tem talentos especiais, e realmente
aprecio isso. - Ela sorriu para as mulheres, especialmente para aquelas às quais já fora apresentada, e notou pela primeira vez que Brenna não estava mais perto
dela. Pelo contrário, havia desaparecido mais uma vez por trás do grupo. - Mas creio que por enquanto todas nós devemos imitar Meara - devemos arrumar as coisas
antes de nos separarmos para focar nos nossos talentos individuais. Então, vamos começar limpando a entrada de nosso novo lar.
Sem esperar uma resposta, Elphame caminhou com determinação até o buraco coberto pela vegetação nos muros do castelo. Sem piedade, curvou-se e agarrou um longo pedaço
de ferro enferrujado que antes se sustinha orgulhosamente de pé como parte dos portões sempre abertos de MacCallan. Ela o arrastou, usando os músculos poderosos
das pernas para lhe dar mais força, e o pedaço de ferro libertou-se com relutância da aderência das vinhas.
Ela ergueu a cabeça e viu os olhos das mulheres alternando entre observá-la e espiar as sombras dentro dos muros do castelo. Pareciam ansiosas e assustadas. Sem
dúvida estavam pensando nas histórias de ninar que ouviram sobre a maldição do Castelo MacCallan. Elphame quase podia ver os reflexos dos fantasmas imaginários nos
olhos delas. Sabia que precisavam de palavras de encorajamento, mas não era nada boa nisso - o discurso feito aos homens mais cedo naquele dia fora um acaso; ainda
estava mergulhada na maré mágica de ouvir os espíritos nas pedras do castelo. Fazer discursos inspiradores era especialidade de sua mãe, não sua.
Mas elas precisavam ser tranquilizadas; a maneira nervosa com que os olhos sempre se voltavam a ela dizia que aquelas mulheres achavam que Elphame tinha todas as
respostas. E ela teve uma ideia. Podia não ter todas as respostas, mas estava completamente certa de uma coisa. O Castelo MacCallan era seu lar. Agora seria o lar
delas também. E de repente ela soube o que dizer às mulheres: - Acho que é certo limparmos a entrada para nosso novo lar. As mulheres são o coração de um lar, seja
um castelo, um templo ou uma humilde cabana. As mulheres sopram vida à família, assim como nossa Deusa, Epona, sopra vida em nosso mundo a cada manhã. Como mulheres
do castelo, vamos reabrir MacCallan aos vivos e, aos poucos, fazer dele nosso lar.
Elphame pôde ouvir o suspiro coletivo quando suas palavras pareceram liberar a tensão que crescera no grupo.
Meara correu na frente, agarrou um galho morto e o atirou na pilha que Elphame iniciara.
- Ao menos sabemos que somos necessárias aqui - disse ela com um tom de satisfação que fez as outras sorrirem.
- Sim, isso é uma certeza - disse Wynne quando começou a puxar uma parte do enorme emaranhado de mato que cobria a abertura. Sem mais hesitação, as três recém-nomeadas
cozinheiras assistentes se juntaram a ela. Depois o resto do grupo começou a trabalhar, tagarelando, rindo e fazendo pálidas piadinhas sobre as mulheres precisarem
abrir caminho para os homens, que do contrário costumavam perder o rumo.
Elphame recuou um passo e as observou. Já podia dizer que era um grupo trabalhador. Ninguém reclamou por sujar as mãos, ninguém choramingou por descanso. El pensou
no que Meara dissera: "Ao menos sabemos que somos necessárias aqui." Talvez fosse isso. Todas as mulheres daquele grupo tinham algo em comum - em seus antigos lares,
sua antiga vida, não eram necessárias, então vieram à procura da sensação de pertencimento que ser necessário ofereceria.
Elas sempre terão isso aqui comigo, um lar onde são necessárias e apreciadas. Quando Elphame fez aquela promessa a si mesma, por apenas um instante pensou ter ouvido
o sussurro de uma voz no vento dizer Muito bem, Amada.
Seis
- PARECE MUITO ESCURO e assustador. - A voz macia de Caitlin ecoou nas vazias paredes internas do castelo.
As mulheres estavam paradas pouco mais do que um passo dentro da entrada recentemente limpa do Castelo MacCallan. Passaram o que sobrara da manhã removendo do espaço
o equivalente a um século de entulho, que agora parecia a boca de um gigante sem o dente da frente. O almoço fora um rápido intervalo que consistiu de biscoitos
duros, queijo e carne-seca, devorado apressadamente entre a remoção e o corte do mato - Elphame podia imaginar o tremor de desgosto da mãe com a comida e o que rotularia
como maneira bárbara com que foi devorada, mas Elphame adorara cada mordida apressada.
Agora era o momento do segundo passo: entrar de fato no castelo e começar o trabalho decididamente mais complexo de transformar a antiga destruição em lar ordeiro.
Mas primeiro precisaria reorganizar suas tropas. Mais uma vez.
- Não é escuro de verdade - disse, adentrando alguns passos pelos protetores muros externos. Apontou para a entrada vazia que levava ao interior do castelo, através
da qual mal se podia ver o pátio interno e as maciças colunas de pedra. - Parece escuro porque tudo ainda está coberto de fuligem do incêndio. Sem mencionar a sujeira
de anos de exposição aos elementos. - Ela sorriu encorajadoramente para Caitlin. - Só precisa de uma boa esfregada e um pouco de atenção, e não será mais escuro.
Caitlin, assim como o resto das mulheres, ainda não parecia convencida. Bom, pensou Elphame, talvez devesse encarar o que todas elas estavam pensando - colocar tudo
em pratos limpos para que pudessem lidar abertamente com o problema.
- E a respeito da maldição... - Elphame calou-se. Parecia que até as pedras haviam parado para ouvir suas próximas palavras. - ...nada disso existe - disse lenta
e distintamente. - Tenho a garantia da Encarnada da própria Epona, além de contar com minha intuição. - Enquanto falava, Elphame recuou mais alguns passos até parar
diretamente na entrada interna. Apontou às suas costas.
- Ainda há muita beleza aqui. Só precisam procurar. Por favor, não deixem que histórias bobas contadas para assustar crianças malcriadas maculem sua confiança em
seu novo lar. - Ou em mim. Acrescentou o apelo silenciosamente. Não queria que as pessoas se esquivassem por MacCallan, assustando-se com sombras e sendo perseguidas
por demônios imaginários.
- Nunca tive medo de histórias de ninar, minha senhora.
Elphame reconheceu a voz da mulher antes mesmo que ela saísse de seu lugar habitual nas sombras ao fundo do grupo. Brenna havia parado de baixar a cabeça e se esconder
por trás de uma parede de cabelo - todas estavam ocupadas demais naquele dia para se preocuparem muito com a aparência. Mas El notara que Brenna se resguardava e
que raramente era incluída na conversa fácil que já começava a unir o resto das mulheres. Agora seu olhar perspicaz sustinha os olhos de Elphame.
- Mas descobri que às vezes fantasias e imaginações podem ser mais poderosas que a realidade. Por causa disso, é prudente dispersar os fantasmas irreais antes que
sobrepujem o que é verdadeiro.
Elphame gostou do modo confiante e calmo de Brenna falar.
- O que sugere, Brenna?
- Uma simples cerimônia de limpeza, algo que limpe qualquer energia negativa e também nos proteja e nos dê as boas-vindas como novos habitantes do castelo - disse
Brenna.
As outras mulheres estavam observando Brenna com expressões mistas de curiosidade e alívio.
- Diga-nos o que precisa - disse Elphame.
- A cerimônia é simples. Só precisamos de manjericão e vasilhas para colocar água fresca.
- É possível que se encontre manjericão selvagem na horta do castelo - disse Wynne.
- Ervas são resilientes. As chances de encontrar manjericão são grandes, se encontrarmos a horta - disse Brenna a Wynne.
- Posso encontrar uma horta em qualquer castelo. - Wynne acrescentou uma inflexão ao seu sotaque melódico.
- E deve ter sobrado algo que armazene água - acrescentou Meara. - É um lugar que já foi cheio de gente; e onde há gente, há muitos objetos domésticos.
- Boa ideia, Wynne e Meara. Metade de vocês vai com nossa cozinheira encontrar manjericão, a outra metade vai com Meara procurar vasilhas, baldes ou qualquer coisa
que possa armazenar água - disse Elphame rapidamente. - Depois tragam o que encontrarem para cá e começaremos a cerimônia.
Elphame não esperava que elas reagissem tão prontamente, mas as mulheres logo se dividiram em dois grupos e, como guerreiros domésticos, desbravaram o antigo castelo.
Sim, elas estavam conversando e rindo com vozes bem altas, como se para afugentar qualquer coisa que pudesse estar espreitando o castelo em si, sem se encolherem,
chorarem ou berrarem de medo. Elphame lembrou-se de que naquela manhã os homens e centauros se recusaram a acompanhar Danann para dentro dos muros do castelo. Agora
aqueles mesmos muros ressoavam com os sons das mulheres ocupadas. Era certamente um passo na direção certa.
- O medo geralmente pode ser superado com bom-senso e tarefas que sejam familiares e simples - disse Brenna baixinho. Ela não tinha acompanhado as mulheres. Ela
e Elphame estavam sozinhas perto da entrada do castelo.
El sorriu para ela.
- Foi esperteza sua pensar na cerimônia de limpeza. Tudo no que pude pensar foi na tolice de ter medo de um lugar que reserva tanta esperança para o futuro. Queria
gritar com elas e tentar forçá-las a ver que as histórias não são verdadeiras. Seu jeito foi melhor.
- Não melhor, minha senhora, só mais fácil para que elas compreendessem - disse Brenna com humildade, mas ela curvou a cabeça ligeiramente em reconhecimento ao cumprimento
de Elphame.
- Você é uma xamã? - perguntou Elphame, curiosa.
Brenna exibiu seu sorriso torto.
- Fico lisonjeada por pensar assim. Não, não posso curar o espírito, como um xamã faz, mas reconheço que para tratar a carne devo ter algum conhecimento do reino
espiritual.
Elphame sentiu o sorriso se alargar.
- Você parece meu pai - só que ele diz o contrário. Ele não pode curar o corpo, mas deve ter conhecimento do funcionamento dele para curar problemas do espírito.
- Midhir é um grande xamã. Só o encontrei uma vez, mas nessa única oportunidade ele demonstrou uma gentileza da qual nunca esquecerei.
- Eu não sabia... - Elphame fechou a boca. Quase disse que não sabia que o pai havia tratado de alguém tão severamente ferido. Quanta insensibilidade! Ela tossiu
e pigarreou para encobrir a falta de jeito. - ... Não sabia que conhecia meu pai.
- Não o conheço de fato, minha senhora. Como disse, só o encontrei uma vez.
Elphame assentiu, ainda decepcionada consigo mesma, e perguntou apressada: - De onde você é, Brenna?
- O Castelo Guardião era meu lar - respondeu Brenna.
- Fico contente por ter vindo se juntar a nós, mas espero que o Castelo Guardião não sinta demais a falta da curandeira.
Brenna desviou o olhar do de Elphame, mas não antes que ela deixasse de ver a dor que lampejou em seus olhos desencontrados.
- Era hora de partir. Era hora para um novo começo - disse Brenna calmamente.
- Acho que compreendo - disse Elphame.
Os olhos de Brenna se voltaram para Elphame. Ela abriu a boca para responder que a deusa, com seu rosto belo e perfeito, nem poderia começar a entender. Mas as palavras
não vieram, e não porque a curandeira estava com medo daquela mulher poderosa. Lentamente seu olhar vagou pelo corpo de Elphame. Ela estava vestida de maneira muito
semelhante ao resto das mulheres, num simples e prático vestido de linho que envolvia o peito e era mantido no lugar por simples broches nos ombros. O vestido deixava
os braços nus e livres para o trabalho, e do corpete se enrolava em dobras suaves e intricadas - muito semelhantes aos kilts que os homens vestiam - para terminar,
como de praxe em Partholon, bem em cima dos joelhos. Ali os olhos de Brenna pararam. Elphame estava vestida como o resto das mulheres, mas era aí que a similaridade
acabava. Em vez de joelhos delgados, panturrilhas femininas e torneadas e tornozelos se estreitando em sapatos de sola de couro, Elphame possuía poderosas pernas
equinas e jarretes recobertos por uma escovada e lustrosa pelagem do mesmo tom castanho de seus cabelos. As pernas incríveis terminavam em cascos que reluziam como
ébano polido. Ela não era humana, mas tampouco era um centauro. Era algo distinto do resto de Partholon. Os olhos de Brenna se ergueram para encontrar os de Elphame
novamente.
- Sim, acho que deve compreender muito bem - disse devagarinho.
As duas mulheres singulares sorriram hesitantemente uma para a outra.
As mulheres retornaram bem mais rápido do que Elphame previra. O grupo de Meara encontrou dois vasilhames utilizáveis. Um era um pote lascado que estivera meio enterrado
em sujeira, e o outro era um balde escurecido que de alguma forma escapara de ser consumido pelo fogo.
- É óbvio que nenhum é lavado há anos - disse Meara com desgosto. - Precisam de uma boa esfregada. - Depois acrescentou baixinho: - Assim como o castelo inteiro.
Elphame reteve um sorriso. Meara era definitivamente a escolha certa para liderar uma formidável força de arrumadeiras, e era melhor estar resmungando do trabalho
que estava por vir do que correndo de medo de uma maldição imaginária.
- Há um riacho perto daqui que corre desde a floresta até o penhasco e deságua no mar - falou uma das mulheres.
- Arlene, não é? - perguntou Elphame.
A moça assentiu timidamente.
- Sim, hã, minha senhora. Fui criada em Loth Tor e conheço bem essa área. - Sua voz possuía o delicioso sotaque do oeste de Partholon.
- Maravilhoso. Você pode mostrar a Meara o riacho. Meara, leve quantas mulheres precisar para dar uma boa esfregada nisso.
Com um resmungo satisfeito, Meara chamou várias mulheres para ajudá-la, e lá se foram elas, Arlene liderando o pequeno grupo.
- E eu encontrei bastante manjericão. - Wynne abriu a saia e vários ramos de folhas largas de manjericão tombaram no chão, enchendo o ar com o distinto aroma que
trouxe à mente molhos vermelhos deliciosos e refeições longas e agradáveis.
Elphame inalou fundo e notou várias das mulheres fazerem o mesmo. Ela sorriu para elas e pensou que devia estar quase na hora do jantar, se todas estavam pensando
em comida.
- Também encontrei a cozinha. Está praticamente em ruínas. - A cozinheira fez cara feia para o manjericão, como se as ervas fossem responsáveis pela confusão.
O coração de Elphame se apertou.
- Pode ser reparada ou precisa ser completamente reconstruída? - Ela tinha esperanças de que a cozinha pudesse ser colocada em funcionamento num espaço de tempo
relativamente curto.
- Não será fácil, mas acredito que possa ser reparada. A fundação é forte, e muito dela sobreviveu ao fogo.
Por nenhuma razão explicável, as palavras de Wynne trouxeram lágrimas aos olhos de Elphame. Ela piscou rápido, não querendo que as mulheres interpretassem mal sua
reação emocional. Quando ficou segura da voz, disse: - Acho que encontraremos muito disso em nosso novo lar - a fundação é forte, e muito dele sobreviveu.
As mulheres deram pequenas exclamações de concordância, e Elphame sentiu os olhos lacrimejarem novamente.
- El! Já está pronta para os homens? - A voz de Cuchulainn estrondou às costas delas, fazendo as mulheres pularem.
Para variar, Elphame ficou contente pela distração do irmão e secou rapidamente os olhos.
Cuchulainn estava ocupado exibindo seus dentes brancos para notar a súbita demonstração de emoção da irmã.
Ele piscou para Wynne, que tentava espanar apressadamente o manjericão esmagado e a terra da saia.
- Quando contei aos homens que damas adoráveis estariam nos auxiliando, tive muitos voluntários dispostos.
- Sim, sim, sim, Cuchulainn, fazemos ideia. - Elphame lhe fez cara feia. Ao menos ele era consistentemente incorrigível. - Estamos quase prontas para eles. Mas primeiro
temos que realizar a cerimônia de limpeza.
- Cerimônia de limpeza?
Elphame deu uma olhada presunçosa no irmão. Agora que mencionou magia, ela tinha sua total atenção.
- Isso mesmo. Nossa nova curandeira pensou que uma cerimônia de limpeza e proteção ritual seria uma boa ideia antes de começarmos a trabalhar no interior do castelo.
Eu concordo com ela.
Foi a vez de Cuchulainn fazer cara feia.
- É uma simples cerimônia de limpeza, Cuchulainn. Ninguém lançará feitiços ou invocará qualquer guia espiritual. - El piscou para ele, que resmungou uma resposta
ininteligível. - Deixe-me apresentá-lo à nossa curandeira... - Sua voz morreu. Um momento antes Brenna estava parada ao lado dela, mas agora seu lugar estava vazio.
Os olhos de El logo vasculharam o grupo de mulheres e perceberam o cabelo escuro de Brenna. Mais uma vez, ela tinha se misturado silenciosamente ao final do grupo.
Elphame queria gemer de frustração. Se era para ser a curandeira, ela teria que parar de se esconder sempre que um homem se aproximasse. O que Brenna pensava, que
o irmão fugiria dela ou que gritaria de horror? Então El se lembrou da expressão nos olhos da moça quando ela disse que precisava de um novo começo. Talvez essa
fosse a exata reação que ela esperava, especialmente de um homem bonito. Bom, Brenna não conhecia Cuchulainn como ela. Talvez ele fosse um paquerador incorrigível,
mas era um homem bom com um coração gentil. Nunca magoaria uma mulher de propósito.
- Brenna - chamou. - Gostaria de que conhecesse meu irmão.
Lentamente, a curandeira saiu de trás do grupo. A cabeça estava curvada novamente, e ela não a ergueu até estar ao lado de Elphame. Então, com um suspiro, ela levantou
a cabeça. Elphame estava observando o irmão e viu sua expressão desafinar à primeira vista das cicatrizes horrendas da jovem, mas ele não se encolheu de medo nem
afastou o olhar.
- Cuchulainn, esta é nossa nova curandeira, Brenna.
- Prazer em conhecê-la, Lady Brenna - disse Cuchulainn, curvando a cabeça com cortesia.
- Achei que vocês dois deveriam ser apresentados. Já contei a Brenna como você é propenso a acidentes - disse Elphame, sorrindo calorosamente para Brenna, que parecia
totalmente entretida no estudo dos próprios pés.
- Ficarei contente em ajudar sempre que for necessário - disse Brenna. A voz mal passava de um sussurro, e Elphame teve que se esforçar para ouvi-la.
- Como eu disse antes, foi ideia de Brenna realizar uma cerimônia de limpeza. - Os olhos de Elphame varreram o pequeno grupo de mulheres, incluindo-as em suas palavras.
- E nós achamos isso uma excelente ideia.
As mulheres falaram alto, tagarelando em concordância com Elphame, mas ela notou que o irmão ainda olhava com atenção para Brenna.
- Você é xamã, Brenna? - perguntou Cuchulainn de supetão.
Com relutância, Brenna ergueu os olhos e encarou o belo guerreiro.
- Não, Cuchulainn, não sou - disse ela, com a mesma voz sussurrante. - Mas tenho algum conhecimento do mundo espiritual e estou familiarizada com os rituais que
evocam sua bênção.
- Bom. Acho prudente chamarmos o reino espiritual para auxiliar minha irmã na restauração do Castelo MacCallan - disse ele com seriedade.
Elphame piscou de surpresa. O que ele estava dizendo? Cuchulainn odiava qualquer menção ao mundo espiritual - sempre o deixava desconfortável. Ela estreitou os olhos
para o irmão.
- Cuchulainn, está se sentindo bem?
Antes que ele pudesse responder, Meara e seu grupo de mulheres irromperam pela entrada. Os braços e saias estavam ensopados, mas elas carregavam dois vasilhames
limpinhos que reluziam com a água. Quando elas viram Cuchulainn, pararam e se curvaram em rápidas mesuras, dando risadinhas quando a água respingou no chão.
Cuchulainn sorriu para as mulheres.
- Como não poderia estar bem, cercado por rostos tão formosos?
Agora ele soava como ele mesmo. Elphame meneou a cabeça e o mandou ficar calado, mas fez uma nota mental de mais tarde perguntar a ele sobre esse súbito desejo por
apoio espiritual.
- Pode ir agora, Cuchulainn. - Ela o dispensou antes de se voltar para a curandeira. - Brenna, o que precisamos fazer?
- Pegar o manjericão e esmagá-lo na água. - Enquanto explicava a cerimônia, a voz se transformou do tom de sussurro hesitante com que falara com Cuchulainn para
a voz clara e confiante da curandeira que Elphame estava já começando a respeitar. - Cada mulher deve tomar parte nisso. Cada uma de vocês deve pegar algumas folhas
de manjericão, espremê-las na água e, enquanto fazem isso, se concentrar em todas as coisas maravilhosas que gostariam de ter em seu novo lar.
Brenna acenou para Meara, que estava parada perto dos vasilhames. Um pouco nervosa, a governanta pegou um ramo de manjericão, depois inclinou-se e o afundou na água
fresca e fria, esmagando as folhas cor de lima e mexendo suavemente a água.
- Bom - encorajou Brenna.
- É agradável e fresco, e o cheiro é delicioso - contou Meara às outras mulheres. Sem mais hesitação, Wynne, Ada e Colleen pegaram pedaços das ervas, e logo o balde
e o pote estavam rodeados de mulheres sorridentes com água tingida de verde até os cotovelos.
- Fechem os olhos - disse-lhes Brenna -, pensem nos sonhos para seu novo lar - suas esperanças e desejos para o futuro - pensem no que desejam... No que anseiam.
Em conjunto, elas fecharam os olhos e Elphame observou os rostos das mulheres ficarem sonhadores. Sorrisos satisfeitos contorciam-lhes os lábios.
- Devemos nos juntar a elas, minha senhora - disse Brenna.
Elphame assentiu, então ela e a curandeira escolheram cada uma um ramo de manjericão. Elphame se aproximou do pote, que já estava atulhado de mulheres concentradas.
Espremeu-se entre Meara e Caitlin. Ninguém se assustou ou encolheu-se por estar tão próximo a ela. As mulheres estavam tão absortas em seus pensamentos que ninguém
nem pareceu notá-la. Era bom, pensou ela, muito bom sentir-se como qualquer outra pessoa - mesmo que fosse por pouco tempo. Elphame fechou os olhos e enfiou a mão
na água, esmagando o manjericão contra as palmas.
E imediatamente ela pôde ouvir os desejos silenciosos das mulheres ao redor. Era como se a água fosse um condutor para seus pensamentos e sonhos, e todos desaguassem
em Elphame. Ela conteve o fôlego, saboreando cada desejo que lhe afluía.
Por favor, traga felicidade ao meu lar... Conceda-me a alegria de um bom marido... Mais do que tudo, quero filhos... Por favor, nunca me deixe sentir fome... Quero
sempre ter segurança... Quero ser aceita pelo que sou...
Os apelos inundaram Elphame numa torrente de emoções, que foram guardadas com carinho pertinho do coração. Depois ela acrescentou seu próprio desejo, e quase sem
perceber seus pensamentos mudaram do constante apelo para se encaixar e ser normal. Pela primeira vez, o principal desejo de seu coração não estava focado somente
nela.
Por favor, permita que todos que entrarem no Castelo MacCallan encontrem nele um refúgio seguro e ajude-me a ser uma líder sábia e compreensiva.
- Agora o resto da cerimônia deve ser realizado por você, deusa - disse Brenna. Sua voz confiante reverberou pelo grupo de mulheres, quebrando o encanto de pensamentos
que Elphame estava absorvendo. Elas abriram os olhos, piscando como se para se reorientarem após despertarem de sonhos prazerosos, depois se levantaram, limpando
as mãos salpicadas de verde nas saias e olhando cheias de expectativa para Elphame.
Ela sentiu um horrível tremor de apreensão. Presumira que Brenna as guiaria na cerimônia, assim como nos preparativos. El nunca realizara qualquer tipo de magia
ritualística. Mesmo durante sua formação no Templo da Musa, tinha evitado o treinamento que envolvia encantamento e a invocação de qualquer divindade. Sabia que
as outras estudantes tinham fofocado entre si sobre a estranha evasão e que todas presumiram que era por ela ser tão poderosa que não precisaria de orientação mortal
quando se comunicava com o reino espiritual. As pessoas esperavam que ela sucedesse a mãe como Escolhida de Epona - que ela, assim como a mãe e a avó, reinasse como
líder espiritual de Partholon. Só de pensar, Elphame ficava doente, porque, infelizmente, a verdade estava longe do que elas acreditavam. Apesar de ansiar por isso,
nunca sentira qualquer impulso mágico - nem de espíritos, nem de deuses e muito menos de Epona. De nada lhe valia estudar magia. Ela não possuía qualquer magia além
de suas anormalidades físicas.
Até entrar no Castelo MacCallan e os espíritos das pedras a receberem, corrigiu-se. As coisas eram diferentes ali. O Castelo MacCallan era um novo começo para todos.
Isso não significava que seria forçada a aceitar o manto de sua mãe; significava que ela tinha finalmente encontrado seu lugar. Deixando de lado as inseguranças
que a assombraram por anos, buscou os olhos de Brenna.
- O que devo fazer? - perguntou Elphame.
- Precisamos carregar as vasilhas para a entrada do castelo - explicou Brenna, e a tarefa foi rapidamente cumprida. Ela posicionou as vasilhas no buraco recentemente
limpo nos amplos muros e pediu que Elphame ficasse entre elas, virada para fora. As outras mulheres deveriam ficar do lado de fora da entrada. - Agora você deve
chamar cada um dos quatro elementos por vez - ar, fogo, água e terra. Peça que limpem esse castelo e o encham de proteção, enquanto joga a água aromatizada com a
erva para cada uma das quatro direções correspondentes. Não há palavras certas a recitar, fale o que vier ao coração. Nós a acompanharemos, deusa. - Assim dizendo,
Brenna deu as costas para Elphame e indicou que o resto das mulheres fizesse o mesmo. Todas estavam voltadas para o leste.
Leste... Elphame pensou freneticamente. O leste era a direção inicial de todo encantamento e toda formação de círculo. Seu elemento era o ar - sabia disso tanto
quanto qualquer criancinha partholoniana. E o leste era a direção para a qual o castelo estava voltado. Ela respirou fundo ao perceber o fato. Devia ser um bom presságio.
Fechou os olhos, acalmou os pensamentos e fez uma oração sincera à verdadeira Deusa: Epona, se puder me ouvir, não peço que fale comigo como faz com minha mãe -
não espero isso. Só peço que me ajude a não desapontar essas mulheres e que me ajude a honrar os espíritos que só hoje comecei a sentir. Por favor, ofereça-me as
palavras certas para a bênção de proteção de nosso novo lar.
Conseguiria fazer isso, prometeu a si mesma quando abriu os olhos e se curvou para apanhar o primeiro punhado de água cheia de ervas.
Olhando para o leste, ergueu as mãos diante de si e deixou a água perfumada e cor de grama escorrer por seus dedos.
- Eu o convido, Poder do Ar, a testemunhar este rito. Você é o elemento que encontramos ao nascer quando começamos a respirar. Peço que preencha o Castelo MacCallan
ao ser renascido e disperse dele qualquer força negativa. Sopre dentro destes muros proteção e paz.
De repente uma brisa despenteou os longos cabelos de Elphame. Girou brincalhona ao redor dela, apanhando as gotas de água que caíam e fazendo-as parecer dançar no
vento, claramente mostrando a Elphame que suas palavras foram ouvidas e aceitas. Ela respondeu com um sorriso cheio de alegre espanto.
Depois que o vento morreu, ela respirou fundo e virou para a direita para ficar voltada para o sul - a direção do elemento fogo. O grupo de mulheres a acompanhou,
virando para o sul também. Ela apanhou outro punhado de água e a estendeu diante de si.
- Eu o convido, Poder do Fogo, a testemunhar este rito. É de você que recebemos calor, luz e energia. Sua força já purificou o Castelo MacCallan. Peço que continue
a guardá-lo agora que fazemos dele nosso novo lar.
Conforme falava, ela sentiu os raios de sol brilharem sobre ela, e era como se o calor magicamente ampliado alcançasse sua própria alma.
Elphame e as mulheres giraram para a direita novamente. Ela encheu as mãos de água.
- Eu o convido, Poder da Água, a testemunhar este rito. Você está presente em nossos corpos na forma de lágrimas, leite e sangue. Você nos preenche e sustenta. Lave
o Castelo MacCallan das dores do passado distante. Limpe e guarde-o com a alegria do presente enquanto se conservar, sempre vigilante, às suas margens.
O som das ondas distantes quebrando no penhasco subitamente elevou-se e ecoou com intensidade ensurdecedora pelos muros do castelo.
Quando o som retrocedeu, Elphame girou outra vez, voltando-se para o norte e o elemento terra, completando o círculo.
- Eu o convido, Poder da Terra, a testemunhar este rito. Você nos estabiliza e abriga. Sentimos seu espírito nas próprias pedras deste castelo. Peço que use seu
vasto poder para rejeitar qualquer energia negativa persistente, e que proteja o Castelo MacCallan com a força da nova vindima aliada à antiga sabedoria.
A grama sobre a qual estavam farfalhou como se tivesse acabado de ser acariciada por uma mão gigante, e o ar ao redor delas se encheu da rica fragrância de uma colheita
generosa.
Depois, por impulso, Elphame se curvou mais uma vez. Abaulou as mãos e, enquanto atirava a água bem alto no ar, disse numa voz clara e jubilosa: - E a convido, Epona,
a testemunhar este rito e presentear o Castelo MacCallan, nosso novo lar, com sua bênção e proteção.
As gotículas de água explodiram ao redor de Elphame como estrelas líquidas, e as mulheres irromperam em aclamações.
- Venham! - gritou Brenna, correndo até uma das vasilhas de água com manjericão. Ela afundou as mãos e exibiu seu sorriso torto para as mulheres. - Vamos batizar
nosso novo lar. - Assim dizendo, ela jogou um punhado d'água, que pareceu chover sobre as antigas pedras. Logo todas as mulheres estavam rindo e gritando de alegria
à medida que a água levemente perfumada lavou alegremente seus últimos temores.
Escondido no pequeno bosque próximo à entrada do castelo, Cuchulainn observava as mulheres. O ritual de limpeza fora poderoso - isso era fácil de ver. Mal podia
acreditar que sua irmã havia falado aquelas palavras e invocado uma resposta tão óbvia dos elementos. Mas precisava acreditar; ele havia nascido testemunha disso.
E o poder dentro dele - o poder que constantemente precisava represar para controlar - pulou em resposta ao rito mágico que claramente fora impregnado pela bênção
de Epona. Ele sentira a limpeza, e também as paredes invisíveis de proteção que Elphame subitamente ergueu num círculo mágico que circundava o Castelo MacCallan.
Pensou talvez estar sentindo o resíduo psíquico da raiva de Epona com os invasores fomorianos. Mais de um século atrás, a guerra começara com o massacre do clã MacCallan,
um ato que deixou Epona tão enfurecida que a Escolhida da Deusa reagrupara o povo de Partholon. Centauros e humanos se uniram para derrotar a horda demoníaca. Seria
por isso que Epona havia tocado o ritual da irmã? Para mostrar a aprovação da Deusa à reconstrução do Castelo MacCallan? Seria simples assim?
Não. Sabia que havia mais coisa - algo mais estivera presente durante o ritual da irmã. E por mais que tentasse, ele não conseguia compreender o que era. Era fugaz,
mas sabia o que lhe recordava. Era como o pressentimento que experimentara durante sua visão do consorte de Elphame. Era sombrio. Estava aguardando. E estava ali.
Cuchulainn estava ali também e protegeria a irmã do mal. Mesmo que esse mal viesse do homem cujo destino era amá-la.
Sua mão repousou na claymore, e o rosto parecia implacável ao dar as costas às mulheres e ao castelo. Sempre vigilante, seus olhos de guerreiro vasculharam a floresta
que os rodeava, procurando a fonte daquilo que ele temia ser capaz de destroçar o coração da irmã.
Sete
ELPHAME ACHAVA QUE elas cheiravam como um jardim repleto de manjericão depois de uma chuva de primavera. Prendeu uma mecha úmida de cabelo por trás da orelha, mas
não antes de retirar uma folha esmagada dele, e sorriu consigo mesma. As mulheres - assim como o castelo - haviam sido limpas. Fora um bom intervalo, e um ritual
maravilhoso. Elphame fitou o céu. O sol parecia estar baixando terrivelmente rápido. Ela conteve um suspiro frustrado. Ficaria contente quando as lareiras estivessem
cheias com fogo queimando vivamente, e o anoitecer sinalizaria o acendimento dos tições do castelo - então o cair da noite não colocaria fim ao trabalho. Mas certamente
colocaria agora. Rapidamente estabeleceu as prioridades em sua mente. A cozinha precisava de cuidados, isso deveria vir primeiro.
Então veio-lhe um pensamento trivial. Limpe o pátio principal. Deixe que o coração do castelo bata novamente. Elphame sentiu um pequeno sobressalto de surpresa.
Aquilo fora seu próprio pensamento? Não, pensamento não era a palavra certa. Seu súbito desejo de limpar o pátio mais se parecia com uma compulsão que batia em compasso
com seu sangue.
- Minha senhora? Qual é nossa próxima tarefa?
Elphame interrompeu suas reflexões e sorriu para Brenna, satisfeita porque a curandeira parara de chamá-la de deusa. Acenou para que as mulheres se juntassem ao
seu redor. Procurou e encontrou Wynne.
- Vamos colocar a cozinha em ordem. Reconstruir um lar dá fome.
O sorriso de Wynne foi uma brilhante concordância.
- Sei exatamente onde ela está.
Elphame, claro, também sabia onde a cozinha estava localizada. Vira-a na rápida caminhada que fizera com o irmão e o artífice, mas estava contente por dar à nova
cozinheira o prazer de guiá-las ao que seria seu território pessoal.
- Mostre-nos - disse Elphame.
E as mulheres simplesmente entraram juntas no castelo. Sem hesitação. Sem apreensão. Sem risadas nervosas. Era como se o ar estivesse limpo de teias emocionais do
passado - agora tudo que restava fazer era limpar os resíduos físicos para que o futuro pudesse começar.
Elphame sabia que Cuchulainn lhe diria que estava sendo uma tola idealista, mas estava tão feliz que era como se seu coração fosse explodir.
As mulheres entraram no pátio principal em grupo, e de repente a conversa afável foi silenciada. A grande coluna central do clã MacCallan jazia silenciosa e assombrosa,
alongando-se numa altura majestosa bem acima de suas cabeças. Elphame deixou o grupo e se aproximou dela. Ainda podia sentir o calor fantasmagórico de sua comunicação
com os espíritos da pedra nas palmas das mãos. Mas dessa vez não pousou as mãos na superfície de granito, apenas encarou o grupo de mulheres.
- Esta é a coluna central do Castelo MacCallan - explicou ela. - Sempre se lembrem de que este já foi o lar do honradíssimo clã MacCallan. Eles eram guerreiros,
mas também eram poetas e artistas. Muitas das Escolhidas de Epona possuíam sangue MacCallan pulsando nas veias. Eles reverenciavam a beleza e a verdade, por isso
Epona demonstrou tamanha fúria por seu massacre. - Ela apontou para a extensão da coluna. - Se olharem de perto, poderão ver que debaixo das camadas de sujeira e
fuligem ela é decorada com símbolos que eram importantes para os MacCallan. Criaturas e plantas da floresta vizinha, além do símbolo do clã, a égua empinada, foram
intricadamente esculpidos dentro do padrão circular interligado.
Várias das mulheres assentiram e se aproximaram, espiando com visível curiosidade o poderoso pilar.
- Isso deve ser limpo para que sua beleza original possa ser vista - disse Meara, com o mesmo tom prático que usara quando ordenou que os vasilhames sujos fossem
esfregados.
- Será - assegurou Elphame. - Assim como o pátio inteiro. Olhem para o chão. - Os olhos das mulheres miraram o chão. Sem parar para considerar que poderia estava
chamando atenção indesejada para seu corpo singular, esfregou um dos cascos impetuosos, abrindo uma pequena trincheira na terra que cobria o chão. - Vejam - disse
ela com um sorriso satisfeito. - Por baixo de toda essa sujeira há uma camada de puro mármore. Quando estiver limpo, brilhará tanto quanto os corredores perolados
do Templo de Epona.
As mulheres falaram em pequenas explosões animadas de conversa enquanto estudavam o tesouro escondido que existia abaixo delas.
O coração do castelo... Os pensamentos de Elphame continuavam voltando às palavras que pareceram reverberar por seu corpo. A reação das mulheres mostrava que elas
também estavam comovidas. Ele deveria reviver. Logo, prometeu a si mesma e à coluna marcada pelo tempo.
- Leve-nos à sua nova cozinha, Wynne - pediu Elphame.
A cozinheira corou de prazer antes de sair determinada do pátio por outra entrada arqueada vazia que as levou a um cômodo enorme. Lá as mulheres pararam.
No Grande Salão, o teto fora construído na mesma pedra cinzenta fosca dos muros do castelo, então o fogo não pôde consumi-lo, mas as paredes estavam enegrecidas
e o imenso cômodo parecia sombrio e triste. Montes de madeira queimada atestavam o fato de que, há muito tempo, fileiras de mesas de madeira pesada ficavam alinhadas
diante da imensa estrutura arruinada, que antes fora uma parede de janelas que deixavam os ocupantes do castelo fazerem suas refeições ou estabelecerem a corte com
vista para o austero pátio principal do castelo.
Agora tudo o que restava eram destroços, mas Elphame ainda podia enxergar os ossos sólidos do castelo através do que o tempo havia encoberto - e podia dizer pelo
brilho nos olhos de muitas das mulheres que elas também compreendiam o potencial dali.
- Existem duas entradas para a cozinha a partir do Grande Salão. - A voz de Wynne dizia que ela estava mais do que pronta para trabalhar. - Uma ali, e outra lá.
- Ela apontou para pequenas entradas arcadas em lados opostos da parede distante. Falava enquanto caminhava em direção a uma das entradas: - São ligadas por um longo
corredor, que abre para a cozinha. - Ela olhou para as três assistentes. - Devemos designar uma porta para ser sempre usada como entrada, e uma como saída. Haverá
menos acidentes assim.
As assistentes assentiram numa reação atenta. Elphame teve que se impedir de gritar de alívio. Elas estavam começando a vê-lo como um castelo habitável e funcional
também!
Como a cozinha era parte do Grande Salão, seu teto de pedra ainda estava intacto também. Mas, como no resto do castelo, o cômodo estava em ruínas. Elphame ouviu
o farfalhar característico de pássaros e a corrida de outras criaturas pequenas, e supôs que toda uma tribo de animais tinha estabelecido residência no que costumavam
ser as duas enormes lareiras da cozinha. Fogões de tijolos alinhavam-se numa parede e, enquanto Wynne espiava uma delas, um esquilo pulou e correu num pânico ruidoso,
fazendo a cozinheira conter um berro, que se transformou numa risada.
- Ele provavelmente pensou que eu era um pedaço muito grande de manjericão molhado - disse, e o resto das mulheres riu com ela.
A parede restante guardava uma bacia grande e uma bomba enferrujada através da qual a água fresca ficava disponível. A cada lado da bomba, armários de pedra arreganhavam
suas bocas entupidas de escombros. No centro do cômodo existia uma grande ilha de mármore na qual havia pilhas de folhas e resíduos de aparência suspeita.
- Bom, minha irmã, o que temos para jantar? - A voz de Cuchulainn falou ao ouvido dela.
Elphame pulou e bateu nele.
- Sua pele, caso me assuste assim novamente!
- A pele dele seria dura demais para mastigar, deusa - veio uma resposta da multidão de homens que aguardava com ansiedade às costas dele.
- Ah, tiveram pouco tempo, mas já parecem conhecê-lo muito bem - satirizou ela.
Cuchulainn ergueu as mãos numa rendição zombeteira.
- Vim em paz!
- Espero que tenha vindo trabalhar - retrucou Elphame com certa aspereza.
- Isso também - respondeu ele. - Ordene, minha senhora, e sua vontade será atendida. - Ele se curvou dramaticamente, assim como os homens atrás dele, o que fez a
irmã sorrir.
- Na verdade, não sou eu que estou no comando nesse cômodo em particular. É nossa cozinheira.
Os olhos de Cuchulainn brilharam ao mudar a direção de sua reverência para encarar a ruiva Wynne de seios fartos. Elphame notou que vários dos outros homens deram
à jovem cozinheira olhares apreciativos também.
As faces atraentemente coradas de Wynne eram o único sinal aparente que ela exibiu de que a atenção a agradava. Endireitando os ombros e plantando as mãos com firmeza
nos quadris talhados, ela se lançou numa arenga de ordens em seu sotaque vibrante: - Vocês, homens, podem começar limpando as lareiras e os fogões. Vários de vocês
terão que subir no telhado para garantir que as chaminés estejam desentupidas e reparar qualquer pedra que tenha ficado solta. Também preciso dessa bomba funcionando,
depois precisarei de baldes, sabão, trapos e coisas do tipo para a limpeza geral. - O cômodo irrompeu em ação.
Elphame logo saiu do caminho.
- É bom que os centauros tenham limpado a estrada para o castelo e as carroças de suprimentos tenham passado. Eu não gostaria de dizer à sua bela cozinheira que
os suprimentos de limpeza estavam encalhados na floresta. - Cuchulainn se juntara à irmã na observação no canto do cômodo.
- Ela pode ser bela, mas acho que deve ser um bocado enérgica - opinou El.
- Ruivas... São uma tentação - observou Cuchulainn com a voz da experiência.
- Venha, Cuchulainn - disse ela, agarrando-lhe a mão. - Quero que me ajude.
- Para onde estamos indo?
- Ao pátio principal. Algo me diz que é importante restaurá-lo o quanto antes.
Conforme começavam a deixar o cômodo, Elphame notou o súbito silêncio. Olhou para trás e viu que a atividade cessara e que todos olhavam para ela.
- Continuem - disse, apressada. - Meu irmão e eu começaremos a limpar o pátio. - Antes que pudesse começar a se afastar, a voz de Brenna a deteve: - Posso acompanhá-la,
minha senhora?
A curandeira saíra de uma área sombreada no canto mais distante da cozinha, e Elphame viu vários dos homens se encolherem e desviarem o olhar do rosto dela.
- Claro que pode, Brenna - respondeu rapidamente.
- Eu também lhe dou as boas-vindas - disse Cuchulainn. - Como minha irmã já observou, geralmente necessito dos serviços de uma curandeira habilidosa.
Elphame sentiu um ímpeto de carinho pelo irmão. Suas palavras fizeram os homens reavaliarem a mulher deformada ao demonstrar que ele, assim como a irmã, a estimavam
e respeitavam.
Brenna não respondeu, apenas curvou a cabeça para que o cabelo escondesse a maior parte do rosto, e os seguiu depressa para fora da cozinha.
- El, você precisar medir essas molduras e depois encomendar janelas novas - observou Cuchulainn enquanto caminhavam de volta pelo Grande Salão. - A não ser que
prefira reconstruir essa parede sem o vidro.
- Não, gosto da ideia de olhar para o pátio. Imagino que costumava ser uma vista espetacular.
Os três pararam à margem do pátio principal. Podiam olhar para cima pelo teto queimado e ver que a noite rapidamente se aproximava e que o céu estava mudando de
azul brilhante para tons de laranja e violeta. A beleza acima deles era um grande contraste com a ruína abaixo. Troncos de árvores e sujeira cobriam o piso de mármore.
Montes de vigas chamuscadas e apodrecidas do teto entulhavam a área, especialmente o centro. Enquanto estava parada ali, os olhos de Elphame foram atraídos para
a área central. Uma lembrança se agitou. Algo sobre o pátio central do castelo...
- Cuchulainn, Brenna, vamos ver se podemos limpar um pouco daquelas vigas velhas naquela área central. - Sem esperar por resposta, correu para a maior pilha de destroços
e começou a trabalhar. Logo Elphame removeu um pedaço de madeira particularmente grande e a beira de uma bacia apareceu debaixo dela, parecendo a borda de uma tigela
gigante suja que fora descartada há um século.
- Sim! Sabia que havia algo debaixo de toda essa bagunça - disse Elphame com satisfação.
Eles redobraram os esforços até que, erguendo-se em meio à podridão e à ruína, uma delicada estátua tomou forma. Era uma adolescente em tamanho real. Estava de pé
no meio da bacia, segurando um grande vaso que estava inclinado como se ela derramasse libações dele.
- É uma fonte! - exclamou Brenna.
- Olhe para ela, El, há algo nela... - disse Cuchulainn, pisando dentro da bacia para olhar mais de perto. Com uma dobra do kilt, ele esfregou o rosto da estátua
até expor uma pequena área de mármore leitoso que parecia luminoso e fantasmagórico. Então respirou fundo devido à surpresa. - Ela se parece com você.
Oito
ELPHAME FITOU A estátua. Parecia mesmo com ela. As duas compartilhavam as mesmas maçãs altas, lábios cheios e sobrancelhas finas e arqueadas.
- Rhiannon - disse Brenna de repente. - Esta fonte deve ser uma estátua de Rhiannon quando era moça. Agora me lembro. Antes de se tornar a Deusa Encarnada de Epona,
ela vivia aqui, pois era filha única d'O MacCallan, e foi...
- Minha ancestral - Elphame terminou por ela.
- Ela também foi uma grande guerreira - disse Cuchulainn, ainda estudando a estátua com cuidado. - Foi através de sua liderança que os fomorianos foram derrotados
e exilados de Partholon.
- Não nos esqueçamos de que Rhiannon teve uma ajudinha de seu consorte, o Sumo Xamã centauro, ClanFintan.
Elphame olhou ao redor em surpresa, tentando localizar a dona da forte voz feminina que cruzou o pátio. Da sombra comprida da coluna central surgiu a forma graciosa
de uma centaura. Elphame não pôde conter o arfar de surpresa. A centaura devia ser uma caçadora para ser capaz de se aproximar deles tão silenciosamente; Cuchulainn
nem mesmo notou seu avanço. A ideia disparou uma torrente de prazer por Elphame. Uma caçadora centaura se juntara a eles!
- Está certa por me corrigir, caçadora - disse Elphame formalmente. - Meu pai teria feito o mesmo.
- Não quis corrigi-la, deusa, apenas lembrá-la.
À medida que ela se aproximava da poça de luz que iluminava a área ao redor da fonte, Elphame ficou pasma com sua beleza. A parte equina do corpo era um elegante
palomino, variando do creme para um loiro tão claro que a centaura quase parecia ser prateada, fazendo El de repente recordar-se do pelo reluzente da Égua Escolhida
de Epona. Nunca vira um centauro de coloração tão espetacular. Mesmo os cascos eram de uma tonalidade única de branco. A parte humana de seu corpo era tão adorável
quanto. O cabelo combinava com o pelo e escorria pelas costas numa grossa onda branca. A pele era de alabastro, e ela estava com o tradicional colete de couro dos
centauros semiaberto, pelo qual se podia vislumbrar os seios fartos e arredondados. Seu rosto era um modelo de clássica perfeição. Elphame encontrou-lhe os olhos,
que possuíam uma espantosa tonalidade de lavanda.
A centaura parou diante dela e executou uma reverência profunda e graciosa.
- Vim oferecer meus serviços como caçadora a você, Deusa Elphame, e ao Castelo MacCallan. Sou Brighid Dhianna.
- Você é da Manada Dhianna - disse Cuchulainn. A voz estava incomumente rígida e a expressão implacável.
- Sou daquela manada. Não sou daquela propensão.
E suas palavras de repente fizeram sentido para Elphame. Havia uma facção crescente de centauros que desdenhava o contato com humanos. Raramente deixavam a planície
dos Centauros e consideravam centauros que escolhiam viver com as comunidades humanas como sendo pouco melhores que animais domesticados. Lembrou-se dos pais discutindo
as ramificações do crescimento de tamanha crença excludente e do desgosto com que seu pai centauro via a ideologia segregacionista. Também se lembrou de ele ter
mencionado uma manada particularmente militante de nome Dhianna, cuja poderosa líder xamã estava instigando uma quantidade perturbadora de apoio para sua ideologia,
o que explicava a expressão implacável de Cuchulainn.
- Brighid Dhianna, se é um novo começo o que procura, então lhe dou as boas-vindas ao Castelo MacCallan, um lugar para novos começos - disse Elphame solenemente.
A caçadora encontrou-lhe os olhos com um olhar forte e direto.
- Sim, deusa, estou em busca de um novo começo.
- Bom, então pode começar me chamando de Elphame - disse rapidamente. - Este guerreiro de aparência severa é meu irmão, Cuchulainn. - Cuchulainn assentiu com frieza
para a caçadora. - E esta é nossa nova curandeira, Brenna. - Elphame ficou contente por notar que Brighid não se abalou quando Brenna ergueu o rosto desfigurado
ao ser apresentada. - Pegue um tronco, Brighid. Está ficando tarde e gostaria de descobrir a fonte antes de perdermos toda a nossa luz.
Elphame voltou para a pilha de destroços, ignorando os olhares de suspeita trocados entre o irmão e a caçadora.
- Basta, El! Pode retomar daqui amanhã. Todos já deixaram a cozinha - até sua cozinheira tirânica e as harpias dela estão voltando para Loth Tor para uma refeição
quente e uma cama macia - disse Cuchulainn, exasperado com o estoque ilimitado de energia da irmã.
Ele e a caçadora tinham acabado de arrastar uma padiola carregada de vigas do pátio para a crescente pilha fora dos muros do castelo. E retornara para encontrar
a irmã e Brenna largando os baldes e se preparando para partir? Não... Sua obstinada irmã estava enchendo outra padiola com lixo, dessa vez do lado de trás da bacia.
- Cuchulainn - disse ela, mal olhando para ele. - Por que não vai na frente? Só vou carregar esta última padiola e estarei a caminho. - Ela olhou pelo teto aberto
para o céu que agora guardava uma pálida luz malva refletida do sol poente.
- Não. Todos os outros já foram. Não quero você viajando sozinha pela floresta.
- Oh, por favor. As pessoas têm ido e voltado de Loth Tor o dia inteiro. Ficaria surpresa caso um esquilo sequer tenha desejado ficar com tamanho barulho.
- E ela não estará sozinha. Eu retornarei com ela - disse a caçadora.
- E eu - acrescentou Brenna.
Elphame ergueu uma das sobrancelhas para o irmão.
- Convencido de que não estarei sozinha?
- Hrumph - resmungou ele. Depois acrescentou com firmeza: - Se não estiver na Estalagem da Égua quando a comida for servida, venho arrastá-la. E mantenha isso com
você. - Ele desafivelou um cinto fino da cintura. Atada a ele estava uma pequena bainha na qual Elphame sabia estar uma de suas letais adagas de arremesso. Ele a
atirou para a irmã, que a apanhou com habilidade. - Você sabe que já lhe avisei antes para carregar uma arma. - Ele se virou, resmungando baixinho sobre mulheres
teimosas, e saiu a largas passadas do pátio.
- Ei! É com sua segurança que deveria se preocupar caso Wynne o escute chamando suas assistentes de harpias - gritou para as costas dele. - Irmãozinho superpossessivo
e chato - disse Elphame com desgosto.
- Ele a ama muito - afirmou Brenna.
- Mas ele é chato - acrescentou Brighid.
- Você ainda não viu o que é chatice. Se eu não estiver de volta à hora esperada, ele virá correndo pela floresta, a claymore erguida em prontidão, matando de susto
pequenos roedores e passarinhos indefesos.
Brenna começou a rir. Era um som adorável e musical, e logo Brighid e Elphame a imitaram.
Enquanto trabalhavam amigavelmente juntas na limpeza da bacia da fonte, Elphame pensou no quanto era bom ter o pátio cheio com os sons de risadas e vida. Não precisava
pressionar a mão contra a coluna central para sentir que a atmosfera do castelo estava mudando. Sentira-se bem-vinda desde o primeiro vislumbre do Castelo MacCallan,
mas também precisava admitir que ele fora um lugar lastimável preenchido pela solitária espera. Sua história era rica em tradição e honra, como ela explicara mais
cedo às mulheres, mas ele permanecera silencioso e abandonado por mais de um século. O correr de um único dia começara a mudar isso. No próprio ar que as cercava
Elphame sentia a vida recém-nascida. Era como se cada respiração sua estivesse impregnada de esperança.
- Acho que basta - disse, limpando as mãos sujas na saia. Olhou para a parte de baixo do próprio corpo.
- Ugh... Estou precisando de banho tanto quanto de comer uma refeição quente.
Brenna assentiu numa rápida concordância enquanto tentava remover algo grudento do braço. Até o pelo lustroso de Brighid estava sujo com marcas de fuligem.
A caçadora agarrou as correias de couro atadas à padiola e as prendeu sobre os ombros para que seu poderoso corpo centauro não tivesse problema para puxar a carga
pesada.
- Ao menos vocês duas realmente terão um banho. Posso quase apostar que em Loth Tor não existe um quarto de banho grande o bastante para mim - disse ela enquanto
começava a arrastar a padiola do pátio.
Elphame e Brenna ajudaram a equilibrar a pilha de entulho para que nada se perdesse na viagem.
- Nunca pensei nisso antes - disse Brenna, ofegando um pouco enquanto corria para acompanhar as outras duas mulheres mais atléticas. - Seria horrível se todos os
quartos de banho fossem pequenos demais para mim - refletiu a miúda curandeira.
- Terrível se você é mulher - disse Brighid. Então sorriu para Brenna. - Se fosse um centauro macho, bem, não se importaria muito.
- Ugh, garotos! - exclamou Elphame, lembrando-se que a mãe costumava ameaçar Cuchulainn e Finegas quando crianças para que entrassem num quarto de banho. - Centauro
ou humano, podem mesmo ser nojentos.
As três mulheres enrugaram o nariz uma para a outra e riram.
- Acreditam no quanto esta pilha cresceu? - disse Elphame quando esvaziaram a padiola no crescente monte de vigas podres e sujeira antiga que estava localizado um
pouco adiante dos muros externos do castelo.
- Eu acredito - disse Brenna, parando para esfregar os ombros e girar o pescoço. - Espero que Loth Tor tenha um feitor de hidromel decente; nós precisaremos de algo
para ajudar a relaxar nossos músculos essa noite... - ela olhou para a imensa forma do castelo lá atrás - ... E amanhã.
- É isso. - El bateu as mãos com satisfação. - Vamos indo para Loth Tor, para a Estalagem da Égua.
- E jantar - acrescentou Brighid.
- Com certeza - concordou Elphame. Mas só tinham dado poucos passos na estrada quando ela parou e bateu na testa. - Deixei a adaga de Cuchulainn lá dentro. Ele nunca
vai parar de falar se eu aparecer sem ela. Esperem aqui, demorarei só um instante. - Arrebanhou os músculos poderosos e disparou estrada acima pela entrada do castelo.
Onde tinha deixado aquela coisa? A luz estava bem pouca agora, e cada pilha de folhas e amontoado de terra poderia passar por um cinto com bainha casualmente esquecido.
- Deveria ter tido mais senso e a prendido na cintura quando ele me deu - murmurou, zangada consigo mesma.
- É isso o que procura, menina?
Um calafrio espalhou-se por seu corpo. A voz profunda veio de trás dela; tinha uma qualidade estranha, como se atravessasse uma poça d'água para alcançá-la. Como
se num sonho, Elphame se virou.
Ele estava casualmente sentado na beira da bacia que sustentava a fonte. Não teve problema para vê-lo porque seu corpo cintilava suavemente, como luz de velas sobre
pérolas. Também podia enxergar com clareza as ruínas no pátio atrás dele, assim como diretamente através de sua forma semissubstancial.
- Oh! - Elphame não tinha percebido que estava segurando a respiração até liberá-la num jorro. Sentiu o corpo começar a tremer quando tentou dizer às pernas dormentes
que a levassem para longe dali.
O espectro ergueu uma mão áspera e muito calejada.
- Fique calma, Elphame, não quero lhe fazer mal.
Ele falava com uma ponta de brusquidão no sotaque carregado, mas o ar em seus olhos era gentil, e como ela não saiu correndo, ele lhe sorriu.
- Ali, menina. - Apontou com a cabeça para o cinto pendurado ao acaso na beira da bacia, não muito longe de onde estava sentado. - Não é o que procura?
Elphame estupidamente fez que sim com a cabeça, deu um passo hesitante e apanhou o cinto. - O... - Teve que clarear a garganta e engolir antes que conseguisse falar:
- Obrigada.
Ele inclinou a cabeça de maneira galante.
- O prazer é meu. - Seu olhar bem-humorado deixou Elphame para repousar na fonte que era a estátua de uma garota. O sorriso do espectro tornou-se pungente. - Alegra-me
que finalmente tenha vindo, Elphame. Nem os mortos podem esperar para sempre.
- Você me conhece? - A voz dela não parecia querer funcionar, e as palavras não soavam mais do que um sussurro.
- Sim, menina, conheço você. E que menina bonita e esplêndida também. - Seus olhos dançaram. - Olhe para você! Uma mistura perfeita dos dois. Você é a escolha certa.
- Para o quê? Quem é você? - A capacidade de raciocínio de El estava começando a se recuperar junto com sua habilidade vocal.
- Use seu coração e sua intuição, menina. Eles dirão quem sou.
Elphame respirou fundo e estudou o espectro com cuidado. Ele já tinha passado bastante da meia-idade, mas ainda era uma figura poderosa no traje completo do oeste,
com sua camisa de linho de mangas compridas e kilt bem drapejado. Mesmo transparente, as cores ousadas de azul-safira e verde-lima produziam um contraste impressionante
no tartã. Os olhos dela se arregalaram. Conhecia aquele padrão de xadrez - intimamente. A mãe o vestira por anos sempre que viajava para o oeste. A própria Elphame
possuía um. E tinha todo o direito para tanto; o sangue do clã MacCallan corria grosso em suas veias.
- Você é O MacCallan.
O sorriso dele se alargou e ele piscou para Elphame.
- Sim, menina, sou eu. Agora essa posição é sua. - Então, com olhar sério, ele levantou-se, executando uma reverência elegante que de repente lhe fez lembrar de
Cuchulainn. - Suas companheiras a procuram, não posso ficar. Em outra hora, menina... Outra hora...
E desapareceu em nada mais do que uma fina névoa que permaneceu como uma neblina mágica ao redor da fonte.
- Minha senhora! Está tudo bem? - A voz de Brenna fluiu da direção da entrada.
- Sim! - gritou Elphame. Ela passou a mão trêmula pelo rosto. Tinha dito à mãe que não acreditava que nenhum dos espíritos perdidos do Castelo MacCallan lhe faria
mal, e falara a verdade. Mas na verdade nunca considerou que realmente existissem espíritos perdidos com os quais lidar. - Certamente nunca pensei em me encontrar
com o próprio MacCallan.
- Disse alguma coisa, Elphame? - perguntou Brighid. Seus cascos ecoavam com um ruído abafado no mármore coberto de sujeira, e seu pelo loiro-prateado parecia etéreo
na escuridão quando ela entrou no pátio. - Pela Deusa, está escuro aqui! Não é surpresa que estivesse demorando tanto.
- Ficarei contente quando os candeeiros das paredes estiverem consertados e as tochas acesas - disse Brenna, nervosa. Ela era apenas uma silhueta pequena e escura
parada ao lado da caçadora.
Elphame sorriu e forçou a voz a soar normal:
- Tem razão, eu estava com dificuldades para encontrar a adaga, mas agora já a peguei, então podemos enfim conseguir aquela refeição quente que estamos saboreando
na mente. - Com uma última olhada por cima do ombro para a fonte envolta em neblina, Elphame afastou-se apressada do castelo que escurecia.
Nove
A LUZ FRACA suavizava as margens da estrada recém-aberta através da floresta e a fresca brisa da noite enchia o ar com o doce perfume de árvores floridas, tanto
que para Elphame era como se estivessem caminhando por uma pintura aquarelada. Quase que contra a vontade, sentiu-se começando a relaxar. Ali ao ar livre, com Brenna
e Brighid conversando amigavelmente sobre os eventos do dia, era difícil acreditar que apenas momentos antes esteve conversando com o espírito do chefe do clã morto
há mais de um século. Não que Elphame duvidasse do que tinha testemunhado, era tão somente que por anos nada de ligeiramente mágico lhe acontecera. Até aquela manhã,
o reino espiritual lhe estivera morto. Agora os espíritos das pedras e dos mortos conversavam com ela - tudo no decorrer de um dia. Suspeitava que sua mente provavelmente
estivesse em choque, razão pela qual ainda era capaz de sorrir e conversar com suas companheiras em vez de estar congelada num lugar e babando. Ela conteve uma risadinha
quase histérica. Talvez a baba fosse um pequeno exagero. Ouviu seu nome e assentiu distraída para o comentário que Brenna acabara de fazer.
- Maravilhoso! Viu, Brighid, eu disse que era uma boa ideia.
- Está certa disso, Elphame?
O tom da pergunta da caçadora interrompeu o diálogo interno de El, que voltou ao presente para ver o sorriso torto de Brenna.
- Claro que está. Você já disse que não haveria quarto de banho grande o bastante para você, e olhe, o riacho deve empoçar logo ali. Deve ser de bom tamanho.
Os olhos de Elphame acompanharam o dedo com o qual Brenna apontava. O terreno estava declinando progressivamente, criando uma área rochosa graduada em meio aos pinheiros
na floresta circundante. E, como previsto, o riacho que corria ao longo da estrada, que até mesmo a cruzava de quando em quando, caía de um nível para outro numa
queda de três cachoeiras. Quando espiaram pela folhagem da floresta, puderam enxergar que uma piscina se formara no último nível antes que a água continuasse a fluir
para o outro lado e desaparecesse na floresta. Elphame olhou para a curandeira, tentando não demonstrar seu choque. Brenna queria que elas se banhassem ali? Na piscina?
As três? Nunca tinha se banhado entre estranhos - nunca sequer permitira que as criadas do templo ficassem no quarto de banho com ela. Poderia mesmo se despir na
frente das outras duas?
Soava como algo que companheiras fariam. Soava normal.
- Acho que é uma boa ideia - disse Elphame, resoluta.
Antes que mudasse de ideia, saiu da trilha, descendo e circulando rochas, rumando para a piscina. Às costas, escutava Brenna e Brighid seguindo-a ruidosamente. Poderia
fazer isso, disse a si mesma. Se queria ser tratada normalmente, precisaria agir normalmente. E mulheres "normais" tomavam banho na frente umas da outras - sabia
disso desde a época em que engatinhava para dentro do quarto de banho movimentado da mãe. Sacerdotisas visitantes, além de amigas e conhecidas, em um momento ou
outro, todas tinham se juntado à Amada de Epona no luxo de suas fontes minerais. A modéstia de Elphame era a exceção, não a regra, em Partholon.
Ela parou à beira da piscina, esperando por Brenna e Brighid. Era maior do que parecia da estrada. As três cachoeiras produziam um som alegre ao cascatearem como
cristal líquido sobre as rochas alisadas pela água.
- Parece bem fundo - disse Brenna.
- Parece frio - disse Brighid.
- Ótimo - disse a curandeira, já abrindo o broche simples que mantinha o vestido de gola alta preso no ombro direito. - Deve ser refrescante depois de um longo e
suado dia de trabalho. - Abriu o corpete e livrou-se da parte de cima enquanto começava a desatar os nós que sustinham a saia em estilo kilt enrolada com segurança
ao redor da cintura esguia.
Elphame não conseguiu desviar o olhar do corpo exposto de Brenna. O lado esquerdo dela era coberto por pele macia e imaculada, mas, como no rosto, o lado direito
do corpo revelava uma história diferente. As cicatrizes que desfiguravam aquele lado do rosto não terminavam no pescoço. Desciam, cobrindo o ombro e o topo do seio,
tanto que sob a luz da lua ela parecia uma bela e delicada estátua de cera que fora parcialmente derretida.
Brenna ergueu os olhos e olhou da deusa para a caçadora, que a fitavam em silêncio. E a súbita compreensão cruzou-lhe o rosto. Tinha de fato se esquecido por um
instante das cicatrizes horríveis. Desviou rapidamente o olhar, fingindo ter problemas para desatar os nós de linho, esperando que sob a luz fraca não pudessem ver
suas lágrimas.
- Sinto muito - disse Elphame, baixinho. - Não pretendia ficar olhando.
Ainda sem erguer os olhos, a voz de Brenna soou abafada: - Não precisa se desculpar. Todos olham.
Elphame respirou fundo e abriu os broches que mantinham seu corpete no lugar. Depois desenrolou rapidamente a extensão de tecido da cintura, deixando-o cair no chão
da floresta. Curvou-se e puxou o triangulozinho de tecido que cobria suas partes mais íntimas. Totalmente nua, ficou parada para que Brenna e Brighid pudessem estudar
cada centímetro de seu corpo exposto.
- Compreendo exatamente o que quer dizer. É por isso que me desculpei.
Brenna ergueu a cabeça e os olhos se arregalaram de surpresa. E pela primeira vez na vida a curandeira não pôde deixar de olhar para outro ser humano. Só que o corpo
de Elphame não era humano. Era muito mais. A metade superior do corpo era talhada com uma beleza feminina que qualquer mulher invejaria. A cintura se curvava para
abarcar os quadris poderosos que se estreitavam no que pareciam ser as pernas dianteiras de um cavalo bem-estruturado. Da cintura para baixo, ela era coberta por
uma luzidia pelagem castanha que brilhava com saúde e juventude. Suas partes mais íntimas eram moldadas, pelo que Brenna podia notar, exatamente como as dela, cobertas
por uma camada de pelos castanho-avermelhados que se enroscavam e enrolavam num triangulo.
O ruído de um sapateado violento irrompeu atrás delas, fazendo as duas mulheres saltarem. À margem da piscina, Brighid batia e batia com seus cascos dianteiros num
amontoado de rochas que começavam a espumar e borbulhar.
- Pedra-sabão - explicou ela. - Pensei em fazer algo de útil enquanto vocês duas terminavam de se inspecionar. - Ela se inclinou e filtrou alguns grânulos escorregadios
pelos dedos. - Acho que já está bem esmagado. - Brighid desatou o colete e o colocou com cuidado sobre uma rocha seca.
- Por que não está olhando para nós? - perguntou Brenna à caçadora.
- Fui criada para acreditar que todos os humanos são criaturas estranhas e deformadas, então vocês duas me parecem perfeitamente normais - disse, com um sorriso
sarcástico, e entrou na água.
- Acho que isso não foi cumprimento, mas a atitude dela foi boa coisa - refletiu Brenna, olhando para a caçadora.
- Sim, certamente - concordou Elphame. Então ela sorriu para a nova amiga. - Terminamos de nos inspecionar?
- Acho que sim, mas eu gostaria de tocar sua penugem - se não se importar - acrescentou depressa.
Elphame ergueu uma perna e a estendeu para a curandeira.
- Não me importo, mas não penso nisso como penugem, vejo mais como se fosse pelo.
Brenna passou um dedo desde o joelho de Elphame até o jarrete, hesitou, e depois tocou a brilhante superfície preta do casco.
- Oh, minha nossa... - ela suspirou. - É tão macio quanto parece. - Depois a parte curandeira de sua mente assumiu. - Sua pele se corta com facilidade ou é mais
dura que a de uma perna humana? E como você reage a plantas que fazem a pele inflamar, como hera venenosa ou carvalho?
- Se seu irmão vier à nossa procura e nos encontrar nuas, sei de pelo menos duas de nós que ficarão muito desconfortáveis com isso - avisou Brighid do meio da piscina.
Brenna ficou pálida e olhou rapidamente por cima do ombro na direção da estrada.
- Tem razão. Isso seria horrível.
- Estamos indo - disse Elphame. - Pode me interrogar depois.
- Eu o farei. - Brenna sorriu.
- Traga um pouco de pedra-sabão - gritou Brighid.
Brenna logo se ajoelhou e apanhou bocados de pedra áspera e espumante. Respirando fundo, arriscou-se na piscina. Deslizou nas rochas lisas e escorregadias perto
da margem e caiu de costas, ofegando com o choque da água fria que de repente cobriu seu corpo.
Elphame sorriu, agitando com hesitação a água com a ponta de um casco.
- Ainda acha que é uma boa ideia?
Com os dentes já batendo, Brenna assentiu com entusiasmo.
- Não é tão ruim depois que se acostuma.
- Não se preocupe. Essa camada de pelo vai protegê-la - disse Brighid. Depois os lábios se ergueram e ela acrescentou: - Ao menos uma parte sua.
- Isso não é muito tranquilizador - disse Elphame. Mas não pôde deixar de sorrir. Estavam provocando uma à outra como se fossem conhecidas de longa data. Ela tinha
amigas.
- Não se preocupem, estou indo...
Mas antes que pisasse na piscina, ela parou. Sentiu algo desconfortável ao longo da nuca. Era uma sensação muito familiar para Elphame - a sensação arrepiante e
ofegante de ser observada. Usando o pretexto de arrumar sua pilha de roupas, seus olhos astutos vasculharam a floresta ao redor. Não notou nada incomum. As árvores
eram só árvores e não pareciam abrigar nada mais maligno do que passarinhos gorjeantes.
Mesmo assim, ela sentia uma pontada na nuca.
Sua imaginação provavelmente estava trabalhando demais, o que era compreensível considerando tudo que tinha experimentado naquele dia.
- Sabe que quanto mais ficar aí parada, mais fria fica a água - disse Brenna.
Elphame se voltou para a piscina. Os lábios da curandeira estavam azuis, mas ela esfregava contente a pedra-sabão no cabelo.
Ignorando seus sentidos abalados, Elphame apanhou um punhado de pedra-sabão e depois, gritando, mergulhou na piscina fria.
Quando ela tirou a roupa, Lochlan soube que deveria ficar de costas, ou ao menos desviar o olhar. Seria a coisa honrada a fazer. Mas não conseguiu. Elphame o hipnotizava.
Ele bebeu de sua nudez. Às vezes, nos sonhos, tinha lampejos de tocar-lhe a pele, beijar-lhe os lábios, mas esses sonhos sempre eram insubstanciais e breves, deixando-o
ansioso por mais. Agora ela estava ali - tão perto dele. Suas asas negras estremeceram, refletindo seu crescente desejo. Sentia-se quente e frio ao mesmo tempo.
Observá-la era uma doce agonia.
Quando ela se virou da piscina e observou a floresta com olhos penetrantes, seu corpo ficou bem imóvel, misturando-se às sombras das árvores, mas as batidas de seu
coração ecoavam nas têmporas. Ela o sentia. Sua mente ainda não o conhecia, mas sua alma já reconhecia que ele estava ali.
Depois ela vadeou a água e sua risada preencheu a floresta. Ela nunca ria em seus sonhos. Só a vira sorrir às vezes, geralmente para o irmão guerreiro ou para um
dos pais. Agora o inesperado som da risada dela era um presente que lhe aplacava a luxúria, mas não fazia nada para diminuir seu desejo por ela. Sentiu os próprios
lábios se erguerem. Elphame devia rir com mais frequência. Queria vê-la feliz; achava que podia fazê-la feliz. Se ao menos houvesse alguma maneira...
A Profecia. Ela o assombrava. Ela o atormentava. Como poderia cumprir a Profecia e conviver consigo mesmo? Mas se não o fizesse, seu povo estaria condenado a uma
existência cheia de dor e tormento, ou loucura. Não! Não conseguia pensar no que aconteceria caso sua missão não fosse bem-sucedida. Sua mãe tinha tanta certeza.
Sua fé em sua amada Epona fora profunda. Ainda podia ver seu rosto, iluminado de recordações enquanto realizava os rituais da Deusa e lhe ensinava os caminhos de
Epona. Tivera tanta certeza. Certeza suficiente para sobreviver a um estupro brutal e, doente e fraca por dar à luz, reunir outras como ela para criar um lar para
suas crianças híbridas. Crianças cujas mães não deveriam ter sobrevivido ao parto. Deveriam servir apenas de incubadoras para seus captores demoníacos, os invasores
fomorianos, cujas fêmeas ficaram misteriosamente estéreis. As mulheres humanas não eram estéreis; mulheres humanas podiam ser engravidadas e usadas para produzir
uma nova geração de fomorianos. Era irrelevante que as mulheres humanas não pudessem sobreviver ao nascimento de sua prole horrível.
Mas sua mãe sobrevivera ao seu nascimento, assim como um pequeno grupo de mulheres. A Deusa não a abandonara. Quantas vezes Lochlan não a ouviu dizer aquelas palavras?
Quase tantas quando a ouvira repetir sobre a Profecia.
A determinação o preenchia. Seus sonhos com Elphame o levaram ali; tinha acabado de abrir caminho pelo labirinto de complicações para estar realmente com ela. Ele
fechou os olhos e se recostou pesadamente no tronco grosso da árvore atrás da qual continuava escondido. Eles eram semelhantes, Elphame e ele, uma mistura de duas
raças.
A risada feminina e a brisa fresca e perfumada se juntaram para brincar com suas lembranças. Quase podia ver sua mãe, curvada sobre o riacho onde costumava lavar
seu pequeno suprimento de roupas grosseiras. Ela sempre teve que trabalhar tanto por tão pouco, mas quando pensava nela, era do sorriso e da doce risada que ele
lembrava primeiro.
Você é minha alegria. Ela lhe dissera isso vezes sem conta. E algum dia você guiará os outros como você de volta a Partholon para que encontrem a felicidade também,
e você estará livre da dor e da loucura.
A mãe era tão idealista. Tinha acreditado que a Deusa responderia às suas preces e que ele cumpriria a Profecia de Epona. E logo ele desistiu de tentar convencê-la
do contrário. Queria acreditar que a humanidade dentro deles era mais forte que os impulsos sombrios imprimidos pelo sangue fomoriano, que a bondade por fim reinaria
sobre a loucura e a insanidade.
- Reinará em mim. Tem que ser assim - sussurrou ele, precisando do apoio do som da própria voz. - Sou mais humano que demônio. Meu pai estuprou minha mãe e a engravidou,
mas sua raça foi derrotada pelas forças de Partholon, assim como o amor de minha mãe derrotou a dor e o horror de meu nascimento. - Lochlan sabia que era insensato
viver no passado, ainda mais pensar naqueles que deixara nos Ermos. Precisava controlar seus pensamentos - focar na tarefa em mãos. Uma pontada de dor de alerta
espetou sua cabeça. Disse a si mesmo para não se importar, para pensar na dor como uma velha amiga. A ausência dela era o que devia temer, era contra o que devia
se proteger. Sua ausência significava que o sangue sombrio do pai finalmente vencera.
Ele abriu os olhos e se agachou para poder espiar Elphame novamente. As mulheres estavam deixando a piscina, sacudindo-se e rindo enquanto tremiam e corriam até
as roupas.
Sentiu o sangue acelerar com a proximidade dela. Por favor, Epona, ajude-me a encontrar uma maneira de cumprir a Profecia sem causar mal a ela. Enviou sua oração
fervorosa à Deusa de sua mãe, mesmo que a culpa o consumisse. A risada de Elphame flutuava novamente até ele, que enrijeceu seu coração confuso e terminou a oração:
Permita-me uma chance de conquistá-la.
Se ao menos pudesse encontrar uma maneira de falar com Elphame. Sozinha. Não era uma tarefa tão impossível. Em seus sonhos costumava vê-la correr com frequência,
e geralmente sozinha. Seria paciente. Tinha esperado por ela por mais de um século. Poderia esperar mais alguns dias.
Dez
CUCHULAINN ESTAVA SELANDO seu capão e se preparava para descobrir o que teria acontecido à irmã quando as três apareceram diante da Estalagem da Égua. Estava pronto
para passar um sermão em Elphame sobre os perigos de desconsiderar seus pressentimentos de guerreiro, mas a visão delas fez todos os sermões fraternais saírem da
mente.
Elas riam e conversavam, todas as três - o que incluía sua habitualmente solitária irmã. Pela Deusa, ela parecia feliz! E então algo mais se registrou em sua mente,
e ele bufou de surpresa. A pequena curandeira desfigurada estava montando a caçadora centaura! Os centauros, de tempos em tempos, se ofereciam para transportar humanos,
mas geralmente em situações de emergência. A nobre raça dos centauros definitivamente não servia de besta de carga. Mas lá estava a caçadora, trotando indiferentemente
com uma humana empoleirada precariamente no seu lombo esguio. Cuchulainn teve certeza de que os militantes centauros Dhianna teriam um ataque apoplético de larga
escala se testemunhassem aquela visão.
Ele teve vontade de rir alto. Também começou a se perguntar se fora muito severo ao julgar a caçadora.
- El! - chamou e acenou para a irmã. Ela acenou em resposta e gesticulou para que as amigas a acompanhassem.
- Desculpe, Cuchulainn - disse ela, sem fôlego. - Não pretendíamos demorar tanto, mas encontramos uma piscina maravilhosa no caminho de volta, e, bem... - Ela encolheu
os ombros e espremeu um pouco d'água do cabelo molhado.
A irmã tinha tomado banho na frente dos outros? Ele olhou da centaura para a curandeira, e de volta para Elphame. Estavam molhadas. Todas as três. E pareciam coradas
e muito satisfeitas consigo mesmas.
- Na verdade foi culpa minha - disse a caçadora, oferecendo um olhar desafiador a Cuchulainn. - Achei que os humanos de Loth Tor não teriam um quarto de banho que
me acomodasse...
- Então sugeri pararmos para tomar banho antes de voltarmos para o acampamento - interrompeu Brenna numa voz tímida e suave. - Elphame estava sempre avisando para
nos apressarmos. - Ela não olhava diretamente para o guerreiro ao falar e mantinha o lado direito do rosto virado.
- Entendo... - disse Cuchulainn, esfregando o queixo. E entendia mesmo. Estavam protegendo a irmã, e que Epona as abençoasse por isso. O sorriso que iluminou seu
rosto era deslumbrante. - Vejo que devo passar mais tempo espreitando ao redor da área da piscina.
- Ah, Cuchulainn! - Elphame enrugou o nariz. - Não seja nojento.
- Bom, eu não estaria olhando para você, menina - disse ele, imitando o sotaque local.
Elphame sentiu como se o rosto tivesse perdido toda a cor. Ele soava exatamente como O MacCallan, lembrando-a que precisava contar-lhe sobre o encontro com o espírito
do ancestral deles; seu irmão gostaria de saber.
- Onde vamos comer, Cuchulainn? - perguntou apressada.
Ele apontou com a cabeça para os fundos da Estalagem da Égua.
- Arrumaram mesas do lado de fora e servirão a comida lá. - Cuchulainn olhou significativamente para a grande caçadora. - Parece que não havia espaço suficiente
na hospedaria para alimentar nós todos.
Brighid fez um som rude com a garganta, e Brenna teve que encobrir a risada com uma tossidela.
- Por que vocês duas não vão andando? Preciso pôr em dia o trabalho de hoje com Cuchulainn.
- Vamos guardar lugar para você - disse Brighid. A centaura hesitou, fazendo uma pausa óbvia antes de acrescentar: - E para seu irmão.
- Posso descer agora, Brighid - disse Brenna.
Incerta sobre o protocolo correto para desmontar de um centauro, ela começou a deslizar lentamente a perna direita sobre o lombo firme da caçadora, mas antes que
começasse a descer ao chão, sentiu uma mão forte equilibrá-la. Brenna se virou, esperando ver Elphame ajudando-a. Em vez disso estava olhando diretamente para os
penetrantes olhos verde-azulados de Cuchulainn.
- Posso ajudá-la a desmontar, minha senhora?
- Eu... Hã... Eu - gaguejou ela, lutando contra a vontade de baixar a cabeça e esconder o lado direito do rosto. Brenna engoliu em seco. Tinha trabalhado perto de
Cuchulainn por grande parte do dia. Ele conhecia a aparência dela. Não havia razão para se amedrontar. - Sim. Pode - enfim conseguiu dizer.
Cuchulainn ergueu a curandeira do lombo da caçadora. Era tão leve como se os ossos fossem recheados com ar. E o cabelo úmido cheirava a chuva e grama nova. Ele a
pôs com gentileza no chão e depois se curvou com galanteria, mas ela nem mesmo o olhava. Ela e a caçadora já estavam andando para os fundos da estalagem. A voz doce
de Brenna fluía até ele na brisa: - Obrigada, Brighid. Lamento o incômodo. Nunca fui boa de montaria...
- O que está olhando? - perguntou Elphame a Cuchulainn, batendo-lhe no ombro.
Refletindo consigo mesmo, Cuchulainn sacudiu a cabeça e revelou o primeiro pensamento racional que lhe veio à mente: - Uma centaura Dhianna dando uma carona a uma
humana?
A irmã ergueu uma das sobrancelhas arqueadas.
- Sim.
- E não havia nenhum fomoriano perseguindo vocês?
- Não notei nenhum, mas talvez você devesse dar uma olhada - prometo guardar seu lugar no jantar - disse ela inocentemente. Depois riu da expressão dele. - Só era
mais fácil, Cuchulainn. Brenna não conseguia acompanhar nosso passo, e estávamos com pressa porque tenho um irmão superprotetor e chato com quem devo fazer contato
constantemente, então Brighid ofereceu uma carona. Não conseguia carregá-la direito nos meus ombros. Foi apenas a coisa lógica a fazer.
- A não ser que você seja um centauro Dhianna. Então a coisa lógica a fazer seria deixar a humana se virar.
A raiva de Elphame se expandiu:
- Se Brighid fosse uma típica centaura Dhianna, não estaria aqui. Quero que lhe dê uma chance. Ela é minha amiga.
Ela é minha amiga. Cuchulainn nunca ouvira a irmã dizer essas palavras antes, e ouvi-las era um milagre que fez sua desconfiança pela caçadora parecer uma coisa
egoísta e insignificante.
- Sinto muito, El - disse, prendendo o braço ao dela. - Tem razão. A única coisa que acho realmente ofensiva na caçadora é seu nome. - Claro que não gostava do tom
sarcástico que ela usava quando falava com ele, mas a expressão nos olhos da irmã dizia que não devia mencionar aquilo.
- Então vai dar uma chance a ela? - perguntou esperançosa.
- Claro, El - disse ele. - E preciso admitir que talvez estivesse preocupado por nada. Tive um pressentimento vago e inquietante que não fui capaz de definir. -
Ele buscou os olhos da irmã, pedindo silenciosamente que compreendesse. - Talvez fosse apenas o prenúncio das mudanças que estavam para acontecer com você que estivesse
me deixando desconfortável.
- Mudanças? O que quer dizer?
- É óbvio que escolheu o caminho certo para sua vida. Você pertence ao Castelo MacCallan, El, até as pedras lhe dão as boas-vindas. E olhe para você, rindo em público
e fazendo amigas.
A felicidade fez os olhos negros de Elphame cintilarem.
- Estou fazendo amigas - repetiu as palavras como se fossem uma oração.
- Talvez eu tenha exagerado hoje cedo - disse ele, com relutância. - Suponho que andei escutando muitas histórias de fantasmas para crianças sobre o antigo lugar
ser amaldiçoado com o espírito dos mortos. Tentarei relaxar um pouco.
Histórias de fantasmas para crianças? Elphame estudou o rosto do irmão. Ele estava sorrindo com uma expressão satisfeita e franca que dizia, com mais clareza do
que suas palavras, que finalmente acreditava que era no Castelo MacCallan que ela deveria estar. Então o que aconteceria se ela revelasse que tinha, de fato, recebido
a visita de um dos MacCallan mortos - na verdade, O MacCallan? Sabia exatamente o que aconteceria. Cuchulainn evitava e desconfiava do reino espiritual; sempre fora
assim, apesar de ter sido presenteado com poderes. Se contasse a ele sobre seu visitante espectral, não tinha dúvida de que ele voltaria a ser obsessivamente superprotetor
com cada movimento seu.
E, além disso, ela mesma não compreendia por que O MacCallan aparecera. A visita parecera benevolente - ele certamente parecia tão nobre em espírito quanto a história
relatava como fora em vida. Ele a chamara de A MacCallan. Mas o que a visita dele realmente significava? Estava lhe dando as boas-vindas ou observando-a?
Não podia contar a Cuchulainn sobre o fantasma d'O MacCallan. Ao menos não naquela noite. Esperaria até estarem mais acomodados, até saber mais sobre os motivos
d'O MacCallan. Talvez o espírito nunca aparecesse para ela novamente. Se assim fosse, por que deveria preocupar o irmão desnecessariamente?
- El - disse ele, cutucando-a. - Você me ouviu? Eu disse que tentarei relaxar um pouco.
- Eu ouvi - disse ela rápido. - Só estou em choque por você finalmente admitir o erro de seus modos. Agora, se eu conseguisse convencê-lo a desistir de perseguir
mulheres e sossegar para ser pai de várias dúzias de crianças, minha vida estaria completa.
- Você fica assustadora quando se parece tanto com mamãe. Tome cuidado ou sua voz se congelará assim.
- Agora sou eu quem está assustada. - Ela sorriu. - Vamos comer.
- Com suas amigas - disse ele.
- Sim. Com minhas amigas.
- As estrelas parecem muito mais brilhantes aqui do que no Templo de Epona - disse Elphame.
- É porque há menos luz refletida de Loth Tor e da floresta do que no templo e na cidade que o cerca - disse Cuchulainn.
- Deveria ver as estrelas da planície dos Centauros. Às vezes são mais brilhantes do que a luz do fogo - disse Brighid.
- Nunca fui à planície dos Centauros, mas parece ser bonito. - A voz de Brenna era sonolenta.
- Deve visitar algum dia. Há espaços amplos onde se pode correr por dias sem parar.
Elphame olhou para o irmão e meneou a cabeça com firmeza, então Cuchulainn guardou o comentário depreciativo que sabia que ele pretendia fazer. Ela suspirou. Por
que ele achava a caçadora tão irritante? Parecia gostar de Brenna - na verdade, fazia de tudo para ser gentil com ela. Mas sempre que ele e Brighid trocavam mais
do que duas palavras, era como fogo encontrando gelo. Ele agiu com contentamento quando Brighid e Brenna perguntaram se poderiam se juntar ao acampamento improvisado
deles, mas depois que se acomodaram para a noite, ele e a caçadora cresceram nos cascos um do outro. (Claro, visualizar Cuchulainn com cascos a deixava com vontade
de rir.) El relaxou no saco de dormir que acomodou aconchegantemente entre duas raízes retorcidas na base de um antigo carvalho. Ouvindo o suave sussurro da voz
de Brighid ao descrever a planície dos Centauros para Brenna, El fitava com contentamento o céu noturno brilhantemente iluminado. Ela e Cuchulainn tinham escolhido
uma clareira um pouco adentro do bosque, onde os imensos carvalhos ainda suplantavam os pinheiros. Queria ficar afastada do resto do grupo, mas não sentia a necessidade
de se retirar tão completamente como na noite anterior. O jantar, na verdade, fora uma experiência agradável, em parte porque Brighid e Brenna escolheram assentar
os quatro ao redor de umas das várias fogueiras que foram acesas nos fundos da Estalagem da Égua. O grupo principal de centauros e humanos comia em longas mesas
de madeira, onde conversavam, riam e aproveitam para se conhecerem melhor. Quando Elphame e Cuchulainn apareceram, os homens e centauros levantaram-se formalmente,
todos curvando-se respeitosamente para ela. Elphame trincou o queixo, preparando-se para mais veneração indesejada. Mas então uma coisa miraculosa aconteceu. Wynne
acenou e gritou um cumprimento - e ela não a chamou de deusa ou sequer de minha senhora. Simplesmente disse "Boa noite para você, Elphame". E o cumprimento casual
de Wynne foi somado a vários outros.
A aceitação das mulheres produziu mágica. Nenhum aldeão se ajoelhou diante dela ou pediu sua bênção sequer uma vez. Surpreendentemente, foi Brighid quem recebeu
atenção indesejada. Elphame sorriu consigo mesma ao lembrar quantos centauros fizeram questão de achar uma desculpa para falar com Cuchulainn, que estava sentado
diante da caçadora, quando era óbvio que o que todos realmente queriam era conseguir uma apresentação a Brighid. Elphame observara a coisa toda com grande curiosidade.
A caçadora era um modelo em graciosa altivez feminina. Fora cordial com seus muitos pretendentes em potencial - cordial e desinteressada. Os centauros reagiram com
óbvia paixão. Até os humanos deram olhadas apreciativas na bela caçadora. Depois de vários centauros se apresentarem, Cuchulainn resmungou seu aborrecimento com
El, chamando Brighid de Princesa de Gelo. Elphame refletiu que Princesas de Gelo aparentemente eram criaturas altamente desejadas.
- Ei - sussurrou-lhe Cuchulainn. - Você está com um sorriso bobo no rosto.
- Não é um sorriso bobo, é um sorriso feliz.
- Vá dormir, El. Até suas amigas já pararam de falar.
Ela olhou para as duas outras formas escuras, que tinha ficado em silêncio, e percebeu que as pálpebras delas estavam bem fechadas. Então rolou para o lado e fitou
o irmão.
- Quando vai dormir, Cuchulainn?
- Em breve, minha irmã.
Ele alimentou a pequena fogueira com lenha e se recostou na árvore, observando os olhos de Elphame se fecharem e a respiração dela se aprofundar. Seu olhar buscou
as duas outras mulheres. Ambas pareciam dormir profundamente. A curandeira estava curvada de lado, de costas para ele. As pessoas a deixaram em paz naquela noite;
ele se sentou ao lado dela para garantir isso. Disse a si mesmo que o feroz sentimento protetor que estava desenvolvendo por Brenna era porque ela era importante
para a irmã, e parte dos votos que fizera quando se tornou um guerreiro declarava que deveria proteger aqueles que precisassem de proteção. Então se lembrou do perfume
dela, da sensação de tê-la nos braços quando a ergueu do lombo da centaura.
Desviou o olhar do corpo de Brenna e encarou diretamente os olhos abertos da caçadora. Sentiu as faces arderem sob seu olhar silencioso e astuto.
- Fico com o primeiro turno. Acordo você quando a lua estiver no topo do céu. - Sem esperar que ele respondesse, ela se ergueu e desapareceu na floresta feito um
elegante espírito prateado do bosque.
Cuchulainn podia ouvir os sons abafados de seu corpo abrindo caminho pelos arbustos conforme caminhava lentamente pelo perímetro.
- Maldita Princesa de Gelo - resmungou consigo mesmo. - Que ela faça parte da vigia. Está enganada se pensa que vai conseguir uma reclamação minha.
Cuchulainn se remexeu, tentando encontrar uma posição mais confortável, pensando no quanto ficaria feliz quando pudesse dormir numa cama novamente, no quanto a caçadora
era irritante e no tanto de trabalho que estava por vir... Pensando em tudo que o impedisse de lembrar-se da curandeira de voz suave e rosto desfigurado que cheirava
a chuva e grama nova.
O sono embalou Elphame feito uma mãe atenciosa, levando-a a sonhar. No sonho, estava correndo por uma floresta de carvalhos antigos que se pareciam exatamente com
aquele debaixo do qual seu corpo estava repousando. Era noite, mas o céu estava claro e a lua cheia iluminava a floresta tal qual uma tocha feita de neve e fogo.
O chão da floresta de seu sonho estava livre de arbustos, e não havia buracos traiçoeiros ou raízes para prender seus cascos. Ela respirava profunda e uniformemente,
alongando os músculos das pernas e aumentando o passo, tanto que o vento lhe açoitava o rosto e as árvores ficavam borradas ao passar depressa.
Amava correr. O sonho a lembrou de que há muito não dava uma boa corrida - desde o dia em que deixara o Templo de Epona. Tempo demais, sua mente subconsciente repreendeu-lhe.
O chão da floresta começou a se tornar alto e ela impulsionou as pernas, saboreando o ardor nos músculos poderosos conforme subia a inclinação. Escapuliu da floresta
para uma pequena clareira na qual, de repente, se descobriu envolta em neblina. Respirando pesado, Elphame parou. A névoa se enroscava ao seu redor, grossa e cinzenta.
Ela a socou e subitamente a cor enevoada mudou e ficou tingida com um toque de vermelho.
A cor a atraía.
A neblina redemoinhava num infinito padrão circular que lhe recordava um dos labirintos de Epona margeados por azevinhos que decoravam as terras do templo. No sonho,
a comparação a fez sorrir, então ela estendeu os braços, abrindo bem os dedos. Lentamente, Elphame começou a girar e, conforme a névoa acariciava seu corpo, percebeu-se
nua.
- Elphame... - A voz desencarnada flutuou ao redor dela na névoa. Era uma voz de homem, mas ela não a reconheceu.
- Venha para mim, Elphame...
Em vez de alarmá-la, o som da voz desconhecida tocou em algo bem no fundo dela, e seu corpo respondeu com uma ardente torrente de calor. A umidade da acariciante
névoa escarlate a recobria, lambendo-lhe a pele e trazendo à vida sensações que tinha apenas imaginado. A névoa se tornou mais densa, assim como seu desejo.
- Sim... - A voz do homem a persuadia sedutoramente. - Deixe-me amá-la.
Elphame foi envolta por uma teia diáfana e, onde sua nudez era tocada, seu corpo ganhava vida. Não, ela pensou com uma crescente sensação de espanto, não estava
coberta por uma teia. Estava envolta por asas.
- Ele tem asas! - disse em voz alta, e o som da voz a acordou num repente.
Nos escuros bosques ao norte do Castelo MacCallan, Lochlan sentou-se numa guinada, imediatamente desperto. O corpo estava ardendo de necessidade. Sonhara que estava
com Elphame, que pela primeira vez tinha sentido sua presença. Saiu do cômodo abrigo que fizera para si mesmo na caverna formada por um afloramento de rochas, desdobrou
as asas palpitantes e começou a longa e árdua escalada pela lateral do rochedo, desesperado para queimar seu desejo reprimido.
Sua mente flamejava. A dor na cabeça apunhalava tão avidamente que ele pensou que a mente explodiria, mas manteve um rígido controle sobre si mesmo e se concentrou
em extenuar o corpo poderoso até o suor escorrer pela pele e a respiração vir em goles irregulares.
Vivera por tanto tempo... Cento e vinte e cinco anos. Era uma maldição essa longevidade passada a ele e aos outros pelos pais fomorianos. E quem sabia por quanto
tempo seu coração ainda bateria e o sangue sombrio de seu pai serpearia com a tentadora loucura por seu corpo? A luta. A constante luta o sobrecarregava.
Desista... A dor dentro dele sibilou. Pare de lutar. Deixe a loucura tomar você. Deleite-se no poder que está sob seu comando. Lochlan poderia acabar com a dor abraçando
sua herança sombria. Trincou bem os dentes. E então ele se tornaria semelhante à raça do pai. Não seria melhor do que um animal raivoso ou um demônio. Ambas as descrições
seriam precisas.
Ele queria mais - para si mesmo e para seu povo.
Elphame... O nome dela era como água fresca para sua alma ressecada.
Eles se encontraram no reino dos sonhos - tinha certeza disso. Ela ouvira sua voz e abrira os braços para ele, que a envolveu em suas asas e a acariciou. Ela o conhecera.
Tinha ao menos reconhecido parte do que ele era. Ouvira-a falar com clareza: - Ele tem asas!
A voz de Elphame ainda ecoava por ele, e o assombro refletido nela o enchia de esperança e de uma inenarrável alegria, fazendo a dor em seu corpo temporariamente
mais fácil de suportar.
Onze
VESTÍGIOS DO SONHO permaneceram com ela ao longo da manhã, e mesmo no meio da tarde. Elphame se descobria olhando a distância, lembrando da carícia da névoa em tom
escarlate. Foi durante um desses devaneios que ela não prestou atenção no que o trabalhador dizia.
- Então é isso, minha senhora.
- Desculpe-me. Minha mente estava longe. Pode ser reparado? - perguntou Elphame, aborrecida consigo mesma pela falta de atenção. Fora apenas um sonho. Era tolice
ficar tão distraída com isso.
- Como eu disse, vai dar algum trabalho, mas acredito que sim. - O jovem homem possuía ombros largos, mãos grossas e um enrugado rosto moreno de sol que falava de
muitos anos de exposição ao tempo, mas seus olhos castanhos eram acolhedores e seu sorriso confiante ao erguer os olhos da sondagem da base traseira da fonte. -
Já comecei a trabalhar no desentupimento do poço principal do castelo. Quando tiver terminado, a água deve correr livremente mais uma vez até a cozinha e também
para esta fonte, minha senhora. A não ser que exista um rompimento no sistema subterrâneo de canais, o que ainda preciso descobrir.
- Bom, obrigada.
O homem se curvou educadamente e deixou o pátio. Elphame fitou a estátua da bela moça que tanto se parecia com ela. As vigas que escondiam a fonte foram removidas,
e agora a tarefa de limpeza da estátua estava para acontecer. Danann recomendara usar areia, água com sabão e também uma escova de cerdas grossas para restaurar
a estátua - a mesma técnica de restauração que estava sendo empregada por várias mulheres que estavam em cima de andaimes rapidamente erguidos para limpar as imensas
colunas que circundavam o pátio. O som da conversa delas misturava-se bem ao ruído da reconstrução que já começava no telhado. O castelo estava vivo de atividade.
- Eu provavelmente deveria estar inspecionando algo terrivelmente importante em vez de estar obcecada com você - murmurou para a garota de pedra. Elphame já tinha
esfregado a sujeira do rosto de Rhiannon. O mármore no qual a estátua foi esculpida era de uma luminosa cor creme, e o rosto agora limpo da garota destacava-se num
brilhante contraste com o resto do corpo. - Mas por alguma razão acredito que você é muitíssimo importante.
- Aprovo sua conversa com a pedra, minha senhora - a rica voz de Dannan surgiu do lado dela, fazendo-a pular. Não sabia qual dos dois se movia mais silenciosamente,
o artífice ou a caçadora, mas tinha a sensação de que ambos lhe deixavam nervosa.
Recuperando-se da surpresa, Elphame tocou a face da estátua.
- Não é difícil conversar com ela, parece tão real. - El voltou o rosto para o velho centauro. - Há algo nesta fonte e neste pátio que me parecem muito importantes.
Sei que há outros afazeres dos quais deveria estar cuidando, mas sou atraída para cá, para o coração do castelo. Não posso descansar até isto... - ela abriu os braços
para incluir a área inteira - ... Estar revivido.
- Coração... Revivido... - falou Danann devagar, coçando o queixo. - Uma escolha interessante de palavras. Quando se fala na construção de um novo lar, ou mesmo
na reconstrução de um antigo lar, geralmente não se usa palavras que descrevem uma pessoa que vive e respira - como coração e reviver. Pode me dizer por que faz
isso?
Os olhos de Elphame trocaram o centauro pela estátua de sua ancestral.
- Isso é fácil - disse logo. - Para mim, o castelo está vivo. Não o vejo como pedra morta e vigas podres. - Pensou na conversa com o espírito d'O MacCallan e quis
contar a Danann sobre o encontro, mas de alguma forma sentia que seria uma traição ao irmão confiar a outro o que estava incerta de contar a ele.
- Sim, deusa. Você tem uma afinidade com este castelo.
- É uma coisa nova para mim, Danann. Nunca senti nada assim até chegar aqui.
Danann sorriu para a bela e jovem criatura.
- Isso é porque até chegar aqui você estava ocupada demais com sua própria vida para sentir a magia que a cerca.
- Isso me faz parecer superficial e tola - retrucou Elphame.
- Não, deusa, nada disso. O que faz é torná-la muito parecida com a maioria das outras almas que estão vivendo suas vidas atuais em Partholon. O problema é: você
é diferente da maioria das outras almas.
Elphame não sabia o que responder. Odiava ser chamada de "deusa", porém, quando vinha dos lábios do artífice, parecia mais um carinho do que um título. E desde que
conseguia se lembrar, desejara duas coisas: ser como o resto de Partholon e ser agraciada com alguma forma de magia. Mas o que Danann estava dizendo era que uma
coisa excluía a outra.
Elphame suspirou:
- É difícil de entender.
- Sim, para aqueles de nós que foram tocados pelo reino espiritual, geralmente é uma coisa difícil de entender - disse Danann com gentileza. Depois ficou em silêncio,
estudando a estátua parcialmente restaurada.
- Mas eu gostaria de saber mais - disse ela, temendo que o centauro pudesse ter encerrado a conversa. - Você me ensinaria, Danann?
Ele lhe deu uma olhada especulativa.
- Não aprendeu a se abrir para os espíritos da terra quando estudou no Templo da Musa?
- Não - admitiu ela.
- Ah, entendo. - Antes de continuar, ele considerou suas palavras com cuidado. - Deve compreender que não sou professor, nem xamã. Não posso instruí-la, simplesmente
tenho um talento para ouvir os espíritos da terra, mais especialmente aqueles que habitam as pedras.
O rosto de Elphame pendeu em desapontamento, mas o centauro não tinha terminado.
- Não posso instruí-la - repetiu ele -, mas posso guiá-la.
- Ah, Danann, muito obrigada! - Elphame tomou a mão nodosa do velho centauro nas suas.
- Como poderia rejeitar uma aluna encantadora? - disse Danann com carinho. - Por que não tira um descanso e faz um passeio comigo? Sinto meus ossos enrijecendo quando
fico parado por muito tempo no mesmo lugar.
- Claro, aonde gostaria de ir?
Danann sorriu de maneira enigmática para a jovem que era uma mistura única de centauro e humano.
- Deixe os espíritos guiarem-na, deusa. Nós os seguiremos.
Elphame franziu as sobrancelhas. Deixar que os espíritos a guiassem? Como? O artífice a fitava com expectativa, como se não duvidasse que os espíritos fossem chamar
o nome dela, puxá-la em certa direção ou algo assim... Qualquer coisa. Ela franziu a testa, concentrando-se nas pedras ao redor. Sentiu-se em paz e feliz, assim
como no momento em que chegara ao castelo. Mas foi só isso. Nada lhe dizia para ir a qualquer lugar.
- Não consigo... - começou ela.
- Você se esforça demais - falou Danann calmamente, erguendo a mão para silenciá-la. - Comece devagar. Apenas se abra para a influência dos espíritos e comece a
andar. Eles a guiarão quando não estiver tentando forçar a vontade deles.
Sentindo-se ridiculamente tensa, Elphame perguntou: - Me abrir?
O centauro assentiu com paciência.
- Respire fundo três vezes e depois deixe de pensar.
Ansiosa para obedecer, Elphame inspirou de maneira longa e purificadora por três vezes e limpou a mente. Depois mandou as pernas se moverem e, com o centauro idoso
caminhando rigidamente ao seu lado, deixou o pátio. Lentamente, num padrão sinuoso, El rumou na direção da cozinha, mas, ao alcançar o corredor fora do Grande Salão,
sentiu-se compelida a virar para a direita e afastar-se do burburinho de atividade que emanava dos cômodos do outro lado das janelas sem vidro.
- Lembre que o mundo ao nosso redor está imbuído de alma. - A voz de Danann assumiu um tom melódico que era quase hipnótico. - Desde as pedras do seu castelo até
a água que se agita no mar logo abaixo de nós, a própria terra tem alma. Está vivendo e respirando, e geralmente apenas esperando que alguém que tenha quietude de
mente ouça suas muitas vozes.
Seguindo um puxão silencioso que atraía algo bem no fundo dela, Elphame deixou o longo corredor e atravessou uma entrada arqueada que levava para um pátio interno
que era muito menor do que aquele que guardava a fonte. El parou e estudou a área. Não se lembrava de ter passado por ali no dia anterior, na rápida inspeção do
castelo. O pátio era aberto ao céu, mas não porque o telhado fora queimado. Aquela área em particular fora deixada descoberta de propósito. O chão ali não era de
pedra, mas de grama, que ficara selvagem e crescera até quase seus joelhos. Havia várias entradas para aquela pequena área, uma das quais era um íngreme lance de
degraus de pedra que conduzia a um cômodo amplo e baixo que antigamente ligava o telhado do castelo às paredes com balaustradas - antes que o fogo o tivesse consumido
e deixado apenas destroços. Deve ter sido a caserna dos soldados, pensou ela, que imaginou brevemente os homens que tinham vivido e morrido ali.
Os olhos de Elphame foram atraídos para o pé da escada de pedra. As pernas a levaram adiante por vontade própria. Seus cascos faziam um som suave e discreto através
da grama alta. Ela pensou que talvez as pedras na escada a estivessem chamando, mas deteve-se a vários passos dela.
A tristeza que a engolfou foi súbita e inesperada.
- Oh! - Ela suspirou profundamente, piscando para conter as lágrimas que lhe enchiam os olhos.
- Respire, Elphame. - Danann estava ao seu lado, transmitindo calma às suas emoções agitadas. - O mundo natural é intenso em poder, informação, conselho e sabedoria.
Não está tentando machucá-la, está tentando falar com você. Aquiete sua mente e escute.
Elphame mais uma vez inspirou de forma profunda e purificadora, e, quando expirou, liberou a apreensão - e escutou.
- Venham até mim, seus covardes malditos!
Reconheceu a voz imediatamente - ele tinha falado com ela na noite anterior. Um emaranhado de imagens convergiu sobre Elphame, que lutou para se manter calma enquanto
o pequeno pátio estremecia, se deslocava e, como uma tocha que é acesa numa caverna escurecida pela noite, as sombras do passado subitamente ganhavam vida ao seu
redor.
O MacCallan estava de pé diante dela na base da escada de pedra. Horríveis criaturas humanoides aladas o cercavam. O sangue escorria das feridas abertas que foram
feitas em seus braços e peito, mas sua imensa espada ainda estava girando em arco ao redor dele. Aos seus pés estavam duas coisas decapitadas, vítimas de sua força.
Rosnando, as criaturas humanoides o rodeavam, tomando o cuidado de ficar longe do alcance de sua lâmina mortal.
- Venham até mim, seus covardes malditos!
Ele repetiu seu desafio. Hipnotizada, Elphame não conseguia desviar os olhos dele. Suas palavras tinham chamado a atenção de mais criaturas. Uma por uma, o círculo
ao redor do velho guerreiro cresceu até que vinte criaturas humanoides o cercassem, as asas tensas, a boca sangrenta babando em expectativa.
Elphame podia sentir a respiração acelerar e o coração bater erraticamente à medida que as criaturas começaram a apertar o círculo e convergir sobre ele. Mas O MacCallan
não entrou em pânico. Seus movimentos eram calmos e seguros. Ela viu a espada faiscar e a ouviu cortar a primeira, a segunda e a terceira criaturas, até não poder
mais prosseguir. Então as presas e os dentes delas o alcançaram. Ele lutou com os punhos, que estavam escorregadios com o próprio sangue - tanto sangue que a visão
parecia forjada em carmesim.
Mesmo quando caiu de joelhos, o chefe do clã não gritou. E não capitulou.
Mas Elphame não podia mais aguentar. Mesmo que sua mente soubesse que só estava assistindo às sombras do passado, a cena lhe parecia real por demais. Tinha falado
com ele na noite anterior - ainda lembrava-se da voz brusca e bem-humorada, do brilho acolhedor de seus olhos. Quando ele tombou de joelhos, Elphame tombou com ele,
soluçando, fechou os olhos e cobriu o rosto com as mãos.
No instante em que seus joelhos tocaram o chão gramado, os sons da batalha cessaram.
- Você testemunhou o passado por alguma razão. - A voz de Danann a ancorou de volta ao presente. - Fique parada e continue a escutar - não deixe que os espíritos
falem em vão.
Tentando acalmar o corpo trêmulo, Elphame tirou as mãos do rosto e abriu os olhos. O dia estava calmo; o pátio estava alegremente iluminado pela luz do sol de uma
quente tarde de primavera. Mais nenhum fantasma condenado do passado lutava até a morte. Elphame secou os olhos e tentou clarear os pensamentos novamente, mas a
imagem do nobre chefe continuava preenchendo sua mente.
Será que a morte dele fora reencenada por nada porque ela era uma tola inexperiente que não sabia como escutar o reino espiritual? Envergonhada, mordeu o lábio e
baixou a cabeça. Algo caído em meio ao mato e grama emaranhados recebia a luz do sol e cintilava. Contendo o fôlego, Elphame estendeu a mão pela folhagem e apanhou
o objeto metálico, erguendo-o da terra para a luz.
Era um broche redondo, bem embaçado e encrostado de terra, mas nem o fogo funerário e os anos de exposição aos elementos puderam extinguir a beleza da égua empinada
no escudo de prata.
- É o broche d'O MacCallan - disse Danann, inclinando-se para inspecionar o tesouro. - Você foi guiada até aqui para encontrá-lo. Valorize-o, deusa, o próprio MacCallan
a presenteou com ele.
Enquanto tocava o presente, ela pensou ouvir um eco da resposta do chefe quando ela o identificou como O MacCallan.
- Sim, menina, sou eu. Agora essa posição é sua.
Parecia que o velho espírito era realmente receptivo. Sentiu sua aprovação através do calor do broche, que virou e revirou na mão enquanto ela e Danann caminhavam
lentamente de volta para o pátio principal. O centauro lhe deu tempo para digerir o que tinha acabado de experimentar, mas antes que reentrassem no movimentado pátio,
ele parou.
- Foi uma experiência difícil para você - disse ele simplesmente.
Elphame olhou para o broche e assentiu, sentindo-se um pouco tonta e desequilibrada.
- Seria prudente comer e beber alguma coisa agora. Você visitou o reino dos espíritos e não se sentirá inteira neste mundo novamente até se firmar entre os vivos
com alimento.
Ela assentiu, sentindo outra onda de tontura.
- Vê-lo morrer foi terrível. - A voz ainda estava tensa.
- Aconteceu há mais de cem anos. Tente esquecer o horror do passado e, em vez disso, lembrar-se do maravilhoso presente que recebeu.
Elphame pensou que desejaria ter recebido o broche sem ter que ver O MacCallan assassinado pelos demoníacos fomorianos.
Como se lendo sua mente, o centauro sorriu e lhe deu palmadinhas no ombro.
- Você testemunhou a morte dele por alguma razão. Isso ficará claro no devido tempo. Até lá, pense no presente. Devo me despedir agora. Os homens devem ter retornado
com um novo carregamento de pedras. Preciso supervisionar a colocação delas.
- Obrigado por me ensinar, Danann.
- Não ensinei, apenas guiei - disse o velho centauro com um leve sorriso. - Mas lhe darei um último conselho. Faça algo que alegre seu coração essa noite. Geralmente
aqueles que escutam os espíritos se esquecem de viver as próprias vidas. Guarde em mente que a terra está imbuída de alma, não de sepulturas. Encha-se de vida, deusa,
não de imagens de morte. - O velho centauro curvou-se e partiu.
Doze
- ONDE DISSE QUE encontrou isso? - perguntou Cuchulainn à irmã enquanto inspecionava o broche que carregava a égua empinada da insígnia do clã MacCallan.
- Na base de uma escada de pedra que leva ao que eu acho que era a caserna dos guerreiros.
Não contou a Cuchulainn sobre a visão que a conduzira ao broche, e não estava inteiramente certa do motivo, exceto porque ver a morte d'O MacCallan fora uma experiência
muito íntima. Havia a ancorado ao passado do castelo. Amava o irmão com a mesma lealdade feroz que ele tinha por ela, mas eram diferentes um do outro. Ela reverenciava
o passado e abraçava o mundo espiritual. Cuchulainn era um guerreiro que vivia o aqui e agora. Desconfiava do que não compreendia, do que não podia ser vencido com
punhos e armas. El não queria ouvir o irmão analisando mais do que o necessário ou talvez até rejeitando completamente o que lhe acontecera naquela tarde. Queria
guardar o passado um pouquinho mais, e isso significava manter silêncio sobre a visão e seu visitante fantasma.
- Esse lugar está maravilhoso - disse ela, desviando a atenção dele do broche. E não estava exagerando só para mudar de assunto: com grande ar de admiração, contemplava
ao redor. Conforme a noite se aproximava, ela e Cuchulainn se encontraram para verificar o progresso dos trabalhadores. El ficara contente por notar que a área sul
do castelo estava quase totalmente limpa. Cuchulainn lhe garantira que na noite seguinte estariam acampando lá, em vez de nos arredores de Loth Tor.
A metade superior das poderosas colunas que circundavam o pátio principal foi limpa, e a beleza cremosa dos entalhes delicados formava um estranho contraste com
o resto das peças, fazendo parecer com que o topo restaurado tivesse se materializado no ar. Brenna tinha tomado interesse especial pelas antigas colunas e estava
supervisionando pessoalmente as mulheres que trabalhavam na limpeza delas. Quando Elphame e Cuchulainn elogiaram o trabalho que fazia, a pequena curandeira quase
corou de prazer.
Agora irmão e irmã estavam parados à entrada da cozinha, e embora a atividade ao redor estivesse começando a diminuir, Elphame mal podia acreditar na mudança acarretada
em dois dias.
- É bom vê-la, minha senhora. - Wynne se aproximou de Elphame e fez uma rápida mesura. Seus olhos buscaram apreciativamente Cuchulainn. - E você também, guerreiro.
El observou Cuchulainn se transformar de irmão preocupado em jovem libertino.
- É sempre um prazer cumprimentar uma dama tão adorável, Wynne - disse ele.
- É incrível o que conseguiu em tão pouco tempo. - Elphame interrompeu o que ela temia ser uma longa troca de comentários galanteadores. - Nem mesmo parece a mesma
cozinha.
As imensas lareiras tinham sido completamente limpas das vigas e esfregadas. Os fogões tinham sido livres dos roedores e da terra, e as pedras partidas e caídas
já tinham sido substituídas. Mulheres esfregavam a parede de armários e a imponente ilha central, além do piso de pedra.
- Wynne! Temos água! - gritou uma das jovens assistentes da cozinheira. Elphame a observou bombear a alavanca da torneira, e a água jorrou na pia de mármore. A princípio
era escura e suja de terra, mas logo clareou e cascateou num rio espumoso. Várias mulheres próximas festejaram.
- Minha senhora, amanhã à noite estaremos nos banqueteando com comida preparada na própria cozinha de MacCallan - disse Wynne.
- Isso me deixa muito feliz, Wynne.
A bela cozinheira sorriu e fez uma mesura antes de correr de volta ao trabalho.
- Parece que é hora de a caçadora começar a ganhar seu sustento - disse Cuchulainn enquanto deixavam a cozinha e seguiam para a frente do castelo.
- É o que ela está fazendo exatamente agora, Cuchulainn. - Elphame fez-lhe cara feia, exasperada com a contínua antipatia do irmão com Brighid. - Ela disse que não
gostava da ideia de dilapidarmos toda a comida de Loth Tor, então saiu para caçar esta tarde.
Cuchulainn resmungou.
- Estou surpresa por não gostar dela, sabe? Ela é uma mulher bonita, e você geralmente se dá muito bem com mulheres bonitas.
- Bem, ela sabe que é maravilhosa. É arrogante demais. E eu ainda não confio completamente nos motivos dela - rosnou ele.
Elphame revirou os olhos.
- Só não gosta porque ela não se atira sobre você.
Cuchulainn deu de ombros.
- Você poderia estar certa, minha irmã. É muito incomum. - Ele ergueu as sobrancelhas para a irmã, fazendo-a rir. - Mas não quero falar sobre a caçadora, quero saber
mais sobre esse broche do chefe que miraculosamente caiu em sua posse.
Estavam entrando no pátio principal, e Elphame foi poupada de responder pela voz animada de Brenna.
- Oh, olhe para a fonte, Elphame!
- Cuchulainn, está funcionando! - El agarrou a mão dele e o puxou para o centro do pátio, onde vários homens e mulheres observavam a fonte. Água turva escorria do
vaso de Rhiannon para a bacia, que já começava a encher, e, enquanto observavam, a água ficou clara, apanhou o sol de fim de tarde e cintilou festivamente. As maciças
colunas do lugar recolheram o som da fonte e o pátio ecoou os ruídos tranquilizantes e familiares de dias chuvosos e água gorgolejante.
- É mesmo maravilhoso, El - disse Cuchulainn, passando o braço ao redor dos ombros dela e dando-lhe um abraço fraternal.
- Sim, concordo - disse Brenna. Junto a Elphame, sorrindo-lhe com alegria, os olhos da curandeira dançavam com o reflexo da água.
Elphame não conseguia falar. Depois de anos de frustração com sua vida inútil, de repente era como se todos os seus desejos estivessem sendo concedidos. Quase sentia
medo de acreditar - quase medo de que se falasse, o encanto se quebraria e tudo se dissolveria como névoa num sonho.
Névoa num sonho. A comparação lhe trouxe de volta o sonho com distinta intensidade, e por um momento ela se sentiu confusa e tonta. Era um pouco como se sentira
mais cedo naquele dia depois de vivenciar a visão da morte d'O MacCallan. Piscou com força tentando clarear os olhos e a mente. Podia sentir o olhar de preocupação
do irmão, mas teve o cuidado de não encontrar-lhe os olhos.
- Acho que é o bastante por hoje - disse Cuchulainn abruptamente. Ele escolheu um dos homens. - Dermot, anuncie que é hora de retornar para Loth Tor para passarmos
a noite.
- Sim, meu senhor. - Sorrindo, Dermot saiu correndo do pátio.
Conversando entre si, os homens e mulheres no pátio começaram a dispersar, amontoando baldes e escovas em pilhas organizadas e pendurando trapos rasgados nos andaimes
para que estivessem secos pela manhã, deixando Elphame, seu irmão e Brenna sozinhos na fonte.
- Sente-se bem, El? - perguntou Cuchulainn.
- Tudo bem - disse ela, recuperando a voz.
- Você está pálida. - Os olhos experientes de Brenna a estudaram com atenção.
Sem olhar para o irmão ou para a curandeira, Elphame disse: - É só um pouco impressionante ver tudo com que sonhei prestes a se realizar. Às vezes fico emocionada.
Cuchulainn resmungou:
- Agora está parecendo uma garota.
A provocação melhorou o humor de Elphame, que foi capaz de sorrir para ele.
- Eu sou uma garota, Cuchulainn.
Brenna, contudo, não esqueceu a preocupação com a provocação fraternal.
- Acho que deve aceitar o conselho de seu irmão, Elphame. Já fez o bastante por hoje. Precisa de uma farta refeição e de uma boa noite de repouso para que se sinta
revigorada amanhã. Vou preparar um chá que a deixará relaxada e ajudará seus músculos doloridos.
- Não estou... Ai! - exclamou El quando Brenna esticou o dedo e pressionou sua escápula.
- Sim, está sim - disse a pequena curandeira com presunção.
- Melhor ouvi-la, El - riu Cuchulainn. - Ela me lembra mamãe.
- Prepararei o bastante para você também - avisou Brenna a ele com severidade.
- O gosto é muito ruim? - perguntou Cuchulainn. Estava contente por ela falar com ele com a mesma voz que usava com a irmã, em vez de baixar a cabeça e sussurrar
para o ombro.
- Sou curandeira, não cozinheira. - Ela deu-lhe uma olhada indignada. Então percebeu de repente que estava caçoando do belo guerreiro. Brenna sentiu o rosto ficar
quente; sabia que o lado sem cicatriz estava corando, o que só acentuaria o rosa desfigurado do outro lado. - Preciso colher as ervas corretas - disse ela que, baixando
a cabeça, retirou-se do pátio.
Cuchulainn a acompanhou com o olhar.
- Por que ela faz isso?
- Só pode estar brincando, Cuchulainn. Você sabe o porquê. Olhe para o rosto dela, e não é só isso nela que tem cicatrizes - disse El.
- Vi o rosto dela. Não me fez encolher de medo ou fugir dela.
Elphame ergueu uma sobrancelha. O que era aquilo na voz dele?
- Ela não me confidenciou, mas meu palpite é de que tenha sido tratada duramente, e não apenas por mulheres. Aposto que os homens foram muito cruéis com ela, especialmente
homens bonitos.
- Se alguém a tratar com crueldade aqui, terá que se entender comigo. Os homens sabem disso. - A voz de Cuchulainn era dura.
Elphame ergueu a outra sobrancelha.
- Verdade?
- Ela é sua amiga. Não quero que seja tratada com desrespeito - disse Cuchulainn, ainda olhando na direção em que Brenna desaparecera.
Elphame observou o irmão. Nunca o vira reagir assim com qualquer mulher de fora da família. Estaria começando a se importar com Brenna? Seria possível? Imediatamente,
Elphame ficou envergonhada com seus pensamentos. Claro que Cuchulainn poderia se importar com Brenna. Era bonito e talentoso, mas não era superficial e negligente
com os outros. Brenna era uma jovem miúda e adorável, que por acaso fora desfigurada. Não deveria duvidar de que seu irmão era homem bastante para enxergar além
das cicatrizes.
Sorriu com ternura para ele.
- Obrigada por cuidar dela, Cuchulainn.
- Não precisa me agradecer. É a coisa certa a ser feita. - As palavras da irmã o deixaram desconfortável e a voz soou mais rígida do que ele pretendia. Sorriu em
tom de desculpas. - Devemos ir. Brenna provavelmente ficará preocupada se não a acompanharmos logo.
Perdidos em seus pensamentos, irmão e irmã caminharam lentamente através do pátio e da entrada desobstruída dos muros internos. Quando se aproximaram dos muros externos,
foram acompanhados por um grupo de trabalhadores vindos de diferentes partes do castelo. Curvaram a cabeça respeitosamente para Elphame e seu irmão, e ela ficou
contente quando vários deles a cumprimentaram pelo nome.
- O ferro do portão novo deve chegar antes da lua nova - disse Cuchulainn enquanto saíam do castelo.
Elphame parou e olhou de volta para o castelo.
- Fica feliz só de olhar para ele, não é? - perguntou Cuchulainn com um sorriso na voz.
As palavras dele despertaram-lhe a memória.
- Sim, fico. - Ela olhou para o irmão. - Sabe o que mais me deixa feliz?
- O quê?
- Correr. - Ela suspirou com a palavra. - Não dou uma boa corrida desde antes de deixarmos o templo de mamãe, Cuchulainn... - colocou a mão no ombro dele para impedi-lo
de interromper - ... Preciso de uma corrida.
- Não conhece esse terreno. Onde acha que poderia ir? A estrada entre o castelo e a aldeia é a única área longa o bastante que lhe dá um exercício decente.
Elphame sacudiu a cabeça. Não, não correria onde os outros pudessem vê-la. Estavam apenas começando a aceitá-la. Se vissem sua verdadeira velocidade, provavelmente
voltariam a tratá-la como deusa. Pensou no assunto, estudando a floresta ao redor com olhos de atleta. Depois sorriu.
- Correrei ao longo do penhasco. A floresta termina a vários metros antes do abismo. Segue uma faixa razoavelmente reta, então posso enxergar bem adiante. E, de
qualquer forma, só preciso evitar as rochas, que são bem grandes para que eu não deixe de vê-las.
- Não sei, El. Não gosto da ideia de você andando sozinha. Por que não me deixa pegar meu cavalo e ir com você?
- Cuchulainn, não estava dizendo na noite passada que estava enganado quanto aos seus sentimentos paranoicos? - Ela ignorou a pontada de culpa por usar a desculpa
dele contra ele mesmo - especialmente considerando tudo que ela não lhe contara. - Levarei sua adaga de arremesso. - Ela bateu na cintura, onde a adaga estava bem
afivelada. - Ainda há muita luz. Estarei de volta a Loth Tor tomando o chá de Brenna antes que o sol se ponha.
- Não gosto disso.
- Acha que vou despencar da beira do penhasco?
- Não. Só não gosto disso.
- Cuchulainn, não seja a mamãe.
Ele fez cara feia.
- Não sou nossa mãe.
Ela lhe sorriu.
Cuchulainn suspirou.
- Esteja de volta antes de o sol se pôr. Isso quer dizer na cidade, sentada perto de mim, bebendo o chá de sua curandeira - não rumando naquela direção ou pensando
em rumar naquela direção.
- Sim! Sim! - disse ela com impaciência. Deu-lhe um rápido abraço e roçou-lhe a face com um beijo. Afastando-se correndo, lançou-lhe um olhar provocador por cima
do ombro. - Cuide de Brenna até eu voltar.
Elphame riu e acelerou, deixando o vento engolir a resposta sucinta do irmão.
Treze
ELPHAME CONTORNOU A lateral do castelo. O Castelo MacCallan fora construído numa área gigantesca de terra alta que se projetava sobre o imponente litoral do Mar
de B'an. Ela seguiu a beira do penhasco rumo ao norte. Como a terra ao sul, a costa se entortava para a floresta, deixando o MacCallan postado sozinho, silencioso
e austero em sua posição proeminente.
Bom, silencioso por enquanto. Elphame sorriu ao vento enquanto pensava no castelo repleto dos sons felizes de pessoas cuidando dos afazeres diários de viver. Seu
povo e seu castelo.
Quando ela não era mais visível do castelo, parou para desenrolar a saia da cintura e a pendurou sobre a lateral de um rochedo. Então começou uma série de alongamentos
para aquecer os músculos rígidos das pernas. Elphame aspirou fundo a penetrante brisa marinha. Lá embaixo, ondas atingiam ritmicamente a base do penhasco. O sol
seguia seu caminho descendo sobre o safira do mar, e o céu a oeste começava a ficar entremeado com o vermelho brilhante do anoitecer. Parecia-lhe tão certo estar
ali que Elphame se perguntou como vivera por tanto tempo em outro lugar.
Músculos alongados e aquecidos, partiu num trote ligeiro, seguindo a margem do penhasco e descobrindo a sensação do terreno. Não era uma corrida fácil, como em sua
campina próxima ao Templo de Epona. Ali tinha que desviar de rochedos e saltar sobre rochas, mas o exercício extra era satisfatório. Com a floresta à direita e o
mar à esquerda, era como se corresse numa faixa de terra criada só para ela. Inclinou-se à frente e aumentou o passo. Danann havia sido sábio. Podia sentir a tensão
dos últimos dias escorrendo de seu corpo conforme as pernas se arrojavam e os cascos batiam no chão com seu ritmo familiar. A sensação foi boa quando a ardência
começou, então ela inclinou-se para acelerar, extraindo bastante de sua reserva de energia.
Adiante, enxergou um largo riacho que corria da floresta para cascatear num jorro brilhante de água cristalina sobre a margem do penhasco. Ela reduziu o passo, tomou
uma decisão e virou para a floresta, acompanhando a linha do riacho. Adorava o mar e o som da água, mas a floresta a chamava. Ao lado do riacho, o chão estava grosso
de agulhas de pinheiro e musgo precoce. Seus cascos trituravam com um som forte e satisfatório à medida que ela disparava floresta adentro. As árvores que se tornavam
gradualmente mais abundantes ao seu redor se alongavam até o céu. Os pinheiros eram tão antigos que seus galhos começavam depois de mais do que a altura de uma pessoa
acima de sua cabeça. As árvores enormes a deslumbravam - eram muito mais bonitas que os salgueiros e bordos controlados que cresciam ao redor do templo da mãe. Elphame
ergueu o olhar, sorvendo daquela imensidão. Aquele era seu lar, o lugar ao qual pertencia. Pela primeira vez na vida estava realmente se encaixando. Sentia-se livre,
feliz e até, talvez, um pouquinho frívola...
Não notou a ravina até ser tarde demais para parar. O chão se abriu debaixo dela e o corpo de Elphame se arremessou para a frente, depois para baixo. Seus braços
giraram freneticamente, tentando ajudá-la a recuperar qualquer impressão de equilíbrio enquanto caía, rolando e rolando. A dor cortou-lhe o flanco. Instintivamente,
Elphame se curvou para proteger o ferimento e algo lhe atingiu o ombro e depois a cabeça. A escuridão a engolfou rápida e completamente.
Lochlan soube quando ela caiu. Andara caçando - a fome era a única força que podia arrancá-lo da constante vigília sobre o castelo. Um jovem cervo passara próximo
ao seu esconderijo e ele o seguiu até a floresta, abateu-o com uma única flecha e começou o trabalho sangrento de cortar e limpar. Trabalhava com rapidez e eficiência,
certo de que terminaria a tempo de retornar e observar Elphame partir do castelo quando o sol deixasse o céu. Talvez ela fosse se banhar novamente. Suas asas estremeceram
diante da ideia, e Lochlan automaticamente reprimiu sua agitação, fazendo a cabeça doer com uma insistência enlouquecedora. A paixão do sonho da última noite o acompanhara
durante aquele longo dia.
Ela não é só isso, lembrou a si mesmo com fúria. Ela não é apenas um objeto para ser cobiçado e usado. Ao longo de anos de sonhos, aprendera que ela era gentil e
pensativa, frequentemente triste. Era mais do que um corpo feminino sensual e bonito. Era mais do que pele e sangue - Sangue... Espontaneamente, suas asas estremeceram
de novo.
Então sentiu uma fisgada de dor no flanco do corpo, seguida por uma batida nauseante no ombro e na têmpora direita. Lutando contra uma onda de tontura, Lochlan largou
a espada curta que estava usando para preparar o cervo e apertou o flanco do corpo. E então soube.
- Elphame! - gritou o nome dela, sem se importar com quem pudesse ouvi-lo. Algo terrível acontecera. Ela estava ferida. Precisava dele. Em frenesi, tentou aquietar
o pânico e recuperar o controle de seus pensamentos. Onde ela estava? Como poderia chegar até ela?
Seu coração lhe dirá. Fique calmo e o escute.
Uma voz, muito parecida com a de sua mãe, ecoou em sua mente junto com a dor fantasma da ferida de Elphame. Estava enfim ficando louco? Não importava, pensou com
ferocidade, desde que a loucura o levasse até ela. Com a unicidade de pensamento que o guiou até Partholon para encontrá-la nas ruínas do Castelo MacCallan, Lochlan
se focou na moça que observara crescer e amadurecer. A moça que ele acreditava ser seu destino.
Sentiu a resposta com a mesma certeza com que sentia a dor dela. Abrindo as asas para que pudessem levá-lo na corrida ligeira e planada que herdara do povo de seu
pai, disparou para o norte.
Elphame recobrou a consciência ao som de um trovão distante. Estava ficando enjoada - tremendamente enjoada. Tentou virar a cabeça para não se sujar, e a dor que
latejava por sua têmpora direita a fez sugar o ar com um soluço. Vomitou - espasmos secos que faziam o flanco do corpo parecer estar em fogo.
Abriu os olhos lentamente, encolhendo-se com a dor na cabeça. Seus pensamentos eram desconexos, confusos. O que acontecera? Um tremor se espalhava por seu corpo
e o fogo no flanco a dilacerava. Sua visão escureceu nas margens e ela se esforçou para manter-se consciente. Por que sentia tanto frio? Suas pernas estavam congeladas,
quase dormentes. Estaria paralisada? Olhou para baixo. As costas estavam escoradas de maneira estranha num barranco musgoso. A metade inferior do corpo estava submersa
num riacho - o riacho que ela estava margeando - e sua memória retornou. Estivera correndo e não prestara atenção. Caíra numa ravina.
Cuchulainn a mataria.
Fazendo careta com a dor aguda no ombro, lenta e cuidadosamente estendeu os braços para baixo para que pudesse tocar ambas as pernas. As mãos estavam tremendo terrivelmente,
mas ela não sentiu nenhum osso quebrado se projetando da pelagem molhada que cobria suas pernas. Elphame tremeu. Seu flanco ardeu novamente. Havia um rasgo em sua
camisa ensopada de sangue. Ela o abriu. E desviou o olhar - bem rápido. Um corte longo e feio, que sangrava livremente, corria desde a cintura até as costelas. Olhar
para aquilo fez com que se sentisse prestes a ficar enjoada novamente. Nunca foi particularmente melindrosa com sangue, mas também nunca vira tanto do próprio sangue.
Rangendo os dentes de dor, deslocou o peso e tentou juntar as pernas para poder ficar de pé e sair do riacho. O mundo ficou cinza e uma onda de náusea a engolfou.
Ofegando, ela desmoronou de encontro ao barranco. O lado direito da cabeça latejava horrivelmente. Ergueu a mão para tocar com delicadeza o local da dor e voltou
grudenta e vermelha. Ela lutou contra outra ânsia de vômito.
Foi quando estava limpando a boca com as costas da mão que ouviu: um rosnado estranho e gutural. A inclinação da ravina não era tão íngreme no lado oposto do riacho,
e as árvores cresciam quase até a beira do barranco, que era orlado por rochas, amarronzadas pelo tempo e cobertas de líquen cor de fungo. Sua visão estava lacrimosa,
então Elphame piscou rapidamente, tentando enxergar a floresta sombria. Só conseguia distinguir formas vagas que poderiam estar se movendo ou não.
Um trovão ribombou novamente, dessa vez mais alto. Ela apertou os olhos em direção ao céu. Estava ficando escuro, mas não sabia dizer se era porque já tinha se passado
tempo suficiente para o sol começar a se pôr ou se porque uma tempestade se aproximava.
O mato estalou como se um corpo grande se movesse depressa por ele. Estaria sumida por tempo suficiente para que Cuchulainn viesse procurá-la? Seria ele?
Sem acreditar muito, chamou hesitantemente:
- Cuchulainn? É você?
O ruído silenciou instantaneamente. Quando recomeçou, movia-se com intento na direção dela. Sob a luz fraca, um par de olhos vermelhos apareceu à orla da floresta
antes mesmo que a criatura saísse das sombras.
Elphame sentiu um lampejo de pânico. O javali era realmente aterrorizante. O corpo encrostado de lama facilmente atingia a largura de um homem, com várias vezes
seu volume. Presas amareladas projetavam-se em arcos mortais das mandíbulas poderosas. O javali cheirou o ar e repuxou os lábios num rosnado abominável que cuspiu
saliva branca espumosa em forma de arco ao redor dele. O fedor a alcançou numa fétida arremetida, e o estômago de Elphame se agitou perigosamente. Os olhinhos do
javali faiscaram num brilho feroz, então ele baixou a cabeça. As pernas pesadas de Elphame se arrastaram para sustentá-la e colocá-la de pé. Apoiando-se pesadamente
no barranco, tentou piscar para clarear a visão enquanto puxava a adaga do irmão da bainha em sua cintura, mas o braço direito não funcionava bem, por isso a adaga
caiu. O javali atacou.
Elphame trincou os dentes e tentou se afastar do barranco. Sabia que morreria. Epona, me ajude a ser corajosa!, rezou fervorosamente.
- Não! - Rosnando a palavra como se fosse uma praga, uma forma alada se lançou do barranco às costas de Elphame e colidiu com o animal atacante. O javali foi arremessado
no chão, mas se endireitou com terrível rapidez. Agora não estava mais concentrado em Elphame. Em vez disso, encarava um novo adversário, um atacante que se agachou
diante dele, asas abertas e uma espada curta ensanguentada desembainhada e de prontidão.
Elphame desabou novamente de encontro à lateral do barranco. Parecia que a realidade tinha se fragmentado. Devia ter caído pela malha do mundo que conhecia e entrado
em outro, pois o ser alado diante dela desafiava a razão.
O javali atacou, e o ser alado pulou para o lado, baixando a espada pelo flanco do couro grosso do monstro. O javali berrou de dor e fúria, girando para atacar outra
vez. Mas novamente o ser alado foi rápido demais e arrancou sangue pela segunda vez. Espumando, o javali atacou com selvageria, tentando encurralar o inimigo na
lateral do barranco. Elphame viu o ser alado a olhar de relance e notou, também, que ele tinha percebido que o javali queria guiá-lo para perto de onde ela caíra.
Com um terrível som sibilante, a criatura alada saltou uma última vez, direto no lombo do javali. Com incrível velocidade, a mão disparou em frente e a espada cortou
certeira a garganta da fera. O javali guinchou e tombou com peso no riacho, sangue vertendo da cachoeira em sua garganta.
A criatura alada ergueu-se das costas do javali morto. Deu dois passos hesitantes na direção de Elphame.
- Fique longe! - gritou ela.
Como se tivesse se deparado com um muro de vidro, a criatura alada parou.
Elphame fitava-lhe as mãos. Estavam cobertas de sangue, assim como a espada que segurava. Ele lhe acompanhou o olhar e imediatamente largou a espada, abrindo as
mãos.
- Não a machucarei - arfou ele, tentando normalizar a respiração para que a voz não a assustasse. Os olhos dela estavam arregalados e vidrados, e ele via que Elphame
estava tremendo violentamente.
- Tanto sangue - sussurrou ela com lábios dormentes.
Ela não precisava ter dito nada; Lochlan já estava intensamente ciente de que o sangue do javali o cobria e também preenchia seus sentidos exaltados. Podia sentir
o espírito do animal, ainda forte e zangado, na vermelhidão brilhante que lhe tingia as mãos. Chamava Lochlan com uma voz bárbara que incendiava seu sangue. O demônio
dentro dele se agitou; vitorioso, queria afundar os dentes no pescoço do javali e beber profundamente, absorvendo a essência bestial. Lochlan lutou contra as sensações.
Precisava se livrar do sangue antes que se perdesse. Lutando contra a dor que ferroava sua mente enquanto represava o desejo vicioso dentro de si, Lochlan se abaixou
rápido e afundou as mãos e os braços no riacho, esfregando-os com frenesi para se livrar do sangue do animal. Depois, braços pingando, mas não mais vermelhos, novamente
os estendeu abertos diante dela.
- Já se foi agora. - Limpo, o escudo de controle estava firmemente intacto e Lochlan era capaz de falar com Elphame numa voz tranquilizadora, como se fosse uma criança
muito pequena.
Elphame olhou das mãos para o corpo dele, estudando-o com uma estranha e desalentada curiosidade que era resultado do choque, da perda de sangue e da completa descrença.
Ele era um homem. Um homem alado. Era alto, vários centímetros mais alto do que ela, e o cabelo era de uma estranha cor amarela, como se alguém tivesse domado os
raios do sol da manhã, pensou. Devia ser longo, pois mesmo que estivesse preso numa linha, ela viu que durante a batalha com o javali vários dos fios se soltaram
e penderam além dos ombros. O rosto fora primorosamente esculpido, com sulcos poderosos e maçãs altas e bonitas. Os olhos, que a fitavam com intensidade, eram ligeiramente
oblíquos. A cor era um distinto azul-acinzentado. Com uma crescente sensação de assombro, concluiu que ele era belo. O corpo era longo e magro; a pele era muito
pálida, mas ele não parecia doente ou amarelado. Em vez disso, parecia etéreo, como se não pertencesse ao mundo mortal. Estava vestindo uma camisa de cor creme feita
de um tecido grosseiramente costurado. Elphame achou que a camisa precisava ser lavada. O calção era de couro marrom que fora rudemente curtido. Não usava sapatos.
Havia algo de estranho quanto aos pés, mas ele estava parado no riacho, por isso Elphame não conseguia obter uma clara visão deles.
Então seus olhos buscaram as asas. Mesmo agora, bem dobradas às costas, o tamanho delas era impressionante. Lembrou-se de como pareciam quando ele lutou com o javali.
Tinham se estendido como se ele fosse uma ave de rapina com asas de mais de três metros de envergadura. Não possuíam penas, mas eram feitas de uma membrana que parecia
ser macia ao toque. A parte interna das asas era uma penugem clara, como a pele e o cabelo, mas a parte de fora era mais escura, mais como o acinzentado dos olhos.
- O que é você? - Pensou ter feito a pergunta numa voz normal, mas ficou desalentada ao ouvir que as palavras eram apenas um fraco sussurro.
- Me chamo Lochlan. E não desejo machucá-la. Jamais - disse ele, deixando um pouco da urgência que sentia infiltrar-se na voz. Ela estava ferida. Desviou o olhar
da terrível quantidade de sangue na cabeça e no flanco dela. Os lábios estavam azuis e o rosto mortalmente pálido. - Vai me deixar ajudá-la, Elphame.
Os olhos dela se arregalaram, e Lochlan pensou que ela parecia uma assustada criatura da floresta.
- Como sabe meu nome?
- Sempre soube seu nome - respondeu ele, dando um lento passo adiante.
- Isso está mesmo acontecendo? Estou morta?
Ele deu mais dois passos e encurtou a distância entre eles.
- Garanto que isso está acontecendo, e que você não está morta.
Ele então sorriu, e Elphame ficou deslumbrada com o calor que irradiava dele.
- Mas compreendo o que sente. É quase como se eu estivesse sonhando também. - Uma mão se estendeu com impaciência, como se quisesse tocá-la, mas quando Elphame se
encolheu, ele deteve o movimento e o esplendor de seu sorriso desvaneceu. Lochlan só hesitou por um instante antes de dizer: - Está muito úmido e frio. Não quero
movê-la, mas você está em choque e não é seguro que fique aqui.
A preocupação na voz dele era real e penetrou a neblina de dor que ameaçava subjugá-la.
- Acho que não consigo andar - disse ela, sentindo-se estranhamente destacada do som da própria voz.
Ele sorriu novamente, e dessa vez Elphame foi surpreendida por um vislumbre de dentes muito brancos, muito afiados.
- Posso carregá-la - disse ele.
Ela devia estar vivendo um sonho. O que estava acontecendo era simplesmente outro sonho incrivelmente realista como o que tivera na noite anterior. Logo ela acordaria
e encontraria Cuchulainn alimentando o fogo com mais lenha. Ele a repreenderia por não dormir o bastante e depois fingiria que não tinha ficado acordado por grande
parte da noite para vigiá-la.
Então, por que não? Era seu sonho, e ela achava que poderia gostar se um belo homem alado a carregasse.
- Pode me carregar. - Queria sorrir para ele, mas seus lábios não a obedeciam.
Tentando ao máximo ser gentil, Lochlan se ajoelhou ao lado dela. Assim tão perto, não podia ignorar o sangue que lhe cobria a cabeça e lhe ensopava o flanco do corpo.
O cheiro vigoroso o assaltou - rico e forte, o sangue corria espesso de poder feminino. Sem aviso, ouviu a voz da mãe repetir as palavras da Profecia: Você salvará
seu povo da loucura através do sangue de uma deusa agonizante.
Não! Elphame não podia morrer. Não aqui - não agora.
Ele rangeu os dentes, rejeitando o chamado do sangue dela, e abraçou a dor que lhe aguilhoava por ignorar seus desejos básicos. Deslizou um braço por trás das costas
dela e o outro por baixo dos joelhos. Hesitou. Era inumanamente forte e não teria problema em carregá-la, mas temia a dor que sabia que causaria a ela.
- Perdoe-me - disse ele.
Num suave movimento, ergueu-a nos braços. Elphame gemeu e o som rasgou-lhe o coração. Lochlan estendeu as asas para ter equilíbrio e, o mais rápido possível, carregou-a
barranco acima pela íngreme ravina.
Um trovão soou, acompanhado pelo brilho de um relâmpago. Ele estudou o céu; uma tempestade estava vindo do mar. Elphame precisaria de abrigo e também de tratamento
para os ferimentos. Lochlan cerrou a mandíbula em frustração. Deveria carregá-la para seu próprio abrigo, mas sabia que antes precisava verificar os ferimentos dela.
Vasculhou a área. A copa dos altos pinheiros forneceria certa proteção da tempestade, desde que a chuva não se tornasse pesada demais. Caminhou vários metros entre
as árvores até encontrar um ponto debaixo de um antigo pinheiro que estava com um grosso amontoado de agulhas secas. Chutou mais agulhas num ninho improvisado, depois
se agachou e a deitou com cuidado.
Elphame estava com os olhos fechados e tremia. Estava vestindo apenas um corpete sem mangas e um pequeno triângulo de tecido. O lustroso pelo equino que lhe cobria
as pernas estava molhado, mas as pernas em si não pareciam estar feridas; ele não via sangue ou inchaço marcando a superfície macia. Seus olhos viajaram pelo corpete.
O tecido estava rasgado de um lado e saturado de escarlate com sangue fresco. O estômago dele fez um nó e a dor rasgou sua cabeça com o esforço que foi impedir-se
de agir num impulso sombrio que estava bem perto de afogá-lo.
Ele não a provaria; seus demônios não venceriam. Desviou o olhar e estabilizou-se. Quando voltou-se para ela, a voz estava contida e controlada: - Elphame, preciso
examinar seu ferimento.
Os olhos dela se abriram em fendas estreitas.
- Isso não é um sonho.
- Não. Isso não é um sonho. Não quero lhe causar mais dor, mas preciso ver se a ferida está muito feia.
- Vá em frente - disse ela, apertando bem os olhos.
Precisava ficar calmo. Agora não era hora para mãos trêmulas e pensamentos apavorados. Era mais humano que demônio. Conseguiria fazer isso.
Lochlan respirou fundo e puxou a beirada rasgada do corpete. O talho era longo e feio. Podia ver que tinha aberto a pele e cortado o músculo, mas ao examinar ficou
aliviado ao ver que não era tão profundo quanto esperava. Sondou a área, tornando seu toque o mais gentil possível, e não sentiu nenhuma costela fraturada. O ferimento
estava sangrando livremente. Lochlan trincou os dentes com o esforço necessário para manter o demônio em seu sangue acuado. Para variar, saudou a dor que preenchia
suas têmporas enquanto se obrigava a observar o ferimento com distanciamento clínico. Precisaria comprimir o talho e parar o sangramento. Olhou para a cabeça de
Elphame, cuja lateral estava coberta de sangue seco. O ferimento da cabeça o preocupava bem mais do que o talho no flanco, mas havia pouco que ele pudesse fazer
a respeito.
Lochlan pensou no que precisava. Mais de um século de vida lhe ensinara bem algumas lições - sua espécie provara ser de vida longa, mas não eram imortais e certamente
não eram indiferentes a danos. Ele estancara muitas feridas e tratara de incontáveis ferimentos. Abruptamente, começou a voltar para a ravina.
- Não me deixe!
As palavras dela o levaram rapidamente para seu lado. Ele acariciou-lhe a face com os dedos.
- Nunca, meu coração. - A preocupação com a sensação pegajosa da pele dela fez o termo carinhoso escapar de seus pensamentos em palavras. - Mas preciso comprimir
sua ferida e parar o sangramento. É só isso. Não vou longe. - Ele apontou para a ravina. - Há musgo perto do riacho.
Em silêncio, Elphame assentiu e depois se encolheu com a dor que o movimento causou.
Lochlan podia sentir os olhos dela acompanhando-o quando correu até a beira da ravina e pulou, planando rapidamente até o riacho, onde recuperou a espada e depois
cortou um pedaço de musgo verde do barranco. Com a visão aprimorada que herdara do pai fomoriano pôde ver claramente que ela o esperava, de olhos arregalados, e
também seu ar de alívio quando ele subiu novamente a beira da ravina. Lochlan ajoelhou-se ao lado dela outra vez.
- Eu faria qualquer coisa para não machucá-la, mas não posso deixar que continue sangrando. Preciso comprimir o ferimento no seu flanco. Compreende? - Ele olhou
com atenção nos olhos dela. Será que os pensamentos dela estavam claros? Será que a ferida na cabeça era grave?
- Compreendo que vai doer o bastante para que você já lamente - disse ela com um fraco sorriso.
O sorriso e as palavras inteligentes o aliviaram além da conta. Ela soava como a Elphame que ele conhecia tão bem dos sonhos.
- Então não há nada de errado com seu entendimento.
- Estou pronta - disse ela, fechando bem os olhos outra vez. - Hoje descobri que não gosto da visão do meu próprio sangue.
A visão do sangue dela... O cheiro... A sensação... Ele também não gostava de como o sangue dela o provocava. Trabalhando rápido, Lochlan mediu e cortou uma tira
de musgo do comprimento da ferida. Melhor acabar com isso, disse a si mesmo. Com cuidado, comprimiu o musgo no talho aberto, tentando ignorar o som da dor que infligia
a ela.
- Acabou - disse ele numa voz que tremeu só um pouquinho.
Lágrimas tinham escorrido dos olhos fechados de Elphame, que ao abri-los precisou piscar várias vezes antes de conseguir focalizá-lo.
- Está tão frio - disse ela.
Lochlan se amaldiçoou em silêncio por ser tão tolo. Quando sentiu a dor dela, todos os outros pensamentos fugiram-lhe da mente. Deixara seu fardo contendo água,
facas e a preciosa pederneira para produzir fogo ao lado do corpo do cervo. Os trovões continuavam a roncar ameaçadoramente, e Lochlan olhava inquieto para o céu
que parecia coberto de contusões. Ela não podia caminhar até seu abrigo, e não gostava da ideia de carregá-la, com frio e quase desmaiada, por uma tempestade. Elphame
precisava se aquecer antes que o choque se assentasse e ameaçasse sua recuperação. Precisaria abrigá-la ali, da única maneira que conhecia.
- Posso aquecê-la, Elphame, mas precisa confiar em mim.
Ela o fitou. A cabeça doía com um latejar nauseante que fragmentava seus pensamentos e corroía sua capacidade de raciocínio. Quem era ele? Lochlan - o nome lhe veio
à mente. As asas lhe atraíram o olhar outra vez. Mas o que era ele? Será que já tinha lhe contado? Teria esquecido?
- Elphame, dou minha palavra de que não quero que nenhum mal lhe aconteça.
A voz chamou os olhos dela aos dele. Havia algo naquela voz, algo familiar. Ela tentou se concentrar, mas a martelada na cabeça não permitia. Tudo do que tinha certeza
naquele momento era que Lochlan, fosse quem fosse, acabara de lhe salvar a vida.
- Confiarei em você - disse ela.
Seu sorriso com presas era desconcertante, mas Elphame tinha pouco tempo para sentir qualquer coisa senão surpresa porque Lochlan de repente estava se deitando ao
seu lado. Ele apoiou-se num cotovelo e a fitou nos olhos.
- Não fique assustada.
Então uma asa colossal se abriu de onde estava dobrada às costas do corpo dele. Como um cobertor vivo, a asa se moveu por cima dela e depois desceu, até sua beirada
recortada encontrar o chão da floresta. Ela estava completamente confinada por ele.
O calor dele a envolveu. Elphame ficou bem parada - até seu tremor cessou. A asa estava a menos de uma das mãos de distância acima dela. De tão perto ela podia ver
que o lado interno estava coberto com pelos pequenos e finos que pareciam tão macios quanto penugem. O perfume dele então chegou a ela. Ele cheirava a pinho, suor
e algo bolorento e selvagem que Elphame não conseguia definir, mas que era surpreendentemente agradável aos seus sentidos. Ela virou a cabeça, mexendo-se lenta e
cuidadosamente. O rosto dele estava bem próximo ao seu. Ele a observava com silenciosa intensidade.
- O que é você? - sussurrou ela.
Os olhos dele nunca abandonavam os dela e, sem pensar, Lochlan respondeu com o coração: - Sou o homem que a conheceu por toda a vida.
O que ele estava dizendo não fazia sentido para seus pensamentos confusos.
- Mas você não é um homem e não me conhece.
- Eu a conheço desde seu nascimento, Elphame. Eu a observei através de meus sonhos.
Sonhos... Os olhos dela se arregalaram. Tinha sonhado com asas a envolvê-la e acariciá-la. A voz dele! Era a voz dele que tinha ouvido na noite anterior chamando
por ela dentro da neblina.
- E uma parte minha é bastante humana - disse Lochlan.
- E a outra parte? - perguntou Elphame sem fôlego.
Lochlan continuou a fitar-lhe os olhos, mas, ao falar, sua voz estava repleta de grande tristeza: - Minha mãe era humana. Meu pai era fomoriano. Eu carrego o sangue
de ambas as raças em minhas veias.
Os pensamentos de Elphame estavam espiralando erraticamente, e ela de repente sentiu frio novamente.
- Mas isso não é possível. - Mesmo enquanto falava, Elphame buscou com o olhar a asa que lhe cobria o corpo, e estremeceu. Uma imagem do nobre MacCallan rodeado
por um círculo de demônios alados sanguinários lampejou em sua mente. Como Lochlan poderia ser um fomoriano? Mesmo que não tivesse testemunhado o assassinato d'O
MacCallan, tinha lido bastante sobre os fomorianos na biblioteca de sua mãe para saber que aquela raça fora venenosa para Partholon. Eles chegaram perigosamente
perto de escravizar o mundo inteiro. Os olhos dela buscaram os dele. - Os fomorianos foram exilados de Partholon há mais de um século.
Lochlan queria explicar a ela, tentar acalmar o temor e a confusão que lia em seus olhos, mas sua audição ultrassensível capturara um som súbito. Ele ergueu a cabeça
e virou uma orelha para o vento. Em meio ao ruído da tempestade iminente, podia ouvir cascos ecoando. Devia ser Cuchulainn.
- Elphame, me escute - disse ele com urgência. - Sua gente está vindo. Não posso ficar. Eles só me veriam como fomoriano, não como homem.
Elphame piscou. Em meio à dor que martelava seu corpo contundido, ela se forçou a se concentrar no rosto dele. Enxergava mesmo um homem - um homem belo e heróico.
- Escute e lembre-se. Não estou realmente deixando você. Sempre estarei por perto, esperando seu chamado. Compreende?
- Eu... - Elphame começou a dizer, mas o som da voz do irmão gritando-lhe o nome cortou com clareza a noite. - Vá! - pediu a Lochlan.
A asa se afastou dela. O frio do ar noturno a atingiu, fazendo com que se sentisse exposta e vulnerável. Antes de se levantar, Lochlan lhe acariciou a face com a
ponta dos dedos.
- Me chame, meu coração. Eu atenderei.
Então ele planou silenciosamente floresta adentro, desaparecendo rapidamente de vista.
Catorze
- CUCHULAINN! AQUI! - A voz de Brighid ecoou acima do lamento do vento. A caçadora galopou até o ponto onde Elphame estava deitada e parou, deslizando, Cuchulainn
bem atrás dela. Ele pulou do cavalo antes que o animal parasse e caiu de joelhos ao lado da irmã. Então Elphame foi circundada em luz de tochas flamejantes enquanto
a noite explodia com cavalos, cavaleiros e centauros.
- El! Ah, não! Por favor, não! - Cuchulainn tomou a mão dela nas suas. Estava fria, como mármore esculpido. Sangue - ela parecia estar coberta de sangue. O rosto
dela estava fantasmagoricamente branco, e, se não tivesse piscado e sussurrado seu nome, teria acreditado que ela estava morta.
Elphame achou que ele soava muito jovem e quis tranquilizá-lo, mas estava com muito frio novamente. Parecia que, junto com Lochlan, toda sua força fugira também.
Falar exigia um esforço muito grande.
- Cuchulainn, afaste-se. - A voz de Brenna era calma, firme e não guardava nada da tímida hesitação com que ela geralmente falava com ele.
Ele ergueu os olhos inexpressivamente.
- Cuchulainn, agora! Preciso ver sua irmã. - O tom de comando de Brenna foi tão impetuoso que o guerreiro em Cuchulainn obedeceu sem pensar.
Brenna se ajoelhou ao lado de Elphame.
- Traga aquela tocha para cá - ordenou ela. - E traga alguma coisa para cobri-la.
A luz fez Elphame piscar dolorosamente, mas foi um alívio sentir o peso camuflador de várias capas que foram apressadamente jogadas sobre sua quase nudez. Estranho
que não tivesse pensado no quão pouco estava vestindo quando Lochlan estivera ali.
- Elphame, quem sou eu? - perguntou a curandeira, curvando-se bem perto e usando a luz de uma tocha para observar-lhe os olhos com cuidado.
- Brenna - murmurou ela.
- E onde você está?
- Floresta... - conseguiu dizer. - A ravina, eu caí. - Ela tentou apontar, mas a dor no ombro a fez conter um gemido.
Brighid acompanhou o meio-gesto de Elphame. Segurando alto a própria tocha, a caçadora desapareceu nas bandas da ravina.
As mãos seguras e gentis de Brenna viajaram rapidamente pelo ombro machucado de Elphame, subindo a cabeça e finalmente descendo para a ferida coberta de musgo no
flanco do corpo.
- Fez bem em comprimir isso. Você perdeu sangue demais pelo visto.
- Eu não... - Elphame começou a falar, mas a curandeira a impediu: - Não fale. Você precisa guardar sua força para a viagem de volta. Beba isto. - Gentilmente, a
curandeira ajudou Elphame a erguer a cabeça enquanto pressionava um odre nos lábios dela.
Elphame cuspiu, depois bebeu sofregamente. O vinho temperado era doce e frio, e quando sua energia a preencheu, ela se sentiu reanimada o bastante para sorrir de
leve para o irmão.
- Estou bem, Cuchulainn - disse ela, desejando que a voz não soasse tão fraca.
- Não - disse Brenna com severidade. - Não está bem, não ainda. Cuchulainn, preciso de uma tira de pano para amarrar o ombro e outra para enfaixar a ferida do flanco.
Aliviado por receber algo construtivo a fazer, Cuchulainn puxou a camisa e começou a rasgar o linho fino em tiras longas.
- Ele só quer exibir o peito. - A voz de Elphame tremeu, mas ela conseguiu se fazer ouvir. Os homens e centauros que a cercavam gargalharam, assim como Brenna. Cuchulainn
tentou fazer cara feia, mas só conseguiu parecer ridiculamente feliz, e El por um momento temeu que ele pudesse chorar de verdade.
- Você acaba de aliviar muito a minha mente quanto à severidade da ferida na cabeça - disse a curandeira.
O sorriso do irmão se alargou.
- Há um javali morto no fundo da ravina. - Brighid tinha se reunido ao círculo ao redor de Elphame. - Acredito que seja sua. - Ela entregou a adaga de arremesso
a Cuchulainn, mas seus olhos estavam estudando Elphame com uma expressão curiosamente cautelosa.
- Pela Deusa, El! Um javali? - O rosto de Cuchulainn, que recuperara um pouco da cor, empalideceu outra vez.
Brenna começou a prender com cuidado as tiras de linho ao redor da cintura dela, salvando Elphame de responder ao irmão. Ela fechou os olhos e trincou os dentes
de dor - e tentou se concentrar. Lochlan. Ele não fora uma aparição; ela o tinha visto matar o javali, o mesmo javali que Brighid encontrara. Ele a carregara ravina
acima, cuidara de sua ferida e a cobrira com seu calor. Não deveria contar a eles que ele a salvara?
Ele disse que o pai era um fomoriano.
Eles só me veriam como fomoriano, não como homem.
As palavras de Lochlan ecoaram por sua mente confusa. Não poderia ser possível. Os fomorianos foram derrotados e expulsos de Partholon há mais de um século. As diferentes
raças de Partholon tinha se unido para garantir que a horda demoníaca fosse extinta - para que nunca ameaçasse as pessoas de Partholon, em particular as mulheres
partholonianas, novamente. Sua mente turvada pela dor esquivou-se das lembranças do registro histórico de estupro e destruição. O ser que acabara de salvar sua vida
não podia ser um fomoriano. Não fazia sentido.
Porém, ela vira suas asas. Elas a envolveram com seu calor. Claramente, o impossível acontecera.
Encontrará seu destino no Castelo MacCallan... Esse destino está ligado ao seu consorte... As palavras farfalharam pela cabeça latejante de Elphame. Ela tentou envolver
a mente naquele pensamento, mas era simplesmente bizarro demais. Sua concentração se fragmentou. Não conseguia pensar nisso com clareza agora, e não falaria sobre
isso até ter tempo para ordenar a mente.
- Pronto - disse Brenna, dando um nó na tipoia improvisada que prendia o braço de Elphame com firmeza ao peito. Quando terminou, os primeiros pingos de chuva salpicaram
através da copa dos pinheiros. - Isto é tudo que posso fazer aqui. Devemos voltar para o castelo.
- El.
Ela abriu os olhos para ver o irmão agachado ao seu lado. O cabelo já estava molhado. Ele enrolara uma dobra do kilt sobre o peito nu. Elphame pensou que ele parecia
muito vistoso, como o antigo guerreiro de quem recebera o nome. Ela lhe sorriu, querendo amainar a preocupação nos olhos dele.
- El - repetiu ele, abrindo as mãos sobre a cabeça dela numa tentativa de abrigá-la um pouco da chuva. - Sei que será difícil para você, mas vamos cavalgar de volta
ao castelo.
Brighid veio para o lado de Cuchulainn.
- Eu a carrego.
- Ela não pode cavalgar sozinha - disse Cuchulainn. - Ela terá que cavalgar comigo.
- Então carrego você também. De qualquer forma, estará muito ocupado segurando-a para que guie esse seu capão desmiolado - disse Brighid. - E pode ter certeza de
que não pisarei em falso ou causarei a ela qualquer dor desnecessária.
Cuchulainn ergueu o olhar para a caçadora.
- Carregaria nós dois?
- Facilmente.
O céu ribombou e o tamborilar da chuva caiu com mais insistência através das árvores.
- Eu a quero fora daqui. Agora - Brenna avisou a Cuchulainn. - E ela não deve dormir. Converse com ela, Cuchulainn.
Ele assentiu sucintamente em resposta à curandeira, depois começou a gritar ordens: - Angus, Brendan, ergam-na para mim. - Ele se levantou e saltou sobre o lombo
da caçadora. - Com cuidado! - berrou quando a irmã gemeu de dor conforme os dois homens começaram a erguê-la.
Elphame tentou ajudar os homens, mas sua visão escureceu novamente e, cada vez que se mexia, sua ferida no flanco ardia de maneira quase insuportável. Sentiu os
braços fortes de Cuchulainn ao seu redor quando escarranchou o lombo macio da caçadora.
- Pronto? - Brighid olhou por cima do ombro para Cuchulainn.
- Sim. - Cuchulainn apertou a irmã e a caçadora se moveu com facilidade num meio-galope suave e acelerado.
Em algum canto da mente, Elphame reconheceu que teria gostado de aproveitar a novidade de pegar carona num centauro. Em vez disso, estava mergulhada num pesadelo
implacável. Cada passo que a centaura dava sacudia seu corpo. A cabeça pulsava e o estômago se revirava. Podia sentir uma umidade morna escorrendo pelo flanco e
soube que a ferida estava sangrando pelo musgo. Logo não conseguiria se manter ereta, e quando saíram da floresta para refazer seu caminho ao longo da margem rochosa
do penhasco, ela desabou sobre o irmão, dependendo completamente dele para não cair.
- Não vai demorar muito... Estou segurando você... - Cuchulainn mantinha uma litania de encorajamento ao ouvido da irmã: - Converse comigo, El. Fale sobre como o
Castelo MacCallan ficará bonito quando finalmente estiver restaurado.
As respostas da irmã ao seu questionamento constante eram confusas - às vezes ela descrevia cômodos que ele reconhecia muito bem como ambientes nos quais eles tinham
crescido, e às vezes o que ela dizia não fazia sentido nenhum, como quando descreveu uma cama de agulhas de pinheiro coberta por asas -, mas ele a manteve falando,
mesmo percebendo que ela ficava mais fraca e se apoiava com mais peso sobre ele. Então o céu se abriu e a chuva caiu sobre eles em gotas pesadas. As tochas que os
cavaleiros seguravam chiaram e apagaram. Cuchulainn estava quase grato pelos lampejos brilhantes dos relâmpagos que ajudavam a iluminar o caminho. A decisão de Brighid
em carregá-los fora prudente. Se ele estivesse cavalgando seu capão, não seria capaz de conduzir o cavalo pela escuridão da tempestade e sustentar a irmã, também.
A caçadora logo se distanciou do resto do grupo - até dos centauros que se voluntariaram na busca. A determinação e o vigor dela eram impressionantes. Tinha julgado
Brighid mal, Cuchulainn admitiu a si mesmo. Quando anunciou que sairia em busca da irmã, ela e a pequena curandeira foram as primeiras a se juntarem a ele. Sem a
ajuda dela, nunca teria rastreado e encontrado Elphame tão rápido.
Se ao menos tivesse reagido tão rápido quando teve a primeira premonição de que algo estava errado com El! Em vez disso, ignorara o crescente pressentimento só porque
vinha do reino espiritual - aquela área de sua vida que tentava ao máximo reprimir e ignorar. Saber disso deixava um gosto ácido em sua boca que ele reconhecia como
sendo parte autodepreciação, parte medo.
Cuchulainn apertou a irmã com mais força em seus braços. Agora sabia o que o incomodava desde que começaram a jornada ao Castelo MacCallan. A ameaça desconhecida
que sentia pairando sobre a irmã não era um amante nocivo ou uma maldição ancestral. Era algo totalmente mundano: um acidente. E ele estivera muito ocupado imaginando
fantasmas anônimos para prever tanto.
Fantasmas anônimos? Se não estivesse tão molhado e miserável, teria rido alto em autozombaria. Aparentemente, alguns deles tinham nome, além de voz e atitudes.
Brighid diminuiu o passo, e Cuchulainn ficou aliviado por ver os muros escuros do castelo se materializarem diante deles.
- Leve-a para a cozinha. É onde fizeram a maior parte do trabalho - gritou Cuchulainn acima da tempestade.
Brighid assentiu e trotou pelo buraco nos muros externos, depois entrou no pátio interno. A chuva entornava pelo telhado vazio e, quando passaram pela fonte, relâmpagos
rasgaram o céu, subitamente delineando a garota de pedra como um fantasma na noite. Cuchulainn encarou a estátua com inquietação - olhando com suspeita para a área
ao redor dela.
Os cascos de Brighid patearam adentro do Grande Salão, onde ela enfim parou. A caçadora girou a cintura e disse rapidamente: - A cozinha deve estar escura como uma
tumba. Você e Elphame esperam aqui onde há um pouco de luz. Vou arranjar uma pederneira e tochas nas carroças.
Brighid o ajudou a içar o corpo inerte de Elphame do lombo ao chão, onde Cuchulainn sentou-se recostado à parede aninhando com cuidado a cabeça da irmã no colo.
- Não demoro - disse Brighid, dando uma última olhada preocupada em Elphame antes de sair apressada do cômodo.
- É bom ficar parada - disse Elphame com fraqueza para a escuridão.
- Brenna logo estará aqui - garantiu-lhe Cuchulainn.
Queria cuidar da irmã, fazer algo que a fizesse se sentir melhor. Sentia-se impotente e inútil. Desenrolou a dobra do kilt que jogara sobre o ombro e usou a ponta
para secar com delicadeza um pouco da chuva no rosto e nos braços dela. Conversar... Tinha que mantê-la conversando, mas antes que pudesse fazer outra pergunta boba
sobre a decoração do castelo, ela o surpreendeu com uma pergunta própria: - Como soube que devia me procurar, Cuchulainn?
Ele baixou os olhos para a irmã. Na escuridão, só o esboço do rosto dela era visível. Lampejos ocasionais de luz adentravam o Grande Salão vindos do pátio aberto,
e Cuchulainn podia ver o reflexo brilhante dos olhos dela ao encararem-no.
- Estava preocupado com você.
Elphame sorriu com fraqueza.
- Anda preocupado comigo desde que chegamos aqui. O que o fez me procurar?
- Não pretendia; disse a mim mesmo que estava imaginando coisas. Depois a tempestade começou a chegar. Eu estava agitado, então pensei em vir aqui e ficar de olho
em você. - Ele fez uma pausa e afastou uma mecha molhada do rosto dela. - Pensei em desafiá-la numa corrida com meu capão até Loth Tor, e como você já tinha saído
para uma longa corrida, talvez ele tivesse uma chance de vencê-la.
Ele viu os dentes dela brilhando, então sorriu de volta.
- Assim, eu estava esperando na entrada principal quando ouvi um ruído vindo de dentro do castelo. Diferentemente de minha agitada inquietação quanto a você, o ruído
era impossível de ignorar.
- Por quê? - perguntou Elphame.
- Porque era o som de alguém chamando meu nome. - Cuchulainn meneou a cabeça, lembrando da voz grandiosa entoando seu nome de dentro do castelo vazio e da sensação
terrível causada por ouvir um espírito bem real exigindo sua atenção. A voz de Cuchulainn estava apertada de ansiedade: - El, preciso contar que os rumores sobre
o castelo eram em parte verdadeiros. Pode não ser amaldiçoado, mas posso garantir que é assombrado.
O lampejo seguinte de relâmpago iluminou os olhos arregalados da irmã.
- O MacCallan conversou com você também? - perguntou ela num rompante, com muito mais animação do que demonstrava desde que fora encontrada na ravina.
Cuchulainn franziu o cenho.
- Está dizendo que ele apareceu para você e não me contou nada? - perguntou com incredulidade.
- Bem, Cuchulainn... - Ela hesitou, de repente quase contente por estar machucada. Ao menos ele não poderia ficar muito zangado com ela. - Sei o quanto você não
gosta do reino espiritual.
- Não gostar! - gritou ele. Quando a irmã se encolheu em reação, ele fechou os olhos e respirou fundo. - El - disse lentamente -, não é uma simples questão de não
gostar do reino espiritual. Pense no que aconteceu desde que chegamos aqui. Você nunca sentiu o menor toque de magia da Deusa, e de repente é como se você se tornasse
um canal vivo com Epona. Há forças que não compreendemos agindo aqui, El.
Elphame fez um gesto fraco com a mão e tentou sacudir a cabeça, mas o movimento terminou em careta.
- Shhh. - O irmão imediatamente ficou na defensiva. - Não pretendia angustiá-la. Não estou zangado com você.
- Eu sei, Cuchulainn - disse ela, piscando com força para clarear a visão e ordenar os pensamentos. - Mas deve se lembrar de que é diferente comigo. Não tenho medo
do reino espiritual. E não pode crer que O MacCallan ou Epona me desejariam qualquer mal.
- Claro que não - disse Cuchulainn, limpando mais água sangrenta do rosto dela. - Mas quero que se lembre de que assim como existe o bem, também existe o mal. E
o mal no reino espiritual não pode ser derrotado com a força de armas.
- Não - murmurou ela. - Deve ser derrotado com honra, verdade e força de vontade.
Cuchulainn estudou a irmã na parca luz. Percebeu que ela estava mudando. Não queria admitir, mas aquela constatação o deixou inquieto. Um relâmpago lampejou novamente
e ele pôde ver que Elphame lhe sorria. O coração dele se apertou. Ela era sua melhor amiga desde quando conseguia se lembrar. Não a amava o bastante para permitir
que se tornasse a senhora do próprio destino, mesmo que parte desse destino lhe parecesse estranho e incompreensível?
- Só me prometa que me contará sobre qualquer outra visita espiritual. Especialmente se for com um de nossos ancestrais.
- Eu prometo - disse ela, parecendo aliviada. - A propósito, notou a semelhança entre você e O MacCallan?
Cuchulainn bufou:
- Por favor! Não sou nada parecido com aquele cáustico fantasma velho.
- O que ele lhe disse?
- Deixe-me ver se lembro direito... Sim, foi algo como: Cuchulainn, você não passa de um brutamontes cabeça-oca? Vá atrás de sua irmã, a menina precisa de você!
- Ele resmungou numa excelente imitação do velho espírito rude.
Elphame ainda estava se alternando entre risadinhas e caretas da dor quando Brighid e o resto do grupo adentraram ruidosamente o Grande Salão. Brenna saltou de maneira
desajeitada do cavalo e foi para junto de Elphame, franzindo a testa com severidade para Cuchulainn.
- Mandei mantê-la conversando, não que a deixasse histérica.
Lochlan seguiu os três, observando através da chuva incessante para ter certeza de que Elphame chegara em segurança ao castelo. Eles desapareceram lá dentro e logo
foram acompanhados pelo resto do grupo que a centaura deixou para trás com tanta facilidade. Continuou observando tudo ao longo da noite macabra, e só se permitiu
retornar ao abrigo para dormir quando Elphame surgiu do castelo na manhã seguinte apoiando-se no irmão para caminhar com rigidez até a tenda que os trabalhadores
rapidamente ergueram assim que o sol começou a iluminar o céu.
Lochlan sorriu. Sabia que Elphame não ficaria contente em se retirar para a aldeia e ser paparicada e cuidada como se fosse uma flor delicada. Ficou um pouco surpreso
por vê-la deixar os muros do castelo, mas isso era provavelmente um acordo que fizera com o irmão. Seus olhos sagazes se focaram na expressão severa de Cuchulainn.
Sim, o guerreiro preferiria que ela se recuperasse na aldeia. Será que ele não entendia que ela extraía sua força das próprias pedras do castelo?
Não deveria julgar o irmão duramente, repreendeu-se Lochlan. Cuchulainn a amava muito e só desejava salvar a irmã de qualquer mal, assim como ele. Se ao menos os
dois pudessem ser aliados...
Bem longe ao norte, Keir ergueu sua cabeça pálida como se cheirando o ar, mas na verdade o gesto era desnecessário. Não detectara um rastro físico, mas um cordão
espiritual, do qual um fio jazia desatado aos seus pés.
- Sim. - Sua voz era um sibilar de triunfo. - Lochlan partiu por aqui.
Ao lado dele, as asas de Fallon agitaram-se de animação enquanto ela olhava a trilha pequena e parcialmente escondida que guiava bem para dentro das montanhas.
- Tem certeza? - perguntou ela, mal ousando acreditar. - Já vasculhamos essa área antes e não descobrimos nada dele.
- Ele está fora há muito tempo e ficou descuidado. Já disse muitas vezes que essa obsessão o torna fraco, e essa é a prova. Ele relaxou seus pensamentos, e eu o
sinto novamente. Se você se concentrasse, saberia disto - disse ele, a voz tinha uma grave censura.
Com esforço, Fallon não se encolheu. Isso só o deixaria mais zangado, e a raiva de Keir pairava perto demais da superfície sem chamariz. Fallon podia pressentir
a verdadeira loucura em Keir. Podia sentir como a insanidade esperava que seu companheiro desistisse - que se cansasse de lutar por sua humanidade e abraçasse a
sombria herança do sangue demoníaco de seus pais. Podia vê-la espreitando como uma mancha oleosa dentro dos olhos dele. Quanto mais tempo Lochlan ficava afastado,
mas selvagem Keir se tornava. Era como se Lochlan tivesse levado consigo um pedaço da humanidade de seu companheiro. Mais uma razão para que encontrassem Lochlan
e a deusa ungulada de seus sonhos...
Fallon fechou os olhos ignorando a dor insistente que fustigava sua mente enquanto continha sua instintiva explosão de raiva. Lochlan devia ter deixado que o acompanhassem.
Sua missão era muito importante. Um deslize - um erro - e todos estariam condenados à loucura que vivia no sangue deles. Talvez Keir estivesse certo; Lochlan devia
ter se tornado obcecado demais com seu sonho para ser completamente confiável. Com um esforço enorme, ela deixou de lado seus pensamentos rodopiantes e se concentrou
nos olhos cinzentos que cintilavam com humor e paciente compreensão - então ela sentiu. Um pequeno puxão a chamava em frente. Ela abriu os olhos e sorriu para o
companheiro.
- Eu o sinto!
A cara feia de Keir se suavizou e a escuridão em seu olhar clareou. Ele assentiu, satisfeito com a resposta dela.
- Vamos contar aos outros.
Quinze
O SOL ACABAVA de irromper sobre os altos pinheiros da floresta quando Brenna anunciou que Elphame poderia dormir.
- Beba isto. - A curandeira levou uma caneca aos lábios de Elphame.
O chá era quente, espesso e possuía vago sabor de mel e menta. Quase imediatamente Elphame sentiu as pálpebras ficarem anormalmente pesadas.
- Não precisava me drogar. Já estou cansada - falou em tom ininteligível.
Cuchulainn afastou uma grossa mecha de cabelo do rosto pálido da irmã.
- Apenas durma. Brenna sabe das coisas.
El tentou, sem sucesso, focar no irmão. Ele ainda parecia tão preocupado. Sombras escuras marcavam a área abaixo dos olhos.
- Você precisa dormir também - disse ela fracamente.
- Logo, El.
Elphame suspirou e fechou os olhos, deixando que o sono finalmente a chamasse.
Cuchulainn desabou na cadeira próxima à cama da irmã. Esfregou as têmporas e rodou o pescoço, tentando se livrar da rigidez.
- Ela estava certa, você precisa dormir também - disse a curandeira sem olhar para ele enquanto endireitava os lençóis ao redor da figura adormecida de Elphame.
Cuchulainn notou que a voz de Brenna se suavizara novamente e que ela lhe dava as costas ao falar. Na verdade, ela mal soava a mesma mulher que há pouco tempo disparava
ordens como um guerreiro. Observou Brenna arrumar as pilhinhas de ervas que usara no chá da irmã. A crescente amizade da curandeira com Elphame já tinha deixado
Cuchulainn predisposto a pensar bem dela, mas a experiência que demonstrara no trato do acidente da irmã solidificou seu respeito. E, admitia para si mesmo, ela
o fascinava. Num momento Brenna o fazia sentir-se como se devesse protegê-la, como faria com a irmã, e no momento seguinte ela estava gritando ordens e mostrando
uma confiança que era evocativa à atitude prática de sua mãe. Ela era uma mistura de mulheres, e diferente de qualquer uma que tivesse conhecido.
A luz na tenda era fraca - só uma única vela tremeluzia na pequena mesinha de cabeceira. Como sempre, o corpete de seu traje era modesto e cobria completamente os
seios, terminando bem sob a linha da garganta. Ele estava acostumado a ver seios; tradicionalmente, as mulheres em Partholon se sentiam livres para exibir quanto
do atraente decote desejassem. Até a irmã, que por hábito cobria a parte inferior do corpo de olhos curiosos, vestia pedaços transparentes de seda que geralmente
deixavam pouco à imaginação. Assim como sua personalidade se destacava como diferente, o vestido conservador de Brenna se destacava como incomum, especialmente numa
mulher tão jovem. Cuchulainn compreendeu que ela devia estar cobrindo mais cicatrizes, mas o pensamento entrou e saiu rapidamente de sua mente. O que permaneceu
foi seu desejo de ver por baixo do tecido ocultador - e não porque estivesse curioso com o ferimento. Queria vê-la de verdade, conhecer a mulher por trás das cicatrizes.
Seus olhos se demoraram na pele marmórea dos braços delicadamente arredondados.
Brenna sentiu o olhar. Sabia quando um homem estava olhando para ela; tinha uma década de experiência com homens e seus olhares venenosos. Sentiu o estômago apertar.
Durante uma emergência costumavam se esquecer de sua aparência, mas quando a doença, acidente ou nascimento estava terminado, a curandeira mais uma vez se tornava
a Mulher Desfigurada. Não que os olhares fossem assim tão terríveis. Era que, apesar de tantas olhadas, eles nunca a enxergavam de verdade, especialmente os bonitos
como Cuchulainn; só enxergavam a ruína que o fogo deixara. Sim, ele era gentil com ela, mas Brenna sabia que era a devoção à irmã que lhe estimulara a compaixão.
A dura verdade seria fácil de ser lida quando erguesse a cabeça da pilha de ervas e lhe encontrasse o olhar. Ela tinha afastado o cabelo antes de mudar as ataduras
dos ferimentos de Elphame, e mesmo que o longo hábito a fizesse automaticamente manter a metade desfigurada do rosto o mais escondida possível, ele estava sentado
perto demais. Suas cicatrizes lhe seriam bem visíveis. Ele a estaria fitando com o ar de fascinação e asco misturados que ela tão bem conhecia. Brenna suspirou e
ergueu o queixo para encará-lo.
Cuchulainn sentiu as faces arderem. Ela o encarava diretamente, e ele estivera a lhe fitar o corpo como um garoto bobo. Esfregou as mãos pelo rosto antes de se pôr
de pé.
- Dormir, hã, sim. Eu deveria dormir - disse ele, sentindo-se um verdadeiro idiota.
O cândido olhar de Brenna nem piscava, e ele se descobriu incapaz de ignorar aqueles gentis olhos castanhos.
- Ficarei com ela. Caso acorde, eu lhe darei mais chá. Dormir é o que ela mais precisa agora - disse Brenna.
- Mas você... O quê... Você não está cansada também? - Ele se atrapalhou com as palavras e enfim cuspiu a pergunta. O que acontecera com seus renomados charme e
provocação inteligente e impressionante? Mesmo aos seus ouvidos, Cuchulainn soava nervoso e inexperiente. Se continuasse assim, acabaria se revertendo à gagueira
e palmas suadas.
- É meu dom. Eu cuido daqueles que estão feridos.
- Oh, certo. Sim.
Brenna inclinou a cabeça de lado e lhe deu uma olhada peculiar. O que havia de errado com o guerreiro?
- Pode acreditar que cuidarei de sua irmã, Cuchulainn - disse ela.
Era óbvio que o ar de surpresa de Cuchulainn não era fingimento.
- Não tenho dúvidas disso. - Pigarreou. - Irei agora. Mas não vou me demorar muito. - Ele se virou e se atrapalhou com a aba da tenda, mas antes de sair olhou por
cima do ombro e apanhou o olhar indagador da curandeira. - Creio que não agradeci pelo cuidado que teve com minha irmã. Obrigado, Brenna. - Sorriu nervosamente e
mergulhou para fora da tenda.
Brenna sacudiu a cabeça. Estava óbvio que o acidente de Elphame tinha afetado imensamente o guerreiro; ele não parecia consigo mesmo. E o que fora aquela expressão
estranha no rosto dele quando a estava fitando? E depois ele tinha ficado corado. Brenna sentiu as próprias faces arderem com a lembrança. Não, ela devia estar enganada.
Por que Cuchulainn desejaria olhar o corpo dela? Talvez tivesse apanhado um resfriado por cavalgar molhado. Isso explicaria o brilho de seus olhos e o rubor do rosto.
Brenna fez uma anotação mental para verificar a saúde do guerreiro enquanto se encolhia confortavelmente na cadeira que ainda estava quente do corpo dele.
Inclinou-se à frente e apanhou a alça de sua sacola de curandeira da beira da mesa. Vasculhando-a, encontrou o maço de papel limpo e içou um lápis de carvão. Seria
um longo dia. Desenhar a manteria acordada e ajudaria as horas a passarem. Também acalmaria seus nervos, pois se sentia súbita, inexplicavelmente inquieta e mal-humorada.
O lápis se moveu pela superfície do papel em traços suaves e seguros enquanto sua mente vagava. Sem pensamento consciente, suas mãos esboçaram a imagem que se assentara
em seu subconsciente e, conforme o dia se arrastava, as linhas fortes do rosto bonito de Cuchulainn tomaram forma sob seus dedos incansáveis.
No sonho, Elphame estava sendo acalentada por um calor macio que não teve problema para reconhecer. Asas, sua mente sonolenta pensou, as asas de Lochlan. Um delicioso
tremor zuniu dentro de seu corpo e, no sonho, ela podia sentir o toque gentil novamente, só que dessa vez ele não estava cuidando de suas feridas, estava acariciando
seu corpo. Seu desejo aumentava à medida que se entregava a ele...
... E a voz de sua mãe estilhaçou o sonho erótico, lançando a água fria da culpa em sua crescente necessidade.
Mas ela se feriu! Preciso ir até ela.
Não pode. Ela deve aprender a crescer sem você.
Confusa, Elphame tentou abrir os olhos, mas seu corpo drogado resistiu. Ela estava no reino nebuloso dos sonhos, cercada por nuvens que giravam ao seu redor como
pensamentos semiformados, e ecoando de dentro das nuvens ela podia ouvir a voz da mãe, assim como a de outra mulher: Ela é minha filha; claro que preciso ir até
ela.
Mas ela não é mais criança, Amada.
Isso não a torna menos minha filha.
Elphame achou que a mãe parecia atipicamente petulante. Era quase como se fosse uma criança discutindo com um adulto.
Ela sempre será sua filha, mas deve se tornar senhora de si para que possa abraçar seu próprio futuro, algo que não poderá fazer se protegê-la das dificuldades da
vida.
Mas ela - sua mãe começou a falar, mas a outra mulher interrompeu: Confia nela, Amada?
Elphame sentiu como se estivesse prendendo o fôlego enquanto aguardava ouvir a resposta da mãe.
Sim, confio nela.
Então deve deixá-la livre para reclamar o próprio destino, assim como é parte do seu destino confiar nela, Amada, e confiar em mim para que a proteja por você.
Elphame sentiu um choque de surpresa ao perceber quem a outra mulher devia ser. Epona! Estava realmente escutando uma conversa entre sua mãe e a Deusa ou era simplesmente
um sonho? Fascinada, Elphame ouviu a mãe dar um longo e trêmulo suspiro: Ser mãe era mais fácil quando ela era um bebê.
A risada da Deusa fez um brilho prateado cintilar em meio às nuvens cor de neve.
Posso ao menos enviar a ela uma remessa especial de vinhos e lençóis? A maneira como ela está vivendo é simplesmente selvagem.
Claro, Amada...
Conforme as vozes desvaneciam e as nuvens redemoinhantes escureciam, os lábios sonolentos de Elphame se esticaram numa sugestão de sorriso. Era tão típico da mãe
acreditar que bom vinho e lençóis caros curariam qualquer ferida.
Em seu sono, Lochlan a sentiu tocar seus sonhos. Sem despertar, ele respondeu, buscando por ela. Não conseguia vê-la, mas conseguia sentir sua pele macia sob suas
mãos e, no sonho, ele a envolveu com suas asas.
Então ela começou a se dissipar para longe.
Ele se remexeu inquieto, tentando sem sucesso recuperar o sonho, mas a exaustão do dia anterior cobrou o preço sobre sua concentração e a imagem dela escapou-lhe
como areia por um cesto mal trançado. Lochlan despertou. Fitou a escuridão da caverna. Seu desejo por ela era uma coisa tangível - uma força que vinha crescendo
há um quarto de século. Ele respirou fundo. O cheiro do sangue dela permanecia em seu corpo. Quando suas asas começaram a estremecer com sua excitação, ele não tentou
detê-las - não lutou contra a escuridão e fez a dor correspondente invadir sua mente. Em vez disso, relaxou o rígido controle sob o qual mantinha as emoções mais
fortes. Seu corpo enrijeceu. Fechou os olhos e se afagou, imaginando Elphame, não como estava na noite anterior, ferida e assustada, mas como ela lhe parecera na
manhã em que reclamara o Castelo MacCallan como seu. Ela tinha resplandecido de poder.
A força do clímax disparou por ele, puxando Lochlan num vórtice de paixão quente e pulsante. Quando recobrou os sentidos e abriu os olhos, seu primeiro pensamento
foi de que ele cheirava a sangue fresco, que imediatamente reconheceu como seu. Os dedos de uma das mãos latejavam. Ele virou a cabeça para ver que tinha raspado
as unhas na lateral da caverna com tamanha força que deixaram uma trilha longa e sangrenta além de arranhões de aparência maligna na rocha. Seu corpo exaurido tombou
em desespero enquanto ele afagava a mão. Como poderia ser capaz de amá-la? Nem tinha percebido que cortara a parede. E se ela estivesse ali? Teria retalhado a pele
macia do corpo dela sem ser capaz de se conter?
As palavras da Profecia zombavam dele. Elphame era a encarnação de uma deusa, ele não podia negar isso. E a Profecia de seu povo, transmitida pelos lábios de sua
mãe, era que apenas o sangue de uma deusa agonizante poderia salvá-los da loucura que era o legado de sua sombria herança.
Estava predeterminado que ele a mataria.
Lochlan cerrou o maxilar. Não! Precisava existir outra maneira.
Por favor, Epona, não me deixa machucá-la. Eu preferiria morrer primeiro.
Lochlan se enroscou de lado tentando enterrar o medo e a solidão na recordação da gentileza que vislumbrara nos olhos de Elphame. Ela não o olhou como se fosse uma
criatura do mal - ela o vira como homem, não como fomoriano.
Estava sozinho há tempo demais. Fechou os olhos. A solidão o consumia. Como estava seu povo? Era começo de primavera. Eles deviam estar plantando a comida que ajudaria
a sustentá-los durante o longo inverno. Os caçadores começariam as primeiras de muitas jornadas até o mar para que peixe fosse apanhado e defumado. A neve logo estaria
derretida o bastante para que as cabras montanhesas selvagens fossem capturadas a fim de reabastecer o rebanho domesticado deles. Tanto a fazer para sobreviver nos
Ermos... Será que as crianças estavam bem? Será que a loucura estava avançando rápido? Ele sabia que Keir teria tomado sua posição de líder. Keir ambicionava a posição
de Lochlan e o poder inerente ao posto. Só podia esperar que a influência de Fallon o estivesse ajudando a liderar com sabedoria, e mantendo sob controle o lado
sombrio de Keir, que sempre parecera perto demais da superfície.
Os olhos de Lochlan se abriram de súbito. O que estava fazendo? Como água sobre chama, ele extinguiu todos os pensamentos sobre o lar. Sabia o quanto era perigoso
sua mente lidar com seu povo. O laço psíquico que unia seu sangue ao deles era naturalmente forte. Pensar neles só o reforçaria - e a última coisa que ele precisava
era que eles descobrissem a passagem escondida pelas traiçoeiras Montanhas Trier até Partholon e o rastreassem até ali. Para o povo do Castelo MacCallan, um grupo
de fomorianos híbridos seria encarado apenas de uma maneira - como um exército invasor. E eles seriam um exército, admitiu a si mesmo, um exército com apenas uma
resolução e propósito - capturar Elphame e cumprir a Profecia.
Procure pensar nela, ordenou a si mesmo. Pense na beleza e na força dela. Devia haver uma maneira de conseguir as duas coisas, salvar seu povo e ficar com Elphame.
Dezesseis
- FAZ CINCO DIAS. Ficarei louca se não me deixar sair daqui - Elphame explodiu com o irmão. Depois estreitou os olhos e o cortou antes que pudesse responder: - Não!
Não quero ouvir falar no quanto me machuquei. Sei exatamente o quanto me machuquei. Minhas costelas ardem como se eu tivesse sido mordida por formigas-de-fogo. Meu
ombro dói. E estou no meu quinto dia de dor de cabeça. Mas estou dizendo que preciso sair dessa tenda, e estou falando de mais longe do que apenas sentada na frente
do toldo.
A aba da tenda se abriu e Brenna adentrou carregando uma bandeja que continha bandagens novas e uma caneca de chá fumegante.
- Oh, não! Não vou mais tomar sua poção para dormir. Estou cansada de dormir. Estou cansada de ficar na cama. Estou cansada dessa tenda. E estou especialmente cansada
do meu cheiro.
Brenna relanceou Cuchulainn, que parecia estressado. Ele ergueu as mãos e deu as costas para a irmã desgrenhada e frustrada.
- Você é a curandeira. Lide com ela - disse um tanto apressado, começando a se esgueirar em direção à saída.
As duas mulheres lhe fizeram cara feia.
- E pensar que as donzelas ficam extasiadas com sua bravura - disse Elphame com indignação.
- As ditas donzelas extasiadas não são minha irmã. Você é totalmente diferente. Brenna, admito que ela é uma paciente terrível, então a deixo em suas mãos capazes
com minhas humildes desculpas. - Ele conseguiu exibir um rápido sorriso, curvou-se para Brenna e, com um floreio, retirou-se da tenda.
Brenna teve que se obrigar a parar de sorrir para a entrada vazia.
- Estúpido superprotetor! - exclamou Elphame, fazendo uma careta enquanto afastava uma longa mecha de cabelo oleoso do rosto. - Estou deplorável. Cheirando mal.
- Esfregou distraidamente a bandagem que cobria a ferida no flanco do corpo. - Mas ele está certo. Sou uma paciente terrível.
Brenna sorriu.
- Você não é uma paciente terrível. Só está aborrecida e se recuperando. Se não estivesse ficando um pouco enlouquecida, ficaria preocupada com você.
- De certa forma isso não serve muito de consolo. - Elphame coçou a cabeça.
- Um banho ajudaria.
- Oh, doce Deusa, sim! - Elphame virou as pernas sobre a beira da cama e levantou-se um pouco rápido demais. Ela trincou os dentes enquanto o mundo girava em torno
dela.
- Calma. Você deve ir devagar. - A mão firme de Brenna agarrou El pelo cotovelo, firmando-a com o toque entendido de uma curandeira experiente.
Elphame respirou fundo e lentamente até a tontura passar.
- Melhor? - perguntou Brenna.
- Foi tolice minha. - El deu uma olhada torta na amiga. - Ainda tenho permissão para tomar banho?
- Mais tarde, à noitinha.
- Mas...
Brenna ergueu a mão para detê-la.
- É uma surpresa. Não discuta com sua curandeira.
- Por mim está bem. - El olhou para a bandeja que Brenna colocara na mesa. - Até beberei sua poção horrível se apressar o momento da minha limpeza.
Brenna riu.
- Agora está soando tão dramática quanto seu irmão. E, sim, quero que beba o chá, mas não precisa se afligir. Não há nada mais forte nele do que casca de salgueiro
para ajudar a aliviar a dor de cabeça.
Aliviada, Elphame sentou-se na beirada da cama e bebericou o chá de gosto surpreendentemente inofensivo.
- E quando terminar seu chá, gostaria de dar uma pequena caminhada? - perguntou Brenna, embora soubesse muito bem qual seria a resposta de Elphame.
- Quer dizer lá fora?
- Definitivamente lá fora.
Elphame deu um grande gole no chá.
- Você é maravilhosa.
- Quer dizer que não sou uma horrorosa carcereira preparadora de poções? - perguntou Brenna com fingida inocência.
Elphame se encolheu.
- Você ouviu aquilo?
- Sei que só falou isso na melhor das intenções, minha senhora. - Os olhos de Brenna cintilaram ao fazer uma mesura para Elphame.
- Tenho sido uma paciente terrível.
- Sim. - Brenna riu. - Tem mesmo.
Elphame engoliu o resto do chá e ficou de pé, devagar e cuidadosamente. Brenna pendurou sua sacola de curandeira num ombro e passou o outro braço com firmeza pelo
da paciente.
- Vai me manter sob controle?
Com um brilho travesso nos olhos, Brenna assentiu para sua encarregada e depois puxou de leve o braço de Elphame. As duas mulheres estavam sorrindo quando saíram
da tenda. Brenna só deu alguns passos antes de parar, deixando que os olhos de Elphame se ajustassem à luz brilhante da tarde. Depois começou a guiá-la lentamente
para a esquerda, na direção que levava para longe do castelo e para a margem da floresta que flanqueava as terras mais ao sul.
Elphame pigarreou.
- Sabe que eu detesto reclamar...
As sobrancelhas de Brenna se ergueram em silencioso sarcasmo.
- ... Mas estava esperando que pudéssemos dar nosso pequeno passeio no castelo. Não vejo o interior há cinco dias e estou um bocado curiosa sobre o progresso das
renovações.
- Verá o interior do castelo. Essa noite.
- Agora não?
- Agora não - replicou Brenna enigmaticamente.
- Hrumph - disse Elphame, tomando emprestado uma das expressões favoritas de Cuchulainn.
- Pensei que gostasse da floresta.
- Eu gosto! - Elphame garantiu a ela. A floresta... A batida de seu coração acelerou. Ele estava na floresta.
- Bom. Encontrei um grupo de rochedos lisos um pouco ao sul daqui, margeando a floresta. De lá você terá uma vista adorável do mar e do castelo. Pareceu-me um bom
lugar para um passeio. Uma vez lá, poderei trabalhar naqueles esboços para as tapeçarias do castelo enquanto você relaxa e ameniza sua frustração.
- Parece ótimo - disse Elphame, sorrindo distraidamente para Brenna, mas seus pensamentos estavam vagando.
Elas estariam perto da floresta. Lochlan aguardava em algum lugar dentro dela. Ou não? Pelo que parecia ser a milésima vez, amaldiçoou sua memória incompleta. Ele
era real; a prova física era inegável. Lochlan matara o javali, a carregara da ravina, comprimira sua ferida e a envolvera com seu calor, mas a experiência inteira
estava envolta numa neblina de dor e confusão. Quando tentava se lembrar de coisas específicas que lhe dissera, ela só conseguia reconstruir fragmentos da conversa.
Ele dissera que a conhecia dos sonhos.
Ele dissera que estaria aguardando por ela.
Ele admitira que seu pai era um fomoriano.
Uma recordação visual subitamente lampejou por sua mente, e ela viu Lochlan com clareza, asas abertas, o belo rosto contorcido num rosnado selvagem enquanto arremetia
a faca no javali. Apesar do calor da tarde, Elphame estremeceu.
Os olhos experimentados de Brenna se fixaram nela.
- Estou bem - assegurou Elphame. - Eu... Eu só estava pensando no acidente.
O olhar da curandeira se suavizou em simpatia.
- Brighid disse que nunca viu um javali tão enorme. A batalha deve ter sido horrível. Odeio pensar na dor que sofreu.
- Posso dizer com honestidade que nunca senti tanto medo. - Será que uma omissão era mentir?
- Graças a Epona você sobreviveu.
Elphame fez um ruído vago de concordância, desejando que Brenna mudasse de assunto.
- Não quis mencionar isso na frente de seu irmão - principiou Brenna devagar -, mas notei que seu sono tem sido inquieto. Acho que deve saber que é normal que seus
sonhos sejam turbulentos depois de uma experiência traumática.
Elphame encontrou o olhar compassivo de Brenna, depois logo olhou para longe. Não eram pesadelos que faziam seu sono ser inquieto. Sentiu um fluxo de calor colorir
seu rosto.
- Não há razão para sentir vergonha, Elphame - disse Brenna, apertando-lhe a mão com gentileza. - Mas se os sonhos a perturbam, posso lhe dar uma poção para dormir
mais forte, embora essa não seja minha preferência.
- Não! - exclamou Elphame, sentindo-se cada vez mais culpada com a honesta preocupação na voz da amiga. - Os sonhos não são ruins. - Bem, ao menos isso não era mentira.
Os sonhos que experimentara nas últimas cinco noites foram deliciosos, nada perturbadores. - Acho que estou inquieta porque não estou acostumada à inatividade. Ficarei
bem quando voltar à minha rotina normal.
- Será logo. Suas feridas estão sarando com velocidade quase milagrosa.
Elphame revirou os olhos.
- Oh, por favor, não conte a ninguém.
- Nunca divulgo os segredos de uma curandeira.
- Isso é um alívio. Não quero que as pessoas voltem a me tratar como a uma deusa num pedestal.
- É difícil ser diferenciada pelos outros. - A voz suave de Brenna era introspectiva.
Dessa vez Elphame não teve problemas para encontrar-lhe os olhos.
- Sim. É difícil.
Elas caminharam em silêncio, ambas perdidas nos próprios pensamentos. Era uma tarde espetacular. Chovera no começo da manhã e a floresta estava ainda mais brilhante
do que o normal, como se tivesse sido recém-lavada pela Deusa. Estavam viajando pelas terras gramadas que faziam fronteira com o lado sul do castelo, e Elphame estava
impressionada com quanto trabalho os homens tinham efetuado. As moitas e árvores que ofereciam esconderijo tinham sido removidas, deixando nenhuma outra vegetação
senão grama meticulosamente aparada por várias centenas de passos a partir dos muros externos do castelo. Depois do que Cuchulainn devia ter decretado como uma distância
apropriada, umas poucas alamedas bem aparadas de cornisos ainda em flor foram poupadas. Alinhavam a estrada que levava à floresta com um halo de flores rosadas.
Elphame sorriu quando notou que Cuchulainn também deixara uma dúzia e tanto de moitas de arbustos espinhosos de amoreira, que parecia insano em suas vinhas aleatoriamente
entrelaçadas se comparado à ordem recém-estabelecida ao redor. As terras pareciam adoravelmente cuidadas, o que agradou Elphame. Teria que se lembrar de elogiar
Cuchulainn e os homens pelo trabalho benfeito.
Brenna angulou a caminhada para uma direção que levava ao penhasco onde a floresta beijava suavemente a margem rochosa e escarpada.
- Aqui está o nosso lugar. - Ela apontou para o grupo de rochedos lisos que se empoleiravam próximo à encosta bem à sombra dos altos pinheiros. As rochas variavam
em tamanho, desde montes que se sobrepunham à cabeça de Elphame até pequenos amontoados que não passavam da altura da cintura. - Você senta aqui... - Brenna mostrou
uma rocha de tamanho médio que se apoiava num dos imensos rochedos - ... Pode descansar confortavelmente e ter uma excelente vista do seu castelo.
El sentou-se com cuidado. Tomando cautela com a ferida ainda sensível no flanco, ela deslizou lentamente até poder se recostar no rochedo, que formava um apoio surpreendentemente
confortável. Brenna ergueu a saia e com uma agilidade que a Elphame lembrava um ratinho fujão, escalou a lateral de uma das rochas maiores. El viu que o rochedo
da amiga tinha uma beirada conveniente que se projetava em sulcos serrilhados de modo que ela podia apoiar seu caderno nas ranhuras quase como se estivesse num cavalete.
Depois de se acomodar, Brenna vasculhou sua sacola sem fundo até encontrar lápis de carvão. Depois refletiu por um momento antes de voltar a afundar ainda mais a
mão. Com um ligeiro sorriso, exibiu um odre maleável, que atirou para perto de Elphame.
- Acho que está bem o bastante para desfrutar de um pouco de vinho.
- É uma grande mudança dos seus intermináveis chás - murmurou El depois de tomar um longo gole do saboroso vinho tinto.
- O chá é bom para você. Pare de reclamar e desfrute a vista. Vou mostrar o esboço no qual andei trabalhando quando terminar de corrigir o detalhe da torre.
- Farei exatamente o que diz. - Elphame sorriu feliz. Gostava com sinceridade de Brenna lhe dando ordens. Significava que Brenna se sentia confortável com ela; também
significava que a tratava como uma paciente normal. Também começava a compreender que isso significava que Brenna se importava profundamente com ela. Elphame tomou
outro grande gole de vinho e respirou fundo o ar revigorante de primavera, contente por naquela manhã seu flanco ter parado de doer cada vez que respirava fundo.
Água salgada e pinho lhe preencheram os sentidos, e ela sorveu daqueles aromas pungentes enquanto admirava seu castelo. Parecia uma colmeia coberta com abelhas operárias
atarefadas. O telhado pontudo de uma das quatro torres de vigia estava completo, e duas outras estavam tomando forma, assim como o gigantesco telhado que por fim
cobriria a área central do castelo. Nos últimos dias ela tinha, claro, assistido inquieta à construção da chaise-longue na qual Brenna permitira que se reclinasse
à aba da tenda, mas Elphame não tinha como compreender a extensão da construção em andamento enquanto estava tão perto dos muros do castelo. De seu novo ponto privilegiado
podia ver seu lar literalmente ganhando vida diante de seus olhos. Sentiu-se subitamente inundada de emoção com o que sua gente tinha realizado enquanto ela estava
se recuperando.
- É mesmo lindo, não é? - disse ela com reverência.
- Sim - balbuciou Brenna, a língua presa no canto da boca em concentração enquanto seu lápis de carvão voava pela página. Quando ela parou, soprou a superfície do
esboço e estreitou os olhos criticamente mesmo quando com relutância deixou o lápis de lado. - Está terminado. Acho que a quarta torre está na posição certa agora.
- Ela se curvou e jogou com delicadeza o bloco aberto de papel grosso e bruto para Elphame.
O Castelo MacCallan parecia saltar da página cor de linho. Brenna desenhara os poderosos muros externos, completos com o portão de ferro fundido restaurado, embora
na realidade ainda precisasse ser instalado. Bandeiras que atualmente estavam sendo costuradas esvoaçavam orgulhosas em cada uma das quatro torres de guarda - Brenna
até pensara em esboçar uma égua impetuosa em cada estandarte tremulante. Não existia qualquer madeira nua ou queimada pelo fogo ou brechas de pedras desmoronadas
nas ameias. O castelo parecia jovem, vibrante e muito cheio de vida.
- Oh, Brenna! Está perfeito. É como se você tivesse entrando na minha mente e visto o que vi.
Brenna corou.
- Você que é boa em descrever o que lhe vai em mente.
- Não, você é mesmo uma artista maravilhosa. - Antes que Brenna pudesse impedi-la, Elphame começou a folhear o bloco. Havia desenhos preliminares de partes do castelo
e alguns modelos de closes de mãos e pés. E depois havia Cuchulainn - páginas e páginas de Cuchulainn. Elphame sentiu um pequeno sobressalto. Bem, pensou ela, assim
estavam as coisas. Os desenhos de seu irmão eram cuidadosamente traçados e capturavam vários de seus diferentes estados de espírito. Demorou-se em uma em que ele
estava triste e cansado, no qual parecia ser uma década mais velho que a verdadeira idade.
- Era assim que ele estava no dia do meu acidente - disse Elphame.
- Ele é... Ele é... Eu só quis... - Brenna se calou, engoliu em seco nervosamente e recomeçou: - Seu irmão é um modelo interessante. Ele possui todos esses traços
orgulhosos, perfeitos no rosto, e tantas emoções divergentes.
Elphame não conseguia desviar o olhar do desenho realista do irmão que tanto demonstrava amor e preocupação por ela.
- Você o capturou perfeitamente. - Por fim ergueu os olhos para Brenna, que logo desviou o olhar. - Posso ficar com este?
Os olhos de Brenna dispararam ao encontro dos da amiga. Ela encarou Elphame atentamente. Não viu qualquer pena na expressão aberta, nem viu qualquer reprovação.
- Claro. Pode ficar com quantos quiser.
- Só este. Os outros são seus. - Ela buscou o olhar tímido de Brenna e sorriu calorosamente, pensando no quanto sua mãe aprovaria a moça.
O som de cascos batendo surpreendeu as duas, e, como se pensar nele o tivesse conjurado à presença delas, Cuchulainn surgiu intempestivamente. Brenna imediatamente
leu sua expressão.
- Um acidente? - perguntou ela, já descendo de seu poleiro.
- Angus estava cortando uma nova seção de toras e a serra escorregou. Creio que a ferida é bem feia. - Cuchulainn se inclinou para oferecer a mão a Brenna. Sem qualquer
hesitação, ela pôs a mãozinha na de Cuchulainn, que a ergueu às costas. Ele lançou um olhar severo à irmã.
- Não vá a lugar nenhum. Volto logo para buscá-la.
- Não precisa se apressar. É bom ficar fora do cativeiro. - Elphame o enxotou com um gesto impaciente.
Cuchulainn lhe fez cara feia antes de escoicear o capão de modo que corressem de volta para o castelo. El observou os braços de Brenna apertarem a cintura do irmão
e Cuchulainn esticar um braço, possessivo, às costas para firmá-la e segurá-la com mais firmeza contra ele.
Sim, assim estavam as coisas - Cuchulainn e Brenna -, seus instintos estavam corretos. Imaginou se algum deles já tinha se dado conta. Provavelmente não. Apesar
de toda a experiência com as mulheres, Cuchulainn devia estar tão despreparado para o amor quanto a irmã.
- Despreparo - sussurrou Elphame. Aquilo certamente a descrevia. Mas como poderia estar preparada para Lochlan? Será que ele tinha sido uma alucinação? Não, não
era possível. Existiam evidências tangíveis de que ele estivera lá: o javali estava morto, sua ferida fora comprimida com musgo. Mas será que ele possuía mesmo as
asas de um fomoriano? Ela estremeceu e seu olhar trocou o castelo pela floresta. Não tinha sentido medo dele, disso lembrava bem. Por que não?
Porque a presença dele parecia certa. Ela já sabia a resposta - pensara repetidas vezes nisso durante os últimos cinco dias. Mas estaria sendo uma idiota, dependendo
de uma habilidade que surgira recentemente dentro dela?
- Lochlan - disse, incapaz de deixar de pronunciar o nome dele em voz alta. Uma brisa inesperada capturou o nome e Elphame sentiu a pele dos antebraços arrepiar.
Por um momento o nome de Lochlan pareceu pairar, congelado e quase visível, antes que o vento brincalhão o espalhasse e salpicasse na floresta expectante.
Ela meneou a cabeça, envergonhada de sua imaginação superativa. O nome de um amante não se tornava visível quando falado em voz alta. E Lochlan nem era seu amante.
- Aquela pancada na cabeça está fazendo com que eu imagine coisas - disse, levando o odre aos lábios franzidos.
- O que é que está imaginando, meu coração?
Elphame cuspiu de surpresa, engasgando com o vinho semiengolido. De olhos arregalados, ela espiou a floresta.
Como um pássaro enorme, o homem alado saiu do esconderijo em meio aos galhos de um pinheiro, a meio metro de onde Elphame estava sentada. Ele permaneceu nas sombras
da floresta enquanto as asas se dobravam perfeitamente ao longo das costas. Seu sorriso era hesitante.
- Não pretendia assustá-la.
- Pela Deusa, você é real! - exclamou Elphame, que imediatamente se sentiu idiota.
- Duvidou mesmo disso?
Elphame assentiu vigorosamente:
- Constantemente.
Lochlan riu, um som tão verdadeiramente alegre que Elphame sorriu e sentiu parte do nervosismo desaparecer.
- Compreendo sua confusão. Minha mente estava clara e sã, porém nesses cinco dias que se passaram a lembrança de nosso encontro parece ter se tornado uma coisa que
pertence a um reino diferente.
- Como um sonho - disse Elphame.
Lochlan meneou a cabeça.
- Não, meu coração, nossos sonhos são algo único, algo distinto de qualquer coisa.
Elphame sentiu-se corar, mas não tinha vontade de desviar os olhos de seu olhar penetrante. Lochlan saiu do limite do bosque. Mesmo com suas asas bem dobradas contra
o corpo, ele se movia com uma graça selvagem que a hipnotizava; por um momento tudo o que conseguia ver, sentir ou ouvir era Lochlan. E então sua mente começou a
funcionar novamente e uma constatação a invadiu. E se alguém o visse? Ela ergueu uma das mãos, fazendo-o parar sua aproximação imediatamente.
- Quero que me explique tudo. Quero saber quem você é e o que está acontecendo entre nós. - Elphame olhava nervosa ao redor. - Mas você não pode ser visto. Não contei
a Cuchulainn sobre você.
O desapontamento escureceu a expressão de Lochlan, mas ele assentiu constrito e refez os passos até ficar novamente na semiescuridão opaca da borda da floresta.
Elphame sentiu uma precipitação de vergonha, seguida por uma inundação de irritação. Dias de tédio e frustração deixaram seus nervos à flor da pele e de repente
ela queria gritar que acabara de conhecê-lo, que ele não passava de um estranho intrigante. Mas as falsas palavras não saíram. Elphame fitou seus olhos cor de tempestade
e soube com uma certeza quase aterradora que estava vendo seu futuro.
Com mente clara, lembrou do que Cuchulainn previra com suas próprias palavras: Sei que encontrará seu destino no Castelo MacCallan. Sei que seu destino está ligado
ao seu consorte...
Lochlan era esse consorte.
Então, intruso, o resto do que Cuchulainn dissera brincou em sua mente... Mas quando eu tento me concentrar nos detalhes sobre o homem, só consigo névoa e confusão.
Ao menos agora, ela sabia por que a visão do irmão fora incompleta, e ela não podia deixar de pensar que a Deusa fora sábia em esconder Lochlan da visão de Cuchulainn.
Se ele soubesse que seu consorte era o filho de um demônio fomoriano... Elphame nem queria terminar o pensamento.
- Isso será muito difícil - disse ela aflita.
As palavras dela fizeram Lochlan sorrir.
- Minha mãe diria então que deve ser algo que vale a pena fazer.
O calor na voz dele ao mencionar a mãe a comoveu, evaporando sua irritação.
- Você a amava demais - disse ela.
- Ela me presenteou com a humanidade, e depois me ensinou o que este presente significava. Ela nunca viu o monstro, só via seu filho.
- Você não é um monstro - disse Elphame enfaticamente.
O sorriso de Lochlan era amargo.
- Não, não sou um monstro, mas tenho o sangue de uma raça de demônios dentro do meu corpo, e isso é algo que nenhum de nós jamais poderá esquecer.
- Devo ter medo de você?
- Não posso responder essa pergunta para você. - Uma das mãos dele se ergueu como se para tocá-la. - Só posso dizer que preferiria morrer a machucá-la.
A intensidade do presságio formou um bolo na garganta dela. Sua mente e seu coração pareciam um reino em guerra civil. Deveria exigir que ele se fosse. Deveria lhe
oferecer uma vantagem honrada antes de informar a Cuchulainn que uma criatura de descendência fomoriana entrara em Partholon. Precisava parar de pensar como uma
tola romântica. Ele não era nada mais do que um sonho perigoso.
- Partirei se for o que realmente deseja - disse Lochlan solenemente.
- Precisa ler minha mente? - explodiu ela.
- Não posso fazer isso, só consigo ler seu rosto e seus olhos. Sonho com você desde quando nasceu. Foi bastante tempo para aprender as expressões do seu rosto e
compreender seu humor.
Os olhos de Elphame encontraram os dele, tentando ignorar a tristeza que viu ali. Podia fazer isso - podia mandá-lo embora. Era seu destino ser chefe do clã, A MacCallan,
e ela fora tocada pelo poder da Deusa. Ela era um ser diferenciado.
Assim como Lochlan, sua mente sussurrou.
Ela o fitou, obrigando-se a enxergar a verdade da criatura parada diante dela. O corpo era bem humano. Ele era alto, musculoso e bem constituído. Mas homens não
possuíam asas que se dobravam contra o corpo, nem pele que parecia brilhar delicadamente como se iluminada por dentro por uma luz pálida. Não conseguia se lembrar
de ver qualquer homem que tivesse olhos que se exibiam numa tempestuosa tonalidade de cinza. Seu olhar reflexivo desceu lentamente pelo corpo dele. Os pés - estavam
descalços e pareciam estranhos. Com um pequeno sobressalto, lembrou que pensara a mesma coisa quando ele estava de pé no riacho depois da batalha com o javali.
- Garras - disse Lochlan, acompanhando o caminho de seus olhos. Ele ergueu um pé do chão verde da floresta e encolheu os ombros. - Tenho garras. Você tem cascos.
Se eu tivesse escolha, acho que preferiria qualquer um dos dois aos pés de um homem normal. Não consigo me imaginar gostando de calçar sapatos.
Inesperadamente, Elphame riu.
- É a primeira vez que admito isso em voz alta, mas sempre pensei a mesma coisa. Não acreditaria nas coisas pequenas e torturantes nas quais minha mãe enfia os pés.
Quando eu era menina, ela ficava triste por eu não poder vestir meiazinhas enfeitadas e sapatos bobos e esquisitos, então costumava pintar e polir meus cascos até
brilharem. Tentei explicar a ela que não tinha importância, que eu gostava dos meus cascos, mas ela nunca pareceu compreender.
Ele lhe sorriu.
- Minha mãe simplesmente me disse para manter minhas garras aparadas porque estava cansada de remendar as roupas de cama.
Era fácil conversar com ele. Quando parou de lhe dissecar a humanidade e simplesmente reagiu como uma mulher a um homem, descobriu que já era fácil esquecer que
ele era tão diferente. Pela Deusa! Ela era diferente. O coração lhe dizia que ele não podia ser um monstro, mas poderia confiar no coração?
Confia nela, Amada?, perguntara Epona.
Sim, confio nela, a mãe respondera com calma certeza.
Elphame tinha confiado em si mesma quanto à restauração do Castelo MacCallan - e aquela fora a escolha certa. Como isso seria diferente? Lochlan era apenas outra
escolha com consequência por toda a vida que precisava enfrentar. Talvez fosse hora de crescer e começar realmente a confiar em si mesma.
Aguardando nas sombras dos pinheiros, Lochlan não externou qualquer sinal de sua agitação enquanto a observava lutar silenciosamente com suas emoções conflitantes.
O que poderia dizer a ela? Não podia pedir para aceitá-lo. Como seria possível? E se pudesse encontrar outra maneira que não fosse através do sangue dela para cumprir
a Profecia? Devia deixá-la - agora. Devia girar e fugir, e nunca vê-la novamente, mesmo que ao fazer isso estivesse condenando todo seu povo à loucura eterna.
Podia sentir o constante impulso do demônio que se agitava em suas veias. Roube-a, o fluxo de seu sangue sombrio murmurava eroticamente, leve-a e faça com ela o
que quiser.
Não! Lochlan recebeu a dor que sempre era a resposta quando reprimia o demônio em seu sangue, a dor que estava fazendo seu povo perder a humanidade e lentamente
abraçar a loucura e o interminável desejo por sangue que estava no âmago da raça fomoriana. A dor era o preço que pagavam por se empenharem para serem mais do que
seus pais demoníacos. Tinham nascido diferentes, únicos. No ventre da mãe cada um fora alterado de alguma forma. Em vez de serem gerados segundo a raça dos fomorianos,
evoluíram para algo quase humano. Mas o chamado da herança sombria era uma atração constante contra a qual lutavam. Uma atração preenchida com sonhos de morte ensopada
no enlouquecedor cheiro de sangue.
Como a morte de Elphame salvaria seu povo da violência que os estava destruindo? Como a Deusa poderia pedir isso dele? Não fazia sentido. Devia haver outra maneira
para que a Profecia fosse cumprida.
Ela estava tão perto. Não era mais a mulher imaterial de seus sonhos; ela vivia, respirava e estava a poucos metros dele. Não podia deixá-la, ainda não. Passara
um século lutando contra a escuridão; não fugiria agora.
Lentamente, Elphame ergueu os olhos para encontrar os dele, e Lochlan leu a confusão e as perguntas ali, que espelhavam o tumulto dentro de sua própria alma.
- Não tenho todas as respostas que você precisa. Há muita coisa acontecendo aqui que eu também não entendo, mas juro a você que meu coração, talvez até minha própria
alma, está ligado ao seu. Se você não estiver ao meu lado, ansiarei por você até deixar de respirar - disse Lochlan.
Ele ansiava por ela. Elphame só estava começando a conhecer esse maravilhoso e terrível sentimento. De repente queria tocá-lo; queria a segurança de lhe sentir os
batimentos do coração e a carne quente e viva sob as mãos. Ele sonhara com ela por toda sua vida. Ela só sonhara com ele por uma fração desse tempo, mas já sabia
que queria mais do que sonhos etéreos e esperanças semirrealizadas.
Sem se permitir pensar duas vezes, ela escorregou de seu assento rochoso. Estudou o castelo. Os trabalhadores distantes estavam ocupados, ninguém nem estava olhando
em sua direção - e definitivamente não havia sinal de Cuchulainn instigando seu capão. E de qualquer forma, disse a si mesma, se alguém a estivesse observando, o
fato de ter entrado na floresta para um momento de privacidade não pareceria nada incomum.
Ela se voltou para Lochlan. Ele a observava com uma expressão que de repente a fez querer chorar. Ele irradiava um poder selvagem e masculino, porém, no momento,
parecia vulnerável de partir o coração.
- Elphame... - sua voz parecia embargada - ... Eu não deveria ficar.
Elphame sentiu as palavras dele vibrarem em seu estômago. Sua pulsação lhe martelava os ouvidos e o corpo se movia na direção dele como se puxado por um fio invisível.
Ela parou a pouco menos de um braço de distância diante dele.
Mexia as pernas com nervosismo e os cascos produziam um som líquido na grama alta.
- Sei que não deveria ficar, mas não quero que vá - disse num rompante. Depois tentou sorrir, mexendo a cabeça. - Mas talvez a pancada na minha cabeça esteja afetando
meu juízo.
Os lábios de Lochlan se contorceram.
- Então parece que sua ferida se espalhou para mim. - Ele ergueu o queixo e espiou a lateral da cabeça dela. - E parece que você melhorou bastante. Você sara rápido.
- Ele olhou-lhe o ombro, contente por terem algo menos emocionalmente carregado sobre o que conversar. - E vejo que sua curandeira a dispensou de usar a tipoia.
- Brenna - disse ela. A proximidade dele era intoxicante, e Elphame tentou diluir o efeito que ele lhe provocava com uma conversa simples e normal: - O nome da curandeira
é Brenna. Ela é muito talentosa, e também é minha amiga.
Ele acenou pensativamente com a cabeça, depois apontou para o flanco do corpo dela.
- Gostaria de ver como ela tratou essa ferida.
Elphame ergueu a mão protetoramente sobre a bandagem que estava aninhada debaixo de sua roupa de linho.
- Acho que terá que acreditar na minha palavra de que está sarando bem também.
Os lábios de Lochlan se contorceram num sorriso torto que o fazia parecer um garoto travesso.
- Já vi seu flanco despido.
Oh, Deusa... Seu estômago se revirava, e ela desejava desesperadamente ter o dom do irmão para uma conversação leve e paqueradora.
E Lochlan não era nenhuma donzela ingênua.
- Bem, isso foi sob pressão. Não há nenhum javali se preparando para me atacar agora - disse, sentindo-se ridícula. Queria que ele a tocasse, mas achava que se ele
realmente o fizesse talvez disparasse de volta para o castelo. - E de qualquer forma - prosseguiu. Seus pensamentos eram como vaga-lumes, esvoaçando ao redor de
sua cabeça, deixando-a incapaz de parar de tagarelar. - Não sou uma visão muito bonita no momento, estando nua ou não. Não tomo um banho desde o acidente. - Mandou
a boca ficar calada e, nervosa, passou a mão pelo cabelo longo. Parecia irremediavelmente sujo e sem vida. Ela até deu um passinho para trás, temendo que pudesse
estar mesmo cheirando tão mal quanto achava.
Mas Lochlan não a deixaria se afastar. Sem se aproximar, estendeu a mão e esbarrou no punho dela quando a ergueu para lhe acariciar o cabelo. A mão dele parecia
cálida e forte. Ele a puxou com delicadeza, e ela se aproximou um passo dele.
- Como posso fazer com que entenda o que vejo quando olho para você? - perguntou Lochlan. - Minha mãe me criou com suas crenças. Ela me ensinou os modos do seu povo,
o povo de Partholon. E me transmitiu o amor de sua Deusa, Epona. Não consigo contar quantas vezes eu a ouvi suplicar pela proteção e pelo auxílio de Epona - e pedir
bênçãos especiais para mim e os outros como eu. Ela tinha uma ligação com sua Deusa que ficou mais forte durante sua vida. - Ele se calou, a garganta subitamente
apertada com a recordação. - Minha mãe era uma mulher de grande fé. Morreu acreditando que suas orações seriam atendidas. - Lochlan puxou a mão de Elphame com insistência,
atraindo-a para mais perto. Dessa vez ela acompanhou as batidas do coração e foi até ele. - Então entenda, para mim você saiu das orações de minha mãe para meu coração.
Quando olho para você, vejo o amor do meu passado unido à realização dos meus mais profundos desejos.
Gentilmente, como se temesse melindrá-la, ele tocou-lhe a face apenas com a ponta dos dedos. Lentamente, traçou a linha macia de seu queixo e deixou a mão descer,
acariciando-lhe o pescoço e finalmente deixando a mão repousar de leve sobre o ombro machucado.
- Ainda causa dor?
- O quê? - Ela estava tão perto dele que podia lhe sentir o calor do corpo.
- Seu ombro. - O toque dele a abalara, Lochlan podia notar... Os lábios se entreabriram e os olhos pareciam úmidos e confusos. A ideia de que seu toque pudesse afetá-la
tanto o fez sorrir, expondo incisivos muito brancos, muito pontudos.
Elphame logo desviou o olhar, mas Lochlan levou um dedo ao queixo dela e virou-lhe a cabeça para que o fitasse nos olhos.
- São apenas dentes.
- Pare de ler minha mente! - Ela encobriu a inquietação com irritação.
- Já disse que não posso ler sua mente.
- Então pare de ler meu rosto.
- Não consigo evitar. É um rosto adorável e expressivo.
Quando sorriu novamente, ela não desviou o olhar.
Os dentes dele eram definitivamente diferentes - afiados e perigosos. Fragmentos de informação da história dos livros da biblioteca da mãe perturbaram seu cérebro.
Fomorianos eram demônios... Eram impregnados por uma incontrolável sede de sangue... Especialmente durante o acasalamento... Alimentavam-se do sangue de criaturas
vivas para sobreviver... Caçavam humanos...
- Você pode... - começou ela abruptamente e depois se calou, reagrupando os pensamentos e refazendo a pergunta: - Você se alimenta do sangue dos outros?
Lochlan piscou uma vez, claramente surpreso.
- Não, não me alimento do sangue dos outros. Prefiro refeições cozidas. - Os cantos dos olhos de Lochlan se enrugaram, mas ele não sorriu. - E mortas.
- Então por quê? - Ela olhou resoluta dos olhos dele para a boca, e depois de volta para os olhos.
- Por que meus dentes são assim? - ele completou por ela.
Ela assentiu, observando-o com atenção.
- É parte da minha herança, Elphame. Sou humano o bastante para não precisar me alimentar do sangue dos vivos para sobreviver, mas sou suficientemente fomoriano
para carregar comigo os vestígios daquela sede de sangue.
Ela respirou profunda e tremulamente.
- Eu li que os fomorianos bebem o sangue um do outro.
Ele suspirou.
- Seus livros estão corretos. Um fomoriano cobiça o sangue da parceira, assim como ela, por sua vez, deseja o dele. A troca de sangue é parte da ligação que formam
juntos. - O sorriso dele era triste. - Parece uma coisa terrível para você?
Ela olhou para a boca de Lochlan - os lábios -, o contorno forte do queixo.
- Não sei - sussurrou. Depois seu olhar viajou até os olhos cinzentos. Como seria beijá-lo?
Pergunte a ele. A ideia lhe varreu a mente como folhas dançantes de outono. Pergunte a ele, a ideia ecoou por seu sangue.
E para sua surpresa, ouviu sua própria voz perguntar: - Se me beijar, seus dentes cortariam meus lábios?
- Não. Eu não cortaria você - disse ele baixinho.
Lochlan a hipnotizava. Ela ouvia o martelar do sangue nos ouvidos.
- Você disse que ainda carrega a sede de sangue dentro de você. Quer provar o meu sangue?
Pelas mãos unidas, ela pôde sentir o tremor que passou pelo corpo dele como uma resposta imediata à pergunta, mas os olhos dele permaneceram firmes, fixos nos dela.
- Há muitas coisas que quero de você, Elphame, e muitas que desejo. Mas não tomarei nada que não queira oferecer.
- Eu... Eu não sei o que quero. Nunca fui beijada antes - revelou ela.
- Sei que não. - Os olhos de Lochlan se transformaram de ardósia em trovão.
- Acho que estive esperando por você.
Elphame falou tão baixinho que ele mais sentiu as palavras do que as ouviu.
- Assim como estive esperando por você - murmurou ele em resposta.
Seja gentil... Não a apresse... A parte racional de sua mente ordenava. Ela é jovem... Inexperiente... Facilmente amedrontável.
Mas precisava prová-la.
Lentamente, dando-lhe a chance de se afastar, ele se inclinou e levou os lábios ao encontro dos dela.
Era tão diferente do que ela tinha imaginado. Pensou que beijar seria estranho, principalmente na primeira vez. Tinha sido muito ingênua. Os lábios de Lochlan eram
quentes e firmes ao encontro de sua maciez, mas também eram convidativos. As bocas se encaixavam perfeitamente, e quando as línguas se encontraram, a mente dela
parou de pensar e ela deixou o corpo assumir. Elphame fechou os olhos e sorveu de Lochlan. Ele era a floresta - selvagem, belo e indomado. E ele a chamava. Aprofundou
o beijo. Enterrou uma das mãos nos cabelos dela, e com a outra a puxou ao encontro do seu corpo. Elphame foi por livre vontade, pressionando-se na extensão dele.
Automaticamente, seus braços se estenderam para enrodilharem o pescoço dele.
Mesmo perdida no beijo, ela estava ciente de algo roçando a parte externa de seus antebraços, e a estranheza da sensação fez os olhos dela se abrirem e a boca se
afastar da dele.
As asas. Eram o que ela sentiu em seus braços quando começaram a se desdobrar e se abrirem sobre ele. Os olhos dela dardejaram das asas eretas para o rosto de Lochlan.
A respiração dele tinha se aprofundado junto com a dela e os olhos cinza estavam escuros de desejo.
- Elas refletem minha paixão. - Sua voz estava grossa. - Não posso contê-las. Não quando estamos tão próximos, e eu a desejo tanto.
- Você fala como se não fossem parte de você.
- São de uma parte sombria de mim, uma parte contra a qual resisto.
Os olhos dela voltaram às asas. Estavam abertas sobre ela, como se ele estivesse preparado para arrebatá-la. Achou que a penugem da parte interna era da exata cor
de uma lua de colheita.
- Elas são lindas - murmurou ela.
Lochlan afastou a cabeça para trás como se tivesse recebido um tapa dela.
- Não diga uma coisa dessas nem brincando.
- Por que eu estaria brincando? - Odiando a mágoa que via nos olhos de Lochlan, desvencilhou uma das mãos do pescoço dele. - Posso tocá-las?
Ele não conseguia falar, só pôde acenar lentamente com a cabeça, como se estivesse se mexendo em águas profundas.
Sem hesitação, a mão de Elphame se ergueu para tocar a parte de uma das asas que estava aberta sobre seu ombro esquerdo.
- Oh - ela suspirou. - São macias. Pensei que fossem. - Ela abriu a mão para poder esfregar a palma com delicadeza pela penugem cremosa. As asas estremeceram sob
seu toque e depois pareceram se encher e expandir quando a respiração de Lochlan explodiu de seus pulmões num arrebatado gemido.
Imediatamente, Elphame afastou a mão.
- Eu o machuquei?
Os olhos dele estavam bem apertados e uma fina camada de suor surgira pelo rosto.
- Não! - Ele meio riu, meio soluçou a palavra. - Não pare. Não pare de me tocar.
O rude desejo na voz dele a intrigou quase tanto quanto seu corpo exótico. Não queria parar de tocá-lo - jamais. Elphame levou novamente a mão à sedutora maciez
de sua asa, mas antes que pudesse afagá-lo outra vez, ele a deteve segurando-lhe a mão.
Surpresa, ela ergueu a cabeça e o viu olhando por cima do ombro dela, olhos estreitos.
- Alguém se aproxima. - Ele inclinou a cabeça para o lado e logo acrescentou: - É a caçadora centaura.
- Você precisa ir! Ela não pode vê-lo. - O temor por ele a sacudiu.
- Preciso estar com você novamente. Em breve. - A voz dele era uma afiada lâmina de frustração.
- Encontrarei uma maneira. Agora vá, por favor. A caçadora pensaria que você está me atacando. - Seus olhos suplicavam que ele compreendesse.
- Chame por mim, meu coração. Nunca estarei longe de você.
Lochlan se inclinou e a beijou mais uma vez, pressionando os lábios nos dela com um desespero que ameaçava transbordar em violência. Mas Elphame não se encolheu
nem o empurrou para longe. Correspondeu à paixão dele com sua própria força inumana.
Ele se forçou a separar-se dela e com um baixo grito de desespero virou-se e deixou a floresta engoli-lo. Lochlan não olhou para trás para vê-la - não poderia.

 

 

 

 

C O N T I N U A