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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ESCOLHA / J. R. Ward
A ESCOLHA / J. R. Ward

 

 

 

                                                            Irmandade da "Adaga Negra"                                                                 

 

 

 

 

ANTIGO PAÍS, 1731
As chamas de uma fogueira no chão iluminavam as paredes úmidas da caverna; a superfície áspera, manchada por sombras. Do lado de fora do ventre da terra, os gemidos do vento ecoavam na abertura do abrigo, unindo-se aos gritos da fêmea sobre o catre em que dava à luz.
– Será um menino! – ela arfou em meio às contrações que a assolavam. – Um macho!
Acima daquele pedaço de carne deitado e agonizante, pairando como uma maldição sobre ela, o Irmão da Adaga Negra Hharm pouco se importava com a sua dor.
– Logo saberemos.
– Você me desposará. Foi uma promessa...
As palavras se interromperam e seu rosto se contraiu numa máscara feia enquanto suas partes internas se contorciam para expelir a cria e, ao fazer as vezes de testemunha, Hharm refletia o quanto a aristocrata ficava pouco atraente em trabalho de parto. Não fora assim quando se conheceram e ele a seduzira. Na época, estivera coberta de cetim, muito composta, o receptáculo adequado para o seu legado, com a pele perfumada e os cabelos macios e reluzentes. Agora? Não passava de um animal, suada, pegajosa – e por que a situação se prolongava tanto? Ele estava tão enfastiado com o processo, ofendido por estar cuidando dela. Tratava-se de uma tarefa para as fêmeas, não para um guerreiro de seu escalão.
Todavia, não a desposaria, a menos que precisasse fazê-lo.
Se o bebê fosse o filho pelo qual vinha esperando? Então, sim, ele legitimaria a criança por meio da cerimônia de união e daria à fêmea o status ao qual ela se julgava digna. Caso contrário, ele se afastaria e a fêmea não diria nada, porque estava maculada aos olhos de sua classe, sua pureza perdida como um terreno já arado.
De fato, Hharm já decidira que era hora de se assentar. Depois de séculos de perdições e depravações, a idade começava a pesar. Ele se punha a considerar, pela primeira vez, o legado que deixaria para a posteridade. No momento, não lhe faltavam bastardos, frutos de sua pelve, os quais não conhecia, com quem não se importava e jamais se associaria a eles – e por tanto tempo era de conhecimento geral que ele não devia nada a ninguém.
Agora, porém... Ele se encontrava desejando uma árvore genealógica adequada. E também havia a questão das suas dívidas crescentes, algo que o pai dessa fêmea facilmente resolveria para ele – embora, mais uma vez, caso não fosse um filho varão, ele não a desposaria. Não era louco, não se prostituiria por centavos. Além disso, havia incontáveis fêmeas da glymera que cobiçavam o status inerente à vinculação com um membro da Irmandade da Adaga Negra.
Hharm não se comprometeria até ter um filho homem, a quem criaria desde a primeira noite.
– Oras, recomponha-se! – ele repreendeu-a quando ela gritou uma vez mais, uma ofensa aos seus ouvidos. – Fique calada!
Como em todas as coisas, contudo, ela o desafiou:
– Está chegando...! O seu filho está chegando!
A veste que ela usava foi suspensa até a base dos seios volumosos por mãos retorcidas. A barriga estendida e arredondada era uma visão vergonhosa, as coxas pálidas e finas permaneciam afastadas. O que acontecia no centro era repugnante: o que deveria ser a entrada delicada e adorável a fim de aceitar a excitação masculina vazava todo tipo de fluido e as carnes estavam inchadas e distorcidas.
Não, ele jamais a penetraria novamente. Com ou sem um filho, vinculados ou não, a perversão diante dos seus olhos não era algo de que ele pudesse se esquecer.
Felizmente, casamentos por conveniência eram uma contingência comum na aristocracia – não que ele se importasse caso não o fossem. As necessidades dela eram inconsequentes.
– Ele está chegando! – ela berrou quando a cabeça pendeu para trás e as unhas arranharam a terra debaixo de seu corpo. – Seu filho... ele se aproxima!
Hharm franziu a testa, depois seus olhos se arregalaram e as pernas se firmaram, afastadas. Ela não se equivocava, pois, de fato, algo começava a surgir de dentro dela... Era...
Uma abominação. Algo disforme e terrível...
Um pé.
– Isso é um pé?
– Tire seu filho do meu corpo – ela ordenou entre arquejos. – Puxe-o de dentro de mim e segure-o contra seu coração, reconheça-o como sua carne e seu sangue!
Com todas as armas ainda presas ao corpo, Hharm ajoelhou-se quando o segundo pé apareceu.
– Puxe! Puxe! – O Sangue jorrou e a fêmea berrou de novo quando o bebê não se moveu. – Ajude-me! Ele está asfixiado!
Hharm manteve-se afastado de toda aquela nojeira e imaginou quantas fêmeas inseminadas por ele haviam passado pela mesma situação. Seria sempre desagradável assim ou era ela quem era fraca?
De fato, deveria deixá-la que fizesse o parto sozinha, mas não confiava nela. A única maneira de ter certeza de que seu filho era macho era estar presente durante o nascimento. De outro modo, ele não desconsiderava a possibilidade de ela trocar uma filha indesejada pelo macho tão cobiçado – fruto de outro macho.
Aquela era, afinal, uma transação negociada, e ele sabia muito bem como tais coisas podiam ser manipuladas.
Em seguida, o som que emergiu da garganta da fêmea foi tão volumoso e demorado que interrompeu seus pensamentos. Depois os gemidos e as mãos sujas de terra e sangue dela se postaram no interior das coxas, puxando-as para fora e para cima, ampliando a abertura. E bem quando o Irmão acreditou que ela estivesse morrendo, quando cogitou se acabaria enterrando a ambos – e de pronto decidiu-se contra a proposição, visto que as criaturas da floresta logo consumiriam os restos mortais –, o bebê apareceu um pouco mais, livrando-se de algum obstáculo interno.
E lá estava ele.
Hharm se adiantou.
– Meu filho!
Sem pensar, esticou os braços e apanhou com mãos firmes os tornozelos escorregadios. Estava vivo; a criança chutava com força, debatendo-se contra o confinamento do canal vaginal.
– Venha para mim, meu filho – Hharm ordenou ao puxá-lo.
A fêmea se contorcia em agonia, mas ele não lhe dispensou um pensamento sequer. Mãos – pequeninas e perfeitamente bem formadas – surgiram em seguida, junto à barriga arredondada e o peito, que, mesmo em seu momento recém-nascido, era amplo.
– Um guerreiro! Este é um guerreiro! – O coração de Hharm batia forte, seu triunfo latejava nos ouvidos. – Meu filho levará adiante o meu nome! Será conhecido como Hharm, assim como eu antes dele!
A fêmea ergueu a cabeça, as veias do pescoço saltavam como cordões tensos sob a pele pálida demais.
– Você me desposará – ela disse, rouca. – Jure... Jure pela sua honra, ou eu o segurarei dentro de mim até que fique azul e entre no Fade.
Hharm sorriu com frieza, revelando as presas. Em seguida, desembainhou uma das adagas do peito. Direcionando a ponta para baixo, mirou no baixo ventre dela.
– Eu a estriparei como a um cervo para libertá-lo, nalla.
– E quem alimentará seu precioso filho? O seu sêmen não sobreviverá sem mim.
Hharm pensou na tormenta do lado de fora. Na distância que estavam do assentamento de vampiros mais próximo. E no pouco que sabia sobre as necessidades de um recém-nascido.
– Você me desposará, conforme prometido – ela gemeu. – Jure!
Os olhos dela estavam injetados e ensandecidos, os longos cabelos suados e emaranhados, o corpo era algo sobre o qual ele jamais desejaria se sobrepor. Mas a lógica dela o impedia. Perder o que desejava por conta exatamente do arranjo que estivera disposto a fazer, simplesmente porque ela o apresentava como se fosse uma condição sua, não era uma decisão sábia a se tomar.
– Juro – murmurou.
Com isso, ela voltou a se deitar e, sim, agora ele a ajudaria, puxando no ritmo dos empurrões dela.
– Ele está vindo... ele...
O bebê saiu de dentro dela num jorro, fluidos saindo com ele e, quando Hharm o segurou em suas palmas, sentiu uma alegria inesperada tão ressonante que...
Seus olhos se estreitaram ao pousar as vistas sobre o rosto dele. Acreditando que havia alguma membrana mascarando o bebê, passou uma das mãos pelas suas feições, que eram um misto das dele e da fêmea.
Lamentavelmente... nada mudou.
– Que maldição é esta? – questionou-se consigo mesmo. – Que maldição... é esta!

 

 

 

 

 

 

CAPÍTULO 1


MONTANHAS DE CALDWELL, NOVA YORK, DIAS ATUAIS

A Irmandade da Adaga Negra o mantinha vivo só para poder matá-lo.

Dada a soma das atividades terrenas de Xcor, que foram das mais violentas, e certamente muito depravadas, aquele parecia um fim adequado para ele.

Nascera numa noite de inverno durante uma tempestade histórica. Nas entranhas de uma caverna suja e úmida, enquanto rajadas gélidas assolavam o Antigo País, a fêmea que o carregara gritara e sangrara para dar ao Irmão da Adaga Negra Hharm o filho tão exigido por ele.

Ele fora desesperadamente desejado.

Até chegar ao mundo.

E esse era o início da sua história, que acabara por levá-lo até ali.

Em outra caverna. Em outra noite do mês de dezembro. E assim como na noite do seu nascimento de fato, o vento gemia para recebê-lo, ainda que, dessa vez, fosse para o retorno da sua consciência em vez da expulsão para a vida independente que levou dali adiante.

E como um recém-nascido, tinha pouco controle sobre o corpo. Estava incapacitado, e isso seria verdadeiro mesmo sem as algemas de aço e as barras sobre o peito, o quadril, as coxas. Máquinas, contrastantes com o ambiente rústico que o rodeava, emitiam sinais atrás de sua cabeça, monitorando-lhe a respiração, os batimentos cardíacos, a pressão sanguínea.

Com a mesma fluidez de uma engrenagem sem lubrificação, seu cérebro começou a funcionar adequadamente sob o crânio; quando os pensamentos por fim se aglutinaram e formaram uma sequência lógica, lembrou-se da série de eventos que fizeram com que ele, o líder do Bando de Bastardos, acabasse sob a custódia daqueles que haviam sido seus inimigos: um ataque por trás, uma concussão, uma espécie de derrame ou algo do tipo que fez com que ele acabasse deitado, dependendo de máquinas para sobreviver.

E da inexistente misericórdia dos Irmãos.

Recobrara a consciência uma ou duas vezes durante o período em cativeiro, registrando seus captores e o ambiente daquele corredor cavernoso que inexplicavelmente abrigava jarros de todos os tipos. A retomada da consciência nunca durou muito; entretanto, a conexão com sua área mental era insustentável por um tempo mais demorado.

No entanto, dessa vez parecia diferente. Ele percebia a mudança em sua mente. O que quer que tivesse estado danificado por fim se curara e agora ele retornava do cenário enevoado do ponto de morto-vivo, permanecendo do lado vital.

– ... muito preocupado com Tohr.

O fim da frase enunciada por um macho entrou nos ouvidos de Xcor como uma série de vibrações, cuja tradução sofreu um atraso, e quando as palavras se formaram, ele virou o olhar naquela direção. Duas figuras de preto muito bem armadas estavam de costas para si, e ele voltou a abaixar as pálpebras, pois não desejava revelar a mudança do seu estado. Entretanto, suas identidades estavam devidamente anotadas.

– Não, ele está bem. – O som de algo raspando e o cheiro de tabaco permeando o ar. – E se não estiver, vou estar ao lado dele.

A voz grave que falou primeiro pareceu árida.

– Pra botar nosso irmão na linha à força... Ou ajudá-lo a acabar com este pedaço de carne?

O Irmão Vishous riu como se fosse um assassino em série.

– Que bela consideração você tem por mim.

Era estranho que não se entendessem melhor, Xcor pensou. Esses machos queriam tanto sangue quanto ele.

No entanto, essa aliança jamais existiria. A Irmandade e os Bastardos sempre estiveram em lados opostos durante o reinado de Wrath, esse limite tendo sido estabelecido pela bala que Xcor alojara na garganta do líder por direito da raça vampírica.

E o preço de sua traição seria cobrado ali, em pouco tempo.

Claro, a ironia era que uma força de compensação interceptara seu destino e fizera com que suas ambições e seu foco se afastassem, e muito, do trono. Não que os guerreiros da Irmandade tivessem ciência disso – e pouco se importariam se soubessem. Além de partilharem o apetite pela guerra, ele e os Irmãos tinham outras características em comum: piedade era para os fracos; o perdão, algo patético; pena, um sentimento das fêmeas, nunca de guerreiros.

Embora soubessem que ele já não sentia nenhuma agressividade em relação a Wrath, não o exonerariam daquilo que conquistara com méritos. Por conta de tudo o que acontecera, ele não sentia nem amargura nem raiva em relação ao que o esperava. Aquela era a natureza do conflito.

Contudo, sentia-se triste – um sentimento desconhecido para ele.

Das suas lembranças surgiu uma imagem que lhe roubou o fôlego. Era o de uma fêmea alta e magra nas vestes sagradas das Escolhidas da Virgem Escriba. Os cabelos loiros ondulavam sobre os ombros e desciam até o quadril em uma brisa suave, os olhos eram cor de jade, o sorriso, uma benção que ele não fizera nada para receber.

A Escolhida Layla mudara tudo para ele, transformando a Irmandade de um alvo a algo tolerável, de inimigo a um habitante coexistente naquele mundo.

Em pouco mais de um ano e meio, período no qual Xcor a conhecia, ela tivera um efeito mais impactante sobre sua alma negra do que qualquer outra pessoa antes dela, fazendo com que evoluísse muito em tempo ínfimo – algo que ele jamais imaginara ser possível.

O Dhestroyer, camarada de Vishous, voltou a falar:

– Na verdade, concordo plenamente com Tohr sobre fazer picadinho do filho da puta. Ele conquistou esse direito.

O Irmão Vishous praguejou.

– Todos nós merecemos. Vai ser difícil deixar uma parte dele intacta quando isso acontecer.

E ali estava o enigma, Xcor ponderou por trás das pálpebras abaixadas. A única saída possível de tamanho cenário mortal seria revelar o amor que sentia por uma fêmea que não era sua, nunca fora e jamais poderia ser.

Mas não sacrificaria a Escolhida Layla por ninguém, por nada.

Nem mesmo para se salvar.

Enquanto Tohr caminhava na floresta de pinheiros da montanha da Irmandade, seus coturnos esmagavam o terreno congelado, e o vento glacial o golpeava no rosto. Em seu rastro, tão próximo de seus calcanhares quanto uma sombra, ele sentia suas perdas a acompanhá-lo, numa fila de lamentos tangíveis como uma corrente.

A sensação de estar sendo perseguido pelos seus mortos o fez refletir a respeito de programas de TV sobre eventos paranormais, do tipo que tentava provar a existência de fantasmas. Que monte de bobagens. A histeria humana acerca das supostas entidades obscuras flanando em escadas e provocando rangidos em casas antigas, com seus passos sem corpos, era algo muito característico dessa espécie desimportante absorta em si mesma e criadora de dramalhões. Mais uma coisa que Tohr odiava a respeito deles.

E, como de costume, eles não acertavam no alvo.

Os mortos absolutamente nos atormentam, percorrendo seus dedos gélidos em nossa nuca como uma forma de lembrete até não conseguirmos decidir se queremos gritar pelas saudades que sentimos deles... ou porque queremos ser deixados em paz.

Eles espreitam suas noites e rondam seus dias, deixando um campo minado de tristeza ao longo dos caminhos.

São seus primeiros e seus últimos pensamentos, o filtro que você tenta deixar de lado, a barreira invisível entre você e todo o resto.

Algumas vezes, são mais parte de você do que as pessoas que você consegue de fato segurar e tocar.

Portanto, sim, ninguém precisa de um programa de TV idiota para provar o que já é de conhecimento comum: mesmo que Tohr tenha encontrado o amor com outra fêmea, sua primeira shellan, Wellsie, e o filho não nascido que ela carregava no ventre quando foi assassinada pela Sociedade Redutora, nunca foram afastados dele além da própria pele.

E agora houvera mais uma morte na mansão da Irmandade.

A companheira de Trez, Selena, subira para o Fade havia poucos meses, tendo falecido em razão de uma doença para a qual não existia cura, nenhum alívio, nenhum conhecimento.

Tohr não dormia direito desde então.

Voltando a se concentrar nas árvores que o cercavam, Tohr se abaixou e afastou um galho do caminho, depois deu a volta num tronco caído. Poderia ter se materializado até o destino, mas seu cérebro latejava com tanta violência da prisão do crânio que ele duvidava que conseguiria se concentrar o bastante para se dissipar.

A morte de Selena fora um maldito gatilho para ele, um evento que afetava outra pessoa, mas que, não obstante, sacudira seu globo de neve, balançando-o com tanta força que seus flocos internos ainda rodopiavam e se recusavam a se assentar.

Estava no centro de treinamento quando ela fora chamada para o Fade, e o momento da morte não fora silencioso. Fora marcado pelo som da alma dilacerada de Trez, o equivalente auditivo de uma tumba – um som que Tohr conhecia bem demais. Fizera o mesmo quando recebera a notícia da morte de sua fêmea.

Portanto, sim, nas asas da agonia do seu amor, Selena fora alçada da terra para o Fade...

Arrancar-se desse espiral cognitivo era o mesmo que tentar tirar um carro de um atoleiro, o esforço necessário era tremendo, o progresso conquistado centímetro a centímetro.

No entanto, lá ia ele pela floresta, na noite invernal, esmagando o que aparecia sob suas solas, com seus fantasmas sussurrando-lhe por trás.

A Tumba era o sanctum sanctorum da Irmandade da Adaga Negra, aquele local secreto onde as induções aconteciam e convocavam-se as reuniões secretas, e onde eram mantidos os jarros dos redutores assassinados. Estava localizada abaixo do solo, num labirinto criado pela natureza, tradicionalmente fora dos limites para qualquer um que não tivesse passado pela cerimônia que o marcasse como membro da Irmandade.

Essa regra, no entanto, tivera que ser contornada, pelo menos em respeito ao longo corredor de entrada de quase meio quilômetro.

Ao se aproximar do insuspeito sistema da entrada, parou e sentiu a raiva surgir.

Pela primeira vez desde que se tornara um Irmão, não era bem recebido ali.

Tudo por causa de um traidor.

O corpo de Xcor estava do lado oposto dos portões, na metade do caminho repleto de prateleiras, deitado numa maca, a vida monitorada e mantida por equipamentos.

Até que o maldito despertasse e pudesse ser interrogado, Tohr não tinha permissão para entrar.

E seus irmãos tinham razão em não confiar nele.

Ao fechar os olhos, viu seu rei com um tiro na garganta. Reviveu o momento em que a vida de Wrath estivera escorrendo junto ao sangue rubro; rememorou a cena em que tivera que salvar o último vampiro de sangue puro no planeta ao cortar um buraco na frente da garganta dele e enfiar o tubo de sua Camelback naquele esôfago.

Xcor encomendara o assassinato. Xcor ordenara um dos seus guerreiros mandar uma bala para dentro das carnes de um macho de valor, conspirara com a glymera para derrubar o governante por direito, mas o filho da puta fracassara. Wrath sobrevivera, apesar das probabilidades contrárias,, e na primeira eleição democrática da história da raça, fora apontado como líder de todos os vampiros – uma posição que ele agora detinha por consenso em vez de pela sua linhagem.

Portanto, vá se foder, filho da puta.

Cerrando os punhos, Tohr ignorou o ranger das luvas de couro e a constrição no dorso dos nós dos dedos. Só o que reconhecia era o ódio, tão profundo como uma doença letal.

O destino decidira que era certo tirar-lhe três seus e dos seus; o destino tirara dele sua shellan, seu filho, e o amor da vida de Trez. Querem falar sobre equilíbrio no Universo? Tudo bem. Ele queria o seu equilíbrio, e isso só aconteceria quando quebrasse o pescoço de Xcor e arrancasse o coração ainda quente do peito do maldito.

Já era hora de uma fonte do mal ser tirada de circulação, e era ele quem empataria o placar.

E a espera finalmente terminava. Por mais que respeitasse seus irmãos, estava farto de aguardar. Essa noite era um aniversário triste para ele, e ele daria ao seu luto um presentinho especial.

Era hora de festejar.


CAPÍTULO 2

O copo de cristal baixo estava tão limpo, tão isento de marcas de sabão, de poeira, de qualquer grânulo que o manchasse, que sua estrutura era como o ar; e a água dentro dele, totalmente invisível.

Meio cheio, a Escolhida Layla ponderou. Ou meio vazio?

Sentada no banquinho acolchoado, entre as duas pias com torneiras douradas e diante de um espelho com adornos de ouro que refletia a banheira funda atrás de si, ela observava a superfície do líquido.

O fundo era côncavo e a água lambia levemente o interior do copo, como se suas moléculas mais ambiciosas tentassem fugir do confinamento.

Respeitava o esforço, enquanto lamentava sua futilidade. Sabia muito bem o que era querer ser livre do local que a abrigava, apesar de não ser culpa sua.

Por séculos, ela fora a água daquele copo, despejada sem ter querido, em virtude apenas do seu nascimento, num papel de servidão junto à Virgem Escriba. Ao lado de suas irmãs, executara os deveres sagrados das Escolhidas no Santuário, adorando a mãe da raça, registrando os eventos da Terra para a posteridade dos vampiros, aguardando a escolha de um novo Primale para que ela pudesse engravidar e dar à luz mais Escolhidas e mais Irmãos.

Mas tudo isso já era passado.

Inclinando-se sobre o copo, observou mais atentamente a água. Fora treinada como ehros, não como escriba, mas sabia muito bem como enxergar além das águas que eram testemunhas da história. Dentro do Templo das Escribas, as Escolhidas designadas a registrar as histórias e as linhagens da raça permaneceram sentadas por horas e horas, observando nascimentos e mortes, suas mãos delicadas com penas sagradas colocando os detalhes nos pergaminhos, acompanhando tudo.

Não havia nada para ela ver. Não ali na Terra.

E também já não existiam testemunhas no alto.

Um novo Primale acabara surgindo. Mas em vez de se deitar com seu rebanho de fêmeas, dando continuidade ao programa de criação da Virgem Escriba, ele dera um passo sem precedentes, libertando todas elas. O Irmão da Adaga Negra Phury se desviara do modelo, quebrara a tradição, desfizera-se das amarras e, ao fazê-lo, as Escolhidas que estiveram isoladas desde sua gênese, visando aos nascimentos planejados, acolheram sua libertação. Já não eram representantes vivas de uma tradição rígida; tornaram-se indivíduos, com seus próprios descontentamentos e preferências, mergulhando os dedos nas águas terrenas da realidade, procurando e encontrando destinos a respeito de si próprias, e não mais de um serviço.

Ao fazer isso, ele desencadeara o fim dos imortais.

A Virgem Escriba já não existia mais.

Seu filho de nascimento, o Irmão da Adaga Negra Vishous, a procurara no Santuário acima e descobriu que ela se fora, deixando uma última carta escrita no vento apenas para os olhos dele.

Ela dissera que tinha um sucessor em mente.

Ninguém sabia sua identidade.

Recostando-se, Layla olhou para a veste que trajava. Não era do tipo sagrado que se vestira durante tantos anos. Não, essa peça vinha de um lugar chamado Pottery Barn, e Qhuinn a comprara para ela na semana passada. Com a aproximação do inverno, ele se preocupava que a mãe de seus filhos estivesse aquecida, sempre bem cuidada.

A mão de Layla subiu para o ventre, agora baixo. Depois de ter carregado a filha, Lyric, e o filho, Rhampage, dentro do corpo por tantos meses, era tão estranho quanto familiar não ter nada no útero...

Vozes murmuradas, baixas e graves, penetraram a porta que ela havia fechado.

Entrara no banheiro para usar o vaso.

Demorara-se depois de ter lavado as mãos.

Qhuinn e Blay, como de costume, estavam com os bebês. Segurando-os. Ninando-os.

Todas as noites, ela tinha que se esforçar para testemunhar o amor, não entre eles e os pequenos... mas aquele entre os dois machos. De fato, os pais exibiam um vínculo ressonante e, resplandecente um com o outro, e por mais que fosse algo belo, aquele fulgor fazia com que se sentisse ainda mais vazia em sua existência.

Enxugando uma lágrima, disse a si mesma para se controlar. Não poderia voltar ao quarto com olhos brilhantes demais, e o nariz e faces corados. Aquele deveria ser um momento de alegria para os cinco integrantes da família. Agora que os gêmeos haviam superado o estado de emergência sob o qual tinham nascido, e Layla também se recuperara, todos estavam aliviados por todos estarem sãos e salvos.

Agora era a vida feliz que ganharam para viver.

Em vez disso, ela ainda era a água triste dentro do copo, desejando sair.

Dessa vez, porém, a prisão foi feita por ela mesma, em vez de providenciada pela genética.

A definição de infidelidade, pelo menos de acordo com o dicionário, era: a ação de trair algo ou alguém...

A batida à porta fechada foi suave.

– Layla?

Ela fungou e abriu uma das torneiras.

– Oi!

A voz de Blay soou baixa, como era seu hábito.

– Você está bem aí?

– Ah, sim, estou. Resolvi tratar um pouco do rosto. Sairei daqui a pouco.

Ela se levantou, inclinou-se e molhou o rosto. Depois esfregou a testa e o queixo com a toalha de mão para que o rubor se espalhasse mais uniformemente sobre a pele. Apertando o cinto do roupão, aprumou os ombros e foi para a porta, em meio a preces para manter a compostura pelo tempo necessário até conseguir apressá-los para a Última Refeição.

Mas teve um momento de folga.

Ao abrir a porta, Blay e Qhuinn sequer olhavam na sua direção. Estavam inclinados sobre o berço de Lyric.

– ... os olhos de Layla – Blay disse ao abaixar a mão e deixar que a pequena agarrasse seu dedo. – Definitivamente.

– Ela também tem os cabelos da mahmen. Veja o tom loiro começando a aparecer.

O amor deles pela pequena era incandescente, reluzia em seus rostos, aquecia suas vozes e, aplacava seus movimentos, de modo que tudo o que faziam era com cuidado. No entanto, não era nisso que Layla se concentrava.

Seu olhar estava fixo na palma larga de Qhuinn, que afagava as costas de Blay. A carícia de conexão era inconsciente de ambos os lados; a oferta e a aceitação eram tanto nada e tudo o que importava, simultaneamente. E enquanto testemunhava o que se passava do outro lado do quarto, Layla teve que piscar rápido de novo.

Às vezes, a gentileza e o amor podiam ser tão difíceis de testemunhar quanto a violência. Às vezes, quando se está do lado de fora, ver duas pessoas tão em sintonia era uma cena saída de um filme de terror, o tipo de coisa da qual você quer se manter afastado, quer esquecer, banir da memória – ainda mais quando se está prestes a deitar e enfrentar sozinha um longo dia de horas no escuro.

Saber que ela jamais teria esse amor especial com alguém era...

Qhuinn relanceou na sua direção.

– Ah, oi.

Ele se endireitou e sorriu, mas ela não se deixou enganar. Os olhos dele a percorriam como se em uma avaliação – mas, talvez, esse não fosse o caso. Talvez fosse simplesmente a sua paranoia se manifestando.

Estava tão farta de se dividir em uma vida dupla. Contudo, no tipo de ironia cruel que parecia ser a fonte favorita de divertimento do destino, o preço para aliviar a consciência viria à custa de sua própria existência.

A como poderia deixar os filhos para trás?

– ... ok? Layla?

Enquanto Qhuinn franzia a testa ao observá-la, ela balançou a cabeça e forçou um sorriso.

– Ah, tudo bem, mesmo. – Ela deduzia que a pergunta se referisse ao seu bem-estar. – Muito bem mesmo.

Em busca de confirmar a mentira, aproximou-se dos berços. Rhampage, ou Rhamp, como era conhecido, lutava contra o sono, e quando a irmã arrulhou, sua cabeça se virou e ele esticou a mão.

Engraçado. Mesmo tão jovem, ele parecia reconhecer seu posto e desejava protegê-la.

Era genético. Qhuinn era um membro da aristocracia, resultado de gerações de emparelhamentos escolhidos a dedo, e por mais que seu “defeito” de ter um olho azul e outro verde o tivesse feito receber o desprezo tanto da glymera quanto da própria família, a venerável natureza de sua linhagem não podia ser negada. Tampouco o impacto de sua presença física. Com quase dois metros de altura e corpo talhado por músculos definidos, moldados tanto pelos exercícios quanto pela prática na guerra – uma arma tão letal quanto as pistolas e adagas que levava consigo para o campo de batalha. Era o primeiro membro da Irmandade da Adaga Negra a ser induzido com base na meritocracia em vez de na linhagem, e não desapontara a grande tradição. Ele nunca desapontava ninguém.

De fato, Qhuinn era, no conjunto, um belo macho, ainda que de forma um tanto rústica. O rosto era angular, pois tinha pouca gordura corporal, e aqueles olhos despareados fitavam por baixo de sobrancelhas negras. Os cabelos pretos foram cortados muito curtos recentemente, quase totalmente raspados na base. Deixavam um topete para trás e, como resultado, seu pescoço parecia extra-grosso. Com piercings metálicos nas orelhas e a lágrima de ashtrux nohtrum abaixo do olho – uma marca dos tempos em que servira como protetor de John Matthew –, ele chamava a atenção por onde quer que passasse.

Talvez porque as pessoas, tanto humanos como vampiros, preocupavam-se com o que ele seria capaz de fazer caso fosse contrariado.

Blay, por sua vez, era o oposto: tão acessível quanto Qhuinn seria evitado num beco escuro.

Blaylock, filho de Rocke, tinha cabelos ruivos e um tom de pele mais claro do que a maioria da espécie. Era tão grande quanto Qhuinn, mas quando se está ao seu lado, a primeira impressão que se tem dele faz referência à sua inteligência e ao seu bom coração, em vez de a força bruta. Ainda assim, ninguém discutia suas habilidades em campo. Layla ouvira histórias, ainda que nunca da parte dele, visto que não era de se vangloriar, criar dramas excessivos ou atrair atenções para si.

Ela amava os dois de todo o coração.

E o distanciamento que sentia em relação a eles partia somente do seu lado.

– Olha só – Qhuinn disse ao apontar para os bebês. – Temos dois se apagando... Melhor, um e meio.

Quando ele sorriu, ela não se deixou enganar. Seus olhos continuavam a passear pelo seu rosto, à procura sobre sinais de exatamente aquilo que ela tentava esconder. Para dificultar o escrutínio dele, ela recuou.

– Eles dormem bem, graças à Virgem Escriba... Hum, graças ao Fade.

– Você vai descer para a Última Refeição hoje? – ele perguntou como quem não quer nada.

Blay se endireitou.

– Fritz disse que prepara o que você quiser.

– Ele é sempre tão gentil. – Ela foi até a cama e se deitou contra os travesseiros. – Na verdade, senti uma fominha lá pelas duas da manhã, por isso fui até a cozinha e comi torradas e aveia. Tomei café. Suco de laranja. Um café da manhã no lugar do almoço, por assim dizer. Sabem como é, às vezes sentimos vontade de voltar o relógio no meio da noite e recomeçar da metade.

Uma pena que isso não passasse de uma metáfora.

Ainda que... será que ela teria escolhido nunca conhecer Xcor?

Sim, pensou. Preferiria nunca ter sabido da sua existência.

O amor de sua vida, seu “Blay”, o par do seu coração e da sua alma... era um traidor. E seus sentimentos pelo macho foram uma ferida aberta na qual a bactéria da traição entrara e se espalhara.

Portanto, ali estava ela, na prisão estabelecida por ela própria, torturada pelo fato de ter se aproximado do inimigo, primeiro por ter sido ludibriada... e mais tarde porque quis estar na presença de Xcor.

Separaram-se em maus termos, contudo, com ele colocando um fim nos encontros clandestinos após ela forçá-lo a admitir seus sentimentos. Em seguida, a situação se transformara de triste para trágica, quando ele foi capturado e levado sob a custódia da Irmandade.

A princípio não conseguira obter informações acerca de seu estado. Mas então, viajara ao modo de uma Escolhida até ele e, testemunhara seu estado moribundo num corredor de pedras, repleto de jarros de todas as cores e formas.

Não havia nada que pudesse ter feito por ele. Não sem se apresentar e se expor – e mesmo que ela o fizesse, não poderia salvá-lo.

Por isso estava presa ali: um fantasma atormentado num misto de emoções salpicadas pelo veneno da culpa e do arrependimento, sem nunca, jamais, poder se libertar.

– ... certo? Quero dizer... – Enquanto Blay continuava a falar com ela a respeito de uma e outra coisa, a Escolhida se forçou a não esfregar os olhos. – ... no fim da noite, enquanto você fica aqui com os bebês. Não que você não goste de ficar com eles.

Saiam, ela solicitou mentalmente para os dois machos. Por favor, vão embora e me deixem em paz.

Não era como se ela quisesse afastá-los das crianças, ou que sentisse alguma malquerença pelos pais de Lyric e Rhamp. Ela só precisava respirar. E toda vez que um dos guerreiros a fitava, como faziam agora, respirar se tornava praticamente impossível.

– Você concorda? – Qhuinn perguntou. – Layla?

– Ah, sim, claro. – Ela não fazia ideia do que acabara de concordar, mas certificou-se de sorrir. – Só vou descansar agora. Eles ficaram bastante tempo acordados durante o dia.

– Eu gostaria que nos deixasse ajudar mais. – Blay franziu a testa. – Estamos aqui do lado.

– Vocês dois lutam na maioria das noites. Precisam dormir.

– Mas você também é importante.

Layla direcionou o olhar rumo aos os berços e, ao rememorar a cena de si mesma acalentando-os e amamentando-os, sentiu-se ainda pior. Mereciam uma mahmen melhor do que ela, descomplicada e sem o fardo de decisões que nunca deveriam ter sido tomadas, uma que não estivesse contaminada pela fraqueza em relação a um macho de quem jamais deveria ter se aproximado... muito menos amado.

– Não tenho a mínima importância em comparação a eles – sussurrou rigidamente. – Eles são tudo.

Blay se aproximou e a tomou pela mão, os olhos azuis calorosos.

– Não, você também é muito importante. E mahmens precisam de tempo para si.

Para fazer o quê? Ruminar meus remorsos? Não, muito obrigada, pensou.

– Vou para o túmulo sem eles e aí apreciarei minha própria companhia. – Ao perceber o quanto tinha soado mórbida, apressou-se: – Além disso, eles crescem rápido. Vai acontecer antes de nós três nos darmos conta.

Conversaram mais depois – não que ela tivesse prestado atenção, com todos os gritos em sua mente. Mas, por fim, foi deixada em paz quando o casal partiu.

O fato de ficar tão feliz ao vê-los sair foi mais uma tristeza que ela tinha a carregar.

Mudando de posição na cama, levantou-se e se aproximou dos berços com os olhos rasos de lágrimas. Enxugando o rosto, repetidas vezes, ela pegou um lenço de papel do bolso do roupão e assoou o nariz. Os bebês estavam profundamente adormecidos, com os olhos fechados, os rostos voltados um para o outro como se estivessem se interligado em uma comunicação telepática durante o sono. Mãozinhas perfeitas e pezinhos preciosos, barriguinhas redondas e saudáveis envolvidas em cobertorzinhos de flanela. Eram bebês tão bons; alegres quando acordados, pacíficos e angelicais adormecidos. Rhampage ganhava peso com mais velocidade do que Lyric, mas ela parecia mais saudável do que ele, reclamava menos ao ser lavada ou trocada, fitando tudo com mais atenção.

Quando as lágrimas caíram do rosto de Layla até o carpete, ela não sabia quanto tempo mais suportaria.

Antes de tomar ciência do movimento, foi até o telefone interno da casa e apertou uma sequência de quatro números.

A doggen que convocou chegou em questão de momentos, e Layla voltou a vestir sua máscara social, sorrindo para a criada com uma serenidade que não sentia.

– Grata por cuidar dos meus preciosos – disse no Antigo Idioma.

A babá respondeu com alegria e olhos cintilantes, e Layla só aguentou dois ou três segundos de comunicação. Em seguida, saiu do quarto e, com passos ligeiros protegidos por chinelos, desceu pelo corredor das estátuas. Quando chegou às portas da extremidade oposta, empurrou uma delas e entrou na ala dos empregados.

Como em todas as mansões daquele tamanho e distinção, o lar da Irmandade necessitava de um tremendo apoio de funcionários, e os aposentos dos doggens perfilavam o corredor; a segregação por idade, sexo e posição nos escalões formava comunidades dentro do grande conjunto. Em meio ao labirinto de corredores, Layla não escolheu uma direção específica além do objetivo de encontrar um quarto vazio – e encontrou-o umas três portas adiante, depois de uma virada. Ao entrar no espaço simples e desocupado, foi até a janela, abriu-a e fechou os olhos. Seu coração batia forte e uma ligeira tontura a dominava, mas ela inspirou fundo o ar fresco e limpo...

... e se desmaterializou através da abertura que criara, misturando-se à noite; as moléculas se espalhando e se afastando da mansão da Irmandade.

Como sempre, sua liberdade seria temporária.

Mas, desesperada como estava, foi tomada por um breve sufocamento, e ela partiu em busca de oxigênio.


CAPÍTULO 3

Qhuinn era um macho muito macho. E não só porque era um guerreiro casado com outro cara.

Sim, claro que, antes de se assentar com Blay, até que gostara de transar com fêmeas e mulheres. Mas, pensando bem, seu padrão para parceiros sexuais fora tão baixo que até aspiradores de pós e canos de escapamento tinham sido candidatos ocasionais.

Mas nada de ovelhas. #critério

No entanto, não poderia dizer que as fêmeas o tivessem cativado ou interessado de fato. Não que houvesse algo de errado com elas, ou que não as respeitasse assim como todo o resto. Elas simplesmente não eram do seu gosto.

Numa noite como a de hoje, porém, ele lamentava sua inexperiência. Só porque ralara e rolara com o sexo oposto não significava que estivesse equipado de algum modo para lidar com o que o confrontava agora.

Quando ele e Blay chegaram ao pé da escadaria principal, ele parou e olhou para seu par. Ao fundo, vindo da sala de bilhar do lado oposto do átrio, o som das vozes graves dos machos, de música e de gelo batendo em copos de cristal anunciavam que o torneio de bilhar da Irmandade já estava em curso.

Qhuinn sorriu de uma maneira que esperava transmitir calma.

– Ei, eu já te encontro lá, ok? Tenho que descer pra falar com a doutora Jane sobre o meu ombro, acho que demoro uns dez minutos... Não mais do que isso.

– Claro. Quer que eu vá com você?

Por um segundo, Qhuinn se perdeu ao observar seu macho. Blaylock, filho de Rocke, era tudo o que ele não era: impecável como um corpo esculpido por Michelangelo, tinha um rosto de arrasar e uma cabeleira ruiva e lustrosa como a cauda de um pônei; era inteligente, mas também equilibrado, o que fazia toda a diferença; era firme e confiável como uma montanha de granito, o tipo de cara que nunca vacilava.

Em tudo o que importava, comparado a Blay, Qhuinn era uma banheira de plástico perto de uma de porcelana; um conjunto incompleto de pratos ao lado de uma dúzia perfeita de louças; uma coisa rachada no meio de algo inquebrável.

Por algum motivo, porém, Blay o escolhera. Contra todas as possibilidades, o filho imperfeito e desonrado de uma das Famílias Fundadoras, o viciado sexual de olhos despareados, o vagabundo hostil e arredio... De algum modo acabara com o Príncipe Encantado, e caralho, se isso não o convertia.

Blay era o motivo que o fazia respirar, o lar que nunca tivera, a luz do sol que empoderava sua terra.

– Qhuinn? – Os olhos azuis iridescentes se apertaram. – Você está bem?

– Desculpe. – Ele se inclinou e pressionou os lábios na jugular do macho. – Eu me distraí. Mas você sempre tem esse efeito em mim, não é?

Quando Qhuinn se afastou, Blay estava corado – e excitado. Aquela fragrância era uma digressão que não podia ser facilmente ignorada.

A não ser pelo fato de que tinha um problema real para resolver.

– Diga aos irmãos que não demoro. – Qhuinn apontou na direção da sala de bilhar. – E que vou dar uma surra neles.

– Você sempre faz isso. Mesmo com Butch.

As palavras foram suaves, mas respaldadas por uma adoração que fazia com que Qhuinn contasse cada uma das suas bênçãos.

Cedendo ao instinto, Qhuinn se aproximou e sussurrou ao ouvido do cara:

– Talvez queira se alimentar bem na Última Refeição. Vou te manter ocupado o dia inteiro.

Com uma lambida no pescoço em que pretendia trabalhar mais tarde, Qhuinn se afastou antes que não pudesse mais se distanciar de seu par.

Seguindo ao redor da base da escada, passou por uma porta escondida e desceu pelo sistema de túneis que conectava os componentes da propriedade. O centro de treinamento subterrâneo da Irmandade ficava cerca de meio quilômetro afastado da mansão, e aquela passagem subterrânea ligando as duas partes era um espaço amplo iluminado por painéis de luzes fluorescentes afixados ao teto.

Enquanto ele avançava, o som dos seus passos ecoava ao redor, como se os coturnos aplaudissem a iniciativa.

Contudo, Qhuinn não sabia se eles estavam certos. Não fazia a mínima ideia do que estava fazendo ali.

A porta atrás do armário de suprimentos se abriu sem emitir nenhum som, uma vez inserida a senha; em seguida, o guerreiro passava ao longo de prateleiras repletas de papéis para impressora, canetas, blocos de anotação e outras merdas vindas da loja de materiais para escritório. A sala, além do depósito, apresentava a típica disposição de mesa, cadeira, computador e arquivos metálicos, e nenhuma dessas coisas foi particularmente percebida quando ele passou pela porta de vidro adiante para chegar ao corredor da frente. Com passadas longas e impacientes, atravessou todos os tipos de instalações de nível profissional – desde uma academia completa e sala de pesos à altura de Dwayne Johnson, até os vestiários e as primeiras salas de aula.

A porção destinada à clínica do centro de treinamento tinha outra quantidade de cômodos voltados ao tratamento, uma sala de operações e diversos leitos hospitalares. A doutora Jane, companheira de V., e o doutor Manello, companheiro de Payne, cuidavam de todo tipo de ferimentos obtidos em combate, além de problemas domésticos e sem falar dos partos de L.W., Nalla e dos gêmeos Lyric e Rhampage.

Qhuinn bateu na primeira porta ao se aproximar e não teve que esperar nem uma batida do seu coração para ter uma resposta.

– Entre! – a doutora Jane disse do lado oposto da porta.

A boa médica vestia roupas cirúrgicas e um par de Crocs. Sentada diante do computador na outra extremidade da bem equipada clínica, seus dedos voavam sobre o teclado enquanto ela atualizava o prontuário de alguém cabisbaixa; seus cabelos loiros curtos espetados como se ela tivesse passado a mão por eles durante horas.

– Um segundinho... – Ela apertou a tecla de “enter” e girou. – Ah, olá, papai. Como está?

– Ah, você sabe, imerso no amor.

– Aqueles seus bebês são maravilhosos. E olha que eu nem gosto de crianças.

O sorriso dela era acolhedor como uma torta de maçãs. Os olhos verde-montanha, por outro lado, eram afiados como raios laser.

– Graças a você, eles estão se saindo muito bem.

Houve uma deixa para o silêncio. Quando a conversa não evoluiu, ele se pôs a caminhar pela clínica, pois não conseguia ficar parado. Deu uma espiada nos equipamentos estéreis e imaculados sobre os gabinetes de aço inoxidável, inspecionou a maca vazia sob as luzes usadas nas operações, ajeitando as calças.

A médica apenas ficou sentada no seu banquinho, calma e silenciosa, deixando que ele se debatesse com a sua mente. Quando o celular dela tocou, Jane deixou que caísse na caixa de mensagens sem nem ver quem poderia ser.

– Provavelmente estou errado – ele acabou concluindo. – Que porra sei eu, afinal?

A doutora Jane sorriu.

– Na verdade eu te acho um cara bem inteligente.

– Não sobre este tipo de coisa. – Com um pigarro, Qhuinn propôs a si mesmo que prosseguisse; ainda que a doutora Jane não parecesse estar com pressa, ele estava entediando a si mesmo. – Olha só... eu amo a Layla.

– Claro que sim.

– E quero o melhor pra ela. Ela é a mãe dos meus filhos. Quero dizer, além de Blay, ela é a minha companheira por causa das crianças.

– Com certeza.

Cruzando os braços diante do peito, ele parou de andar e empostou-se de frente à doutora Jane.

– Não estou dizendo que sei alguma coisa sobre fêmeas. Coisas como os seus humores e por aí vai. Só que... Layla tem chorado muito. Quero dizer, ela tenta esconder isso de mim e do Blay, mas... toda vez que vou vê-la, encontro bolas de lenços de papel no cesto de lixo, e seus olhos estão brilhantes demais, o rosto, corado. Ela sorri, mas o sorriso nunca passa da superfície. Os olhos dela... são uma tragédia de merda. E... e eu não sei o que fazer, só sei que isso não está certo.

A médica assentiu.

– Como ela se porta com as crianças?

– É fantástica, pelo que posso ver. É totalmente devotada a eles, e eles estão crescendo. Na verdade, o único momento em que a vejo meio que feliz é quando os têm nos braços. – Pigarreou novamente. – Então, o que estou imaginando... ou perguntando, sei lá, é se as fêmeas gestantes, depois que não estão mais grávidas, se elas não...

Jesus, ele merecia todo tipo de prêmio por saber se explicar tão bem. E os termos técnicos com os quais se debatia? Praticamente estava a um passo de receber o título de doutor em Medicina, assim como Jane.

Cacete.

Mas pelo menos a doutora Jane parecia reconhecer que aquele avião conversacional estava ficando sem pista para decolar.

– Acho que está querendo me perguntar a respeito de depressão pós-parto. – Após vê-lo assentir, ela prosseguiu: – Posso lhe afirmar que não é incomum entre os vampiros, e que pode ser incapacitante. Conversei com Havers a respeito disso antes, e estou muito feliz que tenha vindo me procurar para tratar do assunto. Às vezes, uma mãe recente sequer está ciente de que isso pode se tornar um problema.

– Não existe nenhum exame... ou um... sei lá.

– Existem algumas maneiras diferentes de avaliar a questão, e o comportamento é uma delas. Claro que posso ir conversar com ela, e também posso fazer alguns exames de sangue para avaliar os níveis hormonais. E, sim, existem muitas coisas que podemos fazer para tratar dela e dar-lhe o apoio necessário.

– Não quero que Layla pense que estou agindo pelas costas dela nem nada assim.

– O que é totalmente compreensível. Mas tudo bem, porque eu pretendia mesmo subir até lá para dar uma olhada nela e nos bebês. Posso abordar o tema como se fosse parte de uma rotina. Nem terei que citar seu nome.

– Você é a melhor.

Com o assunto resolvido, ele supôs que era hora de voltar para junto do seu companheiro e para o torneio de bilhar. Mas não saiu. Por algum motivo, não conseguia.

– Não é sua culpa – garantiu a doutora Jane.

– Eu a engravidei. E se o meu... – Ok, ela era médica, mas Qhuinn ainda não queria pronunciar a palavra esperma perto dela. O que era loucura. – E se a minha metade for a causa...

A porta se abriu, e Manny enfiou a cabeça pela abertura.

– Ei, está pronta...? Opa, desculpem.

– Estamos quase terminando aqui. – A doutora Jane sorriu. – E você não nos viu juntos.

– Pode deixar. – Manny bateu na soleira. – Se eu puder ajudar de alguma maneira, é só avisar.

E lá se foi o cara, como se nunca tivesse aparecido ali.

A doutora Jane se levantou e se aproximou dele. Era mais baixa do que Qhuinn, e sua estrutura nem se comparava aos quase 140 quilos de músculos masculinos. Mas ela parecia pairar acima dele; a autoridade na voz e nos olhos dela era exatamente o que ele precisava para acalmar seu lado irracional.

Quando encostou a mão no braço dele, sua expressão estava firme.

– Não é sua culpa. Esse, às vezes, é o curso da natureza em algumas gestações.

– Fui eu quem colocou aqueles bebês dentro dela.

– Sim, mas imaginando que este seja um caso de os hormônios se autorregularem após o parto, não há ninguém para culpar. Além disso, você agiu bem ao vir até aqui, e também pode ajudá-la simplesmente conversando com ela e lhe dando o tempo e o espaço necessários para que ela também converse com você. Para ser sincera, eu já havia notado que ela não tem descido para as refeições. Acho que precisamos encorajá-la a se juntar ao resto de nós, para que ela sinta o quanto estamos disponíveis para ampará-la.

– OK. Certo, então.

A doutora Jane franziu a testa.

– Posso lhe dar um conselho?

– Por favor.

Ela o apertou no braço.

– Não se sinta responsável por algo sobre o qual não tem controle algum. Isso é um convite ao estresse que acabará deixando-o loucamente infeliz. Sei que é mais fácil falar do que fazer, mas tente se lembrar disso, está bem? Eu o vi acompanhá-la a cada estágio da gestação. Não houve nada que você não tenha feito por ela ou que não faria por ela, e você é um pai fantástico. Somente coisas boas o esperam, eu prometo.

Qhuinn inspirou fundo.

– Certo.

Mesmo quando sua preocupação persistiu, ele se lembrou de que, durante a gestação de Layla, descobrira que podia confiar na doutora Jane. A médica o ajudara a trilhar a estrada da vida e da morte, e nunca o decepcionara, nunca deixara que se desgarrasse. Tampouco mentira para ele e lhe dera maus conselhos.

– Vai ficar tudo bem – ela prometeu.

Infelizmente, como pôde-se perceber mais tarde, a boa médica estava errada.

Mas ela não tinha controle algum sobre o destino.

Nem ele.


CAPÍTULO 4

O bebê estava arruinado. Tudo o que detinha não passava de uma versão modificada e horrenda das feições de Hharm; o lábio superior era todo errado, como o de uma lebre.

Hharm largou o bebê no piso sujo da caverna, e a coisa não emitiu som algum ao aterrissar, os braços e as pernas mal se moviam, as carnes azuladas e acinzentadas, o cordão ainda o unia à fêmea. Iria morrer, assim como deveriam todos os resultados contra as regras da natureza e do parto – e essa consequência não era causa de indignação.

O fato de Hharm ter sido ludibriado, porém, o era. Desperdiçara dezoito meses, uma quantidade enorme de horas, aquele momento de esperança e de felicidade numa monstruosidade insuportável. E o que ele sabia com certeza? Que não era culpa sua.

– O que você fez? – exigiu saber da fêmea.

– Um filho! – Ela arqueou as costas em agonia renovada. – Eu lhe dei...

– Uma maldição. – Hharm se levantou em toda a sua altura. – O seu ventre é impuro. Ele corrompeu o presente do meu sêmen e produziu isso...

– O seu filho...

– Olhe para ele! Veja com seus olhos! Isso é uma abominação!

A mulher se esforçou e suspendeu a cabeça.

– Ele é perfeito, ele é...

Hharm empurrou o bebê com a bota, fazendo com que ele movesse os pequenos membros e emitisse um gritinho fraco.

– Nem mesmo você pode negar o que está diante de nós!

Os olhos injetados dela se afixaram no bebê, e depois se arregalaram...

– Isso é...

– Você fez isso – ele anunciou.

A ausência de argumentos por parte dela foi uma rendição inevitável, visto que o defeito não podia ser negado. Então ela gemeu como se ainda estivesse em trabalho de parto, os dedos ensanguentados arranharam a terra fria, as pernas tremeram quando se afastaram mais. Depois de mais esforços, algo saiu da mulher, e ele pensou que talvez fosse mais um. De fato, seu coração se viu cheio de otimismo enquanto ele rezava para que o primeiro fosse exhile dhoble, o amaldiçoado de um par de gêmeos.

Infelizmente, não. Era apenas algo do interior da fêmea, talvez o estômago ou o intestino dela.

E o bebê prosseguiu chorando, o peito se estufando e murchando com pouco efeito.

– Você deve morrer aqui, assim como ele – Hharm disse sem cuidado algum.

– Eu não...

– Suas entranhas estão saindo.

– O bebê é... – ela hesitou. – Ele...

– É uma abominação da natureza contra o desejo da Virgem Escriba.

A fêmea se calou e relaxou como se o processo da expulsão tivesse chegado ao fim, e Hharm aguardou pelo ataque em que a alma dela se desprenderia do corpo. Só que ela continuou a respirar e olhar para ele... e a existir. Que espécie de truque era aquele? A ideia de que ela não iria ao Dhunhd por conta disso era um insulto.

– Isso é obra sua – ralhou com a fêmea.

– Como sabe que não foi a sua semente que...

Hharm apoiou a bota na garganta dela e a pressionou, interrompendo-lhe as palavras. Quando uma onda de ódio induziu o corpo do guerreiro rumo a uma ação mortal, somente a possibilidade de que esse evento fosse um castigo por suas ações prévias o impediu de esmagar-lhe o pescoço.

Ela tem que pagar, foi seu pensamento abrupto. Sim, a culpa era dela, e o desapontamento causado necessitava de uma reparação.

Sibilando, ele revelou as presas.

– Deixarei que viva para que possa criar esta monstruosidade e que seja vista com ele. Esta é sua maldição por me amaldiçoar: ele ficará sempre em seu cangote, como um amuleto ou uma danação, e se eu descobrir que essa coisa morreu, eu a perseguirei e a esquartejarei centímetro a centímetro. Depois matarei a sua irmã, toda a prole dela e os seus parentes.

– O que está dizendo?!

Hharm se inclinou para baixo, o latejar no rosto e na cabeça parecia muito familiar.

– Ouviu minhas palavras. Conhece meu desejo. Desafie-o por sua conta e risco.

Quando ela se acovardou, o Irmão se afastou e fitou a sujeira proveniente do parto, a fêmea patética, aquele resultado horrendo – e cortou o ar com a mão, como se os apagasse da linha do tempo. Em meio aos bramidos da tempestade e à extinção da fogueira, ele foi até o casaco de peles.

– Você arruinou o meu filho – reclamou ao passar o peso das peles sobre os ombros. – O seu castigo é criar esse horror como declaração do seu fracasso.

– Você não é Rei – ela rebateu, fraca. – Não pode ordenar nada.

– Este é um serviço comunitário que faço aos machos, meus camaradas. – Apontou o dedo na direção do recém-nascido choroso. – Com isso grudado ao seu quadril, ninguém mais se deitará com você para sofrer de maneira similar.

– Não pode me forçar a isso!

– Ah, posso, sim, e o farei.

Ela era uma fêmea mimada e desafiadora por natureza, e fora isso o que o atraíra nela a princípio – tivera que lhe ensinar o que fazer e as orientações foram bem interessantes por um tempo. De fato, houvera apenas uma instância em que ela tentara exercer domínio sobre ele. Uma vez e nunca mais.

– Não me teste, fêmea. Já fez isso antes e deve se lembrar do resultado.

Quando ela empalideceu, ele assentiu na sua direção.

– Sim. Isso mesmo.

Ele quase a matara na noite em que lhe mostrara que, enquanto ele ficaria com que desejasse, quando e onde o quisesse, ela jamais teria permissão para se deitar com outro macho enquanto estivesse tangivelmente associada a ele. Foi logo depois disso que ela decidiu que a única possibilidade de prendê-lo seria dando-lhe o filho que ele almejava e, ao mesmo tempo, ele começara a pensar em seu legado.

Por azar, ela fracassara em seus objetivos.

– Eu odeio você – ela gemeu.

Hharm sorriu.

– O sentimento é mútuo. E mais uma vez lhe digo que é melhor garantir a sobrevivência dessa coisa. Se eu descobrir que o matou, revidarei a morte dele nas suas carnes e em toda a sua linhagem.

Dito isso, ele cuspiu duas vezes junto aos pés dela: uma por causa da fêmea e outra pelo bebê. Depois se afastou enquanto ela o chamava, e o bebê desertado berrava contra o frio.

Do lado de fora, a tempestade prosseguia, intensa, a neve rodopiante o cegava e depois diminuiu para uma revoada de pássaros que revelava todo o cenário. No vale logo abaixo, montanhas se elevavam às margens de um lago, a neve acumulada sobre a água congelada que formava ondas nos meses mais quentes. Estava tudo escuro, gélido e inerte, mas ele se recusava a encontrar um mau presságio na imagem à sua frente.

Com a mão usada para a adaga comichando, e a hostilidade dentro dele acelerando como um corcel disparado, sugeriu a si mesmo que não atentasse para esse resultado.

Encontraria outro ventre.

Em algum lugar, havia uma fêmea que lhe daria o legado merecido e necessário. Ele a encontraria e a faria crescer com a sua semente.

Existiria um filho apropriado para ele. Hharm jamais aceitaria qualquer outro resultado.


CAPÍTULO 5

Quando se aproximou da entrada da caverna sagrada da Irmandade, Tohr se esgueirou pelo interior úmido, e uma vez ali dentro, o cheiro de terra e de uma fonte de chamas distante irritou suas narinas. Os olhos se ajustaram de imediato, e quando ele seguiu em frente, aquietou o movimento de seus coturnos. Não queria ser ouvido, mesmo que sua presença fosse notada logo em seguida.

Os portões não estavam muito longe e eram constituídos por grossas barras de ferro, cuja espessura era semelhante a de um antebraço de guerreiro; as barras de ferro eram altas como árvores e possuíam uma cobertura em malha de aço, a fim de impedir a desmaterialização. Tochas sibilavam e tremeluziam em cada lado e, além, ele via o começo do grande corredor que conduzia mais para dentro da terra.

Parando diante da enorme barreira, pegou a chave de cobre e não sentiu remorso algum por ter roubado o objeto da gaveta da escrivaninha ornamental de Wrath. Pediria desculpas pela infração mais tarde.

E também pelo que faria na sequência.

Tohr destrancou o mecanismo, empurrou o peso colossal, entrou e voltou a trancar o portão atrás de si. Caminhando à frente, seguiu o caminho natural, expandido por talhadeiras e músculos fortes, e depois adornado por prateleiras. Sobre as diversas tábuas, centenas e centenas de jarros alimentavam um jogo de luz e sombras.

Os receptáculos eram de todos os formatos e tamanhos, e vinham de diferentes eras, desde a antiga até a moderna, mas o que havia dentro de cada um deles era o mesmo: o coração de um redutor. Desde o princípio da guerra contra a Sociedade Redutora, ainda no Antigo País, a Irmandade vinha marcando as mortes dos inimigos ao tomar posse dos jarros das vítimas e trazendo-os até ali para aumentar a coleção.

Em parte como troféu, em parte como um “foda-se, Ômega”, aquilo era um legado. Era um orgulho. Uma expectativa.

E talvez deixasse de sê-lo. Havia poucos e esparsos redutores nas ruas de Caldwell e em outras paragens no momento, portanto deveriam estar próximos.

Tohr não sentiu nenhuma alegria ante tal conquista. Mas talvez fosse em virtude do terrível aniversário dessa noite.

Era difícil sentir qualquer outra coisa que não a perda de Wellsie no dia que já fora seu aniversário.

Após uma curva sutil, ele parou. Mais adiante, a cena mais parecia saída de um filme que não se decidia se era Indiana Jones, Grey’s Anatomy ou Matrix. No centro das antigas paredes de pedra, tochas acesas e jarros despareados e empoeirados, um amontoado de equipamentos médicos piscando e emitindo sinais interferia com um corpo sobre uma maca. E ao lado do prisioneiro? Dois imensos vampiros cobertos da cabeça aos pés com couro preto e armas negras.

Butch e V. eram o Frick e Frack da Irmandade – o ex-policial da divisão de homicídios dos humanos e o filho da Criadora da raça, o bom garoto católico e o depravado sexual, o viciado em roupas e o czar da tecnologia –, unidos pela devoção partilhada pelo Red Sox de Boston e respeito mútuo e afeto que não conheciam limites.1

V. percebeu a presença de Tohr primeiro, virando com tanta rapidez que seu cigarro aceso espalhou cinzas pelo ar.

– Ah, inferno. Não. De jeito nenhum, porra! Você vai dar o fora daqui!

Essa opinião, a despeito do volume pronunciado, foi fácil de ignorar, pois Tohr se concentrava no pedaço de carne sobre a maca. Xcor estava deitado ali, com tubos entrando e saindo de si como se ele fosse a bateria de um carro prestes a receber uma recarga, com a respiração regular... Não, espere, a respiração não estava regular.

V. deteve Tohr, aproximando-se dele e ainda um pouco mais. E o que mais? O Irmão sacara seu atirador poodle – e o cano da 40 mm apontava diretamente para o rosto de Tohr.

– Tô falando sério, meu irmão.

Tohr olhou para o prisioneiro por cima do ombro largo. E se viu sorrindo.

– Ele está acordado.

– Não, ele não est...

– A respiração dele mudou. – Tohr apontou para o peito nu. – Veja.

Butch franziu o cenho e se aproximou do prisioneiro.

– Ora, ora, ora... Hora de acordar, filho da mãe.

V. virou-se para trás.

– Filho da puta.

Mas a arma não se moveu, tampouco Tohr. Por mais que quisesse Xcor, ele acabaria recebendo uma bala na garganta se desse mais um passo: V. era o menos sentimental dos irmãos e tinha a paciência de uma cascavel.

Naquele momento, os olhos de Xcor piscaram. Na luz tremeluzente das tochas, eles pareciam negros, mas Tohr se lembrava de que eles eram azuis. Não que isso importasse.

V. colocou a cara no seu caminho, os olhos de diamante eram como adagas.

– Este não vai ser o presente de aniversário que vai dar para a sua shellan morta.

Tohr arrastou os lábios para trás das presas.

– Vai se foder.

– Isso não vai acontecer. Pode me xingar o quanto quiser, mas não. Você sabe como as coisas vão acontecer e ainda não está na sua hora.

Butch sorriu para o prisioneiro.

– Estávamos esperando que se juntasse à festa. Aceita uma bebida? Talvez um misto de nozes antes ter que ajeitar a poltrona para a decolagem? Não há por que te mostrar as saídas de emergência. Você não tem que se preocupar com isso.

– Vamos, Tohr – V. disse. – Agora.

Tohrment expôs as presas, mas não para o irmão.

– Seu bastardo, vou te matar...

– Não, nada disso. – V. passou o braço ao redor do bíceps de Tohr, e faltou pouco para começarem a dançar uma quadrilha. – Lá fora...

– Você não é Deus...

– Nem você, motivo pelo qual está de saída.

Nos recessos da mente, Tohr sabia que o filho da mãe tinha razão. Ele não estava nem meio racional no momento – e P.S., que V. se fodesse por se lembrar que noite era aquela.

Sua amada shellan, seu primeiro amor, completaria duzentos e vinte e seis anos. E teria um filho dos dois nos braços.

Mas o destino se opusera.

– Não me obrigue a atirar em você – V. alertou com aspereza. – Venha, meu irmão. Por favor.

O fato de as duas últimas palavras terem saído da boca de V. foi o que surtiu efeito. A cena era tão chocante que desarmou Tohr de sua loucura e raiva.

– Venha, Tohr.

Dessa vez, Tohr se permitiu ser conduzido, à medida que seu grande esquema desinflanva; o silêncio absoluto depois de sua loucura o fazia tremer dentro da própria pele. Que porra estivera fazendo? Mas que cacete?

Sim, recebera o privilégio de matar Xcor com um decreto da realeza, mas só quando recebesse autorização expressa de Wrath. E isso ainda não acontecera explicitamente.

Tinham evitado um desastre de proporções traidoras.

Seria como trocar de lugar. Um traidor morto por outro bem vivo.

Quando chegaram aos portões que Tohr havia destrancado para conseguir acesso ao prisioneiro, V. estendeu a mão enluvada.

– Chave.

Tohr não olhou para o irmão ao tirar o objeto da jaqueta de couro e entregá-la. Depois de uns cliques e rangidos, o caminho estava livre, e Tohr saiu sem estar convencido, com as mãos no quadril, os coturnos chutando a terra, a cabeça pensa.

Quando ouviu uma nova sequência de rangidos e cliques, deduziu que estava sendo trancado do lado de fora, sozinho. Mas V. estava bem ao seu lado.

– Eu prometo – o irmão disse – que você, e apenas você, vai mattá-lo.

Tohr se perguntou se isso bastaria. Ponderou se seria o bastante. Será que algum dia encontraria satisfação?

Antes de chegarem à boca da caverna, Tohr parou.

– Às vezes... a vida não é nada justa.

– Não. Não é.

– Odeio isso. Odeio pra caralho. Passo por... períodos, não apenas noites, mas semanas, às vezes até um ou dois meses... em que me esqueço de tudo. Mas a merda sempre volta e, depois de um tempo, não dá mais pra segurar. Não dá. – Bateu na lateral da cabeça com o punho. – Tem esse verme aqui dentro, e sei que matar Xcor não vai me distrair por mais do que dez minutos. Mas numa noite como esta, eu aceitaria até isso.

Sucedeu-se o som de um fósforo sendo riscado quando V. acendeu um cigarro.

– Não sei o que dizer, meu irmão. Eu diria pra você rezar, mas não tem mais ninguém lá em cima te ouvindo.

– Não tenho certeza se a sua mãe nos ouviu algum dia. Sem ofensas.

– Não ofendeu. – V. exalou. – Confie em mim.

Tohr se concentrou na saída da caverna, e quando tentou respirar, sentiu uma estranha exaustão.

– Estou cansado de lutar sempre a mesma briga. Desde que Wellsie foi... assassinada... sinto como se um pedaço meu nunca tivesse cicatrizado, e não aguento essa dor nem mais um segundo. Nem mais um maldito segundo. Mesmo que ela migrasse para algum outro lugar, já seria melhor.

Estabeleceu-se um longo silêncio entre eles, abafado apenas pelo urro dos ventos invernais que entravam na caverna silenciosa.

No fim, V. praguejou.

– Bem que eu gostaria de poder te ajudar, meu irmão. Quero dizer, se você precisar de um abraço confortador... eu devo conseguir alguém pra te dar uns tapinhas nas costas.

Tohr sacudiu a cabeça quando o lábio superior se retorceu num sorriso.

– Isso foi quase engraçado.

– Pois é, tentei pegar leve. – V. exalou de novo. – Era isso ou eu atirava em você, e odeio preencher a papelada burocrática do Saxton, sabe?

– Sei o que quer dizer. – Tohr esfregou o rosto. – Verdade...

Os olhos diamantinos de V. mudaram de foco.

– Apenas esteja ciente que lamento. Você não merece nada disso. – Certa mão pesada pousou no ombro de Tohr e apertou-o. – Se eu pudesse tirar a sua dor, é o que faria.

Quando Tohr piscou rápido, pensou que era uma coisa boa que V. não fosse de abraçar, ou então teriam um maldito colapso emocional acontecendo ali.

Do tipo de colapso que um macho não retornaria intacto.

Mas, pensando bem, ele estava mesmo intacto agora?


BOATE SHADOWS, CENTRO DE CALDWELL


Trez Latimer sentia-se como uma espécie de divindade ao olhar através da parede de vidro do escritório no segundo andar da sua boate. Abaixo, no espaço aberto do armazém convertido, uma multidão de humanos excitados estabelecia um padrão de atração e desdém num mar tumultuado de lasers púrpura e batidas pesadas de baixo.

Em grande escala, sua clientela era composta de millenials, os nascidos entre 1980 e 2000. Definidos pela internet, pelo iPhone, pela ausência de oportunidades econômicas – ao menos segundo a mídia humana –, era um grupo demográfico de moralistas perdidos, comprometidos em salvar uns aos outros, com a preservação dos direitos de todos, e a promoção de uma falsa utopia de pensamento liberal que fazia o macarthismo parecer atenuado.

Mas também eram, da maneira dos jovens, esperançosos sem fundamento.

E como ele os invejava.

Enquanto se esbarravam e colidiam uns nos outros, ele testemunhava o êxtase em seus rostos, o otimismo exuberante de que encontrariam o verdadeiro amor e a felicidade naquela noite mesmo – a despeito de todas as outras noites nas quais vieram até a sua boate e a aurora chegara, expulsando-o com nada além de exaustão, uma nova DST, e mais um fardo de vergonha e dúvida enquanto se perguntavam o que tinham feito, e com quem.

Ele suspeitava, contudo, que, para a maioria, a cura de tamanha angústia era apenas cerca de duas horas de sono, um venti latte da Starbucks e uma injeção de penicilina.

Quando se é jovem assim, quando ainda é preciso enfrentar os desafios que não se consegue sequer começar a compreender, a sua resistência não tem limites.

E era por isso que o vampiro desejaria poder trocar de lugar com eles.

Era estranho colocar os humanos em qualquer tipo de pedestal. Sendo um Sombra de mais de duzentos anos de vida, Trez há tempos considerava aqueles ratos sem cauda algo inferior, um tumulto inconveniente no planeta, bem como formigas na cozinha ou camundongos no porão. Só que não se podia exterminar os humanos. Sujeira demais. Melhor tolerá-los do que arriscar a exposição da espécie ao assassiná-los só para liberar vagas de estacionamento, diminuir as filas nos supermercados e as notificações do Facebook.

No entanto, ali estava ele, ansioso por trocar de lugar com qualquer um deles, mesmo que fosse por uma ou duas horas.

Improcedente.

Mas, pensando bem, eles não mudaram. Quem mudou foi ele.

Minha rainha, está na hora de partir? Conte-me se for.

Enquanto as lembranças o intimidavam dentro do cérebro, ele cobriu os olhos e pensou: Não, Deus. De novo, não. Não queria voltar para a clínica da Irmandade... para o lado do leito da sua amada Selena, morrendo por dentro enquanto ela expirava de verdade.

A verdade, contudo, era que ele jamais abandonara esses eventos, mesmo que o calendário sugerisse o contrário. Depois da passagem de mais de um mês, ele ainda se lembrava de cada mínimo detalhe da cena, desde a respiração torturada dela até o pânico no olhar enquanto lágrimas rolavam por ambos os rostos.

Sua Selena fora acometida por uma doença que raramente afetava membros da classe sagrada. Em todas as gerações de Escolhidas, algumas tiveram a Prisão, que era um jeito horrível de morrer: a mente era deixada viva na casca congelada do corpo, sem nenhuma escapatória, nenhum tratamento para ajudar, ninguém para salvar.

Nem mesmo o macho que a amava mais do que a própria vida.

Quando o coração de Trez tropeçou no âmago do peito, ele abaixou as mãos, meneou a cabeça e tentou se reconectar com a realidade. Estivera se debatendo contra esses episódios invasivos, e eles vinham se tornando mais frequentes em vez de menos – o faziam se preocupar com sua sanidade. Chegou a ouvir o ditado de que “o tempo cura as feridas” e, droga, talvez aquilo fosse verdade para outras pessoas. Para ele? Seu luto se transformara de dor incandescente, no começo, a uma agonia tão ardorosa que rivalizava com as chamas da pira funerária, até aquelas reminiscências crônicas que pareciam girar cada vez mais rápido ao redor do esteio aberto da sua perda.

Sua própria voz ecoava na cabeça: Eu entendi direito? Você quer que isto... termine?

Quando os momentos finais de Selena chegaram, ela já não conseguia mais falar. Tiveram que se apoiar num sistema de comunicação pré-combinado que supunha o controle dela sobre as pálpebras até quase o fim: uma piscada para não... duas para sim.

Você quer que isto... termine?

Ele soubera qual seria a resposta dela. Lera-o na expressão exausta, distante e enfraquecida dela. Mas aquela fora uma das vezes na vida em que se queria ter a mais absoluta certeza.

Ela piscara uma vez. E de novo depois.

E ele estivera ao lado dela quando as drogas pararam seu coração e lhe conferiram o alívio de que ela necessitava ao ser transportada.

Em todos os seus anos, ele jamais imaginara aquele tipo de sofrimento. Nas duas partes. Ele não teria conseguido criar uma morte pior saída de qualquer pesadelo, e não poderia ter imaginado que teria que assentir para Manny, autorizando-o a administrar o medicamento enquanto gritava internamente, pois seu amor se esvaía e o deixava sozinho pelo resto de suas noites.

O único conforto era que o sofrimento dela chegara ao fim.

A única realidade era que o seu tinha apenas começado.

No período subsequente, encontrou conforto no fato de que preferiria ser o responsável por sentir a ausência dela, e não o contrário. Mas, conforme o tempo prosseguiu, acabou usando demais esse antídoto, pois era o único que possuía, e agora ele já não surtia mais efeito.

Portanto, não havia nada para reavivá-lo. Tentou beber, mas o álcool só servia para ele perder o pouco controle que tinha sobre as lágrimas. Não dava a mínima para a comida. Sexo era algo completamente fora de questão. E ninguém o deixava lutar – pois tanto os Irmãos quanto iAm reconheciam seu estado desgovernado.

Portanto, o que lhe restava? Nada, a não ser se arrastar ao longo dos dias e das noites, e rezar para o mais básico dos alívios: um respiro desimpedido, um período de tranquilidade mental, uma hora de sono sem perturbações.

Ao estender a mão, tocou o painel de vidro inclinado que era a sua janela para o que ele considerava ser o outro mundo, o exterior do seu inferno isolado. Engraçado que ele agora considerava “outro” o que um dia fora o mundo “real”... E mesmo sem a separação das espécies, da idade, do seu poleiro acima da confusão da boate, ele se sentia tão à parte de todos eles.

Tinha a sensação de que sempre permaneceria afastado de todos.

E, francamente, ele simplesmente não poderia continuar assim.

A dor o destroçara e, se não fosse pelo fato de que os suicidas tinham a entrada negada no Fade, ele teria metido uma bala do seu 48 mm na cabeça horas após a morte dela.

Pensou que não suportaria outra noite assim.

– Por favor... me ajude.

Trez não fazia a mínima ideia de quem falava com ele. Do lado dos vampiros, a Virgem Escriba já não existia mais – e no seu atual estado mental ele compreendia por completo o motivo de ela ter largado o microfone e saído do palco de sua criação. E, como um Sombra, ele fora criado para adorar sua Rainha – o único problema era que ela estava vinculada ao seu irmão, e rezar para a cunhada parecia muito estranho.

Uma declaração autêntica de que toda aquela coisa espiritual não passava de um monte de asneira.

E, mesmo assim, seu sofrimento era tão grande que ele tinha que tentar buscar ajuda.

Inclinando a cabeça para trás, olhou para o teto baixo preto e despejou seu coração partido para o mundo:

– Eu só a quero de volta. Eu só... quero Selena de volta. Por favor... se existir alguém aí em cima, me ajude. Devolva-a para mim. Não me importo em que forma ela estiver... Eu só não consigo mais fazer isto. Não consigo mais viver assim nem pela porra de uma única noite.

Claro que não houve resposta. E ele se sentiu um completo idiota.

Pois é, como se a vastidão do universo lhe iria despejar outra coisa que não apenas um meteoro?

Além disso, será mesmo que existia um Fade? E se ele estivesse apenas alucinando durante a purificação e somente imaginara ter visto a sua Selena? E se ela só tivesse simplesmente morrido? Como se... tivesse apenas deixado de existir? E se todas as bobagens a respeito de um lugar celestial aonde nossos amados iam e esperavam pacientemente por nós não passasse de um mecanismo de defesa criado por aqueles deixados para trás mergulhados no tipo de agonia em que ele se encontrava?

Uma falácia mental para cuidar de um ferimento emocional.

Reajustando a cabeça, voltou a fitar a multidão abaixo...

Pelo vidro, o reflexo de uma imensa figura masculina parada logo atrás fez com que ele se girasse e levasse a mão para a arma que mantinha enfiada na lombar. Mas então reconheceu o indivíduo.

– O que você está fazendo aqui? – exigiu saber.


Dois patinadores suíços, Werner Groebli e Hans Mauch, cujos nomes artísticos eram Frick e Frack, nutriram uma parceria duradoura. Posteriormente, seus nomes se tornaram gíria para designar duas pessoas que trabalham juntas e se dão bem. (N.T.)


CAPÍTULO 6

A campina de 20 mil metros quadrados se elevava de uma estradinha deserta como oriunda do olhar crítico de um artista; todos os aspectos da colina e do vale pareciam sujeitos às regras dos padrões estéticos agradáveis. No alto do suave aclive coberto de neve, como uma coroa no topo da cabeça de um governante benevolente, um imenso bordo estendia seus galhos em uma áurea tão perfeita que mesmo a esterilidade do inverno não conseguia diminuir sua beleza.

Layla se desmaterializou até a base da colina, partindo da mansão, e subiu a pé até a árvore. Os chinelos usados no quarto não eram páreo para o chão congelado, o vento frio atravessava o roupão, e os cabelos se soltavam da trança, flanando ao seu redor.

Quando chegou ao cume, olhou para baixo, para as raízes do tronco glorioso dentro da terra.

Fora ali, pensou ela.

Ali, na base daquele bordo, ela vira Xcor pela primeira vez, convocada por alguém que ela acreditara ser um soldado de valor na guerra, alguém que ela alimentara na clínica da Irmandade... Alguém que a Irmandade deixara de lhe informar que, na verdade, era um inimigo e não amigo.

Quando o macho a chamara para que ela lhe provesse a veia, Layla não pensou em nada além do seu dever sagrado.

Por isso, transportara-se até ali... e perdera um pedaço de si no processo.

Xcor estivera à beira da morte, ferido e enfraquecido, e mesmo assim ela reconhecera sua força, ainda que em estado debilitado. Como poderia não tê-la notado? Era um macho tremendo, grosso no pescoço e no peito, forte nos braços, poderoso no corpo. Ele tentara recusar sua veia porque – ela gosta de acreditar – enxergara-a como uma inocente no conflito entre o Bando de Bastardos e a Irmandade da Adaga Negra, e quisera mantê-la afastada da situação. No fim, contudo, ele cedera, garantindo que ambos seriam a presa de uma ordem biológica que desconhecia a razão.

Ela inspirou fundo, observou a árvore e viu, através dos galhos desnudos, o céu noturno.

Depois que a verdadeira identidade de Xcor veio à tona, ela confessou a Wrath e à Irmandade suas ações, lacrimosamente clamando por perdão. E era um testemunho do rei e dos machos que o serviam o fato de a terem perdoado, e sem castigos, por ter prontamente ajudado o inimigo.

Em troca, era um parco testemunho da sua parte que ela tivesse voltado para junto de Xcor depois disso. Associou-se a ele. Tornou-se emocionalmente envolvida com ele.

Sim, existiu uma coerção inicial da parte dele na época, mas a verdade era que, mesmo que ele não a tivesse forçado? Sua vontade teria sido estar com ele. E o pior? Quando o relacionamento chegou ao fim, fora ele quem interrompera os encontros. Não ela.

Na verdade, ela o estaria vendo agora – e a dor da perda que sentia pela ausência dele era tão incapacitante quanto a culpa.

E isso foi antes ainda de ele ter sido capturado pela Irmandade.

Ela sabia exatamente onde ele havia sido aprisionado porque testemunhara suas condições naquela caverna... Sabia o que os Irmãos planejavam fazer com Xcor assim que ele despertasse.

Se ao menos houvesse um modo de salvá-lo... Ele nunca tinha sido cruel com ela, nunca a tinha ferido... jamais a havia abordado sexualmente, apesar do desejo que o habitava. Ele se manteve paciente e gentil... pelo menos até se afastarem.

Ele, entretanto, havia tentado matar Wrath. E essa traição era passível de punição com a morte...

– Layla?

Girando, ela tropeçou e caiu de lado, quase incapaz de se agarrar ao tronco áspero do bordo. Quando sentiu uma dor na palma, sacudiu-a na tentativa de apaziguá-la.

– Qhuinn! – exclamou.

O pai de seus filhos deu um passo à frente.

– Você se machucou?

Com um xingamento, ela limpou os arranhões, tirando a sujeira. Santa Virgem Escriba, como doía.

– Não, não. Estou bem.

– Pegue. – Ele apanhou algo de dentro do bolso da jaqueta de couro. – Deixe-me ver.

Ela tremia quando Qhuinn avaliou-lhe a mão e depois a envolveu na bandana preta.

– Acho que você vai viver.

Será?, ela pensou. Não tenho tanta certeza.

– Você está congelando.

– Sério?

Qhuinn tirou a jaqueta e a posicionou sobre os ombros dela, e Layla se viu engolfada pelo tamanho e pelo calor.

– Venha, vamos voltar para a mansão. Você está tremendo...

– Não posso mais fazer isso – ela desabafou num rompante. – Não consigo mais.

– Eu sei. – Quando ela se retraiu de surpresa, ele sacudiu a cabeça. – Sei o que há de errado. Vamos pra casa pra conversar. Vai ficar tudo bem, prometo.

Por um momento, ela não conseguiu respirar. Como ele podia ter descoberto? Como podia não estar bravo com ela?

– Como você... – As lágrimas surgiram com rapidez, a emoção se sobrepôs a tudo. – Sinto muito. Eu sinto muito... Não era para ser assim.

Ela não soube se foi ele quem abriu os braços ou se foi ela quem se lhe agarrou ao peito, mas Qhuinn a abraçou com força, protegendo-a do vento.

– Tá tudo bem. – Ele massageava grandes círculos nas costas dela com a palma, acalentando-a. – Só precisamos conversar a respeito. Podemos fazer algumas coisas, tomar algumas providências.

Ela virou o rosto para o lado e fitou a campina.

– Eu me sinto tão mal.

– Por quê? Isso está fora do seu controle. Não pediu por isso.

Ela se afastou.

– Eu juro, não pedi. E não quero que você pense nem por um segundo que eu poria Lyric e Rhampage em perigo...

– Tá de brincadeira? Sério, Layla, você ama aqueles dois com tudo o que tem dentro de si.

– Amo mesmo. Eu te garanto isso. E amo você e Blay, o Rei e a Irmandade. Vocês são a minha família, vocês são tudo o que tenho.

– Layla, preste atenção. Você não está sozinha, entendeu? E como eu já disse, existem coisas que podemos fazer...

– Mesmo? De verdade?

– Sim. Na verdade eu estava falando sobre isso antes de vir para cá. Eu não queria que pensasse que eu a estava traindo...

– Ah! Qhuinn! Eu sou a traidora! Sou eu quem está errada...

– Pare. Você não é. Vamos cuidar disso juntos. Todos nós.

Layla levou as mãos ao rosto, tanto a que estava com o curativo como a que estava descoberta. Então, pela primeira vez desde o que parecia ser uma eternidade, ela exalou o ar, um bálsamo de calma substituindo o terrível fardo que dispunha sobre si.

– Tenho que contar uma coisa. – Levantou o olhar para ele. – Por favor, saiba que tenho me remoído de arrependimento e de tristeza. Juro que nunca tive a intenção de que isso acontecesse. Tenho me sentido tão só, me debatendo com a culpa...

– Culpa é algo desnecessário. – Esfregou os polegares sob os olhos dela. – Você tem que se livrar disso, porque não consegue evitar o modo como se sente.

– Não consigo, de verdade, não consigo mesmo... E Xcor não é mau, não é tão ruim quanto você acha que ele é. Juro. Ele sempre me tratou com cuidado e gentileza, e sei que ele não voltaria a ferir Wrath. Eu sei disso...

– O quê? – Qhuinn franziu o cenho e sacudiu a cabeça. – Do que você está falando?

– Por favor, não o mate. É como você disse, existe um modo de fazer isso dar certo. Talvez vocês possam libertá-lo e...

Qhuinn não recuou; na verdade, ele a empurrou para longe de si. E depois pareceu se debater para encontrar as palavras.

– Layla – ele pronunciou devagar. – Sei que não estou ouvindo direito e estou tentando... Você pode...

Aproveitando-se do momento para expor sua posição, Layla se apressou em falar:

– Ele nunca me machucou. Todas as noites em que o procurei, ele nunca me feriu. Ele providenciou um chalé para que eu ficasse em segurança, e sempre estávamos apenas nós dois. Nunca vi nenhum dos Bastardos...

Ela prosseguiu enquanto a expressão do guerreiro se transformava de confusão para... algo gélido que lhe suscitou as feições de um completo desconhecido.

Quando Qhuinn voltou a falar, a voz saiu inexpressiva.

– Você esteve se encontrando com Xcor?

– Eu me senti muito mal...

– Por quanto tempo? – ele estrepitou. Mas não a deixou responder. – Você foi ao encontro dele enquanto estava grávida dos meus filhos? Você se associou por vontade própria com um inimigo conhecido enquanto os meus benditos filhos estavam no seu ventre? – Antes que ela conseguisse lhe responder, ele levantou o indicador. – E você precisa pensar muito bem na resposta. Não há volta para isto, e é melhor dizer a verdade. Se eu descobrir que mentiu pra mim, vou te matar.

Quando o coração de Layla começou a bater forte no peito, deixando-a tonta, seu único pensamento foi...

Você vai me matar de qualquer maneira.

De volta à shAdoWs, Trez guardou a arma e tentou retornar à realidade.

– E então? – ele inquiriu. – O que está fazendo aqui, ainda mais sem o seu poliéster especial do Tony Manero?

Lassiter, o Anjo Caído, sorriu de um modo que não contemplou seus estranhos olhos coloridos sem pupila; a expressão afetou apenas a parte inferior do rosto.

– Ah, você sabe, ternos de passeio estão ultrapassados para mim.

– Partindo para os anos 1980? Não tenho nada neon pra emprestar pra você.

– Não precisa, tenho outra fantasia para usar.

– Que bom pra você. Assustador pro resto de nós. Só me diz que não vai usar o maiô do Borat.

Quando o anjo não respondeu de pronto, Trez sentiu como se as garras de Fred Krueger estivessem passando pela sua nuca. Normalmente, Lassiter era o tipo de cara tão alegre que a maioria das pessoas não sabia se decidir entre meter uma bala nele para tirar todo mundo de um estado miserável... ou simplesmente apanhar uma lata de Coca-Cola e um saco de pipoca para assistir ao show.

Porque, mesmo quando ele irrita, a situação é sempre muito divertida.

Mas não essa noite. O olhar bizarro estava tão leve e espumoso quanto um bloco de granito, e o imenso corpo dele estava absolutamente imóvel, nenhum item de ouro nos pulsos ou pescoço, nos dedos ou orelhas, reluzia sob a luz baixa.

– Por que está brincando de estátua? – Trez murmurou. – Alguém trocou o lugar da sua coleção do My Little Pony de novo?

Incapaz de suportar o silêncio, Trez foi se sentar atrás da escrivaninha e começou a mexer em uma pilha de papéis.

– Está tentando ler minha aura ou alguma merda do tipo?

Não que para isso fosse necessário algum poder especial. Todos na mansão sabiam em que estado ele estava.

– Quero que vá jantar comigo amanhã à noite.

Trez levantou o olhar.

– Pra quê?

O anjo levou o tempo que quis para responder, seguindo devagar até o painel de vidro para encarar a multidão logo abaixo, no exato lugar em que Trez estava antes. Iluminado pela luz fraca, o perfil do anjo era o tipo de imagem que as fêmeas adorariam, com todas as proporções e os ângulos certos. Mas a cara de preocupação...

– Manda ver – Trez exigiu. – Já recebi uma vida inteira de más notícias. O que quer que seja, nada se compara ao que tenho passado.

Lassiter relanceou e deu de ombros.

– É só um jantar. Amanhã à noite. Sete horas.

– Eu não como.

– Sei disso.

Trez largou a pilha de faturas, de escala dos funcionários ou qualquer outra porra que o vinha mantendo ocupado, ainda que não as estivesse olhando de fato, junto ao amontoado de porcarias sobre a escrivaninha.

– Acho muito difícil acreditar em seu interesse a respeito de nutrição.

– Verdade. Essa coisa de “glúten é o seu inimigo” é uma bobagem sem fim. Nem me fale de Kombuchá, couve, ou qualquer coisa com propriedades antioxidantes, e na mentira de que o xarope de milho com alto teor de frutose é a fonte de todo o mal.

– Ouviu falar que a Kraft Macaroni & Cheese tirou todos os conservantes há meses?

– Pois é, e os filhos da mãe nem avisaram antes...

– Por que quer jantar comigo?

– Só estou sendo amigável.

– Não faz parte do seu estilo.

– Como disse antes, estou mudando algumas coisas. – Eeeee lá veio aquele sorriso de novo. – Pensei em começar com tudo. Quero dizer, se é pra virar a página, melhor começar do jeito que se deseja continuar.

– Sem ofensas, mas não estou a fim de passar tempo com pessoas de quem gosto de verdade. – Tudo bem, aquilo não soou muito bem. – O que quero dizer é que o meu irmão é o único que consigo tolerar agora, e nem ele eu quero ver.

Aquele sorriso de Lassiter era uma visão que Trez estava mais do que disposto a jamais rever – e observe como orações podem ser atendidas: o anjo estava seguindo para a porta.

– Te vejo amanhã.

– Não, obrigado.

– No restaurante do seu irmão.

– Ah, mas que porra, por quê?

– Porque ele serve o melhor macarrão à bolonhesa em Caldie.

– Você sabe o que eu quis dizer.

O anjo se limitou a dar de ombros.

– Vá lá e descubra.

– O inferno que vou! – Trez meneou a cabeça. – Olha só, sei que as pessoas andam preocupadas comigo e agradeço a preocupação. – Na verdade, não agradecia não. Nem um pouco. – Sim, perdi peso, e eu deveria comer mais. Mas é engraçado como, quando se tem o peito escancarado e o coração arrancado pelo destino, se perde o apetite. Por isso, se está querendo companhia só para não parecer que está jogando sozinho, por que não procura alguém que coma de verdade e troque mais de duas palavras com ela? Posso garantir que tanto eu quanto você teremos uma noite mais agradável assim.

– Até amanhã.

Quando o anjo saiu, Trez gritou para a ponta oposta do escritório:

– Vai se foder!

Quando a porta se fechou em silêncio, ele concluiu que, pelo menos, a discussão não continuaria. E quando estivesse comendo a bolonhesa sozinho, Lassiter entenderia que o Sombra não apareceria.

Problema resolvido.


CAPÍTULO 7

Há momentos na vida em que a amplitude da sua atenção se estreita em um foco tão exíguo que toda a sua consciência se concentra nessa única pessoa. Qhuinn não era alheio a esse fenômeno. Ele acontecia toda vez que estava sozinho com Blay. Quando segurava os filhos. Quando lutava contra o inimigo, em busca de garantir que voltaria para casa inteiro, sem ferimentos e concussões.

E estava acontecendo de novo agora.

Parados diante da base da árvore de Harry Potter, no topo de uma colina, com o vento invernal ao redor, Qhuinn estava ciente apenas do olho direito de Layla. Conseguia contar cada nuance verde-clara que irradiava do núcleo preto da íris. Poderia haver uma nuvem de cogumelos resultante de uma explosão nuclear ao longe, uma nave espacial acima da sua cabeça, uma fila de palhaços dançando ao seu lado... e ainda assim ele não teria visto, ouvido, percebido nada além daquilo.

Bem, isso não era inteiramente verdade.

Percebia de leve o rugido em seus ouvidos, um tipo de cruzamento do motor de um jato e dos fogos de artifícios que sibilam como uma banshee, girando em círculos até se exaurir.

– Responda – ele ordenou numa voz que não parecia a sua.

Ele a havia seguido até aquele local isolado quando sentiu sua ausência na mansão – e se deslocou até ali para falar com ela sobre depressão pós-parto. O plano era levá-la de volta para casa, confortá-la diante da lareira, colocá-la num caminho em que ela pudesse apreciar os seres pelos quais tanto se empenhou em trazer ao mundo.

Como diabos acabaram falando de Xcor e de ela ter se encontrado com ele?

Não fazia a mínima ideia.

Mas não havia mais nenhum mal-entendido. E nenhuma retratação a caminho. Ele via no olhar arregalado e no pânico silencioso que, apesar de seu desejo de que aquela fosse uma colossal falha de comunicação de proporções risíveis, não era o caso.

– Eu estava segura – ela sussurrou. – Ele nunca me feriu.

– Mas que porra q...

Ele se deteve nesse aspecto. Iria direto ao ponto, como se faz com o detonador de uma bomba.

Antes que ele fizesse ou dissesse algo de que se arrependeria, afastou-se e flexionou os dedos para que não se cerrassem em punhos.

– Qhuinn, juro que nunca estive em perigo...

– Você ficou sozinha com ele. – Quando Layla não respondeu, ele cerrou os molares. – Não ficou?

– Ele nunca me machucou.

– Ok, isso é o mesmo que dizer que nunca foi picada enquanto usava uma cobra como cachecol. Uma vez depois da outra. Porque essa porra aconteceu com frequência, não foi? Responda!

– Sinto muito, Qhuinn... – Ela parecia querer se recompor, fungando as lágrimas e aprumando os ombros. O modo como os olhos dela suplicavam perdão o levou à beira da violência. – Oh, Santa Virgem Esc...

– Pare com as súplicas! Não há mais ninguém lá em cima! – Ele estava perdendo o controle. Por completo. – E que diabos está fazendo com esse pedido de perdão? Você colocou meus filhos em risco por livre e espontânea vontade só porque queria... – Ele se retraiu. – Jesus Cristo. Você fez sexo com ele? Você trepou com ele com os meus filhos dentro de você?

– Não! Nunca estive com ele dessa forma!

– Mentirosa – ele urrou. – Você é uma vadia mentirosa...

– Sou praticamente virgem! E você sabe disso! Além do mais, você não me quer. Por que se importa?

– Está querendo sugerir que sequer o beijou? – Quando ela não respondeu, ele riu com aspereza. – Nem tente negar. Está escrito na sua cara. E você tem razão, eu não te quis, nunca te quis... E não tente distorcer as coisas. Não estou com ciúmes; estou enojado. Amo um homem de valor e tive que ir para a cama com você porque precisava de uma incubadora pro meu filho e pra minha filha. Por isso e pelo fato de você ter se jogado em cima de mim quando esteve no cio, esses foram os únicos motivos pelos quais estive com você.

O rosto de Layla empalideceu, e por mais que isso o tornasse um cretino, ele gostou. Queria feri-la por dentro, que era onde contava, porque, por mais furioso que estivesse, jamais bateria numa fêmea.

E essa era a razão por ela ainda estar de pé.

Aqueles bebês, aqueles preciosos e inocentes bebês, foram levados até a boca de um monstro, na presença do inimigo, expostos ao perigo que o teria feito se cagar nas calças caso tivesse sabido à época do acontecimento.

– Você faz alguma ideia do que ele é capaz de fazer? – Qhuinn perguntou com seriedade. – As atrocidades que cometeu? Ele esfaqueou o próprio tenente nas entranhas só para mandá-lo para as nossas mãos. E no passado, no Antigo País? Ele assassinou vampiros, humanos, redutores, qualquer um que lhe atravessasse o caminho, às vezes movido pela guerra, outras só por diversão. Ele era a mão direita de Bloodletter. Você consegue imaginar o que ele já fez nesta terra? Quero dizer, você evidentemente não dá a mínima para o fato de ele ter metido uma bala no pescoço de Wrath – está claro que isso não significa nada para você. Aquele bastardo poderia tê-la violentado mil vezes, estripado você e deixado que ardesse sob o sol – com os meus filhos dentro de você! Que tipo de porra de brincadeira você está armando pra cima de mim?!

Quanto mais Qhuinn pensava a respeito dos riscos a que ela se expôs, mais sua cabeça latejava. Seus amados filhos poderiam muito bem não existir por conta das más escolhas da fêmea, que apenas por preceito biológico, fora o abrigo deles até que pudessem respirar sozinhos.

Tinha colocado-os em perigo ao se arriscar – sem nenhum pensamento aparente quanto às consequências ou como ele, o pai biológico, poderia encarar tamanho fiasco.

Sua fúria, nascida do amor que nutria pelos bebês, era indefinível. Inegável. Inesgotável.

– Nós dois os desejamos – ela disse, rouca. – Quando nos deitamos, nós dois os quisemos...

Numa voz impassível, ele a interrompeu:

– Pois é, isso eu lamento. Melhor que eles não tivessem nascido do que ter metade de você neles.

Layla estendeu a mão para mais uma vez se apoiar na árvore – e, como foi a mão que estava envolvida por sua bandana, ele se percebeu sufocado pela necessidade de arrancar o pedaço de pano da mão dela. Para depois queimá-lo.

– Fiz o melhor que pude – ela afirmou.

Ele gargalhou, então, até que a garganta queimasse.

– Está se referindo ao tempo em que dormiu com Xcor? Ou quando pôs em risco a vida dos meus filhos?

De uma vez só, ela retribuiu a raiva dele com um jorro da sua:

– Você tem aquele a quem ama! Deita-se ao lado dele todos os dias! A sua vida tem objetivo e significado, além de servir a outrem – enquanto eu não tenho nada! Passei todas as minhas noites e dias servindo a uma divindade que já não se importa mais com a raça que gerou e agora sou a mahmen de dois bebês a quem amo com todo o meu coração, mas que não são eu. O que tenho para mostrar da minha vida? Nada!

– Nisso você acertou – ele concordou, sério. – Porque não será mais a mãe dos meus filhos. Você perdeu o seu emprego.

Ela se retraiu com indignação.

– O que está dizendo? Sou a mahmen deles. Eu...

– Não é mais.

Houve um instante de silêncio, e depois a voz explodiu para fora dela:

– Você não pode... Não pode tirar Lyric e Rhamp... Não pode afastá-los de mim! Sou a mahmen deles! Tenho meus direitos...

– Não, não tem. Você se associou ao inimigo. Cometeu um ato de traição. E vai ter sorte se sair desta com vida – não que eu me lixe se você viver ou morrer. A única coisa que me importa é que nunca mais veja os bebês...

A mudança no interior dela foi instantânea e arrebatadora.

De uma vez só, Layla passou de irada a absolutamente calada. E a mudança foi tão abrupta que ele teve de ponderar se ela não sofrera uma síncope.

Mas, em seguida, os lábios de Layla se retraíram das presas que desciam. E o som que saiu de dentro dela eriçou os pelos de sua nuca num alerta.

Quando abriu a boca, a voz dela foi letal como as lâminas de uma adaga.

– Não recomendo que tente me impedir de ver meu filho e minha filha.

Qhuinn expôs as próprias presas.

– Espere e verá.

O corpo da Escolhida se curvou e ela se agachou, o sibilo que ela emitiu era de uma víbora. Só que ela não saltou sobre ele para despedaçar seu rosto com as garras.

Layla simplesmente se desmaterializou.

– Ah, inferno! Não! – ele gritou para o cenário invernal frio e alheio a tudo. – Você quer guerra, é o que vai ter, cacete!

– ... vezes em que ainda sinto vontade – Blay dizia ao sorver um gole do seu copo com gelo. – Para os humanos, é um vício letal. Mas vampiros não têm que se preocupar em adquirir câncer por fumar.

A sala de bilhar da Irmandade estava quase deserta, visto que o torneio foi encerrado quando Butch teve de assumir o posto ao lado de Xcor, Tohrment pediu para se retirar, Rhage chegou machucado do campo, e Rehv decidira ficar nos Grandes Campos com Ehlena. Mas tudo bem. Blay ainda conseguira jogar com Vishous, e os dois circundavam a mesa central dentre as cinco, alternando-se nas jogadas. A boa notícia? Lassiter estava em algum outro lugar, o que significava que a TV acima da imensa lareira estava na ESPN, no mudo.

Nada de filmes da Disney com aquelas canções ridículas esta noite.

Se Blay tivesse que ouvir as merdas do Frozen uma vez mais, ele iria “let it goooooo” pra valer.

No sentido de esvaziar uma magazine bem diante do seu próprio lobo frontal.

Do outro lado da mesa, Vishous acendeu outro dos seus cigarros enrolados por ele mesmo.

– Então por que parou de fumar?

Blay deu de ombros.

– Qhuinn odeia cigarros. O pai dele fumava cigarros e cachimbo, então acho que isso o faz se lembrar de coisas das quais prefere esquecer.

– Você não deveria ter que mudar por ninguém.

– Fui eu quem escolheu parar. Ele nunca me pediu.

Enquanto o Irmão se inclinava sobre a mesa para alinhar o taco, Blay relembrou o início de sua história com Qhuinn. Esse papo de fumar começou quando teve de ficar assistindo ao macho que amava foder qualquer coisa que se movesse. Um período horrível. Não, não tinham um relacionamento – e toda vez que Qhuinn saía com alguém, isso servia de lembrete de que jamais estariam em um.

Caramba. Na época, ele sequer havia saído do armário.

O estresse e a tristeza foram difíceis de controlar, mas também houve um ressentimento borbulhante e irracional de sua parte. Por isso abraçara um mecanismo de compensação que Qhuinn não teria aprovado nem gostado. Fora uma desforra subversiva e mesquinha pelos pecados que o macho na verdade não cometera.

Mas, pelo menos, deixar de fumar tinha sido simples. Assim que os dois se entenderam? Ele deixou os maços de Dunhill de lado e nunca mais olhou para trás.

Bem... Talvez seja mais preciso afirmar que nunca escorregou no vício. Às vezes, quando via Vishous acendendo um, e o cheiro do tabaco permeava o ar, ele ansiava fumar um cigarro...

Bem quando V. lançou a bola da vez no meio do arranjo central, um som horrível de batidas resoou no vestíbulo. Alto, repetitivo, forte o bastante para sacudir e fazer tremer a maciça e grossa porta de carvalho da entrada da mansão, de modo que mais parecia que uma horda de redutores estava tentando invadi-la.

Blay sacou a arma que portava na casa enquanto ele e V. largavam os tacos e corriam para fora da sala de bilhar até a entrada principal.

Bam-bam-bam-bam!

– Mas que porra é essa? – V. murmurou ao olhar para o monitor de segurança. – Que diabos há de errado com o seu garoto?

– O quê?

A pergunta foi respondida quando V. soltou a trava e Qhuinn entrou explodindo no vestíbulo. O macho estava furioso a ponto de parecer possuído, o rosto contraído de raiva, o corpo disparado numa corrida, seu estado tal que ele parecia alheio à presença de qualquer um.

– Qhuinn? – Blay tentou segurá-lo pelo ombro ou pelo braço.

Não teve jeito. Qhuinn chegou à escadaria e deu uma de Usain Bolt, os degraus cobertos pelo tapete vermelho foram consumidos por saltos ligeiros.

– Qhuinn! – Blay disparou atrás do que quer que estivesse acontecendo, tentando alcançá-lo. – O que foi?

No alto da escadaria, os coturnos de Qhuinn se enterraram no carpete e por pouco não derraparam ao virar à esquerda no corredor das estátuas. Logo atrás dele, Blay se apressou, e quando a direção que ele tomava ficou clara, um súbito terror se apossou dele.

Layla e as crianças deviam estar em algum perigo...

Na porta do quarto de Layla, Qhuinn agarrou a maçaneta e girou – só para bater de cara na madeira.

Cerrando um punho, ele começou a bater na porta com tanta força que lascas de pintura começaram a cair.

– Abra a porra desta porta! – Qhuinn berrou. – Layla, abra esta maldita porta agora mesmo!

– Mas que diabos você está fazendo?! – Blay tentou impedi-lo. – Ficou louco...

A arma de Qhuinn saiu sabe-se lá de onde, e quando o Irmão a virou e direcionou o cano para o rosto de Blay, ficou claro que se tratava de algum tipo de pesadelo, o resultado inevitável de uma segunda dose de vinho do Porto depois do jantar de carneiro de Fritz.

Só que não.

– Fique fora disso – Qhuinn estrepitou. – Fique fora disso.

Enquanto Blay erguia ambas as mãos e recuava, Qhuinn virou o ombro para a porta e a empurrou com tanta força que a madeira rachou, os painéis se partindo sob a força do golpe.

O que se revelou dentro do quarto cor de lavanda foi igualmente aterrador.

Enquanto Vishous parava de pronto ao lado de Blay e Z. saía da sua suíte ao fim do corredor, o cérebro de Blay para sempre ficaria maculado pela visão incompreensível e inescapável de Layla com cada filho debaixo dos braços, as presas expostas em pose de ataque, o rosto como o de um demônio, o corpo todo trêmulo – mas não de medo.

Ela estava preparada para matar qualquer um que se aproximasse dela.

Qhuinn apontou a arma na direção dela através do buraco criado na porta.

– Solte-os. Ou acabo com você.

– Mas que porra está acontecendo aqui? – A voz de Vishous saiu tão alta quanto se ele tivesse um alto-falante. – Vocês perderam a cabeça, caralho?

Qhuinn enfiou a mão por dentro e soltou a tranca, escancarando o que restava da porta. Quando ele entrou, Blay deteve os demais.

– Não, deixem que eu cuido disso.

Se mais alguém além dele entrasse, balas começariam a pipocar, e Layla iria atacar, e pessoas se feririam – ou pior.

E que porra estava acontecendo ali?

– Solte-os! – Qhuinn ladrou.

– Mate-me, então! – Layla revidou. – Vá em frente!

Blay colocou o corpo entre os dois, o tronco enquanto bloqueio no caminho de qualquer bala. Nesse meio-tempo, Layla respirava ofegante, e Lyric e Rhamp choravam – merda, ele jamais se esqueceria do som daquele choro.

De frente para Qhuinn, ele mostrou as palmas e falou com lentidão:

– Vai ter que atirar em mim primeiro.

Ele não se concentrou em nada além dos olhos azul e verde de Qhuinn... Como se pudesse, de alguma forma, comunicar-se telepaticamente com seu oponente para acalmá-lo.

– Saia da frente – Qhuinn ordenou. – Isto não é da sua conta.

Blay piscou ante tais palavras. Mas, considerando-se que enfrentava o cano de uma 40 mm, deduziu que deixaria o insulto passar por ora.

– Qhuinn, qualquer que seja o problema, conseguiremos lidar com... Aquele olhar despareado se voltou para ele por apenas uma fração de segundo.

– Acha mesmo? Quer dizer que o fato de ela ter se associado com o inimigo pode ser lavado com detergente ou alguma merda do tipo? Maravilha, vamos chamar Fritz pra cuidar disto. Ideia boa do cacete.

Enquanto os bebês continuavam a chorar, e mais pessoas se aproximavam da cena no corredor, Blay balançou a cabeça.

– Do que está falando?

– Ela levou os meus filhos com ela quando foi trepar com ele...

– Não entendi, o quê?

– Ela esteve com Xcor durante todo esse tempo. Ela não parou de se encontrar com ele. Associou-se a um inimigo conhecido do nosso rei enquanto estava grávida dos meus filhos. Por isso, sim, estou no meu direito de pai de puxar o gatilho contra ela.

De repente, Blay tomou ciência de um grunhido crescente atrás dele, e o som terrível o lembrou do que ouvira a respeito de as fêmeas da espécie serem mais letais do que os machos. Relanceando por sobre o ombro, ele pensou que sim, Layla estava evidentemente preparada para proteger os filhos até a morte naquela porra de universo paralelo para o qual foram sugados.

Xcor? Ela andou se encontrando com Xcor?

Só que ele não podia se desviar do perigo imediato.

– Só quero que você abaixe essa arma – Blay disse com calma. – Abaixe a arma e me conte o que está acontecendo. Senão, se quiser atirar nela, a bala vai ter que passar por mim primeiro.

Qhuinn inspirou fundo, como se estivesse se esforçando para não gritar.

– Eu te amo, mas isto não é da sua conta, Blay. Saia do caminho e deixe que eu cuido disto.

– Espere um minuto. Você sempre disse que também sou pai dessas crianças...

– Não quando o assunto é este. Agora saia da minha frente, caralho.

Blay piscou uma vez. Duas. Uma terceira vez. Engraçado, a dor em seu peito o fez refletir se Qhuinn não havia apertado o gatilho, e ele apenas deixou de ouvir o disparo.

Concentre-se, ordenou a si mesmo.

– Não, não vou me mexer.

– Saia da frente! – O corpo de Qhuinn começou a tremer. – Mas que diabos, saia da porra da minha frente!

Agora ou nunca, Blay pensou ao avançar e atacar o pulso que controlava a pistola. Ao golpear o antebraço com toda a força, a arma disparou repetidamente, e os cartuchos das balas saíram voando – mas, com uma rápida mudança de direção, ele conseguiu empurrar Qhuinn para o lado. O casal se estatelou no chão, e Blay se esforçou para dominar seu par, o impulso do movimento afastando-os de Layla e dos pequenos enquanto mantinha a arma apontada para o sentido oposto do quarto.

Blay acabou por cima, mas sabia que Qhuinn lhe tomaria a posição bem rápido. A arma, ele tinha que manter controle da...

De repente, o ar se tornou ártico.

A temperatura do quarto caiu para baixo de zero tão rápido que as paredes, o piso e o teto rangeram em protesto, a respiração dos presentes foi expelida em lufadas, a condensação gelou os vidros das janelas e os espelhos, com arrepios de qualquer pele exposta.

Em seguida, ouviu-se um rugido vigoroso.

O som foi tão intenso que foi quase inaudível – nada além de dor atravessou-lhes o canal auditivo, transformando suas cabeças em sinos de igreja – e isso, ainda mais do que a mudança no clima, deteve todos dentro da suíte, no corredor, na mansão... Talvez em todo o mundo.

O imenso corpo de Wrath apequenou a soleira da porta quando ele entrou no quarto, marcado pelos cabelos até a cintura, óculos escuros, coxas cobertas por couro e tronco avantajado, que teria detido qualquer trem em movimento.

Suas presas estavam totalmente expostas, como os dentes de um tigre-dentes-de-sabre. Mas ele não teve dificuldade alguma de se expressar, mesmo com elas.

– Não na porra da minha casa! – Ele soou tão alto que o quadro ao seu lado vibrou contra a parede de gesso. – Isso não vai acontecer na porra da minha casa! Minha shellan e meu filho estão aqui – existem outras crianças debaixo deste teto. Existem crianças na droga deste quarto!

Do lado oposto, Layla caiu no chão, os ossos absorvendo a queda com um barulho. Apesar do impacto, manteve Lyric e Rhamp em segurança, aninhados no colo, enquanto pendia a cabeça e começava a chorar.

Debaixo de Blay, Qhuinn tentava se soltar.

– Não até você soltar a arma – Blay disse entredentes.

Houve o som de metal se chocando contra a madeira quando a 40 mm foi solta e Blay a empurrou para longe. Em seguida, Qhuinn se desvencilhou e pôs-se de pé sobre os coturnos. Parecia que ele tinha estado num túnel de vento, seus cabelos negros dispostos em uma bagunça completa, os olhos arregalados, a pele corada em determinados pontos, mas pálida em outros.

– Todos para fora – Wrath ordenou. – Exceto pelos três pais.

Bem, pelo menos alguém reconhecia seu papel, Blay ponderou, com amargura.

Direcionando seu olhar para Qhuinn, viu-se encarando, através do caos, o macho que conhecia quase tão bem quanto a si mesmo.

Naquele instante, porém? Blay fitava para um estranho. A droga de um total desconhecido. Os olhos que Blay já havia passado horas perscrutando, os lábios por ele beijados, um corpo que tocou, acariciou, penetrou e pelo qual também foi penetrado... Era como se algum tipo de amnésia tivesse apagado toda a intimidade, metamorfoseando o que um dia fora uma realidade conhecida em uma hipótese tão fraca que parecia inexistente.

Vishous entrou no quarto.

– Primeiro, vistoria de armas.

Quando o lábio superior de Wrath se retorceu, ficou claro que o rei não apreciou a interrupção. Mas não havia como argumentar contra a razão.

V. foi eficiente na revista: primeiro retirou um par de adagas de Qhuinn, depois outra pistola – e, quando Blay se levantou, ergueu-lhe os braços e afastou-lhe as pernas, mesmo ciente de que ninguém estava preocupado que ele puxasse o gatilho.

– Pronto – V. anunciou ao se espremer para passar pelo Rei e voltar para o corredor.

– Diga aos outros que saiam – Wrath estrepitou.

– Certo.

Ante o comando real, a multidão se dispersou da soleira, mas não foi muito longe. Suas presenças pairaram enquanto, evidentemente, aguardavam os acontecimentos seguintes. De um jeito ou de outro, não havia como fechar a porta. Estava totalmente arruinada.

Virando-se na direção de Qhuinn, Wrath maldisse a situação e exigiu:

– Vai me explicar por que diabos disparou uma arma dentro da minha casa?

 

CONTINUA

ANTIGO PAÍS, 1731
As chamas de uma fogueira no chão iluminavam as paredes úmidas da caverna; a superfície áspera, manchada por sombras. Do lado de fora do ventre da terra, os gemidos do vento ecoavam na abertura do abrigo, unindo-se aos gritos da fêmea sobre o catre em que dava à luz.
– Será um menino! – ela arfou em meio às contrações que a assolavam. – Um macho!
Acima daquele pedaço de carne deitado e agonizante, pairando como uma maldição sobre ela, o Irmão da Adaga Negra Hharm pouco se importava com a sua dor.
– Logo saberemos.
– Você me desposará. Foi uma promessa...
As palavras se interromperam e seu rosto se contraiu numa máscara feia enquanto suas partes internas se contorciam para expelir a cria e, ao fazer as vezes de testemunha, Hharm refletia o quanto a aristocrata ficava pouco atraente em trabalho de parto. Não fora assim quando se conheceram e ele a seduzira. Na época, estivera coberta de cetim, muito composta, o receptáculo adequado para o seu legado, com a pele perfumada e os cabelos macios e reluzentes. Agora? Não passava de um animal, suada, pegajosa – e por que a situação se prolongava tanto? Ele estava tão enfastiado com o processo, ofendido por estar cuidando dela. Tratava-se de uma tarefa para as fêmeas, não para um guerreiro de seu escalão.
Todavia, não a desposaria, a menos que precisasse fazê-lo.
Se o bebê fosse o filho pelo qual vinha esperando? Então, sim, ele legitimaria a criança por meio da cerimônia de união e daria à fêmea o status ao qual ela se julgava digna. Caso contrário, ele se afastaria e a fêmea não diria nada, porque estava maculada aos olhos de sua classe, sua pureza perdida como um terreno já arado.
De fato, Hharm já decidira que era hora de se assentar. Depois de séculos de perdições e depravações, a idade começava a pesar. Ele se punha a considerar, pela primeira vez, o legado que deixaria para a posteridade. No momento, não lhe faltavam bastardos, frutos de sua pelve, os quais não conhecia, com quem não se importava e jamais se associaria a eles – e por tanto tempo era de conhecimento geral que ele não devia nada a ninguém.
Agora, porém... Ele se encontrava desejando uma árvore genealógica adequada. E também havia a questão das suas dívidas crescentes, algo que o pai dessa fêmea facilmente resolveria para ele – embora, mais uma vez, caso não fosse um filho varão, ele não a desposaria. Não era louco, não se prostituiria por centavos. Além disso, havia incontáveis fêmeas da glymera que cobiçavam o status inerente à vinculação com um membro da Irmandade da Adaga Negra.
Hharm não se comprometeria até ter um filho homem, a quem criaria desde a primeira noite.
– Oras, recomponha-se! – ele repreendeu-a quando ela gritou uma vez mais, uma ofensa aos seus ouvidos. – Fique calada!
Como em todas as coisas, contudo, ela o desafiou:
– Está chegando...! O seu filho está chegando!
A veste que ela usava foi suspensa até a base dos seios volumosos por mãos retorcidas. A barriga estendida e arredondada era uma visão vergonhosa, as coxas pálidas e finas permaneciam afastadas. O que acontecia no centro era repugnante: o que deveria ser a entrada delicada e adorável a fim de aceitar a excitação masculina vazava todo tipo de fluido e as carnes estavam inchadas e distorcidas.
Não, ele jamais a penetraria novamente. Com ou sem um filho, vinculados ou não, a perversão diante dos seus olhos não era algo de que ele pudesse se esquecer.
Felizmente, casamentos por conveniência eram uma contingência comum na aristocracia – não que ele se importasse caso não o fossem. As necessidades dela eram inconsequentes.
– Ele está chegando! – ela berrou quando a cabeça pendeu para trás e as unhas arranharam a terra debaixo de seu corpo. – Seu filho... ele se aproxima!
Hharm franziu a testa, depois seus olhos se arregalaram e as pernas se firmaram, afastadas. Ela não se equivocava, pois, de fato, algo começava a surgir de dentro dela... Era...
Uma abominação. Algo disforme e terrível...
Um pé.
– Isso é um pé?
– Tire seu filho do meu corpo – ela ordenou entre arquejos. – Puxe-o de dentro de mim e segure-o contra seu coração, reconheça-o como sua carne e seu sangue!
Com todas as armas ainda presas ao corpo, Hharm ajoelhou-se quando o segundo pé apareceu.
– Puxe! Puxe! – O Sangue jorrou e a fêmea berrou de novo quando o bebê não se moveu. – Ajude-me! Ele está asfixiado!
Hharm manteve-se afastado de toda aquela nojeira e imaginou quantas fêmeas inseminadas por ele haviam passado pela mesma situação. Seria sempre desagradável assim ou era ela quem era fraca?
De fato, deveria deixá-la que fizesse o parto sozinha, mas não confiava nela. A única maneira de ter certeza de que seu filho era macho era estar presente durante o nascimento. De outro modo, ele não desconsiderava a possibilidade de ela trocar uma filha indesejada pelo macho tão cobiçado – fruto de outro macho.
Aquela era, afinal, uma transação negociada, e ele sabia muito bem como tais coisas podiam ser manipuladas.
Em seguida, o som que emergiu da garganta da fêmea foi tão volumoso e demorado que interrompeu seus pensamentos. Depois os gemidos e as mãos sujas de terra e sangue dela se postaram no interior das coxas, puxando-as para fora e para cima, ampliando a abertura. E bem quando o Irmão acreditou que ela estivesse morrendo, quando cogitou se acabaria enterrando a ambos – e de pronto decidiu-se contra a proposição, visto que as criaturas da floresta logo consumiriam os restos mortais –, o bebê apareceu um pouco mais, livrando-se de algum obstáculo interno.
E lá estava ele.
Hharm se adiantou.
– Meu filho!
Sem pensar, esticou os braços e apanhou com mãos firmes os tornozelos escorregadios. Estava vivo; a criança chutava com força, debatendo-se contra o confinamento do canal vaginal.
– Venha para mim, meu filho – Hharm ordenou ao puxá-lo.
A fêmea se contorcia em agonia, mas ele não lhe dispensou um pensamento sequer. Mãos – pequeninas e perfeitamente bem formadas – surgiram em seguida, junto à barriga arredondada e o peito, que, mesmo em seu momento recém-nascido, era amplo.
– Um guerreiro! Este é um guerreiro! – O coração de Hharm batia forte, seu triunfo latejava nos ouvidos. – Meu filho levará adiante o meu nome! Será conhecido como Hharm, assim como eu antes dele!
A fêmea ergueu a cabeça, as veias do pescoço saltavam como cordões tensos sob a pele pálida demais.
– Você me desposará – ela disse, rouca. – Jure... Jure pela sua honra, ou eu o segurarei dentro de mim até que fique azul e entre no Fade.
Hharm sorriu com frieza, revelando as presas. Em seguida, desembainhou uma das adagas do peito. Direcionando a ponta para baixo, mirou no baixo ventre dela.
– Eu a estriparei como a um cervo para libertá-lo, nalla.
– E quem alimentará seu precioso filho? O seu sêmen não sobreviverá sem mim.
Hharm pensou na tormenta do lado de fora. Na distância que estavam do assentamento de vampiros mais próximo. E no pouco que sabia sobre as necessidades de um recém-nascido.
– Você me desposará, conforme prometido – ela gemeu. – Jure!
Os olhos dela estavam injetados e ensandecidos, os longos cabelos suados e emaranhados, o corpo era algo sobre o qual ele jamais desejaria se sobrepor. Mas a lógica dela o impedia. Perder o que desejava por conta exatamente do arranjo que estivera disposto a fazer, simplesmente porque ela o apresentava como se fosse uma condição sua, não era uma decisão sábia a se tomar.
– Juro – murmurou.
Com isso, ela voltou a se deitar e, sim, agora ele a ajudaria, puxando no ritmo dos empurrões dela.
– Ele está vindo... ele...
O bebê saiu de dentro dela num jorro, fluidos saindo com ele e, quando Hharm o segurou em suas palmas, sentiu uma alegria inesperada tão ressonante que...
Seus olhos se estreitaram ao pousar as vistas sobre o rosto dele. Acreditando que havia alguma membrana mascarando o bebê, passou uma das mãos pelas suas feições, que eram um misto das dele e da fêmea.
Lamentavelmente... nada mudou.
– Que maldição é esta? – questionou-se consigo mesmo. – Que maldição... é esta!

 

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CAPÍTULO 1


MONTANHAS DE CALDWELL, NOVA YORK, DIAS ATUAIS

A Irmandade da Adaga Negra o mantinha vivo só para poder matá-lo.

Dada a soma das atividades terrenas de Xcor, que foram das mais violentas, e certamente muito depravadas, aquele parecia um fim adequado para ele.

Nascera numa noite de inverno durante uma tempestade histórica. Nas entranhas de uma caverna suja e úmida, enquanto rajadas gélidas assolavam o Antigo País, a fêmea que o carregara gritara e sangrara para dar ao Irmão da Adaga Negra Hharm o filho tão exigido por ele.

Ele fora desesperadamente desejado.

Até chegar ao mundo.

E esse era o início da sua história, que acabara por levá-lo até ali.

Em outra caverna. Em outra noite do mês de dezembro. E assim como na noite do seu nascimento de fato, o vento gemia para recebê-lo, ainda que, dessa vez, fosse para o retorno da sua consciência em vez da expulsão para a vida independente que levou dali adiante.

E como um recém-nascido, tinha pouco controle sobre o corpo. Estava incapacitado, e isso seria verdadeiro mesmo sem as algemas de aço e as barras sobre o peito, o quadril, as coxas. Máquinas, contrastantes com o ambiente rústico que o rodeava, emitiam sinais atrás de sua cabeça, monitorando-lhe a respiração, os batimentos cardíacos, a pressão sanguínea.

Com a mesma fluidez de uma engrenagem sem lubrificação, seu cérebro começou a funcionar adequadamente sob o crânio; quando os pensamentos por fim se aglutinaram e formaram uma sequência lógica, lembrou-se da série de eventos que fizeram com que ele, o líder do Bando de Bastardos, acabasse sob a custódia daqueles que haviam sido seus inimigos: um ataque por trás, uma concussão, uma espécie de derrame ou algo do tipo que fez com que ele acabasse deitado, dependendo de máquinas para sobreviver.

E da inexistente misericórdia dos Irmãos.

Recobrara a consciência uma ou duas vezes durante o período em cativeiro, registrando seus captores e o ambiente daquele corredor cavernoso que inexplicavelmente abrigava jarros de todos os tipos. A retomada da consciência nunca durou muito; entretanto, a conexão com sua área mental era insustentável por um tempo mais demorado.

No entanto, dessa vez parecia diferente. Ele percebia a mudança em sua mente. O que quer que tivesse estado danificado por fim se curara e agora ele retornava do cenário enevoado do ponto de morto-vivo, permanecendo do lado vital.

– ... muito preocupado com Tohr.

O fim da frase enunciada por um macho entrou nos ouvidos de Xcor como uma série de vibrações, cuja tradução sofreu um atraso, e quando as palavras se formaram, ele virou o olhar naquela direção. Duas figuras de preto muito bem armadas estavam de costas para si, e ele voltou a abaixar as pálpebras, pois não desejava revelar a mudança do seu estado. Entretanto, suas identidades estavam devidamente anotadas.

– Não, ele está bem. – O som de algo raspando e o cheiro de tabaco permeando o ar. – E se não estiver, vou estar ao lado dele.

A voz grave que falou primeiro pareceu árida.

– Pra botar nosso irmão na linha à força... Ou ajudá-lo a acabar com este pedaço de carne?

O Irmão Vishous riu como se fosse um assassino em série.

– Que bela consideração você tem por mim.

Era estranho que não se entendessem melhor, Xcor pensou. Esses machos queriam tanto sangue quanto ele.

No entanto, essa aliança jamais existiria. A Irmandade e os Bastardos sempre estiveram em lados opostos durante o reinado de Wrath, esse limite tendo sido estabelecido pela bala que Xcor alojara na garganta do líder por direito da raça vampírica.

E o preço de sua traição seria cobrado ali, em pouco tempo.

Claro, a ironia era que uma força de compensação interceptara seu destino e fizera com que suas ambições e seu foco se afastassem, e muito, do trono. Não que os guerreiros da Irmandade tivessem ciência disso – e pouco se importariam se soubessem. Além de partilharem o apetite pela guerra, ele e os Irmãos tinham outras características em comum: piedade era para os fracos; o perdão, algo patético; pena, um sentimento das fêmeas, nunca de guerreiros.

Embora soubessem que ele já não sentia nenhuma agressividade em relação a Wrath, não o exonerariam daquilo que conquistara com méritos. Por conta de tudo o que acontecera, ele não sentia nem amargura nem raiva em relação ao que o esperava. Aquela era a natureza do conflito.

Contudo, sentia-se triste – um sentimento desconhecido para ele.

Das suas lembranças surgiu uma imagem que lhe roubou o fôlego. Era o de uma fêmea alta e magra nas vestes sagradas das Escolhidas da Virgem Escriba. Os cabelos loiros ondulavam sobre os ombros e desciam até o quadril em uma brisa suave, os olhos eram cor de jade, o sorriso, uma benção que ele não fizera nada para receber.

A Escolhida Layla mudara tudo para ele, transformando a Irmandade de um alvo a algo tolerável, de inimigo a um habitante coexistente naquele mundo.

Em pouco mais de um ano e meio, período no qual Xcor a conhecia, ela tivera um efeito mais impactante sobre sua alma negra do que qualquer outra pessoa antes dela, fazendo com que evoluísse muito em tempo ínfimo – algo que ele jamais imaginara ser possível.

O Dhestroyer, camarada de Vishous, voltou a falar:

– Na verdade, concordo plenamente com Tohr sobre fazer picadinho do filho da puta. Ele conquistou esse direito.

O Irmão Vishous praguejou.

– Todos nós merecemos. Vai ser difícil deixar uma parte dele intacta quando isso acontecer.

E ali estava o enigma, Xcor ponderou por trás das pálpebras abaixadas. A única saída possível de tamanho cenário mortal seria revelar o amor que sentia por uma fêmea que não era sua, nunca fora e jamais poderia ser.

Mas não sacrificaria a Escolhida Layla por ninguém, por nada.

Nem mesmo para se salvar.

Enquanto Tohr caminhava na floresta de pinheiros da montanha da Irmandade, seus coturnos esmagavam o terreno congelado, e o vento glacial o golpeava no rosto. Em seu rastro, tão próximo de seus calcanhares quanto uma sombra, ele sentia suas perdas a acompanhá-lo, numa fila de lamentos tangíveis como uma corrente.

A sensação de estar sendo perseguido pelos seus mortos o fez refletir a respeito de programas de TV sobre eventos paranormais, do tipo que tentava provar a existência de fantasmas. Que monte de bobagens. A histeria humana acerca das supostas entidades obscuras flanando em escadas e provocando rangidos em casas antigas, com seus passos sem corpos, era algo muito característico dessa espécie desimportante absorta em si mesma e criadora de dramalhões. Mais uma coisa que Tohr odiava a respeito deles.

E, como de costume, eles não acertavam no alvo.

Os mortos absolutamente nos atormentam, percorrendo seus dedos gélidos em nossa nuca como uma forma de lembrete até não conseguirmos decidir se queremos gritar pelas saudades que sentimos deles... ou porque queremos ser deixados em paz.

Eles espreitam suas noites e rondam seus dias, deixando um campo minado de tristeza ao longo dos caminhos.

São seus primeiros e seus últimos pensamentos, o filtro que você tenta deixar de lado, a barreira invisível entre você e todo o resto.

Algumas vezes, são mais parte de você do que as pessoas que você consegue de fato segurar e tocar.

Portanto, sim, ninguém precisa de um programa de TV idiota para provar o que já é de conhecimento comum: mesmo que Tohr tenha encontrado o amor com outra fêmea, sua primeira shellan, Wellsie, e o filho não nascido que ela carregava no ventre quando foi assassinada pela Sociedade Redutora, nunca foram afastados dele além da própria pele.

E agora houvera mais uma morte na mansão da Irmandade.

A companheira de Trez, Selena, subira para o Fade havia poucos meses, tendo falecido em razão de uma doença para a qual não existia cura, nenhum alívio, nenhum conhecimento.

Tohr não dormia direito desde então.

Voltando a se concentrar nas árvores que o cercavam, Tohr se abaixou e afastou um galho do caminho, depois deu a volta num tronco caído. Poderia ter se materializado até o destino, mas seu cérebro latejava com tanta violência da prisão do crânio que ele duvidava que conseguiria se concentrar o bastante para se dissipar.

A morte de Selena fora um maldito gatilho para ele, um evento que afetava outra pessoa, mas que, não obstante, sacudira seu globo de neve, balançando-o com tanta força que seus flocos internos ainda rodopiavam e se recusavam a se assentar.

Estava no centro de treinamento quando ela fora chamada para o Fade, e o momento da morte não fora silencioso. Fora marcado pelo som da alma dilacerada de Trez, o equivalente auditivo de uma tumba – um som que Tohr conhecia bem demais. Fizera o mesmo quando recebera a notícia da morte de sua fêmea.

Portanto, sim, nas asas da agonia do seu amor, Selena fora alçada da terra para o Fade...

Arrancar-se desse espiral cognitivo era o mesmo que tentar tirar um carro de um atoleiro, o esforço necessário era tremendo, o progresso conquistado centímetro a centímetro.

No entanto, lá ia ele pela floresta, na noite invernal, esmagando o que aparecia sob suas solas, com seus fantasmas sussurrando-lhe por trás.

A Tumba era o sanctum sanctorum da Irmandade da Adaga Negra, aquele local secreto onde as induções aconteciam e convocavam-se as reuniões secretas, e onde eram mantidos os jarros dos redutores assassinados. Estava localizada abaixo do solo, num labirinto criado pela natureza, tradicionalmente fora dos limites para qualquer um que não tivesse passado pela cerimônia que o marcasse como membro da Irmandade.

Essa regra, no entanto, tivera que ser contornada, pelo menos em respeito ao longo corredor de entrada de quase meio quilômetro.

Ao se aproximar do insuspeito sistema da entrada, parou e sentiu a raiva surgir.

Pela primeira vez desde que se tornara um Irmão, não era bem recebido ali.

Tudo por causa de um traidor.

O corpo de Xcor estava do lado oposto dos portões, na metade do caminho repleto de prateleiras, deitado numa maca, a vida monitorada e mantida por equipamentos.

Até que o maldito despertasse e pudesse ser interrogado, Tohr não tinha permissão para entrar.

E seus irmãos tinham razão em não confiar nele.

Ao fechar os olhos, viu seu rei com um tiro na garganta. Reviveu o momento em que a vida de Wrath estivera escorrendo junto ao sangue rubro; rememorou a cena em que tivera que salvar o último vampiro de sangue puro no planeta ao cortar um buraco na frente da garganta dele e enfiar o tubo de sua Camelback naquele esôfago.

Xcor encomendara o assassinato. Xcor ordenara um dos seus guerreiros mandar uma bala para dentro das carnes de um macho de valor, conspirara com a glymera para derrubar o governante por direito, mas o filho da puta fracassara. Wrath sobrevivera, apesar das probabilidades contrárias,, e na primeira eleição democrática da história da raça, fora apontado como líder de todos os vampiros – uma posição que ele agora detinha por consenso em vez de pela sua linhagem.

Portanto, vá se foder, filho da puta.

Cerrando os punhos, Tohr ignorou o ranger das luvas de couro e a constrição no dorso dos nós dos dedos. Só o que reconhecia era o ódio, tão profundo como uma doença letal.

O destino decidira que era certo tirar-lhe três seus e dos seus; o destino tirara dele sua shellan, seu filho, e o amor da vida de Trez. Querem falar sobre equilíbrio no Universo? Tudo bem. Ele queria o seu equilíbrio, e isso só aconteceria quando quebrasse o pescoço de Xcor e arrancasse o coração ainda quente do peito do maldito.

Já era hora de uma fonte do mal ser tirada de circulação, e era ele quem empataria o placar.

E a espera finalmente terminava. Por mais que respeitasse seus irmãos, estava farto de aguardar. Essa noite era um aniversário triste para ele, e ele daria ao seu luto um presentinho especial.

Era hora de festejar.


CAPÍTULO 2

O copo de cristal baixo estava tão limpo, tão isento de marcas de sabão, de poeira, de qualquer grânulo que o manchasse, que sua estrutura era como o ar; e a água dentro dele, totalmente invisível.

Meio cheio, a Escolhida Layla ponderou. Ou meio vazio?

Sentada no banquinho acolchoado, entre as duas pias com torneiras douradas e diante de um espelho com adornos de ouro que refletia a banheira funda atrás de si, ela observava a superfície do líquido.

O fundo era côncavo e a água lambia levemente o interior do copo, como se suas moléculas mais ambiciosas tentassem fugir do confinamento.

Respeitava o esforço, enquanto lamentava sua futilidade. Sabia muito bem o que era querer ser livre do local que a abrigava, apesar de não ser culpa sua.

Por séculos, ela fora a água daquele copo, despejada sem ter querido, em virtude apenas do seu nascimento, num papel de servidão junto à Virgem Escriba. Ao lado de suas irmãs, executara os deveres sagrados das Escolhidas no Santuário, adorando a mãe da raça, registrando os eventos da Terra para a posteridade dos vampiros, aguardando a escolha de um novo Primale para que ela pudesse engravidar e dar à luz mais Escolhidas e mais Irmãos.

Mas tudo isso já era passado.

Inclinando-se sobre o copo, observou mais atentamente a água. Fora treinada como ehros, não como escriba, mas sabia muito bem como enxergar além das águas que eram testemunhas da história. Dentro do Templo das Escribas, as Escolhidas designadas a registrar as histórias e as linhagens da raça permaneceram sentadas por horas e horas, observando nascimentos e mortes, suas mãos delicadas com penas sagradas colocando os detalhes nos pergaminhos, acompanhando tudo.

Não havia nada para ela ver. Não ali na Terra.

E também já não existiam testemunhas no alto.

Um novo Primale acabara surgindo. Mas em vez de se deitar com seu rebanho de fêmeas, dando continuidade ao programa de criação da Virgem Escriba, ele dera um passo sem precedentes, libertando todas elas. O Irmão da Adaga Negra Phury se desviara do modelo, quebrara a tradição, desfizera-se das amarras e, ao fazê-lo, as Escolhidas que estiveram isoladas desde sua gênese, visando aos nascimentos planejados, acolheram sua libertação. Já não eram representantes vivas de uma tradição rígida; tornaram-se indivíduos, com seus próprios descontentamentos e preferências, mergulhando os dedos nas águas terrenas da realidade, procurando e encontrando destinos a respeito de si próprias, e não mais de um serviço.

Ao fazer isso, ele desencadeara o fim dos imortais.

A Virgem Escriba já não existia mais.

Seu filho de nascimento, o Irmão da Adaga Negra Vishous, a procurara no Santuário acima e descobriu que ela se fora, deixando uma última carta escrita no vento apenas para os olhos dele.

Ela dissera que tinha um sucessor em mente.

Ninguém sabia sua identidade.

Recostando-se, Layla olhou para a veste que trajava. Não era do tipo sagrado que se vestira durante tantos anos. Não, essa peça vinha de um lugar chamado Pottery Barn, e Qhuinn a comprara para ela na semana passada. Com a aproximação do inverno, ele se preocupava que a mãe de seus filhos estivesse aquecida, sempre bem cuidada.

A mão de Layla subiu para o ventre, agora baixo. Depois de ter carregado a filha, Lyric, e o filho, Rhampage, dentro do corpo por tantos meses, era tão estranho quanto familiar não ter nada no útero...

Vozes murmuradas, baixas e graves, penetraram a porta que ela havia fechado.

Entrara no banheiro para usar o vaso.

Demorara-se depois de ter lavado as mãos.

Qhuinn e Blay, como de costume, estavam com os bebês. Segurando-os. Ninando-os.

Todas as noites, ela tinha que se esforçar para testemunhar o amor, não entre eles e os pequenos... mas aquele entre os dois machos. De fato, os pais exibiam um vínculo ressonante e, resplandecente um com o outro, e por mais que fosse algo belo, aquele fulgor fazia com que se sentisse ainda mais vazia em sua existência.

Enxugando uma lágrima, disse a si mesma para se controlar. Não poderia voltar ao quarto com olhos brilhantes demais, e o nariz e faces corados. Aquele deveria ser um momento de alegria para os cinco integrantes da família. Agora que os gêmeos haviam superado o estado de emergência sob o qual tinham nascido, e Layla também se recuperara, todos estavam aliviados por todos estarem sãos e salvos.

Agora era a vida feliz que ganharam para viver.

Em vez disso, ela ainda era a água triste dentro do copo, desejando sair.

Dessa vez, porém, a prisão foi feita por ela mesma, em vez de providenciada pela genética.

A definição de infidelidade, pelo menos de acordo com o dicionário, era: a ação de trair algo ou alguém...

A batida à porta fechada foi suave.

– Layla?

Ela fungou e abriu uma das torneiras.

– Oi!

A voz de Blay soou baixa, como era seu hábito.

– Você está bem aí?

– Ah, sim, estou. Resolvi tratar um pouco do rosto. Sairei daqui a pouco.

Ela se levantou, inclinou-se e molhou o rosto. Depois esfregou a testa e o queixo com a toalha de mão para que o rubor se espalhasse mais uniformemente sobre a pele. Apertando o cinto do roupão, aprumou os ombros e foi para a porta, em meio a preces para manter a compostura pelo tempo necessário até conseguir apressá-los para a Última Refeição.

Mas teve um momento de folga.

Ao abrir a porta, Blay e Qhuinn sequer olhavam na sua direção. Estavam inclinados sobre o berço de Lyric.

– ... os olhos de Layla – Blay disse ao abaixar a mão e deixar que a pequena agarrasse seu dedo. – Definitivamente.

– Ela também tem os cabelos da mahmen. Veja o tom loiro começando a aparecer.

O amor deles pela pequena era incandescente, reluzia em seus rostos, aquecia suas vozes e, aplacava seus movimentos, de modo que tudo o que faziam era com cuidado. No entanto, não era nisso que Layla se concentrava.

Seu olhar estava fixo na palma larga de Qhuinn, que afagava as costas de Blay. A carícia de conexão era inconsciente de ambos os lados; a oferta e a aceitação eram tanto nada e tudo o que importava, simultaneamente. E enquanto testemunhava o que se passava do outro lado do quarto, Layla teve que piscar rápido de novo.

Às vezes, a gentileza e o amor podiam ser tão difíceis de testemunhar quanto a violência. Às vezes, quando se está do lado de fora, ver duas pessoas tão em sintonia era uma cena saída de um filme de terror, o tipo de coisa da qual você quer se manter afastado, quer esquecer, banir da memória – ainda mais quando se está prestes a deitar e enfrentar sozinha um longo dia de horas no escuro.

Saber que ela jamais teria esse amor especial com alguém era...

Qhuinn relanceou na sua direção.

– Ah, oi.

Ele se endireitou e sorriu, mas ela não se deixou enganar. Os olhos dele a percorriam como se em uma avaliação – mas, talvez, esse não fosse o caso. Talvez fosse simplesmente a sua paranoia se manifestando.

Estava tão farta de se dividir em uma vida dupla. Contudo, no tipo de ironia cruel que parecia ser a fonte favorita de divertimento do destino, o preço para aliviar a consciência viria à custa de sua própria existência.

A como poderia deixar os filhos para trás?

– ... ok? Layla?

Enquanto Qhuinn franzia a testa ao observá-la, ela balançou a cabeça e forçou um sorriso.

– Ah, tudo bem, mesmo. – Ela deduzia que a pergunta se referisse ao seu bem-estar. – Muito bem mesmo.

Em busca de confirmar a mentira, aproximou-se dos berços. Rhampage, ou Rhamp, como era conhecido, lutava contra o sono, e quando a irmã arrulhou, sua cabeça se virou e ele esticou a mão.

Engraçado. Mesmo tão jovem, ele parecia reconhecer seu posto e desejava protegê-la.

Era genético. Qhuinn era um membro da aristocracia, resultado de gerações de emparelhamentos escolhidos a dedo, e por mais que seu “defeito” de ter um olho azul e outro verde o tivesse feito receber o desprezo tanto da glymera quanto da própria família, a venerável natureza de sua linhagem não podia ser negada. Tampouco o impacto de sua presença física. Com quase dois metros de altura e corpo talhado por músculos definidos, moldados tanto pelos exercícios quanto pela prática na guerra – uma arma tão letal quanto as pistolas e adagas que levava consigo para o campo de batalha. Era o primeiro membro da Irmandade da Adaga Negra a ser induzido com base na meritocracia em vez de na linhagem, e não desapontara a grande tradição. Ele nunca desapontava ninguém.

De fato, Qhuinn era, no conjunto, um belo macho, ainda que de forma um tanto rústica. O rosto era angular, pois tinha pouca gordura corporal, e aqueles olhos despareados fitavam por baixo de sobrancelhas negras. Os cabelos pretos foram cortados muito curtos recentemente, quase totalmente raspados na base. Deixavam um topete para trás e, como resultado, seu pescoço parecia extra-grosso. Com piercings metálicos nas orelhas e a lágrima de ashtrux nohtrum abaixo do olho – uma marca dos tempos em que servira como protetor de John Matthew –, ele chamava a atenção por onde quer que passasse.

Talvez porque as pessoas, tanto humanos como vampiros, preocupavam-se com o que ele seria capaz de fazer caso fosse contrariado.

Blay, por sua vez, era o oposto: tão acessível quanto Qhuinn seria evitado num beco escuro.

Blaylock, filho de Rocke, tinha cabelos ruivos e um tom de pele mais claro do que a maioria da espécie. Era tão grande quanto Qhuinn, mas quando se está ao seu lado, a primeira impressão que se tem dele faz referência à sua inteligência e ao seu bom coração, em vez de a força bruta. Ainda assim, ninguém discutia suas habilidades em campo. Layla ouvira histórias, ainda que nunca da parte dele, visto que não era de se vangloriar, criar dramas excessivos ou atrair atenções para si.

Ela amava os dois de todo o coração.

E o distanciamento que sentia em relação a eles partia somente do seu lado.

– Olha só – Qhuinn disse ao apontar para os bebês. – Temos dois se apagando... Melhor, um e meio.

Quando ele sorriu, ela não se deixou enganar. Seus olhos continuavam a passear pelo seu rosto, à procura sobre sinais de exatamente aquilo que ela tentava esconder. Para dificultar o escrutínio dele, ela recuou.

– Eles dormem bem, graças à Virgem Escriba... Hum, graças ao Fade.

– Você vai descer para a Última Refeição hoje? – ele perguntou como quem não quer nada.

Blay se endireitou.

– Fritz disse que prepara o que você quiser.

– Ele é sempre tão gentil. – Ela foi até a cama e se deitou contra os travesseiros. – Na verdade, senti uma fominha lá pelas duas da manhã, por isso fui até a cozinha e comi torradas e aveia. Tomei café. Suco de laranja. Um café da manhã no lugar do almoço, por assim dizer. Sabem como é, às vezes sentimos vontade de voltar o relógio no meio da noite e recomeçar da metade.

Uma pena que isso não passasse de uma metáfora.

Ainda que... será que ela teria escolhido nunca conhecer Xcor?

Sim, pensou. Preferiria nunca ter sabido da sua existência.

O amor de sua vida, seu “Blay”, o par do seu coração e da sua alma... era um traidor. E seus sentimentos pelo macho foram uma ferida aberta na qual a bactéria da traição entrara e se espalhara.

Portanto, ali estava ela, na prisão estabelecida por ela própria, torturada pelo fato de ter se aproximado do inimigo, primeiro por ter sido ludibriada... e mais tarde porque quis estar na presença de Xcor.

Separaram-se em maus termos, contudo, com ele colocando um fim nos encontros clandestinos após ela forçá-lo a admitir seus sentimentos. Em seguida, a situação se transformara de triste para trágica, quando ele foi capturado e levado sob a custódia da Irmandade.

A princípio não conseguira obter informações acerca de seu estado. Mas então, viajara ao modo de uma Escolhida até ele e, testemunhara seu estado moribundo num corredor de pedras, repleto de jarros de todas as cores e formas.

Não havia nada que pudesse ter feito por ele. Não sem se apresentar e se expor – e mesmo que ela o fizesse, não poderia salvá-lo.

Por isso estava presa ali: um fantasma atormentado num misto de emoções salpicadas pelo veneno da culpa e do arrependimento, sem nunca, jamais, poder se libertar.

– ... certo? Quero dizer... – Enquanto Blay continuava a falar com ela a respeito de uma e outra coisa, a Escolhida se forçou a não esfregar os olhos. – ... no fim da noite, enquanto você fica aqui com os bebês. Não que você não goste de ficar com eles.

Saiam, ela solicitou mentalmente para os dois machos. Por favor, vão embora e me deixem em paz.

Não era como se ela quisesse afastá-los das crianças, ou que sentisse alguma malquerença pelos pais de Lyric e Rhamp. Ela só precisava respirar. E toda vez que um dos guerreiros a fitava, como faziam agora, respirar se tornava praticamente impossível.

– Você concorda? – Qhuinn perguntou. – Layla?

– Ah, sim, claro. – Ela não fazia ideia do que acabara de concordar, mas certificou-se de sorrir. – Só vou descansar agora. Eles ficaram bastante tempo acordados durante o dia.

– Eu gostaria que nos deixasse ajudar mais. – Blay franziu a testa. – Estamos aqui do lado.

– Vocês dois lutam na maioria das noites. Precisam dormir.

– Mas você também é importante.

Layla direcionou o olhar rumo aos os berços e, ao rememorar a cena de si mesma acalentando-os e amamentando-os, sentiu-se ainda pior. Mereciam uma mahmen melhor do que ela, descomplicada e sem o fardo de decisões que nunca deveriam ter sido tomadas, uma que não estivesse contaminada pela fraqueza em relação a um macho de quem jamais deveria ter se aproximado... muito menos amado.

– Não tenho a mínima importância em comparação a eles – sussurrou rigidamente. – Eles são tudo.

Blay se aproximou e a tomou pela mão, os olhos azuis calorosos.

– Não, você também é muito importante. E mahmens precisam de tempo para si.

Para fazer o quê? Ruminar meus remorsos? Não, muito obrigada, pensou.

– Vou para o túmulo sem eles e aí apreciarei minha própria companhia. – Ao perceber o quanto tinha soado mórbida, apressou-se: – Além disso, eles crescem rápido. Vai acontecer antes de nós três nos darmos conta.

Conversaram mais depois – não que ela tivesse prestado atenção, com todos os gritos em sua mente. Mas, por fim, foi deixada em paz quando o casal partiu.

O fato de ficar tão feliz ao vê-los sair foi mais uma tristeza que ela tinha a carregar.

Mudando de posição na cama, levantou-se e se aproximou dos berços com os olhos rasos de lágrimas. Enxugando o rosto, repetidas vezes, ela pegou um lenço de papel do bolso do roupão e assoou o nariz. Os bebês estavam profundamente adormecidos, com os olhos fechados, os rostos voltados um para o outro como se estivessem se interligado em uma comunicação telepática durante o sono. Mãozinhas perfeitas e pezinhos preciosos, barriguinhas redondas e saudáveis envolvidas em cobertorzinhos de flanela. Eram bebês tão bons; alegres quando acordados, pacíficos e angelicais adormecidos. Rhampage ganhava peso com mais velocidade do que Lyric, mas ela parecia mais saudável do que ele, reclamava menos ao ser lavada ou trocada, fitando tudo com mais atenção.

Quando as lágrimas caíram do rosto de Layla até o carpete, ela não sabia quanto tempo mais suportaria.

Antes de tomar ciência do movimento, foi até o telefone interno da casa e apertou uma sequência de quatro números.

A doggen que convocou chegou em questão de momentos, e Layla voltou a vestir sua máscara social, sorrindo para a criada com uma serenidade que não sentia.

– Grata por cuidar dos meus preciosos – disse no Antigo Idioma.

A babá respondeu com alegria e olhos cintilantes, e Layla só aguentou dois ou três segundos de comunicação. Em seguida, saiu do quarto e, com passos ligeiros protegidos por chinelos, desceu pelo corredor das estátuas. Quando chegou às portas da extremidade oposta, empurrou uma delas e entrou na ala dos empregados.

Como em todas as mansões daquele tamanho e distinção, o lar da Irmandade necessitava de um tremendo apoio de funcionários, e os aposentos dos doggens perfilavam o corredor; a segregação por idade, sexo e posição nos escalões formava comunidades dentro do grande conjunto. Em meio ao labirinto de corredores, Layla não escolheu uma direção específica além do objetivo de encontrar um quarto vazio – e encontrou-o umas três portas adiante, depois de uma virada. Ao entrar no espaço simples e desocupado, foi até a janela, abriu-a e fechou os olhos. Seu coração batia forte e uma ligeira tontura a dominava, mas ela inspirou fundo o ar fresco e limpo...

... e se desmaterializou através da abertura que criara, misturando-se à noite; as moléculas se espalhando e se afastando da mansão da Irmandade.

Como sempre, sua liberdade seria temporária.

Mas, desesperada como estava, foi tomada por um breve sufocamento, e ela partiu em busca de oxigênio.


CAPÍTULO 3

Qhuinn era um macho muito macho. E não só porque era um guerreiro casado com outro cara.

Sim, claro que, antes de se assentar com Blay, até que gostara de transar com fêmeas e mulheres. Mas, pensando bem, seu padrão para parceiros sexuais fora tão baixo que até aspiradores de pós e canos de escapamento tinham sido candidatos ocasionais.

Mas nada de ovelhas. #critério

No entanto, não poderia dizer que as fêmeas o tivessem cativado ou interessado de fato. Não que houvesse algo de errado com elas, ou que não as respeitasse assim como todo o resto. Elas simplesmente não eram do seu gosto.

Numa noite como a de hoje, porém, ele lamentava sua inexperiência. Só porque ralara e rolara com o sexo oposto não significava que estivesse equipado de algum modo para lidar com o que o confrontava agora.

Quando ele e Blay chegaram ao pé da escadaria principal, ele parou e olhou para seu par. Ao fundo, vindo da sala de bilhar do lado oposto do átrio, o som das vozes graves dos machos, de música e de gelo batendo em copos de cristal anunciavam que o torneio de bilhar da Irmandade já estava em curso.

Qhuinn sorriu de uma maneira que esperava transmitir calma.

– Ei, eu já te encontro lá, ok? Tenho que descer pra falar com a doutora Jane sobre o meu ombro, acho que demoro uns dez minutos... Não mais do que isso.

– Claro. Quer que eu vá com você?

Por um segundo, Qhuinn se perdeu ao observar seu macho. Blaylock, filho de Rocke, era tudo o que ele não era: impecável como um corpo esculpido por Michelangelo, tinha um rosto de arrasar e uma cabeleira ruiva e lustrosa como a cauda de um pônei; era inteligente, mas também equilibrado, o que fazia toda a diferença; era firme e confiável como uma montanha de granito, o tipo de cara que nunca vacilava.

Em tudo o que importava, comparado a Blay, Qhuinn era uma banheira de plástico perto de uma de porcelana; um conjunto incompleto de pratos ao lado de uma dúzia perfeita de louças; uma coisa rachada no meio de algo inquebrável.

Por algum motivo, porém, Blay o escolhera. Contra todas as possibilidades, o filho imperfeito e desonrado de uma das Famílias Fundadoras, o viciado sexual de olhos despareados, o vagabundo hostil e arredio... De algum modo acabara com o Príncipe Encantado, e caralho, se isso não o convertia.

Blay era o motivo que o fazia respirar, o lar que nunca tivera, a luz do sol que empoderava sua terra.

– Qhuinn? – Os olhos azuis iridescentes se apertaram. – Você está bem?

– Desculpe. – Ele se inclinou e pressionou os lábios na jugular do macho. – Eu me distraí. Mas você sempre tem esse efeito em mim, não é?

Quando Qhuinn se afastou, Blay estava corado – e excitado. Aquela fragrância era uma digressão que não podia ser facilmente ignorada.

A não ser pelo fato de que tinha um problema real para resolver.

– Diga aos irmãos que não demoro. – Qhuinn apontou na direção da sala de bilhar. – E que vou dar uma surra neles.

– Você sempre faz isso. Mesmo com Butch.

As palavras foram suaves, mas respaldadas por uma adoração que fazia com que Qhuinn contasse cada uma das suas bênçãos.

Cedendo ao instinto, Qhuinn se aproximou e sussurrou ao ouvido do cara:

– Talvez queira se alimentar bem na Última Refeição. Vou te manter ocupado o dia inteiro.

Com uma lambida no pescoço em que pretendia trabalhar mais tarde, Qhuinn se afastou antes que não pudesse mais se distanciar de seu par.

Seguindo ao redor da base da escada, passou por uma porta escondida e desceu pelo sistema de túneis que conectava os componentes da propriedade. O centro de treinamento subterrâneo da Irmandade ficava cerca de meio quilômetro afastado da mansão, e aquela passagem subterrânea ligando as duas partes era um espaço amplo iluminado por painéis de luzes fluorescentes afixados ao teto.

Enquanto ele avançava, o som dos seus passos ecoava ao redor, como se os coturnos aplaudissem a iniciativa.

Contudo, Qhuinn não sabia se eles estavam certos. Não fazia a mínima ideia do que estava fazendo ali.

A porta atrás do armário de suprimentos se abriu sem emitir nenhum som, uma vez inserida a senha; em seguida, o guerreiro passava ao longo de prateleiras repletas de papéis para impressora, canetas, blocos de anotação e outras merdas vindas da loja de materiais para escritório. A sala, além do depósito, apresentava a típica disposição de mesa, cadeira, computador e arquivos metálicos, e nenhuma dessas coisas foi particularmente percebida quando ele passou pela porta de vidro adiante para chegar ao corredor da frente. Com passadas longas e impacientes, atravessou todos os tipos de instalações de nível profissional – desde uma academia completa e sala de pesos à altura de Dwayne Johnson, até os vestiários e as primeiras salas de aula.

A porção destinada à clínica do centro de treinamento tinha outra quantidade de cômodos voltados ao tratamento, uma sala de operações e diversos leitos hospitalares. A doutora Jane, companheira de V., e o doutor Manello, companheiro de Payne, cuidavam de todo tipo de ferimentos obtidos em combate, além de problemas domésticos e sem falar dos partos de L.W., Nalla e dos gêmeos Lyric e Rhampage.

Qhuinn bateu na primeira porta ao se aproximar e não teve que esperar nem uma batida do seu coração para ter uma resposta.

– Entre! – a doutora Jane disse do lado oposto da porta.

A boa médica vestia roupas cirúrgicas e um par de Crocs. Sentada diante do computador na outra extremidade da bem equipada clínica, seus dedos voavam sobre o teclado enquanto ela atualizava o prontuário de alguém cabisbaixa; seus cabelos loiros curtos espetados como se ela tivesse passado a mão por eles durante horas.

– Um segundinho... – Ela apertou a tecla de “enter” e girou. – Ah, olá, papai. Como está?

– Ah, você sabe, imerso no amor.

– Aqueles seus bebês são maravilhosos. E olha que eu nem gosto de crianças.

O sorriso dela era acolhedor como uma torta de maçãs. Os olhos verde-montanha, por outro lado, eram afiados como raios laser.

– Graças a você, eles estão se saindo muito bem.

Houve uma deixa para o silêncio. Quando a conversa não evoluiu, ele se pôs a caminhar pela clínica, pois não conseguia ficar parado. Deu uma espiada nos equipamentos estéreis e imaculados sobre os gabinetes de aço inoxidável, inspecionou a maca vazia sob as luzes usadas nas operações, ajeitando as calças.

A médica apenas ficou sentada no seu banquinho, calma e silenciosa, deixando que ele se debatesse com a sua mente. Quando o celular dela tocou, Jane deixou que caísse na caixa de mensagens sem nem ver quem poderia ser.

– Provavelmente estou errado – ele acabou concluindo. – Que porra sei eu, afinal?

A doutora Jane sorriu.

– Na verdade eu te acho um cara bem inteligente.

– Não sobre este tipo de coisa. – Com um pigarro, Qhuinn propôs a si mesmo que prosseguisse; ainda que a doutora Jane não parecesse estar com pressa, ele estava entediando a si mesmo. – Olha só... eu amo a Layla.

– Claro que sim.

– E quero o melhor pra ela. Ela é a mãe dos meus filhos. Quero dizer, além de Blay, ela é a minha companheira por causa das crianças.

– Com certeza.

Cruzando os braços diante do peito, ele parou de andar e empostou-se de frente à doutora Jane.

– Não estou dizendo que sei alguma coisa sobre fêmeas. Coisas como os seus humores e por aí vai. Só que... Layla tem chorado muito. Quero dizer, ela tenta esconder isso de mim e do Blay, mas... toda vez que vou vê-la, encontro bolas de lenços de papel no cesto de lixo, e seus olhos estão brilhantes demais, o rosto, corado. Ela sorri, mas o sorriso nunca passa da superfície. Os olhos dela... são uma tragédia de merda. E... e eu não sei o que fazer, só sei que isso não está certo.

A médica assentiu.

– Como ela se porta com as crianças?

– É fantástica, pelo que posso ver. É totalmente devotada a eles, e eles estão crescendo. Na verdade, o único momento em que a vejo meio que feliz é quando os têm nos braços. – Pigarreou novamente. – Então, o que estou imaginando... ou perguntando, sei lá, é se as fêmeas gestantes, depois que não estão mais grávidas, se elas não...

Jesus, ele merecia todo tipo de prêmio por saber se explicar tão bem. E os termos técnicos com os quais se debatia? Praticamente estava a um passo de receber o título de doutor em Medicina, assim como Jane.

Cacete.

Mas pelo menos a doutora Jane parecia reconhecer que aquele avião conversacional estava ficando sem pista para decolar.

– Acho que está querendo me perguntar a respeito de depressão pós-parto. – Após vê-lo assentir, ela prosseguiu: – Posso lhe afirmar que não é incomum entre os vampiros, e que pode ser incapacitante. Conversei com Havers a respeito disso antes, e estou muito feliz que tenha vindo me procurar para tratar do assunto. Às vezes, uma mãe recente sequer está ciente de que isso pode se tornar um problema.

– Não existe nenhum exame... ou um... sei lá.

– Existem algumas maneiras diferentes de avaliar a questão, e o comportamento é uma delas. Claro que posso ir conversar com ela, e também posso fazer alguns exames de sangue para avaliar os níveis hormonais. E, sim, existem muitas coisas que podemos fazer para tratar dela e dar-lhe o apoio necessário.

– Não quero que Layla pense que estou agindo pelas costas dela nem nada assim.

– O que é totalmente compreensível. Mas tudo bem, porque eu pretendia mesmo subir até lá para dar uma olhada nela e nos bebês. Posso abordar o tema como se fosse parte de uma rotina. Nem terei que citar seu nome.

– Você é a melhor.

Com o assunto resolvido, ele supôs que era hora de voltar para junto do seu companheiro e para o torneio de bilhar. Mas não saiu. Por algum motivo, não conseguia.

– Não é sua culpa – garantiu a doutora Jane.

– Eu a engravidei. E se o meu... – Ok, ela era médica, mas Qhuinn ainda não queria pronunciar a palavra esperma perto dela. O que era loucura. – E se a minha metade for a causa...

A porta se abriu, e Manny enfiou a cabeça pela abertura.

– Ei, está pronta...? Opa, desculpem.

– Estamos quase terminando aqui. – A doutora Jane sorriu. – E você não nos viu juntos.

– Pode deixar. – Manny bateu na soleira. – Se eu puder ajudar de alguma maneira, é só avisar.

E lá se foi o cara, como se nunca tivesse aparecido ali.

A doutora Jane se levantou e se aproximou dele. Era mais baixa do que Qhuinn, e sua estrutura nem se comparava aos quase 140 quilos de músculos masculinos. Mas ela parecia pairar acima dele; a autoridade na voz e nos olhos dela era exatamente o que ele precisava para acalmar seu lado irracional.

Quando encostou a mão no braço dele, sua expressão estava firme.

– Não é sua culpa. Esse, às vezes, é o curso da natureza em algumas gestações.

– Fui eu quem colocou aqueles bebês dentro dela.

– Sim, mas imaginando que este seja um caso de os hormônios se autorregularem após o parto, não há ninguém para culpar. Além disso, você agiu bem ao vir até aqui, e também pode ajudá-la simplesmente conversando com ela e lhe dando o tempo e o espaço necessários para que ela também converse com você. Para ser sincera, eu já havia notado que ela não tem descido para as refeições. Acho que precisamos encorajá-la a se juntar ao resto de nós, para que ela sinta o quanto estamos disponíveis para ampará-la.

– OK. Certo, então.

A doutora Jane franziu a testa.

– Posso lhe dar um conselho?

– Por favor.

Ela o apertou no braço.

– Não se sinta responsável por algo sobre o qual não tem controle algum. Isso é um convite ao estresse que acabará deixando-o loucamente infeliz. Sei que é mais fácil falar do que fazer, mas tente se lembrar disso, está bem? Eu o vi acompanhá-la a cada estágio da gestação. Não houve nada que você não tenha feito por ela ou que não faria por ela, e você é um pai fantástico. Somente coisas boas o esperam, eu prometo.

Qhuinn inspirou fundo.

– Certo.

Mesmo quando sua preocupação persistiu, ele se lembrou de que, durante a gestação de Layla, descobrira que podia confiar na doutora Jane. A médica o ajudara a trilhar a estrada da vida e da morte, e nunca o decepcionara, nunca deixara que se desgarrasse. Tampouco mentira para ele e lhe dera maus conselhos.

– Vai ficar tudo bem – ela prometeu.

Infelizmente, como pôde-se perceber mais tarde, a boa médica estava errada.

Mas ela não tinha controle algum sobre o destino.

Nem ele.


CAPÍTULO 4

O bebê estava arruinado. Tudo o que detinha não passava de uma versão modificada e horrenda das feições de Hharm; o lábio superior era todo errado, como o de uma lebre.

Hharm largou o bebê no piso sujo da caverna, e a coisa não emitiu som algum ao aterrissar, os braços e as pernas mal se moviam, as carnes azuladas e acinzentadas, o cordão ainda o unia à fêmea. Iria morrer, assim como deveriam todos os resultados contra as regras da natureza e do parto – e essa consequência não era causa de indignação.

O fato de Hharm ter sido ludibriado, porém, o era. Desperdiçara dezoito meses, uma quantidade enorme de horas, aquele momento de esperança e de felicidade numa monstruosidade insuportável. E o que ele sabia com certeza? Que não era culpa sua.

– O que você fez? – exigiu saber da fêmea.

– Um filho! – Ela arqueou as costas em agonia renovada. – Eu lhe dei...

– Uma maldição. – Hharm se levantou em toda a sua altura. – O seu ventre é impuro. Ele corrompeu o presente do meu sêmen e produziu isso...

– O seu filho...

– Olhe para ele! Veja com seus olhos! Isso é uma abominação!

A mulher se esforçou e suspendeu a cabeça.

– Ele é perfeito, ele é...

Hharm empurrou o bebê com a bota, fazendo com que ele movesse os pequenos membros e emitisse um gritinho fraco.

– Nem mesmo você pode negar o que está diante de nós!

Os olhos injetados dela se afixaram no bebê, e depois se arregalaram...

– Isso é...

– Você fez isso – ele anunciou.

A ausência de argumentos por parte dela foi uma rendição inevitável, visto que o defeito não podia ser negado. Então ela gemeu como se ainda estivesse em trabalho de parto, os dedos ensanguentados arranharam a terra fria, as pernas tremeram quando se afastaram mais. Depois de mais esforços, algo saiu da mulher, e ele pensou que talvez fosse mais um. De fato, seu coração se viu cheio de otimismo enquanto ele rezava para que o primeiro fosse exhile dhoble, o amaldiçoado de um par de gêmeos.

Infelizmente, não. Era apenas algo do interior da fêmea, talvez o estômago ou o intestino dela.

E o bebê prosseguiu chorando, o peito se estufando e murchando com pouco efeito.

– Você deve morrer aqui, assim como ele – Hharm disse sem cuidado algum.

– Eu não...

– Suas entranhas estão saindo.

– O bebê é... – ela hesitou. – Ele...

– É uma abominação da natureza contra o desejo da Virgem Escriba.

A fêmea se calou e relaxou como se o processo da expulsão tivesse chegado ao fim, e Hharm aguardou pelo ataque em que a alma dela se desprenderia do corpo. Só que ela continuou a respirar e olhar para ele... e a existir. Que espécie de truque era aquele? A ideia de que ela não iria ao Dhunhd por conta disso era um insulto.

– Isso é obra sua – ralhou com a fêmea.

– Como sabe que não foi a sua semente que...

Hharm apoiou a bota na garganta dela e a pressionou, interrompendo-lhe as palavras. Quando uma onda de ódio induziu o corpo do guerreiro rumo a uma ação mortal, somente a possibilidade de que esse evento fosse um castigo por suas ações prévias o impediu de esmagar-lhe o pescoço.

Ela tem que pagar, foi seu pensamento abrupto. Sim, a culpa era dela, e o desapontamento causado necessitava de uma reparação.

Sibilando, ele revelou as presas.

– Deixarei que viva para que possa criar esta monstruosidade e que seja vista com ele. Esta é sua maldição por me amaldiçoar: ele ficará sempre em seu cangote, como um amuleto ou uma danação, e se eu descobrir que essa coisa morreu, eu a perseguirei e a esquartejarei centímetro a centímetro. Depois matarei a sua irmã, toda a prole dela e os seus parentes.

– O que está dizendo?!

Hharm se inclinou para baixo, o latejar no rosto e na cabeça parecia muito familiar.

– Ouviu minhas palavras. Conhece meu desejo. Desafie-o por sua conta e risco.

Quando ela se acovardou, o Irmão se afastou e fitou a sujeira proveniente do parto, a fêmea patética, aquele resultado horrendo – e cortou o ar com a mão, como se os apagasse da linha do tempo. Em meio aos bramidos da tempestade e à extinção da fogueira, ele foi até o casaco de peles.

– Você arruinou o meu filho – reclamou ao passar o peso das peles sobre os ombros. – O seu castigo é criar esse horror como declaração do seu fracasso.

– Você não é Rei – ela rebateu, fraca. – Não pode ordenar nada.

– Este é um serviço comunitário que faço aos machos, meus camaradas. – Apontou o dedo na direção do recém-nascido choroso. – Com isso grudado ao seu quadril, ninguém mais se deitará com você para sofrer de maneira similar.

– Não pode me forçar a isso!

– Ah, posso, sim, e o farei.

Ela era uma fêmea mimada e desafiadora por natureza, e fora isso o que o atraíra nela a princípio – tivera que lhe ensinar o que fazer e as orientações foram bem interessantes por um tempo. De fato, houvera apenas uma instância em que ela tentara exercer domínio sobre ele. Uma vez e nunca mais.

– Não me teste, fêmea. Já fez isso antes e deve se lembrar do resultado.

Quando ela empalideceu, ele assentiu na sua direção.

– Sim. Isso mesmo.

Ele quase a matara na noite em que lhe mostrara que, enquanto ele ficaria com que desejasse, quando e onde o quisesse, ela jamais teria permissão para se deitar com outro macho enquanto estivesse tangivelmente associada a ele. Foi logo depois disso que ela decidiu que a única possibilidade de prendê-lo seria dando-lhe o filho que ele almejava e, ao mesmo tempo, ele começara a pensar em seu legado.

Por azar, ela fracassara em seus objetivos.

– Eu odeio você – ela gemeu.

Hharm sorriu.

– O sentimento é mútuo. E mais uma vez lhe digo que é melhor garantir a sobrevivência dessa coisa. Se eu descobrir que o matou, revidarei a morte dele nas suas carnes e em toda a sua linhagem.

Dito isso, ele cuspiu duas vezes junto aos pés dela: uma por causa da fêmea e outra pelo bebê. Depois se afastou enquanto ela o chamava, e o bebê desertado berrava contra o frio.

Do lado de fora, a tempestade prosseguia, intensa, a neve rodopiante o cegava e depois diminuiu para uma revoada de pássaros que revelava todo o cenário. No vale logo abaixo, montanhas se elevavam às margens de um lago, a neve acumulada sobre a água congelada que formava ondas nos meses mais quentes. Estava tudo escuro, gélido e inerte, mas ele se recusava a encontrar um mau presságio na imagem à sua frente.

Com a mão usada para a adaga comichando, e a hostilidade dentro dele acelerando como um corcel disparado, sugeriu a si mesmo que não atentasse para esse resultado.

Encontraria outro ventre.

Em algum lugar, havia uma fêmea que lhe daria o legado merecido e necessário. Ele a encontraria e a faria crescer com a sua semente.

Existiria um filho apropriado para ele. Hharm jamais aceitaria qualquer outro resultado.


CAPÍTULO 5

Quando se aproximou da entrada da caverna sagrada da Irmandade, Tohr se esgueirou pelo interior úmido, e uma vez ali dentro, o cheiro de terra e de uma fonte de chamas distante irritou suas narinas. Os olhos se ajustaram de imediato, e quando ele seguiu em frente, aquietou o movimento de seus coturnos. Não queria ser ouvido, mesmo que sua presença fosse notada logo em seguida.

Os portões não estavam muito longe e eram constituídos por grossas barras de ferro, cuja espessura era semelhante a de um antebraço de guerreiro; as barras de ferro eram altas como árvores e possuíam uma cobertura em malha de aço, a fim de impedir a desmaterialização. Tochas sibilavam e tremeluziam em cada lado e, além, ele via o começo do grande corredor que conduzia mais para dentro da terra.

Parando diante da enorme barreira, pegou a chave de cobre e não sentiu remorso algum por ter roubado o objeto da gaveta da escrivaninha ornamental de Wrath. Pediria desculpas pela infração mais tarde.

E também pelo que faria na sequência.

Tohr destrancou o mecanismo, empurrou o peso colossal, entrou e voltou a trancar o portão atrás de si. Caminhando à frente, seguiu o caminho natural, expandido por talhadeiras e músculos fortes, e depois adornado por prateleiras. Sobre as diversas tábuas, centenas e centenas de jarros alimentavam um jogo de luz e sombras.

Os receptáculos eram de todos os formatos e tamanhos, e vinham de diferentes eras, desde a antiga até a moderna, mas o que havia dentro de cada um deles era o mesmo: o coração de um redutor. Desde o princípio da guerra contra a Sociedade Redutora, ainda no Antigo País, a Irmandade vinha marcando as mortes dos inimigos ao tomar posse dos jarros das vítimas e trazendo-os até ali para aumentar a coleção.

Em parte como troféu, em parte como um “foda-se, Ômega”, aquilo era um legado. Era um orgulho. Uma expectativa.

E talvez deixasse de sê-lo. Havia poucos e esparsos redutores nas ruas de Caldwell e em outras paragens no momento, portanto deveriam estar próximos.

Tohr não sentiu nenhuma alegria ante tal conquista. Mas talvez fosse em virtude do terrível aniversário dessa noite.

Era difícil sentir qualquer outra coisa que não a perda de Wellsie no dia que já fora seu aniversário.

Após uma curva sutil, ele parou. Mais adiante, a cena mais parecia saída de um filme que não se decidia se era Indiana Jones, Grey’s Anatomy ou Matrix. No centro das antigas paredes de pedra, tochas acesas e jarros despareados e empoeirados, um amontoado de equipamentos médicos piscando e emitindo sinais interferia com um corpo sobre uma maca. E ao lado do prisioneiro? Dois imensos vampiros cobertos da cabeça aos pés com couro preto e armas negras.

Butch e V. eram o Frick e Frack da Irmandade – o ex-policial da divisão de homicídios dos humanos e o filho da Criadora da raça, o bom garoto católico e o depravado sexual, o viciado em roupas e o czar da tecnologia –, unidos pela devoção partilhada pelo Red Sox de Boston e respeito mútuo e afeto que não conheciam limites.1

V. percebeu a presença de Tohr primeiro, virando com tanta rapidez que seu cigarro aceso espalhou cinzas pelo ar.

– Ah, inferno. Não. De jeito nenhum, porra! Você vai dar o fora daqui!

Essa opinião, a despeito do volume pronunciado, foi fácil de ignorar, pois Tohr se concentrava no pedaço de carne sobre a maca. Xcor estava deitado ali, com tubos entrando e saindo de si como se ele fosse a bateria de um carro prestes a receber uma recarga, com a respiração regular... Não, espere, a respiração não estava regular.

V. deteve Tohr, aproximando-se dele e ainda um pouco mais. E o que mais? O Irmão sacara seu atirador poodle – e o cano da 40 mm apontava diretamente para o rosto de Tohr.

– Tô falando sério, meu irmão.

Tohr olhou para o prisioneiro por cima do ombro largo. E se viu sorrindo.

– Ele está acordado.

– Não, ele não est...

– A respiração dele mudou. – Tohr apontou para o peito nu. – Veja.

Butch franziu o cenho e se aproximou do prisioneiro.

– Ora, ora, ora... Hora de acordar, filho da mãe.

V. virou-se para trás.

– Filho da puta.

Mas a arma não se moveu, tampouco Tohr. Por mais que quisesse Xcor, ele acabaria recebendo uma bala na garganta se desse mais um passo: V. era o menos sentimental dos irmãos e tinha a paciência de uma cascavel.

Naquele momento, os olhos de Xcor piscaram. Na luz tremeluzente das tochas, eles pareciam negros, mas Tohr se lembrava de que eles eram azuis. Não que isso importasse.

V. colocou a cara no seu caminho, os olhos de diamante eram como adagas.

– Este não vai ser o presente de aniversário que vai dar para a sua shellan morta.

Tohr arrastou os lábios para trás das presas.

– Vai se foder.

– Isso não vai acontecer. Pode me xingar o quanto quiser, mas não. Você sabe como as coisas vão acontecer e ainda não está na sua hora.

Butch sorriu para o prisioneiro.

– Estávamos esperando que se juntasse à festa. Aceita uma bebida? Talvez um misto de nozes antes ter que ajeitar a poltrona para a decolagem? Não há por que te mostrar as saídas de emergência. Você não tem que se preocupar com isso.

– Vamos, Tohr – V. disse. – Agora.

Tohrment expôs as presas, mas não para o irmão.

– Seu bastardo, vou te matar...

– Não, nada disso. – V. passou o braço ao redor do bíceps de Tohr, e faltou pouco para começarem a dançar uma quadrilha. – Lá fora...

– Você não é Deus...

– Nem você, motivo pelo qual está de saída.

Nos recessos da mente, Tohr sabia que o filho da mãe tinha razão. Ele não estava nem meio racional no momento – e P.S., que V. se fodesse por se lembrar que noite era aquela.

Sua amada shellan, seu primeiro amor, completaria duzentos e vinte e seis anos. E teria um filho dos dois nos braços.

Mas o destino se opusera.

– Não me obrigue a atirar em você – V. alertou com aspereza. – Venha, meu irmão. Por favor.

O fato de as duas últimas palavras terem saído da boca de V. foi o que surtiu efeito. A cena era tão chocante que desarmou Tohr de sua loucura e raiva.

– Venha, Tohr.

Dessa vez, Tohr se permitiu ser conduzido, à medida que seu grande esquema desinflanva; o silêncio absoluto depois de sua loucura o fazia tremer dentro da própria pele. Que porra estivera fazendo? Mas que cacete?

Sim, recebera o privilégio de matar Xcor com um decreto da realeza, mas só quando recebesse autorização expressa de Wrath. E isso ainda não acontecera explicitamente.

Tinham evitado um desastre de proporções traidoras.

Seria como trocar de lugar. Um traidor morto por outro bem vivo.

Quando chegaram aos portões que Tohr havia destrancado para conseguir acesso ao prisioneiro, V. estendeu a mão enluvada.

– Chave.

Tohr não olhou para o irmão ao tirar o objeto da jaqueta de couro e entregá-la. Depois de uns cliques e rangidos, o caminho estava livre, e Tohr saiu sem estar convencido, com as mãos no quadril, os coturnos chutando a terra, a cabeça pensa.

Quando ouviu uma nova sequência de rangidos e cliques, deduziu que estava sendo trancado do lado de fora, sozinho. Mas V. estava bem ao seu lado.

– Eu prometo – o irmão disse – que você, e apenas você, vai mattá-lo.

Tohr se perguntou se isso bastaria. Ponderou se seria o bastante. Será que algum dia encontraria satisfação?

Antes de chegarem à boca da caverna, Tohr parou.

– Às vezes... a vida não é nada justa.

– Não. Não é.

– Odeio isso. Odeio pra caralho. Passo por... períodos, não apenas noites, mas semanas, às vezes até um ou dois meses... em que me esqueço de tudo. Mas a merda sempre volta e, depois de um tempo, não dá mais pra segurar. Não dá. – Bateu na lateral da cabeça com o punho. – Tem esse verme aqui dentro, e sei que matar Xcor não vai me distrair por mais do que dez minutos. Mas numa noite como esta, eu aceitaria até isso.

Sucedeu-se o som de um fósforo sendo riscado quando V. acendeu um cigarro.

– Não sei o que dizer, meu irmão. Eu diria pra você rezar, mas não tem mais ninguém lá em cima te ouvindo.

– Não tenho certeza se a sua mãe nos ouviu algum dia. Sem ofensas.

– Não ofendeu. – V. exalou. – Confie em mim.

Tohr se concentrou na saída da caverna, e quando tentou respirar, sentiu uma estranha exaustão.

– Estou cansado de lutar sempre a mesma briga. Desde que Wellsie foi... assassinada... sinto como se um pedaço meu nunca tivesse cicatrizado, e não aguento essa dor nem mais um segundo. Nem mais um maldito segundo. Mesmo que ela migrasse para algum outro lugar, já seria melhor.

Estabeleceu-se um longo silêncio entre eles, abafado apenas pelo urro dos ventos invernais que entravam na caverna silenciosa.

No fim, V. praguejou.

– Bem que eu gostaria de poder te ajudar, meu irmão. Quero dizer, se você precisar de um abraço confortador... eu devo conseguir alguém pra te dar uns tapinhas nas costas.

Tohr sacudiu a cabeça quando o lábio superior se retorceu num sorriso.

– Isso foi quase engraçado.

– Pois é, tentei pegar leve. – V. exalou de novo. – Era isso ou eu atirava em você, e odeio preencher a papelada burocrática do Saxton, sabe?

– Sei o que quer dizer. – Tohr esfregou o rosto. – Verdade...

Os olhos diamantinos de V. mudaram de foco.

– Apenas esteja ciente que lamento. Você não merece nada disso. – Certa mão pesada pousou no ombro de Tohr e apertou-o. – Se eu pudesse tirar a sua dor, é o que faria.

Quando Tohr piscou rápido, pensou que era uma coisa boa que V. não fosse de abraçar, ou então teriam um maldito colapso emocional acontecendo ali.

Do tipo de colapso que um macho não retornaria intacto.

Mas, pensando bem, ele estava mesmo intacto agora?


BOATE SHADOWS, CENTRO DE CALDWELL


Trez Latimer sentia-se como uma espécie de divindade ao olhar através da parede de vidro do escritório no segundo andar da sua boate. Abaixo, no espaço aberto do armazém convertido, uma multidão de humanos excitados estabelecia um padrão de atração e desdém num mar tumultuado de lasers púrpura e batidas pesadas de baixo.

Em grande escala, sua clientela era composta de millenials, os nascidos entre 1980 e 2000. Definidos pela internet, pelo iPhone, pela ausência de oportunidades econômicas – ao menos segundo a mídia humana –, era um grupo demográfico de moralistas perdidos, comprometidos em salvar uns aos outros, com a preservação dos direitos de todos, e a promoção de uma falsa utopia de pensamento liberal que fazia o macarthismo parecer atenuado.

Mas também eram, da maneira dos jovens, esperançosos sem fundamento.

E como ele os invejava.

Enquanto se esbarravam e colidiam uns nos outros, ele testemunhava o êxtase em seus rostos, o otimismo exuberante de que encontrariam o verdadeiro amor e a felicidade naquela noite mesmo – a despeito de todas as outras noites nas quais vieram até a sua boate e a aurora chegara, expulsando-o com nada além de exaustão, uma nova DST, e mais um fardo de vergonha e dúvida enquanto se perguntavam o que tinham feito, e com quem.

Ele suspeitava, contudo, que, para a maioria, a cura de tamanha angústia era apenas cerca de duas horas de sono, um venti latte da Starbucks e uma injeção de penicilina.

Quando se é jovem assim, quando ainda é preciso enfrentar os desafios que não se consegue sequer começar a compreender, a sua resistência não tem limites.

E era por isso que o vampiro desejaria poder trocar de lugar com eles.

Era estranho colocar os humanos em qualquer tipo de pedestal. Sendo um Sombra de mais de duzentos anos de vida, Trez há tempos considerava aqueles ratos sem cauda algo inferior, um tumulto inconveniente no planeta, bem como formigas na cozinha ou camundongos no porão. Só que não se podia exterminar os humanos. Sujeira demais. Melhor tolerá-los do que arriscar a exposição da espécie ao assassiná-los só para liberar vagas de estacionamento, diminuir as filas nos supermercados e as notificações do Facebook.

No entanto, ali estava ele, ansioso por trocar de lugar com qualquer um deles, mesmo que fosse por uma ou duas horas.

Improcedente.

Mas, pensando bem, eles não mudaram. Quem mudou foi ele.

Minha rainha, está na hora de partir? Conte-me se for.

Enquanto as lembranças o intimidavam dentro do cérebro, ele cobriu os olhos e pensou: Não, Deus. De novo, não. Não queria voltar para a clínica da Irmandade... para o lado do leito da sua amada Selena, morrendo por dentro enquanto ela expirava de verdade.

A verdade, contudo, era que ele jamais abandonara esses eventos, mesmo que o calendário sugerisse o contrário. Depois da passagem de mais de um mês, ele ainda se lembrava de cada mínimo detalhe da cena, desde a respiração torturada dela até o pânico no olhar enquanto lágrimas rolavam por ambos os rostos.

Sua Selena fora acometida por uma doença que raramente afetava membros da classe sagrada. Em todas as gerações de Escolhidas, algumas tiveram a Prisão, que era um jeito horrível de morrer: a mente era deixada viva na casca congelada do corpo, sem nenhuma escapatória, nenhum tratamento para ajudar, ninguém para salvar.

Nem mesmo o macho que a amava mais do que a própria vida.

Quando o coração de Trez tropeçou no âmago do peito, ele abaixou as mãos, meneou a cabeça e tentou se reconectar com a realidade. Estivera se debatendo contra esses episódios invasivos, e eles vinham se tornando mais frequentes em vez de menos – o faziam se preocupar com sua sanidade. Chegou a ouvir o ditado de que “o tempo cura as feridas” e, droga, talvez aquilo fosse verdade para outras pessoas. Para ele? Seu luto se transformara de dor incandescente, no começo, a uma agonia tão ardorosa que rivalizava com as chamas da pira funerária, até aquelas reminiscências crônicas que pareciam girar cada vez mais rápido ao redor do esteio aberto da sua perda.

Sua própria voz ecoava na cabeça: Eu entendi direito? Você quer que isto... termine?

Quando os momentos finais de Selena chegaram, ela já não conseguia mais falar. Tiveram que se apoiar num sistema de comunicação pré-combinado que supunha o controle dela sobre as pálpebras até quase o fim: uma piscada para não... duas para sim.

Você quer que isto... termine?

Ele soubera qual seria a resposta dela. Lera-o na expressão exausta, distante e enfraquecida dela. Mas aquela fora uma das vezes na vida em que se queria ter a mais absoluta certeza.

Ela piscara uma vez. E de novo depois.

E ele estivera ao lado dela quando as drogas pararam seu coração e lhe conferiram o alívio de que ela necessitava ao ser transportada.

Em todos os seus anos, ele jamais imaginara aquele tipo de sofrimento. Nas duas partes. Ele não teria conseguido criar uma morte pior saída de qualquer pesadelo, e não poderia ter imaginado que teria que assentir para Manny, autorizando-o a administrar o medicamento enquanto gritava internamente, pois seu amor se esvaía e o deixava sozinho pelo resto de suas noites.

O único conforto era que o sofrimento dela chegara ao fim.

A única realidade era que o seu tinha apenas começado.

No período subsequente, encontrou conforto no fato de que preferiria ser o responsável por sentir a ausência dela, e não o contrário. Mas, conforme o tempo prosseguiu, acabou usando demais esse antídoto, pois era o único que possuía, e agora ele já não surtia mais efeito.

Portanto, não havia nada para reavivá-lo. Tentou beber, mas o álcool só servia para ele perder o pouco controle que tinha sobre as lágrimas. Não dava a mínima para a comida. Sexo era algo completamente fora de questão. E ninguém o deixava lutar – pois tanto os Irmãos quanto iAm reconheciam seu estado desgovernado.

Portanto, o que lhe restava? Nada, a não ser se arrastar ao longo dos dias e das noites, e rezar para o mais básico dos alívios: um respiro desimpedido, um período de tranquilidade mental, uma hora de sono sem perturbações.

Ao estender a mão, tocou o painel de vidro inclinado que era a sua janela para o que ele considerava ser o outro mundo, o exterior do seu inferno isolado. Engraçado que ele agora considerava “outro” o que um dia fora o mundo “real”... E mesmo sem a separação das espécies, da idade, do seu poleiro acima da confusão da boate, ele se sentia tão à parte de todos eles.

Tinha a sensação de que sempre permaneceria afastado de todos.

E, francamente, ele simplesmente não poderia continuar assim.

A dor o destroçara e, se não fosse pelo fato de que os suicidas tinham a entrada negada no Fade, ele teria metido uma bala do seu 48 mm na cabeça horas após a morte dela.

Pensou que não suportaria outra noite assim.

– Por favor... me ajude.

Trez não fazia a mínima ideia de quem falava com ele. Do lado dos vampiros, a Virgem Escriba já não existia mais – e no seu atual estado mental ele compreendia por completo o motivo de ela ter largado o microfone e saído do palco de sua criação. E, como um Sombra, ele fora criado para adorar sua Rainha – o único problema era que ela estava vinculada ao seu irmão, e rezar para a cunhada parecia muito estranho.

Uma declaração autêntica de que toda aquela coisa espiritual não passava de um monte de asneira.

E, mesmo assim, seu sofrimento era tão grande que ele tinha que tentar buscar ajuda.

Inclinando a cabeça para trás, olhou para o teto baixo preto e despejou seu coração partido para o mundo:

– Eu só a quero de volta. Eu só... quero Selena de volta. Por favor... se existir alguém aí em cima, me ajude. Devolva-a para mim. Não me importo em que forma ela estiver... Eu só não consigo mais fazer isto. Não consigo mais viver assim nem pela porra de uma única noite.

Claro que não houve resposta. E ele se sentiu um completo idiota.

Pois é, como se a vastidão do universo lhe iria despejar outra coisa que não apenas um meteoro?

Além disso, será mesmo que existia um Fade? E se ele estivesse apenas alucinando durante a purificação e somente imaginara ter visto a sua Selena? E se ela só tivesse simplesmente morrido? Como se... tivesse apenas deixado de existir? E se todas as bobagens a respeito de um lugar celestial aonde nossos amados iam e esperavam pacientemente por nós não passasse de um mecanismo de defesa criado por aqueles deixados para trás mergulhados no tipo de agonia em que ele se encontrava?

Uma falácia mental para cuidar de um ferimento emocional.

Reajustando a cabeça, voltou a fitar a multidão abaixo...

Pelo vidro, o reflexo de uma imensa figura masculina parada logo atrás fez com que ele se girasse e levasse a mão para a arma que mantinha enfiada na lombar. Mas então reconheceu o indivíduo.

– O que você está fazendo aqui? – exigiu saber.


Dois patinadores suíços, Werner Groebli e Hans Mauch, cujos nomes artísticos eram Frick e Frack, nutriram uma parceria duradoura. Posteriormente, seus nomes se tornaram gíria para designar duas pessoas que trabalham juntas e se dão bem. (N.T.)


CAPÍTULO 6

A campina de 20 mil metros quadrados se elevava de uma estradinha deserta como oriunda do olhar crítico de um artista; todos os aspectos da colina e do vale pareciam sujeitos às regras dos padrões estéticos agradáveis. No alto do suave aclive coberto de neve, como uma coroa no topo da cabeça de um governante benevolente, um imenso bordo estendia seus galhos em uma áurea tão perfeita que mesmo a esterilidade do inverno não conseguia diminuir sua beleza.

Layla se desmaterializou até a base da colina, partindo da mansão, e subiu a pé até a árvore. Os chinelos usados no quarto não eram páreo para o chão congelado, o vento frio atravessava o roupão, e os cabelos se soltavam da trança, flanando ao seu redor.

Quando chegou ao cume, olhou para baixo, para as raízes do tronco glorioso dentro da terra.

Fora ali, pensou ela.

Ali, na base daquele bordo, ela vira Xcor pela primeira vez, convocada por alguém que ela acreditara ser um soldado de valor na guerra, alguém que ela alimentara na clínica da Irmandade... Alguém que a Irmandade deixara de lhe informar que, na verdade, era um inimigo e não amigo.

Quando o macho a chamara para que ela lhe provesse a veia, Layla não pensou em nada além do seu dever sagrado.

Por isso, transportara-se até ali... e perdera um pedaço de si no processo.

Xcor estivera à beira da morte, ferido e enfraquecido, e mesmo assim ela reconhecera sua força, ainda que em estado debilitado. Como poderia não tê-la notado? Era um macho tremendo, grosso no pescoço e no peito, forte nos braços, poderoso no corpo. Ele tentara recusar sua veia porque – ela gosta de acreditar – enxergara-a como uma inocente no conflito entre o Bando de Bastardos e a Irmandade da Adaga Negra, e quisera mantê-la afastada da situação. No fim, contudo, ele cedera, garantindo que ambos seriam a presa de uma ordem biológica que desconhecia a razão.

Ela inspirou fundo, observou a árvore e viu, através dos galhos desnudos, o céu noturno.

Depois que a verdadeira identidade de Xcor veio à tona, ela confessou a Wrath e à Irmandade suas ações, lacrimosamente clamando por perdão. E era um testemunho do rei e dos machos que o serviam o fato de a terem perdoado, e sem castigos, por ter prontamente ajudado o inimigo.

Em troca, era um parco testemunho da sua parte que ela tivesse voltado para junto de Xcor depois disso. Associou-se a ele. Tornou-se emocionalmente envolvida com ele.

Sim, existiu uma coerção inicial da parte dele na época, mas a verdade era que, mesmo que ele não a tivesse forçado? Sua vontade teria sido estar com ele. E o pior? Quando o relacionamento chegou ao fim, fora ele quem interrompera os encontros. Não ela.

Na verdade, ela o estaria vendo agora – e a dor da perda que sentia pela ausência dele era tão incapacitante quanto a culpa.

E isso foi antes ainda de ele ter sido capturado pela Irmandade.

Ela sabia exatamente onde ele havia sido aprisionado porque testemunhara suas condições naquela caverna... Sabia o que os Irmãos planejavam fazer com Xcor assim que ele despertasse.

Se ao menos houvesse um modo de salvá-lo... Ele nunca tinha sido cruel com ela, nunca a tinha ferido... jamais a havia abordado sexualmente, apesar do desejo que o habitava. Ele se manteve paciente e gentil... pelo menos até se afastarem.

Ele, entretanto, havia tentado matar Wrath. E essa traição era passível de punição com a morte...

– Layla?

Girando, ela tropeçou e caiu de lado, quase incapaz de se agarrar ao tronco áspero do bordo. Quando sentiu uma dor na palma, sacudiu-a na tentativa de apaziguá-la.

– Qhuinn! – exclamou.

O pai de seus filhos deu um passo à frente.

– Você se machucou?

Com um xingamento, ela limpou os arranhões, tirando a sujeira. Santa Virgem Escriba, como doía.

– Não, não. Estou bem.

– Pegue. – Ele apanhou algo de dentro do bolso da jaqueta de couro. – Deixe-me ver.

Ela tremia quando Qhuinn avaliou-lhe a mão e depois a envolveu na bandana preta.

– Acho que você vai viver.

Será?, ela pensou. Não tenho tanta certeza.

– Você está congelando.

– Sério?

Qhuinn tirou a jaqueta e a posicionou sobre os ombros dela, e Layla se viu engolfada pelo tamanho e pelo calor.

– Venha, vamos voltar para a mansão. Você está tremendo...

– Não posso mais fazer isso – ela desabafou num rompante. – Não consigo mais.

– Eu sei. – Quando ela se retraiu de surpresa, ele sacudiu a cabeça. – Sei o que há de errado. Vamos pra casa pra conversar. Vai ficar tudo bem, prometo.

Por um momento, ela não conseguiu respirar. Como ele podia ter descoberto? Como podia não estar bravo com ela?

– Como você... – As lágrimas surgiram com rapidez, a emoção se sobrepôs a tudo. – Sinto muito. Eu sinto muito... Não era para ser assim.

Ela não soube se foi ele quem abriu os braços ou se foi ela quem se lhe agarrou ao peito, mas Qhuinn a abraçou com força, protegendo-a do vento.

– Tá tudo bem. – Ele massageava grandes círculos nas costas dela com a palma, acalentando-a. – Só precisamos conversar a respeito. Podemos fazer algumas coisas, tomar algumas providências.

Ela virou o rosto para o lado e fitou a campina.

– Eu me sinto tão mal.

– Por quê? Isso está fora do seu controle. Não pediu por isso.

Ela se afastou.

– Eu juro, não pedi. E não quero que você pense nem por um segundo que eu poria Lyric e Rhampage em perigo...

– Tá de brincadeira? Sério, Layla, você ama aqueles dois com tudo o que tem dentro de si.

– Amo mesmo. Eu te garanto isso. E amo você e Blay, o Rei e a Irmandade. Vocês são a minha família, vocês são tudo o que tenho.

– Layla, preste atenção. Você não está sozinha, entendeu? E como eu já disse, existem coisas que podemos fazer...

– Mesmo? De verdade?

– Sim. Na verdade eu estava falando sobre isso antes de vir para cá. Eu não queria que pensasse que eu a estava traindo...

– Ah! Qhuinn! Eu sou a traidora! Sou eu quem está errada...

– Pare. Você não é. Vamos cuidar disso juntos. Todos nós.

Layla levou as mãos ao rosto, tanto a que estava com o curativo como a que estava descoberta. Então, pela primeira vez desde o que parecia ser uma eternidade, ela exalou o ar, um bálsamo de calma substituindo o terrível fardo que dispunha sobre si.

– Tenho que contar uma coisa. – Levantou o olhar para ele. – Por favor, saiba que tenho me remoído de arrependimento e de tristeza. Juro que nunca tive a intenção de que isso acontecesse. Tenho me sentido tão só, me debatendo com a culpa...

– Culpa é algo desnecessário. – Esfregou os polegares sob os olhos dela. – Você tem que se livrar disso, porque não consegue evitar o modo como se sente.

– Não consigo, de verdade, não consigo mesmo... E Xcor não é mau, não é tão ruim quanto você acha que ele é. Juro. Ele sempre me tratou com cuidado e gentileza, e sei que ele não voltaria a ferir Wrath. Eu sei disso...

– O quê? – Qhuinn franziu o cenho e sacudiu a cabeça. – Do que você está falando?

– Por favor, não o mate. É como você disse, existe um modo de fazer isso dar certo. Talvez vocês possam libertá-lo e...

Qhuinn não recuou; na verdade, ele a empurrou para longe de si. E depois pareceu se debater para encontrar as palavras.

– Layla – ele pronunciou devagar. – Sei que não estou ouvindo direito e estou tentando... Você pode...

Aproveitando-se do momento para expor sua posição, Layla se apressou em falar:

– Ele nunca me machucou. Todas as noites em que o procurei, ele nunca me feriu. Ele providenciou um chalé para que eu ficasse em segurança, e sempre estávamos apenas nós dois. Nunca vi nenhum dos Bastardos...

Ela prosseguiu enquanto a expressão do guerreiro se transformava de confusão para... algo gélido que lhe suscitou as feições de um completo desconhecido.

Quando Qhuinn voltou a falar, a voz saiu inexpressiva.

– Você esteve se encontrando com Xcor?

– Eu me senti muito mal...

– Por quanto tempo? – ele estrepitou. Mas não a deixou responder. – Você foi ao encontro dele enquanto estava grávida dos meus filhos? Você se associou por vontade própria com um inimigo conhecido enquanto os meus benditos filhos estavam no seu ventre? – Antes que ela conseguisse lhe responder, ele levantou o indicador. – E você precisa pensar muito bem na resposta. Não há volta para isto, e é melhor dizer a verdade. Se eu descobrir que mentiu pra mim, vou te matar.

Quando o coração de Layla começou a bater forte no peito, deixando-a tonta, seu único pensamento foi...

Você vai me matar de qualquer maneira.

De volta à shAdoWs, Trez guardou a arma e tentou retornar à realidade.

– E então? – ele inquiriu. – O que está fazendo aqui, ainda mais sem o seu poliéster especial do Tony Manero?

Lassiter, o Anjo Caído, sorriu de um modo que não contemplou seus estranhos olhos coloridos sem pupila; a expressão afetou apenas a parte inferior do rosto.

– Ah, você sabe, ternos de passeio estão ultrapassados para mim.

– Partindo para os anos 1980? Não tenho nada neon pra emprestar pra você.

– Não precisa, tenho outra fantasia para usar.

– Que bom pra você. Assustador pro resto de nós. Só me diz que não vai usar o maiô do Borat.

Quando o anjo não respondeu de pronto, Trez sentiu como se as garras de Fred Krueger estivessem passando pela sua nuca. Normalmente, Lassiter era o tipo de cara tão alegre que a maioria das pessoas não sabia se decidir entre meter uma bala nele para tirar todo mundo de um estado miserável... ou simplesmente apanhar uma lata de Coca-Cola e um saco de pipoca para assistir ao show.

Porque, mesmo quando ele irrita, a situação é sempre muito divertida.

Mas não essa noite. O olhar bizarro estava tão leve e espumoso quanto um bloco de granito, e o imenso corpo dele estava absolutamente imóvel, nenhum item de ouro nos pulsos ou pescoço, nos dedos ou orelhas, reluzia sob a luz baixa.

– Por que está brincando de estátua? – Trez murmurou. – Alguém trocou o lugar da sua coleção do My Little Pony de novo?

Incapaz de suportar o silêncio, Trez foi se sentar atrás da escrivaninha e começou a mexer em uma pilha de papéis.

– Está tentando ler minha aura ou alguma merda do tipo?

Não que para isso fosse necessário algum poder especial. Todos na mansão sabiam em que estado ele estava.

– Quero que vá jantar comigo amanhã à noite.

Trez levantou o olhar.

– Pra quê?

O anjo levou o tempo que quis para responder, seguindo devagar até o painel de vidro para encarar a multidão logo abaixo, no exato lugar em que Trez estava antes. Iluminado pela luz fraca, o perfil do anjo era o tipo de imagem que as fêmeas adorariam, com todas as proporções e os ângulos certos. Mas a cara de preocupação...

– Manda ver – Trez exigiu. – Já recebi uma vida inteira de más notícias. O que quer que seja, nada se compara ao que tenho passado.

Lassiter relanceou e deu de ombros.

– É só um jantar. Amanhã à noite. Sete horas.

– Eu não como.

– Sei disso.

Trez largou a pilha de faturas, de escala dos funcionários ou qualquer outra porra que o vinha mantendo ocupado, ainda que não as estivesse olhando de fato, junto ao amontoado de porcarias sobre a escrivaninha.

– Acho muito difícil acreditar em seu interesse a respeito de nutrição.

– Verdade. Essa coisa de “glúten é o seu inimigo” é uma bobagem sem fim. Nem me fale de Kombuchá, couve, ou qualquer coisa com propriedades antioxidantes, e na mentira de que o xarope de milho com alto teor de frutose é a fonte de todo o mal.

– Ouviu falar que a Kraft Macaroni & Cheese tirou todos os conservantes há meses?

– Pois é, e os filhos da mãe nem avisaram antes...

– Por que quer jantar comigo?

– Só estou sendo amigável.

– Não faz parte do seu estilo.

– Como disse antes, estou mudando algumas coisas. – Eeeee lá veio aquele sorriso de novo. – Pensei em começar com tudo. Quero dizer, se é pra virar a página, melhor começar do jeito que se deseja continuar.

– Sem ofensas, mas não estou a fim de passar tempo com pessoas de quem gosto de verdade. – Tudo bem, aquilo não soou muito bem. – O que quero dizer é que o meu irmão é o único que consigo tolerar agora, e nem ele eu quero ver.

Aquele sorriso de Lassiter era uma visão que Trez estava mais do que disposto a jamais rever – e observe como orações podem ser atendidas: o anjo estava seguindo para a porta.

– Te vejo amanhã.

– Não, obrigado.

– No restaurante do seu irmão.

– Ah, mas que porra, por quê?

– Porque ele serve o melhor macarrão à bolonhesa em Caldie.

– Você sabe o que eu quis dizer.

O anjo se limitou a dar de ombros.

– Vá lá e descubra.

– O inferno que vou! – Trez meneou a cabeça. – Olha só, sei que as pessoas andam preocupadas comigo e agradeço a preocupação. – Na verdade, não agradecia não. Nem um pouco. – Sim, perdi peso, e eu deveria comer mais. Mas é engraçado como, quando se tem o peito escancarado e o coração arrancado pelo destino, se perde o apetite. Por isso, se está querendo companhia só para não parecer que está jogando sozinho, por que não procura alguém que coma de verdade e troque mais de duas palavras com ela? Posso garantir que tanto eu quanto você teremos uma noite mais agradável assim.

– Até amanhã.

Quando o anjo saiu, Trez gritou para a ponta oposta do escritório:

– Vai se foder!

Quando a porta se fechou em silêncio, ele concluiu que, pelo menos, a discussão não continuaria. E quando estivesse comendo a bolonhesa sozinho, Lassiter entenderia que o Sombra não apareceria.

Problema resolvido.


CAPÍTULO 7

Há momentos na vida em que a amplitude da sua atenção se estreita em um foco tão exíguo que toda a sua consciência se concentra nessa única pessoa. Qhuinn não era alheio a esse fenômeno. Ele acontecia toda vez que estava sozinho com Blay. Quando segurava os filhos. Quando lutava contra o inimigo, em busca de garantir que voltaria para casa inteiro, sem ferimentos e concussões.

E estava acontecendo de novo agora.

Parados diante da base da árvore de Harry Potter, no topo de uma colina, com o vento invernal ao redor, Qhuinn estava ciente apenas do olho direito de Layla. Conseguia contar cada nuance verde-clara que irradiava do núcleo preto da íris. Poderia haver uma nuvem de cogumelos resultante de uma explosão nuclear ao longe, uma nave espacial acima da sua cabeça, uma fila de palhaços dançando ao seu lado... e ainda assim ele não teria visto, ouvido, percebido nada além daquilo.

Bem, isso não era inteiramente verdade.

Percebia de leve o rugido em seus ouvidos, um tipo de cruzamento do motor de um jato e dos fogos de artifícios que sibilam como uma banshee, girando em círculos até se exaurir.

– Responda – ele ordenou numa voz que não parecia a sua.

Ele a havia seguido até aquele local isolado quando sentiu sua ausência na mansão – e se deslocou até ali para falar com ela sobre depressão pós-parto. O plano era levá-la de volta para casa, confortá-la diante da lareira, colocá-la num caminho em que ela pudesse apreciar os seres pelos quais tanto se empenhou em trazer ao mundo.

Como diabos acabaram falando de Xcor e de ela ter se encontrado com ele?

Não fazia a mínima ideia.

Mas não havia mais nenhum mal-entendido. E nenhuma retratação a caminho. Ele via no olhar arregalado e no pânico silencioso que, apesar de seu desejo de que aquela fosse uma colossal falha de comunicação de proporções risíveis, não era o caso.

– Eu estava segura – ela sussurrou. – Ele nunca me feriu.

– Mas que porra q...

Ele se deteve nesse aspecto. Iria direto ao ponto, como se faz com o detonador de uma bomba.

Antes que ele fizesse ou dissesse algo de que se arrependeria, afastou-se e flexionou os dedos para que não se cerrassem em punhos.

– Qhuinn, juro que nunca estive em perigo...

– Você ficou sozinha com ele. – Quando Layla não respondeu, ele cerrou os molares. – Não ficou?

– Ele nunca me machucou.

– Ok, isso é o mesmo que dizer que nunca foi picada enquanto usava uma cobra como cachecol. Uma vez depois da outra. Porque essa porra aconteceu com frequência, não foi? Responda!

– Sinto muito, Qhuinn... – Ela parecia querer se recompor, fungando as lágrimas e aprumando os ombros. O modo como os olhos dela suplicavam perdão o levou à beira da violência. – Oh, Santa Virgem Esc...

– Pare com as súplicas! Não há mais ninguém lá em cima! – Ele estava perdendo o controle. Por completo. – E que diabos está fazendo com esse pedido de perdão? Você colocou meus filhos em risco por livre e espontânea vontade só porque queria... – Ele se retraiu. – Jesus Cristo. Você fez sexo com ele? Você trepou com ele com os meus filhos dentro de você?

– Não! Nunca estive com ele dessa forma!

– Mentirosa – ele urrou. – Você é uma vadia mentirosa...

– Sou praticamente virgem! E você sabe disso! Além do mais, você não me quer. Por que se importa?

– Está querendo sugerir que sequer o beijou? – Quando ela não respondeu, ele riu com aspereza. – Nem tente negar. Está escrito na sua cara. E você tem razão, eu não te quis, nunca te quis... E não tente distorcer as coisas. Não estou com ciúmes; estou enojado. Amo um homem de valor e tive que ir para a cama com você porque precisava de uma incubadora pro meu filho e pra minha filha. Por isso e pelo fato de você ter se jogado em cima de mim quando esteve no cio, esses foram os únicos motivos pelos quais estive com você.

O rosto de Layla empalideceu, e por mais que isso o tornasse um cretino, ele gostou. Queria feri-la por dentro, que era onde contava, porque, por mais furioso que estivesse, jamais bateria numa fêmea.

E essa era a razão por ela ainda estar de pé.

Aqueles bebês, aqueles preciosos e inocentes bebês, foram levados até a boca de um monstro, na presença do inimigo, expostos ao perigo que o teria feito se cagar nas calças caso tivesse sabido à época do acontecimento.

– Você faz alguma ideia do que ele é capaz de fazer? – Qhuinn perguntou com seriedade. – As atrocidades que cometeu? Ele esfaqueou o próprio tenente nas entranhas só para mandá-lo para as nossas mãos. E no passado, no Antigo País? Ele assassinou vampiros, humanos, redutores, qualquer um que lhe atravessasse o caminho, às vezes movido pela guerra, outras só por diversão. Ele era a mão direita de Bloodletter. Você consegue imaginar o que ele já fez nesta terra? Quero dizer, você evidentemente não dá a mínima para o fato de ele ter metido uma bala no pescoço de Wrath – está claro que isso não significa nada para você. Aquele bastardo poderia tê-la violentado mil vezes, estripado você e deixado que ardesse sob o sol – com os meus filhos dentro de você! Que tipo de porra de brincadeira você está armando pra cima de mim?!

Quanto mais Qhuinn pensava a respeito dos riscos a que ela se expôs, mais sua cabeça latejava. Seus amados filhos poderiam muito bem não existir por conta das más escolhas da fêmea, que apenas por preceito biológico, fora o abrigo deles até que pudessem respirar sozinhos.

Tinha colocado-os em perigo ao se arriscar – sem nenhum pensamento aparente quanto às consequências ou como ele, o pai biológico, poderia encarar tamanho fiasco.

Sua fúria, nascida do amor que nutria pelos bebês, era indefinível. Inegável. Inesgotável.

– Nós dois os desejamos – ela disse, rouca. – Quando nos deitamos, nós dois os quisemos...

Numa voz impassível, ele a interrompeu:

– Pois é, isso eu lamento. Melhor que eles não tivessem nascido do que ter metade de você neles.

Layla estendeu a mão para mais uma vez se apoiar na árvore – e, como foi a mão que estava envolvida por sua bandana, ele se percebeu sufocado pela necessidade de arrancar o pedaço de pano da mão dela. Para depois queimá-lo.

– Fiz o melhor que pude – ela afirmou.

Ele gargalhou, então, até que a garganta queimasse.

– Está se referindo ao tempo em que dormiu com Xcor? Ou quando pôs em risco a vida dos meus filhos?

De uma vez só, ela retribuiu a raiva dele com um jorro da sua:

– Você tem aquele a quem ama! Deita-se ao lado dele todos os dias! A sua vida tem objetivo e significado, além de servir a outrem – enquanto eu não tenho nada! Passei todas as minhas noites e dias servindo a uma divindade que já não se importa mais com a raça que gerou e agora sou a mahmen de dois bebês a quem amo com todo o meu coração, mas que não são eu. O que tenho para mostrar da minha vida? Nada!

– Nisso você acertou – ele concordou, sério. – Porque não será mais a mãe dos meus filhos. Você perdeu o seu emprego.

Ela se retraiu com indignação.

– O que está dizendo? Sou a mahmen deles. Eu...

– Não é mais.

Houve um instante de silêncio, e depois a voz explodiu para fora dela:

– Você não pode... Não pode tirar Lyric e Rhamp... Não pode afastá-los de mim! Sou a mahmen deles! Tenho meus direitos...

– Não, não tem. Você se associou ao inimigo. Cometeu um ato de traição. E vai ter sorte se sair desta com vida – não que eu me lixe se você viver ou morrer. A única coisa que me importa é que nunca mais veja os bebês...

A mudança no interior dela foi instantânea e arrebatadora.

De uma vez só, Layla passou de irada a absolutamente calada. E a mudança foi tão abrupta que ele teve de ponderar se ela não sofrera uma síncope.

Mas, em seguida, os lábios de Layla se retraíram das presas que desciam. E o som que saiu de dentro dela eriçou os pelos de sua nuca num alerta.

Quando abriu a boca, a voz dela foi letal como as lâminas de uma adaga.

– Não recomendo que tente me impedir de ver meu filho e minha filha.

Qhuinn expôs as próprias presas.

– Espere e verá.

O corpo da Escolhida se curvou e ela se agachou, o sibilo que ela emitiu era de uma víbora. Só que ela não saltou sobre ele para despedaçar seu rosto com as garras.

Layla simplesmente se desmaterializou.

– Ah, inferno! Não! – ele gritou para o cenário invernal frio e alheio a tudo. – Você quer guerra, é o que vai ter, cacete!

– ... vezes em que ainda sinto vontade – Blay dizia ao sorver um gole do seu copo com gelo. – Para os humanos, é um vício letal. Mas vampiros não têm que se preocupar em adquirir câncer por fumar.

A sala de bilhar da Irmandade estava quase deserta, visto que o torneio foi encerrado quando Butch teve de assumir o posto ao lado de Xcor, Tohrment pediu para se retirar, Rhage chegou machucado do campo, e Rehv decidira ficar nos Grandes Campos com Ehlena. Mas tudo bem. Blay ainda conseguira jogar com Vishous, e os dois circundavam a mesa central dentre as cinco, alternando-se nas jogadas. A boa notícia? Lassiter estava em algum outro lugar, o que significava que a TV acima da imensa lareira estava na ESPN, no mudo.

Nada de filmes da Disney com aquelas canções ridículas esta noite.

Se Blay tivesse que ouvir as merdas do Frozen uma vez mais, ele iria “let it goooooo” pra valer.

No sentido de esvaziar uma magazine bem diante do seu próprio lobo frontal.

Do outro lado da mesa, Vishous acendeu outro dos seus cigarros enrolados por ele mesmo.

– Então por que parou de fumar?

Blay deu de ombros.

– Qhuinn odeia cigarros. O pai dele fumava cigarros e cachimbo, então acho que isso o faz se lembrar de coisas das quais prefere esquecer.

– Você não deveria ter que mudar por ninguém.

– Fui eu quem escolheu parar. Ele nunca me pediu.

Enquanto o Irmão se inclinava sobre a mesa para alinhar o taco, Blay relembrou o início de sua história com Qhuinn. Esse papo de fumar começou quando teve de ficar assistindo ao macho que amava foder qualquer coisa que se movesse. Um período horrível. Não, não tinham um relacionamento – e toda vez que Qhuinn saía com alguém, isso servia de lembrete de que jamais estariam em um.

Caramba. Na época, ele sequer havia saído do armário.

O estresse e a tristeza foram difíceis de controlar, mas também houve um ressentimento borbulhante e irracional de sua parte. Por isso abraçara um mecanismo de compensação que Qhuinn não teria aprovado nem gostado. Fora uma desforra subversiva e mesquinha pelos pecados que o macho na verdade não cometera.

Mas, pelo menos, deixar de fumar tinha sido simples. Assim que os dois se entenderam? Ele deixou os maços de Dunhill de lado e nunca mais olhou para trás.

Bem... Talvez seja mais preciso afirmar que nunca escorregou no vício. Às vezes, quando via Vishous acendendo um, e o cheiro do tabaco permeava o ar, ele ansiava fumar um cigarro...

Bem quando V. lançou a bola da vez no meio do arranjo central, um som horrível de batidas resoou no vestíbulo. Alto, repetitivo, forte o bastante para sacudir e fazer tremer a maciça e grossa porta de carvalho da entrada da mansão, de modo que mais parecia que uma horda de redutores estava tentando invadi-la.

Blay sacou a arma que portava na casa enquanto ele e V. largavam os tacos e corriam para fora da sala de bilhar até a entrada principal.

Bam-bam-bam-bam!

– Mas que porra é essa? – V. murmurou ao olhar para o monitor de segurança. – Que diabos há de errado com o seu garoto?

– O quê?

A pergunta foi respondida quando V. soltou a trava e Qhuinn entrou explodindo no vestíbulo. O macho estava furioso a ponto de parecer possuído, o rosto contraído de raiva, o corpo disparado numa corrida, seu estado tal que ele parecia alheio à presença de qualquer um.

– Qhuinn? – Blay tentou segurá-lo pelo ombro ou pelo braço.

Não teve jeito. Qhuinn chegou à escadaria e deu uma de Usain Bolt, os degraus cobertos pelo tapete vermelho foram consumidos por saltos ligeiros.

– Qhuinn! – Blay disparou atrás do que quer que estivesse acontecendo, tentando alcançá-lo. – O que foi?

No alto da escadaria, os coturnos de Qhuinn se enterraram no carpete e por pouco não derraparam ao virar à esquerda no corredor das estátuas. Logo atrás dele, Blay se apressou, e quando a direção que ele tomava ficou clara, um súbito terror se apossou dele.

Layla e as crianças deviam estar em algum perigo...

Na porta do quarto de Layla, Qhuinn agarrou a maçaneta e girou – só para bater de cara na madeira.

Cerrando um punho, ele começou a bater na porta com tanta força que lascas de pintura começaram a cair.

– Abra a porra desta porta! – Qhuinn berrou. – Layla, abra esta maldita porta agora mesmo!

– Mas que diabos você está fazendo?! – Blay tentou impedi-lo. – Ficou louco...

A arma de Qhuinn saiu sabe-se lá de onde, e quando o Irmão a virou e direcionou o cano para o rosto de Blay, ficou claro que se tratava de algum tipo de pesadelo, o resultado inevitável de uma segunda dose de vinho do Porto depois do jantar de carneiro de Fritz.

Só que não.

– Fique fora disso – Qhuinn estrepitou. – Fique fora disso.

Enquanto Blay erguia ambas as mãos e recuava, Qhuinn virou o ombro para a porta e a empurrou com tanta força que a madeira rachou, os painéis se partindo sob a força do golpe.

O que se revelou dentro do quarto cor de lavanda foi igualmente aterrador.

Enquanto Vishous parava de pronto ao lado de Blay e Z. saía da sua suíte ao fim do corredor, o cérebro de Blay para sempre ficaria maculado pela visão incompreensível e inescapável de Layla com cada filho debaixo dos braços, as presas expostas em pose de ataque, o rosto como o de um demônio, o corpo todo trêmulo – mas não de medo.

Ela estava preparada para matar qualquer um que se aproximasse dela.

Qhuinn apontou a arma na direção dela através do buraco criado na porta.

– Solte-os. Ou acabo com você.

– Mas que porra está acontecendo aqui? – A voz de Vishous saiu tão alta quanto se ele tivesse um alto-falante. – Vocês perderam a cabeça, caralho?

Qhuinn enfiou a mão por dentro e soltou a tranca, escancarando o que restava da porta. Quando ele entrou, Blay deteve os demais.

– Não, deixem que eu cuido disso.

Se mais alguém além dele entrasse, balas começariam a pipocar, e Layla iria atacar, e pessoas se feririam – ou pior.

E que porra estava acontecendo ali?

– Solte-os! – Qhuinn ladrou.

– Mate-me, então! – Layla revidou. – Vá em frente!

Blay colocou o corpo entre os dois, o tronco enquanto bloqueio no caminho de qualquer bala. Nesse meio-tempo, Layla respirava ofegante, e Lyric e Rhamp choravam – merda, ele jamais se esqueceria do som daquele choro.

De frente para Qhuinn, ele mostrou as palmas e falou com lentidão:

– Vai ter que atirar em mim primeiro.

Ele não se concentrou em nada além dos olhos azul e verde de Qhuinn... Como se pudesse, de alguma forma, comunicar-se telepaticamente com seu oponente para acalmá-lo.

– Saia da frente – Qhuinn ordenou. – Isto não é da sua conta.

Blay piscou ante tais palavras. Mas, considerando-se que enfrentava o cano de uma 40 mm, deduziu que deixaria o insulto passar por ora.

– Qhuinn, qualquer que seja o problema, conseguiremos lidar com... Aquele olhar despareado se voltou para ele por apenas uma fração de segundo.

– Acha mesmo? Quer dizer que o fato de ela ter se associado com o inimigo pode ser lavado com detergente ou alguma merda do tipo? Maravilha, vamos chamar Fritz pra cuidar disto. Ideia boa do cacete.

Enquanto os bebês continuavam a chorar, e mais pessoas se aproximavam da cena no corredor, Blay balançou a cabeça.

– Do que está falando?

– Ela levou os meus filhos com ela quando foi trepar com ele...

– Não entendi, o quê?

– Ela esteve com Xcor durante todo esse tempo. Ela não parou de se encontrar com ele. Associou-se a um inimigo conhecido do nosso rei enquanto estava grávida dos meus filhos. Por isso, sim, estou no meu direito de pai de puxar o gatilho contra ela.

De repente, Blay tomou ciência de um grunhido crescente atrás dele, e o som terrível o lembrou do que ouvira a respeito de as fêmeas da espécie serem mais letais do que os machos. Relanceando por sobre o ombro, ele pensou que sim, Layla estava evidentemente preparada para proteger os filhos até a morte naquela porra de universo paralelo para o qual foram sugados.

Xcor? Ela andou se encontrando com Xcor?

Só que ele não podia se desviar do perigo imediato.

– Só quero que você abaixe essa arma – Blay disse com calma. – Abaixe a arma e me conte o que está acontecendo. Senão, se quiser atirar nela, a bala vai ter que passar por mim primeiro.

Qhuinn inspirou fundo, como se estivesse se esforçando para não gritar.

– Eu te amo, mas isto não é da sua conta, Blay. Saia do caminho e deixe que eu cuido disto.

– Espere um minuto. Você sempre disse que também sou pai dessas crianças...

– Não quando o assunto é este. Agora saia da minha frente, caralho.

Blay piscou uma vez. Duas. Uma terceira vez. Engraçado, a dor em seu peito o fez refletir se Qhuinn não havia apertado o gatilho, e ele apenas deixou de ouvir o disparo.

Concentre-se, ordenou a si mesmo.

– Não, não vou me mexer.

– Saia da frente! – O corpo de Qhuinn começou a tremer. – Mas que diabos, saia da porra da minha frente!

Agora ou nunca, Blay pensou ao avançar e atacar o pulso que controlava a pistola. Ao golpear o antebraço com toda a força, a arma disparou repetidamente, e os cartuchos das balas saíram voando – mas, com uma rápida mudança de direção, ele conseguiu empurrar Qhuinn para o lado. O casal se estatelou no chão, e Blay se esforçou para dominar seu par, o impulso do movimento afastando-os de Layla e dos pequenos enquanto mantinha a arma apontada para o sentido oposto do quarto.

Blay acabou por cima, mas sabia que Qhuinn lhe tomaria a posição bem rápido. A arma, ele tinha que manter controle da...

De repente, o ar se tornou ártico.

A temperatura do quarto caiu para baixo de zero tão rápido que as paredes, o piso e o teto rangeram em protesto, a respiração dos presentes foi expelida em lufadas, a condensação gelou os vidros das janelas e os espelhos, com arrepios de qualquer pele exposta.

Em seguida, ouviu-se um rugido vigoroso.

O som foi tão intenso que foi quase inaudível – nada além de dor atravessou-lhes o canal auditivo, transformando suas cabeças em sinos de igreja – e isso, ainda mais do que a mudança no clima, deteve todos dentro da suíte, no corredor, na mansão... Talvez em todo o mundo.

O imenso corpo de Wrath apequenou a soleira da porta quando ele entrou no quarto, marcado pelos cabelos até a cintura, óculos escuros, coxas cobertas por couro e tronco avantajado, que teria detido qualquer trem em movimento.

Suas presas estavam totalmente expostas, como os dentes de um tigre-dentes-de-sabre. Mas ele não teve dificuldade alguma de se expressar, mesmo com elas.

– Não na porra da minha casa! – Ele soou tão alto que o quadro ao seu lado vibrou contra a parede de gesso. – Isso não vai acontecer na porra da minha casa! Minha shellan e meu filho estão aqui – existem outras crianças debaixo deste teto. Existem crianças na droga deste quarto!

Do lado oposto, Layla caiu no chão, os ossos absorvendo a queda com um barulho. Apesar do impacto, manteve Lyric e Rhamp em segurança, aninhados no colo, enquanto pendia a cabeça e começava a chorar.

Debaixo de Blay, Qhuinn tentava se soltar.

– Não até você soltar a arma – Blay disse entredentes.

Houve o som de metal se chocando contra a madeira quando a 40 mm foi solta e Blay a empurrou para longe. Em seguida, Qhuinn se desvencilhou e pôs-se de pé sobre os coturnos. Parecia que ele tinha estado num túnel de vento, seus cabelos negros dispostos em uma bagunça completa, os olhos arregalados, a pele corada em determinados pontos, mas pálida em outros.

– Todos para fora – Wrath ordenou. – Exceto pelos três pais.

Bem, pelo menos alguém reconhecia seu papel, Blay ponderou, com amargura.

Direcionando seu olhar para Qhuinn, viu-se encarando, através do caos, o macho que conhecia quase tão bem quanto a si mesmo.

Naquele instante, porém? Blay fitava para um estranho. A droga de um total desconhecido. Os olhos que Blay já havia passado horas perscrutando, os lábios por ele beijados, um corpo que tocou, acariciou, penetrou e pelo qual também foi penetrado... Era como se algum tipo de amnésia tivesse apagado toda a intimidade, metamorfoseando o que um dia fora uma realidade conhecida em uma hipótese tão fraca que parecia inexistente.

Vishous entrou no quarto.

– Primeiro, vistoria de armas.

Quando o lábio superior de Wrath se retorceu, ficou claro que o rei não apreciou a interrupção. Mas não havia como argumentar contra a razão.

V. foi eficiente na revista: primeiro retirou um par de adagas de Qhuinn, depois outra pistola – e, quando Blay se levantou, ergueu-lhe os braços e afastou-lhe as pernas, mesmo ciente de que ninguém estava preocupado que ele puxasse o gatilho.

– Pronto – V. anunciou ao se espremer para passar pelo Rei e voltar para o corredor.

– Diga aos outros que saiam – Wrath estrepitou.

– Certo.

Ante o comando real, a multidão se dispersou da soleira, mas não foi muito longe. Suas presenças pairaram enquanto, evidentemente, aguardavam os acontecimentos seguintes. De um jeito ou de outro, não havia como fechar a porta. Estava totalmente arruinada.

Virando-se na direção de Qhuinn, Wrath maldisse a situação e exigiu:

– Vai me explicar por que diabos disparou uma arma dentro da minha casa?

 

CONTINUA

ANTIGO PAÍS, 1731
As chamas de uma fogueira no chão iluminavam as paredes úmidas da caverna; a superfície áspera, manchada por sombras. Do lado de fora do ventre da terra, os gemidos do vento ecoavam na abertura do abrigo, unindo-se aos gritos da fêmea sobre o catre em que dava à luz.
– Será um menino! – ela arfou em meio às contrações que a assolavam. – Um macho!
Acima daquele pedaço de carne deitado e agonizante, pairando como uma maldição sobre ela, o Irmão da Adaga Negra Hharm pouco se importava com a sua dor.
– Logo saberemos.
– Você me desposará. Foi uma promessa...
As palavras se interromperam e seu rosto se contraiu numa máscara feia enquanto suas partes internas se contorciam para expelir a cria e, ao fazer as vezes de testemunha, Hharm refletia o quanto a aristocrata ficava pouco atraente em trabalho de parto. Não fora assim quando se conheceram e ele a seduzira. Na época, estivera coberta de cetim, muito composta, o receptáculo adequado para o seu legado, com a pele perfumada e os cabelos macios e reluzentes. Agora? Não passava de um animal, suada, pegajosa – e por que a situação se prolongava tanto? Ele estava tão enfastiado com o processo, ofendido por estar cuidando dela. Tratava-se de uma tarefa para as fêmeas, não para um guerreiro de seu escalão.
Todavia, não a desposaria, a menos que precisasse fazê-lo.
Se o bebê fosse o filho pelo qual vinha esperando? Então, sim, ele legitimaria a criança por meio da cerimônia de união e daria à fêmea o status ao qual ela se julgava digna. Caso contrário, ele se afastaria e a fêmea não diria nada, porque estava maculada aos olhos de sua classe, sua pureza perdida como um terreno já arado.
De fato, Hharm já decidira que era hora de se assentar. Depois de séculos de perdições e depravações, a idade começava a pesar. Ele se punha a considerar, pela primeira vez, o legado que deixaria para a posteridade. No momento, não lhe faltavam bastardos, frutos de sua pelve, os quais não conhecia, com quem não se importava e jamais se associaria a eles – e por tanto tempo era de conhecimento geral que ele não devia nada a ninguém.
Agora, porém... Ele se encontrava desejando uma árvore genealógica adequada. E também havia a questão das suas dívidas crescentes, algo que o pai dessa fêmea facilmente resolveria para ele – embora, mais uma vez, caso não fosse um filho varão, ele não a desposaria. Não era louco, não se prostituiria por centavos. Além disso, havia incontáveis fêmeas da glymera que cobiçavam o status inerente à vinculação com um membro da Irmandade da Adaga Negra.
Hharm não se comprometeria até ter um filho homem, a quem criaria desde a primeira noite.
– Oras, recomponha-se! – ele repreendeu-a quando ela gritou uma vez mais, uma ofensa aos seus ouvidos. – Fique calada!
Como em todas as coisas, contudo, ela o desafiou:
– Está chegando...! O seu filho está chegando!
A veste que ela usava foi suspensa até a base dos seios volumosos por mãos retorcidas. A barriga estendida e arredondada era uma visão vergonhosa, as coxas pálidas e finas permaneciam afastadas. O que acontecia no centro era repugnante: o que deveria ser a entrada delicada e adorável a fim de aceitar a excitação masculina vazava todo tipo de fluido e as carnes estavam inchadas e distorcidas.
Não, ele jamais a penetraria novamente. Com ou sem um filho, vinculados ou não, a perversão diante dos seus olhos não era algo de que ele pudesse se esquecer.
Felizmente, casamentos por conveniência eram uma contingência comum na aristocracia – não que ele se importasse caso não o fossem. As necessidades dela eram inconsequentes.
– Ele está chegando! – ela berrou quando a cabeça pendeu para trás e as unhas arranharam a terra debaixo de seu corpo. – Seu filho... ele se aproxima!
Hharm franziu a testa, depois seus olhos se arregalaram e as pernas se firmaram, afastadas. Ela não se equivocava, pois, de fato, algo começava a surgir de dentro dela... Era...
Uma abominação. Algo disforme e terrível...
Um pé.
– Isso é um pé?
– Tire seu filho do meu corpo – ela ordenou entre arquejos. – Puxe-o de dentro de mim e segure-o contra seu coração, reconheça-o como sua carne e seu sangue!
Com todas as armas ainda presas ao corpo, Hharm ajoelhou-se quando o segundo pé apareceu.
– Puxe! Puxe! – O Sangue jorrou e a fêmea berrou de novo quando o bebê não se moveu. – Ajude-me! Ele está asfixiado!
Hharm manteve-se afastado de toda aquela nojeira e imaginou quantas fêmeas inseminadas por ele haviam passado pela mesma situação. Seria sempre desagradável assim ou era ela quem era fraca?
De fato, deveria deixá-la que fizesse o parto sozinha, mas não confiava nela. A única maneira de ter certeza de que seu filho era macho era estar presente durante o nascimento. De outro modo, ele não desconsiderava a possibilidade de ela trocar uma filha indesejada pelo macho tão cobiçado – fruto de outro macho.
Aquela era, afinal, uma transação negociada, e ele sabia muito bem como tais coisas podiam ser manipuladas.
Em seguida, o som que emergiu da garganta da fêmea foi tão volumoso e demorado que interrompeu seus pensamentos. Depois os gemidos e as mãos sujas de terra e sangue dela se postaram no interior das coxas, puxando-as para fora e para cima, ampliando a abertura. E bem quando o Irmão acreditou que ela estivesse morrendo, quando cogitou se acabaria enterrando a ambos – e de pronto decidiu-se contra a proposição, visto que as criaturas da floresta logo consumiriam os restos mortais –, o bebê apareceu um pouco mais, livrando-se de algum obstáculo interno.
E lá estava ele.
Hharm se adiantou.
– Meu filho!
Sem pensar, esticou os braços e apanhou com mãos firmes os tornozelos escorregadios. Estava vivo; a criança chutava com força, debatendo-se contra o confinamento do canal vaginal.
– Venha para mim, meu filho – Hharm ordenou ao puxá-lo.
A fêmea se contorcia em agonia, mas ele não lhe dispensou um pensamento sequer. Mãos – pequeninas e perfeitamente bem formadas – surgiram em seguida, junto à barriga arredondada e o peito, que, mesmo em seu momento recém-nascido, era amplo.
– Um guerreiro! Este é um guerreiro! – O coração de Hharm batia forte, seu triunfo latejava nos ouvidos. – Meu filho levará adiante o meu nome! Será conhecido como Hharm, assim como eu antes dele!
A fêmea ergueu a cabeça, as veias do pescoço saltavam como cordões tensos sob a pele pálida demais.
– Você me desposará – ela disse, rouca. – Jure... Jure pela sua honra, ou eu o segurarei dentro de mim até que fique azul e entre no Fade.
Hharm sorriu com frieza, revelando as presas. Em seguida, desembainhou uma das adagas do peito. Direcionando a ponta para baixo, mirou no baixo ventre dela.
– Eu a estriparei como a um cervo para libertá-lo, nalla.
– E quem alimentará seu precioso filho? O seu sêmen não sobreviverá sem mim.
Hharm pensou na tormenta do lado de fora. Na distância que estavam do assentamento de vampiros mais próximo. E no pouco que sabia sobre as necessidades de um recém-nascido.
– Você me desposará, conforme prometido – ela gemeu. – Jure!
Os olhos dela estavam injetados e ensandecidos, os longos cabelos suados e emaranhados, o corpo era algo sobre o qual ele jamais desejaria se sobrepor. Mas a lógica dela o impedia. Perder o que desejava por conta exatamente do arranjo que estivera disposto a fazer, simplesmente porque ela o apresentava como se fosse uma condição sua, não era uma decisão sábia a se tomar.
– Juro – murmurou.
Com isso, ela voltou a se deitar e, sim, agora ele a ajudaria, puxando no ritmo dos empurrões dela.
– Ele está vindo... ele...
O bebê saiu de dentro dela num jorro, fluidos saindo com ele e, quando Hharm o segurou em suas palmas, sentiu uma alegria inesperada tão ressonante que...
Seus olhos se estreitaram ao pousar as vistas sobre o rosto dele. Acreditando que havia alguma membrana mascarando o bebê, passou uma das mãos pelas suas feições, que eram um misto das dele e da fêmea.
Lamentavelmente... nada mudou.
– Que maldição é esta? – questionou-se consigo mesmo. – Que maldição... é esta!

 

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CAPÍTULO 1


MONTANHAS DE CALDWELL, NOVA YORK, DIAS ATUAIS

A Irmandade da Adaga Negra o mantinha vivo só para poder matá-lo.

Dada a soma das atividades terrenas de Xcor, que foram das mais violentas, e certamente muito depravadas, aquele parecia um fim adequado para ele.

Nascera numa noite de inverno durante uma tempestade histórica. Nas entranhas de uma caverna suja e úmida, enquanto rajadas gélidas assolavam o Antigo País, a fêmea que o carregara gritara e sangrara para dar ao Irmão da Adaga Negra Hharm o filho tão exigido por ele.

Ele fora desesperadamente desejado.

Até chegar ao mundo.

E esse era o início da sua história, que acabara por levá-lo até ali.

Em outra caverna. Em outra noite do mês de dezembro. E assim como na noite do seu nascimento de fato, o vento gemia para recebê-lo, ainda que, dessa vez, fosse para o retorno da sua consciência em vez da expulsão para a vida independente que levou dali adiante.

E como um recém-nascido, tinha pouco controle sobre o corpo. Estava incapacitado, e isso seria verdadeiro mesmo sem as algemas de aço e as barras sobre o peito, o quadril, as coxas. Máquinas, contrastantes com o ambiente rústico que o rodeava, emitiam sinais atrás de sua cabeça, monitorando-lhe a respiração, os batimentos cardíacos, a pressão sanguínea.

Com a mesma fluidez de uma engrenagem sem lubrificação, seu cérebro começou a funcionar adequadamente sob o crânio; quando os pensamentos por fim se aglutinaram e formaram uma sequência lógica, lembrou-se da série de eventos que fizeram com que ele, o líder do Bando de Bastardos, acabasse sob a custódia daqueles que haviam sido seus inimigos: um ataque por trás, uma concussão, uma espécie de derrame ou algo do tipo que fez com que ele acabasse deitado, dependendo de máquinas para sobreviver.

E da inexistente misericórdia dos Irmãos.

Recobrara a consciência uma ou duas vezes durante o período em cativeiro, registrando seus captores e o ambiente daquele corredor cavernoso que inexplicavelmente abrigava jarros de todos os tipos. A retomada da consciência nunca durou muito; entretanto, a conexão com sua área mental era insustentável por um tempo mais demorado.

No entanto, dessa vez parecia diferente. Ele percebia a mudança em sua mente. O que quer que tivesse estado danificado por fim se curara e agora ele retornava do cenário enevoado do ponto de morto-vivo, permanecendo do lado vital.

– ... muito preocupado com Tohr.

O fim da frase enunciada por um macho entrou nos ouvidos de Xcor como uma série de vibrações, cuja tradução sofreu um atraso, e quando as palavras se formaram, ele virou o olhar naquela direção. Duas figuras de preto muito bem armadas estavam de costas para si, e ele voltou a abaixar as pálpebras, pois não desejava revelar a mudança do seu estado. Entretanto, suas identidades estavam devidamente anotadas.

– Não, ele está bem. – O som de algo raspando e o cheiro de tabaco permeando o ar. – E se não estiver, vou estar ao lado dele.

A voz grave que falou primeiro pareceu árida.

– Pra botar nosso irmão na linha à força... Ou ajudá-lo a acabar com este pedaço de carne?

O Irmão Vishous riu como se fosse um assassino em série.

– Que bela consideração você tem por mim.

Era estranho que não se entendessem melhor, Xcor pensou. Esses machos queriam tanto sangue quanto ele.

No entanto, essa aliança jamais existiria. A Irmandade e os Bastardos sempre estiveram em lados opostos durante o reinado de Wrath, esse limite tendo sido estabelecido pela bala que Xcor alojara na garganta do líder por direito da raça vampírica.

E o preço de sua traição seria cobrado ali, em pouco tempo.

Claro, a ironia era que uma força de compensação interceptara seu destino e fizera com que suas ambições e seu foco se afastassem, e muito, do trono. Não que os guerreiros da Irmandade tivessem ciência disso – e pouco se importariam se soubessem. Além de partilharem o apetite pela guerra, ele e os Irmãos tinham outras características em comum: piedade era para os fracos; o perdão, algo patético; pena, um sentimento das fêmeas, nunca de guerreiros.

Embora soubessem que ele já não sentia nenhuma agressividade em relação a Wrath, não o exonerariam daquilo que conquistara com méritos. Por conta de tudo o que acontecera, ele não sentia nem amargura nem raiva em relação ao que o esperava. Aquela era a natureza do conflito.

Contudo, sentia-se triste – um sentimento desconhecido para ele.

Das suas lembranças surgiu uma imagem que lhe roubou o fôlego. Era o de uma fêmea alta e magra nas vestes sagradas das Escolhidas da Virgem Escriba. Os cabelos loiros ondulavam sobre os ombros e desciam até o quadril em uma brisa suave, os olhos eram cor de jade, o sorriso, uma benção que ele não fizera nada para receber.

A Escolhida Layla mudara tudo para ele, transformando a Irmandade de um alvo a algo tolerável, de inimigo a um habitante coexistente naquele mundo.

Em pouco mais de um ano e meio, período no qual Xcor a conhecia, ela tivera um efeito mais impactante sobre sua alma negra do que qualquer outra pessoa antes dela, fazendo com que evoluísse muito em tempo ínfimo – algo que ele jamais imaginara ser possível.

O Dhestroyer, camarada de Vishous, voltou a falar:

– Na verdade, concordo plenamente com Tohr sobre fazer picadinho do filho da puta. Ele conquistou esse direito.

O Irmão Vishous praguejou.

– Todos nós merecemos. Vai ser difícil deixar uma parte dele intacta quando isso acontecer.

E ali estava o enigma, Xcor ponderou por trás das pálpebras abaixadas. A única saída possível de tamanho cenário mortal seria revelar o amor que sentia por uma fêmea que não era sua, nunca fora e jamais poderia ser.

Mas não sacrificaria a Escolhida Layla por ninguém, por nada.

Nem mesmo para se salvar.

Enquanto Tohr caminhava na floresta de pinheiros da montanha da Irmandade, seus coturnos esmagavam o terreno congelado, e o vento glacial o golpeava no rosto. Em seu rastro, tão próximo de seus calcanhares quanto uma sombra, ele sentia suas perdas a acompanhá-lo, numa fila de lamentos tangíveis como uma corrente.

A sensação de estar sendo perseguido pelos seus mortos o fez refletir a respeito de programas de TV sobre eventos paranormais, do tipo que tentava provar a existência de fantasmas. Que monte de bobagens. A histeria humana acerca das supostas entidades obscuras flanando em escadas e provocando rangidos em casas antigas, com seus passos sem corpos, era algo muito característico dessa espécie desimportante absorta em si mesma e criadora de dramalhões. Mais uma coisa que Tohr odiava a respeito deles.

E, como de costume, eles não acertavam no alvo.

Os mortos absolutamente nos atormentam, percorrendo seus dedos gélidos em nossa nuca como uma forma de lembrete até não conseguirmos decidir se queremos gritar pelas saudades que sentimos deles... ou porque queremos ser deixados em paz.

Eles espreitam suas noites e rondam seus dias, deixando um campo minado de tristeza ao longo dos caminhos.

São seus primeiros e seus últimos pensamentos, o filtro que você tenta deixar de lado, a barreira invisível entre você e todo o resto.

Algumas vezes, são mais parte de você do que as pessoas que você consegue de fato segurar e tocar.

Portanto, sim, ninguém precisa de um programa de TV idiota para provar o que já é de conhecimento comum: mesmo que Tohr tenha encontrado o amor com outra fêmea, sua primeira shellan, Wellsie, e o filho não nascido que ela carregava no ventre quando foi assassinada pela Sociedade Redutora, nunca foram afastados dele além da própria pele.

E agora houvera mais uma morte na mansão da Irmandade.

A companheira de Trez, Selena, subira para o Fade havia poucos meses, tendo falecido em razão de uma doença para a qual não existia cura, nenhum alívio, nenhum conhecimento.

Tohr não dormia direito desde então.

Voltando a se concentrar nas árvores que o cercavam, Tohr se abaixou e afastou um galho do caminho, depois deu a volta num tronco caído. Poderia ter se materializado até o destino, mas seu cérebro latejava com tanta violência da prisão do crânio que ele duvidava que conseguiria se concentrar o bastante para se dissipar.

A morte de Selena fora um maldito gatilho para ele, um evento que afetava outra pessoa, mas que, não obstante, sacudira seu globo de neve, balançando-o com tanta força que seus flocos internos ainda rodopiavam e se recusavam a se assentar.

Estava no centro de treinamento quando ela fora chamada para o Fade, e o momento da morte não fora silencioso. Fora marcado pelo som da alma dilacerada de Trez, o equivalente auditivo de uma tumba – um som que Tohr conhecia bem demais. Fizera o mesmo quando recebera a notícia da morte de sua fêmea.

Portanto, sim, nas asas da agonia do seu amor, Selena fora alçada da terra para o Fade...

Arrancar-se desse espiral cognitivo era o mesmo que tentar tirar um carro de um atoleiro, o esforço necessário era tremendo, o progresso conquistado centímetro a centímetro.

No entanto, lá ia ele pela floresta, na noite invernal, esmagando o que aparecia sob suas solas, com seus fantasmas sussurrando-lhe por trás.

A Tumba era o sanctum sanctorum da Irmandade da Adaga Negra, aquele local secreto onde as induções aconteciam e convocavam-se as reuniões secretas, e onde eram mantidos os jarros dos redutores assassinados. Estava localizada abaixo do solo, num labirinto criado pela natureza, tradicionalmente fora dos limites para qualquer um que não tivesse passado pela cerimônia que o marcasse como membro da Irmandade.

Essa regra, no entanto, tivera que ser contornada, pelo menos em respeito ao longo corredor de entrada de quase meio quilômetro.

Ao se aproximar do insuspeito sistema da entrada, parou e sentiu a raiva surgir.

Pela primeira vez desde que se tornara um Irmão, não era bem recebido ali.

Tudo por causa de um traidor.

O corpo de Xcor estava do lado oposto dos portões, na metade do caminho repleto de prateleiras, deitado numa maca, a vida monitorada e mantida por equipamentos.

Até que o maldito despertasse e pudesse ser interrogado, Tohr não tinha permissão para entrar.

E seus irmãos tinham razão em não confiar nele.

Ao fechar os olhos, viu seu rei com um tiro na garganta. Reviveu o momento em que a vida de Wrath estivera escorrendo junto ao sangue rubro; rememorou a cena em que tivera que salvar o último vampiro de sangue puro no planeta ao cortar um buraco na frente da garganta dele e enfiar o tubo de sua Camelback naquele esôfago.

Xcor encomendara o assassinato. Xcor ordenara um dos seus guerreiros mandar uma bala para dentro das carnes de um macho de valor, conspirara com a glymera para derrubar o governante por direito, mas o filho da puta fracassara. Wrath sobrevivera, apesar das probabilidades contrárias,, e na primeira eleição democrática da história da raça, fora apontado como líder de todos os vampiros – uma posição que ele agora detinha por consenso em vez de pela sua linhagem.

Portanto, vá se foder, filho da puta.

Cerrando os punhos, Tohr ignorou o ranger das luvas de couro e a constrição no dorso dos nós dos dedos. Só o que reconhecia era o ódio, tão profundo como uma doença letal.

O destino decidira que era certo tirar-lhe três seus e dos seus; o destino tirara dele sua shellan, seu filho, e o amor da vida de Trez. Querem falar sobre equilíbrio no Universo? Tudo bem. Ele queria o seu equilíbrio, e isso só aconteceria quando quebrasse o pescoço de Xcor e arrancasse o coração ainda quente do peito do maldito.

Já era hora de uma fonte do mal ser tirada de circulação, e era ele quem empataria o placar.

E a espera finalmente terminava. Por mais que respeitasse seus irmãos, estava farto de aguardar. Essa noite era um aniversário triste para ele, e ele daria ao seu luto um presentinho especial.

Era hora de festejar.


CAPÍTULO 2

O copo de cristal baixo estava tão limpo, tão isento de marcas de sabão, de poeira, de qualquer grânulo que o manchasse, que sua estrutura era como o ar; e a água dentro dele, totalmente invisível.

Meio cheio, a Escolhida Layla ponderou. Ou meio vazio?

Sentada no banquinho acolchoado, entre as duas pias com torneiras douradas e diante de um espelho com adornos de ouro que refletia a banheira funda atrás de si, ela observava a superfície do líquido.

O fundo era côncavo e a água lambia levemente o interior do copo, como se suas moléculas mais ambiciosas tentassem fugir do confinamento.

Respeitava o esforço, enquanto lamentava sua futilidade. Sabia muito bem o que era querer ser livre do local que a abrigava, apesar de não ser culpa sua.

Por séculos, ela fora a água daquele copo, despejada sem ter querido, em virtude apenas do seu nascimento, num papel de servidão junto à Virgem Escriba. Ao lado de suas irmãs, executara os deveres sagrados das Escolhidas no Santuário, adorando a mãe da raça, registrando os eventos da Terra para a posteridade dos vampiros, aguardando a escolha de um novo Primale para que ela pudesse engravidar e dar à luz mais Escolhidas e mais Irmãos.

Mas tudo isso já era passado.

Inclinando-se sobre o copo, observou mais atentamente a água. Fora treinada como ehros, não como escriba, mas sabia muito bem como enxergar além das águas que eram testemunhas da história. Dentro do Templo das Escribas, as Escolhidas designadas a registrar as histórias e as linhagens da raça permaneceram sentadas por horas e horas, observando nascimentos e mortes, suas mãos delicadas com penas sagradas colocando os detalhes nos pergaminhos, acompanhando tudo.

Não havia nada para ela ver. Não ali na Terra.

E também já não existiam testemunhas no alto.

Um novo Primale acabara surgindo. Mas em vez de se deitar com seu rebanho de fêmeas, dando continuidade ao programa de criação da Virgem Escriba, ele dera um passo sem precedentes, libertando todas elas. O Irmão da Adaga Negra Phury se desviara do modelo, quebrara a tradição, desfizera-se das amarras e, ao fazê-lo, as Escolhidas que estiveram isoladas desde sua gênese, visando aos nascimentos planejados, acolheram sua libertação. Já não eram representantes vivas de uma tradição rígida; tornaram-se indivíduos, com seus próprios descontentamentos e preferências, mergulhando os dedos nas águas terrenas da realidade, procurando e encontrando destinos a respeito de si próprias, e não mais de um serviço.

Ao fazer isso, ele desencadeara o fim dos imortais.

A Virgem Escriba já não existia mais.

Seu filho de nascimento, o Irmão da Adaga Negra Vishous, a procurara no Santuário acima e descobriu que ela se fora, deixando uma última carta escrita no vento apenas para os olhos dele.

Ela dissera que tinha um sucessor em mente.

Ninguém sabia sua identidade.

Recostando-se, Layla olhou para a veste que trajava. Não era do tipo sagrado que se vestira durante tantos anos. Não, essa peça vinha de um lugar chamado Pottery Barn, e Qhuinn a comprara para ela na semana passada. Com a aproximação do inverno, ele se preocupava que a mãe de seus filhos estivesse aquecida, sempre bem cuidada.

A mão de Layla subiu para o ventre, agora baixo. Depois de ter carregado a filha, Lyric, e o filho, Rhampage, dentro do corpo por tantos meses, era tão estranho quanto familiar não ter nada no útero...

Vozes murmuradas, baixas e graves, penetraram a porta que ela havia fechado.

Entrara no banheiro para usar o vaso.

Demorara-se depois de ter lavado as mãos.

Qhuinn e Blay, como de costume, estavam com os bebês. Segurando-os. Ninando-os.

Todas as noites, ela tinha que se esforçar para testemunhar o amor, não entre eles e os pequenos... mas aquele entre os dois machos. De fato, os pais exibiam um vínculo ressonante e, resplandecente um com o outro, e por mais que fosse algo belo, aquele fulgor fazia com que se sentisse ainda mais vazia em sua existência.

Enxugando uma lágrima, disse a si mesma para se controlar. Não poderia voltar ao quarto com olhos brilhantes demais, e o nariz e faces corados. Aquele deveria ser um momento de alegria para os cinco integrantes da família. Agora que os gêmeos haviam superado o estado de emergência sob o qual tinham nascido, e Layla também se recuperara, todos estavam aliviados por todos estarem sãos e salvos.

Agora era a vida feliz que ganharam para viver.

Em vez disso, ela ainda era a água triste dentro do copo, desejando sair.

Dessa vez, porém, a prisão foi feita por ela mesma, em vez de providenciada pela genética.

A definição de infidelidade, pelo menos de acordo com o dicionário, era: a ação de trair algo ou alguém...

A batida à porta fechada foi suave.

– Layla?

Ela fungou e abriu uma das torneiras.

– Oi!

A voz de Blay soou baixa, como era seu hábito.

– Você está bem aí?

– Ah, sim, estou. Resolvi tratar um pouco do rosto. Sairei daqui a pouco.

Ela se levantou, inclinou-se e molhou o rosto. Depois esfregou a testa e o queixo com a toalha de mão para que o rubor se espalhasse mais uniformemente sobre a pele. Apertando o cinto do roupão, aprumou os ombros e foi para a porta, em meio a preces para manter a compostura pelo tempo necessário até conseguir apressá-los para a Última Refeição.

Mas teve um momento de folga.

Ao abrir a porta, Blay e Qhuinn sequer olhavam na sua direção. Estavam inclinados sobre o berço de Lyric.

– ... os olhos de Layla – Blay disse ao abaixar a mão e deixar que a pequena agarrasse seu dedo. – Definitivamente.

– Ela também tem os cabelos da mahmen. Veja o tom loiro começando a aparecer.

O amor deles pela pequena era incandescente, reluzia em seus rostos, aquecia suas vozes e, aplacava seus movimentos, de modo que tudo o que faziam era com cuidado. No entanto, não era nisso que Layla se concentrava.

Seu olhar estava fixo na palma larga de Qhuinn, que afagava as costas de Blay. A carícia de conexão era inconsciente de ambos os lados; a oferta e a aceitação eram tanto nada e tudo o que importava, simultaneamente. E enquanto testemunhava o que se passava do outro lado do quarto, Layla teve que piscar rápido de novo.

Às vezes, a gentileza e o amor podiam ser tão difíceis de testemunhar quanto a violência. Às vezes, quando se está do lado de fora, ver duas pessoas tão em sintonia era uma cena saída de um filme de terror, o tipo de coisa da qual você quer se manter afastado, quer esquecer, banir da memória – ainda mais quando se está prestes a deitar e enfrentar sozinha um longo dia de horas no escuro.

Saber que ela jamais teria esse amor especial com alguém era...

Qhuinn relanceou na sua direção.

– Ah, oi.

Ele se endireitou e sorriu, mas ela não se deixou enganar. Os olhos dele a percorriam como se em uma avaliação – mas, talvez, esse não fosse o caso. Talvez fosse simplesmente a sua paranoia se manifestando.

Estava tão farta de se dividir em uma vida dupla. Contudo, no tipo de ironia cruel que parecia ser a fonte favorita de divertimento do destino, o preço para aliviar a consciência viria à custa de sua própria existência.

A como poderia deixar os filhos para trás?

– ... ok? Layla?

Enquanto Qhuinn franzia a testa ao observá-la, ela balançou a cabeça e forçou um sorriso.

– Ah, tudo bem, mesmo. – Ela deduzia que a pergunta se referisse ao seu bem-estar. – Muito bem mesmo.

Em busca de confirmar a mentira, aproximou-se dos berços. Rhampage, ou Rhamp, como era conhecido, lutava contra o sono, e quando a irmã arrulhou, sua cabeça se virou e ele esticou a mão.

Engraçado. Mesmo tão jovem, ele parecia reconhecer seu posto e desejava protegê-la.

Era genético. Qhuinn era um membro da aristocracia, resultado de gerações de emparelhamentos escolhidos a dedo, e por mais que seu “defeito” de ter um olho azul e outro verde o tivesse feito receber o desprezo tanto da glymera quanto da própria família, a venerável natureza de sua linhagem não podia ser negada. Tampouco o impacto de sua presença física. Com quase dois metros de altura e corpo talhado por músculos definidos, moldados tanto pelos exercícios quanto pela prática na guerra – uma arma tão letal quanto as pistolas e adagas que levava consigo para o campo de batalha. Era o primeiro membro da Irmandade da Adaga Negra a ser induzido com base na meritocracia em vez de na linhagem, e não desapontara a grande tradição. Ele nunca desapontava ninguém.

De fato, Qhuinn era, no conjunto, um belo macho, ainda que de forma um tanto rústica. O rosto era angular, pois tinha pouca gordura corporal, e aqueles olhos despareados fitavam por baixo de sobrancelhas negras. Os cabelos pretos foram cortados muito curtos recentemente, quase totalmente raspados na base. Deixavam um topete para trás e, como resultado, seu pescoço parecia extra-grosso. Com piercings metálicos nas orelhas e a lágrima de ashtrux nohtrum abaixo do olho – uma marca dos tempos em que servira como protetor de John Matthew –, ele chamava a atenção por onde quer que passasse.

Talvez porque as pessoas, tanto humanos como vampiros, preocupavam-se com o que ele seria capaz de fazer caso fosse contrariado.

Blay, por sua vez, era o oposto: tão acessível quanto Qhuinn seria evitado num beco escuro.

Blaylock, filho de Rocke, tinha cabelos ruivos e um tom de pele mais claro do que a maioria da espécie. Era tão grande quanto Qhuinn, mas quando se está ao seu lado, a primeira impressão que se tem dele faz referência à sua inteligência e ao seu bom coração, em vez de a força bruta. Ainda assim, ninguém discutia suas habilidades em campo. Layla ouvira histórias, ainda que nunca da parte dele, visto que não era de se vangloriar, criar dramas excessivos ou atrair atenções para si.

Ela amava os dois de todo o coração.

E o distanciamento que sentia em relação a eles partia somente do seu lado.

– Olha só – Qhuinn disse ao apontar para os bebês. – Temos dois se apagando... Melhor, um e meio.

Quando ele sorriu, ela não se deixou enganar. Seus olhos continuavam a passear pelo seu rosto, à procura sobre sinais de exatamente aquilo que ela tentava esconder. Para dificultar o escrutínio dele, ela recuou.

– Eles dormem bem, graças à Virgem Escriba... Hum, graças ao Fade.

– Você vai descer para a Última Refeição hoje? – ele perguntou como quem não quer nada.

Blay se endireitou.

– Fritz disse que prepara o que você quiser.

– Ele é sempre tão gentil. – Ela foi até a cama e se deitou contra os travesseiros. – Na verdade, senti uma fominha lá pelas duas da manhã, por isso fui até a cozinha e comi torradas e aveia. Tomei café. Suco de laranja. Um café da manhã no lugar do almoço, por assim dizer. Sabem como é, às vezes sentimos vontade de voltar o relógio no meio da noite e recomeçar da metade.

Uma pena que isso não passasse de uma metáfora.

Ainda que... será que ela teria escolhido nunca conhecer Xcor?

Sim, pensou. Preferiria nunca ter sabido da sua existência.

O amor de sua vida, seu “Blay”, o par do seu coração e da sua alma... era um traidor. E seus sentimentos pelo macho foram uma ferida aberta na qual a bactéria da traição entrara e se espalhara.

Portanto, ali estava ela, na prisão estabelecida por ela própria, torturada pelo fato de ter se aproximado do inimigo, primeiro por ter sido ludibriada... e mais tarde porque quis estar na presença de Xcor.

Separaram-se em maus termos, contudo, com ele colocando um fim nos encontros clandestinos após ela forçá-lo a admitir seus sentimentos. Em seguida, a situação se transformara de triste para trágica, quando ele foi capturado e levado sob a custódia da Irmandade.

A princípio não conseguira obter informações acerca de seu estado. Mas então, viajara ao modo de uma Escolhida até ele e, testemunhara seu estado moribundo num corredor de pedras, repleto de jarros de todas as cores e formas.

Não havia nada que pudesse ter feito por ele. Não sem se apresentar e se expor – e mesmo que ela o fizesse, não poderia salvá-lo.

Por isso estava presa ali: um fantasma atormentado num misto de emoções salpicadas pelo veneno da culpa e do arrependimento, sem nunca, jamais, poder se libertar.

– ... certo? Quero dizer... – Enquanto Blay continuava a falar com ela a respeito de uma e outra coisa, a Escolhida se forçou a não esfregar os olhos. – ... no fim da noite, enquanto você fica aqui com os bebês. Não que você não goste de ficar com eles.

Saiam, ela solicitou mentalmente para os dois machos. Por favor, vão embora e me deixem em paz.

Não era como se ela quisesse afastá-los das crianças, ou que sentisse alguma malquerença pelos pais de Lyric e Rhamp. Ela só precisava respirar. E toda vez que um dos guerreiros a fitava, como faziam agora, respirar se tornava praticamente impossível.

– Você concorda? – Qhuinn perguntou. – Layla?

– Ah, sim, claro. – Ela não fazia ideia do que acabara de concordar, mas certificou-se de sorrir. – Só vou descansar agora. Eles ficaram bastante tempo acordados durante o dia.

– Eu gostaria que nos deixasse ajudar mais. – Blay franziu a testa. – Estamos aqui do lado.

– Vocês dois lutam na maioria das noites. Precisam dormir.

– Mas você também é importante.

Layla direcionou o olhar rumo aos os berços e, ao rememorar a cena de si mesma acalentando-os e amamentando-os, sentiu-se ainda pior. Mereciam uma mahmen melhor do que ela, descomplicada e sem o fardo de decisões que nunca deveriam ter sido tomadas, uma que não estivesse contaminada pela fraqueza em relação a um macho de quem jamais deveria ter se aproximado... muito menos amado.

– Não tenho a mínima importância em comparação a eles – sussurrou rigidamente. – Eles são tudo.

Blay se aproximou e a tomou pela mão, os olhos azuis calorosos.

– Não, você também é muito importante. E mahmens precisam de tempo para si.

Para fazer o quê? Ruminar meus remorsos? Não, muito obrigada, pensou.

– Vou para o túmulo sem eles e aí apreciarei minha própria companhia. – Ao perceber o quanto tinha soado mórbida, apressou-se: – Além disso, eles crescem rápido. Vai acontecer antes de nós três nos darmos conta.

Conversaram mais depois – não que ela tivesse prestado atenção, com todos os gritos em sua mente. Mas, por fim, foi deixada em paz quando o casal partiu.

O fato de ficar tão feliz ao vê-los sair foi mais uma tristeza que ela tinha a carregar.

Mudando de posição na cama, levantou-se e se aproximou dos berços com os olhos rasos de lágrimas. Enxugando o rosto, repetidas vezes, ela pegou um lenço de papel do bolso do roupão e assoou o nariz. Os bebês estavam profundamente adormecidos, com os olhos fechados, os rostos voltados um para o outro como se estivessem se interligado em uma comunicação telepática durante o sono. Mãozinhas perfeitas e pezinhos preciosos, barriguinhas redondas e saudáveis envolvidas em cobertorzinhos de flanela. Eram bebês tão bons; alegres quando acordados, pacíficos e angelicais adormecidos. Rhampage ganhava peso com mais velocidade do que Lyric, mas ela parecia mais saudável do que ele, reclamava menos ao ser lavada ou trocada, fitando tudo com mais atenção.

Quando as lágrimas caíram do rosto de Layla até o carpete, ela não sabia quanto tempo mais suportaria.

Antes de tomar ciência do movimento, foi até o telefone interno da casa e apertou uma sequência de quatro números.

A doggen que convocou chegou em questão de momentos, e Layla voltou a vestir sua máscara social, sorrindo para a criada com uma serenidade que não sentia.

– Grata por cuidar dos meus preciosos – disse no Antigo Idioma.

A babá respondeu com alegria e olhos cintilantes, e Layla só aguentou dois ou três segundos de comunicação. Em seguida, saiu do quarto e, com passos ligeiros protegidos por chinelos, desceu pelo corredor das estátuas. Quando chegou às portas da extremidade oposta, empurrou uma delas e entrou na ala dos empregados.

Como em todas as mansões daquele tamanho e distinção, o lar da Irmandade necessitava de um tremendo apoio de funcionários, e os aposentos dos doggens perfilavam o corredor; a segregação por idade, sexo e posição nos escalões formava comunidades dentro do grande conjunto. Em meio ao labirinto de corredores, Layla não escolheu uma direção específica além do objetivo de encontrar um quarto vazio – e encontrou-o umas três portas adiante, depois de uma virada. Ao entrar no espaço simples e desocupado, foi até a janela, abriu-a e fechou os olhos. Seu coração batia forte e uma ligeira tontura a dominava, mas ela inspirou fundo o ar fresco e limpo...

... e se desmaterializou através da abertura que criara, misturando-se à noite; as moléculas se espalhando e se afastando da mansão da Irmandade.

Como sempre, sua liberdade seria temporária.

Mas, desesperada como estava, foi tomada por um breve sufocamento, e ela partiu em busca de oxigênio.


CAPÍTULO 3

Qhuinn era um macho muito macho. E não só porque era um guerreiro casado com outro cara.

Sim, claro que, antes de se assentar com Blay, até que gostara de transar com fêmeas e mulheres. Mas, pensando bem, seu padrão para parceiros sexuais fora tão baixo que até aspiradores de pós e canos de escapamento tinham sido candidatos ocasionais.

Mas nada de ovelhas. #critério

No entanto, não poderia dizer que as fêmeas o tivessem cativado ou interessado de fato. Não que houvesse algo de errado com elas, ou que não as respeitasse assim como todo o resto. Elas simplesmente não eram do seu gosto.

Numa noite como a de hoje, porém, ele lamentava sua inexperiência. Só porque ralara e rolara com o sexo oposto não significava que estivesse equipado de algum modo para lidar com o que o confrontava agora.

Quando ele e Blay chegaram ao pé da escadaria principal, ele parou e olhou para seu par. Ao fundo, vindo da sala de bilhar do lado oposto do átrio, o som das vozes graves dos machos, de música e de gelo batendo em copos de cristal anunciavam que o torneio de bilhar da Irmandade já estava em curso.

Qhuinn sorriu de uma maneira que esperava transmitir calma.

– Ei, eu já te encontro lá, ok? Tenho que descer pra falar com a doutora Jane sobre o meu ombro, acho que demoro uns dez minutos... Não mais do que isso.

– Claro. Quer que eu vá com você?

Por um segundo, Qhuinn se perdeu ao observar seu macho. Blaylock, filho de Rocke, era tudo o que ele não era: impecável como um corpo esculpido por Michelangelo, tinha um rosto de arrasar e uma cabeleira ruiva e lustrosa como a cauda de um pônei; era inteligente, mas também equilibrado, o que fazia toda a diferença; era firme e confiável como uma montanha de granito, o tipo de cara que nunca vacilava.

Em tudo o que importava, comparado a Blay, Qhuinn era uma banheira de plástico perto de uma de porcelana; um conjunto incompleto de pratos ao lado de uma dúzia perfeita de louças; uma coisa rachada no meio de algo inquebrável.

Por algum motivo, porém, Blay o escolhera. Contra todas as possibilidades, o filho imperfeito e desonrado de uma das Famílias Fundadoras, o viciado sexual de olhos despareados, o vagabundo hostil e arredio... De algum modo acabara com o Príncipe Encantado, e caralho, se isso não o convertia.

Blay era o motivo que o fazia respirar, o lar que nunca tivera, a luz do sol que empoderava sua terra.

– Qhuinn? – Os olhos azuis iridescentes se apertaram. – Você está bem?

– Desculpe. – Ele se inclinou e pressionou os lábios na jugular do macho. – Eu me distraí. Mas você sempre tem esse efeito em mim, não é?

Quando Qhuinn se afastou, Blay estava corado – e excitado. Aquela fragrância era uma digressão que não podia ser facilmente ignorada.

A não ser pelo fato de que tinha um problema real para resolver.

– Diga aos irmãos que não demoro. – Qhuinn apontou na direção da sala de bilhar. – E que vou dar uma surra neles.

– Você sempre faz isso. Mesmo com Butch.

As palavras foram suaves, mas respaldadas por uma adoração que fazia com que Qhuinn contasse cada uma das suas bênçãos.

Cedendo ao instinto, Qhuinn se aproximou e sussurrou ao ouvido do cara:

– Talvez queira se alimentar bem na Última Refeição. Vou te manter ocupado o dia inteiro.

Com uma lambida no pescoço em que pretendia trabalhar mais tarde, Qhuinn se afastou antes que não pudesse mais se distanciar de seu par.

Seguindo ao redor da base da escada, passou por uma porta escondida e desceu pelo sistema de túneis que conectava os componentes da propriedade. O centro de treinamento subterrâneo da Irmandade ficava cerca de meio quilômetro afastado da mansão, e aquela passagem subterrânea ligando as duas partes era um espaço amplo iluminado por painéis de luzes fluorescentes afixados ao teto.

Enquanto ele avançava, o som dos seus passos ecoava ao redor, como se os coturnos aplaudissem a iniciativa.

Contudo, Qhuinn não sabia se eles estavam certos. Não fazia a mínima ideia do que estava fazendo ali.

A porta atrás do armário de suprimentos se abriu sem emitir nenhum som, uma vez inserida a senha; em seguida, o guerreiro passava ao longo de prateleiras repletas de papéis para impressora, canetas, blocos de anotação e outras merdas vindas da loja de materiais para escritório. A sala, além do depósito, apresentava a típica disposição de mesa, cadeira, computador e arquivos metálicos, e nenhuma dessas coisas foi particularmente percebida quando ele passou pela porta de vidro adiante para chegar ao corredor da frente. Com passadas longas e impacientes, atravessou todos os tipos de instalações de nível profissional – desde uma academia completa e sala de pesos à altura de Dwayne Johnson, até os vestiários e as primeiras salas de aula.

A porção destinada à clínica do centro de treinamento tinha outra quantidade de cômodos voltados ao tratamento, uma sala de operações e diversos leitos hospitalares. A doutora Jane, companheira de V., e o doutor Manello, companheiro de Payne, cuidavam de todo tipo de ferimentos obtidos em combate, além de problemas domésticos e sem falar dos partos de L.W., Nalla e dos gêmeos Lyric e Rhampage.

Qhuinn bateu na primeira porta ao se aproximar e não teve que esperar nem uma batida do seu coração para ter uma resposta.

– Entre! – a doutora Jane disse do lado oposto da porta.

A boa médica vestia roupas cirúrgicas e um par de Crocs. Sentada diante do computador na outra extremidade da bem equipada clínica, seus dedos voavam sobre o teclado enquanto ela atualizava o prontuário de alguém cabisbaixa; seus cabelos loiros curtos espetados como se ela tivesse passado a mão por eles durante horas.

– Um segundinho... – Ela apertou a tecla de “enter” e girou. – Ah, olá, papai. Como está?

– Ah, você sabe, imerso no amor.

– Aqueles seus bebês são maravilhosos. E olha que eu nem gosto de crianças.

O sorriso dela era acolhedor como uma torta de maçãs. Os olhos verde-montanha, por outro lado, eram afiados como raios laser.

– Graças a você, eles estão se saindo muito bem.

Houve uma deixa para o silêncio. Quando a conversa não evoluiu, ele se pôs a caminhar pela clínica, pois não conseguia ficar parado. Deu uma espiada nos equipamentos estéreis e imaculados sobre os gabinetes de aço inoxidável, inspecionou a maca vazia sob as luzes usadas nas operações, ajeitando as calças.

A médica apenas ficou sentada no seu banquinho, calma e silenciosa, deixando que ele se debatesse com a sua mente. Quando o celular dela tocou, Jane deixou que caísse na caixa de mensagens sem nem ver quem poderia ser.

– Provavelmente estou errado – ele acabou concluindo. – Que porra sei eu, afinal?

A doutora Jane sorriu.

– Na verdade eu te acho um cara bem inteligente.

– Não sobre este tipo de coisa. – Com um pigarro, Qhuinn propôs a si mesmo que prosseguisse; ainda que a doutora Jane não parecesse estar com pressa, ele estava entediando a si mesmo. – Olha só... eu amo a Layla.

– Claro que sim.

– E quero o melhor pra ela. Ela é a mãe dos meus filhos. Quero dizer, além de Blay, ela é a minha companheira por causa das crianças.

– Com certeza.

Cruzando os braços diante do peito, ele parou de andar e empostou-se de frente à doutora Jane.

– Não estou dizendo que sei alguma coisa sobre fêmeas. Coisas como os seus humores e por aí vai. Só que... Layla tem chorado muito. Quero dizer, ela tenta esconder isso de mim e do Blay, mas... toda vez que vou vê-la, encontro bolas de lenços de papel no cesto de lixo, e seus olhos estão brilhantes demais, o rosto, corado. Ela sorri, mas o sorriso nunca passa da superfície. Os olhos dela... são uma tragédia de merda. E... e eu não sei o que fazer, só sei que isso não está certo.

A médica assentiu.

– Como ela se porta com as crianças?

– É fantástica, pelo que posso ver. É totalmente devotada a eles, e eles estão crescendo. Na verdade, o único momento em que a vejo meio que feliz é quando os têm nos braços. – Pigarreou novamente. – Então, o que estou imaginando... ou perguntando, sei lá, é se as fêmeas gestantes, depois que não estão mais grávidas, se elas não...

Jesus, ele merecia todo tipo de prêmio por saber se explicar tão bem. E os termos técnicos com os quais se debatia? Praticamente estava a um passo de receber o título de doutor em Medicina, assim como Jane.

Cacete.

Mas pelo menos a doutora Jane parecia reconhecer que aquele avião conversacional estava ficando sem pista para decolar.

– Acho que está querendo me perguntar a respeito de depressão pós-parto. – Após vê-lo assentir, ela prosseguiu: – Posso lhe afirmar que não é incomum entre os vampiros, e que pode ser incapacitante. Conversei com Havers a respeito disso antes, e estou muito feliz que tenha vindo me procurar para tratar do assunto. Às vezes, uma mãe recente sequer está ciente de que isso pode se tornar um problema.

– Não existe nenhum exame... ou um... sei lá.

– Existem algumas maneiras diferentes de avaliar a questão, e o comportamento é uma delas. Claro que posso ir conversar com ela, e também posso fazer alguns exames de sangue para avaliar os níveis hormonais. E, sim, existem muitas coisas que podemos fazer para tratar dela e dar-lhe o apoio necessário.

– Não quero que Layla pense que estou agindo pelas costas dela nem nada assim.

– O que é totalmente compreensível. Mas tudo bem, porque eu pretendia mesmo subir até lá para dar uma olhada nela e nos bebês. Posso abordar o tema como se fosse parte de uma rotina. Nem terei que citar seu nome.

– Você é a melhor.

Com o assunto resolvido, ele supôs que era hora de voltar para junto do seu companheiro e para o torneio de bilhar. Mas não saiu. Por algum motivo, não conseguia.

– Não é sua culpa – garantiu a doutora Jane.

– Eu a engravidei. E se o meu... – Ok, ela era médica, mas Qhuinn ainda não queria pronunciar a palavra esperma perto dela. O que era loucura. – E se a minha metade for a causa...

A porta se abriu, e Manny enfiou a cabeça pela abertura.

– Ei, está pronta...? Opa, desculpem.

– Estamos quase terminando aqui. – A doutora Jane sorriu. – E você não nos viu juntos.

– Pode deixar. – Manny bateu na soleira. – Se eu puder ajudar de alguma maneira, é só avisar.

E lá se foi o cara, como se nunca tivesse aparecido ali.

A doutora Jane se levantou e se aproximou dele. Era mais baixa do que Qhuinn, e sua estrutura nem se comparava aos quase 140 quilos de músculos masculinos. Mas ela parecia pairar acima dele; a autoridade na voz e nos olhos dela era exatamente o que ele precisava para acalmar seu lado irracional.

Quando encostou a mão no braço dele, sua expressão estava firme.

– Não é sua culpa. Esse, às vezes, é o curso da natureza em algumas gestações.

– Fui eu quem colocou aqueles bebês dentro dela.

– Sim, mas imaginando que este seja um caso de os hormônios se autorregularem após o parto, não há ninguém para culpar. Além disso, você agiu bem ao vir até aqui, e também pode ajudá-la simplesmente conversando com ela e lhe dando o tempo e o espaço necessários para que ela também converse com você. Para ser sincera, eu já havia notado que ela não tem descido para as refeições. Acho que precisamos encorajá-la a se juntar ao resto de nós, para que ela sinta o quanto estamos disponíveis para ampará-la.

– OK. Certo, então.

A doutora Jane franziu a testa.

– Posso lhe dar um conselho?

– Por favor.

Ela o apertou no braço.

– Não se sinta responsável por algo sobre o qual não tem controle algum. Isso é um convite ao estresse que acabará deixando-o loucamente infeliz. Sei que é mais fácil falar do que fazer, mas tente se lembrar disso, está bem? Eu o vi acompanhá-la a cada estágio da gestação. Não houve nada que você não tenha feito por ela ou que não faria por ela, e você é um pai fantástico. Somente coisas boas o esperam, eu prometo.

Qhuinn inspirou fundo.

– Certo.

Mesmo quando sua preocupação persistiu, ele se lembrou de que, durante a gestação de Layla, descobrira que podia confiar na doutora Jane. A médica o ajudara a trilhar a estrada da vida e da morte, e nunca o decepcionara, nunca deixara que se desgarrasse. Tampouco mentira para ele e lhe dera maus conselhos.

– Vai ficar tudo bem – ela prometeu.

Infelizmente, como pôde-se perceber mais tarde, a boa médica estava errada.

Mas ela não tinha controle algum sobre o destino.

Nem ele.


CAPÍTULO 4

O bebê estava arruinado. Tudo o que detinha não passava de uma versão modificada e horrenda das feições de Hharm; o lábio superior era todo errado, como o de uma lebre.

Hharm largou o bebê no piso sujo da caverna, e a coisa não emitiu som algum ao aterrissar, os braços e as pernas mal se moviam, as carnes azuladas e acinzentadas, o cordão ainda o unia à fêmea. Iria morrer, assim como deveriam todos os resultados contra as regras da natureza e do parto – e essa consequência não era causa de indignação.

O fato de Hharm ter sido ludibriado, porém, o era. Desperdiçara dezoito meses, uma quantidade enorme de horas, aquele momento de esperança e de felicidade numa monstruosidade insuportável. E o que ele sabia com certeza? Que não era culpa sua.

– O que você fez? – exigiu saber da fêmea.

– Um filho! – Ela arqueou as costas em agonia renovada. – Eu lhe dei...

– Uma maldição. – Hharm se levantou em toda a sua altura. – O seu ventre é impuro. Ele corrompeu o presente do meu sêmen e produziu isso...

– O seu filho...

– Olhe para ele! Veja com seus olhos! Isso é uma abominação!

A mulher se esforçou e suspendeu a cabeça.

– Ele é perfeito, ele é...

Hharm empurrou o bebê com a bota, fazendo com que ele movesse os pequenos membros e emitisse um gritinho fraco.

– Nem mesmo você pode negar o que está diante de nós!

Os olhos injetados dela se afixaram no bebê, e depois se arregalaram...

– Isso é...

– Você fez isso – ele anunciou.

A ausência de argumentos por parte dela foi uma rendição inevitável, visto que o defeito não podia ser negado. Então ela gemeu como se ainda estivesse em trabalho de parto, os dedos ensanguentados arranharam a terra fria, as pernas tremeram quando se afastaram mais. Depois de mais esforços, algo saiu da mulher, e ele pensou que talvez fosse mais um. De fato, seu coração se viu cheio de otimismo enquanto ele rezava para que o primeiro fosse exhile dhoble, o amaldiçoado de um par de gêmeos.

Infelizmente, não. Era apenas algo do interior da fêmea, talvez o estômago ou o intestino dela.

E o bebê prosseguiu chorando, o peito se estufando e murchando com pouco efeito.

– Você deve morrer aqui, assim como ele – Hharm disse sem cuidado algum.

– Eu não...

– Suas entranhas estão saindo.

– O bebê é... – ela hesitou. – Ele...

– É uma abominação da natureza contra o desejo da Virgem Escriba.

A fêmea se calou e relaxou como se o processo da expulsão tivesse chegado ao fim, e Hharm aguardou pelo ataque em que a alma dela se desprenderia do corpo. Só que ela continuou a respirar e olhar para ele... e a existir. Que espécie de truque era aquele? A ideia de que ela não iria ao Dhunhd por conta disso era um insulto.

– Isso é obra sua – ralhou com a fêmea.

– Como sabe que não foi a sua semente que...

Hharm apoiou a bota na garganta dela e a pressionou, interrompendo-lhe as palavras. Quando uma onda de ódio induziu o corpo do guerreiro rumo a uma ação mortal, somente a possibilidade de que esse evento fosse um castigo por suas ações prévias o impediu de esmagar-lhe o pescoço.

Ela tem que pagar, foi seu pensamento abrupto. Sim, a culpa era dela, e o desapontamento causado necessitava de uma reparação.

Sibilando, ele revelou as presas.

– Deixarei que viva para que possa criar esta monstruosidade e que seja vista com ele. Esta é sua maldição por me amaldiçoar: ele ficará sempre em seu cangote, como um amuleto ou uma danação, e se eu descobrir que essa coisa morreu, eu a perseguirei e a esquartejarei centímetro a centímetro. Depois matarei a sua irmã, toda a prole dela e os seus parentes.

– O que está dizendo?!

Hharm se inclinou para baixo, o latejar no rosto e na cabeça parecia muito familiar.

– Ouviu minhas palavras. Conhece meu desejo. Desafie-o por sua conta e risco.

Quando ela se acovardou, o Irmão se afastou e fitou a sujeira proveniente do parto, a fêmea patética, aquele resultado horrendo – e cortou o ar com a mão, como se os apagasse da linha do tempo. Em meio aos bramidos da tempestade e à extinção da fogueira, ele foi até o casaco de peles.

– Você arruinou o meu filho – reclamou ao passar o peso das peles sobre os ombros. – O seu castigo é criar esse horror como declaração do seu fracasso.

– Você não é Rei – ela rebateu, fraca. – Não pode ordenar nada.

– Este é um serviço comunitário que faço aos machos, meus camaradas. – Apontou o dedo na direção do recém-nascido choroso. – Com isso grudado ao seu quadril, ninguém mais se deitará com você para sofrer de maneira similar.

– Não pode me forçar a isso!

– Ah, posso, sim, e o farei.

Ela era uma fêmea mimada e desafiadora por natureza, e fora isso o que o atraíra nela a princípio – tivera que lhe ensinar o que fazer e as orientações foram bem interessantes por um tempo. De fato, houvera apenas uma instância em que ela tentara exercer domínio sobre ele. Uma vez e nunca mais.

– Não me teste, fêmea. Já fez isso antes e deve se lembrar do resultado.

Quando ela empalideceu, ele assentiu na sua direção.

– Sim. Isso mesmo.

Ele quase a matara na noite em que lhe mostrara que, enquanto ele ficaria com que desejasse, quando e onde o quisesse, ela jamais teria permissão para se deitar com outro macho enquanto estivesse tangivelmente associada a ele. Foi logo depois disso que ela decidiu que a única possibilidade de prendê-lo seria dando-lhe o filho que ele almejava e, ao mesmo tempo, ele começara a pensar em seu legado.

Por azar, ela fracassara em seus objetivos.

– Eu odeio você – ela gemeu.

Hharm sorriu.

– O sentimento é mútuo. E mais uma vez lhe digo que é melhor garantir a sobrevivência dessa coisa. Se eu descobrir que o matou, revidarei a morte dele nas suas carnes e em toda a sua linhagem.

Dito isso, ele cuspiu duas vezes junto aos pés dela: uma por causa da fêmea e outra pelo bebê. Depois se afastou enquanto ela o chamava, e o bebê desertado berrava contra o frio.

Do lado de fora, a tempestade prosseguia, intensa, a neve rodopiante o cegava e depois diminuiu para uma revoada de pássaros que revelava todo o cenário. No vale logo abaixo, montanhas se elevavam às margens de um lago, a neve acumulada sobre a água congelada que formava ondas nos meses mais quentes. Estava tudo escuro, gélido e inerte, mas ele se recusava a encontrar um mau presságio na imagem à sua frente.

Com a mão usada para a adaga comichando, e a hostilidade dentro dele acelerando como um corcel disparado, sugeriu a si mesmo que não atentasse para esse resultado.

Encontraria outro ventre.

Em algum lugar, havia uma fêmea que lhe daria o legado merecido e necessário. Ele a encontraria e a faria crescer com a sua semente.

Existiria um filho apropriado para ele. Hharm jamais aceitaria qualquer outro resultado.


CAPÍTULO 5

Quando se aproximou da entrada da caverna sagrada da Irmandade, Tohr se esgueirou pelo interior úmido, e uma vez ali dentro, o cheiro de terra e de uma fonte de chamas distante irritou suas narinas. Os olhos se ajustaram de imediato, e quando ele seguiu em frente, aquietou o movimento de seus coturnos. Não queria ser ouvido, mesmo que sua presença fosse notada logo em seguida.

Os portões não estavam muito longe e eram constituídos por grossas barras de ferro, cuja espessura era semelhante a de um antebraço de guerreiro; as barras de ferro eram altas como árvores e possuíam uma cobertura em malha de aço, a fim de impedir a desmaterialização. Tochas sibilavam e tremeluziam em cada lado e, além, ele via o começo do grande corredor que conduzia mais para dentro da terra.

Parando diante da enorme barreira, pegou a chave de cobre e não sentiu remorso algum por ter roubado o objeto da gaveta da escrivaninha ornamental de Wrath. Pediria desculpas pela infração mais tarde.

E também pelo que faria na sequência.

Tohr destrancou o mecanismo, empurrou o peso colossal, entrou e voltou a trancar o portão atrás de si. Caminhando à frente, seguiu o caminho natural, expandido por talhadeiras e músculos fortes, e depois adornado por prateleiras. Sobre as diversas tábuas, centenas e centenas de jarros alimentavam um jogo de luz e sombras.

Os receptáculos eram de todos os formatos e tamanhos, e vinham de diferentes eras, desde a antiga até a moderna, mas o que havia dentro de cada um deles era o mesmo: o coração de um redutor. Desde o princípio da guerra contra a Sociedade Redutora, ainda no Antigo País, a Irmandade vinha marcando as mortes dos inimigos ao tomar posse dos jarros das vítimas e trazendo-os até ali para aumentar a coleção.

Em parte como troféu, em parte como um “foda-se, Ômega”, aquilo era um legado. Era um orgulho. Uma expectativa.

E talvez deixasse de sê-lo. Havia poucos e esparsos redutores nas ruas de Caldwell e em outras paragens no momento, portanto deveriam estar próximos.

Tohr não sentiu nenhuma alegria ante tal conquista. Mas talvez fosse em virtude do terrível aniversário dessa noite.

Era difícil sentir qualquer outra coisa que não a perda de Wellsie no dia que já fora seu aniversário.

Após uma curva sutil, ele parou. Mais adiante, a cena mais parecia saída de um filme que não se decidia se era Indiana Jones, Grey’s Anatomy ou Matrix. No centro das antigas paredes de pedra, tochas acesas e jarros despareados e empoeirados, um amontoado de equipamentos médicos piscando e emitindo sinais interferia com um corpo sobre uma maca. E ao lado do prisioneiro? Dois imensos vampiros cobertos da cabeça aos pés com couro preto e armas negras.

Butch e V. eram o Frick e Frack da Irmandade – o ex-policial da divisão de homicídios dos humanos e o filho da Criadora da raça, o bom garoto católico e o depravado sexual, o viciado em roupas e o czar da tecnologia –, unidos pela devoção partilhada pelo Red Sox de Boston e respeito mútuo e afeto que não conheciam limites.1

V. percebeu a presença de Tohr primeiro, virando com tanta rapidez que seu cigarro aceso espalhou cinzas pelo ar.

– Ah, inferno. Não. De jeito nenhum, porra! Você vai dar o fora daqui!

Essa opinião, a despeito do volume pronunciado, foi fácil de ignorar, pois Tohr se concentrava no pedaço de carne sobre a maca. Xcor estava deitado ali, com tubos entrando e saindo de si como se ele fosse a bateria de um carro prestes a receber uma recarga, com a respiração regular... Não, espere, a respiração não estava regular.

V. deteve Tohr, aproximando-se dele e ainda um pouco mais. E o que mais? O Irmão sacara seu atirador poodle – e o cano da 40 mm apontava diretamente para o rosto de Tohr.

– Tô falando sério, meu irmão.

Tohr olhou para o prisioneiro por cima do ombro largo. E se viu sorrindo.

– Ele está acordado.

– Não, ele não est...

– A respiração dele mudou. – Tohr apontou para o peito nu. – Veja.

Butch franziu o cenho e se aproximou do prisioneiro.

– Ora, ora, ora... Hora de acordar, filho da mãe.

V. virou-se para trás.

– Filho da puta.

Mas a arma não se moveu, tampouco Tohr. Por mais que quisesse Xcor, ele acabaria recebendo uma bala na garganta se desse mais um passo: V. era o menos sentimental dos irmãos e tinha a paciência de uma cascavel.

Naquele momento, os olhos de Xcor piscaram. Na luz tremeluzente das tochas, eles pareciam negros, mas Tohr se lembrava de que eles eram azuis. Não que isso importasse.

V. colocou a cara no seu caminho, os olhos de diamante eram como adagas.

– Este não vai ser o presente de aniversário que vai dar para a sua shellan morta.

Tohr arrastou os lábios para trás das presas.

– Vai se foder.

– Isso não vai acontecer. Pode me xingar o quanto quiser, mas não. Você sabe como as coisas vão acontecer e ainda não está na sua hora.

Butch sorriu para o prisioneiro.

– Estávamos esperando que se juntasse à festa. Aceita uma bebida? Talvez um misto de nozes antes ter que ajeitar a poltrona para a decolagem? Não há por que te mostrar as saídas de emergência. Você não tem que se preocupar com isso.

– Vamos, Tohr – V. disse. – Agora.

Tohrment expôs as presas, mas não para o irmão.

– Seu bastardo, vou te matar...

– Não, nada disso. – V. passou o braço ao redor do bíceps de Tohr, e faltou pouco para começarem a dançar uma quadrilha. – Lá fora...

– Você não é Deus...

– Nem você, motivo pelo qual está de saída.

Nos recessos da mente, Tohr sabia que o filho da mãe tinha razão. Ele não estava nem meio racional no momento – e P.S., que V. se fodesse por se lembrar que noite era aquela.

Sua amada shellan, seu primeiro amor, completaria duzentos e vinte e seis anos. E teria um filho dos dois nos braços.

Mas o destino se opusera.

– Não me obrigue a atirar em você – V. alertou com aspereza. – Venha, meu irmão. Por favor.

O fato de as duas últimas palavras terem saído da boca de V. foi o que surtiu efeito. A cena era tão chocante que desarmou Tohr de sua loucura e raiva.

– Venha, Tohr.

Dessa vez, Tohr se permitiu ser conduzido, à medida que seu grande esquema desinflanva; o silêncio absoluto depois de sua loucura o fazia tremer dentro da própria pele. Que porra estivera fazendo? Mas que cacete?

Sim, recebera o privilégio de matar Xcor com um decreto da realeza, mas só quando recebesse autorização expressa de Wrath. E isso ainda não acontecera explicitamente.

Tinham evitado um desastre de proporções traidoras.

Seria como trocar de lugar. Um traidor morto por outro bem vivo.

Quando chegaram aos portões que Tohr havia destrancado para conseguir acesso ao prisioneiro, V. estendeu a mão enluvada.

– Chave.

Tohr não olhou para o irmão ao tirar o objeto da jaqueta de couro e entregá-la. Depois de uns cliques e rangidos, o caminho estava livre, e Tohr saiu sem estar convencido, com as mãos no quadril, os coturnos chutando a terra, a cabeça pensa.

Quando ouviu uma nova sequência de rangidos e cliques, deduziu que estava sendo trancado do lado de fora, sozinho. Mas V. estava bem ao seu lado.

– Eu prometo – o irmão disse – que você, e apenas você, vai mattá-lo.

Tohr se perguntou se isso bastaria. Ponderou se seria o bastante. Será que algum dia encontraria satisfação?

Antes de chegarem à boca da caverna, Tohr parou.

– Às vezes... a vida não é nada justa.

– Não. Não é.

– Odeio isso. Odeio pra caralho. Passo por... períodos, não apenas noites, mas semanas, às vezes até um ou dois meses... em que me esqueço de tudo. Mas a merda sempre volta e, depois de um tempo, não dá mais pra segurar. Não dá. – Bateu na lateral da cabeça com o punho. – Tem esse verme aqui dentro, e sei que matar Xcor não vai me distrair por mais do que dez minutos. Mas numa noite como esta, eu aceitaria até isso.

Sucedeu-se o som de um fósforo sendo riscado quando V. acendeu um cigarro.

– Não sei o que dizer, meu irmão. Eu diria pra você rezar, mas não tem mais ninguém lá em cima te ouvindo.

– Não tenho certeza se a sua mãe nos ouviu algum dia. Sem ofensas.

– Não ofendeu. – V. exalou. – Confie em mim.

Tohr se concentrou na saída da caverna, e quando tentou respirar, sentiu uma estranha exaustão.

– Estou cansado de lutar sempre a mesma briga. Desde que Wellsie foi... assassinada... sinto como se um pedaço meu nunca tivesse cicatrizado, e não aguento essa dor nem mais um segundo. Nem mais um maldito segundo. Mesmo que ela migrasse para algum outro lugar, já seria melhor.

Estabeleceu-se um longo silêncio entre eles, abafado apenas pelo urro dos ventos invernais que entravam na caverna silenciosa.

No fim, V. praguejou.

– Bem que eu gostaria de poder te ajudar, meu irmão. Quero dizer, se você precisar de um abraço confortador... eu devo conseguir alguém pra te dar uns tapinhas nas costas.

Tohr sacudiu a cabeça quando o lábio superior se retorceu num sorriso.

– Isso foi quase engraçado.

– Pois é, tentei pegar leve. – V. exalou de novo. – Era isso ou eu atirava em você, e odeio preencher a papelada burocrática do Saxton, sabe?

– Sei o que quer dizer. – Tohr esfregou o rosto. – Verdade...

Os olhos diamantinos de V. mudaram de foco.

– Apenas esteja ciente que lamento. Você não merece nada disso. – Certa mão pesada pousou no ombro de Tohr e apertou-o. – Se eu pudesse tirar a sua dor, é o que faria.

Quando Tohr piscou rápido, pensou que era uma coisa boa que V. não fosse de abraçar, ou então teriam um maldito colapso emocional acontecendo ali.

Do tipo de colapso que um macho não retornaria intacto.

Mas, pensando bem, ele estava mesmo intacto agora?


BOATE SHADOWS, CENTRO DE CALDWELL


Trez Latimer sentia-se como uma espécie de divindade ao olhar através da parede de vidro do escritório no segundo andar da sua boate. Abaixo, no espaço aberto do armazém convertido, uma multidão de humanos excitados estabelecia um padrão de atração e desdém num mar tumultuado de lasers púrpura e batidas pesadas de baixo.

Em grande escala, sua clientela era composta de millenials, os nascidos entre 1980 e 2000. Definidos pela internet, pelo iPhone, pela ausência de oportunidades econômicas – ao menos segundo a mídia humana –, era um grupo demográfico de moralistas perdidos, comprometidos em salvar uns aos outros, com a preservação dos direitos de todos, e a promoção de uma falsa utopia de pensamento liberal que fazia o macarthismo parecer atenuado.

Mas também eram, da maneira dos jovens, esperançosos sem fundamento.

E como ele os invejava.

Enquanto se esbarravam e colidiam uns nos outros, ele testemunhava o êxtase em seus rostos, o otimismo exuberante de que encontrariam o verdadeiro amor e a felicidade naquela noite mesmo – a despeito de todas as outras noites nas quais vieram até a sua boate e a aurora chegara, expulsando-o com nada além de exaustão, uma nova DST, e mais um fardo de vergonha e dúvida enquanto se perguntavam o que tinham feito, e com quem.

Ele suspeitava, contudo, que, para a maioria, a cura de tamanha angústia era apenas cerca de duas horas de sono, um venti latte da Starbucks e uma injeção de penicilina.

Quando se é jovem assim, quando ainda é preciso enfrentar os desafios que não se consegue sequer começar a compreender, a sua resistência não tem limites.

E era por isso que o vampiro desejaria poder trocar de lugar com eles.

Era estranho colocar os humanos em qualquer tipo de pedestal. Sendo um Sombra de mais de duzentos anos de vida, Trez há tempos considerava aqueles ratos sem cauda algo inferior, um tumulto inconveniente no planeta, bem como formigas na cozinha ou camundongos no porão. Só que não se podia exterminar os humanos. Sujeira demais. Melhor tolerá-los do que arriscar a exposição da espécie ao assassiná-los só para liberar vagas de estacionamento, diminuir as filas nos supermercados e as notificações do Facebook.

No entanto, ali estava ele, ansioso por trocar de lugar com qualquer um deles, mesmo que fosse por uma ou duas horas.

Improcedente.

Mas, pensando bem, eles não mudaram. Quem mudou foi ele.

Minha rainha, está na hora de partir? Conte-me se for.

Enquanto as lembranças o intimidavam dentro do cérebro, ele cobriu os olhos e pensou: Não, Deus. De novo, não. Não queria voltar para a clínica da Irmandade... para o lado do leito da sua amada Selena, morrendo por dentro enquanto ela expirava de verdade.

A verdade, contudo, era que ele jamais abandonara esses eventos, mesmo que o calendário sugerisse o contrário. Depois da passagem de mais de um mês, ele ainda se lembrava de cada mínimo detalhe da cena, desde a respiração torturada dela até o pânico no olhar enquanto lágrimas rolavam por ambos os rostos.

Sua Selena fora acometida por uma doença que raramente afetava membros da classe sagrada. Em todas as gerações de Escolhidas, algumas tiveram a Prisão, que era um jeito horrível de morrer: a mente era deixada viva na casca congelada do corpo, sem nenhuma escapatória, nenhum tratamento para ajudar, ninguém para salvar.

Nem mesmo o macho que a amava mais do que a própria vida.

Quando o coração de Trez tropeçou no âmago do peito, ele abaixou as mãos, meneou a cabeça e tentou se reconectar com a realidade. Estivera se debatendo contra esses episódios invasivos, e eles vinham se tornando mais frequentes em vez de menos – o faziam se preocupar com sua sanidade. Chegou a ouvir o ditado de que “o tempo cura as feridas” e, droga, talvez aquilo fosse verdade para outras pessoas. Para ele? Seu luto se transformara de dor incandescente, no começo, a uma agonia tão ardorosa que rivalizava com as chamas da pira funerária, até aquelas reminiscências crônicas que pareciam girar cada vez mais rápido ao redor do esteio aberto da sua perda.

Sua própria voz ecoava na cabeça: Eu entendi direito? Você quer que isto... termine?

Quando os momentos finais de Selena chegaram, ela já não conseguia mais falar. Tiveram que se apoiar num sistema de comunicação pré-combinado que supunha o controle dela sobre as pálpebras até quase o fim: uma piscada para não... duas para sim.

Você quer que isto... termine?

Ele soubera qual seria a resposta dela. Lera-o na expressão exausta, distante e enfraquecida dela. Mas aquela fora uma das vezes na vida em que se queria ter a mais absoluta certeza.

Ela piscara uma vez. E de novo depois.

E ele estivera ao lado dela quando as drogas pararam seu coração e lhe conferiram o alívio de que ela necessitava ao ser transportada.

Em todos os seus anos, ele jamais imaginara aquele tipo de sofrimento. Nas duas partes. Ele não teria conseguido criar uma morte pior saída de qualquer pesadelo, e não poderia ter imaginado que teria que assentir para Manny, autorizando-o a administrar o medicamento enquanto gritava internamente, pois seu amor se esvaía e o deixava sozinho pelo resto de suas noites.

O único conforto era que o sofrimento dela chegara ao fim.

A única realidade era que o seu tinha apenas começado.

No período subsequente, encontrou conforto no fato de que preferiria ser o responsável por sentir a ausência dela, e não o contrário. Mas, conforme o tempo prosseguiu, acabou usando demais esse antídoto, pois era o único que possuía, e agora ele já não surtia mais efeito.

Portanto, não havia nada para reavivá-lo. Tentou beber, mas o álcool só servia para ele perder o pouco controle que tinha sobre as lágrimas. Não dava a mínima para a comida. Sexo era algo completamente fora de questão. E ninguém o deixava lutar – pois tanto os Irmãos quanto iAm reconheciam seu estado desgovernado.

Portanto, o que lhe restava? Nada, a não ser se arrastar ao longo dos dias e das noites, e rezar para o mais básico dos alívios: um respiro desimpedido, um período de tranquilidade mental, uma hora de sono sem perturbações.

Ao estender a mão, tocou o painel de vidro inclinado que era a sua janela para o que ele considerava ser o outro mundo, o exterior do seu inferno isolado. Engraçado que ele agora considerava “outro” o que um dia fora o mundo “real”... E mesmo sem a separação das espécies, da idade, do seu poleiro acima da confusão da boate, ele se sentia tão à parte de todos eles.

Tinha a sensação de que sempre permaneceria afastado de todos.

E, francamente, ele simplesmente não poderia continuar assim.

A dor o destroçara e, se não fosse pelo fato de que os suicidas tinham a entrada negada no Fade, ele teria metido uma bala do seu 48 mm na cabeça horas após a morte dela.

Pensou que não suportaria outra noite assim.

– Por favor... me ajude.

Trez não fazia a mínima ideia de quem falava com ele. Do lado dos vampiros, a Virgem Escriba já não existia mais – e no seu atual estado mental ele compreendia por completo o motivo de ela ter largado o microfone e saído do palco de sua criação. E, como um Sombra, ele fora criado para adorar sua Rainha – o único problema era que ela estava vinculada ao seu irmão, e rezar para a cunhada parecia muito estranho.

Uma declaração autêntica de que toda aquela coisa espiritual não passava de um monte de asneira.

E, mesmo assim, seu sofrimento era tão grande que ele tinha que tentar buscar ajuda.

Inclinando a cabeça para trás, olhou para o teto baixo preto e despejou seu coração partido para o mundo:

– Eu só a quero de volta. Eu só... quero Selena de volta. Por favor... se existir alguém aí em cima, me ajude. Devolva-a para mim. Não me importo em que forma ela estiver... Eu só não consigo mais fazer isto. Não consigo mais viver assim nem pela porra de uma única noite.

Claro que não houve resposta. E ele se sentiu um completo idiota.

Pois é, como se a vastidão do universo lhe iria despejar outra coisa que não apenas um meteoro?

Além disso, será mesmo que existia um Fade? E se ele estivesse apenas alucinando durante a purificação e somente imaginara ter visto a sua Selena? E se ela só tivesse simplesmente morrido? Como se... tivesse apenas deixado de existir? E se todas as bobagens a respeito de um lugar celestial aonde nossos amados iam e esperavam pacientemente por nós não passasse de um mecanismo de defesa criado por aqueles deixados para trás mergulhados no tipo de agonia em que ele se encontrava?

Uma falácia mental para cuidar de um ferimento emocional.

Reajustando a cabeça, voltou a fitar a multidão abaixo...

Pelo vidro, o reflexo de uma imensa figura masculina parada logo atrás fez com que ele se girasse e levasse a mão para a arma que mantinha enfiada na lombar. Mas então reconheceu o indivíduo.

– O que você está fazendo aqui? – exigiu saber.


Dois patinadores suíços, Werner Groebli e Hans Mauch, cujos nomes artísticos eram Frick e Frack, nutriram uma parceria duradoura. Posteriormente, seus nomes se tornaram gíria para designar duas pessoas que trabalham juntas e se dão bem. (N.T.)


CAPÍTULO 6

A campina de 20 mil metros quadrados se elevava de uma estradinha deserta como oriunda do olhar crítico de um artista; todos os aspectos da colina e do vale pareciam sujeitos às regras dos padrões estéticos agradáveis. No alto do suave aclive coberto de neve, como uma coroa no topo da cabeça de um governante benevolente, um imenso bordo estendia seus galhos em uma áurea tão perfeita que mesmo a esterilidade do inverno não conseguia diminuir sua beleza.

Layla se desmaterializou até a base da colina, partindo da mansão, e subiu a pé até a árvore. Os chinelos usados no quarto não eram páreo para o chão congelado, o vento frio atravessava o roupão, e os cabelos se soltavam da trança, flanando ao seu redor.

Quando chegou ao cume, olhou para baixo, para as raízes do tronco glorioso dentro da terra.

Fora ali, pensou ela.

Ali, na base daquele bordo, ela vira Xcor pela primeira vez, convocada por alguém que ela acreditara ser um soldado de valor na guerra, alguém que ela alimentara na clínica da Irmandade... Alguém que a Irmandade deixara de lhe informar que, na verdade, era um inimigo e não amigo.

Quando o macho a chamara para que ela lhe provesse a veia, Layla não pensou em nada além do seu dever sagrado.

Por isso, transportara-se até ali... e perdera um pedaço de si no processo.

Xcor estivera à beira da morte, ferido e enfraquecido, e mesmo assim ela reconhecera sua força, ainda que em estado debilitado. Como poderia não tê-la notado? Era um macho tremendo, grosso no pescoço e no peito, forte nos braços, poderoso no corpo. Ele tentara recusar sua veia porque – ela gosta de acreditar – enxergara-a como uma inocente no conflito entre o Bando de Bastardos e a Irmandade da Adaga Negra, e quisera mantê-la afastada da situação. No fim, contudo, ele cedera, garantindo que ambos seriam a presa de uma ordem biológica que desconhecia a razão.

Ela inspirou fundo, observou a árvore e viu, através dos galhos desnudos, o céu noturno.

Depois que a verdadeira identidade de Xcor veio à tona, ela confessou a Wrath e à Irmandade suas ações, lacrimosamente clamando por perdão. E era um testemunho do rei e dos machos que o serviam o fato de a terem perdoado, e sem castigos, por ter prontamente ajudado o inimigo.

Em troca, era um parco testemunho da sua parte que ela tivesse voltado para junto de Xcor depois disso. Associou-se a ele. Tornou-se emocionalmente envolvida com ele.

Sim, existiu uma coerção inicial da parte dele na época, mas a verdade era que, mesmo que ele não a tivesse forçado? Sua vontade teria sido estar com ele. E o pior? Quando o relacionamento chegou ao fim, fora ele quem interrompera os encontros. Não ela.

Na verdade, ela o estaria vendo agora – e a dor da perda que sentia pela ausência dele era tão incapacitante quanto a culpa.

E isso foi antes ainda de ele ter sido capturado pela Irmandade.

Ela sabia exatamente onde ele havia sido aprisionado porque testemunhara suas condições naquela caverna... Sabia o que os Irmãos planejavam fazer com Xcor assim que ele despertasse.

Se ao menos houvesse um modo de salvá-lo... Ele nunca tinha sido cruel com ela, nunca a tinha ferido... jamais a havia abordado sexualmente, apesar do desejo que o habitava. Ele se manteve paciente e gentil... pelo menos até se afastarem.

Ele, entretanto, havia tentado matar Wrath. E essa traição era passível de punição com a morte...

– Layla?

Girando, ela tropeçou e caiu de lado, quase incapaz de se agarrar ao tronco áspero do bordo. Quando sentiu uma dor na palma, sacudiu-a na tentativa de apaziguá-la.

– Qhuinn! – exclamou.

O pai de seus filhos deu um passo à frente.

– Você se machucou?

Com um xingamento, ela limpou os arranhões, tirando a sujeira. Santa Virgem Escriba, como doía.

– Não, não. Estou bem.

– Pegue. – Ele apanhou algo de dentro do bolso da jaqueta de couro. – Deixe-me ver.

Ela tremia quando Qhuinn avaliou-lhe a mão e depois a envolveu na bandana preta.

– Acho que você vai viver.

Será?, ela pensou. Não tenho tanta certeza.

– Você está congelando.

– Sério?

Qhuinn tirou a jaqueta e a posicionou sobre os ombros dela, e Layla se viu engolfada pelo tamanho e pelo calor.

– Venha, vamos voltar para a mansão. Você está tremendo...

– Não posso mais fazer isso – ela desabafou num rompante. – Não consigo mais.

– Eu sei. – Quando ela se retraiu de surpresa, ele sacudiu a cabeça. – Sei o que há de errado. Vamos pra casa pra conversar. Vai ficar tudo bem, prometo.

Por um momento, ela não conseguiu respirar. Como ele podia ter descoberto? Como podia não estar bravo com ela?

– Como você... – As lágrimas surgiram com rapidez, a emoção se sobrepôs a tudo. – Sinto muito. Eu sinto muito... Não era para ser assim.

Ela não soube se foi ele quem abriu os braços ou se foi ela quem se lhe agarrou ao peito, mas Qhuinn a abraçou com força, protegendo-a do vento.

– Tá tudo bem. – Ele massageava grandes círculos nas costas dela com a palma, acalentando-a. – Só precisamos conversar a respeito. Podemos fazer algumas coisas, tomar algumas providências.

Ela virou o rosto para o lado e fitou a campina.

– Eu me sinto tão mal.

– Por quê? Isso está fora do seu controle. Não pediu por isso.

Ela se afastou.

– Eu juro, não pedi. E não quero que você pense nem por um segundo que eu poria Lyric e Rhampage em perigo...

– Tá de brincadeira? Sério, Layla, você ama aqueles dois com tudo o que tem dentro de si.

– Amo mesmo. Eu te garanto isso. E amo você e Blay, o Rei e a Irmandade. Vocês são a minha família, vocês são tudo o que tenho.

– Layla, preste atenção. Você não está sozinha, entendeu? E como eu já disse, existem coisas que podemos fazer...

– Mesmo? De verdade?

– Sim. Na verdade eu estava falando sobre isso antes de vir para cá. Eu não queria que pensasse que eu a estava traindo...

– Ah! Qhuinn! Eu sou a traidora! Sou eu quem está errada...

– Pare. Você não é. Vamos cuidar disso juntos. Todos nós.

Layla levou as mãos ao rosto, tanto a que estava com o curativo como a que estava descoberta. Então, pela primeira vez desde o que parecia ser uma eternidade, ela exalou o ar, um bálsamo de calma substituindo o terrível fardo que dispunha sobre si.

– Tenho que contar uma coisa. – Levantou o olhar para ele. – Por favor, saiba que tenho me remoído de arrependimento e de tristeza. Juro que nunca tive a intenção de que isso acontecesse. Tenho me sentido tão só, me debatendo com a culpa...

– Culpa é algo desnecessário. – Esfregou os polegares sob os olhos dela. – Você tem que se livrar disso, porque não consegue evitar o modo como se sente.

– Não consigo, de verdade, não consigo mesmo... E Xcor não é mau, não é tão ruim quanto você acha que ele é. Juro. Ele sempre me tratou com cuidado e gentileza, e sei que ele não voltaria a ferir Wrath. Eu sei disso...

– O quê? – Qhuinn franziu o cenho e sacudiu a cabeça. – Do que você está falando?

– Por favor, não o mate. É como você disse, existe um modo de fazer isso dar certo. Talvez vocês possam libertá-lo e...

Qhuinn não recuou; na verdade, ele a empurrou para longe de si. E depois pareceu se debater para encontrar as palavras.

– Layla – ele pronunciou devagar. – Sei que não estou ouvindo direito e estou tentando... Você pode...

Aproveitando-se do momento para expor sua posição, Layla se apressou em falar:

– Ele nunca me machucou. Todas as noites em que o procurei, ele nunca me feriu. Ele providenciou um chalé para que eu ficasse em segurança, e sempre estávamos apenas nós dois. Nunca vi nenhum dos Bastardos...

Ela prosseguiu enquanto a expressão do guerreiro se transformava de confusão para... algo gélido que lhe suscitou as feições de um completo desconhecido.

Quando Qhuinn voltou a falar, a voz saiu inexpressiva.

– Você esteve se encontrando com Xcor?

– Eu me senti muito mal...

– Por quanto tempo? – ele estrepitou. Mas não a deixou responder. – Você foi ao encontro dele enquanto estava grávida dos meus filhos? Você se associou por vontade própria com um inimigo conhecido enquanto os meus benditos filhos estavam no seu ventre? – Antes que ela conseguisse lhe responder, ele levantou o indicador. – E você precisa pensar muito bem na resposta. Não há volta para isto, e é melhor dizer a verdade. Se eu descobrir que mentiu pra mim, vou te matar.

Quando o coração de Layla começou a bater forte no peito, deixando-a tonta, seu único pensamento foi...

Você vai me matar de qualquer maneira.

De volta à shAdoWs, Trez guardou a arma e tentou retornar à realidade.

– E então? – ele inquiriu. – O que está fazendo aqui, ainda mais sem o seu poliéster especial do Tony Manero?

Lassiter, o Anjo Caído, sorriu de um modo que não contemplou seus estranhos olhos coloridos sem pupila; a expressão afetou apenas a parte inferior do rosto.

– Ah, você sabe, ternos de passeio estão ultrapassados para mim.

– Partindo para os anos 1980? Não tenho nada neon pra emprestar pra você.

– Não precisa, tenho outra fantasia para usar.

– Que bom pra você. Assustador pro resto de nós. Só me diz que não vai usar o maiô do Borat.

Quando o anjo não respondeu de pronto, Trez sentiu como se as garras de Fred Krueger estivessem passando pela sua nuca. Normalmente, Lassiter era o tipo de cara tão alegre que a maioria das pessoas não sabia se decidir entre meter uma bala nele para tirar todo mundo de um estado miserável... ou simplesmente apanhar uma lata de Coca-Cola e um saco de pipoca para assistir ao show.

Porque, mesmo quando ele irrita, a situação é sempre muito divertida.

Mas não essa noite. O olhar bizarro estava tão leve e espumoso quanto um bloco de granito, e o imenso corpo dele estava absolutamente imóvel, nenhum item de ouro nos pulsos ou pescoço, nos dedos ou orelhas, reluzia sob a luz baixa.

– Por que está brincando de estátua? – Trez murmurou. – Alguém trocou o lugar da sua coleção do My Little Pony de novo?

Incapaz de suportar o silêncio, Trez foi se sentar atrás da escrivaninha e começou a mexer em uma pilha de papéis.

– Está tentando ler minha aura ou alguma merda do tipo?

Não que para isso fosse necessário algum poder especial. Todos na mansão sabiam em que estado ele estava.

– Quero que vá jantar comigo amanhã à noite.

Trez levantou o olhar.

– Pra quê?

O anjo levou o tempo que quis para responder, seguindo devagar até o painel de vidro para encarar a multidão logo abaixo, no exato lugar em que Trez estava antes. Iluminado pela luz fraca, o perfil do anjo era o tipo de imagem que as fêmeas adorariam, com todas as proporções e os ângulos certos. Mas a cara de preocupação...

– Manda ver – Trez exigiu. – Já recebi uma vida inteira de más notícias. O que quer que seja, nada se compara ao que tenho passado.

Lassiter relanceou e deu de ombros.

– É só um jantar. Amanhã à noite. Sete horas.

– Eu não como.

– Sei disso.

Trez largou a pilha de faturas, de escala dos funcionários ou qualquer outra porra que o vinha mantendo ocupado, ainda que não as estivesse olhando de fato, junto ao amontoado de porcarias sobre a escrivaninha.

– Acho muito difícil acreditar em seu interesse a respeito de nutrição.

– Verdade. Essa coisa de “glúten é o seu inimigo” é uma bobagem sem fim. Nem me fale de Kombuchá, couve, ou qualquer coisa com propriedades antioxidantes, e na mentira de que o xarope de milho com alto teor de frutose é a fonte de todo o mal.

– Ouviu falar que a Kraft Macaroni & Cheese tirou todos os conservantes há meses?

– Pois é, e os filhos da mãe nem avisaram antes...

– Por que quer jantar comigo?

– Só estou sendo amigável.

– Não faz parte do seu estilo.

– Como disse antes, estou mudando algumas coisas. – Eeeee lá veio aquele sorriso de novo. – Pensei em começar com tudo. Quero dizer, se é pra virar a página, melhor começar do jeito que se deseja continuar.

– Sem ofensas, mas não estou a fim de passar tempo com pessoas de quem gosto de verdade. – Tudo bem, aquilo não soou muito bem. – O que quero dizer é que o meu irmão é o único que consigo tolerar agora, e nem ele eu quero ver.

Aquele sorriso de Lassiter era uma visão que Trez estava mais do que disposto a jamais rever – e observe como orações podem ser atendidas: o anjo estava seguindo para a porta.

– Te vejo amanhã.

– Não, obrigado.

– No restaurante do seu irmão.

– Ah, mas que porra, por quê?

– Porque ele serve o melhor macarrão à bolonhesa em Caldie.

– Você sabe o que eu quis dizer.

O anjo se limitou a dar de ombros.

– Vá lá e descubra.

– O inferno que vou! – Trez meneou a cabeça. – Olha só, sei que as pessoas andam preocupadas comigo e agradeço a preocupação. – Na verdade, não agradecia não. Nem um pouco. – Sim, perdi peso, e eu deveria comer mais. Mas é engraçado como, quando se tem o peito escancarado e o coração arrancado pelo destino, se perde o apetite. Por isso, se está querendo companhia só para não parecer que está jogando sozinho, por que não procura alguém que coma de verdade e troque mais de duas palavras com ela? Posso garantir que tanto eu quanto você teremos uma noite mais agradável assim.

– Até amanhã.

Quando o anjo saiu, Trez gritou para a ponta oposta do escritório:

– Vai se foder!

Quando a porta se fechou em silêncio, ele concluiu que, pelo menos, a discussão não continuaria. E quando estivesse comendo a bolonhesa sozinho, Lassiter entenderia que o Sombra não apareceria.

Problema resolvido.


CAPÍTULO 7

Há momentos na vida em que a amplitude da sua atenção se estreita em um foco tão exíguo que toda a sua consciência se concentra nessa única pessoa. Qhuinn não era alheio a esse fenômeno. Ele acontecia toda vez que estava sozinho com Blay. Quando segurava os filhos. Quando lutava contra o inimigo, em busca de garantir que voltaria para casa inteiro, sem ferimentos e concussões.

E estava acontecendo de novo agora.

Parados diante da base da árvore de Harry Potter, no topo de uma colina, com o vento invernal ao redor, Qhuinn estava ciente apenas do olho direito de Layla. Conseguia contar cada nuance verde-clara que irradiava do núcleo preto da íris. Poderia haver uma nuvem de cogumelos resultante de uma explosão nuclear ao longe, uma nave espacial acima da sua cabeça, uma fila de palhaços dançando ao seu lado... e ainda assim ele não teria visto, ouvido, percebido nada além daquilo.

Bem, isso não era inteiramente verdade.

Percebia de leve o rugido em seus ouvidos, um tipo de cruzamento do motor de um jato e dos fogos de artifícios que sibilam como uma banshee, girando em círculos até se exaurir.

– Responda – ele ordenou numa voz que não parecia a sua.

Ele a havia seguido até aquele local isolado quando sentiu sua ausência na mansão – e se deslocou até ali para falar com ela sobre depressão pós-parto. O plano era levá-la de volta para casa, confortá-la diante da lareira, colocá-la num caminho em que ela pudesse apreciar os seres pelos quais tanto se empenhou em trazer ao mundo.

Como diabos acabaram falando de Xcor e de ela ter se encontrado com ele?

Não fazia a mínima ideia.

Mas não havia mais nenhum mal-entendido. E nenhuma retratação a caminho. Ele via no olhar arregalado e no pânico silencioso que, apesar de seu desejo de que aquela fosse uma colossal falha de comunicação de proporções risíveis, não era o caso.

– Eu estava segura – ela sussurrou. – Ele nunca me feriu.

– Mas que porra q...

Ele se deteve nesse aspecto. Iria direto ao ponto, como se faz com o detonador de uma bomba.

Antes que ele fizesse ou dissesse algo de que se arrependeria, afastou-se e flexionou os dedos para que não se cerrassem em punhos.

– Qhuinn, juro que nunca estive em perigo...

– Você ficou sozinha com ele. – Quando Layla não respondeu, ele cerrou os molares. – Não ficou?

– Ele nunca me machucou.

– Ok, isso é o mesmo que dizer que nunca foi picada enquanto usava uma cobra como cachecol. Uma vez depois da outra. Porque essa porra aconteceu com frequência, não foi? Responda!

– Sinto muito, Qhuinn... – Ela parecia querer se recompor, fungando as lágrimas e aprumando os ombros. O modo como os olhos dela suplicavam perdão o levou à beira da violência. – Oh, Santa Virgem Esc...

– Pare com as súplicas! Não há mais ninguém lá em cima! – Ele estava perdendo o controle. Por completo. – E que diabos está fazendo com esse pedido de perdão? Você colocou meus filhos em risco por livre e espontânea vontade só porque queria... – Ele se retraiu. – Jesus Cristo. Você fez sexo com ele? Você trepou com ele com os meus filhos dentro de você?

– Não! Nunca estive com ele dessa forma!

– Mentirosa – ele urrou. – Você é uma vadia mentirosa...

– Sou praticamente virgem! E você sabe disso! Além do mais, você não me quer. Por que se importa?

– Está querendo sugerir que sequer o beijou? – Quando ela não respondeu, ele riu com aspereza. – Nem tente negar. Está escrito na sua cara. E você tem razão, eu não te quis, nunca te quis... E não tente distorcer as coisas. Não estou com ciúmes; estou enojado. Amo um homem de valor e tive que ir para a cama com você porque precisava de uma incubadora pro meu filho e pra minha filha. Por isso e pelo fato de você ter se jogado em cima de mim quando esteve no cio, esses foram os únicos motivos pelos quais estive com você.

O rosto de Layla empalideceu, e por mais que isso o tornasse um cretino, ele gostou. Queria feri-la por dentro, que era onde contava, porque, por mais furioso que estivesse, jamais bateria numa fêmea.

E essa era a razão por ela ainda estar de pé.

Aqueles bebês, aqueles preciosos e inocentes bebês, foram levados até a boca de um monstro, na presença do inimigo, expostos ao perigo que o teria feito se cagar nas calças caso tivesse sabido à época do acontecimento.

– Você faz alguma ideia do que ele é capaz de fazer? – Qhuinn perguntou com seriedade. – As atrocidades que cometeu? Ele esfaqueou o próprio tenente nas entranhas só para mandá-lo para as nossas mãos. E no passado, no Antigo País? Ele assassinou vampiros, humanos, redutores, qualquer um que lhe atravessasse o caminho, às vezes movido pela guerra, outras só por diversão. Ele era a mão direita de Bloodletter. Você consegue imaginar o que ele já fez nesta terra? Quero dizer, você evidentemente não dá a mínima para o fato de ele ter metido uma bala no pescoço de Wrath – está claro que isso não significa nada para você. Aquele bastardo poderia tê-la violentado mil vezes, estripado você e deixado que ardesse sob o sol – com os meus filhos dentro de você! Que tipo de porra de brincadeira você está armando pra cima de mim?!

Quanto mais Qhuinn pensava a respeito dos riscos a que ela se expôs, mais sua cabeça latejava. Seus amados filhos poderiam muito bem não existir por conta das más escolhas da fêmea, que apenas por preceito biológico, fora o abrigo deles até que pudessem respirar sozinhos.

Tinha colocado-os em perigo ao se arriscar – sem nenhum pensamento aparente quanto às consequências ou como ele, o pai biológico, poderia encarar tamanho fiasco.

Sua fúria, nascida do amor que nutria pelos bebês, era indefinível. Inegável. Inesgotável.

– Nós dois os desejamos – ela disse, rouca. – Quando nos deitamos, nós dois os quisemos...

Numa voz impassível, ele a interrompeu:

– Pois é, isso eu lamento. Melhor que eles não tivessem nascido do que ter metade de você neles.

Layla estendeu a mão para mais uma vez se apoiar na árvore – e, como foi a mão que estava envolvida por sua bandana, ele se percebeu sufocado pela necessidade de arrancar o pedaço de pano da mão dela. Para depois queimá-lo.

– Fiz o melhor que pude – ela afirmou.

Ele gargalhou, então, até que a garganta queimasse.

– Está se referindo ao tempo em que dormiu com Xcor? Ou quando pôs em risco a vida dos meus filhos?

De uma vez só, ela retribuiu a raiva dele com um jorro da sua:

– Você tem aquele a quem ama! Deita-se ao lado dele todos os dias! A sua vida tem objetivo e significado, além de servir a outrem – enquanto eu não tenho nada! Passei todas as minhas noites e dias servindo a uma divindade que já não se importa mais com a raça que gerou e agora sou a mahmen de dois bebês a quem amo com todo o meu coração, mas que não são eu. O que tenho para mostrar da minha vida? Nada!

– Nisso você acertou – ele concordou, sério. – Porque não será mais a mãe dos meus filhos. Você perdeu o seu emprego.

Ela se retraiu com indignação.

– O que está dizendo? Sou a mahmen deles. Eu...

– Não é mais.

Houve um instante de silêncio, e depois a voz explodiu para fora dela:

– Você não pode... Não pode tirar Lyric e Rhamp... Não pode afastá-los de mim! Sou a mahmen deles! Tenho meus direitos...

– Não, não tem. Você se associou ao inimigo. Cometeu um ato de traição. E vai ter sorte se sair desta com vida – não que eu me lixe se você viver ou morrer. A única coisa que me importa é que nunca mais veja os bebês...

A mudança no interior dela foi instantânea e arrebatadora.

De uma vez só, Layla passou de irada a absolutamente calada. E a mudança foi tão abrupta que ele teve de ponderar se ela não sofrera uma síncope.

Mas, em seguida, os lábios de Layla se retraíram das presas que desciam. E o som que saiu de dentro dela eriçou os pelos de sua nuca num alerta.

Quando abriu a boca, a voz dela foi letal como as lâminas de uma adaga.

– Não recomendo que tente me impedir de ver meu filho e minha filha.

Qhuinn expôs as próprias presas.

– Espere e verá.

O corpo da Escolhida se curvou e ela se agachou, o sibilo que ela emitiu era de uma víbora. Só que ela não saltou sobre ele para despedaçar seu rosto com as garras.

Layla simplesmente se desmaterializou.

– Ah, inferno! Não! – ele gritou para o cenário invernal frio e alheio a tudo. – Você quer guerra, é o que vai ter, cacete!

– ... vezes em que ainda sinto vontade – Blay dizia ao sorver um gole do seu copo com gelo. – Para os humanos, é um vício letal. Mas vampiros não têm que se preocupar em adquirir câncer por fumar.

A sala de bilhar da Irmandade estava quase deserta, visto que o torneio foi encerrado quando Butch teve de assumir o posto ao lado de Xcor, Tohrment pediu para se retirar, Rhage chegou machucado do campo, e Rehv decidira ficar nos Grandes Campos com Ehlena. Mas tudo bem. Blay ainda conseguira jogar com Vishous, e os dois circundavam a mesa central dentre as cinco, alternando-se nas jogadas. A boa notícia? Lassiter estava em algum outro lugar, o que significava que a TV acima da imensa lareira estava na ESPN, no mudo.

Nada de filmes da Disney com aquelas canções ridículas esta noite.

Se Blay tivesse que ouvir as merdas do Frozen uma vez mais, ele iria “let it goooooo” pra valer.

No sentido de esvaziar uma magazine bem diante do seu próprio lobo frontal.

Do outro lado da mesa, Vishous acendeu outro dos seus cigarros enrolados por ele mesmo.

– Então por que parou de fumar?

Blay deu de ombros.

– Qhuinn odeia cigarros. O pai dele fumava cigarros e cachimbo, então acho que isso o faz se lembrar de coisas das quais prefere esquecer.

– Você não deveria ter que mudar por ninguém.

– Fui eu quem escolheu parar. Ele nunca me pediu.

Enquanto o Irmão se inclinava sobre a mesa para alinhar o taco, Blay relembrou o início de sua história com Qhuinn. Esse papo de fumar começou quando teve de ficar assistindo ao macho que amava foder qualquer coisa que se movesse. Um período horrível. Não, não tinham um relacionamento – e toda vez que Qhuinn saía com alguém, isso servia de lembrete de que jamais estariam em um.

Caramba. Na época, ele sequer havia saído do armário.

O estresse e a tristeza foram difíceis de controlar, mas também houve um ressentimento borbulhante e irracional de sua parte. Por isso abraçara um mecanismo de compensação que Qhuinn não teria aprovado nem gostado. Fora uma desforra subversiva e mesquinha pelos pecados que o macho na verdade não cometera.

Mas, pelo menos, deixar de fumar tinha sido simples. Assim que os dois se entenderam? Ele deixou os maços de Dunhill de lado e nunca mais olhou para trás.

Bem... Talvez seja mais preciso afirmar que nunca escorregou no vício. Às vezes, quando via Vishous acendendo um, e o cheiro do tabaco permeava o ar, ele ansiava fumar um cigarro...

Bem quando V. lançou a bola da vez no meio do arranjo central, um som horrível de batidas resoou no vestíbulo. Alto, repetitivo, forte o bastante para sacudir e fazer tremer a maciça e grossa porta de carvalho da entrada da mansão, de modo que mais parecia que uma horda de redutores estava tentando invadi-la.

Blay sacou a arma que portava na casa enquanto ele e V. largavam os tacos e corriam para fora da sala de bilhar até a entrada principal.

Bam-bam-bam-bam!

– Mas que porra é essa? – V. murmurou ao olhar para o monitor de segurança. – Que diabos há de errado com o seu garoto?

– O quê?

A pergunta foi respondida quando V. soltou a trava e Qhuinn entrou explodindo no vestíbulo. O macho estava furioso a ponto de parecer possuído, o rosto contraído de raiva, o corpo disparado numa corrida, seu estado tal que ele parecia alheio à presença de qualquer um.

– Qhuinn? – Blay tentou segurá-lo pelo ombro ou pelo braço.

Não teve jeito. Qhuinn chegou à escadaria e deu uma de Usain Bolt, os degraus cobertos pelo tapete vermelho foram consumidos por saltos ligeiros.

– Qhuinn! – Blay disparou atrás do que quer que estivesse acontecendo, tentando alcançá-lo. – O que foi?

No alto da escadaria, os coturnos de Qhuinn se enterraram no carpete e por pouco não derraparam ao virar à esquerda no corredor das estátuas. Logo atrás dele, Blay se apressou, e quando a direção que ele tomava ficou clara, um súbito terror se apossou dele.

Layla e as crianças deviam estar em algum perigo...

Na porta do quarto de Layla, Qhuinn agarrou a maçaneta e girou – só para bater de cara na madeira.

Cerrando um punho, ele começou a bater na porta com tanta força que lascas de pintura começaram a cair.

– Abra a porra desta porta! – Qhuinn berrou. – Layla, abra esta maldita porta agora mesmo!

– Mas que diabos você está fazendo?! – Blay tentou impedi-lo. – Ficou louco...

A arma de Qhuinn saiu sabe-se lá de onde, e quando o Irmão a virou e direcionou o cano para o rosto de Blay, ficou claro que se tratava de algum tipo de pesadelo, o resultado inevitável de uma segunda dose de vinho do Porto depois do jantar de carneiro de Fritz.

Só que não.

– Fique fora disso – Qhuinn estrepitou. – Fique fora disso.

Enquanto Blay erguia ambas as mãos e recuava, Qhuinn virou o ombro para a porta e a empurrou com tanta força que a madeira rachou, os painéis se partindo sob a força do golpe.

O que se revelou dentro do quarto cor de lavanda foi igualmente aterrador.

Enquanto Vishous parava de pronto ao lado de Blay e Z. saía da sua suíte ao fim do corredor, o cérebro de Blay para sempre ficaria maculado pela visão incompreensível e inescapável de Layla com cada filho debaixo dos braços, as presas expostas em pose de ataque, o rosto como o de um demônio, o corpo todo trêmulo – mas não de medo.

Ela estava preparada para matar qualquer um que se aproximasse dela.

Qhuinn apontou a arma na direção dela através do buraco criado na porta.

– Solte-os. Ou acabo com você.

– Mas que porra está acontecendo aqui? – A voz de Vishous saiu tão alta quanto se ele tivesse um alto-falante. – Vocês perderam a cabeça, caralho?

Qhuinn enfiou a mão por dentro e soltou a tranca, escancarando o que restava da porta. Quando ele entrou, Blay deteve os demais.

– Não, deixem que eu cuido disso.

Se mais alguém além dele entrasse, balas começariam a pipocar, e Layla iria atacar, e pessoas se feririam – ou pior.

E que porra estava acontecendo ali?

– Solte-os! – Qhuinn ladrou.

– Mate-me, então! – Layla revidou. – Vá em frente!

Blay colocou o corpo entre os dois, o tronco enquanto bloqueio no caminho de qualquer bala. Nesse meio-tempo, Layla respirava ofegante, e Lyric e Rhamp choravam – merda, ele jamais se esqueceria do som daquele choro.

De frente para Qhuinn, ele mostrou as palmas e falou com lentidão:

– Vai ter que atirar em mim primeiro.

Ele não se concentrou em nada além dos olhos azul e verde de Qhuinn... Como se pudesse, de alguma forma, comunicar-se telepaticamente com seu oponente para acalmá-lo.

– Saia da frente – Qhuinn ordenou. – Isto não é da sua conta.

Blay piscou ante tais palavras. Mas, considerando-se que enfrentava o cano de uma 40 mm, deduziu que deixaria o insulto passar por ora.

– Qhuinn, qualquer que seja o problema, conseguiremos lidar com... Aquele olhar despareado se voltou para ele por apenas uma fração de segundo.

– Acha mesmo? Quer dizer que o fato de ela ter se associado com o inimigo pode ser lavado com detergente ou alguma merda do tipo? Maravilha, vamos chamar Fritz pra cuidar disto. Ideia boa do cacete.

Enquanto os bebês continuavam a chorar, e mais pessoas se aproximavam da cena no corredor, Blay balançou a cabeça.

– Do que está falando?

– Ela levou os meus filhos com ela quando foi trepar com ele...

– Não entendi, o quê?

– Ela esteve com Xcor durante todo esse tempo. Ela não parou de se encontrar com ele. Associou-se a um inimigo conhecido do nosso rei enquanto estava grávida dos meus filhos. Por isso, sim, estou no meu direito de pai de puxar o gatilho contra ela.

De repente, Blay tomou ciência de um grunhido crescente atrás dele, e o som terrível o lembrou do que ouvira a respeito de as fêmeas da espécie serem mais letais do que os machos. Relanceando por sobre o ombro, ele pensou que sim, Layla estava evidentemente preparada para proteger os filhos até a morte naquela porra de universo paralelo para o qual foram sugados.

Xcor? Ela andou se encontrando com Xcor?

Só que ele não podia se desviar do perigo imediato.

– Só quero que você abaixe essa arma – Blay disse com calma. – Abaixe a arma e me conte o que está acontecendo. Senão, se quiser atirar nela, a bala vai ter que passar por mim primeiro.

Qhuinn inspirou fundo, como se estivesse se esforçando para não gritar.

– Eu te amo, mas isto não é da sua conta, Blay. Saia do caminho e deixe que eu cuido disto.

– Espere um minuto. Você sempre disse que também sou pai dessas crianças...

– Não quando o assunto é este. Agora saia da minha frente, caralho.

Blay piscou uma vez. Duas. Uma terceira vez. Engraçado, a dor em seu peito o fez refletir se Qhuinn não havia apertado o gatilho, e ele apenas deixou de ouvir o disparo.

Concentre-se, ordenou a si mesmo.

– Não, não vou me mexer.

– Saia da frente! – O corpo de Qhuinn começou a tremer. – Mas que diabos, saia da porra da minha frente!

Agora ou nunca, Blay pensou ao avançar e atacar o pulso que controlava a pistola. Ao golpear o antebraço com toda a força, a arma disparou repetidamente, e os cartuchos das balas saíram voando – mas, com uma rápida mudança de direção, ele conseguiu empurrar Qhuinn para o lado. O casal se estatelou no chão, e Blay se esforçou para dominar seu par, o impulso do movimento afastando-os de Layla e dos pequenos enquanto mantinha a arma apontada para o sentido oposto do quarto.

Blay acabou por cima, mas sabia que Qhuinn lhe tomaria a posição bem rápido. A arma, ele tinha que manter controle da...

De repente, o ar se tornou ártico.

A temperatura do quarto caiu para baixo de zero tão rápido que as paredes, o piso e o teto rangeram em protesto, a respiração dos presentes foi expelida em lufadas, a condensação gelou os vidros das janelas e os espelhos, com arrepios de qualquer pele exposta.

Em seguida, ouviu-se um rugido vigoroso.

O som foi tão intenso que foi quase inaudível – nada além de dor atravessou-lhes o canal auditivo, transformando suas cabeças em sinos de igreja – e isso, ainda mais do que a mudança no clima, deteve todos dentro da suíte, no corredor, na mansão... Talvez em todo o mundo.

O imenso corpo de Wrath apequenou a soleira da porta quando ele entrou no quarto, marcado pelos cabelos até a cintura, óculos escuros, coxas cobertas por couro e tronco avantajado, que teria detido qualquer trem em movimento.

Suas presas estavam totalmente expostas, como os dentes de um tigre-dentes-de-sabre. Mas ele não teve dificuldade alguma de se expressar, mesmo com elas.

– Não na porra da minha casa! – Ele soou tão alto que o quadro ao seu lado vibrou contra a parede de gesso. – Isso não vai acontecer na porra da minha casa! Minha shellan e meu filho estão aqui – existem outras crianças debaixo deste teto. Existem crianças na droga deste quarto!

Do lado oposto, Layla caiu no chão, os ossos absorvendo a queda com um barulho. Apesar do impacto, manteve Lyric e Rhamp em segurança, aninhados no colo, enquanto pendia a cabeça e começava a chorar.

Debaixo de Blay, Qhuinn tentava se soltar.

– Não até você soltar a arma – Blay disse entredentes.

Houve o som de metal se chocando contra a madeira quando a 40 mm foi solta e Blay a empurrou para longe. Em seguida, Qhuinn se desvencilhou e pôs-se de pé sobre os coturnos. Parecia que ele tinha estado num túnel de vento, seus cabelos negros dispostos em uma bagunça completa, os olhos arregalados, a pele corada em determinados pontos, mas pálida em outros.

– Todos para fora – Wrath ordenou. – Exceto pelos três pais.

Bem, pelo menos alguém reconhecia seu papel, Blay ponderou, com amargura.

Direcionando seu olhar para Qhuinn, viu-se encarando, através do caos, o macho que conhecia quase tão bem quanto a si mesmo.

Naquele instante, porém? Blay fitava para um estranho. A droga de um total desconhecido. Os olhos que Blay já havia passado horas perscrutando, os lábios por ele beijados, um corpo que tocou, acariciou, penetrou e pelo qual também foi penetrado... Era como se algum tipo de amnésia tivesse apagado toda a intimidade, metamorfoseando o que um dia fora uma realidade conhecida em uma hipótese tão fraca que parecia inexistente.

Vishous entrou no quarto.

– Primeiro, vistoria de armas.

Quando o lábio superior de Wrath se retorceu, ficou claro que o rei não apreciou a interrupção. Mas não havia como argumentar contra a razão.

V. foi eficiente na revista: primeiro retirou um par de adagas de Qhuinn, depois outra pistola – e, quando Blay se levantou, ergueu-lhe os braços e afastou-lhe as pernas, mesmo ciente de que ninguém estava preocupado que ele puxasse o gatilho.

– Pronto – V. anunciou ao se espremer para passar pelo Rei e voltar para o corredor.

– Diga aos outros que saiam – Wrath estrepitou.

– Certo.

Ante o comando real, a multidão se dispersou da soleira, mas não foi muito longe. Suas presenças pairaram enquanto, evidentemente, aguardavam os acontecimentos seguintes. De um jeito ou de outro, não havia como fechar a porta. Estava totalmente arruinada.

Virando-se na direção de Qhuinn, Wrath maldisse a situação e exigiu:

– Vai me explicar por que diabos disparou uma arma dentro da minha casa?

 

CONTINUA

ANTIGO PAÍS, 1731
As chamas de uma fogueira no chão iluminavam as paredes úmidas da caverna; a superfície áspera, manchada por sombras. Do lado de fora do ventre da terra, os gemidos do vento ecoavam na abertura do abrigo, unindo-se aos gritos da fêmea sobre o catre em que dava à luz.
– Será um menino! – ela arfou em meio às contrações que a assolavam. – Um macho!
Acima daquele pedaço de carne deitado e agonizante, pairando como uma maldição sobre ela, o Irmão da Adaga Negra Hharm pouco se importava com a sua dor.
– Logo saberemos.
– Você me desposará. Foi uma promessa...
As palavras se interromperam e seu rosto se contraiu numa máscara feia enquanto suas partes internas se contorciam para expelir a cria e, ao fazer as vezes de testemunha, Hharm refletia o quanto a aristocrata ficava pouco atraente em trabalho de parto. Não fora assim quando se conheceram e ele a seduzira. Na época, estivera coberta de cetim, muito composta, o receptáculo adequado para o seu legado, com a pele perfumada e os cabelos macios e reluzentes. Agora? Não passava de um animal, suada, pegajosa – e por que a situação se prolongava tanto? Ele estava tão enfastiado com o processo, ofendido por estar cuidando dela. Tratava-se de uma tarefa para as fêmeas, não para um guerreiro de seu escalão.
Todavia, não a desposaria, a menos que precisasse fazê-lo.
Se o bebê fosse o filho pelo qual vinha esperando? Então, sim, ele legitimaria a criança por meio da cerimônia de união e daria à fêmea o status ao qual ela se julgava digna. Caso contrário, ele se afastaria e a fêmea não diria nada, porque estava maculada aos olhos de sua classe, sua pureza perdida como um terreno já arado.
De fato, Hharm já decidira que era hora de se assentar. Depois de séculos de perdições e depravações, a idade começava a pesar. Ele se punha a considerar, pela primeira vez, o legado que deixaria para a posteridade. No momento, não lhe faltavam bastardos, frutos de sua pelve, os quais não conhecia, com quem não se importava e jamais se associaria a eles – e por tanto tempo era de conhecimento geral que ele não devia nada a ninguém.
Agora, porém... Ele se encontrava desejando uma árvore genealógica adequada. E também havia a questão das suas dívidas crescentes, algo que o pai dessa fêmea facilmente resolveria para ele – embora, mais uma vez, caso não fosse um filho varão, ele não a desposaria. Não era louco, não se prostituiria por centavos. Além disso, havia incontáveis fêmeas da glymera que cobiçavam o status inerente à vinculação com um membro da Irmandade da Adaga Negra.
Hharm não se comprometeria até ter um filho homem, a quem criaria desde a primeira noite.
– Oras, recomponha-se! – ele repreendeu-a quando ela gritou uma vez mais, uma ofensa aos seus ouvidos. – Fique calada!
Como em todas as coisas, contudo, ela o desafiou:
– Está chegando...! O seu filho está chegando!
A veste que ela usava foi suspensa até a base dos seios volumosos por mãos retorcidas. A barriga estendida e arredondada era uma visão vergonhosa, as coxas pálidas e finas permaneciam afastadas. O que acontecia no centro era repugnante: o que deveria ser a entrada delicada e adorável a fim de aceitar a excitação masculina vazava todo tipo de fluido e as carnes estavam inchadas e distorcidas.
Não, ele jamais a penetraria novamente. Com ou sem um filho, vinculados ou não, a perversão diante dos seus olhos não era algo de que ele pudesse se esquecer.
Felizmente, casamentos por conveniência eram uma contingência comum na aristocracia – não que ele se importasse caso não o fossem. As necessidades dela eram inconsequentes.
– Ele está chegando! – ela berrou quando a cabeça pendeu para trás e as unhas arranharam a terra debaixo de seu corpo. – Seu filho... ele se aproxima!
Hharm franziu a testa, depois seus olhos se arregalaram e as pernas se firmaram, afastadas. Ela não se equivocava, pois, de fato, algo começava a surgir de dentro dela... Era...
Uma abominação. Algo disforme e terrível...
Um pé.
– Isso é um pé?
– Tire seu filho do meu corpo – ela ordenou entre arquejos. – Puxe-o de dentro de mim e segure-o contra seu coração, reconheça-o como sua carne e seu sangue!
Com todas as armas ainda presas ao corpo, Hharm ajoelhou-se quando o segundo pé apareceu.
– Puxe! Puxe! – O Sangue jorrou e a fêmea berrou de novo quando o bebê não se moveu. – Ajude-me! Ele está asfixiado!
Hharm manteve-se afastado de toda aquela nojeira e imaginou quantas fêmeas inseminadas por ele haviam passado pela mesma situação. Seria sempre desagradável assim ou era ela quem era fraca?
De fato, deveria deixá-la que fizesse o parto sozinha, mas não confiava nela. A única maneira de ter certeza de que seu filho era macho era estar presente durante o nascimento. De outro modo, ele não desconsiderava a possibilidade de ela trocar uma filha indesejada pelo macho tão cobiçado – fruto de outro macho.
Aquela era, afinal, uma transação negociada, e ele sabia muito bem como tais coisas podiam ser manipuladas.
Em seguida, o som que emergiu da garganta da fêmea foi tão volumoso e demorado que interrompeu seus pensamentos. Depois os gemidos e as mãos sujas de terra e sangue dela se postaram no interior das coxas, puxando-as para fora e para cima, ampliando a abertura. E bem quando o Irmão acreditou que ela estivesse morrendo, quando cogitou se acabaria enterrando a ambos – e de pronto decidiu-se contra a proposição, visto que as criaturas da floresta logo consumiriam os restos mortais –, o bebê apareceu um pouco mais, livrando-se de algum obstáculo interno.
E lá estava ele.
Hharm se adiantou.
– Meu filho!
Sem pensar, esticou os braços e apanhou com mãos firmes os tornozelos escorregadios. Estava vivo; a criança chutava com força, debatendo-se contra o confinamento do canal vaginal.
– Venha para mim, meu filho – Hharm ordenou ao puxá-lo.
A fêmea se contorcia em agonia, mas ele não lhe dispensou um pensamento sequer. Mãos – pequeninas e perfeitamente bem formadas – surgiram em seguida, junto à barriga arredondada e o peito, que, mesmo em seu momento recém-nascido, era amplo.
– Um guerreiro! Este é um guerreiro! – O coração de Hharm batia forte, seu triunfo latejava nos ouvidos. – Meu filho levará adiante o meu nome! Será conhecido como Hharm, assim como eu antes dele!
A fêmea ergueu a cabeça, as veias do pescoço saltavam como cordões tensos sob a pele pálida demais.
– Você me desposará – ela disse, rouca. – Jure... Jure pela sua honra, ou eu o segurarei dentro de mim até que fique azul e entre no Fade.
Hharm sorriu com frieza, revelando as presas. Em seguida, desembainhou uma das adagas do peito. Direcionando a ponta para baixo, mirou no baixo ventre dela.
– Eu a estriparei como a um cervo para libertá-lo, nalla.
– E quem alimentará seu precioso filho? O seu sêmen não sobreviverá sem mim.
Hharm pensou na tormenta do lado de fora. Na distância que estavam do assentamento de vampiros mais próximo. E no pouco que sabia sobre as necessidades de um recém-nascido.
– Você me desposará, conforme prometido – ela gemeu. – Jure!
Os olhos dela estavam injetados e ensandecidos, os longos cabelos suados e emaranhados, o corpo era algo sobre o qual ele jamais desejaria se sobrepor. Mas a lógica dela o impedia. Perder o que desejava por conta exatamente do arranjo que estivera disposto a fazer, simplesmente porque ela o apresentava como se fosse uma condição sua, não era uma decisão sábia a se tomar.
– Juro – murmurou.
Com isso, ela voltou a se deitar e, sim, agora ele a ajudaria, puxando no ritmo dos empurrões dela.
– Ele está vindo... ele...
O bebê saiu de dentro dela num jorro, fluidos saindo com ele e, quando Hharm o segurou em suas palmas, sentiu uma alegria inesperada tão ressonante que...
Seus olhos se estreitaram ao pousar as vistas sobre o rosto dele. Acreditando que havia alguma membrana mascarando o bebê, passou uma das mãos pelas suas feições, que eram um misto das dele e da fêmea.
Lamentavelmente... nada mudou.
– Que maldição é esta? – questionou-se consigo mesmo. – Que maldição... é esta!

 

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CAPÍTULO 1


MONTANHAS DE CALDWELL, NOVA YORK, DIAS ATUAIS

A Irmandade da Adaga Negra o mantinha vivo só para poder matá-lo.

Dada a soma das atividades terrenas de Xcor, que foram das mais violentas, e certamente muito depravadas, aquele parecia um fim adequado para ele.

Nascera numa noite de inverno durante uma tempestade histórica. Nas entranhas de uma caverna suja e úmida, enquanto rajadas gélidas assolavam o Antigo País, a fêmea que o carregara gritara e sangrara para dar ao Irmão da Adaga Negra Hharm o filho tão exigido por ele.

Ele fora desesperadamente desejado.

Até chegar ao mundo.

E esse era o início da sua história, que acabara por levá-lo até ali.

Em outra caverna. Em outra noite do mês de dezembro. E assim como na noite do seu nascimento de fato, o vento gemia para recebê-lo, ainda que, dessa vez, fosse para o retorno da sua consciência em vez da expulsão para a vida independente que levou dali adiante.

E como um recém-nascido, tinha pouco controle sobre o corpo. Estava incapacitado, e isso seria verdadeiro mesmo sem as algemas de aço e as barras sobre o peito, o quadril, as coxas. Máquinas, contrastantes com o ambiente rústico que o rodeava, emitiam sinais atrás de sua cabeça, monitorando-lhe a respiração, os batimentos cardíacos, a pressão sanguínea.

Com a mesma fluidez de uma engrenagem sem lubrificação, seu cérebro começou a funcionar adequadamente sob o crânio; quando os pensamentos por fim se aglutinaram e formaram uma sequência lógica, lembrou-se da série de eventos que fizeram com que ele, o líder do Bando de Bastardos, acabasse sob a custódia daqueles que haviam sido seus inimigos: um ataque por trás, uma concussão, uma espécie de derrame ou algo do tipo que fez com que ele acabasse deitado, dependendo de máquinas para sobreviver.

E da inexistente misericórdia dos Irmãos.

Recobrara a consciência uma ou duas vezes durante o período em cativeiro, registrando seus captores e o ambiente daquele corredor cavernoso que inexplicavelmente abrigava jarros de todos os tipos. A retomada da consciência nunca durou muito; entretanto, a conexão com sua área mental era insustentável por um tempo mais demorado.

No entanto, dessa vez parecia diferente. Ele percebia a mudança em sua mente. O que quer que tivesse estado danificado por fim se curara e agora ele retornava do cenário enevoado do ponto de morto-vivo, permanecendo do lado vital.

– ... muito preocupado com Tohr.

O fim da frase enunciada por um macho entrou nos ouvidos de Xcor como uma série de vibrações, cuja tradução sofreu um atraso, e quando as palavras se formaram, ele virou o olhar naquela direção. Duas figuras de preto muito bem armadas estavam de costas para si, e ele voltou a abaixar as pálpebras, pois não desejava revelar a mudança do seu estado. Entretanto, suas identidades estavam devidamente anotadas.

– Não, ele está bem. – O som de algo raspando e o cheiro de tabaco permeando o ar. – E se não estiver, vou estar ao lado dele.

A voz grave que falou primeiro pareceu árida.

– Pra botar nosso irmão na linha à força... Ou ajudá-lo a acabar com este pedaço de carne?

O Irmão Vishous riu como se fosse um assassino em série.

– Que bela consideração você tem por mim.

Era estranho que não se entendessem melhor, Xcor pensou. Esses machos queriam tanto sangue quanto ele.

No entanto, essa aliança jamais existiria. A Irmandade e os Bastardos sempre estiveram em lados opostos durante o reinado de Wrath, esse limite tendo sido estabelecido pela bala que Xcor alojara na garganta do líder por direito da raça vampírica.

E o preço de sua traição seria cobrado ali, em pouco tempo.

Claro, a ironia era que uma força de compensação interceptara seu destino e fizera com que suas ambições e seu foco se afastassem, e muito, do trono. Não que os guerreiros da Irmandade tivessem ciência disso – e pouco se importariam se soubessem. Além de partilharem o apetite pela guerra, ele e os Irmãos tinham outras características em comum: piedade era para os fracos; o perdão, algo patético; pena, um sentimento das fêmeas, nunca de guerreiros.

Embora soubessem que ele já não sentia nenhuma agressividade em relação a Wrath, não o exonerariam daquilo que conquistara com méritos. Por conta de tudo o que acontecera, ele não sentia nem amargura nem raiva em relação ao que o esperava. Aquela era a natureza do conflito.

Contudo, sentia-se triste – um sentimento desconhecido para ele.

Das suas lembranças surgiu uma imagem que lhe roubou o fôlego. Era o de uma fêmea alta e magra nas vestes sagradas das Escolhidas da Virgem Escriba. Os cabelos loiros ondulavam sobre os ombros e desciam até o quadril em uma brisa suave, os olhos eram cor de jade, o sorriso, uma benção que ele não fizera nada para receber.

A Escolhida Layla mudara tudo para ele, transformando a Irmandade de um alvo a algo tolerável, de inimigo a um habitante coexistente naquele mundo.

Em pouco mais de um ano e meio, período no qual Xcor a conhecia, ela tivera um efeito mais impactante sobre sua alma negra do que qualquer outra pessoa antes dela, fazendo com que evoluísse muito em tempo ínfimo – algo que ele jamais imaginara ser possível.

O Dhestroyer, camarada de Vishous, voltou a falar:

– Na verdade, concordo plenamente com Tohr sobre fazer picadinho do filho da puta. Ele conquistou esse direito.

O Irmão Vishous praguejou.

– Todos nós merecemos. Vai ser difícil deixar uma parte dele intacta quando isso acontecer.

E ali estava o enigma, Xcor ponderou por trás das pálpebras abaixadas. A única saída possível de tamanho cenário mortal seria revelar o amor que sentia por uma fêmea que não era sua, nunca fora e jamais poderia ser.

Mas não sacrificaria a Escolhida Layla por ninguém, por nada.

Nem mesmo para se salvar.

Enquanto Tohr caminhava na floresta de pinheiros da montanha da Irmandade, seus coturnos esmagavam o terreno congelado, e o vento glacial o golpeava no rosto. Em seu rastro, tão próximo de seus calcanhares quanto uma sombra, ele sentia suas perdas a acompanhá-lo, numa fila de lamentos tangíveis como uma corrente.

A sensação de estar sendo perseguido pelos seus mortos o fez refletir a respeito de programas de TV sobre eventos paranormais, do tipo que tentava provar a existência de fantasmas. Que monte de bobagens. A histeria humana acerca das supostas entidades obscuras flanando em escadas e provocando rangidos em casas antigas, com seus passos sem corpos, era algo muito característico dessa espécie desimportante absorta em si mesma e criadora de dramalhões. Mais uma coisa que Tohr odiava a respeito deles.

E, como de costume, eles não acertavam no alvo.

Os mortos absolutamente nos atormentam, percorrendo seus dedos gélidos em nossa nuca como uma forma de lembrete até não conseguirmos decidir se queremos gritar pelas saudades que sentimos deles... ou porque queremos ser deixados em paz.

Eles espreitam suas noites e rondam seus dias, deixando um campo minado de tristeza ao longo dos caminhos.

São seus primeiros e seus últimos pensamentos, o filtro que você tenta deixar de lado, a barreira invisível entre você e todo o resto.

Algumas vezes, são mais parte de você do que as pessoas que você consegue de fato segurar e tocar.

Portanto, sim, ninguém precisa de um programa de TV idiota para provar o que já é de conhecimento comum: mesmo que Tohr tenha encontrado o amor com outra fêmea, sua primeira shellan, Wellsie, e o filho não nascido que ela carregava no ventre quando foi assassinada pela Sociedade Redutora, nunca foram afastados dele além da própria pele.

E agora houvera mais uma morte na mansão da Irmandade.

A companheira de Trez, Selena, subira para o Fade havia poucos meses, tendo falecido em razão de uma doença para a qual não existia cura, nenhum alívio, nenhum conhecimento.

Tohr não dormia direito desde então.

Voltando a se concentrar nas árvores que o cercavam, Tohr se abaixou e afastou um galho do caminho, depois deu a volta num tronco caído. Poderia ter se materializado até o destino, mas seu cérebro latejava com tanta violência da prisão do crânio que ele duvidava que conseguiria se concentrar o bastante para se dissipar.

A morte de Selena fora um maldito gatilho para ele, um evento que afetava outra pessoa, mas que, não obstante, sacudira seu globo de neve, balançando-o com tanta força que seus flocos internos ainda rodopiavam e se recusavam a se assentar.

Estava no centro de treinamento quando ela fora chamada para o Fade, e o momento da morte não fora silencioso. Fora marcado pelo som da alma dilacerada de Trez, o equivalente auditivo de uma tumba – um som que Tohr conhecia bem demais. Fizera o mesmo quando recebera a notícia da morte de sua fêmea.

Portanto, sim, nas asas da agonia do seu amor, Selena fora alçada da terra para o Fade...

Arrancar-se desse espiral cognitivo era o mesmo que tentar tirar um carro de um atoleiro, o esforço necessário era tremendo, o progresso conquistado centímetro a centímetro.

No entanto, lá ia ele pela floresta, na noite invernal, esmagando o que aparecia sob suas solas, com seus fantasmas sussurrando-lhe por trás.

A Tumba era o sanctum sanctorum da Irmandade da Adaga Negra, aquele local secreto onde as induções aconteciam e convocavam-se as reuniões secretas, e onde eram mantidos os jarros dos redutores assassinados. Estava localizada abaixo do solo, num labirinto criado pela natureza, tradicionalmente fora dos limites para qualquer um que não tivesse passado pela cerimônia que o marcasse como membro da Irmandade.

Essa regra, no entanto, tivera que ser contornada, pelo menos em respeito ao longo corredor de entrada de quase meio quilômetro.

Ao se aproximar do insuspeito sistema da entrada, parou e sentiu a raiva surgir.

Pela primeira vez desde que se tornara um Irmão, não era bem recebido ali.

Tudo por causa de um traidor.

O corpo de Xcor estava do lado oposto dos portões, na metade do caminho repleto de prateleiras, deitado numa maca, a vida monitorada e mantida por equipamentos.

Até que o maldito despertasse e pudesse ser interrogado, Tohr não tinha permissão para entrar.

E seus irmãos tinham razão em não confiar nele.

Ao fechar os olhos, viu seu rei com um tiro na garganta. Reviveu o momento em que a vida de Wrath estivera escorrendo junto ao sangue rubro; rememorou a cena em que tivera que salvar o último vampiro de sangue puro no planeta ao cortar um buraco na frente da garganta dele e enfiar o tubo de sua Camelback naquele esôfago.

Xcor encomendara o assassinato. Xcor ordenara um dos seus guerreiros mandar uma bala para dentro das carnes de um macho de valor, conspirara com a glymera para derrubar o governante por direito, mas o filho da puta fracassara. Wrath sobrevivera, apesar das probabilidades contrárias,, e na primeira eleição democrática da história da raça, fora apontado como líder de todos os vampiros – uma posição que ele agora detinha por consenso em vez de pela sua linhagem.

Portanto, vá se foder, filho da puta.

Cerrando os punhos, Tohr ignorou o ranger das luvas de couro e a constrição no dorso dos nós dos dedos. Só o que reconhecia era o ódio, tão profundo como uma doença letal.

O destino decidira que era certo tirar-lhe três seus e dos seus; o destino tirara dele sua shellan, seu filho, e o amor da vida de Trez. Querem falar sobre equilíbrio no Universo? Tudo bem. Ele queria o seu equilíbrio, e isso só aconteceria quando quebrasse o pescoço de Xcor e arrancasse o coração ainda quente do peito do maldito.

Já era hora de uma fonte do mal ser tirada de circulação, e era ele quem empataria o placar.

E a espera finalmente terminava. Por mais que respeitasse seus irmãos, estava farto de aguardar. Essa noite era um aniversário triste para ele, e ele daria ao seu luto um presentinho especial.

Era hora de festejar.


CAPÍTULO 2

O copo de cristal baixo estava tão limpo, tão isento de marcas de sabão, de poeira, de qualquer grânulo que o manchasse, que sua estrutura era como o ar; e a água dentro dele, totalmente invisível.

Meio cheio, a Escolhida Layla ponderou. Ou meio vazio?

Sentada no banquinho acolchoado, entre as duas pias com torneiras douradas e diante de um espelho com adornos de ouro que refletia a banheira funda atrás de si, ela observava a superfície do líquido.

O fundo era côncavo e a água lambia levemente o interior do copo, como se suas moléculas mais ambiciosas tentassem fugir do confinamento.

Respeitava o esforço, enquanto lamentava sua futilidade. Sabia muito bem o que era querer ser livre do local que a abrigava, apesar de não ser culpa sua.

Por séculos, ela fora a água daquele copo, despejada sem ter querido, em virtude apenas do seu nascimento, num papel de servidão junto à Virgem Escriba. Ao lado de suas irmãs, executara os deveres sagrados das Escolhidas no Santuário, adorando a mãe da raça, registrando os eventos da Terra para a posteridade dos vampiros, aguardando a escolha de um novo Primale para que ela pudesse engravidar e dar à luz mais Escolhidas e mais Irmãos.

Mas tudo isso já era passado.

Inclinando-se sobre o copo, observou mais atentamente a água. Fora treinada como ehros, não como escriba, mas sabia muito bem como enxergar além das águas que eram testemunhas da história. Dentro do Templo das Escribas, as Escolhidas designadas a registrar as histórias e as linhagens da raça permaneceram sentadas por horas e horas, observando nascimentos e mortes, suas mãos delicadas com penas sagradas colocando os detalhes nos pergaminhos, acompanhando tudo.

Não havia nada para ela ver. Não ali na Terra.

E também já não existiam testemunhas no alto.

Um novo Primale acabara surgindo. Mas em vez de se deitar com seu rebanho de fêmeas, dando continuidade ao programa de criação da Virgem Escriba, ele dera um passo sem precedentes, libertando todas elas. O Irmão da Adaga Negra Phury se desviara do modelo, quebrara a tradição, desfizera-se das amarras e, ao fazê-lo, as Escolhidas que estiveram isoladas desde sua gênese, visando aos nascimentos planejados, acolheram sua libertação. Já não eram representantes vivas de uma tradição rígida; tornaram-se indivíduos, com seus próprios descontentamentos e preferências, mergulhando os dedos nas águas terrenas da realidade, procurando e encontrando destinos a respeito de si próprias, e não mais de um serviço.

Ao fazer isso, ele desencadeara o fim dos imortais.

A Virgem Escriba já não existia mais.

Seu filho de nascimento, o Irmão da Adaga Negra Vishous, a procurara no Santuário acima e descobriu que ela se fora, deixando uma última carta escrita no vento apenas para os olhos dele.

Ela dissera que tinha um sucessor em mente.

Ninguém sabia sua identidade.

Recostando-se, Layla olhou para a veste que trajava. Não era do tipo sagrado que se vestira durante tantos anos. Não, essa peça vinha de um lugar chamado Pottery Barn, e Qhuinn a comprara para ela na semana passada. Com a aproximação do inverno, ele se preocupava que a mãe de seus filhos estivesse aquecida, sempre bem cuidada.

A mão de Layla subiu para o ventre, agora baixo. Depois de ter carregado a filha, Lyric, e o filho, Rhampage, dentro do corpo por tantos meses, era tão estranho quanto familiar não ter nada no útero...

Vozes murmuradas, baixas e graves, penetraram a porta que ela havia fechado.

Entrara no banheiro para usar o vaso.

Demorara-se depois de ter lavado as mãos.

Qhuinn e Blay, como de costume, estavam com os bebês. Segurando-os. Ninando-os.

Todas as noites, ela tinha que se esforçar para testemunhar o amor, não entre eles e os pequenos... mas aquele entre os dois machos. De fato, os pais exibiam um vínculo ressonante e, resplandecente um com o outro, e por mais que fosse algo belo, aquele fulgor fazia com que se sentisse ainda mais vazia em sua existência.

Enxugando uma lágrima, disse a si mesma para se controlar. Não poderia voltar ao quarto com olhos brilhantes demais, e o nariz e faces corados. Aquele deveria ser um momento de alegria para os cinco integrantes da família. Agora que os gêmeos haviam superado o estado de emergência sob o qual tinham nascido, e Layla também se recuperara, todos estavam aliviados por todos estarem sãos e salvos.

Agora era a vida feliz que ganharam para viver.

Em vez disso, ela ainda era a água triste dentro do copo, desejando sair.

Dessa vez, porém, a prisão foi feita por ela mesma, em vez de providenciada pela genética.

A definição de infidelidade, pelo menos de acordo com o dicionário, era: a ação de trair algo ou alguém...

A batida à porta fechada foi suave.

– Layla?

Ela fungou e abriu uma das torneiras.

– Oi!

A voz de Blay soou baixa, como era seu hábito.

– Você está bem aí?

– Ah, sim, estou. Resolvi tratar um pouco do rosto. Sairei daqui a pouco.

Ela se levantou, inclinou-se e molhou o rosto. Depois esfregou a testa e o queixo com a toalha de mão para que o rubor se espalhasse mais uniformemente sobre a pele. Apertando o cinto do roupão, aprumou os ombros e foi para a porta, em meio a preces para manter a compostura pelo tempo necessário até conseguir apressá-los para a Última Refeição.

Mas teve um momento de folga.

Ao abrir a porta, Blay e Qhuinn sequer olhavam na sua direção. Estavam inclinados sobre o berço de Lyric.

– ... os olhos de Layla – Blay disse ao abaixar a mão e deixar que a pequena agarrasse seu dedo. – Definitivamente.

– Ela também tem os cabelos da mahmen. Veja o tom loiro começando a aparecer.

O amor deles pela pequena era incandescente, reluzia em seus rostos, aquecia suas vozes e, aplacava seus movimentos, de modo que tudo o que faziam era com cuidado. No entanto, não era nisso que Layla se concentrava.

Seu olhar estava fixo na palma larga de Qhuinn, que afagava as costas de Blay. A carícia de conexão era inconsciente de ambos os lados; a oferta e a aceitação eram tanto nada e tudo o que importava, simultaneamente. E enquanto testemunhava o que se passava do outro lado do quarto, Layla teve que piscar rápido de novo.

Às vezes, a gentileza e o amor podiam ser tão difíceis de testemunhar quanto a violência. Às vezes, quando se está do lado de fora, ver duas pessoas tão em sintonia era uma cena saída de um filme de terror, o tipo de coisa da qual você quer se manter afastado, quer esquecer, banir da memória – ainda mais quando se está prestes a deitar e enfrentar sozinha um longo dia de horas no escuro.

Saber que ela jamais teria esse amor especial com alguém era...

Qhuinn relanceou na sua direção.

– Ah, oi.

Ele se endireitou e sorriu, mas ela não se deixou enganar. Os olhos dele a percorriam como se em uma avaliação – mas, talvez, esse não fosse o caso. Talvez fosse simplesmente a sua paranoia se manifestando.

Estava tão farta de se dividir em uma vida dupla. Contudo, no tipo de ironia cruel que parecia ser a fonte favorita de divertimento do destino, o preço para aliviar a consciência viria à custa de sua própria existência.

A como poderia deixar os filhos para trás?

– ... ok? Layla?

Enquanto Qhuinn franzia a testa ao observá-la, ela balançou a cabeça e forçou um sorriso.

– Ah, tudo bem, mesmo. – Ela deduzia que a pergunta se referisse ao seu bem-estar. – Muito bem mesmo.

Em busca de confirmar a mentira, aproximou-se dos berços. Rhampage, ou Rhamp, como era conhecido, lutava contra o sono, e quando a irmã arrulhou, sua cabeça se virou e ele esticou a mão.

Engraçado. Mesmo tão jovem, ele parecia reconhecer seu posto e desejava protegê-la.

Era genético. Qhuinn era um membro da aristocracia, resultado de gerações de emparelhamentos escolhidos a dedo, e por mais que seu “defeito” de ter um olho azul e outro verde o tivesse feito receber o desprezo tanto da glymera quanto da própria família, a venerável natureza de sua linhagem não podia ser negada. Tampouco o impacto de sua presença física. Com quase dois metros de altura e corpo talhado por músculos definidos, moldados tanto pelos exercícios quanto pela prática na guerra – uma arma tão letal quanto as pistolas e adagas que levava consigo para o campo de batalha. Era o primeiro membro da Irmandade da Adaga Negra a ser induzido com base na meritocracia em vez de na linhagem, e não desapontara a grande tradição. Ele nunca desapontava ninguém.

De fato, Qhuinn era, no conjunto, um belo macho, ainda que de forma um tanto rústica. O rosto era angular, pois tinha pouca gordura corporal, e aqueles olhos despareados fitavam por baixo de sobrancelhas negras. Os cabelos pretos foram cortados muito curtos recentemente, quase totalmente raspados na base. Deixavam um topete para trás e, como resultado, seu pescoço parecia extra-grosso. Com piercings metálicos nas orelhas e a lágrima de ashtrux nohtrum abaixo do olho – uma marca dos tempos em que servira como protetor de John Matthew –, ele chamava a atenção por onde quer que passasse.

Talvez porque as pessoas, tanto humanos como vampiros, preocupavam-se com o que ele seria capaz de fazer caso fosse contrariado.

Blay, por sua vez, era o oposto: tão acessível quanto Qhuinn seria evitado num beco escuro.

Blaylock, filho de Rocke, tinha cabelos ruivos e um tom de pele mais claro do que a maioria da espécie. Era tão grande quanto Qhuinn, mas quando se está ao seu lado, a primeira impressão que se tem dele faz referência à sua inteligência e ao seu bom coração, em vez de a força bruta. Ainda assim, ninguém discutia suas habilidades em campo. Layla ouvira histórias, ainda que nunca da parte dele, visto que não era de se vangloriar, criar dramas excessivos ou atrair atenções para si.

Ela amava os dois de todo o coração.

E o distanciamento que sentia em relação a eles partia somente do seu lado.

– Olha só – Qhuinn disse ao apontar para os bebês. – Temos dois se apagando... Melhor, um e meio.

Quando ele sorriu, ela não se deixou enganar. Seus olhos continuavam a passear pelo seu rosto, à procura sobre sinais de exatamente aquilo que ela tentava esconder. Para dificultar o escrutínio dele, ela recuou.

– Eles dormem bem, graças à Virgem Escriba... Hum, graças ao Fade.

– Você vai descer para a Última Refeição hoje? – ele perguntou como quem não quer nada.

Blay se endireitou.

– Fritz disse que prepara o que você quiser.

– Ele é sempre tão gentil. – Ela foi até a cama e se deitou contra os travesseiros. – Na verdade, senti uma fominha lá pelas duas da manhã, por isso fui até a cozinha e comi torradas e aveia. Tomei café. Suco de laranja. Um café da manhã no lugar do almoço, por assim dizer. Sabem como é, às vezes sentimos vontade de voltar o relógio no meio da noite e recomeçar da metade.

Uma pena que isso não passasse de uma metáfora.

Ainda que... será que ela teria escolhido nunca conhecer Xcor?

Sim, pensou. Preferiria nunca ter sabido da sua existência.

O amor de sua vida, seu “Blay”, o par do seu coração e da sua alma... era um traidor. E seus sentimentos pelo macho foram uma ferida aberta na qual a bactéria da traição entrara e se espalhara.

Portanto, ali estava ela, na prisão estabelecida por ela própria, torturada pelo fato de ter se aproximado do inimigo, primeiro por ter sido ludibriada... e mais tarde porque quis estar na presença de Xcor.

Separaram-se em maus termos, contudo, com ele colocando um fim nos encontros clandestinos após ela forçá-lo a admitir seus sentimentos. Em seguida, a situação se transformara de triste para trágica, quando ele foi capturado e levado sob a custódia da Irmandade.

A princípio não conseguira obter informações acerca de seu estado. Mas então, viajara ao modo de uma Escolhida até ele e, testemunhara seu estado moribundo num corredor de pedras, repleto de jarros de todas as cores e formas.

Não havia nada que pudesse ter feito por ele. Não sem se apresentar e se expor – e mesmo que ela o fizesse, não poderia salvá-lo.

Por isso estava presa ali: um fantasma atormentado num misto de emoções salpicadas pelo veneno da culpa e do arrependimento, sem nunca, jamais, poder se libertar.

– ... certo? Quero dizer... – Enquanto Blay continuava a falar com ela a respeito de uma e outra coisa, a Escolhida se forçou a não esfregar os olhos. – ... no fim da noite, enquanto você fica aqui com os bebês. Não que você não goste de ficar com eles.

Saiam, ela solicitou mentalmente para os dois machos. Por favor, vão embora e me deixem em paz.

Não era como se ela quisesse afastá-los das crianças, ou que sentisse alguma malquerença pelos pais de Lyric e Rhamp. Ela só precisava respirar. E toda vez que um dos guerreiros a fitava, como faziam agora, respirar se tornava praticamente impossível.

– Você concorda? – Qhuinn perguntou. – Layla?

– Ah, sim, claro. – Ela não fazia ideia do que acabara de concordar, mas certificou-se de sorrir. – Só vou descansar agora. Eles ficaram bastante tempo acordados durante o dia.

– Eu gostaria que nos deixasse ajudar mais. – Blay franziu a testa. – Estamos aqui do lado.

– Vocês dois lutam na maioria das noites. Precisam dormir.

– Mas você também é importante.

Layla direcionou o olhar rumo aos os berços e, ao rememorar a cena de si mesma acalentando-os e amamentando-os, sentiu-se ainda pior. Mereciam uma mahmen melhor do que ela, descomplicada e sem o fardo de decisões que nunca deveriam ter sido tomadas, uma que não estivesse contaminada pela fraqueza em relação a um macho de quem jamais deveria ter se aproximado... muito menos amado.

– Não tenho a mínima importância em comparação a eles – sussurrou rigidamente. – Eles são tudo.

Blay se aproximou e a tomou pela mão, os olhos azuis calorosos.

– Não, você também é muito importante. E mahmens precisam de tempo para si.

Para fazer o quê? Ruminar meus remorsos? Não, muito obrigada, pensou.

– Vou para o túmulo sem eles e aí apreciarei minha própria companhia. – Ao perceber o quanto tinha soado mórbida, apressou-se: – Além disso, eles crescem rápido. Vai acontecer antes de nós três nos darmos conta.

Conversaram mais depois – não que ela tivesse prestado atenção, com todos os gritos em sua mente. Mas, por fim, foi deixada em paz quando o casal partiu.

O fato de ficar tão feliz ao vê-los sair foi mais uma tristeza que ela tinha a carregar.

Mudando de posição na cama, levantou-se e se aproximou dos berços com os olhos rasos de lágrimas. Enxugando o rosto, repetidas vezes, ela pegou um lenço de papel do bolso do roupão e assoou o nariz. Os bebês estavam profundamente adormecidos, com os olhos fechados, os rostos voltados um para o outro como se estivessem se interligado em uma comunicação telepática durante o sono. Mãozinhas perfeitas e pezinhos preciosos, barriguinhas redondas e saudáveis envolvidas em cobertorzinhos de flanela. Eram bebês tão bons; alegres quando acordados, pacíficos e angelicais adormecidos. Rhampage ganhava peso com mais velocidade do que Lyric, mas ela parecia mais saudável do que ele, reclamava menos ao ser lavada ou trocada, fitando tudo com mais atenção.

Quando as lágrimas caíram do rosto de Layla até o carpete, ela não sabia quanto tempo mais suportaria.

Antes de tomar ciência do movimento, foi até o telefone interno da casa e apertou uma sequência de quatro números.

A doggen que convocou chegou em questão de momentos, e Layla voltou a vestir sua máscara social, sorrindo para a criada com uma serenidade que não sentia.

– Grata por cuidar dos meus preciosos – disse no Antigo Idioma.

A babá respondeu com alegria e olhos cintilantes, e Layla só aguentou dois ou três segundos de comunicação. Em seguida, saiu do quarto e, com passos ligeiros protegidos por chinelos, desceu pelo corredor das estátuas. Quando chegou às portas da extremidade oposta, empurrou uma delas e entrou na ala dos empregados.

Como em todas as mansões daquele tamanho e distinção, o lar da Irmandade necessitava de um tremendo apoio de funcionários, e os aposentos dos doggens perfilavam o corredor; a segregação por idade, sexo e posição nos escalões formava comunidades dentro do grande conjunto. Em meio ao labirinto de corredores, Layla não escolheu uma direção específica além do objetivo de encontrar um quarto vazio – e encontrou-o umas três portas adiante, depois de uma virada. Ao entrar no espaço simples e desocupado, foi até a janela, abriu-a e fechou os olhos. Seu coração batia forte e uma ligeira tontura a dominava, mas ela inspirou fundo o ar fresco e limpo...

... e se desmaterializou através da abertura que criara, misturando-se à noite; as moléculas se espalhando e se afastando da mansão da Irmandade.

Como sempre, sua liberdade seria temporária.

Mas, desesperada como estava, foi tomada por um breve sufocamento, e ela partiu em busca de oxigênio.


CAPÍTULO 3

Qhuinn era um macho muito macho. E não só porque era um guerreiro casado com outro cara.

Sim, claro que, antes de se assentar com Blay, até que gostara de transar com fêmeas e mulheres. Mas, pensando bem, seu padrão para parceiros sexuais fora tão baixo que até aspiradores de pós e canos de escapamento tinham sido candidatos ocasionais.

Mas nada de ovelhas. #critério

No entanto, não poderia dizer que as fêmeas o tivessem cativado ou interessado de fato. Não que houvesse algo de errado com elas, ou que não as respeitasse assim como todo o resto. Elas simplesmente não eram do seu gosto.

Numa noite como a de hoje, porém, ele lamentava sua inexperiência. Só porque ralara e rolara com o sexo oposto não significava que estivesse equipado de algum modo para lidar com o que o confrontava agora.

Quando ele e Blay chegaram ao pé da escadaria principal, ele parou e olhou para seu par. Ao fundo, vindo da sala de bilhar do lado oposto do átrio, o som das vozes graves dos machos, de música e de gelo batendo em copos de cristal anunciavam que o torneio de bilhar da Irmandade já estava em curso.

Qhuinn sorriu de uma maneira que esperava transmitir calma.

– Ei, eu já te encontro lá, ok? Tenho que descer pra falar com a doutora Jane sobre o meu ombro, acho que demoro uns dez minutos... Não mais do que isso.

– Claro. Quer que eu vá com você?

Por um segundo, Qhuinn se perdeu ao observar seu macho. Blaylock, filho de Rocke, era tudo o que ele não era: impecável como um corpo esculpido por Michelangelo, tinha um rosto de arrasar e uma cabeleira ruiva e lustrosa como a cauda de um pônei; era inteligente, mas também equilibrado, o que fazia toda a diferença; era firme e confiável como uma montanha de granito, o tipo de cara que nunca vacilava.

Em tudo o que importava, comparado a Blay, Qhuinn era uma banheira de plástico perto de uma de porcelana; um conjunto incompleto de pratos ao lado de uma dúzia perfeita de louças; uma coisa rachada no meio de algo inquebrável.

Por algum motivo, porém, Blay o escolhera. Contra todas as possibilidades, o filho imperfeito e desonrado de uma das Famílias Fundadoras, o viciado sexual de olhos despareados, o vagabundo hostil e arredio... De algum modo acabara com o Príncipe Encantado, e caralho, se isso não o convertia.

Blay era o motivo que o fazia respirar, o lar que nunca tivera, a luz do sol que empoderava sua terra.

– Qhuinn? – Os olhos azuis iridescentes se apertaram. – Você está bem?

– Desculpe. – Ele se inclinou e pressionou os lábios na jugular do macho. – Eu me distraí. Mas você sempre tem esse efeito em mim, não é?

Quando Qhuinn se afastou, Blay estava corado – e excitado. Aquela fragrância era uma digressão que não podia ser facilmente ignorada.

A não ser pelo fato de que tinha um problema real para resolver.

– Diga aos irmãos que não demoro. – Qhuinn apontou na direção da sala de bilhar. – E que vou dar uma surra neles.

– Você sempre faz isso. Mesmo com Butch.

As palavras foram suaves, mas respaldadas por uma adoração que fazia com que Qhuinn contasse cada uma das suas bênçãos.

Cedendo ao instinto, Qhuinn se aproximou e sussurrou ao ouvido do cara:

– Talvez queira se alimentar bem na Última Refeição. Vou te manter ocupado o dia inteiro.

Com uma lambida no pescoço em que pretendia trabalhar mais tarde, Qhuinn se afastou antes que não pudesse mais se distanciar de seu par.

Seguindo ao redor da base da escada, passou por uma porta escondida e desceu pelo sistema de túneis que conectava os componentes da propriedade. O centro de treinamento subterrâneo da Irmandade ficava cerca de meio quilômetro afastado da mansão, e aquela passagem subterrânea ligando as duas partes era um espaço amplo iluminado por painéis de luzes fluorescentes afixados ao teto.

Enquanto ele avançava, o som dos seus passos ecoava ao redor, como se os coturnos aplaudissem a iniciativa.

Contudo, Qhuinn não sabia se eles estavam certos. Não fazia a mínima ideia do que estava fazendo ali.

A porta atrás do armário de suprimentos se abriu sem emitir nenhum som, uma vez inserida a senha; em seguida, o guerreiro passava ao longo de prateleiras repletas de papéis para impressora, canetas, blocos de anotação e outras merdas vindas da loja de materiais para escritório. A sala, além do depósito, apresentava a típica disposição de mesa, cadeira, computador e arquivos metálicos, e nenhuma dessas coisas foi particularmente percebida quando ele passou pela porta de vidro adiante para chegar ao corredor da frente. Com passadas longas e impacientes, atravessou todos os tipos de instalações de nível profissional – desde uma academia completa e sala de pesos à altura de Dwayne Johnson, até os vestiários e as primeiras salas de aula.

A porção destinada à clínica do centro de treinamento tinha outra quantidade de cômodos voltados ao tratamento, uma sala de operações e diversos leitos hospitalares. A doutora Jane, companheira de V., e o doutor Manello, companheiro de Payne, cuidavam de todo tipo de ferimentos obtidos em combate, além de problemas domésticos e sem falar dos partos de L.W., Nalla e dos gêmeos Lyric e Rhampage.

Qhuinn bateu na primeira porta ao se aproximar e não teve que esperar nem uma batida do seu coração para ter uma resposta.

– Entre! – a doutora Jane disse do lado oposto da porta.

A boa médica vestia roupas cirúrgicas e um par de Crocs. Sentada diante do computador na outra extremidade da bem equipada clínica, seus dedos voavam sobre o teclado enquanto ela atualizava o prontuário de alguém cabisbaixa; seus cabelos loiros curtos espetados como se ela tivesse passado a mão por eles durante horas.

– Um segundinho... – Ela apertou a tecla de “enter” e girou. – Ah, olá, papai. Como está?

– Ah, você sabe, imerso no amor.

– Aqueles seus bebês são maravilhosos. E olha que eu nem gosto de crianças.

O sorriso dela era acolhedor como uma torta de maçãs. Os olhos verde-montanha, por outro lado, eram afiados como raios laser.

– Graças a você, eles estão se saindo muito bem.

Houve uma deixa para o silêncio. Quando a conversa não evoluiu, ele se pôs a caminhar pela clínica, pois não conseguia ficar parado. Deu uma espiada nos equipamentos estéreis e imaculados sobre os gabinetes de aço inoxidável, inspecionou a maca vazia sob as luzes usadas nas operações, ajeitando as calças.

A médica apenas ficou sentada no seu banquinho, calma e silenciosa, deixando que ele se debatesse com a sua mente. Quando o celular dela tocou, Jane deixou que caísse na caixa de mensagens sem nem ver quem poderia ser.

– Provavelmente estou errado – ele acabou concluindo. – Que porra sei eu, afinal?

A doutora Jane sorriu.

– Na verdade eu te acho um cara bem inteligente.

– Não sobre este tipo de coisa. – Com um pigarro, Qhuinn propôs a si mesmo que prosseguisse; ainda que a doutora Jane não parecesse estar com pressa, ele estava entediando a si mesmo. – Olha só... eu amo a Layla.

– Claro que sim.

– E quero o melhor pra ela. Ela é a mãe dos meus filhos. Quero dizer, além de Blay, ela é a minha companheira por causa das crianças.

– Com certeza.

Cruzando os braços diante do peito, ele parou de andar e empostou-se de frente à doutora Jane.

– Não estou dizendo que sei alguma coisa sobre fêmeas. Coisas como os seus humores e por aí vai. Só que... Layla tem chorado muito. Quero dizer, ela tenta esconder isso de mim e do Blay, mas... toda vez que vou vê-la, encontro bolas de lenços de papel no cesto de lixo, e seus olhos estão brilhantes demais, o rosto, corado. Ela sorri, mas o sorriso nunca passa da superfície. Os olhos dela... são uma tragédia de merda. E... e eu não sei o que fazer, só sei que isso não está certo.

A médica assentiu.

– Como ela se porta com as crianças?

– É fantástica, pelo que posso ver. É totalmente devotada a eles, e eles estão crescendo. Na verdade, o único momento em que a vejo meio que feliz é quando os têm nos braços. – Pigarreou novamente. – Então, o que estou imaginando... ou perguntando, sei lá, é se as fêmeas gestantes, depois que não estão mais grávidas, se elas não...

Jesus, ele merecia todo tipo de prêmio por saber se explicar tão bem. E os termos técnicos com os quais se debatia? Praticamente estava a um passo de receber o título de doutor em Medicina, assim como Jane.

Cacete.

Mas pelo menos a doutora Jane parecia reconhecer que aquele avião conversacional estava ficando sem pista para decolar.

– Acho que está querendo me perguntar a respeito de depressão pós-parto. – Após vê-lo assentir, ela prosseguiu: – Posso lhe afirmar que não é incomum entre os vampiros, e que pode ser incapacitante. Conversei com Havers a respeito disso antes, e estou muito feliz que tenha vindo me procurar para tratar do assunto. Às vezes, uma mãe recente sequer está ciente de que isso pode se tornar um problema.

– Não existe nenhum exame... ou um... sei lá.

– Existem algumas maneiras diferentes de avaliar a questão, e o comportamento é uma delas. Claro que posso ir conversar com ela, e também posso fazer alguns exames de sangue para avaliar os níveis hormonais. E, sim, existem muitas coisas que podemos fazer para tratar dela e dar-lhe o apoio necessário.

– Não quero que Layla pense que estou agindo pelas costas dela nem nada assim.

– O que é totalmente compreensível. Mas tudo bem, porque eu pretendia mesmo subir até lá para dar uma olhada nela e nos bebês. Posso abordar o tema como se fosse parte de uma rotina. Nem terei que citar seu nome.

– Você é a melhor.

Com o assunto resolvido, ele supôs que era hora de voltar para junto do seu companheiro e para o torneio de bilhar. Mas não saiu. Por algum motivo, não conseguia.

– Não é sua culpa – garantiu a doutora Jane.

– Eu a engravidei. E se o meu... – Ok, ela era médica, mas Qhuinn ainda não queria pronunciar a palavra esperma perto dela. O que era loucura. – E se a minha metade for a causa...

A porta se abriu, e Manny enfiou a cabeça pela abertura.

– Ei, está pronta...? Opa, desculpem.

– Estamos quase terminando aqui. – A doutora Jane sorriu. – E você não nos viu juntos.

– Pode deixar. – Manny bateu na soleira. – Se eu puder ajudar de alguma maneira, é só avisar.

E lá se foi o cara, como se nunca tivesse aparecido ali.

A doutora Jane se levantou e se aproximou dele. Era mais baixa do que Qhuinn, e sua estrutura nem se comparava aos quase 140 quilos de músculos masculinos. Mas ela parecia pairar acima dele; a autoridade na voz e nos olhos dela era exatamente o que ele precisava para acalmar seu lado irracional.

Quando encostou a mão no braço dele, sua expressão estava firme.

– Não é sua culpa. Esse, às vezes, é o curso da natureza em algumas gestações.

– Fui eu quem colocou aqueles bebês dentro dela.

– Sim, mas imaginando que este seja um caso de os hormônios se autorregularem após o parto, não há ninguém para culpar. Além disso, você agiu bem ao vir até aqui, e também pode ajudá-la simplesmente conversando com ela e lhe dando o tempo e o espaço necessários para que ela também converse com você. Para ser sincera, eu já havia notado que ela não tem descido para as refeições. Acho que precisamos encorajá-la a se juntar ao resto de nós, para que ela sinta o quanto estamos disponíveis para ampará-la.

– OK. Certo, então.

A doutora Jane franziu a testa.

– Posso lhe dar um conselho?

– Por favor.

Ela o apertou no braço.

– Não se sinta responsável por algo sobre o qual não tem controle algum. Isso é um convite ao estresse que acabará deixando-o loucamente infeliz. Sei que é mais fácil falar do que fazer, mas tente se lembrar disso, está bem? Eu o vi acompanhá-la a cada estágio da gestação. Não houve nada que você não tenha feito por ela ou que não faria por ela, e você é um pai fantástico. Somente coisas boas o esperam, eu prometo.

Qhuinn inspirou fundo.

– Certo.

Mesmo quando sua preocupação persistiu, ele se lembrou de que, durante a gestação de Layla, descobrira que podia confiar na doutora Jane. A médica o ajudara a trilhar a estrada da vida e da morte, e nunca o decepcionara, nunca deixara que se desgarrasse. Tampouco mentira para ele e lhe dera maus conselhos.

– Vai ficar tudo bem – ela prometeu.

Infelizmente, como pôde-se perceber mais tarde, a boa médica estava errada.

Mas ela não tinha controle algum sobre o destino.

Nem ele.


CAPÍTULO 4

O bebê estava arruinado. Tudo o que detinha não passava de uma versão modificada e horrenda das feições de Hharm; o lábio superior era todo errado, como o de uma lebre.

Hharm largou o bebê no piso sujo da caverna, e a coisa não emitiu som algum ao aterrissar, os braços e as pernas mal se moviam, as carnes azuladas e acinzentadas, o cordão ainda o unia à fêmea. Iria morrer, assim como deveriam todos os resultados contra as regras da natureza e do parto – e essa consequência não era causa de indignação.

O fato de Hharm ter sido ludibriado, porém, o era. Desperdiçara dezoito meses, uma quantidade enorme de horas, aquele momento de esperança e de felicidade numa monstruosidade insuportável. E o que ele sabia com certeza? Que não era culpa sua.

– O que você fez? – exigiu saber da fêmea.

– Um filho! – Ela arqueou as costas em agonia renovada. – Eu lhe dei...

– Uma maldição. – Hharm se levantou em toda a sua altura. – O seu ventre é impuro. Ele corrompeu o presente do meu sêmen e produziu isso...

– O seu filho...

– Olhe para ele! Veja com seus olhos! Isso é uma abominação!

A mulher se esforçou e suspendeu a cabeça.

– Ele é perfeito, ele é...

Hharm empurrou o bebê com a bota, fazendo com que ele movesse os pequenos membros e emitisse um gritinho fraco.

– Nem mesmo você pode negar o que está diante de nós!

Os olhos injetados dela se afixaram no bebê, e depois se arregalaram...

– Isso é...

– Você fez isso – ele anunciou.

A ausência de argumentos por parte dela foi uma rendição inevitável, visto que o defeito não podia ser negado. Então ela gemeu como se ainda estivesse em trabalho de parto, os dedos ensanguentados arranharam a terra fria, as pernas tremeram quando se afastaram mais. Depois de mais esforços, algo saiu da mulher, e ele pensou que talvez fosse mais um. De fato, seu coração se viu cheio de otimismo enquanto ele rezava para que o primeiro fosse exhile dhoble, o amaldiçoado de um par de gêmeos.

Infelizmente, não. Era apenas algo do interior da fêmea, talvez o estômago ou o intestino dela.

E o bebê prosseguiu chorando, o peito se estufando e murchando com pouco efeito.

– Você deve morrer aqui, assim como ele – Hharm disse sem cuidado algum.

– Eu não...

– Suas entranhas estão saindo.

– O bebê é... – ela hesitou. – Ele...

– É uma abominação da natureza contra o desejo da Virgem Escriba.

A fêmea se calou e relaxou como se o processo da expulsão tivesse chegado ao fim, e Hharm aguardou pelo ataque em que a alma dela se desprenderia do corpo. Só que ela continuou a respirar e olhar para ele... e a existir. Que espécie de truque era aquele? A ideia de que ela não iria ao Dhunhd por conta disso era um insulto.

– Isso é obra sua – ralhou com a fêmea.

– Como sabe que não foi a sua semente que...

Hharm apoiou a bota na garganta dela e a pressionou, interrompendo-lhe as palavras. Quando uma onda de ódio induziu o corpo do guerreiro rumo a uma ação mortal, somente a possibilidade de que esse evento fosse um castigo por suas ações prévias o impediu de esmagar-lhe o pescoço.

Ela tem que pagar, foi seu pensamento abrupto. Sim, a culpa era dela, e o desapontamento causado necessitava de uma reparação.

Sibilando, ele revelou as presas.

– Deixarei que viva para que possa criar esta monstruosidade e que seja vista com ele. Esta é sua maldição por me amaldiçoar: ele ficará sempre em seu cangote, como um amuleto ou uma danação, e se eu descobrir que essa coisa morreu, eu a perseguirei e a esquartejarei centímetro a centímetro. Depois matarei a sua irmã, toda a prole dela e os seus parentes.

– O que está dizendo?!

Hharm se inclinou para baixo, o latejar no rosto e na cabeça parecia muito familiar.

– Ouviu minhas palavras. Conhece meu desejo. Desafie-o por sua conta e risco.

Quando ela se acovardou, o Irmão se afastou e fitou a sujeira proveniente do parto, a fêmea patética, aquele resultado horrendo – e cortou o ar com a mão, como se os apagasse da linha do tempo. Em meio aos bramidos da tempestade e à extinção da fogueira, ele foi até o casaco de peles.

– Você arruinou o meu filho – reclamou ao passar o peso das peles sobre os ombros. – O seu castigo é criar esse horror como declaração do seu fracasso.

– Você não é Rei – ela rebateu, fraca. – Não pode ordenar nada.

– Este é um serviço comunitário que faço aos machos, meus camaradas. – Apontou o dedo na direção do recém-nascido choroso. – Com isso grudado ao seu quadril, ninguém mais se deitará com você para sofrer de maneira similar.

– Não pode me forçar a isso!

– Ah, posso, sim, e o farei.

Ela era uma fêmea mimada e desafiadora por natureza, e fora isso o que o atraíra nela a princípio – tivera que lhe ensinar o que fazer e as orientações foram bem interessantes por um tempo. De fato, houvera apenas uma instância em que ela tentara exercer domínio sobre ele. Uma vez e nunca mais.

– Não me teste, fêmea. Já fez isso antes e deve se lembrar do resultado.

Quando ela empalideceu, ele assentiu na sua direção.

– Sim. Isso mesmo.

Ele quase a matara na noite em que lhe mostrara que, enquanto ele ficaria com que desejasse, quando e onde o quisesse, ela jamais teria permissão para se deitar com outro macho enquanto estivesse tangivelmente associada a ele. Foi logo depois disso que ela decidiu que a única possibilidade de prendê-lo seria dando-lhe o filho que ele almejava e, ao mesmo tempo, ele começara a pensar em seu legado.

Por azar, ela fracassara em seus objetivos.

– Eu odeio você – ela gemeu.

Hharm sorriu.

– O sentimento é mútuo. E mais uma vez lhe digo que é melhor garantir a sobrevivência dessa coisa. Se eu descobrir que o matou, revidarei a morte dele nas suas carnes e em toda a sua linhagem.

Dito isso, ele cuspiu duas vezes junto aos pés dela: uma por causa da fêmea e outra pelo bebê. Depois se afastou enquanto ela o chamava, e o bebê desertado berrava contra o frio.

Do lado de fora, a tempestade prosseguia, intensa, a neve rodopiante o cegava e depois diminuiu para uma revoada de pássaros que revelava todo o cenário. No vale logo abaixo, montanhas se elevavam às margens de um lago, a neve acumulada sobre a água congelada que formava ondas nos meses mais quentes. Estava tudo escuro, gélido e inerte, mas ele se recusava a encontrar um mau presságio na imagem à sua frente.

Com a mão usada para a adaga comichando, e a hostilidade dentro dele acelerando como um corcel disparado, sugeriu a si mesmo que não atentasse para esse resultado.

Encontraria outro ventre.

Em algum lugar, havia uma fêmea que lhe daria o legado merecido e necessário. Ele a encontraria e a faria crescer com a sua semente.

Existiria um filho apropriado para ele. Hharm jamais aceitaria qualquer outro resultado.


CAPÍTULO 5

Quando se aproximou da entrada da caverna sagrada da Irmandade, Tohr se esgueirou pelo interior úmido, e uma vez ali dentro, o cheiro de terra e de uma fonte de chamas distante irritou suas narinas. Os olhos se ajustaram de imediato, e quando ele seguiu em frente, aquietou o movimento de seus coturnos. Não queria ser ouvido, mesmo que sua presença fosse notada logo em seguida.

Os portões não estavam muito longe e eram constituídos por grossas barras de ferro, cuja espessura era semelhante a de um antebraço de guerreiro; as barras de ferro eram altas como árvores e possuíam uma cobertura em malha de aço, a fim de impedir a desmaterialização. Tochas sibilavam e tremeluziam em cada lado e, além, ele via o começo do grande corredor que conduzia mais para dentro da terra.

Parando diante da enorme barreira, pegou a chave de cobre e não sentiu remorso algum por ter roubado o objeto da gaveta da escrivaninha ornamental de Wrath. Pediria desculpas pela infração mais tarde.

E também pelo que faria na sequência.

Tohr destrancou o mecanismo, empurrou o peso colossal, entrou e voltou a trancar o portão atrás de si. Caminhando à frente, seguiu o caminho natural, expandido por talhadeiras e músculos fortes, e depois adornado por prateleiras. Sobre as diversas tábuas, centenas e centenas de jarros alimentavam um jogo de luz e sombras.

Os receptáculos eram de todos os formatos e tamanhos, e vinham de diferentes eras, desde a antiga até a moderna, mas o que havia dentro de cada um deles era o mesmo: o coração de um redutor. Desde o princípio da guerra contra a Sociedade Redutora, ainda no Antigo País, a Irmandade vinha marcando as mortes dos inimigos ao tomar posse dos jarros das vítimas e trazendo-os até ali para aumentar a coleção.

Em parte como troféu, em parte como um “foda-se, Ômega”, aquilo era um legado. Era um orgulho. Uma expectativa.

E talvez deixasse de sê-lo. Havia poucos e esparsos redutores nas ruas de Caldwell e em outras paragens no momento, portanto deveriam estar próximos.

Tohr não sentiu nenhuma alegria ante tal conquista. Mas talvez fosse em virtude do terrível aniversário dessa noite.

Era difícil sentir qualquer outra coisa que não a perda de Wellsie no dia que já fora seu aniversário.

Após uma curva sutil, ele parou. Mais adiante, a cena mais parecia saída de um filme que não se decidia se era Indiana Jones, Grey’s Anatomy ou Matrix. No centro das antigas paredes de pedra, tochas acesas e jarros despareados e empoeirados, um amontoado de equipamentos médicos piscando e emitindo sinais interferia com um corpo sobre uma maca. E ao lado do prisioneiro? Dois imensos vampiros cobertos da cabeça aos pés com couro preto e armas negras.

Butch e V. eram o Frick e Frack da Irmandade – o ex-policial da divisão de homicídios dos humanos e o filho da Criadora da raça, o bom garoto católico e o depravado sexual, o viciado em roupas e o czar da tecnologia –, unidos pela devoção partilhada pelo Red Sox de Boston e respeito mútuo e afeto que não conheciam limites.1

V. percebeu a presença de Tohr primeiro, virando com tanta rapidez que seu cigarro aceso espalhou cinzas pelo ar.

– Ah, inferno. Não. De jeito nenhum, porra! Você vai dar o fora daqui!

Essa opinião, a despeito do volume pronunciado, foi fácil de ignorar, pois Tohr se concentrava no pedaço de carne sobre a maca. Xcor estava deitado ali, com tubos entrando e saindo de si como se ele fosse a bateria de um carro prestes a receber uma recarga, com a respiração regular... Não, espere, a respiração não estava regular.

V. deteve Tohr, aproximando-se dele e ainda um pouco mais. E o que mais? O Irmão sacara seu atirador poodle – e o cano da 40 mm apontava diretamente para o rosto de Tohr.

– Tô falando sério, meu irmão.

Tohr olhou para o prisioneiro por cima do ombro largo. E se viu sorrindo.

– Ele está acordado.

– Não, ele não est...

– A respiração dele mudou. – Tohr apontou para o peito nu. – Veja.

Butch franziu o cenho e se aproximou do prisioneiro.

– Ora, ora, ora... Hora de acordar, filho da mãe.

V. virou-se para trás.

– Filho da puta.

Mas a arma não se moveu, tampouco Tohr. Por mais que quisesse Xcor, ele acabaria recebendo uma bala na garganta se desse mais um passo: V. era o menos sentimental dos irmãos e tinha a paciência de uma cascavel.

Naquele momento, os olhos de Xcor piscaram. Na luz tremeluzente das tochas, eles pareciam negros, mas Tohr se lembrava de que eles eram azuis. Não que isso importasse.

V. colocou a cara no seu caminho, os olhos de diamante eram como adagas.

– Este não vai ser o presente de aniversário que vai dar para a sua shellan morta.

Tohr arrastou os lábios para trás das presas.

– Vai se foder.

– Isso não vai acontecer. Pode me xingar o quanto quiser, mas não. Você sabe como as coisas vão acontecer e ainda não está na sua hora.

Butch sorriu para o prisioneiro.

– Estávamos esperando que se juntasse à festa. Aceita uma bebida? Talvez um misto de nozes antes ter que ajeitar a poltrona para a decolagem? Não há por que te mostrar as saídas de emergência. Você não tem que se preocupar com isso.

– Vamos, Tohr – V. disse. – Agora.

Tohrment expôs as presas, mas não para o irmão.

– Seu bastardo, vou te matar...

– Não, nada disso. – V. passou o braço ao redor do bíceps de Tohr, e faltou pouco para começarem a dançar uma quadrilha. – Lá fora...

– Você não é Deus...

– Nem você, motivo pelo qual está de saída.

Nos recessos da mente, Tohr sabia que o filho da mãe tinha razão. Ele não estava nem meio racional no momento – e P.S., que V. se fodesse por se lembrar que noite era aquela.

Sua amada shellan, seu primeiro amor, completaria duzentos e vinte e seis anos. E teria um filho dos dois nos braços.

Mas o destino se opusera.

– Não me obrigue a atirar em você – V. alertou com aspereza. – Venha, meu irmão. Por favor.

O fato de as duas últimas palavras terem saído da boca de V. foi o que surtiu efeito. A cena era tão chocante que desarmou Tohr de sua loucura e raiva.

– Venha, Tohr.

Dessa vez, Tohr se permitiu ser conduzido, à medida que seu grande esquema desinflanva; o silêncio absoluto depois de sua loucura o fazia tremer dentro da própria pele. Que porra estivera fazendo? Mas que cacete?

Sim, recebera o privilégio de matar Xcor com um decreto da realeza, mas só quando recebesse autorização expressa de Wrath. E isso ainda não acontecera explicitamente.

Tinham evitado um desastre de proporções traidoras.

Seria como trocar de lugar. Um traidor morto por outro bem vivo.

Quando chegaram aos portões que Tohr havia destrancado para conseguir acesso ao prisioneiro, V. estendeu a mão enluvada.

– Chave.

Tohr não olhou para o irmão ao tirar o objeto da jaqueta de couro e entregá-la. Depois de uns cliques e rangidos, o caminho estava livre, e Tohr saiu sem estar convencido, com as mãos no quadril, os coturnos chutando a terra, a cabeça pensa.

Quando ouviu uma nova sequência de rangidos e cliques, deduziu que estava sendo trancado do lado de fora, sozinho. Mas V. estava bem ao seu lado.

– Eu prometo – o irmão disse – que você, e apenas você, vai mattá-lo.

Tohr se perguntou se isso bastaria. Ponderou se seria o bastante. Será que algum dia encontraria satisfação?

Antes de chegarem à boca da caverna, Tohr parou.

– Às vezes... a vida não é nada justa.

– Não. Não é.

– Odeio isso. Odeio pra caralho. Passo por... períodos, não apenas noites, mas semanas, às vezes até um ou dois meses... em que me esqueço de tudo. Mas a merda sempre volta e, depois de um tempo, não dá mais pra segurar. Não dá. – Bateu na lateral da cabeça com o punho. – Tem esse verme aqui dentro, e sei que matar Xcor não vai me distrair por mais do que dez minutos. Mas numa noite como esta, eu aceitaria até isso.

Sucedeu-se o som de um fósforo sendo riscado quando V. acendeu um cigarro.

– Não sei o que dizer, meu irmão. Eu diria pra você rezar, mas não tem mais ninguém lá em cima te ouvindo.

– Não tenho certeza se a sua mãe nos ouviu algum dia. Sem ofensas.

– Não ofendeu. – V. exalou. – Confie em mim.

Tohr se concentrou na saída da caverna, e quando tentou respirar, sentiu uma estranha exaustão.

– Estou cansado de lutar sempre a mesma briga. Desde que Wellsie foi... assassinada... sinto como se um pedaço meu nunca tivesse cicatrizado, e não aguento essa dor nem mais um segundo. Nem mais um maldito segundo. Mesmo que ela migrasse para algum outro lugar, já seria melhor.

Estabeleceu-se um longo silêncio entre eles, abafado apenas pelo urro dos ventos invernais que entravam na caverna silenciosa.

No fim, V. praguejou.

– Bem que eu gostaria de poder te ajudar, meu irmão. Quero dizer, se você precisar de um abraço confortador... eu devo conseguir alguém pra te dar uns tapinhas nas costas.

Tohr sacudiu a cabeça quando o lábio superior se retorceu num sorriso.

– Isso foi quase engraçado.

– Pois é, tentei pegar leve. – V. exalou de novo. – Era isso ou eu atirava em você, e odeio preencher a papelada burocrática do Saxton, sabe?

– Sei o que quer dizer. – Tohr esfregou o rosto. – Verdade...

Os olhos diamantinos de V. mudaram de foco.

– Apenas esteja ciente que lamento. Você não merece nada disso. – Certa mão pesada pousou no ombro de Tohr e apertou-o. – Se eu pudesse tirar a sua dor, é o que faria.

Quando Tohr piscou rápido, pensou que era uma coisa boa que V. não fosse de abraçar, ou então teriam um maldito colapso emocional acontecendo ali.

Do tipo de colapso que um macho não retornaria intacto.

Mas, pensando bem, ele estava mesmo intacto agora?


BOATE SHADOWS, CENTRO DE CALDWELL


Trez Latimer sentia-se como uma espécie de divindade ao olhar através da parede de vidro do escritório no segundo andar da sua boate. Abaixo, no espaço aberto do armazém convertido, uma multidão de humanos excitados estabelecia um padrão de atração e desdém num mar tumultuado de lasers púrpura e batidas pesadas de baixo.

Em grande escala, sua clientela era composta de millenials, os nascidos entre 1980 e 2000. Definidos pela internet, pelo iPhone, pela ausência de oportunidades econômicas – ao menos segundo a mídia humana –, era um grupo demográfico de moralistas perdidos, comprometidos em salvar uns aos outros, com a preservação dos direitos de todos, e a promoção de uma falsa utopia de pensamento liberal que fazia o macarthismo parecer atenuado.

Mas também eram, da maneira dos jovens, esperançosos sem fundamento.

E como ele os invejava.

Enquanto se esbarravam e colidiam uns nos outros, ele testemunhava o êxtase em seus rostos, o otimismo exuberante de que encontrariam o verdadeiro amor e a felicidade naquela noite mesmo – a despeito de todas as outras noites nas quais vieram até a sua boate e a aurora chegara, expulsando-o com nada além de exaustão, uma nova DST, e mais um fardo de vergonha e dúvida enquanto se perguntavam o que tinham feito, e com quem.

Ele suspeitava, contudo, que, para a maioria, a cura de tamanha angústia era apenas cerca de duas horas de sono, um venti latte da Starbucks e uma injeção de penicilina.

Quando se é jovem assim, quando ainda é preciso enfrentar os desafios que não se consegue sequer começar a compreender, a sua resistência não tem limites.

E era por isso que o vampiro desejaria poder trocar de lugar com eles.

Era estranho colocar os humanos em qualquer tipo de pedestal. Sendo um Sombra de mais de duzentos anos de vida, Trez há tempos considerava aqueles ratos sem cauda algo inferior, um tumulto inconveniente no planeta, bem como formigas na cozinha ou camundongos no porão. Só que não se podia exterminar os humanos. Sujeira demais. Melhor tolerá-los do que arriscar a exposição da espécie ao assassiná-los só para liberar vagas de estacionamento, diminuir as filas nos supermercados e as notificações do Facebook.

No entanto, ali estava ele, ansioso por trocar de lugar com qualquer um deles, mesmo que fosse por uma ou duas horas.

Improcedente.

Mas, pensando bem, eles não mudaram. Quem mudou foi ele.

Minha rainha, está na hora de partir? Conte-me se for.

Enquanto as lembranças o intimidavam dentro do cérebro, ele cobriu os olhos e pensou: Não, Deus. De novo, não. Não queria voltar para a clínica da Irmandade... para o lado do leito da sua amada Selena, morrendo por dentro enquanto ela expirava de verdade.

A verdade, contudo, era que ele jamais abandonara esses eventos, mesmo que o calendário sugerisse o contrário. Depois da passagem de mais de um mês, ele ainda se lembrava de cada mínimo detalhe da cena, desde a respiração torturada dela até o pânico no olhar enquanto lágrimas rolavam por ambos os rostos.

Sua Selena fora acometida por uma doença que raramente afetava membros da classe sagrada. Em todas as gerações de Escolhidas, algumas tiveram a Prisão, que era um jeito horrível de morrer: a mente era deixada viva na casca congelada do corpo, sem nenhuma escapatória, nenhum tratamento para ajudar, ninguém para salvar.

Nem mesmo o macho que a amava mais do que a própria vida.

Quando o coração de Trez tropeçou no âmago do peito, ele abaixou as mãos, meneou a cabeça e tentou se reconectar com a realidade. Estivera se debatendo contra esses episódios invasivos, e eles vinham se tornando mais frequentes em vez de menos – o faziam se preocupar com sua sanidade. Chegou a ouvir o ditado de que “o tempo cura as feridas” e, droga, talvez aquilo fosse verdade para outras pessoas. Para ele? Seu luto se transformara de dor incandescente, no começo, a uma agonia tão ardorosa que rivalizava com as chamas da pira funerária, até aquelas reminiscências crônicas que pareciam girar cada vez mais rápido ao redor do esteio aberto da sua perda.

Sua própria voz ecoava na cabeça: Eu entendi direito? Você quer que isto... termine?

Quando os momentos finais de Selena chegaram, ela já não conseguia mais falar. Tiveram que se apoiar num sistema de comunicação pré-combinado que supunha o controle dela sobre as pálpebras até quase o fim: uma piscada para não... duas para sim.

Você quer que isto... termine?

Ele soubera qual seria a resposta dela. Lera-o na expressão exausta, distante e enfraquecida dela. Mas aquela fora uma das vezes na vida em que se queria ter a mais absoluta certeza.

Ela piscara uma vez. E de novo depois.

E ele estivera ao lado dela quando as drogas pararam seu coração e lhe conferiram o alívio de que ela necessitava ao ser transportada.

Em todos os seus anos, ele jamais imaginara aquele tipo de sofrimento. Nas duas partes. Ele não teria conseguido criar uma morte pior saída de qualquer pesadelo, e não poderia ter imaginado que teria que assentir para Manny, autorizando-o a administrar o medicamento enquanto gritava internamente, pois seu amor se esvaía e o deixava sozinho pelo resto de suas noites.

O único conforto era que o sofrimento dela chegara ao fim.

A única realidade era que o seu tinha apenas começado.

No período subsequente, encontrou conforto no fato de que preferiria ser o responsável por sentir a ausência dela, e não o contrário. Mas, conforme o tempo prosseguiu, acabou usando demais esse antídoto, pois era o único que possuía, e agora ele já não surtia mais efeito.

Portanto, não havia nada para reavivá-lo. Tentou beber, mas o álcool só servia para ele perder o pouco controle que tinha sobre as lágrimas. Não dava a mínima para a comida. Sexo era algo completamente fora de questão. E ninguém o deixava lutar – pois tanto os Irmãos quanto iAm reconheciam seu estado desgovernado.

Portanto, o que lhe restava? Nada, a não ser se arrastar ao longo dos dias e das noites, e rezar para o mais básico dos alívios: um respiro desimpedido, um período de tranquilidade mental, uma hora de sono sem perturbações.

Ao estender a mão, tocou o painel de vidro inclinado que era a sua janela para o que ele considerava ser o outro mundo, o exterior do seu inferno isolado. Engraçado que ele agora considerava “outro” o que um dia fora o mundo “real”... E mesmo sem a separação das espécies, da idade, do seu poleiro acima da confusão da boate, ele se sentia tão à parte de todos eles.

Tinha a sensação de que sempre permaneceria afastado de todos.

E, francamente, ele simplesmente não poderia continuar assim.

A dor o destroçara e, se não fosse pelo fato de que os suicidas tinham a entrada negada no Fade, ele teria metido uma bala do seu 48 mm na cabeça horas após a morte dela.

Pensou que não suportaria outra noite assim.

– Por favor... me ajude.

Trez não fazia a mínima ideia de quem falava com ele. Do lado dos vampiros, a Virgem Escriba já não existia mais – e no seu atual estado mental ele compreendia por completo o motivo de ela ter largado o microfone e saído do palco de sua criação. E, como um Sombra, ele fora criado para adorar sua Rainha – o único problema era que ela estava vinculada ao seu irmão, e rezar para a cunhada parecia muito estranho.

Uma declaração autêntica de que toda aquela coisa espiritual não passava de um monte de asneira.

E, mesmo assim, seu sofrimento era tão grande que ele tinha que tentar buscar ajuda.

Inclinando a cabeça para trás, olhou para o teto baixo preto e despejou seu coração partido para o mundo:

– Eu só a quero de volta. Eu só... quero Selena de volta. Por favor... se existir alguém aí em cima, me ajude. Devolva-a para mim. Não me importo em que forma ela estiver... Eu só não consigo mais fazer isto. Não consigo mais viver assim nem pela porra de uma única noite.

Claro que não houve resposta. E ele se sentiu um completo idiota.

Pois é, como se a vastidão do universo lhe iria despejar outra coisa que não apenas um meteoro?

Além disso, será mesmo que existia um Fade? E se ele estivesse apenas alucinando durante a purificação e somente imaginara ter visto a sua Selena? E se ela só tivesse simplesmente morrido? Como se... tivesse apenas deixado de existir? E se todas as bobagens a respeito de um lugar celestial aonde nossos amados iam e esperavam pacientemente por nós não passasse de um mecanismo de defesa criado por aqueles deixados para trás mergulhados no tipo de agonia em que ele se encontrava?

Uma falácia mental para cuidar de um ferimento emocional.

Reajustando a cabeça, voltou a fitar a multidão abaixo...

Pelo vidro, o reflexo de uma imensa figura masculina parada logo atrás fez com que ele se girasse e levasse a mão para a arma que mantinha enfiada na lombar. Mas então reconheceu o indivíduo.

– O que você está fazendo aqui? – exigiu saber.


Dois patinadores suíços, Werner Groebli e Hans Mauch, cujos nomes artísticos eram Frick e Frack, nutriram uma parceria duradoura. Posteriormente, seus nomes se tornaram gíria para designar duas pessoas que trabalham juntas e se dão bem. (N.T.)


CAPÍTULO 6

A campina de 20 mil metros quadrados se elevava de uma estradinha deserta como oriunda do olhar crítico de um artista; todos os aspectos da colina e do vale pareciam sujeitos às regras dos padrões estéticos agradáveis. No alto do suave aclive coberto de neve, como uma coroa no topo da cabeça de um governante benevolente, um imenso bordo estendia seus galhos em uma áurea tão perfeita que mesmo a esterilidade do inverno não conseguia diminuir sua beleza.

Layla se desmaterializou até a base da colina, partindo da mansão, e subiu a pé até a árvore. Os chinelos usados no quarto não eram páreo para o chão congelado, o vento frio atravessava o roupão, e os cabelos se soltavam da trança, flanando ao seu redor.

Quando chegou ao cume, olhou para baixo, para as raízes do tronco glorioso dentro da terra.

Fora ali, pensou ela.

Ali, na base daquele bordo, ela vira Xcor pela primeira vez, convocada por alguém que ela acreditara ser um soldado de valor na guerra, alguém que ela alimentara na clínica da Irmandade... Alguém que a Irmandade deixara de lhe informar que, na verdade, era um inimigo e não amigo.

Quando o macho a chamara para que ela lhe provesse a veia, Layla não pensou em nada além do seu dever sagrado.

Por isso, transportara-se até ali... e perdera um pedaço de si no processo.

Xcor estivera à beira da morte, ferido e enfraquecido, e mesmo assim ela reconhecera sua força, ainda que em estado debilitado. Como poderia não tê-la notado? Era um macho tremendo, grosso no pescoço e no peito, forte nos braços, poderoso no corpo. Ele tentara recusar sua veia porque – ela gosta de acreditar – enxergara-a como uma inocente no conflito entre o Bando de Bastardos e a Irmandade da Adaga Negra, e quisera mantê-la afastada da situação. No fim, contudo, ele cedera, garantindo que ambos seriam a presa de uma ordem biológica que desconhecia a razão.

Ela inspirou fundo, observou a árvore e viu, através dos galhos desnudos, o céu noturno.

Depois que a verdadeira identidade de Xcor veio à tona, ela confessou a Wrath e à Irmandade suas ações, lacrimosamente clamando por perdão. E era um testemunho do rei e dos machos que o serviam o fato de a terem perdoado, e sem castigos, por ter prontamente ajudado o inimigo.

Em troca, era um parco testemunho da sua parte que ela tivesse voltado para junto de Xcor depois disso. Associou-se a ele. Tornou-se emocionalmente envolvida com ele.

Sim, existiu uma coerção inicial da parte dele na época, mas a verdade era que, mesmo que ele não a tivesse forçado? Sua vontade teria sido estar com ele. E o pior? Quando o relacionamento chegou ao fim, fora ele quem interrompera os encontros. Não ela.

Na verdade, ela o estaria vendo agora – e a dor da perda que sentia pela ausência dele era tão incapacitante quanto a culpa.

E isso foi antes ainda de ele ter sido capturado pela Irmandade.

Ela sabia exatamente onde ele havia sido aprisionado porque testemunhara suas condições naquela caverna... Sabia o que os Irmãos planejavam fazer com Xcor assim que ele despertasse.

Se ao menos houvesse um modo de salvá-lo... Ele nunca tinha sido cruel com ela, nunca a tinha ferido... jamais a havia abordado sexualmente, apesar do desejo que o habitava. Ele se manteve paciente e gentil... pelo menos até se afastarem.

Ele, entretanto, havia tentado matar Wrath. E essa traição era passível de punição com a morte...

– Layla?

Girando, ela tropeçou e caiu de lado, quase incapaz de se agarrar ao tronco áspero do bordo. Quando sentiu uma dor na palma, sacudiu-a na tentativa de apaziguá-la.

– Qhuinn! – exclamou.

O pai de seus filhos deu um passo à frente.

– Você se machucou?

Com um xingamento, ela limpou os arranhões, tirando a sujeira. Santa Virgem Escriba, como doía.

– Não, não. Estou bem.

– Pegue. – Ele apanhou algo de dentro do bolso da jaqueta de couro. – Deixe-me ver.

Ela tremia quando Qhuinn avaliou-lhe a mão e depois a envolveu na bandana preta.

– Acho que você vai viver.

Será?, ela pensou. Não tenho tanta certeza.

– Você está congelando.

– Sério?

Qhuinn tirou a jaqueta e a posicionou sobre os ombros dela, e Layla se viu engolfada pelo tamanho e pelo calor.

– Venha, vamos voltar para a mansão. Você está tremendo...

– Não posso mais fazer isso – ela desabafou num rompante. – Não consigo mais.

– Eu sei. – Quando ela se retraiu de surpresa, ele sacudiu a cabeça. – Sei o que há de errado. Vamos pra casa pra conversar. Vai ficar tudo bem, prometo.

Por um momento, ela não conseguiu respirar. Como ele podia ter descoberto? Como podia não estar bravo com ela?

– Como você... – As lágrimas surgiram com rapidez, a emoção se sobrepôs a tudo. – Sinto muito. Eu sinto muito... Não era para ser assim.

Ela não soube se foi ele quem abriu os braços ou se foi ela quem se lhe agarrou ao peito, mas Qhuinn a abraçou com força, protegendo-a do vento.

– Tá tudo bem. – Ele massageava grandes círculos nas costas dela com a palma, acalentando-a. – Só precisamos conversar a respeito. Podemos fazer algumas coisas, tomar algumas providências.

Ela virou o rosto para o lado e fitou a campina.

– Eu me sinto tão mal.

– Por quê? Isso está fora do seu controle. Não pediu por isso.

Ela se afastou.

– Eu juro, não pedi. E não quero que você pense nem por um segundo que eu poria Lyric e Rhampage em perigo...

– Tá de brincadeira? Sério, Layla, você ama aqueles dois com tudo o que tem dentro de si.

– Amo mesmo. Eu te garanto isso. E amo você e Blay, o Rei e a Irmandade. Vocês são a minha família, vocês são tudo o que tenho.

– Layla, preste atenção. Você não está sozinha, entendeu? E como eu já disse, existem coisas que podemos fazer...

– Mesmo? De verdade?

– Sim. Na verdade eu estava falando sobre isso antes de vir para cá. Eu não queria que pensasse que eu a estava traindo...

– Ah! Qhuinn! Eu sou a traidora! Sou eu quem está errada...

– Pare. Você não é. Vamos cuidar disso juntos. Todos nós.

Layla levou as mãos ao rosto, tanto a que estava com o curativo como a que estava descoberta. Então, pela primeira vez desde o que parecia ser uma eternidade, ela exalou o ar, um bálsamo de calma substituindo o terrível fardo que dispunha sobre si.

– Tenho que contar uma coisa. – Levantou o olhar para ele. – Por favor, saiba que tenho me remoído de arrependimento e de tristeza. Juro que nunca tive a intenção de que isso acontecesse. Tenho me sentido tão só, me debatendo com a culpa...

– Culpa é algo desnecessário. – Esfregou os polegares sob os olhos dela. – Você tem que se livrar disso, porque não consegue evitar o modo como se sente.

– Não consigo, de verdade, não consigo mesmo... E Xcor não é mau, não é tão ruim quanto você acha que ele é. Juro. Ele sempre me tratou com cuidado e gentileza, e sei que ele não voltaria a ferir Wrath. Eu sei disso...

– O quê? – Qhuinn franziu o cenho e sacudiu a cabeça. – Do que você está falando?

– Por favor, não o mate. É como você disse, existe um modo de fazer isso dar certo. Talvez vocês possam libertá-lo e...

Qhuinn não recuou; na verdade, ele a empurrou para longe de si. E depois pareceu se debater para encontrar as palavras.

– Layla – ele pronunciou devagar. – Sei que não estou ouvindo direito e estou tentando... Você pode...

Aproveitando-se do momento para expor sua posição, Layla se apressou em falar:

– Ele nunca me machucou. Todas as noites em que o procurei, ele nunca me feriu. Ele providenciou um chalé para que eu ficasse em segurança, e sempre estávamos apenas nós dois. Nunca vi nenhum dos Bastardos...

Ela prosseguiu enquanto a expressão do guerreiro se transformava de confusão para... algo gélido que lhe suscitou as feições de um completo desconhecido.

Quando Qhuinn voltou a falar, a voz saiu inexpressiva.

– Você esteve se encontrando com Xcor?

– Eu me senti muito mal...

– Por quanto tempo? – ele estrepitou. Mas não a deixou responder. – Você foi ao encontro dele enquanto estava grávida dos meus filhos? Você se associou por vontade própria com um inimigo conhecido enquanto os meus benditos filhos estavam no seu ventre? – Antes que ela conseguisse lhe responder, ele levantou o indicador. – E você precisa pensar muito bem na resposta. Não há volta para isto, e é melhor dizer a verdade. Se eu descobrir que mentiu pra mim, vou te matar.

Quando o coração de Layla começou a bater forte no peito, deixando-a tonta, seu único pensamento foi...

Você vai me matar de qualquer maneira.

De volta à shAdoWs, Trez guardou a arma e tentou retornar à realidade.

– E então? – ele inquiriu. – O que está fazendo aqui, ainda mais sem o seu poliéster especial do Tony Manero?

Lassiter, o Anjo Caído, sorriu de um modo que não contemplou seus estranhos olhos coloridos sem pupila; a expressão afetou apenas a parte inferior do rosto.

– Ah, você sabe, ternos de passeio estão ultrapassados para mim.

– Partindo para os anos 1980? Não tenho nada neon pra emprestar pra você.

– Não precisa, tenho outra fantasia para usar.

– Que bom pra você. Assustador pro resto de nós. Só me diz que não vai usar o maiô do Borat.

Quando o anjo não respondeu de pronto, Trez sentiu como se as garras de Fred Krueger estivessem passando pela sua nuca. Normalmente, Lassiter era o tipo de cara tão alegre que a maioria das pessoas não sabia se decidir entre meter uma bala nele para tirar todo mundo de um estado miserável... ou simplesmente apanhar uma lata de Coca-Cola e um saco de pipoca para assistir ao show.

Porque, mesmo quando ele irrita, a situação é sempre muito divertida.

Mas não essa noite. O olhar bizarro estava tão leve e espumoso quanto um bloco de granito, e o imenso corpo dele estava absolutamente imóvel, nenhum item de ouro nos pulsos ou pescoço, nos dedos ou orelhas, reluzia sob a luz baixa.

– Por que está brincando de estátua? – Trez murmurou. – Alguém trocou o lugar da sua coleção do My Little Pony de novo?

Incapaz de suportar o silêncio, Trez foi se sentar atrás da escrivaninha e começou a mexer em uma pilha de papéis.

– Está tentando ler minha aura ou alguma merda do tipo?

Não que para isso fosse necessário algum poder especial. Todos na mansão sabiam em que estado ele estava.

– Quero que vá jantar comigo amanhã à noite.

Trez levantou o olhar.

– Pra quê?

O anjo levou o tempo que quis para responder, seguindo devagar até o painel de vidro para encarar a multidão logo abaixo, no exato lugar em que Trez estava antes. Iluminado pela luz fraca, o perfil do anjo era o tipo de imagem que as fêmeas adorariam, com todas as proporções e os ângulos certos. Mas a cara de preocupação...

– Manda ver – Trez exigiu. – Já recebi uma vida inteira de más notícias. O que quer que seja, nada se compara ao que tenho passado.

Lassiter relanceou e deu de ombros.

– É só um jantar. Amanhã à noite. Sete horas.

– Eu não como.

– Sei disso.

Trez largou a pilha de faturas, de escala dos funcionários ou qualquer outra porra que o vinha mantendo ocupado, ainda que não as estivesse olhando de fato, junto ao amontoado de porcarias sobre a escrivaninha.

– Acho muito difícil acreditar em seu interesse a respeito de nutrição.

– Verdade. Essa coisa de “glúten é o seu inimigo” é uma bobagem sem fim. Nem me fale de Kombuchá, couve, ou qualquer coisa com propriedades antioxidantes, e na mentira de que o xarope de milho com alto teor de frutose é a fonte de todo o mal.

– Ouviu falar que a Kraft Macaroni & Cheese tirou todos os conservantes há meses?

– Pois é, e os filhos da mãe nem avisaram antes...

– Por que quer jantar comigo?

– Só estou sendo amigável.

– Não faz parte do seu estilo.

– Como disse antes, estou mudando algumas coisas. – Eeeee lá veio aquele sorriso de novo. – Pensei em começar com tudo. Quero dizer, se é pra virar a página, melhor começar do jeito que se deseja continuar.

– Sem ofensas, mas não estou a fim de passar tempo com pessoas de quem gosto de verdade. – Tudo bem, aquilo não soou muito bem. – O que quero dizer é que o meu irmão é o único que consigo tolerar agora, e nem ele eu quero ver.

Aquele sorriso de Lassiter era uma visão que Trez estava mais do que disposto a jamais rever – e observe como orações podem ser atendidas: o anjo estava seguindo para a porta.

– Te vejo amanhã.

– Não, obrigado.

– No restaurante do seu irmão.

– Ah, mas que porra, por quê?

– Porque ele serve o melhor macarrão à bolonhesa em Caldie.

– Você sabe o que eu quis dizer.

O anjo se limitou a dar de ombros.

– Vá lá e descubra.

– O inferno que vou! – Trez meneou a cabeça. – Olha só, sei que as pessoas andam preocupadas comigo e agradeço a preocupação. – Na verdade, não agradecia não. Nem um pouco. – Sim, perdi peso, e eu deveria comer mais. Mas é engraçado como, quando se tem o peito escancarado e o coração arrancado pelo destino, se perde o apetite. Por isso, se está querendo companhia só para não parecer que está jogando sozinho, por que não procura alguém que coma de verdade e troque mais de duas palavras com ela? Posso garantir que tanto eu quanto você teremos uma noite mais agradável assim.

– Até amanhã.

Quando o anjo saiu, Trez gritou para a ponta oposta do escritório:

– Vai se foder!

Quando a porta se fechou em silêncio, ele concluiu que, pelo menos, a discussão não continuaria. E quando estivesse comendo a bolonhesa sozinho, Lassiter entenderia que o Sombra não apareceria.

Problema resolvido.


CAPÍTULO 7

Há momentos na vida em que a amplitude da sua atenção se estreita em um foco tão exíguo que toda a sua consciência se concentra nessa única pessoa. Qhuinn não era alheio a esse fenômeno. Ele acontecia toda vez que estava sozinho com Blay. Quando segurava os filhos. Quando lutava contra o inimigo, em busca de garantir que voltaria para casa inteiro, sem ferimentos e concussões.

E estava acontecendo de novo agora.

Parados diante da base da árvore de Harry Potter, no topo de uma colina, com o vento invernal ao redor, Qhuinn estava ciente apenas do olho direito de Layla. Conseguia contar cada nuance verde-clara que irradiava do núcleo preto da íris. Poderia haver uma nuvem de cogumelos resultante de uma explosão nuclear ao longe, uma nave espacial acima da sua cabeça, uma fila de palhaços dançando ao seu lado... e ainda assim ele não teria visto, ouvido, percebido nada além daquilo.

Bem, isso não era inteiramente verdade.

Percebia de leve o rugido em seus ouvidos, um tipo de cruzamento do motor de um jato e dos fogos de artifícios que sibilam como uma banshee, girando em círculos até se exaurir.

– Responda – ele ordenou numa voz que não parecia a sua.

Ele a havia seguido até aquele local isolado quando sentiu sua ausência na mansão – e se deslocou até ali para falar com ela sobre depressão pós-parto. O plano era levá-la de volta para casa, confortá-la diante da lareira, colocá-la num caminho em que ela pudesse apreciar os seres pelos quais tanto se empenhou em trazer ao mundo.

Como diabos acabaram falando de Xcor e de ela ter se encontrado com ele?

Não fazia a mínima ideia.

Mas não havia mais nenhum mal-entendido. E nenhuma retratação a caminho. Ele via no olhar arregalado e no pânico silencioso que, apesar de seu desejo de que aquela fosse uma colossal falha de comunicação de proporções risíveis, não era o caso.

– Eu estava segura – ela sussurrou. – Ele nunca me feriu.

– Mas que porra q...

Ele se deteve nesse aspecto. Iria direto ao ponto, como se faz com o detonador de uma bomba.

Antes que ele fizesse ou dissesse algo de que se arrependeria, afastou-se e flexionou os dedos para que não se cerrassem em punhos.

– Qhuinn, juro que nunca estive em perigo...

– Você ficou sozinha com ele. – Quando Layla não respondeu, ele cerrou os molares. – Não ficou?

– Ele nunca me machucou.

– Ok, isso é o mesmo que dizer que nunca foi picada enquanto usava uma cobra como cachecol. Uma vez depois da outra. Porque essa porra aconteceu com frequência, não foi? Responda!

– Sinto muito, Qhuinn... – Ela parecia querer se recompor, fungando as lágrimas e aprumando os ombros. O modo como os olhos dela suplicavam perdão o levou à beira da violência. – Oh, Santa Virgem Esc...

– Pare com as súplicas! Não há mais ninguém lá em cima! – Ele estava perdendo o controle. Por completo. – E que diabos está fazendo com esse pedido de perdão? Você colocou meus filhos em risco por livre e espontânea vontade só porque queria... – Ele se retraiu. – Jesus Cristo. Você fez sexo com ele? Você trepou com ele com os meus filhos dentro de você?

– Não! Nunca estive com ele dessa forma!

– Mentirosa – ele urrou. – Você é uma vadia mentirosa...

– Sou praticamente virgem! E você sabe disso! Além do mais, você não me quer. Por que se importa?

– Está querendo sugerir que sequer o beijou? – Quando ela não respondeu, ele riu com aspereza. – Nem tente negar. Está escrito na sua cara. E você tem razão, eu não te quis, nunca te quis... E não tente distorcer as coisas. Não estou com ciúmes; estou enojado. Amo um homem de valor e tive que ir para a cama com você porque precisava de uma incubadora pro meu filho e pra minha filha. Por isso e pelo fato de você ter se jogado em cima de mim quando esteve no cio, esses foram os únicos motivos pelos quais estive com você.

O rosto de Layla empalideceu, e por mais que isso o tornasse um cretino, ele gostou. Queria feri-la por dentro, que era onde contava, porque, por mais furioso que estivesse, jamais bateria numa fêmea.

E essa era a razão por ela ainda estar de pé.

Aqueles bebês, aqueles preciosos e inocentes bebês, foram levados até a boca de um monstro, na presença do inimigo, expostos ao perigo que o teria feito se cagar nas calças caso tivesse sabido à época do acontecimento.

– Você faz alguma ideia do que ele é capaz de fazer? – Qhuinn perguntou com seriedade. – As atrocidades que cometeu? Ele esfaqueou o próprio tenente nas entranhas só para mandá-lo para as nossas mãos. E no passado, no Antigo País? Ele assassinou vampiros, humanos, redutores, qualquer um que lhe atravessasse o caminho, às vezes movido pela guerra, outras só por diversão. Ele era a mão direita de Bloodletter. Você consegue imaginar o que ele já fez nesta terra? Quero dizer, você evidentemente não dá a mínima para o fato de ele ter metido uma bala no pescoço de Wrath – está claro que isso não significa nada para você. Aquele bastardo poderia tê-la violentado mil vezes, estripado você e deixado que ardesse sob o sol – com os meus filhos dentro de você! Que tipo de porra de brincadeira você está armando pra cima de mim?!

Quanto mais Qhuinn pensava a respeito dos riscos a que ela se expôs, mais sua cabeça latejava. Seus amados filhos poderiam muito bem não existir por conta das más escolhas da fêmea, que apenas por preceito biológico, fora o abrigo deles até que pudessem respirar sozinhos.

Tinha colocado-os em perigo ao se arriscar – sem nenhum pensamento aparente quanto às consequências ou como ele, o pai biológico, poderia encarar tamanho fiasco.

Sua fúria, nascida do amor que nutria pelos bebês, era indefinível. Inegável. Inesgotável.

– Nós dois os desejamos – ela disse, rouca. – Quando nos deitamos, nós dois os quisemos...

Numa voz impassível, ele a interrompeu:

– Pois é, isso eu lamento. Melhor que eles não tivessem nascido do que ter metade de você neles.

Layla estendeu a mão para mais uma vez se apoiar na árvore – e, como foi a mão que estava envolvida por sua bandana, ele se percebeu sufocado pela necessidade de arrancar o pedaço de pano da mão dela. Para depois queimá-lo.

– Fiz o melhor que pude – ela afirmou.

Ele gargalhou, então, até que a garganta queimasse.

– Está se referindo ao tempo em que dormiu com Xcor? Ou quando pôs em risco a vida dos meus filhos?

De uma vez só, ela retribuiu a raiva dele com um jorro da sua:

– Você tem aquele a quem ama! Deita-se ao lado dele todos os dias! A sua vida tem objetivo e significado, além de servir a outrem – enquanto eu não tenho nada! Passei todas as minhas noites e dias servindo a uma divindade que já não se importa mais com a raça que gerou e agora sou a mahmen de dois bebês a quem amo com todo o meu coração, mas que não são eu. O que tenho para mostrar da minha vida? Nada!

– Nisso você acertou – ele concordou, sério. – Porque não será mais a mãe dos meus filhos. Você perdeu o seu emprego.

Ela se retraiu com indignação.

– O que está dizendo? Sou a mahmen deles. Eu...

– Não é mais.

Houve um instante de silêncio, e depois a voz explodiu para fora dela:

– Você não pode... Não pode tirar Lyric e Rhamp... Não pode afastá-los de mim! Sou a mahmen deles! Tenho meus direitos...

– Não, não tem. Você se associou ao inimigo. Cometeu um ato de traição. E vai ter sorte se sair desta com vida – não que eu me lixe se você viver ou morrer. A única coisa que me importa é que nunca mais veja os bebês...

A mudança no interior dela foi instantânea e arrebatadora.

De uma vez só, Layla passou de irada a absolutamente calada. E a mudança foi tão abrupta que ele teve de ponderar se ela não sofrera uma síncope.

Mas, em seguida, os lábios de Layla se retraíram das presas que desciam. E o som que saiu de dentro dela eriçou os pelos de sua nuca num alerta.

Quando abriu a boca, a voz dela foi letal como as lâminas de uma adaga.

– Não recomendo que tente me impedir de ver meu filho e minha filha.

Qhuinn expôs as próprias presas.

– Espere e verá.

O corpo da Escolhida se curvou e ela se agachou, o sibilo que ela emitiu era de uma víbora. Só que ela não saltou sobre ele para despedaçar seu rosto com as garras.

Layla simplesmente se desmaterializou.

– Ah, inferno! Não! – ele gritou para o cenário invernal frio e alheio a tudo. – Você quer guerra, é o que vai ter, cacete!

– ... vezes em que ainda sinto vontade – Blay dizia ao sorver um gole do seu copo com gelo. – Para os humanos, é um vício letal. Mas vampiros não têm que se preocupar em adquirir câncer por fumar.

A sala de bilhar da Irmandade estava quase deserta, visto que o torneio foi encerrado quando Butch teve de assumir o posto ao lado de Xcor, Tohrment pediu para se retirar, Rhage chegou machucado do campo, e Rehv decidira ficar nos Grandes Campos com Ehlena. Mas tudo bem. Blay ainda conseguira jogar com Vishous, e os dois circundavam a mesa central dentre as cinco, alternando-se nas jogadas. A boa notícia? Lassiter estava em algum outro lugar, o que significava que a TV acima da imensa lareira estava na ESPN, no mudo.

Nada de filmes da Disney com aquelas canções ridículas esta noite.

Se Blay tivesse que ouvir as merdas do Frozen uma vez mais, ele iria “let it goooooo” pra valer.

No sentido de esvaziar uma magazine bem diante do seu próprio lobo frontal.

Do outro lado da mesa, Vishous acendeu outro dos seus cigarros enrolados por ele mesmo.

– Então por que parou de fumar?

Blay deu de ombros.

– Qhuinn odeia cigarros. O pai dele fumava cigarros e cachimbo, então acho que isso o faz se lembrar de coisas das quais prefere esquecer.

– Você não deveria ter que mudar por ninguém.

– Fui eu quem escolheu parar. Ele nunca me pediu.

Enquanto o Irmão se inclinava sobre a mesa para alinhar o taco, Blay relembrou o início de sua história com Qhuinn. Esse papo de fumar começou quando teve de ficar assistindo ao macho que amava foder qualquer coisa que se movesse. Um período horrível. Não, não tinham um relacionamento – e toda vez que Qhuinn saía com alguém, isso servia de lembrete de que jamais estariam em um.

Caramba. Na época, ele sequer havia saído do armário.

O estresse e a tristeza foram difíceis de controlar, mas também houve um ressentimento borbulhante e irracional de sua parte. Por isso abraçara um mecanismo de compensação que Qhuinn não teria aprovado nem gostado. Fora uma desforra subversiva e mesquinha pelos pecados que o macho na verdade não cometera.

Mas, pelo menos, deixar de fumar tinha sido simples. Assim que os dois se entenderam? Ele deixou os maços de Dunhill de lado e nunca mais olhou para trás.

Bem... Talvez seja mais preciso afirmar que nunca escorregou no vício. Às vezes, quando via Vishous acendendo um, e o cheiro do tabaco permeava o ar, ele ansiava fumar um cigarro...

Bem quando V. lançou a bola da vez no meio do arranjo central, um som horrível de batidas resoou no vestíbulo. Alto, repetitivo, forte o bastante para sacudir e fazer tremer a maciça e grossa porta de carvalho da entrada da mansão, de modo que mais parecia que uma horda de redutores estava tentando invadi-la.

Blay sacou a arma que portava na casa enquanto ele e V. largavam os tacos e corriam para fora da sala de bilhar até a entrada principal.

Bam-bam-bam-bam!

– Mas que porra é essa? – V. murmurou ao olhar para o monitor de segurança. – Que diabos há de errado com o seu garoto?

– O quê?

A pergunta foi respondida quando V. soltou a trava e Qhuinn entrou explodindo no vestíbulo. O macho estava furioso a ponto de parecer possuído, o rosto contraído de raiva, o corpo disparado numa corrida, seu estado tal que ele parecia alheio à presença de qualquer um.

– Qhuinn? – Blay tentou segurá-lo pelo ombro ou pelo braço.

Não teve jeito. Qhuinn chegou à escadaria e deu uma de Usain Bolt, os degraus cobertos pelo tapete vermelho foram consumidos por saltos ligeiros.

– Qhuinn! – Blay disparou atrás do que quer que estivesse acontecendo, tentando alcançá-lo. – O que foi?

No alto da escadaria, os coturnos de Qhuinn se enterraram no carpete e por pouco não derraparam ao virar à esquerda no corredor das estátuas. Logo atrás dele, Blay se apressou, e quando a direção que ele tomava ficou clara, um súbito terror se apossou dele.

Layla e as crianças deviam estar em algum perigo...

Na porta do quarto de Layla, Qhuinn agarrou a maçaneta e girou – só para bater de cara na madeira.

Cerrando um punho, ele começou a bater na porta com tanta força que lascas de pintura começaram a cair.

– Abra a porra desta porta! – Qhuinn berrou. – Layla, abra esta maldita porta agora mesmo!

– Mas que diabos você está fazendo?! – Blay tentou impedi-lo. – Ficou louco...

A arma de Qhuinn saiu sabe-se lá de onde, e quando o Irmão a virou e direcionou o cano para o rosto de Blay, ficou claro que se tratava de algum tipo de pesadelo, o resultado inevitável de uma segunda dose de vinho do Porto depois do jantar de carneiro de Fritz.

Só que não.

– Fique fora disso – Qhuinn estrepitou. – Fique fora disso.

Enquanto Blay erguia ambas as mãos e recuava, Qhuinn virou o ombro para a porta e a empurrou com tanta força que a madeira rachou, os painéis se partindo sob a força do golpe.

O que se revelou dentro do quarto cor de lavanda foi igualmente aterrador.

Enquanto Vishous parava de pronto ao lado de Blay e Z. saía da sua suíte ao fim do corredor, o cérebro de Blay para sempre ficaria maculado pela visão incompreensível e inescapável de Layla com cada filho debaixo dos braços, as presas expostas em pose de ataque, o rosto como o de um demônio, o corpo todo trêmulo – mas não de medo.

Ela estava preparada para matar qualquer um que se aproximasse dela.

Qhuinn apontou a arma na direção dela através do buraco criado na porta.

– Solte-os. Ou acabo com você.

– Mas que porra está acontecendo aqui? – A voz de Vishous saiu tão alta quanto se ele tivesse um alto-falante. – Vocês perderam a cabeça, caralho?

Qhuinn enfiou a mão por dentro e soltou a tranca, escancarando o que restava da porta. Quando ele entrou, Blay deteve os demais.

– Não, deixem que eu cuido disso.

Se mais alguém além dele entrasse, balas começariam a pipocar, e Layla iria atacar, e pessoas se feririam – ou pior.

E que porra estava acontecendo ali?

– Solte-os! – Qhuinn ladrou.

– Mate-me, então! – Layla revidou. – Vá em frente!

Blay colocou o corpo entre os dois, o tronco enquanto bloqueio no caminho de qualquer bala. Nesse meio-tempo, Layla respirava ofegante, e Lyric e Rhamp choravam – merda, ele jamais se esqueceria do som daquele choro.

De frente para Qhuinn, ele mostrou as palmas e falou com lentidão:

– Vai ter que atirar em mim primeiro.

Ele não se concentrou em nada além dos olhos azul e verde de Qhuinn... Como se pudesse, de alguma forma, comunicar-se telepaticamente com seu oponente para acalmá-lo.

– Saia da frente – Qhuinn ordenou. – Isto não é da sua conta.

Blay piscou ante tais palavras. Mas, considerando-se que enfrentava o cano de uma 40 mm, deduziu que deixaria o insulto passar por ora.

– Qhuinn, qualquer que seja o problema, conseguiremos lidar com... Aquele olhar despareado se voltou para ele por apenas uma fração de segundo.

– Acha mesmo? Quer dizer que o fato de ela ter se associado com o inimigo pode ser lavado com detergente ou alguma merda do tipo? Maravilha, vamos chamar Fritz pra cuidar disto. Ideia boa do cacete.

Enquanto os bebês continuavam a chorar, e mais pessoas se aproximavam da cena no corredor, Blay balançou a cabeça.

– Do que está falando?

– Ela levou os meus filhos com ela quando foi trepar com ele...

– Não entendi, o quê?

– Ela esteve com Xcor durante todo esse tempo. Ela não parou de se encontrar com ele. Associou-se a um inimigo conhecido do nosso rei enquanto estava grávida dos meus filhos. Por isso, sim, estou no meu direito de pai de puxar o gatilho contra ela.

De repente, Blay tomou ciência de um grunhido crescente atrás dele, e o som terrível o lembrou do que ouvira a respeito de as fêmeas da espécie serem mais letais do que os machos. Relanceando por sobre o ombro, ele pensou que sim, Layla estava evidentemente preparada para proteger os filhos até a morte naquela porra de universo paralelo para o qual foram sugados.

Xcor? Ela andou se encontrando com Xcor?

Só que ele não podia se desviar do perigo imediato.

– Só quero que você abaixe essa arma – Blay disse com calma. – Abaixe a arma e me conte o que está acontecendo. Senão, se quiser atirar nela, a bala vai ter que passar por mim primeiro.

Qhuinn inspirou fundo, como se estivesse se esforçando para não gritar.

– Eu te amo, mas isto não é da sua conta, Blay. Saia do caminho e deixe que eu cuido disto.

– Espere um minuto. Você sempre disse que também sou pai dessas crianças...

– Não quando o assunto é este. Agora saia da minha frente, caralho.

Blay piscou uma vez. Duas. Uma terceira vez. Engraçado, a dor em seu peito o fez refletir se Qhuinn não havia apertado o gatilho, e ele apenas deixou de ouvir o disparo.

Concentre-se, ordenou a si mesmo.

– Não, não vou me mexer.

– Saia da frente! – O corpo de Qhuinn começou a tremer. – Mas que diabos, saia da porra da minha frente!

Agora ou nunca, Blay pensou ao avançar e atacar o pulso que controlava a pistola. Ao golpear o antebraço com toda a força, a arma disparou repetidamente, e os cartuchos das balas saíram voando – mas, com uma rápida mudança de direção, ele conseguiu empurrar Qhuinn para o lado. O casal se estatelou no chão, e Blay se esforçou para dominar seu par, o impulso do movimento afastando-os de Layla e dos pequenos enquanto mantinha a arma apontada para o sentido oposto do quarto.

Blay acabou por cima, mas sabia que Qhuinn lhe tomaria a posição bem rápido. A arma, ele tinha que manter controle da...

De repente, o ar se tornou ártico.

A temperatura do quarto caiu para baixo de zero tão rápido que as paredes, o piso e o teto rangeram em protesto, a respiração dos presentes foi expelida em lufadas, a condensação gelou os vidros das janelas e os espelhos, com arrepios de qualquer pele exposta.

Em seguida, ouviu-se um rugido vigoroso.

O som foi tão intenso que foi quase inaudível – nada além de dor atravessou-lhes o canal auditivo, transformando suas cabeças em sinos de igreja – e isso, ainda mais do que a mudança no clima, deteve todos dentro da suíte, no corredor, na mansão... Talvez em todo o mundo.

O imenso corpo de Wrath apequenou a soleira da porta quando ele entrou no quarto, marcado pelos cabelos até a cintura, óculos escuros, coxas cobertas por couro e tronco avantajado, que teria detido qualquer trem em movimento.

Suas presas estavam totalmente expostas, como os dentes de um tigre-dentes-de-sabre. Mas ele não teve dificuldade alguma de se expressar, mesmo com elas.

– Não na porra da minha casa! – Ele soou tão alto que o quadro ao seu lado vibrou contra a parede de gesso. – Isso não vai acontecer na porra da minha casa! Minha shellan e meu filho estão aqui – existem outras crianças debaixo deste teto. Existem crianças na droga deste quarto!

Do lado oposto, Layla caiu no chão, os ossos absorvendo a queda com um barulho. Apesar do impacto, manteve Lyric e Rhamp em segurança, aninhados no colo, enquanto pendia a cabeça e começava a chorar.

Debaixo de Blay, Qhuinn tentava se soltar.

– Não até você soltar a arma – Blay disse entredentes.

Houve o som de metal se chocando contra a madeira quando a 40 mm foi solta e Blay a empurrou para longe. Em seguida, Qhuinn se desvencilhou e pôs-se de pé sobre os coturnos. Parecia que ele tinha estado num túnel de vento, seus cabelos negros dispostos em uma bagunça completa, os olhos arregalados, a pele corada em determinados pontos, mas pálida em outros.

– Todos para fora – Wrath ordenou. – Exceto pelos três pais.

Bem, pelo menos alguém reconhecia seu papel, Blay ponderou, com amargura.

Direcionando seu olhar para Qhuinn, viu-se encarando, através do caos, o macho que conhecia quase tão bem quanto a si mesmo.

Naquele instante, porém? Blay fitava para um estranho. A droga de um total desconhecido. Os olhos que Blay já havia passado horas perscrutando, os lábios por ele beijados, um corpo que tocou, acariciou, penetrou e pelo qual também foi penetrado... Era como se algum tipo de amnésia tivesse apagado toda a intimidade, metamorfoseando o que um dia fora uma realidade conhecida em uma hipótese tão fraca que parecia inexistente.

Vishous entrou no quarto.

– Primeiro, vistoria de armas.

Quando o lábio superior de Wrath se retorceu, ficou claro que o rei não apreciou a interrupção. Mas não havia como argumentar contra a razão.

V. foi eficiente na revista: primeiro retirou um par de adagas de Qhuinn, depois outra pistola – e, quando Blay se levantou, ergueu-lhe os braços e afastou-lhe as pernas, mesmo ciente de que ninguém estava preocupado que ele puxasse o gatilho.

– Pronto – V. anunciou ao se espremer para passar pelo Rei e voltar para o corredor.

– Diga aos outros que saiam – Wrath estrepitou.

– Certo.

Ante o comando real, a multidão se dispersou da soleira, mas não foi muito longe. Suas presenças pairaram enquanto, evidentemente, aguardavam os acontecimentos seguintes. De um jeito ou de outro, não havia como fechar a porta. Estava totalmente arruinada.

Virando-se na direção de Qhuinn, Wrath maldisse a situação e exigiu:

– Vai me explicar por que diabos disparou uma arma dentro da minha casa?

 

CONTINUA

ANTIGO PAÍS, 1731
As chamas de uma fogueira no chão iluminavam as paredes úmidas da caverna; a superfície áspera, manchada por sombras. Do lado de fora do ventre da terra, os gemidos do vento ecoavam na abertura do abrigo, unindo-se aos gritos da fêmea sobre o catre em que dava à luz.
– Será um menino! – ela arfou em meio às contrações que a assolavam. – Um macho!
Acima daquele pedaço de carne deitado e agonizante, pairando como uma maldição sobre ela, o Irmão da Adaga Negra Hharm pouco se importava com a sua dor.
– Logo saberemos.
– Você me desposará. Foi uma promessa...
As palavras se interromperam e seu rosto se contraiu numa máscara feia enquanto suas partes internas se contorciam para expelir a cria e, ao fazer as vezes de testemunha, Hharm refletia o quanto a aristocrata ficava pouco atraente em trabalho de parto. Não fora assim quando se conheceram e ele a seduzira. Na época, estivera coberta de cetim, muito composta, o receptáculo adequado para o seu legado, com a pele perfumada e os cabelos macios e reluzentes. Agora? Não passava de um animal, suada, pegajosa – e por que a situação se prolongava tanto? Ele estava tão enfastiado com o processo, ofendido por estar cuidando dela. Tratava-se de uma tarefa para as fêmeas, não para um guerreiro de seu escalão.
Todavia, não a desposaria, a menos que precisasse fazê-lo.
Se o bebê fosse o filho pelo qual vinha esperando? Então, sim, ele legitimaria a criança por meio da cerimônia de união e daria à fêmea o status ao qual ela se julgava digna. Caso contrário, ele se afastaria e a fêmea não diria nada, porque estava maculada aos olhos de sua classe, sua pureza perdida como um terreno já arado.
De fato, Hharm já decidira que era hora de se assentar. Depois de séculos de perdições e depravações, a idade começava a pesar. Ele se punha a considerar, pela primeira vez, o legado que deixaria para a posteridade. No momento, não lhe faltavam bastardos, frutos de sua pelve, os quais não conhecia, com quem não se importava e jamais se associaria a eles – e por tanto tempo era de conhecimento geral que ele não devia nada a ninguém.
Agora, porém... Ele se encontrava desejando uma árvore genealógica adequada. E também havia a questão das suas dívidas crescentes, algo que o pai dessa fêmea facilmente resolveria para ele – embora, mais uma vez, caso não fosse um filho varão, ele não a desposaria. Não era louco, não se prostituiria por centavos. Além disso, havia incontáveis fêmeas da glymera que cobiçavam o status inerente à vinculação com um membro da Irmandade da Adaga Negra.
Hharm não se comprometeria até ter um filho homem, a quem criaria desde a primeira noite.
– Oras, recomponha-se! – ele repreendeu-a quando ela gritou uma vez mais, uma ofensa aos seus ouvidos. – Fique calada!
Como em todas as coisas, contudo, ela o desafiou:
– Está chegando...! O seu filho está chegando!
A veste que ela usava foi suspensa até a base dos seios volumosos por mãos retorcidas. A barriga estendida e arredondada era uma visão vergonhosa, as coxas pálidas e finas permaneciam afastadas. O que acontecia no centro era repugnante: o que deveria ser a entrada delicada e adorável a fim de aceitar a excitação masculina vazava todo tipo de fluido e as carnes estavam inchadas e distorcidas.
Não, ele jamais a penetraria novamente. Com ou sem um filho, vinculados ou não, a perversão diante dos seus olhos não era algo de que ele pudesse se esquecer.
Felizmente, casamentos por conveniência eram uma contingência comum na aristocracia – não que ele se importasse caso não o fossem. As necessidades dela eram inconsequentes.
– Ele está chegando! – ela berrou quando a cabeça pendeu para trás e as unhas arranharam a terra debaixo de seu corpo. – Seu filho... ele se aproxima!
Hharm franziu a testa, depois seus olhos se arregalaram e as pernas se firmaram, afastadas. Ela não se equivocava, pois, de fato, algo começava a surgir de dentro dela... Era...
Uma abominação. Algo disforme e terrível...
Um pé.
– Isso é um pé?
– Tire seu filho do meu corpo – ela ordenou entre arquejos. – Puxe-o de dentro de mim e segure-o contra seu coração, reconheça-o como sua carne e seu sangue!
Com todas as armas ainda presas ao corpo, Hharm ajoelhou-se quando o segundo pé apareceu.
– Puxe! Puxe! – O Sangue jorrou e a fêmea berrou de novo quando o bebê não se moveu. – Ajude-me! Ele está asfixiado!
Hharm manteve-se afastado de toda aquela nojeira e imaginou quantas fêmeas inseminadas por ele haviam passado pela mesma situação. Seria sempre desagradável assim ou era ela quem era fraca?
De fato, deveria deixá-la que fizesse o parto sozinha, mas não confiava nela. A única maneira de ter certeza de que seu filho era macho era estar presente durante o nascimento. De outro modo, ele não desconsiderava a possibilidade de ela trocar uma filha indesejada pelo macho tão cobiçado – fruto de outro macho.
Aquela era, afinal, uma transação negociada, e ele sabia muito bem como tais coisas podiam ser manipuladas.
Em seguida, o som que emergiu da garganta da fêmea foi tão volumoso e demorado que interrompeu seus pensamentos. Depois os gemidos e as mãos sujas de terra e sangue dela se postaram no interior das coxas, puxando-as para fora e para cima, ampliando a abertura. E bem quando o Irmão acreditou que ela estivesse morrendo, quando cogitou se acabaria enterrando a ambos – e de pronto decidiu-se contra a proposição, visto que as criaturas da floresta logo consumiriam os restos mortais –, o bebê apareceu um pouco mais, livrando-se de algum obstáculo interno.
E lá estava ele.
Hharm se adiantou.
– Meu filho!
Sem pensar, esticou os braços e apanhou com mãos firmes os tornozelos escorregadios. Estava vivo; a criança chutava com força, debatendo-se contra o confinamento do canal vaginal.
– Venha para mim, meu filho – Hharm ordenou ao puxá-lo.
A fêmea se contorcia em agonia, mas ele não lhe dispensou um pensamento sequer. Mãos – pequeninas e perfeitamente bem formadas – surgiram em seguida, junto à barriga arredondada e o peito, que, mesmo em seu momento recém-nascido, era amplo.
– Um guerreiro! Este é um guerreiro! – O coração de Hharm batia forte, seu triunfo latejava nos ouvidos. – Meu filho levará adiante o meu nome! Será conhecido como Hharm, assim como eu antes dele!
A fêmea ergueu a cabeça, as veias do pescoço saltavam como cordões tensos sob a pele pálida demais.
– Você me desposará – ela disse, rouca. – Jure... Jure pela sua honra, ou eu o segurarei dentro de mim até que fique azul e entre no Fade.
Hharm sorriu com frieza, revelando as presas. Em seguida, desembainhou uma das adagas do peito. Direcionando a ponta para baixo, mirou no baixo ventre dela.
– Eu a estriparei como a um cervo para libertá-lo, nalla.
– E quem alimentará seu precioso filho? O seu sêmen não sobreviverá sem mim.
Hharm pensou na tormenta do lado de fora. Na distância que estavam do assentamento de vampiros mais próximo. E no pouco que sabia sobre as necessidades de um recém-nascido.
– Você me desposará, conforme prometido – ela gemeu. – Jure!
Os olhos dela estavam injetados e ensandecidos, os longos cabelos suados e emaranhados, o corpo era algo sobre o qual ele jamais desejaria se sobrepor. Mas a lógica dela o impedia. Perder o que desejava por conta exatamente do arranjo que estivera disposto a fazer, simplesmente porque ela o apresentava como se fosse uma condição sua, não era uma decisão sábia a se tomar.
– Juro – murmurou.
Com isso, ela voltou a se deitar e, sim, agora ele a ajudaria, puxando no ritmo dos empurrões dela.
– Ele está vindo... ele...
O bebê saiu de dentro dela num jorro, fluidos saindo com ele e, quando Hharm o segurou em suas palmas, sentiu uma alegria inesperada tão ressonante que...
Seus olhos se estreitaram ao pousar as vistas sobre o rosto dele. Acreditando que havia alguma membrana mascarando o bebê, passou uma das mãos pelas suas feições, que eram um misto das dele e da fêmea.
Lamentavelmente... nada mudou.
– Que maldição é esta? – questionou-se consigo mesmo. – Que maldição... é esta!

 

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CAPÍTULO 1


MONTANHAS DE CALDWELL, NOVA YORK, DIAS ATUAIS

A Irmandade da Adaga Negra o mantinha vivo só para poder matá-lo.

Dada a soma das atividades terrenas de Xcor, que foram das mais violentas, e certamente muito depravadas, aquele parecia um fim adequado para ele.

Nascera numa noite de inverno durante uma tempestade histórica. Nas entranhas de uma caverna suja e úmida, enquanto rajadas gélidas assolavam o Antigo País, a fêmea que o carregara gritara e sangrara para dar ao Irmão da Adaga Negra Hharm o filho tão exigido por ele.

Ele fora desesperadamente desejado.

Até chegar ao mundo.

E esse era o início da sua história, que acabara por levá-lo até ali.

Em outra caverna. Em outra noite do mês de dezembro. E assim como na noite do seu nascimento de fato, o vento gemia para recebê-lo, ainda que, dessa vez, fosse para o retorno da sua consciência em vez da expulsão para a vida independente que levou dali adiante.

E como um recém-nascido, tinha pouco controle sobre o corpo. Estava incapacitado, e isso seria verdadeiro mesmo sem as algemas de aço e as barras sobre o peito, o quadril, as coxas. Máquinas, contrastantes com o ambiente rústico que o rodeava, emitiam sinais atrás de sua cabeça, monitorando-lhe a respiração, os batimentos cardíacos, a pressão sanguínea.

Com a mesma fluidez de uma engrenagem sem lubrificação, seu cérebro começou a funcionar adequadamente sob o crânio; quando os pensamentos por fim se aglutinaram e formaram uma sequência lógica, lembrou-se da série de eventos que fizeram com que ele, o líder do Bando de Bastardos, acabasse sob a custódia daqueles que haviam sido seus inimigos: um ataque por trás, uma concussão, uma espécie de derrame ou algo do tipo que fez com que ele acabasse deitado, dependendo de máquinas para sobreviver.

E da inexistente misericórdia dos Irmãos.

Recobrara a consciência uma ou duas vezes durante o período em cativeiro, registrando seus captores e o ambiente daquele corredor cavernoso que inexplicavelmente abrigava jarros de todos os tipos. A retomada da consciência nunca durou muito; entretanto, a conexão com sua área mental era insustentável por um tempo mais demorado.

No entanto, dessa vez parecia diferente. Ele percebia a mudança em sua mente. O que quer que tivesse estado danificado por fim se curara e agora ele retornava do cenário enevoado do ponto de morto-vivo, permanecendo do lado vital.

– ... muito preocupado com Tohr.

O fim da frase enunciada por um macho entrou nos ouvidos de Xcor como uma série de vibrações, cuja tradução sofreu um atraso, e quando as palavras se formaram, ele virou o olhar naquela direção. Duas figuras de preto muito bem armadas estavam de costas para si, e ele voltou a abaixar as pálpebras, pois não desejava revelar a mudança do seu estado. Entretanto, suas identidades estavam devidamente anotadas.

– Não, ele está bem. – O som de algo raspando e o cheiro de tabaco permeando o ar. – E se não estiver, vou estar ao lado dele.

A voz grave que falou primeiro pareceu árida.

– Pra botar nosso irmão na linha à força... Ou ajudá-lo a acabar com este pedaço de carne?

O Irmão Vishous riu como se fosse um assassino em série.

– Que bela consideração você tem por mim.

Era estranho que não se entendessem melhor, Xcor pensou. Esses machos queriam tanto sangue quanto ele.

No entanto, essa aliança jamais existiria. A Irmandade e os Bastardos sempre estiveram em lados opostos durante o reinado de Wrath, esse limite tendo sido estabelecido pela bala que Xcor alojara na garganta do líder por direito da raça vampírica.

E o preço de sua traição seria cobrado ali, em pouco tempo.

Claro, a ironia era que uma força de compensação interceptara seu destino e fizera com que suas ambições e seu foco se afastassem, e muito, do trono. Não que os guerreiros da Irmandade tivessem ciência disso – e pouco se importariam se soubessem. Além de partilharem o apetite pela guerra, ele e os Irmãos tinham outras características em comum: piedade era para os fracos; o perdão, algo patético; pena, um sentimento das fêmeas, nunca de guerreiros.

Embora soubessem que ele já não sentia nenhuma agressividade em relação a Wrath, não o exonerariam daquilo que conquistara com méritos. Por conta de tudo o que acontecera, ele não sentia nem amargura nem raiva em relação ao que o esperava. Aquela era a natureza do conflito.

Contudo, sentia-se triste – um sentimento desconhecido para ele.

Das suas lembranças surgiu uma imagem que lhe roubou o fôlego. Era o de uma fêmea alta e magra nas vestes sagradas das Escolhidas da Virgem Escriba. Os cabelos loiros ondulavam sobre os ombros e desciam até o quadril em uma brisa suave, os olhos eram cor de jade, o sorriso, uma benção que ele não fizera nada para receber.

A Escolhida Layla mudara tudo para ele, transformando a Irmandade de um alvo a algo tolerável, de inimigo a um habitante coexistente naquele mundo.

Em pouco mais de um ano e meio, período no qual Xcor a conhecia, ela tivera um efeito mais impactante sobre sua alma negra do que qualquer outra pessoa antes dela, fazendo com que evoluísse muito em tempo ínfimo – algo que ele jamais imaginara ser possível.

O Dhestroyer, camarada de Vishous, voltou a falar:

– Na verdade, concordo plenamente com Tohr sobre fazer picadinho do filho da puta. Ele conquistou esse direito.

O Irmão Vishous praguejou.

– Todos nós merecemos. Vai ser difícil deixar uma parte dele intacta quando isso acontecer.

E ali estava o enigma, Xcor ponderou por trás das pálpebras abaixadas. A única saída possível de tamanho cenário mortal seria revelar o amor que sentia por uma fêmea que não era sua, nunca fora e jamais poderia ser.

Mas não sacrificaria a Escolhida Layla por ninguém, por nada.

Nem mesmo para se salvar.

Enquanto Tohr caminhava na floresta de pinheiros da montanha da Irmandade, seus coturnos esmagavam o terreno congelado, e o vento glacial o golpeava no rosto. Em seu rastro, tão próximo de seus calcanhares quanto uma sombra, ele sentia suas perdas a acompanhá-lo, numa fila de lamentos tangíveis como uma corrente.

A sensação de estar sendo perseguido pelos seus mortos o fez refletir a respeito de programas de TV sobre eventos paranormais, do tipo que tentava provar a existência de fantasmas. Que monte de bobagens. A histeria humana acerca das supostas entidades obscuras flanando em escadas e provocando rangidos em casas antigas, com seus passos sem corpos, era algo muito característico dessa espécie desimportante absorta em si mesma e criadora de dramalhões. Mais uma coisa que Tohr odiava a respeito deles.

E, como de costume, eles não acertavam no alvo.

Os mortos absolutamente nos atormentam, percorrendo seus dedos gélidos em nossa nuca como uma forma de lembrete até não conseguirmos decidir se queremos gritar pelas saudades que sentimos deles... ou porque queremos ser deixados em paz.

Eles espreitam suas noites e rondam seus dias, deixando um campo minado de tristeza ao longo dos caminhos.

São seus primeiros e seus últimos pensamentos, o filtro que você tenta deixar de lado, a barreira invisível entre você e todo o resto.

Algumas vezes, são mais parte de você do que as pessoas que você consegue de fato segurar e tocar.

Portanto, sim, ninguém precisa de um programa de TV idiota para provar o que já é de conhecimento comum: mesmo que Tohr tenha encontrado o amor com outra fêmea, sua primeira shellan, Wellsie, e o filho não nascido que ela carregava no ventre quando foi assassinada pela Sociedade Redutora, nunca foram afastados dele além da própria pele.

E agora houvera mais uma morte na mansão da Irmandade.

A companheira de Trez, Selena, subira para o Fade havia poucos meses, tendo falecido em razão de uma doença para a qual não existia cura, nenhum alívio, nenhum conhecimento.

Tohr não dormia direito desde então.

Voltando a se concentrar nas árvores que o cercavam, Tohr se abaixou e afastou um galho do caminho, depois deu a volta num tronco caído. Poderia ter se materializado até o destino, mas seu cérebro latejava com tanta violência da prisão do crânio que ele duvidava que conseguiria se concentrar o bastante para se dissipar.

A morte de Selena fora um maldito gatilho para ele, um evento que afetava outra pessoa, mas que, não obstante, sacudira seu globo de neve, balançando-o com tanta força que seus flocos internos ainda rodopiavam e se recusavam a se assentar.

Estava no centro de treinamento quando ela fora chamada para o Fade, e o momento da morte não fora silencioso. Fora marcado pelo som da alma dilacerada de Trez, o equivalente auditivo de uma tumba – um som que Tohr conhecia bem demais. Fizera o mesmo quando recebera a notícia da morte de sua fêmea.

Portanto, sim, nas asas da agonia do seu amor, Selena fora alçada da terra para o Fade...

Arrancar-se desse espiral cognitivo era o mesmo que tentar tirar um carro de um atoleiro, o esforço necessário era tremendo, o progresso conquistado centímetro a centímetro.

No entanto, lá ia ele pela floresta, na noite invernal, esmagando o que aparecia sob suas solas, com seus fantasmas sussurrando-lhe por trás.

A Tumba era o sanctum sanctorum da Irmandade da Adaga Negra, aquele local secreto onde as induções aconteciam e convocavam-se as reuniões secretas, e onde eram mantidos os jarros dos redutores assassinados. Estava localizada abaixo do solo, num labirinto criado pela natureza, tradicionalmente fora dos limites para qualquer um que não tivesse passado pela cerimônia que o marcasse como membro da Irmandade.

Essa regra, no entanto, tivera que ser contornada, pelo menos em respeito ao longo corredor de entrada de quase meio quilômetro.

Ao se aproximar do insuspeito sistema da entrada, parou e sentiu a raiva surgir.

Pela primeira vez desde que se tornara um Irmão, não era bem recebido ali.

Tudo por causa de um traidor.

O corpo de Xcor estava do lado oposto dos portões, na metade do caminho repleto de prateleiras, deitado numa maca, a vida monitorada e mantida por equipamentos.

Até que o maldito despertasse e pudesse ser interrogado, Tohr não tinha permissão para entrar.

E seus irmãos tinham razão em não confiar nele.

Ao fechar os olhos, viu seu rei com um tiro na garganta. Reviveu o momento em que a vida de Wrath estivera escorrendo junto ao sangue rubro; rememorou a cena em que tivera que salvar o último vampiro de sangue puro no planeta ao cortar um buraco na frente da garganta dele e enfiar o tubo de sua Camelback naquele esôfago.

Xcor encomendara o assassinato. Xcor ordenara um dos seus guerreiros mandar uma bala para dentro das carnes de um macho de valor, conspirara com a glymera para derrubar o governante por direito, mas o filho da puta fracassara. Wrath sobrevivera, apesar das probabilidades contrárias,, e na primeira eleição democrática da história da raça, fora apontado como líder de todos os vampiros – uma posição que ele agora detinha por consenso em vez de pela sua linhagem.

Portanto, vá se foder, filho da puta.

Cerrando os punhos, Tohr ignorou o ranger das luvas de couro e a constrição no dorso dos nós dos dedos. Só o que reconhecia era o ódio, tão profundo como uma doença letal.

O destino decidira que era certo tirar-lhe três seus e dos seus; o destino tirara dele sua shellan, seu filho, e o amor da vida de Trez. Querem falar sobre equilíbrio no Universo? Tudo bem. Ele queria o seu equilíbrio, e isso só aconteceria quando quebrasse o pescoço de Xcor e arrancasse o coração ainda quente do peito do maldito.

Já era hora de uma fonte do mal ser tirada de circulação, e era ele quem empataria o placar.

E a espera finalmente terminava. Por mais que respeitasse seus irmãos, estava farto de aguardar. Essa noite era um aniversário triste para ele, e ele daria ao seu luto um presentinho especial.

Era hora de festejar.


CAPÍTULO 2

O copo de cristal baixo estava tão limpo, tão isento de marcas de sabão, de poeira, de qualquer grânulo que o manchasse, que sua estrutura era como o ar; e a água dentro dele, totalmente invisível.

Meio cheio, a Escolhida Layla ponderou. Ou meio vazio?

Sentada no banquinho acolchoado, entre as duas pias com torneiras douradas e diante de um espelho com adornos de ouro que refletia a banheira funda atrás de si, ela observava a superfície do líquido.

O fundo era côncavo e a água lambia levemente o interior do copo, como se suas moléculas mais ambiciosas tentassem fugir do confinamento.

Respeitava o esforço, enquanto lamentava sua futilidade. Sabia muito bem o que era querer ser livre do local que a abrigava, apesar de não ser culpa sua.

Por séculos, ela fora a água daquele copo, despejada sem ter querido, em virtude apenas do seu nascimento, num papel de servidão junto à Virgem Escriba. Ao lado de suas irmãs, executara os deveres sagrados das Escolhidas no Santuário, adorando a mãe da raça, registrando os eventos da Terra para a posteridade dos vampiros, aguardando a escolha de um novo Primale para que ela pudesse engravidar e dar à luz mais Escolhidas e mais Irmãos.

Mas tudo isso já era passado.

Inclinando-se sobre o copo, observou mais atentamente a água. Fora treinada como ehros, não como escriba, mas sabia muito bem como enxergar além das águas que eram testemunhas da história. Dentro do Templo das Escribas, as Escolhidas designadas a registrar as histórias e as linhagens da raça permaneceram sentadas por horas e horas, observando nascimentos e mortes, suas mãos delicadas com penas sagradas colocando os detalhes nos pergaminhos, acompanhando tudo.

Não havia nada para ela ver. Não ali na Terra.

E também já não existiam testemunhas no alto.

Um novo Primale acabara surgindo. Mas em vez de se deitar com seu rebanho de fêmeas, dando continuidade ao programa de criação da Virgem Escriba, ele dera um passo sem precedentes, libertando todas elas. O Irmão da Adaga Negra Phury se desviara do modelo, quebrara a tradição, desfizera-se das amarras e, ao fazê-lo, as Escolhidas que estiveram isoladas desde sua gênese, visando aos nascimentos planejados, acolheram sua libertação. Já não eram representantes vivas de uma tradição rígida; tornaram-se indivíduos, com seus próprios descontentamentos e preferências, mergulhando os dedos nas águas terrenas da realidade, procurando e encontrando destinos a respeito de si próprias, e não mais de um serviço.

Ao fazer isso, ele desencadeara o fim dos imortais.

A Virgem Escriba já não existia mais.

Seu filho de nascimento, o Irmão da Adaga Negra Vishous, a procurara no Santuário acima e descobriu que ela se fora, deixando uma última carta escrita no vento apenas para os olhos dele.

Ela dissera que tinha um sucessor em mente.

Ninguém sabia sua identidade.

Recostando-se, Layla olhou para a veste que trajava. Não era do tipo sagrado que se vestira durante tantos anos. Não, essa peça vinha de um lugar chamado Pottery Barn, e Qhuinn a comprara para ela na semana passada. Com a aproximação do inverno, ele se preocupava que a mãe de seus filhos estivesse aquecida, sempre bem cuidada.

A mão de Layla subiu para o ventre, agora baixo. Depois de ter carregado a filha, Lyric, e o filho, Rhampage, dentro do corpo por tantos meses, era tão estranho quanto familiar não ter nada no útero...

Vozes murmuradas, baixas e graves, penetraram a porta que ela havia fechado.

Entrara no banheiro para usar o vaso.

Demorara-se depois de ter lavado as mãos.

Qhuinn e Blay, como de costume, estavam com os bebês. Segurando-os. Ninando-os.

Todas as noites, ela tinha que se esforçar para testemunhar o amor, não entre eles e os pequenos... mas aquele entre os dois machos. De fato, os pais exibiam um vínculo ressonante e, resplandecente um com o outro, e por mais que fosse algo belo, aquele fulgor fazia com que se sentisse ainda mais vazia em sua existência.

Enxugando uma lágrima, disse a si mesma para se controlar. Não poderia voltar ao quarto com olhos brilhantes demais, e o nariz e faces corados. Aquele deveria ser um momento de alegria para os cinco integrantes da família. Agora que os gêmeos haviam superado o estado de emergência sob o qual tinham nascido, e Layla também se recuperara, todos estavam aliviados por todos estarem sãos e salvos.

Agora era a vida feliz que ganharam para viver.

Em vez disso, ela ainda era a água triste dentro do copo, desejando sair.

Dessa vez, porém, a prisão foi feita por ela mesma, em vez de providenciada pela genética.

A definição de infidelidade, pelo menos de acordo com o dicionário, era: a ação de trair algo ou alguém...

A batida à porta fechada foi suave.

– Layla?

Ela fungou e abriu uma das torneiras.

– Oi!

A voz de Blay soou baixa, como era seu hábito.

– Você está bem aí?

– Ah, sim, estou. Resolvi tratar um pouco do rosto. Sairei daqui a pouco.

Ela se levantou, inclinou-se e molhou o rosto. Depois esfregou a testa e o queixo com a toalha de mão para que o rubor se espalhasse mais uniformemente sobre a pele. Apertando o cinto do roupão, aprumou os ombros e foi para a porta, em meio a preces para manter a compostura pelo tempo necessário até conseguir apressá-los para a Última Refeição.

Mas teve um momento de folga.

Ao abrir a porta, Blay e Qhuinn sequer olhavam na sua direção. Estavam inclinados sobre o berço de Lyric.

– ... os olhos de Layla – Blay disse ao abaixar a mão e deixar que a pequena agarrasse seu dedo. – Definitivamente.

– Ela também tem os cabelos da mahmen. Veja o tom loiro começando a aparecer.

O amor deles pela pequena era incandescente, reluzia em seus rostos, aquecia suas vozes e, aplacava seus movimentos, de modo que tudo o que faziam era com cuidado. No entanto, não era nisso que Layla se concentrava.

Seu olhar estava fixo na palma larga de Qhuinn, que afagava as costas de Blay. A carícia de conexão era inconsciente de ambos os lados; a oferta e a aceitação eram tanto nada e tudo o que importava, simultaneamente. E enquanto testemunhava o que se passava do outro lado do quarto, Layla teve que piscar rápido de novo.

Às vezes, a gentileza e o amor podiam ser tão difíceis de testemunhar quanto a violência. Às vezes, quando se está do lado de fora, ver duas pessoas tão em sintonia era uma cena saída de um filme de terror, o tipo de coisa da qual você quer se manter afastado, quer esquecer, banir da memória – ainda mais quando se está prestes a deitar e enfrentar sozinha um longo dia de horas no escuro.

Saber que ela jamais teria esse amor especial com alguém era...

Qhuinn relanceou na sua direção.

– Ah, oi.

Ele se endireitou e sorriu, mas ela não se deixou enganar. Os olhos dele a percorriam como se em uma avaliação – mas, talvez, esse não fosse o caso. Talvez fosse simplesmente a sua paranoia se manifestando.

Estava tão farta de se dividir em uma vida dupla. Contudo, no tipo de ironia cruel que parecia ser a fonte favorita de divertimento do destino, o preço para aliviar a consciência viria à custa de sua própria existência.

A como poderia deixar os filhos para trás?

– ... ok? Layla?

Enquanto Qhuinn franzia a testa ao observá-la, ela balançou a cabeça e forçou um sorriso.

– Ah, tudo bem, mesmo. – Ela deduzia que a pergunta se referisse ao seu bem-estar. – Muito bem mesmo.

Em busca de confirmar a mentira, aproximou-se dos berços. Rhampage, ou Rhamp, como era conhecido, lutava contra o sono, e quando a irmã arrulhou, sua cabeça se virou e ele esticou a mão.

Engraçado. Mesmo tão jovem, ele parecia reconhecer seu posto e desejava protegê-la.

Era genético. Qhuinn era um membro da aristocracia, resultado de gerações de emparelhamentos escolhidos a dedo, e por mais que seu “defeito” de ter um olho azul e outro verde o tivesse feito receber o desprezo tanto da glymera quanto da própria família, a venerável natureza de sua linhagem não podia ser negada. Tampouco o impacto de sua presença física. Com quase dois metros de altura e corpo talhado por músculos definidos, moldados tanto pelos exercícios quanto pela prática na guerra – uma arma tão letal quanto as pistolas e adagas que levava consigo para o campo de batalha. Era o primeiro membro da Irmandade da Adaga Negra a ser induzido com base na meritocracia em vez de na linhagem, e não desapontara a grande tradição. Ele nunca desapontava ninguém.

De fato, Qhuinn era, no conjunto, um belo macho, ainda que de forma um tanto rústica. O rosto era angular, pois tinha pouca gordura corporal, e aqueles olhos despareados fitavam por baixo de sobrancelhas negras. Os cabelos pretos foram cortados muito curtos recentemente, quase totalmente raspados na base. Deixavam um topete para trás e, como resultado, seu pescoço parecia extra-grosso. Com piercings metálicos nas orelhas e a lágrima de ashtrux nohtrum abaixo do olho – uma marca dos tempos em que servira como protetor de John Matthew –, ele chamava a atenção por onde quer que passasse.

Talvez porque as pessoas, tanto humanos como vampiros, preocupavam-se com o que ele seria capaz de fazer caso fosse contrariado.

Blay, por sua vez, era o oposto: tão acessível quanto Qhuinn seria evitado num beco escuro.

Blaylock, filho de Rocke, tinha cabelos ruivos e um tom de pele mais claro do que a maioria da espécie. Era tão grande quanto Qhuinn, mas quando se está ao seu lado, a primeira impressão que se tem dele faz referência à sua inteligência e ao seu bom coração, em vez de a força bruta. Ainda assim, ninguém discutia suas habilidades em campo. Layla ouvira histórias, ainda que nunca da parte dele, visto que não era de se vangloriar, criar dramas excessivos ou atrair atenções para si.

Ela amava os dois de todo o coração.

E o distanciamento que sentia em relação a eles partia somente do seu lado.

– Olha só – Qhuinn disse ao apontar para os bebês. – Temos dois se apagando... Melhor, um e meio.

Quando ele sorriu, ela não se deixou enganar. Seus olhos continuavam a passear pelo seu rosto, à procura sobre sinais de exatamente aquilo que ela tentava esconder. Para dificultar o escrutínio dele, ela recuou.

– Eles dormem bem, graças à Virgem Escriba... Hum, graças ao Fade.

– Você vai descer para a Última Refeição hoje? – ele perguntou como quem não quer nada.

Blay se endireitou.

– Fritz disse que prepara o que você quiser.

– Ele é sempre tão gentil. – Ela foi até a cama e se deitou contra os travesseiros. – Na verdade, senti uma fominha lá pelas duas da manhã, por isso fui até a cozinha e comi torradas e aveia. Tomei café. Suco de laranja. Um café da manhã no lugar do almoço, por assim dizer. Sabem como é, às vezes sentimos vontade de voltar o relógio no meio da noite e recomeçar da metade.

Uma pena que isso não passasse de uma metáfora.

Ainda que... será que ela teria escolhido nunca conhecer Xcor?

Sim, pensou. Preferiria nunca ter sabido da sua existência.

O amor de sua vida, seu “Blay”, o par do seu coração e da sua alma... era um traidor. E seus sentimentos pelo macho foram uma ferida aberta na qual a bactéria da traição entrara e se espalhara.

Portanto, ali estava ela, na prisão estabelecida por ela própria, torturada pelo fato de ter se aproximado do inimigo, primeiro por ter sido ludibriada... e mais tarde porque quis estar na presença de Xcor.

Separaram-se em maus termos, contudo, com ele colocando um fim nos encontros clandestinos após ela forçá-lo a admitir seus sentimentos. Em seguida, a situação se transformara de triste para trágica, quando ele foi capturado e levado sob a custódia da Irmandade.

A princípio não conseguira obter informações acerca de seu estado. Mas então, viajara ao modo de uma Escolhida até ele e, testemunhara seu estado moribundo num corredor de pedras, repleto de jarros de todas as cores e formas.

Não havia nada que pudesse ter feito por ele. Não sem se apresentar e se expor – e mesmo que ela o fizesse, não poderia salvá-lo.

Por isso estava presa ali: um fantasma atormentado num misto de emoções salpicadas pelo veneno da culpa e do arrependimento, sem nunca, jamais, poder se libertar.

– ... certo? Quero dizer... – Enquanto Blay continuava a falar com ela a respeito de uma e outra coisa, a Escolhida se forçou a não esfregar os olhos. – ... no fim da noite, enquanto você fica aqui com os bebês. Não que você não goste de ficar com eles.

Saiam, ela solicitou mentalmente para os dois machos. Por favor, vão embora e me deixem em paz.

Não era como se ela quisesse afastá-los das crianças, ou que sentisse alguma malquerença pelos pais de Lyric e Rhamp. Ela só precisava respirar. E toda vez que um dos guerreiros a fitava, como faziam agora, respirar se tornava praticamente impossível.

– Você concorda? – Qhuinn perguntou. – Layla?

– Ah, sim, claro. – Ela não fazia ideia do que acabara de concordar, mas certificou-se de sorrir. – Só vou descansar agora. Eles ficaram bastante tempo acordados durante o dia.

– Eu gostaria que nos deixasse ajudar mais. – Blay franziu a testa. – Estamos aqui do lado.

– Vocês dois lutam na maioria das noites. Precisam dormir.

– Mas você também é importante.

Layla direcionou o olhar rumo aos os berços e, ao rememorar a cena de si mesma acalentando-os e amamentando-os, sentiu-se ainda pior. Mereciam uma mahmen melhor do que ela, descomplicada e sem o fardo de decisões que nunca deveriam ter sido tomadas, uma que não estivesse contaminada pela fraqueza em relação a um macho de quem jamais deveria ter se aproximado... muito menos amado.

– Não tenho a mínima importância em comparação a eles – sussurrou rigidamente. – Eles são tudo.

Blay se aproximou e a tomou pela mão, os olhos azuis calorosos.

– Não, você também é muito importante. E mahmens precisam de tempo para si.

Para fazer o quê? Ruminar meus remorsos? Não, muito obrigada, pensou.

– Vou para o túmulo sem eles e aí apreciarei minha própria companhia. – Ao perceber o quanto tinha soado mórbida, apressou-se: – Além disso, eles crescem rápido. Vai acontecer antes de nós três nos darmos conta.

Conversaram mais depois – não que ela tivesse prestado atenção, com todos os gritos em sua mente. Mas, por fim, foi deixada em paz quando o casal partiu.

O fato de ficar tão feliz ao vê-los sair foi mais uma tristeza que ela tinha a carregar.

Mudando de posição na cama, levantou-se e se aproximou dos berços com os olhos rasos de lágrimas. Enxugando o rosto, repetidas vezes, ela pegou um lenço de papel do bolso do roupão e assoou o nariz. Os bebês estavam profundamente adormecidos, com os olhos fechados, os rostos voltados um para o outro como se estivessem se interligado em uma comunicação telepática durante o sono. Mãozinhas perfeitas e pezinhos preciosos, barriguinhas redondas e saudáveis envolvidas em cobertorzinhos de flanela. Eram bebês tão bons; alegres quando acordados, pacíficos e angelicais adormecidos. Rhampage ganhava peso com mais velocidade do que Lyric, mas ela parecia mais saudável do que ele, reclamava menos ao ser lavada ou trocada, fitando tudo com mais atenção.

Quando as lágrimas caíram do rosto de Layla até o carpete, ela não sabia quanto tempo mais suportaria.

Antes de tomar ciência do movimento, foi até o telefone interno da casa e apertou uma sequência de quatro números.

A doggen que convocou chegou em questão de momentos, e Layla voltou a vestir sua máscara social, sorrindo para a criada com uma serenidade que não sentia.

– Grata por cuidar dos meus preciosos – disse no Antigo Idioma.

A babá respondeu com alegria e olhos cintilantes, e Layla só aguentou dois ou três segundos de comunicação. Em seguida, saiu do quarto e, com passos ligeiros protegidos por chinelos, desceu pelo corredor das estátuas. Quando chegou às portas da extremidade oposta, empurrou uma delas e entrou na ala dos empregados.

Como em todas as mansões daquele tamanho e distinção, o lar da Irmandade necessitava de um tremendo apoio de funcionários, e os aposentos dos doggens perfilavam o corredor; a segregação por idade, sexo e posição nos escalões formava comunidades dentro do grande conjunto. Em meio ao labirinto de corredores, Layla não escolheu uma direção específica além do objetivo de encontrar um quarto vazio – e encontrou-o umas três portas adiante, depois de uma virada. Ao entrar no espaço simples e desocupado, foi até a janela, abriu-a e fechou os olhos. Seu coração batia forte e uma ligeira tontura a dominava, mas ela inspirou fundo o ar fresco e limpo...

... e se desmaterializou através da abertura que criara, misturando-se à noite; as moléculas se espalhando e se afastando da mansão da Irmandade.

Como sempre, sua liberdade seria temporária.

Mas, desesperada como estava, foi tomada por um breve sufocamento, e ela partiu em busca de oxigênio.


CAPÍTULO 3

Qhuinn era um macho muito macho. E não só porque era um guerreiro casado com outro cara.

Sim, claro que, antes de se assentar com Blay, até que gostara de transar com fêmeas e mulheres. Mas, pensando bem, seu padrão para parceiros sexuais fora tão baixo que até aspiradores de pós e canos de escapamento tinham sido candidatos ocasionais.

Mas nada de ovelhas. #critério

No entanto, não poderia dizer que as fêmeas o tivessem cativado ou interessado de fato. Não que houvesse algo de errado com elas, ou que não as respeitasse assim como todo o resto. Elas simplesmente não eram do seu gosto.

Numa noite como a de hoje, porém, ele lamentava sua inexperiência. Só porque ralara e rolara com o sexo oposto não significava que estivesse equipado de algum modo para lidar com o que o confrontava agora.

Quando ele e Blay chegaram ao pé da escadaria principal, ele parou e olhou para seu par. Ao fundo, vindo da sala de bilhar do lado oposto do átrio, o som das vozes graves dos machos, de música e de gelo batendo em copos de cristal anunciavam que o torneio de bilhar da Irmandade já estava em curso.

Qhuinn sorriu de uma maneira que esperava transmitir calma.

– Ei, eu já te encontro lá, ok? Tenho que descer pra falar com a doutora Jane sobre o meu ombro, acho que demoro uns dez minutos... Não mais do que isso.

– Claro. Quer que eu vá com você?

Por um segundo, Qhuinn se perdeu ao observar seu macho. Blaylock, filho de Rocke, era tudo o que ele não era: impecável como um corpo esculpido por Michelangelo, tinha um rosto de arrasar e uma cabeleira ruiva e lustrosa como a cauda de um pônei; era inteligente, mas também equilibrado, o que fazia toda a diferença; era firme e confiável como uma montanha de granito, o tipo de cara que nunca vacilava.

Em tudo o que importava, comparado a Blay, Qhuinn era uma banheira de plástico perto de uma de porcelana; um conjunto incompleto de pratos ao lado de uma dúzia perfeita de louças; uma coisa rachada no meio de algo inquebrável.

Por algum motivo, porém, Blay o escolhera. Contra todas as possibilidades, o filho imperfeito e desonrado de uma das Famílias Fundadoras, o viciado sexual de olhos despareados, o vagabundo hostil e arredio... De algum modo acabara com o Príncipe Encantado, e caralho, se isso não o convertia.

Blay era o motivo que o fazia respirar, o lar que nunca tivera, a luz do sol que empoderava sua terra.

– Qhuinn? – Os olhos azuis iridescentes se apertaram. – Você está bem?

– Desculpe. – Ele se inclinou e pressionou os lábios na jugular do macho. – Eu me distraí. Mas você sempre tem esse efeito em mim, não é?

Quando Qhuinn se afastou, Blay estava corado – e excitado. Aquela fragrância era uma digressão que não podia ser facilmente ignorada.

A não ser pelo fato de que tinha um problema real para resolver.

– Diga aos irmãos que não demoro. – Qhuinn apontou na direção da sala de bilhar. – E que vou dar uma surra neles.

– Você sempre faz isso. Mesmo com Butch.

As palavras foram suaves, mas respaldadas por uma adoração que fazia com que Qhuinn contasse cada uma das suas bênçãos.

Cedendo ao instinto, Qhuinn se aproximou e sussurrou ao ouvido do cara:

– Talvez queira se alimentar bem na Última Refeição. Vou te manter ocupado o dia inteiro.

Com uma lambida no pescoço em que pretendia trabalhar mais tarde, Qhuinn se afastou antes que não pudesse mais se distanciar de seu par.

Seguindo ao redor da base da escada, passou por uma porta escondida e desceu pelo sistema de túneis que conectava os componentes da propriedade. O centro de treinamento subterrâneo da Irmandade ficava cerca de meio quilômetro afastado da mansão, e aquela passagem subterrânea ligando as duas partes era um espaço amplo iluminado por painéis de luzes fluorescentes afixados ao teto.

Enquanto ele avançava, o som dos seus passos ecoava ao redor, como se os coturnos aplaudissem a iniciativa.

Contudo, Qhuinn não sabia se eles estavam certos. Não fazia a mínima ideia do que estava fazendo ali.

A porta atrás do armário de suprimentos se abriu sem emitir nenhum som, uma vez inserida a senha; em seguida, o guerreiro passava ao longo de prateleiras repletas de papéis para impressora, canetas, blocos de anotação e outras merdas vindas da loja de materiais para escritório. A sala, além do depósito, apresentava a típica disposição de mesa, cadeira, computador e arquivos metálicos, e nenhuma dessas coisas foi particularmente percebida quando ele passou pela porta de vidro adiante para chegar ao corredor da frente. Com passadas longas e impacientes, atravessou todos os tipos de instalações de nível profissional – desde uma academia completa e sala de pesos à altura de Dwayne Johnson, até os vestiários e as primeiras salas de aula.

A porção destinada à clínica do centro de treinamento tinha outra quantidade de cômodos voltados ao tratamento, uma sala de operações e diversos leitos hospitalares. A doutora Jane, companheira de V., e o doutor Manello, companheiro de Payne, cuidavam de todo tipo de ferimentos obtidos em combate, além de problemas domésticos e sem falar dos partos de L.W., Nalla e dos gêmeos Lyric e Rhampage.

Qhuinn bateu na primeira porta ao se aproximar e não teve que esperar nem uma batida do seu coração para ter uma resposta.

– Entre! – a doutora Jane disse do lado oposto da porta.

A boa médica vestia roupas cirúrgicas e um par de Crocs. Sentada diante do computador na outra extremidade da bem equipada clínica, seus dedos voavam sobre o teclado enquanto ela atualizava o prontuário de alguém cabisbaixa; seus cabelos loiros curtos espetados como se ela tivesse passado a mão por eles durante horas.

– Um segundinho... – Ela apertou a tecla de “enter” e girou. – Ah, olá, papai. Como está?

– Ah, você sabe, imerso no amor.

– Aqueles seus bebês são maravilhosos. E olha que eu nem gosto de crianças.

O sorriso dela era acolhedor como uma torta de maçãs. Os olhos verde-montanha, por outro lado, eram afiados como raios laser.

– Graças a você, eles estão se saindo muito bem.

Houve uma deixa para o silêncio. Quando a conversa não evoluiu, ele se pôs a caminhar pela clínica, pois não conseguia ficar parado. Deu uma espiada nos equipamentos estéreis e imaculados sobre os gabinetes de aço inoxidável, inspecionou a maca vazia sob as luzes usadas nas operações, ajeitando as calças.

A médica apenas ficou sentada no seu banquinho, calma e silenciosa, deixando que ele se debatesse com a sua mente. Quando o celular dela tocou, Jane deixou que caísse na caixa de mensagens sem nem ver quem poderia ser.

– Provavelmente estou errado – ele acabou concluindo. – Que porra sei eu, afinal?

A doutora Jane sorriu.

– Na verdade eu te acho um cara bem inteligente.

– Não sobre este tipo de coisa. – Com um pigarro, Qhuinn propôs a si mesmo que prosseguisse; ainda que a doutora Jane não parecesse estar com pressa, ele estava entediando a si mesmo. – Olha só... eu amo a Layla.

– Claro que sim.

– E quero o melhor pra ela. Ela é a mãe dos meus filhos. Quero dizer, além de Blay, ela é a minha companheira por causa das crianças.

– Com certeza.

Cruzando os braços diante do peito, ele parou de andar e empostou-se de frente à doutora Jane.

– Não estou dizendo que sei alguma coisa sobre fêmeas. Coisas como os seus humores e por aí vai. Só que... Layla tem chorado muito. Quero dizer, ela tenta esconder isso de mim e do Blay, mas... toda vez que vou vê-la, encontro bolas de lenços de papel no cesto de lixo, e seus olhos estão brilhantes demais, o rosto, corado. Ela sorri, mas o sorriso nunca passa da superfície. Os olhos dela... são uma tragédia de merda. E... e eu não sei o que fazer, só sei que isso não está certo.

A médica assentiu.

– Como ela se porta com as crianças?

– É fantástica, pelo que posso ver. É totalmente devotada a eles, e eles estão crescendo. Na verdade, o único momento em que a vejo meio que feliz é quando os têm nos braços. – Pigarreou novamente. – Então, o que estou imaginando... ou perguntando, sei lá, é se as fêmeas gestantes, depois que não estão mais grávidas, se elas não...

Jesus, ele merecia todo tipo de prêmio por saber se explicar tão bem. E os termos técnicos com os quais se debatia? Praticamente estava a um passo de receber o título de doutor em Medicina, assim como Jane.

Cacete.

Mas pelo menos a doutora Jane parecia reconhecer que aquele avião conversacional estava ficando sem pista para decolar.

– Acho que está querendo me perguntar a respeito de depressão pós-parto. – Após vê-lo assentir, ela prosseguiu: – Posso lhe afirmar que não é incomum entre os vampiros, e que pode ser incapacitante. Conversei com Havers a respeito disso antes, e estou muito feliz que tenha vindo me procurar para tratar do assunto. Às vezes, uma mãe recente sequer está ciente de que isso pode se tornar um problema.

– Não existe nenhum exame... ou um... sei lá.

– Existem algumas maneiras diferentes de avaliar a questão, e o comportamento é uma delas. Claro que posso ir conversar com ela, e também posso fazer alguns exames de sangue para avaliar os níveis hormonais. E, sim, existem muitas coisas que podemos fazer para tratar dela e dar-lhe o apoio necessário.

– Não quero que Layla pense que estou agindo pelas costas dela nem nada assim.

– O que é totalmente compreensível. Mas tudo bem, porque eu pretendia mesmo subir até lá para dar uma olhada nela e nos bebês. Posso abordar o tema como se fosse parte de uma rotina. Nem terei que citar seu nome.

– Você é a melhor.

Com o assunto resolvido, ele supôs que era hora de voltar para junto do seu companheiro e para o torneio de bilhar. Mas não saiu. Por algum motivo, não conseguia.

– Não é sua culpa – garantiu a doutora Jane.

– Eu a engravidei. E se o meu... – Ok, ela era médica, mas Qhuinn ainda não queria pronunciar a palavra esperma perto dela. O que era loucura. – E se a minha metade for a causa...

A porta se abriu, e Manny enfiou a cabeça pela abertura.

– Ei, está pronta...? Opa, desculpem.

– Estamos quase terminando aqui. – A doutora Jane sorriu. – E você não nos viu juntos.

– Pode deixar. – Manny bateu na soleira. – Se eu puder ajudar de alguma maneira, é só avisar.

E lá se foi o cara, como se nunca tivesse aparecido ali.

A doutora Jane se levantou e se aproximou dele. Era mais baixa do que Qhuinn, e sua estrutura nem se comparava aos quase 140 quilos de músculos masculinos. Mas ela parecia pairar acima dele; a autoridade na voz e nos olhos dela era exatamente o que ele precisava para acalmar seu lado irracional.

Quando encostou a mão no braço dele, sua expressão estava firme.

– Não é sua culpa. Esse, às vezes, é o curso da natureza em algumas gestações.

– Fui eu quem colocou aqueles bebês dentro dela.

– Sim, mas imaginando que este seja um caso de os hormônios se autorregularem após o parto, não há ninguém para culpar. Além disso, você agiu bem ao vir até aqui, e também pode ajudá-la simplesmente conversando com ela e lhe dando o tempo e o espaço necessários para que ela também converse com você. Para ser sincera, eu já havia notado que ela não tem descido para as refeições. Acho que precisamos encorajá-la a se juntar ao resto de nós, para que ela sinta o quanto estamos disponíveis para ampará-la.

– OK. Certo, então.

A doutora Jane franziu a testa.

– Posso lhe dar um conselho?

– Por favor.

Ela o apertou no braço.

– Não se sinta responsável por algo sobre o qual não tem controle algum. Isso é um convite ao estresse que acabará deixando-o loucamente infeliz. Sei que é mais fácil falar do que fazer, mas tente se lembrar disso, está bem? Eu o vi acompanhá-la a cada estágio da gestação. Não houve nada que você não tenha feito por ela ou que não faria por ela, e você é um pai fantástico. Somente coisas boas o esperam, eu prometo.

Qhuinn inspirou fundo.

– Certo.

Mesmo quando sua preocupação persistiu, ele se lembrou de que, durante a gestação de Layla, descobrira que podia confiar na doutora Jane. A médica o ajudara a trilhar a estrada da vida e da morte, e nunca o decepcionara, nunca deixara que se desgarrasse. Tampouco mentira para ele e lhe dera maus conselhos.

– Vai ficar tudo bem – ela prometeu.

Infelizmente, como pôde-se perceber mais tarde, a boa médica estava errada.

Mas ela não tinha controle algum sobre o destino.

Nem ele.


CAPÍTULO 4

O bebê estava arruinado. Tudo o que detinha não passava de uma versão modificada e horrenda das feições de Hharm; o lábio superior era todo errado, como o de uma lebre.

Hharm largou o bebê no piso sujo da caverna, e a coisa não emitiu som algum ao aterrissar, os braços e as pernas mal se moviam, as carnes azuladas e acinzentadas, o cordão ainda o unia à fêmea. Iria morrer, assim como deveriam todos os resultados contra as regras da natureza e do parto – e essa consequência não era causa de indignação.

O fato de Hharm ter sido ludibriado, porém, o era. Desperdiçara dezoito meses, uma quantidade enorme de horas, aquele momento de esperança e de felicidade numa monstruosidade insuportável. E o que ele sabia com certeza? Que não era culpa sua.

– O que você fez? – exigiu saber da fêmea.

– Um filho! – Ela arqueou as costas em agonia renovada. – Eu lhe dei...

– Uma maldição. – Hharm se levantou em toda a sua altura. – O seu ventre é impuro. Ele corrompeu o presente do meu sêmen e produziu isso...

– O seu filho...

– Olhe para ele! Veja com seus olhos! Isso é uma abominação!

A mulher se esforçou e suspendeu a cabeça.

– Ele é perfeito, ele é...

Hharm empurrou o bebê com a bota, fazendo com que ele movesse os pequenos membros e emitisse um gritinho fraco.

– Nem mesmo você pode negar o que está diante de nós!

Os olhos injetados dela se afixaram no bebê, e depois se arregalaram...

– Isso é...

– Você fez isso – ele anunciou.

A ausência de argumentos por parte dela foi uma rendição inevitável, visto que o defeito não podia ser negado. Então ela gemeu como se ainda estivesse em trabalho de parto, os dedos ensanguentados arranharam a terra fria, as pernas tremeram quando se afastaram mais. Depois de mais esforços, algo saiu da mulher, e ele pensou que talvez fosse mais um. De fato, seu coração se viu cheio de otimismo enquanto ele rezava para que o primeiro fosse exhile dhoble, o amaldiçoado de um par de gêmeos.

Infelizmente, não. Era apenas algo do interior da fêmea, talvez o estômago ou o intestino dela.

E o bebê prosseguiu chorando, o peito se estufando e murchando com pouco efeito.

– Você deve morrer aqui, assim como ele – Hharm disse sem cuidado algum.

– Eu não...

– Suas entranhas estão saindo.

– O bebê é... – ela hesitou. – Ele...

– É uma abominação da natureza contra o desejo da Virgem Escriba.

A fêmea se calou e relaxou como se o processo da expulsão tivesse chegado ao fim, e Hharm aguardou pelo ataque em que a alma dela se desprenderia do corpo. Só que ela continuou a respirar e olhar para ele... e a existir. Que espécie de truque era aquele? A ideia de que ela não iria ao Dhunhd por conta disso era um insulto.

– Isso é obra sua – ralhou com a fêmea.

– Como sabe que não foi a sua semente que...

Hharm apoiou a bota na garganta dela e a pressionou, interrompendo-lhe as palavras. Quando uma onda de ódio induziu o corpo do guerreiro rumo a uma ação mortal, somente a possibilidade de que esse evento fosse um castigo por suas ações prévias o impediu de esmagar-lhe o pescoço.

Ela tem que pagar, foi seu pensamento abrupto. Sim, a culpa era dela, e o desapontamento causado necessitava de uma reparação.

Sibilando, ele revelou as presas.

– Deixarei que viva para que possa criar esta monstruosidade e que seja vista com ele. Esta é sua maldição por me amaldiçoar: ele ficará sempre em seu cangote, como um amuleto ou uma danação, e se eu descobrir que essa coisa morreu, eu a perseguirei e a esquartejarei centímetro a centímetro. Depois matarei a sua irmã, toda a prole dela e os seus parentes.

– O que está dizendo?!

Hharm se inclinou para baixo, o latejar no rosto e na cabeça parecia muito familiar.

– Ouviu minhas palavras. Conhece meu desejo. Desafie-o por sua conta e risco.

Quando ela se acovardou, o Irmão se afastou e fitou a sujeira proveniente do parto, a fêmea patética, aquele resultado horrendo – e cortou o ar com a mão, como se os apagasse da linha do tempo. Em meio aos bramidos da tempestade e à extinção da fogueira, ele foi até o casaco de peles.

– Você arruinou o meu filho – reclamou ao passar o peso das peles sobre os ombros. – O seu castigo é criar esse horror como declaração do seu fracasso.

– Você não é Rei – ela rebateu, fraca. – Não pode ordenar nada.

– Este é um serviço comunitário que faço aos machos, meus camaradas. – Apontou o dedo na direção do recém-nascido choroso. – Com isso grudado ao seu quadril, ninguém mais se deitará com você para sofrer de maneira similar.

– Não pode me forçar a isso!

– Ah, posso, sim, e o farei.

Ela era uma fêmea mimada e desafiadora por natureza, e fora isso o que o atraíra nela a princípio – tivera que lhe ensinar o que fazer e as orientações foram bem interessantes por um tempo. De fato, houvera apenas uma instância em que ela tentara exercer domínio sobre ele. Uma vez e nunca mais.

– Não me teste, fêmea. Já fez isso antes e deve se lembrar do resultado.

Quando ela empalideceu, ele assentiu na sua direção.

– Sim. Isso mesmo.

Ele quase a matara na noite em que lhe mostrara que, enquanto ele ficaria com que desejasse, quando e onde o quisesse, ela jamais teria permissão para se deitar com outro macho enquanto estivesse tangivelmente associada a ele. Foi logo depois disso que ela decidiu que a única possibilidade de prendê-lo seria dando-lhe o filho que ele almejava e, ao mesmo tempo, ele começara a pensar em seu legado.

Por azar, ela fracassara em seus objetivos.

– Eu odeio você – ela gemeu.

Hharm sorriu.

– O sentimento é mútuo. E mais uma vez lhe digo que é melhor garantir a sobrevivência dessa coisa. Se eu descobrir que o matou, revidarei a morte dele nas suas carnes e em toda a sua linhagem.

Dito isso, ele cuspiu duas vezes junto aos pés dela: uma por causa da fêmea e outra pelo bebê. Depois se afastou enquanto ela o chamava, e o bebê desertado berrava contra o frio.

Do lado de fora, a tempestade prosseguia, intensa, a neve rodopiante o cegava e depois diminuiu para uma revoada de pássaros que revelava todo o cenário. No vale logo abaixo, montanhas se elevavam às margens de um lago, a neve acumulada sobre a água congelada que formava ondas nos meses mais quentes. Estava tudo escuro, gélido e inerte, mas ele se recusava a encontrar um mau presságio na imagem à sua frente.

Com a mão usada para a adaga comichando, e a hostilidade dentro dele acelerando como um corcel disparado, sugeriu a si mesmo que não atentasse para esse resultado.

Encontraria outro ventre.

Em algum lugar, havia uma fêmea que lhe daria o legado merecido e necessário. Ele a encontraria e a faria crescer com a sua semente.

Existiria um filho apropriado para ele. Hharm jamais aceitaria qualquer outro resultado.


CAPÍTULO 5

Quando se aproximou da entrada da caverna sagrada da Irmandade, Tohr se esgueirou pelo interior úmido, e uma vez ali dentro, o cheiro de terra e de uma fonte de chamas distante irritou suas narinas. Os olhos se ajustaram de imediato, e quando ele seguiu em frente, aquietou o movimento de seus coturnos. Não queria ser ouvido, mesmo que sua presença fosse notada logo em seguida.

Os portões não estavam muito longe e eram constituídos por grossas barras de ferro, cuja espessura era semelhante a de um antebraço de guerreiro; as barras de ferro eram altas como árvores e possuíam uma cobertura em malha de aço, a fim de impedir a desmaterialização. Tochas sibilavam e tremeluziam em cada lado e, além, ele via o começo do grande corredor que conduzia mais para dentro da terra.

Parando diante da enorme barreira, pegou a chave de cobre e não sentiu remorso algum por ter roubado o objeto da gaveta da escrivaninha ornamental de Wrath. Pediria desculpas pela infração mais tarde.

E também pelo que faria na sequência.

Tohr destrancou o mecanismo, empurrou o peso colossal, entrou e voltou a trancar o portão atrás de si. Caminhando à frente, seguiu o caminho natural, expandido por talhadeiras e músculos fortes, e depois adornado por prateleiras. Sobre as diversas tábuas, centenas e centenas de jarros alimentavam um jogo de luz e sombras.

Os receptáculos eram de todos os formatos e tamanhos, e vinham de diferentes eras, desde a antiga até a moderna, mas o que havia dentro de cada um deles era o mesmo: o coração de um redutor. Desde o princípio da guerra contra a Sociedade Redutora, ainda no Antigo País, a Irmandade vinha marcando as mortes dos inimigos ao tomar posse dos jarros das vítimas e trazendo-os até ali para aumentar a coleção.

Em parte como troféu, em parte como um “foda-se, Ômega”, aquilo era um legado. Era um orgulho. Uma expectativa.

E talvez deixasse de sê-lo. Havia poucos e esparsos redutores nas ruas de Caldwell e em outras paragens no momento, portanto deveriam estar próximos.

Tohr não sentiu nenhuma alegria ante tal conquista. Mas talvez fosse em virtude do terrível aniversário dessa noite.

Era difícil sentir qualquer outra coisa que não a perda de Wellsie no dia que já fora seu aniversário.

Após uma curva sutil, ele parou. Mais adiante, a cena mais parecia saída de um filme que não se decidia se era Indiana Jones, Grey’s Anatomy ou Matrix. No centro das antigas paredes de pedra, tochas acesas e jarros despareados e empoeirados, um amontoado de equipamentos médicos piscando e emitindo sinais interferia com um corpo sobre uma maca. E ao lado do prisioneiro? Dois imensos vampiros cobertos da cabeça aos pés com couro preto e armas negras.

Butch e V. eram o Frick e Frack da Irmandade – o ex-policial da divisão de homicídios dos humanos e o filho da Criadora da raça, o bom garoto católico e o depravado sexual, o viciado em roupas e o czar da tecnologia –, unidos pela devoção partilhada pelo Red Sox de Boston e respeito mútuo e afeto que não conheciam limites.1

V. percebeu a presença de Tohr primeiro, virando com tanta rapidez que seu cigarro aceso espalhou cinzas pelo ar.

– Ah, inferno. Não. De jeito nenhum, porra! Você vai dar o fora daqui!

Essa opinião, a despeito do volume pronunciado, foi fácil de ignorar, pois Tohr se concentrava no pedaço de carne sobre a maca. Xcor estava deitado ali, com tubos entrando e saindo de si como se ele fosse a bateria de um carro prestes a receber uma recarga, com a respiração regular... Não, espere, a respiração não estava regular.

V. deteve Tohr, aproximando-se dele e ainda um pouco mais. E o que mais? O Irmão sacara seu atirador poodle – e o cano da 40 mm apontava diretamente para o rosto de Tohr.

– Tô falando sério, meu irmão.

Tohr olhou para o prisioneiro por cima do ombro largo. E se viu sorrindo.

– Ele está acordado.

– Não, ele não est...

– A respiração dele mudou. – Tohr apontou para o peito nu. – Veja.

Butch franziu o cenho e se aproximou do prisioneiro.

– Ora, ora, ora... Hora de acordar, filho da mãe.

V. virou-se para trás.

– Filho da puta.

Mas a arma não se moveu, tampouco Tohr. Por mais que quisesse Xcor, ele acabaria recebendo uma bala na garganta se desse mais um passo: V. era o menos sentimental dos irmãos e tinha a paciência de uma cascavel.

Naquele momento, os olhos de Xcor piscaram. Na luz tremeluzente das tochas, eles pareciam negros, mas Tohr se lembrava de que eles eram azuis. Não que isso importasse.

V. colocou a cara no seu caminho, os olhos de diamante eram como adagas.

– Este não vai ser o presente de aniversário que vai dar para a sua shellan morta.

Tohr arrastou os lábios para trás das presas.

– Vai se foder.

– Isso não vai acontecer. Pode me xingar o quanto quiser, mas não. Você sabe como as coisas vão acontecer e ainda não está na sua hora.

Butch sorriu para o prisioneiro.

– Estávamos esperando que se juntasse à festa. Aceita uma bebida? Talvez um misto de nozes antes ter que ajeitar a poltrona para a decolagem? Não há por que te mostrar as saídas de emergência. Você não tem que se preocupar com isso.

– Vamos, Tohr – V. disse. – Agora.

Tohrment expôs as presas, mas não para o irmão.

– Seu bastardo, vou te matar...

– Não, nada disso. – V. passou o braço ao redor do bíceps de Tohr, e faltou pouco para começarem a dançar uma quadrilha. – Lá fora...

– Você não é Deus...

– Nem você, motivo pelo qual está de saída.

Nos recessos da mente, Tohr sabia que o filho da mãe tinha razão. Ele não estava nem meio racional no momento – e P.S., que V. se fodesse por se lembrar que noite era aquela.

Sua amada shellan, seu primeiro amor, completaria duzentos e vinte e seis anos. E teria um filho dos dois nos braços.

Mas o destino se opusera.

– Não me obrigue a atirar em você – V. alertou com aspereza. – Venha, meu irmão. Por favor.

O fato de as duas últimas palavras terem saído da boca de V. foi o que surtiu efeito. A cena era tão chocante que desarmou Tohr de sua loucura e raiva.

– Venha, Tohr.

Dessa vez, Tohr se permitiu ser conduzido, à medida que seu grande esquema desinflanva; o silêncio absoluto depois de sua loucura o fazia tremer dentro da própria pele. Que porra estivera fazendo? Mas que cacete?

Sim, recebera o privilégio de matar Xcor com um decreto da realeza, mas só quando recebesse autorização expressa de Wrath. E isso ainda não acontecera explicitamente.

Tinham evitado um desastre de proporções traidoras.

Seria como trocar de lugar. Um traidor morto por outro bem vivo.

Quando chegaram aos portões que Tohr havia destrancado para conseguir acesso ao prisioneiro, V. estendeu a mão enluvada.

– Chave.

Tohr não olhou para o irmão ao tirar o objeto da jaqueta de couro e entregá-la. Depois de uns cliques e rangidos, o caminho estava livre, e Tohr saiu sem estar convencido, com as mãos no quadril, os coturnos chutando a terra, a cabeça pensa.

Quando ouviu uma nova sequência de rangidos e cliques, deduziu que estava sendo trancado do lado de fora, sozinho. Mas V. estava bem ao seu lado.

– Eu prometo – o irmão disse – que você, e apenas você, vai mattá-lo.

Tohr se perguntou se isso bastaria. Ponderou se seria o bastante. Será que algum dia encontraria satisfação?

Antes de chegarem à boca da caverna, Tohr parou.

– Às vezes... a vida não é nada justa.

– Não. Não é.

– Odeio isso. Odeio pra caralho. Passo por... períodos, não apenas noites, mas semanas, às vezes até um ou dois meses... em que me esqueço de tudo. Mas a merda sempre volta e, depois de um tempo, não dá mais pra segurar. Não dá. – Bateu na lateral da cabeça com o punho. – Tem esse verme aqui dentro, e sei que matar Xcor não vai me distrair por mais do que dez minutos. Mas numa noite como esta, eu aceitaria até isso.

Sucedeu-se o som de um fósforo sendo riscado quando V. acendeu um cigarro.

– Não sei o que dizer, meu irmão. Eu diria pra você rezar, mas não tem mais ninguém lá em cima te ouvindo.

– Não tenho certeza se a sua mãe nos ouviu algum dia. Sem ofensas.

– Não ofendeu. – V. exalou. – Confie em mim.

Tohr se concentrou na saída da caverna, e quando tentou respirar, sentiu uma estranha exaustão.

– Estou cansado de lutar sempre a mesma briga. Desde que Wellsie foi... assassinada... sinto como se um pedaço meu nunca tivesse cicatrizado, e não aguento essa dor nem mais um segundo. Nem mais um maldito segundo. Mesmo que ela migrasse para algum outro lugar, já seria melhor.

Estabeleceu-se um longo silêncio entre eles, abafado apenas pelo urro dos ventos invernais que entravam na caverna silenciosa.

No fim, V. praguejou.

– Bem que eu gostaria de poder te ajudar, meu irmão. Quero dizer, se você precisar de um abraço confortador... eu devo conseguir alguém pra te dar uns tapinhas nas costas.

Tohr sacudiu a cabeça quando o lábio superior se retorceu num sorriso.

– Isso foi quase engraçado.

– Pois é, tentei pegar leve. – V. exalou de novo. – Era isso ou eu atirava em você, e odeio preencher a papelada burocrática do Saxton, sabe?

– Sei o que quer dizer. – Tohr esfregou o rosto. – Verdade...

Os olhos diamantinos de V. mudaram de foco.

– Apenas esteja ciente que lamento. Você não merece nada disso. – Certa mão pesada pousou no ombro de Tohr e apertou-o. – Se eu pudesse tirar a sua dor, é o que faria.

Quando Tohr piscou rápido, pensou que era uma coisa boa que V. não fosse de abraçar, ou então teriam um maldito colapso emocional acontecendo ali.

Do tipo de colapso que um macho não retornaria intacto.

Mas, pensando bem, ele estava mesmo intacto agora?


BOATE SHADOWS, CENTRO DE CALDWELL


Trez Latimer sentia-se como uma espécie de divindade ao olhar através da parede de vidro do escritório no segundo andar da sua boate. Abaixo, no espaço aberto do armazém convertido, uma multidão de humanos excitados estabelecia um padrão de atração e desdém num mar tumultuado de lasers púrpura e batidas pesadas de baixo.

Em grande escala, sua clientela era composta de millenials, os nascidos entre 1980 e 2000. Definidos pela internet, pelo iPhone, pela ausência de oportunidades econômicas – ao menos segundo a mídia humana –, era um grupo demográfico de moralistas perdidos, comprometidos em salvar uns aos outros, com a preservação dos direitos de todos, e a promoção de uma falsa utopia de pensamento liberal que fazia o macarthismo parecer atenuado.

Mas também eram, da maneira dos jovens, esperançosos sem fundamento.

E como ele os invejava.

Enquanto se esbarravam e colidiam uns nos outros, ele testemunhava o êxtase em seus rostos, o otimismo exuberante de que encontrariam o verdadeiro amor e a felicidade naquela noite mesmo – a despeito de todas as outras noites nas quais vieram até a sua boate e a aurora chegara, expulsando-o com nada além de exaustão, uma nova DST, e mais um fardo de vergonha e dúvida enquanto se perguntavam o que tinham feito, e com quem.

Ele suspeitava, contudo, que, para a maioria, a cura de tamanha angústia era apenas cerca de duas horas de sono, um venti latte da Starbucks e uma injeção de penicilina.

Quando se é jovem assim, quando ainda é preciso enfrentar os desafios que não se consegue sequer começar a compreender, a sua resistência não tem limites.

E era por isso que o vampiro desejaria poder trocar de lugar com eles.

Era estranho colocar os humanos em qualquer tipo de pedestal. Sendo um Sombra de mais de duzentos anos de vida, Trez há tempos considerava aqueles ratos sem cauda algo inferior, um tumulto inconveniente no planeta, bem como formigas na cozinha ou camundongos no porão. Só que não se podia exterminar os humanos. Sujeira demais. Melhor tolerá-los do que arriscar a exposição da espécie ao assassiná-los só para liberar vagas de estacionamento, diminuir as filas nos supermercados e as notificações do Facebook.

No entanto, ali estava ele, ansioso por trocar de lugar com qualquer um deles, mesmo que fosse por uma ou duas horas.

Improcedente.

Mas, pensando bem, eles não mudaram. Quem mudou foi ele.

Minha rainha, está na hora de partir? Conte-me se for.

Enquanto as lembranças o intimidavam dentro do cérebro, ele cobriu os olhos e pensou: Não, Deus. De novo, não. Não queria voltar para a clínica da Irmandade... para o lado do leito da sua amada Selena, morrendo por dentro enquanto ela expirava de verdade.

A verdade, contudo, era que ele jamais abandonara esses eventos, mesmo que o calendário sugerisse o contrário. Depois da passagem de mais de um mês, ele ainda se lembrava de cada mínimo detalhe da cena, desde a respiração torturada dela até o pânico no olhar enquanto lágrimas rolavam por ambos os rostos.

Sua Selena fora acometida por uma doença que raramente afetava membros da classe sagrada. Em todas as gerações de Escolhidas, algumas tiveram a Prisão, que era um jeito horrível de morrer: a mente era deixada viva na casca congelada do corpo, sem nenhuma escapatória, nenhum tratamento para ajudar, ninguém para salvar.

Nem mesmo o macho que a amava mais do que a própria vida.

Quando o coração de Trez tropeçou no âmago do peito, ele abaixou as mãos, meneou a cabeça e tentou se reconectar com a realidade. Estivera se debatendo contra esses episódios invasivos, e eles vinham se tornando mais frequentes em vez de menos – o faziam se preocupar com sua sanidade. Chegou a ouvir o ditado de que “o tempo cura as feridas” e, droga, talvez aquilo fosse verdade para outras pessoas. Para ele? Seu luto se transformara de dor incandescente, no começo, a uma agonia tão ardorosa que rivalizava com as chamas da pira funerária, até aquelas reminiscências crônicas que pareciam girar cada vez mais rápido ao redor do esteio aberto da sua perda.

Sua própria voz ecoava na cabeça: Eu entendi direito? Você quer que isto... termine?

Quando os momentos finais de Selena chegaram, ela já não conseguia mais falar. Tiveram que se apoiar num sistema de comunicação pré-combinado que supunha o controle dela sobre as pálpebras até quase o fim: uma piscada para não... duas para sim.

Você quer que isto... termine?

Ele soubera qual seria a resposta dela. Lera-o na expressão exausta, distante e enfraquecida dela. Mas aquela fora uma das vezes na vida em que se queria ter a mais absoluta certeza.

Ela piscara uma vez. E de novo depois.

E ele estivera ao lado dela quando as drogas pararam seu coração e lhe conferiram o alívio de que ela necessitava ao ser transportada.

Em todos os seus anos, ele jamais imaginara aquele tipo de sofrimento. Nas duas partes. Ele não teria conseguido criar uma morte pior saída de qualquer pesadelo, e não poderia ter imaginado que teria que assentir para Manny, autorizando-o a administrar o medicamento enquanto gritava internamente, pois seu amor se esvaía e o deixava sozinho pelo resto de suas noites.

O único conforto era que o sofrimento dela chegara ao fim.

A única realidade era que o seu tinha apenas começado.

No período subsequente, encontrou conforto no fato de que preferiria ser o responsável por sentir a ausência dela, e não o contrário. Mas, conforme o tempo prosseguiu, acabou usando demais esse antídoto, pois era o único que possuía, e agora ele já não surtia mais efeito.

Portanto, não havia nada para reavivá-lo. Tentou beber, mas o álcool só servia para ele perder o pouco controle que tinha sobre as lágrimas. Não dava a mínima para a comida. Sexo era algo completamente fora de questão. E ninguém o deixava lutar – pois tanto os Irmãos quanto iAm reconheciam seu estado desgovernado.

Portanto, o que lhe restava? Nada, a não ser se arrastar ao longo dos dias e das noites, e rezar para o mais básico dos alívios: um respiro desimpedido, um período de tranquilidade mental, uma hora de sono sem perturbações.

Ao estender a mão, tocou o painel de vidro inclinado que era a sua janela para o que ele considerava ser o outro mundo, o exterior do seu inferno isolado. Engraçado que ele agora considerava “outro” o que um dia fora o mundo “real”... E mesmo sem a separação das espécies, da idade, do seu poleiro acima da confusão da boate, ele se sentia tão à parte de todos eles.

Tinha a sensação de que sempre permaneceria afastado de todos.

E, francamente, ele simplesmente não poderia continuar assim.

A dor o destroçara e, se não fosse pelo fato de que os suicidas tinham a entrada negada no Fade, ele teria metido uma bala do seu 48 mm na cabeça horas após a morte dela.

Pensou que não suportaria outra noite assim.

– Por favor... me ajude.

Trez não fazia a mínima ideia de quem falava com ele. Do lado dos vampiros, a Virgem Escriba já não existia mais – e no seu atual estado mental ele compreendia por completo o motivo de ela ter largado o microfone e saído do palco de sua criação. E, como um Sombra, ele fora criado para adorar sua Rainha – o único problema era que ela estava vinculada ao seu irmão, e rezar para a cunhada parecia muito estranho.

Uma declaração autêntica de que toda aquela coisa espiritual não passava de um monte de asneira.

E, mesmo assim, seu sofrimento era tão grande que ele tinha que tentar buscar ajuda.

Inclinando a cabeça para trás, olhou para o teto baixo preto e despejou seu coração partido para o mundo:

– Eu só a quero de volta. Eu só... quero Selena de volta. Por favor... se existir alguém aí em cima, me ajude. Devolva-a para mim. Não me importo em que forma ela estiver... Eu só não consigo mais fazer isto. Não consigo mais viver assim nem pela porra de uma única noite.

Claro que não houve resposta. E ele se sentiu um completo idiota.

Pois é, como se a vastidão do universo lhe iria despejar outra coisa que não apenas um meteoro?

Além disso, será mesmo que existia um Fade? E se ele estivesse apenas alucinando durante a purificação e somente imaginara ter visto a sua Selena? E se ela só tivesse simplesmente morrido? Como se... tivesse apenas deixado de existir? E se todas as bobagens a respeito de um lugar celestial aonde nossos amados iam e esperavam pacientemente por nós não passasse de um mecanismo de defesa criado por aqueles deixados para trás mergulhados no tipo de agonia em que ele se encontrava?

Uma falácia mental para cuidar de um ferimento emocional.

Reajustando a cabeça, voltou a fitar a multidão abaixo...

Pelo vidro, o reflexo de uma imensa figura masculina parada logo atrás fez com que ele se girasse e levasse a mão para a arma que mantinha enfiada na lombar. Mas então reconheceu o indivíduo.

– O que você está fazendo aqui? – exigiu saber.


Dois patinadores suíços, Werner Groebli e Hans Mauch, cujos nomes artísticos eram Frick e Frack, nutriram uma parceria duradoura. Posteriormente, seus nomes se tornaram gíria para designar duas pessoas que trabalham juntas e se dão bem. (N.T.)


CAPÍTULO 6

A campina de 20 mil metros quadrados se elevava de uma estradinha deserta como oriunda do olhar crítico de um artista; todos os aspectos da colina e do vale pareciam sujeitos às regras dos padrões estéticos agradáveis. No alto do suave aclive coberto de neve, como uma coroa no topo da cabeça de um governante benevolente, um imenso bordo estendia seus galhos em uma áurea tão perfeita que mesmo a esterilidade do inverno não conseguia diminuir sua beleza.

Layla se desmaterializou até a base da colina, partindo da mansão, e subiu a pé até a árvore. Os chinelos usados no quarto não eram páreo para o chão congelado, o vento frio atravessava o roupão, e os cabelos se soltavam da trança, flanando ao seu redor.

Quando chegou ao cume, olhou para baixo, para as raízes do tronco glorioso dentro da terra.

Fora ali, pensou ela.

Ali, na base daquele bordo, ela vira Xcor pela primeira vez, convocada por alguém que ela acreditara ser um soldado de valor na guerra, alguém que ela alimentara na clínica da Irmandade... Alguém que a Irmandade deixara de lhe informar que, na verdade, era um inimigo e não amigo.

Quando o macho a chamara para que ela lhe provesse a veia, Layla não pensou em nada além do seu dever sagrado.

Por isso, transportara-se até ali... e perdera um pedaço de si no processo.

Xcor estivera à beira da morte, ferido e enfraquecido, e mesmo assim ela reconhecera sua força, ainda que em estado debilitado. Como poderia não tê-la notado? Era um macho tremendo, grosso no pescoço e no peito, forte nos braços, poderoso no corpo. Ele tentara recusar sua veia porque – ela gosta de acreditar – enxergara-a como uma inocente no conflito entre o Bando de Bastardos e a Irmandade da Adaga Negra, e quisera mantê-la afastada da situação. No fim, contudo, ele cedera, garantindo que ambos seriam a presa de uma ordem biológica que desconhecia a razão.

Ela inspirou fundo, observou a árvore e viu, através dos galhos desnudos, o céu noturno.

Depois que a verdadeira identidade de Xcor veio à tona, ela confessou a Wrath e à Irmandade suas ações, lacrimosamente clamando por perdão. E era um testemunho do rei e dos machos que o serviam o fato de a terem perdoado, e sem castigos, por ter prontamente ajudado o inimigo.

Em troca, era um parco testemunho da sua parte que ela tivesse voltado para junto de Xcor depois disso. Associou-se a ele. Tornou-se emocionalmente envolvida com ele.

Sim, existiu uma coerção inicial da parte dele na época, mas a verdade era que, mesmo que ele não a tivesse forçado? Sua vontade teria sido estar com ele. E o pior? Quando o relacionamento chegou ao fim, fora ele quem interrompera os encontros. Não ela.

Na verdade, ela o estaria vendo agora – e a dor da perda que sentia pela ausência dele era tão incapacitante quanto a culpa.

E isso foi antes ainda de ele ter sido capturado pela Irmandade.

Ela sabia exatamente onde ele havia sido aprisionado porque testemunhara suas condições naquela caverna... Sabia o que os Irmãos planejavam fazer com Xcor assim que ele despertasse.

Se ao menos houvesse um modo de salvá-lo... Ele nunca tinha sido cruel com ela, nunca a tinha ferido... jamais a havia abordado sexualmente, apesar do desejo que o habitava. Ele se manteve paciente e gentil... pelo menos até se afastarem.

Ele, entretanto, havia tentado matar Wrath. E essa traição era passível de punição com a morte...

– Layla?

Girando, ela tropeçou e caiu de lado, quase incapaz de se agarrar ao tronco áspero do bordo. Quando sentiu uma dor na palma, sacudiu-a na tentativa de apaziguá-la.

– Qhuinn! – exclamou.

O pai de seus filhos deu um passo à frente.

– Você se machucou?

Com um xingamento, ela limpou os arranhões, tirando a sujeira. Santa Virgem Escriba, como doía.

– Não, não. Estou bem.

– Pegue. – Ele apanhou algo de dentro do bolso da jaqueta de couro. – Deixe-me ver.

Ela tremia quando Qhuinn avaliou-lhe a mão e depois a envolveu na bandana preta.

– Acho que você vai viver.

Será?, ela pensou. Não tenho tanta certeza.

– Você está congelando.

– Sério?

Qhuinn tirou a jaqueta e a posicionou sobre os ombros dela, e Layla se viu engolfada pelo tamanho e pelo calor.

– Venha, vamos voltar para a mansão. Você está tremendo...

– Não posso mais fazer isso – ela desabafou num rompante. – Não consigo mais.

– Eu sei. – Quando ela se retraiu de surpresa, ele sacudiu a cabeça. – Sei o que há de errado. Vamos pra casa pra conversar. Vai ficar tudo bem, prometo.

Por um momento, ela não conseguiu respirar. Como ele podia ter descoberto? Como podia não estar bravo com ela?

– Como você... – As lágrimas surgiram com rapidez, a emoção se sobrepôs a tudo. – Sinto muito. Eu sinto muito... Não era para ser assim.

Ela não soube se foi ele quem abriu os braços ou se foi ela quem se lhe agarrou ao peito, mas Qhuinn a abraçou com força, protegendo-a do vento.

– Tá tudo bem. – Ele massageava grandes círculos nas costas dela com a palma, acalentando-a. – Só precisamos conversar a respeito. Podemos fazer algumas coisas, tomar algumas providências.

Ela virou o rosto para o lado e fitou a campina.

– Eu me sinto tão mal.

– Por quê? Isso está fora do seu controle. Não pediu por isso.

Ela se afastou.

– Eu juro, não pedi. E não quero que você pense nem por um segundo que eu poria Lyric e Rhampage em perigo...

– Tá de brincadeira? Sério, Layla, você ama aqueles dois com tudo o que tem dentro de si.

– Amo mesmo. Eu te garanto isso. E amo você e Blay, o Rei e a Irmandade. Vocês são a minha família, vocês são tudo o que tenho.

– Layla, preste atenção. Você não está sozinha, entendeu? E como eu já disse, existem coisas que podemos fazer...

– Mesmo? De verdade?

– Sim. Na verdade eu estava falando sobre isso antes de vir para cá. Eu não queria que pensasse que eu a estava traindo...

– Ah! Qhuinn! Eu sou a traidora! Sou eu quem está errada...

– Pare. Você não é. Vamos cuidar disso juntos. Todos nós.

Layla levou as mãos ao rosto, tanto a que estava com o curativo como a que estava descoberta. Então, pela primeira vez desde o que parecia ser uma eternidade, ela exalou o ar, um bálsamo de calma substituindo o terrível fardo que dispunha sobre si.

– Tenho que contar uma coisa. – Levantou o olhar para ele. – Por favor, saiba que tenho me remoído de arrependimento e de tristeza. Juro que nunca tive a intenção de que isso acontecesse. Tenho me sentido tão só, me debatendo com a culpa...

– Culpa é algo desnecessário. – Esfregou os polegares sob os olhos dela. – Você tem que se livrar disso, porque não consegue evitar o modo como se sente.

– Não consigo, de verdade, não consigo mesmo... E Xcor não é mau, não é tão ruim quanto você acha que ele é. Juro. Ele sempre me tratou com cuidado e gentileza, e sei que ele não voltaria a ferir Wrath. Eu sei disso...

– O quê? – Qhuinn franziu o cenho e sacudiu a cabeça. – Do que você está falando?

– Por favor, não o mate. É como você disse, existe um modo de fazer isso dar certo. Talvez vocês possam libertá-lo e...

Qhuinn não recuou; na verdade, ele a empurrou para longe de si. E depois pareceu se debater para encontrar as palavras.

– Layla – ele pronunciou devagar. – Sei que não estou ouvindo direito e estou tentando... Você pode...

Aproveitando-se do momento para expor sua posição, Layla se apressou em falar:

– Ele nunca me machucou. Todas as noites em que o procurei, ele nunca me feriu. Ele providenciou um chalé para que eu ficasse em segurança, e sempre estávamos apenas nós dois. Nunca vi nenhum dos Bastardos...

Ela prosseguiu enquanto a expressão do guerreiro se transformava de confusão para... algo gélido que lhe suscitou as feições de um completo desconhecido.

Quando Qhuinn voltou a falar, a voz saiu inexpressiva.

– Você esteve se encontrando com Xcor?

– Eu me senti muito mal...

– Por quanto tempo? – ele estrepitou. Mas não a deixou responder. – Você foi ao encontro dele enquanto estava grávida dos meus filhos? Você se associou por vontade própria com um inimigo conhecido enquanto os meus benditos filhos estavam no seu ventre? – Antes que ela conseguisse lhe responder, ele levantou o indicador. – E você precisa pensar muito bem na resposta. Não há volta para isto, e é melhor dizer a verdade. Se eu descobrir que mentiu pra mim, vou te matar.

Quando o coração de Layla começou a bater forte no peito, deixando-a tonta, seu único pensamento foi...

Você vai me matar de qualquer maneira.

De volta à shAdoWs, Trez guardou a arma e tentou retornar à realidade.

– E então? – ele inquiriu. – O que está fazendo aqui, ainda mais sem o seu poliéster especial do Tony Manero?

Lassiter, o Anjo Caído, sorriu de um modo que não contemplou seus estranhos olhos coloridos sem pupila; a expressão afetou apenas a parte inferior do rosto.

– Ah, você sabe, ternos de passeio estão ultrapassados para mim.

– Partindo para os anos 1980? Não tenho nada neon pra emprestar pra você.

– Não precisa, tenho outra fantasia para usar.

– Que bom pra você. Assustador pro resto de nós. Só me diz que não vai usar o maiô do Borat.

Quando o anjo não respondeu de pronto, Trez sentiu como se as garras de Fred Krueger estivessem passando pela sua nuca. Normalmente, Lassiter era o tipo de cara tão alegre que a maioria das pessoas não sabia se decidir entre meter uma bala nele para tirar todo mundo de um estado miserável... ou simplesmente apanhar uma lata de Coca-Cola e um saco de pipoca para assistir ao show.

Porque, mesmo quando ele irrita, a situação é sempre muito divertida.

Mas não essa noite. O olhar bizarro estava tão leve e espumoso quanto um bloco de granito, e o imenso corpo dele estava absolutamente imóvel, nenhum item de ouro nos pulsos ou pescoço, nos dedos ou orelhas, reluzia sob a luz baixa.

– Por que está brincando de estátua? – Trez murmurou. – Alguém trocou o lugar da sua coleção do My Little Pony de novo?

Incapaz de suportar o silêncio, Trez foi se sentar atrás da escrivaninha e começou a mexer em uma pilha de papéis.

– Está tentando ler minha aura ou alguma merda do tipo?

Não que para isso fosse necessário algum poder especial. Todos na mansão sabiam em que estado ele estava.

– Quero que vá jantar comigo amanhã à noite.

Trez levantou o olhar.

– Pra quê?

O anjo levou o tempo que quis para responder, seguindo devagar até o painel de vidro para encarar a multidão logo abaixo, no exato lugar em que Trez estava antes. Iluminado pela luz fraca, o perfil do anjo era o tipo de imagem que as fêmeas adorariam, com todas as proporções e os ângulos certos. Mas a cara de preocupação...

– Manda ver – Trez exigiu. – Já recebi uma vida inteira de más notícias. O que quer que seja, nada se compara ao que tenho passado.

Lassiter relanceou e deu de ombros.

– É só um jantar. Amanhã à noite. Sete horas.

– Eu não como.

– Sei disso.

Trez largou a pilha de faturas, de escala dos funcionários ou qualquer outra porra que o vinha mantendo ocupado, ainda que não as estivesse olhando de fato, junto ao amontoado de porcarias sobre a escrivaninha.

– Acho muito difícil acreditar em seu interesse a respeito de nutrição.

– Verdade. Essa coisa de “glúten é o seu inimigo” é uma bobagem sem fim. Nem me fale de Kombuchá, couve, ou qualquer coisa com propriedades antioxidantes, e na mentira de que o xarope de milho com alto teor de frutose é a fonte de todo o mal.

– Ouviu falar que a Kraft Macaroni & Cheese tirou todos os conservantes há meses?

– Pois é, e os filhos da mãe nem avisaram antes...

– Por que quer jantar comigo?

– Só estou sendo amigável.

– Não faz parte do seu estilo.

– Como disse antes, estou mudando algumas coisas. – Eeeee lá veio aquele sorriso de novo. – Pensei em começar com tudo. Quero dizer, se é pra virar a página, melhor começar do jeito que se deseja continuar.

– Sem ofensas, mas não estou a fim de passar tempo com pessoas de quem gosto de verdade. – Tudo bem, aquilo não soou muito bem. – O que quero dizer é que o meu irmão é o único que consigo tolerar agora, e nem ele eu quero ver.

Aquele sorriso de Lassiter era uma visão que Trez estava mais do que disposto a jamais rever – e observe como orações podem ser atendidas: o anjo estava seguindo para a porta.

– Te vejo amanhã.

– Não, obrigado.

– No restaurante do seu irmão.

– Ah, mas que porra, por quê?

– Porque ele serve o melhor macarrão à bolonhesa em Caldie.

– Você sabe o que eu quis dizer.

O anjo se limitou a dar de ombros.

– Vá lá e descubra.

– O inferno que vou! – Trez meneou a cabeça. – Olha só, sei que as pessoas andam preocupadas comigo e agradeço a preocupação. – Na verdade, não agradecia não. Nem um pouco. – Sim, perdi peso, e eu deveria comer mais. Mas é engraçado como, quando se tem o peito escancarado e o coração arrancado pelo destino, se perde o apetite. Por isso, se está querendo companhia só para não parecer que está jogando sozinho, por que não procura alguém que coma de verdade e troque mais de duas palavras com ela? Posso garantir que tanto eu quanto você teremos uma noite mais agradável assim.

– Até amanhã.

Quando o anjo saiu, Trez gritou para a ponta oposta do escritório:

– Vai se foder!

Quando a porta se fechou em silêncio, ele concluiu que, pelo menos, a discussão não continuaria. E quando estivesse comendo a bolonhesa sozinho, Lassiter entenderia que o Sombra não apareceria.

Problema resolvido.


CAPÍTULO 7

Há momentos na vida em que a amplitude da sua atenção se estreita em um foco tão exíguo que toda a sua consciência se concentra nessa única pessoa. Qhuinn não era alheio a esse fenômeno. Ele acontecia toda vez que estava sozinho com Blay. Quando segurava os filhos. Quando lutava contra o inimigo, em busca de garantir que voltaria para casa inteiro, sem ferimentos e concussões.

E estava acontecendo de novo agora.

Parados diante da base da árvore de Harry Potter, no topo de uma colina, com o vento invernal ao redor, Qhuinn estava ciente apenas do olho direito de Layla. Conseguia contar cada nuance verde-clara que irradiava do núcleo preto da íris. Poderia haver uma nuvem de cogumelos resultante de uma explosão nuclear ao longe, uma nave espacial acima da sua cabeça, uma fila de palhaços dançando ao seu lado... e ainda assim ele não teria visto, ouvido, percebido nada além daquilo.

Bem, isso não era inteiramente verdade.

Percebia de leve o rugido em seus ouvidos, um tipo de cruzamento do motor de um jato e dos fogos de artifícios que sibilam como uma banshee, girando em círculos até se exaurir.

– Responda – ele ordenou numa voz que não parecia a sua.

Ele a havia seguido até aquele local isolado quando sentiu sua ausência na mansão – e se deslocou até ali para falar com ela sobre depressão pós-parto. O plano era levá-la de volta para casa, confortá-la diante da lareira, colocá-la num caminho em que ela pudesse apreciar os seres pelos quais tanto se empenhou em trazer ao mundo.

Como diabos acabaram falando de Xcor e de ela ter se encontrado com ele?

Não fazia a mínima ideia.

Mas não havia mais nenhum mal-entendido. E nenhuma retratação a caminho. Ele via no olhar arregalado e no pânico silencioso que, apesar de seu desejo de que aquela fosse uma colossal falha de comunicação de proporções risíveis, não era o caso.

– Eu estava segura – ela sussurrou. – Ele nunca me feriu.

– Mas que porra q...

Ele se deteve nesse aspecto. Iria direto ao ponto, como se faz com o detonador de uma bomba.

Antes que ele fizesse ou dissesse algo de que se arrependeria, afastou-se e flexionou os dedos para que não se cerrassem em punhos.

– Qhuinn, juro que nunca estive em perigo...

– Você ficou sozinha com ele. – Quando Layla não respondeu, ele cerrou os molares. – Não ficou?

– Ele nunca me machucou.

– Ok, isso é o mesmo que dizer que nunca foi picada enquanto usava uma cobra como cachecol. Uma vez depois da outra. Porque essa porra aconteceu com frequência, não foi? Responda!

– Sinto muito, Qhuinn... – Ela parecia querer se recompor, fungando as lágrimas e aprumando os ombros. O modo como os olhos dela suplicavam perdão o levou à beira da violência. – Oh, Santa Virgem Esc...

– Pare com as súplicas! Não há mais ninguém lá em cima! – Ele estava perdendo o controle. Por completo. – E que diabos está fazendo com esse pedido de perdão? Você colocou meus filhos em risco por livre e espontânea vontade só porque queria... – Ele se retraiu. – Jesus Cristo. Você fez sexo com ele? Você trepou com ele com os meus filhos dentro de você?

– Não! Nunca estive com ele dessa forma!

– Mentirosa – ele urrou. – Você é uma vadia mentirosa...

– Sou praticamente virgem! E você sabe disso! Além do mais, você não me quer. Por que se importa?

– Está querendo sugerir que sequer o beijou? – Quando ela não respondeu, ele riu com aspereza. – Nem tente negar. Está escrito na sua cara. E você tem razão, eu não te quis, nunca te quis... E não tente distorcer as coisas. Não estou com ciúmes; estou enojado. Amo um homem de valor e tive que ir para a cama com você porque precisava de uma incubadora pro meu filho e pra minha filha. Por isso e pelo fato de você ter se jogado em cima de mim quando esteve no cio, esses foram os únicos motivos pelos quais estive com você.

O rosto de Layla empalideceu, e por mais que isso o tornasse um cretino, ele gostou. Queria feri-la por dentro, que era onde contava, porque, por mais furioso que estivesse, jamais bateria numa fêmea.

E essa era a razão por ela ainda estar de pé.

Aqueles bebês, aqueles preciosos e inocentes bebês, foram levados até a boca de um monstro, na presença do inimigo, expostos ao perigo que o teria feito se cagar nas calças caso tivesse sabido à época do acontecimento.

– Você faz alguma ideia do que ele é capaz de fazer? – Qhuinn perguntou com seriedade. – As atrocidades que cometeu? Ele esfaqueou o próprio tenente nas entranhas só para mandá-lo para as nossas mãos. E no passado, no Antigo País? Ele assassinou vampiros, humanos, redutores, qualquer um que lhe atravessasse o caminho, às vezes movido pela guerra, outras só por diversão. Ele era a mão direita de Bloodletter. Você consegue imaginar o que ele já fez nesta terra? Quero dizer, você evidentemente não dá a mínima para o fato de ele ter metido uma bala no pescoço de Wrath – está claro que isso não significa nada para você. Aquele bastardo poderia tê-la violentado mil vezes, estripado você e deixado que ardesse sob o sol – com os meus filhos dentro de você! Que tipo de porra de brincadeira você está armando pra cima de mim?!

Quanto mais Qhuinn pensava a respeito dos riscos a que ela se expôs, mais sua cabeça latejava. Seus amados filhos poderiam muito bem não existir por conta das más escolhas da fêmea, que apenas por preceito biológico, fora o abrigo deles até que pudessem respirar sozinhos.

Tinha colocado-os em perigo ao se arriscar – sem nenhum pensamento aparente quanto às consequências ou como ele, o pai biológico, poderia encarar tamanho fiasco.

Sua fúria, nascida do amor que nutria pelos bebês, era indefinível. Inegável. Inesgotável.

– Nós dois os desejamos – ela disse, rouca. – Quando nos deitamos, nós dois os quisemos...

Numa voz impassível, ele a interrompeu:

– Pois é, isso eu lamento. Melhor que eles não tivessem nascido do que ter metade de você neles.

Layla estendeu a mão para mais uma vez se apoiar na árvore – e, como foi a mão que estava envolvida por sua bandana, ele se percebeu sufocado pela necessidade de arrancar o pedaço de pano da mão dela. Para depois queimá-lo.

– Fiz o melhor que pude – ela afirmou.

Ele gargalhou, então, até que a garganta queimasse.

– Está se referindo ao tempo em que dormiu com Xcor? Ou quando pôs em risco a vida dos meus filhos?

De uma vez só, ela retribuiu a raiva dele com um jorro da sua:

– Você tem aquele a quem ama! Deita-se ao lado dele todos os dias! A sua vida tem objetivo e significado, além de servir a outrem – enquanto eu não tenho nada! Passei todas as minhas noites e dias servindo a uma divindade que já não se importa mais com a raça que gerou e agora sou a mahmen de dois bebês a quem amo com todo o meu coração, mas que não são eu. O que tenho para mostrar da minha vida? Nada!

– Nisso você acertou – ele concordou, sério. – Porque não será mais a mãe dos meus filhos. Você perdeu o seu emprego.

Ela se retraiu com indignação.

– O que está dizendo? Sou a mahmen deles. Eu...

– Não é mais.

Houve um instante de silêncio, e depois a voz explodiu para fora dela:

– Você não pode... Não pode tirar Lyric e Rhamp... Não pode afastá-los de mim! Sou a mahmen deles! Tenho meus direitos...

– Não, não tem. Você se associou ao inimigo. Cometeu um ato de traição. E vai ter sorte se sair desta com vida – não que eu me lixe se você viver ou morrer. A única coisa que me importa é que nunca mais veja os bebês...

A mudança no interior dela foi instantânea e arrebatadora.

De uma vez só, Layla passou de irada a absolutamente calada. E a mudança foi tão abrupta que ele teve de ponderar se ela não sofrera uma síncope.

Mas, em seguida, os lábios de Layla se retraíram das presas que desciam. E o som que saiu de dentro dela eriçou os pelos de sua nuca num alerta.

Quando abriu a boca, a voz dela foi letal como as lâminas de uma adaga.

– Não recomendo que tente me impedir de ver meu filho e minha filha.

Qhuinn expôs as próprias presas.

– Espere e verá.

O corpo da Escolhida se curvou e ela se agachou, o sibilo que ela emitiu era de uma víbora. Só que ela não saltou sobre ele para despedaçar seu rosto com as garras.

Layla simplesmente se desmaterializou.

– Ah, inferno! Não! – ele gritou para o cenário invernal frio e alheio a tudo. – Você quer guerra, é o que vai ter, cacete!

– ... vezes em que ainda sinto vontade – Blay dizia ao sorver um gole do seu copo com gelo. – Para os humanos, é um vício letal. Mas vampiros não têm que se preocupar em adquirir câncer por fumar.

A sala de bilhar da Irmandade estava quase deserta, visto que o torneio foi encerrado quando Butch teve de assumir o posto ao lado de Xcor, Tohrment pediu para se retirar, Rhage chegou machucado do campo, e Rehv decidira ficar nos Grandes Campos com Ehlena. Mas tudo bem. Blay ainda conseguira jogar com Vishous, e os dois circundavam a mesa central dentre as cinco, alternando-se nas jogadas. A boa notícia? Lassiter estava em algum outro lugar, o que significava que a TV acima da imensa lareira estava na ESPN, no mudo.

Nada de filmes da Disney com aquelas canções ridículas esta noite.

Se Blay tivesse que ouvir as merdas do Frozen uma vez mais, ele iria “let it goooooo” pra valer.

No sentido de esvaziar uma magazine bem diante do seu próprio lobo frontal.

Do outro lado da mesa, Vishous acendeu outro dos seus cigarros enrolados por ele mesmo.

– Então por que parou de fumar?

Blay deu de ombros.

– Qhuinn odeia cigarros. O pai dele fumava cigarros e cachimbo, então acho que isso o faz se lembrar de coisas das quais prefere esquecer.

– Você não deveria ter que mudar por ninguém.

– Fui eu quem escolheu parar. Ele nunca me pediu.

Enquanto o Irmão se inclinava sobre a mesa para alinhar o taco, Blay relembrou o início de sua história com Qhuinn. Esse papo de fumar começou quando teve de ficar assistindo ao macho que amava foder qualquer coisa que se movesse. Um período horrível. Não, não tinham um relacionamento – e toda vez que Qhuinn saía com alguém, isso servia de lembrete de que jamais estariam em um.

Caramba. Na época, ele sequer havia saído do armário.

O estresse e a tristeza foram difíceis de controlar, mas também houve um ressentimento borbulhante e irracional de sua parte. Por isso abraçara um mecanismo de compensação que Qhuinn não teria aprovado nem gostado. Fora uma desforra subversiva e mesquinha pelos pecados que o macho na verdade não cometera.

Mas, pelo menos, deixar de fumar tinha sido simples. Assim que os dois se entenderam? Ele deixou os maços de Dunhill de lado e nunca mais olhou para trás.

Bem... Talvez seja mais preciso afirmar que nunca escorregou no vício. Às vezes, quando via Vishous acendendo um, e o cheiro do tabaco permeava o ar, ele ansiava fumar um cigarro...

Bem quando V. lançou a bola da vez no meio do arranjo central, um som horrível de batidas resoou no vestíbulo. Alto, repetitivo, forte o bastante para sacudir e fazer tremer a maciça e grossa porta de carvalho da entrada da mansão, de modo que mais parecia que uma horda de redutores estava tentando invadi-la.

Blay sacou a arma que portava na casa enquanto ele e V. largavam os tacos e corriam para fora da sala de bilhar até a entrada principal.

Bam-bam-bam-bam!

– Mas que porra é essa? – V. murmurou ao olhar para o monitor de segurança. – Que diabos há de errado com o seu garoto?

– O quê?

A pergunta foi respondida quando V. soltou a trava e Qhuinn entrou explodindo no vestíbulo. O macho estava furioso a ponto de parecer possuído, o rosto contraído de raiva, o corpo disparado numa corrida, seu estado tal que ele parecia alheio à presença de qualquer um.

– Qhuinn? – Blay tentou segurá-lo pelo ombro ou pelo braço.

Não teve jeito. Qhuinn chegou à escadaria e deu uma de Usain Bolt, os degraus cobertos pelo tapete vermelho foram consumidos por saltos ligeiros.

– Qhuinn! – Blay disparou atrás do que quer que estivesse acontecendo, tentando alcançá-lo. – O que foi?

No alto da escadaria, os coturnos de Qhuinn se enterraram no carpete e por pouco não derraparam ao virar à esquerda no corredor das estátuas. Logo atrás dele, Blay se apressou, e quando a direção que ele tomava ficou clara, um súbito terror se apossou dele.

Layla e as crianças deviam estar em algum perigo...

Na porta do quarto de Layla, Qhuinn agarrou a maçaneta e girou – só para bater de cara na madeira.

Cerrando um punho, ele começou a bater na porta com tanta força que lascas de pintura começaram a cair.

– Abra a porra desta porta! – Qhuinn berrou. – Layla, abra esta maldita porta agora mesmo!

– Mas que diabos você está fazendo?! – Blay tentou impedi-lo. – Ficou louco...

A arma de Qhuinn saiu sabe-se lá de onde, e quando o Irmão a virou e direcionou o cano para o rosto de Blay, ficou claro que se tratava de algum tipo de pesadelo, o resultado inevitável de uma segunda dose de vinho do Porto depois do jantar de carneiro de Fritz.

Só que não.

– Fique fora disso – Qhuinn estrepitou. – Fique fora disso.

Enquanto Blay erguia ambas as mãos e recuava, Qhuinn virou o ombro para a porta e a empurrou com tanta força que a madeira rachou, os painéis se partindo sob a força do golpe.

O que se revelou dentro do quarto cor de lavanda foi igualmente aterrador.

Enquanto Vishous parava de pronto ao lado de Blay e Z. saía da sua suíte ao fim do corredor, o cérebro de Blay para sempre ficaria maculado pela visão incompreensível e inescapável de Layla com cada filho debaixo dos braços, as presas expostas em pose de ataque, o rosto como o de um demônio, o corpo todo trêmulo – mas não de medo.

Ela estava preparada para matar qualquer um que se aproximasse dela.

Qhuinn apontou a arma na direção dela através do buraco criado na porta.

– Solte-os. Ou acabo com você.

– Mas que porra está acontecendo aqui? – A voz de Vishous saiu tão alta quanto se ele tivesse um alto-falante. – Vocês perderam a cabeça, caralho?

Qhuinn enfiou a mão por dentro e soltou a tranca, escancarando o que restava da porta. Quando ele entrou, Blay deteve os demais.

– Não, deixem que eu cuido disso.

Se mais alguém além dele entrasse, balas começariam a pipocar, e Layla iria atacar, e pessoas se feririam – ou pior.

E que porra estava acontecendo ali?

– Solte-os! – Qhuinn ladrou.

– Mate-me, então! – Layla revidou. – Vá em frente!

Blay colocou o corpo entre os dois, o tronco enquanto bloqueio no caminho de qualquer bala. Nesse meio-tempo, Layla respirava ofegante, e Lyric e Rhamp choravam – merda, ele jamais se esqueceria do som daquele choro.

De frente para Qhuinn, ele mostrou as palmas e falou com lentidão:

– Vai ter que atirar em mim primeiro.

Ele não se concentrou em nada além dos olhos azul e verde de Qhuinn... Como se pudesse, de alguma forma, comunicar-se telepaticamente com seu oponente para acalmá-lo.

– Saia da frente – Qhuinn ordenou. – Isto não é da sua conta.

Blay piscou ante tais palavras. Mas, considerando-se que enfrentava o cano de uma 40 mm, deduziu que deixaria o insulto passar por ora.

– Qhuinn, qualquer que seja o problema, conseguiremos lidar com... Aquele olhar despareado se voltou para ele por apenas uma fração de segundo.

– Acha mesmo? Quer dizer que o fato de ela ter se associado com o inimigo pode ser lavado com detergente ou alguma merda do tipo? Maravilha, vamos chamar Fritz pra cuidar disto. Ideia boa do cacete.

Enquanto os bebês continuavam a chorar, e mais pessoas se aproximavam da cena no corredor, Blay balançou a cabeça.

– Do que está falando?

– Ela levou os meus filhos com ela quando foi trepar com ele...

– Não entendi, o quê?

– Ela esteve com Xcor durante todo esse tempo. Ela não parou de se encontrar com ele. Associou-se a um inimigo conhecido do nosso rei enquanto estava grávida dos meus filhos. Por isso, sim, estou no meu direito de pai de puxar o gatilho contra ela.

De repente, Blay tomou ciência de um grunhido crescente atrás dele, e o som terrível o lembrou do que ouvira a respeito de as fêmeas da espécie serem mais letais do que os machos. Relanceando por sobre o ombro, ele pensou que sim, Layla estava evidentemente preparada para proteger os filhos até a morte naquela porra de universo paralelo para o qual foram sugados.

Xcor? Ela andou se encontrando com Xcor?

Só que ele não podia se desviar do perigo imediato.

– Só quero que você abaixe essa arma – Blay disse com calma. – Abaixe a arma e me conte o que está acontecendo. Senão, se quiser atirar nela, a bala vai ter que passar por mim primeiro.

Qhuinn inspirou fundo, como se estivesse se esforçando para não gritar.

– Eu te amo, mas isto não é da sua conta, Blay. Saia do caminho e deixe que eu cuido disto.

– Espere um minuto. Você sempre disse que também sou pai dessas crianças...

– Não quando o assunto é este. Agora saia da minha frente, caralho.

Blay piscou uma vez. Duas. Uma terceira vez. Engraçado, a dor em seu peito o fez refletir se Qhuinn não havia apertado o gatilho, e ele apenas deixou de ouvir o disparo.

Concentre-se, ordenou a si mesmo.

– Não, não vou me mexer.

– Saia da frente! – O corpo de Qhuinn começou a tremer. – Mas que diabos, saia da porra da minha frente!

Agora ou nunca, Blay pensou ao avançar e atacar o pulso que controlava a pistola. Ao golpear o antebraço com toda a força, a arma disparou repetidamente, e os cartuchos das balas saíram voando – mas, com uma rápida mudança de direção, ele conseguiu empurrar Qhuinn para o lado. O casal se estatelou no chão, e Blay se esforçou para dominar seu par, o impulso do movimento afastando-os de Layla e dos pequenos enquanto mantinha a arma apontada para o sentido oposto do quarto.

Blay acabou por cima, mas sabia que Qhuinn lhe tomaria a posição bem rápido. A arma, ele tinha que manter controle da...

De repente, o ar se tornou ártico.

A temperatura do quarto caiu para baixo de zero tão rápido que as paredes, o piso e o teto rangeram em protesto, a respiração dos presentes foi expelida em lufadas, a condensação gelou os vidros das janelas e os espelhos, com arrepios de qualquer pele exposta.

Em seguida, ouviu-se um rugido vigoroso.

O som foi tão intenso que foi quase inaudível – nada além de dor atravessou-lhes o canal auditivo, transformando suas cabeças em sinos de igreja – e isso, ainda mais do que a mudança no clima, deteve todos dentro da suíte, no corredor, na mansão... Talvez em todo o mundo.

O imenso corpo de Wrath apequenou a soleira da porta quando ele entrou no quarto, marcado pelos cabelos até a cintura, óculos escuros, coxas cobertas por couro e tronco avantajado, que teria detido qualquer trem em movimento.

Suas presas estavam totalmente expostas, como os dentes de um tigre-dentes-de-sabre. Mas ele não teve dificuldade alguma de se expressar, mesmo com elas.

– Não na porra da minha casa! – Ele soou tão alto que o quadro ao seu lado vibrou contra a parede de gesso. – Isso não vai acontecer na porra da minha casa! Minha shellan e meu filho estão aqui – existem outras crianças debaixo deste teto. Existem crianças na droga deste quarto!

Do lado oposto, Layla caiu no chão, os ossos absorvendo a queda com um barulho. Apesar do impacto, manteve Lyric e Rhamp em segurança, aninhados no colo, enquanto pendia a cabeça e começava a chorar.

Debaixo de Blay, Qhuinn tentava se soltar.

– Não até você soltar a arma – Blay disse entredentes.

Houve o som de metal se chocando contra a madeira quando a 40 mm foi solta e Blay a empurrou para longe. Em seguida, Qhuinn se desvencilhou e pôs-se de pé sobre os coturnos. Parecia que ele tinha estado num túnel de vento, seus cabelos negros dispostos em uma bagunça completa, os olhos arregalados, a pele corada em determinados pontos, mas pálida em outros.

– Todos para fora – Wrath ordenou. – Exceto pelos três pais.

Bem, pelo menos alguém reconhecia seu papel, Blay ponderou, com amargura.

Direcionando seu olhar para Qhuinn, viu-se encarando, através do caos, o macho que conhecia quase tão bem quanto a si mesmo.

Naquele instante, porém? Blay fitava para um estranho. A droga de um total desconhecido. Os olhos que Blay já havia passado horas perscrutando, os lábios por ele beijados, um corpo que tocou, acariciou, penetrou e pelo qual também foi penetrado... Era como se algum tipo de amnésia tivesse apagado toda a intimidade, metamorfoseando o que um dia fora uma realidade conhecida em uma hipótese tão fraca que parecia inexistente.

Vishous entrou no quarto.

– Primeiro, vistoria de armas.

Quando o lábio superior de Wrath se retorceu, ficou claro que o rei não apreciou a interrupção. Mas não havia como argumentar contra a razão.

V. foi eficiente na revista: primeiro retirou um par de adagas de Qhuinn, depois outra pistola – e, quando Blay se levantou, ergueu-lhe os braços e afastou-lhe as pernas, mesmo ciente de que ninguém estava preocupado que ele puxasse o gatilho.

– Pronto – V. anunciou ao se espremer para passar pelo Rei e voltar para o corredor.

– Diga aos outros que saiam – Wrath estrepitou.

– Certo.

Ante o comando real, a multidão se dispersou da soleira, mas não foi muito longe. Suas presenças pairaram enquanto, evidentemente, aguardavam os acontecimentos seguintes. De um jeito ou de outro, não havia como fechar a porta. Estava totalmente arruinada.

Virando-se na direção de Qhuinn, Wrath maldisse a situação e exigiu:

– Vai me explicar por que diabos disparou uma arma dentro da minha casa?

 

CONTINUA

ANTIGO PAÍS, 1731
As chamas de uma fogueira no chão iluminavam as paredes úmidas da caverna; a superfície áspera, manchada por sombras. Do lado de fora do ventre da terra, os gemidos do vento ecoavam na abertura do abrigo, unindo-se aos gritos da fêmea sobre o catre em que dava à luz.
– Será um menino! – ela arfou em meio às contrações que a assolavam. – Um macho!
Acima daquele pedaço de carne deitado e agonizante, pairando como uma maldição sobre ela, o Irmão da Adaga Negra Hharm pouco se importava com a sua dor.
– Logo saberemos.
– Você me desposará. Foi uma promessa...
As palavras se interromperam e seu rosto se contraiu numa máscara feia enquanto suas partes internas se contorciam para expelir a cria e, ao fazer as vezes de testemunha, Hharm refletia o quanto a aristocrata ficava pouco atraente em trabalho de parto. Não fora assim quando se conheceram e ele a seduzira. Na época, estivera coberta de cetim, muito composta, o receptáculo adequado para o seu legado, com a pele perfumada e os cabelos macios e reluzentes. Agora? Não passava de um animal, suada, pegajosa – e por que a situação se prolongava tanto? Ele estava tão enfastiado com o processo, ofendido por estar cuidando dela. Tratava-se de uma tarefa para as fêmeas, não para um guerreiro de seu escalão.
Todavia, não a desposaria, a menos que precisasse fazê-lo.
Se o bebê fosse o filho pelo qual vinha esperando? Então, sim, ele legitimaria a criança por meio da cerimônia de união e daria à fêmea o status ao qual ela se julgava digna. Caso contrário, ele se afastaria e a fêmea não diria nada, porque estava maculada aos olhos de sua classe, sua pureza perdida como um terreno já arado.
De fato, Hharm já decidira que era hora de se assentar. Depois de séculos de perdições e depravações, a idade começava a pesar. Ele se punha a considerar, pela primeira vez, o legado que deixaria para a posteridade. No momento, não lhe faltavam bastardos, frutos de sua pelve, os quais não conhecia, com quem não se importava e jamais se associaria a eles – e por tanto tempo era de conhecimento geral que ele não devia nada a ninguém.
Agora, porém... Ele se encontrava desejando uma árvore genealógica adequada. E também havia a questão das suas dívidas crescentes, algo que o pai dessa fêmea facilmente resolveria para ele – embora, mais uma vez, caso não fosse um filho varão, ele não a desposaria. Não era louco, não se prostituiria por centavos. Além disso, havia incontáveis fêmeas da glymera que cobiçavam o status inerente à vinculação com um membro da Irmandade da Adaga Negra.
Hharm não se comprometeria até ter um filho homem, a quem criaria desde a primeira noite.
– Oras, recomponha-se! – ele repreendeu-a quando ela gritou uma vez mais, uma ofensa aos seus ouvidos. – Fique calada!
Como em todas as coisas, contudo, ela o desafiou:
– Está chegando...! O seu filho está chegando!
A veste que ela usava foi suspensa até a base dos seios volumosos por mãos retorcidas. A barriga estendida e arredondada era uma visão vergonhosa, as coxas pálidas e finas permaneciam afastadas. O que acontecia no centro era repugnante: o que deveria ser a entrada delicada e adorável a fim de aceitar a excitação masculina vazava todo tipo de fluido e as carnes estavam inchadas e distorcidas.
Não, ele jamais a penetraria novamente. Com ou sem um filho, vinculados ou não, a perversão diante dos seus olhos não era algo de que ele pudesse se esquecer.
Felizmente, casamentos por conveniência eram uma contingência comum na aristocracia – não que ele se importasse caso não o fossem. As necessidades dela eram inconsequentes.
– Ele está chegando! – ela berrou quando a cabeça pendeu para trás e as unhas arranharam a terra debaixo de seu corpo. – Seu filho... ele se aproxima!
Hharm franziu a testa, depois seus olhos se arregalaram e as pernas se firmaram, afastadas. Ela não se equivocava, pois, de fato, algo começava a surgir de dentro dela... Era...
Uma abominação. Algo disforme e terrível...
Um pé.
– Isso é um pé?
– Tire seu filho do meu corpo – ela ordenou entre arquejos. – Puxe-o de dentro de mim e segure-o contra seu coração, reconheça-o como sua carne e seu sangue!
Com todas as armas ainda presas ao corpo, Hharm ajoelhou-se quando o segundo pé apareceu.
– Puxe! Puxe! – O Sangue jorrou e a fêmea berrou de novo quando o bebê não se moveu. – Ajude-me! Ele está asfixiado!
Hharm manteve-se afastado de toda aquela nojeira e imaginou quantas fêmeas inseminadas por ele haviam passado pela mesma situação. Seria sempre desagradável assim ou era ela quem era fraca?
De fato, deveria deixá-la que fizesse o parto sozinha, mas não confiava nela. A única maneira de ter certeza de que seu filho era macho era estar presente durante o nascimento. De outro modo, ele não desconsiderava a possibilidade de ela trocar uma filha indesejada pelo macho tão cobiçado – fruto de outro macho.
Aquela era, afinal, uma transação negociada, e ele sabia muito bem como tais coisas podiam ser manipuladas.
Em seguida, o som que emergiu da garganta da fêmea foi tão volumoso e demorado que interrompeu seus pensamentos. Depois os gemidos e as mãos sujas de terra e sangue dela se postaram no interior das coxas, puxando-as para fora e para cima, ampliando a abertura. E bem quando o Irmão acreditou que ela estivesse morrendo, quando cogitou se acabaria enterrando a ambos – e de pronto decidiu-se contra a proposição, visto que as criaturas da floresta logo consumiriam os restos mortais –, o bebê apareceu um pouco mais, livrando-se de algum obstáculo interno.
E lá estava ele.
Hharm se adiantou.
– Meu filho!
Sem pensar, esticou os braços e apanhou com mãos firmes os tornozelos escorregadios. Estava vivo; a criança chutava com força, debatendo-se contra o confinamento do canal vaginal.
– Venha para mim, meu filho – Hharm ordenou ao puxá-lo.
A fêmea se contorcia em agonia, mas ele não lhe dispensou um pensamento sequer. Mãos – pequeninas e perfeitamente bem formadas – surgiram em seguida, junto à barriga arredondada e o peito, que, mesmo em seu momento recém-nascido, era amplo.
– Um guerreiro! Este é um guerreiro! – O coração de Hharm batia forte, seu triunfo latejava nos ouvidos. – Meu filho levará adiante o meu nome! Será conhecido como Hharm, assim como eu antes dele!
A fêmea ergueu a cabeça, as veias do pescoço saltavam como cordões tensos sob a pele pálida demais.
– Você me desposará – ela disse, rouca. – Jure... Jure pela sua honra, ou eu o segurarei dentro de mim até que fique azul e entre no Fade.
Hharm sorriu com frieza, revelando as presas. Em seguida, desembainhou uma das adagas do peito. Direcionando a ponta para baixo, mirou no baixo ventre dela.
– Eu a estriparei como a um cervo para libertá-lo, nalla.
– E quem alimentará seu precioso filho? O seu sêmen não sobreviverá sem mim.
Hharm pensou na tormenta do lado de fora. Na distância que estavam do assentamento de vampiros mais próximo. E no pouco que sabia sobre as necessidades de um recém-nascido.
– Você me desposará, conforme prometido – ela gemeu. – Jure!
Os olhos dela estavam injetados e ensandecidos, os longos cabelos suados e emaranhados, o corpo era algo sobre o qual ele jamais desejaria se sobrepor. Mas a lógica dela o impedia. Perder o que desejava por conta exatamente do arranjo que estivera disposto a fazer, simplesmente porque ela o apresentava como se fosse uma condição sua, não era uma decisão sábia a se tomar.
– Juro – murmurou.
Com isso, ela voltou a se deitar e, sim, agora ele a ajudaria, puxando no ritmo dos empurrões dela.
– Ele está vindo... ele...
O bebê saiu de dentro dela num jorro, fluidos saindo com ele e, quando Hharm o segurou em suas palmas, sentiu uma alegria inesperada tão ressonante que...
Seus olhos se estreitaram ao pousar as vistas sobre o rosto dele. Acreditando que havia alguma membrana mascarando o bebê, passou uma das mãos pelas suas feições, que eram um misto das dele e da fêmea.
Lamentavelmente... nada mudou.
– Que maldição é esta? – questionou-se consigo mesmo. – Que maldição... é esta!

 

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CAPÍTULO 1


MONTANHAS DE CALDWELL, NOVA YORK, DIAS ATUAIS

A Irmandade da Adaga Negra o mantinha vivo só para poder matá-lo.

Dada a soma das atividades terrenas de Xcor, que foram das mais violentas, e certamente muito depravadas, aquele parecia um fim adequado para ele.

Nascera numa noite de inverno durante uma tempestade histórica. Nas entranhas de uma caverna suja e úmida, enquanto rajadas gélidas assolavam o Antigo País, a fêmea que o carregara gritara e sangrara para dar ao Irmão da Adaga Negra Hharm o filho tão exigido por ele.

Ele fora desesperadamente desejado.

Até chegar ao mundo.

E esse era o início da sua história, que acabara por levá-lo até ali.

Em outra caverna. Em outra noite do mês de dezembro. E assim como na noite do seu nascimento de fato, o vento gemia para recebê-lo, ainda que, dessa vez, fosse para o retorno da sua consciência em vez da expulsão para a vida independente que levou dali adiante.

E como um recém-nascido, tinha pouco controle sobre o corpo. Estava incapacitado, e isso seria verdadeiro mesmo sem as algemas de aço e as barras sobre o peito, o quadril, as coxas. Máquinas, contrastantes com o ambiente rústico que o rodeava, emitiam sinais atrás de sua cabeça, monitorando-lhe a respiração, os batimentos cardíacos, a pressão sanguínea.

Com a mesma fluidez de uma engrenagem sem lubrificação, seu cérebro começou a funcionar adequadamente sob o crânio; quando os pensamentos por fim se aglutinaram e formaram uma sequência lógica, lembrou-se da série de eventos que fizeram com que ele, o líder do Bando de Bastardos, acabasse sob a custódia daqueles que haviam sido seus inimigos: um ataque por trás, uma concussão, uma espécie de derrame ou algo do tipo que fez com que ele acabasse deitado, dependendo de máquinas para sobreviver.

E da inexistente misericórdia dos Irmãos.

Recobrara a consciência uma ou duas vezes durante o período em cativeiro, registrando seus captores e o ambiente daquele corredor cavernoso que inexplicavelmente abrigava jarros de todos os tipos. A retomada da consciência nunca durou muito; entretanto, a conexão com sua área mental era insustentável por um tempo mais demorado.

No entanto, dessa vez parecia diferente. Ele percebia a mudança em sua mente. O que quer que tivesse estado danificado por fim se curara e agora ele retornava do cenário enevoado do ponto de morto-vivo, permanecendo do lado vital.

– ... muito preocupado com Tohr.

O fim da frase enunciada por um macho entrou nos ouvidos de Xcor como uma série de vibrações, cuja tradução sofreu um atraso, e quando as palavras se formaram, ele virou o olhar naquela direção. Duas figuras de preto muito bem armadas estavam de costas para si, e ele voltou a abaixar as pálpebras, pois não desejava revelar a mudança do seu estado. Entretanto, suas identidades estavam devidamente anotadas.

– Não, ele está bem. – O som de algo raspando e o cheiro de tabaco permeando o ar. – E se não estiver, vou estar ao lado dele.

A voz grave que falou primeiro pareceu árida.

– Pra botar nosso irmão na linha à força... Ou ajudá-lo a acabar com este pedaço de carne?

O Irmão Vishous riu como se fosse um assassino em série.

– Que bela consideração você tem por mim.

Era estranho que não se entendessem melhor, Xcor pensou. Esses machos queriam tanto sangue quanto ele.

No entanto, essa aliança jamais existiria. A Irmandade e os Bastardos sempre estiveram em lados opostos durante o reinado de Wrath, esse limite tendo sido estabelecido pela bala que Xcor alojara na garganta do líder por direito da raça vampírica.

E o preço de sua traição seria cobrado ali, em pouco tempo.

Claro, a ironia era que uma força de compensação interceptara seu destino e fizera com que suas ambições e seu foco se afastassem, e muito, do trono. Não que os guerreiros da Irmandade tivessem ciência disso – e pouco se importariam se soubessem. Além de partilharem o apetite pela guerra, ele e os Irmãos tinham outras características em comum: piedade era para os fracos; o perdão, algo patético; pena, um sentimento das fêmeas, nunca de guerreiros.

Embora soubessem que ele já não sentia nenhuma agressividade em relação a Wrath, não o exonerariam daquilo que conquistara com méritos. Por conta de tudo o que acontecera, ele não sentia nem amargura nem raiva em relação ao que o esperava. Aquela era a natureza do conflito.

Contudo, sentia-se triste – um sentimento desconhecido para ele.

Das suas lembranças surgiu uma imagem que lhe roubou o fôlego. Era o de uma fêmea alta e magra nas vestes sagradas das Escolhidas da Virgem Escriba. Os cabelos loiros ondulavam sobre os ombros e desciam até o quadril em uma brisa suave, os olhos eram cor de jade, o sorriso, uma benção que ele não fizera nada para receber.

A Escolhida Layla mudara tudo para ele, transformando a Irmandade de um alvo a algo tolerável, de inimigo a um habitante coexistente naquele mundo.

Em pouco mais de um ano e meio, período no qual Xcor a conhecia, ela tivera um efeito mais impactante sobre sua alma negra do que qualquer outra pessoa antes dela, fazendo com que evoluísse muito em tempo ínfimo – algo que ele jamais imaginara ser possível.

O Dhestroyer, camarada de Vishous, voltou a falar:

– Na verdade, concordo plenamente com Tohr sobre fazer picadinho do filho da puta. Ele conquistou esse direito.

O Irmão Vishous praguejou.

– Todos nós merecemos. Vai ser difícil deixar uma parte dele intacta quando isso acontecer.

E ali estava o enigma, Xcor ponderou por trás das pálpebras abaixadas. A única saída possível de tamanho cenário mortal seria revelar o amor que sentia por uma fêmea que não era sua, nunca fora e jamais poderia ser.

Mas não sacrificaria a Escolhida Layla por ninguém, por nada.

Nem mesmo para se salvar.

Enquanto Tohr caminhava na floresta de pinheiros da montanha da Irmandade, seus coturnos esmagavam o terreno congelado, e o vento glacial o golpeava no rosto. Em seu rastro, tão próximo de seus calcanhares quanto uma sombra, ele sentia suas perdas a acompanhá-lo, numa fila de lamentos tangíveis como uma corrente.

A sensação de estar sendo perseguido pelos seus mortos o fez refletir a respeito de programas de TV sobre eventos paranormais, do tipo que tentava provar a existência de fantasmas. Que monte de bobagens. A histeria humana acerca das supostas entidades obscuras flanando em escadas e provocando rangidos em casas antigas, com seus passos sem corpos, era algo muito característico dessa espécie desimportante absorta em si mesma e criadora de dramalhões. Mais uma coisa que Tohr odiava a respeito deles.

E, como de costume, eles não acertavam no alvo.

Os mortos absolutamente nos atormentam, percorrendo seus dedos gélidos em nossa nuca como uma forma de lembrete até não conseguirmos decidir se queremos gritar pelas saudades que sentimos deles... ou porque queremos ser deixados em paz.

Eles espreitam suas noites e rondam seus dias, deixando um campo minado de tristeza ao longo dos caminhos.

São seus primeiros e seus últimos pensamentos, o filtro que você tenta deixar de lado, a barreira invisível entre você e todo o resto.

Algumas vezes, são mais parte de você do que as pessoas que você consegue de fato segurar e tocar.

Portanto, sim, ninguém precisa de um programa de TV idiota para provar o que já é de conhecimento comum: mesmo que Tohr tenha encontrado o amor com outra fêmea, sua primeira shellan, Wellsie, e o filho não nascido que ela carregava no ventre quando foi assassinada pela Sociedade Redutora, nunca foram afastados dele além da própria pele.

E agora houvera mais uma morte na mansão da Irmandade.

A companheira de Trez, Selena, subira para o Fade havia poucos meses, tendo falecido em razão de uma doença para a qual não existia cura, nenhum alívio, nenhum conhecimento.

Tohr não dormia direito desde então.

Voltando a se concentrar nas árvores que o cercavam, Tohr se abaixou e afastou um galho do caminho, depois deu a volta num tronco caído. Poderia ter se materializado até o destino, mas seu cérebro latejava com tanta violência da prisão do crânio que ele duvidava que conseguiria se concentrar o bastante para se dissipar.

A morte de Selena fora um maldito gatilho para ele, um evento que afetava outra pessoa, mas que, não obstante, sacudira seu globo de neve, balançando-o com tanta força que seus flocos internos ainda rodopiavam e se recusavam a se assentar.

Estava no centro de treinamento quando ela fora chamada para o Fade, e o momento da morte não fora silencioso. Fora marcado pelo som da alma dilacerada de Trez, o equivalente auditivo de uma tumba – um som que Tohr conhecia bem demais. Fizera o mesmo quando recebera a notícia da morte de sua fêmea.

Portanto, sim, nas asas da agonia do seu amor, Selena fora alçada da terra para o Fade...

Arrancar-se desse espiral cognitivo era o mesmo que tentar tirar um carro de um atoleiro, o esforço necessário era tremendo, o progresso conquistado centímetro a centímetro.

No entanto, lá ia ele pela floresta, na noite invernal, esmagando o que aparecia sob suas solas, com seus fantasmas sussurrando-lhe por trás.

A Tumba era o sanctum sanctorum da Irmandade da Adaga Negra, aquele local secreto onde as induções aconteciam e convocavam-se as reuniões secretas, e onde eram mantidos os jarros dos redutores assassinados. Estava localizada abaixo do solo, num labirinto criado pela natureza, tradicionalmente fora dos limites para qualquer um que não tivesse passado pela cerimônia que o marcasse como membro da Irmandade.

Essa regra, no entanto, tivera que ser contornada, pelo menos em respeito ao longo corredor de entrada de quase meio quilômetro.

Ao se aproximar do insuspeito sistema da entrada, parou e sentiu a raiva surgir.

Pela primeira vez desde que se tornara um Irmão, não era bem recebido ali.

Tudo por causa de um traidor.

O corpo de Xcor estava do lado oposto dos portões, na metade do caminho repleto de prateleiras, deitado numa maca, a vida monitorada e mantida por equipamentos.

Até que o maldito despertasse e pudesse ser interrogado, Tohr não tinha permissão para entrar.

E seus irmãos tinham razão em não confiar nele.

Ao fechar os olhos, viu seu rei com um tiro na garganta. Reviveu o momento em que a vida de Wrath estivera escorrendo junto ao sangue rubro; rememorou a cena em que tivera que salvar o último vampiro de sangue puro no planeta ao cortar um buraco na frente da garganta dele e enfiar o tubo de sua Camelback naquele esôfago.

Xcor encomendara o assassinato. Xcor ordenara um dos seus guerreiros mandar uma bala para dentro das carnes de um macho de valor, conspirara com a glymera para derrubar o governante por direito, mas o filho da puta fracassara. Wrath sobrevivera, apesar das probabilidades contrárias,, e na primeira eleição democrática da história da raça, fora apontado como líder de todos os vampiros – uma posição que ele agora detinha por consenso em vez de pela sua linhagem.

Portanto, vá se foder, filho da puta.

Cerrando os punhos, Tohr ignorou o ranger das luvas de couro e a constrição no dorso dos nós dos dedos. Só o que reconhecia era o ódio, tão profundo como uma doença letal.

O destino decidira que era certo tirar-lhe três seus e dos seus; o destino tirara dele sua shellan, seu filho, e o amor da vida de Trez. Querem falar sobre equilíbrio no Universo? Tudo bem. Ele queria o seu equilíbrio, e isso só aconteceria quando quebrasse o pescoço de Xcor e arrancasse o coração ainda quente do peito do maldito.

Já era hora de uma fonte do mal ser tirada de circulação, e era ele quem empataria o placar.

E a espera finalmente terminava. Por mais que respeitasse seus irmãos, estava farto de aguardar. Essa noite era um aniversário triste para ele, e ele daria ao seu luto um presentinho especial.

Era hora de festejar.


CAPÍTULO 2

O copo de cristal baixo estava tão limpo, tão isento de marcas de sabão, de poeira, de qualquer grânulo que o manchasse, que sua estrutura era como o ar; e a água dentro dele, totalmente invisível.

Meio cheio, a Escolhida Layla ponderou. Ou meio vazio?

Sentada no banquinho acolchoado, entre as duas pias com torneiras douradas e diante de um espelho com adornos de ouro que refletia a banheira funda atrás de si, ela observava a superfície do líquido.

O fundo era côncavo e a água lambia levemente o interior do copo, como se suas moléculas mais ambiciosas tentassem fugir do confinamento.

Respeitava o esforço, enquanto lamentava sua futilidade. Sabia muito bem o que era querer ser livre do local que a abrigava, apesar de não ser culpa sua.

Por séculos, ela fora a água daquele copo, despejada sem ter querido, em virtude apenas do seu nascimento, num papel de servidão junto à Virgem Escriba. Ao lado de suas irmãs, executara os deveres sagrados das Escolhidas no Santuário, adorando a mãe da raça, registrando os eventos da Terra para a posteridade dos vampiros, aguardando a escolha de um novo Primale para que ela pudesse engravidar e dar à luz mais Escolhidas e mais Irmãos.

Mas tudo isso já era passado.

Inclinando-se sobre o copo, observou mais atentamente a água. Fora treinada como ehros, não como escriba, mas sabia muito bem como enxergar além das águas que eram testemunhas da história. Dentro do Templo das Escribas, as Escolhidas designadas a registrar as histórias e as linhagens da raça permaneceram sentadas por horas e horas, observando nascimentos e mortes, suas mãos delicadas com penas sagradas colocando os detalhes nos pergaminhos, acompanhando tudo.

Não havia nada para ela ver. Não ali na Terra.

E também já não existiam testemunhas no alto.

Um novo Primale acabara surgindo. Mas em vez de se deitar com seu rebanho de fêmeas, dando continuidade ao programa de criação da Virgem Escriba, ele dera um passo sem precedentes, libertando todas elas. O Irmão da Adaga Negra Phury se desviara do modelo, quebrara a tradição, desfizera-se das amarras e, ao fazê-lo, as Escolhidas que estiveram isoladas desde sua gênese, visando aos nascimentos planejados, acolheram sua libertação. Já não eram representantes vivas de uma tradição rígida; tornaram-se indivíduos, com seus próprios descontentamentos e preferências, mergulhando os dedos nas águas terrenas da realidade, procurando e encontrando destinos a respeito de si próprias, e não mais de um serviço.

Ao fazer isso, ele desencadeara o fim dos imortais.

A Virgem Escriba já não existia mais.

Seu filho de nascimento, o Irmão da Adaga Negra Vishous, a procurara no Santuário acima e descobriu que ela se fora, deixando uma última carta escrita no vento apenas para os olhos dele.

Ela dissera que tinha um sucessor em mente.

Ninguém sabia sua identidade.

Recostando-se, Layla olhou para a veste que trajava. Não era do tipo sagrado que se vestira durante tantos anos. Não, essa peça vinha de um lugar chamado Pottery Barn, e Qhuinn a comprara para ela na semana passada. Com a aproximação do inverno, ele se preocupava que a mãe de seus filhos estivesse aquecida, sempre bem cuidada.

A mão de Layla subiu para o ventre, agora baixo. Depois de ter carregado a filha, Lyric, e o filho, Rhampage, dentro do corpo por tantos meses, era tão estranho quanto familiar não ter nada no útero...

Vozes murmuradas, baixas e graves, penetraram a porta que ela havia fechado.

Entrara no banheiro para usar o vaso.

Demorara-se depois de ter lavado as mãos.

Qhuinn e Blay, como de costume, estavam com os bebês. Segurando-os. Ninando-os.

Todas as noites, ela tinha que se esforçar para testemunhar o amor, não entre eles e os pequenos... mas aquele entre os dois machos. De fato, os pais exibiam um vínculo ressonante e, resplandecente um com o outro, e por mais que fosse algo belo, aquele fulgor fazia com que se sentisse ainda mais vazia em sua existência.

Enxugando uma lágrima, disse a si mesma para se controlar. Não poderia voltar ao quarto com olhos brilhantes demais, e o nariz e faces corados. Aquele deveria ser um momento de alegria para os cinco integrantes da família. Agora que os gêmeos haviam superado o estado de emergência sob o qual tinham nascido, e Layla também se recuperara, todos estavam aliviados por todos estarem sãos e salvos.

Agora era a vida feliz que ganharam para viver.

Em vez disso, ela ainda era a água triste dentro do copo, desejando sair.

Dessa vez, porém, a prisão foi feita por ela mesma, em vez de providenciada pela genética.

A definição de infidelidade, pelo menos de acordo com o dicionário, era: a ação de trair algo ou alguém...

A batida à porta fechada foi suave.

– Layla?

Ela fungou e abriu uma das torneiras.

– Oi!

A voz de Blay soou baixa, como era seu hábito.

– Você está bem aí?

– Ah, sim, estou. Resolvi tratar um pouco do rosto. Sairei daqui a pouco.

Ela se levantou, inclinou-se e molhou o rosto. Depois esfregou a testa e o queixo com a toalha de mão para que o rubor se espalhasse mais uniformemente sobre a pele. Apertando o cinto do roupão, aprumou os ombros e foi para a porta, em meio a preces para manter a compostura pelo tempo necessário até conseguir apressá-los para a Última Refeição.

Mas teve um momento de folga.

Ao abrir a porta, Blay e Qhuinn sequer olhavam na sua direção. Estavam inclinados sobre o berço de Lyric.

– ... os olhos de Layla – Blay disse ao abaixar a mão e deixar que a pequena agarrasse seu dedo. – Definitivamente.

– Ela também tem os cabelos da mahmen. Veja o tom loiro começando a aparecer.

O amor deles pela pequena era incandescente, reluzia em seus rostos, aquecia suas vozes e, aplacava seus movimentos, de modo que tudo o que faziam era com cuidado. No entanto, não era nisso que Layla se concentrava.

Seu olhar estava fixo na palma larga de Qhuinn, que afagava as costas de Blay. A carícia de conexão era inconsciente de ambos os lados; a oferta e a aceitação eram tanto nada e tudo o que importava, simultaneamente. E enquanto testemunhava o que se passava do outro lado do quarto, Layla teve que piscar rápido de novo.

Às vezes, a gentileza e o amor podiam ser tão difíceis de testemunhar quanto a violência. Às vezes, quando se está do lado de fora, ver duas pessoas tão em sintonia era uma cena saída de um filme de terror, o tipo de coisa da qual você quer se manter afastado, quer esquecer, banir da memória – ainda mais quando se está prestes a deitar e enfrentar sozinha um longo dia de horas no escuro.

Saber que ela jamais teria esse amor especial com alguém era...

Qhuinn relanceou na sua direção.

– Ah, oi.

Ele se endireitou e sorriu, mas ela não se deixou enganar. Os olhos dele a percorriam como se em uma avaliação – mas, talvez, esse não fosse o caso. Talvez fosse simplesmente a sua paranoia se manifestando.

Estava tão farta de se dividir em uma vida dupla. Contudo, no tipo de ironia cruel que parecia ser a fonte favorita de divertimento do destino, o preço para aliviar a consciência viria à custa de sua própria existência.

A como poderia deixar os filhos para trás?

– ... ok? Layla?

Enquanto Qhuinn franzia a testa ao observá-la, ela balançou a cabeça e forçou um sorriso.

– Ah, tudo bem, mesmo. – Ela deduzia que a pergunta se referisse ao seu bem-estar. – Muito bem mesmo.

Em busca de confirmar a mentira, aproximou-se dos berços. Rhampage, ou Rhamp, como era conhecido, lutava contra o sono, e quando a irmã arrulhou, sua cabeça se virou e ele esticou a mão.

Engraçado. Mesmo tão jovem, ele parecia reconhecer seu posto e desejava protegê-la.

Era genético. Qhuinn era um membro da aristocracia, resultado de gerações de emparelhamentos escolhidos a dedo, e por mais que seu “defeito” de ter um olho azul e outro verde o tivesse feito receber o desprezo tanto da glymera quanto da própria família, a venerável natureza de sua linhagem não podia ser negada. Tampouco o impacto de sua presença física. Com quase dois metros de altura e corpo talhado por músculos definidos, moldados tanto pelos exercícios quanto pela prática na guerra – uma arma tão letal quanto as pistolas e adagas que levava consigo para o campo de batalha. Era o primeiro membro da Irmandade da Adaga Negra a ser induzido com base na meritocracia em vez de na linhagem, e não desapontara a grande tradição. Ele nunca desapontava ninguém.

De fato, Qhuinn era, no conjunto, um belo macho, ainda que de forma um tanto rústica. O rosto era angular, pois tinha pouca gordura corporal, e aqueles olhos despareados fitavam por baixo de sobrancelhas negras. Os cabelos pretos foram cortados muito curtos recentemente, quase totalmente raspados na base. Deixavam um topete para trás e, como resultado, seu pescoço parecia extra-grosso. Com piercings metálicos nas orelhas e a lágrima de ashtrux nohtrum abaixo do olho – uma marca dos tempos em que servira como protetor de John Matthew –, ele chamava a atenção por onde quer que passasse.

Talvez porque as pessoas, tanto humanos como vampiros, preocupavam-se com o que ele seria capaz de fazer caso fosse contrariado.

Blay, por sua vez, era o oposto: tão acessível quanto Qhuinn seria evitado num beco escuro.

Blaylock, filho de Rocke, tinha cabelos ruivos e um tom de pele mais claro do que a maioria da espécie. Era tão grande quanto Qhuinn, mas quando se está ao seu lado, a primeira impressão que se tem dele faz referência à sua inteligência e ao seu bom coração, em vez de a força bruta. Ainda assim, ninguém discutia suas habilidades em campo. Layla ouvira histórias, ainda que nunca da parte dele, visto que não era de se vangloriar, criar dramas excessivos ou atrair atenções para si.

Ela amava os dois de todo o coração.

E o distanciamento que sentia em relação a eles partia somente do seu lado.

– Olha só – Qhuinn disse ao apontar para os bebês. – Temos dois se apagando... Melhor, um e meio.

Quando ele sorriu, ela não se deixou enganar. Seus olhos continuavam a passear pelo seu rosto, à procura sobre sinais de exatamente aquilo que ela tentava esconder. Para dificultar o escrutínio dele, ela recuou.

– Eles dormem bem, graças à Virgem Escriba... Hum, graças ao Fade.

– Você vai descer para a Última Refeição hoje? – ele perguntou como quem não quer nada.

Blay se endireitou.

– Fritz disse que prepara o que você quiser.

– Ele é sempre tão gentil. – Ela foi até a cama e se deitou contra os travesseiros. – Na verdade, senti uma fominha lá pelas duas da manhã, por isso fui até a cozinha e comi torradas e aveia. Tomei café. Suco de laranja. Um café da manhã no lugar do almoço, por assim dizer. Sabem como é, às vezes sentimos vontade de voltar o relógio no meio da noite e recomeçar da metade.

Uma pena que isso não passasse de uma metáfora.

Ainda que... será que ela teria escolhido nunca conhecer Xcor?

Sim, pensou. Preferiria nunca ter sabido da sua existência.

O amor de sua vida, seu “Blay”, o par do seu coração e da sua alma... era um traidor. E seus sentimentos pelo macho foram uma ferida aberta na qual a bactéria da traição entrara e se espalhara.

Portanto, ali estava ela, na prisão estabelecida por ela própria, torturada pelo fato de ter se aproximado do inimigo, primeiro por ter sido ludibriada... e mais tarde porque quis estar na presença de Xcor.

Separaram-se em maus termos, contudo, com ele colocando um fim nos encontros clandestinos após ela forçá-lo a admitir seus sentimentos. Em seguida, a situação se transformara de triste para trágica, quando ele foi capturado e levado sob a custódia da Irmandade.

A princípio não conseguira obter informações acerca de seu estado. Mas então, viajara ao modo de uma Escolhida até ele e, testemunhara seu estado moribundo num corredor de pedras, repleto de jarros de todas as cores e formas.

Não havia nada que pudesse ter feito por ele. Não sem se apresentar e se expor – e mesmo que ela o fizesse, não poderia salvá-lo.

Por isso estava presa ali: um fantasma atormentado num misto de emoções salpicadas pelo veneno da culpa e do arrependimento, sem nunca, jamais, poder se libertar.

– ... certo? Quero dizer... – Enquanto Blay continuava a falar com ela a respeito de uma e outra coisa, a Escolhida se forçou a não esfregar os olhos. – ... no fim da noite, enquanto você fica aqui com os bebês. Não que você não goste de ficar com eles.

Saiam, ela solicitou mentalmente para os dois machos. Por favor, vão embora e me deixem em paz.

Não era como se ela quisesse afastá-los das crianças, ou que sentisse alguma malquerença pelos pais de Lyric e Rhamp. Ela só precisava respirar. E toda vez que um dos guerreiros a fitava, como faziam agora, respirar se tornava praticamente impossível.

– Você concorda? – Qhuinn perguntou. – Layla?

– Ah, sim, claro. – Ela não fazia ideia do que acabara de concordar, mas certificou-se de sorrir. – Só vou descansar agora. Eles ficaram bastante tempo acordados durante o dia.

– Eu gostaria que nos deixasse ajudar mais. – Blay franziu a testa. – Estamos aqui do lado.

– Vocês dois lutam na maioria das noites. Precisam dormir.

– Mas você também é importante.

Layla direcionou o olhar rumo aos os berços e, ao rememorar a cena de si mesma acalentando-os e amamentando-os, sentiu-se ainda pior. Mereciam uma mahmen melhor do que ela, descomplicada e sem o fardo de decisões que nunca deveriam ter sido tomadas, uma que não estivesse contaminada pela fraqueza em relação a um macho de quem jamais deveria ter se aproximado... muito menos amado.

– Não tenho a mínima importância em comparação a eles – sussurrou rigidamente. – Eles são tudo.

Blay se aproximou e a tomou pela mão, os olhos azuis calorosos.

– Não, você também é muito importante. E mahmens precisam de tempo para si.

Para fazer o quê? Ruminar meus remorsos? Não, muito obrigada, pensou.

– Vou para o túmulo sem eles e aí apreciarei minha própria companhia. – Ao perceber o quanto tinha soado mórbida, apressou-se: – Além disso, eles crescem rápido. Vai acontecer antes de nós três nos darmos conta.

Conversaram mais depois – não que ela tivesse prestado atenção, com todos os gritos em sua mente. Mas, por fim, foi deixada em paz quando o casal partiu.

O fato de ficar tão feliz ao vê-los sair foi mais uma tristeza que ela tinha a carregar.

Mudando de posição na cama, levantou-se e se aproximou dos berços com os olhos rasos de lágrimas. Enxugando o rosto, repetidas vezes, ela pegou um lenço de papel do bolso do roupão e assoou o nariz. Os bebês estavam profundamente adormecidos, com os olhos fechados, os rostos voltados um para o outro como se estivessem se interligado em uma comunicação telepática durante o sono. Mãozinhas perfeitas e pezinhos preciosos, barriguinhas redondas e saudáveis envolvidas em cobertorzinhos de flanela. Eram bebês tão bons; alegres quando acordados, pacíficos e angelicais adormecidos. Rhampage ganhava peso com mais velocidade do que Lyric, mas ela parecia mais saudável do que ele, reclamava menos ao ser lavada ou trocada, fitando tudo com mais atenção.

Quando as lágrimas caíram do rosto de Layla até o carpete, ela não sabia quanto tempo mais suportaria.

Antes de tomar ciência do movimento, foi até o telefone interno da casa e apertou uma sequência de quatro números.

A doggen que convocou chegou em questão de momentos, e Layla voltou a vestir sua máscara social, sorrindo para a criada com uma serenidade que não sentia.

– Grata por cuidar dos meus preciosos – disse no Antigo Idioma.

A babá respondeu com alegria e olhos cintilantes, e Layla só aguentou dois ou três segundos de comunicação. Em seguida, saiu do quarto e, com passos ligeiros protegidos por chinelos, desceu pelo corredor das estátuas. Quando chegou às portas da extremidade oposta, empurrou uma delas e entrou na ala dos empregados.

Como em todas as mansões daquele tamanho e distinção, o lar da Irmandade necessitava de um tremendo apoio de funcionários, e os aposentos dos doggens perfilavam o corredor; a segregação por idade, sexo e posição nos escalões formava comunidades dentro do grande conjunto. Em meio ao labirinto de corredores, Layla não escolheu uma direção específica além do objetivo de encontrar um quarto vazio – e encontrou-o umas três portas adiante, depois de uma virada. Ao entrar no espaço simples e desocupado, foi até a janela, abriu-a e fechou os olhos. Seu coração batia forte e uma ligeira tontura a dominava, mas ela inspirou fundo o ar fresco e limpo...

... e se desmaterializou através da abertura que criara, misturando-se à noite; as moléculas se espalhando e se afastando da mansão da Irmandade.

Como sempre, sua liberdade seria temporária.

Mas, desesperada como estava, foi tomada por um breve sufocamento, e ela partiu em busca de oxigênio.


CAPÍTULO 3

Qhuinn era um macho muito macho. E não só porque era um guerreiro casado com outro cara.

Sim, claro que, antes de se assentar com Blay, até que gostara de transar com fêmeas e mulheres. Mas, pensando bem, seu padrão para parceiros sexuais fora tão baixo que até aspiradores de pós e canos de escapamento tinham sido candidatos ocasionais.

Mas nada de ovelhas. #critério

No entanto, não poderia dizer que as fêmeas o tivessem cativado ou interessado de fato. Não que houvesse algo de errado com elas, ou que não as respeitasse assim como todo o resto. Elas simplesmente não eram do seu gosto.

Numa noite como a de hoje, porém, ele lamentava sua inexperiência. Só porque ralara e rolara com o sexo oposto não significava que estivesse equipado de algum modo para lidar com o que o confrontava agora.

Quando ele e Blay chegaram ao pé da escadaria principal, ele parou e olhou para seu par. Ao fundo, vindo da sala de bilhar do lado oposto do átrio, o som das vozes graves dos machos, de música e de gelo batendo em copos de cristal anunciavam que o torneio de bilhar da Irmandade já estava em curso.

Qhuinn sorriu de uma maneira que esperava transmitir calma.

– Ei, eu já te encontro lá, ok? Tenho que descer pra falar com a doutora Jane sobre o meu ombro, acho que demoro uns dez minutos... Não mais do que isso.

– Claro. Quer que eu vá com você?

Por um segundo, Qhuinn se perdeu ao observar seu macho. Blaylock, filho de Rocke, era tudo o que ele não era: impecável como um corpo esculpido por Michelangelo, tinha um rosto de arrasar e uma cabeleira ruiva e lustrosa como a cauda de um pônei; era inteligente, mas também equilibrado, o que fazia toda a diferença; era firme e confiável como uma montanha de granito, o tipo de cara que nunca vacilava.

Em tudo o que importava, comparado a Blay, Qhuinn era uma banheira de plástico perto de uma de porcelana; um conjunto incompleto de pratos ao lado de uma dúzia perfeita de louças; uma coisa rachada no meio de algo inquebrável.

Por algum motivo, porém, Blay o escolhera. Contra todas as possibilidades, o filho imperfeito e desonrado de uma das Famílias Fundadoras, o viciado sexual de olhos despareados, o vagabundo hostil e arredio... De algum modo acabara com o Príncipe Encantado, e caralho, se isso não o convertia.

Blay era o motivo que o fazia respirar, o lar que nunca tivera, a luz do sol que empoderava sua terra.

– Qhuinn? – Os olhos azuis iridescentes se apertaram. – Você está bem?

– Desculpe. – Ele se inclinou e pressionou os lábios na jugular do macho. – Eu me distraí. Mas você sempre tem esse efeito em mim, não é?

Quando Qhuinn se afastou, Blay estava corado – e excitado. Aquela fragrância era uma digressão que não podia ser facilmente ignorada.

A não ser pelo fato de que tinha um problema real para resolver.

– Diga aos irmãos que não demoro. – Qhuinn apontou na direção da sala de bilhar. – E que vou dar uma surra neles.

– Você sempre faz isso. Mesmo com Butch.

As palavras foram suaves, mas respaldadas por uma adoração que fazia com que Qhuinn contasse cada uma das suas bênçãos.

Cedendo ao instinto, Qhuinn se aproximou e sussurrou ao ouvido do cara:

– Talvez queira se alimentar bem na Última Refeição. Vou te manter ocupado o dia inteiro.

Com uma lambida no pescoço em que pretendia trabalhar mais tarde, Qhuinn se afastou antes que não pudesse mais se distanciar de seu par.

Seguindo ao redor da base da escada, passou por uma porta escondida e desceu pelo sistema de túneis que conectava os componentes da propriedade. O centro de treinamento subterrâneo da Irmandade ficava cerca de meio quilômetro afastado da mansão, e aquela passagem subterrânea ligando as duas partes era um espaço amplo iluminado por painéis de luzes fluorescentes afixados ao teto.

Enquanto ele avançava, o som dos seus passos ecoava ao redor, como se os coturnos aplaudissem a iniciativa.

Contudo, Qhuinn não sabia se eles estavam certos. Não fazia a mínima ideia do que estava fazendo ali.

A porta atrás do armário de suprimentos se abriu sem emitir nenhum som, uma vez inserida a senha; em seguida, o guerreiro passava ao longo de prateleiras repletas de papéis para impressora, canetas, blocos de anotação e outras merdas vindas da loja de materiais para escritório. A sala, além do depósito, apresentava a típica disposição de mesa, cadeira, computador e arquivos metálicos, e nenhuma dessas coisas foi particularmente percebida quando ele passou pela porta de vidro adiante para chegar ao corredor da frente. Com passadas longas e impacientes, atravessou todos os tipos de instalações de nível profissional – desde uma academia completa e sala de pesos à altura de Dwayne Johnson, até os vestiários e as primeiras salas de aula.

A porção destinada à clínica do centro de treinamento tinha outra quantidade de cômodos voltados ao tratamento, uma sala de operações e diversos leitos hospitalares. A doutora Jane, companheira de V., e o doutor Manello, companheiro de Payne, cuidavam de todo tipo de ferimentos obtidos em combate, além de problemas domésticos e sem falar dos partos de L.W., Nalla e dos gêmeos Lyric e Rhampage.

Qhuinn bateu na primeira porta ao se aproximar e não teve que esperar nem uma batida do seu coração para ter uma resposta.

– Entre! – a doutora Jane disse do lado oposto da porta.

A boa médica vestia roupas cirúrgicas e um par de Crocs. Sentada diante do computador na outra extremidade da bem equipada clínica, seus dedos voavam sobre o teclado enquanto ela atualizava o prontuário de alguém cabisbaixa; seus cabelos loiros curtos espetados como se ela tivesse passado a mão por eles durante horas.

– Um segundinho... – Ela apertou a tecla de “enter” e girou. – Ah, olá, papai. Como está?

– Ah, você sabe, imerso no amor.

– Aqueles seus bebês são maravilhosos. E olha que eu nem gosto de crianças.

O sorriso dela era acolhedor como uma torta de maçãs. Os olhos verde-montanha, por outro lado, eram afiados como raios laser.

– Graças a você, eles estão se saindo muito bem.

Houve uma deixa para o silêncio. Quando a conversa não evoluiu, ele se pôs a caminhar pela clínica, pois não conseguia ficar parado. Deu uma espiada nos equipamentos estéreis e imaculados sobre os gabinetes de aço inoxidável, inspecionou a maca vazia sob as luzes usadas nas operações, ajeitando as calças.

A médica apenas ficou sentada no seu banquinho, calma e silenciosa, deixando que ele se debatesse com a sua mente. Quando o celular dela tocou, Jane deixou que caísse na caixa de mensagens sem nem ver quem poderia ser.

– Provavelmente estou errado – ele acabou concluindo. – Que porra sei eu, afinal?

A doutora Jane sorriu.

– Na verdade eu te acho um cara bem inteligente.

– Não sobre este tipo de coisa. – Com um pigarro, Qhuinn propôs a si mesmo que prosseguisse; ainda que a doutora Jane não parecesse estar com pressa, ele estava entediando a si mesmo. – Olha só... eu amo a Layla.

– Claro que sim.

– E quero o melhor pra ela. Ela é a mãe dos meus filhos. Quero dizer, além de Blay, ela é a minha companheira por causa das crianças.

– Com certeza.

Cruzando os braços diante do peito, ele parou de andar e empostou-se de frente à doutora Jane.

– Não estou dizendo que sei alguma coisa sobre fêmeas. Coisas como os seus humores e por aí vai. Só que... Layla tem chorado muito. Quero dizer, ela tenta esconder isso de mim e do Blay, mas... toda vez que vou vê-la, encontro bolas de lenços de papel no cesto de lixo, e seus olhos estão brilhantes demais, o rosto, corado. Ela sorri, mas o sorriso nunca passa da superfície. Os olhos dela... são uma tragédia de merda. E... e eu não sei o que fazer, só sei que isso não está certo.

A médica assentiu.

– Como ela se porta com as crianças?

– É fantástica, pelo que posso ver. É totalmente devotada a eles, e eles estão crescendo. Na verdade, o único momento em que a vejo meio que feliz é quando os têm nos braços. – Pigarreou novamente. – Então, o que estou imaginando... ou perguntando, sei lá, é se as fêmeas gestantes, depois que não estão mais grávidas, se elas não...

Jesus, ele merecia todo tipo de prêmio por saber se explicar tão bem. E os termos técnicos com os quais se debatia? Praticamente estava a um passo de receber o título de doutor em Medicina, assim como Jane.

Cacete.

Mas pelo menos a doutora Jane parecia reconhecer que aquele avião conversacional estava ficando sem pista para decolar.

– Acho que está querendo me perguntar a respeito de depressão pós-parto. – Após vê-lo assentir, ela prosseguiu: – Posso lhe afirmar que não é incomum entre os vampiros, e que pode ser incapacitante. Conversei com Havers a respeito disso antes, e estou muito feliz que tenha vindo me procurar para tratar do assunto. Às vezes, uma mãe recente sequer está ciente de que isso pode se tornar um problema.

– Não existe nenhum exame... ou um... sei lá.

– Existem algumas maneiras diferentes de avaliar a questão, e o comportamento é uma delas. Claro que posso ir conversar com ela, e também posso fazer alguns exames de sangue para avaliar os níveis hormonais. E, sim, existem muitas coisas que podemos fazer para tratar dela e dar-lhe o apoio necessário.

– Não quero que Layla pense que estou agindo pelas costas dela nem nada assim.

– O que é totalmente compreensível. Mas tudo bem, porque eu pretendia mesmo subir até lá para dar uma olhada nela e nos bebês. Posso abordar o tema como se fosse parte de uma rotina. Nem terei que citar seu nome.

– Você é a melhor.

Com o assunto resolvido, ele supôs que era hora de voltar para junto do seu companheiro e para o torneio de bilhar. Mas não saiu. Por algum motivo, não conseguia.

– Não é sua culpa – garantiu a doutora Jane.

– Eu a engravidei. E se o meu... – Ok, ela era médica, mas Qhuinn ainda não queria pronunciar a palavra esperma perto dela. O que era loucura. – E se a minha metade for a causa...

A porta se abriu, e Manny enfiou a cabeça pela abertura.

– Ei, está pronta...? Opa, desculpem.

– Estamos quase terminando aqui. – A doutora Jane sorriu. – E você não nos viu juntos.

– Pode deixar. – Manny bateu na soleira. – Se eu puder ajudar de alguma maneira, é só avisar.

E lá se foi o cara, como se nunca tivesse aparecido ali.

A doutora Jane se levantou e se aproximou dele. Era mais baixa do que Qhuinn, e sua estrutura nem se comparava aos quase 140 quilos de músculos masculinos. Mas ela parecia pairar acima dele; a autoridade na voz e nos olhos dela era exatamente o que ele precisava para acalmar seu lado irracional.

Quando encostou a mão no braço dele, sua expressão estava firme.

– Não é sua culpa. Esse, às vezes, é o curso da natureza em algumas gestações.

– Fui eu quem colocou aqueles bebês dentro dela.

– Sim, mas imaginando que este seja um caso de os hormônios se autorregularem após o parto, não há ninguém para culpar. Além disso, você agiu bem ao vir até aqui, e também pode ajudá-la simplesmente conversando com ela e lhe dando o tempo e o espaço necessários para que ela também converse com você. Para ser sincera, eu já havia notado que ela não tem descido para as refeições. Acho que precisamos encorajá-la a se juntar ao resto de nós, para que ela sinta o quanto estamos disponíveis para ampará-la.

– OK. Certo, então.

A doutora Jane franziu a testa.

– Posso lhe dar um conselho?

– Por favor.

Ela o apertou no braço.

– Não se sinta responsável por algo sobre o qual não tem controle algum. Isso é um convite ao estresse que acabará deixando-o loucamente infeliz. Sei que é mais fácil falar do que fazer, mas tente se lembrar disso, está bem? Eu o vi acompanhá-la a cada estágio da gestação. Não houve nada que você não tenha feito por ela ou que não faria por ela, e você é um pai fantástico. Somente coisas boas o esperam, eu prometo.

Qhuinn inspirou fundo.

– Certo.

Mesmo quando sua preocupação persistiu, ele se lembrou de que, durante a gestação de Layla, descobrira que podia confiar na doutora Jane. A médica o ajudara a trilhar a estrada da vida e da morte, e nunca o decepcionara, nunca deixara que se desgarrasse. Tampouco mentira para ele e lhe dera maus conselhos.

– Vai ficar tudo bem – ela prometeu.

Infelizmente, como pôde-se perceber mais tarde, a boa médica estava errada.

Mas ela não tinha controle algum sobre o destino.

Nem ele.


CAPÍTULO 4

O bebê estava arruinado. Tudo o que detinha não passava de uma versão modificada e horrenda das feições de Hharm; o lábio superior era todo errado, como o de uma lebre.

Hharm largou o bebê no piso sujo da caverna, e a coisa não emitiu som algum ao aterrissar, os braços e as pernas mal se moviam, as carnes azuladas e acinzentadas, o cordão ainda o unia à fêmea. Iria morrer, assim como deveriam todos os resultados contra as regras da natureza e do parto – e essa consequência não era causa de indignação.

O fato de Hharm ter sido ludibriado, porém, o era. Desperdiçara dezoito meses, uma quantidade enorme de horas, aquele momento de esperança e de felicidade numa monstruosidade insuportável. E o que ele sabia com certeza? Que não era culpa sua.

– O que você fez? – exigiu saber da fêmea.

– Um filho! – Ela arqueou as costas em agonia renovada. – Eu lhe dei...

– Uma maldição. – Hharm se levantou em toda a sua altura. – O seu ventre é impuro. Ele corrompeu o presente do meu sêmen e produziu isso...

– O seu filho...

– Olhe para ele! Veja com seus olhos! Isso é uma abominação!

A mulher se esforçou e suspendeu a cabeça.

– Ele é perfeito, ele é...

Hharm empurrou o bebê com a bota, fazendo com que ele movesse os pequenos membros e emitisse um gritinho fraco.

– Nem mesmo você pode negar o que está diante de nós!

Os olhos injetados dela se afixaram no bebê, e depois se arregalaram...

– Isso é...

– Você fez isso – ele anunciou.

A ausência de argumentos por parte dela foi uma rendição inevitável, visto que o defeito não podia ser negado. Então ela gemeu como se ainda estivesse em trabalho de parto, os dedos ensanguentados arranharam a terra fria, as pernas tremeram quando se afastaram mais. Depois de mais esforços, algo saiu da mulher, e ele pensou que talvez fosse mais um. De fato, seu coração se viu cheio de otimismo enquanto ele rezava para que o primeiro fosse exhile dhoble, o amaldiçoado de um par de gêmeos.

Infelizmente, não. Era apenas algo do interior da fêmea, talvez o estômago ou o intestino dela.

E o bebê prosseguiu chorando, o peito se estufando e murchando com pouco efeito.

– Você deve morrer aqui, assim como ele – Hharm disse sem cuidado algum.

– Eu não...

– Suas entranhas estão saindo.

– O bebê é... – ela hesitou. – Ele...

– É uma abominação da natureza contra o desejo da Virgem Escriba.

A fêmea se calou e relaxou como se o processo da expulsão tivesse chegado ao fim, e Hharm aguardou pelo ataque em que a alma dela se desprenderia do corpo. Só que ela continuou a respirar e olhar para ele... e a existir. Que espécie de truque era aquele? A ideia de que ela não iria ao Dhunhd por conta disso era um insulto.

– Isso é obra sua – ralhou com a fêmea.

– Como sabe que não foi a sua semente que...

Hharm apoiou a bota na garganta dela e a pressionou, interrompendo-lhe as palavras. Quando uma onda de ódio induziu o corpo do guerreiro rumo a uma ação mortal, somente a possibilidade de que esse evento fosse um castigo por suas ações prévias o impediu de esmagar-lhe o pescoço.

Ela tem que pagar, foi seu pensamento abrupto. Sim, a culpa era dela, e o desapontamento causado necessitava de uma reparação.

Sibilando, ele revelou as presas.

– Deixarei que viva para que possa criar esta monstruosidade e que seja vista com ele. Esta é sua maldição por me amaldiçoar: ele ficará sempre em seu cangote, como um amuleto ou uma danação, e se eu descobrir que essa coisa morreu, eu a perseguirei e a esquartejarei centímetro a centímetro. Depois matarei a sua irmã, toda a prole dela e os seus parentes.

– O que está dizendo?!

Hharm se inclinou para baixo, o latejar no rosto e na cabeça parecia muito familiar.

– Ouviu minhas palavras. Conhece meu desejo. Desafie-o por sua conta e risco.

Quando ela se acovardou, o Irmão se afastou e fitou a sujeira proveniente do parto, a fêmea patética, aquele resultado horrendo – e cortou o ar com a mão, como se os apagasse da linha do tempo. Em meio aos bramidos da tempestade e à extinção da fogueira, ele foi até o casaco de peles.

– Você arruinou o meu filho – reclamou ao passar o peso das peles sobre os ombros. – O seu castigo é criar esse horror como declaração do seu fracasso.

– Você não é Rei – ela rebateu, fraca. – Não pode ordenar nada.

– Este é um serviço comunitário que faço aos machos, meus camaradas. – Apontou o dedo na direção do recém-nascido choroso. – Com isso grudado ao seu quadril, ninguém mais se deitará com você para sofrer de maneira similar.

– Não pode me forçar a isso!

– Ah, posso, sim, e o farei.

Ela era uma fêmea mimada e desafiadora por natureza, e fora isso o que o atraíra nela a princípio – tivera que lhe ensinar o que fazer e as orientações foram bem interessantes por um tempo. De fato, houvera apenas uma instância em que ela tentara exercer domínio sobre ele. Uma vez e nunca mais.

– Não me teste, fêmea. Já fez isso antes e deve se lembrar do resultado.

Quando ela empalideceu, ele assentiu na sua direção.

– Sim. Isso mesmo.

Ele quase a matara na noite em que lhe mostrara que, enquanto ele ficaria com que desejasse, quando e onde o quisesse, ela jamais teria permissão para se deitar com outro macho enquanto estivesse tangivelmente associada a ele. Foi logo depois disso que ela decidiu que a única possibilidade de prendê-lo seria dando-lhe o filho que ele almejava e, ao mesmo tempo, ele começara a pensar em seu legado.

Por azar, ela fracassara em seus objetivos.

– Eu odeio você – ela gemeu.

Hharm sorriu.

– O sentimento é mútuo. E mais uma vez lhe digo que é melhor garantir a sobrevivência dessa coisa. Se eu descobrir que o matou, revidarei a morte dele nas suas carnes e em toda a sua linhagem.

Dito isso, ele cuspiu duas vezes junto aos pés dela: uma por causa da fêmea e outra pelo bebê. Depois se afastou enquanto ela o chamava, e o bebê desertado berrava contra o frio.

Do lado de fora, a tempestade prosseguia, intensa, a neve rodopiante o cegava e depois diminuiu para uma revoada de pássaros que revelava todo o cenário. No vale logo abaixo, montanhas se elevavam às margens de um lago, a neve acumulada sobre a água congelada que formava ondas nos meses mais quentes. Estava tudo escuro, gélido e inerte, mas ele se recusava a encontrar um mau presságio na imagem à sua frente.

Com a mão usada para a adaga comichando, e a hostilidade dentro dele acelerando como um corcel disparado, sugeriu a si mesmo que não atentasse para esse resultado.

Encontraria outro ventre.

Em algum lugar, havia uma fêmea que lhe daria o legado merecido e necessário. Ele a encontraria e a faria crescer com a sua semente.

Existiria um filho apropriado para ele. Hharm jamais aceitaria qualquer outro resultado.


CAPÍTULO 5

Quando se aproximou da entrada da caverna sagrada da Irmandade, Tohr se esgueirou pelo interior úmido, e uma vez ali dentro, o cheiro de terra e de uma fonte de chamas distante irritou suas narinas. Os olhos se ajustaram de imediato, e quando ele seguiu em frente, aquietou o movimento de seus coturnos. Não queria ser ouvido, mesmo que sua presença fosse notada logo em seguida.

Os portões não estavam muito longe e eram constituídos por grossas barras de ferro, cuja espessura era semelhante a de um antebraço de guerreiro; as barras de ferro eram altas como árvores e possuíam uma cobertura em malha de aço, a fim de impedir a desmaterialização. Tochas sibilavam e tremeluziam em cada lado e, além, ele via o começo do grande corredor que conduzia mais para dentro da terra.

Parando diante da enorme barreira, pegou a chave de cobre e não sentiu remorso algum por ter roubado o objeto da gaveta da escrivaninha ornamental de Wrath. Pediria desculpas pela infração mais tarde.

E também pelo que faria na sequência.

Tohr destrancou o mecanismo, empurrou o peso colossal, entrou e voltou a trancar o portão atrás de si. Caminhando à frente, seguiu o caminho natural, expandido por talhadeiras e músculos fortes, e depois adornado por prateleiras. Sobre as diversas tábuas, centenas e centenas de jarros alimentavam um jogo de luz e sombras.

Os receptáculos eram de todos os formatos e tamanhos, e vinham de diferentes eras, desde a antiga até a moderna, mas o que havia dentro de cada um deles era o mesmo: o coração de um redutor. Desde o princípio da guerra contra a Sociedade Redutora, ainda no Antigo País, a Irmandade vinha marcando as mortes dos inimigos ao tomar posse dos jarros das vítimas e trazendo-os até ali para aumentar a coleção.

Em parte como troféu, em parte como um “foda-se, Ômega”, aquilo era um legado. Era um orgulho. Uma expectativa.

E talvez deixasse de sê-lo. Havia poucos e esparsos redutores nas ruas de Caldwell e em outras paragens no momento, portanto deveriam estar próximos.

Tohr não sentiu nenhuma alegria ante tal conquista. Mas talvez fosse em virtude do terrível aniversário dessa noite.

Era difícil sentir qualquer outra coisa que não a perda de Wellsie no dia que já fora seu aniversário.

Após uma curva sutil, ele parou. Mais adiante, a cena mais parecia saída de um filme que não se decidia se era Indiana Jones, Grey’s Anatomy ou Matrix. No centro das antigas paredes de pedra, tochas acesas e jarros despareados e empoeirados, um amontoado de equipamentos médicos piscando e emitindo sinais interferia com um corpo sobre uma maca. E ao lado do prisioneiro? Dois imensos vampiros cobertos da cabeça aos pés com couro preto e armas negras.

Butch e V. eram o Frick e Frack da Irmandade – o ex-policial da divisão de homicídios dos humanos e o filho da Criadora da raça, o bom garoto católico e o depravado sexual, o viciado em roupas e o czar da tecnologia –, unidos pela devoção partilhada pelo Red Sox de Boston e respeito mútuo e afeto que não conheciam limites.1

V. percebeu a presença de Tohr primeiro, virando com tanta rapidez que seu cigarro aceso espalhou cinzas pelo ar.

– Ah, inferno. Não. De jeito nenhum, porra! Você vai dar o fora daqui!

Essa opinião, a despeito do volume pronunciado, foi fácil de ignorar, pois Tohr se concentrava no pedaço de carne sobre a maca. Xcor estava deitado ali, com tubos entrando e saindo de si como se ele fosse a bateria de um carro prestes a receber uma recarga, com a respiração regular... Não, espere, a respiração não estava regular.

V. deteve Tohr, aproximando-se dele e ainda um pouco mais. E o que mais? O Irmão sacara seu atirador poodle – e o cano da 40 mm apontava diretamente para o rosto de Tohr.

– Tô falando sério, meu irmão.

Tohr olhou para o prisioneiro por cima do ombro largo. E se viu sorrindo.

– Ele está acordado.

– Não, ele não est...

– A respiração dele mudou. – Tohr apontou para o peito nu. – Veja.

Butch franziu o cenho e se aproximou do prisioneiro.

– Ora, ora, ora... Hora de acordar, filho da mãe.

V. virou-se para trás.

– Filho da puta.

Mas a arma não se moveu, tampouco Tohr. Por mais que quisesse Xcor, ele acabaria recebendo uma bala na garganta se desse mais um passo: V. era o menos sentimental dos irmãos e tinha a paciência de uma cascavel.

Naquele momento, os olhos de Xcor piscaram. Na luz tremeluzente das tochas, eles pareciam negros, mas Tohr se lembrava de que eles eram azuis. Não que isso importasse.

V. colocou a cara no seu caminho, os olhos de diamante eram como adagas.

– Este não vai ser o presente de aniversário que vai dar para a sua shellan morta.

Tohr arrastou os lábios para trás das presas.

– Vai se foder.

– Isso não vai acontecer. Pode me xingar o quanto quiser, mas não. Você sabe como as coisas vão acontecer e ainda não está na sua hora.

Butch sorriu para o prisioneiro.

– Estávamos esperando que se juntasse à festa. Aceita uma bebida? Talvez um misto de nozes antes ter que ajeitar a poltrona para a decolagem? Não há por que te mostrar as saídas de emergência. Você não tem que se preocupar com isso.

– Vamos, Tohr – V. disse. – Agora.

Tohrment expôs as presas, mas não para o irmão.

– Seu bastardo, vou te matar...

– Não, nada disso. – V. passou o braço ao redor do bíceps de Tohr, e faltou pouco para começarem a dançar uma quadrilha. – Lá fora...

– Você não é Deus...

– Nem você, motivo pelo qual está de saída.

Nos recessos da mente, Tohr sabia que o filho da mãe tinha razão. Ele não estava nem meio racional no momento – e P.S., que V. se fodesse por se lembrar que noite era aquela.

Sua amada shellan, seu primeiro amor, completaria duzentos e vinte e seis anos. E teria um filho dos dois nos braços.

Mas o destino se opusera.

– Não me obrigue a atirar em você – V. alertou com aspereza. – Venha, meu irmão. Por favor.

O fato de as duas últimas palavras terem saído da boca de V. foi o que surtiu efeito. A cena era tão chocante que desarmou Tohr de sua loucura e raiva.

– Venha, Tohr.

Dessa vez, Tohr se permitiu ser conduzido, à medida que seu grande esquema desinflanva; o silêncio absoluto depois de sua loucura o fazia tremer dentro da própria pele. Que porra estivera fazendo? Mas que cacete?

Sim, recebera o privilégio de matar Xcor com um decreto da realeza, mas só quando recebesse autorização expressa de Wrath. E isso ainda não acontecera explicitamente.

Tinham evitado um desastre de proporções traidoras.

Seria como trocar de lugar. Um traidor morto por outro bem vivo.

Quando chegaram aos portões que Tohr havia destrancado para conseguir acesso ao prisioneiro, V. estendeu a mão enluvada.

– Chave.

Tohr não olhou para o irmão ao tirar o objeto da jaqueta de couro e entregá-la. Depois de uns cliques e rangidos, o caminho estava livre, e Tohr saiu sem estar convencido, com as mãos no quadril, os coturnos chutando a terra, a cabeça pensa.

Quando ouviu uma nova sequência de rangidos e cliques, deduziu que estava sendo trancado do lado de fora, sozinho. Mas V. estava bem ao seu lado.

– Eu prometo – o irmão disse – que você, e apenas você, vai mattá-lo.

Tohr se perguntou se isso bastaria. Ponderou se seria o bastante. Será que algum dia encontraria satisfação?

Antes de chegarem à boca da caverna, Tohr parou.

– Às vezes... a vida não é nada justa.

– Não. Não é.

– Odeio isso. Odeio pra caralho. Passo por... períodos, não apenas noites, mas semanas, às vezes até um ou dois meses... em que me esqueço de tudo. Mas a merda sempre volta e, depois de um tempo, não dá mais pra segurar. Não dá. – Bateu na lateral da cabeça com o punho. – Tem esse verme aqui dentro, e sei que matar Xcor não vai me distrair por mais do que dez minutos. Mas numa noite como esta, eu aceitaria até isso.

Sucedeu-se o som de um fósforo sendo riscado quando V. acendeu um cigarro.

– Não sei o que dizer, meu irmão. Eu diria pra você rezar, mas não tem mais ninguém lá em cima te ouvindo.

– Não tenho certeza se a sua mãe nos ouviu algum dia. Sem ofensas.

– Não ofendeu. – V. exalou. – Confie em mim.

Tohr se concentrou na saída da caverna, e quando tentou respirar, sentiu uma estranha exaustão.

– Estou cansado de lutar sempre a mesma briga. Desde que Wellsie foi... assassinada... sinto como se um pedaço meu nunca tivesse cicatrizado, e não aguento essa dor nem mais um segundo. Nem mais um maldito segundo. Mesmo que ela migrasse para algum outro lugar, já seria melhor.

Estabeleceu-se um longo silêncio entre eles, abafado apenas pelo urro dos ventos invernais que entravam na caverna silenciosa.

No fim, V. praguejou.

– Bem que eu gostaria de poder te ajudar, meu irmão. Quero dizer, se você precisar de um abraço confortador... eu devo conseguir alguém pra te dar uns tapinhas nas costas.

Tohr sacudiu a cabeça quando o lábio superior se retorceu num sorriso.

– Isso foi quase engraçado.

– Pois é, tentei pegar leve. – V. exalou de novo. – Era isso ou eu atirava em você, e odeio preencher a papelada burocrática do Saxton, sabe?

– Sei o que quer dizer. – Tohr esfregou o rosto. – Verdade...

Os olhos diamantinos de V. mudaram de foco.

– Apenas esteja ciente que lamento. Você não merece nada disso. – Certa mão pesada pousou no ombro de Tohr e apertou-o. – Se eu pudesse tirar a sua dor, é o que faria.

Quando Tohr piscou rápido, pensou que era uma coisa boa que V. não fosse de abraçar, ou então teriam um maldito colapso emocional acontecendo ali.

Do tipo de colapso que um macho não retornaria intacto.

Mas, pensando bem, ele estava mesmo intacto agora?


BOATE SHADOWS, CENTRO DE CALDWELL


Trez Latimer sentia-se como uma espécie de divindade ao olhar através da parede de vidro do escritório no segundo andar da sua boate. Abaixo, no espaço aberto do armazém convertido, uma multidão de humanos excitados estabelecia um padrão de atração e desdém num mar tumultuado de lasers púrpura e batidas pesadas de baixo.

Em grande escala, sua clientela era composta de millenials, os nascidos entre 1980 e 2000. Definidos pela internet, pelo iPhone, pela ausência de oportunidades econômicas – ao menos segundo a mídia humana –, era um grupo demográfico de moralistas perdidos, comprometidos em salvar uns aos outros, com a preservação dos direitos de todos, e a promoção de uma falsa utopia de pensamento liberal que fazia o macarthismo parecer atenuado.

Mas também eram, da maneira dos jovens, esperançosos sem fundamento.

E como ele os invejava.

Enquanto se esbarravam e colidiam uns nos outros, ele testemunhava o êxtase em seus rostos, o otimismo exuberante de que encontrariam o verdadeiro amor e a felicidade naquela noite mesmo – a despeito de todas as outras noites nas quais vieram até a sua boate e a aurora chegara, expulsando-o com nada além de exaustão, uma nova DST, e mais um fardo de vergonha e dúvida enquanto se perguntavam o que tinham feito, e com quem.

Ele suspeitava, contudo, que, para a maioria, a cura de tamanha angústia era apenas cerca de duas horas de sono, um venti latte da Starbucks e uma injeção de penicilina.

Quando se é jovem assim, quando ainda é preciso enfrentar os desafios que não se consegue sequer começar a compreender, a sua resistência não tem limites.

E era por isso que o vampiro desejaria poder trocar de lugar com eles.

Era estranho colocar os humanos em qualquer tipo de pedestal. Sendo um Sombra de mais de duzentos anos de vida, Trez há tempos considerava aqueles ratos sem cauda algo inferior, um tumulto inconveniente no planeta, bem como formigas na cozinha ou camundongos no porão. Só que não se podia exterminar os humanos. Sujeira demais. Melhor tolerá-los do que arriscar a exposição da espécie ao assassiná-los só para liberar vagas de estacionamento, diminuir as filas nos supermercados e as notificações do Facebook.

No entanto, ali estava ele, ansioso por trocar de lugar com qualquer um deles, mesmo que fosse por uma ou duas horas.

Improcedente.

Mas, pensando bem, eles não mudaram. Quem mudou foi ele.

Minha rainha, está na hora de partir? Conte-me se for.

Enquanto as lembranças o intimidavam dentro do cérebro, ele cobriu os olhos e pensou: Não, Deus. De novo, não. Não queria voltar para a clínica da Irmandade... para o lado do leito da sua amada Selena, morrendo por dentro enquanto ela expirava de verdade.

A verdade, contudo, era que ele jamais abandonara esses eventos, mesmo que o calendário sugerisse o contrário. Depois da passagem de mais de um mês, ele ainda se lembrava de cada mínimo detalhe da cena, desde a respiração torturada dela até o pânico no olhar enquanto lágrimas rolavam por ambos os rostos.

Sua Selena fora acometida por uma doença que raramente afetava membros da classe sagrada. Em todas as gerações de Escolhidas, algumas tiveram a Prisão, que era um jeito horrível de morrer: a mente era deixada viva na casca congelada do corpo, sem nenhuma escapatória, nenhum tratamento para ajudar, ninguém para salvar.

Nem mesmo o macho que a amava mais do que a própria vida.

Quando o coração de Trez tropeçou no âmago do peito, ele abaixou as mãos, meneou a cabeça e tentou se reconectar com a realidade. Estivera se debatendo contra esses episódios invasivos, e eles vinham se tornando mais frequentes em vez de menos – o faziam se preocupar com sua sanidade. Chegou a ouvir o ditado de que “o tempo cura as feridas” e, droga, talvez aquilo fosse verdade para outras pessoas. Para ele? Seu luto se transformara de dor incandescente, no começo, a uma agonia tão ardorosa que rivalizava com as chamas da pira funerária, até aquelas reminiscências crônicas que pareciam girar cada vez mais rápido ao redor do esteio aberto da sua perda.

Sua própria voz ecoava na cabeça: Eu entendi direito? Você quer que isto... termine?

Quando os momentos finais de Selena chegaram, ela já não conseguia mais falar. Tiveram que se apoiar num sistema de comunicação pré-combinado que supunha o controle dela sobre as pálpebras até quase o fim: uma piscada para não... duas para sim.

Você quer que isto... termine?

Ele soubera qual seria a resposta dela. Lera-o na expressão exausta, distante e enfraquecida dela. Mas aquela fora uma das vezes na vida em que se queria ter a mais absoluta certeza.

Ela piscara uma vez. E de novo depois.

E ele estivera ao lado dela quando as drogas pararam seu coração e lhe conferiram o alívio de que ela necessitava ao ser transportada.

Em todos os seus anos, ele jamais imaginara aquele tipo de sofrimento. Nas duas partes. Ele não teria conseguido criar uma morte pior saída de qualquer pesadelo, e não poderia ter imaginado que teria que assentir para Manny, autorizando-o a administrar o medicamento enquanto gritava internamente, pois seu amor se esvaía e o deixava sozinho pelo resto de suas noites.

O único conforto era que o sofrimento dela chegara ao fim.

A única realidade era que o seu tinha apenas começado.

No período subsequente, encontrou conforto no fato de que preferiria ser o responsável por sentir a ausência dela, e não o contrário. Mas, conforme o tempo prosseguiu, acabou usando demais esse antídoto, pois era o único que possuía, e agora ele já não surtia mais efeito.

Portanto, não havia nada para reavivá-lo. Tentou beber, mas o álcool só servia para ele perder o pouco controle que tinha sobre as lágrimas. Não dava a mínima para a comida. Sexo era algo completamente fora de questão. E ninguém o deixava lutar – pois tanto os Irmãos quanto iAm reconheciam seu estado desgovernado.

Portanto, o que lhe restava? Nada, a não ser se arrastar ao longo dos dias e das noites, e rezar para o mais básico dos alívios: um respiro desimpedido, um período de tranquilidade mental, uma hora de sono sem perturbações.

Ao estender a mão, tocou o painel de vidro inclinado que era a sua janela para o que ele considerava ser o outro mundo, o exterior do seu inferno isolado. Engraçado que ele agora considerava “outro” o que um dia fora o mundo “real”... E mesmo sem a separação das espécies, da idade, do seu poleiro acima da confusão da boate, ele se sentia tão à parte de todos eles.

Tinha a sensação de que sempre permaneceria afastado de todos.

E, francamente, ele simplesmente não poderia continuar assim.

A dor o destroçara e, se não fosse pelo fato de que os suicidas tinham a entrada negada no Fade, ele teria metido uma bala do seu 48 mm na cabeça horas após a morte dela.

Pensou que não suportaria outra noite assim.

– Por favor... me ajude.

Trez não fazia a mínima ideia de quem falava com ele. Do lado dos vampiros, a Virgem Escriba já não existia mais – e no seu atual estado mental ele compreendia por completo o motivo de ela ter largado o microfone e saído do palco de sua criação. E, como um Sombra, ele fora criado para adorar sua Rainha – o único problema era que ela estava vinculada ao seu irmão, e rezar para a cunhada parecia muito estranho.

Uma declaração autêntica de que toda aquela coisa espiritual não passava de um monte de asneira.

E, mesmo assim, seu sofrimento era tão grande que ele tinha que tentar buscar ajuda.

Inclinando a cabeça para trás, olhou para o teto baixo preto e despejou seu coração partido para o mundo:

– Eu só a quero de volta. Eu só... quero Selena de volta. Por favor... se existir alguém aí em cima, me ajude. Devolva-a para mim. Não me importo em que forma ela estiver... Eu só não consigo mais fazer isto. Não consigo mais viver assim nem pela porra de uma única noite.

Claro que não houve resposta. E ele se sentiu um completo idiota.

Pois é, como se a vastidão do universo lhe iria despejar outra coisa que não apenas um meteoro?

Além disso, será mesmo que existia um Fade? E se ele estivesse apenas alucinando durante a purificação e somente imaginara ter visto a sua Selena? E se ela só tivesse simplesmente morrido? Como se... tivesse apenas deixado de existir? E se todas as bobagens a respeito de um lugar celestial aonde nossos amados iam e esperavam pacientemente por nós não passasse de um mecanismo de defesa criado por aqueles deixados para trás mergulhados no tipo de agonia em que ele se encontrava?

Uma falácia mental para cuidar de um ferimento emocional.

Reajustando a cabeça, voltou a fitar a multidão abaixo...

Pelo vidro, o reflexo de uma imensa figura masculina parada logo atrás fez com que ele se girasse e levasse a mão para a arma que mantinha enfiada na lombar. Mas então reconheceu o indivíduo.

– O que você está fazendo aqui? – exigiu saber.


Dois patinadores suíços, Werner Groebli e Hans Mauch, cujos nomes artísticos eram Frick e Frack, nutriram uma parceria duradoura. Posteriormente, seus nomes se tornaram gíria para designar duas pessoas que trabalham juntas e se dão bem. (N.T.)


CAPÍTULO 6

A campina de 20 mil metros quadrados se elevava de uma estradinha deserta como oriunda do olhar crítico de um artista; todos os aspectos da colina e do vale pareciam sujeitos às regras dos padrões estéticos agradáveis. No alto do suave aclive coberto de neve, como uma coroa no topo da cabeça de um governante benevolente, um imenso bordo estendia seus galhos em uma áurea tão perfeita que mesmo a esterilidade do inverno não conseguia diminuir sua beleza.

Layla se desmaterializou até a base da colina, partindo da mansão, e subiu a pé até a árvore. Os chinelos usados no quarto não eram páreo para o chão congelado, o vento frio atravessava o roupão, e os cabelos se soltavam da trança, flanando ao seu redor.

Quando chegou ao cume, olhou para baixo, para as raízes do tronco glorioso dentro da terra.

Fora ali, pensou ela.

Ali, na base daquele bordo, ela vira Xcor pela primeira vez, convocada por alguém que ela acreditara ser um soldado de valor na guerra, alguém que ela alimentara na clínica da Irmandade... Alguém que a Irmandade deixara de lhe informar que, na verdade, era um inimigo e não amigo.

Quando o macho a chamara para que ela lhe provesse a veia, Layla não pensou em nada além do seu dever sagrado.

Por isso, transportara-se até ali... e perdera um pedaço de si no processo.

Xcor estivera à beira da morte, ferido e enfraquecido, e mesmo assim ela reconhecera sua força, ainda que em estado debilitado. Como poderia não tê-la notado? Era um macho tremendo, grosso no pescoço e no peito, forte nos braços, poderoso no corpo. Ele tentara recusar sua veia porque – ela gosta de acreditar – enxergara-a como uma inocente no conflito entre o Bando de Bastardos e a Irmandade da Adaga Negra, e quisera mantê-la afastada da situação. No fim, contudo, ele cedera, garantindo que ambos seriam a presa de uma ordem biológica que desconhecia a razão.

Ela inspirou fundo, observou a árvore e viu, através dos galhos desnudos, o céu noturno.

Depois que a verdadeira identidade de Xcor veio à tona, ela confessou a Wrath e à Irmandade suas ações, lacrimosamente clamando por perdão. E era um testemunho do rei e dos machos que o serviam o fato de a terem perdoado, e sem castigos, por ter prontamente ajudado o inimigo.

Em troca, era um parco testemunho da sua parte que ela tivesse voltado para junto de Xcor depois disso. Associou-se a ele. Tornou-se emocionalmente envolvida com ele.

Sim, existiu uma coerção inicial da parte dele na época, mas a verdade era que, mesmo que ele não a tivesse forçado? Sua vontade teria sido estar com ele. E o pior? Quando o relacionamento chegou ao fim, fora ele quem interrompera os encontros. Não ela.

Na verdade, ela o estaria vendo agora – e a dor da perda que sentia pela ausência dele era tão incapacitante quanto a culpa.

E isso foi antes ainda de ele ter sido capturado pela Irmandade.

Ela sabia exatamente onde ele havia sido aprisionado porque testemunhara suas condições naquela caverna... Sabia o que os Irmãos planejavam fazer com Xcor assim que ele despertasse.

Se ao menos houvesse um modo de salvá-lo... Ele nunca tinha sido cruel com ela, nunca a tinha ferido... jamais a havia abordado sexualmente, apesar do desejo que o habitava. Ele se manteve paciente e gentil... pelo menos até se afastarem.

Ele, entretanto, havia tentado matar Wrath. E essa traição era passível de punição com a morte...

– Layla?

Girando, ela tropeçou e caiu de lado, quase incapaz de se agarrar ao tronco áspero do bordo. Quando sentiu uma dor na palma, sacudiu-a na tentativa de apaziguá-la.

– Qhuinn! – exclamou.

O pai de seus filhos deu um passo à frente.

– Você se machucou?

Com um xingamento, ela limpou os arranhões, tirando a sujeira. Santa Virgem Escriba, como doía.

– Não, não. Estou bem.

– Pegue. – Ele apanhou algo de dentro do bolso da jaqueta de couro. – Deixe-me ver.

Ela tremia quando Qhuinn avaliou-lhe a mão e depois a envolveu na bandana preta.

– Acho que você vai viver.

Será?, ela pensou. Não tenho tanta certeza.

– Você está congelando.

– Sério?

Qhuinn tirou a jaqueta e a posicionou sobre os ombros dela, e Layla se viu engolfada pelo tamanho e pelo calor.

– Venha, vamos voltar para a mansão. Você está tremendo...

– Não posso mais fazer isso – ela desabafou num rompante. – Não consigo mais.

– Eu sei. – Quando ela se retraiu de surpresa, ele sacudiu a cabeça. – Sei o que há de errado. Vamos pra casa pra conversar. Vai ficar tudo bem, prometo.

Por um momento, ela não conseguiu respirar. Como ele podia ter descoberto? Como podia não estar bravo com ela?

– Como você... – As lágrimas surgiram com rapidez, a emoção se sobrepôs a tudo. – Sinto muito. Eu sinto muito... Não era para ser assim.

Ela não soube se foi ele quem abriu os braços ou se foi ela quem se lhe agarrou ao peito, mas Qhuinn a abraçou com força, protegendo-a do vento.

– Tá tudo bem. – Ele massageava grandes círculos nas costas dela com a palma, acalentando-a. – Só precisamos conversar a respeito. Podemos fazer algumas coisas, tomar algumas providências.

Ela virou o rosto para o lado e fitou a campina.

– Eu me sinto tão mal.

– Por quê? Isso está fora do seu controle. Não pediu por isso.

Ela se afastou.

– Eu juro, não pedi. E não quero que você pense nem por um segundo que eu poria Lyric e Rhampage em perigo...

– Tá de brincadeira? Sério, Layla, você ama aqueles dois com tudo o que tem dentro de si.

– Amo mesmo. Eu te garanto isso. E amo você e Blay, o Rei e a Irmandade. Vocês são a minha família, vocês são tudo o que tenho.

– Layla, preste atenção. Você não está sozinha, entendeu? E como eu já disse, existem coisas que podemos fazer...

– Mesmo? De verdade?

– Sim. Na verdade eu estava falando sobre isso antes de vir para cá. Eu não queria que pensasse que eu a estava traindo...

– Ah! Qhuinn! Eu sou a traidora! Sou eu quem está errada...

– Pare. Você não é. Vamos cuidar disso juntos. Todos nós.

Layla levou as mãos ao rosto, tanto a que estava com o curativo como a que estava descoberta. Então, pela primeira vez desde o que parecia ser uma eternidade, ela exalou o ar, um bálsamo de calma substituindo o terrível fardo que dispunha sobre si.

– Tenho que contar uma coisa. – Levantou o olhar para ele. – Por favor, saiba que tenho me remoído de arrependimento e de tristeza. Juro que nunca tive a intenção de que isso acontecesse. Tenho me sentido tão só, me debatendo com a culpa...

– Culpa é algo desnecessário. – Esfregou os polegares sob os olhos dela. – Você tem que se livrar disso, porque não consegue evitar o modo como se sente.

– Não consigo, de verdade, não consigo mesmo... E Xcor não é mau, não é tão ruim quanto você acha que ele é. Juro. Ele sempre me tratou com cuidado e gentileza, e sei que ele não voltaria a ferir Wrath. Eu sei disso...

– O quê? – Qhuinn franziu o cenho e sacudiu a cabeça. – Do que você está falando?

– Por favor, não o mate. É como você disse, existe um modo de fazer isso dar certo. Talvez vocês possam libertá-lo e...

Qhuinn não recuou; na verdade, ele a empurrou para longe de si. E depois pareceu se debater para encontrar as palavras.

– Layla – ele pronunciou devagar. – Sei que não estou ouvindo direito e estou tentando... Você pode...

Aproveitando-se do momento para expor sua posição, Layla se apressou em falar:

– Ele nunca me machucou. Todas as noites em que o procurei, ele nunca me feriu. Ele providenciou um chalé para que eu ficasse em segurança, e sempre estávamos apenas nós dois. Nunca vi nenhum dos Bastardos...

Ela prosseguiu enquanto a expressão do guerreiro se transformava de confusão para... algo gélido que lhe suscitou as feições de um completo desconhecido.

Quando Qhuinn voltou a falar, a voz saiu inexpressiva.

– Você esteve se encontrando com Xcor?

– Eu me senti muito mal...

– Por quanto tempo? – ele estrepitou. Mas não a deixou responder. – Você foi ao encontro dele enquanto estava grávida dos meus filhos? Você se associou por vontade própria com um inimigo conhecido enquanto os meus benditos filhos estavam no seu ventre? – Antes que ela conseguisse lhe responder, ele levantou o indicador. – E você precisa pensar muito bem na resposta. Não há volta para isto, e é melhor dizer a verdade. Se eu descobrir que mentiu pra mim, vou te matar.

Quando o coração de Layla começou a bater forte no peito, deixando-a tonta, seu único pensamento foi...

Você vai me matar de qualquer maneira.

De volta à shAdoWs, Trez guardou a arma e tentou retornar à realidade.

– E então? – ele inquiriu. – O que está fazendo aqui, ainda mais sem o seu poliéster especial do Tony Manero?

Lassiter, o Anjo Caído, sorriu de um modo que não contemplou seus estranhos olhos coloridos sem pupila; a expressão afetou apenas a parte inferior do rosto.

– Ah, você sabe, ternos de passeio estão ultrapassados para mim.

– Partindo para os anos 1980? Não tenho nada neon pra emprestar pra você.

– Não precisa, tenho outra fantasia para usar.

– Que bom pra você. Assustador pro resto de nós. Só me diz que não vai usar o maiô do Borat.

Quando o anjo não respondeu de pronto, Trez sentiu como se as garras de Fred Krueger estivessem passando pela sua nuca. Normalmente, Lassiter era o tipo de cara tão alegre que a maioria das pessoas não sabia se decidir entre meter uma bala nele para tirar todo mundo de um estado miserável... ou simplesmente apanhar uma lata de Coca-Cola e um saco de pipoca para assistir ao show.

Porque, mesmo quando ele irrita, a situação é sempre muito divertida.

Mas não essa noite. O olhar bizarro estava tão leve e espumoso quanto um bloco de granito, e o imenso corpo dele estava absolutamente imóvel, nenhum item de ouro nos pulsos ou pescoço, nos dedos ou orelhas, reluzia sob a luz baixa.

– Por que está brincando de estátua? – Trez murmurou. – Alguém trocou o lugar da sua coleção do My Little Pony de novo?

Incapaz de suportar o silêncio, Trez foi se sentar atrás da escrivaninha e começou a mexer em uma pilha de papéis.

– Está tentando ler minha aura ou alguma merda do tipo?

Não que para isso fosse necessário algum poder especial. Todos na mansão sabiam em que estado ele estava.

– Quero que vá jantar comigo amanhã à noite.

Trez levantou o olhar.

– Pra quê?

O anjo levou o tempo que quis para responder, seguindo devagar até o painel de vidro para encarar a multidão logo abaixo, no exato lugar em que Trez estava antes. Iluminado pela luz fraca, o perfil do anjo era o tipo de imagem que as fêmeas adorariam, com todas as proporções e os ângulos certos. Mas a cara de preocupação...

– Manda ver – Trez exigiu. – Já recebi uma vida inteira de más notícias. O que quer que seja, nada se compara ao que tenho passado.

Lassiter relanceou e deu de ombros.

– É só um jantar. Amanhã à noite. Sete horas.

– Eu não como.

– Sei disso.

Trez largou a pilha de faturas, de escala dos funcionários ou qualquer outra porra que o vinha mantendo ocupado, ainda que não as estivesse olhando de fato, junto ao amontoado de porcarias sobre a escrivaninha.

– Acho muito difícil acreditar em seu interesse a respeito de nutrição.

– Verdade. Essa coisa de “glúten é o seu inimigo” é uma bobagem sem fim. Nem me fale de Kombuchá, couve, ou qualquer coisa com propriedades antioxidantes, e na mentira de que o xarope de milho com alto teor de frutose é a fonte de todo o mal.

– Ouviu falar que a Kraft Macaroni & Cheese tirou todos os conservantes há meses?

– Pois é, e os filhos da mãe nem avisaram antes...

– Por que quer jantar comigo?

– Só estou sendo amigável.

– Não faz parte do seu estilo.

– Como disse antes, estou mudando algumas coisas. – Eeeee lá veio aquele sorriso de novo. – Pensei em começar com tudo. Quero dizer, se é pra virar a página, melhor começar do jeito que se deseja continuar.

– Sem ofensas, mas não estou a fim de passar tempo com pessoas de quem gosto de verdade. – Tudo bem, aquilo não soou muito bem. – O que quero dizer é que o meu irmão é o único que consigo tolerar agora, e nem ele eu quero ver.

Aquele sorriso de Lassiter era uma visão que Trez estava mais do que disposto a jamais rever – e observe como orações podem ser atendidas: o anjo estava seguindo para a porta.

– Te vejo amanhã.

– Não, obrigado.

– No restaurante do seu irmão.

– Ah, mas que porra, por quê?

– Porque ele serve o melhor macarrão à bolonhesa em Caldie.

– Você sabe o que eu quis dizer.

O anjo se limitou a dar de ombros.

– Vá lá e descubra.

– O inferno que vou! – Trez meneou a cabeça. – Olha só, sei que as pessoas andam preocupadas comigo e agradeço a preocupação. – Na verdade, não agradecia não. Nem um pouco. – Sim, perdi peso, e eu deveria comer mais. Mas é engraçado como, quando se tem o peito escancarado e o coração arrancado pelo destino, se perde o apetite. Por isso, se está querendo companhia só para não parecer que está jogando sozinho, por que não procura alguém que coma de verdade e troque mais de duas palavras com ela? Posso garantir que tanto eu quanto você teremos uma noite mais agradável assim.

– Até amanhã.

Quando o anjo saiu, Trez gritou para a ponta oposta do escritório:

– Vai se foder!

Quando a porta se fechou em silêncio, ele concluiu que, pelo menos, a discussão não continuaria. E quando estivesse comendo a bolonhesa sozinho, Lassiter entenderia que o Sombra não apareceria.

Problema resolvido.


CAPÍTULO 7

Há momentos na vida em que a amplitude da sua atenção se estreita em um foco tão exíguo que toda a sua consciência se concentra nessa única pessoa. Qhuinn não era alheio a esse fenômeno. Ele acontecia toda vez que estava sozinho com Blay. Quando segurava os filhos. Quando lutava contra o inimigo, em busca de garantir que voltaria para casa inteiro, sem ferimentos e concussões.

E estava acontecendo de novo agora.

Parados diante da base da árvore de Harry Potter, no topo de uma colina, com o vento invernal ao redor, Qhuinn estava ciente apenas do olho direito de Layla. Conseguia contar cada nuance verde-clara que irradiava do núcleo preto da íris. Poderia haver uma nuvem de cogumelos resultante de uma explosão nuclear ao longe, uma nave espacial acima da sua cabeça, uma fila de palhaços dançando ao seu lado... e ainda assim ele não teria visto, ouvido, percebido nada além daquilo.

Bem, isso não era inteiramente verdade.

Percebia de leve o rugido em seus ouvidos, um tipo de cruzamento do motor de um jato e dos fogos de artifícios que sibilam como uma banshee, girando em círculos até se exaurir.

– Responda – ele ordenou numa voz que não parecia a sua.

Ele a havia seguido até aquele local isolado quando sentiu sua ausência na mansão – e se deslocou até ali para falar com ela sobre depressão pós-parto. O plano era levá-la de volta para casa, confortá-la diante da lareira, colocá-la num caminho em que ela pudesse apreciar os seres pelos quais tanto se empenhou em trazer ao mundo.

Como diabos acabaram falando de Xcor e de ela ter se encontrado com ele?

Não fazia a mínima ideia.

Mas não havia mais nenhum mal-entendido. E nenhuma retratação a caminho. Ele via no olhar arregalado e no pânico silencioso que, apesar de seu desejo de que aquela fosse uma colossal falha de comunicação de proporções risíveis, não era o caso.

– Eu estava segura – ela sussurrou. – Ele nunca me feriu.

– Mas que porra q...

Ele se deteve nesse aspecto. Iria direto ao ponto, como se faz com o detonador de uma bomba.

Antes que ele fizesse ou dissesse algo de que se arrependeria, afastou-se e flexionou os dedos para que não se cerrassem em punhos.

– Qhuinn, juro que nunca estive em perigo...

– Você ficou sozinha com ele. – Quando Layla não respondeu, ele cerrou os molares. – Não ficou?

– Ele nunca me machucou.

– Ok, isso é o mesmo que dizer que nunca foi picada enquanto usava uma cobra como cachecol. Uma vez depois da outra. Porque essa porra aconteceu com frequência, não foi? Responda!

– Sinto muito, Qhuinn... – Ela parecia querer se recompor, fungando as lágrimas e aprumando os ombros. O modo como os olhos dela suplicavam perdão o levou à beira da violência. – Oh, Santa Virgem Esc...

– Pare com as súplicas! Não há mais ninguém lá em cima! – Ele estava perdendo o controle. Por completo. – E que diabos está fazendo com esse pedido de perdão? Você colocou meus filhos em risco por livre e espontânea vontade só porque queria... – Ele se retraiu. – Jesus Cristo. Você fez sexo com ele? Você trepou com ele com os meus filhos dentro de você?

– Não! Nunca estive com ele dessa forma!

– Mentirosa – ele urrou. – Você é uma vadia mentirosa...

– Sou praticamente virgem! E você sabe disso! Além do mais, você não me quer. Por que se importa?

– Está querendo sugerir que sequer o beijou? – Quando ela não respondeu, ele riu com aspereza. – Nem tente negar. Está escrito na sua cara. E você tem razão, eu não te quis, nunca te quis... E não tente distorcer as coisas. Não estou com ciúmes; estou enojado. Amo um homem de valor e tive que ir para a cama com você porque precisava de uma incubadora pro meu filho e pra minha filha. Por isso e pelo fato de você ter se jogado em cima de mim quando esteve no cio, esses foram os únicos motivos pelos quais estive com você.

O rosto de Layla empalideceu, e por mais que isso o tornasse um cretino, ele gostou. Queria feri-la por dentro, que era onde contava, porque, por mais furioso que estivesse, jamais bateria numa fêmea.

E essa era a razão por ela ainda estar de pé.

Aqueles bebês, aqueles preciosos e inocentes bebês, foram levados até a boca de um monstro, na presença do inimigo, expostos ao perigo que o teria feito se cagar nas calças caso tivesse sabido à época do acontecimento.

– Você faz alguma ideia do que ele é capaz de fazer? – Qhuinn perguntou com seriedade. – As atrocidades que cometeu? Ele esfaqueou o próprio tenente nas entranhas só para mandá-lo para as nossas mãos. E no passado, no Antigo País? Ele assassinou vampiros, humanos, redutores, qualquer um que lhe atravessasse o caminho, às vezes movido pela guerra, outras só por diversão. Ele era a mão direita de Bloodletter. Você consegue imaginar o que ele já fez nesta terra? Quero dizer, você evidentemente não dá a mínima para o fato de ele ter metido uma bala no pescoço de Wrath – está claro que isso não significa nada para você. Aquele bastardo poderia tê-la violentado mil vezes, estripado você e deixado que ardesse sob o sol – com os meus filhos dentro de você! Que tipo de porra de brincadeira você está armando pra cima de mim?!

Quanto mais Qhuinn pensava a respeito dos riscos a que ela se expôs, mais sua cabeça latejava. Seus amados filhos poderiam muito bem não existir por conta das más escolhas da fêmea, que apenas por preceito biológico, fora o abrigo deles até que pudessem respirar sozinhos.

Tinha colocado-os em perigo ao se arriscar – sem nenhum pensamento aparente quanto às consequências ou como ele, o pai biológico, poderia encarar tamanho fiasco.

Sua fúria, nascida do amor que nutria pelos bebês, era indefinível. Inegável. Inesgotável.

– Nós dois os desejamos – ela disse, rouca. – Quando nos deitamos, nós dois os quisemos...

Numa voz impassível, ele a interrompeu:

– Pois é, isso eu lamento. Melhor que eles não tivessem nascido do que ter metade de você neles.

Layla estendeu a mão para mais uma vez se apoiar na árvore – e, como foi a mão que estava envolvida por sua bandana, ele se percebeu sufocado pela necessidade de arrancar o pedaço de pano da mão dela. Para depois queimá-lo.

– Fiz o melhor que pude – ela afirmou.

Ele gargalhou, então, até que a garganta queimasse.

– Está se referindo ao tempo em que dormiu com Xcor? Ou quando pôs em risco a vida dos meus filhos?

De uma vez só, ela retribuiu a raiva dele com um jorro da sua:

– Você tem aquele a quem ama! Deita-se ao lado dele todos os dias! A sua vida tem objetivo e significado, além de servir a outrem – enquanto eu não tenho nada! Passei todas as minhas noites e dias servindo a uma divindade que já não se importa mais com a raça que gerou e agora sou a mahmen de dois bebês a quem amo com todo o meu coração, mas que não são eu. O que tenho para mostrar da minha vida? Nada!

– Nisso você acertou – ele concordou, sério. – Porque não será mais a mãe dos meus filhos. Você perdeu o seu emprego.

Ela se retraiu com indignação.

– O que está dizendo? Sou a mahmen deles. Eu...

– Não é mais.

Houve um instante de silêncio, e depois a voz explodiu para fora dela:

– Você não pode... Não pode tirar Lyric e Rhamp... Não pode afastá-los de mim! Sou a mahmen deles! Tenho meus direitos...

– Não, não tem. Você se associou ao inimigo. Cometeu um ato de traição. E vai ter sorte se sair desta com vida – não que eu me lixe se você viver ou morrer. A única coisa que me importa é que nunca mais veja os bebês...

A mudança no interior dela foi instantânea e arrebatadora.

De uma vez só, Layla passou de irada a absolutamente calada. E a mudança foi tão abrupta que ele teve de ponderar se ela não sofrera uma síncope.

Mas, em seguida, os lábios de Layla se retraíram das presas que desciam. E o som que saiu de dentro dela eriçou os pelos de sua nuca num alerta.

Quando abriu a boca, a voz dela foi letal como as lâminas de uma adaga.

– Não recomendo que tente me impedir de ver meu filho e minha filha.

Qhuinn expôs as próprias presas.

– Espere e verá.

O corpo da Escolhida se curvou e ela se agachou, o sibilo que ela emitiu era de uma víbora. Só que ela não saltou sobre ele para despedaçar seu rosto com as garras.

Layla simplesmente se desmaterializou.

– Ah, inferno! Não! – ele gritou para o cenário invernal frio e alheio a tudo. – Você quer guerra, é o que vai ter, cacete!

– ... vezes em que ainda sinto vontade – Blay dizia ao sorver um gole do seu copo com gelo. – Para os humanos, é um vício letal. Mas vampiros não têm que se preocupar em adquirir câncer por fumar.

A sala de bilhar da Irmandade estava quase deserta, visto que o torneio foi encerrado quando Butch teve de assumir o posto ao lado de Xcor, Tohrment pediu para se retirar, Rhage chegou machucado do campo, e Rehv decidira ficar nos Grandes Campos com Ehlena. Mas tudo bem. Blay ainda conseguira jogar com Vishous, e os dois circundavam a mesa central dentre as cinco, alternando-se nas jogadas. A boa notícia? Lassiter estava em algum outro lugar, o que significava que a TV acima da imensa lareira estava na ESPN, no mudo.

Nada de filmes da Disney com aquelas canções ridículas esta noite.

Se Blay tivesse que ouvir as merdas do Frozen uma vez mais, ele iria “let it goooooo” pra valer.

No sentido de esvaziar uma magazine bem diante do seu próprio lobo frontal.

Do outro lado da mesa, Vishous acendeu outro dos seus cigarros enrolados por ele mesmo.

– Então por que parou de fumar?

Blay deu de ombros.

– Qhuinn odeia cigarros. O pai dele fumava cigarros e cachimbo, então acho que isso o faz se lembrar de coisas das quais prefere esquecer.

– Você não deveria ter que mudar por ninguém.

– Fui eu quem escolheu parar. Ele nunca me pediu.

Enquanto o Irmão se inclinava sobre a mesa para alinhar o taco, Blay relembrou o início de sua história com Qhuinn. Esse papo de fumar começou quando teve de ficar assistindo ao macho que amava foder qualquer coisa que se movesse. Um período horrível. Não, não tinham um relacionamento – e toda vez que Qhuinn saía com alguém, isso servia de lembrete de que jamais estariam em um.

Caramba. Na época, ele sequer havia saído do armário.

O estresse e a tristeza foram difíceis de controlar, mas também houve um ressentimento borbulhante e irracional de sua parte. Por isso abraçara um mecanismo de compensação que Qhuinn não teria aprovado nem gostado. Fora uma desforra subversiva e mesquinha pelos pecados que o macho na verdade não cometera.

Mas, pelo menos, deixar de fumar tinha sido simples. Assim que os dois se entenderam? Ele deixou os maços de Dunhill de lado e nunca mais olhou para trás.

Bem... Talvez seja mais preciso afirmar que nunca escorregou no vício. Às vezes, quando via Vishous acendendo um, e o cheiro do tabaco permeava o ar, ele ansiava fumar um cigarro...

Bem quando V. lançou a bola da vez no meio do arranjo central, um som horrível de batidas resoou no vestíbulo. Alto, repetitivo, forte o bastante para sacudir e fazer tremer a maciça e grossa porta de carvalho da entrada da mansão, de modo que mais parecia que uma horda de redutores estava tentando invadi-la.

Blay sacou a arma que portava na casa enquanto ele e V. largavam os tacos e corriam para fora da sala de bilhar até a entrada principal.

Bam-bam-bam-bam!

– Mas que porra é essa? – V. murmurou ao olhar para o monitor de segurança. – Que diabos há de errado com o seu garoto?

– O quê?

A pergunta foi respondida quando V. soltou a trava e Qhuinn entrou explodindo no vestíbulo. O macho estava furioso a ponto de parecer possuído, o rosto contraído de raiva, o corpo disparado numa corrida, seu estado tal que ele parecia alheio à presença de qualquer um.

– Qhuinn? – Blay tentou segurá-lo pelo ombro ou pelo braço.

Não teve jeito. Qhuinn chegou à escadaria e deu uma de Usain Bolt, os degraus cobertos pelo tapete vermelho foram consumidos por saltos ligeiros.

– Qhuinn! – Blay disparou atrás do que quer que estivesse acontecendo, tentando alcançá-lo. – O que foi?

No alto da escadaria, os coturnos de Qhuinn se enterraram no carpete e por pouco não derraparam ao virar à esquerda no corredor das estátuas. Logo atrás dele, Blay se apressou, e quando a direção que ele tomava ficou clara, um súbito terror se apossou dele.

Layla e as crianças deviam estar em algum perigo...

Na porta do quarto de Layla, Qhuinn agarrou a maçaneta e girou – só para bater de cara na madeira.

Cerrando um punho, ele começou a bater na porta com tanta força que lascas de pintura começaram a cair.

– Abra a porra desta porta! – Qhuinn berrou. – Layla, abra esta maldita porta agora mesmo!

– Mas que diabos você está fazendo?! – Blay tentou impedi-lo. – Ficou louco...

A arma de Qhuinn saiu sabe-se lá de onde, e quando o Irmão a virou e direcionou o cano para o rosto de Blay, ficou claro que se tratava de algum tipo de pesadelo, o resultado inevitável de uma segunda dose de vinho do Porto depois do jantar de carneiro de Fritz.

Só que não.

– Fique fora disso – Qhuinn estrepitou. – Fique fora disso.

Enquanto Blay erguia ambas as mãos e recuava, Qhuinn virou o ombro para a porta e a empurrou com tanta força que a madeira rachou, os painéis se partindo sob a força do golpe.

O que se revelou dentro do quarto cor de lavanda foi igualmente aterrador.

Enquanto Vishous parava de pronto ao lado de Blay e Z. saía da sua suíte ao fim do corredor, o cérebro de Blay para sempre ficaria maculado pela visão incompreensível e inescapável de Layla com cada filho debaixo dos braços, as presas expostas em pose de ataque, o rosto como o de um demônio, o corpo todo trêmulo – mas não de medo.

Ela estava preparada para matar qualquer um que se aproximasse dela.

Qhuinn apontou a arma na direção dela através do buraco criado na porta.

– Solte-os. Ou acabo com você.

– Mas que porra está acontecendo aqui? – A voz de Vishous saiu tão alta quanto se ele tivesse um alto-falante. – Vocês perderam a cabeça, caralho?

Qhuinn enfiou a mão por dentro e soltou a tranca, escancarando o que restava da porta. Quando ele entrou, Blay deteve os demais.

– Não, deixem que eu cuido disso.

Se mais alguém além dele entrasse, balas começariam a pipocar, e Layla iria atacar, e pessoas se feririam – ou pior.

E que porra estava acontecendo ali?

– Solte-os! – Qhuinn ladrou.

– Mate-me, então! – Layla revidou. – Vá em frente!

Blay colocou o corpo entre os dois, o tronco enquanto bloqueio no caminho de qualquer bala. Nesse meio-tempo, Layla respirava ofegante, e Lyric e Rhamp choravam – merda, ele jamais se esqueceria do som daquele choro.

De frente para Qhuinn, ele mostrou as palmas e falou com lentidão:

– Vai ter que atirar em mim primeiro.

Ele não se concentrou em nada além dos olhos azul e verde de Qhuinn... Como se pudesse, de alguma forma, comunicar-se telepaticamente com seu oponente para acalmá-lo.

– Saia da frente – Qhuinn ordenou. – Isto não é da sua conta.

Blay piscou ante tais palavras. Mas, considerando-se que enfrentava o cano de uma 40 mm, deduziu que deixaria o insulto passar por ora.

– Qhuinn, qualquer que seja o problema, conseguiremos lidar com... Aquele olhar despareado se voltou para ele por apenas uma fração de segundo.

– Acha mesmo? Quer dizer que o fato de ela ter se associado com o inimigo pode ser lavado com detergente ou alguma merda do tipo? Maravilha, vamos chamar Fritz pra cuidar disto. Ideia boa do cacete.

Enquanto os bebês continuavam a chorar, e mais pessoas se aproximavam da cena no corredor, Blay balançou a cabeça.

– Do que está falando?

– Ela levou os meus filhos com ela quando foi trepar com ele...

– Não entendi, o quê?

– Ela esteve com Xcor durante todo esse tempo. Ela não parou de se encontrar com ele. Associou-se a um inimigo conhecido do nosso rei enquanto estava grávida dos meus filhos. Por isso, sim, estou no meu direito de pai de puxar o gatilho contra ela.

De repente, Blay tomou ciência de um grunhido crescente atrás dele, e o som terrível o lembrou do que ouvira a respeito de as fêmeas da espécie serem mais letais do que os machos. Relanceando por sobre o ombro, ele pensou que sim, Layla estava evidentemente preparada para proteger os filhos até a morte naquela porra de universo paralelo para o qual foram sugados.

Xcor? Ela andou se encontrando com Xcor?

Só que ele não podia se desviar do perigo imediato.

– Só quero que você abaixe essa arma – Blay disse com calma. – Abaixe a arma e me conte o que está acontecendo. Senão, se quiser atirar nela, a bala vai ter que passar por mim primeiro.

Qhuinn inspirou fundo, como se estivesse se esforçando para não gritar.

– Eu te amo, mas isto não é da sua conta, Blay. Saia do caminho e deixe que eu cuido disto.

– Espere um minuto. Você sempre disse que também sou pai dessas crianças...

– Não quando o assunto é este. Agora saia da minha frente, caralho.

Blay piscou uma vez. Duas. Uma terceira vez. Engraçado, a dor em seu peito o fez refletir se Qhuinn não havia apertado o gatilho, e ele apenas deixou de ouvir o disparo.

Concentre-se, ordenou a si mesmo.

– Não, não vou me mexer.

– Saia da frente! – O corpo de Qhuinn começou a tremer. – Mas que diabos, saia da porra da minha frente!

Agora ou nunca, Blay pensou ao avançar e atacar o pulso que controlava a pistola. Ao golpear o antebraço com toda a força, a arma disparou repetidamente, e os cartuchos das balas saíram voando – mas, com uma rápida mudança de direção, ele conseguiu empurrar Qhuinn para o lado. O casal se estatelou no chão, e Blay se esforçou para dominar seu par, o impulso do movimento afastando-os de Layla e dos pequenos enquanto mantinha a arma apontada para o sentido oposto do quarto.

Blay acabou por cima, mas sabia que Qhuinn lhe tomaria a posição bem rápido. A arma, ele tinha que manter controle da...

De repente, o ar se tornou ártico.

A temperatura do quarto caiu para baixo de zero tão rápido que as paredes, o piso e o teto rangeram em protesto, a respiração dos presentes foi expelida em lufadas, a condensação gelou os vidros das janelas e os espelhos, com arrepios de qualquer pele exposta.

Em seguida, ouviu-se um rugido vigoroso.

O som foi tão intenso que foi quase inaudível – nada além de dor atravessou-lhes o canal auditivo, transformando suas cabeças em sinos de igreja – e isso, ainda mais do que a mudança no clima, deteve todos dentro da suíte, no corredor, na mansão... Talvez em todo o mundo.

O imenso corpo de Wrath apequenou a soleira da porta quando ele entrou no quarto, marcado pelos cabelos até a cintura, óculos escuros, coxas cobertas por couro e tronco avantajado, que teria detido qualquer trem em movimento.

Suas presas estavam totalmente expostas, como os dentes de um tigre-dentes-de-sabre. Mas ele não teve dificuldade alguma de se expressar, mesmo com elas.

– Não na porra da minha casa! – Ele soou tão alto que o quadro ao seu lado vibrou contra a parede de gesso. – Isso não vai acontecer na porra da minha casa! Minha shellan e meu filho estão aqui – existem outras crianças debaixo deste teto. Existem crianças na droga deste quarto!

Do lado oposto, Layla caiu no chão, os ossos absorvendo a queda com um barulho. Apesar do impacto, manteve Lyric e Rhamp em segurança, aninhados no colo, enquanto pendia a cabeça e começava a chorar.

Debaixo de Blay, Qhuinn tentava se soltar.

– Não até você soltar a arma – Blay disse entredentes.

Houve o som de metal se chocando contra a madeira quando a 40 mm foi solta e Blay a empurrou para longe. Em seguida, Qhuinn se desvencilhou e pôs-se de pé sobre os coturnos. Parecia que ele tinha estado num túnel de vento, seus cabelos negros dispostos em uma bagunça completa, os olhos arregalados, a pele corada em determinados pontos, mas pálida em outros.

– Todos para fora – Wrath ordenou. – Exceto pelos três pais.

Bem, pelo menos alguém reconhecia seu papel, Blay ponderou, com amargura.

Direcionando seu olhar para Qhuinn, viu-se encarando, através do caos, o macho que conhecia quase tão bem quanto a si mesmo.

Naquele instante, porém? Blay fitava para um estranho. A droga de um total desconhecido. Os olhos que Blay já havia passado horas perscrutando, os lábios por ele beijados, um corpo que tocou, acariciou, penetrou e pelo qual também foi penetrado... Era como se algum tipo de amnésia tivesse apagado toda a intimidade, metamorfoseando o que um dia fora uma realidade conhecida em uma hipótese tão fraca que parecia inexistente.

Vishous entrou no quarto.

– Primeiro, vistoria de armas.

Quando o lábio superior de Wrath se retorceu, ficou claro que o rei não apreciou a interrupção. Mas não havia como argumentar contra a razão.

V. foi eficiente na revista: primeiro retirou um par de adagas de Qhuinn, depois outra pistola – e, quando Blay se levantou, ergueu-lhe os braços e afastou-lhe as pernas, mesmo ciente de que ninguém estava preocupado que ele puxasse o gatilho.

– Pronto – V. anunciou ao se espremer para passar pelo Rei e voltar para o corredor.

– Diga aos outros que saiam – Wrath estrepitou.

– Certo.

Ante o comando real, a multidão se dispersou da soleira, mas não foi muito longe. Suas presenças pairaram enquanto, evidentemente, aguardavam os acontecimentos seguintes. De um jeito ou de outro, não havia como fechar a porta. Estava totalmente arruinada.

Virando-se na direção de Qhuinn, Wrath maldisse a situação e exigiu:

– Vai me explicar por que diabos disparou uma arma dentro da minha casa?

 

CONTINUA

ANTIGO PAÍS, 1731
As chamas de uma fogueira no chão iluminavam as paredes úmidas da caverna; a superfície áspera, manchada por sombras. Do lado de fora do ventre da terra, os gemidos do vento ecoavam na abertura do abrigo, unindo-se aos gritos da fêmea sobre o catre em que dava à luz.
– Será um menino! – ela arfou em meio às contrações que a assolavam. – Um macho!
Acima daquele pedaço de carne deitado e agonizante, pairando como uma maldição sobre ela, o Irmão da Adaga Negra Hharm pouco se importava com a sua dor.
– Logo saberemos.
– Você me desposará. Foi uma promessa...
As palavras se interromperam e seu rosto se contraiu numa máscara feia enquanto suas partes internas se contorciam para expelir a cria e, ao fazer as vezes de testemunha, Hharm refletia o quanto a aristocrata ficava pouco atraente em trabalho de parto. Não fora assim quando se conheceram e ele a seduzira. Na época, estivera coberta de cetim, muito composta, o receptáculo adequado para o seu legado, com a pele perfumada e os cabelos macios e reluzentes. Agora? Não passava de um animal, suada, pegajosa – e por que a situação se prolongava tanto? Ele estava tão enfastiado com o processo, ofendido por estar cuidando dela. Tratava-se de uma tarefa para as fêmeas, não para um guerreiro de seu escalão.
Todavia, não a desposaria, a menos que precisasse fazê-lo.
Se o bebê fosse o filho pelo qual vinha esperando? Então, sim, ele legitimaria a criança por meio da cerimônia de união e daria à fêmea o status ao qual ela se julgava digna. Caso contrário, ele se afastaria e a fêmea não diria nada, porque estava maculada aos olhos de sua classe, sua pureza perdida como um terreno já arado.
De fato, Hharm já decidira que era hora de se assentar. Depois de séculos de perdições e depravações, a idade começava a pesar. Ele se punha a considerar, pela primeira vez, o legado que deixaria para a posteridade. No momento, não lhe faltavam bastardos, frutos de sua pelve, os quais não conhecia, com quem não se importava e jamais se associaria a eles – e por tanto tempo era de conhecimento geral que ele não devia nada a ninguém.
Agora, porém... Ele se encontrava desejando uma árvore genealógica adequada. E também havia a questão das suas dívidas crescentes, algo que o pai dessa fêmea facilmente resolveria para ele – embora, mais uma vez, caso não fosse um filho varão, ele não a desposaria. Não era louco, não se prostituiria por centavos. Além disso, havia incontáveis fêmeas da glymera que cobiçavam o status inerente à vinculação com um membro da Irmandade da Adaga Negra.
Hharm não se comprometeria até ter um filho homem, a quem criaria desde a primeira noite.
– Oras, recomponha-se! – ele repreendeu-a quando ela gritou uma vez mais, uma ofensa aos seus ouvidos. – Fique calada!
Como em todas as coisas, contudo, ela o desafiou:
– Está chegando...! O seu filho está chegando!
A veste que ela usava foi suspensa até a base dos seios volumosos por mãos retorcidas. A barriga estendida e arredondada era uma visão vergonhosa, as coxas pálidas e finas permaneciam afastadas. O que acontecia no centro era repugnante: o que deveria ser a entrada delicada e adorável a fim de aceitar a excitação masculina vazava todo tipo de fluido e as carnes estavam inchadas e distorcidas.
Não, ele jamais a penetraria novamente. Com ou sem um filho, vinculados ou não, a perversão diante dos seus olhos não era algo de que ele pudesse se esquecer.
Felizmente, casamentos por conveniência eram uma contingência comum na aristocracia – não que ele se importasse caso não o fossem. As necessidades dela eram inconsequentes.
– Ele está chegando! – ela berrou quando a cabeça pendeu para trás e as unhas arranharam a terra debaixo de seu corpo. – Seu filho... ele se aproxima!
Hharm franziu a testa, depois seus olhos se arregalaram e as pernas se firmaram, afastadas. Ela não se equivocava, pois, de fato, algo começava a surgir de dentro dela... Era...
Uma abominação. Algo disforme e terrível...
Um pé.
– Isso é um pé?
– Tire seu filho do meu corpo – ela ordenou entre arquejos. – Puxe-o de dentro de mim e segure-o contra seu coração, reconheça-o como sua carne e seu sangue!
Com todas as armas ainda presas ao corpo, Hharm ajoelhou-se quando o segundo pé apareceu.
– Puxe! Puxe! – O Sangue jorrou e a fêmea berrou de novo quando o bebê não se moveu. – Ajude-me! Ele está asfixiado!
Hharm manteve-se afastado de toda aquela nojeira e imaginou quantas fêmeas inseminadas por ele haviam passado pela mesma situação. Seria sempre desagradável assim ou era ela quem era fraca?
De fato, deveria deixá-la que fizesse o parto sozinha, mas não confiava nela. A única maneira de ter certeza de que seu filho era macho era estar presente durante o nascimento. De outro modo, ele não desconsiderava a possibilidade de ela trocar uma filha indesejada pelo macho tão cobiçado – fruto de outro macho.
Aquela era, afinal, uma transação negociada, e ele sabia muito bem como tais coisas podiam ser manipuladas.
Em seguida, o som que emergiu da garganta da fêmea foi tão volumoso e demorado que interrompeu seus pensamentos. Depois os gemidos e as mãos sujas de terra e sangue dela se postaram no interior das coxas, puxando-as para fora e para cima, ampliando a abertura. E bem quando o Irmão acreditou que ela estivesse morrendo, quando cogitou se acabaria enterrando a ambos – e de pronto decidiu-se contra a proposição, visto que as criaturas da floresta logo consumiriam os restos mortais –, o bebê apareceu um pouco mais, livrando-se de algum obstáculo interno.
E lá estava ele.
Hharm se adiantou.
– Meu filho!
Sem pensar, esticou os braços e apanhou com mãos firmes os tornozelos escorregadios. Estava vivo; a criança chutava com força, debatendo-se contra o confinamento do canal vaginal.
– Venha para mim, meu filho – Hharm ordenou ao puxá-lo.
A fêmea se contorcia em agonia, mas ele não lhe dispensou um pensamento sequer. Mãos – pequeninas e perfeitamente bem formadas – surgiram em seguida, junto à barriga arredondada e o peito, que, mesmo em seu momento recém-nascido, era amplo.
– Um guerreiro! Este é um guerreiro! – O coração de Hharm batia forte, seu triunfo latejava nos ouvidos. – Meu filho levará adiante o meu nome! Será conhecido como Hharm, assim como eu antes dele!
A fêmea ergueu a cabeça, as veias do pescoço saltavam como cordões tensos sob a pele pálida demais.
– Você me desposará – ela disse, rouca. – Jure... Jure pela sua honra, ou eu o segurarei dentro de mim até que fique azul e entre no Fade.
Hharm sorriu com frieza, revelando as presas. Em seguida, desembainhou uma das adagas do peito. Direcionando a ponta para baixo, mirou no baixo ventre dela.
– Eu a estriparei como a um cervo para libertá-lo, nalla.
– E quem alimentará seu precioso filho? O seu sêmen não sobreviverá sem mim.
Hharm pensou na tormenta do lado de fora. Na distância que estavam do assentamento de vampiros mais próximo. E no pouco que sabia sobre as necessidades de um recém-nascido.
– Você me desposará, conforme prometido – ela gemeu. – Jure!
Os olhos dela estavam injetados e ensandecidos, os longos cabelos suados e emaranhados, o corpo era algo sobre o qual ele jamais desejaria se sobrepor. Mas a lógica dela o impedia. Perder o que desejava por conta exatamente do arranjo que estivera disposto a fazer, simplesmente porque ela o apresentava como se fosse uma condição sua, não era uma decisão sábia a se tomar.
– Juro – murmurou.
Com isso, ela voltou a se deitar e, sim, agora ele a ajudaria, puxando no ritmo dos empurrões dela.
– Ele está vindo... ele...
O bebê saiu de dentro dela num jorro, fluidos saindo com ele e, quando Hharm o segurou em suas palmas, sentiu uma alegria inesperada tão ressonante que...
Seus olhos se estreitaram ao pousar as vistas sobre o rosto dele. Acreditando que havia alguma membrana mascarando o bebê, passou uma das mãos pelas suas feições, que eram um misto das dele e da fêmea.
Lamentavelmente... nada mudou.
– Que maldição é esta? – questionou-se consigo mesmo. – Que maldição... é esta!

 

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CAPÍTULO 1


MONTANHAS DE CALDWELL, NOVA YORK, DIAS ATUAIS

A Irmandade da Adaga Negra o mantinha vivo só para poder matá-lo.

Dada a soma das atividades terrenas de Xcor, que foram das mais violentas, e certamente muito depravadas, aquele parecia um fim adequado para ele.

Nascera numa noite de inverno durante uma tempestade histórica. Nas entranhas de uma caverna suja e úmida, enquanto rajadas gélidas assolavam o Antigo País, a fêmea que o carregara gritara e sangrara para dar ao Irmão da Adaga Negra Hharm o filho tão exigido por ele.

Ele fora desesperadamente desejado.

Até chegar ao mundo.

E esse era o início da sua história, que acabara por levá-lo até ali.

Em outra caverna. Em outra noite do mês de dezembro. E assim como na noite do seu nascimento de fato, o vento gemia para recebê-lo, ainda que, dessa vez, fosse para o retorno da sua consciência em vez da expulsão para a vida independente que levou dali adiante.

E como um recém-nascido, tinha pouco controle sobre o corpo. Estava incapacitado, e isso seria verdadeiro mesmo sem as algemas de aço e as barras sobre o peito, o quadril, as coxas. Máquinas, contrastantes com o ambiente rústico que o rodeava, emitiam sinais atrás de sua cabeça, monitorando-lhe a respiração, os batimentos cardíacos, a pressão sanguínea.

Com a mesma fluidez de uma engrenagem sem lubrificação, seu cérebro começou a funcionar adequadamente sob o crânio; quando os pensamentos por fim se aglutinaram e formaram uma sequência lógica, lembrou-se da série de eventos que fizeram com que ele, o líder do Bando de Bastardos, acabasse sob a custódia daqueles que haviam sido seus inimigos: um ataque por trás, uma concussão, uma espécie de derrame ou algo do tipo que fez com que ele acabasse deitado, dependendo de máquinas para sobreviver.

E da inexistente misericórdia dos Irmãos.

Recobrara a consciência uma ou duas vezes durante o período em cativeiro, registrando seus captores e o ambiente daquele corredor cavernoso que inexplicavelmente abrigava jarros de todos os tipos. A retomada da consciência nunca durou muito; entretanto, a conexão com sua área mental era insustentável por um tempo mais demorado.

No entanto, dessa vez parecia diferente. Ele percebia a mudança em sua mente. O que quer que tivesse estado danificado por fim se curara e agora ele retornava do cenário enevoado do ponto de morto-vivo, permanecendo do lado vital.

– ... muito preocupado com Tohr.

O fim da frase enunciada por um macho entrou nos ouvidos de Xcor como uma série de vibrações, cuja tradução sofreu um atraso, e quando as palavras se formaram, ele virou o olhar naquela direção. Duas figuras de preto muito bem armadas estavam de costas para si, e ele voltou a abaixar as pálpebras, pois não desejava revelar a mudança do seu estado. Entretanto, suas identidades estavam devidamente anotadas.

– Não, ele está bem. – O som de algo raspando e o cheiro de tabaco permeando o ar. – E se não estiver, vou estar ao lado dele.

A voz grave que falou primeiro pareceu árida.

– Pra botar nosso irmão na linha à força... Ou ajudá-lo a acabar com este pedaço de carne?

O Irmão Vishous riu como se fosse um assassino em série.

– Que bela consideração você tem por mim.

Era estranho que não se entendessem melhor, Xcor pensou. Esses machos queriam tanto sangue quanto ele.

No entanto, essa aliança jamais existiria. A Irmandade e os Bastardos sempre estiveram em lados opostos durante o reinado de Wrath, esse limite tendo sido estabelecido pela bala que Xcor alojara na garganta do líder por direito da raça vampírica.

E o preço de sua traição seria cobrado ali, em pouco tempo.

Claro, a ironia era que uma força de compensação interceptara seu destino e fizera com que suas ambições e seu foco se afastassem, e muito, do trono. Não que os guerreiros da Irmandade tivessem ciência disso – e pouco se importariam se soubessem. Além de partilharem o apetite pela guerra, ele e os Irmãos tinham outras características em comum: piedade era para os fracos; o perdão, algo patético; pena, um sentimento das fêmeas, nunca de guerreiros.

Embora soubessem que ele já não sentia nenhuma agressividade em relação a Wrath, não o exonerariam daquilo que conquistara com méritos. Por conta de tudo o que acontecera, ele não sentia nem amargura nem raiva em relação ao que o esperava. Aquela era a natureza do conflito.

Contudo, sentia-se triste – um sentimento desconhecido para ele.

Das suas lembranças surgiu uma imagem que lhe roubou o fôlego. Era o de uma fêmea alta e magra nas vestes sagradas das Escolhidas da Virgem Escriba. Os cabelos loiros ondulavam sobre os ombros e desciam até o quadril em uma brisa suave, os olhos eram cor de jade, o sorriso, uma benção que ele não fizera nada para receber.

A Escolhida Layla mudara tudo para ele, transformando a Irmandade de um alvo a algo tolerável, de inimigo a um habitante coexistente naquele mundo.

Em pouco mais de um ano e meio, período no qual Xcor a conhecia, ela tivera um efeito mais impactante sobre sua alma negra do que qualquer outra pessoa antes dela, fazendo com que evoluísse muito em tempo ínfimo – algo que ele jamais imaginara ser possível.

O Dhestroyer, camarada de Vishous, voltou a falar:

– Na verdade, concordo plenamente com Tohr sobre fazer picadinho do filho da puta. Ele conquistou esse direito.

O Irmão Vishous praguejou.

– Todos nós merecemos. Vai ser difícil deixar uma parte dele intacta quando isso acontecer.

E ali estava o enigma, Xcor ponderou por trás das pálpebras abaixadas. A única saída possível de tamanho cenário mortal seria revelar o amor que sentia por uma fêmea que não era sua, nunca fora e jamais poderia ser.

Mas não sacrificaria a Escolhida Layla por ninguém, por nada.

Nem mesmo para se salvar.

Enquanto Tohr caminhava na floresta de pinheiros da montanha da Irmandade, seus coturnos esmagavam o terreno congelado, e o vento glacial o golpeava no rosto. Em seu rastro, tão próximo de seus calcanhares quanto uma sombra, ele sentia suas perdas a acompanhá-lo, numa fila de lamentos tangíveis como uma corrente.

A sensação de estar sendo perseguido pelos seus mortos o fez refletir a respeito de programas de TV sobre eventos paranormais, do tipo que tentava provar a existência de fantasmas. Que monte de bobagens. A histeria humana acerca das supostas entidades obscuras flanando em escadas e provocando rangidos em casas antigas, com seus passos sem corpos, era algo muito característico dessa espécie desimportante absorta em si mesma e criadora de dramalhões. Mais uma coisa que Tohr odiava a respeito deles.

E, como de costume, eles não acertavam no alvo.

Os mortos absolutamente nos atormentam, percorrendo seus dedos gélidos em nossa nuca como uma forma de lembrete até não conseguirmos decidir se queremos gritar pelas saudades que sentimos deles... ou porque queremos ser deixados em paz.

Eles espreitam suas noites e rondam seus dias, deixando um campo minado de tristeza ao longo dos caminhos.

São seus primeiros e seus últimos pensamentos, o filtro que você tenta deixar de lado, a barreira invisível entre você e todo o resto.

Algumas vezes, são mais parte de você do que as pessoas que você consegue de fato segurar e tocar.

Portanto, sim, ninguém precisa de um programa de TV idiota para provar o que já é de conhecimento comum: mesmo que Tohr tenha encontrado o amor com outra fêmea, sua primeira shellan, Wellsie, e o filho não nascido que ela carregava no ventre quando foi assassinada pela Sociedade Redutora, nunca foram afastados dele além da própria pele.

E agora houvera mais uma morte na mansão da Irmandade.

A companheira de Trez, Selena, subira para o Fade havia poucos meses, tendo falecido em razão de uma doença para a qual não existia cura, nenhum alívio, nenhum conhecimento.

Tohr não dormia direito desde então.

Voltando a se concentrar nas árvores que o cercavam, Tohr se abaixou e afastou um galho do caminho, depois deu a volta num tronco caído. Poderia ter se materializado até o destino, mas seu cérebro latejava com tanta violência da prisão do crânio que ele duvidava que conseguiria se concentrar o bastante para se dissipar.

A morte de Selena fora um maldito gatilho para ele, um evento que afetava outra pessoa, mas que, não obstante, sacudira seu globo de neve, balançando-o com tanta força que seus flocos internos ainda rodopiavam e se recusavam a se assentar.

Estava no centro de treinamento quando ela fora chamada para o Fade, e o momento da morte não fora silencioso. Fora marcado pelo som da alma dilacerada de Trez, o equivalente auditivo de uma tumba – um som que Tohr conhecia bem demais. Fizera o mesmo quando recebera a notícia da morte de sua fêmea.

Portanto, sim, nas asas da agonia do seu amor, Selena fora alçada da terra para o Fade...

Arrancar-se desse espiral cognitivo era o mesmo que tentar tirar um carro de um atoleiro, o esforço necessário era tremendo, o progresso conquistado centímetro a centímetro.

No entanto, lá ia ele pela floresta, na noite invernal, esmagando o que aparecia sob suas solas, com seus fantasmas sussurrando-lhe por trás.

A Tumba era o sanctum sanctorum da Irmandade da Adaga Negra, aquele local secreto onde as induções aconteciam e convocavam-se as reuniões secretas, e onde eram mantidos os jarros dos redutores assassinados. Estava localizada abaixo do solo, num labirinto criado pela natureza, tradicionalmente fora dos limites para qualquer um que não tivesse passado pela cerimônia que o marcasse como membro da Irmandade.

Essa regra, no entanto, tivera que ser contornada, pelo menos em respeito ao longo corredor de entrada de quase meio quilômetro.

Ao se aproximar do insuspeito sistema da entrada, parou e sentiu a raiva surgir.

Pela primeira vez desde que se tornara um Irmão, não era bem recebido ali.

Tudo por causa de um traidor.

O corpo de Xcor estava do lado oposto dos portões, na metade do caminho repleto de prateleiras, deitado numa maca, a vida monitorada e mantida por equipamentos.

Até que o maldito despertasse e pudesse ser interrogado, Tohr não tinha permissão para entrar.

E seus irmãos tinham razão em não confiar nele.

Ao fechar os olhos, viu seu rei com um tiro na garganta. Reviveu o momento em que a vida de Wrath estivera escorrendo junto ao sangue rubro; rememorou a cena em que tivera que salvar o último vampiro de sangue puro no planeta ao cortar um buraco na frente da garganta dele e enfiar o tubo de sua Camelback naquele esôfago.

Xcor encomendara o assassinato. Xcor ordenara um dos seus guerreiros mandar uma bala para dentro das carnes de um macho de valor, conspirara com a glymera para derrubar o governante por direito, mas o filho da puta fracassara. Wrath sobrevivera, apesar das probabilidades contrárias,, e na primeira eleição democrática da história da raça, fora apontado como líder de todos os vampiros – uma posição que ele agora detinha por consenso em vez de pela sua linhagem.

Portanto, vá se foder, filho da puta.

Cerrando os punhos, Tohr ignorou o ranger das luvas de couro e a constrição no dorso dos nós dos dedos. Só o que reconhecia era o ódio, tão profundo como uma doença letal.

O destino decidira que era certo tirar-lhe três seus e dos seus; o destino tirara dele sua shellan, seu filho, e o amor da vida de Trez. Querem falar sobre equilíbrio no Universo? Tudo bem. Ele queria o seu equilíbrio, e isso só aconteceria quando quebrasse o pescoço de Xcor e arrancasse o coração ainda quente do peito do maldito.

Já era hora de uma fonte do mal ser tirada de circulação, e era ele quem empataria o placar.

E a espera finalmente terminava. Por mais que respeitasse seus irmãos, estava farto de aguardar. Essa noite era um aniversário triste para ele, e ele daria ao seu luto um presentinho especial.

Era hora de festejar.


CAPÍTULO 2

O copo de cristal baixo estava tão limpo, tão isento de marcas de sabão, de poeira, de qualquer grânulo que o manchasse, que sua estrutura era como o ar; e a água dentro dele, totalmente invisível.

Meio cheio, a Escolhida Layla ponderou. Ou meio vazio?

Sentada no banquinho acolchoado, entre as duas pias com torneiras douradas e diante de um espelho com adornos de ouro que refletia a banheira funda atrás de si, ela observava a superfície do líquido.

O fundo era côncavo e a água lambia levemente o interior do copo, como se suas moléculas mais ambiciosas tentassem fugir do confinamento.

Respeitava o esforço, enquanto lamentava sua futilidade. Sabia muito bem o que era querer ser livre do local que a abrigava, apesar de não ser culpa sua.

Por séculos, ela fora a água daquele copo, despejada sem ter querido, em virtude apenas do seu nascimento, num papel de servidão junto à Virgem Escriba. Ao lado de suas irmãs, executara os deveres sagrados das Escolhidas no Santuário, adorando a mãe da raça, registrando os eventos da Terra para a posteridade dos vampiros, aguardando a escolha de um novo Primale para que ela pudesse engravidar e dar à luz mais Escolhidas e mais Irmãos.

Mas tudo isso já era passado.

Inclinando-se sobre o copo, observou mais atentamente a água. Fora treinada como ehros, não como escriba, mas sabia muito bem como enxergar além das águas que eram testemunhas da história. Dentro do Templo das Escribas, as Escolhidas designadas a registrar as histórias e as linhagens da raça permaneceram sentadas por horas e horas, observando nascimentos e mortes, suas mãos delicadas com penas sagradas colocando os detalhes nos pergaminhos, acompanhando tudo.

Não havia nada para ela ver. Não ali na Terra.

E também já não existiam testemunhas no alto.

Um novo Primale acabara surgindo. Mas em vez de se deitar com seu rebanho de fêmeas, dando continuidade ao programa de criação da Virgem Escriba, ele dera um passo sem precedentes, libertando todas elas. O Irmão da Adaga Negra Phury se desviara do modelo, quebrara a tradição, desfizera-se das amarras e, ao fazê-lo, as Escolhidas que estiveram isoladas desde sua gênese, visando aos nascimentos planejados, acolheram sua libertação. Já não eram representantes vivas de uma tradição rígida; tornaram-se indivíduos, com seus próprios descontentamentos e preferências, mergulhando os dedos nas águas terrenas da realidade, procurando e encontrando destinos a respeito de si próprias, e não mais de um serviço.

Ao fazer isso, ele desencadeara o fim dos imortais.

A Virgem Escriba já não existia mais.

Seu filho de nascimento, o Irmão da Adaga Negra Vishous, a procurara no Santuário acima e descobriu que ela se fora, deixando uma última carta escrita no vento apenas para os olhos dele.

Ela dissera que tinha um sucessor em mente.

Ninguém sabia sua identidade.

Recostando-se, Layla olhou para a veste que trajava. Não era do tipo sagrado que se vestira durante tantos anos. Não, essa peça vinha de um lugar chamado Pottery Barn, e Qhuinn a comprara para ela na semana passada. Com a aproximação do inverno, ele se preocupava que a mãe de seus filhos estivesse aquecida, sempre bem cuidada.

A mão de Layla subiu para o ventre, agora baixo. Depois de ter carregado a filha, Lyric, e o filho, Rhampage, dentro do corpo por tantos meses, era tão estranho quanto familiar não ter nada no útero...

Vozes murmuradas, baixas e graves, penetraram a porta que ela havia fechado.

Entrara no banheiro para usar o vaso.

Demorara-se depois de ter lavado as mãos.

Qhuinn e Blay, como de costume, estavam com os bebês. Segurando-os. Ninando-os.

Todas as noites, ela tinha que se esforçar para testemunhar o amor, não entre eles e os pequenos... mas aquele entre os dois machos. De fato, os pais exibiam um vínculo ressonante e, resplandecente um com o outro, e por mais que fosse algo belo, aquele fulgor fazia com que se sentisse ainda mais vazia em sua existência.

Enxugando uma lágrima, disse a si mesma para se controlar. Não poderia voltar ao quarto com olhos brilhantes demais, e o nariz e faces corados. Aquele deveria ser um momento de alegria para os cinco integrantes da família. Agora que os gêmeos haviam superado o estado de emergência sob o qual tinham nascido, e Layla também se recuperara, todos estavam aliviados por todos estarem sãos e salvos.

Agora era a vida feliz que ganharam para viver.

Em vez disso, ela ainda era a água triste dentro do copo, desejando sair.

Dessa vez, porém, a prisão foi feita por ela mesma, em vez de providenciada pela genética.

A definição de infidelidade, pelo menos de acordo com o dicionário, era: a ação de trair algo ou alguém...

A batida à porta fechada foi suave.

– Layla?

Ela fungou e abriu uma das torneiras.

– Oi!

A voz de Blay soou baixa, como era seu hábito.

– Você está bem aí?

– Ah, sim, estou. Resolvi tratar um pouco do rosto. Sairei daqui a pouco.

Ela se levantou, inclinou-se e molhou o rosto. Depois esfregou a testa e o queixo com a toalha de mão para que o rubor se espalhasse mais uniformemente sobre a pele. Apertando o cinto do roupão, aprumou os ombros e foi para a porta, em meio a preces para manter a compostura pelo tempo necessário até conseguir apressá-los para a Última Refeição.

Mas teve um momento de folga.

Ao abrir a porta, Blay e Qhuinn sequer olhavam na sua direção. Estavam inclinados sobre o berço de Lyric.

– ... os olhos de Layla – Blay disse ao abaixar a mão e deixar que a pequena agarrasse seu dedo. – Definitivamente.

– Ela também tem os cabelos da mahmen. Veja o tom loiro começando a aparecer.

O amor deles pela pequena era incandescente, reluzia em seus rostos, aquecia suas vozes e, aplacava seus movimentos, de modo que tudo o que faziam era com cuidado. No entanto, não era nisso que Layla se concentrava.

Seu olhar estava fixo na palma larga de Qhuinn, que afagava as costas de Blay. A carícia de conexão era inconsciente de ambos os lados; a oferta e a aceitação eram tanto nada e tudo o que importava, simultaneamente. E enquanto testemunhava o que se passava do outro lado do quarto, Layla teve que piscar rápido de novo.

Às vezes, a gentileza e o amor podiam ser tão difíceis de testemunhar quanto a violência. Às vezes, quando se está do lado de fora, ver duas pessoas tão em sintonia era uma cena saída de um filme de terror, o tipo de coisa da qual você quer se manter afastado, quer esquecer, banir da memória – ainda mais quando se está prestes a deitar e enfrentar sozinha um longo dia de horas no escuro.

Saber que ela jamais teria esse amor especial com alguém era...

Qhuinn relanceou na sua direção.

– Ah, oi.

Ele se endireitou e sorriu, mas ela não se deixou enganar. Os olhos dele a percorriam como se em uma avaliação – mas, talvez, esse não fosse o caso. Talvez fosse simplesmente a sua paranoia se manifestando.

Estava tão farta de se dividir em uma vida dupla. Contudo, no tipo de ironia cruel que parecia ser a fonte favorita de divertimento do destino, o preço para aliviar a consciência viria à custa de sua própria existência.

A como poderia deixar os filhos para trás?

– ... ok? Layla?

Enquanto Qhuinn franzia a testa ao observá-la, ela balançou a cabeça e forçou um sorriso.

– Ah, tudo bem, mesmo. – Ela deduzia que a pergunta se referisse ao seu bem-estar. – Muito bem mesmo.

Em busca de confirmar a mentira, aproximou-se dos berços. Rhampage, ou Rhamp, como era conhecido, lutava contra o sono, e quando a irmã arrulhou, sua cabeça se virou e ele esticou a mão.

Engraçado. Mesmo tão jovem, ele parecia reconhecer seu posto e desejava protegê-la.

Era genético. Qhuinn era um membro da aristocracia, resultado de gerações de emparelhamentos escolhidos a dedo, e por mais que seu “defeito” de ter um olho azul e outro verde o tivesse feito receber o desprezo tanto da glymera quanto da própria família, a venerável natureza de sua linhagem não podia ser negada. Tampouco o impacto de sua presença física. Com quase dois metros de altura e corpo talhado por músculos definidos, moldados tanto pelos exercícios quanto pela prática na guerra – uma arma tão letal quanto as pistolas e adagas que levava consigo para o campo de batalha. Era o primeiro membro da Irmandade da Adaga Negra a ser induzido com base na meritocracia em vez de na linhagem, e não desapontara a grande tradição. Ele nunca desapontava ninguém.

De fato, Qhuinn era, no conjunto, um belo macho, ainda que de forma um tanto rústica. O rosto era angular, pois tinha pouca gordura corporal, e aqueles olhos despareados fitavam por baixo de sobrancelhas negras. Os cabelos pretos foram cortados muito curtos recentemente, quase totalmente raspados na base. Deixavam um topete para trás e, como resultado, seu pescoço parecia extra-grosso. Com piercings metálicos nas orelhas e a lágrima de ashtrux nohtrum abaixo do olho – uma marca dos tempos em que servira como protetor de John Matthew –, ele chamava a atenção por onde quer que passasse.

Talvez porque as pessoas, tanto humanos como vampiros, preocupavam-se com o que ele seria capaz de fazer caso fosse contrariado.

Blay, por sua vez, era o oposto: tão acessível quanto Qhuinn seria evitado num beco escuro.

Blaylock, filho de Rocke, tinha cabelos ruivos e um tom de pele mais claro do que a maioria da espécie. Era tão grande quanto Qhuinn, mas quando se está ao seu lado, a primeira impressão que se tem dele faz referência à sua inteligência e ao seu bom coração, em vez de a força bruta. Ainda assim, ninguém discutia suas habilidades em campo. Layla ouvira histórias, ainda que nunca da parte dele, visto que não era de se vangloriar, criar dramas excessivos ou atrair atenções para si.

Ela amava os dois de todo o coração.

E o distanciamento que sentia em relação a eles partia somente do seu lado.

– Olha só – Qhuinn disse ao apontar para os bebês. – Temos dois se apagando... Melhor, um e meio.

Quando ele sorriu, ela não se deixou enganar. Seus olhos continuavam a passear pelo seu rosto, à procura sobre sinais de exatamente aquilo que ela tentava esconder. Para dificultar o escrutínio dele, ela recuou.

– Eles dormem bem, graças à Virgem Escriba... Hum, graças ao Fade.

– Você vai descer para a Última Refeição hoje? – ele perguntou como quem não quer nada.

Blay se endireitou.

– Fritz disse que prepara o que você quiser.

– Ele é sempre tão gentil. – Ela foi até a cama e se deitou contra os travesseiros. – Na verdade, senti uma fominha lá pelas duas da manhã, por isso fui até a cozinha e comi torradas e aveia. Tomei café. Suco de laranja. Um café da manhã no lugar do almoço, por assim dizer. Sabem como é, às vezes sentimos vontade de voltar o relógio no meio da noite e recomeçar da metade.

Uma pena que isso não passasse de uma metáfora.

Ainda que... será que ela teria escolhido nunca conhecer Xcor?

Sim, pensou. Preferiria nunca ter sabido da sua existência.

O amor de sua vida, seu “Blay”, o par do seu coração e da sua alma... era um traidor. E seus sentimentos pelo macho foram uma ferida aberta na qual a bactéria da traição entrara e se espalhara.

Portanto, ali estava ela, na prisão estabelecida por ela própria, torturada pelo fato de ter se aproximado do inimigo, primeiro por ter sido ludibriada... e mais tarde porque quis estar na presença de Xcor.

Separaram-se em maus termos, contudo, com ele colocando um fim nos encontros clandestinos após ela forçá-lo a admitir seus sentimentos. Em seguida, a situação se transformara de triste para trágica, quando ele foi capturado e levado sob a custódia da Irmandade.

A princípio não conseguira obter informações acerca de seu estado. Mas então, viajara ao modo de uma Escolhida até ele e, testemunhara seu estado moribundo num corredor de pedras, repleto de jarros de todas as cores e formas.

Não havia nada que pudesse ter feito por ele. Não sem se apresentar e se expor – e mesmo que ela o fizesse, não poderia salvá-lo.

Por isso estava presa ali: um fantasma atormentado num misto de emoções salpicadas pelo veneno da culpa e do arrependimento, sem nunca, jamais, poder se libertar.

– ... certo? Quero dizer... – Enquanto Blay continuava a falar com ela a respeito de uma e outra coisa, a Escolhida se forçou a não esfregar os olhos. – ... no fim da noite, enquanto você fica aqui com os bebês. Não que você não goste de ficar com eles.

Saiam, ela solicitou mentalmente para os dois machos. Por favor, vão embora e me deixem em paz.

Não era como se ela quisesse afastá-los das crianças, ou que sentisse alguma malquerença pelos pais de Lyric e Rhamp. Ela só precisava respirar. E toda vez que um dos guerreiros a fitava, como faziam agora, respirar se tornava praticamente impossível.

– Você concorda? – Qhuinn perguntou. – Layla?

– Ah, sim, claro. – Ela não fazia ideia do que acabara de concordar, mas certificou-se de sorrir. – Só vou descansar agora. Eles ficaram bastante tempo acordados durante o dia.

– Eu gostaria que nos deixasse ajudar mais. – Blay franziu a testa. – Estamos aqui do lado.

– Vocês dois lutam na maioria das noites. Precisam dormir.

– Mas você também é importante.

Layla direcionou o olhar rumo aos os berços e, ao rememorar a cena de si mesma acalentando-os e amamentando-os, sentiu-se ainda pior. Mereciam uma mahmen melhor do que ela, descomplicada e sem o fardo de decisões que nunca deveriam ter sido tomadas, uma que não estivesse contaminada pela fraqueza em relação a um macho de quem jamais deveria ter se aproximado... muito menos amado.

– Não tenho a mínima importância em comparação a eles – sussurrou rigidamente. – Eles são tudo.

Blay se aproximou e a tomou pela mão, os olhos azuis calorosos.

– Não, você também é muito importante. E mahmens precisam de tempo para si.

Para fazer o quê? Ruminar meus remorsos? Não, muito obrigada, pensou.

– Vou para o túmulo sem eles e aí apreciarei minha própria companhia. – Ao perceber o quanto tinha soado mórbida, apressou-se: – Além disso, eles crescem rápido. Vai acontecer antes de nós três nos darmos conta.

Conversaram mais depois – não que ela tivesse prestado atenção, com todos os gritos em sua mente. Mas, por fim, foi deixada em paz quando o casal partiu.

O fato de ficar tão feliz ao vê-los sair foi mais uma tristeza que ela tinha a carregar.

Mudando de posição na cama, levantou-se e se aproximou dos berços com os olhos rasos de lágrimas. Enxugando o rosto, repetidas vezes, ela pegou um lenço de papel do bolso do roupão e assoou o nariz. Os bebês estavam profundamente adormecidos, com os olhos fechados, os rostos voltados um para o outro como se estivessem se interligado em uma comunicação telepática durante o sono. Mãozinhas perfeitas e pezinhos preciosos, barriguinhas redondas e saudáveis envolvidas em cobertorzinhos de flanela. Eram bebês tão bons; alegres quando acordados, pacíficos e angelicais adormecidos. Rhampage ganhava peso com mais velocidade do que Lyric, mas ela parecia mais saudável do que ele, reclamava menos ao ser lavada ou trocada, fitando tudo com mais atenção.

Quando as lágrimas caíram do rosto de Layla até o carpete, ela não sabia quanto tempo mais suportaria.

Antes de tomar ciência do movimento, foi até o telefone interno da casa e apertou uma sequência de quatro números.

A doggen que convocou chegou em questão de momentos, e Layla voltou a vestir sua máscara social, sorrindo para a criada com uma serenidade que não sentia.

– Grata por cuidar dos meus preciosos – disse no Antigo Idioma.

A babá respondeu com alegria e olhos cintilantes, e Layla só aguentou dois ou três segundos de comunicação. Em seguida, saiu do quarto e, com passos ligeiros protegidos por chinelos, desceu pelo corredor das estátuas. Quando chegou às portas da extremidade oposta, empurrou uma delas e entrou na ala dos empregados.

Como em todas as mansões daquele tamanho e distinção, o lar da Irmandade necessitava de um tremendo apoio de funcionários, e os aposentos dos doggens perfilavam o corredor; a segregação por idade, sexo e posição nos escalões formava comunidades dentro do grande conjunto. Em meio ao labirinto de corredores, Layla não escolheu uma direção específica além do objetivo de encontrar um quarto vazio – e encontrou-o umas três portas adiante, depois de uma virada. Ao entrar no espaço simples e desocupado, foi até a janela, abriu-a e fechou os olhos. Seu coração batia forte e uma ligeira tontura a dominava, mas ela inspirou fundo o ar fresco e limpo...

... e se desmaterializou através da abertura que criara, misturando-se à noite; as moléculas se espalhando e se afastando da mansão da Irmandade.

Como sempre, sua liberdade seria temporária.

Mas, desesperada como estava, foi tomada por um breve sufocamento, e ela partiu em busca de oxigênio.


CAPÍTULO 3

Qhuinn era um macho muito macho. E não só porque era um guerreiro casado com outro cara.

Sim, claro que, antes de se assentar com Blay, até que gostara de transar com fêmeas e mulheres. Mas, pensando bem, seu padrão para parceiros sexuais fora tão baixo que até aspiradores de pós e canos de escapamento tinham sido candidatos ocasionais.

Mas nada de ovelhas. #critério

No entanto, não poderia dizer que as fêmeas o tivessem cativado ou interessado de fato. Não que houvesse algo de errado com elas, ou que não as respeitasse assim como todo o resto. Elas simplesmente não eram do seu gosto.

Numa noite como a de hoje, porém, ele lamentava sua inexperiência. Só porque ralara e rolara com o sexo oposto não significava que estivesse equipado de algum modo para lidar com o que o confrontava agora.

Quando ele e Blay chegaram ao pé da escadaria principal, ele parou e olhou para seu par. Ao fundo, vindo da sala de bilhar do lado oposto do átrio, o som das vozes graves dos machos, de música e de gelo batendo em copos de cristal anunciavam que o torneio de bilhar da Irmandade já estava em curso.

Qhuinn sorriu de uma maneira que esperava transmitir calma.

– Ei, eu já te encontro lá, ok? Tenho que descer pra falar com a doutora Jane sobre o meu ombro, acho que demoro uns dez minutos... Não mais do que isso.

– Claro. Quer que eu vá com você?

Por um segundo, Qhuinn se perdeu ao observar seu macho. Blaylock, filho de Rocke, era tudo o que ele não era: impecável como um corpo esculpido por Michelangelo, tinha um rosto de arrasar e uma cabeleira ruiva e lustrosa como a cauda de um pônei; era inteligente, mas também equilibrado, o que fazia toda a diferença; era firme e confiável como uma montanha de granito, o tipo de cara que nunca vacilava.

Em tudo o que importava, comparado a Blay, Qhuinn era uma banheira de plástico perto de uma de porcelana; um conjunto incompleto de pratos ao lado de uma dúzia perfeita de louças; uma coisa rachada no meio de algo inquebrável.

Por algum motivo, porém, Blay o escolhera. Contra todas as possibilidades, o filho imperfeito e desonrado de uma das Famílias Fundadoras, o viciado sexual de olhos despareados, o vagabundo hostil e arredio... De algum modo acabara com o Príncipe Encantado, e caralho, se isso não o convertia.

Blay era o motivo que o fazia respirar, o lar que nunca tivera, a luz do sol que empoderava sua terra.

– Qhuinn? – Os olhos azuis iridescentes se apertaram. – Você está bem?

– Desculpe. – Ele se inclinou e pressionou os lábios na jugular do macho. – Eu me distraí. Mas você sempre tem esse efeito em mim, não é?

Quando Qhuinn se afastou, Blay estava corado – e excitado. Aquela fragrância era uma digressão que não podia ser facilmente ignorada.

A não ser pelo fato de que tinha um problema real para resolver.

– Diga aos irmãos que não demoro. – Qhuinn apontou na direção da sala de bilhar. – E que vou dar uma surra neles.

– Você sempre faz isso. Mesmo com Butch.

As palavras foram suaves, mas respaldadas por uma adoração que fazia com que Qhuinn contasse cada uma das suas bênçãos.

Cedendo ao instinto, Qhuinn se aproximou e sussurrou ao ouvido do cara:

– Talvez queira se alimentar bem na Última Refeição. Vou te manter ocupado o dia inteiro.

Com uma lambida no pescoço em que pretendia trabalhar mais tarde, Qhuinn se afastou antes que não pudesse mais se distanciar de seu par.

Seguindo ao redor da base da escada, passou por uma porta escondida e desceu pelo sistema de túneis que conectava os componentes da propriedade. O centro de treinamento subterrâneo da Irmandade ficava cerca de meio quilômetro afastado da mansão, e aquela passagem subterrânea ligando as duas partes era um espaço amplo iluminado por painéis de luzes fluorescentes afixados ao teto.

Enquanto ele avançava, o som dos seus passos ecoava ao redor, como se os coturnos aplaudissem a iniciativa.

Contudo, Qhuinn não sabia se eles estavam certos. Não fazia a mínima ideia do que estava fazendo ali.

A porta atrás do armário de suprimentos se abriu sem emitir nenhum som, uma vez inserida a senha; em seguida, o guerreiro passava ao longo de prateleiras repletas de papéis para impressora, canetas, blocos de anotação e outras merdas vindas da loja de materiais para escritório. A sala, além do depósito, apresentava a típica disposição de mesa, cadeira, computador e arquivos metálicos, e nenhuma dessas coisas foi particularmente percebida quando ele passou pela porta de vidro adiante para chegar ao corredor da frente. Com passadas longas e impacientes, atravessou todos os tipos de instalações de nível profissional – desde uma academia completa e sala de pesos à altura de Dwayne Johnson, até os vestiários e as primeiras salas de aula.

A porção destinada à clínica do centro de treinamento tinha outra quantidade de cômodos voltados ao tratamento, uma sala de operações e diversos leitos hospitalares. A doutora Jane, companheira de V., e o doutor Manello, companheiro de Payne, cuidavam de todo tipo de ferimentos obtidos em combate, além de problemas domésticos e sem falar dos partos de L.W., Nalla e dos gêmeos Lyric e Rhampage.

Qhuinn bateu na primeira porta ao se aproximar e não teve que esperar nem uma batida do seu coração para ter uma resposta.

– Entre! – a doutora Jane disse do lado oposto da porta.

A boa médica vestia roupas cirúrgicas e um par de Crocs. Sentada diante do computador na outra extremidade da bem equipada clínica, seus dedos voavam sobre o teclado enquanto ela atualizava o prontuário de alguém cabisbaixa; seus cabelos loiros curtos espetados como se ela tivesse passado a mão por eles durante horas.

– Um segundinho... – Ela apertou a tecla de “enter” e girou. – Ah, olá, papai. Como está?

– Ah, você sabe, imerso no amor.

– Aqueles seus bebês são maravilhosos. E olha que eu nem gosto de crianças.

O sorriso dela era acolhedor como uma torta de maçãs. Os olhos verde-montanha, por outro lado, eram afiados como raios laser.

– Graças a você, eles estão se saindo muito bem.

Houve uma deixa para o silêncio. Quando a conversa não evoluiu, ele se pôs a caminhar pela clínica, pois não conseguia ficar parado. Deu uma espiada nos equipamentos estéreis e imaculados sobre os gabinetes de aço inoxidável, inspecionou a maca vazia sob as luzes usadas nas operações, ajeitando as calças.

A médica apenas ficou sentada no seu banquinho, calma e silenciosa, deixando que ele se debatesse com a sua mente. Quando o celular dela tocou, Jane deixou que caísse na caixa de mensagens sem nem ver quem poderia ser.

– Provavelmente estou errado – ele acabou concluindo. – Que porra sei eu, afinal?

A doutora Jane sorriu.

– Na verdade eu te acho um cara bem inteligente.

– Não sobre este tipo de coisa. – Com um pigarro, Qhuinn propôs a si mesmo que prosseguisse; ainda que a doutora Jane não parecesse estar com pressa, ele estava entediando a si mesmo. – Olha só... eu amo a Layla.

– Claro que sim.

– E quero o melhor pra ela. Ela é a mãe dos meus filhos. Quero dizer, além de Blay, ela é a minha companheira por causa das crianças.

– Com certeza.

Cruzando os braços diante do peito, ele parou de andar e empostou-se de frente à doutora Jane.

– Não estou dizendo que sei alguma coisa sobre fêmeas. Coisas como os seus humores e por aí vai. Só que... Layla tem chorado muito. Quero dizer, ela tenta esconder isso de mim e do Blay, mas... toda vez que vou vê-la, encontro bolas de lenços de papel no cesto de lixo, e seus olhos estão brilhantes demais, o rosto, corado. Ela sorri, mas o sorriso nunca passa da superfície. Os olhos dela... são uma tragédia de merda. E... e eu não sei o que fazer, só sei que isso não está certo.

A médica assentiu.

– Como ela se porta com as crianças?

– É fantástica, pelo que posso ver. É totalmente devotada a eles, e eles estão crescendo. Na verdade, o único momento em que a vejo meio que feliz é quando os têm nos braços. – Pigarreou novamente. – Então, o que estou imaginando... ou perguntando, sei lá, é se as fêmeas gestantes, depois que não estão mais grávidas, se elas não...

Jesus, ele merecia todo tipo de prêmio por saber se explicar tão bem. E os termos técnicos com os quais se debatia? Praticamente estava a um passo de receber o título de doutor em Medicina, assim como Jane.

Cacete.

Mas pelo menos a doutora Jane parecia reconhecer que aquele avião conversacional estava ficando sem pista para decolar.

– Acho que está querendo me perguntar a respeito de depressão pós-parto. – Após vê-lo assentir, ela prosseguiu: – Posso lhe afirmar que não é incomum entre os vampiros, e que pode ser incapacitante. Conversei com Havers a respeito disso antes, e estou muito feliz que tenha vindo me procurar para tratar do assunto. Às vezes, uma mãe recente sequer está ciente de que isso pode se tornar um problema.

– Não existe nenhum exame... ou um... sei lá.

– Existem algumas maneiras diferentes de avaliar a questão, e o comportamento é uma delas. Claro que posso ir conversar com ela, e também posso fazer alguns exames de sangue para avaliar os níveis hormonais. E, sim, existem muitas coisas que podemos fazer para tratar dela e dar-lhe o apoio necessário.

– Não quero que Layla pense que estou agindo pelas costas dela nem nada assim.

– O que é totalmente compreensível. Mas tudo bem, porque eu pretendia mesmo subir até lá para dar uma olhada nela e nos bebês. Posso abordar o tema como se fosse parte de uma rotina. Nem terei que citar seu nome.

– Você é a melhor.

Com o assunto resolvido, ele supôs que era hora de voltar para junto do seu companheiro e para o torneio de bilhar. Mas não saiu. Por algum motivo, não conseguia.

– Não é sua culpa – garantiu a doutora Jane.

– Eu a engravidei. E se o meu... – Ok, ela era médica, mas Qhuinn ainda não queria pronunciar a palavra esperma perto dela. O que era loucura. – E se a minha metade for a causa...

A porta se abriu, e Manny enfiou a cabeça pela abertura.

– Ei, está pronta...? Opa, desculpem.

– Estamos quase terminando aqui. – A doutora Jane sorriu. – E você não nos viu juntos.

– Pode deixar. – Manny bateu na soleira. – Se eu puder ajudar de alguma maneira, é só avisar.

E lá se foi o cara, como se nunca tivesse aparecido ali.

A doutora Jane se levantou e se aproximou dele. Era mais baixa do que Qhuinn, e sua estrutura nem se comparava aos quase 140 quilos de músculos masculinos. Mas ela parecia pairar acima dele; a autoridade na voz e nos olhos dela era exatamente o que ele precisava para acalmar seu lado irracional.

Quando encostou a mão no braço dele, sua expressão estava firme.

– Não é sua culpa. Esse, às vezes, é o curso da natureza em algumas gestações.

– Fui eu quem colocou aqueles bebês dentro dela.

– Sim, mas imaginando que este seja um caso de os hormônios se autorregularem após o parto, não há ninguém para culpar. Além disso, você agiu bem ao vir até aqui, e também pode ajudá-la simplesmente conversando com ela e lhe dando o tempo e o espaço necessários para que ela também converse com você. Para ser sincera, eu já havia notado que ela não tem descido para as refeições. Acho que precisamos encorajá-la a se juntar ao resto de nós, para que ela sinta o quanto estamos disponíveis para ampará-la.

– OK. Certo, então.

A doutora Jane franziu a testa.

– Posso lhe dar um conselho?

– Por favor.

Ela o apertou no braço.

– Não se sinta responsável por algo sobre o qual não tem controle algum. Isso é um convite ao estresse que acabará deixando-o loucamente infeliz. Sei que é mais fácil falar do que fazer, mas tente se lembrar disso, está bem? Eu o vi acompanhá-la a cada estágio da gestação. Não houve nada que você não tenha feito por ela ou que não faria por ela, e você é um pai fantástico. Somente coisas boas o esperam, eu prometo.

Qhuinn inspirou fundo.

– Certo.

Mesmo quando sua preocupação persistiu, ele se lembrou de que, durante a gestação de Layla, descobrira que podia confiar na doutora Jane. A médica o ajudara a trilhar a estrada da vida e da morte, e nunca o decepcionara, nunca deixara que se desgarrasse. Tampouco mentira para ele e lhe dera maus conselhos.

– Vai ficar tudo bem – ela prometeu.

Infelizmente, como pôde-se perceber mais tarde, a boa médica estava errada.

Mas ela não tinha controle algum sobre o destino.

Nem ele.


CAPÍTULO 4

O bebê estava arruinado. Tudo o que detinha não passava de uma versão modificada e horrenda das feições de Hharm; o lábio superior era todo errado, como o de uma lebre.

Hharm largou o bebê no piso sujo da caverna, e a coisa não emitiu som algum ao aterrissar, os braços e as pernas mal se moviam, as carnes azuladas e acinzentadas, o cordão ainda o unia à fêmea. Iria morrer, assim como deveriam todos os resultados contra as regras da natureza e do parto – e essa consequência não era causa de indignação.

O fato de Hharm ter sido ludibriado, porém, o era. Desperdiçara dezoito meses, uma quantidade enorme de horas, aquele momento de esperança e de felicidade numa monstruosidade insuportável. E o que ele sabia com certeza? Que não era culpa sua.

– O que você fez? – exigiu saber da fêmea.

– Um filho! – Ela arqueou as costas em agonia renovada. – Eu lhe dei...

– Uma maldição. – Hharm se levantou em toda a sua altura. – O seu ventre é impuro. Ele corrompeu o presente do meu sêmen e produziu isso...

– O seu filho...

– Olhe para ele! Veja com seus olhos! Isso é uma abominação!

A mulher se esforçou e suspendeu a cabeça.

– Ele é perfeito, ele é...

Hharm empurrou o bebê com a bota, fazendo com que ele movesse os pequenos membros e emitisse um gritinho fraco.

– Nem mesmo você pode negar o que está diante de nós!

Os olhos injetados dela se afixaram no bebê, e depois se arregalaram...

– Isso é...

– Você fez isso – ele anunciou.

A ausência de argumentos por parte dela foi uma rendição inevitável, visto que o defeito não podia ser negado. Então ela gemeu como se ainda estivesse em trabalho de parto, os dedos ensanguentados arranharam a terra fria, as pernas tremeram quando se afastaram mais. Depois de mais esforços, algo saiu da mulher, e ele pensou que talvez fosse mais um. De fato, seu coração se viu cheio de otimismo enquanto ele rezava para que o primeiro fosse exhile dhoble, o amaldiçoado de um par de gêmeos.

Infelizmente, não. Era apenas algo do interior da fêmea, talvez o estômago ou o intestino dela.

E o bebê prosseguiu chorando, o peito se estufando e murchando com pouco efeito.

– Você deve morrer aqui, assim como ele – Hharm disse sem cuidado algum.

– Eu não...

– Suas entranhas estão saindo.

– O bebê é... – ela hesitou. – Ele...

– É uma abominação da natureza contra o desejo da Virgem Escriba.

A fêmea se calou e relaxou como se o processo da expulsão tivesse chegado ao fim, e Hharm aguardou pelo ataque em que a alma dela se desprenderia do corpo. Só que ela continuou a respirar e olhar para ele... e a existir. Que espécie de truque era aquele? A ideia de que ela não iria ao Dhunhd por conta disso era um insulto.

– Isso é obra sua – ralhou com a fêmea.

– Como sabe que não foi a sua semente que...

Hharm apoiou a bota na garganta dela e a pressionou, interrompendo-lhe as palavras. Quando uma onda de ódio induziu o corpo do guerreiro rumo a uma ação mortal, somente a possibilidade de que esse evento fosse um castigo por suas ações prévias o impediu de esmagar-lhe o pescoço.

Ela tem que pagar, foi seu pensamento abrupto. Sim, a culpa era dela, e o desapontamento causado necessitava de uma reparação.

Sibilando, ele revelou as presas.

– Deixarei que viva para que possa criar esta monstruosidade e que seja vista com ele. Esta é sua maldição por me amaldiçoar: ele ficará sempre em seu cangote, como um amuleto ou uma danação, e se eu descobrir que essa coisa morreu, eu a perseguirei e a esquartejarei centímetro a centímetro. Depois matarei a sua irmã, toda a prole dela e os seus parentes.

– O que está dizendo?!

Hharm se inclinou para baixo, o latejar no rosto e na cabeça parecia muito familiar.

– Ouviu minhas palavras. Conhece meu desejo. Desafie-o por sua conta e risco.

Quando ela se acovardou, o Irmão se afastou e fitou a sujeira proveniente do parto, a fêmea patética, aquele resultado horrendo – e cortou o ar com a mão, como se os apagasse da linha do tempo. Em meio aos bramidos da tempestade e à extinção da fogueira, ele foi até o casaco de peles.

– Você arruinou o meu filho – reclamou ao passar o peso das peles sobre os ombros. – O seu castigo é criar esse horror como declaração do seu fracasso.

– Você não é Rei – ela rebateu, fraca. – Não pode ordenar nada.

– Este é um serviço comunitário que faço aos machos, meus camaradas. – Apontou o dedo na direção do recém-nascido choroso. – Com isso grudado ao seu quadril, ninguém mais se deitará com você para sofrer de maneira similar.

– Não pode me forçar a isso!

– Ah, posso, sim, e o farei.

Ela era uma fêmea mimada e desafiadora por natureza, e fora isso o que o atraíra nela a princípio – tivera que lhe ensinar o que fazer e as orientações foram bem interessantes por um tempo. De fato, houvera apenas uma instância em que ela tentara exercer domínio sobre ele. Uma vez e nunca mais.

– Não me teste, fêmea. Já fez isso antes e deve se lembrar do resultado.

Quando ela empalideceu, ele assentiu na sua direção.

– Sim. Isso mesmo.

Ele quase a matara na noite em que lhe mostrara que, enquanto ele ficaria com que desejasse, quando e onde o quisesse, ela jamais teria permissão para se deitar com outro macho enquanto estivesse tangivelmente associada a ele. Foi logo depois disso que ela decidiu que a única possibilidade de prendê-lo seria dando-lhe o filho que ele almejava e, ao mesmo tempo, ele começara a pensar em seu legado.

Por azar, ela fracassara em seus objetivos.

– Eu odeio você – ela gemeu.

Hharm sorriu.

– O sentimento é mútuo. E mais uma vez lhe digo que é melhor garantir a sobrevivência dessa coisa. Se eu descobrir que o matou, revidarei a morte dele nas suas carnes e em toda a sua linhagem.

Dito isso, ele cuspiu duas vezes junto aos pés dela: uma por causa da fêmea e outra pelo bebê. Depois se afastou enquanto ela o chamava, e o bebê desertado berrava contra o frio.

Do lado de fora, a tempestade prosseguia, intensa, a neve rodopiante o cegava e depois diminuiu para uma revoada de pássaros que revelava todo o cenário. No vale logo abaixo, montanhas se elevavam às margens de um lago, a neve acumulada sobre a água congelada que formava ondas nos meses mais quentes. Estava tudo escuro, gélido e inerte, mas ele se recusava a encontrar um mau presságio na imagem à sua frente.

Com a mão usada para a adaga comichando, e a hostilidade dentro dele acelerando como um corcel disparado, sugeriu a si mesmo que não atentasse para esse resultado.

Encontraria outro ventre.

Em algum lugar, havia uma fêmea que lhe daria o legado merecido e necessário. Ele a encontraria e a faria crescer com a sua semente.

Existiria um filho apropriado para ele. Hharm jamais aceitaria qualquer outro resultado.


CAPÍTULO 5

Quando se aproximou da entrada da caverna sagrada da Irmandade, Tohr se esgueirou pelo interior úmido, e uma vez ali dentro, o cheiro de terra e de uma fonte de chamas distante irritou suas narinas. Os olhos se ajustaram de imediato, e quando ele seguiu em frente, aquietou o movimento de seus coturnos. Não queria ser ouvido, mesmo que sua presença fosse notada logo em seguida.

Os portões não estavam muito longe e eram constituídos por grossas barras de ferro, cuja espessura era semelhante a de um antebraço de guerreiro; as barras de ferro eram altas como árvores e possuíam uma cobertura em malha de aço, a fim de impedir a desmaterialização. Tochas sibilavam e tremeluziam em cada lado e, além, ele via o começo do grande corredor que conduzia mais para dentro da terra.

Parando diante da enorme barreira, pegou a chave de cobre e não sentiu remorso algum por ter roubado o objeto da gaveta da escrivaninha ornamental de Wrath. Pediria desculpas pela infração mais tarde.

E também pelo que faria na sequência.

Tohr destrancou o mecanismo, empurrou o peso colossal, entrou e voltou a trancar o portão atrás de si. Caminhando à frente, seguiu o caminho natural, expandido por talhadeiras e músculos fortes, e depois adornado por prateleiras. Sobre as diversas tábuas, centenas e centenas de jarros alimentavam um jogo de luz e sombras.

Os receptáculos eram de todos os formatos e tamanhos, e vinham de diferentes eras, desde a antiga até a moderna, mas o que havia dentro de cada um deles era o mesmo: o coração de um redutor. Desde o princípio da guerra contra a Sociedade Redutora, ainda no Antigo País, a Irmandade vinha marcando as mortes dos inimigos ao tomar posse dos jarros das vítimas e trazendo-os até ali para aumentar a coleção.

Em parte como troféu, em parte como um “foda-se, Ômega”, aquilo era um legado. Era um orgulho. Uma expectativa.

E talvez deixasse de sê-lo. Havia poucos e esparsos redutores nas ruas de Caldwell e em outras paragens no momento, portanto deveriam estar próximos.

Tohr não sentiu nenhuma alegria ante tal conquista. Mas talvez fosse em virtude do terrível aniversário dessa noite.

Era difícil sentir qualquer outra coisa que não a perda de Wellsie no dia que já fora seu aniversário.

Após uma curva sutil, ele parou. Mais adiante, a cena mais parecia saída de um filme que não se decidia se era Indiana Jones, Grey’s Anatomy ou Matrix. No centro das antigas paredes de pedra, tochas acesas e jarros despareados e empoeirados, um amontoado de equipamentos médicos piscando e emitindo sinais interferia com um corpo sobre uma maca. E ao lado do prisioneiro? Dois imensos vampiros cobertos da cabeça aos pés com couro preto e armas negras.

Butch e V. eram o Frick e Frack da Irmandade – o ex-policial da divisão de homicídios dos humanos e o filho da Criadora da raça, o bom garoto católico e o depravado sexual, o viciado em roupas e o czar da tecnologia –, unidos pela devoção partilhada pelo Red Sox de Boston e respeito mútuo e afeto que não conheciam limites.1

V. percebeu a presença de Tohr primeiro, virando com tanta rapidez que seu cigarro aceso espalhou cinzas pelo ar.

– Ah, inferno. Não. De jeito nenhum, porra! Você vai dar o fora daqui!

Essa opinião, a despeito do volume pronunciado, foi fácil de ignorar, pois Tohr se concentrava no pedaço de carne sobre a maca. Xcor estava deitado ali, com tubos entrando e saindo de si como se ele fosse a bateria de um carro prestes a receber uma recarga, com a respiração regular... Não, espere, a respiração não estava regular.

V. deteve Tohr, aproximando-se dele e ainda um pouco mais. E o que mais? O Irmão sacara seu atirador poodle – e o cano da 40 mm apontava diretamente para o rosto de Tohr.

– Tô falando sério, meu irmão.

Tohr olhou para o prisioneiro por cima do ombro largo. E se viu sorrindo.

– Ele está acordado.

– Não, ele não est...

– A respiração dele mudou. – Tohr apontou para o peito nu. – Veja.

Butch franziu o cenho e se aproximou do prisioneiro.

– Ora, ora, ora... Hora de acordar, filho da mãe.

V. virou-se para trás.

– Filho da puta.

Mas a arma não se moveu, tampouco Tohr. Por mais que quisesse Xcor, ele acabaria recebendo uma bala na garganta se desse mais um passo: V. era o menos sentimental dos irmãos e tinha a paciência de uma cascavel.

Naquele momento, os olhos de Xcor piscaram. Na luz tremeluzente das tochas, eles pareciam negros, mas Tohr se lembrava de que eles eram azuis. Não que isso importasse.

V. colocou a cara no seu caminho, os olhos de diamante eram como adagas.

– Este não vai ser o presente de aniversário que vai dar para a sua shellan morta.

Tohr arrastou os lábios para trás das presas.

– Vai se foder.

– Isso não vai acontecer. Pode me xingar o quanto quiser, mas não. Você sabe como as coisas vão acontecer e ainda não está na sua hora.

Butch sorriu para o prisioneiro.

– Estávamos esperando que se juntasse à festa. Aceita uma bebida? Talvez um misto de nozes antes ter que ajeitar a poltrona para a decolagem? Não há por que te mostrar as saídas de emergência. Você não tem que se preocupar com isso.

– Vamos, Tohr – V. disse. – Agora.

Tohrment expôs as presas, mas não para o irmão.

– Seu bastardo, vou te matar...

– Não, nada disso. – V. passou o braço ao redor do bíceps de Tohr, e faltou pouco para começarem a dançar uma quadrilha. – Lá fora...

– Você não é Deus...

– Nem você, motivo pelo qual está de saída.

Nos recessos da mente, Tohr sabia que o filho da mãe tinha razão. Ele não estava nem meio racional no momento – e P.S., que V. se fodesse por se lembrar que noite era aquela.

Sua amada shellan, seu primeiro amor, completaria duzentos e vinte e seis anos. E teria um filho dos dois nos braços.

Mas o destino se opusera.

– Não me obrigue a atirar em você – V. alertou com aspereza. – Venha, meu irmão. Por favor.

O fato de as duas últimas palavras terem saído da boca de V. foi o que surtiu efeito. A cena era tão chocante que desarmou Tohr de sua loucura e raiva.

– Venha, Tohr.

Dessa vez, Tohr se permitiu ser conduzido, à medida que seu grande esquema desinflanva; o silêncio absoluto depois de sua loucura o fazia tremer dentro da própria pele. Que porra estivera fazendo? Mas que cacete?

Sim, recebera o privilégio de matar Xcor com um decreto da realeza, mas só quando recebesse autorização expressa de Wrath. E isso ainda não acontecera explicitamente.

Tinham evitado um desastre de proporções traidoras.

Seria como trocar de lugar. Um traidor morto por outro bem vivo.

Quando chegaram aos portões que Tohr havia destrancado para conseguir acesso ao prisioneiro, V. estendeu a mão enluvada.

– Chave.

Tohr não olhou para o irmão ao tirar o objeto da jaqueta de couro e entregá-la. Depois de uns cliques e rangidos, o caminho estava livre, e Tohr saiu sem estar convencido, com as mãos no quadril, os coturnos chutando a terra, a cabeça pensa.

Quando ouviu uma nova sequência de rangidos e cliques, deduziu que estava sendo trancado do lado de fora, sozinho. Mas V. estava bem ao seu lado.

– Eu prometo – o irmão disse – que você, e apenas você, vai mattá-lo.

Tohr se perguntou se isso bastaria. Ponderou se seria o bastante. Será que algum dia encontraria satisfação?

Antes de chegarem à boca da caverna, Tohr parou.

– Às vezes... a vida não é nada justa.

– Não. Não é.

– Odeio isso. Odeio pra caralho. Passo por... períodos, não apenas noites, mas semanas, às vezes até um ou dois meses... em que me esqueço de tudo. Mas a merda sempre volta e, depois de um tempo, não dá mais pra segurar. Não dá. – Bateu na lateral da cabeça com o punho. – Tem esse verme aqui dentro, e sei que matar Xcor não vai me distrair por mais do que dez minutos. Mas numa noite como esta, eu aceitaria até isso.

Sucedeu-se o som de um fósforo sendo riscado quando V. acendeu um cigarro.

– Não sei o que dizer, meu irmão. Eu diria pra você rezar, mas não tem mais ninguém lá em cima te ouvindo.

– Não tenho certeza se a sua mãe nos ouviu algum dia. Sem ofensas.

– Não ofendeu. – V. exalou. – Confie em mim.

Tohr se concentrou na saída da caverna, e quando tentou respirar, sentiu uma estranha exaustão.

– Estou cansado de lutar sempre a mesma briga. Desde que Wellsie foi... assassinada... sinto como se um pedaço meu nunca tivesse cicatrizado, e não aguento essa dor nem mais um segundo. Nem mais um maldito segundo. Mesmo que ela migrasse para algum outro lugar, já seria melhor.

Estabeleceu-se um longo silêncio entre eles, abafado apenas pelo urro dos ventos invernais que entravam na caverna silenciosa.

No fim, V. praguejou.

– Bem que eu gostaria de poder te ajudar, meu irmão. Quero dizer, se você precisar de um abraço confortador... eu devo conseguir alguém pra te dar uns tapinhas nas costas.

Tohr sacudiu a cabeça quando o lábio superior se retorceu num sorriso.

– Isso foi quase engraçado.

– Pois é, tentei pegar leve. – V. exalou de novo. – Era isso ou eu atirava em você, e odeio preencher a papelada burocrática do Saxton, sabe?

– Sei o que quer dizer. – Tohr esfregou o rosto. – Verdade...

Os olhos diamantinos de V. mudaram de foco.

– Apenas esteja ciente que lamento. Você não merece nada disso. – Certa mão pesada pousou no ombro de Tohr e apertou-o. – Se eu pudesse tirar a sua dor, é o que faria.

Quando Tohr piscou rápido, pensou que era uma coisa boa que V. não fosse de abraçar, ou então teriam um maldito colapso emocional acontecendo ali.

Do tipo de colapso que um macho não retornaria intacto.

Mas, pensando bem, ele estava mesmo intacto agora?


BOATE SHADOWS, CENTRO DE CALDWELL


Trez Latimer sentia-se como uma espécie de divindade ao olhar através da parede de vidro do escritório no segundo andar da sua boate. Abaixo, no espaço aberto do armazém convertido, uma multidão de humanos excitados estabelecia um padrão de atração e desdém num mar tumultuado de lasers púrpura e batidas pesadas de baixo.

Em grande escala, sua clientela era composta de millenials, os nascidos entre 1980 e 2000. Definidos pela internet, pelo iPhone, pela ausência de oportunidades econômicas – ao menos segundo a mídia humana –, era um grupo demográfico de moralistas perdidos, comprometidos em salvar uns aos outros, com a preservação dos direitos de todos, e a promoção de uma falsa utopia de pensamento liberal que fazia o macarthismo parecer atenuado.

Mas também eram, da maneira dos jovens, esperançosos sem fundamento.

E como ele os invejava.

Enquanto se esbarravam e colidiam uns nos outros, ele testemunhava o êxtase em seus rostos, o otimismo exuberante de que encontrariam o verdadeiro amor e a felicidade naquela noite mesmo – a despeito de todas as outras noites nas quais vieram até a sua boate e a aurora chegara, expulsando-o com nada além de exaustão, uma nova DST, e mais um fardo de vergonha e dúvida enquanto se perguntavam o que tinham feito, e com quem.

Ele suspeitava, contudo, que, para a maioria, a cura de tamanha angústia era apenas cerca de duas horas de sono, um venti latte da Starbucks e uma injeção de penicilina.

Quando se é jovem assim, quando ainda é preciso enfrentar os desafios que não se consegue sequer começar a compreender, a sua resistência não tem limites.

E era por isso que o vampiro desejaria poder trocar de lugar com eles.

Era estranho colocar os humanos em qualquer tipo de pedestal. Sendo um Sombra de mais de duzentos anos de vida, Trez há tempos considerava aqueles ratos sem cauda algo inferior, um tumulto inconveniente no planeta, bem como formigas na cozinha ou camundongos no porão. Só que não se podia exterminar os humanos. Sujeira demais. Melhor tolerá-los do que arriscar a exposição da espécie ao assassiná-los só para liberar vagas de estacionamento, diminuir as filas nos supermercados e as notificações do Facebook.

No entanto, ali estava ele, ansioso por trocar de lugar com qualquer um deles, mesmo que fosse por uma ou duas horas.

Improcedente.

Mas, pensando bem, eles não mudaram. Quem mudou foi ele.

Minha rainha, está na hora de partir? Conte-me se for.

Enquanto as lembranças o intimidavam dentro do cérebro, ele cobriu os olhos e pensou: Não, Deus. De novo, não. Não queria voltar para a clínica da Irmandade... para o lado do leito da sua amada Selena, morrendo por dentro enquanto ela expirava de verdade.

A verdade, contudo, era que ele jamais abandonara esses eventos, mesmo que o calendário sugerisse o contrário. Depois da passagem de mais de um mês, ele ainda se lembrava de cada mínimo detalhe da cena, desde a respiração torturada dela até o pânico no olhar enquanto lágrimas rolavam por ambos os rostos.

Sua Selena fora acometida por uma doença que raramente afetava membros da classe sagrada. Em todas as gerações de Escolhidas, algumas tiveram a Prisão, que era um jeito horrível de morrer: a mente era deixada viva na casca congelada do corpo, sem nenhuma escapatória, nenhum tratamento para ajudar, ninguém para salvar.

Nem mesmo o macho que a amava mais do que a própria vida.

Quando o coração de Trez tropeçou no âmago do peito, ele abaixou as mãos, meneou a cabeça e tentou se reconectar com a realidade. Estivera se debatendo contra esses episódios invasivos, e eles vinham se tornando mais frequentes em vez de menos – o faziam se preocupar com sua sanidade. Chegou a ouvir o ditado de que “o tempo cura as feridas” e, droga, talvez aquilo fosse verdade para outras pessoas. Para ele? Seu luto se transformara de dor incandescente, no começo, a uma agonia tão ardorosa que rivalizava com as chamas da pira funerária, até aquelas reminiscências crônicas que pareciam girar cada vez mais rápido ao redor do esteio aberto da sua perda.

Sua própria voz ecoava na cabeça: Eu entendi direito? Você quer que isto... termine?

Quando os momentos finais de Selena chegaram, ela já não conseguia mais falar. Tiveram que se apoiar num sistema de comunicação pré-combinado que supunha o controle dela sobre as pálpebras até quase o fim: uma piscada para não... duas para sim.

Você quer que isto... termine?

Ele soubera qual seria a resposta dela. Lera-o na expressão exausta, distante e enfraquecida dela. Mas aquela fora uma das vezes na vida em que se queria ter a mais absoluta certeza.

Ela piscara uma vez. E de novo depois.

E ele estivera ao lado dela quando as drogas pararam seu coração e lhe conferiram o alívio de que ela necessitava ao ser transportada.

Em todos os seus anos, ele jamais imaginara aquele tipo de sofrimento. Nas duas partes. Ele não teria conseguido criar uma morte pior saída de qualquer pesadelo, e não poderia ter imaginado que teria que assentir para Manny, autorizando-o a administrar o medicamento enquanto gritava internamente, pois seu amor se esvaía e o deixava sozinho pelo resto de suas noites.

O único conforto era que o sofrimento dela chegara ao fim.

A única realidade era que o seu tinha apenas começado.

No período subsequente, encontrou conforto no fato de que preferiria ser o responsável por sentir a ausência dela, e não o contrário. Mas, conforme o tempo prosseguiu, acabou usando demais esse antídoto, pois era o único que possuía, e agora ele já não surtia mais efeito.

Portanto, não havia nada para reavivá-lo. Tentou beber, mas o álcool só servia para ele perder o pouco controle que tinha sobre as lágrimas. Não dava a mínima para a comida. Sexo era algo completamente fora de questão. E ninguém o deixava lutar – pois tanto os Irmãos quanto iAm reconheciam seu estado desgovernado.

Portanto, o que lhe restava? Nada, a não ser se arrastar ao longo dos dias e das noites, e rezar para o mais básico dos alívios: um respiro desimpedido, um período de tranquilidade mental, uma hora de sono sem perturbações.

Ao estender a mão, tocou o painel de vidro inclinado que era a sua janela para o que ele considerava ser o outro mundo, o exterior do seu inferno isolado. Engraçado que ele agora considerava “outro” o que um dia fora o mundo “real”... E mesmo sem a separação das espécies, da idade, do seu poleiro acima da confusão da boate, ele se sentia tão à parte de todos eles.

Tinha a sensação de que sempre permaneceria afastado de todos.

E, francamente, ele simplesmente não poderia continuar assim.

A dor o destroçara e, se não fosse pelo fato de que os suicidas tinham a entrada negada no Fade, ele teria metido uma bala do seu 48 mm na cabeça horas após a morte dela.

Pensou que não suportaria outra noite assim.

– Por favor... me ajude.

Trez não fazia a mínima ideia de quem falava com ele. Do lado dos vampiros, a Virgem Escriba já não existia mais – e no seu atual estado mental ele compreendia por completo o motivo de ela ter largado o microfone e saído do palco de sua criação. E, como um Sombra, ele fora criado para adorar sua Rainha – o único problema era que ela estava vinculada ao seu irmão, e rezar para a cunhada parecia muito estranho.

Uma declaração autêntica de que toda aquela coisa espiritual não passava de um monte de asneira.

E, mesmo assim, seu sofrimento era tão grande que ele tinha que tentar buscar ajuda.

Inclinando a cabeça para trás, olhou para o teto baixo preto e despejou seu coração partido para o mundo:

– Eu só a quero de volta. Eu só... quero Selena de volta. Por favor... se existir alguém aí em cima, me ajude. Devolva-a para mim. Não me importo em que forma ela estiver... Eu só não consigo mais fazer isto. Não consigo mais viver assim nem pela porra de uma única noite.

Claro que não houve resposta. E ele se sentiu um completo idiota.

Pois é, como se a vastidão do universo lhe iria despejar outra coisa que não apenas um meteoro?

Além disso, será mesmo que existia um Fade? E se ele estivesse apenas alucinando durante a purificação e somente imaginara ter visto a sua Selena? E se ela só tivesse simplesmente morrido? Como se... tivesse apenas deixado de existir? E se todas as bobagens a respeito de um lugar celestial aonde nossos amados iam e esperavam pacientemente por nós não passasse de um mecanismo de defesa criado por aqueles deixados para trás mergulhados no tipo de agonia em que ele se encontrava?

Uma falácia mental para cuidar de um ferimento emocional.

Reajustando a cabeça, voltou a fitar a multidão abaixo...

Pelo vidro, o reflexo de uma imensa figura masculina parada logo atrás fez com que ele se girasse e levasse a mão para a arma que mantinha enfiada na lombar. Mas então reconheceu o indivíduo.

– O que você está fazendo aqui? – exigiu saber.


Dois patinadores suíços, Werner Groebli e Hans Mauch, cujos nomes artísticos eram Frick e Frack, nutriram uma parceria duradoura. Posteriormente, seus nomes se tornaram gíria para designar duas pessoas que trabalham juntas e se dão bem. (N.T.)


CAPÍTULO 6

A campina de 20 mil metros quadrados se elevava de uma estradinha deserta como oriunda do olhar crítico de um artista; todos os aspectos da colina e do vale pareciam sujeitos às regras dos padrões estéticos agradáveis. No alto do suave aclive coberto de neve, como uma coroa no topo da cabeça de um governante benevolente, um imenso bordo estendia seus galhos em uma áurea tão perfeita que mesmo a esterilidade do inverno não conseguia diminuir sua beleza.

Layla se desmaterializou até a base da colina, partindo da mansão, e subiu a pé até a árvore. Os chinelos usados no quarto não eram páreo para o chão congelado, o vento frio atravessava o roupão, e os cabelos se soltavam da trança, flanando ao seu redor.

Quando chegou ao cume, olhou para baixo, para as raízes do tronco glorioso dentro da terra.

Fora ali, pensou ela.

Ali, na base daquele bordo, ela vira Xcor pela primeira vez, convocada por alguém que ela acreditara ser um soldado de valor na guerra, alguém que ela alimentara na clínica da Irmandade... Alguém que a Irmandade deixara de lhe informar que, na verdade, era um inimigo e não amigo.

Quando o macho a chamara para que ela lhe provesse a veia, Layla não pensou em nada além do seu dever sagrado.

Por isso, transportara-se até ali... e perdera um pedaço de si no processo.

Xcor estivera à beira da morte, ferido e enfraquecido, e mesmo assim ela reconhecera sua força, ainda que em estado debilitado. Como poderia não tê-la notado? Era um macho tremendo, grosso no pescoço e no peito, forte nos braços, poderoso no corpo. Ele tentara recusar sua veia porque – ela gosta de acreditar – enxergara-a como uma inocente no conflito entre o Bando de Bastardos e a Irmandade da Adaga Negra, e quisera mantê-la afastada da situação. No fim, contudo, ele cedera, garantindo que ambos seriam a presa de uma ordem biológica que desconhecia a razão.

Ela inspirou fundo, observou a árvore e viu, através dos galhos desnudos, o céu noturno.

Depois que a verdadeira identidade de Xcor veio à tona, ela confessou a Wrath e à Irmandade suas ações, lacrimosamente clamando por perdão. E era um testemunho do rei e dos machos que o serviam o fato de a terem perdoado, e sem castigos, por ter prontamente ajudado o inimigo.

Em troca, era um parco testemunho da sua parte que ela tivesse voltado para junto de Xcor depois disso. Associou-se a ele. Tornou-se emocionalmente envolvida com ele.

Sim, existiu uma coerção inicial da parte dele na época, mas a verdade era que, mesmo que ele não a tivesse forçado? Sua vontade teria sido estar com ele. E o pior? Quando o relacionamento chegou ao fim, fora ele quem interrompera os encontros. Não ela.

Na verdade, ela o estaria vendo agora – e a dor da perda que sentia pela ausência dele era tão incapacitante quanto a culpa.

E isso foi antes ainda de ele ter sido capturado pela Irmandade.

Ela sabia exatamente onde ele havia sido aprisionado porque testemunhara suas condições naquela caverna... Sabia o que os Irmãos planejavam fazer com Xcor assim que ele despertasse.

Se ao menos houvesse um modo de salvá-lo... Ele nunca tinha sido cruel com ela, nunca a tinha ferido... jamais a havia abordado sexualmente, apesar do desejo que o habitava. Ele se manteve paciente e gentil... pelo menos até se afastarem.

Ele, entretanto, havia tentado matar Wrath. E essa traição era passível de punição com a morte...

– Layla?

Girando, ela tropeçou e caiu de lado, quase incapaz de se agarrar ao tronco áspero do bordo. Quando sentiu uma dor na palma, sacudiu-a na tentativa de apaziguá-la.

– Qhuinn! – exclamou.

O pai de seus filhos deu um passo à frente.

– Você se machucou?

Com um xingamento, ela limpou os arranhões, tirando a sujeira. Santa Virgem Escriba, como doía.

– Não, não. Estou bem.

– Pegue. – Ele apanhou algo de dentro do bolso da jaqueta de couro. – Deixe-me ver.

Ela tremia quando Qhuinn avaliou-lhe a mão e depois a envolveu na bandana preta.

– Acho que você vai viver.

Será?, ela pensou. Não tenho tanta certeza.

– Você está congelando.

– Sério?

Qhuinn tirou a jaqueta e a posicionou sobre os ombros dela, e Layla se viu engolfada pelo tamanho e pelo calor.

– Venha, vamos voltar para a mansão. Você está tremendo...

– Não posso mais fazer isso – ela desabafou num rompante. – Não consigo mais.

– Eu sei. – Quando ela se retraiu de surpresa, ele sacudiu a cabeça. – Sei o que há de errado. Vamos pra casa pra conversar. Vai ficar tudo bem, prometo.

Por um momento, ela não conseguiu respirar. Como ele podia ter descoberto? Como podia não estar bravo com ela?

– Como você... – As lágrimas surgiram com rapidez, a emoção se sobrepôs a tudo. – Sinto muito. Eu sinto muito... Não era para ser assim.

Ela não soube se foi ele quem abriu os braços ou se foi ela quem se lhe agarrou ao peito, mas Qhuinn a abraçou com força, protegendo-a do vento.

– Tá tudo bem. – Ele massageava grandes círculos nas costas dela com a palma, acalentando-a. – Só precisamos conversar a respeito. Podemos fazer algumas coisas, tomar algumas providências.

Ela virou o rosto para o lado e fitou a campina.

– Eu me sinto tão mal.

– Por quê? Isso está fora do seu controle. Não pediu por isso.

Ela se afastou.

– Eu juro, não pedi. E não quero que você pense nem por um segundo que eu poria Lyric e Rhampage em perigo...

– Tá de brincadeira? Sério, Layla, você ama aqueles dois com tudo o que tem dentro de si.

– Amo mesmo. Eu te garanto isso. E amo você e Blay, o Rei e a Irmandade. Vocês são a minha família, vocês são tudo o que tenho.

– Layla, preste atenção. Você não está sozinha, entendeu? E como eu já disse, existem coisas que podemos fazer...

– Mesmo? De verdade?

– Sim. Na verdade eu estava falando sobre isso antes de vir para cá. Eu não queria que pensasse que eu a estava traindo...

– Ah! Qhuinn! Eu sou a traidora! Sou eu quem está errada...

– Pare. Você não é. Vamos cuidar disso juntos. Todos nós.

Layla levou as mãos ao rosto, tanto a que estava com o curativo como a que estava descoberta. Então, pela primeira vez desde o que parecia ser uma eternidade, ela exalou o ar, um bálsamo de calma substituindo o terrível fardo que dispunha sobre si.

– Tenho que contar uma coisa. – Levantou o olhar para ele. – Por favor, saiba que tenho me remoído de arrependimento e de tristeza. Juro que nunca tive a intenção de que isso acontecesse. Tenho me sentido tão só, me debatendo com a culpa...

– Culpa é algo desnecessário. – Esfregou os polegares sob os olhos dela. – Você tem que se livrar disso, porque não consegue evitar o modo como se sente.

– Não consigo, de verdade, não consigo mesmo... E Xcor não é mau, não é tão ruim quanto você acha que ele é. Juro. Ele sempre me tratou com cuidado e gentileza, e sei que ele não voltaria a ferir Wrath. Eu sei disso...

– O quê? – Qhuinn franziu o cenho e sacudiu a cabeça. – Do que você está falando?

– Por favor, não o mate. É como você disse, existe um modo de fazer isso dar certo. Talvez vocês possam libertá-lo e...

Qhuinn não recuou; na verdade, ele a empurrou para longe de si. E depois pareceu se debater para encontrar as palavras.

– Layla – ele pronunciou devagar. – Sei que não estou ouvindo direito e estou tentando... Você pode...

Aproveitando-se do momento para expor sua posição, Layla se apressou em falar:

– Ele nunca me machucou. Todas as noites em que o procurei, ele nunca me feriu. Ele providenciou um chalé para que eu ficasse em segurança, e sempre estávamos apenas nós dois. Nunca vi nenhum dos Bastardos...

Ela prosseguiu enquanto a expressão do guerreiro se transformava de confusão para... algo gélido que lhe suscitou as feições de um completo desconhecido.

Quando Qhuinn voltou a falar, a voz saiu inexpressiva.

– Você esteve se encontrando com Xcor?

– Eu me senti muito mal...

– Por quanto tempo? – ele estrepitou. Mas não a deixou responder. – Você foi ao encontro dele enquanto estava grávida dos meus filhos? Você se associou por vontade própria com um inimigo conhecido enquanto os meus benditos filhos estavam no seu ventre? – Antes que ela conseguisse lhe responder, ele levantou o indicador. – E você precisa pensar muito bem na resposta. Não há volta para isto, e é melhor dizer a verdade. Se eu descobrir que mentiu pra mim, vou te matar.

Quando o coração de Layla começou a bater forte no peito, deixando-a tonta, seu único pensamento foi...

Você vai me matar de qualquer maneira.

De volta à shAdoWs, Trez guardou a arma e tentou retornar à realidade.

– E então? – ele inquiriu. – O que está fazendo aqui, ainda mais sem o seu poliéster especial do Tony Manero?

Lassiter, o Anjo Caído, sorriu de um modo que não contemplou seus estranhos olhos coloridos sem pupila; a expressão afetou apenas a parte inferior do rosto.

– Ah, você sabe, ternos de passeio estão ultrapassados para mim.

– Partindo para os anos 1980? Não tenho nada neon pra emprestar pra você.

– Não precisa, tenho outra fantasia para usar.

– Que bom pra você. Assustador pro resto de nós. Só me diz que não vai usar o maiô do Borat.

Quando o anjo não respondeu de pronto, Trez sentiu como se as garras de Fred Krueger estivessem passando pela sua nuca. Normalmente, Lassiter era o tipo de cara tão alegre que a maioria das pessoas não sabia se decidir entre meter uma bala nele para tirar todo mundo de um estado miserável... ou simplesmente apanhar uma lata de Coca-Cola e um saco de pipoca para assistir ao show.

Porque, mesmo quando ele irrita, a situação é sempre muito divertida.

Mas não essa noite. O olhar bizarro estava tão leve e espumoso quanto um bloco de granito, e o imenso corpo dele estava absolutamente imóvel, nenhum item de ouro nos pulsos ou pescoço, nos dedos ou orelhas, reluzia sob a luz baixa.

– Por que está brincando de estátua? – Trez murmurou. – Alguém trocou o lugar da sua coleção do My Little Pony de novo?

Incapaz de suportar o silêncio, Trez foi se sentar atrás da escrivaninha e começou a mexer em uma pilha de papéis.

– Está tentando ler minha aura ou alguma merda do tipo?

Não que para isso fosse necessário algum poder especial. Todos na mansão sabiam em que estado ele estava.

– Quero que vá jantar comigo amanhã à noite.

Trez levantou o olhar.

– Pra quê?

O anjo levou o tempo que quis para responder, seguindo devagar até o painel de vidro para encarar a multidão logo abaixo, no exato lugar em que Trez estava antes. Iluminado pela luz fraca, o perfil do anjo era o tipo de imagem que as fêmeas adorariam, com todas as proporções e os ângulos certos. Mas a cara de preocupação...

– Manda ver – Trez exigiu. – Já recebi uma vida inteira de más notícias. O que quer que seja, nada se compara ao que tenho passado.

Lassiter relanceou e deu de ombros.

– É só um jantar. Amanhã à noite. Sete horas.

– Eu não como.

– Sei disso.

Trez largou a pilha de faturas, de escala dos funcionários ou qualquer outra porra que o vinha mantendo ocupado, ainda que não as estivesse olhando de fato, junto ao amontoado de porcarias sobre a escrivaninha.

– Acho muito difícil acreditar em seu interesse a respeito de nutrição.

– Verdade. Essa coisa de “glúten é o seu inimigo” é uma bobagem sem fim. Nem me fale de Kombuchá, couve, ou qualquer coisa com propriedades antioxidantes, e na mentira de que o xarope de milho com alto teor de frutose é a fonte de todo o mal.

– Ouviu falar que a Kraft Macaroni & Cheese tirou todos os conservantes há meses?

– Pois é, e os filhos da mãe nem avisaram antes...

– Por que quer jantar comigo?

– Só estou sendo amigável.

– Não faz parte do seu estilo.

– Como disse antes, estou mudando algumas coisas. – Eeeee lá veio aquele sorriso de novo. – Pensei em começar com tudo. Quero dizer, se é pra virar a página, melhor começar do jeito que se deseja continuar.

– Sem ofensas, mas não estou a fim de passar tempo com pessoas de quem gosto de verdade. – Tudo bem, aquilo não soou muito bem. – O que quero dizer é que o meu irmão é o único que consigo tolerar agora, e nem ele eu quero ver.

Aquele sorriso de Lassiter era uma visão que Trez estava mais do que disposto a jamais rever – e observe como orações podem ser atendidas: o anjo estava seguindo para a porta.

– Te vejo amanhã.

– Não, obrigado.

– No restaurante do seu irmão.

– Ah, mas que porra, por quê?

– Porque ele serve o melhor macarrão à bolonhesa em Caldie.

– Você sabe o que eu quis dizer.

O anjo se limitou a dar de ombros.

– Vá lá e descubra.

– O inferno que vou! – Trez meneou a cabeça. – Olha só, sei que as pessoas andam preocupadas comigo e agradeço a preocupação. – Na verdade, não agradecia não. Nem um pouco. – Sim, perdi peso, e eu deveria comer mais. Mas é engraçado como, quando se tem o peito escancarado e o coração arrancado pelo destino, se perde o apetite. Por isso, se está querendo companhia só para não parecer que está jogando sozinho, por que não procura alguém que coma de verdade e troque mais de duas palavras com ela? Posso garantir que tanto eu quanto você teremos uma noite mais agradável assim.

– Até amanhã.

Quando o anjo saiu, Trez gritou para a ponta oposta do escritório:

– Vai se foder!

Quando a porta se fechou em silêncio, ele concluiu que, pelo menos, a discussão não continuaria. E quando estivesse comendo a bolonhesa sozinho, Lassiter entenderia que o Sombra não apareceria.

Problema resolvido.


CAPÍTULO 7

Há momentos na vida em que a amplitude da sua atenção se estreita em um foco tão exíguo que toda a sua consciência se concentra nessa única pessoa. Qhuinn não era alheio a esse fenômeno. Ele acontecia toda vez que estava sozinho com Blay. Quando segurava os filhos. Quando lutava contra o inimigo, em busca de garantir que voltaria para casa inteiro, sem ferimentos e concussões.

E estava acontecendo de novo agora.

Parados diante da base da árvore de Harry Potter, no topo de uma colina, com o vento invernal ao redor, Qhuinn estava ciente apenas do olho direito de Layla. Conseguia contar cada nuance verde-clara que irradiava do núcleo preto da íris. Poderia haver uma nuvem de cogumelos resultante de uma explosão nuclear ao longe, uma nave espacial acima da sua cabeça, uma fila de palhaços dançando ao seu lado... e ainda assim ele não teria visto, ouvido, percebido nada além daquilo.

Bem, isso não era inteiramente verdade.

Percebia de leve o rugido em seus ouvidos, um tipo de cruzamento do motor de um jato e dos fogos de artifícios que sibilam como uma banshee, girando em círculos até se exaurir.

– Responda – ele ordenou numa voz que não parecia a sua.

Ele a havia seguido até aquele local isolado quando sentiu sua ausência na mansão – e se deslocou até ali para falar com ela sobre depressão pós-parto. O plano era levá-la de volta para casa, confortá-la diante da lareira, colocá-la num caminho em que ela pudesse apreciar os seres pelos quais tanto se empenhou em trazer ao mundo.

Como diabos acabaram falando de Xcor e de ela ter se encontrado com ele?

Não fazia a mínima ideia.

Mas não havia mais nenhum mal-entendido. E nenhuma retratação a caminho. Ele via no olhar arregalado e no pânico silencioso que, apesar de seu desejo de que aquela fosse uma colossal falha de comunicação de proporções risíveis, não era o caso.

– Eu estava segura – ela sussurrou. – Ele nunca me feriu.

– Mas que porra q...

Ele se deteve nesse aspecto. Iria direto ao ponto, como se faz com o detonador de uma bomba.

Antes que ele fizesse ou dissesse algo de que se arrependeria, afastou-se e flexionou os dedos para que não se cerrassem em punhos.

– Qhuinn, juro que nunca estive em perigo...

– Você ficou sozinha com ele. – Quando Layla não respondeu, ele cerrou os molares. – Não ficou?

– Ele nunca me machucou.

– Ok, isso é o mesmo que dizer que nunca foi picada enquanto usava uma cobra como cachecol. Uma vez depois da outra. Porque essa porra aconteceu com frequência, não foi? Responda!

– Sinto muito, Qhuinn... – Ela parecia querer se recompor, fungando as lágrimas e aprumando os ombros. O modo como os olhos dela suplicavam perdão o levou à beira da violência. – Oh, Santa Virgem Esc...

– Pare com as súplicas! Não há mais ninguém lá em cima! – Ele estava perdendo o controle. Por completo. – E que diabos está fazendo com esse pedido de perdão? Você colocou meus filhos em risco por livre e espontânea vontade só porque queria... – Ele se retraiu. – Jesus Cristo. Você fez sexo com ele? Você trepou com ele com os meus filhos dentro de você?

– Não! Nunca estive com ele dessa forma!

– Mentirosa – ele urrou. – Você é uma vadia mentirosa...

– Sou praticamente virgem! E você sabe disso! Além do mais, você não me quer. Por que se importa?

– Está querendo sugerir que sequer o beijou? – Quando ela não respondeu, ele riu com aspereza. – Nem tente negar. Está escrito na sua cara. E você tem razão, eu não te quis, nunca te quis... E não tente distorcer as coisas. Não estou com ciúmes; estou enojado. Amo um homem de valor e tive que ir para a cama com você porque precisava de uma incubadora pro meu filho e pra minha filha. Por isso e pelo fato de você ter se jogado em cima de mim quando esteve no cio, esses foram os únicos motivos pelos quais estive com você.

O rosto de Layla empalideceu, e por mais que isso o tornasse um cretino, ele gostou. Queria feri-la por dentro, que era onde contava, porque, por mais furioso que estivesse, jamais bateria numa fêmea.

E essa era a razão por ela ainda estar de pé.

Aqueles bebês, aqueles preciosos e inocentes bebês, foram levados até a boca de um monstro, na presença do inimigo, expostos ao perigo que o teria feito se cagar nas calças caso tivesse sabido à época do acontecimento.

– Você faz alguma ideia do que ele é capaz de fazer? – Qhuinn perguntou com seriedade. – As atrocidades que cometeu? Ele esfaqueou o próprio tenente nas entranhas só para mandá-lo para as nossas mãos. E no passado, no Antigo País? Ele assassinou vampiros, humanos, redutores, qualquer um que lhe atravessasse o caminho, às vezes movido pela guerra, outras só por diversão. Ele era a mão direita de Bloodletter. Você consegue imaginar o que ele já fez nesta terra? Quero dizer, você evidentemente não dá a mínima para o fato de ele ter metido uma bala no pescoço de Wrath – está claro que isso não significa nada para você. Aquele bastardo poderia tê-la violentado mil vezes, estripado você e deixado que ardesse sob o sol – com os meus filhos dentro de você! Que tipo de porra de brincadeira você está armando pra cima de mim?!

Quanto mais Qhuinn pensava a respeito dos riscos a que ela se expôs, mais sua cabeça latejava. Seus amados filhos poderiam muito bem não existir por conta das más escolhas da fêmea, que apenas por preceito biológico, fora o abrigo deles até que pudessem respirar sozinhos.

Tinha colocado-os em perigo ao se arriscar – sem nenhum pensamento aparente quanto às consequências ou como ele, o pai biológico, poderia encarar tamanho fiasco.

Sua fúria, nascida do amor que nutria pelos bebês, era indefinível. Inegável. Inesgotável.

– Nós dois os desejamos – ela disse, rouca. – Quando nos deitamos, nós dois os quisemos...

Numa voz impassível, ele a interrompeu:

– Pois é, isso eu lamento. Melhor que eles não tivessem nascido do que ter metade de você neles.

Layla estendeu a mão para mais uma vez se apoiar na árvore – e, como foi a mão que estava envolvida por sua bandana, ele se percebeu sufocado pela necessidade de arrancar o pedaço de pano da mão dela. Para depois queimá-lo.

– Fiz o melhor que pude – ela afirmou.

Ele gargalhou, então, até que a garganta queimasse.

– Está se referindo ao tempo em que dormiu com Xcor? Ou quando pôs em risco a vida dos meus filhos?

De uma vez só, ela retribuiu a raiva dele com um jorro da sua:

– Você tem aquele a quem ama! Deita-se ao lado dele todos os dias! A sua vida tem objetivo e significado, além de servir a outrem – enquanto eu não tenho nada! Passei todas as minhas noites e dias servindo a uma divindade que já não se importa mais com a raça que gerou e agora sou a mahmen de dois bebês a quem amo com todo o meu coração, mas que não são eu. O que tenho para mostrar da minha vida? Nada!

– Nisso você acertou – ele concordou, sério. – Porque não será mais a mãe dos meus filhos. Você perdeu o seu emprego.

Ela se retraiu com indignação.

– O que está dizendo? Sou a mahmen deles. Eu...

– Não é mais.

Houve um instante de silêncio, e depois a voz explodiu para fora dela:

– Você não pode... Não pode tirar Lyric e Rhamp... Não pode afastá-los de mim! Sou a mahmen deles! Tenho meus direitos...

– Não, não tem. Você se associou ao inimigo. Cometeu um ato de traição. E vai ter sorte se sair desta com vida – não que eu me lixe se você viver ou morrer. A única coisa que me importa é que nunca mais veja os bebês...

A mudança no interior dela foi instantânea e arrebatadora.

De uma vez só, Layla passou de irada a absolutamente calada. E a mudança foi tão abrupta que ele teve de ponderar se ela não sofrera uma síncope.

Mas, em seguida, os lábios de Layla se retraíram das presas que desciam. E o som que saiu de dentro dela eriçou os pelos de sua nuca num alerta.

Quando abriu a boca, a voz dela foi letal como as lâminas de uma adaga.

– Não recomendo que tente me impedir de ver meu filho e minha filha.

Qhuinn expôs as próprias presas.

– Espere e verá.

O corpo da Escolhida se curvou e ela se agachou, o sibilo que ela emitiu era de uma víbora. Só que ela não saltou sobre ele para despedaçar seu rosto com as garras.

Layla simplesmente se desmaterializou.

– Ah, inferno! Não! – ele gritou para o cenário invernal frio e alheio a tudo. – Você quer guerra, é o que vai ter, cacete!

– ... vezes em que ainda sinto vontade – Blay dizia ao sorver um gole do seu copo com gelo. – Para os humanos, é um vício letal. Mas vampiros não têm que se preocupar em adquirir câncer por fumar.

A sala de bilhar da Irmandade estava quase deserta, visto que o torneio foi encerrado quando Butch teve de assumir o posto ao lado de Xcor, Tohrment pediu para se retirar, Rhage chegou machucado do campo, e Rehv decidira ficar nos Grandes Campos com Ehlena. Mas tudo bem. Blay ainda conseguira jogar com Vishous, e os dois circundavam a mesa central dentre as cinco, alternando-se nas jogadas. A boa notícia? Lassiter estava em algum outro lugar, o que significava que a TV acima da imensa lareira estava na ESPN, no mudo.

Nada de filmes da Disney com aquelas canções ridículas esta noite.

Se Blay tivesse que ouvir as merdas do Frozen uma vez mais, ele iria “let it goooooo” pra valer.

No sentido de esvaziar uma magazine bem diante do seu próprio lobo frontal.

Do outro lado da mesa, Vishous acendeu outro dos seus cigarros enrolados por ele mesmo.

– Então por que parou de fumar?

Blay deu de ombros.

– Qhuinn odeia cigarros. O pai dele fumava cigarros e cachimbo, então acho que isso o faz se lembrar de coisas das quais prefere esquecer.

– Você não deveria ter que mudar por ninguém.

– Fui eu quem escolheu parar. Ele nunca me pediu.

Enquanto o Irmão se inclinava sobre a mesa para alinhar o taco, Blay relembrou o início de sua história com Qhuinn. Esse papo de fumar começou quando teve de ficar assistindo ao macho que amava foder qualquer coisa que se movesse. Um período horrível. Não, não tinham um relacionamento – e toda vez que Qhuinn saía com alguém, isso servia de lembrete de que jamais estariam em um.

Caramba. Na época, ele sequer havia saído do armário.

O estresse e a tristeza foram difíceis de controlar, mas também houve um ressentimento borbulhante e irracional de sua parte. Por isso abraçara um mecanismo de compensação que Qhuinn não teria aprovado nem gostado. Fora uma desforra subversiva e mesquinha pelos pecados que o macho na verdade não cometera.

Mas, pelo menos, deixar de fumar tinha sido simples. Assim que os dois se entenderam? Ele deixou os maços de Dunhill de lado e nunca mais olhou para trás.

Bem... Talvez seja mais preciso afirmar que nunca escorregou no vício. Às vezes, quando via Vishous acendendo um, e o cheiro do tabaco permeava o ar, ele ansiava fumar um cigarro...

Bem quando V. lançou a bola da vez no meio do arranjo central, um som horrível de batidas resoou no vestíbulo. Alto, repetitivo, forte o bastante para sacudir e fazer tremer a maciça e grossa porta de carvalho da entrada da mansão, de modo que mais parecia que uma horda de redutores estava tentando invadi-la.

Blay sacou a arma que portava na casa enquanto ele e V. largavam os tacos e corriam para fora da sala de bilhar até a entrada principal.

Bam-bam-bam-bam!

– Mas que porra é essa? – V. murmurou ao olhar para o monitor de segurança. – Que diabos há de errado com o seu garoto?

– O quê?

A pergunta foi respondida quando V. soltou a trava e Qhuinn entrou explodindo no vestíbulo. O macho estava furioso a ponto de parecer possuído, o rosto contraído de raiva, o corpo disparado numa corrida, seu estado tal que ele parecia alheio à presença de qualquer um.

– Qhuinn? – Blay tentou segurá-lo pelo ombro ou pelo braço.

Não teve jeito. Qhuinn chegou à escadaria e deu uma de Usain Bolt, os degraus cobertos pelo tapete vermelho foram consumidos por saltos ligeiros.

– Qhuinn! – Blay disparou atrás do que quer que estivesse acontecendo, tentando alcançá-lo. – O que foi?

No alto da escadaria, os coturnos de Qhuinn se enterraram no carpete e por pouco não derraparam ao virar à esquerda no corredor das estátuas. Logo atrás dele, Blay se apressou, e quando a direção que ele tomava ficou clara, um súbito terror se apossou dele.

Layla e as crianças deviam estar em algum perigo...

Na porta do quarto de Layla, Qhuinn agarrou a maçaneta e girou – só para bater de cara na madeira.

Cerrando um punho, ele começou a bater na porta com tanta força que lascas de pintura começaram a cair.

– Abra a porra desta porta! – Qhuinn berrou. – Layla, abra esta maldita porta agora mesmo!

– Mas que diabos você está fazendo?! – Blay tentou impedi-lo. – Ficou louco...

A arma de Qhuinn saiu sabe-se lá de onde, e quando o Irmão a virou e direcionou o cano para o rosto de Blay, ficou claro que se tratava de algum tipo de pesadelo, o resultado inevitável de uma segunda dose de vinho do Porto depois do jantar de carneiro de Fritz.

Só que não.

– Fique fora disso – Qhuinn estrepitou. – Fique fora disso.

Enquanto Blay erguia ambas as mãos e recuava, Qhuinn virou o ombro para a porta e a empurrou com tanta força que a madeira rachou, os painéis se partindo sob a força do golpe.

O que se revelou dentro do quarto cor de lavanda foi igualmente aterrador.

Enquanto Vishous parava de pronto ao lado de Blay e Z. saía da sua suíte ao fim do corredor, o cérebro de Blay para sempre ficaria maculado pela visão incompreensível e inescapável de Layla com cada filho debaixo dos braços, as presas expostas em pose de ataque, o rosto como o de um demônio, o corpo todo trêmulo – mas não de medo.

Ela estava preparada para matar qualquer um que se aproximasse dela.

Qhuinn apontou a arma na direção dela através do buraco criado na porta.

– Solte-os. Ou acabo com você.

– Mas que porra está acontecendo aqui? – A voz de Vishous saiu tão alta quanto se ele tivesse um alto-falante. – Vocês perderam a cabeça, caralho?

Qhuinn enfiou a mão por dentro e soltou a tranca, escancarando o que restava da porta. Quando ele entrou, Blay deteve os demais.

– Não, deixem que eu cuido disso.

Se mais alguém além dele entrasse, balas começariam a pipocar, e Layla iria atacar, e pessoas se feririam – ou pior.

E que porra estava acontecendo ali?

– Solte-os! – Qhuinn ladrou.

– Mate-me, então! – Layla revidou. – Vá em frente!

Blay colocou o corpo entre os dois, o tronco enquanto bloqueio no caminho de qualquer bala. Nesse meio-tempo, Layla respirava ofegante, e Lyric e Rhamp choravam – merda, ele jamais se esqueceria do som daquele choro.

De frente para Qhuinn, ele mostrou as palmas e falou com lentidão:

– Vai ter que atirar em mim primeiro.

Ele não se concentrou em nada além dos olhos azul e verde de Qhuinn... Como se pudesse, de alguma forma, comunicar-se telepaticamente com seu oponente para acalmá-lo.

– Saia da frente – Qhuinn ordenou. – Isto não é da sua conta.

Blay piscou ante tais palavras. Mas, considerando-se que enfrentava o cano de uma 40 mm, deduziu que deixaria o insulto passar por ora.

– Qhuinn, qualquer que seja o problema, conseguiremos lidar com... Aquele olhar despareado se voltou para ele por apenas uma fração de segundo.

– Acha mesmo? Quer dizer que o fato de ela ter se associado com o inimigo pode ser lavado com detergente ou alguma merda do tipo? Maravilha, vamos chamar Fritz pra cuidar disto. Ideia boa do cacete.

Enquanto os bebês continuavam a chorar, e mais pessoas se aproximavam da cena no corredor, Blay balançou a cabeça.

– Do que está falando?

– Ela levou os meus filhos com ela quando foi trepar com ele...

– Não entendi, o quê?

– Ela esteve com Xcor durante todo esse tempo. Ela não parou de se encontrar com ele. Associou-se a um inimigo conhecido do nosso rei enquanto estava grávida dos meus filhos. Por isso, sim, estou no meu direito de pai de puxar o gatilho contra ela.

De repente, Blay tomou ciência de um grunhido crescente atrás dele, e o som terrível o lembrou do que ouvira a respeito de as fêmeas da espécie serem mais letais do que os machos. Relanceando por sobre o ombro, ele pensou que sim, Layla estava evidentemente preparada para proteger os filhos até a morte naquela porra de universo paralelo para o qual foram sugados.

Xcor? Ela andou se encontrando com Xcor?

Só que ele não podia se desviar do perigo imediato.

– Só quero que você abaixe essa arma – Blay disse com calma. – Abaixe a arma e me conte o que está acontecendo. Senão, se quiser atirar nela, a bala vai ter que passar por mim primeiro.

Qhuinn inspirou fundo, como se estivesse se esforçando para não gritar.

– Eu te amo, mas isto não é da sua conta, Blay. Saia do caminho e deixe que eu cuido disto.

– Espere um minuto. Você sempre disse que também sou pai dessas crianças...

– Não quando o assunto é este. Agora saia da minha frente, caralho.

Blay piscou uma vez. Duas. Uma terceira vez. Engraçado, a dor em seu peito o fez refletir se Qhuinn não havia apertado o gatilho, e ele apenas deixou de ouvir o disparo.

Concentre-se, ordenou a si mesmo.

– Não, não vou me mexer.

– Saia da frente! – O corpo de Qhuinn começou a tremer. – Mas que diabos, saia da porra da minha frente!

Agora ou nunca, Blay pensou ao avançar e atacar o pulso que controlava a pistola. Ao golpear o antebraço com toda a força, a arma disparou repetidamente, e os cartuchos das balas saíram voando – mas, com uma rápida mudança de direção, ele conseguiu empurrar Qhuinn para o lado. O casal se estatelou no chão, e Blay se esforçou para dominar seu par, o impulso do movimento afastando-os de Layla e dos pequenos enquanto mantinha a arma apontada para o sentido oposto do quarto.

Blay acabou por cima, mas sabia que Qhuinn lhe tomaria a posição bem rápido. A arma, ele tinha que manter controle da...

De repente, o ar se tornou ártico.

A temperatura do quarto caiu para baixo de zero tão rápido que as paredes, o piso e o teto rangeram em protesto, a respiração dos presentes foi expelida em lufadas, a condensação gelou os vidros das janelas e os espelhos, com arrepios de qualquer pele exposta.

Em seguida, ouviu-se um rugido vigoroso.

O som foi tão intenso que foi quase inaudível – nada além de dor atravessou-lhes o canal auditivo, transformando suas cabeças em sinos de igreja – e isso, ainda mais do que a mudança no clima, deteve todos dentro da suíte, no corredor, na mansão... Talvez em todo o mundo.

O imenso corpo de Wrath apequenou a soleira da porta quando ele entrou no quarto, marcado pelos cabelos até a cintura, óculos escuros, coxas cobertas por couro e tronco avantajado, que teria detido qualquer trem em movimento.

Suas presas estavam totalmente expostas, como os dentes de um tigre-dentes-de-sabre. Mas ele não teve dificuldade alguma de se expressar, mesmo com elas.

– Não na porra da minha casa! – Ele soou tão alto que o quadro ao seu lado vibrou contra a parede de gesso. – Isso não vai acontecer na porra da minha casa! Minha shellan e meu filho estão aqui – existem outras crianças debaixo deste teto. Existem crianças na droga deste quarto!

Do lado oposto, Layla caiu no chão, os ossos absorvendo a queda com um barulho. Apesar do impacto, manteve Lyric e Rhamp em segurança, aninhados no colo, enquanto pendia a cabeça e começava a chorar.

Debaixo de Blay, Qhuinn tentava se soltar.

– Não até você soltar a arma – Blay disse entredentes.

Houve o som de metal se chocando contra a madeira quando a 40 mm foi solta e Blay a empurrou para longe. Em seguida, Qhuinn se desvencilhou e pôs-se de pé sobre os coturnos. Parecia que ele tinha estado num túnel de vento, seus cabelos negros dispostos em uma bagunça completa, os olhos arregalados, a pele corada em determinados pontos, mas pálida em outros.

– Todos para fora – Wrath ordenou. – Exceto pelos três pais.

Bem, pelo menos alguém reconhecia seu papel, Blay ponderou, com amargura.

Direcionando seu olhar para Qhuinn, viu-se encarando, através do caos, o macho que conhecia quase tão bem quanto a si mesmo.

Naquele instante, porém? Blay fitava para um estranho. A droga de um total desconhecido. Os olhos que Blay já havia passado horas perscrutando, os lábios por ele beijados, um corpo que tocou, acariciou, penetrou e pelo qual também foi penetrado... Era como se algum tipo de amnésia tivesse apagado toda a intimidade, metamorfoseando o que um dia fora uma realidade conhecida em uma hipótese tão fraca que parecia inexistente.

Vishous entrou no quarto.

– Primeiro, vistoria de armas.

Quando o lábio superior de Wrath se retorceu, ficou claro que o rei não apreciou a interrupção. Mas não havia como argumentar contra a razão.

V. foi eficiente na revista: primeiro retirou um par de adagas de Qhuinn, depois outra pistola – e, quando Blay se levantou, ergueu-lhe os braços e afastou-lhe as pernas, mesmo ciente de que ninguém estava preocupado que ele puxasse o gatilho.

– Pronto – V. anunciou ao se espremer para passar pelo Rei e voltar para o corredor.

– Diga aos outros que saiam – Wrath estrepitou.

– Certo.

Ante o comando real, a multidão se dispersou da soleira, mas não foi muito longe. Suas presenças pairaram enquanto, evidentemente, aguardavam os acontecimentos seguintes. De um jeito ou de outro, não havia como fechar a porta. Estava totalmente arruinada.

Virando-se na direção de Qhuinn, Wrath maldisse a situação e exigiu:

– Vai me explicar por que diabos disparou uma arma dentro da minha casa?

 

CONTINUA

ANTIGO PAÍS, 1731
As chamas de uma fogueira no chão iluminavam as paredes úmidas da caverna; a superfície áspera, manchada por sombras. Do lado de fora do ventre da terra, os gemidos do vento ecoavam na abertura do abrigo, unindo-se aos gritos da fêmea sobre o catre em que dava à luz.
– Será um menino! – ela arfou em meio às contrações que a assolavam. – Um macho!
Acima daquele pedaço de carne deitado e agonizante, pairando como uma maldição sobre ela, o Irmão da Adaga Negra Hharm pouco se importava com a sua dor.
– Logo saberemos.
– Você me desposará. Foi uma promessa...
As palavras se interromperam e seu rosto se contraiu numa máscara feia enquanto suas partes internas se contorciam para expelir a cria e, ao fazer as vezes de testemunha, Hharm refletia o quanto a aristocrata ficava pouco atraente em trabalho de parto. Não fora assim quando se conheceram e ele a seduzira. Na época, estivera coberta de cetim, muito composta, o receptáculo adequado para o seu legado, com a pele perfumada e os cabelos macios e reluzentes. Agora? Não passava de um animal, suada, pegajosa – e por que a situação se prolongava tanto? Ele estava tão enfastiado com o processo, ofendido por estar cuidando dela. Tratava-se de uma tarefa para as fêmeas, não para um guerreiro de seu escalão.
Todavia, não a desposaria, a menos que precisasse fazê-lo.
Se o bebê fosse o filho pelo qual vinha esperando? Então, sim, ele legitimaria a criança por meio da cerimônia de união e daria à fêmea o status ao qual ela se julgava digna. Caso contrário, ele se afastaria e a fêmea não diria nada, porque estava maculada aos olhos de sua classe, sua pureza perdida como um terreno já arado.
De fato, Hharm já decidira que era hora de se assentar. Depois de séculos de perdições e depravações, a idade começava a pesar. Ele se punha a considerar, pela primeira vez, o legado que deixaria para a posteridade. No momento, não lhe faltavam bastardos, frutos de sua pelve, os quais não conhecia, com quem não se importava e jamais se associaria a eles – e por tanto tempo era de conhecimento geral que ele não devia nada a ninguém.
Agora, porém... Ele se encontrava desejando uma árvore genealógica adequada. E também havia a questão das suas dívidas crescentes, algo que o pai dessa fêmea facilmente resolveria para ele – embora, mais uma vez, caso não fosse um filho varão, ele não a desposaria. Não era louco, não se prostituiria por centavos. Além disso, havia incontáveis fêmeas da glymera que cobiçavam o status inerente à vinculação com um membro da Irmandade da Adaga Negra.
Hharm não se comprometeria até ter um filho homem, a quem criaria desde a primeira noite.
– Oras, recomponha-se! – ele repreendeu-a quando ela gritou uma vez mais, uma ofensa aos seus ouvidos. – Fique calada!
Como em todas as coisas, contudo, ela o desafiou:
– Está chegando...! O seu filho está chegando!
A veste que ela usava foi suspensa até a base dos seios volumosos por mãos retorcidas. A barriga estendida e arredondada era uma visão vergonhosa, as coxas pálidas e finas permaneciam afastadas. O que acontecia no centro era repugnante: o que deveria ser a entrada delicada e adorável a fim de aceitar a excitação masculina vazava todo tipo de fluido e as carnes estavam inchadas e distorcidas.
Não, ele jamais a penetraria novamente. Com ou sem um filho, vinculados ou não, a perversão diante dos seus olhos não era algo de que ele pudesse se esquecer.
Felizmente, casamentos por conveniência eram uma contingência comum na aristocracia – não que ele se importasse caso não o fossem. As necessidades dela eram inconsequentes.
– Ele está chegando! – ela berrou quando a cabeça pendeu para trás e as unhas arranharam a terra debaixo de seu corpo. – Seu filho... ele se aproxima!
Hharm franziu a testa, depois seus olhos se arregalaram e as pernas se firmaram, afastadas. Ela não se equivocava, pois, de fato, algo começava a surgir de dentro dela... Era...
Uma abominação. Algo disforme e terrível...
Um pé.
– Isso é um pé?
– Tire seu filho do meu corpo – ela ordenou entre arquejos. – Puxe-o de dentro de mim e segure-o contra seu coração, reconheça-o como sua carne e seu sangue!
Com todas as armas ainda presas ao corpo, Hharm ajoelhou-se quando o segundo pé apareceu.
– Puxe! Puxe! – O Sangue jorrou e a fêmea berrou de novo quando o bebê não se moveu. – Ajude-me! Ele está asfixiado!
Hharm manteve-se afastado de toda aquela nojeira e imaginou quantas fêmeas inseminadas por ele haviam passado pela mesma situação. Seria sempre desagradável assim ou era ela quem era fraca?
De fato, deveria deixá-la que fizesse o parto sozinha, mas não confiava nela. A única maneira de ter certeza de que seu filho era macho era estar presente durante o nascimento. De outro modo, ele não desconsiderava a possibilidade de ela trocar uma filha indesejada pelo macho tão cobiçado – fruto de outro macho.
Aquela era, afinal, uma transação negociada, e ele sabia muito bem como tais coisas podiam ser manipuladas.
Em seguida, o som que emergiu da garganta da fêmea foi tão volumoso e demorado que interrompeu seus pensamentos. Depois os gemidos e as mãos sujas de terra e sangue dela se postaram no interior das coxas, puxando-as para fora e para cima, ampliando a abertura. E bem quando o Irmão acreditou que ela estivesse morrendo, quando cogitou se acabaria enterrando a ambos – e de pronto decidiu-se contra a proposição, visto que as criaturas da floresta logo consumiriam os restos mortais –, o bebê apareceu um pouco mais, livrando-se de algum obstáculo interno.
E lá estava ele.
Hharm se adiantou.
– Meu filho!
Sem pensar, esticou os braços e apanhou com mãos firmes os tornozelos escorregadios. Estava vivo; a criança chutava com força, debatendo-se contra o confinamento do canal vaginal.
– Venha para mim, meu filho – Hharm ordenou ao puxá-lo.
A fêmea se contorcia em agonia, mas ele não lhe dispensou um pensamento sequer. Mãos – pequeninas e perfeitamente bem formadas – surgiram em seguida, junto à barriga arredondada e o peito, que, mesmo em seu momento recém-nascido, era amplo.
– Um guerreiro! Este é um guerreiro! – O coração de Hharm batia forte, seu triunfo latejava nos ouvidos. – Meu filho levará adiante o meu nome! Será conhecido como Hharm, assim como eu antes dele!
A fêmea ergueu a cabeça, as veias do pescoço saltavam como cordões tensos sob a pele pálida demais.
– Você me desposará – ela disse, rouca. – Jure... Jure pela sua honra, ou eu o segurarei dentro de mim até que fique azul e entre no Fade.
Hharm sorriu com frieza, revelando as presas. Em seguida, desembainhou uma das adagas do peito. Direcionando a ponta para baixo, mirou no baixo ventre dela.
– Eu a estriparei como a um cervo para libertá-lo, nalla.
– E quem alimentará seu precioso filho? O seu sêmen não sobreviverá sem mim.
Hharm pensou na tormenta do lado de fora. Na distância que estavam do assentamento de vampiros mais próximo. E no pouco que sabia sobre as necessidades de um recém-nascido.
– Você me desposará, conforme prometido – ela gemeu. – Jure!
Os olhos dela estavam injetados e ensandecidos, os longos cabelos suados e emaranhados, o corpo era algo sobre o qual ele jamais desejaria se sobrepor. Mas a lógica dela o impedia. Perder o que desejava por conta exatamente do arranjo que estivera disposto a fazer, simplesmente porque ela o apresentava como se fosse uma condição sua, não era uma decisão sábia a se tomar.
– Juro – murmurou.
Com isso, ela voltou a se deitar e, sim, agora ele a ajudaria, puxando no ritmo dos empurrões dela.
– Ele está vindo... ele...
O bebê saiu de dentro dela num jorro, fluidos saindo com ele e, quando Hharm o segurou em suas palmas, sentiu uma alegria inesperada tão ressonante que...
Seus olhos se estreitaram ao pousar as vistas sobre o rosto dele. Acreditando que havia alguma membrana mascarando o bebê, passou uma das mãos pelas suas feições, que eram um misto das dele e da fêmea.
Lamentavelmente... nada mudou.
– Que maldição é esta? – questionou-se consigo mesmo. – Que maldição... é esta!

 

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CAPÍTULO 1


MONTANHAS DE CALDWELL, NOVA YORK, DIAS ATUAIS

A Irmandade da Adaga Negra o mantinha vivo só para poder matá-lo.

Dada a soma das atividades terrenas de Xcor, que foram das mais violentas, e certamente muito depravadas, aquele parecia um fim adequado para ele.

Nascera numa noite de inverno durante uma tempestade histórica. Nas entranhas de uma caverna suja e úmida, enquanto rajadas gélidas assolavam o Antigo País, a fêmea que o carregara gritara e sangrara para dar ao Irmão da Adaga Negra Hharm o filho tão exigido por ele.

Ele fora desesperadamente desejado.

Até chegar ao mundo.

E esse era o início da sua história, que acabara por levá-lo até ali.

Em outra caverna. Em outra noite do mês de dezembro. E assim como na noite do seu nascimento de fato, o vento gemia para recebê-lo, ainda que, dessa vez, fosse para o retorno da sua consciência em vez da expulsão para a vida independente que levou dali adiante.

E como um recém-nascido, tinha pouco controle sobre o corpo. Estava incapacitado, e isso seria verdadeiro mesmo sem as algemas de aço e as barras sobre o peito, o quadril, as coxas. Máquinas, contrastantes com o ambiente rústico que o rodeava, emitiam sinais atrás de sua cabeça, monitorando-lhe a respiração, os batimentos cardíacos, a pressão sanguínea.

Com a mesma fluidez de uma engrenagem sem lubrificação, seu cérebro começou a funcionar adequadamente sob o crânio; quando os pensamentos por fim se aglutinaram e formaram uma sequência lógica, lembrou-se da série de eventos que fizeram com que ele, o líder do Bando de Bastardos, acabasse sob a custódia daqueles que haviam sido seus inimigos: um ataque por trás, uma concussão, uma espécie de derrame ou algo do tipo que fez com que ele acabasse deitado, dependendo de máquinas para sobreviver.

E da inexistente misericórdia dos Irmãos.

Recobrara a consciência uma ou duas vezes durante o período em cativeiro, registrando seus captores e o ambiente daquele corredor cavernoso que inexplicavelmente abrigava jarros de todos os tipos. A retomada da consciência nunca durou muito; entretanto, a conexão com sua área mental era insustentável por um tempo mais demorado.

No entanto, dessa vez parecia diferente. Ele percebia a mudança em sua mente. O que quer que tivesse estado danificado por fim se curara e agora ele retornava do cenário enevoado do ponto de morto-vivo, permanecendo do lado vital.

– ... muito preocupado com Tohr.

O fim da frase enunciada por um macho entrou nos ouvidos de Xcor como uma série de vibrações, cuja tradução sofreu um atraso, e quando as palavras se formaram, ele virou o olhar naquela direção. Duas figuras de preto muito bem armadas estavam de costas para si, e ele voltou a abaixar as pálpebras, pois não desejava revelar a mudança do seu estado. Entretanto, suas identidades estavam devidamente anotadas.

– Não, ele está bem. – O som de algo raspando e o cheiro de tabaco permeando o ar. – E se não estiver, vou estar ao lado dele.

A voz grave que falou primeiro pareceu árida.

– Pra botar nosso irmão na linha à força... Ou ajudá-lo a acabar com este pedaço de carne?

O Irmão Vishous riu como se fosse um assassino em série.

– Que bela consideração você tem por mim.

Era estranho que não se entendessem melhor, Xcor pensou. Esses machos queriam tanto sangue quanto ele.

No entanto, essa aliança jamais existiria. A Irmandade e os Bastardos sempre estiveram em lados opostos durante o reinado de Wrath, esse limite tendo sido estabelecido pela bala que Xcor alojara na garganta do líder por direito da raça vampírica.

E o preço de sua traição seria cobrado ali, em pouco tempo.

Claro, a ironia era que uma força de compensação interceptara seu destino e fizera com que suas ambições e seu foco se afastassem, e muito, do trono. Não que os guerreiros da Irmandade tivessem ciência disso – e pouco se importariam se soubessem. Além de partilharem o apetite pela guerra, ele e os Irmãos tinham outras características em comum: piedade era para os fracos; o perdão, algo patético; pena, um sentimento das fêmeas, nunca de guerreiros.

Embora soubessem que ele já não sentia nenhuma agressividade em relação a Wrath, não o exonerariam daquilo que conquistara com méritos. Por conta de tudo o que acontecera, ele não sentia nem amargura nem raiva em relação ao que o esperava. Aquela era a natureza do conflito.

Contudo, sentia-se triste – um sentimento desconhecido para ele.

Das suas lembranças surgiu uma imagem que lhe roubou o fôlego. Era o de uma fêmea alta e magra nas vestes sagradas das Escolhidas da Virgem Escriba. Os cabelos loiros ondulavam sobre os ombros e desciam até o quadril em uma brisa suave, os olhos eram cor de jade, o sorriso, uma benção que ele não fizera nada para receber.

A Escolhida Layla mudara tudo para ele, transformando a Irmandade de um alvo a algo tolerável, de inimigo a um habitante coexistente naquele mundo.

Em pouco mais de um ano e meio, período no qual Xcor a conhecia, ela tivera um efeito mais impactante sobre sua alma negra do que qualquer outra pessoa antes dela, fazendo com que evoluísse muito em tempo ínfimo – algo que ele jamais imaginara ser possível.

O Dhestroyer, camarada de Vishous, voltou a falar:

– Na verdade, concordo plenamente com Tohr sobre fazer picadinho do filho da puta. Ele conquistou esse direito.

O Irmão Vishous praguejou.

– Todos nós merecemos. Vai ser difícil deixar uma parte dele intacta quando isso acontecer.

E ali estava o enigma, Xcor ponderou por trás das pálpebras abaixadas. A única saída possível de tamanho cenário mortal seria revelar o amor que sentia por uma fêmea que não era sua, nunca fora e jamais poderia ser.

Mas não sacrificaria a Escolhida Layla por ninguém, por nada.

Nem mesmo para se salvar.

Enquanto Tohr caminhava na floresta de pinheiros da montanha da Irmandade, seus coturnos esmagavam o terreno congelado, e o vento glacial o golpeava no rosto. Em seu rastro, tão próximo de seus calcanhares quanto uma sombra, ele sentia suas perdas a acompanhá-lo, numa fila de lamentos tangíveis como uma corrente.

A sensação de estar sendo perseguido pelos seus mortos o fez refletir a respeito de programas de TV sobre eventos paranormais, do tipo que tentava provar a existência de fantasmas. Que monte de bobagens. A histeria humana acerca das supostas entidades obscuras flanando em escadas e provocando rangidos em casas antigas, com seus passos sem corpos, era algo muito característico dessa espécie desimportante absorta em si mesma e criadora de dramalhões. Mais uma coisa que Tohr odiava a respeito deles.

E, como de costume, eles não acertavam no alvo.

Os mortos absolutamente nos atormentam, percorrendo seus dedos gélidos em nossa nuca como uma forma de lembrete até não conseguirmos decidir se queremos gritar pelas saudades que sentimos deles... ou porque queremos ser deixados em paz.

Eles espreitam suas noites e rondam seus dias, deixando um campo minado de tristeza ao longo dos caminhos.

São seus primeiros e seus últimos pensamentos, o filtro que você tenta deixar de lado, a barreira invisível entre você e todo o resto.

Algumas vezes, são mais parte de você do que as pessoas que você consegue de fato segurar e tocar.

Portanto, sim, ninguém precisa de um programa de TV idiota para provar o que já é de conhecimento comum: mesmo que Tohr tenha encontrado o amor com outra fêmea, sua primeira shellan, Wellsie, e o filho não nascido que ela carregava no ventre quando foi assassinada pela Sociedade Redutora, nunca foram afastados dele além da própria pele.

E agora houvera mais uma morte na mansão da Irmandade.

A companheira de Trez, Selena, subira para o Fade havia poucos meses, tendo falecido em razão de uma doença para a qual não existia cura, nenhum alívio, nenhum conhecimento.

Tohr não dormia direito desde então.

Voltando a se concentrar nas árvores que o cercavam, Tohr se abaixou e afastou um galho do caminho, depois deu a volta num tronco caído. Poderia ter se materializado até o destino, mas seu cérebro latejava com tanta violência da prisão do crânio que ele duvidava que conseguiria se concentrar o bastante para se dissipar.

A morte de Selena fora um maldito gatilho para ele, um evento que afetava outra pessoa, mas que, não obstante, sacudira seu globo de neve, balançando-o com tanta força que seus flocos internos ainda rodopiavam e se recusavam a se assentar.

Estava no centro de treinamento quando ela fora chamada para o Fade, e o momento da morte não fora silencioso. Fora marcado pelo som da alma dilacerada de Trez, o equivalente auditivo de uma tumba – um som que Tohr conhecia bem demais. Fizera o mesmo quando recebera a notícia da morte de sua fêmea.

Portanto, sim, nas asas da agonia do seu amor, Selena fora alçada da terra para o Fade...

Arrancar-se desse espiral cognitivo era o mesmo que tentar tirar um carro de um atoleiro, o esforço necessário era tremendo, o progresso conquistado centímetro a centímetro.

No entanto, lá ia ele pela floresta, na noite invernal, esmagando o que aparecia sob suas solas, com seus fantasmas sussurrando-lhe por trás.

A Tumba era o sanctum sanctorum da Irmandade da Adaga Negra, aquele local secreto onde as induções aconteciam e convocavam-se as reuniões secretas, e onde eram mantidos os jarros dos redutores assassinados. Estava localizada abaixo do solo, num labirinto criado pela natureza, tradicionalmente fora dos limites para qualquer um que não tivesse passado pela cerimônia que o marcasse como membro da Irmandade.

Essa regra, no entanto, tivera que ser contornada, pelo menos em respeito ao longo corredor de entrada de quase meio quilômetro.

Ao se aproximar do insuspeito sistema da entrada, parou e sentiu a raiva surgir.

Pela primeira vez desde que se tornara um Irmão, não era bem recebido ali.

Tudo por causa de um traidor.

O corpo de Xcor estava do lado oposto dos portões, na metade do caminho repleto de prateleiras, deitado numa maca, a vida monitorada e mantida por equipamentos.

Até que o maldito despertasse e pudesse ser interrogado, Tohr não tinha permissão para entrar.

E seus irmãos tinham razão em não confiar nele.

Ao fechar os olhos, viu seu rei com um tiro na garganta. Reviveu o momento em que a vida de Wrath estivera escorrendo junto ao sangue rubro; rememorou a cena em que tivera que salvar o último vampiro de sangue puro no planeta ao cortar um buraco na frente da garganta dele e enfiar o tubo de sua Camelback naquele esôfago.

Xcor encomendara o assassinato. Xcor ordenara um dos seus guerreiros mandar uma bala para dentro das carnes de um macho de valor, conspirara com a glymera para derrubar o governante por direito, mas o filho da puta fracassara. Wrath sobrevivera, apesar das probabilidades contrárias,, e na primeira eleição democrática da história da raça, fora apontado como líder de todos os vampiros – uma posição que ele agora detinha por consenso em vez de pela sua linhagem.

Portanto, vá se foder, filho da puta.

Cerrando os punhos, Tohr ignorou o ranger das luvas de couro e a constrição no dorso dos nós dos dedos. Só o que reconhecia era o ódio, tão profundo como uma doença letal.

O destino decidira que era certo tirar-lhe três seus e dos seus; o destino tirara dele sua shellan, seu filho, e o amor da vida de Trez. Querem falar sobre equilíbrio no Universo? Tudo bem. Ele queria o seu equilíbrio, e isso só aconteceria quando quebrasse o pescoço de Xcor e arrancasse o coração ainda quente do peito do maldito.

Já era hora de uma fonte do mal ser tirada de circulação, e era ele quem empataria o placar.

E a espera finalmente terminava. Por mais que respeitasse seus irmãos, estava farto de aguardar. Essa noite era um aniversário triste para ele, e ele daria ao seu luto um presentinho especial.

Era hora de festejar.


CAPÍTULO 2

O copo de cristal baixo estava tão limpo, tão isento de marcas de sabão, de poeira, de qualquer grânulo que o manchasse, que sua estrutura era como o ar; e a água dentro dele, totalmente invisível.

Meio cheio, a Escolhida Layla ponderou. Ou meio vazio?

Sentada no banquinho acolchoado, entre as duas pias com torneiras douradas e diante de um espelho com adornos de ouro que refletia a banheira funda atrás de si, ela observava a superfície do líquido.

O fundo era côncavo e a água lambia levemente o interior do copo, como se suas moléculas mais ambiciosas tentassem fugir do confinamento.

Respeitava o esforço, enquanto lamentava sua futilidade. Sabia muito bem o que era querer ser livre do local que a abrigava, apesar de não ser culpa sua.

Por séculos, ela fora a água daquele copo, despejada sem ter querido, em virtude apenas do seu nascimento, num papel de servidão junto à Virgem Escriba. Ao lado de suas irmãs, executara os deveres sagrados das Escolhidas no Santuário, adorando a mãe da raça, registrando os eventos da Terra para a posteridade dos vampiros, aguardando a escolha de um novo Primale para que ela pudesse engravidar e dar à luz mais Escolhidas e mais Irmãos.

Mas tudo isso já era passado.

Inclinando-se sobre o copo, observou mais atentamente a água. Fora treinada como ehros, não como escriba, mas sabia muito bem como enxergar além das águas que eram testemunhas da história. Dentro do Templo das Escribas, as Escolhidas designadas a registrar as histórias e as linhagens da raça permaneceram sentadas por horas e horas, observando nascimentos e mortes, suas mãos delicadas com penas sagradas colocando os detalhes nos pergaminhos, acompanhando tudo.

Não havia nada para ela ver. Não ali na Terra.

E também já não existiam testemunhas no alto.

Um novo Primale acabara surgindo. Mas em vez de se deitar com seu rebanho de fêmeas, dando continuidade ao programa de criação da Virgem Escriba, ele dera um passo sem precedentes, libertando todas elas. O Irmão da Adaga Negra Phury se desviara do modelo, quebrara a tradição, desfizera-se das amarras e, ao fazê-lo, as Escolhidas que estiveram isoladas desde sua gênese, visando aos nascimentos planejados, acolheram sua libertação. Já não eram representantes vivas de uma tradição rígida; tornaram-se indivíduos, com seus próprios descontentamentos e preferências, mergulhando os dedos nas águas terrenas da realidade, procurando e encontrando destinos a respeito de si próprias, e não mais de um serviço.

Ao fazer isso, ele desencadeara o fim dos imortais.

A Virgem Escriba já não existia mais.

Seu filho de nascimento, o Irmão da Adaga Negra Vishous, a procurara no Santuário acima e descobriu que ela se fora, deixando uma última carta escrita no vento apenas para os olhos dele.

Ela dissera que tinha um sucessor em mente.

Ninguém sabia sua identidade.

Recostando-se, Layla olhou para a veste que trajava. Não era do tipo sagrado que se vestira durante tantos anos. Não, essa peça vinha de um lugar chamado Pottery Barn, e Qhuinn a comprara para ela na semana passada. Com a aproximação do inverno, ele se preocupava que a mãe de seus filhos estivesse aquecida, sempre bem cuidada.

A mão de Layla subiu para o ventre, agora baixo. Depois de ter carregado a filha, Lyric, e o filho, Rhampage, dentro do corpo por tantos meses, era tão estranho quanto familiar não ter nada no útero...

Vozes murmuradas, baixas e graves, penetraram a porta que ela havia fechado.

Entrara no banheiro para usar o vaso.

Demorara-se depois de ter lavado as mãos.

Qhuinn e Blay, como de costume, estavam com os bebês. Segurando-os. Ninando-os.

Todas as noites, ela tinha que se esforçar para testemunhar o amor, não entre eles e os pequenos... mas aquele entre os dois machos. De fato, os pais exibiam um vínculo ressonante e, resplandecente um com o outro, e por mais que fosse algo belo, aquele fulgor fazia com que se sentisse ainda mais vazia em sua existência.

Enxugando uma lágrima, disse a si mesma para se controlar. Não poderia voltar ao quarto com olhos brilhantes demais, e o nariz e faces corados. Aquele deveria ser um momento de alegria para os cinco integrantes da família. Agora que os gêmeos haviam superado o estado de emergência sob o qual tinham nascido, e Layla também se recuperara, todos estavam aliviados por todos estarem sãos e salvos.

Agora era a vida feliz que ganharam para viver.

Em vez disso, ela ainda era a água triste dentro do copo, desejando sair.

Dessa vez, porém, a prisão foi feita por ela mesma, em vez de providenciada pela genética.

A definição de infidelidade, pelo menos de acordo com o dicionário, era: a ação de trair algo ou alguém...

A batida à porta fechada foi suave.

– Layla?

Ela fungou e abriu uma das torneiras.

– Oi!

A voz de Blay soou baixa, como era seu hábito.

– Você está bem aí?

– Ah, sim, estou. Resolvi tratar um pouco do rosto. Sairei daqui a pouco.

Ela se levantou, inclinou-se e molhou o rosto. Depois esfregou a testa e o queixo com a toalha de mão para que o rubor se espalhasse mais uniformemente sobre a pele. Apertando o cinto do roupão, aprumou os ombros e foi para a porta, em meio a preces para manter a compostura pelo tempo necessário até conseguir apressá-los para a Última Refeição.

Mas teve um momento de folga.

Ao abrir a porta, Blay e Qhuinn sequer olhavam na sua direção. Estavam inclinados sobre o berço de Lyric.

– ... os olhos de Layla – Blay disse ao abaixar a mão e deixar que a pequena agarrasse seu dedo. – Definitivamente.

– Ela também tem os cabelos da mahmen. Veja o tom loiro começando a aparecer.

O amor deles pela pequena era incandescente, reluzia em seus rostos, aquecia suas vozes e, aplacava seus movimentos, de modo que tudo o que faziam era com cuidado. No entanto, não era nisso que Layla se concentrava.

Seu olhar estava fixo na palma larga de Qhuinn, que afagava as costas de Blay. A carícia de conexão era inconsciente de ambos os lados; a oferta e a aceitação eram tanto nada e tudo o que importava, simultaneamente. E enquanto testemunhava o que se passava do outro lado do quarto, Layla teve que piscar rápido de novo.

Às vezes, a gentileza e o amor podiam ser tão difíceis de testemunhar quanto a violência. Às vezes, quando se está do lado de fora, ver duas pessoas tão em sintonia era uma cena saída de um filme de terror, o tipo de coisa da qual você quer se manter afastado, quer esquecer, banir da memória – ainda mais quando se está prestes a deitar e enfrentar sozinha um longo dia de horas no escuro.

Saber que ela jamais teria esse amor especial com alguém era...

Qhuinn relanceou na sua direção.

– Ah, oi.

Ele se endireitou e sorriu, mas ela não se deixou enganar. Os olhos dele a percorriam como se em uma avaliação – mas, talvez, esse não fosse o caso. Talvez fosse simplesmente a sua paranoia se manifestando.

Estava tão farta de se dividir em uma vida dupla. Contudo, no tipo de ironia cruel que parecia ser a fonte favorita de divertimento do destino, o preço para aliviar a consciência viria à custa de sua própria existência.

A como poderia deixar os filhos para trás?

– ... ok? Layla?

Enquanto Qhuinn franzia a testa ao observá-la, ela balançou a cabeça e forçou um sorriso.

– Ah, tudo bem, mesmo. – Ela deduzia que a pergunta se referisse ao seu bem-estar. – Muito bem mesmo.

Em busca de confirmar a mentira, aproximou-se dos berços. Rhampage, ou Rhamp, como era conhecido, lutava contra o sono, e quando a irmã arrulhou, sua cabeça se virou e ele esticou a mão.

Engraçado. Mesmo tão jovem, ele parecia reconhecer seu posto e desejava protegê-la.

Era genético. Qhuinn era um membro da aristocracia, resultado de gerações de emparelhamentos escolhidos a dedo, e por mais que seu “defeito” de ter um olho azul e outro verde o tivesse feito receber o desprezo tanto da glymera quanto da própria família, a venerável natureza de sua linhagem não podia ser negada. Tampouco o impacto de sua presença física. Com quase dois metros de altura e corpo talhado por músculos definidos, moldados tanto pelos exercícios quanto pela prática na guerra – uma arma tão letal quanto as pistolas e adagas que levava consigo para o campo de batalha. Era o primeiro membro da Irmandade da Adaga Negra a ser induzido com base na meritocracia em vez de na linhagem, e não desapontara a grande tradição. Ele nunca desapontava ninguém.

De fato, Qhuinn era, no conjunto, um belo macho, ainda que de forma um tanto rústica. O rosto era angular, pois tinha pouca gordura corporal, e aqueles olhos despareados fitavam por baixo de sobrancelhas negras. Os cabelos pretos foram cortados muito curtos recentemente, quase totalmente raspados na base. Deixavam um topete para trás e, como resultado, seu pescoço parecia extra-grosso. Com piercings metálicos nas orelhas e a lágrima de ashtrux nohtrum abaixo do olho – uma marca dos tempos em que servira como protetor de John Matthew –, ele chamava a atenção por onde quer que passasse.

Talvez porque as pessoas, tanto humanos como vampiros, preocupavam-se com o que ele seria capaz de fazer caso fosse contrariado.

Blay, por sua vez, era o oposto: tão acessível quanto Qhuinn seria evitado num beco escuro.

Blaylock, filho de Rocke, tinha cabelos ruivos e um tom de pele mais claro do que a maioria da espécie. Era tão grande quanto Qhuinn, mas quando se está ao seu lado, a primeira impressão que se tem dele faz referência à sua inteligência e ao seu bom coração, em vez de a força bruta. Ainda assim, ninguém discutia suas habilidades em campo. Layla ouvira histórias, ainda que nunca da parte dele, visto que não era de se vangloriar, criar dramas excessivos ou atrair atenções para si.

Ela amava os dois de todo o coração.

E o distanciamento que sentia em relação a eles partia somente do seu lado.

– Olha só – Qhuinn disse ao apontar para os bebês. – Temos dois se apagando... Melhor, um e meio.

Quando ele sorriu, ela não se deixou enganar. Seus olhos continuavam a passear pelo seu rosto, à procura sobre sinais de exatamente aquilo que ela tentava esconder. Para dificultar o escrutínio dele, ela recuou.

– Eles dormem bem, graças à Virgem Escriba... Hum, graças ao Fade.

– Você vai descer para a Última Refeição hoje? – ele perguntou como quem não quer nada.

Blay se endireitou.

– Fritz disse que prepara o que você quiser.

– Ele é sempre tão gentil. – Ela foi até a cama e se deitou contra os travesseiros. – Na verdade, senti uma fominha lá pelas duas da manhã, por isso fui até a cozinha e comi torradas e aveia. Tomei café. Suco de laranja. Um café da manhã no lugar do almoço, por assim dizer. Sabem como é, às vezes sentimos vontade de voltar o relógio no meio da noite e recomeçar da metade.

Uma pena que isso não passasse de uma metáfora.

Ainda que... será que ela teria escolhido nunca conhecer Xcor?

Sim, pensou. Preferiria nunca ter sabido da sua existência.

O amor de sua vida, seu “Blay”, o par do seu coração e da sua alma... era um traidor. E seus sentimentos pelo macho foram uma ferida aberta na qual a bactéria da traição entrara e se espalhara.

Portanto, ali estava ela, na prisão estabelecida por ela própria, torturada pelo fato de ter se aproximado do inimigo, primeiro por ter sido ludibriada... e mais tarde porque quis estar na presença de Xcor.

Separaram-se em maus termos, contudo, com ele colocando um fim nos encontros clandestinos após ela forçá-lo a admitir seus sentimentos. Em seguida, a situação se transformara de triste para trágica, quando ele foi capturado e levado sob a custódia da Irmandade.

A princípio não conseguira obter informações acerca de seu estado. Mas então, viajara ao modo de uma Escolhida até ele e, testemunhara seu estado moribundo num corredor de pedras, repleto de jarros de todas as cores e formas.

Não havia nada que pudesse ter feito por ele. Não sem se apresentar e se expor – e mesmo que ela o fizesse, não poderia salvá-lo.

Por isso estava presa ali: um fantasma atormentado num misto de emoções salpicadas pelo veneno da culpa e do arrependimento, sem nunca, jamais, poder se libertar.

– ... certo? Quero dizer... – Enquanto Blay continuava a falar com ela a respeito de uma e outra coisa, a Escolhida se forçou a não esfregar os olhos. – ... no fim da noite, enquanto você fica aqui com os bebês. Não que você não goste de ficar com eles.

Saiam, ela solicitou mentalmente para os dois machos. Por favor, vão embora e me deixem em paz.

Não era como se ela quisesse afastá-los das crianças, ou que sentisse alguma malquerença pelos pais de Lyric e Rhamp. Ela só precisava respirar. E toda vez que um dos guerreiros a fitava, como faziam agora, respirar se tornava praticamente impossível.

– Você concorda? – Qhuinn perguntou. – Layla?

– Ah, sim, claro. – Ela não fazia ideia do que acabara de concordar, mas certificou-se de sorrir. – Só vou descansar agora. Eles ficaram bastante tempo acordados durante o dia.

– Eu gostaria que nos deixasse ajudar mais. – Blay franziu a testa. – Estamos aqui do lado.

– Vocês dois lutam na maioria das noites. Precisam dormir.

– Mas você também é importante.

Layla direcionou o olhar rumo aos os berços e, ao rememorar a cena de si mesma acalentando-os e amamentando-os, sentiu-se ainda pior. Mereciam uma mahmen melhor do que ela, descomplicada e sem o fardo de decisões que nunca deveriam ter sido tomadas, uma que não estivesse contaminada pela fraqueza em relação a um macho de quem jamais deveria ter se aproximado... muito menos amado.

– Não tenho a mínima importância em comparação a eles – sussurrou rigidamente. – Eles são tudo.

Blay se aproximou e a tomou pela mão, os olhos azuis calorosos.

– Não, você também é muito importante. E mahmens precisam de tempo para si.

Para fazer o quê? Ruminar meus remorsos? Não, muito obrigada, pensou.

– Vou para o túmulo sem eles e aí apreciarei minha própria companhia. – Ao perceber o quanto tinha soado mórbida, apressou-se: – Além disso, eles crescem rápido. Vai acontecer antes de nós três nos darmos conta.

Conversaram mais depois – não que ela tivesse prestado atenção, com todos os gritos em sua mente. Mas, por fim, foi deixada em paz quando o casal partiu.

O fato de ficar tão feliz ao vê-los sair foi mais uma tristeza que ela tinha a carregar.

Mudando de posição na cama, levantou-se e se aproximou dos berços com os olhos rasos de lágrimas. Enxugando o rosto, repetidas vezes, ela pegou um lenço de papel do bolso do roupão e assoou o nariz. Os bebês estavam profundamente adormecidos, com os olhos fechados, os rostos voltados um para o outro como se estivessem se interligado em uma comunicação telepática durante o sono. Mãozinhas perfeitas e pezinhos preciosos, barriguinhas redondas e saudáveis envolvidas em cobertorzinhos de flanela. Eram bebês tão bons; alegres quando acordados, pacíficos e angelicais adormecidos. Rhampage ganhava peso com mais velocidade do que Lyric, mas ela parecia mais saudável do que ele, reclamava menos ao ser lavada ou trocada, fitando tudo com mais atenção.

Quando as lágrimas caíram do rosto de Layla até o carpete, ela não sabia quanto tempo mais suportaria.

Antes de tomar ciência do movimento, foi até o telefone interno da casa e apertou uma sequência de quatro números.

A doggen que convocou chegou em questão de momentos, e Layla voltou a vestir sua máscara social, sorrindo para a criada com uma serenidade que não sentia.

– Grata por cuidar dos meus preciosos – disse no Antigo Idioma.

A babá respondeu com alegria e olhos cintilantes, e Layla só aguentou dois ou três segundos de comunicação. Em seguida, saiu do quarto e, com passos ligeiros protegidos por chinelos, desceu pelo corredor das estátuas. Quando chegou às portas da extremidade oposta, empurrou uma delas e entrou na ala dos empregados.

Como em todas as mansões daquele tamanho e distinção, o lar da Irmandade necessitava de um tremendo apoio de funcionários, e os aposentos dos doggens perfilavam o corredor; a segregação por idade, sexo e posição nos escalões formava comunidades dentro do grande conjunto. Em meio ao labirinto de corredores, Layla não escolheu uma direção específica além do objetivo de encontrar um quarto vazio – e encontrou-o umas três portas adiante, depois de uma virada. Ao entrar no espaço simples e desocupado, foi até a janela, abriu-a e fechou os olhos. Seu coração batia forte e uma ligeira tontura a dominava, mas ela inspirou fundo o ar fresco e limpo...

... e se desmaterializou através da abertura que criara, misturando-se à noite; as moléculas se espalhando e se afastando da mansão da Irmandade.

Como sempre, sua liberdade seria temporária.

Mas, desesperada como estava, foi tomada por um breve sufocamento, e ela partiu em busca de oxigênio.


CAPÍTULO 3

Qhuinn era um macho muito macho. E não só porque era um guerreiro casado com outro cara.

Sim, claro que, antes de se assentar com Blay, até que gostara de transar com fêmeas e mulheres. Mas, pensando bem, seu padrão para parceiros sexuais fora tão baixo que até aspiradores de pós e canos de escapamento tinham sido candidatos ocasionais.

Mas nada de ovelhas. #critério

No entanto, não poderia dizer que as fêmeas o tivessem cativado ou interessado de fato. Não que houvesse algo de errado com elas, ou que não as respeitasse assim como todo o resto. Elas simplesmente não eram do seu gosto.

Numa noite como a de hoje, porém, ele lamentava sua inexperiência. Só porque ralara e rolara com o sexo oposto não significava que estivesse equipado de algum modo para lidar com o que o confrontava agora.

Quando ele e Blay chegaram ao pé da escadaria principal, ele parou e olhou para seu par. Ao fundo, vindo da sala de bilhar do lado oposto do átrio, o som das vozes graves dos machos, de música e de gelo batendo em copos de cristal anunciavam que o torneio de bilhar da Irmandade já estava em curso.

Qhuinn sorriu de uma maneira que esperava transmitir calma.

– Ei, eu já te encontro lá, ok? Tenho que descer pra falar com a doutora Jane sobre o meu ombro, acho que demoro uns dez minutos... Não mais do que isso.

– Claro. Quer que eu vá com você?

Por um segundo, Qhuinn se perdeu ao observar seu macho. Blaylock, filho de Rocke, era tudo o que ele não era: impecável como um corpo esculpido por Michelangelo, tinha um rosto de arrasar e uma cabeleira ruiva e lustrosa como a cauda de um pônei; era inteligente, mas também equilibrado, o que fazia toda a diferença; era firme e confiável como uma montanha de granito, o tipo de cara que nunca vacilava.

Em tudo o que importava, comparado a Blay, Qhuinn era uma banheira de plástico perto de uma de porcelana; um conjunto incompleto de pratos ao lado de uma dúzia perfeita de louças; uma coisa rachada no meio de algo inquebrável.

Por algum motivo, porém, Blay o escolhera. Contra todas as possibilidades, o filho imperfeito e desonrado de uma das Famílias Fundadoras, o viciado sexual de olhos despareados, o vagabundo hostil e arredio... De algum modo acabara com o Príncipe Encantado, e caralho, se isso não o convertia.

Blay era o motivo que o fazia respirar, o lar que nunca tivera, a luz do sol que empoderava sua terra.

– Qhuinn? – Os olhos azuis iridescentes se apertaram. – Você está bem?

– Desculpe. – Ele se inclinou e pressionou os lábios na jugular do macho. – Eu me distraí. Mas você sempre tem esse efeito em mim, não é?

Quando Qhuinn se afastou, Blay estava corado – e excitado. Aquela fragrância era uma digressão que não podia ser facilmente ignorada.

A não ser pelo fato de que tinha um problema real para resolver.

– Diga aos irmãos que não demoro. – Qhuinn apontou na direção da sala de bilhar. – E que vou dar uma surra neles.

– Você sempre faz isso. Mesmo com Butch.

As palavras foram suaves, mas respaldadas por uma adoração que fazia com que Qhuinn contasse cada uma das suas bênçãos.

Cedendo ao instinto, Qhuinn se aproximou e sussurrou ao ouvido do cara:

– Talvez queira se alimentar bem na Última Refeição. Vou te manter ocupado o dia inteiro.

Com uma lambida no pescoço em que pretendia trabalhar mais tarde, Qhuinn se afastou antes que não pudesse mais se distanciar de seu par.

Seguindo ao redor da base da escada, passou por uma porta escondida e desceu pelo sistema de túneis que conectava os componentes da propriedade. O centro de treinamento subterrâneo da Irmandade ficava cerca de meio quilômetro afastado da mansão, e aquela passagem subterrânea ligando as duas partes era um espaço amplo iluminado por painéis de luzes fluorescentes afixados ao teto.

Enquanto ele avançava, o som dos seus passos ecoava ao redor, como se os coturnos aplaudissem a iniciativa.

Contudo, Qhuinn não sabia se eles estavam certos. Não fazia a mínima ideia do que estava fazendo ali.

A porta atrás do armário de suprimentos se abriu sem emitir nenhum som, uma vez inserida a senha; em seguida, o guerreiro passava ao longo de prateleiras repletas de papéis para impressora, canetas, blocos de anotação e outras merdas vindas da loja de materiais para escritório. A sala, além do depósito, apresentava a típica disposição de mesa, cadeira, computador e arquivos metálicos, e nenhuma dessas coisas foi particularmente percebida quando ele passou pela porta de vidro adiante para chegar ao corredor da frente. Com passadas longas e impacientes, atravessou todos os tipos de instalações de nível profissional – desde uma academia completa e sala de pesos à altura de Dwayne Johnson, até os vestiários e as primeiras salas de aula.

A porção destinada à clínica do centro de treinamento tinha outra quantidade de cômodos voltados ao tratamento, uma sala de operações e diversos leitos hospitalares. A doutora Jane, companheira de V., e o doutor Manello, companheiro de Payne, cuidavam de todo tipo de ferimentos obtidos em combate, além de problemas domésticos e sem falar dos partos de L.W., Nalla e dos gêmeos Lyric e Rhampage.

Qhuinn bateu na primeira porta ao se aproximar e não teve que esperar nem uma batida do seu coração para ter uma resposta.

– Entre! – a doutora Jane disse do lado oposto da porta.

A boa médica vestia roupas cirúrgicas e um par de Crocs. Sentada diante do computador na outra extremidade da bem equipada clínica, seus dedos voavam sobre o teclado enquanto ela atualizava o prontuário de alguém cabisbaixa; seus cabelos loiros curtos espetados como se ela tivesse passado a mão por eles durante horas.

– Um segundinho... – Ela apertou a tecla de “enter” e girou. – Ah, olá, papai. Como está?

– Ah, você sabe, imerso no amor.

– Aqueles seus bebês são maravilhosos. E olha que eu nem gosto de crianças.

O sorriso dela era acolhedor como uma torta de maçãs. Os olhos verde-montanha, por outro lado, eram afiados como raios laser.

– Graças a você, eles estão se saindo muito bem.

Houve uma deixa para o silêncio. Quando a conversa não evoluiu, ele se pôs a caminhar pela clínica, pois não conseguia ficar parado. Deu uma espiada nos equipamentos estéreis e imaculados sobre os gabinetes de aço inoxidável, inspecionou a maca vazia sob as luzes usadas nas operações, ajeitando as calças.

A médica apenas ficou sentada no seu banquinho, calma e silenciosa, deixando que ele se debatesse com a sua mente. Quando o celular dela tocou, Jane deixou que caísse na caixa de mensagens sem nem ver quem poderia ser.

– Provavelmente estou errado – ele acabou concluindo. – Que porra sei eu, afinal?

A doutora Jane sorriu.

– Na verdade eu te acho um cara bem inteligente.

– Não sobre este tipo de coisa. – Com um pigarro, Qhuinn propôs a si mesmo que prosseguisse; ainda que a doutora Jane não parecesse estar com pressa, ele estava entediando a si mesmo. – Olha só... eu amo a Layla.

– Claro que sim.

– E quero o melhor pra ela. Ela é a mãe dos meus filhos. Quero dizer, além de Blay, ela é a minha companheira por causa das crianças.

– Com certeza.

Cruzando os braços diante do peito, ele parou de andar e empostou-se de frente à doutora Jane.

– Não estou dizendo que sei alguma coisa sobre fêmeas. Coisas como os seus humores e por aí vai. Só que... Layla tem chorado muito. Quero dizer, ela tenta esconder isso de mim e do Blay, mas... toda vez que vou vê-la, encontro bolas de lenços de papel no cesto de lixo, e seus olhos estão brilhantes demais, o rosto, corado. Ela sorri, mas o sorriso nunca passa da superfície. Os olhos dela... são uma tragédia de merda. E... e eu não sei o que fazer, só sei que isso não está certo.

A médica assentiu.

– Como ela se porta com as crianças?

– É fantástica, pelo que posso ver. É totalmente devotada a eles, e eles estão crescendo. Na verdade, o único momento em que a vejo meio que feliz é quando os têm nos braços. – Pigarreou novamente. – Então, o que estou imaginando... ou perguntando, sei lá, é se as fêmeas gestantes, depois que não estão mais grávidas, se elas não...

Jesus, ele merecia todo tipo de prêmio por saber se explicar tão bem. E os termos técnicos com os quais se debatia? Praticamente estava a um passo de receber o título de doutor em Medicina, assim como Jane.

Cacete.

Mas pelo menos a doutora Jane parecia reconhecer que aquele avião conversacional estava ficando sem pista para decolar.

– Acho que está querendo me perguntar a respeito de depressão pós-parto. – Após vê-lo assentir, ela prosseguiu: – Posso lhe afirmar que não é incomum entre os vampiros, e que pode ser incapacitante. Conversei com Havers a respeito disso antes, e estou muito feliz que tenha vindo me procurar para tratar do assunto. Às vezes, uma mãe recente sequer está ciente de que isso pode se tornar um problema.

– Não existe nenhum exame... ou um... sei lá.

– Existem algumas maneiras diferentes de avaliar a questão, e o comportamento é uma delas. Claro que posso ir conversar com ela, e também posso fazer alguns exames de sangue para avaliar os níveis hormonais. E, sim, existem muitas coisas que podemos fazer para tratar dela e dar-lhe o apoio necessário.

– Não quero que Layla pense que estou agindo pelas costas dela nem nada assim.

– O que é totalmente compreensível. Mas tudo bem, porque eu pretendia mesmo subir até lá para dar uma olhada nela e nos bebês. Posso abordar o tema como se fosse parte de uma rotina. Nem terei que citar seu nome.

– Você é a melhor.

Com o assunto resolvido, ele supôs que era hora de voltar para junto do seu companheiro e para o torneio de bilhar. Mas não saiu. Por algum motivo, não conseguia.

– Não é sua culpa – garantiu a doutora Jane.

– Eu a engravidei. E se o meu... – Ok, ela era médica, mas Qhuinn ainda não queria pronunciar a palavra esperma perto dela. O que era loucura. – E se a minha metade for a causa...

A porta se abriu, e Manny enfiou a cabeça pela abertura.

– Ei, está pronta...? Opa, desculpem.

– Estamos quase terminando aqui. – A doutora Jane sorriu. – E você não nos viu juntos.

– Pode deixar. – Manny bateu na soleira. – Se eu puder ajudar de alguma maneira, é só avisar.

E lá se foi o cara, como se nunca tivesse aparecido ali.

A doutora Jane se levantou e se aproximou dele. Era mais baixa do que Qhuinn, e sua estrutura nem se comparava aos quase 140 quilos de músculos masculinos. Mas ela parecia pairar acima dele; a autoridade na voz e nos olhos dela era exatamente o que ele precisava para acalmar seu lado irracional.

Quando encostou a mão no braço dele, sua expressão estava firme.

– Não é sua culpa. Esse, às vezes, é o curso da natureza em algumas gestações.

– Fui eu quem colocou aqueles bebês dentro dela.

– Sim, mas imaginando que este seja um caso de os hormônios se autorregularem após o parto, não há ninguém para culpar. Além disso, você agiu bem ao vir até aqui, e também pode ajudá-la simplesmente conversando com ela e lhe dando o tempo e o espaço necessários para que ela também converse com você. Para ser sincera, eu já havia notado que ela não tem descido para as refeições. Acho que precisamos encorajá-la a se juntar ao resto de nós, para que ela sinta o quanto estamos disponíveis para ampará-la.

– OK. Certo, então.

A doutora Jane franziu a testa.

– Posso lhe dar um conselho?

– Por favor.

Ela o apertou no braço.

– Não se sinta responsável por algo sobre o qual não tem controle algum. Isso é um convite ao estresse que acabará deixando-o loucamente infeliz. Sei que é mais fácil falar do que fazer, mas tente se lembrar disso, está bem? Eu o vi acompanhá-la a cada estágio da gestação. Não houve nada que você não tenha feito por ela ou que não faria por ela, e você é um pai fantástico. Somente coisas boas o esperam, eu prometo.

Qhuinn inspirou fundo.

– Certo.

Mesmo quando sua preocupação persistiu, ele se lembrou de que, durante a gestação de Layla, descobrira que podia confiar na doutora Jane. A médica o ajudara a trilhar a estrada da vida e da morte, e nunca o decepcionara, nunca deixara que se desgarrasse. Tampouco mentira para ele e lhe dera maus conselhos.

– Vai ficar tudo bem – ela prometeu.

Infelizmente, como pôde-se perceber mais tarde, a boa médica estava errada.

Mas ela não tinha controle algum sobre o destino.

Nem ele.


CAPÍTULO 4

O bebê estava arruinado. Tudo o que detinha não passava de uma versão modificada e horrenda das feições de Hharm; o lábio superior era todo errado, como o de uma lebre.

Hharm largou o bebê no piso sujo da caverna, e a coisa não emitiu som algum ao aterrissar, os braços e as pernas mal se moviam, as carnes azuladas e acinzentadas, o cordão ainda o unia à fêmea. Iria morrer, assim como deveriam todos os resultados contra as regras da natureza e do parto – e essa consequência não era causa de indignação.

O fato de Hharm ter sido ludibriado, porém, o era. Desperdiçara dezoito meses, uma quantidade enorme de horas, aquele momento de esperança e de felicidade numa monstruosidade insuportável. E o que ele sabia com certeza? Que não era culpa sua.

– O que você fez? – exigiu saber da fêmea.

– Um filho! – Ela arqueou as costas em agonia renovada. – Eu lhe dei...

– Uma maldição. – Hharm se levantou em toda a sua altura. – O seu ventre é impuro. Ele corrompeu o presente do meu sêmen e produziu isso...

– O seu filho...

– Olhe para ele! Veja com seus olhos! Isso é uma abominação!

A mulher se esforçou e suspendeu a cabeça.

– Ele é perfeito, ele é...

Hharm empurrou o bebê com a bota, fazendo com que ele movesse os pequenos membros e emitisse um gritinho fraco.

– Nem mesmo você pode negar o que está diante de nós!

Os olhos injetados dela se afixaram no bebê, e depois se arregalaram...

– Isso é...

– Você fez isso – ele anunciou.

A ausência de argumentos por parte dela foi uma rendição inevitável, visto que o defeito não podia ser negado. Então ela gemeu como se ainda estivesse em trabalho de parto, os dedos ensanguentados arranharam a terra fria, as pernas tremeram quando se afastaram mais. Depois de mais esforços, algo saiu da mulher, e ele pensou que talvez fosse mais um. De fato, seu coração se viu cheio de otimismo enquanto ele rezava para que o primeiro fosse exhile dhoble, o amaldiçoado de um par de gêmeos.

Infelizmente, não. Era apenas algo do interior da fêmea, talvez o estômago ou o intestino dela.

E o bebê prosseguiu chorando, o peito se estufando e murchando com pouco efeito.

– Você deve morrer aqui, assim como ele – Hharm disse sem cuidado algum.

– Eu não...

– Suas entranhas estão saindo.

– O bebê é... – ela hesitou. – Ele...

– É uma abominação da natureza contra o desejo da Virgem Escriba.

A fêmea se calou e relaxou como se o processo da expulsão tivesse chegado ao fim, e Hharm aguardou pelo ataque em que a alma dela se desprenderia do corpo. Só que ela continuou a respirar e olhar para ele... e a existir. Que espécie de truque era aquele? A ideia de que ela não iria ao Dhunhd por conta disso era um insulto.

– Isso é obra sua – ralhou com a fêmea.

– Como sabe que não foi a sua semente que...

Hharm apoiou a bota na garganta dela e a pressionou, interrompendo-lhe as palavras. Quando uma onda de ódio induziu o corpo do guerreiro rumo a uma ação mortal, somente a possibilidade de que esse evento fosse um castigo por suas ações prévias o impediu de esmagar-lhe o pescoço.

Ela tem que pagar, foi seu pensamento abrupto. Sim, a culpa era dela, e o desapontamento causado necessitava de uma reparação.

Sibilando, ele revelou as presas.

– Deixarei que viva para que possa criar esta monstruosidade e que seja vista com ele. Esta é sua maldição por me amaldiçoar: ele ficará sempre em seu cangote, como um amuleto ou uma danação, e se eu descobrir que essa coisa morreu, eu a perseguirei e a esquartejarei centímetro a centímetro. Depois matarei a sua irmã, toda a prole dela e os seus parentes.

– O que está dizendo?!

Hharm se inclinou para baixo, o latejar no rosto e na cabeça parecia muito familiar.

– Ouviu minhas palavras. Conhece meu desejo. Desafie-o por sua conta e risco.

Quando ela se acovardou, o Irmão se afastou e fitou a sujeira proveniente do parto, a fêmea patética, aquele resultado horrendo – e cortou o ar com a mão, como se os apagasse da linha do tempo. Em meio aos bramidos da tempestade e à extinção da fogueira, ele foi até o casaco de peles.

– Você arruinou o meu filho – reclamou ao passar o peso das peles sobre os ombros. – O seu castigo é criar esse horror como declaração do seu fracasso.

– Você não é Rei – ela rebateu, fraca. – Não pode ordenar nada.

– Este é um serviço comunitário que faço aos machos, meus camaradas. – Apontou o dedo na direção do recém-nascido choroso. – Com isso grudado ao seu quadril, ninguém mais se deitará com você para sofrer de maneira similar.

– Não pode me forçar a isso!

– Ah, posso, sim, e o farei.

Ela era uma fêmea mimada e desafiadora por natureza, e fora isso o que o atraíra nela a princípio – tivera que lhe ensinar o que fazer e as orientações foram bem interessantes por um tempo. De fato, houvera apenas uma instância em que ela tentara exercer domínio sobre ele. Uma vez e nunca mais.

– Não me teste, fêmea. Já fez isso antes e deve se lembrar do resultado.

Quando ela empalideceu, ele assentiu na sua direção.

– Sim. Isso mesmo.

Ele quase a matara na noite em que lhe mostrara que, enquanto ele ficaria com que desejasse, quando e onde o quisesse, ela jamais teria permissão para se deitar com outro macho enquanto estivesse tangivelmente associada a ele. Foi logo depois disso que ela decidiu que a única possibilidade de prendê-lo seria dando-lhe o filho que ele almejava e, ao mesmo tempo, ele começara a pensar em seu legado.

Por azar, ela fracassara em seus objetivos.

– Eu odeio você – ela gemeu.

Hharm sorriu.

– O sentimento é mútuo. E mais uma vez lhe digo que é melhor garantir a sobrevivência dessa coisa. Se eu descobrir que o matou, revidarei a morte dele nas suas carnes e em toda a sua linhagem.

Dito isso, ele cuspiu duas vezes junto aos pés dela: uma por causa da fêmea e outra pelo bebê. Depois se afastou enquanto ela o chamava, e o bebê desertado berrava contra o frio.

Do lado de fora, a tempestade prosseguia, intensa, a neve rodopiante o cegava e depois diminuiu para uma revoada de pássaros que revelava todo o cenário. No vale logo abaixo, montanhas se elevavam às margens de um lago, a neve acumulada sobre a água congelada que formava ondas nos meses mais quentes. Estava tudo escuro, gélido e inerte, mas ele se recusava a encontrar um mau presságio na imagem à sua frente.

Com a mão usada para a adaga comichando, e a hostilidade dentro dele acelerando como um corcel disparado, sugeriu a si mesmo que não atentasse para esse resultado.

Encontraria outro ventre.

Em algum lugar, havia uma fêmea que lhe daria o legado merecido e necessário. Ele a encontraria e a faria crescer com a sua semente.

Existiria um filho apropriado para ele. Hharm jamais aceitaria qualquer outro resultado.


CAPÍTULO 5

Quando se aproximou da entrada da caverna sagrada da Irmandade, Tohr se esgueirou pelo interior úmido, e uma vez ali dentro, o cheiro de terra e de uma fonte de chamas distante irritou suas narinas. Os olhos se ajustaram de imediato, e quando ele seguiu em frente, aquietou o movimento de seus coturnos. Não queria ser ouvido, mesmo que sua presença fosse notada logo em seguida.

Os portões não estavam muito longe e eram constituídos por grossas barras de ferro, cuja espessura era semelhante a de um antebraço de guerreiro; as barras de ferro eram altas como árvores e possuíam uma cobertura em malha de aço, a fim de impedir a desmaterialização. Tochas sibilavam e tremeluziam em cada lado e, além, ele via o começo do grande corredor que conduzia mais para dentro da terra.

Parando diante da enorme barreira, pegou a chave de cobre e não sentiu remorso algum por ter roubado o objeto da gaveta da escrivaninha ornamental de Wrath. Pediria desculpas pela infração mais tarde.

E também pelo que faria na sequência.

Tohr destrancou o mecanismo, empurrou o peso colossal, entrou e voltou a trancar o portão atrás de si. Caminhando à frente, seguiu o caminho natural, expandido por talhadeiras e músculos fortes, e depois adornado por prateleiras. Sobre as diversas tábuas, centenas e centenas de jarros alimentavam um jogo de luz e sombras.

Os receptáculos eram de todos os formatos e tamanhos, e vinham de diferentes eras, desde a antiga até a moderna, mas o que havia dentro de cada um deles era o mesmo: o coração de um redutor. Desde o princípio da guerra contra a Sociedade Redutora, ainda no Antigo País, a Irmandade vinha marcando as mortes dos inimigos ao tomar posse dos jarros das vítimas e trazendo-os até ali para aumentar a coleção.

Em parte como troféu, em parte como um “foda-se, Ômega”, aquilo era um legado. Era um orgulho. Uma expectativa.

E talvez deixasse de sê-lo. Havia poucos e esparsos redutores nas ruas de Caldwell e em outras paragens no momento, portanto deveriam estar próximos.

Tohr não sentiu nenhuma alegria ante tal conquista. Mas talvez fosse em virtude do terrível aniversário dessa noite.

Era difícil sentir qualquer outra coisa que não a perda de Wellsie no dia que já fora seu aniversário.

Após uma curva sutil, ele parou. Mais adiante, a cena mais parecia saída de um filme que não se decidia se era Indiana Jones, Grey’s Anatomy ou Matrix. No centro das antigas paredes de pedra, tochas acesas e jarros despareados e empoeirados, um amontoado de equipamentos médicos piscando e emitindo sinais interferia com um corpo sobre uma maca. E ao lado do prisioneiro? Dois imensos vampiros cobertos da cabeça aos pés com couro preto e armas negras.

Butch e V. eram o Frick e Frack da Irmandade – o ex-policial da divisão de homicídios dos humanos e o filho da Criadora da raça, o bom garoto católico e o depravado sexual, o viciado em roupas e o czar da tecnologia –, unidos pela devoção partilhada pelo Red Sox de Boston e respeito mútuo e afeto que não conheciam limites.1

V. percebeu a presença de Tohr primeiro, virando com tanta rapidez que seu cigarro aceso espalhou cinzas pelo ar.

– Ah, inferno. Não. De jeito nenhum, porra! Você vai dar o fora daqui!

Essa opinião, a despeito do volume pronunciado, foi fácil de ignorar, pois Tohr se concentrava no pedaço de carne sobre a maca. Xcor estava deitado ali, com tubos entrando e saindo de si como se ele fosse a bateria de um carro prestes a receber uma recarga, com a respiração regular... Não, espere, a respiração não estava regular.

V. deteve Tohr, aproximando-se dele e ainda um pouco mais. E o que mais? O Irmão sacara seu atirador poodle – e o cano da 40 mm apontava diretamente para o rosto de Tohr.

– Tô falando sério, meu irmão.

Tohr olhou para o prisioneiro por cima do ombro largo. E se viu sorrindo.

– Ele está acordado.

– Não, ele não est...

– A respiração dele mudou. – Tohr apontou para o peito nu. – Veja.

Butch franziu o cenho e se aproximou do prisioneiro.

– Ora, ora, ora... Hora de acordar, filho da mãe.

V. virou-se para trás.

– Filho da puta.

Mas a arma não se moveu, tampouco Tohr. Por mais que quisesse Xcor, ele acabaria recebendo uma bala na garganta se desse mais um passo: V. era o menos sentimental dos irmãos e tinha a paciência de uma cascavel.

Naquele momento, os olhos de Xcor piscaram. Na luz tremeluzente das tochas, eles pareciam negros, mas Tohr se lembrava de que eles eram azuis. Não que isso importasse.

V. colocou a cara no seu caminho, os olhos de diamante eram como adagas.

– Este não vai ser o presente de aniversário que vai dar para a sua shellan morta.

Tohr arrastou os lábios para trás das presas.

– Vai se foder.

– Isso não vai acontecer. Pode me xingar o quanto quiser, mas não. Você sabe como as coisas vão acontecer e ainda não está na sua hora.

Butch sorriu para o prisioneiro.

– Estávamos esperando que se juntasse à festa. Aceita uma bebida? Talvez um misto de nozes antes ter que ajeitar a poltrona para a decolagem? Não há por que te mostrar as saídas de emergência. Você não tem que se preocupar com isso.

– Vamos, Tohr – V. disse. – Agora.

Tohrment expôs as presas, mas não para o irmão.

– Seu bastardo, vou te matar...

– Não, nada disso. – V. passou o braço ao redor do bíceps de Tohr, e faltou pouco para começarem a dançar uma quadrilha. – Lá fora...

– Você não é Deus...

– Nem você, motivo pelo qual está de saída.

Nos recessos da mente, Tohr sabia que o filho da mãe tinha razão. Ele não estava nem meio racional no momento – e P.S., que V. se fodesse por se lembrar que noite era aquela.

Sua amada shellan, seu primeiro amor, completaria duzentos e vinte e seis anos. E teria um filho dos dois nos braços.

Mas o destino se opusera.

– Não me obrigue a atirar em você – V. alertou com aspereza. – Venha, meu irmão. Por favor.

O fato de as duas últimas palavras terem saído da boca de V. foi o que surtiu efeito. A cena era tão chocante que desarmou Tohr de sua loucura e raiva.

– Venha, Tohr.

Dessa vez, Tohr se permitiu ser conduzido, à medida que seu grande esquema desinflanva; o silêncio absoluto depois de sua loucura o fazia tremer dentro da própria pele. Que porra estivera fazendo? Mas que cacete?

Sim, recebera o privilégio de matar Xcor com um decreto da realeza, mas só quando recebesse autorização expressa de Wrath. E isso ainda não acontecera explicitamente.

Tinham evitado um desastre de proporções traidoras.

Seria como trocar de lugar. Um traidor morto por outro bem vivo.

Quando chegaram aos portões que Tohr havia destrancado para conseguir acesso ao prisioneiro, V. estendeu a mão enluvada.

– Chave.

Tohr não olhou para o irmão ao tirar o objeto da jaqueta de couro e entregá-la. Depois de uns cliques e rangidos, o caminho estava livre, e Tohr saiu sem estar convencido, com as mãos no quadril, os coturnos chutando a terra, a cabeça pensa.

Quando ouviu uma nova sequência de rangidos e cliques, deduziu que estava sendo trancado do lado de fora, sozinho. Mas V. estava bem ao seu lado.

– Eu prometo – o irmão disse – que você, e apenas você, vai mattá-lo.

Tohr se perguntou se isso bastaria. Ponderou se seria o bastante. Será que algum dia encontraria satisfação?

Antes de chegarem à boca da caverna, Tohr parou.

– Às vezes... a vida não é nada justa.

– Não. Não é.

– Odeio isso. Odeio pra caralho. Passo por... períodos, não apenas noites, mas semanas, às vezes até um ou dois meses... em que me esqueço de tudo. Mas a merda sempre volta e, depois de um tempo, não dá mais pra segurar. Não dá. – Bateu na lateral da cabeça com o punho. – Tem esse verme aqui dentro, e sei que matar Xcor não vai me distrair por mais do que dez minutos. Mas numa noite como esta, eu aceitaria até isso.

Sucedeu-se o som de um fósforo sendo riscado quando V. acendeu um cigarro.

– Não sei o que dizer, meu irmão. Eu diria pra você rezar, mas não tem mais ninguém lá em cima te ouvindo.

– Não tenho certeza se a sua mãe nos ouviu algum dia. Sem ofensas.

– Não ofendeu. – V. exalou. – Confie em mim.

Tohr se concentrou na saída da caverna, e quando tentou respirar, sentiu uma estranha exaustão.

– Estou cansado de lutar sempre a mesma briga. Desde que Wellsie foi... assassinada... sinto como se um pedaço meu nunca tivesse cicatrizado, e não aguento essa dor nem mais um segundo. Nem mais um maldito segundo. Mesmo que ela migrasse para algum outro lugar, já seria melhor.

Estabeleceu-se um longo silêncio entre eles, abafado apenas pelo urro dos ventos invernais que entravam na caverna silenciosa.

No fim, V. praguejou.

– Bem que eu gostaria de poder te ajudar, meu irmão. Quero dizer, se você precisar de um abraço confortador... eu devo conseguir alguém pra te dar uns tapinhas nas costas.

Tohr sacudiu a cabeça quando o lábio superior se retorceu num sorriso.

– Isso foi quase engraçado.

– Pois é, tentei pegar leve. – V. exalou de novo. – Era isso ou eu atirava em você, e odeio preencher a papelada burocrática do Saxton, sabe?

– Sei o que quer dizer. – Tohr esfregou o rosto. – Verdade...

Os olhos diamantinos de V. mudaram de foco.

– Apenas esteja ciente que lamento. Você não merece nada disso. – Certa mão pesada pousou no ombro de Tohr e apertou-o. – Se eu pudesse tirar a sua dor, é o que faria.

Quando Tohr piscou rápido, pensou que era uma coisa boa que V. não fosse de abraçar, ou então teriam um maldito colapso emocional acontecendo ali.

Do tipo de colapso que um macho não retornaria intacto.

Mas, pensando bem, ele estava mesmo intacto agora?


BOATE SHADOWS, CENTRO DE CALDWELL


Trez Latimer sentia-se como uma espécie de divindade ao olhar através da parede de vidro do escritório no segundo andar da sua boate. Abaixo, no espaço aberto do armazém convertido, uma multidão de humanos excitados estabelecia um padrão de atração e desdém num mar tumultuado de lasers púrpura e batidas pesadas de baixo.

Em grande escala, sua clientela era composta de millenials, os nascidos entre 1980 e 2000. Definidos pela internet, pelo iPhone, pela ausência de oportunidades econômicas – ao menos segundo a mídia humana –, era um grupo demográfico de moralistas perdidos, comprometidos em salvar uns aos outros, com a preservação dos direitos de todos, e a promoção de uma falsa utopia de pensamento liberal que fazia o macarthismo parecer atenuado.

Mas também eram, da maneira dos jovens, esperançosos sem fundamento.

E como ele os invejava.

Enquanto se esbarravam e colidiam uns nos outros, ele testemunhava o êxtase em seus rostos, o otimismo exuberante de que encontrariam o verdadeiro amor e a felicidade naquela noite mesmo – a despeito de todas as outras noites nas quais vieram até a sua boate e a aurora chegara, expulsando-o com nada além de exaustão, uma nova DST, e mais um fardo de vergonha e dúvida enquanto se perguntavam o que tinham feito, e com quem.

Ele suspeitava, contudo, que, para a maioria, a cura de tamanha angústia era apenas cerca de duas horas de sono, um venti latte da Starbucks e uma injeção de penicilina.

Quando se é jovem assim, quando ainda é preciso enfrentar os desafios que não se consegue sequer começar a compreender, a sua resistência não tem limites.

E era por isso que o vampiro desejaria poder trocar de lugar com eles.

Era estranho colocar os humanos em qualquer tipo de pedestal. Sendo um Sombra de mais de duzentos anos de vida, Trez há tempos considerava aqueles ratos sem cauda algo inferior, um tumulto inconveniente no planeta, bem como formigas na cozinha ou camundongos no porão. Só que não se podia exterminar os humanos. Sujeira demais. Melhor tolerá-los do que arriscar a exposição da espécie ao assassiná-los só para liberar vagas de estacionamento, diminuir as filas nos supermercados e as notificações do Facebook.

No entanto, ali estava ele, ansioso por trocar de lugar com qualquer um deles, mesmo que fosse por uma ou duas horas.

Improcedente.

Mas, pensando bem, eles não mudaram. Quem mudou foi ele.

Minha rainha, está na hora de partir? Conte-me se for.

Enquanto as lembranças o intimidavam dentro do cérebro, ele cobriu os olhos e pensou: Não, Deus. De novo, não. Não queria voltar para a clínica da Irmandade... para o lado do leito da sua amada Selena, morrendo por dentro enquanto ela expirava de verdade.

A verdade, contudo, era que ele jamais abandonara esses eventos, mesmo que o calendário sugerisse o contrário. Depois da passagem de mais de um mês, ele ainda se lembrava de cada mínimo detalhe da cena, desde a respiração torturada dela até o pânico no olhar enquanto lágrimas rolavam por ambos os rostos.

Sua Selena fora acometida por uma doença que raramente afetava membros da classe sagrada. Em todas as gerações de Escolhidas, algumas tiveram a Prisão, que era um jeito horrível de morrer: a mente era deixada viva na casca congelada do corpo, sem nenhuma escapatória, nenhum tratamento para ajudar, ninguém para salvar.

Nem mesmo o macho que a amava mais do que a própria vida.

Quando o coração de Trez tropeçou no âmago do peito, ele abaixou as mãos, meneou a cabeça e tentou se reconectar com a realidade. Estivera se debatendo contra esses episódios invasivos, e eles vinham se tornando mais frequentes em vez de menos – o faziam se preocupar com sua sanidade. Chegou a ouvir o ditado de que “o tempo cura as feridas” e, droga, talvez aquilo fosse verdade para outras pessoas. Para ele? Seu luto se transformara de dor incandescente, no começo, a uma agonia tão ardorosa que rivalizava com as chamas da pira funerária, até aquelas reminiscências crônicas que pareciam girar cada vez mais rápido ao redor do esteio aberto da sua perda.

Sua própria voz ecoava na cabeça: Eu entendi direito? Você quer que isto... termine?

Quando os momentos finais de Selena chegaram, ela já não conseguia mais falar. Tiveram que se apoiar num sistema de comunicação pré-combinado que supunha o controle dela sobre as pálpebras até quase o fim: uma piscada para não... duas para sim.

Você quer que isto... termine?

Ele soubera qual seria a resposta dela. Lera-o na expressão exausta, distante e enfraquecida dela. Mas aquela fora uma das vezes na vida em que se queria ter a mais absoluta certeza.

Ela piscara uma vez. E de novo depois.

E ele estivera ao lado dela quando as drogas pararam seu coração e lhe conferiram o alívio de que ela necessitava ao ser transportada.

Em todos os seus anos, ele jamais imaginara aquele tipo de sofrimento. Nas duas partes. Ele não teria conseguido criar uma morte pior saída de qualquer pesadelo, e não poderia ter imaginado que teria que assentir para Manny, autorizando-o a administrar o medicamento enquanto gritava internamente, pois seu amor se esvaía e o deixava sozinho pelo resto de suas noites.

O único conforto era que o sofrimento dela chegara ao fim.

A única realidade era que o seu tinha apenas começado.

No período subsequente, encontrou conforto no fato de que preferiria ser o responsável por sentir a ausência dela, e não o contrário. Mas, conforme o tempo prosseguiu, acabou usando demais esse antídoto, pois era o único que possuía, e agora ele já não surtia mais efeito.

Portanto, não havia nada para reavivá-lo. Tentou beber, mas o álcool só servia para ele perder o pouco controle que tinha sobre as lágrimas. Não dava a mínima para a comida. Sexo era algo completamente fora de questão. E ninguém o deixava lutar – pois tanto os Irmãos quanto iAm reconheciam seu estado desgovernado.

Portanto, o que lhe restava? Nada, a não ser se arrastar ao longo dos dias e das noites, e rezar para o mais básico dos alívios: um respiro desimpedido, um período de tranquilidade mental, uma hora de sono sem perturbações.

Ao estender a mão, tocou o painel de vidro inclinado que era a sua janela para o que ele considerava ser o outro mundo, o exterior do seu inferno isolado. Engraçado que ele agora considerava “outro” o que um dia fora o mundo “real”... E mesmo sem a separação das espécies, da idade, do seu poleiro acima da confusão da boate, ele se sentia tão à parte de todos eles.

Tinha a sensação de que sempre permaneceria afastado de todos.

E, francamente, ele simplesmente não poderia continuar assim.

A dor o destroçara e, se não fosse pelo fato de que os suicidas tinham a entrada negada no Fade, ele teria metido uma bala do seu 48 mm na cabeça horas após a morte dela.

Pensou que não suportaria outra noite assim.

– Por favor... me ajude.

Trez não fazia a mínima ideia de quem falava com ele. Do lado dos vampiros, a Virgem Escriba já não existia mais – e no seu atual estado mental ele compreendia por completo o motivo de ela ter largado o microfone e saído do palco de sua criação. E, como um Sombra, ele fora criado para adorar sua Rainha – o único problema era que ela estava vinculada ao seu irmão, e rezar para a cunhada parecia muito estranho.

Uma declaração autêntica de que toda aquela coisa espiritual não passava de um monte de asneira.

E, mesmo assim, seu sofrimento era tão grande que ele tinha que tentar buscar ajuda.

Inclinando a cabeça para trás, olhou para o teto baixo preto e despejou seu coração partido para o mundo:

– Eu só a quero de volta. Eu só... quero Selena de volta. Por favor... se existir alguém aí em cima, me ajude. Devolva-a para mim. Não me importo em que forma ela estiver... Eu só não consigo mais fazer isto. Não consigo mais viver assim nem pela porra de uma única noite.

Claro que não houve resposta. E ele se sentiu um completo idiota.

Pois é, como se a vastidão do universo lhe iria despejar outra coisa que não apenas um meteoro?

Além disso, será mesmo que existia um Fade? E se ele estivesse apenas alucinando durante a purificação e somente imaginara ter visto a sua Selena? E se ela só tivesse simplesmente morrido? Como se... tivesse apenas deixado de existir? E se todas as bobagens a respeito de um lugar celestial aonde nossos amados iam e esperavam pacientemente por nós não passasse de um mecanismo de defesa criado por aqueles deixados para trás mergulhados no tipo de agonia em que ele se encontrava?

Uma falácia mental para cuidar de um ferimento emocional.

Reajustando a cabeça, voltou a fitar a multidão abaixo...

Pelo vidro, o reflexo de uma imensa figura masculina parada logo atrás fez com que ele se girasse e levasse a mão para a arma que mantinha enfiada na lombar. Mas então reconheceu o indivíduo.

– O que você está fazendo aqui? – exigiu saber.


Dois patinadores suíços, Werner Groebli e Hans Mauch, cujos nomes artísticos eram Frick e Frack, nutriram uma parceria duradoura. Posteriormente, seus nomes se tornaram gíria para designar duas pessoas que trabalham juntas e se dão bem. (N.T.)


CAPÍTULO 6

A campina de 20 mil metros quadrados se elevava de uma estradinha deserta como oriunda do olhar crítico de um artista; todos os aspectos da colina e do vale pareciam sujeitos às regras dos padrões estéticos agradáveis. No alto do suave aclive coberto de neve, como uma coroa no topo da cabeça de um governante benevolente, um imenso bordo estendia seus galhos em uma áurea tão perfeita que mesmo a esterilidade do inverno não conseguia diminuir sua beleza.

Layla se desmaterializou até a base da colina, partindo da mansão, e subiu a pé até a árvore. Os chinelos usados no quarto não eram páreo para o chão congelado, o vento frio atravessava o roupão, e os cabelos se soltavam da trança, flanando ao seu redor.

Quando chegou ao cume, olhou para baixo, para as raízes do tronco glorioso dentro da terra.

Fora ali, pensou ela.

Ali, na base daquele bordo, ela vira Xcor pela primeira vez, convocada por alguém que ela acreditara ser um soldado de valor na guerra, alguém que ela alimentara na clínica da Irmandade... Alguém que a Irmandade deixara de lhe informar que, na verdade, era um inimigo e não amigo.

Quando o macho a chamara para que ela lhe provesse a veia, Layla não pensou em nada além do seu dever sagrado.

Por isso, transportara-se até ali... e perdera um pedaço de si no processo.

Xcor estivera à beira da morte, ferido e enfraquecido, e mesmo assim ela reconhecera sua força, ainda que em estado debilitado. Como poderia não tê-la notado? Era um macho tremendo, grosso no pescoço e no peito, forte nos braços, poderoso no corpo. Ele tentara recusar sua veia porque – ela gosta de acreditar – enxergara-a como uma inocente no conflito entre o Bando de Bastardos e a Irmandade da Adaga Negra, e quisera mantê-la afastada da situação. No fim, contudo, ele cedera, garantindo que ambos seriam a presa de uma ordem biológica que desconhecia a razão.

Ela inspirou fundo, observou a árvore e viu, através dos galhos desnudos, o céu noturno.

Depois que a verdadeira identidade de Xcor veio à tona, ela confessou a Wrath e à Irmandade suas ações, lacrimosamente clamando por perdão. E era um testemunho do rei e dos machos que o serviam o fato de a terem perdoado, e sem castigos, por ter prontamente ajudado o inimigo.

Em troca, era um parco testemunho da sua parte que ela tivesse voltado para junto de Xcor depois disso. Associou-se a ele. Tornou-se emocionalmente envolvida com ele.

Sim, existiu uma coerção inicial da parte dele na época, mas a verdade era que, mesmo que ele não a tivesse forçado? Sua vontade teria sido estar com ele. E o pior? Quando o relacionamento chegou ao fim, fora ele quem interrompera os encontros. Não ela.

Na verdade, ela o estaria vendo agora – e a dor da perda que sentia pela ausência dele era tão incapacitante quanto a culpa.

E isso foi antes ainda de ele ter sido capturado pela Irmandade.

Ela sabia exatamente onde ele havia sido aprisionado porque testemunhara suas condições naquela caverna... Sabia o que os Irmãos planejavam fazer com Xcor assim que ele despertasse.

Se ao menos houvesse um modo de salvá-lo... Ele nunca tinha sido cruel com ela, nunca a tinha ferido... jamais a havia abordado sexualmente, apesar do desejo que o habitava. Ele se manteve paciente e gentil... pelo menos até se afastarem.

Ele, entretanto, havia tentado matar Wrath. E essa traição era passível de punição com a morte...

– Layla?

Girando, ela tropeçou e caiu de lado, quase incapaz de se agarrar ao tronco áspero do bordo. Quando sentiu uma dor na palma, sacudiu-a na tentativa de apaziguá-la.

– Qhuinn! – exclamou.

O pai de seus filhos deu um passo à frente.

– Você se machucou?

Com um xingamento, ela limpou os arranhões, tirando a sujeira. Santa Virgem Escriba, como doía.

– Não, não. Estou bem.

– Pegue. – Ele apanhou algo de dentro do bolso da jaqueta de couro. – Deixe-me ver.

Ela tremia quando Qhuinn avaliou-lhe a mão e depois a envolveu na bandana preta.

– Acho que você vai viver.

Será?, ela pensou. Não tenho tanta certeza.

– Você está congelando.

– Sério?

Qhuinn tirou a jaqueta e a posicionou sobre os ombros dela, e Layla se viu engolfada pelo tamanho e pelo calor.

– Venha, vamos voltar para a mansão. Você está tremendo...

– Não posso mais fazer isso – ela desabafou num rompante. – Não consigo mais.

– Eu sei. – Quando ela se retraiu de surpresa, ele sacudiu a cabeça. – Sei o que há de errado. Vamos pra casa pra conversar. Vai ficar tudo bem, prometo.

Por um momento, ela não conseguiu respirar. Como ele podia ter descoberto? Como podia não estar bravo com ela?

– Como você... – As lágrimas surgiram com rapidez, a emoção se sobrepôs a tudo. – Sinto muito. Eu sinto muito... Não era para ser assim.

Ela não soube se foi ele quem abriu os braços ou se foi ela quem se lhe agarrou ao peito, mas Qhuinn a abraçou com força, protegendo-a do vento.

– Tá tudo bem. – Ele massageava grandes círculos nas costas dela com a palma, acalentando-a. – Só precisamos conversar a respeito. Podemos fazer algumas coisas, tomar algumas providências.

Ela virou o rosto para o lado e fitou a campina.

– Eu me sinto tão mal.

– Por quê? Isso está fora do seu controle. Não pediu por isso.

Ela se afastou.

– Eu juro, não pedi. E não quero que você pense nem por um segundo que eu poria Lyric e Rhampage em perigo...

– Tá de brincadeira? Sério, Layla, você ama aqueles dois com tudo o que tem dentro de si.

– Amo mesmo. Eu te garanto isso. E amo você e Blay, o Rei e a Irmandade. Vocês são a minha família, vocês são tudo o que tenho.

– Layla, preste atenção. Você não está sozinha, entendeu? E como eu já disse, existem coisas que podemos fazer...

– Mesmo? De verdade?

– Sim. Na verdade eu estava falando sobre isso antes de vir para cá. Eu não queria que pensasse que eu a estava traindo...

– Ah! Qhuinn! Eu sou a traidora! Sou eu quem está errada...

– Pare. Você não é. Vamos cuidar disso juntos. Todos nós.

Layla levou as mãos ao rosto, tanto a que estava com o curativo como a que estava descoberta. Então, pela primeira vez desde o que parecia ser uma eternidade, ela exalou o ar, um bálsamo de calma substituindo o terrível fardo que dispunha sobre si.

– Tenho que contar uma coisa. – Levantou o olhar para ele. – Por favor, saiba que tenho me remoído de arrependimento e de tristeza. Juro que nunca tive a intenção de que isso acontecesse. Tenho me sentido tão só, me debatendo com a culpa...

– Culpa é algo desnecessário. – Esfregou os polegares sob os olhos dela. – Você tem que se livrar disso, porque não consegue evitar o modo como se sente.

– Não consigo, de verdade, não consigo mesmo... E Xcor não é mau, não é tão ruim quanto você acha que ele é. Juro. Ele sempre me tratou com cuidado e gentileza, e sei que ele não voltaria a ferir Wrath. Eu sei disso...

– O quê? – Qhuinn franziu o cenho e sacudiu a cabeça. – Do que você está falando?

– Por favor, não o mate. É como você disse, existe um modo de fazer isso dar certo. Talvez vocês possam libertá-lo e...

Qhuinn não recuou; na verdade, ele a empurrou para longe de si. E depois pareceu se debater para encontrar as palavras.

– Layla – ele pronunciou devagar. – Sei que não estou ouvindo direito e estou tentando... Você pode...

Aproveitando-se do momento para expor sua posição, Layla se apressou em falar:

– Ele nunca me machucou. Todas as noites em que o procurei, ele nunca me feriu. Ele providenciou um chalé para que eu ficasse em segurança, e sempre estávamos apenas nós dois. Nunca vi nenhum dos Bastardos...

Ela prosseguiu enquanto a expressão do guerreiro se transformava de confusão para... algo gélido que lhe suscitou as feições de um completo desconhecido.

Quando Qhuinn voltou a falar, a voz saiu inexpressiva.

– Você esteve se encontrando com Xcor?

– Eu me senti muito mal...

– Por quanto tempo? – ele estrepitou. Mas não a deixou responder. – Você foi ao encontro dele enquanto estava grávida dos meus filhos? Você se associou por vontade própria com um inimigo conhecido enquanto os meus benditos filhos estavam no seu ventre? – Antes que ela conseguisse lhe responder, ele levantou o indicador. – E você precisa pensar muito bem na resposta. Não há volta para isto, e é melhor dizer a verdade. Se eu descobrir que mentiu pra mim, vou te matar.

Quando o coração de Layla começou a bater forte no peito, deixando-a tonta, seu único pensamento foi...

Você vai me matar de qualquer maneira.

De volta à shAdoWs, Trez guardou a arma e tentou retornar à realidade.

– E então? – ele inquiriu. – O que está fazendo aqui, ainda mais sem o seu poliéster especial do Tony Manero?

Lassiter, o Anjo Caído, sorriu de um modo que não contemplou seus estranhos olhos coloridos sem pupila; a expressão afetou apenas a parte inferior do rosto.

– Ah, você sabe, ternos de passeio estão ultrapassados para mim.

– Partindo para os anos 1980? Não tenho nada neon pra emprestar pra você.

– Não precisa, tenho outra fantasia para usar.

– Que bom pra você. Assustador pro resto de nós. Só me diz que não vai usar o maiô do Borat.

Quando o anjo não respondeu de pronto, Trez sentiu como se as garras de Fred Krueger estivessem passando pela sua nuca. Normalmente, Lassiter era o tipo de cara tão alegre que a maioria das pessoas não sabia se decidir entre meter uma bala nele para tirar todo mundo de um estado miserável... ou simplesmente apanhar uma lata de Coca-Cola e um saco de pipoca para assistir ao show.

Porque, mesmo quando ele irrita, a situação é sempre muito divertida.

Mas não essa noite. O olhar bizarro estava tão leve e espumoso quanto um bloco de granito, e o imenso corpo dele estava absolutamente imóvel, nenhum item de ouro nos pulsos ou pescoço, nos dedos ou orelhas, reluzia sob a luz baixa.

– Por que está brincando de estátua? – Trez murmurou. – Alguém trocou o lugar da sua coleção do My Little Pony de novo?

Incapaz de suportar o silêncio, Trez foi se sentar atrás da escrivaninha e começou a mexer em uma pilha de papéis.

– Está tentando ler minha aura ou alguma merda do tipo?

Não que para isso fosse necessário algum poder especial. Todos na mansão sabiam em que estado ele estava.

– Quero que vá jantar comigo amanhã à noite.

Trez levantou o olhar.

– Pra quê?

O anjo levou o tempo que quis para responder, seguindo devagar até o painel de vidro para encarar a multidão logo abaixo, no exato lugar em que Trez estava antes. Iluminado pela luz fraca, o perfil do anjo era o tipo de imagem que as fêmeas adorariam, com todas as proporções e os ângulos certos. Mas a cara de preocupação...

– Manda ver – Trez exigiu. – Já recebi uma vida inteira de más notícias. O que quer que seja, nada se compara ao que tenho passado.

Lassiter relanceou e deu de ombros.

– É só um jantar. Amanhã à noite. Sete horas.

– Eu não como.

– Sei disso.

Trez largou a pilha de faturas, de escala dos funcionários ou qualquer outra porra que o vinha mantendo ocupado, ainda que não as estivesse olhando de fato, junto ao amontoado de porcarias sobre a escrivaninha.

– Acho muito difícil acreditar em seu interesse a respeito de nutrição.

– Verdade. Essa coisa de “glúten é o seu inimigo” é uma bobagem sem fim. Nem me fale de Kombuchá, couve, ou qualquer coisa com propriedades antioxidantes, e na mentira de que o xarope de milho com alto teor de frutose é a fonte de todo o mal.

– Ouviu falar que a Kraft Macaroni & Cheese tirou todos os conservantes há meses?

– Pois é, e os filhos da mãe nem avisaram antes...

– Por que quer jantar comigo?

– Só estou sendo amigável.

– Não faz parte do seu estilo.

– Como disse antes, estou mudando algumas coisas. – Eeeee lá veio aquele sorriso de novo. – Pensei em começar com tudo. Quero dizer, se é pra virar a página, melhor começar do jeito que se deseja continuar.

– Sem ofensas, mas não estou a fim de passar tempo com pessoas de quem gosto de verdade. – Tudo bem, aquilo não soou muito bem. – O que quero dizer é que o meu irmão é o único que consigo tolerar agora, e nem ele eu quero ver.

Aquele sorriso de Lassiter era uma visão que Trez estava mais do que disposto a jamais rever – e observe como orações podem ser atendidas: o anjo estava seguindo para a porta.

– Te vejo amanhã.

– Não, obrigado.

– No restaurante do seu irmão.

– Ah, mas que porra, por quê?

– Porque ele serve o melhor macarrão à bolonhesa em Caldie.

– Você sabe o que eu quis dizer.

O anjo se limitou a dar de ombros.

– Vá lá e descubra.

– O inferno que vou! – Trez meneou a cabeça. – Olha só, sei que as pessoas andam preocupadas comigo e agradeço a preocupação. – Na verdade, não agradecia não. Nem um pouco. – Sim, perdi peso, e eu deveria comer mais. Mas é engraçado como, quando se tem o peito escancarado e o coração arrancado pelo destino, se perde o apetite. Por isso, se está querendo companhia só para não parecer que está jogando sozinho, por que não procura alguém que coma de verdade e troque mais de duas palavras com ela? Posso garantir que tanto eu quanto você teremos uma noite mais agradável assim.

– Até amanhã.

Quando o anjo saiu, Trez gritou para a ponta oposta do escritório:

– Vai se foder!

Quando a porta se fechou em silêncio, ele concluiu que, pelo menos, a discussão não continuaria. E quando estivesse comendo a bolonhesa sozinho, Lassiter entenderia que o Sombra não apareceria.

Problema resolvido.


CAPÍTULO 7

Há momentos na vida em que a amplitude da sua atenção se estreita em um foco tão exíguo que toda a sua consciência se concentra nessa única pessoa. Qhuinn não era alheio a esse fenômeno. Ele acontecia toda vez que estava sozinho com Blay. Quando segurava os filhos. Quando lutava contra o inimigo, em busca de garantir que voltaria para casa inteiro, sem ferimentos e concussões.

E estava acontecendo de novo agora.

Parados diante da base da árvore de Harry Potter, no topo de uma colina, com o vento invernal ao redor, Qhuinn estava ciente apenas do olho direito de Layla. Conseguia contar cada nuance verde-clara que irradiava do núcleo preto da íris. Poderia haver uma nuvem de cogumelos resultante de uma explosão nuclear ao longe, uma nave espacial acima da sua cabeça, uma fila de palhaços dançando ao seu lado... e ainda assim ele não teria visto, ouvido, percebido nada além daquilo.

Bem, isso não era inteiramente verdade.

Percebia de leve o rugido em seus ouvidos, um tipo de cruzamento do motor de um jato e dos fogos de artifícios que sibilam como uma banshee, girando em círculos até se exaurir.

– Responda – ele ordenou numa voz que não parecia a sua.

Ele a havia seguido até aquele local isolado quando sentiu sua ausência na mansão – e se deslocou até ali para falar com ela sobre depressão pós-parto. O plano era levá-la de volta para casa, confortá-la diante da lareira, colocá-la num caminho em que ela pudesse apreciar os seres pelos quais tanto se empenhou em trazer ao mundo.

Como diabos acabaram falando de Xcor e de ela ter se encontrado com ele?

Não fazia a mínima ideia.

Mas não havia mais nenhum mal-entendido. E nenhuma retratação a caminho. Ele via no olhar arregalado e no pânico silencioso que, apesar de seu desejo de que aquela fosse uma colossal falha de comunicação de proporções risíveis, não era o caso.

– Eu estava segura – ela sussurrou. – Ele nunca me feriu.

– Mas que porra q...

Ele se deteve nesse aspecto. Iria direto ao ponto, como se faz com o detonador de uma bomba.

Antes que ele fizesse ou dissesse algo de que se arrependeria, afastou-se e flexionou os dedos para que não se cerrassem em punhos.

– Qhuinn, juro que nunca estive em perigo...

– Você ficou sozinha com ele. – Quando Layla não respondeu, ele cerrou os molares. – Não ficou?

– Ele nunca me machucou.

– Ok, isso é o mesmo que dizer que nunca foi picada enquanto usava uma cobra como cachecol. Uma vez depois da outra. Porque essa porra aconteceu com frequência, não foi? Responda!

– Sinto muito, Qhuinn... – Ela parecia querer se recompor, fungando as lágrimas e aprumando os ombros. O modo como os olhos dela suplicavam perdão o levou à beira da violência. – Oh, Santa Virgem Esc...

– Pare com as súplicas! Não há mais ninguém lá em cima! – Ele estava perdendo o controle. Por completo. – E que diabos está fazendo com esse pedido de perdão? Você colocou meus filhos em risco por livre e espontânea vontade só porque queria... – Ele se retraiu. – Jesus Cristo. Você fez sexo com ele? Você trepou com ele com os meus filhos dentro de você?

– Não! Nunca estive com ele dessa forma!

– Mentirosa – ele urrou. – Você é uma vadia mentirosa...

– Sou praticamente virgem! E você sabe disso! Além do mais, você não me quer. Por que se importa?

– Está querendo sugerir que sequer o beijou? – Quando ela não respondeu, ele riu com aspereza. – Nem tente negar. Está escrito na sua cara. E você tem razão, eu não te quis, nunca te quis... E não tente distorcer as coisas. Não estou com ciúmes; estou enojado. Amo um homem de valor e tive que ir para a cama com você porque precisava de uma incubadora pro meu filho e pra minha filha. Por isso e pelo fato de você ter se jogado em cima de mim quando esteve no cio, esses foram os únicos motivos pelos quais estive com você.

O rosto de Layla empalideceu, e por mais que isso o tornasse um cretino, ele gostou. Queria feri-la por dentro, que era onde contava, porque, por mais furioso que estivesse, jamais bateria numa fêmea.

E essa era a razão por ela ainda estar de pé.

Aqueles bebês, aqueles preciosos e inocentes bebês, foram levados até a boca de um monstro, na presença do inimigo, expostos ao perigo que o teria feito se cagar nas calças caso tivesse sabido à época do acontecimento.

– Você faz alguma ideia do que ele é capaz de fazer? – Qhuinn perguntou com seriedade. – As atrocidades que cometeu? Ele esfaqueou o próprio tenente nas entranhas só para mandá-lo para as nossas mãos. E no passado, no Antigo País? Ele assassinou vampiros, humanos, redutores, qualquer um que lhe atravessasse o caminho, às vezes movido pela guerra, outras só por diversão. Ele era a mão direita de Bloodletter. Você consegue imaginar o que ele já fez nesta terra? Quero dizer, você evidentemente não dá a mínima para o fato de ele ter metido uma bala no pescoço de Wrath – está claro que isso não significa nada para você. Aquele bastardo poderia tê-la violentado mil vezes, estripado você e deixado que ardesse sob o sol – com os meus filhos dentro de você! Que tipo de porra de brincadeira você está armando pra cima de mim?!

Quanto mais Qhuinn pensava a respeito dos riscos a que ela se expôs, mais sua cabeça latejava. Seus amados filhos poderiam muito bem não existir por conta das más escolhas da fêmea, que apenas por preceito biológico, fora o abrigo deles até que pudessem respirar sozinhos.

Tinha colocado-os em perigo ao se arriscar – sem nenhum pensamento aparente quanto às consequências ou como ele, o pai biológico, poderia encarar tamanho fiasco.

Sua fúria, nascida do amor que nutria pelos bebês, era indefinível. Inegável. Inesgotável.

– Nós dois os desejamos – ela disse, rouca. – Quando nos deitamos, nós dois os quisemos...

Numa voz impassível, ele a interrompeu:

– Pois é, isso eu lamento. Melhor que eles não tivessem nascido do que ter metade de você neles.

Layla estendeu a mão para mais uma vez se apoiar na árvore – e, como foi a mão que estava envolvida por sua bandana, ele se percebeu sufocado pela necessidade de arrancar o pedaço de pano da mão dela. Para depois queimá-lo.

– Fiz o melhor que pude – ela afirmou.

Ele gargalhou, então, até que a garganta queimasse.

– Está se referindo ao tempo em que dormiu com Xcor? Ou quando pôs em risco a vida dos meus filhos?

De uma vez só, ela retribuiu a raiva dele com um jorro da sua:

– Você tem aquele a quem ama! Deita-se ao lado dele todos os dias! A sua vida tem objetivo e significado, além de servir a outrem – enquanto eu não tenho nada! Passei todas as minhas noites e dias servindo a uma divindade que já não se importa mais com a raça que gerou e agora sou a mahmen de dois bebês a quem amo com todo o meu coração, mas que não são eu. O que tenho para mostrar da minha vida? Nada!

– Nisso você acertou – ele concordou, sério. – Porque não será mais a mãe dos meus filhos. Você perdeu o seu emprego.

Ela se retraiu com indignação.

– O que está dizendo? Sou a mahmen deles. Eu...

– Não é mais.

Houve um instante de silêncio, e depois a voz explodiu para fora dela:

– Você não pode... Não pode tirar Lyric e Rhamp... Não pode afastá-los de mim! Sou a mahmen deles! Tenho meus direitos...

– Não, não tem. Você se associou ao inimigo. Cometeu um ato de traição. E vai ter sorte se sair desta com vida – não que eu me lixe se você viver ou morrer. A única coisa que me importa é que nunca mais veja os bebês...

A mudança no interior dela foi instantânea e arrebatadora.

De uma vez só, Layla passou de irada a absolutamente calada. E a mudança foi tão abrupta que ele teve de ponderar se ela não sofrera uma síncope.

Mas, em seguida, os lábios de Layla se retraíram das presas que desciam. E o som que saiu de dentro dela eriçou os pelos de sua nuca num alerta.

Quando abriu a boca, a voz dela foi letal como as lâminas de uma adaga.

– Não recomendo que tente me impedir de ver meu filho e minha filha.

Qhuinn expôs as próprias presas.

– Espere e verá.

O corpo da Escolhida se curvou e ela se agachou, o sibilo que ela emitiu era de uma víbora. Só que ela não saltou sobre ele para despedaçar seu rosto com as garras.

Layla simplesmente se desmaterializou.

– Ah, inferno! Não! – ele gritou para o cenário invernal frio e alheio a tudo. – Você quer guerra, é o que vai ter, cacete!

– ... vezes em que ainda sinto vontade – Blay dizia ao sorver um gole do seu copo com gelo. – Para os humanos, é um vício letal. Mas vampiros não têm que se preocupar em adquirir câncer por fumar.

A sala de bilhar da Irmandade estava quase deserta, visto que o torneio foi encerrado quando Butch teve de assumir o posto ao lado de Xcor, Tohrment pediu para se retirar, Rhage chegou machucado do campo, e Rehv decidira ficar nos Grandes Campos com Ehlena. Mas tudo bem. Blay ainda conseguira jogar com Vishous, e os dois circundavam a mesa central dentre as cinco, alternando-se nas jogadas. A boa notícia? Lassiter estava em algum outro lugar, o que significava que a TV acima da imensa lareira estava na ESPN, no mudo.

Nada de filmes da Disney com aquelas canções ridículas esta noite.

Se Blay tivesse que ouvir as merdas do Frozen uma vez mais, ele iria “let it goooooo” pra valer.

No sentido de esvaziar uma magazine bem diante do seu próprio lobo frontal.

Do outro lado da mesa, Vishous acendeu outro dos seus cigarros enrolados por ele mesmo.

– Então por que parou de fumar?

Blay deu de ombros.

– Qhuinn odeia cigarros. O pai dele fumava cigarros e cachimbo, então acho que isso o faz se lembrar de coisas das quais prefere esquecer.

– Você não deveria ter que mudar por ninguém.

– Fui eu quem escolheu parar. Ele nunca me pediu.

Enquanto o Irmão se inclinava sobre a mesa para alinhar o taco, Blay relembrou o início de sua história com Qhuinn. Esse papo de fumar começou quando teve de ficar assistindo ao macho que amava foder qualquer coisa que se movesse. Um período horrível. Não, não tinham um relacionamento – e toda vez que Qhuinn saía com alguém, isso servia de lembrete de que jamais estariam em um.

Caramba. Na época, ele sequer havia saído do armário.

O estresse e a tristeza foram difíceis de controlar, mas também houve um ressentimento borbulhante e irracional de sua parte. Por isso abraçara um mecanismo de compensação que Qhuinn não teria aprovado nem gostado. Fora uma desforra subversiva e mesquinha pelos pecados que o macho na verdade não cometera.

Mas, pelo menos, deixar de fumar tinha sido simples. Assim que os dois se entenderam? Ele deixou os maços de Dunhill de lado e nunca mais olhou para trás.

Bem... Talvez seja mais preciso afirmar que nunca escorregou no vício. Às vezes, quando via Vishous acendendo um, e o cheiro do tabaco permeava o ar, ele ansiava fumar um cigarro...

Bem quando V. lançou a bola da vez no meio do arranjo central, um som horrível de batidas resoou no vestíbulo. Alto, repetitivo, forte o bastante para sacudir e fazer tremer a maciça e grossa porta de carvalho da entrada da mansão, de modo que mais parecia que uma horda de redutores estava tentando invadi-la.

Blay sacou a arma que portava na casa enquanto ele e V. largavam os tacos e corriam para fora da sala de bilhar até a entrada principal.

Bam-bam-bam-bam!

– Mas que porra é essa? – V. murmurou ao olhar para o monitor de segurança. – Que diabos há de errado com o seu garoto?

– O quê?

A pergunta foi respondida quando V. soltou a trava e Qhuinn entrou explodindo no vestíbulo. O macho estava furioso a ponto de parecer possuído, o rosto contraído de raiva, o corpo disparado numa corrida, seu estado tal que ele parecia alheio à presença de qualquer um.

– Qhuinn? – Blay tentou segurá-lo pelo ombro ou pelo braço.

Não teve jeito. Qhuinn chegou à escadaria e deu uma de Usain Bolt, os degraus cobertos pelo tapete vermelho foram consumidos por saltos ligeiros.

– Qhuinn! – Blay disparou atrás do que quer que estivesse acontecendo, tentando alcançá-lo. – O que foi?

No alto da escadaria, os coturnos de Qhuinn se enterraram no carpete e por pouco não derraparam ao virar à esquerda no corredor das estátuas. Logo atrás dele, Blay se apressou, e quando a direção que ele tomava ficou clara, um súbito terror se apossou dele.

Layla e as crianças deviam estar em algum perigo...

Na porta do quarto de Layla, Qhuinn agarrou a maçaneta e girou – só para bater de cara na madeira.

Cerrando um punho, ele começou a bater na porta com tanta força que lascas de pintura começaram a cair.

– Abra a porra desta porta! – Qhuinn berrou. – Layla, abra esta maldita porta agora mesmo!

– Mas que diabos você está fazendo?! – Blay tentou impedi-lo. – Ficou louco...

A arma de Qhuinn saiu sabe-se lá de onde, e quando o Irmão a virou e direcionou o cano para o rosto de Blay, ficou claro que se tratava de algum tipo de pesadelo, o resultado inevitável de uma segunda dose de vinho do Porto depois do jantar de carneiro de Fritz.

Só que não.

– Fique fora disso – Qhuinn estrepitou. – Fique fora disso.

Enquanto Blay erguia ambas as mãos e recuava, Qhuinn virou o ombro para a porta e a empurrou com tanta força que a madeira rachou, os painéis se partindo sob a força do golpe.

O que se revelou dentro do quarto cor de lavanda foi igualmente aterrador.

Enquanto Vishous parava de pronto ao lado de Blay e Z. saía da sua suíte ao fim do corredor, o cérebro de Blay para sempre ficaria maculado pela visão incompreensível e inescapável de Layla com cada filho debaixo dos braços, as presas expostas em pose de ataque, o rosto como o de um demônio, o corpo todo trêmulo – mas não de medo.

Ela estava preparada para matar qualquer um que se aproximasse dela.

Qhuinn apontou a arma na direção dela através do buraco criado na porta.

– Solte-os. Ou acabo com você.

– Mas que porra está acontecendo aqui? – A voz de Vishous saiu tão alta quanto se ele tivesse um alto-falante. – Vocês perderam a cabeça, caralho?

Qhuinn enfiou a mão por dentro e soltou a tranca, escancarando o que restava da porta. Quando ele entrou, Blay deteve os demais.

– Não, deixem que eu cuido disso.

Se mais alguém além dele entrasse, balas começariam a pipocar, e Layla iria atacar, e pessoas se feririam – ou pior.

E que porra estava acontecendo ali?

– Solte-os! – Qhuinn ladrou.

– Mate-me, então! – Layla revidou. – Vá em frente!

Blay colocou o corpo entre os dois, o tronco enquanto bloqueio no caminho de qualquer bala. Nesse meio-tempo, Layla respirava ofegante, e Lyric e Rhamp choravam – merda, ele jamais se esqueceria do som daquele choro.

De frente para Qhuinn, ele mostrou as palmas e falou com lentidão:

– Vai ter que atirar em mim primeiro.

Ele não se concentrou em nada além dos olhos azul e verde de Qhuinn... Como se pudesse, de alguma forma, comunicar-se telepaticamente com seu oponente para acalmá-lo.

– Saia da frente – Qhuinn ordenou. – Isto não é da sua conta.

Blay piscou ante tais palavras. Mas, considerando-se que enfrentava o cano de uma 40 mm, deduziu que deixaria o insulto passar por ora.

– Qhuinn, qualquer que seja o problema, conseguiremos lidar com... Aquele olhar despareado se voltou para ele por apenas uma fração de segundo.

– Acha mesmo? Quer dizer que o fato de ela ter se associado com o inimigo pode ser lavado com detergente ou alguma merda do tipo? Maravilha, vamos chamar Fritz pra cuidar disto. Ideia boa do cacete.

Enquanto os bebês continuavam a chorar, e mais pessoas se aproximavam da cena no corredor, Blay balançou a cabeça.

– Do que está falando?

– Ela levou os meus filhos com ela quando foi trepar com ele...

– Não entendi, o quê?

– Ela esteve com Xcor durante todo esse tempo. Ela não parou de se encontrar com ele. Associou-se a um inimigo conhecido do nosso rei enquanto estava grávida dos meus filhos. Por isso, sim, estou no meu direito de pai de puxar o gatilho contra ela.

De repente, Blay tomou ciência de um grunhido crescente atrás dele, e o som terrível o lembrou do que ouvira a respeito de as fêmeas da espécie serem mais letais do que os machos. Relanceando por sobre o ombro, ele pensou que sim, Layla estava evidentemente preparada para proteger os filhos até a morte naquela porra de universo paralelo para o qual foram sugados.

Xcor? Ela andou se encontrando com Xcor?

Só que ele não podia se desviar do perigo imediato.

– Só quero que você abaixe essa arma – Blay disse com calma. – Abaixe a arma e me conte o que está acontecendo. Senão, se quiser atirar nela, a bala vai ter que passar por mim primeiro.

Qhuinn inspirou fundo, como se estivesse se esforçando para não gritar.

– Eu te amo, mas isto não é da sua conta, Blay. Saia do caminho e deixe que eu cuido disto.

– Espere um minuto. Você sempre disse que também sou pai dessas crianças...

– Não quando o assunto é este. Agora saia da minha frente, caralho.

Blay piscou uma vez. Duas. Uma terceira vez. Engraçado, a dor em seu peito o fez refletir se Qhuinn não havia apertado o gatilho, e ele apenas deixou de ouvir o disparo.

Concentre-se, ordenou a si mesmo.

– Não, não vou me mexer.

– Saia da frente! – O corpo de Qhuinn começou a tremer. – Mas que diabos, saia da porra da minha frente!

Agora ou nunca, Blay pensou ao avançar e atacar o pulso que controlava a pistola. Ao golpear o antebraço com toda a força, a arma disparou repetidamente, e os cartuchos das balas saíram voando – mas, com uma rápida mudança de direção, ele conseguiu empurrar Qhuinn para o lado. O casal se estatelou no chão, e Blay se esforçou para dominar seu par, o impulso do movimento afastando-os de Layla e dos pequenos enquanto mantinha a arma apontada para o sentido oposto do quarto.

Blay acabou por cima, mas sabia que Qhuinn lhe tomaria a posição bem rápido. A arma, ele tinha que manter controle da...

De repente, o ar se tornou ártico.

A temperatura do quarto caiu para baixo de zero tão rápido que as paredes, o piso e o teto rangeram em protesto, a respiração dos presentes foi expelida em lufadas, a condensação gelou os vidros das janelas e os espelhos, com arrepios de qualquer pele exposta.

Em seguida, ouviu-se um rugido vigoroso.

O som foi tão intenso que foi quase inaudível – nada além de dor atravessou-lhes o canal auditivo, transformando suas cabeças em sinos de igreja – e isso, ainda mais do que a mudança no clima, deteve todos dentro da suíte, no corredor, na mansão... Talvez em todo o mundo.

O imenso corpo de Wrath apequenou a soleira da porta quando ele entrou no quarto, marcado pelos cabelos até a cintura, óculos escuros, coxas cobertas por couro e tronco avantajado, que teria detido qualquer trem em movimento.

Suas presas estavam totalmente expostas, como os dentes de um tigre-dentes-de-sabre. Mas ele não teve dificuldade alguma de se expressar, mesmo com elas.

– Não na porra da minha casa! – Ele soou tão alto que o quadro ao seu lado vibrou contra a parede de gesso. – Isso não vai acontecer na porra da minha casa! Minha shellan e meu filho estão aqui – existem outras crianças debaixo deste teto. Existem crianças na droga deste quarto!

Do lado oposto, Layla caiu no chão, os ossos absorvendo a queda com um barulho. Apesar do impacto, manteve Lyric e Rhamp em segurança, aninhados no colo, enquanto pendia a cabeça e começava a chorar.

Debaixo de Blay, Qhuinn tentava se soltar.

– Não até você soltar a arma – Blay disse entredentes.

Houve o som de metal se chocando contra a madeira quando a 40 mm foi solta e Blay a empurrou para longe. Em seguida, Qhuinn se desvencilhou e pôs-se de pé sobre os coturnos. Parecia que ele tinha estado num túnel de vento, seus cabelos negros dispostos em uma bagunça completa, os olhos arregalados, a pele corada em determinados pontos, mas pálida em outros.

– Todos para fora – Wrath ordenou. – Exceto pelos três pais.

Bem, pelo menos alguém reconhecia seu papel, Blay ponderou, com amargura.

Direcionando seu olhar para Qhuinn, viu-se encarando, através do caos, o macho que conhecia quase tão bem quanto a si mesmo.

Naquele instante, porém? Blay fitava para um estranho. A droga de um total desconhecido. Os olhos que Blay já havia passado horas perscrutando, os lábios por ele beijados, um corpo que tocou, acariciou, penetrou e pelo qual também foi penetrado... Era como se algum tipo de amnésia tivesse apagado toda a intimidade, metamorfoseando o que um dia fora uma realidade conhecida em uma hipótese tão fraca que parecia inexistente.

Vishous entrou no quarto.

– Primeiro, vistoria de armas.

Quando o lábio superior de Wrath se retorceu, ficou claro que o rei não apreciou a interrupção. Mas não havia como argumentar contra a razão.

V. foi eficiente na revista: primeiro retirou um par de adagas de Qhuinn, depois outra pistola – e, quando Blay se levantou, ergueu-lhe os braços e afastou-lhe as pernas, mesmo ciente de que ninguém estava preocupado que ele puxasse o gatilho.

– Pronto – V. anunciou ao se espremer para passar pelo Rei e voltar para o corredor.

– Diga aos outros que saiam – Wrath estrepitou.

– Certo.

Ante o comando real, a multidão se dispersou da soleira, mas não foi muito longe. Suas presenças pairaram enquanto, evidentemente, aguardavam os acontecimentos seguintes. De um jeito ou de outro, não havia como fechar a porta. Estava totalmente arruinada.

Virando-se na direção de Qhuinn, Wrath maldisse a situação e exigiu:

– Vai me explicar por que diabos disparou uma arma dentro da minha casa?

 

CONTINUA

ANTIGO PAÍS, 1731
As chamas de uma fogueira no chão iluminavam as paredes úmidas da caverna; a superfície áspera, manchada por sombras. Do lado de fora do ventre da terra, os gemidos do vento ecoavam na abertura do abrigo, unindo-se aos gritos da fêmea sobre o catre em que dava à luz.
– Será um menino! – ela arfou em meio às contrações que a assolavam. – Um macho!
Acima daquele pedaço de carne deitado e agonizante, pairando como uma maldição sobre ela, o Irmão da Adaga Negra Hharm pouco se importava com a sua dor.
– Logo saberemos.
– Você me desposará. Foi uma promessa...
As palavras se interromperam e seu rosto se contraiu numa máscara feia enquanto suas partes internas se contorciam para expelir a cria e, ao fazer as vezes de testemunha, Hharm refletia o quanto a aristocrata ficava pouco atraente em trabalho de parto. Não fora assim quando se conheceram e ele a seduzira. Na época, estivera coberta de cetim, muito composta, o receptáculo adequado para o seu legado, com a pele perfumada e os cabelos macios e reluzentes. Agora? Não passava de um animal, suada, pegajosa – e por que a situação se prolongava tanto? Ele estava tão enfastiado com o processo, ofendido por estar cuidando dela. Tratava-se de uma tarefa para as fêmeas, não para um guerreiro de seu escalão.
Todavia, não a desposaria, a menos que precisasse fazê-lo.
Se o bebê fosse o filho pelo qual vinha esperando? Então, sim, ele legitimaria a criança por meio da cerimônia de união e daria à fêmea o status ao qual ela se julgava digna. Caso contrário, ele se afastaria e a fêmea não diria nada, porque estava maculada aos olhos de sua classe, sua pureza perdida como um terreno já arado.
De fato, Hharm já decidira que era hora de se assentar. Depois de séculos de perdições e depravações, a idade começava a pesar. Ele se punha a considerar, pela primeira vez, o legado que deixaria para a posteridade. No momento, não lhe faltavam bastardos, frutos de sua pelve, os quais não conhecia, com quem não se importava e jamais se associaria a eles – e por tanto tempo era de conhecimento geral que ele não devia nada a ninguém.
Agora, porém... Ele se encontrava desejando uma árvore genealógica adequada. E também havia a questão das suas dívidas crescentes, algo que o pai dessa fêmea facilmente resolveria para ele – embora, mais uma vez, caso não fosse um filho varão, ele não a desposaria. Não era louco, não se prostituiria por centavos. Além disso, havia incontáveis fêmeas da glymera que cobiçavam o status inerente à vinculação com um membro da Irmandade da Adaga Negra.
Hharm não se comprometeria até ter um filho homem, a quem criaria desde a primeira noite.
– Oras, recomponha-se! – ele repreendeu-a quando ela gritou uma vez mais, uma ofensa aos seus ouvidos. – Fique calada!
Como em todas as coisas, contudo, ela o desafiou:
– Está chegando...! O seu filho está chegando!
A veste que ela usava foi suspensa até a base dos seios volumosos por mãos retorcidas. A barriga estendida e arredondada era uma visão vergonhosa, as coxas pálidas e finas permaneciam afastadas. O que acontecia no centro era repugnante: o que deveria ser a entrada delicada e adorável a fim de aceitar a excitação masculina vazava todo tipo de fluido e as carnes estavam inchadas e distorcidas.
Não, ele jamais a penetraria novamente. Com ou sem um filho, vinculados ou não, a perversão diante dos seus olhos não era algo de que ele pudesse se esquecer.
Felizmente, casamentos por conveniência eram uma contingência comum na aristocracia – não que ele se importasse caso não o fossem. As necessidades dela eram inconsequentes.
– Ele está chegando! – ela berrou quando a cabeça pendeu para trás e as unhas arranharam a terra debaixo de seu corpo. – Seu filho... ele se aproxima!
Hharm franziu a testa, depois seus olhos se arregalaram e as pernas se firmaram, afastadas. Ela não se equivocava, pois, de fato, algo começava a surgir de dentro dela... Era...
Uma abominação. Algo disforme e terrível...
Um pé.
– Isso é um pé?
– Tire seu filho do meu corpo – ela ordenou entre arquejos. – Puxe-o de dentro de mim e segure-o contra seu coração, reconheça-o como sua carne e seu sangue!
Com todas as armas ainda presas ao corpo, Hharm ajoelhou-se quando o segundo pé apareceu.
– Puxe! Puxe! – O Sangue jorrou e a fêmea berrou de novo quando o bebê não se moveu. – Ajude-me! Ele está asfixiado!
Hharm manteve-se afastado de toda aquela nojeira e imaginou quantas fêmeas inseminadas por ele haviam passado pela mesma situação. Seria sempre desagradável assim ou era ela quem era fraca?
De fato, deveria deixá-la que fizesse o parto sozinha, mas não confiava nela. A única maneira de ter certeza de que seu filho era macho era estar presente durante o nascimento. De outro modo, ele não desconsiderava a possibilidade de ela trocar uma filha indesejada pelo macho tão cobiçado – fruto de outro macho.
Aquela era, afinal, uma transação negociada, e ele sabia muito bem como tais coisas podiam ser manipuladas.
Em seguida, o som que emergiu da garganta da fêmea foi tão volumoso e demorado que interrompeu seus pensamentos. Depois os gemidos e as mãos sujas de terra e sangue dela se postaram no interior das coxas, puxando-as para fora e para cima, ampliando a abertura. E bem quando o Irmão acreditou que ela estivesse morrendo, quando cogitou se acabaria enterrando a ambos – e de pronto decidiu-se contra a proposição, visto que as criaturas da floresta logo consumiriam os restos mortais –, o bebê apareceu um pouco mais, livrando-se de algum obstáculo interno.
E lá estava ele.
Hharm se adiantou.
– Meu filho!
Sem pensar, esticou os braços e apanhou com mãos firmes os tornozelos escorregadios. Estava vivo; a criança chutava com força, debatendo-se contra o confinamento do canal vaginal.
– Venha para mim, meu filho – Hharm ordenou ao puxá-lo.
A fêmea se contorcia em agonia, mas ele não lhe dispensou um pensamento sequer. Mãos – pequeninas e perfeitamente bem formadas – surgiram em seguida, junto à barriga arredondada e o peito, que, mesmo em seu momento recém-nascido, era amplo.
– Um guerreiro! Este é um guerreiro! – O coração de Hharm batia forte, seu triunfo latejava nos ouvidos. – Meu filho levará adiante o meu nome! Será conhecido como Hharm, assim como eu antes dele!
A fêmea ergueu a cabeça, as veias do pescoço saltavam como cordões tensos sob a pele pálida demais.
– Você me desposará – ela disse, rouca. – Jure... Jure pela sua honra, ou eu o segurarei dentro de mim até que fique azul e entre no Fade.
Hharm sorriu com frieza, revelando as presas. Em seguida, desembainhou uma das adagas do peito. Direcionando a ponta para baixo, mirou no baixo ventre dela.
– Eu a estriparei como a um cervo para libertá-lo, nalla.
– E quem alimentará seu precioso filho? O seu sêmen não sobreviverá sem mim.
Hharm pensou na tormenta do lado de fora. Na distância que estavam do assentamento de vampiros mais próximo. E no pouco que sabia sobre as necessidades de um recém-nascido.
– Você me desposará, conforme prometido – ela gemeu. – Jure!
Os olhos dela estavam injetados e ensandecidos, os longos cabelos suados e emaranhados, o corpo era algo sobre o qual ele jamais desejaria se sobrepor. Mas a lógica dela o impedia. Perder o que desejava por conta exatamente do arranjo que estivera disposto a fazer, simplesmente porque ela o apresentava como se fosse uma condição sua, não era uma decisão sábia a se tomar.
– Juro – murmurou.
Com isso, ela voltou a se deitar e, sim, agora ele a ajudaria, puxando no ritmo dos empurrões dela.
– Ele está vindo... ele...
O bebê saiu de dentro dela num jorro, fluidos saindo com ele e, quando Hharm o segurou em suas palmas, sentiu uma alegria inesperada tão ressonante que...
Seus olhos se estreitaram ao pousar as vistas sobre o rosto dele. Acreditando que havia alguma membrana mascarando o bebê, passou uma das mãos pelas suas feições, que eram um misto das dele e da fêmea.
Lamentavelmente... nada mudou.
– Que maldição é esta? – questionou-se consigo mesmo. – Que maldição... é esta!

 

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CAPÍTULO 1


MONTANHAS DE CALDWELL, NOVA YORK, DIAS ATUAIS

A Irmandade da Adaga Negra o mantinha vivo só para poder matá-lo.

Dada a soma das atividades terrenas de Xcor, que foram das mais violentas, e certamente muito depravadas, aquele parecia um fim adequado para ele.

Nascera numa noite de inverno durante uma tempestade histórica. Nas entranhas de uma caverna suja e úmida, enquanto rajadas gélidas assolavam o Antigo País, a fêmea que o carregara gritara e sangrara para dar ao Irmão da Adaga Negra Hharm o filho tão exigido por ele.

Ele fora desesperadamente desejado.

Até chegar ao mundo.

E esse era o início da sua história, que acabara por levá-lo até ali.

Em outra caverna. Em outra noite do mês de dezembro. E assim como na noite do seu nascimento de fato, o vento gemia para recebê-lo, ainda que, dessa vez, fosse para o retorno da sua consciência em vez da expulsão para a vida independente que levou dali adiante.

E como um recém-nascido, tinha pouco controle sobre o corpo. Estava incapacitado, e isso seria verdadeiro mesmo sem as algemas de aço e as barras sobre o peito, o quadril, as coxas. Máquinas, contrastantes com o ambiente rústico que o rodeava, emitiam sinais atrás de sua cabeça, monitorando-lhe a respiração, os batimentos cardíacos, a pressão sanguínea.

Com a mesma fluidez de uma engrenagem sem lubrificação, seu cérebro começou a funcionar adequadamente sob o crânio; quando os pensamentos por fim se aglutinaram e formaram uma sequência lógica, lembrou-se da série de eventos que fizeram com que ele, o líder do Bando de Bastardos, acabasse sob a custódia daqueles que haviam sido seus inimigos: um ataque por trás, uma concussão, uma espécie de derrame ou algo do tipo que fez com que ele acabasse deitado, dependendo de máquinas para sobreviver.

E da inexistente misericórdia dos Irmãos.

Recobrara a consciência uma ou duas vezes durante o período em cativeiro, registrando seus captores e o ambiente daquele corredor cavernoso que inexplicavelmente abrigava jarros de todos os tipos. A retomada da consciência nunca durou muito; entretanto, a conexão com sua área mental era insustentável por um tempo mais demorado.

No entanto, dessa vez parecia diferente. Ele percebia a mudança em sua mente. O que quer que tivesse estado danificado por fim se curara e agora ele retornava do cenário enevoado do ponto de morto-vivo, permanecendo do lado vital.

– ... muito preocupado com Tohr.

O fim da frase enunciada por um macho entrou nos ouvidos de Xcor como uma série de vibrações, cuja tradução sofreu um atraso, e quando as palavras se formaram, ele virou o olhar naquela direção. Duas figuras de preto muito bem armadas estavam de costas para si, e ele voltou a abaixar as pálpebras, pois não desejava revelar a mudança do seu estado. Entretanto, suas identidades estavam devidamente anotadas.

– Não, ele está bem. – O som de algo raspando e o cheiro de tabaco permeando o ar. – E se não estiver, vou estar ao lado dele.

A voz grave que falou primeiro pareceu árida.

– Pra botar nosso irmão na linha à força... Ou ajudá-lo a acabar com este pedaço de carne?

O Irmão Vishous riu como se fosse um assassino em série.

– Que bela consideração você tem por mim.

Era estranho que não se entendessem melhor, Xcor pensou. Esses machos queriam tanto sangue quanto ele.

No entanto, essa aliança jamais existiria. A Irmandade e os Bastardos sempre estiveram em lados opostos durante o reinado de Wrath, esse limite tendo sido estabelecido pela bala que Xcor alojara na garganta do líder por direito da raça vampírica.

E o preço de sua traição seria cobrado ali, em pouco tempo.

Claro, a ironia era que uma força de compensação interceptara seu destino e fizera com que suas ambições e seu foco se afastassem, e muito, do trono. Não que os guerreiros da Irmandade tivessem ciência disso – e pouco se importariam se soubessem. Além de partilharem o apetite pela guerra, ele e os Irmãos tinham outras características em comum: piedade era para os fracos; o perdão, algo patético; pena, um sentimento das fêmeas, nunca de guerreiros.

Embora soubessem que ele já não sentia nenhuma agressividade em relação a Wrath, não o exonerariam daquilo que conquistara com méritos. Por conta de tudo o que acontecera, ele não sentia nem amargura nem raiva em relação ao que o esperava. Aquela era a natureza do conflito.

Contudo, sentia-se triste – um sentimento desconhecido para ele.

Das suas lembranças surgiu uma imagem que lhe roubou o fôlego. Era o de uma fêmea alta e magra nas vestes sagradas das Escolhidas da Virgem Escriba. Os cabelos loiros ondulavam sobre os ombros e desciam até o quadril em uma brisa suave, os olhos eram cor de jade, o sorriso, uma benção que ele não fizera nada para receber.

A Escolhida Layla mudara tudo para ele, transformando a Irmandade de um alvo a algo tolerável, de inimigo a um habitante coexistente naquele mundo.

Em pouco mais de um ano e meio, período no qual Xcor a conhecia, ela tivera um efeito mais impactante sobre sua alma negra do que qualquer outra pessoa antes dela, fazendo com que evoluísse muito em tempo ínfimo – algo que ele jamais imaginara ser possível.

O Dhestroyer, camarada de Vishous, voltou a falar:

– Na verdade, concordo plenamente com Tohr sobre fazer picadinho do filho da puta. Ele conquistou esse direito.

O Irmão Vishous praguejou.

– Todos nós merecemos. Vai ser difícil deixar uma parte dele intacta quando isso acontecer.

E ali estava o enigma, Xcor ponderou por trás das pálpebras abaixadas. A única saída possível de tamanho cenário mortal seria revelar o amor que sentia por uma fêmea que não era sua, nunca fora e jamais poderia ser.

Mas não sacrificaria a Escolhida Layla por ninguém, por nada.

Nem mesmo para se salvar.

Enquanto Tohr caminhava na floresta de pinheiros da montanha da Irmandade, seus coturnos esmagavam o terreno congelado, e o vento glacial o golpeava no rosto. Em seu rastro, tão próximo de seus calcanhares quanto uma sombra, ele sentia suas perdas a acompanhá-lo, numa fila de lamentos tangíveis como uma corrente.

A sensação de estar sendo perseguido pelos seus mortos o fez refletir a respeito de programas de TV sobre eventos paranormais, do tipo que tentava provar a existência de fantasmas. Que monte de bobagens. A histeria humana acerca das supostas entidades obscuras flanando em escadas e provocando rangidos em casas antigas, com seus passos sem corpos, era algo muito característico dessa espécie desimportante absorta em si mesma e criadora de dramalhões. Mais uma coisa que Tohr odiava a respeito deles.

E, como de costume, eles não acertavam no alvo.

Os mortos absolutamente nos atormentam, percorrendo seus dedos gélidos em nossa nuca como uma forma de lembrete até não conseguirmos decidir se queremos gritar pelas saudades que sentimos deles... ou porque queremos ser deixados em paz.

Eles espreitam suas noites e rondam seus dias, deixando um campo minado de tristeza ao longo dos caminhos.

São seus primeiros e seus últimos pensamentos, o filtro que você tenta deixar de lado, a barreira invisível entre você e todo o resto.

Algumas vezes, são mais parte de você do que as pessoas que você consegue de fato segurar e tocar.

Portanto, sim, ninguém precisa de um programa de TV idiota para provar o que já é de conhecimento comum: mesmo que Tohr tenha encontrado o amor com outra fêmea, sua primeira shellan, Wellsie, e o filho não nascido que ela carregava no ventre quando foi assassinada pela Sociedade Redutora, nunca foram afastados dele além da própria pele.

E agora houvera mais uma morte na mansão da Irmandade.

A companheira de Trez, Selena, subira para o Fade havia poucos meses, tendo falecido em razão de uma doença para a qual não existia cura, nenhum alívio, nenhum conhecimento.

Tohr não dormia direito desde então.

Voltando a se concentrar nas árvores que o cercavam, Tohr se abaixou e afastou um galho do caminho, depois deu a volta num tronco caído. Poderia ter se materializado até o destino, mas seu cérebro latejava com tanta violência da prisão do crânio que ele duvidava que conseguiria se concentrar o bastante para se dissipar.

A morte de Selena fora um maldito gatilho para ele, um evento que afetava outra pessoa, mas que, não obstante, sacudira seu globo de neve, balançando-o com tanta força que seus flocos internos ainda rodopiavam e se recusavam a se assentar.

Estava no centro de treinamento quando ela fora chamada para o Fade, e o momento da morte não fora silencioso. Fora marcado pelo som da alma dilacerada de Trez, o equivalente auditivo de uma tumba – um som que Tohr conhecia bem demais. Fizera o mesmo quando recebera a notícia da morte de sua fêmea.

Portanto, sim, nas asas da agonia do seu amor, Selena fora alçada da terra para o Fade...

Arrancar-se desse espiral cognitivo era o mesmo que tentar tirar um carro de um atoleiro, o esforço necessário era tremendo, o progresso conquistado centímetro a centímetro.

No entanto, lá ia ele pela floresta, na noite invernal, esmagando o que aparecia sob suas solas, com seus fantasmas sussurrando-lhe por trás.

A Tumba era o sanctum sanctorum da Irmandade da Adaga Negra, aquele local secreto onde as induções aconteciam e convocavam-se as reuniões secretas, e onde eram mantidos os jarros dos redutores assassinados. Estava localizada abaixo do solo, num labirinto criado pela natureza, tradicionalmente fora dos limites para qualquer um que não tivesse passado pela cerimônia que o marcasse como membro da Irmandade.

Essa regra, no entanto, tivera que ser contornada, pelo menos em respeito ao longo corredor de entrada de quase meio quilômetro.

Ao se aproximar do insuspeito sistema da entrada, parou e sentiu a raiva surgir.

Pela primeira vez desde que se tornara um Irmão, não era bem recebido ali.

Tudo por causa de um traidor.

O corpo de Xcor estava do lado oposto dos portões, na metade do caminho repleto de prateleiras, deitado numa maca, a vida monitorada e mantida por equipamentos.

Até que o maldito despertasse e pudesse ser interrogado, Tohr não tinha permissão para entrar.

E seus irmãos tinham razão em não confiar nele.

Ao fechar os olhos, viu seu rei com um tiro na garganta. Reviveu o momento em que a vida de Wrath estivera escorrendo junto ao sangue rubro; rememorou a cena em que tivera que salvar o último vampiro de sangue puro no planeta ao cortar um buraco na frente da garganta dele e enfiar o tubo de sua Camelback naquele esôfago.

Xcor encomendara o assassinato. Xcor ordenara um dos seus guerreiros mandar uma bala para dentro das carnes de um macho de valor, conspirara com a glymera para derrubar o governante por direito, mas o filho da puta fracassara. Wrath sobrevivera, apesar das probabilidades contrárias,, e na primeira eleição democrática da história da raça, fora apontado como líder de todos os vampiros – uma posição que ele agora detinha por consenso em vez de pela sua linhagem.

Portanto, vá se foder, filho da puta.

Cerrando os punhos, Tohr ignorou o ranger das luvas de couro e a constrição no dorso dos nós dos dedos. Só o que reconhecia era o ódio, tão profundo como uma doença letal.

O destino decidira que era certo tirar-lhe três seus e dos seus; o destino tirara dele sua shellan, seu filho, e o amor da vida de Trez. Querem falar sobre equilíbrio no Universo? Tudo bem. Ele queria o seu equilíbrio, e isso só aconteceria quando quebrasse o pescoço de Xcor e arrancasse o coração ainda quente do peito do maldito.

Já era hora de uma fonte do mal ser tirada de circulação, e era ele quem empataria o placar.

E a espera finalmente terminava. Por mais que respeitasse seus irmãos, estava farto de aguardar. Essa noite era um aniversário triste para ele, e ele daria ao seu luto um presentinho especial.

Era hora de festejar.


CAPÍTULO 2

O copo de cristal baixo estava tão limpo, tão isento de marcas de sabão, de poeira, de qualquer grânulo que o manchasse, que sua estrutura era como o ar; e a água dentro dele, totalmente invisível.

Meio cheio, a Escolhida Layla ponderou. Ou meio vazio?

Sentada no banquinho acolchoado, entre as duas pias com torneiras douradas e diante de um espelho com adornos de ouro que refletia a banheira funda atrás de si, ela observava a superfície do líquido.

O fundo era côncavo e a água lambia levemente o interior do copo, como se suas moléculas mais ambiciosas tentassem fugir do confinamento.

Respeitava o esforço, enquanto lamentava sua futilidade. Sabia muito bem o que era querer ser livre do local que a abrigava, apesar de não ser culpa sua.

Por séculos, ela fora a água daquele copo, despejada sem ter querido, em virtude apenas do seu nascimento, num papel de servidão junto à Virgem Escriba. Ao lado de suas irmãs, executara os deveres sagrados das Escolhidas no Santuário, adorando a mãe da raça, registrando os eventos da Terra para a posteridade dos vampiros, aguardando a escolha de um novo Primale para que ela pudesse engravidar e dar à luz mais Escolhidas e mais Irmãos.

Mas tudo isso já era passado.

Inclinando-se sobre o copo, observou mais atentamente a água. Fora treinada como ehros, não como escriba, mas sabia muito bem como enxergar além das águas que eram testemunhas da história. Dentro do Templo das Escribas, as Escolhidas designadas a registrar as histórias e as linhagens da raça permaneceram sentadas por horas e horas, observando nascimentos e mortes, suas mãos delicadas com penas sagradas colocando os detalhes nos pergaminhos, acompanhando tudo.

Não havia nada para ela ver. Não ali na Terra.

E também já não existiam testemunhas no alto.

Um novo Primale acabara surgindo. Mas em vez de se deitar com seu rebanho de fêmeas, dando continuidade ao programa de criação da Virgem Escriba, ele dera um passo sem precedentes, libertando todas elas. O Irmão da Adaga Negra Phury se desviara do modelo, quebrara a tradição, desfizera-se das amarras e, ao fazê-lo, as Escolhidas que estiveram isoladas desde sua gênese, visando aos nascimentos planejados, acolheram sua libertação. Já não eram representantes vivas de uma tradição rígida; tornaram-se indivíduos, com seus próprios descontentamentos e preferências, mergulhando os dedos nas águas terrenas da realidade, procurando e encontrando destinos a respeito de si próprias, e não mais de um serviço.

Ao fazer isso, ele desencadeara o fim dos imortais.

A Virgem Escriba já não existia mais.

Seu filho de nascimento, o Irmão da Adaga Negra Vishous, a procurara no Santuário acima e descobriu que ela se fora, deixando uma última carta escrita no vento apenas para os olhos dele.

Ela dissera que tinha um sucessor em mente.

Ninguém sabia sua identidade.

Recostando-se, Layla olhou para a veste que trajava. Não era do tipo sagrado que se vestira durante tantos anos. Não, essa peça vinha de um lugar chamado Pottery Barn, e Qhuinn a comprara para ela na semana passada. Com a aproximação do inverno, ele se preocupava que a mãe de seus filhos estivesse aquecida, sempre bem cuidada.

A mão de Layla subiu para o ventre, agora baixo. Depois de ter carregado a filha, Lyric, e o filho, Rhampage, dentro do corpo por tantos meses, era tão estranho quanto familiar não ter nada no útero...

Vozes murmuradas, baixas e graves, penetraram a porta que ela havia fechado.

Entrara no banheiro para usar o vaso.

Demorara-se depois de ter lavado as mãos.

Qhuinn e Blay, como de costume, estavam com os bebês. Segurando-os. Ninando-os.

Todas as noites, ela tinha que se esforçar para testemunhar o amor, não entre eles e os pequenos... mas aquele entre os dois machos. De fato, os pais exibiam um vínculo ressonante e, resplandecente um com o outro, e por mais que fosse algo belo, aquele fulgor fazia com que se sentisse ainda mais vazia em sua existência.

Enxugando uma lágrima, disse a si mesma para se controlar. Não poderia voltar ao quarto com olhos brilhantes demais, e o nariz e faces corados. Aquele deveria ser um momento de alegria para os cinco integrantes da família. Agora que os gêmeos haviam superado o estado de emergência sob o qual tinham nascido, e Layla também se recuperara, todos estavam aliviados por todos estarem sãos e salvos.

Agora era a vida feliz que ganharam para viver.

Em vez disso, ela ainda era a água triste dentro do copo, desejando sair.

Dessa vez, porém, a prisão foi feita por ela mesma, em vez de providenciada pela genética.

A definição de infidelidade, pelo menos de acordo com o dicionário, era: a ação de trair algo ou alguém...

A batida à porta fechada foi suave.

– Layla?

Ela fungou e abriu uma das torneiras.

– Oi!

A voz de Blay soou baixa, como era seu hábito.

– Você está bem aí?

– Ah, sim, estou. Resolvi tratar um pouco do rosto. Sairei daqui a pouco.

Ela se levantou, inclinou-se e molhou o rosto. Depois esfregou a testa e o queixo com a toalha de mão para que o rubor se espalhasse mais uniformemente sobre a pele. Apertando o cinto do roupão, aprumou os ombros e foi para a porta, em meio a preces para manter a compostura pelo tempo necessário até conseguir apressá-los para a Última Refeição.

Mas teve um momento de folga.

Ao abrir a porta, Blay e Qhuinn sequer olhavam na sua direção. Estavam inclinados sobre o berço de Lyric.

– ... os olhos de Layla – Blay disse ao abaixar a mão e deixar que a pequena agarrasse seu dedo. – Definitivamente.

– Ela também tem os cabelos da mahmen. Veja o tom loiro começando a aparecer.

O amor deles pela pequena era incandescente, reluzia em seus rostos, aquecia suas vozes e, aplacava seus movimentos, de modo que tudo o que faziam era com cuidado. No entanto, não era nisso que Layla se concentrava.

Seu olhar estava fixo na palma larga de Qhuinn, que afagava as costas de Blay. A carícia de conexão era inconsciente de ambos os lados; a oferta e a aceitação eram tanto nada e tudo o que importava, simultaneamente. E enquanto testemunhava o que se passava do outro lado do quarto, Layla teve que piscar rápido de novo.

Às vezes, a gentileza e o amor podiam ser tão difíceis de testemunhar quanto a violência. Às vezes, quando se está do lado de fora, ver duas pessoas tão em sintonia era uma cena saída de um filme de terror, o tipo de coisa da qual você quer se manter afastado, quer esquecer, banir da memória – ainda mais quando se está prestes a deitar e enfrentar sozinha um longo dia de horas no escuro.

Saber que ela jamais teria esse amor especial com alguém era...

Qhuinn relanceou na sua direção.

– Ah, oi.

Ele se endireitou e sorriu, mas ela não se deixou enganar. Os olhos dele a percorriam como se em uma avaliação – mas, talvez, esse não fosse o caso. Talvez fosse simplesmente a sua paranoia se manifestando.

Estava tão farta de se dividir em uma vida dupla. Contudo, no tipo de ironia cruel que parecia ser a fonte favorita de divertimento do destino, o preço para aliviar a consciência viria à custa de sua própria existência.

A como poderia deixar os filhos para trás?

– ... ok? Layla?

Enquanto Qhuinn franzia a testa ao observá-la, ela balançou a cabeça e forçou um sorriso.

– Ah, tudo bem, mesmo. – Ela deduzia que a pergunta se referisse ao seu bem-estar. – Muito bem mesmo.

Em busca de confirmar a mentira, aproximou-se dos berços. Rhampage, ou Rhamp, como era conhecido, lutava contra o sono, e quando a irmã arrulhou, sua cabeça se virou e ele esticou a mão.

Engraçado. Mesmo tão jovem, ele parecia reconhecer seu posto e desejava protegê-la.

Era genético. Qhuinn era um membro da aristocracia, resultado de gerações de emparelhamentos escolhidos a dedo, e por mais que seu “defeito” de ter um olho azul e outro verde o tivesse feito receber o desprezo tanto da glymera quanto da própria família, a venerável natureza de sua linhagem não podia ser negada. Tampouco o impacto de sua presença física. Com quase dois metros de altura e corpo talhado por músculos definidos, moldados tanto pelos exercícios quanto pela prática na guerra – uma arma tão letal quanto as pistolas e adagas que levava consigo para o campo de batalha. Era o primeiro membro da Irmandade da Adaga Negra a ser induzido com base na meritocracia em vez de na linhagem, e não desapontara a grande tradição. Ele nunca desapontava ninguém.

De fato, Qhuinn era, no conjunto, um belo macho, ainda que de forma um tanto rústica. O rosto era angular, pois tinha pouca gordura corporal, e aqueles olhos despareados fitavam por baixo de sobrancelhas negras. Os cabelos pretos foram cortados muito curtos recentemente, quase totalmente raspados na base. Deixavam um topete para trás e, como resultado, seu pescoço parecia extra-grosso. Com piercings metálicos nas orelhas e a lágrima de ashtrux nohtrum abaixo do olho – uma marca dos tempos em que servira como protetor de John Matthew –, ele chamava a atenção por onde quer que passasse.

Talvez porque as pessoas, tanto humanos como vampiros, preocupavam-se com o que ele seria capaz de fazer caso fosse contrariado.

Blay, por sua vez, era o oposto: tão acessível quanto Qhuinn seria evitado num beco escuro.

Blaylock, filho de Rocke, tinha cabelos ruivos e um tom de pele mais claro do que a maioria da espécie. Era tão grande quanto Qhuinn, mas quando se está ao seu lado, a primeira impressão que se tem dele faz referência à sua inteligência e ao seu bom coração, em vez de a força bruta. Ainda assim, ninguém discutia suas habilidades em campo. Layla ouvira histórias, ainda que nunca da parte dele, visto que não era de se vangloriar, criar dramas excessivos ou atrair atenções para si.

Ela amava os dois de todo o coração.

E o distanciamento que sentia em relação a eles partia somente do seu lado.

– Olha só – Qhuinn disse ao apontar para os bebês. – Temos dois se apagando... Melhor, um e meio.

Quando ele sorriu, ela não se deixou enganar. Seus olhos continuavam a passear pelo seu rosto, à procura sobre sinais de exatamente aquilo que ela tentava esconder. Para dificultar o escrutínio dele, ela recuou.

– Eles dormem bem, graças à Virgem Escriba... Hum, graças ao Fade.

– Você vai descer para a Última Refeição hoje? – ele perguntou como quem não quer nada.

Blay se endireitou.

– Fritz disse que prepara o que você quiser.

– Ele é sempre tão gentil. – Ela foi até a cama e se deitou contra os travesseiros. – Na verdade, senti uma fominha lá pelas duas da manhã, por isso fui até a cozinha e comi torradas e aveia. Tomei café. Suco de laranja. Um café da manhã no lugar do almoço, por assim dizer. Sabem como é, às vezes sentimos vontade de voltar o relógio no meio da noite e recomeçar da metade.

Uma pena que isso não passasse de uma metáfora.

Ainda que... será que ela teria escolhido nunca conhecer Xcor?

Sim, pensou. Preferiria nunca ter sabido da sua existência.

O amor de sua vida, seu “Blay”, o par do seu coração e da sua alma... era um traidor. E seus sentimentos pelo macho foram uma ferida aberta na qual a bactéria da traição entrara e se espalhara.

Portanto, ali estava ela, na prisão estabelecida por ela própria, torturada pelo fato de ter se aproximado do inimigo, primeiro por ter sido ludibriada... e mais tarde porque quis estar na presença de Xcor.

Separaram-se em maus termos, contudo, com ele colocando um fim nos encontros clandestinos após ela forçá-lo a admitir seus sentimentos. Em seguida, a situação se transformara de triste para trágica, quando ele foi capturado e levado sob a custódia da Irmandade.

A princípio não conseguira obter informações acerca de seu estado. Mas então, viajara ao modo de uma Escolhida até ele e, testemunhara seu estado moribundo num corredor de pedras, repleto de jarros de todas as cores e formas.

Não havia nada que pudesse ter feito por ele. Não sem se apresentar e se expor – e mesmo que ela o fizesse, não poderia salvá-lo.

Por isso estava presa ali: um fantasma atormentado num misto de emoções salpicadas pelo veneno da culpa e do arrependimento, sem nunca, jamais, poder se libertar.

– ... certo? Quero dizer... – Enquanto Blay continuava a falar com ela a respeito de uma e outra coisa, a Escolhida se forçou a não esfregar os olhos. – ... no fim da noite, enquanto você fica aqui com os bebês. Não que você não goste de ficar com eles.

Saiam, ela solicitou mentalmente para os dois machos. Por favor, vão embora e me deixem em paz.

Não era como se ela quisesse afastá-los das crianças, ou que sentisse alguma malquerença pelos pais de Lyric e Rhamp. Ela só precisava respirar. E toda vez que um dos guerreiros a fitava, como faziam agora, respirar se tornava praticamente impossível.

– Você concorda? – Qhuinn perguntou. – Layla?

– Ah, sim, claro. – Ela não fazia ideia do que acabara de concordar, mas certificou-se de sorrir. – Só vou descansar agora. Eles ficaram bastante tempo acordados durante o dia.

– Eu gostaria que nos deixasse ajudar mais. – Blay franziu a testa. – Estamos aqui do lado.

– Vocês dois lutam na maioria das noites. Precisam dormir.

– Mas você também é importante.

Layla direcionou o olhar rumo aos os berços e, ao rememorar a cena de si mesma acalentando-os e amamentando-os, sentiu-se ainda pior. Mereciam uma mahmen melhor do que ela, descomplicada e sem o fardo de decisões que nunca deveriam ter sido tomadas, uma que não estivesse contaminada pela fraqueza em relação a um macho de quem jamais deveria ter se aproximado... muito menos amado.

– Não tenho a mínima importância em comparação a eles – sussurrou rigidamente. – Eles são tudo.

Blay se aproximou e a tomou pela mão, os olhos azuis calorosos.

– Não, você também é muito importante. E mahmens precisam de tempo para si.

Para fazer o quê? Ruminar meus remorsos? Não, muito obrigada, pensou.

– Vou para o túmulo sem eles e aí apreciarei minha própria companhia. – Ao perceber o quanto tinha soado mórbida, apressou-se: – Além disso, eles crescem rápido. Vai acontecer antes de nós três nos darmos conta.

Conversaram mais depois – não que ela tivesse prestado atenção, com todos os gritos em sua mente. Mas, por fim, foi deixada em paz quando o casal partiu.

O fato de ficar tão feliz ao vê-los sair foi mais uma tristeza que ela tinha a carregar.

Mudando de posição na cama, levantou-se e se aproximou dos berços com os olhos rasos de lágrimas. Enxugando o rosto, repetidas vezes, ela pegou um lenço de papel do bolso do roupão e assoou o nariz. Os bebês estavam profundamente adormecidos, com os olhos fechados, os rostos voltados um para o outro como se estivessem se interligado em uma comunicação telepática durante o sono. Mãozinhas perfeitas e pezinhos preciosos, barriguinhas redondas e saudáveis envolvidas em cobertorzinhos de flanela. Eram bebês tão bons; alegres quando acordados, pacíficos e angelicais adormecidos. Rhampage ganhava peso com mais velocidade do que Lyric, mas ela parecia mais saudável do que ele, reclamava menos ao ser lavada ou trocada, fitando tudo com mais atenção.

Quando as lágrimas caíram do rosto de Layla até o carpete, ela não sabia quanto tempo mais suportaria.

Antes de tomar ciência do movimento, foi até o telefone interno da casa e apertou uma sequência de quatro números.

A doggen que convocou chegou em questão de momentos, e Layla voltou a vestir sua máscara social, sorrindo para a criada com uma serenidade que não sentia.

– Grata por cuidar dos meus preciosos – disse no Antigo Idioma.

A babá respondeu com alegria e olhos cintilantes, e Layla só aguentou dois ou três segundos de comunicação. Em seguida, saiu do quarto e, com passos ligeiros protegidos por chinelos, desceu pelo corredor das estátuas. Quando chegou às portas da extremidade oposta, empurrou uma delas e entrou na ala dos empregados.

Como em todas as mansões daquele tamanho e distinção, o lar da Irmandade necessitava de um tremendo apoio de funcionários, e os aposentos dos doggens perfilavam o corredor; a segregação por idade, sexo e posição nos escalões formava comunidades dentro do grande conjunto. Em meio ao labirinto de corredores, Layla não escolheu uma direção específica além do objetivo de encontrar um quarto vazio – e encontrou-o umas três portas adiante, depois de uma virada. Ao entrar no espaço simples e desocupado, foi até a janela, abriu-a e fechou os olhos. Seu coração batia forte e uma ligeira tontura a dominava, mas ela inspirou fundo o ar fresco e limpo...

... e se desmaterializou através da abertura que criara, misturando-se à noite; as moléculas se espalhando e se afastando da mansão da Irmandade.

Como sempre, sua liberdade seria temporária.

Mas, desesperada como estava, foi tomada por um breve sufocamento, e ela partiu em busca de oxigênio.


CAPÍTULO 3

Qhuinn era um macho muito macho. E não só porque era um guerreiro casado com outro cara.

Sim, claro que, antes de se assentar com Blay, até que gostara de transar com fêmeas e mulheres. Mas, pensando bem, seu padrão para parceiros sexuais fora tão baixo que até aspiradores de pós e canos de escapamento tinham sido candidatos ocasionais.

Mas nada de ovelhas. #critério

No entanto, não poderia dizer que as fêmeas o tivessem cativado ou interessado de fato. Não que houvesse algo de errado com elas, ou que não as respeitasse assim como todo o resto. Elas simplesmente não eram do seu gosto.

Numa noite como a de hoje, porém, ele lamentava sua inexperiência. Só porque ralara e rolara com o sexo oposto não significava que estivesse equipado de algum modo para lidar com o que o confrontava agora.

Quando ele e Blay chegaram ao pé da escadaria principal, ele parou e olhou para seu par. Ao fundo, vindo da sala de bilhar do lado oposto do átrio, o som das vozes graves dos machos, de música e de gelo batendo em copos de cristal anunciavam que o torneio de bilhar da Irmandade já estava em curso.

Qhuinn sorriu de uma maneira que esperava transmitir calma.

– Ei, eu já te encontro lá, ok? Tenho que descer pra falar com a doutora Jane sobre o meu ombro, acho que demoro uns dez minutos... Não mais do que isso.

– Claro. Quer que eu vá com você?

Por um segundo, Qhuinn se perdeu ao observar seu macho. Blaylock, filho de Rocke, era tudo o que ele não era: impecável como um corpo esculpido por Michelangelo, tinha um rosto de arrasar e uma cabeleira ruiva e lustrosa como a cauda de um pônei; era inteligente, mas também equilibrado, o que fazia toda a diferença; era firme e confiável como uma montanha de granito, o tipo de cara que nunca vacilava.

Em tudo o que importava, comparado a Blay, Qhuinn era uma banheira de plástico perto de uma de porcelana; um conjunto incompleto de pratos ao lado de uma dúzia perfeita de louças; uma coisa rachada no meio de algo inquebrável.

Por algum motivo, porém, Blay o escolhera. Contra todas as possibilidades, o filho imperfeito e desonrado de uma das Famílias Fundadoras, o viciado sexual de olhos despareados, o vagabundo hostil e arredio... De algum modo acabara com o Príncipe Encantado, e caralho, se isso não o convertia.

Blay era o motivo que o fazia respirar, o lar que nunca tivera, a luz do sol que empoderava sua terra.

– Qhuinn? – Os olhos azuis iridescentes se apertaram. – Você está bem?

– Desculpe. – Ele se inclinou e pressionou os lábios na jugular do macho. – Eu me distraí. Mas você sempre tem esse efeito em mim, não é?

Quando Qhuinn se afastou, Blay estava corado – e excitado. Aquela fragrância era uma digressão que não podia ser facilmente ignorada.

A não ser pelo fato de que tinha um problema real para resolver.

– Diga aos irmãos que não demoro. – Qhuinn apontou na direção da sala de bilhar. – E que vou dar uma surra neles.

– Você sempre faz isso. Mesmo com Butch.

As palavras foram suaves, mas respaldadas por uma adoração que fazia com que Qhuinn contasse cada uma das suas bênçãos.

Cedendo ao instinto, Qhuinn se aproximou e sussurrou ao ouvido do cara:

– Talvez queira se alimentar bem na Última Refeição. Vou te manter ocupado o dia inteiro.

Com uma lambida no pescoço em que pretendia trabalhar mais tarde, Qhuinn se afastou antes que não pudesse mais se distanciar de seu par.

Seguindo ao redor da base da escada, passou por uma porta escondida e desceu pelo sistema de túneis que conectava os componentes da propriedade. O centro de treinamento subterrâneo da Irmandade ficava cerca de meio quilômetro afastado da mansão, e aquela passagem subterrânea ligando as duas partes era um espaço amplo iluminado por painéis de luzes fluorescentes afixados ao teto.

Enquanto ele avançava, o som dos seus passos ecoava ao redor, como se os coturnos aplaudissem a iniciativa.

Contudo, Qhuinn não sabia se eles estavam certos. Não fazia a mínima ideia do que estava fazendo ali.

A porta atrás do armário de suprimentos se abriu sem emitir nenhum som, uma vez inserida a senha; em seguida, o guerreiro passava ao longo de prateleiras repletas de papéis para impressora, canetas, blocos de anotação e outras merdas vindas da loja de materiais para escritório. A sala, além do depósito, apresentava a típica disposição de mesa, cadeira, computador e arquivos metálicos, e nenhuma dessas coisas foi particularmente percebida quando ele passou pela porta de vidro adiante para chegar ao corredor da frente. Com passadas longas e impacientes, atravessou todos os tipos de instalações de nível profissional – desde uma academia completa e sala de pesos à altura de Dwayne Johnson, até os vestiários e as primeiras salas de aula.

A porção destinada à clínica do centro de treinamento tinha outra quantidade de cômodos voltados ao tratamento, uma sala de operações e diversos leitos hospitalares. A doutora Jane, companheira de V., e o doutor Manello, companheiro de Payne, cuidavam de todo tipo de ferimentos obtidos em combate, além de problemas domésticos e sem falar dos partos de L.W., Nalla e dos gêmeos Lyric e Rhampage.

Qhuinn bateu na primeira porta ao se aproximar e não teve que esperar nem uma batida do seu coração para ter uma resposta.

– Entre! – a doutora Jane disse do lado oposto da porta.

A boa médica vestia roupas cirúrgicas e um par de Crocs. Sentada diante do computador na outra extremidade da bem equipada clínica, seus dedos voavam sobre o teclado enquanto ela atualizava o prontuário de alguém cabisbaixa; seus cabelos loiros curtos espetados como se ela tivesse passado a mão por eles durante horas.

– Um segundinho... – Ela apertou a tecla de “enter” e girou. – Ah, olá, papai. Como está?

– Ah, você sabe, imerso no amor.

– Aqueles seus bebês são maravilhosos. E olha que eu nem gosto de crianças.

O sorriso dela era acolhedor como uma torta de maçãs. Os olhos verde-montanha, por outro lado, eram afiados como raios laser.

– Graças a você, eles estão se saindo muito bem.

Houve uma deixa para o silêncio. Quando a conversa não evoluiu, ele se pôs a caminhar pela clínica, pois não conseguia ficar parado. Deu uma espiada nos equipamentos estéreis e imaculados sobre os gabinetes de aço inoxidável, inspecionou a maca vazia sob as luzes usadas nas operações, ajeitando as calças.

A médica apenas ficou sentada no seu banquinho, calma e silenciosa, deixando que ele se debatesse com a sua mente. Quando o celular dela tocou, Jane deixou que caísse na caixa de mensagens sem nem ver quem poderia ser.

– Provavelmente estou errado – ele acabou concluindo. – Que porra sei eu, afinal?

A doutora Jane sorriu.

– Na verdade eu te acho um cara bem inteligente.

– Não sobre este tipo de coisa. – Com um pigarro, Qhuinn propôs a si mesmo que prosseguisse; ainda que a doutora Jane não parecesse estar com pressa, ele estava entediando a si mesmo. – Olha só... eu amo a Layla.

– Claro que sim.

– E quero o melhor pra ela. Ela é a mãe dos meus filhos. Quero dizer, além de Blay, ela é a minha companheira por causa das crianças.

– Com certeza.

Cruzando os braços diante do peito, ele parou de andar e empostou-se de frente à doutora Jane.

– Não estou dizendo que sei alguma coisa sobre fêmeas. Coisas como os seus humores e por aí vai. Só que... Layla tem chorado muito. Quero dizer, ela tenta esconder isso de mim e do Blay, mas... toda vez que vou vê-la, encontro bolas de lenços de papel no cesto de lixo, e seus olhos estão brilhantes demais, o rosto, corado. Ela sorri, mas o sorriso nunca passa da superfície. Os olhos dela... são uma tragédia de merda. E... e eu não sei o que fazer, só sei que isso não está certo.

A médica assentiu.

– Como ela se porta com as crianças?

– É fantástica, pelo que posso ver. É totalmente devotada a eles, e eles estão crescendo. Na verdade, o único momento em que a vejo meio que feliz é quando os têm nos braços. – Pigarreou novamente. – Então, o que estou imaginando... ou perguntando, sei lá, é se as fêmeas gestantes, depois que não estão mais grávidas, se elas não...

Jesus, ele merecia todo tipo de prêmio por saber se explicar tão bem. E os termos técnicos com os quais se debatia? Praticamente estava a um passo de receber o título de doutor em Medicina, assim como Jane.

Cacete.

Mas pelo menos a doutora Jane parecia reconhecer que aquele avião conversacional estava ficando sem pista para decolar.

– Acho que está querendo me perguntar a respeito de depressão pós-parto. – Após vê-lo assentir, ela prosseguiu: – Posso lhe afirmar que não é incomum entre os vampiros, e que pode ser incapacitante. Conversei com Havers a respeito disso antes, e estou muito feliz que tenha vindo me procurar para tratar do assunto. Às vezes, uma mãe recente sequer está ciente de que isso pode se tornar um problema.

– Não existe nenhum exame... ou um... sei lá.

– Existem algumas maneiras diferentes de avaliar a questão, e o comportamento é uma delas. Claro que posso ir conversar com ela, e também posso fazer alguns exames de sangue para avaliar os níveis hormonais. E, sim, existem muitas coisas que podemos fazer para tratar dela e dar-lhe o apoio necessário.

– Não quero que Layla pense que estou agindo pelas costas dela nem nada assim.

– O que é totalmente compreensível. Mas tudo bem, porque eu pretendia mesmo subir até lá para dar uma olhada nela e nos bebês. Posso abordar o tema como se fosse parte de uma rotina. Nem terei que citar seu nome.

– Você é a melhor.

Com o assunto resolvido, ele supôs que era hora de voltar para junto do seu companheiro e para o torneio de bilhar. Mas não saiu. Por algum motivo, não conseguia.

– Não é sua culpa – garantiu a doutora Jane.

– Eu a engravidei. E se o meu... – Ok, ela era médica, mas Qhuinn ainda não queria pronunciar a palavra esperma perto dela. O que era loucura. – E se a minha metade for a causa...

A porta se abriu, e Manny enfiou a cabeça pela abertura.

– Ei, está pronta...? Opa, desculpem.

– Estamos quase terminando aqui. – A doutora Jane sorriu. – E você não nos viu juntos.

– Pode deixar. – Manny bateu na soleira. – Se eu puder ajudar de alguma maneira, é só avisar.

E lá se foi o cara, como se nunca tivesse aparecido ali.

A doutora Jane se levantou e se aproximou dele. Era mais baixa do que Qhuinn, e sua estrutura nem se comparava aos quase 140 quilos de músculos masculinos. Mas ela parecia pairar acima dele; a autoridade na voz e nos olhos dela era exatamente o que ele precisava para acalmar seu lado irracional.

Quando encostou a mão no braço dele, sua expressão estava firme.

– Não é sua culpa. Esse, às vezes, é o curso da natureza em algumas gestações.

– Fui eu quem colocou aqueles bebês dentro dela.

– Sim, mas imaginando que este seja um caso de os hormônios se autorregularem após o parto, não há ninguém para culpar. Além disso, você agiu bem ao vir até aqui, e também pode ajudá-la simplesmente conversando com ela e lhe dando o tempo e o espaço necessários para que ela também converse com você. Para ser sincera, eu já havia notado que ela não tem descido para as refeições. Acho que precisamos encorajá-la a se juntar ao resto de nós, para que ela sinta o quanto estamos disponíveis para ampará-la.

– OK. Certo, então.

A doutora Jane franziu a testa.

– Posso lhe dar um conselho?

– Por favor.

Ela o apertou no braço.

– Não se sinta responsável por algo sobre o qual não tem controle algum. Isso é um convite ao estresse que acabará deixando-o loucamente infeliz. Sei que é mais fácil falar do que fazer, mas tente se lembrar disso, está bem? Eu o vi acompanhá-la a cada estágio da gestação. Não houve nada que você não tenha feito por ela ou que não faria por ela, e você é um pai fantástico. Somente coisas boas o esperam, eu prometo.

Qhuinn inspirou fundo.

– Certo.

Mesmo quando sua preocupação persistiu, ele se lembrou de que, durante a gestação de Layla, descobrira que podia confiar na doutora Jane. A médica o ajudara a trilhar a estrada da vida e da morte, e nunca o decepcionara, nunca deixara que se desgarrasse. Tampouco mentira para ele e lhe dera maus conselhos.

– Vai ficar tudo bem – ela prometeu.

Infelizmente, como pôde-se perceber mais tarde, a boa médica estava errada.

Mas ela não tinha controle algum sobre o destino.

Nem ele.


CAPÍTULO 4

O bebê estava arruinado. Tudo o que detinha não passava de uma versão modificada e horrenda das feições de Hharm; o lábio superior era todo errado, como o de uma lebre.

Hharm largou o bebê no piso sujo da caverna, e a coisa não emitiu som algum ao aterrissar, os braços e as pernas mal se moviam, as carnes azuladas e acinzentadas, o cordão ainda o unia à fêmea. Iria morrer, assim como deveriam todos os resultados contra as regras da natureza e do parto – e essa consequência não era causa de indignação.

O fato de Hharm ter sido ludibriado, porém, o era. Desperdiçara dezoito meses, uma quantidade enorme de horas, aquele momento de esperança e de felicidade numa monstruosidade insuportável. E o que ele sabia com certeza? Que não era culpa sua.

– O que você fez? – exigiu saber da fêmea.

– Um filho! – Ela arqueou as costas em agonia renovada. – Eu lhe dei...

– Uma maldição. – Hharm se levantou em toda a sua altura. – O seu ventre é impuro. Ele corrompeu o presente do meu sêmen e produziu isso...

– O seu filho...

– Olhe para ele! Veja com seus olhos! Isso é uma abominação!

A mulher se esforçou e suspendeu a cabeça.

– Ele é perfeito, ele é...

Hharm empurrou o bebê com a bota, fazendo com que ele movesse os pequenos membros e emitisse um gritinho fraco.

– Nem mesmo você pode negar o que está diante de nós!

Os olhos injetados dela se afixaram no bebê, e depois se arregalaram...

– Isso é...

– Você fez isso – ele anunciou.

A ausência de argumentos por parte dela foi uma rendição inevitável, visto que o defeito não podia ser negado. Então ela gemeu como se ainda estivesse em trabalho de parto, os dedos ensanguentados arranharam a terra fria, as pernas tremeram quando se afastaram mais. Depois de mais esforços, algo saiu da mulher, e ele pensou que talvez fosse mais um. De fato, seu coração se viu cheio de otimismo enquanto ele rezava para que o primeiro fosse exhile dhoble, o amaldiçoado de um par de gêmeos.

Infelizmente, não. Era apenas algo do interior da fêmea, talvez o estômago ou o intestino dela.

E o bebê prosseguiu chorando, o peito se estufando e murchando com pouco efeito.

– Você deve morrer aqui, assim como ele – Hharm disse sem cuidado algum.

– Eu não...

– Suas entranhas estão saindo.

– O bebê é... – ela hesitou. – Ele...

– É uma abominação da natureza contra o desejo da Virgem Escriba.

A fêmea se calou e relaxou como se o processo da expulsão tivesse chegado ao fim, e Hharm aguardou pelo ataque em que a alma dela se desprenderia do corpo. Só que ela continuou a respirar e olhar para ele... e a existir. Que espécie de truque era aquele? A ideia de que ela não iria ao Dhunhd por conta disso era um insulto.

– Isso é obra sua – ralhou com a fêmea.

– Como sabe que não foi a sua semente que...

Hharm apoiou a bota na garganta dela e a pressionou, interrompendo-lhe as palavras. Quando uma onda de ódio induziu o corpo do guerreiro rumo a uma ação mortal, somente a possibilidade de que esse evento fosse um castigo por suas ações prévias o impediu de esmagar-lhe o pescoço.

Ela tem que pagar, foi seu pensamento abrupto. Sim, a culpa era dela, e o desapontamento causado necessitava de uma reparação.

Sibilando, ele revelou as presas.

– Deixarei que viva para que possa criar esta monstruosidade e que seja vista com ele. Esta é sua maldição por me amaldiçoar: ele ficará sempre em seu cangote, como um amuleto ou uma danação, e se eu descobrir que essa coisa morreu, eu a perseguirei e a esquartejarei centímetro a centímetro. Depois matarei a sua irmã, toda a prole dela e os seus parentes.

– O que está dizendo?!

Hharm se inclinou para baixo, o latejar no rosto e na cabeça parecia muito familiar.

– Ouviu minhas palavras. Conhece meu desejo. Desafie-o por sua conta e risco.

Quando ela se acovardou, o Irmão se afastou e fitou a sujeira proveniente do parto, a fêmea patética, aquele resultado horrendo – e cortou o ar com a mão, como se os apagasse da linha do tempo. Em meio aos bramidos da tempestade e à extinção da fogueira, ele foi até o casaco de peles.

– Você arruinou o meu filho – reclamou ao passar o peso das peles sobre os ombros. – O seu castigo é criar esse horror como declaração do seu fracasso.

– Você não é Rei – ela rebateu, fraca. – Não pode ordenar nada.

– Este é um serviço comunitário que faço aos machos, meus camaradas. – Apontou o dedo na direção do recém-nascido choroso. – Com isso grudado ao seu quadril, ninguém mais se deitará com você para sofrer de maneira similar.

– Não pode me forçar a isso!

– Ah, posso, sim, e o farei.

Ela era uma fêmea mimada e desafiadora por natureza, e fora isso o que o atraíra nela a princípio – tivera que lhe ensinar o que fazer e as orientações foram bem interessantes por um tempo. De fato, houvera apenas uma instância em que ela tentara exercer domínio sobre ele. Uma vez e nunca mais.

– Não me teste, fêmea. Já fez isso antes e deve se lembrar do resultado.

Quando ela empalideceu, ele assentiu na sua direção.

– Sim. Isso mesmo.

Ele quase a matara na noite em que lhe mostrara que, enquanto ele ficaria com que desejasse, quando e onde o quisesse, ela jamais teria permissão para se deitar com outro macho enquanto estivesse tangivelmente associada a ele. Foi logo depois disso que ela decidiu que a única possibilidade de prendê-lo seria dando-lhe o filho que ele almejava e, ao mesmo tempo, ele começara a pensar em seu legado.

Por azar, ela fracassara em seus objetivos.

– Eu odeio você – ela gemeu.

Hharm sorriu.

– O sentimento é mútuo. E mais uma vez lhe digo que é melhor garantir a sobrevivência dessa coisa. Se eu descobrir que o matou, revidarei a morte dele nas suas carnes e em toda a sua linhagem.

Dito isso, ele cuspiu duas vezes junto aos pés dela: uma por causa da fêmea e outra pelo bebê. Depois se afastou enquanto ela o chamava, e o bebê desertado berrava contra o frio.

Do lado de fora, a tempestade prosseguia, intensa, a neve rodopiante o cegava e depois diminuiu para uma revoada de pássaros que revelava todo o cenário. No vale logo abaixo, montanhas se elevavam às margens de um lago, a neve acumulada sobre a água congelada que formava ondas nos meses mais quentes. Estava tudo escuro, gélido e inerte, mas ele se recusava a encontrar um mau presságio na imagem à sua frente.

Com a mão usada para a adaga comichando, e a hostilidade dentro dele acelerando como um corcel disparado, sugeriu a si mesmo que não atentasse para esse resultado.

Encontraria outro ventre.

Em algum lugar, havia uma fêmea que lhe daria o legado merecido e necessário. Ele a encontraria e a faria crescer com a sua semente.

Existiria um filho apropriado para ele. Hharm jamais aceitaria qualquer outro resultado.


CAPÍTULO 5

Quando se aproximou da entrada da caverna sagrada da Irmandade, Tohr se esgueirou pelo interior úmido, e uma vez ali dentro, o cheiro de terra e de uma fonte de chamas distante irritou suas narinas. Os olhos se ajustaram de imediato, e quando ele seguiu em frente, aquietou o movimento de seus coturnos. Não queria ser ouvido, mesmo que sua presença fosse notada logo em seguida.

Os portões não estavam muito longe e eram constituídos por grossas barras de ferro, cuja espessura era semelhante a de um antebraço de guerreiro; as barras de ferro eram altas como árvores e possuíam uma cobertura em malha de aço, a fim de impedir a desmaterialização. Tochas sibilavam e tremeluziam em cada lado e, além, ele via o começo do grande corredor que conduzia mais para dentro da terra.

Parando diante da enorme barreira, pegou a chave de cobre e não sentiu remorso algum por ter roubado o objeto da gaveta da escrivaninha ornamental de Wrath. Pediria desculpas pela infração mais tarde.

E também pelo que faria na sequência.

Tohr destrancou o mecanismo, empurrou o peso colossal, entrou e voltou a trancar o portão atrás de si. Caminhando à frente, seguiu o caminho natural, expandido por talhadeiras e músculos fortes, e depois adornado por prateleiras. Sobre as diversas tábuas, centenas e centenas de jarros alimentavam um jogo de luz e sombras.

Os receptáculos eram de todos os formatos e tamanhos, e vinham de diferentes eras, desde a antiga até a moderna, mas o que havia dentro de cada um deles era o mesmo: o coração de um redutor. Desde o princípio da guerra contra a Sociedade Redutora, ainda no Antigo País, a Irmandade vinha marcando as mortes dos inimigos ao tomar posse dos jarros das vítimas e trazendo-os até ali para aumentar a coleção.

Em parte como troféu, em parte como um “foda-se, Ômega”, aquilo era um legado. Era um orgulho. Uma expectativa.

E talvez deixasse de sê-lo. Havia poucos e esparsos redutores nas ruas de Caldwell e em outras paragens no momento, portanto deveriam estar próximos.

Tohr não sentiu nenhuma alegria ante tal conquista. Mas talvez fosse em virtude do terrível aniversário dessa noite.

Era difícil sentir qualquer outra coisa que não a perda de Wellsie no dia que já fora seu aniversário.

Após uma curva sutil, ele parou. Mais adiante, a cena mais parecia saída de um filme que não se decidia se era Indiana Jones, Grey’s Anatomy ou Matrix. No centro das antigas paredes de pedra, tochas acesas e jarros despareados e empoeirados, um amontoado de equipamentos médicos piscando e emitindo sinais interferia com um corpo sobre uma maca. E ao lado do prisioneiro? Dois imensos vampiros cobertos da cabeça aos pés com couro preto e armas negras.

Butch e V. eram o Frick e Frack da Irmandade – o ex-policial da divisão de homicídios dos humanos e o filho da Criadora da raça, o bom garoto católico e o depravado sexual, o viciado em roupas e o czar da tecnologia –, unidos pela devoção partilhada pelo Red Sox de Boston e respeito mútuo e afeto que não conheciam limites.1

V. percebeu a presença de Tohr primeiro, virando com tanta rapidez que seu cigarro aceso espalhou cinzas pelo ar.

– Ah, inferno. Não. De jeito nenhum, porra! Você vai dar o fora daqui!

Essa opinião, a despeito do volume pronunciado, foi fácil de ignorar, pois Tohr se concentrava no pedaço de carne sobre a maca. Xcor estava deitado ali, com tubos entrando e saindo de si como se ele fosse a bateria de um carro prestes a receber uma recarga, com a respiração regular... Não, espere, a respiração não estava regular.

V. deteve Tohr, aproximando-se dele e ainda um pouco mais. E o que mais? O Irmão sacara seu atirador poodle – e o cano da 40 mm apontava diretamente para o rosto de Tohr.

– Tô falando sério, meu irmão.

Tohr olhou para o prisioneiro por cima do ombro largo. E se viu sorrindo.

– Ele está acordado.

– Não, ele não est...

– A respiração dele mudou. – Tohr apontou para o peito nu. – Veja.

Butch franziu o cenho e se aproximou do prisioneiro.

– Ora, ora, ora... Hora de acordar, filho da mãe.

V. virou-se para trás.

– Filho da puta.

Mas a arma não se moveu, tampouco Tohr. Por mais que quisesse Xcor, ele acabaria recebendo uma bala na garganta se desse mais um passo: V. era o menos sentimental dos irmãos e tinha a paciência de uma cascavel.

Naquele momento, os olhos de Xcor piscaram. Na luz tremeluzente das tochas, eles pareciam negros, mas Tohr se lembrava de que eles eram azuis. Não que isso importasse.

V. colocou a cara no seu caminho, os olhos de diamante eram como adagas.

– Este não vai ser o presente de aniversário que vai dar para a sua shellan morta.

Tohr arrastou os lábios para trás das presas.

– Vai se foder.

– Isso não vai acontecer. Pode me xingar o quanto quiser, mas não. Você sabe como as coisas vão acontecer e ainda não está na sua hora.

Butch sorriu para o prisioneiro.

– Estávamos esperando que se juntasse à festa. Aceita uma bebida? Talvez um misto de nozes antes ter que ajeitar a poltrona para a decolagem? Não há por que te mostrar as saídas de emergência. Você não tem que se preocupar com isso.

– Vamos, Tohr – V. disse. – Agora.

Tohrment expôs as presas, mas não para o irmão.

– Seu bastardo, vou te matar...

– Não, nada disso. – V. passou o braço ao redor do bíceps de Tohr, e faltou pouco para começarem a dançar uma quadrilha. – Lá fora...

– Você não é Deus...

– Nem você, motivo pelo qual está de saída.

Nos recessos da mente, Tohr sabia que o filho da mãe tinha razão. Ele não estava nem meio racional no momento – e P.S., que V. se fodesse por se lembrar que noite era aquela.

Sua amada shellan, seu primeiro amor, completaria duzentos e vinte e seis anos. E teria um filho dos dois nos braços.

Mas o destino se opusera.

– Não me obrigue a atirar em você – V. alertou com aspereza. – Venha, meu irmão. Por favor.

O fato de as duas últimas palavras terem saído da boca de V. foi o que surtiu efeito. A cena era tão chocante que desarmou Tohr de sua loucura e raiva.

– Venha, Tohr.

Dessa vez, Tohr se permitiu ser conduzido, à medida que seu grande esquema desinflanva; o silêncio absoluto depois de sua loucura o fazia tremer dentro da própria pele. Que porra estivera fazendo? Mas que cacete?

Sim, recebera o privilégio de matar Xcor com um decreto da realeza, mas só quando recebesse autorização expressa de Wrath. E isso ainda não acontecera explicitamente.

Tinham evitado um desastre de proporções traidoras.

Seria como trocar de lugar. Um traidor morto por outro bem vivo.

Quando chegaram aos portões que Tohr havia destrancado para conseguir acesso ao prisioneiro, V. estendeu a mão enluvada.

– Chave.

Tohr não olhou para o irmão ao tirar o objeto da jaqueta de couro e entregá-la. Depois de uns cliques e rangidos, o caminho estava livre, e Tohr saiu sem estar convencido, com as mãos no quadril, os coturnos chutando a terra, a cabeça pensa.

Quando ouviu uma nova sequência de rangidos e cliques, deduziu que estava sendo trancado do lado de fora, sozinho. Mas V. estava bem ao seu lado.

– Eu prometo – o irmão disse – que você, e apenas você, vai mattá-lo.

Tohr se perguntou se isso bastaria. Ponderou se seria o bastante. Será que algum dia encontraria satisfação?

Antes de chegarem à boca da caverna, Tohr parou.

– Às vezes... a vida não é nada justa.

– Não. Não é.

– Odeio isso. Odeio pra caralho. Passo por... períodos, não apenas noites, mas semanas, às vezes até um ou dois meses... em que me esqueço de tudo. Mas a merda sempre volta e, depois de um tempo, não dá mais pra segurar. Não dá. – Bateu na lateral da cabeça com o punho. – Tem esse verme aqui dentro, e sei que matar Xcor não vai me distrair por mais do que dez minutos. Mas numa noite como esta, eu aceitaria até isso.

Sucedeu-se o som de um fósforo sendo riscado quando V. acendeu um cigarro.

– Não sei o que dizer, meu irmão. Eu diria pra você rezar, mas não tem mais ninguém lá em cima te ouvindo.

– Não tenho certeza se a sua mãe nos ouviu algum dia. Sem ofensas.

– Não ofendeu. – V. exalou. – Confie em mim.

Tohr se concentrou na saída da caverna, e quando tentou respirar, sentiu uma estranha exaustão.

– Estou cansado de lutar sempre a mesma briga. Desde que Wellsie foi... assassinada... sinto como se um pedaço meu nunca tivesse cicatrizado, e não aguento essa dor nem mais um segundo. Nem mais um maldito segundo. Mesmo que ela migrasse para algum outro lugar, já seria melhor.

Estabeleceu-se um longo silêncio entre eles, abafado apenas pelo urro dos ventos invernais que entravam na caverna silenciosa.

No fim, V. praguejou.

– Bem que eu gostaria de poder te ajudar, meu irmão. Quero dizer, se você precisar de um abraço confortador... eu devo conseguir alguém pra te dar uns tapinhas nas costas.

Tohr sacudiu a cabeça quando o lábio superior se retorceu num sorriso.

– Isso foi quase engraçado.

– Pois é, tentei pegar leve. – V. exalou de novo. – Era isso ou eu atirava em você, e odeio preencher a papelada burocrática do Saxton, sabe?

– Sei o que quer dizer. – Tohr esfregou o rosto. – Verdade...

Os olhos diamantinos de V. mudaram de foco.

– Apenas esteja ciente que lamento. Você não merece nada disso. – Certa mão pesada pousou no ombro de Tohr e apertou-o. – Se eu pudesse tirar a sua dor, é o que faria.

Quando Tohr piscou rápido, pensou que era uma coisa boa que V. não fosse de abraçar, ou então teriam um maldito colapso emocional acontecendo ali.

Do tipo de colapso que um macho não retornaria intacto.

Mas, pensando bem, ele estava mesmo intacto agora?


BOATE SHADOWS, CENTRO DE CALDWELL


Trez Latimer sentia-se como uma espécie de divindade ao olhar através da parede de vidro do escritório no segundo andar da sua boate. Abaixo, no espaço aberto do armazém convertido, uma multidão de humanos excitados estabelecia um padrão de atração e desdém num mar tumultuado de lasers púrpura e batidas pesadas de baixo.

Em grande escala, sua clientela era composta de millenials, os nascidos entre 1980 e 2000. Definidos pela internet, pelo iPhone, pela ausência de oportunidades econômicas – ao menos segundo a mídia humana –, era um grupo demográfico de moralistas perdidos, comprometidos em salvar uns aos outros, com a preservação dos direitos de todos, e a promoção de uma falsa utopia de pensamento liberal que fazia o macarthismo parecer atenuado.

Mas também eram, da maneira dos jovens, esperançosos sem fundamento.

E como ele os invejava.

Enquanto se esbarravam e colidiam uns nos outros, ele testemunhava o êxtase em seus rostos, o otimismo exuberante de que encontrariam o verdadeiro amor e a felicidade naquela noite mesmo – a despeito de todas as outras noites nas quais vieram até a sua boate e a aurora chegara, expulsando-o com nada além de exaustão, uma nova DST, e mais um fardo de vergonha e dúvida enquanto se perguntavam o que tinham feito, e com quem.

Ele suspeitava, contudo, que, para a maioria, a cura de tamanha angústia era apenas cerca de duas horas de sono, um venti latte da Starbucks e uma injeção de penicilina.

Quando se é jovem assim, quando ainda é preciso enfrentar os desafios que não se consegue sequer começar a compreender, a sua resistência não tem limites.

E era por isso que o vampiro desejaria poder trocar de lugar com eles.

Era estranho colocar os humanos em qualquer tipo de pedestal. Sendo um Sombra de mais de duzentos anos de vida, Trez há tempos considerava aqueles ratos sem cauda algo inferior, um tumulto inconveniente no planeta, bem como formigas na cozinha ou camundongos no porão. Só que não se podia exterminar os humanos. Sujeira demais. Melhor tolerá-los do que arriscar a exposição da espécie ao assassiná-los só para liberar vagas de estacionamento, diminuir as filas nos supermercados e as notificações do Facebook.

No entanto, ali estava ele, ansioso por trocar de lugar com qualquer um deles, mesmo que fosse por uma ou duas horas.

Improcedente.

Mas, pensando bem, eles não mudaram. Quem mudou foi ele.

Minha rainha, está na hora de partir? Conte-me se for.

Enquanto as lembranças o intimidavam dentro do cérebro, ele cobriu os olhos e pensou: Não, Deus. De novo, não. Não queria voltar para a clínica da Irmandade... para o lado do leito da sua amada Selena, morrendo por dentro enquanto ela expirava de verdade.

A verdade, contudo, era que ele jamais abandonara esses eventos, mesmo que o calendário sugerisse o contrário. Depois da passagem de mais de um mês, ele ainda se lembrava de cada mínimo detalhe da cena, desde a respiração torturada dela até o pânico no olhar enquanto lágrimas rolavam por ambos os rostos.

Sua Selena fora acometida por uma doença que raramente afetava membros da classe sagrada. Em todas as gerações de Escolhidas, algumas tiveram a Prisão, que era um jeito horrível de morrer: a mente era deixada viva na casca congelada do corpo, sem nenhuma escapatória, nenhum tratamento para ajudar, ninguém para salvar.

Nem mesmo o macho que a amava mais do que a própria vida.

Quando o coração de Trez tropeçou no âmago do peito, ele abaixou as mãos, meneou a cabeça e tentou se reconectar com a realidade. Estivera se debatendo contra esses episódios invasivos, e eles vinham se tornando mais frequentes em vez de menos – o faziam se preocupar com sua sanidade. Chegou a ouvir o ditado de que “o tempo cura as feridas” e, droga, talvez aquilo fosse verdade para outras pessoas. Para ele? Seu luto se transformara de dor incandescente, no começo, a uma agonia tão ardorosa que rivalizava com as chamas da pira funerária, até aquelas reminiscências crônicas que pareciam girar cada vez mais rápido ao redor do esteio aberto da sua perda.

Sua própria voz ecoava na cabeça: Eu entendi direito? Você quer que isto... termine?

Quando os momentos finais de Selena chegaram, ela já não conseguia mais falar. Tiveram que se apoiar num sistema de comunicação pré-combinado que supunha o controle dela sobre as pálpebras até quase o fim: uma piscada para não... duas para sim.

Você quer que isto... termine?

Ele soubera qual seria a resposta dela. Lera-o na expressão exausta, distante e enfraquecida dela. Mas aquela fora uma das vezes na vida em que se queria ter a mais absoluta certeza.

Ela piscara uma vez. E de novo depois.

E ele estivera ao lado dela quando as drogas pararam seu coração e lhe conferiram o alívio de que ela necessitava ao ser transportada.

Em todos os seus anos, ele jamais imaginara aquele tipo de sofrimento. Nas duas partes. Ele não teria conseguido criar uma morte pior saída de qualquer pesadelo, e não poderia ter imaginado que teria que assentir para Manny, autorizando-o a administrar o medicamento enquanto gritava internamente, pois seu amor se esvaía e o deixava sozinho pelo resto de suas noites.

O único conforto era que o sofrimento dela chegara ao fim.

A única realidade era que o seu tinha apenas começado.

No período subsequente, encontrou conforto no fato de que preferiria ser o responsável por sentir a ausência dela, e não o contrário. Mas, conforme o tempo prosseguiu, acabou usando demais esse antídoto, pois era o único que possuía, e agora ele já não surtia mais efeito.

Portanto, não havia nada para reavivá-lo. Tentou beber, mas o álcool só servia para ele perder o pouco controle que tinha sobre as lágrimas. Não dava a mínima para a comida. Sexo era algo completamente fora de questão. E ninguém o deixava lutar – pois tanto os Irmãos quanto iAm reconheciam seu estado desgovernado.

Portanto, o que lhe restava? Nada, a não ser se arrastar ao longo dos dias e das noites, e rezar para o mais básico dos alívios: um respiro desimpedido, um período de tranquilidade mental, uma hora de sono sem perturbações.

Ao estender a mão, tocou o painel de vidro inclinado que era a sua janela para o que ele considerava ser o outro mundo, o exterior do seu inferno isolado. Engraçado que ele agora considerava “outro” o que um dia fora o mundo “real”... E mesmo sem a separação das espécies, da idade, do seu poleiro acima da confusão da boate, ele se sentia tão à parte de todos eles.

Tinha a sensação de que sempre permaneceria afastado de todos.

E, francamente, ele simplesmente não poderia continuar assim.

A dor o destroçara e, se não fosse pelo fato de que os suicidas tinham a entrada negada no Fade, ele teria metido uma bala do seu 48 mm na cabeça horas após a morte dela.

Pensou que não suportaria outra noite assim.

– Por favor... me ajude.

Trez não fazia a mínima ideia de quem falava com ele. Do lado dos vampiros, a Virgem Escriba já não existia mais – e no seu atual estado mental ele compreendia por completo o motivo de ela ter largado o microfone e saído do palco de sua criação. E, como um Sombra, ele fora criado para adorar sua Rainha – o único problema era que ela estava vinculada ao seu irmão, e rezar para a cunhada parecia muito estranho.

Uma declaração autêntica de que toda aquela coisa espiritual não passava de um monte de asneira.

E, mesmo assim, seu sofrimento era tão grande que ele tinha que tentar buscar ajuda.

Inclinando a cabeça para trás, olhou para o teto baixo preto e despejou seu coração partido para o mundo:

– Eu só a quero de volta. Eu só... quero Selena de volta. Por favor... se existir alguém aí em cima, me ajude. Devolva-a para mim. Não me importo em que forma ela estiver... Eu só não consigo mais fazer isto. Não consigo mais viver assim nem pela porra de uma única noite.

Claro que não houve resposta. E ele se sentiu um completo idiota.

Pois é, como se a vastidão do universo lhe iria despejar outra coisa que não apenas um meteoro?

Além disso, será mesmo que existia um Fade? E se ele estivesse apenas alucinando durante a purificação e somente imaginara ter visto a sua Selena? E se ela só tivesse simplesmente morrido? Como se... tivesse apenas deixado de existir? E se todas as bobagens a respeito de um lugar celestial aonde nossos amados iam e esperavam pacientemente por nós não passasse de um mecanismo de defesa criado por aqueles deixados para trás mergulhados no tipo de agonia em que ele se encontrava?

Uma falácia mental para cuidar de um ferimento emocional.

Reajustando a cabeça, voltou a fitar a multidão abaixo...

Pelo vidro, o reflexo de uma imensa figura masculina parada logo atrás fez com que ele se girasse e levasse a mão para a arma que mantinha enfiada na lombar. Mas então reconheceu o indivíduo.

– O que você está fazendo aqui? – exigiu saber.


Dois patinadores suíços, Werner Groebli e Hans Mauch, cujos nomes artísticos eram Frick e Frack, nutriram uma parceria duradoura. Posteriormente, seus nomes se tornaram gíria para designar duas pessoas que trabalham juntas e se dão bem. (N.T.)


CAPÍTULO 6

A campina de 20 mil metros quadrados se elevava de uma estradinha deserta como oriunda do olhar crítico de um artista; todos os aspectos da colina e do vale pareciam sujeitos às regras dos padrões estéticos agradáveis. No alto do suave aclive coberto de neve, como uma coroa no topo da cabeça de um governante benevolente, um imenso bordo estendia seus galhos em uma áurea tão perfeita que mesmo a esterilidade do inverno não conseguia diminuir sua beleza.

Layla se desmaterializou até a base da colina, partindo da mansão, e subiu a pé até a árvore. Os chinelos usados no quarto não eram páreo para o chão congelado, o vento frio atravessava o roupão, e os cabelos se soltavam da trança, flanando ao seu redor.

Quando chegou ao cume, olhou para baixo, para as raízes do tronco glorioso dentro da terra.

Fora ali, pensou ela.

Ali, na base daquele bordo, ela vira Xcor pela primeira vez, convocada por alguém que ela acreditara ser um soldado de valor na guerra, alguém que ela alimentara na clínica da Irmandade... Alguém que a Irmandade deixara de lhe informar que, na verdade, era um inimigo e não amigo.

Quando o macho a chamara para que ela lhe provesse a veia, Layla não pensou em nada além do seu dever sagrado.

Por isso, transportara-se até ali... e perdera um pedaço de si no processo.

Xcor estivera à beira da morte, ferido e enfraquecido, e mesmo assim ela reconhecera sua força, ainda que em estado debilitado. Como poderia não tê-la notado? Era um macho tremendo, grosso no pescoço e no peito, forte nos braços, poderoso no corpo. Ele tentara recusar sua veia porque – ela gosta de acreditar – enxergara-a como uma inocente no conflito entre o Bando de Bastardos e a Irmandade da Adaga Negra, e quisera mantê-la afastada da situação. No fim, contudo, ele cedera, garantindo que ambos seriam a presa de uma ordem biológica que desconhecia a razão.

Ela inspirou fundo, observou a árvore e viu, através dos galhos desnudos, o céu noturno.

Depois que a verdadeira identidade de Xcor veio à tona, ela confessou a Wrath e à Irmandade suas ações, lacrimosamente clamando por perdão. E era um testemunho do rei e dos machos que o serviam o fato de a terem perdoado, e sem castigos, por ter prontamente ajudado o inimigo.

Em troca, era um parco testemunho da sua parte que ela tivesse voltado para junto de Xcor depois disso. Associou-se a ele. Tornou-se emocionalmente envolvida com ele.

Sim, existiu uma coerção inicial da parte dele na época, mas a verdade era que, mesmo que ele não a tivesse forçado? Sua vontade teria sido estar com ele. E o pior? Quando o relacionamento chegou ao fim, fora ele quem interrompera os encontros. Não ela.

Na verdade, ela o estaria vendo agora – e a dor da perda que sentia pela ausência dele era tão incapacitante quanto a culpa.

E isso foi antes ainda de ele ter sido capturado pela Irmandade.

Ela sabia exatamente onde ele havia sido aprisionado porque testemunhara suas condições naquela caverna... Sabia o que os Irmãos planejavam fazer com Xcor assim que ele despertasse.

Se ao menos houvesse um modo de salvá-lo... Ele nunca tinha sido cruel com ela, nunca a tinha ferido... jamais a havia abordado sexualmente, apesar do desejo que o habitava. Ele se manteve paciente e gentil... pelo menos até se afastarem.

Ele, entretanto, havia tentado matar Wrath. E essa traição era passível de punição com a morte...

– Layla?

Girando, ela tropeçou e caiu de lado, quase incapaz de se agarrar ao tronco áspero do bordo. Quando sentiu uma dor na palma, sacudiu-a na tentativa de apaziguá-la.

– Qhuinn! – exclamou.

O pai de seus filhos deu um passo à frente.

– Você se machucou?

Com um xingamento, ela limpou os arranhões, tirando a sujeira. Santa Virgem Escriba, como doía.

– Não, não. Estou bem.

– Pegue. – Ele apanhou algo de dentro do bolso da jaqueta de couro. – Deixe-me ver.

Ela tremia quando Qhuinn avaliou-lhe a mão e depois a envolveu na bandana preta.

– Acho que você vai viver.

Será?, ela pensou. Não tenho tanta certeza.

– Você está congelando.

– Sério?

Qhuinn tirou a jaqueta e a posicionou sobre os ombros dela, e Layla se viu engolfada pelo tamanho e pelo calor.

– Venha, vamos voltar para a mansão. Você está tremendo...

– Não posso mais fazer isso – ela desabafou num rompante. – Não consigo mais.

– Eu sei. – Quando ela se retraiu de surpresa, ele sacudiu a cabeça. – Sei o que há de errado. Vamos pra casa pra conversar. Vai ficar tudo bem, prometo.

Por um momento, ela não conseguiu respirar. Como ele podia ter descoberto? Como podia não estar bravo com ela?

– Como você... – As lágrimas surgiram com rapidez, a emoção se sobrepôs a tudo. – Sinto muito. Eu sinto muito... Não era para ser assim.

Ela não soube se foi ele quem abriu os braços ou se foi ela quem se lhe agarrou ao peito, mas Qhuinn a abraçou com força, protegendo-a do vento.

– Tá tudo bem. – Ele massageava grandes círculos nas costas dela com a palma, acalentando-a. – Só precisamos conversar a respeito. Podemos fazer algumas coisas, tomar algumas providências.

Ela virou o rosto para o lado e fitou a campina.

– Eu me sinto tão mal.

– Por quê? Isso está fora do seu controle. Não pediu por isso.

Ela se afastou.

– Eu juro, não pedi. E não quero que você pense nem por um segundo que eu poria Lyric e Rhampage em perigo...

– Tá de brincadeira? Sério, Layla, você ama aqueles dois com tudo o que tem dentro de si.

– Amo mesmo. Eu te garanto isso. E amo você e Blay, o Rei e a Irmandade. Vocês são a minha família, vocês são tudo o que tenho.

– Layla, preste atenção. Você não está sozinha, entendeu? E como eu já disse, existem coisas que podemos fazer...

– Mesmo? De verdade?

– Sim. Na verdade eu estava falando sobre isso antes de vir para cá. Eu não queria que pensasse que eu a estava traindo...

– Ah! Qhuinn! Eu sou a traidora! Sou eu quem está errada...

– Pare. Você não é. Vamos cuidar disso juntos. Todos nós.

Layla levou as mãos ao rosto, tanto a que estava com o curativo como a que estava descoberta. Então, pela primeira vez desde o que parecia ser uma eternidade, ela exalou o ar, um bálsamo de calma substituindo o terrível fardo que dispunha sobre si.

– Tenho que contar uma coisa. – Levantou o olhar para ele. – Por favor, saiba que tenho me remoído de arrependimento e de tristeza. Juro que nunca tive a intenção de que isso acontecesse. Tenho me sentido tão só, me debatendo com a culpa...

– Culpa é algo desnecessário. – Esfregou os polegares sob os olhos dela. – Você tem que se livrar disso, porque não consegue evitar o modo como se sente.

– Não consigo, de verdade, não consigo mesmo... E Xcor não é mau, não é tão ruim quanto você acha que ele é. Juro. Ele sempre me tratou com cuidado e gentileza, e sei que ele não voltaria a ferir Wrath. Eu sei disso...

– O quê? – Qhuinn franziu o cenho e sacudiu a cabeça. – Do que você está falando?

– Por favor, não o mate. É como você disse, existe um modo de fazer isso dar certo. Talvez vocês possam libertá-lo e...

Qhuinn não recuou; na verdade, ele a empurrou para longe de si. E depois pareceu se debater para encontrar as palavras.

– Layla – ele pronunciou devagar. – Sei que não estou ouvindo direito e estou tentando... Você pode...

Aproveitando-se do momento para expor sua posição, Layla se apressou em falar:

– Ele nunca me machucou. Todas as noites em que o procurei, ele nunca me feriu. Ele providenciou um chalé para que eu ficasse em segurança, e sempre estávamos apenas nós dois. Nunca vi nenhum dos Bastardos...

Ela prosseguiu enquanto a expressão do guerreiro se transformava de confusão para... algo gélido que lhe suscitou as feições de um completo desconhecido.

Quando Qhuinn voltou a falar, a voz saiu inexpressiva.

– Você esteve se encontrando com Xcor?

– Eu me senti muito mal...

– Por quanto tempo? – ele estrepitou. Mas não a deixou responder. – Você foi ao encontro dele enquanto estava grávida dos meus filhos? Você se associou por vontade própria com um inimigo conhecido enquanto os meus benditos filhos estavam no seu ventre? – Antes que ela conseguisse lhe responder, ele levantou o indicador. – E você precisa pensar muito bem na resposta. Não há volta para isto, e é melhor dizer a verdade. Se eu descobrir que mentiu pra mim, vou te matar.

Quando o coração de Layla começou a bater forte no peito, deixando-a tonta, seu único pensamento foi...

Você vai me matar de qualquer maneira.

De volta à shAdoWs, Trez guardou a arma e tentou retornar à realidade.

– E então? – ele inquiriu. – O que está fazendo aqui, ainda mais sem o seu poliéster especial do Tony Manero?

Lassiter, o Anjo Caído, sorriu de um modo que não contemplou seus estranhos olhos coloridos sem pupila; a expressão afetou apenas a parte inferior do rosto.

– Ah, você sabe, ternos de passeio estão ultrapassados para mim.

– Partindo para os anos 1980? Não tenho nada neon pra emprestar pra você.

– Não precisa, tenho outra fantasia para usar.

– Que bom pra você. Assustador pro resto de nós. Só me diz que não vai usar o maiô do Borat.

Quando o anjo não respondeu de pronto, Trez sentiu como se as garras de Fred Krueger estivessem passando pela sua nuca. Normalmente, Lassiter era o tipo de cara tão alegre que a maioria das pessoas não sabia se decidir entre meter uma bala nele para tirar todo mundo de um estado miserável... ou simplesmente apanhar uma lata de Coca-Cola e um saco de pipoca para assistir ao show.

Porque, mesmo quando ele irrita, a situação é sempre muito divertida.

Mas não essa noite. O olhar bizarro estava tão leve e espumoso quanto um bloco de granito, e o imenso corpo dele estava absolutamente imóvel, nenhum item de ouro nos pulsos ou pescoço, nos dedos ou orelhas, reluzia sob a luz baixa.

– Por que está brincando de estátua? – Trez murmurou. – Alguém trocou o lugar da sua coleção do My Little Pony de novo?

Incapaz de suportar o silêncio, Trez foi se sentar atrás da escrivaninha e começou a mexer em uma pilha de papéis.

– Está tentando ler minha aura ou alguma merda do tipo?

Não que para isso fosse necessário algum poder especial. Todos na mansão sabiam em que estado ele estava.

– Quero que vá jantar comigo amanhã à noite.

Trez levantou o olhar.

– Pra quê?

O anjo levou o tempo que quis para responder, seguindo devagar até o painel de vidro para encarar a multidão logo abaixo, no exato lugar em que Trez estava antes. Iluminado pela luz fraca, o perfil do anjo era o tipo de imagem que as fêmeas adorariam, com todas as proporções e os ângulos certos. Mas a cara de preocupação...

– Manda ver – Trez exigiu. – Já recebi uma vida inteira de más notícias. O que quer que seja, nada se compara ao que tenho passado.

Lassiter relanceou e deu de ombros.

– É só um jantar. Amanhã à noite. Sete horas.

– Eu não como.

– Sei disso.

Trez largou a pilha de faturas, de escala dos funcionários ou qualquer outra porra que o vinha mantendo ocupado, ainda que não as estivesse olhando de fato, junto ao amontoado de porcarias sobre a escrivaninha.

– Acho muito difícil acreditar em seu interesse a respeito de nutrição.

– Verdade. Essa coisa de “glúten é o seu inimigo” é uma bobagem sem fim. Nem me fale de Kombuchá, couve, ou qualquer coisa com propriedades antioxidantes, e na mentira de que o xarope de milho com alto teor de frutose é a fonte de todo o mal.

– Ouviu falar que a Kraft Macaroni & Cheese tirou todos os conservantes há meses?

– Pois é, e os filhos da mãe nem avisaram antes...

– Por que quer jantar comigo?

– Só estou sendo amigável.

– Não faz parte do seu estilo.

– Como disse antes, estou mudando algumas coisas. – Eeeee lá veio aquele sorriso de novo. – Pensei em começar com tudo. Quero dizer, se é pra virar a página, melhor começar do jeito que se deseja continuar.

– Sem ofensas, mas não estou a fim de passar tempo com pessoas de quem gosto de verdade. – Tudo bem, aquilo não soou muito bem. – O que quero dizer é que o meu irmão é o único que consigo tolerar agora, e nem ele eu quero ver.

Aquele sorriso de Lassiter era uma visão que Trez estava mais do que disposto a jamais rever – e observe como orações podem ser atendidas: o anjo estava seguindo para a porta.

– Te vejo amanhã.

– Não, obrigado.

– No restaurante do seu irmão.

– Ah, mas que porra, por quê?

– Porque ele serve o melhor macarrão à bolonhesa em Caldie.

– Você sabe o que eu quis dizer.

O anjo se limitou a dar de ombros.

– Vá lá e descubra.

– O inferno que vou! – Trez meneou a cabeça. – Olha só, sei que as pessoas andam preocupadas comigo e agradeço a preocupação. – Na verdade, não agradecia não. Nem um pouco. – Sim, perdi peso, e eu deveria comer mais. Mas é engraçado como, quando se tem o peito escancarado e o coração arrancado pelo destino, se perde o apetite. Por isso, se está querendo companhia só para não parecer que está jogando sozinho, por que não procura alguém que coma de verdade e troque mais de duas palavras com ela? Posso garantir que tanto eu quanto você teremos uma noite mais agradável assim.

– Até amanhã.

Quando o anjo saiu, Trez gritou para a ponta oposta do escritório:

– Vai se foder!

Quando a porta se fechou em silêncio, ele concluiu que, pelo menos, a discussão não continuaria. E quando estivesse comendo a bolonhesa sozinho, Lassiter entenderia que o Sombra não apareceria.

Problema resolvido.


CAPÍTULO 7

Há momentos na vida em que a amplitude da sua atenção se estreita em um foco tão exíguo que toda a sua consciência se concentra nessa única pessoa. Qhuinn não era alheio a esse fenômeno. Ele acontecia toda vez que estava sozinho com Blay. Quando segurava os filhos. Quando lutava contra o inimigo, em busca de garantir que voltaria para casa inteiro, sem ferimentos e concussões.

E estava acontecendo de novo agora.

Parados diante da base da árvore de Harry Potter, no topo de uma colina, com o vento invernal ao redor, Qhuinn estava ciente apenas do olho direito de Layla. Conseguia contar cada nuance verde-clara que irradiava do núcleo preto da íris. Poderia haver uma nuvem de cogumelos resultante de uma explosão nuclear ao longe, uma nave espacial acima da sua cabeça, uma fila de palhaços dançando ao seu lado... e ainda assim ele não teria visto, ouvido, percebido nada além daquilo.

Bem, isso não era inteiramente verdade.

Percebia de leve o rugido em seus ouvidos, um tipo de cruzamento do motor de um jato e dos fogos de artifícios que sibilam como uma banshee, girando em círculos até se exaurir.

– Responda – ele ordenou numa voz que não parecia a sua.

Ele a havia seguido até aquele local isolado quando sentiu sua ausência na mansão – e se deslocou até ali para falar com ela sobre depressão pós-parto. O plano era levá-la de volta para casa, confortá-la diante da lareira, colocá-la num caminho em que ela pudesse apreciar os seres pelos quais tanto se empenhou em trazer ao mundo.

Como diabos acabaram falando de Xcor e de ela ter se encontrado com ele?

Não fazia a mínima ideia.

Mas não havia mais nenhum mal-entendido. E nenhuma retratação a caminho. Ele via no olhar arregalado e no pânico silencioso que, apesar de seu desejo de que aquela fosse uma colossal falha de comunicação de proporções risíveis, não era o caso.

– Eu estava segura – ela sussurrou. – Ele nunca me feriu.

– Mas que porra q...

Ele se deteve nesse aspecto. Iria direto ao ponto, como se faz com o detonador de uma bomba.

Antes que ele fizesse ou dissesse algo de que se arrependeria, afastou-se e flexionou os dedos para que não se cerrassem em punhos.

– Qhuinn, juro que nunca estive em perigo...

– Você ficou sozinha com ele. – Quando Layla não respondeu, ele cerrou os molares. – Não ficou?

– Ele nunca me machucou.

– Ok, isso é o mesmo que dizer que nunca foi picada enquanto usava uma cobra como cachecol. Uma vez depois da outra. Porque essa porra aconteceu com frequência, não foi? Responda!

– Sinto muito, Qhuinn... – Ela parecia querer se recompor, fungando as lágrimas e aprumando os ombros. O modo como os olhos dela suplicavam perdão o levou à beira da violência. – Oh, Santa Virgem Esc...

– Pare com as súplicas! Não há mais ninguém lá em cima! – Ele estava perdendo o controle. Por completo. – E que diabos está fazendo com esse pedido de perdão? Você colocou meus filhos em risco por livre e espontânea vontade só porque queria... – Ele se retraiu. – Jesus Cristo. Você fez sexo com ele? Você trepou com ele com os meus filhos dentro de você?

– Não! Nunca estive com ele dessa forma!

– Mentirosa – ele urrou. – Você é uma vadia mentirosa...

– Sou praticamente virgem! E você sabe disso! Além do mais, você não me quer. Por que se importa?

– Está querendo sugerir que sequer o beijou? – Quando ela não respondeu, ele riu com aspereza. – Nem tente negar. Está escrito na sua cara. E você tem razão, eu não te quis, nunca te quis... E não tente distorcer as coisas. Não estou com ciúmes; estou enojado. Amo um homem de valor e tive que ir para a cama com você porque precisava de uma incubadora pro meu filho e pra minha filha. Por isso e pelo fato de você ter se jogado em cima de mim quando esteve no cio, esses foram os únicos motivos pelos quais estive com você.

O rosto de Layla empalideceu, e por mais que isso o tornasse um cretino, ele gostou. Queria feri-la por dentro, que era onde contava, porque, por mais furioso que estivesse, jamais bateria numa fêmea.

E essa era a razão por ela ainda estar de pé.

Aqueles bebês, aqueles preciosos e inocentes bebês, foram levados até a boca de um monstro, na presença do inimigo, expostos ao perigo que o teria feito se cagar nas calças caso tivesse sabido à época do acontecimento.

– Você faz alguma ideia do que ele é capaz de fazer? – Qhuinn perguntou com seriedade. – As atrocidades que cometeu? Ele esfaqueou o próprio tenente nas entranhas só para mandá-lo para as nossas mãos. E no passado, no Antigo País? Ele assassinou vampiros, humanos, redutores, qualquer um que lhe atravessasse o caminho, às vezes movido pela guerra, outras só por diversão. Ele era a mão direita de Bloodletter. Você consegue imaginar o que ele já fez nesta terra? Quero dizer, você evidentemente não dá a mínima para o fato de ele ter metido uma bala no pescoço de Wrath – está claro que isso não significa nada para você. Aquele bastardo poderia tê-la violentado mil vezes, estripado você e deixado que ardesse sob o sol – com os meus filhos dentro de você! Que tipo de porra de brincadeira você está armando pra cima de mim?!

Quanto mais Qhuinn pensava a respeito dos riscos a que ela se expôs, mais sua cabeça latejava. Seus amados filhos poderiam muito bem não existir por conta das más escolhas da fêmea, que apenas por preceito biológico, fora o abrigo deles até que pudessem respirar sozinhos.

Tinha colocado-os em perigo ao se arriscar – sem nenhum pensamento aparente quanto às consequências ou como ele, o pai biológico, poderia encarar tamanho fiasco.

Sua fúria, nascida do amor que nutria pelos bebês, era indefinível. Inegável. Inesgotável.

– Nós dois os desejamos – ela disse, rouca. – Quando nos deitamos, nós dois os quisemos...

Numa voz impassível, ele a interrompeu:

– Pois é, isso eu lamento. Melhor que eles não tivessem nascido do que ter metade de você neles.

Layla estendeu a mão para mais uma vez se apoiar na árvore – e, como foi a mão que estava envolvida por sua bandana, ele se percebeu sufocado pela necessidade de arrancar o pedaço de pano da mão dela. Para depois queimá-lo.

– Fiz o melhor que pude – ela afirmou.

Ele gargalhou, então, até que a garganta queimasse.

– Está se referindo ao tempo em que dormiu com Xcor? Ou quando pôs em risco a vida dos meus filhos?

De uma vez só, ela retribuiu a raiva dele com um jorro da sua:

– Você tem aquele a quem ama! Deita-se ao lado dele todos os dias! A sua vida tem objetivo e significado, além de servir a outrem – enquanto eu não tenho nada! Passei todas as minhas noites e dias servindo a uma divindade que já não se importa mais com a raça que gerou e agora sou a mahmen de dois bebês a quem amo com todo o meu coração, mas que não são eu. O que tenho para mostrar da minha vida? Nada!

– Nisso você acertou – ele concordou, sério. – Porque não será mais a mãe dos meus filhos. Você perdeu o seu emprego.

Ela se retraiu com indignação.

– O que está dizendo? Sou a mahmen deles. Eu...

– Não é mais.

Houve um instante de silêncio, e depois a voz explodiu para fora dela:

– Você não pode... Não pode tirar Lyric e Rhamp... Não pode afastá-los de mim! Sou a mahmen deles! Tenho meus direitos...

– Não, não tem. Você se associou ao inimigo. Cometeu um ato de traição. E vai ter sorte se sair desta com vida – não que eu me lixe se você viver ou morrer. A única coisa que me importa é que nunca mais veja os bebês...

A mudança no interior dela foi instantânea e arrebatadora.

De uma vez só, Layla passou de irada a absolutamente calada. E a mudança foi tão abrupta que ele teve de ponderar se ela não sofrera uma síncope.

Mas, em seguida, os lábios de Layla se retraíram das presas que desciam. E o som que saiu de dentro dela eriçou os pelos de sua nuca num alerta.

Quando abriu a boca, a voz dela foi letal como as lâminas de uma adaga.

– Não recomendo que tente me impedir de ver meu filho e minha filha.

Qhuinn expôs as próprias presas.

– Espere e verá.

O corpo da Escolhida se curvou e ela se agachou, o sibilo que ela emitiu era de uma víbora. Só que ela não saltou sobre ele para despedaçar seu rosto com as garras.

Layla simplesmente se desmaterializou.

– Ah, inferno! Não! – ele gritou para o cenário invernal frio e alheio a tudo. – Você quer guerra, é o que vai ter, cacete!

– ... vezes em que ainda sinto vontade – Blay dizia ao sorver um gole do seu copo com gelo. – Para os humanos, é um vício letal. Mas vampiros não têm que se preocupar em adquirir câncer por fumar.

A sala de bilhar da Irmandade estava quase deserta, visto que o torneio foi encerrado quando Butch teve de assumir o posto ao lado de Xcor, Tohrment pediu para se retirar, Rhage chegou machucado do campo, e Rehv decidira ficar nos Grandes Campos com Ehlena. Mas tudo bem. Blay ainda conseguira jogar com Vishous, e os dois circundavam a mesa central dentre as cinco, alternando-se nas jogadas. A boa notícia? Lassiter estava em algum outro lugar, o que significava que a TV acima da imensa lareira estava na ESPN, no mudo.

Nada de filmes da Disney com aquelas canções ridículas esta noite.

Se Blay tivesse que ouvir as merdas do Frozen uma vez mais, ele iria “let it goooooo” pra valer.

No sentido de esvaziar uma magazine bem diante do seu próprio lobo frontal.

Do outro lado da mesa, Vishous acendeu outro dos seus cigarros enrolados por ele mesmo.

– Então por que parou de fumar?

Blay deu de ombros.

– Qhuinn odeia cigarros. O pai dele fumava cigarros e cachimbo, então acho que isso o faz se lembrar de coisas das quais prefere esquecer.

– Você não deveria ter que mudar por ninguém.

– Fui eu quem escolheu parar. Ele nunca me pediu.

Enquanto o Irmão se inclinava sobre a mesa para alinhar o taco, Blay relembrou o início de sua história com Qhuinn. Esse papo de fumar começou quando teve de ficar assistindo ao macho que amava foder qualquer coisa que se movesse. Um período horrível. Não, não tinham um relacionamento – e toda vez que Qhuinn saía com alguém, isso servia de lembrete de que jamais estariam em um.

Caramba. Na época, ele sequer havia saído do armário.

O estresse e a tristeza foram difíceis de controlar, mas também houve um ressentimento borbulhante e irracional de sua parte. Por isso abraçara um mecanismo de compensação que Qhuinn não teria aprovado nem gostado. Fora uma desforra subversiva e mesquinha pelos pecados que o macho na verdade não cometera.

Mas, pelo menos, deixar de fumar tinha sido simples. Assim que os dois se entenderam? Ele deixou os maços de Dunhill de lado e nunca mais olhou para trás.

Bem... Talvez seja mais preciso afirmar que nunca escorregou no vício. Às vezes, quando via Vishous acendendo um, e o cheiro do tabaco permeava o ar, ele ansiava fumar um cigarro...

Bem quando V. lançou a bola da vez no meio do arranjo central, um som horrível de batidas resoou no vestíbulo. Alto, repetitivo, forte o bastante para sacudir e fazer tremer a maciça e grossa porta de carvalho da entrada da mansão, de modo que mais parecia que uma horda de redutores estava tentando invadi-la.

Blay sacou a arma que portava na casa enquanto ele e V. largavam os tacos e corriam para fora da sala de bilhar até a entrada principal.

Bam-bam-bam-bam!

– Mas que porra é essa? – V. murmurou ao olhar para o monitor de segurança. – Que diabos há de errado com o seu garoto?

– O quê?

A pergunta foi respondida quando V. soltou a trava e Qhuinn entrou explodindo no vestíbulo. O macho estava furioso a ponto de parecer possuído, o rosto contraído de raiva, o corpo disparado numa corrida, seu estado tal que ele parecia alheio à presença de qualquer um.

– Qhuinn? – Blay tentou segurá-lo pelo ombro ou pelo braço.

Não teve jeito. Qhuinn chegou à escadaria e deu uma de Usain Bolt, os degraus cobertos pelo tapete vermelho foram consumidos por saltos ligeiros.

– Qhuinn! – Blay disparou atrás do que quer que estivesse acontecendo, tentando alcançá-lo. – O que foi?

No alto da escadaria, os coturnos de Qhuinn se enterraram no carpete e por pouco não derraparam ao virar à esquerda no corredor das estátuas. Logo atrás dele, Blay se apressou, e quando a direção que ele tomava ficou clara, um súbito terror se apossou dele.

Layla e as crianças deviam estar em algum perigo...

Na porta do quarto de Layla, Qhuinn agarrou a maçaneta e girou – só para bater de cara na madeira.

Cerrando um punho, ele começou a bater na porta com tanta força que lascas de pintura começaram a cair.

– Abra a porra desta porta! – Qhuinn berrou. – Layla, abra esta maldita porta agora mesmo!

– Mas que diabos você está fazendo?! – Blay tentou impedi-lo. – Ficou louco...

A arma de Qhuinn saiu sabe-se lá de onde, e quando o Irmão a virou e direcionou o cano para o rosto de Blay, ficou claro que se tratava de algum tipo de pesadelo, o resultado inevitável de uma segunda dose de vinho do Porto depois do jantar de carneiro de Fritz.

Só que não.

– Fique fora disso – Qhuinn estrepitou. – Fique fora disso.

Enquanto Blay erguia ambas as mãos e recuava, Qhuinn virou o ombro para a porta e a empurrou com tanta força que a madeira rachou, os painéis se partindo sob a força do golpe.

O que se revelou dentro do quarto cor de lavanda foi igualmente aterrador.

Enquanto Vishous parava de pronto ao lado de Blay e Z. saía da sua suíte ao fim do corredor, o cérebro de Blay para sempre ficaria maculado pela visão incompreensível e inescapável de Layla com cada filho debaixo dos braços, as presas expostas em pose de ataque, o rosto como o de um demônio, o corpo todo trêmulo – mas não de medo.

Ela estava preparada para matar qualquer um que se aproximasse dela.

Qhuinn apontou a arma na direção dela através do buraco criado na porta.

– Solte-os. Ou acabo com você.

– Mas que porra está acontecendo aqui? – A voz de Vishous saiu tão alta quanto se ele tivesse um alto-falante. – Vocês perderam a cabeça, caralho?

Qhuinn enfiou a mão por dentro e soltou a tranca, escancarando o que restava da porta. Quando ele entrou, Blay deteve os demais.

– Não, deixem que eu cuido disso.

Se mais alguém além dele entrasse, balas começariam a pipocar, e Layla iria atacar, e pessoas se feririam – ou pior.

E que porra estava acontecendo ali?

– Solte-os! – Qhuinn ladrou.

– Mate-me, então! – Layla revidou. – Vá em frente!

Blay colocou o corpo entre os dois, o tronco enquanto bloqueio no caminho de qualquer bala. Nesse meio-tempo, Layla respirava ofegante, e Lyric e Rhamp choravam – merda, ele jamais se esqueceria do som daquele choro.

De frente para Qhuinn, ele mostrou as palmas e falou com lentidão:

– Vai ter que atirar em mim primeiro.

Ele não se concentrou em nada além dos olhos azul e verde de Qhuinn... Como se pudesse, de alguma forma, comunicar-se telepaticamente com seu oponente para acalmá-lo.

– Saia da frente – Qhuinn ordenou. – Isto não é da sua conta.

Blay piscou ante tais palavras. Mas, considerando-se que enfrentava o cano de uma 40 mm, deduziu que deixaria o insulto passar por ora.

– Qhuinn, qualquer que seja o problema, conseguiremos lidar com... Aquele olhar despareado se voltou para ele por apenas uma fração de segundo.

– Acha mesmo? Quer dizer que o fato de ela ter se associado com o inimigo pode ser lavado com detergente ou alguma merda do tipo? Maravilha, vamos chamar Fritz pra cuidar disto. Ideia boa do cacete.

Enquanto os bebês continuavam a chorar, e mais pessoas se aproximavam da cena no corredor, Blay balançou a cabeça.

– Do que está falando?

– Ela levou os meus filhos com ela quando foi trepar com ele...

– Não entendi, o quê?

– Ela esteve com Xcor durante todo esse tempo. Ela não parou de se encontrar com ele. Associou-se a um inimigo conhecido do nosso rei enquanto estava grávida dos meus filhos. Por isso, sim, estou no meu direito de pai de puxar o gatilho contra ela.

De repente, Blay tomou ciência de um grunhido crescente atrás dele, e o som terrível o lembrou do que ouvira a respeito de as fêmeas da espécie serem mais letais do que os machos. Relanceando por sobre o ombro, ele pensou que sim, Layla estava evidentemente preparada para proteger os filhos até a morte naquela porra de universo paralelo para o qual foram sugados.

Xcor? Ela andou se encontrando com Xcor?

Só que ele não podia se desviar do perigo imediato.

– Só quero que você abaixe essa arma – Blay disse com calma. – Abaixe a arma e me conte o que está acontecendo. Senão, se quiser atirar nela, a bala vai ter que passar por mim primeiro.

Qhuinn inspirou fundo, como se estivesse se esforçando para não gritar.

– Eu te amo, mas isto não é da sua conta, Blay. Saia do caminho e deixe que eu cuido disto.

– Espere um minuto. Você sempre disse que também sou pai dessas crianças...

– Não quando o assunto é este. Agora saia da minha frente, caralho.

Blay piscou uma vez. Duas. Uma terceira vez. Engraçado, a dor em seu peito o fez refletir se Qhuinn não havia apertado o gatilho, e ele apenas deixou de ouvir o disparo.

Concentre-se, ordenou a si mesmo.

– Não, não vou me mexer.

– Saia da frente! – O corpo de Qhuinn começou a tremer. – Mas que diabos, saia da porra da minha frente!

Agora ou nunca, Blay pensou ao avançar e atacar o pulso que controlava a pistola. Ao golpear o antebraço com toda a força, a arma disparou repetidamente, e os cartuchos das balas saíram voando – mas, com uma rápida mudança de direção, ele conseguiu empurrar Qhuinn para o lado. O casal se estatelou no chão, e Blay se esforçou para dominar seu par, o impulso do movimento afastando-os de Layla e dos pequenos enquanto mantinha a arma apontada para o sentido oposto do quarto.

Blay acabou por cima, mas sabia que Qhuinn lhe tomaria a posição bem rápido. A arma, ele tinha que manter controle da...

De repente, o ar se tornou ártico.

A temperatura do quarto caiu para baixo de zero tão rápido que as paredes, o piso e o teto rangeram em protesto, a respiração dos presentes foi expelida em lufadas, a condensação gelou os vidros das janelas e os espelhos, com arrepios de qualquer pele exposta.

Em seguida, ouviu-se um rugido vigoroso.

O som foi tão intenso que foi quase inaudível – nada além de dor atravessou-lhes o canal auditivo, transformando suas cabeças em sinos de igreja – e isso, ainda mais do que a mudança no clima, deteve todos dentro da suíte, no corredor, na mansão... Talvez em todo o mundo.

O imenso corpo de Wrath apequenou a soleira da porta quando ele entrou no quarto, marcado pelos cabelos até a cintura, óculos escuros, coxas cobertas por couro e tronco avantajado, que teria detido qualquer trem em movimento.

Suas presas estavam totalmente expostas, como os dentes de um tigre-dentes-de-sabre. Mas ele não teve dificuldade alguma de se expressar, mesmo com elas.

– Não na porra da minha casa! – Ele soou tão alto que o quadro ao seu lado vibrou contra a parede de gesso. – Isso não vai acontecer na porra da minha casa! Minha shellan e meu filho estão aqui – existem outras crianças debaixo deste teto. Existem crianças na droga deste quarto!

Do lado oposto, Layla caiu no chão, os ossos absorvendo a queda com um barulho. Apesar do impacto, manteve Lyric e Rhamp em segurança, aninhados no colo, enquanto pendia a cabeça e começava a chorar.

Debaixo de Blay, Qhuinn tentava se soltar.

– Não até você soltar a arma – Blay disse entredentes.

Houve o som de metal se chocando contra a madeira quando a 40 mm foi solta e Blay a empurrou para longe. Em seguida, Qhuinn se desvencilhou e pôs-se de pé sobre os coturnos. Parecia que ele tinha estado num túnel de vento, seus cabelos negros dispostos em uma bagunça completa, os olhos arregalados, a pele corada em determinados pontos, mas pálida em outros.

– Todos para fora – Wrath ordenou. – Exceto pelos três pais.

Bem, pelo menos alguém reconhecia seu papel, Blay ponderou, com amargura.

Direcionando seu olhar para Qhuinn, viu-se encarando, através do caos, o macho que conhecia quase tão bem quanto a si mesmo.

Naquele instante, porém? Blay fitava para um estranho. A droga de um total desconhecido. Os olhos que Blay já havia passado horas perscrutando, os lábios por ele beijados, um corpo que tocou, acariciou, penetrou e pelo qual também foi penetrado... Era como se algum tipo de amnésia tivesse apagado toda a intimidade, metamorfoseando o que um dia fora uma realidade conhecida em uma hipótese tão fraca que parecia inexistente.

Vishous entrou no quarto.

– Primeiro, vistoria de armas.

Quando o lábio superior de Wrath se retorceu, ficou claro que o rei não apreciou a interrupção. Mas não havia como argumentar contra a razão.

V. foi eficiente na revista: primeiro retirou um par de adagas de Qhuinn, depois outra pistola – e, quando Blay se levantou, ergueu-lhe os braços e afastou-lhe as pernas, mesmo ciente de que ninguém estava preocupado que ele puxasse o gatilho.

– Pronto – V. anunciou ao se espremer para passar pelo Rei e voltar para o corredor.

– Diga aos outros que saiam – Wrath estrepitou.

– Certo.

Ante o comando real, a multidão se dispersou da soleira, mas não foi muito longe. Suas presenças pairaram enquanto, evidentemente, aguardavam os acontecimentos seguintes. De um jeito ou de outro, não havia como fechar a porta. Estava totalmente arruinada.

Virando-se na direção de Qhuinn, Wrath maldisse a situação e exigiu:

– Vai me explicar por que diabos disparou uma arma dentro da minha casa?

 

CONTINUA

ANTIGO PAÍS, 1731
As chamas de uma fogueira no chão iluminavam as paredes úmidas da caverna; a superfície áspera, manchada por sombras. Do lado de fora do ventre da terra, os gemidos do vento ecoavam na abertura do abrigo, unindo-se aos gritos da fêmea sobre o catre em que dava à luz.
– Será um menino! – ela arfou em meio às contrações que a assolavam. – Um macho!
Acima daquele pedaço de carne deitado e agonizante, pairando como uma maldição sobre ela, o Irmão da Adaga Negra Hharm pouco se importava com a sua dor.
– Logo saberemos.
– Você me desposará. Foi uma promessa...
As palavras se interromperam e seu rosto se contraiu numa máscara feia enquanto suas partes internas se contorciam para expelir a cria e, ao fazer as vezes de testemunha, Hharm refletia o quanto a aristocrata ficava pouco atraente em trabalho de parto. Não fora assim quando se conheceram e ele a seduzira. Na época, estivera coberta de cetim, muito composta, o receptáculo adequado para o seu legado, com a pele perfumada e os cabelos macios e reluzentes. Agora? Não passava de um animal, suada, pegajosa – e por que a situação se prolongava tanto? Ele estava tão enfastiado com o processo, ofendido por estar cuidando dela. Tratava-se de uma tarefa para as fêmeas, não para um guerreiro de seu escalão.
Todavia, não a desposaria, a menos que precisasse fazê-lo.
Se o bebê fosse o filho pelo qual vinha esperando? Então, sim, ele legitimaria a criança por meio da cerimônia de união e daria à fêmea o status ao qual ela se julgava digna. Caso contrário, ele se afastaria e a fêmea não diria nada, porque estava maculada aos olhos de sua classe, sua pureza perdida como um terreno já arado.
De fato, Hharm já decidira que era hora de se assentar. Depois de séculos de perdições e depravações, a idade começava a pesar. Ele se punha a considerar, pela primeira vez, o legado que deixaria para a posteridade. No momento, não lhe faltavam bastardos, frutos de sua pelve, os quais não conhecia, com quem não se importava e jamais se associaria a eles – e por tanto tempo era de conhecimento geral que ele não devia nada a ninguém.
Agora, porém... Ele se encontrava desejando uma árvore genealógica adequada. E também havia a questão das suas dívidas crescentes, algo que o pai dessa fêmea facilmente resolveria para ele – embora, mais uma vez, caso não fosse um filho varão, ele não a desposaria. Não era louco, não se prostituiria por centavos. Além disso, havia incontáveis fêmeas da glymera que cobiçavam o status inerente à vinculação com um membro da Irmandade da Adaga Negra.
Hharm não se comprometeria até ter um filho homem, a quem criaria desde a primeira noite.
– Oras, recomponha-se! – ele repreendeu-a quando ela gritou uma vez mais, uma ofensa aos seus ouvidos. – Fique calada!
Como em todas as coisas, contudo, ela o desafiou:
– Está chegando...! O seu filho está chegando!
A veste que ela usava foi suspensa até a base dos seios volumosos por mãos retorcidas. A barriga estendida e arredondada era uma visão vergonhosa, as coxas pálidas e finas permaneciam afastadas. O que acontecia no centro era repugnante: o que deveria ser a entrada delicada e adorável a fim de aceitar a excitação masculina vazava todo tipo de fluido e as carnes estavam inchadas e distorcidas.
Não, ele jamais a penetraria novamente. Com ou sem um filho, vinculados ou não, a perversão diante dos seus olhos não era algo de que ele pudesse se esquecer.
Felizmente, casamentos por conveniência eram uma contingência comum na aristocracia – não que ele se importasse caso não o fossem. As necessidades dela eram inconsequentes.
– Ele está chegando! – ela berrou quando a cabeça pendeu para trás e as unhas arranharam a terra debaixo de seu corpo. – Seu filho... ele se aproxima!
Hharm franziu a testa, depois seus olhos se arregalaram e as pernas se firmaram, afastadas. Ela não se equivocava, pois, de fato, algo começava a surgir de dentro dela... Era...
Uma abominação. Algo disforme e terrível...
Um pé.
– Isso é um pé?
– Tire seu filho do meu corpo – ela ordenou entre arquejos. – Puxe-o de dentro de mim e segure-o contra seu coração, reconheça-o como sua carne e seu sangue!
Com todas as armas ainda presas ao corpo, Hharm ajoelhou-se quando o segundo pé apareceu.
– Puxe! Puxe! – O Sangue jorrou e a fêmea berrou de novo quando o bebê não se moveu. – Ajude-me! Ele está asfixiado!
Hharm manteve-se afastado de toda aquela nojeira e imaginou quantas fêmeas inseminadas por ele haviam passado pela mesma situação. Seria sempre desagradável assim ou era ela quem era fraca?
De fato, deveria deixá-la que fizesse o parto sozinha, mas não confiava nela. A única maneira de ter certeza de que seu filho era macho era estar presente durante o nascimento. De outro modo, ele não desconsiderava a possibilidade de ela trocar uma filha indesejada pelo macho tão cobiçado – fruto de outro macho.
Aquela era, afinal, uma transação negociada, e ele sabia muito bem como tais coisas podiam ser manipuladas.
Em seguida, o som que emergiu da garganta da fêmea foi tão volumoso e demorado que interrompeu seus pensamentos. Depois os gemidos e as mãos sujas de terra e sangue dela se postaram no interior das coxas, puxando-as para fora e para cima, ampliando a abertura. E bem quando o Irmão acreditou que ela estivesse morrendo, quando cogitou se acabaria enterrando a ambos – e de pronto decidiu-se contra a proposição, visto que as criaturas da floresta logo consumiriam os restos mortais –, o bebê apareceu um pouco mais, livrando-se de algum obstáculo interno.
E lá estava ele.
Hharm se adiantou.
– Meu filho!
Sem pensar, esticou os braços e apanhou com mãos firmes os tornozelos escorregadios. Estava vivo; a criança chutava com força, debatendo-se contra o confinamento do canal vaginal.
– Venha para mim, meu filho – Hharm ordenou ao puxá-lo.
A fêmea se contorcia em agonia, mas ele não lhe dispensou um pensamento sequer. Mãos – pequeninas e perfeitamente bem formadas – surgiram em seguida, junto à barriga arredondada e o peito, que, mesmo em seu momento recém-nascido, era amplo.
– Um guerreiro! Este é um guerreiro! – O coração de Hharm batia forte, seu triunfo latejava nos ouvidos. – Meu filho levará adiante o meu nome! Será conhecido como Hharm, assim como eu antes dele!
A fêmea ergueu a cabeça, as veias do pescoço saltavam como cordões tensos sob a pele pálida demais.
– Você me desposará – ela disse, rouca. – Jure... Jure pela sua honra, ou eu o segurarei dentro de mim até que fique azul e entre no Fade.
Hharm sorriu com frieza, revelando as presas. Em seguida, desembainhou uma das adagas do peito. Direcionando a ponta para baixo, mirou no baixo ventre dela.
– Eu a estriparei como a um cervo para libertá-lo, nalla.
– E quem alimentará seu precioso filho? O seu sêmen não sobreviverá sem mim.
Hharm pensou na tormenta do lado de fora. Na distância que estavam do assentamento de vampiros mais próximo. E no pouco que sabia sobre as necessidades de um recém-nascido.
– Você me desposará, conforme prometido – ela gemeu. – Jure!
Os olhos dela estavam injetados e ensandecidos, os longos cabelos suados e emaranhados, o corpo era algo sobre o qual ele jamais desejaria se sobrepor. Mas a lógica dela o impedia. Perder o que desejava por conta exatamente do arranjo que estivera disposto a fazer, simplesmente porque ela o apresentava como se fosse uma condição sua, não era uma decisão sábia a se tomar.
– Juro – murmurou.
Com isso, ela voltou a se deitar e, sim, agora ele a ajudaria, puxando no ritmo dos empurrões dela.
– Ele está vindo... ele...
O bebê saiu de dentro dela num jorro, fluidos saindo com ele e, quando Hharm o segurou em suas palmas, sentiu uma alegria inesperada tão ressonante que...
Seus olhos se estreitaram ao pousar as vistas sobre o rosto dele. Acreditando que havia alguma membrana mascarando o bebê, passou uma das mãos pelas suas feições, que eram um misto das dele e da fêmea.
Lamentavelmente... nada mudou.
– Que maldição é esta? – questionou-se consigo mesmo. – Que maldição... é esta!

 

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CAPÍTULO 1


MONTANHAS DE CALDWELL, NOVA YORK, DIAS ATUAIS

A Irmandade da Adaga Negra o mantinha vivo só para poder matá-lo.

Dada a soma das atividades terrenas de Xcor, que foram das mais violentas, e certamente muito depravadas, aquele parecia um fim adequado para ele.

Nascera numa noite de inverno durante uma tempestade histórica. Nas entranhas de uma caverna suja e úmida, enquanto rajadas gélidas assolavam o Antigo País, a fêmea que o carregara gritara e sangrara para dar ao Irmão da Adaga Negra Hharm o filho tão exigido por ele.

Ele fora desesperadamente desejado.

Até chegar ao mundo.

E esse era o início da sua história, que acabara por levá-lo até ali.

Em outra caverna. Em outra noite do mês de dezembro. E assim como na noite do seu nascimento de fato, o vento gemia para recebê-lo, ainda que, dessa vez, fosse para o retorno da sua consciência em vez da expulsão para a vida independente que levou dali adiante.

E como um recém-nascido, tinha pouco controle sobre o corpo. Estava incapacitado, e isso seria verdadeiro mesmo sem as algemas de aço e as barras sobre o peito, o quadril, as coxas. Máquinas, contrastantes com o ambiente rústico que o rodeava, emitiam sinais atrás de sua cabeça, monitorando-lhe a respiração, os batimentos cardíacos, a pressão sanguínea.

Com a mesma fluidez de uma engrenagem sem lubrificação, seu cérebro começou a funcionar adequadamente sob o crânio; quando os pensamentos por fim se aglutinaram e formaram uma sequência lógica, lembrou-se da série de eventos que fizeram com que ele, o líder do Bando de Bastardos, acabasse sob a custódia daqueles que haviam sido seus inimigos: um ataque por trás, uma concussão, uma espécie de derrame ou algo do tipo que fez com que ele acabasse deitado, dependendo de máquinas para sobreviver.

E da inexistente misericórdia dos Irmãos.

Recobrara a consciência uma ou duas vezes durante o período em cativeiro, registrando seus captores e o ambiente daquele corredor cavernoso que inexplicavelmente abrigava jarros de todos os tipos. A retomada da consciência nunca durou muito; entretanto, a conexão com sua área mental era insustentável por um tempo mais demorado.

No entanto, dessa vez parecia diferente. Ele percebia a mudança em sua mente. O que quer que tivesse estado danificado por fim se curara e agora ele retornava do cenário enevoado do ponto de morto-vivo, permanecendo do lado vital.

– ... muito preocupado com Tohr.

O fim da frase enunciada por um macho entrou nos ouvidos de Xcor como uma série de vibrações, cuja tradução sofreu um atraso, e quando as palavras se formaram, ele virou o olhar naquela direção. Duas figuras de preto muito bem armadas estavam de costas para si, e ele voltou a abaixar as pálpebras, pois não desejava revelar a mudança do seu estado. Entretanto, suas identidades estavam devidamente anotadas.

– Não, ele está bem. – O som de algo raspando e o cheiro de tabaco permeando o ar. – E se não estiver, vou estar ao lado dele.

A voz grave que falou primeiro pareceu árida.

– Pra botar nosso irmão na linha à força... Ou ajudá-lo a acabar com este pedaço de carne?

O Irmão Vishous riu como se fosse um assassino em série.

– Que bela consideração você tem por mim.

Era estranho que não se entendessem melhor, Xcor pensou. Esses machos queriam tanto sangue quanto ele.

No entanto, essa aliança jamais existiria. A Irmandade e os Bastardos sempre estiveram em lados opostos durante o reinado de Wrath, esse limite tendo sido estabelecido pela bala que Xcor alojara na garganta do líder por direito da raça vampírica.

E o preço de sua traição seria cobrado ali, em pouco tempo.

Claro, a ironia era que uma força de compensação interceptara seu destino e fizera com que suas ambições e seu foco se afastassem, e muito, do trono. Não que os guerreiros da Irmandade tivessem ciência disso – e pouco se importariam se soubessem. Além de partilharem o apetite pela guerra, ele e os Irmãos tinham outras características em comum: piedade era para os fracos; o perdão, algo patético; pena, um sentimento das fêmeas, nunca de guerreiros.

Embora soubessem que ele já não sentia nenhuma agressividade em relação a Wrath, não o exonerariam daquilo que conquistara com méritos. Por conta de tudo o que acontecera, ele não sentia nem amargura nem raiva em relação ao que o esperava. Aquela era a natureza do conflito.

Contudo, sentia-se triste – um sentimento desconhecido para ele.

Das suas lembranças surgiu uma imagem que lhe roubou o fôlego. Era o de uma fêmea alta e magra nas vestes sagradas das Escolhidas da Virgem Escriba. Os cabelos loiros ondulavam sobre os ombros e desciam até o quadril em uma brisa suave, os olhos eram cor de jade, o sorriso, uma benção que ele não fizera nada para receber.

A Escolhida Layla mudara tudo para ele, transformando a Irmandade de um alvo a algo tolerável, de inimigo a um habitante coexistente naquele mundo.

Em pouco mais de um ano e meio, período no qual Xcor a conhecia, ela tivera um efeito mais impactante sobre sua alma negra do que qualquer outra pessoa antes dela, fazendo com que evoluísse muito em tempo ínfimo – algo que ele jamais imaginara ser possível.

O Dhestroyer, camarada de Vishous, voltou a falar:

– Na verdade, concordo plenamente com Tohr sobre fazer picadinho do filho da puta. Ele conquistou esse direito.

O Irmão Vishous praguejou.

– Todos nós merecemos. Vai ser difícil deixar uma parte dele intacta quando isso acontecer.

E ali estava o enigma, Xcor ponderou por trás das pálpebras abaixadas. A única saída possível de tamanho cenário mortal seria revelar o amor que sentia por uma fêmea que não era sua, nunca fora e jamais poderia ser.

Mas não sacrificaria a Escolhida Layla por ninguém, por nada.

Nem mesmo para se salvar.

Enquanto Tohr caminhava na floresta de pinheiros da montanha da Irmandade, seus coturnos esmagavam o terreno congelado, e o vento glacial o golpeava no rosto. Em seu rastro, tão próximo de seus calcanhares quanto uma sombra, ele sentia suas perdas a acompanhá-lo, numa fila de lamentos tangíveis como uma corrente.

A sensação de estar sendo perseguido pelos seus mortos o fez refletir a respeito de programas de TV sobre eventos paranormais, do tipo que tentava provar a existência de fantasmas. Que monte de bobagens. A histeria humana acerca das supostas entidades obscuras flanando em escadas e provocando rangidos em casas antigas, com seus passos sem corpos, era algo muito característico dessa espécie desimportante absorta em si mesma e criadora de dramalhões. Mais uma coisa que Tohr odiava a respeito deles.

E, como de costume, eles não acertavam no alvo.

Os mortos absolutamente nos atormentam, percorrendo seus dedos gélidos em nossa nuca como uma forma de lembrete até não conseguirmos decidir se queremos gritar pelas saudades que sentimos deles... ou porque queremos ser deixados em paz.

Eles espreitam suas noites e rondam seus dias, deixando um campo minado de tristeza ao longo dos caminhos.

São seus primeiros e seus últimos pensamentos, o filtro que você tenta deixar de lado, a barreira invisível entre você e todo o resto.

Algumas vezes, são mais parte de você do que as pessoas que você consegue de fato segurar e tocar.

Portanto, sim, ninguém precisa de um programa de TV idiota para provar o que já é de conhecimento comum: mesmo que Tohr tenha encontrado o amor com outra fêmea, sua primeira shellan, Wellsie, e o filho não nascido que ela carregava no ventre quando foi assassinada pela Sociedade Redutora, nunca foram afastados dele além da própria pele.

E agora houvera mais uma morte na mansão da Irmandade.

A companheira de Trez, Selena, subira para o Fade havia poucos meses, tendo falecido em razão de uma doença para a qual não existia cura, nenhum alívio, nenhum conhecimento.

Tohr não dormia direito desde então.

Voltando a se concentrar nas árvores que o cercavam, Tohr se abaixou e afastou um galho do caminho, depois deu a volta num tronco caído. Poderia ter se materializado até o destino, mas seu cérebro latejava com tanta violência da prisão do crânio que ele duvidava que conseguiria se concentrar o bastante para se dissipar.

A morte de Selena fora um maldito gatilho para ele, um evento que afetava outra pessoa, mas que, não obstante, sacudira seu globo de neve, balançando-o com tanta força que seus flocos internos ainda rodopiavam e se recusavam a se assentar.

Estava no centro de treinamento quando ela fora chamada para o Fade, e o momento da morte não fora silencioso. Fora marcado pelo som da alma dilacerada de Trez, o equivalente auditivo de uma tumba – um som que Tohr conhecia bem demais. Fizera o mesmo quando recebera a notícia da morte de sua fêmea.

Portanto, sim, nas asas da agonia do seu amor, Selena fora alçada da terra para o Fade...

Arrancar-se desse espiral cognitivo era o mesmo que tentar tirar um carro de um atoleiro, o esforço necessário era tremendo, o progresso conquistado centímetro a centímetro.

No entanto, lá ia ele pela floresta, na noite invernal, esmagando o que aparecia sob suas solas, com seus fantasmas sussurrando-lhe por trás.

A Tumba era o sanctum sanctorum da Irmandade da Adaga Negra, aquele local secreto onde as induções aconteciam e convocavam-se as reuniões secretas, e onde eram mantidos os jarros dos redutores assassinados. Estava localizada abaixo do solo, num labirinto criado pela natureza, tradicionalmente fora dos limites para qualquer um que não tivesse passado pela cerimônia que o marcasse como membro da Irmandade.

Essa regra, no entanto, tivera que ser contornada, pelo menos em respeito ao longo corredor de entrada de quase meio quilômetro.

Ao se aproximar do insuspeito sistema da entrada, parou e sentiu a raiva surgir.

Pela primeira vez desde que se tornara um Irmão, não era bem recebido ali.

Tudo por causa de um traidor.

O corpo de Xcor estava do lado oposto dos portões, na metade do caminho repleto de prateleiras, deitado numa maca, a vida monitorada e mantida por equipamentos.

Até que o maldito despertasse e pudesse ser interrogado, Tohr não tinha permissão para entrar.

E seus irmãos tinham razão em não confiar nele.

Ao fechar os olhos, viu seu rei com um tiro na garganta. Reviveu o momento em que a vida de Wrath estivera escorrendo junto ao sangue rubro; rememorou a cena em que tivera que salvar o último vampiro de sangue puro no planeta ao cortar um buraco na frente da garganta dele e enfiar o tubo de sua Camelback naquele esôfago.

Xcor encomendara o assassinato. Xcor ordenara um dos seus guerreiros mandar uma bala para dentro das carnes de um macho de valor, conspirara com a glymera para derrubar o governante por direito, mas o filho da puta fracassara. Wrath sobrevivera, apesar das probabilidades contrárias,, e na primeira eleição democrática da história da raça, fora apontado como líder de todos os vampiros – uma posição que ele agora detinha por consenso em vez de pela sua linhagem.

Portanto, vá se foder, filho da puta.

Cerrando os punhos, Tohr ignorou o ranger das luvas de couro e a constrição no dorso dos nós dos dedos. Só o que reconhecia era o ódio, tão profundo como uma doença letal.

O destino decidira que era certo tirar-lhe três seus e dos seus; o destino tirara dele sua shellan, seu filho, e o amor da vida de Trez. Querem falar sobre equilíbrio no Universo? Tudo bem. Ele queria o seu equilíbrio, e isso só aconteceria quando quebrasse o pescoço de Xcor e arrancasse o coração ainda quente do peito do maldito.

Já era hora de uma fonte do mal ser tirada de circulação, e era ele quem empataria o placar.

E a espera finalmente terminava. Por mais que respeitasse seus irmãos, estava farto de aguardar. Essa noite era um aniversário triste para ele, e ele daria ao seu luto um presentinho especial.

Era hora de festejar.


CAPÍTULO 2

O copo de cristal baixo estava tão limpo, tão isento de marcas de sabão, de poeira, de qualquer grânulo que o manchasse, que sua estrutura era como o ar; e a água dentro dele, totalmente invisível.

Meio cheio, a Escolhida Layla ponderou. Ou meio vazio?

Sentada no banquinho acolchoado, entre as duas pias com torneiras douradas e diante de um espelho com adornos de ouro que refletia a banheira funda atrás de si, ela observava a superfície do líquido.

O fundo era côncavo e a água lambia levemente o interior do copo, como se suas moléculas mais ambiciosas tentassem fugir do confinamento.

Respeitava o esforço, enquanto lamentava sua futilidade. Sabia muito bem o que era querer ser livre do local que a abrigava, apesar de não ser culpa sua.

Por séculos, ela fora a água daquele copo, despejada sem ter querido, em virtude apenas do seu nascimento, num papel de servidão junto à Virgem Escriba. Ao lado de suas irmãs, executara os deveres sagrados das Escolhidas no Santuário, adorando a mãe da raça, registrando os eventos da Terra para a posteridade dos vampiros, aguardando a escolha de um novo Primale para que ela pudesse engravidar e dar à luz mais Escolhidas e mais Irmãos.

Mas tudo isso já era passado.

Inclinando-se sobre o copo, observou mais atentamente a água. Fora treinada como ehros, não como escriba, mas sabia muito bem como enxergar além das águas que eram testemunhas da história. Dentro do Templo das Escribas, as Escolhidas designadas a registrar as histórias e as linhagens da raça permaneceram sentadas por horas e horas, observando nascimentos e mortes, suas mãos delicadas com penas sagradas colocando os detalhes nos pergaminhos, acompanhando tudo.

Não havia nada para ela ver. Não ali na Terra.

E também já não existiam testemunhas no alto.

Um novo Primale acabara surgindo. Mas em vez de se deitar com seu rebanho de fêmeas, dando continuidade ao programa de criação da Virgem Escriba, ele dera um passo sem precedentes, libertando todas elas. O Irmão da Adaga Negra Phury se desviara do modelo, quebrara a tradição, desfizera-se das amarras e, ao fazê-lo, as Escolhidas que estiveram isoladas desde sua gênese, visando aos nascimentos planejados, acolheram sua libertação. Já não eram representantes vivas de uma tradição rígida; tornaram-se indivíduos, com seus próprios descontentamentos e preferências, mergulhando os dedos nas águas terrenas da realidade, procurando e encontrando destinos a respeito de si próprias, e não mais de um serviço.

Ao fazer isso, ele desencadeara o fim dos imortais.

A Virgem Escriba já não existia mais.

Seu filho de nascimento, o Irmão da Adaga Negra Vishous, a procurara no Santuário acima e descobriu que ela se fora, deixando uma última carta escrita no vento apenas para os olhos dele.

Ela dissera que tinha um sucessor em mente.

Ninguém sabia sua identidade.

Recostando-se, Layla olhou para a veste que trajava. Não era do tipo sagrado que se vestira durante tantos anos. Não, essa peça vinha de um lugar chamado Pottery Barn, e Qhuinn a comprara para ela na semana passada. Com a aproximação do inverno, ele se preocupava que a mãe de seus filhos estivesse aquecida, sempre bem cuidada.

A mão de Layla subiu para o ventre, agora baixo. Depois de ter carregado a filha, Lyric, e o filho, Rhampage, dentro do corpo por tantos meses, era tão estranho quanto familiar não ter nada no útero...

Vozes murmuradas, baixas e graves, penetraram a porta que ela havia fechado.

Entrara no banheiro para usar o vaso.

Demorara-se depois de ter lavado as mãos.

Qhuinn e Blay, como de costume, estavam com os bebês. Segurando-os. Ninando-os.

Todas as noites, ela tinha que se esforçar para testemunhar o amor, não entre eles e os pequenos... mas aquele entre os dois machos. De fato, os pais exibiam um vínculo ressonante e, resplandecente um com o outro, e por mais que fosse algo belo, aquele fulgor fazia com que se sentisse ainda mais vazia em sua existência.

Enxugando uma lágrima, disse a si mesma para se controlar. Não poderia voltar ao quarto com olhos brilhantes demais, e o nariz e faces corados. Aquele deveria ser um momento de alegria para os cinco integrantes da família. Agora que os gêmeos haviam superado o estado de emergência sob o qual tinham nascido, e Layla também se recuperara, todos estavam aliviados por todos estarem sãos e salvos.

Agora era a vida feliz que ganharam para viver.

Em vez disso, ela ainda era a água triste dentro do copo, desejando sair.

Dessa vez, porém, a prisão foi feita por ela mesma, em vez de providenciada pela genética.

A definição de infidelidade, pelo menos de acordo com o dicionário, era: a ação de trair algo ou alguém...

A batida à porta fechada foi suave.

– Layla?

Ela fungou e abriu uma das torneiras.

– Oi!

A voz de Blay soou baixa, como era seu hábito.

– Você está bem aí?

– Ah, sim, estou. Resolvi tratar um pouco do rosto. Sairei daqui a pouco.

Ela se levantou, inclinou-se e molhou o rosto. Depois esfregou a testa e o queixo com a toalha de mão para que o rubor se espalhasse mais uniformemente sobre a pele. Apertando o cinto do roupão, aprumou os ombros e foi para a porta, em meio a preces para manter a compostura pelo tempo necessário até conseguir apressá-los para a Última Refeição.

Mas teve um momento de folga.

Ao abrir a porta, Blay e Qhuinn sequer olhavam na sua direção. Estavam inclinados sobre o berço de Lyric.

– ... os olhos de Layla – Blay disse ao abaixar a mão e deixar que a pequena agarrasse seu dedo. – Definitivamente.

– Ela também tem os cabelos da mahmen. Veja o tom loiro começando a aparecer.

O amor deles pela pequena era incandescente, reluzia em seus rostos, aquecia suas vozes e, aplacava seus movimentos, de modo que tudo o que faziam era com cuidado. No entanto, não era nisso que Layla se concentrava.

Seu olhar estava fixo na palma larga de Qhuinn, que afagava as costas de Blay. A carícia de conexão era inconsciente de ambos os lados; a oferta e a aceitação eram tanto nada e tudo o que importava, simultaneamente. E enquanto testemunhava o que se passava do outro lado do quarto, Layla teve que piscar rápido de novo.

Às vezes, a gentileza e o amor podiam ser tão difíceis de testemunhar quanto a violência. Às vezes, quando se está do lado de fora, ver duas pessoas tão em sintonia era uma cena saída de um filme de terror, o tipo de coisa da qual você quer se manter afastado, quer esquecer, banir da memória – ainda mais quando se está prestes a deitar e enfrentar sozinha um longo dia de horas no escuro.

Saber que ela jamais teria esse amor especial com alguém era...

Qhuinn relanceou na sua direção.

– Ah, oi.

Ele se endireitou e sorriu, mas ela não se deixou enganar. Os olhos dele a percorriam como se em uma avaliação – mas, talvez, esse não fosse o caso. Talvez fosse simplesmente a sua paranoia se manifestando.

Estava tão farta de se dividir em uma vida dupla. Contudo, no tipo de ironia cruel que parecia ser a fonte favorita de divertimento do destino, o preço para aliviar a consciência viria à custa de sua própria existência.

A como poderia deixar os filhos para trás?

– ... ok? Layla?

Enquanto Qhuinn franzia a testa ao observá-la, ela balançou a cabeça e forçou um sorriso.

– Ah, tudo bem, mesmo. – Ela deduzia que a pergunta se referisse ao seu bem-estar. – Muito bem mesmo.

Em busca de confirmar a mentira, aproximou-se dos berços. Rhampage, ou Rhamp, como era conhecido, lutava contra o sono, e quando a irmã arrulhou, sua cabeça se virou e ele esticou a mão.

Engraçado. Mesmo tão jovem, ele parecia reconhecer seu posto e desejava protegê-la.

Era genético. Qhuinn era um membro da aristocracia, resultado de gerações de emparelhamentos escolhidos a dedo, e por mais que seu “defeito” de ter um olho azul e outro verde o tivesse feito receber o desprezo tanto da glymera quanto da própria família, a venerável natureza de sua linhagem não podia ser negada. Tampouco o impacto de sua presença física. Com quase dois metros de altura e corpo talhado por músculos definidos, moldados tanto pelos exercícios quanto pela prática na guerra – uma arma tão letal quanto as pistolas e adagas que levava consigo para o campo de batalha. Era o primeiro membro da Irmandade da Adaga Negra a ser induzido com base na meritocracia em vez de na linhagem, e não desapontara a grande tradição. Ele nunca desapontava ninguém.

De fato, Qhuinn era, no conjunto, um belo macho, ainda que de forma um tanto rústica. O rosto era angular, pois tinha pouca gordura corporal, e aqueles olhos despareados fitavam por baixo de sobrancelhas negras. Os cabelos pretos foram cortados muito curtos recentemente, quase totalmente raspados na base. Deixavam um topete para trás e, como resultado, seu pescoço parecia extra-grosso. Com piercings metálicos nas orelhas e a lágrima de ashtrux nohtrum abaixo do olho – uma marca dos tempos em que servira como protetor de John Matthew –, ele chamava a atenção por onde quer que passasse.

Talvez porque as pessoas, tanto humanos como vampiros, preocupavam-se com o que ele seria capaz de fazer caso fosse contrariado.

Blay, por sua vez, era o oposto: tão acessível quanto Qhuinn seria evitado num beco escuro.

Blaylock, filho de Rocke, tinha cabelos ruivos e um tom de pele mais claro do que a maioria da espécie. Era tão grande quanto Qhuinn, mas quando se está ao seu lado, a primeira impressão que se tem dele faz referência à sua inteligência e ao seu bom coração, em vez de a força bruta. Ainda assim, ninguém discutia suas habilidades em campo. Layla ouvira histórias, ainda que nunca da parte dele, visto que não era de se vangloriar, criar dramas excessivos ou atrair atenções para si.

Ela amava os dois de todo o coração.

E o distanciamento que sentia em relação a eles partia somente do seu lado.

– Olha só – Qhuinn disse ao apontar para os bebês. – Temos dois se apagando... Melhor, um e meio.

Quando ele sorriu, ela não se deixou enganar. Seus olhos continuavam a passear pelo seu rosto, à procura sobre sinais de exatamente aquilo que ela tentava esconder. Para dificultar o escrutínio dele, ela recuou.

– Eles dormem bem, graças à Virgem Escriba... Hum, graças ao Fade.

– Você vai descer para a Última Refeição hoje? – ele perguntou como quem não quer nada.

Blay se endireitou.

– Fritz disse que prepara o que você quiser.

– Ele é sempre tão gentil. – Ela foi até a cama e se deitou contra os travesseiros. – Na verdade, senti uma fominha lá pelas duas da manhã, por isso fui até a cozinha e comi torradas e aveia. Tomei café. Suco de laranja. Um café da manhã no lugar do almoço, por assim dizer. Sabem como é, às vezes sentimos vontade de voltar o relógio no meio da noite e recomeçar da metade.

Uma pena que isso não passasse de uma metáfora.

Ainda que... será que ela teria escolhido nunca conhecer Xcor?

Sim, pensou. Preferiria nunca ter sabido da sua existência.

O amor de sua vida, seu “Blay”, o par do seu coração e da sua alma... era um traidor. E seus sentimentos pelo macho foram uma ferida aberta na qual a bactéria da traição entrara e se espalhara.

Portanto, ali estava ela, na prisão estabelecida por ela própria, torturada pelo fato de ter se aproximado do inimigo, primeiro por ter sido ludibriada... e mais tarde porque quis estar na presença de Xcor.

Separaram-se em maus termos, contudo, com ele colocando um fim nos encontros clandestinos após ela forçá-lo a admitir seus sentimentos. Em seguida, a situação se transformara de triste para trágica, quando ele foi capturado e levado sob a custódia da Irmandade.

A princípio não conseguira obter informações acerca de seu estado. Mas então, viajara ao modo de uma Escolhida até ele e, testemunhara seu estado moribundo num corredor de pedras, repleto de jarros de todas as cores e formas.

Não havia nada que pudesse ter feito por ele. Não sem se apresentar e se expor – e mesmo que ela o fizesse, não poderia salvá-lo.

Por isso estava presa ali: um fantasma atormentado num misto de emoções salpicadas pelo veneno da culpa e do arrependimento, sem nunca, jamais, poder se libertar.

– ... certo? Quero dizer... – Enquanto Blay continuava a falar com ela a respeito de uma e outra coisa, a Escolhida se forçou a não esfregar os olhos. – ... no fim da noite, enquanto você fica aqui com os bebês. Não que você não goste de ficar com eles.

Saiam, ela solicitou mentalmente para os dois machos. Por favor, vão embora e me deixem em paz.

Não era como se ela quisesse afastá-los das crianças, ou que sentisse alguma malquerença pelos pais de Lyric e Rhamp. Ela só precisava respirar. E toda vez que um dos guerreiros a fitava, como faziam agora, respirar se tornava praticamente impossível.

– Você concorda? – Qhuinn perguntou. – Layla?

– Ah, sim, claro. – Ela não fazia ideia do que acabara de concordar, mas certificou-se de sorrir. – Só vou descansar agora. Eles ficaram bastante tempo acordados durante o dia.

– Eu gostaria que nos deixasse ajudar mais. – Blay franziu a testa. – Estamos aqui do lado.

– Vocês dois lutam na maioria das noites. Precisam dormir.

– Mas você também é importante.

Layla direcionou o olhar rumo aos os berços e, ao rememorar a cena de si mesma acalentando-os e amamentando-os, sentiu-se ainda pior. Mereciam uma mahmen melhor do que ela, descomplicada e sem o fardo de decisões que nunca deveriam ter sido tomadas, uma que não estivesse contaminada pela fraqueza em relação a um macho de quem jamais deveria ter se aproximado... muito menos amado.

– Não tenho a mínima importância em comparação a eles – sussurrou rigidamente. – Eles são tudo.

Blay se aproximou e a tomou pela mão, os olhos azuis calorosos.

– Não, você também é muito importante. E mahmens precisam de tempo para si.

Para fazer o quê? Ruminar meus remorsos? Não, muito obrigada, pensou.

– Vou para o túmulo sem eles e aí apreciarei minha própria companhia. – Ao perceber o quanto tinha soado mórbida, apressou-se: – Além disso, eles crescem rápido. Vai acontecer antes de nós três nos darmos conta.

Conversaram mais depois – não que ela tivesse prestado atenção, com todos os gritos em sua mente. Mas, por fim, foi deixada em paz quando o casal partiu.

O fato de ficar tão feliz ao vê-los sair foi mais uma tristeza que ela tinha a carregar.

Mudando de posição na cama, levantou-se e se aproximou dos berços com os olhos rasos de lágrimas. Enxugando o rosto, repetidas vezes, ela pegou um lenço de papel do bolso do roupão e assoou o nariz. Os bebês estavam profundamente adormecidos, com os olhos fechados, os rostos voltados um para o outro como se estivessem se interligado em uma comunicação telepática durante o sono. Mãozinhas perfeitas e pezinhos preciosos, barriguinhas redondas e saudáveis envolvidas em cobertorzinhos de flanela. Eram bebês tão bons; alegres quando acordados, pacíficos e angelicais adormecidos. Rhampage ganhava peso com mais velocidade do que Lyric, mas ela parecia mais saudável do que ele, reclamava menos ao ser lavada ou trocada, fitando tudo com mais atenção.

Quando as lágrimas caíram do rosto de Layla até o carpete, ela não sabia quanto tempo mais suportaria.

Antes de tomar ciência do movimento, foi até o telefone interno da casa e apertou uma sequência de quatro números.

A doggen que convocou chegou em questão de momentos, e Layla voltou a vestir sua máscara social, sorrindo para a criada com uma serenidade que não sentia.

– Grata por cuidar dos meus preciosos – disse no Antigo Idioma.

A babá respondeu com alegria e olhos cintilantes, e Layla só aguentou dois ou três segundos de comunicação. Em seguida, saiu do quarto e, com passos ligeiros protegidos por chinelos, desceu pelo corredor das estátuas. Quando chegou às portas da extremidade oposta, empurrou uma delas e entrou na ala dos empregados.

Como em todas as mansões daquele tamanho e distinção, o lar da Irmandade necessitava de um tremendo apoio de funcionários, e os aposentos dos doggens perfilavam o corredor; a segregação por idade, sexo e posição nos escalões formava comunidades dentro do grande conjunto. Em meio ao labirinto de corredores, Layla não escolheu uma direção específica além do objetivo de encontrar um quarto vazio – e encontrou-o umas três portas adiante, depois de uma virada. Ao entrar no espaço simples e desocupado, foi até a janela, abriu-a e fechou os olhos. Seu coração batia forte e uma ligeira tontura a dominava, mas ela inspirou fundo o ar fresco e limpo...

... e se desmaterializou através da abertura que criara, misturando-se à noite; as moléculas se espalhando e se afastando da mansão da Irmandade.

Como sempre, sua liberdade seria temporária.

Mas, desesperada como estava, foi tomada por um breve sufocamento, e ela partiu em busca de oxigênio.


CAPÍTULO 3

Qhuinn era um macho muito macho. E não só porque era um guerreiro casado com outro cara.

Sim, claro que, antes de se assentar com Blay, até que gostara de transar com fêmeas e mulheres. Mas, pensando bem, seu padrão para parceiros sexuais fora tão baixo que até aspiradores de pós e canos de escapamento tinham sido candidatos ocasionais.

Mas nada de ovelhas. #critério

No entanto, não poderia dizer que as fêmeas o tivessem cativado ou interessado de fato. Não que houvesse algo de errado com elas, ou que não as respeitasse assim como todo o resto. Elas simplesmente não eram do seu gosto.

Numa noite como a de hoje, porém, ele lamentava sua inexperiência. Só porque ralara e rolara com o sexo oposto não significava que estivesse equipado de algum modo para lidar com o que o confrontava agora.

Quando ele e Blay chegaram ao pé da escadaria principal, ele parou e olhou para seu par. Ao fundo, vindo da sala de bilhar do lado oposto do átrio, o som das vozes graves dos machos, de música e de gelo batendo em copos de cristal anunciavam que o torneio de bilhar da Irmandade já estava em curso.

Qhuinn sorriu de uma maneira que esperava transmitir calma.

– Ei, eu já te encontro lá, ok? Tenho que descer pra falar com a doutora Jane sobre o meu ombro, acho que demoro uns dez minutos... Não mais do que isso.

– Claro. Quer que eu vá com você?

Por um segundo, Qhuinn se perdeu ao observar seu macho. Blaylock, filho de Rocke, era tudo o que ele não era: impecável como um corpo esculpido por Michelangelo, tinha um rosto de arrasar e uma cabeleira ruiva e lustrosa como a cauda de um pônei; era inteligente, mas também equilibrado, o que fazia toda a diferença; era firme e confiável como uma montanha de granito, o tipo de cara que nunca vacilava.

Em tudo o que importava, comparado a Blay, Qhuinn era uma banheira de plástico perto de uma de porcelana; um conjunto incompleto de pratos ao lado de uma dúzia perfeita de louças; uma coisa rachada no meio de algo inquebrável.

Por algum motivo, porém, Blay o escolhera. Contra todas as possibilidades, o filho imperfeito e desonrado de uma das Famílias Fundadoras, o viciado sexual de olhos despareados, o vagabundo hostil e arredio... De algum modo acabara com o Príncipe Encantado, e caralho, se isso não o convertia.

Blay era o motivo que o fazia respirar, o lar que nunca tivera, a luz do sol que empoderava sua terra.

– Qhuinn? – Os olhos azuis iridescentes se apertaram. – Você está bem?

– Desculpe. – Ele se inclinou e pressionou os lábios na jugular do macho. – Eu me distraí. Mas você sempre tem esse efeito em mim, não é?

Quando Qhuinn se afastou, Blay estava corado – e excitado. Aquela fragrância era uma digressão que não podia ser facilmente ignorada.

A não ser pelo fato de que tinha um problema real para resolver.

– Diga aos irmãos que não demoro. – Qhuinn apontou na direção da sala de bilhar. – E que vou dar uma surra neles.

– Você sempre faz isso. Mesmo com Butch.

As palavras foram suaves, mas respaldadas por uma adoração que fazia com que Qhuinn contasse cada uma das suas bênçãos.

Cedendo ao instinto, Qhuinn se aproximou e sussurrou ao ouvido do cara:

– Talvez queira se alimentar bem na Última Refeição. Vou te manter ocupado o dia inteiro.

Com uma lambida no pescoço em que pretendia trabalhar mais tarde, Qhuinn se afastou antes que não pudesse mais se distanciar de seu par.

Seguindo ao redor da base da escada, passou por uma porta escondida e desceu pelo sistema de túneis que conectava os componentes da propriedade. O centro de treinamento subterrâneo da Irmandade ficava cerca de meio quilômetro afastado da mansão, e aquela passagem subterrânea ligando as duas partes era um espaço amplo iluminado por painéis de luzes fluorescentes afixados ao teto.

Enquanto ele avançava, o som dos seus passos ecoava ao redor, como se os coturnos aplaudissem a iniciativa.

Contudo, Qhuinn não sabia se eles estavam certos. Não fazia a mínima ideia do que estava fazendo ali.

A porta atrás do armário de suprimentos se abriu sem emitir nenhum som, uma vez inserida a senha; em seguida, o guerreiro passava ao longo de prateleiras repletas de papéis para impressora, canetas, blocos de anotação e outras merdas vindas da loja de materiais para escritório. A sala, além do depósito, apresentava a típica disposição de mesa, cadeira, computador e arquivos metálicos, e nenhuma dessas coisas foi particularmente percebida quando ele passou pela porta de vidro adiante para chegar ao corredor da frente. Com passadas longas e impacientes, atravessou todos os tipos de instalações de nível profissional – desde uma academia completa e sala de pesos à altura de Dwayne Johnson, até os vestiários e as primeiras salas de aula.

A porção destinada à clínica do centro de treinamento tinha outra quantidade de cômodos voltados ao tratamento, uma sala de operações e diversos leitos hospitalares. A doutora Jane, companheira de V., e o doutor Manello, companheiro de Payne, cuidavam de todo tipo de ferimentos obtidos em combate, além de problemas domésticos e sem falar dos partos de L.W., Nalla e dos gêmeos Lyric e Rhampage.

Qhuinn bateu na primeira porta ao se aproximar e não teve que esperar nem uma batida do seu coração para ter uma resposta.

– Entre! – a doutora Jane disse do lado oposto da porta.

A boa médica vestia roupas cirúrgicas e um par de Crocs. Sentada diante do computador na outra extremidade da bem equipada clínica, seus dedos voavam sobre o teclado enquanto ela atualizava o prontuário de alguém cabisbaixa; seus cabelos loiros curtos espetados como se ela tivesse passado a mão por eles durante horas.

– Um segundinho... – Ela apertou a tecla de “enter” e girou. – Ah, olá, papai. Como está?

– Ah, você sabe, imerso no amor.

– Aqueles seus bebês são maravilhosos. E olha que eu nem gosto de crianças.

O sorriso dela era acolhedor como uma torta de maçãs. Os olhos verde-montanha, por outro lado, eram afiados como raios laser.

– Graças a você, eles estão se saindo muito bem.

Houve uma deixa para o silêncio. Quando a conversa não evoluiu, ele se pôs a caminhar pela clínica, pois não conseguia ficar parado. Deu uma espiada nos equipamentos estéreis e imaculados sobre os gabinetes de aço inoxidável, inspecionou a maca vazia sob as luzes usadas nas operações, ajeitando as calças.

A médica apenas ficou sentada no seu banquinho, calma e silenciosa, deixando que ele se debatesse com a sua mente. Quando o celular dela tocou, Jane deixou que caísse na caixa de mensagens sem nem ver quem poderia ser.

– Provavelmente estou errado – ele acabou concluindo. – Que porra sei eu, afinal?

A doutora Jane sorriu.

– Na verdade eu te acho um cara bem inteligente.

– Não sobre este tipo de coisa. – Com um pigarro, Qhuinn propôs a si mesmo que prosseguisse; ainda que a doutora Jane não parecesse estar com pressa, ele estava entediando a si mesmo. – Olha só... eu amo a Layla.

– Claro que sim.

– E quero o melhor pra ela. Ela é a mãe dos meus filhos. Quero dizer, além de Blay, ela é a minha companheira por causa das crianças.

– Com certeza.

Cruzando os braços diante do peito, ele parou de andar e empostou-se de frente à doutora Jane.

– Não estou dizendo que sei alguma coisa sobre fêmeas. Coisas como os seus humores e por aí vai. Só que... Layla tem chorado muito. Quero dizer, ela tenta esconder isso de mim e do Blay, mas... toda vez que vou vê-la, encontro bolas de lenços de papel no cesto de lixo, e seus olhos estão brilhantes demais, o rosto, corado. Ela sorri, mas o sorriso nunca passa da superfície. Os olhos dela... são uma tragédia de merda. E... e eu não sei o que fazer, só sei que isso não está certo.

A médica assentiu.

– Como ela se porta com as crianças?

– É fantástica, pelo que posso ver. É totalmente devotada a eles, e eles estão crescendo. Na verdade, o único momento em que a vejo meio que feliz é quando os têm nos braços. – Pigarreou novamente. – Então, o que estou imaginando... ou perguntando, sei lá, é se as fêmeas gestantes, depois que não estão mais grávidas, se elas não...

Jesus, ele merecia todo tipo de prêmio por saber se explicar tão bem. E os termos técnicos com os quais se debatia? Praticamente estava a um passo de receber o título de doutor em Medicina, assim como Jane.

Cacete.

Mas pelo menos a doutora Jane parecia reconhecer que aquele avião conversacional estava ficando sem pista para decolar.

– Acho que está querendo me perguntar a respeito de depressão pós-parto. – Após vê-lo assentir, ela prosseguiu: – Posso lhe afirmar que não é incomum entre os vampiros, e que pode ser incapacitante. Conversei com Havers a respeito disso antes, e estou muito feliz que tenha vindo me procurar para tratar do assunto. Às vezes, uma mãe recente sequer está ciente de que isso pode se tornar um problema.

– Não existe nenhum exame... ou um... sei lá.

– Existem algumas maneiras diferentes de avaliar a questão, e o comportamento é uma delas. Claro que posso ir conversar com ela, e também posso fazer alguns exames de sangue para avaliar os níveis hormonais. E, sim, existem muitas coisas que podemos fazer para tratar dela e dar-lhe o apoio necessário.

– Não quero que Layla pense que estou agindo pelas costas dela nem nada assim.

– O que é totalmente compreensível. Mas tudo bem, porque eu pretendia mesmo subir até lá para dar uma olhada nela e nos bebês. Posso abordar o tema como se fosse parte de uma rotina. Nem terei que citar seu nome.

– Você é a melhor.

Com o assunto resolvido, ele supôs que era hora de voltar para junto do seu companheiro e para o torneio de bilhar. Mas não saiu. Por algum motivo, não conseguia.

– Não é sua culpa – garantiu a doutora Jane.

– Eu a engravidei. E se o meu... – Ok, ela era médica, mas Qhuinn ainda não queria pronunciar a palavra esperma perto dela. O que era loucura. – E se a minha metade for a causa...

A porta se abriu, e Manny enfiou a cabeça pela abertura.

– Ei, está pronta...? Opa, desculpem.

– Estamos quase terminando aqui. – A doutora Jane sorriu. – E você não nos viu juntos.

– Pode deixar. – Manny bateu na soleira. – Se eu puder ajudar de alguma maneira, é só avisar.

E lá se foi o cara, como se nunca tivesse aparecido ali.

A doutora Jane se levantou e se aproximou dele. Era mais baixa do que Qhuinn, e sua estrutura nem se comparava aos quase 140 quilos de músculos masculinos. Mas ela parecia pairar acima dele; a autoridade na voz e nos olhos dela era exatamente o que ele precisava para acalmar seu lado irracional.

Quando encostou a mão no braço dele, sua expressão estava firme.

– Não é sua culpa. Esse, às vezes, é o curso da natureza em algumas gestações.

– Fui eu quem colocou aqueles bebês dentro dela.

– Sim, mas imaginando que este seja um caso de os hormônios se autorregularem após o parto, não há ninguém para culpar. Além disso, você agiu bem ao vir até aqui, e também pode ajudá-la simplesmente conversando com ela e lhe dando o tempo e o espaço necessários para que ela também converse com você. Para ser sincera, eu já havia notado que ela não tem descido para as refeições. Acho que precisamos encorajá-la a se juntar ao resto de nós, para que ela sinta o quanto estamos disponíveis para ampará-la.

– OK. Certo, então.

A doutora Jane franziu a testa.

– Posso lhe dar um conselho?

– Por favor.

Ela o apertou no braço.

– Não se sinta responsável por algo sobre o qual não tem controle algum. Isso é um convite ao estresse que acabará deixando-o loucamente infeliz. Sei que é mais fácil falar do que fazer, mas tente se lembrar disso, está bem? Eu o vi acompanhá-la a cada estágio da gestação. Não houve nada que você não tenha feito por ela ou que não faria por ela, e você é um pai fantástico. Somente coisas boas o esperam, eu prometo.

Qhuinn inspirou fundo.

– Certo.

Mesmo quando sua preocupação persistiu, ele se lembrou de que, durante a gestação de Layla, descobrira que podia confiar na doutora Jane. A médica o ajudara a trilhar a estrada da vida e da morte, e nunca o decepcionara, nunca deixara que se desgarrasse. Tampouco mentira para ele e lhe dera maus conselhos.

– Vai ficar tudo bem – ela prometeu.

Infelizmente, como pôde-se perceber mais tarde, a boa médica estava errada.

Mas ela não tinha controle algum sobre o destino.

Nem ele.


CAPÍTULO 4

O bebê estava arruinado. Tudo o que detinha não passava de uma versão modificada e horrenda das feições de Hharm; o lábio superior era todo errado, como o de uma lebre.

Hharm largou o bebê no piso sujo da caverna, e a coisa não emitiu som algum ao aterrissar, os braços e as pernas mal se moviam, as carnes azuladas e acinzentadas, o cordão ainda o unia à fêmea. Iria morrer, assim como deveriam todos os resultados contra as regras da natureza e do parto – e essa consequência não era causa de indignação.

O fato de Hharm ter sido ludibriado, porém, o era. Desperdiçara dezoito meses, uma quantidade enorme de horas, aquele momento de esperança e de felicidade numa monstruosidade insuportável. E o que ele sabia com certeza? Que não era culpa sua.

– O que você fez? – exigiu saber da fêmea.

– Um filho! – Ela arqueou as costas em agonia renovada. – Eu lhe dei...

– Uma maldição. – Hharm se levantou em toda a sua altura. – O seu ventre é impuro. Ele corrompeu o presente do meu sêmen e produziu isso...

– O seu filho...

– Olhe para ele! Veja com seus olhos! Isso é uma abominação!

A mulher se esforçou e suspendeu a cabeça.

– Ele é perfeito, ele é...

Hharm empurrou o bebê com a bota, fazendo com que ele movesse os pequenos membros e emitisse um gritinho fraco.

– Nem mesmo você pode negar o que está diante de nós!

Os olhos injetados dela se afixaram no bebê, e depois se arregalaram...

– Isso é...

– Você fez isso – ele anunciou.

A ausência de argumentos por parte dela foi uma rendição inevitável, visto que o defeito não podia ser negado. Então ela gemeu como se ainda estivesse em trabalho de parto, os dedos ensanguentados arranharam a terra fria, as pernas tremeram quando se afastaram mais. Depois de mais esforços, algo saiu da mulher, e ele pensou que talvez fosse mais um. De fato, seu coração se viu cheio de otimismo enquanto ele rezava para que o primeiro fosse exhile dhoble, o amaldiçoado de um par de gêmeos.

Infelizmente, não. Era apenas algo do interior da fêmea, talvez o estômago ou o intestino dela.

E o bebê prosseguiu chorando, o peito se estufando e murchando com pouco efeito.

– Você deve morrer aqui, assim como ele – Hharm disse sem cuidado algum.

– Eu não...

– Suas entranhas estão saindo.

– O bebê é... – ela hesitou. – Ele...

– É uma abominação da natureza contra o desejo da Virgem Escriba.

A fêmea se calou e relaxou como se o processo da expulsão tivesse chegado ao fim, e Hharm aguardou pelo ataque em que a alma dela se desprenderia do corpo. Só que ela continuou a respirar e olhar para ele... e a existir. Que espécie de truque era aquele? A ideia de que ela não iria ao Dhunhd por conta disso era um insulto.

– Isso é obra sua – ralhou com a fêmea.

– Como sabe que não foi a sua semente que...

Hharm apoiou a bota na garganta dela e a pressionou, interrompendo-lhe as palavras. Quando uma onda de ódio induziu o corpo do guerreiro rumo a uma ação mortal, somente a possibilidade de que esse evento fosse um castigo por suas ações prévias o impediu de esmagar-lhe o pescoço.

Ela tem que pagar, foi seu pensamento abrupto. Sim, a culpa era dela, e o desapontamento causado necessitava de uma reparação.

Sibilando, ele revelou as presas.

– Deixarei que viva para que possa criar esta monstruosidade e que seja vista com ele. Esta é sua maldição por me amaldiçoar: ele ficará sempre em seu cangote, como um amuleto ou uma danação, e se eu descobrir que essa coisa morreu, eu a perseguirei e a esquartejarei centímetro a centímetro. Depois matarei a sua irmã, toda a prole dela e os seus parentes.

– O que está dizendo?!

Hharm se inclinou para baixo, o latejar no rosto e na cabeça parecia muito familiar.

– Ouviu minhas palavras. Conhece meu desejo. Desafie-o por sua conta e risco.

Quando ela se acovardou, o Irmão se afastou e fitou a sujeira proveniente do parto, a fêmea patética, aquele resultado horrendo – e cortou o ar com a mão, como se os apagasse da linha do tempo. Em meio aos bramidos da tempestade e à extinção da fogueira, ele foi até o casaco de peles.

– Você arruinou o meu filho – reclamou ao passar o peso das peles sobre os ombros. – O seu castigo é criar esse horror como declaração do seu fracasso.

– Você não é Rei – ela rebateu, fraca. – Não pode ordenar nada.

– Este é um serviço comunitário que faço aos machos, meus camaradas. – Apontou o dedo na direção do recém-nascido choroso. – Com isso grudado ao seu quadril, ninguém mais se deitará com você para sofrer de maneira similar.

– Não pode me forçar a isso!

– Ah, posso, sim, e o farei.

Ela era uma fêmea mimada e desafiadora por natureza, e fora isso o que o atraíra nela a princípio – tivera que lhe ensinar o que fazer e as orientações foram bem interessantes por um tempo. De fato, houvera apenas uma instância em que ela tentara exercer domínio sobre ele. Uma vez e nunca mais.

– Não me teste, fêmea. Já fez isso antes e deve se lembrar do resultado.

Quando ela empalideceu, ele assentiu na sua direção.

– Sim. Isso mesmo.

Ele quase a matara na noite em que lhe mostrara que, enquanto ele ficaria com que desejasse, quando e onde o quisesse, ela jamais teria permissão para se deitar com outro macho enquanto estivesse tangivelmente associada a ele. Foi logo depois disso que ela decidiu que a única possibilidade de prendê-lo seria dando-lhe o filho que ele almejava e, ao mesmo tempo, ele começara a pensar em seu legado.

Por azar, ela fracassara em seus objetivos.

– Eu odeio você – ela gemeu.

Hharm sorriu.

– O sentimento é mútuo. E mais uma vez lhe digo que é melhor garantir a sobrevivência dessa coisa. Se eu descobrir que o matou, revidarei a morte dele nas suas carnes e em toda a sua linhagem.

Dito isso, ele cuspiu duas vezes junto aos pés dela: uma por causa da fêmea e outra pelo bebê. Depois se afastou enquanto ela o chamava, e o bebê desertado berrava contra o frio.

Do lado de fora, a tempestade prosseguia, intensa, a neve rodopiante o cegava e depois diminuiu para uma revoada de pássaros que revelava todo o cenário. No vale logo abaixo, montanhas se elevavam às margens de um lago, a neve acumulada sobre a água congelada que formava ondas nos meses mais quentes. Estava tudo escuro, gélido e inerte, mas ele se recusava a encontrar um mau presságio na imagem à sua frente.

Com a mão usada para a adaga comichando, e a hostilidade dentro dele acelerando como um corcel disparado, sugeriu a si mesmo que não atentasse para esse resultado.

Encontraria outro ventre.

Em algum lugar, havia uma fêmea que lhe daria o legado merecido e necessário. Ele a encontraria e a faria crescer com a sua semente.

Existiria um filho apropriado para ele. Hharm jamais aceitaria qualquer outro resultado.


CAPÍTULO 5

Quando se aproximou da entrada da caverna sagrada da Irmandade, Tohr se esgueirou pelo interior úmido, e uma vez ali dentro, o cheiro de terra e de uma fonte de chamas distante irritou suas narinas. Os olhos se ajustaram de imediato, e quando ele seguiu em frente, aquietou o movimento de seus coturnos. Não queria ser ouvido, mesmo que sua presença fosse notada logo em seguida.

Os portões não estavam muito longe e eram constituídos por grossas barras de ferro, cuja espessura era semelhante a de um antebraço de guerreiro; as barras de ferro eram altas como árvores e possuíam uma cobertura em malha de aço, a fim de impedir a desmaterialização. Tochas sibilavam e tremeluziam em cada lado e, além, ele via o começo do grande corredor que conduzia mais para dentro da terra.

Parando diante da enorme barreira, pegou a chave de cobre e não sentiu remorso algum por ter roubado o objeto da gaveta da escrivaninha ornamental de Wrath. Pediria desculpas pela infração mais tarde.

E também pelo que faria na sequência.

Tohr destrancou o mecanismo, empurrou o peso colossal, entrou e voltou a trancar o portão atrás de si. Caminhando à frente, seguiu o caminho natural, expandido por talhadeiras e músculos fortes, e depois adornado por prateleiras. Sobre as diversas tábuas, centenas e centenas de jarros alimentavam um jogo de luz e sombras.

Os receptáculos eram de todos os formatos e tamanhos, e vinham de diferentes eras, desde a antiga até a moderna, mas o que havia dentro de cada um deles era o mesmo: o coração de um redutor. Desde o princípio da guerra contra a Sociedade Redutora, ainda no Antigo País, a Irmandade vinha marcando as mortes dos inimigos ao tomar posse dos jarros das vítimas e trazendo-os até ali para aumentar a coleção.

Em parte como troféu, em parte como um “foda-se, Ômega”, aquilo era um legado. Era um orgulho. Uma expectativa.

E talvez deixasse de sê-lo. Havia poucos e esparsos redutores nas ruas de Caldwell e em outras paragens no momento, portanto deveriam estar próximos.

Tohr não sentiu nenhuma alegria ante tal conquista. Mas talvez fosse em virtude do terrível aniversário dessa noite.

Era difícil sentir qualquer outra coisa que não a perda de Wellsie no dia que já fora seu aniversário.

Após uma curva sutil, ele parou. Mais adiante, a cena mais parecia saída de um filme que não se decidia se era Indiana Jones, Grey’s Anatomy ou Matrix. No centro das antigas paredes de pedra, tochas acesas e jarros despareados e empoeirados, um amontoado de equipamentos médicos piscando e emitindo sinais interferia com um corpo sobre uma maca. E ao lado do prisioneiro? Dois imensos vampiros cobertos da cabeça aos pés com couro preto e armas negras.

Butch e V. eram o Frick e Frack da Irmandade – o ex-policial da divisão de homicídios dos humanos e o filho da Criadora da raça, o bom garoto católico e o depravado sexual, o viciado em roupas e o czar da tecnologia –, unidos pela devoção partilhada pelo Red Sox de Boston e respeito mútuo e afeto que não conheciam limites.1

V. percebeu a presença de Tohr primeiro, virando com tanta rapidez que seu cigarro aceso espalhou cinzas pelo ar.

– Ah, inferno. Não. De jeito nenhum, porra! Você vai dar o fora daqui!

Essa opinião, a despeito do volume pronunciado, foi fácil de ignorar, pois Tohr se concentrava no pedaço de carne sobre a maca. Xcor estava deitado ali, com tubos entrando e saindo de si como se ele fosse a bateria de um carro prestes a receber uma recarga, com a respiração regular... Não, espere, a respiração não estava regular.

V. deteve Tohr, aproximando-se dele e ainda um pouco mais. E o que mais? O Irmão sacara seu atirador poodle – e o cano da 40 mm apontava diretamente para o rosto de Tohr.

– Tô falando sério, meu irmão.

Tohr olhou para o prisioneiro por cima do ombro largo. E se viu sorrindo.

– Ele está acordado.

– Não, ele não est...

– A respiração dele mudou. – Tohr apontou para o peito nu. – Veja.

Butch franziu o cenho e se aproximou do prisioneiro.

– Ora, ora, ora... Hora de acordar, filho da mãe.

V. virou-se para trás.

– Filho da puta.

Mas a arma não se moveu, tampouco Tohr. Por mais que quisesse Xcor, ele acabaria recebendo uma bala na garganta se desse mais um passo: V. era o menos sentimental dos irmãos e tinha a paciência de uma cascavel.

Naquele momento, os olhos de Xcor piscaram. Na luz tremeluzente das tochas, eles pareciam negros, mas Tohr se lembrava de que eles eram azuis. Não que isso importasse.

V. colocou a cara no seu caminho, os olhos de diamante eram como adagas.

– Este não vai ser o presente de aniversário que vai dar para a sua shellan morta.

Tohr arrastou os lábios para trás das presas.

– Vai se foder.

– Isso não vai acontecer. Pode me xingar o quanto quiser, mas não. Você sabe como as coisas vão acontecer e ainda não está na sua hora.

Butch sorriu para o prisioneiro.

– Estávamos esperando que se juntasse à festa. Aceita uma bebida? Talvez um misto de nozes antes ter que ajeitar a poltrona para a decolagem? Não há por que te mostrar as saídas de emergência. Você não tem que se preocupar com isso.

– Vamos, Tohr – V. disse. – Agora.

Tohrment expôs as presas, mas não para o irmão.

– Seu bastardo, vou te matar...

– Não, nada disso. – V. passou o braço ao redor do bíceps de Tohr, e faltou pouco para começarem a dançar uma quadrilha. – Lá fora...

– Você não é Deus...

– Nem você, motivo pelo qual está de saída.

Nos recessos da mente, Tohr sabia que o filho da mãe tinha razão. Ele não estava nem meio racional no momento – e P.S., que V. se fodesse por se lembrar que noite era aquela.

Sua amada shellan, seu primeiro amor, completaria duzentos e vinte e seis anos. E teria um filho dos dois nos braços.

Mas o destino se opusera.

– Não me obrigue a atirar em você – V. alertou com aspereza. – Venha, meu irmão. Por favor.

O fato de as duas últimas palavras terem saído da boca de V. foi o que surtiu efeito. A cena era tão chocante que desarmou Tohr de sua loucura e raiva.

– Venha, Tohr.

Dessa vez, Tohr se permitiu ser conduzido, à medida que seu grande esquema desinflanva; o silêncio absoluto depois de sua loucura o fazia tremer dentro da própria pele. Que porra estivera fazendo? Mas que cacete?

Sim, recebera o privilégio de matar Xcor com um decreto da realeza, mas só quando recebesse autorização expressa de Wrath. E isso ainda não acontecera explicitamente.

Tinham evitado um desastre de proporções traidoras.

Seria como trocar de lugar. Um traidor morto por outro bem vivo.

Quando chegaram aos portões que Tohr havia destrancado para conseguir acesso ao prisioneiro, V. estendeu a mão enluvada.

– Chave.

Tohr não olhou para o irmão ao tirar o objeto da jaqueta de couro e entregá-la. Depois de uns cliques e rangidos, o caminho estava livre, e Tohr saiu sem estar convencido, com as mãos no quadril, os coturnos chutando a terra, a cabeça pensa.

Quando ouviu uma nova sequência de rangidos e cliques, deduziu que estava sendo trancado do lado de fora, sozinho. Mas V. estava bem ao seu lado.

– Eu prometo – o irmão disse – que você, e apenas você, vai mattá-lo.

Tohr se perguntou se isso bastaria. Ponderou se seria o bastante. Será que algum dia encontraria satisfação?

Antes de chegarem à boca da caverna, Tohr parou.

– Às vezes... a vida não é nada justa.

– Não. Não é.

– Odeio isso. Odeio pra caralho. Passo por... períodos, não apenas noites, mas semanas, às vezes até um ou dois meses... em que me esqueço de tudo. Mas a merda sempre volta e, depois de um tempo, não dá mais pra segurar. Não dá. – Bateu na lateral da cabeça com o punho. – Tem esse verme aqui dentro, e sei que matar Xcor não vai me distrair por mais do que dez minutos. Mas numa noite como esta, eu aceitaria até isso.

Sucedeu-se o som de um fósforo sendo riscado quando V. acendeu um cigarro.

– Não sei o que dizer, meu irmão. Eu diria pra você rezar, mas não tem mais ninguém lá em cima te ouvindo.

– Não tenho certeza se a sua mãe nos ouviu algum dia. Sem ofensas.

– Não ofendeu. – V. exalou. – Confie em mim.

Tohr se concentrou na saída da caverna, e quando tentou respirar, sentiu uma estranha exaustão.

– Estou cansado de lutar sempre a mesma briga. Desde que Wellsie foi... assassinada... sinto como se um pedaço meu nunca tivesse cicatrizado, e não aguento essa dor nem mais um segundo. Nem mais um maldito segundo. Mesmo que ela migrasse para algum outro lugar, já seria melhor.

Estabeleceu-se um longo silêncio entre eles, abafado apenas pelo urro dos ventos invernais que entravam na caverna silenciosa.

No fim, V. praguejou.

– Bem que eu gostaria de poder te ajudar, meu irmão. Quero dizer, se você precisar de um abraço confortador... eu devo conseguir alguém pra te dar uns tapinhas nas costas.

Tohr sacudiu a cabeça quando o lábio superior se retorceu num sorriso.

– Isso foi quase engraçado.

– Pois é, tentei pegar leve. – V. exalou de novo. – Era isso ou eu atirava em você, e odeio preencher a papelada burocrática do Saxton, sabe?

– Sei o que quer dizer. – Tohr esfregou o rosto. – Verdade...

Os olhos diamantinos de V. mudaram de foco.

– Apenas esteja ciente que lamento. Você não merece nada disso. – Certa mão pesada pousou no ombro de Tohr e apertou-o. – Se eu pudesse tirar a sua dor, é o que faria.

Quando Tohr piscou rápido, pensou que era uma coisa boa que V. não fosse de abraçar, ou então teriam um maldito colapso emocional acontecendo ali.

Do tipo de colapso que um macho não retornaria intacto.

Mas, pensando bem, ele estava mesmo intacto agora?


BOATE SHADOWS, CENTRO DE CALDWELL


Trez Latimer sentia-se como uma espécie de divindade ao olhar através da parede de vidro do escritório no segundo andar da sua boate. Abaixo, no espaço aberto do armazém convertido, uma multidão de humanos excitados estabelecia um padrão de atração e desdém num mar tumultuado de lasers púrpura e batidas pesadas de baixo.

Em grande escala, sua clientela era composta de millenials, os nascidos entre 1980 e 2000. Definidos pela internet, pelo iPhone, pela ausência de oportunidades econômicas – ao menos segundo a mídia humana –, era um grupo demográfico de moralistas perdidos, comprometidos em salvar uns aos outros, com a preservação dos direitos de todos, e a promoção de uma falsa utopia de pensamento liberal que fazia o macarthismo parecer atenuado.

Mas também eram, da maneira dos jovens, esperançosos sem fundamento.

E como ele os invejava.

Enquanto se esbarravam e colidiam uns nos outros, ele testemunhava o êxtase em seus rostos, o otimismo exuberante de que encontrariam o verdadeiro amor e a felicidade naquela noite mesmo – a despeito de todas as outras noites nas quais vieram até a sua boate e a aurora chegara, expulsando-o com nada além de exaustão, uma nova DST, e mais um fardo de vergonha e dúvida enquanto se perguntavam o que tinham feito, e com quem.

Ele suspeitava, contudo, que, para a maioria, a cura de tamanha angústia era apenas cerca de duas horas de sono, um venti latte da Starbucks e uma injeção de penicilina.

Quando se é jovem assim, quando ainda é preciso enfrentar os desafios que não se consegue sequer começar a compreender, a sua resistência não tem limites.

E era por isso que o vampiro desejaria poder trocar de lugar com eles.

Era estranho colocar os humanos em qualquer tipo de pedestal. Sendo um Sombra de mais de duzentos anos de vida, Trez há tempos considerava aqueles ratos sem cauda algo inferior, um tumulto inconveniente no planeta, bem como formigas na cozinha ou camundongos no porão. Só que não se podia exterminar os humanos. Sujeira demais. Melhor tolerá-los do que arriscar a exposição da espécie ao assassiná-los só para liberar vagas de estacionamento, diminuir as filas nos supermercados e as notificações do Facebook.

No entanto, ali estava ele, ansioso por trocar de lugar com qualquer um deles, mesmo que fosse por uma ou duas horas.

Improcedente.

Mas, pensando bem, eles não mudaram. Quem mudou foi ele.

Minha rainha, está na hora de partir? Conte-me se for.

Enquanto as lembranças o intimidavam dentro do cérebro, ele cobriu os olhos e pensou: Não, Deus. De novo, não. Não queria voltar para a clínica da Irmandade... para o lado do leito da sua amada Selena, morrendo por dentro enquanto ela expirava de verdade.

A verdade, contudo, era que ele jamais abandonara esses eventos, mesmo que o calendário sugerisse o contrário. Depois da passagem de mais de um mês, ele ainda se lembrava de cada mínimo detalhe da cena, desde a respiração torturada dela até o pânico no olhar enquanto lágrimas rolavam por ambos os rostos.

Sua Selena fora acometida por uma doença que raramente afetava membros da classe sagrada. Em todas as gerações de Escolhidas, algumas tiveram a Prisão, que era um jeito horrível de morrer: a mente era deixada viva na casca congelada do corpo, sem nenhuma escapatória, nenhum tratamento para ajudar, ninguém para salvar.

Nem mesmo o macho que a amava mais do que a própria vida.

Quando o coração de Trez tropeçou no âmago do peito, ele abaixou as mãos, meneou a cabeça e tentou se reconectar com a realidade. Estivera se debatendo contra esses episódios invasivos, e eles vinham se tornando mais frequentes em vez de menos – o faziam se preocupar com sua sanidade. Chegou a ouvir o ditado de que “o tempo cura as feridas” e, droga, talvez aquilo fosse verdade para outras pessoas. Para ele? Seu luto se transformara de dor incandescente, no começo, a uma agonia tão ardorosa que rivalizava com as chamas da pira funerária, até aquelas reminiscências crônicas que pareciam girar cada vez mais rápido ao redor do esteio aberto da sua perda.

Sua própria voz ecoava na cabeça: Eu entendi direito? Você quer que isto... termine?

Quando os momentos finais de Selena chegaram, ela já não conseguia mais falar. Tiveram que se apoiar num sistema de comunicação pré-combinado que supunha o controle dela sobre as pálpebras até quase o fim: uma piscada para não... duas para sim.

Você quer que isto... termine?

Ele soubera qual seria a resposta dela. Lera-o na expressão exausta, distante e enfraquecida dela. Mas aquela fora uma das vezes na vida em que se queria ter a mais absoluta certeza.

Ela piscara uma vez. E de novo depois.

E ele estivera ao lado dela quando as drogas pararam seu coração e lhe conferiram o alívio de que ela necessitava ao ser transportada.

Em todos os seus anos, ele jamais imaginara aquele tipo de sofrimento. Nas duas partes. Ele não teria conseguido criar uma morte pior saída de qualquer pesadelo, e não poderia ter imaginado que teria que assentir para Manny, autorizando-o a administrar o medicamento enquanto gritava internamente, pois seu amor se esvaía e o deixava sozinho pelo resto de suas noites.

O único conforto era que o sofrimento dela chegara ao fim.

A única realidade era que o seu tinha apenas começado.

No período subsequente, encontrou conforto no fato de que preferiria ser o responsável por sentir a ausência dela, e não o contrário. Mas, conforme o tempo prosseguiu, acabou usando demais esse antídoto, pois era o único que possuía, e agora ele já não surtia mais efeito.

Portanto, não havia nada para reavivá-lo. Tentou beber, mas o álcool só servia para ele perder o pouco controle que tinha sobre as lágrimas. Não dava a mínima para a comida. Sexo era algo completamente fora de questão. E ninguém o deixava lutar – pois tanto os Irmãos quanto iAm reconheciam seu estado desgovernado.

Portanto, o que lhe restava? Nada, a não ser se arrastar ao longo dos dias e das noites, e rezar para o mais básico dos alívios: um respiro desimpedido, um período de tranquilidade mental, uma hora de sono sem perturbações.

Ao estender a mão, tocou o painel de vidro inclinado que era a sua janela para o que ele considerava ser o outro mundo, o exterior do seu inferno isolado. Engraçado que ele agora considerava “outro” o que um dia fora o mundo “real”... E mesmo sem a separação das espécies, da idade, do seu poleiro acima da confusão da boate, ele se sentia tão à parte de todos eles.

Tinha a sensação de que sempre permaneceria afastado de todos.

E, francamente, ele simplesmente não poderia continuar assim.

A dor o destroçara e, se não fosse pelo fato de que os suicidas tinham a entrada negada no Fade, ele teria metido uma bala do seu 48 mm na cabeça horas após a morte dela.

Pensou que não suportaria outra noite assim.

– Por favor... me ajude.

Trez não fazia a mínima ideia de quem falava com ele. Do lado dos vampiros, a Virgem Escriba já não existia mais – e no seu atual estado mental ele compreendia por completo o motivo de ela ter largado o microfone e saído do palco de sua criação. E, como um Sombra, ele fora criado para adorar sua Rainha – o único problema era que ela estava vinculada ao seu irmão, e rezar para a cunhada parecia muito estranho.

Uma declaração autêntica de que toda aquela coisa espiritual não passava de um monte de asneira.

E, mesmo assim, seu sofrimento era tão grande que ele tinha que tentar buscar ajuda.

Inclinando a cabeça para trás, olhou para o teto baixo preto e despejou seu coração partido para o mundo:

– Eu só a quero de volta. Eu só... quero Selena de volta. Por favor... se existir alguém aí em cima, me ajude. Devolva-a para mim. Não me importo em que forma ela estiver... Eu só não consigo mais fazer isto. Não consigo mais viver assim nem pela porra de uma única noite.

Claro que não houve resposta. E ele se sentiu um completo idiota.

Pois é, como se a vastidão do universo lhe iria despejar outra coisa que não apenas um meteoro?

Além disso, será mesmo que existia um Fade? E se ele estivesse apenas alucinando durante a purificação e somente imaginara ter visto a sua Selena? E se ela só tivesse simplesmente morrido? Como se... tivesse apenas deixado de existir? E se todas as bobagens a respeito de um lugar celestial aonde nossos amados iam e esperavam pacientemente por nós não passasse de um mecanismo de defesa criado por aqueles deixados para trás mergulhados no tipo de agonia em que ele se encontrava?

Uma falácia mental para cuidar de um ferimento emocional.

Reajustando a cabeça, voltou a fitar a multidão abaixo...

Pelo vidro, o reflexo de uma imensa figura masculina parada logo atrás fez com que ele se girasse e levasse a mão para a arma que mantinha enfiada na lombar. Mas então reconheceu o indivíduo.

– O que você está fazendo aqui? – exigiu saber.


Dois patinadores suíços, Werner Groebli e Hans Mauch, cujos nomes artísticos eram Frick e Frack, nutriram uma parceria duradoura. Posteriormente, seus nomes se tornaram gíria para designar duas pessoas que trabalham juntas e se dão bem. (N.T.)


CAPÍTULO 6

A campina de 20 mil metros quadrados se elevava de uma estradinha deserta como oriunda do olhar crítico de um artista; todos os aspectos da colina e do vale pareciam sujeitos às regras dos padrões estéticos agradáveis. No alto do suave aclive coberto de neve, como uma coroa no topo da cabeça de um governante benevolente, um imenso bordo estendia seus galhos em uma áurea tão perfeita que mesmo a esterilidade do inverno não conseguia diminuir sua beleza.

Layla se desmaterializou até a base da colina, partindo da mansão, e subiu a pé até a árvore. Os chinelos usados no quarto não eram páreo para o chão congelado, o vento frio atravessava o roupão, e os cabelos se soltavam da trança, flanando ao seu redor.

Quando chegou ao cume, olhou para baixo, para as raízes do tronco glorioso dentro da terra.

Fora ali, pensou ela.

Ali, na base daquele bordo, ela vira Xcor pela primeira vez, convocada por alguém que ela acreditara ser um soldado de valor na guerra, alguém que ela alimentara na clínica da Irmandade... Alguém que a Irmandade deixara de lhe informar que, na verdade, era um inimigo e não amigo.

Quando o macho a chamara para que ela lhe provesse a veia, Layla não pensou em nada além do seu dever sagrado.

Por isso, transportara-se até ali... e perdera um pedaço de si no processo.

Xcor estivera à beira da morte, ferido e enfraquecido, e mesmo assim ela reconhecera sua força, ainda que em estado debilitado. Como poderia não tê-la notado? Era um macho tremendo, grosso no pescoço e no peito, forte nos braços, poderoso no corpo. Ele tentara recusar sua veia porque – ela gosta de acreditar – enxergara-a como uma inocente no conflito entre o Bando de Bastardos e a Irmandade da Adaga Negra, e quisera mantê-la afastada da situação. No fim, contudo, ele cedera, garantindo que ambos seriam a presa de uma ordem biológica que desconhecia a razão.

Ela inspirou fundo, observou a árvore e viu, através dos galhos desnudos, o céu noturno.

Depois que a verdadeira identidade de Xcor veio à tona, ela confessou a Wrath e à Irmandade suas ações, lacrimosamente clamando por perdão. E era um testemunho do rei e dos machos que o serviam o fato de a terem perdoado, e sem castigos, por ter prontamente ajudado o inimigo.

Em troca, era um parco testemunho da sua parte que ela tivesse voltado para junto de Xcor depois disso. Associou-se a ele. Tornou-se emocionalmente envolvida com ele.

Sim, existiu uma coerção inicial da parte dele na época, mas a verdade era que, mesmo que ele não a tivesse forçado? Sua vontade teria sido estar com ele. E o pior? Quando o relacionamento chegou ao fim, fora ele quem interrompera os encontros. Não ela.

Na verdade, ela o estaria vendo agora – e a dor da perda que sentia pela ausência dele era tão incapacitante quanto a culpa.

E isso foi antes ainda de ele ter sido capturado pela Irmandade.

Ela sabia exatamente onde ele havia sido aprisionado porque testemunhara suas condições naquela caverna... Sabia o que os Irmãos planejavam fazer com Xcor assim que ele despertasse.

Se ao menos houvesse um modo de salvá-lo... Ele nunca tinha sido cruel com ela, nunca a tinha ferido... jamais a havia abordado sexualmente, apesar do desejo que o habitava. Ele se manteve paciente e gentil... pelo menos até se afastarem.

Ele, entretanto, havia tentado matar Wrath. E essa traição era passível de punição com a morte...

– Layla?

Girando, ela tropeçou e caiu de lado, quase incapaz de se agarrar ao tronco áspero do bordo. Quando sentiu uma dor na palma, sacudiu-a na tentativa de apaziguá-la.

– Qhuinn! – exclamou.

O pai de seus filhos deu um passo à frente.

– Você se machucou?

Com um xingamento, ela limpou os arranhões, tirando a sujeira. Santa Virgem Escriba, como doía.

– Não, não. Estou bem.

– Pegue. – Ele apanhou algo de dentro do bolso da jaqueta de couro. – Deixe-me ver.

Ela tremia quando Qhuinn avaliou-lhe a mão e depois a envolveu na bandana preta.

– Acho que você vai viver.

Será?, ela pensou. Não tenho tanta certeza.

– Você está congelando.

– Sério?

Qhuinn tirou a jaqueta e a posicionou sobre os ombros dela, e Layla se viu engolfada pelo tamanho e pelo calor.

– Venha, vamos voltar para a mansão. Você está tremendo...

– Não posso mais fazer isso – ela desabafou num rompante. – Não consigo mais.

– Eu sei. – Quando ela se retraiu de surpresa, ele sacudiu a cabeça. – Sei o que há de errado. Vamos pra casa pra conversar. Vai ficar tudo bem, prometo.

Por um momento, ela não conseguiu respirar. Como ele podia ter descoberto? Como podia não estar bravo com ela?

– Como você... – As lágrimas surgiram com rapidez, a emoção se sobrepôs a tudo. – Sinto muito. Eu sinto muito... Não era para ser assim.

Ela não soube se foi ele quem abriu os braços ou se foi ela quem se lhe agarrou ao peito, mas Qhuinn a abraçou com força, protegendo-a do vento.

– Tá tudo bem. – Ele massageava grandes círculos nas costas dela com a palma, acalentando-a. – Só precisamos conversar a respeito. Podemos fazer algumas coisas, tomar algumas providências.

Ela virou o rosto para o lado e fitou a campina.

– Eu me sinto tão mal.

– Por quê? Isso está fora do seu controle. Não pediu por isso.

Ela se afastou.

– Eu juro, não pedi. E não quero que você pense nem por um segundo que eu poria Lyric e Rhampage em perigo...

– Tá de brincadeira? Sério, Layla, você ama aqueles dois com tudo o que tem dentro de si.

– Amo mesmo. Eu te garanto isso. E amo você e Blay, o Rei e a Irmandade. Vocês são a minha família, vocês são tudo o que tenho.

– Layla, preste atenção. Você não está sozinha, entendeu? E como eu já disse, existem coisas que podemos fazer...

– Mesmo? De verdade?

– Sim. Na verdade eu estava falando sobre isso antes de vir para cá. Eu não queria que pensasse que eu a estava traindo...

– Ah! Qhuinn! Eu sou a traidora! Sou eu quem está errada...

– Pare. Você não é. Vamos cuidar disso juntos. Todos nós.

Layla levou as mãos ao rosto, tanto a que estava com o curativo como a que estava descoberta. Então, pela primeira vez desde o que parecia ser uma eternidade, ela exalou o ar, um bálsamo de calma substituindo o terrível fardo que dispunha sobre si.

– Tenho que contar uma coisa. – Levantou o olhar para ele. – Por favor, saiba que tenho me remoído de arrependimento e de tristeza. Juro que nunca tive a intenção de que isso acontecesse. Tenho me sentido tão só, me debatendo com a culpa...

– Culpa é algo desnecessário. – Esfregou os polegares sob os olhos dela. – Você tem que se livrar disso, porque não consegue evitar o modo como se sente.

– Não consigo, de verdade, não consigo mesmo... E Xcor não é mau, não é tão ruim quanto você acha que ele é. Juro. Ele sempre me tratou com cuidado e gentileza, e sei que ele não voltaria a ferir Wrath. Eu sei disso...

– O quê? – Qhuinn franziu o cenho e sacudiu a cabeça. – Do que você está falando?

– Por favor, não o mate. É como você disse, existe um modo de fazer isso dar certo. Talvez vocês possam libertá-lo e...

Qhuinn não recuou; na verdade, ele a empurrou para longe de si. E depois pareceu se debater para encontrar as palavras.

– Layla – ele pronunciou devagar. – Sei que não estou ouvindo direito e estou tentando... Você pode...

Aproveitando-se do momento para expor sua posição, Layla se apressou em falar:

– Ele nunca me machucou. Todas as noites em que o procurei, ele nunca me feriu. Ele providenciou um chalé para que eu ficasse em segurança, e sempre estávamos apenas nós dois. Nunca vi nenhum dos Bastardos...

Ela prosseguiu enquanto a expressão do guerreiro se transformava de confusão para... algo gélido que lhe suscitou as feições de um completo desconhecido.

Quando Qhuinn voltou a falar, a voz saiu inexpressiva.

– Você esteve se encontrando com Xcor?

– Eu me senti muito mal...

– Por quanto tempo? – ele estrepitou. Mas não a deixou responder. – Você foi ao encontro dele enquanto estava grávida dos meus filhos? Você se associou por vontade própria com um inimigo conhecido enquanto os meus benditos filhos estavam no seu ventre? – Antes que ela conseguisse lhe responder, ele levantou o indicador. – E você precisa pensar muito bem na resposta. Não há volta para isto, e é melhor dizer a verdade. Se eu descobrir que mentiu pra mim, vou te matar.

Quando o coração de Layla começou a bater forte no peito, deixando-a tonta, seu único pensamento foi...

Você vai me matar de qualquer maneira.

De volta à shAdoWs, Trez guardou a arma e tentou retornar à realidade.

– E então? – ele inquiriu. – O que está fazendo aqui, ainda mais sem o seu poliéster especial do Tony Manero?

Lassiter, o Anjo Caído, sorriu de um modo que não contemplou seus estranhos olhos coloridos sem pupila; a expressão afetou apenas a parte inferior do rosto.

– Ah, você sabe, ternos de passeio estão ultrapassados para mim.

– Partindo para os anos 1980? Não tenho nada neon pra emprestar pra você.

– Não precisa, tenho outra fantasia para usar.

– Que bom pra você. Assustador pro resto de nós. Só me diz que não vai usar o maiô do Borat.

Quando o anjo não respondeu de pronto, Trez sentiu como se as garras de Fred Krueger estivessem passando pela sua nuca. Normalmente, Lassiter era o tipo de cara tão alegre que a maioria das pessoas não sabia se decidir entre meter uma bala nele para tirar todo mundo de um estado miserável... ou simplesmente apanhar uma lata de Coca-Cola e um saco de pipoca para assistir ao show.

Porque, mesmo quando ele irrita, a situação é sempre muito divertida.

Mas não essa noite. O olhar bizarro estava tão leve e espumoso quanto um bloco de granito, e o imenso corpo dele estava absolutamente imóvel, nenhum item de ouro nos pulsos ou pescoço, nos dedos ou orelhas, reluzia sob a luz baixa.

– Por que está brincando de estátua? – Trez murmurou. – Alguém trocou o lugar da sua coleção do My Little Pony de novo?

Incapaz de suportar o silêncio, Trez foi se sentar atrás da escrivaninha e começou a mexer em uma pilha de papéis.

– Está tentando ler minha aura ou alguma merda do tipo?

Não que para isso fosse necessário algum poder especial. Todos na mansão sabiam em que estado ele estava.

– Quero que vá jantar comigo amanhã à noite.

Trez levantou o olhar.

– Pra quê?

O anjo levou o tempo que quis para responder, seguindo devagar até o painel de vidro para encarar a multidão logo abaixo, no exato lugar em que Trez estava antes. Iluminado pela luz fraca, o perfil do anjo era o tipo de imagem que as fêmeas adorariam, com todas as proporções e os ângulos certos. Mas a cara de preocupação...

– Manda ver – Trez exigiu. – Já recebi uma vida inteira de más notícias. O que quer que seja, nada se compara ao que tenho passado.

Lassiter relanceou e deu de ombros.

– É só um jantar. Amanhã à noite. Sete horas.

– Eu não como.

– Sei disso.

Trez largou a pilha de faturas, de escala dos funcionários ou qualquer outra porra que o vinha mantendo ocupado, ainda que não as estivesse olhando de fato, junto ao amontoado de porcarias sobre a escrivaninha.

– Acho muito difícil acreditar em seu interesse a respeito de nutrição.

– Verdade. Essa coisa de “glúten é o seu inimigo” é uma bobagem sem fim. Nem me fale de Kombuchá, couve, ou qualquer coisa com propriedades antioxidantes, e na mentira de que o xarope de milho com alto teor de frutose é a fonte de todo o mal.

– Ouviu falar que a Kraft Macaroni & Cheese tirou todos os conservantes há meses?

– Pois é, e os filhos da mãe nem avisaram antes...

– Por que quer jantar comigo?

– Só estou sendo amigável.

– Não faz parte do seu estilo.

– Como disse antes, estou mudando algumas coisas. – Eeeee lá veio aquele sorriso de novo. – Pensei em começar com tudo. Quero dizer, se é pra virar a página, melhor começar do jeito que se deseja continuar.

– Sem ofensas, mas não estou a fim de passar tempo com pessoas de quem gosto de verdade. – Tudo bem, aquilo não soou muito bem. – O que quero dizer é que o meu irmão é o único que consigo tolerar agora, e nem ele eu quero ver.

Aquele sorriso de Lassiter era uma visão que Trez estava mais do que disposto a jamais rever – e observe como orações podem ser atendidas: o anjo estava seguindo para a porta.

– Te vejo amanhã.

– Não, obrigado.

– No restaurante do seu irmão.

– Ah, mas que porra, por quê?

– Porque ele serve o melhor macarrão à bolonhesa em Caldie.

– Você sabe o que eu quis dizer.

O anjo se limitou a dar de ombros.

– Vá lá e descubra.

– O inferno que vou! – Trez meneou a cabeça. – Olha só, sei que as pessoas andam preocupadas comigo e agradeço a preocupação. – Na verdade, não agradecia não. Nem um pouco. – Sim, perdi peso, e eu deveria comer mais. Mas é engraçado como, quando se tem o peito escancarado e o coração arrancado pelo destino, se perde o apetite. Por isso, se está querendo companhia só para não parecer que está jogando sozinho, por que não procura alguém que coma de verdade e troque mais de duas palavras com ela? Posso garantir que tanto eu quanto você teremos uma noite mais agradável assim.

– Até amanhã.

Quando o anjo saiu, Trez gritou para a ponta oposta do escritório:

– Vai se foder!

Quando a porta se fechou em silêncio, ele concluiu que, pelo menos, a discussão não continuaria. E quando estivesse comendo a bolonhesa sozinho, Lassiter entenderia que o Sombra não apareceria.

Problema resolvido.


CAPÍTULO 7

Há momentos na vida em que a amplitude da sua atenção se estreita em um foco tão exíguo que toda a sua consciência se concentra nessa única pessoa. Qhuinn não era alheio a esse fenômeno. Ele acontecia toda vez que estava sozinho com Blay. Quando segurava os filhos. Quando lutava contra o inimigo, em busca de garantir que voltaria para casa inteiro, sem ferimentos e concussões.

E estava acontecendo de novo agora.

Parados diante da base da árvore de Harry Potter, no topo de uma colina, com o vento invernal ao redor, Qhuinn estava ciente apenas do olho direito de Layla. Conseguia contar cada nuance verde-clara que irradiava do núcleo preto da íris. Poderia haver uma nuvem de cogumelos resultante de uma explosão nuclear ao longe, uma nave espacial acima da sua cabeça, uma fila de palhaços dançando ao seu lado... e ainda assim ele não teria visto, ouvido, percebido nada além daquilo.

Bem, isso não era inteiramente verdade.

Percebia de leve o rugido em seus ouvidos, um tipo de cruzamento do motor de um jato e dos fogos de artifícios que sibilam como uma banshee, girando em círculos até se exaurir.

– Responda – ele ordenou numa voz que não parecia a sua.

Ele a havia seguido até aquele local isolado quando sentiu sua ausência na mansão – e se deslocou até ali para falar com ela sobre depressão pós-parto. O plano era levá-la de volta para casa, confortá-la diante da lareira, colocá-la num caminho em que ela pudesse apreciar os seres pelos quais tanto se empenhou em trazer ao mundo.

Como diabos acabaram falando de Xcor e de ela ter se encontrado com ele?

Não fazia a mínima ideia.

Mas não havia mais nenhum mal-entendido. E nenhuma retratação a caminho. Ele via no olhar arregalado e no pânico silencioso que, apesar de seu desejo de que aquela fosse uma colossal falha de comunicação de proporções risíveis, não era o caso.

– Eu estava segura – ela sussurrou. – Ele nunca me feriu.

– Mas que porra q...

Ele se deteve nesse aspecto. Iria direto ao ponto, como se faz com o detonador de uma bomba.

Antes que ele fizesse ou dissesse algo de que se arrependeria, afastou-se e flexionou os dedos para que não se cerrassem em punhos.

– Qhuinn, juro que nunca estive em perigo...

– Você ficou sozinha com ele. – Quando Layla não respondeu, ele cerrou os molares. – Não ficou?

– Ele nunca me machucou.

– Ok, isso é o mesmo que dizer que nunca foi picada enquanto usava uma cobra como cachecol. Uma vez depois da outra. Porque essa porra aconteceu com frequência, não foi? Responda!

– Sinto muito, Qhuinn... – Ela parecia querer se recompor, fungando as lágrimas e aprumando os ombros. O modo como os olhos dela suplicavam perdão o levou à beira da violência. – Oh, Santa Virgem Esc...

– Pare com as súplicas! Não há mais ninguém lá em cima! – Ele estava perdendo o controle. Por completo. – E que diabos está fazendo com esse pedido de perdão? Você colocou meus filhos em risco por livre e espontânea vontade só porque queria... – Ele se retraiu. – Jesus Cristo. Você fez sexo com ele? Você trepou com ele com os meus filhos dentro de você?

– Não! Nunca estive com ele dessa forma!

– Mentirosa – ele urrou. – Você é uma vadia mentirosa...

– Sou praticamente virgem! E você sabe disso! Além do mais, você não me quer. Por que se importa?

– Está querendo sugerir que sequer o beijou? – Quando ela não respondeu, ele riu com aspereza. – Nem tente negar. Está escrito na sua cara. E você tem razão, eu não te quis, nunca te quis... E não tente distorcer as coisas. Não estou com ciúmes; estou enojado. Amo um homem de valor e tive que ir para a cama com você porque precisava de uma incubadora pro meu filho e pra minha filha. Por isso e pelo fato de você ter se jogado em cima de mim quando esteve no cio, esses foram os únicos motivos pelos quais estive com você.

O rosto de Layla empalideceu, e por mais que isso o tornasse um cretino, ele gostou. Queria feri-la por dentro, que era onde contava, porque, por mais furioso que estivesse, jamais bateria numa fêmea.

E essa era a razão por ela ainda estar de pé.

Aqueles bebês, aqueles preciosos e inocentes bebês, foram levados até a boca de um monstro, na presença do inimigo, expostos ao perigo que o teria feito se cagar nas calças caso tivesse sabido à época do acontecimento.

– Você faz alguma ideia do que ele é capaz de fazer? – Qhuinn perguntou com seriedade. – As atrocidades que cometeu? Ele esfaqueou o próprio tenente nas entranhas só para mandá-lo para as nossas mãos. E no passado, no Antigo País? Ele assassinou vampiros, humanos, redutores, qualquer um que lhe atravessasse o caminho, às vezes movido pela guerra, outras só por diversão. Ele era a mão direita de Bloodletter. Você consegue imaginar o que ele já fez nesta terra? Quero dizer, você evidentemente não dá a mínima para o fato de ele ter metido uma bala no pescoço de Wrath – está claro que isso não significa nada para você. Aquele bastardo poderia tê-la violentado mil vezes, estripado você e deixado que ardesse sob o sol – com os meus filhos dentro de você! Que tipo de porra de brincadeira você está armando pra cima de mim?!

Quanto mais Qhuinn pensava a respeito dos riscos a que ela se expôs, mais sua cabeça latejava. Seus amados filhos poderiam muito bem não existir por conta das más escolhas da fêmea, que apenas por preceito biológico, fora o abrigo deles até que pudessem respirar sozinhos.

Tinha colocado-os em perigo ao se arriscar – sem nenhum pensamento aparente quanto às consequências ou como ele, o pai biológico, poderia encarar tamanho fiasco.

Sua fúria, nascida do amor que nutria pelos bebês, era indefinível. Inegável. Inesgotável.

– Nós dois os desejamos – ela disse, rouca. – Quando nos deitamos, nós dois os quisemos...

Numa voz impassível, ele a interrompeu:

– Pois é, isso eu lamento. Melhor que eles não tivessem nascido do que ter metade de você neles.

Layla estendeu a mão para mais uma vez se apoiar na árvore – e, como foi a mão que estava envolvida por sua bandana, ele se percebeu sufocado pela necessidade de arrancar o pedaço de pano da mão dela. Para depois queimá-lo.

– Fiz o melhor que pude – ela afirmou.

Ele gargalhou, então, até que a garganta queimasse.

– Está se referindo ao tempo em que dormiu com Xcor? Ou quando pôs em risco a vida dos meus filhos?

De uma vez só, ela retribuiu a raiva dele com um jorro da sua:

– Você tem aquele a quem ama! Deita-se ao lado dele todos os dias! A sua vida tem objetivo e significado, além de servir a outrem – enquanto eu não tenho nada! Passei todas as minhas noites e dias servindo a uma divindade que já não se importa mais com a raça que gerou e agora sou a mahmen de dois bebês a quem amo com todo o meu coração, mas que não são eu. O que tenho para mostrar da minha vida? Nada!

– Nisso você acertou – ele concordou, sério. – Porque não será mais a mãe dos meus filhos. Você perdeu o seu emprego.

Ela se retraiu com indignação.

– O que está dizendo? Sou a mahmen deles. Eu...

– Não é mais.

Houve um instante de silêncio, e depois a voz explodiu para fora dela:

– Você não pode... Não pode tirar Lyric e Rhamp... Não pode afastá-los de mim! Sou a mahmen deles! Tenho meus direitos...

– Não, não tem. Você se associou ao inimigo. Cometeu um ato de traição. E vai ter sorte se sair desta com vida – não que eu me lixe se você viver ou morrer. A única coisa que me importa é que nunca mais veja os bebês...

A mudança no interior dela foi instantânea e arrebatadora.

De uma vez só, Layla passou de irada a absolutamente calada. E a mudança foi tão abrupta que ele teve de ponderar se ela não sofrera uma síncope.

Mas, em seguida, os lábios de Layla se retraíram das presas que desciam. E o som que saiu de dentro dela eriçou os pelos de sua nuca num alerta.

Quando abriu a boca, a voz dela foi letal como as lâminas de uma adaga.

– Não recomendo que tente me impedir de ver meu filho e minha filha.

Qhuinn expôs as próprias presas.

– Espere e verá.

O corpo da Escolhida se curvou e ela se agachou, o sibilo que ela emitiu era de uma víbora. Só que ela não saltou sobre ele para despedaçar seu rosto com as garras.

Layla simplesmente se desmaterializou.

– Ah, inferno! Não! – ele gritou para o cenário invernal frio e alheio a tudo. – Você quer guerra, é o que vai ter, cacete!

– ... vezes em que ainda sinto vontade – Blay dizia ao sorver um gole do seu copo com gelo. – Para os humanos, é um vício letal. Mas vampiros não têm que se preocupar em adquirir câncer por fumar.

A sala de bilhar da Irmandade estava quase deserta, visto que o torneio foi encerrado quando Butch teve de assumir o posto ao lado de Xcor, Tohrment pediu para se retirar, Rhage chegou machucado do campo, e Rehv decidira ficar nos Grandes Campos com Ehlena. Mas tudo bem. Blay ainda conseguira jogar com Vishous, e os dois circundavam a mesa central dentre as cinco, alternando-se nas jogadas. A boa notícia? Lassiter estava em algum outro lugar, o que significava que a TV acima da imensa lareira estava na ESPN, no mudo.

Nada de filmes da Disney com aquelas canções ridículas esta noite.

Se Blay tivesse que ouvir as merdas do Frozen uma vez mais, ele iria “let it goooooo” pra valer.

No sentido de esvaziar uma magazine bem diante do seu próprio lobo frontal.

Do outro lado da mesa, Vishous acendeu outro dos seus cigarros enrolados por ele mesmo.

– Então por que parou de fumar?

Blay deu de ombros.

– Qhuinn odeia cigarros. O pai dele fumava cigarros e cachimbo, então acho que isso o faz se lembrar de coisas das quais prefere esquecer.

– Você não deveria ter que mudar por ninguém.

– Fui eu quem escolheu parar. Ele nunca me pediu.

Enquanto o Irmão se inclinava sobre a mesa para alinhar o taco, Blay relembrou o início de sua história com Qhuinn. Esse papo de fumar começou quando teve de ficar assistindo ao macho que amava foder qualquer coisa que se movesse. Um período horrível. Não, não tinham um relacionamento – e toda vez que Qhuinn saía com alguém, isso servia de lembrete de que jamais estariam em um.

Caramba. Na época, ele sequer havia saído do armário.

O estresse e a tristeza foram difíceis de controlar, mas também houve um ressentimento borbulhante e irracional de sua parte. Por isso abraçara um mecanismo de compensação que Qhuinn não teria aprovado nem gostado. Fora uma desforra subversiva e mesquinha pelos pecados que o macho na verdade não cometera.

Mas, pelo menos, deixar de fumar tinha sido simples. Assim que os dois se entenderam? Ele deixou os maços de Dunhill de lado e nunca mais olhou para trás.

Bem... Talvez seja mais preciso afirmar que nunca escorregou no vício. Às vezes, quando via Vishous acendendo um, e o cheiro do tabaco permeava o ar, ele ansiava fumar um cigarro...

Bem quando V. lançou a bola da vez no meio do arranjo central, um som horrível de batidas resoou no vestíbulo. Alto, repetitivo, forte o bastante para sacudir e fazer tremer a maciça e grossa porta de carvalho da entrada da mansão, de modo que mais parecia que uma horda de redutores estava tentando invadi-la.

Blay sacou a arma que portava na casa enquanto ele e V. largavam os tacos e corriam para fora da sala de bilhar até a entrada principal.

Bam-bam-bam-bam!

– Mas que porra é essa? – V. murmurou ao olhar para o monitor de segurança. – Que diabos há de errado com o seu garoto?

– O quê?

A pergunta foi respondida quando V. soltou a trava e Qhuinn entrou explodindo no vestíbulo. O macho estava furioso a ponto de parecer possuído, o rosto contraído de raiva, o corpo disparado numa corrida, seu estado tal que ele parecia alheio à presença de qualquer um.

– Qhuinn? – Blay tentou segurá-lo pelo ombro ou pelo braço.

Não teve jeito. Qhuinn chegou à escadaria e deu uma de Usain Bolt, os degraus cobertos pelo tapete vermelho foram consumidos por saltos ligeiros.

– Qhuinn! – Blay disparou atrás do que quer que estivesse acontecendo, tentando alcançá-lo. – O que foi?

No alto da escadaria, os coturnos de Qhuinn se enterraram no carpete e por pouco não derraparam ao virar à esquerda no corredor das estátuas. Logo atrás dele, Blay se apressou, e quando a direção que ele tomava ficou clara, um súbito terror se apossou dele.

Layla e as crianças deviam estar em algum perigo...

Na porta do quarto de Layla, Qhuinn agarrou a maçaneta e girou – só para bater de cara na madeira.

Cerrando um punho, ele começou a bater na porta com tanta força que lascas de pintura começaram a cair.

– Abra a porra desta porta! – Qhuinn berrou. – Layla, abra esta maldita porta agora mesmo!

– Mas que diabos você está fazendo?! – Blay tentou impedi-lo. – Ficou louco...

A arma de Qhuinn saiu sabe-se lá de onde, e quando o Irmão a virou e direcionou o cano para o rosto de Blay, ficou claro que se tratava de algum tipo de pesadelo, o resultado inevitável de uma segunda dose de vinho do Porto depois do jantar de carneiro de Fritz.

Só que não.

– Fique fora disso – Qhuinn estrepitou. – Fique fora disso.

Enquanto Blay erguia ambas as mãos e recuava, Qhuinn virou o ombro para a porta e a empurrou com tanta força que a madeira rachou, os painéis se partindo sob a força do golpe.

O que se revelou dentro do quarto cor de lavanda foi igualmente aterrador.

Enquanto Vishous parava de pronto ao lado de Blay e Z. saía da sua suíte ao fim do corredor, o cérebro de Blay para sempre ficaria maculado pela visão incompreensível e inescapável de Layla com cada filho debaixo dos braços, as presas expostas em pose de ataque, o rosto como o de um demônio, o corpo todo trêmulo – mas não de medo.

Ela estava preparada para matar qualquer um que se aproximasse dela.

Qhuinn apontou a arma na direção dela através do buraco criado na porta.

– Solte-os. Ou acabo com você.

– Mas que porra está acontecendo aqui? – A voz de Vishous saiu tão alta quanto se ele tivesse um alto-falante. – Vocês perderam a cabeça, caralho?

Qhuinn enfiou a mão por dentro e soltou a tranca, escancarando o que restava da porta. Quando ele entrou, Blay deteve os demais.

– Não, deixem que eu cuido disso.

Se mais alguém além dele entrasse, balas começariam a pipocar, e Layla iria atacar, e pessoas se feririam – ou pior.

E que porra estava acontecendo ali?

– Solte-os! – Qhuinn ladrou.

– Mate-me, então! – Layla revidou. – Vá em frente!

Blay colocou o corpo entre os dois, o tronco enquanto bloqueio no caminho de qualquer bala. Nesse meio-tempo, Layla respirava ofegante, e Lyric e Rhamp choravam – merda, ele jamais se esqueceria do som daquele choro.

De frente para Qhuinn, ele mostrou as palmas e falou com lentidão:

– Vai ter que atirar em mim primeiro.

Ele não se concentrou em nada além dos olhos azul e verde de Qhuinn... Como se pudesse, de alguma forma, comunicar-se telepaticamente com seu oponente para acalmá-lo.

– Saia da frente – Qhuinn ordenou. – Isto não é da sua conta.

Blay piscou ante tais palavras. Mas, considerando-se que enfrentava o cano de uma 40 mm, deduziu que deixaria o insulto passar por ora.

– Qhuinn, qualquer que seja o problema, conseguiremos lidar com... Aquele olhar despareado se voltou para ele por apenas uma fração de segundo.

– Acha mesmo? Quer dizer que o fato de ela ter se associado com o inimigo pode ser lavado com detergente ou alguma merda do tipo? Maravilha, vamos chamar Fritz pra cuidar disto. Ideia boa do cacete.

Enquanto os bebês continuavam a chorar, e mais pessoas se aproximavam da cena no corredor, Blay balançou a cabeça.

– Do que está falando?

– Ela levou os meus filhos com ela quando foi trepar com ele...

– Não entendi, o quê?

– Ela esteve com Xcor durante todo esse tempo. Ela não parou de se encontrar com ele. Associou-se a um inimigo conhecido do nosso rei enquanto estava grávida dos meus filhos. Por isso, sim, estou no meu direito de pai de puxar o gatilho contra ela.

De repente, Blay tomou ciência de um grunhido crescente atrás dele, e o som terrível o lembrou do que ouvira a respeito de as fêmeas da espécie serem mais letais do que os machos. Relanceando por sobre o ombro, ele pensou que sim, Layla estava evidentemente preparada para proteger os filhos até a morte naquela porra de universo paralelo para o qual foram sugados.

Xcor? Ela andou se encontrando com Xcor?

Só que ele não podia se desviar do perigo imediato.

– Só quero que você abaixe essa arma – Blay disse com calma. – Abaixe a arma e me conte o que está acontecendo. Senão, se quiser atirar nela, a bala vai ter que passar por mim primeiro.

Qhuinn inspirou fundo, como se estivesse se esforçando para não gritar.

– Eu te amo, mas isto não é da sua conta, Blay. Saia do caminho e deixe que eu cuido disto.

– Espere um minuto. Você sempre disse que também sou pai dessas crianças...

– Não quando o assunto é este. Agora saia da minha frente, caralho.

Blay piscou uma vez. Duas. Uma terceira vez. Engraçado, a dor em seu peito o fez refletir se Qhuinn não havia apertado o gatilho, e ele apenas deixou de ouvir o disparo.

Concentre-se, ordenou a si mesmo.

– Não, não vou me mexer.

– Saia da frente! – O corpo de Qhuinn começou a tremer. – Mas que diabos, saia da porra da minha frente!

Agora ou nunca, Blay pensou ao avançar e atacar o pulso que controlava a pistola. Ao golpear o antebraço com toda a força, a arma disparou repetidamente, e os cartuchos das balas saíram voando – mas, com uma rápida mudança de direção, ele conseguiu empurrar Qhuinn para o lado. O casal se estatelou no chão, e Blay se esforçou para dominar seu par, o impulso do movimento afastando-os de Layla e dos pequenos enquanto mantinha a arma apontada para o sentido oposto do quarto.

Blay acabou por cima, mas sabia que Qhuinn lhe tomaria a posição bem rápido. A arma, ele tinha que manter controle da...

De repente, o ar se tornou ártico.

A temperatura do quarto caiu para baixo de zero tão rápido que as paredes, o piso e o teto rangeram em protesto, a respiração dos presentes foi expelida em lufadas, a condensação gelou os vidros das janelas e os espelhos, com arrepios de qualquer pele exposta.

Em seguida, ouviu-se um rugido vigoroso.

O som foi tão intenso que foi quase inaudível – nada além de dor atravessou-lhes o canal auditivo, transformando suas cabeças em sinos de igreja – e isso, ainda mais do que a mudança no clima, deteve todos dentro da suíte, no corredor, na mansão... Talvez em todo o mundo.

O imenso corpo de Wrath apequenou a soleira da porta quando ele entrou no quarto, marcado pelos cabelos até a cintura, óculos escuros, coxas cobertas por couro e tronco avantajado, que teria detido qualquer trem em movimento.

Suas presas estavam totalmente expostas, como os dentes de um tigre-dentes-de-sabre. Mas ele não teve dificuldade alguma de se expressar, mesmo com elas.

– Não na porra da minha casa! – Ele soou tão alto que o quadro ao seu lado vibrou contra a parede de gesso. – Isso não vai acontecer na porra da minha casa! Minha shellan e meu filho estão aqui – existem outras crianças debaixo deste teto. Existem crianças na droga deste quarto!

Do lado oposto, Layla caiu no chão, os ossos absorvendo a queda com um barulho. Apesar do impacto, manteve Lyric e Rhamp em segurança, aninhados no colo, enquanto pendia a cabeça e começava a chorar.

Debaixo de Blay, Qhuinn tentava se soltar.

– Não até você soltar a arma – Blay disse entredentes.

Houve o som de metal se chocando contra a madeira quando a 40 mm foi solta e Blay a empurrou para longe. Em seguida, Qhuinn se desvencilhou e pôs-se de pé sobre os coturnos. Parecia que ele tinha estado num túnel de vento, seus cabelos negros dispostos em uma bagunça completa, os olhos arregalados, a pele corada em determinados pontos, mas pálida em outros.

– Todos para fora – Wrath ordenou. – Exceto pelos três pais.

Bem, pelo menos alguém reconhecia seu papel, Blay ponderou, com amargura.

Direcionando seu olhar para Qhuinn, viu-se encarando, através do caos, o macho que conhecia quase tão bem quanto a si mesmo.

Naquele instante, porém? Blay fitava para um estranho. A droga de um total desconhecido. Os olhos que Blay já havia passado horas perscrutando, os lábios por ele beijados, um corpo que tocou, acariciou, penetrou e pelo qual também foi penetrado... Era como se algum tipo de amnésia tivesse apagado toda a intimidade, metamorfoseando o que um dia fora uma realidade conhecida em uma hipótese tão fraca que parecia inexistente.

Vishous entrou no quarto.

– Primeiro, vistoria de armas.

Quando o lábio superior de Wrath se retorceu, ficou claro que o rei não apreciou a interrupção. Mas não havia como argumentar contra a razão.

V. foi eficiente na revista: primeiro retirou um par de adagas de Qhuinn, depois outra pistola – e, quando Blay se levantou, ergueu-lhe os braços e afastou-lhe as pernas, mesmo ciente de que ninguém estava preocupado que ele puxasse o gatilho.

– Pronto – V. anunciou ao se espremer para passar pelo Rei e voltar para o corredor.

– Diga aos outros que saiam – Wrath estrepitou.

– Certo.

Ante o comando real, a multidão se dispersou da soleira, mas não foi muito longe. Suas presenças pairaram enquanto, evidentemente, aguardavam os acontecimentos seguintes. De um jeito ou de outro, não havia como fechar a porta. Estava totalmente arruinada.

Virando-se na direção de Qhuinn, Wrath maldisse a situação e exigiu:

– Vai me explicar por que diabos disparou uma arma dentro da minha casa?

 

CONTINUA

ANTIGO PAÍS, 1731
As chamas de uma fogueira no chão iluminavam as paredes úmidas da caverna; a superfície áspera, manchada por sombras. Do lado de fora do ventre da terra, os gemidos do vento ecoavam na abertura do abrigo, unindo-se aos gritos da fêmea sobre o catre em que dava à luz.
– Será um menino! – ela arfou em meio às contrações que a assolavam. – Um macho!
Acima daquele pedaço de carne deitado e agonizante, pairando como uma maldição sobre ela, o Irmão da Adaga Negra Hharm pouco se importava com a sua dor.
– Logo saberemos.
– Você me desposará. Foi uma promessa...
As palavras se interromperam e seu rosto se contraiu numa máscara feia enquanto suas partes internas se contorciam para expelir a cria e, ao fazer as vezes de testemunha, Hharm refletia o quanto a aristocrata ficava pouco atraente em trabalho de parto. Não fora assim quando se conheceram e ele a seduzira. Na época, estivera coberta de cetim, muito composta, o receptáculo adequado para o seu legado, com a pele perfumada e os cabelos macios e reluzentes. Agora? Não passava de um animal, suada, pegajosa – e por que a situação se prolongava tanto? Ele estava tão enfastiado com o processo, ofendido por estar cuidando dela. Tratava-se de uma tarefa para as fêmeas, não para um guerreiro de seu escalão.
Todavia, não a desposaria, a menos que precisasse fazê-lo.
Se o bebê fosse o filho pelo qual vinha esperando? Então, sim, ele legitimaria a criança por meio da cerimônia de união e daria à fêmea o status ao qual ela se julgava digna. Caso contrário, ele se afastaria e a fêmea não diria nada, porque estava maculada aos olhos de sua classe, sua pureza perdida como um terreno já arado.
De fato, Hharm já decidira que era hora de se assentar. Depois de séculos de perdições e depravações, a idade começava a pesar. Ele se punha a considerar, pela primeira vez, o legado que deixaria para a posteridade. No momento, não lhe faltavam bastardos, frutos de sua pelve, os quais não conhecia, com quem não se importava e jamais se associaria a eles – e por tanto tempo era de conhecimento geral que ele não devia nada a ninguém.
Agora, porém... Ele se encontrava desejando uma árvore genealógica adequada. E também havia a questão das suas dívidas crescentes, algo que o pai dessa fêmea facilmente resolveria para ele – embora, mais uma vez, caso não fosse um filho varão, ele não a desposaria. Não era louco, não se prostituiria por centavos. Além disso, havia incontáveis fêmeas da glymera que cobiçavam o status inerente à vinculação com um membro da Irmandade da Adaga Negra.
Hharm não se comprometeria até ter um filho homem, a quem criaria desde a primeira noite.
– Oras, recomponha-se! – ele repreendeu-a quando ela gritou uma vez mais, uma ofensa aos seus ouvidos. – Fique calada!
Como em todas as coisas, contudo, ela o desafiou:
– Está chegando...! O seu filho está chegando!
A veste que ela usava foi suspensa até a base dos seios volumosos por mãos retorcidas. A barriga estendida e arredondada era uma visão vergonhosa, as coxas pálidas e finas permaneciam afastadas. O que acontecia no centro era repugnante: o que deveria ser a entrada delicada e adorável a fim de aceitar a excitação masculina vazava todo tipo de fluido e as carnes estavam inchadas e distorcidas.
Não, ele jamais a penetraria novamente. Com ou sem um filho, vinculados ou não, a perversão diante dos seus olhos não era algo de que ele pudesse se esquecer.
Felizmente, casamentos por conveniência eram uma contingência comum na aristocracia – não que ele se importasse caso não o fossem. As necessidades dela eram inconsequentes.
– Ele está chegando! – ela berrou quando a cabeça pendeu para trás e as unhas arranharam a terra debaixo de seu corpo. – Seu filho... ele se aproxima!
Hharm franziu a testa, depois seus olhos se arregalaram e as pernas se firmaram, afastadas. Ela não se equivocava, pois, de fato, algo começava a surgir de dentro dela... Era...
Uma abominação. Algo disforme e terrível...
Um pé.
– Isso é um pé?
– Tire seu filho do meu corpo – ela ordenou entre arquejos. – Puxe-o de dentro de mim e segure-o contra seu coração, reconheça-o como sua carne e seu sangue!
Com todas as armas ainda presas ao corpo, Hharm ajoelhou-se quando o segundo pé apareceu.
– Puxe! Puxe! – O Sangue jorrou e a fêmea berrou de novo quando o bebê não se moveu. – Ajude-me! Ele está asfixiado!
Hharm manteve-se afastado de toda aquela nojeira e imaginou quantas fêmeas inseminadas por ele haviam passado pela mesma situação. Seria sempre desagradável assim ou era ela quem era fraca?
De fato, deveria deixá-la que fizesse o parto sozinha, mas não confiava nela. A única maneira de ter certeza de que seu filho era macho era estar presente durante o nascimento. De outro modo, ele não desconsiderava a possibilidade de ela trocar uma filha indesejada pelo macho tão cobiçado – fruto de outro macho.
Aquela era, afinal, uma transação negociada, e ele sabia muito bem como tais coisas podiam ser manipuladas.
Em seguida, o som que emergiu da garganta da fêmea foi tão volumoso e demorado que interrompeu seus pensamentos. Depois os gemidos e as mãos sujas de terra e sangue dela se postaram no interior das coxas, puxando-as para fora e para cima, ampliando a abertura. E bem quando o Irmão acreditou que ela estivesse morrendo, quando cogitou se acabaria enterrando a ambos – e de pronto decidiu-se contra a proposição, visto que as criaturas da floresta logo consumiriam os restos mortais –, o bebê apareceu um pouco mais, livrando-se de algum obstáculo interno.
E lá estava ele.
Hharm se adiantou.
– Meu filho!
Sem pensar, esticou os braços e apanhou com mãos firmes os tornozelos escorregadios. Estava vivo; a criança chutava com força, debatendo-se contra o confinamento do canal vaginal.
– Venha para mim, meu filho – Hharm ordenou ao puxá-lo.
A fêmea se contorcia em agonia, mas ele não lhe dispensou um pensamento sequer. Mãos – pequeninas e perfeitamente bem formadas – surgiram em seguida, junto à barriga arredondada e o peito, que, mesmo em seu momento recém-nascido, era amplo.
– Um guerreiro! Este é um guerreiro! – O coração de Hharm batia forte, seu triunfo latejava nos ouvidos. – Meu filho levará adiante o meu nome! Será conhecido como Hharm, assim como eu antes dele!
A fêmea ergueu a cabeça, as veias do pescoço saltavam como cordões tensos sob a pele pálida demais.
– Você me desposará – ela disse, rouca. – Jure... Jure pela sua honra, ou eu o segurarei dentro de mim até que fique azul e entre no Fade.
Hharm sorriu com frieza, revelando as presas. Em seguida, desembainhou uma das adagas do peito. Direcionando a ponta para baixo, mirou no baixo ventre dela.
– Eu a estriparei como a um cervo para libertá-lo, nalla.
– E quem alimentará seu precioso filho? O seu sêmen não sobreviverá sem mim.
Hharm pensou na tormenta do lado de fora. Na distância que estavam do assentamento de vampiros mais próximo. E no pouco que sabia sobre as necessidades de um recém-nascido.
– Você me desposará, conforme prometido – ela gemeu. – Jure!
Os olhos dela estavam injetados e ensandecidos, os longos cabelos suados e emaranhados, o corpo era algo sobre o qual ele jamais desejaria se sobrepor. Mas a lógica dela o impedia. Perder o que desejava por conta exatamente do arranjo que estivera disposto a fazer, simplesmente porque ela o apresentava como se fosse uma condição sua, não era uma decisão sábia a se tomar.
– Juro – murmurou.
Com isso, ela voltou a se deitar e, sim, agora ele a ajudaria, puxando no ritmo dos empurrões dela.
– Ele está vindo... ele...
O bebê saiu de dentro dela num jorro, fluidos saindo com ele e, quando Hharm o segurou em suas palmas, sentiu uma alegria inesperada tão ressonante que...
Seus olhos se estreitaram ao pousar as vistas sobre o rosto dele. Acreditando que havia alguma membrana mascarando o bebê, passou uma das mãos pelas suas feições, que eram um misto das dele e da fêmea.
Lamentavelmente... nada mudou.
– Que maldição é esta? – questionou-se consigo mesmo. – Que maldição... é esta!

 

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CAPÍTULO 1


MONTANHAS DE CALDWELL, NOVA YORK, DIAS ATUAIS

A Irmandade da Adaga Negra o mantinha vivo só para poder matá-lo.

Dada a soma das atividades terrenas de Xcor, que foram das mais violentas, e certamente muito depravadas, aquele parecia um fim adequado para ele.

Nascera numa noite de inverno durante uma tempestade histórica. Nas entranhas de uma caverna suja e úmida, enquanto rajadas gélidas assolavam o Antigo País, a fêmea que o carregara gritara e sangrara para dar ao Irmão da Adaga Negra Hharm o filho tão exigido por ele.

Ele fora desesperadamente desejado.

Até chegar ao mundo.

E esse era o início da sua história, que acabara por levá-lo até ali.

Em outra caverna. Em outra noite do mês de dezembro. E assim como na noite do seu nascimento de fato, o vento gemia para recebê-lo, ainda que, dessa vez, fosse para o retorno da sua consciência em vez da expulsão para a vida independente que levou dali adiante.

E como um recém-nascido, tinha pouco controle sobre o corpo. Estava incapacitado, e isso seria verdadeiro mesmo sem as algemas de aço e as barras sobre o peito, o quadril, as coxas. Máquinas, contrastantes com o ambiente rústico que o rodeava, emitiam sinais atrás de sua cabeça, monitorando-lhe a respiração, os batimentos cardíacos, a pressão sanguínea.

Com a mesma fluidez de uma engrenagem sem lubrificação, seu cérebro começou a funcionar adequadamente sob o crânio; quando os pensamentos por fim se aglutinaram e formaram uma sequência lógica, lembrou-se da série de eventos que fizeram com que ele, o líder do Bando de Bastardos, acabasse sob a custódia daqueles que haviam sido seus inimigos: um ataque por trás, uma concussão, uma espécie de derrame ou algo do tipo que fez com que ele acabasse deitado, dependendo de máquinas para sobreviver.

E da inexistente misericórdia dos Irmãos.

Recobrara a consciência uma ou duas vezes durante o período em cativeiro, registrando seus captores e o ambiente daquele corredor cavernoso que inexplicavelmente abrigava jarros de todos os tipos. A retomada da consciência nunca durou muito; entretanto, a conexão com sua área mental era insustentável por um tempo mais demorado.

No entanto, dessa vez parecia diferente. Ele percebia a mudança em sua mente. O que quer que tivesse estado danificado por fim se curara e agora ele retornava do cenário enevoado do ponto de morto-vivo, permanecendo do lado vital.

– ... muito preocupado com Tohr.

O fim da frase enunciada por um macho entrou nos ouvidos de Xcor como uma série de vibrações, cuja tradução sofreu um atraso, e quando as palavras se formaram, ele virou o olhar naquela direção. Duas figuras de preto muito bem armadas estavam de costas para si, e ele voltou a abaixar as pálpebras, pois não desejava revelar a mudança do seu estado. Entretanto, suas identidades estavam devidamente anotadas.

– Não, ele está bem. – O som de algo raspando e o cheiro de tabaco permeando o ar. – E se não estiver, vou estar ao lado dele.

A voz grave que falou primeiro pareceu árida.

– Pra botar nosso irmão na linha à força... Ou ajudá-lo a acabar com este pedaço de carne?

O Irmão Vishous riu como se fosse um assassino em série.

– Que bela consideração você tem por mim.

Era estranho que não se entendessem melhor, Xcor pensou. Esses machos queriam tanto sangue quanto ele.

No entanto, essa aliança jamais existiria. A Irmandade e os Bastardos sempre estiveram em lados opostos durante o reinado de Wrath, esse limite tendo sido estabelecido pela bala que Xcor alojara na garganta do líder por direito da raça vampírica.

E o preço de sua traição seria cobrado ali, em pouco tempo.

Claro, a ironia era que uma força de compensação interceptara seu destino e fizera com que suas ambições e seu foco se afastassem, e muito, do trono. Não que os guerreiros da Irmandade tivessem ciência disso – e pouco se importariam se soubessem. Além de partilharem o apetite pela guerra, ele e os Irmãos tinham outras características em comum: piedade era para os fracos; o perdão, algo patético; pena, um sentimento das fêmeas, nunca de guerreiros.

Embora soubessem que ele já não sentia nenhuma agressividade em relação a Wrath, não o exonerariam daquilo que conquistara com méritos. Por conta de tudo o que acontecera, ele não sentia nem amargura nem raiva em relação ao que o esperava. Aquela era a natureza do conflito.

Contudo, sentia-se triste – um sentimento desconhecido para ele.

Das suas lembranças surgiu uma imagem que lhe roubou o fôlego. Era o de uma fêmea alta e magra nas vestes sagradas das Escolhidas da Virgem Escriba. Os cabelos loiros ondulavam sobre os ombros e desciam até o quadril em uma brisa suave, os olhos eram cor de jade, o sorriso, uma benção que ele não fizera nada para receber.

A Escolhida Layla mudara tudo para ele, transformando a Irmandade de um alvo a algo tolerável, de inimigo a um habitante coexistente naquele mundo.

Em pouco mais de um ano e meio, período no qual Xcor a conhecia, ela tivera um efeito mais impactante sobre sua alma negra do que qualquer outra pessoa antes dela, fazendo com que evoluísse muito em tempo ínfimo – algo que ele jamais imaginara ser possível.

O Dhestroyer, camarada de Vishous, voltou a falar:

– Na verdade, concordo plenamente com Tohr sobre fazer picadinho do filho da puta. Ele conquistou esse direito.

O Irmão Vishous praguejou.

– Todos nós merecemos. Vai ser difícil deixar uma parte dele intacta quando isso acontecer.

E ali estava o enigma, Xcor ponderou por trás das pálpebras abaixadas. A única saída possível de tamanho cenário mortal seria revelar o amor que sentia por uma fêmea que não era sua, nunca fora e jamais poderia ser.

Mas não sacrificaria a Escolhida Layla por ninguém, por nada.

Nem mesmo para se salvar.

Enquanto Tohr caminhava na floresta de pinheiros da montanha da Irmandade, seus coturnos esmagavam o terreno congelado, e o vento glacial o golpeava no rosto. Em seu rastro, tão próximo de seus calcanhares quanto uma sombra, ele sentia suas perdas a acompanhá-lo, numa fila de lamentos tangíveis como uma corrente.

A sensação de estar sendo perseguido pelos seus mortos o fez refletir a respeito de programas de TV sobre eventos paranormais, do tipo que tentava provar a existência de fantasmas. Que monte de bobagens. A histeria humana acerca das supostas entidades obscuras flanando em escadas e provocando rangidos em casas antigas, com seus passos sem corpos, era algo muito característico dessa espécie desimportante absorta em si mesma e criadora de dramalhões. Mais uma coisa que Tohr odiava a respeito deles.

E, como de costume, eles não acertavam no alvo.

Os mortos absolutamente nos atormentam, percorrendo seus dedos gélidos em nossa nuca como uma forma de lembrete até não conseguirmos decidir se queremos gritar pelas saudades que sentimos deles... ou porque queremos ser deixados em paz.

Eles espreitam suas noites e rondam seus dias, deixando um campo minado de tristeza ao longo dos caminhos.

São seus primeiros e seus últimos pensamentos, o filtro que você tenta deixar de lado, a barreira invisível entre você e todo o resto.

Algumas vezes, são mais parte de você do que as pessoas que você consegue de fato segurar e tocar.

Portanto, sim, ninguém precisa de um programa de TV idiota para provar o que já é de conhecimento comum: mesmo que Tohr tenha encontrado o amor com outra fêmea, sua primeira shellan, Wellsie, e o filho não nascido que ela carregava no ventre quando foi assassinada pela Sociedade Redutora, nunca foram afastados dele além da própria pele.

E agora houvera mais uma morte na mansão da Irmandade.

A companheira de Trez, Selena, subira para o Fade havia poucos meses, tendo falecido em razão de uma doença para a qual não existia cura, nenhum alívio, nenhum conhecimento.

Tohr não dormia direito desde então.

Voltando a se concentrar nas árvores que o cercavam, Tohr se abaixou e afastou um galho do caminho, depois deu a volta num tronco caído. Poderia ter se materializado até o destino, mas seu cérebro latejava com tanta violência da prisão do crânio que ele duvidava que conseguiria se concentrar o bastante para se dissipar.

A morte de Selena fora um maldito gatilho para ele, um evento que afetava outra pessoa, mas que, não obstante, sacudira seu globo de neve, balançando-o com tanta força que seus flocos internos ainda rodopiavam e se recusavam a se assentar.

Estava no centro de treinamento quando ela fora chamada para o Fade, e o momento da morte não fora silencioso. Fora marcado pelo som da alma dilacerada de Trez, o equivalente auditivo de uma tumba – um som que Tohr conhecia bem demais. Fizera o mesmo quando recebera a notícia da morte de sua fêmea.

Portanto, sim, nas asas da agonia do seu amor, Selena fora alçada da terra para o Fade...

Arrancar-se desse espiral cognitivo era o mesmo que tentar tirar um carro de um atoleiro, o esforço necessário era tremendo, o progresso conquistado centímetro a centímetro.

No entanto, lá ia ele pela floresta, na noite invernal, esmagando o que aparecia sob suas solas, com seus fantasmas sussurrando-lhe por trás.

A Tumba era o sanctum sanctorum da Irmandade da Adaga Negra, aquele local secreto onde as induções aconteciam e convocavam-se as reuniões secretas, e onde eram mantidos os jarros dos redutores assassinados. Estava localizada abaixo do solo, num labirinto criado pela natureza, tradicionalmente fora dos limites para qualquer um que não tivesse passado pela cerimônia que o marcasse como membro da Irmandade.

Essa regra, no entanto, tivera que ser contornada, pelo menos em respeito ao longo corredor de entrada de quase meio quilômetro.

Ao se aproximar do insuspeito sistema da entrada, parou e sentiu a raiva surgir.

Pela primeira vez desde que se tornara um Irmão, não era bem recebido ali.

Tudo por causa de um traidor.

O corpo de Xcor estava do lado oposto dos portões, na metade do caminho repleto de prateleiras, deitado numa maca, a vida monitorada e mantida por equipamentos.

Até que o maldito despertasse e pudesse ser interrogado, Tohr não tinha permissão para entrar.

E seus irmãos tinham razão em não confiar nele.

Ao fechar os olhos, viu seu rei com um tiro na garganta. Reviveu o momento em que a vida de Wrath estivera escorrendo junto ao sangue rubro; rememorou a cena em que tivera que salvar o último vampiro de sangue puro no planeta ao cortar um buraco na frente da garganta dele e enfiar o tubo de sua Camelback naquele esôfago.

Xcor encomendara o assassinato. Xcor ordenara um dos seus guerreiros mandar uma bala para dentro das carnes de um macho de valor, conspirara com a glymera para derrubar o governante por direito, mas o filho da puta fracassara. Wrath sobrevivera, apesar das probabilidades contrárias,, e na primeira eleição democrática da história da raça, fora apontado como líder de todos os vampiros – uma posição que ele agora detinha por consenso em vez de pela sua linhagem.

Portanto, vá se foder, filho da puta.

Cerrando os punhos, Tohr ignorou o ranger das luvas de couro e a constrição no dorso dos nós dos dedos. Só o que reconhecia era o ódio, tão profundo como uma doença letal.

O destino decidira que era certo tirar-lhe três seus e dos seus; o destino tirara dele sua shellan, seu filho, e o amor da vida de Trez. Querem falar sobre equilíbrio no Universo? Tudo bem. Ele queria o seu equilíbrio, e isso só aconteceria quando quebrasse o pescoço de Xcor e arrancasse o coração ainda quente do peito do maldito.

Já era hora de uma fonte do mal ser tirada de circulação, e era ele quem empataria o placar.

E a espera finalmente terminava. Por mais que respeitasse seus irmãos, estava farto de aguardar. Essa noite era um aniversário triste para ele, e ele daria ao seu luto um presentinho especial.

Era hora de festejar.


CAPÍTULO 2

O copo de cristal baixo estava tão limpo, tão isento de marcas de sabão, de poeira, de qualquer grânulo que o manchasse, que sua estrutura era como o ar; e a água dentro dele, totalmente invisível.

Meio cheio, a Escolhida Layla ponderou. Ou meio vazio?

Sentada no banquinho acolchoado, entre as duas pias com torneiras douradas e diante de um espelho com adornos de ouro que refletia a banheira funda atrás de si, ela observava a superfície do líquido.

O fundo era côncavo e a água lambia levemente o interior do copo, como se suas moléculas mais ambiciosas tentassem fugir do confinamento.

Respeitava o esforço, enquanto lamentava sua futilidade. Sabia muito bem o que era querer ser livre do local que a abrigava, apesar de não ser culpa sua.

Por séculos, ela fora a água daquele copo, despejada sem ter querido, em virtude apenas do seu nascimento, num papel de servidão junto à Virgem Escriba. Ao lado de suas irmãs, executara os deveres sagrados das Escolhidas no Santuário, adorando a mãe da raça, registrando os eventos da Terra para a posteridade dos vampiros, aguardando a escolha de um novo Primale para que ela pudesse engravidar e dar à luz mais Escolhidas e mais Irmãos.

Mas tudo isso já era passado.

Inclinando-se sobre o copo, observou mais atentamente a água. Fora treinada como ehros, não como escriba, mas sabia muito bem como enxergar além das águas que eram testemunhas da história. Dentro do Templo das Escribas, as Escolhidas designadas a registrar as histórias e as linhagens da raça permaneceram sentadas por horas e horas, observando nascimentos e mortes, suas mãos delicadas com penas sagradas colocando os detalhes nos pergaminhos, acompanhando tudo.

Não havia nada para ela ver. Não ali na Terra.

E também já não existiam testemunhas no alto.

Um novo Primale acabara surgindo. Mas em vez de se deitar com seu rebanho de fêmeas, dando continuidade ao programa de criação da Virgem Escriba, ele dera um passo sem precedentes, libertando todas elas. O Irmão da Adaga Negra Phury se desviara do modelo, quebrara a tradição, desfizera-se das amarras e, ao fazê-lo, as Escolhidas que estiveram isoladas desde sua gênese, visando aos nascimentos planejados, acolheram sua libertação. Já não eram representantes vivas de uma tradição rígida; tornaram-se indivíduos, com seus próprios descontentamentos e preferências, mergulhando os dedos nas águas terrenas da realidade, procurando e encontrando destinos a respeito de si próprias, e não mais de um serviço.

Ao fazer isso, ele desencadeara o fim dos imortais.

A Virgem Escriba já não existia mais.

Seu filho de nascimento, o Irmão da Adaga Negra Vishous, a procurara no Santuário acima e descobriu que ela se fora, deixando uma última carta escrita no vento apenas para os olhos dele.

Ela dissera que tinha um sucessor em mente.

Ninguém sabia sua identidade.

Recostando-se, Layla olhou para a veste que trajava. Não era do tipo sagrado que se vestira durante tantos anos. Não, essa peça vinha de um lugar chamado Pottery Barn, e Qhuinn a comprara para ela na semana passada. Com a aproximação do inverno, ele se preocupava que a mãe de seus filhos estivesse aquecida, sempre bem cuidada.

A mão de Layla subiu para o ventre, agora baixo. Depois de ter carregado a filha, Lyric, e o filho, Rhampage, dentro do corpo por tantos meses, era tão estranho quanto familiar não ter nada no útero...

Vozes murmuradas, baixas e graves, penetraram a porta que ela havia fechado.

Entrara no banheiro para usar o vaso.

Demorara-se depois de ter lavado as mãos.

Qhuinn e Blay, como de costume, estavam com os bebês. Segurando-os. Ninando-os.

Todas as noites, ela tinha que se esforçar para testemunhar o amor, não entre eles e os pequenos... mas aquele entre os dois machos. De fato, os pais exibiam um vínculo ressonante e, resplandecente um com o outro, e por mais que fosse algo belo, aquele fulgor fazia com que se sentisse ainda mais vazia em sua existência.

Enxugando uma lágrima, disse a si mesma para se controlar. Não poderia voltar ao quarto com olhos brilhantes demais, e o nariz e faces corados. Aquele deveria ser um momento de alegria para os cinco integrantes da família. Agora que os gêmeos haviam superado o estado de emergência sob o qual tinham nascido, e Layla também se recuperara, todos estavam aliviados por todos estarem sãos e salvos.

Agora era a vida feliz que ganharam para viver.

Em vez disso, ela ainda era a água triste dentro do copo, desejando sair.

Dessa vez, porém, a prisão foi feita por ela mesma, em vez de providenciada pela genética.

A definição de infidelidade, pelo menos de acordo com o dicionário, era: a ação de trair algo ou alguém...

A batida à porta fechada foi suave.

– Layla?

Ela fungou e abriu uma das torneiras.

– Oi!

A voz de Blay soou baixa, como era seu hábito.

– Você está bem aí?

– Ah, sim, estou. Resolvi tratar um pouco do rosto. Sairei daqui a pouco.

Ela se levantou, inclinou-se e molhou o rosto. Depois esfregou a testa e o queixo com a toalha de mão para que o rubor se espalhasse mais uniformemente sobre a pele. Apertando o cinto do roupão, aprumou os ombros e foi para a porta, em meio a preces para manter a compostura pelo tempo necessário até conseguir apressá-los para a Última Refeição.

Mas teve um momento de folga.

Ao abrir a porta, Blay e Qhuinn sequer olhavam na sua direção. Estavam inclinados sobre o berço de Lyric.

– ... os olhos de Layla – Blay disse ao abaixar a mão e deixar que a pequena agarrasse seu dedo. – Definitivamente.

– Ela também tem os cabelos da mahmen. Veja o tom loiro começando a aparecer.

O amor deles pela pequena era incandescente, reluzia em seus rostos, aquecia suas vozes e, aplacava seus movimentos, de modo que tudo o que faziam era com cuidado. No entanto, não era nisso que Layla se concentrava.

Seu olhar estava fixo na palma larga de Qhuinn, que afagava as costas de Blay. A carícia de conexão era inconsciente de ambos os lados; a oferta e a aceitação eram tanto nada e tudo o que importava, simultaneamente. E enquanto testemunhava o que se passava do outro lado do quarto, Layla teve que piscar rápido de novo.

Às vezes, a gentileza e o amor podiam ser tão difíceis de testemunhar quanto a violência. Às vezes, quando se está do lado de fora, ver duas pessoas tão em sintonia era uma cena saída de um filme de terror, o tipo de coisa da qual você quer se manter afastado, quer esquecer, banir da memória – ainda mais quando se está prestes a deitar e enfrentar sozinha um longo dia de horas no escuro.

Saber que ela jamais teria esse amor especial com alguém era...

Qhuinn relanceou na sua direção.

– Ah, oi.

Ele se endireitou e sorriu, mas ela não se deixou enganar. Os olhos dele a percorriam como se em uma avaliação – mas, talvez, esse não fosse o caso. Talvez fosse simplesmente a sua paranoia se manifestando.

Estava tão farta de se dividir em uma vida dupla. Contudo, no tipo de ironia cruel que parecia ser a fonte favorita de divertimento do destino, o preço para aliviar a consciência viria à custa de sua própria existência.

A como poderia deixar os filhos para trás?

– ... ok? Layla?

Enquanto Qhuinn franzia a testa ao observá-la, ela balançou a cabeça e forçou um sorriso.

– Ah, tudo bem, mesmo. – Ela deduzia que a pergunta se referisse ao seu bem-estar. – Muito bem mesmo.

Em busca de confirmar a mentira, aproximou-se dos berços. Rhampage, ou Rhamp, como era conhecido, lutava contra o sono, e quando a irmã arrulhou, sua cabeça se virou e ele esticou a mão.

Engraçado. Mesmo tão jovem, ele parecia reconhecer seu posto e desejava protegê-la.

Era genético. Qhuinn era um membro da aristocracia, resultado de gerações de emparelhamentos escolhidos a dedo, e por mais que seu “defeito” de ter um olho azul e outro verde o tivesse feito receber o desprezo tanto da glymera quanto da própria família, a venerável natureza de sua linhagem não podia ser negada. Tampouco o impacto de sua presença física. Com quase dois metros de altura e corpo talhado por músculos definidos, moldados tanto pelos exercícios quanto pela prática na guerra – uma arma tão letal quanto as pistolas e adagas que levava consigo para o campo de batalha. Era o primeiro membro da Irmandade da Adaga Negra a ser induzido com base na meritocracia em vez de na linhagem, e não desapontara a grande tradição. Ele nunca desapontava ninguém.

De fato, Qhuinn era, no conjunto, um belo macho, ainda que de forma um tanto rústica. O rosto era angular, pois tinha pouca gordura corporal, e aqueles olhos despareados fitavam por baixo de sobrancelhas negras. Os cabelos pretos foram cortados muito curtos recentemente, quase totalmente raspados na base. Deixavam um topete para trás e, como resultado, seu pescoço parecia extra-grosso. Com piercings metálicos nas orelhas e a lágrima de ashtrux nohtrum abaixo do olho – uma marca dos tempos em que servira como protetor de John Matthew –, ele chamava a atenção por onde quer que passasse.

Talvez porque as pessoas, tanto humanos como vampiros, preocupavam-se com o que ele seria capaz de fazer caso fosse contrariado.

Blay, por sua vez, era o oposto: tão acessível quanto Qhuinn seria evitado num beco escuro.

Blaylock, filho de Rocke, tinha cabelos ruivos e um tom de pele mais claro do que a maioria da espécie. Era tão grande quanto Qhuinn, mas quando se está ao seu lado, a primeira impressão que se tem dele faz referência à sua inteligência e ao seu bom coração, em vez de a força bruta. Ainda assim, ninguém discutia suas habilidades em campo. Layla ouvira histórias, ainda que nunca da parte dele, visto que não era de se vangloriar, criar dramas excessivos ou atrair atenções para si.

Ela amava os dois de todo o coração.

E o distanciamento que sentia em relação a eles partia somente do seu lado.

– Olha só – Qhuinn disse ao apontar para os bebês. – Temos dois se apagando... Melhor, um e meio.

Quando ele sorriu, ela não se deixou enganar. Seus olhos continuavam a passear pelo seu rosto, à procura sobre sinais de exatamente aquilo que ela tentava esconder. Para dificultar o escrutínio dele, ela recuou.

– Eles dormem bem, graças à Virgem Escriba... Hum, graças ao Fade.

– Você vai descer para a Última Refeição hoje? – ele perguntou como quem não quer nada.

Blay se endireitou.

– Fritz disse que prepara o que você quiser.

– Ele é sempre tão gentil. – Ela foi até a cama e se deitou contra os travesseiros. – Na verdade, senti uma fominha lá pelas duas da manhã, por isso fui até a cozinha e comi torradas e aveia. Tomei café. Suco de laranja. Um café da manhã no lugar do almoço, por assim dizer. Sabem como é, às vezes sentimos vontade de voltar o relógio no meio da noite e recomeçar da metade.

Uma pena que isso não passasse de uma metáfora.

Ainda que... será que ela teria escolhido nunca conhecer Xcor?

Sim, pensou. Preferiria nunca ter sabido da sua existência.

O amor de sua vida, seu “Blay”, o par do seu coração e da sua alma... era um traidor. E seus sentimentos pelo macho foram uma ferida aberta na qual a bactéria da traição entrara e se espalhara.

Portanto, ali estava ela, na prisão estabelecida por ela própria, torturada pelo fato de ter se aproximado do inimigo, primeiro por ter sido ludibriada... e mais tarde porque quis estar na presença de Xcor.

Separaram-se em maus termos, contudo, com ele colocando um fim nos encontros clandestinos após ela forçá-lo a admitir seus sentimentos. Em seguida, a situação se transformara de triste para trágica, quando ele foi capturado e levado sob a custódia da Irmandade.

A princípio não conseguira obter informações acerca de seu estado. Mas então, viajara ao modo de uma Escolhida até ele e, testemunhara seu estado moribundo num corredor de pedras, repleto de jarros de todas as cores e formas.

Não havia nada que pudesse ter feito por ele. Não sem se apresentar e se expor – e mesmo que ela o fizesse, não poderia salvá-lo.

Por isso estava presa ali: um fantasma atormentado num misto de emoções salpicadas pelo veneno da culpa e do arrependimento, sem nunca, jamais, poder se libertar.

– ... certo? Quero dizer... – Enquanto Blay continuava a falar com ela a respeito de uma e outra coisa, a Escolhida se forçou a não esfregar os olhos. – ... no fim da noite, enquanto você fica aqui com os bebês. Não que você não goste de ficar com eles.

Saiam, ela solicitou mentalmente para os dois machos. Por favor, vão embora e me deixem em paz.

Não era como se ela quisesse afastá-los das crianças, ou que sentisse alguma malquerença pelos pais de Lyric e Rhamp. Ela só precisava respirar. E toda vez que um dos guerreiros a fitava, como faziam agora, respirar se tornava praticamente impossível.

– Você concorda? – Qhuinn perguntou. – Layla?

– Ah, sim, claro. – Ela não fazia ideia do que acabara de concordar, mas certificou-se de sorrir. – Só vou descansar agora. Eles ficaram bastante tempo acordados durante o dia.

– Eu gostaria que nos deixasse ajudar mais. – Blay franziu a testa. – Estamos aqui do lado.

– Vocês dois lutam na maioria das noites. Precisam dormir.

– Mas você também é importante.

Layla direcionou o olhar rumo aos os berços e, ao rememorar a cena de si mesma acalentando-os e amamentando-os, sentiu-se ainda pior. Mereciam uma mahmen melhor do que ela, descomplicada e sem o fardo de decisões que nunca deveriam ter sido tomadas, uma que não estivesse contaminada pela fraqueza em relação a um macho de quem jamais deveria ter se aproximado... muito menos amado.

– Não tenho a mínima importância em comparação a eles – sussurrou rigidamente. – Eles são tudo.

Blay se aproximou e a tomou pela mão, os olhos azuis calorosos.

– Não, você também é muito importante. E mahmens precisam de tempo para si.

Para fazer o quê? Ruminar meus remorsos? Não, muito obrigada, pensou.

– Vou para o túmulo sem eles e aí apreciarei minha própria companhia. – Ao perceber o quanto tinha soado mórbida, apressou-se: – Além disso, eles crescem rápido. Vai acontecer antes de nós três nos darmos conta.

Conversaram mais depois – não que ela tivesse prestado atenção, com todos os gritos em sua mente. Mas, por fim, foi deixada em paz quando o casal partiu.

O fato de ficar tão feliz ao vê-los sair foi mais uma tristeza que ela tinha a carregar.

Mudando de posição na cama, levantou-se e se aproximou dos berços com os olhos rasos de lágrimas. Enxugando o rosto, repetidas vezes, ela pegou um lenço de papel do bolso do roupão e assoou o nariz. Os bebês estavam profundamente adormecidos, com os olhos fechados, os rostos voltados um para o outro como se estivessem se interligado em uma comunicação telepática durante o sono. Mãozinhas perfeitas e pezinhos preciosos, barriguinhas redondas e saudáveis envolvidas em cobertorzinhos de flanela. Eram bebês tão bons; alegres quando acordados, pacíficos e angelicais adormecidos. Rhampage ganhava peso com mais velocidade do que Lyric, mas ela parecia mais saudável do que ele, reclamava menos ao ser lavada ou trocada, fitando tudo com mais atenção.

Quando as lágrimas caíram do rosto de Layla até o carpete, ela não sabia quanto tempo mais suportaria.

Antes de tomar ciência do movimento, foi até o telefone interno da casa e apertou uma sequência de quatro números.

A doggen que convocou chegou em questão de momentos, e Layla voltou a vestir sua máscara social, sorrindo para a criada com uma serenidade que não sentia.

– Grata por cuidar dos meus preciosos – disse no Antigo Idioma.

A babá respondeu com alegria e olhos cintilantes, e Layla só aguentou dois ou três segundos de comunicação. Em seguida, saiu do quarto e, com passos ligeiros protegidos por chinelos, desceu pelo corredor das estátuas. Quando chegou às portas da extremidade oposta, empurrou uma delas e entrou na ala dos empregados.

Como em todas as mansões daquele tamanho e distinção, o lar da Irmandade necessitava de um tremendo apoio de funcionários, e os aposentos dos doggens perfilavam o corredor; a segregação por idade, sexo e posição nos escalões formava comunidades dentro do grande conjunto. Em meio ao labirinto de corredores, Layla não escolheu uma direção específica além do objetivo de encontrar um quarto vazio – e encontrou-o umas três portas adiante, depois de uma virada. Ao entrar no espaço simples e desocupado, foi até a janela, abriu-a e fechou os olhos. Seu coração batia forte e uma ligeira tontura a dominava, mas ela inspirou fundo o ar fresco e limpo...

... e se desmaterializou através da abertura que criara, misturando-se à noite; as moléculas se espalhando e se afastando da mansão da Irmandade.

Como sempre, sua liberdade seria temporária.

Mas, desesperada como estava, foi tomada por um breve sufocamento, e ela partiu em busca de oxigênio.


CAPÍTULO 3

Qhuinn era um macho muito macho. E não só porque era um guerreiro casado com outro cara.

Sim, claro que, antes de se assentar com Blay, até que gostara de transar com fêmeas e mulheres. Mas, pensando bem, seu padrão para parceiros sexuais fora tão baixo que até aspiradores de pós e canos de escapamento tinham sido candidatos ocasionais.

Mas nada de ovelhas. #critério

No entanto, não poderia dizer que as fêmeas o tivessem cativado ou interessado de fato. Não que houvesse algo de errado com elas, ou que não as respeitasse assim como todo o resto. Elas simplesmente não eram do seu gosto.

Numa noite como a de hoje, porém, ele lamentava sua inexperiência. Só porque ralara e rolara com o sexo oposto não significava que estivesse equipado de algum modo para lidar com o que o confrontava agora.

Quando ele e Blay chegaram ao pé da escadaria principal, ele parou e olhou para seu par. Ao fundo, vindo da sala de bilhar do lado oposto do átrio, o som das vozes graves dos machos, de música e de gelo batendo em copos de cristal anunciavam que o torneio de bilhar da Irmandade já estava em curso.

Qhuinn sorriu de uma maneira que esperava transmitir calma.

– Ei, eu já te encontro lá, ok? Tenho que descer pra falar com a doutora Jane sobre o meu ombro, acho que demoro uns dez minutos... Não mais do que isso.

– Claro. Quer que eu vá com você?

Por um segundo, Qhuinn se perdeu ao observar seu macho. Blaylock, filho de Rocke, era tudo o que ele não era: impecável como um corpo esculpido por Michelangelo, tinha um rosto de arrasar e uma cabeleira ruiva e lustrosa como a cauda de um pônei; era inteligente, mas também equilibrado, o que fazia toda a diferença; era firme e confiável como uma montanha de granito, o tipo de cara que nunca vacilava.

Em tudo o que importava, comparado a Blay, Qhuinn era uma banheira de plástico perto de uma de porcelana; um conjunto incompleto de pratos ao lado de uma dúzia perfeita de louças; uma coisa rachada no meio de algo inquebrável.

Por algum motivo, porém, Blay o escolhera. Contra todas as possibilidades, o filho imperfeito e desonrado de uma das Famílias Fundadoras, o viciado sexual de olhos despareados, o vagabundo hostil e arredio... De algum modo acabara com o Príncipe Encantado, e caralho, se isso não o convertia.

Blay era o motivo que o fazia respirar, o lar que nunca tivera, a luz do sol que empoderava sua terra.

– Qhuinn? – Os olhos azuis iridescentes se apertaram. – Você está bem?

– Desculpe. – Ele se inclinou e pressionou os lábios na jugular do macho. – Eu me distraí. Mas você sempre tem esse efeito em mim, não é?

Quando Qhuinn se afastou, Blay estava corado – e excitado. Aquela fragrância era uma digressão que não podia ser facilmente ignorada.

A não ser pelo fato de que tinha um problema real para resolver.

– Diga aos irmãos que não demoro. – Qhuinn apontou na direção da sala de bilhar. – E que vou dar uma surra neles.

– Você sempre faz isso. Mesmo com Butch.

As palavras foram suaves, mas respaldadas por uma adoração que fazia com que Qhuinn contasse cada uma das suas bênçãos.

Cedendo ao instinto, Qhuinn se aproximou e sussurrou ao ouvido do cara:

– Talvez queira se alimentar bem na Última Refeição. Vou te manter ocupado o dia inteiro.

Com uma lambida no pescoço em que pretendia trabalhar mais tarde, Qhuinn se afastou antes que não pudesse mais se distanciar de seu par.

Seguindo ao redor da base da escada, passou por uma porta escondida e desceu pelo sistema de túneis que conectava os componentes da propriedade. O centro de treinamento subterrâneo da Irmandade ficava cerca de meio quilômetro afastado da mansão, e aquela passagem subterrânea ligando as duas partes era um espaço amplo iluminado por painéis de luzes fluorescentes afixados ao teto.

Enquanto ele avançava, o som dos seus passos ecoava ao redor, como se os coturnos aplaudissem a iniciativa.

Contudo, Qhuinn não sabia se eles estavam certos. Não fazia a mínima ideia do que estava fazendo ali.

A porta atrás do armário de suprimentos se abriu sem emitir nenhum som, uma vez inserida a senha; em seguida, o guerreiro passava ao longo de prateleiras repletas de papéis para impressora, canetas, blocos de anotação e outras merdas vindas da loja de materiais para escritório. A sala, além do depósito, apresentava a típica disposição de mesa, cadeira, computador e arquivos metálicos, e nenhuma dessas coisas foi particularmente percebida quando ele passou pela porta de vidro adiante para chegar ao corredor da frente. Com passadas longas e impacientes, atravessou todos os tipos de instalações de nível profissional – desde uma academia completa e sala de pesos à altura de Dwayne Johnson, até os vestiários e as primeiras salas de aula.

A porção destinada à clínica do centro de treinamento tinha outra quantidade de cômodos voltados ao tratamento, uma sala de operações e diversos leitos hospitalares. A doutora Jane, companheira de V., e o doutor Manello, companheiro de Payne, cuidavam de todo tipo de ferimentos obtidos em combate, além de problemas domésticos e sem falar dos partos de L.W., Nalla e dos gêmeos Lyric e Rhampage.

Qhuinn bateu na primeira porta ao se aproximar e não teve que esperar nem uma batida do seu coração para ter uma resposta.

– Entre! – a doutora Jane disse do lado oposto da porta.

A boa médica vestia roupas cirúrgicas e um par de Crocs. Sentada diante do computador na outra extremidade da bem equipada clínica, seus dedos voavam sobre o teclado enquanto ela atualizava o prontuário de alguém cabisbaixa; seus cabelos loiros curtos espetados como se ela tivesse passado a mão por eles durante horas.

– Um segundinho... – Ela apertou a tecla de “enter” e girou. – Ah, olá, papai. Como está?

– Ah, você sabe, imerso no amor.

– Aqueles seus bebês são maravilhosos. E olha que eu nem gosto de crianças.

O sorriso dela era acolhedor como uma torta de maçãs. Os olhos verde-montanha, por outro lado, eram afiados como raios laser.

– Graças a você, eles estão se saindo muito bem.

Houve uma deixa para o silêncio. Quando a conversa não evoluiu, ele se pôs a caminhar pela clínica, pois não conseguia ficar parado. Deu uma espiada nos equipamentos estéreis e imaculados sobre os gabinetes de aço inoxidável, inspecionou a maca vazia sob as luzes usadas nas operações, ajeitando as calças.

A médica apenas ficou sentada no seu banquinho, calma e silenciosa, deixando que ele se debatesse com a sua mente. Quando o celular dela tocou, Jane deixou que caísse na caixa de mensagens sem nem ver quem poderia ser.

– Provavelmente estou errado – ele acabou concluindo. – Que porra sei eu, afinal?

A doutora Jane sorriu.

– Na verdade eu te acho um cara bem inteligente.

– Não sobre este tipo de coisa. – Com um pigarro, Qhuinn propôs a si mesmo que prosseguisse; ainda que a doutora Jane não parecesse estar com pressa, ele estava entediando a si mesmo. – Olha só... eu amo a Layla.

– Claro que sim.

– E quero o melhor pra ela. Ela é a mãe dos meus filhos. Quero dizer, além de Blay, ela é a minha companheira por causa das crianças.

– Com certeza.

Cruzando os braços diante do peito, ele parou de andar e empostou-se de frente à doutora Jane.

– Não estou dizendo que sei alguma coisa sobre fêmeas. Coisas como os seus humores e por aí vai. Só que... Layla tem chorado muito. Quero dizer, ela tenta esconder isso de mim e do Blay, mas... toda vez que vou vê-la, encontro bolas de lenços de papel no cesto de lixo, e seus olhos estão brilhantes demais, o rosto, corado. Ela sorri, mas o sorriso nunca passa da superfície. Os olhos dela... são uma tragédia de merda. E... e eu não sei o que fazer, só sei que isso não está certo.

A médica assentiu.

– Como ela se porta com as crianças?

– É fantástica, pelo que posso ver. É totalmente devotada a eles, e eles estão crescendo. Na verdade, o único momento em que a vejo meio que feliz é quando os têm nos braços. – Pigarreou novamente. – Então, o que estou imaginando... ou perguntando, sei lá, é se as fêmeas gestantes, depois que não estão mais grávidas, se elas não...

Jesus, ele merecia todo tipo de prêmio por saber se explicar tão bem. E os termos técnicos com os quais se debatia? Praticamente estava a um passo de receber o título de doutor em Medicina, assim como Jane.

Cacete.

Mas pelo menos a doutora Jane parecia reconhecer que aquele avião conversacional estava ficando sem pista para decolar.

– Acho que está querendo me perguntar a respeito de depressão pós-parto. – Após vê-lo assentir, ela prosseguiu: – Posso lhe afirmar que não é incomum entre os vampiros, e que pode ser incapacitante. Conversei com Havers a respeito disso antes, e estou muito feliz que tenha vindo me procurar para tratar do assunto. Às vezes, uma mãe recente sequer está ciente de que isso pode se tornar um problema.

– Não existe nenhum exame... ou um... sei lá.

– Existem algumas maneiras diferentes de avaliar a questão, e o comportamento é uma delas. Claro que posso ir conversar com ela, e também posso fazer alguns exames de sangue para avaliar os níveis hormonais. E, sim, existem muitas coisas que podemos fazer para tratar dela e dar-lhe o apoio necessário.

– Não quero que Layla pense que estou agindo pelas costas dela nem nada assim.

– O que é totalmente compreensível. Mas tudo bem, porque eu pretendia mesmo subir até lá para dar uma olhada nela e nos bebês. Posso abordar o tema como se fosse parte de uma rotina. Nem terei que citar seu nome.

– Você é a melhor.

Com o assunto resolvido, ele supôs que era hora de voltar para junto do seu companheiro e para o torneio de bilhar. Mas não saiu. Por algum motivo, não conseguia.

– Não é sua culpa – garantiu a doutora Jane.

– Eu a engravidei. E se o meu... – Ok, ela era médica, mas Qhuinn ainda não queria pronunciar a palavra esperma perto dela. O que era loucura. – E se a minha metade for a causa...

A porta se abriu, e Manny enfiou a cabeça pela abertura.

– Ei, está pronta...? Opa, desculpem.

– Estamos quase terminando aqui. – A doutora Jane sorriu. – E você não nos viu juntos.

– Pode deixar. – Manny bateu na soleira. – Se eu puder ajudar de alguma maneira, é só avisar.

E lá se foi o cara, como se nunca tivesse aparecido ali.

A doutora Jane se levantou e se aproximou dele. Era mais baixa do que Qhuinn, e sua estrutura nem se comparava aos quase 140 quilos de músculos masculinos. Mas ela parecia pairar acima dele; a autoridade na voz e nos olhos dela era exatamente o que ele precisava para acalmar seu lado irracional.

Quando encostou a mão no braço dele, sua expressão estava firme.

– Não é sua culpa. Esse, às vezes, é o curso da natureza em algumas gestações.

– Fui eu quem colocou aqueles bebês dentro dela.

– Sim, mas imaginando que este seja um caso de os hormônios se autorregularem após o parto, não há ninguém para culpar. Além disso, você agiu bem ao vir até aqui, e também pode ajudá-la simplesmente conversando com ela e lhe dando o tempo e o espaço necessários para que ela também converse com você. Para ser sincera, eu já havia notado que ela não tem descido para as refeições. Acho que precisamos encorajá-la a se juntar ao resto de nós, para que ela sinta o quanto estamos disponíveis para ampará-la.

– OK. Certo, então.

A doutora Jane franziu a testa.

– Posso lhe dar um conselho?

– Por favor.

Ela o apertou no braço.

– Não se sinta responsável por algo sobre o qual não tem controle algum. Isso é um convite ao estresse que acabará deixando-o loucamente infeliz. Sei que é mais fácil falar do que fazer, mas tente se lembrar disso, está bem? Eu o vi acompanhá-la a cada estágio da gestação. Não houve nada que você não tenha feito por ela ou que não faria por ela, e você é um pai fantástico. Somente coisas boas o esperam, eu prometo.

Qhuinn inspirou fundo.

– Certo.

Mesmo quando sua preocupação persistiu, ele se lembrou de que, durante a gestação de Layla, descobrira que podia confiar na doutora Jane. A médica o ajudara a trilhar a estrada da vida e da morte, e nunca o decepcionara, nunca deixara que se desgarrasse. Tampouco mentira para ele e lhe dera maus conselhos.

– Vai ficar tudo bem – ela prometeu.

Infelizmente, como pôde-se perceber mais tarde, a boa médica estava errada.

Mas ela não tinha controle algum sobre o destino.

Nem ele.


CAPÍTULO 4

O bebê estava arruinado. Tudo o que detinha não passava de uma versão modificada e horrenda das feições de Hharm; o lábio superior era todo errado, como o de uma lebre.

Hharm largou o bebê no piso sujo da caverna, e a coisa não emitiu som algum ao aterrissar, os braços e as pernas mal se moviam, as carnes azuladas e acinzentadas, o cordão ainda o unia à fêmea. Iria morrer, assim como deveriam todos os resultados contra as regras da natureza e do parto – e essa consequência não era causa de indignação.

O fato de Hharm ter sido ludibriado, porém, o era. Desperdiçara dezoito meses, uma quantidade enorme de horas, aquele momento de esperança e de felicidade numa monstruosidade insuportável. E o que ele sabia com certeza? Que não era culpa sua.

– O que você fez? – exigiu saber da fêmea.

– Um filho! – Ela arqueou as costas em agonia renovada. – Eu lhe dei...

– Uma maldição. – Hharm se levantou em toda a sua altura. – O seu ventre é impuro. Ele corrompeu o presente do meu sêmen e produziu isso...

– O seu filho...

– Olhe para ele! Veja com seus olhos! Isso é uma abominação!

A mulher se esforçou e suspendeu a cabeça.

– Ele é perfeito, ele é...

Hharm empurrou o bebê com a bota, fazendo com que ele movesse os pequenos membros e emitisse um gritinho fraco.

– Nem mesmo você pode negar o que está diante de nós!

Os olhos injetados dela se afixaram no bebê, e depois se arregalaram...

– Isso é...

– Você fez isso – ele anunciou.

A ausência de argumentos por parte dela foi uma rendição inevitável, visto que o defeito não podia ser negado. Então ela gemeu como se ainda estivesse em trabalho de parto, os dedos ensanguentados arranharam a terra fria, as pernas tremeram quando se afastaram mais. Depois de mais esforços, algo saiu da mulher, e ele pensou que talvez fosse mais um. De fato, seu coração se viu cheio de otimismo enquanto ele rezava para que o primeiro fosse exhile dhoble, o amaldiçoado de um par de gêmeos.

Infelizmente, não. Era apenas algo do interior da fêmea, talvez o estômago ou o intestino dela.

E o bebê prosseguiu chorando, o peito se estufando e murchando com pouco efeito.

– Você deve morrer aqui, assim como ele – Hharm disse sem cuidado algum.

– Eu não...

– Suas entranhas estão saindo.

– O bebê é... – ela hesitou. – Ele...

– É uma abominação da natureza contra o desejo da Virgem Escriba.

A fêmea se calou e relaxou como se o processo da expulsão tivesse chegado ao fim, e Hharm aguardou pelo ataque em que a alma dela se desprenderia do corpo. Só que ela continuou a respirar e olhar para ele... e a existir. Que espécie de truque era aquele? A ideia de que ela não iria ao Dhunhd por conta disso era um insulto.

– Isso é obra sua – ralhou com a fêmea.

– Como sabe que não foi a sua semente que...

Hharm apoiou a bota na garganta dela e a pressionou, interrompendo-lhe as palavras. Quando uma onda de ódio induziu o corpo do guerreiro rumo a uma ação mortal, somente a possibilidade de que esse evento fosse um castigo por suas ações prévias o impediu de esmagar-lhe o pescoço.

Ela tem que pagar, foi seu pensamento abrupto. Sim, a culpa era dela, e o desapontamento causado necessitava de uma reparação.

Sibilando, ele revelou as presas.

– Deixarei que viva para que possa criar esta monstruosidade e que seja vista com ele. Esta é sua maldição por me amaldiçoar: ele ficará sempre em seu cangote, como um amuleto ou uma danação, e se eu descobrir que essa coisa morreu, eu a perseguirei e a esquartejarei centímetro a centímetro. Depois matarei a sua irmã, toda a prole dela e os seus parentes.

– O que está dizendo?!

Hharm se inclinou para baixo, o latejar no rosto e na cabeça parecia muito familiar.

– Ouviu minhas palavras. Conhece meu desejo. Desafie-o por sua conta e risco.

Quando ela se acovardou, o Irmão se afastou e fitou a sujeira proveniente do parto, a fêmea patética, aquele resultado horrendo – e cortou o ar com a mão, como se os apagasse da linha do tempo. Em meio aos bramidos da tempestade e à extinção da fogueira, ele foi até o casaco de peles.

– Você arruinou o meu filho – reclamou ao passar o peso das peles sobre os ombros. – O seu castigo é criar esse horror como declaração do seu fracasso.

– Você não é Rei – ela rebateu, fraca. – Não pode ordenar nada.

– Este é um serviço comunitário que faço aos machos, meus camaradas. – Apontou o dedo na direção do recém-nascido choroso. – Com isso grudado ao seu quadril, ninguém mais se deitará com você para sofrer de maneira similar.

– Não pode me forçar a isso!

– Ah, posso, sim, e o farei.

Ela era uma fêmea mimada e desafiadora por natureza, e fora isso o que o atraíra nela a princípio – tivera que lhe ensinar o que fazer e as orientações foram bem interessantes por um tempo. De fato, houvera apenas uma instância em que ela tentara exercer domínio sobre ele. Uma vez e nunca mais.

– Não me teste, fêmea. Já fez isso antes e deve se lembrar do resultado.

Quando ela empalideceu, ele assentiu na sua direção.

– Sim. Isso mesmo.

Ele quase a matara na noite em que lhe mostrara que, enquanto ele ficaria com que desejasse, quando e onde o quisesse, ela jamais teria permissão para se deitar com outro macho enquanto estivesse tangivelmente associada a ele. Foi logo depois disso que ela decidiu que a única possibilidade de prendê-lo seria dando-lhe o filho que ele almejava e, ao mesmo tempo, ele começara a pensar em seu legado.

Por azar, ela fracassara em seus objetivos.

– Eu odeio você – ela gemeu.

Hharm sorriu.

– O sentimento é mútuo. E mais uma vez lhe digo que é melhor garantir a sobrevivência dessa coisa. Se eu descobrir que o matou, revidarei a morte dele nas suas carnes e em toda a sua linhagem.

Dito isso, ele cuspiu duas vezes junto aos pés dela: uma por causa da fêmea e outra pelo bebê. Depois se afastou enquanto ela o chamava, e o bebê desertado berrava contra o frio.

Do lado de fora, a tempestade prosseguia, intensa, a neve rodopiante o cegava e depois diminuiu para uma revoada de pássaros que revelava todo o cenário. No vale logo abaixo, montanhas se elevavam às margens de um lago, a neve acumulada sobre a água congelada que formava ondas nos meses mais quentes. Estava tudo escuro, gélido e inerte, mas ele se recusava a encontrar um mau presságio na imagem à sua frente.

Com a mão usada para a adaga comichando, e a hostilidade dentro dele acelerando como um corcel disparado, sugeriu a si mesmo que não atentasse para esse resultado.

Encontraria outro ventre.

Em algum lugar, havia uma fêmea que lhe daria o legado merecido e necessário. Ele a encontraria e a faria crescer com a sua semente.

Existiria um filho apropriado para ele. Hharm jamais aceitaria qualquer outro resultado.


CAPÍTULO 5

Quando se aproximou da entrada da caverna sagrada da Irmandade, Tohr se esgueirou pelo interior úmido, e uma vez ali dentro, o cheiro de terra e de uma fonte de chamas distante irritou suas narinas. Os olhos se ajustaram de imediato, e quando ele seguiu em frente, aquietou o movimento de seus coturnos. Não queria ser ouvido, mesmo que sua presença fosse notada logo em seguida.

Os portões não estavam muito longe e eram constituídos por grossas barras de ferro, cuja espessura era semelhante a de um antebraço de guerreiro; as barras de ferro eram altas como árvores e possuíam uma cobertura em malha de aço, a fim de impedir a desmaterialização. Tochas sibilavam e tremeluziam em cada lado e, além, ele via o começo do grande corredor que conduzia mais para dentro da terra.

Parando diante da enorme barreira, pegou a chave de cobre e não sentiu remorso algum por ter roubado o objeto da gaveta da escrivaninha ornamental de Wrath. Pediria desculpas pela infração mais tarde.

E também pelo que faria na sequência.

Tohr destrancou o mecanismo, empurrou o peso colossal, entrou e voltou a trancar o portão atrás de si. Caminhando à frente, seguiu o caminho natural, expandido por talhadeiras e músculos fortes, e depois adornado por prateleiras. Sobre as diversas tábuas, centenas e centenas de jarros alimentavam um jogo de luz e sombras.

Os receptáculos eram de todos os formatos e tamanhos, e vinham de diferentes eras, desde a antiga até a moderna, mas o que havia dentro de cada um deles era o mesmo: o coração de um redutor. Desde o princípio da guerra contra a Sociedade Redutora, ainda no Antigo País, a Irmandade vinha marcando as mortes dos inimigos ao tomar posse dos jarros das vítimas e trazendo-os até ali para aumentar a coleção.

Em parte como troféu, em parte como um “foda-se, Ômega”, aquilo era um legado. Era um orgulho. Uma expectativa.

E talvez deixasse de sê-lo. Havia poucos e esparsos redutores nas ruas de Caldwell e em outras paragens no momento, portanto deveriam estar próximos.

Tohr não sentiu nenhuma alegria ante tal conquista. Mas talvez fosse em virtude do terrível aniversário dessa noite.

Era difícil sentir qualquer outra coisa que não a perda de Wellsie no dia que já fora seu aniversário.

Após uma curva sutil, ele parou. Mais adiante, a cena mais parecia saída de um filme que não se decidia se era Indiana Jones, Grey’s Anatomy ou Matrix. No centro das antigas paredes de pedra, tochas acesas e jarros despareados e empoeirados, um amontoado de equipamentos médicos piscando e emitindo sinais interferia com um corpo sobre uma maca. E ao lado do prisioneiro? Dois imensos vampiros cobertos da cabeça aos pés com couro preto e armas negras.

Butch e V. eram o Frick e Frack da Irmandade – o ex-policial da divisão de homicídios dos humanos e o filho da Criadora da raça, o bom garoto católico e o depravado sexual, o viciado em roupas e o czar da tecnologia –, unidos pela devoção partilhada pelo Red Sox de Boston e respeito mútuo e afeto que não conheciam limites.1

V. percebeu a presença de Tohr primeiro, virando com tanta rapidez que seu cigarro aceso espalhou cinzas pelo ar.

– Ah, inferno. Não. De jeito nenhum, porra! Você vai dar o fora daqui!

Essa opinião, a despeito do volume pronunciado, foi fácil de ignorar, pois Tohr se concentrava no pedaço de carne sobre a maca. Xcor estava deitado ali, com tubos entrando e saindo de si como se ele fosse a bateria de um carro prestes a receber uma recarga, com a respiração regular... Não, espere, a respiração não estava regular.

V. deteve Tohr, aproximando-se dele e ainda um pouco mais. E o que mais? O Irmão sacara seu atirador poodle – e o cano da 40 mm apontava diretamente para o rosto de Tohr.

– Tô falando sério, meu irmão.

Tohr olhou para o prisioneiro por cima do ombro largo. E se viu sorrindo.

– Ele está acordado.

– Não, ele não est...

– A respiração dele mudou. – Tohr apontou para o peito nu. – Veja.

Butch franziu o cenho e se aproximou do prisioneiro.

– Ora, ora, ora... Hora de acordar, filho da mãe.

V. virou-se para trás.

– Filho da puta.

Mas a arma não se moveu, tampouco Tohr. Por mais que quisesse Xcor, ele acabaria recebendo uma bala na garganta se desse mais um passo: V. era o menos sentimental dos irmãos e tinha a paciência de uma cascavel.

Naquele momento, os olhos de Xcor piscaram. Na luz tremeluzente das tochas, eles pareciam negros, mas Tohr se lembrava de que eles eram azuis. Não que isso importasse.

V. colocou a cara no seu caminho, os olhos de diamante eram como adagas.

– Este não vai ser o presente de aniversário que vai dar para a sua shellan morta.

Tohr arrastou os lábios para trás das presas.

– Vai se foder.

– Isso não vai acontecer. Pode me xingar o quanto quiser, mas não. Você sabe como as coisas vão acontecer e ainda não está na sua hora.

Butch sorriu para o prisioneiro.

– Estávamos esperando que se juntasse à festa. Aceita uma bebida? Talvez um misto de nozes antes ter que ajeitar a poltrona para a decolagem? Não há por que te mostrar as saídas de emergência. Você não tem que se preocupar com isso.

– Vamos, Tohr – V. disse. – Agora.

Tohrment expôs as presas, mas não para o irmão.

– Seu bastardo, vou te matar...

– Não, nada disso. – V. passou o braço ao redor do bíceps de Tohr, e faltou pouco para começarem a dançar uma quadrilha. – Lá fora...

– Você não é Deus...

– Nem você, motivo pelo qual está de saída.

Nos recessos da mente, Tohr sabia que o filho da mãe tinha razão. Ele não estava nem meio racional no momento – e P.S., que V. se fodesse por se lembrar que noite era aquela.

Sua amada shellan, seu primeiro amor, completaria duzentos e vinte e seis anos. E teria um filho dos dois nos braços.

Mas o destino se opusera.

– Não me obrigue a atirar em você – V. alertou com aspereza. – Venha, meu irmão. Por favor.

O fato de as duas últimas palavras terem saído da boca de V. foi o que surtiu efeito. A cena era tão chocante que desarmou Tohr de sua loucura e raiva.

– Venha, Tohr.

Dessa vez, Tohr se permitiu ser conduzido, à medida que seu grande esquema desinflanva; o silêncio absoluto depois de sua loucura o fazia tremer dentro da própria pele. Que porra estivera fazendo? Mas que cacete?

Sim, recebera o privilégio de matar Xcor com um decreto da realeza, mas só quando recebesse autorização expressa de Wrath. E isso ainda não acontecera explicitamente.

Tinham evitado um desastre de proporções traidoras.

Seria como trocar de lugar. Um traidor morto por outro bem vivo.

Quando chegaram aos portões que Tohr havia destrancado para conseguir acesso ao prisioneiro, V. estendeu a mão enluvada.

– Chave.

Tohr não olhou para o irmão ao tirar o objeto da jaqueta de couro e entregá-la. Depois de uns cliques e rangidos, o caminho estava livre, e Tohr saiu sem estar convencido, com as mãos no quadril, os coturnos chutando a terra, a cabeça pensa.

Quando ouviu uma nova sequência de rangidos e cliques, deduziu que estava sendo trancado do lado de fora, sozinho. Mas V. estava bem ao seu lado.

– Eu prometo – o irmão disse – que você, e apenas você, vai mattá-lo.

Tohr se perguntou se isso bastaria. Ponderou se seria o bastante. Será que algum dia encontraria satisfação?

Antes de chegarem à boca da caverna, Tohr parou.

– Às vezes... a vida não é nada justa.

– Não. Não é.

– Odeio isso. Odeio pra caralho. Passo por... períodos, não apenas noites, mas semanas, às vezes até um ou dois meses... em que me esqueço de tudo. Mas a merda sempre volta e, depois de um tempo, não dá mais pra segurar. Não dá. – Bateu na lateral da cabeça com o punho. – Tem esse verme aqui dentro, e sei que matar Xcor não vai me distrair por mais do que dez minutos. Mas numa noite como esta, eu aceitaria até isso.

Sucedeu-se o som de um fósforo sendo riscado quando V. acendeu um cigarro.

– Não sei o que dizer, meu irmão. Eu diria pra você rezar, mas não tem mais ninguém lá em cima te ouvindo.

– Não tenho certeza se a sua mãe nos ouviu algum dia. Sem ofensas.

– Não ofendeu. – V. exalou. – Confie em mim.

Tohr se concentrou na saída da caverna, e quando tentou respirar, sentiu uma estranha exaustão.

– Estou cansado de lutar sempre a mesma briga. Desde que Wellsie foi... assassinada... sinto como se um pedaço meu nunca tivesse cicatrizado, e não aguento essa dor nem mais um segundo. Nem mais um maldito segundo. Mesmo que ela migrasse para algum outro lugar, já seria melhor.

Estabeleceu-se um longo silêncio entre eles, abafado apenas pelo urro dos ventos invernais que entravam na caverna silenciosa.

No fim, V. praguejou.

– Bem que eu gostaria de poder te ajudar, meu irmão. Quero dizer, se você precisar de um abraço confortador... eu devo conseguir alguém pra te dar uns tapinhas nas costas.

Tohr sacudiu a cabeça quando o lábio superior se retorceu num sorriso.

– Isso foi quase engraçado.

– Pois é, tentei pegar leve. – V. exalou de novo. – Era isso ou eu atirava em você, e odeio preencher a papelada burocrática do Saxton, sabe?

– Sei o que quer dizer. – Tohr esfregou o rosto. – Verdade...

Os olhos diamantinos de V. mudaram de foco.

– Apenas esteja ciente que lamento. Você não merece nada disso. – Certa mão pesada pousou no ombro de Tohr e apertou-o. – Se eu pudesse tirar a sua dor, é o que faria.

Quando Tohr piscou rápido, pensou que era uma coisa boa que V. não fosse de abraçar, ou então teriam um maldito colapso emocional acontecendo ali.

Do tipo de colapso que um macho não retornaria intacto.

Mas, pensando bem, ele estava mesmo intacto agora?


BOATE SHADOWS, CENTRO DE CALDWELL


Trez Latimer sentia-se como uma espécie de divindade ao olhar através da parede de vidro do escritório no segundo andar da sua boate. Abaixo, no espaço aberto do armazém convertido, uma multidão de humanos excitados estabelecia um padrão de atração e desdém num mar tumultuado de lasers púrpura e batidas pesadas de baixo.

Em grande escala, sua clientela era composta de millenials, os nascidos entre 1980 e 2000. Definidos pela internet, pelo iPhone, pela ausência de oportunidades econômicas – ao menos segundo a mídia humana –, era um grupo demográfico de moralistas perdidos, comprometidos em salvar uns aos outros, com a preservação dos direitos de todos, e a promoção de uma falsa utopia de pensamento liberal que fazia o macarthismo parecer atenuado.

Mas também eram, da maneira dos jovens, esperançosos sem fundamento.

E como ele os invejava.

Enquanto se esbarravam e colidiam uns nos outros, ele testemunhava o êxtase em seus rostos, o otimismo exuberante de que encontrariam o verdadeiro amor e a felicidade naquela noite mesmo – a despeito de todas as outras noites nas quais vieram até a sua boate e a aurora chegara, expulsando-o com nada além de exaustão, uma nova DST, e mais um fardo de vergonha e dúvida enquanto se perguntavam o que tinham feito, e com quem.

Ele suspeitava, contudo, que, para a maioria, a cura de tamanha angústia era apenas cerca de duas horas de sono, um venti latte da Starbucks e uma injeção de penicilina.

Quando se é jovem assim, quando ainda é preciso enfrentar os desafios que não se consegue sequer começar a compreender, a sua resistência não tem limites.

E era por isso que o vampiro desejaria poder trocar de lugar com eles.

Era estranho colocar os humanos em qualquer tipo de pedestal. Sendo um Sombra de mais de duzentos anos de vida, Trez há tempos considerava aqueles ratos sem cauda algo inferior, um tumulto inconveniente no planeta, bem como formigas na cozinha ou camundongos no porão. Só que não se podia exterminar os humanos. Sujeira demais. Melhor tolerá-los do que arriscar a exposição da espécie ao assassiná-los só para liberar vagas de estacionamento, diminuir as filas nos supermercados e as notificações do Facebook.

No entanto, ali estava ele, ansioso por trocar de lugar com qualquer um deles, mesmo que fosse por uma ou duas horas.

Improcedente.

Mas, pensando bem, eles não mudaram. Quem mudou foi ele.

Minha rainha, está na hora de partir? Conte-me se for.

Enquanto as lembranças o intimidavam dentro do cérebro, ele cobriu os olhos e pensou: Não, Deus. De novo, não. Não queria voltar para a clínica da Irmandade... para o lado do leito da sua amada Selena, morrendo por dentro enquanto ela expirava de verdade.

A verdade, contudo, era que ele jamais abandonara esses eventos, mesmo que o calendário sugerisse o contrário. Depois da passagem de mais de um mês, ele ainda se lembrava de cada mínimo detalhe da cena, desde a respiração torturada dela até o pânico no olhar enquanto lágrimas rolavam por ambos os rostos.

Sua Selena fora acometida por uma doença que raramente afetava membros da classe sagrada. Em todas as gerações de Escolhidas, algumas tiveram a Prisão, que era um jeito horrível de morrer: a mente era deixada viva na casca congelada do corpo, sem nenhuma escapatória, nenhum tratamento para ajudar, ninguém para salvar.

Nem mesmo o macho que a amava mais do que a própria vida.

Quando o coração de Trez tropeçou no âmago do peito, ele abaixou as mãos, meneou a cabeça e tentou se reconectar com a realidade. Estivera se debatendo contra esses episódios invasivos, e eles vinham se tornando mais frequentes em vez de menos – o faziam se preocupar com sua sanidade. Chegou a ouvir o ditado de que “o tempo cura as feridas” e, droga, talvez aquilo fosse verdade para outras pessoas. Para ele? Seu luto se transformara de dor incandescente, no começo, a uma agonia tão ardorosa que rivalizava com as chamas da pira funerária, até aquelas reminiscências crônicas que pareciam girar cada vez mais rápido ao redor do esteio aberto da sua perda.

Sua própria voz ecoava na cabeça: Eu entendi direito? Você quer que isto... termine?

Quando os momentos finais de Selena chegaram, ela já não conseguia mais falar. Tiveram que se apoiar num sistema de comunicação pré-combinado que supunha o controle dela sobre as pálpebras até quase o fim: uma piscada para não... duas para sim.

Você quer que isto... termine?

Ele soubera qual seria a resposta dela. Lera-o na expressão exausta, distante e enfraquecida dela. Mas aquela fora uma das vezes na vida em que se queria ter a mais absoluta certeza.

Ela piscara uma vez. E de novo depois.

E ele estivera ao lado dela quando as drogas pararam seu coração e lhe conferiram o alívio de que ela necessitava ao ser transportada.

Em todos os seus anos, ele jamais imaginara aquele tipo de sofrimento. Nas duas partes. Ele não teria conseguido criar uma morte pior saída de qualquer pesadelo, e não poderia ter imaginado que teria que assentir para Manny, autorizando-o a administrar o medicamento enquanto gritava internamente, pois seu amor se esvaía e o deixava sozinho pelo resto de suas noites.

O único conforto era que o sofrimento dela chegara ao fim.

A única realidade era que o seu tinha apenas começado.

No período subsequente, encontrou conforto no fato de que preferiria ser o responsável por sentir a ausência dela, e não o contrário. Mas, conforme o tempo prosseguiu, acabou usando demais esse antídoto, pois era o único que possuía, e agora ele já não surtia mais efeito.

Portanto, não havia nada para reavivá-lo. Tentou beber, mas o álcool só servia para ele perder o pouco controle que tinha sobre as lágrimas. Não dava a mínima para a comida. Sexo era algo completamente fora de questão. E ninguém o deixava lutar – pois tanto os Irmãos quanto iAm reconheciam seu estado desgovernado.

Portanto, o que lhe restava? Nada, a não ser se arrastar ao longo dos dias e das noites, e rezar para o mais básico dos alívios: um respiro desimpedido, um período de tranquilidade mental, uma hora de sono sem perturbações.

Ao estender a mão, tocou o painel de vidro inclinado que era a sua janela para o que ele considerava ser o outro mundo, o exterior do seu inferno isolado. Engraçado que ele agora considerava “outro” o que um dia fora o mundo “real”... E mesmo sem a separação das espécies, da idade, do seu poleiro acima da confusão da boate, ele se sentia tão à parte de todos eles.

Tinha a sensação de que sempre permaneceria afastado de todos.

E, francamente, ele simplesmente não poderia continuar assim.

A dor o destroçara e, se não fosse pelo fato de que os suicidas tinham a entrada negada no Fade, ele teria metido uma bala do seu 48 mm na cabeça horas após a morte dela.

Pensou que não suportaria outra noite assim.

– Por favor... me ajude.

Trez não fazia a mínima ideia de quem falava com ele. Do lado dos vampiros, a Virgem Escriba já não existia mais – e no seu atual estado mental ele compreendia por completo o motivo de ela ter largado o microfone e saído do palco de sua criação. E, como um Sombra, ele fora criado para adorar sua Rainha – o único problema era que ela estava vinculada ao seu irmão, e rezar para a cunhada parecia muito estranho.

Uma declaração autêntica de que toda aquela coisa espiritual não passava de um monte de asneira.

E, mesmo assim, seu sofrimento era tão grande que ele tinha que tentar buscar ajuda.

Inclinando a cabeça para trás, olhou para o teto baixo preto e despejou seu coração partido para o mundo:

– Eu só a quero de volta. Eu só... quero Selena de volta. Por favor... se existir alguém aí em cima, me ajude. Devolva-a para mim. Não me importo em que forma ela estiver... Eu só não consigo mais fazer isto. Não consigo mais viver assim nem pela porra de uma única noite.

Claro que não houve resposta. E ele se sentiu um completo idiota.

Pois é, como se a vastidão do universo lhe iria despejar outra coisa que não apenas um meteoro?

Além disso, será mesmo que existia um Fade? E se ele estivesse apenas alucinando durante a purificação e somente imaginara ter visto a sua Selena? E se ela só tivesse simplesmente morrido? Como se... tivesse apenas deixado de existir? E se todas as bobagens a respeito de um lugar celestial aonde nossos amados iam e esperavam pacientemente por nós não passasse de um mecanismo de defesa criado por aqueles deixados para trás mergulhados no tipo de agonia em que ele se encontrava?

Uma falácia mental para cuidar de um ferimento emocional.

Reajustando a cabeça, voltou a fitar a multidão abaixo...

Pelo vidro, o reflexo de uma imensa figura masculina parada logo atrás fez com que ele se girasse e levasse a mão para a arma que mantinha enfiada na lombar. Mas então reconheceu o indivíduo.

– O que você está fazendo aqui? – exigiu saber.


Dois patinadores suíços, Werner Groebli e Hans Mauch, cujos nomes artísticos eram Frick e Frack, nutriram uma parceria duradoura. Posteriormente, seus nomes se tornaram gíria para designar duas pessoas que trabalham juntas e se dão bem. (N.T.)


CAPÍTULO 6

A campina de 20 mil metros quadrados se elevava de uma estradinha deserta como oriunda do olhar crítico de um artista; todos os aspectos da colina e do vale pareciam sujeitos às regras dos padrões estéticos agradáveis. No alto do suave aclive coberto de neve, como uma coroa no topo da cabeça de um governante benevolente, um imenso bordo estendia seus galhos em uma áurea tão perfeita que mesmo a esterilidade do inverno não conseguia diminuir sua beleza.

Layla se desmaterializou até a base da colina, partindo da mansão, e subiu a pé até a árvore. Os chinelos usados no quarto não eram páreo para o chão congelado, o vento frio atravessava o roupão, e os cabelos se soltavam da trança, flanando ao seu redor.

Quando chegou ao cume, olhou para baixo, para as raízes do tronco glorioso dentro da terra.

Fora ali, pensou ela.

Ali, na base daquele bordo, ela vira Xcor pela primeira vez, convocada por alguém que ela acreditara ser um soldado de valor na guerra, alguém que ela alimentara na clínica da Irmandade... Alguém que a Irmandade deixara de lhe informar que, na verdade, era um inimigo e não amigo.

Quando o macho a chamara para que ela lhe provesse a veia, Layla não pensou em nada além do seu dever sagrado.

Por isso, transportara-se até ali... e perdera um pedaço de si no processo.

Xcor estivera à beira da morte, ferido e enfraquecido, e mesmo assim ela reconhecera sua força, ainda que em estado debilitado. Como poderia não tê-la notado? Era um macho tremendo, grosso no pescoço e no peito, forte nos braços, poderoso no corpo. Ele tentara recusar sua veia porque – ela gosta de acreditar – enxergara-a como uma inocente no conflito entre o Bando de Bastardos e a Irmandade da Adaga Negra, e quisera mantê-la afastada da situação. No fim, contudo, ele cedera, garantindo que ambos seriam a presa de uma ordem biológica que desconhecia a razão.

Ela inspirou fundo, observou a árvore e viu, através dos galhos desnudos, o céu noturno.

Depois que a verdadeira identidade de Xcor veio à tona, ela confessou a Wrath e à Irmandade suas ações, lacrimosamente clamando por perdão. E era um testemunho do rei e dos machos que o serviam o fato de a terem perdoado, e sem castigos, por ter prontamente ajudado o inimigo.

Em troca, era um parco testemunho da sua parte que ela tivesse voltado para junto de Xcor depois disso. Associou-se a ele. Tornou-se emocionalmente envolvida com ele.

Sim, existiu uma coerção inicial da parte dele na época, mas a verdade era que, mesmo que ele não a tivesse forçado? Sua vontade teria sido estar com ele. E o pior? Quando o relacionamento chegou ao fim, fora ele quem interrompera os encontros. Não ela.

Na verdade, ela o estaria vendo agora – e a dor da perda que sentia pela ausência dele era tão incapacitante quanto a culpa.

E isso foi antes ainda de ele ter sido capturado pela Irmandade.

Ela sabia exatamente onde ele havia sido aprisionado porque testemunhara suas condições naquela caverna... Sabia o que os Irmãos planejavam fazer com Xcor assim que ele despertasse.

Se ao menos houvesse um modo de salvá-lo... Ele nunca tinha sido cruel com ela, nunca a tinha ferido... jamais a havia abordado sexualmente, apesar do desejo que o habitava. Ele se manteve paciente e gentil... pelo menos até se afastarem.

Ele, entretanto, havia tentado matar Wrath. E essa traição era passível de punição com a morte...

– Layla?

Girando, ela tropeçou e caiu de lado, quase incapaz de se agarrar ao tronco áspero do bordo. Quando sentiu uma dor na palma, sacudiu-a na tentativa de apaziguá-la.

– Qhuinn! – exclamou.

O pai de seus filhos deu um passo à frente.

– Você se machucou?

Com um xingamento, ela limpou os arranhões, tirando a sujeira. Santa Virgem Escriba, como doía.

– Não, não. Estou bem.

– Pegue. – Ele apanhou algo de dentro do bolso da jaqueta de couro. – Deixe-me ver.

Ela tremia quando Qhuinn avaliou-lhe a mão e depois a envolveu na bandana preta.

– Acho que você vai viver.

Será?, ela pensou. Não tenho tanta certeza.

– Você está congelando.

– Sério?

Qhuinn tirou a jaqueta e a posicionou sobre os ombros dela, e Layla se viu engolfada pelo tamanho e pelo calor.

– Venha, vamos voltar para a mansão. Você está tremendo...

– Não posso mais fazer isso – ela desabafou num rompante. – Não consigo mais.

– Eu sei. – Quando ela se retraiu de surpresa, ele sacudiu a cabeça. – Sei o que há de errado. Vamos pra casa pra conversar. Vai ficar tudo bem, prometo.

Por um momento, ela não conseguiu respirar. Como ele podia ter descoberto? Como podia não estar bravo com ela?

– Como você... – As lágrimas surgiram com rapidez, a emoção se sobrepôs a tudo. – Sinto muito. Eu sinto muito... Não era para ser assim.

Ela não soube se foi ele quem abriu os braços ou se foi ela quem se lhe agarrou ao peito, mas Qhuinn a abraçou com força, protegendo-a do vento.

– Tá tudo bem. – Ele massageava grandes círculos nas costas dela com a palma, acalentando-a. – Só precisamos conversar a respeito. Podemos fazer algumas coisas, tomar algumas providências.

Ela virou o rosto para o lado e fitou a campina.

– Eu me sinto tão mal.

– Por quê? Isso está fora do seu controle. Não pediu por isso.

Ela se afastou.

– Eu juro, não pedi. E não quero que você pense nem por um segundo que eu poria Lyric e Rhampage em perigo...

– Tá de brincadeira? Sério, Layla, você ama aqueles dois com tudo o que tem dentro de si.

– Amo mesmo. Eu te garanto isso. E amo você e Blay, o Rei e a Irmandade. Vocês são a minha família, vocês são tudo o que tenho.

– Layla, preste atenção. Você não está sozinha, entendeu? E como eu já disse, existem coisas que podemos fazer...

– Mesmo? De verdade?

– Sim. Na verdade eu estava falando sobre isso antes de vir para cá. Eu não queria que pensasse que eu a estava traindo...

– Ah! Qhuinn! Eu sou a traidora! Sou eu quem está errada...

– Pare. Você não é. Vamos cuidar disso juntos. Todos nós.

Layla levou as mãos ao rosto, tanto a que estava com o curativo como a que estava descoberta. Então, pela primeira vez desde o que parecia ser uma eternidade, ela exalou o ar, um bálsamo de calma substituindo o terrível fardo que dispunha sobre si.

– Tenho que contar uma coisa. – Levantou o olhar para ele. – Por favor, saiba que tenho me remoído de arrependimento e de tristeza. Juro que nunca tive a intenção de que isso acontecesse. Tenho me sentido tão só, me debatendo com a culpa...

– Culpa é algo desnecessário. – Esfregou os polegares sob os olhos dela. – Você tem que se livrar disso, porque não consegue evitar o modo como se sente.

– Não consigo, de verdade, não consigo mesmo... E Xcor não é mau, não é tão ruim quanto você acha que ele é. Juro. Ele sempre me tratou com cuidado e gentileza, e sei que ele não voltaria a ferir Wrath. Eu sei disso...

– O quê? – Qhuinn franziu o cenho e sacudiu a cabeça. – Do que você está falando?

– Por favor, não o mate. É como você disse, existe um modo de fazer isso dar certo. Talvez vocês possam libertá-lo e...

Qhuinn não recuou; na verdade, ele a empurrou para longe de si. E depois pareceu se debater para encontrar as palavras.

– Layla – ele pronunciou devagar. – Sei que não estou ouvindo direito e estou tentando... Você pode...

Aproveitando-se do momento para expor sua posição, Layla se apressou em falar:

– Ele nunca me machucou. Todas as noites em que o procurei, ele nunca me feriu. Ele providenciou um chalé para que eu ficasse em segurança, e sempre estávamos apenas nós dois. Nunca vi nenhum dos Bastardos...

Ela prosseguiu enquanto a expressão do guerreiro se transformava de confusão para... algo gélido que lhe suscitou as feições de um completo desconhecido.

Quando Qhuinn voltou a falar, a voz saiu inexpressiva.

– Você esteve se encontrando com Xcor?

– Eu me senti muito mal...

– Por quanto tempo? – ele estrepitou. Mas não a deixou responder. – Você foi ao encontro dele enquanto estava grávida dos meus filhos? Você se associou por vontade própria com um inimigo conhecido enquanto os meus benditos filhos estavam no seu ventre? – Antes que ela conseguisse lhe responder, ele levantou o indicador. – E você precisa pensar muito bem na resposta. Não há volta para isto, e é melhor dizer a verdade. Se eu descobrir que mentiu pra mim, vou te matar.

Quando o coração de Layla começou a bater forte no peito, deixando-a tonta, seu único pensamento foi...

Você vai me matar de qualquer maneira.

De volta à shAdoWs, Trez guardou a arma e tentou retornar à realidade.

– E então? – ele inquiriu. – O que está fazendo aqui, ainda mais sem o seu poliéster especial do Tony Manero?

Lassiter, o Anjo Caído, sorriu de um modo que não contemplou seus estranhos olhos coloridos sem pupila; a expressão afetou apenas a parte inferior do rosto.

– Ah, você sabe, ternos de passeio estão ultrapassados para mim.

– Partindo para os anos 1980? Não tenho nada neon pra emprestar pra você.

– Não precisa, tenho outra fantasia para usar.

– Que bom pra você. Assustador pro resto de nós. Só me diz que não vai usar o maiô do Borat.

Quando o anjo não respondeu de pronto, Trez sentiu como se as garras de Fred Krueger estivessem passando pela sua nuca. Normalmente, Lassiter era o tipo de cara tão alegre que a maioria das pessoas não sabia se decidir entre meter uma bala nele para tirar todo mundo de um estado miserável... ou simplesmente apanhar uma lata de Coca-Cola e um saco de pipoca para assistir ao show.

Porque, mesmo quando ele irrita, a situação é sempre muito divertida.

Mas não essa noite. O olhar bizarro estava tão leve e espumoso quanto um bloco de granito, e o imenso corpo dele estava absolutamente imóvel, nenhum item de ouro nos pulsos ou pescoço, nos dedos ou orelhas, reluzia sob a luz baixa.

– Por que está brincando de estátua? – Trez murmurou. – Alguém trocou o lugar da sua coleção do My Little Pony de novo?

Incapaz de suportar o silêncio, Trez foi se sentar atrás da escrivaninha e começou a mexer em uma pilha de papéis.

– Está tentando ler minha aura ou alguma merda do tipo?

Não que para isso fosse necessário algum poder especial. Todos na mansão sabiam em que estado ele estava.

– Quero que vá jantar comigo amanhã à noite.

Trez levantou o olhar.

– Pra quê?

O anjo levou o tempo que quis para responder, seguindo devagar até o painel de vidro para encarar a multidão logo abaixo, no exato lugar em que Trez estava antes. Iluminado pela luz fraca, o perfil do anjo era o tipo de imagem que as fêmeas adorariam, com todas as proporções e os ângulos certos. Mas a cara de preocupação...

– Manda ver – Trez exigiu. – Já recebi uma vida inteira de más notícias. O que quer que seja, nada se compara ao que tenho passado.

Lassiter relanceou e deu de ombros.

– É só um jantar. Amanhã à noite. Sete horas.

– Eu não como.

– Sei disso.

Trez largou a pilha de faturas, de escala dos funcionários ou qualquer outra porra que o vinha mantendo ocupado, ainda que não as estivesse olhando de fato, junto ao amontoado de porcarias sobre a escrivaninha.

– Acho muito difícil acreditar em seu interesse a respeito de nutrição.

– Verdade. Essa coisa de “glúten é o seu inimigo” é uma bobagem sem fim. Nem me fale de Kombuchá, couve, ou qualquer coisa com propriedades antioxidantes, e na mentira de que o xarope de milho com alto teor de frutose é a fonte de todo o mal.

– Ouviu falar que a Kraft Macaroni & Cheese tirou todos os conservantes há meses?

– Pois é, e os filhos da mãe nem avisaram antes...

– Por que quer jantar comigo?

– Só estou sendo amigável.

– Não faz parte do seu estilo.

– Como disse antes, estou mudando algumas coisas. – Eeeee lá veio aquele sorriso de novo. – Pensei em começar com tudo. Quero dizer, se é pra virar a página, melhor começar do jeito que se deseja continuar.

– Sem ofensas, mas não estou a fim de passar tempo com pessoas de quem gosto de verdade. – Tudo bem, aquilo não soou muito bem. – O que quero dizer é que o meu irmão é o único que consigo tolerar agora, e nem ele eu quero ver.

Aquele sorriso de Lassiter era uma visão que Trez estava mais do que disposto a jamais rever – e observe como orações podem ser atendidas: o anjo estava seguindo para a porta.

– Te vejo amanhã.

– Não, obrigado.

– No restaurante do seu irmão.

– Ah, mas que porra, por quê?

– Porque ele serve o melhor macarrão à bolonhesa em Caldie.

– Você sabe o que eu quis dizer.

O anjo se limitou a dar de ombros.

– Vá lá e descubra.

– O inferno que vou! – Trez meneou a cabeça. – Olha só, sei que as pessoas andam preocupadas comigo e agradeço a preocupação. – Na verdade, não agradecia não. Nem um pouco. – Sim, perdi peso, e eu deveria comer mais. Mas é engraçado como, quando se tem o peito escancarado e o coração arrancado pelo destino, se perde o apetite. Por isso, se está querendo companhia só para não parecer que está jogando sozinho, por que não procura alguém que coma de verdade e troque mais de duas palavras com ela? Posso garantir que tanto eu quanto você teremos uma noite mais agradável assim.

– Até amanhã.

Quando o anjo saiu, Trez gritou para a ponta oposta do escritório:

– Vai se foder!

Quando a porta se fechou em silêncio, ele concluiu que, pelo menos, a discussão não continuaria. E quando estivesse comendo a bolonhesa sozinho, Lassiter entenderia que o Sombra não apareceria.

Problema resolvido.


CAPÍTULO 7

Há momentos na vida em que a amplitude da sua atenção se estreita em um foco tão exíguo que toda a sua consciência se concentra nessa única pessoa. Qhuinn não era alheio a esse fenômeno. Ele acontecia toda vez que estava sozinho com Blay. Quando segurava os filhos. Quando lutava contra o inimigo, em busca de garantir que voltaria para casa inteiro, sem ferimentos e concussões.

E estava acontecendo de novo agora.

Parados diante da base da árvore de Harry Potter, no topo de uma colina, com o vento invernal ao redor, Qhuinn estava ciente apenas do olho direito de Layla. Conseguia contar cada nuance verde-clara que irradiava do núcleo preto da íris. Poderia haver uma nuvem de cogumelos resultante de uma explosão nuclear ao longe, uma nave espacial acima da sua cabeça, uma fila de palhaços dançando ao seu lado... e ainda assim ele não teria visto, ouvido, percebido nada além daquilo.

Bem, isso não era inteiramente verdade.

Percebia de leve o rugido em seus ouvidos, um tipo de cruzamento do motor de um jato e dos fogos de artifícios que sibilam como uma banshee, girando em círculos até se exaurir.

– Responda – ele ordenou numa voz que não parecia a sua.

Ele a havia seguido até aquele local isolado quando sentiu sua ausência na mansão – e se deslocou até ali para falar com ela sobre depressão pós-parto. O plano era levá-la de volta para casa, confortá-la diante da lareira, colocá-la num caminho em que ela pudesse apreciar os seres pelos quais tanto se empenhou em trazer ao mundo.

Como diabos acabaram falando de Xcor e de ela ter se encontrado com ele?

Não fazia a mínima ideia.

Mas não havia mais nenhum mal-entendido. E nenhuma retratação a caminho. Ele via no olhar arregalado e no pânico silencioso que, apesar de seu desejo de que aquela fosse uma colossal falha de comunicação de proporções risíveis, não era o caso.

– Eu estava segura – ela sussurrou. – Ele nunca me feriu.

– Mas que porra q...

Ele se deteve nesse aspecto. Iria direto ao ponto, como se faz com o detonador de uma bomba.

Antes que ele fizesse ou dissesse algo de que se arrependeria, afastou-se e flexionou os dedos para que não se cerrassem em punhos.

– Qhuinn, juro que nunca estive em perigo...

– Você ficou sozinha com ele. – Quando Layla não respondeu, ele cerrou os molares. – Não ficou?

– Ele nunca me machucou.

– Ok, isso é o mesmo que dizer que nunca foi picada enquanto usava uma cobra como cachecol. Uma vez depois da outra. Porque essa porra aconteceu com frequência, não foi? Responda!

– Sinto muito, Qhuinn... – Ela parecia querer se recompor, fungando as lágrimas e aprumando os ombros. O modo como os olhos dela suplicavam perdão o levou à beira da violência. – Oh, Santa Virgem Esc...

– Pare com as súplicas! Não há mais ninguém lá em cima! – Ele estava perdendo o controle. Por completo. – E que diabos está fazendo com esse pedido de perdão? Você colocou meus filhos em risco por livre e espontânea vontade só porque queria... – Ele se retraiu. – Jesus Cristo. Você fez sexo com ele? Você trepou com ele com os meus filhos dentro de você?

– Não! Nunca estive com ele dessa forma!

– Mentirosa – ele urrou. – Você é uma vadia mentirosa...

– Sou praticamente virgem! E você sabe disso! Além do mais, você não me quer. Por que se importa?

– Está querendo sugerir que sequer o beijou? – Quando ela não respondeu, ele riu com aspereza. – Nem tente negar. Está escrito na sua cara. E você tem razão, eu não te quis, nunca te quis... E não tente distorcer as coisas. Não estou com ciúmes; estou enojado. Amo um homem de valor e tive que ir para a cama com você porque precisava de uma incubadora pro meu filho e pra minha filha. Por isso e pelo fato de você ter se jogado em cima de mim quando esteve no cio, esses foram os únicos motivos pelos quais estive com você.

O rosto de Layla empalideceu, e por mais que isso o tornasse um cretino, ele gostou. Queria feri-la por dentro, que era onde contava, porque, por mais furioso que estivesse, jamais bateria numa fêmea.

E essa era a razão por ela ainda estar de pé.

Aqueles bebês, aqueles preciosos e inocentes bebês, foram levados até a boca de um monstro, na presença do inimigo, expostos ao perigo que o teria feito se cagar nas calças caso tivesse sabido à época do acontecimento.

– Você faz alguma ideia do que ele é capaz de fazer? – Qhuinn perguntou com seriedade. – As atrocidades que cometeu? Ele esfaqueou o próprio tenente nas entranhas só para mandá-lo para as nossas mãos. E no passado, no Antigo País? Ele assassinou vampiros, humanos, redutores, qualquer um que lhe atravessasse o caminho, às vezes movido pela guerra, outras só por diversão. Ele era a mão direita de Bloodletter. Você consegue imaginar o que ele já fez nesta terra? Quero dizer, você evidentemente não dá a mínima para o fato de ele ter metido uma bala no pescoço de Wrath – está claro que isso não significa nada para você. Aquele bastardo poderia tê-la violentado mil vezes, estripado você e deixado que ardesse sob o sol – com os meus filhos dentro de você! Que tipo de porra de brincadeira você está armando pra cima de mim?!

Quanto mais Qhuinn pensava a respeito dos riscos a que ela se expôs, mais sua cabeça latejava. Seus amados filhos poderiam muito bem não existir por conta das más escolhas da fêmea, que apenas por preceito biológico, fora o abrigo deles até que pudessem respirar sozinhos.

Tinha colocado-os em perigo ao se arriscar – sem nenhum pensamento aparente quanto às consequências ou como ele, o pai biológico, poderia encarar tamanho fiasco.

Sua fúria, nascida do amor que nutria pelos bebês, era indefinível. Inegável. Inesgotável.

– Nós dois os desejamos – ela disse, rouca. – Quando nos deitamos, nós dois os quisemos...

Numa voz impassível, ele a interrompeu:

– Pois é, isso eu lamento. Melhor que eles não tivessem nascido do que ter metade de você neles.

Layla estendeu a mão para mais uma vez se apoiar na árvore – e, como foi a mão que estava envolvida por sua bandana, ele se percebeu sufocado pela necessidade de arrancar o pedaço de pano da mão dela. Para depois queimá-lo.

– Fiz o melhor que pude – ela afirmou.

Ele gargalhou, então, até que a garganta queimasse.

– Está se referindo ao tempo em que dormiu com Xcor? Ou quando pôs em risco a vida dos meus filhos?

De uma vez só, ela retribuiu a raiva dele com um jorro da sua:

– Você tem aquele a quem ama! Deita-se ao lado dele todos os dias! A sua vida tem objetivo e significado, além de servir a outrem – enquanto eu não tenho nada! Passei todas as minhas noites e dias servindo a uma divindade que já não se importa mais com a raça que gerou e agora sou a mahmen de dois bebês a quem amo com todo o meu coração, mas que não são eu. O que tenho para mostrar da minha vida? Nada!

– Nisso você acertou – ele concordou, sério. – Porque não será mais a mãe dos meus filhos. Você perdeu o seu emprego.

Ela se retraiu com indignação.

– O que está dizendo? Sou a mahmen deles. Eu...

– Não é mais.

Houve um instante de silêncio, e depois a voz explodiu para fora dela:

– Você não pode... Não pode tirar Lyric e Rhamp... Não pode afastá-los de mim! Sou a mahmen deles! Tenho meus direitos...

– Não, não tem. Você se associou ao inimigo. Cometeu um ato de traição. E vai ter sorte se sair desta com vida – não que eu me lixe se você viver ou morrer. A única coisa que me importa é que nunca mais veja os bebês...

A mudança no interior dela foi instantânea e arrebatadora.

De uma vez só, Layla passou de irada a absolutamente calada. E a mudança foi tão abrupta que ele teve de ponderar se ela não sofrera uma síncope.

Mas, em seguida, os lábios de Layla se retraíram das presas que desciam. E o som que saiu de dentro dela eriçou os pelos de sua nuca num alerta.

Quando abriu a boca, a voz dela foi letal como as lâminas de uma adaga.

– Não recomendo que tente me impedir de ver meu filho e minha filha.

Qhuinn expôs as próprias presas.

– Espere e verá.

O corpo da Escolhida se curvou e ela se agachou, o sibilo que ela emitiu era de uma víbora. Só que ela não saltou sobre ele para despedaçar seu rosto com as garras.

Layla simplesmente se desmaterializou.

– Ah, inferno! Não! – ele gritou para o cenário invernal frio e alheio a tudo. – Você quer guerra, é o que vai ter, cacete!

– ... vezes em que ainda sinto vontade – Blay dizia ao sorver um gole do seu copo com gelo. – Para os humanos, é um vício letal. Mas vampiros não têm que se preocupar em adquirir câncer por fumar.

A sala de bilhar da Irmandade estava quase deserta, visto que o torneio foi encerrado quando Butch teve de assumir o posto ao lado de Xcor, Tohrment pediu para se retirar, Rhage chegou machucado do campo, e Rehv decidira ficar nos Grandes Campos com Ehlena. Mas tudo bem. Blay ainda conseguira jogar com Vishous, e os dois circundavam a mesa central dentre as cinco, alternando-se nas jogadas. A boa notícia? Lassiter estava em algum outro lugar, o que significava que a TV acima da imensa lareira estava na ESPN, no mudo.

Nada de filmes da Disney com aquelas canções ridículas esta noite.

Se Blay tivesse que ouvir as merdas do Frozen uma vez mais, ele iria “let it goooooo” pra valer.

No sentido de esvaziar uma magazine bem diante do seu próprio lobo frontal.

Do outro lado da mesa, Vishous acendeu outro dos seus cigarros enrolados por ele mesmo.

– Então por que parou de fumar?

Blay deu de ombros.

– Qhuinn odeia cigarros. O pai dele fumava cigarros e cachimbo, então acho que isso o faz se lembrar de coisas das quais prefere esquecer.

– Você não deveria ter que mudar por ninguém.

– Fui eu quem escolheu parar. Ele nunca me pediu.

Enquanto o Irmão se inclinava sobre a mesa para alinhar o taco, Blay relembrou o início de sua história com Qhuinn. Esse papo de fumar começou quando teve de ficar assistindo ao macho que amava foder qualquer coisa que se movesse. Um período horrível. Não, não tinham um relacionamento – e toda vez que Qhuinn saía com alguém, isso servia de lembrete de que jamais estariam em um.

Caramba. Na época, ele sequer havia saído do armário.

O estresse e a tristeza foram difíceis de controlar, mas também houve um ressentimento borbulhante e irracional de sua parte. Por isso abraçara um mecanismo de compensação que Qhuinn não teria aprovado nem gostado. Fora uma desforra subversiva e mesquinha pelos pecados que o macho na verdade não cometera.

Mas, pelo menos, deixar de fumar tinha sido simples. Assim que os dois se entenderam? Ele deixou os maços de Dunhill de lado e nunca mais olhou para trás.

Bem... Talvez seja mais preciso afirmar que nunca escorregou no vício. Às vezes, quando via Vishous acendendo um, e o cheiro do tabaco permeava o ar, ele ansiava fumar um cigarro...

Bem quando V. lançou a bola da vez no meio do arranjo central, um som horrível de batidas resoou no vestíbulo. Alto, repetitivo, forte o bastante para sacudir e fazer tremer a maciça e grossa porta de carvalho da entrada da mansão, de modo que mais parecia que uma horda de redutores estava tentando invadi-la.

Blay sacou a arma que portava na casa enquanto ele e V. largavam os tacos e corriam para fora da sala de bilhar até a entrada principal.

Bam-bam-bam-bam!

– Mas que porra é essa? – V. murmurou ao olhar para o monitor de segurança. – Que diabos há de errado com o seu garoto?

– O quê?

A pergunta foi respondida quando V. soltou a trava e Qhuinn entrou explodindo no vestíbulo. O macho estava furioso a ponto de parecer possuído, o rosto contraído de raiva, o corpo disparado numa corrida, seu estado tal que ele parecia alheio à presença de qualquer um.

– Qhuinn? – Blay tentou segurá-lo pelo ombro ou pelo braço.

Não teve jeito. Qhuinn chegou à escadaria e deu uma de Usain Bolt, os degraus cobertos pelo tapete vermelho foram consumidos por saltos ligeiros.

– Qhuinn! – Blay disparou atrás do que quer que estivesse acontecendo, tentando alcançá-lo. – O que foi?

No alto da escadaria, os coturnos de Qhuinn se enterraram no carpete e por pouco não derraparam ao virar à esquerda no corredor das estátuas. Logo atrás dele, Blay se apressou, e quando a direção que ele tomava ficou clara, um súbito terror se apossou dele.

Layla e as crianças deviam estar em algum perigo...

Na porta do quarto de Layla, Qhuinn agarrou a maçaneta e girou – só para bater de cara na madeira.

Cerrando um punho, ele começou a bater na porta com tanta força que lascas de pintura começaram a cair.

– Abra a porra desta porta! – Qhuinn berrou. – Layla, abra esta maldita porta agora mesmo!

– Mas que diabos você está fazendo?! – Blay tentou impedi-lo. – Ficou louco...

A arma de Qhuinn saiu sabe-se lá de onde, e quando o Irmão a virou e direcionou o cano para o rosto de Blay, ficou claro que se tratava de algum tipo de pesadelo, o resultado inevitável de uma segunda dose de vinho do Porto depois do jantar de carneiro de Fritz.

Só que não.

– Fique fora disso – Qhuinn estrepitou. – Fique fora disso.

Enquanto Blay erguia ambas as mãos e recuava, Qhuinn virou o ombro para a porta e a empurrou com tanta força que a madeira rachou, os painéis se partindo sob a força do golpe.

O que se revelou dentro do quarto cor de lavanda foi igualmente aterrador.

Enquanto Vishous parava de pronto ao lado de Blay e Z. saía da sua suíte ao fim do corredor, o cérebro de Blay para sempre ficaria maculado pela visão incompreensível e inescapável de Layla com cada filho debaixo dos braços, as presas expostas em pose de ataque, o rosto como o de um demônio, o corpo todo trêmulo – mas não de medo.

Ela estava preparada para matar qualquer um que se aproximasse dela.

Qhuinn apontou a arma na direção dela através do buraco criado na porta.

– Solte-os. Ou acabo com você.

– Mas que porra está acontecendo aqui? – A voz de Vishous saiu tão alta quanto se ele tivesse um alto-falante. – Vocês perderam a cabeça, caralho?

Qhuinn enfiou a mão por dentro e soltou a tranca, escancarando o que restava da porta. Quando ele entrou, Blay deteve os demais.

– Não, deixem que eu cuido disso.

Se mais alguém além dele entrasse, balas começariam a pipocar, e Layla iria atacar, e pessoas se feririam – ou pior.

E que porra estava acontecendo ali?

– Solte-os! – Qhuinn ladrou.

– Mate-me, então! – Layla revidou. – Vá em frente!

Blay colocou o corpo entre os dois, o tronco enquanto bloqueio no caminho de qualquer bala. Nesse meio-tempo, Layla respirava ofegante, e Lyric e Rhamp choravam – merda, ele jamais se esqueceria do som daquele choro.

De frente para Qhuinn, ele mostrou as palmas e falou com lentidão:

– Vai ter que atirar em mim primeiro.

Ele não se concentrou em nada além dos olhos azul e verde de Qhuinn... Como se pudesse, de alguma forma, comunicar-se telepaticamente com seu oponente para acalmá-lo.

– Saia da frente – Qhuinn ordenou. – Isto não é da sua conta.

Blay piscou ante tais palavras. Mas, considerando-se que enfrentava o cano de uma 40 mm, deduziu que deixaria o insulto passar por ora.

– Qhuinn, qualquer que seja o problema, conseguiremos lidar com... Aquele olhar despareado se voltou para ele por apenas uma fração de segundo.

– Acha mesmo? Quer dizer que o fato de ela ter se associado com o inimigo pode ser lavado com detergente ou alguma merda do tipo? Maravilha, vamos chamar Fritz pra cuidar disto. Ideia boa do cacete.

Enquanto os bebês continuavam a chorar, e mais pessoas se aproximavam da cena no corredor, Blay balançou a cabeça.

– Do que está falando?

– Ela levou os meus filhos com ela quando foi trepar com ele...

– Não entendi, o quê?

– Ela esteve com Xcor durante todo esse tempo. Ela não parou de se encontrar com ele. Associou-se a um inimigo conhecido do nosso rei enquanto estava grávida dos meus filhos. Por isso, sim, estou no meu direito de pai de puxar o gatilho contra ela.

De repente, Blay tomou ciência de um grunhido crescente atrás dele, e o som terrível o lembrou do que ouvira a respeito de as fêmeas da espécie serem mais letais do que os machos. Relanceando por sobre o ombro, ele pensou que sim, Layla estava evidentemente preparada para proteger os filhos até a morte naquela porra de universo paralelo para o qual foram sugados.

Xcor? Ela andou se encontrando com Xcor?

Só que ele não podia se desviar do perigo imediato.

– Só quero que você abaixe essa arma – Blay disse com calma. – Abaixe a arma e me conte o que está acontecendo. Senão, se quiser atirar nela, a bala vai ter que passar por mim primeiro.

Qhuinn inspirou fundo, como se estivesse se esforçando para não gritar.

– Eu te amo, mas isto não é da sua conta, Blay. Saia do caminho e deixe que eu cuido disto.

– Espere um minuto. Você sempre disse que também sou pai dessas crianças...

– Não quando o assunto é este. Agora saia da minha frente, caralho.

Blay piscou uma vez. Duas. Uma terceira vez. Engraçado, a dor em seu peito o fez refletir se Qhuinn não havia apertado o gatilho, e ele apenas deixou de ouvir o disparo.

Concentre-se, ordenou a si mesmo.

– Não, não vou me mexer.

– Saia da frente! – O corpo de Qhuinn começou a tremer. – Mas que diabos, saia da porra da minha frente!

Agora ou nunca, Blay pensou ao avançar e atacar o pulso que controlava a pistola. Ao golpear o antebraço com toda a força, a arma disparou repetidamente, e os cartuchos das balas saíram voando – mas, com uma rápida mudança de direção, ele conseguiu empurrar Qhuinn para o lado. O casal se estatelou no chão, e Blay se esforçou para dominar seu par, o impulso do movimento afastando-os de Layla e dos pequenos enquanto mantinha a arma apontada para o sentido oposto do quarto.

Blay acabou por cima, mas sabia que Qhuinn lhe tomaria a posição bem rápido. A arma, ele tinha que manter controle da...

De repente, o ar se tornou ártico.

A temperatura do quarto caiu para baixo de zero tão rápido que as paredes, o piso e o teto rangeram em protesto, a respiração dos presentes foi expelida em lufadas, a condensação gelou os vidros das janelas e os espelhos, com arrepios de qualquer pele exposta.

Em seguida, ouviu-se um rugido vigoroso.

O som foi tão intenso que foi quase inaudível – nada além de dor atravessou-lhes o canal auditivo, transformando suas cabeças em sinos de igreja – e isso, ainda mais do que a mudança no clima, deteve todos dentro da suíte, no corredor, na mansão... Talvez em todo o mundo.

O imenso corpo de Wrath apequenou a soleira da porta quando ele entrou no quarto, marcado pelos cabelos até a cintura, óculos escuros, coxas cobertas por couro e tronco avantajado, que teria detido qualquer trem em movimento.

Suas presas estavam totalmente expostas, como os dentes de um tigre-dentes-de-sabre. Mas ele não teve dificuldade alguma de se expressar, mesmo com elas.

– Não na porra da minha casa! – Ele soou tão alto que o quadro ao seu lado vibrou contra a parede de gesso. – Isso não vai acontecer na porra da minha casa! Minha shellan e meu filho estão aqui – existem outras crianças debaixo deste teto. Existem crianças na droga deste quarto!

Do lado oposto, Layla caiu no chão, os ossos absorvendo a queda com um barulho. Apesar do impacto, manteve Lyric e Rhamp em segurança, aninhados no colo, enquanto pendia a cabeça e começava a chorar.

Debaixo de Blay, Qhuinn tentava se soltar.

– Não até você soltar a arma – Blay disse entredentes.

Houve o som de metal se chocando contra a madeira quando a 40 mm foi solta e Blay a empurrou para longe. Em seguida, Qhuinn se desvencilhou e pôs-se de pé sobre os coturnos. Parecia que ele tinha estado num túnel de vento, seus cabelos negros dispostos em uma bagunça completa, os olhos arregalados, a pele corada em determinados pontos, mas pálida em outros.

– Todos para fora – Wrath ordenou. – Exceto pelos três pais.

Bem, pelo menos alguém reconhecia seu papel, Blay ponderou, com amargura.

Direcionando seu olhar para Qhuinn, viu-se encarando, através do caos, o macho que conhecia quase tão bem quanto a si mesmo.

Naquele instante, porém? Blay fitava para um estranho. A droga de um total desconhecido. Os olhos que Blay já havia passado horas perscrutando, os lábios por ele beijados, um corpo que tocou, acariciou, penetrou e pelo qual também foi penetrado... Era como se algum tipo de amnésia tivesse apagado toda a intimidade, metamorfoseando o que um dia fora uma realidade conhecida em uma hipótese tão fraca que parecia inexistente.

Vishous entrou no quarto.

– Primeiro, vistoria de armas.

Quando o lábio superior de Wrath se retorceu, ficou claro que o rei não apreciou a interrupção. Mas não havia como argumentar contra a razão.

V. foi eficiente na revista: primeiro retirou um par de adagas de Qhuinn, depois outra pistola – e, quando Blay se levantou, ergueu-lhe os braços e afastou-lhe as pernas, mesmo ciente de que ninguém estava preocupado que ele puxasse o gatilho.

– Pronto – V. anunciou ao se espremer para passar pelo Rei e voltar para o corredor.

– Diga aos outros que saiam – Wrath estrepitou.

– Certo.

Ante o comando real, a multidão se dispersou da soleira, mas não foi muito longe. Suas presenças pairaram enquanto, evidentemente, aguardavam os acontecimentos seguintes. De um jeito ou de outro, não havia como fechar a porta. Estava totalmente arruinada.

Virando-se na direção de Qhuinn, Wrath maldisse a situação e exigiu:

– Vai me explicar por que diabos disparou uma arma dentro da minha casa?

 

 

 

CONTINUA